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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MORTE DE SARAI
A MORTE DE SARAI

 

 

                                                                                                                                                

 

 

 

 

CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Sarai

A caminho da mansão, Victor me lembra pela última vez:

— Nunca saia da personagem. Aconteça o que acontecer, ou o quanto as coisas fiquem desconfortáveis para você. Não abandone a personagem.

— Entendi — digo. — Aconteça o que acontecer, não vou abandonar a personagem. Prometo.

Esse olhar que ele me lança, embora indistinto, me diz que ele tem suas dúvidas.

Chegamos à propriedade de Arthur Hamburg às sete e meia e somos recebidos por um portão eletrônico alto, de ferro, e um segurança. Victor passa nossos convites pela janela do carro. O segurança os inspeciona primeiro, depois vai até um painel incrustado na lateral da pequena guarita de pedra e encosta um telefone ao ouvido. Eu o ouço vagamente pela janela aberta, nos descrevendo e descrevendo os convites. Alguns segundos depois, ele desliga e devolve os convites a Victor.

O segurança entra novamente na guarita, e logo depois o portão de ferro se abre, dando-nos acesso à enorme propriedade. Depois de atravessar o calçamento de cascalho por quase um hectare, estacionamos o carro na frente da mansão, perto de uma variedade de veículos igualmente caros.

Saímos do carro, Victor passa o braço no meu e seguimos na direção da casa. Nós nos aproximamos da gigantesca porta dupla principal, passando por duas colunas de mármore nas laterais e por baixo de uma varanda escalonada. Somos recebidos na porta por outro segurança armado, e é então que noto todos os outros seguranças espalhados pela propriedade. Lembro que Victor me falou deles e começo a me sentir um pouco desconfortável. Mas depois que nossos convites são inspecionados de novo e entramos, o desconforto diminui, substituído por assombro. Já estive em muitas mansões, mas esta é de longe a mais impressionante, com pés-direitos de quatro andares no centro da casa, abrindo-se para uma imensa claraboia redonda. Lindas estátuas gregas estão expostas no térreo. Sempre que alguém entra, o som de sapatos estalando de leve no mármore ecoa como se eu estivesse dentro de um museu, e não em uma mansão particular da Califórnia. Ouço o que parece uma pequena cachoeira e então noto que à minha direita, sob um arco de 4,5 metros, há um lindo chafariz de pedra branca bem no meio da sala.

Antes de ser flagrada admirando este lugar de olhos esbugalhados, como uma garota que nunca viu tanta riqueza na vida, mudo minha expressão para parecer distraída, estreitando os olhos de leve, como se parte de mim estivesse entediada. E quando alguém me olha, escolho para quem balanço a cabeça sutilmente em reconhecimento e quem ignoro. Ignoro sobretudo as mulheres, ou as olho rapidamente com ar de desaprovação.

Victor anda comigo pela enorme sala, e somos então recebidos por um homem, embora não seja Arthur Hamburg. Ele é muito mais novo, com cabelo castanho-claro e olhos castanhos.

— Bem-vindos à mansão Hamburg — diz o homem. Ele estende a mão e Victor a aperta. — Eu sou Vince Shaw, o assistente do sr. Hamburg.

— Eu sou Victor Faust e esta é minha mulher, Izabel Seyfried.

Estendo a mão para o homem, com a palma para baixo, e ele a toma nos dedos e se curva para beijá-la.

Eu me pergunto se esse é realmente o sobrenome de Victor. Ele não parece preocupado em usar seu primeiro nome verdadeiro — a menos que “Victor” também não seja seu nome...

Não posso pensar nisso agora.

“Vince” pega uma taça de champanhe de uma bandeja quando um garçom passa. O garçom nos oferece a bandeja em seguida.

— Por favor, tomem uma taça — diz Vince, e Victor pega uma da bandeja e a entrega a mim, antes de se servir. — Peço desculpas — diz Vince —, mas estou curioso para saber como obtiveram o convite.

Victor toma um gole de champanhe e demora para responder, como se fosse importante o suficiente para fazer o homem esperar.

— Izabel e eu estávamos no restaurante do sr. Hamburg noite passada. Houve um incidente.

— Ah, sim, claro — diz Vince, com um sorriso conivente mas respeitoso. Então ele se vira para mim. — Foi mais do que indenizada pelo seu vestido, presumo?

— Sim, fui — digo, tomando um gole de champanhe. — Mas devo dizer que acho que a questão poderia ter sido resolvida de maneira diferente.

— Ah? A que maneira se refere?

— Bem, aquele, por acaso, era meu vestido favorito. Tinha valor sentimental, se quer saber. O garçom deveria ter sido demitido.

— Ah, sim — diz Vince. — Bem, isso com certeza pode ser providenciado. Falarei com o sr. Hamburg sobre isso pessoalmente. Isto é, se não quiser fazer isso quando se encontrarem mais tarde.

— Não — digo, piscando. — Acredito que o senhor me poupará de precisar repetir o que disse.

Olho para Victor, que parece satisfeito com meu desempenho.

— É claro — garante Vince. — Não diga mais nada. Será feito. — Ele sorri, revelando dentes brancos e perfeitos.

Eu me sinto péssima por ser o motivo de aquele pobrezinho ser demitido, mas me consolo dizendo a mim mesma que ele não deveria trabalhar para alguém como Hamburg. Afinal, se fomos mandados aqui para matá-lo, isso só pode significar que ele é, de alguma forma, um canalha.

Nós nos distraímos com Vince por algum tempo, mas eu basicamente só tomo goles de champanhe e ouço os dois conversando. De vez em quando levanto a mão e a dobro com as unhas para cima, examinando-as, entediada. Noto que Victor olha para o relógio uma vez.

— O sr. Hamburg descerá para cumprimentar seus convidados em breve — diz Vince. — Por enquanto, sintam-se à vontade para aproveitar o champanhe e os hors-d’œuvres. Ah, aí está ela! — Ele faz um gesto para nós, e nos viramos. — Gostaria de lhes apresentar Lucinda Graham-Spencer. — Ele sorri para Victor. — Certamente a conhecem, não?

Uma mulher estonteante, usando um vestido branco colado ao corpo curvilíneo, se aproxima, acompanhada por um homem de terno.

— Sim, já a ouvi tocar — diz Victor. — Em um concerto em Londres, ano passado. Ela é brilhante.

— Querrrrido, como vai? — pergunta a mulher chamada Lucinda Graham-Spencer, abrindo os braços dramaticamente para Vince. Victor e eu damos um passo para o lado e ela esvoaça entre nós para plantar dois quase-beijos nas bochechas de Vince.

Reviro os olhos. E não apenas como a personagem.

— Lucinda — diz Vince, virando-se para Victor —, estes são Victor Faust e — ele me indica com um gesto — Izabel Seyfried. São convidados do sr. Hamburg.

Lucinda se aproxima de Victor da mesma forma que fez com Vince, e eles se beijam no rosto. Então ela se vira para mim. Victor me fuzila com o olhar, discretamente, mas isso não basta como dica, e eu também não sou telepata, cacete.

Por isso, ajo como meu instinto manda.

— Prazer em conhecê-la — digo com educação, mas sem diminuir meu ar de superioridade. Retribuo os beijos no rosto, com as mãos apoiadas delicadamente em seus braços, como as dela estão nos meus.

Os olhos de Victor sorriem para mim agora, aprovando minha decisão, e provavelmente aliviados com ela. Ao que parece, essa mulher tem uma importância muito maior do que jamais vou ter, e embora eu não faça ideia de que tipo de musicista ela seja ou por que é tão importante, sei que deve ser famosa em seu meio, e eu só faria papel de idiota se esnobasse alguém tão respeitado. Aliás, provavelmente seríamos expulsos a pontapés se eu fizesse isso.

Vince deixa Victor e eu a sós e anda com a mulher pela sala para apresentá-la aos outros convidados. Escuto e noto que ele diz a todos a mesma coisa que nos disse, e que todos aqui são apresentados como “convidados do sr. Hamburg”. Começo a me perguntar como Victor planeja ter a atenção exclusiva do sr. Hamburg com tantas outras pessoas aqui, casais inclusive, competindo por ela.

Victor passa a mão livre pela minha cintura e nós andamos lentamente pela sala, fingindo conversar sobre os quadros e as estátuas. Ele aponta discretamente para isto ou aquilo e comenta detalhes das cores ou da emoção que a obra retrata. São todas observações inúteis e desinteressantes, que não merecem realmente nenhum comentário, na minha opinião, mas eu entro no jogo assim mesmo. Logo percebo que ele estava usando esse tempo para atravessar a sala sem parecermos perdidos nem precisando da companhia de alguém para nos fazer sentir mais entrosados.

— Preciso ir ao toalete — diz Victor, deixando sua taça de champanhe em uma mesa na entrada do corredor. — Você vai ficar bem sozinha?

— Claro — digo, com ar aborrecido. — Sou perfeitamente capaz de ficar sozinha.

Ele beija meus lábios e se afasta pelo corredor. Eu o observo até que ele vira a esquina no final. Sei que ele não está procurando o “toalete” e começo a ficar nervosa quando ele demora mais do que alguns minutos e eu continuo parada ali, sozinha. Espero não parecer precisar de ajuda para me enturmar.

Acabo recebendo-a mesmo assim.

— Sou Muriel Costas — diz uma mulher, se aproximando de mim com outra mulher e um jovem. — Nunca vi você por aqui.

— Izabel Seyfried — me apresento, tomando meu champanhe muito lentamente, mostrando à mulher que minha taça merece mais atenção do que ela. — E acho isso natural, já que nunca estive aqui antes.

Ela sorri, aproximando sua taça dos lábios pintados de rosa. Ela tem cabelo longo e preto caindo nos ombros e batendo logo abaixo de seus seios fartos. Seu decote é ressaltado pelo vestido cinza justinho. A mulher ao lado dela lhe lança um olhar, provavelmente se perguntando se a primeira deixará impune minha resposta atravessada. Retribuo o sorrisinho e dirijo a atenção para o jovem, que não deve ser muito mais velho do que eu.

Abro um sorriso tênue e sedutor para ele, só para deixar Muriel irritada, e ele percebe. Mas então seu olhar é desviado com submissão quando ela o encara.

— De onde vem? — pergunta ela.

— De onde vem o quê?

Ela e a outra mulher se entreolham com sorrisos leves, obviamente formando a mesma opinião a meu respeito.

— Seu dinheiro — diz Muriel, como se eu devesse conhecer o jargão.

Ela toma um gole de champanhe.

“Você é rica, embora ninguém precise saber de onde vem o seu dinheiro.”

Meu rosto todo escurece com um sorriso confiante.

— Só uma pessoa que se sente ameaçada faz esse tipo de pergunta — digo, e olho rapidamente para os outros dois para exibir discretamente meu controle da conversa. É aparente, para mim, que eles são vira-latas de Muriel Costas, e, dependendo de que mão oferece os melhores restos de comida, não são imunes a influências.

Victor reaparece no corredor.

O rosto de Muriel se ilumina quando o vê. Ela se apresenta imediatamente, oferecendo a mão para um beijo de praxe que eu sei que não tem nada a ver com praxe e tudo a ver com desafio. Victor aceita o gesto e olha nos olhos escuros dela ao se erguer de sua reverência discreta, que ele mantém um pouco mais do que eu gostaria. Mas Muriel está satisfeita e faz questão de me olhar bem nos olhos para que eu saiba disso.

Eles se apresentam e recomeçam o papo furado de festa. Mas em vez de mostrar um pingo de ciúme, já que sei que nada daria mais satisfação a Muriel, eu me afasto dos quatro com o queixo erguido e ar importante e acho um grupinho de homens só meu para confraternizar. Não sei ao certo se Victor aprova essa ação, mas não olho para trás para descobrir. Se eu fizesse isso, meu ciúme ficaria tão aparente quanto em uma demonstração escandalosa. E não é tão fácil Izabel Seyfried sentir ciúme. Ela revida.

Não ofereço a mão a esses três homens, apenas minha conversa encantadora e confiante, que eu jamais ofereceria a uma mulher. Eu não esperava que isso acontecesse, mas é nesse momento, quando assumo totalmente o controle das coisas, que percebo não só que entrei no papel mais do que julgava ser capaz, mas também que estou começando a dar a Izabel Seyfried seus próprios traços. Traços que Victor, tecnicamente, nunca me mandou dar a ela. Eu decido — porque parece o certo — fazê-la desprezar as mulheres um pouco em demasia e adorar os homens um pouco intensamente demais.

Afinal, se vou fazer o papel de outra pessoa, é melhor preencher todas as lacunas de sua personalidade e torná-la totalmente realística.

Durante minha conversa com esses homens, cujos nomes já esqueci, Victor entra no grupo. Sinto sua mão em meu antebraço, apertando-o com força.

— Você sabe que eu não gosto quando você se afasta de mim — diz ele.

Os homens não dizem nada, mas nos ouvem atentamente, como que intrigados pela exibição de Victor de dominação sobre mim.

Abro um sorrisinho.

— Eu sei que você não gosta — digo —, mas estava ficando... sufocada com sua bisavó ali.

Muriel fixa os olhos nos meus ao ouvir isso, e eu sorrio em resposta. Ela e seus mascotes se afastam na direção oposta, até outro grupinho.

Victor esmaga meu braço, fazendo o champanhe se agitar em minha taça.

O sorriso desdenhoso desaparece do meu rosto em um instante.

Ele se curva para meu ouvido e diz em voz baixa:

— Não suporto a ideia de fazer isso, Izabel, mas se for preciso, eu vou abandonar você. — Sua respiração dança por meu pescoço, deixando a pele arrepiada.

— Não vou mais fazer isso — digo, ofegante, virando o pescoço para que minha boca alcance a dele.

Fecho os olhos para beijá-lo e sinto seus lábios tão perto dos meus que quase posso saboreá-los, mas então ele se afasta. Os homens perto de nós estão assistindo a tudo, discretamente, quando volto a abrir os olhos.

Arthur Hamburg aparece na sala do chafariz com quatro homens de terno, e todas as atenções se voltam para ele.


CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Sarai

O homem parece ainda mais velho do que na foto. E mais gordo. Acredito que tenha 60 e poucos anos, estatura mediana, abaixo de 1,80 metro, e não menos do que 130 quilos, a maior parte na barriga e nas bochechas. Enquanto está na entrada da sala, com seus capangas ao redor, eu não vejo apenas um ancião obeso, vejo um homem mau que vai morrer esta noite. É tudo o que consigo pensar: ele vai morrer. E eu estarei lá para presenciar. De repente minhas entranhas se fecham, meu peito aperta, meu estômago dá um nó e sinto que não consigo respirar. Inspiro pelos lábios entreabertos e solto o ar bem devagar pelas narinas. Calma, Sarai. Fique calma.

Eu não pensei que fosse me afetar desse jeito saber o destino de um homem, praticamente controlar se ele vai viver ou morrer apenas por saber o que ele não sabe. Mas, apesar da ansiedade que sinto quando me dou conta da realidade da situação, não me arrependo de ter vindo. Posso não saber o que Arthur Hamburg fez para merecer a morte, mas confio nas palavras de Victor e sei que ele está longe de ser inocente, ou não estaríamos aqui.

Arthur Hamburg se dirige a seus convidados, agradecendo a todos nós por termos vindo esta noite, e continua falando e falando de coisas supérfluas, com todo mundo assentindo, concordando, sorrindo e opinando. E ele conta piadas das quais ri antes de todos, mas todos sempre riem também, porque seria grosseria não rir, é claro. Até eu me pego rindo um pouco de uma piada que todos parecem achar engraçada, mas que na verdade eu não acho.

Victor me põe diante de si, apertando minhas costas contra seu peito. Sua boca explora meus ombros nus, suas mãos estão em meus quadris. Mas a afeição é breve, apenas uma exibição, e sua atenção volta para Arthur Hamburg, quem eu noto que, nesse curto espaço de tempo, nos encontrou, e está nos fitando do outro lado da sala. Percebo a deliberação em seu olhar, a mudança repentina de sua expressão. Depois de mais alguns pronunciamentos, ele encerra a conversa e deixa todos se divertirem, como estavam fazendo antes que ele entrasse na sala.

Quando dou por mim, ele está vindo em nossa direção.


Victor

Arthur Hamburg aperta minha mão quando me apresento e apresento Izabel.

— Meu assistente disse que o senhor teve um problema em meu restaurante, noite passada.

Ele sabe muito bem que fomos nós dois. Viu tudo daquela sua sala particular, escutou nossas conversas à mesa pelo minúsculo microfone situado no arranjo de centro.

— Sim — digo, assentindo. — Desculpe dizer, mas acredito que uma mudança no modo como sua gerência contrata os funcionários é necessária.

Hamburg sorri para disfarçar o que está fazendo, na verdade: estudando a mim e Sarai, reparando em nós mais do que já fez no restaurante, imaginando-nos com ele em seu quarto. Ele está se lixando para o incidente no restaurante ou a possibilidade de ser processado. Isso não tem nada a ver com o convite para estarmos aqui.

— O senhor é de Los Angeles? — pergunta ele.

— Não — respondo, puxando Sarai para mais perto, com um braço em volta de sua cintura e a mão apoiada quase em sua virilha. Os olhos de Hamburg descem para minha mão ali. — De Estocolmo.

Ele parece intrigado.

— Não tem sotaque estrangeiro — diz ele.

Respondo em sueco:

— Sou fluente em sete idiomas. — Depois repito em inglês para que ele entenda.

Ele assente, com um sorriso impressionado. Então olha para Sarai.

— E você?

— De Nova York — respondo por ela.

Sarai fica quieta dessa vez.

Hamburg se vira para mim de novo e pergunta:

— Ela é sua...? — Ele vasculha a mente em busca da maneira mais prudente de fazer a pergunta.

— Minha propriedade? — digo por ele, mostrando que é perfeitamente aceitável falar sobre coisas que em outra situação seriam tabus. — Sim, ela é. E na maior parte do tempo, gosta disso.

Ele ergue uma sobrancelha espessa e grisalha.

— Na maior parte do tempo? — pergunta ele inquisidoramente. — E o que ela pensa no resto do tempo?

Ele olha para Sarai, com um sorrisinho nos cantos de seus lábios enrugados.

— No resto do tempo eu tenho vontade própria — diz Sarai como Izabel.

Suspiro e balanço a cabeça, passando os dedos por seu quadril.

— Sim, ela tem, admito — confirmo. — Prefiro mulheres que oferecem resistência.

— Então o senhor já seguiu o outro caminho, suponho? — pergunta Hamburg, e sei que ele está se referindo à submissão total, a possuir uma mulher que fará qualquer coisa que mandarem sem a menor expressão de desconforto ou recusa.

— Uma vez — respondo. — Estou satisfeito com Izabel, apesar de sua boca grande, às vezes.

Hamburg a examina mais de perto agora, e a mim também. Ele gosta de mulheres e de homens, afinal. E também gosta de mulheres que oferecem resistência, como Izabel. A única diferença é que as outras foram trazidas para cá contra a vontade.

De repente, Hamburg ergue o queixo orgulhosamente e diz:

— Gostaria muito de falar com o senhor em particular. Na minha suíte. Se estiver interessado em ofertas lucrativas. Está interessado em ofertas lucrativas, não está? — Ele sorri e molha os lábios rapidamente com a língua.

Penso a respeito um momento, mexendo com sua cabeça, demonstrando, só pelo olhar, que estou interessado, mas não desesperado.

— Estou disposto a ouvir a oferta, pelo menos — digo.

Seus olhos se iluminam. Ele se vira para o homem de terno ao seu lado, murmura algo em seu ouvido e volta a falar conosco enquanto o homem pega o elevador panorâmico até o último andar.

— Me acompanhem — diz Hamburg, e nós dois o seguimos até o elevador.

Hamburg nos conta da construção de sua mansão enquanto esperamos que o elevador panorâmico desça vazio. E tagarela sobre todo o dinheiro que gastou na casa, explicando discretamente que pode me pagar, seja qual for meu preço. Sinto Sarai ficando cada vez mais nervosa enquanto subimos até o último andar. Em um momento, ela agarra minha mão, e olho para seus dedos delicados presos nos meus. Aperto sua mão de leve, lembrando que estou aqui e que farei tudo o que puder para mantê-la a salvo. Eu a olho nos olhos, e no momento só o que vejo é Sarai me olhando também, a garota corajosa mas ansiosa e complicada que despertou tanto meu instinto protetor.

Vamos até um enorme corredor que dá para a entrada do quarto dele, intrincada e espalhafatosa como o resto da casa. Dois homens de terno montam guarda na porta. Cada um deles, como os que estão lá embaixo, carrega armas por baixo das roupas. Mas eu não. Desta vez, não. Porque sei que Sarai e eu seremos revistados antes que nos deixem entrar, e encontrar uma arma em qualquer um de nós, duas pessoas ricas mas, à parte isso, comuns que não têm motivo algum para portar armas de fogo, mudaria as conclusões iniciais de Hamburg sobre nós. Ele poderia se sentir ameaçado e mudar de ideia quanto a nos deixar entrar.

Paramos à porta e abro os braços para que um dos seguranças me reviste.

Sarai faz o mesmo, mas não fica tão quieta desta vez.

— Isso é realmente necessário? — pergunta ela entre dentes enquanto o outro segurança a revista.

— Desculpe, querida — diz Hamburg enquanto abre as portas da suíte —, mas é. Todo cuidado é pouco.

Quando os seguranças não encontram nada, abrem caminho, e, antes de fechar nós três dentro do quarto, Hamburg diz aos homens:

— Podem ir. Vou precisar de um pouco de privacidade por mais ou menos uma hora.

Os dois seguranças concordam, assentindo, e deixam seu posto na porta do quarto.


CAPÍTULO TRINTA E SEIS

Sarai

Assim que a enorme porta dupla se fecha atrás de nós, sinto meu coração afundando no estômago. Mas espanto a sensação e faço o melhor que posso para conservar minha fachada de Izabel Seyfried.

Enquanto deixo meu olhar percorrer o imenso quarto, fico surpresa com a rapidez com que Arthur Hamburg vai direto ao assunto:

— Direi o que desejo e darei ao senhor a oportunidade de determinar seu preço. — Ele indica a poltrona de couro mais próxima de Victor com um gesto.

Victor se senta, e sou deixada em pé ali, sozinha.

As máscaras caíram, agora que os dois estão a sós na privacidade do quarto. Arthur Hamburg não é mais o homem enjoativamente encantador que fingia ser lá fora, diante de todos. Não, é o canalha perverso e doentio que Victor foi enviado para matar. Ele não me vê mais como uma convidada em sua mansão, que merece uma taça de champanhe e respeito; sou apenas uma peça em seu jogo sexual, que não é mais digna de seu olhar ou de sua conversa. Somente Victor tem direito a tais luxos. É Victor que ele quer. Percebo isso agora. Mas há muito mais nisso do que eu sei. E não demora para que tudo se revele.

— O que o senhor quer? — pergunta Victor, calma e ardilosamente.

Ele se recosta na poltrona e apoia o tornozelo esquerdo no joelho direito.

Arthur Hamburg se senta na poltrona em frente, igual à de Victor, com um sorriso diabólico em seu semblante cruel.

— Gosto de assistir — diz ele. — Mas nada de merdas tipo papai e mamãe. — Ele faz uma pausa e acrescenta: — Você fode a garota, de vez em quando faz com ela o que eu pedir, e depois, se você topar, e por uma quantia extra, eu me ajoelho na sua frente.

Ele sorri e, pela primeira vez desde que entrei aqui, seus olhos passam por mim.

Enquanto tenho um ataque de ansiedade em segredo, Victor pondera por um momento, fingindo considerar a oferta.

Victor olha para mim.

— De jeito nenhum — digo, assim que percebo a deixa. — Ele é nojento, Victor. Não concordo com isso.

Victor fica de pé e me segura casualmente pelo cotovelo.

— Você vai fazer o que eu mandar — diz ele.

Balanço a cabeça de um lado para o outro, olhando para os dois, tentando não sair da personagem, mas achando isso cada vez mais difícil.

Eu consigo fazer isso, digo a mim mesma quando o palpitar forte do meu coração encobre a voz em minha cabeça. Victor não vai me machucar. De jeito nenhum. Preciso acreditar nisso.

Por que ele não mata esse porco agora e pronto? Não entendo...

Com meu cotovelo ainda preso em sua mão, Victor se vira para Arthur Hamburg e diz:

— Quinze mil. — E o rosto de Hamburg se ilumina. — E vou querer mais 15 para deixar você me chupar.

Sinto meus olhos se arregalando.

— Fechado.

— Não — digo, e tento desvencilhar meu braço, mas então Victor estreita os olhos para mim e eu cedo.

— Se curve sobre a mesa — diz Victor.

Quê?...

Ele olha para a pesada mesa quadrada de mármore à minha direita, movendo apenas os olhos.

— Agora, Izabel — exige ele.

Ai, meu Deus...

Hesitante, me aproximo da mesa e apoio a barriga e o peito ali. Já consigo sentir o ar do quarto alcançar o tecido da minha calcinha. Engulo em seco.

Victor se aproxima por trás e termina de levantar meu vestido curto, descobrindo minha bunda e dobrando-o nas minhas costas. Uma de suas mãos aperta minhas nádegas.

— Faça a garota chorar — diz Arthur Hamburg, da poltrona atrás de mim. — Tenho coisas que você pode usar se quiser.

— Consigo fazê-la chorar sem elas — diz Victor, puxando minha calcinha para baixo até os tornozelos. Eu suspiro, me sentindo desconfortavelmente exposta. — Mas ainda posso usá-las. Faz tempo que não a machuco de verdade.

Arthur Hamburg produz um som estranho que nunca ouvi antes.

— Ah, sim, eu gostaria muito de ver isso. — Ele bate palmas e acrescenta, com deleite macabro: — Ela é muito apertada? Eu tenho um taco de borracha.

Fico paralisada na mesa; seu comentário tira todo o ar dos meus pulmões.

Você está de brincadeira, caralho?

Estou pronta para matá-lo, agora. Ele poderia ser meu primeiro trabalho. Estou pronta!

Minhas mãos começam a tremer sob o peito.

Se mantenha na personagem, Sarai... haja o que houver.

Então, de repente, como se não estivéssemos mais no quarto com aquele tarado filho da puta, sinto os dedos de Victor deslizando para dentro de mim e fico instantaneamente molhada. Solto um gemido agudo, e o hálito quente que sai dos meus lábios cobre o mármore de umidade a centímetros do meu rosto. Vejo o borrão aparecer e desaparecer no ritmo da minha respiração ofegante.

— Abra as pernas — manda Victor.

De início não obedeço, mas quando ele enfia as mãos entre minhas coxas e as separa à força, me expondo completamente, não resisto, só me agarro à borda da mesa com as pontas dos dedos e endireito as costas.

Minha mente luta com o quanto tudo isso é errado. Sei que é errado e nojento porque aquele homem está sentado ali, vendo isso acontecer. Mas a outra parte de mim, a parte que está começando a bloquear totalmente a presença de Arthur Hamburg da minha mente, quer que Victor faça o que quiser comigo. Tento fechar os olhos e imaginar somente Victor no quarto, e funciona por um ou dois minutos, até que ouço a voz de Arthur Hamburg de novo.

— Sim, ela é bem rosadinha. Bem apertada — diz ele, e eu cerro os dentes.

Victor começa a ganhar tempo.

— Sabe — diz ele —, você podia me mostrar suas coisas. Vou meter um pouco nela antes, deixá-la mais aberta, e aí...

— Não precisa dizer mais nada — diz Arthur Hamburg, com um sorriso sádico na voz.

Eu o ouço se levantando da poltrona, e então seus sapatos caros estalam no chão quando ele passa. Vejo que sua calça já está aberta e sua camisa, solta sobre a barriga grotesca. Ele já estava se masturbando. Quando se aproxima do que parece um grande closet, ele para e se vira para Victor. Parece estar refletindo intensamente, até que diz:

— Tudo bem se eu deixar minha esposa assistir comigo?

Depois de uma pausa momentânea, Victor responde:

— Mais uma pessoa não estava no acordo. — Ele pensa um pouco. — Mas acho que tudo bem. Ela está lá embaixo?

— Ah, que bom — diz Arthur Hamburg, esfregando as mãos gorduchas. Ele se aproxima mais do closet, abrindo as duas portas enormes para revelar um espaço interno maior do que de um quarto normal. — Não, eu a guardo aqui.

Hã? Você a guarda aí?

Sentindo que isso chamou mais do que apenas a atenção de Victor, olho para cima quando ele se afasta de mim. Não tenho ideia do que ele vai fazer, não sei se devo ficar como estou ou me levantar e deixar o vestido cobrir novamente minha bunda, como eu gostaria. Resolvo esperar mais alguns minutos.

— Não fique chocado quando a vir — diz Arthur Hamburg. Ele parece estar digitando vários números em um teclado prateado na parede interior do closet. — De certa forma, minha Mary é como sua Izabel.

— É mesmo? — diz Victor, entrando no closet com ele.

Outra porta enorme se abre na parede interna do closet, revelando mais um quarto.

— Sim — continua Arthur Hamburg. — Embora seja muito mais submissa do que a sua.

Então ouço um thump alto e um bang quando os dois desaparecem em algum lugar do quarto secreto. Visto a calcinha às pressas e corro pelo quarto para ver o que está acontecendo, quase tropeçando por causa dos saltos.

— Victor!

— Entre aqui, Izabel, agora! — eu o ouço gritar, e, embora ele tenha me chamado de Izabel, sei, pelo tom de urgência em sua voz, que ele está falando comigo como Sarai.

Depois de passar pelas prateleiras altas do closet e entrar correndo no quarto secreto, fico chocada e confusa com o que vejo, incapaz de formar pensamentos, muito menos palavras. Victor está segurando Arthur Hamburg com a cara contra a parede e uma gravata apertada em volta do pescoço gordo. Seu rosto incha por cima do tecido que o estrangula, sua pele ficando vermelho-escura e roxa. Uma mulher está deitada em uma cama dobrável, perto da parede, usando uma camisola comprida de algodão branco, transparente, toda manchada de urina e sangue.

— No closet — diz Victor, pressionando o corpo contra o homem que esperneia — tem uma maleta no chão com uma arma dentro. Vá pegar.

Faço que sim rapidamente e volto correndo para o closet para procurar a maleta, encontrando-a em segundos. Tiro dali a arma e corro para o quarto.

Ele libera uma das mãos e eu lhe entrego a arma.

Victor encosta a arma na têmpora de Arthur Hamburg e solta seu corpo. O velho luta para respirar, fazendo sons engasgados e desesperados, tentando recuperar o controle da respiração. Então Victor o revista, procurando armas. Quando se convence de que ele não tem nenhuma, enfia a mão no bolso da calça, tira um par de luvas de borracha e o joga para mim, me mandando calçá-las.

Faço isso rapidamente.

— Bem, as coisas vão acontecer da seguinte forma — diz Victor para Arthur Hamburg. — Infelizmente, você vai viver. Se a escolha fosse minha, eu teria matado você noite passada, no restaurante, ou qualquer outra noite antes disso. Mas você vai viver.

O. Que. Está. Acontecendo? Minha mente não consegue assimilar essa reviravolta inesperada.

— Se não veio aqui me matar — diz Arthur Hamburg, com a voz tremendo de medo, mas como se estivesse se divertindo —, então que porra você quer aqui? Dinheiro? Tenho dinheiro aos montes. Dou quanto você quiser.

Victor empurra Arthur Hamburg para o chão e mantém a arma apontada para ele. O suor escorre do rosto e do pescoço do homem, empapando sua camisa social branca. Então Victor enfia a mão no bolso interno do paletó e me entrega um pequeno envelope amarelo.

— Abra — ordena ele.

Enquanto faço isso, Victor volta a olhar para Hamburg.

— A morte vai ser considerada um suicídio — diz Victor, e fico ainda mais confusa. — Ela deixou um bilhete assinado de próprio punho. Você só precisa esperar uma hora depois que sairmos para dar o alarme.

— Que merda você está dizendo?! — exclama Arthur Hamburg rispidamente, apesar da arma apontada para ele.

Não consigo mais decidir para quem olhar, o psicopata no chão ou a pobre mulher deitada no catre.

De repente ela me olha com olhos tristes, frágeis, atormentados, e um calafrio percorre meu corpo.

— Victor, a gente precisa ajudá-la. — Começo a me aproximar dela.

— Não — diz Victor. — Deixe-a ali.

— Mas...

— Tire o conteúdo do envelope — interrompe ele.

Tiro primeiro uma folha de papel dobrada, tentando sentir a textura através das luvas apertadas em minhas mãos.

— Leia — diz ele.

Cuidadosamente, eu a desdobro e olho para a bela caligrafia com floreios em tinta azul. E quando leio a carta em voz alta, começo a sentir náuseas e meu coração dói.

Meu adorado marido,

não posso mais fazer isso com você. Envergonhei minha família, nossos filhos, nós nos envergonhamos, Arthur. Eu não amo mais você. Não amo a mim mesma. Não amo ninguém, porque não consigo. Não sou capaz de sentir emoções verdadeiras há doze anos dos trinta que sou casada com você. Não posso mais viver assim. Tantas vezes eu quis procurar ajuda, talvez tomar remédios. Não sei, mas depois de tanto tempo, depois de anos querendo pedir ajuda, comecei a não me importar.

Lamento tanto que você tenha que me ver assim. Lamento tanto não poder ter pedido ajuda a você. Mas eu não queria ajuda. Eu só queria que acabasse.

E é isso que vou fazer.
Acabar com tudo.

Adeus, Arthur.

Atenciosamente,
Mary

O homem não consegue tirar os olhos da esposa. Seu queixo flácido vibra quando ele tenta conter as lágrimas. Mesmo assim, não sinto um pingo de remorso por ele. Não só porque ainda estou lutando para entender o motivo de isso acontecer, mas porque sei que ele é um psicopata e não merece remorso.

— Por que você está aqui? — pergunta ele, com voz rouca e trêmula.

Victor olha para mim.

— Me dê o cartão SD.

Tiro o minúsculo cartão do fundo do envelope e o coloco na mão livre de Victor. Ele o mostra a Arthur Hamburg, entre o polegar e indicador.

— Todas as informações deste cartão já foram transferidas para meu empregador. Os nomes da sua extensa lista de clientes, os locais das suas operações clandestinas, as provas em vídeo que sua querida esposa gravou, sem você nem desconfiar. Está tudo aí. — Ele joga o cartão SD no peito de Arthur Hamburg. — Se alguém me procurar ou procurar Izabel pela morte da sua esposa e ela não for considerada suicídio, todas essas informações serão passadas ao FBI. Devemos sair daqui ilesos e tão bem-tratados como quando entramos por aquela porta. Entendeu?

Estou tremendo, muito confusa, nervosa e insegura. Insegura sobre tudo.

Arthur Hamburg assente, com o suor ainda pingando de seu queixo e suas sobrancelhas.

A mulher estende a mão, mas depois a deixa cair. Duas seringas estão vazias perto de suas pernas. Ela está muito dopada. Corro os olhos pelo corpo dela, vendo que as juntas dos braços e dos tornozelos estão pontilhadas de marcas de agulha.

Não consigo mais me conter: corro até ela, totalmente determinada a ajudá-la. Mas Victor estende a mão e me agarra pelo braço, me segurando. Ele me olha ferozmente nos olhos, ainda apontando a arma para Arthur Hamburg.

— Ela é o alvo — diz ele, me puxando para mais perto. — Vá até o criado-mudo no quarto, ao lado da cama mais perto da janela. Tem outra arma na gaveta. Traga para cá.

Quero dizer que não, que não farei isso, mas minha resistência é apenas em pensamento. Obedeço porque parte de mim ainda confia em Victor, tanto quanto outra parte quer interromper esta situação, antes que vá longe demais.

— Está bem — digo, e corro de volta para o quarto.

Encontro a arma onde Victor disse que estaria, pego-a nervosamente pelo cabo e a carrego com cuidado de volta para o quarto secreto, como se estivesse morrendo de medo de que exploda em minhas mãos. Talvez seja porque sei o que ele vai fazer com ela. Parece mais pesada, mais mortal, mais ameaçadora do que qualquer arma que já segurei. Não senti isso nem com aquela que usei para matar Javier.

Sinto meu coração batendo nas solas dos pés.

— Agora troque comigo — diz Victor.

Ele está usando luvas pretas, agora.

Vou até ele, com as pernas bambas, e lhe entrego a arma. Pego a outra e tomo cuidado para mantê-la apontada para Arthur Hamburg. Mal consigo segurá-la. Eu me sinto como ao me esconder no carro de Victor, a arma tão pesada em minhas mãos que só quero largá-la e me livrar dela.

Victor olha para mim, seus olhos azul-esverdeados intensos e com alguma compaixão.

— Você confia em mim?

Faço que sim lentamente.

— S-sim. Confio em você.

— Tampe os ouvidos — instrui ele, e eu não hesito.

Sem mais uma palavra, ele vai até a esposa e se curva para a frente, levantando-a da cama para uma posição precariamente sentada. Seu corpo está tão fraco e desconjuntado que ela mal consegue se sustentar sozinha. Seus olhos se abrem e se fecham, de exaustão ou por causa das drogas, enquanto Victor põe a arma na mão dela, dobrando seus dedos no cabo e seu indicador no gatilho. Sinto que vou vomitar, mas a adrenalina não deixa.

Victor fica na frente dela, pressiona a arma sob seu queixo e puxa o gatilho com o dedo dela. Ouço o tiro reverberar pelo quarto de paredes espessas, mas meus olhos se fecham antes que eu veja o sangue.

Arthur Hamburg grita o nome da esposa e depois desaba no chão, seu corpo descomunal tremendo de emoção.

Victor fica ao meu lado em um ângulo que parece tentar evitar que eu veja a imagem sanguinolenta da esposa. É um gesto silencioso que acho inesperado e protetor.

— Você tem uma hora — diz Victor. — É melhor começar a pensar na sua versão da história.

— Vai se foder! Vai se foder! — grita Arthur Hamburg, lançando cuspe pela boca. Ele aponta friamente para nós, mal levantando o rosto do chão. — Vão se foder!

— Isso não ia acontecer mesmo — acrescenta Victor.

Então ele passa o braço por meu ombro e sai do quarto secreto, ainda me protegendo da visão o melhor que pode. Quero me afastar dele tempo suficiente para voltar correndo e chutar aquele canalha nojento na barriga com meus saltos, mas não posso, sabendo que a mulher está morta ali, a poucos metros dele. Não é a visão de seu corpo ensanguentado que torna tão pavoroso olhar para ela — já vi mortes demais para ser afetada por isso —, mas a sensação terrível de ela ser inocente e precisar de ajuda é que torna isso insuportável.

O que foi que Victor fez?


CAPÍTULO TRINTA E SETE

Victor

Seguro Sarai na porta da suíte e a viro para me encarar, com as mãos em seus braços. Eu a sacudo.

— Escute — digo, e ela ergue os olhos. — Você continua na personagem quando sairmos daqui. Aja como antes de tudo isso acontecer. Entendeu? — Eu a sacudo de novo.

Ela assente distraidamente e então respira fundo, engolindo o nó na garganta.

Saímos para o corredor e viro o trinco da porta da suíte antes de fechá-la. Nossa segurança para sair desta mansão e desta propriedade está, agora, toda nas mãos de Hamburg. Se ele decidir que quer nos ver mortos mais do que quer evitar ser preso e perder toda a sua fortuna, os próximos cinco minutos vão ser complicados. Eu tenho uma arma, a pistola da maleta do closet. Nove balas estão no pente. Não tenho certeza de que, com apenas nove balas, consigo derrubar os seguranças antes de eles atirarem. Se estivesse sozinho e não precisasse proteger Sarai, conseguiria.

— Cabeça erguida — murmuro rispidamente para Sarai, à minha direita.

Ela ergue o queixo e ponho a mão em sua cintura enquanto vamos casualmente para o elevador panorâmico. Os dois seguranças que estavam na porta do quarto de Hamburg não estão por perto, mas há um no final do corredor. Como os outros, usa um fone no ouvido. Passamos tranquilamente por ele; Sarai usa seu charme, dando um sorrisinho malicioso para ele. Encantado com ela, o homem sorri feito um idiota até que o elevador some abaixo do piso.

— Ah, aí estão vocês — diz Vince Shaw, o assistente de Hamburg, quando saímos do elevador no térreo. — Já vão embora? Deveriam ficar mais um pouco. Lucinda vai tocar para nós esta noite. — Ele mantém as mãos unidas à sua frente.

Sorrio e balanço a cabeça.

— Eu adoraria, mas tenho um voo amanhã cedo.

— Mas eu quero ficar — diz Sarai como Izabel, com a voz um pouco lamuriosa.

— Desta vez, não — digo. — Você sabe que sempre perco os voos de manhã se não durmo pelo menos seis horas na noite anterior.

— Por favor, Victor? — Ela encosta a cabeça no meu braço.

Eu ignoro por completo seus esforços artificiais e aperto a mão de Vince.

— Foi um prazer conhecê-lo — digo.

— Igualmente. Talvez possa aproveitar melhor a festa da próxima vez.

— Talvez.

Puxo Sarai comigo rumo à saída. Pouco antes de chegarmos à enorme porta dupla, ouço a voz de Hamburg ecoar pela mansão, vinda do parapeito do quarto andar, e ficamos imóveis.

— Victor Faust — chama ele por cima da multidão.

Sinto o coração de Sarai pulsando em sua mão quando ela aperta a minha.

Eu me afasto da porta e me aproximo da luz para vê-lo melhor. Ele se arrumou bem em tão pouco tempo; sua camisa está enfiada dentro da calça, e seu cabelo grisalho, antes empapado de suor, foi penteado para trás, provavelmente com os dedos em vez de uma escova.

Há um momento de silêncio tenso, embora dure poucos segundos no máximo. Acho que Sarai parou de respirar.

Hamburg sorri para nós, com as mãos apoiadas no parapeito.

— Espero vê-lo de novo — diz ele.

Faço que sim.

— Até lá — digo.

O porteiro abre um lado da porta dupla para sairmos da mansão. Nenhum de nós dois se sente seguro até atravessarmos o hectare de terreno e sermos liberados no portão, sem que ninguém nos pare ou atire em nós.

Dirijo pela cidade por meia hora antes de voltar para o hotel, para me certificar de que não estamos sendo seguidos. Sarai fica em silêncio o tempo todo, olhando o para-brisa. Ela parece traumatizada. Está duvidando de mim. Está lamentando sua decisão de tomar parte no que aconteceu.

— Sarai...

— O que foi aquilo? — grita ela, virando a cabeça de repente para me olhar. — Por que aquela mulher era o alvo? Ela era inofensiva, Victor. Precisava de ajuda! Era inocente! Não podia ser mais óbvio!

— Tem certeza disso? — pergunto, mantendo a expressão calma.

Sarai começa a gritar comigo de novo, mas para e baixa a cabeça.

— Talvez não — diz ela, agora em dúvida. — Mas ele a mantinha naquele quarto. Ela estava drogada. Indefesa. Prisioneira. Não entendo... — Ela olha o para-brisa de novo.

— Era o que parecia, sim — digo. — Mas Mary Hamburg merecia ser punida tanto quanto Arthur.

— Então quem encomendou o assassinato? — pergunta ela, olhando fixamente para mim. — Por que matá-la e não matar aquele cara?

— Mary Hamburg encomendou o próprio assassinato — digo, e os olhos de Sarai se enchem de descrença. — Os dois se envolveram em vários casos de estupro e assassinato, mortes acidentais causadas por asfixia erótica mas assassinatos mesmo assim, tudo acobertado por suas contas bancárias. Cultivaram esse estilo de vida durante a maior parte do casamento. Um ano atrás, Mary Hamburg, segundo o que ela disse, decidiu que não queria mais levar essa vida. Seus demônios começaram a atormentá-la. Quando falou com Arthur sobre pararem, procurarem ajuda e viverem decentemente, ele se revoltou contra ela. Para encurtar a história, ele a viciou em heroína e a mantinha trancada naquele quarto, para que ela não destruísse tudo o que tinham. Mas ele a amava. Daquele jeito doente, ele a amava. Acho que isso ficou óbvio em sua reação à morte dela.

Sarai balança a cabeça lentamente, tentando processar a verdade.

— Como você sabe tudo isso?

— Eu li o dossiê — digo. — Normalmente não leio, mas neste caso achei necessário.

— Porque eu estava com você — diz ela, e eu faço que sim. — Você sabia que eu faria perguntas.

— Sim.

Ela desvia o olhar.

— Como ele conseguiu manter a esposa fora de cena por tanto tempo? Alguém ia descobrir alguma coisa. Os filhos deles. A carta diz que eles tinham filhos.

— Sim, tinham — digo. — Dois, que moram em algum lugar da Europa e não querem nem saber dos pais. E Hamburg não mantinha Mary totalmente fora de cena. Ele alegava que ela estava à beira da morte. Câncer terminal. De vez em quando, sempre que uma aparição pública era necessária para afastar suspeitas, ele a arrumava, a drogava e colocava a esposa sentada a seu lado em uma cadeira de rodas, por não mais do que alguns minutos. Era o suficiente para que as pessoas vissem que Mary Hamburg parecia mesmo estar morrendo de câncer, por causa de seu peso e dos efeitos da heroína. Ninguém fazia perguntas.

Dispenso o manobrista, paro no estacionamento do nosso hotel e desligo o motor.

Ficamos sentados em silêncio por um momento, banhados pela fraca luz azulada das lâmpadas nas vigas de concreto acima de nós.

— Mas como ela encomendou o próprio assassinato? — Ela passa as mãos pelo cabelo. — Eu não...

— Poucas pessoas podiam entrar no quarto onde ela ficava escondida. Apenas criadas. Imigrantes ilegais. Elas tinham medo de serem deportadas e, provavelmente, também de morrer. Arthur Hamburg sabia que elas não falariam nada. Ao menos era o que ele pensava, porque foi uma das criadas que ajudou Mary Hamburg a encomendar o serviço.

— Ela deveria ter se matado — diz Sarai. — Se fosse eu, não me daria esse trabalho todo.

— Você teria feito o mesmo se não tivesse coragem de se matar. Existem muitas pessoas assim, Sarai. Prontas para morrer, mas com medo de se matar.

Ela não responde.

— Você acha que eles vão vir atrás da gente? — pergunta ela.

Abro a porta do meu lado, saio e dou a volta, abrindo a dela.

— Imediatamente, não. Ele teria feito isso antes que saíssemos de lá, se tivesse a intenção. — Estendo a mão para ela. Seguro seus dedos e ajudo-a a sair do carro.

Depois de fechar a porta, acrescento:

— Hamburg tem muito a perder. Mas isso não quer dizer que não bolará algum plano para se vingar de mim, de alguma forma que ele ache que não será associada a esta missão.

— Ou de mim — diz ela, e me olha desesperada. — Ele pode se vingar de mim.

Aperto duas vezes o alarme do chaveiro e o carro emite um bipe que ecoa pelo estacionamento.

Desta vez, eu não respondo.

Ando com ela até o elevador e nosso quarto, no último andar. Não penso muito em Arthur e Mary Hamburg, ou no que aconteceu esta noite. Penso sobretudo em Sarai e no que ela enfrentou comigo. Ela não morreu, mas sinto que morreu mais uma parte sua. E isso é cem por cento culpa minha. Eu sabia que não deveria tê-la levado. Tenho plena consciência dos meus atos e de como são indesculpáveis. Aceitei isso assim que Sarai não desistiu, na última chance que lhe dei. Deveria ter sido eu, naquele momento, a impedir que ela tivesse mais alguma coisa a ver com isso.

Eu escolhi outro caminho.

E não me arrependo.

Há mais coisas que Sarai e eu precisamos discutir, e espero que o modo como a toquei na suíte de Hamburg seja uma das primeiras. Eu me preparo para isso, mas, quando entramos no quarto, ela joga os sapatos de salto longe e me deixa atordoado quando diz:

— Quero matá-lo. — Ela se senta no pé da cama e vira a cabeça para me olhar, com uma determinação inabalável no semblante. — Aquele homem precisa morrer, Victor. Precisa pagar pelo que fez. Precisa pagar com a vida. Como ela pagou.

Aí está a prova. Sarai tem sangue de assassina; não há mais como negar. Sei que não fui eu que a deixei assim. Foi a vida, não eu. Mas sei que fui eu que tirei o véu de seus olhos, no fim das contas, e a fiz enxergar isso.

— É só uma questão de tempo até que o assassinato dele também seja encomendado — digo.

Tiro o paletó e a gravata, deixando-os nas costas de uma cadeira.

— A gente devia ter feito isso quando teve a chance — diz ela.

Abro os botões da camisa, olho para Sarai sentada ali, fitando a parede, e me pergunto de que maneira ela está considerando matar Hamburg. É algo sangrento. Vingativo. Tenho certeza disso.

Deixo a camisa na cadeira com o paletó e vou até ela, tirando os sapatos no caminho.

— Se tivéssemos feito isso esta noite — digo, me sentando no pé da cama ao lado dela —, não teríamos saído de lá vivos. Não fazia parte da missão. Cada missão tem que ser planejada com precisão. Se você se desvia de qualquer parte dela, suas chances de se expor ou de morrer triplicam.

Ficamos sentados em silêncio, ambos olhando para a frente, ambos perdidos em pensamentos. Eu me pergunto se os dela são sobre mim. Não consigo evitar que os meus sejam sobre ela.


CAPÍTULO TRINTA E OITO

Sarai

Não quero que Victor me deixe nunca. Eu não conseguia suportar essa ideia antes, mas agora... agora as coisas são muito diferentes. Nossas almas se tornaram íntimas, quer ele esteja disposto a admitir isso para si mesmo, quer não. Somos um só, e não quero imaginar ficar sem ele. Nunca.

— Sarai, sinto muito pelo que fiz.

Olho para ele. Sei a que se refere, mas ainda não tenho certeza de como responder.

— Espero que acredite quando digo que não tirei nenhum proveito. Foi só teatro. Espero que entenda.

Acredito nele. Sei que eu não conseguiria olhar uma pessoa normal nos olhos e contar o que aconteceu sem que ela pensasse que perdi o juízo ou que estou sofrendo da Síndrome de Estocolmo. Mas Victor poderia ter se aproveitado de mim muitas vezes. Poderia ter me estuprado. Poderia ter cedido nas poucas vezes que demonstrei minha atração por ele. Mas nunca fez isso e sempre me repeliu. Até algumas noites atrás, quando me enfiei na cama dele. Ele não me repeliu então, mas sei, no fundo, que estava até mais em sintonia com a raiva que eu sentia naquele momento do que eu.

Sem olhá-lo, pergunto em voz baixa:

— Se ele não tivesse aberto o quarto secreto a tempo... você ia me comer?

Noto que ele me olha, mas não retribuo o olhar.

— Não — responde ele em voz baixa, como eu. Ele suspira. — Sarai, eu não podia obrigá-lo a abrir a porta do quarto. Ele poderia ter digitado algum código de pânico e alertado os seguranças, ou...

Olho para ele, finalmente, bem nos olhos.

— Mas você ia querer?

Ele fica em silêncio. Vejo o conflito em seu rosto.

— Não ali — diz ele. — Não daquele jeito.

Tiro o vestido pela cabeça e o jogo no chão.

— E agora, pode ser? — pergunto.

Ele não responde, mas já aprendi, a essa altura, que a única maneira de conseguir o que quero dele é não desistir.

Eu me levanto da cama e fico de pé no meio de suas pernas. Suas mãos sobem lentamente pelas minhas coxas e ele passa os dedos pelo elástico da minha calcinha. Seus lábios tocam minha barriga, roçando a pele com a ponta da língua entre minhas costelas, tão suavemente que meu corpo todo fica arrepiado. Eu passo os dedos por seu cabelo enquanto ele desce a calcinha até meus pés.

Então monto no colo dele.

Eu o beijo delicadamente e sussurro mais uma vez:

— Pode ser, Victor Faust? Se é que esse é o seu nome. — Eu toco o lado de seu rosto com o queixo.

— Somente com uma condição — murmura ele, febrilmente, em minha boca.

— Que condição?

Ele beija meus lábios devagar.

— Que eu fique no controle desta vez.

Abro a boca perto da dele, provocando-o com um beijo que quero que ele tome de mim, meus dedos segurando suavemente seu queixo. Ele me olha nos olhos por um momento, lendo meus pensamentos. E então seus braços se fecham possessivamente ao redor do meu corpo, me apertando contra o dele. Seu beijo é faminto, seus dedos fortes afundam na pele das minhas costas e posso sentir a rigidez de seu pau tão distintamente através do tecido da calça que me faz tremer. Meus lábios se abrem e meu corpo todo estremece só de senti-lo ali, querendo-o dentro de mim mais do que acho que jamais quis qualquer coisa na vida.

Ele mergulha a mão pela minha nuca, forçando minha cabeça para trás e expondo meu pescoço à sua frente. Beija minha garganta, sobe em uma linha reta perfeita até encontrar minha boca de novo e prende meu lábio inferior entre os dentes.

Sinto dois de seus dedos me penetrando por baixo.

Eu gemo, com a cabeça ainda forçada para trás em suas mãos, e pressiono delicadamente meu quadril contra seus dedos.

— Quero você dentro de mim — digo, sem fôlego.

Porra, eu não aguento mais.

Com os lábios nos dele, nossas línguas quentes entrelaçadas, mexo no botão de sua calça e puxo o zíper para baixo.

Ele vira o corpo e me joga na cama, ficando por cima, e não interrompe o beijo enquanto tira a calça com uma das mãos. E quando sinto o calor de seu corpo nu, eu o envolvo com as pernas, apertando-o com as coxas, puxando-o em minha direção para sentir seu pau ereto contra minha umidade. Sua boca procura meu pescoço e meu peito até que seus dentes acham meus mamilos, e ele os morde com força o suficiente apenas para me fazer gemer.

— Isso vai contra tudo o que sou, Sarai — diz ele, e então me beija.

— Não, não vai — murmuro, retribuindo os beijos. — É você virando mais você mesmo.

Então ele desliza o pau para dentro de mim, devagar. Eu já mal consigo manter os olhos abertos. Minhas pernas tremem e meu corpo estremece com pequenos espasmos que explodem e se infiltram em minhas entranhas. Gemo alto e levanto os quadris para forçá-lo a meter mais fundo.

Nunca imaginei que sexo pudesse ser assim, que o modo como meu corpo está reagindo ao dele pudesse ser assim.

Ele ergue o corpo de cima do meu, ainda de joelhos entre minhas pernas, e agarra minhas coxas com força, me puxando para perto. Ele me fode devagar a princípio, tão devagar que me deixa louca. A cada arremetida, vai mais fundo, até que minhas coxas estão tremendo e não consigo mais mantê-las firmes ao redor de seu corpo. Minha nuca se arqueia no travesseiro e eu gemo, grito e cravo os dedos na carne de seus quadris. Ele começa a me foder mais forte e agarro o travesseiro antes de apertar as mãos na cabeceira, me forçando contra ele, sentindo seu pau crescendo dentro de mim.

Ele desaba em mim de novo e eu sinto sua boca úmida em meus seios. Em minha garganta. Em meus lábios. Seu peito arfa com a respiração ofegante, e sinto seu coração batendo contra o meu. Ele começa a diminuir o ritmo, e, enquanto me fode devagar, com um beijo profundo, quente e faminto, enfia uma das mãos entre minhas pernas e toca meu clitóris de um jeito firme e persistente. Afundo os dedos no cabelo dele, puxando-o com força, gemendo em sua boca, saboreando sua língua.

Tão sintonizados um com o outro, gozamos juntos. Ele sai de mim para gozar fora, mas não para de mover os dedos até que meu corpo trêmulo finalmente relaxe e minhas pernas bambas se dissolvam em geleia envolvendo as dele.

Ele deita a cabeça suada em meus seios e eu passo os dedos por seu cabelo. Ficamos assim boa parte da noite, em silêncio e pensando.

