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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MORTE DE WILSON EHRACK / Alec Baurer
A MORTE DE WILSON EHRACK / Alec Baurer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Duas Coisas que Somem
O revólver do Sr. Tomazelli sumiu na noite do dia 25 de outubro, depois de uma de suas habituais bebedeiras. Quando entrei na casa, às 7 horas da manhã do dia 26, ele estava de joelhos, rastejando de lá para cá pela sala.
Os jovens devem tratar bem os de mais idade, foi o que me ensinaram. Mas ali, se arrastando pelo chão, Tomazelli tinha um ar desastrado. Logo suspeitei que estivesse procurando alguma coisa — o que não
era nenhuma novidade. O que eu não sabia era que a busca dele ainda teria trágicas consequências para toda a semana seguinte.
— Problemas? — perguntei.
Ele levantou rapidamente a cabeça oblonga. Observei que, por trás dos óculos de aro de tartaruga, ele tinha se espantado com minha presença.
— Sim, sim, que azar, Srta. Mertins. Perdi minha arma... Deve ter caído em algum canto. Uma desgraça!
— Ah, a arma. Pensei que eram algumas moedas ou a tabaqueira.
Eu estava sendo cínica. Tomazelli é meu senhorio, e nossa familiaridade me dava algumas licenças. Caçoar era uma delas, por exemplo. Ele ficou encabulado, o que considerei extremamente anormal.
— Quem dera que fosse. Mas não se preocupe comigo. Estou seguro que vou achar ela logo.
— Se é o que diz — dei de ombros. — Bom dia ao senhor.
Não correspondeu ao meu cumprimento. Impassível como uma pedra, Tomazelli voltou ao seu trabalho. Saí e fui até minha quitinete, a alguns metros no mesmo pátio. Peguei minha bolsinha e me aprontei para sair. Fiquei retida por um instante com a fechadura da porta, tentando chaveá-la com duas voltas de chave. Não sou essencialmente especialista nisso, e não foi com surpresa que, após uma breve e irritante luta, desisti totalmente. Guardei meu molho de chaves, aborrecida, e virei-me para descer a varanda. Fazia frio, e vi que devia ter usado algo mais adequado do que a saia de veludo.

 

 

 

 

Na rua, virei à direita; eu precisava cuidar de meu primeiro compromisso do dia.
Cheguei à mansão Gwenny-Dutra em cinco minutos. Entrei direto, sem bater na porta. Deixei do lado de fora uma névoa grossa, que insistia em se infiltrar em meu pulôver. Juli, a empregada, apareceu da cozinha.
— Olá, Juli. Leonora já acordou?
— Sim, Srta. Mertins — respondeu a moça torcendo o nariz. — Não gosto disso. Ela dorme tão pouco! Uma pessoa na idade dela... Eu já falei isso para a Sra. Gwenny-Dutra. Mas qual o quê! O que eu digo não
vale nada. “A pobre Juli é uma cabeça-de-vento!” Oh, Senhor! Ela está tomando café. Eu acabei de levar a correspondência.
Agradeci. Juli é muito sistemática. Eu diria que, se ela pudesse escolher, a sua patroa estaria usando uma coleira.
Transpus o bonito hall de entrada. O cheiro de ovos mexidos e pão colonial invadiu as minhas narinas. Entrei na sala de jantar e vi Leonora Gwenny-Dutra sentada à mesa, os ombros encurvados. Apesar de
nossa diferença de idade (fiz 25 em agosto), éramos boas amigas.
Leonora era viúva desde... bem, desde sempre, acho. Pelo menos, eu não tinha a menor recordação do Sr. Gwenny-Dutra. Diziam que ele era tísico, e que morreu numa sexta-feira depois de uma queda feia do
telhado. Isso tinha deixado Leonora com uma lojinha para gerir, o que não foi lá grande problema — ela aprendeu logo a lidar com fornecedores e clientes. Chegou até a comprar uma máquina para cartões de
crédito, uma coisa que teria horrorizado o marido que, de tão conservador, ainda fazia as contas em tabuinhas de argila. Ou quase.
Nesta manhã, Leonora estava lendo uma carta, e seu rosto exprimia uma angústia indescritível. Fiquei parada na porta, observando ela por alguns segundos. Ao me avistar, porém, largou o pedaço de papel
e se esforçou para sorrir.
— Miriam, querida! Que maus modos... Assustar uma pobre senhora como eu.
— Eu sei. A pobre senhora estava tão entretida que achei que seria melhor voltar outra hora.
— Você não faria isso comigo, faria? Venha cá, me dê um abraço. Você ficou tantos dias sem vir aqui! Pensei que tivesse se esquecido de mim.
Abracei-a apertadamente. Era incrível como ela conseguia mudar de fisionomia com aquela rapidez. Em segundos, a sua agonia parecia ter se dissipado. Eu sentia uma admiração secreta por ela, e nunca lhe
ocultei isso.
Leonora Gwenny-Dutra tinha seus 67 anos, e conservava uma dignidade majestosa, quase plástica. Claro que às vezes se torna abertamente implicante, mas eu aturo as suas excentricidades. Afinal, é preciso
reconhecer que um dia nós estaremos na mesma situação, e seremos gratos se outros puderem aguentar nossas bizarrices.
— Nunca pensei que a senhora fosse tão elétrica — disse eu. — Sete e meia e já está de pé.
Ela vestia um robe airoso, talvez escavado da tumba de Ramsés. Balançou a cabeça:
— Se você quer fazer algo, faça nas primeiras horas do dia. Papai sempre nos dizia isso. Ele era um homem muito prático. Tento seguir esse conselho até hoje. “Não desperdice a vida dormindo.” Não é um
belo lema? Mamãe era a antítese de papai. Se nenhum de nós fosse lá acordá-la, ela ficava na cama até meio-dia. Ela era tão frágil! Vivia doente, com manchas pelo corpo.
Olhei para ela com interesse. Com um gesto quase inconsciente, ela dobrou a carta que estava lendo e pôs debaixo do pratinho.
— Más notícias? — insinuei.
— O quê? Não, não, a conta do verdureiro. Quando não anoto o que devo, acabo esquecendo. Depois me mandam recibos de coisas que nem sequer lembro que comprei. Memória fraca, querida, memória fraca. Juli!
Uma xícara, por favor. — Abaixou a voz: — Ela é tão desatenta, não sei como pode. Passa o dia ouvindo música naquele...
— Smartphone — completei.
— Que seja. Na verdade, é uma cabeça-de-vento. Não existem mais arrumadeiras como antigamente!
— A senhora já disse isso a ela?
Leonora balançou violentamente a cabeça, o que não me surpreendeu. Ela acha que as pessoas são muito previsíveis, e que nunca atendem o que se pede delas.
— Juli não me ouviria. Você a conhece bem, Miriam. Ela odeia quando me meto em qualquer coisinha dela. Ela não tolera nada do que digo. No mínimo, julga que sou uma desmiolada. Já lhe disse várias vezes
que fosse mais cuidadosa com os ovos que compra. Ontem tinham um gosto horrível! Deviam ser ovos de uma granja contaminada. Vivo dizendo a ela: “Cuide, Juli, na hora fazer as compras. Você tem que selecionar
os artigos, nunca pegue a primeira peça.” Você acha que ela me escuta? É como se eu falasse com o abajur.
— De que granja são os ovos?
— Dos Büschler. Mas... Aí está ela! Obrigada, Juli. A propósito, ouvi dizer que você arranjou um trabalho extra, Miriam. Vai trabalhar para Wilson Ehrack. Fiquei sabendo que você vai escrever a biografia
dele.
A mudança de assunto me deixou desconfiada.
— É isso mesmo, vou trabalhar para o Sr. Ehrack — exclamei enquanto me servia de café. — Como a senhora soube?
— Vivemos num lugar pequeno, não é? Todos sabem de tudo. Disseram que ele foi ontem à sua casa falar com você.
— Agora já é demais! Como a senhora soube disso? Nós conversamos a sós. Não havia ninguém conosco. Ele pediu até que eu mantivesse segredo sobre isso.
— Alguém deve ter visto ele, sei lá. Os boatos correm, minha filha. Mas não importa. De qualquer maneira, você vai escrever a história da vida dele, ou coisa que o valha.
Os olhinhos dela brilhavam de excitação.
— Sim, em partes — respondi vacilante. — A ideia é mais ou menos essa. Acho que vai valer à pena.
— É claro que vai. Se você cobrar bem...
— S-sim... A quantia que ele me propôs é boa.
— Menina, estou torcendo por você. É lógico que vai ser bem paga. Os Ehrack sempre nadaram no dinheiro. Gostam de ser filantropos para mostrar que têm dinheiro.
A Sra. Gwenny-dutra suspirou tão profundamente que tive que rir. Conversamos sobre mais algumas amenidades e por fim consultei meu relógio. Era hora de ir.
— Vim aqui pedir um empréstimo, se não for incômodo.
— É mesmo? Aposto que é um livro. Você sempre gostou tanto de ler; nunca saía aqui de casa. Ficava tão engraçadinha com aqueles cabelinhos curtos e um almanaque no colo.
Previ que ela abriria a sessão naftalina. Antes que pudesse acrescentar qualquer coisa:
— Sim, como adivinhou? — respondi. — Estou fazendo algumas pesquisas de toxicologia. Lembro que a senhora tinha um índice com o nome de vários tipos de veneno. Tenho que montar uma monografia.
A Sra. Gwenny-Dutra soltou uma exclamação. Olhou para mim com extrema apreensão. Notei que havia alguma coisa errada.
— Oh, o índice! Percebo. Mas, querida, você não sabia?
— O quê?
— Não tenho mais — disse ela. — Foi tirado dali da estante. Nunca o devolveram. Alguém o roubou — acrescentou num gesto de muda indignação.
A Vila e os Moradores
Antes de prosseguir o relato, eu considero justo fazer uma descrição de nossa cidade — Cel. Menant. Com cerca de seis mil habitantes, o município fica localizado a aproximadamente noventa quilômetros de
Fraiburgo, entre as divisas dos municípios de Lages e São Joaquim.
Não temos praias, nem dunas, nem pirâmides ou qualquer construção do tipo Visite Antes de Morrer. A extensão territorial não é muito grande. O perímetro urbano, junto com as propriedades agrícolas — principalmente
do cultivo da maçã —, não perfazem uma região muito ampla. A economia tem sua base nos hotéis com águas termais, o que produziu ao longo dos anos uma evolução promissora e gradativa. As opções de lazer,
entretanto, não param nas águas termais. Nossos hotéis, em temporadas especiais, gozam de preços promocionais em todos os apartamentos. A população, distribuída em gente da mais variada idade, é composta
na grande maioria de jovens, que sonham em obter uma graduação em alguma metrópole, e de velhos que se agarram firmemente a suas tradições rurais.
Há no distrito duas famílias que são donas de posses apreciáveis. A primeira é a família Kunsling, que ganha bastante dinheiro em sua sociedade num empreendimento imobiliário. A outra, que não pode ser
exatamente apontada como família-modelo, é o clã dos Ehrack.
Quem são eles? Os Ehrack são os ricaços da área. Eram os ricaços, para dizer a verdade. O certo é que Wilson Ehrack, remanescente homem dos Ehrack em nossa vila, não diminuiu suas atividades no ramo da
venda e revenda de maçãs. As maçãs não dão muito lucro, segundo consta, mas elas têm lhe proporcionado uma vida livre de tribulações. Isso, por si, já é um ponto positivo. Wilson Ehrack também é dono de
um parque aquático, que no verão convida a um repouso suave numa das piscinas. O pai dele, Ermínio Ehrack, foi advogado em Florianópolis; depois de se aposentar, veio para Cel. Menant. E fora ali que se
instalou.
Depois da morte do pai, que aconteceu no Hotel Três Empenas há dois anos — até hoje ninguém sabe se foi suicídio ou não —, Wilson Ehrack teve a difícil responsabilidade de assumir uma herança farta e generosa.
Difícil responsabilidade! — vá se acostumando ao jogo de palavras! Quando alguém lhe pergunta se seu pai teve ou não uma amante — um mexerico que volta e meia vem à tona — ele dá de ombros, como se isso
não fizesse a menor diferença.
— E daí? Não tenho nada a declarar.
Essa falta de boas maneiras não é muito aprovada, ainda mais porque o envenenamento de seu pai não foi explicado até hoje.
Wilson Ehrack foi casado por doze anos com Dolores Rebelo, mas o matrimônio terminou há coisa de um ano e meio. Em consequência disso, a justiça previdenciária o obrigou a pagar mensalmente uma pensão
polpuda à filha, Susi Ehrack, até a maioridade dela. O acordo evidentemente não causou a sua ruína; pelo contrário — no embalo daqueles acontecimentos, o que o Sr. Ehrack fez? Começou um caso com a Sra.
Anne Roselene Basknell, uma ex-namorada de sua juventude. Aquilo causou uma surpresa geral; não que a união fosse ilícita, mas pela corajosa atitude da Sra. Basknell. Era ela que vivia frequentando a casa
da Sra. Rebelo!
— Traição! Traição!
— Que nada... Uma pegou o que a outra não quis — responderam outros.
De início teve inúmeros rumores sobre o caso; alguns chegaram até a avaliar com ceticismo a real envergadura da amizade da Sra. Rebelo e a Sra. Basknell. Mas, acima das fofocas, prevaleceu a vontade imutável
do Sr. Ehrack que não se deixou abater e foi em frente com seu escandaloso flerte.
Susi Ehrack jamais emitiu qualquer opinião relacionada a isso. Ela é muito boa em contabilidade, por isso cuida da floricultura da família. Susi é uma moça quieta, sisuda, medrosa demais para dizer qualquer
coisa que possa causar uma inferência desagradável. Acanhada, vive com os olhos voltados para baixo, incapaz de encarar alguém com a petulância de uma moça adulta. Um defeito moral que compromete sua boa
fama, naturalmente. Creio que assim está bom — vamos continuar a narrativa.
Depois de sair da mansão Gwenny-Dutra, fui pelo caminho da Confeitaria Oeschler, doida para começar meu expediente matutino. Está bem, nem tão doida assim — é que eu gosto de hipérboles! Na verdade queria
chegar pontualmente, por isso apressei o passo, andando de modo a aquecer as articulações enregeladas.
Curioso como as pessoas têm amor pelos fuxicos! O Sr. Ehrack mal tinha me contratado para fazer um serviço particular e a cidade toda já falava a respeito. Não que isso me aborrecesse. Eu sempre me impressionava
com a velocidade com que certas informações corriam pelo vilarejo.
Fiquei tão absorvida com esse pensamento que me esqueci do trajeto. Quando contornei a terceira esquina, um cavalheiro esbarrou em mim. O esbarrão foi tão forte que, literalmente, voei para o topo do muro.
— Liebe, Fräulein — exclamou ele, envergonhado. — Entsculdigen Sie mir... Eu não pretendia...
Joguei os braços para o alto, tentando recuperar o equilíbrio. Olhei para o homem parado na minha frente. Com a maior seriedade do mundo. Ele ficou muito vermelho e pálido. Tinha uma fisionomia delgada,
ridiculamente empoada por algum cosmético barato. Constrangido, ele pulou para trás, tão rápido como se quisesse se defender da ponta de um florete. Alto e com o rosto impecavelmente escanhoado, tinha
um ar solene e austero. O cabelo lambido de gel cintilava numa camada úmida e pegajosa. Cheio de boa vontade, ele não permitiu que eu me abaixasse:
— Bitte, vou ajuntar sua bolsa — disse. — Não era minha intenção... Estou procurando um endereço... Distraído... Tão distraído...
— Obrigada, não foi tão grave assim.
— Nein, nein, Fräulein. Peço desculpas! Eu fui desastrado... Deveria ter visto... eu... a senhorita... nós...
Disse aquilo com energia, como se fosse o mínimo que pudesse fazer para se retratar. Tive pena dele. Ele tinha um monóculo no olho direito, e um nariz aquilino!
Falei que estava tudo bem, mas ele menosprezou minhas palavras. Complementou mais meia dúzia de desculpas totalmente dispensáveis. Por fim, pareceu se lembrar de uma coisa muito importante.
— Mora aqui, liebchen? — perguntou ele.
— Por enquanto. Senhor, com licença, eu...
— Vejo que tem pressa. Sim, muita pressa. Só uma informação, bitte... Oh, estou sendo tão entediante! Peço que me perdoe... Tão entediante!
Começou a retorcer o poncho preto, cuja gola de veludo cobria suas orelhas, procurando por alguma coisa. Com uma careta, extraiu uma folha de papel do bolso, que logo segurou diante dos olhos:
— Sr. Tomazelli — leu. — A senhorita o conhece?
— Tomazelli? Ora, é o meu senhorio — respondi. — É para lá que está indo?
— É seu senhorio? Que bom, conhece o Sr. Tomazelli. Sim, é para lá que estou indo. Que coincidência, eu esbarro na senhorita e voilá!... a senhorita sabe onde ele mora!
Falei que sim, e expliquei a ele rapidamente onde ficava o endereço. Contendo a minha curiosidade (O que será que ele queria com o Sr. Tomazelli?), fiz um aceno e fui embora depressa. Tão depressa, aliás,
que ele teve que engolir o resto de suas absolutamente esfarrapadas desculpas. Às vezes consigo ser bem durona!
Tive sorte na confeitaria e, como não havia muito movimento, meu atraso passou despercebido. Bem, quase despercebido, porque a Sra. Oeschler olhou para mim tão fixamente que uma vala do tamanho do Grand
Canyon se formou em sua testa. Felizmente vi o Sr. Gassmer numa das mesas e corri para anotar seu pedido.
Arthur Gassmer era um de nossos mais fiéis fregueses. Naquela manhã, ele estava reclinado na cadeira de carvalho, embrulhado num casaco de gabardine. Ele era disciplinado, tinha cara de turco, e os seus
cabelos eram ralos, cortados com capricho.
O Sr. Gassmer já foi meu patrão; trabalhei por algum tempo no hotel Três Empenas. Nosso relacionamento tinha sido bom, tecnicamente falando. Eu só saí do emprego porque, em distância, a confeitaria ficava
cinco quadras mais perto de minha casa. Cinco quadras e quinze metros, para ser exata.
Quando cheguei à mesa, ele segurou meu braço.
— Pode virar o rosto um pouco para a direita, por favor?
— O quê?
O Sr. Gassmer não queria conversa:
— Silêncio, Miriam. Vire o rosto! Mais... Sim, assim... Só um pouquinho.
— O que é? Algo errado com a minha maquiagem? — brinquei.
— Toda vez que vejo você, lembro-me de outra pessoa. Eu estudei em Petrópolis por dois anos; depois me transferi para o Rio de Janeiro — disse o Sr. Gassmer. — Lá conheci uma moça, sobrinha de um grande
industrial de queijos. É incrível como vocês duas são idênticas. Uma garota tão boa e bonita! É lamentável — e aqui a voz dele ficou mais grave — é lamentável que ela tenha morrido tão cedo. Sim, pobre
menina... tão cheia de vida... morrer tão jovem!
A afirmação me deixou sem jeito. O Sr. Gassmer ficou ainda mais sem jeito quando viu o tamanho de sua indiscrição.
— Ops! Acho que me expressei mal. Ela morreu, mas isso não vai acontecer com você, não se preocupe. Eu só fiz uma comparação. Não me leve a sério.
— Não estou levando a sério... Compreendi o que o senhor quis dizer. — Tossi: — E quanto ao hotel? Muitos hóspedes, eu imagino.
— Dezenas, minha cara — disse o Sr. Gassmer mais animado. — Dezenas. É pena que aquele velho estúpido tenha resolvido se matar logo num de nossos quartos!
— Resolveu se matar ou foi morto — corrigi. — Acho até que as pessoas estão empolgadas com essa história. Quem é que não gosta de um bom mistério? Entrar naquele apartamento... ver o lugar... imaginar
tudo o que aconteceu... Cada um de nós é um detetive, Sr. Gassmer. Gostamos de confrontar coisas que desafiam a nossa mente, de falar sobre isso, de tentar achar uma explicação para as coisas que não entendemos.
— Hum...
— Além disso, a memória das pessoas é curta, Sr. Gassmer. Daqui a alguns anos ninguém vai se lembrar do caso. Tudo será esquecido. Vai virar pó.
O Sr. Gassmer deu uma violenta risada.
— Está certíssima, Miriam. Estou sendo ambicioso demais. Um bom negociante não pode ser assim. No fim das contas, só os modestos é que se dão bem.
— É assim que se fala.
Ele apertou novamente meu braço e apontou o balcão de atendimento:
— Ei, me diz uma coisa. Aquele lá não é o Sr. Haggard?
— Haggard?
— É, o mordomo de Ehrack! O alemão...
De fato, o homem perto do balcão era Samuel Haggard. Ele tinha na cabeça o seu boné de oficial reformado. Trabalhava há muito tempo com o Sr. Ehrack. Eu não o conhecia muito bem, mas sabia que ele era
econômico nas palavras e muito leal a seu patrão.
Algo me dizia que Haggard estava ali por minha causa.
— Bom, Sr. Gassmer, com licença um minuto. Acho que ele está procurando por mim.
— Por você? Por quê?
— Outra hora eu conto, Sr. Gassmer. Outra hora eu conto.
O hoteleiro olhou para mim, surpreso. Fui em direção do balcão, tentando abrir o meu melhor sorriso.
— Olá, Sr. Haggard! Que bom vê-lo por aqui.
— Bom dia — respondeu o alemão, com certa dificuldade para me reconhecer.
— O senhor já foi atendido?
— Sim, já, senhorita.
— Tudo bem com seu patrão? — perguntei. — Ele esteve ontem em minha casa, o senhor sabia?
— Sim, ele me informou.
O homem estava um pouco confuso. Ele raramente entrava confeitaria; isso praticamente confirmava as minhas suspeitas.
— O que foi, Sr. Haggard? Estou enganada, ou veio me trazer um recado do Sr. Ehrack?
Haggard era um homem prudente, de maxilar reto e bigode aparado. Tinha um rosto chupado e um par de sobrancelhas que pareciam cerdas de uma escova. Ninguém sabia como é que ele, filho de um casal de alemães,
tinha se tornado mordomo. Talvez por ter viajado em terras bretãs, quando jovem. Ou por ter feito um curso por correspondência. Não, vou excluir essa parte. Ninguém aprende a ser tão fleumático num curso.
— Sim, justamente — ele deu um pigarro, — justamente. Ele quer que a senhorita vá para lá hoje às seis e meia da tarde. Seis e meia. Basta empurrar a porta da sala e subir as escadas. Ele vai aguardar
no escritório.
Finalmente acertei o ponto certo do meu sorriso:
— No escritório? Está bem. Diga a ele que irei.
O Sr. Ehrack
Quando transpus a praça, notei que já tinha anoitecido. As luzes da pracinha estavam acesas, e numa das ruas o Sr. Mello acendia os lampiões assobiando baixinho. Uma névoa fina descia sobre as casas dando
uma cor fantástica à cidade.
Eu estava ciente da recomendação que o Sr. Haggard tinha feito — eu poderia entrar sem bater à porta. Mas não achei que isso fosse muito correto; apertei o botão da campainha. Não queria ir entrando sem
mais nem menos. Pouco depois o velho mordomo abriu a porta, num gesto que teve certo glamour misterioso.
— Chegou cedo, senhorita.
— Estava sem nada para fazer — justifiquei.
Haggard consultou discretamente o relógio, e depois permitiu que eu entrasse no vestíbulo. Andava ligeiramente curvado e uma pequena corcunda aparecia no topo de suas costas. Mesmo que quisesse, não conseguiria
dissimular sua anterior profissão de jardineiro.
— Vou falar com o Sr. Ehrack. Aguarde ali na sala, Srta. Mertins.
Haggard largou o livro num console. Depois, arrastando-se na velocidade de rali, desapareceu escada acima, à direita do saguão. Entrei maquinalmente na sala, olhando com admiração a limpeza dos móveis
e demais artigos decorativos. O homem era zeloso no cumprimento de suas funções!
Havia ali duas velas de significado duvidoso... Elas davam ao lugar um ar quase excêntrico, sombrio. Mais além, no começo do corredor, ficava a porta divisória que fora lacrada depois do divórcio dos Ehrack.
A Sra. Rebelo morava do outro lado daquela porta.
Haggard não demorou a voltar.
— Tenha a bondade de subir, senhorita!
Agradeci. Comecei a subir os degraus. Estava indo praticamente às cegas àquele compromisso. Não tinha a menor ideia de como seria recebida pelo Sr. Ehrack. Apesar de ser um homem polido, o estado de humor
dele mudava constantemente. No dia anterior ele tinha sido atencioso comigo, mas... Tentei não pensar nisso.
No alto da escada, abri a porta. Olhei para dentro — o espaço no gabinete era amplo. Lambris na parede, uma cadeira de petit point diante da escrivaninha, bom estofamento — o ambiente era atraente.
Uma voz fria disse:
— A gente conhece uma pessoa pela pontualidade dela. Seu caso, Srta. Mertins, não deveria ser exceção.
Ehrack tem uma testa lisa. Nada de rugas. Nenhumazinha. Os seus dedos são longos como varetas. Os olhos, de um azul forte, transmitem calma e vigor. Quando está zangado, fechavam-se um pouco. Ele é um
homem alto e que come talharim gratinado com a mesma avidez com que os porcos comem trufas.
— O senhor me desculpe — gaguejei. — Ansiedade...
Ele estava de pé, olhando pela janela. Ao ouvir minha resposta, virou-se para me ver. Deu um ou dois passos e sentou na poltrona de tecido. Estava lendo Ezra Pound. Legal, devia ser dia da literatura!
— Aproxime-se, senhorita. Sente-se ali.
Mesmo ouvindo o convite, continuei parada à porta, constrangida. Agora Ehrack mostrava uma expressão serena. Pôs os óculos, e olhou para mim por cima das lentes. Fui para frente e sentei-me perto da escrivaninha.
— Está assustada, Srta. Mertins?
— Um pouco...
Ele pareceu cair em si.
— Oh, fui eu... Sim, sim, quero que me perdoe. Eu não queria magoá-la. Foi só uma forma de falar. É que estou acostumado a lidar com os empregados... eles são tão teimosos, tão burros!... Acabei sendo
rude. Sim, estupidamente rude...
— Tudo bem — respondi.
O Sr. Ehrack fez uma pausa.
— Está certo, vou confessar o meu problema — disse após alguns segundos. — Na verdade, estou um pouco nervoso. Falar de certas coisas... Não vai ser fácil. Nunca imaginei que um dia escreveria minha biografia.
Por isso, não se surpreenda se ditar alguma coisa e depois pedir que apague. É uma experiência nova; mas vamos lá. Uma carga é mais leve quando é bem suportada.
Aquela frase... Aquela gentileza e honestidade... Vi que íamos nos entender bem dali por diante.
Cabisbaixo, o Wilson Ehrack completou:
— Sei que lhe falaram muitas coisas sobre mim. Sim, sei que lhe falaram. A senhorita deve ter ouvido poucas e boas a meu respeito. Sim, não precisa negar.
— Não devia se preocupar com isso, Sr. Ehrack — disse eu. — Não gosto de ficar escutando o que se diz por aí.
— É muita conscienciosa. Que bom. Já reparei que é uma moça responsável. Em todo caso, posso lhe garantir que nem tudo o que disseram é verdade. Espero que compreenda isso. A maioria das coisas é pura
intriga e não tem base nenhuma.
— Como eu já disse, sou imune a fuxicos. Não precisa se preocupar comigo.
— Mas eu me preocupo! — disse ele. — O que vai pensar de mim se não lhe disser nada? Terá uma impressão distorcida sobre quem eu sou, como se eu fosse negligente... ou um idiota. Se isso acontecesse, eu
não teria mais ninguém para me ajudar.
— Terá o Sr. Haggard — enumerei.
— Está velho.
— A sua Anne Roselene...
— Ela não tem imaginação.
— … a sua filha.
Estendeu os pés sobre o banquinho. Cruzou os braços:
— Quem dera que a senhorita tivesse razão. Não tenho tido tanta sorte. Faz tempo que me aposentei, e ainda não desfrutei a paz que mereço. Primeiro, a maldita separação; depois a divisão dos bens, a briga
pelo capital. É terrível!
Fez um gesto de desgosto e então, lentamente, começou a ditar as histórias que queria ver editadas. Visto que o notebook já estava preparado, pude escrever com relativa facilidade.
Fui dispensada às nove horas, depois de imprimir o relato na impressora. Ficou combinado que continuaríamos na noite seguinte. Ao sair vi que Ehrack, com lápis em punho, revisava o texto datilografado.
Tomazelli não estava na sala quando entrei em sua casa. Fui diretamente para o quarto. Encontrei meu senhorio debaixo de uma montanha de colchas, um termômetro no canto da boca.
— O que aconteceu? Que aparência é essa?
Quando ele ergueu os olhos e me viu, o seu mau humor explodiu como um vulcão.
— O que você acha? — respondeu ele secamente. — Será que um velho não pode veranear um pouco?
— Isso me parece pior que um veraneio. Deixe-me ver esse termômetro. Ih, está queimando de febre! Devia tomar um chá de mel e limão. Quer que eu prepare uma xícara para o senhor?
Tomazelli soltou um gemido de contrariedade:
— Não diga tolices. Não estou tão mal assim. Amanhã já estarei melhor. Basta cobrir o corpo e suar bastante. Vamos, mexa-se! Jogue aqueles edredons aqui por cima.
Como sempre, ele era taxativo em suas respostas. O que eu menos queria era começar um bate-boca.
— Não é à toa que fica doente desse jeito. Fica andando de madrugada por aí, com aqueles seus amigos! Agradeça a Deus por ser apenas um resfriado. Se fosse uma pneumonia, o senhor estaria encrencado.
— Entendi, entendi. A senhorita acha que eu deveria ficar trancafiado em casa... Bah, que conselho feminista!
— Estou falando para seu próprio bem.
— Os homens sempre têm culpa em tudo. Ou bebem demais ou são um bando de irresponsáveis. Blá-blá... Falta só dizer que saio à noite para praticar algum crime. Seria o cúmulo da ousadia!
— Vou ignorar isso, está bem? O senhor é muito birrento.
Ajudei-o a se cobrir e preparei-me para sair. Subitamente lembrei-me de uma coisa:
— Escute, encontrei de manhã um homem perguntando pelo endereço do senhor. Magro, bem vestido, com um monóculo. Quem é ele?
— Está se referindo a Fëll? — Gesticulou com vagar: — Ele saiu, disse que ia dar uma volta. Já falou com ele?
Então o homem com cara de pateta chamava-se Fëll? A sombra de um sorriso surgiu em meu rosto:
— Não só o vi como trombei com ele. Ele é um tanto... estabanado.
— Sim, mas não o subestime. Edmund Fëll é o homem mais perspicaz que conheço. Odiaria se você fizesse pouco caso de seus dotes cerebrais. Tem muita influência na área criminal.
— É diplomata?
— No, bambina mia, um diplomata não. Mas é uma pessoa competente. Vai ficar uns dias aqui; está de férias. Pedi que se instalasse no quarto dos hóspedes.
— Que coisa extraordinária. Por que não diz a seu amigo para visitar o Sr. Ehrack? Ele também é muito culto. Garanto que os dois se dariam perfeitamente bem.
Uma violenta alteração aconteceu em seu rosto. Entre dentes, sussurrou uma palavra não muito cortês.
— O que houve?
A minha sugestão tinha ofendido Tomazelli. Embora não quisesse esclarecer a causa de seu rubor, eu sabia o que o afligia. Era uma soma de alguns sacos de carvão, que Ehrack lhe devia há anos.
— Canaglia! Se houvesse um pouco de dignidade nas pessoas! Um sujeito desses não merece continuar vivo.
— Não diga isso — disse a ele. — Se alguém o ouvisse pensaria que o senhor está tramando a morte dele. Acho que devia esquecer esse assunto. Se ele não lhe paga, fazer o quê? O melhor que tem a fazer é
dormir uma boa noite de sono. Amanhã já vai acordar muito melhor.
Antes que pudesse me responder, saí do quarto e fui me recolher.
O Numismata
Aos sábados geralmente faço uma faxina na quitinete, ou durmo até mais tarde. Nesses dias fico torcendo para que nada me perturbe, pois, conforme o texto bíblico, é melhor um punhado de descanso do que
um punhado duplo de trabalho árduo.
Dessa vez, no entanto, nem eram 10 e meia e ouvi uma batida estrondosa à porta. Era Leonora Gwenny-Dutra, transpirando um espírito humanitário e com uma bolsa na mão.
— Entre — convidei. — Quem diria, a senhora vindo a minha casa!
Leonora sorriu gentilmente. Tinha olhinhos castanhos e simpáticos, a própria imagem da doçura. Aquela visita... Evidentemente tinha a ver com os últimos mexericos que ainda não tinham sido devidamente
discutidos. Fechei a porta com um suspiro; lá ia eu servir de protagonista na arena das conspirações!
— Oh, espero não estar atrapalhando! — disse a Sra. Gwenny-Dutra. — Não estou sendo inconveniente, estou? Eu estava lá sozinha. E Juli ia para lá e para cá, fingindo varrer a sala. Fiquei chateada com
a lentidão dela, mas como é que a gente pode mandar numa empregada? De qualquer modo, seria inútil. Falei para mim mesma: “Saia daqui, Nora. Você tem mais a ganhar”.
Ela estava tentando se explicar, envergonhada. Fiz um gesto condescendente — talvez isso mitigasse a sua dor na consciência. Depois de sentar-se no sofá, Leonora retirou uma garrafa do pacote e a pôs na
mesinha. Pela cor, pensei que era álcool e lhe dei um olhar de viés.
— É para Rubens — disse ela. — Eu soube que ele está resfriado. Tratei de passar no empório e comprar uma coisa que vai ajudar. Esses homens são tão descuidados. Acham que nada os atinge... Eu quis entregar
isto a ele pessoalmente, mas a porta estava chaveada.
— Isto é... conhaque? — perguntei cautelosamente.
A Sra. Gwenny-Dutra quase teve um ataque.
— Não, querida, é chá de eucalipto com mel. É bom contra dores e sinusite. Posso assegurar que essa quantidade é suficiente. Vai ser tiro e queda... Mas diga a Rubens que precisa tomar as doses regularmente,
ouviu?
Não havia nada de dispersivo naquela mulher. Ela entendia de medicamentos, principalmente os fitoterápicos. Afirmei que eu mesma falaria com Tomazelli e lhe daria a receita.
— E então? — perguntou subitamente. — O que achou de Wilson? Ele é mesmo tão exigente como dizem por aí?
Pronto, ali estava! É por isso que a fuinha tinha vindo. Pestanejei e fiz um ar indiferente.
— Para dizer a verdade, ele é muito profissional — respondi. — Não foi tão ruim assim.
— Que bom. O que mais?
— Pelo que percebi — acrescentei, — o Sr. Ehrack está com estafa. Se eu estivesse em seu lugar, tirava férias por uns meses. A morte do pai... o fim do casamento — essas coisas abalaram a saúde dele. Ainda
dá para sentir. Ele não falou nisso diretamente, mas a gente nota que ele está ferido.
Leonora empertigou-se. Concordou comigo:
— Ermínio estava maluco quando fez aquela bobagem. Ingerir arsênico, ou veneno para rato, ou algo assim! Uma estupidez. Você trabalhava no hotel quando tudo aconteceu, não é? Deve se lembrar de todo o
alarido. Aquela confusão de policiais e investigadores correndo atrás de quem tivesse visto alguma coisa. Mas é engraçado. Wilson nunca gostou de remexer o passado. Por que resolveu fazer isso logo agora?
— Se Haggard não estivesse ficando surdo... Talvez ele pudesse dizer para nós o que aconteceu.
— É uma pena — suspirou a Sra. Gwenny-Dutra. — Sim, Samuel está ficando surdo. Velhos só servem para ter artrose e problemas de audição. Outro dia, ouvi Anne Roselene reclamar que sofria de insônia. Não
duvido. Ela sempre foi uma criatura tão delicada. Qualquer corrente de ar e... pum. E depois, ela fica de noite passeando fora de casa!
Ainda falamos um pouco da insônia da Sra. Basknell, e de outras doenças menos esportivas. Por fim, acompanhei Leonora até a rua.
Ao voltar à pensão, avistei alguém sentado na edícula ao lado da casa de Tomazelli. Estava examinando atentamente alguma coisa com uma lupa. Parecia uma ave de rapina. Talvez quisesse alçar voo a qualquer
momento, ou coisa parecida. Quis lembrar-me de seu nome, mas já era tarde.
Quando me viu, o homem deu um salto patético e veio correndo para o portão. Seus olhos eram impertinentes. Usava um chapéu de feltro, numa cor que combinava com sua roupa escura. Era alto, espigado. Quando
cedeu seu braço para mim, ficou ainda mais burlesco.
— Fräulein, bitte. Kommen Sie rein.
— Sr. Fëll, é isso? — arrisquei.
— Ganz sicher. Foi muito azar o que aconteceu ontem de manhã. Eu quis pedir desculpas. Sim, eu não queria que me levasse a mal. Mas a senhorita sumiu, evaporou em pleno ar.
Olhei para ele, tentando encontrar uma palavra que definisse aquele sujeito. Seria algum bávaro, que fizera um longo estágio entre os alemães? Ou um louco e desocupado turista argelino?
— Eu lamento, Sr. Fëll. É que eu estava atrasada...
— Certamente, certamente — disse ele. — Acho que me expressei mal. Rubens disse que a senhorita trabalha numa confeitaria. Bronzes polidos e banquetas aveludadas de azul, eu sei. Estive lá. Um ambiente
muito limpo.
— Sem falar na parede de espelhos.
— Claro, precisamente. Que acha de fazermos o seguinte: vamos esquecer o que passou. Eu não quero que uma moça tão laboriosa continue irritada comigo. Nein, nein! Isso me faria infeliz. Muito infeliz.
Aceitei essa frase como uma mostra de sua sinceridade. Entramos na construção e sentei-me na banqueta de mogno.
— Gostei de sua diplomacia. Gostei mesmo, Sr. Fell...
— Fell não... Fëll, senhorita.
Um caixeiro viajante? Ou, em última instância, um comerciante de óleo de peixe?
— Posso fazer uma pergunta? O que o senhor estava fazendo? Essa lupa...
— Estava dando uma olhada nesta moeda.
— Por quê? Deixe-me adivinhar... O senhor é um colecionador de moedas, acertei?
— Absolutamente certa, Fräulein — disse Fëll empolgado. — Como é que soube disso?
— Elementar — respondi e esfreguei as unhas na blusa. — Sou uma mestra na arte da dedução. Bom, já que descobri qual é seu hobby, acho que mereço um bônus. O senhor é do serviço secreto, acertei de novo?
— Não exatamente. Mas sempre evitei os penosos esforços braçais, essas coisas. Não planto couves, se é isso o que quer saber. Prefiro exercitar o músculo do cérebro.
— Foi o que Tomazelli disse. É filósofo?
— Tanto quanto o crime permite que eu seja.
Fez um gesto que, mesmo sem querer, foi bem cômico.
— É chefe de um cartel da máfia? Opção interessante.
— Warum meinen Sie sowas?— disse ele chocado. — A criminologia tem ângulos fascinantes, mas sob a ótica advocatícia só um deles interessa. Existem pessoas que enxergam além das aparências. Que veem o que
está detrás de certas ações, de algumas atitudes. É necessário sondar o que as pessoas estão escondendo, e por que estão escondendo. Eu me dedico a esse ramo. Sou um detetive analista.
O tom com que Fëll pronunciou “sob a ótica advocatícia”! Ninguém poderia imitá-lo. Sob todos os efeitos, ele era um espécime pouco comum.
— Agora que já o conheço um pouco melhor — continuei —, pode me dizer por que veio para nossa modesta vila? Está aqui a trabalho, investigando algum assassinato?
— Até que não seria mal... Vim para descansar alguns dias, sem ter de prestar consultoria. Por outro lado, não podemos torcer para que um assassinato aconteça, não é mesmo?
— Naturalmente — respondi rindo. — Em todo caso, se o senhor cobra honorários, está no lugar errado. Aqui tudo é tão calmo, tão pacato... O senhor ficaria em apuros financeiros em menos de um mês.
O detetive franziu a testa.
— Acha mesmo? Está enganada, senhorita. É exatamente em lugares assim, longe de centros urbanos, que acontecem os maiores e mais sórdidos dramas. Além disso, não foi isso o que eu ouvi dizer... Dizem que
aqui há alguns mistérios esperando por uma solução. O desaparecimento do jogo de chá da viúva do merceeiro, que desde o mês passado não foi localizado, por exemplo. A morte discutível da mulher do leiteiro.
O estranho homicídio no Hotel Três Empenas... Não parece ser um lugar tão pacato assim, senhorita.
Fiquei pensando naquelas palavras por alguns segundos. Senti-me um pouco aborrecida. Eu deveria ter visto que ele era mais esperto do que supunha a minha vã filosofia.
— Percebo... O Sr. Tomazelli!
— Muito bem, Srta. Mertins. O meu amigo Tomazelli gosta de falar, o que é que eu posso fazer?
— Pois saiba que ele é um velho de língua ácida — respondi. — O senhor mencionou o roubo do jogo de chá de Samantha Edgeware?
— A viúva do merceeiro? Sim.
— Aquela sirigaita loura! Ninguém disse que ela é uma aproveitadora? Até Harrison já esteve caído de amores por ela.
— Não sei. O que eu sei é que havia uma trilha de pequenos furos na grama do quintal dela. O ladrão foi um pouco descuidado na hora de deixar a casa com o produto do furto!
— Pequenos furos... E o que isso quer dizer?
— É cedo para dizer. Mas quanto à morte da mulher, pelo raciocínio meticuloso, o autor do crime é o próprio leiteiro.
Levantei a cabeça, escandalizada.
— O quê? Falar é fácil! A polícia fez investigações durante duas semanas, e agora, num zás, o senhor dá um veredito que... Isso é demais! Não existe qualquer lógica nisso.
— Ah, gut, mas a verdade nem sempre é lógica. Às vezes temos que simplesmente olhar para os acontecimentos sem as lentes do preconceito. Faça isso, Srta. Mertins, e muitas coisas se tornam relativamente
simples, tão fáceis de descascar como um dente de alho.
Olhei de lado para Fëll. O seu ponto de vista era tacanho, evidentemente.
— Está bem — desafiei. — O senhor parece muito convencido de seus dons naturais, Sr. Fëll. Mas eu queria que surgisse um caso durante a sua permanência aqui. Seria o fim de sua teoria do dente do alho.
Fëll sorriu com uma modéstia!...
Os olhos brilharam como duas gemas de vidro.
— Bist du das sicher, Fräulein? Veremos... Mas eu aviso logo que não faço apostas. É contra os meus princípios éticos...
Ergui as mãos, irritada. Como é que alguém conseguia ser tão ingênuo?
— Não estou falando literalmente... O que eu quero dizer é... Aliás, esqueça!
Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, aprumei o corpo e me afastei. Dentes de alho e princípios éticos — era o cúmulo!
Antes do Crime
Cheguei à mansão às 6:25h.
— Boa noite, Sr. Haggard.
— Boa noite.
Dessa vez, o mordomo não consultou as horas. Ele simplesmente se virou e subiu a escadaria. Devia ser o protocolo — cada visita precisava ser previamente anunciada ao Sr. Ehrack.
Como no dia anterior, permaneci na sala.
Olhei em volta. Fiquei pensando no significado das arandelas naquela casa modernista. Elas ficavam bem ao sopé da escada, mas a luz das velas era fraca, gótica e estranha. Se ali fosse a residência de
algum nobre do século dezessete, tudo bem. Daquele jeito ali... sei lá, dava um ar de Castelo da Transilvânia.
Escutei um estalido baixinho na porta. Pelo vidro eu vi que havia alguém parado lá fora, na semiescuridão.
Abri a porta. Era Susi Ehrack.
Susi olhou para mim. Comprimiu os dedos nos lábios.
— Oi, Miriam.
— Olá, Susi. Quer entrar?
— Não, não... Shh, não faça barulho!
A moça tinha uma pele saudável; era bonita, eu quase chegava a admitir. Tremia, talvez por causa do frio. Um pavor nítido e claro contorcia o seu rosto. Dois dias antes eu a tinha convidado para vir comigo
conversar com seu pai nesta noite de sábado. Quando a vi ali, a boca aberta e quase sem ar... Ih, pensei, melou!
— Sinto muito, Miriam — gaguejou. — Eu sei que lhe prometi... Mamãe não quer que eu vá com você. Ela disse que papai pode ficar furioso... Você sabe que eles ainda não fizeram as pazes. Vivem de cara amarrada,
coisas de adulto.
Bingo. Aquele pretexto não me abalou, em absoluto. Já imaginava isso, para ser sincera. Dolores Rebelo era uma mulher completamente démodé. Dificilmente permitiria que a filha fizesse uma loucura daquelas
sem seu expresso consentimento.
Notei o fulgor dos olhos de Susi debaixo dos curvos cílios postiços. Estava esperando a minha resposta.
— Sem problema. Fica para outra vez...
A face tensa de Susi relaxou, aliviada.
— Obrigada, Miriam. Você é tão querida!
Concordei com um aceno. Um arrastar de pés atrás de mim interrompeu a nossa conversa. Era Haggard.
Susi disse adeus e apressou-se a sumir do saguão. Debaixo do véu fino da garoa, contornou a mansão.
— A senhorita pode subir — disse o mordomo. — Ontem, o Sr. Ehrack ficou chateado com alguma coisa?
— Acho que não. Por que, o que aconteceu?
— É melhor que veja por si mesma.
Aquela frase produziu um mal-estar em mim. Ainda mais essa! Não me senti propriamente motivada a subir as escadas pulando de felicidade. Furtivo como uma sombra, Haggard voltou para a cozinha, como se
estivesse ocupado com um guisado de última hora.
O Sr. Ehrack... chateado? O que será que eu fiz?
Essas perguntas faziam voltas em minha cabeça.
Minha tortura durou pouco tempo. Assim que entrei no gabinete, vi que Wilson Ehrack estava mudado. Não havia nele o menor fragmento de cortesia em toda a sua figura. Estava em pé diante do relógio de carrilhão.
Virou-se como um robô quando atravessei o limiar da porta. Esse era o homem calculista e duro, de quem tanto tinham me falado. Qualquer resquício de bondade ou benevolência tinha desaparecido.
Apertei a bolsa de vime contra o corpo, num gesto maquinal de proteção. Ele fixou os olhos em mim:
— Creio que está atrasada.
— Me desculpe — respondi educadamente. — Fiquei presa no trânsito.
Falei aquilo com o máximo de tato possível. Sei usar perfeitamente as armas femininas a meu favor, quando quero.
Ehrack hesitou; depois sorriu mais conformado.
À esquerda da porta, um chapéu panamá estava pendurado no cabide.
— Eu lamento. Serei mais cuidadosa da próxima vez.
O resultado dessas palavras finais foi decisivo. Inesperadamente os seus modos bruscos se abrandaram, como se achasse que seria bobagem insistir em seu comportamento agressivo.
— Estou sendo grosseiro. Vamos por uma pedra nisso. Estou contrariado com outra coisa. Tenho o mau hábito de misturar a vida pessoal com meu trabalho. Tenho que elogiá-la. Estive relendo tudo o que escreveu
ontem, Srta. Mertins. Uma digitação fantástica! Sim, sim, é verdade... Não estou mentindo.
— Obrigada. Não é para tanto.
Acho que fiquei vermelha diante de seus elogios, pois senti o rosto formigar.
Ele iniciou o seu ditado e, por mais de uma hora, não parou de falar. Ehrack narrou episódios da classe Se Eu Pudesse Mudar Meu Passado. Para isso, usou algumas anotações que tinha feito num bloco de papel.
Meus dedos corriam velozmente no teclado do notebook.
Observei que uma estante de livros jurídicos cobria a parede. Havia também uma porta que conduzia ao quarto adjacente.
— Basta! — disse ele por fim. — Vamos continuar amanhã.
Levantou-se da poltrona e foi até a janela. Percebi que estava tentando trancá-la. Era uma dessas janelas de correr com persiana vertical. Ehrack voltou-se para mim, e num tom estranho disse:
— Quero lhe perguntar uma coisa, e gostaria que a senhorita respondesse com o coração. Sabe por que lhe pedi para me ajudar a escrever a história de minha vida?
