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Domingo foi outro dia luminoso. Nem uma agulha bulia nas árvores, e as cores espalhadas pelo vale cintilavam ao sol. Avezinhas de peito branco saltitavam de ramo em ramo, bicando as bagas vermelhas. No terraço, deixei-me envolver pela paisagem. A natureza parece prodigalizar a sua beleza a todos, sem distinção entre pobres e ricos. Tal como o tempo. Não, esqueçam; com o tempo, a história é outra. O dinheiro pode ajudar a comprar uma porrada de coisas.
O Toyota Prius azul subiu a encosta e parou diante da porta às dez em ponto. Shoko Akikawa trazia uma fina camisola de gola alta bege e calças justas verde-claras. À volta do pescoço usava um fio dourado, que fulgia com um brilho ligeiro. Estava muito bem penteada, tal como na visita anterior. Quando abanava o cabelo, dava para ver a linha delicada do pescoço. Nesse dia, porém, usava uma mala de pele a tiracolo, e não uma bolsa. Calçava mocassins castanhos. Apesar de informalmente vestida, saltava à vista que demorara a escolher cada peça de roupa. Além disso, os seios balançavam de uma maneira atraente. A acreditar no segredo partilhado pela sobrinha, não existia ali qualquer chumaço. Senti-me atraído pelo peito dela – num sentido puramente estético, é bom de ver.
Marie usava calças de ganga azuis – perna direita – e ténis brancos, o que constituía uma mudança de cento e oitenta graus em relação à visita anterior. Vários rasgões pontuavam as calças (em sítios estratégicos, obviamente). A camisa aos quadrados que trazia vestida em nada desprestigiaria a indumentária de um verdadeiro lenhador. À volta dos ombros trazia um leve corta-vento cinzento. Por baixo da camisa, o peito era liso como uma tábua – já nós sabíamos. À imagem e semelhança do que acontecera da primeira vez, ostentava uma fronha mal-humorada. Fazia lembrar um gato a quem tivessem surripiado o pratinho de comida a meio do repasto.
Tal como na semana anterior, fui à cozinha, preparei um bule de chá e levei-o para a sala. A seguir, mostrei-lhes os três dessan que fizera.
Shoko Akikawa deu mostras de apreciar o resultado.
– Transbordam de vida! – exclamou. – São muito mais parecidos com a Marie do que as fotografias.
– Posso ficar com eles? – perguntou a rapariga.
– Claro que sim – respondi. – Mas só depois de terminar o retrato. Até lá, fazem-me falta.
A tia pareceu preocupada.
– A sério? Não estará a ser demasiado...
– Não se preocupe – sosseguei-a. – Quando o retrato estiver acabado, não me servirão de nada.
– Vai usá-los como esboços preliminares? – quis saber Marie.
– Não. – Abanei a cabeça. – Desenhei-os com o único propósito de obter uma perceção tridimensional da tua pessoa. A Marie transposta para a tela será totalmente diferente.
– Sabe dizer-me como vai ficar?
– Por enquanto, não. Teremos de viver essa experiência em conjunto.
– Descobrir qual o meu aspeto a três dimensões? – insistiu Marie.
– Exato. Embora se trate de uma superfície plana, não é por isso que uma pintura deixa de ser tridimensional. Estás a seguir o meu raciocínio?
Marie franziu a testa. Passou-me pela cabeça que talvez associasse o vocábulo «tridimensional» ao peito pequeno. Com efeito, olhou de relance para as curvas que modelavam a camisola da tia antes de me encarar.
– Como é que se aprende a desenhar tão bem? – quis ela saber.
– Referes-te a estes esboços?
Marie acenou afirmativamente.
– Sim, esboços, desenhos e debuxos... essas coisas.
– É tudo uma questão de prática. Quanto mais se pratica, melhor fica.
– Muita gente, certamente a maioria – opinou ela –, nunca faz progressos, por mais que se esforce.
Acertara em cheio. No curso de Belas-Artes, pelo que pude observar, poucos eram os colegas que sabiam desenhar um saco de papel. Mesmo não querendo cortar na casaca de ninguém, o certo é que somos condicionados pelo talento natural que possuímos, ou pela falta dele. Aí têm uma certeza básica com a qual todos temos de aprender a viver.
– É justo, mas não invalida que tenhas de praticar. Se uma pessoa deixa de exercitar o seu mester, o talento não surgirá para que as outras pessoas possam reconhecê-lo.
Shoko assentiu em jeito de confirmação. Quanto a Marie, parecia pouco convencida.
– Gostarias de vir a ser uma boa pintora, não é verdade? – perguntei-lhe.
Marie fez que sim com a cabeça.
– Gosto daquilo que vejo e daquilo que não vejo – disse ela.
Encarei-a de frente. No seu olhar brilhava uma luz. Ainda que não soubesse interpretá-la, aquela luz interior seduzia-me.
– Ora aí está uma ideia absurda – declarou Shoko. – Parece que te exprimes por enigmas.
Marie não respondeu, limitando-se a examinar as mãos. Quando ergueu os olhos, passado um bocado, a luz dissipara-se. Durara apenas uma fração de segundo.
Encaminhámo-nos para o estúdio. Na sala, Shoko Akikawa agarrou-se ao calhamaço de capa mole – parecia ser o mesmo que trouxera na semana anterior – e sentou-se no sofá a ler. Aparentava estar absorvida na leitura. A minha curiosidade em relação ao livro aumentara significativamente, mas não fiz perguntas.
Marie e eu sentámo-nos de frente um para o outro, à distância de dois metros, tal como da primeira vez. A única diferença era que eu tinha agora o cavalete e a tela diante de mim. Nada de tinta nem pincel, porém. As minhas mãos estavam vazias. O meu olhar, inquieto, não parava, passeando para cá e para lá, de Marie para a tela e regressando a Marie, enquanto me debatia mentalmente com o quesito de saber até que ponto seria melhor retratá-la a três dimensões. Urgia arranjar uma narrativa sobre a qual trabalhar. Não bastava observar a pessoa que me cabia em sorte pintar. Nada de positivo resultaria daí. O retrato até podia ficar parecido, mas não passaria disso. Para fazer um retrato digno desse nome, eu precisava de descobrir a narrativa ali contida, desse por onde desse. Nesta altura do campeonato, só assim o jogo teria início.
Ficámos algum tempo ali sentados; eu no banco redondo, Marie na cadeira de costas direitas. Estudei-a com atenção. Ela susteve o meu olhar sem pestanejar, nunca desviando o seu. Mais do que exibir uma atitude de desafio, traduzia firmeza. A perfeição dos seus traços, dignos de uma boneca, tinha o condão de enviar às pessoas o sinal errado – no mais fundo recesso do seu ser, possuía uma forte consciência de si própria e da sua maneira de fazer as coisas. A partir do momento em que traçava uma linha, dificilmente se afastaria dela um centímetro.
Havia algo nos olhos de Marie que me fazia lembrar Menshiki, embora tivesse de me aproximar para ver bem. A semelhança, anteriormente pressentida, continuava a deixar-me espantado. Do olhar de ambos transparecia uma estranha «chama gelada» – era a expressão que me ocorria. Apesar de se desprender dela calor, era fria e contida. Como uma joia rara cujo brilho provinha de dentro. Quando projetada para o exterior, a sua claridade refletia uma vincada ânsia. Focada no âmago, esforçava-se por alcançar a forma definitiva.
O sangue de Menshiki poderia correr nas veias de Marie, atendendo à confidência que me fizera? Inconscientemente, talvez isso me tivesse levado a associá-los.
Fosse qual fosse o caso, era fundamental transferir aquele brilho que ardia nos seus olhos para a tela, captar em toda a sua especificidade o elemento essencial no semblante dela, aquilo que transparecia através do seu exterior modulado. Contudo, ainda não localizara o contexto que permitiria semelhante transferência. Se falhasse, a tal luz cálida estaria condenada a adquirir os contornos de uma pedra preciosa, fria e impassível, apenas isso. De onde provinha o calor, e para onde se dirigia? Precisava a todo o custo de descobrir.
Durante uns bons quinze minutos, a minha atenção repartiu-se entre o seu rosto e a tela, entre a tela e o seu rosto. A páginas tantas, desisti. Afastei o cavalete e inspirei e expirei lentamente várias vezes.
– Vamos conversar – propus.
– Hum... está bem – disse ela. – Conversar acerca de quê?
– Gostaria de saber mais sobre ti, se concordares.
– Como por exemplo?
– Para começar, que tipo de pessoa é o teu pai?
Marie esboçou um sorriso pretensioso.
– Não o conheço muito bem.
– Não se falam?
– Raramente nos vemos.
– Por ele estar muito ocupado a trabalhar?
– Sei lá eu o que é o trabalho dele – respondeu Marie. – O meu pai não quer é saber da filha, acho.
– Não quer saber de ti?
– Foi por isso que pediu à minha tia para tomar conta de mim.
Fingi que não era nada comigo.
– E a tua mãe? Lembras-te dela? Tinhas seis anos quando morreu, não é verdade?
– Só me lembro dela aos bochechos.
– O que significa isso, aos bochechos?
– A minha mãe desapareceu da noite para o dia. Na época, eu era demasiado pequena para compreender o significado da morte. Portanto, continuo sem saber o que aconteceu. Ela estava lá e depois já não estava. Como o fumo.
Por um momento, Marie não tugiu nem mugiu.
– Aconteceu tudo muito depressa, e eu não compreendi porquê – lá acabou por dizer. – Assim se explica que não me lembre dessa parte da minha vida, imediatamente antes e depois da morte dela.
– Deves ter ficado baralhada.
– É como se existisse um muro alto a dividir o momento em que ela estava e em que deixou de estar. Não consigo estabelecer ligação entre as duas partes. – Mordeu o lábio por instantes. – Compreende o que quero dizer?
– Penso que sim – respondi. – A minha irmã morreu tinha ela doze anos. Contei-te, não foi?
Marie acenou afirmativamente com a cabeça.
– Nasceu com uma válvula defeituosa no coração. Foi operada, e a situação deveria ter ficado resolvida, mas, por qualquer razão, o problema persistiu. É caso para dizer que ela viveu com uma bomba-relógio dentro dela. Em resultado disso, todos os membros da família estavam mais ou menos precavidos para o pior. A sua morte não nos caiu em cima como um raio, como aconteceu com a tua mãe quando foi picada por vespas.
– Um raio?...
– Um raio vindo do nada – expliquei. – Um raio caído do céu. Refiro-me a um acontecimento repentino e inesperado.
– Um raio vindo do nada – murmurou ela. Dava a impressão de estar a arquivar religiosamente a frase na sua mente.
– Seja como for – prossegui –, toda a gente lá em casa tinha noção do que poderia acontecer. Mas quando isso se verificou, quando ela teve um ataque cardíaco e morreu de repente, no mesmo dia, a preparação mental de nada nos serviu. A morte dela paralisou-me por completo. E não fui só eu; toda a família sentiu o mesmo.
– Mudou alguma coisa dentro de si?
– Sim, tudo mudou por completo. Tanto dentro como fora de mim. O tempo deixou de passar como era costume e começou a fluir de forma distinta. E, como tu bem disseste, comecei a sentir dificuldade em relacionar o modo como as coisas eram antes e depois da sua morte.
Marie fitou-me durante uns bons dez segundos sem dizer palavra.
– A sua irmã significava muito para si, não era? – acabou por perguntar.
– Sim – disse eu. – Significava.
Marie pousou os olhos nos joelhos.
– Por ter bloqueado a memória – disse ela, levantando os olhos –, sinto dificuldade em recordar-me da minha mãe. O género de pessoa que era, o seu rosto, as coisas que me costumava dizer. O meu pai também não fala muito dela.
O que eu sabia sobre a mãe de Marie resumia-se ao relato pormenorizado feito por Menshiki da última vez que eles haviam tido relações sexuais. A cena passara-se no sofá do escritório – o mais certo era Marie ter sido concebida durante esse encontro – e ganhara contornos violentos. Não se podia dizer que ajudasse muito.
– Deves lembrar-te de alguma coisa, mesmo que não seja importante. Afinal, viveste com ela até aos seis anos.
– Lembro-me do cheiro.
– Do cheiro do corpo dela?
– Não, do cheiro da chuva.
– Da chuva?
– Era um dia de chuva. Chovia de tal maneira que eu ouvia as gotas baterem no chão. Mas a minha mãe estava lá fora sem guarda-chuva. Por esse motivo, andámos as duas à chuva, de mãos dadas. Acho que foi no verão.
– Durante um aguaceiro de verão, terá sido?
– Creio que sim. O pavimento estava quente do sol e libertava aquele odor. É do que me lembro. Encontrávamo-nos num local montanhoso, num miradouro qualquer. E a minha mãe cantava uma canção.
– Que género de canção?
– Da música não me recordo, mas lembro-me de certas palavras. Qualquer coisa como «o sol cintila sobre um enorme campo verde na outra margem do rio, mas deste lado a chuva persiste em cair». Lembra-se de ouvir uma canção assim parecida?
– Não – respondi. – A letra não me diz nada.
Marie encolheu ligeiramente os ombros.
– Já perguntei a várias pessoas, mas ninguém conhece a canção. Porque será? Acha que a inventei?
– Se calhar, quem a inventou foi ela, de propósito para ti.
A jovem levantou a cabeça e sorriu.
– Nunca tinha pensado nisso. A ser verdade, é uma ideia encantadora.
Creio que foi a primeira vez que a vi sorrir. Foi como se um raio de sol assomasse por entre as nuvens, iluminando um sítio especial. Era esse tipo de sorriso.
– Serias capaz de reconhecer o local se lá voltasses? – perguntei. – Refiro-me ao tal miradouro nas montanhas.
– Talvez – respondeu Marie. – Não tenho a certeza.
– Acho muito interessante que conserves essa cena gravada na memória.
Marie limitou-se a assentir.
Permanecemos ali sentados, a ouvir os pássaros. Lá fora, através da janela, o céu de outono estava sereno e límpido. Não se via uma nuvem. Encontrávamo-nos mergulhados no nosso pequeno mundo, alimentando pensamentos fortuitos.
Foi Marie quem quebrou o silêncio.
– Porque é que esse quadro não está de frente para nós? – perguntou.
Apontava para o meu quadro a óleo (em bom rigor, para o meu potencial quadro a óleo), representando o homem do Subaru Forester branco. A tela encontrava-se no chão, virada para a parede, para eu não me pôr a olhar para ela.
– Propus-me pintar o retrato de um determinado homem. É um trabalho inacabado, mas a verdade é que não tenho feito progressos.
– Posso vê-lo?
– Claro que sim. Está numa fase incipiente. Há ainda um longo caminho pela frente.
Virei o quadro e coloquei-o no cavalete. Marie levantou-se da cadeira, aproximou-se e ficou de pé diante dele, de braços cruzados. O olhar recuperara o brilho intenso. Os seus lábios formavam uma linha a direito.
Apesar de ter utilizado três cores – vermelho, verde e preto –, não lograra dar ao homem uma forma distinta. O esboço inicial, feito a carvão, encontrava-se por trás, tapado pela tinta. Mas eu sabia que estava lá. Captara-o na sua essência. Era como um peixe apanhado na rede. Desunhei-me para o trazer à superfície, e ele lutou desesperadamente para escapar. No auge do braço de ferro, deixara o quadro de pousio.
– Foi aqui que ficou? – perguntou Marie.
– Exatamente. A partir deste ponto, não fui capaz de prosseguir.
– Parece-me um trabalho acabado – murmurou a jovem.
Coloquei-me ao lado dela e estudei o quadro da sua perspetiva. Conseguiria ela realmente ver o homem que se ocultava nas trevas?
– Estás a dizer que não preciso de acrescentar nada? – perguntei.
– Sim. Na minha opinião, não deve tocar mais no quadro.
Engoli em seco. Marie repetia, quase palavra por palavra, o que o homem do Subaru Forester branco tinha dito. Não toques em nada. Não adiciones nada.
– O que te leva a pensar assim? – insisti.
Marie não respondeu logo. Em vez disso, voltou a estudar o quadro. Deixou cair os braços e levou as mãos à cara com força. Como se tivesse as faces quentes e quisesse refrescá-las.
– Tal como está, o quadro é mais do que poderoso – disse ela por fim.
– Mais do que poderoso?
– É a impressão que me dá.
– Referes-te a uma forma de poder menos positiva?
Marie não respondeu. Continuava a pressionar as mãos contra a cara.
– Conhece bem o homem retratado no quadro?
Abanei a cabeça.
– Para ser sincero, trata-se de um perfeito estranho. Cruzámo-nos há tempos numa cidade longe daqui, no decorrer de uma longa viagem. Como nunca chegámos à fala, desconheço o nome dele.
– Não lhe sei dizer se o poder é positivo ou negativo. Tanto pode ser uma coisa como outra, dependendo da situação. Como acontece quando as coisas mudam conforme a nossa posição, está a ver?
– E, na tua opinião, não devo permitir que esse poder transpareça. Acertei?
Ela olhou-me de frente.
– Imagine que isso acontecia e que, afinal, se revelava uma coisa menos boa. O que faria se a dita coisa tentasse deitar-lhe a mão?
Marie tinha razão. Se fosse uma coisa menos boa, para não dizer uma coisa má, e me deitasse a mão, o que faria eu?
Retirei a tela do cavalete e tornei a pousá-la no chão, virada para a parede. Assim que a superfície do quadro ficou oculta, a tensão no estúdio diminuiu consideravelmente. Estamos a falar de uma sensação palpável.
Talvez o melhor seja embrulhar o quadro e guardá-lo no sótão, pensei. Tal como Tomohiko Amada fizera com A Morte do Comendador, para impedir que alguém o visse.
– Muito bem. Então, que me dizes? – perguntei, apontando para A Morte do Comendador, pendurado na parede.
– Gosto – respondeu Marie imediatamente. – Quem pintou o quadro?
– Tomohiko Amada, o dono desta casa.
– Parece que chama por mim. Como um pássaro enjaulado esgoelando-se para ser posto em liberdade. É o que sinto.
– Pássaro? Que espécie de pássaro?
– Não sei dizer que pássaro nem que espécie de gaiola, muito menos o seu aspeto. Talvez pelo facto de o quadro ser um pouco complexo.
– Não és a única. Também eu o considero sobremaneira intrincado. Tens razão, claro. Salta à vista que existe um apelo neste quadro, um grito que o artista quer desesperadamente que as pessoas ouçam. Mas, por mais que me esforce, não consigo descobrir em que reside esse apelo.
– Há uma pessoa que mata outra. Movida pela paixão.
– Exato. O jovem cravou a lâmina no peito do ancião, tal como planeado. O homem assassinado não quer acreditar no que lhe está a acontecer. Confrontados com a cena que se desenrola perante os seus olhos, os demais figurantes encontram-se em estado de choque.
– Poderá tratar-se de um verdadeiro assassínio?
A pergunta deu-me que pensar.
– Não tenho a certeza. Depende da tua definição de «verdadeiro» e «falso». Muita gente considera a pena de morte uma genuína forma de assassínio. – Ou de homicídio, pensei.
Marie demorou a responder.
– Vê-se um homem ser assassinado, e o sangue jorra em abundância, mas a cena nada tem de angustiante. Não deixa de ser curioso. É como se o quadro procurasse transportar-me a outras esferas do pensamento, até um lugar onde conceitos como «verdadeiro» e «falso» não têm importância.
Nesse dia não peguei no pincel. Marie e eu ficámos no estúdio, a conversar sobre tudo e nada. Quase não tirei os olhos dela, esforçando-me por arquivar na minha mente as expressões e os maneirismos da jovem. Aquele conjunto de reminiscências converter-se-ia na carne e no sangue do retrato que eu pretendia pintar.
– Hoje não desenhou nada – comentou Marie.
– Há dias assim – confessei. – O tempo rouba-nos coisas, mas dá-nos outras. Fazer do tempo um aliado é uma parte importante do ofício.
Marie não respondeu, limitando-se a fitar-me. Dir-se-ia que observava atentamente uma casa, com a cara encosta à janela, ao mesmo tempo que meditava sobre o significado do tempo.
Ao meio-dia, quando o carrilhão começou a tocar, como de costume, Marie e eu encaminhámo-nos para a sala. Shoko Akikawa continuava sentada no sofá, com os óculos de armação preta, a ler um livro. Estava de tal modo embrenhada na leitura que mal se notava a sua respiração.
– O que anda a ler? – perguntei, sem me conseguir conter.
– Se lhe contasse – respondeu ela com um sorriso, marcando a página e fechando o livro –, estaria feita ao bife. Por qualquer motivo que me escapa, sempre que digo a alguém o que ando a ler, não chego ao fim do livro. Acontece um imprevisto qualquer e vejo-me obrigada a parar a meio. Mirabolante, mas verdadeiro. Como tal, decidi que o melhor era nunca revelar o título a ninguém. Assim que acabar a leitura, terei todo o gosto em dizer-lhe.
– Não há problema. Posso esperar que acabe de o ler. Vendo o prazer que o livro lhe dá, fiquei curioso.
– É um livro fascinante. Uma pessoa começa e não consegue parar. Essa a razão por que decidi só pegar nele quando aqui venho. Assim, duas horas passam a voar.
Marie achou por bem meter a sua colherada.
– A minha tia lê montes de livros – disse ela.
– Não tenho muito mais com que me ocupar nos dias que correm – referiu a tia. – Por isso, aposto na leitura.
– Está a trabalhar? – perguntei.
Ela tirou os óculos e massajou suavemente o vinco entre as sobrancelhas.
– Trabalho como voluntária na biblioteca local uma vez por semana. Antes disso, era secretária do presidente de uma faculdade de Medicina privada, em Tóquio, mas deixei o emprego quando me mudei para cá.
– Mudou-se quando a mãe da Marie morreu, se não me engano...
– À data, pensei que fosse uma coisa temporária. Que permaneceria aqui só até tudo se resolver. Mas depois de ter começado a viver com a Marie, foi impossível separar-me dela. E assim se explica que tenha assentado arraiais. Se o meu irmão tornasse a casar, escusado será dizer que voltaria para a cidade.
– Se isso acontecesse, eu iria contigo – afirmou Marie.
Shoko sorriu, mas não disse nada.
– Porque não ficam para o almoço? – perguntei-lhes. – Posso preparar num instantinho um prato de massa e uma salada.
A tia hesitou, como eu sabia que aconteceria, mas a sobrinha pareceu ficar entusiasmada com a ideia.
– Podemos? – pedinchou a jovem. – O pai não está em casa.
– Não há problema, a sério – disse eu. – Tenho uma grande quantidade de molho já feito. Além do mais, cozinhar para três não dá mais trabalho do que cozinhar só para um.
– Tem a certeza? – insistiu Shoko Akikawa, indecisa.
– Absoluta. Fiquem para almoçar, por favor. Tomo as refeições sozinho todos os dias. Pequeno-almoço, almoço e jantar. Agrada-me a ideia de ter gente à mesa, para variar.
Marie olhou para a tia.
– Bom, nesse caso, aceitamos o seu amável convite – declarou Shoko Akikawa. – De certeza que não incomodamos?
– De forma alguma – disse eu. – Por favor, façam como se estivessem em vossa casa.
Dirigimo-nos à sala de jantar. Sentaram-se as duas à mesa, e eu fui tratar do almoço. Coloquei a panela de água ao lume, aqueci o molho de espargos e bacon numa frigideira e preparei uma salada rápida de alface, tomate, cebola e pimento verde. Assim que a água levantou fervura, deitei a massa lá para dentro e cortei salsa enquanto cozia. Fui ao frigorífico buscar o chá gelado e enchi três copos. Marie e a tia seguiam os meus movimentos com o olhar, como se assistissem a um acontecimento raro e nunca visto. Shoko perguntou-me se podia ajudar. Respondi-lhe que não, que se deixasse estar quietinha, pois eu tinha tudo controlado.
– Parece estar nas suas sete quintas – observou ela, nitidamente impressionada.
– É porque faço isto todos os dias.
Não me importo de cozinhar. De facto, sempre gostei de pôr as mãos na massa, seja para cozinhar, executar pequenos trabalhos de carpintaria, reparar a bicicleta, fazer jardinagem. Já em matéria de pensamento abstrato e matemático, sou um zero à esquerda. Tudo o que sejam jogos mentais, como o xadrez e os quebra-cabeças, são demasiado exigentes para o meu pobre cérebro.
Instalámo-nos os três à mesa e demos início à refeição. Um almoço numa bonita tarde de domingo, em pleno outono. Devo acrescentar que Shoko era a companhia ideal. Uma mulher elegante, simpática e espirituosa, dona de um apurado sentido de humor. Sabia comportar-se à mesa, sem, no entanto, ser pretensiosa. Dava para ver que tinha os seus pergaminhos e frequentara escolas conceituadas. Marie deixou que a tia fizesse as honras da conversa e concentrou a atenção na comida. Mais tarde, Shoko pediu-me a receita do molho.
Estávamos no fim da refeição quando a campainha da entrada soou insistentemente. Não foi surpresa para mim, pois tinha acabado de ouvir, segundos antes, o ronco profundo do Jaguar. Aquele som – diametralmente oposto ao murmúrio do Toyota Prius – ficara gravado na estreita camada entre o meu consciente e o subconsciente. Daí que não se possa dizer que tenha ficado admirado quando tocaram à campainha.
– Desculpem; é só um segundo – disse eu, levantando-me da cadeira e pousando o guardanapo. Deixei-as sentadas à mesa e fui abrir a porta. O que aconteceria a seguir? Não fazia a mínima ideia.
34
AGORA QUE PENSO NISSO,
TENHO-ME ESQUECIDO DE VERIFICAR
A PRESSÃO DOS PNEUS
Quando abri a porta, ali estava Menshiki, especado à minha frente.
Vestia uma camisa branca abotoada até à última casa, um elegante casaco de malha com um padrão elaborado e um casaco de tweed azul-acinzentado. Usava calças amarelo-mostarda e sapatos de camurça castanhos. Além do aspeto confortável, tudo combinava na perfeição, como era seu apanágio. A farta cabeleira branca brilhava sob o sol de outono. Atrás dele vi o Jaguar prata metalizado, estacionado ao pé do Toyota Prius azul. Lado a lado, os dois carros davam a ideia de alguém com dentes podres a rir-se de boca escancarada.
Com um gesto, convidei Menshiki a entrar. De tão tenso, o rosto dele parecia paralisado, como uma parede de gesso por secar. Nunca o vira naquele estado, devo dizer. Sempre dera mostras de grande calma, guardando os sentimentos para si próprio. Não lhe caíra a máscara mesmo depois de ter passado uma hora num buraco totalmente às escuras. Agora, porém, estava branco como um lençol.
– Posso entrar? – perguntou ele.
– Claro que sim – respondi. – Ainda estamos à mesa, mas daqui a nada acabamos de almoçar. Faça o favor de entrar.
– Não quero de forma alguma interromper a refeição – disse ele, consultando as horas num gesto mecânico. Olhou para o relógio de pulso durante muito tempo, sem revelar qualquer emoção, como se desconhecesse o funcionamento dos ponteiros.
– Estamos quase no fim – repeti. – Fizemos uma refeição ligeira. Podemos tomar café. Peço-lhe que espere por nós na sala de estar. Nessa altura faço as apresentações da praxe.
Menshiki abanou a cabeça.
– É demasiado cedo para apresentações. Vim até cá pensando que já se teriam ido embora. Não estava nos meus planos encontrá-las. Depois vi um carro desconhecido ali estacionado e fiquei sem saber...
– Chegou em boa hora – disse eu, interrompendo-o. – Vai ver que a situação nada tem de constrangedor. Eu trato de tudo, não se preocupe.
Menshiki concordou e começou a tirar os sapatos. Por qualquer razão, não me perguntem porquê, parecia ter-se esquecido de como se fazia. Esperei até ele terminar o ritual e conduzi-o à sala. Apesar de já ali ter estado anteriormente, olhou em volta como se fosse a primeira vez.
– Espere aqui, por favor. Sente-se e ponha-se à vontade. Dê-nos mais dez minutos.
Com uma sensação desagradável, deixei Menshiki sozinho e regressei à sala de jantar. Na minha ausência, as minhas comensais haviam terminado a refeição. Os talheres estavam pousados no prato.
– Recebeu visitas? – quis saber Shoko Akikawa, dando sinais de inquietude.
– Sim, mas não tem importância. Um vizinho resolveu passar por cá. Pedi-lhe que esperasse na sala. Damo-nos bem, não há motivo de preocupação. Vou só acabar de comer.
Comi o resto que tinha no prato. Enquanto as duas levantavam a mesa, fiz café.
– Tomamos o café todos juntos na sala? – sugeri a Shoko Akikawa.
– O senhor tem visitas. De certeza que não iremos incomodar?
– Não incomodam minimamente. Até calha bem. Assim, ficam a conhecer-se. Este meu vizinho mora do outro lado do vale. É pouco provável que se tenham cruzado.
– Como se chama ele?
– Menshiki. «Men» significa «evitar» e «shiki» designa «cor». Evitar as cores, à letra.
– Que nome tão invulgar! – comentou Shoko Akikawa. – É a primeira vez que oiço falar no senhor Menshiki, de facto. Embora haja moradores do outro lado do vale, quase nunca nos cruzamos.
Depositámos num tabuleiro a cafeteira de café, quatro chávenas, açúcar e leite e transportámos tudo para a sala. Para grande espanto meu, Menshiki evaporara-se. A divisão estava vazia. Tão-pouco se refugiara no terraço. E não estava a imaginá-lo fechado na casa de banho.
– Onde se terá ele metido? – perguntei sem me dirigir a ninguém em particular.
– Estava aqui? – quis saber Shoko Akikawa.
– Sim, há poucos minutos.
Os sapatos de camurça tinham desaparecido. Enfiei as minhas sandálias e abri a porta da frente. O Jaguar prateado encontrava-se estacionado no mesmíssimo sítio. Dentro de casa também não havia sinais dele. O sol incidia em cheio nas janelas do carro, não permitindo ver se estava alguém lá dentro. Ao aproximar-me, distingui a figura de Menshiki no lugar do condutor, à procura de qualquer coisa. Bati ao de leve no vidro, e ele baixou a janela.
– O que se passa? – perguntei.
– Preciso de verificar a pressão dos pneus, não encontro é o aparelhómetro. Devia estar guardado no porta-luvas, mas desapareceu.
– É mesmo urgente?
– Não, longe disso. Estava ali sentado na sala e, agora que penso nisso, tenho-me esquecido de verificar a pressão dos pneus ultimamente.
– Há algum problema com os pneus?
– Nenhum. Está tudo em ordem.
– Nesse caso, porque não deixar os pneus em paz e voltar lá para dentro? Acabei de fazer café. As senhoras estão à espera...
– À espera? – repetiu ele. – À minha espera?
– Sim. Disse que gostaria de lhes apresentar um conhecido meu.
– Deus me valha!
– Qual é o galho?
– Ainda não estou preparado para conhecer outras pessoas. Emocionalmente, quero dizer.
A cara dele traduzia a perplexidade e o pânico de alguém que se preparava para saltar do décimo sexto andar de um edifício em chamas para uma rede do tamanho de uma base para copos.
– Venha daí – disse eu, simplificando a coisa. – Não é nada do outro mundo.
Menshiki concordou com a cabeça e saiu da viatura, fechando a porta. Fez menção de a trancar, mas depois caiu em si e, apercebendo-se da inutilidade do gesto (que espécie de ladrão se daria ao trabalho de subir até ali para roubar um carro?), tornou a guardar a chave no bolso das calças.
Shoko e Marie aguardavam por nós na sala. Mal entrámos, levantaram-se para o cumprimentar. Apresentei Menshiki em poucas palavras, numa simples demonstração de boas maneiras.
– O senhor Menshiki também posou para mim. Pintei o seu retrato. Uma vez que ele mora aqui perto, temos aproveitado para cimentar a nossa amizade.
– Disseram-me que vive do outro lado do vale. Há muito tempo? – perguntou Shoko Akikawa.
Ao ouvir referência à sua morada, Menshiki tornou-se mais pálido.
– Sim, vivo ali há alguns anos. Deixe-me cá ver... Três anos, creio. Ou serão quatro?
Virou-se para mim, à procura de confirmação, mas não lhe dei troco.
– A sua casa vê-se daqui? – insistiu ela.
– Sim – respondeu Menshiki, acrescentando logo a seguir: – Não é nada de especial. Fica um bocado fora de mão.
– Passa-se o mesmo connosco – retorquiu Shoko Akikawa num tom amável. – Fazer compras é um autêntico bico de obra. A cobertura é péssima, quase nunca há rede, e o rádio não funciona bem. Além disso, os caminhos são bastante íngremes. Quando neva com maior intensidade, torna-se perigoso uma pessoa fazer-se à estrada. Felizmente, só acontece de cinco em cinco anos...
– Tem razão, nesta região é raro nevar, de facto – disse Menshiki. – Está relacionado com o vento quente que sopra do mar. O oceano exerce influência no nosso clima. Bem vê...
– De qualquer maneira, temos de agradecer aos deuses por nevar pouco no inverno – atalhei, receando que saísse dali uma longa preleção sobre o efeito das correntes quentes ao longo da costa do Japão. Isto só para perceberem como o homem estava tenso.
O olhar de Marie alternava entre a tia e Menshiki. Parecia não ter formado uma opinião acerca dele. Por seu turno, Menshiki só tinha olhos para a tia, agindo como se a jovem não existisse.
– A Marie costuma vir cá para eu lhe pintar o retrato – declarei. – Pedi-lhe para fazer de modelo.
– Trago-a aos domingos de manhã – acrescentou Shoko Akikawa. – Apesar de ser apenas um pulinho, como se costuma dizer, o caminho é tão acidentado que temos de vir de carro.
Menshiki dignou-se finalmente a reparar em Marie. Evitou, porém, fitá-la, preferindo vaguear com o olhar nervosamente, como uma mosca à procura de poiso em pleno inverno; elas, que parecem sempre não o encontrar.
– Aqui está o resultado do meu trabalho – disse eu, acorrendo em ajuda dele e mostrando-lhe alguns esboços. – Trata-se apenas de desenhos preliminares, não comecei sequer o quadro.
Menshiki estudou demoradamente os três dessan, devorando-os com o olhar. Dir-se-ia que aqueles rascunhos significavam mais do que a própria Marie. Isso não correspondia à verdade, lógico. Simplesmente, não era capaz de a encarar. Os esboços não passavam de um estratagema. Pela primeira vez, encontrava-se perto de Marie e sentia dificuldade em controlar as emoções. Quanto à jovenzinha, olhava para Menshiki como se ele fosse um animal raro.
– Espantosos! – elogiou Menshiki, virando-se para Shoko Akikawa. – Cheios de vida. O artista conseguiu captar a essência do modelo.
– Completamente de acordo – referiu ela, com um sorriso de orelha a orelha.
– Há que dizer que o modelo é assaz complexo – declarei, virando-me para Menshiki. – Retratar a Marie não foi pera doce. O semblante dela transfigura-se a todo o instante, e uma pessoa precisa de tempo para captar o que se esconde lá no fundo. Essa a razão pela qual ainda não passei à fase de a pintar.
– Complexa? – Menshiki manifestou a sua perplexidade. Semicerrando os olhos, como se estivesse encadeado pela claridade, concentrou de novo a atenção em Marie.
– Os três dessan mostram expressões muito diferentes – referi. – O mínimo movimento facial transforma por completo a atmosfera. Quando pintar o retrato dela, terei forçosamente de ir além dessas minudências, a fim de apreender os traços mais significativos da sua personalidade. Caso contrário, corro o risco de dar a ver apenas parte, e não o todo.
– Compreendo – afirmou Menshiki. Tornou a examinar os três desenhos, e depois Marie, procurando estabelecer uma comparação. O seu rosto, até então extremamente pálido, recuperou aos poucos a cor. Dois pontinhos vermelhos, de início, que não tardaram a transformar-se em manchas do tamanho de bolas de pingue-pongue, que aumentaram gradualmente até adquirirem a forma de bolas de basebol, alastrando-se por fim à face toda. Marie observava-o, fascinada, mas a tia desviou o olhar, por uma questão de educação.
Senti-me na obrigação de interromper o silêncio.
– Está nos meus planos pintar o retrato na próxima semana. Ou seja, começar a trabalhar com a tela diante de mim – declarei, sem me dirigir a ninguém em concreto.
– Tem uma ideia precisa do aspeto com que irá ficar? – perguntou a tia.
– Por enquanto, não – respondi, abanando a cabeça. – Só saberei quando me sentar em frente à tela, com o pincel na mão. Na esperança de ser tocado pela inspiração...
– Também pintou o retrato do senhor Menshiki, certo?
– Sim, no mês passado.
– É um retrato formidável – sublinhou Menshiki. – Apesar de a tinta precisar de secar um pouco antes de o quadro ser emoldurado, pendurei-o na parede do estúdio lá de casa. Não tenho a certeza se o termo «retrato» lhe faz justiça. É uma ilustração da minha pessoa, mas vai além dela. Como é que hei de explicar?... Penso que é justo dizer que tem «profundidade». Não me canso de o contemplar.
– É o senhor, mas, ao mesmo tempo, não é? – voltou à carga Shoko Akikawa.
– O que quero dizer é que não se trata de um quadro, no sentido tradicional. É mais profundo e mais exigente do que isso.
– Gostava de o ver – disse Marie. Desde que nos reuníramos todos na sala, era a primeira vez que abria a boca.
– Marie! Com franqueza! Não estamos em nossa casa, não é de bom-tom...
– Não tem importância. – Num tom desabrido, Menshiki cortou-lhe a palavra. A interrupção de Menshiki teve o efeito de um machado afiado. Toda a gente (incluindo o próprio Menshiki) meteu por instantes a viola no saco.
– Mais a mais, somos vizinhos – prosseguiu ele, após uma breve pausa. – É raro receber alguém. Como vivo sozinho, escusam de se preocupar, não incomodarão ninguém. São ambas muito bem-vindas.
A cara de Menshiki ruborizou-se mais. Pelos vistos, não tínhamos sido os únicos a reparar na urgência que transparecia na sua voz.
– Interessa-se por pintura? – perguntou ele, desta vez dirigindo-se a Marie.
A jovem acenou afirmativamente.
– Se estiver de acordo, porque não nos encontramos novamente no domingo que vem, a esta mesma hora? Depois podemos ir até lá a casa e eu mostro-vos o retrato. Que me dizem?
– Vamos dar-lhe uma grande maçada... – murmurou a tia.
– Mas eu quero ver o quadro! – insistiu Marie, com firmeza.
Por fim, ficou combinado que Menshiki viria buscá-las no domingo seguinte. Também fui convidado, mas recusei, invocando um compromisso importante. Não estava nada a apetecer-me mergulhar de cabeça naquela história. Desse ponto em diante, as partes diretamente envolvidas que se desenvencilhassem. Por mim, remeter-me-ia ao mero papel de intermediário, se bem que não tivesse sido essa a minha intenção.
Menshiki e eu acompanhámos a bela tia e a sobrinha até lá fora e despedimo-nos. Shoko Akikawa observou com inusitado interesse o Jaguar estacionado ao lado do seu Prius. Dir-se-ia uma apaixonada por cãezinhos a admirar o cão de outra pessoa.
– É o modelo mais recente? – perguntou ela.
– Sim, é o mais recente coupé da marca – respondeu ele. – Percebe de carros?
– Nem por sombras. Em tempos, o meu pai teve um Jaguar de duas portas. Costumava sentar-me a seu lado e, volta e meia, ele deixava-me agarrar no volante. Veio-me tudo de novo à memória quando vi o símbolo da marca no capô. Seria um XJ6? Tinha faróis duplos, disso lembro-me. E um motor de quatro ponto dois litros, de seis cilindros em linha.
– Refere-se a um modelo da série três, certo? Magnífico, por sinal.
– O meu pai devia gostar imenso dele, pois conduziu esse carro durante anos a fio. O que não o impedia de passar a vida a queixar-se do preço a pagar pela manutenção elevada e das pequenas reparações que era preciso fazer.
– O senão desse modelo em concreto era o alto consumo de combustível. O sistema elétrico apresentava igualmente defeitos, embora isso sempre tenha sido o ponto fraco dos modelos da Jaguar. Mas quando tudo corre bem e não nos ralamos com o preço da gasolina, há que reconhecer que se trata de um belo exemplar. Em matéria de conforto e condução, nenhum outro carro se lhe compara. No entanto, os comuns mortais deixam-se influenciar por particularidades como o consumo de gasolina e as falhas mecânicas, daí que o Toyota Prius tenha muita saída.
– Este carro não fui eu que o comprei, foi-me oferecido pelo meu irmão, por ser seguro, fácil de conduzir e amigo do ambiente – atalhou Shoko Akikawa, apontando para o Toyota, como que pedindo desculpa.
– O Toyota Prius é um excelente carro – disse Menshiki. – Já pensei em adquirir um.
Estaria a gozar? Era tão ridículo imaginar Menshiki ao volante de um Toyota Prius como um leopardo num restaurante a encomendar uma salada niçoise.
– Sem pretender ser indelicada – disse a tia, espreitando para o interior do automóvel –, acha que me posso sentar lá dentro um minuto? Gostava imenso de experimentar o assento do condutor.
– Claro que sim – respondeu Menshiki. Tossicou ligeiramente, como que para dominar a voz. – Demore o tempo que quiser. Vá dar uma voltinha, se lhe apetecer.
O interesse desmedido de Shoko Akikawa no Jaguar de Menshiki deixou-me espantado. Sendo uma pessoa calma e comedida à primeira vista, nunca a julgaria capaz de se interessar por automóveis. Mas juro que os seus olhos brilhavam de satisfação ao entrar na viatura. Sentou-se confortavelmente nos assentos de pele de cor creme, inspecionou, concentrada, o tabliê e agarrou no volante com ambas as mãos. Em seguida, pousou a mão esquerda sobre a alavanca das mudanças. Menshiki tirou a chave do bolso e entregou-lha.
– Ponha o motor a funcionar.
Shoko Akikawa pegou na chave, inseriu-a na ignição, junto ao volante, e fê-la rodar na direção dos ponteiros do relógio. O grande felino despertou automaticamente do seu sono. Ela permaneceu imóvel, atenta ao roncar do motor.
– Ah, este som... Recordo-me como se fosse ontem – confessou.
– Um motor quatro ponto dois litros V8. O XJ6 que o senhor seu pai conduzia tinha seis cilindros, e o número de válvulas e o sistema de compressão também eram distintos, se bem que o motor possa soar de forma parecida. No entanto, ambos os modelos apresentam os seus pecadilhos, uma vez que gastam combustível fóssil como se não houvesse amanhã. Nesse particular, não podemos dizer que a Jaguar tenha evoluído muito.
Shoko Akikawa acionou o pisca da direita. Ouviu-se o som alegre da praxe.
– Isto traz-me recordações.
Menshiki sorriu.
– Só um Jaguar produz este som!
– Quando eu era nova, aprendi às escondidas a conduzir no XJ6 – disse ela. – Da primeira vez que peguei num carro diferente, fiquei completamente à nora ao perceber que o travão de mão não estava onde era costume.
– Compreendo o que diz – retorquiu Menshiki, a rir. – Os ingleses são picuinhas com bizarrices.
– O interior tem um cheiro diferente do carro do meu pai, quer-me parecer.
– Sim, infelizmente. Por variadíssimas razões, a Jaguar não pôde usar os mesmos materiais neste modelo. A partir de dois mil e dois, o cheiro característico da marca passou a ser outro, quando a Connolly Leather deixou de ser a fornecedora oficial dos estofos dos assentos. De facto, a empresa britânica foi à falência por causa disso.
– Que pena! Adorava aquele cheiro. Lembrava-me o meu pai.
– Para dizer a verdade – declarou Menshiki, como se lhe custasse falar –, sou dono de um Jaguar mais antigo. Talvez esse modelo tenha o odor que associa ao carro do seu pai.
– Estamos a falar de um XJ6?
– Não, é um E-Type.
– Descapotável?
– Isso mesmo. É desportivo da série um, fabricado em meados da década de sessenta. Ainda está aí para as curvas, e se anda!... Vem equipado com um motor de seis cilindros, quatro ponto dois litros. Um modelo original de dois lugares. A capota foi substituída, claro, por isso não posso garantir que esteja em perfeitas condições.
Considerando que eu não sabia rigorosamente nada sobre carros, a conversa entrou-me por um ouvido e saiu pelo outro. Em contraste, o discurso de Menshiki parecia ter impressionado vivamente Shoko Akikawa. Saltava à vista que partilhavam interesses, tanto no que dizia respeito a automóveis como a viaturas da marca Jaguar. Aquilo teve o condão de me tranquilizar. Pelo menos, já não precisava de matar a cabeça a pensar em tópicos de conversa para o primeiro encontro. Quanto a Marie, a conversa parecia aborrecê-la de morte. Percebia menos de carros do que eu, topava-se à légua.
Shoko Akikawa saiu do Jaguar, fechou a porta e devolveu a chave a Menshiki, que tornou a guardá-la no bolso das calças. Em seguida, tia e sobrinha meteram-se no Prius azul. Menshiki ajudou Marie a fechar a porta do lado dela. Voltou a surpreender-me o facto de o ruído da porta ao fechar-se ser tão diferente, em nada se comparando com o do Jaguar. Um bom exemplo de como, neste mundo, um mesmo som pode ter inúmeras variações. Da mesma forma que sabemos, aos primeiros acordes, se estamos a ouvir Charlie Mingus ou Ray Brown no contrabaixo.
– Então, até domingo que vem – disse Menshiki.
Shoko Akikawa olhou para ele e sorriu. A seguir, meteu as mãos no volante e o carro afastou-se. Menshiki e eu esperámos até a traseira do Toyota Prius desaparecer de vez e regressámos a casa. Sem dizer palavra, sentámo-nos na sala, a beber café frio. À semelhança de um maratonista que tivesse acabado de cortar a meta, as forças pareciam ter abandonado Menshiki.
– É uma bonita rapariga – disse eu, às tantas. – Refiro-me à Marie.
– É, não é? Quando crescer, será ainda mais bonita – disse Menshiki. Era evidente que os seus pensamentos estavam noutro lugar.
– O que sentiu ao vê-la de perto? – perguntei.
Menshiki sorriu, pouco à vontade.
– Sinceramente, não olhei bem para ela. Estava demasiado nervoso.
– Bem, alguma coisa deve ter visto...
– Claro que sim – disse ele, oscilando a cabeça. Calou-se novamente. – O que lhe parece? – perguntou-me de repente, muito sério.
– O que me parece o quê?
Menshiki tornou a corar.
– Encontrou parecenças entre as feições dela e as minhas? Na qualidade de pintor, e tendo já retratado imensa gente ao longo dos anos, interessa-me a sua opinião profissional.
Abanei a cabeça.
– Tem razão. Fui treinado para captar rapidamente as características faciais das pessoas, mas isso não significa que consiga dizer quem é filho de quem. Há pais e filhos que não são parecidos, ao passo que completos estranhos apresentam parecenças óbvias.
Deixando escapar um suspiro profundo que parecia vir do fundo do corpo, Menshiki esfregou a palma das mãos uma na outra.
– Só estou a pedir uma opinião pessoal. No fundo, gostaria de saber se alguma coisa lhe prendeu a atenção, por mais trivial que seja.
Pensei antes de responder.
– No que toca à estrutura facial, não posso dizer que tenha detetado parecenças concretas. Já na expressão dos olhos, creio que vocês possuem algo em comum. Na realidade, surpreende-me, de vez em quando.
Cerrando os lábios, Menshiki olhou para mim.
– Está a querer dizer-me que os nossos olhos têm semelhanças?
– Provavelmente porque os olhos revelam os sentimentos genuínos. Curiosidade, entusiasmo, surpresa, dúvida, relutância... Julgo detetar essas emoções subtis no seu olhar e no dela. Embora as caras não sejam particularmente eloquentes, os vossos olhos são o espelho da alma, o que não se pode dizer de toda a gente, pelo contrário. Conheço pessoas por demais expressivas cujo olhar nada tem de arguto.
Menshiki mostrou-se surpreendido.
– Consegue ver isso nos meus olhos?
Fiz que sim com a cabeça.
– Nunca tinha reparado.
– Não é uma característica que se possa subjugar, por mais que uma pessoa queira. Se calhar, é precisamente por ter as emoções controladas que os seus olhos são tão vivazes. Mas não é um aspeto evidente. Para lermos nos olhos de alguém temos de estar extraordinariamente atentos. Poucos são capazes de o fazer.
– O senhor é um bom exemplo.
– Saber interpretar as expressões alheias é o meu trabalho.
Menshiki matutou no assunto por momentos.
– Quer então dizer que a Marie e eu temos isso em comum... No entanto, não é suficiente para dizer se somos pai e filha, certo?
– Quando observo alguém, capto certas expressões que são uma grande mais-valia no exercício do meu mester. Mas impressões artísticas e a realidade objetiva são coisas distintas. As impressões não provam nada. São como borboletas ao vento. Ou seja, perfeitamente inúteis. E no seu caso? Sentiu alguma coisa especial no encontro que teve com a Marie?
Menshiki abanou a cabeça devagar. A seguir, enfiou as mãos nos bolsos, como se estivesse à procura de alguma coisa, e voltou a tirá-las. Olhando para ele, dava a sensação de que se esquecera do que estava a fazer.
– E daí, talvez não seja uma questão de frequência – continuou. – Quanto mais vezes nos cruzarmos, mais confuso ficarei e mais longe estarei de chegar a uma conclusão. É possível que a Marie seja minha filha, mas pode acontecer que não seja. No fim de contas, tanto faz. O simples facto de ela estar presente leva-me a considerar essa possibilidade, a experimentar na pele essa hipótese. Quando tal se verifica, sinto o sangue percorrer as veias do meu corpo. Talvez nunca tenha apreendido até agora o sentido da vida.
Calei-me bem calado. Que podia eu dizer acerca dos sentimentos que o dominavam, ou da sua definição do que era estar vivo? Menshiki deitou uma olhadela ao estreito relógio de pulso, que devia ter custado os olhos da cara, e esboçou uma tentativa canhestra de se levantar.
– Estou em dívida para consigo. Sem a sua ajuda, nada disto teria sido possível.
Dando por terminada a conversa, dirigiu-se num passo trôpego para a porta, demorou que tempos a calçar os sapatos e saiu para a rua. Especado à entrada, fiquei a vê-lo entrar no carro e zarpar. Assim que o Jaguar desapareceu no horizonte, a costumeira paz das tardes de domingo voltou a reinar.
O relógio indicava que passavam poucos minutos das catorze. Estava morto de cansaço. Fui ao armário buscar uma manta, deitei-me no sofá, tapei-me com ela e adormeci. Quando acordei já passava das três da tarde. O ângulo da luz do Sol na sala mudara ligeiramente. Que dia tão esquisito! Não saberia dizer se tinha feito progressos ou regredido, ou se me limitava a descrever círculos sem sair do mesmo sítio. O meu sentido de orientação estava feito num oito. Havia Shoko Akikawa, Marie e Menshiki. Cada um possuía um magnetismo especial. E eu aterrara de paraquedas no meio dos três. Sem qualquer magnetismo digno desse nome.
Malgrado o cansaço que sentia, ainda faltava muito para o Sol se pôr. Teria de esperar várias horas até ao nascer de um novo dia, até aquele domingo fazer parte do passado. Contudo, não me apetecia mexer uma palha. Apesar de ter dormido uma curta sesta, continuava azamboado. Dava a sensação de ter um novelo de lã entalado ao fundo de uma gavetinha, impedindo-me de a fechar. Talvez devesse aproveitar o dia para medir a pressão dos pneus. Quando uma pessoa não aguenta com uma gata pela cauda, é o mínimo que se lhe pode exigir.
Agora que penso nisso, nunca na vida me dera ao trabalho de verificar a pressão dos pneus. Sempre que os empregados das estações de serviço diziam que os pneus do carro pareciam estar «um bocado em baixo», pedia-lhes que se encarregassem disso. Não possuo um calibrador para medir a pressão dos pneus. A bem dizer, ignoro qual o aspeto do dito aparelhómetro. Para caber no porta-luvas, não deve ser tão grande quanto isso nem tão caro que seja preciso pagá-lo a prestações. Talvez a solução seja comprar um, para experimentar.
Assim que começou a escurecer, fui até à cozinha, abri uma lata de cerveja e comecei a tratar da refeição da noite. Liguei o forno e grelhei um charuteiro-do-Japão que deixara a marinar em saqué, depois fiz uma salada de pepino e algas temperada com vinagre e preparei uma sopa de miso à base de rabanetes e tofu frito. Não tinha ninguém com quem falar, nem precisava de me preocupar em fazer conversa. Estava eu a terminar o meu solitário jantar quando tocaram à campainha. Até parecia que existia uma conspiração em curso com o propósito de me interromperem antes de chegar ao fim das refeições.
O dia está longe de ter acabado, pensei. Palpitava-me que aquele seria um longo domingo. Chamem-lhe premonição... Levantei-me e encaminhei-me lentamente para a porta.
35
DEVÍAMOS TER DEIXADO TUDO COMO ESTAVA
Encaminhei-me para a porta com toda a calma do mundo. Quem poderá ser a uma hora destas? Teria parado algum carro sem eu dar por isso? A sala de jantar situava-se ao fundo da casa, mas estava uma noite tranquila, pelo que o mais provável era eu ter ouvido o som da gravilha sob os pneus e o barulho do motor, mesmo que estivéssemos a falar do silencioso motor híbrido do Prius. Contudo, nem o mais leve ruído me chegara aos ouvidos.
Ninguém no seu perfeito juízo se abalançaria a subir a pé a encosta na calada da noite. O caminho era íngreme e escuro. A casa fora construída no alto de uma montanha, sem vizinhos por perto.
Por momentos, passou-me pela cabeça que pudesse ser o Comendador. Mas não fazia sentido. Quer dizer, ele podia aparecer e desaparecer quando lhe desse na real gana. Porquê dar-se ao trabalho de tocar à campainha?
Abri a porta sem pensar duas vezes. Diante de mim encontrava-se Marie Akikawa. Tirando um fino casaco azul-escuro por cima do corta-vento, usava a mesma roupa que vestira à tarde. Arrefecia sempre depois de anoitecer, como era de esperar. Trazia um boné com o emblema dos Cleveland Indians (porquê aquela equipa de basebol em concreto?) e uma lanterna enorme na mão direita.
– Posso entrar? – perguntou. Nem «boa noite», nem «desculpe aparecer sem avisar», nicles.
– Claro que sim – disse eu. – Entra. – A gavetinha mental continuava sem fechar totalmente por causa dos fios enovelados.
Conduzi-a à sala de jantar.
– Ainda estava à mesa. Importas-te que acabe de comer?
Ela assentiu em silêncio. Não fazia a mínima noção das mais elementares regras de convivência social.
– Queres um chá? – perguntei.
Ela limitou-se novamente a acenar com a cabeça. Despindo o casaco, tirou o boné e ajeitou o cabelo. Pus água a ferver e um saquinho de chá verde num pequeno bule. Pela minha parte, estava a precisar de um chá.
Sentada com os cotovelos apoiados na mesa, Marie ficou ali a ver-me comer o resto do peixe, o arroz e a sopa de miso, como se assistisse àquilo pela primeira vez. Dava a impressão de estar sentada numa pedra, no meio das árvores, observando uma cobra gigante a devorar um texugo bebé.
– Preparei eu próprio a marinada – esclareci, na tentativa de quebrar o silêncio. – Se juntarmos um pouco de saqué, conserva-se melhor.
Marie não reagiu. Teria compreendido a minha explicação?
– Immanuel Kant tinha fama de ser um homem de hábitos regulares – declarei. – De tal modo que as pessoas acertavam o relógio quando se cruzavam com ele na rua.
A informação revelava-se inútil, naturalmente. A minha intenção, ao dizer aquilo, era obrigá-la a reagir. No fundo, queria saber se ela estava a prestar atenção, mas não tive sorte. À nossa volta, o silêncio intensificou-se. Immanuel Kant continuou a vaguear pelas ruas de Königsberg, naquela sua existência monótona e taciturna. As últimas palavras dele foram: «Está bem» (Es ist gut). Há pessoas que vivem assim.
Quando acabei de jantar, levei os pratos para o lava-loiça. Em seguida, preparei o chá. Regressei à sala de jantar com o bule e duas chávenas. Sentada, Marie Akikawa seguia com o olhar os meus movimentos, dedicando-me a atenção de uma historiadora preocupada em confirmar a veracidade das notas de rodapé num texto.
– Não vieste de carro, pois não? – perguntei.
– Não, vim a pé.
Dignara-se finalmente abrir a boca.
– Fizeste o caminho desde vossa casa sozinha?
– Ã-hã.
Calei-me e esperei que ela prosseguisse, mas tal não se verificou. Ficámos os dois sentados à mesa, um diante do outro, sem dizer nada. Devo confessar que os silêncios são a minha especialidade. Não é por acaso que vivo como um eremita no cimo das montanhas.
– Existe uma passagem secreta – acabou Marie por dizer. – É muito longe de carro, mas a pé fica bastante perto.
– Farto-me de andar a passear e nunca encontrei passagem secreta nenhuma.
– Porque não sabe onde procurar – disparou ela. – Precisamos de ter os olhos bem abertos. Está escondida.
– Trataste tu disso, não?
Ela fez que sim com a cabeça
– Vivo aqui desde pequena. Esta região sempre foi o meu pátio de recreio. Conheço a montanha como a palma das minhas mãos.
– Dizes tu que a passagem secreta está muito bem escondida?
Ela tornou a acenar afirmativamente.
– E foi por aí que vieste?
– Exato.
Suspirei.
– Já comeste?
– Antes de vir.
– O que foi que jantaste?
– A minha tia é uma excelente cozinheira – afirmou a jovem. Aquilo não respondia à minha pergunta. Era evidente que não estava interessada em dar-me satisfações. Se calhar, não lhe apetecia pensar no jantar.
– A tua tia sabe que vieste ter comigo?
Marie não me deu troco. Tinha os lábios cerrados numa linha fina. Optei por avançar eu próprio com a resposta.
– Obviamente que não sabe. Nenhum adulto responsável permitiria que uma jovem de treze anos se aventurasse sozinha na floresta escura. Tenho razão?
Silêncio.
– A tua tia tem conhecimento da passagem secreta?
Marie abanou a cabeça. Confirmava-se que a tia desconhecia a existência da dita passagem.
– E tu és a única pessoa que sabe disso?
Marie acenou afirmativamente várias vezes.
– Seja como for – observei –, considerando o sítio onde moras, deves ter sido obrigada a atravessar a floresta e a passar pelo antigo santuário. Certo?
Ela fez que sim.
– Conheço bem o santuário. E sei que alguém andou a fazer um grande buraco com uma máquina para desenterrar uma série de pedras.
– Assististe?
Marie abanou a cabeça.
– Não. Nesse dia estava nas aulas, mas vi as marcas no solo. Porque é que fez isso?
– Tive as minhas razões.
– Que razões?
– Se me pusesse a explicar, demoraria muito tempo – disse eu. Queria evitar a todo o custo que ela ficasse a saber que Menshiki estava metido ao barulho.
– Acho mal que tenham andado a remexer naquele sítio – declarou ela, abruptamente.
– O que te leva a afirmar isso?
Marie fez um gesto que podia ser interpretado como um encolher de ombros.
– Não lhe deviam ter tocado. Como todos os outros fizeram.
– Todos os outros?
– Bem vistas as coisas, estava ali há séculos.
A rapariga tem razão, pensei. Se calhar, devíamos ter deixado tudo como estava, como até à data «todos os outros» tinham feito. Agora era demasiado tarde. As pedras tinham sido removidas, o buraco ficara à vista e o Comendador fora libertado.
– Foste tu quem retirou a tampa? – indaguei. – Deixa-me adivinhar: espreitaste para dentro da câmara, depois substituíste as tábuas e tapaste com pedras. Acertei?
Marie levantou a cabeça e encarou-me. O olhar dela questionava: «Como é que sabe?»
– As pedras à superfície foram dispostas de maneira diferente. A minha memória visual é excelente, sempre foi. Dei imediatamente pela diferença.
– Uau! – exclamou ela, impressionada.
– Mas o buraco estava vazio. Apenas escuridão e humidade, certo?
– Também lá havia uma escada.
– Mas não desceste por ela, pois não?
Marie negou com veemência, como que a dizer: «Nem pensar!»
– E agora – disse eu – apareces aqui em casa a altas horas da noite por uma razão concreta, não é assim? Afinal, não se trata de uma visita de carácter social.
– Uma visita social?
– Do tipo: «Calhou estar nas redondezas e resolvi fazer uma visitinha.»
Ela pensou por momentos antes de abanar a cabeça.
– Não, não é uma visita social.
– Então é o quê? – perguntei. – Tenho imenso gosto em receber-te, mas, se a tua tia ou o teu pai descobrem, pode dar azo a um mal-entendido.
– Um mal-entendido de que género?
– Existe toda a espécie de desentendimentos neste mundo – disse eu. – Tantos que nem imaginas. Neste caso concreto, receio que me impeça de pintar o teu retrato, o que causaria um transtorno dos diabos. Não ficarias aborrecida?
– A minha tia não dará por nada – afirmou ela, categoricamente. – Enfio-me no quarto logo a seguir ao jantar e ela nunca vai ver de mim. É uma espécie de pacto que temos as duas. Saio pela janela e ninguém dá por nada. Nunca fui apanhada.
– Com que então, costumas deambular à noite pela montanha?
A jovem acenou com a cabeça.
– E não tens medo de andar por aí no escuro?
– Há coisas que me metem mais medo.
– Por exemplo?
Marie encolheu ligeiramente os ombros, mas ficou calada.
– Pode não haver problema com a tua tia. E o teu pai?
– Ainda não regressou a casa.
– A um domingo?
Marie não respondeu. Acho que queria evitar que falássemos no pai.
– Seja como for, não precisa de se preocupar – declarou ela. – Ninguém sabe que saí de casa. E mesmo que viessem a descobrir, nunca o meteria a si ao barulho.
– Muito bem. Assim sendo, não há razões para ficar preocupado. Mas não me disseste: porque é que vieste ter comigo, logo esta noite?
– Temos de conversar acerca de um assunto.
– Que assunto?
Marie pegou na chávena e bebeu um gole de chá quente. Passou distraidamente o olhar pela sala, como que para se certificar de que não havia ninguém à escuta. Escusado será dizer que nos encontrávamos sozinhos. A não ser que o Comendador tivesse regressado e estivesse à coca. Olhei em redor. Mas do Comendador nem sinal. Se ali estivesse, pelo menos não assumira uma forma corpórea.
– O seu amigo que apareceu hoje à tarde, o tipo com uma bela cabeleira branca – voltou ela à carga. – Como se chama ele? Tinha um nome estrambólico...
– Menshiki.
– Senhor Menshiki, isso mesmo.
– Não se pode dizer que seja meu amigo. Conheci-o há pouco tempo.
– Tanto faz.
– E o que tem o senhor Menshiki?
Semicerrando os olhos, Marie enfrentou-me.
– Acho que esconde alguma coisa no coração – respondeu ela, baixando a voz.
– Que espécie de coisa?
– Não sei. Mas não acredito que ele tenha aparecido hoje à tarde por acaso, como afirmou. Acho que veio até cá com uma finalidade muito concreta.
– Que finalidade? – perguntei, vagamente chocado pelo poder de observação que a jovem revelava.
Marie fitou-me.
– Não sei ao certo. E o senhor, o que acha?
– Não faço ideia – menti, rezando para que ela não desse pelo logro. Nunca fui grande espingarda a mentir. Vê-se logo pela minha cara que estou a inventar. Ao mesmo tempo, porém, não podia contar-lhe a verdade.
– A sério?
– A sério – disse eu. – Não fazia ideia de que ele iria aparecer.
Marie pareceu ter acreditado em mim. No fim de contas, Menshiki não me avisara, e a visita dele apanhara-me de surpresa. Por isso, não era mentira nenhuma.
– Os olhos dele são esquisitos – afirmou Marie.
– Esquisitos? Em que sentido?
– Parece que está sempre a conspirar. Como o lobo na história do Capuchinho Vermelho. Quando o lobo se mascara de avozinha e depois, deitado na cama, mente com todos os dentes que tem, percebemos que é ele por causa dos olhos.
Como o lobo do Capuchinho Vermelho?
– Quer então dizer que ficaste mal impressionada com o senhor Menshiki?
– Mal impressionada?
– Uma impressão negativa. O pressentimento de que ele pode prejudicar-te.
– Mal impressionada – repetiu ela, como se estivesse a arquivar a frase na gaveta da sua mente. Juntamente com «um raio vindo do nada», aposto o que quiserem.
– Não é bem isso. – Marie persistiu na sua ideia. – Não me parece que ele esteja a planear fazer-me mal. Só acho que o senhor Menshiki, com a sua bela trunfa branca, esconde algo.
– É uma premonição?
Marie acenou afirmativamente.
– Por isso é que vim ter consigo. Pensei que me pudesse adiantar alguma coisa sobre ele.
– A tua tia partilha dessas suspeitas?
– Não – respondeu Marie, inclinando a cabeça para um lado. – Não está na maneira de ser dela. É raro reagir mal às pessoas. Mais a mais, acho que está interessada nele. Apesar de ser um pouco mais velho, é um homem bonito, elegante e podre de rico, parece, e mora sozinho...
– Pensas que se sente atraída por ele?
– Acho que sim. A cara dela iluminou-se quando ficaram os dois à conversa, e a voz tornou-se mais aguda. Nem parecia a mesma pessoa. Aposto que ele sentiu o mesmo.
Não fiz comentários e limitei-me a servir mais chá. Bebi um gole.
Quanto a Marie, dava a sensação de estar com uma ideia às voltas na cabeça.
– Como é que ele sabia que íamos estar aqui hoje? – perguntou-me. – Falou-lhe nisso?
– Não creio que o senhor Menshiki tenha aparecido de propósito para conhecer a tua tia. – Escolhi cuidadosamente as palavras, na esperança de evitar mentir de novo. – Na realidade, até fez menção de se ir embora quando soube que vocês as duas cá estavam. Fui eu que o convenci a ficar. Calhou ele aparecer quando tu e a tua tia se encontravam aqui por acaso, e, ao vê-la, ficou interessado. A tua tia é uma mulher muito atraente, sabes?
Apesar de não se mostrar inteiramente convencida, Marie deixou morrer o assunto. Ficou apenas ali sentada, de testa franzida e cotovelos na mesa.
– Bom, mas parece que vocês as duas foram convidadas a visitá-lo no próximo domingo – declarei sem rodeios.
– Sim, para vermos o retrato dele. A minha tia está ansiosa. Isto é, por irmos visitar o senhor Menshiki.
– E tem motivos para isso – disse eu. – A vida dela resume-se a passar os dias na montanha, sem ninguém por perto. Não é propriamente a mesma coisa que morar na cidade, onde há oportunidades de conhecer homens a dar com um pau.
Marie comprimiu os lábios.
– A minha tia teve um namorado – disse ela, como se estivesse a partilhar comigo um segredo de Estado. – Um homem com quem andou durante bastante tempo, quando trabalhava como secretária em Tóquio. Mas houve uma série de problemas, e separaram-se. Não soube isto por ela, claro.
– Creio que presentemente não tem ninguém na vida dela, pois não?
Marie abanou a cabeça.
– Acho que não.
– E preocupa-te que a tua tia esteja interessada no senhor Menshiki e que possa ter começado a sentir borboletas na barriga. Como tal, resolveste vir falar comigo. Acertei?
– Diga-me: acha que ele está a tentar seduzi-la?
– Seduzi-la?
– Pergunto se acha que as intenções dele são pouco sérias?
– Não posso pôr as mãos no fogo por ele – respondi. – Não conheço o senhor Menshiki tão bem quanto isso. De resto, os dois acabaram de travar conhecimento, nada aconteceu ainda entre eles. Volta e meia, quando lidamos com os sentimentos de outra pessoa, as coisas mudam de forma subtil. O que começou por ser um sentimento insignificante pode ganhar contornos mais profundos, e o contrário também é válido.
– Pois, mas desta vez tenho uma espécie de pressentimento – insistiu ela.
Achei por bem acreditar naquela «espécie de pressentimento», por mais infundado que fosse. Até porque também tinha um pressentimento parecido.
– Então, tenho motivos para afirmar que estás preocupada com a possibilidade de acontecer algo que prejudique psicologicamente a tua tia – concluí.
Marie assentiu.
– A minha tia não só não é uma pessoa sensata como não está habituada a ser magoada.
– Da forma como falas, parece que és tu quem toma conta dela, e não ela quem cuida de ti – declarei.
– Sim, pode dizer-se isso – retorquiu Marie, muito séria.
– E no teu caso? Estás habituada a que magoem os teus sentimentos?
– Não sei – respondeu Marie. – Aviso já que não estou disposta a apaixonar-me.
– Isso acontecerá um dia destes, aposto.
– Mas não tão cedo. Pelo menos, enquanto o meu peito não aumentar um bocadinho.
– Talvez seja mais cedo do que pensas.
Marie franziu a testa. Estava-se mesmo a ver que não acreditava em mim.
Senti o aguilhão da dúvida crescer-me no peito. Estaria Menshiki a querer aproximar-se de Shoko Akikawa com o propósito de forjar uma relação com Marie?
Pensando bem, ele tinha-me dito que perdera por completo o pio após um breve encontro, que precisava de a ver mais vezes.
Shoko Akikawa poderia vir a ser um importante elo. Se queria conquistar a sobrinha, Menshiki precisava, em maior ou menor grau, de cair nas boas graças da tia, coisa fácil para um homem com os talentos dele. Não sendo uma brincadeira de crianças, andava lá perto. Apesar de tudo, custava-me a acreditar que se desse ao trabalho de esconder segundas intenções. Mas talvez o Comendador tivesse razão e Menshiki fosse homem para engendrar esquemas mais ou menos tortuosos. Pelo que me fora dado a observar, não o imaginava uma criatura ardilosa.
– A casa do senhor Menshiki impressiona qualquer um – disse eu a Marie. – Mesmo que não se aprecie o género, vale a pena dar uma espreitadela.
– Já lá foi?
– Uma vez. Convidou-me para jantar.
– Dá para ver daqui?
Fingi que pensava no assunto.
– Sim, mas muito ao longe.
– Gostava de ver.
Encaminhei-me para o terraço e apontei para a vivenda de Menshiki, do lado de lá do vale. À luz das lanternas de jardim, dir-se-ia que o enorme casarão vogava como um cruzeiro de luxo nas águas negras. Várias janelas estavam iluminadas com uma luz suave e convidativa.
– É aquela grande casa branca? – exclamou Marie, surpreendida, olhando para mim. A seguir, sem dizer água vai, virou-se de novo para a moradia distante.
– Consigo vê-la da minha casa – disse ela, passado um momento –, só que a perspetiva é diferente. Sempre quis saber quem morava ali.
– Sem dúvida que se destaca na paisagem – observei. – Bom, é ali que mora o senhor Menshiki.
Debruçada sobre o parapeito, Marie estudou demoradamente a casa. As estrelas cintilavam lá no alto. Não corria uma aragem, e pequenas nuvens solitárias pairavam recortadas no céu, lembrando o cenário de madeira de uma peça teatral. Sempre que Marie mexia a cabeça, o cabelo preto e liso cintilava à luz da Lua.
– É verdade que o senhor Menshiki mora sozinho naquela casa? – perguntou Marie, virando-se para mim.
– Sim, mora completamente sozinho naquela imponente mansão.
– E não é casado?
– Ele contou-me que nunca se casou.
– Qual é a profissão dele?
– Não tenho a certeza. Só sei que trabalha no ramo das tecnologias de informação. Palavras dele. Mas não me parece que tenha um emprego certo. Vive dos lucros que obteve ao vender a antiga empresa, das ações e coisas do género. Desconheço os pormenores.
– Não trabalha? – insistiu Marie, enrugando a testa.
– Foi o que ele me disse. Quase não sai de casa.
Talvez Menshiki estivesse naquele preciso momento no terraço, a observar-nos com o potente par de binóculos. O que lhe passaria pela cabeça se nos visse juntos?
– É melhor ires andando para casa – disse eu. – Começa a fazer-se tarde.
– Vamos deixar o senhor Menshiki em paz – murmurou ela, como se me estivesse a contar um segredo. – Acho fixe a ideia de o professor fazer o meu retrato. Fico muito contente. Mal posso esperar para ver o resultado.
– Espero que corra tudo bem – respondi. As palavras dela comoveram-me imenso. Quando a pintura vinha à baila, era espantoso como aquela rapariguinha conseguia tocar-me na corda sensível.
* * *
Acompanhei-a à porta. Marie vestiu o casaco justo e enfiou o boné dos Cleveland Indians na cabeça. Parecia um rapazinho.
– Queres que te leve a casa? – perguntei.
– Não é preciso, obrigada. Sei o caminho.
– Então, até domingo.
Porém, em vez de se afastar, deixou-se ficar ali parada por instantes, com a mão na ombreira.
– Há uma coisa que me incomoda – disse ela. – Aquele sino.
– O sino?
– Acho que o ouvi tocar quando vinha para cá. Toca da mesma maneira que o sino que está no seu estúdio.
Fiquei sem palavras. Marie tinha os olhos cravados em mim.
– Onde foi isso?
– Na floresta. Atrás do templo.
Na escuridão da noite, sustive a respiração, mas não ouvi rigorosamente nada.
– Não tiveste medo? – perguntei.
Marie abanou a cabeça.
– Se não passar cartão, o medo desaparece.
– Espera um minuto – disse-lhe, apressando-me a ir até ao estúdio.
O sino não estava na prateleira onde eu o deixara. Evaporara-se.
36
O QUE PRETENDO
É NÃO DISCUTIR AS REGRAS DO JOGO
Depois de Marie ter saído porta fora, regressei ao estúdio, acendi as luzes e vasculhei tudo, mas do velho sino nem sinal. Levara sumiço.
Quando fora a última vez que o tinha visto? No domingo anterior, durante a primeira visita, Marie havia pegado no sino e agitara-o. Em seguida, devolvera-o à prateleira. Lembrava-me perfeitamente. A questão era: quando é que eu o tinha visto pela última vez? Quase não pusera os pés no estúdio durante a semana. Mal pegara no pincel. O Homem do Subaru Forester Branco tinha andado a empatar-me, e verdade seja dita que não começara sequer a pintar o retrato de Marie. Estava naquela fase a que poderíamos chamar «entre quadros».
Depois, sem que me desse conta, o sino tinha-se evaporado.
Marie ouvira-o tocar por detrás do santuário, ao atravessar o bosque. Será que alguém o tornara a enfiar no buraco? Deveria pôr-me a caminho, a fim de constatar com os meus ouvidos o toque do sino?
Contudo, a ideia de me aventurar sozinho na floresta escura estava longe de me atrair. O dia revelara-se fértil em surpresas. Independentemente do ponto de vista, era caso para dizer que já tinha a minha dose de «acontecimentos inesperados».
Fui à cozinha buscar gelo, deitei vários cubos num copo e servi-me de uísque. Ainda só eram oito e meia da noite. Teria Marie metido pelo meio das árvores e chegado a casa sã e salva? Palpitava-me que sim. A acreditar nas suas palavras, aquela montanha sempre fora para ela uma espécie de pátio de recreio, desde pequena. Além disso, a rapariga era bastante mais forte do que parecia.
Bebi dois uísques nas calmas, comi algumas bolachas, lavei os dentes e fui-me deitar. Tanto quanto sabia, corria o risco de ser acordado a meio da noite pelo toque do sino. Por volta das duas da matina, como nas ocasiões anteriores. O destino ditava o rumo dos acontecimentos. Se acontecesse, logo se via. Mas não aconteceu nada – que eu tivesse dado conta. Dormi como uma pedra até às seis e meia da manhã.
Quando acordei, estava a chover. Uma chuva fria, anunciando a chegada do inverno. A chuva mansa e persistente teve o condão de me recordar o famigerado dia de março em que a minha mulher anunciara que o nosso casamento tinha acabado. Na época, não conseguira encará-la. Permanecera o tempo todo de costas voltadas, a observar a chuva lá fora.
Após o pequeno-almoço, enfiei o impermeável e o chapéu para a chuva (comprados durante a minha longa viagem numa loja de artigos de desporto em Hakodate) e pus-me a caminho da floresta. Não levei guarda-chuva. Dei a volta por trás do santuário e retirei metade das tábuas que tapavam o buraco. Apontei a lanterna lá para dentro e investiguei escrupulosamente, mas estava vazio. Nem sino nem sinal do Comendador. Pelo sim, pelo não, decidi usar a escada de metal. Nunca descera pelo buraco. Os degraus vacilavam e produziam um rangido tenebroso a cada passo que dava. Ao chegar ao fundo, não vislumbrei nada. Era apenas um buraco vazio escavado na terra. Perfeitamente redondo, podia ter sido um poço, não fora a largura. Se os empreiteiros pretendessem originalmente extrair água dali, decerto teriam feito a circunferência do poço bastante mais pequena. Além disso, as paredes haviam sido meticulosamente construídas. Confirmava-se a informação avançada pelo arquiteto paisagista.
Fiquei ali especado durante um grande bocado, perdido em pensamentos. Estava longe de me sentir encurralado, já que via uma meia-lua de céu desenhada no topo do buraco. Apaguei a lanterna, encostei-me à parede sombria e húmida e fechei os olhos, ouvindo cair a chuva por cima de mim. Os pensamentos acudiam-me à mente em tropel, sem que conseguisse isolá-los. O primeiro ligava-se ao seguinte, e assim por diante. Mesmo não sendo capaz de encontrar uma justificação, a cadeia tinha o seu quê de bizarro. Era como se me sentisse absorvido pelo «labor do pensamento», se é que a imagem faz sentido.
Do mesmo modo que eu pensava, respirava e vivia, isso também acontecia com a câmara de pedra. Os meus pensamentos radicavam com os do poço; essas raízes articulavam-se e estavam entrelaçadas. Nessa medida, misturavam-se como tintas na paleta, ao ponto de as linhas de demarcação entre as cores perderem um contorno nítido.
A páginas tantas, tive a sensação de que as paredes do buraco ameaçavam soterrar-me. O coração batia-me no peito com um som seco, e quase ouvia as válvulas abrirem-se e fecharem-se. O meu corpo foi percorrido por um arrepio, como se me aproximasse do reino dos mortos. Não se podia dizer que aquele mundo fosse propriamente aterrador, mas ainda não chegara a minha hora de lá entrar.
Sobressaltado, recuperei a presença de espírito. Liberto da corrente do pensamento, acendi a lanterna e inspecionei o local. A escada continuava posta em seu sossego. O céu por cima da minha cabeça era o do costume. Suspirei de alívio. Não me admirava nada que o céu e a escada tivessem desaparecido do mapa. Num lugar daqueles, tudo era possível.
Degrau a degrau, subi a escada com grande prudência. Só quando cheguei lá a cima e pisei terra firme e húmida é que a minha respiração voltou ao normal. Já controlar a pulsação demorou uns minutos mais. Pela última vez, olhei para baixo e inspecionei a câmara de pedra. Fazendo incidir a lanterna, iluminei cada centímetro do solo encardido. Mas tratava-se de um poço igual a tantos outros. Não respirava nem pensava, muito menos as paredes se fechavam sobre si. Estava ali, apenas isso, em silêncio, absorvendo a chuva gélida de meados de novembro.
Tornei a pôr as tábuas no sítio e tapei o buraco com todo o cuidado, esforçando-me por deixar as pedras tal como as encontrara. Assim, ficaria a saber no caso de alguém lhes mexer. Enfiei o chapéu impermeável na cabeça e regressei a casa pelo mesmo caminho.
Ao atravessar a floresta, interroguei-me por onde andaria o Comendador. Já não lhe punha a vista em cima há mais de duas semanas. Por estranho que pareça, sentia saudades dele. Apesar do seu linguajar desarrazoado, do seu voyeurismo no que tocava à minha vida sexual e do facto de não fazer a ponta de um corno de quem ele era, desenvolvera involuntariamente uma certa cumplicidade com aquele minorca de espada à cinta. Oxalá não lhe tivesse acontecido nada de grave.
Assim que cheguei a casa, fui para o estúdio, sentei-me no banco ancestral de madeira (o tal que Tomohiko Amada devia ter usado quando pintava), e analisei demoradamente A Morte do Comendador. Era uma espécie de ritual, por assim dizer, quando não sabia o que fazer. Nunca me cansava do quadro, por mais horas que passasse a olhar para ele. Em vez de marcar presença num museu, aquela obra de primeira grandeza, representativa da arte tradicional japonesa, estava pendurada na parede do pequeno estúdio, sendo eu o único que a podia contemplar. Antes de mim, o quadro permanecera escondido no sótão, ao abrigo dos olhares alheios.
«O quadro representa um apelo urgente», dissera Marie. «Como um pássaro que anseia pela liberdade.»
Quanto mais analisava a obra, mais tinha a certeza de que Marie acertara em cheio – alguma coisa lutava desesperadamente para se libertar do seu confinamento. Era a força desse desejo que conferia vitalidade ao quadro. Isto apesar de o significado do pássaro e da gaiola me escapar por completo.
Nesse dia senti absoluta necessidade de pintar. Foi como se o desejo de pegar no pincel se apoderasse cada vez mais de mim, à imagem e semelhança da maré noturna. Mas ainda era cedo para me dedicar ao retrato de Marie. Isso podia esperar até domingo. Por outro lado, não me estava a apetecer voltar a O Homem do Subaru Forester Branco. Como Marie notara, por detrás da superfície escondia-se uma força tenebrosa.
Uma tela branca, nova em folha, esperava por mim, pronta para receber o retrato de Marie. Sentei-me na cadeira e observei a superfície vazia durante muito tempo. Pintar, sim, mas o quê? Após uma aturada reflexão, fez-se luz.
Afastei-me e peguei no caderno de esboços. Em seguida, sentei-me no chão, cruzei as pernas, encostei-me à parede e comecei a traçar os contornos da câmara de pedra. Para o efeito não utilizei o lápis macio do costume, mas um bastante mais duro. Antes ainda de começar a desenhar, a imagem ganhou forma na minha mente: tratava-se do bizarro buraco que descobrira debaixo de um amontoado de pedras. Acabara de vir do lugar em questão, por isso permanecia nítida no meu espírito. Tão pormenorizadamente quanto me foi possível, delineei a parede feita de pedras formando um intrincado padrão, o solo em torno do poço e o belíssimo desenho das folhas mortas. Sem esquecer o furtivo tufo de erva-das-pampas que costumava estar camuflado atrás do buraco, entretanto calcado pela retroescavadora.
À medida que desenhava, voltei a ter a sensação inaudita de que eu e o buraco formávamos um todo. Era como se fosse o buraco a querer que eu o desenhasse em pormenor e com grande exatidão. Obedientemente, as minhas mãos moviam-se de forma automática. Um ato de criação puro, que, reconheço, me proporcionou um prazer sem limites. Quando voltei a mim, tive a nítida perceção de que passara bastante tempo (não consigo precisar quanto) e que a página do caderno de esboços estava crivada de traços feitos a lápis.
Fui à cozinha, emborquei vários copos de água fria, preparei café, enchi uma caneca e regressei ao estúdio. Coloquei o caderno de esboços aberto em cima do cavalete e sentei-me para olhar melhor, de longe. Diante de mim, captados de uma forma tão realista e pormenorizada quanto possível, surgiram o buraco no bosque e a câmara de pedra. Bastante mais reais do que o modelo original, atrever-me-ia a dizer. Só então reparei que a imagem me fazia lembrar as partes pudendas de uma mulher. As ervas-das-pampas, que a retroescavadora esmagara, lembravam um tufo de pelos púbicos húmidos.
Abanei a cabeça e esbocei um sorrisinho amargo. Nem Freud explica. Pus-me a imaginar os comentários condescendentes feitos por um entendido na matéria: «Este buraco fundo e sombrio, representando de forma inequívoca a genitália feminina, funciona como a representação simbólica dos desejos inconscientes do artista.» Se não é isto, anda lá perto. Estou a falar a sério.
Esforcei-me por afastar da cabeça a relação entre o bizarro buraco circular e o sexo feminino, mas em vão. Mais tarde, quando o telefone tocou, tive a premonição de que devia ser a minha namorada casada.
A suspeita confirmou-se.
– Ora viva – cumprimentou ela. – Surgiu-me aqui uma aberta. Posso aparecer aí em casa?
Consultei o relógio.
– Parece-me bem. Almoçamos juntos.
– Compro qualquer coisa de caminho – disse ela.
– Boa ideia. Passei a manhã a trabalhar, portanto não tenho nada preparado.
Ela desligou. Dirigi-me ao quarto, puxei as orelhas ao futon, apanhei as roupas espalhadas no chão, dobrei-as e guardei-as na cómoda. Lavei os pratos do pequeno-almoço no lava-loiça e arrumei tudo no armário.
Só então voltei para a sala. Pus a tocar o disco do costume – O Cavaleiro da Rosa, de Richard Strauss, sob a condução do maestro Georg Solti – e entretive-me a ler até ela chegar. Que livro andaria Shoko Akikawa a ler? Que leitura a teria deixado tão empolgada?
A minha namorada apareceu ao meio-dia e um quarto. O Mini vermelho parou à frente da casa e ela saiu trazendo um saco de papel da mercearia. Embora continuasse a chover, não usava guarda-chuva. Vestindo um impermeável amarelo com capuz, encaminhou-se em passos rápidos para a minha casa. Fui ter à porta, tirei-lhe o saco de papel pardo da mão e levei-o para a cozinha. Debaixo do impermeável usava uma camisola de gola alta verde-alface, que lhe delineava os seios. Apesar de o peito não ser tão desenvolvido como o de Shoko, tinha um busto atraente.
– Ficaste a trabalhar a manhã inteira?
– Sim – respondi. – Mas não se trata de nenhuma encomenda. Apeteceu-me pegar no lápis, por isso dei largas à imaginação e pus-me a desenhar por minha conta e risco, só pelo gozo.
– Por puro capricho?
– Mais ou menos isso.
– Tens fome?
– Nada do outro mundo.
– Ótimo – disse ela. – Comemos depois?
– Por mim, tudo bem – respondi.
– Hoje estavas cá com uma genica...! Por alguma razão especial? – quis ela saber, um pouco mais tarde, na cama.