E eu só consigo pensar em como nunca mais quero sair deste quarto.

~~~

Estou deitada, embrulhada nos lençóis com Victor. As cortinas da janela estão totalmente abertas, e olho através do quarto para o céu azul-escuro, fracamente iluminado pelas luzes da cidade lá embaixo. Victor adormeceu algum tempo depois de fazer amor comigo. Fazer amor? Não sei ao certo se entendo o verdadeiro significado dessa expressão. Não acho que essa coisa entre nós seja amor, ou mesmo desejo. É algo diferente, algo poderoso e inconfundível que nenhum de nós dois conseguiu ignorar. Mas não tem um rosto. Nem um nome. Talvez ele não tenha feito amor comigo, mas tampouco me fodeu.

Foi, definitivamente, outra coisa.

Ouço seu coração batendo calmamente sob minha bochecha. Sinto sua respiração suave em meu cabelo. Seu corpo é muito quentinho, quase febril, quando estou aninhada em seus braços. Seu cheiro natural é tênue, mas reconfortante, e me atrai para ele como uma abelha para o néctar.

— Para onde vou agora? — Sussurro meus pensamentos em voz alta e me enrosco mais nele quando não obtenho uma resposta.

— Vamos pensar em algo — diz Victor, e seu braço me aperta delicadamente.

Eu não fazia ideia de que ele estava acordado. Levanto a cabeça de seu peito e me deito em seu braço, para poder olhá-lo no rosto.

— Você não vai embora?

É um tiro no escuro, mas estou esperançosa.

Um segundo de silêncio, e seu peito nu sobe e desce com a respiração profunda e regular.

— Sarai, você sabe que não posso levá-la comigo — diz ele, e meu coração afunda. — Isso não é realista. Minha vida está na Ordem. Sempre esteve. Não seria como acordar um dia e decidir que odeio meu emprego e quero encontrar algo melhor. Se eu resolvesse deixar a Ordem, porque é exatamente isso que eu teria que fazer, o próximo assassinato a ser encomendado seria o meu. E o seu.

Quero chorar, mas não choro.

Volto a deitar a cabeça em seu peito, desanimada demais para encará-lo. Olho para o quarto espaçoso, os dedos apoiados em seu peito.

— Acho que a única coisa que posso fazer é deixar você viver sua vida...

— Mas...

Ele me abraça de novo.

— Deixar você viver sua vida — continua ele —, mas vou visitá-la de vez em quando. Para ver se você está bem, se está a salvo e se tem tudo de que precisa.

Não estou satisfeita com isso, mas também sei que é só o que vou conseguir dele. E é melhor do que nada. Ele está certo, e não posso negar. Quero estar com ele sempre, de qualquer maneira que ele se permitir me ter, mas não posso esperar que ele arrisque nossa vida para que isso aconteça.

Preciso deixá-lo ir...

— Isto é, se você quiser que eu a visite — diz ele.

Detecto uma mudança no clima para algo mais leve. Acho isso estranho, vindo dele. Eu me levanto, me apoiando em um braço para olhá-lo.

Ele está sorrindo. Não apenas com os olhos, mas com os lábios também. Eu o acho tão lindo! Tão perigosamente lindo!

Entro no clima e bato de brincadeira no quadril dele com a mão livre, rindo baixinho.

— É claro que eu quero — digo.

Então ele segura meu pulso e me tira cuidadosamente de cima de seu peito. Passa a ponta dos dedos em um lado do meu rosto e depois no outro, o tempo todo me olhando nos olhos, mas vendo além deles. Eu me pergunto o que ele procura em suas profundezas. Seja o que for, espero que nunca encontre, para que possamos continuar assim para sempre.

Ele coloca as mãos no meu rosto e puxa meus lábios para os dele.

— O que você fez comigo? — pergunta ele.

— Eu ia perguntar a mesma coisa.

Mordisco seu lábio inferior. Ele pressiona o pau em mim de leve.

— Parece que criamos um probleminha — diz ele, empurrando com mais força.

Eu faço o mesmo. Gemo baixinho, sentindo calafrios e calor se espalhando por minha pele.

Ele me beija, mas então afasta um pouco a boca da minha, me provocando. Eu levanto o corpo, apertando os seios contra seu peito, querendo saborear sua boca, mas ele cede apenas um pouquinho. Ele pressiona o quadril de novo, mantendo o pau contra mim, apertando minha bunda com suas mãos firmes. Ele está muito duro. Eu o quero. Minha boca fica entreaberta e meu hálito escapa dos lábios.

— Quer que eu coma você? — murmura ele. — É isso que você quer?

Gemo alto com suas palavras ao meu ouvido. Não consigo responder. Não consigo pensar direito.

— Você quer, Sarai? — insiste ele, o calor de seu hálito dançando em meus lábios abertos.

Eu forço meu quadril contra o dele, tentando me posicionar sob seu pau de modo que ele entre sem que precisemos usar as mãos.

— Sim — gemo. — Me fode como você ia foder a Izabel.

— Tem certeza?

— Sim...

Não consigo respirar.

— Repete... Izabel.

Meus olhos se abrem pesadamente e eu o encaro. Respiro, arfante, pela boca. Victor toca os lábios nos meus.

Antes que eu possa responder, ele se senta na cama, me mantendo no colo. A ponta de sua língua percorre minha clavícula. Meus seios estão esmagados nas mãos dele.

— Diga, Izabel — exige ele, passando a língua em um mamilo meu. — Diga que quer que eu foda você.

— Eu quero que você me coma.

Ele prende o cabelo da minha nuca em sua mão e se levanta da cama, com minhas pernas em volta de seu quadril escultural.

Ele me carrega até a mesa perto da janela e me força a ficar curvada sobre ela, de barriga para baixo. Meus braços se estendem à frente, derrubando seu celular e sua arma no chão. Minhas mãos agarram a borda arredondada da mesa. Seus dedos afundam em meus quadris quando ele puxa meu corpo para trás, para perto de si. Ele aperta minha bunda. Com força. Eu inspiro rapidamente quando sinto suas mãos entre minhas pernas, me abrindo para ele. O calor do seu corpo rijo me engole quando ele se deita nas minhas costas, passando a ponta da língua por minha nuca. Sinto seu pau bem ali, esperando por mim, e tento me forçar para trás, na direção dele, mas sua mão segura minha nuca, pressionando minha bochecha contra o tampo da mesa.

— Por favor, Victor — digo ofegante, todo o meu corpo se abrindo para ele.

Grito e gemo alto quando ele me penetra, meus dentes se fechando em seu dedo indicador, enquanto sua mão aperta suavemente o lado do meu rosto.

Não, eu nunca imaginei que sexo pudesse ser assim...


CAPÍTULO TRINTA E NOVE

Sarai

Dormimos demais na manhã seguinte e somos acordados pela arrumadeira batendo na porta do quarto. Acho que ele não estava mentindo, na mansão de Hamburg, quando disse que sempre perde voos de manhã se não dorme o suficiente na noite anterior. Ou talvez tenha sido só culpa minha. Acho que baguncei totalmente sua rotina.

Victor se levanta, e não posso deixar de admirar sua forma nua, antes que ele se vista rapidamente. Ele abre a porta para avisar à arrumadeira que vamos sair tarde e que ela não volte por pelo menos uma hora. Eu não quero ir a lugar nenhum. Depois da noite passada, só quero...

— Se prepare para sair — diz ele, voltando para dentro do quarto. — Vou levar você para ficar com uma mulher que conheço em San Diego. Você vai ficar segura lá até eu organizar o resto, instalar você em um lugar só seu. Mas agora preciso ligar para Niklas, para contar da noite passada. E tenho certeza de que em breve viajarei para a Alemanha para me encontrar com meu empregador.

Eu só quero falar sobre a noite passada, ou repetir a noite passada agora mesmo.

— Isso não me parece bom — digo ao sair da cama. Tive uma sensação ruim quando ele falou de se encontrar com seu empregador.

Ele calça os sapatos e deixa as bolsas ao pé da cama.

— É, geralmente não é bom mesmo — diz ele, remexendo na bolsa. — Estas últimas duas missões levantaram muitas questões sobre mim e minha capacidade de executá-las conforme as ordens. Vou ter que me encontrar cara a cara com ele para dar uma explicação mais detalhada do que aconteceu e por que foi do jeito que foi.

— O que vai dizer sobre mim? Você acha que ele sabe que ainda estou viva?

Ele pega um punhado de balas e começa a carregar sua 9mm.

— Vou pensar nisso no caminho.

Isso também me dá uma sensação ruim.

— Tudo bem, e quem é essa mulher em San Diego? — Olho para ele agora, desconfiada. — Não é alguém que você...?

— Não — diz ele, escondendo a arma na parte de trás da calça. — Ela não tem nada a ver com a Ordem e não sabe nada sobre o que eu faço. É só uma amiga. Conheci essa mulher e o marido dela em uma missão, há cinco anos. É uma longa história, mas não, não é nada assim.

— E o marido dela?

Ele me olha mais uma vez.

— Não está mais lá — diz Victor.

— Por que não? Ele morreu? Eles são velhos?

Não consigo deixar de fazer todas essas perguntas; quero saber todo o possível sobre o lugar para onde ele vai me levar.

Victor faz uma pausa e então diz:

— Sim, ele morreu. Ele era meu alvo.

— Ah...

Não me sinto tão confiante quanto a ir para lá, agora.

— Você vai ficar bem — diz Victor, notando a preocupação em meu rosto. — Ela não sabe que fui eu.

Ele se aproxima de mim e põe as mãos em meus ombros.

— Vou descer para a recepção, pagar pelo quarto e ligar para Niklas. — Ele se curva e me beija na testa. — Sem pressa. Volto daqui a uns minutos e saímos.

Faço que sim, olhando-o nos olhos.

— Tudo bem.

Victor sai do quarto. Pego um vestido mais informal desta vez, uma calcinha limpa e vou para o chuveiro.


Victor

Niklas está furioso comigo. Consigo ouvir isso em sua voz, embora esteja se esforçando para não ser óbvio, o que já é pouco característico dele.

— Você disse que faria contato comigo assim que a missão acabasse — diz Niklas pelo telefone. — Se ela foi cumprida ontem à noite, como planejado, então por que só está me ligando agora, meio dia depois?

Solto o ar pelo nariz.

— Aceite isso pelo que é, Niklas — digo, ficando tão irritado com ele quanto ele está comigo. — Você precisa parar de se preocupar tanto comigo.

— Eu sou seu contato — dispara ele.

— Sim, mas esse seu lado que se tornou tão dolorosamente meticuloso sobre como eu escolho fazer as coisas é meu irmão. Talvez você devesse se reaproximar do seu lado contato, assim ambos poderemos voltar a ter um relacionamento mais simples, estritamente profissional.

— Entendi — diz ele. — Você não precisa mais de um irmão, agora que tem aquela garota. Obviamente, ela ainda está viva.

Eu deveria ter previsto isso, mas não previ.

— Você não foi substituído, muito menos por uma mulher — digo.

Talvez Sarai não tenha substituído meu irmão, mas ela se tornou algo muito maior para mim, e eu não consigo explicar. Nem para mim mesmo, e certamente não para Niklas.

— Tenho novas ordens — anuncia Niklas, abandonando o assunto desagradável. — São de última hora, mas acho que é melhor executá-las antes de ir para a Alemanha encontrar Vonnegut. Não lhe dê mais motivos para duvidar de suas habilidades.

— É uma missão?

— Vai ser — diz ele. — A pessoa está aí em Los Angeles e quer se encontrar com você.

— Isso não é padrão — digo. — Primeiro Javier Ruiz, agora esse aí quer se encontrar cara a cara?

Prefiro lidar apenas com Vonnegut e nunca me encontrar pessoalmente com os clientes, mas, infelizmente, às vezes é preciso correr riscos maiores.

— Ela é uma mulher muito meticulosa — diz Niklas.

— Quais as ordens?

— Encontre-a na frente do número 639 da South Spring Street. Ela estará de blusa branca, com um broche prateado em forma de borboleta no seio esquerdo. Estará lá à uma e meia da tarde.

— Isso é daqui a menos de uma hora — digo, olhando para o relógio na parede do saguão.

Baixo a voz para um sussurro quando um hóspede do hotel passa.

— Você tem tempo mais do que suficiente para chegar lá do hotel — diz ele. — E, por favor, desta vez entre em contato comigo assim que a reunião acabar.

Suspiro silenciosamente.

— Pode deixar — digo, e desligo o telefone.

Depois de pagar mais uma diária do quarto, já que pelo visto ficaremos aqui mais do que uma hora, subo pelo elevador para informar Sarai de nossa pequena mudança de planos. Depois saio, deixando-a no quarto para ir me encontrar com a cliente. Dirijo até o local, chegando alguns minutos antes, e estaciono em um terreno baldio a alguns metros de onde vou encontrá-la.

Fico dentro do carro e espero.

E, na verdade, só consigo pensar em Sarai.


Sarai

Nunca estive em San Diego. Tecnicamente, esta é minha primeira vez na Califórnia. Eu me pergunto como será essa mulher, o que ela sabe, como ela e Victor ficaram amigos. Tenho muitas perguntas, como sempre, e não vou permitir que Victor me deixe sem as respostas no caminho até lá.

Passo a mão no espelho do banheiro, abrindo uma faixa na umidade que embaça o vidro. E sorrio para meu reflexo. Pela primeira vez desde que conheci Victor, estou começando a me sentir contente, aliviada pela perspectiva de futuro. Porque antes eu só conseguia ver trevas, um vazio sem começo nem fim, apenas incertezas. Mas agora tenho algo pelo que esperar. Tenho um propósito. E não vou desperdiçar um só segundo.

Enxugo o cabelo, espremendo-o com uma toalha, e depois a prendo precariamente na nuca. Depois de me enxugar e me vestir, vou para o quarto, e estou para ligar a TV quando alguém bate na porta. Olho para o relógio ao lado da cama.

Ainda não passou uma hora.

Deixo o controle remoto na cama e vou até a porta para atender, mas quando ponho a mão na maçaneta, a voz do outro lado me imobiliza:

— Sou eu, Niklas. Victor mandou vir buscar você.

Meus dedos soltam a maçaneta muito lentamente. Dou um passo para longe da porta.

Ele bate de leve mais uma vez.

— Você está aí? Sarai? Anda, me deixa entrar. Sei que você me despreza, e, sinceramente, eu preferia estar tomando cerveja em algum barzinho, mas Victor precisava da minha ajuda.

Ele está mentindo. Victor me avisaria se tivesse mandado Niklas para cá. Teria me contado antes de sair ou teria ligado.

Olho para o telefone perto da cama. Talvez ele tenha ligado enquanto eu estava tomando banho.

Dou mais um passo para longe da porta, meus instintos me puxando para trás como uma dúzia de mãos estendidas. Mais uma série de batidas, depois silêncio. Fico no meio do quarto, perfeitamente imóvel, perfeitamente em silêncio. O único som que ouço é um zumbido fraco vindo de uma lâmpada. Ando rapidamente pelo quarto, encosto o rosto na porta e tento espiar pelo olho mágico. A parte do corredor que consigo ver está vazia. Ele foi embora. Mas, se foi mesmo, por que ainda tenho tanto medo de que ele esteja lá fora, escondido, esperando que eu saia para olhar? Aperto o rosto de lado no olho mágico, tentando ver melhor à direita e à esquerda. Então ouço vozes e vejo uma sombra se movendo na parede. Meu coração acelera e eu prendo a respiração até que dois homens passem. Solto o ar devagar e profundamente.

Mas o alívio dura pouco, pois vejo Niklas de novo.

Dou um salto para trás, me afastando rapidamente da porta, e vasculho a bolsa de Victor, procurando a arma de Arthur Hamburg. Victor a deixou para mim. Só por precaução. Mas sinto que ele a deixou como precaução contra Arthur Hamburg. Não contra seu irmão.

Não há nenhum esconderijo neste lugar. Absolutamente nenhum espaço onde Niklas não possa me encontrar em menos de um minuto.

Inspiro rapidamente ao ouvir o barulho de um cartão sendo passado na fechadura eletrônica e destrancando-a. Ele deve ter pego a chave-mestra da arrumadeira. Em meio segundo, e tarde demais para que eu perceba e conserte meu erro, vejo que a corrente da porta ainda está destrancada. Corro até lá, no fundo sabendo que não chegarei a tempo de prender a corrente no lugar antes que Niklas esteja dentro do quarto. E quando a porta se abre, caio contra a parede atrás dela, segurando a arma com as duas mãos contra o peito, o coração bombeando sangue tão rápido pelas veias que o canto do olho treme e sinto a jugular latejando.

A porta se fecha e se tranca automaticamente, e Niklas e eu ficamos frente a frente, cada um apontando sua arma para o outro.

— Ah, aí está você — diz ele, com aquele olhar fulminante que mostra o quanto me odeia.

Mantenho o dedo no gatilho e, embora esteja tremendo, consigo manter a arma firme e apontada para a cabeça dele.

— Eu vou matar você — aviso.

— Sim, eu sei — diz ele, emanando muito mais autoconfiança do que eu. — Afinal, foi você que atirou em Javier Ruiz. — Ele suspira dramaticamente e balança a cabeça. — Sarai, quero que você saiba que isto não me dá prazer, matar mulheres inocentes. Eu nunca quis matar ou machucar você, aliás, mas o que você fez com meu irmão... bem, não posso admitir isso.

Mantenho a arma apontada para ele e o dedo firme no gatilho e começo a me afastar da porta. Ele se move comigo.

— Que lhe importa o que Victor faz com a vida pessoal dele?

Ele inclina a cabeça.

— Victor não tem vida pessoal. Nenhum de nós pode ter. É como água e óleo. Você já deve saber, a essa altura.

— Ele vai me levar para algum lugar hoje — digo rapidamente, perdendo qualquer autoconfiança que eu tinha, que já não era muita. — Vai se livrar de mim. Já me falou que não posso ficar com ele. Por que você não pode deixar as coisas assim? Ele vai fazer o que você quer.

— Não é o que eu quero, Sarai. — Conseguimos ir para bem longe da porta, e estamos no meio do quarto agora. — Eu só estou tentando protegê-lo. Ele é meu irmão, caralho! — Sua fúria repentina me faz tremer. Noto que seu dedo no gatilho se agita.

— Niklas, por favor, me deixe ir embora. Você tem razão e eu sei. Já sei há algum tempo que só estou dificultando as coisas para Victor.

— Ele vai morrer por sua causa! — grita Niklas, forçando as palavras por entre os dentes, a arma na minha direção. — Mesmo se ele a deixar hoje, mesmo se ele nunca mais vir você, porra, mesmo se ele matar você, o que já aconteceu é suficiente para a Ordem mandar matá-lo! Você não entende? — Seu rosto está vermelho de raiva; sua expressão, distorcida pela dor. — Eles vão matá-lo! Se for para a Alemanha, ele está morto, Sarai. Ele lhe contou isso? Aposto que não contou.

Não quero acreditar nisso. Balanço a cabeça e quase perco a concentração, apertando a arma com mais força.

— Você não tem como saber isso — digo, mas no fundo acredito nele. — Se é verdade, então por que ele vai?

Um sorriso irônico curva o canto da boca de Niklas. Ele cerra os dentes por trás dos lábios fechados.

— Porque Victor é teimoso — diz ele. — E confia um pouco demais em Vonnegut. Victor sempre foi o Número Um dele, sempre foi o melhor. Ele é melhor no que faz do que todos os comandados de Vonnegut que vieram antes, e ainda é o melhor. Mas ser o melhor não o torna imune ao Código. Ele já fez tanta merda desde que se envolveu com você que não haverá justificativa.

— Então me deixe falar com ele...

— Você já fez o suficiente! — ruge ele.


CAPÍTULO QUARENTA

Victor

A cliente está atrasada. Cinco minutos, mas até um minuto, para alguém que Niklas descreveu como “meticulosa”, não me cheira bem. Mais dois minutos e vou embora.

Observo pessoas andando na rua e as analiso, das roupas que usam até a posição da cabeça quando falam com quem está andando ao seu lado. São realmente apenas turistas ou residentes? Ou são iscas? Espiões? Cuidado nunca é demais. Isto pode ser uma cilada, como qualquer outra missão, mas as missões como esta causam um nó de incerteza na boca do meu estômago...

Espere...

Relembro a conversa telefônica com Niklas, mais cedo:

— Encontre-a na frente do número 639 da South Spring Street. Ela estará de blusa branca com um broche prateado em forma de borboleta no lado esquerdo do peito. Estará lá à uma e meia da tarde.

— Isso é daqui a menos de uma hora — digo.

— Você tem tempo mais do que suficiente para chegar lá do hotel.

Eu tinha tempo mais do que suficiente para chegar aqui do hotel...

Seguro o volante com as duas mãos, a mente correndo a 100 quilômetros por segundo. Como Niklas podia saber disso? Ele não fazia ideia de onde, em Los Angeles, Sarai e eu estávamos hospedados. Não teria como saber se eu conseguiria chegar a este endereço nesse período de tempo.

A menos que ele já soubesse exatamente onde a gente estava.


Sarai

— Niklas... se você me matar, vai transformar seu irmão em um inimigo. — Minha garganta está seca como uma lixa; meus pulmões, pesados. — Se tudo o que você está dizendo é verdade, se o destino de Victor já está selado, então de que adiantaria me matar? — Levanto a voz, motivada pelo desespero e pelo medo. — Não vai resolver nada!

Ele não quer me matar. Não sei se é por causa do que eu falei, sobre transformar Victor em um inimigo, ou se está apenas em conflito, mas, seja o que for, é a única coisa que está me mantendo viva no momento.

— Olhe o que você fez! — Ele balança a arma no ar, na minha direção, apertando tanto o cabo que os nós dos dedos estão brancos.

Ele avança. Eu ando para trás.

— Niklas... por favor — imploro. Não quero atirar nele. Sei que o mais provável é que ele me mate, mas não quero atirar nele.

A raiva lampeja em seus olhos em um instante e ele ergue o queixo em desafio, com os dentes cerrados, os olhos apertados e as narinas abertas.

Sim, ele quer me matar, no fim das contas.

A porta se abre e escuto um tiro quando Niklas vira a cabeça para ver Victor invadindo o quarto. E então outro tiro com silenciador atravessa o quarto, mas Niklas, já correndo também na direção de Victor, consegue evitar ser atingido, e ouço a bala cortando o ar a palmos de mim e penetrando a parede.

A arma escapa da minha mão e caio de joelhos. Levo alguns segundos até perceber que fui atingida, e quando percebo, sinto a dor queimando meu estômago. Sangue quente empapa o tecido do meu vestido. Eu caio de lado, com as mãos pressionando o ferimento com firmeza.

A mesa em minha frente balança na base de madeira quando Victor e Niklas caem em cima dela. Minha pequena caixinha de joias cai no chão, se abrindo e espalhando o conteúdo. Victor, por cima de Niklas, cobre o irmão de socos, golpe após golpe, até que a mesa não suporta mais o peso dos dois e desaba de lado, jogando ambos no chão. O abajur alto que ficava atrás da poltrona bate na mesa, arrancando o fio da tomada e partindo a lâmpada em mil pedaços.

Niklas está em cima de Victor agora, batendo sem parar no rosto dele, mas Victor o segura pela garganta e o levanta, jogando-o com força no chão, de costas. Então se levanta e dá um chute no rosto de Niklas, antes de abrir caminho pelo quarto para pegar sua arma.

Em segundos, ele está por cima do corpo vencido do irmão, com o cano da arma apontado para seu rosto.

— Victor, não faça isso! — consigo gritar em meio à dor.

Ele pisca para voltar a enxergar, depois de ficar momentaneamente perdido em uma fúria cega, e olha para mim.

— Por favor, não o mate — peço novamente, em voz baixa e desesperada.

— Ele tentou matar você — diz Victor, olhando para mim com uma expressão confusa, como se não conseguisse acreditar no que estou dizendo. — Atirou em você.

Com a mão direita, aperto o ferimento com força, o sangue escapando pelos dedos. Estou começando a ficar zonza.

— Victor, ele é seu irmão. Só está aqui porque estava tentando proteger você.

Seus olhos correm entre mim e Niklas, nós dois deitados, ensanguentados e indefesos no chão, em lados opostos do quarto. Seu rosto está cheio de conflito, dor e coisas que nem posso entender, porque nunca tive um irmão ou uma irmã, não sei como é ser amado dessa forma. Talvez Victor também nunca tenha sabido, até agora.

Tento levantar a cabeça, mas estou tão fraca que meu rosto continua no carpete puído.

— Niklas é tudo o que você tem, o único da sua família que restou — digo. — Eu faria qualquer coisa para ter alguém que gostasse de mim tanto quanto ele gosta de você. Qualquer coisa.

O quarto fica muito silencioso. Posso ver os olhos de Victor ficando cheios de... não tenho certeza. Nem sei se ele está mesmo olhando para mim. Acho que consigo ouvir Niklas falando, mas o som é abafado e distante em meus ouvidos. Vejo o teto agora. Só o teto. Observo milhares de buracos minúsculos se abrindo e vejo cada um deles se aproximar de mim. Aquele calor. O que é esse calor que sinto ao meu redor, como um cobertor?

— Sarai? — ouço uma voz chamar, mas de quem é, não sei dizer.

Só vejo escuridão. Tento abrir os olhos, mas estão pesados demais.

Ouço a voz de novo, e uma pontada de dor atravessa meu corpo quando sinto que estou sendo carregada. Tento gritar, mas acho que ninguém consegue ouvir minha voz.

Eu tento gritar...


CAPÍTULO QUARENTA E UM

Sarai

Parece que estou sonhando há dias. A série constante de imagens e vozes ao meu redor sempre soa calmante, mas persistente. As imagens, são elas que me dizem que isto não é real, porque todos que vejo já estão mortos. Javier. Izel. Lydia. Samantha. Minha mãe. Todos passam por mim em uma espécie de transe silencioso e contemplativo, como se eu nem estivesse aqui. Quase consigo tocar o cabelo da minha mãe quando ela passa.

Devo estar sonhando.

Mas os sonhos estão se esvaindo lentamente, e as vozes estranhas e pouco familiares que ouço começam a ficar mais distintas. Eu me sinto presa dentro da minha mente, e ela esqueceu como controlar meu corpo. Porque não consigo mexer nada. Nem os olhos, os lábios ou as mãos. Não consigo nem saber se estou respirando sozinha. Mas, sobretudo, penso nas vozes, em como estão ficando mais claras. Eu me descubro me concentrando o máximo que posso para entender as palavras, mas nunca vou além do som.

Até que ouço a voz de Victor a distância.

— Não vou ficar muito tempo aqui, hoje — eu o ouço dizer a alguém.

Tento acordar, mas acho que o esforço tem o efeito contrário, porque em um instante sou engolida pela escuridão e todas as vozes desaparecem.

Mais tempo se passa. Mais sonhos. Mais vozes.

E então, do nada, como se um interruptor fosse acionado em meu cérebro, minhas pálpebras se abrem e vejo que estou deitada em uma cama de hospital.

Victor está sentado ao meu lado em uma cadeira.

— Você acordou — diz ele, e sorri para mim.

— Quanto tempo fiquei sem acordar? — Ainda estou tentando organizar meus pensamentos.

— Três dias — diz ele. — Mas você vai ficar bem. Mantiveram você sedada a maior parte do tempo.

Tento erguer as costas do travesseiro, mas a dor na barriga é forte demais. Faço uma careta e ergo as mãos para o lugar que está doendo, mas Victor as segura e me faz relaxar.

— Você ainda não pode se mexer — diz ele, ficando de pé.

Ele pega o travesseiro extra de uma poltrona próxima e o posiciona atrás da minha cabeça. Então aperta um botão na lateral da cama para levantá-la e me pôr sentada. Um tubo de soro serpenteia das costas da minha mão, preso à pele com esparadrapo. Coça demais.

— A bala não atingiu nenhum órgão — diz Victor, ao se sentar novamente na cadeira. — Você teve sorte.

O rosto de Niklas aparece em minha mente.

— Ou seu irmão é ruim de pontaria.

Olho para meus braços apoiados na cama, dos lados do corpo. Quero saber o que aconteceu com Niklas e sinto que deveria torcer para que ele esteja morto, mas não consigo.

— Ele está...?

— Não — diz Victor. — Metade de mim queria matá-lo, mas a outra metade não conseguiu. Só me pergunto que metade teria ganhado se você não estivesse viva naquele momento.

Mexo a mão alguns centímetros na cama em busca da dele. Ele entrelaça os dedos nos meus.

— Fico feliz que você não tenha feito isso — digo, forçando um sorriso fraco. — Eu não conseguiria suportar ser o motivo de você matar seu irmão. E-eu nunca deveria ter me colocado entre vocês. Não sabia o que eu estava fazendo, Victor, me desculpe.

Ele aperta minha mão.

— Você fez algo que ninguém mais conseguiria — diz ele, e espero ansiosamente que ele me conte o que poderia ser. — Você me fez lembrar que eu tenho um irmão, Sarai. Ele e eu praticamente nos sentamos à mesa, lado a lado, como estranhos, nos últimos 24 anos. E vejo agora que, apesar de seus defeitos, ele nunca me traiu, nem uma só vez.

Victor faz uma pausa e desvia o olhar.

Então me olha de novo.

— De certa forma, ele me traiu quando foi lá para matar você — continua ele. — E me traiu quando me enganou para chegar até você. Sim, isso é uma traição. Mas é um tipo muito diferente de traição.

— Eu sei — digo. — Olhe para mim. — Ele olha. — Você agiu certo. Independentemente do que ele fez comigo, você agiu certo, e não quero que nunca pense diferente.

Ele não fala, mas conheço essa expressão, é o conflito que está sempre ali. Eu me pergunto se um dia ele vai se livrar disso.

Então diz:

— Mas você fez outra coisa que ninguém jamais conseguiu. — Sua expressão se abranda e meu coração derrete aos poucos. — Você me fez sentir emoções de verdade. Você me destravou.

Estendo a mão e toco seus lábios, segurando seu queixo.

Mas o assunto muda rápido demais.

— Niklas nunca mais vai machucá-la — diz ele. — Ele me deu a palavra dele. Além disso, ele sabe que, se tentar uma próxima vez, não vou hesitar em matá-lo. — Então, de repente, ele acrescenta: — Para mim, você é tão importante quanto ele.

Fico atordoada.

Victor se levanta e vai até a janela, cruzando os braços e olhando para o dia luminoso. Percebo que há muitas coisas que ele quer dizer, tantas pontas soltas que gostaria de amarrar comigo. Mas as coisas mudaram desde que Niklas atirou em mim. Sinto isso. E não vou mais brigar com ele, porque sei que precisa ser do jeito que é, precisa terminar do jeito que vai terminar.

— Não espero ver você de novo, Victor, e entendo. — Engulo em seco. Não quero dizer essas palavras. — É melhor assim, eu sei.

— Sim, infelizmente, é — diz ele com voz distante, de costas para mim. — Não posso manter você a salvo com a vida que levo. Eu queria, mas no fim não consegui. Sabia que não conseguiria, mas eu...

Espero em silêncio.

— ... mas eu errei — diz ele, embora eu sinta que ele quisesse dizer outra coisa. — Sinto muito, mas não há outro jeito.

Meu coração está se partindo...

— Prometa uma coisa — digo, e ele vira a cabeça para me olhar. — Não vá para a Alemanha. Não vá ver aquele homem, seu empregador ou sei lá que diabos ele é. Niklas me contou o que vai acontecer se você for. Por favor, não vá...

Eu o ouço suspirar baixinho, e ele olha de novo pela janela.

— Não posso prometer isso — diz ele, e meu coração se esmigalha. — Mas posso prometer que não vou ficar parado e deixar que alguém me mate.

Isso não me faz sentir nem um pouco melhor, mas sei que é tudo o que ele vai me dar.

Victor sai de perto da janela e tira um pacote de uma maleta que está na mesa próxima. Ele vem até meu lado e o coloca em minha mão. É uma caixa preta comprida embrulhada em um papel esfarrapado, que foi coberto com fita adesiva em algum momento. Tiro a caixa do embrulho e abro a tampa. Dentro há um maço de notas de dinheiro, com um envelope que foi dobrado para caber, e mais alguns pedaços de papel.

— O que é tudo isto?

— Sua verdadeira certidão de nascimento, cartão da Previdência, carteirinha de vacinação, com algumas vacinas faltando que você precisa tomar logo. — Ele aponta para o envelope dobrado, que estou abrindo para ver o que contém.

Olho primeiro minha certidão de nascimento. Sarai Naomi Cohen. Nascida em 18 de julho de 1990, em Tucson, Arizona. Repito meu nome completo mentalmente três vezes, só para que me pareça real, como parecia antigamente.

Não parece.

— Como conseguiu isto? — Olho para Victor.

— Tenho meus meios — diz ele, com um sorriso no olhar. — Também abri uma conta bancária no seu nome. Os detalhes estão nos outros documentos da caixa.

— Obrigada, Victor — digo, deixando minha certidão de nascimento no colo. — Por tudo.

Digo isso com sinceridade. Eu já teria morrido muitas vezes se não fosse por ele. Mas dizer essas coisas para ele, essas despedidas, está destruindo cada pedacinho que restava do meu coração.

— Quando você vai embora? — pergunto.

Na verdade, não quero saber a resposta.

Coloco os documentos no envelope e os fecho na caixa.

— Daqui a alguns minutos — diz ele, e engulo as lágrimas. Quero ser forte, porque sei que isso também é difícil para ele. — Mas falta mais uma coisa, antes que eu vá.

Ele vai até a porta e a abre. Entra a sra. Gregory. Fico tão chocada que a única parte do meu corpo que se move são as lágrimas escorrendo por meu rosto. Minha mão vai à boca. Meus olhos vêm e vão entre os dois, que estão sorrindo; Victor menos, mas sorrindo também.

A sra. Gregory, parecendo bem mais velha do que eu lembrava, vem até a cama de braços abertos e me envolve em um abraço. Ela cheira a perfume Sand & Sable. O perfume de sempre.

— Ah, Sarai, senti tanto a sua falta. — Ela me aperta de leve, sabendo fazer isso sem me machucar. Sua voz está carregada de emoção, mas ela está vibrando de alegria.

— Também senti sua falta — digo, retribuindo o abraço. — Achei que nunca mais fosse ver a senhora.

Ela se afasta e se senta ao meu lado na cama, passando seus dedos longos e enrugados por meu cabelo.

Mas então meu sorriso desaparece e meu coração finalmente morre de vez quando olho para onde Victor estava e vejo que ele se foi. Por um longo momento, as coisas que a sra. Gregory me diz soam abafadas, empurradas para algum lugar no fundo de minha mente. Quero pular as barreiras desta cama e correr atrás dele. Engulo em seco, contendo minhas emoções dolorosas no fundo da alma, e me controlo o melhor que posso, em consideração à sra. Gregory.

Eu me viro para ela e curto nosso reencontro.


CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

Sarai

Isso foi há seis meses.

Hoje, a vida está bem diferente. A conta bancária que Victor abriu para mim tinha um saldo de 2 milhões de dólares. Apenas quando entrei no avião com a sra. Gregory, quatro dias depois que Victor partiu, encontrei forças para olhar os outros documentos dentro da caixa. Um tinha informações sobre a conta bancária, e no verso, escrito com a letra de Victor:

Seu pagamento pelo serviço.

Atenciosamente,
Victor

Ele me deu sua parte do dinheiro que Guzmán pagou para mandar matar Javier. Acho que é justo, já que tecnicamente fui eu que o matei.

Mas a vida com certeza está diferente. Estou morando novamente no Arizona, com a sra. Gregory. Em Lake Havasu City. E tenho dinheiro suficiente para não precisar trabalhar, mas, para manter a mente ocupada e tentar me conformar com esta vida de normalidade, trabalho à noite em uma loja de conveniência. A sra. Gregory não gosta disso. Fica com medo. Diz que é perigoso trabalhar em lugares assim, abertos a noite toda.

E não é que ela estava certa?

Fui assaltada na segunda semana ali, mas, enquanto o cara estava do outro lado do balcão me apontando aquela arma, eu só conseguia observar seus olhos. Quando ele baixou o olhar para o dinheiro que pus diante dele, empurrei a arma para o lado, consegui arrancá-la de sua mão e lhe dei uma coronhada no rosto. Foi idiotice, na verdade. Mas foi um instinto. Não me sinto muito intimidada por bandidinhos drogados que assaltam garotas em lojas de conveniência.

Isso é brincadeira de criança.

Mas com certeza também não sou algum tipo de valentona reformada, moldada pelas minhas experiências extraordinárias. Pergunte para a aranha que subiu em mim uma noite dessas enquanto eu estava lendo na cama. A sra. Gregory quase teve um ataque cardíaco com os gritos.

Fui para a escola para conseguir um diploma do supletivo e passei no teste dois meses atrás. Não foi muito difícil, embora eu tenha sofrido com a matemática. Agora estou cursando Ciências da Computação em uma faculdade pública, embora não saiba por quê. Não tenho nenhum interesse nisso na “vida real”, mas... bem, normalidade. Esse é meu pretexto para tudo hoje em dia, para sair com meus novos amigos, para fingir que me interesso pelos objetivos deles na vida. Eu me sinto uma pessoa detestável por ter que fingir essas coisas, mas não posso me obrigar a gostar de algo só porque eu deveria.

Mas nem tudo é tão insuportável. Eu adoro a sra. Gregory e passo a maior parte do tempo com ela. Ela tem uma artrite tão grave que seus dedos estão deformados e ela não consegue mais tocar muito piano, mas ainda me ensina e eu ainda toco, às vezes por horas, até ter cãibra nos dedos e dor nas costas. Finalmente aprendi a Sonata ao Luar. E cada vez que a toco penso em Victor e na noite em que ele se sentou comigo ao piano.

A saúde da sra. Gregory está piorando. Eu cuido dela, mas sei que não vai viver para sempre, e que um dia vou ficar sozinha de novo. Gosto de pensar que talvez Victor ainda esteja por aí, me vigiando, e às vezes engano minha mente, fazendo-a acreditar que ele está. Mas a verdade é que nem sei se ele continua vivo. Tento não pensar nisso, mas acabo pensando sempre, exceto quando estou perdida entre as notas do piano.

Sinto falta dele. Sinto muita falta dele. Há quem acredite que, quando duas pessoas se separam, com o tempo elas se curam. Começam a se interessar por outras pessoas. Tocam a vida. Mas comigo não aconteceu nada disso. Sinto um vazio mais profundo agora do que aquele que senti quando estava na fortaleza. Este é mais doloroso, mais insuportável. Sinto falta de tudo em Victor. E estaria mentindo se dissesse que não penso nele sexualmente todo santo dia. Porque eu penso. Acho que estou viciada nele.

Tem sido muito difícil, para mim, me acostumar com praticamente tudo, mas, de maneira geral, seis meses não é tanto tempo. Não em comparação com os nove anos que passei na fortaleza. Portanto, tenho esperança de que daqui a mais seis meses estarei melhor. Serei “normal”. Meus amigos, embora eu não possa contar a eles sobre minha vida — e acho que é por isso que é tão difícil ficar íntima deles —, são legais. Dahlia é um ano mais velha do que eu. Beleza média. Inteligência média. Carro médio. Emprego médio. Somos parecidas nessa coisa mediana, mas não poderíamos ser mais diferentes em todo o resto. Dahlia não se sobressalta com qualquer barulho que se pareça remotamente com um tiro. Eu sim. Dahlia não fica olhando por cima do ombro aonde quer que vá. Eu sim. Dahlia quer se casar e ter uma família. Eu não. Dahlia nunca matou ninguém. Eu mataria de novo.

Mas sou grata, por mais que sonhe em estar em outro lugar. Em ser outra pessoa. Sou grata porque consegui fugir. Sou grata porque estou em casa. Embora “grata” seja bem diferente de “satisfeita”, e, apesar de finalmente ter uma vida normal que muita gente adoraria ter, estou o mais longe possível de estar satisfeita.

Victor Faust fez muito mais do que me ajudar a fugir de uma vida de maus-tratos e submissão. Ele me mudou. Mudou a paisagem dos meus sonhos, os sonhos que eu tinha todo dia de levar uma vida normal e livre, por minha conta. Ele mudou as cores da paleta, de básicas para um arco-íris — por mais que as cores desse arco-íris sejam escuras —, e não há um dia em que eu não pense nele ou na vida que poderíamos ter. Embora perigosa e, no fim das contas, curta, é a vida que eu queria. Porque teria sido uma vida mais adequada a mim e, bem, teria sido uma vida com Victor.

A verdade é que não estou pronta para esquecê-lo...

— Aí está você — diz a sra. Gregory da porta do meu quarto. — Você vem comer?

Pisco e volto à realidade.

— Ah, sim. Já vou. Só preciso lavar as mãos rapidinho.

— Certo — diz ela; seu sorriso se ilumina.

Sou realmente a filha que ela nunca teve. E acho que posso dizer que ela é a mãe que eu nunca tive.

A sra. Gregory, ou Dina, sempre faz cachorros-quentes com chili nas noites de sexta. Nós nos sentamos à mesa da cozinha, assistindo à TV de alta definição na parede. Está passando o noticiário. Sempre passa nesse horário.

— Então, você e Dahlia já decidiram onde vão passar as férias de verão?

Empurro a comida para dentro com um gole de refrigerante. Estou para responder quando algo no noticiário chama minha atenção. Uma repórter está na frente de uma mansão muito familiar, falando com um homem muito familiar.

Distraidamente, deixo meu garfo no prato.

— Eu adoraria poder ir com vocês — continua Dina. — Mas já estou muito velha para essas coisas.

Estou concentrada demais na TV para lhe dar atenção:

— Sim, senhora — diz Arthur Hamburg ao microfone. — Todo ano faço o melhor que posso para contribuir. Neste verão, estou planejando um evento para angariar 1 milhão para minha nova entidade beneficente, o Projeto Prevenção, em homenagem à minha esposa.

A repórter assente e parece sentir um pouco de remorso, reposicionando o microfone diante dele.

— E seria prevenção do vício ou do suicídio?

— Prevenção do vício — diz Arthur Hamburg. — No fundo, sinto que minha Mary não se suicidou. O que a matou foi o vício. Quero fazer o meu papel para ajudar outros que estão viciados em drogas, e também ajudar a prevenir o uso de drogas antes que comece. É uma doença muito terrível neste país.

Assim como mentir, violentar e matar, seu desgraçado.

— Sim, é, sr. Hamburg — diz a repórter. — Por falar em doença, sei que o senhor também doou dinheiro à pesquisa do câncer por causa...

— Doei — interrompe Arthur Hamburg. — Ainda me sinto muito culpado por ter mentido para todos sobre a doença da minha esposa e duvido que um dia vá achar que me desculpei o suficiente. Mas, como já falei, eu só a estava protegendo. As pessoas podem aceitar o câncer, mas não aceitam tão bem o uso de drogas, e fiz o que fiz para proteger minha esposa. Mas, sim, acho que é justo que eu também doe para a pesquisa do câncer.

Você é um merda.

Cerro os dentes.

— Sarai? — pergunta Dina do outro lado da mesa. — Já se decidiu? Flórida ou Nova York?

O resto das palavras de Arthur Hamburg desaparece no fundo da minha mente. Penso na pergunta de Dina por muito tempo, olhando-a sem vê-la.

Por fim olho para ela, pego meu garfo e respondo:

— Não, na verdade acho que vamos fazer uma viagem a Los Angeles, neste verão. — Corto um pedaço de salsicha do pãozinho no meu prato, mergulho-o no chili e dou uma mordida.

— Los Angeles? — diz Dina inquisidoramente, também dando uma mordida no seu. — Vai dar um pulinho em Hollywood, hein?

— Sim — digo, com ar distante. — Vai ser ótimo.

Tenho assuntos pendentes lá.

Sorrio para mim mesma, pensando nisso, e tomo mais um gole de refrigerante.

CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Sarai

A caminho da mansão, Victor me lembra pela última vez:

— Nunca saia da personagem. Aconteça o que acontecer, ou o quanto as coisas fiquem desconfortáveis para você. Não abandone a personagem.

— Entendi — digo. — Aconteça o que acontecer, não vou abandonar a personagem. Prometo.

Esse olhar que ele me lança, embora indistinto, me diz que ele tem suas dúvidas.

Chegamos à propriedade de Arthur Hamburg às sete e meia e somos recebidos por um portão eletrônico alto, de ferro, e um segurança. Victor passa nossos convites pela janela do carro. O segurança os inspeciona primeiro, depois vai até um painel incrustado na lateral da pequena guarita de pedra e encosta um telefone ao ouvido. Eu o ouço vagamente pela janela aberta, nos descrevendo e descrevendo os convites. Alguns segundos depois, ele desliga e devolve os convites a Victor.

O segurança entra novamente na guarita, e logo depois o portão de ferro se abre, dando-nos acesso à enorme propriedade. Depois de atravessar o calçamento de cascalho por quase um hectare, estacionamos o carro na frente da mansão, perto de uma variedade de veículos igualmente caros.

Saímos do carro, Victor passa o braço no meu e seguimos na direção da casa. Nós nos aproximamos da gigantesca porta dupla principal, passando por duas colunas de mármore nas laterais e por baixo de uma varanda escalonada. Somos recebidos na porta por outro segurança armado, e é então que noto todos os outros seguranças espalhados pela propriedade. Lembro que Victor me falou deles e começo a me sentir um pouco desconfortável. Mas depois que nossos convites são inspecionados de novo e entramos, o desconforto diminui, substituído por assombro. Já estive em muitas mansões, mas esta é de longe a mais impressionante, com pés-direitos de quatro andares no centro da casa, abrindo-se para uma imensa claraboia redonda. Lindas estátuas gregas estão expostas no térreo. Sempre que alguém entra, o som de sapatos estalando de leve no mármore ecoa como se eu estivesse dentro de um museu, e não em uma mansão particular da Califórnia. Ouço o que parece uma pequena cachoeira e então noto que à minha direita, sob um arco de 4,5 metros, há um lindo chafariz de pedra branca bem no meio da sala.

Antes de ser flagrada admirando este lugar de olhos esbugalhados, como uma garota que nunca viu tanta riqueza na vida, mudo minha expressão para parecer distraída, estreitando os olhos de leve, como se parte de mim estivesse entediada. E quando alguém me olha, escolho para quem balanço a cabeça sutilmente em reconhecimento e quem ignoro. Ignoro sobretudo as mulheres, ou as olho rapidamente com ar de desaprovação.

Victor anda comigo pela enorme sala, e somos então recebidos por um homem, embora não seja Arthur Hamburg. Ele é muito mais novo, com cabelo castanho-claro e olhos castanhos.

— Bem-vindos à mansão Hamburg — diz o homem. Ele estende a mão e Victor a aperta. — Eu sou Vince Shaw, o assistente do sr. Hamburg.

— Eu sou Victor Faust e esta é minha mulher, Izabel Seyfried.

Estendo a mão para o homem, com a palma para baixo, e ele a toma nos dedos e se curva para beijá-la.

Eu me pergunto se esse é realmente o sobrenome de Victor. Ele não parece preocupado em usar seu primeiro nome verdadeiro — a menos que “Victor” também não seja seu nome...

Não posso pensar nisso agora.

“Vince” pega uma taça de champanhe de uma bandeja quando um garçom passa. O garçom nos oferece a bandeja em seguida.

— Por favor, tomem uma taça — diz Vince, e Victor pega uma da bandeja e a entrega a mim, antes de se servir. — Peço desculpas — diz Vince —, mas estou curioso para saber como obtiveram o convite.

Victor toma um gole de champanhe e demora para responder, como se fosse importante o suficiente para fazer o homem esperar.

— Izabel e eu estávamos no restaurante do sr. Hamburg noite passada. Houve um incidente.

— Ah, sim, claro — diz Vince, com um sorriso conivente mas respeitoso. Então ele se vira para mim. — Foi mais do que indenizada pelo seu vestido, presumo?

— Sim, fui — digo, tomando um gole de champanhe. — Mas devo dizer que acho que a questão poderia ter sido resolvida de maneira diferente.

— Ah? A que maneira se refere?

— Bem, aquele, por acaso, era meu vestido favorito. Tinha valor sentimental, se quer saber. O garçom deveria ter sido demitido.

— Ah, sim — diz Vince. — Bem, isso com certeza pode ser providenciado. Falarei com o sr. Hamburg sobre isso pessoalmente. Isto é, se não quiser fazer isso quando se encontrarem mais tarde.

— Não — digo, piscando. — Acredito que o senhor me poupará de precisar repetir o que disse.

Olho para Victor, que parece satisfeito com meu desempenho.

— É claro — garante Vince. — Não diga mais nada. Será feito. — Ele sorri, revelando dentes brancos e perfeitos.

Eu me sinto péssima por ser o motivo de aquele pobrezinho ser demitido, mas me consolo dizendo a mim mesma que ele não deveria trabalhar para alguém como Hamburg. Afinal, se fomos mandados aqui para matá-lo, isso só pode significar que ele é, de alguma forma, um canalha.

Nós nos distraímos com Vince por algum tempo, mas eu basicamente só tomo goles de champanhe e ouço os dois conversando. De vez em quando levanto a mão e a dobro com as unhas para cima, examinando-as, entediada. Noto que Victor olha para o relógio uma vez.

— O sr. Hamburg descerá para cumprimentar seus convidados em breve — diz Vince. — Por enquanto, sintam-se à vontade para aproveitar o champanhe e os hors-d’œuvres. Ah, aí está ela! — Ele faz um gesto para nós, e nos viramos. — Gostaria de lhes apresentar Lucinda Graham-Spencer. — Ele sorri para Victor. — Certamente a conhecem, não?

Uma mulher estonteante, usando um vestido branco colado ao corpo curvilíneo, se aproxima, acompanhada por um homem de terno.

— Sim, já a ouvi tocar — diz Victor. — Em um concerto em Londres, ano passado. Ela é brilhante.

— Querrrrido, como vai? — pergunta a mulher chamada Lucinda Graham-Spencer, abrindo os braços dramaticamente para Vince. Victor e eu damos um passo para o lado e ela esvoaça entre nós para plantar dois quase-beijos nas bochechas de Vince.

Reviro os olhos. E não apenas como a personagem.

— Lucinda — diz Vince, virando-se para Victor —, estes são Victor Faust e — ele me indica com um gesto — Izabel Seyfried. São convidados do sr. Hamburg.

Lucinda se aproxima de Victor da mesma forma que fez com Vince, e eles se beijam no rosto. Então ela se vira para mim. Victor me fuzila com o olhar, discretamente, mas isso não basta como dica, e eu também não sou telepata, cacete.

Por isso, ajo como meu instinto manda.

— Prazer em conhecê-la — digo com educação, mas sem diminuir meu ar de superioridade. Retribuo os beijos no rosto, com as mãos apoiadas delicadamente em seus braços, como as dela estão nos meus.

Os olhos de Victor sorriem para mim agora, aprovando minha decisão, e provavelmente aliviados com ela. Ao que parece, essa mulher tem uma importância muito maior do que jamais vou ter, e embora eu não faça ideia de que tipo de musicista ela seja ou por que é tão importante, sei que deve ser famosa em seu meio, e eu só faria papel de idiota se esnobasse alguém tão respeitado. Aliás, provavelmente seríamos expulsos a pontapés se eu fizesse isso.

Vince deixa Victor e eu a sós e anda com a mulher pela sala para apresentá-la aos outros convidados. Escuto e noto que ele diz a todos a mesma coisa que nos disse, e que todos aqui são apresentados como “convidados do sr. Hamburg”. Começo a me perguntar como Victor planeja ter a atenção exclusiva do sr. Hamburg com tantas outras pessoas aqui, casais inclusive, competindo por ela.

Victor passa a mão livre pela minha cintura e nós andamos lentamente pela sala, fingindo conversar sobre os quadros e as estátuas. Ele aponta discretamente para isto ou aquilo e comenta detalhes das cores ou da emoção que a obra retrata. São todas observações inúteis e desinteressantes, que não merecem realmente nenhum comentário, na minha opinião, mas eu entro no jogo assim mesmo. Logo percebo que ele estava usando esse tempo para atravessar a sala sem parecermos perdidos nem precisando da companhia de alguém para nos fazer sentir mais entrosados.

— Preciso ir ao toalete — diz Victor, deixando sua taça de champanhe em uma mesa na entrada do corredor. — Você vai ficar bem sozinha?

— Claro — digo, com ar aborrecido. — Sou perfeitamente capaz de ficar sozinha.

Ele beija meus lábios e se afasta pelo corredor. Eu o observo até que ele vira a esquina no final. Sei que ele não está procurando o “toalete” e começo a ficar nervosa quando ele demora mais do que alguns minutos e eu continuo parada ali, sozinha. Espero não parecer precisar de ajuda para me enturmar.

Acabo recebendo-a mesmo assim.

— Sou Muriel Costas — diz uma mulher, se aproximando de mim com outra mulher e um jovem. — Nunca vi você por aqui.

— Izabel Seyfried — me apresento, tomando meu champanhe muito lentamente, mostrando à mulher que minha taça merece mais atenção do que ela. — E acho isso natural, já que nunca estive aqui antes.

Ela sorri, aproximando sua taça dos lábios pintados de rosa. Ela tem cabelo longo e preto caindo nos ombros e batendo logo abaixo de seus seios fartos. Seu decote é ressaltado pelo vestido cinza justinho. A mulher ao lado dela lhe lança um olhar, provavelmente se perguntando se a primeira deixará impune minha resposta atravessada. Retribuo o sorrisinho e dirijo a atenção para o jovem, que não deve ser muito mais velho do que eu.

Abro um sorriso tênue e sedutor para ele, só para deixar Muriel irritada, e ele percebe. Mas então seu olhar é desviado com submissão quando ela o encara.

— De onde vem? — pergunta ela.

— De onde vem o quê?

Ela e a outra mulher se entreolham com sorrisos leves, obviamente formando a mesma opinião a meu respeito.

— Seu dinheiro — diz Muriel, como se eu devesse conhecer o jargão.

Ela toma um gole de champanhe.

“Você é rica, embora ninguém precise saber de onde vem o seu dinheiro.”

Meu rosto todo escurece com um sorriso confiante.

— Só uma pessoa que se sente ameaçada faz esse tipo de pergunta — digo, e olho rapidamente para os outros dois para exibir discretamente meu controle da conversa. É aparente, para mim, que eles são vira-latas de Muriel Costas, e, dependendo de que mão oferece os melhores restos de comida, não são imunes a influências.

Victor reaparece no corredor.

O rosto de Muriel se ilumina quando o vê. Ela se apresenta imediatamente, oferecendo a mão para um beijo de praxe que eu sei que não tem nada a ver com praxe e tudo a ver com desafio. Victor aceita o gesto e olha nos olhos escuros dela ao se erguer de sua reverência discreta, que ele mantém um pouco mais do que eu gostaria. Mas Muriel está satisfeita e faz questão de me olhar bem nos olhos para que eu saiba disso.

Eles se apresentam e recomeçam o papo furado de festa. Mas em vez de mostrar um pingo de ciúme, já que sei que nada daria mais satisfação a Muriel, eu me afasto dos quatro com o queixo erguido e ar importante e acho um grupinho de homens só meu para confraternizar. Não sei ao certo se Victor aprova essa ação, mas não olho para trás para descobrir. Se eu fizesse isso, meu ciúme ficaria tão aparente quanto em uma demonstração escandalosa. E não é tão fácil Izabel Seyfried sentir ciúme. Ela revida.

Não ofereço a mão a esses três homens, apenas minha conversa encantadora e confiante, que eu jamais ofereceria a uma mulher. Eu não esperava que isso acontecesse, mas é nesse momento, quando assumo totalmente o controle das coisas, que percebo não só que entrei no papel mais do que julgava ser capaz, mas também que estou começando a dar a Izabel Seyfried seus próprios traços. Traços que Victor, tecnicamente, nunca me mandou dar a ela. Eu decido — porque parece o certo — fazê-la desprezar as mulheres um pouco em demasia e adorar os homens um pouco intensamente demais.

Afinal, se vou fazer o papel de outra pessoa, é melhor preencher todas as lacunas de sua personalidade e torná-la totalmente realística.

Durante minha conversa com esses homens, cujos nomes já esqueci, Victor entra no grupo. Sinto sua mão em meu antebraço, apertando-o com força.

— Você sabe que eu não gosto quando você se afasta de mim — diz ele.

Os homens não dizem nada, mas nos ouvem atentamente, como que intrigados pela exibição de Victor de dominação sobre mim.

Abro um sorrisinho.

— Eu sei que você não gosta — digo —, mas estava ficando... sufocada com sua bisavó ali.

Muriel fixa os olhos nos meus ao ouvir isso, e eu sorrio em resposta. Ela e seus mascotes se afastam na direção oposta, até outro grupinho.

Victor esmaga meu braço, fazendo o champanhe se agitar em minha taça.

O sorriso desdenhoso desaparece do meu rosto em um instante.

Ele se curva para meu ouvido e diz em voz baixa:

— Não suporto a ideia de fazer isso, Izabel, mas se for preciso, eu vou abandonar você. — Sua respiração dança por meu pescoço, deixando a pele arrepiada.

— Não vou mais fazer isso — digo, ofegante, virando o pescoço para que minha boca alcance a dele.

Fecho os olhos para beijá-lo e sinto seus lábios tão perto dos meus que quase posso saboreá-los, mas então ele se afasta. Os homens perto de nós estão assistindo a tudo, discretamente, quando volto a abrir os olhos.

Arthur Hamburg aparece na sala do chafariz com quatro homens de terno, e todas as atenções se voltam para ele.


CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Sarai

O homem parece ainda mais velho do que na foto. E mais gordo. Acredito que tenha 60 e poucos anos, estatura mediana, abaixo de 1,80 metro, e não menos do que 130 quilos, a maior parte na barriga e nas bochechas. Enquanto está na entrada da sala, com seus capangas ao redor, eu não vejo apenas um ancião obeso, vejo um homem mau que vai morrer esta noite. É tudo o que consigo pensar: ele vai morrer. E eu estarei lá para presenciar. De repente minhas entranhas se fecham, meu peito aperta, meu estômago dá um nó e sinto que não consigo respirar. Inspiro pelos lábios entreabertos e solto o ar bem devagar pelas narinas. Calma, Sarai. Fique calma.

Eu não pensei que fosse me afetar desse jeito saber o destino de um homem, praticamente controlar se ele vai viver ou morrer apenas por saber o que ele não sabe. Mas, apesar da ansiedade que sinto quando me dou conta da realidade da situação, não me arrependo de ter vindo. Posso não saber o que Arthur Hamburg fez para merecer a morte, mas confio nas palavras de Victor e sei que ele está longe de ser inocente, ou não estaríamos aqui.

Arthur Hamburg se dirige a seus convidados, agradecendo a todos nós por termos vindo esta noite, e continua falando e falando de coisas supérfluas, com todo mundo assentindo, concordando, sorrindo e opinando. E ele conta piadas das quais ri antes de todos, mas todos sempre riem também, porque seria grosseria não rir, é claro. Até eu me pego rindo um pouco de uma piada que todos parecem achar engraçada, mas que na verdade eu não acho.

Victor me põe diante de si, apertando minhas costas contra seu peito. Sua boca explora meus ombros nus, suas mãos estão em meus quadris. Mas a afeição é breve, apenas uma exibição, e sua atenção volta para Arthur Hamburg, quem eu noto que, nesse curto espaço de tempo, nos encontrou, e está nos fitando do outro lado da sala. Percebo a deliberação em seu olhar, a mudança repentina de sua expressão. Depois de mais alguns pronunciamentos, ele encerra a conversa e deixa todos se divertirem, como estavam fazendo antes que ele entrasse na sala.

Quando dou por mim, ele está vindo em nossa direção.


Victor

Arthur Hamburg aperta minha mão quando me apresento e apresento Izabel.

— Meu assistente disse que o senhor teve um problema em meu restaurante, noite passada.

Ele sabe muito bem que fomos nós dois. Viu tudo daquela sua sala particular, escutou nossas conversas à mesa pelo minúsculo microfone situado no arranjo de centro.

— Sim — digo, assentindo. — Desculpe dizer, mas acredito que uma mudança no modo como sua gerência contrata os funcionários é necessária.

Hamburg sorri para disfarçar o que está fazendo, na verdade: estudando a mim e Sarai, reparando em nós mais do que já fez no restaurante, imaginando-nos com ele em seu quarto. Ele está se lixando para o incidente no restaurante ou a possibilidade de ser processado. Isso não tem nada a ver com o convite para estarmos aqui.

— O senhor é de Los Angeles? — pergunta ele.

— Não — respondo, puxando Sarai para mais perto, com um braço em volta de sua cintura e a mão apoiada quase em sua virilha. Os olhos de Hamburg descem para minha mão ali. — De Estocolmo.

Ele parece intrigado.

— Não tem sotaque estrangeiro — diz ele.

Respondo em sueco:

— Sou fluente em sete idiomas. — Depois repito em inglês para que ele entenda.

Ele assente, com um sorriso impressionado. Então olha para Sarai.

— E você?

— De Nova York — respondo por ela.

Sarai fica quieta dessa vez.

Hamburg se vira para mim de novo e pergunta:

— Ela é sua...? — Ele vasculha a mente em busca da maneira mais prudente de fazer a pergunta.

— Minha propriedade? — digo por ele, mostrando que é perfeitamente aceitável falar sobre coisas que em outra situação seriam tabus. — Sim, ela é. E na maior parte do tempo, gosta disso.

Ele ergue uma sobrancelha espessa e grisalha.

— Na maior parte do tempo? — pergunta ele inquisidoramente. — E o que ela pensa no resto do tempo?

Ele olha para Sarai, com um sorrisinho nos cantos de seus lábios enrugados.

— No resto do tempo eu tenho vontade própria — diz Sarai como Izabel.

Suspiro e balanço a cabeça, passando os dedos por seu quadril.

— Sim, ela tem, admito — confirmo. — Prefiro mulheres que oferecem resistência.

— Então o senhor já seguiu o outro caminho, suponho? — pergunta Hamburg, e sei que ele está se referindo à submissão total, a possuir uma mulher que fará qualquer coisa que mandarem sem a menor expressão de desconforto ou recusa.

— Uma vez — respondo. — Estou satisfeito com Izabel, apesar de sua boca grande, às vezes.

Hamburg a examina mais de perto agora, e a mim também. Ele gosta de mulheres e de homens, afinal. E também gosta de mulheres que oferecem resistência, como Izabel. A única diferença é que as outras foram trazidas para cá contra a vontade.

De repente, Hamburg ergue o queixo orgulhosamente e diz:

— Gostaria muito de falar com o senhor em particular. Na minha suíte. Se estiver interessado em ofertas lucrativas. Está interessado em ofertas lucrativas, não está? — Ele sorri e molha os lábios rapidamente com a língua.

Penso a respeito um momento, mexendo com sua cabeça, demonstrando, só pelo olhar, que estou interessado, mas não desesperado.

— Estou disposto a ouvir a oferta, pelo menos — digo.

Seus olhos se iluminam. Ele se vira para o homem de terno ao seu lado, murmura algo em seu ouvido e volta a falar conosco enquanto o homem pega o elevador panorâmico até o último andar.

— Me acompanhem — diz Hamburg, e nós dois o seguimos até o elevador.

Hamburg nos conta da construção de sua mansão enquanto esperamos que o elevador panorâmico desça vazio. E tagarela sobre todo o dinheiro que gastou na casa, explicando discretamente que pode me pagar, seja qual for meu preço. Sinto Sarai ficando cada vez mais nervosa enquanto subimos até o último andar. Em um momento, ela agarra minha mão, e olho para seus dedos delicados presos nos meus. Aperto sua mão de leve, lembrando que estou aqui e que farei tudo o que puder para mantê-la a salvo. Eu a olho nos olhos, e no momento só o que vejo é Sarai me olhando também, a garota corajosa mas ansiosa e complicada que despertou tanto meu instinto protetor.

Vamos até um enorme corredor que dá para a entrada do quarto dele, intrincada e espalhafatosa como o resto da casa. Dois homens de terno montam guarda na porta. Cada um deles, como os que estão lá embaixo, carrega armas por baixo das roupas. Mas eu não. Desta vez, não. Porque sei que Sarai e eu seremos revistados antes que nos deixem entrar, e encontrar uma arma em qualquer um de nós, duas pessoas ricas mas, à parte isso, comuns que não têm motivo algum para portar armas de fogo, mudaria as conclusões iniciais de Hamburg sobre nós. Ele poderia se sentir ameaçado e mudar de ideia quanto a nos deixar entrar.

Paramos à porta e abro os braços para que um dos seguranças me reviste.

Sarai faz o mesmo, mas não fica tão quieta desta vez.

— Isso é realmente necessário? — pergunta ela entre dentes enquanto o outro segurança a revista.

— Desculpe, querida — diz Hamburg enquanto abre as portas da suíte —, mas é. Todo cuidado é pouco.

Quando os seguranças não encontram nada, abrem caminho, e, antes de fechar nós três dentro do quarto, Hamburg diz aos homens:

— Podem ir. Vou precisar de um pouco de privacidade por mais ou menos uma hora.

Os dois seguranças concordam, assentindo, e deixam seu posto na porta do quarto.


CAPÍTULO TRINTA E SEIS

Sarai

Assim que a enorme porta dupla se fecha atrás de nós, sinto meu coração afundando no estômago. Mas espanto a sensação e faço o melhor que posso para conservar minha fachada de Izabel Seyfried.

Enquanto deixo meu olhar percorrer o imenso quarto, fico surpresa com a rapidez com que Arthur Hamburg vai direto ao assunto:

— Direi o que desejo e darei ao senhor a oportunidade de determinar seu preço. — Ele indica a poltrona de couro mais próxima de Victor com um gesto.

Victor se senta, e sou deixada em pé ali, sozinha.

As máscaras caíram, agora que os dois estão a sós na privacidade do quarto. Arthur Hamburg não é mais o homem enjoativamente encantador que fingia ser lá fora, diante de todos. Não, é o canalha perverso e doentio que Victor foi enviado para matar. Ele não me vê mais como uma convidada em sua mansão, que merece uma taça de champanhe e respeito; sou apenas uma peça em seu jogo sexual, que não é mais digna de seu olhar ou de sua conversa. Somente Victor tem direito a tais luxos. É Victor que ele quer. Percebo isso agora. Mas há muito mais nisso do que eu sei. E não demora para que tudo se revele.

— O que o senhor quer? — pergunta Victor, calma e ardilosamente.

Ele se recosta na poltrona e apoia o tornozelo esquerdo no joelho direito.

Arthur Hamburg se senta na poltrona em frente, igual à de Victor, com um sorriso diabólico em seu semblante cruel.

— Gosto de assistir — diz ele. — Mas nada de merdas tipo papai e mamãe. — Ele faz uma pausa e acrescenta: — Você fode a garota, de vez em quando faz com ela o que eu pedir, e depois, se você topar, e por uma quantia extra, eu me ajoelho na sua frente.

Ele sorri e, pela primeira vez desde que entrei aqui, seus olhos passam por mim.

Enquanto tenho um ataque de ansiedade em segredo, Victor pondera por um momento, fingindo considerar a oferta.

Victor olha para mim.

— De jeito nenhum — digo, assim que percebo a deixa. — Ele é nojento, Victor. Não concordo com isso.

Victor fica de pé e me segura casualmente pelo cotovelo.

— Você vai fazer o que eu mandar — diz ele.

Balanço a cabeça de um lado para o outro, olhando para os dois, tentando não sair da personagem, mas achando isso cada vez mais difícil.

Eu consigo fazer isso, digo a mim mesma quando o palpitar forte do meu coração encobre a voz em minha cabeça. Victor não vai me machucar. De jeito nenhum. Preciso acreditar nisso.

Por que ele não mata esse porco agora e pronto? Não entendo...

Com meu cotovelo ainda preso em sua mão, Victor se vira para Arthur Hamburg e diz:

— Quinze mil. — E o rosto de Hamburg se ilumina. — E vou querer mais 15 para deixar você me chupar.

Sinto meus olhos se arregalando.

— Fechado.

— Não — digo, e tento desvencilhar meu braço, mas então Victor estreita os olhos para mim e eu cedo.

— Se curve sobre a mesa — diz Victor.

Quê?...

Ele olha para a pesada mesa quadrada de mármore à minha direita, movendo apenas os olhos.

— Agora, Izabel — exige ele.

Ai, meu Deus...

Hesitante, me aproximo da mesa e apoio a barriga e o peito ali. Já consigo sentir o ar do quarto alcançar o tecido da minha calcinha. Engulo em seco.

Victor se aproxima por trás e termina de levantar meu vestido curto, descobrindo minha bunda e dobrando-o nas minhas costas. Uma de suas mãos aperta minhas nádegas.

— Faça a garota chorar — diz Arthur Hamburg, da poltrona atrás de mim. — Tenho coisas que você pode usar se quiser.

— Consigo fazê-la chorar sem elas — diz Victor, puxando minha calcinha para baixo até os tornozelos. Eu suspiro, me sentindo desconfortavelmente exposta. — Mas ainda posso usá-las. Faz tempo que não a machuco de verdade.

Arthur Hamburg produz um som estranho que nunca ouvi antes.

— Ah, sim, eu gostaria muito de ver isso. — Ele bate palmas e acrescenta, com deleite macabro: — Ela é muito apertada? Eu tenho um taco de borracha.

Fico paralisada na mesa; seu comentário tira todo o ar dos meus pulmões.

Você está de brincadeira, caralho?

Estou pronta para matá-lo, agora. Ele poderia ser meu primeiro trabalho. Estou pronta!

Minhas mãos começam a tremer sob o peito.

Se mantenha na personagem, Sarai... haja o que houver.

Então, de repente, como se não estivéssemos mais no quarto com aquele tarado filho da puta, sinto os dedos de Victor deslizando para dentro de mim e fico instantaneamente molhada. Solto um gemido agudo, e o hálito quente que sai dos meus lábios cobre o mármore de umidade a centímetros do meu rosto. Vejo o borrão aparecer e desaparecer no ritmo da minha respiração ofegante.

— Abra as pernas — manda Victor.

De início não obedeço, mas quando ele enfia as mãos entre minhas coxas e as separa à força, me expondo completamente, não resisto, só me agarro à borda da mesa com as pontas dos dedos e endireito as costas.

Minha mente luta com o quanto tudo isso é errado. Sei que é errado e nojento porque aquele homem está sentado ali, vendo isso acontecer. Mas a outra parte de mim, a parte que está começando a bloquear totalmente a presença de Arthur Hamburg da minha mente, quer que Victor faça o que quiser comigo. Tento fechar os olhos e imaginar somente Victor no quarto, e funciona por um ou dois minutos, até que ouço a voz de Arthur Hamburg de novo.

— Sim, ela é bem rosadinha. Bem apertada — diz ele, e eu cerro os dentes.

Victor começa a ganhar tempo.

— Sabe — diz ele —, você podia me mostrar suas coisas. Vou meter um pouco nela antes, deixá-la mais aberta, e aí...

— Não precisa dizer mais nada — diz Arthur Hamburg, com um sorriso sádico na voz.

Eu o ouço se levantando da poltrona, e então seus sapatos caros estalam no chão quando ele passa. Vejo que sua calça já está aberta e sua camisa, solta sobre a barriga grotesca. Ele já estava se masturbando. Quando se aproxima do que parece um grande closet, ele para e se vira para Victor. Parece estar refletindo intensamente, até que diz:

— Tudo bem se eu deixar minha esposa assistir comigo?

Depois de uma pausa momentânea, Victor responde:

— Mais uma pessoa não estava no acordo. — Ele pensa um pouco. — Mas acho que tudo bem. Ela está lá embaixo?

— Ah, que bom — diz Arthur Hamburg, esfregando as mãos gorduchas. Ele se aproxima mais do closet, abrindo as duas portas enormes para revelar um espaço interno maior do que de um quarto normal. — Não, eu a guardo aqui.

Hã? Você a guarda aí?

Sentindo que isso chamou mais do que apenas a atenção de Victor, olho para cima quando ele se afasta de mim. Não tenho ideia do que ele vai fazer, não sei se devo ficar como estou ou me levantar e deixar o vestido cobrir novamente minha bunda, como eu gostaria. Resolvo esperar mais alguns minutos.

— Não fique chocado quando a vir — diz Arthur Hamburg. Ele parece estar digitando vários números em um teclado prateado na parede interior do closet. — De certa forma, minha Mary é como sua Izabel.

— É mesmo? — diz Victor, entrando no closet com ele.

Outra porta enorme se abre na parede interna do closet, revelando mais um quarto.

— Sim — continua Arthur Hamburg. — Embora seja muito mais submissa do que a sua.

Então ouço um thump alto e um bang quando os dois desaparecem em algum lugar do quarto secreto. Visto a calcinha às pressas e corro pelo quarto para ver o que está acontecendo, quase tropeçando por causa dos saltos.

— Victor!

— Entre aqui, Izabel, agora! — eu o ouço gritar, e, embora ele tenha me chamado de Izabel, sei, pelo tom de urgência em sua voz, que ele está falando comigo como Sarai.

Depois de passar pelas prateleiras altas do closet e entrar correndo no quarto secreto, fico chocada e confusa com o que vejo, incapaz de formar pensamentos, muito menos palavras. Victor está segurando Arthur Hamburg com a cara contra a parede e uma gravata apertada em volta do pescoço gordo. Seu rosto incha por cima do tecido que o estrangula, sua pele ficando vermelho-escura e roxa. Uma mulher está deitada em uma cama dobrável, perto da parede, usando uma camisola comprida de algodão branco, transparente, toda manchada de urina e sangue.

— No closet — diz Victor, pressionando o corpo contra o homem que esperneia — tem uma maleta no chão com uma arma dentro. Vá pegar.

Faço que sim rapidamente e volto correndo para o closet para procurar a maleta, encontrando-a em segundos. Tiro dali a arma e corro para o quarto.

Ele libera uma das mãos e eu lhe entrego a arma.

Victor encosta a arma na têmpora de Arthur Hamburg e solta seu corpo. O velho luta para respirar, fazendo sons engasgados e desesperados, tentando recuperar o controle da respiração. Então Victor o revista, procurando armas. Quando se convence de que ele não tem nenhuma, enfia a mão no bolso da calça, tira um par de luvas de borracha e o joga para mim, me mandando calçá-las.

Faço isso rapidamente.

— Bem, as coisas vão acontecer da seguinte forma — diz Victor para Arthur Hamburg. — Infelizmente, você vai viver. Se a escolha fosse minha, eu teria matado você noite passada, no restaurante, ou qualquer outra noite antes disso. Mas você vai viver.

O. Que. Está. Acontecendo? Minha mente não consegue assimilar essa reviravolta inesperada.

— Se não veio aqui me matar — diz Arthur Hamburg, com a voz tremendo de medo, mas como se estivesse se divertindo —, então que porra você quer aqui? Dinheiro? Tenho dinheiro aos montes. Dou quanto você quiser.

Victor empurra Arthur Hamburg para o chão e mantém a arma apontada para ele. O suor escorre do rosto e do pescoço do homem, empapando sua camisa social branca. Então Victor enfia a mão no bolso interno do paletó e me entrega um pequeno envelope amarelo.

— Abra — ordena ele.

Enquanto faço isso, Victor volta a olhar para Hamburg.

— A morte vai ser considerada um suicídio — diz Victor, e fico ainda mais confusa. — Ela deixou um bilhete assinado de próprio punho. Você só precisa esperar uma hora depois que sairmos para dar o alarme.

— Que merda você está dizendo?! — exclama Arthur Hamburg rispidamente, apesar da arma apontada para ele.

Não consigo mais decidir para quem olhar, o psicopata no chão ou a pobre mulher deitada no catre.

De repente ela me olha com olhos tristes, frágeis, atormentados, e um calafrio percorre meu corpo.

— Victor, a gente precisa ajudá-la. — Começo a me aproximar dela.

— Não — diz Victor. — Deixe-a ali.

— Mas...

— Tire o conteúdo do envelope — interrompe ele.

Tiro primeiro uma folha de papel dobrada, tentando sentir a textura através das luvas apertadas em minhas mãos.

— Leia — diz ele.

Cuidadosamente, eu a desdobro e olho para a bela caligrafia com floreios em tinta azul. E quando leio a carta em voz alta, começo a sentir náuseas e meu coração dói.

Meu adorado marido,

não posso mais fazer isso com você. Envergonhei minha família, nossos filhos, nós nos envergonhamos, Arthur. Eu não amo mais você. Não amo a mim mesma. Não amo ninguém, porque não consigo. Não sou capaz de sentir emoções verdadeiras há doze anos dos trinta que sou casada com você. Não posso mais viver assim. Tantas vezes eu quis procurar ajuda, talvez tomar remédios. Não sei, mas depois de tanto tempo, depois de anos querendo pedir ajuda, comecei a não me importar.

Lamento tanto que você tenha que me ver assim. Lamento tanto não poder ter pedido ajuda a você. Mas eu não queria ajuda. Eu só queria que acabasse.

E é isso que vou fazer.
Acabar com tudo.

Adeus, Arthur.

Atenciosamente,
Mary

O homem não consegue tirar os olhos da esposa. Seu queixo flácido vibra quando ele tenta conter as lágrimas. Mesmo assim, não sinto um pingo de remorso por ele. Não só porque ainda estou lutando para entender o motivo de isso acontecer, mas porque sei que ele é um psicopata e não merece remorso.

— Por que você está aqui? — pergunta ele, com voz rouca e trêmula.

Victor olha para mim.

— Me dê o cartão SD.

Tiro o minúsculo cartão do fundo do envelope e o coloco na mão livre de Victor. Ele o mostra a Arthur Hamburg, entre o polegar e indicador.

— Todas as informações deste cartão já foram transferidas para meu empregador. Os nomes da sua extensa lista de clientes, os locais das suas operações clandestinas, as provas em vídeo que sua querida esposa gravou, sem você nem desconfiar. Está tudo aí. — Ele joga o cartão SD no peito de Arthur Hamburg. — Se alguém me procurar ou procurar Izabel pela morte da sua esposa e ela não for considerada suicídio, todas essas informações serão passadas ao FBI. Devemos sair daqui ilesos e tão bem-tratados como quando entramos por aquela porta. Entendeu?

Estou tremendo, muito confusa, nervosa e insegura. Insegura sobre tudo.

Arthur Hamburg assente, com o suor ainda pingando de seu queixo e suas sobrancelhas.

A mulher estende a mão, mas depois a deixa cair. Duas seringas estão vazias perto de suas pernas. Ela está muito dopada. Corro os olhos pelo corpo dela, vendo que as juntas dos braços e dos tornozelos estão pontilhadas de marcas de agulha.

Não consigo mais me conter: corro até ela, totalmente determinada a ajudá-la. Mas Victor estende a mão e me agarra pelo braço, me segurando. Ele me olha ferozmente nos olhos, ainda apontando a arma para Arthur Hamburg.

— Ela é o alvo — diz ele, me puxando para mais perto. — Vá até o criado-mudo no quarto, ao lado da cama mais perto da janela. Tem outra arma na gaveta. Traga para cá.

Quero dizer que não, que não farei isso, mas minha resistência é apenas em pensamento. Obedeço porque parte de mim ainda confia em Victor, tanto quanto outra parte quer interromper esta situação, antes que vá longe demais.

— Está bem — digo, e corro de volta para o quarto.

Encontro a arma onde Victor disse que estaria, pego-a nervosamente pelo cabo e a carrego com cuidado de volta para o quarto secreto, como se estivesse morrendo de medo de que exploda em minhas mãos. Talvez seja porque sei o que ele vai fazer com ela. Parece mais pesada, mais mortal, mais ameaçadora do que qualquer arma que já segurei. Não senti isso nem com aquela que usei para matar Javier.

Sinto meu coração batendo nas solas dos pés.

— Agora troque comigo — diz Victor.

Ele está usando luvas pretas, agora.

Vou até ele, com as pernas bambas, e lhe entrego a arma. Pego a outra e tomo cuidado para mantê-la apontada para Arthur Hamburg. Mal consigo segurá-la. Eu me sinto como ao me esconder no carro de Victor, a arma tão pesada em minhas mãos que só quero largá-la e me livrar dela.

Victor olha para mim, seus olhos azul-esverdeados intensos e com alguma compaixão.

— Você confia em mim?

Faço que sim lentamente.

— S-sim. Confio em você.

— Tampe os ouvidos — instrui ele, e eu não hesito.

Sem mais uma palavra, ele vai até a esposa e se curva para a frente, levantando-a da cama para uma posição precariamente sentada. Seu corpo está tão fraco e desconjuntado que ela mal consegue se sustentar sozinha. Seus olhos se abrem e se fecham, de exaustão ou por causa das drogas, enquanto Victor põe a arma na mão dela, dobrando seus dedos no cabo e seu indicador no gatilho. Sinto que vou vomitar, mas a adrenalina não deixa.

Victor fica na frente dela, pressiona a arma sob seu queixo e puxa o gatilho com o dedo dela. Ouço o tiro reverberar pelo quarto de paredes espessas, mas meus olhos se fecham antes que eu veja o sangue.

Arthur Hamburg grita o nome da esposa e depois desaba no chão, seu corpo descomunal tremendo de emoção.

Victor fica ao meu lado em um ângulo que parece tentar evitar que eu veja a imagem sanguinolenta da esposa. É um gesto silencioso que acho inesperado e protetor.

— Você tem uma hora — diz Victor. — É melhor começar a pensar na sua versão da história.

— Vai se foder! Vai se foder! — grita Arthur Hamburg, lançando cuspe pela boca. Ele aponta friamente para nós, mal levantando o rosto do chão. — Vão se foder!

— Isso não ia acontecer mesmo — acrescenta Victor.

Então ele passa o braço por meu ombro e sai do quarto secreto, ainda me protegendo da visão o melhor que pode. Quero me afastar dele tempo suficiente para voltar correndo e chutar aquele canalha nojento na barriga com meus saltos, mas não posso, sabendo que a mulher está morta ali, a poucos metros dele. Não é a visão de seu corpo ensanguentado que torna tão pavoroso olhar para ela — já vi mortes demais para ser afetada por isso —, mas a sensação terrível de ela ser inocente e precisar de ajuda é que torna isso insuportável.

O que foi que Victor fez?


CAPÍTULO TRINTA E SETE

Victor

Seguro Sarai na porta da suíte e a viro para me encarar, com as mãos em seus braços. Eu a sacudo.

— Escute — digo, e ela ergue os olhos. — Você continua na personagem quando sairmos daqui. Aja como antes de tudo isso acontecer. Entendeu? — Eu a sacudo de novo.

Ela assente distraidamente e então respira fundo, engolindo o nó na garganta.

Saímos para o corredor e viro o trinco da porta da suíte antes de fechá-la. Nossa segurança para sair desta mansão e desta propriedade está, agora, toda nas mãos de Hamburg. Se ele decidir que quer nos ver mortos mais do que quer evitar ser preso e perder toda a sua fortuna, os próximos cinco minutos vão ser complicados. Eu tenho uma arma, a pistola da maleta do closet. Nove balas estão no pente. Não tenho certeza de que, com apenas nove balas, consigo derrubar os seguranças antes de eles atirarem. Se estivesse sozinho e não precisasse proteger Sarai, conseguiria.

— Cabeça erguida — murmuro rispidamente para Sarai, à minha direita.

Ela ergue o queixo e ponho a mão em sua cintura enquanto vamos casualmente para o elevador panorâmico. Os dois seguranças que estavam na porta do quarto de Hamburg não estão por perto, mas há um no final do corredor. Como os outros, usa um fone no ouvido. Passamos tranquilamente por ele; Sarai usa seu charme, dando um sorrisinho malicioso para ele. Encantado com ela, o homem sorri feito um idiota até que o elevador some abaixo do piso.

— Ah, aí estão vocês — diz Vince Shaw, o assistente de Hamburg, quando saímos do elevador no térreo. — Já vão embora? Deveriam ficar mais um pouco. Lucinda vai tocar para nós esta noite. — Ele mantém as mãos unidas à sua frente.

Sorrio e balanço a cabeça.

— Eu adoraria, mas tenho um voo amanhã cedo.

— Mas eu quero ficar — diz Sarai como Izabel, com a voz um pouco lamuriosa.

— Desta vez, não — digo. — Você sabe que sempre perco os voos de manhã se não durmo pelo menos seis horas na noite anterior.

— Por favor, Victor? — Ela encosta a cabeça no meu braço.

Eu ignoro por completo seus esforços artificiais e aperto a mão de Vince.

— Foi um prazer conhecê-lo — digo.

— Igualmente. Talvez possa aproveitar melhor a festa da próxima vez.

— Talvez.

Puxo Sarai comigo rumo à saída. Pouco antes de chegarmos à enorme porta dupla, ouço a voz de Hamburg ecoar pela mansão, vinda do parapeito do quarto andar, e ficamos imóveis.

— Victor Faust — chama ele por cima da multidão.

Sinto o coração de Sarai pulsando em sua mão quando ela aperta a minha.

Eu me afasto da porta e me aproximo da luz para vê-lo melhor. Ele se arrumou bem em tão pouco tempo; sua camisa está enfiada dentro da calça, e seu cabelo grisalho, antes empapado de suor, foi penteado para trás, provavelmente com os dedos em vez de uma escova.

Há um momento de silêncio tenso, embora dure poucos segundos no máximo. Acho que Sarai parou de respirar.

Hamburg sorri para nós, com as mãos apoiadas no parapeito.

— Espero vê-lo de novo — diz ele.

Faço que sim.

— Até lá — digo.

O porteiro abre um lado da porta dupla para sairmos da mansão. Nenhum de nós dois se sente seguro até atravessarmos o hectare de terreno e sermos liberados no portão, sem que ninguém nos pare ou atire em nós.

Dirijo pela cidade por meia hora antes de voltar para o hotel, para me certificar de que não estamos sendo seguidos. Sarai fica em silêncio o tempo todo, olhando o para-brisa. Ela parece traumatizada. Está duvidando de mim. Está lamentando sua decisão de tomar parte no que aconteceu.

— Sarai...

— O que foi aquilo? — grita ela, virando a cabeça de repente para me olhar. — Por que aquela mulher era o alvo? Ela era inofensiva, Victor. Precisava de ajuda! Era inocente! Não podia ser mais óbvio!

— Tem certeza disso? — pergunto, mantendo a expressão calma.

Sarai começa a gritar comigo de novo, mas para e baixa a cabeça.

— Talvez não — diz ela, agora em dúvida. — Mas ele a mantinha naquele quarto. Ela estava drogada. Indefesa. Prisioneira. Não entendo... — Ela olha o para-brisa de novo.

— Era o que parecia, sim — digo. — Mas Mary Hamburg merecia ser punida tanto quanto Arthur.

— Então quem encomendou o assassinato? — pergunta ela, olhando fixamente para mim. — Por que matá-la e não matar aquele cara?

— Mary Hamburg encomendou o próprio assassinato — digo, e os olhos de Sarai se enchem de descrença. — Os dois se envolveram em vários casos de estupro e assassinato, mortes acidentais causadas por asfixia erótica mas assassinatos mesmo assim, tudo acobertado por suas contas bancárias. Cultivaram esse estilo de vida durante a maior parte do casamento. Um ano atrás, Mary Hamburg, segundo o que ela disse, decidiu que não queria mais levar essa vida. Seus demônios começaram a atormentá-la. Quando falou com Arthur sobre pararem, procurarem ajuda e viverem decentemente, ele se revoltou contra ela. Para encurtar a história, ele a viciou em heroína e a mantinha trancada naquele quarto, para que ela não destruísse tudo o que tinham. Mas ele a amava. Daquele jeito doente, ele a amava. Acho que isso ficou óbvio em sua reação à morte dela.

Sarai balança a cabeça lentamente, tentando processar a verdade.

— Como você sabe tudo isso?

— Eu li o dossiê — digo. — Normalmente não leio, mas neste caso achei necessário.

— Porque eu estava com você — diz ela, e eu faço que sim. — Você sabia que eu faria perguntas.

— Sim.

Ela desvia o olhar.

— Como ele conseguiu manter a esposa fora de cena por tanto tempo? Alguém ia descobrir alguma coisa. Os filhos deles. A carta diz que eles tinham filhos.

— Sim, tinham — digo. — Dois, que moram em algum lugar da Europa e não querem nem saber dos pais. E Hamburg não mantinha Mary totalmente fora de cena. Ele alegava que ela estava à beira da morte. Câncer terminal. De vez em quando, sempre que uma aparição pública era necessária para afastar suspeitas, ele a arrumava, a drogava e colocava a esposa sentada a seu lado em uma cadeira de rodas, por não mais do que alguns minutos. Era o suficiente para que as pessoas vissem que Mary Hamburg parecia mesmo estar morrendo de câncer, por causa de seu peso e dos efeitos da heroína. Ninguém fazia perguntas.

Dispenso o manobrista, paro no estacionamento do nosso hotel e desligo o motor.

Ficamos sentados em silêncio por um momento, banhados pela fraca luz azulada das lâmpadas nas vigas de concreto acima de nós.

— Mas como ela encomendou o próprio assassinato? — Ela passa as mãos pelo cabelo. — Eu não...

— Poucas pessoas podiam entrar no quarto onde ela ficava escondida. Apenas criadas. Imigrantes ilegais. Elas tinham medo de serem deportadas e, provavelmente, também de morrer. Arthur Hamburg sabia que elas não falariam nada. Ao menos era o que ele pensava, porque foi uma das criadas que ajudou Mary Hamburg a encomendar o serviço.

— Ela deveria ter se matado — diz Sarai. — Se fosse eu, não me daria esse trabalho todo.

— Você teria feito o mesmo se não tivesse coragem de se matar. Existem muitas pessoas assim, Sarai. Prontas para morrer, mas com medo de se matar.

Ela não responde.

— Você acha que eles vão vir atrás da gente? — pergunta ela.

Abro a porta do meu lado, saio e dou a volta, abrindo a dela.

— Imediatamente, não. Ele teria feito isso antes que saíssemos de lá, se tivesse a intenção. — Estendo a mão para ela. Seguro seus dedos e ajudo-a a sair do carro.

Depois de fechar a porta, acrescento:

— Hamburg tem muito a perder. Mas isso não quer dizer que não bolará algum plano para se vingar de mim, de alguma forma que ele ache que não será associada a esta missão.

— Ou de mim — diz ela, e me olha desesperada. — Ele pode se vingar de mim.

Aperto duas vezes o alarme do chaveiro e o carro emite um bipe que ecoa pelo estacionamento.

Desta vez, eu não respondo.

Ando com ela até o elevador e nosso quarto, no último andar. Não penso muito em Arthur e Mary Hamburg, ou no que aconteceu esta noite. Penso sobretudo em Sarai e no que ela enfrentou comigo. Ela não morreu, mas sinto que morreu mais uma parte sua. E isso é cem por cento culpa minha. Eu sabia que não deveria tê-la levado. Tenho plena consciência dos meus atos e de como são indesculpáveis. Aceitei isso assim que Sarai não desistiu, na última chance que lhe dei. Deveria ter sido eu, naquele momento, a impedir que ela tivesse mais alguma coisa a ver com isso.

Eu escolhi outro caminho.

E não me arrependo.

Há mais coisas que Sarai e eu precisamos discutir, e espero que o modo como a toquei na suíte de Hamburg seja uma das primeiras. Eu me preparo para isso, mas, quando entramos no quarto, ela joga os sapatos de salto longe e me deixa atordoado quando diz:

— Quero matá-lo. — Ela se senta no pé da cama e vira a cabeça para me olhar, com uma determinação inabalável no semblante. — Aquele homem precisa morrer, Victor. Precisa pagar pelo que fez. Precisa pagar com a vida. Como ela pagou.

Aí está a prova. Sarai tem sangue de assassina; não há mais como negar. Sei que não fui eu que a deixei assim. Foi a vida, não eu. Mas sei que fui eu que tirei o véu de seus olhos, no fim das contas, e a fiz enxergar isso.

— É só uma questão de tempo até que o assassinato dele também seja encomendado — digo.

Tiro o paletó e a gravata, deixando-os nas costas de uma cadeira.

— A gente devia ter feito isso quando teve a chance — diz ela.

Abro os botões da camisa, olho para Sarai sentada ali, fitando a parede, e me pergunto de que maneira ela está considerando matar Hamburg. É algo sangrento. Vingativo. Tenho certeza disso.

Deixo a camisa na cadeira com o paletó e vou até ela, tirando os sapatos no caminho.

— Se tivéssemos feito isso esta noite — digo, me sentando no pé da cama ao lado dela —, não teríamos saído de lá vivos. Não fazia parte da missão. Cada missão tem que ser planejada com precisão. Se você se desvia de qualquer parte dela, suas chances de se expor ou de morrer triplicam.

Ficamos sentados em silêncio, ambos olhando para a frente, ambos perdidos em pensamentos. Eu me pergunto se os dela são sobre mim. Não consigo evitar que os meus sejam sobre ela.


CAPÍTULO TRINTA E OITO

Sarai

Não quero que Victor me deixe nunca. Eu não conseguia suportar essa ideia antes, mas agora... agora as coisas são muito diferentes. Nossas almas se tornaram íntimas, quer ele esteja disposto a admitir isso para si mesmo, quer não. Somos um só, e não quero imaginar ficar sem ele. Nunca.

— Sarai, sinto muito pelo que fiz.

Olho para ele. Sei a que se refere, mas ainda não tenho certeza de como responder.

— Espero que acredite quando digo que não tirei nenhum proveito. Foi só teatro. Espero que entenda.

Acredito nele. Sei que eu não conseguiria olhar uma pessoa normal nos olhos e contar o que aconteceu sem que ela pensasse que perdi o juízo ou que estou sofrendo da Síndrome de Estocolmo. Mas Victor poderia ter se aproveitado de mim muitas vezes. Poderia ter me estuprado. Poderia ter cedido nas poucas vezes que demonstrei minha atração por ele. Mas nunca fez isso e sempre me repeliu. Até algumas noites atrás, quando me enfiei na cama dele. Ele não me repeliu então, mas sei, no fundo, que estava até mais em sintonia com a raiva que eu sentia naquele momento do que eu.

Sem olhá-lo, pergunto em voz baixa:

— Se ele não tivesse aberto o quarto secreto a tempo... você ia me comer?

Noto que ele me olha, mas não retribuo o olhar.

— Não — responde ele em voz baixa, como eu. Ele suspira. — Sarai, eu não podia obrigá-lo a abrir a porta do quarto. Ele poderia ter digitado algum código de pânico e alertado os seguranças, ou...

Olho para ele, finalmente, bem nos olhos.

— Mas você ia querer?

Ele fica em silêncio. Vejo o conflito em seu rosto.

— Não ali — diz ele. — Não daquele jeito.

Tiro o vestido pela cabeça e o jogo no chão.

— E agora, pode ser? — pergunto.

Ele não responde, mas já aprendi, a essa altura, que a única maneira de conseguir o que quero dele é não desistir.

Eu me levanto da cama e fico de pé no meio de suas pernas. Suas mãos sobem lentamente pelas minhas coxas e ele passa os dedos pelo elástico da minha calcinha. Seus lábios tocam minha barriga, roçando a pele com a ponta da língua entre minhas costelas, tão suavemente que meu corpo todo fica arrepiado. Eu passo os dedos por seu cabelo enquanto ele desce a calcinha até meus pés.

Então monto no colo dele.

Eu o beijo delicadamente e sussurro mais uma vez:

— Pode ser, Victor Faust? Se é que esse é o seu nome. — Eu toco o lado de seu rosto com o queixo.

— Somente com uma condição — murmura ele, febrilmente, em minha boca.

— Que condição?

Ele beija meus lábios devagar.

— Que eu fique no controle desta vez.

Abro a boca perto da dele, provocando-o com um beijo que quero que ele tome de mim, meus dedos segurando suavemente seu queixo. Ele me olha nos olhos por um momento, lendo meus pensamentos. E então seus braços se fecham possessivamente ao redor do meu corpo, me apertando contra o dele. Seu beijo é faminto, seus dedos fortes afundam na pele das minhas costas e posso sentir a rigidez de seu pau tão distintamente através do tecido da calça que me faz tremer. Meus lábios se abrem e meu corpo todo estremece só de senti-lo ali, querendo-o dentro de mim mais do que acho que jamais quis qualquer coisa na vida.

Ele mergulha a mão pela minha nuca, forçando minha cabeça para trás e expondo meu pescoço à sua frente. Beija minha garganta, sobe em uma linha reta perfeita até encontrar minha boca de novo e prende meu lábio inferior entre os dentes.

Sinto dois de seus dedos me penetrando por baixo.

Eu gemo, com a cabeça ainda forçada para trás em suas mãos, e pressiono delicadamente meu quadril contra seus dedos.

— Quero você dentro de mim — digo, sem fôlego.

Porra, eu não aguento mais.

Com os lábios nos dele, nossas línguas quentes entrelaçadas, mexo no botão de sua calça e puxo o zíper para baixo.

Ele vira o corpo e me joga na cama, ficando por cima, e não interrompe o beijo enquanto tira a calça com uma das mãos. E quando sinto o calor de seu corpo nu, eu o envolvo com as pernas, apertando-o com as coxas, puxando-o em minha direção para sentir seu pau ereto contra minha umidade. Sua boca procura meu pescoço e meu peito até que seus dentes acham meus mamilos, e ele os morde com força o suficiente apenas para me fazer gemer.

— Isso vai contra tudo o que sou, Sarai — diz ele, e então me beija.

— Não, não vai — murmuro, retribuindo os beijos. — É você virando mais você mesmo.

Então ele desliza o pau para dentro de mim, devagar. Eu já mal consigo manter os olhos abertos. Minhas pernas tremem e meu corpo estremece com pequenos espasmos que explodem e se infiltram em minhas entranhas. Gemo alto e levanto os quadris para forçá-lo a meter mais fundo.

Nunca imaginei que sexo pudesse ser assim, que o modo como meu corpo está reagindo ao dele pudesse ser assim.

Ele ergue o corpo de cima do meu, ainda de joelhos entre minhas pernas, e agarra minhas coxas com força, me puxando para perto. Ele me fode devagar a princípio, tão devagar que me deixa louca. A cada arremetida, vai mais fundo, até que minhas coxas estão tremendo e não consigo mais mantê-las firmes ao redor de seu corpo. Minha nuca se arqueia no travesseiro e eu gemo, grito e cravo os dedos na carne de seus quadris. Ele começa a me foder mais forte e agarro o travesseiro antes de apertar as mãos na cabeceira, me forçando contra ele, sentindo seu pau crescendo dentro de mim.

Ele desaba em mim de novo e eu sinto sua boca úmida em meus seios. Em minha garganta. Em meus lábios. Seu peito arfa com a respiração ofegante, e sinto seu coração batendo contra o meu. Ele começa a diminuir o ritmo, e, enquanto me fode devagar, com um beijo profundo, quente e faminto, enfia uma das mãos entre minhas pernas e toca meu clitóris de um jeito firme e persistente. Afundo os dedos no cabelo dele, puxando-o com força, gemendo em sua boca, saboreando sua língua.

Tão sintonizados um com o outro, gozamos juntos. Ele sai de mim para gozar fora, mas não para de mover os dedos até que meu corpo trêmulo finalmente relaxe e minhas pernas bambas se dissolvam em geleia envolvendo as dele.

Ele deita a cabeça suada em meus seios e eu passo os dedos por seu cabelo. Ficamos assim boa parte da noite, em silêncio e pensando.

E eu só consigo pensar em como nunca mais quero sair deste quarto.