— Vou dar um chute. Acho que vai ser o seu legado para os netos.
— Legado, é? — Ele fez que não: — Que bom se fosse! Mas acho que meus netos nunca leriam nada parecido. Basta ver os jovens de hoje — vivem em outro planeta. Sou um pessimista, que Deus me perdoe. Pela
tendência, as coisas só vão piorar. Escute o que estou lhe dizendo.
Eu estava escutando. Senti que ele não tinha dito tudo o que queria dizer.
— Ainda há outra razão, não é, Sr. Ehrack?
Ele acenou de novo. Dessa vez mais vagarosamente. Sentou-se e olhou para a porta. Quando falou, a sua voz tinha um tom mais grave — como se viesse do fundo de um frasco oco.
— Admiro a sua sinceridade, senhorita. As mulheres conseguem ver melhor essas coisas. O que eu sei é que em pouco tempo estarei... hum... morto. Pensei em aproveitar os dias que me restam para fazer uma
coisa que me desse prazer... bem, antes de ser tarde demais.
Olhei para ele com a mesma incredulidade de Júlio César quando viu o próprio filho com a adaga suja de sangue.
— Não estou entendendo. O senhor disse morto? O senhor está sendo ameaçado?
— Sim, de certa forma. Mas, no fundo, a culpa é minha. Eu deveria ter agido antes. Agora as coisas atingiram um estágio... bem, basta dizer que agora não há volta.
— Sr. Ehrack, isso é mau.
É, mau não é um qualificativo muito vigoroso. Admito, é tosco.
— O vacilo foi meu. Se tivesse procurado extirpar o problema meses atrás... Agora minha vida está em perigo e não há nada que se possa fazer. Eu vou ser morto e meu assassino nem será punido por isso.
Neste instante, após pedir licença, Samuel Haggard entrou obsequiosamente no gabinete. Numa mão trazia uma bandeja com dois pratinhos de doce de pudim, uma cereja na ponta de cada um, e na outra, um copo
de uísque.
— Onde eu coloco, senhor?
— Na mesa.
Com um susto, notei que o semblante de Ehrack tinha se anuviado, e ele mordia a dobra do lábio. Tentei descobrir o que causara aquela agitação interior, mas inutilmente. O mordomo, sem a menor cerimônia,
deu para mim um dos pratinhos com o doce. Deixou a bandeja na mesa de centro e silenciosamente voltou a se retirar.
Ehrack ficou ali de pé, sem reação. Fez um comentário pouco otimista:
— Para quem tem tão pouco tempo de vida, sou um homem bem servido. É bom que tenha trazido uma capa de chuva, Srta. Mertins. Parece que a chuva está engrossando.
— Eu trouxe, está lá embaixo.
— Não tome ao pé da letra o que acabei de lhe dizer. Acho que estou estressado. Talvez a ameaça não seja tão imediata. Talvez eu esteja exagerando os riscos.
Fez uma pausa. Provei o pudim, que estava com um gosto adorável. Concluí que ele bem que poderia ter uma chance.
— Está frio aqui dentro, não?
Ele sorriu.
—Sim, tem razão. Está frio. Eu nem tinha percebido. Espere, vou regular o ar-condicionado. Quer ficar para assistir ao noticiário?
— Não posso, mas obrigada — declinei.
— Em todo caso, pode ficar comigo alguns minutos, Srta. Mertins? Quero tratar de um assunto... acho que... um pouco constrangedor.
Um brilho metálico chamou minha atenção no braço da poltrona em que Ehrack estava sentado. Tive a impressão de que era um revólver, mas não pude confirmar isso. O vento chacoalhava a janela.
— Um assunto constrangedor? — perguntei. — O que é?
Sem pressa, o homem explicou. Enquanto ele falava, o espanto foi crescendo, crescendo, dentro de mim. Oh... as coisas que Ehrack disse! Principalmente sobre Susi! Também sobre mim! A sua cólera mal contida...
A voz melíflua com que tentou justificar sua decisão...
— Só lhe peço isso, senhorita: fique longe de minha filha por um tempo.
— Tudo bem, Sr. Ehrack! — respondi finalmente. — Se é isso o que o senhor quer...
— Ótimo, estou feliz que tenhamos nos entendido.
Ao descer para o térreo, quinze ou vinte minutos depois, meus olhos estavam rasos d’água. Tive que me esforçar para conter as lágrimas. Meu espírito doía de vergonha e humilhação.
Além disso, uma frase ainda ecoava em minha mente. Para quem tem tão pouco tempo de vida! Como é que uma ideia dessas poderia assombrar o mundo daquele ditador que, em outros aspectos, era quase invulnerável?
Chegava a ser irônico...
Haggard não estava na sala. Ninguém no sofá. Ouvi estouros de escapamento de um carro que vinham da garagem. Ele tinha um Maverick, pelo que eu sabia. Talvez estivesse testando o arranque ou regulando
o motor. Por simples curiosidade, dei uma espiada na cozinha.
No momento exato em que saí pela porta da frente, o relógio da torre central bateu oito horas.
Iluminada pela lâmpada à minha esquerda, uma trilha de palmeirinhas cruzava o jardim até o portão.
Alguma coisa rangeu e tirou-me de meus devaneios. Foi um ruído bem alto — um sapato pisando em pedrinhas soltas, talvez. Olhei em volta, apreensiva, mas não consegui enxergar ninguém.
Acelerando o passo, segui pela aleia, a névoa cada vez mais espessa e revolta. Vi que as peperômias cresciam abundantes em meio à vegetação rasteira. Apesar de tudo, foi impossível descobrir a causa do
barulho. Poderia ter sido Susi? Nesse caso, por que teria se escondido, ainda mais se sabia que era eu quem saía da casa?
Passei pelo portão e, por coincidência, quase me choquei com alguém na calçada. Não consegui identificar quem era a pessoa. Estava com uma capa de chuva e, para evitar a umidade da rua, usava um par de
galochas. Ela disse um “Desculpe, eu não queria...”, e seguiu apressadamente seu caminho, sem se virar. Fiquei irritada. Felizmente fiz o resto do percurso até a pensão sem cruzar com mais ninguém.
Abri o portão, firmemente agarrada ao meu guarda-chuva, que teimava em se curvar ao sabor do vento. Meus sapatos de camurça estavam encharcados. Enquanto me aproximava de minha quitinete, a figura de Edmund
Fëll apareceu por trás da vidraça da casa de Tomazelli. Tentei me esquivar de seu olhar, mas ele me reconheceu e acenou vivamente. Correspondi ao gesto dele sem muita vontade.
Mas o pior estava por vir. Quando cheguei à porta e tentei tirar a chave da bolsa, o ar escapou de meus pulmões. Incrédula, fiquei ali parada, praguejando contra mim mesma. Eu tinha esquecido a bolsa no
escritório de Ehrack.
Um Corpo no Gabinete
Eram vinte e duas e quarenta quando ouvi que chamavam meu nome.
— O que foi? — perguntei, entreabrindo a porta.
— Uma emergência, senhorita — disse o homenzinho parado lá fora. — Precisa vir comigo.
— Eu... ir com o senhor? Sabe que horas são?
— Sim, eu sei. O inspetor Radke vai lhe explicar tudo.
E diante dos protestos de minha parte:
— Não sei de mais nada, senhorita. Estou apenas cumprindo ordens. Acho que encontraram alguém morto.
Morto? Completamente melindrada com as suas palavras, e ainda cambaleante de sono, apressei-me em calçar as meias. Comecei a sentir uma dor no estômago. Aquela história não me seduzia nem um pouco.
Um táxi esperava por mim na rua. Abrigando-me da chuva, embarquei com um pulo. Com um solavanco, o homenzinho partiu a toda velocidade. Sumimos na noite, e tive a impressão de que treinávamos para garantir
vaga numa corrida de bigas. A Empresa Gilting tem mesmo motoristas eficientes!
Em poucos minutos estávamos na Rua B (é assim que vou chamá-la para facilitar o relato). O táxi continuou seu roteiro e paramos na Rua A, diante da mansão dos Ehrack.
Tentei pela segunda vez interrogar o chofer, mas não obtive resposta. Ele me acompanhou até o saguão de entrada. Fiquei zangada com toda aquela encenação.
Corri pela alameda, sentindo que as árvores balançavam lugubremente ao meu redor. No vestíbulo encontrei outro homem, que reconheci imediatamente — era um dos médicos da vila. O doutor Ritterbuch. Tinha
um corpanzil cheio e gordo, sinal claro de que não dava qualquer atenção a tabelas de colesterol.
Assim que me viu, Ritterbuch precipitou-se ao meu encontro. Puxou-me pelo braço com tanta força que quase deslocou minha clavícula. Parecia que tinha um segredo milenar a compartilhar comigo.
— Por gentileza, sim?
Antes que eu pudesse me recobrar, introduziu-me na sala de visitas. Havia ali um barzinho com bancada de mármore. Haggard estava sentado numa das banquetas, tremendo convulsivamente.
— Posso saber o que houve?
— A senhorita logo saberá, acalme-se. — O médico voltou-se para o taxista, que tinha me seguido. — Pode se retirar... O que está fazendo aqui dentro?
— Doutor, eu... — murmurou o homem.
Houve um ligeiro jogo de olhares, depois o doutor Ritterbuch inseriu a mão no bolso e extraiu dali uma nota em dinheiro. Com uma mesura, o taxista pegou a nota e saiu.
— Que sujeito audacioso! — comentou o doutor. Virou-se para mim: — A senhorita me perguntou o que tinha acontecido. É meio complicado. Acho que não posso responder essa pergunta.
— Por acaso tem alguém que pode?
— Eu, Srta. Mertins — disse o rapaz que estava descendo a escada. — Conforme o doutor disse, deve ser paciente. Vamos resolver tudo no devido tempo.
Era um homem magro, por isso seu casaco, por cima do colete de forro de tafetá, sacudia enquanto andava. Tinha olhos vivos e especuladores; viu que eu estava desorientada.
— Sou o inspetor Radke. Siga-me, quero que verifique uma coisa.
O tom do inspetor era neutro, profissional. Tamborilou o corrimão com a ponta do indicador e voltou a calcar os degraus. Fui atrás dele. Haggard ficou sozinho, contemplando fixamente a vidraça. Atrás de
nós, esfregando as mãos, o médico fechava a fila.
A luz no gabinete de Ehrack era feérica. Paramos à soleira da porta. Antes de entrar vi que havia alguém caído lá dentro, junto à poltrona.
— É... é o Sr. Ehrack — exclamei.
— Ele mesmo.
— O que significa isto?
— Significa, senhorita, que temos três hipóteses. Acidente, suicídio ou homicídio. Ainda vamos periciar a cena para estabelecer essa questão. Por favor, não toque nele. É conveniente que os vestígios no
corpo não sejam apagados e nem adulterados. Até mesmo tecidos epiteliais podem ser importantes. Uma gota de suor já levou ladrões à prisão.
— Ele... ele está morto? — perguntei transtornada.
— Mortinho da silva — disse o doutor com frieza. — Penetrou poucos centímetros acima da região glútea. O pulmão direito, parcialmente furado. Morte por hemorragia alveolar, eu diria. Portanto, morte instantânea.
— Foi... pelas costas?
— Exato — acrescentou o inspetor. — Foi tudo muito rápido. Nenhum sinal de arranhão ou lesão na cabeça, típico de luta corporal. Também não encontramos traços de pólvora nas mãos. Como o doutor disse,
o pulmão foi atingido. Perfuração de entrada por trás do hemotórax esquerdo. É um local sensível, poucos sobrevivem. Sem dúvida foi um acidente muito sério.
— Acidente? Estão dizendo que...
— Não estamos dizendo, nem sugerindo, nada — respondeu Radke calmamente. Tinha um talento especial para impor sua autoridade. — O que sabemos é que o Sr. Ehrack morreu por causa de um disparo feito à queima-roupa.
Numa distância de dez a quinze centímetros, no máximo.
— Meu Deus, que crueldade!
O doutor balançou a cabeça:
— Salvo por algum fator externo, está morto há duas horas. Pelo menos é o que indica a coloração da pele. Não acho que opôs alguma resistência ao assassino.
Radke dirigiu-lhe um olhar reprovador.
— Não temos nenhuma prova de que houve um assassino, doutor.
— Mas isto é horrível! — repliquei. — Está dizendo que o Sr. Ehrack se suicidou? Ora, inspetor!
— A senhorita está falando com o coração. O apego afetivo distorce a noção das coisas. — Sorriu amargamente: — Posso garantir-lhe, no entanto, que vou trabalhar a tese de suicídio. Quer vocês concordem
ou não.
Nervosa, dei um passo para frente.
— Isto é totalmente impossível! — exclamei.
— Não creio que esse adjetivo se adeque ao presente caso. Tudo é possível, até mesmo...
— Estou me referindo à janela — disse eu, atalhando sua explicação. Fui para lá: — Estava aberta quando chegaram?
— S-sim. Como sabe?
— O chão está molhado.
— Ah... a chuva! Pensamento bastante lógico. Mas o que há de errado?
— O que há de errado? O Sr. Ehrack fechou a janela um pouco antes de eu sair.
Ambos ficaram alertas.
— Reconhece, portanto, que esteve aqui até às sete e meia desta noite?
— Fiquei com ele até às oito horas — corrigi. — Ouvi o relógio central dar as horas quando saí.
— Fabuloso, fabuloso — aplaudiu o inspetor. — Dizia que o homem fechou a janela.
— Sim. Ele levantou da poltrona e veio para cá. Ouvi quando engatou essa lingueta. Lembro-me bem disso porque, logo depois, ele disse que iria regular o ar-condicionado.
— E regulou?
— Sim.
Ritterbuch euforicamente bateu na coxa.
— Precisamente. Tudo isso confere com o que eu mesmo constatei.
— Não vamos nos afobar, doutor — disse Radke. —A televisão estava ligada quando a senhorita saiu?
— Não.
— Está certa disso? — insistiu.
— Ehrack sugeriu que, se eu quisesse, poderia assistir ao noticiário com ele.
— E...?
— Eu recusei.
Radke aquiesceu. As minhas respostas estavam sendo objetivas e esclarecedoras.
— E a sobremesa? Foi trazida pelo mordomo?
— Foi, sim.
— Dois pratinhos. Esse era seu, senhorita?
— Exatamente.
— Pelo jeito, o Sr. Ehrack não comeu o pudim — disse Radke.
Vi que era verdade. O pratinho de Ehrack permanecera intocado. Talvez ele não gostasse de pudins.
O inspetor suspendeu o revólver calibre 38 contra a luz.
— Arma inteiramente convencional. Nenhum sinal característico. O fecho de segurança, violado. O pente, com resquícios de pólvora, e um cartucho com a bala deflagrada. Tudo incrivelmente simples.
— Isso confirma a minha tese de homicídio — interveio Ritterbuch.
— Ao contrário.
— Pensa em suicídio? Lorotas.
Radke ficou indignado.
— Lorotas? — retrucou ele. — Veja, não há nenhuma pegada no perímetro deste recinto. Se alguém tivesse entrado, haveria uma quantidade substancial de sujeira ou lama.
Interrompendo, respondi:
— Acho que está esquecendo um detalhe, inspetor. Lá embaixo, no saguão, há um capacho para limpar os pés.
Radke ficou imóvel por uma fração de segundos.
— Parece muito bem informada, Srta. Mertins. Então me diga... Também acha que foi um crime premeditado?
— Não sei dizer. Só sei que Ehrack, hoje à noite, estava com medo de ser morto.
— Ele lhe disse isso?
— Sim, ele disse que tinha pouco tempo de vida.
Radke lançou um olhar intenso para mim.
— Ele usou essas palavras? — perguntou. — Que estava com medo de ser morto?
— Não dei muita atenção, mas receio que sim. Ele tinha uns costumes meio estranhos. Julguei que fosse mais um deles.
— Perfeito. Vocês dois defendem que alguém cometeu um crime aqui. Vamos considerar então essa possibilidade. Se tivéssemos um arsenal high tech conosco, ou qualquer software especializado, as coisas seriam
mais simples. Mas como não temos, vamos ouvir as opiniões. Doutor, por que acha que foi assassinato?
— Para mim, está tudo claro como cristal. Dificilmente o Sr. Ehrack teria conseguido virar tanto o braço a ponto de acertar as próprias costas.
Não se podia discordar daquilo. No ponto de entrada da bala, o sangue sujara o branco-azulado da camisa de flanela. Em volta do buraco o tecido fora chamuscado.
O inspetor cravou os olhos em mim.
— Sabe alguma coisa sobre quem são os herdeiros do Sr. Ehrack, Srta. Mertins?
Fiz que não.
— Nunca falamos sobre isso.
— Foi o que imaginei. Bom, talvez Haggard possa nos ajudar nisso. Julgo que...
Radke calou-se.
— Ora essa, o que temos aqui? — Foi para junto do cabide: — Um guarda-chuva! É seu, senhorita?
— Absolutamente.
— Não é seu? Muito interessante! Ainda está úmido, o que significa que foi usado recentemente.
Ele franziu a testa, como que questionando aquele fato novo. Por fim, desistiu de se torturar e sacudiu a cabeça.
— Bem, não importa. Vamos descer. É melhor não conspurcar a cena do crime.
Descemos.
De volta à sala de estar, vimos que Haggard ainda estava bastante abatido. Mas havia uma moça presente. Era Susi Ehrack, que se levantou com a chegada de nossa comitiva. Havia uma máscara de apreensão
em seu rosto.
— Miriam, você... Que bom que você está aqui!
— Calma, Susi. Vai ficar tudo bem.
— Por Deus, o que aconteceu? Papai está bem?
— Eu...
— Miriam... Miriam...
Achei que ela fosse desmaiar. Segurei-a gentilmente e virei-me para o inspetor com olhos suplicantes.
— Doutor — disse Radke imediatamente. — Por favor, fale com a moça. Conte-lhe tudo, mas com cuidado...
— Susi, me ouça — falei para minha amiga. — Esse homem vai lhe explicar tudo, você entendeu?
— Explicar? O que foi... o que aconteceu?
Ritterbuch coçou a cabeça, perplexo com aquela comissão. Pegou o braço de Susi e, com a destreza de quem vai domar um cavalo selvagem, puxou-a para um canto. Começou a falar com ela em voz baixa, como
se quisesse prepará-la para a real gravidade da situação. Ela limitou-se a escutar, os olhos muito abertos.
— Venha comigo, senhorita — disse o inspetor para mim.
Fui atrás dele. Radke apontou Haggard:
— Estou pensando em interrogá-lo agora mesmo. O que acha?
— Acho que ele não sabe muita coisa. Mas não custa tentar, inspetor.
O aspecto do alemão inspirava clemência. Pedi licença a Radke e ofereci-me para apanhar um copo de água com açúcar. Talvez isso restituísse um pouco de cor ao mordomo.
A cozinha fica à esquerda, para quem olha do hall. Além da porta que dá para a sala, existe outra. Esta segunda porta da cozinha vai para o pátio, e permite que se vá da casa até o depósito de ferramentas
e a garagem.
Achei o açúcar no armário por cima da pia.
Eu estava profundamente preocupada. A presença do inspetor mostrava a seriedade do caso. Havia em suas feições uma grande determinação, um alto grau de altruísmo. Parecia um desses mastins que não descansam
antes de pegar a sua presa.
O alemão fez-me um aceno de gratidão quando lhe entreguei o copo. Forcei um vago sorriso.
Radke ergueu-se da poltrona:
— Está com sono, Srta. Mertins. Quero me desculpar por tê-la tirado da cama.
— Tudo bem, inspetor.
— Colaborou muito conosco. Continuaremos amanhã. Já telefonei aos técnicos; eles farão a coleta de dados pela manhã.
Polidamente, levou-me até a porta.
De relance, vi que Susi Ehrack olhava um ponto qualquer do espaço. Chorava. Mas era um choro sem soluços, contido e silencioso. Pobre garota! Ali estávamos nós, enquanto lá em cima o pai dela estava morto
no escritório.
Como é que isso pôde acontecer?, pensei tristemente. Quem é que foi o louco que fez uma coisa dessas? Quem?
— Boa noite!
— Boa noite, senhorita. Agradeço que tenha vindo. Se eu precisar de seu depoimento, vou mandar chamá-la.
Radke fechou a porta, e eu saí a pé direto para a pensão. Escoltada por uma legião de pensamentos sombrios e confusos.
Meu interrogatório
Acordei com o corpo todo moído; sentia uma melancolia infinita. Tanto que, assim que pus os pés em seu quarto, Tomazelli leu imediatamente os sentimentos de tristeza estampados em meu rosto.
— Parece que alguém dormiu mal esta noite. Deve ser o efeito retardado da morte daquele peixe visguento. Anime-se, Srta. Mertins. É um Ehrack a menos no mundo.
Esse era um dos atributos de meu senhorio — era plenamente autêntico, mesmo que isso significasse acabar com o amor próprio das pessoas.
— Quem contou?
— A empregada de Ritterbuch. Ela andou espalhando a notícia na banca de jornal. Metade da vila já sabe, por quê?
Havia outra pessoa ali. Era Edmund Fëll, reclinado confortavelmente na cadeira. Tomava uma xícara de café. Estava contrito e estudou o meu rosto com ar dissimulado. Subitamente me tornei o centro das atenções
deles.
— A senhorita esteve lá tarde da noite — disse Fëll. — Vi o táxi... Imagino que foi intimada pela polícia.
— Sim. Eles acharam que eu poderia ajudar nas investigações.
A próxima pergunta de Fëll foi franca, embora a sua expressão facial permanecesse enigmática e séria.
— E a senhorita conseguiu ajudá-los?
— Acho que bateram na porta errada. Afinal, o que é que eu poderia dizer a eles? Não vi nada do que aconteceu. Acho que o inspetor ficou meio desapontado... Ele me dispensou logo depois.
Uma linha de compreensão modelou os seus lábios.
— Nunca gostei muito daquela raça — interveio Tomazelli. — É isso mesmo, por que mentir? Para mim, nenhum deles prestava nada. Primeiro foi aquele velho insosso, que tomou uns tragos de veneno. Está certo,
não fiquei feliz, mas também não digo que tive pesadelos. Lamento que Ehrack tenha resolvido seguir o mau exemplo do velho. Sim, lamento sinceramente. Que coisa ridícula — atirar em si mesmo sem dó nem
piedade!
Mesmo hesitante, fiquei curiosa com a sua observação.
— Atirar em si mesmo? O que está querendo dizer?
— Ora — disse Tomazelli. Estava agora apoiado no cotovelo. — Não é essa a teoria da polícia? Suicídio.
Fiquei encarando meu senhorio. Tive a impressão de que estava sendo posta à prova. Lembrei que o doutor Ritterbuch desde o início falara em assassinato. A empregada dificilmente teria mencionado uma hipótese
diferente.
Eu ia dar uma resposta, mas Fëll inclinou-se para frente:
— Diga-me só uma coisa... Faltava alguma folha de papel, por ocasião da chegada da polícia ao escritório?
— Folha de papel?
— Julgo que vocês, ontem à noite, escreveram alguma coisa. Julgo também que a senhorita imprimiu isso em folhas de papel de ofício. Alguma delas estava faltando do calhamaço que o seu patrão guardou numa
pasta?
Fiquei boquiaberta. Notei que o detetive talvez não fosse tão burro quanto eu tinha imaginado. Um ignorante com certeza não teria feito uma pergunta como aquela. Esquadrinhei seus olhos luzidios, mas não
encontrei neles nada além de um interesse puramente casual.
— Não... ou seja, não sei. Por quê?
— Por nada — voltou a se reclinar. — Por nada.
Tentei perceber a profundidade de sua dúvida, mas em vão. Tinha reassumido uma pose totalmente inexpressiva, que me impedia de tirar uma conclusão.
— Não há, pelo visto, nenhuma evidência alusiva que explique o caso.
— É o que parece, Sr. Tomazelli — respondi. — Vou resumir o que eu vi. Quem me recepcionou na porta do hall de entrada foi o Dr. Ritterbuch. É um homenzinho meio patusco — ele quase se esqueceu de pagar
meu táxi. Havia também um inspetor, fazendo perguntas, com uma japona que voava para os lados como um paraquedas. Ele foi muito cordial e levou-me para cima, queria que eu visse o gabinete ou o morto...
ou as duas coisas, pouco importa. O Sr. Ehrack estava lá, caído, com um borrão de sangue nas costas. O médico e o inspetor não estavam de acordo sobre as causas da morte: o doutor dizia que, pela dinâmica
do caso, foi assassinato. Radke, o inspetor, respondia que não, que foi suicídio. Eu não sou muito boa em psicanálise, mas acho que Radke dizia aquilo só para contrariar o Sr. Ritterbuch. Uma rivalidade
boba. Depois, o inspetor olhou o corpo, verificou alguns detalhes do gabinete, andou para lá e para cá... Nada muito jocoso. Creio que o ponto alto da noite foi quando ouviu meu depoimento. Ah, sim...
Ele afirmou que a equipe técnica viria hoje de manhã.
— Equipe técnica?
— Para fazer a perícia do local. Coletar os dados que vão compor o inquérito, esse gênero de coisas.
— Jawohl — disse Fëll. — A comida no estômago e a concentração de potássio no globo ocular podem indicar a hora da morte. Vão recolher também material genético. Com isso é possível extrair dados da origem
geográfica e étnica de uma pessoa. A ciência forense atual se baseia irrestritamente na computação.
— Estou entendendo — disse Tomazelli, embora não tivesse entendido nada. — E você acha que aqui em Cel. Menant existe essa tecnologia?
— Provavelmente não. Aqui será feito o seguinte: a triagem de todas as pistas e a recolha de materiais. A análise acontecerá num centro maior. Embora eu duvide que as coisas cheguem a esse ponto.
— Acho que será perda de tempo — respondi para interromper o fluxo de explicações criminais. — Aposto que o Sr. Tomazelli já tem um palpite sobre quem baleou Ehrack.
— Eu, bambina? Por que deveria ter? Apenas dei minha opinião sobre essa gente.
— O que equivale a quase nada.
— Conforme eu disse, eles prejudicaram muitas pessoas. Quando alguém faz isso, e não tenta resolver os problemas... Tenho certeza que estão colhendo as consequências. Entrar naquela casa, subir até o escritório
e dar um tiro exige um plano antecipado. Ninguém daria passos tão ousados por impulso.
Tomazelli nunca se dava por vencido.
Edmund Fëll ficou olhando para mim, como se estivesse verificando minhas reações. Calculei que era hora de sair, antes que a discussão tomasse um vulto maior. Repeti as recomendações sobre correntes de
ar a meu senhorio e me retirei.
Parei para tomar fôlego na varanda. A bisbilhotice dos dois homens tinha me deixado exausta. Minha pausa foi interrompida por uma visita inesperada. Numa estranha agitação, a Sra. Gwenny-Dutra veio da
rua, as orelhas afogueadas.
— Ué, que cara é essa? Parece que fugiu de um bando de ursos esfomeados.
— A coisa mais extraordinária — disse Leonora sem ar.
— Sente-se... Respire primeiro!
Ela quase desabou no banco.
— Miriam... Se você tivesse visto! Uma coisa cinematográfica, querida.
Minha amiga tinha um ar convulso, se é que isso existe! Tinha vindo como um redemoinho (os dedos estavam crispados pela excitação), e, ali na minha frente, arquejava como um fole diante da lareira.
— Respire fundo. Isso!... Não sei, mas acho que não devia ficar correndo por aí.
Fiquei abanando.
— E daí? A senhora disse que viu uma coisa cinematográfica...
— Você é tão boazinha, Miriam! Fui à mercearia esta manhã, comprar banha. Prefiro banha a óleo de soja — dizem que é mais natural. Imagine só quem estava diante do caixa, pagando a conta! Ela mesma — Anne
Roselene Basknell, namorada do Sr. Ehrack! Normalmente o atendente é tão calado, o pobrezinho. Deve ser um mal hereditário, o pai dele também era tímido como uma coruja. Mas hoje ele estava inquieto. Ficou
com os olhos assim, fitando Anne Roselene. Ela chegou a dizer: “Está assustado comigo, Joel? Parece que virei uma assombração!” Ele ficou lá, com uma cara de quem não sabe o que vai dizer. Por fim, meio
bobo, ele respondeu: “Não é isso, senhora! Mas eu imaginei... bem... que a senhora já soubesse!” E ela: “Soubesse — do quê? Fale logo. Não posso ficar o dia todo aqui!” O rapaz lutou com as palavras: “O
Sr. Ehrack... a noite passada... Ele foi assassinado.” Dessa vez foi Anne Roselene que ficou ali, olhando para ele, perplexa. “Está brincando comigo, Joel? Não deveria fazer isso, posso ter um infarto”,
disse, numa voz brincalhona. Mas o atendente fez um aceno tão compungido, tão trágico — queria que você visse! Rígida como um pau, a mulher continuou ali de pé, digerindo a notícia. Todos nós olhamos para
ela, um mais atrapalhado do que o outro. Então ela riu histericamente: “Não, eu não acredito nisso. Eu o vi... ainda ontem. Isso é impossível!” Miriam, você deveria ter estado lá! Coitadinha... Acho que
nunca vi Anne Roselene tão amargurada. Alguns tentaram falar com ela, mas qual o quê! Quem disse que ela queria ser consolada? Saí de lá com o coração apertado.
— Que engraçado, como é que o inspetor se esqueceu de informar a Sra. Basknell? Acho que ela deveria ter recebido a notícia ontem à noite.
— Concordo com você.
— Mas e a senhora? — perguntei.
Leonora fez um gesto malicioso, que combinou bem com o seu caráter libertino.
— Juli me contou tudo. As empregadas sempre sabem das novidades. Acho que elas têm uma rede secreta de informantes.
— Juli também falou da Sra. Rebelo? Estou curiosa. Como será que ela está?
— Mal, como é que você queria que ela estivesse? Dizem que estão tratando de Dolores à base de sedativos. Afinal, um crime é uma coisa que assusta a gente.
— E o velório?
— Não sei — suspirou. — Juli não sabia. Pelo que ela disse, um inspetor andou pressionando Haggard. Queria saber se Ehrack aguardava alguém para às sete horas da noite de ontem. Samuel respondeu que não,
que seu patrão não estava esperando ninguém. Mas Juli acha que o policial não engoliu a história.
— Talvez o inspetor estivesse falando de Anne Roselene — sugeri. — A amante sempre é a suspeita número um em casos de homicídio.
— Ela nunca ia lá à noite, Miriam. Ela mesma contou para mim que preferia ir de manhã — e sempre depois das dez horas. Para fugir de falatórios, você sabe. Além disso, se ela tivesse ido ontem à noite,
por alguma razão extraordinária, Samuel teria visto.
— Teria visto, é? A senhora está se esquecendo de um pequeno detalhe: ninguém tranca as portas naquela casa. Eu mesma fui lá duas vezes. Disseram-me que eu poderia entrar direto...
Leonora hesitou.
— Você quer dizer que qualquer um poderia ter entrado sem ser notado?
— Mais ou menos. A não ser, lógico, que o mordomo estivesse no hall, ou nas imediações.
Meu argumento era imbatível e causou um momentâneo silêncio de ambas as partes.
A Sra. Gwenny-Dutra se remexeu no banco. Eu a conhecia bem — era um indício de que pretendia me fazer uma confidência. Pensei em lhe dar um estímulo:
— Ih, a senhora sabe de alguma coisa. Então, o que é?
— Eu vi uma coisa ontem à noite.
— Onde?
— Perto da mansão de Wilson. Eu estava na rua, voltando da casa dos Grommer. Eles moram na segunda quadra depois dali. A filha está constipada, eles me chamaram. Devia ser umas oito e dez da noite.
Fitei o rosto miúdo dela com interesse.
— Estava na rua a essa hora? Surpreendente. Reconheceu quem era?
— Não. Eu passava pela calçada em frente. A iluminação não é muito boa naquele lado da casa. Só consegui notar que alguém estava carregando uma escada de mão.
— Alguém? Escada de mão? Espere aí, vá mais devagar. Está dizendo que, naquele horário, havia uma pessoa no terreno do Sr. Ehrack? Que loucura! Está certa disso?
— Estou sim. Ele estava no lado esquerdo da casa.
— Ele? Era um homem, então?
— Sim. — Leonora pensou um pouco melhor: — Bom, eu não enxergo muito bem de longe. Mas achei que era um homem. A escada era comprida e pesada — uma mulher não teria conseguido carregar... acho eu.
O ponto de vista dela era razoável. Ainda mais — o seu relato explicava aqueles rangidos de sapato.
— Acha que eu devo falar com a polícia, Miriam? Pelo jeito, eles estão ansiosos para obter informações.
— Deixe isso comigo, Sra. Apressadinha. Vou contar a eles o que a senhora viu. Também tenho uma coisa a declarar. Já aproveito e falo tudo de uma vez.
— Eu tenho pena de Susi — acrescentou Leonora após uma pausa. — A perda do pai vai ser avassaladora para ela. Ele sempre mimou tanto a filha. Em contrapartida, Dolores nunca foi uma boa mãe. Susi já sofreu
nas mãos dela. Uma mãe que não sabe educar um filho? É como armar uma bomba-relógio dentro de casa. Depois que passam a adolescência, os filhos geralmente se vingam disso. Passam a fazer o que bem entendem,
sem ligar a mínima para o que os pais dizem. A mãe de Susi é uma louca, essa é a verdade. Vive comprando aqueles livros de farmacêutica e toxicologia. Dolores não regula bem, é o que digo.
A Sra. Gwenny-Dutra saiu e eu fiquei ali plantada, com uma expressão compenetrada. O que ela dissera era muito curioso. Alguém estivera rondando o pátio de Ehrack! Quem teria sido? Por mais que remoesse
o cérebro, não consegui elaborar qualquer teoria convincente. Era difícil achar uma solução para o enigma.
Uma viatura estacionou no meio-fio da rua. O inspetor Radke apeou, a fisionomia dura e sem emoções. Empurrou o portão e veio na minha direção.
— Olá, inspetor.
— Srta. Mertins!
— E aí, como vai a investigação?
— As coisas deram em nada — disse Radke acabrunhado. — Não há nenhum laço solto no caso. É a segunda vez que me meto numa encrenca dessas.
Aquele fracasso melindroso incomodava seu amor-próprio. Pela sua personalidade, Radke não era um homem que se preocupasse à toa. Mas saber que suas deduções tinham ido pelo ralo... Ah, isso devia ser um
tormento para ele! Talvez aspirasse a alguma promoção, que estava tardando a vir.
De repente, o seu rosto se encrespou, contrariado.
— Vamos, inspetor, pode falar comigo sem papas na língua. Precisa de mim de novo, não é?
— Não... quer dizer, sim. A senhorita não me deixou nem respirar. Admito — preciso de sua ajuda. Pode fazer isso por mim? O local do crime — existem coisas nele que preciso passar a pente fino.
— Desde que seja só isso, por que não?
— Ótimo. Aliás, o seu vizinho... recebi uma chamada em meu celular... irá conosco. Será que ele está pronto?
Olhei para o inspetor, estupefata:
— Meu vizinho irá conosco? Quem?
In Loco
Embarcamos na viatura e nos dirigimos para a mansão Ehrack. A nossa matilha estava longe de ser o Trio da Alegria! Notei que Radke havia saudado Edmund Fëll com uma frieza doméstica, como se aquele peso
excedente não o agradasse. Mas o detetive, o monóculo reluzente ajeitado no nariz, suportou tudo com verdadeiro heroísmo.
— O senhor é português?
— Nein, nein, sou austríaco. Mas moro há alguns anos no Brasil. Eu exerci minha profissão em Viena.
— De detetive?
— Era criminalista. Examinava as provas materiais para refazer a cena do crime. Pode ser uma peça de roupa, um toco de cigarro ou manchas de sangue. Tudo isso é usado para encontrar um elo que ligue o
suspeito e a vítima. Sofri um ferimento e, oficialmente, me aposentei.
Fiquei um pouco desapontada. Austríaco? Em definitivo, a minha capacidade de julgar as pessoas estava em baixa.
Bem da verdade, retornar ao local do crime não me encheu de animação. Teria mil vezes recusado o convite se — bem, se o inspetor não tivesse aqueles olhos de buldogue que se perdeu na neve.
— Aqui estamos. Conforme pedi, o Sr. Haggard não mexeu em nada. Os peritos vieram bem cedo, e já fizeram o exame preliminar. Embora, em minha modesta opinião pessoal, não houvesse muita coisa para coletar.
Descontraidamente, o inspetor pendurou seu casaco esvoaçante no cabide. Às escondidas, lançou um olhar para mim, numa consulta silenciosa sobre nosso companheiro. Estreitei os ombros: o que mais eu poderia
fazer? Eu não conhecia o histórico de Fëll, e não tinha a mínima ideia sobre suas intenções ao vir até ali.
Fëll não perdeu tempo e começou estudando o escritório. Hirto como um mastro de navio, parou no centro do recinto, passeando os olhos à sua volta.
— Exceto pela remoção do corpo, tudo continua no mesmo lugar?
— Creio que foi isso o que eu disse.
Radke estava abespinhado. Fëll não se alterou com o tom da resposta.
— Para onde conduz aquela porta ali?
Antes que o inspetor tivesse um novo arroubo de mau humor, dei um passo à frente:
— Para os aposentos do Sr. Ehrack — respondi. — Ele dormia ali.
Fëll foi até lá e, por um breve período, inspecionou a guarnição e a ombreira da porta. Fiquei impressionada com sua vitalidade — não tinha vindo conosco por mero lazer.
— Não foi forçada — fungou. — Isso põe por terra uma pista promissora. Aquela janela tem sacada?
— Não.
Fëll fez uma nova inspeção, com uma cautela caracteristicamente ultrajante. Sem ação, Radke ficou contemplando o espetáculo.
— Qual é a teoria vigente, inspetor? Assassinato?
— Besteira. Não há nenhuma certeza disso. As pessoas falam demais.
O habilidoso Fëll virou-se para nós; deu um sorriso malicioso.
— Não só as pessoas. O médico também acha isso.
A afirmação foi muito bem formulada. Radke não conseguiu refutá-la e sacudiu a cabeça:
— Ah, é? O que mais ele acha?
— O suficiente, eu diria. O suficiente para formar um panorama coerente do que aconteceu aqui. Para onde estava caída a cabeça do Sr. Ehrack quando o acharam?
— Para próximo da poltrona.
— Esta aqui, portanto. (Anexa está a planta do gabinete com a poltrona e os outros móveis.) Exatamente — disse Fëll, abrindo amplamente os braços. — Mas o doutor está equivocado numa coisa. De acordo com
a empregada, ele presume que o assassino tenha entrado pela janela. Sim, a lingueta da janela é frágil; isso está certo. Mas há um erro de julgamento — ele acha que o disparo foi feito daqui. Isso é totalmente
inverossímil.
— Por causa da trajetória da bala?
— Exatamente, Fräulein. O tiro, segundo os vestígios, foi dado de muito perto. Isso teria lançado o corpo em direção da porta, e não da poltrona.
— Por que não acreditar, nesse caso — disse o inspetor —, que o responsável pelo ato entrou no escritório e arrastou o corpo para uma posição falsa?
— Porque, se repararmos bem, não existe nenhuma pegada no assoalho. Isso é altamente incongruente, ainda mais se levarmos em conta a quantidade de chuva de ontem.
A petulância daquelas constatações! Achei que Radke devia estar doido de raiva. Mas, por algum motivo que fugiu ao meu alcance, ele não se pronunciou dessa vez.
— Que horas a senhorita declara que saiu daqui?
— Oito horas, dois ou três minutos depois, talvez.
— Quando saiu, o Sr. Ehrack fez algum comentário, wie man sagt, estranho?
— Ele não fez nenhum comentário — respondi com segurança. — Ele apenas disse que estava frio aqui dentro.
— Ele chegou a ligar o ar condicionado?
— Sim.
Narrei rapidamente todos os acontecimentos da noite anterior. Ocasionalmente, Fëll alçava os cílios para me direcionar ao que era mais importante. Falei docilmente a fim de ser o mais precisa possível
em minhas declarações.
Quando mencionei que tinha ouvido os rateios do Maverick quando estava descendo para o térreo, Fëll me fez parar.
— Bitte, os ruídos vinham da garagem?
— Acreditei que era Haggard, mexendo no motor.
— Por quê?
— Ele não estava na sala quando desci — justifiquei. — Achei que ele estivesse consertando o automóvel.
— Estava?
— Eu o interroguei, e ele me disse que sim — interveio Radke, que gradualmente ia se interessando nos métodos de Fëll. — Afirmou que era um problema na ignição.
Edmund Fëll fez um “hum-hum” complacente com aquela informação. Examinava o peitoril da janela; insistiu para que eu continuasse o meu relato.
—Dei só uma olhada superficial na sala. Em seguida, saí. Garoava de fininho, por isso tive que abrir meu guarda-chuva. E... ei, é isso! — exclamei. — Lembrei que tenho uma coisa para lhe contar, inspetor.
Antes de ir pela alameda, eu ouvi um rangido.
— Que espécie de rangido?
— O som de um sapato com solado de borracha. Parecia alguém pisando no saibro ali perto.
— Wunderbar — murmurou Fëll. — Se escutou, também deve ter visto alguém.
— Lamento, não vi nada. Havia toda aquela neblina... Eu olhei ao redor, mas não vi ninguém.
Novamente aquele “hum-hum”, quase paternal.
— Não viu ninguém... E depois?
— Depois caminhei até o portão.
— Perfeitamente.
— Lá, por pouco não esbarrei numa pessoa que vinha pela calçada da Rua A. Por causa do susto, não consegui reconhecer quem era. Pela silhueta, achei que era a Sra. Basknell.
— Sra. Basknell... quem é ela?
— É a mulher com quem Wilson Ehrack — disse Radke — mantinha um affair. Fiz umas anotações sobre isso.
Fiquei um pouco incomodada
— Sr. Fëll, se está conjeturando que a Sra. Basknell...
— Langsam, jawohl? Não estou conjeturando nada. Sem precipitações. O que nós precisamos é formar um raciocínio sólido. Depois que tivermos feito isso, vamos tornar esse raciocínio compatível com o incidente.
Além dessa senhora, viu mais alguém?
Respondi negativamente. Fëll foi até a mesa de centro, e avaliou os objetos dispostos nela.
— Este pratinho de pudim... Quem o trouxe para cá?
— Foi o mordomo.
— Ninguém tocou nele. E do lado, um copo com uísque. — Perscrutou o conteúdo: — Também não foi tocado. Ao trazê-los, o Sr. Haggard demonstrou algum tipo de nervosismo?
— Não.
— Nenhum tique?
— Nada.
— Certo. Tenho que lhe pedir um pequeno favor, senhorita. Poderia simular a entrada dele, e o modo como pousou a bandeja na mesa?
Pisquei os olhos, confusa com a solicitação. Obedeci, no início um tanto relutante. Fëll acomodou-se na cadeira diante da escrivaninha e, com calma, aprovou quando saí da porta. No cume da escada, respirei
fundo, tentando não me intimidar com o que faria. A seguir, torci o trinco e avancei, fingindo que trazia uma bandeja na minha frente.
— Wunderschöen! — disse Fëll, empolgado. — Entre, entre... Finja que é o mordomo! Vou fingir que sou o Sr. Ehrack... O que eu digo?
— O que o senhor diz?
— É, é... O Sr. Ehrack deve ter dito alguma coisa quando viu o criado. Consegue se recordar o que foi?
— Acho que ele disse: “Ponha na mesa!”.
— Wie klar! Vamos adiante... Então eu estou aqui sentado. Ouço a porta se abrindo e vejo o mordomo com uma bandeja. Ele diz: “Com licença, senhor. Trouxe a sobremesa.” Eu respondo: “Ponha na mesa.” Foi
essa a entonação?
— Igualzinho...
Fëll esfregou as mãos, muito gabola. Radke girou o dedo perto da têmpora. Permaneci séria e continuei meu ato de dramaturgia.
Ao fim daquela reconstituição funesta, Fëll aplaudiu-me, louvando bastante a lealdade com que eu imitara os movimentos do mordomo.
— Das freut mich sehr! Es war schöen. Outra coisa, ele desceu logo depois, ou...
— Ele ficou pouco tempo, pelo que lembro.
Não disse qual tinha sido o propósito daquela experiência. Estava imbuído de um propósito obscuro, pois, antes que eu pudesse me recuperar, fez outra pergunta:
— Quando a senhorita foi embora, o Sr. Ehrack chaveou essa porta?
— Não ouvi estalido nenhum. Acho que não.
— Mas não tem certeza.
— Não.
Fëll limitou-se a dizer:
— Bom, isso pode ter dois significados: ou ele a trancou mais tarde, ou ela ficou apenas encostada.
Fëll andou até o local onde o cadáver fora achado. Esfregou o dedo no chão lustroso, com habilidade, mas sem sucesso. Tudo estava limpo, e a não ser por alguns resquícios de sangue, o assoalho parecia
impecável.
A maneira glacial com que Radke cerceara o austríaco vinha sumindo. A sua atitude voluntariosa foi sendo substituída por uma indisfarçada curiosidade. Radke reconhecia que talvez... sim, talvez... aquele
homem não fosse tão idiota assim. Bem, se não era idiota, isso dava o que pensar, não dava?
Radke sacou um bloco de notas e folheou as páginas; disse:
— Apurei dois fatos interessantes. O mordomo disse que, ontem de manhã, o Sr. Ehrack reclamou que tinha ouvido alguém mexendo no barzinho da copa. Acho que ele escutou o tinir de vidro ou de copos, algo
assim. Mas que, quando desceu para ver quem era, não viu ninguém.
— Alguém mexendo no barzinho da copa... E o outro fato?
— Ontem à tarde, Harrison Victor foi expulso desta casa pelo Sr. Ehrack. Ainda não consegui localizá-lo, mas achei que talvez houvesse aí um motivo para um assassinato.
— Quem é Harrison Victor?
— É o sobrinho. Trabalha como carteiro da vila. Cursa uma escola de engenharia ou arquitetura...
— Por que o tio o expulsou?
— Um desentendimento frívolo. Parece que o rapaz estava bisbilhotando alguns papéis na mesinha da sala de visitas. Foi pego em flagrante. Ehrack julgou melhor coibir essas liberdades e disse algumas coisas
bem duras. Harrison não respondeu nada, mas saiu batendo os pés.
— Ótimo, inspetor. Coloque-o no alto da lista dos suspeitos. Brigas em família geralmente são o estopim de fortes acessos de ira.
— Outro ponto que anotei: havia um guarda-chuva úmido no cabide ali. Pelos depoimentos até agora, não pertence a ninguém.
— Não era do Sr. Ehrack? — sugeri.
— Não era dele. Ele tem um, mas fica guardado no quarto da bagunça lá embaixo. Eu conferi.
— Pode ser emprestado — teimei. — Ontem, na hora da chuva, pode ter saído com ele. Isso explicaria o pano úmido.
— Engana-se. Ehrack não saiu daqui ontem à noite. Não havia nos sapatos nenhuma filigrana de barro, nem nada.
Fëll ergueu-se:
— Devo alertar que está cometendo um erro, Srta. Mertins. Para chegar à verdade nunca se deve induzir os fatos. A teoria sem uma base não tem qualquer valor. E quanto a pegadas em geral? Ora, vamos, inspetor,
não diga que não existia nenhuma. Eu tomaria isso como uma tentativa de manter as pistas em sigilo.
— Bem — disse Radke. — Para ser franco, havia uma marca. Mas uma única. Ali!
Indicou um minúsculo semicírculo de lama no chão diante da janela. Fëll mudou seu grunhido para um “eh-eh” satisfeito.
— Escondeu esse fato, suponho.
— É lógico que sim. Prefiro ser prudente nessas coisas. O doutor pode ser bom em sua área, mas é um pouco tagarela. Foi logo dizendo que era homicídio. Calma, temos que primeiro analisar as provas. Se
nós juntarmos tudo, dá a impressão de que o assassino veio de fora apoiando uma escada no peitoril da janela. Isso seria possível? Sim, seria, já que a lingueta da janela está quebrada. Todavia, isso não
esclarece por que o corpo ficou arriado naquela posição. Além do mais, só há esta pegada...
Essa menção fez tilintar um alarme dentro de mim.
— Esperem, e se a chave para o enigma estiver aí? Leonora me disse que viu alguém carregando uma escada ontem à noite.
— Quem é Leonora?