– Porque é que perguntas? – disse eu. O que deveria ter respondido era que talvez o facto de ter passado a manhã inteira a desenhar desalmadamente um insólito buraco cavado no solo com dois metros de diâmetro, estabelecendo a relação entre o dito buraco e uma vagina, me tivesse deixado especialmente excitado... Mas, como é óbvio, não podia trazer a ideia à baila.
– Há muito tempo que não estávamos juntos, foi por isso – respondi diplomaticamente.
– És um querido – disse ela, traçando com o dedo uma linha delicada no meu peito. – Mas, sê sincero, não preferias ir para a cama com uma mulher mais nova?
– Não me passa tal coisa pela cabeça – respondi.
– A sério?
– Juro. Nem uma vez. – Estava a ser honesto. Fazia sexo com ela por puro prazer e não desejava outra mulher. (O meu desejo por Yuzu, como é evidente, era de natureza completamente diferente.)
Achei melhor não lhe dizer nada acerca de Marie Akikawa. Provavelmente, só serviria para lhe acicatar os ciúmes pelo facto de eu andar a pintar o retrato de uma rapariguinha de treze anos. Para as mulheres, todas as idades parecem constituir uma fase delicada das suas vidas, tenham elas treze ou quarenta e um anos, se me permitem partilhar a minha modesta experiência.
– Mas não achas esquisita a forma como as mulheres e os homens se deixam engatar e têm relações sexuais?
– Esquisita em que sentido?
– Nós, por exemplo. Conhecemo-nos há pouquíssimo tempo, mas isso não nos impede de tirarmos a roupa e fazermos amor de uma forma vulnerável e sem pudor. Curioso, não?
– És capaz de ter razão – disse eu.
– Experimenta pensar nisso como se fosse um jogo... e não só. Não consigo explicar melhor.
– Vou tentar.
– Um jogo precisa de regras, certo?
– Acho que sim.
– Tanto para o basebol como para o futebol, existe um calhamaço com todas as regras, descritas ao pormenor, que os jogadores e os árbitros têm de saber de cor. Caso contrário, o jogo não poderia realizar-se. Tenho razão?
– Tens inteira razão.
Ela fez uma pausa. Devia estar à espera para eu assimilar a imagem.
– O que quero dizer é que nunca nos sentámos os dois a discutir as regras deste jogo, pois não?
Aquilo deu-me que pensar.
– Possivelmente, não – acabei por responder.
– Mas, na prática, estamos envolvidos num jogo que, em teoria, tem as suas regras. Certo?
– Se tu o dizes.
– Portanto, eis o busílis – continuou ela. – Pela minha parte, jogo segundo as minhas regras. E tu andas a jogar segundo as tuas. Cada um respeita instintivamente as regras do outro. Desde que as nossas regras não entrem em choque e não se instale o caos, o jogo decorre sem problemas. Estás de acordo?
– Acho que sim – disse eu, depois de pensar um pouco. – No fundo, respeitamo-nos mutuamente.
– Mas, se queres que te diga, há uma coisa que é ainda mais importante do que o respeito e a confiança. Refiro-me às regras de etiqueta.
– Etiqueta? – repeti.
– A etiqueta também desempenha o seu papel.
– Podes crer.
– Quando essas três coisas... a confiança, o respeito e a etiqueta... deixam de funcionar, as regras entram em conflito e o jogo tem de ser interrompido. Nessa altura do campeonato, temos duas hipóteses: ou o jogo fica sem efeito e tratamos de arranjar novas regras, ou pomos fim ao jogo e saímos do campo. Agora, importa saber qual dos dois caminhos queremos seguir.
Tinha acontecido precisamente isso com o meu casamento. O jogo fora interrompido por mim e eu abandonara o relvado. Num domingo de março à tarde em que chovia a potes.
– Estás a sugerir que as regras da nossa relação devem ser tema de debate?
– Percebeste tudo ao contrário – retorquiu ela, abanando a cabeça. – O que pretendo é não discutir as regras do jogo, ou não estaria nua ao teu lado. Não te importas, pois não?
– Claro que não – disse eu.
– Sobram o respeito e a confiança. E, mais importante, a etiqueta.
– E, mais importante, a etiqueta – papagueei.
Ela estendeu a mão e acariciou uma certa parte do meu corpo.
– Está outra vez a ficar duro – sussurrou ao meu ouvido.
– Talvez por hoje ser segunda-feira – disse eu.
– Porque é que a segunda-feira é para aqui chamada?
– Ou então por causa da chuva. Ou porque o inverno está à porta. Ou porque começamos a assistir à migração das aves. Ou porque temos cogumelos para dar e vender. Ou porque tenho um dezasseis avos do copo cheio de água. Ou porque a forma do teu peito debaixo da camisola verde-alface me excita.
Ao ouvir a minha resposta, ela soltou uma risadinha. Eu acertara em cheio.
Nessa noite recebi uma chamada telefónica de Menshiki. Queria agradecer-me pelo domingo anterior.
Não tinha feito nada para merecer a sua gratidão, disse eu. Apenas o apresentara a duas pessoas. O que resultaria daí era uma incógnita. Pela parte que me tocava, agia como um mero intermediário e lavava daí as minhas mãos. Gostaria até, confesso, que as coisas ficassem nesse pé (apesar de suspeitar que os deuses não me sorririam).
– Na realidade, estou a ligar por outra razão – disse Menshiki após termos cumprido as mais elementares regras de cavalheirismo. – Acabei de receber novas informações sobre o mestre Tomohiko Amada.
Ao que parecia, mantinha-se fiel à sua incumbência. Ignorava se fora o próprio a ocupar-se de tudo, ou se delegara a tarefa a terceiros, mas uma investigação digna desse nome custar-lhe-ia uma pipa de massa. Menshiki era um autêntico mãos-largas e estava habituado a abrir os cordões à bolsa. Mas por que diabo, e até que ponto, apostava em descobrir o passado de Tomohiko Amada em Viena? Não fazia ideia.
– O que apurei pode não ter uma relação de causa e efeito com a passagem de Tomohiko Amada por Viena – continuou Menshiki. – Mas coincide com o período em que se encontrava nessa cidade e é evidente que teve um grande impacto sobre o seu estado de espírito. Logicamente, pensei que gostaria de ficar a par.
– Coincide com a estada dele em Viena?
– Como lhe disse antes, Tomohiko Amada regressou ao Japão no início de mil novecentos e trinta e nove. A explicação oficial é que foi deportado, mas, em bom rigor, foi salvo pela Gestapo. Membros do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Japão e da Alemanha nazi encontraram-se em segredo, e o Amada concordou em ser extraditado sem que fosse acusado de crime algum. A tentativa falhada de assassínio dera-se em mil novecentos e trinta e oito, mas encontrava-se ligada a outros dois acontecimentos dignos de nota ocorridos nesse ano: o Anschluss... ou seja, a anexação da Áustria por Hitler... e a Kristallnacht. O Anschluss aconteceu em março, e a Noite de Cristal em novembro. Após estes eventos, a crueldade e a violência dos planos de Hitler tornou-se óbvia aos olhos de toda a gente. A Áustria encontrava-se firmemente implantada enquanto parte integrante do esforço de guerra nazi. Uma roda dentada inextrincável da engrenagem. Na esperança de impedir o curso dos acontecimentos, os estudantes formaram um movimento clandestino de resistência, e nesse mesmo ano Tomohiko Amada foi encarcerado sob a acusação de ter desempenhado um papel importante na conspiração de assassínio. Dá para ter uma ideia?
– No essencial, sim – respondi.
– Interessa-se por História?
– Não sou nenhum estudioso da matéria, mas tenho lido bastante sobre o tema – disse eu.
– Nesse ano registaram-se igualmente no Japão vários acontecimentos, por sinal acontecimentos irreversíveis, que conduziram ao desastre. Ocorre-lhe algum?
Desenterrei os acontecimentos históricos desde há muito armazenados na minha memória. O que acontecera no ano 13 da era Showa1, que é como quem diz, em 1938? Na Europa assistira-se ao agravamento da Guerra Civil espanhola. Os bombardeiros da Legião Condor tinham arrasado Guernica. E no Japão...?
– Não foi nesse ano que se registou o incidente da Ponte Marco Polo2? – aventei.
– Isso foi um ano antes – afirmou Menshiki. – A sete de julho de mil novecentos e trinta e sete recrudesceu a guerra entre a China e o Japão. Mais tarde, em dezembro, assistiu-se a nova tragédia.
– O que aconteceu em dezembro de mil novecentos e trinta e sete?
– A Queda de Nanquim – respondi.
– A Queda de Nanquim?
– Também conhecido como o Massacre de Nanquim. Após uma batalha feroz, as tropas japonesas ocuparam a cidade e muitas pessoas foram mortas. Algumas morreram a lutar, outras foram mortas depois de a batalha ter terminado. Sem capacidade para manter prisioneiros, o Exército japonês chacinou os soldados chineses que se renderam, bem como milhares de civis. Os historiadores dividem-se quanto ao número de mortes, mas não há dúvida de que um grande número de não-combatentes perdeu a vida no decorrer do conflito. Alguns apontam para quatrocentos mil, mas há quem diga que foram cem mil. Que diferença faz isso, quando falamos da vida humana?
Fiquei sem pio.
– A cidade de Nanquim caiu em dezembro, e registou-se um número incalculável de mortes. Que relação tem isso com o que aconteceu a Tomohiko Amada em Viena? – perguntei.
– Já lá vou – respondeu Menshiki. – Em novembro de mil novecentos e trinta e seis, o imperador japonês e o Reich alemão assinaram o Pacto Anti-Komintern. Na verdade, porém, Viena e Nanquim estavam de tal modo afastadas que é pouco provável que as notícias relativas à guerra movida pelo Japão contra a China chegassem até Viena. De facto, Tsuguhiko, o irmão mais novo de Tomohiko Amada, tomou parte no ataque a Nanquim enquanto soldado do Exército japonês. Fora recrutado por uma das muitas unidades de combate. Tinha então vinte anos e estudava piano naquela que é agora a Faculdade de Música da Universidade de Tóquio.
– Que estranho! – comentei. – Na altura, segundo julgo saber, os estudantes universitários estavam dispensados de combater na frente.
– Tem toda a razão. Aos estudantes a tempo inteiro era concedido um adiamento até concluírem a licenciatura. Por qualquer motivo, em junho de mil novecentos e trinta e sete, Tsuguhiko foi mandado chamar pelo Exército e enviado para a China, tendo cumprido os doze meses seguintes como soldado. Apesar de viver em Tóquio, fora registado pela família em Kumamoto, pertencendo à Sexta Divisão ali estacionada. Tudo isso se encontra devidamente documentado. Após o treino básico, foi enviado para a China e participou no ataque a Nanquim, desencadeado em dezembro. Foi desmobilizado em junho do ano seguinte, e em princípio deveria ter retomado os estudos no conservatório.
Em silêncio, esperei que Menshiki prosseguisse.
– Mas não muito depois de ter passado à reserva, Tsuguhiko Amada tirou a própria vida. Cortou os pulsos com uma navalha de barbear, no sótão da casa onde vivia. Foi aí que a família o encontrou. Passou-se isto no final do verão.
Cortou os pulsos no sótão?
– Se aconteceu em finais do verão de mil novecentos e trinta e oito... significa que Tomohiko Amada continuava a estudar em Viena quando o irmão se suicidou, correto?
– Correto. De resto, ele nem sequer regressou a casa para assistir ao funeral. É preciso não esquecer que a aviação comercial estava ainda a dar os primeiros passos. Quem quisesse viajar entre a Áustria e o Japão só poderia fazê-lo de comboio ou de barco. Basta dizer que ele nunca poderia ter chegado a tempo.
– Pretende sugerir que existe uma relação entre o envolvimento de Tomohiko na tentativa falhada de assassínio e o suicídio do irmão? Os dois acontecimentos parecem ter ocorrido quase em simultâneo.
– Isso já não sei – retorquiu Menshiki. – Seria entrar no campo da especulação. Aquilo que lhe transmiti são os factos relativos à investigação que levei a cabo.
– O Tomohiko Amada tinha mais irmãos?
– Havia um irmão mais velho. O Tomohiko era o segundo filho. Os pais tiveram três filhos, e o Tsuguhiko era o benjamim. A notícia do suicídio foi mantida no segredo dos deuses, com o intuito de proteger a honra da família. A Sexta Divisão de Kumamoto ficou conhecida pela sua bravura e os seus soldados tornaram-se um genuíno símbolo de guerreiros destemidos. Se o mundo viesse a saber que Tsuguhiko regressara em glória do campo de batalha e depois se suicidara, a família Amada não mais conseguiria encarar o mundo. O que não impediu que os rumores circulassem.
Apesar de me escapar qual o seu significado concreto, agradeci as informações.
– É minha intenção ir ao fundo do assunto – afiançou Menshiki. – Assim que souber mais alguma coisa, aviso.
– Agradeço-lhe. Seria ouro sobre azul.
– Nesse caso, apareço em sua casa no domingo que vem, depois de almoço – declarou ele. – Assim, dou boleia às duas senhoras. Para lhes mostrar o quadro, quero eu dizer. Espero que não tenha nada contra.
– Claro que não. Afinal, o quadro pertence-lhe por direito. O senhor é livre de o mostrar a quem quiser.
Menshiki fez uma pausa, como se estivesse à procura das palavras adequadas.
– Para ser sincero – declarou –, há alturas em que o invejo. – A sua voz deixava transparecer alguma resignação.
Inveja? De mim?
De que estaria ele a falar? O que levaria Menshiki a invejar-me? Não fazia sentido. Ele tinha tudo, e eu não tinha nada.
– Que é isso agora de ter inveja de mim?
– Aos meus olhos, o senhor não inveja ninguém. Estou correto?
Pensei um bocadinho antes de responder.
– Tem razão. Para dizer a verdade, creio que nunca invejei ninguém.
– Era precisamente aí que eu queria chegar.
Mas a verdade é que já não tenho a Yuzu, pensei. Trocara os meus braços pelos de outro homem. Alturas havia em que tinha a impressão de estar abandonado nos confins do mundo. Mas nem nesses momentos sentia inveja do outro gajo. Será que isso fazia de mim um tipo peculiar?
Depois do nosso telefonema, sentei-me no sofá e rememorei a história do irmão de Tomohiko Amada, o tal que cortara os pulsos no sótão. Escusado será dizer que a cena não tivera por palco o sótão daquela casa. O pintor só comprara a casa no fim da guerra. Não, Tsuguhiko cometera suicídio no sótão da mansão de família. Em Aso, sem sombra de dúvida. No entanto, o quarto secreto e sombrio por cima do teto talvez fornecesse um elo entre a morte do irmão e A Morte do Comendador. Podia não passar de uma coincidência, claro. Ou talvez Tomohiko tivesse o irmão em mente quando escondeu o quadro neste sótão. Apesar disso, importava saber por que motivo se sentira Tsuguhiko compelido a tirar a própria vida após o regresso da frente de combate? Em última análise, sobrevivera ao sangrento conflito em terras da China e retornara a casa incólume.
Peguei no telefone e liguei para Masahiko Amada.
– Que tal encontrarmo-nos em Tóquio? – sugeri. – Preciso de me abastecer de tintas e material de pintura. Aproveitamos para pôr a conversa em dia. Que me dizes?
– Claro que sim – respondeu ele, após verificar a agenda. Dava-lhe jeito na quinta-feira da parte da tarde, por isso combinámos almoçar.
– Referes-te à loja de arte, no bairro de Yotsuya?
– Exato. Além de precisar de comprar telas, estou quase a ficar sem óleo de linhaça. Como é muita tralha, terei de levar carro.
– Perto do meu escritório há um restaurante tranquilo. Podemos conversar à vontade enquanto trincamos qualquer coisa.
– A propósito – disse eu –, a Yuzu enviou-me por correio os papéis do advogado. Assinei-os e devolvi-os à procedência. Tudo indica que o nosso divórcio não tardará a ser oficial.
– Ã-hã – comentou ele, abatido.
– Que há de uma pessoa fazer? Era apenas uma questão de tempo.
– Não deixa de ser uma pena, acho eu. Vocês os dois pareciam feitos um para o outro.
– Foi bom enquanto durou – declarei. Era como ter um Jaguar já com uns anitos. Tudo corria às mil maravilhas até a máquina começar a dar problemas.
– E o que vais fazer agora?
– Aquilo que tenho feito... Continuar na minha vidinha. Não estou a ver nada melhor.
– Tens pintado?
– Sim. Acabei dois ou três quadros. Confesso que não sei que destino lhes darei, mas pelo menos voltei ao ativo.
– Assim é que é falar. – Masahiko hesitou antes de acrescentar: – Ainda bem que ligaste. Tenho uma coisa para te dizer.
– Uma coisa boa?
– Não faço ideia. Limito-me a expor os factos.
– Tem alguma relação com a Yuzu?
– Ao telefone não dá para explicar.
– Okay. Então, até quinta.
Desliguei o telefone e fui direito ao terraço. Deixara de chover e respirava-se um ar noturno fresco e revigorante. Por entre as nuvens avistei meia dúzia de estrelas. Pareciam lascas de gelo abandonadas à sua sorte. Cristais que haviam permanecido intactos ao longo de milhões de anos. Rígidos até ao núcleo mais profundo. Do outro lado do vale erguia-se a casa de Menshiki, como sempre iluminada pela claridade das lanternas.
A mansão inspirava confiança, respeito e etiqueta. Sobretudo esta última. Mas, tal como esperava, nenhum desses pensamentos me ajudou a chegar a uma conclusão definitiva.
1 Showa («iluminado de paz») é o nome por que ficou conhecido, entre 1926 e 1989, o período da história japonesa durante o qual o imperador Hirohito governou o país. O ano 13 desta era refere-se concretamente ao ano de 1938, quando o Japão declarou guerra à China e voltou a manifestar interesse pelo território soviético na fronteira com a Sibéria, levando os dois países a entrarem em confronto. Este conflito terminou com a vitória soviética na Batalha de Kalkhin Gol, a primeira e mais grave derrota do Japão na sua política expansionista na Ásia. (N. das T.)
2 O Exército japonês atravessou a Ponte Marco Polo e marchou em direção a Pequim, em junho de 1937; este acontecimento deu início à Segunda Guerra Sino-Japonesa. (N. das T.)
37
TUDO TEM UM LADO BOM
Ainda era uma longa jornada desde a minha montanha nos arredores de Odawara até ao centro de Tóquio. Visto que me enganei no caminho por mais de uma vez, a viagem demorou o dobro do tempo. O meu velho carro em segunda mão não possuía sistema de navegação nem dispositivo eletrónico que lhe permitisse passar pelas portagens. (Acho que me devia dar por contente pelo facto de vir equipado com um suporte para copos!) Primeiro que encontrasse a saída para Odawara-Atsugi foi um caso sério, e quando abandonei a via rápida de Tomei fui encontrar a circular metropolitana de Tóquio completamente engarrafada. Como tal, decidi sair em Shibuya e seguir por Yotsuya em direção à Avenida Aoyama. Mas até no coração da cidade as ruas estavam congestionadas, e a simples tarefa de escolher a faixa certa revelou-se o cabo dos trabalhos. Também não foi fácil estacionar, garanto. A cada ano, tinha a impressão de que o mundo ameaçava tornar-se um lugar mais difícil para viver.
Comprei na loja de material de pintura o que estava na minha lista, arrumei a tralha no porta-bagagem e arranquei para o escritório de Masahiko Amada, no bairro de Aoyama. Ao estacionar, já não podia com uma gata pela cauda. Sentia-me como o rato do campo que vai visitar o primo ratinho à cidade. Cheguei ao escritório dele já passava da uma, pelo meu relógio, o que significava que estava mais de meia hora atrasado.
Na receção, mandei chamar Masahiko. Ele apareceu em poucos segundos. Pedi desculpa pelo atraso.
– Deixa lá isso – disse ele a rir. – Os horários aqui no escritório são flexíveis, e os do restaurante... idem, idem.
Masahiko levou-me a um restaurante italiano ali perto, localizado na cave de um edifício pequeno. Saltava à vista que o meu amigo era conhecido no estaminé, pois, mal o empregado deu por ele, apressou-se a conduzir-nos a um reservado nas traseiras, onde não chegavam vozes nem música ambiente. Na parede havia um quadro – bastante aceitável, diga-se de passagem – representando uma península verde com um farol branco recortado no céu azul. Vulgar, dirão, mas suficientemente bem pintado para despertar no observador a vontade de visitar aquele local.
Masahiko pediu um copo de vinho branco, e eu uma água Perrier.
– Convém não esquecer que tenho uma viagem de carro pela frente depois do almoço – expliquei. – É uma estirada que não lembra ao diabo.
– Tens razão – disse Masahiko. – Mas não deixa de ser muito melhor do que Hayama ou Zushi. Em tempos, morei em Hayama, e era um tormento ir e vir todos os dias para Tóquio nos meses de verão. As estradas estavam cheias de gente que regressava das localidades junto ao mar. A viagem correspondia a quase meio dia de trabalho. Comparado com isso, conduzir até Odawara não é nada.
Consultámos as ementas e decidimo-nos pelo menu preço fixo: presunto a abrir, seguido de uma salada de espargos e massa com lagosta-japonesa.
– Decidiste finalmente dedicar-te a sério à pintura! – disse Masahiko.
– Agora que vivo sozinho, já não preciso de aceitar uma data de encomendas para pagar as contas. Daí que tenha sentido necessidade de pintar só para mim.
Masahiko assentiu.
– Tudo tem um lado bom – disse ele. – Escondido por detrás das nuvens mais negras e sombrias há sempre um raio de sol.
– Talvez, mas só a ideia de ter de trepar até às nuvens... fico sem fôlego.
– Estava a falar num sentido figurado – referiu Masahiko.
– Sendo, indiscutivelmente, o lugar ideal para me dedicar à minha arte, é possível que viver no cimo da montanha esteja a afetar o meu raciocínio.
– Sem dúvida. Desde que haja sossego, podes concentrar-te na tarefa que tens em mãos, sem distrações. Uma pessoa normal talvez se sentisse um nadinha reclusa, mas tu és gajo para te desenrascares.
A porta abriu-se e trouxeram as entradas. Ficámos os dois calados enquanto o empregado colocava os pratos à nossa frente.
– O estúdio do mestre tem qualquer coisa que me dá vontade de começar logo a pintar. Momentos há em que sinto que é o centro da casa.
– Uma espécie de coração, queres tu dizer.
– Ou então a consciência.
– Body and mind – divagou Masahiko em inglês. – Para ser franco, tenho uma certa aversão àquele estúdio. Encontra-se impregnado pelo cheiro dele. Sinto-o no ar. Quando eu era mais novo, o meu pai isolava-se durante todo o santo dia, a pintar, sem falar com ninguém. Aquele espaço funcionava como uma espécie de santuário, interdito a um puto da minha idade. Por isso é que prefiro nem pôr lá os pés, mesmo nos tempos que correm. E tu farias melhor se tivesses cuidado.
– Cuidado?... Porquê?
– Para não seres possuído pelo espírito do meu pai. Olha que a força mental dele é poderosíssima.
– Espírito?
– Talvez seja melhor falarmos em «energia psíquica». Ou «fluxo da energia vital». A dele, garanto-te, é intensa ao ponto de nos dominar por completo. Se alguém como ele passar muito tempo num determinado sítio, esse local arrisca-se a ficar dominado pela sua aura. Funciona como se fossem partículas de cheiro.
– Achas que me arrisco a ficar possuído?
– «Possuído» talvez não seja a expressão mais apropriada. «Absorver a sua influência», que tal? No fundo, é como se ele tivesse impregnado aquele espaço com uma energia insólita.
– Achas mesmo? Afinal, sou apenas a pessoa que toma conta da casa, nem sequer cheguei a encontrar-me com ele. É possível que escape a essa influência.
– Acredito. – Masahiko bebeu um gole de vinho branco. – Ser filho dele talvez tenha aumentado a minha sensibilidade. E se a «presença» do mestre te inspirar aos mais altos voos, quem sou eu para julgar?
– Como tem passado o teu pai?
– Bom, não podemos asseverar que padeça de um mal específico. Tem mais de noventa anos. Não é propriamente a saúde em pessoa, claro, e dá sinais de algum aturdimento mental, mas lá consegue andar sozinho com a ajuda da bengala, come com apetite e tem os olhos e os dentes em excelente estado. Os dentes dele estão melhor do que os meus, nem uma cárie para amostra!
– E no que respeita à memória? Lembra-se das coisas?
– Qual quê! Já não me reconhece. Perdeu o conceito de família. É provável que nem saiba distinguir a sua pessoa dos outros. No fundo, talvez seja mais fácil quando tudo isso desaparece e deixamos de pensar no assunto. Depende da sensibilidade de cada um.
Levei o copo estreito à boca, dei um gole na minha Perrier e anuí. Com que então, Tomohiko Amada, desmemoriado, deixara de reconhecer o rosto do filho! O mais provável era os acontecimentos dos dias de estudante em Viena terem caído igualmente no esquecimento.
– Ainda assim, aquilo a que chamamos o «fluxo de energia» mantém-se forte – referiu Masahiko, parecendo ele próprio espantado. – Curioso... não se lembra de quase nada, ainda que continue a ser um homem obstinado. Basta olhar para ele. É caso para dizer que a força de vontade fez do meu pai quem é. De quando em quando, sinto-me culpado por não ter herdado a sua maneira de ser, mas não há volta a dar. Cada um é como cada qual. Não é por partilharmos o sangue que os dons nos são transmitidos.
Olhei-o nos olhos. Masahiko disposto a abrir o coração era coisa rara e nunca vista.
– Deve ser complicado ter um pai tão famoso – continuei eu. – Nem consigo imaginar. O meu pai era apenas um vulgar homem de negócios.
– Não deixa de ser vantajoso ter um pai famoso, reconheço, mas há alturas em que é uma merda. Se contabilizarmos, acho que as desvantagens ganham aos pontos. Tens sorte de não saberes o que a casa gasta. Podes dar-te ao luxo de seres tu próprio.
– Tu é que pareces ser dono e senhor do teu destino.
– Num certo sentido, sim – retorquiu Masahiko, fazendo rodar o copo de vinho na mão. – Mas de resto, não.
O meu amigo possuía uma vincada sensibilidade artística. Após os estudos, aceitara trabalhar para uma agência de marketing de média dimensão. Nesta fase do campeonato, tendo o salário subido consideravelmente, aos olhos do mundo ele transformara-se num solteirão que gozava de uma boa vida. Mas não tinha maneira de confirmar se isso correspondia à verdade.
– Tinha esperança de saber meia dúzia de coisas sobre o teu pai – disse eu, abrindo o jogo.
– Coisas? Que coisas? Já te disse que sei pouco acerca dele.
– Consta que tinha um irmão mais novo chamado Tsuguhiko.
– Sim, o meu tio Tsuguhiko. Morreu há um ror de tempo. Antes de Pearl Harbor.
– Contaram-me que se suicidou.
Uma sombra passou pelo rosto de Masahiko.
– Isso era uma espécie de segredo de família, mas aconteceu há imenso tempo. De qualquer maneira, parece que em parte já anda nas bocas do mundo, por isso acho que posso alongar-me sobre o assunto. Cortou os pulsos com uma navalha da barba. Tinha apenas vinte anos.
– O que o levou a isso?
– Porque é que perguntas?
– Ando a ver se saco mais informações sobre o teu pai e, por mero acaso, ao folhear uns papéis, descobri a história do teu tio.
– Queres saber mais acerca do meu pai?
– Acerca da obra dele, acima de tudo, mas, ao investigar a sua carreira, fiquei cada vez mais interessado pela vida pessoal. Gostaria de saber que tipo de homem era.
Sentado do lado oposto da mesa, Masahiko estudou atentamente o meu rosto.
– Muito bem – disse ele. – Vejo que estás interessado na vida do meu pai! Isso deve ter algum significado. O facto de morares na mesma casa pode ter contribuído para se criar um elo entre vocês os dois.
Dito aquilo, bebeu um gole de vinho branco antes de voltar a puxar o fio à meada.
– O meu tio, Tsuguhiko Amada, andava a estudar no Conservatório de Tóquio. Um pianista carregado de talento, segundo rezam as crónicas. Adorava Chopin e Debussy, e toda a gente lhe preconizava um futuro brilhante. Desculpa se pareço arrogante, mas o talento corre-nos no sangue. Em diversos graus, claro. A meio do curso, foi recrutado. Deveria ter recebido um documento que lhe garantiria o adiamento, mas houve um berbicacho qualquer com a inscrição dele. Se os papéis tivessem sido corretamente preenchidos, isso permitir-lhe-ia adiar a entrada no Exército até acabar a licenciatura, se é que não se livraria de vez do serviço militar. O meu avô era um conhecido proprietário rural e um homem politicamente influente na região. Resumindo: houve um mal-entendido de natureza burocrática e o tio Tsuguhiko foi apanhado no torvelinho. A partir do momento em que as rodas da engrenagem foram postas em movimento, ninguém pôde fazer nada. Todo e qualquer protesto se revelou inútil. O Tsuguhiko foi integrado no Exército como soldado de infantaria e enviado para a China, direitinho à baía de Hangzhou. Na altura, o irmão mais velho, Tomohiko, isto é, o meu pai, estudava pintura com um famoso mestre, em Viena.
Eu ouvia-o mudo e quedo.
– Toda a gente sabia que o meu tio não possuía arcaboiço físico nem era talhado para a dura vida militar e para as carnificinas que ocorriam nos campos de batalha. Para tornar o cenário mais dramático, os jovens soldados recrutados no Sul de Kyushu, que formavam a Sexta Divisão, constituíam um pelotão implacável e com queda para a crueldade. Quanto ao meu pai, caiu-lhe a alma aos pés ao saber que o irmão fora enviado para a frente de batalha. Tinha uma personalidade egoísta e altamente competitiva, própria do segundo filho, ao passo que o irmão era tímido e recatado, o menino querido da família, por assim dizer. Enquanto pianista, tinha de proteger os dedos. Já em criança o meu pai se sentia na obrigação de tomar conta do irmão, três anos mais novo, e protegê-lo do mundo exterior tornou-se para ele uma espécie de segunda natureza. Por outras palavras: funcionava como seu guardião. Desterrado em Viena, porém, estava de pés e mãos atados. As escassas notícias provinham das cartas que o irmão lhe enviava da frente.
«Apesar de essas cartas terem sido severamente censuradas, como seria de esperar, os dois irmãos eram unha com carne, o que permitia ao mais velho perceber nas entrelinhas os sentimentos do benjamim da família. Sob uma perspetiva diferente, o sentido legítimo das linhas trocadas entre eles encontrava-se habilmente camuflado, de modo que só o meu pai era capaz de o decifrar. O regimento do meu tio lutara nos campos de batalha de Xangai a Nanquim e estivera debaixo de fogo nas cidades e povoações ao longo do caminho, semeando um rasto de morte e pilhagem. Esses sangrentos acontecimentos deixaram no meu tio profundas feridas emocionais.
«Uma das cartas escritas pelo seu punho descrevia um maravilhoso órgão de tubos com que se tinham deparado numa igreja cristã, na cidade ocupada de Nanquim. O instrumento sobrevivera incólume aos combates. Mas, por qualquer razão insondável, a longa descrição do órgão havia sido alvo do crivo dos censores. Porque seria a descrição de um órgão numa igreja cristã um segredo militar?... Tornava-se difícil, se não impossível, determinar quais os critérios utilizados pelo censor de serviço, até porque o dito-cujo tinha por hábito riscar a tinta preta as passagens mais inócuas e inofensivas, deixando, em contrapartida, à vista desarmada, aquelas que punham as tropas em risco. Resultado: o meu pai ficou sem saber se o irmão chegara a tocar órgão na tal igrejinha.
«A comissão de serviço do meu tio Tsuguhiko terminou em junho de mil novecentos e trinta e oito – continuou Masahiko no seu relato. – Embora fizesse inicialmente tenções de regressar de imediato ao Conservatório, voltou para Kyushu e suicidou-se no sótão da casa de família. Com a ajuda de uma pedra de amolar, afiou ao extremo uma navalha de barba e cortou os pulsos. Tratando-se de um pianista, deve ter-lhe custado horrores fazer isso às mãos. Se tivesse sobrevivido, poderia nunca mais tocar piano... Foram encontrá-lo numa poça de sangue. Mantiveram a notícia do seu suicídio no mais absoluto segredo. Aos olhos do mundo, a causa oficial da morte foi uma paragem cardíaca, ou coisa que o valha.
«Na realidade, toda a gente acreditava que o Tsuguhiko se suicidara, considerando que a guerra tinha contribuído para lhe dar cabo do sistema nervoso e o arrasar psicologicamente. Senão, atenta no seguinte: um jovem delicado e virtuoso, na casa dos vinte, cujo mundo se resumia até então a tocar piano, atirado sem apelo nem agravo para o mar de sangue da campanha de Nanquim, rodeado de pilhas de cadáveres. Nos tempos que correm fala-se muito acerca da perturbação do stresse pós-traumático, mas, como é óbvio, essa expressão... e até mesmo o conceito na sua génese... não existia na época. Numa sociedade profundamente militarista como aquela, pessoas da estirpe do meu tio eram depreciadas como tendo falta de coragem, de patriotismo, ou de força de carácter. Daí que a família procurasse enterrar o assunto, em sinal de vergonha.
– Deixou algum bilhete? – perguntei.
– Sim, encontraram um documento na gaveta da secretária. Um testemunho na primeira pessoa, longo e mais próximo de um caderno de memórias, para ser rigoroso. Nele, o meu tio Tsuguhiko descrevia pormenorizadamente as suas recordações de guerra. Apenas quatro pessoas tiveram acesso a esse relato: os pais dele, ou seja, os meus avós, o irmão mais velho, e o meu pai. Ao lê-las, regressado de Viena, queimou aquelas páginas na presença dos outros três.
Esperei pelo resto da história.
– O meu pai nunca entrou em confidências – continuou Masahiko. – Era o segredo mais obscuro da família. Metaforicamente falando, tinha sido fechado a sete chaves, carregado com pedras e atirado ao fundo do mar. Mas, um belo dia, bêbedo que nem um cacho, descaiu-se e revelou o conteúdo da missiva. Já eu andava no ensino básico quando me contaram que um tio meu cometera suicídio. Até hoje, continuo sem saber se o álcool contribuiu para lhe puxar pela língua, ou se ele achou que estava na altura de eu ficar a conhecer a história.
Os pratos de salada foram levantados da mesa e serviram-nos o spaghetti com lagosta-japonesa.
Masahiko pegou no garfo e observou-o. Dir-se-ia que estava a inspecionar um utensílio destinado a uma função específica.
– Olha lá, meu – disse ele –, e se mudássemos de assunto enquanto comemos?
– Por mim, perfeito. Vamos falar de outra coisa.
– O quê, por exemplo?
– De um assunto que não tenha relação com o documento deixado pelo teu tio.
Dito e feito. Falámos de golfe enquanto comíamos o spaghetti. Eu nunca tinha jogado golfe, naturalmente, tão-pouco conhecia alguém que jogasse. Bem vistas as coisas, nem sequer sabia as regras do jogo. Masahiko, esse, aprendera a dar umas tacadas com os clientes, por razões profissionais... e não só. Também com o objetivo de recuperar a forma física, após vários anos de inatividade. Comprara um dispendioso conjunto de tacos e costumava passar os fins de semana nos greens.
– Talvez não saibas, mas o golfe é um desporto estranhíssimo, para não dizer que é o mais absurdo do mundo. Cá para mim, nem merece ser considerado como tal. O mais curioso é que uma pessoa habitua-se a essa estranheza e depois não quer outra coisa.
Masahiko continuou a discorrer sobre a singularidade do golfe, debitando vários episódios de enfiada. Por natureza um espantoso contador de histórias, teve o condão de animar o nosso repasto. Há muito tempo que não nos divertíamos tanto.
Quando o empregado levantou os pratos da mesa e perguntou se queríamos café (Masahiko optou por mais um copo de vinho branco), o meu amigo retomou a conversa.
– Portanto, voltando à carta de despedida do meu tio – disse ele, subitamente sério. – Segundo o meu pai, o tio Tsuguhiko dava conta, num depoimento assaz vívido e pormenorizado, de ter sido obrigado a decapitar um prisioneiro chinês. Claro que um soldado raso como ele não usava espada, nem ele em toda a vida pegara numa sequer. Antes de mais, era pianista, certo? Como tal, capaz de ler na perfeição partituras complexas, mas não fazia ideia de como cortar a cabeça a um ser humano. Contudo, o comandante entregou-lhe uma espada japonesa e ordenou-lhe que cumprisse a tarefa. O prisioneiro, que já não era novo, além de não usar uniforme e estar desarmado, alegava ser apenas um civil. Acontece, porém, que o Exército do imperador arrebanhava todos os nativos que encontrava pelo caminho e limpava-lhes o sebo. Bastava ter as mãos calejadas para um nativo ser considerado camponês. No caso de as ter macias, partiam do princípio de que se tratava de um soldado que se livrara da farda a fim de passar por civil, e executavam-no sumariamente, sem perder tempo. Tanto podiam matá-los a golpes de baioneta como decapitá-los. Se houvesse uma metralhadora por perto, os prisioneiros eram alinhados e passados pelas balas, mas, regra geral, o Exército mostrava relutância em «gastar» munições neste tipo de incumbências. Posto de outro modo, os projéteis tendiam a escassear, e preferiam recorrer a baionetas e espadas. Os cadáveres eram depois empilhados e lançados ao rio Yangtzé, servindo de pasto aos numerosos peixes-gato. Verdade ou ficção? O que sei é que, a acreditar nas histórias que circulam por aí, à base dessa dieta, os peixinhos ficaram do tamanho de póneis.
«O meu tio pegou na espada de um jovem tenente, acabado de sair da academia militar, e preparou-se para decapitar o prisioneiro. Contrariado, naturalmente. Todavia, recusar-se a cumprir a ordem era impensável, pois tal ousadia não seria punida apenas com uma simples reprimenda. Com efeito, as ordens de um oficial eram como se fossem dadas pelo próprio Imperador. O meu tio agarrou na espada com as mãos a tremer. Estava longe de ser um homem robusto, e, para piorar a situação, tratava-se de uma espada ordinária e fabricada em série. Ora, não é pera doce separar o pescoço humano do resto do corpo. A tentativa falhou. O sangue espichou em profusão, o prisioneiro gritou e estrebuchou. Enfim, um cenário dantesco.
Masahiko abanou a cabeça. Dei um gole no café.
– A seguir, o meu tio vomitou. Quando já não tinha nada no estômago, despejou suco gástrico, e depois expeliu ar. Os camaradas de armas desataram a fazer troça. O oficial disse que ele mais não era do que um «triste arremedo de soldado» e deu-lhe um valente pontapé com as botas da tropa. Ninguém teve pena dele. Pelo contrário. Foi-lhe ordenado que decapitasse mais dois prisioneiros. Não passava de um mero exercício, disseram, para o ajudar a habituar-se. Uma espécie de ritual de passagem, se quiseres. Participar em semelhante carnificina ajudava a transformar qualquer homem num «guerreiro de verdade». Ora, o meu tio não estava fadado para a arte da guerra. Não viera a este mundo para ser soldado. Tinha queda, isso sim, para tocar maravilhosamente piano. Chopin e Debussy. Não nascera para decapitar outros seres humanos.
– Mas alguém nasce para degolar os seus semelhantes? – interpelei-o.
Masahiko abanou de novo a cabeça.
– Não te posso responder a isso. Só sei que existe um punhado de seres que consegue ganhar-lhe o hábito. As pessoas acostumam-se a todo o género de coisas, especialmente quando levadas ao limite. Não imaginas como isso se torna fácil.
– Ou quando lhes são apresentadas justificações para os seus atos.
– Tens razão – retorquiu Masahiko. – E é quase sempre o caso. Não ponho as mãos no fogo por mim, digo-o com sinceridade. Apesar de ter consciência de estar a receber uma ordem errada e até mesmo desumana, confesso que não sei até que ponto teria a coragem necessária para enfrentar os meus camaradas e dizer «não» se me visse mergulhado até ao pescoço num sistema tão absurdo e desumano como o militar.
Pus-me na pele do tio dele. Atuaria de modo diferente se estivesse na mesma circunstância? Veio-me à memória a imagem da mulher estranha com quem passara a noite numa cidade portuária da província de Miyagi. A jovem que me entregara o cinto do roupão de banho e me pedira que a estrangulasse durante o sexo. Tenho ainda gravada na memória a sensação provocada pelo tecido do cinto nas minhas mãos. Provavelmente, nunca a esquecerei.
– O tio Tsuguhiko nunca iria recusar-se a obedecer às ordens do oficial – afirmou Masahiko. – Faltava-lhe coragem. O que não o impediu, mais tarde, de afiar uma navalha e tirar a própria vida. Nesse sentido, não creio que ele fosse um homem fraco. Suicidar-se foi a única maneira que o meu tio encontrou para recuperar a sua humanidade.
– A notícia da morte do Tsuguhiko deve ter apanhado o teu pai de surpresa, em Viena, e constituído um choque enorme para ele.
– Lógico que sim – concordou Masahiko.
– Comenta-se à boca pequena que o teu pai se viu envolvido num incidente político, em Viena, e que foi deportado para o Japão. Esse episódio esteve de alguma forma relacionado com o suicídio do irmão dele?
Cruzando os braços, Masahiko franziu a testa.
– É difícil saber ao certo. Bem vês, o meu pai nunca se descoseu sobre o assunto.
– Ouvi uns zunzuns de que o teu pai se apaixonou por uma rapariga que pertencia ao movimento da resistência. A acreditar nos rumores, ela teria estado envolvida numa tentativa falhada de assassínio.
– Sim, estou a par da história. Tanto quanto sei, a jovem era uma estudante universitária de nacionalidade austríaca, e os dois tencionavam casar-se. Mas quando a conspiração veio à tona, ela foi presa e enviada para o campo de concentração de Mauthausen, onde possivelmente terá morrido. O meu pai foi capturado pela Gestapo e repatriado sem apelo nem agravo na qualidade de «estrangeiro indesejável», em início de mil novecentos e trinta e nove. Esta história não chegou até ao meu conhecimento através dele, claro; foi-me contada por um elemento da família. Uma fonte credível, para que saibas.
– Achas que alguém impediu o teu pai de contar a verdade sobre o que aconteceu em Viena?
– Sim. Tenho a certeza de que as autoridades dos dois lados, Japão e Alemanha, fizeram os possíveis e os impossíveis por abafar a sua deportação. O meu pai sabia que não podia abrir a boca, que era esse o preço a pagar se queria salvar o pescoço. Além do mais, não creio que ele sentisse vontade de falar sobre o sucedido. Caso contrário, não se teria remetido ao silêncio depois de a guerra acabar e de a ameaça se ter dissipado.
Masahiko fez uma pausa antes de prosseguir.
– É muito possível que o suicídio do tio Tsuguhiko tenha desempenhado um importante papel no facto de o irmão se ter envolvido na resistência antinazi, em Viena. A Conferência de Munique dissipou a ameaça de guerra, à data, mas também teve como consequência fortalecer o eixo Berlim-Tóquio, ao mesmo tempo que o mundo caminhava a passos largos numa direção ainda mais perigosa. O meu palpite é que o meu pai estava apostado em travar aquele movimento. Era um homem que prezava a liberdade, sem cedências. Fascismo e militarismo iam contra tudo aquilo em que ele acreditava. A meu ver, a morte do irmão mais novo só pode ter reforçado as suas convicções.
– Sabe-se mais pormenores?
– O meu pai não falava sobre o passado. Nunca deu entrevistas, e ainda menos deixou alguma coisa escrita para a posteridade. Pelo contrário, dir-se-ia que andava às arrecuas, esforçando-se por apagar o seu rasto com uma vassoura.
– Já como pintor foi a mesma coisa – disse eu. – Desde o regresso de Viena que o teu pai se refugiou num silêncio insondável, assim tendo permanecido até a guerra acabar.
– Sim, foram oito anos de silêncio, desde mil novecentos e trinta e nove até mil novecentos e quarenta e sete. Durante esse tempo, manteve-se o mais possível afastado daquilo a que se convencionou chamar «círculos artísticos». Detestava essa gentalha, assim como a sua «arte nacionalista», que mais não fazia do que glorificar o esforço de guerra. Para bem dos seus pecados, nascera em berço de ouro. Logo, não precisava de se preocupar em sobreviver. E, graças aos deuses, nunca foi chamado a integrar as fileiras do Exército. Resumindo e concluindo, assim que o caos do pós-guerra cessou, Tomohiko Amada renasceu das cinzas, tendo-se convertido num genuíno pintor nihonga. Abandonou o modo de pintar que o caracterizava e adotou um estilo completamente novo.
– E assim nasceu uma lenda.
– Exato – afirmou Masahiko. – Uma lenda. – Fez um gesto com a mão, parecendo enxotar um inseto. Como se a lenda fosse uma traça que andasse por ali a esvoaçar, impedindo-o de respirar como deve ser.
– Ao ouvir o teu relato – disse eu –, dou por mim a pensar que, independentemente das circunstâncias, os tempos de estudante que o teu pai viveu em Viena lançaram uma sombra sobre a vida dele.
Masahiko concordou com a cabeça.
– Sim, também me parece. Aqueles acontecimentos mudaram a sua vida de forma drástica. A derrota do complô deve ter desencadeado uma série de consequências terríveis. Coisas demasiado tenebrosas para serem sequer mencionadas.
– Seja como for, não conhecemos pormenores.
– Pois não. Já em pequeno não sabia de nada, e, agora, continua a ser uma grande incógnita. Palpita-me que o indivíduo em questão também não sabe.
Talvez, pensei. As pessoas tendem a esquecer-se do que têm obrigação de guardar na memória, e lembram-se do que deviam deixar cair no esquecimento. Sobretudo quando se aproxima a hora da morte.
Masahiko emborcou o resto do segundo copo de vinho branco e consultou o relógio de pulso, franzindo o sobrolho.
– Tenho de voltar para o escritório – disse ele.
Assim do pé para a mão, lembrei-me.
– Não tinhas qualquer coisa para me contar? – perguntei.
Ele bateu ao de leve com os nós dos dedos na mesa, como que sublinhando a minha pergunta.
– Tens razão, pá. Queria dizer-te uma coisa, mas passámos o tempo entretidos com a história do meu pai. Terá de ficar para segundas núpcias. Não é urgente, descansa.
Antes de nos levantarmos da mesa, olhei-o nos olhos.
– Porque é que te estás a abrir desta forma comigo? – Voltei à vaca-fria: – Estás a revelar-me os esqueletos no armário da tua família.
Masahiko esticou as mãos sobre a mesa e ponderou a resposta. A seguir, coçou a orelha.
– Bom, vamos lá ver. Para começar, começo a ficar cansado de carregar os chamados «esqueletos no armário» às costas. Talvez tenha chegado a hora de os partilhar com alguém. Uma pessoa que nada tem a ganhar com este estado de coisas e que saiba ficar de bico calado. E, convenhamos, tu és o ouvinte ideal. Além disso, tenho de confessar que me sinto um bocado culpado em relação à tua pessoa e foi a maneira que encontrei de me redimir.
– Culpado? – exclamei. – Por que carga de água?
Masahiko semicerrou os olhos.
– Fazia tenções de te contar – disse ele –, mas hoje já não vai dar. Tenho uma reunião importante, não posso faltar. Vamos combinar qualquer coisa nos próximos dias. Na altura, logo pomos a escrita em dia.
Foi ele quem pagou a conta.
– Não te preocupes – afirmou –, posso sempre abater a despesa nos impostos.
Aceitei agradecido.
Em seguida, meti-me no Corolla e pus-me a caminho de Odawara. Quando estacionei a velha carrinha coberta de pó diante de casa, já o Sol praticamente desaparecera por detrás das montanhas a oeste. Chegou-me aos ouvidos a vozearia de um bando enorme de corvos voando por sobre o vale, a caminho dos seus ninhos.
38
NUNCA NA VIDA PODERIA SER UM GOLFINHO
No domingo já eu esquematizara a imagem de Marie Akikawa que pretendia pintar na tela branca. Quero dizer, continuava a desconhecer a forma em concreto, mas sabia por onde começar. Surgidos do nada, os passos iniciais – o pincel e as cores, a primeira linha desenhada na tela – haviam conquistado terreno na minha mente, adquirindo, aos poucos, uma existência própria. Confesso que adoro o processo criativo.
Estava uma manhã fria. Uma daquelas manhãs que anunciam a chegada do inverno. Fiz café, tomei um pequeno-almoço simples e encaminhei-me para o estúdio. Ali, separei o material de pintura. Uma vez diante da tela, abri o caderno de esboços na página com o pormenorizado desenho a lápis feito dias antes: o interior do buraco, em pleno bosque. Já quase não me lembrava dele.
Quanto mais estudava o desenho, mais ele me atraía para as trevas. A câmara de pedra na floresta, que ninguém conhecia, a abertura secreta. A terra em redor do buraco, o tapete de folhas caídas. Os raios de sol infiltrando-se pelos interstícios das árvores. Deixei que a imaginação preenchesse os espaços em branco e comecei a visualizar uma mancha de cor. Conseguia respirar o ar daquele local, sorvia o odor da erva, ouvia o canto dos pássaros.
O poço, que eu desenhara com grande precisão, parecia atrair-me para qualquer coisa – ou numa determinada direção. O poço exigia ser pintado por mim. Poucas vezes me sentira tentado a pintar paisagens. Em boa verdade, durante dez anos dedicara-me exclusivamente aos retratos. Mas talvez uma paisagem não fosse, de todo, má ideia. O Poço na Floresta. Aquele esboço a lápis podia representar o impulso que me faltava.
Tirei o caderno de esboços do cavalete e fechei-o. Diante de mim tinha apenas a tela em branco. A tela que não tardaria a ser preenchida com o desenho de Marie.
O relógio rondava as dez quando o Toyota Prius azul subiu silenciosamente a encosta. As portas abriram-se, e Marie e Shoko Akikawa saíram do carro. Shoko vestia um casaco comprido cinzento-escuro com padrão espinhado, uma saia de lã cinzento-clara e meias pretas estampadas. À volta do pescoço usava um lenço Missoni em tons alegres. Um complemento elegante para um dia de outono. Quanto a Marie, trazia o habitual casaco da escola, um corta-vento, calças de ganga rasgadas e ténis azuis. Desta vez, dispensara o boné. O tempo estava fresco, e uma difusa camada de nuvens cobria o céu.
Após os cumprimentos da praxe, Shoko Akikawa enroscou-se no sofá e, como era seu apanágio, mergulhou na leitura do calhamaço. Marie e eu deixámo-la ali e encaminhámo-nos para o estúdio. Sentei-me no velho banco de madeira, e Marie na mesma cadeira de espaldar direito. Estávamos a dois metros um do outro. Marie tirou o casaco, dobrou-o e pousou-o ao lado da cadeira. A seguir, despiu o corta-vento. Trazia uma T-shirt azul de manga curta e, por baixo desta, uma camisola de manga comprida cinzenta. O peito continuava liso como uma tábua. Passou os dedos pelo cabelo preto e escorrido.
– Não tens frio? – perguntei. A um canto do ateliê existia um antigo aquecedor a óleo, mas estava desligado.
Marie abanou a cabeça. Como se dissesse: «Não, não tenho frio nenhum.»
– Começo hoje a pintar, sem falta – declarei. – Não tens de fazer nada. Basta ficares aí sentadinha. Deixa o resto comigo.
– É impossível ficar sem fazer nada – disse ela, olhos nos olhos.
De mãos nos joelhos, sustentei-lhe o olhar.
– O que queres dizer com isso?
– Que estou viva, respiro e invento várias teorias.
– Claro que estás viva e que respiras e que pela tua mente passam os mais diversos pensamentos. Quis apenas dizer que não precisas de fazer nada de especial. Basta seres tu própria.
Marie, porém, continuava a olhar para mim. Pelos vistos, não engolira as minhas explicações.
– Sim, mas gostaria de fazer qualquer coisa – afirmou ela.
– Por exemplo?
– Ajudá-lo a pintar.
– Agradeço, mas isso quer dizer o quê, na prática? Ajudar-me como?
– Mentalmente, óbvio.
– Estou a perceber – retorqui, apesar de não fazer ideia do que pretendia a jovem dizer com «ajudar mentalmente».
– Gostava de ver as coisas como o senhor as vê – acrescentou ela. – De olhar para mim através dos seus olhos de pintor. Acho que isso me ajudaria a compreender-me melhor. Bem como o ajudaria a si a compreender-me melhor, também.
– Gostava muito – disse eu.
– A sério?
– Cem por cento a sério.
– Mas olhe que pode tornar-se bastante assustador.
– O quê, compreendermo-nos melhor?
Marie fez que sim com a cabeça.
– Para nos compreendermos melhor temos de nos dar ao trabalho de desenterrar coisas noutros sítios.
– Quer dizer que isso só é possível se acrescentarmos uma terceira perspetiva?
– Uma terceira perspetiva?
– Trocado por miúdos – expliquei –, para entender a relação entre A e B há que investigar C, ou seja, uma terceira perspetiva. É aquilo a que chamamos «triangulação».
Marie ponderou a explanação.
– Ã-hã – retorquiu, encolhendo os ombros.
– Estás a dizer que te arriscas a introduzir no processo alguns pensamentos assustadores, dependendo da situação?
Marie acenou afirmativamente.
– Alguma vez experimentaste na pele um pensamento assustador?
Marie deixou a pergunta sem resposta.
– Se te retratar como deve ser – declarei –, talvez consigas ver-te como eu te vejo. Isto se tudo correr pelo melhor, obviamente.
– Por isso é que precisamos da pintura.
– Acertaste em cheio. Por isso é que precisamos da pintura. Ou de literatura ou de música ou de cenas do género.
Se tudo correr pelo melhor, murmurei de mim para mim.
– Bom, vamos lá começar – disse eu, dirigindo-me a Marie. De olhos postos nela, comecei a misturar o castanho para traçar os contornos do seu rosto. Em seguida, selecionei o pincel.
O trabalho progrediu lentamente e de modo constante. O retrato iria mostrá-la da cintura para cima. Era uma bonita rapariga, mas a beleza pouco importava no que dizia respeito ao retrato. Interessava-me, acima de tudo, descobrir o que se ocultava por detrás das aparências. Que é como quem diz: o que sustentava a sua personalidade, permitindo-lhe subsistir. Desse por onde desse, tinha de encontrar essa «qualquer coisa» e transferi-la para a tela. A beleza não era para ali chamada. Podia até dar-se o caso de ela ser feia. De qualquer maneira, tinha de a conhecer suficientemente bem para descobrir que coisa era aquela. Não através de palavras ou da lógica, mas enquanto forma singular, feita de luz e sombra.
Alturas havia em que me concentrava na tarefa de traçar linhas e cores na tela, mediante movimentos rápidos; outras vezes demorando-me mais. Marie continuava sentada na cadeira de costas direitas, sem se mexer, mantendo a expressão inalterada. Congregara a sua força de vontade (pressenti-o) e permaneceria nessa posição enquanto fosse necessário. «É impossível ficar sem fazer nada», dissera ela. Com efeito, estava a fazer qualquer coisa. A ajudar-me, na melhor das hipóteses. Existia um elo entre a minha pessoa e aquela jovem de treze anos, sem dúvida.
Vieram-me à memória as mãos da minha irmã. Ela agarrara-me ao penetrarmos na escuridão gelada da gruta do monte Fuji. Tinha a mão pequena e morna, pese embora os dedos fossem espantosamente fortes. Estávamos ligados por uma energia vital. Cada um dava alguma coisa ao outro, recebendo concomitantemente algo em compensação. Tratava-se de uma troca limitada a um tempo e a um espaço concretos, condenada a esmorecer e a chegar ao fim, mas a lembrança continuava viva na memória. As recordações têm o condão de ressuscitar o passado. Assim como a arte pode – quando as coisas correm de feição – conferir um rosto a essas reminiscências e, porventura, preservá-las. Tal como Van Gogh, que ao inscrever indelevelmente a figura de um carteiro de província na nossa memória coletiva, lhe conferiu vida eterna.
Durante as duas horas seguintes, concentrámo-nos nas respetivas tarefas, sem trocar palavra.
Diluindo a tinta com óleo de linhaça, utilizei uma única cor para afinar os traços de Marie. Sentada na cadeira, muito quieta, o modelo continuava igual a si próprio. Ao meio-dia, como sempre, ouviu-se ao longe o carrilhão, sinal de que o nosso tempo chegara ao fim. Pousei a paleta e o pincel, endireitei as costas e estiquei-me todo. Respirei fundo, a fim de interromper o fluxo da concentração, enquanto Marie se permitiu relaxar.
Na tela diante de mim aparecia o contorno monocromático da cabeça e dos ombros de Marie. Estava ali a base que me permitiria desenhar-lhe o retrato. Apesar de ser um simples esboço, albergava no seu âmago tudo o que ela era. Tinha a certeza de que me bastava descobri-lo para chegar ao fundo do dilema. A partir daí, só precisava de preencher o espaço vazio.
Marie não fez perguntas acerca do quadro nem pediu para vê-lo. Fiquei calado. Sentia-me esgotado. Saímos juntos do estúdio e dirigimo-nos para a sala de estar sem fazer barulho. Shoko Akikawa continuava mergulhada na leitura. Assim que entrámos, assinalou a página do livro com um marcador, tirou os óculos de armação preta e olhou para nós. Deu para ver que estava um bocadinho inquieta. O cansaço devia transparecer nos nossos rostos.
– Correu bem? – perguntou num tom que traduzia uma vaga preocupação.
– Só vamos a meio do processo, mas diria que sim.
– Fico contente por saber – disse ela. – Importa-se que prepare um chazinho? Já pus a água ao lume... e até sei onde guarda o chá preto.
Observei-a, atónito. Tinha um sorriso requintado nos lábios.
– Desculpe se fui um mau anfitrião, mas, sim, o chá é uma excelente sugestão – declarei. A verdade é que daria tudo por uma chávena de chá quente, mas estava completamente exausto e o simples facto de pensar em ir à cozinha fazia-me desistir. Há muito que uma sessão de pintura não me deixava derreado. Ao mesmo tempo, era uma sensação boa.
Shoko Akikawa regressou à sala passados dez minutos, transportando no tabuleiro três chávenas e um bule. Sentámo-nos e bebemos o chá em silêncio. Marie não abrira a boca desde que saíramos do estúdio. Volta e meia, levantava a mão e afastava o cabelo da testa. Tornara a vestir o casaco, como se precisasse de se proteger de alguma coisa.
Ficámos os três ali sentados a beber o nosso chá (sem sorver a bebida, atenção), deixando fluir a tarde de domingo. Durante muito tempo, ninguém disse uma palavra. Estamos a falar de um mutismo compreensível e natural. A dada altura, ouvi um som familiar, parecido com o marulhar numa praia do litoral distante. O rumor relutante provocado pelo embater suave das ondas depressa deu lugar ao inconfundível som produzido por um motor afinado. Concretamente, um motor com oito cilindros, de 4.2 litros, movido a combustível fóssil com um elevado teor de octanas. Levantei-me da cadeira, aproximei-me da janela e fiquei a ver pelos interstícios das cortinas o carro prateado aproximar-se.
Menshiki vestia um casaco de malha verde-lima por cima da camisa creme. As calças eram cinzentas, de fazenda. Estavam impecáveis, sem uma ruga, como se tivessem acabado de chegar da lavandaria. Embora dessem essa ideia, as peças de roupa não pareciam novas, mas sim confortavelmente usadas, o que contribuía para reforçar o ar limpo e aprumado. Bem penteado, o cabelo, branco e sedoso, cintilava. De inverno como de verão, fizesse chuva ou sol, palpitava-me que os seus cabelos mantinham aquele brilho radioso, mudando apenas de tom sob o efeito da luz.
Menshiki saiu do carro, fechou a porta e levantou os olhos para o céu nublado. Deu a impressão de refletir acerca das condições atmosféricas (pelo menos foi o que pensei), recuperou o sangue-frio e caminhou lentamente para a entrada. A seguir, tocou à campainha. Devagar e de forma ponderada, como um poeta em busca da palavra lapidar numa frase capital. Lirismo à parte, a campainha não passava disso mesmo.
Abri a porta e conduzi-o à sala de estar. Com um sorriso nos lábios, Menshiki saudou as duas mulheres. Shoko Akikawa levantou-se para o cumprimentar. Marie deixou-se ficar sentada no sofá, a brincar com o cabelo, mal se dignando a olhar para ele. Convidei toda a gente a sentar-se. Perguntei a Menshiki se lhe apetecia beber chá. Não valia a pena incomodar-me, respondeu, abanando a cabeça várias vezes e fazendo que não com o indicador.
– Como vai o trabalho?
Respondi que estava tudo nos conformes.
– Fazer as vezes de modelo deve ser cansativo, não é verdade? – perguntou Menshiki dirigindo-se a Marie. Que me lembrasse, era a primeira vez que a abordava diretamente. O tom de voz denotava ainda uma certa tensão, mas já não ficava pálido nem ruborizado na presença da jovem. Com efeito, estava quase igual a ele próprio. Era evidente que aprendera a controlar as emoções. Aposto que tinha treinado no duro.
Marie não respondeu, limitando-se a murmurar algo praticamente inaudível. Tinha as mãos enclavinhadas nos joelhos.
– Quero que saiba que é para nós uma grande alegria podermos vir até cá aos domingos de manhã – declarou Shoko, a fim de quebrar o silêncio.
– Servir de modelo não é tarefa fácil – intervim, contribuindo à minha humilde maneira para secundar os esforços da senhora. – A Marie tem-se portado lindamente.
– Também já fui modelo. Mas reconheço que estranhei. Houve momentos em que senti que me roubavam a alma. – Ao dizer aquilo, Menshiki riu-se.
– Não é nada disso – declarou Marie, quase num sussurro.
Virámo-nos os três para ela.
Shoko fez uma cara de quem tinha engolido inadvertidamente uma substância amarga. No caso de Menshiki, a expressão deixava transparecer pura curiosidade. Para não variar, remeti-me ao papel de observador neutral.
– O que quer dizer com isso? – perguntou Menshiki.
– Ninguém me roubou nada – respondeu num tom monocórdico. – Sinto que estou simultaneamente a dar e a receber.
– Tens toda a razão – disse Menshiki, no seu habitual tom calmo. Parecia impressionado. – Fui demasiado simplista. É preciso haver uma troca, claro. A criação artística nunca pode ser unilateral.
Marie ficou calada, de olhos postos no bule de chá em cima da mesa. Lembrava uma solitária garça-real à beira-mar, a observar a superfície da água durante horas a fio. O bule era de loiça branca, normalíssimo. Devia ser antigo (já vinha dos tempos de Tomohiko Amada). Não fosse uma pequena falha na pega, ninguém olharia duas vezes para ele. Marie, contudo, precisava de concentrar o olhar num objeto qualquer.
Semelhante a um cartaz branco, sem nada escrito, o silêncio tomou conta da sala.
Uma criação artística, pensei com os meus botões. As palavras possuíam uma carga que reduzia a quietude circundante a um único ponto. Como acontece quando o ar preenche um espaço vazio. Não; melhor dizendo, como o vácuo sugando o ar todo.
– Se sempre querem visitar a minha casa – sugeriu Menshiki timidamente, virando-se para Shoko –, o melhor é irmos no meu carro. Depois volto a trazê-las. O espaço lá atrás pode ser apertado, mas o caminho tem tantas curvas e contracurvas que assim é mais fácil.
– Claro que sim – acedeu Shoko sem hesitar. – Vamos no seu carro.
De olhos no bule, Marie parecia perdida em pensamentos. Claro que eu não fazia ideia do que lhe ia na mente (e na alma), assim como desconhecia o que iriam almoçar os três. Menshiki, porém, era um homem precavido, não se lhe podia apontar o dedo. Devia ter tudo planeado ao pormenor – não valia a pena matar a cabeça com aquilo.
Shoko Akikawa sentou-se ao lado do condutor, enquanto Marie se instalava no banco traseiro. Adultos à frente, crianças atrás. A ordem natural das coisas, sem necessidade de consulta prévia. Permaneci à porta de casa, vendo o Jaguar percorrer lentamente a estrada. Assim que o carro desapareceu no horizonte, voltei para dentro, levei as chávenas e o bule para a cozinha e lavei a loiça.
Quando acabei, pus O Cavaleiro da Rosa a tocar no gira-discos e esparramei-me no sofá a ouvir ópera. Habituara-me a ouvir O Cavaleiro da Rosa nas alturas em que não tinha mais nada para fazer. Fora Menshiki quem inculcara em mim aquela rotina. Ele tinha razão: a música era um vício. Um vício bom. Uma ininterrupta torrente de emoções. Timbres sonoros proporcionados por instrumentos musicais em profusão. Richard Strauss vangloriava-se de conseguir descrever este mundo e o outro com a sua música, até mesmo uma vulgar vassoura. Talvez o compositor não tenha dito «vassoura», pode ter sido outro utensílio de limpeza qualquer. Fosse como fosse, a sua música estava repleta de elementos pictóricos. Pela minha parte, esforçava-me por imprimir à pintura um rumo completamente diferente.
Quando abri os olhos, passado um momento, tinha diante de mim o Comendador, sentado numa cadeira de couro e trajando as vestes tradicionais do período Asuka, incluindo a espada à cintura. Debruçado para a frente, a figurinha de meio metro arvorava uma expressão séria.
– Há quanto tempo! – saudei-o. A minha voz, tensa e forçada, parecia ter saído das profundezas do inferno. – Como passa Vossa Excelência?
– Já tinha dito ao caro amigo que o tempo é um conceito alheio ao mundo das Ideias – respondeu o Comendador, alto e bom som. – Como vedes, portanto, esse sentimento é-me desconhecido.
– Trata-se apenas de uma força de expressão. Uma pura convenção, no fundo. Não vale a pena amofinar-se.
– Convenção? Ora aí está outra realidade que me é desconhecida.
Acreditava piamente nele. Onde não existe «tempo» não existem «convenções». Levantando-me, dirigi-me à aparelhagem, levantei a agulha e devolvi o disco à procedência.
– Como deveis imaginar – voltou o Comendador à carga, lendo os meus pensamentos –, convenções e coisas que tais não fazem sentido num reino onde o tempo corre em ambas as direções.
– As Ideias não requerem uma fonte de energia? – quis eu saber. Há muito que a pergunta me causava engulhos.
– Trata-se de um ponto espinhoso – retorquiu o Comendador, deixando transparecer a complexidade no rosto. – Todos os seres humanos precisam de energia que lhes permita virem ao mundo e sobreviver. É um dos princípios que regem o Universo.
– O que me está a dizer é que as Ideias precisam de uma fonte de energia. Correto? Isto partindo do princípio que enunciou.
– Afirmativo! É um facto indiscutível. As leis universais dizem respeito a todos, sem exceção. Como tal, as Ideias são ditosas na medida em que não possuem uma forma digna desse nome. Enquanto Ideias, materializamo-nos quando as pessoas tomam consciência da nossa existência, e só então ganhamos corpo. Claro que essa forma mais não é do que uma etapa transitória.
– Portanto, uma Ideia não existe a não ser que os outros tenham consciência dela.
O Comendador apontou para cima com o indicador direito e fechou um olho.
– E que conclusão tirais daí, ilustre amigo?
Vi-me e desejei-me com aquela analogia. O Comendador esperou pacientemente.
– Quer-me parecer – acabei por dizer – que as Ideias existem porque se alimentam da perceção dos outros.
– Afirmativo! – exclamou o Comendador, exultante, confirmando insistentemente. – Tendes uma boa cabeça sobre os ombros! As Ideias não existem sem o reconhecimento dos demais. Em bom rigor, essa perceção é a nossa única fonte de energia.
– Nesse caso, se eu pensar: «o Comendador não existe», o senhor deixa de existir. Certo?
– Negativo! Tendes razão, em teoria – afirmou o Comendador. – Mas apenas em teoria. Na realidade, não funciona, pois é impossível uma pessoa deixar de pensar num determinado assunto. A saber, concretamente: o simples facto de alguém «deixar de pensar» em qualquer coisa já é, em si, um pensamento, e a partir do momento em que alimentamos esse pensamento estamos a pensar em algo e esse pensamento tem vida própria. Logo, deixarmos de pensar em algo significaria pensarmos em deixar de pensar, ponto final.
– Por outras palavras – disse eu –, é impossível escapar a uma Ideia, a não ser que se perca a memória ou o interesse na dita Ideia.
– Só os golfinhos têm essa faculdade – referiu o Comendador.
– Os golfinhos?
– Os golfinhos têm a capacidade de pôr a dormir a metade esquerda ou direita do cérebro. Não sabíeis disso?
– Não, não sabia.
– Afirmativo! Por essa razão é que os golfinhos não se interessam pelas Ideias, inferindo-se daí que eles deixaram de evoluir. Nós, as Ideias, bem que nos esforçámos, mas falhámos em toda a linha. Custa-me dizer isto, de mais a mais tratando-se de uma espécie tão promissora. Em proporção ao tamanho, e até ao aparecimento do homem, os golfinhos possuíam o maior cérebro da sua espécie, os mamíferos.
– Mas para os humanos isso constituiu uma relação frutuosa?
– Sim, é sabido que, ao contrário do que acontece com os golfinhos, o cérebro dos humanos percorre um único caminho. Por esse motivo, a partir do momento em que lhes entra uma Ideia na cachimónia, dificilmente pode ser ignorada. Isso faz com que retiremos daí energia... energia essa que, por seu turno, permite sustentar a nossa existência.
– Como os parasitas – comentei.
– Rematado disparate! – indignou-se o Comendador, agitando o dedo como fazem os professores a ralhar com os alunos. – Quando falo em «retirar daí energia», refiro-me a uma quantidade mínima. Uma partícula tão ínfima que nenhum ser humano dará por isso. Demasiado pequena para poder afetar a saúde ou atrapalhar a vossa vidinha, convenhamos.
– Mas o senhor disse-me que as Ideias desconhecem o que é a moral. As Ideias são um conceito totalmente neutro, nem bom nem mau, e dependem do uso que os comuns mortais lhes dão. Por exemplo, as Ideias podem ter um efeito positivo em certos casos e um efeito negativo noutros, se não me engano.
– A equação que diz que a «energia é igual à massa vezes a velocidade da luz ao quadrado» é neutra em si mesma, contudo, a Ideia que lhe subjaz levou à criação da bomba atómica. Seguiram-se as bombas largadas em Hiroxima e Nagasáqui. É aí que pretendeis chegar, meu amigo?
Abanei a cabeça.
– O meu coração derrama sangue por vós... em sentido figurado, é bom de ver. Nós, as Ideias, somos incorpóreas, logo, não temos coração. Mas tudo neste mundo é caveat emptor, meu amigo!
– Como assim?
– Caveat emptor. É uma expressão latina que significa, à letra, «toma cuidado, comprador». Numa tradução livre, avisa que o risco é à responsabilidade do comprador, aconselhando-o a acautelar-se. Acaso pode o dono de um estabelecimento comercial determinar que tipo de homem está em condições de usar a roupa que ele tem na montra?
– Esse argumento soa-me a desculpa esfarrapada.
– A equação «energia é igual à massa vezes a velocidade da luz ao quadrado» esteve na origem da bomba atómica, mas, na sua génese, a fórmula também trouxe coisas boas à humanidade.
– O quê, por exemplo?
O Comendador ponderou o assunto. Parecia ter alguma dificuldade em desencantar um bom exemplo, limitando-se a esfregar vigorosamente a face com a palma das mãos, sem dizer de sua justiça. Ou, então, talvez não visse vantagem em prolongar o bate-boca.
– A propósito – disse eu, lembrando-me de repente –, faz alguma ideia do que terá acontecido ao sino que estava no estúdio? Desapareceu.
– Sino? – repetiu o Comendador, erguendo os olhos. – Que sino?
– O velho sino que o senhor fez tocar no fundo do poço. Guardei-o numa prateleira do estúdio, mas, aqui há dias, olhei para lá e dei pela sua ausência.
O Comendador abanou a cabeça, negando com ênfase.
– Ah, esse sino! Negativo! Não lhe toquei com um dedo, ultimamente.
– E quem é que, no seu entender, poderia ter-se apropriado dele?
– Como quereis que eu saiba?
– Ao que tudo indica, quem o sonegou fê-lo tocar algures em parte incerta.
– Bom, o problema não é meu. Já não tenho uso para lhe dar. De resto, o sino nunca foi única e exclusivamente pertença minha. É propriedade do lugar e, nessa qualidade, destina-se a ser partilhado por todos. Por isso, se o sino levou sumiço, tem de haver uma razão. Mas não vos apoquenteis, que há de aparecer mais cedo ou mais tarde. Deveis aguardar.
– O sino pertence ao lugar? – espantei-me. – Refere-se ao poço?
– A propósito – continuou ele, sem se dignar responder. – Se vós, meu amigo, estais expectante do regresso da Shoko e da Marie, aviso já que tendes muito que esperar. Pelo menos até ao cair da noite.
– E acha que o senhor Menshiki tem alguma na manga? – inquiri. Foi a minha última pergunta.
– Afirmativo! O Menshiki está sempre a tecer maquinações... Nunca perde a oportunidade, aquele salafrário. Corre-lhe no sangue, é uma espécie de doença congénita. No caso dele, os dois lados do cérebro estão ativos em permanência. Nunca na vida poderia ser um golfinho.
Posto aquilo, a figura do Comendador começou a desvanecer-se, até que, como o nevoeiro numa manhã de inverno sem vento, ficou reduzida a uma pequena mancha e desapareceu de vez. À minha frente havia apenas uma velha poltrona vazia. A sua ausência era tão absoluta, tão profunda, que me custava a crer que, minutos antes, a criatura se sentara ali. Dar-se-ia o caso de eu ter estado a olhar para o vazio e a falar sozinho?
Tal como o Comendador previra, o Jaguar prateado de Menshiki demorou uma eternidade a aparecer. As duas lindas meninas pareciam não ter pressa de se vir embora. Fui até ao terraço e observei a casa branca do outro lado do vale, mas não vi vivalma. Para matar o tempo, voltei para dentro e comecei a fazer o jantar. Preparei um caldo, cozi legumes ao vapor e guardei no congelador o que não ia comer. Mantive-me ocupado. Mas, quando terminei, as duas mulheres ainda não haviam regressado. Voltei para a sala de estar, coloquei um disco a tocar, estendi-me no sofá e ali me deixei estar a ler e a ouvir O Cavaleiro da Rosa.
Shoko Akikawa ficara encantada com Menshiki, não havia dúvida. Olhava para ele de um modo diferente de como olhava para mim. Os olhos brilhavam-lhe. Bastava dizer que Menshiki era um homem de meia-idade bastante atraente. Um bonito solteirão, educado e bem-apessoado, que vivia numa enorme mansão em plena montanha e que possuía quatro automóveis britânicos na garagem. Que a maioria das representantes do sexo feminino à face da terra o achasse sobremaneira interessante não era mistério nenhum (da mesma forma que as mulheres me achavam tudo menos o objeto do seu desejo). No entanto, também era mais do que evidente que Marie desconfiava ligeiramente de Menshiki. Ora, Marie era uma jovem muito perspicaz. Possivelmente, a sua intuição dizia-lhe que o sujeito tinha alguma escondida. Assim sendo, Marie preferia manter uma distância de segurança. Pelo menos era a minha opinião.
Como se desenrolaria o enredo daquela trama? Apesar de estar naturalmente curioso, começava a ficar cada vez mais apreensivo. Era caso para dizer que a curiosidade e a apreensão pediam meças. Como o movimento das marés quando enfrenta a força das águas na foz do rio.
Passava das seis e meia quando o Jaguar de Menshiki deu, enfim, um ar da sua graça. Tal como o Comendador prognosticara, já era quase de noite.
39
UMA ESPÉCIE DE CAVALO DE TROIA
O Jaguar parou em frente a minha casa. Menshiki apareceu, contornou o automóvel e abriu a porta a Shoko Akikawa, rebatendo depois as costas do assento do passageiro a fim de facilitar a saída de Marie. A rapariga e a mulher entraram no Toyota Prius azul. Shoko desceu a janela e agradeceu educadamente a Menshiki (Marie, claro, limitou-se a virar o rosto na direção oposta). As duas seguiram para casa sem mais delongas. Menshiki ficou a observá-las até desaparecerem de vista, fez uma pausa destinada a alinhar os pensamentos e ajustar a expressão (isto sou eu a efabular) e encaminhou-se para a porta.
– Sei que é tarde, mas podemos conversar um pouco? – perguntou ele, timidamente.
– Claro – respondi, convidando-o a entrar. – Não estou ocupado.
Fomos para a sala de estar. Menshiki sentou-se no sofá e eu instalei-me na poltrona que o Comendador acabara de vagar. Tive a nítida impressão de que o eco da sua voz estridente reverberava no ar.
– Quero agradecer-lhe pelo dia de hoje – declarou Menshiki. – Devo-lhe muito.
Não havia necessidade de me agradecer, respondi. A bem dizer, eu não tinha feito nada de especial.
– Se não fosse pelo retrato... aliás, se não fosse por si, não teria tido esta oportunidade. Nunca chegaria perto da Marie, nem conseguiria falar cara a cara com ela. Você tornou isto possível. É como se fosse a peça central de um leque. Preocupa-me, porém, que não tenha noção do que fez.
– Nada me deixaria mais feliz do que ajudá-lo neste particular – retorqui. – Mas não consigo perceber até que ponto o resultado terá sido acidental ou planeado. Essa é a parte que me incomoda.
Menshiki demorou uns segundos a responder.
– Pode não acreditar – disse, acenando com a cabeça –, mas não planeei nada disto. Talvez não seja inteiramente coincidência, mas as coisas acabaram por se desenrolar de forma natural.
– Quer dizer que fui o catalisador destes acontecimentos? – perguntei. – Foi esse o meu papel?
– Catalisador? Sim, creio que é uma boa escolha de palavras.
– Para falar com franqueza, sinto-me mais como uma espécie de cavalo de Troia.
Menshiki fitou-me, de olhos semicerrados, como se tivesse pela frente uma luz intensa.
– O que quer dizer com isso?
– Que me sinto como o cavalo de madeira construído pelos gregos para esconderem um punhado de guerreiros e o oferecerem aos troianos, que, incautos, o arrastaram para o interior das suas muralhas. Um contentor camuflado, desenhado para uma função específica.
Menshiki hesitou antes de responder.
– Ou seja – declarou, escolhendo as palavras com cuidado –, está convencido de que me aproveitei da sua pessoa. De que o usei para me aproximar da Marie?
– Correndo o risco de o ofender, é como me sinto.
Menshiki estreitou os olhos e os cantos dos lábios arrebitaram-se, formando um arremedo de sorriso.
– Bem, acho que nada posso fazer para o convencer do contrário. Mas, como lhe disse, tudo não passou de uma série de extraordinárias casualidades. Para ser franco, simpatizo consigo. O meu afeto é pessoal e puro. Raramente simpatizo com quem quer que seja, por isso, quando acontece, atribuo a esse facto a importância devida. Jamais abusaria de si em proveito próprio. Posso ser egoísta, volta e meia, mas gosto de pensar que sei distinguir a fronteira entre a amizade e o interesse pessoal. Não o uso como uma espécie de cavalo de Troia. Nunca faria tal coisa. Peço-lhe que tire essa ideia da cabeça.
Menshiki falava com toda a sinceridade. Não parecia estar a mentir.
– Bom... sempre teve oportunidade de lhes mostrar o quadro? – perguntei. – O retrato pintado por mim que está no seu escritório?
– Claro. Era esse o propósito da visita. Adoraram-no, apesar de a Marie não o ter confessado. É uma rapariga de poucas palavras, como sabe. Em todo o caso, pressenti o impacto que teve nela. Transparecia-lhe no rosto, nos longos minutos em que ali ficou a admirar a pintura, parada, sem abrir a boca.
Em abono da verdade, já mal me lembrava do retrato, embora o tivesse pintado há meia dúzia de semanas. Era esse o meu padrão. Assim que começava uma nova obra, esquecia-me da anterior, restando apenas uma imagem vaga. Retinha, no entanto, uma lembrança física da sensação de conquista que obtinha das horas passadas em frente à tela. Essa sensação, indiscutivelmente palpável, significava mais para mim do que a obra concluída.
– Não há dúvida de que acabaram por ficar bastante tempo – comentei.
Meio envergonhado, Menshiki encolheu os ombros.
– Após terem visto o quadro, servi um almoço ligeiro e levei-as a conhecer a propriedade. A Shoko mostrou-se bastante interessada, sabe? E o tempo acabou por voar.
– Aposto que ficaram impressionadas.
– A Shoko ficou, julgo eu. Sobretudo com o meu Jaguar E-Type. Mas a Marie não disse nada. Se calhar, não gostou da casa. Ou talvez não seja coisa para lhe despertar o interesse.
Eu tinha para mim que Marie não podia estar a marimbar-se mais para bens materiais.
– Teve oportunidade de falar com ela?
Menshiki abanou a cabeça.
– Abriu a boca duas ou três vezes, quando muito, mas só para dizer banalidades. É o que costuma acontecer. Ignorar-me.
Mantive-me em silêncio. Embora não tivesse nada de relevante a acrescentar, conseguia imaginar a cena. Sempre que Menshiki procurava iniciar uma conversa, a rapariga retraía-se e limitava-se a murmurar uma palavra ou duas. Quando ela se remetia ao silêncio, arrancar-lhe uma reação era como tentar extrair água do deserto.
Menshiki pegou numa peça que decorava a mesa – um caracol de cerâmica – e examinou-a de todos os ângulos possíveis e imaginários. Do tamanho de um ovo pequeno, era dos escassos objetos que decoravam a casa. Provavelmente uma peça de porcelana de Dresden, devia ter sido comprado pelo próprio Tomohiko Amada em tempos que já lá iam. Menshiki tornou a pousar o caracol no devido lugar. Depois, levantou a cabeça e fitou-me.
– Imagino que demore um tempinho até ela se habituar a mim – disse, como se falasse consigo próprio. – Bem vistas as coisas, acabámos de nos conhecer e é uma jovem acanhada. Além disso, os treze anos são uma idade difícil, o início da puberdade. Seja como for, o simples facto de estar na sua presença, de respirar o mesmo ar... Foi uma experiência preciosa. Inestimável, de facto.
– Isso quer dizer que os seus sentimentos não mudaram.
Menshiki semicerrou os olhos.
– Como assim?
– Que não lhe interessa saber se a Marie é ou não sua filha.
– Não, isso não mudou – sublinhou Menshiki, sem pingo de hesitação. Mordeu os lábios e prosseguiu. – Levaria muito tempo a explicar, mas quando ela está perto de mim e eu observo o seu rosto e o modo como se move, sinto-me invadido por um sentimento insólito. Fico com a sensação de que a minha vida, tal como a vivi até agora, poderá ter sido um desperdício. Que deixei de compreender a razão da minha existência, o meu lugar no mundo. É como se os valores que tomava por garantidos se revelassem, no fim de contas, um pouco dúbios.
– E, para si, esses sentimentos são difíceis de compreender, certo? – Para mim, sempre tinham feito parte da viagem.
– Exato. Nunca senti isto antes.
– E começaram depois de ter convivido um par de horas com a rapariga?
– Sim. Deve estar a pensar que não passo de um pobre idiota...
Abanei a cabeça.
– Longe disso. Aconteceu-me a mesmíssima coisa quando cheguei à puberdade e conheci uma rapariga por quem me apaixonei.
Menshiki sorriu. O seu sorriso denotava uma vaga tristeza.
– Foi então que percebi a vacuidade das minhas conquistas e dos êxitos – afirmou –, e de todo o dinheiro que acumulei. Ao contrário do que acreditava, verifiquei que mais não sou do que um veículo cujo único propósito é transmitir os meus genes a alguém. Que outra função poderei ter senão essa? Caso contrário, não passo de um torrão de terra.
– Um torrão de terra... – Experimentei dizer as palavras. Soavam estranhas.
– Para ser sincero, encontrava-me no poço quando tive esta revelação. O poço que descobrimos atrás do santuário, lembra-se? Sepultado debaixo do entulho.
– Como poderia esquecer-me?
– O meu amigo podia ter-me abandonado lá, se estivesse para aí virado. Sem o que beber ou comer, o meu corpo minguaria e seria devolvido ao solo. No final, não restaria mais do que um torrão de terra.
Como não sabia o que responder, optei por ficar calado.
– Para mim é o suficiente – continuou Menshiki. – Quero dizer, que exista a probabilidade de a Marie e eu partilharmos laços de sangue. Não me sinto minimamente compelido a apurar a verdade. Essa simples possibilidade iluminou a minha vida, o que me permite olhar para mim de outra maneira.
– Compreendo – disse eu. – Não toda a extensão do seu raciocínio, provavelmente, mas aquilo que sente. Só não entendo o que espera obter da Marie. Em termos concretos, entenda-se.
– Já pensei nisso – retorquiu Menshiki, desviando o olhar para as mãos. Eram umas mãos bonitas, com dedos delgados. – As pessoas dedicam demasiada energia a pensar numa data de coisas, quer queiram quer não. Mas acabamos por ter de esperar. Só o tempo dirá o que nos espera mais à frente. As respostas encontram-se sempre no horizonte.
Fiquei calado. Não sabia bem o que ele queria dizer com aquilo, tão-pouco sentia necessidade de descobrir. Se o fizesse, a minha situação corria o risco de se tornar ainda mais delicada.
– Ouvi dizer que a Marie tende a abrir-se consigo – continuou ele, após uma longa pausa. – Foi o que a Shoko me contou, pelo menos.
– Admito que sim – respondi com cautela. – A conversa flui com grande naturalidade quando estamos no estúdio.
Como devem imaginar, não lhe contei que a rapariga me visitara atravessando a montanha, através de uma passagem secreta. Era um segredo nosso.
– Acha que isso acontece porque está confortável consigo? Ou porque sabe que existe uma ligação pessoal?
– A Marie é fascinada por pintura – expliquei. – Ou pela expressão artística em geral. Quando há um quadro envolvido, diria que existem ocasiões... nem sempre, devo sublinhar... em que se sente à vontade para conversar comigo. Não estamos perante uma rapariga comum, é certo e sabido. Quando lhe dei aulas no centro de artes e cultura, não socializava com os outros miúdos.