~~~

Estou deitada, embrulhada nos lençóis com Victor. As cortinas da janela estão totalmente abertas, e olho através do quarto para o céu azul-escuro, fracamente iluminado pelas luzes da cidade lá embaixo. Victor adormeceu algum tempo depois de fazer amor comigo. Fazer amor? Não sei ao certo se entendo o verdadeiro significado dessa expressão. Não acho que essa coisa entre nós seja amor, ou mesmo desejo. É algo diferente, algo poderoso e inconfundível que nenhum de nós dois conseguiu ignorar. Mas não tem um rosto. Nem um nome. Talvez ele não tenha feito amor comigo, mas tampouco me fodeu.

Foi, definitivamente, outra coisa.

Ouço seu coração batendo calmamente sob minha bochecha. Sinto sua respiração suave em meu cabelo. Seu corpo é muito quentinho, quase febril, quando estou aninhada em seus braços. Seu cheiro natural é tênue, mas reconfortante, e me atrai para ele como uma abelha para o néctar.

— Para onde vou agora? — Sussurro meus pensamentos em voz alta e me enrosco mais nele quando não obtenho uma resposta.

— Vamos pensar em algo — diz Victor, e seu braço me aperta delicadamente.

Eu não fazia ideia de que ele estava acordado. Levanto a cabeça de seu peito e me deito em seu braço, para poder olhá-lo no rosto.

— Você não vai embora?

É um tiro no escuro, mas estou esperançosa.

Um segundo de silêncio, e seu peito nu sobe e desce com a respiração profunda e regular.

— Sarai, você sabe que não posso levá-la comigo — diz ele, e meu coração afunda. — Isso não é realista. Minha vida está na Ordem. Sempre esteve. Não seria como acordar um dia e decidir que odeio meu emprego e quero encontrar algo melhor. Se eu resolvesse deixar a Ordem, porque é exatamente isso que eu teria que fazer, o próximo assassinato a ser encomendado seria o meu. E o seu.

Quero chorar, mas não choro.

Volto a deitar a cabeça em seu peito, desanimada demais para encará-lo. Olho para o quarto espaçoso, os dedos apoiados em seu peito.

— Acho que a única coisa que posso fazer é deixar você viver sua vida...

— Mas...

Ele me abraça de novo.

— Deixar você viver sua vida — continua ele —, mas vou visitá-la de vez em quando. Para ver se você está bem, se está a salvo e se tem tudo de que precisa.

Não estou satisfeita com isso, mas também sei que é só o que vou conseguir dele. E é melhor do que nada. Ele está certo, e não posso negar. Quero estar com ele sempre, de qualquer maneira que ele se permitir me ter, mas não posso esperar que ele arrisque nossa vida para que isso aconteça.

Preciso deixá-lo ir...

— Isto é, se você quiser que eu a visite — diz ele.

Detecto uma mudança no clima para algo mais leve. Acho isso estranho, vindo dele. Eu me levanto, me apoiando em um braço para olhá-lo.

Ele está sorrindo. Não apenas com os olhos, mas com os lábios também. Eu o acho tão lindo! Tão perigosamente lindo!

Entro no clima e bato de brincadeira no quadril dele com a mão livre, rindo baixinho.

— É claro que eu quero — digo.

Então ele segura meu pulso e me tira cuidadosamente de cima de seu peito. Passa a ponta dos dedos em um lado do meu rosto e depois no outro, o tempo todo me olhando nos olhos, mas vendo além deles. Eu me pergunto o que ele procura em suas profundezas. Seja o que for, espero que nunca encontre, para que possamos continuar assim para sempre.

Ele coloca as mãos no meu rosto e puxa meus lábios para os dele.

— O que você fez comigo? — pergunta ele.

— Eu ia perguntar a mesma coisa.

Mordisco seu lábio inferior. Ele pressiona o pau em mim de leve.

— Parece que criamos um probleminha — diz ele, empurrando com mais força.

Eu faço o mesmo. Gemo baixinho, sentindo calafrios e calor se espalhando por minha pele.

Ele me beija, mas então afasta um pouco a boca da minha, me provocando. Eu levanto o corpo, apertando os seios contra seu peito, querendo saborear sua boca, mas ele cede apenas um pouquinho. Ele pressiona o quadril de novo, mantendo o pau contra mim, apertando minha bunda com suas mãos firmes. Ele está muito duro. Eu o quero. Minha boca fica entreaberta e meu hálito escapa dos lábios.

— Quer que eu coma você? — murmura ele. — É isso que você quer?

Gemo alto com suas palavras ao meu ouvido. Não consigo responder. Não consigo pensar direito.

— Você quer, Sarai? — insiste ele, o calor de seu hálito dançando em meus lábios abertos.

Eu forço meu quadril contra o dele, tentando me posicionar sob seu pau de modo que ele entre sem que precisemos usar as mãos.

— Sim — gemo. — Me fode como você ia foder a Izabel.

— Tem certeza?

— Sim...

Não consigo respirar.

— Repete... Izabel.

Meus olhos se abrem pesadamente e eu o encaro. Respiro, arfante, pela boca. Victor toca os lábios nos meus.

Antes que eu possa responder, ele se senta na cama, me mantendo no colo. A ponta de sua língua percorre minha clavícula. Meus seios estão esmagados nas mãos dele.

— Diga, Izabel — exige ele, passando a língua em um mamilo meu. — Diga que quer que eu foda você.

— Eu quero que você me coma.

Ele prende o cabelo da minha nuca em sua mão e se levanta da cama, com minhas pernas em volta de seu quadril escultural.

Ele me carrega até a mesa perto da janela e me força a ficar curvada sobre ela, de barriga para baixo. Meus braços se estendem à frente, derrubando seu celular e sua arma no chão. Minhas mãos agarram a borda arredondada da mesa. Seus dedos afundam em meus quadris quando ele puxa meu corpo para trás, para perto de si. Ele aperta minha bunda. Com força. Eu inspiro rapidamente quando sinto suas mãos entre minhas pernas, me abrindo para ele. O calor do seu corpo rijo me engole quando ele se deita nas minhas costas, passando a ponta da língua por minha nuca. Sinto seu pau bem ali, esperando por mim, e tento me forçar para trás, na direção dele, mas sua mão segura minha nuca, pressionando minha bochecha contra o tampo da mesa.

— Por favor, Victor — digo ofegante, todo o meu corpo se abrindo para ele.

Grito e gemo alto quando ele me penetra, meus dentes se fechando em seu dedo indicador, enquanto sua mão aperta suavemente o lado do meu rosto.

Não, eu nunca imaginei que sexo pudesse ser assim...


CAPÍTULO TRINTA E NOVE

Sarai

Dormimos demais na manhã seguinte e somos acordados pela arrumadeira batendo na porta do quarto. Acho que ele não estava mentindo, na mansão de Hamburg, quando disse que sempre perde voos de manhã se não dorme o suficiente na noite anterior. Ou talvez tenha sido só culpa minha. Acho que baguncei totalmente sua rotina.

Victor se levanta, e não posso deixar de admirar sua forma nua, antes que ele se vista rapidamente. Ele abre a porta para avisar à arrumadeira que vamos sair tarde e que ela não volte por pelo menos uma hora. Eu não quero ir a lugar nenhum. Depois da noite passada, só quero...

— Se prepare para sair — diz ele, voltando para dentro do quarto. — Vou levar você para ficar com uma mulher que conheço em San Diego. Você vai ficar segura lá até eu organizar o resto, instalar você em um lugar só seu. Mas agora preciso ligar para Niklas, para contar da noite passada. E tenho certeza de que em breve viajarei para a Alemanha para me encontrar com meu empregador.

Eu só quero falar sobre a noite passada, ou repetir a noite passada agora mesmo.

— Isso não me parece bom — digo ao sair da cama. Tive uma sensação ruim quando ele falou de se encontrar com seu empregador.

Ele calça os sapatos e deixa as bolsas ao pé da cama.

— É, geralmente não é bom mesmo — diz ele, remexendo na bolsa. — Estas últimas duas missões levantaram muitas questões sobre mim e minha capacidade de executá-las conforme as ordens. Vou ter que me encontrar cara a cara com ele para dar uma explicação mais detalhada do que aconteceu e por que foi do jeito que foi.

— O que vai dizer sobre mim? Você acha que ele sabe que ainda estou viva?

Ele pega um punhado de balas e começa a carregar sua 9mm.

— Vou pensar nisso no caminho.

Isso também me dá uma sensação ruim.

— Tudo bem, e quem é essa mulher em San Diego? — Olho para ele agora, desconfiada. — Não é alguém que você...?

— Não — diz ele, escondendo a arma na parte de trás da calça. — Ela não tem nada a ver com a Ordem e não sabe nada sobre o que eu faço. É só uma amiga. Conheci essa mulher e o marido dela em uma missão, há cinco anos. É uma longa história, mas não, não é nada assim.

— E o marido dela?

Ele me olha mais uma vez.

— Não está mais lá — diz Victor.

— Por que não? Ele morreu? Eles são velhos?

Não consigo deixar de fazer todas essas perguntas; quero saber todo o possível sobre o lugar para onde ele vai me levar.

Victor faz uma pausa e então diz:

— Sim, ele morreu. Ele era meu alvo.

— Ah...

Não me sinto tão confiante quanto a ir para lá, agora.

— Você vai ficar bem — diz Victor, notando a preocupação em meu rosto. — Ela não sabe que fui eu.

Ele se aproxima de mim e põe as mãos em meus ombros.

— Vou descer para a recepção, pagar pelo quarto e ligar para Niklas. — Ele se curva e me beija na testa. — Sem pressa. Volto daqui a uns minutos e saímos.

Faço que sim, olhando-o nos olhos.

— Tudo bem.

Victor sai do quarto. Pego um vestido mais informal desta vez, uma calcinha limpa e vou para o chuveiro.


Victor

Niklas está furioso comigo. Consigo ouvir isso em sua voz, embora esteja se esforçando para não ser óbvio, o que já é pouco característico dele.

— Você disse que faria contato comigo assim que a missão acabasse — diz Niklas pelo telefone. — Se ela foi cumprida ontem à noite, como planejado, então por que só está me ligando agora, meio dia depois?

Solto o ar pelo nariz.

— Aceite isso pelo que é, Niklas — digo, ficando tão irritado com ele quanto ele está comigo. — Você precisa parar de se preocupar tanto comigo.

— Eu sou seu contato — dispara ele.

— Sim, mas esse seu lado que se tornou tão dolorosamente meticuloso sobre como eu escolho fazer as coisas é meu irmão. Talvez você devesse se reaproximar do seu lado contato, assim ambos poderemos voltar a ter um relacionamento mais simples, estritamente profissional.

— Entendi — diz ele. — Você não precisa mais de um irmão, agora que tem aquela garota. Obviamente, ela ainda está viva.

Eu deveria ter previsto isso, mas não previ.

— Você não foi substituído, muito menos por uma mulher — digo.

Talvez Sarai não tenha substituído meu irmão, mas ela se tornou algo muito maior para mim, e eu não consigo explicar. Nem para mim mesmo, e certamente não para Niklas.

— Tenho novas ordens — anuncia Niklas, abandonando o assunto desagradável. — São de última hora, mas acho que é melhor executá-las antes de ir para a Alemanha encontrar Vonnegut. Não lhe dê mais motivos para duvidar de suas habilidades.

— É uma missão?

— Vai ser — diz ele. — A pessoa está aí em Los Angeles e quer se encontrar com você.

— Isso não é padrão — digo. — Primeiro Javier Ruiz, agora esse aí quer se encontrar cara a cara?

Prefiro lidar apenas com Vonnegut e nunca me encontrar pessoalmente com os clientes, mas, infelizmente, às vezes é preciso correr riscos maiores.

— Ela é uma mulher muito meticulosa — diz Niklas.

— Quais as ordens?

— Encontre-a na frente do número 639 da South Spring Street. Ela estará de blusa branca, com um broche prateado em forma de borboleta no seio esquerdo. Estará lá à uma e meia da tarde.

— Isso é daqui a menos de uma hora — digo, olhando para o relógio na parede do saguão.

Baixo a voz para um sussurro quando um hóspede do hotel passa.

— Você tem tempo mais do que suficiente para chegar lá do hotel — diz ele. — E, por favor, desta vez entre em contato comigo assim que a reunião acabar.

Suspiro silenciosamente.

— Pode deixar — digo, e desligo o telefone.

Depois de pagar mais uma diária do quarto, já que pelo visto ficaremos aqui mais do que uma hora, subo pelo elevador para informar Sarai de nossa pequena mudança de planos. Depois saio, deixando-a no quarto para ir me encontrar com a cliente. Dirijo até o local, chegando alguns minutos antes, e estaciono em um terreno baldio a alguns metros de onde vou encontrá-la.

Fico dentro do carro e espero.

E, na verdade, só consigo pensar em Sarai.


Sarai

Nunca estive em San Diego. Tecnicamente, esta é minha primeira vez na Califórnia. Eu me pergunto como será essa mulher, o que ela sabe, como ela e Victor ficaram amigos. Tenho muitas perguntas, como sempre, e não vou permitir que Victor me deixe sem as respostas no caminho até lá.

Passo a mão no espelho do banheiro, abrindo uma faixa na umidade que embaça o vidro. E sorrio para meu reflexo. Pela primeira vez desde que conheci Victor, estou começando a me sentir contente, aliviada pela perspectiva de futuro. Porque antes eu só conseguia ver trevas, um vazio sem começo nem fim, apenas incertezas. Mas agora tenho algo pelo que esperar. Tenho um propósito. E não vou desperdiçar um só segundo.

Enxugo o cabelo, espremendo-o com uma toalha, e depois a prendo precariamente na nuca. Depois de me enxugar e me vestir, vou para o quarto, e estou para ligar a TV quando alguém bate na porta. Olho para o relógio ao lado da cama.

Ainda não passou uma hora.

Deixo o controle remoto na cama e vou até a porta para atender, mas quando ponho a mão na maçaneta, a voz do outro lado me imobiliza:

— Sou eu, Niklas. Victor mandou vir buscar você.

Meus dedos soltam a maçaneta muito lentamente. Dou um passo para longe da porta.

Ele bate de leve mais uma vez.

— Você está aí? Sarai? Anda, me deixa entrar. Sei que você me despreza, e, sinceramente, eu preferia estar tomando cerveja em algum barzinho, mas Victor precisava da minha ajuda.

Ele está mentindo. Victor me avisaria se tivesse mandado Niklas para cá. Teria me contado antes de sair ou teria ligado.

Olho para o telefone perto da cama. Talvez ele tenha ligado enquanto eu estava tomando banho.

Dou mais um passo para longe da porta, meus instintos me puxando para trás como uma dúzia de mãos estendidas. Mais uma série de batidas, depois silêncio. Fico no meio do quarto, perfeitamente imóvel, perfeitamente em silêncio. O único som que ouço é um zumbido fraco vindo de uma lâmpada. Ando rapidamente pelo quarto, encosto o rosto na porta e tento espiar pelo olho mágico. A parte do corredor que consigo ver está vazia. Ele foi embora. Mas, se foi mesmo, por que ainda tenho tanto medo de que ele esteja lá fora, escondido, esperando que eu saia para olhar? Aperto o rosto de lado no olho mágico, tentando ver melhor à direita e à esquerda. Então ouço vozes e vejo uma sombra se movendo na parede. Meu coração acelera e eu prendo a respiração até que dois homens passem. Solto o ar devagar e profundamente.

Mas o alívio dura pouco, pois vejo Niklas de novo.

Dou um salto para trás, me afastando rapidamente da porta, e vasculho a bolsa de Victor, procurando a arma de Arthur Hamburg. Victor a deixou para mim. Só por precaução. Mas sinto que ele a deixou como precaução contra Arthur Hamburg. Não contra seu irmão.

Não há nenhum esconderijo neste lugar. Absolutamente nenhum espaço onde Niklas não possa me encontrar em menos de um minuto.

Inspiro rapidamente ao ouvir o barulho de um cartão sendo passado na fechadura eletrônica e destrancando-a. Ele deve ter pego a chave-mestra da arrumadeira. Em meio segundo, e tarde demais para que eu perceba e conserte meu erro, vejo que a corrente da porta ainda está destrancada. Corro até lá, no fundo sabendo que não chegarei a tempo de prender a corrente no lugar antes que Niklas esteja dentro do quarto. E quando a porta se abre, caio contra a parede atrás dela, segurando a arma com as duas mãos contra o peito, o coração bombeando sangue tão rápido pelas veias que o canto do olho treme e sinto a jugular latejando.

A porta se fecha e se tranca automaticamente, e Niklas e eu ficamos frente a frente, cada um apontando sua arma para o outro.

— Ah, aí está você — diz ele, com aquele olhar fulminante que mostra o quanto me odeia.

Mantenho o dedo no gatilho e, embora esteja tremendo, consigo manter a arma firme e apontada para a cabeça dele.

— Eu vou matar você — aviso.

— Sim, eu sei — diz ele, emanando muito mais autoconfiança do que eu. — Afinal, foi você que atirou em Javier Ruiz. — Ele suspira dramaticamente e balança a cabeça. — Sarai, quero que você saiba que isto não me dá prazer, matar mulheres inocentes. Eu nunca quis matar ou machucar você, aliás, mas o que você fez com meu irmão... bem, não posso admitir isso.

Mantenho a arma apontada para ele e o dedo firme no gatilho e começo a me afastar da porta. Ele se move comigo.

— Que lhe importa o que Victor faz com a vida pessoal dele?

Ele inclina a cabeça.

— Victor não tem vida pessoal. Nenhum de nós pode ter. É como água e óleo. Você já deve saber, a essa altura.

— Ele vai me levar para algum lugar hoje — digo rapidamente, perdendo qualquer autoconfiança que eu tinha, que já não era muita. — Vai se livrar de mim. Já me falou que não posso ficar com ele. Por que você não pode deixar as coisas assim? Ele vai fazer o que você quer.

— Não é o que eu quero, Sarai. — Conseguimos ir para bem longe da porta, e estamos no meio do quarto agora. — Eu só estou tentando protegê-lo. Ele é meu irmão, caralho! — Sua fúria repentina me faz tremer. Noto que seu dedo no gatilho se agita.

— Niklas, por favor, me deixe ir embora. Você tem razão e eu sei. Já sei há algum tempo que só estou dificultando as coisas para Victor.

— Ele vai morrer por sua causa! — grita Niklas, forçando as palavras por entre os dentes, a arma na minha direção. — Mesmo se ele a deixar hoje, mesmo se ele nunca mais vir você, porra, mesmo se ele matar você, o que já aconteceu é suficiente para a Ordem mandar matá-lo! Você não entende? — Seu rosto está vermelho de raiva; sua expressão, distorcida pela dor. — Eles vão matá-lo! Se for para a Alemanha, ele está morto, Sarai. Ele lhe contou isso? Aposto que não contou.

Não quero acreditar nisso. Balanço a cabeça e quase perco a concentração, apertando a arma com mais força.

— Você não tem como saber isso — digo, mas no fundo acredito nele. — Se é verdade, então por que ele vai?

Um sorriso irônico curva o canto da boca de Niklas. Ele cerra os dentes por trás dos lábios fechados.

— Porque Victor é teimoso — diz ele. — E confia um pouco demais em Vonnegut. Victor sempre foi o Número Um dele, sempre foi o melhor. Ele é melhor no que faz do que todos os comandados de Vonnegut que vieram antes, e ainda é o melhor. Mas ser o melhor não o torna imune ao Código. Ele já fez tanta merda desde que se envolveu com você que não haverá justificativa.

— Então me deixe falar com ele...

— Você já fez o suficiente! — ruge ele.


CAPÍTULO QUARENTA

Victor

A cliente está atrasada. Cinco minutos, mas até um minuto, para alguém que Niklas descreveu como “meticulosa”, não me cheira bem. Mais dois minutos e vou embora.

Observo pessoas andando na rua e as analiso, das roupas que usam até a posição da cabeça quando falam com quem está andando ao seu lado. São realmente apenas turistas ou residentes? Ou são iscas? Espiões? Cuidado nunca é demais. Isto pode ser uma cilada, como qualquer outra missão, mas as missões como esta causam um nó de incerteza na boca do meu estômago...

Espere...

Relembro a conversa telefônica com Niklas, mais cedo:

— Encontre-a na frente do número 639 da South Spring Street. Ela estará de blusa branca com um broche prateado em forma de borboleta no lado esquerdo do peito. Estará lá à uma e meia da tarde.

— Isso é daqui a menos de uma hora — digo.

— Você tem tempo mais do que suficiente para chegar lá do hotel.

Eu tinha tempo mais do que suficiente para chegar aqui do hotel...

Seguro o volante com as duas mãos, a mente correndo a 100 quilômetros por segundo. Como Niklas podia saber disso? Ele não fazia ideia de onde, em Los Angeles, Sarai e eu estávamos hospedados. Não teria como saber se eu conseguiria chegar a este endereço nesse período de tempo.

A menos que ele já soubesse exatamente onde a gente estava.


Sarai

— Niklas... se você me matar, vai transformar seu irmão em um inimigo. — Minha garganta está seca como uma lixa; meus pulmões, pesados. — Se tudo o que você está dizendo é verdade, se o destino de Victor já está selado, então de que adiantaria me matar? — Levanto a voz, motivada pelo desespero e pelo medo. — Não vai resolver nada!

Ele não quer me matar. Não sei se é por causa do que eu falei, sobre transformar Victor em um inimigo, ou se está apenas em conflito, mas, seja o que for, é a única coisa que está me mantendo viva no momento.

— Olhe o que você fez! — Ele balança a arma no ar, na minha direção, apertando tanto o cabo que os nós dos dedos estão brancos.

Ele avança. Eu ando para trás.

— Niklas... por favor — imploro. Não quero atirar nele. Sei que o mais provável é que ele me mate, mas não quero atirar nele.

A raiva lampeja em seus olhos em um instante e ele ergue o queixo em desafio, com os dentes cerrados, os olhos apertados e as narinas abertas.

Sim, ele quer me matar, no fim das contas.

A porta se abre e escuto um tiro quando Niklas vira a cabeça para ver Victor invadindo o quarto. E então outro tiro com silenciador atravessa o quarto, mas Niklas, já correndo também na direção de Victor, consegue evitar ser atingido, e ouço a bala cortando o ar a palmos de mim e penetrando a parede.

A arma escapa da minha mão e caio de joelhos. Levo alguns segundos até perceber que fui atingida, e quando percebo, sinto a dor queimando meu estômago. Sangue quente empapa o tecido do meu vestido. Eu caio de lado, com as mãos pressionando o ferimento com firmeza.

A mesa em minha frente balança na base de madeira quando Victor e Niklas caem em cima dela. Minha pequena caixinha de joias cai no chão, se abrindo e espalhando o conteúdo. Victor, por cima de Niklas, cobre o irmão de socos, golpe após golpe, até que a mesa não suporta mais o peso dos dois e desaba de lado, jogando ambos no chão. O abajur alto que ficava atrás da poltrona bate na mesa, arrancando o fio da tomada e partindo a lâmpada em mil pedaços.

Niklas está em cima de Victor agora, batendo sem parar no rosto dele, mas Victor o segura pela garganta e o levanta, jogando-o com força no chão, de costas. Então se levanta e dá um chute no rosto de Niklas, antes de abrir caminho pelo quarto para pegar sua arma.

Em segundos, ele está por cima do corpo vencido do irmão, com o cano da arma apontado para seu rosto.

— Victor, não faça isso! — consigo gritar em meio à dor.

Ele pisca para voltar a enxergar, depois de ficar momentaneamente perdido em uma fúria cega, e olha para mim.

— Por favor, não o mate — peço novamente, em voz baixa e desesperada.

— Ele tentou matar você — diz Victor, olhando para mim com uma expressão confusa, como se não conseguisse acreditar no que estou dizendo. — Atirou em você.

Com a mão direita, aperto o ferimento com força, o sangue escapando pelos dedos. Estou começando a ficar zonza.

— Victor, ele é seu irmão. Só está aqui porque estava tentando proteger você.

Seus olhos correm entre mim e Niklas, nós dois deitados, ensanguentados e indefesos no chão, em lados opostos do quarto. Seu rosto está cheio de conflito, dor e coisas que nem posso entender, porque nunca tive um irmão ou uma irmã, não sei como é ser amado dessa forma. Talvez Victor também nunca tenha sabido, até agora.

Tento levantar a cabeça, mas estou tão fraca que meu rosto continua no carpete puído.

— Niklas é tudo o que você tem, o único da sua família que restou — digo. — Eu faria qualquer coisa para ter alguém que gostasse de mim tanto quanto ele gosta de você. Qualquer coisa.

O quarto fica muito silencioso. Posso ver os olhos de Victor ficando cheios de... não tenho certeza. Nem sei se ele está mesmo olhando para mim. Acho que consigo ouvir Niklas falando, mas o som é abafado e distante em meus ouvidos. Vejo o teto agora. Só o teto. Observo milhares de buracos minúsculos se abrindo e vejo cada um deles se aproximar de mim. Aquele calor. O que é esse calor que sinto ao meu redor, como um cobertor?

— Sarai? — ouço uma voz chamar, mas de quem é, não sei dizer.

Só vejo escuridão. Tento abrir os olhos, mas estão pesados demais.

Ouço a voz de novo, e uma pontada de dor atravessa meu corpo quando sinto que estou sendo carregada. Tento gritar, mas acho que ninguém consegue ouvir minha voz.

Eu tento gritar...


CAPÍTULO QUARENTA E UM

Sarai

Parece que estou sonhando há dias. A série constante de imagens e vozes ao meu redor sempre soa calmante, mas persistente. As imagens, são elas que me dizem que isto não é real, porque todos que vejo já estão mortos. Javier. Izel. Lydia. Samantha. Minha mãe. Todos passam por mim em uma espécie de transe silencioso e contemplativo, como se eu nem estivesse aqui. Quase consigo tocar o cabelo da minha mãe quando ela passa.

Devo estar sonhando.

Mas os sonhos estão se esvaindo lentamente, e as vozes estranhas e pouco familiares que ouço começam a ficar mais distintas. Eu me sinto presa dentro da minha mente, e ela esqueceu como controlar meu corpo. Porque não consigo mexer nada. Nem os olhos, os lábios ou as mãos. Não consigo nem saber se estou respirando sozinha. Mas, sobretudo, penso nas vozes, em como estão ficando mais claras. Eu me descubro me concentrando o máximo que posso para entender as palavras, mas nunca vou além do som.

Até que ouço a voz de Victor a distância.

— Não vou ficar muito tempo aqui, hoje — eu o ouço dizer a alguém.

Tento acordar, mas acho que o esforço tem o efeito contrário, porque em um instante sou engolida pela escuridão e todas as vozes desaparecem.

Mais tempo se passa. Mais sonhos. Mais vozes.

E então, do nada, como se um interruptor fosse acionado em meu cérebro, minhas pálpebras se abrem e vejo que estou deitada em uma cama de hospital.

Victor está sentado ao meu lado em uma cadeira.

— Você acordou — diz ele, e sorri para mim.

— Quanto tempo fiquei sem acordar? — Ainda estou tentando organizar meus pensamentos.

— Três dias — diz ele. — Mas você vai ficar bem. Mantiveram você sedada a maior parte do tempo.

Tento erguer as costas do travesseiro, mas a dor na barriga é forte demais. Faço uma careta e ergo as mãos para o lugar que está doendo, mas Victor as segura e me faz relaxar.

— Você ainda não pode se mexer — diz ele, ficando de pé.

Ele pega o travesseiro extra de uma poltrona próxima e o posiciona atrás da minha cabeça. Então aperta um botão na lateral da cama para levantá-la e me pôr sentada. Um tubo de soro serpenteia das costas da minha mão, preso à pele com esparadrapo. Coça demais.

— A bala não atingiu nenhum órgão — diz Victor, ao se sentar novamente na cadeira. — Você teve sorte.

O rosto de Niklas aparece em minha mente.

— Ou seu irmão é ruim de pontaria.

Olho para meus braços apoiados na cama, dos lados do corpo. Quero saber o que aconteceu com Niklas e sinto que deveria torcer para que ele esteja morto, mas não consigo.

— Ele está...?

— Não — diz Victor. — Metade de mim queria matá-lo, mas a outra metade não conseguiu. Só me pergunto que metade teria ganhado se você não estivesse viva naquele momento.

Mexo a mão alguns centímetros na cama em busca da dele. Ele entrelaça os dedos nos meus.

— Fico feliz que você não tenha feito isso — digo, forçando um sorriso fraco. — Eu não conseguiria suportar ser o motivo de você matar seu irmão. E-eu nunca deveria ter me colocado entre vocês. Não sabia o que eu estava fazendo, Victor, me desculpe.

Ele aperta minha mão.

— Você fez algo que ninguém mais conseguiria — diz ele, e espero ansiosamente que ele me conte o que poderia ser. — Você me fez lembrar que eu tenho um irmão, Sarai. Ele e eu praticamente nos sentamos à mesa, lado a lado, como estranhos, nos últimos 24 anos. E vejo agora que, apesar de seus defeitos, ele nunca me traiu, nem uma só vez.

Victor faz uma pausa e desvia o olhar.

Então me olha de novo.

— De certa forma, ele me traiu quando foi lá para matar você — continua ele. — E me traiu quando me enganou para chegar até você. Sim, isso é uma traição. Mas é um tipo muito diferente de traição.

— Eu sei — digo. — Olhe para mim. — Ele olha. — Você agiu certo. Independentemente do que ele fez comigo, você agiu certo, e não quero que nunca pense diferente.

Ele não fala, mas conheço essa expressão, é o conflito que está sempre ali. Eu me pergunto se um dia ele vai se livrar disso.

Então diz:

— Mas você fez outra coisa que ninguém jamais conseguiu. — Sua expressão se abranda e meu coração derrete aos poucos. — Você me fez sentir emoções de verdade. Você me destravou.

Estendo a mão e toco seus lábios, segurando seu queixo.

Mas o assunto muda rápido demais.

— Niklas nunca mais vai machucá-la — diz ele. — Ele me deu a palavra dele. Além disso, ele sabe que, se tentar uma próxima vez, não vou hesitar em matá-lo. — Então, de repente, ele acrescenta: — Para mim, você é tão importante quanto ele.

Fico atordoada.

Victor se levanta e vai até a janela, cruzando os braços e olhando para o dia luminoso. Percebo que há muitas coisas que ele quer dizer, tantas pontas soltas que gostaria de amarrar comigo. Mas as coisas mudaram desde que Niklas atirou em mim. Sinto isso. E não vou mais brigar com ele, porque sei que precisa ser do jeito que é, precisa terminar do jeito que vai terminar.

— Não espero ver você de novo, Victor, e entendo. — Engulo em seco. Não quero dizer essas palavras. — É melhor assim, eu sei.

— Sim, infelizmente, é — diz ele com voz distante, de costas para mim. — Não posso manter você a salvo com a vida que levo. Eu queria, mas no fim não consegui. Sabia que não conseguiria, mas eu...

Espero em silêncio.

— ... mas eu errei — diz ele, embora eu sinta que ele quisesse dizer outra coisa. — Sinto muito, mas não há outro jeito.

Meu coração está se partindo...

— Prometa uma coisa — digo, e ele vira a cabeça para me olhar. — Não vá para a Alemanha. Não vá ver aquele homem, seu empregador ou sei lá que diabos ele é. Niklas me contou o que vai acontecer se você for. Por favor, não vá...