— A Sra. Gwenny-Dutra. É uma espécie de ajudadora das pessoas doentes. Ela tinha ido a uma casa aqui perto. Ao voltar para casa, lá da rua, ela viu um homem com uma escada de mão.
— Jawohl? — fungou Fëll. — Ela notou um homem?
— Há uma lâmpada lá fora, à esquerda da casa. Passava das oito horas...
— Talvez tenha sido Haggard — disse Radke com um aceno significativo. — Ele me disse que andou limpando as calhas ontem à tarde. Pode ter se esquecido de guardar a escada no depósito, e fez isso à noitinha.
— Es kann sein, warscheinlich. Veremos isso mais tarde.
Fëll balançou a cabeça e prosseguiu:
— Ao digitar, ficou sentada nesta cadeira, senhorita?
— Sim. Quando cheguei, tudo estava preparado. Assim que acabei, imprimi as folhas e as deixei na escrivaninha. O Sr. Ehrack era muito metódico; gostava de corrigir as laudas. Não para encontrar erros datilográficos,
mas para suprimir incoerências de continuidade, acho eu.
— Estas folhas contêm o trabalho de ontem à noite?
— Tal e qual.
— Do que se trata?
— De memórias de sua juventude e de alguns arrependimentos pessoais, essas coisas. Pode ler, se quiser.
— Depois. A arma, inspetor, estava caída perto do corpo?
— Ao lado da mão direita. Para complicar, as únicas digitais que encontramos no exame inicial eram do Sr Ehrack. Quem atirou nele foi muito cuidadoso.
— Qual a procedência da arma?
— Estamos investigando...
Bati a mão na testa, irritada comigo mesma.
— Que estupidez a minha! O revólver — como é que pude esquecer isso? Que tola!
— O que foi? — perguntou Fëll, intrigado com o meu comportamento. — Mais alguma lembrança?
— O revólver que matou Ehrack estava aqui quando saí. Bem ali, no braço da poltrona.
— Como? Mostre.
— Reparei nele por pura casualidade. Vi um reflexo fugaz. Era um revólver, vi que era. A única diferença é que a poltrona não estava aqui, atrás da cadeira... como agora. Ela estava ali do lado, entre
a escrivaninha e a porta. Eu conseguia olhar para o Sr. Ehrack enquanto ele ditava.
— Das kümmert uns sehr — disse Fëll. — Então esta poltrona estava ali e arma jazia no braço dela. Os agentes mexeram na disposição dos móveis, inspetor?
— Não! Jamais. Eu sou muito meticuloso nessas coisas. Tudo estava exatamente assim quando vim para cá.
— Tem certeza?
— Plena certeza.
— Alguém então mexeu na poltrona. Mas quem, e por quê? Vamos fazer o seguinte: temos que descobrir se Ehrack tinha porte de arma e, se não tinha, de onde apareceu o revólver. Ele por acaso disse que ia
ter visitas depois das oito, Mädche?
— Não.
Eu ia bater na testa outra vez... mas aí já seria apelação demais! Dei um toque suave à voz e falei:
— Mas ele disse outra coisa — comentou que tinha medo de ser morto.
— Continue...
— Na hora achei que estivesse brincando. Pensando bem, talvez estivesse emitindo um grito de socorro, não é? Estudo psiquiatria, sabe? Existem pessoas que dizem coisas para chamar a atenção. Geralmente
sofrem de alguma neurose. Já fui a simpósios que...
Fëll gesticulou com impaciência. Não queria ouvir minha preleção sobre patologias clínicas.
— Não quero ferir seu orgulho, senhorita. Mas poderia repetir as palavras exatas dele?
— Claro, se acha que é importante. Isso aconteceu depois de terminar nosso ditado. Ele disse: “Pensei em aproveitar meus dias para fazer uma coisa que me desse prazer.” Fez uma pausa e finalizou: “Antes
que seja tarde demais!”.
— A frase foi essa: “Antes que seja tarde demais”?
— Sim. Compreendi logo que tinha recebido alguma ameaça e queria que eu soubesse disso. Eu perguntei o que ele queria dizer, mas a entrada do mordomo acabou com a conversa.
— Gut, é tarde para lamentar — respondeu Fëll, resignado. Apontou para o banquinho de carvalho: — Que papéis são estes?
— São anotações. Acho que foram feitas pelo Sr. Ehrack.
— Posso ler, inspetor?
Radke, na falta de uma resposta melhor, concordou. Não sei se tinha notado as folhas esparsas, jogadas à toa no banquinho. Eu poderia apostar que não. Fëll, sem maiores cerimônias, pegou o maço de papéis
e o enfiou descaradamente no bolso. Com a cara mais inocente, virou-se para nós.
— Que horas a Sra. Gwenny-Dutra viu o homem carregando a escada?
— Depois das oito.
— Talvez Haggard possa nos contar alguma coisa. A senhorita pode chamá-lo para nós, bitte?
O empregado veio com a humildade de um cordeirinho. Parou discretamente no aposento, os ombros curvados, à espera do que queriam com ele.
Jogo de Busca de Pistas
Haggard devia ter envelhecido vinte anos nas últimas horas. A sua fragilidade... Seu olhar... Os ombros caídos... Parecia um homem esmagado pela amargura.
— Limpou as calhas ontem, não foi, meu bom velho?
— Sim, senhor.
— Onde guardou a escada? No depósito?
— Sim... não. Eu esqueci, senhor.
— Eh-eh, wie schön! Esqueceu, hein? Por acaso, não se lembrou de guardá-la, digamos, à noite?
— Lembrei, senhor. Fui lá fora, mas não a encontrei. Imaginei que a Sra. Rebelo... que ela tivesse recolhido a escada.
— Quem é a Sra. Rebelo?
— A ex-mulher do Sr. Ehrack — expliquei.
— Ela alguma vez fez isso?
— Sim.
Fëll moveu a cabeça com amabilidade.
— A Sra. Rebelo falava com frequência com o ex-marido?
— Não.
— Warum nicht?
— S-senhor — o velho gaguejou.
— Acho que sei por quê — disse o inspetor. — Dizem que o divórcio foi muito polêmico. Muito dinheiro envolvido... partilha de bens... Isso causou um desgaste, e logicamente as feridas ficaram abertas.
Dizem que até a filha tinha pouco contato com o pai.
— Uma proibição materna, certamente — disse Fëll. — Continue, Haggard.
O mordomo engoliu em seco
— O Sr. Ehrack sempre foi um homem ocupado, senhor. Ele não era um bom pai, não era mesmo.
— Razão?
— Estava sempre viajando; era um vai e vem, muitas vezes para o exterior. Que exemplo poderia dar? Antes de abrir firma própria, foi assessor do pai dele. Advogavam juntos. O Sr. Ehrack nunca ajudou a
criar a Srta. Susi. Esse mundo é muito injusto, senhor. Ver os próprios pais negligenciando a criação de seus filhos! Que esperança resta, senhor?
Edmund Fëll acenou afirmativamente:
— Fale sobre ontem à noite. Trouxe o uísque e o pudim para seu patrão. Mas ele nem os tocou.
— Ele sofria de enxaqueca. Tinha crises terríveis. O Sr. Ehrack tomava medicação controlada, senhor.
— Isso basta. Pode ir, Haggard. Ah, uma última pergunta. Esta poltrona aqui. Dizem que estava ali, perto da porta. Moveu a poltrona para cá, hoje de manhã?
— Sim. Ali, atrás da porta, atrapalhava a entrada.
Radke balançou a cabeça, consternado. Ouvir que tinham tirado as coisas do lugar... e sem a sua aprovação...
Após a saída do mordomo, Fëll disse:
— Não é tão surdo quanto dá a entender. Aliás, o que acham sairmos um pouco? Es ist ein strahlender Morgen heute.
Descemos até o térreo em silêncio. Depois da chuva, a manhã estava realmente límpida e azul. O austríaco, seguindo sua intuição, saiu da mansão com invulgar velocidade. Parecia mesmo disposto a debelar
um inimigo oculto.
— É pena — cochichou o inspetor para mim. — Nosso companheiro é louco. Lá em cima quase cheguei a acreditar nele. Agora sai correndo que nem uma lebre em pânico.
Marchando diante de nós, Fëll caminhou para a esquerda. Parou na alameda de saibros; remoía alguma coisa consigo mesmo. Notei que calculava a altura entre a janela do escritório, no primeiro andar, até
o chão de terra.
Repentinamente, Fëll ficou de cócoras.
— Sowas muss man ausfschreiben, nicht wahr?
— Encontrou alguma coisa?
Fëll revolveu o solo de um canteiro de azaleias. Soltava uns grunhidos tão audíveis que tive que sorrir. Quando se ergueu, havia uma expressão de desapontamento em seu rosto.
— Não, infelizmente. Nem sempre se consegue cultivar lentilhas com pouco adubo.
O choro de um elefante teria sido menos enigmático. Aquela frase! Evitei olhar para Radke, que devia estar sofrendo um ataque de apoplexia.
Ouvimos um grito desesperado. Numa mistura de ódio e urgência. Ficamos gelados, à espreita de um perigo iminente e próximo. Da direita, da outra esquina da casa, uma mulher vinha a toda pressa em nossa
direção. Era Dolores Rebelo, levantando e baixando os braços como se estivesse passando mal.
— Viram minha filha? Por Deus, alguém a viu? Onde — onde está Susi? Ela desapareceu... Minha filha!
Entreolhamo-nos, surpresos.
Gorda e de membros maciços, Dolores é uma mulher que causa impacto. Todos dizem que, em grande parte, seu casamento terminou por causa de sua atitude dominadora. Na época, levava o pobre Ehrack com a rédea
bem curta. Era sabido por todos que, por muitos anos, ele fora obrigado a descrever toda a sua rotina para aplacar o ciúme exagerado dela. A separação fora apenas uma consequência tardia dessas manias.
De carne flácida, ela ainda conserva traços de sua beleza juvenil. Os cabelos têm um tom castanho-claro, e são fixos com laquê. Arrisco a dizer que, secretamente, a Sra. Rebelo sempre sonhou em ser designer
ou estilista. Mas agora, no crepúsculo de sua vida, é tarde para ter esses sonhos. Resta-lhe levar seus dias cuidando do lar e de suas módicas despesas caseiras.
— Já telefonei... Ninguém viu a coitadinha... Susi, oh Deus! O que será que houve com minha filha?
Aquilo exigia uma ação imediata.
— Inspetor — disse Fëll. — Sua vez de entrar em cena.
Com voz mansa, Radke tocou no braço da Sra. Rebelo.
— Venha comigo, minha senhora.
— O senhor sabe... sabe onde Susi está?
— Não, senhora. Mas ela não deve ter ido longe. Venha...
Ela retorcia as mãos, num frenesi que dava dó; acompanhou o rapaz sem reclamar, aliviada por ver que ele se preocupava com seu problema aflitivo.
— Calma, minha senhora. Conte-me tudo bem devagar, ouviu?
Fëll balançou a cabeça.
— O afeto possessivo dos pais. Controlam tanto os filhos que, quando eles somem por um minuto, ficam sem saber o que fazer. Aposto que a Srta. Susi está com alguma amiga, tentando lidar com a perda que
sofreu. Quer vir comigo, senhorita? Participaria de um modesto jogo de busca de pistas?
Jogo de busca de pistas? Essa frase me soou de extremo mau gosto. Achei que não devíamos nos exceder naquele tipo de brincadeiras. Mas havia alternativa? Aceitei.
Houve um lampejo de contentamento em suas pupilas. Foi como se eu o tivesse remetido a seu habitat.
— Comecemos pelos caminhos que o assassino pode ter usado para invadir a casa — prosseguiu Fëll, encerrando o assunto. — São três os caminhos. Temos a porta da frente, que serve como entrada principal.
Há a porta que vai da cozinha para o pátio interno do terreno. E há também, como última possibilidade, essa janela ali, e aqui em baixo, a marca de um sapato. Se analisarmos com método esses três pontos,
logo conseguiremos coordenar o nosso palácio mental.
Voltamos pela mesma trilha de terra batida, que circundava a casa. Em vez de entrar pela porta da frente, continuamos nosso passeio. Depois da segunda esquina, vimos o depósito de ferramentas a alguns
metros. Atrás dessa primeira construção ficava a garagem, onde outra estradinha se esticava num risco torto até a porta que irrompia da cozinha.
O detetive avançou por ali.
— Vamos confirmar a história da escada.
— Acha que Haggard se enganou?
— Dificilmente — disse ele.
A porta do depósito estava fechada. Sem qualquer pingo de remorso, Fëll arremessou o corpo contra a porta, que se abriu com um chiado das dobradiças. Espiando para dentro, não demorou a constatar:
— Veja, os ganchos na parede. Estão vazios!
— Isso significa que Leonora Gwenny-Dutra tem razão. Alguém carregou a escada.
— É muito sagaz — elogiou Fëll. — Já percebeu que a residência tem calhas só num dos lados. O lado direito. Sim, temos que levar isso em consideração. Resta saber se esse homem, descrito por sua amiga,
achou a escada por acaso ou se sabia que estava lá.
Confesso que tudo aquilo começava a mexer com minhas emoções. Aquele assassinato tinha virado um caldo de confusões. Fëll franzia a testa. Existia nele essa singularidade; embora suas buscas fossem um
pouco ostensivas, eu sabia que tudo tinha importância para ele, desde os rastros maiores até a menor partícula de pó.
Refizemos o nosso trajeto. Desta vez, fomos pela trilha que ia até o portão da rua. Farejando o ar, o austríaco virou-se e inspecionou a fachada da casa. Depois olhou as redondezas, para gravar na memória
a geografia do terreno. Apesar de minha curiosidade, não fez nenhum comentário sobre a necessidade daquilo.
Perto da alameda havia um chafariz que, a intervalos, lançava jatos d’água para o ar. Fëll olhou aquilo por um tempo e, num impulso louco, foi para lá atravessando o gramado. Verificou o tanque do chafariz
e, apoiando a perna na amurada, mergulhou a mão na água. Quando a retirou e abriu novamente, um objeto dourado cintilava entre seus dedos.
— Und jetzt, wem ist das? De quem será isto?
Pude ver que era um relógio de bolso, desses com tampa e pino com correntinha.
— Abra a tampa. Algumas pessoas imprimem suas iniciais lá dentro.
Ele apertou o pino e examinou o interior do relógio.
— Aqui diz... “S. E.” O que acha que significa?
— Que foi dado de presente. A alguém cujas iniciais são S. E..
— Denkst du sowas?
Atrás de nós, uma voz disse:
— Que bom! Vocês encontraram. Então foi aí que meu relógio caiu!
A uma pequena distância, um rapaz de cabelo moreno e de boa aparência sorriu para nós. Tinha uma mão no bolso, e uma serenidade incrível no olhar. Era Harrison Victor.
— Que sorte! Vocês apareceram na hora certa. Um artigo desses custa uma fortuna.
Bisbilhotando
Harrison tinha vindo pela trilha da garagem. Não estava nem um pouco afetado com a nossa presença. Eu o conhecia bem... Ele olhou para mim com autossuficiência e sorriu pela segunda vez.
Calmamente, Harrison perguntou:
— Vocês vieram com o inspetor, certo? Um homem experiente, eu diria. E que terá um desafio e tanto. Como se não bastasse a embrulhada dessa noite, Susi ainda resolveu sumir.
Fëll adiantou-se e fitou o jovem. Estudou-o dos pés a cabeça, como se estivesse avaliando uma folha de cardápio escrita em chinês.
— Quem é o senhor?
— Harrison Victor. Prazer!
— Victor... O sobrinho do Sr. Ehrack, imagino.
— Digamos que sim. Por coincidência, Wilson Ehrack era meu tio. Entrego cartas na vila. Mas, na formação, sou arquiteto. Enquanto não arrumo um emprego fixo, faço uns extras por fora.
— Não parece muito preocupado com os últimos acontecimentos, sr. Victor.
— Não estou, por que negar? — respondeu Harrison com voz serena. — Susi já não é criança. Ela sabe se cuidar.
— Eu estava me referindo ao assassinato de seu tio. Pelo que eu entendo, as pessoas normalmente ficam consternadas com a morte de um parente tão achegado.
— Incrível, não é? Mas, para dizer a verdade, eu e titio não éramos nem um pouco achegados. Ele era babaca com ares de príncipe. O senhor não acredita? Pois pergunte à Srta. Mertins; ela vai lhe falar
a mesma coisa. Eu sei que não deveria estar propalando minha opinião aos quatro ventos, mas é que cansei de fingir, sabe? Vamos jogar as máscaras fora, vamos ser o que nós somos. Fui um fantoche durante
anos, mas finalmente chega! Eu sou livre, e não tenho medo de dizer o que penso.
— Como quiser, Sr. Victor. A liberdade é sua, apenas faça bom uso dela. Acabou de falar da Srta. Susi Ehrack... Sabe aonde ela foi?
— Para um lugar seguro.
— A troco do quê?
— Como é que eu vou saber? Possivelmente ela cismou que corria perigo e fugiu.
— Uma teoria ousada — murmurou Fëll.
— Chama isso de ousadia? — Harrison riu cinicamente. — O senhor esquece que um sujeito atirou em meu tio. Como se ele fosse um animal. Uma bala, um tombo e acabou.
— Pode ter sido o senhor.
— Desde que vocês provem.
— Dizem que houve uma discussão ontem. Seu tio o recriminou e o senhor saiu chutando as pedras. Quer nos falar sobre esse episódio?
— Oh, aquilo — o rapaz fez um gesto de descaso. — É admirável como a polícia anota essas coisas. Quem é que nunca teve uma pendenga familiar? Eu simplesmente lhe disse que devia viajar mais, conhecer os
Cárpatos, a Islândia ou a Amazônia. Titio era muito parado, uma pena. Um homem com tanta grana para gastar. Óbvio, ele não gostou e me expulsou da sala.
— E quanto aos papéis.
— Que papéis?
— Os que o senhor tinha na mão e que geraram a fúria de seu tio.
— Para ser sincero, não lembro. Acho que eram memorandos ou algumas apólices. Nada a ver com o bate-boca que tivemos.
Uma afirmação com mais furos do que uma peneira, pensei comigo mesma. Mas, estranho como fosse, Fëll entregou-lhe o relógio.
— Tome! Acabou de dizer que é seu.
— É meu sim. Obrigado...
— Deve saber, Sr. Victor, que a investigação está apenas começando. Terá que prestar depoimento mais tarde.
Harrison agradeceu e sorriu novamente. Murmurou alguma coisa sobre flores para o velório e saiu para a rua.
— Diese Jugend! — disse o austríaco. Piscou para mim: — Estamos progredindo, hein? Vejamos agora o que aconteceu no jardim. Venha, e veja aqui.
Fëll voltou para o canteiro que já tínhamos examinado, abaixo da janela do escritório.
— Creio que alguém andou amassando a camada superficial da terra. É orfã, senhorita?
A brusca guinada no rumo de sua conversa me desnorteou. Agachado, Fëll mexia como que distraído os talos de margarida.
— Sim, sou — respondi reticente.
— Se o inspetor estivesse disponível... Ele deveria ver estas marcas. De que modo os perdeu?
— Perdi?
— Seus pais. Como morreram?
— Que maneira horrível de falar! Minha mãe contraiu tuberculose. E papai, dizem, teve febre tifoide.
— Que profissão exercia?
— Papai era grande conhecedor de artes. Estudou os estragos de uma bomba causados na catedral de Stephanson. Foi um homem brilhante. Visitou Viena e todas as capitais da Ásia.
Fëll empertigou-se e olhou para mim em silêncio. Percebeu que eu estava blefando. Dando um pulo, ele projetou-se para a moita de arbustos junto ao muro. Vitorioso, soltou uma exclamação. Abaixou-se e resgatou,
dentre a vegetação de peperômias, uma escada de mão.
— Voilá. De alumínio. Comprida, leve e resistente.
Radke voltou nesse momento. Estava visivelmente exausto.
— A escada... Vocês tiveram sucesso, que bom.
— É um misteriozinho a menos — disse Fëll. Saiu do meio das moitas: — Acharam a filha?
— E mais essa — lamentou-se o inspetor. — Que nada! Ela desapareceu mesmo. Ou fugiu ou foi raptada. É como se tivesse evaporado. Vou pedir licença, tenho que cuidar desse caso. Informem-me se conseguirem
mais alguma coisa.
— Wir werden es bestimmt tun, Inspektor.
— Bom dia!
Com um suspiro, Radke afastou-se a passos largos, atrás de mais aquela tarefa. Quando chegou ao portão, a Sra. Gwenny-Dutra cruzou por ele; muito serelepe, ela soltou um gritinho feliz quando nos viu.
Pronto, agora sim é que não teremos sossego, suspirei desolada.
Leonora veio ao nosso encontro como um passarinho saltitante.
— Quem é ela? — perguntou Fëll.
— É Leonora, a amiga que citei.
A Sra. Gwenny-Dutra fingia uma compenetração fora do normal; mas, por baixo de sua carapaça, eu sabia que devia estar ardendo de febre por novidades.
Encarei a velhinha com a maior seriedade. Eu não queria que ela se empolgasse demais, por isso tentei cortar suas asas desde o início. Mas, para meu espanto, Fëll ficou radiante com a chegada dela. E o
espanto virou pesadelo quando, além de lhe sorrir, ele fez uma mesura de boas-vindas.
— Guten Morgen, madame.
— Oh — exclamou Leonora. — O senhor é o detetive! Luiggi me contou que o senhor está hospedado na casa dele. É muito bom que esteja aqui. O Sr. Flannagan disse que vai comprar um ganso para se proteger.
Um ganso, o senhor vê! Que homenzinho desconcertante... Espero que a coisa não vá tão longe, mas todos têm medo de que haja outras mortes.
Leonora enfiou o cotovelo em minhas costelas.
— Como é o nome dele, querida? — perguntou com o canto da boca.
— Fëll — respondi de má vontade. — Sr. Fëll, a Sra. Gwenny-Dutra!
— Oh, muito prazer, Sr. Fëll.
— Madame, dizem que a senhora viu um homem neste jardim ontem à noite. Precisamos de sua ajuda, está bem?
Leonora se sentiu no ar com aquela pergunta tão direta. Se você quer alegrar uma mulher que gosta de bisbilhotar, diga-lhe que precisa de sua ajuda. Ela entrará em transe.
— Exato, eu vi, Sr. Fëll. Eu tinha visitado uma família na outra rua. A menina... tão fraquinha... está constipada. Eles são pobres, não tinham a quem recorrer. Mas — o senhor me desculpe —, já não tenho
tanta certeza de que era um homem. Apenas achei isso porque, de longe, a pessoa parecia forte e alta.
— Entendo. A senhora está falando da relação entre causa e efeito. Um objeto pesado só poderia ser carregado por alguém forte. No caso, uma pessoa do sexo masculino.
— S-sim — gaguejou Leonora, aturdida. — Já tem algum suspeito?
— É cedo para afirmar — disse Fëll, com uma modéstia fora de série. — Não deseja nos acompanhar? Queremos que veja a configuração das coisas por si mesma. A opinião de terceiros pode ser útil.
A Sra. Gwenny-Dutra levou um choque. “Oh, é mesmo?”, murmurou. Aquele convite estava superando todas as suas expectativas. É claro que ela nos acompanharia! Por outro lado, eu conheço o medo que ela tem
de lugares mórbidos e bizarros.
— Bem feito — cochichei. — Você se meteu onde não devia. Se tiver pavor de sangue, dá tempo de desistir.
— Tenha paciência comigo, querida. Não é toda hora que temos um crime. Isso é tão excitante!
Olhei para ela diante daquele disparate. Excitante!
Voltamos ao gabinete de Ehrack. Leonora entrou com a máxima reverência, enquanto Fëll se ocupava com uma nova inspeção pelo recinto.
— Ele estava ali? Que barbárie! Quem poderia matar assim, com tanta crueldade e sem nenhum motivo?
— Não, madame. É um equívoco o que acabou de dizer. Sempre há um motivo. Temos que descobri-lo, depois tudo ficará mais fácil.
— O senhor acha? Que tolice a minha. Um detetive deve saber dessas coisas.
— Como a senhora definiria o Sr. Ehrack?
Ela quase teve um chilique. Além de poder ingressar ali, ainda era interrogada sobre os complexos da vítima. Era o auge, the most of most.
— Ultimamente ele vivia fechado em casa. As pessoas falavam que ele era arrogante, egoísta. No fundo, acho que o Wilson sofria de outra coisa. Um tipo de depressão, ou distúrbio bipolar. Você não tem vontade
de sair, não tem vontade de visitar ninguém — nada! Prefere ficar o todo dia trancado no quarto, longe de todos. Uma multidão de gente reunida causa um sentimento de horror. Mas o Wilson Ehrack pegou essa
mania depois da morte do pai. Ele teve um abalo muito grande depois que o pai se foi.
— Diria que ele tinha medo de ser morto?
— Eu acredito que não. Ele se achava onipotente. A menos que tivesse recebido uma denúncia anônima. Mesmo assim, nunca ouvi falar nisso. Tudo isso é tão irreal! Não entendo... Quem é que poderia querer
a morte dele?
— Qualquer um, em tese — disse Fëll com calma. — O ódio é uma coisa traiçoeira. Pode fermentar no coração da pessoa por vários anos, até que um dia, por uma razão qualquer, faz com que ela aja com brutalidade,
e de uma maneira que ninguém espera.
A Sra. Gwenny-Dutra ouvia fascinada a explicação. Apontou a mesa, após uma breve pausa:
— O que é isso? Martini?
— Martini? — perguntei rindo. — Isso é uísque. Dá para ver pela cor.
— Uma família viciada em álcool. A própria Dolores bebia as suas doses. Uma coisa muito feia! Lembro que Wilson lhe pediu que ela parasse de beber, mas ele era um hipócrita. Como é que ele podia exigir
isso dela se dava aquele mau exemplo.
— Ele dava um mau exemplo... O que a senhora está sugerindo? Que ele também bebia?
— Como um bode velho. Quando tinha uma recaída, caía desmaiado de tanto beber. Não gosto nem de falar! Acho que devíamos jogar isto fora. Para que não seja uma tentação para ninguém.
Olhou tão significativamente para Fëll que me segurei para não dar uma gargalhada. Com decisão, Leonora pegou o copo e, atravessando o recinto, jogou o líquido pela janela.
— Ainda bem que Radke não está conosco. Ele ficaria uma fera se visse isso — comentei.
— Bobagem. Ele nem vai notar. Temos que também tirar esse doce daqui. Vai atrair os insetos. As pessoas adoecem por falta de higiene e depois reclamam da assistência hospitalar.
— Já foi enfermeira, madame?
— Não, graças a Deus — disse a Sra. Gwenny-Dutra. — Sou muito fraca para essas coisas; mal consigo fazer um curativo, e olhe lá. Ver um braço necrosado acabaria comigo, posso garantir ao senhor. Nasci
com essa fraqueza... Minha irmã era o extremo oposto. Ela cuidava de qualquer machucado, de qualquer ferida. Como ela era solidária, a pobrezinha.
— Não é uma fraqueza, é apenas uma prova de que cada pessoa é diferente.
— Bravo! — elogiei. — O senhor resumiu muito bem. Leonora não tem defeitos; os outros é que estão errados. Uma questão de caráter...
— Querida, não precisa ser tão sarcástica — disse a Sra. Gwenny-Dutra. — Venha, Miriam, ajude-me aqui... Vamos levar essas coisas lá para baixo.
— Claro, madame. Pois não, madame.
É claro que eu estava sendo um pouco temperamental. Mas, como eu já devo ter dito antes, nada me aborrece mais do que uma assembleia de pessoas que gostam de bisbilhotar. E Fëll e Leonora se enquadravam
perfeitamente na categoria.
— Wunderschön! — arrematou o detetive, olhando em volta. — Acho que terminamos por aqui...
Depois de fechar a porta, descemos para a sala de visitas.
A Amante
A rigor, não pude aproveitar a minha merecida sesta após o almoço. Às duas e quinze o celular tocou e acabou impreterivelmente com a minha paz.
— Alô? Quem é?
— Alô, Miriam?
— Sim? — perguntei.
— Sou eu, Anne Roselene. Pode vir aqui uns minutos?... Sim, é urgente. Tenho que falar com você. Lamento, não pode ser por telefone!
Era a Sra. Basknell. Tentei imaginar o que ela poderia querer de mim. Respondi que eu iria e desliguei.
Vou fazer uma descrição da visita que fiz à Sra. Basknell.
Imagine uma atmosfera pesada, e cristais de gelo por todo lado. As macieiras em flor no pátio, e um perfume tênue na antessala. Uma mesinha de carnaúba e nela, um tabuleiro de chá. Em meu agasalho, flocos
de neve e neles, o reflexo de uma vela marroquina acesa no aparador.
Está bem... não havia vela marroquina e nem gelo.
Você já viu aquelas mulheres com modos masculinos, os lábios retos e dentes grandes? Junte a isso um vestido florido, cafona, e um daqueles colares de continhas ao pescoço. Esse é, basicamente, o retrato
da Sra. Anne Roselene Basknell. A natureza não fora pródiga com ela; nunca tivera uma beleza excepcional — ela se assemelha mais a uma foca bípede gigante.
Anne Roselene é filha de um inglês que lutou nas Malvinas. Particularmente, simpatizo com ela. Alguns diriam que tenho bom coração, mas a realidade é que eu sou esforçada.
— Entre, Miriam, não precisa tirar os calçados. — Ela deu um soluço lancinante: — Miriam, o que foi que fizeram com Wilson... meu Wilson? Todos estavam contra ele. Mataram-no como se fosse um bicho.
Fiz um ar triste e suspirei:
— Esse sistema não tem jeito.
— Aquele grã-fino esnobe tem culpa nisso. Eu sei que ele fez dívidas por aí. Agora os credores estão cobrando com juros. É nisso que dá; não pagou, a coisa complica.
— Harrison é um jovem impulsivo.
— Um mau-caráter, isso sim. Wilson vivia me dizendo para não ter pena dele. Aquelas maneiras elegantes... pois sim, aquele lá é esperto como um réptil.
Dei uma tossida.
— Foi por isso que me chamou? Acusar o sobrinho pela morte de Ehrack?
— Não, o caso é outro — disse, largando o lenço e servindo-me uma xícara de chá. — Ouvi dizer que a polícia está fazendo interrogatórios. Falei comigo mesma: “Anne Roselene, tome logo uma ação! É melhor
do que correr atrás do prejuízo. Eles vão concluir coisas erradas. Aja antes que forem longe demais.” Você chegou a dizer a eles que me viu?
Havia uma súplica muda em seus olhos marejados de lágrimas.
— Refere-se ao esbarrão na rua, ontem à noite? — perguntei. — Desculpe, mas o que eu podia fazer? Eles insistiram e eu falei... Achei que não precisava esconder nada.
A Sra. Basknell gemeu baixinho. Sentia uma dor interior intraduzível em palavras.
— Era o que eu temia... Mas é lógico, você está certa. Você não tinha razão para... se calar.
— Acha que fiz mal em lhes contar?
— Filha, você agiu bem, não se preocupe. O problema é que esses investigadores são curiosos. Se você tem um álibi, é liberada. Se não tiver, eles começam a se encher de suspeitas. Vão fuçando e cavando
até que a pessoa assine deliberadamente uma confissão de coisas que ela nunca sequer fez. Pois saiba que é exatamente isso o que eles fazem. Eu conheço essa laia.
— Acho que está sendo um pouco extremista. Convenhamos, a senhora parecia um espectro na chuva. Na rua solitária, uma mulher caminhando desacompanhada... Achei tão estranho que, quando me pediram que dissesse
o que vi, falei de tudo o que me lembrava. Mas quanto a isso, a senhora pode ficar tranquila.
— Você não conhece certas pessoas, Miriam — declarou a Sra. Basknell, aflita. — Podem arranjar mil e um pretextos para me envolver nessa história. Estou numa posição frágil. Dolores não é má, mas há tempos
que anda insatisfeita. Tinha ciúme de mim e de Wilson.
— Isso é compreensível. Eles foram casados por uma vida toda.
— “Foram”, você acertou. Não havia mais vínculo algum entre eles. Estavam separados, cada um vivendo sua vida. O pior é que Dolores suspeitava que eu estava fazendo isso por interesse. Eu, nesta idade,
caçando um homem por causa de seu dinheiro! Que besteira.
Anne Roselene fez um esforço para se controlar.
— Eu devia ter falado com você antes. Você poderia ter se esquivado de mencionar que me viu. Mas eu fiquei tão deslocada quando soube do assassinato. Agora não tem volta. Tenho que dar uma boa explicação
para meu passeio. Você viu o cadáver?
A veloz mudança de assuntos me obrigava a um constante exercício mental.
— Infelizmente...
— A morte foi instantânea?
— O médico sustenta que sim.
— Havia muito sangue?
— O disparo partiu de uma arma de calibre médio. Julgo que o ferimento não sangrou tanto assim.
— Menos mal. Tem gente que sofre horrores quando recebe um tiro. Eu ficaria tão consternada se soubesse que ele agonizou. Estar ali jogado, enquanto o corpo perde gradualmente a sensibilidade. Seria terrível!
Eu tenho uma mente sã, mas discutir a anatomia de um crime não é minha paixão predileta.
— Você estava datilografando para ele? — perguntou a Sra. Basknell francamente. — Eu a respeito muito, Miriam. Não precisa responder, se não quiser.
— Nós estávamos montando uma biografia, algo do tipo. Eu sei que fui lá por duas noites e escrevi uma imensa quantidade de coisas. Pelo que dizia, o Sr. Ehrack queria deixar um registro de suas memórias.
— Sobre os negócios ou a vida pessoal?
Desmanchei-me em desculpas e afirmei que não queria dizer nada por enquanto. Que tudo seria revelado oportunamente. Ela não ocultou sua decepção.
— Obrigada por vir, Miriam. Verei se marcaram o velório para amanhã. Pelo menos nisso Dolores teve a compaixão de me consultar.
Eram cerca das quatro horas da tarde quando cheguei em casa. Todo o meu ser ansiava por um descanso. Tinha dormido pouco à noite e o dia fora cheio de correria. Finalmente...
Enganei-me redondamente!
Duas pessoas me esperavam na sala, metidas num feroz diálogo de comadres. Ralhei comigo mesma por ter deixado a porta destrancada.
Edmund Fëll virou-se para mim com os olhos semicerrados, deliciado. O brilho do gel nos cabelos ofuscava a visão. Estava bebendo alguma coisa. O que seria? Uma xícara de inseticida ou pó de gafanhoto?
Havia outra criatura, no outro sofá. Era a Sra. Gwenny-Dutra; ela corou com indizível prazer quando entrei.
— Olá, Fräulein... Fizemos um cafezinho, se não se importa. Estávamos falando do caso da Srta. Susi...
— Que é isso! Fiquem à vontade... Não querem umas bolachas ou uns croissants?
Olhei para a Sra. Gwenny-Dutra. Ela vestia uma saia simples. Amarrara as mechas grisalhas com uma fita. Recebeu-me cordialmente, se bem que com ligeiro embaraço. Estavam parlamentando sobre o desaparecimento
de Susi? E agora essa — minha sala-de-estar virara palco de atuações da Interpol!
— Todos estão preocupados, Sr. Fëll — continuou Leonora. — A moça ainda não deu nenhuma notícia, nem ninguém confirma tê-la visto. A morte do Sr. Ehrack foi um golpe tão repentino! Dolores está louca com
todo esse estresse.
— Não há nenhum indício? A Srta. Susi não deixou um bilhete, ou uma nota de esclarecimento?
— Nada. Perguntaram para os Christofoletti... e os Königburg... Ninguém lhe deu alojamento nas últimas horas. A polícia verificou até o horário de saída dos trens para Videira ou Fraiburgo. Ninguém com
as características dela foi vista nos comboios. A não ser que ela tenha ido clandestinamente num dos vagões.
— Tentaram as centrais de transporte rodoviário? Ela pode ter ido de ônibus.
— Há poucos passageiros aos domingos, e alguém a teria visto embarcar.
Fëll concordou. Incansável, Leonora prosseguiu:
— O inspetor, hoje de manhã, foi tão imprudente! Aconselhou Dolores a tomar um chá de boldo para se acalmar. Falei-lhe que, se ela queria um bom calmante, deveria ferver um chá de capim-limão. Chá de boldo!
— Ela não tem comprimidos?
— Muito mais prático, não é? Mas ela estava tão histérica que nem se deu conta. Olhei em sua caixa de medicamentos. Havia paracetamol, ricina, dipirona, e uma cartela de calmantes. Ela tremia tanto, a
pobre mulher!
Leonora é muito certinha no que se relaciona a saúde alheia. Fingi-me de ignorante:
— Quem é que descobriu o corpo?
— Não lhe disseram? Minha criança, foi Samuel.
— Sempre o criado... Por que ele não avisou a Sra. Rebelo? Ela só ficou sabendo esta manhã, não foi?
— Disse-me que não queria que a Sra. Ehrack (é como ele a chama) sofresse algum choque. Ela já sofreu tanto!
— A luz estava acesa no escritório?
Aconteceu uma coisa que, até ali, me parecia impossível. Leonora empatucou. Empatucou!
— Não sei. Isso faz alguma diferença?
— Não, nenhuma. Era só um palpite.
Fui ingênua em pensar que aquilo a sossegaria. Até Edmund Fëll se remexeu, as orelhas inclinadas para nossa conversa. Sentei-me na roda e resolvi fazer um pequeno resumo sobre meu palpite.
— Pelo que se observou no gabinete, existe uma pegada de barro no assoalho. Seria tolice imaginar que o responsável pelo disparo tenha deixado uma evidência tão clara no local do crime com a luz ligada.
Ele faria de tudo para limpá-la. Portanto, a conclusão mais lógica é que a lâmpada estava desligada.
— Que opinião mais imaginativa — retrucou a velha. — Pois eu acho que o assassino não notaria uma coisa dessas.
— Ah, é? E quanto às digitais que foram apagadas do revólver? — completei com teimosia. — Supõe que isso foi coinciência?
Ela não se deu por vencida.
— Esteja certa que as coisas foram bem mais simples. As provas que a polícia coletou já devem bastar para incriminar o suspeito.
— E já há algum suspeito?
— É claro, querida. O Sr. Fëll está participando da investigação. Ele já tem as suas teorias, mesmo que não nos diga quais são.
— Sim, ele participa. Mas não oficialmente.
— Oh, eu supus... Estávamos ambos fazendo um relatório do caso — disse Leonora com certo pesar. — Poderíamos falar com o investigador Radke... Ele é muito bonzinho. Poderíamos falar com ele para obter
alguma informação.
— Eu, se fosse vocês, me pouparia desse trabalho. Pelo que sei, nem mesmo a polícia descobriu nada. Nenhum fato foi estabelecido.
— Minha filha, não se engane pelas aparências. Nenhum fato foi estabelecido! Um crime desses não tem muitos mistérios. Ou ele tem relação com uma herança ou uma rixa por empréstimo de dinheiro.
— Herança?
Fiz a pergunta com tanta admiração que seus olhinhos faiscaram. Senhoras bicentenárias gostam quando a gente aprecia seus pontos de vista, e quando se diz isso a elas, adeus humildade. Ela acrescentou:
— Por que não? É fácil ter uma impressão errada das pessoas. Você se lembra daquele padeiro, o Moriarty, que atendia todo santo dia na mercearia da avenida? Um bom sujeito, diziam, e batiam nas costas
dele; ele ficava sorrindo com aquela boca torta, como se fizesse jus aos elogios. Depois, ele enfiou a cabeça da mulher no fogão a gás, num surto de ciúme doentio. E aquela mulherzinha rameira da casa
geminada perto da peixaria? Miudinha, ninguém dava nada por ela. Até o dia em que arremessou um vaso contra o marido, e com tanta raiva que rachou o crânio dele. Veja a injustiça que fizeram com Haggard.
Todos o rejeitavam, diziam que nunca largaria o vinho, viam nele um homem irrecuperável. Olha no que deu — um tratamento na clínica por alguns meses... Não parece outro homem?
Parou para retomar o fôlego, numa exultante nota de satisfação. O austríaco acenou afirmativamente:
— A senhora disse muito bem. O nosso coração é um péssimo juiz, Mertins. Normalmente a gente generaliza as virtudes das pessoas. Ou as falhas.
Era fabuloso! Os dois, pelo jeito, falavam a mesma língua. Engoli uma leve pontinha de inveja.
Lamentei as palavras de Leonora. Segundo o meu conceito, a verdade estava a quilômetros de distância do que ela dissera. Para mim, a gente reconhece uma pessoa de bom trato ou um assassino pelos traços
fisionômicos. As pessoas são o que são. Não há meias medidas.
Como eu estava enganada!...
Leonora levantou-se para ir embora, mas não antes de olhar para os meus pés.
— Não devia calçar sapatos com salto desse tamanho, Miriam. Podem fazer mal à coluna. Botinhas sem salto cairiam melhor em você.
O conselho foi inofensivo. Fiquei refletindo nele, no entanto, ligando-o a uma coisa de que lembrei.
Fëll não disse uma frase sequer ao sair. Nem grunhiu. Nada. Acompanhei-o até o jardim e, enquanto ele tomava assento num dos bancos, entrei na casa para averiguar a convalescença de Tomazelli.
Uma alegria artificial cintilou nos olhos vivos de meu senhorio. Devia estar agoniado com sua reclusão involuntária.
Notifiquei-o disto:
— Que bom, está melhor. Ou se sente feliz com o que aconteceu a Ehrack? — perguntei maliciosamente.
— Dios mio — exclamou, fazendo a cama chiar.
— Não vai dizer agora que gostava dele?
— Nunca me dei bem com ele — disse Tomazelli —, mas disto até comemorar a sua morte... Não, não sou tão insensível assim! Meia dúzia de sacos de carvão a mais ou a menos, que diferença faz? Que ele durma
em paz.
Esse epitáfio... Seu proferimento... Tomazelli teve um ataque de espirros. Resmungou e depois fez uma expressão misteriosa.
— Você sabia que atiraram nele entre oito e quinze e oito e quarenta e cinco da noite? Bem na hora em que chovia e que ecoavam os trovões.
— Entre oito e quinze e oito e quarenta e cinco da noite? — murmurei. — Quem lhe revelou o horário?
Ele viu a minha palidez. Abaixou a ponta do cobertor e me encarou com a maior clemência:
— O que houve? Estão todos comentando, como sempre. Ou você crê que isso ficaria em segredo num lugarejo como o nosso? Santa ingenuità, ragazza! Santa ingenuità...
O Hoteleiro
Nossa Secretaria da Justiça é lenta. Mesmo quem não possui conhecimentos sobre os estatutos brasileiros está cônscio da letargia administrativa. Ninguém tem o jus postulandi para atuar efetivamente, o
que obriga os agentes a depender o tempo todo da Procuradoria-Geral do Estado. Em nível internacional, há países com Department of Justice, cujo titular é o attorney general of the State. Essa é uma utopia
para Cel. Menant.
Na manhã seguinte, com as ocorrências da véspera ainda bem frescas na mente, eu iniciei meu trabalho na confeitaria. Se as possibilidades aventadas tinham mesmo alguma base... Achei que devia adotar uma
estratégia e ficar de sobreaviso.
O que chamou minha atenção foi a atitude esquiva do Sr. Gassmer. Eu acabara de lhe servir o pão na chapa com pingado e o bolo com erva-doce. Ali sentado, a careca reluzindo sob as lâmpadas, o hoteleiro,
após mencionar o funeral, abaixou os olhos e citou o crime.
— Foi para lá, senhorita?
— Lá onde?
— Investigar o homicídio. Contaram que virou a escudeira-mor do inspetor.
— Sim, tive o privilégio de ir com ele. Quase me tornei testemunha ocular dos fatos. Estão me tratando como uma celebridade. Tenho que aproveitar os quinze minutos de fama.
— Já descobriram como aconteceu?
— Por ora, nada de sensacional — respondi. — Nossa polícia não tem aquela eficiência! São incapazes de realizar uma investigação cabal. Falta estrutura, acho.
O interesse dele era genuíno. Tive a sensação de que se reclinou, aliviado. Hesitou.
— E aquele Sr. Fëll? — voltou à carga. — É algum detetive? Disseram-me que ele é bastante inteligente.
— É criminalista, segundo ele disse. Pelo que observei, tem alguns dotes interessantes. Não chegam a ser consideráveis. No princípio foi muito ativo, mas depois se acomodou. Quando foi conosco ver o escritório,
saltitou para lá e para cá como uma pipoca na frigideira. Fuçou todos os nichos, interrogou toda a gente e coletou provas. De tarde, porém, mostrou um lado dele que me desapontou; ficou estagnado como
uma poça de água, fuxicando com as velhas da cidade.
Deslizou a mão pela calva lisa. Ainda hesitava.
— Foi uma lástima, essa desgraça toda. Wilson era uma boa alma. O pai dele, Ermínio, não tinha a mesma indulgência. Nisso, o filho saiu-se melhor que o pai.
— Ermínio Ehrack não gostava muito do senhor.
A piada não agradou ao Sr. Gassmer.
— Sugeri a ele que fizéssemos uma sociedade, com divisão de lucros. Seria ótimo para os dois. Ele estava com a vida ganha, curtindo o ócio da velhice. Contratei um engenheiro para desenhar a planta do
nosso empreendimento. Mas, na hora H, o velho recuou. Era direito dele, sim. O que me doeu foi ter me empenhado, ter pagado todas as taxas da prefeitura e, no fim, receber um não tão indiferente.
— Bom para o senhor. O seu negócio prospera a olhos vistos. Se tivesse sócios, teria que dividir os ganhos.
— Prospera, mas com dinheiro de agiotas — disse. — Sou um idealista. A cooperação de Ermínio teria sido providencial.
— E foi devido ao não dele que o senhor o matou.
Arthur Gassmer se encolheu.
— Isso é o que os jornais disseram. Mas eu nem estava lá no dia. Há quem diga que o corpo ainda estava quente quando entraram no apartamento. Besteira! O homem já estava morto há horas. A arrumadeira,
que testemunhou no inquérito, esteve presente desde o começo. Ela viu tudo.
Em síntese, o semanário tinha mesmo noticiado o caso. Fora a arrumadeira que, ao passar pelo corredor, vira uma fímbria de luz e, ao bater na porta, descobrira que ela estava trancada. O cadáver jazia
na cama, um espasmo de terror retorcendo as linhas do rosto descorado. Nenhum suspeito havia surgido, mas, por causa de suas dissensões com a vítima, Arthur Gassmer fora intimado a se apresentar. Uma provação
que, no prazo que durou, amargurou sua alma e destruiu sua autoconfiança.
— O que sei é que Ermínio aguardava alguém para essa noite. Um tal de Sr. Pickwick. Pediu ao ascensorista que, assim que ele chegasse, fosse logo trazido ao seu quarto.
— O quê? O senhor nunca citou esse nome.
— Fácil, a senhorita conhece alguém com um nome desses? Essa é boa! Como se existisse uma família Pickwick em nossa vila. O velho falava de uma pessoa real, mas usando um pseudônimo, é o que vivo dizendo.
Minha casa tem prestígio e não posso manchar nosso histórico com coisas desse tipo. Pickwick! — repetiu. — Que fantasia! Não é boa?
Nesse momento ouvimos o som de pneus, e o táxi Gilting estacionou diante da Confeitaria Oeschler. Edmund Fëll apeou e entrou em nosso estabelecimento, o casaco e o chapéu molhados pela chuva. Constatei
que fez um detalhado reconhecimento do ambiente, como que tentando se situar. Olhou para mim, depois se sentou a uma mesa.
Tenho que admitir que a presença de Fëll no povoado atiçara o meu instinto aventureiro. É provável que isso se devesse à monotonia... à vida muito parada. A oportunidade de arriscar-me começava a me seduzir.
— Com licença, Sr. Gassmer. O dever me chama.
De longe, tentei sondar o que Fëll poderia querer comigo. Era evidente que não viera ali apenas atrás do café da manhã.
— Vocês possuem um comércio muito chamativo — elogiou sorridente. — Nada de puritanismos.
— Já vi que o senhor gostou daqui.
— Sim, warum nicht sagen? Tudo é muito bem personalizado.
— Bem — atalhei. — Tenho a sensação de que o senhor quer alguma coisa... Tem a ver comigo?
— É uma moça prática, o que é uma grande qualidade. Vim lhe perguntar se Ehrack tinha um advogado.