– Quer dizer que não se dá com crianças da mesma idade?
– Talvez. A tia afirma que não tem muitos amigos na escola.
Menshiki ponderou o assunto.
– Ela dá-se bem com a Shoko, imagino.
– Assim parece. Ao que sei, é mais próxima da tia do que do pai.
Menshiki limitou-se a acenar com a cabeça. Seguiu-se um silêncio carregado de insinuações.
– Que tipo de homem é ele? – perguntei. – Chegou a descobrir?
Menshiki desviou o olhar.
– Sei que era quinze anos mais velho que ela – disse por fim. – Quando digo «ela», refiro-me à mulher dele, claro.
A «mulher dele», obviamente, era a antiga amante de Menshiki.
– Não sei como se conheceram nem porque casaram. Os pormenores não me interessam. Seja como for, parece-me óbvio que ele a amava genuinamente. A sua morte constituiu um choque terrível. Dizem que nunca mais foi o mesmo homem.
De acordo com Menshiki, os Akikawa eram uma família de importantes proprietários rurais (à semelhança da família de Tomohiko Amada, em Kyushu). Apesar de terem perdido quase metade da fortuna durante a reforma agrária que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, mantiveram um número de bens que continuou a permitir-lhes viver confortavelmente dos dividendos. Yoshinobu Akikawa, o pai de Marie, era o primeiro de dois filhos e o único de sexo masculino. Com a morte do pai, tornou-se o chefe da família, e isto quando era ainda muito novo. Mandou construir uma casa no topo da montanha, em terrenos que pertenciam à família, e montou escritório num dos edifícios, em Odawara, de onde passou a gerir as propriedades na cidade e arredores, o que incluía edifícios comerciais, de habitação e alguns lotes de terreno. Também investiu com conta, peso e medida no setor imobiliário. Por outras palavras, embora tenha dado continuidade ao negócio, pouco fez para o expandir, cingindo-se quase só a cuidar do património herdado.
Yoshinobu casou-se tarde. Contava quarenta e tantos quando decidiu dar o nó, e a filha (Marie) nasceu no ano seguinte. Seis anos mais tarde, a mulher seria picada até à morte. Foi no início da primavera; ela caminhava ao longo de uma plantação de ameixeiras quando foi atacada por um enxame de vespas. A sua morte deixou marcas profundas em Yoshinobu. Após o funeral, e a fim de se libertar do que lhe recordava a tragédia, contratou uma equipa de homens para arrancar as árvores, raízes e tudo. O que sobrou foi um pedaço de terreno revolvido e despido. Tinha sido um belo pomar até à data, e a sua destruição provocou uma enorme consternação em muito boa gente. Sobretudo considerando que, gerações a fio, os residentes das redondezas haviam sido autorizados a apanhar fruta a seu bel-prazer, com a qual fabricavam conservas ou licor de ameixa. Em resultado, o ato de retaliação bárbaro de Yoshinobu Akikawa privou muitos desses residentes de um dos pequenos prazeres por que ansiavam, ano após ano. Contudo, aquela era a sua montanha, o seu pomar, e as pessoas compreendiam a fúria em relação às vespas e às árvores. Como tal, ninguém lavrou publicamente a sua queixa.
Após a morte da mulher, Yoshinobu Akikawa tornou-se um homem taciturno. Nunca fora particularmente sociável, e o seu lado introvertido ganhou forte ascendente. O interesse por coisas espirituais adensou-se, acabando por ingressar nas fileiras de um culto religioso cujo nome ignoro. Há quem diga que, a dada altura, terá passado uma temporada na Índia. Deitando mão a uma boa maquia, construiu um imponente retiro para o culto nos arredores da cidade, onde se instalou durante grande parte do tempo. Ninguém sabe concretamente o que por lá acontecia, mas consta que um regime diário de rigorosa «austeridade» religiosa e o estudo da reencarnação o ajudaram a encontrar um novo propósito de vida.
Essa realidade afastou-o em grande parte dos negócios, mas sejamos realistas: as suas obrigações nunca haviam sido por demais exigentes. Tinha três colaboradores de longa data, mais do que capazes de dar conta do recado quando o patrão não punha os pés no escritório. As idas a casa tornaram-se mais espaçadas e, quando regressava, era normalmente para dormir. Por alguma razão, distanciara-se da filha. Talvez ela lhe recordasse a mulher, ou talvez nunca tivesse gostado de crianças. Marie acabaria por ficar aos cuidados de Shoko, a irmã mais nova de Yoshinobu, que tirara uma licença do trabalho como secretária do presidente de uma faculdade de Medicina, em Tóquio, e se mudara para a casa na montanha, contando que a situação fosse temporária. Afinal, o arranjo acabaria por se tornar permanente. É possível que Shoko se tenha afeiçoado à criança, ou que não suportasse a ideia de se afastar, pressentindo que a sobrinha necessitava dela.
Chegado a este ponto do relato, Menshiki parou de falar e levou os dedos aos lábios.
– Por acaso não tem uísque em casa? – perguntou.
– Acho que tenho meia garrafa de puro malte – respondi.
– Não querendo abusar, posso beber um copo? Com gelo, se possível.
– Claro que sim. Mas não vai conduzir?
– Depois chamo um táxi. Não vale a pena ficar sem a carta de condução por uma questão de lana-caprina.
Fui até à cozinha e regressei com a garrafa, uma tigela com gelo e dois copos. Na minha ausência, Menshiki pusera a tocar o disco que eu estivera a escutar, O Cavaleiro da Rosa. Sentámo-nos e ficámos a apreciar a exuberante composição de Richard Strauss enquanto desfrutávamos as nossas bebidas.
– É daqueles apreciadores que só bebem puro malte? – quis saber Menshiki.
– Não, a garrafa foi oferecida por um amigo. Mas que é bom, lá isso é.
– Em casa, tenho uma garrafa de um uísque raro, enviada por um amigo na Escócia. Um puro malte da ilha de Islay. Proveio de uma barrica selada pela mão do próprio príncipe de Gales, por ocasião de uma visita à destilaria. Vou trazer-lha da próxima vez que cá vier.
– Por favor, não precisa de fazer isso – respondi.
– Existe uma outra ilha ao largo de Islay, chamada Jura. Já ouviu falar?
– Não.
– É praticamente desabitada. Vivem lá mais veados que pessoas. Para não falar de coelhos, faisões e focas. Isto para dizer que tem uma destilaria muito antiga. Existe uma nascente próxima, perfeita para o fabrico de um puro malte de excelência. Misturado com aquela água, o sabor é absolutamente incrível. Não existe nada que se compare no mundo.
– Deve ser delicioso – disse eu.
– A ilha de Jura é conhecida como o local onde George Orwell escreveu o 1984. Alugou uma cabana no norte da ilha, no meio de nenhures, mas o inverno fez sentir o seu peso durante a estada. Trata-se de um lugar primitivo, sem as amenidades da vida moderna. Mas calculo que ele precisasse disso para escrever. Eu próprio passei lá uma semana. À noite sentava-me à lareira a beber aquele maravilhoso uísque.
– O que o levou a ficar uma semana isolado naquele ermo?
– Negócios – respondeu Menshiki, fechando-se em copas. Sorriu. Pelos vistos, não tencionava aprofundar a natureza dos ditos negócios. Também não insisti.
– Estava mesmo a precisar desta bebida – prosseguiu. – Para me acalmar, percebe? Acho que é por isso que estou aqui, a abusar da sua generosidade. Amanhã passo por cá para vir buscar o carro. Não se importa, pois não?
– Esteja à vontade. Faça como achar melhor.
Seguiu-se um compasso de silêncio.
– Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal? – disse por fim Menshiki. – Espero que não me leve a mal.
– Não se preocupe, não sou o tipo de pessoa que se melindra com facilidade. Tenho todo o gosto em responder à sua questão, se puder.
– Já foi casado?
Fiz que sim com a cabeça.
– Sim, fui casado. Aliás, ainda há dias enviei pelo correio os papéis do divórcio, devidamente assinados. Nesta fase do campeonato não tenho a certeza se ainda estarei casado ou não. Seja como for, posso afirmar que fui casado durante seis anos.
Menshiki mantinha os olhos cravados nos cubos de gelo, absorto nos seus pensamentos.
– Não quero ser abelhudo, mas alguma vez se arrependeu de o seu casamento ter acabado assim?
Bebi mais um gole de uísque.
– Como se diz «à responsabilidade do comprador», em latim? – perguntei.
– Caveat emptor – retorquiu Menshiki, sem hesitar.
– Demorei imenso tempo a fixar essas palavras, mas sei bem o que significam.
Menshiki riu-se.
– Claro que tenho arrependimentos – prossegui. – Mas, ainda que pudesse voltar atrás e corrigir alguns erros, duvido que o resultado fosse outro.
– Acha que existe algo em si impermeável à mudança? Algo que se terá tornado um obstáculo intransponível no decorrer do casamento?
– Pelo contrário, creio que o problema residiu precisamente na minha falta de impermeabilidade à mudança.
– Contudo, nutre um forte desejo pela pintura. Imagino que isso esteja intimamente ligado ao seu apetite pela vida.
– Talvez precise de ultrapassar qualquer obstáculo antes de poder começar a pintar a sério. Pelo menos é o que sinto.
– Todos temos os nossos escolhos – declarou Menshiki. – É através deles que descobrimos novos caminhos. Quanto maior a provação, mais isso nos ajudará de futuro.
– Partindo do princípio de que não nos deita por terra, claro.
Menshiki sorriu. Ao que parecia, terminara a sessão de perguntas sobre o meu casamento.
Fui à cozinha buscar um frasco com azeitonas, que mordiscámos a acompanhar as bebidas. Quando o disco chegou ao fim, Menshiki pôs a tocar o lado B. Ainda e sempre, Georg Solti conduzia a Orquestra Filarmónica de Viena.
O Menshiki está sempre a tecer maquinações. Nunca perde uma oportunidade, aquele salafrário. Corre-lhe no sangue, é uma espécie de doença congénita.
Se o Comendador estivesse certo, que jogada andaria Menshiki a preparar? Não fazia a mínima ideia. Se calhar, estava apenas a ganhar tempo, à espera da melhor oportunidade. Tinha dito que não «tencionava» abusar da minha boa vontade, e devia estar a falar verdade, provavelmente. Mas, vendo bem, as intenções não passavam disso mesmo. Menshiki era um sujeito esperto, que arranjara maneira de sobreviver e prosperar no setor mais inovador do mundo empresarial. Se tivesse um motivo oculto, ainda que latente, para me procurar, eu acabaria por me ver envolvido até ao pescoço.
– Tem trinta e seis anos, certo? – atirou ele do nada.
– Tenho.
– É a melhor idade.
Não podia dizer que concordasse com a afirmação, mas achei por bem não o contrariar.
– Tenho cinquenta e quatro anos. No que respeita aos negócios, sou demasiado velho para ocupar uma posição de destaque, embora demasiado novo para que me vejam como uma lenda. É por isso que agora vagueio por aí, sem nada para fazer.
– Há quem se torne uma lenda ainda jovem.
– Sim, há casos em que isso acontece. Mas não se pode dizer que haja grande mérito nisso. Na realidade, o estatuto pode revelar-se um verdadeiro pesadelo. Assim que passamos à categoria de lenda, não temos outro remédio senão acomodar-nos a defender esse estatuto para o resto da vida. Não consigo imaginar nada mais enfadonho.
– Nunca se aborrece?
Menshiki sorriu.
– Não me lembro de que alguma vez tenha acontecido. Sempre estive demasiado ocupado.
Acenei com a cabeça. Foi a única maneira que encontrei de exprimir a minha admiração.
– E o meu amigo? – perguntou ele. – Alguma vez se aborreceu?
– Claro. Acontece-me com frequência. Neste momento, por exemplo, o tédio é parte integrante da minha vida.
– E não lhe custa tolerar uma situação dessas?
– Habituei-me. Logo, não me custa.
– Aposto que se deve ao facto de a pintura ocupar um lugar central na sua vida. Irrompe do âmago do seu ser. A paixão de criar nasce daquilo a que se chama tédio. Sem isso, tenho a certeza de que o tédio seria insuportável.
– Não está a trabalhar, portanto?
– Acertou. Digamos que estou reformado. Compro e vendo ações online, como lhe disse, mas não o faço por imperativos financeiros. Encaro-o como uma espécie de jogo. Uma forma de disciplina mental, se quiser.
– E vive como um eremita naquele casarão.
– Correto.
– E, ainda assim, nunca se aborrece?
Menshiki abanou a cabeça.
– Tenho imensa coisa com que me ocupar. Livros para ler, música para ouvir. Informações que preciso de recolher, selecionar e analisar. Tenho por hábito manter-me ativo. Também faço exercício físico, e quando preciso de mudar de ritmo, pratico piano. Sem esquecer as tarefas domésticas, claro. Como vê, não há tempo para me aborrecer.
– E não tem medo de envelhecer, de se tornar um homem velho e sozinho?
– A velhice acabará por vir, um dia. Essa questão nem sequer se coloca. O meu corpo perderá capacidades, e tornar-me-ei cada vez mais solitário. Mas ainda não cheguei lá. Tenho uma ideia de como será o futuro, mas sou o tipo de pessoa que precisa de ver para crer. Como tal, terei de esperar. Não tenho medo da velhice, por nenhuma razão em particular. Não anseio por ela, entenda-se. Mas tenho alguma curiosidade, confesso.
Menshiki fez girar lentamente o uísque no copo.
– E consigo? – perguntou, fitando-me. – Passa-se o mesmo?
– Fui casado durante seis anos e as coisas não correram lá muito bem. Não pintei um único quadro durante esse tempo. Algumas pessoas dirão que desperdicei esses anos, visto que me obrigava a criar pinturas de que não gostava particularmente. Apesar de tudo, acho que me sinto afortunado de ter passado por isso. É o que penso nos tempos que correm.
– Acho que entendo o que está a dizer. Todos passamos por uma fase em que somos obrigados a colocar o ego de lado. Acertei?
Uma possibilidade, pensei. Mas, no meu caso, talvez tenha demorado mais tempo a descobrir o fardo que andei a carregar. Será que arrastei Yuzu ao longo dessa jornada desprovida de sentido?
Até que ponto teria medo de envelhecer e recearia a inevitabilidade da velhice, interroguei-me.
– Tenho dificuldade em imaginar como será – confessei. – Pode parecer um disparate, mas, aos trinta e tal anos, sinto-me como se a vida estivesse apenas a começar.
Menshiki sorriu.
– Não me parece disparate nenhum. Dou-lhe toda a razão, tem a vida inteira pela frente.
– Há pouco mencionou o tema dos genes. Referiu que sente que não passa de um recetáculo destinado a receber e transmitir um conjunto de genes à geração seguinte. E que, além desse dever, nunca passará de um torrão de terra. Certo?
Menshiki acenou afirmativamente.
– Sim, foi o que eu disse.
– Essa ideia não lhe parece assustadora? Ser um punhado de terra, isto é.
– Posso ser um torrão de terra – respondeu Menshiki, soltando uma gargalhada. – Mas, em matéria de torrões, sou do melhorzinho que por aí anda. Talvez pareça arrogante da minha parte, mas atrevo-me a pensar que posso muito bem ser um torrão de classe superior. Fui abençoado com alguns dons. São limitados, bem sei, mas não deixam de ser talentos. É por isso que me empenho a fundo em tudo o que faço. Quero testar-me ao máximo, descobrir o que consigo fazer. E assim não me aborreço. É a melhor forma que conheço para manter o medo e o vazio ao largo.
Continuámos a beber até perto das oito da noite, altura em que demos cabo da garrafa. Menshiki preparou-se para se ir embora.
– É melhor pôr-me a caminho. Já impus a minha presença o suficiente.
Chamei um táxi para a «casa de Tomohiko Amada». Foi tudo o que precisei de dizer para identificar a morada. O homem era mais do que famoso. A operadora respondeu que o carro demoraria quinze minutos. Agradeci e desliguei.
Menshiki aproveitou o compasso de espera para voltar à carga.
– Contei-lhe que o pai da Marie ingressou numa seita, não foi?
Acenei com a cabeça.
– Bem, trata-se de uma dessas novas religiões, bastante duvidosa, por sinal. Retirei informações da Internet e descobri que têm um passado negro. Foram processados legalmente uma data de vezes. Não passa de um monte de balelas, indignas de qualquer religião credora desse nome. Claro que o senhor Akikawa é livre de acreditar no que quiser, nada a objetar. O certo é que enterrou uma boa maquia neste grupo. Dinheiro pessoal e da empresa. A sua fortuna sempre foi considerável, e bastavam-lhe as rendas mensais que recebia para viver decentemente. Mas sempre existiu um limite para o que podia gastar sem ter de se desfazer de propriedades ou de outros bens. Esse limite foi ultrapassado há muito tempo, pois já vendeu este mundo e o outro. Uma situação nada recomendável. A imagem que me vem à cabeça é a de um polvo a tentar sobreviver à custa de devorar os próprios tentáculos.
– Está convencido de que ele anda a ser depenado por esse culto?
– Sem dúvida. O homem é um autêntico lorpa, e quando alguém cai nas mãos de um grupo desta natureza, fica sem couro e cabelo. Perdoe-me por dizer isto, mas a infância privilegiada do senhor Akikawa tornou-o mais vulnerável a esquemas desta natureza.
– Vejo que está preocupado com a situação.
Menshiki suspirou.
– Ele é responsável pela sua vida e pela maneira como tudo vai acabar. É adulto e consciente das decisões que toma. Para a família, contudo, a história não é tão linear quanto isso, visto que não fazem ideia do que se passa. Seja como for, esta minha preocupação não fará qualquer diferença.
– O estudo da reencarnação... – aventei eu.
– É um cenário fascinante – concluiu Menshiki, abanando a cabeça.
O táxi lá acabou por chegar. Antes de entrar no carro, e mostrando-se o mais cortês possível, Menshiki agradeceu-me novamente. Apesar do álcool que emborcara, o seu rosto não apresentava o mínimo rubor, e as suas maneiras permaneciam irrepreensíveis.
40
JAMAIS CONFUNDIRIA O SEU ROSTO
Depois de Menshiki se ir embora, lavei os dentes, enfiei-me na cama e caí nos braços de Morfeu. Adormeço facilmente, e beber álcool tem o condão de acentuar essa tendência.
A meio da noite fui despertado por um estrondo. Primeiro, pareceu-me real, embora pudesse ter sonhado. Se calhar, era o subconsciente a pregar-me partidas, mas tratou-se de uma coisa em grande, equivalente a um tremor de terra. O impacto projetou-me no ar, e essa parte aconteceu mesmo, visto que nunca o poderia ter sonhado nem imaginado. Estava ferrado a dormir e, no instante seguinte, encontrava-me quase a cair da cama, completamente desperto.
O relógio na mesa de cabeceira dizia que eram duas e picos da manhã. A altura da noite em que o sino costumava tocar. Com a diferença de que não soara campainha nenhuma. Com o inverno à porta, o zumbido dos insetos deixara de se ouvir e um silêncio profundo caíra sobre a casa. Lá fora, nuvens densas e sombrias cobriam o céu. Se me concentrasse, conseguia ouvir o vento.
Alcancei o candeeiro, acendi a luz e vesti uma camisola por cima do pijama. Precisava de passar revista à casa. Algo de estranho acontecera, ou assim parecia. Poderia um javali ter entrado pela janela? Caíra um meteorito no telhado? Era pouco provável. Mais valia averiguar e ter a certeza, uma vez que recebera a incumbência de tomar conta da casa. Além disso, dificilmente voltaria a adormecer sem tirar a história a limpo. O estrondo despertara-me de vez, e o meu coração batia desalmadamente.
Atravessei a casa de uma ponta à outra, acendendo as luzes em todas as divisões. Tanto quanto via, nada estava fora do lugar. Tudo parecia em ordem. A casa não era tão grande quanto isso e decerto me aperceberia de qualquer elemento estranho. Assim que dei a inspeção por terminada, encaminhei-me para o estúdio. Aproximei-me da porta que fazia a ligação com a sala de estar e estendi a mão para o interruptor. Foi então que algo me deteve. Não acendas a luz, murmuraram ao meu ouvido. Uma voz ténue, mas percetível. É melhor deixares ficar tudo às escuras. Acatei as instruções, afastei a mão da parede e fechei a porta sem emitir um pio. Procurando controlar a respiração, espreitei para dentro do estúdio mergulhado na penumbra.
À medida que os meus olhos se ajustavam às trevas, apercebi-me de que não estava sozinho. Os sinais eram inconfundíveis. Havia alguém sentado no banco de madeira que eu usava para pintar. De início pensei que fosse o Comendador, que ele se materializara e regressara. A criatura, porém, era muito maior. Pela silhueta, julguei tratar-se de um homem alto e esguio. O Comendador media uns escassos sessenta centímetros. A silhueta devia ter cerca de um metro e oitenta. O visitante encontrava-se sentado, com as costas curvadas, como fazem por vezes as pessoas altas. Não mexia um dedo.
Pela minha parte, permaneci mudo e quedo durante o tempo em que ali fiquei encostado à ombreira da porta, a mão esquerda a pairar sobre o interruptor, não fosse o diabo tecê-las. No escuro, parecíamos duas estátuas. Por qualquer razão, não me senti assustado. A minha respiração era quase impercetível, o batimento do coração forte e seco. Mas não senti medo. Alguém que nunca vira mais gordo acabara de invadir a minha casa pela calada da noite. Podia ser um ladrão. Ou um fantasma. Qualquer das hipóteses tinha o seu quê de aterrador, mas não me senti em perigo nem dominado pelo pavor.
Talvez os recentes acontecimentos – a começar pela aparição do Comendador – me tivessem imunizado contra o insólito. Mas, em boa verdade, a situação ultrapassava os domínios da estranheza. O que fazia aquele misterioso intruso no estúdio, a altas horas da madrugada? A curiosidade suplantava o medo. O visitante parecia absorto em pensamentos. Ou fitava intensamente qualquer coisa. O modo como parecia concentrado saltava à vista. Nem sequer se apercebera da minha presença. Ou talvez o meu vaivém não fosse digno da sua atenção.
Procurei acalmar a respiração e controlar os batimentos do coração enquanto os meus olhos se ajustavam à escuridão. Passado um momento, percebi finalmente aquilo que constituía o alvo de tão desusada atenção. Estava pendurado na parede em frente, o que significava que só poderia tratar-se do quadro de Tomohiko Amada, A Morte do Comendador. O visitante encontrava-se pregado ao banco de madeira, com as costas ligeiramente curvadas, a admirar a pintura. Tinha as mãos pousadas nos joelhos.
Ato contínuo, as nuvens negras que cobriam os céus romperam-se e uma nesga de luar inundou a divisão. Era como se um túmulo ancestral tivesse sido banhado pela água límpida e silenciosa, revelando os segredos gravados à superfície da pedra. A escuridão voltou a imperar, mas apenas num breve relance, pois as nuvens não tardaram a dissipar-se e uma luz azulada e pálida inundou a totalidade do estúdio durante uns bons dez segundos. Nesse preciso instante, descobri a identidade da pessoa sentada no banco.
Os cabelos brancos e desgrenhados caíam-lhe sobre os ombros, com as pontas espetadas em todas as direções. A julgar pela postura, que lembrava uma árvore murcha, tratava-se de alguém com uma idade avançada. Em tempos idos, devia ter sido um homem imponente, másculo. Agora, tanto quanto me era dado a ver, estava reduzido a um esqueleto vencido pelos anos e, porventura, pela doença.
O semblante mostrava-se tão macilento que demorei um bom bocado a reconhecer as feições. Só então caí em mim. Tivera acesso a apenas um punhado de fotografias, mas jamais confundiria o seu rosto. O perfil aquilino do nariz e a poderosa aura física constituíam prova suficiente. Apesar do frio noturno, senti as axilas húmidas de suor. O meu coração batia ainda com mais força e mais depressa. Por muito que me custasse a acreditar, não restavam dúvidas.
O velho era Tomohiko Amada, o artista que pintara o quadro. O mestre regressara ao estúdio.
41
DESDE QUE EU NÃO OLHASSE PARA TRÁS
Não podia ser Tomohiko Amada em carne e osso. O Tomohiko Amada «real» estava internado numa casa de repouso na península de Izu. Sofria de demência avançada e raramente se levantava da cama. Era impossível ter chegado tão longe pelos próprios meios. Eu devia estar a olhar para um fantasma. Ora, sabendo que Amada continuava vivo, o que tinha diante de mim só podia tratar-se do tal «espírito vivo», a menos que o sujeito tivesse exalado o último suspiro segundos antes. Nesse caso, aquele era o seu espectro.
Mas não se tratava de uma alucinação. Era demasiado real e compacto para isso. Exibia uma humanidade inconfundível e mecanismos mentais conscientes. Por via de um qualquer invulgar processo, Tomohiko Amada regressara ao seu estúdio e estava sentado no seu banco a contemplar a sua obra, A Morte do Comendador. Enquanto olhava fixamente para ela, dava a impressão de que os olhos trespassavam a escuridão. A minha presença era-lhe indiferente. Desconfio que nem se apercebeu de que eu estava na sala.
Com a passagem das nuvens, o luar que se infiltrava pela janela aparecia e desaparecia, oferecendo-me breves vislumbres da sua silhueta. O mestre trazia o que poderia ser um velho roupão (ou uma camisa de dormir antiga) e, visto que estava sentado, permitia-me entrever-lhe o perfil. Encontrava-se descalço. Sem meias nem chinelos. O cabelo branco em desalinho, o queixo coberto por uma sombra grisalha. Um rosto macilento, olhos luminosos e penetrantes.
A emoção que eu sentia não se ficava a dever ao medo, mas sim à perplexidade. Para todos os efeitos, a cena diante dos meus olhos desafiava o senso comum. Aproximei a mão do interruptor na parede. Não tencionava acender a luz, estava simplesmente paralisado. Não queria de modo algum perturbar Tomohiko Amada, fosse ele fantasma ou espectro. Aquele estúdio era o seu lugar legítimo, era ali que ele realmente pertencia. O intruso era eu. Como tal, não tinha o direito de o perturbar.
Aguardei que a respiração voltasse ao normal e a tensão abandonasse o meu corpo, e só então saí silenciosamente do estúdio. Fechei a porta de mansinho. Durante todo esse tempo, Tomohiko Amada permaneceu imóvel no banco. Mesmo que eu tivesse esbarrado na mesa e derrubado a jarra, duvido que ele desse por isso. Mostrava-se ferozmente concentrado. O luar tornara a romper por entre as nuvens, iluminando o corpo esquelético. Essa última imagem ficou-me gravada na mente. Envolta nas sombras obscuras e nas trevas da noite, a silhueta parecia ressumar a sua vida inteira. Nunca mais te esqueças disto, disse a mim mesmo. Tinha de guardar na memória, até ao último pormenor, o que os meus olhos haviam testemunhado.
Sentei-me à mesa da sala de jantar e emborquei dois ou três copos seguidos de água mineral. O que me apetecia mesmo era um uísque, mas a garrafa estava vazia. Eu e Menshiki tínhamos acabado com ela na véspera. Tirando algumas garrafas de cerveja no frigorífico, que não resolviam o problema, não havia mais álcool lá em casa.
Já passava das quatro da manhã quando o sono por fim chegou. Até esse momento não me mexera da mesa, mergulhado numa série de pensamentos em catadupa. Estava demasiado tenso para agir. Limitei-me a fechar os olhos e deixar o espírito vaguear. Nada fazia sentido. Durante várias horas segui essas ideias fragmentadas e tortuosas, como um gatinho entretido a perseguir a própria cauda.
Cansado de tanto matutar, invoquei mentalmente a imagem de Tomohiko Amada que vira escassas horas antes. Querendo assegurar-me da sua exatidão, fiz um desenho de memória. Abri o caderno de esboços imaginário, peguei num lápis imaginário e desenhei a silhueta do ancião. Era um velho ritual meu sempre que arranjava tempo livre. Não precisava de papel e lápis a sério. Aliás, era mais fácil sem eles. Os matemáticos, calculo eu, passam por um processo semelhante quando idealizam uma fórmula num quadro imaginário. Talvez um dia venha a transpor para a tela aquilo que vi.
Não tinha vontade de tornar a meter o nariz no estúdio. Sentia curiosidade, claro. Tomohiko Amada (ou o seu duplo, quem sabe?) ainda lá estaria sentado no banco, com os olhos cravados no quadro A Morte do Comendador? A possibilidade intrigava-me, manda a verdade que se diga. Deparara-me com um acontecimento raríssimo e precioso, testemunhara-o pessoalmente. Poderia isso fornecer a solução, ou melhor, várias soluções, que ajudassem a desvendar os segredos da vida de Tomohiko Amada?
Independentemente do cenário, não queria intrometer-me no que ele estava a fazer. Aquela alma percorrera um longo caminho, transcendendo o espaço e a razão, para voltar a apreciar A Morte do Comendador, perscrutando o seu quadro ao pormenor a fim de descobrir... o quê? Devia ter sacrificado uma grande parte da já de si fraca reserva de energia só para chegar aqui, esgotando os escassos resquícios da força vital. Contudo, algo o havia impelido a voltar ao quadro uma última vez, custasse o que custasse, a fim de o estudar até à saciedade.
Quando abri os olhos, já passava das dez da manhã, coisa nada usual para alguém madrugador como eu. Lavei a cara, fiz café e tomei o pequeno-almoço. Por qualquer razão, sentia-me esfomeado. Comi quase o dobro do que é hábito. Três torradas, dois ovos cozidos e uma salada de tomate, para não falar das duas grandes chávenas de café que emborquei.
Depois do pequeno-almoço fui ao estúdio dar uma espreitadela, só para ter a certeza, mas Tomohiko Amada, como seria de esperar, abandonara a cena. Restava a sala vazia e silenciosa. Um cavalete com uma tela (a minha pintura de Marie Akikawa), um banco redondo diante desta e a cadeira de espaldar direito em que Marie se sentava quando posava para mim. O quadro A Morte do Comendador pendurado na parede. O sino continuava ausente da prateleira. O céu azul sobre o vale, o ar frio e límpido. O estridente chamamento das aves, à espera da chegada do inverno.
Peguei no telefone e liguei para o escritório de Masahiko. Apesar de ser quase meio-dia, respondeu-me com a voz ensonada. Um caso típico da letargia das manhãs de segunda-feira. Depois de nos cumprimentarmos, perguntei pelo pai, como quem não quer a coisa. Desejava saber se o homem já se finara e se a aparição que eu vira era o seu fantasma. A confirmar-se que Tomohiko Amada morrera na noite anterior, o filho certamente teria sido informado.
– Como vai o teu pai? – perguntei.
– Visitei-o aqui há dias. Infelizmente, as suas faculdades mentais deterioraram-se de forma irreversível, mas creio que está bem do ponto de vista físico. Pelo menos não aparenta estar às portas da morte.
Com que então, Tomohiko Amada estava vivo! O que eu vira não era nenhum fantasma. Representava a encarnação efémera da vontade de uma criatura viva.
– Bem sei que é uma pergunta estranha, mas notaste alguma coisa de diferente no teu pai?
– Diferente? No meu pai?
– Sim.
– Porque é que me pões essa questão assim de repente?
Mantive-me fiel à história que me propusera contar.
– Para ser sincero, tive um sonho estranho. O teu pai aparecia a meio da noite, e eu fui dar com ele. Um sonho muito realista, ao ponto de me ter feito saltar da cama. Por isso é que me perguntei se não teria acontecido alguma coisa.
– Só visto! – exclamou Masahiko. – Contado nem se acredita! E o que fez o meu pai enquanto aí esteve?
– Sentou-se no banco do estúdio.
– Mais nada?
– Mais nada. Só isso.
– Referes-te ao banco de madeira que tem três pernas, aquele redondo?
– Esse mesmo.
– Talvez esteja a morrer – afirmou ele num tom quase inaudível. – Dizem que, perto do fim, a nossa alma regressa ao lugar onde ficou algo por fazer. Tanto quanto julgo saber, esse sítio, no caso do meu pai, seria o estúdio, que é onde mora o coração dele.
– Mas, pelo que me disseste, ele perdeu a memória.
– Sim, a sua mente já não é o que era, no sentido convencional do termo, mas o espírito ainda está presente. O que acontece é que o cérebro já não tem acesso à razão. Por outras palavras, o circuito é interrompido e a mente desliga-se. Mas o espírito permanece vivo, nos bastidores. Intacto, muito provavelmente.
– Faz sentido – disse eu.
– Não tiveste medo?
– De um sonho?
– Sim. Quer dizer, o teu sonho foi realista até dizer chega...
– Não, não senti medo. Agora que foi estranho, foi. O mestre parecia estar diante dos meus olhos.
– Talvez fosse mesmo ele – aventou Masahiko.
Perdi o pio. Não queria de maneira nenhuma que o meu amigo suspeitasse que Tomohiko Amada regressara a casa com o propósito de ver A Morte do Comendador. (Olhando para trás, se calhar fora eu que o convidara. Se não tivesse desempacotado o quadro, ele nunca teria aparecido, quem sabe?) Se contasse a verdade ao filho, teria de explicar tudo, tintim por tintim, desde a hora em que descobrira o quadro escondido no sótão e abrira o pacote sem autorização e, pior a emenda que o soneto, o pendurara na parede. Tinha consciência de que, mais cedo ou mais tarde, Masahiko ficaria a par da história, mas não me apetecia referir o assunto.
– Da última vez que nos encontrámos – prosseguiu ele –, tinha uma coisa para te dizer, mas não houve tempo. Lembras-te?
– Claro que me lembro.
– Nesse caso, porque é que não apareço aí um dia destes para conversarmos à vontade? Achas bem?
– Claro. Afinal, a casa é tua. Vem quando quiseres.
– Que tal no próximo fim de semana? Estou a pensar ir visitar o meu pai a Izu-Kogen. Podia aparecer aí no regresso, fica em caminho.
Respondi que tempo não me faltava e disse-lhe que todos os dias eram bons, menos quartas e sextas à noite e domingo de manhã. Dava aulas à quarta e à sexta-feira, e a sessão de Marie ficara marcada aos domingos.
Masahiko acrescentou que talvez desse para aparecer no sábado à noite.
– Depois telefono a confirmar.
Após termos desligado, regressei ao estúdio e sentei-me no banco. O banco de madeira que servira de poiso ao pintor na calada da noite. Mal me sentei, pressenti que aquele deixara de ser o meu banco. Pensando bem, aquele era o banco dele, uma vez que Tomohiko Amada se sentara ali desde sempre a pintar os seus quadros, e este pertencer-lhe-ia eternamente por direito próprio. Aos olhos de um observador incauto, talvez não passasse de um banco de madeira antigo com três pernas, mas estava imbuído da vontade do velho senhor.
Ali instalado, analisei A Morte do Comendador de todos os ângulos possíveis e imaginários. Estudara o quadro inúmeras vezes. A cada nova observação, a obra ganhara conteúdo e significado. Chegado àquele ponto, porém, pretendia olhar para ela de outra perspetiva. O que havia no quadro que levara Tomohiko Amada a regressar a casa, já com os pés para a cova, para o ver pela derradeira vez?
Demorei tempos infindos a estudar a pintura. Profundamente concentrado, sustendo a respiração, escolhi a mesma posição adotada por Tomohiko Amada, ou pelo seu espírito. No entanto, fui incapaz de descobrir o que anteriormente não conseguira lobrigar.
Quando me fartei, fui até lá fora. O Jaguar prateado de Menshiki continuava à porta de casa, ligeiramente afastado do sítio onde eu estacionara a carrinha Toyota Corolla. O carro permanecera ali a noite toda, pacientemente à espera do dono, como um animal inteligente e bem treinado.
Sempre com A Morte do Comendador no pensamento, dei a volta à casa e pus-me a deambular. Ao percorrer o pequeno carreiro que ia dar ao bosque, tive a nítida sensação de estar a ser observado. Era como se o Cara Comprida tivesse empurrado a tampa do buraco e, do posto que ocupava ao fundo da tela, espiasse os meus movimentos. Virei-me num repente e olhei para trás, mas não vi a ponta de um corno. Nem sinal do buraco no solo nem do Cara Comprida. Apenas o carreiro deserto e coberto de folhas que conduzia ao coração do bosque. A cena repetiu-se por diversas vezes. Mas, sempre que me virava, não havia ali ninguém.
Se calhar, o tal buraco e o Cara Comprida só existiam desde que eu não olhasse para trás, e, pressentindo o instante exato em que eu me preparava para dar meia-volta, escondiam-se de mim. Como fazem as crianças na brincadeira.
Atravessei o bosque até chegar ao fim do trilho. Nunca me atrevera a ir tão longe. Calculei que a entrada para a passagem secreta utilizada por Marie Akikawa devia estar perto. Mas nem assim dei com ela. Lembrei-me do aviso à navegação de Marie: «Precisamos de ter os olhos bem abertos. Está bem escondida.» Confirmava-se. Fosse como fosse, Marie utilizara a passagem secreta para atravessar a montanha, esquivando-se ao labirinto de árvores, e chegara a minha casa, sozinha e pelo próprio pé.
O atalho terminou abruptamente e encontrei-me numa pequena clareira redonda. As árvores tornaram-se menos densas, permitindo-me avistar nesgas de céu. A claridade recaiu sobre uma pedra achatada. Sentei-me naquele local onde chegava a luz solar e observei os troncos lá em baixo, no vale. Imaginei que Marie poderia sair de um momento para o outro, onde quer que ficasse a passagem secreta. Mas claro que isso não sucedeu. Apenas os pássaros, saltitando de ramo em ramo antes de levantarem voo, me faziam companhia. Em tempos li um artigo que descrevia como certas aves acasalavam para a vida e que, quando uma delas morria, a avezinha sobrevivente passava o resto dos dias sozinha. Como é óbvio, os pássaros não passam pelo ordálio de assinar e selar papéis de divórcio previamente enviados por correio por um escritório de advogados.
De longe chegou-me o pregão monocórdico do vendedor no seu camião com produtos frescos. Assim que a voz dele se calou, pressenti um restolhar nos arbustos. O que seria? O som nada tinha de humano. O mais certo era tratar-se de um animal selvagem. Por segundos, temi que fosse um javali (javalis e vespas eram os atacantes mais perigosos por aquelas bandas), mas às tantas o ruído simplesmente cessou.
Levantei-me e encaminhei-me para casa. Ao passar pelo pequeno santuário, inspecionei o buraco, não fosse o diabo tecê-las. As tábuas estavam no sítio, com as pedras em cima a fazer peso. Tanto quanto percebi, ninguém lhes mexera. Um monte de folhas caídas cobria a tampa do poço. Devido à chuva, haviam perdido as cores brilhantes e ficaram encharcadas. Repleta de juventude e frescor na primavera, a folhagem conhecia a inevitável queda no outono.
Ali parado a olhar para as tábuas, assaltou-me o pensamento de que o Cara Comprida, com a sua face oblonga e o crânio em forma de ovo, poderia meter a cabeça de fora do poço a qualquer minuto. Mas as tábuas não se mexeram um milímetro. Obviamente. O alçapão do Cara Comprida era quadrado, e não redondo, e mais pequeno, dava para uma só pessoa. Além disso, aquele buraco era a morada do Comendador, e não do Cara Comprida. Ou, quando mais não fosse, o sítio que albergava a Ideia que pedira a forma emprestada ao Comendador. Tinha sido o Comendador quem me convocara ao tocar o sino e me deixara entrar no poço.
Tudo começara com o poço. Depois de Menshiki e eu termos escancarado a cobertura com a ajuda da retroescavadora, os acontecimentos haviam-se precipitado. Por outro lado, tudo podia ter começado quando eu descobri A Morte do Comendador no sótão e o libertei do seu invólucro. A bem dizer, era essa a sequência correta. Ou talvez os dois acontecimentos tivessem sido simultâneos. A Morte do Comendador podia ter funcionado como aquilo a que chamamos a Ideia posta à consideração do público. Por seu turno, o aparecimento do Comendador podia ter sido a minha recompensa por ter revelado o quadro. Quanto mais matutava, menos conseguia dizer qual a causa e qual a consequência.
Quando cheguei a casa, o Jaguar já lá não estava. Menshiki devia ter apanhado um táxi para vir buscá-lo. Ou então enviara algum funcionário ao seu serviço. Entretanto, o meu Toyota Corolla salpicado de lama ficara parado à porta, ao abandono. Menshiki tinha razão. Mais dia, menos dia, devia dar-me ao trabalho de verificar os pneus. Isto apesar de nunca ter chegado a comprar um medidor de pressão e ser altamente improvável que viesse a fazê-lo.
Regressei à cozinha, decidido a tratar do almoço, mas ainda mal pegara na faca quando percebi que a fome canina desaparecera. Em contrapartida, estava sonolento até dizer chega. Peguei numa manta, deitei-me ao comprido no sofá da sala e depressa adormeci. Tive um sonho curto, mas vívido e convincente. Dava a sensação de que um fragmento da vida real se introduzira à sorrelfa no meu sono. Assim que despertei, fugiu a sete pés como um animal assustado sem deixar rasto.
42
SE QUANDO O DEIXAS CAIR SE PARTE, É UM OVO
A semana seguinte passou a correr. Dediquei as manhãs à pintura e as tardes à leitura, às caminhadas e a fazer trabalhos domésticos que precisassem de ser feitos. Os dias fundiram-se uns nos outros. A minha namorada apareceu na quarta-feira e passámos a tarde a fazer amor. O rangido constante da minha velha cama fê-la partir o coco a rir.
– Não tarda, desfaz-se – profetizou ela durante uma pausa no exercício. – Vai ficar reduzida a farpas... e depois não sabemos se são palitos de madeira ou palitos salgados.
– Talvez devêssemos fazer amor com mais calma.
– Talvez o capitão Ahab devesse ter-se dedicado à pesca da sardinha – retorquiu ela.
Aquilo deu-me que pensar.
– Estás a dizer que algumas coisas neste mundo não podem ser alteradas?
– Mais ou menos.
Pouco depois estávamos de volta aos mares revoltos, em busca da grande baleia branca. Algumas coisas não podem realmente ser alteradas assim com tanta facilidade.
Trabalhava todos os dias no retrato de Marie Akikawa, por pouco que fosse. O meu esboço inicial estabelecera o esqueleto, e agora havia que dar-lhe substância. Tentei misturar várias cores para chegar ao tom certo a aplicar no fundo. O rosto dela tinha de assentar naturalmente nessa base. Eram tarefas que me ajudavam a passar o tempo até à próxima visita de Marie ao meu estúdio, como sempre aos domingos. Parte da empreitada decorria na presença do modelo, ao passo que alguns trabalhos preparatórios tinham de ser feitos antes da sua chegada. Adorava as duas fases por igual. Podia entreter-me a ponderar os vários elementos e a fazer experiências para encontrar a cor exata, o estilo exato. Agradava-me a natureza prática desse labor e o desafio de criar um ambiente a partir do qual o tema ganharia vida.
Enquanto preparava o retrato de Marie, comecei a trabalhar numa tela diferente; uma pintura do poço junto ao santuário. O poço gravara-se na minha mente de tal forma que não precisava de o ter diante de mim. Pintei a cena, não deixando escapar os mais ínfimos detalhes. O estilo era realista, o ponto de vista objetivo. Evitava a representação objetiva na minha arte (exceto, claro, nos retratos, que eram o meu «trabalho diurno»), mas tal não significava que não conseguisse executá-la. Quando queria, era capaz de pintar de forma tão precisa que o resultado podia ser confundido com uma fotografia. Usava esse estilo hiper-realista de quando em vez para variar ou refinar a minha técnica. No entanto, pintei esses quadros apenas para meu prazer pessoal e nunca os mostrei a ninguém.
Foi assim que o poço na floresta começou a surgir diante de mim, mais nítido e vivo a cada dia que passava. Uma abertura redonda misteriosa, parcialmente coberta por tábuas grossas. Aquele era o poço que dera origem ao Comendador. Não havia figuras humanas na pintura, apenas um buraco negro. Folhas caídas cobriam a terra em redor. Uma cena bucólica. Contudo, era como se alguém (ou alguma coisa) pudesse sair a rastejar de lá a qualquer momento. Quanto mais eu imaginava a cena, mais forte era a premonição. Embora tivesse sido eu a pintá-la, olhar para a tela dava-me arrepios na espinha.
Trabalhava assim todos os dias, passando a manhã inteira sozinho no estúdio. De paleta e pincel na mão, ia num vaivém entre Um Retrato de Marie Akikawa e O Poço na Floresta (seria difícil imaginar dois quadros mais diferentes) conforme me dava na veneta. Dediquei-me às telas sentado no mesmo banco que Tomohiko Amada ocupara na calada da noite do domingo anterior. Talvez porque a minha concentração fosse grande, a densa presença que sentira na manhã seguinte desaparecera a certa altura. O velho banco era mais uma vez uma simples peça de mobiliário, ali para meu uso. Parecia que Tomohiko Amada voltara para o lugar que lhe cabia por direito.
Houve noites naquela semana em que entreabri a porta do estúdio a fim de espreitar lá para dentro, mas nunca encontrava lá ninguém. Nem Tomohiko Amada nem o Comendador. Apenas um banco velho diante de dois cavaletes. A Lua projetava a sua claridade fraca sobre os objetos da sala. Reinava o silêncio. A Morte do Comendador pendurada numa parede. A minha obra inacabada, O Homem do Subaru Forester Branco, estava virada ao contrário para que ninguém pudesse vê-la. Os dois quadros em que trabalhava, Um Retrato de Marie Akikawa e O Poço na Floresta, ocupavam cavaletes lado a lado. Pairava no ar o cheiro a tinta de óleo, aguarrás e óleo de semente de papoila. Nunca desaparecia, por muito tempo que as janelas ficassem abertas. Era um aroma especial que eu respirava todos os dias, e provavelmente continuaria a respirar pelo resto da vida. Inalei o ar do estúdio como que para confirmar a sua presença e fechei a porta de mansinho.
Masahiko ligou na sexta à noite a dizer que viria ter comigo na tarde seguinte. Tencionava comprar peixe fresco no mercado aqui da zona, pelo que não precisava de me preocupar com o jantar. Eu que estivesse a contar com uma surpresa agradável.
– Devo levar mais alguma coisa? – perguntou. – Posso comprar o que quiseres pelo caminho.
– Não me ocorre nada – respondi. Então lembrei-me. – Agora que falas nisso, fiquei sem uísque. Eu e um amigo acabámos a garrafa que trouxeste da última vez. Importavas-te de comprar outra? De uma marca qualquer.
– Sou apreciador de Chivas. Serve?
– Serve, com certeza – respondi. Masahiko tratava-se bem no que dizia respeito a comida e bebida. Comigo a música era outra. Comia e bebia o que me punham à frente.
Terminado o telefonema, fui ao estúdio, tirei da parede A Morte do Comendador, levei-o para o meu quarto e tapei-o. Não queria que o filho de Tomohiko Amada visse o quadro que o pai escondera no sótão; pelo menos por enquanto.
Quem fosse naquele momento ao estúdio veria apenas Um Retrato de Marie Akikawa e O Poço na Floresta. Fiquei ali parado a apreciar o progresso dos dois trabalhos, comparando-os. Uma imagem surgiu na minha mente: podia ver Marie caminhar atrás do santuário em direção ao poço. Tive a nítida sensação de que alguma coisa poderia ter início nessa altura. A tampa estava entreaberta. A escuridão chamava. O Cara Comprida estaria lá à espera dela? Ou o Comendador?
Estariam aqueles dois quadros ligados de alguma forma?
Desde que me mudara para aquela casa, pintava quase sem descanso. Tinha terminado o retrato de Menshiki, que me fora encomendado, depois começara O Homem do Subaru Forester Branco (interrompido antes de a cor ser aplicada), e agora trabalhava em simultâneo nas duas obras: Um Retrato de Marie Akikawa e O Poço na Floresta. Ocorreu-me que as quatro pinturas poderiam encaixar-se, formando o início de uma narrativa.
Por outro lado, talvez eu estivesse a documentar a história através da minha pintura. Era o que parecia. Será que alguém me atribuíra o papel ou o direito de ser esse cronista? Se sim, quem? Porque fora eu escolhido entre tantos outros?
* * *
A carrinha preta Volvo de Masahiko subiu a encosta pouco antes das quatro da tarde de sábado. Ele adorava a resistência e a fiabilidade daqueles velhos carros quadradões. Tinha aquela carrinha há séculos, fizera milhares e milhares de quilómetros, mas não parecia inclinado a trocá-la por um carro novo. Naquela ocasião, trouxe a faca especial que servia para amanhar peixe. Como de costume, estava bastante afiada. Usou-a na minha cozinha para preparar o goraz grande e fresco que acabara de comprar em Ito. Masahiko sempre fora habilidoso com as mãos, um homem de muitos talentos. Com movimentos criteriosos, separou o peixe em filetes, cortou os filetes em sashimi e cozeu as espinhas para obter um caldo. Braseou a pele para termos algo que petiscar com o aperitivo. Quanto a mim, limitei-me a admirar o espetáculo. Não me espantaria nada que Masahiko se tivesse tornado um chef famoso, querendo ele enveredar por esse caminho.
– O ideal seria deixar o sashimi repousar um dia para que amoleça e o sabor se intensifique, mas que se lixe – comentou, usando habilmente a faca. – Não te importas, pois não?
– Nada. Não sou comichoso – respondi.
– Podes comer os restos amanhã.
– Combinado.
– Olha uma coisa, importas-te que durma cá esta noite? – perguntou Masahiko. – Ficávamos a conversar e a beber até às tantas, na descontra. Conduzir e beber não combinam, certo? Posso dormir no sofá da sala.
– Não me importo nada. Afinal, a casa é tua. Fica o tempo que quiseres.
– De certeza que não vai aparecer uma mulher a meio da noite...?
– Não tenho nada planeado – respondi, abanando a cabeça.
– Certo. Então abanco por aqui.
– Não precisas de dormir no sofá. Tens uma cama no quarto de hóspedes.
– Não, prefiro o sofá. É muito mais confortável do que parece. Nos velhos tempos dormia nele como um anjinho.
Pegou numa garrafa de Chivas Regal, rasgou o selo e abriu-a. Trouxe-lhe gelo do congelador e dois copos. O gorgolejar do uísque a ser vertido era música para os meus ouvidos, como um velho amigo a abrir-me o seu coração. Bebemos uísque enquanto acabávamos de preparar o jantar.
– Há uma data de tempo que tu e eu não bebíamos assim – disse Masahiko.
– Podes crer. Emborcávamos à grande, se bem me lembro.
– Diz antes que eu emborcava à grande. Tu nunca bebeste a valer.
Soltei uma gargalhada.
– Talvez não do teu ponto de vista, mas para mim já passava da conta.
Nunca apanhei uma de caixão à cova. Acabava sempre por adormecer antes. Mas ele consumia álcool de maneira diferente. Assim que se dispunha a isso, podia beber até cair para o lado.
Sentámo-nos frente a frente à mesa, a beber uísque e a comer marisco. Para começar, dividimos as oito ostras cruas que Masahiko comprara juntamente com o goraz. Depois atacámos o sashimi. Estava demasiado firme, como ele previra, mas ainda assim delicioso, especialmente com o uísque. Rapámos os pratos. Escusado será dizer que ficámos empanturrados. Restava a pele estaladiça do peixe, um pouco de wasabi e tofu. Completámos a refeição com o caldo que ele tinha preparado.
– Não me banqueteava com um manjar destes há séculos – comentei.
– Não consegues comer assim em Tóquio – disse ele. – Viver nas redondezas não seria assim tão mau. Há sempre peixe fresco.
– Aposto que acabarias por achar a vida aqui aborrecida.
– Estás aborrecido?
– Estarei? Acho que para mim o tédio nunca foi especialmente doloroso. Além disso, há muita coisa a acontecer por estas bandas.
Lá isso era verdade. Conhecera Menshiki logo após a minha chegada, no início do verão, abríramos o poço atrás do santuário, depois o Comendador aparecera e, por fim, Marie Akikawa e a sua tia Shoko haviam entrado na minha vida. Tinha uma namorada, uma dona de casa sexualmente muito ativa, que vinha confortar-me. O espírito de Tomohiko Amada fizera-me uma visita. Não tinha tempo para me aborrecer.
– Acho que também não me iria aborrecer – disse Masahiko. – Sabias que eu costumava surfar? Cavalgava as ondas por toda esta costa.
Aquilo era novidade para mim. Ele nunca o mencionara antes.
– Estou a pensar em deixar Tóquio, voltar para esse tipo de vida. Via como estava o mar quando acordasse, pegava na prancha e sairia se houvesse ondas.
Aquele tipo de vida não me seduzia.
– E o teu trabalho? – perguntei.
– Só preciso de ir a Tóquio duas vezes por semana para tratar das coisas. Faço grande parte do trabalho no meu computador. Pensando bem, até nem seria complicado viver fora da cidade. O mundo está a mudar, não é verdade?
– Sei lá.
Ele olhou-me, espantado.
– Vivemos no século vinte e um, meu. Ainda não reparaste?
– Ouvi uns zunzuns.
Depois de comermos, passámos à sala de estar e continuámos a beber. O outono quase chegara ao fim, mas não estava aquele frio de fazer acender a lareira.
– Então... o que anda o teu pai a fazer por estes dias? – perguntei.
Masahiko deixou escapar um pequeno suspiro.
– O mesmo de sempre. Tem a cabeça marada. Não sabe a diferença entre os testículos e dois ovos.
– Se quando o deixas cair se parte, é um ovo – respondi.
Ele riu-se.
– As pessoas são criaturas estranhas, não são? Quer dizer, o meu pai era sólido como uma rocha até há poucos anos. Tinha a mente tão clara como o céu noturno no inverno. De uma forma exagerada, quase repugnante. E agora a sua memória parece um buraco negro. Um buraco negro e insondável que surgiu do nada no meio do cosmos. – Masahiko abanou a cabeça. – Quem foi que disse: «A maior surpresa da vida é a velhice»? – perguntou.
Não pude ajudá-lo; nunca ouvira a expressão, mas era bem verdade. A velhice deve ser um choque ainda maior do que a morte. Muito mais do que podemos imaginar. O dia em que alguém nos diz que somos completamente inúteis, que a nossa existência é irrelevante neste mundo, tanto do ponto de vista biológico como social.
– Fala-me lá desse sonho que tiveste com o meu pai – pediu Masahiko. – Foi assim tão realista?
– Sim, quase nem parecia um sonho.
– E ele estava no estúdio?
Levei-o ao estúdio.
– O teu pai estava ali sentado – disse eu, apontando para o banco no meio da divisão.
Masahiko foi até ao banco.
– Apenas sentado? – perguntou, pousando a palma da mão no assento.
– Isso mesmo. Não estava a fazer nada.
Na verdade, o pai dele estava a admirar A Morte do Comendador na parede, mas não lho disse.
– O meu pai adorava este banco – comentou. – Não passa de uma traquitana antiga, mas nunca o quis deitar fora. Sentava-se nele para pintar e pensar.
– É relaxante quando nos sentamos nele – observei. – Nem imaginas quanto.
Masahiko manteve-se ali com a mão no banco, perdido em pensamentos, mas não se sentou. Ao fim de algum tempo, concentrou a atenção nas duas telas em frente dele. Um Retrato de Marie Akikawa e O Poço na Floresta, os meus dois trabalhos em curso. Examinou-os demoradamente, como um médico à procura de vestígios de uma sombra na radiografia do doente.
– Estão ótimos – disse ele. – Muito interessantes.
– Os dois?
– Sim. Quando os colocas assim lado a lado, sentimos um estranho tipo de movimento entre eles. Têm estilos totalmente diferentes, mas ficamos com a sensação de que estão de alguma forma ligados.
Assenti. Aquilo já me tinha ocorrido vagamente.
– Parece-me que, aos poucos, vais encontrando uma nova direção – continuou ele. – Como se finalmente tivesses emergido de uma floresta profunda. Devias levar esta cena muito a sério, camarada.
Ergueu o copo e bebeu um gole de uísque. Os cubos de gelo tilintaram.
Senti vontade de mostrar a Masahiko o quadro do pai, A Morte do Comendador. O que teria ele a dizer? Os seus comentários poderiam fornecer uma pista valiosa. Mas reprimi o impulso. Alguma coisa me fez hesitar.
Ainda é demasiado cedo, dizia a minha intuição. Ainda é demasiado cedo.
Saímos do estúdio e voltámos para a sala. O vento instalara-se com força; através da janela vi nuvens espessas, avançando para norte. A Lua estava escondida.
– Bom, agora acerca do que me trouxe aqui – disse Masahiko, sem perder mais tempo. Tive a sensação de que se preparava para o que ia dizer.
– Parece um tema bicudo – comentei.
– Tens razão, é um assunto bicudo. Bastante bicudo, por acaso.
– Mas é uma coisa que preciso de saber.
Masahiko esfregou as mãos, como um homem a preparar-se para levantar um objeto pesado.
– É sobre a Yuzu – disse, sem mais delongas. – Encontrámo-nos várias vezes. Antes de partires esta primavera, e após a tua viagem também. Ela liga-me quando quer conversar, e combinamos num sítio qualquer. Pediu-me para não te dizer nada. Sentia-me mal por esconder isto de ti, mas, bem, tinha-lhe prometido.
Assenti.
– É importante mantermos a palavra dada.
– A Yuzu e eu também éramos amigos, sabes?
– Sei – respondi.
Masahiko dava grande valor à amizade. Era o seu ponto fraco, por assim dizer.
– A Yuzu tinha outro homem além de ti.
– Também sei disso. Pelo menos agora.
O meu amigo assentiu.
– Começou cerca de seis meses antes de saíres de casa. A relação deles, isto é. Custa-me dizer-te isto, mas conheço o gajo; é um colega meu.
Soltei um pequeno suspiro.
– Imagino que seja bastante bem-parecido...
– É verdade. Tem feições clássicas. Uma agência andou atrás dele no secundário, e ele foi manequim durante algum tempo. Só para veres até que ponto o gajo é bem-parecido. E... parece que fui eu quem os apresentou.
Fiquei calado.
– Depois, as coisas seguiram o seu rumo – disse Masahiko.
– A Yuzu sempre teve queda para homens bonitos. É quase patológico. Ela também o sabia.
– Tu não és feio – comentou ele.
– Obrigado, pá. Já vou conseguir dormir melhor.
Calámo-nos por uns minutos, até que finalmente Masahiko quebrou o silêncio.
– Enfim, ele é um tipo bastante atraente. E simpático, também. Sei que isto não serve de grande consolo, mas o gajo não é violento, ou mulherengo, ou vaidoso. Não é desses.
– É bom sabê-lo – respondi. O meu tom estava cheio de sarcasmo, embora não tivesse sido intencional.
– Tudo começou em setembro do ano passado – disse Masahiko. – Ele e eu tínhamos combinado encontrar-nos e demos de caras com a Yuzu. Como já era quase meio-dia, decidimos almoçar. Acredita, não podia prever que as coisas levariam a este fim. Ele tem menos cinco anos do que a Yuzu.
– Não perderam tempo.
Masahiko encolheu os ombros. Não devem ter perdido tempo nenhum, de facto.
– O tipo comentou comigo o que se estava a passar – disse ele. – A tua mulher também. Isso colocou-me numa posição muito difícil.
Não tugi nem mugi. Qualquer coisa que eu dissesse far-me-ia parecer tolo.
Masahiko manteve-se em silêncio por um momento.
– Acontece que a Yuzu está grávida – acabou por revelar.
Fiquei sem fala por um momento.
– A Yuzu? Grávida?
– Sim, de sete meses.
– Foi programado?
– Não sei – respondeu Masahiko, abanando a cabeça. – Mas quer ter o bebé. Quando se está de sete meses, não há por onde escolher, pois não?
– Ela sempre me disse que não estava preparada para ter uma criança.
Masahiko fez uma careta.
– Não há grandes hipóteses de a criança ser tua, certo? – perguntou, olhando para o copo.
Fiz um rápido cálculo mental.
– Não. Não sei o lado legal da coisa, mas biologicamente as possibilidades são nulas. Saí de casa há oito meses e não nos vemos desde então.
– Isso é bom – disse Masahiko. – De qualquer forma, ela pediu-me para te dizer que vai ter um bebé. E espera que não fiques melindrado.
– Sendo assim, porquê contar-me?
Ele abanou a cabeça.
– Acho que decidiu informar-te por uma questão de cortesia.
Por uma questão de cortesia?
– Tenho ansiado pela oportunidade de pedir desculpa por tudo isto. Sabia o que se passava entre a Yuzu e o meu colega, e escondi-o de ti. Não há desculpa. Em qualquer circunstância.
– Deixar-me ficar nesta casa foi a tua maneira de me compensares?
– Nem pensar! Não há a menor ligação entre isso e a Yuzu. O meu pai viveu e pintou nesta casa durante muitos anos. Ocorreu-me que poderias manter viva essa tradição. Não o poderia ter pedido a outra pessoa que não tu, pelo menos dessa forma.
Mais uma vez, não disse nada. Pareceu-me sincero.
– Em todo caso – continuou Masahiko –, assinaste e selaste os papéis do divórcio que recebeste e devolveste-os à Yuzu, confirmas?
– Ao advogado dela, mais precisamente. Por esta hora, o nosso divórcio já deve ser oficial. Podem escolher uma data para o casamento, agora que o assunto foi resolvido.
E iriam ter um casamento feliz. Um homem alto e bonito, um bebé e a pequena Yuzu. Os três a passear alegremente no jardim numa manhã ensolarada de domingo. Reconfortante.
Masahiko pôs mais gelo nos copos e serviu-nos outra dose de uísque. Bebeu um gole.
Fui ao terraço e olhei através do vale para a casa branca de Menshiki. Vi luzes acesas em algumas janelas. O que estaria Menshiki a fazer naquele momento? No que estaria a pensar?
Estava um friozinho no ar. Os ramos sem folhas tremulavam ao vento. Voltei para a sala e sentei-me.
– Consegues perdoar-me?
– Não era tua intenção fazer-me mal – respondi, abanando a cabeça.
– Lamento que isto tenha acontecido desta maneira. Tu e a Yuzu ficavam tão bem juntos, e pareciam felizes. É uma pena não ter dado certo.
– Deixas cair os dois, o que se parte é o ovo.
Masahiko riu com uma certa dificuldade.
– Como estão as coisas agora? Tens alguma mulher na tua vida?
– Sim, há uma mulher.
– Mas não é o mesmo que com a Yuzu?
– É diferente. Tenho procurado a mesma coisa nas mulheres durante toda a minha vida. O que quer que seja, a Yuzu tinha-a.
– E não consegues encontrar isso em mais ninguém?
– Até agora, não – respondi, tornando a abanar a cabeça.
– Estou contigo – disse Masahiko. – O que procuras exatamente?
– É difícil encontrar as palavras certas. É como se eu tivesse perdido qualquer coisa pelo caminho e a procurasse desde então. Não achas que é assim que toda a gente se apaixona?
– Não creio que possas dizer «toda a gente» – corrigiu ele com a testa franzida. – Podes realmente estar em minoria. Mas se não consegues encontrar as palavras certas, porque não o pintas? Não és um artista?
– Se não podes dizê-lo, pinta-o. Isso é fácil de dizer, mas não tão fácil de fazer.
– Mas pode ser importante tentar, não te parece?
– E talvez o capitão Ahab devesse ter-se dedicado à pesca da sardinha.
Masahiko soltou uma gargalhada.
– Seria mais seguro, com certeza. Mas não é assim que a arte nasce.
– Dá-me uma abébia!... Se falas em arte, metes logo um travão na conversa.
– Parece que precisamos de mais um copito de uísque – disse ele, meneando a cabeça.
Serviu-nos outra bebida.
– Não posso beber muito, amanhã tenho de trabalhar.
– Amanhã é amanhã. Hoje é hoje – respondeu Masahiko.
Achei a ideia estranhamente interessante.
– Posso pedir-te um favor? – perguntei a Masahiko. A nossa sessão estava a chegar ao fim e preparávamo-nos para dormir. Faltavam poucos minutos para o ponteiro das horas chegar às onze.
– Claro, tudo o que quiseres.
– Gostava de conhecer o teu pai. Podias levar-me contigo da próxima vez que fores a Izu?
Masahiko fitou-me como se eu fosse um animal estranho.
– Queres conhecer o meu pai?
– Se não for muito incómodo.
– Não é incómodo nenhum. Mas o meu pai não está em condições de falar contigo. É bastante incoerente, tem a cabeça num caos. Atolada num pântano lamacento, na verdade. Portanto, se tens alguma expectativa, se esperas descobrir mais sobre a pessoa conhecida como Tomohiko Amada, vais ficar desiludido.
– Não estou à espera de nada disso. Só quero olhar bem para ele.
– Mas porquê?
Inspirei e olhei em volta.
– Vivo nesta casa há seis meses. Sento-me no banco onde ele se sentava, pinto no seu estúdio. Como nos seus pratos, ouço os seus discos. Sinto a sua presença em todo o lado. É por isso que tenho de conhecer o Tomohiko Amada de carne e osso. Uma vez é suficiente. Não importa se não pudermos falar um com o outro.
– Assim não há problema – respondeu Masahiko, aparentemente persuadido. – Ele não vai ficar radiante com a tua presença, mas também não ficará transtornado. Não consegue distinguir uma pessoa da outra, por isso não faz mal ires comigo. Tenciono ir ao lar em breve. Segundo o médico, não lhe resta muito mais tempo... o fim aproxima-se a qualquer momento. Podes fazer-me companhia na minha próxima visita, se estiveres livre.
Fui buscar um cobertor, uma almofada e um futon e fiz a cama no sofá da sala. Olhei em volta para me certificar de que o Comendador não estava presente. Se Masahiko acordasse a meio da noite e lhe aparecesse aquela figura à frente – meio metro de altura e vestido com roupas do período Asuka –, dava-lhe o badagaio. Iria pensar que se tornara um verdadeiro alcoólico.
Além do Comendador, tinha de me preocupar com O Homem do Subaru Forester Branco. Virara o quadro para que ninguém pudesse vê-lo. Que mais coisas estranhas poderiam acontecer a meio da noite sem o meu conhecimento? Nem queria imaginar.
Podem crer que, quando desejei a Masahiko uma boa noite de sono, não estava a brincar.
Emprestei-lhe um pijama. Éramos mais ou menos da mesma estatura; de certeza que iria servir-lhe. Ele despiu-se, vestiu o pijama e enfiou-se na cama que eu preparara. A sala estava um pouco fria, mas ele parecia confortável e quente sob os cobertores.
– A sério que não estás zangado? – perguntou antes de eu sair.
– Não, não estou zangado.
– Mas deve doer um bocadinho.
– Talvez. – Tinha o direito de estar um bocadinho magoado, pensei.
– Mas o copo ainda está um dezasseis avos cheio.
– Acertaste – respondi.
Apaguei a luz da sala e retirei-me para o meu quarto. Adormeci num estalar de dedos, na companhia dos meus sentimentos vagamente feridos.
43
NÃO IRIA TERMINAR
COMO OUTRO SONHO QUALQUER
Quando acordei já havia claridade lá fora. Embora os raios benevolentes de sol se infiltrassem de forma discreta, nuvens cinzentas e finas cobriam o céu de ponta a ponta. Ainda não tinham dado as sete.
Lavei a cara, liguei a cafeteira e fui à sala de estar. Embrulhado nos cobertores, Masahiko dormia profundamente no sofá. Tão cedo não acordava. Vi na mesa a garrafa quase vazia de Chivas Regal. Consegui recolhê-la, e aos copos, sem o incomodar.
Devo ter bebido bastante na noite anterior, mas não estava de ressaca. A minha mente funcionava tão bem como de costume, e também não sentia azia. Não se pode dizer que alguma vez tenha estado ressacado, não sei porquê. Provavelmente, era uma característica genética. Uma noite de sono, e todos os vestígios de álcool desaparecem do meu organismo, por mais que eu beba. Tomo o pequeno-almoço e estou aí para as curvas.
Torrei duas fatias de pão, estrelei dois ovos e comi-os enquanto ouvia o noticiário e a previsão meteorológica na rádio. O mercado de ações flutuava de forma descontrolada, fora descoberto um novo escândalo parlamentar e um atentado terrorista no Médio Oriente, entre mortos e feridos, colhera um grande número de vítimas. Nada que me alegrasse o dia. No entanto, nenhum daqueles acontecimentos afetaria as circunstâncias imediatas na minha vida. Por enquanto, pelo menos, estavam limitados a lugares distantes e a pessoas que eu nunca conhecera. Sentia pena, claro, mas estava fora do meu controlo. A previsão do tempo também não prometia nada de novo. Não seria um dia deslumbrante, mas também não particularmente horrível. Nublado, mas sem chuva. E daí, talvez não. Os meteorologistas e a malta da comunicação social sabiam-na toda; nunca usavam palavras vagas, tipo «talvez». Limitavam-se a termos convenientes, pelos quais ninguém poderia ser responsabilizado, como «probabilidade de precipitação».
Ouvidas as notícias e o boletim meteorológico, desliguei o rádio e lavei a loiça do pequeno-almoço. Voltei a sentar-me à mesa, bebi uma segunda chávena de café e pus-me a pensar. A maioria das pessoas aproveitaria para ler o jornal de domingo; eu, porém, não subscrevia nenhum jornal. Conclusão: quedei-me a beber o meu café, a admirar pela janela o magnífico salgueiro lá fora.
Primeiro, pensei na minha mulher; segundo me disseram, estava prestes a dar à luz. Só depois me ocorreu que ela já não era minha mulher. Não restava qualquer ligação entre nós. Nem contratual, nem a nível pessoal. Para ela, eu era agora, provavelmente, um perfeito desconhecido, uma pessoa sem nenhuma importância. Um estranho. Ainda há poucos meses tomávamos juntos o pequeno-almoço, partilhávamos o sabonete e a toalha, andávamos nus pela casa na presença um do outro, dormíamos na mesma cama. Agora, as nossas vidas não tinham qualquer relação.
Enquanto seguia aquela linha de pensamento, comecei de forma gradual a sentir-me um desconhecido também para mim mesmo. Pousei as mãos na mesa e estudei-as durante algum tempo. Eram as minhas mãos, sem dúvida. Direita e esquerda simétricas. Usava aquelas mãos para pintar, cozinhar, comer, às vezes para acariciar o corpo de uma mulher. Mas naquela manhã, não sei por que motivo, não pareciam as minhas mãos. Tinham-se tornado as mãos de um desconhecido: as palmas, as costas, as unhas.
Desisti de estudar as mãos. Sem deixar de pensar na mulher que fora minha esposa, levantei-me da mesa e fui à casa de banho, onde despi o pijama e tomei um duche quente. Lavei cuidadosamente o cabelo e fiz a barba no lavatório. Terminada a rotina, pensei mais uma vez no bebé que Yuzu em breve iria dar à luz, o bebé que não era meu filho. Não que eu quisesse, mas nada podia fazer quanto a isso. Ela estava grávida de sete meses. Recuando sete meses, o calendário marcava a segunda quinzena de abril. Onde me encontrava nessa altura e o que andava a fazer? Saíra de casa e partira numa longa viagem solitária em meados de março, ao volante do meu velho Peugeot 205, mais ou menos ao acaso, por Hokkaido e pelo Nordeste do Japão. Quando regressei a Tóquio, terminada a viagem, já era início de maio. No fim de abril, fizera o trajeto de Hokkaido até Aomori, na região norte de Honshu. Apanhara o ferry que efectua a travessia de Hakodate até Oma, na península de Shimokita.
Tirei da gaveta da secretária uma espécie de diário de bordo que mantive desses dias e confirmei. Naquela época, viajava eu pelas montanhas de Aomori, longe do mar. Apesar de já termos chegado à segunda quinzena de abril, ainda fazia frio e havia neve em toda a parte. Por que raio fora eu escolher um sítio tão frio? Não conseguia lembrar-me da localização exata, mas recordava um pequeno hotel quase deserto à beira de um lago, onde me hospedei por uns dias. Era um edifício antigo, despretensioso, feito de betão, onde ofereciam refeições simples (embora não más de todo) e preços fantásticos. Havia até uma pequena fonte termal ao ar livre a um canto do jardim, onde nos podíamos banhar, disponível vinte e quatro horas por dia. O hotel acabara de reabrir para a temporada da primavera e a afluência era escassa – eu e meia dúzia de gatos-pingados, se tanto.
Não sei porquê, as minhas lembranças daquela viagem eram vagas. No caderno que usei como diário registei apenas os nomes dos sítios que visitei, onde fiquei, o que comi, a distância que tinha percorrido e quanto gastei. Era um registo curto e muito lacónico. Não conseguia encontrar nenhuma referência aos meus pensamentos e sentimentos, ou qualquer outra coisa nesse sentido. Acho que não havia nada para escrever. Um dia misturava-se com o seguinte, sem distinção entre eles. Eu bem que anotara os nomes das localidades, mas não retivera grande coisa de especial interesse. Muitas vezes, até a toponímia me escapara. Olhando para trás, recordava apenas aquela sensação de repetição: o mesmo cenário dia após dia, a mesma comida, o mesmo clima («frio» e «não tão frio» eram as únicas categorias).
O pequeno caderno de esboços que levara comigo ajudou a materializar os instantâneos da viagem. (Não tinha máquina fotográfica, pelo que não tirara uma única fotografia. Em vez disso, desenhara.) Mesmo assim, não havia um grande número de esboços para amostra. Nos tempos livres, limitara-me a fazer desenhos simples do que estava diante dos meus olhos com um velho lápis ou uma esferográfica. Flores e plantas à beira da estrada, cães e gatos, montanhas, coisas assim. De vez em quando desenhava as pessoas com que me cruzava, mas oferecia quase sempre esses desenhos aos modelos.
Na entrada do dia 19 de abril escrevera as palavras: «Sonho ontem à noite.» Mais nada. Estivera hospedado no pequeno hotel à beira do lago naquela data. As palavras estavam sublinhadas com um lápis grosso. Deve ter sido um sonho prodigioso para justificar aquela ênfase. Demorei um pouco a lembrar-me do sonho. Quando se fez luz, porém, foi uma torrente de memórias.
O sonho passara-se um pouco antes do amanhecer naquele dia. Era nítido e erótico até dar com um pau.
No sonho, eu estava de regresso ao apartamento em Hiroo, aquele que Yuzu e eu partilhámos durante seis anos. Havia uma cama, onde a minha mulher se encontrava a dormir. Eu contemplava-a do meu ponto de observação no teto. Por outras palavras, pairava acima dela. Não achei aquilo fora do comum. Na verdade, o «eu» no sonho pensava que flutuar era normal. Nada estranho. Claro está que não tinha consciência de que estava a sonhar. O que ali acontecia parecia extremamente real.
Sem fazer barulho, para não acordar Yuzu, desci do teto e parei aos pés da cama. Estava sexualmente excitado. Não fazia amor com ela há uma porrada de tempo. Pouco a pouco, afastei a colcha que a cobria. Ela dormia a sono solto (teria tomado um soporífero antes de se deitar?) e não dava sinais de acordar, mesmo quando a destapei. Nem se mexeu, o que teve o condão de alimentar a minha ousadia. Com todo o tempo do mundo, tirei-lhe as calças do pijama, depois as cuecas. O pijama era azul-claro, as pequenas cuecas de algodão de um branco puro. Continuou sem acordar. Não houve resistência, nenhum som.
Abri-lhe delicadamente as pernas e acariciei a sua vagina com o dedo. Estava quente e molhada e aberta ao meu toque. Como se estivesse à minha espera. Não aguentei mais; enfiei nela o meu pénis ereto. Ou melhor, aquela parte dela engoliu o meu pénis, imergindo-o no que parecia ser manteiga quente. Yuzu não abriu os olhos, mas suspirou e soltou um pequeno gemido. Como se estivesse a aguardar impacientemente por aquele momento. Os seus mamilos estavam duros como caroços de cereja quando lhes toquei.
Ela deve estar a sonhar, pensei. Se sonhava com alguém, certamente não era comigo. Durante muito tempo resistira a fazer sexo. Mas qualquer que fosse o sonho que a assaltava, qualquer que fosse a pessoa com quem me confundia, era demasiado tarde para voltar atrás, pois eu já estava dentro dela. Poderia ser um choque terrível se ela acordasse a meio do ato e visse quem era. Ficaria furiosa, talvez. Se isso acontecesse, eu lidaria com o problema na devida altura. Só me restava avançar com aquilo até ao fim. O meu desejo rugiu como um rio através de uma barragem rachada, levando-me com ele.
De início, movi o pénis devagar, tentando não a excitar ao ponto de a acordar, mas, naturalmente, o ritmo acelerou à medida que eu prosseguia. Percebi pela forma como o seu corpo me recebia que ela queria que eu fosse mais vigoroso. Em breve, porém, estava pronto para alcançar o clímax. Queria permanecer dentro dela, mas já não conseguia controlar-me. Há muito tempo que não tínhamos sexo, e ela, apesar de estar a dormir, reagia ao nosso ato de amor com mais paixão do que nunca.
A minha ejaculação foi violenta, em golfadas. Uma e outra vez, o sémen jorrou de mim, transbordando da sua vagina, deixando os lençóis pegajosos. Não havia nada que eu pudesse fazer para parar aquilo. A continuar assim, receei, em pouco tempo estaria esvaziado. Yuzu dormia profundamente sem emitir um único som, produzindo uma respiração regular. O seu sexo, no entanto, contraíra-se em redor do meu e não o soltava. Como se tivesse vontade própria, inabalável, e estivesse determinado a exaurir-me até à última gota do meu corpo.
Acordei naquele momento. E tinha ejaculado, de facto. As minhas cuecas estavam encharcadas em sémen. Despi-as rapidamente para evitar sujar a cama, segurei-as no ar até ao lavatório e lavei-as. Ato contínuo, saí pela porta das traseiras do hotel para tomar banho na fonte termal. Como esta ficava totalmente exposta aos elementos, sem teto ou paredes, estava gelado quando lá cheguei. No entanto, assim que entrei, a água aqueceu-me os ossinhos todos.
Fiquei ali submerso no silêncio da madrugada, a rememorar o sonho e a ouvir a água pingar enquanto o vapor derretia o gelo. A memória era tão nítida e física que nem parecia um sonho. Eu tinha mesmo visitado o apartamento em Hiroo e tinha mesmo feito amor com Yuzu – só conseguia pensar naquilo dessa maneira. As minhas mãos lembravam-se do toque da sua pele sedosa e o meu pénis ainda sentia a sua vagina. Agarrara-se ao meu pénis, envolvera-o com uma paixão violenta (é verdade, Yuzu podia ter-me confundido com outra pessoa, mas era eu). Ela espremera-me até ao tutano, apoderando-se do meu sémen até à última gota.
Não pude deixar de sentir uma certa vergonha por ter tido um sonho destes (se é que foi realmente um sonho). Afinal, violara na minha imaginação a mulher de quem me divorciara. Despira-me e penetrara-a enquanto ela dormia, sem o seu consentimento. Aos olhos da lei, um homem que faz isso a uma mulher – mesmo tratando-se da sua esposa – é culpado de agressão sexual. Nesse sentido, a minha conduta estava longe de ser louvável. Ainda assim, objetivamente falando, não passou de um sonho. Algo experienciado durante o sono. Não o tinha fabricado propositadamente. Não escrevera o argumento.
No entanto, concretizara as minhas esperanças e os meus desejos mais genuínos. Não havia dúvidas em relação a isso. Se me visse numa situação semelhante na vida real – não num sonho –, talvez tivesse agido da mesma forma. Ter-me-ia despido e entrado à força nela. Eu queria o corpo de Yuzu, queria penetrá-lo. Estava possuído por esse desejo. Fora capaz de perceber isso de forma exagerada no meu sonho; por sua vez, só mesmo num sonho poderia acontecer.
Ao continuar a minha viagem solitária, aquele sonho erótico demasiado «real» proporcionou-me uma espécie de felicidade efémera. É caso para dizer que me impeliu. Quando o recordei, senti que era uma criatura viva organicamente ligada ao mundo. Ligada ao ambiente circundante, não através de pensamento lógico ou conceptual, mas carnalmente, através do corpo.
Contudo, o pensamento de que outra pessoa – algum outro homem – tirava realmente o melhor partido de Yuzu, como eu fazia no meu sonho, era uma tortura. Que alguém acariciava os seus mamilos endurecidos, despia as suas cuecas brancas, arremetia contra ela até se vir, uma e outra vez. Quando imaginava isso, sentia-me ferido e a sangrar por dentro. Nada (tanto quanto me lembrava) me fizera sentir algo assim.
Foi este o estranho sonho que tive pouco antes do amanhecer de dia 19 de abril. Registado no meu diário como «Sonho ontem à noite» e enfaticamente sublinhado a lápis.
* * *
Por volta dessa altura, Yuzu engravidara. Óbvio que não era possível saber a data exata, mas não seria de estranhar que tivesse ocorrido naquele dia.
A semelhança entre a minha situação e a história que Menshiki me contara era impressionante. Ele, porém, tinha feito amor com uma mulher de carne e osso no sofá do escritório, na realidade. Não acontecera num sonho. E nessa altura ela tinha engravidado. Depois, casara com um homem abastado e, posteriormente, dera à luz Marie. A crença de Menshiki de que Marie pudesse ser sua filha tinha, portanto, uma base factual. Era um tiro no escuro, mas entrava no reino das possibilidades. O meu ato de amor com Yuzu, por outro lado, ocorrera num sonho. Eu encontrava-me nas montanhas de Aomori, enquanto Yuzu estava (provavelmente) no coração de Tóquio. Assim, o bebé dela não poderia ser meu. Era a única conclusão lógica. As probabilidades não eram reduzidas, eram nulas. Isto é, se uma pessoa pensasse de forma lógica.
Mas o meu sonho era demasiado real para ser tão facilmente descartado por motivos lógicos. Além disso, o prazer que senti durante o ato foi maior e muito mais memorável do que em qualquer momento durante os nossos seis anos de casamento. Quando me vim uma e outra vez dentro dela, os fusíveis no meu cérebro pareciam ter rebentado ao mesmo tempo, derretendo o que tinham sido camadas distintas de realidade para formarem uma massa pesada e turva. Como no caos primitivo da Terra.
Uma ocorrência tão gráfica só podia ter consequências, não iria terminar como outro sonho qualquer. Era o que eu sentia. Tinha de estar ligado a alguma coisa, ter algum tipo de impacto no presente.
Masahiko acordou pouco antes das nove. Apareceu de pijama na sala de jantar e bebeu uma chávena de café simples bem quente. «Nada de pequeno-almoço, obrigado», disse; só «café, se não te importas.» Tinha papos debaixo dos olhos.
– Estás bem? – perguntei.
– Sim – respondeu, esfregando as pálpebras. – Já tive ressacas muito piores. Esta é suave.
– Porque não ficas mais tempo?
– Não estás à espera de visitas?
– Só às dez. Ainda há tempo. Além disso, não faz mal estares aqui quando elas chegarem. Eu apresento-tas. São muito bem-parecidas.
– Elas? Pensei que havia apenas um modelo.
– A tia vem acompanhar.
– Acompanhar? Ainda fazem as coisas à moda antiga neste fim de mundo? Parece um romance da Jane Austen. Não usam espartilhos nem viajam numa carruagem puxada por cavalos, pois não?
– Não é uma carruagem puxada por cavalos, é um Toyota Prius. E nada de espartilhos. Enquanto pinto a rapariga, a tia senta-se na sala e lê durante duas horas. «Tia» fá-la parecer velha, quando, pelo contrário, é bastante jovem.
– Que tipo de livros gosta ela de ler?
– Não sei. Já perguntei, mas não me disse.
– A sério? Ah, por falar em livros, lembras-te da personagem do Demónios de Dostoiévski, aquele tipo que se matou com uma pistola só para provar que era livre? Como se chama? Calculo que saibas.
– Kirillov – respondi.
– Isso mesmo, Kirillov. Tenho tentado lembrar-me, mas não conseguia.
– Porque queres saber?
– Por nenhuma razão especial – respondeu Masahiko. – Veio-me à cabeça um destes dias e, quando tentei lembrar-me do nome dele, não consegui. Andava a incomodar-me, como uma espinha presa na garganta. Eh, pá, aqueles russos! Tinham umas ideias muito estranhas, não achas?
– Há muitas personagens em Dostoiévski que fazem maluqueiras só para provar que são pessoas livres, sem restrições impostas por Deus e pela sociedade. No entanto, olhando para a Rússia daquela época, talvez não fossem assim tão malucas.
– E tu? – perguntou Masahiko. – Estás oficialmente divorciado da Yuzu, o que significa que és um homem livre. O que se segue? Mesmo que não tenha sido escolha tua, a verdade é que agora não precisas de dar cavaco a ninguém. Porque não cometer uma loucura? Ninguém te impede.
Soltei uma gargalhada.
– Não estou a planear nada de momento. Claro, posso estar livre, mas isso não significa que tenha de o provar ao mundo, pois não?
– Com que então, é assim que encaras as coisas?! – comentou Masahiko num tom desapontado. – Afinal, és pintor, certo? Um artista. Os artistas infringem as regras a torto e a direito e não se coíbem de o anunciar alto e bom som aos quatro ventos. Mas tu sempre foste atinadinho, seguiste o caminho da razão, parece-me. Porque não te soltas das amarras, te livras das restrições e fazes uma coisa maluca?
– Como assassinar uma velha agiota com um machado?
– Sim, por exemplo.
– Ou apaixonar-me por uma prostituta com um coração de ouro?
– Ainda melhor.
– Vou pensar nisso – disse. – Mas... sabes?... para mim, a própria realidade, de quando em quando, tem um parafuso a menos. Por isso é que tento manter-me na linha.
– Bem, acho que é uma maneira de ver as coisas – respondeu Masahiko num tom resignado.
É mais do que apenas «uma maneira de ver as coisas», queria eu dizer-lhe. De facto, parecia que tudo à minha volta estava a desaparafusar-se, que a realidade começava a descontrolar-se. Se eu também perdesse o juízo, a loucura andaria completamente à solta. Porém, não consegui contar a Masahiko a história tintim por tintim naquela fase do campeonato.
– Bom, tenho de me fazer à estrada – disse ele. – Adorava conhecer as tuas meninas, mas tenho trabalho à espera em Tóquio.