Eu o ouço suspirar baixinho, e ele olha de novo pela janela.

— Não posso prometer isso — diz ele, e meu coração se esmigalha. — Mas posso prometer que não vou ficar parado e deixar que alguém me mate.

Isso não me faz sentir nem um pouco melhor, mas sei que é tudo o que ele vai me dar.

Victor sai de perto da janela e tira um pacote de uma maleta que está na mesa próxima. Ele vem até meu lado e o coloca em minha mão. É uma caixa preta comprida embrulhada em um papel esfarrapado, que foi coberto com fita adesiva em algum momento. Tiro a caixa do embrulho e abro a tampa. Dentro há um maço de notas de dinheiro, com um envelope que foi dobrado para caber, e mais alguns pedaços de papel.

— O que é tudo isto?

— Sua verdadeira certidão de nascimento, cartão da Previdência, carteirinha de vacinação, com algumas vacinas faltando que você precisa tomar logo. — Ele aponta para o envelope dobrado, que estou abrindo para ver o que contém.

Olho primeiro minha certidão de nascimento. Sarai Naomi Cohen. Nascida em 18 de julho de 1990, em Tucson, Arizona. Repito meu nome completo mentalmente três vezes, só para que me pareça real, como parecia antigamente.

Não parece.

— Como conseguiu isto? — Olho para Victor.

— Tenho meus meios — diz ele, com um sorriso no olhar. — Também abri uma conta bancária no seu nome. Os detalhes estão nos outros documentos da caixa.

— Obrigada, Victor — digo, deixando minha certidão de nascimento no colo. — Por tudo.

Digo isso com sinceridade. Eu já teria morrido muitas vezes se não fosse por ele. Mas dizer essas coisas para ele, essas despedidas, está destruindo cada pedacinho que restava do meu coração.

— Quando você vai embora? — pergunto.

Na verdade, não quero saber a resposta.

Coloco os documentos no envelope e os fecho na caixa.

— Daqui a alguns minutos — diz ele, e engulo as lágrimas. Quero ser forte, porque sei que isso também é difícil para ele. — Mas falta mais uma coisa, antes que eu vá.

Ele vai até a porta e a abre. Entra a sra. Gregory. Fico tão chocada que a única parte do meu corpo que se move são as lágrimas escorrendo por meu rosto. Minha mão vai à boca. Meus olhos vêm e vão entre os dois, que estão sorrindo; Victor menos, mas sorrindo também.

A sra. Gregory, parecendo bem mais velha do que eu lembrava, vem até a cama de braços abertos e me envolve em um abraço. Ela cheira a perfume Sand & Sable. O perfume de sempre.

— Ah, Sarai, senti tanto a sua falta. — Ela me aperta de leve, sabendo fazer isso sem me machucar. Sua voz está carregada de emoção, mas ela está vibrando de alegria.

— Também senti sua falta — digo, retribuindo o abraço. — Achei que nunca mais fosse ver a senhora.

Ela se afasta e se senta ao meu lado na cama, passando seus dedos longos e enrugados por meu cabelo.

Mas então meu sorriso desaparece e meu coração finalmente morre de vez quando olho para onde Victor estava e vejo que ele se foi. Por um longo momento, as coisas que a sra. Gregory me diz soam abafadas, empurradas para algum lugar no fundo de minha mente. Quero pular as barreiras desta cama e correr atrás dele. Engulo em seco, contendo minhas emoções dolorosas no fundo da alma, e me controlo o melhor que posso, em consideração à sra. Gregory.

Eu me viro para ela e curto nosso reencontro.


CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

Sarai

Isso foi há seis meses.

Hoje, a vida está bem diferente. A conta bancária que Victor abriu para mim tinha um saldo de 2 milhões de dólares. Apenas quando entrei no avião com a sra. Gregory, quatro dias depois que Victor partiu, encontrei forças para olhar os outros documentos dentro da caixa. Um tinha informações sobre a conta bancária, e no verso, escrito com a letra de Victor:

Seu pagamento pelo serviço.

Atenciosamente,
Victor

Ele me deu sua parte do dinheiro que Guzmán pagou para mandar matar Javier. Acho que é justo, já que tecnicamente fui eu que o matei.

Mas a vida com certeza está diferente. Estou morando novamente no Arizona, com a sra. Gregory. Em Lake Havasu City. E tenho dinheiro suficiente para não precisar trabalhar, mas, para manter a mente ocupada e tentar me conformar com esta vida de normalidade, trabalho à noite em uma loja de conveniência. A sra. Gregory não gosta disso. Fica com medo. Diz que é perigoso trabalhar em lugares assim, abertos a noite toda.

E não é que ela estava certa?

Fui assaltada na segunda semana ali, mas, enquanto o cara estava do outro lado do balcão me apontando aquela arma, eu só conseguia observar seus olhos. Quando ele baixou o olhar para o dinheiro que pus diante dele, empurrei a arma para o lado, consegui arrancá-la de sua mão e lhe dei uma coronhada no rosto. Foi idiotice, na verdade. Mas foi um instinto. Não me sinto muito intimidada por bandidinhos drogados que assaltam garotas em lojas de conveniência.

Isso é brincadeira de criança.

Mas com certeza também não sou algum tipo de valentona reformada, moldada pelas minhas experiências extraordinárias. Pergunte para a aranha que subiu em mim uma noite dessas enquanto eu estava lendo na cama. A sra. Gregory quase teve um ataque cardíaco com os gritos.

Fui para a escola para conseguir um diploma do supletivo e passei no teste dois meses atrás. Não foi muito difícil, embora eu tenha sofrido com a matemática. Agora estou cursando Ciências da Computação em uma faculdade pública, embora não saiba por quê. Não tenho nenhum interesse nisso na “vida real”, mas... bem, normalidade. Esse é meu pretexto para tudo hoje em dia, para sair com meus novos amigos, para fingir que me interesso pelos objetivos deles na vida. Eu me sinto uma pessoa detestável por ter que fingir essas coisas, mas não posso me obrigar a gostar de algo só porque eu deveria.

Mas nem tudo é tão insuportável. Eu adoro a sra. Gregory e passo a maior parte do tempo com ela. Ela tem uma artrite tão grave que seus dedos estão deformados e ela não consegue mais tocar muito piano, mas ainda me ensina e eu ainda toco, às vezes por horas, até ter cãibra nos dedos e dor nas costas. Finalmente aprendi a Sonata ao Luar. E cada vez que a toco penso em Victor e na noite em que ele se sentou comigo ao piano.

A saúde da sra. Gregory está piorando. Eu cuido dela, mas sei que não vai viver para sempre, e que um dia vou ficar sozinha de novo. Gosto de pensar que talvez Victor ainda esteja por aí, me vigiando, e às vezes engano minha mente, fazendo-a acreditar que ele está. Mas a verdade é que nem sei se ele continua vivo. Tento não pensar nisso, mas acabo pensando sempre, exceto quando estou perdida entre as notas do piano.

Sinto falta dele. Sinto muita falta dele. Há quem acredite que, quando duas pessoas se separam, com o tempo elas se curam. Começam a se interessar por outras pessoas. Tocam a vida. Mas comigo não aconteceu nada disso. Sinto um vazio mais profundo agora do que aquele que senti quando estava na fortaleza. Este é mais doloroso, mais insuportável. Sinto falta de tudo em Victor. E estaria mentindo se dissesse que não penso nele sexualmente todo santo dia. Porque eu penso. Acho que estou viciada nele.

Tem sido muito difícil, para mim, me acostumar com praticamente tudo, mas, de maneira geral, seis meses não é tanto tempo. Não em comparação com os nove anos que passei na fortaleza. Portanto, tenho esperança de que daqui a mais seis meses estarei melhor. Serei “normal”. Meus amigos, embora eu não possa contar a eles sobre minha vida — e acho que é por isso que é tão difícil ficar íntima deles —, são legais. Dahlia é um ano mais velha do que eu. Beleza média. Inteligência média. Carro médio. Emprego médio. Somos parecidas nessa coisa mediana, mas não poderíamos ser mais diferentes em todo o resto. Dahlia não se sobressalta com qualquer barulho que se pareça remotamente com um tiro. Eu sim. Dahlia não fica olhando por cima do ombro aonde quer que vá. Eu sim. Dahlia quer se casar e ter uma família. Eu não. Dahlia nunca matou ninguém. Eu mataria de novo.

Mas sou grata, por mais que sonhe em estar em outro lugar. Em ser outra pessoa. Sou grata porque consegui fugir. Sou grata porque estou em casa. Embora “grata” seja bem diferente de “satisfeita”, e, apesar de finalmente ter uma vida normal que muita gente adoraria ter, estou o mais longe possível de estar satisfeita.

Victor Faust fez muito mais do que me ajudar a fugir de uma vida de maus-tratos e submissão. Ele me mudou. Mudou a paisagem dos meus sonhos, os sonhos que eu tinha todo dia de levar uma vida normal e livre, por minha conta. Ele mudou as cores da paleta, de básicas para um arco-íris — por mais que as cores desse arco-íris sejam escuras —, e não há um dia em que eu não pense nele ou na vida que poderíamos ter. Embora perigosa e, no fim das contas, curta, é a vida que eu queria. Porque teria sido uma vida mais adequada a mim e, bem, teria sido uma vida com Victor.

A verdade é que não estou pronta para esquecê-lo...

— Aí está você — diz a sra. Gregory da porta do meu quarto. — Você vem comer?

Pisco e volto à realidade.

— Ah, sim. Já vou. Só preciso lavar as mãos rapidinho.

— Certo — diz ela; seu sorriso se ilumina.

Sou realmente a filha que ela nunca teve. E acho que posso dizer que ela é a mãe que eu nunca tive.

A sra. Gregory, ou Dina, sempre faz cachorros-quentes com chili nas noites de sexta. Nós nos sentamos à mesa da cozinha, assistindo à TV de alta definição na parede. Está passando o noticiário. Sempre passa nesse horário.

— Então, você e Dahlia já decidiram onde vão passar as férias de verão?

Empurro a comida para dentro com um gole de refrigerante. Estou para responder quando algo no noticiário chama minha atenção. Uma repórter está na frente de uma mansão muito familiar, falando com um homem muito familiar.

Distraidamente, deixo meu garfo no prato.

— Eu adoraria poder ir com vocês — continua Dina. — Mas já estou muito velha para essas coisas.

Estou concentrada demais na TV para lhe dar atenção:

— Sim, senhora — diz Arthur Hamburg ao microfone. — Todo ano faço o melhor que posso para contribuir. Neste verão, estou planejando um evento para angariar 1 milhão para minha nova entidade beneficente, o Projeto Prevenção, em homenagem à minha esposa.

A repórter assente e parece sentir um pouco de remorso, reposicionando o microfone diante dele.

— E seria prevenção do vício ou do suicídio?

— Prevenção do vício — diz Arthur Hamburg. — No fundo, sinto que minha Mary não se suicidou. O que a matou foi o vício. Quero fazer o meu papel para ajudar outros que estão viciados em drogas, e também ajudar a prevenir o uso de drogas antes que comece. É uma doença muito terrível neste país.

Assim como mentir, violentar e matar, seu desgraçado.

— Sim, é, sr. Hamburg — diz a repórter. — Por falar em doença, sei que o senhor também doou dinheiro à pesquisa do câncer por causa...

— Doei — interrompe Arthur Hamburg. — Ainda me sinto muito culpado por ter mentido para todos sobre a doença da minha esposa e duvido que um dia vá achar que me desculpei o suficiente. Mas, como já falei, eu só a estava protegendo. As pessoas podem aceitar o câncer, mas não aceitam tão bem o uso de drogas, e fiz o que fiz para proteger minha esposa. Mas, sim, acho que é justo que eu também doe para a pesquisa do câncer.

Você é um merda.

Cerro os dentes.

— Sarai? — pergunta Dina do outro lado da mesa. — Já se decidiu? Flórida ou Nova York?

O resto das palavras de Arthur Hamburg desaparece no fundo da minha mente. Penso na pergunta de Dina por muito tempo, olhando-a sem vê-la.

Por fim olho para ela, pego meu garfo e respondo:

— Não, na verdade acho que vamos fazer uma viagem a Los Angeles, neste verão. — Corto um pedaço de salsicha do pãozinho no meu prato, mergulho-o no chili e dou uma mordida.

— Los Angeles? — diz Dina inquisidoramente, também dando uma mordida no seu. — Vai dar um pulinho em Hollywood, hein?

— Sim — digo, com ar distante. — Vai ser ótimo.

Tenho assuntos pendentes lá.

Sorrio para mim mesma, pensando nisso, e tomo mais um gole de refrigerante.

CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Sarai

A caminho da mansão, Victor me lembra pela última vez:

— Nunca saia da personagem. Aconteça o que acontecer, ou o quanto as coisas fiquem desconfortáveis para você. Não abandone a personagem.

— Entendi — digo. — Aconteça o que acontecer, não vou abandonar a personagem. Prometo.

Esse olhar que ele me lança, embora indistinto, me diz que ele tem suas dúvidas.

Chegamos à propriedade de Arthur Hamburg às sete e meia e somos recebidos por um portão eletrônico alto, de ferro, e um segurança. Victor passa nossos convites pela janela do carro. O segurança os inspeciona primeiro, depois vai até um painel incrustado na lateral da pequena guarita de pedra e encosta um telefone ao ouvido. Eu o ouço vagamente pela janela aberta, nos descrevendo e descrevendo os convites. Alguns segundos depois, ele desliga e devolve os convites a Victor.

O segurança entra novamente na guarita, e logo depois o portão de ferro se abre, dando-nos acesso à enorme propriedade. Depois de atravessar o calçamento de cascalho por quase um hectare, estacionamos o carro na frente da mansão, perto de uma variedade de veículos igualmente caros.

Saímos do carro, Victor passa o braço no meu e seguimos na direção da casa. Nós nos aproximamos da gigantesca porta dupla principal, passando por duas colunas de mármore nas laterais e por baixo de uma varanda escalonada. Somos recebidos na porta por outro segurança armado, e é então que noto todos os outros seguranças espalhados pela propriedade. Lembro que Victor me falou deles e começo a me sentir um pouco desconfortável. Mas depois que nossos convites são inspecionados de novo e entramos, o desconforto diminui, substituído por assombro. Já estive em muitas mansões, mas esta é de longe a mais impressionante, com pés-direitos de quatro andares no centro da casa, abrindo-se para uma imensa claraboia redonda. Lindas estátuas gregas estão expostas no térreo. Sempre que alguém entra, o som de sapatos estalando de leve no mármore ecoa como se eu estivesse dentro de um museu, e não em uma mansão particular da Califórnia. Ouço o que parece uma pequena cachoeira e então noto que à minha direita, sob um arco de 4,5 metros, há um lindo chafariz de pedra branca bem no meio da sala.

Antes de ser flagrada admirando este lugar de olhos esbugalhados, como uma garota que nunca viu tanta riqueza na vida, mudo minha expressão para parecer distraída, estreitando os olhos de leve, como se parte de mim estivesse entediada. E quando alguém me olha, escolho para quem balanço a cabeça sutilmente em reconhecimento e quem ignoro. Ignoro sobretudo as mulheres, ou as olho rapidamente com ar de desaprovação.

Victor anda comigo pela enorme sala, e somos então recebidos por um homem, embora não seja Arthur Hamburg. Ele é muito mais novo, com cabelo castanho-claro e olhos castanhos.

— Bem-vindos à mansão Hamburg — diz o homem. Ele estende a mão e Victor a aperta. — Eu sou Vince Shaw, o assistente do sr. Hamburg.

— Eu sou Victor Faust e esta é minha mulher, Izabel Seyfried.

Estendo a mão para o homem, com a palma para baixo, e ele a toma nos dedos e se curva para beijá-la.

Eu me pergunto se esse é realmente o sobrenome de Victor. Ele não parece preocupado em usar seu primeiro nome verdadeiro — a menos que “Victor” também não seja seu nome...

Não posso pensar nisso agora.

“Vince” pega uma taça de champanhe de uma bandeja quando um garçom passa. O garçom nos oferece a bandeja em seguida.

— Por favor, tomem uma taça — diz Vince, e Victor pega uma da bandeja e a entrega a mim, antes de se servir. — Peço desculpas — diz Vince —, mas estou curioso para saber como obtiveram o convite.

Victor toma um gole de champanhe e demora para responder, como se fosse importante o suficiente para fazer o homem esperar.

— Izabel e eu estávamos no restaurante do sr. Hamburg noite passada. Houve um incidente.

— Ah, sim, claro — diz Vince, com um sorriso conivente mas respeitoso. Então ele se vira para mim. — Foi mais do que indenizada pelo seu vestido, presumo?

— Sim, fui — digo, tomando um gole de champanhe. — Mas devo dizer que acho que a questão poderia ter sido resolvida de maneira diferente.

— Ah? A que maneira se refere?

— Bem, aquele, por acaso, era meu vestido favorito. Tinha valor sentimental, se quer saber. O garçom deveria ter sido demitido.

— Ah, sim — diz Vince. — Bem, isso com certeza pode ser providenciado. Falarei com o sr. Hamburg sobre isso pessoalmente. Isto é, se não quiser fazer isso quando se encontrarem mais tarde.

— Não — digo, piscando. — Acredito que o senhor me poupará de precisar repetir o que disse.

Olho para Victor, que parece satisfeito com meu desempenho.

— É claro — garante Vince. — Não diga mais nada. Será feito. — Ele sorri, revelando dentes brancos e perfeitos.

Eu me sinto péssima por ser o motivo de aquele pobrezinho ser demitido, mas me consolo dizendo a mim mesma que ele não deveria trabalhar para alguém como Hamburg. Afinal, se fomos mandados aqui para matá-lo, isso só pode significar que ele é, de alguma forma, um canalha.

Nós nos distraímos com Vince por algum tempo, mas eu basicamente só tomo goles de champanhe e ouço os dois conversando. De vez em quando levanto a mão e a dobro com as unhas para cima, examinando-as, entediada. Noto que Victor olha para o relógio uma vez.

— O sr. Hamburg descerá para cumprimentar seus convidados em breve — diz Vince. — Por enquanto, sintam-se à vontade para aproveitar o champanhe e os hors-d’œuvres. Ah, aí está ela! — Ele faz um gesto para nós, e nos viramos. — Gostaria de lhes apresentar Lucinda Graham-Spencer. — Ele sorri para Victor. — Certamente a conhecem, não?

Uma mulher estonteante, usando um vestido branco colado ao corpo curvilíneo, se aproxima, acompanhada por um homem de terno.

— Sim, já a ouvi tocar — diz Victor. — Em um concerto em Londres, ano passado. Ela é brilhante.

— Querrrrido, como vai? — pergunta a mulher chamada Lucinda Graham-Spencer, abrindo os braços dramaticamente para Vince. Victor e eu damos um passo para o lado e ela esvoaça entre nós para plantar dois quase-beijos nas bochechas de Vince.

Reviro os olhos. E não apenas como a personagem.

— Lucinda — diz Vince, virando-se para Victor —, estes são Victor Faust e — ele me indica com um gesto — Izabel Seyfried. São convidados do sr. Hamburg.

Lucinda se aproxima de Victor da mesma forma que fez com Vince, e eles se beijam no rosto. Então ela se vira para mim. Victor me fuzila com o olhar, discretamente, mas isso não basta como dica, e eu também não sou telepata, cacete.

Por isso, ajo como meu instinto manda.

— Prazer em conhecê-la — digo com educação, mas sem diminuir meu ar de superioridade. Retribuo os beijos no rosto, com as mãos apoiadas delicadamente em seus braços, como as dela estão nos meus.

Os olhos de Victor sorriem para mim agora, aprovando minha decisão, e provavelmente aliviados com ela. Ao que parece, essa mulher tem uma importância muito maior do que jamais vou ter, e embora eu não faça ideia de que tipo de musicista ela seja ou por que é tão importante, sei que deve ser famosa em seu meio, e eu só faria papel de idiota se esnobasse alguém tão respeitado. Aliás, provavelmente seríamos expulsos a pontapés se eu fizesse isso.

Vince deixa Victor e eu a sós e anda com a mulher pela sala para apresentá-la aos outros convidados. Escuto e noto que ele diz a todos a mesma coisa que nos disse, e que todos aqui são apresentados como “convidados do sr. Hamburg”. Começo a me perguntar como Victor planeja ter a atenção exclusiva do sr. Hamburg com tantas outras pessoas aqui, casais inclusive, competindo por ela.

Victor passa a mão livre pela minha cintura e nós andamos lentamente pela sala, fingindo conversar sobre os quadros e as estátuas. Ele aponta discretamente para isto ou aquilo e comenta detalhes das cores ou da emoção que a obra retrata. São todas observações inúteis e desinteressantes, que não merecem realmente nenhum comentário, na minha opinião, mas eu entro no jogo assim mesmo. Logo percebo que ele estava usando esse tempo para atravessar a sala sem parecermos perdidos nem precisando da companhia de alguém para nos fazer sentir mais entrosados.

— Preciso ir ao toalete — diz Victor, deixando sua taça de champanhe em uma mesa na entrada do corredor. — Você vai ficar bem sozinha?

— Claro — digo, com ar aborrecido. — Sou perfeitamente capaz de ficar sozinha.

Ele beija meus lábios e se afasta pelo corredor. Eu o observo até que ele vira a esquina no final. Sei que ele não está procurando o “toalete” e começo a ficar nervosa quando ele demora mais do que alguns minutos e eu continuo parada ali, sozinha. Espero não parecer precisar de ajuda para me enturmar.

Acabo recebendo-a mesmo assim.

— Sou Muriel Costas — diz uma mulher, se aproximando de mim com outra mulher e um jovem. — Nunca vi você por aqui.

— Izabel Seyfried — me apresento, tomando meu champanhe muito lentamente, mostrando à mulher que minha taça merece mais atenção do que ela. — E acho isso natural, já que nunca estive aqui antes.

Ela sorri, aproximando sua taça dos lábios pintados de rosa. Ela tem cabelo longo e preto caindo nos ombros e batendo logo abaixo de seus seios fartos. Seu decote é ressaltado pelo vestido cinza justinho. A mulher ao lado dela lhe lança um olhar, provavelmente se perguntando se a primeira deixará impune minha resposta atravessada. Retribuo o sorrisinho e dirijo a atenção para o jovem, que não deve ser muito mais velho do que eu.

Abro um sorriso tênue e sedutor para ele, só para deixar Muriel irritada, e ele percebe. Mas então seu olhar é desviado com submissão quando ela o encara.

— De onde vem? — pergunta ela.

— De onde vem o quê?

Ela e a outra mulher se entreolham com sorrisos leves, obviamente formando a mesma opinião a meu respeito.

— Seu dinheiro — diz Muriel, como se eu devesse conhecer o jargão.

Ela toma um gole de champanhe.

“Você é rica, embora ninguém precise saber de onde vem o seu dinheiro.”

Meu rosto todo escurece com um sorriso confiante.

— Só uma pessoa que se sente ameaçada faz esse tipo de pergunta — digo, e olho rapidamente para os outros dois para exibir discretamente meu controle da conversa. É aparente, para mim, que eles são vira-latas de Muriel Costas, e, dependendo de que mão oferece os melhores restos de comida, não são imunes a influências.

Victor reaparece no corredor.

O rosto de Muriel se ilumina quando o vê. Ela se apresenta imediatamente, oferecendo a mão para um beijo de praxe que eu sei que não tem nada a ver com praxe e tudo a ver com desafio. Victor aceita o gesto e olha nos olhos escuros dela ao se erguer de sua reverência discreta, que ele mantém um pouco mais do que eu gostaria. Mas Muriel está satisfeita e faz questão de me olhar bem nos olhos para que eu saiba disso.

Eles se apresentam e recomeçam o papo furado de festa. Mas em vez de mostrar um pingo de ciúme, já que sei que nada daria mais satisfação a Muriel, eu me afasto dos quatro com o queixo erguido e ar importante e acho um grupinho de homens só meu para confraternizar. Não sei ao certo se Victor aprova essa ação, mas não olho para trás para descobrir. Se eu fizesse isso, meu ciúme ficaria tão aparente quanto em uma demonstração escandalosa. E não é tão fácil Izabel Seyfried sentir ciúme. Ela revida.

Não ofereço a mão a esses três homens, apenas minha conversa encantadora e confiante, que eu jamais ofereceria a uma mulher. Eu não esperava que isso acontecesse, mas é nesse momento, quando assumo totalmente o controle das coisas, que percebo não só que entrei no papel mais do que julgava ser capaz, mas também que estou começando a dar a Izabel Seyfried seus próprios traços. Traços que Victor, tecnicamente, nunca me mandou dar a ela. Eu decido — porque parece o certo — fazê-la desprezar as mulheres um pouco em demasia e adorar os homens um pouco intensamente demais.

Afinal, se vou fazer o papel de outra pessoa, é melhor preencher todas as lacunas de sua personalidade e torná-la totalmente realística.

Durante minha conversa com esses homens, cujos nomes já esqueci, Victor entra no grupo. Sinto sua mão em meu antebraço, apertando-o com força.

— Você sabe que eu não gosto quando você se afasta de mim — diz ele.

Os homens não dizem nada, mas nos ouvem atentamente, como que intrigados pela exibição de Victor de dominação sobre mim.

Abro um sorrisinho.

— Eu sei que você não gosta — digo —, mas estava ficando... sufocada com sua bisavó ali.

Muriel fixa os olhos nos meus ao ouvir isso, e eu sorrio em resposta. Ela e seus mascotes se afastam na direção oposta, até outro grupinho.

Victor esmaga meu braço, fazendo o champanhe se agitar em minha taça.

O sorriso desdenhoso desaparece do meu rosto em um instante.

Ele se curva para meu ouvido e diz em voz baixa:

— Não suporto a ideia de fazer isso, Izabel, mas se for preciso, eu vou abandonar você. — Sua respiração dança por meu pescoço, deixando a pele arrepiada.

— Não vou mais fazer isso — digo, ofegante, virando o pescoço para que minha boca alcance a dele.

Fecho os olhos para beijá-lo e sinto seus lábios tão perto dos meus que quase posso saboreá-los, mas então ele se afasta. Os homens perto de nós estão assistindo a tudo, discretamente, quando volto a abrir os olhos.

Arthur Hamburg aparece na sala do chafariz com quatro homens de terno, e todas as atenções se voltam para ele.


CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Sarai

O homem parece ainda mais velho do que na foto. E mais gordo. Acredito que tenha 60 e poucos anos, estatura mediana, abaixo de 1,80 metro, e não menos do que 130 quilos, a maior parte na barriga e nas bochechas. Enquanto está na entrada da sala, com seus capangas ao redor, eu não vejo apenas um ancião obeso, vejo um homem mau que vai morrer esta noite. É tudo o que consigo pensar: ele vai morrer. E eu estarei lá para presenciar. De repente minhas entranhas se fecham, meu peito aperta, meu estômago dá um nó e sinto que não consigo respirar. Inspiro pelos lábios entreabertos e solto o ar bem devagar pelas narinas. Calma, Sarai. Fique calma.

Eu não pensei que fosse me afetar desse jeito saber o destino de um homem, praticamente controlar se ele vai viver ou morrer apenas por saber o que ele não sabe. Mas, apesar da ansiedade que sinto quando me dou conta da realidade da situação, não me arrependo de ter vindo. Posso não saber o que Arthur Hamburg fez para merecer a morte, mas confio nas palavras de Victor e sei que ele está longe de ser inocente, ou não estaríamos aqui.

Arthur Hamburg se dirige a seus convidados, agradecendo a todos nós por termos vindo esta noite, e continua falando e falando de coisas supérfluas, com todo mundo assentindo, concordando, sorrindo e opinando. E ele conta piadas das quais ri antes de todos, mas todos sempre riem também, porque seria grosseria não rir, é claro. Até eu me pego rindo um pouco de uma piada que todos parecem achar engraçada, mas que na verdade eu não acho.

Victor me põe diante de si, apertando minhas costas contra seu peito. Sua boca explora meus ombros nus, suas mãos estão em meus quadris. Mas a afeição é breve, apenas uma exibição, e sua atenção volta para Arthur Hamburg, quem eu noto que, nesse curto espaço de tempo, nos encontrou, e está nos fitando do outro lado da sala. Percebo a deliberação em seu olhar, a mudança repentina de sua expressão. Depois de mais alguns pronunciamentos, ele encerra a conversa e deixa todos se divertirem, como estavam fazendo antes que ele entrasse na sala.

Quando dou por mim, ele está vindo em nossa direção.


Victor

Arthur Hamburg aperta minha mão quando me apresento e apresento Izabel.

— Meu assistente disse que o senhor teve um problema em meu restaurante, noite passada.

Ele sabe muito bem que fomos nós dois. Viu tudo daquela sua sala particular, escutou nossas conversas à mesa pelo minúsculo microfone situado no arranjo de centro.

— Sim — digo, assentindo. — Desculpe dizer, mas acredito que uma mudança no modo como sua gerência contrata os funcionários é necessária.

Hamburg sorri para disfarçar o que está fazendo, na verdade: estudando a mim e Sarai, reparando em nós mais do que já fez no restaurante, imaginando-nos com ele em seu quarto. Ele está se lixando para o incidente no restaurante ou a possibilidade de ser processado. Isso não tem nada a ver com o convite para estarmos aqui.

— O senhor é de Los Angeles? — pergunta ele.

— Não — respondo, puxando Sarai para mais perto, com um braço em volta de sua cintura e a mão apoiada quase em sua virilha. Os olhos de Hamburg descem para minha mão ali. — De Estocolmo.

Ele parece intrigado.

— Não tem sotaque estrangeiro — diz ele.

Respondo em sueco:

— Sou fluente em sete idiomas. — Depois repito em inglês para que ele entenda.

Ele assente, com um sorriso impressionado. Então olha para Sarai.

— E você?

— De Nova York — respondo por ela.

Sarai fica quieta dessa vez.

Hamburg se vira para mim de novo e pergunta:

— Ela é sua...? — Ele vasculha a mente em busca da maneira mais prudente de fazer a pergunta.

— Minha propriedade? — digo por ele, mostrando que é perfeitamente aceitável falar sobre coisas que em outra situação seriam tabus. — Sim, ela é. E na maior parte do tempo, gosta disso.

Ele ergue uma sobrancelha espessa e grisalha.

— Na maior parte do tempo? — pergunta ele inquisidoramente. — E o que ela pensa no resto do tempo?

Ele olha para Sarai, com um sorrisinho nos cantos de seus lábios enrugados.

— No resto do tempo eu tenho vontade própria — diz Sarai como Izabel.

Suspiro e balanço a cabeça, passando os dedos por seu quadril.

— Sim, ela tem, admito — confirmo. — Prefiro mulheres que oferecem resistência.

— Então o senhor já seguiu o outro caminho, suponho? — pergunta Hamburg, e sei que ele está se referindo à submissão total, a possuir uma mulher que fará qualquer coisa que mandarem sem a menor expressão de desconforto ou recusa.

— Uma vez — respondo. — Estou satisfeito com Izabel, apesar de sua boca grande, às vezes.

Hamburg a examina mais de perto agora, e a mim também. Ele gosta de mulheres e de homens, afinal. E também gosta de mulheres que oferecem resistência, como Izabel. A única diferença é que as outras foram trazidas para cá contra a vontade.

De repente, Hamburg ergue o queixo orgulhosamente e diz:

— Gostaria muito de falar com o senhor em particular. Na minha suíte. Se estiver interessado em ofertas lucrativas. Está interessado em ofertas lucrativas, não está? — Ele sorri e molha os lábios rapidamente com a língua.

Penso a respeito um momento, mexendo com sua cabeça, demonstrando, só pelo olhar, que estou interessado, mas não desesperado.

— Estou disposto a ouvir a oferta, pelo menos — digo.

Seus olhos se iluminam. Ele se vira para o homem de terno ao seu lado, murmura algo em seu ouvido e volta a falar conosco enquanto o homem pega o elevador panorâmico até o último andar.

— Me acompanhem — diz Hamburg, e nós dois o seguimos até o elevador.

Hamburg nos conta da construção de sua mansão enquanto esperamos que o elevador panorâmico desça vazio. E tagarela sobre todo o dinheiro que gastou na casa, explicando discretamente que pode me pagar, seja qual for meu preço. Sinto Sarai ficando cada vez mais nervosa enquanto subimos até o último andar. Em um momento, ela agarra minha mão, e olho para seus dedos delicados presos nos meus. Aperto sua mão de leve, lembrando que estou aqui e que farei tudo o que puder para mantê-la a salvo. Eu a olho nos olhos, e no momento só o que vejo é Sarai me olhando também, a garota corajosa mas ansiosa e complicada que despertou tanto meu instinto protetor.

Vamos até um enorme corredor que dá para a entrada do quarto dele, intrincada e espalhafatosa como o resto da casa. Dois homens de terno montam guarda na porta. Cada um deles, como os que estão lá embaixo, carrega armas por baixo das roupas. Mas eu não. Desta vez, não. Porque sei que Sarai e eu seremos revistados antes que nos deixem entrar, e encontrar uma arma em qualquer um de nós, duas pessoas ricas mas, à parte isso, comuns que não têm motivo algum para portar armas de fogo, mudaria as conclusões iniciais de Hamburg sobre nós. Ele poderia se sentir ameaçado e mudar de ideia quanto a nos deixar entrar.

Paramos à porta e abro os braços para que um dos seguranças me reviste.

Sarai faz o mesmo, mas não fica tão quieta desta vez.

— Isso é realmente necessário? — pergunta ela entre dentes enquanto o outro segurança a revista.

— Desculpe, querida — diz Hamburg enquanto abre as portas da suíte —, mas é. Todo cuidado é pouco.

Quando os seguranças não encontram nada, abrem caminho, e, antes de fechar nós três dentro do quarto, Hamburg diz aos homens:

— Podem ir. Vou precisar de um pouco de privacidade por mais ou menos uma hora.

Os dois seguranças concordam, assentindo, e deixam seu posto na porta do quarto.


CAPÍTULO TRINTA E SEIS

Sarai

Assim que a enorme porta dupla se fecha atrás de nós, sinto meu coração afundando no estômago. Mas espanto a sensação e faço o melhor que posso para conservar minha fachada de Izabel Seyfried.

Enquanto deixo meu olhar percorrer o imenso quarto, fico surpresa com a rapidez com que Arthur Hamburg vai direto ao assunto:

— Direi o que desejo e darei ao senhor a oportunidade de determinar seu preço. — Ele indica a poltrona de couro mais próxima de Victor com um gesto.

Victor se senta, e sou deixada em pé ali, sozinha.

As máscaras caíram, agora que os dois estão a sós na privacidade do quarto. Arthur Hamburg não é mais o homem enjoativamente encantador que fingia ser lá fora, diante de todos. Não, é o canalha perverso e doentio que Victor foi enviado para matar. Ele não me vê mais como uma convidada em sua mansão, que merece uma taça de champanhe e respeito; sou apenas uma peça em seu jogo sexual, que não é mais digna de seu olhar ou de sua conversa. Somente Victor tem direito a tais luxos. É Victor que ele quer. Percebo isso agora. Mas há muito mais nisso do que eu sei. E não demora para que tudo se revele.

— O que o senhor quer? — pergunta Victor, calma e ardilosamente.

Ele se recosta na poltrona e apoia o tornozelo esquerdo no joelho direito.

Arthur Hamburg se senta na poltrona em frente, igual à de Victor, com um sorriso diabólico em seu semblante cruel.

— Gosto de assistir — diz ele. — Mas nada de merdas tipo papai e mamãe. — Ele faz uma pausa e acrescenta: — Você fode a garota, de vez em quando faz com ela o que eu pedir, e depois, se você topar, e por uma quantia extra, eu me ajoelho na sua frente.

Ele sorri e, pela primeira vez desde que entrei aqui, seus olhos passam por mim.

Enquanto tenho um ataque de ansiedade em segredo, Victor pondera por um momento, fingindo considerar a oferta.

Victor olha para mim.

— De jeito nenhum — digo, assim que percebo a deixa. — Ele é nojento, Victor. Não concordo com isso.

Victor fica de pé e me segura casualmente pelo cotovelo.

— Você vai fazer o que eu mandar — diz ele.

Balanço a cabeça de um lado para o outro, olhando para os dois, tentando não sair da personagem, mas achando isso cada vez mais difícil.

Eu consigo fazer isso, digo a mim mesma quando o palpitar forte do meu coração encobre a voz em minha cabeça. Victor não vai me machucar. De jeito nenhum. Preciso acreditar nisso.

Por que ele não mata esse porco agora e pronto? Não entendo...

Com meu cotovelo ainda preso em sua mão, Victor se vira para Arthur Hamburg e diz:

— Quinze mil. — E o rosto de Hamburg se ilumina. — E vou querer mais 15 para deixar você me chupar.

Sinto meus olhos se arregalando.

— Fechado.

— Não — digo, e tento desvencilhar meu braço, mas então Victor estreita os olhos para mim e eu cedo.

— Se curve sobre a mesa — diz Victor.

Quê?...

Ele olha para a pesada mesa quadrada de mármore à minha direita, movendo apenas os olhos.

— Agora, Izabel — exige ele.

Ai, meu Deus...

Hesitante, me aproximo da mesa e apoio a barriga e o peito ali. Já consigo sentir o ar do quarto alcançar o tecido da minha calcinha. Engulo em seco.

Victor se aproxima por trás e termina de levantar meu vestido curto, descobrindo minha bunda e dobrando-o nas minhas costas. Uma de suas mãos aperta minhas nádegas.

— Faça a garota chorar — diz Arthur Hamburg, da poltrona atrás de mim. — Tenho coisas que você pode usar se quiser.

— Consigo fazê-la chorar sem elas — diz Victor, puxando minha calcinha para baixo até os tornozelos. Eu suspiro, me sentindo desconfortavelmente exposta. — Mas ainda posso usá-las. Faz tempo que não a machuco de verdade.

Arthur Hamburg produz um som estranho que nunca ouvi antes.

— Ah, sim, eu gostaria muito de ver isso. — Ele bate palmas e acrescenta, com deleite macabro: — Ela é muito apertada? Eu tenho um taco de borracha.

Fico paralisada na mesa; seu comentário tira todo o ar dos meus pulmões.

Você está de brincadeira, caralho?

Estou pronta para matá-lo, agora. Ele poderia ser meu primeiro trabalho. Estou pronta!

Minhas mãos começam a tremer sob o peito.

Se mantenha na personagem, Sarai... haja o que houver.

Então, de repente, como se não estivéssemos mais no quarto com aquele tarado filho da puta, sinto os dedos de Victor deslizando para dentro de mim e fico instantaneamente molhada. Solto um gemido agudo, e o hálito quente que sai dos meus lábios cobre o mármore de umidade a centímetros do meu rosto. Vejo o borrão aparecer e desaparecer no ritmo da minha respiração ofegante.

— Abra as pernas — manda Victor.

De início não obedeço, mas quando ele enfia as mãos entre minhas coxas e as separa à força, me expondo completamente, não resisto, só me agarro à borda da mesa com as pontas dos dedos e endireito as costas.

Minha mente luta com o quanto tudo isso é errado. Sei que é errado e nojento porque aquele homem está sentado ali, vendo isso acontecer. Mas a outra parte de mim, a parte que está começando a bloquear totalmente a presença de Arthur Hamburg da minha mente, quer que Victor faça o que quiser comigo. Tento fechar os olhos e imaginar somente Victor no quarto, e funciona por um ou dois minutos, até que ouço a voz de Arthur Hamburg de novo.

— Sim, ela é bem rosadinha. Bem apertada — diz ele, e eu cerro os dentes.

Victor começa a ganhar tempo.

— Sabe — diz ele —, você podia me mostrar suas coisas. Vou meter um pouco nela antes, deixá-la mais aberta, e aí...

— Não precisa dizer mais nada — diz Arthur Hamburg, com um sorriso sádico na voz.

Eu o ouço se levantando da poltrona, e então seus sapatos caros estalam no chão quando ele passa. Vejo que sua calça já está aberta e sua camisa, solta sobre a barriga grotesca. Ele já estava se masturbando. Quando se aproxima do que parece um grande closet, ele para e se vira para Victor. Parece estar refletindo intensamente, até que diz:

— Tudo bem se eu deixar minha esposa assistir comigo?

Depois de uma pausa momentânea, Victor responde:

— Mais uma pessoa não estava no acordo. — Ele pensa um pouco. — Mas acho que tudo bem. Ela está lá embaixo?

— Ah, que bom — diz Arthur Hamburg, esfregando as mãos gorduchas. Ele se aproxima mais do closet, abrindo as duas portas enormes para revelar um espaço interno maior do que de um quarto normal. — Não, eu a guardo aqui.

Hã? Você a guarda aí?

Sentindo que isso chamou mais do que apenas a atenção de Victor, olho para cima quando ele se afasta de mim. Não tenho ideia do que ele vai fazer, não sei se devo ficar como estou ou me levantar e deixar o vestido cobrir novamente minha bunda, como eu gostaria. Resolvo esperar mais alguns minutos.

— Não fique chocado quando a vir — diz Arthur Hamburg. Ele parece estar digitando vários números em um teclado prateado na parede interior do closet. — De certa forma, minha Mary é como sua Izabel.

— É mesmo? — diz Victor, entrando no closet com ele.

Outra porta enorme se abre na parede interna do closet, revelando mais um quarto.

— Sim — continua Arthur Hamburg. — Embora seja muito mais submissa do que a sua.

Então ouço um thump alto e um bang quando os dois desaparecem em algum lugar do quarto secreto. Visto a calcinha às pressas e corro pelo quarto para ver o que está acontecendo, quase tropeçando por causa dos saltos.

— Victor!

— Entre aqui, Izabel, agora! — eu o ouço gritar, e, embora ele tenha me chamado de Izabel, sei, pelo tom de urgência em sua voz, que ele está falando comigo como Sarai.

Depois de passar pelas prateleiras altas do closet e entrar correndo no quarto secreto, fico chocada e confusa com o que vejo, incapaz de formar pensamentos, muito menos palavras. Victor está segurando Arthur Hamburg com a cara contra a parede e uma gravata apertada em volta do pescoço gordo. Seu rosto incha por cima do tecido que o estrangula, sua pele ficando vermelho-escura e roxa. Uma mulher está deitada em uma cama dobrável, perto da parede, usando uma camisola comprida de algodão branco, transparente, toda manchada de urina e sangue.

— No closet — diz Victor, pressionando o corpo contra o homem que esperneia — tem uma maleta no chão com uma arma dentro. Vá pegar.

Faço que sim rapidamente e volto correndo para o closet para procurar a maleta, encontrando-a em segundos. Tiro dali a arma e corro para o quarto.

Ele libera uma das mãos e eu lhe entrego a arma.

Victor encosta a arma na têmpora de Arthur Hamburg e solta seu corpo. O velho luta para respirar, fazendo sons engasgados e desesperados, tentando recuperar o controle da respiração. Então Victor o revista, procurando armas. Quando se convence de que ele não tem nenhuma, enfia a mão no bolso da calça, tira um par de luvas de borracha e o joga para mim, me mandando calçá-las.

Faço isso rapidamente.

— Bem, as coisas vão acontecer da seguinte forma — diz Victor para Arthur Hamburg. — Infelizmente, você vai viver. Se a escolha fosse minha, eu teria matado você noite passada, no restaurante, ou qualquer outra noite antes disso. Mas você vai viver.

O. Que. Está. Acontecendo? Minha mente não consegue assimilar essa reviravolta inesperada.

— Se não veio aqui me matar — diz Arthur Hamburg, com a voz tremendo de medo, mas como se estivesse se divertindo —, então que porra você quer aqui? Dinheiro? Tenho dinheiro aos montes. Dou quanto você quiser.

Victor empurra Arthur Hamburg para o chão e mantém a arma apontada para ele. O suor escorre do rosto e do pescoço do homem, empapando sua camisa social branca. Então Victor enfia a mão no bolso interno do paletó e me entrega um pequeno envelope amarelo.

— Abra — ordena ele.

Enquanto faço isso, Victor volta a olhar para Hamburg.

— A morte vai ser considerada um suicídio — diz Victor, e fico ainda mais confusa. — Ela deixou um bilhete assinado de próprio punho. Você só precisa esperar uma hora depois que sairmos para dar o alarme.

— Que merda você está dizendo?! — exclama Arthur Hamburg rispidamente, apesar da arma apontada para ele.

Não consigo mais decidir para quem olhar, o psicopata no chão ou a pobre mulher deitada no catre.

De repente ela me olha com olhos tristes, frágeis, atormentados, e um calafrio percorre meu corpo.

— Victor, a gente precisa ajudá-la. — Começo a me aproximar dela.

— Não — diz Victor. — Deixe-a ali.

— Mas...

— Tire o conteúdo do envelope — interrompe ele.

Tiro primeiro uma folha de papel dobrada, tentando sentir a textura através das luvas apertadas em minhas mãos.

— Leia — diz ele.

Cuidadosamente, eu a desdobro e olho para a bela caligrafia com floreios em tinta azul. E quando leio a carta em voz alta, começo a sentir náuseas e meu coração dói.

Meu adorado marido,

não posso mais fazer isso com você. Envergonhei minha família, nossos filhos, nós nos envergonhamos, Arthur. Eu não amo mais você. Não amo a mim mesma. Não amo ninguém, porque não consigo. Não sou capaz de sentir emoções verdadeiras há doze anos dos trinta que sou casada com você. Não posso mais viver assim. Tantas vezes eu quis procurar ajuda, talvez tomar remédios. Não sei, mas depois de tanto tempo, depois de anos querendo pedir ajuda, comecei a não me importar.

Lamento tanto que você tenha que me ver assim. Lamento tanto não poder ter pedido ajuda a você. Mas eu não queria ajuda. Eu só queria que acabasse.

E é isso que vou fazer.
Acabar com tudo.

Adeus, Arthur.

Atenciosamente,
Mary

O homem não consegue tirar os olhos da esposa. Seu queixo flácido vibra quando ele tenta conter as lágrimas. Mesmo assim, não sinto um pingo de remorso por ele. Não só porque ainda estou lutando para entender o motivo de isso acontecer, mas porque sei que ele é um psicopata e não merece remorso.

— Por que você está aqui? — pergunta ele, com voz rouca e trêmula.

Victor olha para mim.

— Me dê o cartão SD.

Tiro o minúsculo cartão do fundo do envelope e o coloco na mão livre de Victor. Ele o mostra a Arthur Hamburg, entre o polegar e indicador.

— Todas as informações deste cartão já foram transferidas para meu empregador. Os nomes da sua extensa lista de clientes, os locais das suas operações clandestinas, as provas em vídeo que sua querida esposa gravou, sem você nem desconfiar. Está tudo aí. — Ele joga o cartão SD no peito de Arthur Hamburg. — Se alguém me procurar ou procurar Izabel pela morte da sua esposa e ela não for considerada suicídio, todas essas informações serão passadas ao FBI. Devemos sair daqui ilesos e tão bem-tratados como quando entramos por aquela porta. Entendeu?

Estou tremendo, muito confusa, nervosa e insegura. Insegura sobre tudo.

Arthur Hamburg assente, com o suor ainda pingando de seu queixo e suas sobrancelhas.

A mulher estende a mão, mas depois a deixa cair. Duas seringas estão vazias perto de suas pernas. Ela está muito dopada. Corro os olhos pelo corpo dela, vendo que as juntas dos braços e dos tornozelos estão pontilhadas de marcas de agulha.

Não consigo mais me conter: corro até ela, totalmente determinada a ajudá-la. Mas Victor estende a mão e me agarra pelo braço, me segurando. Ele me olha ferozmente nos olhos, ainda apontando a arma para Arthur Hamburg.

— Ela é o alvo — diz ele, me puxando para mais perto. — Vá até o criado-mudo no quarto, ao lado da cama mais perto da janela. Tem outra arma na gaveta. Traga para cá.

Quero dizer que não, que não farei isso, mas minha resistência é apenas em pensamento. Obedeço porque parte de mim ainda confia em Victor, tanto quanto outra parte quer interromper esta situação, antes que vá longe demais.

— Está bem — digo, e corro de volta para o quarto.

Encontro a arma onde Victor disse que estaria, pego-a nervosamente pelo cabo e a carrego com cuidado de volta para o quarto secreto, como se estivesse morrendo de medo de que exploda em minhas mãos. Talvez seja porque sei o que ele vai fazer com ela. Parece mais pesada, mais mortal, mais ameaçadora do que qualquer arma que já segurei. Não senti isso nem com aquela que usei para matar Javier.

Sinto meu coração batendo nas solas dos pés.

— Agora troque comigo — diz Victor.

Ele está usando luvas pretas, agora.

Vou até ele, com as pernas bambas, e lhe entrego a arma. Pego a outra e tomo cuidado para mantê-la apontada para Arthur Hamburg. Mal consigo segurá-la. Eu me sinto como ao me esconder no carro de Victor, a arma tão pesada em minhas mãos que só quero largá-la e me livrar dela.

Victor olha para mim, seus olhos azul-esverdeados intensos e com alguma compaixão.

— Você confia em mim?

Faço que sim lentamente.

— S-sim. Confio em você.

— Tampe os ouvidos — instrui ele, e eu não hesito.

Sem mais uma palavra, ele vai até a esposa e se curva para a frente, levantando-a da cama para uma posição precariamente sentada. Seu corpo está tão fraco e desconjuntado que ela mal consegue se sustentar sozinha. Seus olhos se abrem e se fecham, de exaustão ou por causa das drogas, enquanto Victor põe a arma na mão dela, dobrando seus dedos no cabo e seu indicador no gatilho. Sinto que vou vomitar, mas a adrenalina não deixa.

Victor fica na frente dela, pressiona a arma sob seu queixo e puxa o gatilho com o dedo dela. Ouço o tiro reverberar pelo quarto de paredes espessas, mas meus olhos se fecham antes que eu veja o sangue.

Arthur Hamburg grita o nome da esposa e depois desaba no chão, seu corpo descomunal tremendo de emoção.

Victor fica ao meu lado em um ângulo que parece tentar evitar que eu veja a imagem sanguinolenta da esposa. É um gesto silencioso que acho inesperado e protetor.

— Você tem uma hora — diz Victor. — É melhor começar a pensar na sua versão da história.

— Vai se foder! Vai se foder! — grita Arthur Hamburg, lançando cuspe pela boca. Ele aponta friamente para nós, mal levantando o rosto do chão. — Vão se foder!

— Isso não ia acontecer mesmo — acrescenta Victor.

Então ele passa o braço por meu ombro e sai do quarto secreto, ainda me protegendo da visão o melhor que pode. Quero me afastar dele tempo suficiente para voltar correndo e chutar aquele canalha nojento na barriga com meus saltos, mas não posso, sabendo que a mulher está morta ali, a poucos metros dele. Não é a visão de seu corpo ensanguentado que torna tão pavoroso olhar para ela — já vi mortes demais para ser afetada por isso —, mas a sensação terrível de ela ser inocente e precisar de ajuda é que torna isso insuportável.

O que foi que Victor fez?


CAPÍTULO TRINTA E SETE

Victor

Seguro Sarai na porta da suíte e a viro para me encarar, com as mãos em seus braços. Eu a sacudo.

— Escute — digo, e ela ergue os olhos. — Você continua na personagem quando sairmos daqui. Aja como antes de tudo isso acontecer. Entendeu? — Eu a sacudo de novo.

Ela assente distraidamente e então respira fundo, engolindo o nó na garganta.

Saímos para o corredor e viro o trinco da porta da suíte antes de fechá-la. Nossa segurança para sair desta mansão e desta propriedade está, agora, toda nas mãos de Hamburg. Se ele decidir que quer nos ver mortos mais do que quer evitar ser preso e perder toda a sua fortuna, os próximos cinco minutos vão ser complicados. Eu tenho uma arma, a pistola da maleta do closet. Nove balas estão no pente. Não tenho certeza de que, com apenas nove balas, consigo derrubar os seguranças antes de eles atirarem. Se estivesse sozinho e não precisasse proteger Sarai, conseguiria.

— Cabeça erguida — murmuro rispidamente para Sarai, à minha direita.

Ela ergue o queixo e ponho a mão em sua cintura enquanto vamos casualmente para o elevador panorâmico. Os dois seguranças que estavam na porta do quarto de Hamburg não estão por perto, mas há um no final do corredor. Como os outros, usa um fone no ouvido. Passamos tranquilamente por ele; Sarai usa seu charme, dando um sorrisinho malicioso para ele. Encantado com ela, o homem sorri feito um idiota até que o elevador some abaixo do piso.

— Ah, aí estão vocês — diz Vince Shaw, o assistente de Hamburg, quando saímos do elevador no térreo. — Já vão embora? Deveriam ficar mais um pouco. Lucinda vai tocar para nós esta noite. — Ele mantém as mãos unidas à sua frente.

Sorrio e balanço a cabeça.

— Eu adoraria, mas tenho um voo amanhã cedo.

— Mas eu quero ficar — diz Sarai como Izabel, com a voz um pouco lamuriosa.

— Desta vez, não — digo. — Você sabe que sempre perco os voos de manhã se não durmo pelo menos seis horas na noite anterior.

— Por favor, Victor? — Ela encosta a cabeça no meu braço.

Eu ignoro por completo seus esforços artificiais e aperto a mão de Vince.

— Foi um prazer conhecê-lo — digo.

— Igualmente. Talvez possa aproveitar melhor a festa da próxima vez.

— Talvez.

Puxo Sarai comigo rumo à saída. Pouco antes de chegarmos à enorme porta dupla, ouço a voz de Hamburg ecoar pela mansão, vinda do parapeito do quarto andar, e ficamos imóveis.

— Victor Faust — chama ele por cima da multidão.

Sinto o coração de Sarai pulsando em sua mão quando ela aperta a minha.

Eu me afasto da porta e me aproximo da luz para vê-lo melhor. Ele se arrumou bem em tão pouco tempo; sua camisa está enfiada dentro da calça, e seu cabelo grisalho, antes empapado de suor, foi penteado para trás, provavelmente com os dedos em vez de uma escova.

Há um momento de silêncio tenso, embora dure poucos segundos no máximo. Acho que Sarai parou de respirar.

Hamburg sorri para nós, com as mãos apoiadas no parapeito.

— Espero vê-lo de novo — diz ele.

Faço que sim.

— Até lá — digo.

O porteiro abre um lado da porta dupla para sairmos da mansão. Nenhum de nós dois se sente seguro até atravessarmos o hectare de terreno e sermos liberados no portão, sem que ninguém nos pare ou atire em nós.

Dirijo pela cidade por meia hora antes de voltar para o hotel, para me certificar de que não estamos sendo seguidos. Sarai fica em silêncio o tempo todo, olhando o para-brisa. Ela parece traumatizada. Está duvidando de mim. Está lamentando sua decisão de tomar parte no que aconteceu.

— Sarai...

— O que foi aquilo? — grita ela, virando a cabeça de repente para me olhar. — Por que aquela mulher era o alvo? Ela era inofensiva, Victor. Precisava de ajuda! Era inocente! Não podia ser mais óbvio!

— Tem certeza disso? — pergunto, mantendo a expressão calma.

Sarai começa a gritar comigo de novo, mas para e baixa a cabeça.

— Talvez não — diz ela, agora em dúvida. — Mas ele a mantinha naquele quarto. Ela estava drogada. Indefesa. Prisioneira. Não entendo... — Ela olha o para-brisa de novo.

— Era o que parecia, sim — digo. — Mas Mary Hamburg merecia ser punida tanto quanto Arthur.

— Então quem encomendou o assassinato? — pergunta ela, olhando fixamente para mim. — Por que matá-la e não matar aquele cara?

— Mary Hamburg encomendou o próprio assassinato — digo, e os olhos de Sarai se enchem de descrença. — Os dois se envolveram em vários casos de estupro e assassinato, mortes acidentais causadas por asfixia erótica mas assassinatos mesmo assim, tudo acobertado por suas contas bancárias. Cultivaram esse estilo de vida durante a maior parte do casamento. Um ano atrás, Mary Hamburg, segundo o que ela disse, decidiu que não queria mais levar essa vida. Seus demônios começaram a atormentá-la. Quando falou com Arthur sobre pararem, procurarem ajuda e viverem decentemente, ele se revoltou contra ela. Para encurtar a história, ele a viciou em heroína e a mantinha trancada naquele quarto, para que ela não destruísse tudo o que tinham. Mas ele a amava. Daquele jeito doente, ele a amava. Acho que isso ficou óbvio em sua reação à morte dela.

Sarai balança a cabeça lentamente, tentando processar a verdade.

— Como você sabe tudo isso?

— Eu li o dossiê — digo. — Normalmente não leio, mas neste caso achei necessário.

— Porque eu estava com você — diz ela, e eu faço que sim. — Você sabia que eu faria perguntas.

— Sim.

Ela desvia o olhar.

— Como ele conseguiu manter a esposa fora de cena por tanto tempo? Alguém ia descobrir alguma coisa. Os filhos deles. A carta diz que eles tinham filhos.

— Sim, tinham — digo. — Dois, que moram em algum lugar da Europa e não querem nem saber dos pais. E Hamburg não mantinha Mary totalmente fora de cena. Ele alegava que ela estava à beira da morte. Câncer terminal. De vez em quando, sempre que uma aparição pública era necessária para afastar suspeitas, ele a arrumava, a drogava e colocava a esposa sentada a seu lado em uma cadeira de rodas, por não mais do que alguns minutos. Era o suficiente para que as pessoas vissem que Mary Hamburg parecia mesmo estar morrendo de câncer, por causa de seu peso e dos efeitos da heroína. Ninguém fazia perguntas.

Dispenso o manobrista, paro no estacionamento do nosso hotel e desligo o motor.

Ficamos sentados em silêncio por um momento, banhados pela fraca luz azulada das lâmpadas nas vigas de concreto acima de nós.

— Mas como ela encomendou o próprio assassinato? — Ela passa as mãos pelo cabelo. — Eu não...

— Poucas pessoas podiam entrar no quarto onde ela ficava escondida. Apenas criadas. Imigrantes ilegais. Elas tinham medo de serem deportadas e, provavelmente, também de morrer. Arthur Hamburg sabia que elas não falariam nada. Ao menos era o que ele pensava, porque foi uma das criadas que ajudou Mary Hamburg a encomendar o serviço.

— Ela deveria ter se matado — diz Sarai. — Se fosse eu, não me daria esse trabalho todo.

— Você teria feito o mesmo se não tivesse coragem de se matar. Existem muitas pessoas assim, Sarai. Prontas para morrer, mas com medo de se matar.

Ela não responde.

— Você acha que eles vão vir atrás da gente? — pergunta ela.

Abro a porta do meu lado, saio e dou a volta, abrindo a dela.

— Imediatamente, não. Ele teria feito isso antes que saíssemos de lá, se tivesse a intenção. — Estendo a mão para ela. Seguro seus dedos e ajudo-a a sair do carro.

Depois de fechar a porta, acrescento:

— Hamburg tem muito a perder. Mas isso não quer dizer que não bolará algum plano para se vingar de mim, de alguma forma que ele ache que não será associada a esta missão.

— Ou de mim — diz ela, e me olha desesperada. — Ele pode se vingar de mim.

Aperto duas vezes o alarme do chaveiro e o carro emite um bipe que ecoa pelo estacionamento.

Desta vez, eu não respondo.

Ando com ela até o elevador e nosso quarto, no último andar. Não penso muito em Arthur e Mary Hamburg, ou no que aconteceu esta noite. Penso sobretudo em Sarai e no que ela enfrentou comigo. Ela não morreu, mas sinto que morreu mais uma parte sua. E isso é cem por cento culpa minha. Eu sabia que não deveria tê-la levado. Tenho plena consciência dos meus atos e de como são indesculpáveis. Aceitei isso assim que Sarai não desistiu, na última chance que lhe dei. Deveria ter sido eu, naquele momento, a impedir que ela tivesse mais alguma coisa a ver com isso.

Eu escolhi outro caminho.

E não me arrependo.

Há mais coisas que Sarai e eu precisamos discutir, e espero que o modo como a toquei na suíte de Hamburg seja uma das primeiras. Eu me preparo para isso, mas, quando entramos no quarto, ela joga os sapatos de salto longe e me deixa atordoado quando diz:

— Quero matá-lo. — Ela se senta no pé da cama e vira a cabeça para me olhar, com uma determinação inabalável no semblante. — Aquele homem precisa morrer, Victor. Precisa pagar pelo que fez. Precisa pagar com a vida. Como ela pagou.

Aí está a prova. Sarai tem sangue de assassina; não há mais como negar. Sei que não fui eu que a deixei assim. Foi a vida, não eu. Mas sei que fui eu que tirei o véu de seus olhos, no fim das contas, e a fiz enxergar isso.

— É só uma questão de tempo até que o assassinato dele também seja encomendado — digo.

Tiro o paletó e a gravata, deixando-os nas costas de uma cadeira.

— A gente devia ter feito isso quando teve a chance — diz ela.

Abro os botões da camisa, olho para Sarai sentada ali, fitando a parede, e me pergunto de que maneira ela está considerando matar Hamburg. É algo sangrento. Vingativo. Tenho certeza disso.

Deixo a camisa na cadeira com o paletó e vou até ela, tirando os sapatos no caminho.

— Se tivéssemos feito isso esta noite — digo, me sentando no pé da cama ao lado dela —, não teríamos saído de lá vivos. Não fazia parte da missão. Cada missão tem que ser planejada com precisão. Se você se desvia de qualquer parte dela, suas chances de se expor ou de morrer triplicam.

Ficamos sentados em silêncio, ambos olhando para a frente, ambos perdidos em pensamentos. Eu me pergunto se os dela são sobre mim. Não consigo evitar que os meus sejam sobre ela.


CAPÍTULO TRINTA E OITO

Sarai

Não quero que Victor me deixe nunca. Eu não conseguia suportar essa ideia antes, mas agora... agora as coisas são muito diferentes. Nossas almas se tornaram íntimas, quer ele esteja disposto a admitir isso para si mesmo, quer não. Somos um só, e não quero imaginar ficar sem ele. Nunca.

— Sarai, sinto muito pelo que fiz.

Olho para ele. Sei a que se refere, mas ainda não tenho certeza de como responder.

— Espero que acredite quando digo que não tirei nenhum proveito. Foi só teatro. Espero que entenda.