— O único que ia a casa era Fadeschi — esclareci surpresa com a questão. — Ele tem uma firma de consultoria e um currículo no ramo da advocacia.
— Esse Fadeschi cuidava da parte testamentária?
— Não sei dizer.
Ele arreganhou maliciosamente os dentes.
— Quero que se lembre de uma coisa. Do que falava o último capítulo que Ehrack lhe ditou ontem à noite?
Escrutinei seu rosto, buscando alguma espécie de armadilha na pergunta. Frustrada, não consegui saber direito qual o seu interesse nisso. Torci os dedos, nervosa com as suas elaborações.
— Se não me engano, ele mencionou alguns erros que cometeu anos atrás. De uma desavença qualquer e algumas frases ditas impensadamente, das quais acabou se arrependendo. Uma briga a respeito de um par
de canarinhos belgas. Ah sim, houve também umas linhas sobre o Sr. Gassmer... É aquele homem sentado ali.
Pensei que o austríaco pediria mais referências do hoteleiro, que, de seu canto, olhava para nós pensativamente. Mas não; em vez disso, sacou uma agenda e a folheou:
— Tem uma mente fantástica, Fräulein. Devia cultivar essa habilidade. A propósito das anotações do Sr. Ehrack, eu encontrei trechos bem interessantes. Além da oscilação dos valores cambiais, há citações
das taxas de juros do mercado.
— Ele vendia maçãs. Acho que ele se interessava por assuntos econômicos.
— Exatamente, das ist wahr. Hoje vou verificar o resto das folhas; talvez haja alguma anotação mais reveladora. Também descobri que Harrison Victor mora na mesma rua, a três quadras dali. E que na referida
noite, das 7 às 11 e meia, o jovem não esteve em casa.
— Falou com Helene, a irmã dele?
— Uma jovem esperta. Logo viu que não adiantaria negar nada, pois no fim tudo seria descoberto, de um modo ou de outro.
— Como foi o interrogatório?
— Interrogatório? — exclamou Fëll, escandalizado. — Eu não seria tão cruel, posso lhe garantir. Simplesmente emprestei dela um vidro de compota. Ela é uma moça muito cortês.
— Quer dizer que Helene abriu o jogo.
— Com meios apropriados, consegue-se fazer milagres. Pelo que ela disse, Harrison está muito estranho ultimamente.
— O senhor mencionou o relógio?
— Sim, ela disse que é dele.
— E as iniciais “S. E.”? São de quem?
— Geduld, está indo depressa demais. Ela não sabe... Mas supõe que se refiram ao nome de uma mulher.
— Acredita que Susi... bem, que podem ser de Susi?
— É uma possibilidade. Temos que conferir. Por falar nisso, onde acha que ela foi parar?
— Não faço a mínima ideia. Todo mundo já fez suas pesquisas e ninguém encontrou nada. É um sumiço inexplicável. Sem bilhete, sem qualquer notificação para a mãe. Recordo que Susi estava tensa, no sábado
à noite. Mas quem é que saberia dizer por quê. Talvez imaginasse que haveria um assassinato, sei lá.
— Sugere que ela, por sua omissão, foi cúmplice do crime?
— Não digo cúmplice. Ela pode ter ouvido rumores.
— Mas, se ouviu rumores, por menores que fossem, por que não fez nada?
—Insegurança, talvez — respondi, com uma convicção que estava longe de sentir. — Susi é péssima em tomar decisões. Se ela sabia de algum perigo que punha a vida de seu pai em risco, pode até ter pensado
em agir. Depois, pensando melhor, pode ter ficado indecisa sobre o que fazer. Sem outro recurso, deu no pé, com receio de alguma represália.
Fëll meneou a cabeça, aprovando minha teoria:
— Es kann só gewesen sein. Continue.
— Eu analiso as coisas dessa forma: por que Susi fugiria assim, sem revelar a ninguém o seu paradeiro? Nenhuma amiga do colégio, nem professora, apresentou qualquer pista. Por que ela fez isso? Para expiar
a sua culpa sobre o que sabe do crime. Não é uma dedução genial?
— Não é má, concordo. Vou anotar sua dedução genial. Talvez venha a ser útil.
Pedindo delicadamente desculpas, ele ergueu-se para sair. Conforme eu tinha presumido, viera exclusivamente para me consultar. Pronto, lá ia eu ouvir as censuras da Sra. Oeschler! Mas, para meu alívio,
Fëll foi ao balcão e comprou um pacote de doces. Salva pelo congo, pensei comigo mesma.
— Nos vemos à noite, senhorita — disse, ao passar por mim. — Vão ler o testamento, e gostaria que estivesse presente. Quero que faça um servicinho, se possível.
Antes que pudesse questioná-lo sobre o servicinho, ele se foi, me deixando com a pulga atrás da orelha.
A Viúva
As solenidades do enterro foram às três horas da tarde. O espetáculo proporcionou aos moradores da cidade uma oportunidade para comparecer em massa ao funeral. A despeito do ódio que tributaram a Ehrack
em vida, muitos tiveram a honradez de fazer sua homenagem, mesmo que tardia, ao “exemplar e bondoso homem”.
Agora eram cinco horas, e tudo tinha terminado.
Eu tinha acompanhado Dolores Rebelo até sua casa. Nós caminhávamos perto do depósito de ferramentas. Seguimos a trilha à direita, e cruzamos a ponte de troncos construída sobre o lago. Ela, aproveitando
o declínio do dia, falava de sua anterior vida conjugal.
— Os primeiros meses foram tão estressantes! Até que nos adaptamos; depois as coisas entraram num ritmo normal. Eu sempre o amei. Gostava de sua gentileza, e da brandura com que tratava as pessoas. Pena
que, com o tempo, ele mostrou suas verdadeiras garras; tornou-se exigente, e não suportava a mínima crítica de ninguém.
Discretamente, Dolores enxugou uma lágrima. Então, resoluta, fez um gesto brusco para espantar os fantasmas do passado.
— Não importa, por que falar nisso? Quero lhe dar uma boa notícia, Miriam. Susi mandou uma carta. Achei-a na caixinha do correio há pouco.
Estremeci. Lá se iam todos os meus formidáveis dons detetivescos por água abaixo. Peguei o envelope que ela, sem ocultar o contentamento, me estendeu. Li:
“Mãe,
Estou em segurança. Ficarei bem.
Susi”
— Que bom — declarei. — Isso vai poupar os nossos bravos investigadores. Acho que podem cessar as buscas.
— Sim, finalmente. A morte de Wilson já foi uma dura prova. Perder também minha filha seria doloroso demais.
Ela não vestia luto. Alegou que, nos tempos atuais, era uma coisa arcaica seguir certos costumes. Dolores é uma mulher anacrônica. Pinta os cílios e sobrancelhas, e toma banho de sais. Mas, em contrapartida,
despreza pulseiras, leques e broches. O que explica seu visual um tanto miscigenado.
— Alguma vez suspeitou que ele acabasse morto dessa forma? — perguntei.
— Wilson não dava sorte. Atraía cada inimigo! A raiz de todo mal era aquela personalidade... Tudo tinha que ser feito do jeito dele. As pessoas não gostam de velhos rabugentos. Algumas não ligam, mas muitas
se ofendem. Não gostam de ter ninguém lhes dando ordens. Basta um agravo e já partem para a desforra.
— Como Harrison, por exemplo.
— Por que está dizendo isso, Miriam?
— Haggard disse que os dois se desentenderam sábado à tarde.
— Foi uma coisa infantil. Harrison teve uma criação muito folgada. Tornou-se um jovem independente, com ares de intocável. Mas não acho que chegaria a esse ponto. Atirar no próprio tio? Faltaria coragem.
Venha, vamos sentar. Minhas pernas doem.
Havia um banco e sentamos nele, contemplando os gansos no lago. Ouvimos uma pessoa cantarolando, para além da moita, o que quebrou o mágico silêncio.
— Que falta de consideração — sussurrei. — Quem será?
Logo surgiu Edmund Fëll, entretido num trololó musical. Parou na ponte, apreciando as belezas do parque, e depois embicou para o nosso lado.
— Schliesslich, Srta. Mertins. Por que não me esperou? Deixou o velório como uma flecha.
— Eu o vi conversando com uma simpática velhinha com artrite. Não queria interrompê-los.
Ele cumprimentou-nos e, com um sutil toque recriminador, estudou minha expressão irônica.
Em grande júbilo, Dolores Rebelo disse:
— Olhe isto, Sr. Fëll. Susi escreveu.
Ele pegou o envelope. Depois de averiguar o nome do remetente, leu a carta, admirado e incrédulo.
— Letra feminina. Papel colorido. Um leve odor de jasmim. Mais uma questão sanada. Ela deve ter deixado a vila.
— Deve ter ido de carona — ajuntei. — Se não usou o ônibus, nem a estação ferroviária...
— É, é — disse Fëll, distraído. — Deve ter ido de carona. — Envelopou novamente o papel: — Onde, Sra. Rebelo, sua filha estava no sábado à noite?
— Ela e a prima dela, Helene, vieram para cá à tarde. Elas apreciam muito este parque. Passam horas juntas, naquelas conversas de adolescente. Rapazes. Festinhas. Sempre foram duas meninas apegadas. Susi
entrou em casa por volta das 6 e dez. Tomou um banho, depois foi para o quarto, mexer no tablet, acho eu.
— Onde fica o quarto dela?
— Em frente à cozinha, à direita da entrada.
— Quantas portas há na casa?
— Duas. A porta comum e outra, lateral.
— Até quando Susi ficou no quarto?
— Eram cerca das oito horas quando veio para a sala.
— Umas cinco para às oito, diríamos.
— Sim.
— E a senhora? O que fazia?
— Não lembro bem... Acho que limpei o aquário antes das oito. Depois dei uma ajeitada na despensa. Estava procrastinando isso há semanas.
— Quanto tempo demorou lá?
— Uma hora e meia, um pouco mais. Mexer em entulhos é uma tarefa entediante.
— Ou seja, das oito a umas nove e trinta, a senhora ficou retida em sua limpeza.
— Aproximadamente.
— Podia ver o quarto da filha?
Dolores, que falava sem se atrapalhar, hesitou.
— Bom, depende...
— Que quer dizer?
— As duas peças são próximas entre si, mas as portas não estão em ângulo reto. A porta do quarto fica a dois metros da porta lateral da casa.
— O que significa, Sra. Rebelo, que Susi poderia sair de casa sem ser vista da despensa?
O sangue se esvaiu da pele da mulher.
— Creio que sim. Se ela quisesse...
— Eu compreendo — murmurou Fëll. — Compreendo perfeitamente. É um caso perigoso. — Adiantou-se para o lago: — Agora, uma pergunta mais pessoal. O seu ex-marido vinha agindo, digamos, de um modo estranho
nos últimos tempos?
— Não que eu saiba. Para lhe dizer a verdade, não nos víamos com muita frequência. Wilson viajou para a capital na semana passada; ele ficou alguns dias por lá, fazendo uma bateria de exames. Tinha algumas
complicações no baço... ou era no pâncreas?... e não estava suficientemente bem para fazer outra de suas viagens intermináveis. Ele se queixava de dores, é tudo o que sei. Acho que foi tudo bem no check-up.
Pelo menos, eu não o ouvi dizer que não tivesse sido.
— Complicações no baço ou no pâncreas? — perguntou Fëll. — Isto é curioso!
— Se o senhor quiser saber mais, indague ao Dr. Beryl. Ele o estava medicando e cuidou do encaminhamento de Wilson.
Fëll sacou um caderninho e anotou o nome; depois sacudiu a cabeça, e apontou o lago:
— Pescam às vezes aqui, senhora?
A pergunta era cortês, sem a menor periculosidade. Dolores Rebelo tentou recobrar a calma.
— Vez e outra. Foi Wilson quem comprou os alevinos. Mas ele não pescava com a gente. Vinha de noite, tanto que instalou o poste de luz. Susi e Helene gostam de jogar o anzol da ponte. Da última vez, Helene
pôs os brincos no parapeito e depois, quando quis pegá-los, tinham caído na água. Eram brincos divinos... Dois cachinhos de uva. Ela chorou tanto.
— Eu avisei para guardá-los — esclareci. — Mas Harrison disse que não, que ali estavam seguros. Alguém encostou neles...
— Psch! Alguém está vindo para cá.
Fëll dera o aviso. Tinha se virado, os olhos de pantera fixos nos arbustos ao longo da trilha. Logo vimos uma pessoa saindo do bosque.
Era Helene Victor.
Os cabelos de Helene são cacheados, e fazem pensar que usa uma peruca. É um desses tipos felinos que atraem o olhar dos homens. Com curvas generosas, tem um corpo longilíneo, bem proporcionado.
Ela e o irmão, Harrison, estão órfãos há quatros anos. Os pais morreram num acidente no Nepal, deixando um parco seguro de vida que mal cobria as despesas mensais. Sem outros parentes no mundo, os dois
irmãos vieram de sua cidade-natal e alugaram uma casinha humílima em nossa vila.
Helene fez um curso de veterinária básica e defende encarniçadamente o bem-estar animal, quer sejam gatos, cães ou doninhas. Perto dela, o irmão não passa de um protótipo, uma cópia menor com ar pusilânime.
Saudou-nos com um 'oi' anasalado. De tão empinado que o mantinha, receei que Helene batesse o narizinho de porcelana num dos pinheiros.
— Falando mal de meu irmão, Miriam? Que coisa maldosa! Eu sei que você tem uma queda por ele. Se ele não quis você, devia resignar-se. Não é bonito atraiçoá-lo pelas costas dessa maneira.
Não me movi, atônita. O atrevimento dela... Onde é que eles guardam o arsenal químico numa hora dessas?
— Que injustiça, Helene — censurou-a Dolores. — Devia se envergonhar. Por que você é tão rude?
— Que otimismo, titia!
— Helene!
Qual o quê! Minha antagonista tem um coração de alabastro. Não deu a mínima atenção à repreensão da tia. Com um charme impagável, soprou seu hálito venenoso sobre o detetive.
— Que bom revê-lo, Sr. Fëll. O senhor já provou a compota de ameixas?
— Após o almoço, Liebchen — disse ele, todo polido. — Sie waren wundergut! O seu irmão adoeceu? Achei que estava um pouco anêmico. O que aconteceu?
— Um vírus banal. Ele é fraco dos pulmões, sabe. Qualquer gripezinha o derruba. Nem permiti que trabalhasse hoje. A agência que se vire. Liguei e pedi que dessem licença a ele.
— Então foi um vírus — escarneci. — Talvez isso o ensine a não ficar na rua até altas horas.
Era um laço, armado para ver a reação dela. Helene fez uma pose, o rosto despreocupado e sem nuvens.
— Queria que fosse — disse. — Mas há homens que não se consegue corrigir. Apenas a morte soluciona certas coisas.
— Estávamos falando de seu tio, Srta. Victor — disse Fëll. — Talvez possa cooperar conosco.
— É mesmo? — perguntou ela sem muito entusiasmo. — No quê?
— Poderia nos dizer se vocês se davam bem. Ou se havia alguma divergência.
— Divergência? Não, embora...
— Sim?
— Embora titio não gostasse muito de nos ver. Ele tinha uma cisma com Harrison. Dizia que era preguiçoso e que meu irmão o vivia adulando para obter dinheiro. Era só meia-verdade. Harry falou uma única
vez com ele sobre um empréstimo. Quando recebeu um não como resposta, ficou muito chateado. Titio era extremamente pão-duro; achava que as pessoas só vinham procurá-lo quando queriam um favor. Não se pode
mudar alguém irredutível e que não aceita ajuda. Eu disse para Harry deixar isso de lado — nós temos nosso próprio rendimento e não precisamos viver da caridade alheia.
— Um pensamento bastante sensato... E sobre sábado. Seu irmão parece que se desentendeu com o Sr. Ehrack.
— Ele me contou alguma coisa. Mas creio que não foi nada sério. Harry disse que estava no escritório e que titio o acusou de estar mexendo em seus papéis.
— E?
— E mais nada. Eles discutiram e Harry saiu.
— Se ele lhe contou isso, creio que seu irmão suavizou as dimensões da briga. O mordomo disse que os dois quase entraram em luta corporal.
— Oh, isso é uma difamação. Harry tem sangue quente, mas se há uma coisa que ele não faria é agredir alguém mais velho.
— Mesmo se esse alguém mais velho o insultasse?
— Mesmo assim, não.
— É interessante que confie nele tão incondicionalmente — disse Fëll, sorrindo.
— Confio, sim. Eu daria minha vida por meu irmão.
— E também mataria por ele?
— Mataria, Sr. Fëll. Mataria. Se fosse preciso.
Helene falou isso tão friamente que todos nós nos entreolhamos. Soltando um grasnado, os gansos deram um breve voo pelo lago.
É uma lei simples — as najas, quando mostram a língua, causam pavor entre todo o reino animal.
O Papel no Cofre
Sete e meia da noite.
Fadeschi leu devagar todas as cláusulas. Ressaltou algumas, que tinham sido vagas demais, e desmistificou outras. Resumindo, foi disposto o seguinte pelo testamento: um terço do capital total coube a Sra.
Rebelo e à filha. Outro um terço seria depositado no banco, para usufruto futuro de Susi, no dia de seu casamento. O resto do montante seria dividido, em partilha de três décimos, entre o fiel Haggard,
a creche e o hospital locais. O décimo final reverteria imediatamente a Helene Victor.
— A legalidade de todos os parágrafos entrará em vigor a partir da semana que vem. O Sr. Ehrack quis dar tempo a fim de que, nesse intervalo, todas as reclamações sejam respondidas satisfatoriamente.
Silêncio. Arquejando, Fadeschi guardou o testamento, com uma lentidão antológica, e pôs-se de pé. Estava pronto para retirar-se.
Senti a pressão da mão de Fëll no meu braço.
— O que foi?
— Detenha o homem. Pergunte-lhe em que dia lavrou o documento. Precisamos da data.
Um calafrio subiu pela minha espinha. Senti-me a própria encarnação da impotência. Eu tinha me tornado uma marionete — todos agora me mandavam de um lado para o outro como uma idiota. Quis recusar terminantemente.
Mas Fëll afastou-se de mim, deixando-me à mercê. Parecia ter assuntos inadiáveis para tratar com o inspetor Radke.
— Vamos, mexa-se — disse comigo mesma, a fim de clarear a mente. — Sr. Fadeschi, só um minuto. — Alcancei-o já à porta: — Esse documento que o senhor leu é bem categórico, não?
— Documento bem categórico? — repetiu. — Temo não entendê-la, Srta...
— Mertins. Desculpe por lhe perguntar, mas esse testamento foi feito há muito tempo ou é recente?
— Tem algum interesse nisso, Srta. Mertins?
— Não, nenhum. Esse trecho sobre a sobrinha... Achei que o Sr. Ehrack foi generoso por incluir a Srta. Victor.
O advogado balançou a cabeça.
— É curioso que a senhorita fale especialmente desse trecho. O testamento, no todo, tem cerca de dois anos. Mas essa menção sobre a sobrinha foi acrescentada no último sábado. O Sr. Ehrack queria fazer
uma partilha que agradasse a todos. Para acabar com mágoas que ficaram abertas por anos. Foi no sábado de manhã que expressou sua última vontade. Por esse codicilo, ele poderia legar móveis, ou joias,
ou qualquer outro bem. Há tempo que vinha dizendo que queria dar uma parte do dinheiro à Srta. Victor. Disse que isso cobriria um erro recente da filha, a Srta. Susi.
— Um erro de Susi? Que erro?
— Ignoro. Suponho que era secretária dele, Srta. Mertins?
Respondi que sim. Fadeschi ficou piscando os olhinhos sob o pincenê, depois saiu.
Dei uns giros pela sala de estar. No geral, ninguém ficara exaltado — a receptividade dos termos redigidos fora boa. Os ânimos estavam aplacados, o que era bom. Fiz um aceno para Radke, que ele correspondeu
reservadamente. Tinha a nobre tarefa de acompanhar a reunião, para ver se conseguiria, pela fria perspicácia, suscitar as pistas que faltavam para esclarecer o homicídio.
— E então? — perguntou Fëll, dando-me um susto. — Quando?
— Aproximadamente há dois anos. Exceto a parte que fala da sobrinha. Isso foi escrito no sábado passado.
— De tarde?
— Não, manhã.
— Danke. Prima. A briga com o Sr. Victor se deu depois do meio-dia. Isso significa que os dois acontecimentos não têm relação entre si. — Fëll pensou um pouco. Disse: — Venha comigo, Mertins.
A sala de estar de Dolores Rebelo, onde ocorrera a leitura do testamento, era espaçosa. À direita, às escuras, a porta lateral. Ninguém zanzava por ali. O austríaco seguiu o corredor, enquanto eu lhe fazia
companhia.
— Aqui, a despensa. E logo em seguida, o quarto da filha. Para a garagem, Srta. Mertins. Temos que revistar a ignição do Maverick. Eu trouxe minha lanterna.
— E as chaves?
— Estão aqui. Tive que persuadir Haggard a entregá-las para mim... Vamos.
Fomos a passos largos pela trilha de um solo seco e argiloso. Havia uma pressa incontida em sua conduta, e fiquei para trás. Só consegui emparelhar com ele à porta da garagem, prestes a penetrar no galpão
de aspecto rudimentar.
Finquei o pé, contrariada, quando senti o forte cheiro de mofo. Já meu companheiro, cheio de empolgação, adiantou-se imperativamente.
— Agora, vamos fazer o teste — comandou Fëll. — Os rateios que diz ter escutado... Eram mais ou menos esses?
Ele virou a chave no contato.
— Eram — respondi. — Exatamente assim.
Fëll finalizou o experimento. Subitamente, soltou uma leve praga. Desvencilhando-se do volante, saltou para fora, o beiço esticado umas cinco polegadas. Olhava as chaves com pena.
— Que tremenda trapalhada — gemeu.
À meia luz verifiquei que, por azar, tinha quebrado uma das chaves. Estava envergonhado e, por alguns segundos, não se mexeu, pensativo. Meu primeiro impulso foi dizer-lhe que, da próxima vez, tivesse
mais cuidado, mas me contive.
Refizemos o trajeto pela estradinha de volta a casa, mudos. Era como se houvéssemos cometido um pecado. Um pecado mortal e inconfessável.
— O Sr. Gobbo é um excelente chaveiro — comecei. — Podemos fazer uma cópia...
Fëll não respondeu. Viramos para a direita, e fomos até a outra ponta da edificação. Fëll apagou a lanterna e apertou o botão da campainha.
O criado abriu quase a seguir. Já devia estar à nossa espera, conjeturei. Avançamos pelo vestíbulo deserto.
— Muito bem, meu bom Haggard. Por que me chamou?
— Obrigado por vir, senhor. Por aqui.
Percebi que os dois tinham combinado aquela visita. Andamos até a biblioteca, pouco adiante. Era um recinto modesto. Livros, uma mesa comprida e cadeiras com estofamento caro.
— É este cofre, senhor.
Fëll, tendo analisado o cofre, perguntou:
— O que contém?
— Contratos e promissórias. E também...
A voz de Haggard chiava ao falar. Estava branco como um lençol. Suspeitei que quisesse dizer mais alguma coisa, e se reprimia. Uma reação que não pude decifrar. Olhou por alguns segundos para nós, sem
fazer o menor gesto.
— Also... Und was noch?
— Entrei aqui hoje, e encontrei o cofre destrancado. Quando o abri, vi uma coisa curiosa. Achei que iria lhe interessar. É uma charada, ou um troço parecido. Nunca li nada tão esquisito. Acredito que o
senhor vai se impressionar.
A tal charada constava num papel que Haggard pegou no cofre. Consistia em algumas frases lacônicas:
Hotel Três Empenas
1. Quarto 303
2. Ricina, dose fatal
3. 6h da tarde
4. Abriu falência
5. Pickwick identificado
Fëll leu o papel, interessado. Quando terminou, bateu os dedos na coxa:
— Faszinierend! Acrescentamos mais um pedaço de tecido à nossa colcha de enigmas. Reconhece essa letra?
— Sim. É dele.
— Por que crê que tenha algum significado para nós? Ou, vou reformular a pergunta: O que lhe sugere que tem ligação com o caso do assassinato de seu patrão?
— Assim, de cara, senhor, não tem importância. Mas... deveria falar com o inspetor. Ele vai lhe esclarecer do que se trata.
— Quer que eu fale com Radke? Sem problema. Só isso?
— Tem mais uma coisa, senhor. Não acho que tem conexão com esse papel, mas, ao limpar uma das gavetas esta tarde, encontrei isto.
O mordomo manuseou uma caixinha marrom e extraiu dela um embrulho pardo. Era um pano enrolado, um barbante ao redor.
— Abra, senhor.
Fëll obedeceu, com uma paciência de Jó. De dentro resgatou um objeto que se parecia a cacos de vidro reluzentes. Ergueu-os contra a luz:
— Um par de brincos. Em forma de cachos de uva.
— São os brincos de Helene — disse eu, emocionada. — Os que ela perdeu. Como vieram parar aí?
— Estes mesmos?
— Claro. Mas se caíram no lago, quem os recuperou? A água sob a ponte é profunda.
— A senhorita os viu cair?
— Escutamos uma coisa mergulhando na água e logo Susi deu pela falta deles. É claro que pensamos que tivessem caído.
— É possível que seja isso o que alguém queria que pensassem. Uma pedra produz um som semelhante. A incógnita agora é: quem os pôs na gaveta de Ehrack? Como? Por quê? São indagações demais, por ora. Uma
página com anotações, joias que somem e reaparecem. O horizonte está se tornando tenebroso. — O semblante de Fëll se anuviou: — Há detalhes nessa história que precisam de elucidação. Quando tivermos tudo
desvendado, o resto virá por si mesmo. Vamos descer, quero fazer uma checagem.
Descemos para o térreo. Com um ímpeto de cão de caça, Fëll parou e indicou a portinhola abaixo da escadaria.
— O que há aí dentro?
— Calçados, senhor. E outras tralhas.
Sem pedir permissão, Fëll abriu o cubículo e, conforme Haggard dissera, havia sapatos e roupas velhas. Tudo jogado desordenadamente. Ele se abaixou e, com uns cacarejos, remexeu a bagunça. De repente ergueu-se,
um sapato na mão; exultante, apontou a biqueira, que estava manchada com uma camada de barro.
— Estão vendo? Lama apenas na ponta; o sapato em si está limpo. Era o que eu imaginava. Alguém achou que era esperto o bastante para lograr a polícia.
Repôs cuidadosamente o calçado no lugar e, sem explicar o significado de suas palavras, aprumou o corpo, feliz com os resultados. Misericórdia, que falta de decoro! Eu quis exigir que me dissesse qual
era o teor de sua descoberta, mas nisso uma lembrança o assaltou.
— A Sra. Basknell... Quase ia me esquecendo dela. Temos que lhe falar urgentemente.
— Ela ainda estava lá quando saímos.
— Esplêndido, senhorita. Rápido.
Nós dois, com a audácia digna de visitantes indesejáveis, retornamos à sala de visitas da Sra. Rebelo. Depois de localizar Anne Roselene, Fëll a salvou do torvelinho de senhoras e a trouxe para o outro
lado da sala.
— Tenha a bondade, Sra. Basknell — disse, apontando-lhe uma poltrona. — Está abafado aqui, não acha?
Ela analisou toda a boa educação dele e concordou, sem muita certeza.
— É a lareira. A ventilação aqui dentro é péssima. Dolores sempre foi amiga de saunas.
— Genau, é o que eu dizia à Srta. Mertins. Um ambiente pouco ventilado. Quando não há passagem de ar, as flores tendem a murchar, as samambaias perdem logo a graciosidade. Sem falar nas pessoas, que começam
a suar como gado. Talvez a frase não seja muito formal, mas a verdade tem que ser dita, não é mesmo? “Pois eu discordo do senhor”, disse a Srta. Mertins. “Para mim, a temperatura está de acordo com as
exigências do mês de julho”. Eu quis replicar a isso, mas foi inútil! As moças hoje são irreformáveis. Elas sempre sabem mais do que nós. E eu sou totalmente incapaz de argumentar com elas!
Fez uma pausa, todo ele irradiando uma decepção patética. O que será que esperava alcançar?
— O senhor está absolutamente certo, Sr. Fëll — respondeu Anne Roselene. — A geração atual possui uma mentalidade diferente da nossa. Aulas de informática, cursos de modelo — já nascem fazendo de tudo.
Éramos tão ingênuos. Os jovens agora não são como nós éramos; sondam os eventos e querem as respostas para tudo.
— A senhora tem toda razão. Sim, toda razão. Mas não concordo que os velhos sejam tão cegos assim. Pense em sábado à noite, para exemplificar. Se a senhora não enxergasse bem, teria colidido de frente
com a Srta. Mertins.
— Bem, eu não falava desse gênero de cegueira...
Ela hesitou.
— E supor que, naquela hora, Wilson estava sendo traiçoeiramente alvejado pelo assassino. Não consigo me conformar com isso.
— Julga que foi nesse horário?
— Não sei. Havia tantos sons... tanta barulheira... As gotas de chuva batendo no calçamento; o vento na folhagem; o som do arranque de um carro. Quem é que pode assegurar que, em meio a essa cacofonia,
não houve uma detonação de arma? Pelo que fiquei sabendo, a arma não tinha silenciador, tinha?
— Vocês duas não viram, por assim dizer, nenhuma sombra dali da calçada, uma sombra contra a vidraça ao sopé da escada interna da casa?
— Está querendo dizer, a silhueta do assassino? — perguntou Anne Roselene. — Ora, estou entendendo. Sim, é possível. Mas não... Estávamos muito longe, não dava para enxergar muita coisa. Tudo estava difuso.
Além disso, a sala do térreo é iluminada por duas arandelas. Não dava para ver ninguém lá de fora. E havia também a neblina...
— Muito densa?
— Não, nem tanto. Mas em vista da distância, o senhor sabe...
Fëll despistou-a com talento, retomando o fio de sua reclamação sobre o calor residual.
Mantive-os ali, trocando amenidades fingidas, e saí para arejar a cabeça. O dia fora atribulado, e eu precisava refletir.
Após o portão, desemboquei na rua sem saída. Eu estava agoniada — tinham acontecido algumas coisas que eu não previra. Coisas que poderiam me afetar mais adiante.
— Boa noite, Miriam.
Encostado no muro, as mãos no bolso do casaco, Harrison Victor sorriu. A luz do poste lhe dava uma aura assustadora.
— Harry! O que está fazendo?
— Nada, apenas esperando Helene. Está indo para casa? Posso acompanhá-la, se permitir.
Gaguejei um “tudo bem”, o coração petrificado. Ele instintivamente notou meu desalento.
— Você está mal, Miriam. Deve ser uma barra lidar com aqueles fregueses enfadonhos.
— Não é tão difícil depois que você se acostuma — respondi. — Em todo caso, têm dias em que... Esqueça, não quero enjoá-lo falando de meu trabalho.
— Não me enjoo, fique sossegada. Você está certíssima. Às vezes esse lugarejo cansa.
Andava sem pressa. Podia ser um pouco presunçoso, mas não era imbecil. Modestamente falando, existia nele uma beleza suave, lapidada e cativante. Não é a toa que Susi gostava dele.
— Fico imaginando o que você está pensando, Miriam — disse ele sem aviso.
— Estou pensando no relógio no tanque do chafariz.
— Ah, o relógio — Harrison riu. — Você ficou surpresa por vê-lo lá?
— E como!
— Você acreditaria se eu lhe dissesse que sei como ele foi parar no tanque?
— Harry... — olhei para ele com desconfiança. — Você o atirou lá?
— Não.
— Oh, Harry, diga a verdade! Susi tem alguma coisa a ver com isso?
— Prefiro não dizer nada.
— Você a viu no sábado?
Harrison continuou se recusando a responder.
— De uma coisa pode ter certeza, porém. Eu sei o que vocês duas fizeram, Miriam!
Semicerrei as pálpebras. Eu sei o que vocês duas fizeram? Tentei adivinhar o que aquelas palavras significavam.
— Harry, eu posso lhe explicar...
— Pare, não estou cobrando nada de você. Quis apenas que você ficasse a par da situação. Fosse o que fosse, quisesse o que quisesse, Susi já me explicou tudo. — Emendou: — Corrija-me se eu estiver errado,
Miriam, mas o Sr. Fëll falou com Helene hoje bem cedinho... Opa, o que foi?
— Torci o tornozelo. Pisei num ressalto.
— Está doendo?
— Só uma pontada. Vamos prosseguir.
Ele segurou-me pelo cotovelo, preocupado.
— Você os ouviu? — perguntei, após avançarmos uma quadra.
— Vi que ele pediu emprestado um vidro.
— Um vidro de ameixas.
— Justamente. Eu queria saber o que eles conversaram.
— Sinto muito. Ainda não terminei meu curso de telepatia. Acha que era coisa importante?
— Talvez.
A sua relutância era meio suspeita. Coçou a têmpora:
— Lembrei-me disso agora, por casualidade. Bom, aqui estamos. Durma bem, Miriam.
Fiquei olhando-o se afastar pela calçada. Soquei o pé no chão e depois, sem mancar, entrei em casa.
Quem fez o Quê
O expediente da manhã acabou comigo, no pleno sentido da palavra. Gemi de cansaço quando empurrei o portão da rua; o que eu mais desejava era espichar as pernas e...
Uma figura solitária se empertigou no banco do jardim. Era Fëll, as faces extremamente coradas. Fiquei maquinalmente no limiar entre rir e chorar. Lenta e deliberadamente fui na direção do detetive.
— O senhor parece muito satisfeito — disse eu. — Acho que nunca teve férias tão movimentadas.
— Não posso me queixar. Pelo menos tenho uma distração.
— Estou vendo. Nunca vi uma pessoa com aspecto tão saudável. Quais são as novidades?
Sentei perto dele, e com diplomacia esperei que ele falasse. Tinha muito que dizer e, com meu complacente estímulo, não se fez de rogado:
— Você tem amigas, Mertins, com uma agilidade mental incrível. Conseguem formar uma opinião em poucos instantes, com uma facilidade exemplar.
— Fala de Anne Roselene?
— Quem? — perguntou Fëll. — Estou falando da Sra. Gwenny-Dutra, a boa alma dos chás. Ela sabe analisar os fatos com muita propriedade.
A boa alma dos chás! Sinistro...
— Fico feliz que vocês tenham se entendido. Vi que ficou conversando com Anne Roselene, ontem... Ela lhe disse alguma coisa?
— Obviamente. Mas o que ela disse ainda precisa de investigações. O inspetor também acha isso. Por outro lado, o bom homem mostrou que está devotado ao caso. Ele fez uma tabelinha de horários. Veja como
ficou:
Haggard (mordomo): das 8:15 às 8:50 da noite, na sala de estar, lendo (ninguém pode confirmar.)
Dolores Rebelo (ex-mulher): das 8:00 às 9:35, limpando a despensa (seu álibi não se justifica, pois Susi ainda não testemunhou.)
Srta. Susi Ehrack (filha desaparecida): das 6:10 às 7:55, no quarto (testemunhado pela Sra. Rebelo)
Srta. Mertins: das 8:00 às 8:05, afirma ter deixado a mansão; esbarra na sra, Basknell (ela o confirma);
às 8:20, é vista por Edmund Fëll (ele o atesta); depois, até às 10:40, sem álibis.
Anne R. Basknell (affair do Sr. Ehrack): 8:05, na calçada da rua A (confirmado pela Srta. Mertins); após isso, sem provas.
A Sra. Gwenny-Dutra (amiga da Srta. Mertins): às 8:10, vê um homem nas proximidades da mansão; vinha da casa dos Grommer (eles confirmaram.)
— Nada mal — elogiei.
— Fiz um ou dois complementos — disse Fëll, levantando o dedo. — Achei que faltava um motivo para a presença da Sra. Gwenny-Dutra na rua A. Tive que ir atrás disso e descobri que, de fato, ela esteve na
casa dos Grommer naquela noite. Outra coisa que faltou foi investigar Harrison Victor, que também teria razões para o assassinato. Não podemos desprezar nenhuma minúcia. Foi dito que Harrison remexeu nos
papéis de Ehrack. A questão é: por que fez isso? O que estava procurando?
— E o senhor sabe onde Harrison esteve sábado à noite?
— Sim.
— Com quem falou, dessa vez? Com Mello, o homem que acende os lampiões?
Fëll sorriu com uma pose altiva.
— Ich muss dich congratulieren! Fiz exatamente isso. Falei com Mello, que por toda vida acende os lampiões.
O sorriso dele... O triunfo na voz... Movi os ombros resignadamente.
— O que ele contou?
— Contou que, sábado, Harrison estava parado na praça, esperando alguém.
As respostas de Fëll eram irretocáveis. Acenei com a cabeça. Olhei novamente a tabela.
— Estou vendo que omitiram o nome de uma pessoa. Vocês deveriam incluir o nome de Gassmer, o dono do hotel.
— Ja, sicher. Mas essa omissão é fácil de justificar. Até agora, ninguém disse que o viu na vizinhança na hora do crime. Se tivéssemos uma testemunha, pelo menos...
— E os ruídos que ouvi? Alguém pisou no saibro, estou lhes dizendo isso desde o início. Pode ter sido Gassmer.
— Esses ruídos são imprecisos demais, Mertins. Não podemos acusar ninguém com base nisso.
— Mas ele tinha motivos. Todo mundo sabe que Ehrack sempre foi uma pedra no sapato de Gassmer. O hoteleiro perdeu vários prospectivos sócios por causa dele. Ele mesmo me disse que sobrevive à custa do
dinheiro de agiotas.
Febrilmente, como quem não pode desistir sem perder sua dignidade, acrescentei:
— E quanto à morte de Ermínio Ehrack? E se Gassmer sabia de alguma coisa que incriminava Wilson Ehrack naquilo?
— Sim, é uma hipótese — disse o detetive. — Pelo que sabemos, o filho se opunha ao pai em certos assuntos familiares. Essa oposição depõe contra ele. Também sabemos que o pai era teimoso, e não admitia
ser questionado. Daí que só restaria uma saída ao filho — o veneno. A herança que lhe coube sustenta isso. Todavia, temos que ressaltar mais coisas: a Sra. Rebelo permitia o flerte entre o ex-marido e
a Sra. Basknell. Essa atitude permissivista não lhe parece um pouco irreal?
— Acho que não há problema aqui. As duas sempre se deram bem. Elas iam para a escola juntas. Nunca houve nenhum rancor declarado entre as duas.
— Camuflar sentimentos, senhorita, é um hábito milenar — disse Fëll docemente. — E a respeito de Haggard? Ele tem um comportamento notável, apesar de tudo. Mas e se, debaixo da sua capa de serenidade,
o velho oculta algum remorso ou ódio mal curado? Note aqui o que o mordomo estava fazendo no sábado à noite: “Das 8:15h às 8:50h, na sala de estar, lendo”. Meio-surdo, senil e ancião. São deficiências
demais favorecendo um só homem.
Lembrei-me que no primeiro dia, ao abrir-me a porta de entrada, Haggard tinha mesmo um livro na mão. Não dava isto um toque veraz a seu testemunho acerca do que fazia na noite seguinte?
— Abrir a janela, pôr o guarda-chuva no cabide — citou o austríaco. — Atos simples, feitos unicamente para despistar. Tudo leva a crer que Ehrack estava aguardando a visita de alguém para aquela noite.
Foi esse visitante que o matou.
Notei que o faro de perdigueiro de Fëll tinha seus pontos fracos.
— Acho que o senhor está exagerando. Se ele estivesse esperando alguém, teria deixado escapar alguma coisa. Eu estive lá — Ehrack não me disse nada.
Tirou algumas partículas de fuligem do chapéu. Uma amostra grátis de sua afeição por limpezas rigorosas?
— Acompanhe o que vou dizer. Várias pessoas confundem as coisas porque não sabem calcular a média do preço de um produto.
— Meu Deus — respondi. — O senhor vai me dar uma lição de matemática?
— Em absoluto. Se analisar bem, verá que às 8:20, quando provavelmente ocorreu o crime, Ehrack ainda não tinha tocado na sobremesa à sua disposição. O que podemos deduzir disso? Que ele se sentou para
ler as laudas recém-impressas. Mas sentou-se onde? Só poderia ser junto da escrivaninha, pois na mesa não ficou nenhuma folha remanescente. Aqui entra o cálculo do valor médio. Vamos supor agora que ele
não estivesse lendo. Imediatamente a coisa muda de figura. Suponhamos que ele estava ansioso, andando sem parar de um lado para o outro do escritório. Perfeito. Mas — em que sentido ele caminhava? Da poltrona
até o cabide, ou da escrivaninha até a porta de seu quarto, isto é, a extensão do aposento? A questão, que pode gerar confusão dependendo da resposta que lhe dermos, parece sem solução. É então que um
minúsculo fato vem em nosso socorro. A cabeça dele caiu em direção da poltrona. E logo atrás da poltrona existe o quê? A janela. Está respondida, portanto, a nossa interrogação: Ehrack andava de lá para
cá pelo recinto em sentido diagonal. Ou seja, ora indo para a janela ora voltando para a porta, as duas únicas vias de acesso ao local. Porta-janela, está percebendo, Mertins? Quem quer que fosse o visitante,
teria que entrar necessariamente por um dos dois pontos. O pudim que permaneceu intocado, e a televisão ligada, confirmam isso. Ehrack marcara um encontro, e preparava-se para receber condignamente a pessoa.
Enquanto isso, ficou caminhando pelo escritório, talvez preocupado, ainda não sabemos. Então cometeu um descuido tolo: deixou a arma ali, na poltrona, à vista do assassino. O assassino, ao notar aquele
fato invulgar, deu um passo para frente e, vendo que não podia perder a ocasião, se apossou da arma e: O TIRO.
Emiti um grunhido aprovativo; sua explicação era racional e razoável.
— E a hipótese de suicídio? — arrisquei.
— Fora de cogitação. Prepare-se, Mertins. Teremos companhia.
Apontou a rua. O inspetor Radke aproximava-se pela calçada. Homem sazonado, o rosto queimado de sol, entrou diretamente pelo portão. Tudo fazia crer que queria mesmo falar conosco.
— Olá, posso participar da reunião?
— Com prazer. Precisamos que nos ajude — disse Fëll. — Temos um enigma.
Radke sentou-se, acenando amistosamente. Como que se desculpou:
— O senhor e seus enigmas! Sem problemas. Mas posso lhe pedir um favor? Tenho que fazer uma pergunta à Srta. Mertins. Embora não goste de incomodá-la, o testamento gerou uma série de dúvidas. Nós queríamos
a cooperação de Fadeschi, mas ele diz que existem impossibilidades jurídicas. Respeito essa restrição.
— Vou preveni-lo desde já, inspetor — avisei. — Não sei nada sobre o testamento. Fui só secretária de Ehrack por duas noites, nada mais.
— Eu entendo. Dificilmente ele a informaria sobre seus últimos desejos caso morresse. A senhorita declara que falou com a Srta. Susi no dia do homicídio. Por volta das 6h.
— Sim.
— Disse também que a Srta. Susi estava aflita. Pois bem, acha que ela estava inquieta por que se sentia culpada, de algum modo?
— Como — se sentia culpada?
— Remorso por alguma coisa que faria mais tarde naquela noite.
— Inspetor, eu tinha convidado Susi para vir comigo rever o pai. Mas, lá com seus botões, ela concluiu que, se fizesse isso, desapontaria a mãe. Ela estava dividida entre o amor pela mãe e o intuito secreto
de agradar o pai. Quando soube que o pai fora assassinado, deve ter se apavorado. Vocês veem no sumiço de Susi uma razão para suspeitar dela. Eu acho que vocês estão errados.
— Está sugerindo que ela fugiu por que, por enquanto, não quer ver nem ouvir ninguém?
— Estou sim.
— Tantos questionamentos — disse Radke, coçando a cabeça. — Estivemos fazendo algumas pesquisas. Harrison é um naipe fora do baralho. Só por um lance de sorte conseguiremos encaixá-lo nessa história. Se
pelo menos Haggard tivesse sido mais vigilante! Ele diz que das 8:15 às 8:50 ficou lendo no térreo e só depois disso subiu para recolher a louça. Isso quer dizer que o assassino não pode ter saído pela
porta da frente. A poltrona da sala abrange a visão do vestíbulo. Se houvesse alguma fraqueza nesse depoimento, tudo ficaria mais fácil. Mas onde?
— E se o criminoso já estava na casa às 8:15? — insinuei.
— Não confere. A pegada de lama é taxativa nesse respeito. A não ser que alguém tenha vindo pela janela, e após atirar, voltou a sair por ali. Nesse caso, ainda teríamos que acreditar que Ehrack conseguiu
se arrastar até a posição em que foi achado. Descobrimos quem tem o registro da arma.
— Ótimo trabalho, chefe — disse Fëll. — Ja, das könnte uns helfen.
— O certificado está no nome de Luigi Tomazelli. Foi registrada há cinco anos.
— Tomazelli... Tem certeza? Mas é o nome de meu amigo! Onde estou hospedado...
— É, isso é meio estranho, não?
Houve uma breve pausa. Tomazelli... meu senhorio... incriminado naquele caso?
Miriam, pense, pense... Tem que haver outra explicação.
— Esperem um pouco, acho que sei o que aconteceu — respondi com vivacidade. — Tomazelli disse, na sexta de manhã, que havia perdido o revólver.
— Isso significa que Ehrack o roubou dele? — perguntou Radke, intrigado. — Eu como meu chapéu se isso faz algum sentido.
— Bem, temos que escrutinar isso mais tarde — disse Fëll. — Haggard encontrou esta folha no cofre da biblioteca. Afirmou que você sabe do que se trata.
Radke franziu a testa, enquanto analisava o papel. E meio hesitante:
— O caso do Hotel Três Empenas... Um morto — Ermínio Ehrack, conhecido advogado que, cansado de tudo, resolveu encurtar a vida. Um velho irascível, brigão, com um humor que mudava constantemente e, por
conta disso, exigente em suas preferências. Ao contrário do filho, que foi um homem mais pasteurizado.
— Qual foi o laudo?
— Envenenamento. Mais precisamente, ricina. Foi um ato proposital, pelo que constatamos. Uma pessoa pode ser envenenada pelo pó ou ao digerir um alimento ou uma bebida que contenha a substância. Doses
inaladas ou injetadas de ricina podem causar a morte. Mas no caso de Ermínio Ehrack, os grânulos do veneno estavam na taça de vinho seco. Um brinde mortal. A senhorita deve lembrar bem daquilo, pois se
não estou enganado, trabalhava no hotel naquele ano.
— S-sim... — respondi, embaraçada.
— Wirklich? — perguntou Fëll. — Isso é fabuloso! Se trabalhava lá, Mertins, então deve ter dado o seu depoimento...
— Eu não tinha muito a dizer. Eu não vi nada. Foi a arrumadeira que viu... e correu para a portaria toda assustada.
— Mas isso não importa, não é mesmo? Você esteve lá, presenciou tudo de primeira mão, e isso não tem preço. Temos que falar mais a respeito disso, Liebling.
— Claro, se o senhor acha que vá ser de alguma ajuda.
— Warscheinlich... No ponto em que estamos não podemos deixar escapar nada. Uma pista pequena pode ser um grande passo para...
Antes que ele pudesse terminar a frase, meu celular tocou. Olhei o identificador de chamadas.
— É a Sra. Basknell... Desculpem, vou ter que atender.
— Sim, lógico.
— Alô?
— É você, Miriam? Oh, que bom... Preciso falar com você, tem algum problema?
— Quer que eu vá até aí?
— Se não houver nenhum inconveniente — disse a Sra. Basknell. — Não quero incomodá-la... Venha apenas se estiver livre.
— Tudo bem, eu não estou muito ocupada.
— Que bom... Pode me fazer um favor? Traga aquele detetive que está de férias na casa de Luigi. Pretendo falar com ele, por via das dúvidas.
Assenti, disse que já iria e desliguei.
— O que ela queria? — perguntou Radke. — Ficou com uma cara tão amarela, senhorita.
— Ela quer que eu vá até lá, e que leve o Sr. Fëll.
— Oh! Eu entendo...
Pude notar a decepção na voz do investigador.
— Vão, podem ir. Depois conversamos sobre isso.
— Muito bem — disse Fëll. — Vamos, Mertins. As coisas estão começando a tomar um rumo, não podemos ficar para trás.