Masahiko terminou o café, vestiu-se e partiu no seu Volvo preto quadradão, com papos debaixo dos olhos e tudo.
– Ainda bem que tivemos finalmente a oportunidade de conversar. – Estas foram as suas palavras de despedida.
Houve uma coisa naquela manhã que me surpreendeu. A faca de Masahiko, a que ele trouxera para amanhar o peixe, tinha desaparecido. Fora lavada, e nenhum de nós se lembrava de lhe mexer depois, mas revirámos a cozinha e não conseguimos encontrá-la.
– Esquece – disse ele. – Provavelmente, foi dar um passeio. Guarda-a quando voltar. Levo-a para casa na minha próxima visita. Não a uso assim com tanta frequência.
Continuaria a procurar, garanti-lhe.
Olhei para o relógio assim que o Volvo desapareceu de vista. As Akikawa chegariam em breve. Tirei a roupa de cama do sofá da sala e abri as janelas para arejar a divisão. O céu ainda estava ligeiramente nublado e cinzento. Não corria uma aragem.
Transportei A Morte do Comendador do meu quarto para o seu devido lugar, pendurado na parede do estúdio. De seguida, sentei-me no banco para examinar de novo a pintura. O sangue vermelho ainda jorrava do peito do Comendador, enquanto os olhos do Cara Comprida continuavam a brilhar no canto inferior esquerdo da tela. Nada mudara.
Não conseguia tirar Yuzu da cabeça, mesmo enquanto estudava A Morte do Comendador. Não fora um sonho, seguramente. Eu visitei mesmo o nosso apartamento naquela noite. Estava tão certo disso como da visita de Tomohiko Amada ao estúdio, dias antes. Como ele, eu tinha de alguma forma superado as leis da física para chegar ao nosso apartamento em Hiroo, penetrar Yuzu e lançar o meu sémen dentro do seu corpo. As pessoas são capazes de realizar qualquer coisa, pensei, se o desejarem com força suficiente. Existem canais através dos quais a realidade se torna irreal. Ou a irrealidade entra no reino do real se o desejarmos muito. Com todas as nossas forças. Mas isso não significa que sejamos livres. Também pode demonstrar exatamente o contrário.
Surgindo a oportunidade, queria perguntar a Yuzu se ela tivera um sonho semelhante no final de abril daquele ano. Se sonhara, pouco antes do amanhecer, que eu a possuíra enquanto ela dormia profundamente (ou estava de alguma forma privada da sua liberdade). Por outras palavras, o meu sonho era algo que eu experimentara sozinho, ou era uma rua de dois sentidos? Queria confirmar. No entanto, se tivéssemos partilhado o sonho, não me veria ela como um vilão sinistro? Poderia tal presença existir no meu interior? Detestava pensar em mim dessa maneira.
Seria eu livre? No que me dizia respeito, a questão era completamente irrelevante. Do que eu precisava naquele momento, mais do que qualquer coisa, era de uma realidade firme a que me agarrar. Uma base sólida sobre a qual me erguer. Não o tipo de liberdade que me permitia violar a minha mulher em sonhos.
44
AS CARACTERÍSTICAS QUE TORNAM
UMA PESSOA QUEM É
Marie não abriu a boca naquela manhã. Ficou sentada na cadeira de espaldar direito, a imagem perfeita de um modelo, e olhou para mim como se eu fosse uma paisagem distante. Porque o meu banco era mais alto que a cadeira, ela olhava um nadinha para cima. Não tentei puxar conversa. Nada tinha a dizer; não sentia sequer necessidade de falar. Limitei-me a passar o pincel pela tela em silêncio.
Estava a pintar o retrato de Marie, mas tinha a impressão de que no trabalho surgiam elementos da minha falecida irmã, Komi, e da minha ex-mulher. Não era intencional; apareceram de forma natural. Talvez estivesse a procurar dentro de Marie recordações daquelas duas mulheres, que tão importantes eram para mim e que eu perdera. Não havia meio de dizer se me fazia bem, mas era a única forma de eu conseguir pintar naquele momento. Não, dizer «naquele momento» está errado. Bem vistas as coisas, pintava assim desde o início. A dar forma ao que me escapava na realidade. Inscrevendo sinais secretos que só eu conseguia decifrar.
Fosse qual fosse o caso, consegui progredir no retrato de Marie com relativa facilidade. Passo a passo, aproximava-me da conclusão. Como um rio, seguia os contornos da paisagem, acumulando-se nas depressões até transbordar sobre a barreira final e fluir sem obstruções até ao mar. Sentia-o circular pelo meu corpo, como sangue.
– Posso vir visitá-lo mais tarde – disse Marie em voz baixa pouco antes de terminarmos a nossa sessão naquela manhã. A falta de inflexão fez a frase soar como uma afirmação, mas era uma pergunta, naturalmente.
– Através da tal passagem secreta, queres tu dizer?
– Sim.
– Não me importo, mas por volta de que horas?
– Ainda não sei.
– Não devias vir depois do anoitecer. Nunca se sabe o que haverá nestas montanhas à noite.
Todo o tipo de coisas estranhas podia estar à espreita: o Comendador, o Cara Comprida, o homem do Subaru Forester branco, o espírito vivo de Tomohiko Amada. Até o íncubo que era o meu alter ego sexual. Sim, dependendo das circunstâncias, eu podia transformar-me numa daquelas criaturas sinistras que rondavam as montanhas na hora do mocho. O pensamento provocou-me um calafrio.
– Vou tentar chegar antes de escurecer – prometeu Marie. – Quero falar consigo acerca de uma coisa. Só nós os dois.
– Estarei à espera.
Terminámos o trabalho não muito depois de o carrilhão anunciar o meio-dia.
Shoko estava sentada no sofá, concentrada na leitura, para não variar. Parecia prestes a chegar ao fim do calhamaço. Tirando os óculos, assinalou a página com um marcador e olhou para nós.
– Hoje fizemos grandes progressos – disse-lhe. – Mais uma ou duas sessões e devemos terminar. Desculpe estar a tomar-lhe tanto tempo.
Shoko sorriu. Um sorriso lindo.
– Ora essa – respondeu. – A Marie parece gostar de posar para si, e, quanto a mim, estou desejosa de ver o retrato pronto. Além disso, este sofá é perfeito para a leitura. Nunca me aborreço. Na verdade, vir aqui é uma mudança bem-vinda: sinto-me sempre melhor a seguir.
Queria perguntar-lhe como correra a visita delas à casa de Menshiki no domingo anterior. A bela mansão impressionara-a? O que pensara dele como pessoa? Mas fazer essas perguntas teria sido falta de educação; havia que esperar que ela abordasse o assunto.
Mais uma vez, Shoko vestira-se para a ocasião. Uma pessoa normal de certeza que não se vestiria assim para visitar um vizinho numa manhã de domingo. Uma saia de pele de camelo engomada na perfeição, uma elegante blusa de seda branca com um grande laçarote e um casaco azul-acinzentado escuro com um alfinete de ouro na lapela. A olho nu, a joia no alfinete tinha todo o ar de ser um diamante. Aquela indumentária, no seu conjunto, parecia demasiado elegante para se usar ao volante de um Toyota Prius. Mas quem era eu para opinar? O diretor de marketing da Toyota provavelmente teria uma opinião muito diferente.
Marie estava vestida como de costume. O habitual casaco da escola, as calças de ganga rasgadas e uns ténis brancos ainda mais sujos do que os que usava habitualmente (com a zona dos calcanhares achatada).
Prestes a irem-se embora, Marie olhou para trás e piscou-me o olho, um sinal secreto que dizia «até logo». Esbocei um rápido sorriso em jeito de resposta.
Depois de Shoko e Marie terem partido, fui até à sala de estar, deitei-me no sofá e dormi. (Deixei passar a hora do almoço – sinceramente, não tinha fome.) Foi um sono breve, cerca de trinta minutos, profundo e sem sonhos. Senti-me grato por isso. Era assustador pensar no que poderia fazer nos meus sonhos, e ainda mais assustador pensar naquilo em que poderia tornar-me.
O meu humor naquela tarde de domingo estava tão amorfo como o tempo. Era um dia silencioso e ligeiramente nublado, sem uma aragem. Li umas páginas, ouvi música, fiz comida, mas nada me ajudou a entender os meus sentimentos. Prometia ser uma daquelas tardes em que nada se faz. Desistindo, preparei um banho quente de imersão, entrei e fiquei de molho uma eternidade. Tentei lembrar-me dos nomes das personagens de Demónios, de Dostoiévski. Ocorreram-me sete, incluindo Kirillov. Por alguma razão, desde os meus tempos do secundário que tinha queda para memorizar nomes russos compridos. Talvez fosse uma boa oportunidade para reler Demónios. Estava livre, dispunha de tempo e não precisava de fazer nada. As condições perfeitas para ler os longos clássicos russos.
Tornei a pensar em Yuzu. A sua barriga de sete meses já se devia notar. Tentei imaginá-la. O que estaria a fazer naquele momento? No que estaria a pensar? Sentir-se-ia feliz? Como é óbvio, não tinha como saber nada disto.
Talvez Masahiko tivesse razão. Talvez, a exemplo de um intelectual russo do século XIX, eu devesse fazer alguma coisa estapafúrdia apenas para provar que era um homem livre. Mas o quê? Algo como passar uma hora fechado no fundo de um poço escuro como breu? Menshiki fizera-o, tal qual. É verdade que as suas ações podiam não se enquadrar na categoria de «estapafúrdias», mas sem dúvida que ultrapassavam os limites do convencional, para dizer o mínimo.
Já passava das quatro quando Marie apareceu. A campainha tocou, fui abrir e lá estava ela. Entrou como uma nuvem pela porta entreaberta e olhou em volta com cautela.
– Não está cá ninguém.
– Pois não – concordei.
– Esteve cá gente ontem...
Aquilo devia ter sido uma pergunta.
– Sim, um amigo meu dormiu cá.
– Um homem.
– Sim, um homem. Como sabias?
– Estava um carro velho que eu nunca tinha visto estacionado em frente à sua casa. Parecia uma caixa preta.
Era a velha carrinha Volvo de Masahiko, a que chamava «lancheira sueca». Ideal para transportar carcaças de renas.
– Então vieste ontem.
Marie assentiu. Parecia estar a usar a sua passagem para verificar a casa sempre que tinha tempo. Se calhar, já fazia aquilo muito antes da minha chegada. Afinal, a montanha era como o seu pátio de recreio. Ou, melhor dizendo, o seu «terreno de caça». Eu não passava de alguém que por acaso se mudara para lá. Teria ela chegado a dar de caras com Tomohiko Amada? Era uma pergunta a fazer-lhe, um dia.
Levei-a para a sala de estar. Sentámo-nos: ela no sofá, eu na poltrona. Ofereci-lhe uma bebida, mas recusou.
– O tipo que cá ficou é um amigo dos tempos da faculdade – expliquei.
– Um bom amigo?
– Acho que sim – respondi. – Talvez seja o único a quem posso chamar verdadeiramente amigo.
Um tão grande amigo que até apresentou o colega de trabalho à minha mulher e foi capaz de esconder de mim que eles andavam a dormir juntos – uma situação que levou ao meu recém-consumado divórcio – sem que isso afetasse o relacionamento entre eu e ele. Chamar-nos amigos dificilmente seria um exagero.
– E tu, tens bons amigos? – perguntei-lhe.
Marie não respondeu. Não pestanejou sequer; limitou-se a agir como se não tivesse ouvido a pergunta. Palpita-me que devia ter ficado calado.
– O senhor Menshiki não é um bom amigo seu – disse ela. Eu sabia que era uma pergunta, embora a sua entoação não o indicasse. «Quer dizer que o senhor Menshiki não é um bom amigo seu?», foi o que ela quis dizer.
– Como te disse, não conheço o senhor Menshiki há tempo suficiente para lhe chamar amigo. Comecei a falar com ele depois de me mudar para cá, isto há coisa de seis meses. As pessoas precisam de mais tempo para se tornarem próximas. Ainda assim, acho-o uma pessoa muito interessante.
– Interessante.
– Como te hei de explicar? O seu temperamento, comparado com o de outros homens, parece-me um bocadinho diferente. Bem... um bocadinho é favor. Não é uma pessoa fácil de perceber.
– Temperamento.
– Personalidade. As características que tornam uma pessoa quem é.
Marie olhou para mim durante bastante tempo. Como se estivesse a escolher as palavras exatas.
– Ele consegue ver a minha casa do terraço. Fica do outro lado do vale.
Demorei a responder.
– Sim, tens razão. É a configuração do terreno. Mas também consegue ver a minha casa em toda a amplitude. Não só a tua.
– Mesmo assim, acho que esse homem anda a espiar-nos.
– O que queres dizer com isso?
– Tem uma coisa que parece um par de binóculos grande no terraço, embora o esconda com uma capa. Está numa espécie de tripé. Pode ver-nos lindamente dessa maneira.
Com que então, a miúda descobriu-o, pensei. Vigilante, observadora. Olhos que não deixavam escapar nada.
– Achas que o senhor Menshiki vos tem observado através desses binóculos?
Marie limitou-se a assentir.
Inspirei fundo, depois exalei.
– Mas é apenas um palpite teu, certo? Não significa necessariamente que ele esteja a espiar a vossa casa. Pode estar a observar a Lua e as estrelas.
O olhar de Marie não vacilou.
– Tenho tido a sensação de que estou a ser observada – disse ela. – Já há algum tempo. Mas não sabia quem me observava, ou de onde. Agora sei. É aquele sujeito, de certeza.
Tornei a respirar fundo. Marie acertara na mouche. Menshiki observava-a todas as noites através dos seus potentes binóculos militares. Pese embora, tanto quanto eu sabia – e isto não era para defender Menshiki –, os motivos que o tornaram um mirone estavam longe de ser perversos. Ele só queria ver a rapariga. Aquela linda rapariga de treze anos que podia ser sua filha biológica. Por essa exclusiva razão é que ele comprara a mansão do outro lado do vale, tendo-a arrancado da família que lá vivia e correndo com ela. Mas eu não podia revelar isso a Marie.
– Digamos que tens razão – respondi. – Que motivos o assistem? Porque está tão fixado na vossa casa?
– Não sei. Talvez tenha uma paixoneta pela minha tia.
– Uma paixoneta pela tua tia?
Ela encolheu os ombros.
A rapariga não conseguia conceber que pudesse ser ela o alvo. Ainda não tinha chegado à fase em que se via como um objeto do desejo masculino. Achei isso estranho, mas não me atrevi a pôr em causa a sua versão. Se era assim que ela via a situação, talvez fosse melhor deixar andar.
– Acho que o senhor Menshiki está a esconder qualquer coisa – disse Marie.
– O quê, por exemplo?
– A minha tia tem-se encontrado com ele – disse a rapariga, não respondendo à minha pergunta. – Duas vezes esta semana. – O seu tom sugeria que estava a revelar-me segredos de estado altamente sensíveis.
– Saíram juntos?
– Acho que ela foi a casa desse homem.
– Sozinha?
– Saiu um pouco depois do meio-dia e voltou bastante tarde.
– Mas não podes ter a certeza de que a tua tia foi a casa do senhor Menshiki, ou podes?
– Eu sei – disse Marie.
– Como é que sabes?
– A minha tia não sai muito de casa – disse ela. – Claro, faz umas horas como voluntária na biblioteca e vai às compras, mas para isso não toma um duche demorado, nem pinta as unhas, nem põe perfume e veste a melhor roupa interior.
– Tens mesmo olhos de lince, não tens? – comentei, impressionado. – Vês tudo. E tens a certeza de que o homem com que ela se encontra é o senhor Menshiki? Não pode ser outra pessoa?
Marie semicerrou os olhos. Abanou a cabeça, como quem diz: «Este deve pensar que nasci ontem.» Bem vistas as coisas, naquelas circunstâncias era pouco provável que o tal homem fosse outro que não Menshiki. E Marie era tudo menos tolinha.
– Quer dizer que a tua tia passa bastante tempo em casa do senhor Menshiki, os dois sozinhos.
Marie assentiu.
– E eles... enfim, estão envolvidos naquilo a que poderíamos chamar uma relação muito próxima.
Ela tornou a assentir.
– Sim, uma relação muito próxima – repetiu; o seu rosto adquiriu um ligeiro rubor.
– Mas tu passas o dia na escola, não estás em casa. Como podes saber essas coisas?
– Adivinho. Sou capaz de adivinhar uma data de cenas no rosto de uma mulher.
Mas eu não era capaz de adivinhar. Yuzu tivera um longo caso extraconjugal quando vivíamos juntos, e eu não desconfiara. Olhando para trás, devia ter percebido. Como é que uma rapariga de treze anos conseguia apanhar tão depressa uma coisa que me passava ao lado?
– Não perderam tempo aqueles dois, pois não? – perguntei.
– A minha tia não é parva. A cabeça funciona bem, mas tem no coração o ponto fraco. E o senhor Menshiki é mais forte do que as pessoas normais. Muito mais forte. A minha tia não está à altura dele.
A miúda deve ter razão, pensei. Menshiki tinha uma espécie de poder especial. Assim que fazia a sua jogada, seria quase impossível uma pessoa normal resistir. Eu inclusive. Não devia ser difícil para ele tornar uma mulher sua, se fosse esse o objetivo.
– Estás preocupada com a tua tia, é isso? Receias que o senhor Menshiki se aproveite dela por algum motivo?
Marie empurrou o cabelo para trás com a mão, revelando a orelha. Era pequena e branca, e com uma forma encantadora. Assentiu.
– Não é fácil romper uma relação baseada nesses moldes quando a corrida já vai a meio – comentei.
Não é nada fácil, disse para comigo. Avançaria, esmagando tudo no seu caminho, como a grande roda do karma dos hindus. Não haveria como voltar atrás.
– É por isso que queria falar consigo – sentenciou Marie. Dito aquilo, olhou-me nos olhos.
Quando começou a escurecer, peguei na minha lanterna e acompanhei Marie quase até à passagem secreta. Ela disse que tinha de estar em casa para o jantar. Comiam impreterivelmente por volta das sete.
Viera pedir-me conselhos, mas eu não soubera oferecer-lhe uma sugestão útil; apenas que esperasse e visse como as coisas corriam. O mais provável era Menshiki e Shoko terem-se envolvido sexualmente, certo e sabido; porém, estamos a falar de dois adultos descomprometidos. O que devia eu fazer? Como é óbvio, dispunha de algumas informações, mas não podia revelá-las, nem a Marie nem à tia. Isso significava que não podia dar conselhos úteis a ninguém. Parecia um pugilista a tentar lutar com o melhor braço amarrado atrás das costas.
Marie e eu caminhámos lado a lado pela floresta, mal abrindo a boca. Íamos a meio do caminho quando ela me pegou na mão. Uma mão que, apesar de pequena, e para minha surpresa, segurava a minha com um aperto firme. Confesso que fiquei admirado, mas como tivera por hábito caminhar assim com a minha irmã, não disse nada. Pareceu-me uma coisa normal, um regresso aos verdes anos.
A mão de Marie era muito macia. Quente, embora sem um pingo de suor. Devia estar a pensar em qualquer coisa, pois a sua mão ora apertava a minha, ora descontraía, apertava e descontraía, dependendo, acho, dos seus pensamentos. A minha irmã fazia a mesma coisa nos velhos tempos.
Quando chegámos ao santuário, ela soltou-me a mão e, sem uma palavra, foi até à parte de trás. Segui-a.
O tufo de erva-das-pampas ainda exibia as marcas da retroescavadora. No meio encontrava-se o poço no seu voto de silêncio. Lá estava a cobertura feita de tábuas resistentes, mantidas no lugar por uma fila de pedras. Iluminei-as com a lanterna para me certificar de que não tinham sido deslocadas; confirmou-se.
– Posso espreitar? – perguntou Marie.
– Só espreitar.
– Só espreitar – repetiu ela.
Afastei algumas pedras para o lado e levantei uma tábua. Marie ajoelhou-se e espreitou pela abertura. Apontei a lanterna para o chão do poço. Não estava ali ninguém, como é óbvio. Apenas uma escada de metal encostada à parede. Se uma pessoa quisesse, podia usá-la para descer e voltar à superfície. Seria quase impossível sair sem a escada, embora o poço tivesse menos de três metros de profundidade. A parede era demasiado lisa e escorregadia para alguém a escalar.
Segurando o cabelo com uma das mãos, Marie olhou demoradamente para dentro do poço. Concentrada, como se estivesse à procura de alguma coisa no escuro. Não tinha ideia do que haveria lá em baixo que lhe prendesse a atenção.
– Quem construiu isto? – perguntou, levantando por fim a cabeça.
– Não sei. De início pensei que era um poço, mas agora não tenho tanta certeza. Quero dizer, quem abriria um poço num sítio tão fora de mão? De qualquer forma, parece antigo. E está muito bem feito. Deve ter sido uma longa empreitada.
Marie olhou para mim sem dizer nada.
– Esta zona tem sido o teu pátio de recreio, não foi o que disseste? – perguntei.
Ela assentiu.
– Mas só soubeste há pouco que havia este poço atrás do santuário.
Gesto afirmativo.
– O senhor encontrou-o e abriu-o, não é verdade? – perguntou.
– Isso mesmo, posso ter sido eu a descobri-lo. Não sabia que era um poço, mas imaginei que tinha de haver alguma coisa debaixo daquela pilha de pedras. No entanto, quem tratou da remoção das pedras e da abertura do poço foi o senhor Menshiki.
Queria que pelo menos estes pormenores fossem ponto assente para ela. Mais valia ser franco.
Um pássaro piou nas árvores. Foi um piar agudo e penetrante, como se quisesse avisar os seus semelhantes. Olhei para cima, mas não consegui descortiná-lo. Só vi os ramos despidos das árvores. E além, o céu noturno do inverno que se anunciava, baixo, monótono e cinzento.
Marie retraiu-se ligeiramente, mas nada acrescentou.
– É difícil explicar – afirmei. – Pareceu-me que o buraco exigia que alguém o abrisse. E que eu tinha sido requisitado para realizar a tarefa.
– Requisitado?
– Convidado. Chamado a.
Ela olhou para mim.
– O poço queria que o senhor o abrisse?
– Sim.
– Este poço pediu-lhe para o abrir?
– Podia ter sido qualquer pessoa, talvez. Calhou eu estar por perto.
– Mas foi o senhor Menshiki quem realmente o fez.
– Sim. Eu trouxe-o cá. Não o teria descoberto sem ele. As pedras eram muito pesadas para serem movidas apenas com a força dos braços e eu não tinha dinheiro para alugar equipamento pesado. Foi uma feliz coincidência.
– Talvez não o devesse ter feito – sentenciou ela depois de pensar um pouco. – Já lho disse antes, se bem me lembro.
– Achas que eu devia tê-lo deixado como estava?
Marie não respondeu logo. Levantou-se e limpou a terra dos joelhos das calças. Uma, duas, várias vezes. Colocámos as tábuas no sítio e as pedras por cima a segurá-las. Voltei a memorizar a sua posição.
– Acredito que sim – respondeu ela por fim, esfregando levemente as palmas das mãos uma contra a outra.
– Este sítio pode ter antecedentes religiosos. Estará associado a lendas ou histórias, quem sabe?
Marie abanou a cabeça. Não conhecia nenhuma.
– Talvez o meu pai saiba alguma coisa.
Aqueles terrenos eram propriedade da família do pai desde antes do período Meiji. A montanha adjacente também estava nas mãos deles. De certeza que teria pelo menos uma vaga ideia do significado do poço e do santuário.
– Podes perguntar-lhe?
Marie fez uma careta.
– Vou tentar – disse em voz baixa. Hesitou. – Se tiver oportunidade.
– Seria uma grande ajuda se soubéssemos quem o construiu, quando e com que propósito.
– Talvez tenham fechado qualquer coisa lá dentro e posto as pedras pesadas em cima para garantir que não saía – sugeriu ela.
– Achas que empilharam as pedras, talvez para impedir que essa tal coisa escapasse, e depois construíram o pequeno santuário para afastar a sua maldição?
– Quem sabe?
– E então chegámos nós e abrimo-lo à mesma.
Marie encolheu os ombros.
Acompanhei-a até ao fim da floresta. Seguiria sozinha dali em diante, disse. A escuridão não era problema; ela sabia o caminho. Não queria que ninguém visse a passagem que levava à sua casa. Era um atalho que só ela devia conhecer. Então voltei para trás, deixando-a lá. No céu restava apenas um vislumbre de luz. A escuridão fria abatia-se sobre nós.
A mesma ave emitiu o mesmo piado quando passei diante do santuário. Daquela vez, porém, não olhei para cima. Fui direito a casa, deixando o santuário para trás. Enquanto preparava o jantar, bebi um Chivas com água. Havia apenas o suficiente na garrafa para mais uma dose. A noite afundara-se num silêncio de morte, como se as nuvens estivessem a absorver todos os sons da vida.
Não devia ter aberto aquele poço.
Se calhar, Marie tinha razão. O melhor era ter-me mantido à distância do poço. Parecia que tudo o que eu fazia nos tempos que corriam era errado.
Imaginei Menshiki a fazer amor com Shoko. Os dois nus, entrelaçados numa grande cama num quarto algures naquela enorme mansão branca. Acontecia noutro mundo, claro, sem nenhuma relação comigo. No entanto, pensar neles juntos deixou-me desolado. Como se estivesse numa estação a ver passar um comboio comprido e vazio.
Finalmente, adormeci e o meu domingo terminou. Um sono profundo sem sonhos, sem ninguém que o perturbasse.
45
ALGUMA COISA ESTAVA PRESTES A ACONTECER
Dos dois quadros em que estava a trabalhar, acabei primeiro O Poço na Floresta. Era sexta-feira à tarde quando o concluí. Os quadros são coisas estranhas: à medida que se aproximam do fim, adquirem vontade própria, um ponto de vista próprio e até os seus próprios poderes de expressão. Dizem ao artista quando estão terminados (pelo menos é assim que funciona comigo). Um mero espectador do processo – havendo porventura alguém que assista – não sabe dizer a diferença entre uma pintura em execução e uma pintura terminada, pois a linha é praticamente invisível a olho nu. Mas o artista sabe. Ele ou ela pode ouvir o quadro dizer: «Afasta as mãos, estou pronto.» O artista só tem de prestar atenção a essa voz.
Assim foi com O Poço na Floresta. A certa altura, anunciou-se acabado e recusou o meu pincel. Como uma mulher sexualmente saciada. Tirei a tela do cavalete e encostei-a à parede. Sentei-me a seguir no chão e estudei-a: a minha pintura de um buraco semicoberto no chão.
Não conseguia definir o que me levara a pintá-lo, nem o seu significado. Apoderara-se de mim, sem mais. Não me ocorria nada além disso. De vez em quando, o fenómeno acontecia-me. Quando uma coisa me marca dessa maneira – uma paisagem, um objeto, uma pessoa –, pego no pincel e deito mãos à obra. Não há um significado, um motivo; limito-me a ir onde o instinto me manda. É tão simples como isso.
Mas esperem, pensei. Daquela vez foi diferente. Não se tratou de um mero impulso. Alguma coisa exigira que eu pintasse o quadro, e urgentemente. Por isso o terminara tão depressa – o que quer que fosse, aquela exigência incitara-me, conduzira-me em direção ao cavalete e impelira-me para diante, como uma mão nas minhas costas. Ou talvez o poço fosse o agente, forçando-me a desenhar o seu retrato, deixando-me a incumbência de adivinhar o motivo. Da mesma forma que Menshiki, provavelmente no âmbito de um plano de grandeza maior, me pedira para pintar o seu retrato.
Avaliando-o de maneira justa e objetiva, o quadro não era mau. Não sei se lhe poderíamos chamar obra de arte. (Não estou a arranjar desculpas, mas não começara a pintá-lo com esse objetivo em mente.) Do ponto de vista puramente da técnica, porém, resultara na perfeição. A composição era impecável, e eu capturara a luz que fluía através das árvores e as cores das folhas caídas. Realista até ao mais ínfimo detalhe, pairava sobre ele, contudo, uma misteriosa aura simbólica.
Entretanto, ao analisar o trabalho finalizado, fui dominado por uma sensação, aquilo a que se poderia chamar premonição de movimento iminente. À superfície, pelo menos, era exatamente como o título dizia: a pintura do poço na floresta. Era tão preciso, de facto, que «reprodução» poderia ser um termo mais próximo da verdade. Como alguém que vinha desenvolvendo o seu mester há muito tempo, de forma mais ou menos imperfeita, eu tinha a competência artística para reproduzir na tela uma imagem em tudo semelhante à realidade. Não pintara a cena, documentara-a.
No entanto, a premonição era real. Alguma coisa estava prestes a acontecer dentro daquela paisagem: era o que o quadro me dizia. Então percebi. O que eu tentara transmitir, ou o que aquilo tentara fazer-me pintar, fora precisamente essa premonição, esses sinais.
Sentado ali no chão, endireitei as costas e contemplei o quadro com um olhar renovado.
O que estava para acontecer? Alguém ou alguma coisa estaria prestes a sair da escuridão por baixo da cobertura entreaberta? Ou, ao invés, preparava-se para entrar no poço? Embora tivesse examinado o quadro demoradamente e com atenção, não consegui adivinhar o que viria a seguir. Sabia apenas que um movimento em breve se iria concretizar. A força da minha premonição não deixava margem para dúvidas.
Por que motivo o poço queria tanto que eu o pintasse? Para me fazer chegar uma mensagem? Para me avisar? Era um jogo de adivinhas. Tantas adivinhas e nem uma única resposta. Queria mostrar o quadro a Marie e ouvir o que ela tinha a dizer. Talvez pudesse ver o que eu não conseguia descortinar.
Às sextas-feiras, eu dava aulas de desenho perto da estação de Odawara. Marie era uma das alunas, e estaria de certeza no centro de artes. Talvez pudesse falar com ela depois. Meti-me no meu carro e fiz o caminho até à cidade.
Ainda dispunha de tempo à hora que cheguei. Estacionei o carro e fui abastecer-me do cafezinho da praxe. Não num reluzente e funcional Starbucks – o estabelecimento onde era costume entrar permanecia intocado pelo tempo, um botequim de vão de escada gerido por um homem de idade que servia um café turvo num copo que pesava uma tonelada. Nas velhas colunas soava jazz de uma era passada. Billie Holiday, Clifford Brown e outros clássicos. Como ainda me sobravam uns minutos quando terminei a bebida, desci com todo o vagar aquela rua comercial. Já tinha poucos filtros de café em casa, e lembrei-me de comprar uma embalagem. Encontrei uma loja de discos em segunda mão e passei os olhos pelos antigos LP. Dei-me conta de que só ouvia música clássica há uma larga temporada. As prateleiras de Tomohiko Amada não continham outro tipo de discos. Se ligava o rádio, era apenas para ouvir as notícias e o boletim meteorológico em AM (a minha localização geográfica não me permitia captar FM).
Deixara os discos e os CD – não que possuísse muitos – no apartamento de Hiroo. Teria sido doloroso selecionar quais os livros e os discos que eram de Yuzu e quais eram os meus. Impossível, a bem dizer. De quem era o Nashville Skyline de Bob Dylan? E o álbum dos Doors com «Alabama Song»? Que importância tinha quem desembolsara o dinheiro? Havíamos partilhado a mesma música durante um determinado período de tempo, passámos esses dias juntos a ouvi-la. Ainda que fôssemos capazes de dividir os discos entre os dois, nunca nos poderíamos separar das recordações ligadas a todos eles. Fui forçado a deixá-los para trás.
Procurei o Nashville Skyline e o primeiro álbum dos Doors, mas não consegui encontrar nenhum. Talvez estivessem disponíveis em CD, mas queria ouvi-los num velho gira-discos. De qualquer forma, não havia leitor de CD em casa de Tomohiko Amada. Nem leitor de cassetes. Apenas dois gira-discos. Tomohiko Amada provavelmente não tinha interesse nas novas tecnologias. Jamais se terá aproximado de um forno micro-ondas, é certo e sabido.
Acabei por comprar dois discos: The River, de Bruce Springsteen, e uma coleção de duetos de Roberta Flack e Donny Hathaway. Pertenciam à minha galeria de favoritos de todos os tempos. A certa altura da vida, desistira de procurar música nova; ouvia as cenas antigas vezes sem conta. Com os livros a mesma coisa. Reli livros do meu passado, muitas vezes mais de uma vez, mas ignorei livros que acabavam de sair. Algures pelo caminho, o tempo parecia ter parado de repente.
Se calhar, o tempo tinha realmente parado. Por outro lado, talvez continuasse a avançar, apesar de a evolução, ou coisa que o valha, ter posto o pé no travão. Como um restaurante que, ao aproximar-se a hora de encerramento, deixara de receber pedidos. E eu era o único que não tinha percebido.
O vendedor enfiou os dois discos num saco e fez a conta. Ato contínuo, fui a uma loja de bebidas nas proximidades para comprar uísque. Não sabia o que comprar, mas acabei por me decidir pelo Chivas Regal. Era um pouco mais caro, mas faria um grande sucesso com Masahiko quando ele me visitasse da próxima vez.
A hora de início da aula estava ao virar da esquina. Guardei os discos, os filtros de café e o uísque no carro e entrei no edifício da escola. As crianças eram as primeiras, às cinco da tarde. Marie fazia parte desse grupo, mas não consegui localizá-la. Coisa inaudita. Ela adorava a aula e nunca tinha faltado, tanto quanto eu sabia. A sua ausência perturbou-me. Achei esse acaso alarmante, até ameaçador. Estaria tudo bem com ela? Teria adoecido ou acontecera-lhe um imprevisto?
No entanto, continuei como se nada fosse, distribuindo pelos alunos exercícios simples, fazendo comentários sobre os seus desenhos, dando conselhos. Quando a aula terminou, os miúdos foram para casa e começou a aula dos adultos. Também decorreu sem incidentes. Troquei algumas larachas com as pessoas presentes (não é o meu forte, mas posso fazê-lo quando necessário). Depois disso, tive uma breve reunião com o coordenador dos workshops sobre o programa futuro. Ele não sabia por que motivo Marie estava ausente. Não tivera notícias da família dela.
A seguir ao trabalho, fui a um restaurante de massas ali perto e comi uma tigela quente de tempura soba; também fazia parte da rotina semanal. Sempre o mesmo estabelecimento, e sempre tempura soba. Um dos pequenos prazeres da vida. Voltei então para a minha casa na montanha. Já eram quase nove quando cheguei.
Não sabia se alguém tentara entrar em contacto comigo enquanto estive fora, pois não havia atendedor de chamadas (um aparelho tão «inteligente» devia figurar entre as bêtes noires de Tomohiko Amada). Olhei durante bastante tempo para o telefone simples e antiquado, mas este não comunicou comigo. Limitou-se a ficar ali num silêncio negro.
Tomei um longo banho quente de imersão. Verti o que sobrara da primeira garrafa de Chivas Regal num copo, acrescentei dois cubos de gelo e levei a bebida para a sala de estar, onde a bebi enquanto ouvia um dos discos que comprara. De início, pareceu errado estar a ouvir outra coisa que não música clássica no meu domicílio no cimo da montanha. O ar da sala estivera condicionado àquele tipo de música durante muito tempo. Ainda assim, eu estava a ouvir a minha música, e, canção a canção, comecei a sentir-me agradavelmente descontraído. Enquanto ouvia, senti o meu corpo começar a descontrair-se. Devia ter ficado tenso sem dar por isso.
O lado A do disco de Roberta Flack e Donny Hathaway terminara e a primeira música do lado B («For All We Know», uma interpretação muito boa) estava nos acordes iniciais quando o telefone tocou. O relógio marcava 22:30. Quem me ligava tão tarde? Não me apetecia atender. No entanto, o toque soava urgente. Pousei o copo, levantei-me do sofá, tirei a agulha do disco e levantei o auscultador.
– Estou?
Era Shoko Akikawa. Cumprimentei-a.
– Desculpe estar a ligar tão tarde – disse ela. Nunca a tinha ouvido tão ansiosa. – Precisava de lhe perguntar uma coisa. A Marie não foi hoje à sua aula, pois não?
Não, respondi, não tinha ido. A pergunta era estranha. Normalmente, Marie ia direta para lá da escola (a secundária da zona) no seu uniforme. Quando a aula terminava, a tia ia buscá-la de carro e seguiam para casa juntas. Esse padrão nunca variava.
– Não sei da Marie – disse Shoko.
– Não?
– Ela desapareceu.
– Desde que horas? – perguntei.
– Desde esta manhã, quando foi para a escola. Ofereci-me para levá-la à estação, mas ela disse que ia a pé. Gosta de caminhar. Muito mais do que de andar de carro. Costumo dar-lhe boleia quando está atrasada, mas, regra geral, ela desce até à paragem de autocarro e daí segue para a estação. Hoje de manhã, como sempre, saiu de casa às sete.
Shoko disse tudo aquilo de um único fôlego, depois parou. Ouvi-a tentar controlar a respiração. Aproveitei a pausa para organizar por ordem o que ela tinha acabado de me dizer.
– Hoje é sexta-feira – continuou Shoko. – Às sextas-feiras, depois da escola, ela vai diretamente para a sua aula, e eu vou buscá-la no fim. Hoje, porém, disse-me que viria de autocarro, e eu não fui buscá-la. Quando ela diz uma coisa dessas, não vale a pena discutir. Costuma estar de regresso pelas sete ou sete e meia, e a seguir janta. Mas, esta noite, bateram as oito, e depois as oito e meia, e nada. Liguei então para o centro e perguntei se ela tido ido à aula. Verificaram e disseram que não tinha aparecido. Foi quando comecei a ficar preocupada. São agora dez e meia e ela ainda não voltou. Não tive notícias, por isso estou a ligar-lhe. Achei que talvez soubesse alguma coisa.
– Não tenho a menor ideia de onde ela está – respondi. – Fiquei bastante surpreendido quando entrei na sala de aula e reparei que a Marie não se encontrava lá. Era a primeira vez que ela faltava.
Shoko deixou escapar um profundo suspiro.
– O meu irmão ainda não voltou. Não sei a que horas chega, não me contactou. Talvez nem durma hoje em casa. Estou aqui sozinha e não sei o que fazer.
– Ela estava vestida com o uniforme da escola quando saiu esta manhã, certo?
– Sim, ela saiu de uniforme, com a mala ao ombro. O costume. Um blazer e a saia. Não sei é se chegou a tomar o caminho da escola. Já é tarde e não tenho como confirmar. Mas penso que compareceu na escola. Eles contactam-nos se os alunos faltarem sem uma justificação. A Marie tinha com ela dinheiro suficiente para as despesas do dia, não mais. Obrigo-a a levar um telemóvel para uma eventualidade, mas esteve desligado o dia todo. Ela não gosta do aparelho. Usa-o para me ligar, mas geralmente está desligado. Avisei-a várias vezes para não fazer isso, implorei-lhe que não o desligasse, expliquei que podíamos precisar de a contactar se surgisse alguma coisa importante, mas ela não...
– Isto já aconteceu antes? Ela chegar tarde a casa?
– É a primeira vez, por acaso. A Marie é muito certinha. Não tem um grupo de amigos com quem sair, e quando combina alguma coisa, em geral cumpre, embora não goste muito da escola. Ganhou um prémio de assiduidade na primária. Vem sempre direta para casa depois das aulas, nunca se demora pelo caminho.
A tia de Marie desconhecia obviamente as suas incursões noturnas.
– Ela disse ou fez alguma coisa fora do comum esta manhã?
– Não, nada. Foi uma manhã normal. O mesmo de sempre. Bebeu um copo de leite morno, comeu uma torrada e saiu porta fora. Todos os dias é a mesma coisa. Hoje fiz-lhe o pequeno-almoço, como de costume. Ela não falou muito, e isso é normal. Pode falar pelos cotovelos quanto está lançada, mas, a maior parte do tempo, não lhe conseguimos sacar muita coisa.
Começava a ficar preocupado. Eram quase onze da noite e estava escuro como breu. A Lua escondera-se atrás das nuvens. Que raio acontecera a Marie Akikawa?
– Vou esperar mais uma hora. Se a Marie não me tiver contactado até lá, ligo para a polícia – declarou Shoko.
– Boa ideia – respondi. – E diga-me se eu puder fazer alguma coisa. Ligue a qualquer hora, por favor, não hesite, por muito tarde que seja.
Shoko agradeceu-me e desligou. Bebi o resto do uísque e lavei o copo.
Encaminhei-me então para o estúdio. Acendi todas as luzes e fiquei ali na divisão iluminada, a observar Um Retrato de Marie Akikawa inacabado no cavalete. Estava quase concluído – faltavam uns retoques. Representava a versão idealizada de uma rapariga calada de treze anos. No entanto, havia também outros elementos, facetas dela que não podiam ser vistas, que a tornavam quem era. O que eu tentava nos meus quadros – embora não nos retratos que me encomendavam, claro – era captar o que estava fora do meu campo de visão e transmitir a sua mensagem de forma diferente. Marie era, nesse sentido, um modelo fascinante. Havia tanta coisa oculta, como um trompe l’œil. E desaparecera desde aquela manhã, como que engolida pelo trompe l’œil.
Virei-me para examinar novamente O Poço na Floresta encostado à parede. Concluíra-o nessa tarde. Também podia sentir que aquela pintura me chamava, embora de outra maneira, e de uma direção diferente de Um Retrato de Marie Akikawa.
Alguma coisa estava para acontecer. Senti-o de novo ao olhar para a paisagem. Até àquela tarde fora uma espécie de premonição, mas começava a intrometer-se na realidade. O movimento iria concretizar-se em breve. O desaparecimento de Marie e o poço na floresta encontravam-se de alguma forma ligados, sentia-o. Ao terminar o quadro, eu fizera avançar a roda na engrenagem. E o desaparecimento de Marie era o resultado provável.
Ainda assim, não podia dizer nada daquilo a Shoko; só iria confundi-la.
Voltei para a cozinha e tirei o gosto de uísque da boca bebendo vários copos de água. Em seguida, peguei no telefone e liguei a Menshiki. Liguei três vezes antes que ele atendesse. Detetei-lhe uma certa tensão na voz, como se estivesse à espera de um telefonema importante. O facto de ser eu do outro lado da linha pareceu surpreendê-lo. Bastou apenas um segundo, no entanto, para a tensão desaparecer e a voz se tornar calma e serena, como sempre.
– Desculpe ligar tão tarde – comecei.
– Ora essa. Nunca me deito cedo e tenho tempo de sobra. É sempre um prazer ouvir a sua voz.
Pondo logo de parte os salamaleques, resumi-lhe em poucas palavras o desaparecimento de Marie. A rapariga tinha saído de casa para ir à escola de manhã, mas não voltara. Nem aparecera na aula de pintura. A notícia pareceu deixar Menshiki atordoado. Levou um momento a responder.
– E não faz ideia de onde ela possa ter ido, certo? – perguntou.
– Nenhuma – respondi. – Isto é completamente inesperado. E o senhor?
– Também não faço ideia, óbvio. Ela mal me dirige a palavra.
Não havia fúria ou arrependimento na sua voz. Estava simplesmente a relatar o modo como ela o tratava.
– Ela é mesmo assim. Faz isso a toda a gente – expliquei. – Mas a Shoko está uma pilha de nervos. O pai da Marie ainda não chegou a casa. A tia, vendo-se sozinha, não sabe o que fazer.
Menshiki hesitou de novo. Era raro ficar sem palavras; na verdade, nunca tinha testemunhado antes tal fenómeno.
– Há alguma coisa que eu possa fazer? – perguntou por fim.
– Bem sei que é inesperado, mas há alguma possibilidade de vir cá agora? – perguntei.
– A sua casa?
– Sim. Preciso de falar consigo sobre uma coisa relacionada com esta situação.
Menshiki levou um momento a responder.
– Tudo bem – disse. – Vou sair já.
– Tem a certeza de que não precisa de resolver um assunto aí primeiro?
– Não é importante o suficiente para lhe chamar «assunto». Direi que se trata apenas de uma coisa trivial – respondeu. Aclarou a garganta. Estaria certamente a olhar para o relógio. – Devo chegar aí dentro de quinze minutos.
Quando o telefonema terminou, preparei-me para sair. Pousei na cama uma camisola de mangas compridas e o meu blusão de cabedal e pus a lanterna grande à mão de semear. Sentado no sofá, esperei pelo ronronar do Jaguar de Menshiki a subir a encosta.
46
AS PESSOAS SENTEM-SE IMPOTENTES
PERANTE UM MURO ALTO E ROBUSTO
Menshiki chegou às onze e vinte. Assim que ouvi o Jaguar, vesti o blusão de cabedal e fui ao seu encontro. Ele saiu do carro com um corta-vento azul-escuro acolchoado, calças de ganga pretas justas e sapatos desportivos de pele. Tinha um lenço leve em volta do pescoço. A sua cabeleira branca brilhava no escuro.
– Se não se importa, gostaria que viesse comigo verificar o poço na floresta – disse-lhe.
– Com certeza – respondeu Menshiki. – Acha que está relacionado com o desaparecimento da Marie?
– Não posso assegurar, mas tive a premonição de que ia acontecer alguma coisa desagradável com aquele poço.
Menshiki não fez mais perguntas.
– Certo – disse ele. – Vamos dar uma olhadela.
Abriu o porta-bagagens do Jaguar, tirou o que parecia ser uma lanterna, fechou-o e partiu comigo floresta dentro. Não se vislumbrava o luar nem estrelas, estava escuro como breu. Nem uma aragem soprava.
– Desculpe ter-lhe pedido para se aventurar fora de casa tão tarde, mas sentir-me-ia mais seguro se tivesse a sua companhia. Correndo mal, por qualquer razão, quem sabe se conseguiria lidar com a situação sozinho?!
Ele deu-me uma palmadinha no braço, como que a encorajar-me.
– Não é maçada nenhuma, tenho muito gosto em fazer o que puder.
Avançámos por entre as árvores, fazendo incidir o feixe de luz diante dos nossos pés para evitarmos tropeçar nas raízes. O único som era o restolhar das folhas secas; não se ouvia mais nada. Pressenti que os animais da floresta nos observavam em silêncio dos seus esconderijos. As profundezas sombrias da meia-noite dão origem a ilusões como essa. Se alguém nos visse, podia confundir-nos com dois ladrões de túmulos dirigindo-se a um trabalhinho.
– Queria perguntar uma coisa – disse Menshiki.
– Sim?
– Porque é que diz que o desaparecimento da Marie e o poço estarão relacionados?
Expliquei-lhe que tínhamos visitado o poço pouco tempo antes, que ela já sabia da sua existência, que aquela zona era como o seu pátio de recreio. Que nada acontecia ali sem o seu conhecimento. Então contei-lhe o que ela me dissera: «Acho mal terem andado a remexer naquele sítio. Não lhe deviam ter tocado.»
– Quando ela se colocou diante do poço, pareceu sentir alguma coisa – continuei. – Um sentimento especial... diria até espiritual.
– E foi atraída por isso?
– Sim. Estava desconfiada, mas ao mesmo tempo algo no poço a atraía. Por isso é que receio que as coisas estejam relacionadas, que ela se encontre lá em baixo, incapaz de sair.
Menshiki pensou um pouco.
– Contou isso à tia dela? – perguntou. – A Shoko sabe?
– Não, ainda não lhe disse nada. Se lhe falasse no poço, teria de começar pelo início: que nós o abrimos e por que motivo o senhor esteve envolvido. Seria uma história muito comprida e duvido que a pudesse explicar de maneira que ela percebesse.
– Sim, isso só iria apoquentá-la ainda mais, desnecessariamente.
– Seria ainda mais estranho se metêssemos a polícia ao barulho. Isto é, se o poço suscitasse interesse.
Menshiki olhou para mim.
– Já estão a investigar?
– Quando falámos ao telefone, ela ainda não os tinha contactado, mas entretanto deve tê-la dado como desaparecida. Quer dizer, já são altas horas da noite.
Menshiki assentiu com a cabeça várias vezes.
– Sim, é natural. É quase meia-noite e uma menina de treze anos não voltou para casa. Ninguém sabe dela. Que mais resta à família fazer senão chamar a polícia?
Percebi pelo seu tom que Menshiki não estava muito entusiasmado com o envolvimento da polícia.
– Vamos guardar a existência do poço para nós, se possível – disse ele. – Quanto menos pessoas souberem, melhor. Caso contrário, teremos problemas.
Concordei.
Para mim, o Comendador constituía o maior problema. Era quase impossível explicar o significado do poço sem trazê-lo à baila, e sendo ele uma Ideia... Sim, como Menshiki dissera, mencionar o poço só ia piorar as coisas. (E mesmo que eu revelasse a existência do Comendador, quem acreditaria em mim? Iriam apenas pôr a minha sanidade em causa.)
Saímos de entre o arvoredo em frente ao pequeno santuário e fomos até à parte de trás. Atravessando o tufo de erva-das-pampas, cujas plumas continuavam cruelmente achatadas pelas lagartas da retroescavadora, chegámos ao poço. A primeira coisa que fizemos foi virar os feixes das nossas lanternas para as tábuas que cobriam o buraco e para as pedras que as fixavam no lugar. Verifiquei a disposição delas. A mudança era subtil, mas percebi que tinham sido mexidas. Alguém fora ali depois de mim e de Marie, afastara as pedras e várias tábuas e, antes de se ir embora, tentara compor tudo segundo a posição original. Os meus olhos conseguiram detetar essa pequena diferença.
– Mexeram nas pedras – comentei. – Há sinais de que o poço foi exposto.
Menshiki olhou para mim.
– Acha que foi a Marie?
– Quem sabe? Ninguém daria com isto por acaso e, além de nós, só ela sabe da sua existência. Por isso, é provável que tenha sido a Marie.
O Comendador também sabia do poço, óbvio. Afinal, fora de lá que viera. No entanto, ele era apenas uma Ideia. Não assumia uma forma sólida. Não precisaria de deslocar as pedras pesadas se quisesse voltar a entrar.
Afastámos as pedras e levantámos as tábuas, revelando o poço. Era perfeitamente redondo e não tinha mais de um metro e oitenta de diâmetro, mas parecia maior naquele momento, e mais negro também. Calculei que era esse negrume que criava a ilusão.
Menshiki e eu inclinámo-nos sobre o buraco e apontámos as lanternas lá para dentro. Não estava ali ninguém. Nada. Apenas aquele espaço cilíndrico vazio rodeado pela mesma parede de pedra. Havia uma diferença, no entanto. A escada desaparecera, a escada de metal extensível que o paisagista nos deixara depois de deslocar a pilha de pedras. Vira-a pela última vez encostada à parede do poço.
– Para onde foi a escada? – perguntei em voz alta.
Não demorámos muito a encontrá-la no chão, a certa distância, numa área coberta de ervas-das-pampas que a retroescavadora não tinha achatado. Alguém a tirara do buraco e largara-a ali. Não sendo pesada por aí além, bastara aplicar o mínimo de força para a retirar. Voltámos a pô-la dentro do poço, encostada à parede.
– Vou lá abaixo dar uma olhadela – disse Menshiki. – Talvez encontre alguma coisa.
– De certeza que não lhe acontece nada?
– Não se preocupe, já lá estive antes.
Menshiki desceu facilmente pela escada, de lanterna na mão.
– A propósito, sabe qual é a altura do Muro de Berlim? – perguntou enquanto descia.
– Não.
– Três metros – respondeu, olhando para mim. – Variava consoante a localização, mas, por norma, tinha essa altura. Pouco mais alto que este buraco. Também media em extensão cerca de duzentos e cinquenta e sete quilómetros. Vi-o com os meus olhos, quando Berlim ainda estava dividida em Oriental e Ocidental. Um cenário deplorável.
Quando Menshiki chegou ao fundo, inspecionou o local à luz da lanterna. Mesmo assim, continuou a falar comigo.
– Os muros foram originalmente erguidos para proteger as pessoas. De inimigos externos, tempestades e inundações. Às vezes, porém, eram usados para manter as pessoas no seu interior. As pessoas sentem-se impotentes perante um muro alto e robusto. Visual e psicologicamente. Alguns muros foram construídos com esse propósito específico.
Menshiki calou-se. Examinou cada centímetro da parede e do chão de forma atenta e cuidadosa, como um arqueólogo diante da câmara interior de uma pirâmide egípcia. A sua lanterna era mais potente do que a minha, iluminando uma área mais ampla. Pareceu ter encontrado algo no chão do poço, pois ajoelhou-se e examinou o objeto demoradamente. Cá de cima, não consegui perceber o que era. Menshiki não disse nada. Fosse o que fosse, devia ser muito pequeno. Pôs-se de pé, embrulhou o objeto no lenço que levava ao pescoço e enfiou-o no bolso do casaco. Olhou para mim.
– Vou subir – disse, erguendo a lanterna no ar.
– Encontrou alguma coisa? – perguntei.
Não respondeu. Com cuidado, subiu a escada. Os degraus rangiam sob o seu peso. Mantive-me atento, apontando-lhe a lanterna a cada passo. Do meu posto de observação deu para perceber como a rotina diária lhe permitira ter um corpo bem treinado. Nenhum movimento era desperdiçado. Os músculos, um por um, desempenhavam na perfeição o seu papel. Quando voltou para junto de mim, espreguiçou-se e limpou a terra das calças com cuidado; não que houvesse muito para limpar.
– Lá em baixo percebemos como a altura daquela parede é intimidante. Sentimo-nos mesmo impotentes. Vi uma coisa semelhante na Palestina há algum tempo; Israel ergueu lá um muro de betão com sete metros e meio de altura, cabos de alta voltagem em cima, a todo o comprimento. Aquele muro tem quase quinhentos quilómetros de extensão. Acho que os israelitas pensaram que três metros era pouco, mas é o suficiente para ser eficaz.
Pousou a lanterna. O chão em volta dos nossos pés ficou iluminado.
– Agora que penso nisso, as paredes das celas solitárias na prisão de Tóquio também medem cerca de três metros – continuou Menshiki. – Não sei porque as fizeram tão altas. Era a única coisa para onde podíamos olhar, aquelas paredes vazias, dia após dia. Não havia mais nada onde descansar a vista. Nenhuma fotografia nem nada do género, como é óbvio. Apenas aquelas malditas paredes. Temos a sensação de que nos atiram para um poço.
Ouvi em silêncio.
– Cumpri pena naquele sítio há algum tempo. Não lhe falei disso, pois não?
– Não, não falou. – A minha namorada dissera-me que ele passara uma temporada na prisão, mas, como é evidente, não me descosi.
– Vou contar-lhe, então. Os mexeriqueiros adoram distorcer os factos para apimentar as historietas deles. O melhor é ouvi-lo da minha boca. Não é bonita, mas parece-me a ocasião perfeita para a revelar. Importa-se?
– Ora essa, faça favor.
– Não estou a desculpar-me – disse ele após uma breve pausa –, mas nada fiz para me sentir culpado. Experimentei muitas coisas ao longo da vida, corri muitos riscos. Agora, tomarem-me por idiota, isso não. Sou cauteloso por natureza e sempre tive o cuidado de evitar práticas ilegais. Sei que não devo passar a linha. Dessa vez, porém, meti-me em sociedade com um homem bastante descuidado. Por causa dele sofri bastante. Essa experiência ensinou-me a nunca mais unir forças com quem quer que seja, a responsabilizar-me por mim e mais ninguém.
– De que é que foi acusado?
– Abuso de informação privilegiada e evasão fiscal. Aquilo a que chamam «crimes de colarinho branco». Fui acusado e julgado, mas acabaram por não me considerar culpado. Mesmo assim, a investigação foi cansativa e passei bastante tempo na prisão. Inventavam razões para me manter preso. Estive lá tanto tempo que, desde então, ver-me cercado por paredes deixa-me um pouco nostálgico. Como lhe disse, não fiz nada que justificasse a punição que sofri. As minhas mãos estavam limpas, mas os procuradores tinham montado um cenário e, de acordo com o guião, eu era culpado. Não lhes apetecia voltar atrás e reescrevê-lo. É assim que funcionam os meandros da burocracia. Torna-se praticamente impossível alterar algo depois de decidido. Ir contra a corrente significa que alguém, algures, tem de assumir a responsabilidade. Resultado: passei uma porrada de tempo na solitária.
– Quanto?
– Quatrocentos e trinta e cinco dias – respondeu Menshiki, como se fosse coisa pouca. – Um número que nunca hei de esquecer, por muitos anos que viva.
Não era difícil imaginar o que significava passar uma tão larga temporada na solitária.
– Alguma vez esteve um longo período assim confinado? – perguntou Menshiki.
– Não – respondi. A minha experiência de ficar trancado na parte de trás daquela carrinha em movimento convocara em mim uma grave claustrofobia. Agora não conseguia sequer andar de elevador. Acho que me iria abaixo se me visse enclausurado como ele.
– Aprendi a suportar isso – continuou Menshiki. – Treinei-me todos os dias. No processo, aprendi várias línguas estrangeiras. Espanhol, turco e chinês. Limitavam o número de livros que podíamos ter na solitária, mas essas restrições não se aplicavam aos dicionários. Nesse sentido, é o lugar ideal para estudar idiomas. Fui abençoado com bons poderes de concentração, e quando estava concentrado no estudo das línguas, conseguia abstrair-me das paredes. Há um lado bom em tudo.
Até a nuvem mais escura e espessa tem um brilho prateado quando vista de cima.
– O que me aterrorizava era a possibilidade de haver um terramoto ou um incêndio. Cercado daquela maneira, nunca poderia ter fugido. Imaginar-me esmagado ou calcinado naquele pequeno espaço assustava-me tanto que às vezes não conseguia respirar. Foi o único medo que não pude superar. Havia noites em que acordava a pensar nisso.
– Mas ultrapassou-o.
– Pois claro. Havia eu de deixar que aqueles estupores me vencessem ou permitir que o sistema deles me fizesse vergar?! Se tivesse assinado os papéis que me puseram à frente, davam-me livre-trânsito da prisão e eu regressava ao mundo exterior. Mas assiná-los significaria a minha derrota. Teria admitido crimes que não cometera. Decidi então encarar a experiência como uma provação vinda do alto, uma oportunidade para testar a minha determinação.
– Pensou no tempo que passou na prisão quando esteve uma hora sozinho no poço?
– Sim. Preciso de voltar a essa experiência de vez em quando. É o meu ponto de partida, por assim dizer. Onde a pessoa que sou hoje se formou. Quando a vida é confortável, amansamos em menos que nada.
Que sujeito peculiar, disse de volta com os meus botões. Como reagiria outra pessoa a um tratamento tão duro? Não tentaria esquecê-lo o mais rápido possível?
Fazendo-se luz na cabeça dele, Menshiki enfiou a mão no bolso do casaco e sacou qualquer coisa embrulhada num lenço.
– Encontrei isto no fundo do poço – disse ele.
Abriu o lenço, tirou um pequeno objeto de plástico e entregou-mo.
Examinei-o à luz da lanterna. Era um pinguim preto e branco, com cerca de um centímetro de comprimento e uma minúscula faixa preta agarrada, uma daquelas bugigangas que as raparigas da escola gostam de prender nos telemóveis ou nas mochilas. Imaculadamente limpo, parecia novo.
– Não estava lá da primeira vez que entrei no poço – declarou Menshiki. – Tenho a certeza.
– Nesse caso, alguém deve tê-lo deixado ali em baixo depois disso.
– Sim. Parece o enfeite de um telemóvel. E a correia não está partida. Tiveram de a soltar. O que sugere que foi largado.Talvez, que quem o deixou fez isso propositadamente. Será?
– Quer dizer que entraram no poço para pôr lá isso?
– Ou caiu aqui de cima.
– Porque faria alguém uma coisa dessas? – perguntei.
Menshiki abanou a cabeça, como se também não conseguisse perceber.
– É possível que o tenham posto ali para servir de amuleto ou talismã. Mas não passa de um palpite meu.
– Refere-se à Marie?
– Provavelmente. No fim de contas, quem mais esteve perto do poço?
– Ela deixou-o ali como uma espécie de amuleto, é isso?
Menshiki tornou a abanar a cabeça.
– Não sei. É difícil compreender uma rapariga de treze anos de idade. Elas têm ideias mirabolantes, não é?
Olhei novamente para o pequeno pinguim na minha mão. Agora já me parecia uma espécie de amuleto; tinha uma aura de inocência.
– E quem é que puxou a escada e a arrastou para além? Por que carga de água alguém o faria? – perguntei.
Menshiki também não fazia ideia.
– De qualquer forma, vamos ligar à Shoko quando voltarmos e perguntar-lhe se a Marie usa um amuleto em forma de pinguim no telemóvel – sugeri. – Ela há de saber.
– Guarde o pinguim por enquanto – disse Menshiki.
Assenti e enfiei-o no bolso das calças.
Colocámos as tábuas no sítio, deixando a escada encostada à parede do poço. Quando pusemos as pedras por cima, decorei as suas posições exatas. Dirigimo-nos para casa através da floresta pelo mesmo caminho por que tínhamos vindo. Olhei para o relógio: já passava da meia-noite. Não dissemos palavra, apenas apontámos as lanternas para os nossos pés. Estávamos perdidos em pensamentos.
Chegados à propriedade, Menshiki foi ao Jaguar, abriu o grande porta-bagagens e guardou a lanterna lá dentro. Depois fechou-o e, como se finalmente se permitisse descontrair, encostou-se ao carro e voltou os olhos para o céu. O céu negro em que nada era visível.
– Importa-se que eu entre por alguns minutos? – perguntou. – Vou ter dificuldade de relaxar em casa.
– Faça favor! Também não creio que consiga adormecer já.
Os olhos de Menshiki ainda estavam fixos no céu; os pensamentos deviam correr em tropel pela sua mente.
– Não sei porquê, mas não consigo libertar-me do pressentimento de que alguma coisa má está a acontecer à Marie – confessei. – E que ela se encontra por perto.
– Mas não no poço.
– Acho que não.
– Que tipo de coisa má? – perguntou Menshiki.
– Isso não sei, mas sinto que ela corre algum tipo de perigo físico.
– E que o perigo está à espreita algures perto daqui, certo?
– Certo – respondi. – Perto daqui. E incomoda-me que a escada tenha sido retirada do fundo do buraco. Quem a tirou e porque a escondeu na erva? O que significa tudo isso?
Menshiki levantou-se e deu-me outra palmadinha no ombro.
– Tem razão, eu também não sei. Mas preocuparmo-nos com isso não nos leva a lado nenhum. Vamos para dentro.
47
HOJE É SEXTA-FEIRA, NÃO É?
Assim que entrámos em casa, despi o blusão de cabedal e telefonei a Shoko Akikawa. Ela atendeu ao terceiro toque.
– Há novidades? – perguntei.
– A Marie ainda não ligou. – Era percetível o esforço que fazia para respirar normalmente.
– Já contactou a polícia?
– Não. É cedo para isso, talvez. Tenho esperança de que ela entre pela porta a qualquer momento...
Descrevi o pinguim de plástico que tínhamos encontrado no fundo do poço. Sem entrar em pormenores, perguntei-lhe se Marie possuía um objeto daqueles.
– Sim, a Marie tem um pinguim pendurado no telemóvel. É um pinguim, tenho a certeza... sim. Um pinguim. Sem dúvida. Um boneco de plástico. Deram-lho numa loja de donuts, um pequeno brinde que veio junto com o pedido, mas ela adora-o. Funciona como uma espécie de amuleto protetor.
– E a Marie anda sempre com o telemóvel, correto?
– Sim. A maior parte do tempo, está desligado, mas leva-o sempre com ela. Não atende as chamadas, embora ligue de vez em quando a avisar-me quando surge alguma coisa. – Shoko parou por um momento. – Encontrou-o?
Tentei pensar numa resposta. Se dissesse a verdade, teria de lhe falar do poço na floresta. Se a polícia entrasse na história, também teria de lhes explicar de uma maneira que conseguissem engolir. Uma vez que ela andava sempre com o pinguim, os agentes passariam o poço a pente fino, talvez até a floresta, em busca de provas. Eu seria interrogado e o passado de Menshiki viria à baila. Não via de que forma isso iria ajudar. Como Menshiki dissera, apenas complicaria as coisas.
– Encontrei-o no estúdio – respondi. Detestava mentir, mas não tinha outro remédio. – Quando estava a varrer o chão. Pensei que podia ser da Marie.
– Sim, é dela. Tenho a certeza – disse a tia. – Mas, e agora, o que devo fazer? Chamar a polícia?
– Já teve notícias do seu irmão... quer dizer, do pai da Marie?
– Não, ainda não consegui falar com ele – respondeu, hesitante. – Não faço ideia de onde ele está. Não segue um horário rígido, nunca sei se vem para casa ou não.
O caso estava malparado, mas não podia perder tempo a preocupar-me com isso. Limitei-me a dizer-lhe de que o melhor seria informar a polícia do desaparecimento de Marie. Já passava da meia-noite e a data mudara. Era possível que Marie tivesse sofrido um acidente. Ela disse que ligaria de imediato.
– A Marie continua sem atender o telemóvel?
– Sim. Já lhe liguei várias vezes. Deve estar desligado. Ou ficou sem bateria. Das duas, uma.
– Ela saiu esta manhã para ir à escola e está desaparecida desde então. Certo?
– Sim.
– O que significa que está vestida com o uniforme da escola. Confirma?
– Sim. Um blazer e um colete azul-escuros, camisa branca, uma saia xadrez pelo joelho, meias brancas e mocassins pretos. Ah, e uma sacola de plástico com o nome e o emblema da escola. Não levou sobretudo.
– Ela não tem uma pasta só para o material de desenho?
– Guarda-a no cacifo da escola. Só lhe pega para a disciplina de artes visuais e quando tem aulas consigo às sextas-feiras. Não a traz para casa.
Marie aparecia sempre assim vestida na minha aula: casaco azul, camisa branca, saia xadrez, uma sacola de plástico de trazer ao ombro e um saco de lona branca com tintas e pincéis. Estou a vê-la perfeitamente.
– Ela levava mais alguma coisa?
– Não, hoje não. Por isso duvido que ela planeasse ir muito longe.
– Por favor, ligue-me se houver novidades – pedi. – A qualquer hora do dia ou da noite.
Ela aquiesceu.
Desliguei o telefone.
Menshiki estava junto a mim a ouvir a conversa. Só depois de eu largar o telefone é que ele despiu o casaco. Por baixo tinha uma camisola preta com decote em V.
– O pinguim sempre era da Marie – comentou.
– Pelos vistos.
– Nesse caso, é quase certo que ela tenha entrado no poço em determinada altura... não sabemos quando... e plantado lá o adorado pinguim. É o que temos até agora.
– A sua ideia é que o pôs lá de propósito, como talismã de proteção.
– Provavelmente.
– Para proteger quem ou o quê?
Menshiki abanou a cabeça.
– Não sei, mas trata-se claramente de um amuleto da sorte. Deve tê-lo deixado para trás por um motivo. As pessoas não se separam de coisas que estimam assim do pé para a mão.
– A menos que queiram proteger algo que estimam mais do que elas próprias.
– Por exemplo? – perguntou Menshiki.
Nenhum de nós apresentou um exemplo válido.
Ficámos sentados em silêncio. Devagar, mas num compasso inexorável, os ponteiros do relógio avançaram. O mundo era empurrado para a frente a cada tiquetaque. Do lado de fora da janela havia apenas escuridão. Nada bulia ali; seria porventura impossível.
De repente, lembrei-me do que o Comendador dissera sobre o sino desaparecido.
«O sino nunca foi só meu. Pertencia ao local, para ser partilhado por todos. Se desapareceu, deve ter havido uma razão.»
Pertencia ao local?
– Talvez a Marie não tenha deixado o pinguim no poço. E se o poço estiver ligado a outro sítio? Talvez não seja um espaço estanque, mas uma espécie de canal. Nesse caso, seria capaz de invocar uma data de coisas.
Era justamente o que eu estava a pensar, mas dizê-lo em voz alta parecia ridículo. O Comendador seria capaz de entender, mas não um ser deste mundo.
Um profundo silêncio instalou-se na sala.
– A que poderia estar ligado o fundo do poço? – perguntou finalmente Menshiki, como se falasse sozinho. – Lembre-se, não há muito tempo passei uma hora sozinho lá em baixo. No escuro, sem uma lanterna nem uma escada. Tentei aproveitar o silêncio para me concentrar, extinguir a minha existência física e tornar-me consciência pura. Imaginei que, se pudesse fazer isso, conseguiria transcender as paredes de pedra e ir até onde quisesse. Costumava tentar algo do género quando estava na solitária. Mas não encontrei uma saída no poço. No final, aquelas paredes não me permitiram escapar.
Talvez o poço tivesse voto na matéria, pensei. O Comendador viera ter comigo ao sair do poço, escolhera-me para o albergar, por assim dizer. Marie também podia ter sido escolhida. Mas, por algum motivo, o buraco não escolhera Menshiki.
– De qualquer forma, estamos de acordo: não dizemos uma palavra à polícia sobre o poço – confirmei. – Nesta fase, pelo menos. Ainda assim, estamos a ocultar provas se não dissermos que encontrámos lá o pinguim. Se o descobrirem, ficamos em maus lençóis.
Menshiki pensou por um momento.
– Mantemos o bico calado. «Nada temos a acrescentar!» – sentenciou. – Encontrou-o no chão do seu estúdio. Vamos manter essa versão.
– Talvez um de nós deva ir para junto da Shoko – sugeri. – Ela está sozinha em casa sem saber o que fazer. Perdida e confusa. Desconhece o paradeiro do pai da Marie. Não lhe parece que precisa de alguém junto dela?
Menshiki franziu a testa.
– Não me compete fazer isso – respondeu ele por fim, abanando a cabeça. – Não conheço o irmão. Se ele voltasse para casa...
Calou-se.
Também não me ocorria nada.
Ficou ali sentado, a tamborilar ao de leve com os dedos no braço do sofá; os seus pensamentos, quaisquer que eles fossem, provocaram-lhe um ligeiro rubor no rosto.
– Importa-se que eu fique mais tempo? – perguntou, passados uns minutos. – A Shoko pode tentar entrar em contacto connosco.
– Ora essa, sinta-se em casa – respondi. – Acho que não me vou deitar tão cedo. Fique o tempo que quiser. Também pode cá dormir. Vou trazer-lhe roupa de cama.
Menshiki respondeu que talvez aceitasse a minha oferta.
– Quer um café? – perguntei.
– Boa ideia.
Fui até à cozinha, moí os grãos e liguei a cafeteira. Já pronto, levei-o para a sala de estar, e ali o bebemos.
– Acho que vou acender a lareira – anunciei.
A sala arrefecera significativamente depois da meia-noite. Já estávamos em dezembro; era a altura apropriada para fazer o primeiro lume.
Enchi a grade de ferro fundido na lareira com a pequena pilha de lenha que guardara no canto da sala de estar; inseri papel sob a grade e acendi um fósforo. A madeira estava seca, pois ateou imediatamente. Receei que o fumo pudesse não subir – Masahiko dissera que a lareira funcionava, mas só depois de experimentar é que sabíamos. Um pássaro podia ter feito ninho na chaminé. Felizmente, estava operacional. Pusemos as nossas cadeiras em frente à lareira e ficámos a apreciar o calor.
– Nada melhor que o fogo de lenha – disse Menshiki.
Lembrei-me de lhe propor um uísque, mas mudei de ideias. Impunha-se que nos mantivéssemos sóbrios. Na eventualidade de termos de conduzir, quem sabe? Então ouvimos discos e vimos as chamas dançarem. Menshiki selecionou uma sonata de violino de Beethoven e pô-la no gira-discos. Georg Kulenkampff no violino, com Wilhelm Kempff no piano. Música perfeita para uma noite de inverno diante da lareira. No entanto, era difícil desfrutá-la, sabendo que Marie estaria por aí ao relento a tiritar.
Shoko telefonou meia hora depois. O irmão acabara de chegar a casa e contactara de imediato a polícia, que apareceria a qualquer momento para investigar. (Os Akikawa eram uma família antiga e rica daquela região, pelo que a possibilidade de se tratar de um rapto os levava a agir rapidamente.) Não havia notícias de Marie, e ela continuava sem atender o telemóvel. Entraram em contacto com todas as pessoas de que se lembraram (não eram muitas), mas em vão. Ninguém sabia do seu paradeiro.
– Vamos acreditar que está tudo bem com ela – comentei. Pedi-lhe que me avisasse se houvesse progressos e desliguei o telefone.
Ouvimos outro disco sentados diante do lume. Concerto de oboé de Richard Strauss. Foi Menshiki, também, quem o tirou da prateleira. Era a primeira vez que eu escutava o álbum. Ficámos sentados lado a lado a ouvi-lo, a olhar para o lume às voltas com os nossos pensamentos solitários.
De repente, à uma e meia, senti-me tremendamente sonolento; mal conseguia manter os olhos abertos. Sempre fui de deitar cedo e cedo erguer, e vem daí a minha dificuldade em fazer noitadas.
– Pode ir deitar-se – disse Menshiki, olhando para mim. – Eu fico mais um bocado a pé, não vá a Shoko ligar de novo. Não preciso de dormir muitas horas. Estou mais de que capaz de aguentar uma direta, sem problema. Foi sempre assim. Por favor, não se preocupe comigo. Vou manter o lume aceso. Estarei atento às chamas enquanto ouço música. Importa-se?
Claro que não me importava, respondi. Trouxe outra braçada de lenha do barracão do lado de fora da cozinha e pousei-a ao lado da lareira. Era mais do que suficiente, pensei, para durar até de manhã.
– Bem, então vou-me deitar – disse a Menshiki.
– Durma bem – retorquiu ele. – Vamos revezar-nos. Lá pela manhãzinha sou capaz de passar pelas brasas. Arranja-me um cobertor ou coisa parecida?
Fui buscar o cobertor que Masahiko usara, um edredão de penas e uma almofada, e preparei a cama no sofá. Menshiki agradeceu-me.
– Tenho uísque se lhe apetecer – acrescentei.
Menshiki abanou bruscamente a cabeça.
– Não, nem uma gota de álcool esta noite. Não sabemos o que pode acontecer.
– Se tiver fome, sirva-se da comida no frigorífico. Não é muita, mas pelo menos há bolachas de água e sal e queijo.
– Obrigado.
Deixando-o ali, retirei-me para o meu quarto. Enfiei-me debaixo dos cobertores, apaguei a luz da mesa de cabeceira e tentei dormir. No entanto, o sono não veio. Sentia-me exausto, mas um pequeno inseto zumbia no meu cérebro. Acontece-me. Desisti, acendi a luz e saltei da cama.
– Tendes um problema, amigo? – perguntou o Comendador. – Não conseguis dormir?
Olhei em volta. Ali estava ele, sentado no peitoril da janela, com a mesma roupa branca, sapatos bicudos estranhos, uma espada em miniatura rente ao flanco. Usava o cabelo muito bem apanhado. Como sempre, uma réplica perfeita do comendador passado a fio de espada no quadro de Tomohiko Amada.
– Exato, não consigo dormir – respondi.
– Muita coisa tem acontecido por estes dias, de facto – observou o Comendador. – Não admira que as pessoas sintam dificuldade em adormecer.
– Há muito tempo que não nos víamos, não é verdade?
– Não consigo avaliar isso. Acho que vos disse antes, mas não temos a noção do que é «muito tempo». Não conseguimos imaginar «há muito tempo» ou «desculpe não escrever há tanto tempo».
– Ainda assim, o seu timing é perfeito. Preciso de lhe perguntar uma coisa.
– Qual é a pergunta?
– A Marie Akikawa desapareceu esta manhã e andam todos à procura dela. Para onde poderá ter ido?
O Comendador inclinou a cabeça para o lado e pensou um pouco.
– Como sabeis – disse ele, escolhendo cuidadosamente as palavras –, o reino humano é governado por três elementos: tempo, espaço e probabilidade. As Ideias, pelo contrário, devem permanecer independentes dos três. Posto isto, escuso de me preocupar com assuntos como o que haveis acabado de descrever.
– Deixe cá ver se entendi: o problema reside no facto de não conseguir prever o resultado?
O Comendador não respondeu.
– Ou sabe mas não pode dizer-me?
O Comendador semicerrou os olhos, pensativo.
– Não estou a fugir à responsabilidade. As Ideias têm as suas próprias limitações.
Endireitei as costas e olhei para o rosto dele.
– Vamos esclarecer as coisas: tenho de salvar a Marie Akikawa. Ela pode estar em perigo e a precisar da minha ajuda; provavelmente entrou num sítio do qual não tem meio de sair. É a sensação que tenho, em todo o caso. Mas não sei como encontrá-la. E acho que o desaparecimento dela está de alguma forma ligado ao poço na floresta. Não consigo dar-lhe uma explicação racional, mas tenho a certeza de que há uma ligação. Ora, o senhor passou muito tempo confinado naquele mesmo buraco. Não faço ideia do que o levou a ficar lá fechado. No entanto, em qualquer caso, o Menshiki e eu mandámos vir equipamento pesado, deslocámos a pilha de pedras e abrimos o poço. Libertámo-lo. Isso é verdade, não é? Graças a nós, agora é capaz de se mover ao longo do tempo e do espaço, sem restrições. Aparece e desaparece como quer. Pode até ver-me fazer amor com a minha namorada. É exatamente como estou a dizer, certo?
– Confere, amigo. Confere!
– Não exijo que me diga precisamente de que forma a Marie pode ser salva. Não lhe peço o impossível. Já percebi que o mundo das Ideias tem as suas próprias restrições. Mas não pode dar-me uma pista? Depois de tudo o que fiz por si, não acha que me deve pelo menos isso?
O Comendador soltou um suspiro profundo.
– Uma dica apenas, é o suficiente. Não me estou a propor realizar nenhuma proeza fundamental, como acabar com os crimes de limpeza étnica ou o aquecimento global, ou salvar o elefante africano. Quero apenas encontrar uma rapariga de treze anos que provavelmente está retida em algum lugar, num sítio pequeno e escuro, e devolvê-la a este mundo.
O Comendador quedou-se muito tempo sentado, perdido em pensamentos, de braços cruzados. Parecia reconsiderar o assunto.
– Confere, meu amigo – disse ele, resignado. – Quando falais dessa maneira, não há muito que me reste fazer. Vou dar-vos uma indicação. No entanto, cuidado: serão necessários vários sacrifícios. Estais à mesma disposto a isso?
– Que tipo de sacrifícios?
– Não me posso alongar. Mas serão inevitáveis. Metaforicamente falando, haverá sangue. Isso é inevitável. Quanto aos sacrifícios requeridos, tudo se tornará mais claro com o passar do tempo. Haverá quem tenha de arriscar a vida.
– Não me importo. Dê-me uma pista.
– Afirmativo! – disse o Comendador. – Hoje é sexta-feira, não é?
Olhei para o relógio de cabeceira.
– Sim, ainda é sexta-feira. Não, espere aí, já é sábado.
– No sábado de manhã, antes do meio-dia, recebereis um telefonema – disse o Comendador. – Um convite para ir algures. Sejam quais forem as circunstâncias, não deveis recusar esse convite. Compreendido?
Repeti mecanicamente o que ele acabara de dizer.
– Alguém vai ligar-me esta manhã e convidar-me para ir a um sítio qualquer. Não devo recusar.
– Não deveis esquecer essas palavras, pois são a única indicação que posso partilhar. Atravessam a linha estreita que divide o discurso «público» do «privado».
Com aquela tirada final, o Comendador começou a desvanecer-se. Quando dei por isso, a sua forma tinha desaparecido do parapeito da janela.
Apaguei o candeeiro da mesa de cabeceira e adormeci com relativa facilidade. O zumbido de asas de insetos na minha cabeça diluíra-se. Um momento antes de adormecer, imaginei Menshiki sentado em frente à lareira, absorto nos seus pensamentos. Calculei que ele manteria o lume aceso a noite toda. Não tinha a mínima ideia de quais os pensamentos que o assaltavam. Ele era um sujeito estranho. Mas, certo e sabido, a sua vida estava limitada pelo tempo, o espaço e a probabilidade, como a de toda a gente neste mundo. Ninguém podia escapar a essas restrições enquanto fosse vivo. Cada um de nós estava cercado por paredes robustas que se elevavam no ar, rodeando-nos por todos os lados. Provavelmente.
Vão ligar-me esta manhã a convidar-me para ir a algum lado. Não devo recusar.
Papagueei as palavras do Comendador uma última vez na minha cabeça. E adormeci.
48
AOS ESPANHÓIS FALTAVA A PERÍCIA NECESSÁRIA PARA NAVEGAR AS ÁGUAS PERIGOSAS DA COSTA IRLANDESA
Acordei pouco depois das cinco. Ainda estava escuro lá fora. Vesti um casaco de malha sobre o pijama e fui à sala de estar. Menshiki dormia no sofá. Não adormecera há tanto tempo assim – apagara o lume, mas a divisão estava quente. A pilha de lenha tinha diminuído bastante. Ele dormia pacificamente de lado, respirando sem fazer barulho com o edredão sobre o corpo. Não ressonava nem um pouco. Os seus bons modos governavam até a sua maneira de dormir. A sala parecia suster a respiração para não o perturbar.
Deixando-o ali, fui à cozinha preparar café; também fiz torradas. Depois levei o pão e o café para a sala de jantar e sentei-me ali, a mastigar e a beber, enquanto lia o meu livro sobre a Armada Espanhola. Falava do desenrolar do conflito brutal em que a rainha Isabel I e Filipe II de Espanha tinham apostado as fortunas das respetivas nações. Porque me sentia compelido a ler um relato daquela batalha marítima de finais do século XVI junto à costa da Grã-Bretanha naquele momento específico? Posso apenas dizer que, assim que comecei a lê-lo, não consegui parar. Era um livro antigo que eu encontrara na estante de Tomohiko Amada.
Embora os relatos correntes afirmem que a dizimação da Armada Invencível pela frota inglesa – uma derrota que mudou o curso da história – foi consequência de uma má estratégia, aquele livro argumentava que o dano substancial deveu-se não ao fogo direto dos canhões ingleses (consta que muitos dos disparos, de um lado e do outro, falharam o alvo e caíram no mar, inofensivos), mas aos naufrágios. Habituados às águas calmas do Mediterrâneo, aos espanhóis faltava a perícia necessária para navegar as águas perigosas da costa irlandesa e, assim, acabaram por avançar com as suas embarcações contra os recifes escuros.
Enquanto seguia o triste destino daqueles marinheiros espanhóis e bebia a minha segunda caneca de café simples, o céu iluminou-se gradualmente a leste. Era sábado de manhã.
No sábado de manhã, antes do meio-dia, recebereis um telefonema. Um convite para ir algures. Sejam quais forem as circunstâncias, não deveis recusar esse convite.
Repeti para os meus botões o que o Comendador me dissera. Olhei depois para o telefone. Mantinha-se em silêncio, mas soaria a qualquer momento, tinha a certeza. O Comendador nunca mentia. Só me restava ser paciente e esperar.
Pensei em Marie. Queria ligar à tia para saber se ela estava em segurança, mas ainda era cedo. Devia aguardar pelo menos até às sete horas. A tia de certeza que entraria em contacto comigo se Marie fosse encontrada; tinha plena consciência da minha preocupação. Não ter notícias significava que não houvera progressos. Por isso deixei-me estar sentado à mesa de jantar, avancei mais umas páginas no livro sobre a Armada Invencível e depois, já farto de ler, fiquei a olhar para o telefone, mas este permanecia em silêncio.
Liguei a Shoko Akikawa pouco depois das sete. Ela atendeu logo, como se estivesse sentada ao lado do telefone, à espera que tocasse.
– Não tivemos notícias dela; continua desaparecida – disse imediatamente. Ao ouvir a sua voz exausta, concluí que tivesse dormido pouco (ou talvez nada).
– As buscas prosseguem? – perguntei.
– Sim, estiveram cá dois agentes ontem à noite. Demos-lhes fotografias da Marie, descrevemos o que ela tinha vestido... Explicámos que não é o tipo de rapariga de fugir de casa ou ficar até tarde numa festa. Eles transmitiram a informação a todas as esquadras. Como é óbvio, pedi-lhes que, para já, não ventilassem para o público qualquer informação sobre as diligências.
– Mas não têm nenhum indício, certo?
– Pois, não surgiram pistas, mas de certeza que estão a procurá-la com afinco.
Tentei consolá-la e pedi-lhe que me avisasse logo que houvesse novidades. Ela prometeu que assim o faria.
Quando o nosso telefonema terminou, Menshiki já se levantara e fazia a sua higiene na casa de banho. Depois de lavar os dentes com a escova que lhe tinha disponibilizado, sentou-se à minha frente na mesa da sala de jantar e bebeu um café simples. Ofereci-lhe torradas, mas ele recusou. Dormir no sofá teve o condão de lhe despentear um tudo-nada o abundante cabelo, mas para quem o habitual era estar «penteadinho», um fio ou outro fora do sítio fazia imensa diferença. O homem diante de mim continuava a ser aquele tipo de cabeça fria e impecavelmente vestido, como sempre o conheci.
Relatei a minha conversa com Shoko.
– É apenas um pressentimento – disse ele quando terminei –, mas duvido que a polícia sirva de muito.
– Porquê?
– A Marie não é uma adolescente típica e o seu desaparecimento não é um desaparecimento típico. Também não acho que ela tenha sido raptada. O mais certo é que os métodos policiais comuns levem a um beco sem saída.
Não comentei, mas, às tantas, teria razão. Estávamos perante uma equação com múltiplas funções, mas quase sem números sólidos. Se quiséssemos fazer progressos, era preciso descobrir a maioria dos números incógnitos.
– Vamos dar outra olhadela ao poço? – sugeri. – Quem sabe se não houve alguma mudança?
– Vamos – disse Menshiki.
Partíamos da ideia implícita de que nada mais devia ser feito. Eu sabia que o telefone podia tocar, e que Shoko Akikawa ou a pessoa por trás do «convite» que o Comendador mencionara talvez estivesse do outro lado, mas quase apostava que não ligaria tão cedo. Era apenas uma vaga premonição da minha parte, se quiserem.
Vestimos os casacos e saímos. Estava um dia de sol. Um vento sudoeste fizera desaparecer o manto de nuvens da noite anterior, deixando para trás uma abóbada celeste quase anormalmente limpa e transparente. De facto, quando levantei os olhos para o céu, tive a sensação de que o cima e o baixo haviam sido trocados, e que estava a olhar para uma nascente de água límpida. Ouvia o zumbido fraco de um comboio comprido numa linha férrea distante. Quando o ar estava assim, conseguíamos captar sons distantes no vento com grande clareza. Era esse tipo de manhã.