Acredito nele. Sei que eu não conseguiria olhar uma pessoa normal nos olhos e contar o que aconteceu sem que ela pensasse que perdi o juízo ou que estou sofrendo da Síndrome de Estocolmo. Mas Victor poderia ter se aproveitado de mim muitas vezes. Poderia ter me estuprado. Poderia ter cedido nas poucas vezes que demonstrei minha atração por ele. Mas nunca fez isso e sempre me repeliu. Até algumas noites atrás, quando me enfiei na cama dele. Ele não me repeliu então, mas sei, no fundo, que estava até mais em sintonia com a raiva que eu sentia naquele momento do que eu.

Sem olhá-lo, pergunto em voz baixa:

— Se ele não tivesse aberto o quarto secreto a tempo... você ia me comer?

Noto que ele me olha, mas não retribuo o olhar.

— Não — responde ele em voz baixa, como eu. Ele suspira. — Sarai, eu não podia obrigá-lo a abrir a porta do quarto. Ele poderia ter digitado algum código de pânico e alertado os seguranças, ou...

Olho para ele, finalmente, bem nos olhos.

— Mas você ia querer?

Ele fica em silêncio. Vejo o conflito em seu rosto.

— Não ali — diz ele. — Não daquele jeito.

Tiro o vestido pela cabeça e o jogo no chão.

— E agora, pode ser? — pergunto.

Ele não responde, mas já aprendi, a essa altura, que a única maneira de conseguir o que quero dele é não desistir.

Eu me levanto da cama e fico de pé no meio de suas pernas. Suas mãos sobem lentamente pelas minhas coxas e ele passa os dedos pelo elástico da minha calcinha. Seus lábios tocam minha barriga, roçando a pele com a ponta da língua entre minhas costelas, tão suavemente que meu corpo todo fica arrepiado. Eu passo os dedos por seu cabelo enquanto ele desce a calcinha até meus pés.

Então monto no colo dele.

Eu o beijo delicadamente e sussurro mais uma vez:

— Pode ser, Victor Faust? Se é que esse é o seu nome. — Eu toco o lado de seu rosto com o queixo.

— Somente com uma condição — murmura ele, febrilmente, em minha boca.

— Que condição?

Ele beija meus lábios devagar.

— Que eu fique no controle desta vez.

Abro a boca perto da dele, provocando-o com um beijo que quero que ele tome de mim, meus dedos segurando suavemente seu queixo. Ele me olha nos olhos por um momento, lendo meus pensamentos. E então seus braços se fecham possessivamente ao redor do meu corpo, me apertando contra o dele. Seu beijo é faminto, seus dedos fortes afundam na pele das minhas costas e posso sentir a rigidez de seu pau tão distintamente através do tecido da calça que me faz tremer. Meus lábios se abrem e meu corpo todo estremece só de senti-lo ali, querendo-o dentro de mim mais do que acho que jamais quis qualquer coisa na vida.

Ele mergulha a mão pela minha nuca, forçando minha cabeça para trás e expondo meu pescoço à sua frente. Beija minha garganta, sobe em uma linha reta perfeita até encontrar minha boca de novo e prende meu lábio inferior entre os dentes.

Sinto dois de seus dedos me penetrando por baixo.

Eu gemo, com a cabeça ainda forçada para trás em suas mãos, e pressiono delicadamente meu quadril contra seus dedos.

— Quero você dentro de mim — digo, sem fôlego.

Porra, eu não aguento mais.

Com os lábios nos dele, nossas línguas quentes entrelaçadas, mexo no botão de sua calça e puxo o zíper para baixo.

Ele vira o corpo e me joga na cama, ficando por cima, e não interrompe o beijo enquanto tira a calça com uma das mãos. E quando sinto o calor de seu corpo nu, eu o envolvo com as pernas, apertando-o com as coxas, puxando-o em minha direção para sentir seu pau ereto contra minha umidade. Sua boca procura meu pescoço e meu peito até que seus dentes acham meus mamilos, e ele os morde com força o suficiente apenas para me fazer gemer.

— Isso vai contra tudo o que sou, Sarai — diz ele, e então me beija.

— Não, não vai — murmuro, retribuindo os beijos. — É você virando mais você mesmo.

Então ele desliza o pau para dentro de mim, devagar. Eu já mal consigo manter os olhos abertos. Minhas pernas tremem e meu corpo estremece com pequenos espasmos que explodem e se infiltram em minhas entranhas. Gemo alto e levanto os quadris para forçá-lo a meter mais fundo.

Nunca imaginei que sexo pudesse ser assim, que o modo como meu corpo está reagindo ao dele pudesse ser assim.

Ele ergue o corpo de cima do meu, ainda de joelhos entre minhas pernas, e agarra minhas coxas com força, me puxando para perto. Ele me fode devagar a princípio, tão devagar que me deixa louca. A cada arremetida, vai mais fundo, até que minhas coxas estão tremendo e não consigo mais mantê-las firmes ao redor de seu corpo. Minha nuca se arqueia no travesseiro e eu gemo, grito e cravo os dedos na carne de seus quadris. Ele começa a me foder mais forte e agarro o travesseiro antes de apertar as mãos na cabeceira, me forçando contra ele, sentindo seu pau crescendo dentro de mim.

Ele desaba em mim de novo e eu sinto sua boca úmida em meus seios. Em minha garganta. Em meus lábios. Seu peito arfa com a respiração ofegante, e sinto seu coração batendo contra o meu. Ele começa a diminuir o ritmo, e, enquanto me fode devagar, com um beijo profundo, quente e faminto, enfia uma das mãos entre minhas pernas e toca meu clitóris de um jeito firme e persistente. Afundo os dedos no cabelo dele, puxando-o com força, gemendo em sua boca, saboreando sua língua.

Tão sintonizados um com o outro, gozamos juntos. Ele sai de mim para gozar fora, mas não para de mover os dedos até que meu corpo trêmulo finalmente relaxe e minhas pernas bambas se dissolvam em geleia envolvendo as dele.

Ele deita a cabeça suada em meus seios e eu passo os dedos por seu cabelo. Ficamos assim boa parte da noite, em silêncio e pensando.

E eu só consigo pensar em como nunca mais quero sair deste quarto.

~~~

Estou deitada, embrulhada nos lençóis com Victor. As cortinas da janela estão totalmente abertas, e olho através do quarto para o céu azul-escuro, fracamente iluminado pelas luzes da cidade lá embaixo. Victor adormeceu algum tempo depois de fazer amor comigo. Fazer amor? Não sei ao certo se entendo o verdadeiro significado dessa expressão. Não acho que essa coisa entre nós seja amor, ou mesmo desejo. É algo diferente, algo poderoso e inconfundível que nenhum de nós dois conseguiu ignorar. Mas não tem um rosto. Nem um nome. Talvez ele não tenha feito amor comigo, mas tampouco me fodeu.

Foi, definitivamente, outra coisa.

Ouço seu coração batendo calmamente sob minha bochecha. Sinto sua respiração suave em meu cabelo. Seu corpo é muito quentinho, quase febril, quando estou aninhada em seus braços. Seu cheiro natural é tênue, mas reconfortante, e me atrai para ele como uma abelha para o néctar.

— Para onde vou agora? — Sussurro meus pensamentos em voz alta e me enrosco mais nele quando não obtenho uma resposta.

— Vamos pensar em algo — diz Victor, e seu braço me aperta delicadamente.

Eu não fazia ideia de que ele estava acordado. Levanto a cabeça de seu peito e me deito em seu braço, para poder olhá-lo no rosto.

— Você não vai embora?

É um tiro no escuro, mas estou esperançosa.

Um segundo de silêncio, e seu peito nu sobe e desce com a respiração profunda e regular.

— Sarai, você sabe que não posso levá-la comigo — diz ele, e meu coração afunda. — Isso não é realista. Minha vida está na Ordem. Sempre esteve. Não seria como acordar um dia e decidir que odeio meu emprego e quero encontrar algo melhor. Se eu resolvesse deixar a Ordem, porque é exatamente isso que eu teria que fazer, o próximo assassinato a ser encomendado seria o meu. E o seu.

Quero chorar, mas não choro.

Volto a deitar a cabeça em seu peito, desanimada demais para encará-lo. Olho para o quarto espaçoso, os dedos apoiados em seu peito.

— Acho que a única coisa que posso fazer é deixar você viver sua vida...

— Mas...

Ele me abraça de novo.

— Deixar você viver sua vida — continua ele —, mas vou visitá-la de vez em quando. Para ver se você está bem, se está a salvo e se tem tudo de que precisa.

Não estou satisfeita com isso, mas também sei que é só o que vou conseguir dele. E é melhor do que nada. Ele está certo, e não posso negar. Quero estar com ele sempre, de qualquer maneira que ele se permitir me ter, mas não posso esperar que ele arrisque nossa vida para que isso aconteça.

Preciso deixá-lo ir...

— Isto é, se você quiser que eu a visite — diz ele.

Detecto uma mudança no clima para algo mais leve. Acho isso estranho, vindo dele. Eu me levanto, me apoiando em um braço para olhá-lo.

Ele está sorrindo. Não apenas com os olhos, mas com os lábios também. Eu o acho tão lindo! Tão perigosamente lindo!

Entro no clima e bato de brincadeira no quadril dele com a mão livre, rindo baixinho.

— É claro que eu quero — digo.

Então ele segura meu pulso e me tira cuidadosamente de cima de seu peito. Passa a ponta dos dedos em um lado do meu rosto e depois no outro, o tempo todo me olhando nos olhos, mas vendo além deles. Eu me pergunto o que ele procura em suas profundezas. Seja o que for, espero que nunca encontre, para que possamos continuar assim para sempre.

Ele coloca as mãos no meu rosto e puxa meus lábios para os dele.

— O que você fez comigo? — pergunta ele.

— Eu ia perguntar a mesma coisa.

Mordisco seu lábio inferior. Ele pressiona o pau em mim de leve.

— Parece que criamos um probleminha — diz ele, empurrando com mais força.

Eu faço o mesmo. Gemo baixinho, sentindo calafrios e calor se espalhando por minha pele.

Ele me beija, mas então afasta um pouco a boca da minha, me provocando. Eu levanto o corpo, apertando os seios contra seu peito, querendo saborear sua boca, mas ele cede apenas um pouquinho. Ele pressiona o quadril de novo, mantendo o pau contra mim, apertando minha bunda com suas mãos firmes. Ele está muito duro. Eu o quero. Minha boca fica entreaberta e meu hálito escapa dos lábios.

— Quer que eu coma você? — murmura ele. — É isso que você quer?

Gemo alto com suas palavras ao meu ouvido. Não consigo responder. Não consigo pensar direito.

— Você quer, Sarai? — insiste ele, o calor de seu hálito dançando em meus lábios abertos.

Eu forço meu quadril contra o dele, tentando me posicionar sob seu pau de modo que ele entre sem que precisemos usar as mãos.

— Sim — gemo. — Me fode como você ia foder a Izabel.

— Tem certeza?

— Sim...

Não consigo respirar.

— Repete... Izabel.

Meus olhos se abrem pesadamente e eu o encaro. Respiro, arfante, pela boca. Victor toca os lábios nos meus.

Antes que eu possa responder, ele se senta na cama, me mantendo no colo. A ponta de sua língua percorre minha clavícula. Meus seios estão esmagados nas mãos dele.

— Diga, Izabel — exige ele, passando a língua em um mamilo meu. — Diga que quer que eu foda você.

— Eu quero que você me coma.

Ele prende o cabelo da minha nuca em sua mão e se levanta da cama, com minhas pernas em volta de seu quadril escultural.

Ele me carrega até a mesa perto da janela e me força a ficar curvada sobre ela, de barriga para baixo. Meus braços se estendem à frente, derrubando seu celular e sua arma no chão. Minhas mãos agarram a borda arredondada da mesa. Seus dedos afundam em meus quadris quando ele puxa meu corpo para trás, para perto de si. Ele aperta minha bunda. Com força. Eu inspiro rapidamente quando sinto suas mãos entre minhas pernas, me abrindo para ele. O calor do seu corpo rijo me engole quando ele se deita nas minhas costas, passando a ponta da língua por minha nuca. Sinto seu pau bem ali, esperando por mim, e tento me forçar para trás, na direção dele, mas sua mão segura minha nuca, pressionando minha bochecha contra o tampo da mesa.

— Por favor, Victor — digo ofegante, todo o meu corpo se abrindo para ele.

Grito e gemo alto quando ele me penetra, meus dentes se fechando em seu dedo indicador, enquanto sua mão aperta suavemente o lado do meu rosto.

Não, eu nunca imaginei que sexo pudesse ser assim...


CAPÍTULO TRINTA E NOVE

Sarai

Dormimos demais na manhã seguinte e somos acordados pela arrumadeira batendo na porta do quarto. Acho que ele não estava mentindo, na mansão de Hamburg, quando disse que sempre perde voos de manhã se não dorme o suficiente na noite anterior. Ou talvez tenha sido só culpa minha. Acho que baguncei totalmente sua rotina.

Victor se levanta, e não posso deixar de admirar sua forma nua, antes que ele se vista rapidamente. Ele abre a porta para avisar à arrumadeira que vamos sair tarde e que ela não volte por pelo menos uma hora. Eu não quero ir a lugar nenhum. Depois da noite passada, só quero...

— Se prepare para sair — diz ele, voltando para dentro do quarto. — Vou levar você para ficar com uma mulher que conheço em San Diego. Você vai ficar segura lá até eu organizar o resto, instalar você em um lugar só seu. Mas agora preciso ligar para Niklas, para contar da noite passada. E tenho certeza de que em breve viajarei para a Alemanha para me encontrar com meu empregador.

Eu só quero falar sobre a noite passada, ou repetir a noite passada agora mesmo.

— Isso não me parece bom — digo ao sair da cama. Tive uma sensação ruim quando ele falou de se encontrar com seu empregador.

Ele calça os sapatos e deixa as bolsas ao pé da cama.

— É, geralmente não é bom mesmo — diz ele, remexendo na bolsa. — Estas últimas duas missões levantaram muitas questões sobre mim e minha capacidade de executá-las conforme as ordens. Vou ter que me encontrar cara a cara com ele para dar uma explicação mais detalhada do que aconteceu e por que foi do jeito que foi.

— O que vai dizer sobre mim? Você acha que ele sabe que ainda estou viva?

Ele pega um punhado de balas e começa a carregar sua 9mm.

— Vou pensar nisso no caminho.

Isso também me dá uma sensação ruim.

— Tudo bem, e quem é essa mulher em San Diego? — Olho para ele agora, desconfiada. — Não é alguém que você...?

— Não — diz ele, escondendo a arma na parte de trás da calça. — Ela não tem nada a ver com a Ordem e não sabe nada sobre o que eu faço. É só uma amiga. Conheci essa mulher e o marido dela em uma missão, há cinco anos. É uma longa história, mas não, não é nada assim.

— E o marido dela?

Ele me olha mais uma vez.

— Não está mais lá — diz Victor.

— Por que não? Ele morreu? Eles são velhos?

Não consigo deixar de fazer todas essas perguntas; quero saber todo o possível sobre o lugar para onde ele vai me levar.

Victor faz uma pausa e então diz:

— Sim, ele morreu. Ele era meu alvo.

— Ah...

Não me sinto tão confiante quanto a ir para lá, agora.

— Você vai ficar bem — diz Victor, notando a preocupação em meu rosto. — Ela não sabe que fui eu.

Ele se aproxima de mim e põe as mãos em meus ombros.

— Vou descer para a recepção, pagar pelo quarto e ligar para Niklas. — Ele se curva e me beija na testa. — Sem pressa. Volto daqui a uns minutos e saímos.

Faço que sim, olhando-o nos olhos.

— Tudo bem.

Victor sai do quarto. Pego um vestido mais informal desta vez, uma calcinha limpa e vou para o chuveiro.


Victor

Niklas está furioso comigo. Consigo ouvir isso em sua voz, embora esteja se esforçando para não ser óbvio, o que já é pouco característico dele.

— Você disse que faria contato comigo assim que a missão acabasse — diz Niklas pelo telefone. — Se ela foi cumprida ontem à noite, como planejado, então por que só está me ligando agora, meio dia depois?

Solto o ar pelo nariz.

— Aceite isso pelo que é, Niklas — digo, ficando tão irritado com ele quanto ele está comigo. — Você precisa parar de se preocupar tanto comigo.

— Eu sou seu contato — dispara ele.

— Sim, mas esse seu lado que se tornou tão dolorosamente meticuloso sobre como eu escolho fazer as coisas é meu irmão. Talvez você devesse se reaproximar do seu lado contato, assim ambos poderemos voltar a ter um relacionamento mais simples, estritamente profissional.

— Entendi — diz ele. — Você não precisa mais de um irmão, agora que tem aquela garota. Obviamente, ela ainda está viva.

Eu deveria ter previsto isso, mas não previ.

— Você não foi substituído, muito menos por uma mulher — digo.

Talvez Sarai não tenha substituído meu irmão, mas ela se tornou algo muito maior para mim, e eu não consigo explicar. Nem para mim mesmo, e certamente não para Niklas.

— Tenho novas ordens — anuncia Niklas, abandonando o assunto desagradável. — São de última hora, mas acho que é melhor executá-las antes de ir para a Alemanha encontrar Vonnegut. Não lhe dê mais motivos para duvidar de suas habilidades.

— É uma missão?

— Vai ser — diz ele. — A pessoa está aí em Los Angeles e quer se encontrar com você.

— Isso não é padrão — digo. — Primeiro Javier Ruiz, agora esse aí quer se encontrar cara a cara?

Prefiro lidar apenas com Vonnegut e nunca me encontrar pessoalmente com os clientes, mas, infelizmente, às vezes é preciso correr riscos maiores.

— Ela é uma mulher muito meticulosa — diz Niklas.

— Quais as ordens?

— Encontre-a na frente do número 639 da South Spring Street. Ela estará de blusa branca, com um broche prateado em forma de borboleta no seio esquerdo. Estará lá à uma e meia da tarde.

— Isso é daqui a menos de uma hora — digo, olhando para o relógio na parede do saguão.

Baixo a voz para um sussurro quando um hóspede do hotel passa.

— Você tem tempo mais do que suficiente para chegar lá do hotel — diz ele. — E, por favor, desta vez entre em contato comigo assim que a reunião acabar.

Suspiro silenciosamente.

— Pode deixar — digo, e desligo o telefone.

Depois de pagar mais uma diária do quarto, já que pelo visto ficaremos aqui mais do que uma hora, subo pelo elevador para informar Sarai de nossa pequena mudança de planos. Depois saio, deixando-a no quarto para ir me encontrar com a cliente. Dirijo até o local, chegando alguns minutos antes, e estaciono em um terreno baldio a alguns metros de onde vou encontrá-la.

Fico dentro do carro e espero.

E, na verdade, só consigo pensar em Sarai.


Sarai

Nunca estive em San Diego. Tecnicamente, esta é minha primeira vez na Califórnia. Eu me pergunto como será essa mulher, o que ela sabe, como ela e Victor ficaram amigos. Tenho muitas perguntas, como sempre, e não vou permitir que Victor me deixe sem as respostas no caminho até lá.

Passo a mão no espelho do banheiro, abrindo uma faixa na umidade que embaça o vidro. E sorrio para meu reflexo. Pela primeira vez desde que conheci Victor, estou começando a me sentir contente, aliviada pela perspectiva de futuro. Porque antes eu só conseguia ver trevas, um vazio sem começo nem fim, apenas incertezas. Mas agora tenho algo pelo que esperar. Tenho um propósito. E não vou desperdiçar um só segundo.

Enxugo o cabelo, espremendo-o com uma toalha, e depois a prendo precariamente na nuca. Depois de me enxugar e me vestir, vou para o quarto, e estou para ligar a TV quando alguém bate na porta. Olho para o relógio ao lado da cama.

Ainda não passou uma hora.

Deixo o controle remoto na cama e vou até a porta para atender, mas quando ponho a mão na maçaneta, a voz do outro lado me imobiliza:

— Sou eu, Niklas. Victor mandou vir buscar você.

Meus dedos soltam a maçaneta muito lentamente. Dou um passo para longe da porta.

Ele bate de leve mais uma vez.

— Você está aí? Sarai? Anda, me deixa entrar. Sei que você me despreza, e, sinceramente, eu preferia estar tomando cerveja em algum barzinho, mas Victor precisava da minha ajuda.

Ele está mentindo. Victor me avisaria se tivesse mandado Niklas para cá. Teria me contado antes de sair ou teria ligado.

Olho para o telefone perto da cama. Talvez ele tenha ligado enquanto eu estava tomando banho.

Dou mais um passo para longe da porta, meus instintos me puxando para trás como uma dúzia de mãos estendidas. Mais uma série de batidas, depois silêncio. Fico no meio do quarto, perfeitamente imóvel, perfeitamente em silêncio. O único som que ouço é um zumbido fraco vindo de uma lâmpada. Ando rapidamente pelo quarto, encosto o rosto na porta e tento espiar pelo olho mágico. A parte do corredor que consigo ver está vazia. Ele foi embora. Mas, se foi mesmo, por que ainda tenho tanto medo de que ele esteja lá fora, escondido, esperando que eu saia para olhar? Aperto o rosto de lado no olho mágico, tentando ver melhor à direita e à esquerda. Então ouço vozes e vejo uma sombra se movendo na parede. Meu coração acelera e eu prendo a respiração até que dois homens passem. Solto o ar devagar e profundamente.

Mas o alívio dura pouco, pois vejo Niklas de novo.

Dou um salto para trás, me afastando rapidamente da porta, e vasculho a bolsa de Victor, procurando a arma de Arthur Hamburg. Victor a deixou para mim. Só por precaução. Mas sinto que ele a deixou como precaução contra Arthur Hamburg. Não contra seu irmão.

Não há nenhum esconderijo neste lugar. Absolutamente nenhum espaço onde Niklas não possa me encontrar em menos de um minuto.

Inspiro rapidamente ao ouvir o barulho de um cartão sendo passado na fechadura eletrônica e destrancando-a. Ele deve ter pego a chave-mestra da arrumadeira. Em meio segundo, e tarde demais para que eu perceba e conserte meu erro, vejo que a corrente da porta ainda está destrancada. Corro até lá, no fundo sabendo que não chegarei a tempo de prender a corrente no lugar antes que Niklas esteja dentro do quarto. E quando a porta se abre, caio contra a parede atrás dela, segurando a arma com as duas mãos contra o peito, o coração bombeando sangue tão rápido pelas veias que o canto do olho treme e sinto a jugular latejando.

A porta se fecha e se tranca automaticamente, e Niklas e eu ficamos frente a frente, cada um apontando sua arma para o outro.

— Ah, aí está você — diz ele, com aquele olhar fulminante que mostra o quanto me odeia.

Mantenho o dedo no gatilho e, embora esteja tremendo, consigo manter a arma firme e apontada para a cabeça dele.

— Eu vou matar você — aviso.

— Sim, eu sei — diz ele, emanando muito mais autoconfiança do que eu. — Afinal, foi você que atirou em Javier Ruiz. — Ele suspira dramaticamente e balança a cabeça. — Sarai, quero que você saiba que isto não me dá prazer, matar mulheres inocentes. Eu nunca quis matar ou machucar você, aliás, mas o que você fez com meu irmão... bem, não posso admitir isso.

Mantenho a arma apontada para ele e o dedo firme no gatilho e começo a me afastar da porta. Ele se move comigo.

— Que lhe importa o que Victor faz com a vida pessoal dele?

Ele inclina a cabeça.

— Victor não tem vida pessoal. Nenhum de nós pode ter. É como água e óleo. Você já deve saber, a essa altura.

— Ele vai me levar para algum lugar hoje — digo rapidamente, perdendo qualquer autoconfiança que eu tinha, que já não era muita. — Vai se livrar de mim. Já me falou que não posso ficar com ele. Por que você não pode deixar as coisas assim? Ele vai fazer o que você quer.

— Não é o que eu quero, Sarai. — Conseguimos ir para bem longe da porta, e estamos no meio do quarto agora. — Eu só estou tentando protegê-lo. Ele é meu irmão, caralho! — Sua fúria repentina me faz tremer. Noto que seu dedo no gatilho se agita.

— Niklas, por favor, me deixe ir embora. Você tem razão e eu sei. Já sei há algum tempo que só estou dificultando as coisas para Victor.

— Ele vai morrer por sua causa! — grita Niklas, forçando as palavras por entre os dentes, a arma na minha direção. — Mesmo se ele a deixar hoje, mesmo se ele nunca mais vir você, porra, mesmo se ele matar você, o que já aconteceu é suficiente para a Ordem mandar matá-lo! Você não entende? — Seu rosto está vermelho de raiva; sua expressão, distorcida pela dor. — Eles vão matá-lo! Se for para a Alemanha, ele está morto, Sarai. Ele lhe contou isso? Aposto que não contou.

Não quero acreditar nisso. Balanço a cabeça e quase perco a concentração, apertando a arma com mais força.

— Você não tem como saber isso — digo, mas no fundo acredito nele. — Se é verdade, então por que ele vai?

Um sorriso irônico curva o canto da boca de Niklas. Ele cerra os dentes por trás dos lábios fechados.

— Porque Victor é teimoso — diz ele. — E confia um pouco demais em Vonnegut. Victor sempre foi o Número Um dele, sempre foi o melhor. Ele é melhor no que faz do que todos os comandados de Vonnegut que vieram antes, e ainda é o melhor. Mas ser o melhor não o torna imune ao Código. Ele já fez tanta merda desde que se envolveu com você que não haverá justificativa.

— Então me deixe falar com ele...

— Você já fez o suficiente! — ruge ele.


CAPÍTULO QUARENTA

Victor

A cliente está atrasada. Cinco minutos, mas até um minuto, para alguém que Niklas descreveu como “meticulosa”, não me cheira bem. Mais dois minutos e vou embora.

Observo pessoas andando na rua e as analiso, das roupas que usam até a posição da cabeça quando falam com quem está andando ao seu lado. São realmente apenas turistas ou residentes? Ou são iscas? Espiões? Cuidado nunca é demais. Isto pode ser uma cilada, como qualquer outra missão, mas as missões como esta causam um nó de incerteza na boca do meu estômago...

Espere...

Relembro a conversa telefônica com Niklas, mais cedo:

— Encontre-a na frente do número 639 da South Spring Street. Ela estará de blusa branca com um broche prateado em forma de borboleta no lado esquerdo do peito. Estará lá à uma e meia da tarde.

— Isso é daqui a menos de uma hora — digo.

— Você tem tempo mais do que suficiente para chegar lá do hotel.

Eu tinha tempo mais do que suficiente para chegar aqui do hotel...

Seguro o volante com as duas mãos, a mente correndo a 100 quilômetros por segundo. Como Niklas podia saber disso? Ele não fazia ideia de onde, em Los Angeles, Sarai e eu estávamos hospedados. Não teria como saber se eu conseguiria chegar a este endereço nesse período de tempo.

A menos que ele já soubesse exatamente onde a gente estava.


Sarai

— Niklas... se você me matar, vai transformar seu irmão em um inimigo. — Minha garganta está seca como uma lixa; meus pulmões, pesados. — Se tudo o que você está dizendo é verdade, se o destino de Victor já está selado, então de que adiantaria me matar? — Levanto a voz, motivada pelo desespero e pelo medo. — Não vai resolver nada!

Ele não quer me matar. Não sei se é por causa do que eu falei, sobre transformar Victor em um inimigo, ou se está apenas em conflito, mas, seja o que for, é a única coisa que está me mantendo viva no momento.

— Olhe o que você fez! — Ele balança a arma no ar, na minha direção, apertando tanto o cabo que os nós dos dedos estão brancos.

Ele avança. Eu ando para trás.

— Niklas... por favor — imploro. Não quero atirar nele. Sei que o mais provável é que ele me mate, mas não quero atirar nele.

A raiva lampeja em seus olhos em um instante e ele ergue o queixo em desafio, com os dentes cerrados, os olhos apertados e as narinas abertas.

Sim, ele quer me matar, no fim das contas.

A porta se abre e escuto um tiro quando Niklas vira a cabeça para ver Victor invadindo o quarto. E então outro tiro com silenciador atravessa o quarto, mas Niklas, já correndo também na direção de Victor, consegue evitar ser atingido, e ouço a bala cortando o ar a palmos de mim e penetrando a parede.

A arma escapa da minha mão e caio de joelhos. Levo alguns segundos até perceber que fui atingida, e quando percebo, sinto a dor queimando meu estômago. Sangue quente empapa o tecido do meu vestido. Eu caio de lado, com as mãos pressionando o ferimento com firmeza.

A mesa em minha frente balança na base de madeira quando Victor e Niklas caem em cima dela. Minha pequena caixinha de joias cai no chão, se abrindo e espalhando o conteúdo. Victor, por cima de Niklas, cobre o irmão de socos, golpe após golpe, até que a mesa não suporta mais o peso dos dois e desaba de lado, jogando ambos no chão. O abajur alto que ficava atrás da poltrona bate na mesa, arrancando o fio da tomada e partindo a lâmpada em mil pedaços.

Niklas está em cima de Victor agora, batendo sem parar no rosto dele, mas Victor o segura pela garganta e o levanta, jogando-o com força no chão, de costas. Então se levanta e dá um chute no rosto de Niklas, antes de abrir caminho pelo quarto para pegar sua arma.

Em segundos, ele está por cima do corpo vencido do irmão, com o cano da arma apontado para seu rosto.

— Victor, não faça isso! — consigo gritar em meio à dor.

Ele pisca para voltar a enxergar, depois de ficar momentaneamente perdido em uma fúria cega, e olha para mim.

— Por favor, não o mate — peço novamente, em voz baixa e desesperada.

— Ele tentou matar você — diz Victor, olhando para mim com uma expressão confusa, como se não conseguisse acreditar no que estou dizendo. — Atirou em você.

Com a mão direita, aperto o ferimento com força, o sangue escapando pelos dedos. Estou começando a ficar zonza.

— Victor, ele é seu irmão. Só está aqui porque estava tentando proteger você.

Seus olhos correm entre mim e Niklas, nós dois deitados, ensanguentados e indefesos no chão, em lados opostos do quarto. Seu rosto está cheio de conflito, dor e coisas que nem posso entender, porque nunca tive um irmão ou uma irmã, não sei como é ser amado dessa forma. Talvez Victor também nunca tenha sabido, até agora.

Tento levantar a cabeça, mas estou tão fraca que meu rosto continua no carpete puído.

— Niklas é tudo o que você tem, o único da sua família que restou — digo. — Eu faria qualquer coisa para ter alguém que gostasse de mim tanto quanto ele gosta de você. Qualquer coisa.

O quarto fica muito silencioso. Posso ver os olhos de Victor ficando cheios de... não tenho certeza. Nem sei se ele está mesmo olhando para mim. Acho que consigo ouvir Niklas falando, mas o som é abafado e distante em meus ouvidos. Vejo o teto agora. Só o teto. Observo milhares de buracos minúsculos se abrindo e vejo cada um deles se aproximar de mim. Aquele calor. O que é esse calor que sinto ao meu redor, como um cobertor?

— Sarai? — ouço uma voz chamar, mas de quem é, não sei dizer.

Só vejo escuridão. Tento abrir os olhos, mas estão pesados demais.

Ouço a voz de novo, e uma pontada de dor atravessa meu corpo quando sinto que estou sendo carregada. Tento gritar, mas acho que ninguém consegue ouvir minha voz.

Eu tento gritar...


CAPÍTULO QUARENTA E UM

Sarai

Parece que estou sonhando há dias. A série constante de imagens e vozes ao meu redor sempre soa calmante, mas persistente. As imagens, são elas que me dizem que isto não é real, porque todos que vejo já estão mortos. Javier. Izel. Lydia. Samantha. Minha mãe. Todos passam por mim em uma espécie de transe silencioso e contemplativo, como se eu nem estivesse aqui. Quase consigo tocar o cabelo da minha mãe quando ela passa.

Devo estar sonhando.

Mas os sonhos estão se esvaindo lentamente, e as vozes estranhas e pouco familiares que ouço começam a ficar mais distintas. Eu me sinto presa dentro da minha mente, e ela esqueceu como controlar meu corpo. Porque não consigo mexer nada. Nem os olhos, os lábios ou as mãos. Não consigo nem saber se estou respirando sozinha. Mas, sobretudo, penso nas vozes, em como estão ficando mais claras. Eu me descubro me concentrando o máximo que posso para entender as palavras, mas nunca vou além do som.

Até que ouço a voz de Victor a distância.

— Não vou ficar muito tempo aqui, hoje — eu o ouço dizer a alguém.

Tento acordar, mas acho que o esforço tem o efeito contrário, porque em um instante sou engolida pela escuridão e todas as vozes desaparecem.

Mais tempo se passa. Mais sonhos. Mais vozes.

E então, do nada, como se um interruptor fosse acionado em meu cérebro, minhas pálpebras se abrem e vejo que estou deitada em uma cama de hospital.

Victor está sentado ao meu lado em uma cadeira.

— Você acordou — diz ele, e sorri para mim.

— Quanto tempo fiquei sem acordar? — Ainda estou tentando organizar meus pensamentos.

— Três dias — diz ele. — Mas você vai ficar bem. Mantiveram você sedada a maior parte do tempo.

Tento erguer as costas do travesseiro, mas a dor na barriga é forte demais. Faço uma careta e ergo as mãos para o lugar que está doendo, mas Victor as segura e me faz relaxar.

— Você ainda não pode se mexer — diz ele, ficando de pé.

Ele pega o travesseiro extra de uma poltrona próxima e o posiciona atrás da minha cabeça. Então aperta um botão na lateral da cama para levantá-la e me pôr sentada. Um tubo de soro serpenteia das costas da minha mão, preso à pele com esparadrapo. Coça demais.

— A bala não atingiu nenhum órgão — diz Victor, ao se sentar novamente na cadeira. — Você teve sorte.

O rosto de Niklas aparece em minha mente.

— Ou seu irmão é ruim de pontaria.

Olho para meus braços apoiados na cama, dos lados do corpo. Quero saber o que aconteceu com Niklas e sinto que deveria torcer para que ele esteja morto, mas não consigo.

— Ele está...?

— Não — diz Victor. — Metade de mim queria matá-lo, mas a outra metade não conseguiu. Só me pergunto que metade teria ganhado se você não estivesse viva naquele momento.

Mexo a mão alguns centímetros na cama em busca da dele. Ele entrelaça os dedos nos meus.

— Fico feliz que você não tenha feito isso — digo, forçando um sorriso fraco. — Eu não conseguiria suportar ser o motivo de você matar seu irmão. E-eu nunca deveria ter me colocado entre vocês. Não sabia o que eu estava fazendo, Victor, me desculpe.

Ele aperta minha mão.

— Você fez algo que ninguém mais conseguiria — diz ele, e espero ansiosamente que ele me conte o que poderia ser. — Você me fez lembrar que eu tenho um irmão, Sarai. Ele e eu praticamente nos sentamos à mesa, lado a lado, como estranhos, nos últimos 24 anos. E vejo agora que, apesar de seus defeitos, ele nunca me traiu, nem uma só vez.

Victor faz uma pausa e desvia o olhar.

Então me olha de novo.

— De certa forma, ele me traiu quando foi lá para matar você — continua ele. — E me traiu quando me enganou para chegar até você. Sim, isso é uma traição. Mas é um tipo muito diferente de traição.

— Eu sei — digo. — Olhe para mim. — Ele olha. — Você agiu certo. Independentemente do que ele fez comigo, você agiu certo, e não quero que nunca pense diferente.

Ele não fala, mas conheço essa expressão, é o conflito que está sempre ali. Eu me pergunto se um dia ele vai se livrar disso.

Então diz:

— Mas você fez outra coisa que ninguém jamais conseguiu. — Sua expressão se abranda e meu coração derrete aos poucos. — Você me fez sentir emoções de verdade. Você me destravou.

Estendo a mão e toco seus lábios, segurando seu queixo.

Mas o assunto muda rápido demais.

— Niklas nunca mais vai machucá-la — diz ele. — Ele me deu a palavra dele. Além disso, ele sabe que, se tentar uma próxima vez, não vou hesitar em matá-lo. — Então, de repente, ele acrescenta: — Para mim, você é tão importante quanto ele.

Fico atordoada.

Victor se levanta e vai até a janela, cruzando os braços e olhando para o dia luminoso. Percebo que há muitas coisas que ele quer dizer, tantas pontas soltas que gostaria de amarrar comigo. Mas as coisas mudaram desde que Niklas atirou em mim. Sinto isso. E não vou mais brigar com ele, porque sei que precisa ser do jeito que é, precisa terminar do jeito que vai terminar.

— Não espero ver você de novo, Victor, e entendo. — Engulo em seco. Não quero dizer essas palavras. — É melhor assim, eu sei.

— Sim, infelizmente, é — diz ele com voz distante, de costas para mim. — Não posso manter você a salvo com a vida que levo. Eu queria, mas no fim não consegui. Sabia que não conseguiria, mas eu...

Espero em silêncio.

— ... mas eu errei — diz ele, embora eu sinta que ele quisesse dizer outra coisa. — Sinto muito, mas não há outro jeito.

Meu coração está se partindo...

— Prometa uma coisa — digo, e ele vira a cabeça para me olhar. — Não vá para a Alemanha. Não vá ver aquele homem, seu empregador ou sei lá que diabos ele é. Niklas me contou o que vai acontecer se você for. Por favor, não vá...

Eu o ouço suspirar baixinho, e ele olha de novo pela janela.

— Não posso prometer isso — diz ele, e meu coração se esmigalha. — Mas posso prometer que não vou ficar parado e deixar que alguém me mate.

Isso não me faz sentir nem um pouco melhor, mas sei que é tudo o que ele vai me dar.

Victor sai de perto da janela e tira um pacote de uma maleta que está na mesa próxima. Ele vem até meu lado e o coloca em minha mão. É uma caixa preta comprida embrulhada em um papel esfarrapado, que foi coberto com fita adesiva em algum momento. Tiro a caixa do embrulho e abro a tampa. Dentro há um maço de notas de dinheiro, com um envelope que foi dobrado para caber, e mais alguns pedaços de papel.

— O que é tudo isto?

— Sua verdadeira certidão de nascimento, cartão da Previdência, carteirinha de vacinação, com algumas vacinas faltando que você precisa tomar logo. — Ele aponta para o envelope dobrado, que estou abrindo para ver o que contém.

Olho primeiro minha certidão de nascimento. Sarai Naomi Cohen. Nascida em 18 de julho de 1990, em Tucson, Arizona. Repito meu nome completo mentalmente três vezes, só para que me pareça real, como parecia antigamente.

Não parece.

— Como conseguiu isto? — Olho para Victor.

— Tenho meus meios — diz ele, com um sorriso no olhar. — Também abri uma conta bancária no seu nome. Os detalhes estão nos outros documentos da caixa.

— Obrigada, Victor — digo, deixando minha certidão de nascimento no colo. — Por tudo.

Digo isso com sinceridade. Eu já teria morrido muitas vezes se não fosse por ele. Mas dizer essas coisas para ele, essas despedidas, está destruindo cada pedacinho que restava do meu coração.

— Quando você vai embora? — pergunto.

Na verdade, não quero saber a resposta.

Coloco os documentos no envelope e os fecho na caixa.

— Daqui a alguns minutos — diz ele, e engulo as lágrimas. Quero ser forte, porque sei que isso também é difícil para ele. — Mas falta mais uma coisa, antes que eu vá.

Ele vai até a porta e a abre. Entra a sra. Gregory. Fico tão chocada que a única parte do meu corpo que se move são as lágrimas escorrendo por meu rosto. Minha mão vai à boca. Meus olhos vêm e vão entre os dois, que estão sorrindo; Victor menos, mas sorrindo também.

A sra. Gregory, parecendo bem mais velha do que eu lembrava, vem até a cama de braços abertos e me envolve em um abraço. Ela cheira a perfume Sand & Sable. O perfume de sempre.

— Ah, Sarai, senti tanto a sua falta. — Ela me aperta de leve, sabendo fazer isso sem me machucar. Sua voz está carregada de emoção, mas ela está vibrando de alegria.

— Também senti sua falta — digo, retribuindo o abraço. — Achei que nunca mais fosse ver a senhora.

Ela se afasta e se senta ao meu lado na cama, passando seus dedos longos e enrugados por meu cabelo.

Mas então meu sorriso desaparece e meu coração finalmente morre de vez quando olho para onde Victor estava e vejo que ele se foi. Por um longo momento, as coisas que a sra. Gregory me diz soam abafadas, empurradas para algum lugar no fundo de minha mente. Quero pular as barreiras desta cama e correr atrás dele. Engulo em seco, contendo minhas emoções dolorosas no fundo da alma, e me controlo o melhor que posso, em consideração à sra. Gregory.

Eu me viro para ela e curto nosso reencontro.


CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

Sarai

Isso foi há seis meses.

Hoje, a vida está bem diferente. A conta bancária que Victor abriu para mim tinha um saldo de 2 milhões de dólares. Apenas quando entrei no avião com a sra. Gregory, quatro dias depois que Victor partiu, encontrei forças para olhar os outros documentos dentro da caixa. Um tinha informações sobre a conta bancária, e no verso, escrito com a letra de Victor:

Seu pagamento pelo serviço.

Atenciosamente,
Victor

Ele me deu sua parte do dinheiro que Guzmán pagou para mandar matar Javier. Acho que é justo, já que tecnicamente fui eu que o matei.

Mas a vida com certeza está diferente. Estou morando novamente no Arizona, com a sra. Gregory. Em Lake Havasu City. E tenho dinheiro suficiente para não precisar trabalhar, mas, para manter a mente ocupada e tentar me conformar com esta vida de normalidade, trabalho à noite em uma loja de conveniência. A sra. Gregory não gosta disso. Fica com medo. Diz que é perigoso trabalhar em lugares assim, abertos a noite toda.

E não é que ela estava certa?

Fui assaltada na segunda semana ali, mas, enquanto o cara estava do outro lado do balcão me apontando aquela arma, eu só conseguia observar seus olhos. Quando ele baixou o olhar para o dinheiro que pus diante dele, empurrei a arma para o lado, consegui arrancá-la de sua mão e lhe dei uma coronhada no rosto. Foi idiotice, na verdade. Mas foi um instinto. Não me sinto muito intimidada por bandidinhos drogados que assaltam garotas em lojas de conveniência.

Isso é brincadeira de criança.

Mas com certeza também não sou algum tipo de valentona reformada, moldada pelas minhas experiências extraordinárias. Pergunte para a aranha que subiu em mim uma noite dessas enquanto eu estava lendo na cama. A sra. Gregory quase teve um ataque cardíaco com os gritos.

Fui para a escola para conseguir um diploma do supletivo e passei no teste dois meses atrás. Não foi muito difícil, embora eu tenha sofrido com a matemática. Agora estou cursando Ciências da Computação em uma faculdade pública, embora não saiba por quê. Não tenho nenhum interesse nisso na “vida real”, mas... bem, normalidade. Esse é meu pretexto para tudo hoje em dia, para sair com meus novos amigos, para fingir que me interesso pelos objetivos deles na vida. Eu me sinto uma pessoa detestável por ter que fingir essas coisas, mas não posso me obrigar a gostar de algo só porque eu deveria.

Mas nem tudo é tão insuportável. Eu adoro a sra. Gregory e passo a maior parte do tempo com ela. Ela tem uma artrite tão grave que seus dedos estão deformados e ela não consegue mais tocar muito piano, mas ainda me ensina e eu ainda toco, às vezes por horas, até ter cãibra nos dedos e dor nas costas. Finalmente aprendi a Sonata ao Luar. E cada vez que a toco penso em Victor e na noite em que ele se sentou comigo ao piano.

A saúde da sra. Gregory está piorando. Eu cuido dela, mas sei que não vai viver para sempre, e que um dia vou ficar sozinha de novo. Gosto de pensar que talvez Victor ainda esteja por aí, me vigiando, e às vezes engano minha mente, fazendo-a acreditar que ele está. Mas a verdade é que nem sei se ele continua vivo. Tento não pensar nisso, mas acabo pensando sempre, exceto quando estou perdida entre as notas do piano.

Sinto falta dele. Sinto muita falta dele. Há quem acredite que, quando duas pessoas se separam, com o tempo elas se curam. Começam a se interessar por outras pessoas. Tocam a vida. Mas comigo não aconteceu nada disso. Sinto um vazio mais profundo agora do que aquele que senti quando estava na fortaleza. Este é mais doloroso, mais insuportável. Sinto falta de tudo em Victor. E estaria mentindo se dissesse que não penso nele sexualmente todo santo dia. Porque eu penso. Acho que estou viciada nele.

Tem sido muito difícil, para mim, me acostumar com praticamente tudo, mas, de maneira geral, seis meses não é tanto tempo. Não em comparação com os nove anos que passei na fortaleza. Portanto, tenho esperança de que daqui a mais seis meses estarei melhor. Serei “normal”. Meus amigos, embora eu não possa contar a eles sobre minha vida — e acho que é por isso que é tão difícil ficar íntima deles —, são legais. Dahlia é um ano mais velha do que eu. Beleza média. Inteligência média. Carro médio. Emprego médio. Somos parecidas nessa coisa mediana, mas não poderíamos ser mais diferentes em todo o resto. Dahlia não se sobressalta com qualquer barulho que se pareça remotamente com um tiro. Eu sim. Dahlia não fica olhando por cima do ombro aonde quer que vá. Eu sim. Dahlia quer se casar e ter uma família. Eu não. Dahlia nunca matou ninguém. Eu mataria de novo.

Mas sou grata, por mais que sonhe em estar em outro lugar. Em ser outra pessoa. Sou grata porque consegui fugir. Sou grata porque estou em casa. Embora “grata” seja bem diferente de “satisfeita”, e, apesar de finalmente ter uma vida normal que muita gente adoraria ter, estou o mais longe possível de estar satisfeita.

Victor Faust fez muito mais do que me ajudar a fugir de uma vida de maus-tratos e submissão. Ele me mudou. Mudou a paisagem dos meus sonhos, os sonhos que eu tinha todo dia de levar uma vida normal e livre, por minha conta. Ele mudou as cores da paleta, de básicas para um arco-íris — por mais que as cores desse arco-íris sejam escuras —, e não há um dia em que eu não pense nele ou na vida que poderíamos ter. Embora perigosa e, no fim das contas, curta, é a vida que eu queria. Porque teria sido uma vida mais adequada a mim e, bem, teria sido uma vida com Victor.

A verdade é que não estou pronta para esquecê-lo...

— Aí está você — diz a sra. Gregory da porta do meu quarto. — Você vem comer?

Pisco e volto à realidade.

— Ah, sim. Já vou. Só preciso lavar as mãos rapidinho.

— Certo — diz ela; seu sorriso se ilumina.

Sou realmente a filha que ela nunca teve. E acho que posso dizer que ela é a mãe que eu nunca tive.

A sra. Gregory, ou Dina, sempre faz cachorros-quentes com chili nas noites de sexta. Nós nos sentamos à mesa da cozinha, assistindo à TV de alta definição na parede. Está passando o noticiário. Sempre passa nesse horário.

— Então, você e Dahlia já decidiram onde vão passar as férias de verão?

Empurro a comida para dentro com um gole de refrigerante. Estou para responder quando algo no noticiário chama minha atenção. Uma repórter está na frente de uma mansão muito familiar, falando com um homem muito familiar.

Distraidamente, deixo meu garfo no prato.

— Eu adoraria poder ir com vocês — continua Dina. — Mas já estou muito velha para essas coisas.

Estou concentrada demais na TV para lhe dar atenção:

— Sim, senhora — diz Arthur Hamburg ao microfone. — Todo ano faço o melhor que posso para contribuir. Neste verão, estou planejando um evento para angariar 1 milhão para minha nova entidade beneficente, o Projeto Prevenção, em homenagem à minha esposa.

A repórter assente e parece sentir um pouco de remorso, reposicionando o microfone diante dele.

— E seria prevenção do vício ou do suicídio?

— Prevenção do vício — diz Arthur Hamburg. — No fundo, sinto que minha Mary não se suicidou. O que a matou foi o vício. Quero fazer o meu papel para ajudar outros que estão viciados em drogas, e também ajudar a prevenir o uso de drogas antes que comece. É uma doença muito terrível neste país.

Assim como mentir, violentar e matar, seu desgraçado.

— Sim, é, sr. Hamburg — diz a repórter. — Por falar em doença, sei que o senhor também doou dinheiro à pesquisa do câncer por causa...

— Doei — interrompe Arthur Hamburg. — Ainda me sinto muito culpado por ter mentido para todos sobre a doença da minha esposa e duvido que um dia vá achar que me desculpei o suficiente. Mas, como já falei, eu só a estava protegendo. As pessoas podem aceitar o câncer, mas não aceitam tão bem o uso de drogas, e fiz o que fiz para proteger minha esposa. Mas, sim, acho que é justo que eu também doe para a pesquisa do câncer.

Você é um merda.

Cerro os dentes.

— Sarai? — pergunta Dina do outro lado da mesa. — Já se decidiu? Flórida ou Nova York?

O resto das palavras de Arthur Hamburg desaparece no fundo da minha mente. Penso na pergunta de Dina por muito tempo, olhando-a sem vê-la.

Por fim olho para ela, pego meu garfo e respondo:

— Não, na verdade acho que vamos fazer uma viagem a Los Angeles, neste verão. — Corto um pedaço de salsicha do pãozinho no meu prato, mergulho-o no chili e dou uma mordida.

— Los Angeles? — diz Dina inquisidoramente, também dando uma mordida no seu. — Vai dar um pulinho em Hollywood, hein?

— Sim — digo, com ar distante. — Vai ser ótimo.

Tenho assuntos pendentes lá.

Sorrio para mim mesma, pensando nisso, e tomo mais um gole de refrigerante.

CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Sarai

A caminho da mansão, Victor me lembra pela última vez:

— Nunca saia da personagem. Aconteça o que acontecer, ou o quanto as coisas fiquem desconfortáveis para você. Não abandone a personagem.

— Entendi — digo. — Aconteça o que acontecer, não vou abandonar a personagem. Prometo.

Esse olhar que ele me lança, embora indistinto, me diz que ele tem suas dúvidas.

Chegamos à propriedade de Arthur Hamburg às sete e meia e somos recebidos por um portão eletrônico alto, de ferro, e um segurança. Victor passa nossos convites pela janela do carro. O segurança os inspeciona primeiro, depois vai até um painel incrustado na lateral da pequena guarita de pedra e encosta um telefone ao ouvido. Eu o ouço vagamente pela janela aberta, nos descrevendo e descrevendo os convites. Alguns segundos depois, ele desliga e devolve os convites a Victor.

O segurança entra novamente na guarita, e logo depois o portão de ferro se abre, dando-nos acesso à enorme propriedade. Depois de atravessar o calçamento de cascalho por quase um hectare, estacionamos o carro na frente da mansão, perto de uma variedade de veículos igualmente caros.

Saímos do carro, Victor passa o braço no meu e seguimos na direção da casa. Nós nos aproximamos da gigantesca porta dupla principal, passando por duas colunas de mármore nas laterais e por baixo de uma varanda escalonada. Somos recebidos na porta por outro segurança armado, e é então que noto todos os outros seguranças espalhados pela propriedade. Lembro que Victor me falou deles e começo a me sentir um pouco desconfortável. Mas depois que nossos convites são inspecionados de novo e entramos, o desconforto diminui, substituído por assombro. Já estive em muitas mansões, mas esta é de longe a mais impressionante, com pés-direitos de quatro andares no centro da casa, abrindo-se para uma imensa claraboia redonda. Lindas estátuas gregas estão expostas no térreo. Sempre que alguém entra, o som de sapatos estalando de leve no mármore ecoa como se eu estivesse dentro de um museu, e não em uma mansão particular da Califórnia. Ouço o que parece uma pequena cachoeira e então noto que à minha direita, sob um arco de 4,5 metros, há um lindo chafariz de pedra branca bem no meio da sala.

Antes de ser flagrada admirando este lugar de olhos esbugalhados, como uma garota que nunca viu tanta riqueza na vida, mudo minha expressão para parecer distraída, estreitando os olhos de leve, como se parte de mim estivesse entediada. E quando alguém me olha, escolho para quem balanço a cabeça sutilmente em reconhecimento e quem ignoro. Ignoro sobretudo as mulheres, ou as olho rapidamente com ar de desaprovação.

Victor anda comigo pela enorme sala, e somos então recebidos por um homem, embora não seja Arthur Hamburg. Ele é muito mais novo, com cabelo castanho-claro e olhos castanhos.

— Bem-vindos à mansão Hamburg — diz o homem. Ele estende a mão e Victor a aperta. — Eu sou Vince Shaw, o assistente do sr. Hamburg.

— Eu sou Victor Faust e esta é minha mulher, Izabel Seyfried.

Estendo a mão para o homem, com a palma para baixo, e ele a toma nos dedos e se curva para beijá-la.

Eu me pergunto se esse é realmente o sobrenome de Victor. Ele não parece preocupado em usar seu primeiro nome verdadeiro — a menos que “Victor” também não seja seu nome...

Não posso pensar nisso agora.

“Vince” pega uma taça de champanhe de uma bandeja quando um garçom passa. O garçom nos oferece a bandeja em seguida.

— Por favor, tomem uma taça — diz Vince, e Victor pega uma da bandeja e a entrega a mim, antes de se servir. — Peço desculpas — diz Vince —, mas estou curioso para saber como obtiveram o convite.

Victor toma um gole de champanhe e demora para responder, como se fosse importante o suficiente para fazer o homem esperar.

— Izabel e eu estávamos no restaurante do sr. Hamburg noite passada. Houve um incidente.

— Ah, sim, claro — diz Vince, com um sorriso conivente mas respeitoso. Então ele se vira para mim. — Foi mais do que indenizada pelo seu vestido, presumo?

— Sim, fui — digo, tomando um gole de champanhe. — Mas devo dizer que acho que a questão poderia ter sido resolvida de maneira diferente.

— Ah? A que maneira se refere?

— Bem, aquele, por acaso, era meu vestido favorito. Tinha valor sentimental, se quer saber. O garçom deveria ter sido demitido.

— Ah, sim — diz Vince. — Bem, isso com certeza pode ser providenciado. Falarei com o sr. Hamburg sobre isso pessoalmente. Isto é, se não quiser fazer isso quando se encontrarem mais tarde.

— Não — digo, piscando. — Acredito que o senhor me poupará de precisar repetir o que disse.

Olho para Victor, que parece satisfeito com meu desempenho.

— É claro — garante Vince. — Não diga mais nada. Será feito. — Ele sorri, revelando dentes brancos e perfeitos.

Eu me sinto péssima por ser o motivo de aquele pobrezinho ser demitido, mas me consolo dizendo a mim mesma que ele não deveria trabalhar para alguém como Hamburg. Afinal, se fomos mandados aqui para matá-lo, isso só pode significar que ele é, de alguma forma, um canalha.

Nós nos distraímos com Vince por algum tempo, mas eu basicamente só tomo goles de champanhe e ouço os dois conversando. De vez em quando levanto a mão e a dobro com as unhas para cima, examinando-as, entediada. Noto que Victor olha para o relógio uma vez.

— O sr. Hamburg descerá para cumprimentar seus convidados em breve — diz Vince. — Por enquanto, sintam-se à vontade para aproveitar o champanhe e os hors-d’œuvres. Ah, aí está ela! — Ele faz um gesto para nós, e nos viramos. — Gostaria de lhes apresentar Lucinda Graham-Spencer. — Ele sorri para Victor. — Certamente a conhecem, não?

Uma mulher estonteante, usando um vestido branco colado ao corpo curvilíneo, se aproxima, acompanhada por um homem de terno.

— Sim, já a ouvi tocar — diz Victor. — Em um concerto em Londres, ano passado. Ela é brilhante.

— Querrrrido, como vai? — pergunta a mulher chamada Lucinda Graham-Spencer, abrindo os braços dramaticamente para Vince. Victor e eu damos um passo para o lado e ela esvoaça entre nós para plantar dois quase-beijos nas bochechas de Vince.

Reviro os olhos. E não apenas como a personagem.

— Lucinda — diz Vince, virando-se para Victor —, estes são Victor Faust e — ele me indica com um gesto — Izabel Seyfried. São convidados do sr. Hamburg.

Lucinda se aproxima de Victor da mesma forma que fez com Vince, e eles se beijam no rosto. Então ela se vira para mim. Victor me fuzila com o olhar, discretamente, mas isso não basta como dica, e eu também não sou telepata, cacete.

Por isso, ajo como meu instinto manda.

— Prazer em conhecê-la — digo com educação, mas sem diminuir meu ar de superioridade. Retribuo os beijos no rosto, com as mãos apoiadas delicadamente em seus braços, como as dela estão nos meus.

Os olhos de Victor sorriem para mim agora, aprovando minha decisão, e provavelmente aliviados com ela. Ao que parece, essa mulher tem uma importância muito maior do que jamais vou ter, e embora eu não faça ideia de que tipo de musicista ela seja ou por que é tão importante, sei que deve ser famosa em seu meio, e eu só faria papel de idiota se esnobasse alguém tão respeitado. Aliás, provavelmente seríamos expulsos a pontapés se eu fizesse isso.

Vince deixa Victor e eu a sós e anda com a mulher pela sala para apresentá-la aos outros convidados. Escuto e noto que ele diz a todos a mesma coisa que nos disse, e que todos aqui são apresentados como “convidados do sr. Hamburg”. Começo a me perguntar como Victor planeja ter a atenção exclusiva do sr. Hamburg com tantas outras pessoas aqui, casais inclusive, competindo por ela.

Victor passa a mão livre pela minha cintura e nós andamos lentamente pela sala, fingindo conversar sobre os quadros e as estátuas. Ele aponta discretamente para isto ou aquilo e comenta detalhes das cores ou da emoção que a obra retrata. São todas observações inúteis e desinteressantes, que não merecem realmente nenhum comentário, na minha opinião, mas eu entro no jogo assim mesmo. Logo percebo que ele estava usando esse tempo para atravessar a sala sem parecermos perdidos nem precisando da companhia de alguém para nos fazer sentir mais entrosados.

— Preciso ir ao toalete — diz Victor, deixando sua taça de champanhe em uma mesa na entrada do corredor. — Você vai ficar bem sozinha?

— Claro — digo, com ar aborrecido. — Sou perfeitamente capaz de ficar sozinha.

Ele beija meus lábios e se afasta pelo corredor. Eu o observo até que ele vira a esquina no final. Sei que ele não está procurando o “toalete” e começo a ficar nervosa quando ele demora mais do que alguns minutos e eu continuo parada ali, sozinha. Espero não parecer precisar de ajuda para me enturmar.

Acabo recebendo-a mesmo assim.

— Sou Muriel Costas — diz uma mulher, se aproximando de mim com outra mulher e um jovem. — Nunca vi você por aqui.

— Izabel Seyfried — me apresento, tomando meu champanhe muito lentamente, mostrando à mulher que minha taça merece mais atenção do que ela. — E acho isso natural, já que nunca estive aqui antes.

Ela sorri, aproximando sua taça dos lábios pintados de rosa. Ela tem cabelo longo e preto caindo nos ombros e batendo logo abaixo de seus seios fartos. Seu decote é ressaltado pelo vestido cinza justinho. A mulher ao lado dela lhe lança um olhar, provavelmente se perguntando se a primeira deixará impune minha resposta atravessada. Retribuo o sorrisinho e dirijo a atenção para o jovem, que não deve ser muito mais velho do que eu.

Abro um sorriso tênue e sedutor para ele, só para deixar Muriel irritada, e ele percebe. Mas então seu olhar é desviado com submissão quando ela o encara.

— De onde vem? — pergunta ela.

— De onde vem o quê?

Ela e a outra mulher se entreolham com sorrisos leves, obviamente formando a mesma opinião a meu respeito.

— Seu dinheiro — diz Muriel, como se eu devesse conhecer o jargão.

Ela toma um gole de champanhe.

“Você é rica, embora ninguém precise saber de onde vem o seu dinheiro.”

Meu rosto todo escurece com um sorriso confiante.

— Só uma pessoa que se sente ameaçada faz esse tipo de pergunta — digo, e olho rapidamente para os outros dois para exibir discretamente meu controle da conversa. É aparente, para mim, que eles são vira-latas de Muriel Costas, e, dependendo de que mão oferece os melhores restos de comida, não são imunes a influências.

Victor reaparece no corredor.

O rosto de Muriel se ilumina quando o vê. Ela se apresenta imediatamente, oferecendo a mão para um beijo de praxe que eu sei que não tem nada a ver com praxe e tudo a ver com desafio. Victor aceita o gesto e olha nos olhos escuros dela ao se erguer de sua reverência discreta, que ele mantém um pouco mais do que eu gostaria. Mas Muriel está satisfeita e faz questão de me olhar bem nos olhos para que eu saiba disso.

Eles se apresentam e recomeçam o papo furado de festa. Mas em vez de mostrar um pingo de ciúme, já que sei que nada daria mais satisfação a Muriel, eu me afasto dos quatro com o queixo erguido e ar importante e acho um grupinho de homens só meu para confraternizar. Não sei ao certo se Victor aprova essa ação, mas não olho para trás para descobrir. Se eu fizesse isso, meu ciúme ficaria tão aparente quanto em uma demonstração escandalosa. E não é tão fácil Izabel Seyfried sentir ciúme. Ela revida.

Não ofereço a mão a esses três homens, apenas minha conversa encantadora e confiante, que eu jamais ofereceria a uma mulher. Eu não esperava que isso acontecesse, mas é nesse momento, quando assumo totalmente o controle das coisas, que percebo não só que entrei no papel mais do que julgava ser capaz, mas também que estou começando a dar a Izabel Seyfried seus próprios traços. Traços que Victor, tecnicamente, nunca me mandou dar a ela. Eu decido — porque parece o certo — fazê-la desprezar as mulheres um pouco em demasia e adorar os homens um pouco intensamente demais.

Afinal, se vou fazer o papel de outra pessoa, é melhor preencher todas as lacunas de sua personalidade e torná-la totalmente realística.

Durante minha conversa com esses homens, cujos nomes já esqueci, Victor entra no grupo. Sinto sua mão em meu antebraço, apertando-o com força.

— Você sabe que eu não gosto quando você se afasta de mim — diz ele.

Os homens não dizem nada, mas nos ouvem atentamente, como que intrigados pela exibição de Victor de dominação sobre mim.

Abro um sorrisinho.

— Eu sei que você não gosta — digo —, mas estava ficando... sufocada com sua bisavó ali.

Muriel fixa os olhos nos meus ao ouvir isso, e eu sorrio em resposta. Ela e seus mascotes se afastam na direção oposta, até outro grupinho.

Victor esmaga meu braço, fazendo o champanhe se agitar em minha taça.

O sorriso desdenhoso desaparece do meu rosto em um instante.

Ele se curva para meu ouvido e diz em voz baixa:

— Não suporto a ideia de fazer isso, Izabel, mas se for preciso, eu vou abandonar você. — Sua respiração dança por meu pescoço, deixando a pele arrepiada.

— Não vou mais fazer isso — digo, ofegante, virando o pescoço para que minha boca alcance a dele.

Fecho os olhos para beijá-lo e sinto seus lábios tão perto dos meus que quase posso saboreá-los, mas então ele se afasta. Os homens perto de nós estão assistindo a tudo, discretamente, quando volto a abrir os olhos.

Arthur Hamburg aparece na sala do chafariz com quatro homens de terno, e todas as atenções se voltam para ele.


CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Sarai

O homem parece ainda mais velho do que na foto. E mais gordo. Acredito que tenha 60 e poucos anos, estatura mediana, abaixo de 1,80 metro, e não menos do que 130 quilos, a maior parte na barriga e nas bochechas. Enquanto está na entrada da sala, com seus capangas ao redor, eu não vejo apenas um ancião obeso, vejo um homem mau que vai morrer esta noite. É tudo o que consigo pensar: ele vai morrer. E eu estarei lá para presenciar. De repente minhas entranhas se fecham, meu peito aperta, meu estômago dá um nó e sinto que não consigo respirar. Inspiro pelos lábios entreabertos e solto o ar bem devagar pelas narinas. Calma, Sarai. Fique calma.

Eu não pensei que fosse me afetar desse jeito saber o destino de um homem, praticamente controlar se ele vai viver ou morrer apenas por saber o que ele não sabe. Mas, apesar da ansiedade que sinto quando me dou conta da realidade da situação, não me arrependo de ter vindo. Posso não saber o que Arthur Hamburg fez para merecer a morte, mas confio nas palavras de Victor e sei que ele está longe de ser inocente, ou não estaríamos aqui.

Arthur Hamburg se dirige a seus convidados, agradecendo a todos nós por termos vindo esta noite, e continua falando e falando de coisas supérfluas, com todo mundo assentindo, concordando, sorrindo e opinando. E ele conta piadas das quais ri antes de todos, mas todos sempre riem também, porque seria grosseria não rir, é claro. Até eu me pego rindo um pouco de uma piada que todos parecem achar engraçada, mas que na verdade eu não acho.

Victor me põe diante de si, apertando minhas costas contra seu peito. Sua boca explora meus ombros nus, suas mãos estão em meus quadris. Mas a afeição é breve, apenas uma exibição, e sua atenção volta para Arthur Hamburg, quem eu noto que, nesse curto espaço de tempo, nos encontrou, e está nos fitando do outro lado da sala. Percebo a deliberação em seu olhar, a mudança repentina de sua expressão. Depois de mais alguns pronunciamentos, ele encerra a conversa e deixa todos se divertirem, como estavam fazendo antes que ele entrasse na sala.

Quando dou por mim, ele está vindo em nossa direção.


Victor

Arthur Hamburg aperta minha mão quando me apresento e apresento Izabel.

— Meu assistente disse que o senhor teve um problema em meu restaurante, noite passada.

Ele sabe muito bem que fomos nós dois. Viu tudo daquela sua sala particular, escutou nossas conversas à mesa pelo minúsculo microfone situado no arranjo de centro.

— Sim — digo, assentindo. — Desculpe dizer, mas acredito que uma mudança no modo como sua gerência contrata os funcionários é necessária.

Hamburg sorri para disfarçar o que está fazendo, na verdade: estudando a mim e Sarai, reparando em nós mais do que já fez no restaurante, imaginando-nos com ele em seu quarto. Ele está se lixando para o incidente no restaurante ou a possibilidade de ser processado. Isso não tem nada a ver com o convite para estarmos aqui.

— O senhor é de Los Angeles? — pergunta ele.

— Não — respondo, puxando Sarai para mais perto, com um braço em volta de sua cintura e a mão apoiada quase em sua virilha. Os olhos de Hamburg descem para minha mão ali. — De Estocolmo.

Ele parece intrigado.

— Não tem sotaque estrangeiro — diz ele.

Respondo em sueco:

— Sou fluente em sete idiomas. — Depois repito em inglês para que ele entenda.

Ele assente, com um sorriso impressionado. Então olha para Sarai.

— E você?

— De Nova York — respondo por ela.

Sarai fica quieta dessa vez.

Hamburg se vira para mim de novo e pergunta:

— Ela é sua...? — Ele vasculha a mente em busca da maneira mais prudente de fazer a pergunta.

— Minha propriedade? — digo por ele, mostrando que é perfeitamente aceitável falar sobre coisas que em outra situação seriam tabus. — Sim, ela é. E na maior parte do tempo, gosta disso.

Ele ergue uma sobrancelha espessa e grisalha.

— Na maior parte do tempo? — pergunta ele inquisidoramente. — E o que ela pensa no resto do tempo?

Ele olha para Sarai, com um sorrisinho nos cantos de seus lábios enrugados.

— No resto do tempo eu tenho vontade própria — diz Sarai como Izabel.

Suspiro e balanço a cabeça, passando os dedos por seu quadril.

— Sim, ela tem, admito — confirmo. — Prefiro mulheres que oferecem resistência.

— Então o senhor já seguiu o outro caminho, suponho? — pergunta Hamburg, e sei que ele está se referindo à submissão total, a possuir uma mulher que fará qualquer coisa que mandarem sem a menor expressão de desconforto ou recusa.

— Uma vez — respondo. — Estou satisfeito com Izabel, apesar de sua boca grande, às vezes.

Hamburg a examina mais de perto agora, e a mim também. Ele gosta de mulheres e de homens, afinal. E também gosta de mulheres que oferecem resistência, como Izabel. A única diferença é que as outras foram trazidas para cá contra a vontade.

De repente, Hamburg ergue o queixo orgulhosamente e diz:

— Gostaria muito de falar com o senhor em particular. Na minha suíte. Se estiver interessado em ofertas lucrativas. Está interessado em ofertas lucrativas, não está? — Ele sorri e molha os lábios rapidamente com a língua.

Penso a respeito um momento, mexendo com sua cabeça, demonstrando, só pelo olhar, que estou interessado, mas não desesperado.

— Estou disposto a ouvir a oferta, pelo menos — digo.

Seus olhos se iluminam. Ele se vira para o homem de terno ao seu lado, murmura algo em seu ouvido e volta a falar conosco enquanto o homem pega o elevador panorâmico até o último andar.

— Me acompanhem — diz Hamburg, e nós dois o seguimos até o elevador.

Hamburg nos conta da construção de sua mansão enquanto esperamos que o elevador panorâmico desça vazio. E tagarela sobre todo o dinheiro que gastou na casa, explicando discretamente que pode me pagar, seja qual for meu preço. Sinto Sarai ficando cada vez mais nervosa enquanto subimos até o último andar. Em um momento, ela agarra minha mão, e olho para seus dedos delicados presos nos meus. Aperto sua mão de leve, lembrando que estou aqui e que farei tudo o que puder para mantê-la a salvo. Eu a olho nos olhos, e no momento só o que vejo é Sarai me olhando também, a garota corajosa mas ansiosa e complicada que despertou tanto meu instinto protetor.

Vamos até um enorme corredor que dá para a entrada do quarto dele, intrincada e espalhafatosa como o resto da casa. Dois homens de terno montam guarda na porta. Cada um deles, como os que estão lá embaixo, carrega armas por baixo das roupas. Mas eu não. Desta vez, não. Porque sei que Sarai e eu seremos revistados antes que nos deixem entrar, e encontrar uma arma em qualquer um de nós, duas pessoas ricas mas, à parte isso, comuns que não têm motivo algum para portar armas de fogo, mudaria as conclusões iniciais de Hamburg sobre nós. Ele poderia se sentir ameaçado e mudar de ideia quanto a nos deixar entrar.

Paramos à porta e abro os braços para que um dos seguranças me reviste.

Sarai faz o mesmo, mas não fica tão quieta desta vez.

— Isso é realmente necessário? — pergunta ela entre dentes enquanto o outro segurança a revista.

— Desculpe, querida — diz Hamburg enquanto abre as portas da suíte —, mas é. Todo cuidado é pouco.

Quando os seguranças não encontram nada, abrem caminho, e, antes de fechar nós três dentro do quarto, Hamburg diz aos homens:

— Podem ir. Vou precisar de um pouco de privacidade por mais ou menos uma hora.

Os dois seguranças concordam, assentindo, e deixam seu posto na porta do quarto.


CAPÍTULO TRINTA E SEIS

Sarai

Assim que a enorme porta dupla se fecha atrás de nós, sinto meu coração afundando no estômago. Mas espanto a sensação e faço o melhor que posso para conservar minha fachada de Izabel Seyfried.

Enquanto deixo meu olhar percorrer o imenso quarto, fico surpresa com a rapidez com que Arthur Hamburg vai direto ao assunto:

— Direi o que desejo e darei ao senhor a oportunidade de determinar seu preço. — Ele indica a poltrona de couro mais próxima de Victor com um gesto.

Victor se senta, e sou deixada em pé ali, sozinha.

As máscaras caíram, agora que os dois estão a sós na privacidade do quarto. Arthur Hamburg não é mais o homem enjoativamente encantador que fingia ser lá fora, diante de todos. Não, é o canalha perverso e doentio que Victor foi enviado para matar. Ele não me vê mais como uma convidada em sua mansão, que merece uma taça de champanhe e respeito; sou apenas uma peça em seu jogo sexual, que não é mais digna de seu olhar ou de sua conversa. Somente Victor tem direito a tais luxos. É Victor que ele quer. Percebo isso agora. Mas há muito mais nisso do que eu sei. E não demora para que tudo se revele.

— O que o senhor quer? — pergunta Victor, calma e ardilosamente.

Ele se recosta na poltrona e apoia o tornozelo esquerdo no joelho direito.

Arthur Hamburg se senta na poltrona em frente, igual à de Victor, com um sorriso diabólico em seu semblante cruel.

— Gosto de assistir — diz ele. — Mas nada de merdas tipo papai e mamãe. — Ele faz uma pausa e acrescenta: — Você fode a garota, de vez em quando faz com ela o que eu pedir, e depois, se você topar, e por uma quantia extra, eu me ajoelho na sua frente.

Ele sorri e, pela primeira vez desde que entrei aqui, seus olhos passam por mim.

Enquanto tenho um ataque de ansiedade em segredo, Victor pondera por um momento, fingindo considerar a oferta.

Victor olha para mim.

— De jeito nenhum — digo, assim que percebo a deixa. — Ele é nojento, Victor. Não concordo com isso.

Victor fica de pé e me segura casualmente pelo cotovelo.

— Você vai fazer o que eu mandar — diz ele.

Balanço a cabeça de um lado para o outro, olhando para os dois, tentando não sair da personagem, mas achando isso cada vez mais difícil.

Eu consigo fazer isso, digo a mim mesma quando o palpitar forte do meu coração encobre a voz em minha cabeça. Victor não vai me machucar. De jeito nenhum. Preciso acreditar nisso.

Por que ele não mata esse porco agora e pronto? Não entendo...

Com meu cotovelo ainda preso em sua mão, Victor se vira para Arthur Hamburg e diz:

— Quinze mil. — E o rosto de Hamburg se ilumina. — E vou querer mais 15 para deixar você me chupar.

Sinto meus olhos se arregalando.

— Fechado.

— Não — digo, e tento desvencilhar meu braço, mas então Victor estreita os olhos para mim e eu cedo.

— Se curve sobre a mesa — diz Victor.

Quê?...

Ele olha para a pesada mesa quadrada de mármore à minha direita, movendo apenas os olhos.

— Agora, Izabel — exige ele.

Ai, meu Deus...

Hesitante, me aproximo da mesa e apoio a barriga e o peito ali. Já consigo sentir o ar do quarto alcançar o tecido da minha calcinha. Engulo em seco.

Victor se aproxima por trás e termina de levantar meu vestido curto, descobrindo minha bunda e dobrando-o nas minhas costas. Uma de suas mãos aperta minhas nádegas.

— Faça a garota chorar — diz Arthur Hamburg, da poltrona atrás de mim. — Tenho coisas que você pode usar se quiser.

— Consigo fazê-la chorar sem elas — diz Victor, puxando minha calcinha para baixo até os tornozelos. Eu suspiro, me sentindo desconfortavelmente exposta. — Mas ainda posso usá-las. Faz tempo que não a machuco de verdade.

Arthur Hamburg produz um som estranho que nunca ouvi antes.

— Ah, sim, eu gostaria muito de ver isso. — Ele bate palmas e acrescenta, com deleite macabro: — Ela é muito apertada? Eu tenho um taco de borracha.

Fico paralisada na mesa; seu comentário tira todo o ar dos meus pulmões.

Você está de brincadeira, caralho?

Estou pronta para matá-lo, agora. Ele poderia ser meu primeiro trabalho. Estou pronta!

Minhas mãos começam a tremer sob o peito.

Se mantenha na personagem, Sarai... haja o que houver.

Então, de repente, como se não estivéssemos mais no quarto com aquele tarado filho da puta, sinto os dedos de Victor deslizando para dentro de mim e fico instantaneamente molhada. Solto um gemido agudo, e o hálito quente que sai dos meus lábios cobre o mármore de umidade a centímetros do meu rosto. Vejo o borrão aparecer e desaparecer no ritmo da minha respiração ofegante.

— Abra as pernas — manda Victor.

De início não obedeço, mas quando ele enfia as mãos entre minhas coxas e as separa à força, me expondo completamente, não resisto, só me agarro à borda da mesa com as pontas dos dedos e endireito as costas.

Minha mente luta com o quanto tudo isso é errado. Sei que é errado e nojento porque aquele homem está sentado ali, vendo isso acontecer. Mas a outra parte de mim, a parte que está começando a bloquear totalmente a presença de Arthur Hamburg da minha mente, quer que Victor faça o que quiser comigo. Tento fechar os olhos e imaginar somente Victor no quarto, e funciona por um ou dois minutos, até que ouço a voz de Arthur Hamburg de novo.

— Sim, ela é bem rosadinha. Bem apertada — diz ele, e eu cerro os dentes.

Victor começa a ganhar tempo.

— Sabe — diz ele —, você podia me mostrar suas coisas. Vou meter um pouco nela antes, deixá-la mais aberta, e aí...

— Não precisa dizer mais nada — diz Arthur Hamburg, com um sorriso sádico na voz.

Eu o ouço se levantando da poltrona, e então seus sapatos caros estalam no chão quando ele passa. Vejo que sua calça já está aberta e sua camisa, solta sobre a barriga grotesca. Ele já estava se masturbando. Quando se aproxima do que parece um grande closet, ele para e se vira para Victor. Parece estar refletindo intensamente, até que diz:

— Tudo bem se eu deixar minha esposa assistir comigo?

Depois de uma pausa momentânea, Victor responde:

— Mais uma pessoa não estava no acordo. — Ele pensa um pouco. — Mas acho que tudo bem. Ela está lá embaixo?

— Ah, que bom — diz Arthur Hamburg, esfregando as mãos gorduchas. Ele se aproxima mais do closet, abrindo as duas portas enormes para revelar um espaço interno maior do que de um quarto normal. — Não, eu a guardo aqui.

Hã? Você a guarda aí?

Sentindo que isso chamou mais do que apenas a atenção de Victor, olho para cima quando ele se afasta de mim. Não tenho ideia do que ele vai fazer, não sei se devo ficar como estou ou me levantar e deixar o vestido cobrir novamente minha bunda, como eu gostaria. Resolvo esperar mais alguns minutos.

— Não fique chocado quando a vir — diz Arthur Hamburg. Ele parece estar digitando vários números em um teclado prateado na parede interior do closet. — De certa forma, minha Mary é como sua Izabel.

— É mesmo? — diz Victor, entrando no closet com ele.

Outra porta enorme se abre na parede interna do closet, revelando mais um quarto.

— Sim — continua Arthur Hamburg. — Embora seja muito mais submissa do que a sua.

Então ouço um thump alto e um bang quando os dois desaparecem em algum lugar do quarto secreto. Visto a calcinha às pressas e corro pelo quarto para ver o que está acontecendo, quase tropeçando por causa dos saltos.

— Victor!

— Entre aqui, Izabel, agora! — eu o ouço gritar, e, embora ele tenha me chamado de Izabel, sei, pelo tom de urgência em sua voz, que ele está falando comigo como Sarai.

Depois de passar pelas prateleiras altas do closet e entrar correndo no quarto secreto, fico chocada e confusa com o que vejo, incapaz de formar pensamentos, muito menos palavras. Victor está segurando Arthur Hamburg com a cara contra a parede e uma gravata apertada em volta do pescoço gordo. Seu rosto incha por cima do tecido que o estrangula, sua pele ficando vermelho-escura e roxa. Uma mulher está deitada em uma cama dobrável, perto da parede, usando uma camisola comprida de algodão branco, transparente, toda manchada de urina e sangue.

— No closet — diz Victor, pressionando o corpo contra o homem que esperneia — tem uma maleta no chão com uma arma dentro. Vá pegar.

Faço que sim rapidamente e volto correndo para o closet para procurar a maleta, encontrando-a em segundos. Tiro dali a arma e corro para o quarto.

Ele libera uma das mãos e eu lhe entrego a arma.

Victor encosta a arma na têmpora de Arthur Hamburg e solta seu corpo. O velho luta para respirar, fazendo sons engasgados e desesperados, tentando recuperar o controle da respiração. Então Victor o revista, procurando armas. Quando se convence de que ele não tem nenhuma, enfia a mão no bolso da calça, tira um par de luvas de borracha e o joga para mim, me mandando calçá-las.

Faço isso rapidamente.

— Bem, as coisas vão acontecer da seguinte forma — diz Victor para Arthur Hamburg. — Infelizmente, você vai viver. Se a escolha fosse minha, eu teria matado você noite passada, no restaurante, ou qualquer outra noite antes disso. Mas você vai viver.

O. Que. Está. Acontecendo? Minha mente não consegue assimilar essa reviravolta inesperada.

— Se não veio aqui me matar — diz Arthur Hamburg, com a voz tremendo de medo, mas como se estivesse se divertindo —, então que porra você quer aqui? Dinheiro? Tenho dinheiro aos montes. Dou quanto você quiser.

Victor empurra Arthur Hamburg para o chão e mantém a arma apontada para ele. O suor escorre do rosto e do pescoço do homem, empapando sua camisa social branca. Então Victor enfia a mão no bolso interno do paletó e me entrega um pequeno envelope amarelo.

— Abra — ordena ele.

Enquanto faço isso, Victor volta a olhar para Hamburg.

— A morte vai ser considerada um suicídio — diz Victor, e fico ainda mais confusa. — Ela deixou um bilhete assinado de próprio punho. Você só precisa esperar uma hora depois que sairmos para dar o alarme.

— Que merda você está dizendo?! — exclama Arthur Hamburg rispidamente, apesar da arma apontada para ele.

Não consigo mais decidir para quem olhar, o psicopata no chão ou a pobre mulher deitada no catre.

De repente ela me olha com olhos tristes, frágeis, atormentados, e um calafrio percorre meu corpo.

— Victor, a gente precisa ajudá-la. — Começo a me aproximar dela.

— Não — diz Victor. — Deixe-a ali.

— Mas...

— Tire o conteúdo do envelope — interrompe ele.

Tiro primeiro uma folha de papel dobrada, tentando sentir a textura através das luvas apertadas em minhas mãos.

— Leia — diz ele.

Cuidadosamente, eu a desdobro e olho para a bela caligrafia com floreios em tinta azul. E quando leio a carta em voz alta, começo a sentir náuseas e meu coração dói.

Meu adorado marido,

não posso mais fazer isso com você. Envergonhei minha família, nossos filhos, nós nos envergonhamos, Arthur. Eu não amo mais você. Não amo a mim mesma. Não amo ninguém, porque não consigo. Não sou capaz de sentir emoções verdadeiras há doze anos dos trinta que sou casada com você. Não posso mais viver assim. Tantas vezes eu quis procurar ajuda, talvez tomar remédios. Não sei, mas depois de tanto tempo, depois de anos querendo pedir ajuda, comecei a não me importar.

Lamento tanto que você tenha que me ver assim. Lamento tanto não poder ter pedido ajuda a você. Mas eu não queria ajuda. Eu só queria que acabasse.

E é isso que vou fazer.
Acabar com tudo.

Adeus, Arthur.

Atenciosamente,
Mary

O homem não consegue tirar os olhos da esposa. Seu queixo flácido vibra quando ele tenta conter as lágrimas. Mesmo assim, não sinto um pingo de remorso por ele. Não só porque ainda estou lutando para entender o motivo de isso acontecer, mas porque sei que ele é um psicopata e não merece remorso.

— Por que você está aqui? — pergunta ele, com voz rouca e trêmula.

Victor olha para mim.

— Me dê o cartão SD.

Tiro o minúsculo cartão do fundo do envelope e o coloco na mão livre de Victor. Ele o mostra a Arthur Hamburg, entre o polegar e indicador.

— Todas as informações deste cartão já foram transferidas para meu empregador. Os nomes da sua extensa lista de clientes, os locais das suas operações clandestinas, as provas em vídeo que sua querida esposa gravou, sem você nem desconfiar. Está tudo aí. — Ele joga o cartão SD no peito de Arthur Hamburg. — Se alguém me procurar ou procurar Izabel pela morte da sua esposa e ela não for considerada suicídio, todas essas informações serão passadas ao FBI. Devemos sair daqui ilesos e tão bem-tratados como quando entramos por aquela porta. Entendeu?

Estou tremendo, muito confusa, nervosa e insegura. Insegura sobre tudo.

Arthur Hamburg assente, com o suor ainda pingando de seu queixo e suas sobrancelhas.

A mulher estende a mão, mas depois a deixa cair. Duas seringas estão vazias perto de suas pernas. Ela está muito dopada. Corro os olhos pelo corpo dela, vendo que as juntas dos braços e dos tornozelos estão pontilhadas de marcas de agulha.

Não consigo mais me conter: corro até ela, totalmente determinada a ajudá-la. Mas Victor estende a mão e me agarra pelo braço, me segurando. Ele me olha ferozmente nos olhos, ainda apontando a arma para Arthur Hamburg.

— Ela é o alvo — diz ele, me puxando para mais perto. — Vá até o criado-mudo no quarto, ao lado da cama mais perto da janela. Tem outra arma na gaveta. Traga para cá.

Quero dizer que não, que não farei isso, mas minha resistência é apenas em pensamento. Obedeço porque parte de mim ainda confia em Victor, tanto quanto outra parte quer interromper esta situação, antes que vá longe demais.

— Está bem — digo, e corro de volta para o quarto.

Encontro a arma onde Victor disse que estaria, pego-a nervosamente pelo cabo e a carrego com cuidado de volta para o quarto secreto, como se estivesse morrendo de medo de que exploda em minhas mãos. Talvez seja porque sei o que ele vai fazer com ela. Parece mais pesada, mais mortal, mais ameaçadora do que qualquer arma que já segurei. Não senti isso nem com aquela que usei para matar Javier.

Sinto meu coração batendo nas solas dos pés.

— Agora troque comigo — diz Victor.

Ele está usando luvas pretas, agora.

Vou até ele, com as pernas bambas, e lhe entrego a arma. Pego a outra e tomo cuidado para mantê-la apontada para Arthur Hamburg. Mal consigo segurá-la. Eu me sinto como ao me esconder no carro de Victor, a arma tão pesada em minhas mãos que só quero largá-la e me livrar dela.

Victor olha para mim, seus olhos azul-esverdeados intensos e com alguma compaixão.

— Você confia em mim?

Faço que sim lentamente.

— S-sim. Confio em você.

— Tampe os ouvidos — instrui ele, e eu não hesito.

Sem mais uma palavra, ele vai até a esposa e se curva para a frente, levantando-a da cama para uma posição precariamente sentada. Seu corpo está tão fraco e desconjuntado que ela mal consegue se sustentar sozinha. Seus olhos se abrem e se fecham, de exaustão ou por causa das drogas, enquanto Victor põe a arma na mão dela, dobrando seus dedos no cabo e seu indicador no gatilho. Sinto que vou vomitar, mas a adrenalina não deixa.

Victor fica na frente dela, pressiona a arma sob seu queixo e puxa o gatilho com o dedo dela. Ouço o tiro reverberar pelo quarto de paredes espessas, mas meus olhos se fecham antes que eu veja o sangue.

Arthur Hamburg grita o nome da esposa e depois desaba no chão, seu corpo descomunal tremendo de emoção.

Victor fica ao meu lado em um ângulo que parece tentar evitar que eu veja a imagem sanguinolenta da esposa. É um gesto silencioso que acho inesperado e protetor.

— Você tem uma hora — diz Victor. — É melhor começar a pensar na sua versão da história.

— Vai se foder! Vai se foder! — grita Arthur Hamburg, lançando cuspe pela boca. Ele aponta friamente para nós, mal levantando o rosto do chão. — Vão se foder!

— Isso não ia acontecer mesmo — acrescenta Victor.

Então ele passa o braço por meu ombro e sai do quarto secreto, ainda me protegendo da visão o melhor que pode. Quero me afastar dele tempo suficiente para voltar correndo e chutar aquele canalha nojento na barriga com meus saltos, mas não posso, sabendo que a mulher está morta ali, a poucos metros dele. Não é a visão de seu corpo ensanguentado que torna tão pavoroso olhar para ela — já vi mortes demais para ser afetada por isso —, mas a sensação terrível de ela ser inocente e precisar de ajuda é que torna isso insuportável.

O que foi que Victor fez?


CAPÍTULO TRINTA E SETE

Victor

Seguro Sarai na porta da suíte e a viro para me encarar, com as mãos em seus braços. Eu a sacudo.

— Escute — digo, e ela ergue os olhos. — Você continua na personagem quando sairmos daqui. Aja como antes de tudo isso acontecer. Entendeu? — Eu a sacudo de novo.

Ela assente distraidamente e então respira fundo, engolindo o nó na garganta.

Saímos para o corredor e viro o trinco da porta da suíte antes de fechá-la. Nossa segurança para sair desta mansão e desta propriedade está, agora, toda nas mãos de Hamburg. Se ele decidir que quer nos ver mortos mais do que quer evitar ser preso e perder toda a sua fortuna, os próximos cinco minutos vão ser complicados. Eu tenho uma arma, a pistola da maleta do closet. Nove balas estão no pente. Não tenho certeza de que, com apenas nove balas, consigo derrubar os seguranças antes de eles atirarem. Se estivesse sozinho e não precisasse proteger Sarai, conseguiria.

— Cabeça erguida — murmuro rispidamente para Sarai, à minha direita.

Ela ergue o queixo e ponho a mão em sua cintura enquanto vamos casualmente para o elevador panorâmico. Os dois seguranças que estavam na porta do quarto de Hamburg não estão por perto, mas há um no final do corredor. Como os outros, usa um fone no ouvido. Passamos tranquilamente por ele; Sarai usa seu charme, dando um sorrisinho malicioso para ele. Encantado com ela, o homem sorri feito um idiota até que o elevador some abaixo do piso.

— Ah, aí estão vocês — diz Vince Shaw, o assistente de Hamburg, quando saímos do elevador no térreo. — Já vão embora? Deveriam ficar mais um pouco. Lucinda vai tocar para nós esta noite. — Ele mantém as mãos unidas à sua frente.

Sorrio e balanço a cabeça.

— Eu adoraria, mas tenho um voo amanhã cedo.

— Mas eu quero ficar — diz Sarai como Izabel, com a voz um pouco lamuriosa.

— Desta vez, não — digo. — Você sabe que sempre perco os voos de manhã se não durmo pelo menos seis horas na noite anterior.

— Por favor, Victor? — Ela encosta a cabeça no meu braço.

Eu ignoro por completo seus esforços artificiais e aperto a mão de Vince.

— Foi um prazer conhecê-lo — digo.

— Igualmente. Talvez possa aproveitar melhor a festa da próxima vez.

— Talvez.

Puxo Sarai comigo rumo à saída. Pouco antes de chegarmos à enorme porta dupla, ouço a voz de Hamburg ecoar pela mansão, vinda do parapeito do quarto andar, e ficamos imóveis.

— Victor Faust — chama ele por cima da multidão.

Sinto o coração de Sarai pulsando em sua mão quando ela aperta a minha.

Eu me afasto da porta e me aproximo da luz para vê-lo melhor. Ele se arrumou bem em tão pouco tempo; sua camisa está enfiada dentro da calça, e seu cabelo grisalho, antes empapado de suor, foi penteado para trás, provavelmente com os dedos em vez de uma escova.

Há um momento de silêncio tenso, embora dure poucos segundos no máximo. Acho que Sarai parou de respirar.

Hamburg sorri para nós, com as mãos apoiadas no parapeito.

— Espero vê-lo de novo — diz ele.

Faço que sim.

— Até lá — digo.

O porteiro abre um lado da porta dupla para sairmos da mansão. Nenhum de nós dois se sente seguro até atravessarmos o hectare de terreno e sermos liberados no portão, sem que ninguém nos pare ou atire em nós.

Dirijo pela cidade por meia hora antes de voltar para o hotel, para me certificar de que não estamos sendo seguidos. Sarai fica em silêncio o tempo todo, olhando o para-brisa. Ela parece traumatizada. Está duvidando de mim. Está lamentando sua decisão de tomar parte no que aconteceu.

— Sarai...

— O que foi aquilo? — grita ela, virando a cabeça de repente para me olhar. — Por que aquela mulher era o alvo? Ela era inofensiva, Victor. Precisava de ajuda! Era inocente! Não podia ser mais óbvio!

— Tem certeza disso? — pergunto, mantendo a expressão calma.

Sarai começa a gritar comigo de novo, mas para e baixa a cabeça.

— Talvez não — diz ela, agora em dúvida. — Mas ele a mantinha naquele quarto. Ela estava drogada. Indefesa. Prisioneira. Não entendo... — Ela olha o para-brisa de novo.

— Era o que parecia, sim — digo. — Mas Mary Hamburg merecia ser punida tanto quanto Arthur.

— Então quem encomendou o assassinato? — pergunta ela, olhando fixamente para mim. — Por que matá-la e não matar aquele cara?

— Mary Hamburg encomendou o próprio assassinato — digo, e os olhos de Sarai se enchem de descrença. — Os dois se envolveram em vários casos de estupro e assassinato, mortes acidentais causadas por asfixia erótica mas assassinatos mesmo assim, tudo acobertado por suas contas bancárias. Cultivaram esse estilo de vida durante a maior parte do casamento. Um ano atrás, Mary Hamburg, segundo o que ela disse, decidiu que não queria mais levar essa vida. Seus demônios começaram a atormentá-la. Quando falou com Arthur sobre pararem, procurarem ajuda e viverem decentemente, ele se revoltou contra ela. Para encurtar a história, ele a viciou em heroína e a mantinha trancada naquele quarto, para que ela não destruísse tudo o que tinham. Mas ele a amava. Daquele jeito doente, ele a amava. Acho que isso ficou óbvio em sua reação à morte dela.

Sarai balança a cabeça lentamente, tentando processar a verdade.

— Como você sabe tudo isso?

— Eu li o dossiê — digo. — Normalmente não leio, mas neste caso achei necessário.

— Porque eu estava com você — diz ela, e eu faço que sim. — Você sabia que eu faria perguntas.

— Sim.

Ela desvia o olhar.

— Como ele conseguiu manter a esposa fora de cena por tanto tempo? Alguém ia descobrir alguma coisa. Os filhos deles. A carta diz que eles tinham filhos.

— Sim, tinham — digo. — Dois, que moram em algum lugar da Europa e não querem nem saber dos pais. E Hamburg não mantinha Mary totalmente fora de cena. Ele alegava que ela estava à beira da morte. Câncer terminal. De vez em quando, sempre que uma aparição pública era necessária para afastar suspeitas, ele a arrumava, a drogava e colocava a esposa sentada a seu lado em uma cadeira de rodas, por não mais do que alguns minutos. Era o suficiente para que as pessoas vissem que Mary Hamburg parecia mesmo estar morrendo de câncer, por causa de seu peso e dos efeitos da heroína. Ninguém fazia perguntas.

Dispenso o manobrista, paro no estacionamento do nosso hotel e desligo o motor.

Ficamos sentados em silêncio por um momento, banhados pela fraca luz azulada das lâmpadas nas vigas de concreto acima de nós.

— Mas como ela encomendou o próprio assassinato? — Ela passa as mãos pelo cabelo. — Eu não...

— Poucas pessoas podiam entrar no quarto onde ela ficava escondida. Apenas criadas. Imigrantes ilegais. Elas tinham medo de serem deportadas e, provavelmente, também de morrer. Arthur Hamburg sabia que elas não falariam nada. Ao menos era o que ele pensava, porque foi uma das criadas que ajudou Mary Hamburg a encomendar o serviço.

— Ela deveria ter se matado — diz Sarai. — Se fosse eu, não me daria esse trabalho todo.

— Você teria feito o mesmo se não tivesse coragem de se matar. Existem muitas pessoas assim, Sarai. Prontas para morrer, mas com medo de se matar.

Ela não responde.

— Você acha que eles vão vir atrás da gente? — pergunta ela.

Abro a porta do meu lado, saio e dou a volta, abrindo a dela.

— Imediatamente, não. Ele teria feito isso antes que saíssemos de lá, se tivesse a intenção. — Estendo a mão para ela. Seguro seus dedos e ajudo-a a sair do carro.

Depois de fechar a porta, acrescento:

— Hamburg tem muito a perder. Mas isso não quer dizer que não bolará algum plano para se vingar de mim, de alguma forma que ele ache que não será associada a esta missão.

— Ou de mim — diz ela, e me olha desesperada. — Ele pode se vingar de mim.

Aperto duas vezes o alarme do chaveiro e o carro emite um bipe que ecoa pelo estacionamento.

Desta vez, eu não respondo.

Ando com ela até o elevador e nosso quarto, no último andar. Não penso muito em Arthur e Mary Hamburg, ou no que aconteceu esta noite. Penso sobretudo em Sarai e no que ela enfrentou comigo. Ela não morreu, mas sinto que morreu mais uma parte sua. E isso é cem por cento culpa minha. Eu sabia que não deveria tê-la levado. Tenho plena consciência dos meus atos e de como são indesculpáveis. Aceitei isso assim que Sarai não desistiu, na última chance que lhe dei. Deveria ter sido eu, naquele momento, a impedir que ela tivesse mais alguma coisa a ver com isso.

Eu escolhi outro caminho.

E não me arrependo.

Há mais coisas que Sarai e eu precisamos discutir, e espero que o modo como a toquei na suíte de Hamburg seja uma das primeiras. Eu me preparo para isso, mas, quando entramos no quarto, ela joga os sapatos de salto longe e me deixa atordoado quando diz:

— Quero matá-lo. — Ela se senta no pé da cama e vira a cabeça para me olhar, com uma determinação inabalável no semblante. — Aquele homem precisa morrer, Victor. Precisa pagar pelo que fez. Precisa pagar com a vida. Como ela pagou.

Aí está a prova. Sarai tem sangue de assassina; não há mais como negar. Sei que não fui eu que a deixei assim. Foi a vida, não eu. Mas sei que fui eu que tirei o véu de seus olhos, no fim das contas, e a fiz enxergar isso.

— É só uma questão de tempo até que o assassinato dele também seja encomendado — digo.

Tiro o paletó e a gravata, deixando-os nas costas de uma cadeira.

— A gente devia ter feito isso quando teve a chance — diz ela.

Abro os botões da camisa, olho para Sarai sentada ali, fitando a parede, e me pergunto de que maneira ela está considerando matar Hamburg. É algo sangrento. Vingativo. Tenho certeza disso.

Deixo a camisa na cadeira com o paletó e vou até ela, tirando os sapatos no caminho.

— Se tivéssemos feito isso esta noite — digo, me sentando no pé da cama ao lado dela —, não teríamos saído de lá vivos. Não fazia parte da missão. Cada missão tem que ser planejada com precisão. Se você se desvia de qualquer parte dela, suas chances de se expor ou de morrer triplicam.

Ficamos sentados em silêncio, ambos olhando para a frente, ambos perdidos em pensamentos. Eu me pergunto se os dela são sobre mim. Não consigo evitar que os meus sejam sobre ela.


CAPÍTULO TRINTA E OITO

Sarai

Não quero que Victor me deixe nunca. Eu não conseguia suportar essa ideia antes, mas agora... agora as coisas são muito diferentes. Nossas almas se tornaram íntimas, quer ele esteja disposto a admitir isso para si mesmo, quer não. Somos um só, e não quero imaginar ficar sem ele. Nunca.

— Sarai, sinto muito pelo que fiz.

Olho para ele. Sei a que se refere, mas ainda não tenho certeza de como responder.

— Espero que acredite quando digo que não tirei nenhum proveito. Foi só teatro. Espero que entenda.

Acredito nele. Sei que eu não conseguiria olhar uma pessoa normal nos olhos e contar o que aconteceu sem que ela pensasse que perdi o juízo ou que estou sofrendo da Síndrome de Estocolmo. Mas Victor poderia ter se aproveitado de mim muitas vezes. Poderia ter me estuprado. Poderia ter cedido nas poucas vezes que demonstrei minha atração por ele. Mas nunca fez isso e sempre me repeliu. Até algumas noites atrás, quando me enfiei na cama dele. Ele não me repeliu então, mas sei, no fundo, que estava até mais em sintonia com a raiva que eu sentia naquele momento do que eu.

Sem olhá-lo, pergunto em voz baixa:

— Se ele não tivesse aberto o quarto secreto a tempo... você ia me comer?

Noto que ele me olha, mas não retribuo o olhar.

— Não — responde ele em voz baixa, como eu. Ele suspira. — Sarai, eu não podia obrigá-lo a abrir a porta do quarto. Ele poderia ter digitado algum código de pânico e alertado os seguranças, ou...

Olho para ele, finalmente, bem nos olhos.

— Mas você ia querer?

Ele fica em silêncio. Vejo o conflito em seu rosto.

— Não ali — diz ele. — Não daquele jeito.

Tiro o vestido pela cabeça e o jogo no chão.

— E agora, pode ser? — pergunto.

Ele não responde, mas já aprendi, a essa altura, que a única maneira de conseguir o que quero dele é não desistir.

Eu me levanto da cama e fico de pé no meio de suas pernas. Suas mãos sobem lentamente pelas minhas coxas e ele passa os dedos pelo elástico da minha calcinha. Seus lábios tocam minha barriga, roçando a pele com a ponta da língua entre minhas costelas, tão suavemente que meu corpo todo fica arrepiado. Eu passo os dedos por seu cabelo enquanto ele desce a calcinha até meus pés.

Então monto no colo dele.

Eu o beijo delicadamente e sussurro mais uma vez:

— Pode ser, Victor Faust? Se é que esse é o seu nome. — Eu toco o lado de seu rosto com o queixo.

— Somente com uma condição — murmura ele, febrilmente, em minha boca.

— Que condição?

Ele beija meus lábios devagar.

— Que eu fique no controle desta vez.

Abro a boca perto da dele, provocando-o com um beijo que quero que ele tome de mim, meus dedos segurando suavemente seu queixo. Ele me olha nos olhos por um momento, lendo meus pensamentos. E então seus braços se fecham possessivamente ao redor do meu corpo, me apertando contra o dele. Seu beijo é faminto, seus dedos fortes afundam na pele das minhas costas e posso sentir a rigidez de seu pau tão distintamente através do tecido da calça que me faz tremer. Meus lábios se abrem e meu corpo todo estremece só de senti-lo ali, querendo-o dentro de mim mais do que acho que jamais quis qualquer coisa na vida.

Ele mergulha a mão pela minha nuca, forçando minha cabeça para trás e expondo meu pescoço à sua frente. Beija minha garganta, sobe em uma linha reta perfeita até encontrar minha boca de novo e prende meu lábio inferior entre os dentes.

Sinto dois de seus dedos me penetrando por baixo.

Eu gemo, com a cabeça ainda forçada para trás em suas mãos, e pressiono delicadamente meu quadril contra seus dedos.

— Quero você dentro de mim — digo, sem fôlego.

Porra, eu não aguento mais.

Com os lábios nos dele, nossas línguas quentes entrelaçadas, mexo no botão de sua calça e puxo o zíper para baixo.

Ele vira o corpo e me joga na cama, ficando por cima, e não interrompe o beijo enquanto tira a calça com uma das mãos. E quando sinto o calor de seu corpo nu, eu o envolvo com as pernas, apertando-o com as coxas, puxando-o em minha direção para sentir seu pau ereto contra minha umidade. Sua boca procura meu pescoço e meu peito até que seus dentes acham meus mamilos, e ele os morde com força o suficiente apenas para me fazer gemer.

— Isso vai contra tudo o que sou, Sarai — diz ele, e então me beija.

— Não, não vai — murmuro, retribuindo os beijos. — É você virando mais você mesmo.

Então ele desliza o pau para dentro de mim, devagar. Eu já mal consigo manter os olhos abertos. Minhas pernas tremem e meu corpo estremece com pequenos espasmos que explodem e se infiltram em minhas entranhas. Gemo alto e levanto os quadris para forçá-lo a meter mais fundo.

Nunca imaginei que sexo pudesse ser assim, que o modo como meu corpo está reagindo ao dele pudesse ser assim.

Ele ergue o corpo de cima do meu, ainda de joelhos entre minhas pernas, e agarra minhas coxas com força, me puxando para perto. Ele me fode devagar a princípio, tão devagar que me deixa louca. A cada arremetida, vai mais fundo, até que minhas coxas estão tremendo e não consigo mais mantê-las firmes ao redor de seu corpo. Minha nuca se arqueia no travesseiro e eu gemo, grito e cravo os dedos na carne de seus quadris. Ele começa a me foder mais forte e agarro o travesseiro antes de apertar as mãos na cabeceira, me forçando contra ele, sentindo seu pau crescendo dentro de mim.

Ele desaba em mim de novo e eu sinto sua boca úmida em meus seios. Em minha garganta. Em meus lábios. Seu peito arfa com a respiração ofegante, e sinto seu coração batendo contra o meu. Ele começa a diminuir o ritmo, e, enquanto me fode devagar, com um beijo profundo, quente e faminto, enfia uma das mãos entre minhas pernas e toca meu clitóris de um jeito firme e persistente. Afundo os dedos no cabelo dele, puxando-o com força, gemendo em sua boca, saboreando sua língua.

Tão sintonizados um com o outro, gozamos juntos. Ele sai de mim para gozar fora, mas não para de mover os dedos até que meu corpo trêmulo finalmente relaxe e minhas pernas bambas se dissolvam em geleia envolvendo as dele.

Ele deita a cabeça suada em meus seios e eu passo os dedos por seu cabelo. Ficamos assim boa parte da noite, em silêncio e pensando.

E eu só consigo pensar em como nunca mais quero sair deste quarto.