Análises
Anne Roselene Basknell estava perto do portão, esperando por nós. Havia uma gravidade impressionante estampada no rosto, como se o Armagedom estivesse prestes a irromper.
— Oi, quem bom que vieram — disse ela, com alívio.
Fëll fez um aceno de cabeça com educação. É óbvio que estava contente com o chamado de Anne Roselene. Havia sempre a perspectiva de uma descoberta que poderia nos pôr na pista certa para desvendar o crime.
— Entrem, antes que nos vejam! Não quero nenhum vizinho fofocando pelas minhas costas.
Dirigimo-nos para a sala de estar. Ela tinha preparado café para três; serviu uma xícara para cada um, e esperou que tomássemos lugar no picadeiro. Sem saber direito por onde começar, disse:
— Eu queria conversar com você a sós, Miriam. Mas então eu me lembrei de que o Sr. Fëll está sempre às voltas com a lei. “Sim, talvez ele possa me aconselhar”, disse eu comigo mesma. O senhor vê, uma mulher
na minha idade... Os jovens não; para eles tudo é muito simples. Vão a uma lan house e fazem uma pesquisa de poucos minutos e pronto — já têm tudo respondido, sabem de tudo num piscar de olhos. Mas nós,
velhos, temos tantas limitações, tantas dificuldades.
Fëll concordou radiante. Estava cheio de humildade:
— Es ist leicht zu verstehen...
Anne Roselene remexeu-se no puff, mais à vontade com a resposta compreensiva do detetive. Aguentei calada aquela condescendência entre os dois. As sobrancelhas brancas da mulher expressavam uma paciência
apavorante. Era uma senhora de poucos sentimentos, supostamente. Ela ajeitou as mãos no colo. Pelo que se via, tinha suplantado a maior parte do choque que o assassinato causara nela.
— Para ser franca, o que quero é ser o mais direta possível. — Olhou para mim com energia: — Wilson não lhe falou, Miriam, de algum complemento que fez ao testamento? Um complemento que... digamos... não
queria tornar público?
— Não. Se ele fez isso, não me disse.
O desapontamento transpareceu nas linhas ossudas de seu queixo. Imaginei que ela deveria ter jogado todas as suas fichas nessa pergunta.
— Nada mesmo?
— Nada.
— Ele tinha prometido à senhora que faria isso? — perguntou Fëll com delicadeza.
Ele estava inclinado para a direita, e vigiava as reações dela como uma raposa vigiando um coelho gordo.
— Eu tinha esperanças... — disse ela com sinceridade. — Não consigo imaginar como Wilson pôde legar toda a sua fortuna para Dolores. É um absurdo! Depois de tantos conflitos, de tantas brigas... Ninguém
faria uma coisa dessas. É incrível demais para acreditar.
— Receio que a senhora está enganada. A maior beneficiária não foi a Sra. Rebelo. O que Ehrack fez visava primeiramente o bem-estar da filha.
— Sim, o senhor está certo. Susi era o xodó dele. Ele a amava muito. Susi sempre foi muito boazinha. O divórcio dos pais foi um golpe doído para ela. Acho justo que ela tenha se tornado a principal herdeira.
Mas o que eu pergunto é: Por que ele foi tão generoso assim? Por que dar tanto dinheiro a uma moça tão jovem, que nem sabe o que quer da vida?
— Jawohl, é muito dinheiro. Mas eu creio que não há contrassenso. Ele era pai, pretendia zelar pelo futuro da família.
Notei que Anne Roselene hesitou; estava pronta para dizer alguma coisa. Desistiu no último instante; em vez disso, baixou os olhos e acrescentou:
— Ouça... Sobre o testamento. Existe algum meio legal pelo qual se possa anulá-lo? Tenho procurado saber, e todos me dizem que é impossível. O que o senhor tem a dizer?
— Infelizmente, é verdade. Não há como contornar a lei nesse ponto. O papel é válido. O que foi escrito não pode ser anulado.
— Entendo.
Ela fez uma pausa. Falamos sobre outras trivialidades, apenas para preencher o tempo. Depois, eu e Fëll nos despedimos; ela voltou a agradecer por termos vindo, sem muita convicção.
— O que achou disso, Mertins? — perguntou o detetive quando estávamos na calçada. — A Sra. Basknell quis me refutar, você percebeu? Fico me perguntando por que ela se calou.
— Talvez ela tenha visto que seria inútil debater com o senhor.
Fëll olhou para mim; deve ter achado que eu estivesse pilheriando. Mas o fato é que eu andava devagar, pensando em outras coisas.
— Está falando sério?
Não sei por que, mas nessa hora uma onda de calor me invadiu. Pensei em lhe armar uma pequena armadilha. Respondi que sim, que estava falando sério.
— Por que diz isso?
A fim de puxar o laço, acrescentei:
— Durante uma investigação, o senhor não fica calado e só fala depois que tudo esteja resolvido? Pois é isso o que eu farei. Vou lhe dizer por que Roselene deve ter achado que seria inútil discutir. Mas
outra hora.
O meu tom de voz foi totalmente inofensivo. Mas Fëll não viu as coisas desse jeito. Ele limitou-se a baixar a cabeça, ressentido, como se tivesse sido derrotado em seu próprio campo de batalha. Eu tinha
cravado minhas unhas profundamente em seu ego.
Toda a brincadeira foi um grande erro...
Durante o resto do caminho até a mansão Ehrack, o austríaco passou o tempo divagando consigo mesmo. Ele tinha um espírito muito vivaz, inquieto. Por várias vezes murmurou algumas sílabas; depois chegou
a murmurar palavras, como num exercício de trava-línguas.
Fizemos uma nova visita ao palco da tragédia. Era a trigésima segunda, suspirei desanimada. Chovia, o que pareceu favorecer os planos de Fëll.
Para mim, o progresso feito nas investigações era ridículo. Nada de concreto havia sido apurado; o homicídio continuava um pleno mistério. Edmund Fëll sabia disso, e por isso munia-se de uma cautela quase
ofensiva.
Perguntei o que ele queria fazer ali no escritório.
— Não posso dizer — respondeu, com uma bem calculada reserva. — Antes de ter resolvido o caso, não posso falar nada.
Xeque! Mordisquei o lábio. Ali estava o resultado de minha provocação. Um homem encardido de mágoas.
— Temos que fazer uma experiência... Espere aqui um minutinho!
Fëll começou a fungar, olhando o cômodo. Andou até a porta. Saiu. Ouvi os seus passos descendo os degraus da escadaria. É o que digo: aqueles estratagemas me deixavam com os nervos à flor da pele.
Fui para a poltrona e sentei-me distraidamente. O ambiente era tão calmo... Tão solitário...
Dessa posição, o cabide ao lado da porta ficava um pouco à minha esquerda. A mesa, por sua vez, estava agora diretamente diante de mim. Deslizei os olhos casualmente pelo cabide, como que analisando seu
belo design. Como é que tinha aparecido nele o guarda-chuva úmido, essa fora a pergunta do inspetor. Era uma coisa que eu também gostaria de saber.
— Tudo certo, senhorita — disse Fëll, ao voltar. — Vamos realizar o nosso pequeno experimento.
— Quinze minutos! — reclamei. — Por que a demora?
— Ouça! Ouça!
Tinha levantado o dedo, a testa franzida. Estava concentrado num ronco de trovão que vinha de muito longe.
— Deve ser o carro de Haggard — expliquei. — Acho que ele gosta de testá-lo toda noite... Espere, mas como?
— Sim, Fräulein?
— A chave! O senhor quebrou a chave ontem à noite!
Um largo sorriso aflorou em seu rosto. Senti-me um inseto insignificante sendo esmagado impiedosamente.
— Não devia confiar em tudo o que dizem, Mertins.
Retomando sua seriedade, ficou novamente atento.
— Escute só, os ruídos do escapamento são bem audíveis aqui em cima. Encobririam com perfeição a explosão de um tiro de revólver. Dolores Rebelo disse o seguinte: “Das 8:00h às 9:35h estive limpando a
despensa!” Se isso for verdade, ela dificilmente teria ouvido o estampido da arma.
— Essa eu não entendi. Se o assassinato foi cometido por volta das 8:20h, Haggard não mexia mais no carro. Ele disse que às 8:10h já estava no sofá, lendo.
— Hmm, não deixa de ser uma ótima observação. Tudo leva a crer, portanto, que há erros nos depoimentos. Alguém deve estar mentindo. Vamos ouvir uma opinião feminina... Quem você julga que mentiu?
— Quem mentiu? Não sei. Se Susi não tivesse ido embora... Ela poderia nos dar essa resposta.
— Susi! Está vendo como tudo se inter-relaciona? O testemunho da mãe não isenta a moça de algumas suspeitas. “Das 6:10h às 7:55h, ficou no quarto.” Resta saber o que ela fez depois desse horário.
Lá na garagem, o motor foi desligado. O experimento do detetive estava concluído.
— Vamos descer. Não há mais nada a averiguar aqui.
Descemos. Vi logo que havia gente na sala.
Era Leonora. Ela se levantou do sofá, e Fëll foi para lá cumprimentá-la vigorosamente.
— Sra. Gwenny-Dutra!
— Olá, Sr. Fëll! — Ela sorriu para mim: — Olá, Miriam! Parece que você se tornou uma corajosa combatente do crime.
Abracei-a. Apesar de tudo, era bom vê-la ali; dava-me uma sensação de conforto.
Haggard tinha vindo da garagem e tirava pingos d'água do casaco de gabardine.
— Fez um ótimo serviço, bom homem — disse Fëll. Virando-se para Leonora, fez uma pirueta com a mão: — É um prazer tê-la aqui conosco, senhora. Espero não ter chamado numa hora imprópria.
Os olhinhos acinzentados de Leonora brilharam.
— Esqueça isso — disse, com um gesto excitado. —Se vim até aqui é porque tenho tempo de sobra.
— Fico-lhe muito grato.
Adivinhei que queriam conversar a sós, por isso me afastei até as prateleiras. Houve um cochicho entre os dois durante uns quatro ou cinco minutos. Fëll deu habilmente algumas orientações; ao que parecia,
o Conselho de Chefes de Estado-Maior estava deliberando um ataque.
Finalmente o detetive veio para junto de mim. Por outro lado, Leonora aproximou-se de Haggard, que fora se esquentar diante da lareira. Ela começou a falar com ele, a boca rente à sua orelha. O rosto do
mordomo se crispou, quase em agonia.
— Belas peças de louça de barro — disse Fëll, alegremente. — Veja, esses traços exigem muita técnica, não acha, Mertins?
Fiquei aturdida. A prateleira comportava algumas peças de louça de barro vidrada e esmaltada, criadas a partir da arte de fàenza. Mas eu não era tola para achar que ele estivesse mesmo interessado naquilo.
— Qual é a tática? — perguntei baixinho.
— Tática?
— Sim, tática. O que está acontecendo?
— Vamos esperar, minha cara. Não foi você mesma quem disse que havia um problema com os horários? Aí está, eu também percebi. A sua amiga sabe lidar com o mordomo; talvez ele nos elucide alguma coisa.
A parlamentação de Leonora com Haggard durou quase quinze minutos. Ele manteve a cabeça baixa, um pouco perturbado, mas sempre atento.
Então a luta acabou. Discretamente, a velha se aproximou de nós; não estava muito animada:
— Ufa, como esses homens são teimosos! Samuel concedeu cinco minutos... Quando veio da garagem naquela noite e sentou-se no sofá, ele diz que no máximo eram 8:20h. Mais tarde, não. Será que isso ajuda?
— Ganz sicher!... Se diminuirmos alguns minutos do horário do crime e, ao mesmo tempo, acrescentarmos estes mesmos minutos ao horário em que Haggard entrou nesta sala... Que glória!
— Vai interrogá-lo novamente?
— Interrogar quem?
— Samuel. Seja cuidadoso, sim? Ele é sensível.
— Esteja certa que serei cuidadoso. Se for inocente, não terá nada a temer.
— Não acho que ele tenha alguma coisa a temer.
— Nunca se sabe — declarou Fëll.
A discussão tinha chegado numa encruzilhada. O rosto de Leonora mostrava certa contrariedade. Resolvi intervir, e peguei-a pelo braço:
— Olhe isto, a senhora já viu a coleção de barro do Sr. Ehrack? Veio lá do oriente. Não é fantástico?
Ela sorriu com cumplicidade.
— Oh, sim! Claro que é fantástico — aprovou. — Já vi esta louça uma centena de vezes, e sempre descubro detalhes novos nela. As linhas... estas aqui, veja, são perfeitas! Os chineses são um povo tão caprichoso!
Fëll ficou ali perto de nós, neutralizado. Consultou o relógio, indeciso.
— Não quero interromper a análise artística, senhoras, mas seria bom se nos apressássemos. Acho que a reunião familiar com o advogado Fadeschi já começou.
O Testamento
Ao transpor o hall de entrada da casa da Sra. Rebelo vi que na sala estavam Fadeschi, a Sra. Basknell e o inspetor, aglomerados num grupinho à parte. No outro extremo do cômodo tinham se ajuntado Harrison
e Helene Burke e a Sra. Rebelo. O detetive foi na direção deles, o que fez Harrison revirar os olhos, uma expressão de sarcasmo no rosto.
— Uma convocação extraordinária — dizia Dolores Rebelo, contrariada. — O que Anne Roselene pensa que está fazendo? O que é que ela quer com esse teatro? Se há algum problema deveria ter vindo falar comigo.
Por que envolver outras pessoas nisso?
Fëll deu um grunhido e ajeitou melhor o monóculo.
Fadeschi adiantou-se com o seu andar cerimonioso. Depois de pedir silêncio, articulou as primeiras palavras:
— Em nome da Sra. Basknell devo garantir que ela não pretende, com a presente reunião, ferir as suscetibilidades de ninguém. A lei lhe dá direitos que não podem ser descriminados. Ela espera que todos
entendam isso.
Todos nós olhamos para a requerente. O semblante da Sra. Basknell, nessa hora, lembrava uma escultura, firme como a carapaça de um besouro.
— Was für eine Frau! — murmurou Fëll. — Corajosa! Impávida! Decidida...
— Os exames pos-mortem ainda não mostraram qual a causa da morte do Sr. Ehrack. Sabe-se que a bala era de médio calibre. Segundo a Sra. Basknell, Wilson Ehrack havia lhe prometido que, caso ocorresse uma
fatalidade, ela seria herdeira de uma soma parcial de bens. Todavia, no sábado, quando revogou o documento anterior, o Sr. Ehrack não sugeriu o seu nome para o nome testamento que mandou lavrar. A assinatura
de duas testemunhas teria sido suficiente.
Mantendo o autocontrole a custo, a Sra. Rebelo ergueu-se encolerizada. Como se tivessem pisado em sua cauda, gritou:
— É uma calúnia! Uma calúnia deslavada. Anne Roselene está ficando louca. Não posso consentir que vá adiante nisso, Sr. Fadeschi. Não no meu lar, debaixo do meu teto.
A Sra. Basknell moveu a cabeça com pesar.
— Vamos, Dolores. Você sabia qual era a vontade dele.
— Que atrevimento! Eu sabia? Não me acuse de algo tão horrível.
— Por favor, senhoras — interveio o advogado. — É preciso calma. Talvez o Sr. Haggard possa nos ajudar. Aproxime-se, meu velho.
— Hein?
Voltamo-nos a tempo de observar que o mordomo tinha nos seguido. Pôs a mão em forma de concha atrás da orelha.
— Seu patrão falou-lhe que pretendia tornar a Sra. Basknell uma das herdeiras dele?
— Não, senhor.
— Srta. Mertins?
— Seguramente não — respondi.
— Já é o bastante. Como vê, senhora, não foi possível alcançar êxito em sua questão. Assim, devo pedir-lhe que encerre esse assunto...
— Eine Minute! — disse Edmund Fëll. — Permita-me fazer uma pergunta, senhora. Deve existir uma razão para suas esperanças. Foi o Sr. Ehrack quem lhe falou a respeito da herança, ou ele usou outro meio
para lhe dizer isso?
Ela empinou o corpo, não muito segura de si.
— Sr. Fëll, o que está tentando insinuar?
— Não estou tentando insinuar nada, Sr. Fadeschi. Poderia nos esclarecer uma coisa, bitte? Qual foi, em substância, a principal mudança feita no segundo testamento?
Fadeschi hesitou alguns segundos, refletindo nas consequências de sua resposta; em seguida, disse:
— O Sr. Harrison Victor foi deserdado, senhor. Essa foi, creio eu, a maior mudança que...
— Estão vendo? — bramiu Harrison em voz alta. — Aquela maldita víbora! Eu deveria tê-lo matado quando tive chance... Eu lhe disse, Helene, que ele faria isso. Eu lhe avisei!
— Harrison!
— Me solte! Não quero mais ficar aqui... O ar está irrespirável! Espero que estejam felizes... Todos vocês!
Como um bicho, Harrison caminhou até a porta, as veias da garganta intumescidas de raiva. Houve um baque e ele sumiu na neblina fora de casa.
— Harrison! Volte aqui...
A voz da irmã soou como um soluço. O lindo rostinho... Ah, estava mais enrugado do que um pergaminho.
— Hmm — disse Fëll, um pouco embaraçado. — Acho que isso foi esclarecido... Uma última pergunta: o nome da Sra. Basknell não constava no testamento anterior?
— Certamente que não.
— Por que não, Sr. Fadeschi?
— Como?
— A Sra. Basknell... Por que não foi incluída na distribuição do espólio?
— Julgo que está perguntando para a pessoa errada. Legalmente, não sou responsável pelas decisões pessoais de meus clientes.
— Um autêntico tiro no escuro — disse o inspetor Radke, ao término da sessão. — Nunca gostei de advogados, pelas barbas do profeta! O que faremos agora, Sr. Fëll? Algo me diz que o assassino está rindo
de nossa cara...
— Pois deixe que ria.
O austríaco olhou em volta, sem dar muita atenção à insatisfação de Radke. Depois de pescar alguns papéis do bolso, foi entregá-los à nossa anfitriã, que estava sentada pensativamente no sofá.
— O que é isto? — perguntou a Sra. Rebelo, espantada.
— Algumas páginas da biografia de seu ex-marido, senhora. Eu estive dando uma olhada.
— Ahn, obrigada.
— Quero lhe perguntar uma coisa, Sra. Rebelo. Há um trecho aqui... Talvez a senhora possa me ajudar a esclarecê-lo. A partir daqui, leia!
Fëll apontou alguns parágrafos, que diziam:
Fiz muitas coisas em minha vida das quais me arrependo. Não posso me redimir disso, e nem mesmo exigir que as pessoas me perdoem. O que foi feito, foi feito. Quero apenas retratar-me... Sim, talvez com
isso eu consiga expurgar um pouco do mal que causei.
Trabalhei com meu pai por algum tempo.
A advocacia, assim como outras áreas, tem seus pontos bons... e também seus pontos ruins. Quando falta a lisura, muitas injustiças são cometidas contra pessoas de bem.
Lembro-me do caso do homem que tinha a haver de um comerciante. Ele nos contratou, mas aceitamos uma proposta melhor e... acabamos dizendo ao pobre diabo que a sua causa era inapelável. Inapelável... Papai
sabia mentir sem a menor contemplação! Também teve aquele jovem polonês que devia para Deus e para o mundo. Papai foi o promotor do caso e falou a favor dos credores... Ainda posso ouvir os soluços do
polonês... ele prometia que iria quitar as dívidas.. Ou aquela moça, tão bonita e corajosa, que tinha aquela loja de tecidos... A loja estava em concordata por causa de empréstimos não pagos. Meu pai...
e digo isso com vergonha... pediu que o patrimônio fosse vendido e que a dívida bancária fosse quitada. A humilhação... a falência... foram demais para a jovem; ela se enforcou e tudo virou um grande fiasco...
— Hmm — disse a Sra. Rebelo. — Casos muito tristes, bem ao estilo de meu sogro. O que o senhor quer de mim, Sr. Fëll?
— Esses relatos... A senhora sabe da história por trás deles?
— Não, eu lamento. Wilson não gostava que eu lhe fizesse perguntas sobre seus negócios. Sempre fui ciumenta, o senhor já deve saber. Eu fazia de tudo para me controlar... Prevaleci apenas nisso: nunca
me intrometi na área profissional de meu ex-marido.
— Eu entendo — disse Fëll. — Tome, é seu, senhora.
— Obrigada. Também tenho uma coisa para o senhor. Quero que leia isto.
A Sra. Rebelo extraiu um envelope debaixo da bandeja de chá. Era uma carta. Vi a letra em garranchos — logo imaginei que era de Susi. A escrita dela nunca fora muito legível.
Havia uma folha de papel dentro do envelope. Fëll estudou-a com circunspecção, mas sem sucesso.
— Quando recebeu isto?
— Há pouco...
— Estava na caixinha?
— Sim.
— Nenhum carimbo de postagem, nem data. Aqui diz: “Agi pensando no bem de todos vocês... Não quero magoar a senhora... Dizem que as nêsperas estão florindo”, etecetera. É uma mensagem trivial. Srta. Victor,
pode vir aqui um momento?
Helene olhou para o detetive, desconfiada. Aproximou-se com uma elegante seriedade.
— Pois não?
— Seu irmão trabalhou hoje no correio?
— Sem ofender, mas qual é o motivo da pergunta?
— Apenas queremos uma confirmação.
— O senhor é engraçado! — disse Helene. — Que espécie de confirmação?
— Da seguinte espécie: se ele trabalhou ou não trabalhou hoje no correio. Acho que não dá para ser mais claro do que isso, não é?
Ela manteve o queixo em riste, provocativamente. Acabou por responder:
— Digamos que sim.
— Ótimo, não foi tão difícil assim, foi? Sabe se ele trouxe uma carta para a tia?
— Que impertinência! Não, Harrison não trouxe. Aliás, quem é que ainda escreve cartas? Uma ligação resolve tudo na hora e custa bem menos.
— E ontem... Havia alguma correspondência?
— Meu irmão ficou de molho ontem. Fui eu que o obriguei a descansar. Estava com um resfriado medonho.
— Alguém fez o itinerário?
— Ninguém, senhor. Quando não há carnês ou tarifas urgentes, o serviço é leve. Harrison recupera o atraso durante a semana.
— Isso é interessante — disse o austríaco. — Está dizendo que não houve correspondência para a Sra. Rebelo esta semana?
— Exatamente.
— No entanto, os fatos dizem o contrário. Duas cartas foram entregues. Ambas escritas com grafia diferente e nenhuma com selo e carimbo. Qual delas supõe que seja de sua prima?
— Deixe-me ver... A outra não sei, mas esta aqui com certeza tem a letra de Susi. O estilo... As letras maiúsculas... Sim, esta é dela.
— Susi! Pobrezinha... — murmurou a Sra. Rebelo. — Estou... estou tão desnorteada!
Com olhar esgazeado, a mulher ficou a olhar o vazio. Depois, enclavinhou os dedos, angustiada:
— Eu sinto de certa maneira que ela quer dizer alguma coisa. Não consigo ver o que é.
“Dizem que as nêsperas estão florindo”! Sim, a resposta para o paradeiro de Susi estava incontestavelmente naquela frase. À vista de todos, mas apenas visível aos que conhecessem o código.
Radke olhava para mim, como se quisesse saber os motivos de minha distração. Eu quis falar com ele, mas fui arrastada por um redemoinho chamado Helene Victor, que me puxou para um canto da sala.
— Olhe ali, Miriam! — exclamou, apontando um cachepô. — Oh, não é lindo?
O comentário dela era completamente irrelevante. Percebi que havia uma intenção por trás daquilo. Apertando meu cotovelo, Helene baixou a voz:
— Que detetive chato! Ficou lá me pressionando sobre o que Harrison fez e o que ele não fez. Eu concordo que foi horroroso o que fizeram com titio. Um ato covarde. Como as pessoas são más. Quem é que em
sã consciência consegue matar alguém? Só um assassino empedernido seria tão calculista. Mas daí a desconfiar de nós — espere aí, nós não temos nada a ver com isso! Eu nem sei por que a polícia está aqui...
Ela não era repulsiva o tempo todo. Ali de pé, com o corpo tremendo de indignação — digamos que sua beleza lançava um poder hipnótico. Eu quase cheguei a simpatizar com ela.
— Quem matou titio deve ser um maníaco — prosseguiu Helene, puxando a túnica de crepe para o ombro. — Tia Dolores nunca teria essa coragem. Cometer um crime, quero dizer. Ela não tem temperamento para
essas coisas. É uma criatura tão frágil. Tão parecida com Harrison. Meu irmão é um imbecil. Não consegue nem matar uma mosca. Às vezes sinto pena de pessoas assim. São todas tão tolas, fáceis de comandar.
Pode apostar nisso, amiga. Não foi tia Dolores quem matou o ex-marido. Não foi.
Disse a última frase quase aos sussurros. Então, sem qualquer acréscimo, Helene afastou-se de mim. Fiquei parada, tonta, deslocada.
Radke aproximou-se, um sorriso matreiro nos lábios.
— Ela deixou você preocupada, não foi? Sobre o que estavam conversando?
Fiz um resumo do que Helene tinha mencionado para mim. Radke ouviu com interesse; por fim, perguntou:
— Não foi tia Dolores quem matou o ex-marido... O que acha disso, senhorita?
— Acho que Helene tem um gênio muito ativo.
— E a carta, de quem é?
— Também é de Susi.
— Como assim também?
— As duas são dela. A carta de ontem apenas tem outro secretário, uma pessoa que escreveu por ela. Mas a remetente foi Susi, estou convicta disso.
— Já é um passo — disse Radke aprovativamente. — Ela falou do crime?
— Nenhuma linha.
— Já era de se prever. E quanto ao esconderijo — alguma pista?
Fiz uma lenta negativa.
— Não, inspetor — neguei. Decidi abrir apenas parte do jogo: — Em todo caso, conheço um endereço... É um lugar perto daqui. Vou ver amanhã se estou certa em minhas suposições.
Susi
Pulando para a plataforma de desembarque, tive a esquiva suspeita de que o passageiro do quarto vagão me vigiava por trás do jornal. Tentei enxergar seu rosto, mas em vão.
Depois de uma caminhada de poucos minutos, entrei numa rua vazia àquela hora. O aroma de nêsperas estava por toda parte. Apertei uma campainha escondida entre as trepadeiras.
Foi Susi Ehrack quem entreabriu a porta da casa. As bochechas rosadas e o cabelo louro caído na testa intensificavam o rubor de sua fisionomia.
— Você?
O choque dela foi imenso. Antes que Susi fizesse qualquer coisa, eu empurrei a porta resolutamente. Logo estávamos na sala, face a face como dois gladiadores antes do massacre.
— Eu devia dar-lhe uma boa sova, queridinha. Você me jogou no fogo em brasa. Atirou-me bem nas garras do leão. Nunca imaginei que você fosse tão ruim. O seu pai... Que homem direto! Notei na primeira noite
que aquela biografia dele era só um pretexto. Ele me contou tudo, explicou o que queria que eu fizesse. Sou uma mocinha obediente, estive a ponto de fazer tudo o que ele me pediu. Mas você está enganada,
sua doida. Não fui eu quem atirou nele. Você deveria pensar mais em sua mãe. Os cálculos biliares e aquela coisa toda...
— Você acha que eu não sei? Eu escrevi as cartas... O Sr. Reusfeld mandou o chofer entregá-las. Mamãe não as recebeu?
— Recebeu, e daí? Ela quase morreu.
— Fique longe de mim, Miriam. Estou avisando a você, fique longe. Papai descobriu tudo, foi ele mesmo quem disse. Ele queria que nós mantivéssemos distância uma da outra por uns tempos.
— Ele está morto, sua desmiolada. Quem é que está se lixando para o que ele disse? Você fugiu porque achou que eu tinha atirado nele, admita. Muito obrigada!
Enquanto eu falava isso, Susi rangia os dentes. Lágrimas afloraram de seus olhos translúcidos. Um quadro de cortar o coração!
Ouvimos o tilintar da campainha. Nós duas nos entreolhamos. Fiz uma pausa em minhas estocadas verbais e fui para o saguão.
— Olá — exclamou o novo visitante. — É a Srta. Mertins, suponho. Um lindo dia, não?
Murmurando um apressado “bitte!”, ele foi entrando. Perplexa, eu quis detê-lo. Fëll tratou de antecipar-se, o jornal debaixo do braço. Diante de seu sorriso, fiquei momentaneamente sem ação.
— Oh! Srta. Ehrack, prazer em conhecê-la.
Fëll disse aquilo como se estivesse milagrosamente entrosado com o ambiente. Uma adaptação milagrosa?
Susi olhou para ele, admirada. Depois, caindo em si, deu um gritinho de júbilo.
— Ei, o senhor é o detetive que mamãe contratou? A Sra. Reusfeld falou sobre o senhor. Sente-se, por favor. Quer um conhaque?
— Um cappuccino, se tiver. Mas primeiro uma correção: não fui contratado por sua mãe. Envolvi-me no caso livre e espontaneamente.
— Ótimo — disse a larva saindo de seu casulo. Foi para a cozinha e trouxe um bule e uma bandeja com xícaras. — Açúcar? Adoçante?
— Açúcar, danke.
— Que bom que o senhor veio. Quero relatar tudo o que eu sei. Em verdade, eu queria ter feito isso desde o início. Mas estava me sentindo tão mal! Parecia que alguém tinha colocado uma pedra nas minhas
costas. Oh, Sr. Fëll, não quero ser implicada no assassinato de papai! Não fui eu, o senhor entende? Posso depor agora mesmo? Sim, estou agoniada com toda essa situação. Por onde quer que eu comece?
Fëll virou-se para mim com uma suave expressão de deboche. Parecia que as pessoas nutriam um irresistível prazer em se jogar a seus pés, prontas para fazer qualquer confissão.
— Ich mag es! Fale-nos do que fez naquela noite, senhorita.
— Está bem.
Olhei bem para Susi. Ela sentou-se bem reta, como se precisasse olhar para dentro de si mesma para lembrar daquilo.
— Acho que... se não me engano... eram dez para as oito quando saí de meu quarto.
— Dez? Sua mãe nos disse que eram cinco para as oito.
— Ah, sim? Mamãe estava passando o aspirador de pó. Não achei que tivesse me notado. Você tinha feito um convite para mim, Miriam... Queria que eu falasse com papai — oh, você sempre foi boa tão comigo!
(Susi lançou um olhar ingênuo para o meu lado!) Eu sei que deveria ter ido com você, me desculpe, e estava decepcionada comigo mesma. Eu tinha sido covarde, e isso doía dentro de mim como um espinho. Havia
muita neblina, mas mesmo assim fui até a floricultura. Tenho uma chave da porta, e é ali que costumo ir quando estou deprimida. Fiquei bastante tempo sozinha; eram cerca das 10 e meia quando voltei de
lá. Vi de longe que havia uma movimentação fora do comum em nossa casa. Alguns homens estavam de pé na porta da frente; reconheci que um deles era o doutor Ritterbuch. Caminhei mais alguns metros, trêmula
de terror. Entrei na casa; depois Miriam apareceu... e aquele inspetor. Quando o doutor me disse o que tinha acontecido perdi inteiramente o controle. A última coisa de que lembro é que de madrugada eu
estava aqui, pedindo asilo aos Reusfeld. Felizmente eles foram muito gentis comigo e prometeram não falar de mim para a polícia e nem a ninguém.
— Saiu com o guarda-chuva no sábado, senhorita?
— Não. Cobri-me apenas com uma capa. — Mexendo o café, Susi divagou: — Vovô também teve um fim terrível. Algumas pessoas chegaram a culpar papai por isso. Mas vovô era meio maluco, sabe? Ele tinha uma
amante. Mas quem? Ninguém jamais soube. Meu pai foi muito duro com ele; disse-lhe para parar com aquela criancice. Fez muito bem, pois eu teria feito a mesma coisa.
Susi ainda falou mais, mas nada que precise ser registrado. Depois que terminamos, foi conosco até a estação. Quando nos despedimos na plataforma, chorou pela segunda vez. Uma atriz de marca maior, que
tal?
— Poderia me satisfazer uma curiosidade, Sr. Fëll? — perguntei finalmente. — Por que me seguiu?
— Não se ofenda comigo, liebchen — disse o detetive, sem pressa. — Aquela frase sobre as nêsperas... Era incoerente. É lógico que possuía um duplo sentido. Se a Sra. Ehrack soubesse decifrar aquilo não
me teria dado a correspondência. Mas quem então saberia? Foi o seu embaraço, senhorita, quem a denunciou.
— Meu embaraço! Está tirando conclusões erradas, se me permite dizer. Eu fiquei encabulada com as coisas que Helene falou para mim, não com o conteúdo da carta.
— Que coisas?
— Não é algo que vá interessá-lo — espreguicei-me na poltrona.
— É claro que vai interessar-me. O que foi que Helene Victor lhe disse?
— Ela disse que não foi a Sra. Rebelo quem matou o Sr. Ehrack. Mencionou isso de um modo bem esquisito. Se ela e o irmão não fossem pessoas tão comportadas...
O austríaco fez um veemente movimento com a cabeça:
— Sehr interessant... Essa opinião da moça não condiz com o perfil do caso. Ou será que estamos tomando a direção errada, Mertins? Será?
Permaneceu o resto da viagem falando consigo mesmo. Um monólogo cheio de gestos e murmúrios. Enfim, eu estava mesmo cercada de paranoicos...
Jogo de Damas
Além do jogo de bilhar, o outro passatempo muito prestigiado pelas mulheres da aldeia é o jogo-de-damas. O tabuleiro exerce um fascínio irrecusável sobre nós, e volta e meia estamos envolvidas em alguma
pacífica partida noturna.
Nessa noite estavam presentes a Sra. Basknell, a nossa melhor jogadora; a bem arrumada Helene Victor, linda em seu suéter damasco; a Sra. Gwenny-Dutra, de todas, a pior no jogo; Haggard, sempre quieto
e concentrado; e, além de mim, a Sra. Rebelo, nossa anfitriã da vez.
Cada jogador tem seu estilo particular, não importa a cultura, raça ou educação. Conosco não é exceção. Por exemplo, a Sra. Basknell costuma intercalar um lance e outro com opiniões pessoais. Uma mania
que nunca foi muito apreciada.
— Se eu mexesse essa dama... Hm, não, eu logo a perderia. Tenho que mover esta peça! Ora... Aqui também não. Puxa, estou ficando sem opções. Talvez eu devesse jogar aquela outra...
Era de enlouquecer!
Helene, que dividia o tabuleiro com Haggard, seu adversário, mexia os botões em silêncio. Não era de comentar suas jogadas. Um monge se morderia de inveja diante da autodisciplina dela. Ocasionalmente
ela sorria quando Haggard a congratulava por um movimento de peças bem feito.
Jogando contra Leonora Gwenny-Dutra, eu tendia a cometer alguns erros voluntários. Ela armava mal os seus lances — para ser honesta, minha amiga jogava tão mal que até um guaxinim ganharia dela.
— Você fez uma besteira agora, Miriam — dizia ela, indulgente. — O que deu em você? Você acaba de perder duas damas! Está aérea no jogo, querida?
— Sou mesmo uma tonta! Duas damas perdidas... Onde estou com a cabeça?
— Devia ser mais cuidadosa — a Sra. Basknell achava tempo para me advertir. — Todo ponto ganho é um passo para a coroação.
Eu evitava discutir as diretrizes da coroação. Pouco depois, voltava a incorrer em outro descuido.
Entre nós, essas reuniões sociais têm sempre um toque peculiar, e é normal que se sirva algum prato antes de seu início. Dessa vez tínhamos comido doce de leite, e um aroma penetrante de café pairava na
sala.
Trazendo outro bule da copa, a Sra. Rebelo pôs a bandeja no centro da mesa. Tocou os óculos mansamente, e examinou o tabuleiro, checando a posição de suas peças. Foi ela quem primeiro falou da filha.
— Estou tão feliz que Susi esteja bem. Tenho certeza de que ela voltaria para casa se eu lhe pedisse.
— Ela não lhe comunicou o paradeiro?
— Nada, Anne Roselene. Susi pensa que já é adulta. Acha que sabe tudo da vida. É uma tolice, claro, mas não quero forçá-la. Ela tem que aprender a tomar as próprias decisões.
Anne Roselene soltou uma interjeição:
— Oh! Mexi o botão errado. Posso repetir o lance?
Apesar de ferir os regulamentos, a Sra. Rebelo consentiu que ‘ela repetisse o lance’.
— Obrigada. Mas o que é que você dizia, Dolores? A sua filha devia vir, sim. Ela tem uma herança para receber.
— Isso ainda será ajeitado. O Sr. Fadeschi só homologará o testamento quando Susi vier. Isto se certas pessoas não quiserem embargar o caso outra vez.
Esta indireta fez a Sra. Basknell erguer o queixo:
— Ei, não pode me recriminar pelo que fiz. Eu estava apenas recorrendo à lei para receber a minha parte.
— E acabou ficando sem nada. Poderia ter-se poupado desse vexame.
A animosidade se tornou visível entre as duas. Por um segundo ou dois, o clima na sala ficou pesado.
— E com mais isto — anunciei —, terei comido sua última dama, Sra. Leonora. Xeque-mate. Creio que não joguei tão mal para uma principiante.
Meu grito foi providencial. Lentamente o mal-estar entre as duas competidoras degelou, e se desfez.
Comecei a reposicionar meus valentes peões em suas casas. Com a terceira vitória seguida, sentia-me um samurai invencível.
— A Sra. Ramozzi já lhe devolveu o livro sobre toxicologia, Sra. Rebelo? Disseram-me que faz semanas que ela emprestou o livro da senhora.
Queria ter filmado a cena! De repente todos os corpos ao redor da mesa ficaram paralisados. Fincaram em mim os olhares mais diversos, que iam do horror a mais pura perplexidade. Dolores Rebelo olhou para
mim como se eu tivesse acabado de abrir o Mar Vermelho.
— O que é? Foi a senhora mesma quem falou a respeito do livro. Tenho que fazer algumas pesquisas relacionadas ao tema.
— Está sendo indelicada, Miriam — disse a Sra. Gwenny-Dutra.
— Ué, por quê?
— Por nada. Mas em se tratando do modo como Ermínio morreu...
A Sra. Basknell também esquadrinhou meu rosto. Ao contrário dos outros, porém, estava exultante:
— Até que enfim um ponto fraco, Dolores. Sempre achei que você estivesse acima de qualquer suspeita.
— Não seja cínica! Você é que está distorcendo as coisas. É evidente que Miriam não quis insinuar nada.
— Justamente — respondi com uma inocência mais que convincente. — Não estou insinuando nada. É que aprecio matérias sobre tóxicos, apenas isso.
— Mais precisamente, venenos — zombou Anne Roselene. — Ora, não estamos julgando ninguém. Cada um com seus hobbys.
— Pare, Anne, por favor. Você é uma perfeita criadora de casos. É melhor continuarmos o jogo.
Ela estava muito pálida. Resolvi não insistir em meu pedido.
Haggard sugeriu a Helene um intervalo de alguns minutos. Disse que as vistas ardiam, e que não estava conseguindo enxergar as peças.
— Está bem — ronronou ela, solícita. — Vamos fazer uma pausa. Também preciso de um pouco de ar puro.
Helene esbanjava carisma falando daquela forma. Os homens deviam morrer de amores ao vê-la gesticular com esse desembaraço. Mesmo durante o jogo todas nós tomávamos nossa bebida, salvo Helene que alegou
que não queria se entupir de glicose. Coisa de nutricionista!
Depois que a confusão entre as duas amigas serenou, a noite perdeu a graça para mim. Recordando tudo o que eu escutara, deixei brechas enormes em cada jogada, o que facilitou a primeira vitória da Sra.
Gwenny-Dutra. A derrota piorou minha atuação. Quando entramos na sétima partida, minha desatenção tornou-se flagrantemente real.
— Mil desculpas, Dolores. Posso colocar o botão em outra casa?
— Ponha o botão em outra casa, Anne. Arre!
Fui salva de meu tédio pela chegada de Fëll. Após pendurar o paletó no cabide do hall, ele entrou na sala esfregando os dedos rijos de frio. Compenetrado, Fëll fez um meticuloso reconhecimento da área.
Fiquei imaginando o que poderia representar aquele olhar. Debaixo de seus cílios curtos e sedosos, os olhinhos correram por cima do nosso grupo. Aproximando-se de nós como uma águia prestes a dar o bote,
tirou respeitosamente o chapéu. O cabelo empapado de gel formava um capacete úmido e compacto...
Encarei-o ali de pé, os olhos claros e amendoados fixos em nós.
— Guten Abend — cumprimentou.
A Sra. Rebelo levantou-se e foi buscar uma xícara.
— Quer se sentar conosco, Sr. Fëll? — perguntou a Sra. Basknell num tom solene. — Creio que nenhuma de nós tem a menor possibilidade de ganhar do senhor, mas seria estimulante vê-lo jogar.
Talvez por se compadecer de meros mortais, o austríaco declinou a oferta. Andou ao longo da mesa como se estivesse executando um plano preestabelecido. Praticamente sem querer, notei que todos estavam
tesos na cadeira, esquecidos do jogo, contemplando a marcha do detetive.
— Herr und Damen — fez uma segunda saudação e parou à cabeceira da mesa. — Ao entrar aqui senti que estavam se divertindo esplendidamente. A diversão faz parte da vida do ser humano. Algumas pessoas encontram
entretenimento fácil em jogos de gamão, bilhar e por aí vai. Há um prazer mundial em apostar dinheiro em jogos de azar. No entanto, eu tenho uma ocupação diferente. Gosto de caçar os mentirosos, os que
persistentemente põem empecilhos no caminho que conduz à verdade.
Essa era a sua especialidade — encher os ouvintes de pavor. Ele pestanejou, impassível. Aguardamos que acrescentasse alguma coisa, a voz cortante e afiada como um punhal.
Fëll virou-se para Haggard.
— A quem o Sr. Ehrack esperava na noite de sábado, meu velho?
— Ninguém.
— Pois aí está. O senhor está mentindo. Todos aqui, aliás, devem para mim. Nenhum dos relatos foi apresentado de forma exata. Há partes que não se encaixam no que disseram. Isso não me alegra nada. Fico
muito inconformado quando as pessoas tripudiam do meu trabalho. Posso ver a sua despensa, Sra. Rebelo?
A mulher estremeceu diante da requisição. Apontou a porta à direita, sem saber se devia guiá-lo até lá ou não.
— Claro. É ali.
Fëll saiu na direção indicada. Atrás de si, sua acusação ficou pairando no ar.
— Parece que estão chegando cada vez mais próximos — disse a Sra. Basknell num murmúrio.
— Vamos, deixe de bobagens, Anne. Você está insuportável hoje.
— Eu, Dolores? Insuportável? Só estou dizendo o que vejo.
— Pois não diga — retrucou a Sra. Rebelo. — Essa história já foi longe demais. Fico pensando o que ele pode querer entrando em minha despensa.
— Querida, não escutou o que ele disse? Todas nós estamos ocultando alguma coisa. O homem quer que a gente decida falar tudo o que sabemos. Simples. Ele só nos deu um prazo para que acabemos cooperando
com a investigação.
— Vá lá então e lhe diga no que foi que você mentiu. Não vou aceitar que me ridicularizem. Isso não!
Havia certa histeria na voz de Dolores Rebelo. Sem esboçar nenhuma palavra, Haggard ficou de pé e tocou-lhe candidamente os músculos do braço. Ela deu-lhe um olhar grato e respirou um pouco mais aliviada.
— Fique tranquila, Dolores — disse a Sra. Gwenny-Dutra com equilíbrio. — Eles não vão atribuir nenhuma culpa a ninguém. Eu confio na polícia.
— A polícia, Sra. Leonora, também comete enganos. Será que isso não basta para vocês? Ou acham que eles nunca falham quando estão atrás de provas contra alguém? Santa ignorância!
Dando um discreto pigarro, Helene mencionou que iria se recolher. Afirmou que o irmão ainda poderia estar acordado e que talvez estivesse preocupado com ela. Helene desfilou até a porta e dali, com uma
força que me espantou, lançou um olhar glacial para a Sra. Basknell. Aflição... Raiva... Desprezo... Que sentimentos teriam causado aquele gesto hostil?
— Acho que fui muito severa — disse a Sra. Ehrack depois que a sobrinha se foi. — Eu conheço Helene... Ela ficou magoada. Eu sei que ficou.
— Esqueça isso, Dolores. Ela é uma garota inteligente. Ela deve compreender o seu sofrimento.
As frases de consolo da Sra. Basknell precederam a volta de Fëll. Como quer que fosse, ele percebeu que havia alguém a menos entre nós.
— A Srta. Victor já partiu, é pena. Estava com pressa? Não faz mal, noutra hora conversarei pessoalmente com ela. Depois do que eu lhes disse, é razoável conferir a fim de ver o que vocês têm a responder.
Mas suspeito que ninguém tenha nada a dizer. Portanto, farei uma coisa melhor — dar-lhes-ei um prazo até amanhã para me procurar. Quero que pensem bem no que cada um de vocês vem escondendo. Terão tempo
de sobra. Irá comigo, Srta. Mertins? Estou indo à pensão.
— Irei — acenei maquinalmente. — Irei.
Saímos depois de nos despedir das mulheres e do mordomo. Eu estava ansiosa para ouvir o relatório de Fëll a respeito da despensa.
— Então? O que encontrou?
— Uma janela de guilhotina de vidro — murmurou evasivamente. — Creio que isso é bastante sugestivo, Srta. Mertins.
— Bastante sugestivo? Não entendi...
— O que é elementar, já que a senhorita não parece muito disposta a explorar o caso. Se tivesse um pouco de boa vontade veria que a estrela d’alva já está brilhando e que logo o dia estará firmemente estabelecido.
A sua resposta foi mais gelada do que a garoa que penetrava em nossos agasalhos. Uma neblina densa e branca cobria a vila. Os lampiões dos postes lançavam uma luz difusa quando dobramos a esquina.
Não gostei de seu senso de humor. Afirmei-lhe que, se não quisesse, não precisava enumerar para mim todas as pistas que coletara até ali. Ninguém tinha o direito de usurpar isso dele. Muito menos eu.
Fëll grunhiu, aparentemente aprovando o meu comentário. O que foi um bom sinal, sob todos os efeitos.
— O que importa — acrescentei — é que o senhor fez muito bem o seu ensaio teatral.
— Não foi um ensaio teatral, senhorita. Mas creio que deve servir ao meu propósito. Já é uma grande conquista, meinst du nicht?
Tentei sondá-lo sobre aquilo, mas ele manteve a gola da capa levantada e seguiu em frente, o chapéu de feltro sobre a testa.
Inquéritos
Minhas lembranças daqueles dias envolvem a visita que fizemos a Harrison e Helene Victor, um episódio que teve um requinte todo pessoal. Foi ali que eu percebi que, para o austríaco, era obrigatório averiguar
e levar em conta todas as hipóteses, por menores que fossem.
A casinha com chaminé, despojada de qualquer luxo, era rodeada de palmeiras-reais. Dali se via o prédio da prefeitura, logo além do chafariz da praça.
Topamos com o inspetor Radke que vinha a pé pela alameda. Ele não tinha uma expressão muito satisfeita. Até certo ponto, seu rosto estava tenso, descontente e aborrecido.
— Ei, dois aventureiros destemidos! — exclamou sem nenhum entusiasmo. — Terão pouca sorte hoje. O homem está enfezado e não quer conversa.
A frustração de Radke fez Fëll irradiar uma excelência fora do comum.
— Então ele foi mal-educado! Veremos, veremos. Talvez, Mertins, não tenhamos vindo de graça, afinal de contas.
Com passos vigorosos seguiu pela trilha, como se a notícia o enchesse de uma forte convicção interior.
Radke deu de ombros e juntou-se à nossa cavalaria.
— É um sujeito determinado, o seu colega — cochichou para mim. — Mas acho que não vai adiantar nada. Nunca vi homem mais arrogante do que o Sr. Victor.
Encontramos o temível personagem na varanda da casa. Harrison passou o dedo pelo fio da espada e depois cuspiu para o lado. Os olhos eram petulantes e inexpressivos.
— Já trouxe a intimação, inspetor? — perguntou, indo logo à raiz da questão. — Isso sim é que é competência!
— Outra hora, meu rapaz. Outra hora.