Sem trocar uma palavra, atravessámos a floresta e contornámos o pequeno santuário. A tampa de tábuas do poço estava exatamente como a havíamos deixado na noite anterior. Nem as pedras que a seguravam tinham sido deslocadas. Quando tirámos as tábuas, a escada continuava encostada à parede, a sua posição inalterada. Não havia ninguém no poço. Desta vez, Menshiki não se ofereceu para descer. A luz solar intensa tornava essa ação desnecessária; percebia-se que nada mudara. O poço, à luz do dia, parecia diferente de quando olhávamos para ele de noite. Não havia nada de inquietante nisso.
Colocámos as tábuas no sítio e cobrimo-las com as pedras. Depois voltámos pelo caminho inverso na floresta. Diante da minha casa, o impecável Jaguar prateado de Menshiki denotava como que alguma reticência por estar ao lado do meu empoeirado e despretensioso Toyota Corolla.
Menshiki aproximou-se do seu carro e parou.
– Acho que vou para casa – disse. – Irei estorvá-lo se abusar da sua hospitalidade por mais tempo, e não há nada que possa fazer de momento, de qualquer maneira. Importa-se?
– Claro que não. Por favor, vá para casa e descanse. Aviso-o se houver alguma mudança.
– Hoje é sábado, não é?
– Sim, é sábado.
Menshiki enfiou a mão no bolso do casaco e tirou a chave. Ficou ali a olhar para ela, pensativo, tentando tomar uma decisão, quem sabe? Esperei pelo veredicto.
– Provavelmente, devia dizer-lhe uma coisa – declarou por fim. Encostei-me à porta do meu Corolla enquanto ele escolhia as palavras. – É bastante pessoal, e não tinha a certeza se seria apropriado, mas cheguei à conclusão de que talvez fosse melhor contar-lhe, por uma questão de cortesia. Não quero causar nenhum mal-entendido desnecessário... De qualquer forma, a questão é que a Shoko e eu nos tornámos... qual é a palavra correta?... bastante próximos.
– Quer dizer que são amantes? – perguntei, indo direto ao assunto.
– Exato – respondeu Menshiki depois de uma pausa. Pensei ter visto um leve rubor no seu rosto. – Deve achar que aconteceu tudo muito rápido.
– Não, a velocidade não é o problema.
– Isso – reconheceu Menshiki. – A velocidade não é o problema.
– O problema é... – comecei.
– O meu motivo, era o que ia dizer. Estou certo?
Não respondi. No entanto, ficou claro que o meu silêncio significava que sim, estava certo.
– Garanto-lhe que nada foi planeado; as coisas avançaram de forma natural. De facto, aconteceu sem que eu tivesse consciência disso. Talvez tenha dificuldade em acreditar no que lhe estou a dizer.
Suspirei. Depois deitei cá para fora o que me ia na alma.
– Só sei que, se de início tivesse esse plano em mente, teria sido muito fácil executá-lo. E não estou a ser sarcástico.
– É capaz de ter razão – respondeu Menshiki. – Admito-o. Fácil, ou pelo menos não muito difícil. Talvez. Mas não foi assim.
– Quer fazer-me crer que no momento em que conheceu a Shoko Akikawa foi tiro e queda, ficou logo apaixonado?
Menshiki franziu os lábios como se estivesse envergonhado.
– Apaixonado? Não iria tão longe. Para ser sincero, a última vez que me apaixonei... acho que provavelmente lhe posso chamar isso... foi há uma eternidade. Nem consigo lembrar-me de como aconteceu, mas sinto-me bastante atraído pela Shoko, como um homem se sente atraído por uma mulher.
– Sem meter a Marie ao barulho?
– Isso é difícil de saber. Afinal, a Marie foi o motivo do nosso primeiro encontro. Mas se a Marie nunca tivesse existido, acho que me sentiria na mesma atraído pela tia dela.
Será? Um homem com uma mente tão complicada como Menshiki sentir-se-ia «bastante atraído» por uma mulher tão simples e descontraída como Shoko Akikawa? Desse por onde desse, eu não estava em posição de julgar. Era impossível prever o funcionamento do coração humano, sobretudo quando havia sexo envolvido.
– Compreendo – disse. – De qualquer forma, obrigado por falar com tanta franqueza. A franqueza é sempre o melhor método, creio eu.
– Espero que tenha razão.
– Para dizer a verdade, a Marie já sabia que o senhor e a Shoko estavam envolvidos nesse tipo de relação. Ela veio falar comigo há uns dias e trouxe o assunto à baila.
A notícia pareceu surpreender Menshiki.
– É uma jovem perspicaz – disse ele. – Fizemos tudo para que não descobrisse.
– Sim, uma jovem muito perspicaz, mas não descobriu por si. Foram as coisas que a tia disse e fez que a alertaram.
Shoko era uma mulher inteligente e bem-educada, mas, embora fosse capaz de esconder os sentimentos até certo ponto, a sua máscara estava fadada a deslizar mais cedo ou mais tarde. Menshiki tinha consciência disso, sem dúvida.
– Se esse é o caso... acha que o desaparecimento da Marie tem que ver com o facto de ter descoberto a nossa relação?
Abanei a cabeça.
– Não posso afirmar tal coisa, mas digo-lhe, isso sim, que o senhor e a Shoko deviam conversar. Ela está muito preocupada e confusa. Deve precisar do seu encorajamento e apoio. Urgentemente.
– Tem razão. Vou ligar-lhe assim que chegar a casa.
Menshiki não terminara. Parecia estar a pensar em mais qualquer coisa.
Suspirou.
– Para dizer a verdade, não acho que me tenha apaixonado; não fui talhado para isso. Nunca fui. Não sei porque me sinto assim. Ter-me-ia sentido tão atraído pela Shoko se não fosse pela Marie? A ligação entre elas não é totalmente transparente.
Fiquei calado.
– Mas juro que não planeei nada disto. Acredita em mim?
– Senhor Menshiki, não sei explicar porquê, mas creio que, no fundo, é um homem sincero.
– Obrigado – disse ele. Os cantos da sua boca arquearam-se. Era um sorriso um pouco constrangido, mas não infeliz. – Por falar em sinceridade, posso abrir-lhe o coração?
– Com certeza.
– Às vezes dou por mim a pensar que estou vazio – confessou ele. O sorriso permanecia nos seus lábios.
– Vazio?
– Oco por dentro. Isto pode soar arrogante, mas sempre parti do pressuposto de que era muito mais inteligente e mais capaz do que as outras pessoas. Mais perspicaz, com maiores poderes de avaliação. Fisicamente mais forte também. Achei que poderia ter êxito em qualquer coisa a que me dedicasse. E assim foi. Deitava a mão àquilo que queria possuir. Estar detido na prisão de Tóquio foi um revés, como é evidente, mas considerei isso uma exceção à regra. Enquanto jovem, não reconhecia limites para as minhas capacidades. Pensei que conseguiria atingir um estado próximo da perfeição. Subir e subir até chegar a uma altura onde poderia olhar para todos os outros lá em baixo. Mas quando passei dos cinquenta, olhei-me ao espelho e descobri apenas o vazio. Um zero. Aquilo a que T. S. Eliot chamou «homem-espantalho».
Não consegui pensar numa resposta.
– Toda a minha vida pode ter sido um erro até agora – continuou Menshiki. – Às vezes sinto que, a certa altura, tomei as decisões erradas, que nada do que fiz teve algum significado real. Por isso lhe disse que muitas vezes dou por mim a sentir inveja de si.
– Inveja-me o quê, por exemplo?
– Tem a força de desejar o que não pode ter, ao passo que eu só desejei aquilo que podia possuir.
Calculei que estivesse a falar de Marie; só ela lhe escapara. No entanto, não havia muito que eu pudesse dizer sobre o assunto.
Menshiki entrou lentamente no carro. Desceu o vidro, disse adeus e partiu. Quando o carro dele desapareceu, voltei para casa. Já passava das oito.
O telefone tocou pouco depois das dez. Era Masahiko.
– É em cima da hora, eu sei – disse ele –, mas vou a caminho de Izu ver o meu pai. Queres vir comigo? Comentaste no outro dia que gostavas de o conhecer.
Recebereis um telefonema. Um convite para ir algures. Não deveis recusar.
– Excelente. Adorava ir.
– Acabei de entrar na via rápida Tóquio-Nagoia. Estou a passar o parque de estacionamento da estação de Kohoku. Levo uma hora a chegar aí, aproximadamente. Apanho-te e vamos de carro até Izu-Kogen.
– Aconteceu alguma coisa ao teu pai?
– Sim, ligaram do lar. Parece que piorou. Pus-me logo a caminho para o visitar. De qualquer maneira, ia estar mais ou menos livre hoje.
– Tens a certeza de que não faz mal eu acompanhar-te? Estas ocasiões não estão reservadas à família?
– Não te preocupes, sem problema. Serei o único familiar presente, por isso, quanto mais gente, melhor. – Desligou.
Pousei o telefone e examinei a divisão. O Comendador estaria ali? Não o vi em lado nenhum. Anunciada a profecia, ele desaparecera. Provavelmente para um reino onde os ditames do tempo, do espaço e da probabilidade não se aplicam. No entanto, confirmou-se o telefonema matinal e eu fora convidado para ir a um sítio. Até agora, pelo menos, a profecia batia certo. Incomodava-me sair de casa estando Marie ainda desaparecida, mas não podia fazer muito acerca disso. O Comendador dissera: «Sejam quais forem as circunstâncias, não deveis recusar esse convite.» Shoko, pela parte que me tocava, estaria entregue a Menshiki. Afinal, até certo ponto, ela era responsabilidade sua.
Sentei-me na poltrona da sala e retomei a história da Armada Invencível enquanto esperava por Masahiko. Quase todos os soldados e marinheiros espanhóis que tinham conseguido escapar dos navios naufragados e rastejar para a orla costeira da Irlanda, mais mortos que vivos, foram assassinados por aqueles que viviam ao longo da costa. Os irlandeses pobres chacinaram-nos para lhes sacarem os pertences. Os espanhóis esperavam que, enquanto irmãos católicos, os irlandeses pudessem mostrar misericórdia, mas não tiveram essa sorte. A solidariedade religiosa não se comparava ao medo da fome. Infelizmente, o navio espanhol que transportava a arca com o ouro e a prata destinados a subornar a poderosa nobreza da Inglaterra afundou-se também. Ninguém sabia para onde fora toda aquela riqueza.
Faltava pouco para as onze da manhã quando o velho Volvo preto de Masahiko parou em frente à minha casa. Ainda pensava em todas aquelas moedas de ouro no fundo do mar quando vesti o blusão de cabedal e saí porta fora.
O caminho que Masahiko escolheu levou-nos da autoestrada de Hakone até à de Izu Skyline, e depois descemos das terras altas de Amagi para Izu. Explicou que assim seria mais rápido – que ao fim de semana quase não se podia andar junto à costa por causa dos engarrafamentos –, mas, mesmo assim, apanhámos imenso trânsito. A temporada de queda das folhas de outono ainda não terminara, e estando as estradas pejadas de condutores de fim de semana que não sabiam conduzir na montanha, a viagem demorou mais do que o previsto.
– O teu pai está mesmo nas últimas? – perguntei.
– Não deve durar muito mais entre nós, aposto – respondeu Masahiko com ligeireza. – É uma questão de dias, para ser mais preciso. A idade reduziu-o a quase nada. Tem dificuldade em comer e está sob ameaça constante de apanhar uma pneumonia. Mas ficou bem assente, por sua ordem expressa, que em nenhuma circunstância devem entubá-lo ou alimentá-lo por via intravenosa. Por outras palavras, exige partir discretamente quando já não conseguir comer. Tratou com o advogado numa altura em que ainda estava lúcido, papéis assinados e tudo o mais. Não haverá intervenção médica. Isso significa que pode morrer a qualquer momento.
– Tens de te preparar para o pior, então.
– É verdade.
– Deve ser difícil.
– Nunca é fácil quando alguém morre, mas não me posso queixar.
O velho Volvo tinha um leitor de cassetes e o porta-luvas estava cheio delas. Masahiko enfiou lá a mão, tirou uma e inseriu-a sem verificar o que era. Acabou por se revelar uma coleção de êxitos dos anos oitenta. Duran Duran, Huey Lewis e assim por diante. Quando «Look of Love» dos ABC começou a tocar virei-me para ele.
– Parece mesmo que o tempo parou neste carro – comentei.
– Não gosto de CD. São demasiado brilhantes. Quando muito, serviriam para assustar os corvos se eu os pendurasse no exterior da minha casa, mas não são um meio para ouvir música. O som é metálico e a mistura não é natural. Não ter lados A e B também é uma chatice. É por isso que ainda tenho este carro: para poder ouvir as minhas cassetes. Os modelos mais recentes não vêm com leitores de cassetes, certo? Toda a gente acha que sou maluco, mas paciência. Tenho uma enorme coleção de músicas que gravei da rádio e não quero vê-las desperdiçadas.
– Caramba, nunca pensei um dia voltar a ouvir o «Look of Love» dos ABC.
– Não é incrível? – perguntou Masahiko, lançando-me um olhar interrogativo.
Continuámos a falar sobre música dos anos oitenta, canções que ouvíramos na rádio, enquanto atravessávamos as montanhas de Hakone. As encostas azuis do monte Fuji surgiam imponentes na paisagem a cada curva.
– Tu e o teu pai formam um belo par – comentei. – Ele só ouve discos e o filho cassetes.
– Olha quem fala. Também paraste no tempo. Talvez mais do que nós. Quer dizer, nem sequer tens telemóvel. E quase nunca vais à Internet, certo? Eu tenho sempre o meu telemóvel comigo, e quando preciso de saber qualquer coisa vou ao Google. Desenho coisas no meu Mac no trabalho. Socialmente, estou anos-luz à tua frente.
A versão de Bertie Higgins de «Key Largo» deu os primeiros acordes. Uma seleção interessante, de facto, para um tipo que afirmava ser socialmente evoluído.
– Andas com alguém? – perguntei, mudando de assunto.
– Referes-te a uma mulher?
– Sim.
Masahiko encolheu os ombros.
– Não posso dizer que esse particular esteja a correr bem. Como sempre. E as coisas ficaram ainda piores desde que fiz uma descoberta estranha.
– Que tipo de descoberta?
– Que o lado direito do rosto de uma mulher não é igual ao esquerdo. Sabias disso?
– As pessoas não são perfeitamente simétricas – respondi. – Quer se trate de seios ou testículos, o tamanho e a forma dos dois lados são diferentes. Qualquer artista o sabe. Essa falta de simetria é uma das coisas que torna a forma humana tão interessante.
Masahiko abanou a cabeça várias vezes sem tirar os olhos da estrada.
– Claro que sei isso. Mas o que estou a dizer é um pouco diferente. Refiro-me à personalidade, não à forma.
Esperei que ele continuasse.
– Há cerca de dois meses, peguei na máquina digital e tirei uma foto a uma mulher com quem andava. Um grande plano frontal do seu rosto. Pu-lo no computador do escritório. Consegui dividir o ecrã ao meio e olhar para as duas metades do rosto dela separadamente. Removi a metade direita para olhar para a esquerda e vice-versa... Estás a ver a ideia?
– Sim, estou.
– Foi quando percebi que o lado esquerdo e o lado direito do rosto dela pareciam pertencer a duas pessoas diferentes. Como o Duas-Caras, o mau da fita em O Cavaleiro das Trevas.
– Não vi esse.
– Tens de ver. É muito bom. De qualquer forma, a coisa assustou-me um pouco. Mais valia parar com aquilo na altura, mas insisti e tentei inverter os dois lados para fazer uma cara composta. Assim, poderia duplicar o lado direito para criar um rosto completo, fazendo o mesmo com o lado esquerdo. Os computadores facilitam esse tipo de coisa. Fiquei com imagens do que parecem ser duas mulheres com duas personalidades totalmente distintas. Isso chocou-me. Quero dizer, havia mesmo duas mulheres dentro de cada mulher que conheci. Alguma vez olhaste para as mulheres dessa maneira?
– Não.
– Testei a minha ideia com várias mulheres. Tirei fotos à cabeça e criei composições do lado esquerdo e do direito no computador. Isso tornou tudo ainda mais evidente: as mulheres têm literalmente duas caras. Depois de constatar isso, descobri que não conseguia percebê-las. Por exemplo, se estivesse na cama com uma mulher, não saberia se era o lado direito ou o esquerdo que estava a abraçar. Se fosse o lado direito, então para onde fora o esquerdo? O que estava a fazer e a pensar?... E se fosse o esquerdo, então o que estaria o lado direito a pensar? Quando cheguei a esse ponto, as coisas tornaram-se muito confusas. Percebes o que estou a dizer?
– Mais ou menos, mas imagino que deva ser confuso.
– Podes crer, bastante confuso.
– Tentaste em rostos de homens?
– Sim, mas não resultou da mesma maneira. As únicas mudanças drásticas foram com os rostos das mulheres.
– Talvez devesses ir a um psicólogo ou a um terapeuta – sugeri.
Masahiko suspirou.
– Sabes, sempre acreditei que era um gajo normalíssimo.
– Isso pode ser uma crença perigosa.
– Acreditar que sou normal?
– Julgo que foi F. Scott Fitzgerald quem escreveu que nunca se deve confiar em pessoas que afirmam ser normais. Está num dos seus romances.
Masahiko andou às voltas com aquilo na cabeça.
– Então até um homem comum é insubstituível?
– Creio que é outra maneira de ver a coisa.
Pensou um pouco com as mãos no volante.
– De qualquer forma, será que podias experimentar uma vez e comprovar?
– Sabes que pinto retratos há muito tempo, pelo que julgo ser mais competente do que a maioria quando se trata de examinar rostos. Poder-se-ia até dizer que sou um especialista na matéria. No entanto, nunca pensei que a diferença entre os lados direito e esquerdo refletisse uma disparidade ao nível da personalidade. Nem uma vez.
– Mas quase todos os modelos que pintaste eram homens, correto?
Masahiko tinha uma certa razão. Nunca fora contratado para pintar uma mulher. Por qualquer motivo, os meus retratos eram todos de homens. A única exceção acabara por ser Marie Akikawa, e ela era mais criança que mulher. Além disso, ainda não terminara o seu retrato.
– Os homens e as mulheres são diferentes – insistiu Masahiko. – Completamente.
– Deixa-me então perguntar-te o seguinte: estás a afirmar que essa diferença de personalidade nos lados direito e esquerdo se aplica a quase todas as mulheres?
– Sim, essa é a minha conclusão.
– E sentes-te atraído por um lado ou pelo outro? Ou achas que gostas menos dos dois lados juntos?
Masahiko ponderou a questão por um momento.
– Não – disse por fim. – Não é assim que funciona. Eu não prefiro um lado ao outro, não considero um lado alegre e o outro sombrio, ou que aquele lado é mais bonito. O problema vai muito além: os dois lados são diferentes, ponto final. É isso que me abala, que às vezes me assusta.
– Parece-me uma espécie de transtorno obsessivo-compulsivo – disse eu.
– Também é o que me parece – concordou Masahiko. – Basta-me ouvir o que digo. Mas é a verdade. Peço só que verifiques.
Prometi-lhe que sim, mas não tencionava fazer nada; só iria arranjar mais chatices. A minha vida já era suficientemente confusa.
Conversámos depois sobre Tomohiko Amada, sobre a sua estada em Viena.
– O meu pai disse que viu Richard Strauss dirigir a Orquestra Filarmónica de Viena numa das sinfonias de Beethoven – afirmou Masahiko. – Deve ter sido uma coisa do outro mundo. Foi uma das poucas histórias que me contou sobre os seus dias em Viena.
– Que mais te contou ele sobre esse período?
– Nada de especial. Mencionou a comida, a bebida, a música, coisas assim. Ele adorava música, sabes? Só falava disso. Nunca referiu pintura ou política ou nada desse género. Nem mulheres.
Masahiko fez uma pausa antes de continuar.
– Talvez devessem escrever a biografia do meu pai. Podia ser um livro realmente interessante. Mas a verdade é que ninguém irá lançar-se nessa empreitada. Porquê? Porque quase não há informações pessoais disponíveis. O meu pai não tinha amigos, os familiares eram-lhe praticamente desconhecidos. Ele passava o tempo sozinho numa montanha, a pintar. Os seus únicos conhecidos, se é que lhes podemos chamar isso, eram uns quantos negociantes de arte. Ele quase não falava com ninguém, não escrevia cartas. Se alguém tentasse escrever a sua biografia, não teria quase nada com que trabalhar. Não há apenas alguns buracos na história da sua vida, há muitos. Pensa num queijo suíço com mais buracos do que queijo.
– Ele deixa para trás apenas o seu trabalho.
– Tens razão, os quadros e pouco mais. Provavelmente, foi a intenção dele
– E a ti. Também fazes parte do legado.
– Eu? – Masahiko olhou para mim surpreendido, depois voltou a concentrar-se na estrada. – Olha que tens razão. Pensando bem, também faço parte do legado dele. Não é uma parte particularmente brilhante, apesar de tudo.
– Mas insubstituível.
– Lá isso é verdade. Banal mas, mesmo assim, insubstituível – disse Masahiko. – Sabes o que me ocorre às vezes? Que devias ter sido tu o filho do Tomohiko Amada. Se assim fosse, as coisas teriam corrido de forma muito mais tranquila.
– Por favor! – exclamei com uma gargalhada. – Ninguém foi talhado para esse papel!
– Talvez não, mas podias ter sido o seu sucessor espiritual, se é que lhe podemos chamar isso. És muito mais qualificado nessa área do que eu. Pelo menos é o que me diz o instinto.
A Morte do Comendador surgiu na minha mente. Aquele quadro era algo que eu «herdara» de Tomohiko Amada? Será que ele me conduzira até ao sótão para o descobrir? Estaria a usá-lo para exigir algo de mim?
Debbie Harry cantava «French Kissin in the USA» nas colunas do carro. Era difícil pensar numa música de fundo menos apropriada para a nossa conversa.
– Deve ter sido duro ter um pai como Tomohiko Amada – declarei, sem rodeios.
– Aqui há uns anos cheguei a um ponto em que tive de me afastar completamente e prosseguir com a minha vida – revelou Masahiko. – Depois disso não foi tão difícil para mim como todos pensavam. Também vivo da arte, mas a escala do talento do meu pai e a minha são radicalmente diferentes. Quando a lacuna é tão grande, deixa de ser um problema. A fama do meu pai como artista já não me magoa; o que magoa é o tipo de ser humano que ele era, o facto de, até ao fim, nunca se ter aberto para mim, o seu próprio filho. Nunca me contou nada sobre si.
– Estás a dizer que nunca te mostrou nada do seu mundo interior?
– Nadinha. A sua atitude era: «Dei-te metade do meu ADN, que mais queres? O resto é contigo.» Mas um relacionamento baseia-se em mais do que ADN, certo? Nunca lhe pedi que me guiasse ao longo da vida, nunca lho exigi. Mas mesmo assim devia ter havido lugar para uma conversa entre pai e filho de vez em quando. Ele podia ter-me contado um bocadinho do que tinha experimentado, do que pensava. Nem que fosse de tempos a tempos.
Ouvi em silêncio o que ele tinha a dizer.
Quando parámos num semáforo, Masahiko tirou os óculos escuros Ray-Ban e limpou-os com o lenço.
– Palpita-me que o meu pai esconde segredos importantes, coisas pessoais que carregou inteiramente sozinho e que tenciona levar com ele quando partir deste mundo – disse, virando-se na minha direção. – É como se no coração tivesse um cofre para os guardar. Enfiou-os todos lá, e depois, ou deitou fora a chave, ou escondeu-a algures. Agora não se lembra de onde a enfiou.
Nesse caso, o enigma do que ocorrera em Viena em 1938 ficaria sempre por resolver. Por outro lado, talvez o próprio quadro A Morte do Comendador fosse a chave oculta. A ideia ocorreu-me de repente. A ser verdade, explicaria por que motivo, no final da sua vida, o espírito vivo de Tomohiko regressara ao cimo daquela montanha para confirmar a existência do quadro.
Virei-me e olhei para o banco de trás. Talvez o Comendador estivesse ali sentado. Mas o banco encontrava-se vazio.
– Algum problema? – perguntou Masahiko, olhando para trás.
– Não, nada – respondi.
Quando o semáforo ficou verde, o meu amigo pisou o acelerador.
49
REPLETO DE IGUAL NÚMERO DE MORTES
A caminho do lar, parámos num restaurante à beira da estrada para Masahiko se ir aliviar. Fomos conduzidos a uma mesa perto da janela e pedimos café. Como já era meio-dia, pedi também uma sanduíche de rosbife. Masahiko imitou-me, e depois dirigiu-se aos lavabos. Fiquei distraído a olhar lá para fora enquanto ele não regressava. O parque de estacionamento estava cheio de carros. Na maioria, transportavam famílias; o número de monovolumes destacava-se. Aqueles carros pareciam-me todos iguais, como latas de bolachas insípidas. Havia um miradouro numa ponta do parque onde as pessoas tiravam fotografias ao monte Fuji, que se elevava mesmo em frente, com pequenas máquinas digitais e telemóveis. É idiota, eu sei, mas nunca me habituei ao facto de os telemóveis também tirarem fotografias. Gosto ainda menos de máquinas fotográficas que dão para fazer telefonemas.
Estava eu ali sentado a olhar para o boneco e, saído da estrada, entra um Subaru Forester branco no parque de estacionamento. Não percebo muito de carros (e um Subaru Forester é bastante banal), mas logo percebi que era o modelo que o homem do meu quadro conduzia. Andou para cima e para baixo entre as filas, até que encontrou um lugar. Como é óbvio, o logótipo na tampa do pneu sobressalente dizia Subaru Forester. Parecia ser o mesmo modelo do carro que eu encontrara na pequena cidade à beira-mar na província de Miyagi. Não consegui tirar-lhe a matrícula, mas quanto mais olhava, mais tinha a certeza de que se tratava do mesmo carro que vira naquela primavera. Não apenas o mesmo modelo. Quero dizer exatamente o mesmo carro.
A minha memória visual é mais apurada do que a da maioria das pessoas e mais duradoura. Resultado: percebi que as manchas e os riscos que apresentava eram muito semelhantes aos do carro que me tinha ficado na memória. Senti dificuldade em respirar. Tentei identificar o condutor quando ele saía, mas um grande autocarro turístico entrou no parque e tapou-me a vista; incapaz de avançar, ficou ali mesmo parado. Levantei-me e corri para fora do restaurante. Contornei o autocarro e aproximei-me do local onde o Subaru Forester branco estava estacionado. Mas o carro encontrava-se vazio. O condutor fora a algum lado. Podia estar no restaurante, ou talvez estivesse a tirar fotografias no miradouro. Olhei em volta, mas não vislumbrei o homem do Subaru Forester branco. O condutor, para todos os efeitos, também podia ser outra pessoa.
Analisei a matrícula. Dizia «Prefeitura de Miyagi», certo e sabido. No para-choques traseiro havia um autocolante com um espadarte. Era o mesmo carro, sem sombra de dúvida. O homem fora até ali. Senti um arrepio na espinha. Decidi então procurá-lo. Queria ver o seu rosto mais uma vez, perceber porque não conseguira terminar o retrato dele. Talvez me tivesse esquecido de alguma coisa elementar a seu respeito. Primeiro que tudo, decorei a matrícula. Podia vir a ser útil. Por outro lado, talvez não servisse para nada.
Percorri o parque de estacionamento à procura de alguém parecido com ele. Fui até ao miradouro, mas o homem do Subaru Forester branco não se encontrava em lado nenhum. Um tipo de meia-idade, bastante bronzeado, cabelo grisalho muito curto, para o alto. Quando o vira pela última vez, vestia um blusão de cabedal preto coçado e um boné de golfe Yonex. Fiz nessa altura um esboço rápido no meu caderno e mostrei-o à jovem sentada à minha frente. «Desenha muito bem», comentara ela, impressionada.
Quando tive a certeza de que não encontraria ninguém ali fora parecido com o homem, olhei para dentro do restaurante. Dei a volta ao estaminé, mas não o vi. As mesas estavam quase todas ocupadas. Masahiko regressara e bebia o seu café. As sanduíches ainda não tinham aparecido.
– Onde te enfiaste? – perguntou ele.
– Pensei ter visto uma pessoa conhecida e saí para confirmar.
– Encontraste-a?
– Não, devo ter-me enganado.
Depois disso, fiquei de olho no Subaru Forester branco. Se o homem em questão voltasse, o que devia eu fazer? Sair e falar com ele? Dizer-lhe que tinha a certeza de o ter encontrado duas vezes na primavera anterior numa pequena cidade do litoral em Miyagi? «A sério? Não me lembro de si», responderia ele.
«Então porque me anda a seguir?», perguntaria eu. «Do que está a falar?», indagaria ele. «Por que raio haveria eu de seguir alguém que nem conheço?» Fim da conversa.
De qualquer forma, o condutor do Subaru Forester branco não voltou para o carro; este continuou ali estacionado, baixo e atarracado, a aguardar silenciosamente o regresso do dono. Ainda não tinha aparecido quando terminámos as nossas sanduíches e o café.
– É melhor irmos andando – disse Masahiko, olhando para o relógio. – Não temos muito tempo. – Pegou nos seus Ray-Ban pousados na mesa.
Levantámo-nos, pagámos e saímos. Depois entrámos no Volvo e deixámos o parque de estacionamento. Preferia ter esperado que o homem do Subaru Forester branco voltasse, mas conhecer o pai de Masahiko era prioritário. O Comendador transmitira-me esse recado de forma bastante clara: «Recebereis um telefonema. Um convite para ir algures. Não deveis recusar.»
Restava-me o facto de o homem do Subaru Forester branco ter voltado a aparecer. Soubera onde me encontrar e quisera passar-me a mensagem de que estava ali. A sua intenção era óbvia. O seu aparecimento não podia ser obra do acaso. Tão-pouco o autocarro me tinha tapado a visão só por capricho dos deuses – punha as mãos no fogo por isso.
Para chegar ao lar onde Tomohiko Amada estava tivemos de sair da Izu Skyline e seguir por uma estrada longa e sinuosa. A zona fora recentemente transformada num retiro de verão para os citadinos: passámos por cafés elegantes, pousadas sofisticadas construídas como chalés de madeira, bancas a vender produtos locais e pequenos museus destinados a turistas. De cada vez que descrevíamos uma curva, eu agarrava-me à porta do carro e pensava no homem do Subaru Forester branco. Alguma coisa me impedia de terminar o seu retrato. Escapava-me um elemento-chave, algo que fazia dele quem era. Uma peça que faltava ao quebra-cabeças, por assim dizer. Uma novidade para mim. Reunia sempre tudo o que sabia ser necessário antes de começar um retrato. Porém, no caso do homem do Subaru Forester branco, não consegui fazê-lo. Provavelmente, era o próprio homem que me travava o avanço. Por qualquer motivo, não gostava que lhe pintassem o retrato. Diria até que se opunha a isso.
A certa altura, o Volvo tomou um desvio e passou por um grande portão de aço, aberto, onde havia uma pequena placa. Passaria despercebida se não estivéssemos atentos. Dava ares de ser uma instituição que não se sentia obrigada a anunciar a sua presença ao mundo. Masahiko parou junto à guarita ao lado do portão e deu o seu nome e o do pai ao guarda fardado. Este fez um telefonema para confirmar a identidade do residente. Entrámos e logo nos vimos dentro de um bosque de árvores altas que lançavam uma sombra fria. Subimos a estrada recém-alcatroada até uma rotunda no cimo da colina, onde iríamos estacionar. No centro da rotunda havia um canteiro com couves ornamentais em volta de flores vermelhas. As flores estavam bem cuidadas.
Masahiko contornou a rotunda e estacionou nos lugares para visitantes. Já lá estavam dois carros. Um monovolume Honda branco e um Audi azul-escuro. Ambos novos e reluzentes; no meio deles, o Volvo parecia um velho cavalo de carga. Masahiko, no entanto, não se importou nada (a sua cassete das Bananarama tinha clara precedência). Lá em baixo, o oceano Pacífico refletia o brilho do sol de início de inverno; um punhado de navios pesqueiros de tamanho médio sulcava aquelas águas. Havia uma pequena ilha ao largo e, mais adiante, a península de Manazuru. Os ponteiros do meu relógio marcavam 13h45.
Saímos do carro e dirigimo-nos à entrada. O edifício parecia novo. Era uma estrutura de betão elegante, mas sem nada de especial. Talvez faltasse imaginação ao arquiteto. Ou o cliente, considerando a função das instalações, exigira que o edifício fosse o mais simples e conservador possível. Tinha três andares e era quadrado – uma estrutura feita de linhas retas. Bastaria uma régua para desenhar o projeto. O rés do chão era quase todo em vidro, para criar uma sensação de luminosidade. Projetando-se da frente do edifício havia uma grande varanda de madeira com uma dúzia de espreguiçadeiras; mas era inverno, ninguém estaria a apanhar sol, por mais soalheiro e agradável que fosse o dia. O refeitório tinha paredes de vidro; vi cinco ou seis pessoas lá dentro, com todo o aspeto de serem bastante entradotas. Duas estavam em cadeiras de rodas. Não percebi o que faziam; talvez vissem televisão no ecrã grande na parede. Não estavam a jogar ao eixo, isso é certo.
Masahiko atravessou a entrada e aproximou-se de uma jovem na receção. Tinha um rosto redondo e era simpática, de belo cabelo preto comprido. No blazer azul-escuro exibia um crachá com o seu nome. Parecia conhecer Masahiko, pois os dois entabularam conversa. Fiquei a uma curta distância e esperei que terminassem. Havia uma grande jarra na entrada com um enorme arranjo de flores frescas elaborado, presumi, por um especialista em ikebana. A certa altura, Masahiko pegou na caneta para assinar o livro de registo e, consultando o relógio, acrescentou a hora exata. Afastou-se do balcão e dirigiu-se a mim com as mãos nos bolsos.
– O estado de saúde do meu pai parece ter estabilizado – disse ele. – Teve tosse toda a manhã e falta de ar. Receavam que tivesse apanhado uma pneumonia. Mas conseguiram controlar-lhe a tosse há pouco tempo, e agora ele está a dormir.
– Não há problema se eu entrar contigo?
– Claro que não. Vieste cá vê-lo, não foi?
Apanhámos o elevador até ao segundo andar. O corredor também era simples e conservador, com uma decoração minimalista; a única exceção era uma fila de pinturas a óleo penduradas na longa parede branca, todas de paisagens costeiras. Pareciam formar uma série feita por um único artista, que pintara locais ao longo do mesmo trecho de costa de vários ângulos. Não eram um primor, mas pelo menos o artista fora generoso no uso da tinta, e gostei da forma como as suas pinturas perturbavam o minimalismo estrito da arquitetura. As solas de borracha dos meus sapatos chiaram no chão liso de linóleo. Uma idosa de cabelo branco numa cadeira de rodas, empurrada por um auxiliar, passou por nós no corredor. Olhava em frente, um olhar tão fixo e rígido que nem sequer pestanejou quando passámos, como se estivesse determinada a não perder de vista um sinal crucial suspenso diante dela.
Tomohiko Amada ocupava um quarto grande ao fundo do corredor. O cartão na porta para o nome ficara em branco, provavelmente para proteger a sua privacidade. Falamos de um homem famoso, no fim de contas. O quarto era do tamanho de uma pequena suíte de hotel, com alguns móveis de sala além do leito. Vi uma cadeira de rodas dobrada aos pés da cama. A grande janela virada a sudeste tinha vista para o Pacífico. Era uma paisagem magnífica. Um quarto de hotel com uma vista daquelas custaria uma pipa de massa. Não havia quadros pendurados nas paredes, apenas um espelho e um relógio redondo. Na mesa, uma jarra de tamanho médio com flores roxas. Não havia odor algum. Não a idoso doente, nem a medicamentos, nem a flores, nem a cortinas banhadas pelo sol. Nada. Foi o que mais me surpreendeu: a total falta de cheiro do quarto. Era tão impressionante que pensei que tivesse acontecido alguma coisa ao meu nariz. Como é que o odor podia ser apagado por completo?
Tomohiko Amada dormia a sono solto perto da janela, alheio à paisagem lá fora. Estava de barriga para cima, com os olhos bem fechados. Tinha sobrancelhas brancas e hirsutas sobre as pálpebras envelhecidas, fazendo lembrar um dossel natural. Rugas profundas sulcavam a sua testa. A colcha cobria-o até ao pescoço; não percebi se estava ou não a respirar. Se sim, era uma respiração extremamente superficial.
Soube de imediato que era ele o velho misterioso que tinha visitado o meu estúdio. Vira-o por breves momentos ao luar, mas a forma da sua cabeça e o cabelo branco e selvagem não deixavam dúvidas: só podia ter sido Tomohiko Amada. O facto não me surpreendeu nada; sempre fora bastante evidente.
– Ele está ferrado – disse-me Masahiko. – Temos de esperar que acorde. Se acordar, claro.
– Mesmo assim, é uma bênção ele estar a dormir tão tranquilo – comentei. Olhei para o relógio na parede. Faltavam cinco para as duas. De repente, pensei em Menshiki. Teria telefonado a Shoko Akikawa? Houvera algum desenvolvimento no caso de Marie? Naquele momento, porém, tinha de me concentrar em Tomohiko Amada.
Eu e Masahiko sentámo-nos frente a frente em cadeiras iguais, a beber o café que tínhamos comprado na máquina de venda automática no corredor, à espera de que Tomohiko Amada acordasse. Enquanto isso, Masahiko contou-me novidades sobre Yuzu: que a gravidez corria bem, que a criança devia nascer na primeira quinzena de janeiro; que o belo namorado estava todo contente por ser pai.
– O único problema... da perspetiva do meu amigo, de qualquer forma... é que ela parece não ter intenção de casar com ele – comentou Masahiko.
– Hã? – Não conseguia acreditar no que acabara de ouvir. – Queres dizer que ela tenciona ser mãe solteira?
– A Yuzu pretende ter o bebé, mas não quer casar com o pai, nem viver com ele, nem partilhar a guarda da criança. Resumidamente, é isto. O tipo não é capaz de perceber o que se passa. Partiu do princípio de que casariam assim que o divórcio fosse definitivo, mas ela rejeitou o pedido.
Pensei um pouco, mas quanto mais pensava, mais confuso ficava.
– Não percebo nada – admiti. – A Yuzu sempre afirmou que não queria filhos. Quando eu dizia que seria a altura certa, ela respondia que era demasiado cedo. Então por que motivo quer tanto uma criança agora?
– Talvez não planeasse ter o bebé, mas mudou de ideias depois de engravidar. Às vezes acontece, sabes?
– Ainda assim, vai ser complicado cuidar da criança sozinha. E difícil manter o emprego. Porque é que não quer casar? Ele é o pai da criança, certo?
– Sim, ele também não percebe. Pensava que se davam lindamente e ficou contente com a ideia de ser pai. Por isso está tão confuso. Perguntou a minha opinião, mas eu também estou estupefacto.
– Falaste com a Yuzu? – perguntei.
Masahiko franziu a testa.
– Para ser sincero, estou a tentar não me meter no assunto. Gosto da Yuzu, mas ele é meu colega de trabalho. E claro que tu e eu somos amigos há séculos. Estou numa situação difícil. Quanto mais me envolvo, menos sei o que fazer.
Não me pronunciei.
– Sempre gostei de vos ver juntos, pareciam um casal tão feliz – comentou Masahiko com uma expressão perplexa.
– Já disseste isso antes.
– Sim, talvez tenha dito, mas é a pura verdade.
Depois disso, ficámos sentados em silêncio a olhar para o relógio na parede ou para o mar do lado de fora da janela. Tomohiko Amada continuava a dormir profundamente de barriga para cima, sem mover um músculo. Mantinha-se tão imóvel que me perguntei se estaria vivo, mas como mais ninguém parecia preocupado, calculei que a sua imobilidade era normal.
Ao vê-lo ali deitado, tentei imaginar qual teria sido o aspeto dele enquanto jovem estudante em Viena, mas não consegui. Tinha diante de mim um idoso com a pele engelhada e cabelo branco, experimentando a lenta mas constante aniquilação da sua existência física. Todos, sem exceção, nascemos para morrer, e ele enfrentava agora essa fase final.
– Não tencionas contactar a Yuzu? – perguntou Masahiko.
– De momento, não – respondi, abanando a cabeça.
– Acho que pode ser boa ideia vocês juntarem-se e falarem, terem uma conversa franca.
– O nosso divórcio foi tratado pelos advogados. Assim o quis a Yuzu. Agora está prestes a dar à luz o filho de outro homem. Se quer ou não casar com o fulano, é problema dela. Não me cabe dizer nada sobre isso. O que teríamos nós para falar, exatamente?
– Não queres saber o que se passa?
Abanei a cabeça.
– Não quero saber mais do que preciso. O que aconteceu magoou-me, confesso.
– Tens razão – disse Masahiko.
Mesmo assim, para ser franco, havia momentos em que eu não sabia se tinha ou não ficado magoado. Teria realmente esse direito? Não estava suficiente esclarecido para concluir isso. Naturalmente, as pessoas não podem evitar sentirem-se magoadas em certas situações, assistindo-lhes ou não esse direito.
– O gajo é meu colega – disse Masahiko. – É um tipo sério, trabalhador, tem boa personalidade.
– Sim, e também é bonito.
– É verdade. As mulheres adoram-no. Nada mais natural, creio. Claro que gostava que elas se sentissem atraídas por mim dessa maneira. Mas ele tem aquela tendência que sempre nos deixou espantados.
Esperei que ele prosseguisse.
– Sabes, nunca percebemos porque escolheu as mulheres que escolheu. Quero dizer, tem muitas de volta dele, e opta sempre pelas fracassadas. Não estou a referir-me à Yuzu, claro. Ela é provavelmente a primeira boa escolha que ele fez. Mas as mulheres antes dela eram do piorio. Continuo sem perceber.
Abanou a cabeça, recordando essas mulheres.
– Quase se casou há uns anos. Imprimiram os convites, reservaram o local para a cerimónia e iam para as Fiji ou para um sítio parecido na lua de mel. Ele meteu férias, comprou os bilhetes de avião. A noiva nem era assim tão atraente. Quando a apresentou, lembro-me de ter ficado chocado com o seu ar banal. Não se pode julgar um livro pela capa, mas pelo que me foi dado a ver, a personalidade dela também não era nada de especial. Por algum motivo, ele estava pelo beicinho. Em todo o caso, não pareciam feitos um para o outro. Toda a gente que os conhecia pensava o mesmo, embora ninguém o tivesse dito. Pouco antes do casamento, ela baldou-se. Por outras palavras, foi a mulher que fugiu com o rabo à seringa. Não percebi se isso foi bom ou mau para ele, mas mesmo assim surpreendeu-me.
– Houve alguma razão?
– Que eu saiba, não. Tive pena dele, e não perguntei. Mas acho que ele nunca percebeu por que motivo ela fez o que fez. Quer dizer, fugiu. Não aguentou a ideia de casar com ele. Alguma coisa deve tê-la incomodado.
– Onde queres chegar com essa história?
– Que ainda é possível que tu e a Yuzu voltem a estar juntos. Supondo que é isso que queres, claro.
– Mas ela está prestes a ter o filho de outro homem.
– Sim, percebo que isso possa ser um problema.
Ficámos novamente em silêncio.
* * *
Tomohiko Amada acordou pouco antes das três. O seu corpo começou por se contrair. A seguir, respirou fundo; vi a colcha sobre o peito subir e descer. Masahiko levantou-se e aproximou-se da cama. Olhou para o rosto do pai. Os olhos do velho abriram-se lentamente. As suas sobrancelhas espessas brancas tremeram.
Masahiko pegou num copo estreito que estava na mesa de cabeceira e humedeceu os lábios do pai. Limpou-lhe os cantos da boca com uma espécie de gaze. O pai queria mais, e ele repetiu o processo várias vezes. Mostrava à-vontade com a tarefa, como se o tivesse feito muitas vezes. A maçã de Adão do velho subia e descia a cada gole. Só quando vi aquele movimento tive a certeza de que ele ainda estava vivo.
– Pai, este é o rapaz que se mudou para a casa de Odawara – disse Masahiko, apontando para mim. – É pintor e está a trabalhar no teu estúdio. Somos amigos desde os tempos da faculdade. Não é dotado de uma grande inteligência e a sua linda esposa abandonou-o, mas nunca deixou de ser um grande artista.
Não posso garantir que o pai de Masahiko tivesse compreendido tudo, mas virou lentamente a cabeça na minha direção como se seguisse o dedo do filho. Um rosto inexpressivo. Parecia estar a olhar para alguma coisa, mas essa coisa não tinha qualquer significado para ele. No entanto, julguei detetar uma luz surpreendentemente límpida e lúcida no fundo daqueles olhos turvos. Essa luz aparentava estar à espera de algo que pudesse ter uma importância real. Pelo menos foi essa a impressão com que fiquei.
– Duvido que entenda uma palavra do que digo – explicou Masahiko –, mas o médico aconselhou-nos a falar da forma mais natural possível, como se ele fosse capaz de compreender. Ninguém sabe se está a apanhar bonés, estás a ver? Por isso, falo com ele normalmente. Também é mais fácil para mim. Agora diz tu alguma coisa.
– É um prazer conhecê-lo, senhor Amada – comecei. Disse-lhe o meu nome. – O seu filho teve a amabilidade de me deixar morar na sua casa em Odawara.
Tomohiko Amada olhava para mim, mas a sua expressão não mudara. Masahiko fez um gesto: Continua a falar... qualquer coisa serve.
– Pinto quadros a óleo – continuei. – Especializei-me em retratos durante bastante tempo, mas desisti disso e agora pinto as minhas cenas. Aceito encomendas de retratos, mas só ocasionalmente. O rosto humano fascina-me, creio. O Masahiko e eu somos amigos desde os tempos da faculdade.
Os olhos de Tomohiko Amada continuavam voltados para mim. Estavam cobertos por uma membrana fina, uma espécie de cortina de renda com várias camadas pendurada entre a vida e a morte. O que se encontrava atrás da cortina desapareceria de vista à medida que as camadas aumentassem, até finalmente a última cortina pesada cair.
– Adoro a sua casa – declarei. – O meu trabalho está a progredir bem. Tenho ouvido os seus discos... espero que não se importe. O Masahiko disse-me que não havia problema. Tem uma excelente coleção; gosto em particular das óperas. Ah, sim, e subi ao sótão, faz tempo.
Pensei ter visto um brilho nos seus olhos quando disse a palavra «sótão». Foi apenas um lampejo rápido – ninguém teria notado a não ser que estivesse a prestar atenção; mas eu estava atento e não me escapou. Pelos vistos, «sótão» possuía uma carga que fez surgir qualquer coisa na sua memória.
– Uma coruja mudou-se para o sótão – prossegui. – Estava sempre a ouvir uns barulhos durante a noite. Pensei que era uma ratazana, e um dia fui verificar. E lá estava a coruja, instalada debaixo das vigas. É uma bela ave. A rede do respiradouro tem um buraco, podendo entrar e sair à vontade. O sótão é um esconderijo diurno perfeito para uma coruja, não acha?
Os olhos continuavam fixos em mim, como se estivesse à espera de ouvir o resto.
– As corujas não fazem estragos – interveio Masahiko. – Até há quem diga que dão sorte.
– Adoro aquela ave – acrescentei. – E o sótão também é um lugar fascinante.
Deitado na cama, Tomohiko Amada fitava-me sem mover um músculo. A sua respiração tornara-se de novo superficial. Aquela fina membrana ainda cobria os seus olhos, mas a luz secreta no interior parecia ter-se intensificado.
Queria falar mais sobre o sótão, mas Masahiko estava ao meu lado e não havia forma de dizer o que lá encontrara. Só iria espicaçar a curiosidade dele. Deixei o assunto pairar enquanto Tomohiko Amada e eu nos olhávamos.
Escolhi as palavras com cuidado.
– O sótão é bom para as corujas, mas também pode ser bom para os quadros. Seria um local perfeito para guardá-los, especialmente as pinturas em estilo japonês, pois são realmente difíceis de preservar. Os sótãos não são húmidos como as caves, são bem ventilados e não é preciso preocuparmo-nos com a luz do Sol. Claro que há sempre o perigo de o vento e a chuva entrarem, mas se o embrulharmos com cuidado, um quadro deve aguentar-se lá durante bastante tempo.
– Sabias que nunca fui ao sótão? – considerou Masahiko. – Os sítios cheios de pó fazem-me impressão.
Eu observava o rosto de Tomohiko Amada. O seu olhar continuava fixo em mim. Senti que ele tentava construir uma linha coerente de pensamento. Coruja, sótão, quadros guardados... todas aquelas palavras familiares precisavam de ser alinhadas. No seu estado atual, isso não era tarefa fácil. Nada fácil. Como entrar num labirinto de olhos vendados. Mas senti que estabelecer essas ligações era importante para ele. Extremamente importante. Em silêncio, fiquei a vê-lo concentrar-se naquela tarefa urgente, mas solitária.
Pensei em falar do santuário na floresta e do estranho poço atrás dele. Descrever os passos dados até ele ser aberto e a forma do seu interior. Depois mudei de ideias. Não devia dar-lhe muito que pensar de uma só vez. O seu nível de consciência estava tão diminuído que até um único assunto era um fardo pesado. O pouco que ele tinha pendia num único fio, que facilmente seria cortado.
– Queres mais água? – perguntou Masahiko, de copo na mão.
O pai não reagiu. Era como se não tivesse ouvido a pergunta do filho. Masahiko aproximou-se e repetiu a pergunta. O ancião continuou sem responder, e ele desistiu. O filho era invisível aos olhos do pai.
– O meu velhote parece gostar de ti – admirou-se Masahiko. – Não consegue parar de te observar. Faz tempo que alguém ou alguma coisa prendia o interesse dele desta forma.
Continuei a contemplar os olhos de Tomohiko Amada.
– É estranho. Quando falo com ele não me passa cartão, diga eu o que disser, mas contigo não desgruda. Tem os olhos fixos em ti.
Não pude deixar de notar um leve tom de inveja na voz de Masahiko. Ele queria que o pai o visse. Era provavelmente um tema recorrente na sua vida, desde pequeno.
– Talvez consiga cheirar a tinta em mim – sugeri. – O cheiro despertou certamente algumas recordações.
– Tens razão, deve ser isso. Pensando bem, há muito tempo que não toco em tinta.
O seu tom já não era de pesar. Voltara a ser o Masahiko descontraído. Naquele momento, o telemóvel começou a zumbir na mesa.
Masahiko olhou para cima com um sobressalto.
– Raios, esqueci-me de o desligar. É proibido usar telemóveis aqui. Vou ter de ir lá para fora. Não te importas, pois não?
– Claro que não.
Masahiko pegou no telemóvel e foi até à porta.
– Isto pode demorar algum tempo – disse ele, ao olhar para o nome no ecrã. – Por favor, fala com o meu pai enquanto eu não estiver aqui.
Já ia a sussurrar para o telemóvel ao sair, e fechou silenciosamente a porta atrás dele.
Tomohiko Amada e eu ficámos sozinhos. Os seus olhos permaneciam fixos no meu rosto. Ele tentava sem dúvida descobrir quem eu era. Sentindo-me um pouco sufocado, contornei os pés da cama e fui até à janela virada a sudeste. Aproximando o rosto do vidro, olhei para a vasta extensão do oceano. O horizonte parecia estar a erguer-se contra o céu. Segui a linha onde o céu encontrava a água. Nenhum ser humano seria capaz de desenhar uma linha tão bonita, qualquer que fosse a régua que usasse. Abaixo daquela linha reta e longa medravam numerosas vidas. O mundo estava repleto de vidas e de igual número de mortes.
Pressentindo uma presença no quarto, virei-me. Tomohiko Amada e eu já não estávamos sozinhos.
– Confere, meu amigo. Já não estais sozinhos – disse o Comendador.
50
ENVOLVERÁ UM NOTÁVEL SACRIFÍCIO E UMA PROVAÇÃO ATROZ
–Confere, meu amigo. Já não estais sozinhos – disse o Comendador.
O homenzinho ocupava a cadeira estofada onde Masahiko estivera um momento antes. Não mudara nada: o mesmo traje, o mesmo penteado, a mesma espada, o mesmo físico minúsculo. Olhei para ele sem dizer palavra.
– O vosso amigo não voltará tão cedo – disse o Comendador, erguendo o indicador direito como se quisesse furar o céu. – O telefonema dele promete ser longo. Por favor, não vos preocupeis. Podeis conversar com o Tomohiko Amada o tempo que desejardes. Há perguntas que gostaríeis de lhe fazer, não é verdade? A quantas poderá ele responder, no entanto, é discutível.
– Mandou embora o Masahiko?
– Claro que não – respondeu o Comendador. – Receio que tenhais sobrestimado os meus poderes. São inferiores a isso. Mas os funcionários das empresas estão sempre à disposição de alguém. Esses desgraçados não têm fins de semana.
– Esteve aqui o tempo todo? Veio connosco no carro?
O Comendador abanou a cabeça.
– Negativo. O caminho desde Odawara é muito moroso, e sou propenso a enjoos.
– E mesmo assim veio, embora não tenha sido convidado, correto?
– Confere! Não fui convidado. Tecnicamente, pelo menos. Contudo, era necessário. Há uma linha ténue entre ser convidado e ser necessário, meu amigo. Mas deixando isso de lado, desta vez foi Tomohiko Amada quem precisou de mim. E achei que também poderia ser útil ao meu caro amigo.
– Útil a mim?
– De facto. Estou de certa forma em dívida para convosco. Libertastes-me daquele lugar debaixo do chão. Foi graças a vós que pude voltar ao mundo na forma de Ideia, como haveis afirmado. É justo que eu pague essa dívida. Até as Ideias conseguem entender a importância da obrigação moral.
Obrigação moral?
– Oh, bem, não importa. Algo do género – disse o Comendador, como se lesse a minha mente. – De qualquer forma, desejais de todo o coração localizar a Marie Akikawa e trazê-la de volta do outro lado. Confere?
Assenti. Sim, era verdade.
– Sabe onde ela está? – perguntei.
– De facto, encontrei-a há pouco tempo.
– Encontrou-a?
– Trocámos algumas palavras.
– Então, por favor, diga-me onde ela está.
– Sei onde está, mas não posso dizer.
– Não pode dizer?
– Não tenho esse direito.
– Acabou de dizer que veio aqui hoje para me ajudar...
– Confere, eu disse isso.
– E mesmo assim não pode revelar-me onde está a Marie?
O Comendador abanou a cabeça.
– Não é esse o meu papel. Lamento.
– Então, é de quem?
O Comendador apontou o indicador direito para mim.
– É o vosso papel, amigo. O vosso. Deveis dizer a vós próprios onde está a Marie Akikawa. É o único caminho que conduz a ela.
– Devo dizer a mim próprio? – repeti. – Se não faço a menor ideia de onde ela está...
O homúnculo soltou um longo suspiro.
– Sabeis, sim. Só que ainda não sabeis que sabeis.
– Isso soa-me a pescadinha de rabo na boca.
– Negativo. Não é circular. Sabereis no devido tempo. Num lugar diferente deste.
Foi a minha vez de suspirar.
– Por favor, responda-me a isto: a Marie foi raptada? Ou partiu sozinha?
– Isso é algo que só podeis saber depois de a encontrardes e quando a trouxerdes de novo para este mundo.
– Ela corre grave perigo?
O Comendador abanou a cabeça.
– Determinar o que constitui grave perigo é um papel que os humanos, não as Ideias, devem desempenhar. Se realmente desejais trazê-la de volta, tendes de encontrar a estrada e avançar rapidamente.
Encontrar a estrada? De que estrada estava ele a falar? Observei o Comendador. Parecia estar a jogar às charadas; supondo que as suas charadas tinham resposta, claro.
– Afinal, que tipo de auxílio pode prestar-me?
– O que posso fazer por vós – disse o Comendador – é mandar-vos para um lugar onde o caro amigo se encontrará a si próprio. Mas isso não é tão fácil quanto parece. Envolverá um notável sacrifício e uma provação atroz. Mais especificamente, o sacrifício será feito pela Ideia, e a provação será suportada por vós. Tenho a vossa aprovação?
O que podia eu dizer? Não fazia puto de ideia do que ele estava a falar.
– E o que tenho mesmo de fazer?
– É simples – respondeu o Comendador. – Deveis matar-me.
51
CHEGOU O MOMENTO
–É simples – respondeu o Comendador. – Deveis matar-me.
– Matá-lo?!
– Matai-me, como no quadro A Morte do Comendador... Fazei do quadro o vosso modelo.
– Eu devia passá-lo a fio de espada, é isso?
– Precisamente. Por sorte, tenho uma espada comigo. É verdadeira, e como vos disse antes: se for usada para golpear, haverá sangue. Não é do tamanho normal, mas eu também não sou do tamanho normal, logo, será suficiente.
Eu encontrava-me aos pés da cama, de frente para o Comendador. Queria dizer qualquer coisa, mas não sabia o quê. E ali me quedei, a criar raízes. Da cama, Tomohiko Amada também olhava na direção do Comendador, mas se conseguia ou não vê-lo, isso era outra história. O Comendador decidia quem podia e quem não podia vê-lo.
Mais ou menos recomposto, abalancei-me numa pergunta.
– Se o trespassar com essa espada, fico a saber onde está a Marie Akikawa?
– Negativo. Não exatamente. Primeiro, tereis de vos ver livres de mim. Fazei-me desaparecer da face da Terra. Seguir-se-á uma série de acontecimentos que poderá levar-vos à localização da rapariga.
Esforcei-me por decifrar a mensagem.
– Não sei a que série de acontecimentos se refere, mas posso ter a certeza de que eles me conduzirão na direção esperada? Mesmo que eu o mate, não há qualquer garantia. Nesse caso, a sua morte não faria sentido.
O Comendador levantou a sobrancelha e olhou para mim. Parecia Lee Marvin em À Queima Roupa. Muito fixe. Mas é claro que não havia a menor possibilidade de o Comendador ter visto o filme em questão.
– Confere. É como dizeis: talvez a sequência de acontecimentos não flua com tanta naturalidade no mundo real. Talvez a minha hipótese seja baseada em meras suposições e conjeturas. São demasiados talvez. Mas não resta alternativa. Não nos podemos dar ao luxo de escolher.
– Então, se eu o matar, estará morto para mim? Desaparecerá da minha vista para sempre?
– Confere. Para vós, estarei morto e desaparecido. Uma das inúmeras mortes que uma Ideia deve sofrer.
– Não há o perigo de o mundo ser alterado quando uma Ideia é morta?
– De que outra forma poderia ser? – retorquiu o Comendador. Voltou a erguer a sobrancelha ao estilo de Lee Marvin. – Qual o significado de um mundo que não muda quando uma Ideia é extinta? Será uma Ideia tão insignificante?
– Apesar de tudo, quer que o mate, ainda que o mundo venha a sofrer alterações.
– Vós haveis-me libertado. E agora tereis de matar-me. Se falhardes nessa tarefa, o círculo permanecerá aberto. E uma vez aberto um círculo, deve ser fechado. Não há outra opção.
Olhei para Tomohiko Amada, deitado na cama. Os seus olhos pareciam estar virados para a cadeira que o Comendador ocupava.
– O senhor Amada consegue vê-lo?
– Estará a ver-me agora – respondeu o Comendador. – E também a ouvir as nossas vozes. Daqui por momentos começará a compreender a importância da nossa conversa. Está a reunir todas as forças que lhe restam com esse intuito.
– O que lhe parece que ele tentou transmitir com A Morte do Comendador?
– Não me compete dizer. Tereis de perguntar ao artista, já que ele está mesmo à vossa frente.
Tornei a sentar-me e aproximei-me do homem estendido na cama.
– Senhor Amada, encontrei o quadro que guardou no sótão. Tenho a certeza de que queria escondê-lo. Não o teria embrulhado tão bem se planeasse mostrá-lo a alguém. Mas desembrulhei-o. Não terá sido do seu agrado, mas a minha curiosidade levou a melhor. E quando descobri que se tratava de um quadro soberbo, não consegui deixar de olhar para ele. É uma excelente pintura. Uma das suas melhores obras, sem dúvida. Neste momento, quase ninguém sabe da sua existência. Nem o Masahiko a viu. No entanto, uma rapariga de treze anos chamada Marie Akikawa viu-o. E ela desapareceu ontem.
O Comendador levantou a mão.
– Por favor, deixai-o descansar. O seu cérebro fica facilmente sobrecarregado... não consegue processar demasiada informação.
Calei-me e estudei o rosto de Tomohiko Amada. Não sabia dizer se ele tinha compreendido; o rosto continuava inexpressivo. Mas quando olhei mais de perto vi um brilho nas profundezas dos seus olhos. Como o brilho de um canivete afiado no fundo de uma fonte.
Voltei a falar, desta feita compassadamente.
– A minha pergunta é: qual foi o seu propósito ao pintar aquele quadro? O tema, a estrutura e o estilo são muito diferentes dos trabalhos anteriores. Leva-me a pensar que o usou para comunicar uma mensagem muito pessoal. Qual é o significado subjacente? Quem mata quem? Quem é o Comendador? Quem é o assassino Don Giovanni? E quem é aquele misterioso sujeito de barba, senhor de uma cara comprida, que espreita do chão no canto inferior esquerdo?
O Comendador levantou novamente a mão. Calei-me.
– Chega de perguntas – disse ele. – Vão demorar algum tempo a ser processadas.
– Ele será capaz de responder? Tem força suficiente?
– Não – respondeu o Comendador. – Duvido que consigais obter respostas. O mestre não tem energia para tanto.
– Então de que serviu tanta pergunta?
– Aquilo que haveis transmitido não foram perguntas, mas informações. Que haveis encontrado A Morte do Comendador no sótão, que conheceis a sua existência. É o primeiro passo. Tudo começa aí.
– Qual é o segundo passo?
– Tendes de me matar, claro. Esse é o segundo passo.
– E há um terceiro passo?
– Deve haver, como é evidente.
– E qual é?
– Ainda não haveis percebido, meu amigo?
– Não.
– Ao encenar a alegoria contida naquele quadro, vamos atrair o Cara Comprida para campo aberto. Para este quarto. Ao arrastá-lo cá para fora, reconquistareis a Marie Akikawa.
Eu estava sem palavras. Em que mundo teria penetrado? Não parecia ter lógica nenhuma.
– Não é fácil, sem dúvida – continuou o Comendador. – Porém, não há alternativa. Tendes de me despachar agora, sem mais delongas.
Esperámos que a informação que eu fornecera a Tomohiko Amada completasse a sua viagem até ao cérebro dele. Levou algum tempo. Entretanto, tentei resolver algumas dúvidas que eu tinha, bombardeando o Comendador com perguntas.
– Por que motivo o Tomohiko Amada continuou em silêncio sobre o que aconteceu em Viena, mesmo depois do fim da guerra? Quero dizer, ninguém o impedia de falar nessa altura.
– A mulher que ele amava foi executada de forma brutal pelos nazis – respondeu o Comendador. – Torturada lentamente até morrer. Os seus camaradas foram mortos de maneira semelhante. O golpe planeado redundou num fracasso. Só graças aos governos japonês e alemão é que ele escapou com vida. A experiência marcou-o. Passou dois meses nas mãos da Gestapo, submetido a torturas extremas. A violência deles foi indescritível, mas tiveram o cuidado de não o matar, nem de deixar cicatrizes físicas. No entanto, o sadismo deixou-lhe os nervos em frangalhos, e, como resultado, algo dentro dele morreu. Sujeito a ordens, curvou-se para o inevitável e permaneceu em silêncio. Ato contínuo, foi repatriado à força para o Japão.
– Não muito antes, o irmão mais novo do Tomohiko Amada tirara a própria vida, provavelmente por causa do trauma da sua experiência de guerra – intervim. – Ele participara no Massacre de Nanquim e suicidou-se logo após sua saída do exército. Certo?
– Confere. Tomohiko Amada perdeu muitos entes queridos no turbilhão daqueles anos. Ele próprio ficou bastante danificado. Como resultado, a raiva e a tristeza criaram raízes profundas. A constatação desesperada e impotente de que, fizesse o que fizesse, não seria capaz de resistir à torrente da história. Como único sobrevivente, também deve ter sentido uma imensa culpa. Por isso nunca disse uma palavra sobre o que aconteceu em Viena, mesmo depois de a mordaça ter sido retirada, como se fosse incapaz de falar.
Olhei para o rosto de Tomohiko Amada, mas continuei sem detetar uma reação. Não garanto que nos tenha ouvido.
– Então, a certa altura, não sabemos exatamente quando, ele pintou A Morte do Comendador. Uma pintura alegórica que expressava o que não podia dizer. Colocou lá tudo. Um fantástico tour de force. – disse eu.
– Agarrou naquilo que não conseguira concretizar na realidade – continuou o Comendador – e deu-lhe outra forma. Poderíamos chamar-lhe «expressão camuflada». Não do que de facto aconteceu, mas do que devia ter acontecido.
– No entanto, ele embrulhou o quadro e escondeu-o no sótão, longe da vista do público – comentei. – Embora tenha transformado radicalmente os acontecimentos, estes ainda estavam demasiado frescos para ser revelados. É isto?
– Precisamente. Destila a pura essência do seu espírito vivo. Até que, um dia, vós o haveis encontrado.
– Está a dizer que tudo começou quando desembrulhei o quadro? Foi o que quis dizer com «abrir o círculo»?
O Comendador não tugiu nem mugiu. Limitou-se a levantar as palmas das mãos.
Pouco depois, vimos o rosto de Tomohiko Amada adquirir um tom rosado. (O Comendador e eu estávamos a observá-lo com atenção, à espera de uma mudança, por mais subtil.) Ao mesmo tempo, como que em resposta, a luz pequena e misteriosa que surgira no fundo dos seus olhos começou a vir lentamente à superfície, como um mergulhador a ascender das profundezas, avaliando os efeitos da pressão da água no corpo. O véu que cobria os olhos de Amada também desapareceu, até que, finalmente, ficaram os dois bem abertos. A pessoa que estava diante de nós já não era um homem frágil e ressequido à beira da morte, mas sim alguém cujos olhos transbordavam de determinação para se agarrar àquele mundo o máximo de tempo possível.
– Ele está a reunir as forças que lhe restam – disse o Comendador. – Tenta recuperar a sua mente consciente, tanto quanto lhe é permitido. Essa recuperação mental, porém, implica em igual medida tormento físico. O seu corpo tem segregado uma substância especial para diminuir essa dor. É graças à existência de tal substância que as pessoas podem morrer em paz, em vez de morrerem em agonia. Quando a consciência regressa, assim acontece com a dor. No entanto, ele bem tenta recuperar o máximo possível. É uma missão que deve cumprir aqui e agora, por maior que seja o sofrimento.
Como se quisesse reforçar as palavras do Comendador, o rosto de Tomohiko Amada começou a contorcer-se de agonia. A idade e a doença tinham corroído o seu corpo, ao ponto de este quase se ter desligado – o velho sentia isso naquele momento; não havia como evitá-lo. O fim do seu tempo aproximava-se rapidamente. Era doloroso vê-lo sofrer. Em vez de o chamar ao presente, talvez fosse melhor deixá-lo ter uma morte tranquila e indolor, mergulhado numa névoa semiconsciente.
– Contudo, ele escolheu este caminho – prosseguiu o Comendador, lendo novamente a minha mente. – É doloroso testemunhar isso, mas nada podemos fazer.
– O Masahiko está quase a voltar? – perguntei ao Comendador.
– Negativo. Ainda falta algum tempo – respondeu ele com um pequeno aceno de cabeça. – Era um telefonema de trabalho, uma coisa importante. Estará ausente durante um tempo considerável.
Os olhos de Amada encontravam-se bem abertos. Tinham estado encovados nas órbitas engelhadas, mas agora os globos oculares projetavam-se como uma pessoa debruçada à janela. A sua respiração era mais profunda e mais irregular. Farfalhava ao passar pela garganta. E ele olhava diretamente para o Comendador. Sem dúvida. O Comendador era visível para ele. O seu rosto espelhava um enorme espanto. Não podia acreditar naquela coisa que via sentada à sua frente. Como podia uma figura produzida pela sua imaginação aparecer diante dele na realidade?
– Negativo, não é esse o caso – disse o Comendador. – O que ele vê e o que vós vedes são coisas completamente diferentes.
– Quer dizer que, para ele, o seu aspeto é diferente?
– Meu amigo, recordai-vos de que sou uma Ideia. A minha forma muda dependendo da pessoa e da situação.
– E qual é o seu aspeto para o senhor Amada?
– Isso é uma coisa que nem eu sei. Sou como um espelho que reflete o que está no coração de uma pessoa. Nada mais.
– Mas assumiu essa forma para mim de propósito, não foi? Não escolheu aparecer como Comendador?
– Para ser preciso, não escolhi esta forma. Causa e efeito são difíceis de separar neste caso. Como tomei a forma do Comendador, uma cadeia de acontecimentos foi posta em movimento. Ao mesmo tempo, porém, a minha forma é a consequência necessária dessa mesma cadeia. É difícil explicar usando o conceito de tempo que governa o mundo em que viveis, meu amigo, mas podemos resumi-lo da seguinte forma: todos estes acontecimentos foram determinados de antemão.
– Se uma Ideia é um espelho, então Tomohiko Amada está a ver o que deseja ver?
– Negativo. Ele está a ver o que deve ver – corrigiu o Comendador. – Pode ser atroz. No entanto, ele tem de olhar. Agora, no final da sua vida.
Tornei a examinar o rosto de Tomohiko Amada. À mistura com o assombro, detetei uma aversão intensa, a par de um tormento quase insuportável. O regresso à consciência trouxe consigo não apenas a agonia da carne, mas também a agonia da alma.
– Ele está a usar as últimas gotas da sua vitalidade para saber quem sou, apesar da dor. Tenta regressar à época em que tinha vinte anos.
O rosto de Tomohiko Amada ficara escarlate. O sangue quente fluía-lhe pelas veias. Os lábios finos e secos tremeram e ele arquejou de forma violenta. Vi-lhe os longos dedos esqueléticos agarrarem os lençóis.
– Parai com as hesitações, meu amigo, e matai-me agora, enquanto a vossa mente ainda está inteira – disse o Comendador. – Quanto mais depressa, melhor. Ele pode não se aguentar muito mais tempo.
O Comendador desembainhou a espada. Tinha apenas vinte centímetros de comprimento, mas parecia bastante afiada. Apesar das suas dimensões, aquela arma acabaria com a vida de uma pessoa.
– Apunhalai-me com isto – ordenou a aparição. – Vamos recriar a cena de A Morte do Comendador. Depressa, não há tempo a perder.
Olhava ora para o Comendador, ora para Tomohiko Amada, tentando decidir-me. Tinha apenas a vaga convicção de que Tomohiko Amada estava em sofrimento e que a determinação do Comendador era inabalável. Restava eu e a minha indecisão, preso entre os dois.
Senti o adejar de asas de coruja e ouvi um sino tocar no escuro.
Tudo estava ligado algures.
– Confere! Tudo está ligado algures – declarou o Comendador. – E não podeis escapar a essa ligação, por mais que tenteis. Então enchei-vos de coragem e matai-me. Não há espaço para a culpa. Tomohiko Amada precisa da vossa ajuda. Ao matar-me, podeis salvá-lo. Deveis fazer acontecer aqui o que devia ter acontecido no passado. Chegou o momento. Só vós podeis conceder-lhe a salvação antes que ele dê o último suspiro.
Levantei-me da cadeira e caminhei até onde o Comendador estava sentado. Peguei na sua espada desembainhada. Já não conseguia decidir o que era justo e injusto. Num mundo fora do espaço e do tempo, todas as dualidades – antes e depois, cima e baixo – deixavam de existir. Em semelhante mundo, já não conseguia ver-me como eu próprio. A minha essência estava a ser despedaçada.
No entanto, assim que peguei na espada, percebi que o punho era demasiado pequeno. Tratava-se de uma espada em miniatura para uma mão diminuta. Era impossível matar o Comendador com ela, por mais afiada que fosse a sua lâmina. Essa constatação encheu-me de alívio.
– A espada é demasiado pequena. Não consigo segurá-la – disse eu ao Comendador.
– Que pena – disse ele com um suspiro. – Bem, não há nada a fazer. Temos de usar outra coisa, embora isso signifique distanciar-nos ainda mais da pintura.
– Outra coisa?
O Comendador apontou para uma pequena cómoda no canto do quarto.
– Ide abrir a gaveta de cima.
Fui até lá e fiz o que ele me disse.
– Aí dentro há uma faca para amanhar peixe – indicou o Comendador.
Era verdade, vi uma faca em cima de uma pilha de luvas turcas dobradas: a faca que Masahiko usara para preparar a dourada lá em casa. Uma lâmina de vinte centímetros extremamente afiada. Masahiko zelava pelos seus utensílios. Aquela faca não era exceção.
– Agora pegai na faca e espetai-a no meu peito – ordenou o Comendador. – Espada ou faca, tanto faz. Podemos ainda reconstituir a cena de A Morte do Comendador. Mas temos de nos apressar, resta-nos pouco tempo.
Peguei na faca. Era pesada como uma pedra. A ponta da lâmina brilhava fria e branca com a luz que entrava pela janela. A faca tinha desaparecido da minha cozinha e fora esperar-me ali, na cómoda. Masahiko afiara a lâmina, como eu podia constatar, por causa do pai. Parecia não haver forma de escapar ao meu destino.
Continuava sem conseguir tomar uma decisão. Mesmo assim, fui para trás da cadeira do Comendador, segurando firmemente a faca na minha mão direita. Da sua cama, Tomohiko Amada observava-nos de olhos arregalados, como se visse a história desenrolar-se à sua frente. Tinha a boca aberta, expondo os dentes amarelados e a língua esbranquiçada, uma língua que lhe pendia da boca como se tentasse formar palavras. Palavras que este mundo nunca ouviria.
– Não haveis sido talhado para a violência – disse o Comendador, como que a repreender-me. – É óbvio. Não fostes feito para matar. Mas às vezes as pessoas devem agir contra a sua natureza, para salvar algo importante ou por algum propósito maior. Este é um desses momentos. Então matai-me! Não sou grande, como podeis ver, e não vou resistir. Sou apenas uma Ideia. Enfiai a ponta da faca no meu coração. Mais simples não há.
O Comendador apontou o indicador minúsculo para o local onde estava o seu coração, mas pensar naquele coração trouxe-me inevitavelmente à memória o coração da minha irmã. Lembrava-me do procedimento médico a que fora submetida como se tivesse sido na véspera. Uma operação delicada e difícil. Salvar um coração defeituoso era uma tarefa impressionante; exigia uma equipa de especialistas e litros e litros de sangue. Ainda assim, destruir um coração era a coisa mais fácil do mundo.
– Tais pensamentos não vos levam a lado nenhum – disse o Comendador. – Se desejais salvar a Marie Akikawa, fazei isto, mesmo que não queirais. Confiai em mim. Libertai-vos de todos os sentimentos e fechai a vossa mente. Mas não os olhos. Deveis mantê-los abertos.
Aproximei-me do Comendador por trás e ergui a faca, mas não consegui fazê-la descer sobre ele. Sim, podia ser apenas uma das inúmeras mortes de uma Ideia, mas para mim continuava a tratar-se de pôr fim a uma vida. Não tinha uma ordem destas sido dada pelo jovem tenente a Tsuguhiko Amada em Nanquim?
– Negativo! Não é a mesma coisa – bradou o Comendador. – Estais a fazer isto a meu pedido. Sou eu quem vos pede que me mateis, para que eu possa renascer. Sede forte. Fechai o círculo de uma vez.
Cerrei os olhos e pensei na rapariga que tinha estrangulado no love hotel em Miyagi. Era apenas a fingir, óbvio. Eu apertara-lhe suavemente a garganta para não a matar. Não consegui fazer aquilo durante tempo suficiente para a satisfazer. Se tivesse continuado, podia de facto tê-la matado. Na cama daquele love hotel, eu vislumbrara a raiva profunda dentro de mim pela primeira vez. Fervilhara no meu peito como lama ensopada em sangue, empurrando-me cada vez mais para um verdadeiro homicídio.
Sei exatamente onde esteve e o que fez, dissera o homem.
– Muito bem, agora fazei descer – instruiu o Comendador. – Sei que sois capaz. Lembrai-vos, meu amigo, não estareis a matar-me. Estareis a matar o vosso malvado pai. O sangue do vosso malvado pai encharcará a terra.
O meu malvado pai?
Onde foi buscar aquilo?
– Quem é o vosso malvado pai? – perguntou o Comendador, lendo a minha mente. – Acredito que os vossos caminhos se cruzaram não há muito tempo. Estou enganado?
Pare de pintar o meu retrato, dissera o homem. Apontara-me o dedo de dentro do espelho escuro, perfurando o meu peito como a ponta de uma espada afiada.
Estimulado por essa dor, fechei o coração, como que por reflexo, e abri bem os olhos. Varri todos os pensamentos da mente (como Don Giovanni tinha feito em A Morte do Comendador), enterrei as emoções, o meu rosto ficou inexpressivo e baixei a faca com todas as minhas forças. A lâmina afiada entrou no minúsculo peito do Comendador exatamente onde ele havia apontado. Senti a carne resistir. O Comendador, porém, não fez qualquer tentativa de desviar o golpe. Os seus dedos agitaram-se no ar, mas, tirando isso, não reagiu. Ainda assim, o corpo que ele habitava fazia o que podia para evitar a sua extinção. O Comendador era uma Ideia, mas o seu corpo não. Uma Ideia tê-lo-ia ocupado com um determinado fito, embora esse corpo não se submetesse mansamente à morte. Possuía a sua própria lógica. Eu tinha de superar essa resistência através da força bruta, cortando-lhe a vida pela raiz. «Matai-me», dissera o Comendador. Mas eu estava realmente a despachar o corpo de outra pessoa.
Apetecia-me deixar a faca cair ao chão, largar tudo e sair dali a correr, porém, as palavras do Comendador ecoavam nos meus ouvidos. «Se desejardes salvar a Marie Akikawa, fazei isto. Mesmo que não queirais.»
Então enterrei ainda mais a lâmina no coração do Comendador. Se é para esfaquear alguém, não há cá meio-termo. A ponta da faca emergiu das suas costas: eu trespassara-o. A roupa branca tingida de vermelho, as minhas mãos encharcadas de sangue. Mas o sangue não jorrava como em A Morte do Comendador. Isto é uma ilusão, tentei convencer-me. Eu assassinava um fantasma, o meu gesto fora puramente simbólico.
No entanto, iludia-me a mim próprio. Talvez o ato fosse simbólico, contudo, não era a um fantasma que eu tirava a vida. A minha vítima era feita de carne e osso, sem a menor dúvida. Podia ter pouco mais de meio metro de altura, ter sido inventada pelo pincel de Tomohiko Amada, mas a sua força vital revelava-se inesperadamente pujante. A ponta da lâmina rasgara-lhe a pele e atravessara várias costelas a caminho do coração, indo bater nas costas da cadeira. Nem por sombras se tratava de uma ilusão.
Os olhos de Tomohiko Amada abriram-se ainda mais, fixos na cena que se desenrolava diante dele. O meu assassínio do Comendador. Não, para ele deve ter sido o assassínio de outra pessoa. Quem estaria a ver? O oficial nazi cujo homicídio ele ajudara a planear em Viena? O jovem tenente que dera ao irmão uma espada japonesa e o mandara decapitar três prisioneiros chineses em Nanquim? Ou algo maligno, algo fundamental, que estava na raiz desses acontecimentos? Eu podia apenas tentar adivinhar; não conseguia ler a expressão de Tomohiko Amada. Embora a sua boca estivesse aberta, os seus lábios mantinham-se imóveis. Apenas a língua persistia na tentativa inútil de formar palavras.
Por fim, a força abandonou o pescoço e os braços do Comendador. O corpo ficou inerte, como uma marioneta cujos cordelinhos tivessem sido cortados. Reagi empurrando ainda mais a faca contra o seu coração. Naquele quarto, todo e qualquer movimento foi suspenso, tornando a cena um tableau. Durante muito tempo.
Tomohiko Amada foi o primeiro a mover-se. Mal o Comendador perdeu a consciência e soçobrou, dissipou-se também a força do mestre para congregar a sua mente. Ele suspirou e fechou os olhos. Como quem baixa as persianas, lenta e solenemente. Como quem confirma: «Já vi o que precisava de ver.» Ainda tinha a boca aberta, mas a língua que dela pendia voltara para dentro. Só os dentes amarelos eram visíveis, como uma cerca decrépita em volta de uma casa abandonada. O seu rosto estava livre de dor. O tormento passara; ele parecia calmo e descontraído. Calculei que tivesse voltado ao mundo crepuscular, onde o pensamento e a dor não existiam. Fiquei feliz por ele.
Finalmente, descontraí o braço e puxei a lâmina do corpo do Comendador. O sangue jorrou da ferida. Exatamente como em A Morte do Comendador. O próprio tombou sem vida na cadeira. Tinha os olhos abertos, a boca contorcida em agonia. Dez dedos minúsculos arranhavam o ar. O sangue escuro acumulava-se em torno dos seus pés; estava morto. A quantidade de sangue derramado daquele minúsculo corpo!
Foi assim que o Comendador – ou a Ideia que assumira a sua forma – encontrou o fim. Tomohiko Amada regressara a um sono profundo. Ao lado do corpo do Comendador, com a faca ensanguentada de Masahiko na mão direita, eu era agora a única pessoa consciente naquele quarto. A minha respiração esforçada seria o único som audível. Seria... Porque havia algo que se movia. Sentia-o, ouvia-o inclusive, para meu alarme. «Tendes de vos manter atentos», dissera-me o Comendador. Fiz como ele me instruíra.
Está alguma coisa no quarto. Ouvia-a mover-se. Com a faca ensanguentada na mão, fiquei imóvel como uma estátua, examinando com o olhar todos os recantos entre aquelas quatro paredes, procurando a fonte do som. De soslaio, vi qualquer coisa perto da parede oposta.
Era o Cara Comprida.
A morte do Comendador atraíra o Cara Comprida para este mundo.
52
O HOMEM DO CHAPÉU ALARANJADO EM FORMA DE CONE
A cena no quarto lembrava o canto inferior esquerdo do quadro A Morte do Comendador de Tomohiko Amada. A cabeça do Cara Comprida espreitava de um buraco, levantando ele a tampa quadrada com a mão para observar o que acontecia. Tinha o cabelo comprido e desgrenhado, e uma espessa barba negra cobria-lhe grande parte do rosto. A cabeça alongada, em forma de beringela, estreita, o queixo saliente e uns olhos esbugalhados. O nariz achatado. Por alguma razão, os lábios brilhavam como uma peça de fruta. O corpo era pequeno, mas bem proporcionado, como se uma pessoa normal tivesse sido encolhida. Tal como o Comendador, fazia-nos pensar numa cópia reduzida de um ser humano.
A diferença entre o Cara Comprida em A Morte do Comendador e aquela manifestação dele ali era a sua expressão – parecia atordoado ao olhar para o corpo sem vida do Comendador. Abrira a boca, incrédulo. Há quanto tempo nos observava? Eu não fazia ideia. Estivera tão concentrado a extinguir a vida do Comendador, e a avaliar a reação de Tomohiko Amada à sua morte, que não dera pelo homem de aparência estranha num canto do quarto. Mas aposto que ele não perdera pitada. Afinal, essa era a cena retratado no quadro.
O Cara Comprida permaneceu completamente imóvel num canto do nosso tableau, como se lhe tivessem atribuído uma posição fixa. Movi-me um pouco para ver como ele responderia, mas o Cara Comprida não reagiu. Manteve a mesma posição, a mão a segurar a tampa quadrada, os olhos arregalados, observando embasbacado o Comendador morto. Nem pestanejou.
À medida que a tensão me abandonava o corpo, fui-me deslocando da minha posição. Avancei cautelosamente na direção do Cara Comprida, amortecendo o som dos meus passos como um gato, a faca ensanguentada na mão. Não podia deixá-lo voltar para baixo. A fim de salvar Marie Akikawa, o Comendador dera a vida para recriar a cena no quadro e atrair o Cara Comprida cá para fora. Não podia permitir que o seu sacrifício fosse em vão.
Mas como iria eu arrancar do Cara Comprida o que precisava de saber sobre Marie? Não fazia ideia. Quem ou o que era o Cara Comprida? De que forma a sua presença estava ligada ao desaparecimento de Marie? O que o Comendador me dissera, mais do que um pedaço de informação, constituía um enigma. De uma coisa estava seguro, porém: tinha de lhe deitar a mão. O resto descobriria mais tarde.
A tampa que o Cara Comprida segurava, um quadrado pequeno, era feita do mesmo linóleo verde-lima que forrava o chão. Quando fechada, passava despercebida, ou talvez até desaparecesse de vista.
O Cara Comprida não mexeu um músculo quando me aproximei. Dir-se-ia que assumira o modo de estátua, como um gato encandeado pelos faróis de um automóvel. Ou talvez estivesse apenas a cumprir o seu papel – manter a composição do quadro pelo maior tempo possível. Fosse como fosse, era uma sorte para mim; caso contrário, ele teria pressentido que eu o alcançava sorrateiramente por trás e desceria ao subsolo para não mais voltar. Assim que a tampa fosse fechada, duvidava que tornasse a abrir-se.
Aproximei-me pé ante pé por trás dele, pousei suavemente a faca e agarrei-lhe o colarinho com as duas mãos. Ele vestia roupa velha e justa. Indumentária de trabalho, pelo aspeto. Muito diferente do tecido fino das vestes do Comendador. Era áspera ao toque e estava coberta de manchas.
Sacudido do seu transe, o Cara Comprida debateu-se, tentando desesperadamente voltar para o buraco. Segurei-o com firmeza pelo colarinho. Não tencionava deixá-lo escapar. Reuni as minhas forças e tentei arrancá-lo do chão. Ele lutou, agarrando-se ao buraco com as duas mãos. Era muito mais forte do que eu esperava. Até tentou morder-me o braço. O que podia eu fazer? Bati-lhe com a cabeça de beringela na abertura. Depois repeti o gesto, com mais força. O segundo golpe fê-lo desmaiar. Senti o seu corpo ficar inerte. Por fim, consegui arrastá-lo para a luz.