~~~

Estou deitada, embrulhada nos lençóis com Victor. As cortinas da janela estão totalmente abertas, e olho através do quarto para o céu azul-escuro, fracamente iluminado pelas luzes da cidade lá embaixo. Victor adormeceu algum tempo depois de fazer amor comigo. Fazer amor? Não sei ao certo se entendo o verdadeiro significado dessa expressão. Não acho que essa coisa entre nós seja amor, ou mesmo desejo. É algo diferente, algo poderoso e inconfundível que nenhum de nós dois conseguiu ignorar. Mas não tem um rosto. Nem um nome. Talvez ele não tenha feito amor comigo, mas tampouco me fodeu.

Foi, definitivamente, outra coisa.

Ouço seu coração batendo calmamente sob minha bochecha. Sinto sua respiração suave em meu cabelo. Seu corpo é muito quentinho, quase febril, quando estou aninhada em seus braços. Seu cheiro natural é tênue, mas reconfortante, e me atrai para ele como uma abelha para o néctar.

— Para onde vou agora? — Sussurro meus pensamentos em voz alta e me enrosco mais nele quando não obtenho uma resposta.

— Vamos pensar em algo — diz Victor, e seu braço me aperta delicadamente.

Eu não fazia ideia de que ele estava acordado. Levanto a cabeça de seu peito e me deito em seu braço, para poder olhá-lo no rosto.

— Você não vai embora?

É um tiro no escuro, mas estou esperançosa.

Um segundo de silêncio, e seu peito nu sobe e desce com a respiração profunda e regular.

— Sarai, você sabe que não posso levá-la comigo — diz ele, e meu coração afunda. — Isso não é realista. Minha vida está na Ordem. Sempre esteve. Não seria como acordar um dia e decidir que odeio meu emprego e quero encontrar algo melhor. Se eu resolvesse deixar a Ordem, porque é exatamente isso que eu teria que fazer, o próximo assassinato a ser encomendado seria o meu. E o seu.

Quero chorar, mas não choro.

Volto a deitar a cabeça em seu peito, desanimada demais para encará-lo. Olho para o quarto espaçoso, os dedos apoiados em seu peito.

— Acho que a única coisa que posso fazer é deixar você viver sua vida...

— Mas...

Ele me abraça de novo.

— Deixar você viver sua vida — continua ele —, mas vou visitá-la de vez em quando. Para ver se você está bem, se está a salvo e se tem tudo de que precisa.

Não estou satisfeita com isso, mas também sei que é só o que vou conseguir dele. E é melhor do que nada. Ele está certo, e não posso negar. Quero estar com ele sempre, de qualquer maneira que ele se permitir me ter, mas não posso esperar que ele arrisque nossa vida para que isso aconteça.

Preciso deixá-lo ir...

— Isto é, se você quiser que eu a visite — diz ele.

Detecto uma mudança no clima para algo mais leve. Acho isso estranho, vindo dele. Eu me levanto, me apoiando em um braço para olhá-lo.

Ele está sorrindo. Não apenas com os olhos, mas com os lábios também. Eu o acho tão lindo! Tão perigosamente lindo!

Entro no clima e bato de brincadeira no quadril dele com a mão livre, rindo baixinho.

— É claro que eu quero — digo.

Então ele segura meu pulso e me tira cuidadosamente de cima de seu peito. Passa a ponta dos dedos em um lado do meu rosto e depois no outro, o tempo todo me olhando nos olhos, mas vendo além deles. Eu me pergunto o que ele procura em suas profundezas. Seja o que for, espero que nunca encontre, para que possamos continuar assim para sempre.

Ele coloca as mãos no meu rosto e puxa meus lábios para os dele.

— O que você fez comigo? — pergunta ele.

— Eu ia perguntar a mesma coisa.

Mordisco seu lábio inferior. Ele pressiona o pau em mim de leve.

— Parece que criamos um probleminha — diz ele, empurrando com mais força.

Eu faço o mesmo. Gemo baixinho, sentindo calafrios e calor se espalhando por minha pele.

Ele me beija, mas então afasta um pouco a boca da minha, me provocando. Eu levanto o corpo, apertando os seios contra seu peito, querendo saborear sua boca, mas ele cede apenas um pouquinho. Ele pressiona o quadril de novo, mantendo o pau contra mim, apertando minha bunda com suas mãos firmes. Ele está muito duro. Eu o quero. Minha boca fica entreaberta e meu hálito escapa dos lábios.

— Quer que eu coma você? — murmura ele. — É isso que você quer?

Gemo alto com suas palavras ao meu ouvido. Não consigo responder. Não consigo pensar direito.

— Você quer, Sarai? — insiste ele, o calor de seu hálito dançando em meus lábios abertos.

Eu forço meu quadril contra o dele, tentando me posicionar sob seu pau de modo que ele entre sem que precisemos usar as mãos.

— Sim — gemo. — Me fode como você ia foder a Izabel.

— Tem certeza?

— Sim...

Não consigo respirar.

— Repete... Izabel.

Meus olhos se abrem pesadamente e eu o encaro. Respiro, arfante, pela boca. Victor toca os lábios nos meus.

Antes que eu possa responder, ele se senta na cama, me mantendo no colo. A ponta de sua língua percorre minha clavícula. Meus seios estão esmagados nas mãos dele.

— Diga, Izabel — exige ele, passando a língua em um mamilo meu. — Diga que quer que eu foda você.

— Eu quero que você me coma.

Ele prende o cabelo da minha nuca em sua mão e se levanta da cama, com minhas pernas em volta de seu quadril escultural.

Ele me carrega até a mesa perto da janela e me força a ficar curvada sobre ela, de barriga para baixo. Meus braços se estendem à frente, derrubando seu celular e sua arma no chão. Minhas mãos agarram a borda arredondada da mesa. Seus dedos afundam em meus quadris quando ele puxa meu corpo para trás, para perto de si. Ele aperta minha bunda. Com força. Eu inspiro rapidamente quando sinto suas mãos entre minhas pernas, me abrindo para ele. O calor do seu corpo rijo me engole quando ele se deita nas minhas costas, passando a ponta da língua por minha nuca. Sinto seu pau bem ali, esperando por mim, e tento me forçar para trás, na direção dele, mas sua mão segura minha nuca, pressionando minha bochecha contra o tampo da mesa.

— Por favor, Victor — digo ofegante, todo o meu corpo se abrindo para ele.

Grito e gemo alto quando ele me penetra, meus dentes se fechando em seu dedo indicador, enquanto sua mão aperta suavemente o lado do meu rosto.

Não, eu nunca imaginei que sexo pudesse ser assim...


CAPÍTULO TRINTA E NOVE

Sarai

Dormimos demais na manhã seguinte e somos acordados pela arrumadeira batendo na porta do quarto. Acho que ele não estava mentindo, na mansão de Hamburg, quando disse que sempre perde voos de manhã se não dorme o suficiente na noite anterior. Ou talvez tenha sido só culpa minha. Acho que baguncei totalmente sua rotina.

Victor se levanta, e não posso deixar de admirar sua forma nua, antes que ele se vista rapidamente. Ele abre a porta para avisar à arrumadeira que vamos sair tarde e que ela não volte por pelo menos uma hora. Eu não quero ir a lugar nenhum. Depois da noite passada, só quero...

— Se prepare para sair — diz ele, voltando para dentro do quarto. — Vou levar você para ficar com uma mulher que conheço em San Diego. Você vai ficar segura lá até eu organizar o resto, instalar você em um lugar só seu. Mas agora preciso ligar para Niklas, para contar da noite passada. E tenho certeza de que em breve viajarei para a Alemanha para me encontrar com meu empregador.

Eu só quero falar sobre a noite passada, ou repetir a noite passada agora mesmo.

— Isso não me parece bom — digo ao sair da cama. Tive uma sensação ruim quando ele falou de se encontrar com seu empregador.

Ele calça os sapatos e deixa as bolsas ao pé da cama.

— É, geralmente não é bom mesmo — diz ele, remexendo na bolsa. — Estas últimas duas missões levantaram muitas questões sobre mim e minha capacidade de executá-las conforme as ordens. Vou ter que me encontrar cara a cara com ele para dar uma explicação mais detalhada do que aconteceu e por que foi do jeito que foi.

— O que vai dizer sobre mim? Você acha que ele sabe que ainda estou viva?

Ele pega um punhado de balas e começa a carregar sua 9mm.

— Vou pensar nisso no caminho.

Isso também me dá uma sensação ruim.

— Tudo bem, e quem é essa mulher em San Diego? — Olho para ele agora, desconfiada. — Não é alguém que você...?

— Não — diz ele, escondendo a arma na parte de trás da calça. — Ela não tem nada a ver com a Ordem e não sabe nada sobre o que eu faço. É só uma amiga. Conheci essa mulher e o marido dela em uma missão, há cinco anos. É uma longa história, mas não, não é nada assim.

— E o marido dela?

Ele me olha mais uma vez.

— Não está mais lá — diz Victor.

— Por que não? Ele morreu? Eles são velhos?

Não consigo deixar de fazer todas essas perguntas; quero saber todo o possível sobre o lugar para onde ele vai me levar.

Victor faz uma pausa e então diz:

— Sim, ele morreu. Ele era meu alvo.

— Ah...

Não me sinto tão confiante quanto a ir para lá, agora.

— Você vai ficar bem — diz Victor, notando a preocupação em meu rosto. — Ela não sabe que fui eu.

Ele se aproxima de mim e põe as mãos em meus ombros.

— Vou descer para a recepção, pagar pelo quarto e ligar para Niklas. — Ele se curva e me beija na testa. — Sem pressa. Volto daqui a uns minutos e saímos.

Faço que sim, olhando-o nos olhos.

— Tudo bem.

Victor sai do quarto. Pego um vestido mais informal desta vez, uma calcinha limpa e vou para o chuveiro.


Victor

Niklas está furioso comigo. Consigo ouvir isso em sua voz, embora esteja se esforçando para não ser óbvio, o que já é pouco característico dele.

— Você disse que faria contato comigo assim que a missão acabasse — diz Niklas pelo telefone. — Se ela foi cumprida ontem à noite, como planejado, então por que só está me ligando agora, meio dia depois?

Solto o ar pelo nariz.

— Aceite isso pelo que é, Niklas — digo, ficando tão irritado com ele quanto ele está comigo. — Você precisa parar de se preocupar tanto comigo.

— Eu sou seu contato — dispara ele.

— Sim, mas esse seu lado que se tornou tão dolorosamente meticuloso sobre como eu escolho fazer as coisas é meu irmão. Talvez você devesse se reaproximar do seu lado contato, assim ambos poderemos voltar a ter um relacionamento mais simples, estritamente profissional.

— Entendi — diz ele. — Você não precisa mais de um irmão, agora que tem aquela garota. Obviamente, ela ainda está viva.

Eu deveria ter previsto isso, mas não previ.

— Você não foi substituído, muito menos por uma mulher — digo.

Talvez Sarai não tenha substituído meu irmão, mas ela se tornou algo muito maior para mim, e eu não consigo explicar. Nem para mim mesmo, e certamente não para Niklas.

— Tenho novas ordens — anuncia Niklas, abandonando o assunto desagradável. — São de última hora, mas acho que é melhor executá-las antes de ir para a Alemanha encontrar Vonnegut. Não lhe dê mais motivos para duvidar de suas habilidades.

— É uma missão?

— Vai ser — diz ele. — A pessoa está aí em Los Angeles e quer se encontrar com você.

— Isso não é padrão — digo. — Primeiro Javier Ruiz, agora esse aí quer se encontrar cara a cara?

Prefiro lidar apenas com Vonnegut e nunca me encontrar pessoalmente com os clientes, mas, infelizmente, às vezes é preciso correr riscos maiores.

— Ela é uma mulher muito meticulosa — diz Niklas.

— Quais as ordens?

— Encontre-a na frente do número 639 da South Spring Street. Ela estará de blusa branca, com um broche prateado em forma de borboleta no seio esquerdo. Estará lá à uma e meia da tarde.

— Isso é daqui a menos de uma hora — digo, olhando para o relógio na parede do saguão.

Baixo a voz para um sussurro quando um hóspede do hotel passa.

— Você tem tempo mais do que suficiente para chegar lá do hotel — diz ele. — E, por favor, desta vez entre em contato comigo assim que a reunião acabar.

Suspiro silenciosamente.

— Pode deixar — digo, e desligo o telefone.

Depois de pagar mais uma diária do quarto, já que pelo visto ficaremos aqui mais do que uma hora, subo pelo elevador para informar Sarai de nossa pequena mudança de planos. Depois saio, deixando-a no quarto para ir me encontrar com a cliente. Dirijo até o local, chegando alguns minutos antes, e estaciono em um terreno baldio a alguns metros de onde vou encontrá-la.

Fico dentro do carro e espero.

E, na verdade, só consigo pensar em Sarai.


Sarai

Nunca estive em San Diego. Tecnicamente, esta é minha primeira vez na Califórnia. Eu me pergunto como será essa mulher, o que ela sabe, como ela e Victor ficaram amigos. Tenho muitas perguntas, como sempre, e não vou permitir que Victor me deixe sem as respostas no caminho até lá.

Passo a mão no espelho do banheiro, abrindo uma faixa na umidade que embaça o vidro. E sorrio para meu reflexo. Pela primeira vez desde que conheci Victor, estou começando a me sentir contente, aliviada pela perspectiva de futuro. Porque antes eu só conseguia ver trevas, um vazio sem começo nem fim, apenas incertezas. Mas agora tenho algo pelo que esperar. Tenho um propósito. E não vou desperdiçar um só segundo.

Enxugo o cabelo, espremendo-o com uma toalha, e depois a prendo precariamente na nuca. Depois de me enxugar e me vestir, vou para o quarto, e estou para ligar a TV quando alguém bate na porta. Olho para o relógio ao lado da cama.

Ainda não passou uma hora.

Deixo o controle remoto na cama e vou até a porta para atender, mas quando ponho a mão na maçaneta, a voz do outro lado me imobiliza:

— Sou eu, Niklas. Victor mandou vir buscar você.

Meus dedos soltam a maçaneta muito lentamente. Dou um passo para longe da porta.

Ele bate de leve mais uma vez.

— Você está aí? Sarai? Anda, me deixa entrar. Sei que você me despreza, e, sinceramente, eu preferia estar tomando cerveja em algum barzinho, mas Victor precisava da minha ajuda.

Ele está mentindo. Victor me avisaria se tivesse mandado Niklas para cá. Teria me contado antes de sair ou teria ligado.

Olho para o telefone perto da cama. Talvez ele tenha ligado enquanto eu estava tomando banho.

Dou mais um passo para longe da porta, meus instintos me puxando para trás como uma dúzia de mãos estendidas. Mais uma série de batidas, depois silêncio. Fico no meio do quarto, perfeitamente imóvel, perfeitamente em silêncio. O único som que ouço é um zumbido fraco vindo de uma lâmpada. Ando rapidamente pelo quarto, encosto o rosto na porta e tento espiar pelo olho mágico. A parte do corredor que consigo ver está vazia. Ele foi embora. Mas, se foi mesmo, por que ainda tenho tanto medo de que ele esteja lá fora, escondido, esperando que eu saia para olhar? Aperto o rosto de lado no olho mágico, tentando ver melhor à direita e à esquerda. Então ouço vozes e vejo uma sombra se movendo na parede. Meu coração acelera e eu prendo a respiração até que dois homens passem. Solto o ar devagar e profundamente.

Mas o alívio dura pouco, pois vejo Niklas de novo.

Dou um salto para trás, me afastando rapidamente da porta, e vasculho a bolsa de Victor, procurando a arma de Arthur Hamburg. Victor a deixou para mim. Só por precaução. Mas sinto que ele a deixou como precaução contra Arthur Hamburg. Não contra seu irmão.

Não há nenhum esconderijo neste lugar. Absolutamente nenhum espaço onde Niklas não possa me encontrar em menos de um minuto.

Inspiro rapidamente ao ouvir o barulho de um cartão sendo passado na fechadura eletrônica e destrancando-a. Ele deve ter pego a chave-mestra da arrumadeira. Em meio segundo, e tarde demais para que eu perceba e conserte meu erro, vejo que a corrente da porta ainda está destrancada. Corro até lá, no fundo sabendo que não chegarei a tempo de prender a corrente no lugar antes que Niklas esteja dentro do quarto. E quando a porta se abre, caio contra a parede atrás dela, segurando a arma com as duas mãos contra o peito, o coração bombeando sangue tão rápido pelas veias que o canto do olho treme e sinto a jugular latejando.

A porta se fecha e se tranca automaticamente, e Niklas e eu ficamos frente a frente, cada um apontando sua arma para o outro.

— Ah, aí está você — diz ele, com aquele olhar fulminante que mostra o quanto me odeia.

Mantenho o dedo no gatilho e, embora esteja tremendo, consigo manter a arma firme e apontada para a cabeça dele.

— Eu vou matar você — aviso.

— Sim, eu sei — diz ele, emanando muito mais autoconfiança do que eu. — Afinal, foi você que atirou em Javier Ruiz. — Ele suspira dramaticamente e balança a cabeça. — Sarai, quero que você saiba que isto não me dá prazer, matar mulheres inocentes. Eu nunca quis matar ou machucar você, aliás, mas o que você fez com meu irmão... bem, não posso admitir isso.

Mantenho a arma apontada para ele e o dedo firme no gatilho e começo a me afastar da porta. Ele se move comigo.

— Que lhe importa o que Victor faz com a vida pessoal dele?

Ele inclina a cabeça.

— Victor não tem vida pessoal. Nenhum de nós pode ter. É como água e óleo. Você já deve saber, a essa altura.

— Ele vai me levar para algum lugar hoje — digo rapidamente, perdendo qualquer autoconfiança que eu tinha, que já não era muita. — Vai se livrar de mim. Já me falou que não posso ficar com ele. Por que você não pode deixar as coisas assim? Ele vai fazer o que você quer.

— Não é o que eu quero, Sarai. — Conseguimos ir para bem longe da porta, e estamos no meio do quarto agora. — Eu só estou tentando protegê-lo. Ele é meu irmão, caralho! — Sua fúria repentina me faz tremer. Noto que seu dedo no gatilho se agita.

— Niklas, por favor, me deixe ir embora. Você tem razão e eu sei. Já sei há algum tempo que só estou dificultando as coisas para Victor.

— Ele vai morrer por sua causa! — grita Niklas, forçando as palavras por entre os dentes, a arma na minha direção. — Mesmo se ele a deixar hoje, mesmo se ele nunca mais vir você, porra, mesmo se ele matar você, o que já aconteceu é suficiente para a Ordem mandar matá-lo! Você não entende? — Seu rosto está vermelho de raiva; sua expressão, distorcida pela dor. — Eles vão matá-lo! Se for para a Alemanha, ele está morto, Sarai. Ele lhe contou isso? Aposto que não contou.

Não quero acreditar nisso. Balanço a cabeça e quase perco a concentração, apertando a arma com mais força.

— Você não tem como saber isso — digo, mas no fundo acredito nele. — Se é verdade, então por que ele vai?