A ironia de Harrison não se dissipou. Acendeu o fósforo e deu uma baforada em seu charuto escocês:
— Pois bem, em que posso ajudá-los agora? Por que voltou trazendo essa gente? Vocês sabem que não podem me obrigar a depor.
— Temos provas que apontam que o senhor foi visto andando na rua, sábado à noite — disse Fëll, ignorando os cumprimentos. — Nada de estranho nisso, se não fosse por um detalhe. Dizem que o senhor estava
na rua perto do horário em que aconteceu o crime. Poderia nos falar sobre isso?
— Foi o velho Mello, não foi?
— Entschuldigung?...
— Uma ova que não. Eu sei que foi ele. Apenas aquele velho estúpido poderia dizer uma besteira dessas. Acender lampiões agora é trabalho de espiões! Eu lamento muito, senhores, mas de mim vocês não arrancarão
mais nada.
Respirei fundo e dei um passo para frente.
— Esperem um pouco. Não quero tomar o lado de ninguém. Mas acho que você deve uma explicação, Harrison. Havia um cofre na biblioteca de seu tio. Lá achamos os brincos que Susi julgava ter perdido. Você
estava lá conosco no dia em que ela deu pela falta deles, na ponte. Nós pensávamos que os brincos tivessem caído na água, mas eu sinceramente nunca acreditei nessa versão. Você sabe qual foi minha suspeita
desde o início?
— Que papo é esse? — retrucou Harrison, irritado. — Fale você, Sra. Sabe-Tudo!
— Oh, Harrison, eu sinto muito... Eu sempre acreditei que você os tinha roubado — continuei. Meus lábios tremiam de emoção. — Sim, você... Harrison, por favor, me desculpe! Eu tenho que contar a verdade...
Você é... oh, por Deus... você é o ladrão!
— Qual é, Miriam! Você está ficando louca?
— Não, não estou. Eu me lembro de tudo... Você teve a chance, você esteve do lado de Susi e foi você quem disse que tinha ouvido alguma coisa batendo na água. Foi tudo invenção... oh, que coisa terrível!
O rapaz fulminou-me com um olhar incrédulo. Toda a sua malícia tinha sumido. A artéria do pescoço engrossou debaixo da pele.
— Miriam! Que calúnia é essa? Não posso... Vocês não vão acreditar nela, vão?
Ah! Como Radke foi eficiente nessa hora.
— Isso o que está dizendo é verdade, senhorita? — perguntou.
— Infelizmente...
— Assim sendo, Sr. Victor, acho que não tenho outra opção. Queira vir comigo... Temos que ouvir o seu depoimento. Esse caso precisa mesmo de uma injeção de informações novas.
Estimulado pelo inspetor, Harrison tomou a dianteira. Havia um desdém enorme em sua cara. Os dois se afastaram pela trilha.
Fëll me observava pensativamente. No fundo, eu me senti muito orgulhosa de minha própria astúcia. Ele limitou-se a acenar, na dúvida. Será que ficara ressentido? Conclui que sim. Minha atuação devia tê-lo
enchido de inveja. Um grande sentimento de paz me invadiu.
Devagar, voltamos para a pensão. Fëll caminhava automaticamente — parecia um boneco de cera ambulante. Quando entramos no quarto de Tomazelli, não respondeu ao ‘olá!’ jovial do italiano.
— Ué, que cara de enterro é essa?
— Nada demais — respondi. — Prenderam Harrison.
— É mesmo? — Tomazelli remexeu-se na cama. — O que ele aprontou dessa vez?
— Andou furtando umas coisas que não devia.
— E daí? Por que mio fratello Fëll ficou assim... afetado?
Dei de ombros. Fëll tinha se sentado e continuava cochichando. Parecia sonhador, ausente. Tomazelli sorriu e inclinou-se para frente. Fingindo cumplicidade, comentou:
— Tome cuidado, bambina. Você não devia ficar se associando com esses europeus de meia idade.
— Tenha dó — respondi no mesmo tom humorado. — O Sr. Fëll não tem cara de meia idade.
— Faça como quiser. Estou apenas tentando alertá-la.
O italiano viu que o detetive não lhe deu resposta. Virou-se para mim; pelo visto, sua provocação não dera nenhum resultado. Lembrou-se de outro assunto:
— Dizem que o Sr. Gassmer fez uns comentários estranhos esta manhã. Chega a ser cômico. Acho que ele citou até o livro de Provérbios: “Quanto aos maus, serão decepados da própria terra”, ou outro versículo
qualquer. Dizem ainda que ele falou o nome de uma Srta. “não-sei-o-quê”. Aquela que morreu vítima de um estrangulador psicopata.
— Srta. “não-sei-o-quê”? Está falando da sobrinha daquele industrial de São Paulo? O Sr. Gassmer vive dizendo que sou muito parecida com ela. Ela foi morta por estrangulamento? Pensei que tivesse sido
insuficiência cardíaca.
— Sim, é isto mesmo. Mas ele repetiu várias vezes a mesma frase. As pessoas ficaram chocadas. Creio que o que aconteceu na vila deve ter mexido com os nervos dele.
Meu senhorio tinha uma queda por aquelas fofocas. Deixei que ele falasse à vontade, consciente de que precisava lhe dizer uma coisa que ele talvez não aceitasse muito bem.
Quando Tomazelli terminou o assunto sobre o Sr. Gassmer, fiz uma pausa bastante longa; depois, com cautela, comecei:
— Não quero que o senhor fique zangado comigo, mas já soube de quem é a arma que matou o Sr. Ehrack?
— Não, caspita! Ninguém me comunicou nada...
— A polícia consultou os registros e... bem, eles descobriram que a arma pertence...
Ouvi um forte acesso de tosse perto de mim.
— Creio que isso não seja importante, por ora — disse Fëll, saindo de seu torpor. — Sugiro que a senhorita não fale de descobertas extraoficiais. Antes de tirarmos qualquer conclusão, precisamos rever
as provas...
— Descobertas extraoficiais? — perguntou Tomazelli. — Aspetta um attimo! O que significa isso? Ah, não... Vocês não estão dizendo que... O revólver... Eu procurei o meu por toda a casa... Foi com ele que
o crime foi cometido?
Fëll olhou para mim com ar de censura.
— Creio, Mertins, que acabou de cometer o segundo engano do dia. Há algumas coisas que tem que ser analisadas duas vezes antes que se possa emitir um julgamento.
— Francamente, acho que o senhor está me rebaixando. Foi o próprio inspetor quem nos falou a respeito disso. E que história é essa de segundo engano? Qual foi o primeiro?
Evidentemente eu estava zangada. Não gosto de ver as pessoas tripudiando de mim. Mas o austríaco não deixou por menos:
— O primeiro, senhorita, foi acusar um homem inocente de ser um ladrão de bijuterias. Isso, por si só, já é uma coisa grotesca. Qualquer um pode ver que aquele par de brincos não valia mais que alguns
centavos. E você disse que foi Harrison quem os surrupiou. Por quê? Para vendê-los? Isso não faz o menor sentido. Ou será que ele pretendia dar um susto na irmã, por isso os pegou e sumiu com eles? É uma
hipótese aceitável. Mas novamente surge a pergunta. Por que ele faria uma coisa dessas? Por divertimento? Bullying? Tudo isso é perfeitamente possível. Mas por que essa bijuteria, sem nenhum valor comercial,
apareceria lacrada no cofre do Sr. Ehrack? Deve haver uma explicação melhor para isso. E posso lhe garantir que o roubo não faz parte dessa explicação. Pelo menos, não pelas mãos desse rapaz. Espero que
a senhorita medite nisso antes de sair por aí fazendo acusações sem o menor fundamento.
Fiquei impressionada com seu discurso.
Eu bem que tentei, mas Fëll não me deu oportunidades de responder. Como um pavão, dirigiu-se para a porta. Veloz como um raio, saiu do quarto.
Confidências
Eu acabara de fazer uma cova de uns quinze centímetros quando escutei o farfalhar na grama. Aproximando-se do caramanchão vinha o Sr. Gassmer. Ele estava compenetrado e caminhava com passos lentos e inseguros.
Apoiei-me na pá e esperei que o Sr. Gassmer chegasse mais perto. Notei que ele vinha falando consigo mesmo.
— Que desgraça! Toda a culpa é minha... Mea culpa!
— Boa tarde, Sr. Gassmer. Falando sozinho?
Walter Gassmer parou a alguns metros de distância. Com algumas gordurinhas em excesso, seu corpo parecia um pequeno barril com pernas. Os lábios estavam arreganhados, e sua cartola se inclinava sobre o
crânio bem formado e calvo.
Espalmando os dedos no peito, revelou em poucas palavras o motivo de sua aflição. Não entendi bem o caso, mas era qualquer coisa relacionada a Harrison.
— É verdade que ele foi preso?
— Que eu saiba, não. Pelo que me consta, Harrison foi levado para prestar depoimento. Nada mais.
— Que homem desgraçado que eu sou! — suspirou o Sr. Gassmer. — Eu não devia ter falado com ele tão rispidamente. Acho que me tornei responsável por um crime, Srta. Mertins. Sim, eu me tornei responsável
por um crime.
Joguei a pá no chão. Ele tentou me impedir:
— Enterre primeiro os seus papéis, senhorita. Enterre-os. Estou aqui tomando seu tempo...
— São diários velhos — afirmei. — Estavam atravancando minha gaveta. O senhor falou em crime?
— Sim. O assassinato... Lamento dizer, mas estou começando a acreditar que sou o culpado por ele.
— Está querendo dizer que foi o senhor...
— Não, não fui eu, felizmente. O que estou tentando dizer é que posso ter uma participação indireta naquilo. Pelas coisas duras que falei para Harrison, você entende? Eu nunca deveria ter feito o que fiz.
Acho que as coisas que eu lhe joguei na cara feriram a virilidade dele.
— Está sendo muito evasivo, Sr. Gassmer.
— Tudo foi assim. Tive uma conversa séria com Harrison. Falei-lhe que eu tinha enviado bilhetes anônimos ao Sr. Ehrack. Bilhetes, senhorita, em que eu delatava os atos homicidas dele.
— Atos homicidas?
— Há anos que sei de todos os fatos — disse o hoteleiro com tristeza. — Os Victor e eu morávamos na mesma cidade. Já narrei para a senhorita a história daquela moça que morreu. A moça que foi estrangulada,
lembra? Pois é, foi ele.
Senti uma corrente elétrica percorrer meu corpo.
— Foi ele, como assim? Quer dizer... foi Harrison? Não diga!
— Sim, se alguém me contasse isso eu também ficaria ressabiado. Mas essa não é a pior parte. Eu não tenho evidências para provar o que sei. Nunca pude pegar o homem e botá-lo sob os gáudios da justiça.
Tive que ficar apenas vigiando. Ao menor sinal de que saíra da linha, lá estaria eu, pronto para denunciá-lo... Todos esses anos, entretanto, me amoleceram. Acabei perdendo a paciência. Resolvi falar com
ele pessoalmente, e lhe afiancei que pretendia vê-lo atrás das grades. Ele riu. Respondi que eu já havia remetido uma carta ao Sr. Ehrack, contando tudo a respeito dos atos criminosos de seu querido sobrinho.
Vi que minha ameaça o assustou. É claro que deve ter pensado nas consequências que lhe sobreviriam se o tio soubesse de tudo. “Se o Sr. Ehrack for justo”, acrescentei, “vai querer averiguar as coisas que
você fez. Aposto que ele vai querer saber toda a verdade. Você estará frito, meu rapaz.” Depois de lhe dizer isso, afastei-me dele sem ouvir a sua resposta. Só quando eu soube do acontecimento é que compreendi
que... Senhorita, fui eu que causei a morte do Sr. Ehrack!
— Sr. Gassmer, não seja tão melodramático — atalhei.
Embora não quisesse que ele percebesse, eu estava exultante com a sua narrativa.
— O senhor acabou de solucionar um mistério. Aí está a razão por que Harrison remexeu na papelada sobre a escrivaninha do tio. Ele estava procurando a carta que o senhor alegou ter escrito.
Com tato, não mencionei o fato de que não fora por causa do assassinato que tinham detido o carteiro. Por outro lado, Gassmer não pediu maiores esclarecimentos. Estava mais calmo depois de seu desabafo.
— O pior é que não enviei o bilhete — deu um suspiro, antes de ir. — Se eu soubesse... Um mero blefe...
Depois de ficar sozinha, joguei as coisas na cova. Cobri tudo com terra e, em seguida, saí à procura de Edmund Fëll.
Achei que ele gostaria de analisar imediatamente os subsídios daquela nova teoria.
Encontrei-o na varanda da casa de Tomazelli, sentado entre as orquídeas. Sentei-me na outra poltrona, em silêncio. Eu sabia que havia uma ferida aberta entre nós. Fëll estava manipulando uma moeda e olhava
alguma ranhura invisível com a lupa! Esperei que ele iniciasse a conversa.
Grandessíssimo erro! Passaram-se dois minutos e — antes que eu desse por mim — uma figura solitária abriu o portão do jardim. Por entre as flores, vi um chapéu de cambraia branco vindo pela trilha de pedras.
Toda corada por causa do calor, a Sra. Gwenny-Dutra fechou a sombrinha e sorriu muito satisfeita.
— Oh, vocês estão aí! — exclamou. — Pensei que teria uma tarde entediante, mas acho que me enganei. Oi, Miriam. Como vai? Sr. Fëll!
— Entre, entre — disse Fëll cordialmente. — Que bom que a senhora veio. Bitte, tome essa cadeira! Eu precisava mesmo falar com alguém.
Extraordinário, pensei comigo mesma. Ele precisava falar com alguém... Não é hilário?
Primeiro assunto: a reclamação da Sra. Basknell sobre sua exclusão na herança de Wilson Ehrack.
Leonora fez que sim entusiasticamente.
— Sr. Fëll, Anne Roselene é meio tantã. Brigar judicialmente por uma coisa que não é dela... Pobre Dolores! Ela ficou tão abalada com tudo aquilo.
— Muito bom, Sra. Gwenny-Dutra — disse Fëll. — Anos atrás, quando morei na Maxingstrasse, em Viena...
— ... o senhor elucidou o caso das caçarolas de alumínio do príncipe da Boêmia — atalhei com impaciência. — Eu sei que não é educado o que vou dizer, mas a sua investigação está indo meio devagar, Sr.
Fëll. Se o senhor quiser seguir o clichê dos livros policiais, já deveria ter reunido todos os suspeitos na sala de jantar. E o senhor deveria estar lá, dizendo quem é quem e o que cada um fez. Um detetive
que se preza já teria feito isso.
O austríaco ficou vermelho.
— Querida, não seja tão má com o Sr. Fëll — disse Leonora. — Ele está fazendo o melhor que pode. Seja uma boa menina. — Ela virou-se para Fëll: — O senhor sabia que quase adotei Miriam quando ela era pequena?
— Wirklich?
— Sim. Depois que o Sr. Mertins morreu, fui eu que arrumei um lugar para ela no orfanato. Nós duas sempre fomos muito apegadas, não é, minha criança?
— Por que a senhora não a adotou? — perguntou Fëll.
— Eu queria, mas Leonard era contra. Miriam era um fofurinha com aqueles bracinhos... e aquelas perninhas tão roliças!
— Ora, já chega!
— E eu por acaso estou mentindo? As pessoas ficavam encantadas com você, Miriam. Mas Leonard não permitiu que eu fosse adiante com o processo de adoção. Ele era um homem tão doce, mas também tão possessivo!
— Leonard?
— Era meu filho. Acho que ele tinha medo de dividir a mãe com uma irmãzinha menor. Meu pobre Leonard! Ainda sinto tanta saudade dele!
— O que aconteceu? Ele foi morar em outro país?
— Quem dera, Sr. Fëll! Meu querido filho se matou. Um tiro de pistola. Não conseguiu superar a perda da esposa. Depressão... Não sabia o que estava fazendo. Uma morte tão precoce, tão estúpida.
Havia lágrimas nos olhos de Leonora.
— Minhas condolências, senhora — disse Fëll, consternado. — Eu sugiro que não falemos em seu filho, se isso a aflige.
— Está bem, é que sempre fico emocionada quando me lembro dessas coisas.
— Agora que já abrimos o túnel do tempo — interrompi —, posso lhes contar o que o Sr. Gassmer acabou de confessar para mim?
— Sicher, sicher... Pode começar, Mertins.
Em poucas palavras, expus o que o hoteleiro tinha conversado comigo. Terminei com a seguinte sentença:
— Para mim, o que ele disse muda tudo de figura. A Sra. Basknell não deveria estar no alto de sua lista de suspeitos, o senhor não acha?
— Quem lhe afirmou que ela está no alto?
— É apenas uma teoria.
— Pois recomendo que reconsidere a sua opinião. Se quiser mesmo saber, a pergunta principal que eu me faço tem a ver com a Srta. Helene Victor. Por que ela disse que a Sra. Dolores Rebelo não é a culpada
pelo crime?
Fëll quis acrescentar mais alguma coisa, mas neste instante o celular de Leonora tocou. Toda atrapalhada, ela ajeitou os óculos para atender o aparelho.
— Ai, ai, deve ser algum vendedor... Isso é tão inconveniente. Com licença, sim?
Desastrada, ela atendeu a ligação. Fiquei olhando para Fëll que, nessa hora, começou a folhear um caderninho de capa marrom. Consultava algumas anotações. Devia ser muito organizado, pois, do meu lugar,
notei que cada folhinha escalonava detalhes diferentes do caso.
— Oh! — exclamou a Sra. Gwenny-Dutra. — É mesmo? Sim, entre e espere na sala... A porta dos fundos. Pode empurrar, ela não está trancada. Há mais alguém aí com você? Quem? Não, tudo bem. Fique na sala...
Eu irei já!
Ela desligou, os olhos arregalados. Por alguns segundos, ficou assim sentada, muda. Fëll instintivamente percebeu que havia algo de inusitado na reação da velhinha.
— Quem era?
— Que coisa inacreditável... Era o Sr. Haggard.
— Onde ele está?
— Foi para minha casa. Mandei que ele entrasse.
— Alguém mais?
— Não sei... Acho que sim.
As perguntas de Fëll pipocavam como tiros de metralhadora.
— Ele quer que a senhora vá para lá?
— Sim.
— Por quê? O que aconteceu?
Leonora torceu o corpo:
— Ele disse que sabe...
— Sabe o quê?
— Quem matou o Sr. Ehrack.
A segunda morte
— Está morto.
Quando Fëll pronunciou essa sentença, senti uma pontada de dor rasgando meu peito. Não! Aquilo não era possível.
— Como assim... morto? — perguntei, quase sem conseguir falar.
— Morto, senhorita — disse Fëll com naturalidade. — Veja, alguém desferiu uma pancada aqui... Na parte mais sensível da nuca. A julgar pela marca roxa na pele, foi um golpe único, fatal. Creio que não
resta dúvida de que este aqui é o móvel do crime: o atiçador de fogo.
Os fatos pareciam bastante eloquentes.
O cadáver de Haggard estava no sofá da sala de estar da Sra. Gwenny-Dutra. Através da janela aberta, o sol batia em cheio no corpo. Havia um ferimento na nuca do homem, um hematoma circular e em carne
viva. As evidências falavam por si mesmas — alguém andara batendo no pobre mordomo, mas com tanta força que acabara por matá-lo. Haggard estava inclinado ligeiramente para o lado, e quem o observasse de
longe acharia que ele estivesse dormindo tranquilamente.
Leonora tremia incontrolavelmente, em estado de choque. Balbuciava qualquer coisa, como uma criança apavorada. Fiquei parada ao seu lado, segurando-a gentilmente pelo braço.
— Mas como? Eu acabei de falar com ele... Samuel disse que sabia o nome do assassino... E agora... Por Deus! Quem fez essa monstruosidade? Quem? E por quê?
— Aí está, a senhora pode ter acabado de dar a chave do mistério — disse Fëll. — Há pouco, quando falou ao telefone, a senhora disse ao mordomo que ele poderia entrar pela porta dos fundos de sua casa.
A senhora lembra que ele afirmou que não estava sozinho? Que havia outra pessoa perto dele? E... ah! Was abscheuliches! O que temos aqui?
Fëll pinicou até a porta indicada e analisou a fechadura. Ou pelo menos foi essa a impressão que tive! Violentamente inflamado, ele chacoalhou a cabeça e acrescentou:
— Jawohl! Tudo deve ter acontecido como eu imaginei. Por favor, se aproximem, não precisam ter medo. Estão vendo aqui? Este vidro já estava trincado, Sra. Gwenny-Dutra?
— N-não, acho que não...
— Pois agora está trincado.
— O que o senhor quer dizer?
— Não conseguem adivinhar? Tudo é muito cristalino. Cristalino como água. Acompanhem meu raciocínio... Esta tarde, Haggard está cuidando das tarefas, talvez limpando a cristaleira ou os livros da biblioteca
da casa. Então, num súbito assomo de inspiração, ele se lembra de alguma coisa que viu ou ouviu em algum lugar. Alguma coisa de máxima importância. Haggard reflete naquilo. O que ele pode ter visto? Ou
ouvido? Talvez tenha sido um gesto que alguma pessoa fez, ou alguma palavra que alguém disse, ou uma atitude de uma mulher ou um olhar que certo homem deu. Na hora tudo fora muito normal, mas agora, pensando
melhor... Haggard fica remoendo aquilo consigo mesmo. É provável que ele estivesse dizendo: “Sim! Como é que eu não pensei nisso antes?” Deve ter sido nesse instante que ele descobriu quem era o assassino
do Sr. Ehrack. Assim, é lógico que só havia uma coisa a fazer. Era preciso expor as suas suspeitas para a polícia. Mas então um obstáculo se interpõe: será que acreditariam nele? Que prova poderia apresentar
em favor de seu depoimento? Ele não tinha provas. Haggard percebe que precisa de ajuda, e existe apenas uma pessoa em quem ele deposita inteira confiança — na Sra. Gwenny-Dutra. Deve ter sido uma decisão
difícil, mas por fim o bom senso prevalece. Ele larga tudo e vem para cá, atrás de um conselho maduro e ponderado a respeito do seu drama interior. Chegando aqui, porém, ele vê que a senhora não está em
casa. Não sabemos a sequência dos acontecimentos, mas pode ter sido nessa hora que uma pessoa passa pela calçada. Haggard fica surpreso — é exatamente essa a pessoa que ele sabe que é a culpada pela morte
de seu patrão! O céu desaba: a pessoa K, ali à sua frente, foi quem matou o Sr. Ehrack! O que ele deve fazer? Existem duas opções: ou ele fica quieto, e espera para falar com a Sra. Gwenny-Dutra mais tarde,
ou, no cúmulo da coragem, ele pode enfrentar K e tirar vantagem das coisas que sabe. O mordomo escolhe a segunda opção; sacando o celular, ele faz a ligação para a senhora. Enquanto K está de pé ao seu
lado, Haggard diz em voz alta que sabe quem é o assassino de Wilson Ehrack. Estão percebendo? Essa é uma autêntica jogada de chantagista. O que o mordomo quer com isso? Ele quer que K ouça a sua declaração
e, se conseguir amedrontá-lo, talvez exigir em troca de seu silêncio uma quantia em dinheiro. Dinheiro para não delatá-lo, para não ir à polícia com o que sabe. Mas algo sai errado. Em vez de se acovardar,
K age com fria determinação. Em vez de se reprimir, K sela o destino de Haggard. Fingindo que aceita esperar na sala pela vinda da senhora, o assassino entra na casa com o mordomo. Sem hesitar, ele agarra
o atiçador de fogo e golpeia o homem com extrema violência. Depois, talvez admirado com a própria audácia, K se desespera e sai rapidamente daqui. Na pressa, bate desajeitadamente a porta, o que explica
o vidro partido. Em suma, esses devem ter sido os eventos principais.
— Não quero contradizê-lo, Sr. Fëll — respondi teimosamente. — A sua reconstrução dos fatos é muito verossímil, e tenho que lhe dar os parabéns. Mas dizer que o velho quis chantagear o criminoso... Não,
aí o senhor está extrapolando!
— A ganância é a mãe da corrupção e do suborno, senhorita.
— Mesmo assim, eu...
— Isso não importa, por enquanto — atalhou o austríaco. — Depois vamos reexaminar tudo. Ligue para o inspetor Radke, Srta. Mertins. Diga-lhe que venha o quanto antes. Sim, que ele traga um médico... Precisamos
de uma opinião abalizada sobre esse assassinato.
Fiz a chamada. Quando lhe expliquei a situação, Radke ficou mudo do outro lado da linha. Achei até que a ligação tivesse caído.
— Alô?...
— Continue, Srta. Mertins.
— Ah, que bom! O Sr. Fëll me pediu que o senhor trouxesse um médico... Ele crê que já sabe como o crime aconteceu, mas diz que pretende ouvir uma segunda opinião.
— Lógico, lógico... Já estou indo. Não toquem em nada, ouviu? Uma partícula de pó fora do lugar pode comprometer toda a nossa busca.
— Entendido... Não mexer em nada. Tchau.
Desliguei, aliviada.
— Und? Was hat er gesagt?
— A mesma prédica de sempre! Disse que já vem, e que nós isolássemos o perímetro.
Imaginei que o austríaco se ofendesse com essa orientação. Em vez disso:
— Muito sensato — concordou. Deu uma fungada: — Cuide de sua amiga, Mertins. Acho que devia levá-la daqui. Veja se tem algum tranquilizante na cozinha. Ficarei aqui, tomando conta da sala.
Fëll piscou o olho para mim, brejeiramente. Bolas! Estava mentindo descaradamente.
Conduzi Leonora para a cozinha, atrás de algum medicamento para a sua tremedeira. Puxei-lhe uma cadeira e ela sentou-se, desolada.
— Samuel... Samuel... — gemeu Leonora. — Ele sempre foi tão inofensivo... Quem seria tão cruel a ponto de abrir a cabeça dele?
— Ninguém abriu a cabeça dele, querida. Foi só um golpe de sorte. Literalmente. Alguém acertou bem onde não deveria. Você tem remédios aqui?
— Olhe a porta do meio... Miriam, o homem morreu na minha sala de visitas! Foi aquele marginal que fez isso.
— Que marginal?
— Harrison. Aquele rapaz conviveu com a dor, todas aquelas tragédias na família, ficou órfão muito cedo, sofreu tantas coisas. Agora ele está punindo as pessoas por isso.
— Acha que Harrison é mau porque perdeu os pais na infância e se criou solto pelo mundo, sem quaisquer responsabilidades? E quanto a mim, então? Eu também sou órfã e, no entanto, não saio por aí matando
as pessoas de que não gosto. Tome!
— Obrigada... Odeio essas pílulas! Tem gosto de pistache. Eu sei por que está defendendo esse rapaz, Miriam. Você sabe que Susi gosta dele. Ela sempre foi apaixonada por ele. Ela sempre teve uma paixão
louca e doentia por ele.
— Fique quieta! Não quero que o Sr. Fëll a ouça... Ele pode acreditar em suas alucinações.
— E não devia? Acha que não sou uma boa juíza? Ah, minha doce Miriam...
Leonora sabia mesmo me deixar constrangida! Dei uma desculpa qualquer e voltei para a sala. Fëll tinha saído para o jardim e colhia indícios na área externa da mansão. Como uma fuinha, ia de um lado para
o outro, remexendo o saibro com os pés. Pela cara de desânimo, não estava tendo muito êxito.
— Nada ainda?
— Nein, Mertins. Quem perpetrou o crime foi inteligente o bastante para apagar todos os vestígios de sua passagem.
— Que pena, hein? Não teria sido nada mal se o assassino tivesse perdido um cartão de identificação ou um lenço perfumado com Chanel n. 5.
Radke surgiu no canto do caminho. Aproximou-se de nós, arquejante. Devia ter vindo numa velocidade supersônica para estar ali tão depressa.
— Aí estão vocês! Eu bem que achei que tinha ouvido vozes... Pois bem, quer dizer que foi a vez do mordomo? Já avisei o doutor Ritterbuch; ele virá daqui a pouco. Onde está o corpo?
— Lá dentro... Escute, inspetor. — Fëll hesitou, depois disse: — Quando tivermos terminado aqui, temos que descobrir onde estiveram as seguintes pessoas esta tarde. O Sr. e a Srta. Victor, a Sra. Basknell,
a Sra. Rebelo e o Sr. Gassmer. Vamos examinar os álibis, ver se alguma delas fez algo secreto, clandestino. Creio que aí esteja a resposta para nossas interrogações.
— Conte comigo — respondeu Radke. — Mas diga, acha que uma delas eliminou o velho Haggard? O que exatamente aconteceu aqui esta tarde?
Fëll contou tudo, sem omitir nenhum detalhe. Radke ouviu até o final, depois perguntou para mim:
— A senhorita confirma a sequência dos fatos?
— Sim.
— Ótimo. O nosso ponto de partida, portanto, é descobrir quem estava com Haggard quando ele entrou na casa?
— Basicamente isso.
— Entendo... Acho que devíamos interrogar os vizinhos. Se bem que, como veem, talvez seja inútil. Cerca viva alta, arbustos, uma sebe... É, vai ser difícil. Mesmo que tenha havido uma movimentação estranha
no jardim, é pouco provável que alguém tenha chegado a ver. Por outro lado, qualquer tentativa é válida. Bem, podemos ver a vítima?
Radke se limitou a fazer uma análise visual da cena do crime. Ciscou, deu alguns grunhidos, olhou cuidadosamente o atiçador de fogo. Por fim, disse:
— Eu temo que tenha razão, Sr. Fëll. Foi uma queima de arquivo. Algo feito sem planejamento. Oportunismo, frieza... Obra de alguém que parece ter se habituado a matar impunemente. E que sabe agir quando
deve. Temos que encontrar uma solução para essa patuscada, e quanto mais rápido melhor.
O doutor Ritterbuch chegou pouco depois.
— Boa tarde! Enfim, temos um dia ensolarado. Depois de tanta chuva, até que estávamos precisando disso, não?
Tocou no mordomo como um açougueiro que estivesse inspecionando um pedaço de alcatra bovina. Quando falou, seu veredito foi totalmente impessoal.
— Uma concussão na nuca... Causada por um objeto duro, possivelmente de ferro. O homem não ofereceu qualquer defesa... Hum, pela temperatura corporal, não está morto há muito tempo.
— Que gênio! — sussurrou Radke.
Havia um atrito de personalidades entre Ritterbuch e o inspetor. Ambos divergiam sistematicamente em quase tudo.
— Vou fazer a autópsia e depois enviarei o boletim ao seu departamento, inspetor — disse Ritterbuch. — Se a coisa continuar nesse ritmo, teremos uma morte atrás da outra na vila. É de se rir... Sim, é
de se morrer de rir...
— Acha isso engraçado, doutor? Nunca pensei que o senhor diria uma coisa dessas.
— Não, inspetor, você não está me entendendo. Eu não estou me referindo aos assassinatos... Eu me refiro aos comentários que as pessoas estão fazendo por aí. Elas estão zangadas com a polícia, dizem que
isso tudo vai dar em nada. Imagine que hoje de manhã tive uma visita em meu consultório... Uma visita muito ilustre, sim senhor. Foi traumático, para dizer o mínimo.
— Ah, é? Quem é que esteve lá?
— O Sr. Gassmer. Ele é um homem bem falastrão, como vocês sabem.
— Gassmer? O proprietário do Três Empenas, suponho. O que ele queria?
— Ele disse que ia passando e decidiu entrar. Fiz de conta que acreditei nele. Vi pela cara dele que estava chateado com alguma coisa. Perguntei se estava com algum problema — não sou homem de fazer muitos
rodeios! “Eh, raça desprezível!”, respondeu Gassmer. “Imagine o senhor que, no passado, nunca fui importunado por ninguém. Agora parece que virei alvo da polícia. Todo dia, de manhã ou à tarde, estão lá
no hotel. Eles já vêm fazendo perguntas, assustando os meus funcionários, exigindo que respondam coisas de que nunca ouviram falar. Que corja!” Foi essa a expressão que ele usou — corja! “O que esses investigadores
querem é se autopromover. Acho até que virei suspeito desses assassinatos. Bah, que comédia! Como se eu fosse capaz de assassinar alguém!” Calculem o meu espanto ao ver aquele homenzinho pulando pelo consultório
como um esquilo! Quase caí na gargalhada...
— Para mim, esse homem é maluco — resmungou Radke. Detestava ouvir qualquer referência negativa contra a classe policial. — Se Gassmer tivesse a consciência leve não ficaria tão incomodado conosco. Podemos
retirar o corpo daqui, doutor?
— Sim, sim... Vou cuidar disso agora mesmo.
— Outra coisa. Dê uma assistência para a Sra. Gwenny-Dutra. Vi que ela ficou um pouco transtornada com esse acontecimento horroroso. Talvez devesse receitar um calmante...
— Está bem... Vou providenciar tudo.
Ritterbuch se afastou para dar um telefonema.
— Obrigada, inspetor — disse Leonora. Estava de pé atrás de nós, e evitava olhar para o sofá. — Pobre Samuel... A vida toda esteve a serviço dos Ehrack. Eu lhes rogo! Vocês têm que fazer alguma coisa...
Têm que fazer!
— Nós faremos, minha senhora. Se me dá licença, vou deixar o doutor cuidando do resto das coisas. Alguém quer vir comigo? Agora que já vimos o que havia para ver, acho que nossa presença aqui é dispensável.
Poderíamos nos ocupar com o inquérito propriamente dito.
— Wunderschön! — disse Fëll. — Eu irei.
— Eu também — respondi.
— É assim que se fala! Vamos, temos um emaranhado de coisas para resolver.
Despedi-me de Leonora, que me garantiu que ficaria bem, e me ajuntei aos dois homens que saíam. Tive pena de minha amiga, tão minúscula naquela mansão. Ainda mais agora, depois da tragédia em sua sala
de estar!
Balancei a cabeça para espantar os maus pensamentos. “Cada um deve levar a sua própria carga”, argumentei comigo mesma. “Uns levam mais peso, outros menos.”
Na rua, Radke falou para o austríaco:
— Sr. Fëll, pelo que percebi o senhor está bem inteirado do caso. Embora não seja um procedimento regular, vou tomá-lo como meu consultor particular. O que propõe que façamos por primeiro?
— Pois muito bem — disse Fëll, lisonjeado. — Vou aceitar a sua proposta. Sugiro que, inicialmente, falemos com os irmãos Victor. Dependendo do que eles nos disserem, veremos quais serão nossos passos seguintes.
Os Victor
— Vocês deveriam receber um troféu! Ontem me arrastaram porque acharam que eu havia roubado o diamante da princesa Isabel. O que conseguiram descobrir? Nothing! Puderam provar que eu faço parte de uma
rede de contrabando internacional? Não puderam. Cheguei a pensar... pobre de mim!... que teria um pouco de espaço hoje. Mas quando olho para fora, o que é que eu vejo? Vocês outra vez aqui! Isso já virou
perseguição.
Harrison andava pela sala, os braços levantados, inconsolável. Tinha o cabelo desgrenhado, mas mesmo assim os traços de seu rosto continuavam tão belos, tão naturais!
Ele olhou venenosamente para mim:
— A culpa é toda sua, Miriam. Foi você quem me meteu nessa roubada.
— Eu, Harrison? Como é que você pode dizer isso? Eu jamais faria uma coisa que pudesse feri-lo. Você sabe disso!
— E julga que vou acreditar nisso?
Fëll balançou a cabeça. Não estava muito a fim de ouvir aquelas explosões de insatisfação do rapaz:
— Pois eu sugiro que acredite nela. Mertins não tem nada a ver com a nossa vinda para cá. Viemos por outro motivo.
— Outro motivo... E qual seria? Não, deixe-me adivinhar! Morreu mais alguém, é isso? Quem foi dessa vez? A Sra. Basknell? A Sra. Gwenny-Dutra? Até que seria interessante!
— Sim, morreu. Mas não foi nenhum deles. Foi Haggard, o mordomo de seu tio, Sr. Victor.
Harrison parou, e olhou fixamente para o detetive.
— Sr. Fëll!
— Acabamos de encontrá-lo. Alguém o agrediu com um pedaço de ferro. O golpe foi forte o bastante para quebrar-lhe o pescoço. Morte no ato.
O rapaz engoliu em seco, subitamente mais manso.
— Mas isso é ridículo! Por que alguém mataria o velho?
— É essa a pergunta que gostaríamos que nos respondesse, meu jovem.
— Vocês estão de sacanagem... Acho que vieram falar com a pessoa errada. O que é que eu poderia responder a vocês? Eu nunca soube o que se passava naquela casa. Titio era um déspota, um imperador sentado
no alto de seu trono de glória. Deve ter feito uma porção de inimigos. Praticamente qualquer um poderia ter planejado a morte dele.
— Dele sim — disse Fëll, complacente. — Mas eu lhe proponho outra questão, Sr. Victor. Mesmo que seu tio tivesse um inimigo ardoroso (o que seria normal em seu ramo de negócios), por que razão Haggard
foi morto esta tarde? Isso nos leva a apenas uma conclusão: quem intencionou e executou os crimes é alguém muito próximo da família. Alguém que seria preso com facilidade caso as provas arroladas fossem
entregues para a polícia.
— Começo a entender. Deixe-me traduzir o que vocês estão querendo dizer. O que vocês estão dizendo é que eu, por ser parente do grande Sr. Ehrack, posso muito bem ser o responsável pela sua morte súbita
e lamentável! É mais ou menos isso?
— Jawohl, ganz so ist es.
Radke se remexeu, pouco à vontade. Não gostava daquele estilo de perguntas. Acho que era mais conservador; preferia não ser tão direto em suas abordagens.
Para nossa surpresa, Harrison não se irritou com a resposta de Fëll. Fechou as mãos e tomou a poltrona do centro.
— É justo... Sim, muito justo. Muito bem, prossigam.
— Tenho que elogiá-lo por sua sensatez, Sr. Victor. Um espírito altruísta sempre é melhor do que a obstinação. Vamos começar pelo início, como se diz: o que o senhor fez esta tarde?
— Deixe-me ver... Depois do almoço, até às 3 horas, estive no correio. Não havia entregas, apenas o trabalho de catalogar as correspondências e despachar as remessas. Depois vim para casa, mas vi que Helene
não estava aqui. Lembrei-me de que tinha deixado meu disc player no conserto. Fui para a eletrônica. Dei bobeira, pois o cara disse que faltava vir uma peça não sei de onde, e que o aparelho não estava
pronto. Saí de lá, andei um pouco para ver as vitrines. Quando vocês vieram, eu tinha acabado de voltar. Resumindo, acho que foi isso.
— Foi para a eletrônica? É uma indicação um tanto vaga...
— Vaga ou não, essa é a verdade. Perguntem ao atendente. Ele é meio sonso, mas garanto que vai se lembrar de mim.
— Perfeitamente. Agora vamos falar de sábado à noite. Conforme já sabe, você foi visto lá na praça. A quem precisamente estava esperando?
— Deduza o senhor mesmo — respondeu Harrison rapidamente. — Os peões estão todos na mesa. Creio que não preciso dar nenhuma pista...
— Está apelando para minha habilidade de dedução? — perguntou Fëll. — Pois muito bem, não vou fugir de seu desafio. Era Susi.
— Era Susi o quê?
— A pessoa que você estava esperando. Para ser sincero, essa constatação me deixa um pouco triste. Isso significa que a moça mentiu para nós. Ela disse que, naquela noite, havia ido passar algum tempo
na floricultura. O fato é que ela esteve com o senhor, Sr. Victor.
— Ela disse que havia ido para a floricultura? Quer dizer que vocês conversaram com ela... Quando?
— Vamos com calma... Somos nós que estamos fazendo as perguntas, Sr. Victor. Se disser o que vocês dois tramaram no sábado, talvez possamos revelar quando foi que estivemos com ela.
Harrison sorriu.
— Eu chamo isso de chantagem, mas tudo bem. Nós não tramamos nada. Ela tinha ouvido a minha discussão com titio, aquele psicótico! Ligou para mim e disse que queria falar comigo. Achei uma bobagem, mas
não encontrei uma justificativa para recusar.
— Poderia nos dizer qual foi o assunto em pauta?
— Por que não? Ela apenas me pediu que eu tivesse paciência.
— Paciência... Por quê?
— Não sei. Acho que ela quis me consolar, sei lá.
— Vamos recapitular essa parte. Susi lhe pediu que você tivesse paciência. Julga que isso quer dizer que ela pretendia, de alguma forma, matar o pai dela?
— Não, não! Longe de mim. Minha prima é meio doida, mas não é nenhuma assassina.
— Depois disso, o que vocês fizeram?
— Nos separamos. Cada um tomou o seu rumo.
Fëll fez um aceno.
— Se me permite, gostaria de saber outra coisa. O relógio que encontramos no chafariz... Ele era mesmo seu, ou você fingiu por algum motivo particular?
— O senhor parece um carrapato, Sr. Fëll. Quando acerta uma veia, suga até exaurir a vítima.
— Dies ist ein gutes Beispiel! Agora vamos ver se a resposta é tão boa quanto a ilustração.
— Eu penso que o senhor desconfiou de mim por causa das iniciais. Eu me rendo!
Nunca saberemos qual seria a alegação de Harrison. Subitamente ouvimos uma voz feminina lá fora e, antes que o inspetor conseguisse chegar à porta, Helene entrou precipitadamente na sala. Tinha os braços
carregados de compras. Quando nos viu, parou em seco:
— Oh, desculpem... Eu não sabia que tinha gente!
— Srta. Helene! — disse Fëll com ar de alegria. — Que prazer em revê-la. Precisa de uma ajuda com os pacotes?
— Deixem que eu faça isso — disse Harrison. Levantou-se: — É para essas coisas que servem os irmãos. Ainda mais quando eles têm uma irmãzinha que gosta de esbanjar dinheiro no bazar.
— Harrison! — exclamou Helene com irritação. Jogou-se na poltrona como se tivesse acabado de cruzar a Via Ápia. — Que jeito de falar... Você parece um troglodita! Ufa... Que calor! Andar assim acaba com
a gente. Eu por mim já teria comprado um automóvel há tempo. Uma mulher de classe como eu não merece essa canseira! Outro dia encontrei varizes em minhas pernas, vocês acreditam nisso? Que horror! Eu,
nessa idade, com varizes... Olhem, aqui estão! Não é o cúmulo?
Sem o menor pudor, ela suspendeu a barra da saia e mostrou a perna direita. Apontou um lugar indefinível na pele, muito senhora de si.
O rosto de Fëll ficou rijo. Achei que dessa vez ele iria surtar.
— Creio que poderíamos deixar o strip-tease para outra hora, Srta. Victor — disse Fëll envergonhado. — Temos coisas mais urgentes para tratar.
— Certamente, certamente. Eu só estava... Bem, é melhor deixar isso de lado. O que vocês vieram falar com meu irmão?
— O fato é que tivemos outro assassinato, senhorita. Estamos atrás de indícios, se é que a senhorita me entende.
— Outro assassinato? Quem... Quando...
Os olhos de Helene ficaram lacrimosos. Ou ela estava mesmo surpresa ou era realmente uma boa atriz.
Fëll fez um novo relato dos acontecimentos da tarde. Depois justificou:
— Estamos aqui para obter qualquer informação que puder nos dar, senhorita. Talvez tenha visto alguma coisa que queira compartilhar conosco, ou tenha ouvido uma revelação da boca de outra pessoa.
— Deve me perdoar, Sr. Fëll, mas acho que não vão poder contar comigo. Fui às compras, é verdade, mas não fui pela rua da mansão de titio. Se alguém entrou lá, eu não sou a pessoa ideal para falar disso.
— Senhorita, acho que está havendo um mal-entendido. O crime não ocorreu na casa dos Ehrack. Tudo aconteceu na mansão da Sra. Gwenny-Dutra, durante a ausência da dona da casa. A caminho do centro a senhorita
passou ali perto, não foi?
— Que coisa sensacional! Eu sou mesmo uma perfeita idiota. Eu vi Haggard indo para lá... quer dizer, na hora eu achei que o homem que vi tinha certa semelhança com ele. Agora que o senhor citou esse incidente...
Sim, era ele mesmo. Caminhava todo torto, com o corpo encurvado para frente.
— Ele também a viu?
— Não. Ele estava de costas, e mesmo assim só o vi de relance.
— Posso saber o que pesa sobre nós? Vocês não parecem muito convencidos de nossa inocência — disse Harrison.
— E não estamos — respondeu Fëll. — O que me deixa encucado são as imprecisões nesse caso. Por exemplo, por que seu tio lhe deu a furiosa repreensão naquele dia, Sr. Victor? O que você remexia na escrivaninha
dele para causar aquela explosão de raiva? E por que ele o suprimiu de seu testamento?
— Olha, como é que o senhor quer que eu saiba? Ele estava ficando gagá... Achou que eu não devia figurar entre os herdeiros, e ele fez o que fez.
— É uma explicação muito simplista. Deve haver um motivo maior por trás disso.
Harrison estava sentado comportadamente ao lado da irmã. Pensei no que Gassmer me dissera horas antes. Seria esse rapaz (bonito e simpático) um homicida? Teria ele matado aquela moça?
“Susi tem uma paixão louca e doentia por ele!”, tinha falado Leonora. Seria mesmo? O que eu devia fazer? Contar ao inspetor e a Fëll a acusação feita pelo hoteleiro? Ou não?
Gemi no íntimo.
— Tudo bem, Mertins? Ficou tão branca de repente.
— N-não é nada. Foi só uma pequena vertigem. Já passou.
Fëll fez uma pausa. Fitou-me demoradamente, depois se ergueu, dando por encerrado o interrogatório:
— Queremos agradecer aos dois. Gostaria de propor só mais uma questão: o que fez sábado à noite, Srta. Victor?
— Essa é demais! O senhor não está achando... Não, como é que pode? Desde quando comecei a integrar a lista negra de vocês?
— Devíamos excluí-la?
— Que pergunta! É claro que sim.
— Algum álibi?
— Eu estive aqui o tempo todo... Harrison pode testemunhar a meu favor.
— O que seu irmão disser não vale como álibi. Ele saiu naquela noite, portanto não pode falar em sua defesa.
Helene revirou os olhos, contrariada. Por causa de seus encantos físicos as pessoas geralmente se prostravam diante dela. Mas Fëll não ligava a mínima para isso. Lei era lei — não havia complacência para
ninguém.
— Bem, nesse caso acho que nossa conversa termina aqui, senhores... Se o que Harrison tem a dizer não tem nenhuma serventia, por que ficar nesse chove não molha? Peço que me deem licença, vou trocar de
roupa.
— Sem problema, senhorita. Guten Tag!
Harrison acompanhou-nos até a porta. Estava um pouco ruborizado, talvez com vergonha das palavras bruscas da irmã. Saímos.
— Que dupla de espertalhões! — disse Radke. — Vêm de fora, se instalam numa casinha de bonecas, assediam o Sr. Ehrack com pedidos de empréstimo de dinheiro... Dois autênticos piolhos da sociedade.
— Eh, eh... Que amargura é essa, inspetor?
— Eu sinto ódio dessas coisas, Srta. Mertins. Uma pessoa que nasce em berço de ouro devia dar exemplo, não esse show de promiscuidade e preguiça.
— É, faz sentido. A única coisa de que não gostei foi da pele de Helene. Aquela perna dela... Branca como manteiga. Coitada, ela devia ir mais vezes à praia.
Caminhando a alguns metros de nós, Fëll não se interessou pela coloração da pele da Srta. Victor. Estava com o espírito muito longe dali. No que estaria refletindo?
Radke acelerou o passo e emparelhou com o austríaco.
— Creio que tivemos um fracasso retumbante com os Victor, Sr. Fëll. Eu já imaginava algo assim... Ainda não são seis horas. Se quiser, podemos prosseguir o inquérito. Há mais alguém que poderíamos visitar?
— Há, sim. Gostaria de falar com a Sra. Basknell, se não se importa.
— Por certo que não.
— Srta. Mertins, mostre-nos o caminho, jawohl?
Acenei docilmente e tomei a dianteira do grupo.
O depoimento da Sra. Basknell
— Leonora tem uma empregada! Será que ela não viu nada?
Anne Roselene franziu a testa, exaltada. Havia um tom de revolta na sua pergunta.
— Juli só trabalha de manhã — respondi. — Leonora acha desnecessário manter uma diarista por tempo integral.
— Que velha tola! Haggard morreu... imediatamente?
— Julgamos que sim, Sra. Basknell — disse Fëll.