O Cara Comprida era um nadinha maior que o Comendador. Calculei que medisse uns setenta e cinco centímetros. Vestia uma espécie de indumentária de agricultor quando vai para o campo, ou as vestes que um criado usa para varrer o pátio. Um casaco áspero e rígido, calças de trabalho largueironas apertadas nos tornozelos. O cinto era uma corda grossa. Não calçava sapatos e as solas dos pés estavam cheias de calos e negras da sujidade. O cabelo comprido não aparentava ter sido lavado ou penteado recentemente. Metade do rosto estava coberto por uma barba preta. A outra metade era de um branco mórbido. Nada nele parecia limpo, mas, estranhamente, o seu corpo não tinha cheiro.
Com base no aspeto, calculei que o Comendador pertencesse à aristocracia do seu tempo, ao passo que o Cara Comprida era da classe baixa. Talvez estivesse vestido como um plebeu. Ou se calhar Tomohiko Amada pensara: Era assim que as pessoas se vestiam no período Asuka. A exatidão histórica, no entanto, torna-se irrelevante. Eu precisava era de arrancar daquele homem de cara estranha qualquer informação que me levasse até Marie.
Deitei o Cara Comprida de barriga para baixo e amarrei-lhe as mãos atrás das costas com o cinto de um roupão pendurado ali perto. Ato contínuo, arrastei o seu corpo inerte para o centro do quarto. Dado o tamanho, não era muito pesado. Pesaria o mesmo que um cão de porte médio. Peguei num cordão do cortinado e amarrei-lhe uma das pernas à cama. Já não tinha como fugir.
Assim estirado inconsciente no chão, banhado pela luz intensa da tarde, o Cara Comprida tinha um aspeto lastimoso. Já nada restava da estranheza que me havia assustado quando ele espreitara do buraco para observar o desenrolar dos acontecimentos com aqueles olhos brilhantes. Não encontrei nele qualquer indício sinistro. Não parecia suficientemente inteligente para ser mau. Em vez disso, tinha um ar honesto e um tudo-nada obtuso. E parecia-me também ser tímido. Não o ar de quem congeminava planos e tomava decisões, mas sim o de alguém que acatava docilmente as ordens dos superiores.
Tomohiko Amada continuava estendido na cama, de olhos fechados e completamente imóvel. Olhando para ele, não percebi se estava vivo ou morto. Inclinei-me e aproximei a orelha da sua boca. A respiração era fraca, lembrando o som distante da rebentação. Ainda não estava morto, continuava apenas a dormir no chão do seu mundo crepuscular. Senti-me aliviado. Não me agradava a ideia de Masahiko voltar, terminado o telefonema, e descobrir que o pai morrera enquanto ele estava ausente. O rosto de Amada parecia muito mais pacífico e satisfeito do que antes. Talvez testemunhar o assassínio do Comendador (ou de alguém que ele desejava ver morto) tivesse apaziguado em parte as suas recordações mais dolorosas.
O Comendador pendia inerte na cadeira de tecido. Tinha os olhos arregalados e vi a sua pequena língua por trás dos lábios entreabertos. O sangue ainda pingava da ferida no peito, mas o fluxo era agora mais fraco. Quando lhe peguei, a sua mão direita tombou sem vida. Embora a pele retivesse algum calor, parecia remota e de certo modo desprendida. O tipo de desprendimento que a vida adquire ao aproximar-se de forma constante do seu próprio fim. Tive vontade de lhe endireitar os membros e enfiá-lo num caixão de tamanho adequado, daqueles feitos para crianças. Colocaria o caixão no poço atrás do santuário, onde ninguém o voltaria a incomodar. Naquele momento, porém, só me restava fechar-lhe os olhos.
Sentei-me na cadeira e olhei para o Cara Comprida, deitado no chão, à espera de que ele recuperasse os sentidos. Do lado de fora da janela, o Pacífico cintilava. Um punhado de barcos de pesca ainda sulcava as águas. Vi a fuselagem esguia de um avião reluzir ao sol no seu lento trajeto para sul. Um avião de quatro propulsores com uma antena a projetar-se da cauda – talvez um avião antissubmarino da base da Força Marítima de Autodefesa do Japão em Atsugi. Algumas pessoas seguiam tranquilamente com as suas vidas naquela tarde de sábado. Eu, por exemplo, estava num quarto banhado pelo sol numa casa de repouso de luxo, tendo acabado de matar o Comendador e amarrado o Cara Comprida no intuito de assim descobrir o paradeiro de uma bonita rapariga de treze anos. Há gente para tudo.
O Cara Comprida levou bastante tempo a recuperar a consciência. Olhei de novo para o relógio.
O que pensaria Masahiko se voltasse naquele momento? O Comendador numa poça de sangue, o Cara Comprida amarrado e inconsciente no chão. Ambos com as vestimentas estranhas de um tempo antigo, e nenhum com mais de um metro de altura. Tomohiko Amada adormecido na cama, um sorriso débil mas satisfeito (tratando-se mesmo de um sorriso) nos lábios. Um buraco negro quadrado aberto no canto do quarto. Como explicaria eu aquele cenário?
Masahiko não regressaria tão cedo, estava visto. Encontrava-se demasiado ocupado com um telefonema de extrema importância relacionado com o trabalho, como dissera o Comendador. A chamada estava para durar.
Tudo fora organizado com antecedência e ninguém nos incomodaria. Sentado na cadeira, observei o Cara Comprida, que permanecia inconsciente. Batera-lhe com a cabeça com força na borda do buraco, mas ele não tardaria a acordar. Ficaria com um galo na testa, só isso.
Por fim, o Cara Comprida acordou. Contorceu-se no chão e proferiu algumas palavras incompreensíveis. Foi lentamente abrindo os olhos. Como uma criança a olhar para uma coisa assustadora. Uma coisa que não queria ver, mas que tinha de ver.
Ajoelhei-me ao seu lado.
– Resta-nos muito pouco tempo – disse, olhando para ele. – Preciso que me diga onde posso encontrar a Marie Akikawa. Se o fizer, solto-o e pode voltar para ali.
Apontei para o buraco quadrado ao canto. A tampa estava levantada. Não sabia se ele me entendia, mas decidi continuar a falar. Não tinha outro remédio.
O Cara Comprida abanou violentamente a cabeça repetidas vezes. Não percebi se queria dizer que não sabia de nada, ou que a minha língua era estranha aos seus ouvidos.
– Se não me disser, mato-o – ameacei. – Aposto que me viu esfaquear o Comendador. Bem, quem mata um, mata dois.
Encostei-lhe a lâmina ensanguentada da faca na garganta suja. Pensei nos pescadores e no piloto do avião que seguia para sul. Todos temos um trabalho para fazer. Aquele cabia-me a mim. Não ia matá-lo, obviamente, mas a faca era real e extremamente afiada. O Cara Comprida tremeu de medo.
– Espere! – exclamou com voz rouca. – Detenha a mão.
Falava de uma maneira estranha, mas eu conseguia entendê-lo. Aliviei a pressão da faca.
– Onde está a Marie Akikawa? – insisti. – Vamos, desembuche!
– Não sei, senhor. Juro.
Estudei os seus olhos. Eram grandes e fáceis de ler. Parecia estar a dizer a verdade.
– Muito bem, diga-me o que está a fazer aqui?
– Fui intimado a verificar e registar estes acontecimentos. Faço apenas o que me dizem. Tem a minha palavra.
– E tem de verificá-los porquê?
– Porque mo solicitaram. Não sei de nada para além disso.
– Que raio é você? Outro tipo de Ideia?
– Credo, não! Sou uma Metáfora, nada mais.
– Uma Metáfora?
– Sim. Uma mera Metáfora. Usada para ligar duas coisas. Por favor, solte-me, peço-lhe.
Eu começava a ficar confuso.
– Se é quem diz, dê-me agora uma metáfora, a primeira que lhe ocorrer.
– Sou a forma mais humilde de Metáfora, senhor. Não consigo imaginar nada de qualidade.
– Uma Metáfora das mais simples serve. Não precisa de ser muito inteligente.
– «Ele era alguém que se destacava» – disse o Cara Comprida, passado um momento – «como um homem com um chapéu alaranjado em forma de cone num comboio apinhado.»
Não era com certeza uma metáfora impressionante. Na verdade, não era realmente uma metáfora.
– Isso é uma comparação, não uma metáfora – observei.
– Mil perdões – disse ele, o suor a escorrer-lhe da testa. – Deixe-me tentar outra vez. «Ele vivia como se usasse um chapéu alaranjado em forma de cone num comboio apinhado.»
– Isso não faz sentido. Continua a não ser uma verdadeira metáfora. A sua história cheira-me a esturro. Vou ter de o matar.
Os lábios do Cara Comprida tremeram de medo. Tinha uma barba de aspeto viril, mas faltava coragem ao indivíduo.
– As minhas mais sinceras desculpas, caro senhor. Não passo de um mero aprendiz. Sou incapaz de congeminar um exemplo espirituoso. Perdoe-me. Todavia, isso asseguro-lhe, sou genuíno, uma verdadeira Metáfora.
– Quem é então o seu superior? Quem lhe dá ordens?
– Não tenho um superior, por assim dizer. Bem, talvez tenha, mas nunca lhe pus a vista em cima. Limito-me a seguir ordens, a agir como um elo entre fenómenos e linguagem. Como uma medusa indefesa à deriva no oceano. Por favor, não me mate, suplico-lhe.
– Talvez lhe poupe a vida – disse, mantendo a faca encostada à sua garganta. – Mas só se concordar em guiar-me até donde veio.
– Isso é algo que não posso fazer – disse o Cara Comprida com voz firme. Era a primeira vez que usava aquele tom. – O caminho que tomei para aqui chegar é o Caminho da Metáfora. É diferente para cada um que o percorre. Não é um caminho único, razão pela qual não o posso guiar.
– Deixe-me ver se entendi. Tenho de seguir esse caminho sozinho, e há que descobri-lo por mim mesmo. É isto?
O Cara Comprida assentiu vigorosamente.
– No Caminho da Metáfora grassam os perigos. Se um mortal como o senhor se desviar dele uma única vez, irá ver-se em apuros. E há Metáforas Duplas por todo o lado.
– Metáforas Duplas?
O Cara Comprida estremeceu de medo.
– Sim, Metáforas Duplas à espreita no escuro. A mais vil e perigosa das criaturas.
– Para mim, vai tudo dar ao mesmo – respondi. – Já estou atolado em maluquices até ao pescoço. Dá-me cá um abalo ao pífaro se a loucura cresce ou encolhe. Matei o Comendador com as minhas mãos. Não quero que a sua morte seja em vão.
– Vejo que não tenho escolha. Permita-me apenas uma advertência antes de partir.
– Que tipo de advertência?
– Leve uma luz consigo. Vai passar por muitos sítios escuros. Há de encontrar um rio. É um rio metafórico, mas a água é bastante real. Fria e funda. E a corrente é forte. Não consegue atravessá-lo senão de barco. Vai encontrar um barco no molhe.
– E o que devo fazer depois de atravessar o rio?
O Cara Comprida revirou os olhos salientes.
– O mundo que o espera do outro lado, como este, está sujeito ao princípio da conectividade. Terá de ver por si mesmo.
Dirigi-me à mesa de cabeceira de Tomohiko Amada. Como seria de esperar, encontrei ali uma lanterna. Qualquer casa de repouso costumava ter uma em cada quarto, em caso de incêndio ou terramoto. Liguei-a. A luz era forte. As pilhas estavam carregadas. Enfiei o blusão de cabedal, que tinha pendurado nas costas de uma cadeira, e dirigi-me ao buraco ao canto com a lanterna em punho.
– Por favor, senhor – implorou o Cara Comprida. – Faria a mercê de me soltar? Temo o que possa vir a acontecer se permanecer neste estado.
– Se é uma verdadeira metáfora, soltar-se deve ser fácil. Não é verdade que os Conceitos e as Ideias, e outros que tais, são capazes de se mover através do espaço e do tempo?
– Não, o senhor sobrestima-me. Não fui abençoado com poderes tão maravilhosos. Conceitos e Ideias são Metáforas de uma categoria muito mais elevada.
– Com chapéus alaranjados em forma de cone?
O Cara Comprida pareceu magoado.
– Por favor, não zombe de mim. Também tenho sentimentos, sabe?
Ainda hesitei, mas decidi desamarrar-lhe as mãos e os pés. Atara os nós com tanta força que levei algum tempo a desfazê-los. Após chegar à fala com ele, não me parecia ser assim tão mau. É verdade que desconhecia o paradeiro de Marie, mas dera-me outras informações. Duvidava que interferisse ou me fizesse mal se eu o desamarrasse. E o certo era que não podia deixá-lo daquela maneira ali no chão. Se alguém o encontrasse assim, só iria piorar as coisas. Desfeito o último nó, ele pôs-se a massajar os pulsos magoados com as mãos pequenas. Ato contínuo, tateou a testa. O galo já cantava, pelos vistos.
– Obrigado, senhor. Agora posso voltar ao meu mundo.
– Força – disse eu, apontando para o buraco no canto. – Eu sigo-o mais tarde.
– Eis a minha hora de partir. Por favor, verifique se a tampa fica bem fechada quando descer. Caso contrário, alguém pode tropeçar e cair. Ou encher-se de curiosidade e enfiar-se nele. Nesse caso, era a minha cabeça no cepo.
– Entendido. Eu confirmo que fica fechado.
O Cara Comprida trotou até ao buraco e entrou. A cabeça e ombros apareceram novamente. Os seus olhos grandes tinham um brilho misterioso, tal como em A Morte do Comendador.
– Desejo-lhe uma boa viagem – disse-me o Cara Comprida. – Espero que consiga encontrar a não-sei-quantas. Chama-se Komichi?
– Errado. Não se chama Komichi – respondi, sentindo um arrepio pelas costas acima. A minha garganta transformou-se em lixa. Por momentos, fui incapaz de falar. – O nome que lhe dei foi Marie Akikawa. Sabe alguma coisa da Komichi?
– Nadinha. – O Cara Comprida deu-se conta de que metera a pata na poça. – O nome acabou de entrar no meu tosco cérebro metafórico. Um simples erro. Perdoe-me, por favor.
O Cara Comprida desapareceu no buraco como fumo soprado pelo vento.
Quedei-me por um momento com a lanterna de plástico na mão. Komichi? Como é que o nome da minha irmã podia vir à baila? Estaria ela ligada àquela bizarrice pegada? Não era a altura para refletir sobre essa questão. Acendi a lanterna e entrei no buraco, os pés primeiro. Estava escuro e a passagem, quis-me parecer, era um longo trajeto sempre a descer. Mais uma coisa estranha a juntar à lista. É que, pensando bem, o quarto ficava no segundo andar, pelo que o primeiro andar devia surgir logo abaixo. Fiz incidir a luz da lanterna para ver o caminho, mas não consegui perceber onde levava. Mergulhei de corpo inteiro e fechei a tampa atrás de mim. Ficou escuro como breu.
A escuridão era tão intensa que de nada serviam os meus cinco sentidos, como se as ligações entre o corpo e a mente tivessem sido cortadas e nenhuma informação passasse entre eles. Era uma sensação estranhíssima, como se eu já não fosse eu. No entanto, obriguei-me a continuar.
«Se desejais salvar a Marie Akikawa, fazei isto.»
Tinham sido estas as palavras do Comendador. Ele sacrificara-se. Era a minha vez de enfrentar a provação. Havia que avançar. Tendo a lanterna como minha única aliada, embrenhei-me na escuridão do Caminho da Metáfora.
53
TALVEZ UM ATIÇADOR
A escuridão que me envolvia, de tão densa, tão completa, parecia ter vontade própria. Criava-me a sensação de estar no fundo do oceano, onde nem uma única partícula de luz conseguia penetrar. Apenas o feixe amarelo da lanterna me ligava ao mundo, uma ligação bastante ténue, na verdade. A passagem descia num ângulo constante. A superfície debaixo dos meus pés era dura e lisa – como se estivesse a caminhar num túnel talhado em rocha. Por o teto ser tão baixo, tive de me curvar para não bater com a cabeça. O ar estava frio, era inodoro, e a ausência de cheiro perturbou-me. Talvez até ali o ar fosse diferente de acima do solo.
Quanto tempo aguentaria a minha lanterna? O feixe permanecia forte e constante, mas quando as pilhas falhassem (como acabaria por acontecer), eu ficaria às aranhas no escuro. E a acreditar no Cara Comprida, as perigosas Metáforas Duplas encontravam-se à espreita, prontas a atacar.
Com o nervosismo, a palma da mão que segurava a lanterna estava toda suada. O meu coração rufava num compasso de pancadas surdas. Era um som ameaçador, que, para alguém perdido na selva, soaria como as batidas esparsas de um batuque. O Cara Comprida avisara: «Leve uma luz consigo. Vai passar por muitos sítios escuros.» Não podia dizer que naquele túnel estivesse mergulhado na escuridão total. Mas desejei que brilhasse uma claridade mais intensa. Desejei também que o teto fosse mais alto. Nunca me livrei do pânico que sinto em espaços escuros e apertados. Se aquilo continuasse por muito mais tempo, em breve teria dificuldade em respirar.
Para me acalmar, tentei concentrar-me noutros temas. Precisava de encontrar alguma coisa, qualquer coisa, para ocupar a mente. O que me ocorreu foi uma tosta de queijo gratinado. Uma tosta de queijo gratinado? Não lembra ao diabo. Mas foi o que surgiu, vá-se lá saber porquê. Queijo derretido no ponto, cobrindo uma torrada maravilhosamente dourada, num prato de um branco alvo. Tão real que podia tocar-lhe. E ao lado uma chávena de café quente. Café simples e escuro como uma noite sem luar. Uma janela abria-se para mostrar um salgueiro alto, em cujos ramos verdes se empoleirava precariamente um bando de pássaros chilreantes, como uma trupe de equilibristas. Tudo a uma distância imensurável de onde me encontrava naquele momento.
Logo a seguir, por qualquer razão, pensei na ópera O Cavaleiro da Rosa. Escutava-a enquanto bebia o café e mordiscava a sanduíche de queijo gratinado. Impressa num disco de vinil preto, lançado pela Decca Records na Grã-Bretanha. Pousei o disco pesado no prato e baixei a agulha num movimento delicado. Georg Solti dirigia a Filarmónica de Viena. Música elegante, intrincada. Richard Strauss vangloriara-se: «Posso descrever qualquer coisa musicalmente, até uma vassoura!», estava ele no seu apogeu. Terá dito uma vassoura? Não me lembrava. Talvez tivesse dito um guarda-chuva, ou um atiçador. Em todo caso, como podia alguém descrever musicalmente uma vassoura? Ou uma tosta de queijo, ou pés calejados, ou a diferença entre uma comparação e uma metáfora? Podia a música retratar sequer coisas que tais?
Richard Strauss dirigira a mesma orquestra em Viena antes da guerra. (Antes do Anschluss? Depois?) No programa daquele dia entrava a Sétima Sinfonia de Beethoven, uma sinfonia decidida, embora tranquila e cuidada, metida de permeio entre a sua brilhante e desinibida irmã mais velha (a Sexta) e a sua tímida e bela irmã mais nova (a Oitava). Na assistência encontrava-se um jovem Tomohiko Amada, acompanhado de uma jovem mulher de belos traços sentada ao seu lado. Provavelmente, estaria apaixonado por ela.
Imaginei a cidade de Viena naquele dia. As valsas, as tortas de chocolate, as suásticas vermelhas e pretas a esvoaçar nos telhados.
Sentia os meus pensamentos virarem-se numa direção sem sentido. Ou, mais precisamente, numa direção sem direção. No entanto, acometia-me uma total impotência para os governar. Já não se encontravam sob o meu controlo. Não é simples manter as ideias organizadas no negrume. Os pensamentos tornam-se uma árvore de enigmas cujos ramos se escondem na escuridão. (Uma metáfora.) Mesmo assim, havia que me concentrar em qualquer coisa para não me passar dos carretos. Qualquer coisa corriqueira serviria. Caso contrário, começaria a hiperventilar.
Passou toda a sorte de absurdos pela minha mente enquanto descia aquele declive interminável. O caminho era completamente a direito, sem curvas ou bifurcações. Por muito que eu andasse, nada mudava – nem a altura do teto, nem a intensidade da escuridão, nem a qualidade do ar, nem o ângulo da inclinação. Cheguei a perder a noção do tempo, porém, a avaliar pelo que já andara, devia estar bastante abaixo do nível do solo. No entanto, essa «profundidade» só podia ser invenção. Afinal, eu entrara naquele túnel no segundo andar de um edifício. A escuridão também devia ser fabricada. Tudo era conceito ou metáfora, nada mais. Pelo menos, foi o que disse a mim mesmo. Mas havia um problema: a escuridão que me envolvia era mesmo real, tal como a profundidade que se abatia sobre mim.
No preciso momento em que o meu pescoço e as minhas costas começavam a ficar tensos, queixando-se da minha postura curvada, uma luz fraca apareceu à frente. Seguiu-se uma série de curvas e contracurvas. A cada uma, o ambiente clareava, como se o céu noturno estivesse a dar lugar ao dia. Já conseguia ver onde estava. Desliguei a lanterna para poupar as pilhas.
A luz difundia-se agora com maior intensidade, mas continuei sem sentir qualquer cheiro, sem ouvir nada. Por fim, o túnel estreito terminou abruptamente e saí para espaço aberto. Mas não vi o céu acima de mim, apenas uma espécie de teto de um branco leitoso, muito lá em cima. Um brilho pálido cobria tudo, como se o mundo fosse iluminado por um enxame de insetos luminosos. Reinava a estranheza. No entanto, foi um alívio dizer adeus às trevas e poder andar de novo direito. Aproveitei para aliviar a tensão.
Fora do túnel, o chão era irregular. Não havia trilhos, apenas uma planície estéril e rochosa que se estendia até onde a vista alcançava. A descida tinha terminado e começava uma ligeira subida. Avancei sem saber para onde os meus passos me levavam. Olhei para o relógio, mas os ponteiros não tinham significado. Bastou-me olhar para eles de relance para perceber isso. Na verdade, nada do que eu levava – porta-chaves, carteira, carta de condução, trocos, lenço – prometia ser de qualquer utilidade.
A subida tornou-se mais íngreme. Ao fim de algum tempo, trepava já praticamente de gatas. Se conseguisse chegar ao topo, talvez pudesse ver onde estava. Não parei sequer para recuperar o fôlego. Os únicos sons resumiam-se aos barulhos que eu produzia, e até isso parecia artificial, não sons a sério. Nada vi com vida. Nem árvores, nem ervas, nem uma ave solitária, tão-pouco uma rajada de vento. Só eu me movia – tudo o resto estava imóvel. Era como se o próprio tempo tivesse parado.
Cheguei então ao cimo. Dali via em todas as direções, como esperara. No entanto, a visibilidade era limitada, pois pairava uma névoa branca. Conseguia apenas ver o equivalente a um terreno baldio sem vida, um deserto árido e escarpado que se estendia em todas as direções. Não havia céu, apenas aquele teto de um branco leitoso. Sentia-me como um astronauta que tivesse despenhado a nave num planeta desabitado. Bem, pelo menos havia luz e ar para respirar. Devia sentir-me grato por isso.
Não encontrei sinal de vida. Finalmente, porém, pude distinguir um som fraco. De início, pensei que era uma alucinação, ou que tinha origem no meu próprio corpo. No entanto, aos poucos, tornou-se claro que se tratava de um ruído constante, causado por uma espécie de fenómeno natural. Em bom rigor, soava como água corrente. Talvez fosse o rio que o Cara Comprida mencionara. Banhado pela luz pálida, desci pelo declive acidentado na direção do ruído.
O som da água provocou-me uma sede terrível. Agora que pensava nisso, há imenso tempo que caminhava sem ter nada que beber. Sentia-me tão ansioso que essa ideia nem me passara pela cabeça. Naquele momento, desejava-a desesperadamente. Mas a água naquele rio – se fosse mesmo de um rio que aquele som vinha – seria potável? Podia estar lamacenta ou cheia de toxinas perigosas. Ou talvez fosse água metafórica, que não desse para recolher com as mãos em concha. Logo se via quando lá chegasse.
À medida que me aproximava, o barulho tornava-se mais alto e nítido. Soava como um rio de corrente rápida, vagando através das rochas. Mas ainda não conseguia vê-lo. Caminhava em direção ao som e, a dado trecho, o chão de ambos os lados elevou-se. Vi-me entre duas paredes de rocha com cerca de nove metros de altura. O trilho seguia entre aqueles penhascos imponentes, embora as suas voltas serpenteantes me impedissem de adivinhar o que se seguia. Não era um caminho feito pelo homem. Pelo contrário, parecia ter sido criado pelas forças da natureza. Pelo que pude perceber, o rio encontrava-se no fim.
Estuguei o passo pelo caminho murado. Não passei por uma única árvore, por uma folha de erva. Por nada vivo. Via apenas os penhascos silenciosos. Um mundo estéril e monocromático. Era como se um artista tivesse perdido o interesse em pintar a paisagem e a abandonasse antes de adicionar as cores. Mal conseguia ouvir os meus próprios passos. As rochas pareciam abafar o som.
Entretanto, o caminho, na sua maior parte plano, tornou a ganhar altura. Levou algum tempo, mas finalmente cheguei ao topo, que fazia lembrar uma coluna vertebral ao longo dos cumes dos penhascos. Quando me inclinei para a frente, avistei o rio. O som da água fazia-se ouvir mais nítido.
Não era um rio especialmente largo, teria talvez cinco ou seis metros, mas a corrente era forte. Não dava para perceber qual a profundidade. A julgar pela espuma branca que surgia de vez em quando, havia pedregulhos e outros obstáculos ocultos abaixo da superfície. O rio esculpia uma linha reta através do terreno rochoso. Atravessei o cume e desci a encosta na sua direção.
Quando cheguei ao rio, e o vi fluir da direita para a esquerda, senti-me muito melhor. No mínimo, uma grande quantidade de água estava em movimento. Nascera algures e fluía para outro lado, seguindo os contornos da paisagem. Num lugar onde nada se movia, onde nenhum vento soprava, o som da água a correr reverberava em meu redor. Não, aquele mundo não era totalmente isento de movimento. Esse facto por si só teve o condão de me reconfortar.
Alcançando o rio, ajoelhei-me na margem e apanhei água com as mãos em concha. Estava agradavelmente fresca. O rio parecia alimentado pela neve. A sua água era cristalina e parecia pura. Como é óbvio, a olho nu não teria a certeza se era seguro bebê-la. Podia conter um veneno letal, ou bactérias que me destruiriam o corpo.
Cheirei a água nas minhas mãos. Não tinha odor (isto se o meu olfato ainda estivesse a funcionar). Bebi um gole. Não tinha sabor (isto se eu não tivesse perdido o paladar). Enchi-me de coragem e sorvi-a. Tinha demasiada sede para lhe resistir, quaisquer que fossem as consequências. A água era insípida e inodora, de facto. Podia ser real ou fabricada, mas, afortunadamente, iria saciar-me a sede.
Ali ajoelhado, feliz da vida, ia emborcando às mancheias. Não julguei que tivesse tanta sede. Porém, era de alguma forma estranho beber água sem um pingo de sabor ou cheiro. Quanto temos sede, a água fresca é a coisa mais deliciosa do mundo. O nosso corpo absorve-a com avidez. As nossas células alegram-se, os nossos músculos recuperam a força. Contudo, beber a água daquele rio não me proporcionou nenhuma dessas sensações. Não fez mais do que saciar a minha sede a um simples nível físico.
De papo cheio, levantei-me e olhei em volta. O Cara Comprida mencionara um molhe algures na margem do rio. Que um dos barcos poderia transportar-me para o outro lado. Ali (provavelmente) eu encontraria informações relativas ao paradeiro de Marie Akikawa. Mas não vislumbrei nada que parecesse um molhe, a montante ou a jusante. Teria de o procurar. Um barco era crucial. Atravessar a vau o rio sem ajuda era muito perigoso. «A água é bastante real. Fria e funda. E a corrente é forte. Não consegue atravessá-lo senão de barco», dissera-me o Cara Comprida. Mas para que lado devia procurar o tal barco? Rio acima ou rio abaixo? Tinha de me decidir.
Lembrei-me então do primeiro nome de Menshiki, «Wataru», escrito com o kanji para «atravessar a água». «Wataru, o meu nome próprio, é o ideograma que significa “atravessar o rio”», apresentara-se Menshiki. «Ignoro por que motivo me deram esse nome. Nunca me senti especialmente atraído pela água.» Pouco depois, acrescentara: «A propósito, sou canhoto. Quando me dizem para ir para a esquerda ou para a direita, escolho sempre a esquerda. É a força do hábito.»
Foi um comentário ao acaso, nada relacionado com o que estávamos a discutir, não percebia por que motivo deixara ele escapar uma coisa daquelas. Provavelmente, foi por isso que me ficou gravado na memória.
Talvez o comentário não possuísse significado especial. Saíra-lhe por mero acaso. No entanto, segundo o Cara Comprida, aquela terra fora criada por meio da conjunção dos fenómenos com a expressão. Eu deveria ser capaz de lidar com o acaso de qualquer sugestão que me aparecesse à frente. Ali mesmo, diante do rio, tomei uma decisão: iria para a esquerda. Se seguisse a pista inconsciente que o Menshiki «incolor» me tinha dado e caminhasse ao longo do rio insípido e inodoro para jusante, talvez surgisse uma sugestão adicional. Ou, por outro lado, talvez não.
Enquanto caminhava ao longo da margem do rio, perguntava-me se naquela água habitavam seres vivos. Parecia pouco provável. Não podia confirmar isso, como é óbvio. No entanto, não vi sinais de vida. Que organismo viveria em água sem gosto nem cheiro? O rio parecia totalmente concentrado na sua própria identidade. «Eu sou rio», dizia. «Sou aquilo que flui.» Com certeza possuía a forma de um rio, mas para além desse estado de ser não havia nada. Nenhuma coisa flutuava na sua superfície, nem um galho, nem uma folha de erva. Era simplesmente uma grande quantidade de água a sulcar a terra.
Abri caminho por essa névoa ilimitada e semelhante a algodão. Ela resistiu-me suavemente enquanto me movia, como uma cortina fina de renda branca. Ao fim de algum tempo, as minhas entranhas começaram a reagir à água que eu bebera. Não era uma sensação desagradável ou ameaçadora, nem, por outro lado, constituía motivo de alegria. Um sentimento neutro, cuja verdadeira natureza escapava à minha compreensão. Senti que estava de alguma forma a ser transformado, como se já não fosse a mesma pessoa. Era uma sensação estranha. Estaria a água a transformar-me em alguém fisicamente adaptado àquele mundo?
Contudo, não sei como, mantive a calma. Pensava, otimista, que não haveria danos reais. O meu otimismo não tinha razão de ser. Mas, bem vistas as coisas, eu passara sem percalços pela estreita passagem escura. Sem mapa nem bússola, cruzara um deserto rochoso para encontrar aquele rio. Tinha saciado a minha sede com a sua água. Evitara um encontro imediato com uma Metáfora Dupla algures à espreita. Pura sorte? Ou talvez tivesse sido o destino. Fosse qual fosse o caso, seguia numa boa direção. Julgava eu. Pelo menos, tentei convencer-me disso.
Por fim, através da neblina surgiu uma forma vaga. Não era um objeto natural – com as suas linhas retas, só podia ter sido feito pelo homem. Quando me aproximei, vi que era um ancoradouro. Um pequeno molhe de madeira que se estendia a partir da margem. Virar à esquerda fora a decisão correta. Por outro lado, era possível que, num mundo governado pela conectividade, as coisas mudassem para acomodar qualquer ação que eu tomasse. Pelos vistos, a dica inconsciente de Menshiki ajudara-me a chegar àquele ponto.
Vi a figura de um homem envolto na névoa. Era alto. De facto, comparado com o Comendador e o Cara Comprida, que eram minúsculos, este parecia um gigante. Estava completamente imóvel no fim do molhe, como que perdido em pensamentos, encostado a uma espécie de máquina escura. O rio rápido borbulhava aos seus pés. Era o primeiro ser humano que encontrava naquela terra. Ou ser em forma de humano, talvez. Aproximei-me dele cheio de expectativa.
Não o discernia claramente, pelo que arrisquei e gritei «Olá!» através daquele véu semelhante a algodão. Mas não obtive resposta. Ele limitou-se a mudar ligeiramente de posição. Vi a sua silhueta escura mudar na névoa. Talvez a minha voz não lhe tivesse chegado. O som do rio podia tê-la abafado, ou talvez o ar ali não transmitisse muito bem o som.
– Olá! – repeti, aproximando-me. Falei em voz mais alta. Ele continuou sem responder. A única coisa que se ouvia era o fluir ininterrupto da água. Talvez não percebesse o que eu dizia.
– Eu ouço-o. E percebo-o – anunciou ele, como se lesse os meus pensamentos. Tinha uma voz grave e baixa, condizente com a sua altura. Mas também era totalmente inexpressiva, tal como o rio era desprovido de cheiro e sabor.
54
A ETERNIDADE É MUITO TEMPO
O homem alto diante de mim não tinha rosto. Tinha cabeça, claro. Esta repousava normalmente sobre os ombros. Mas a cabeça não possuía um rosto. O espaço que devia ocupar estava em branco. Um vazio leitoso, lembrando fumo claro. A voz dele emergia de dentro daquele vazio como o vento de uma caverna funda.
O homem usava o que parecia ser uma gabardina escura, que terminava pouco antes do chão, e assim via-lhe as pontas das botas. Abotoara-se até ao pescoço, como se houvesse uma tempestade no horizonte e ele se tivesse vestido a preceito.
Fiquei ali colado ao chão, incapaz de falar. De longe, fizera-me lembrar o homem do Subaru Forester branco, ou Tomohiko Amada na noite em que visitara o meu estúdio. Ou ainda o jovem que matava o Comendador com a sua espada em A Morte do Comendador. Todos eram igualmente altos. Um olhar mais atento, no entanto, apurou que não se tratava de nenhum destes. Era apenas o homem sem rosto. Usava um chapéu preto de abas largas puxado sobre os olhos. Quase escondia o vazio leitoso.
– Eu ouço-o. E percebo-o – repetiu ele.
Não vi os seus lábios moverem-se, como é evidente. Não os tinha.
– É este o embarcadouro? – perguntei.
– Sim – respondeu o homem sem rosto. – Este é o embarcadouro. Só se pode atravessar o rio a partir daqui.
– Tenho de ir para o outro lado.
– Como têm todos.
– Vêm muitos?
O homem não respondeu. A minha pergunta foi sugada para o vazio. Seguiu-se um silêncio interminável.
– O que há do outro lado? – perguntei. A névoa branca sobre o rio escondia a margem distante.
Sentia que o homem sem rosto estudava as minhas feições de dentro do vazio.
– O que há do outro lado depende do que procura. É diferente para todos.
– Estou a tentar localizar o paradeiro de uma jovem chamada Marie Akikawa.
– É então isso que procura do outro lado?
– Sim. É isso que procuro. Foi por isso que vim.
– E como conseguiu encontrar a entrada?
– Matei uma Ideia que tomara a forma do Comendador. Eliminei-o com uma faca numa casa de repouso em Izu-Kogen. Fi-lo com a autorização dele. A sua morte convocou o Cara Comprida, a Metáfora que abriu o buraco para a passagem subterrânea. Obriguei-o a deixar-me entrar.
O homem fixou o seu rosto vazio em mim durante algum tempo. Não falou. Será que me tinha entendido? Impossível saber.
– Houve sangue?
– Muito – respondi.
– Sangue verdadeiro, deduzo.
– Pelo menos, parecia.
– Olhe para as suas mãos.
Foi o que fiz, mas não havia nelas qualquer vestígio de sangue. Talvez tivesse sido lavado quando bebi do rio. Deveria ter havido muito, no entanto.
– Não importa – disse o homem sem rosto. – Eu tenho um barco e vou transportá-lo para o outro lado. Mas há uma condição.
Esperei que me dissesse qual seria.
– Deve pagar-me uma taxa apropriada. Essa é a regra.
– E se não puder pagar, não conseguirei chegar à outra margem?
– Precisamente. Teria de permanecer aqui por toda a eternidade. O rio é frio e fundo e a corrente é forte. E a eternidade é muito tempo. Não se trata de uma figura de estilo, asseguro-lhe.
– Mas não tenho com que lhe pagar.
– Mostre-me o que trouxe nos bolsos – disse o homem sem rosto, em voz baixa.
Esvaziei os bolsos do blusão e das calças. A minha carteira continha pouco menos de vinte mil ienes. O cartão de crédito, de débito, a carta de condução e um cupão de desconto para a gasolina. Um porta-chaves com três chaves. Um lenço de cor creme e uma esferográfica. Cinco ou seis moedas. Só isso. Mais a lanterna, obviamente.
O homem sem rosto abanou a cabeça.
– Sinto muito, mas não encontro nada que possa pagar a sua travessia. Aqui, o dinheiro não assume qualquer significado. Não tem outra coisa?
Aquilo era tudo o que tinha em meu poder, sem contar com um relógio barato no pulso esquerdo, mas o tempo também não tinha valor.
– Se me arranjar papel, posso fazer o seu retrato. A única coisa que ainda possuo é a minha competência como pintor.
O homem sem rosto riu-se. Julgo eu que se riu. Um leve trinado ecoou no vazio.
– Em primeiro lugar, não tenho rosto. Como pode desenhar o retrato de um homem sem rosto? Consegue desenhar o vazio?
– Sou um profissional – respondi. – Não preciso de um rosto para desenhar o seu retrato.
Não sabia se era capaz de o fazer, mas achei que valia a pena tentar.
– Estaria muito interessado em ver como se ia desenvencilhar – disse o homem sem rosto. – Infelizmente, aqui não há papel.
Olhei para o chão. Talvez pudesse arranhar algo na sua superfície com um pau. Mas era de rocha sólida. Abanei a cabeça.
– De certeza que não tem mais nada consigo?
Procurei cuidadosamente uma segunda vez. Esvaziara os bolsos do meu blusão de cabedal. Vazios. Mas encontrei uma coisa pequena escondida no fundo de um dos bolsos das calças de ganga. Um minúsculo pinguim de plástico. Menshiki apanhara-o no chão do poço e dera-mo. Tinha uma correia ainda mais pequena, que Marie usara para o prender ao telemóvel. Era o seu amuleto da sorte. Não sabemos como, caíra no poço.
– Mostre-me o que tem na mão – pediu o homem sem rosto.
Abri a mão, revelando a estatueta.
O homem sem rosto fitou-o com os olhos vazios.
– Isso serve – disse ele, passado um momento. – Aceito-o como pagamento.
Devia entregá-lo ou não? Afinal, era o precioso amuleto da Marie, não era meu. Podia dá-lo, simplesmente? E se daí resultasse alguma coisa má para ela?
Mas não tinha escolha. Se não o entregasse, nunca chegaria à outra margem, e se não chegasse lá, nunca encontraria Marie. A morte do Comendador teria sido em vão.
– Vou então dar-lhe o pinguim para pagar a minha travessia – declarei. – Por favor, leve-me para a outra margem.
O homem sem rosto assentiu.
– Quem sabe um dia consiga pintar o meu retrato – disse ele. – Se esse dia chegar, devolvo-lhe o pinguim.
O homem sem rosto foi até à extremidade do molhe de madeira e desceu para o pequeno barco ali amarrado. Uma embarcação retangular, em forma de caixa de bolos. Tinha apenas um metro e oitenta de comprimento e era estreito, feito de tábuas pesadas. Duvidava que pudesse transportar muitos passageiros de cada vez. Havia um mastro grosso no meio do barco, que tinha no cimo um anel de metal com cerca de dez centímetros de diâmetro. Uma corda resistente passava através desse anel. A corda estendia-se através do rio até à outra margem, em linha reta, quase retesada. O barco deslizava de um lado para o outro ao longo daquela corda, o que o impedia de ser arrastado pela corrente rápida. O barco parecia estar a uso há um ror de tempo. Não tinha meios visíveis de propulsão ou sequer uma proa adequada. Não passava de uma caixa de madeira rasa a flutuar na água.
Segui o homem sem rosto até ao barco e sentei-me na tábua horizontal que o atravessava de um lado ao outro. Ele inclinou-se contra o mastro grosso com os olhos fechados, como se estivesse à espera de alguma coisa. Nenhum de nós falou. Depois de alguns minutos, como se tivesse tomado uma decisão, o barco começou a deslizar devagar. Desconhecia o que nos impulsionava, mas deslizávamos silenciosamente em direção à outra margem. Não se ouvia um motor nem qualquer outra máquina. Apercebia-me apenas do barulho constante da água no casco. Deslocámo-nos mais ou menos ao ritmo de alguém a andar. O nosso barco balançou de um lado para o outro devido à corrente, mas a corda resistente impediu que fôssemos arrastados para jusante. Era exatamente como o homem sem rosto dissera: ninguém podia atravessar o rio sem um barco. Ele continuava encostado ao mastro, imperturbável, mesmo quando pareceu que o barco podia virar-se.
– Será que vou conseguir encontrar a Marie Akikawa quando chegarmos ao outro lado? – perguntei quando íamos a meio do trajeto.
– Estou aqui para transportá-lo até à outra margem – disse o homem sem rosto. – Para ajudá-lo a navegar pelo interstício entre a presença e a ausência. Depois disso é consigo. O meu trabalho está terminado.
Não muito tempo depois, encostámos no ancoradouro da margem oposta com um pequeno solavanco. A postura do homem sem rosto, porém, não mudou. Continuava encostado ao mastro, como se confirmasse alguma espécie de processo interno. Ato contínuo, exalou profundamente e subiu para o molhe. Segui-o. O molhe e o mecanismo semelhante a um guincho preso a ele eram iguais aos da margem oposta. Tão parecidos, na verdade, que era como se tivéssemos feito uma viagem de ida e volta e terminado onde começáramos. Essa sensação desapareceu, no entanto, assim que pisei terra, pois o chão daquele lado era terra normal, e não rocha sólida.
– A partir daqui deve ir sozinho – anunciou o homem sem rosto.
– Mas não sei o caminho. Ou que direção seguir.
– Essas coisas são irrelevantes aqui – foi a resposta do vazio leitoso. – Bebeu do rio, não bebeu? Agora, cada uma das suas ações gerará uma resposta equivalente, de acordo com o princípio da conectividade. É assim o sítio para onde veio.
Com aquelas palavras, o homem sem rosto ajustou o chapéu de aba larga, virou-se e voltou para o barco. Depois de ele subir a bordo, o barco regressou como tinha vindo, seguindo a corda para o outro lado. Devagar e firme, como um animal bem treinado. O homem sem rosto e o barco eram um só, à medida que ambos iam desaparecendo na névoa.
Decidi deixar o ancoradouro para trás e andar rio abaixo ao longo da margem. Podia ter ido em qualquer direção, mas pareceu-me melhor acompanhar o curso do rio. Dessa forma, haveria água para beber quando tivesse sede. Pouco depois, virei-me e olhei na direção do ancoradouro, que já se encontrava envolto por uma neblina branca. Como se nunca tivesse existido.
Quanto mais andava, mais largo se tornava o rio e mais lenta era a corrente. Naquele ponto não havia ondas com espuma e o rumor da água desaparecera. Porque não tinham feito ali o ancoradouro, em vez de no sítio onde a corrente era tão rápida? É verdade que haveria uma distância maior para percorrer, mas a travessia teria sido muito mais fácil onde a água estivesse calma. Mesmo assim, talvez aquele mundo operasse de acordo com os seus próprios princípios, o seu próprio modo de pensar. Quem podia garantir que, sob a superfície plácida, não estariam à espreita perigos ainda maiores?
Vasculhei os bolsos. Como é óbvio, o pinguim desaparecera. O facto de o amuleto de proteção se ter perdido (provavelmente por toda a eternidade) não era lá muito reconfortante. Talvez tivesse feito a escolha errada. No entanto, que outra opção me fora dada? Só esperava que tudo corresse bem para Marie mesmo sem o amuleto. Naquela altura do campeonato só me restava a esperança, que é sempre a última a morrer.
Avancei ao longo da margem do rio, levando na mão a lanterna que tirara da mesa de cabeceira de Tomohiko Amada. Ia desligada. Naquele mundo sombrio, apesar de imperar a escuridão, não era necessário ter uma luz acesa. Conseguia ver onde punha os pés e até mais além, a cerca de doze ou quinze metros para diante. O rio corria à minha esquerda, lento e silencioso. De vez em quando avistava a outra margem através da neblina.
Quanto mais avançava, mais o chão sob os meus pés se assemelhava a um caminho. Não um carreiro bem definido, mas algo que cumpria a função de um caminho. Havia vagos indícios de que outras pessoas já tinham passado por ali antes. Aos poucos, o caminho foi-me levando para longe do rio. A determinado momento, estaquei. Devia manter-me junto ao rio? Ou permitir que aquele hipotético caminho me levasse noutra direção?
Pensei um pouco no assunto e decidi seguir o caminho, afastando-me do rio. Tinha a sensação de que me levaria a algum lado. «Agora, cada uma das suas ações gerará uma resposta equivalente, de acordo com o princípio da conectividade», dissera o barqueiro. Aquele caminho constituía um bom exemplo. Decidi aceitar a sugestão plausível – se é que podia entendê-la assim – que me tinha sido apresentada.
Quanto mais me distanciava do rio, mais o caminho subia. Por fim, percebi que deixara de ouvir o marulhar da água. A inclinação era pouco íngreme e o caminho quase reto, pelo que os meus passos adquiriram um ritmo constante. A névoa começava a dissipar-se, mas a luz permanecia ténue e um tudo-nada opaca. Era impossível ver o que estava à frente. Mantive-me atento a onde punha os pés, esforçando-me por respirar calma e compassadamente.
Desde quando vinha a caminhar? Perdera a noção do tempo. Para não falar do sentido de orientação destrambelhado. Além disso, os meus pensamentos distraíam-me. Tinha muito que descobrir, mas os meus pensamentos haviam-se tornado bastante fragmentados. Quando tentava concentrar-me num pensamento, outro surgia para o engolir, e a minha mente seguia na direção errada. A cada passo esquecia-me do que estivera a pensar.
Ia tão distraído que quase choquei com aquilo. Tropecei em qualquer coisa, e levantei os olhos enquanto recuperava o equilíbrio. Naquele instante, o ar em meu redor transformou-se, senti-o na pele. Voltei para a realidade. Uma enorme massa negra surgira mesmo à minha frente. Fiquei boquiaberto. Que diabo era aquilo? Levei um momento a registar que tinha diante de mim uma floresta enorme. Materializara-se sem aviso num terreno que, até àquele ponto, não apresentava vegetação, nem uma única folha ou erva. Não admira, portanto, que tenha ficado tão chocado.
Era uma floresta, disso não havia dúvida. Um emaranhado de ramos com folhas grossas que formavam uma parede sólida. Dentro da floresta reinava a escuridão. O termo «mar de árvores» talvez fosse mais preciso do que floresta. Fiquei parado diante dela e apurei o ouvido, mas não ouvi nada. Nem pássaros, nem ramos a balançar ao vento. Uma total ausência de som.
Senti um medo instintivo de entrar na floresta. As árvores eram muito densas, a escuridão demasiado intensa. Não tinha como avaliar a sua dimensão ou saber por quanto mais se estenderia o caminho. Podia, sem apelo nem agravo, dividir-se num labirinto de carreiros secundários. Se me perdesse naquele labirinto, as minhas hipóteses de escapar eram nulas, de certezinha. Ainda assim, não tinha alternativa. O caminho que eu escolhera fora direito à floresta (ou, para ser mais preciso, era sugado por ela, como uma linha férrea é sugada por um túnel). Não fazia sentido, tendo chegado tão longe, dar meia-volta e regressar para junto do rio. O rio podia já nem estar lá! Não, eu fizera a minha escolha e agora tinha de viver com ela. Continuaria em frente, desse por onde desse.
Enchendo-me de coragem, avancei adentro do emaranhado de árvores. Era impossível adivinhar a altura do dia – manhã, tarde ou noite? A meia-luz parecia nunca variar, por mais que as horas avançassem. Por outro lado, o tempo podia não existir naquele mundo. Nesse caso, o crepúsculo persistiria, dia após dia, para sempre.
Na floresta reinava a escuridão. As densas camadas de ramos acima da minha cabeça bloqueavam quase toda a luz. Ainda assim, mantive a lanterna desligada. Adaptados os olhos ao lusco-fusco, pude então dar corda aos sapatos. Não queria desperdiçar as pilhas. Mergulhei na floresta com a mente vazia. Qualquer pensamento levar-me-ia a um sítio ainda mais sombrio. O caminho prolongava-se numa inclinação suave. Ouvia apenas os meus passos, que eram cada vez mais ténues, como se o seu som estivesse a ser sugado aos poucos. Oxalá a sede não me assaltasse. É que, às tantas, o rio já estava bastante longe. Não havia a mínima hipótese de voltar atrás para me servir de um trago, por muita sede que tivesse.
Quanto tempo caminhei? A floresta era profunda e escura, uma paisagem imutável. A luz também nunca mudou. Ouvia apenas os meus passos, e a custo. O ar não tinha gosto nem cheiro, como de costume. O caminho era ladeado por árvores grossas dos dois lados. Não conseguia ver mais nada. Viveria ali alguma coisa? Talvez não. Não tinha dado pela presença de pássaros nem de insetos.
No entanto, senti que havia alguém a observar-me – uma sensação manifesta e particularmente desagradável. Olhos penetrantes postos em mim por detrás da parede de folhagem. Todos os meus movimentos eram espiados. A minha pele ardia, como se estivesse sob uma lupa ao sol. «O que fazia eu ali?», perguntavam. Aquele era o domínio deles e eu um mero invasor solitário. Porém, nunca cheguei a ver, de facto, um par de olhos sequer. Posso tê-los imaginado. O medo e a desconfiança por vezes desenham olhos no escuro.
Por outro lado, Marie sentiu os olhos de Menshiki postos nela do lado oposto de um vale, e ainda por cima através de um par de binóculos. Adivinhara que alguém a espiava constantemente. E tinha razão. Aqueles olhos não eram de fantasia.
No entanto, decidi ignorar os olhos que, no meu íntimo, eu sabia que me examinavam. Não podiam ser reais, apenas um produto de alucinações criadas pelos meus medos. Era melhor pensar assim. Tinha de atravessar a grande floresta (embora o seu tamanho real fosse um mistério) tentando manter a sanidade intacta tanto quanto possível.
Por sorte, não havia carreiros laterais. Assim, não fui forçado a fazer uma escolha que pudesse levar-me a um labirinto com destino a lado nenhum. Nem moitas espinhosas a bloquear-me a passagem. Tudo o que eu tinha de fazer era avançar por um único caminho a direito.
Não sabia há quanto tempo estava a andar, mas não me sentia especialmente cansado. Talvez estivesse sob demasiado stresse para registar a fadiga. Quando as minhas pernas começaram a ficar um nadinha pesadas, avistei um ponto amarelo de luz à distância. De início, pensei que fosse um pirilampo – engano meu. A luz não se movia nem piscava. A sua posição fixa levava a crer que tinha sido feita por mão humana. À medida que eu avançava, a luz começou aos poucos a ficar maior e mais brilhante. Não havia margem para dúvidas. Eu estava a aproximar-me de alguma coisa.
Seria uma coisa boa ou má? Iria ajudar-me ou prejudicar-me? Fosse qual fosse o caso, não tinha opções. Para o melhor ou para o pior, precisava de descobrir o que era aquela luz. Se não tivesse coragem de o fazer, nunca devia ter embarcado naquela viagem para começar. Passo a passo, avancei em direção à luz.
Nesse momento, tão depressa como dera de caras com ela, a floresta terminou. As árvores que se tinham perfilado de ambos os lados do caminho desapareceram e, antes que eu desse por isso, encontrava-me numa ampla clareira. Formava uma meia-lua e era perfeitamente lisa. Voltei a ver o céu e o que me rodeava naquela luz escura. À minha frente erguia-se um penhasco e, na base desse penhasco, abria-se a boca de uma gruta escura. A luz amarela que eu tinha estado a seguir saía diretamente daquela abertura.
O mar sombrio de árvores ficara atrás de mim, e agora tinha o penhasco imponente (demasiado íngreme para trepar) à dianteira. A entrada da gruta estava escancarada defronte. Olhei para o céu uma segunda vez, depois olhei em volta. Em vão procurei algo que se assemelhasse a um carreiro. O meu passo seguinte foi entrar na gruta – não havia alternativa. Antes de entrar, respirei fundo várias vezes para me preparar. Ao avançar, geraria uma nova realidade de acordo com o princípio da conectividade. Ou assim dissera o homem sem rosto. Navegaria no interstício entre presença e ausência. Restava-me confiar nas palavras dele.
Com cautela, entrei na gruta. Depois ocorreu-me: eu já ali estivera. Conhecia aquela gruta de vista. O ar lá dentro também me era familiar. As recordações voltaram. A gruta do vento no monte Fuji. A gruta onde o meu jovem tio me levara, a mim e a Komichi, durante as nossas férias de verão, quando éramos crianças. Ela entrara num túnel lateral estreito e ausentara-se durante bastante tempo. Eu morrera de medo de que tivesse desaparecido para sempre. Teria sido sugada para um labirinto subterrâneo por toda a eternidade?
«A eternidade é muito tempo», dissera o homem sem rosto.
Avancei pé ante pé gruta adentro em direção à luz amarela, amortecendo o som dos meus passos e tentando acalmar o coração acelerado. Dobrei uma esquina e lá estava: a fonte da luz. Pendurada num prego grosso cravado na parede de pedra vi uma velha lanterna com um rebordo de metal preto, das que se usam nas minas de carvão. Uma vela grossa ardia dentro da lanterna.
Lanterna, pensei. A palavra surgira pouco antes. Fazia parte do nome da organização estudantil antinazi a que Tomohiko Amada se terá juntado. As coisas pareciam começar a convergir.
Havia uma mulher em pé sob a lanterna. De início não a vi, por ela ser muito pequena. Cerca de meio metro de altura. Tinha o cabelo preto apanhado no alto da cabeça num coque e usava um vestido branco antigo. A sua elegância era por demais evidente. Outra personagem retirada de A Morte do Comendador. A bela donzela que olha horrorizada, com a mão sobre a boca, enquanto o Comendador é morto. Em Don Giovanni, de Mozart, ela é Donna Anna. A filha do Commendatore.
Ampliada pela luz da lanterna, a sua sombra negra e nítida estremeceu na parede da gruta.
– Tenho estado à sua espera – disse a Donna Anna em ponto pequeno.
55
UMA INFRAÇÃO CLARA DE PRINCÍPIOS BÁSICOS
–Tenho estado à sua espera – disse Donna Anna. Apesar da pequena estatura, possuía uma voz límpida e plena de vivacidade.
Já nada me surpreenderia naquela altura. Parecia até natural ela estar ali à minha espera. Era uma mulher bonita, com uma elegância inata, e falava num tom majestoso. Podia ter apenas meio metro de altura, mas assistia-lhe aquela capacidade especial de cativar um homem.
– Serei a sua guia – disse-me. – Por favor, tenha a bondade de pegar naquela lanterna.
Tirei a lanterna da parede. Não sabia quem a pusera ali, fora do alcance dela. A pega de metal circular permitia que fosse pendurada num prego ou levada na mão.
– Estava à minha espera? – perguntei.
– Sim, há muito tempo.
Seria ela outra forma de Metáfora? Hesitei em fazer uma pergunta tão ousada.
– Vive por estas bandas?
– Se vivo aqui? – repetiu ela, lançando um olhar duvidoso na minha direção. – Não, estou aqui para o encontrar. E receio não perceber o que quer dizer com «estas bandas».
Depois disso, desisti de fazer perguntas. Ela era Donna Anna e estivera à minha espera.
Tal como o Comendador, usava vestuário antigo. Neste caso, roupa branca, provavelmente feita de seda fina, em camadas drapeadas que lhe caíam do busto, com uma espécie de calças largas por baixo. Embora a sua silhueta estivesse oculta, imaginei-a esguia e forte. Os pequenos sapatos pretos eram feitos de couro.
– Comecemos então – disse Donna Anna. – Não resta muito tempo. O caminho estreita-se enquanto falamos. Por favor, siga-me. E tenha a bondade de levar a lanterna.
Fui na sua peugada, segurando a lanterna acima da cabeça dela. A pequena mulher caminhou em direção ao fundo da gruta com passos rápidos e ágeis. A chama da vela tremulava a acompanhar os nossos movimentos, projetando um mosaico de sombras nas paredes.
– Tenho a sensação de que estou numa gruta de vento no monte Fuji que visitei uma vez – comentei. – Será possível?
– Tudo o que está aqui parece-se com qualquer coisa – declamou Donna Anna sem se virar. Dirigia-se, digo eu, à escuridão diante de si.
– Quer dizer que nada aqui é real?
– Ninguém pode dizer o que é ou não real – afirmou categoricamente. – Tudo o que vemos é produto da conectividade. A luz aqui é uma metáfora da sombra, a sombra uma metáfora da luz. Mas creio que já sabe isso.
Saberia? Tinha as minhas dúvidas, mas abstive-me de fazer perguntas. Só levaria a abstrações mais complicadas.
A gruta estreitava-se à medida que nos adentrávamos nela. O teto também se tornou mais baixo, de modo que tive de me curvar enquanto caminhava. Tal como fizera na gruta de vento do monte Fuji. Por fim, Donna Anna parou e virou-se para mim. Os seus pequenos olhos brilhantes estavam cravados nos meus.
– Posso guiá-lo até aqui. A partir de agora deve ir à frente. Vou segui-lo, mas apenas até certo ponto. Depois disso, está por sua conta.
Ir à frente? Abanei a cabeça, incrédulo – pelo que me era dado a ver, chegáramos ao fundo da gruta. Uma parede de pedra escura bloqueava-nos o caminho. Examinei-a com a lanterna, mas parecia que tínhamos chegado a um beco sem saída.
– Tudo indica que não podemos continuar – comentei.
– Por favor, olhe novamente. Encontrará uma abertura no canto à sua esquerda – disse Donna Anna.
Tornei a aproximar a lanterna daquela secção da parede da gruta. Quando estiquei o pescoço e a examinei mais de perto, distingui uma depressão escura do outro lado de uma grande rocha. Enfiei-me entre a parede e a rocha para inspecionar. De facto, diria que era uma abertura. Lembrei-me da minha irmã a entrar numa fenda ainda mais estreita.
Voltei-me para Donna Anna.
– Tem de entrar ali – disse a mulher de meio metro de altura.
Fixei aquele adorável rosto, pensando no que dizer. Na parede, a sua sombra alongada agitava-se à luz amarela da lanterna.
– Bem sei que durante toda a vida teve medo de espaços apertados e escuros – disse ela. – Nem consegue respirar normalmente. Estou certa, não estou? No entanto, faça um esforço por entrar. Só assim alcançará o que procura.
– Onde conduz aquela abertura?
– Não sei. O destino é algo que tem de determinar por si próprio seguindo o seu coração.
– Mas no meu coração também há medo – retorqui. – É isso que me preocupa. Que o meu medo distorça o que vejo e me empurre na direção errada.
– Mais uma vez, é o senhor que determina o caminho. Foi o senhor que escolheu o caminho que julgou adequado para chegar a este mundo. Pagou um grande preço por isso e atravessou o rio de barco. Já não pode voltar atrás.
Olhei novamente para a abertura. Estremeci ao pensar que teria de me enfiar por aquele túnel escuro e apertado. No entanto, era o que precisava de fazer. Ela tinha razão: já não podia voltar atrás. Pousei a lanterna no chão e tirei a outra a pilhas do bolso. A geringonça com a vela estorvaria bastante naquele espaço minúsculo.
– Acredite em si mesmo – disse Donna Anna, numa voz baixa mas penetrante. – Bebeu do rio, não é verdade?
– Sim, estava cheio de sede.
– Ainda bem que o fez – disse Donna Anna. – Esse rio corre ao longo do interstício entre presença e ausência. Nele afluem possibilidades ocultas que apenas as melhores metáforas podem trazer à superfície. Tal como um grande poeta é capaz de usar uma cena para nos revelar uma nova visão desconhecida. Devia ser óbvio, mas as melhores metáforas fazem os melhores poemas. Tome cuidado para não desviar os olhos das novas e desconhecidas visões que irá encontrar.
A Morte do Comendador de Tomohiko Amada podia ser considerada uma «visão desconhecida». Como um grande poema, o quadro era uma metáfora perfeita, que lançava uma nova realidade sobre o mundo.
Acendi a lanterna e verifiquei o feixe de luz. Forte o suficiente. As pilhas ainda deviam durar algum tempo. Despi o blusão de cabedal por ser demasiado volumoso para caber num espaço tão apertado. Fiquei apenas com uma camisola fina e calças de ganga. A gruta não estava especialmente fria, mas também não estava assim tão quente.
À laia de preparação, agachei-me, quase de gatas, e enfiei-me de cabeça na abertura. Encontrei o que parecia ser um túnel esculpido na rocha. Era suave ao toque, como se tivesse sido alisado pela água ao longo de muitos anos. Quase não havia bordas irregulares ou salientes. Como resultado, apesar da sua estreiteza, consegui progredir com mais facilidade do que esperava. A rocha estava fria e ligeiramente húmida. Avancei de barriga no chão como uma minhoca, a lanterna a iluminar-me o caminho. Calculei que o túnel devia ter funcionado como uma conduta de água algures em tempos que já lá iam.
Tinha cerca de meio metro de altura e setenta e cinco centímetros de diâmetro. Rastejar era a única opção. Parecia que iria estender-se para sempre, um tubo escuro e natural que se expandia e contraía volta e meia. Às vezes, curvava-se para o lado. Outras vezes, subia ou descia. Felizmente, não encontrei subidas ou descidas abruptas. Foi então que me ocorreu. Se aquilo era uma conduta subterrânea, a água poderia inundar o túnel a qualquer momento, e eu morreria afogado. As minhas pernas pararam de se mover, paralisadas pelo medo.
Quis virar-me e voltar pelo caminho por onde viera. Mas era impossível inverter o sentido num espaço tão apertado. O túnel teria ficado ainda mais estreito. Rastejar para trás até ao início estava fora de questão. Fui dominado pelo terror. Encontrava-me literalmente colado ao chão. Não era capaz de seguir em frente nem de recuar. Cada célula do meu corpo clamava por ar fresco. Longe da luz, senti-me impotente e abandonado à minha sorte.
– Não pare. Tem de seguir em frente. – A ordem de Donna Anna era irrefutável. Não percebi se estava a ouvir coisas ou se ela se encontrava realmente atrás de mim, incentivando-me.
– Não consigo mover-me – balbuciei a custo. – E não consigo respirar.
– Fortaleça o coração – instruiu Donna Anna. – Não o deixe falhar. Se isso acontecer, irá certamente ser vítima de uma Metáfora Dupla.
– O que são Metáforas Duplas? – perguntei.
– Já devia saber a resposta.
– Eu? Porquê?
– Porque elas estão dentro de si – explicou Donna Anna. – Agarram os seus verdadeiros pensamentos e sentimentos e devoram-nos um após o outro, engordando. São assim as Metáforas Duplas. Habitam nas profundezas da psique desde tempos imemoriais.
De repente, o homem do Subaru Forester branco surgiu nos meus pensamentos. Não o queria lá, mas não havia maneira de o contornar. Fora ele quem me forçara a estrangular aquela jovem, obrigando-me a olhar para as trevas do meu coração. Reaparecera mais de uma vez, para ter a certeza de que eu me lembraria daquela escuridão.
«Sei onde esteve e o que fez», anunciava-me. Claro que ele sabia tudo, porque vivia dentro de mim.
O meu coração galopava descontrolado. Fechei os olhos e tentei acalmá-lo, mantê-lo quieto. Cerrei os dentes com o esforço. Mas como poderia proteger o meu coração? Onde era a sua verdadeira localização, afinal? Olhei para dentro de mim, vasculhando todos os recantos. Mas ele não apareceu. Onde poderia estar?
– O teu verdadeiro coração vive na tua memória. É nutrido pelas imagens que contém... é assim que vive – disse uma mulher.
Daquela vez, no entanto, não foi Donna Anna que falou. Foi Komi. A minha irmã, que morrera aos doze anos.
– Procura na tua memória – disse aquela voz bem-amada. – Encontra uma coisa concreta, algo em que possas tocar.
– Komi?
Não obtive resposta.
– Komi, onde estás?
Nenhuma resposta.
No escuro, procurei na minha memória. Como se revirasse um velho saco de viagem. Mas parecia ter sido esvaziado. Não conseguia lembrar-me exatamente do que era a memória.
– Apaga a luz e ouve o vento – disse Komi.
Desliguei a lanterna, mas não ouvi nada, por muito que tentasse. Escutei apenas a batida irrequieta do meu coração, como uma porta de rede a bater durante um vendaval.
– Ouve o vento – repetiu Komi.
De novo, sustive a respiração e concentrei-me. Daquela vez, além do meu batimento cardíaco, consegui ouvir um vago zumbido. O vento parecia estar a soprar num lugar distante. Uma ligeira brisa aflorou-me o rosto. O ar entrava no túnel mais à frente. Ar que eu era capaz de cheirar. O odor inconfundível da terra húmida. O primeiro cheiro que encontrava desde que pusera os pés naquela Terra da Metáfora. O túnel conduzia a algum lado. A um sítio que eu conseguia cheirar. Em suma, ao mundo real.
– Muito bem, toca a avançar – disse Donna Anna. – Já não resta muito tempo.
Com a lanterna desligada, arrastei-me na escuridão. Enquanto me deslocava para a frente, tentei inspirar algum daquele ar real e encher os pulmões.
– Komi? – chamei de novo.
Não houve resposta.
Remexi a gaveta das minhas recordações. Komi e eu tivemos um gato de estimação. Um gato preto muito esperto. Demos-lhe o nome de Koyasu3, embora me escape o motivo. Komi encontrara-o, era ele bebé, quando voltava da escola. Mas, um dia, ele desapareceu. Percorremos o bairro à sua procura. Interpelámos as pessoas na rua para lhes mostrarmos a fotografia de Koyasu. O gato nunca apareceu.
Continuei a arrastar-me. A imagem do gato preto bem nítida na minha mente. Tentei imaginar a minha irmã e eu juntos, à procura dele. Esforcei-me por ter um vislumbre do gato no final do túnel escuro. Obriguei os meus ouvidos a ouvir aquele miado. O gato preto era sólido e concreto, algo que eu podia tocar. Sentia o seu pelo, o seu calor, a firmeza do seu corpo – podia até ouvi-lo ronronar – como se o tivesse visto ontem pela última vez.
– Isso mesmo – disse Komi. – Continua a lembrar-te dessa forma.
«Sei onde esteve e o que fez», bradou do nada o homem do Subaru Forester branco. Vestia um blusão de cabedal preto e um boné de golfe com o símbolo da Yonex. A sua voz estava rouca do vento do mar. Apanhado de surpresa, encolhi-me com medo.
Tentei encontrar as minhas recordações do gato. Atrair a fragrância da terra húmida para os meus pulmões. Tinha uma ideia vaga daquele cheiro algures. Num tempo não muito distante. Mas não consegui lembrar-me, por mais que tentasse. Onde teria sido? De tanto esforçar a memória, as minhas recordações começaram a desaparecer.
«Podes estrangular-me, só um niquinho? Usa isto», dissera a rapariga. A sua língua rosada espreitava por entre os lábios. O cinto do roupão estava ao lado da almofada, à mão de semear. Os pelos púbicos brilhavam como relva molhada da chuva.
– Vá – incitou Komi. – Evoca uma das tuas lembranças preferidas. Depressa!
Tentei trazer de volta o gato preto. Mas Koyasu fora-se embora. Porque não conseguia lembrar-me dele? Talvez a escuridão o tivesse levado enquanto eu estava distraído. O seu poder devorara-o. Tinha de pensar noutra coisa, e depressa. Começava a apoderar-se de mim a horrenda sensação de que o túnel se apertava à minha volta. Diria que estava vivo. «Não resta muito tempo», dissera Donna Anna. Um suor frio escorria das minhas axilas.
– Vá lá, lembra-te de alguma coisa – disse a voz de Komi atrás de mim. – Uma coisa que consigas tocar fisicamente, que possas desenhar.
Como um náufrago a estender as mãos para uma boia, agarrei-me ao meu velho Peugeot 205. O meu pequeno carro francês. Lembrei-me da sensação do volante enquanto viajava pelo Nordeste do Japão e por Hokkaido. Parecia ter sido há séculos, mas ainda conseguia ouvir o barulho daquele motor primitivo de quatro cilindros e o modo como a embraiagem protestava quando eu mudava de segunda para terceira. Durante mês e meio, o carro fora o meu companheiro constante, o meu único amigo. Naquele momento encontrava-se provavelmente num ferro-velho.
O túnel tornava-se cada vez mais estreito. A minha cabeça ia batendo no teto. Estendi a mão para a lanterna.
– Não acenda a luz – ordenou Donna Anna.
– Mas assim não vejo para onde vou.
– Nem deve ver – disse ela. – Não com os olhos.
– O buraco está a fechar-se. A continuar assim, não vou conseguir mexer-me.
Não houve resposta.
– Não posso ir mais longe – declarei. – O que devo fazer?
Mais uma vez, nada.
Já não ouvia Donna Anna nem Komi. Senti que tinham partido. Ficara apenas um profundo silêncio.
O túnel continuou a encolher, e era ainda mais difícil avançar. Comecei a sentir pânico. Os meus membros encontravam-se quase paralisados. Respirar era já um problema. Uma voz sussurrou-me ao ouvido. «Está preso», disse. «Este é o seu caixão. Não pode seguir em frente. Não pode recuar. Vai ficar aqui enterrado para sempre. Abandonado pela humanidade neste túmulo escuro e estreito.»
Senti algo aproximar-se por trás. Uma coisa meio achatada, a rastejar na minha direção através do escuro. Não era Donna Anna, nem era Komi. Na verdade, nada tinha de humano. Ouvi raspar os seus muitos pés e a sua respiração irregular. Deteve-se quando me alcançou. Seguiram-se alguns momentos de silêncio. Estaria a suster a respiração, planeando o próximo passo. Foi então que algo frio e viscoso tocou no meu tornozelo nu. O fim de um longo tentáculo, creio. Senti um arrepio de terror pela espinha acima.
Poderia ser uma Metáfora Dupla? Aquilo que tinha origem na escuridão dentro de mim?
«Sei onde esteve e o que fez.»
Não conseguia lembrar-me de nada. Nem do gato preto, nem do Peugeot 205, nem do Comendador – tudo desaparecera. A minha memória fora esvaziada pela segunda vez.
Contorci-me e retorci-me, tentando freneticamente escapar ao tentáculo. O túnel contraíra-se ainda mais, mal me conseguia mexer. Estava a enfiar-me num espaço mais pequeno do que o meu corpo. Isso era uma infração clara de princípios básicos. Não era preciso ser um génio para perceber que tal era fisicamente impossível.
Ainda assim, continuei a fazer força e a empurrar-me para a frente. Como Donna Anna dissera, aquele fora o caminho que eu escolhera e era demasiado tarde para escolher outro. O Comendador morrera para tornar possível a minha busca. Eu esfaqueara-o com estas mãos. O seu corpo afundara-se numa poça de sangue. Não podia permitir que ele morresse em vão. E o dono daquele tentáculo pegajoso persistia em querer agarrar-me.
Enchendo-me de coragem, continuei. Senti a camisola rasgar-se ao prender-se na rocha. Avancei desajeitadamente, deslocando as minhas articulações como um escapista a soltar-se das amarras. Não avançava mais depressa do que uma lagarta. O túnel estreito apertava-me como um torno gigante. Os ossos e os músculos gritavam. O tentáculo viscoso subiu-me pelo tornozelo. Em breve iria cobrir-me inteiro, e eu ficaria ali no escuro impenetrável, incapaz de me mover. Deixaria de ser a pessoa que era.
Abandonando toda a razão, reuni a força que me restava e obriguei-me a entrar no espaço cada vez mais exíguo. O meu corpo gritava de dor. Mas havia que avançar, quaisquer que fossem as consequências, mesmo que tivesse de deslocar as articulações, uma por uma, por mais agonizante que fosse, pois tudo em meu redor se assumia como um produto da conectividade. Nada era absoluto. A dor não passava de uma metáfora. O tentáculo que me segurava a perna constituía uma metáfora. Tudo era relativo. Luz significava sombra, sombra significava luz. Não tinha escolha senão acreditar. Que mais podia eu fazer?
O túnel terminou sem aviso, cuspindo-me como uma bola de ervas de um cano entupido. Voei pelo ar, totalmente indefeso. Não houve tempo para pensar. Devo ter caído quase dois metros antes de atingir o chão. Por sorte, não era rocha sólida, mas terra relativamente macia. Dobrei-me todo e rolei quando caí, curvando a cabeça para a proteger do impacto. Um movimento de judo, feito sem pensar. Bati com o ombro e a anca ao aterrar, mas mal dei por isso.
A escuridão rodeava-me. Ainda por cima, acabara por perder a lanterna. Devia tê-la largado quando caí. Fiquei de gatas, imóvel. Não via um boi à minha frente nem conseguia pensar em nada. Estava apenas ciente, e mal, de uma dor crescente nas articulações. Cada tendão, cada osso gemia em protesto contra aquilo a que fora submetido durante a minha fuga.
Sim, eu escapara àquele túnel terrível! Percebera isso por fim. Ainda podia sentir o estranho tentáculo, a deslizar pelo meu tornozelo. Estava grato por ter fugido daquela coisa, o que quer que fosse.
Mas onde me encontrava eu?
Não havia brisa. Em contrapartida, havia cheiro. O cheiro que sentira no túnel estava em toda a parte. Não me lembrava de onde o encontrara antes. Em todo o caso, reinava o silêncio. Não se ouvia rigorosamente nada.
Tinha de encontrar a lanterna. Tateei cuidadosamente o chão onde caíra. De quatro, num círculo cada vez mais largo. A terra estava húmida. Tive medo de tocar em alguma coisa assustadora no escuro, mas ali não havia nada, nem sequer uma pedra. O chão era tão liso que devia ter sido nivelado por mãos humanas.
Depois de uma busca exaustiva, encontrei por fim a lanterna a cerca de um metro de onde aterrara. O momento em que toquei com a mão no invólucro de plástico foi um dos mais felizes da minha vida.
Mas não a liguei logo. Em vez disso, fechei os olhos e respirei fundo várias vezes. Como se estivesse pacientemente a desfazer um nó teimoso. A respiração abrandou, bem como o coração, e os músculos começaram a voltar ao normal. Exalei lentamente a última inspiração profunda e acendi a lanterna. A luz amarela atravessou a escuridão, mas ainda não conseguia olhar para ela. Os meus olhos tinham-se habituado entretanto ao escuro; até um pequeno foco de luz me provocava terríveis dores de cabeça.
Protegi os olhos com a mão e fui descerrando os dedos para ver através deles. Tinha aterrado no chão de uma divisão circular, acanhada, com paredes de pedra. Apontei a lanterna para cima. Vi o teto. Não, não era bem isso. Mais parecia uma tampa. Luz nenhuma entrava por ali.
Percebi onde estava: no poço da floresta, atrás do pequeno santuário. Arrastara-me para o túnel na caverna de Donna Anna e aterrara no chão daquela câmara de pedra. Estava num buraco real no mundo real. Desconhecia como isso podia ter acontecido, mas acontecera. Voltara ao início, por assim dizer. Mas por que razão não havia luz? A tampa era feita de tábuas. Havia fendas entre elas, através das quais alguma luz deveria entrar. Nesse caso, por que diabo não se via a ponta de um corno?
Fiquei perplexo.
Pelo menos sabia onde estava. O cheiro era a pista. Porque demorei tanto tempo a descobrir? Examinei cuidadosamente o espaço em volta com a lanterna. A escada de metal que devia estar ali desaparecera. Alguém a puxara para fora, o que significava que não tinha como sair do poço.
O que achei estranho (devia ter sido estranho, creio) foi não conseguir encontrar vestígios da abertura do túnel, por mais que olhasse. Saíra do túnel estreito e caíra no fundo daquele poço. Como um bebé recém-nascido expelido para o vazio. No entanto, não consegui encontrar a abertura. Era como se esta se tivesse fechado depois de me cuspir.
Por fim, o feixe da lanterna iluminou um objeto no chão. Reconheci-o imediatamente. Era o velho sino que o Comendador tocara – foi assim que descobri o poço. Tudo começara com aquele sino. Eu deixara-o na estante do estúdio e, a certa altura, ele desaparecera. Deitei-lhe a mão e examinei-o com a lanterna. Tinha um cabo de madeira antigo. Não havia a menor dúvida: era o mesmo sino.
Olhei para ele durante bastante tempo, tentando perceber. Alguém o trouxera de volta? Teria regressado graças o seu próprio poder? O Comendador dissera-me que o sino pertencia ao poço. O que significava isso? Que pertencia ao poço? A verdade, porém, é que eu estava demasiado cansado para descobrir o que se passava. E não havia nenhuma base de sustentação lógica em que pudesse apoiar-me.
Sentei-me encostado à parede de pedra e apaguei a lanterna. Tinha de descobrir como escapar daquele buraco. Não precisava de luz para isso. E era importante poupar as pilhas.
O que fazer?
3 Fertilizante. (N. das T.)
56
HÁ ESPAÇOS EM BRANCO
QUE PRECISAM DE SER PREENCHIDOS
Várias coisas não faziam sentido. O mais preocupante era a total ausência de luz. Alguma alminha selara a abertura do poço. Mas quem faria tal coisa? E porquê?
Rezei para que alguém (quem quer que fosse) não tivesse empilhado pedras em cima da tampa, repondo o aspeto original. Nesse caso, a probabilidade de sair dali era praticamente nula
Tive uma epifania. Acendi a lanterna e olhei para o relógio. Eram 4h32. O segundo ponteiro descrevia um círculo pelo mostrador, fazendo o seu trabalho. O tempo estava a passar, sem dúvida. Pelo menos eu regressara aonde o tempo fluía a um ritmo definido e numa única direção.
Mas, pensando bem, o que era o tempo? Medíamos a sua passagem com os ponteiros de um relógio por uma questão de conveniência. Isso era correto? O tempo fluía realmente de forma tão estável e linear? Não poderia ser um modo errado de pensar, um erro de proporções trágicas?
Desliguei a lanterna e, deixando escapar um longo suspiro, voltei à escuridão absoluta. Para o diabo as meditações sobre o tempo. Para o diabo as meditações sobre o espaço. Pensar naquelas coisas não levava a lado nenhum, só contribuía para aumentar o meu stresse. Tinha de pensar em coisas concretas, coisas que podia ver e tocar.
Pensei em Yuzu. Podia vê-la com os olhos e tocar-lhe com as mãos (se voltasse a ter essa oportunidade). Naquela altura, estava grávida. O bebé – não meu, mas de outro homem – nasceria no mês de janeiro. Essa situação progredia sem o meu envolvimento, num lugar distante. Uma nova vida com a qual eu não tinha nenhuma relação entraria naquele mundo. Yuzu não me pedira nada. Então, porque se recusava a casar com o pai da criança? Não havia maneira de atinar com o motivo. Se ela tencionasse ser mãe solteira, o mais provável era ter de deixar o emprego no ateliê de arquitetura. Duvidava que, tratando-se de uma pequena empresa, concedessem uma longa licença de maternidade a uma mãe recente.
Não era capaz de encontrar respostas convincentes para aquelas perguntas, embora tenha tentado. Sentia-me perplexo. E a escuridão deixava-me ainda mais impotente.
Se saísse daquele poço, deixaria de lado as minhas hesitações e iria ver Yuzu. Não havia dúvida de que ficara magoado quando ela me trocou por outra pessoa. Isso também me irritou (embora tivesse tardado em perceber). Mas porquê albergar ressentimentos durante o resto da vida? Iria procurá-la e poderíamos conversar, pôr as cartas na mesa. Eu precisava de ouvir, da boca dela, o que pensava e o que queria a minha ex-mulher antes que fosse demasiado tarde. Assim que tomei a decisão, foi como se tirasse um peso de cima. Se ela quisesse ser minha amiga, bem, talvez eu desse uma oportunidade. Não era nada do outro mundo. Quem sabe, poderíamos resolver as coisas dessa maneira. Depois de sair do poço, como é óbvio.
A páginas tantas, adormeci. Despira o blusão de cabedal antes de entrar no túnel (que destino estaria reservado àquele meu blusão?), e o frio começava a incomodar-me. A camisola fina que eu vestira sobre a T-shirt estava de tal forma rasgada de roçar nas paredes do túnel que chamar-lhe camisola era favor. Além disso, eu regressara ao mundo real vindo da Terra da Metáfora. Por outras palavras, voltara ao local onde o tempo e a temperatura desempenhavam o papel que cabia a cada um. Mas a minha necessidade de dormir foi mais forte. Adormeci ali sentado no chão, encostado à dura parede de pedra. Foi um sono puro, livre de sonhos ou ilusões. Um sono solitário além do alcance de qualquer pessoa, como o ouro espanhol que jazia no fundo do mar da Irlanda.
Ainda estava escuro como breu quando acordei. Não via um palmo à frente do nariz. O negrume tinha o condão de eliminar a linha que separava o sono e a vigília. Onde terminava um e começava o outro, e de que lado me encontrava? Peguei nas minhas lembranças e comecei a folheá-las, como se contasse uma pilha de moedas de ouro: o gato preto que fora o nosso animal de estimação; o meu velho Peugeot 205; a mansão branca de Menshiki; o disco de O Cavaleiro da Rosa; o pinguim de plástico. Consegui invocar a recordação de cada uma delas com grande pormenor. A minha mente funcionava bem, a Metáfora Dupla não a devorara. O problema é que eu estava no escuro há tanto tempo que tinha dificuldade em distinguir entre o mundo do sono e o mundo da vigília.
Acendi a lanterna, cobri-a com a mão e consultei as horas com a ajuda da luz que passava entre os meus dedos: 1h18. Da última vez eram 4h32. Seria possível ter dormido numa posição tão desconfortável durante nove horas? Era difícil acreditar nisso. Sendo verdade, teria de me sentir todo amassado. Parecia mais razoável supor que, sem que eu soubesse, o tempo tivesse recuado três horas. Mas não conseguia ter certezas. Estar mergulhado num mar de trevas durante tantas horas dera cabo do meu sentido do tempo.
De qualquer forma, o frio tornara-se mais penetrante. E senti vontade de urinar. Uma vontade enorme. Resignado, arrastei-me para o outro lado do poço e abri as comportas. Um fluxo interminável, que o chão rapidamente absorveu. Pairou no ar um leve cheiro a amoníaco, mas não durou mais que um momento. Assim que a necessidade de urinar foi riscada da lista, veio a fome substituí-la. De forma lenta e constante, tudo indicava que o meu corpo se readaptava ao mundo real. Talvez os efeitos da água que eu bebera no rio da Metáfora estivessem a desaparecer.
Tinha de sair do poço quanto antes. Sentia-o de forma premente. Se não o fizesse, não demoraria muito a morrer à fome. Os seres humanos só podem sobreviver se ingerirem comida e água – era uma regra básica do mundo real. E na minha localização atual não existia nada disso. Havia apenas ar (embora a tampa estivesse fechada, o ar parecia entrar por algum lado). O ar, o amor e os ideais eram importantes, sem sombra de dúvida, mas não se sobrevive apenas disso.
Levantei-me e tentei escalar a parede lisa do poço. Experimentei em vários sítios, mas foi um desperdício de energia – já estava à espera. A parede não chegava aos três metros de altura, mas era completamente lisa, sem nenhum ponto de apoio. Só se tivesse qualidades sobre-humanas é que conseguiria escalá-la, e ainda que eu chegasse ao cimo, havia aquela tampa pesada. Precisaria de uma base sólida para a afastar.
Tornei a sentar-me, resignado. Restava-me uma opção: podia tocar o sino, como o Comendador fizera. Mas havia uma grande diferença entre o Comendador e a minha pessoa. Ele era uma Ideia, ao passo que eu era um ser humano de carne e osso. Uma Ideia nunca sentia fome, eu sim. Uma Ideia não morreria à fome, mas eu sim, e relativamente depressa. O Comendador podia tocar o sino durante cem anos (embora o conceito de tempo lhe fosse estranho) e não se cansar, ao passo que eu aguentaria provavelmente três ou quatro dias sem comida e, sobretudo, sem água. Passado esse limite, não teria forças, embora o sino fosse leve.
Comecei então a tocar o sino ali no escuro. Não havia mais nada a fazer. Claro que podia gritar por ajuda. Mas o buraco ficava no meio de uma floresta erma. Como a floresta era propriedade privada da família Amada, em circunstâncias normais ninguém andaria ali por perto. Para piorar a situação, a cobertura do poço fora bem fechada. Poderia gritar a plenos pulmões que ninguém ouviria. O mais certo era ficar rouco e sentir uma sede dos diabos. Pensando bem, tocar o sino era melhor que nada.
Além disso, havia qualquer coisa fora do comum no toque do sino. Parecia ter um poder especial. Em termos físicos, não soava muito alto. No entanto, ouvira-o da minha cama, a longa distância, a meio da noite. Os insetos outonais calaram-se quando o ouviram. Como se recebessem ordens para acabar com o chinfrim.
Resultado: fiquei ali no fundo do poço, encostado à parede de pedra, a tocar o sino. Balancei o pulso de um lado para o outro e esvaziei a mente, tanto quanto possível. Já cansado, fiz uma pausa. Depois recomecei. Como o Comendador fizera antes de mim. Não foi difícil limpar a minha mente. Ao ouvir a campainha senti, de forma natural, que não precisava de pensar em nada. O toque soava de maneira diferente no escuro. Tenho a certeza de que a diferença era real. Estava preso num buraco negro sem saída, porém, enquanto tocava o sino, não sentia nem medo nem ansiedade. Também fui capaz de esquecer o frio e a fome. Na maior parte do tempo, consegui até dar descanso à minha necessidade de analisar o que estava a acontecer. Foi uma mudança bem-vinda, como podem imaginar.