Um sorriso irônico curva o canto da boca de Niklas. Ele cerra os dentes por trás dos lábios fechados.

— Porque Victor é teimoso — diz ele. — E confia um pouco demais em Vonnegut. Victor sempre foi o Número Um dele, sempre foi o melhor. Ele é melhor no que faz do que todos os comandados de Vonnegut que vieram antes, e ainda é o melhor. Mas ser o melhor não o torna imune ao Código. Ele já fez tanta merda desde que se envolveu com você que não haverá justificativa.

— Então me deixe falar com ele...

— Você já fez o suficiente! — ruge ele.


CAPÍTULO QUARENTA

Victor

A cliente está atrasada. Cinco minutos, mas até um minuto, para alguém que Niklas descreveu como “meticulosa”, não me cheira bem. Mais dois minutos e vou embora.

Observo pessoas andando na rua e as analiso, das roupas que usam até a posição da cabeça quando falam com quem está andando ao seu lado. São realmente apenas turistas ou residentes? Ou são iscas? Espiões? Cuidado nunca é demais. Isto pode ser uma cilada, como qualquer outra missão, mas as missões como esta causam um nó de incerteza na boca do meu estômago...

Espere...

Relembro a conversa telefônica com Niklas, mais cedo:

— Encontre-a na frente do número 639 da South Spring Street. Ela estará de blusa branca com um broche prateado em forma de borboleta no lado esquerdo do peito. Estará lá à uma e meia da tarde.

— Isso é daqui a menos de uma hora — digo.

— Você tem tempo mais do que suficiente para chegar lá do hotel.

Eu tinha tempo mais do que suficiente para chegar aqui do hotel...

Seguro o volante com as duas mãos, a mente correndo a 100 quilômetros por segundo. Como Niklas podia saber disso? Ele não fazia ideia de onde, em Los Angeles, Sarai e eu estávamos hospedados. Não teria como saber se eu conseguiria chegar a este endereço nesse período de tempo.

A menos que ele já soubesse exatamente onde a gente estava.


Sarai

— Niklas... se você me matar, vai transformar seu irmão em um inimigo. — Minha garganta está seca como uma lixa; meus pulmões, pesados. — Se tudo o que você está dizendo é verdade, se o destino de Victor já está selado, então de que adiantaria me matar? — Levanto a voz, motivada pelo desespero e pelo medo. — Não vai resolver nada!

Ele não quer me matar. Não sei se é por causa do que eu falei, sobre transformar Victor em um inimigo, ou se está apenas em conflito, mas, seja o que for, é a única coisa que está me mantendo viva no momento.

— Olhe o que você fez! — Ele balança a arma no ar, na minha direção, apertando tanto o cabo que os nós dos dedos estão brancos.

Ele avança. Eu ando para trás.

— Niklas... por favor — imploro. Não quero atirar nele. Sei que o mais provável é que ele me mate, mas não quero atirar nele.

A raiva lampeja em seus olhos em um instante e ele ergue o queixo em desafio, com os dentes cerrados, os olhos apertados e as narinas abertas.

Sim, ele quer me matar, no fim das contas.

A porta se abre e escuto um tiro quando Niklas vira a cabeça para ver Victor invadindo o quarto. E então outro tiro com silenciador atravessa o quarto, mas Niklas, já correndo também na direção de Victor, consegue evitar ser atingido, e ouço a bala cortando o ar a palmos de mim e penetrando a parede.

A arma escapa da minha mão e caio de joelhos. Levo alguns segundos até perceber que fui atingida, e quando percebo, sinto a dor queimando meu estômago. Sangue quente empapa o tecido do meu vestido. Eu caio de lado, com as mãos pressionando o ferimento com firmeza.

A mesa em minha frente balança na base de madeira quando Victor e Niklas caem em cima dela. Minha pequena caixinha de joias cai no chão, se abrindo e espalhando o conteúdo. Victor, por cima de Niklas, cobre o irmão de socos, golpe após golpe, até que a mesa não suporta mais o peso dos dois e desaba de lado, jogando ambos no chão. O abajur alto que ficava atrás da poltrona bate na mesa, arrancando o fio da tomada e partindo a lâmpada em mil pedaços.

Niklas está em cima de Victor agora, batendo sem parar no rosto dele, mas Victor o segura pela garganta e o levanta, jogando-o com força no chão, de costas. Então se levanta e dá um chute no rosto de Niklas, antes de abrir caminho pelo quarto para pegar sua arma.

Em segundos, ele está por cima do corpo vencido do irmão, com o cano da arma apontado para seu rosto.

— Victor, não faça isso! — consigo gritar em meio à dor.

Ele pisca para voltar a enxergar, depois de ficar momentaneamente perdido em uma fúria cega, e olha para mim.

— Por favor, não o mate — peço novamente, em voz baixa e desesperada.

— Ele tentou matar você — diz Victor, olhando para mim com uma expressão confusa, como se não conseguisse acreditar no que estou dizendo. — Atirou em você.

Com a mão direita, aperto o ferimento com força, o sangue escapando pelos dedos. Estou começando a ficar zonza.

— Victor, ele é seu irmão. Só está aqui porque estava tentando proteger você.

Seus olhos correm entre mim e Niklas, nós dois deitados, ensanguentados e indefesos no chão, em lados opostos do quarto. Seu rosto está cheio de conflito, dor e coisas que nem posso entender, porque nunca tive um irmão ou uma irmã, não sei como é ser amado dessa forma. Talvez Victor também nunca tenha sabido, até agora.

Tento levantar a cabeça, mas estou tão fraca que meu rosto continua no carpete puído.

— Niklas é tudo o que você tem, o único da sua família que restou — digo. — Eu faria qualquer coisa para ter alguém que gostasse de mim tanto quanto ele gosta de você. Qualquer coisa.

O quarto fica muito silencioso. Posso ver os olhos de Victor ficando cheios de... não tenho certeza. Nem sei se ele está mesmo olhando para mim. Acho que consigo ouvir Niklas falando, mas o som é abafado e distante em meus ouvidos. Vejo o teto agora. Só o teto. Observo milhares de buracos minúsculos se abrindo e vejo cada um deles se aproximar de mim. Aquele calor. O que é esse calor que sinto ao meu redor, como um cobertor?

— Sarai? — ouço uma voz chamar, mas de quem é, não sei dizer.

Só vejo escuridão. Tento abrir os olhos, mas estão pesados demais.

Ouço a voz de novo, e uma pontada de dor atravessa meu corpo quando sinto que estou sendo carregada. Tento gritar, mas acho que ninguém consegue ouvir minha voz.

Eu tento gritar...


CAPÍTULO QUARENTA E UM

Sarai

Parece que estou sonhando há dias. A série constante de imagens e vozes ao meu redor sempre soa calmante, mas persistente. As imagens, são elas que me dizem que isto não é real, porque todos que vejo já estão mortos. Javier. Izel. Lydia. Samantha. Minha mãe. Todos passam por mim em uma espécie de transe silencioso e contemplativo, como se eu nem estivesse aqui. Quase consigo tocar o cabelo da minha mãe quando ela passa.

Devo estar sonhando.

Mas os sonhos estão se esvaindo lentamente, e as vozes estranhas e pouco familiares que ouço começam a ficar mais distintas. Eu me sinto presa dentro da minha mente, e ela esqueceu como controlar meu corpo. Porque não consigo mexer nada. Nem os olhos, os lábios ou as mãos. Não consigo nem saber se estou respirando sozinha. Mas, sobretudo, penso nas vozes, em como estão ficando mais claras. Eu me descubro me concentrando o máximo que posso para entender as palavras, mas nunca vou além do som.

Até que ouço a voz de Victor a distância.

— Não vou ficar muito tempo aqui, hoje — eu o ouço dizer a alguém.

Tento acordar, mas acho que o esforço tem o efeito contrário, porque em um instante sou engolida pela escuridão e todas as vozes desaparecem.

Mais tempo se passa. Mais sonhos. Mais vozes.

E então, do nada, como se um interruptor fosse acionado em meu cérebro, minhas pálpebras se abrem e vejo que estou deitada em uma cama de hospital.

Victor está sentado ao meu lado em uma cadeira.

— Você acordou — diz ele, e sorri para mim.

— Quanto tempo fiquei sem acordar? — Ainda estou tentando organizar meus pensamentos.

— Três dias — diz ele. — Mas você vai ficar bem. Mantiveram você sedada a maior parte do tempo.

Tento erguer as costas do travesseiro, mas a dor na barriga é forte demais. Faço uma careta e ergo as mãos para o lugar que está doendo, mas Victor as segura e me faz relaxar.

— Você ainda não pode se mexer — diz ele, ficando de pé.

Ele pega o travesseiro extra de uma poltrona próxima e o posiciona atrás da minha cabeça. Então aperta um botão na lateral da cama para levantá-la e me pôr sentada. Um tubo de soro serpenteia das costas da minha mão, preso à pele com esparadrapo. Coça demais.

— A bala não atingiu nenhum órgão — diz Victor, ao se sentar novamente na cadeira. — Você teve sorte.

O rosto de Niklas aparece em minha mente.

— Ou seu irmão é ruim de pontaria.

Olho para meus braços apoiados na cama, dos lados do corpo. Quero saber o que aconteceu com Niklas e sinto que deveria torcer para que ele esteja morto, mas não consigo.

— Ele está...?

— Não — diz Victor. — Metade de mim queria matá-lo, mas a outra metade não conseguiu. Só me pergunto que metade teria ganhado se você não estivesse viva naquele momento.

Mexo a mão alguns centímetros na cama em busca da dele. Ele entrelaça os dedos nos meus.

— Fico feliz que você não tenha feito isso — digo, forçando um sorriso fraco. — Eu não conseguiria suportar ser o motivo de você matar seu irmão. E-eu nunca deveria ter me colocado entre vocês. Não sabia o que eu estava fazendo, Victor, me desculpe.

Ele aperta minha mão.

— Você fez algo que ninguém mais conseguiria — diz ele, e espero ansiosamente que ele me conte o que poderia ser. — Você me fez lembrar que eu tenho um irmão, Sarai. Ele e eu praticamente nos sentamos à mesa, lado a lado, como estranhos, nos últimos 24 anos. E vejo agora que, apesar de seus defeitos, ele nunca me traiu, nem uma só vez.

Victor faz uma pausa e desvia o olhar.

Então me olha de novo.

— De certa forma, ele me traiu quando foi lá para matar você — continua ele. — E me traiu quando me enganou para chegar até você. Sim, isso é uma traição. Mas é um tipo muito diferente de traição.

— Eu sei — digo. — Olhe para mim. — Ele olha. — Você agiu certo. Independentemente do que ele fez comigo, você agiu certo, e não quero que nunca pense diferente.

Ele não fala, mas conheço essa expressão, é o conflito que está sempre ali. Eu me pergunto se um dia ele vai se livrar disso.

Então diz:

— Mas você fez outra coisa que ninguém jamais conseguiu. — Sua expressão se abranda e meu coração derrete aos poucos. — Você me fez sentir emoções de verdade. Você me destravou.

Estendo a mão e toco seus lábios, segurando seu queixo.

Mas o assunto muda rápido demais.

— Niklas nunca mais vai machucá-la — diz ele. — Ele me deu a palavra dele. Além disso, ele sabe que, se tentar uma próxima vez, não vou hesitar em matá-lo. — Então, de repente, ele acrescenta: — Para mim, você é tão importante quanto ele.

Fico atordoada.

Victor se levanta e vai até a janela, cruzando os braços e olhando para o dia luminoso. Percebo que há muitas coisas que ele quer dizer, tantas pontas soltas que gostaria de amarrar comigo. Mas as coisas mudaram desde que Niklas atirou em mim. Sinto isso. E não vou mais brigar com ele, porque sei que precisa ser do jeito que é, precisa terminar do jeito que vai terminar.

— Não espero ver você de novo, Victor, e entendo. — Engulo em seco. Não quero dizer essas palavras. — É melhor assim, eu sei.

— Sim, infelizmente, é — diz ele com voz distante, de costas para mim. — Não posso manter você a salvo com a vida que levo. Eu queria, mas no fim não consegui. Sabia que não conseguiria, mas eu...

Espero em silêncio.

— ... mas eu errei — diz ele, embora eu sinta que ele quisesse dizer outra coisa. — Sinto muito, mas não há outro jeito.

Meu coração está se partindo...

— Prometa uma coisa — digo, e ele vira a cabeça para me olhar. — Não vá para a Alemanha. Não vá ver aquele homem, seu empregador ou sei lá que diabos ele é. Niklas me contou o que vai acontecer se você for. Por favor, não vá...

Eu o ouço suspirar baixinho, e ele olha de novo pela janela.

— Não posso prometer isso — diz ele, e meu coração se esmigalha. — Mas posso prometer que não vou ficar parado e deixar que alguém me mate.

Isso não me faz sentir nem um pouco melhor, mas sei que é tudo o que ele vai me dar.

Victor sai de perto da janela e tira um pacote de uma maleta que está na mesa próxima. Ele vem até meu lado e o coloca em minha mão. É uma caixa preta comprida embrulhada em um papel esfarrapado, que foi coberto com fita adesiva em algum momento. Tiro a caixa do embrulho e abro a tampa. Dentro há um maço de notas de dinheiro, com um envelope que foi dobrado para caber, e mais alguns pedaços de papel.

— O que é tudo isto?

— Sua verdadeira certidão de nascimento, cartão da Previdência, carteirinha de vacinação, com algumas vacinas faltando que você precisa tomar logo. — Ele aponta para o envelope dobrado, que estou abrindo para ver o que contém.

Olho primeiro minha certidão de nascimento. Sarai Naomi Cohen. Nascida em 18 de julho de 1990, em Tucson, Arizona. Repito meu nome completo mentalmente três vezes, só para que me pareça real, como parecia antigamente.

Não parece.

— Como conseguiu isto? — Olho para Victor.

— Tenho meus meios — diz ele, com um sorriso no olhar. — Também abri uma conta bancária no seu nome. Os detalhes estão nos outros documentos da caixa.

— Obrigada, Victor — digo, deixando minha certidão de nascimento no colo. — Por tudo.

Digo isso com sinceridade. Eu já teria morrido muitas vezes se não fosse por ele. Mas dizer essas coisas para ele, essas despedidas, está destruindo cada pedacinho que restava do meu coração.

— Quando você vai embora? — pergunto.

Na verdade, não quero saber a resposta.

Coloco os documentos no envelope e os fecho na caixa.

— Daqui a alguns minutos — diz ele, e engulo as lágrimas. Quero ser forte, porque sei que isso também é difícil para ele. — Mas falta mais uma coisa, antes que eu vá.

Ele vai até a porta e a abre. Entra a sra. Gregory. Fico tão chocada que a única parte do meu corpo que se move são as lágrimas escorrendo por meu rosto. Minha mão vai à boca. Meus olhos vêm e vão entre os dois, que estão sorrindo; Victor menos, mas sorrindo também.

A sra. Gregory, parecendo bem mais velha do que eu lembrava, vem até a cama de braços abertos e me envolve em um abraço. Ela cheira a perfume Sand & Sable. O perfume de sempre.

— Ah, Sarai, senti tanto a sua falta. — Ela me aperta de leve, sabendo fazer isso sem me machucar. Sua voz está carregada de emoção, mas ela está vibrando de alegria.

— Também senti sua falta — digo, retribuindo o abraço. — Achei que nunca mais fosse ver a senhora.

Ela se afasta e se senta ao meu lado na cama, passando seus dedos longos e enrugados por meu cabelo.

Mas então meu sorriso desaparece e meu coração finalmente morre de vez quando olho para onde Victor estava e vejo que ele se foi. Por um longo momento, as coisas que a sra. Gregory me diz soam abafadas, empurradas para algum lugar no fundo de minha mente. Quero pular as barreiras desta cama e correr atrás dele. Engulo em seco, contendo minhas emoções dolorosas no fundo da alma, e me controlo o melhor que posso, em consideração à sra. Gregory.

Eu me viro para ela e curto nosso reencontro.


CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

Sarai

Isso foi há seis meses.

Hoje, a vida está bem diferente. A conta bancária que Victor abriu para mim tinha um saldo de 2 milhões de dólares. Apenas quando entrei no avião com a sra. Gregory, quatro dias depois que Victor partiu, encontrei forças para olhar os outros documentos dentro da caixa. Um tinha informações sobre a conta bancária, e no verso, escrito com a letra de Victor:

Seu pagamento pelo serviço.

Atenciosamente,
Victor

Ele me deu sua parte do dinheiro que Guzmán pagou para mandar matar Javier. Acho que é justo, já que tecnicamente fui eu que o matei.

Mas a vida com certeza está diferente. Estou morando novamente no Arizona, com a sra. Gregory. Em Lake Havasu City. E tenho dinheiro suficiente para não precisar trabalhar, mas, para manter a mente ocupada e tentar me conformar com esta vida de normalidade, trabalho à noite em uma loja de conveniência. A sra. Gregory não gosta disso. Fica com medo. Diz que é perigoso trabalhar em lugares assim, abertos a noite toda.

E não é que ela estava certa?

Fui assaltada na segunda semana ali, mas, enquanto o cara estava do outro lado do balcão me apontando aquela arma, eu só conseguia observar seus olhos. Quando ele baixou o olhar para o dinheiro que pus diante dele, empurrei a arma para o lado, consegui arrancá-la de sua mão e lhe dei uma coronhada no rosto. Foi idiotice, na verdade. Mas foi um instinto. Não me sinto muito intimidada por bandidinhos drogados que assaltam garotas em lojas de conveniência.

Isso é brincadeira de criança.

Mas com certeza também não sou algum tipo de valentona reformada, moldada pelas minhas experiências extraordinárias. Pergunte para a aranha que subiu em mim uma noite dessas enquanto eu estava lendo na cama. A sra. Gregory quase teve um ataque cardíaco com os gritos.

Fui para a escola para conseguir um diploma do supletivo e passei no teste dois meses atrás. Não foi muito difícil, embora eu tenha sofrido com a matemática. Agora estou cursando Ciências da Computação em uma faculdade pública, embora não saiba por quê. Não tenho nenhum interesse nisso na “vida real”, mas... bem, normalidade. Esse é meu pretexto para tudo hoje em dia, para sair com meus novos amigos, para fingir que me interesso pelos objetivos deles na vida. Eu me sinto uma pessoa detestável por ter que fingir essas coisas, mas não posso me obrigar a gostar de algo só porque eu deveria.

Mas nem tudo é tão insuportável. Eu adoro a sra. Gregory e passo a maior parte do tempo com ela. Ela tem uma artrite tão grave que seus dedos estão deformados e ela não consegue mais tocar muito piano, mas ainda me ensina e eu ainda toco, às vezes por horas, até ter cãibra nos dedos e dor nas costas. Finalmente aprendi a Sonata ao Luar. E cada vez que a toco penso em Victor e na noite em que ele se sentou comigo ao piano.

A saúde da sra. Gregory está piorando. Eu cuido dela, mas sei que não vai viver para sempre, e que um dia vou ficar sozinha de novo. Gosto de pensar que talvez Victor ainda esteja por aí, me vigiando, e às vezes engano minha mente, fazendo-a acreditar que ele está. Mas a verdade é que nem sei se ele continua vivo. Tento não pensar nisso, mas acabo pensando sempre, exceto quando estou perdida entre as notas do piano.

Sinto falta dele. Sinto muita falta dele. Há quem acredite que, quando duas pessoas se separam, com o tempo elas se curam. Começam a se interessar por outras pessoas. Tocam a vida. Mas comigo não aconteceu nada disso. Sinto um vazio mais profundo agora do que aquele que senti quando estava na fortaleza. Este é mais doloroso, mais insuportável. Sinto falta de tudo em Victor. E estaria mentindo se dissesse que não penso nele sexualmente todo santo dia. Porque eu penso. Acho que estou viciada nele.

Tem sido muito difícil, para mim, me acostumar com praticamente tudo, mas, de maneira geral, seis meses não é tanto tempo. Não em comparação com os nove anos que passei na fortaleza. Portanto, tenho esperança de que daqui a mais seis meses estarei melhor. Serei “normal”. Meus amigos, embora eu não possa contar a eles sobre minha vida — e acho que é por isso que é tão difícil ficar íntima deles —, são legais. Dahlia é um ano mais velha do que eu. Beleza média. Inteligência média. Carro médio. Emprego médio. Somos parecidas nessa coisa mediana, mas não poderíamos ser mais diferentes em todo o resto. Dahlia não se sobressalta com qualquer barulho que se pareça remotamente com um tiro. Eu sim. Dahlia não fica olhando por cima do ombro aonde quer que vá. Eu sim. Dahlia quer se casar e ter uma família. Eu não. Dahlia nunca matou ninguém. Eu mataria de novo.

Mas sou grata, por mais que sonhe em estar em outro lugar. Em ser outra pessoa. Sou grata porque consegui fugir. Sou grata porque estou em casa. Embora “grata” seja bem diferente de “satisfeita”, e, apesar de finalmente ter uma vida normal que muita gente adoraria ter, estou o mais longe possível de estar satisfeita.

Victor Faust fez muito mais do que me ajudar a fugir de uma vida de maus-tratos e submissão. Ele me mudou. Mudou a paisagem dos meus sonhos, os sonhos que eu tinha todo dia de levar uma vida normal e livre, por minha conta. Ele mudou as cores da paleta, de básicas para um arco-íris — por mais que as cores desse arco-íris sejam escuras —, e não há um dia em que eu não pense nele ou na vida que poderíamos ter. Embora perigosa e, no fim das contas, curta, é a vida que eu queria. Porque teria sido uma vida mais adequada a mim e, bem, teria sido uma vida com Victor.

A verdade é que não estou pronta para esquecê-lo...

— Aí está você — diz a sra. Gregory da porta do meu quarto. — Você vem comer?

Pisco e volto à realidade.

— Ah, sim. Já vou. Só preciso lavar as mãos rapidinho.

— Certo — diz ela; seu sorriso se ilumina.

Sou realmente a filha que ela nunca teve. E acho que posso dizer que ela é a mãe que eu nunca tive.

A sra. Gregory, ou Dina, sempre faz cachorros-quentes com chili nas noites de sexta. Nós nos sentamos à mesa da cozinha, assistindo à TV de alta definição na parede. Está passando o noticiário. Sempre passa nesse horário.

— Então, você e Dahlia já decidiram onde vão passar as férias de verão?

Empurro a comida para dentro com um gole de refrigerante. Estou para responder quando algo no noticiário chama minha atenção. Uma repórter está na frente de uma mansão muito familiar, falando com um homem muito familiar.

Distraidamente, deixo meu garfo no prato.

— Eu adoraria poder ir com vocês — continua Dina. — Mas já estou muito velha para essas coisas.

Estou concentrada demais na TV para lhe dar atenção:

— Sim, senhora — diz Arthur Hamburg ao microfone. — Todo ano faço o melhor que posso para contribuir. Neste verão, estou planejando um evento para angariar 1 milhão para minha nova entidade beneficente, o Projeto Prevenção, em homenagem à minha esposa.

A repórter assente e parece sentir um pouco de remorso, reposicionando o microfone diante dele.

— E seria prevenção do vício ou do suicídio?

— Prevenção do vício — diz Arthur Hamburg. — No fundo, sinto que minha Mary não se suicidou. O que a matou foi o vício. Quero fazer o meu papel para ajudar outros que estão viciados em drogas, e também ajudar a prevenir o uso de drogas antes que comece. É uma doença muito terrível neste país.

Assim como mentir, violentar e matar, seu desgraçado.

— Sim, é, sr. Hamburg — diz a repórter. — Por falar em doença, sei que o senhor também doou dinheiro à pesquisa do câncer por causa...

— Doei — interrompe Arthur Hamburg. — Ainda me sinto muito culpado por ter mentido para todos sobre a doença da minha esposa e duvido que um dia vá achar que me desculpei o suficiente. Mas, como já falei, eu só a estava protegendo. As pessoas podem aceitar o câncer, mas não aceitam tão bem o uso de drogas, e fiz o que fiz para proteger minha esposa. Mas, sim, acho que é justo que eu também doe para a pesquisa do câncer.

Você é um merda.

Cerro os dentes.

— Sarai? — pergunta Dina do outro lado da mesa. — Já se decidiu? Flórida ou Nova York?

O resto das palavras de Arthur Hamburg desaparece no fundo da minha mente. Penso na pergunta de Dina por muito tempo, olhando-a sem vê-la.

Por fim olho para ela, pego meu garfo e respondo:

— Não, na verdade acho que vamos fazer uma viagem a Los Angeles, neste verão. — Corto um pedaço de salsicha do pãozinho no meu prato, mergulho-o no chili e dou uma mordida.

— Los Angeles? — diz Dina inquisidoramente, também dando uma mordida no seu. — Vai dar um pulinho em Hollywood, hein?

— Sim — digo, com ar distante. — Vai ser ótimo.

Tenho assuntos pendentes lá.

Sorrio para mim mesma, pensando nisso, e tomo mais um gole de refrigerante.

CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

Sarai

A caminho da mansão, Victor me lembra pela última vez:

— Nunca saia da personagem. Aconteça o que acontecer, ou o quanto as coisas fiquem desconfortáveis para você. Não abandone a personagem.

— Entendi — digo. — Aconteça o que acontecer, não vou abandonar a personagem. Prometo.

Esse olhar que ele me lança, embora indistinto, me diz que ele tem suas dúvidas.

Chegamos à propriedade de Arthur Hamburg às sete e meia e somos recebidos por um portão eletrônico alto, de ferro, e um segurança. Victor passa nossos convites pela janela do carro. O segurança os inspeciona primeiro, depois vai até um painel incrustado na lateral da pequena guarita de pedra e encosta um telefone ao ouvido. Eu o ouço vagamente pela janela aberta, nos descrevendo e descrevendo os convites. Alguns segundos depois, ele desliga e devolve os convites a Victor.

O segurança entra novamente na guarita, e logo depois o portão de ferro se abre, dando-nos acesso à enorme propriedade. Depois de atravessar o calçamento de cascalho por quase um hectare, estacionamos o carro na frente da mansão, perto de uma variedade de veículos igualmente caros.

Saímos do carro, Victor passa o braço no meu e seguimos na direção da casa. Nós nos aproximamos da gigantesca porta dupla principal, passando por duas colunas de mármore nas laterais e por baixo de uma varanda escalonada. Somos recebidos na porta por outro segurança armado, e é então que noto todos os outros seguranças espalhados pela propriedade. Lembro que Victor me falou deles e começo a me sentir um pouco desconfortável. Mas depois que nossos convites são inspecionados de novo e entramos, o desconforto diminui, substituído por assombro. Já estive em muitas mansões, mas esta é de longe a mais impressionante, com pés-direitos de quatro andares no centro da casa, abrindo-se para uma imensa claraboia redonda. Lindas estátuas gregas estão expostas no térreo. Sempre que alguém entra, o som de sapatos estalando de leve no mármore ecoa como se eu estivesse dentro de um museu, e não em uma mansão particular da Califórnia. Ouço o que parece uma pequena cachoeira e então noto que à minha direita, sob um arco de 4,5 metros, há um lindo chafariz de pedra branca bem no meio da sala.

Antes de ser flagrada admirando este lugar de olhos esbugalhados, como uma garota que nunca viu tanta riqueza na vida, mudo minha expressão para parecer distraída, estreitando os olhos de leve, como se parte de mim estivesse entediada. E quando alguém me olha, escolho para quem balanço a cabeça sutilmente em reconhecimento e quem ignoro. Ignoro sobretudo as mulheres, ou as olho rapidamente com ar de desaprovação.

Victor anda comigo pela enorme sala, e somos então recebidos por um homem, embora não seja Arthur Hamburg. Ele é muito mais novo, com cabelo castanho-claro e olhos castanhos.

— Bem-vindos à mansão Hamburg — diz o homem. Ele estende a mão e Victor a aperta. — Eu sou Vince Shaw, o assistente do sr. Hamburg.

— Eu sou Victor Faust e esta é minha mulher, Izabel Seyfried.

Estendo a mão para o homem, com a palma para baixo, e ele a toma nos dedos e se curva para beijá-la.

Eu me pergunto se esse é realmente o sobrenome de Victor. Ele não parece preocupado em usar seu primeiro nome verdadeiro — a menos que “Victor” também não seja seu nome...

Não posso pensar nisso agora.

“Vince” pega uma taça de champanhe de uma bandeja quando um garçom passa. O garçom nos oferece a bandeja em seguida.

— Por favor, tomem uma taça — diz Vince, e Victor pega uma da bandeja e a entrega a mim, antes de se servir. — Peço desculpas — diz Vince —, mas estou curioso para saber como obtiveram o convite.

Victor toma um gole de champanhe e demora para responder, como se fosse importante o suficiente para fazer o homem esperar.

— Izabel e eu estávamos no restaurante do sr. Hamburg noite passada. Houve um incidente.

— Ah, sim, claro — diz Vince, com um sorriso conivente mas respeitoso. Então ele se vira para mim. — Foi mais do que indenizada pelo seu vestido, presumo?

— Sim, fui — digo, tomando um gole de champanhe. — Mas devo dizer que acho que a questão poderia ter sido resolvida de maneira diferente.

— Ah? A que maneira se refere?

— Bem, aquele, por acaso, era meu vestido favorito. Tinha valor sentimental, se quer saber. O garçom deveria ter sido demitido.

— Ah, sim — diz Vince. — Bem, isso com certeza pode ser providenciado. Falarei com o sr. Hamburg sobre isso pessoalmente. Isto é, se não quiser fazer isso quando se encontrarem mais tarde.

— Não — digo, piscando. — Acredito que o senhor me poupará de precisar repetir o que disse.

Olho para Victor, que parece satisfeito com meu desempenho.

— É claro — garante Vince. — Não diga mais nada. Será feito. — Ele sorri, revelando dentes brancos e perfeitos.

Eu me sinto péssima por ser o motivo de aquele pobrezinho ser demitido, mas me consolo dizendo a mim mesma que ele não deveria trabalhar para alguém como Hamburg. Afinal, se fomos mandados aqui para matá-lo, isso só pode significar que ele é, de alguma forma, um canalha.

Nós nos distraímos com Vince por algum tempo, mas eu basicamente só tomo goles de champanhe e ouço os dois conversando. De vez em quando levanto a mão e a dobro com as unhas para cima, examinando-as, entediada. Noto que Victor olha para o relógio uma vez.

— O sr. Hamburg descerá para cumprimentar seus convidados em breve — diz Vince. — Por enquanto, sintam-se à vontade para aproveitar o champanhe e os hors-d’œuvres. Ah, aí está ela! — Ele faz um gesto para nós, e nos viramos. — Gostaria de lhes apresentar Lucinda Graham-Spencer. — Ele sorri para Victor. — Certamente a conhecem, não?

Uma mulher estonteante, usando um vestido branco colado ao corpo curvilíneo, se aproxima, acompanhada por um homem de terno.

— Sim, já a ouvi tocar — diz Victor. — Em um concerto em Londres, ano passado. Ela é brilhante.

— Querrrrido, como vai? — pergunta a mulher chamada Lucinda Graham-Spencer, abrindo os braços dramaticamente para Vince. Victor e eu damos um passo para o lado e ela esvoaça entre nós para plantar dois quase-beijos nas bochechas de Vince.

Reviro os olhos. E não apenas como a personagem.

— Lucinda — diz Vince, virando-se para Victor —, estes são Victor Faust e — ele me indica com um gesto — Izabel Seyfried. São convidados do sr. Hamburg.

Lucinda se aproxima de Victor da mesma forma que fez com Vince, e eles se beijam no rosto. Então ela se vira para mim. Victor me fuzila com o olhar, discretamente, mas isso não basta como dica, e eu também não sou telepata, cacete.

Por isso, ajo como meu instinto manda.

— Prazer em conhecê-la — digo com educação, mas sem diminuir meu ar de superioridade. Retribuo os beijos no rosto, com as mãos apoiadas delicadamente em seus braços, como as dela estão nos meus.

Os olhos de Victor sorriem para mim agora, aprovando minha decisão, e provavelmente aliviados com ela. Ao que parece, essa mulher tem uma importância muito maior do que jamais vou ter, e embora eu não faça ideia de que tipo de musicista ela seja ou por que é tão importante, sei que deve ser famosa em seu meio, e eu só faria papel de idiota se esnobasse alguém tão respeitado. Aliás, provavelmente seríamos expulsos a pontapés se eu fizesse isso.

Vince deixa Victor e eu a sós e anda com a mulher pela sala para apresentá-la aos outros convidados. Escuto e noto que ele diz a todos a mesma coisa que nos disse, e que todos aqui são apresentados como “convidados do sr. Hamburg”. Começo a me perguntar como Victor planeja ter a atenção exclusiva do sr. Hamburg com tantas outras pessoas aqui, casais inclusive, competindo por ela.

Victor passa a mão livre pela minha cintura e nós andamos lentamente pela sala, fingindo conversar sobre os quadros e as estátuas. Ele aponta discretamente para isto ou aquilo e comenta detalhes das cores ou da emoção que a obra retrata. São todas observações inúteis e desinteressantes, que não merecem realmente nenhum comentário, na minha opinião, mas eu entro no jogo assim mesmo. Logo percebo que ele estava usando esse tempo para atravessar a sala sem parecermos perdidos nem precisando da companhia de alguém para nos fazer sentir mais entrosados.

— Preciso ir ao toalete — diz Victor, deixando sua taça de champanhe em uma mesa na entrada do corredor. — Você vai ficar bem sozinha?

— Claro — digo, com ar aborrecido. — Sou perfeitamente capaz de ficar sozinha.

Ele beija meus lábios e se afasta pelo corredor. Eu o observo até que ele vira a esquina no final. Sei que ele não está procurando o “toalete” e começo a ficar nervosa quando ele demora mais do que alguns minutos e eu continuo parada ali, sozinha. Espero não parecer precisar de ajuda para me enturmar.

Acabo recebendo-a mesmo assim.

— Sou Muriel Costas — diz uma mulher, se aproximando de mim com outra mulher e um jovem. — Nunca vi você por aqui.

— Izabel Seyfried — me apresento, tomando meu champanhe muito lentamente, mostrando à mulher que minha taça merece mais atenção do que ela. — E acho isso natural, já que nunca estive aqui antes.

Ela sorri, aproximando sua taça dos lábios pintados de rosa. Ela tem cabelo longo e preto caindo nos ombros e batendo logo abaixo de seus seios fartos. Seu decote é ressaltado pelo vestido cinza justinho. A mulher ao lado dela lhe lança um olhar, provavelmente se perguntando se a primeira deixará impune minha resposta atravessada. Retribuo o sorrisinho e dirijo a atenção para o jovem, que não deve ser muito mais velho do que eu.

Abro um sorriso tênue e sedutor para ele, só para deixar Muriel irritada, e ele percebe. Mas então seu olhar é desviado com submissão quando ela o encara.

— De onde vem? — pergunta ela.

— De onde vem o quê?

Ela e a outra mulher se entreolham com sorrisos leves, obviamente formando a mesma opinião a meu respeito.

— Seu dinheiro — diz Muriel, como se eu devesse conhecer o jargão.

Ela toma um gole de champanhe.

“Você é rica, embora ninguém precise saber de onde vem o seu dinheiro.”

Meu rosto todo escurece com um sorriso confiante.

— Só uma pessoa que se sente ameaçada faz esse tipo de pergunta — digo, e olho rapidamente para os outros dois para exibir discretamente meu controle da conversa. É aparente, para mim, que eles são vira-latas de Muriel Costas, e, dependendo de que mão oferece os melhores restos de comida, não são imunes a influências.

Victor reaparece no corredor.

O rosto de Muriel se ilumina quando o vê. Ela se apresenta imediatamente, oferecendo a mão para um beijo de praxe que eu sei que não tem nada a ver com praxe e tudo a ver com desafio. Victor aceita o gesto e olha nos olhos escuros dela ao se erguer de sua reverência discreta, que ele mantém um pouco mais do que eu gostaria. Mas Muriel está satisfeita e faz questão de me olhar bem nos olhos para que eu saiba disso.

Eles se apresentam e recomeçam o papo furado de festa. Mas em vez de mostrar um pingo de ciúme, já que sei que nada daria mais satisfação a Muriel, eu me afasto dos quatro com o queixo erguido e ar importante e acho um grupinho de homens só meu para confraternizar. Não sei ao certo se Victor aprova essa ação, mas não olho para trás para descobrir. Se eu fizesse isso, meu ciúme ficaria tão aparente quanto em uma demonstração escandalosa. E não é tão fácil Izabel Seyfried sentir ciúme. Ela revida.

Não ofereço a mão a esses três homens, apenas minha conversa encantadora e confiante, que eu jamais ofereceria a uma mulher. Eu não esperava que isso acontecesse, mas é nesse momento, quando assumo totalmente o controle das coisas, que percebo não só que entrei no papel mais do que julgava ser capaz, mas também que estou começando a dar a Izabel Seyfried seus próprios traços. Traços que Victor, tecnicamente, nunca me mandou dar a ela. Eu decido — porque parece o certo — fazê-la desprezar as mulheres um pouco em demasia e adorar os homens um pouco intensamente demais.

Afinal, se vou fazer o papel de outra pessoa, é melhor preencher todas as lacunas de sua personalidade e torná-la totalmente realística.

Durante minha conversa com esses homens, cujos nomes já esqueci, Victor entra no grupo. Sinto sua mão em meu antebraço, apertando-o com força.

— Você sabe que eu não gosto quando você se afasta de mim — diz ele.

Os homens não dizem nada, mas nos ouvem atentamente, como que intrigados pela exibição de Victor de dominação sobre mim.

Abro um sorrisinho.

— Eu sei que você não gosta — digo —, mas estava ficando... sufocada com sua bisavó ali.

Muriel fixa os olhos nos meus ao ouvir isso, e eu sorrio em resposta. Ela e seus mascotes se afastam na direção oposta, até outro grupinho.

Victor esmaga meu braço, fazendo o champanhe se agitar em minha taça.

O sorriso desdenhoso desaparece do meu rosto em um instante.

Ele se curva para meu ouvido e diz em voz baixa:

— Não suporto a ideia de fazer isso, Izabel, mas se for preciso, eu vou abandonar você. — Sua respiração dança por meu pescoço, deixando a pele arrepiada.

— Não vou mais fazer isso — digo, ofegante, virando o pescoço para que minha boca alcance a dele.

Fecho os olhos para beijá-lo e sinto seus lábios tão perto dos meus que quase posso saboreá-los, mas então ele se afasta. Os homens perto de nós estão assistindo a tudo, discretamente, quando volto a abrir os olhos.

Arthur Hamburg aparece na sala do chafariz com quatro homens de terno, e todas as atenções se voltam para ele.


CAPÍTULO TRINTA E CINCO

Sarai

O homem parece ainda mais velho do que na foto. E mais gordo. Acredito que tenha 60 e poucos anos, estatura mediana, abaixo de 1,80 metro, e não menos do que 130 quilos, a maior parte na barriga e nas bochechas. Enquanto está na entrada da sala, com seus capangas ao redor, eu não vejo apenas um ancião obeso, vejo um homem mau que vai morrer esta noite. É tudo o que consigo pensar: ele vai morrer. E eu estarei lá para presenciar. De repente minhas entranhas se fecham, meu peito aperta, meu estômago dá um nó e sinto que não consigo respirar. Inspiro pelos lábios entreabertos e solto o ar bem devagar pelas narinas. Calma, Sarai. Fique calma.

Eu não pensei que fosse me afetar desse jeito saber o destino de um homem, praticamente controlar se ele vai viver ou morrer apenas por saber o que ele não sabe. Mas, apesar da ansiedade que sinto quando me dou conta da realidade da situação, não me arrependo de ter vindo. Posso não saber o que Arthur Hamburg fez para merecer a morte, mas confio nas palavras de Victor e sei que ele está longe de ser inocente, ou não estaríamos aqui.

Arthur Hamburg se dirige a seus convidados, agradecendo a todos nós por termos vindo esta noite, e continua falando e falando de coisas supérfluas, com todo mundo assentindo, concordando, sorrindo e opinando. E ele conta piadas das quais ri antes de todos, mas todos sempre riem também, porque seria grosseria não rir, é claro. Até eu me pego rindo um pouco de uma piada que todos parecem achar engraçada, mas que na verdade eu não acho.

Victor me põe diante de si, apertando minhas costas contra seu peito. Sua boca explora meus ombros nus, suas mãos estão em meus quadris. Mas a afeição é breve, apenas uma exibição, e sua atenção volta para Arthur Hamburg, quem eu noto que, nesse curto espaço de tempo, nos encontrou, e está nos fitando do outro lado da sala. Percebo a deliberação em seu olhar, a mudança repentina de sua expressão. Depois de mais alguns pronunciamentos, ele encerra a conversa e deixa todos se divertirem, como estavam fazendo antes que ele entrasse na sala.

Quando dou por mim, ele está vindo em nossa direção.


Victor

Arthur Hamburg aperta minha mão quando me apresento e apresento Izabel.

— Meu assistente disse que o senhor teve um problema em meu restaurante, noite passada.

Ele sabe muito bem que fomos nós dois. Viu tudo daquela sua sala particular, escutou nossas conversas à mesa pelo minúsculo microfone situado no arranjo de centro.

— Sim — digo, assentindo. — Desculpe dizer, mas acredito que uma mudança no modo como sua gerência contrata os funcionários é necessária.

Hamburg sorri para disfarçar o que está fazendo, na verdade: estudando a mim e Sarai, reparando em nós mais do que já fez no restaurante, imaginando-nos com ele em seu quarto. Ele está se lixando para o incidente no restaurante ou a possibilidade de ser processado. Isso não tem nada a ver com o convite para estarmos aqui.

— O senhor é de Los Angeles? — pergunta ele.

— Não — respondo, puxando Sarai para mais perto, com um braço em volta de sua cintura e a mão apoiada quase em sua virilha. Os olhos de Hamburg descem para minha mão ali. — De Estocolmo.

Ele parece intrigado.

— Não tem sotaque estrangeiro — diz ele.

Respondo em sueco:

— Sou fluente em sete idiomas. — Depois repito em inglês para que ele entenda.

Ele assente, com um sorriso impressionado. Então olha para Sarai.

— E você?

— De Nova York — respondo por ela.

Sarai fica quieta dessa vez.

Hamburg se vira para mim de novo e pergunta:

— Ela é sua...? — Ele vasculha a mente em busca da maneira mais prudente de fazer a pergunta.

— Minha propriedade? — digo por ele, mostrando que é perfeitamente aceitável falar sobre coisas que em outra situação seriam tabus. — Sim, ela é. E na maior parte do tempo, gosta disso.

Ele ergue uma sobrancelha espessa e grisalha.

— Na maior parte do tempo? — pergunta ele inquisidoramente. — E o que ela pensa no resto do tempo?

Ele olha para Sarai, com um sorrisinho nos cantos de seus lábios enrugados.

— No resto do tempo eu tenho vontade própria — diz Sarai como Izabel.

Suspiro e balanço a cabeça, passando os dedos por seu quadril.

— Sim, ela tem, admito — confirmo. — Prefiro mulheres que oferecem resistência.

— Então o senhor já seguiu o outro caminho, suponho? — pergunta Hamburg, e sei que ele está se referindo à submissão total, a possuir uma mulher que fará qualquer coisa que mandarem sem a menor expressão de desconforto ou recusa.

— Uma vez — respondo. — Estou satisfeito com Izabel, apesar de sua boca grande, às vezes.

Hamburg a examina mais de perto agora, e a mim também. Ele gosta de mulheres e de homens, afinal. E também gosta de mulheres que oferecem resistência, como Izabel. A única diferença é que as outras foram trazidas para cá contra a vontade.

De repente, Hamburg ergue o queixo orgulhosamente e diz:

— Gostaria muito de falar com o senhor em particular. Na minha suíte. Se estiver interessado em ofertas lucrativas. Está interessado em ofertas lucrativas, não está? — Ele sorri e molha os lábios rapidamente com a língua.

Penso a respeito um momento, mexendo com sua cabeça, demonstrando, só pelo olhar, que estou interessado, mas não desesperado.

— Estou disposto a ouvir a oferta, pelo menos — digo.

Seus olhos se iluminam. Ele se vira para o homem de terno ao seu lado, murmura algo em seu ouvido e volta a falar conosco enquanto o homem pega o elevador panorâmico até o último andar.

— Me acompanhem — diz Hamburg, e nós dois o seguimos até o elevador.

Hamburg nos conta da construção de sua mansão enquanto esperamos que o elevador panorâmico desça vazio. E tagarela sobre todo o dinheiro que gastou na casa, explicando discretamente que pode me pagar, seja qual for meu preço. Sinto Sarai ficando cada vez mais nervosa enquanto subimos até o último andar. Em um momento, ela agarra minha mão, e olho para seus dedos delicados presos nos meus. Aperto sua mão de leve, lembrando que estou aqui e que farei tudo o que puder para mantê-la a salvo. Eu a olho nos olhos, e no momento só o que vejo é Sarai me olhando também, a garota corajosa mas ansiosa e complicada que despertou tanto meu instinto protetor.

Vamos até um enorme corredor que dá para a entrada do quarto dele, intrincada e espalhafatosa como o resto da casa. Dois homens de terno montam guarda na porta. Cada um deles, como os que estão lá embaixo, carrega armas por baixo das roupas. Mas eu não. Desta vez, não. Porque sei que Sarai e eu seremos revistados antes que nos deixem entrar, e encontrar uma arma em qualquer um de nós, duas pessoas ricas mas, à parte isso, comuns que não têm motivo algum para portar armas de fogo, mudaria as conclusões iniciais de Hamburg sobre nós. Ele poderia se sentir ameaçado e mudar de ideia quanto a nos deixar entrar.

Paramos à porta e abro os braços para que um dos seguranças me reviste.

Sarai faz o mesmo, mas não fica tão quieta desta vez.

— Isso é realmente necessário? — pergunta ela entre dentes enquanto o outro segurança a revista.

— Desculpe, querida — diz Hamburg enquanto abre as portas da suíte —, mas é. Todo cuidado é pouco.

Quando os seguranças não encontram nada, abrem caminho, e, antes de fechar nós três dentro do quarto, Hamburg diz aos homens:

— Podem ir. Vou precisar de um pouco de privacidade por mais ou menos uma hora.

Os dois seguranças concordam, assentindo, e deixam seu posto na porta do quarto.


CAPÍTULO TRINTA E SEIS

Sarai

Assim que a enorme porta dupla se fecha atrás de nós, sinto meu coração afundando no estômago. Mas espanto a sensação e faço o melhor que posso para conservar minha fachada de Izabel Seyfried.

Enquanto deixo meu olhar percorrer o imenso quarto, fico surpresa com a rapidez com que Arthur Hamburg vai direto ao assunto:

— Direi o que desejo e darei ao senhor a oportunidade de determinar seu preço. — Ele indica a poltrona de couro mais próxima de Victor com um gesto.

Victor se senta, e sou deixada em pé ali, sozinha.

As máscaras caíram, agora que os dois estão a sós na privacidade do quarto. Arthur Hamburg não é mais o homem enjoativamente encantador que fingia ser lá fora, diante de todos. Não, é o canalha perverso e doentio que Victor foi enviado para matar. Ele não me vê mais como uma convidada em sua mansão, que merece uma taça de champanhe e respeito; sou apenas uma peça em seu jogo sexual, que não é mais digna de seu olhar ou de sua conversa. Somente Victor tem direito a tais luxos. É Victor que ele quer. Percebo isso agora. Mas há muito mais nisso do que eu sei. E não demora para que tudo se revele.

— O que o senhor quer? — pergunta Victor, calma e ardilosamente.

Ele se recosta na poltrona e apoia o tornozelo esquerdo no joelho direito.

Arthur Hamburg se senta na poltrona em frente, igual à de Victor, com um sorriso diabólico em seu semblante cruel.

— Gosto de assistir — diz ele. — Mas nada de merdas tipo papai e mamãe. — Ele faz uma pausa e acrescenta: — Você fode a garota, de vez em quando faz com ela o que eu pedir, e depois, se você topar, e por uma quantia extra, eu me ajoelho na sua frente.

Ele sorri e, pela primeira vez desde que entrei aqui, seus olhos passam por mim.

Enquanto tenho um ataque de ansiedade em segredo, Victor pondera por um momento, fingindo considerar a oferta.

Victor olha para mim.

— De jeito nenhum — digo, assim que percebo a deixa. — Ele é nojento, Victor. Não concordo com isso.

Victor fica de pé e me segura casualmente pelo cotovelo.

— Você vai fazer o que eu mandar — diz ele.

Balanço a cabeça de um lado para o outro, olhando para os dois, tentando não sair da personagem, mas achando isso cada vez mais difícil.

Eu consigo fazer isso, digo a mim mesma quando o palpitar forte do meu coração encobre a voz em minha cabeça. Victor não vai me machucar. De jeito nenhum. Preciso acreditar nisso.

Por que ele não mata esse porco agora e pronto? Não entendo...

Com meu cotovelo ainda preso em sua mão, Victor se vira para Arthur Hamburg e diz:

— Quinze mil. — E o rosto de Hamburg se ilumina. — E vou querer mais 15 para deixar você me chupar.

Sinto meus olhos se arregalando.

— Fechado.

— Não — digo, e tento desvencilhar meu braço, mas então Victor estreita os olhos para mim e eu cedo.

— Se curve sobre a mesa — diz Victor.

Quê?...

Ele olha para a pesada mesa quadrada de mármore à minha direita, movendo apenas os olhos.

— Agora, Izabel — exige ele.

Ai, meu Deus...

Hesitante, me aproximo da mesa e apoio a barriga e o peito ali. Já consigo sentir o ar do quarto alcançar o tecido da minha calcinha. Engulo em seco.

Victor se aproxima por trás e termina de levantar meu vestido curto, descobrindo minha bunda e dobrando-o nas minhas costas. Uma de suas mãos aperta minhas nádegas.

— Faça a garota chorar — diz Arthur Hamburg, da poltrona atrás de mim. — Tenho coisas que você pode usar se quiser.

— Consigo fazê-la chorar sem elas — diz Victor, puxando minha calcinha para baixo até os tornozelos. Eu suspiro, me sentindo desconfortavelmente exposta. — Mas ainda posso usá-las. Faz tempo que não a machuco de verdade.

Arthur Hamburg produz um som estranho que nunca ouvi antes.

— Ah, sim, eu gostaria muito de ver isso. — Ele bate palmas e acrescenta, com deleite macabro: — Ela é muito apertada? Eu tenho um taco de borracha.

Fico paralisada na mesa; seu comentário tira todo o ar dos meus pulmões.

Você está de brincadeira, caralho?

Estou pronta para matá-lo, agora. Ele poderia ser meu primeiro trabalho. Estou pronta!

Minhas mãos começam a tremer sob o peito.

Se mantenha na personagem, Sarai... haja o que houver.

Então, de repente, como se não estivéssemos mais no quarto com aquele tarado filho da puta, sinto os dedos de Victor deslizando para dentro de mim e fico instantaneamente molhada. Solto um gemido agudo, e o hálito quente que sai dos meus lábios cobre o mármore de umidade a centímetros do meu rosto. Vejo o borrão aparecer e desaparecer no ritmo da minha respiração ofegante.

— Abra as pernas — manda Victor.

De início não obedeço, mas quando ele enfia as mãos entre minhas coxas e as separa à força, me expondo completamente, não resisto, só me agarro à borda da mesa com as pontas dos dedos e endireito as costas.

Minha mente luta com o quanto tudo isso é errado. Sei que é errado e nojento porque aquele homem está sentado ali, vendo isso acontecer. Mas a outra parte de mim, a parte que está começando a bloquear totalmente a presença de Arthur Hamburg da minha mente, quer que Victor faça o que quiser comigo. Tento fechar os olhos e imaginar somente Victor no quarto, e funciona por um ou dois minutos, até que ouço a voz de Arthur Hamburg de novo.

— Sim, ela é bem rosadinha. Bem apertada — diz ele, e eu cerro os dentes.

Victor começa a ganhar tempo.

— Sabe — diz ele —, você podia me mostrar suas coisas. Vou meter um pouco nela antes, deixá-la mais aberta, e aí...

— Não precisa dizer mais nada — diz Arthur Hamburg, com um sorriso sádico na voz.

Eu o ouço se levantando da poltrona, e então seus sapatos caros estalam no chão quando ele passa. Vejo que sua calça já está aberta e sua camisa, solta sobre a barriga grotesca. Ele já estava se masturbando. Quando se aproxima do que parece um grande closet, ele para e se vira para Victor. Parece estar refletindo intensamente, até que diz:

— Tudo bem se eu deixar minha esposa assistir comigo?

Depois de uma pausa momentânea, Victor responde:

— Mais uma pessoa não estava no acordo. — Ele pensa um pouco. — Mas acho que tudo bem. Ela está lá embaixo?

— Ah, que bom — diz Arthur Hamburg, esfregando as mãos gorduchas. Ele se aproxima mais do closet, abrindo as duas portas enormes para revelar um espaço interno maior do que de um quarto normal. — Não, eu a guardo aqui.

Hã? Você a guarda aí?

Sentindo que isso chamou mais do que apenas a atenção de Victor, olho para cima quando ele se afasta de mim. Não tenho ideia do que ele vai fazer, não sei se devo ficar como estou ou me levantar e deixar o vestido cobrir novamente minha bunda, como eu gostaria. Resolvo esperar mais alguns minutos.

— Não fique chocado quando a vir — diz Arthur Hamburg. Ele parece estar digitando vários números em um teclado prateado na parede interior do closet. — De certa forma, minha Mary é como sua Izabel.

— É mesmo? — diz Victor, entrando no closet com ele.

Outra porta enorme se abre na parede interna do closet, revelando mais um quarto.

— Sim — continua Arthur Hamburg. — Embora seja muito mais submissa do que a sua.

Então ouço um thump alto e um bang quando os dois desaparecem em algum lugar do quarto secreto. Visto a calcinha às pressas e corro pelo quarto para ver o que está acontecendo, quase tropeçando por causa dos saltos.

— Victor!

— Entre aqui, Izabel, agora! — eu o ouço gritar, e, embora ele tenha me chamado de Izabel, sei, pelo tom de urgência em sua voz, que ele está falando comigo como Sarai.

Depois de passar pelas prateleiras altas do closet e entrar correndo no quarto secreto, fico chocada e confusa com o que vejo, incapaz de formar pensamentos, muito menos palavras. Victor está segurando Arthur Hamburg com a cara contra a parede e uma gravata apertada em volta do pescoço gordo. Seu rosto incha por cima do tecido que o estrangula, sua pele ficando vermelho-escura e roxa. Uma mulher está deitada em uma cama dobrável, perto da parede, usando uma camisola comprida de algodão branco, transparente, toda manchada de urina e sangue.

— No closet — diz Victor, pressionando o corpo contra o homem que esperneia — tem uma maleta no chão com uma arma dentro. Vá pegar.

Faço que sim rapidamente e volto correndo para o closet para procurar a maleta, encontrando-a em segundos. Tiro dali a arma e corro para o quarto.

Ele libera uma das mãos e eu lhe entrego a arma.

Victor encosta a arma na têmpora de Arthur Hamburg e solta seu corpo. O velho luta para respirar, fazendo sons engasgados e desesperados, tentando recuperar o controle da respiração. Então Victor o revista, procurando armas. Quando se convence de que ele não tem nenhuma, enfia a mão no bolso da calça, tira um par de luvas de borracha e o joga para mim, me mandando calçá-las.

Faço isso rapidamente.

— Bem, as coisas vão acontecer da seguinte forma — diz Victor para Arthur Hamburg. — Infelizmente, você vai viver. Se a escolha fosse minha, eu teria matado você noite passada, no restaurante, ou qualquer outra noite antes disso. Mas você vai viver.

O. Que. Está. Acontecendo? Minha mente não consegue assimilar essa reviravolta inesperada.

— Se não veio aqui me matar — diz Arthur Hamburg, com a voz tremendo de medo, mas como se estivesse se divertindo —, então que porra você quer aqui? Dinheiro? Tenho dinheiro aos montes. Dou quanto você quiser.

Victor empurra Arthur Hamburg para o chão e mantém a arma apontada para ele. O suor escorre do rosto e do pescoço do homem, empapando sua camisa social branca. Então Victor enfia a mão no bolso interno do paletó e me entrega um pequeno envelope amarelo.

— Abra — ordena ele.

Enquanto faço isso, Victor volta a olhar para Hamburg.

— A morte vai ser considerada um suicídio — diz Victor, e fico ainda mais confusa. — Ela deixou um bilhete assinado de próprio punho. Você só precisa esperar uma hora depois que sairmos para dar o alarme.

— Que merda você está dizendo?! — exclama Arthur Hamburg rispidamente, apesar da arma apontada para ele.

Não consigo mais decidir para quem olhar, o psicopata no chão ou a pobre mulher deitada no catre.

De repente ela me olha com olhos tristes, frágeis, atormentados, e um calafrio percorre meu corpo.

— Victor, a gente precisa ajudá-la. — Começo a me aproximar dela.

— Não — diz Victor. — Deixe-a ali.

— Mas...

— Tire o conteúdo do envelope — interrompe ele.

Tiro primeiro uma folha de papel dobrada, tentando sentir a textura através das luvas apertadas em minhas mãos.

— Leia — diz ele.

Cuidadosamente, eu a desdobro e olho para a bela caligrafia com floreios em tinta azul. E quando leio a carta em voz alta, começo a sentir náuseas e meu coração dói.

Meu adorado marido,

não posso mais fazer isso com você. Envergonhei minha família, nossos filhos, nós nos envergonhamos, Arthur. Eu não amo mais você. Não amo a mim mesma. Não amo ninguém, porque não consigo. Não sou capaz de sentir emoções verdadeiras há doze anos dos trinta que sou casada com você. Não posso mais viver assim. Tantas vezes eu quis procurar ajuda, talvez tomar remédios. Não sei, mas depois de tanto tempo, depois de anos querendo pedir ajuda, comecei a não me importar.

Lamento tanto que você tenha que me ver assim. Lamento tanto não poder ter pedido ajuda a você. Mas eu não queria ajuda. Eu só queria que acabasse.

E é isso que vou fazer.
Acabar com tudo.

Adeus, Arthur.

Atenciosamente,
Mary

O homem não consegue tirar os olhos da esposa. Seu queixo flácido vibra quando ele tenta conter as lágrimas. Mesmo assim, não sinto um pingo de remorso por ele. Não só porque ainda estou lutando para entender o motivo de isso acontecer, mas porque sei que ele é um psicopata e não merece remorso.

— Por que você está aqui? — pergunta ele, com voz rouca e trêmula.

Victor olha para mim.

— Me dê o cartão SD.

Tiro o minúsculo cartão do fundo do envelope e o coloco na mão livre de Victor. Ele o mostra a Arthur Hamburg, entre o polegar e indicador.

— Todas as informações deste cartão já foram transferidas para meu empregador. Os nomes da sua extensa lista de clientes, os locais das suas operações clandestinas, as provas em vídeo que sua querida esposa gravou, sem você nem desconfiar. Está tudo aí. — Ele joga o cartão SD no peito de Arthur Hamburg. — Se alguém me procurar ou procurar Izabel pela morte da sua esposa e ela não for considerada suicídio, todas essas informações serão passadas ao FBI. Devemos sair daqui ilesos e tão bem-tratados como quando entramos por aquela porta. Entendeu?

Estou tremendo, muito confusa, nervosa e insegura. Insegura sobre tudo.

Arthur Hamburg assente, com o suor ainda pingando de seu queixo e suas sobrancelhas.

A mulher estende a mão, mas depois a deixa cair. Duas seringas estão vazias perto de suas pernas. Ela está muito dopada. Corro os olhos pelo corpo dela, vendo que as juntas dos braços e dos tornozelos estão pontilhadas de marcas de agulha.

Não consigo mais me conter: corro até ela, totalmente determinada a ajudá-la. Mas Victor estende a mão e me agarra pelo braço, me segurando. Ele me olha ferozmente nos olhos, ainda apontando a arma para Arthur Hamburg.

— Ela é o alvo — diz ele, me puxando para mais perto. — Vá até o criado-mudo no quarto, ao lado da cama mais perto da janela. Tem outra arma na gaveta. Traga para cá.

Quero dizer que não, que não farei isso, mas minha resistência é apenas em pensamento. Obedeço porque parte de mim ainda confia em Victor, tanto quanto outra parte quer interromper esta situação, antes que vá longe demais.

— Está bem — digo, e corro de volta para o quarto.

Encontro a arma onde Victor disse que estaria, pego-a nervosamente pelo cabo e a carrego com cuidado de volta para o quarto secreto, como se estivesse morrendo de medo de que exploda em minhas mãos. Talvez seja porque sei o que ele vai fazer com ela. Parece mais pesada, mais mortal, mais ameaçadora do que qualquer arma que já segurei. Não senti isso nem com aquela que usei para matar Javier.

Sinto meu coração batendo nas solas dos pés.

— Agora troque comigo — diz Victor.

Ele está usando luvas pretas, agora.

Vou até ele, com as pernas bambas, e lhe entrego a arma. Pego a outra e tomo cuidado para mantê-la apontada para Arthur Hamburg. Mal consigo segurá-la. Eu me sinto como ao me esconder no carro de Victor, a arma tão pesada em minhas mãos que só quero largá-la e me livrar dela.

Victor olha para mim, seus olhos azul-esverdeados intensos e com alguma compaixão.

— Você confia em mim?

Faço que sim lentamente.

— S-sim. Confio em você.

— Tampe os ouvidos — instrui ele, e eu não hesito.

Sem mais uma palavra, ele vai até a esposa e se curva para a frente, levantando-a da cama para uma posição precariamente sentada. Seu corpo está tão fraco e desconjuntado que ela mal consegue se sustentar sozinha. Seus olhos se abrem e se fecham, de exaustão ou por causa das drogas, enquanto Victor põe a arma na mão dela, dobrando seus dedos no cabo e seu indicador no gatilho. Sinto que vou vomitar, mas a adrenalina não deixa.

Victor fica na frente dela, pressiona a arma sob seu queixo e puxa o gatilho com o dedo dela. Ouço o tiro reverberar pelo quarto de paredes espessas, mas meus olhos se fecham antes que eu veja o sangue.

Arthur Hamburg grita o nome da esposa e depois desaba no chão, seu corpo descomunal tremendo de emoção.