— Mas por que matá-lo? Ele sempre foi tão calado, tão discreto. Quem é que teria uma razão para agredi-lo?
— Suspeitamos que ele soubesse de alguma coisa que poderia incriminar o assassino do Sr. Ehrack. Assim, para que não desse com a língua nos dentes, a solução foi eliminá-lo de uma vez por todas.
— Ou porque tentou chantagear o assassino — acrescentei.
Fëll concordou com a cabeça.
— As teorias variam. Em todo caso, estamos averiguando cuidadosamente todas as possibilidades. Por isso, gostaríamos de lhe perguntar o que fez esta tarde, Sra. Basknell. Se não tiver nenhuma objeção,
evidentemente.
A mulher se assustou. Tremeu como se uma corrente elétrica tivesse atravessado seu corpo.
— Por que querem saber o que é que eu fiz esta tarde? Estão achando... Inspetor, eu exijo que o senhor me dê uma satisfação. Vocês estão me acusando desse assassinato?
— Não, Sra. Basknell — disse Radke com vigor. — Estamos apenas fazendo o nosso trabalho. Ninguém está acusando a senhora de nada.
— Eu não sou psicóloga, mas se há uma coisa que vejo é quando alguém mente. E vocês estão mentindo. Vocês não viriam aqui sem mais nem menos. Por que você, Miriam, está com eles? Também acha que sou uma
criminosa?
Aquilo doeu como uma chicotada. Eu senti um calafrio subir pela minha espinha.
— Conforme disse o inspetor, ninguém está dizendo isso, Anne Roselene. Eles me convidaram... Além disso, estou mais envolvida nesse caso do que todo mundo. Eu fui a última pessoa a ver o Sr. Ehrack com
vida.
— E daí, Miriam? Você devia estar do meu lado...
— Pelo menos não estou contra, se isso a consola.
Fëll juntou a ponta dos dedos, e estalou os lábios. O ruído foi tão inusitado que todos nós nos viramos para ele.
— Imagine a seguinte situação, Sra. Basknell. Numa certa vila reside um homem que tem uma verdadeira fortuna. Ele vive cercado de gente — há dois sobrinhos, a mulher de quem ele se divorciou, a filha e
também uma mulher com quem ele mantém um romance (um affair que é considerado tabu por alguns). Há ainda uma mocinha que lhe serve de secretária e datilógrafa e um mordomo decrépito. Pois bem, suponham
que todas essas pessoas levem uma vida normal... menos o homem, que pressente consigo mesmo que alguém está arquitetando o mal contra ele. Sim, ele pressente um perigo real se avolumando ao seu redor.
Daí, numa certa noite, ele fala de seus receios com a secretária. Diz a ela a razão de seus temores — no íntimo, ele acha que alguém tramou a sua morte. A moça ouve o discurso e fica desconcertada. Ela
sabe que aquilo que ele diz pode ser verdade, mas há também a chance de que tudo não passe de medo infundado, fruto de uma mente carregada de culpa pelos erros do passado. Mas os temores se confirmam.
Enquanto está a sós, o homem é atacado e, sem dó, é morto implacavelmente. Esse é o primeiro ato da tragédia. Muitas coisas chamam a atenção no aposento do crime. Há a marca de lama no assoalho, a poltrona
alta, o guarda-chuva úmido no cabide, o revólver (que não pertencia à vítima), a janela desaferrolhada e, não menos importante, o pratinho de doce de pudim na mesa. Inequivocamente todos esses indícios
básicos são os componentes do assassinato. Mas como é que eles se relacionam entre si? Qual é o significado de cada um deles? Simplesmente não dá para saber, es ist unmöglich! É preciso ir ao campo, interrogar
todos os envolvidos. Ganância? Acerto de contas? Crime passional? Muitos motivos podem ter concorrido para a execução do crime. Então aparece uma pista. Na biblioteca, dentro de um cofre, o inspetor-chefe
encontra um papel com algumas inscrições feitas à caneta. Parece ser um tipo de código, embora a sua interpretação seja um tanto obscura. O que está escrito ali tem conexão com a morte de outra pessoa,
que ocorreu em circunstâncias misteriosas num resort local anos antes. “Barbaridade”, pensa o inspetor. “E agora?” Ele decide interrogar os funcionários do resort — talvez a camareira ou o recepcionista
saibam de alguma coisa, mesmo que não se deem conta disso. O rol de suspeitos cresce: o dono do estabelecimento se recusa a colaborar. Aí acontece o segundo ato do drama — o mordomo é assassinado. Por
quê? Talvez ele soubesse de algo que poderia arruinar o assassino, ou pode ter elaborado uma chantagem que acabou não dando certo, ou engalfinhou-se com um oponente que era maior ou mais forte, ou pode
ser que ele fosse...
— Já entendi, já entendi — interrompeu Anne Roselene. Deu um suspiro: — Fiquei na horta uma boa parte da tarde. Tem um maldito fungo nas hortaliças! É a terceira vez que eu planto as beterrabas e o agrião
este ano. Depois tratei os porcos e passei na quitanda para encomendar o gás.
— A senhora diria que a sua amiga, a Sra. Rebelo, seria capaz de... como é que nós diríamos?...
— ... de praticar um crime deliberado? Garanto-lhe que não, Sr. Fëll. Se vocês conhecessem Dolores! Dolores é muito certinha... Chega a ser irritante! Quando nós éramos jovens, ela nunca saía de casa sem
um gorro de lã. Quer fizesse frio ou não. E se nós não tivéssemos uma proteção, era ela quem nos emprestava alguma coisa. A família dela sempre foi tão pobre... Minha mãe não gostava muito deles. “Ai,
não sei como vocês têm coragem! Aquela gente deve ter catapora... Se vocês continuarem andando juntas, Anne, logo logo você vai ter o corpo cheio de pústulas!” Mamãe sempre teve um pouco de preconceito,
sabem? Era uma mulher sofrida, e queria evitar que passássemos por dificuldades... Ficamos perplexas quando ouvimos dizer que Dolores e Wilson estavam namorando. “Aquela menina raquítica e feia? Namorando
aquele filhinho de papai? Misericórdia!...” Mamãe só acreditou quando viu os dois de mãos dadas com os próprios olhos. Eu gostava de Wilson, não nego. Com seus vinte e poucos anos, ele era um rapaz muito
bonito. Eu ficava doida quando ele passava na nossa rua. Mas Dolores teve mais sorte do que eu... E assim os dois se casaram, ela mudou de guarda-roupa, passou a ter modos mais requintados — foi uma transformação
realmente comovente!
— O casamento deles... Foi feliz?
— Sim, acho que tiveram uma vida razoavelmente feliz. Mas... como todos já previam... Wilson acabou estragando tudo. Processos civis, contas de corretagem... toda aquela correria! Ele estava ficando intratável.
Dolores não aguentou e entrou com a ação de divórcio. Admirei muito a decisão dela. O que eu não daria para ser como ela! Valente, corajosa, combativa... Eu nunca fui assim. Foi aí que Wilson veio falar
comigo, começou a relembrar os velhos tempos e de como tudo tinha sido bom. Depois desse dia, passamos a nos encontrar com frequência. Não tivemos um namoro no uso convencional da palavra. Não era nada
tão... carnal. Gostávamos de ficar juntos, ouvir a voz um do outro, sentir a presença um do outro. Dois velhos lambendo suas feridas. Eu particularmente nunca achei Wilson uma má pessoa. Ele era áspero,
às vezes. Mas eu não o culpava por isso. O pai dele nunca lhes havia dado um exemplo digno de ser seguido...
— O Sr. Ermínio Ehrack? — perguntou Fëll.
— Sim.
— Pode nos falar dele, Sra. Basknell?
— Eu não sei por quê!... Aquele megalomaníaco está morto e bem enterrado.
— Eu insisto, Sra. Basknell.
Anne Roselene retorceu as mãos no colo. Fez silêncio por alguns segundos, como se quisesse entender a razão do pedido do austríaco.
— Bem, já que o senhor insiste... O velho Ermínio não era um bom homem. Pelo menos eu não o definiria assim. Oh, sim, ele era um bom advogado, conhecia a legislação e ganhava a maioria das causas. Mas
eu estou falando dele como ser humano. Não, não... Ninguém gostava dele, em absoluto. Para mim, ele era inescrupuloso, muitas vezes agia de má-fé e quase sempre deixava alguém na mendicância.
— Na mendicância, senhora?
— Ora, o senhor deve conhecer gente assim. Quando tem condições para isso, arrancam até a pele do coitado que cai em suas mãos. Ele extorquia dinheiro, Sr. Fëll. Extorquia dinheiro!
Quando saímos da casa, a expressão de Radke era tudo menos triunfal. Estava visivelmente perturbado com a conversa que tínhamos acabado de ter.
— Algum problema, inspetor? — perguntou Fëll. — Posso ajudá-lo nalguma coisa?
— Problema? — bufou Radke. — Vários, Sr. Fëll. Vários. A começar, que história é essa de cofre, de papelzinho e código? Quero crer que o senhor estava falando figurativamente quando disse aquilo!
— Nein, nein. Eu estava falando literalmente.
— Mas como? Ninguém me informou de nada...
— Peço desculpas, mein Freund, o erro foi meu. Eu me esqueci de lhe contar... Desde o começo achei que existia uma ligação entre as mortes de Ehrack Pai e Ehrack Júnior. Eu tinha certeza que o assassinato
de Wilson Ehrack era uma consequência do envenenamento do pai dele, há dois anos.
— Posso até aceitar a sua teoria. Contanto que o senhor demonstre qual é o elo que liga os dois acontecimentos. Acha que já não tentei isso? Foi decepcionante!
— Ah, hast du es gesehen? Tudo é uma questão de aplicar o método certo. Ninguém chega a Roma sem um mapa ou uma bússola... Creio que falta um elemento essencial em seu exercício dedutivo, inspetor. Isto
aqui!
Fëll apresentou o famoso rascunho.
— Impressionante! — disse Radke. Desconfiado, perguntou: — Por que vocês foram procurar na biblioteca?
— Digamos que tivemos uma pequena ajuda externa. Olhe para a compilação... Há alguma coisa aí que lhe vem à mente ao ler essas frases?
— Aqui diz Hotel Três Empenas...
— Enumere o primeiro ponto.
— Um: Quarto 303...
— Eu sei que é difícil, mas consegue se lembrar de quem era o hóspede do quarto 303?
— Deixe-me ver... No primeiro andar havia um casal de argentinos. Estavam numa viagem de veraneio, acho eu... Tinha ainda um italiano, reformado do exército. Não, ele ficou no térreo. Vivia com medo de
que uma bomba caísse no hotel, ou coisa assim. Um disparate!... E, sim... como era mesmo o nome?... havia um tal de Herr Fritzen...Ei, lembrei! Sim, esse Herr Fritzen estava no quarto 303!
— Pode descrevê-lo, inspetor?
— Um cara comum... Magro, narigudo, com uma cor anêmica. Aliás, ele estava resfriado. Ficou espirrando o tempo todo, o desgraçado.
— Morador daqui?
— Não, era de fora. Tinha um sotaque alemão. Um sotaque chato... Sim, muito chato!
— Jawohl?
— S-sim...
Radke percebeu, muito tarde, a dimensão de sua gafe. Corou até a raiz do cabelo. Mas Fëll estava ocupado com seus pensamentos e continuou andando impavidamente.
— E o outro trecho, inspetor? O que acha que significa?
— Dois: Ricina, dose fatal... Isso se refere ao veneno. Três: 6h da tarde... Esse foi o horário aproximado da morte, pelo que apuramos. Quatro: Abriu falência... Confesso que não faço a menor ideia sobre
o significado disso. Cinco: Pickwick identificado... Pickwick? Ora, mas que coincidência! Pickwick não é o nome de um dos personagens de Dickens? Quem foi o lunático que o incluiu nessa relação?
— Muito provavelmente alguém que conhecia o contexto dos fatos que estava descrevendo.
— Espere... Não quero forçar a barra, mas a Srta. Mertins era funcionária do hotel na época. Ela talvez possa nos esclarecer esse ponto.
— Nada feito, senhores — respondi. — Eu trabalhava na lavanderia e cuidava do almoxarifado. Ninguém me falou nada a respeito desse nome.
— Não faz mal — interveio Fëll. — Veremos isso outra hora. Julgo que já é tarde... Se não se opõe, inspetor, podemos continuar a investigação amanhã de manhã.
— Eu concordo. Com quem pretende falar?
— A Sra. Rebelo. Vai voltar para a pensão, Mertins? Se quiser, posso acompanhá-la até lá.
— N-não, eu agradeço. Tenho um compromisso.
Fëll fez um gesto afirmativo e foi embora.
— Um sujeitinho intrigante — disse Radke. — Um pouco pomposo, mas que tem lá seus méritos. O que estou me perguntando é quando ele queria mostrar-me este papel. Quando, Srta. Mertins?
Uma leve aragem soprava pela rua.
Olhei para Radke:
— Talvez nunca, inspetor — respondi. — Talvez nunca.
Um retrospecto
Acordei na manhã seguinte com o corpo entorpecido. Fui para a confeitaria, mas a Sra. Oeschler barrou a minha entrada:
— Você não vai trabalhar, minha filha. Vá fazer uma consulta, Miriam. Sim, sim, vá. Você merece umas férias. Pobrezinha, praticamente viu o Sr. Haggard morrer na sua frente! Tome uns dias de descanso...
Vá, cuide de sua saúde!
Falava num tom maternal que eu nunca tinha visto nela. Notei que ela achava que eu estava com estresse pós-traumático.
— Quem... quem vai me substituir?
— Vou colocar Lili no seu lugar. Vá, Miriam. Dê meus pêsames para Dolores.
Apertei a capa de chuva e me afastei. Amanhecia. Uma garoa cinza e morta pintava a rua e as casas.
Pensei em Fëll. As coisas que ele tinha dito começavam a aguilhoar a minha curiosidade. Havia um mistério incomensurável na morte de Ehrack. Pistas tinham sido vasculhadas. Era uma coisa que me causava
desconforto — uma ameaça que ia crescendo, crescendo, ao meu redor.
Por intuição, eu sabia que precisava tomar algumas medidas preventivas.
Tomazelli ergueu a cabeça quando entrei em seu quarto.
— Olá! Como está o nosso convalescente?
— Cosí, cosí! Ontem planejei fazer uma caminhada esta manhã. Olhe só esse tempo! Cáspita!
— Por falar em tempo ruim... O Sr. Fëll ainda está em casa?
— Ele saiu cedo.
— Disse aonde ia?
— Não. Acho que tinha um encontro marcado com o inspetor.
— A esta hora? Não acredito.
Meu senhorio mexeu os ombros. Levantou-se da cama, cambaleante. Havia uma coisa em suas pupilas... um brilho... que não me enganava. Parecia um cão pronto para morder o osso.
— Quer que eu o ajude a chegar à sala? — perguntei.
— Não, grazie! Ficar lá ou aqui... Já lhe disseram que o enterro de Haggard será às quatro da tarde?
— Por que tão cedo?
— Irá ao funeral, senhorita?
— Eu não tenho parentesco com ele. Por que iria?
— Mau sinal... Aposto que haverá só meia dúzia de gatos-pingados. Ou menos.
A eterna prosa de Tomazelli! Pressenti que as insinuações dele visavam só uma coisa: obter notícias. Hora de me mandar! Verifiquei se ele estava bem instalado e saí voando.
Onde estaria o detetive? Com Dolores Rebelo? Radke?
Refleti naquele monóculo... bisbilhotando... olhando a sujeira debaixo do tapete... estudando... estudando...
Dei sorte. Pendurei a capa no cabide e entrei na sala de estar da Sra. Gwenny-Dutra. Ali estavam eles, diante da lareira, tomando uma xícara de cappuccino. Conversavam como duas maritacas! Eram coisas
assim que abalavam minha esperança na humanidade...
— Oi!
— Mertins!
— Estou interrompendo?
— Miriam — disse Leonora alegremente. — Sente-se conosco. O Sr. Fëll acha que vi uma coisa que pode ajudar a solucionar o caso.
— É? O que você viu? A cara do assassino?
— Quem dera! Não é nada disso. Diga a ela, Sr. Fëll! O senhor tem mais jeito com isso.
— O fato é que a Sra. Gwenny-Dutra viu Helene Victor lançar um olhar de ódio declarado contra a Sra. Basknell. Ao fim do jogo de damas... Sabe alguma coisa a respeito disso, Mertins?
— Talvez — respondi.
— Isso significa que sim. Por que não disse nada?
— Não julguei que fosse necessário.
— Posso lhe afiançar que é — afirmou Fëll. — Uma gravata torta, uma caixinha de pó-de-arroz sem tampa, um cano de chumbo perto do corpo da vítima... Quando corretamente averiguado, tudo pode ser exponencialmente
revelador.
— Sei, sei... Podemos pular a parte dos sermões? Vocês estavam falando de Helene...
— Miriam, não seja tão durona! Helene deve ter uma razão para odiar Anne Roselene. O Sr. Fëll acha que ela está mentindo sobre o que fez sábado à noite.
Voltei-me para o detetive. Ele estava olhando fixamente para mim, como se quisesse perscrutar o fundo de minha alma. Resolvi enfrentá-lo a céu aberto:
— Ela está mentindo? Pelo que me lembro, essa é a afirmação mais recorrente do Sr. Fëll. Estou errada ou o senhor realmente não confia em ninguém?
— Confio, por que não? Mas é preciso sempre ter em conta que as pessoas, quando são pressionadas, normalmente tecem uma intrincada teia de mentiras. Autopreservação! Está escondendo alguma coisa que gostaria
de contar para nós, Mertins?
Instintivamente eu quis responder que não. Mas, como que por encanto, lembrei-me da visita que Gassmer tinha feito para mim na véspera. Será que... Sim, nada me impedia de tocar novamente no assunto.
Mencionei discretamente o fato.
— Deixe-me ver, fiz algumas anotações sobre isso — disse Fëll, folheando seu caderninho. — Aqui! A senhorita falou do hoteleiro e de suas acusações contra Harrison... do suposto assassinato cometido por
Harrison... de sua fuga... da carta fictícia que Gassmer dissera ter escrito... e que existe a suspeita de que Harrison pode ter atirado em Ehrack...
— O senhor vai denunciá-lo à polícia?
— Se o Sr. Gassmer está tão convicto do que diz, ele vai se encarregar disso. O que vale registrar é que existe um lado oculto do Sr. Victor que temos que conhecer melhor. Se ele já matou antes, matar
uma segunda vez não constituiria problema. Talvez tenha sido mesmo ele sim quem atirou em Ehrack!
— Isso é tão emocionante! — exclamou Leonora. — Esse jovem nunca me enganou! Tão educado, tão atencioso... Quem é que imaginaria que fosse capaz de cometer esses atos cruéis? Estou lhe dizendo, Miriam,
que ele não presta. Não mesmo!
Fiz um “tsc, tsc” com os lábios, desaprovando a empolgação dela.
— Emocionante? Olha só quem fala! A senhora sequer se recuperou do trauma de ontem... Agora já quer dar uma de Inspetora Maigret!
— Querida, a medicina atual opera maravilhas! O dr. Ritterbuch me entupiu de sedativos. Ainda estou toda zonza...
— Mertins, Mertins — disse Fëll. — Advirto-a de que a sua atitude crítica é muito contraproducente. Temos que manter o foco. Se não, logo acabaremos tendo outro crime, e essa ciranda de mistério nunca
terá fim.
— Outro sermão! — suspirei. — Está bem, o que o senhor propõe? A prisão de Harrison? Fazer uma acareação com a Helene?
— Podemos considerar essas opções depois... Nesse ínterim, vamos falar com a Sra. Rebelo. O inspetor já deve estar lá. Irá conosco, Sra. Gwenny-Dutra?
— Eu bem que gostaria, mas não posso. O doutor me recomendou repouso por alguns dias. E Juli é muito ciosa! Ela ficaria louca comigo se eu saísse com vocês.
Fizemos o caminho até a mansão a pé. A chuva tinha diminuído. Vi que Fëll segurava o guarda-chuva com negligência. Estava boiando num delírio de frases e palavras sem nexo, e não parecia nem um pouco inclinado
a falar comigo. Ele andava com a longanimidade de um guru tibetano.
Se tivesse ficado na confeitaria, eu estaria atendendo sofrivelmente a freguesia. Meus sentidos estavam tão embotados!
Pensei em mostrar ao garboso Fëll que também tinha faro investigativo. Bons neurônios não me faltavam. Aos poucos, um vislumbre quase apagado de uma coisa escondida se tornava nítido em minha mente! Era
algo a respeito do termo veneno e suas variantes. Eu ainda não conseguia ver o que era, embora soubesse que ali existia um detalhe que merecia ser analisado mais de perto.
Por entre as brumas da rua vimos o inspetor Radke parado na esquina. Tinha os botões do casaco fechados até a gola.
— Bom-dia! Friozinho, hein?
— Guten Morgen! — disse Fëll. E sem qualquer preâmbulo, acrescentou: — Tenho uma coisa que gostaria que me respondesse, inspetor. Por que a Srta. Helene olharia a Sra. Basknell com aversão se, pelo que
sabemos, as duas nunca tiveram nada uma contra a outra?
Radke ficou meio desorientado com a pergunta.
— Quem lhe disse isso?
— Uma informante. Ela acha que houve uma raiva muito específica no olhar da Srta. Victor. É uma coisa que não consigo enquadrar no panorama geral do caso.
— Bem, eu não sei. Julgo que seria melhor apurar os fatos antes de emitir uma opinião.
— A irritação do Sr. Gassmer... O que me diz dela?
— Se isso o deixa feliz, ele pode nos chamar de abelhudos o quanto quiser. O que esse homem precisa é de um bom advogado. O seu pescoço está por um fio.
— Vão por o nome dele no inquérito?
— Já o incluímos. Ele que trate de arrumar um álibi!
A determinação na voz de Radke foi um bálsamo para os ouvidos de Fëll. Ele apreciava pessoas que agarravam a presa com unhas e dentes, por assim dizer. Impreterivelmente, o inspetor tinha acabado de subir
em seu conceito.
Dolores Rebelo nos recebeu na porta. Foi logo dizendo que já esperava pela morte de Haggard.
— Samuel era um fofoqueiro. Todos diziam: “Oh, que homem discreto! Austero, quieto, confiável...” Se eles soubessem! Ele nunca foi nada disso. Samuel não falava as coisas abertamente, mas, quando você
virava as costas, ele ficava resmungando daquele jeito... Vocês entendem, daquele jeito que a pessoa tem quando concorda com o que você lhe pede mas depois faz exatamente o contrário. Eu vivia pisando
em ovos quando vivia naquela parte da casa. Não, não fiquei nem um pouco consternada com a morte dele.
Ela enxugou as mãos no avental. A sala de visitas estava abafada — como sempre, aliás. Os dois homens tomaram assento no sofá; fiquei perto da estante. Corri os olhos casualmente pela lombada dos livros.
Veneno... O termo continuava pululando em minha cabeça.
— Sra. Rebelo — disse Radke. — Vou deixar de lado toda a parte burocrática... Ontem à tarde, quem lhe falou sobre o assassinato do mordomo?
— Acho que eu estava na farmácia — respondeu Dolores lentamente. — Não, isso foi antes. Eu tinha ido ao açougue e... sim, lembro-me de que achei o preço do filé duplo absurdamente alto. Alguém passou por
mim na rua e gritou que tinha havido outro crime. “Que besteira”, pensei comigo mesma. “Outro crime... Sem chance!” Só mais tarde é que fiquei sabendo de tudo. Antes que vocês comecem, posso lhes perguntar
uma coisa? O que Samuel estava fazendo na casa de Leonora?
— Imaginamos que ele tivesse suspeitas sobre... sobre quem seria o assassino de seu ex-marido, Sra. Rebelo. Aparentemente ele foi falar com a Sra. Gwenny-Dutra antes de comunicar as suspeitas às autoridades.
— Deus me livre! Samuel... Eu o vi sair para a rua. Ele caminhava devagar e mexia a cabeça como se estivesse preocupado com alguma coisa.
— Isso confere com o que a Srta. Victor disse.
— Mas por que ele fez isso? Em vez de sair por aí, por que não veio falar comigo?
— Talvez Haggard não tenha vindo — disse Fëll — porque achava que a senhora era a culpada.
— Eu? Por que eu haveria de matar meu ex-marido? Que lucro eu teria com isso?
— Acalme-se, senhora — interveio Radke. — Estamos apenas investigando.
— Então é por isso — disse Dolores com os olhos escancarados. — Vocês... essa entrevista... Vocês pensam que fui eu!
— Volto a repetir, acalme-se! Não viemos aqui para lhe imputar nada. Estamos investigando e queremos que as pessoas nos ajudem a chegar ao porto seguro das respostas que convençam um júri. Nada mais.
— Eu sei de quem é a culpa de todos esses crimes! É uma maldição de família. Ninguém pode impedir esse horror. Ninguém pode fazer nada.
— Maldição de família? O que a senhora quer dizer?
— Quero dizer que todos nós estamos pagando pelos erros de nossos antepassados. Não há como fugir disso. Todos nós vamos ser mortos!
Pobre Dolores!
Fëll ergueu bruscamente a mão:
— Sra. Rebelo! Não é um fenômeno sobrenatural que está ceifando a vida dos Ehrack. A senhora é inteligente... O que aconteceu aqui não tem relação com sortilégios e encantamentos. Não, foi uma pessoa...
tão real quanto nós somos... que fez isso! É essa pessoa que temos que agarrar.
— Ai!
— O que foi, Mertins? Um cisco no olho?
— N-não. — Menti: — Acho que senti outra vertigem.
— Gut, gut — disse Fëll estalando os dedos. — Acho que podemos encerrar por aqui — acrescentou, falando com Dolores. — Se quiser fazer qualquer notificação, a senhora já sabe aonde deve ir.
— Susi voltará hoje para casa — disse Dolores quando estávamos à porta. — Santo Deus, que bom! Eu já não cabia em mim de ansiedade.
— Ela lhe ligou?
— Sim. Pouco antes de vocês virem.
— Wunderschön! Susi é uma boa moça. Ela vai lhe fazer companhia, Sra. Rebelo. Guten Tag!
Radke saiu conosco a contragosto. Talvez quisesse fazer mais perguntas... ou uma inspeção nas dependências da casa.
— Tudo bem, inspetor? — perguntou Fëll.
— Realmente não! Puxa, acho que deveríamos ter investido todas as fichas nessa mulher. Ela sabe de mais coisas do que deixa transparecer. Com um pouco de insistência ela teria aberto o jogo.
— Eu não creio. Bater na carcaça não faz com que a tartaruga venha para fora. A experiência diz o contrário. Quanto mais pancadas a gente dá, mais as pessoas se encolhem e ficam fora de alcance. Qual foi
o resultado da autópsia?
— Nada de novo. Tudo aconteceu conforme o senhor disse. Alguém apagou o mordomo com o atiçador de fogo. Chega quase a ser um trocadilho!
— Algo mais?
Radke fez um aceno negativo. Estava amuado e com o ego ferido. Mas subitamente Radke pareceu voltar atrás.
— Bom, na verdade estou esquecendo uma coisa. Quando o médico despiu o corpo, ele encontrou uma coisa interessante no bolso da calça. Trouxe-a comigo. Talvez o senhor queira vê-la.
Radke estendeu a mão e mostrou um pequeno papel quadrado. Era uma espécie de...
— Um rótulo. De uma marca cara de uísque, para ser mais exato.
— Rayska — leu Fëll, pensativamente. — Um rótulo de uma garrafa de bebida importada. Pelo que consta, Haggard era abstêmio. Pelo menos ultimamente. Portanto, deve haver uma razão para portar isto. Me permite,
inspetor?
— Oh, sim. Pode ficar. Acho que tudo não passa de uma coincidência, mas talvez o senhor descubra alguma coisa que me passou despercebido.
— Danke. — Fëll guardou o rótulo no bolso. — Quanto a você, Mertins... Por que deu aquele grito na sala da Sra. Rebelo?
— Já lhe disse, senti uma vertigem. Sofro de pressão baixa. Brr, que frio! Esta bendita garoa bem que poderia dar uma trégua!
— Nein, eu quero que diga a verdade, Mädelein. Não foi vertigem. A senhorita estava olhando a estante. Tenho uma boa visão periférica... O que viu? Algum livro que não devia estar lá, eu suponho.
— Como é que o senhor sabe disso?
— A Sra. Gwenny-Dutra me contou.
— E o que mais ela lhe falou?
— Que dias atrás a senhorita estava querendo o empréstimo de um compêndio raro.
— É isso mesmo... Leonora me garantiu que o tinham roubado da casa dela. Ontem vocês falaram de ricina para cá e de ricina para lá. Acordei hoje com a sensação de que tinha ouvido falar desse termo esta
semana. Alguém viu essa substância entre as coisas da caixinha de remédios de Dolores Rebelo. Há pouco, quando entramos na sala dela, pensei em dar uma verificada em seus hábitos de leitura. E uh-lalá
— o Volume dos Venenos e seus Efeitos estava lá! Vão me dar os parabéns por isso, não vão?
Fëll estacou em seco. Me pareceu que seu cérebro privilegiado (ou psicótico) acabara de ter um clique. Sorri comigo mesma. Minha declaração deveria tê-lo surpreendido! Em vez disso, ele perguntou:
— Mertins, a senhorita disse que está com frio, não é?
— É-é, acho que sim.
— A temperatura... Mas isso soluciona tudo! A temperatura! E agora, mais esse rótulo... Duas coisas que se ajustam na engrenagem. Como é que eu não vi isso antes?
Xingando a si mesmo, Fëll sapateou no calçamento. Frustração, desapontamento, raiva — um misto de emoções fluía e refluía em seu rosto.
— Agora as coisas estão ficando no prumo. Wie konnte ich nur so Dumm sein! Inspetor, dê-me algumas horas... Tenho que averiguar alguns fatos. À tarde... Voltarei a me comunicar com o senhor à tarde.
Aproximou-se de mim e apertou meu braço:
— Preciso que me faça um favor, senhorita. Convoque todos para uma pequena assembleia para hoje à noite, às 18 horas, na sala de visitas do Sr. Ehrack. Dará conta disso?
— Uma assembleia para hoje à noite? Mas por quê?
— Só diga isso: dará conta ou não? — perguntou Fëll com impaciência.
— Plenamente. O que devo dizer?
— Nada em especial. Apenas mencione que o caso promete chegar ao fim. É essencial evitar que haja contratempos. No atual estágio das coisas não queremos nenhum atraso. Temos que ser discretos e pontuais.
Exija, bitte, que o Sr. Gassmer esteja presente. Para que tudo transcorra bem, a maioria das testemunhas deve comparecer.
Compreendi que seria inútil questioná-lo. Aquelas solicitações meticulosas eram inescrutáveis, e ficariam assim, não importa o que eu lhe perguntasse. O austríaco tinha um propósito que nós, à parte de
tudo, não víamos em todos os contornos.
Inclinando-se respeitosamente diante de nós, Fëll saiu em disparada. Radke e eu ficamos ali, desconsolados. Aquilo já estava virando um déjà vu.
— Que falta de bons modos. É a segunda vez que ele nos deixa à deriva, senhorita. O que acha que foi dessa vez?
— Acho que o Sr. Fëll está em vias de revelar o nome do assassino — respondi um pouco espantada.
O inspetor sorriu com a brandura de um jogador que não se envergonha de ser superado pelo competidor:
— Um mestre e tanto — disse. — Um mestre em jogar areia no olho dos outros. Adeus sossego!
Convites
O detetive deu sinal de vida depois do almoço. Por uma mensagem de texto! Ela dizia o seguinte:
“Mertins,
Mudança de planos: o inspetor fará a convocação das pessoas interessadas no caso. Está dispensada da tarefa! Fale apenas com a Sra. Rebelo e o Sr. Gassmer...
F.”
Confesso que fiquei grata por isso. Em teoria, o trabalho pesado sobrara para Radke. Para mim coubera só uma parte menor naquela aventura misteriosa.
Pois muito bem — se meu encargo era falar com a Sra. Rebelo, era com a Sra. Rebelo que eu falaria.
Fui depois do almoço. Entrei pelos fundos da propriedade dos Ehrack. Uma trilha agreste percorria a mata até chegar no alto de uma colina. Do topo da colina dava para descortinar toda a área circunvizinha.
Foi de lá que eu vi Susi Ehrack.
A moça estava na estradinha que ia até a garagem dos Ehrack. Tinha os cabelos bem penteados, e transpirava uma alegria incomum.
Desci da colina para cumprimentá-la.
— Olá, Susi! Que bom que você voltou!
— Já era tempo! — respondeu ela, ao fim de nosso prolongado abraço. — Ah, Miriam, agradeci tanto à Sra. Reusfeld por ter me acolhido. Ela afirmou que eu poderia ficar o quanto quisesse. Ui, que mulher
gentil!
— Sua mãe deve estar radiante!
— Você sabe que ela tem um coração de ouro. Fica emocionada por qualquer coisinha. Senti tanta saudade daqui! Eu não poderia ficar longe para sempre.
— Você fez muito bem, Susi. O seu pai deixou uma pequena herança para as duas. Acho que sua mãe ficou com medo de que teria que cuidar de tudo sem você.
Andávamos pela alameda de barro. Susi disse:
— Aposto, Miriam, que houve alguns mal-entendidos! Quer dizer, as pessoas devem ter falado de mim.
— E como!
— Não posso consertar o mal que causei...
— Desde que você partiu, sabe de tudo o que aconteceu?
— Sim. Muitos acham que sou mentalmente lerda, mas não é difícil conseguir informações quando há uma empregada tagarela na casa.
Em vez de dissecar o assunto, ela entrou numa conversa totalmente doméstica. Falamos do pomar, do riacho... Um debate pueril e banal. Como um vírus que se apodera gradualmente de um organismo, o desagrado
foi se intensificando dentro de mim.
Aproveitei uma brecha e falei do plano de Fëll para a noite.
— Ele quer fazer uma reunião às 18h. Creio que você está convidada, Susi.
— Onde?
— Na sala de estar de seu pai.
— Eu gostaria de entender esse homem — disse Susi. — Sinto que ele ainda trará alguma desgraça para nossa família.
— Acho pouco provável. Eu também passei por essa fase. Fëll é meio megalomaníaco. Mas se há alguém que pode desenrolar esse novelo de enigmas, é ele.
— Quanto otimismo, Miriam! Então me deixe fazer uma pergunta. Será que ele já decifrou o código do papel encontrado no cofre de papai? Ora, querida, me poupe!
— Acho que a linha investigativa dele é outra — deliberei.
— Quem é que garante isso? Quem?
Havia uma malícia... um ardor quase religioso... nas palavras de Susi. Seria uma insinuação? Mas do quê?
— Pense o que você quiser! Quer fazer uma gentileza para mim? Avise a sua mãe sobre a reunião. Creio que haverá uma reviravolta surpreendente no desfecho desse caso.
— O Sr. Fëll ligou para mim, Miriam — disse Susi repentinamente. — Me interrogou por dez minutos.
— Quando?
— Ontem à noite. Ele sabia que eu voltaria hoje para casa.
— E mais essa!
— Ele fez algumas perguntas genéricas. Oh, Miriam, não posso lhe falar sobre isso. Eu prometi a ele que não contaria nada a ninguém.
— Incluindo a mim? Pôxa, que amiga você me saiu! Me diga só uma coisa: ele sabe sobre... nós duas?
Uma lágrima rolou por sua face.
— Não me pressione, Miriam. Me perdoe se isso lhe parece rude. Eu devia me controlar... dominar os meus sentimentos. Mas... oh... sempre fui uma pessoa tão complicada! Não fique chateada comigo.
É claro que eu estava chateada! Disse isso a ela com todas as letras do alfabeto. Depois tratei de sair dali. Nada melhor do que uma decente retirada estratégica!
Para encurtar a distância, cruzei a trilha que ia até o portão da rua. Agora restava o Sr. Gassmer! Eu conhecia de cor a aspereza do homem! A voz hostil... As críticas...
Com a resignação de um carneiro que vê a faca mirando a sua garganta, fui para o Três Empenas.
Bati a sineta no balcão de recepção.
Um rapaz simpático e bem trajado levou-me ao escritório do hotel. Confesso que estava um pouco apreensiva ao abrir a porta.
É impressionante como as pessoas se comovem com a minha chegada! Não só isso — como mexo com as emoções mais profundas delas... Basta meia dúzia de palavras!
— O quê? Isso é inadmissível! — vociferou Gassmer. — Que convite é esse? O que eles querem que eu diga? Eu já depus em tantos inquéritos que até perdi a conta. Estão loucos! O que eles acham que eu sou?
Um palhaço?
— O Sr. Fëll disse que...
— Aquele homem com o cabelo melecado... Não ponha muita esperança nele, Srta. Mertins. O Sr. Fëll é um estudioso, e tem gabarito na área. Mas foi encostado por causa de um ferimento. Eu não confio nada
nele.
— Pelo que consta, dizem que participou de alguns casos bem famosos. O inspetor Radke, apesar de sua natural apatia, também o elogiou. Acho que deve ser peixe graúdo.
— Peixe graúdo alguém que é especialista em esconder o jogo? Eu o conheço. Ele gosta é de causar estardalhaço. Igual a um tropel de búfalos. Pan, pan, pan ... Ah, ele ama a notoriedade, o sabor de ser
reconhecido. É bem do estilo dele reunir todos em sessão e xingá-los asperamente. É bom para consolidar a sua reputação.
— Até agora ele não fez nenhum escarcéu.
— Porque é uma cascavel sabida. Esse Fëll tem uma devoção agressiva por um final intrigante do caso.
Gassmer espiou-me com cautela.
— Quero que me desculpe — exclamei, suspirando. — Estou falando bobagens...
— Vou fingir que não ouvi nada — disse, cordial. — Errar é uma virtude humana. Vim só lhe dar o recado, Sr. Gassmer.
— Sim, sim, você não tem nada com isso. O fato é que não consigo me conformar. Eu já fui interrogado trocentas vezes! Acho que um dia vão me condecorar com a medalha de maior depoente do país.
Gotas de suor perolavam a sua testa. Ele voltou a sentar-se atrás da escrivaninha.
— Sr. Gassmer, na minha modesta opinião, o senhor deveria ir. Acho que deveria mostrar a eles que o senhor é um homem de integridade moral. Se não for, é quase certo que a polícia voltará a importuná-lo...
e esse tipo de publicidade não vai ajudar o seu empreendimento.
O hoteleiro pestanejou. O meu argumento não era de todo ruim. Depois de alisar a careca resplandecente, fez um expressivo gesto de rendição.
— Não prometo nada...
Minha mediação tivera um sucesso arrebatador. Repeti as instruções sobre o local e o horário estipulados e saí do escritório.
Fiquei visivelmente chocada quando vi quem estava ali, no vestíbulo.
— Sr. Fëll!
— Mertins! — disse o austríaco afavelmente. — Vejo que está se desincumbindo bem da tarefa que lhe designei.
— O que está fazendo aqui?
Ele moveu a cabeça.
— Estou investigando alguns pontos obscuros de nossa saga. E todos convergem para este lugar.
— Está tendo êxito?
— Relativamente. Acho que, nessa altura do campeonato, as coisas estão se descascando por si mesmas.
— O eterno dente de alho, hein? O que veio ver aqui, precisamente?
— Ah, ficou curiosa! Solicitei a camareira que me mostrasse o quarto do envenenamento do Sr. Ehrack Pai.
— Foi bom?
— Ajudou a abrir a última trava que se interpunha em meu caminho, Mertins. Pretendo ir agora ao fórum municipal.
— O fórum... O que é que tem lá?
— O obituário. Eu notei, senhorita, que os três crimes têm alguma coisa a ver com um acontecimento perdido no passado dessa vila. Um acontecimento doloroso que privou o nosso assassino de uma coisa que
ele estimava muito. Uma coisa pela qual ele jurou se vingar... Se vingar para apaziguar o ódio que lhe abrasava o espírito.
— Acha que a vingança é a mola propulsora de tudo?
— Sim, Fräulein. É por isso que lhe enviei a mensagem desta tarde, Mertins. Há nesses assassinatos um segredo que, quando for revelado, poderá abalá-la significativamente. Julguei melhor comissionar o
inspetor para substitui-la.
— É assim tão — perguntei — apavorante?
Um toldo cobriu o seu rosto.
— Creio que seja — disse Fëll. — Quando Pickwick for exposto, acho que teremos uma gritante decepção. — Devagar, repetiu: — Uma gritante decepção...
Primeiras Revelações
Acontece que me comprometi a recepcionar os convidados. Eu os pegava à porta e os introduzia educadamente na sala. Fëll tinha estabelecido um lugar para cada um deles — minha obrigação era dirigi-los até
lá. Alguns vinham descalçando as luvas, falando do tempo chuvoso; outros entravam com a cara fechada, menos dispersivos, tesos como palitos de fósforos.
Harrison ironizou o detetive:
— É um aventureiro... Está querendo aparecer nos jornais.
— Se bem me lembro — respondi —, o nosso semanário faliu. Se ele quiser mesmo isso, não vai obter muita coisa.
— Sabe-se lá... Esses estrangeiros tem o miolo mole.
Harrison era uma exceção; os outros não tinham a mesma vontade de rir de Fëll. Eles não o cobririam de honrarias, mas também não achavam prudente ridicularizá-lo.
A personificação da simpatia, Edmund Fëll cuidava dos preparativos fora do palco. Com amabilidade, ele conversava com a Sra. Basknell.
— Das ist erstaunlich, a senhora tem uma bela bolsinha! Tão pequena e prática. Esmalte, ruge, remédios... Quantas coisas cabem aí, não é mesmo? Nada substitui uma bolsa de grife, é o que eu sempre digo.
A Sra. Basknell parecia meio atordoada com os elogios.
— A Santa Inquisição já começou? — resmungou Gassmer com azedume. Deu um olhar pela sala. — Onde estão os carrascos?
— Está falando daqueles ali?
— Ah, bom, eles mesmos! Eu quero que compreenda, senhorita, que não decaiu em minha estima. Afinal, a culpa disso tudo não é sua.
— Sim, Sr. Gassmer... Obrigada. Venha por aqui! Vou levá-lo a sua cadeira.
Radke, de vigia ao lado da porta, olhou para o hoteleiro. Por um momento avaliou as suas reações. O inspetor fora comissionado a ficar ali, e não escondia de ninguém a seriedade com que cumpria o seu ofício.
Fui repor o carvão na lareira. Tomazelli (que estranhamente também tinha sido intimado a vir) lançou um olhar de desprezo para o fogo.
— Estão todos bem instalados? — perguntou Fëll, presidindo a reunião. — Vejamos... Mein Freund Tomazelli, a Sra. Gwenny-Dutra (seja bem-vinda!), Sr. Gassmer, Sra. Basknell, Harrison e Helene Victor, Fadeschi,
Sra. Rebelo e Susi Ehrack. Perfeito, todo mundo presente.
— Julgo que se esqueceu de mim — comentei com um sussurro. — Ou será que eu não conto?
— Ao contrário, a senhorita é um elemento valioso. Sim, temos conosco a Srta. Mertins. — Depois acrescentou: — Ganz gut, eu me inclino a crer que não é necessário esclarecer as razões por que estamos aqui.
Estamos aqui com um único propósito — saber quem matou o Sr. Ehrack e seu mordomo, o Sr. Haggard, e por quê?
Gassmer fungou e alçou o dedo:
— Desculpe a minha impertinência... Por tudo o que é sagrado, o que é que eu tenho a ver com esses crimes?
— Mas, ah, tudo tem um motivo. No mínimo, o senhor tem respostas que serão muito úteis para nós. Jetzt weiter! Bom, vamos recapitular o que aconteceu no sábado, das oito horas da noite em diante. Mais
precisamente, a partir do instante em que a Srta. Mertins deixou o Sr. Ehrack só, depois de finalizar seu trabalho de digitação. Em seu depoimento, a Srta. Mertins disse claramente que o relógio da torre
bateu as horas quando ela saiu da casa — e que, naquela ocasião, o Sr. Ehrack estava bem. No entanto, há uma falha crassa no depoimento dela! Não quero aqui dizer que a Srta. Mertins quis nos enganar...
Mas eu pensei muito no que ela falou, e concluí que ela entendeu mal as últimas palavras do Sr. Ehrack naquela noite. Segundo as afirmações dela, ele lhe teria dito que a vida dele estava em risco, e que
alguém supostamente estaria tramando a sua morte. Se isso fosse verdade, as suspeitas do Sr. Ehrack teriam sido terrivelmente proféticas — quartos de hora depois ele realmente foi morto, de modo furtivo
e covarde! Posso lhe garantir, porém, que a senhorita perverteu o sentido das coisas que ele disse. A semântica das palavras... A semântica é tudo, e julgo que esse caso é um exemplo ímpar disso. Bom,
mas é evidente que isso não importa agora... Podemos voltar a esse assunto mais tarde.
“Partindo dessa premissa, vamos falar do número de entradas que há nesta casa. Existe a janela do gabinete, no andar de cima. A Sra. Gwenny-Dutra disse que, da rua, viu uma pessoa (presumivelmente do sexo
masculino) no jardim, aproximadamente às 8:10h, carregando uma escada de mão.”
— Sim, foi isso mesmo — disse Leonora olhando para os outros. — Ai, eu fico toda arrepiada só de pensar!
— E no assoalho do gabinete, logo abaixo da janela, havia uma mancha de barro, o que poderia significar que, de fato, houvera uma invasão por ali. O assassino, antes de dar o tiro, poderia ter apoiado
o pé no chão a fim de ajustar a mira. Essa é uma das teorias — dentre várias.
“Mas temos outras duas entradas. Uma delas é a porta do vestíbulo; a outra, a porta da cozinha que dá para a trilha que vai para a garagem. Qualquer uma delas poderia ser usada por quem quisesse entrar
na casa e chegar até a escadaria central.
“O maior entrave para a elucidação desse crime foi, desde o princípio, descobrir os reais motivos do assassino. Um desentendimento familiar? Vingança? Uma tentativa de extorsão que não deu certo? Achei
que se estabelecêssemos a origem da arma estaríamos mais perto da resposta a essa pergunta. Foi aí que as coisas começaram a complicar. Quando consultou os registros, o inspetor Radke descobriu que o revólver
que matou Ehrack pertencia ao Sr. Tomazelli.
— Ladrões! — disse Tomazelli olhando venenosamente para os outros. — O revólver, mio amico... que eu perdi...
— Langsam, eu estou só mostrando o resultado de nossas primeiras pesquisas. Sim, a arma é sua, mas será que meu amigo Tomazelli seria o autor do disparo? Ah, eu sabia que não tinha sido ele! Eu posso afirmar
isso, porque na hora do assassinato o Sr. Tomazelli estava no quarto dele, doente e com febre. Portanto, a pergunta natural era: como é que o revólver foi parar nas mãos do assassino? A chave está no que
a Srta. Mertins viu naquela noite no gabinete de Ehrack. Ela viu, pouco antes de sair de lá, um objeto faiscante no braço do sofá, um objeto que tinha os vagos contornos de uma arma. Isso sugere que o
assassino, ao entrar no gabinete, percebeu o revólver e, aproveitando a oportunidade, deve tê-lo pego e, sem hesitar, disparou instintivamente contra o homem antes que ele pudesse se defender.
Harrison Victor deu um bocejo.
— Eu não quero atrapalhar o senhor, mas nunca ouvi uma coisa tão incoerente. Quer dizer que o revólver não era do meu tio. Como é que, então, ele estava no sofá dele?
— Aí está, meu rapaz. Você acertou o ponto nevrálgico da questão. Acho que a resposta é uma só: o seu tio deve tê-lo pego na casa do Sr. Tomazelli quando, dois dias antes, passou por lá para falar com
a Srta. Mertins.
— É a minha vez de dizer “o quê?” — atalhou a Sra. Basknell muito nervosa. — O senhor perdeu a noção das coisas? Wilson não era um ladrão!
— Talvez não um ladrão, madame. Talvez tenha sido... digamos... uma peraltice. Sim, uma peraltice inocente, mas enfim uma peraltice. Enquanto esperava pela moça, ele pode ter visto o revólver no armário
e resolveu fazer uma pequena arte.
— Ouçam essa... Titio roubou um revólver porque queria se divertir um pouco! — ironizou Harrison. — Ho, ho, ho!
Fëll ignorou a interrupção.