Farto de tocar o sino, dormitei encostado à parede de pedra. Quando acordei, acendi a lanterna para ver as horas. O tempo, descobri, estava a comportar-se de maneira bastante aleatória. Como é óbvio, tal fenómeno podia ter mais que ver comigo do que com o relógio. Aí havia dúvidas. Mas não me importava com aquela qualidade fortuita. Alheado, continuei a tocar o sino, depois adormeci, e acordei de novo para tocar o sino. Uma repetição sem fim. Com a repetição, a minha consciência tornou-se cada vez mais ténue e rarefeita.
No poço não entrava um único som. Não conseguia ouvir os pássaros nem o vento. Porquê? O que poderia explicar isso? Aquilo era o mundo real ou não? Eu estava de volta a um lugar onde as pessoas sentiam fome e necessidade de urinar. Seria de esperar que o mundo real estivesse saturado de todo o tipo de ruídos.
Não tinha a mínima ideia de quanto tempo transcorrera. Desistira de ver as horas. A passagem dos dias fazia ainda menos sentido do que a passagem dos minutos e das horas. Como poderia ser de outra forma num lugar onde não existia dia e noite? E não era só a noção de tempo que me escapava; começava a perder o contacto com o meu próprio eu. O meu corpo tornara-se-me um estranho. Tinha cada vez mais dificuldade em entender o que significava a minha existência física. Ou talvez me estivesse nas tintas. A única coisa que eu podia fazer era continuar a tocar o sino até sentir o pulso dormente.
Depois do que pareceu uma eternidade (ou depois de o tempo avançar e recuar como ondas a bater na margem), e de a minha fome se tornar insuportável, ouvi qualquer coisa acima da minha cabeça. Parecia que alguém agarrara num canto do mundo e estava a tentar tirar-lhe a pele. Mas o som não me pareceu real. Quero dizer, como poderia alguém fazer isso? E se fizesse, o que se seguiria? Um mundo novo ou um nada infinito? Na verdade, tanto se me dava uma coisa ou outra. Provavelmente, o resultado seria mais ou menos o mesmo.
Ali no escuro, fechei os olhos e esperei que alguém acabasse de descascar o mundo. Mas o mundo, pelos vistos, não se deixava descascar com tanta facilidade, e o barulho só aumentava. Afinal, talvez fosse mesmo real. Um objeto real a passar por um processo que produzia um som físico real. Enchendo-me de coragem, abri os olhos e olhei para cima. Apontei o feixe da lanterna para o teto. Alguém estava lá em cima a fazer uma chinfrineira infernal. Não sei dizer porquê, mas era um ruído estridente e ensurdecedor.
Não percebia se o som me ameaçava ou se estava a ser feito em meu nome. Fosse qual fosse o caso, continuei sentado no fundo do poço a tocar o sino, à espera do desenrolar dos acontecimentos. Por fim, uma fina camada de luz atravessou uma fenda entre as tábuas e penetrou no poço. Como a lâmina larga e afiada de uma guilhotina a deslizar por uma massa de gelatina, desceu pelo escuro até pousar no meu tornozelo. Larguei o sino e cobri o rosto para proteger os olhos.
A seguir, uma das tábuas foi afastada para o lado e a claridade do sol entornou-se poço adentro. Embora tivesse os olhos fechados e as palmas pressionadas contra eles, senti a escuridão transformar-se em luz. Ato contínuo, uma aragem fluiu lá de cima. Era pura e fria e cheirava ao início do inverno. Adorava aquele cheiro. Recordou-me o que sentia em criança quando enrolava um cachecol no pescoço na primeira manhã fria do ano, a lã macia contra a pele.
Alguém gritava o meu nome do cimo do poço. Pelo menos, parecia ser o meu nome. Esquecera-me de que tinha um. Os nomes não possuíam significado algum no mundo em que eu permanecera tanto tempo.
Levei algum tempo a conectar esse alguém que chamava por mim com a pessoa de Wataru Menshiki. Respondi com um grito, mas nenhuma palavra surgiu. Consegui apenas produzir uma espécie de grunhido, sinal de que ainda estava vivo. Não sabia se a minha voz era suficientemente forte para chegar até ele, mas eu ouvia-a. O estranho e áspero chamamento de uma fera imaginária.
– Está tudo bem? – gritou Menshiki.
– Menshiki?
– Sim, sou eu. Está ferido?
– Não, estou bem – respondi. A minha voz regressara. – Penso eu – acrescentei.
– Há quanto tempo está aí em baixo?
– Não sei. Aconteceu.
– É capaz de subir a escada se eu a baixar?
– Acho que sim. – Provavelmente.
– Espere só um minuto. Vou buscá-la.
Os meus olhos começaram a adaptar-se à luz solar naquele compasso de espera. Ainda não conseguia abri-los na totalidade, mas já não havia necessidade de pôr a mão à frente deles. Por sorte, a claridade não era assim tão intensa. Percebi que era de dia, mas o céu devia estar encoberto. Ou o anoitecer aproximava-se. Finalmente, ouvi a escada de metal descer até mim.
– Por favor, dê-me só um minutinho – pedi. – Os meus olhos não estão habituados à luz. Preciso de ter cuidado.
– Claro, leve o tempo que quiser – disse Menshiki.
– Porque estava o poço tão escuro? Não havia nem um pingo de luz.
– Cobri-o há dois dias. Alguém andava a brincar com a tampa, pensei eu, por isso trouxe uma lona pesada de casa e prendi-a com estacas de metal e corda para que ela não se movesse. Não queria que uma criança escorregasse e caísse aí dentro. Verifiquei primeiro para ter a certeza de que não havia ninguém. O poço estava vazio, tenho a certeza.
Fazia todo o sentido. Menshiki cobrira a tampa. Daí estar tão escuro.
– Não creio que alguém tenha mexido na lona. Estava exatamente como a deixei. Sendo assim, como é que entrou? Não entendo – disse Menshiki.
– Eu também não. Aconteceu.
Não podia dizer-lhe mais nada. E também não tencionava explicar-lhe.
– Quer que eu desça? – perguntou Menshiki.
– Não, fique onde está, por favor. Vou subir.
Já era capaz de manter os olhos entreabertos. Atrás deles havia imagens misteriosas, mas pelo menos a minha mente estava a funcionar. Firmei a escada contra a parede, pus o pé no degrau mais baixo e tentei içar-me, porém, as pernas fraquejaram-me. Não pareciam as minhas pernas. Ainda assim, consegui subir cautelosamente a escada, um degrau de cada vez. O ar ficou mais fresco à medida que me aproximava da superfície. Ouvi os pássaros cantar.
Quando cheguei ao cimo, Menshiki agarrou-me no pulso com um aperto férreo e puxou-me para fora. Era muito mais forte do que eu esperava. Suficientemente forte para me entregar nas suas mãos sem pensar duas vezes. Sentia apenas gratidão. Fora do buraco, deitei-me de barriga para cima e olhei para o céu escuro. Como eu previa, estava coberto por nuvens cinzentas. Que horas seriam? Pequenos grânulos de chuva atingiram-me a cara, a cabeça. Achei emocionante a forma irregular como aterraram no meu rosto. Nunca tinha percebido que a chuva podia ser uma bênção. Era tão cheia de vida. Até a primeira chuva fria do inverno.
– Estou esfomeado. E cheio de sede. Além do frio. Estou a congelar – anunciei. Não fui capaz de dizer mais nada. Os meus dentes batiam como castanholas.
Menshiki guiou-me através da floresta com o braço em volta dos meus ombros. Eu sentia dificuldade em articular os pés; ele acabou por ter de me puxar. Era muito mais forte do que faria antever. Os ditos exercícios diários valiam a pena.
– Tem a chave? – perguntou Menshiki.
– Está debaixo do vaso à direita da porta. Provavelmente.
O «provavelmente» impunha-se. Não se podia afirmar nada naquele mundo com absoluta certeza. Continuava a tiritar. O barulho dos meus dentes a bater era tal que só a custo ouvia a minha voz.
– Vai gostar de saber que a Marie voltou para casa em segurança esta tarde – revelou Menshiki. – Foi um alívio. Recebi um telefonema da Shoko há uma hora. Tentei ligar-lhe, mas ninguém atendeu. Fiquei preocupado, por isso vim até cá. Ouvi o toque de um sino vindo da floresta. Segui a minha intuição, fui até lá e tirei a lona.
A perspetiva tornou-se mais ampla quando saímos das árvores. Vi o Jaguar prateado de Menshiki estacionado diante da minha casa. Imaculado, como sempre.
– Porque é que o seu carro está sempre um mimo? – perguntei a Menshiki. Não era uma pergunta adequada às circunstâncias, talvez, mas há muito tempo que queria fazer-lha.
– Não sei – respondeu ele num tom desinteressado. – Talvez porque o lavo quando não tenho mais nada para fazer. De uma ponta à outra. Uma vez por mês, vem cá um homem aplicar cera. E a minha garagem protege-o dos elementos. Apenas isso.
Apenas isso? Se o meu pobre Toyota Corolla tivesse ouvido aquilo, depois de seis meses ao vento e à chuva, os seus ombros curvar-se-iam em desânimo. Talvez até lhe desse uma coisinha má.
Menshiki pegou na chave que estava por baixo do vaso e abriu a porta.
– A propósito, que dia da semana é? – perguntei.
– Hoje? É terça-feira.
– Terça? Tem a certeza?
Menshiki confirmou a memória.
– Deixei as garrafas e as latas vazias na reciclagem ontem, portanto deve ter sido segunda-feira. Logo, hoje é terça-feira.
No sábado eu visitara Tomohiko Amada. Tinham passado três dias. Não me surpreenderia se tivessem sido três semanas, três meses ou até três anos. Tomei uma nota mental e esfreguei o queixo com a palma da mão. Não tinha uma barba de três dias. O meu queixo estava liso. Qual era a explicação?
Menshiki conduziu-me imediatamente para a casa de banho. Enfiou-me num duche quente e entregou-me roupa lavada. A que eu levava vestida estava esfarrapada e suja. Fiz uma trouxa e deitei-a no lixo. O meu corpo estava coberto de contusões, mas não tinha ferimentos visíveis. Pelo menos, não sangrava.
Depois levou-me para a cozinha, sentou-me e obrigou-me a beber água aos poucochinhos. Acabei por emborcar uma garrafa grande de água mineral. Enquanto eu bebia, ele encontrou umas quantas maçãs no frigorífico e descascou-as. Fiquei ali sentado, a admirar a sua perícia com a faca. O prato de maçãs descascadas ficou bonito, diria até elegante.
Comi três ou quatro maçãs ao todo. Foi uma experiência comovente – nunca tinha percebido como as maçãs eram deliciosas. Apeteceu-me agradecer ao seu criador por ter inventado um fruto tão maravilhoso. Não havendo mais maçãs, Menshiki desencantou um pacote de bolachas de água e sal e entregou-mo. Esvaziei-o. Estavam um pouco moles, mas sabiam divinalmente. Enquanto isso, ele ferveu água, fez chá e juntou mel. Bebi várias chávenas. O chá e o mel aqueceram-me por dentro.
O frigorífico estava quase vazio, mas havia ovos para dar e vender.
– Que tal uma omeleta? – perguntou Menshiki.
– Adorava – respondi. Precisava de encher o estômago; qualquer coisa serviria.
Menshiki pegou em quatro ovos, partiu-os para uma tigela, bateu-os com pauzinhos e acrescentou leite, sal e pimenta. A seguir bateu-os de novo. Era evidente que sabia o que fazia. Acendeu o fogão, pegou numa pequena frigideira e deitou-lhe um pouco de manteiga. Encontrou uma espátula numa das gavetas e cozinhou habilmente a omeleta.
A sua técnica era notável, já seria de esperar. Podia ter participado num programa de culinária. As donas de casa por todo o país suspirariam de inveja. Quando se tratava de omeletas – quando se tratava de qualquer coisa, diria eu –, Menshiki era preciso, eficiente e incrivelmente elegante. Restava-me apenas olhá-lo com admiração. Verteu-a para um prato e serviu-ma com um bocadinho de ketchup.
A omeleta pronta estava tão bonita que tive vontade de pegar em papel e lápis para a desenhar. Em vez disso, peguei na faca e comecei a comer. Não era apenas bonita – estava deliciosa.
– Perfeita – comentei.
Menshiki riu.
– Nem por isso. Já fiz melhor.
Que tipo de omeleta teria sido? Uma que ganhava asas e voava de Tóquio para Osaka em menos de duas horas?
Quando acabei de comer, ele depositou o prato no lava-loiça. Fiquei saciado. Menshiki sentou-se à minha frente.
– Podemos falar? – perguntou.
– Com certeza.
– Não está cansado?
– Talvez, mas temos muito que conversar.
Menshiki assentiu.
– Parece que há espaços em branco que precisam de ser preenchidos.
Se puderem ser preenchidos, pensei.
– Deu-se o caso de ter passado aqui no domingo à tarde – disse Menshiki. – Já tinha ligado várias vezes, e como não havia meio de atender, fiquei preocupado. Cheguei aqui por volta da uma.
Assenti. Eu estivera noutro lado.
– Toquei à campainha e o filho do Tomohiko Amada veio abrir. Masahiko, não é?
– Sim, Masahiko Amada. Um velho amigo. É o proprietário desta casa e tem a chave, para poder entrar quando eu cá não estiver.
– Achei-o... como devo dizer... muito preocupado consigo. Disse que foram visitar o pai dele na casa de repouso no último sábado e, de repente, você desapareceu.
Assenti, mas não disse nada.
– Disse que você simplesmente desapareceu depois de ele sair do quarto para fazer um telefonema. O lar fica em Izu-Kogen, pelo que a estação de serviço mais próxima é demasiado longe para lá chegar a pé. Mas não havia registo de que alguém tivesse chamado um táxi. E a rececionista e o segurança também não o viram sair. O Masahiko ligou para cá mais tarde, mas ninguém atendeu. Encontrava-se de tal forma em sobressalto, que veio de carro até aqui ver o que se passava. Estava preocupado com a sua segurança. Receava que lhe tivesse acontecido...
Suspirei.
– Vou tentar explicar as coisas ao Masahiko. O pai dele encontra-se doente e eu só contribuí para as suas preocupações. Como está o velhote, a propósito? Ele disse alguma coisa?
– A última informação é de que está em coma. Não recuperou a consciência. O filho alugou um quarto perto do lar. Estava de regresso a Tóquio quando parou aqui.
– Eu devia ligar-lhe imediatamente – afirmei, abanando a cabeça.
– Isso é verdade – disse Menshiki, pousando as mãos na mesa. – Mas primeiro acho que precisa de arranjar uma história coerente acerca de onde esteve e do que fez nos últimos dias. Incluindo uma explicação de como desapareceu do lar. Ninguém vai acreditar se disser que acordou e deu por si de novo aqui.
– Tem razão – respondi. – Então e o senhor? Acredita na minha história?
Menshiki pensou um pouco. Franzira a testa, como se tivesse dificuldade em decidir que palavras empregar.
– Sempre fui uma pessoa racional – disse ele por fim. – Fui treinado assim. Mas, para ser sincero, não consigo ser lógico em relação ao poço atrás do santuário. É possível acontecer ali tudo e mais alguma coisa, e não seria nada estranho. Passar uma hora dentro do poço fez-me perceber isso. Aquele sítio é mais do que apenas um buraco no chão, mas duvido que alguém que não o tenha experimentado seja capaz de entender.
Como não encontrei as palavras certas para responder, remeti-me ao silêncio.
– Acho que deve alegar que não se lembra de nada e manter essa versão – aconselhou Menshiki. – Não sei se acreditarão em si, mas, pelo que vejo, é a sua única opção.
Assenti. Sim, essa podia ser a minha única opção.
– Há coisas que não podem ser explicadas nesta vida – continuou Menshiki –, e outras que provavelmente não devem ser explicadas. Em especial quando explicá-las por palavras não abarca o mais crucial.
– Fala com conhecimento de causa, certo?
– Como é óbvio – respondeu Menshiki com um pequeno sorriso. – Mais de uma vez.
Terminei o chá.
– A Marie não se magoou, então? – perguntei.
– Estava cheia de lama e arranhada, mas não sofreu ferimentos graves. Um joelho esfolado e pouco mais. Tal como você.
Tal como eu?
– Onde esteve ela nestes últimos dias?
Menshiki mostrou-se perplexo.
– Não estou muito bem informado a respeito disso. O que sei é que ela voltou para casa há pouco tempo. Suja e combalida. Foi o que me disseram. A Shoko estava de tal maneira que não adiantou grande coisa pelo telefone. Devia perguntar-lhe quando as coisas acalmarem. Ou, se possível, perguntar diretamente à Marie.
Anuí.
– Tem razão. É o que vou fazer.
– Não era melhor dormir um bocado? – perguntou Menshiki.
Mal as palavras saíram da sua boca, apoderou-se de mim uma enorme sonolência. Dormira profundamente enquanto estava no poço (penso eu), mas, ainda assim, naquele momento mal conseguia manter os olhos abertos.
– Sim, tem razão. Acho que me vou deitar – anunciei, olhando para as costas das suas mãos entrelaçadas, perfeitamente alinhadas na mesa.
– Durma bem. Está mesmo a precisar. Posso fazer mais alguma coisa por si?
Abanei a cabeça.
– Não, não me ocorre nada. Obrigado.
– Então vou andando. Por favor, não hesite em ligar-me por qualquer motivo. Estarei por casa durante as próximas horas. – Levantou-se devagar. – Felizmente, a Marie chegou a casa em segurança. E ajudei-o a sair de uma situação difícil. Para dizer a verdade, também não tenho dormido muito. O melhor é ir para casa descansar.
Dito e feito, foi-se embora. Como sempre, ouvi a pancada sólida da porta do carro a fechar-se e o motor a ser ligado. Esperei que o carro se afastasse antes de ir para a cama. Quando a minha cabeça tocou na almofada, veio-me à memória o velho sino (deixara-o no poço com a lanterna!). Mergulhei num sono profundo.
57
QUE REMÉDIO SENÃO ENGOLIR E CALAR
Quando acordei, passavam quinze minutos das duas. Encontrava-me de novo cercado pelas trevas. Durante uma fração de segundo, vivi a ilusão de continuar no interior do poço, mas não tardei a dar pelo engano. Era abissal a diferença entre a escuridão aqui e lá. À superfície havia vestígios de claridade, até no mais denso negrume. Nada que se comparasse com o subsolo, onde a luz não lograva penetrar. Podiam ser duas e um quarto, mas o sol estava algures no céu, embora do outro lado do planeta. Só para verem a disparidade.
Acendi o candeeiro da mesa de cabeceira, fui à casa de banho e bebi vários copos de água. A casa estava silenciosa. Demasiado silenciosa. Arrebitei as antenas, mas não ouvi rigorosamente nada. Não corria uma aragem. Como estávamos no pino do inverno, nem o som dos insetos se fazia ouvir. Agora que penso nisso, fora precisamente a essa hora da noite que alguém fizera tocar o sino da primeira vez. A altura em que os fenómenos que escapam ao normal têm mais hipótese de acontecer.
Já não conseguia voltar a dormir. Estava acordado e bem acordado. Vesti uma camisola por cima do pijama e dirigi-me para o estúdio. Não voltara a pôr ali os pés desde que regressara a casa. Estava preocupado com as pinturas que deixara naquele lugar, sobretudo A Morte do Comendador. Menshiki tinha dito que Masahiko viera cá na minha ausência. Ora, se por acaso tivesse entrado no estúdio, o mais certo era dar de caras com o quadro, ficando automaticamente a saber que se tratava de uma obra pintada pelo pai. Por sorte, tinha-lhe posto um pano de algodão fino em cima. Com medo de o deixar à vista, tirara-o da parede e embrulhara-o num lençol, a fim de o proteger da curiosidade alheia. Desde que ninguém o tivesse destapado, era pouco provável que Masahiko desse por ele.
Entrei no estúdio, procurei o interruptor e acendi a luz. Reinava o mais absoluto silêncio. Como seria de esperar, não se via uma alminha. Nem sinal do Comendador ou de Tomohiko Amada. Encontrava-me sozinho.
Envolvido no pano, A Morte do Comendador jazia por terra, no sítio onde o deixara. Ninguém lhe tocara com um dedo. Claro que não podia ter a certeza, mas tudo indicava que sim. Destapei-o. O quadro estava igualzinho a quando lhe pegara. Diante de mim perfilava-se o Comendador. E Don Giovanni, que o passara a fio de espada. Sem esquecer o estarrecido criado, Leporello de seu nome, e a bela Donna Anna, cobrindo a boca com a mão, em espanto. No canto inferior esquerdo, com a cabeça a espreitar pela abertura quadrada, assomava o medonho Cara Comprida.
Para ser franco, alimentava fortes suspeitas. Poderiam as minhas ações ter contribuído para alterar o quadro? Por exemplo, o alçapão do Cara Comprida desaparecia como que por encanto pelo simples facto de eu ter fechado a portinhola. Ou o Comendador era golpeado com uma faca de amanhar peixe, em vez de trespassado pela espada. Mas, por mais que examinasse a pintura, não encontrei indícios disso. Do buraco continuava a espreitar o rosto grotesco do Cara Comprida, de olhar esbugalhado e agarrado à portinhola. Igual a si mesmo, o Comendador morria a golpe de espada e o sangue jorrava-lhe do coração trespassado. Apreciei mais uma vez a obra e tornei a cobri-la com o pano.
Dei meia-volta e concentrei a minha atenção nos dois quadros a óleo em que trabalhava, repousando lado a lado nos respetivos cavaletes. Um deles, O Poço na Floresta, pintara-o sobre o comprido. O outro, Um Retrato de Marie Akikawa, assumia uma orientação vertical. Examinei-os atentamente. Nada mudara. Um encontrava-se pronto, ao passo que o outro esperava que lhe desse os retoques finais.
Depois voltei O Homem do Subaru Forester Branco, que estivera virado para a parede, sentei-me no chão e examinei-o ao pormenor. Por detrás das densas camadas de tinta de várias cores por mim aplicadas com a espátula, o condutor do Subaru Forester branco devolvia-me o olhar. Mesmo sem forma definida, era percetível. Tinha os olhos de ave de rapina noturna cravados em mim, o rosto desprovido de expressão. A figura opunha-se em absoluto a que eu lhe terminasse o retrato – e que assim desse a conhecer a sua verdadeira face. Queria evitar a todo o custo sair da escuridão para a claridade.
Acontece, porém, que eu estava apostado em revelar quem ele era. Por mais que resistisse, tudo faria para o arrastar das trevas para a luz do dia. Quando chegasse o momento, teria de estar no meu posto, pronto para o que desse e viesse.
Regressei para junto de Um Retrato de Marie Akikawa. Estava praticamente concluído, ao ponto de já nem precisar que o modelo posasse. Faltava apenas introduzir alguns aprimoramentos técnicos. A obra ficaria então pronta, por assim dizer. Palpitava-me que era a minha melhor produção até à data. Quando mais não fosse, teria logrado captar a frescura da bonita jovem de treze anos. Acreditava piamente nisso. Ao mesmo tempo, sabia que jamais daria o passo decisivo. Tendo deixado o quadro inacabado, estava a proteger algo dentro dela, ainda que desconhecesse o que poderia ser. Punha as mãos no fogo.
Interessava-me tirar a limpo várias dúvidas que subsistiam. Tinha de ligar a Shoko, a fim de ouvir da sua boca a história de como Marie tinha regressado. Depois, movido pela epifania que tivera no fundo do poço, telefonaria a Yuzu e dir-lhe-ia que me queria encontrar com ela para tentar resolver as coisas. Estava mais do que na altura. A seguir, naturalmente, tinha de falar com Masahiko e explicar-lhe por que razão me eclipsara do quarto do pai, na casa de repouso, passando três dias a fio em paradeiro indeterminado (confesso que não sabia que explicação lhe dar; melhor dizendo, qual a explicação possível).
Estava de mãos atadas. Tinha de esperar por uma hora decente. A altura haveria de chegar, partindo do princípio de que o tempo decorria normalmente. Bebi um copo de leite quente que aquecera no fogão e comi algumas bolachas. Sentado na cozinha, olhei lá para fora. Estava escuríssimo e faltava muito para o Sol nascer. Não se via uma única estrela no céu. Estávamos naquele período do ano em que as noites são mais longas que os dias.
Que fazer para matar o tempo? O mais sensato seria voltar para a cama, mas estava sem sono. Dado que não sentia vontade de ler nem de trabalhar, decidi tomar um banho de imersão. Enquanto a banheira enchia, deixei-me ficar repimpado no sofá, a olhar para o teto.
Por que carga de água tivera de percorrer aquele mundo subterrâneo? Para fazer essa viagem, vira-me obrigado a matar o Comendador com as próprias mãos. Ele sacrificara a vida, e eu fora forçado a suportar uma série de ordálios, mergulhado nas profundezas da terra. Tinha de haver uma razão. Aquele cavernoso reino estava repleto de perigos incontestáveis e medos reais. Lá no fundo podiam desenrolar-se as coisas mais absurdas sem que alguém estranhasse. Ao navegar incólume por aquelas paragens, eu conseguira de certa maneira libertar Marie Akikawa. Pelo menos, ela regressara a casa sã e salva, tal como o Comendador previra. Faltava saber qual a relação de causa e efeito entre as minhas experiências no mundo subterrâneo e o seu regresso.
Pus a hipótese de as águas do rio que eu engolira terem constituído uma peça crucial do quebra-cabeças. Se calhar, provocaram alguma alteração no meu organismo que me permitiu subsistir, tanto física como mentalmente, apesar de isso ir contra as leis da lógica. Graças à metamorfose operada, lograra atravessar um túnel demasiado estreito para o meu corpo e chegara ao outro lado. Com a ajuda de Donna Anna e Komi, vencera a minha profunda claustrofobia. Pensando bem, Donna Anna e Komi podiam ter formado uma entidade única: Donna Anna num determinado momento, Komi no momento seguinte. Juntas (quem sabe?) haviam contribuído para me defender dos poderes nefastos, protegendo Marie ao mesmo tempo.
Mas onde estivera Marie prisioneira? Se fosse esse o caso, naturalmente. Ao dar o amuleto do pinguim (a bem dizer, «dar» talvez não traduzisse bem a situação) ao homem sem rosto, tê-la-ia prejudicado? Ou contribuíra o amuleto para a ajudar e, porventura, salvar?
Perguntas e mais perguntas.
Quando me encontrasse com Marie pessoalmente, talvez conseguisse esclarecer tudo. Só me restava esperar. Verdade seja dita que as coisas poderiam não se tornar mais claras. E se Marie não se lembrasse de nada? Outra hipótese era ela recordar-se, mas, tal como eu, ser incapaz de partilhar a história.
Fosse como fosse, precisava de a ver de novo no mundo real e de ter uma conversa franca e demorada com ela. Era importante trocarmos impressões sobre os recentes acontecimentos. Se a oportunidade surgisse.
Seria este o mundo real?
Olhei em redor. O cenário era por demais conhecido. A brisa transportava um cheiro familiar, reconheci os sons no exterior.
Parecer-me o mundo real à primeira vista não significava que assim fosse. Talvez não passasse de uma efabulação minha. Se calhar, descera pelo buraco em Izu e aventurara-me pelo submundo, de onde, ao fim de três dias, fora expulso, dando por mim nas montanhas de Odawara. Nada me garantia que a realidade que eu deixara para trás e a existência à qual regressara eram as mesmas.
Levantei-me do sofá, despi a roupa que trazia no corpo e fui direito à casa de banho. Tornei a lavar-me escrupulosamente, cabelo incluído. Escovei os dentes, limpei os ouvidos com uma cotonete e cortei as unhas. Fiz a barba (apesar de não ter crescido por aí além). Vesti roupa interior lavada. Fui ao armário buscar uma camisa de algodão branca e umas calças caqui vincadas na perfeição. Fiz o possível por estar apresentável aos olhos dos demais habitantes do mundo real. Porém, a noite ainda não terminara. Lá fora estava escuro como breu. Tão escuro que tive a sensação de que a manhã nunca mais chegaria.
Contrariando o meu palpite, o céu clareou. Moí um punhado de grãos de café e fiz torradas com manteiga. O frigorífico estava quase vazio. Dois ovos, uma embalagem de leite fora do prazo e vegetais murchos. Tomei mentalmente nota da lista das compras.
Estava eu a passar a chávena de café por água quando me ocorreu que não via a minha namorada casada há séculos. Não sabia dizer o número de dias sem consultar o calendário. Sabia, isso sim, que passara imenso tempo. Correra tanta água debaixo da ponte – tinham acontecido coisas de que eu não estava à espera, confesso – que nem dera pela falta de um contacto da parte dela.
Porque seria? A minha namorada costumava telefonar-me duas vezes por semana. «Como é que isso vai?», perguntava-me. Como é óbvio, estava proibido de ligar lá para casa, nem sequer tinha o número do seu telemóvel, e bem podiam esperar sentados se contassem que eu em breve aderisse ao correio eletrónico. Quando sentia desejo de estar com ela, não tinha outro remédio senão esperar que me ligasse.
Por volta das nove da manhã, a minha namorada ligou. Estava precisamente a pensar nela.
– Tenho um assunto para falar contigo – disse ela, sem preâmbulos.
– Sou todo ouvidos – disse eu.
Encostei-me ao balcão da cozinha, colado ao telefone. Lá fora, o agradável sol de inverno começava a romper por entre as nuvens. Pelo menos o tempo parecia querer estabilizar. Ao ouvir a voz dela, porém, pressenti que o que aí vinha era tudo menos agradável.
– Acho melhor não nos tornarmos a ver – declarou. – Tenho pena, mas...
Pelo tom, monocórdico e apático, não consegui perceber se estava a ser sincera.
– Digo isto por várias razões – prosseguiu ela.
– Várias razões – repeti.
– Para começar, o meu marido anda desconfiado. Acho que suspeita de alguma coisa.
– Suspeita de alguma coisa – repeti.
– Muitas vezes, em situações destas, as mulheres desleixam-se. Refiro-me a deixarem de prestar atenção à maquilhagem e à forma como se vestem, bem como mudar de perfume, ou entrar numa dieta draconiana. Procurei ser cuidadosa, mas nunca fiando.
– Compreendo.
– O que interessa é que não podemos deixar a coisa arrastar-se.
– A coisa – repeti.
– Por outras palavras, não temos futuro. Caso arrumado.
Não podia estar mais certa. A nossa relação não tinha «futuro» e era um caso arrumado. Se continuássemos a ver-nos, correríamos riscos desnecessários. Por mim falo quando digo que pouco ou nada perdia, mas a minha namorada era mãe de família e as duas filhas adolescentes estudavam numa escola privada.
– Há mais – referiu ela. – Tenho problemas graves com uma das minhas filhas. A mais velha.
A filha mais velha. Se a memória não me falhava, era uma jovenzinha obediente que nunca respondia torto e tinha sempre boas notas.
– Um problema grave?
– Quando a vou acordar, de manhã cedo, não consigo que ela saia da cama.
– Que ela saia da cama?
– Importas-te de parar com isso e de não repetir tudo o que digo como se fosses um papagaio?
– Desculpa – disse eu. – Mas qual é o problema, concretamente? Não consegue saltar da cama?
– Exato. Já andamos nisto há duas semanas. Não faz o mínimo esforço para sair da cama. Recusa-se a ir às aulas. Passa o dia inteiro deitada, de pijama. Não responde quando falo com ela. Mal toca na comida.
– Já a levaste ao psicólogo?
– É evidente que sim – respondeu a minha namorada. – Falei com o psicólogo da escola, mas não ajudou em nada.
Aquilo deu-me que pensar. Que podia eu adiantar? Nunca vira a rapariga mais gorda.
– Aí tens porque não posso continuar a encontrar-me contigo – continuou ela.
– Tens de ficar em casa a tomar conta da tua filha?
– Em parte. Mas não só.
Ainda que se tivesse ficado por ali, entendi onde ela queria chegar. Além de estar aterrorizada, culpava-se a si mesma como mãe.
– É uma situação lamentável – disse eu.
– Para ti é fácil dizer isso, mas ninguém lamenta mais do que eu.
Estás cheiinha de razão, pensei.
– Só mais uma coisa – voltou ela à carga, deixando escapar um breve suspiro.
– O quê?
– Acho que podes vir a ser um excelente pintor. Quer dizer, melhor do que já és.
– Obrigado – agradeci. – Isso é muito encorajador.
– Adeus.
– Fica bem – disse eu.
* * *
Assim que o telefonema chegou ao fim, regressei à sala e estendi-me no sofá. Deixei-me ficar ali a olhar para o teto e a pensar nela. Apesar de termos estado juntos uma data de vezes, nunca me passara pela cabeça pintar-lhe o retrato. Por qualquer razão, nunca sentira desejo de o fazer. Em contrapartida, desunhei-me a trabalhar os esboços dela num pequeno caderno, fazendo deslizar um lápis grosso de carvão 2B tão depressa que mal o levantava da folha. Quase sempre nua e em poses obscenas. De pernas abertas, com a vagina à mostra. Ou a fazer amor. Não passavam de simples esboços, ainda que bastante realistas. E ordinários, como manda a regra. Ela adorava vê-los.
«És muito bom a fazer desenhos porcos, não és? Deitas logo fora, mas olha que são muito sexy.»
«Dá-me gozo fazê-los.»
A seguir, apressava-me a deitar os desenhos no lixo. Estava fora de questão correr o risco de que alguém os visse. Não fazia sentido guardar aquilo. Agora que penso nisso, talvez devesse ter ficado com um. Quando mais não fosse, para provar a mim próprio que a minha namorada casada existira na realidade.
Levantei-me do sofá com toda a calma do mundo. A jornada mal começara, e precisava de pôr a conversa em dia com muita gente.
58
É COMO OUVIR FALAR
DOS IDÍLICOS CANAIS DE MARTE
Peguei em mim e liguei para Shoko Akikawa. Passava pouco das nove, altura em que o comum dos mortais costuma estar a pé e pronto para ir trabalhar. Ninguém atendeu. O telefone fartou-se de tocar, até que foi parar ao atendedor de chamadas. «Pedimos desculpa, mas de momento não podemos atender. Por favor, deixe mensagem a seguir ao sinal sonoro...» Não deixei mensagem. Shoko devia estar a lidar com o facto de a sobrinha se ter eclipsado e posteriormente reaparecido em cena. Continuei a tentar, a intervalos mais ou menos regulares. Sem êxito.
Lembrei-me de telefonar a Yuzu, mas não queria incomodá-la no emprego. Tentaria apanhá-la na pausa para o almoço e, com sorte, conversar um bocado. De certeza que ia ser uma chamada curta. No fundo, só queria perguntar-lhe se havia alguma hipótese de nos vermos nos tempos mais próximos. Ela podia responder apenas «sim» ou «não». Se a resposta fosse «sim», combinávamos o sítio e a hora. Se fosse «não», conversa acabada.
Com o coração nas mãos, liguei a Masahiko. Ele atendeu ao primeiro toque. Ao ouvir a minha voz, deixou escapar um suspiro de alívio.
– Estás em casa? – perguntou.
Respondi-lhe que sim.
– Posso ligar-te de volta daqui a uns minutinhos?
– Claro – disse eu.
Tornou a ligar um quarto de hora mais tarde. Pelo som ambiente, devia estar a utilizar o telemóvel no terraço de um edifício de escritórios, ou assim.
– O que é feito de ti? – interpelou-me ele num tom estranhamente rígido. – Desapareceste do quarto do meu pai sem avisar, ninguém sabia onde te tinhas metido. Fui de carro até Odawara à tua procura.
– Peço imensa desculpa.
– Quando é que regressaste?
– Terça à noite.
– Estiveste fora desde a tarde de sábado até ontem à noite?
– Juro que não sei onde estive nem o que fiz – menti.
– Quer dizer que acordaste de repente e, quando deste por ti, estavas em casa?
– Isso mesmo.
– A sério?
– Não vejo outra maneira de explicar o que aconteceu.
– Desculpa lá, pá, mas cheira-me a esturro.
– Nunca viste acontecer nos filmes ou nos livros?
– Não me lixes! Sempre que sacam da manga essa cena da amnésia, a primeira coisa que faço é desligar a televisão. Mais forçado não podia ser.
– Até Alfred Hitchcock recorria a esse estratagema.
– A Casa Encantada? É considerado um dos seus filmes menores – declarou Masahiko. – Agora conta-me o que sucedeu na realidade.
– Nesta fase, ando completamente à nora. É como se houvesse uma data de fragmentos a flutuar e fosse impossível juntá-los. Pode ser que recupere a memória aos poucos, mas, por enquanto, não te consigo adiantar nada. Desculpa lá, mas tens de esperar.
Masahiko fez uma pausa para digerir a informação.
– Okay, chamemos-lhe amnésia – disse ele, resignado. – Depreendo que a tua versão dos factos não contempla drogas, álcool, esgotamento nervoso, mulheres fatais, rapto por extraterrestres, ou algo do género.
– Não. Nada ilegal ou suscetível de ofender a moral pública.
– A moral pública pode ser tramada – retorquiu Masahiko, sarcástico. – Mas ajuda-me aqui, que não percebo.
– O que é?
– Como foi que escapaste da casa de repouso no sábado à tarde? O pessoal exerce um controlo apertado sobre quem entra e quem sai. Com toda a gente famosa que ali está, são paranoicos no que toca a proteger a privacidade dos utentes. Mantêm um segurança à entrada e um guarda de plantão vinte e quatro horas por dia, fora as câmaras de videovigilância. Ainda assim, conseguiste escapulir-te em pleno dia sem que dessem por nada e fintaste as câmaras. Como explicas?
– Existe uma passagem secreta – desabafei.
– Uma passagem secreta?
– Um túnel que ninguém conhece.
– Como é que sabias disso? Então não era a primeira vez que ias lá?
– O teu pai contou-me. Ou seja, forneceu-me uma pista. Uma pista indireta. Segues o meu raciocínio?
– O meu pai?! – exclamou Masahiko. – Só podes estar a gozar. Tem a cabeça marada, mais parece uma couve-flor cozida e espapaçada.
– Pois, ultrapassa-me por completo.
– Nada a fazer – disse Masahiko, suspirando. – Se fosses outra pessoa, diria: «Deixa-te de tretas!» Vindo de ti, que remédio senão engolir e calar. Afinal, tu és o gajo chanfrado que passa a vida agarrado aos pincéis.
– Agradeço o elogio! – disse eu. – A propósito, como está o teu pai?
– No sábado, voltei ao quarto após o telefonema e não te encontrei. Fui dar com ele inconsciente e com a respiração fraca. Entrei em pânico, meu! Não percebia a ponta de um corno. Sabia que não tinha nada que ver contigo. Ao mesmo tempo, não podia deixar de te culpar pelo sucedido.
– Lamento – disse eu.
Estava a ser genuíno. Isso não impediu que me sentisse aliviado por não haver qualquer referência ao corpo do Comendador ou a uma poça de sangue no chão.
– Tens todas as razões para estar arrependido. Aluguei um quarto numa pequena estalagem para ficar mais perto dele, mas a respiração estabilizou e o estado geral melhorou significativamente, por isso voltei para Tóquio na tarde seguinte. O trabalho começava a acumular-se. Mas no fim de semana já regresso para junto dele.
– Não deve ser fácil para ti.
– Há certas coisas que nunca mudam. Como costumo dizer, morrer é um bico de obra, mas quem mais sofre é quem está moribundo. Portanto, não me posso queixar.
– Quem me dera poder ajudar-te.
– Não há nada que possas fazer – retorquiu ele. – Já ficava muito agradecido se não trouxesses os teus problemas para cima de mim... Ah, é verdade, quase me esqueci. Quando passei por lá, a caminho de Tóquio, o teu amigo Menshiki apareceu de surpresa. Um sujeito bem-parecido, de cabelo branco, com um Jaguar prateado.
– Bem sei. Estive com ele depois disso e contou-me que te encontrou e que estiveram na converseta.
– Trocámos meia dúzia de palavras à porta. Pareceu-me um tipo interessante.
– Muito interessante – corrigi.
– O que faz ele na vida?
– Nada de especial. É um homem rico e pode dar-se ao luxo de não trabalhar. Negoceia ações e joga na bolsa, mas é quase como um passatempo.
– Fantástico! – exclamou Masahiko, nitidamente impressionado. – É como ouvir falar dos idílicos canais de Marte. Ponho-me logo a imaginar os marcianos: deslocam-se em elegantes faluas com remos dourados, enquanto fumam cigarros de mel e deitam o fumo pelas orelhas. Só de pensar isso, aquece-me o coração... Olha uma coisa, chegaste a descobrir o paradeiro da faca de cozinha que deixei ficar em tua casa?
– Não, lamento, não sei dela. Não faço ideia de onde foi parar. O melhor é comprares uma nova.
– Deixa lá. Às tantas, teve um ataque de amnésia e há de aparecer quando menos esperarmos.
– Pode ser que sim – disse eu. Com que então, a faca também não ficara no quarto de Tomohiko Amada! Evaporara-se por artes mágicas, como o corpo sem vida do Comendador e a poça de sangue. Podia ser que voltasse a dar um ar da sua graça, como dizia Masahiko.
A conversa chegou ao fim. Com a promessa de nos encontrarmos em breve, despedimo-nos e desligámos.
Ao volante da minha velha e poeirenta carrinha Corolla, desci a encosta e pus-me a caminho do centro comercial. Passei primeiro pelo supermercado, onde me cruzei com as donas de casa das redondezas. O olhar delas dava a entender que a manhã estava longe de ser divertida. De certeza absoluta que sentiam falta de excitação nas suas vidas corriqueiras. As viagens de barco no reino das metáforas deviam ser uma miragem.
Enchi o carrinho de supermercado com carne, peixe, legumes, leite, tofu e o que mais achei necessário, e paguei na caixa. Poupei cinco ienes por ter levado comigo um saco. A seguir, entrei numa loja de bebidas e comprei uma embalagem de vinte e quatro latas de cerveja Sapporo. Assim que cheguei a casa, arrumei o grosso das compras no frigorífico, incluindo seis latas de cerveja. Envolvi o que precisava de ser conservado em película aderente e enfiei tudo no congelador. Pus uma panela grande com água ao lume e cozi espargos e brócolos, bem como dois ou três ovos. E assim decorreu grande parte da manhã. Porém, ficou a sobrar-me tempo. Lembrei-me de seguir o exemplo de Menshiki e lavar o carro, mas depois pensei que não tardaria a ficar outra vez coberto de pó e desisti. Sem dúvida que cozer legumes era uma tarefa mais produtiva.
Às duas e pouco, liguei para a firma de arquitetura onde Yuzu trabalhava. Para ser honesto, preferia deixar assentar os meus sentimentos antes de falar com ela. Simultaneamente, achava melhor não procrastinar a decisão de lhe contar aquilo que decidira no fundo do poço. Caso contrário, corria o risco de mudar de opinião. O auscultador pesava toneladas na minha mão. Atendeu-me uma voz feminina e jovial. Disse como me chamava e pedi para falar com Yuzu.
– É o marido? – perguntou a mulher num tom amigável.
Confirmei. Do ponto de vista técnico, era mentira, mas não via motivo para aprofundar a questão ao telefone.
– Aguarde um instante, por favor – pediu ela.
Esperei pacientemente. Como não tinha nada para fazer, encostei-me ao balcão da cozinha, de auscultador colado à orelha, e fiquei ali a pensar na morte da bezerra até ela atender. Um grande corvo preto voou rente à janela. As penas sedosas cintilaram à luz do Sol.
– Estou? – disse Yuzu.
Trocámos uma saudação rápida. Não fazia ideia de como é que um casal recém-divorciado deveria cumprimentar-se, qual seria a distância apropriada a manter. Mantivemos uma conversa o mais curta e convencional possível. Como é que estás? Eu estou bem, e tu? Tal como durante um aguaceiro de verão, as poucas palavras trocadas evaporaram-se como gotas de chuva no instante em que embateram no solo árido da realidade.
– Gostava que nos encontrássemos cara a cara. Tenho várias coisas para te contar – disse eu, enchendo-me de coragem.
– Que coisas? – perguntou Yuzu.
Confesso que não esperava aquela resposta. Fiquei sem palavras. Sim, que «coisas»?
– Ainda não pensei bem – murmurei.
– Mas queres falar comigo, certo?
– Certo. Pensando bem, acabou tudo entre nós sem nunca termos tido uma conversa decente.
Ela ponderou durante alguns segundos.
– Vou ser sincera contigo – declarou –, estou à espera de bebé. Por mim, podemos encontrar-nos, mas não te admires ao veres a minha barriga de grávida.
– Já sei. O Masahiko deu-me a grande novidade. Disse que lhe pediste para me contar.
– Sim, pedi.
– Não sei qual o tamanho da tua barriga, como imaginas, mas gostaria imenso de te ver, se concordares.
– Podes esperar um instante? – perguntou ela.
Esperei. Dava a impressão de estar a folhear a agenda de trabalho. Aproveitei para rememorar as canções que as Go-Go’s costumavam cantar. Duvidava que os temas da banda feminina fossem tão bons como o meu amigo apregoava, mas talvez Masahiko tivesse razão e eu estivesse redondamente enganado.
– Dá-te jeito na próxima segunda à noite? – perguntou Yuzu.
Deitei contas à vida. Era quarta-feira. Como tal, faltavam cinco dias para segunda, quando Menshiki costumava transportar as garrafas e as latas vazias para o local de recolha. O dia em que eu não ia à cidade para dar aulas. Significava que estava livre como um passarinho, mesmo sem ter de consultar a agenda. Que roupa usaria Menshiki quando levava o lixo para a reciclagem?
– Sim, dá-me jeito – respondi. – Diz-me só onde e a que horas, e lá estarei.
Yuzu indicou um café nas proximidades da estação de Shinjuku Gyoen-mae, cujo nome teve o condão de despertar na minha mente boas recordações. O botequim ficava perto do emprego dela. Costumávamos encontrar-nos após o expediente, quando ainda vivíamos juntos, geralmente antes de irmos comer a qualquer lado. Havia um barzinho ali perto que servia ostras a um preço bastante razoável. A minha mulher gostava de comer ostras pequenas com molho de rábanos picantes, tudo regado por um Chablis fresco. Será que ainda existiria?
– Por volta das seis... seis e pouco?
Por mim, perfeito, respondi.
– Sou capaz de me atrasar uns minutos.
– Não te preocupes. Esperarei por ti
– Okay. Então até lá – disse ela, e desligou.
Fiquei especado a olhar para o auscultador. Confirmava-se. Yuzu, a mulher de quem me separara, ia dar à luz o filho de outro homem. O sítio e a hora do nosso encontro estavam aprazados. A conversa decorrera sem problemas. Ainda assim, não me sentia convencido. Fizera bem? O auscultador pesava-me na mão. Parecia da Idade da Pedra.
No fim de contas, existiria alguma coisa neste mundo cem por cento correta ou incorreta? Vivemos numa época onde a probabilidade de chuva pode oscilar entre os trinta ou os setenta por cento. Se calhar, com a verdade acontecia o mesmo. Tanto podia haver trinta como setenta por cento de verdade. Os corvos é que tinham sorte! Chover ou não chover era igual ao litro. Percentagens não eram com eles.
Depois de desligar o telefone, demorei um bocado a recuperar. Sentado à mesa da sala de jantar, fiquei ali a olhar para ontem, como que hipnotizado pelo relógio de parede. Ia encontrar-me com Yuzu na segunda-feira e teríamos oportunidade de conversar sobre «várias coisas». Não nos víamos desde uma fria tarde de março, marcada pela chuva que caía mansamente. Agora, a minha ex-mulher estava grávida de sete meses. Uma grande metamorfose na vida dela. Eu continuava igual a mim próprio. Um par de dias antes, recorde-se, cruzara o Reino das Metáforas, de barco, e atravessara o rio que separava a presença da ausência, mas ainda estava para saber se a viagem acarretara alguma mudança na minha vida.
Às tantas, liguei para Shoko Akikawa, mas ninguém atendeu. A chamada foi parar ao atendedor de chamadas. Desisti e sentei-me no sofá. Despachara os telefonemas, não tinha mais nada para fazer. Há montes de tempo que não entrava no estúdio, e até me apetecia pegar de novo no pincel, embora a imaginação me tivesse abandonado.
Coloquei o disco The River de Bruce Springsteen no gira-discos. Refastelado no sofá, fechei os olhos e abandonei-me à música. Quando o lado A chegou ao fim, pus a tocar o B. Álbuns como aquele mereciam ser ouvidos com toda a atenção. Assim que «Independence Day» termina, sentimo-nos compelidos a pegar no disco, virá-lo, pousar a agulha e deixar-nos invadir paulatinamente pela sonoridade de «Hungry Heart». Haverá outra maneira de apreciar The River? Na minha opinião, ouvir certos discos em versão compacta estraga por completo a experiência. O mesmo se aplica a Rubber Soul e Pet Sounds. A boa música deve ser apreciada como merece.
Isto só para verem até que ponto a prestação da E Street Band é fabulosa. A banda inspirava o vocalista, e o vocalista inspirava a banda. À medida que me deixava impregnar pela música, tinha a sensação de que as preocupações se desvaneciam.
Ao levantar a agulha do primeiro disco, ocorreu-me que talvez fosse boa ideia telefonar a Menshiki. Não nos falávamos desde a véspera, quando ele me salvara do poço. Contudo, não estava para aí virado. Tinha dias. Travava-se de um homem fascinante, mas alturas havia em que a última coisa que me apetecia era falar com ele. Estávamos separados por um abismo. Porque seria? Fosse como fosse, não me apetecia ouvir a voz dele.
Desisti. O telefonema ficaria para segundas núpcias, até porque entretanto amanhecera. Pus a tocar o segundo trinta e três rotações do duplo álbum The River. Estava eu quase a chegar à faixa «Cadillac Ranch» («All gonna meet down at the Cadillac Ranch»), eis senão quando tocou o telefone. Levantei a agulha e dirigi-me à sala para atender a chamada. Tive o pressentimento de que seria Menshiki. Afinal, era Shoko.
– Por acaso ligou para mim? – disparou ela.
Respondi que sim, e por mais de uma vez.
– Fiquei ontem a saber pelo senhor Menshiki que a Marie voltou para casa e queria saber o que aconteceu.
– Sim, a Marie regressou sã e salva ontem, por volta da hora do almoço. Tentei ligar, mas não o apanhei em casa. Por isso, entrei em contacto com o senhor Menshiki. Ausentou-se?
– Sim, tive de viajar para resolver um assunto urgente e só regressei ontem à noite. Gostaria de ter entrado em contacto, mas não havia telefone onde estava, e não tenho telemóvel – disse eu. Não era mentira nenhuma.
– A Marie regressou pelos seus meios, ontem à tarde, coberta de lama. Felizmente, sem apresentar ferimentos.
– Por onde é que ela andou este tempo todo?
– Ainda não sabemos – respondeu Shoko num sussurro, como se receasse que alguém estivesse à escuta. – A Marie não quer levantar a ponta do véu. Como tínhamos ido à esquadra e preenchido um formulário de pessoa desaparecida, a polícia veio cá a casa e fez montes de perguntas. Mas ela não se descoseu. Nem uma palavra. Os agentes meteram a viola no saco e foram-se embora de mãos a abanar, prometendo regressar quando ela recuperar. O importante, disseram, era que tinha voltado para casa e que se encontrava segura. Na realidade, também não se abriu comigo nem com o pai. O senhor sabe como a Marie é teimosa.
– Referiu que ela estava toda enlameada, não foi?
– Sim, de cima a baixo. Aliás, tinha o uniforme da escola rasgado, e as pernas e os braços arranhados. Mas não chegámos a levá-la ao hospital, já que nenhum dos ferimentos apresentava qualquer gravidade.
Tal como se passou comigo, pensei. Era verosímil que tanto ela quanto eu tivéssemos percorrido o mesmo túnel apertado?
– E ela não disse nada? – insisti.
– Nada. Não abriu a boca desde que chegou a casa. Nem uma palavra, nem um som. Até parece que o gato lhe comeu a língua.
– Acha que sofreu um trauma e ficou em estado de choque, ao ponto de perder a fala?
– Não me parece, sinceramente. Creio que tomou a decisão de se calar, foi como se fizesse um voto de silêncio. Não seria a primeira vez. Acontece sempre que fica possessa com uma situação qualquer. A partir do momento em que toma uma decisão, leva-a até às últimas consequências.
– Não estamos a falar de atos criminosos, pois não? Quero dizer, poderá ter sido raptada ou mantida como refém contra sua vontade?
– Não lhe sei dizer. A polícia deixou claro que voltaria para lhe fazer mais perguntas, assim que ela estivesse restabelecida. Talvez consigam sacar-lhe alguma informação – declarou Shoko. – Além disso, tenho um pedido egoísta para lhe fazer.
– Do que se trata?
– Importa-se de tentar conversar com a Marie? A sós, os dois? Pode ser que ela se abra consigo.
Fiquei com o auscultador pendurado na mão direita, a matutar. De que falaríamos, caso ficássemos os dois sozinhos? Não conseguia imaginar. Eu tinha os meus problemas, Marie tinha os seus. Se colocássemos os nossos problemas na mesa, chegaríamos a algum lado? Apesar de tudo, precisava de a ver. Tinha um assunto para discutir com ela.
– Claro que sim. Com todo o gosto – respondi. – Quer que vá ter aí a casa?
– Deixe estar, vamos nós ter consigo. Parece-me mais prudente. Se não se importar, como é evidente.
– Não me importo – retorqui. – Não tenho nada para fazer. Por isso, apareçam quando vos der jeito.
– Que tal se fôssemos agora? A Marie já chegou das aulas. Se ela estiver pelos ajustes, claro.
– Diga-lhe, por favor, que não é obrigada a falar. Que sou eu que tenho coisas para lhe dizer.
– Muito bem. Vou transmitir-lhe o recado. Agradeço a sua enorme disponibilidade. Estamos sempre a dar-lhe maçadas – disse a formosa tia, e desligou.
O telefone voltou a tocar passado um minuto. Era novamente Shoko.
– Aparecemos aí às três da tarde – anunciou. – A Marie concordou. Bom, limitou-se a acenar com a cabeça.
Disse que esperaria por elas às três.
– Agradeço muito – acrescentou Shoko. – A minha paciência chegou ao limite. Desconheço o que se passa e não sei o que fazer.
Por mais que gostasse de lhe dizer que sentia o mesmo, não o fiz, pois não era a resposta de que ela precisava.
– Faço o que posso. Se serei bem-sucedido, isso já me ultrapassa – declarei antes de desligar.
Ao pousar o auscultador, lancei um olhar furtivo à volta, não fosse o Comendador andar por ali à coca. Contudo o pequenitates não estava em parte alguma. Tinha saudades, admito, da figura e do seu estranho linguajar. Porém, estava escrito nos livros do destino que nunca mais lhe poria a vista em cima. Guiara a minha mão direita até ao seu coraçãozinho e enterrara a lâmina. A faca de cozinha, afiada qual navalha, que Masahiko levara com ele. Tudo com o propósito de resgatar Marie. Precisava urgentemente de encontrar o lugar onde ela se refugiara, custasse o que custasse.
59
ATÉ QUE A MORTE NOS SEPAROU
Antes de Marie chegar, estudei uma vez mais o retrato prestes a ficar pronto. Conseguia visualizar o resultado final pincelada por pincelada, isto se algum dia o desse por terminado. É triste, mas parecia estar destinado a nunca acontecer. Não havia maneira de o contornar. Continuava sem descobrir o que me impedia de completar o quadro. Como podem imaginar, não existia qualquer fundamento lógico, apenas o forte pressentimento de que tinha de ser assim. Só então, pouco a pouco, o motivo se revelaria. Era o que eu esperava, pelo menos. A única evidência localizava-se num adversário deveras perigoso. Tinha de estar permanentemente em guarda.
Fui até ao terraço, sentei-me numa espreguiçadeira e fiquei a olhar para a mansão branca de Menshiki, do outro lado do vale. O bem-apessoado Menshiki, dono de uma cabeleira alva, que desconhecia o que era a cor. «Trocámos meia dúzia de palavras à porta», tinha dito Masahiko, «pareceu-me um tipo interessante.» «Muito interessante», corrigira eu. Nesta altura do campeonato, iria ainda mais longe e diria «um tipo muito, muito interessante».
Pouco antes das três, o familiar Toyota Prius azul subiu a encosta e estacionou como de costume à porta de casa. O motor parou, a porta do condutor abriu-se e Shoko Akikawa saiu do carro, elegantíssima, de joelhos unidos. Passado um momento, Marie surgiu do banco do passageiro. Com um ar pachorrento e enfadado. As nuvens, que até essa manhã se tinham acumulado, dispersaram, e o céu ficou claro e desanuviado. O vento frio da montanha agitou o cabelo de ambas. Marie tirou a franja da testa com um gesto de impaciência.
A rapariga estava de saia, o que era uma estreia absoluta. Por baixo da saia de lã azul-escura, que lhe dava pelos joelhos, trazia colãs azuis. Por cima da blusa branca usava uma camisola de caxemira com decote em V. A camisola era de um violeta carregado, da cor das uvas tintas. Usava sapatos de camurça castanho-escuros. Assim vestida, parecia uma menina bem-comportada: uma jovem saudável, bonita, convencional e filha de boas famílias. Tirando o facto de o peito ser liso como uma tábua, nada tinha de invulgar.
Shoko vestia calças cinzento-claras irrepreensivelmente engomadas e calçava sapatos de salto baixo pretos e lustrosos. Os seios dela sobressaíam impantes por baixo do casaquinho branco de lã, preso com um cinto. Trazia uma pequena carteira de mão preta (envernizada?), como é costume as mulheres usarem, apesar de sempre me ter feito espécie a tralha que guardam lá dentro. Sem bolsos onde enfiar as mãos, Marie parecia um pouco perdida.
Apesar da diferença de idades e de grau de maturidade, tia e sobrinha eram encantadoras. Ao vê-las aproximarem-se espreitando pelo intervalo das cortinas, tive a sensação de que o mundo se tornava um nadinha mais luminoso. Era como se o Natal e o Ano Novo calhassem no mesmo dia.
A campainha tocou, e eu fui abrir a porta. Shoko Akikawa cumprimentou-me educadamente. Convidei-as a entrar. Marie não disse nada. Os seus lábios formavam uma linha, dir-se-ia que alguém os tinha cosido. Tratava-se de uma rapariga determinada. Quando tomava uma decisão, já não recuava.
Tal como da vez anterior, conduzi-as até à sala de estar. Shoko desfez-se em desculpas, mas cortei cerce a ladainha. Não era altura para estarmos com grandes salamaleques.
– Não se importa de me deixar a sós com a Marie, se fizer o favor? – perguntei, indo direto ao assunto. – O ideal seria regressar daqui a duas horas. Pode ser?
– Claro que sim – respondeu a jovem tia, apanhada de surpresa. – Desde que a Marie não se importe, tudo bem.
Marie acenou ao de leve com a cabeça. Não se importava.
Shoko Akikawa consultou o pequeno relógio de prata.
– Nesse caso, estarei de volta quando forem cinco da tarde. Fico por casa. Se precisar de alguma coisa, é só ligar-me.
Prometi que assim faria.
Shoko ficou ali parada, sem largar a mala da mão, como se tivesse um peso no coração. Depois, recuperando a presença de espírito, inspirou fundo e saiu porta fora, sorrindo. O Prius arrancou (em bom rigor, não ouvi o motor do carro, mas calculei que sim) e desceu a encosta. Marie e eu ficámos sozinhos.
A jovem sentou-se no sofá, de olhos baixos. Manteve a boca fechada num trejeito obstinado, os joelhos juntos. A blusa branca estava irrepreensivelmente passada a ferro.
Não dissemos nada durante um bom bocado. Por fim, quebrei o silêncio.
– Escusas de falar – comecei por dizer. – Podes continuar calada o tempo que quiseres. Tenta descontrair-te. Cabe-me a mim fazer as honras da conversa, tu só tens de ouvir. Entendido?
Marie ergueu o olhar para mim, sem tugir nem mugir. Não acenou nem abanou a cabeça. Limitou-se a fitar-me. O seu rosto não deixava transparecer qualquer emoção. Tive a impressão de estar a olhar para a última lua cheia do inverno. Talvez os seus sentimentos permanecessem provisoriamente encerrados num coração de pedra, pairando no céu distante como uma massa gelada.
– Antes de mais, preciso da tua ajuda – disse eu. – Importas-te de vir comigo?
Levantei-me e, ato contínuo, ela seguiu-me até ao estúdio, que estava um autêntico gelo. Acendi o aquecedor a óleo. Abri as cortinas e deixei entrar a claridade que iluminava a encosta. Muito perto de ficar pronto, o retrato de Marie repousava no cavalete. A jovem olhou de relance para a pintura, mas apressou-se a desviar os olhos, como se tivesse visto algo que não devia.
Acocorei-me, retirei o pano que cobria A Morte do Comendador e pendurei o quadro na parede. Pedi a Marie que se sentasse na cadeira para melhor observar a obra.
– Se não me engano, já tinhas visto este quadro...
Marie assentiu.
– Chama-se A Morte do Comendador. Pelo menos é o que está escrito no invólucro. Considero que este trabalho de Tomohiko Amada está no limiar da perfeição, apesar de não se saber ao certo quando foi pintado. Trata-se inequivocamente de uma composição espantosa e de grande apuro técnico.
Fiz uma pausa para permitir que Marie assimilasse os meus ensinamentos.
– O quadro foi embrulhado e esteve escondido durante todo este tempo no sótão – prossegui –, onde ninguém o descobriu. Quando dei com ele e o trouxe para baixo, estava há muito a ganhar pó. Tirando o autor, tu e eu somos provavelmente as únicas pessoas que têm conhecimento da sua existência. A tua tia pode tê-lo visto de passagem aquando da primeira visita, mas, por qualquer razão, não acredito que se tenha dado conta. O que terá levado Tomohiko Amada a escondê-lo naquele sítio? Escapa-me por completo. Estamos perante uma obra brilhante. Porquê impedir que o mundo conheça uma genuína obra-prima? Confesso que me ultrapassa.
Marie não se dignou responder. Sentada no banco, tinha os olhos cravados no quadro.
Voltei a puxar o fio à meada.
– Como um sinal de partida, a minha descoberta desencadeou uma série de acontecimentos bizarros. Primeiro, Menshiki fez os possíveis e os impossíveis para travar conhecimento comigo.
Marie acenou ao de leve com a cabeça.
– A seguir, descobri aquele buraco negro e insondável atrás do santuário. Ouvi um sino tocar a meio da noite e segui o som até ao poço. Melhor dizendo: o tinido saía debaixo de um monte de pedras. Na impossibilidade de as arredar à mão, dado que eram demasiado grandes e pesadas, o Menshiki contratou os serviços de um arquiteto paisagista, que apareceu no local com a sua equipa e uma retroescavadora. Ainda hoje não percebo por que carga de água ele se deu àquela trabalheira toda. Bom, seja como for, graças a um considerável esforço e a uma considerável maquia, as pedras foram removidas. Oculto, havia um buraco. Um poço redondo com cerca de dois metros, feito de pequenas pedras dispostas num perfeito círculo e formando como que uma câmara. Quem o construiu e com que finalidade? Isso é um enigma. Estás a par da existência do poço no bosque, como é óbvio...
Marie acenou afirmativamente.
– Assim que o poço foi reaberto, apareceu o Comendador. Este sujeito que vês no quadro.
Juntando o gesto à palavra, apontei para a figurinha. Marie observou-o, sem mudar de expressão.
– Era igualzinho à criatura que tens diante de ti. A mesma cara, as mesmas roupas. Com a diferença de medir apenas sessenta centímetros. Mas tudo nas devidas proporções, atenção. Sem esquecer o linguajar rebuscado! Vá lá saber-se porquê, só eu é que o vejo. De si próprio diz ser uma «Ideia». E conta que tem vivido confinado naquele poço. Posto de outro modo, fomos nós, eu e o Menshiki, que o libertámos. Estás a par do significado de Ideia, num sentido platónico?
Marie fez que não com a cabeça.
– Bom, admito que também tenho uma certa dificuldade. Da forma como vejo as coisas, uma ideia é um conceito, apesar de nem todos os conceitos serem ideias. O amor, por exemplo, não é uma ideia. Mas aquilo que lhe dá origem é seguramente uma ideia. Sem ideias, o amor não existiria. Enfim, esta discussão podia durar uma eternidade. Para ser honesto, não sei bem qual será a definição precisa. Em todo o caso, uma «ideia» é um conceito, e os conceitos não têm forma. São puras abstrações. No entanto, para se tornar visível aos meus olhos, esta «Ideia» em concreto pediu emprestada a forma do Comendador retratado na obra. Estás a seguir o meu raciocínio?
– Mais ou menos. – Marie abriu a boca pela primeira vez. – Também o vi.
– A sério? – exclamei. Observei-a, estupefacto. Depois lembrei-me do que o Comendador me confidenciara na casa de repouso de Izu. «De facto, encontrei-a há pouco tempo. Trocámos algumas palavras.»
– Com que então, também viste o Comendador?!
Marie assentiu.
– Onde? Quando?
– Em casa do senhor Menshiki – respondeu ela.
– O que te disse ele?
Marie voltou a cerrar os lábios firmemente. Era um sinal de que não queria falar do assunto. Resolvi não insistir.
– Também se materializaram outras personagens deste quadro – disse eu. – Por exemplo, o homem no canto inferior esquerdo, aquele com barba e um rosto de formato estrambólico. Ali, estás a ver?
Apontei para o Cara Comprida.
– Chamo-lhe Cara Comprida, e não há dúvida de que se trata de um tipinho bizarro, com os seus setenta e cinco centímetros de estatura e o corpo compacto. Foi outro que fugiu precipitadamente: apanhei-o em flagrante, agarrado à cobertura do buraco, tal como agora, e ajudou-me a penetrar no mundo subterrâneo. Tive de recorrer à força bruta a fim de satisfazer os meus intentos.
Marie estudou com atenção o Cara Comprida, mas não se descoseu.
Voltei à carga.
– Deambulei por aquele mundo subterrâneo e sombrio, subi às encostas, atravessei um rio repleto de rápidos, até que me deparei com uma mulher lindíssima. Aqui a tens. Dei-lhe o nome de Donna Anna, inspirado na personagem da ópera Don Giovanni, de Mozart. Como podes ver, também ela é minúscula. Conduziu-me através de um túnel, ao fundo de uma gruta. Depois, ela e a minha defunta irmã ajudaram-me a abrir caminho por entre as trevas. Nunca teria conseguido se não fossem elas, reconheço. O meu instinto diz-me... claro que isto não passa de uma conjetura... que se trata da mulher por quem Tomohiko Amada se apaixonou perdidamente nos seus anos de estudante em Viena. Foi executada, enquanto prisioneira política, há setenta anos.
Marie observou Donna Anna. O seu olhar, impávido e sereno, evocava uma lua branca de inverno.
Outra hipótese era Donna Anna ser a mãe de Marie, morta por um enxame de vespas. Se calhar, tinha sido ela quem protegera a jovem. Dependendo de a quem se apresentava, Donna Anna podia encarnar um punhado de pessoas. Claro que guardei as minhas teorias para mim próprio.
– Depois temos este homem – acrescentei, virando de frente o quadro encostado à parede. Refiro-me à minha obra inacabada, O Homem do Subaru Forester Branco. Para um observador incauto, tinha apenas três cores aplicadas em espessas camadas, atrás das quais se acoitava a figura embuçada do homem do Subaru Forester branco. Pelo menos era assim que eu o via.
– Já to tinha mostrado, não é verdade?
Marie acenou com firmeza, mas não abriu a boca.
– Até me disseste que o quadro estava pronto e que eu podia deixá-lo assim mesmo.
Marie tornou a assentir.
– Chamei ao sujeito aqui retratado o «homem do Subaru Forester Branco». Fui dar com ele numa pequena cidade costeira, na prefeitura de Miyagi. Os nossos caminhos cruzaram-se misteriosamente duas vezes e, devo dizer, essas ocasiões revestiram-se de grande significado. Desconheço que género de pessoa ele é. Aliás, nem sequer sei como se chama. Mas tornou-se desde logo evidente que tinha de fazer o seu retrato. Comecei a pintá-lo de memória, mas, às tantas, vi-me obrigado a interromper o trabalho. Por isso, sepultei-o debaixo desta panóplia de cores.
Os lábios de Marie formavam uma linha direita. Abanou a cabeça.
– Este homem é muito assustador – disse ela.
– Este homem? – repeti. Segui o olhar dela, cravado no Homem do Subaru Forester Branco. – Referes-te ao quadro? Ou ao homem propriamente dito?
Ela esboçou um breve aceno. Apesar do medo que sentia, não conseguia desviar os olhos.
– Estás a vê-lo?
Marie assentiu.
– Vejo-o por detrás das camadas de tinta. Está a olhar fixamente para mim. Tem um boné preto.
Peguei no quadro e tornei a virá-lo para a parede.
– Interessante. Possuis a capacidade de ver o homem do Subaru Forester branco, coisa de que pouca gente se pode orgulhar – declarei. – Mas acho melhor deixares de olhar para ele. Nesta altura, não vejo necessidade disso.
Marie acenou em jeito de concordância.
– Não sei até que ponto o homem do Subaru Forester branco existe na realidade. Talvez alguém ou alguma coisa se tenha limitado a usurpar a sua forma, assim como a Ideia pediu emprestado o corpo do Comendador. Também pode dar-se o caso de ele não passar de uma projeção da minha pessoa. Porém, mergulhado na escuridão, garanto-te que é uma coisa viva e palpável, em movimento. Os habitantes do submundo chamam-lhe «Metáfora Dupla». Está nos meus planos terminar o quadro num futuro próximo. Por enquanto, é prematuro. E demasiado perigoso. Há certas coisas neste mundo que não devem ser imprudentemente arrastadas para a luz do dia. Mas eu não...
Marie encarou-me de frente, muda e queda. Fiz das tripas coração e prossegui.
– ... Bom, graças à ajuda de muito boa gente, atravessei a passagem subterrânea, enfiei-me por um túnel lúgubre e regressei ao mundo real. E, quase em simultâneo, tu própria foste libertada de onde quer que te encontravas. Ora, custa-me a crer que isso se tenha ficado a dever a um bambúrrio de sorte. Na sexta-feira andaste desaparecida em parte incerta durante quatro dias. No sábado fui eu que desapareci do mapa durante três dias. Na terça-feira regressámos ambos. Tem de haver uma ligação entre os dois acontecimentos. O meu palpite é que o Comendador funcionou como elo. E agora foi a vez de ele se volatilizar. Desempenhou o seu papel e pôs-se na alheta. Só ficámos nós os dois. Somos os únicos em condições de fechar o círculo. Acreditas naquilo que te digo?
A jovem fez que sim com a cabeça.
– Era isto que te queria contar. Daí que tenha pedido para termos esta conversa a sós.
Marie estava como que hipnotizada.
– Não houve uma única pessoa que acreditasse em mim – continuei –, apesar de ser tudo verdade. Julgaram que eu me tinha passado dos carretos de vez. A história tem algumas incongruências e poderá estar perigosamente afastada da realidade. No entanto, sempre pensei que acreditarias em mim. Além disso, precisava de te mostrar A Morte do Comendador. Sem este quadro, nada do que te disse faria sentido. Mas não quero que mais ninguém o veja.
Sem dizer água-vai, Marie continuou a fitar-me. Pareceu-me detetar-lhe um vago brilho nos olhos.
– O Tomohiko Amada entregou-se de alma e coração a esta empreitada. O quadro traduz as suas emoções e os seus pensamentos mais profundos, como se tivesse vertido o seu sangue para a criar. Trata-se de uma obra de arte que só se faz uma vez na vida. O mestre pintou-a por si próprio, mas também por aqueles que já não se encontram neste mundo. É como se fosse um requiem em sua memória, destinado a purificar o sangue que partilham.
– Um requiem?
– Um trabalho destinado a sarar as feridas e a conferir paz aos mortos. Assim se explica que não tenha querido expor a obra. A receção, do público e dos críticos, bem como a recompensa financeira não tinham qualquer significado para o pintor. Bastava-lhe saber que tinha pintado o quadro e que ele existia algures, mesmo embrulhado em papel pardo e escondido num sótão, condenado a não ser visto. Gostaria de respeitar esse desejo.
Reinava um silêncio sepulcral.
– Brincas aqui desde pequena, se não me engano. E costumas utilizar a tal passagem secreta, certo?
Marie acenou afirmativamente.
– Chegaste a conhecer o Tomohiko Amada?
– Vi o velhote, mas nunca falei com ele. Mantive-me na sombra, a uma distância razoável, a observá-lo enquanto pintava. Podia ser acusada de invadir propriedade privada, não se esqueça disso!
Anuí. A imagem pecava por ser demasiado real. Imaginei Marie no meio dos arbustos, a espreitar para dentro do estúdio, enquanto Tomohiko Amada, sentado no banco, aplicava diligentemente o pincel sobre a tela. Sem lhe passar pela cabeça que estava a ser observado.
– Pediu-me para lhe dar uma mãozinha – disse Marie.
– Pois foi – confirmei. – Preciso dos teus préstimos. Gostaria que me ajudasses a embrulhar estes dois quadros e a escondê-los no sótão, onde não corram o risco de ser vistos. A Morte do Comendador e O Homem do Subaru Forester Branco. De momento, não precisamos deles. Pode ser?
Marie acenou, mas nada disse.
– A verdade é que não me estava nada a apetecer tratar do assunto sozinho. Mais do que uma mãozinha, precisava de contar com alguém que pudesse fazer as vezes de observador e testemunha, uma pessoa em quem confiasse para partilhar o segredo.
Fui à cozinha e trouxe de lá cordel e um x-ato. Marie e eu embrulhámos primeiro A Morte do Comendador. Envolvemos a pintura com o nobre papel washi japonês anteriormente utilizado, tapámo-lo com um pano branco e tornámos a atá-lo muito bem com cordel, para dificultar a tarefa a quem se lembrasse de o desempacotar. A tinta espessa de O Homem do Subaru Forester Branco ainda não secara por completo, por isso demos alguma folga ao invólucro. Em seguida, transportámos os dois quadros para o armário do quarto de hóspedes. Subi ao escadote, abri a portinhola que dava acesso ao sótão (diria, agora que penso nisso, à imagem e semelhança do que o Cara Comprida fizera ao empurrar a tampa quadrada no seu buraco) e icei-me. Fazia-se sentir um ar frio lá em cima, mas um frio agradável. Marie passou-me A Morte do Comendador para as mãos, só depois me entregando O Homem do Subaru Forester Branco. Encostei os dois quadros à parede, lado a lado.
De súbito, pressenti que tinha companhia. Quase deixei de respirar. Havia ali alguém: refiro-me a uma presença real. Foi então que vi a coruja. Talvez fosse a mesma que avistara na ocasião, aninhada na mesma trave, imóvel, e a dormir. Ao dar pela minha aproximação, a ave não se mostrou preocupada. A cena parecia decalcada da primeira vez.
– Aproxima-te – sussurrei a Marie. – Vem ver uma coisa engraçada. Não faças barulho.
A jovem subiu os degraus da escada e rastejou pela abertura que dava acesso ao sótão. Estendi-lhe as mãos para a ajudar a subir. O soalho estava coberto por uma fina camada de pó branco, que acabou por se agarrar à saia de lã nova, mas ela não se importou. Sentei-me no chão e apontei para a coruja. Marie ajoelhou-se a meu lado e observou a ave, fascinada. A coruja era muito bonita. Lembrava um gato com asas.
– Viveu a vida inteira aqui – murmurei. – Sai à noite para ir caçar na floresta e regressa de manhã para dormir. Voa através daquela entrada.
Apontei para o buraco na rede do respiradouro. Marie assentiu. Chegou-me aos ouvidos o sopro ténue da sua respiração.
Ficámos sentados lado a lado, sem falar, ensimesmados pela coruja. Pouco interessado nas nossas pessoas, o animalzinho, autêntico modelo de discrição, não tugia nem mugia. Entre mim e a coruja existia uma espécie de entendimento tácito, que nos permitia partilhar aquele espaço. Um de nós mantinha-se ativo durante o dia, o outro fazia o mesmo de noite; de certa forma, partilhávamos irmãmente os domínios da consciência.
Marie esticou o braço e, apertando-me a mão, pousou a cabeça no meu ombro. Komi e eu passáramos horas sem conta nessa posição. Éramos unha com carne. Os nossos sentimentos fluíam com naturalidade. Até que a morte nos separou.
Sentia a tensão abandonar Marie. Pouco a pouco, os músculos do seu corpo, rígidos até dizer basta, começaram a descontrair-se. Acariciei-lhe a nuca, pousada no meu ombro. Os cabelos pretos e lisos. Quando a minha mão aflorou a sua face, percebi que chorava. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto, quentes como sangue jorrando do coração. Continuei a abraçá-la. Ela precisava de desabafar, coisa que até aí não conseguira. A situação devia arrastar-se há muito. A coruja e eu zelámos por ela enquanto expulsava as lágrimas.
A luz da tarde penetrou pela abertura, projetando-se no respiradouro. Em redor, apenas pó branco e silêncio. Pó e silêncio oriundos de tempos imemoriais. Não se ouvia o vento. Enroscada na trave, a coruja congregava toda a sabedoria da floresta. Um saber também ele oriundo de um passado distante.
O choro de Marie parecia não ter fim. Sabia-o pelo modo como o seu corpo tremia ligeiramente, pois não fazia barulho. Continuei a fazer-lhe festas no cabelo. Como se seguíssemos viagem rio acima, percorrendo juntos o fluxo do tempo.
60
SE A DITA PESSOA
TIVESSE BRAÇOS GIGANTES
–Passei estes quatro dias em casa do senhor Menshiki – confessou Marie, assim que parou de chorar e recuperou a fala.
Estávamos no estúdio. Ela sentada no banco de madeira, com os joelhos a espreitar por debaixo do tecido da saia, eu encostado ao parapeito da janela, numa posição que me permitia apreciar a beleza das suas pernas. As meias, apesar de opacas, não o conseguiam disfarçar. Quando Marie crescesse, aquelas pernas iriam atrair o olhar de muitos homens. Nessa altura, já os seios deviam ter-se desenvolvido, mas, por enquanto, não passava de uma rapariga perdida e titubeante, prestes a entrar na idade adulta.
– Estiveste em casa do senhor Menshiki? – insisti. – Podes explicar-me como tudo aconteceu?
– Precisava de saber mais sobre ele, pelo que decidi ir ao seu encontro. Tinha de descobrir porque é que passava a noite a observar-nos através dos binóculos. Desconfio que comprou aquele casarão no outro lado do vale só para nos espiar. Não havia meio de perceber o que o levava a fazer isso. Quero dizer, não era normal. «Tem de haver uma razão concreta», disse para comigo mesma.
– E decidiste bater-lhe à porta?
Marie abanou a cabeça.
– Não. Entrei à socapa, sem que o Menshiki desse por isso. E depois vi-me e desejei-me para sair.
– Invadiste a casa dele?
– Sim, como um ladrão. Mas não estava nos meus planos.
Na sexta-feira anterior, terminadas as aulas da manhã, Marie escapulira-se pelas traseiras da escola. Se um aluno não comparecesse às primeiras aulas do dia, alguém da secretaria encarregava-se de ligar à família, a fim de comunicar o sucedido. Mas o mesmo não acontecia no período da tarde. Não havia uma razão aparente que justificasse este critério, era tão simples quanto isso. Marie nunca fizera gazeta, e calculara que podia evitar as consequências recorrendo a um pouco de engenho. Apanhara o autocarro e saíra na paragem habitual, mas, em vez de se dirigir para casa, seguiu na direção oposta, rumo à mansão de Menshiki.
De início, não tinha intenção de invadir a casa dele. A ideia nunca lhe passou pela cabeça. Por outro lado, não planeava bater-lhe à porta e fazer-se convidada. A verdade é que fora ao encontro de Menshiki sem noção clara do que fazia. Sentia-se tão atraída pela imponente moradia branca como um filamento de metal perante um poderoso íman. Sabia que, mantendo uma distância de segurança, nunca resolveria o mistério do comportamento de Menshiki, e a curiosidade falou mais alto. As pernas limitaram-se a conduzi-la até ao portão principal, como se tivessem vontade própria.
Era uma bruta caminhada, sempre a subir. Quando olhou para trás, avistou o oceano, que brilhava entre as montanhas. A mansão de Menshiki estava rodeada por um muro alto com um portão de madeira automatizado. Havia câmaras de videovigilância a toda a volta, e um dos pilares do portão exibia o logótipo de uma empresa de segurança. Todo o cuidado era pouco. Escolheu uns arbustos e escondeu-se, enquanto avaliava a situação. Não detetou qualquer movimento, tanto no interior como no exterior da mansão. Ninguém saíra ou entrara durante o tempo em que esteve à espera. Reinava um silêncio sobrenatural.
Depois de desperdiçar meia hora feita estátua, estava quase a desistir quando uma carrinha subiu a encosta. Tratava-se de um veículo de uma empresa de entregas. Parou em frente ao portão, a porta do condutor abriu-se e um rapaz de uniforme apeou-se com uma prancheta na mão. Aproximando-se do portão, premiu o botão do intercomunicador. Houve uma breve troca de palavras e, mal o portão começou a mover-se vagarosamente, o rapaz correu para a carrinha e avançou pelo acesso que conduzia à mansão.
Marie não teve tempo de pensar no passo seguinte. No instante em que viu a carrinha cruzar o portão, saltou do seu poiso atrás dos arbustos e desatou a correr. Foi por um triz, mas lá conseguiu esgueirar-se no derradeiro momento, antes de o portão se fechar de novo. Não havia como saber se as câmaras de videovigilância a tinham apanhado, mas pelo menos ninguém se manifestou. Dar de caras com um cão de guarda, contudo, constituía uma hipótese bastante mais assustadora. Não sabia até que ponto corria esse risco. Era algo em que não tinha pensado quando deitara a correr atrás da carrinha. Assim que o portão se fechou, a possibilidade ocorreu-lhe de imediato. Uma propriedade daquele tamanho parecia o sítio ideal para manter um dobermann ou um pastor-alemão à solta. Qualquer destas raças representava uma ameaça, pois tinha-lhes pavor. Para bem dos seus pecados, essa hipótese não se confirmou. Não ouvia ladrar, o que só por si era um bom presságio. Vendo bem, Menshiki não mencionara a existência de canídeos no dia em que ela ali estivera na companhia da tia.
Já do outro lado do muro, agachou-se atrás de uns arbustos e fez novo compasso de espera. Sentia a garganta seca. Comporto-me como uma ladra, sussurrou de si para si. O que estou a fazer é ilegal. As câmaras eram a prova provada da sua culpa.
Tomara a decisão certa? Não tinha a certeza. Assim que a carrinha atravessara o portão, limitara-se a agir por instinto. Não tivera sequer tempo de medir as consequências. Esta é a minha oportunidade, pensara, e deixara-se levar por um impulso, como se o corpo se movesse sem pedir autorização à mente. Por qualquer razão que lhe escapava, não sentia arrependimento.
Do sítio onde se encontrava, viu a carrinha fazer o trajeto inverso ao longo do acesso. Uma vez mais, o portão abriu-se e a carrinha foi à sua vida. Se quisesse arrepiar caminho, aquela seria a única oportunidade de correr de volta para o portão e regressar ao mundo que tinha como porto seguro. Se o fizesse, deixaria de ser uma criminosa. Mas não se mexeu. Deixou-se ali ficar, entre as sombras, mordendo o lábio ao ver o portão fechar-se.
Aguardou dez precisos minutos, cronometrados pelo seu relógio Casio G-Shock. Esgotado esse tempo, emergiu da vegetação. Curvada de forma a impossibilitar que as câmaras captassem a sua presença, correu pela encosta abaixo e só parou ao chegar à porta principal. Passavam trinta minutos das duas da tarde.
E se Menshiki desse por ela? Ponderou a questão durante dois ou três segundos. Bem, decidiu, se isso acontecer, terei de encontrar maneira de me desenvencilhar. O homem parecia ter um interesse especial (ou algo do género) por ela. Como tal, se lhe dissesse que calhara vir visitá-lo, e que ao ver o portão aberto decidira entrar, pintando a história como uma brincadeira de crianças, o mais provável era ele acreditar. O tipo precisa desesperadamente de acreditar em algo, pensou, e será capaz de engolir tudo e mais alguma coisa. O problema era saber de onde vinha esse «interesse». E averiguar se o homem tinha boas intenções ou se representava uma ameaça.
A entrada principal da mansão situava-se para lá da curva, no fim do acesso. Havia uma campainha, claro, mas não tocou à porta. Em vez disso, contornou o edifício em sentido contrário, escondendo-se atrás de árvores e arbustos, mantendo-se colada ao muro e distante do terreiro onde os convidados estacionavam os carros. No lado esquerdo existia uma garagem com capacidade para dois veículos. Tinha a porta corrida e trancada. Mais à frente situava-se uma pequena e elegante casa de pedra, possivelmente destinada aos hóspedes. Para lá da casa de pedra ficava o campo de ténis. Marie nunca tinha visto uma casa com campo de ténis. Com quem é que o senhor Menshiki batia umas bolas? O campo dava ares de se encontrar ao abandono. Não tinha a rede colocada, o chão de tartan encontrava-se coberto de folhas mortas, e as linhas brancas, de tão esbatidas, quase não se notavam.
As janelas viradas para a montanha estavam fechadas, não permitindo vislumbrar o interior da mansão. Como antes, a quietude era total. Definitivamente, não havia cães a ladrar. De quando em quando, ouvia-se o chilrear dos pássaros nas árvores. Nas traseiras existia uma segunda garagem, também para dois carros. Parecia ter sido feita depois de construída a casa. O senhor Menshiki podia guardar ali todos os carros e mais algum.
A encosta nas traseiras fora transformada num enorme jardim japonês. Avistou uma longa escadaria, descendo para um caminho que serpenteava entre penedos. Os arbustos de azáleas encontravam-se irrepreensivelmente aparados, os ramos dos pinheiros tingidos de mil e um tons de verde. Mais adiante, no interior de uma pérgula, via-se uma cadeira reclinável na qual uma pessoa se podia sentar com um livro nas mãos e gozar da sombra. Ao lado encontrava-se uma mesinha de apoio. Havia lanternas espalhadas aqui e ali.