Victor fica ao meu lado em um ângulo que parece tentar evitar que eu veja a imagem sanguinolenta da esposa. É um gesto silencioso que acho inesperado e protetor.

— Você tem uma hora — diz Victor. — É melhor começar a pensar na sua versão da história.

— Vai se foder! Vai se foder! — grita Arthur Hamburg, lançando cuspe pela boca. Ele aponta friamente para nós, mal levantando o rosto do chão. — Vão se foder!

— Isso não ia acontecer mesmo — acrescenta Victor.

Então ele passa o braço por meu ombro e sai do quarto secreto, ainda me protegendo da visão o melhor que pode. Quero me afastar dele tempo suficiente para voltar correndo e chutar aquele canalha nojento na barriga com meus saltos, mas não posso, sabendo que a mulher está morta ali, a poucos metros dele. Não é a visão de seu corpo ensanguentado que torna tão pavoroso olhar para ela — já vi mortes demais para ser afetada por isso —, mas a sensação terrível de ela ser inocente e precisar de ajuda é que torna isso insuportável.

O que foi que Victor fez?


CAPÍTULO TRINTA E SETE

Victor

Seguro Sarai na porta da suíte e a viro para me encarar, com as mãos em seus braços. Eu a sacudo.

— Escute — digo, e ela ergue os olhos. — Você continua na personagem quando sairmos daqui. Aja como antes de tudo isso acontecer. Entendeu? — Eu a sacudo de novo.

Ela assente distraidamente e então respira fundo, engolindo o nó na garganta.

Saímos para o corredor e viro o trinco da porta da suíte antes de fechá-la. Nossa segurança para sair desta mansão e desta propriedade está, agora, toda nas mãos de Hamburg. Se ele decidir que quer nos ver mortos mais do que quer evitar ser preso e perder toda a sua fortuna, os próximos cinco minutos vão ser complicados. Eu tenho uma arma, a pistola da maleta do closet. Nove balas estão no pente. Não tenho certeza de que, com apenas nove balas, consigo derrubar os seguranças antes de eles atirarem. Se estivesse sozinho e não precisasse proteger Sarai, conseguiria.

— Cabeça erguida — murmuro rispidamente para Sarai, à minha direita.

Ela ergue o queixo e ponho a mão em sua cintura enquanto vamos casualmente para o elevador panorâmico. Os dois seguranças que estavam na porta do quarto de Hamburg não estão por perto, mas há um no final do corredor. Como os outros, usa um fone no ouvido. Passamos tranquilamente por ele; Sarai usa seu charme, dando um sorrisinho malicioso para ele. Encantado com ela, o homem sorri feito um idiota até que o elevador some abaixo do piso.

— Ah, aí estão vocês — diz Vince Shaw, o assistente de Hamburg, quando saímos do elevador no térreo. — Já vão embora? Deveriam ficar mais um pouco. Lucinda vai tocar para nós esta noite. — Ele mantém as mãos unidas à sua frente.

Sorrio e balanço a cabeça.

— Eu adoraria, mas tenho um voo amanhã cedo.

— Mas eu quero ficar — diz Sarai como Izabel, com a voz um pouco lamuriosa.

— Desta vez, não — digo. — Você sabe que sempre perco os voos de manhã se não durmo pelo menos seis horas na noite anterior.

— Por favor, Victor? — Ela encosta a cabeça no meu braço.

Eu ignoro por completo seus esforços artificiais e aperto a mão de Vince.

— Foi um prazer conhecê-lo — digo.

— Igualmente. Talvez possa aproveitar melhor a festa da próxima vez.

— Talvez.

Puxo Sarai comigo rumo à saída. Pouco antes de chegarmos à enorme porta dupla, ouço a voz de Hamburg ecoar pela mansão, vinda do parapeito do quarto andar, e ficamos imóveis.

— Victor Faust — chama ele por cima da multidão.

Sinto o coração de Sarai pulsando em sua mão quando ela aperta a minha.

Eu me afasto da porta e me aproximo da luz para vê-lo melhor. Ele se arrumou bem em tão pouco tempo; sua camisa está enfiada dentro da calça, e seu cabelo grisalho, antes empapado de suor, foi penteado para trás, provavelmente com os dedos em vez de uma escova.

Há um momento de silêncio tenso, embora dure poucos segundos no máximo. Acho que Sarai parou de respirar.

Hamburg sorri para nós, com as mãos apoiadas no parapeito.

— Espero vê-lo de novo — diz ele.

Faço que sim.

— Até lá — digo.

O porteiro abre um lado da porta dupla para sairmos da mansão. Nenhum de nós dois se sente seguro até atravessarmos o hectare de terreno e sermos liberados no portão, sem que ninguém nos pare ou atire em nós.

Dirijo pela cidade por meia hora antes de voltar para o hotel, para me certificar de que não estamos sendo seguidos. Sarai fica em silêncio o tempo todo, olhando o para-brisa. Ela parece traumatizada. Está duvidando de mim. Está lamentando sua decisão de tomar parte no que aconteceu.

— Sarai...

— O que foi aquilo? — grita ela, virando a cabeça de repente para me olhar. — Por que aquela mulher era o alvo? Ela era inofensiva, Victor. Precisava de ajuda! Era inocente! Não podia ser mais óbvio!

— Tem certeza disso? — pergunto, mantendo a expressão calma.

Sarai começa a gritar comigo de novo, mas para e baixa a cabeça.

— Talvez não — diz ela, agora em dúvida. — Mas ele a mantinha naquele quarto. Ela estava drogada. Indefesa. Prisioneira. Não entendo... — Ela olha o para-brisa de novo.

— Era o que parecia, sim — digo. — Mas Mary Hamburg merecia ser punida tanto quanto Arthur.

— Então quem encomendou o assassinato? — pergunta ela, olhando fixamente para mim. — Por que matá-la e não matar aquele cara?

— Mary Hamburg encomendou o próprio assassinato — digo, e os olhos de Sarai se enchem de descrença. — Os dois se envolveram em vários casos de estupro e assassinato, mortes acidentais causadas por asfixia erótica mas assassinatos mesmo assim, tudo acobertado por suas contas bancárias. Cultivaram esse estilo de vida durante a maior parte do casamento. Um ano atrás, Mary Hamburg, segundo o que ela disse, decidiu que não queria mais levar essa vida. Seus demônios começaram a atormentá-la. Quando falou com Arthur sobre pararem, procurarem ajuda e viverem decentemente, ele se revoltou contra ela. Para encurtar a história, ele a viciou em heroína e a mantinha trancada naquele quarto, para que ela não destruísse tudo o que tinham. Mas ele a amava. Daquele jeito doente, ele a amava. Acho que isso ficou óbvio em sua reação à morte dela.

Sarai balança a cabeça lentamente, tentando processar a verdade.

— Como você sabe tudo isso?

— Eu li o dossiê — digo. — Normalmente não leio, mas neste caso achei necessário.

— Porque eu estava com você — diz ela, e eu faço que sim. — Você sabia que eu faria perguntas.

— Sim.

Ela desvia o olhar.

— Como ele conseguiu manter a esposa fora de cena por tanto tempo? Alguém ia descobrir alguma coisa. Os filhos deles. A carta diz que eles tinham filhos.

— Sim, tinham — digo. — Dois, que moram em algum lugar da Europa e não querem nem saber dos pais. E Hamburg não mantinha Mary totalmente fora de cena. Ele alegava que ela estava à beira da morte. Câncer terminal. De vez em quando, sempre que uma aparição pública era necessária para afastar suspeitas, ele a arrumava, a drogava e colocava a esposa sentada a seu lado em uma cadeira de rodas, por não mais do que alguns minutos. Era o suficiente para que as pessoas vissem que Mary Hamburg parecia mesmo estar morrendo de câncer, por causa de seu peso e dos efeitos da heroína. Ninguém fazia perguntas.

Dispenso o manobrista, paro no estacionamento do nosso hotel e desligo o motor.

Ficamos sentados em silêncio por um momento, banhados pela fraca luz azulada das lâmpadas nas vigas de concreto acima de nós.

— Mas como ela encomendou o próprio assassinato? — Ela passa as mãos pelo cabelo. — Eu não...

— Poucas pessoas podiam entrar no quarto onde ela ficava escondida. Apenas criadas. Imigrantes ilegais. Elas tinham medo de serem deportadas e, provavelmente, também de morrer. Arthur Hamburg sabia que elas não falariam nada. Ao menos era o que ele pensava, porque foi uma das criadas que ajudou Mary Hamburg a encomendar o serviço.

— Ela deveria ter se matado — diz Sarai. — Se fosse eu, não me daria esse trabalho todo.

— Você teria feito o mesmo se não tivesse coragem de se matar. Existem muitas pessoas assim, Sarai. Prontas para morrer, mas com medo de se matar.

Ela não responde.

— Você acha que eles vão vir atrás da gente? — pergunta ela.

Abro a porta do meu lado, saio e dou a volta, abrindo a dela.

— Imediatamente, não. Ele teria feito isso antes que saíssemos de lá, se tivesse a intenção. — Estendo a mão para ela. Seguro seus dedos e ajudo-a a sair do carro.

Depois de fechar a porta, acrescento:

— Hamburg tem muito a perder. Mas isso não quer dizer que não bolará algum plano para se vingar de mim, de alguma forma que ele ache que não será associada a esta missão.

— Ou de mim — diz ela, e me olha desesperada. — Ele pode se vingar de mim.

Aperto duas vezes o alarme do chaveiro e o carro emite um bipe que ecoa pelo estacionamento.

Desta vez, eu não respondo.

Ando com ela até o elevador e nosso quarto, no último andar. Não penso muito em Arthur e Mary Hamburg, ou no que aconteceu esta noite. Penso sobretudo em Sarai e no que ela enfrentou comigo. Ela não morreu, mas sinto que morreu mais uma parte sua. E isso é cem por cento culpa minha. Eu sabia que não deveria tê-la levado. Tenho plena consciência dos meus atos e de como são indesculpáveis. Aceitei isso assim que Sarai não desistiu, na última chance que lhe dei. Deveria ter sido eu, naquele momento, a impedir que ela tivesse mais alguma coisa a ver com isso.

Eu escolhi outro caminho.

E não me arrependo.

Há mais coisas que Sarai e eu precisamos discutir, e espero que o modo como a toquei na suíte de Hamburg seja uma das primeiras. Eu me preparo para isso, mas, quando entramos no quarto, ela joga os sapatos de salto longe e me deixa atordoado quando diz:

— Quero matá-lo. — Ela se senta no pé da cama e vira a cabeça para me olhar, com uma determinação inabalável no semblante. — Aquele homem precisa morrer, Victor. Precisa pagar pelo que fez. Precisa pagar com a vida. Como ela pagou.

Aí está a prova. Sarai tem sangue de assassina; não há mais como negar. Sei que não fui eu que a deixei assim. Foi a vida, não eu. Mas sei que fui eu que tirei o véu de seus olhos, no fim das contas, e a fiz enxergar isso.

— É só uma questão de tempo até que o assassinato dele também seja encomendado — digo.

Tiro o paletó e a gravata, deixando-os nas costas de uma cadeira.

— A gente devia ter feito isso quando teve a chance — diz ela.

Abro os botões da camisa, olho para Sarai sentada ali, fitando a parede, e me pergunto de que maneira ela está considerando matar Hamburg. É algo sangrento. Vingativo. Tenho certeza disso.

Deixo a camisa na cadeira com o paletó e vou até ela, tirando os sapatos no caminho.

— Se tivéssemos feito isso esta noite — digo, me sentando no pé da cama ao lado dela —, não teríamos saído de lá vivos. Não fazia parte da missão. Cada missão tem que ser planejada com precisão. Se você se desvia de qualquer parte dela, suas chances de se expor ou de morrer triplicam.

Ficamos sentados em silêncio, ambos olhando para a frente, ambos perdidos em pensamentos. Eu me pergunto se os dela são sobre mim. Não consigo evitar que os meus sejam sobre ela.


CAPÍTULO TRINTA E OITO

Sarai

Não quero que Victor me deixe nunca. Eu não conseguia suportar essa ideia antes, mas agora... agora as coisas são muito diferentes. Nossas almas se tornaram íntimas, quer ele esteja disposto a admitir isso para si mesmo, quer não. Somos um só, e não quero imaginar ficar sem ele. Nunca.

— Sarai, sinto muito pelo que fiz.

Olho para ele. Sei a que se refere, mas ainda não tenho certeza de como responder.

— Espero que acredite quando digo que não tirei nenhum proveito. Foi só teatro. Espero que entenda.

Acredito nele. Sei que eu não conseguiria olhar uma pessoa normal nos olhos e contar o que aconteceu sem que ela pensasse que perdi o juízo ou que estou sofrendo da Síndrome de Estocolmo. Mas Victor poderia ter se aproveitado de mim muitas vezes. Poderia ter me estuprado. Poderia ter cedido nas poucas vezes que demonstrei minha atração por ele. Mas nunca fez isso e sempre me repeliu. Até algumas noites atrás, quando me enfiei na cama dele. Ele não me repeliu então, mas sei, no fundo, que estava até mais em sintonia com a raiva que eu sentia naquele momento do que eu.

Sem olhá-lo, pergunto em voz baixa:

— Se ele não tivesse aberto o quarto secreto a tempo... você ia me comer?

Noto que ele me olha, mas não retribuo o olhar.

— Não — responde ele em voz baixa, como eu. Ele suspira. — Sarai, eu não podia obrigá-lo a abrir a porta do quarto. Ele poderia ter digitado algum código de pânico e alertado os seguranças, ou...

Olho para ele, finalmente, bem nos olhos.

— Mas você ia querer?

Ele fica em silêncio. Vejo o conflito em seu rosto.

— Não ali — diz ele. — Não daquele jeito.

Tiro o vestido pela cabeça e o jogo no chão.

— E agora, pode ser? — pergunto.

Ele não responde, mas já aprendi, a essa altura, que a única maneira de conseguir o que quero dele é não desistir.

Eu me levanto da cama e fico de pé no meio de suas pernas. Suas mãos sobem lentamente pelas minhas coxas e ele passa os dedos pelo elástico da minha calcinha. Seus lábios tocam minha barriga, roçando a pele com a ponta da língua entre minhas costelas, tão suavemente que meu corpo todo fica arrepiado. Eu passo os dedos por seu cabelo enquanto ele desce a calcinha até meus pés.

Então monto no colo dele.

Eu o beijo delicadamente e sussurro mais uma vez:

— Pode ser, Victor Faust? Se é que esse é o seu nome. — Eu toco o lado de seu rosto com o queixo.

— Somente com uma condição — murmura ele, febrilmente, em minha boca.

— Que condição?

Ele beija meus lábios devagar.

— Que eu fique no controle desta vez.

Abro a boca perto da dele, provocando-o com um beijo que quero que ele tome de mim, meus dedos segurando suavemente seu queixo. Ele me olha nos olhos por um momento, lendo meus pensamentos. E então seus braços se fecham possessivamente ao redor do meu corpo, me apertando contra o dele. Seu beijo é faminto, seus dedos fortes afundam na pele das minhas costas e posso sentir a rigidez de seu pau tão distintamente através do tecido da calça que me faz tremer. Meus lábios se abrem e meu corpo todo estremece só de senti-lo ali, querendo-o dentro de mim mais do que acho que jamais quis qualquer coisa na vida.

Ele mergulha a mão pela minha nuca, forçando minha cabeça para trás e expondo meu pescoço à sua frente. Beija minha garganta, sobe em uma linha reta perfeita até encontrar minha boca de novo e prende meu lábio inferior entre os dentes.

Sinto dois de seus dedos me penetrando por baixo.

Eu gemo, com a cabeça ainda forçada para trás em suas mãos, e pressiono delicadamente meu quadril contra seus dedos.

— Quero você dentro de mim — digo, sem fôlego.

Porra, eu não aguento mais.

Com os lábios nos dele, nossas línguas quentes entrelaçadas, mexo no botão de sua calça e puxo o zíper para baixo.

Ele vira o corpo e me joga na cama, ficando por cima, e não interrompe o beijo enquanto tira a calça com uma das mãos. E quando sinto o calor de seu corpo nu, eu o envolvo com as pernas, apertando-o com as coxas, puxando-o em minha direção para sentir seu pau ereto contra minha umidade. Sua boca procura meu pescoço e meu peito até que seus dentes acham meus mamilos, e ele os morde com força o suficiente apenas para me fazer gemer.

— Isso vai contra tudo o que sou, Sarai — diz ele, e então me beija.

— Não, não vai — murmuro, retribuindo os beijos. — É você virando mais você mesmo.

Então ele desliza o pau para dentro de mim, devagar. Eu já mal consigo manter os olhos abertos. Minhas pernas tremem e meu corpo estremece com pequenos espasmos que explodem e se infiltram em minhas entranhas. Gemo alto e levanto os quadris para forçá-lo a meter mais fundo.

Nunca imaginei que sexo pudesse ser assim, que o modo como meu corpo está reagindo ao dele pudesse ser assim.

Ele ergue o corpo de cima do meu, ainda de joelhos entre minhas pernas, e agarra minhas coxas com força, me puxando para perto. Ele me fode devagar a princípio, tão devagar que me deixa louca. A cada arremetida, vai mais fundo, até que minhas coxas estão tremendo e não consigo mais mantê-las firmes ao redor de seu corpo. Minha nuca se arqueia no travesseiro e eu gemo, grito e cravo os dedos na carne de seus quadris. Ele começa a me foder mais forte e agarro o travesseiro antes de apertar as mãos na cabeceira, me forçando contra ele, sentindo seu pau crescendo dentro de mim.

Ele desaba em mim de novo e eu sinto sua boca úmida em meus seios. Em minha garganta. Em meus lábios. Seu peito arfa com a respiração ofegante, e sinto seu coração batendo contra o meu. Ele começa a diminuir o ritmo, e, enquanto me fode devagar, com um beijo profundo, quente e faminto, enfia uma das mãos entre minhas pernas e toca meu clitóris de um jeito firme e persistente. Afundo os dedos no cabelo dele, puxando-o com força, gemendo em sua boca, saboreando sua língua.

Tão sintonizados um com o outro, gozamos juntos. Ele sai de mim para gozar fora, mas não para de mover os dedos até que meu corpo trêmulo finalmente relaxe e minhas pernas bambas se dissolvam em geleia envolvendo as dele.

Ele deita a cabeça suada em meus seios e eu passo os dedos por seu cabelo. Ficamos assim boa parte da noite, em silêncio e pensando.

E eu só consigo pensar em como nunca mais quero sair deste quarto.

~~~

Estou deitada, embrulhada nos lençóis com Victor. As cortinas da janela estão totalmente abertas, e olho através do quarto para o céu azul-escuro, fracamente iluminado pelas luzes da cidade lá embaixo. Victor adormeceu algum tempo depois de fazer amor comigo. Fazer amor? Não sei ao certo se entendo o verdadeiro significado dessa expressão. Não acho que essa coisa entre nós seja amor, ou mesmo desejo. É algo diferente, algo poderoso e inconfundível que nenhum de nós dois conseguiu ignorar. Mas não tem um rosto. Nem um nome. Talvez ele não tenha feito amor comigo, mas tampouco me fodeu.

Foi, definitivamente, outra coisa.

Ouço seu coração batendo calmamente sob minha bochecha. Sinto sua respiração suave em meu cabelo. Seu corpo é muito quentinho, quase febril, quando estou aninhada em seus braços. Seu cheiro natural é tênue, mas reconfortante, e me atrai para ele como uma abelha para o néctar.

— Para onde vou agora? — Sussurro meus pensamentos em voz alta e me enrosco mais nele quando não obtenho uma resposta.

— Vamos pensar em algo — diz Victor, e seu braço me aperta delicadamente.

Eu não fazia ideia de que ele estava acordado. Levanto a cabeça de seu peito e me deito em seu braço, para poder olhá-lo no rosto.

— Você não vai embora?

É um tiro no escuro, mas estou esperançosa.

Um segundo de silêncio, e seu peito nu sobe e desce com a respiração profunda e regular.

— Sarai, você sabe que não posso levá-la comigo — diz ele, e meu coração afunda. — Isso não é realista. Minha vida está na Ordem. Sempre esteve. Não seria como acordar um dia e decidir que odeio meu emprego e quero encontrar algo melhor. Se eu resolvesse deixar a Ordem, porque é exatamente isso que eu teria que fazer, o próximo assassinato a ser encomendado seria o meu. E o seu.

Quero chorar, mas não choro.

Volto a deitar a cabeça em seu peito, desanimada demais para encará-lo. Olho para o quarto espaçoso, os dedos apoiados em seu peito.

— Acho que a única coisa que posso fazer é deixar você viver sua vida...

— Mas...

Ele me abraça de novo.

— Deixar você viver sua vida — continua ele —, mas vou visitá-la de vez em quando. Para ver se você está bem, se está a salvo e se tem tudo de que precisa.

Não estou satisfeita com isso, mas também sei que é só o que vou conseguir dele. E é melhor do que nada. Ele está certo, e não posso negar. Quero estar com ele sempre, de qualquer maneira que ele se permitir me ter, mas não posso esperar que ele arrisque nossa vida para que isso aconteça.

Preciso deixá-lo ir...

— Isto é, se você quiser que eu a visite — diz ele.

Detecto uma mudança no clima para algo mais leve. Acho isso estranho, vindo dele. Eu me levanto, me apoiando em um braço para olhá-lo.

Ele está sorrindo. Não apenas com os olhos, mas com os lábios também. Eu o acho tão lindo! Tão perigosamente lindo!

Entro no clima e bato de brincadeira no quadril dele com a mão livre, rindo baixinho.

— É claro que eu quero — digo.

Então ele segura meu pulso e me tira cuidadosamente de cima de seu peito. Passa a ponta dos dedos em um lado do meu rosto e depois no outro, o tempo todo me olhando nos olhos, mas vendo além deles. Eu me pergunto o que ele procura em suas profundezas. Seja o que for, espero que nunca encontre, para que possamos continuar assim para sempre.

Ele coloca as mãos no meu rosto e puxa meus lábios para os dele.

— O que você fez comigo? — pergunta ele.

— Eu ia perguntar a mesma coisa.

Mordisco seu lábio inferior. Ele pressiona o pau em mim de leve.

— Parece que criamos um probleminha — diz ele, empurrando com mais força.

Eu faço o mesmo. Gemo baixinho, sentindo calafrios e calor se espalhando por minha pele.

Ele me beija, mas então afasta um pouco a boca da minha, me provocando. Eu levanto o corpo, apertando os seios contra seu peito, querendo saborear sua boca, mas ele cede apenas um pouquinho. Ele pressiona o quadril de novo, mantendo o pau contra mim, apertando minha bunda com suas mãos firmes. Ele está muito duro. Eu o quero. Minha boca fica entreaberta e meu hálito escapa dos lábios.

— Quer que eu coma você? — murmura ele. — É isso que você quer?

Gemo alto com suas palavras ao meu ouvido. Não consigo responder. Não consigo pensar direito.

— Você quer, Sarai? — insiste ele, o calor de seu hálito dançando em meus lábios abertos.

Eu forço meu quadril contra o dele, tentando me posicionar sob seu pau de modo que ele entre sem que precisemos usar as mãos.

— Sim — gemo. — Me fode como você ia foder a Izabel.

— Tem certeza?

— Sim...

Não consigo respirar.

— Repete... Izabel.

Meus olhos se abrem pesadamente e eu o encaro. Respiro, arfante, pela boca. Victor toca os lábios nos meus.

Antes que eu possa responder, ele se senta na cama, me mantendo no colo. A ponta de sua língua percorre minha clavícula. Meus seios estão esmagados nas mãos dele.

— Diga, Izabel — exige ele, passando a língua em um mamilo meu. — Diga que quer que eu foda você.

— Eu quero que você me coma.

Ele prende o cabelo da minha nuca em sua mão e se levanta da cama, com minhas pernas em volta de seu quadril escultural.

Ele me carrega até a mesa perto da janela e me força a ficar curvada sobre ela, de barriga para baixo. Meus braços se estendem à frente, derrubando seu celular e sua arma no chão. Minhas mãos agarram a borda arredondada da mesa. Seus dedos afundam em meus quadris quando ele puxa meu corpo para trás, para perto de si. Ele aperta minha bunda. Com força. Eu inspiro rapidamente quando sinto suas mãos entre minhas pernas, me abrindo para ele. O calor do seu corpo rijo me engole quando ele se deita nas minhas costas, passando a ponta da língua por minha nuca. Sinto seu pau bem ali, esperando por mim, e tento me forçar para trás, na direção dele, mas sua mão segura minha nuca, pressionando minha bochecha contra o tampo da mesa.

— Por favor, Victor — digo ofegante, todo o meu corpo se abrindo para ele.

Grito e gemo alto quando ele me penetra, meus dentes se fechando em seu dedo indicador, enquanto sua mão aperta suavemente o lado do meu rosto.

Não, eu nunca imaginei que sexo pudesse ser assim...


CAPÍTULO TRINTA E NOVE

Sarai

Dormimos demais na manhã seguinte e somos acordados pela arrumadeira batendo na porta do quarto. Acho que ele não estava mentindo, na mansão de Hamburg, quando disse que sempre perde voos de manhã se não dorme o suficiente na noite anterior. Ou talvez tenha sido só culpa minha. Acho que baguncei totalmente sua rotina.

Victor se levanta, e não posso deixar de admirar sua forma nua, antes que ele se vista rapidamente. Ele abre a porta para avisar à arrumadeira que vamos sair tarde e que ela não volte por pelo menos uma hora. Eu não quero ir a lugar nenhum. Depois da noite passada, só quero...

— Se prepare para sair — diz ele, voltando para dentro do quarto. — Vou levar você para ficar com uma mulher que conheço em San Diego. Você vai ficar segura lá até eu organizar o resto, instalar você em um lugar só seu. Mas agora preciso ligar para Niklas, para contar da noite passada. E tenho certeza de que em breve viajarei para a Alemanha para me encontrar com meu empregador.

Eu só quero falar sobre a noite passada, ou repetir a noite passada agora mesmo.

— Isso não me parece bom — digo ao sair da cama. Tive uma sensação ruim quando ele falou de se encontrar com seu empregador.

Ele calça os sapatos e deixa as bolsas ao pé da cama.

— É, geralmente não é bom mesmo — diz ele, remexendo na bolsa. — Estas últimas duas missões levantaram muitas questões sobre mim e minha capacidade de executá-las conforme as ordens. Vou ter que me encontrar cara a cara com ele para dar uma explicação mais detalhada do que aconteceu e por que foi do jeito que foi.

— O que vai dizer sobre mim? Você acha que ele sabe que ainda estou viva?

Ele pega um punhado de balas e começa a carregar sua 9mm.

— Vou pensar nisso no caminho.

Isso também me dá uma sensação ruim.

— Tudo bem, e quem é essa mulher em San Diego? — Olho para ele agora, desconfiada. — Não é alguém que você...?

— Não — diz ele, escondendo a arma na parte de trás da calça. — Ela não tem nada a ver com a Ordem e não sabe nada sobre o que eu faço. É só uma amiga. Conheci essa mulher e o marido dela em uma missão, há cinco anos. É uma longa história, mas não, não é nada assim.

— E o marido dela?

Ele me olha mais uma vez.

— Não está mais lá — diz Victor.

— Por que não? Ele morreu? Eles são velhos?

Não consigo deixar de fazer todas essas perguntas; quero saber todo o possível sobre o lugar para onde ele vai me levar.

Victor faz uma pausa e então diz:

— Sim, ele morreu. Ele era meu alvo.

— Ah...

Não me sinto tão confiante quanto a ir para lá, agora.

— Você vai ficar bem — diz Victor, notando a preocupação em meu rosto. — Ela não sabe que fui eu.

Ele se aproxima de mim e põe as mãos em meus ombros.

— Vou descer para a recepção, pagar pelo quarto e ligar para Niklas. — Ele se curva e me beija na testa. — Sem pressa. Volto daqui a uns minutos e saímos.

Faço que sim, olhando-o nos olhos.

— Tudo bem.

Victor sai do quarto. Pego um vestido mais informal desta vez, uma calcinha limpa e vou para o chuveiro.


Victor

Niklas está furioso comigo. Consigo ouvir isso em sua voz, embora esteja se esforçando para não ser óbvio, o que já é pouco característico dele.

— Você disse que faria contato comigo assim que a missão acabasse — diz Niklas pelo telefone. — Se ela foi cumprida ontem à noite, como planejado, então por que só está me ligando agora, meio dia depois?

Solto o ar pelo nariz.

— Aceite isso pelo que é, Niklas — digo, ficando tão irritado com ele quanto ele está comigo. — Você precisa parar de se preocupar tanto comigo.

— Eu sou seu contato — dispara ele.

— Sim, mas esse seu lado que se tornou tão dolorosamente meticuloso sobre como eu escolho fazer as coisas é meu irmão. Talvez você devesse se reaproximar do seu lado contato, assim ambos poderemos voltar a ter um relacionamento mais simples, estritamente profissional.

— Entendi — diz ele. — Você não precisa mais de um irmão, agora que tem aquela garota. Obviamente, ela ainda está viva.

Eu deveria ter previsto isso, mas não previ.

— Você não foi substituído, muito menos por uma mulher — digo.

Talvez Sarai não tenha substituído meu irmão, mas ela se tornou algo muito maior para mim, e eu não consigo explicar. Nem para mim mesmo, e certamente não para Niklas.

— Tenho novas ordens — anuncia Niklas, abandonando o assunto desagradável. — São de última hora, mas acho que é melhor executá-las antes de ir para a Alemanha encontrar Vonnegut. Não lhe dê mais motivos para duvidar de suas habilidades.

— É uma missão?

— Vai ser — diz ele. — A pessoa está aí em Los Angeles e quer se encontrar com você.

— Isso não é padrão — digo. — Primeiro Javier Ruiz, agora esse aí quer se encontrar cara a cara?

Prefiro lidar apenas com Vonnegut e nunca me encontrar pessoalmente com os clientes, mas, infelizmente, às vezes é preciso correr riscos maiores.

— Ela é uma mulher muito meticulosa — diz Niklas.

— Quais as ordens?

— Encontre-a na frente do número 639 da South Spring Street. Ela estará de blusa branca, com um broche prateado em forma de borboleta no seio esquerdo. Estará lá à uma e meia da tarde.

— Isso é daqui a menos de uma hora — digo, olhando para o relógio na parede do saguão.

Baixo a voz para um sussurro quando um hóspede do hotel passa.

— Você tem tempo mais do que suficiente para chegar lá do hotel — diz ele. — E, por favor, desta vez entre em contato comigo assim que a reunião acabar.

Suspiro silenciosamente.

— Pode deixar — digo, e desligo o telefone.

Depois de pagar mais uma diária do quarto, já que pelo visto ficaremos aqui mais do que uma hora, subo pelo elevador para informar Sarai de nossa pequena mudança de planos. Depois saio, deixando-a no quarto para ir me encontrar com a cliente. Dirijo até o local, chegando alguns minutos antes, e estaciono em um terreno baldio a alguns metros de onde vou encontrá-la.

Fico dentro do carro e espero.

E, na verdade, só consigo pensar em Sarai.


Sarai

Nunca estive em San Diego. Tecnicamente, esta é minha primeira vez na Califórnia. Eu me pergunto como será essa mulher, o que ela sabe, como ela e Victor ficaram amigos. Tenho muitas perguntas, como sempre, e não vou permitir que Victor me deixe sem as respostas no caminho até lá.

Passo a mão no espelho do banheiro, abrindo uma faixa na umidade que embaça o vidro. E sorrio para meu reflexo. Pela primeira vez desde que conheci Victor, estou começando a me sentir contente, aliviada pela perspectiva de futuro. Porque antes eu só conseguia ver trevas, um vazio sem começo nem fim, apenas incertezas. Mas agora tenho algo pelo que esperar. Tenho um propósito. E não vou desperdiçar um só segundo.

Enxugo o cabelo, espremendo-o com uma toalha, e depois a prendo precariamente na nuca. Depois de me enxugar e me vestir, vou para o quarto, e estou para ligar a TV quando alguém bate na porta. Olho para o relógio ao lado da cama.

Ainda não passou uma hora.

Deixo o controle remoto na cama e vou até a porta para atender, mas quando ponho a mão na maçaneta, a voz do outro lado me imobiliza:

— Sou eu, Niklas. Victor mandou vir buscar você.

Meus dedos soltam a maçaneta muito lentamente. Dou um passo para longe da porta.

Ele bate de leve mais uma vez.

— Você está aí? Sarai? Anda, me deixa entrar. Sei que você me despreza, e, sinceramente, eu preferia estar tomando cerveja em algum barzinho, mas Victor precisava da minha ajuda.

Ele está mentindo. Victor me avisaria se tivesse mandado Niklas para cá. Teria me contado antes de sair ou teria ligado.

Olho para o telefone perto da cama. Talvez ele tenha ligado enquanto eu estava tomando banho.

Dou mais um passo para longe da porta, meus instintos me puxando para trás como uma dúzia de mãos estendidas. Mais uma série de batidas, depois silêncio. Fico no meio do quarto, perfeitamente imóvel, perfeitamente em silêncio. O único som que ouço é um zumbido fraco vindo de uma lâmpada. Ando rapidamente pelo quarto, encosto o rosto na porta e tento espiar pelo olho mágico. A parte do corredor que consigo ver está vazia. Ele foi embora. Mas, se foi mesmo, por que ainda tenho tanto medo de que ele esteja lá fora, escondido, esperando que eu saia para olhar? Aperto o rosto de lado no olho mágico, tentando ver melhor à direita e à esquerda. Então ouço vozes e vejo uma sombra se movendo na parede. Meu coração acelera e eu prendo a respiração até que dois homens passem. Solto o ar devagar e profundamente.

Mas o alívio dura pouco, pois vejo Niklas de novo.

Dou um salto para trás, me afastando rapidamente da porta, e vasculho a bolsa de Victor, procurando a arma de Arthur Hamburg. Victor a deixou para mim. Só por precaução. Mas sinto que ele a deixou como precaução contra Arthur Hamburg. Não contra seu irmão.

Não há nenhum esconderijo neste lugar. Absolutamente nenhum espaço onde Niklas não possa me encontrar em menos de um minuto.

Inspiro rapidamente ao ouvir o barulho de um cartão sendo passado na fechadura eletrônica e destrancando-a. Ele deve ter pego a chave-mestra da arrumadeira. Em meio segundo, e tarde demais para que eu perceba e conserte meu erro, vejo que a corrente da porta ainda está destrancada. Corro até lá, no fundo sabendo que não chegarei a tempo de prender a corrente no lugar antes que Niklas esteja dentro do quarto. E quando a porta se abre, caio contra a parede atrás dela, segurando a arma com as duas mãos contra o peito, o coração bombeando sangue tão rápido pelas veias que o canto do olho treme e sinto a jugular latejando.

A porta se fecha e se tranca automaticamente, e Niklas e eu ficamos frente a frente, cada um apontando sua arma para o outro.

— Ah, aí está você — diz ele, com aquele olhar fulminante que mostra o quanto me odeia.

Mantenho o dedo no gatilho e, embora esteja tremendo, consigo manter a arma firme e apontada para a cabeça dele.

— Eu vou matar você — aviso.

— Sim, eu sei — diz ele, emanando muito mais autoconfiança do que eu. — Afinal, foi você que atirou em Javier Ruiz. — Ele suspira dramaticamente e balança a cabeça. — Sarai, quero que você saiba que isto não me dá prazer, matar mulheres inocentes. Eu nunca quis matar ou machucar você, aliás, mas o que você fez com meu irmão... bem, não posso admitir isso.

Mantenho a arma apontada para ele e o dedo firme no gatilho e começo a me afastar da porta. Ele se move comigo.

— Que lhe importa o que Victor faz com a vida pessoal dele?

Ele inclina a cabeça.

— Victor não tem vida pessoal. Nenhum de nós pode ter. É como água e óleo. Você já deve saber, a essa altura.

— Ele vai me levar para algum lugar hoje — digo rapidamente, perdendo qualquer autoconfiança que eu tinha, que já não era muita. — Vai se livrar de mim. Já me falou que não posso ficar com ele. Por que você não pode deixar as coisas assim? Ele vai fazer o que você quer.

— Não é o que eu quero, Sarai. — Conseguimos ir para bem longe da porta, e estamos no meio do quarto agora. — Eu só estou tentando protegê-lo. Ele é meu irmão, caralho! — Sua fúria repentina me faz tremer. Noto que seu dedo no gatilho se agita.

— Niklas, por favor, me deixe ir embora. Você tem razão e eu sei. Já sei há algum tempo que só estou dificultando as coisas para Victor.

— Ele vai morrer por sua causa! — grita Niklas, forçando as palavras por entre os dentes, a arma na minha direção. — Mesmo se ele a deixar hoje, mesmo se ele nunca mais vir você, porra, mesmo se ele matar você, o que já aconteceu é suficiente para a Ordem mandar matá-lo! Você não entende? — Seu rosto está vermelho de raiva; sua expressão, distorcida pela dor. — Eles vão matá-lo! Se for para a Alemanha, ele está morto, Sarai. Ele lhe contou isso? Aposto que não contou.

Não quero acreditar nisso. Balanço a cabeça e quase perco a concentração, apertando a arma com mais força.

— Você não tem como saber isso — digo, mas no fundo acredito nele. — Se é verdade, então por que ele vai?

Um sorriso irônico curva o canto da boca de Niklas. Ele cerra os dentes por trás dos lábios fechados.

— Porque Victor é teimoso — diz ele. — E confia um pouco demais em Vonnegut. Victor sempre foi o Número Um dele, sempre foi o melhor. Ele é melhor no que faz do que todos os comandados de Vonnegut que vieram antes, e ainda é o melhor. Mas ser o melhor não o torna imune ao Código. Ele já fez tanta merda desde que se envolveu com você que não haverá justificativa.

— Então me deixe falar com ele...

— Você já fez o suficiente! — ruge ele.


CAPÍTULO QUARENTA

Victor

A cliente está atrasada. Cinco minutos, mas até um minuto, para alguém que Niklas descreveu como “meticulosa”, não me cheira bem. Mais dois minutos e vou embora.

Observo pessoas andando na rua e as analiso, das roupas que usam até a posição da cabeça quando falam com quem está andando ao seu lado. São realmente apenas turistas ou residentes? Ou são iscas? Espiões? Cuidado nunca é demais. Isto pode ser uma cilada, como qualquer outra missão, mas as missões como esta causam um nó de incerteza na boca do meu estômago...

Espere...

Relembro a conversa telefônica com Niklas, mais cedo:

— Encontre-a na frente do número 639 da South Spring Street. Ela estará de blusa branca com um broche prateado em forma de borboleta no lado esquerdo do peito. Estará lá à uma e meia da tarde.

— Isso é daqui a menos de uma hora — digo.

— Você tem tempo mais do que suficiente para chegar lá do hotel.

Eu tinha tempo mais do que suficiente para chegar aqui do hotel...

Seguro o volante com as duas mãos, a mente correndo a 100 quilômetros por segundo. Como Niklas podia saber disso? Ele não fazia ideia de onde, em Los Angeles, Sarai e eu estávamos hospedados. Não teria como saber se eu conseguiria chegar a este endereço nesse período de tempo.

A menos que ele já soubesse exatamente onde a gente estava.


Sarai

— Niklas... se você me matar, vai transformar seu irmão em um inimigo. — Minha garganta está seca como uma lixa; meus pulmões, pesados. — Se tudo o que você está dizendo é verdade, se o destino de Victor já está selado, então de que adiantaria me matar? — Levanto a voz, motivada pelo desespero e pelo medo. — Não vai resolver nada!

Ele não quer me matar. Não sei se é por causa do que eu falei, sobre transformar Victor em um inimigo, ou se está apenas em conflito, mas, seja o que for, é a única coisa que está me mantendo viva no momento.

— Olhe o que você fez! — Ele balança a arma no ar, na minha direção, apertando tanto o cabo que os nós dos dedos estão brancos.

Ele avança. Eu ando para trás.

— Niklas... por favor — imploro. Não quero atirar nele. Sei que o mais provável é que ele me mate, mas não quero atirar nele.

A raiva lampeja em seus olhos em um instante e ele ergue o queixo em desafio, com os dentes cerrados, os olhos apertados e as narinas abertas.

Sim, ele quer me matar, no fim das contas.

A porta se abre e escuto um tiro quando Niklas vira a cabeça para ver Victor invadindo o quarto. E então outro tiro com silenciador atravessa o quarto, mas Niklas, já correndo também na direção de Victor, consegue evitar ser atingido, e ouço a bala cortando o ar a palmos de mim e penetrando a parede.

A arma escapa da minha mão e caio de joelhos. Levo alguns segundos até perceber que fui atingida, e quando percebo, sinto a dor queimando meu estômago. Sangue quente empapa o tecido do meu vestido. Eu caio de lado, com as mãos pressionando o ferimento com firmeza.

A mesa em minha frente balança na base de madeira quando Victor e Niklas caem em cima dela. Minha pequena caixinha de joias cai no chão, se abrindo e espalhando o conteúdo. Victor, por cima de Niklas, cobre o irmão de socos, golpe após golpe, até que a mesa não suporta mais o peso dos dois e desaba de lado, jogando ambos no chão. O abajur alto que ficava atrás da poltrona bate na mesa, arrancando o fio da tomada e partindo a lâmpada em mil pedaços.

Niklas está em cima de Victor agora, batendo sem parar no rosto dele, mas Victor o segura pela garganta e o levanta, jogando-o com força no chão, de costas. Então se levanta e dá um chute no rosto de Niklas, antes de abrir caminho pelo quarto para pegar sua arma.

Em segundos, ele está por cima do corpo vencido do irmão, com o cano da arma apontado para seu rosto.

— Victor, não faça isso! — consigo gritar em meio à dor.

Ele pisca para voltar a enxergar, depois de ficar momentaneamente perdido em uma fúria cega, e olha para mim.

— Por favor, não o mate — peço novamente, em voz baixa e desesperada.

— Ele tentou matar você — diz Victor, olhando para mim com uma expressão confusa, como se não conseguisse acreditar no que estou dizendo. — Atirou em você.

Com a mão direita, aperto o ferimento com força, o sangue escapando pelos dedos. Estou começando a ficar zonza.

— Victor, ele é seu irmão. Só está aqui porque estava tentando proteger você.

Seus olhos correm entre mim e Niklas, nós dois deitados, ensanguentados e indefesos no chão, em lados opostos do quarto. Seu rosto está cheio de conflito, dor e coisas que nem posso entender, porque nunca tive um irmão ou uma irmã, não sei como é ser amado dessa forma. Talvez Victor também nunca tenha sabido, até agora.

Tento levantar a cabeça, mas estou tão fraca que meu rosto continua no carpete puído.

— Niklas é tudo o que você tem, o único da sua família que restou — digo. — Eu faria qualquer coisa para ter alguém que gostasse de mim tanto quanto ele gosta de você. Qualquer coisa.

O quarto fica muito silencioso. Posso ver os olhos de Victor ficando cheios de... não tenho certeza. Nem sei se ele está mesmo olhando para mim. Acho que consigo ouvir Niklas falando, mas o som é abafado e distante em meus ouvidos. Vejo o teto agora. Só o teto. Observo milhares de buracos minúsculos se abrindo e vejo cada um deles se aproximar de mim. Aquele calor. O que é esse calor que sinto ao meu redor, como um cobertor?

— Sarai? — ouço uma voz chamar, mas de quem é, não sei dizer.

Só vejo escuridão. Tento abrir os olhos, mas estão pesados demais.

Ouço a voz de novo, e uma pontada de dor atravessa meu corpo quando sinto que estou sendo carregada. Tento gritar, mas acho que ninguém consegue ouvir minha voz.

Eu tento gritar...


CAPÍTULO QUARENTA E UM

Sarai

Parece que estou sonhando há dias. A série constante de imagens e vozes ao meu redor sempre soa calmante, mas persistente. As imagens, são elas que me dizem que isto não é real, porque todos que vejo já estão mortos. Javier. Izel. Lydia. Samantha. Minha mãe. Todos passam por mim em uma espécie de transe silencioso e contemplativo, como se eu nem estivesse aqui. Quase consigo tocar o cabelo da minha mãe quando ela passa.

Devo estar sonhando.

Mas os sonhos estão se esvaindo lentamente, e as vozes estranhas e pouco familiares que ouço começam a ficar mais distintas. Eu me sinto presa dentro da minha mente, e ela esqueceu como controlar meu corpo. Porque não consigo mexer nada. Nem os olhos, os lábios ou as mãos. Não consigo nem saber se estou respirando sozinha. Mas, sobretudo, penso nas vozes, em como estão ficando mais claras. Eu me descubro me concentrando o máximo que posso para entender as palavras, mas nunca vou além do som.

Até que ouço a voz de Victor a distância.

— Não vou ficar muito tempo aqui, hoje — eu o ouço dizer a alguém.

Tento acordar, mas acho que o esforço tem o efeito contrário, porque em um instante sou engolida pela escuridão e todas as vozes desaparecem.

Mais tempo se passa. Mais sonhos. Mais vozes.

E então, do nada, como se um interruptor fosse acionado em meu cérebro, minhas pálpebras se abrem e vejo que estou deitada em uma cama de hospital.

Victor está sentado ao meu lado em uma cadeira.

— Você acordou — diz ele, e sorri para mim.

— Quanto tempo fiquei sem acordar? — Ainda estou tentando organizar meus pensamentos.

— Três dias — diz ele. — Mas você vai ficar bem. Mantiveram você sedada a maior parte do tempo.

Tento erguer as costas do travesseiro, mas a dor na barriga é forte demais. Faço uma careta e ergo as mãos para o lugar que está doendo, mas Victor as segura e me faz relaxar.

— Você ainda não pode se mexer — diz ele, ficando de pé.

Ele pega o travesseiro extra de uma poltrona próxima e o posiciona atrás da minha cabeça. Então aperta um botão na lateral da cama para levantá-la e me pôr sentada. Um tubo de soro serpenteia das costas da minha mão, preso à pele com esparadrapo. Coça demais.

— A bala não atingiu nenhum órgão — diz Victor, ao se sentar novamente na cadeira. — Você teve sorte.

O rosto de Niklas aparece em minha mente.

— Ou seu irmão é ruim de pontaria.

Olho para meus braços apoiados na cama, dos lados do corpo. Quero saber o que aconteceu com Niklas e sinto que deveria torcer para que ele esteja morto, mas não consigo.

— Ele está...?

— Não — diz Victor. — Metade de mim queria matá-lo, mas a outra metade não conseguiu. Só me pergunto que metade teria ganhado se você não estivesse viva naquele momento.

Mexo a mão alguns centímetros na cama em busca da dele. Ele entrelaça os dedos nos meus.

— Fico feliz que você não tenha feito isso — digo, forçando um sorriso fraco. — Eu não conseguiria suportar ser o motivo de você matar seu irmão. E-eu nunca deveria ter me colocado entre vocês. Não sabia o que eu estava fazendo, Victor, me desculpe.

Ele aperta minha mão.

— Você fez algo que ninguém mais conseguiria — diz ele, e espero ansiosamente que ele me conte o que poderia ser. — Você me fez lembrar que eu tenho um irmão, Sarai. Ele e eu praticamente nos sentamos à mesa, lado a lado, como estranhos, nos últimos 24 anos. E vejo agora que, apesar de seus defeitos, ele nunca me traiu, nem uma só vez.

Victor faz uma pausa e desvia o olhar.

Então me olha de novo.

— De certa forma, ele me traiu quando foi lá para matar você — continua ele. — E me traiu quando me enganou para chegar até você. Sim, isso é uma traição. Mas é um tipo muito diferente de traição.

— Eu sei — digo. — Olhe para mim. — Ele olha. — Você agiu certo. Independentemente do que ele fez comigo, você agiu certo, e não quero que nunca pense diferente.

Ele não fala, mas conheço essa expressão, é o conflito que está sempre ali. Eu me pergunto se um dia ele vai se livrar disso.

Então diz:

— Mas você fez outra coisa que ninguém jamais conseguiu. — Sua expressão se abranda e meu coração derrete aos poucos. — Você me fez sentir emoções de verdade. Você me destravou.

Estendo a mão e toco seus lábios, segurando seu queixo.

Mas o assunto muda rápido demais.

— Niklas nunca mais vai machucá-la — diz ele. — Ele me deu a palavra dele. Além disso, ele sabe que, se tentar uma próxima vez, não vou hesitar em matá-lo. — Então, de repente, ele acrescenta: — Para mim, você é tão importante quanto ele.

Fico atordoada.

Victor se levanta e vai até a janela, cruzando os braços e olhando para o dia luminoso. Percebo que há muitas coisas que ele quer dizer, tantas pontas soltas que gostaria de amarrar comigo. Mas as coisas mudaram desde que Niklas atirou em mim. Sinto isso. E não vou mais brigar com ele, porque sei que precisa ser do jeito que é, precisa terminar do jeito que vai terminar.

— Não espero ver você de novo, Victor, e entendo. — Engulo em seco. Não quero dizer essas palavras. — É melhor assim, eu sei.

— Sim, infelizmente, é — diz ele com voz distante, de costas para mim. — Não posso manter você a salvo com a vida que levo. Eu queria, mas no fim não consegui. Sabia que não conseguiria, mas eu...

Espero em silêncio.

— ... mas eu errei — diz ele, embora eu sinta que ele quisesse dizer outra coisa. — Sinto muito, mas não há outro jeito.

Meu coração está se partindo...

— Prometa uma coisa — digo, e ele vira a cabeça para me olhar. — Não vá para a Alemanha. Não vá ver aquele homem, seu empregador ou sei lá que diabos ele é. Niklas me contou o que vai acontecer se você for. Por favor, não vá...

Eu o ouço suspirar baixinho, e ele olha de novo pela janela.

— Não posso prometer isso — diz ele, e meu coração se esmigalha. — Mas posso prometer que não vou ficar parado e deixar que alguém me mate.

Isso não me faz sentir nem um pouco melhor, mas sei que é tudo o que ele vai me dar.

Victor sai de perto da janela e tira um pacote de uma maleta que está na mesa próxima. Ele vem até meu lado e o coloca em minha mão. É uma caixa preta comprida embrulhada em um papel esfarrapado, que foi coberto com fita adesiva em algum momento. Tiro a caixa do embrulho e abro a tampa. Dentro há um maço de notas de dinheiro, com um envelope que foi dobrado para caber, e mais alguns pedaços de papel.

— O que é tudo isto?

— Sua verdadeira certidão de nascimento, cartão da Previdência, carteirinha de vacinação, com algumas vacinas faltando que você precisa tomar logo. — Ele aponta para o envelope dobrado, que estou abrindo para ver o que contém.

Olho primeiro minha certidão de nascimento. Sarai Naomi Cohen. Nascida em 18 de julho de 1990, em Tucson, Arizona. Repito meu nome completo mentalmente três vezes, só para que me pareça real, como parecia antigamente.

Não parece.

— Como conseguiu isto? — Olho para Victor.

— Tenho meus meios — diz ele, com um sorriso no olhar. — Também abri uma conta bancária no seu nome. Os detalhes estão nos outros documentos da caixa.

— Obrigada, Victor — digo, deixando minha certidão de nascimento no colo. — Por tudo.

Digo isso com sinceridade. Eu já teria morrido muitas vezes se não fosse por ele. Mas dizer essas coisas para ele, essas despedidas, está destruindo cada pedacinho que restava do meu coração.

— Quando você vai embora? — pergunto.

Na verdade, não quero saber a resposta.

Coloco os documentos no envelope e os fecho na caixa.

— Daqui a alguns minutos — diz ele, e engulo as lágrimas. Quero ser forte, porque sei que isso também é difícil para ele. — Mas falta mais uma coisa, antes que eu vá.

Ele vai até a porta e a abre. Entra a sra. Gregory. Fico tão chocada que a única parte do meu corpo que se move são as lágrimas escorrendo por meu rosto. Minha mão vai à boca. Meus olhos vêm e vão entre os dois, que estão sorrindo; Victor menos, mas sorrindo também.

A sra. Gregory, parecendo bem mais velha do que eu lembrava, vem até a cama de braços abertos e me envolve em um abraço. Ela cheira a perfume Sand & Sable. O perfume de sempre.

— Ah, Sarai, senti tanto a sua falta. — Ela me aperta de leve, sabendo fazer isso sem me machucar. Sua voz está carregada de emoção, mas ela está vibrando de alegria.

— Também senti sua falta — digo, retribuindo o abraço. — Achei que nunca mais fosse ver a senhora.

Ela se afasta e se senta ao meu lado na cama, passando seus dedos longos e enrugados por meu cabelo.

Mas então meu sorriso desaparece e meu coração finalmente morre de vez quando olho para onde Victor estava e vejo que ele se foi. Por um longo momento, as coisas que a sra. Gregory me diz soam abafadas, empurradas para algum lugar no fundo de minha mente. Quero pular as barreiras desta cama e correr atrás dele. Engulo em seco, contendo minhas emoções dolorosas no fundo da alma, e me controlo o melhor que posso, em consideração à sra. Gregory.

Eu me viro para ela e curto nosso reencontro.


CAPÍTULO QUARENTA E DOIS

Sarai

Isso foi há seis meses.

Hoje, a vida está bem diferente. A conta bancária que Victor abriu para mim tinha um saldo de 2 milhões de dólares. Apenas quando entrei no avião com a sra. Gregory, quatro dias depois que Victor partiu, encontrei forças para olhar os outros documentos dentro da caixa. Um tinha informações sobre a conta bancária, e no verso, escrito com a letra de Victor:

Seu pagamento pelo serviço.

Atenciosamente,
Victor

Ele me deu sua parte do dinheiro que Guzmán pagou para mandar matar Javier. Acho que é justo, já que tecnicamente fui eu que o matei.

Mas a vida com certeza está diferente. Estou morando novamente no Arizona, com a sra. Gregory. Em Lake Havasu City. E tenho dinheiro suficiente para não precisar trabalhar, mas, para manter a mente ocupada e tentar me conformar com esta vida de normalidade, trabalho à noite em uma loja de conveniência. A sra. Gregory não gosta disso. Fica com medo. Diz que é perigoso trabalhar em lugares assim, abertos a noite toda.

E não é que ela estava certa?

Fui assaltada na segunda semana ali, mas, enquanto o cara estava do outro lado do balcão me apontando aquela arma, eu só conseguia observar seus olhos. Quando ele baixou o olhar para o dinheiro que pus diante dele, empurrei a arma para o lado, consegui arrancá-la de sua mão e lhe dei uma coronhada no rosto. Foi idiotice, na verdade. Mas foi um instinto. Não me sinto muito intimidada por bandidinhos drogados que assaltam garotas em lojas de conveniência.

Isso é brincadeira de criança.

Mas com certeza também não sou algum tipo de valentona reformada, moldada pelas minhas experiências extraordinárias. Pergunte para a aranha que subiu em mim uma noite dessas enquanto eu estava lendo na cama. A sra. Gregory quase teve um ataque cardíaco com os gritos.

Fui para a escola para conseguir um diploma do supletivo e passei no teste dois meses atrás. Não foi muito difícil, embora eu tenha sofrido com a matemática. Agora estou cursando Ciências da Computação em uma faculdade pública, embora não saiba por quê. Não tenho nenhum interesse nisso na “vida real”, mas... bem, normalidade. Esse é meu pretexto para tudo hoje em dia, para sair com meus novos amigos, para fingir que me interesso pelos objetivos deles na vida. Eu me sinto uma pessoa detestável por ter que fingir essas coisas, mas não posso me obrigar a gostar de algo só porque eu deveria.

Mas nem tudo é tão insuportável. Eu adoro a sra. Gregory e passo a maior parte do tempo com ela. Ela tem uma artrite tão grave que seus dedos estão deformados e ela não consegue mais tocar muito piano, mas ainda me ensina e eu ainda toco, às vezes por horas, até ter cãibra nos dedos e dor nas costas. Finalmente aprendi a Sonata ao Luar. E cada vez que a toco penso em Victor e na noite em que ele se sentou comigo ao piano.

A saúde da sra. Gregory está piorando. Eu cuido dela, mas sei que não vai viver para sempre, e que um dia vou ficar sozinha de novo. Gosto de pensar que talvez Victor ainda esteja por aí, me vigiando, e às vezes engano minha mente, fazendo-a acreditar que ele está. Mas a verdade é que nem sei se ele continua vivo. Tento não pensar nisso, mas acabo pensando sempre, exceto quando estou perdida entre as notas do piano.

Sinto falta dele. Sinto muita falta dele. Há quem acredite que, quando duas pessoas se separam, com o tempo elas se curam. Começam a se interessar por outras pessoas. Tocam a vida. Mas comigo não aconteceu nada disso. Sinto um vazio mais profundo agora do que aquele que senti quando estava na fortaleza. Este é mais doloroso, mais insuportável. Sinto falta de tudo em Victor. E estaria mentindo se dissesse que não penso nele sexualmente todo santo dia. Porque eu penso. Acho que estou viciada nele.

Tem sido muito difícil, para mim, me acostumar com praticamente tudo, mas, de maneira geral, seis meses não é tanto tempo. Não em comparação com os nove anos que passei na fortaleza. Portanto, tenho esperança de que daqui a mais seis meses estarei melhor. Serei “normal”. Meus amigos, embora eu não possa contar a eles sobre minha vida — e acho que é por isso que é tão difícil ficar íntima deles —, são legais. Dahlia é um ano mais velha do que eu. Beleza média. Inteligência média. Carro médio. Emprego médio. Somos parecidas nessa coisa mediana, mas não poderíamos ser mais diferentes em todo o resto. Dahlia não se sobressalta com qualquer barulho que se pareça remotamente com um tiro. Eu sim. Dahlia não fica olhando por cima do ombro aonde quer que vá. Eu sim. Dahlia quer se casar e ter uma família. Eu não. Dahlia nunca matou ninguém. Eu mataria de novo.

Mas sou grata, por mais que sonhe em estar em outro lugar. Em ser outra pessoa. Sou grata porque consegui fugir. Sou grata porque estou em casa. Embora “grata” seja bem diferente de “satisfeita”, e, apesar de finalmente ter uma vida normal que muita gente adoraria ter, estou o mais longe possível de estar satisfeita.

Victor Faust fez muito mais do que me ajudar a fugir de uma vida de maus-tratos e submissão. Ele me mudou. Mudou a paisagem dos meus sonhos, os sonhos que eu tinha todo dia de levar uma vida normal e livre, por minha conta. Ele mudou as cores da paleta, de básicas para um arco-íris — por mais que as cores desse arco-íris sejam escuras —, e não há um dia em que eu não pense nele ou na vida que poderíamos ter. Embora perigosa e, no fim das contas, curta, é a vida que eu queria. Porque teria sido uma vida mais adequada a mim e, bem, teria sido uma vida com Victor.

A verdade é que não estou pronta para esquecê-lo...

— Aí está você — diz a sra. Gregory da porta do meu quarto. — Você vem comer?

Pisco e volto à realidade.

— Ah, sim. Já vou. Só preciso lavar as mãos rapidinho.

— Certo — diz ela; seu sorriso se ilumina.

Sou realmente a filha que ela nunca teve. E acho que posso dizer que ela é a mãe que eu nunca tive.

A sra. Gregory, ou Dina, sempre faz cachorros-quentes com chili nas noites de sexta. Nós nos sentamos à mesa da cozinha, assistindo à TV de alta definição na parede. Está passando o noticiário. Sempre passa nesse horário.

— Então, você e Dahlia já decidiram onde vão passar as férias de verão?

Empurro a comida para dentro com um gole de refrigerante. Estou para responder quando algo no noticiário chama minha atenção. Uma repórter está na frente de uma mansão muito familiar, falando com um homem muito familiar.

Distraidamente, deixo meu garfo no prato.

— Eu adoraria poder ir com vocês — continua Dina. — Mas já estou muito velha para essas coisas.

Estou concentrada demais na TV para lhe dar atenção:

— Sim, senhora — diz Arthur Hamburg ao microfone. — Todo ano faço o melhor que posso para contribuir. Neste verão, estou planejando um evento para angariar 1 milhão para minha nova entidade beneficente, o Projeto Prevenção, em homenagem à minha esposa.

A repórter assente e parece sentir um pouco de remorso, reposicionando o microfone diante dele.

— E seria prevenção do vício ou do suicídio?

— Prevenção do vício — diz Arthur Hamburg. — No fundo, sinto que minha Mary não se suicidou. O que a matou foi o vício. Quero fazer o meu papel para ajudar outros que estão viciados em drogas, e também ajudar a prevenir o uso de drogas antes que comece. É uma doença muito terrível neste país.

Assim como mentir, violentar e matar, seu desgraçado.

— Sim, é, sr. Hamburg — diz a repórter. — Por falar em doença, sei que o senhor também doou dinheiro à pesquisa do câncer por causa...

— Doei — interrompe Arthur Hamburg. — Ainda me sinto muito culpado por ter mentido para todos sobre a doença da minha esposa e duvido que um dia vá achar que me desculpei o suficiente. Mas, como já falei, eu só a estava protegendo. As pessoas podem aceitar o câncer, mas não aceitam tão bem o uso de drogas, e fiz o que fiz para proteger minha esposa. Mas, sim, acho que é justo que eu também doe para a pesquisa do câncer.

Você é um merda.

Cerro os dentes.

— Sarai? — pergunta Dina do outro lado da mesa. — Já se decidiu? Flórida ou Nova York?

O resto das palavras de Arthur Hamburg desaparece no fundo da minha mente. Penso na pergunta de Dina por muito tempo, olhando-a sem vê-la.

Por fim olho para ela, pego meu garfo e respondo:

— Não, na verdade acho que vamos fazer uma viagem a Los Angeles, neste verão. — Corto um pedaço de salsicha do pãozinho no meu prato, mergulho-o no chili e dou uma mordida.

— Los Angeles? — diz Dina inquisidoramente, também dando uma mordida no seu. — Vai dar um pulinho em Hollywood, hein?

— Sim — digo, com ar distante. — Vai ser ótimo.

Tenho assuntos pendentes lá.

Sorrio para mim mesma, pensando nisso, e tomo mais um gole de refrigerante.

 

 

                                                                                                    J. A. Redmerski

 

 

 

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