— Uma coisa que durante todo o tempo julguei inquestionável era a seguinte: Ehrack devia saber que ia receber uma visita sábado à noite! Quem seria o/a visitante? A Sra. Basknell? Ou — levando em conta
o horário do homicídio — o próprio assassino, que veio para cá com o único intuito de destruir a sua vida? A nossa investigação estava fadada a empacar se não obtivéssemos uma resposta para isso. Foi aí
que Haggard nos levou a um papel trancado na biblioteca, e nele achamos o fio da meada que me ajudaria a resolver o mistério. No papel constavam algumas coisas que tinham a ver com o Hotel Três Empenas
e a morte de Ermínio Ehrack, há dois anos. Seis particularidades do caso tinham sido anotadas ali: a hora da morte, a causa (intoxicação), o número de um apartamento...
— Maravilha! — disse Harrison. — Estamos fazendo uma viagem no tempo.
— Eu vou lhe pedir, meu jovem, que guarde os seus comentários para si mesmo. — Fëll estava irritado: — Não é uma viagem no tempo. Esse é o ponto crucial que soluciona o assassinato de seu tio. Na época,
o laudo pericial falava em suicídio — e todas essas coisas que nós já sabemos. Mas Wilson Ehrack nunca acreditou nessa versão dos fatos — ele sabia... ou melhor... ele sentia que seu pai não tinha se matado.
Assim, ele decidiu investigar o assunto por conta própria. Finalmente, na semana passada, Ehrack alcançou o que queria e viu que as suas previsões se confirmavam: seu pai tinha sido envenenado — e por
alguém que ele conhecia pessoalmente. Alguém que está aqui nesta sala!
— Está dizendo que o assassino está aqui conosco? — perguntou Helene se abanando com a mão. — Que horror!
— É um horror, senhorita, mas que nós devemos enfrentar. Todas as coisas se casam com uma exatidão milimétrica. Assim que Ehrack percebeu que tinha descoberto a verdade, ele deve ter pensado o seguinte:
“Eu sei quem envenenou meu pai. Mas, do ponto de vista forense, eu não tenho nada que prove isso.” Posso vê-lo em seu escritório, os dedos crispados, sem saber o que fazer com o seu conhecimento. Cheio
de emoções contraditórias, ele fez a única coisa que não deveria ter feito em sua situação — de alguma forma comunicou-se com o assassino e expôs-lhe que sabia de tudo o que tinha acontecido. Esse erro
lhe custaria muito caro...
“Mentalmente, vamos voltar até o momento em que a Srta. Mertins se despediu do Sr. Ehrack. Tentem visualizar a cena. Ela desce os degraus da escadaria, vai até a cozinha e nota que Haggard não está lá,
já que ele tinha ido à garagem. Fora de casa, ela ouve o rangido de passos no saibro, o que significa que havia uma pessoa à espreita perto dali. Há só uma explicação plausível — era o assassino que, assim
que avistou a silhueta dela por causa da luz das arandelas, tratou de sair momentaneamente de cena. Depois de a senhorita ter passado, ele usa a porta lateral, galga a escada e entra no gabinete. Reparem
no fato interessantíssimo dessa hipótese: o assassino está diante do homem que pretende eliminar, tem-no a sua disposição, consegue ver até mesmo o brilho de resignação em seus olhos, mas, incrivelmente,
não tem qualquer móvel para executar o seu ato criminoso! Tanto isso é verdade que, como opção que lhe resta, ele é forçado a recorrer ao recurso infame de catar uma arma que não era sua, engatilhá-la
e atirar sem sequer saber se a arma estava devidamente carregada. A pergunta que proponho é essa: como é que isso é possível?
“Quais as chances, por exemplo, de Susi Ehrack ter cometido o crime? Ela diz que foi à floricultura às 20:00h de sábado! Mas o Sr. Victor contou outra história — que, naquela hora, estava falando com
a moça na praça. Vamos considerar primeiramente essa versão. Por que os dois jovens iriam para a praça, e de forma tão velada, para conversar entre si? A resposta a isso está na vinda do Sr. Victor e de
sua irmã, a Srta. Helene, para esta vila anos atrás. Ambos eram órfãos, privados de qualquer meio de subsistência. Mas eles sabiam que tinham um tio rico e que, se viessem morar perto dele, ele não lhes
negaria ajuda financeira em caso de urgência. Vieram; apenas não contaram com uma coisa: o tio logo se revela avarento e pão-duro, um homem pouco disposto a ajudar quem quer que seja. Como se isso não
bastasse, uma outra ameaça surge logo depois — o Sr. Gassmer, conterrâneo dos dois, reconhece Harrison Victor. O Sr. Gassmer se lembra que o rapaz é culpado da morte de uma mulher. Da própria mulher.
— Eu não matei Lucy! — reclamou Harrison. Estava zangado: — O senhor está passando dos limites.
— Pois eu não acho! — disse Gassmer muito nervoso. — Quem está passando dos limites é você, meu rapaz. Você a asfixiou... Foi você que a matou! Eu-sei-de-tudo!
Os olhos de Susi estavam esbugalhados. Pobre Susi e suas fantasias românticas!
— Seu velho asqueroso! — bramiu Harrison.
— Senhores! — disse Fëll. — Assim não progredimos, also! Um acusa e o outro nega... Poderíamos ficar nesse duelo até amanhã. Felizmente pedi uma pesquisa dos fatos, para ver se tinham alguma consistência.
Inspetor!
Radke postou-se ao lado do detetive.
— Quando o Sr. Fëll fez a requisição, entrei nos arquivos do caso. Consultei os autos e registros. E...
— Malditos cretinos! — disse o rapaz, jogando as mãos para cima. — Se vão me prender, vamos logo com isso.
— Não vamos apressar as coisas — disse Fëll. — Temos, por ora, outros assassinatos para desvendar. Tudo a seu tempo. Como eu dizia, o Sr. Gassmer inventa aquela história sobre uma carta imaginária que
expunha ao Sr. Ehrack os crimes do sobrinho. O Sr. Victor se sente acuado e, após entrar no gabinete do tio, começa a vasculhar tudo desesperadamente. O Sr. Ehrack o pega em flagrante e grita com ele;
diz até mesmo que já o removeu da lista de seus herdeiros. O Sr. Victor vai para casa, arrasado, e fala com a irmã. Para todos os efeitos, eles não sabem que a suposta carta de denúncia não existe. Para
a dupla de irmãos, ela é bem real e pode comprometer toda a futura liberdade deles. Eles elaboram um plano B: coagir a Srta. Susi a reaver a carta; fazer com que ela entre no escritório de seu pai e, de
alguma forma, subtraia a carta de lá. Mas como poderiam convencer a Srta. Susi a embarcar naquela aventura? Ah, o Sr. Victor tem um trunfo que a convencerá! Ciente desse trunfo, a Srta. Helene faz a primeira
jogada. No sábado à tarde, ela visita a prima e diz à Srta. Susi que, à noite, o senhor precisava falar com ela.
“Até aqui está tudo muito bem esclarecido? Assim sendo, vamos abrir um hiato e falar da Srta. Mertins. Sim, afinal, a Srta. Mertins tem um pequeno segredo que não ousou repartir com ninguém, não é isso,
Liebchen?
Olhei para o detetive, perplexa. Ele tinha pronunciado o meu nome? Assim do nada?
— A Srta. Mertins disse que, ao sair de lá, deixou o Sr. Ehrack bem vivo e com saúde. Mas o que ela omitiu é que, meia hora depois de sair, ela voltou à mansão para buscar a bolsa que tinha esquecido.
Como é que eu sei disso? Há pouco vi que a Sra. Basknell tem uma bolsinha com alça. Entretanto, a Srta. Mertins tem uma bolsa sem alça. Percebam, sem alça. Mas quando eu a vi ir para a sua quitinete, naquela
noite, ela tinha só o guarda-chuva na mão. Ora, se não levava a bolsa, também não levava a chave. Sem a chave, não poderia entrar em casa. O que significa que, mesmo que eu não tenha visto isso, ela teve
que vir novamente para cá.
“Podemos estabelecer, portanto, que ela voltou aos aposentos do Sr. Ehrack. Mas será que a Srta. Mertins, nessa hora, já o encontrou morto, ou foi ela mesma quem o matou? Ela tinha os meios, o raio de
ação e a sagacidade para isso.”
Todos se viraram para mim. Gozado, comecei a me sentir a boneca do bolo da festa temática!
— Talvez haja alguns aqui que achem um desperdício de tempo notificá-los dessas coisas — disse Fëll sem se abalar. — Possivelmente dirão que os estou submetendo a uma provação injustificada. Pois saibam
que há mais. Vamos girar o microscópio, enfim, para a Sra. Basknell. Ela foi vista andando nas proximidades da mansão naquela noite; e também foi ela quem, depois da leitura das disposições testamentárias,
ficou desapontada por ver que não fora nomeada beneficiária do espólio do Sr. Ehrack. Não foi apenas a Srta. Mertins quem avistou a Sra. Basknell em seu passeio noturno. Houve também outra jovem, que acabou
alimentando a mesma desconfiança. Foi essa jovem quem deu aquele olhar perigoso e frio para a Sra. Basknell na noite do jogo-de-damas. A saber, a Srta. Helene Victor.
Helene apurou a audição e despertou de sua apatia.
— O que quer dizer? — perguntou.
— Quero dizer que a senhorita também viu a Sra. Basknell na rua naquela noite. Havia um detalhe que indicava isso — a sua declaração de que a Sra. Rebelo era inocente do assassinato. Eu me questionei vigorosamente
sobre esse detalhe — como é que a sua afirmação poderia ser tão assertiva? Achei que isso levava a uma só conclusão: que a senhorita, depois que seu irmão saiu para se encontrar com a prima na praça, foi
até a casa da Sra. Rebelo. Durante a ida, viu a Sra. Basknell, com suas galochas e capa impermeável, andando na chuva. É evidente que, naquela hora, aquilo não lhe parecera tão incomum. Mas depois que
soube do assassinato, a senhorita deve ter pensado naquela mulher, tão solitária e enigmática — ali, perto do local do crime!
Houve um rápido corre-corre para acudir a Miss Beleza que tivera um princípio de desmaio. Leonora ficou batendo nas bochechas dela com os dedos.
— Helene! Acorde! Helene... Tragam água, rápido!
— Acho que a coisa melou de vez — rosnou Gassmer.
— Engana-se, engana-se — respondeu Fëll. — Viemos agora à parte mais instigante. Fiquem conosco, eu peço. Srta. Mertins, acompanhe-me. Temos que realizar uma pequena palestra confidencial. Por aqui, schnell,
schnell.
Obedeci. Entramos na biblioteca e Fëll fechou a porta.
A luz clareia mais e mais
— Eu agradeço a sua consideração, mas não estou entendendo... O senhor acabou de dizer que eu menti e agora me chama para cá. O que vai fazer? O teste do polígrafo?
— É só uma parada técnica. Vamos esperar até que as coisas se acalmem.
Perscrutei o semblante de Edmund Fëll. Havia algo ali... algo que não se poderia medir. Era uma coisa que apontava para uma gama infinita de possibilidades. Nada era óbvio, exceto... sim, exceto... a severidade
que acentuava a cor dos olhos castanhos.
Fiquei brincando com o tecido xadrez do lenço.
— Uma sessão muito proveitosa, não acha, Srta. Mertins? É pena que na vida real o uso excessivo da tecnologia tenha substituído o romantismo. Os detetives visam mais a fama, os gordos honorários e o glamour.
— O senhor deve ter tirado isso de algum romance policial — respondi. — Aquele enredo com ambientes europeus, o fog, os mordomos educados e impecáveis...
— Já li essas novelas, umas poucas, eu admito. O suspense bem dosado é algo fascinante. Num texto, não importa se o personagem é perverso ou amável. A versatilidade do autor, ao amarrar todas as pontas,
isso é o que atrai a atenção. O modo de atuar do protagonista, as suas ações, e até (por que não dizer?) os seus defeitos — todos esses acréscimos são sempre bem-vindos. O escritor é quem tem a narrativa
na mão; a responsabilidade de cortá-la, lustrá-la e torná-la boa é dele. Apenas dele. O modo como descreve a camareira dando corda no relógio; ou a habilidade com que fala da sobrinha que pede um sherry
à tia pomposa, ou da infância do filho do marechal — essas coisas é que dão luz, brilho e esplendor aos fatos! Vou dar um exemplo. Se a senhorita julga que há uma atmosfera pesada aqui, está certíssima.
Fui eu que criei essa atmosfera, fui eu que direcionei as coisas para esse fim. Tenho noventa por cento do caso já pronto. Veja, temos o cenário, os fatos e um drama. Ingredientes para despertar o gosto
de um leitor é o que não faltam! Existem vários fios cruzados no crime — outro ponto positivo. Mas os romancistas ingleses ainda uma vantagem: eles podem descrever as charnecas, os castelos e casarões,
as luvas de pelica e veludo. Por isso, dizem por aí que a América Latina nunca seria um bom pano de fundo para uma boa novela de investigação. Bobagem! Mesmo sem as clássicas casas de campo, com boudoirs
trancados a chave, e criados que andam de lá para cá, e ladys e miladys de todas as cores e tamanhos, vamos ser sinceros... O que não existe, a gente improvisa.
Fëll girou sobre si mesmo.
— Eu quero que pense no que aconteceu aqui, Srta. Mertins. A questão não é tanto quem fez, mas sim por que fez.
— Isso significa o quê?
— Minha brava assistente, para disparar um revólver calibre 38 é preciso prática. E o assassino, apesar de suas limitações, conseguiu fazer isso. Não foi um disparo acidental, a senhorita percebe? Isso
não é incrível?
Eu não estava vendo nada de incrível naquilo. Aqui entre nós, eu não estava vendo absolutamente nada!
— Fim do recreio — disse Fëll. — Vamos lá!
“Oh, não!” suspirei. “Lá vamos nós de novo.”
Helene tinha se recuperado, mas a cara dela continuava tão incolor como sempre.
— Ótimo! — disse Harrison ao nos ver. —Alguém acenda os holofotes! Vieram para acabar de matar minha irmã.
Fëll ajeitou o monóculo e mostrou os dentes. Depois olhou para seu auditório.
— Então, Sra. Gwenny-Dutra? A moça está bem?
— Oh, sim — disse Leonora sacudindo a cabeça. — Não foi nada. Temos uma jovem muito forte aqui!
— Nesse caso, acho que podemos prosseguir e terminar o que estávamos fazendo. Como eu dizia, a Srta. Helene saiu de casa naquela noite para ir à casa da Sra. Rebelo. No caminho de ida, ela viu a Sra. Basknell
— o que, mais tarde, despertou nela todas aquelas suspeitas e tudo o resto que já foi dito. Em seu depoimento, a Sra. Rebelo disse que, das 8:00h às 9:35h, limpou o aquário e a despensa. Isso não soa um
pouco desarrazoado? Quem é que, em plena noite de fim-de-semana, faria esse tipo de faxina em seu próprio lar? Não, essa alegação da Sra. Rebelo não procedia. Fui lá na outra noite e conferi eu mesmo a
despensa — não achei que tivesse sido limpa no último mês! Mas por que a Sra. Rebelo tentaria nos impingir essa mentira? Qual seria seu interesse nisso? Dessa vez, não precisamos ir muito longe para conhecer
o motivo. Como sabemos, a Srta. Helene estava lá com ela. Até hoje, nem a sobrinha nem a tia disseram qual foi o tópico da conversa entre elas. Mas, pelo contexto, acho que não é necessário ouvi-las sobre
isso; podemos respeitar a intimidade familiar da Sra. Rebelo nessa questão.
— Obrigada, Sr. Fëll — disse Dolores. Lutava para conter as lágrimas. — Helene é como se fosse minha segunda filha... Perdeu os pais tão novinha! Prometi a mim mesma que sempre olharia por ela... Sempre!
— O que importa é que isso responde a nossa pergunta de antes. A Srta. Helene testemunhou a favor de sua tia com tanta veemência porque ela esteve lá, e viu que a Sra. Rebelo não poderia ter cometido o
assassinato do Sr. Ehrack. Agora, vamos a outro ponto. Srta. Mertins, preciso que me diga uma coisa. O Sr. Haggard estava mesmo na sala, lendo, quando a senhorita voltou para pegar a sua bolsa, no sábado
à noite?
— Não. Ele não estava.
— Das war mein Verdacht! Quando o mordomo falou conosco, ele disse que ficou até às 8:50h naquele sofá ali. Aonde terá ido, se a senhorita diz que não o viu? “Ele tinha saído”, vocês me dirão. Mas por
que sairia, eu lhes pergunto? A coisa é mais simples do que isso. Na verdade, quando a senhorita subiu pela segunda vez ao andar de cima, o Sr. Haggard estava na cozinha. Como podem ver, a porta da cozinha
não pode ser vista do vestíbulo. Isso explica por que o mordomo nunca falou que viu alguém subir os lanços da escada naquela hora.
“Não vou me estender sobre conjeturas e mais conjeturas. Basta dizer que minha investigação estava nesse pé, sem ir para frente nem para trás, quando, esta manhã, dois comentários alargaram o horizonte:
(1) O inspetor disse que havia um rótulo de uísque no bolso de Haggard, ontem, quando ele morreu; e (2) a Srta. Mertins mencionou que o dia hoje estava frio — em contraste com o calor que fez ontem.
“Estão percebendo onde quero chegar? Não, pois observem que o tempo todo a solução dos crimes dependia desses pormenores. O guarda-chuva úmido (que foi deixado propositalmente na cena do crime), a pegada
de barro (também feita com o intuito de despistar a polícia), todas essas coisas apontam para a mesma pessoa. O que significava que, após um lapso de dois anos, o assassino voltara a agir, e com a mesma
coragem e astúcia. E só há uma pessoa nesta sala que poderia ter dado o bote tão friamente. É alguém que conhecia esta mansão, e que podia olhar para a porcelana fàenza e dizer: “Já vi este material uma
centena de vezes.” Alguém que, no sábado de manhã, esteve aqui e trocou a garrafa de bebida do Sr. Ehrack — foi nesse instante que ele ouviu o tinido de vidro e copos na bancada do barzinho, inspetor.
Alguém que sabia que a escada de mão estava entre as moitas porque a viu ali horas antes. É uma pessoa que, quando entrou no gabinete, achou que o Sr. Ehrack já estaria morto por causa do uísque (que continha
ricina numa quantidade letal). E que, quando viu que não, pegou a arma que estava providencialmente ali à sua mão e atirou sem a menor hesitação. Uma pessoa que participou ativamente de minha investigação
e que, com genialidade, fingiu que estava falando com Haggard ao telefone... quando, nessa hora, ele já estava morto há mais de vinte minutos. Ou preciso corrigir alguma coisa, Sra. Gwenny-Dutra?
O mundo parou. Poder-se-ia ter ouvido a cinza se amontoando no fundo de um cinzeiro. Por uma eternidade, ninguém se mexeu.
Todos olharam para Fëll — para ver se ele estava gracejando. Tudo indicava que não. Depois os olhos se viraram para Leonora.
Leonora devolveu o olhar e, sem nenhuma inquietação, tocou na haste dos óculos.
— Não precisa corrigir coisa alguma, Sr. Fëll — respondeu placidamente. — Tenho minhas falhas, mas a hipocrisia não é uma delas.
— Ela? — perguntou Gassmer.
— Lamento dizer que sim — a voz de Fëll tinha uma nota triste. — Eu comecei a respeitar a senhora, a sua inteligência vivaz e o modo como ponderava sobre o crime. Mas aos poucos fui vendo que muitas coisas...
alguns fatos dos três assassinatos... estavam interligados. Pensei primeiro no dono do Três Empenas — ele poderia ter envenenado facilmente o Sr. Ehrack Pai. Havia apenas um empecilho para tudo isso: um
motivo sólido e coerente. Ninguém cometeria três crimes tão complexos e audaciosos sem uma forte motivação. Considerei então o Sr. Victor (havia vários indícios contra ele, incluindo seu perfil violento),
a Sra. Rebelo (que, como ex-mulher, era um candidata em potencial), a Sra. Basknell (que talvez cobiçasse a fortuna de seu namorado), e a Srta. Mertins (que teve todas as oportunidades para isso). Por
último, pensei na Srta. Susi, que tivera a ideia imprópria de fugir para um lugar em que não pudesse ser localizada. Daí, o acaso me ajudou a ver as coisas por um prisma diferente. Quando o inspetor falou
do rótulo de uísque, eu me lembrei de uma coisa. Na manhã seguinte ao crime, a Sra. Gwenny-Dutra estivera conosco no gabinete do Sr. Ehrack. Num dado momento, ela tinha visto o copo com uísque e, por impulso,
jogara o uísque pela janela a fora. Na hora aquilo parecera normal. Ora, havia sido só um copo de bebida. Mas agora, de repente, aquele acontecimento assumia outras formas. E se aquele gesto não tivesse
sido meramente impulsivo? Suponhamos que ela tivesse feito aquilo de propósito! Se tivesse feito de propósito, toda aquela cena acabava tendo um significado mais rebuscado. Houvera uma razão por trás daquilo,
um por quê. E o porquê poderia ter relação com o assassinato da véspera. Sim, as coisas estavam clareando mais e mais.
“Quando a Sra. Gwenny-Dutra subiu ao escritório naquela noite, e atirou no Sr. Ehrack, sua primeira reação foi criar a impressão de que o assassino entrara no local subindo por uma escada de mão pelo lado
de fora da mansão — uma peripécia que ela, em sua idade, não poderia ter feito. Foi tudo muito engenhoso, mas um pequeno erro ofuscou a sua encenação. O assassino não poderia ter entrado por ali porque
a Srta. Mertins, um pouco antes de sair, viu o Sr. Ehrack trancar a lingueta da veneziana. Mas o equívoco da Sra. Gwenny-Dutra tem uma explicação: ela, como eu já disse, julgava que a droga na bebida tivesse
surtido o efeito desejado. Por azar, o Sr. Ehrack estava com enxaqueca e não bebeu sua dose costumeira naquele dia. Depois de atirar é que ela armou toda aquela mixórdia de pistas falsas. É claro que,
na pressa — todos cometem falhas.”
— Isso é tão cruel! — exclamou Dolores Rebelo. — Eu não consigo entender...
— Lembra-se do trecho de texto que eu lhe mostrei na outra noite, Sra. Rebelo? Nele, o Sr. Ehrack contava algumas coisas de si mesmo e citava duas ou três pessoas que foram lesadas pelas práticas espertas
do próprio pai. Havia ali a menção de uma moça que precisou desmantelar a loja de tecidos para pagar alguns empréstimos e que, por causa disso, acabou cometendo suicídio. Lembrei-me que a Sra. Gwenny-Dutra
disse que o filho dela tinha cometido suicídio... depois da morte trágica da esposa. Hoje de manhã, depois de ouvir o inspetor, fui procurar detalhes sobre esse caso. Descobri uma espantosa ligação entre
os dois fatos: a dona da loja, mencionada naquele papel, era a nora da Sra. Gwenny-Dutra. Ou seja, fora a nora que tinha se enforcado e fora o próprio filho da Sra. Gwenny-Dutra que, esmagado pela dor,
atirara em si mesmo. E de quem fora a culpa por aquela sucessão de fatalidades? De Ermínio Ehrack, o advogado responsável pela derrocada da empresa da família.
“Uma mãe com o coração ferido... eu até diria, com o coração estraçalhado... pode ter uma reação arrasadora, dependendo das circunstâncias."
— Ninguém pode imaginar a dor — disse Leonora com a voz embargada. — Perder um filho... daquela forma... por causa da inconsequência de um velho gagá. Eu prometi a mim mesma que faria alguma coisa... E
o senhor também teria feito, se estivesse no meu lugar.
— Sem querer, a senhora acaba de corroborar alguns boatos que corriam pela vila. O Sr. Ehrack Pai tinha uma amante, ou melhor, uma pseudoamante, pois foi a senhora quem se aproximou dele e, furtivamente,
marcou um encontro com ele no Três Empenas naquela tarde. Foi a senhora quem entrou no apartamento do advogado e...
— Eu protesto! — atalhou Gassmer. — Ninguém viu essa mulher em meu hotel... não naquela hora!
— Ah, o senhor tocou no xis da questão. Ninguém a viu naquela hora porque ela passou pela recepção do hotel muito tempo antes das 18h. O senhor deve saber que havia um hóspede doente no 303, Sr. Gassmer.
— Aquele alemão, que ficou tossindo que nem um... er... condenado?
— E o senhor também deve saber que a Sra. Gwenny-Dutra costuma ajudar as pessoas que aprovam tratamentos fitoterápicos. Sob o pretexto de assistir ao alemão “que ficou tossindo como um condenado”, ela
entrou duas ou três horas antes do horário em que Pickwick supostamente chegaria. Daí veio toda aquela confusão que...
— O senhor está dizendo — interrompeu Radke — que Pickwick e ela... são a mesma pessoa?
— Exatamente isso. E a coisa funcionou, não foi? Embora simples, a tática a ajudou a sair ilesa do caso; creio até que a Sra. Gwenny-Dutra achou que estaria a salvo e que ninguém lhe causaria embaraços.
Mas o Sr. Ehrack Júnior fez uma coisa que poucos fariam — começou uma investigação a fim de descobrir, por conta própria, o que tinha acontecido com o pai. E, até eu tenho que dizer, ele foi muito bem-sucedido
em vários momentos. Foi tão bem-sucedido, aliás, que, depois de reconstituir todos os acontecimentos daquele dia, ele conseguiu o nome do provável assassino de seu pai. Mas saber disso era uma coisa; provar
era outra bem mais difícil.
“O que vou falar agora não passa de especulação. Pensem nisso... O Sr. Ehrack tinha a identidade do assassino, mas estava de mãos atadas. Faltavam provas — provas fundamentais. Assim sendo, o que ele resolve
fazer? Ele faz o que lhe parece mais apropriado: comunica-se com a própria Sra. Gwenny-Dutra e lhe diz que sabe de tudo! Talvez o Sr. Ehrack quisesse causar pânico — isso, por sua vez, talvez acabasse
gerando uma admissão de culpa. Mas o tiro sai pela culatra... e a partir dali a sua sentença de morte está automaticamente assinada.
— Sim... — concordei. — Na sexta de manhã... eu mesma vi! Leonora estava lendo um bilhete na sala de jantar. Ela disse que eram contas, mas o seu rosto estava tão contrito, tão perturbado... O bilhete
era do Sr. Ehrack!
— Wie schöen! — exclamou o detetive. — Isso confirma as minhas suposições. Foi, portanto, na sexta-feira que o assassinato começou a tomar forma.
“O truque da Gwenny-Dutra em querer alterar o depoimento de Haggard em cinco minutos foi ardiloso, uma jogada de mestre. E foi também a Sra. Gwenny-Dutra quem disse que, na caixa de medicamentos da Sra.
Rebelo, havia — entre outras coisas — ricina. A senhora colocou o produto ali, assim como também colocou na estante dela o compêndio sobre Veneno e seus Efeitos. A senhora sabe que essas coisas, quase
imperceptíveis, têm um alto poder de sugestão sobre um investigador desatento. Um poder de sugestão tão grande que pode influenciar decisivamente sobre os rumos de um inquérito em andamento.”
Não me envergonho de dizer — ao ouvir tudo aquilo, eu começara a chorar baixinho. Leonora... minha amiga... uma assassina?
— Não pode ser — objetei, secando os olhos. — E quanto a morte de Haggard? Eu estava lá, Sr. Fëll. Ela recebeu uma ligação, sou testemunha disso.
— Não, Srta. Mertins, isso foi o que ela quis que nós pensássemos. Tente se lembrar do que aconteceu. Imagine a Sra. Gwenny-Dutra na nossa frente, falando conosco. Quando o aparelho tocou, ela já estava
com ele na mão. A senhorita notou? Não? Ela já estava com o aparelho na mão. Ora, a Sra. Gwenny-Dutra fez uma chamada para si mesma! Ela atendeu e fingiu falar com alguém — e nós dois mordemos a isca direitinho!
Eu me forço a achar que foi naquele dia que Haggard viu que alguma coisa estava errada com a garrafa de uísque. Dúvidas devem ter surgido em sua mente: Quem teria feito a troca? Por quê? Depois de arrancar
o rótulo, ele foi para a casa da Sra. Gwenny-Dutra. Ele pode ter ido até lá apenas para falar com ela — ou é possível que tivesse uma pequena desconfiança de que ela estivesse implicada naquilo. Não importa...
A Sra. Gwenny-Dutra permite a sua entrada e, já no sofá, ele começa a expor as suas preocupações. Ela ouve o que o mordomo diz e, aos poucos, começa a ficar assustada. Aquele homem sabia demais! Aquele
homem tinha que ser calado! Assim, por instinto, ela toma dissimuladamente a peça de ferro e, na hora certa, bate nele com tamanha força que fratura a sua coluna. Pronto, isso eliminava o seu problema.
Mas, esperem, agora havia um corpo — e o corpo estava dentro da casa dela! Tirá-lo dali estava fora de cogitação. Era preciso camuflar o crime, de qualquer jeito. Pensando com rapidez, ela encontra uma
solução: fazer com que as pessoas achem que o assassinato aconteceu enquanto ela mesma estava fora de casa. Ou seja, era preciso criar a ilusão de que ela, na hora do crime, estava em outro lugar qualquer.
Bastava apenas achar algum tolo que caísse na história de carochinha dela. E o tolo fui eu — eu, Edmund Fëll, que deveria ter visto que tudo aquilo era um embuste! A Sra. Gwenny-Dutra põe o plano em ação:
depois de trincar a vidraça da porta dos fundos (o que reforçará a impressão de que o assassino saiu da mansão por ali), ela vai para a casa da Srta. Mertins. Lá, faz toda aquela encenação e nós, como
um bando de patos, corremos para a casa dela. Aqui entra o detalhe da temperatura que citei há pouco; o cadáver de Haggard ficou no sofá durante todo esse tempo, exposto ao sol. Com isso, ficou mais difícil
apurar a hora da morte — o toque de Midas para um plano espontâneo, mas bem executado.
— Ela é doente — disse a Sra. Rebelo. — Totalmente doente.
— Eles tinham que morrer — revidou a Sra. Gwenny-Dutra. — E eu os matei. Eu fiz justiça. Por Bernard e por mim. Eu fiz!
Ela se retirou na companhia de um dos policiais. Leonora... Era doído demais para aceitar aquilo!
— Acho que devo me desculpar — disse Gassmer com a voz mais branda. — Sou uma pessoa terrivelmente incrédula. Não pensei que o senhor... Bem, provou que eu estava equivocado.
— Machen Sie sich keine Sorgen — Fëll fez um gesto magnânimo.
— E quanto a mim? — perguntou Harrison indócil. — Vou ser autuado?
— É inevitável — respondeu Radke. — Vai ser julgado e terá uma sentença proporcional ao que fez.
— Que um raio os fulmine! Principalmente o senhor, seu suíço intrometido!
Fëll deu de ombros, cansado.
— Não sou supersticioso, meine Junge. E mesmo que fosse, cada um de nós é dono de seus próprios atos. Crime é crime. Que isso sirva de lição a todos.
Epílogo
É sexta-feira. É quase noite e lá fora continua garoando. Estou no escritório do Sr. Ehrack, digitando esse epílogo. O inspetor Radke veio comigo — acho que ele tem uma pequena queda por mim! Percebi isso
enquanto eu limpava os pés no capacho lá embaixo. O sorriso dele... meio bobo. Mas nem ele sabe por que pedi para ficar só por alguns instantes.
Eu quase fui presa hoje e...
Deixe-me explicar melhor. Vou contar tudo desde o começo.
Ontem de tarde, Susi passou em minha casa. Vi que ela estava eufórica, as faces num vermelho cor de fogo; adivinhei que tinha acontecido alguma coisa.
— Então? — perguntei. — Você confessou, Susi?
— Que jeito de falar, Miriam? Eu não confessei nada. Aquele detetive... que homem infame!... disse que se sentou e simplesmente deduziu tudo.
— Deduziu? Ora, não venha com essa! — comecei a me irritar. — Você queria o quê? Você foge no dia em que seu pai é assassinado e ainda quer que isso abafe o caso? Susi, você é uma doida varrida!
Esse insulto mexeu mesmo com ela!
— Pois saiba que você também é culpada — disse muito brava. — Essa sua mania de usar esses saltos ridículos! Você vai ver... Foi isso que nos delatou.
— Meus saltos? Só faltava essa! O que é que meus sapatos têm a ver com isso?
— Você vai ver, eu já disse. Nós duas fomos intimadas, Miriam. Amanhã de manhã o Sr. Fëll irá embora daqui.
— E daí?
— Daí que ele me pediu que eu dissesse a você que fôssemos nos despedir dele. Isso não lhe diz nada, sua sabichona?
— Permaneço no escuro.
— Acontece que o inspetor da polícia também estará lá. Satisfeita agora?
O inspetor... Susi e eu... e Fëll? Isso era mau. Mau não. Péssimo.
Tentei confortar Susi — talvez fosse tudo coincidência. Mas nem eu estava muito convicta disso.
Havia alguma coisa no ar.
Dormi mal. Pensei em não ir. Eu contrapartida, se eu não fosse estaria servindo minha cabeça numa bandeja de prata. Leonora fora desmascarada; eu me lembrava de seus olhos — cruéis e sem emoção. E eu nunca
tinha desconfiado dela!
Chegara a minha hora de encarar o patíbulo.
Às nove horas da manhã fui para a estação ferroviária. É lá que se daria o adeus. Encontrei um grupo de pessoas na plataforma; entre elas, Edmund Fëll, bem asseado, com uma mala com fivelas perto do banco.
— Mertins! — exclamou Fëll. Estava feliz por me ver. — Venha, estávamos esperando que viesse.
Ele tinha se levantado para me cumprimentar. Sorri lisonjeada. Notei que o trem já resfolegava, soltando fumaça.
Susi e Radke também apertaram minha mão. E, certo, Tomazelli, que me deu um sorriso brejeiro.
— Não foi trabalhar hoje, Srta. Mertins? — perguntou.
— A Sra. Oeschler adiantou as minhas férias. Ela acha que ainda estou exausta. Pensei em dar uma passada aqui.
— Fez muito bem, Fräulein — disse o austríaco. — Fez muito bem.
Radke ficou de costas para nós, lendo um cartaz do mural, como se não quisesse olhar para mim. Tive um baque — minhas previsões estavam certas! Minha hora havia chegado.
— Então o senhor vai partir — tentei ganhar tempo. — Deve estar orgulhoso, depois da semana cheia de atividades.
— Miriam! — disse Susi.
Havia uma súplica na voz dela. Ela estava de pé, o corpo reto, e uma nódoa de receio no rosto. Mordi o lábio e me calei.
— Danke, Srta. Ehrack! — disse Fëll. — Sim, estou partindo, Mertins. Mas antes temos alguns assuntos para liquidar. O trem... às dez horas... meia hora, acho que dá tempo.
— Meia hora... por quê? O que estamos fazendo aqui?
— Ficaram algumas coisas por esclarecer — acrescentou o detetive. — Pedi ao inspetor para vir e julgar o caso por si mesmo.
— Que coisas?
— Por exemplo, o que Harrison Victor conversou com a Srta. Ehrack na noite fatídica, na praça? E também: o que o Sr. Ehrack tinha a tratar com a senhorita naquelas sessões de datilografia. Acho que, em
suma, é isso. A senhorita, no outro dia, acusou Harrison de um roubo — que ele, comprovadamente, não cometeu. Fiquei me perguntando qual teria sido sua motivação ao fazer aquilo. A senhorita estava querendo
se safar e tentou desviar as nossas suspeitas para outra pessoa, não é, Mertins?
— Não sei do que está falando!
— Ah, sabe sim. A senhorita e a Srta. Ehrack são cleptomaníacas, não é mesmo?
Senti o chão rodopiar.
— A começar, temos o roubo do jogo de chá de Samantha Edgeware — enumerou Fëll. — Havia furos bem característicos na terra argilosa do quintal dela. Furos de sapatos de salto, estão percebendo? Lembro-me
de que já lhe sugeriram que usasse sapatos com saltos menores, não foi? Vamos a um segundo fato: a Sra. Rebelo disse que, tempos atrás, os brincos de Helene Victor sumiram sob circunstâncias um tanto,
digamos, duvidosas. Aparentemente, eles tinham caído na água, mas esta semana voltamos a achá-los num cofre, bem longe do local do suposto acidente. Havia quatro pessoas na pontezinha, o local do sumiço:
Mertins, a Srta. Ehrack e os irmãos Victor. Descartando automaticamente a Srta. Helene, qual dos outros três poderia tê-los furtado?
“Havia outra peça desse mecanismo que não me saía da cabeça. Por que a Srta. Mertins, depois de ler um trecho da carta recebida pela Sra. Rebelo, fora sozinha atrás de sua colega até a casa dos Reusfeld?
Tive que segui-la para chegar até lá! Isso só podia ter um significado: que havia alguma coisa nessa história que elas queriam ocultar... ou que precisava ser ocultada. Alguma cumplicidade no assassinato
do Sr. Ehrack? Era improvável. Havia mil e outras possibilidades, e estava visto que esse acontecimento isolado não seria de muita ajuda. Mas o fato — quando pensei nele mais tarde — levou-me de novo ao
triângulo Mertins/ Srta. Ehrack/ Sr. Victor.
“Não vou aborrecê-los com firulas técnicas e descrições de minha metodologia de trabalho. Basta dizer que, depois de refletir em todos os fatos, organizei a sequência de eventos do seguinte modo. Vamos
recuar no tempo até sábado, depois do meio-dia. O Sr. Victor entra no escritório do tio atrás das cartas fictícias do Sr. Gassmer. Ele não as encontra, mas subitamente ele vê um relógio de prata. Transtornado,
o rapaz o toma na mão e olha mais de perto. Fora ele que comprara aquele relógio! Fora ele que o dera de presente à Sra. Samantha Edgeware, por quem estivera apaixonado! As iniciais S.E. estão ali, impressas
nele... Como é que aquele objeto tão íntimo viera parar ali? Nesse instante, porém, o seu tio entra e... acontece toda aquela discussão doméstica que nós já conhecemos.
“Creio que, ao sair da mansão, o rapaz desconfiava seriamente do Sr. Ehrack. O seu tio — um ladrão? A Srta. Helene, ao ouvir o seu relato, deve ter ficado tão atônita quanto ele. Mas, como mulher, ela
logo se revelou mais prudente que o irmão. Ela sugere que, em vez de ir para a polícia, falem com alguém sobre o caso. Alguém influenciável e que possa ajudá-los a, quem sabe, chantagear o tio. Os Victor
precisavam de dinheiro; eles sabiam que seus fundos de poupança não durariam para sempre. Pode contar para nós o que aconteceu naquele dia, Srta. Ehrack? Parece que escolheram a senhorita para ser pivô
da chantagem.”
— De tarde, minha prima falou comigo e disse que sabia de uma coisa escandalosa sobre papai — disse Susi. — Helene estava muito emocionada, mas acho que ela só queria me impressionar. Quando eu encontrei
Harrison de noite, ele foi curto e grosso; disse que papai estava envolvido em alguns furtos e que, se dependesse dele, não iria denunciá-lo... mas que isso teria o seu preço. Eu lhe respondi: “Harry,
que coisa sórdida! Não acredito que papai... ele nunca roubaria nada de ninguém.” Ele riu e tirou um relógio do bolso. “Você sabe o que é isso, Susi? Esse é o presente que fiz sob encomenda para Samantha.
E seu pai... aquele porco ordinário... o roubou dela. Sim, isto estava lá no gabinete dele.” Fiquei com as pernas bambas. “Oh, querido, você está enganado. Não foi papai...” “Ora, pare de choramingar,
Susi. Se você não expuser as minhas condições, vou direto para a delegacia.” Continuei falando: “Não, Harry, está havendo um engano. Não foi meu pai quem pegou isto da casa da Sra. Edgeware. Fui eu! Eu
e Miriam... Fomos nós duas!” Harrison hesitou: “Você e Miriam?” “Você gosta daquela sirigaita, Harry. Ela é rica, Harry. Falava nela como se fosse a rainha de Sabá. Oh, Harry! Eu sempre amei você. Eu —
eu é que amo você! Você nunca reparou em mim. Harry, por quê? Por que não?” Ele deu um passo atrás. “Então... seu pai... como?” “Eu não sei como, mas ele ficou sabendo do nosso furto. Harry, tive que lhe
entregar tudo... As jóias, as xícaras... Papai fez-me prometer que eu ficaria longe de Miriam. Oh, eu quis morrer!” Harrison estava mudo. “Foram vocês!... Samantha, meu amor... Samantha!” Com asco de mim,
ele se afastou e sumiu na noite. Fui para casa, Sr. Fëll, totalmente danificada. Quando cheguei lá, como já lhe falei, vi toda aquela movimentação de gente. O Dr. Ritterbuch... as coisas que ele disse
para me reconfortar... Lembro que atirei o relógio no chafariz... e não sei nada do que aconteceu depois.
— Está bom assim, Srta. Ehrack — disse o austríaco. — Esta versão é melhor do que a outra que nos apresentou. Danke! Agora, Srta. Mertins... Poderia nos contar qual foi o teor da conversa que teve com
o Sr. Ehrack naquela mesma noite?
Dei um suspiro. Os soluços de Susi... o chiar rouco do trem... tudo isso me atordoava.
— Na sexta de noite, tudo foi muito bem. Eu escrevi, ele conferiu, elogiou... toda aquela coisa. Mas no sábado, um pouco antes de eu sair, o homem disse que queria me fazer um pedido. Assenti, e fiquei
sentada, esperando. Ele começou a falar e à medida que foi falando, eu senti que ficava cada vez mais admirada. “Senhorita, eu lamento ser tão franco... Tenho que lhe dizer, porém, que Susi abriu o jogo.
Ela disse que, com a sua conivência e ajuda, roubou algumas coisas de uma pessoa. Acho que a senhorita compreende a minha posição de pai. Vou fazer de tudo para que isso não transpire... Mas vou lhe solicitar
que, pelo menos por umas semanas, não tenha associação com minha filha. Sim, é um castigo... Não vai doer nada. Ela já me deu alguns objetos... vou tentar devolvê-los sem levantar suspeitas sobre vocês
duas.” Eu ouvia, tentando discernir onde ele queria chegar. “No fundo, achei que Susi teve muita coragem. Ela — que sempre foi tão quietinha — lesou uma mulher porque estava com ciúmes dela! Ciúmes...
Mas a lei não tem atenuantes para essas coisas. Os brincos que ela subtraiu de Helene também estão comigo... Só lhe peço isso, senhorita: fique longe de minha filha por um tempo. Nenhuma de vocês é má
— mas as duas juntas são uma má influência uma para a outra.” “Tudo bem, Sr. Ehrack! Se é isso o que o senhor quer...” “Ótimo, estou feliz que tenhamos nos entendido.” Eu estava em prantos quando saí,
e meus pensamentos não eram nada alegres. Fui para casa e lá, como o senhor disse ontem, notei que tinha esquecido a bolsa com as chaves. Voltei para o escritório e, ao chegar ali, encontrei o Sr. Ehrack
morto. A arma, o corpo, a janela batendo com o vento... Fiquei horrorizada com aquele cenário. Na hora, pensei que ele tivesse se matado.
Fëll sacudiu a cabeça em agradecimento.
— Exatamente o que eu presumi. Isso esclarece porque o Sr. Fadeschi, o advogado, disse que o Sr. Ehrack nomeou a Srta. Helene uma de suas herdeiras: ele queria compensá-la de um erro recente cometido por
sua filha. De um modo ou outro, ele ficou sabendo do roubo dos brincos (uma pequena malvadeza da Srta. Susi) e achou que seria apropriado reparar a injustiça concedendo à sobrinha uma parte de seu dinheiro.
Além disso, conforme deve ter visto, Mertins, a senhorita foi contratada por uma razão específica. Seu trabalho como secretária era apenas um engodo. O Sr. Ehrack precisava de um pretexto para lhe falar
sobre um assunto melindroso. E conseguiu, depois de angariar a sua amizade. Eu receio, porém, que a senhorita enterrou parte da louça que tiraram da casa da Sra. Edgeware.
— Compreendo... O Sr. Gassmer!
— Sim. Quando estive no hotel, ontem à tarde, ele disse que a viu enterrando alguns diários velhos. Pensei nisso e julguei que enterrar diários não combinava muito com seu perfil, Mertins. Fui lá, esta
manhã cedo, cavoucar o solo com a pá e... Zás! Achei as peças da prataria.
— Não somos cleptomaníacas, Sr. Fëll — disse Susi corajosamente. — Não quero ser designada com esse nome. Foi uma infantilidade... que eu nunca teria feito se soubesse que Harry era tão mau.
— Gut so, senhorita, não vou mais mencionar esse adjetivo.
Radke deixou para trás o mural e perguntou:
— Quer dizer que toda aquela lenga-lenga de biografia era só um subterfúgio?
— Em partes, sim. Mas há mais uma razão. Dizem que a perspicácia é a capacidade de ver além da superfície de acontecimentos que, apesar de tudo, parecem triviais. Esse caso é um bom exemplo disso. Lembram
que ontem, durante minhas declarações, eu disse que a Srta. Mertins tinha interpretado mal algumas palavras do Sr. Ehrack?
—Vagamente. O senhor falou alguma coisa sobre semântica.
— Exato, das ist es. Quando ele mencionou que tinha pouco tempo de vida, o Sr. Ehrack não quis dizer que receava que alguém estava intencionando matá-lo. Foi a Srta. Mertins que entendeu isso. Não, longe
disso. A Sra. Rebelo, sem querer, revelou para nós que o ex-marido tinha feito uma viagem à capital. Deliberei ontem com o Dr. Beryl; ele acabou dizendo que o Sr. Ehrack apresentava recorrentes problemas
no baço. E, infelizmente na capital, o diagnóstico confirmou o laudo preliminar. O câncer estava em fase terminal.
Susi tinha ficado pálida:
— Papai... com câncer — murmurou muito branca. — Por que ele nunca contou nada?
— Acredito que ele queria poupá-las... Segundo o médico, seu pai dispensou a quimioterapia. A biografia foi composta, portanto, por esta segunda razão. Era um modo de fazê-lo esquecer do fim ominoso que
se aproximava inexoravelmente mais a cada dia.
Radke tentou dar uma guinada no assunto.
— Quanto ao caso Edgeware...
— ... está solucionado — disse Fëll. — Foram essas duas moças... Mas eu lhe peço, inspetor, que seja clemente. Foi um roubo sem maiores consequências. Acho até que elas já se arrependeram do que fizeram.
Não é mesmo, Misses?
Susi e eu abanamos simultaneamente a cabeça.
O condutor do trem passou por nós:
— Senhores passageiros, embarquem, por favor.
O austríaco lançou um olhar para a sua valise.
— Deixe comigo — disse o inspetor. — Eu levo a sua bagagem.
— Wunderbar, Herr Inspektor. Agradeço também ao meu amigo Tomazelli. Foi uma semana realmente revigorante...
— Venha quando puder, mio amicci. Talvez eu consiga mais moedas para sua coleção.
— Aufwiedersehen!
Fëll subiu e, quando o trem se pôs em marcha, vimo-lo acenar de uma das cabinas.
Radke se virou para meu senhorio.
— Naquela mala — perguntou — havia moedas?
— Ah, o senhor estranhou o peso? — Tomazelli riu, matreiro. — Antes de morrer, pensei em fazer uma boa ação, sabe?
Creio que essa cena termina a minha narrativa. Bem a tempo. São nove horas. Ouço passos nos degraus da escadaria. A porta range... Meu valente inspetor espia pelo vão semiaberto.
— Já acabou, senhorita?
— Sim — respondo. — Já acabei.
— Que bom — diz ele. — Podemos ir quando quiser. Não sou medroso, mas esta mansão...
Digo que sinto a mesma coisa. Faço uma última pergunta:
— Herr Inspektor, sobre a morte da mulher do leiteiro... Acha que o marido pode estar implicado no crime?
Radke aperta os olhos, desconfiado:
— Estamos analisando todas as evidências. Por quê? Sugere que ele tem alguma culpa?
É exatamente em lugares assim, longe de centros urbanos, que acontecem os maiores e mais sórdidos dramas. Ouço a frase de Fëll ressoando em meus ouvidos.
— Quem sabe — digo misteriosamente. — Quem sabe...

 

 

                                                                  Alec Baurer

 

 

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