Marie prosseguiu até às traseiras da casa, onde um impressionante terraço proporcionava uma vista deslumbrante sobre o vale. Estivera naquele terraço aquando da visita com a tia, e era naquele posto que Menshiki as espiava todos os dias. Confirmaria essa suspeita mal lá pusesse os pés. Sentia-o nos ossos.
Semicerrando os olhos, observou a casa onde ela vivia. Situava-se mesmo em frente e dava a sensação de que uma pessoa podia tocar-lhe (se a dita pessoa tivesse braços gigantes, isto é). Daquele ponto de observação, a sua casa parecia indefesa. Na época em que fora construída, não havia habitações naquele lado do vale. Só recentemente (na década anterior, se tanto) é que as restrições de construção haviam sido alteradas e as primeiras casas tinham surgido. Essa era a razão pela qual o sítio onde vivia não contemplava nenhuma medida de privacidade que a resguardasse das novas edificações na vertente oposta. Um telescópio, ou até um par de binóculos decente, era mais que suficiente para permitir uma boa visão do que se passava entre paredes. A janela do quarto era um exemplo perfeito. Lembrava-se sempre disso e nunca se despia sem o cuidado de correr as cortinas. Não significava, contudo, que não existissem momentos em que ficava exposta a olhares indiscretos. Só os deuses sabiam o que Menshiki teria já visto.
Desceu os degraus exteriores até ao piso onde era o escritório, mas as janelas e as persianas encontravam-se igualmente fechadas, não lhe permitindo vislumbrar uma nesga do interior da casa. Desceu até ao piso inferior, uma espaçosa divisão multiusos onde havia uma máquina de lavar roupa, uma tábua de engomar, um pequeno quarto destinado à empregada e, na extremidade mais afastada, uma zona de ginásio com meia dúzia de máquinas de exercício. Ao contrário do campo de ténis, as máquinas aparentavam ser regularmente utilizadas, pois pareciam limpas e oleadas. Um pesado saco de boxe pendia do teto. Comparada com os pisos de cima, aquela zona era menos resguardada. Algumas janelas não tinham cortinas. Fosse como fosse, tanto estas como as portas de correr estavam trancadas, ostentando o mesmíssimo logótipo destinado a espantar intrusos. Se alguém tentasse entrar, o alarme soaria fatalmente nos escritórios da empresa de segurança.
A mansão era descomunal. Tornava-se difícil acreditar que fosse habitada por uma só pessoa. Não devia ser agradável levar uma vida tão solitária. Tinha grossas paredes de betão e haviam sido tomadas todas as precauções para bloquear a entrada a estranhos. Não havia cães de guarda, estava mais que confirmado, mas talvez Menshiki não gostasse de cães. De resto, tinham sido instalados todos os dispositivos antirroubo jamais inventados.
O que fazer? Não lhe ocorreu nada. Não tinha maneira de entrar na casa e não tinha igualmente forma de transpor o muro que lhe permitisse sair. Menshiki encontrava-se no edifício. O homem abrira o portão à carrinha de entregas e recebera a encomenda. Mais a mais, vivia ali sozinho. Uma vez por semana, permitia a entrada a uma empresa de limpezas, mas no resto do tempo a casa encontrava-se vedada a terceiros. Essa era a regra básica de Menshiki. Fizera questão de a partilhar com ela e com a tia.
Uma vez que não conseguia aceder ao interior, precisava de descobrir um esconderijo ali fora. Se procurasse bem, acabaria por encontrar. Após demorada busca, deparou-se com o que parecia ser uma pequena arrecadação no canto mais afastado do jardim. A porta estava destrancada. Lá dentro encontravam-se várias ferramentas de jardinagem e sacas de fertilizante. Entrou e sentou-se numa das sacas. O ambiente era tudo menos acolhedor, mas sempre ficaria a salvo das câmaras de videovigilância. Seria pouco provável que alguém ali aparecesse, e, mais cedo ou mais tarde, o caso mudaria de figura. Por enquanto, tinha de se contentar em esperar.
Apesar de não poder sair do mesmo sítio, sentia-se revigorada. Nessa manhã, depois do duche e enquanto se admirava ao espelho, notara o peito maior. Uma novidade excitante, é bom de ver. Claro que podia estar a imaginar coisas, mas inspecionara o peito de todos os ângulos e tocara-lhe com as mãos. Havia, de facto, duas protuberâncias que não estavam lá antes. Os mamilos continuavam pequenos (a um mundo de distância dos da tia, que mais pareciam caroços de azeitonas), mas apresentavam sinais de mudança.
As horas na arrecadação foram passadas a pensar nas alterações no peito. Imaginou o aspeto que teria quando crescesse. Como seria viver com mamas a sério? Imaginou-se a colocar um daqueles sutiãs armados que a tia usava. Porém, estava ainda a milhas de distância desse dia. No fim de contas, o período aparecera-lhe pela primeira vez na primavera anterior.
Sentia sede, mas nada que não pudesse suportar. Consultou as horas no relógio. Passavam cinco minutos das três. Às sextas-feiras tinha aula de pintura, mas sabia de antemão que faltaria. Nem sequer trouxera o material. Quando chegasse a hora de jantar, a tia iria ficar preocupada por ela não estar em casa. Precisava de arranjar uma boa desculpa.
A dada altura, devia ter fechado os olhos. Custava-lhe a acreditar que pudesse dormir naquele lugar e naquelas circunstâncias. Ainda assim, caíra nos braços de Morfeu. Apesar de não ter durado muito – uns dez ou quinze minutos, talvez menos –, tinha sido um sono profundo. Sentiu-se desorientada ao acordar e, por um momento, não sabia onde estava nem o que fazia. Diria que não tinha passado de um sonho. Um sonho vago, relacionado com mamas e leite com chocolate. Sentia a boca cheia de saliva. Então, fez-se luz. Invadi a casa do senhor Menshiki, lembrou-se, e procurei refúgio no barracão do jardim.
Fora despertada por um ruído. Mecânico, repetitivo. O som do portão da garagem a abrir-se, em concreto. A garagem à frente da casa. Menshiki preparava-se para ir a algum lado. Abandonou o abrigo e correu em silêncio. Quando o portão da garagem subiu na totalidade, o ruído cessou. Ouviu o motor de um carro a ronronar, e a dianteira do Jaguar prateado saiu lentamente da garagem. Menshiki estava sentado no lugar do condutor com a janela aberta e os cabelos brancos cintilantes sob o sol da tarde. Agachada nos arbustos, Marie redobrou a guarda.
Se Menshiki olhasse para a direita, tê-la-ia visto. Os arbustos eram demasiado pequenos para se esconder na totalidade. Agarrado ao volante, ele continuou sempre a olhar em frente, a mente perdida em pensamentos. O Jaguar percorreu o acesso, fez a curva e desapareceu. O portão de garagem começou a descer. No último instante, Marie saltou de trás dos arbustos e esgueirou-se lá para dentro. Como Indiana Jones fazia nos Salteadores da Arca Perdida. Sem pensar muito nisso, decidira entrar na mansão por ali. O portão automático deteve-se um instante quando ela deslizou por baixo, retomando o movimento até se fechar por completo.
Havia mais um carro na garagem, um descapotável azul com capota bege, o modelo que a tia apreciara com olhos de boa entendedora durante a visita. Marie não ligava nenhuma a carros e mal olhara duas vezes para aquele modelo. O bólide tinha uma longa e elegante dianteira e, para não variar, ostentava o símbolo da Jaguar. Não precisava de ser uma conhecedora para perceber que devia custar uma pipa de massa. Uma autêntica peça de colecionador, quase apostava.
A garagem tinha ligação à casa. Com mãos trémulas, experimentou rodar a maçaneta da porta. Girou-a facilmente. Marie suspirou de alívio. Poucas pessoas trancariam a porta durante o dia, mas com Menshiki, tratando-se de um homem cauteloso, tudo era possível. Talvez andasse demasiado distraído para se lembrar de a fechar à chave naquele dia. Sorte a dela.
Abriu a porta e entrou em casa. Devia descalçar-se? Optou por levar os sapatos na mão. Deixá-los para trás não lhe parecia boa ideia. A casa estava mergulhada num absoluto silêncio. Era como se as paredes e os móveis tivessem suspendido a respiração. Não se encontrando Menshiki por perto, podia apostar que não haveria ali mais ninguém. Estou sozinha neste casarão, pensou. Vou dar-me ao luxo de ver e fazer o que me apetecer.
Quando ali estivera com a tia, Menshiki proporcionara-lhes uma breve visita guiada. Lembrava-se do trajeto e a disposição das divisões permanecia-lhe gravada na memória. Entrou no salão principal, que ocupava a maior parte do primeiro piso. Um conjunto de portas deslizantes permitia o acesso ao enorme terraço, mas hesitou. Menshiki podia ter ativado o alarme antes de sair, e o mesmo seria acionado no instante em que tentasse abrir as portas do terraço. A empresa de segurança receberia o alerta e algum funcionário mais zeloso ligaria para atender à ocorrência. Depois seria necessário fornecer uma senha, a fim de pôr cobro à situação. Com os sapatos pretos pendurados dos dedos enquanto ponderava o que fazer, Marie contemplou as portas.
Por fim, chegou à conclusão de que o alarme não se encontrava ligado. O facto de Menshiki ter deixado a porta da garagem destrancada sugeria que não tencionava demorar-se. Devia ter ido fazer compras ou tratar de uma qualquer incumbência. Enchendo-se de coragem, destrancou a porta, fê-la deslizar para o lado e esperou para ver o que acontecia. O alarme não soou, e da empresa de segurança nem um pio. Suspirou de alívio (se os funcionários da dita empresa a encontrassem ali, era certo e sabido que não conseguiria safar-se da situação só à conta de conversa fiada). Depois saiu para o terraço. Calçou os sapatos, agarrou nos binóculos e retirou a capa de plástico. Eram pesados. Tentou equilibrá-los no corrimão, mas a operação não correu bem. Olhando em redor, avistou o que parecia ser um tripé de câmara fotográfica encostado contra a parede. Era verde-tropa, a mesma cor dos binóculos. Atarraxou os dois elementos, puxou o banquinho metálico que se encontrava à mão de semear, sentou-se e espreitou pelas lentes. Manusear os binóculos tornou-se fácil. Mais importante, encontravam-se posicionados de forma a impedir que a pudessem ver do outro lado do vale. Menshiki devia passar assim muitas horas.
Ficou chocada com a facilidade com que conseguia espiolhar o interior da sua casa de família. Tudo parecia um bocadinho mais definido (o que se devia em grande parte ao alcance dos binóculos). Algumas cortinas não estavam corridas. A vista do interior da casa era tão nítida que dava a impressão de que poderia tocar no que via. Numa jarra de flores, por exemplo, ou até numa das revistas em cima da mesa. A tia estaria em casa a essa hora, mas não conseguiu avistá-la em parte nenhuma.
Esquadrinhar o interior da casa a uma distância tão grande era uma coisa inaudita, sobretudo com aquela nitidez. Sentia-se como se tivesse assumido a forma de um espírito (ou coisa que o valha) e estivesse a observar de uma perspetiva diferente a casa que conhecia como as palmas das mãos. Vivera ali desde sempre, mas era como se já não lhe pertencesse, como se não pudesse regressar ali. Experimentou na pele uma sensação bizarra, dissociativa.
Apontou os binóculos à janela do seu quarto. Ficava mesmo em frente, mas as cortinas estavam corridas. Nem uma nesga por onde espreitar. Analisou o familiar padrão cor de laranja, desbotado pelo sol. Não conseguia ver para lá do tecido alaranjado, mas era provável que a silhueta do seu corpo transparecesse através dele à noite, com as luzes do quarto acesas. Até que ponto? Só o poderia saber depois de escurecer. Moveu os binóculos de um lado para o outro, em busca da tia. Já eram horas de estar em casa, mas continuava incógnita. Podia encontrar-se na cozinha, na outra ponta da casa, a tratar do jantar. Ou ter-se refugiado no quarto. Daquele ângulo, não havia sinais dela.
Sentiu pressa de regressar. De preferência, naquele preciso instante. Queria sentar-se à sua mesa, na sua cadeira, e levar à boca uma chávena com chá quente. Gostaria de ver a tia enquanto ela preparava o jantar. Seria fantástico, pensou. Até à data, nunca se imaginara capaz de sentir aquilo, nem por um segundo. Sempre considerara a casa de família um monstro estéril. Detestava viver ali. Na realidade, ansiava pelo dia em que teria idade para se mudar para uma casa que fosse sua; uma casa sua e ao seu gosto. Naquele instante, porém, enquanto procurava a silhueta da tia com o auxílio da nitidez das lentes, só lhe apetecia regressar a casa. Era ali que pertencia, ali sentia-se protegida.
Foi então que um ligeiro zumbido lhe desviou a atenção. Afastando os olhos dos binóculos, ergueu o rosto e viu algo esvoaçar por cima dela. Uma enorme abelha, com o corpo alongado. Uma vespa? O mesmo tipo de vespa agressiva, com ferrão afiado, que matara a mãe. Correu para dentro de casa, fez deslizar a porta envidraçada com violência e trancou-a. A vespa ficou a zumbir lá fora, como se procurasse obstinadamente encurralá-la lá dentro. Atirou-se contra o vidro repetidas vezes, depois desistiu e voou para longe. Marie suspirou de alívio. O seu coração galopava descontrolado e custava-lhe respirar. As vespas metiam-lhe um medo pavoroso. O pai fartara-se de a avisar do perigo que representavam, e ela vira numerosas imagens para ficar a conhecer o aspeto daqueles insetos. Pelo meio, acabara por alimentar a fantasia de que um dia morreria da mesma maneira que a mãe, picada por vespas. Provavelmente, sofreria idêntica reação alérgica. Ninguém escapava à morte, mas era preferível que sobreviesse mais tarde. Queria ao menos saber qual seria a sensação de ter mamas e mamilos de mulher. Seria um azar dos diabos se as vespas a matassem antes disso.
Por uma questão de segurança, decidiu não sair de casa. O inseto selvagem ainda podia andar lá fora. Além disso, a vespa parecia sobretudo interessada nela. Mais valia esquecer o terraço e ver o que podia encontrar dentro de portas.
Começou por explorar o salão. Não notou nenhuma diferença desde a primeira vez que ali estivera. Havia um piano de cauda Steinway sobre o qual repousava uma pilha de partituras musicais. Uma invenção de Bach, uma sonata de Mozart, um estudo de Chopin. Se não era isto, seria parecido. Nenhuma peça que exigisse grande mestria. Mesmo assim, havia mérito em quem soubesse tocar todas aquelas partituras. Sabia-o de ciência certa. Tivera aulas de piano quando era mais nova, mas tinha sido sol de pouca dura. Deixara-se seduzir pela pintura.
Viam-se vários livros espalhados sobre a mesinha de mármore. Os marcadores entalados nas páginas sugeriam que andavam a ser lidos por alguém. Um livro de filosofia, outro de história, e dois romances (um dos quais em inglês). Não reconhecia os títulos, tão-pouco ouvira falar dos autores. Folheou-os, mas nenhum lhe despertou o interesse. O dono da casa adorava livros densos e música clássica. Entre uma coisa e outra, entretinha-se a espiar a casa dela com a ajuda de um potente par de binóculos.
Não passaria de um pervertido? Ou existiria alguma razão válida por trás do seu comportamento? Sentir-se-ia atraído pela tia? Por ela? Pelas duas? Será que isso era plausível?
Dirigiu-se aos pisos inferiores. Começou pelo escritório de Menshiki. O retrato continuava pendurado na parede. Deteve-se no meio da divisão e estudou-o. Já o tinha visto antes, claro (o quadro fora o propósito da visita com a tia). Ao examiná-lo mais de perto, teve a impressão de que o próprio Menshiki se encontrava presente. Incomodada, virou costas e foi inspecionar a secretária, fazendo o possível por ignorar a pintura. Existia um computador Apple topo de gama, mas não o ligou. Não precisava de o fazer para saber que se encontrava protegido por senha. Nunca conseguiria aceder ao conteúdo do disco rígido. De resto, não encontrou nada digno de interesse na secretária. Havia um calendário plano, com pouco ou nada escrito; apenas meia dúzia de símbolos indecifráveis e alguns números esparsos. A agenda dele devia ter sido elaborada no computador, onde podia ser consultada a partir dos outros dispositivos eletrónicos, todos eles igualmente protegidos por senhas. Menshiki era um sujeito cauteloso. Não deixava nada nas mãos do destino.
Os restantes objetos na secretária eram aqueles que se esperava encontrar num espaço de trabalho. Os lápis tinham comprimento idêntico e encontravam-se afiados na perfeição; os montes de papel organizados de acordo com o tamanho. O caderno de notas aguardava que alguém preenchesse as páginas em branco. O relógio digital assinalava metodicamente as horas. O aprumo com que os objetos se encontravam dispostos sobre a secretária pecava por excesso. A não ser que se trate de um androide, pensou, o senhor Menshiki é realmente uma criatura muito estranha.
Tal como esperava, todas as gavetas da secretária estavam fechadas à chave. Era natural que assim fosse. Menshiki não era homem para menosprezar esse detalhe. De resto, não havia muito mais para ver no escritório. Não tinha um interesse por aí além nas prateleiras cheias de livros, na coleção de CD ou na aparelhagem de alta-fidelidade (o mais recente modelo), que devia ter custado os olhos da cara. Tudo aquilo refletia apenas os gostos do dono da casa e não a ajudavam a perceber o tipo de pessoa que ele era. Não deviam ter ligação com os segredos que Menshiki (possivelmente) escondia.
Saiu do escritório e percorreu o corredor pouco iluminado, verificando os quartos pelo caminho. Estavam destrancados e nenhum estivera incluído na visita guiada. Marie e a tia só tinham podido apreciar o salão, o escritório, a sala de jantar e a cozinha (e, a dada altura, também ficara a conhecer a casa de banho social no primeiro piso, já que precisara de a utilizar). Uma após outra, foi abrindo as portas dessas divisões desconhecidas. A primeira era onde Menshiki dormia (ou calculou que assim fosse). Tratando-se do quarto principal, era enorme. Incluía um roupeiro com zona de vestir e uma casa de banho. A cama gigantesca estava feita, com um futon acolchoado meticulosamente dobrado. Como Menshiki não tinha empregada fixa, devia ter sido ele a fazer a cama. A ser assim, o resultado não a surpreendia. Um pijama castanho, igualmente dobrado na perfeição, repousava junto das almofadas à cabeceira. Uma série de gravuras decorava a parede: obras do mesmo artista, pelo que lhe era dado a ver. Havia um livro aberto na mesa de cabeceira. Sem dúvida que Menshiki era um leitor voraz. A janela dava para o vale, mas, além de ser pequena, tinha as persianas fechadas.
Ao abrir a porta do roupeiro e da zona de vestir, deparou-se com várias filas de roupa pendurada. Muitos blusões e casacos, embora poucos fatos completos. As gravatas também se contavam pelos dedos. Se calhar, Menshiki não tinha tanta necessidade quanto isso de se vestir formalmente. Todas as camisas estavam cobertas por capas plastificadas, como se tivessem acabado de sair da lavandaria. Os sapatos e os ténis alinhavam-se ao longo das prateleiras. Sobretudos de várias espessuras ocupavam outra secção distinta. Cada artigo de roupa refletia o cuidado e o refinamento do dono. Em bom rigor, o que ali estava podia figurar nas páginas de uma revista de moda masculina. Não havia peças a mais nem a menos. Moderação era a palavra-chave.
As gavetas continham peúgas, lenços e roupa interior. Tudo engomado, dobrado e organizado em perfeita ordem. Havia mais gavetas para as calças de ganga, polos e camisolas, e por aí adiante. Uma gaveta maior destinava-se a albergar uma colorida coleção de camisolas de malha lisas. Tal como antes, não encontrou nada nas gavetas que a deixasse mais perto de desvendar os segredos de Menshiki. As diversas peças de roupa estavam imaculadas e tinham sido separadas de acordo com a função. Não havia um grão de pó no chão, e até as molduras estavam niveladas.
Marie tirou daí uma conclusão: viver com aquele homem devia ser uma tarefa inexequível. Uma pessoa normal não conseguiria estar à altura daquele padrão de exigência. A tia tinha a mania das arrumações, mas aquilo era outro campeonato.
A porta seguinte abriu-se para o que devia ser o quarto de hóspedes. Deparou-se com uma cama de casal já feita, uma secretária junto da janela e uma pequena televisão. No entanto, não havia sinal de que alguém ali tivesse dormido uma única vez. O quarto parecia esquecido no tempo. O senhor Menshiki não alimentava o hábito de receber convidados, e o quarto de hóspedes devia destinar-se a imprevistos de última hora (quais, não conseguia imaginar).
O quarto seguinte era mais uma arrecadação do que outra coisa. Não tinha mobília, e empilhadas sobre a carpete verde avistavam-se cerca de dez caixas de cartão. Atendendo ao peso, deviam servir para guardar documentos. Estavam cuidadosamente seladas com fita adesiva, e cada uma exibia uma etiqueta rabiscada a caneta. Marie calculou que se tratasse de documentos de trabalho. Imaginava que encerrassem segredos valiosos, mas não aqueles que procurava.
Nenhum dos quartos estava trancado, e embora as janelas tivessem vista sobre o vale, as persianas encontravam-se cerradas. Não havia ninguém para apreciar o brilho do sol e a paisagem majestosa. Restava apenas a penumbra e o cheiro a abandono.
O quarto do fundo fascinou-a. Não o quarto em si, entenda-se. O mobiliário, escasso, resumia-se a uma cadeira e a uma mesa de madeira. As paredes não exibiam fotografias nem quadros. Desprovido de elementos decorativos, havia uma sensação de vazio, de ser um espaço que nunca ninguém utilizara. Mas quando examinou o roupeiro, deparou-se com roupas de mulher. Não era um número extraordinário de peças, apenas o suficiente para as necessidades de uma estada de meia dúzia de dias. Marie calculou que as roupas pertencessem a alguém que visitava Menshiki com regularidade. Franziu o sobrolho. A tia estaria a par da existência dessa mulher?
Marie não tardou a perceber que avaliara mal a situação. Aquele vestuário era antiquado. Elegantes, e indiscutivelmente caras, as saias e as blusas exibiam etiquetas de marcas conhecidas, mas não era o tipo de roupa que uma mulher usasse nos dias de hoje. Apesar de não seguir as tendências da moda, até ela conseguia ver isso. As peças emanavam um forte cheiro a naftalina. Dava a ideia de que estariam ali penduradas há anos, embora em excelente estado de conservação. Não havia buracos de traças, e as cores permaneciam sólidas, o que significava que os tecidos não tinham sido expostos a grandes diferenças de temperatura. Os vestidos eram de tamanho 32, um indicador de que a mulher misteriosa mediria à volta de um metro e cinquenta. Bastava ver as saias para concluir que devia ser bastante magra. Calçava o número 36.
As gavetas do roupeiro guardavam uma enorme variedade de roupa interior, meias e camisas de dormir. As peças estavam guardadas em sacos de plástico para se manterem livres de pó. Marie examinou algumas. Os sutiãs tinham copas tamanho 32C. Visualizou o volume dos seios que aquelas copas acolheram, porventura um nadinha mais pequenos que os da tia, pelas suas contas (o formato dos mamilos seria impossível de determinar, claro). As cuecas eram delicadas e elegantes, umas mais sensuais que outras. Sugeriam uma mulher de posses, que comprava a roupa interior em lojas caras, imaginando-se nos braços do homem que amava. Fabricadas com a melhor seda e as rendas mais delicadas, teriam de ser lavadas à mão em água tépida. Não estava a ver alguém usar aquelas peças para tratar do jardim. Das gavetas libertava-se o eterno odor a naftalina. Cheia de pruridos, tornou a dobrar as cuecas, enfiou-as nos sacos de plástico e fechou a gaveta.
Era o roupeiro de uma mulher com quem Menshiki mantivera uma relação em tempos. Talvez há vinte ou trinta anos, concluiu. Depois sucedera algo que levara essa mulher a abandonar as roupas elegantes – os vestidos de tamanho 32, os sapatos de tamanho 36, os sutiãs de tamanho 32C – para trás, para nunca mais voltar. Contudo, porque abandonara roupas tão caras? Não seria normal que as levasse consigo, independentemente do motivo que havia conduzido ao fim da relação? Custava-lhe compreender. Sobretudo pelo facto de Menshiki se ter dado ao trabalho de guardar as roupas com tanto cuidado. Como as Donzelas do Reno, que a todo o custo tentavam preservar o seu tesouro. Menshiki devia ter por hábito visitar aquele quarto movido unicamente com o propósito de admirar as roupas e tocar-lhes. O mais provável era renovar a provisão de bolas de naftalina sempre que a estação mudava (Marie punha as mãos no fogo em como Menshiki jamais permitiria que alguém o fizesse por ele).
Qual fora o destino dessa mulher? Estaria casada com outro homem? Teria morrido de doença ou num acidente? Onde quer que estivesse, Menshiki continuava agarrado às reminiscências dela.
(Obviamente que Marie não podia saber que a mulher era sua mãe, e eu não tinha motivos para lhe contar. Acreditava que esse era um direito que assistia a Menshiki.)
Marie ponderou as implicações da recente descoberta. Menshiki talvez fosse um pouco mais simpático do que parecia. Devia mudar de opinião em relação a um homem que preservava a lembrança de uma mulher daquela maneira? Ou será que aquilo não passava de um pormenor arrepiante?
Esforçava-se por encontrar a resposta certa quando, sem aviso, ouviu o portão da garagem subir novamente. Menshiki estava de volta. Encontrava-se tão absorvida pela recente descoberta das roupas que nem sequer ouvira o portão principal abrir-se nem o carro a percorrer o trilho de acesso. Precisava de sair daquele quarto quanto antes. De encontrar um sítio seguro para se esconder. Foi então que se deu conta de uma particularidade de extrema importância. O pânico apoderou-se dela.
Esquecera-se dos sapatos no terraço. E os binóculos encontravam-se fora da caixa, ainda atarraxados ao tripé. A vespa assustara-a de tal maneira que Marie voara dali para fora sem ter tempo para pensar. Os indícios estavam à vista. Quando Menshiki fosse ao terraço (e isso aconteceria mais cedo ou mais tarde), ficaria imediatamente a saber que alguém lhe invadira a casa durante a sua ausência. Os sapatos pretos dir-lhe-iam que o intruso era uma rapariga. Menshiki, que de estúpido não tinha nada, perceberia logo que se tratava dela, e vasculharia a casa de uma ponta à outra até a encontrar. O que não seria difícil.
Não havia tempo para chegar ao terraço, recuperar os sapatos e guardar os binóculos no estojo. Arriscava-se a esbarrar em Menshiki pelo caminho. Por muitas voltas que desse à cabeça, Marie não sabia o que fazer. O coração martelava-lhe no peito, a respiração pesava-lhe e sentia as pernas congeladas pelo medo.
Ouviu o motor do carro desligar-se e o portão da garagem a descer. Menshiki entraria em casa a qualquer momento. O que podia ela fazer para sair daquela situação? Como? Não se lembrava de nada. Deixou-se cair sentada no chão, o rosto afundado nas mãos, os olhos fechados com firmeza.
– É melhor ficardes aí – disse uma voz.
Estaria a ouvir coisas? Não, não estava. Abriu os olhos, levantou-se e deparou-se com a figura de um velho com pouco mais que sessenta centímetros de altura, sentado numa pequena cómoda. Tinha os cabelos grisalhos amarrados num carrapito no cocuruto da cabeça. As roupas remontavam a tempos ancestrais, e carregava uma espada curta à cintura. Logicamente, pensou que estava a alucinar, que o velhote não passava de uma manifestação do pânico que a invadia.
– Não estais a ver coisas – disse o ancião, com uma voz que tinha tanto de estridente como de tonitruante. – Sou o Comendador, e estou aqui para vos ajudar.
61
TENHO DE SER UMA RAPARIGA CORAJOSA E INTELIGENTE
–Não sou uma alucinação! – repetiu o Comendador. – As opiniões divergem no que respeita à minha existência, mas alucinação é que não! Aqui estou para vos dar uma mãozinha, cara amiga. Pelo que constato, precisais de ajuda. Pois então, por quem sois!
Marie partiu do princípio de que a tirada se referia a ela. Acenou com a cabeça. O pequenitates expressava-se de uma maneira esquisita, mas não andava longe da verdade. Precisava desesperadamente de ajuda.
– Por ora, não estou em condições de resgatar os vossos sapatos – declarou o Comendador. – E também creio que o melhor será obliterar da memória a história dos binóculos. Não vos preocupeis, porém. Tudo farei ao meu alcance para impedir Menshiki de se dirigir ao terraço. Pelo menos até ver. Assim que o Sol se puser, não mais poderei impedi-lo. Quando a noite cair, procurará certamente observar a vossa casa pelos binóculos. É um hábito por demais arraigado nele, bem vedes. Precisamos de resolver o imbróglio quanto antes. Pergunto-me se compreendeis a importância do meu arrazoado...
A jovem limitou-se a assentir. Compreendia o suficiente.
– Por enquanto, deveis quedar-vos acaçapada dentro desse armário – referiu o Comendador. – Ficai caladinha que nem um rato, a fim de evitar que se apercebam da vossa presença. Quando se propiciar a ocasião, darei sinal de mim. Até lá, nada de bulir nem de fazer barulho, aconteça o que acontecer. Faço-me entender, ilustre amiga?
Marie tornou a assentir. Seria um sonho? Estaria diante de um elfo, de um espírito ou coisa do género?
– Não estais nem a sonhar nem diante de um duende – atalhou o Comendador, lendo os seus pensamentos. – Visto que sou uma Ideia, não tenho forma. Seria um mui grande agravo se não me pudésseis ver, daí que me tenha apropriado temporariamente do corpo do Comendador.
Ideia, Comendador... Marie repetiu mentalmente as palavras sem lhes dar voz. O pigmeu consegue ler os meus pensamentos. De repente, lembrou-se. Ele era uma das personagens retratadas naquela enorme pintura nihonga da autoria de Tomohiko Amada que vira exposta no estúdio do professor. Devia ter-se escapulido do quadro, vá lá saber-se como, e aterrara ali. Assim se explicava o seu tamanho diminuto.
– Afirmativo – disse o Comendador. – Tomei a liberdade de pedir emprestada a forma de semelhante criatura, o Comendador... se bem que desconheça o significado. Seja como for, é por essa designação que sou conhecido. Esperai aqui em silêncio. Virei buscar-vos quando soar a hora. Mas nada temeis. Estas vestes servirão para vos resguardar.
As vestes serviriam para a resguardar? Estaria a referir-se às peças de roupa no roupeiro? O homúnculo, porém, não se dignou responder às suas perguntas. Um segundo bastou para que desaparecesse. Dissipou-se como uma nuvem de vapor.
Obedientemente, Marie escondeu-se no armário. Esforçando-se por ficar quietinha, não mexeu um músculo. Menshiki estava em casa; ela ouvira-o entrar. O ruído produzido pelos sacos de papel dava a entender que teria ido às compras. O terror quase a impediu de respirar ao antecipar os passos dele, depois de ter trocado os sapatos pelos chinelos. Aproximava-se com pezinhos de lã do sítio onde ela procurara refúgio.
O roupeiro tinha portas com persianas, por entre as quais se infiltrava alguma claridade, coisa pouca. Assim que a luz do dia se desvanecia, o roupeiro ficava mergulhado na escuridão. Marie, pelas frestas, só conseguia ver o tapete. O armário, atulhado de roupa, tresandava a bolas de naftalina. Rodeada por quatro paredes, não tinha onde se encafuar. O pensamento mais aterrorizante de todos era: «Não tenho saída possível.»
O Comendador prometera mostrar-se e resgatá-la quando chegasse o momento. Marie não tinha escolha senão acreditar nele. Mais a mais, a criatura garantira que as vestes ajudariam a resguardá-la. Devia referir-se às roupas no roupeiro. Roupas antigas de mulher usadas por uma desconhecida, provavelmente antes de ela ter nascido. Como poderiam protegê-la? Estendeu a mão e tocou num vestido com um padrão às flores cor-de-rosa, macio ao toque. Deixou que os seus dedos brincassem com o tecido. Não sabia porquê, mas o gesto tinha qualquer coisa de reconfortante.
Aposto que este vestido me serve, disse Marie com os seus botões. A dona não era muito maior do que eu. Facilmente visto um tamanho trinta e dois. Bem sei que o meu peito ainda não cresceu, mas é uma questão de disfarçar. Podia perfeitamente usar estes vestidos se me desse na veneta, ou se a tal me visse obrigada. Só de pensar nisso, o seu coração ameaçou deixar de bater.
À medida que o tempo avançava, a escuridão ganhou terreno. A noite aproximava-se a passos largos. Marie consultou o relógio, mas estava demasiado escuro para ver as horas. Premiu um botão e o mostrador iluminou-se. Quase cinco e meia. O Sol não tardaria a pôr-se no horizonte. Os dias começavam a ficar mais pequenos. E, ao anoitecer, Menshiki pôr-se-ia a caminho do terraço, onde não demoraria muito a perceber que alguém lhe invadira a casa. Tinha de arranjar maneira de resolver o problema dos sapatos e do par de binóculos.
Com o credo na boca, esperou com impaciência que o Comendador desse um ar da sua graça, mas ele nunca se materializou. Devia ter tido algum impedimento. E se Menshiki não lhe deixasse uma abertura por onde entrar? Marie desconhecia por completo a natureza dos legítimos poderes do Comendador – isto é, de uma Ideia –, e muito menos se podia confiar nele. No entanto, era a sua única esperança, pois não tinha mais ninguém a quem recorrer. Sentou-se dentro do armário com os braços à volta dos joelhos e fixou o olhar no tapete, por entre os interstícios da persiana da porta. De vez em quando, esticava a mão e apalpava o tecido do vestido às flores, lembrando um náufrago agarrado à tábua de salvação.
Assim que as trevas caíram, ouviu de novo passos na entrada. Aproximavam-se, suaves e de mansinho, parando diante do quarto onde se encontrava acaçapada, como se a pessoa em questão tivesse farejado algo. Passados momentos, uma porta abriu-se. A porta do quarto, não havia dúvida. O coração subiu-lhe à garganta. Foi então que ouviu alguém (provavelmente Menshiki, pois não havia mais gente em casa) entrar e fechar cuidadosamente a porta com um estalido. O homem está dentro do quarto, pensou. Marie podia jurar que, tal como ela, sustinha a respiração e estava à coca, procurando captar o mais ínfimo sinal de vida. O sujeito, porém, não acendeu a luz. Em vez disso, prosseguiu a sua busca às escuras. Porquê? Qualquer pessoa teria ligado o interruptor mal entrasse no quarto. Aquilo deixou-a baralhada.
Marie estudou o pavimento do quarto através das frestas. Caso ele se aproximasse mais um pouco, distinguiria os dedos dos pés. Tal ainda não se verificara. Apesar disso, a sensação da sua presença era real. Tratava-se de um homem, apostava tudo o que tinha. Mais, o dito homem (só podia ser Menshiki) fixava o armário no meio do negrume. Talvez tivesse pressentido algo de anormal. O passo seguinte seria abrir a porta. Só podia ser. Era a coisa mais fácil do mundo, dado que não estava fechado. Bastava-lhe estender a mão, rodar o puxador e empurrar.
À medida que os passos se aproximavam, o medo foi-se apoderando dela. O suor escorria pelas axilas. Quem me mandou vir?, interrogou-se. Devia ter ficado sossegada na minha querida casa do outro lado do vale, como a miúda certinha que sou. Este sítio tem qualquer coisa de sinistro. Quem me dera não ter sido tão imprudente. Sentia o peso da consciência, e as vespas faziam parte do cenário. Agora encontrava-se à mercê da tal «coisa». Distinguia os dedos dos pés por entre os interstícios da persiana. Os chinelos eram castanhos e de pele, mas a escuridão não lhe permitia ver mais.
Instintivamente, Marie agarrou na fímbria do vestido. O vestido de tamanho 32 com o padrão florido. Ajuda-me, por favor! Protege-me!, pediu ela aos seus santinhos.
O homem permaneceu durante um bom bocado diante das portas duplas do roupeiro, sem produzir um som. Marie nem sequer ouvia o barulho da respiração. Mudo e quedo, como uma estátua de pedra, limitava-se a avaliar a situação. O silêncio tornou-se mais pesado, a escuridão adensou-se. Ela enroscou-se no chão, toda a tremer. Os dentes batiam ao de leve. O seu único desejo era fechar os olhos e ficar com os ouvidos entupidos. Quem lhe dera que os pensamentos viajassem até um lugar diferente. Para mal dos seus pecados, não foi possível. Estava ciente dos perigos que esse gesto acarretaria. Não podia ceder, por mais que o medo ameaçasse paralisá-la. Abandonar-se à inércia, nunca! Jamais deixar de raciocinar. Atenta ao mínimo rumor e de olhos cravados na ponta dos chinelos de pele, agarrou-se com firmeza ao tecido delicado do vestido rosa às flores.
As vestes teriam o condão de a proteger. O guarda-roupa inteiro era o seu maior aliado, acreditava piamente nisso. Os vestidos de tamanho 32, os sapatos número 36, os sutiãs 32C – tudo contribuiria para a ocultar sob um manto de invisibilidade. Não estou aqui.
Quantas horas teriam passado? Impossível dizer. O tempo deixara de ser uniforme e de fluir ordeiramente. Contudo, era inegável que decorrera bastante tempo. A dada altura, Marie percebera nitidamente que o homem tinha estado na iminência de abrir o armário. Concentrou-se. Assim que abrisse a porta, o sujeito daria com ela. E a seguir? Não sabia. Passou-lhe pela mente que podia não ser Menshiki. Nesse caso, quem será?
Mas o homem não chegou a abrir a porta. Após uma ligeira hesitação, retirou a mão do puxador e afastou-se. Porque teria ele desistido? Algo devia tê-lo impedido. Regressara ao corredor e fechara a porta. O quarto voltara a ficar vazio, sem dúvida. Não se tratava de um estratagema ou algo do género. Marie fechou os olhos e, respirando fundo, expulsou o ar acumulado nos pulmões.
O coração continuava a bater depressa. Como um tambor, assim se diria num romance. A que corresponderia um coração a bater desalmadamente? Não conseguia dizer. Sabia, isso sim, que correra um enorme perigo. Por obra e graça do destino, salvara-se. Mas continuar ali tornava-se arriscado. A pessoa em causa dera pela sua presença. Não podia continuar naquele quarto. Escapara por uma unha negra. Para a próxima podia não ter a mesma sorte.
Continuou na expectativa. O quarto escureceu ainda mais. Marie, porém, permaneceu sentada no chão, em silêncio, esforçando-se por dominar o medo e a ansiedade. O Comendador não se esqueceria dela. Dera-lhe a sua palavra. Posto de outro modo: a única saída possível era acreditar na promessa feita por aquele gnomo que falava de modo arrevesado.
De súbito, como que por artes mágicas, o Comendador materializou-se diante dela.
– Tendes de sair daí imediatamente – disse ele. – Agora. Nem mais um minuto. Vamos, levantai-vos do chão!
Marie ficou sem fala. Custava-lhe erguer-se. Bastava pensar em sair de dentro do armário para ser assaltada por um renovado temor. Que outras ameaças, porventura mais sérias, estariam à sua espera lá fora?
– O Menshiki está a tomar duche – explicou o Comendador. – Conheceis por demais o apego que o ilustre senhor tem pelo asseio. Como tal, irá demorar-se por lá. Mas atentai no que vos digo: acabará por voltar à carga. Tendes agora a vossa oportunidade! Há que despachar!
Chamando a si todas as forças, Marie pôs-se de pé. Ato contínuo, empurrou a porta do roupeiro. O quarto estava escuro e deserto. Antes de sair, virou-se e lançou uma última olhadela às roupas ali penduradas. Inspirou a fragrância das bolas de naftalina. Corria o risco de nunca mais ver aquelas vestimentas. Por qualquer razão que lhe escapava, afeiçoara-se a elas.
– Vamos embora, sede célere – exortou o Comendador. – O tempo urge. Uma vez lá fora, virai em direção à esquerda.
Pondo o saco ao ombro, Marie saiu do quarto e percorreu o corredor. Subiu as escadas, atravessou a enorme sala de estar e abriu a porta de vidro que dava para o terraço. E se a vespa andasse por ali? Por outro lado, talvez tivesse dado a sua atividade por terminada, atendendo ao adiantado da hora. A não ser que fosse um inseto que não se deixa abalar pela escuridão. Mas não havia tempo a perder com minudências. Marie tirou os binóculos do seu poiso e tornou a guardá-los na capa de plástico. Dobrou o tripé e encostou-o à parede. A operação demorou mais do que previra, pois tinha as mãos a tremer. A seguir, pegou nos mocassins pretos. Durante todo esse tempo, o Comendador abancara bem quietinho, a observá-la. Para alívio de Marie, a vespa não voltou a fazer das suas.
– Estivestes bem – disse o Comendador, acenando com enlevo. – Agora ide para dentro, fechai a porta e descei as escadas até ao fundo.
Dois lanços de escadas? Isso significaria descer às profundezas da mansão. Não deveria ela afastar-se para longe?
– Esquecei semelhante temeridade – declarou o Comendador, que conseguia ler-lhe os pensamentos, abanando a cabeça. – O portão está fechado a sete chaves. Não vos resta alternativa a não ser ficar aqui embuçada mais uns tempos. Atentai nas minhas ponderadas palavras.
Marie não tinha outra saída senão confiar nele. Abandonou a sala de estar e apressou-se a descer as escadas. Foi dar ao quarto da empregada. Ao lado havia a lavandaria e uma arrecadação. No fundo do corredor ficava o ginásio, equipado com uma parafernália de aparelhos. O Comendador apontou para o quartinho da empregada.
– Aí tendes o vosso esconderijo – disse ele. – O insigne Menshiki raramente se aventura por estas paragens. Vem ao piso inferior uma vez por dia, para tratar da roupa e fazer exercício, mas só por um acaso fortuito entra aí. É deveras improvável que ele vos encontre, cara amiga, desde que aguardeis em bom recato. O aposento possui um lavatório e um frigorífico. Em caso de terramoto, encontrais à vossa disposição abundantes mantimentos e água mineral. Não correis, pois, o risco de morrer à míngua. Tereis sempre com que garantir a vossa subsistência por um par de dias.
Um par de dias?, interrogou-se Marie, incrédula (sem abrir a boca), de sapatos na mão. Terei de cá ficar muito tempo?
– Afirmativo. Com grande pena minha, mas antes disso não podeis dar às de vila-diogo – disse o Comendador, abanando ao de leve a cabecinha. – Esta casa encontra-se sob mui rigorosa vigilância, em mais do que um sentido. Longe de mim poder alterar esse estado de coisas. É com o coração condoído que vos digo que, infelizmente, nós, as Ideias, também temos as nossas limitações.
– Quanto tempo é que isto vai durar? – perguntou Marie baixinho. – Preciso de regressar a casa rapidamente. A minha tia já deve estar preocupada. Se demorar, o mais certo é ela ir à polícia e dar-me como desaparecida. Seria uma catástrofe.
O Comendador negou com a cabeça.
– Mil perdões, mas as circunstâncias ultrapassam-me. Sois obrigada a esperar aqui posta em sossego.
– O senhor Menshiki é perigoso?
– Ora aí está uma pergunta sobremaneira complexa – declarou o Comendador, franzindo exageradamente o cenho. – Do Menshiki não podemos dizer que tenha maus fígados. É um sujeito decente, dono e senhor de capacidades que ultrapassam em larga medida as que caracterizam o comum dos mortais. Atrevo-me mesmo a afirmar que possui uma certa nobreza, desde que saibamos onde procurar. Todavia, existe como que um abismo no seu coração, um espaço vazio que atrai tudo o que se prende com o perigo e com coisas, digamos assim, anormais. Aí reside o verdadeiro busílis.
Claro que Marie não percebia patavina do que ele estava a dizer. Anormais?
– Quem é que se foi postar à frente do roupeiro? – quis saber Marie. – Era o senhor Menshiki?
– Era, mas ao mesmo tempo não era.
– Ele está a par do assunto?
– Provavelmente – respondeu o Comendador. – Muito provavelmente. Mas nada pode fazer para mudar o rumo das coisas.
Coisas anormais e perigosas? Se calhar, a vespa que vi inclui-se no lote, pensou Marie.
– Afirmativo. Resguardai-vos das vespas. São criaturas virulentas – avisou o Comendador, lendo os seus pensamentos.
– Virulentas?
– Quer dizer que têm o poder de matar – explicou o Comendador. – Aconselho-vos, caríssima, a ficar quietinha. Resignai-vos. Sair de casa revelar-se-ia fatal.
Virulento, repetiu Marie para si própria. A palavra soava de forma tenebrosa.
Marie abriu a porta do quartinho da empregada e entrou. Era pouco maior que o roupeiro de Menshiki. Existia uma kitchenette equipada com frigorífico, uma placa elétrica, micro-ondas e lava-loiça. Tinha uma cama e uma casa de banho minúscula. A cama estava por fazer, mas numa prateleira havia cobertores, uma manta e uma almofada. Sem esquecer uma mesa (que podia servir para as refeições) e uma única cadeira. Através da pequena janela via-se o vale. Dava para contemplar a paisagem por entre as cortinas.
– Aconselho-vos, minha jovem, a não produzir o menor ruído – disse o Comendador. – Faço-me entender?
Marie assentiu.
– Sois uma rapariga corajosa – continuou o Comendador. – Um nadinha imprudente, mas corajosa na mesma. Trata-se de uma qualidade admirável. Contudo, enquanto aqui estiverdes, deveis redobrar a vigilância e mostrar-vos rápida como um lince, para que nunca sejais apanhada desprevenida. Este não é um lugar normal. Rondam por estas paragens elementos sinistros que ameaçam a vossa integridade.
– Rondam?
– É como quem diz, andam por aí.
Marie assentiu. Gostaria de entender melhor o significado da frase «não é um lugar normal» e que quereria ele dizer quando mencionara «elementos sinistros», mas não sabia como perguntar. Por onde começar? Havia tantas coisas que escapavam ao seu entendimento.
– Pode dar-se o caso de eu não regressar – anunciou o Comendador, como se de um segredo se tratasse. – Requisitaram os meus préstimos, pelo que me espera outra missão. Por sinal, uma missão de alto gabarito, se me é permitida a prosápia. Temo não poder continuar a ajudar-vos. De ora em diante, tendes de vos desenvencilhar sozinha.
– Mas como poderei escapar sozinha?
O Comendador semicerrou os olhos e encarou Marie.
– Certificai-vos de que tendes os ouvidos apurados, os olhos bem abertos e preservai o engenho. É o único caminho. Sabereis então quando chegar o momento. «Agora é que é!», pensareis. Sois uma rapariga corajosa e inteligente, minha amiga. Basta que estejais alerta.
Marie assentiu. Tenho de ser uma rapariga corajosa e inteligente, pensou.
– Desejo-vos as maiores felicidades – declarou o Comendador, em tom otimista. Depois, refletindo atentamente, acrescentou: – Não vejo motivo para ficardes amofinada, cara amiga. O vosso peito não tardará a aumentar.
– O suficiente para encher a copa C do sutiã?
Embaraçado, o Comendador encolheu os ombros.
– Bem vedes, parcos são os conhecimentos que possuo no que respeita ao tamanho das vestimentas interiores das damas, sendo eu apenas uma pobre Ideia. Não obstante, posso garantir-vos que os vossos seios se desenvolverão a seu contento. Não tendes, pois, razão para ocupar as vossas meninges com semelhante temor. Tudo o que tem forma está sujeito à passagem do tempo. Manda a verdade que se diga que o tempo não é eterno, mas, dentro de certos limites, faz milagres. Alegrai-vos e tende confiança no que o futuro vos reserva, amiga minha!
– Obrigada – disse Marie. Ali estava uma boa notícia! Bem precisava de todo o auxílio para ser a jovem intrépida que se impunha.
Posto isto, o Comendador volatizou-se como da vez anterior. À sua volta, o silêncio tornou-se mais denso. Só de pensar que poderia nunca mais voltar a vê-lo, Marie caiu numa profunda tristeza. Deitou-se sobre a cama despida e pôs-se a olhar para o teto, que era baixo e de pladur branco. Ao centro via-se uma lâmpada fluorescente. Mas não podia ligá-la, como é óbvio. Estava proibida de acender a luz.
Quanto tempo teria de ficar confinada àquele espaço? Estava quase na hora de jantar. Se não estivesse em casa às sete e meia, o mais certo era a tia ligar para o centro de artes e cultura, onde a informariam de que Marie não pusera os pés nas aulas. Esse pensamento surtiu o efeito de uma punhalada. A tia ficaria histérica, com medo do que lhe pudesse acontecer. Tinha de arranjar maneira de ela saber que se encontrava em segurança. Lembrou-se então do telemóvel guardado no blazer da escola. Estava desligado.
Tirou o telemóvel do bolso e ligou-o. Apareceu o símbolo de bateria fraca. Passado um segundo, o ecrã ficou preto. O aparelho morrera. A única culpada era ela, que não o utilizava há séculos (quase nunca precisava dele no dia a dia, além de lhe despertar escasso interesse e ainda menos afeição). Não era de estranhar que estivesse sem bateria.
Marie deixou escapar um profundo suspiro. Devia ter-se lembrado de carregar o telemóvel, mas não valia a pena chorar sobre leite derramado. Enfiou o telemóvel no bolso do blazer. Nesse instante, qualquer coisa captou a sua atenção, e, ato contínuo, tornou a sacá-lo. O pequeno pinguim de plástico, que andava sempre com ela, fora à vida. Funcionava como o seu talismã da sorte desde que o trocara por pontos acumulados numa loja de donuts. A correia provavelmente partira-se. Onde teria perdido o raio do amuleto? Não fazia ideia. Era raro tirá-lo do bolso.
A princípio, sentiu-se despida sem a proteção do amuleto. Depois pensou duas vezes. Se perdera o pinguim da sorte, fora ela a culpada (provavelmente devido à sua imprudência), mas, em compensação, ganhara um novo tipo de talismã – aquele roupeiro atulhado – e as roupas tinham-na protegido. Sem esquecer o pequeno Comendador de meio metro e discurso bizarro que lhe tinha dado a mão. Alguma coisa continuava a protegê-la. Escusava de se preocupar com o pinguim extraviado.
Marie andava geralmente com pouca bagagem. Porta-moedas, lenços de papel, meia dúzia de moedas e um pacote encetado de pastilhas elásticas Cool Mint. No saco a tiracolo trazia dois ou três cadernos e livros escolares, esferográfica e lápis. Nada daquilo serviria de muito.
Saiu do quarto e foi inspecionar a arrecadação. Tal como o Comendador tinha dito, estava cheia de provisões para a eventualidade de um terramoto. O solo daquela região montanhosa era estável. Se a terra tremesse, não deveria fazer mossa. Em 1923, o grande sismo de Kanto destruíra a cidade de Odawara, mas ali os efeitos haviam sido menores (ela sabia isso porque nas férias de verão fizera um trabalho sobre o impacto do sismo naquela região). Contudo, isto não impedia que, na sequência do tremor de terra, se tornasse extremamente difícil obter comida e água. Daí que Menshiki se tivesse abastecido das duas coisas. Era um homem precavido até dizer chega.
Pegou em duas garrafas de água mineral, uma caixa de bolachas de água e sal, uma barra de chocolate e regressou ao quarto devidamente provida. De certeza que o dono da casa não daria pela falta dos escassos víveres. Por mais meticuloso que fosse, era pouco provável que contasse as garrafas de água armazenadas em casa. Precisava de água porque queria evitar a todo o custo usar a torneira da pequena casa de banho. Temia que a água desatasse a gorgolejar cano abaixo. O melhor era reduzir o barulho ao mínimo, como aconselhara o Comendador. Tinha de se rodear de todos os cuidados.
De volta ao quarto, trancou-se por dentro. Um gesto inútil, pois Menshiki devia ter as chaves de todas as portas, mas que lhe permitia ganhar tempo. Quando mais não fosse, fê-la sentir-se segura.
Não tinha fome, mas obrigou-se a comer umas bolachinhas e bebeu vários goles de água. As bolachas eram vulgares e a água normalíssima. Verificou os rótulos: os dois artigos encontravam-se dentro do prazo de validade. Do mal, o menos, pensou. Não morrerei à fome.
Lá fora estava escuro como breu. Marie afastou um tudo-nada a cortina e observou o vale em frente. Avistava a casa. Sem binóculos, era impossível ver o que acontecia no interior, embora as luzes estivessem acesas em mais do que uma divisão. Semicerrando os olhos, pareceu-lhe distinguir sombras em movimento. A tia estava em casa, a passar-se dos carretos por não saber onde parava a sobrinha. Haveria forma de entrar em contacto com ela? Menshiki devia ter um telefone algures. Só tinha de ligar e dizer à tia: «Não te preocupes, estou em segurança», e desligar logo de seguida. Bastava uma curta mensagem. Assim, Menshiki não daria por nada. Mas não havia telefone fixo no quartinho, e também não vira qualquer aparelho no resto da casa.
Conseguiria fugir a coberto da noite? Encontrar uma escada que lhe permitisse descer pela parede rumo à liberdade? Lembrava-se de ter visto uma escada desdobrável junto ao barracão do jardim. Vieram-lhe à memória as palavras do Comendador: «Esta casa encontra-se sob mui rigorosa vigilância, em mais do que um sentido.» Desconfiava que a «rigorosa vigilância» não se referia única e exclusivamente ao sistema de alarme montado pela empresa de segurança.
Tenho de dar ouvidos ao Comendador, pensou. Este sítio é fora do vulgar. Tudo pode acontecer. Preciso de estar muito atenta e de ser paciente. Não é altura de apressar os acontecimentos nem de forçar as situações. Tal como o Comendador disse, o melhor a fazer é ficar sossegadinha e esperar que a oportunidade me bata à porta.
Isso mesmo, tenho de ser uma rapariga corajosa e inteligente. Só assim sobreviverei e assistirei ao crescimento do meu peito com estes olhinhos que a terra há de comer. Era naquilo que Marie matutava, ali deitada no colchão sem nada.
Em redor, a treva adensava-se. E aproximava-se a passos largos uma escuridão ainda mais cerrada. Tinha um pressentimento do caraças.
62
CORRE O RISCO DE SE VER METIDO NUM AUTÊNTICO LABIRINTO
O tempo seguiu o seu curso, ignorando por completo os pensamentos e os desejos de Marie. A rapariga deixou-se ficar deitada no quartinho, vendo as horas arrastarem-se. Que bom seria se tivesse um livro para ler, pensou para consigo mesma. Porém, não se via um único livro à mão de semear, e mesmo que houvesse, ela nunca poderia acender a luz. Resultado: não tinha outro remédio senão ficar na cama, às escuras. Encontrara uma lanterna e pilhas na arrecadação, mas preferia usá-las o menos possível.
A noite aproximava-se a passos largos. Marie acabou por adormecer. Aquele lugar desconhecido fazia-a sentir-se apreensiva, e queria manter-se acordada, custasse o que custasse, mas, às tantas, o cansaço apoderou-se dela, e Marie sucumbiu ao sono. Não conseguia manter os olhos abertos. Visto que a cama estava por fazer, foi ao armário buscar uma manta e cobertores, embrulhou-se neles como se fosse um Salzwedeler Baumkuchen4 e fechou os olhos. O quarto não tinha aquecedor, e não podia usar o aquecimento central pelas razões óbvias.
(Uma nota minha sobre a cronologia: Menshiki escolheu sair de casa e visitar-me no período em que Marie se encontrava a dormir. Passou cá a noite e só regressou na manhã seguinte. Que é como quem diz, não esteve em casa de noite. A mansão encontrava-se deserta. No entanto, ela não tinha qualquer hipótese de saber isso.)
Nessa noite, quando acordou para ir à casa de banho, Marie não puxou o autoclismo. Durante o dia era uma coisa, mas o som da água a correr na calada da noite só serviria para atrair as atenções. Menshiki era uma pessoa por demais precavida e meticulosa. Daria pela mínima alteração. Para quê arriscar?
No relógio já passava das duas. Da manhã de sábado, leia-se. Quando abriu a cortina e espreitou lá para fora, avistou a casa do lado oposto do vale. As luzes acesas na sala de estar feriam o olhar. Eram duas da madrugada e ela ainda não regressara. Daí que os inquilinos – a saber: a tia e o pai – não conseguissem pregar olho. Fiz uma coisa horrível, pensou. Excecionalmente, sentiu pena do pai. Estava ciente de que não devia ter sido tão imprudente. Foi sem querer. Este é o castigo por ter agido de forma impulsiva.
Mas nem todos os remorsos do mundo nem as culpas que tinha no cartório podiam ajudá-la a voltar para casa. Não era um corvo. Não podia abrir as asas e atravessar os céus. Também não podia imitar o Comendador e esfumar-se para tornar mais tarde a materializar-se. Encontrava-se confinada ao seu corpo em crescimento, refém do tempo e do espaço. A sua existência era complexa e limitada. Bastava olhar para o peito dela – liso como uma tábua, fazendo lembrar duas panquecas espalmadas que não cresceram.
Sentia medo de estar sozinha às escuras, naturalmente. Sofria com a sua impotência. Desejava que o Comendador ali estivesse. Queria perguntar-lhe imensas coisas. Quer ele lhe respondesse ou não, pelo menos sempre teria com quem trocar impressões. Infelizmente, o tipinho exprimia-se num linguajar estranho e antigo, em tudo diferente do japonês moderno, mas ainda assim não era difícil atinar com o significado. Verdade seja dita que ele podia nunca mais regressar. «Requisitaram os meus préstimos, pelo que me espera outra missão», avisara. Marie não cabia em si de tristeza só de pensar que lhe perdera o rasto, talvez para sempre.
Do exterior chegou-lhe aos ouvidos o grito lancinante de uma ave noturna. Um corujão-orelhudo? Era sabido que aquela espécie habitava as profundezas dos bosques, aprimorando a sabedoria. Tenho de ser cautelosa como as corujas, pensou. Uma rapariga inteligente e corajosa. Mas o sono sobreveio, impedindo-a de se manter acordada. Embrulhando-se no calor dos cobertores, estendeu-se ao comprido no colchão e fechou os olhos. Adormeceu ferrada. Ao acordar do seu sono sem sonhos, começava a clarear lá fora. O relógio marcava seis e meia.
O mundo saudava mais um sábado.
Marie passou o dia enfurnada no quartinho da empregada. A primeira refeição do dia resumiu-se a bolachas, chocolates e água mineral. Esgueirou-se à socapa até ao ginásio e trouxe de lá vários números da edição japonesa da National Geographic. Ao ver as gotas de suor espalhadas aqui e ali, calculou que Menshiki tivesse por hábito ler a revista enquanto treinava na bicicleta estática. Leu os exemplares de fio a pavio. Havia artigos sobre o habitat dos lobos-siberianos, o mistério da influência da Lua nas marés, a vida dos Inuítes e a destruição gradual da selva amazónica. Não se podia dizer que fosse a leitura preferida de Marie, longe disso, mas, à falta de melhor, leu e releu as revistas ao ponto de saber alguns conteúdos de cor e salteado. De tanto olhar para as páginas, quase furou as ilustrações.
Quando se cansava de ler, recostava-se e passava pelas brasas. Volta e meia, ia até à janela e punha-se a observar a casa do outro lado do vale. Quem me dera ter um telescópio comigo, pensava. Poderia espreitar e até ver gente lá dentro, quem sabe? Apetecia-lhe estar no aconchego do seu quarto, escudada atrás das cortinas cor de laranja. Tomar um banho quente, vestir um pijama lavado e enroscar-se na cama agarrada ao gato.
Pouco depois das nove, ouviu alguém descer a escada. Eram os passos de um homem de chinelos. Só podia ser o dono da casa. Tinha uma maneira de caminhar característica. Ainda pensou em espreitar pelo buraco da porta, mas não havia fechadura. Permaneceu sentada a um canto, numa posição rígida, abraçada aos joelhos. No caso de ele entrar no quarto, seria impossível fugir. O Comendador tinha dito que tal não aconteceria, e ela acreditava na palavra dele. Mas não havia verdades universais. Encolhendo-se ao máximo, pensou no armário a abarrotar de roupa e rezou. Que não me aconteça nada, pediu aos deuses. A garganta estava seca como algodão.
Menshiki, ao que tudo indicava, trouxera para baixo a roupa suja. Possivelmente, cumpria o ritual de pôr a máquina a lavar todas as manhãs. Marie ouviu-o separar as peças, deitar detergente e escolher o programa. A máquina começou a funcionar. Percebia-se que o sujeito repetia maquinalmente os movimentos, enquanto ouvia música clássica. Através das colunas instaladas no ginásio chegaram-lhe aos ouvidos os acordes de uma peça barroca. Bach, Händel, Vivaldi, ou algo do género. Considerando que ela não era especialista em música clássica, podia tratar-se de qualquer um desses compositores.
Passou uma hora a ouvir as voltas e reviravoltas do tambor da máquina de lavar, o barulho mecânico produzido pelos aparelhos de treino, sem esquecer a música: Bach, Händel ou Vivaldi, à escolha do freguês. Foram sessenta minutos particularmente desgastantes. Era improvável que Menshiki notasse a ausência de alguns exemplares da pilha de National Geographics ou que a reserva de água mineral, bolachas e chocolate diminuía aos poucos. Marie limitara-se a tirar doses reduzidas dos mantimentos armazenados. Seja como for, ninguém saberia dizer o que iria acontecer. A jovem precisava de ter todos os sentidos alerta. Não era altura de baixar a guarda.
Às tantas, soou um zumbido forte, e a máquina imobilizou-se de vez. Menshiki tornou a aproximar-se da lavandaria em passos lentos, tirou a roupa da máquina, pô-la no secador e ligou-o. Marie ouviu o tambor da máquina a rodar. Dando-se por satisfeito, Menshiki subiu as escadas devagar. Devia ter terminado a sessão de treino. Possivelmente, tomaria duche a seguir.
Marie fechou os olhos e suspirou de alívio. Tinha uma hora e tal até Menshiki voltar para tirar a roupa da máquina. Aparentemente, o pior já passara. Pelo menos assim esperava. Ele não pressentira a sua presença no quartinho, o que queria dizer que não dera por nada. Esse pensamento deixou-a bastante mais descansada.
Quem teria estado especado à frente do armário? O Comendador tinha dito que era Menshiki, mas simultaneamente não era. Qual o significado disso? Era demasiada areia para a sua camioneta. Em todo o caso, havia quem soubesse que ela (ou outra pessoa) se encontrava dentro do armário. Pressentira a sua presença, sem sombra de dúvida. Contudo, por qualquer razão, essa pessoa não conseguira abrir a porta do roupeiro. Porquê? Teria aquela panóplia de bonitas vestimentas tido o sortilégio de a proteger?
Quanto mais depressa pudesse perguntar ao Comendador, melhor. Porém, ele zarpara para parte incerta. Não existia ninguém que pudesse lançar luz sobre as suas angústias existenciais.
Menshiki não pôs os pés fora de casa durante o resto do sábado. Que ela tivesse dado por isso, o portão da garagem não fora aberto nem se ouvira o barulho de motores. Regressara para ir buscar a roupa lavada e tornara as subir as escadas nas calmas. Apenas isso. Ninguém visitara a mansão no cimo da montanha onde a estrada terminava. Não haviam sido entregues encomendas nem correio registado. A campainha permanecera obstinadamente em silêncio. Marie ouvira o telefone apenas duas vezes. Um som ténue e distante, é certo, mas percetível. Da primeira vez, atenderam o telefone ao segundo toque, e ao terceiro da outra (foi assim que ela soube que Menshiki estava em casa). O camião do lixo arrastou-se penosamente pela encosta acima ao som de «Annie Laurie» e tornou a descer pelo mesmo caminho (sábado era dia de recolha do lixo). Tirando isso, nicles. A casa estava mais do que silenciosa.
Passou a manhã, depois a tarde, e a noite não tardou a cair.
(Uma segunda nota da minha lavra relativamente à moldura temporal: enquanto Marie esteve escondida no quartinho da empregada, matei o Comendador na casa de repouso de Izu, amarrei e imobilizei o Cara Comprida e desci às profundezas do submundo.)
Marie, contudo, não conseguiu escapar. Tinha de ser paciente e de encontrar «o momento certo», como o Comendador lhe dissera, acrescentando que ela saberia quando isso acontecesse. «Sabereis então quando chegar o momento. “Agora é que é!”, pensareis.»
Mas o momento certo nunca chegou, e a espera deixou Marie cada vez mais desmoralizada. A paciência não era o seu forte. Quanto mais tempo terei de ficar aqui barricada?, interrogou-se.
Antes de a noite cair por completo, Menshiki sentou-se ao piano. Pelos vistos, conservava a janela da sala aberta quando tocava, permitindo que a música chegasse ao esconderijo onde ela se encontrava. Por sinal, uma sonata de Mozart. Uma das sonatas em Fá Maior. Marie lembrava-se de ter visto a partitura sobre o piano. Menshiki tocou o movimento lento, depois atacou repetidamente várias secções, ajustando o dedilhar até ficar satisfeito. Era uma tarefa complexa, e o executante parecia ter dificuldade em encontrar o tom certo. Na sua maioria, as sonatas de Mozart não são especialmente difíceis de tocar, mas quando um pianista tenta dominá-las, corre o risco de se ver metido num autêntico labirinto. Ora, Menshiki não era pessoa para se deixar apanhar em labirintos. Marie ficou calmamente a ouvi-lo dedilhar as teclas do piano, percorrendo de trás para a frente as trabalhosas passagens. A sessão durou cerca de uma hora. No final, ao ouvir a tampa do piano ser fechada com força, apercebeu-se da frustração dele e perguntou-se até que ponto a sonata lhe proporcionaria prazer musical, agora que a tocava na perfeição. Essa insatisfação, porém, tinha qualquer coisa de discreto e elegante. Menshiki nunca perdia a compostura, nem quando se encontrava sozinho (ou quando pensava que estava sozinho) na enorme mansão.
Seguiu-se a repetição a papel químico do dia anterior. O Sol pôs-se no horizonte, o céu escureceu, e os corvos regressaram aos ninhos, enchendo a montanha de gritos. Uma a uma, as luzes das casas espalhadas pelo vale acenderam-se. Em casa dos Akikawa permaneceram acesas durante a noite inteira. Aquele cenário dizia bem a Marie até que ponto a sua família estava preocupada. Pelo menos foi o que lhe pareceu. Custou-lhe horrores nada poder fazer para diminuir a aflição deles.
Em absoluto contraste, não havia luzes na vivenda de Tomohiko Amada (ou seja, onde eu morava). Assim à vista desarmada, dir-se-ia que estava desabitada. Mesmo quando anoiteceu, nem uma única luz se acendeu. Parecia não haver ninguém em casa. Estranho, pensou Marie. O que seria feito do professor? Saberia que ela andava desaparecida?
A dada altura, Marie voltou a sentir sono. O João Pestana não lhe deu tréguas. A tiritar dentro do casaco da escola, tapou-se com os cobertores e a manta e fechou os olhos. Oxalá tivesse aqui a minha gata, pensou. Era raro a gata miar. Quando muito, ronronava. Podia aninhar-se nela sem medo de ser descoberta. Naturalmente que a gata não se encontrava ali. Marie estava entregue a si própria, num quarto mergulhado na escuridão, sem saída possível.
E chegou a manhã de domingo. Quando Marie acordou, ainda fazia escuro. No relógio de pulso passavam poucos minutos das seis. Os dias começavam a ficar mais curtos. Lá fora caía uma chuvinha molha-tolos. Ela só deu por isso quando viu as gotas de chuva pingarem das árvores. O quarto estava frio e húmido. Se calhar, devia ter trazido uma camisola, pensou. Com apenas o casaco, um colete fino tricotado à mão, e a blusa de algodão por cima de uma T-shirt, estava vestida para um dia de verão. O que não daria para ter ali consigo uma camisola de malha quentinha...
De repente, lembrou-se! Descobrira uma camisola de malha no tal roupeiro! Uma camisola esbranquiçada de caxemira que, por sinal, tinha aspeto de ser macia e era capaz de a aquecer. Bastava subir ao andar de cima e trazê-la. Depois era só vestir a camisola por baixo do casaco, e ficaria agasalhada. Porém, abandonar o quarto e subir as escadas tinha os seus perigos. Sobretudo tratando-se daquele quarto em questão. Tinha de se governar com a prata da casa. Em boa verdade, a frialdade não era uma coisa do outro mundo. Nada que se comparasse com o frio brutal que os Inuítes tinham de aguentar. Afinal, encontrava-se perto de Odawara, nos primórdios de dezembro.
Contrariando as suas previsões otimistas, a chuvosa manhã de inverno deixou-a gelada. Sentia a humidade nos ossos. Fechou os olhos e pensou no Havai. Quando era pequena, Marie e a tia tinham ido ao Havai na companhia de um velho amigo de Shoko. Alugaram uma prancha de surf e divertiram-se à grande na praia de Waikiki. Quando se fartava, deitava-se na areia a apanhar banhos de sol. O clima era abrasador e muito pacífico. Por cima dela, as frondes das palmeiras abanavam ao sabor da brisa. Nuvens brancas deslizavam no céu rumo ao mar alto. Ali deitada, a pequena Marie bebia em pequenos goles a sua limonada; de tão gelada, fazia-lhe doer as têmporas. Lembrava-se dessa viagem ao mais ínfimo pormenor. Alguma vez voltaria a visitar um local assim? Daria tudo para tornar isso realidade.
Pouco depois das nove, a cena repetiu-se. Menshiki desceu as escadas de chinelos. Pôs a funcionar a máquina de lavar e fez ginástica ao som de música clássica (uma sinfonia de Brahms, ao que tudo indicava). A sessão durou uma hora. O ritual parecia decalcado do dia anterior. Com a diferença de o compositor ser outro. Decididamente, o sujeito era uma criatura de hábitos. Transferiu a roupa da máquina de lavar para o secador e regressou uma hora mais tarde para a vir buscar. Depois disso, não voltou ao andar de baixo nem manifestou interesse no quarto da empregada.
(Mais uma nota da minha lavra no que toca à cronologia dos acontecimentos: Menshiki foi a minha casa nessa tarde, deu de caras com Masahiko e manteve com ele uma curta conversa. Por qualquer razão que me escapa, Marie não descobriu que ele se tinha ausentado.)
A rotina de Menshiki serviu às mil maravilhas as pretensões de Marie. Sempre podia preparar-se emocionalmente e planear o passo seguinte. O mínimo imprevisto teria abalado o seu sistema nervoso. Não só se familiarizara com os hábitos do dono da casa, como se adaptara a eles. Menshiki só saía de casa esporadicamente (pelo menos que ela soubesse). Trabalhava no escritório, punha a roupa a lavar na máquina, cozinhava as suas refeições, e, à tardinha, sentava-se ao piano e atacava as teclas do Steinway. Volta e meia, recebia um telefonema. Um por dia, quando muito. As chamadas telefónicas contavam-se pelos dedos da mão. Palpitava-lhe que o cavalheiro não era grande adepto do telefone. Em contrapartida, privilegiava os contactos relacionados com a vertente profissional – ela desconhecia até que ponto eram diversificados – no computador do escritório.
Menshiki ocupava-se da limpeza da casa, embora uma vez por semana contratasse os serviços de uma firma especializada. Marie lembrava-se de ele ter mencionado o facto durante a visita que ali fizera com a tia. Confessara que não se importava de ter essa incumbência; pelo contrário, até lhe dava um certo gozo, bem como cozinhar. Mas obviamente que não estava ao seu alcance manter aquela casa enorme num brinco, daí que tivesse necessidade de recorrer à ajuda de profissionais. Durante a conversa, mencionara de raspão que tinha por hábito estar fora de casa umas boas horas quando as empregadas vinham trabalhar. Em que dia da semana calharia? Talvez nessa altura eu consiga pôr-me na alheta, pensou Marie. O pessoal das limpezas deve vir carregado com equipamento, por isso o portão ficará aberto para o carro entrar e sair à vontade. Além disso, o Menshiki ficará umas horitas fora de casa. Fugir deste sítio não será difícil. Pode ser a minha última oportunidade.
Contudo, a equipa de limpeza não havia maneira de aparecer. A segunda-feira passou-se, sem alterações em relação ao domingo. Menshiki progredia a olhos vistos: cometia menos erros e a peça de Mozart soava cada vez mais fluente. Era um homem paciente e minucioso. Quando se propunha uma determinada missão, esforçava-se por levá-la a bom porto. Marie tinha de admitir que estava impressionada. Ainda que o pianista nem sempre conseguisse alcançar as notas mais difíceis, perguntava-se como soaria a sonata de Mozart aos ouvidos dos melómanos. Pela sonoridade da música que lhe chegava aos ouvidos, sentia-se tentada a dizer que o pianista estava no bom caminho.
Enquanto isso, Marie alimentava-se de bolachas de água e sal, chocolate e água. Uma vez, abarbatou uma barrita energética com nozes e uma lata de atum. À falta de escova, lavava os dentes o melhor que podia com água mineral usando o dedo. Leu todas as edições japonesas da National Geographic. Ficou a saber mil e uma coisas sobre os tigres-de-bengala que devoravam homens, os lémures de Madagáscar, as transformações na paisagem do Grand Canyon, a extração de gás natural na Sibéria, a esperança de vida dos pinguins da Antártida, o reino dos nómadas do Afeganistão, os rituais de iniciação dos jovens da Nova Guiné. Colheu os ensinamentos básicos sobre a sida e o vírus do Ébola. Quem sabe se, mais tarde, um dia, aquela panóplia de informações não teria utilidade? Claro que podia dar-se o caso de não lhe servirem para coisa nenhuma. Fosse como fosse, não tinha mais nada para ler. Devorou as revistas National Geographic como se não houvesse amanhã.
Volta e meia, enfiava a mão debaixo da T-shirt e apalpava os seios. Em bom rigor, não pareciam estar maiores. Pelo contrário: dir-se-ia que tinham diminuído. O período era outra fonte de preocupação. Pelos seus cálculos, estava para lhe aparecer daí a dez dias. Ora, Marie nada descobrira que lhe pudesse ser útil na dispensa. (Havia numerosos rolos de papel higiénico empilhados, na eventualidade de um terramoto, mas nem um penso higiénico ou tampões para amostra. Pelos vistos, as mulheres e as suas necessidades não eram tidas nem achadas pelo dono da mansão.) O problema era se a menstruação lhe aparecesse enquanto ali estava escondida. Provavelmente, pensou, já estarei longe. Custava-lhe imaginar mais dez dias prisioneira naquele lugar.
Na terça-feira de manhã, finalmente, a equipa de limpeza dignou-se aparecer. Marie ouviu o alarido das mulheres no andar de cima, atarefadas a descarregar material da carrinha. Nesse dia, Menshiki não pusera a máquina a trabalhar, tão-pouco aparecera no ginásio para treinar. A bem dizer, nem sequer descera ao andar de baixo. A jovem ficou intrigada. Menshiki devia ter uma razão de peso para alterar os hábitos de vida. Confirmava-se o seu palpite. O mais certo era Menshiki ter pegado no Jaguar e zarpado dali para fora, para não correr o risco de se cruzar com o pessoal da limpeza.
Marie deu um jeito ao quarto. Agarrou nas garrafas de água e nos pacotes de bolachas vazios e deitou o lixo no caixote. As empregadas da limpeza tratariam do resto. Dobrou a roupa da cama e tornou a guardar tudo no armário. Fez o possível por apagar os vestígios da sua presença. Ninguém podia saber que ela pernoitara ali durante várias noites. A seguir, pôs o saco ao ombro e desceu as escadas. Cronometrando os seus movimentos ao segundo, atravessou a entrada sem chamar as atenções. O coração batia-lhe descompassadamente só de pensar nos perigos que aquele quarto escondia. Ao mesmo tempo, sentia a falta das fatiotas penduradas no roupeiro. Ansiava voltar lá uma última vez. Apetecia-lhe tocar nas peças de roupa. Mas não havia tempo. Tinha de se despachar.
Esgueirou-se pela porta principal e atravessou a correr o carreiro de acesso. Tal como pensara, o portão ficara aberto. Não fazia sentido andar a abri-lo e fechá-lo sempre que alguém tinha de lá passar. Ao alcançar a estrada principal, o seu rosto readquirira a compostura normal.
Deverei abandonar esta casa?, interrogou-se, já fora do portão. Não haverá um preço elevado a pagar? Um qualquer doloroso ritual de passagem, à semelhança do que sucede com os jovens membros das tribos da Nova Guiné descritos na National Geographic? Uma espécie de prova de coragem, sei lá! Mas esses pensamentos não tardaram a dissipar-se. O sentimento de libertação falou mais alto.
O dia estava nublado, e as nuvens baixas ameaçavam chuva. Marie, contudo, ergueu o rosto para o céu e respirou fundo. Tinha a sensação de se encontrar na praia de Waikiki, a contemplar as palmeiras balançando ao vento. Respirou fundo várias vezes, reconhecendo a sua boa sorte. Estou livre, pensou. Tenho duas pernas e posso ir aonde quiser. As noites passadas a tiritar no escuro chegaram ao fim. O simples facto de saber isso fazia-a sentir-se grata e feliz da vida. Tinham sido apenas quatro dias, mas agora o mundo em volta parecia-lhe estimulante, cada árvore, cada folha de erva eivada de vida. O odor do vento teve o condão de fazer o seu coraçãozinho bater desalmadamente.
Não havia tempo a perder. Podia dar-se o caso de Menshiki se ter esquecido de alguma coisa e regressar antes do previsto. Tenho de sair daqui, pensou ela, e depressa. Arvorando um ar normalíssimo, Marie procurou disfarçar as rugas do uniforme da escola (dormira com ele vestido vários dias) e penteou o cabelo para não dar nas vistas, não fosse encontrar uma alminha enquanto descia a montanha.
Ao chegar ao sopé do vale, seguiu na direção oposta. Em vez de fazer o caminho habitual para casa, optou por ir direita a minha casa. Tinha um plano em mente. Porém, a casa encontrava-se deserta. Fartou-se de tocar à campainha, mas ninguém abriu a porta.
Marie desistiu e enfiou-se pelo arvoredo cerrado que ia dar ao poço junto ao santuário. A cobrir o buraco havia um plástico azul que dantes não existia. Tinham-no amarrado firmemente com cordas presas a estacas e colocado pesadas pedras por cima. Tornava-se impossível espreitar lá para dentro. Na sua ausência, alguém – fosse quem fosse – tapara a saída. O mais certo era terem considerado que havia perigo de queda. Especada diante do poço, pôs-se à escuta. Mas não ouviu um único som.
(Mais uma nota das minhas: o facto de Marie não ter ouvido o sino podia querer dizer que eu ainda não chegara. Ou então que adormecera.)
Começaram a cair gotas de chuva geladas. O melhor a fazer é regressar a casa, pensou ela. A minha família deve estar aflita. Mas como explicar os últimos quatro dias? Tinha de inventar uma desculpa. Não podia confessar que passara aquele tempo escondida em casa de Menshiki. Estava fora de questão. Só serviria para complicar ainda mais as coisas. De resto, o mais certo era a polícia já estar a par da situação. Se ficassem a saber que ela entrara ilegalmente na mansão de Menshiki, seria acusada de invadir propriedade alheia e castigada como tal.
Passou-lhe pela cabeça dizer que tinha caído acidentalmente no poço e que demorara quatro dias a sair de lá. Que só quando o seu professor – que é como quem diz, eu – aparecera é que conseguira libertar-se em segurança. Escusado será adiantar que Marie contava comigo para lhe aparar o golpe. Mas a verdade é que eu não estivera em casa, e o poço encontrava-se coberto com a tal lona de plástico, razões suficientes para a narrativa cair por terra. (No caso de Marie ter levado a sua avante, ver-me-ia forçado a explicar à polícia porque é que Menshiki e eu tínhamos recorrido a equipamento pesado para destapar o poço, o que só acarretaria mais problemas.)
Invocar amnésia temporária era outra das hipóteses. Ou seja, Marie estava disposta a jurar a pés juntos que não se lembrava de nada e que aqueles quatro dias eram um vazio total. Mais: que, ao dar por si, estava deitada no meio do bosque. Manter-se-ia fiel à sua versão dos acontecimentos, não tinha escapatória. Vira uma série na televisão e retirara daí a ideia. Agora, saber até que ponto as pessoas acreditariam nela, isso já eram contas de outro rosário. A família e a polícia não descansariam enquanto não a interrogassem. Possivelmente, teria logo guia de marcha para o psiquiatra. Ainda assim, não tinha escolha. Preparou-se mentalmente para aparecer toda despenteada, com os braços e as pernas enlameados e cobertos de arranhões e nódoas negras, a fim de justificar o tempo que passara perdida na montanha. Cabia-lhe tornar a história verosímil.
Dito e feito. Embora não se tratasse de uma jogada de mestre, era a única alternativa viável.
Foi isto que Marie me revelou. Assim que ela chegou ao fim do relato, apareceu Shoko Akikawa. Ouvimos o Toyota Prius estacionar à porta.
– Na minha opinião, deves manter sigilo sobre o que realmente aconteceu – disse eu a Marie. – Não digas nada a ninguém. Passa a ser o nosso segredo.
– Claro – disse Marie. – Também, o mais provável é ninguém acreditar em mim.
– Eu acredito em ti.
– Quer dizer que o ciclo está fechado?
– Não sei – respondi. – Provavelmente, ainda não se fechou por completo. Mas nada podemos fazer. O maior perigo passou, valha-nos isso.
– A parte virulenta.
– Isso mesmo – confirmei. – A parte virulenta.
Marie estudou a minha cara durante uns bons dez segundos.
– O Comendador existe de verdade – disse ela baixinho.
– Tens razão – concordei. – O Comendador existe mesmo. – E eu matei-o com estas mãos. Juro. Mas não lhe disse, como devem imaginar.
Marie assentiu. Eu tinha a certeza de que ela manteria a sua palavra. Partilharíamos aquele extraordinário segredo para sempre.
Gostaria de lhe ter contado que as roupas que a protegeram de alguma coisa tinham sido usadas pela sua defunta mãe antes de se casar. Mas não podia. E o Comendador também não. A única pessoa no mundo que tinha esse direito era Menshiki. Embora fosse altamente improvável que o fizesse.
Todos nós carregamos segredos por revelar.
4 Bolo alemão em camadas que lhe dão o aspeto de conter vários anéis. É considerado a especialidade tradicional da cidade de Salzwedel. (N. das T.)
63
NÃO É O QUE ESTÁS A PENSAR
Marie e eu partilhávamos um segredo. Um segredo importante, só nosso. Depois de eu ter relatado a minha jornada nas entranhas do submundo, ela contou-me o que lhe acontecera na mansão de Menshiki. Embrulhámos A Morte do Comendador e O Homem do Subaru Forester Branco o melhor que conseguimos e guardámos os dois quadros no sótão de Tomohiko Amada. Mais ninguém estava a par do assunto. Tirando a coruja, claro, mas essa não abriria o bico. Com ela, o nosso segredo ficaria envolto num manto de silêncio.
Marie costumava vir ter comigo (utilizava a passagem secreta, às escondidas da tia). Juntos, tentávamos descobrir o que as nossas experiências tinham em comum, comparando-as minuto a minuto e pormenorizadamente.
A princípio, receei que Shoko Akikawa suspeitasse que os quatro dias em que a sobrinha andara desaparecida e a minha ausência de três dias estivessem relacionados, mas, vá lá saber-se porquê, nunca tal lhe passou pela cabeça. Com a polícia, a história foi parecida: a coincidência não fez soar o sinal de alarme. Desconhecedores da passagem secreta, a minha casa era apenas a que ficava «do outro lado do vale». Dado que não figurava na lista dos vizinhos da família Akikawa, nunca me interrogaram. Shoko nem sequer deve ter referido que eu andava a pintar o retrato de Marie. Talvez isso não fosse relevante aos seus olhos. Caso a polícia tivesse relacionado a ausência de Marie com a minha viagem e somado dois mais dois, eu ficaria metido numa camisa de onze varas.
Decidi não terminar o retrato de Marie. Estava praticamente pronto, mas temia que, se acabasse de o pintar, me levasse por caminhos perigosos. Menshiki, só para dar o exemplo, moveria céu e terra para lhe deitar a mão. Sabia-o de ciência certa, por mais que ele afirmasse o contrário, e não tencionava deixá-lo apropriar-se do quadro e pendurá-lo no seu «santuário» privado. Quem sabe o perigo que isso representaria? Como tal, preferi não o acabar. Marie, porém, adorava o quadro («Mostra bem o meu estado de alma») e queria ficar com ele. Por isso, tive muito gosto em oferecer-lho, juntamente com os três desenhos que lhe prometera.
– Acho que está bestial – comentou ela. – É uma obra incompleta, tal como eu sou uma obra por acabar.
– De ninguém pode dizer-se que está completo. Todos os homens são seres inacabados.
– E o senhor Menshiki? – perguntou Marie. – Parece-me uma obra bastante acabada.
– Creio que é também um ser inacabado – declarei.
A meu ver, Menshiki dificilmente poderia ser considerado um ser humano completo. Assim se explicava que, a coberto da escuridão, passasse as noites a vigiar Marie com um par de potentes binóculos. Era superior às suas forças. Esse segredo permitia-lhe manter um certo equilíbrio pessoal, o equivalente do varão comprido que permite ao funâmbulo equilibrar-se na corda bamba.
Escusado será dizer que Marie estava farta de saber que Menshiki observava todos os seus movimentos dentro de portas. Porém, nunca falou disso a ninguém (tirando a minha pessoa). Basta dizer que a tia nunca desconfiou de nada. O que o levaria a fazer isso? Aquilo deixava-a perplexa. Mas, por qualquer razão, não lhe apetecia escalpelizar o assunto. Limitava-se a fechar as cortinas. Com efeito, as cortinas cor de laranja, já desbotadas pelo sol, permaneciam corridas. Fazia ainda questão de apagar o candeeiro do quarto quando vestia o pijama antes de se deitar. O voyeurismo dele, curiosamente, não a incomodava nas restantes divisões. Às vezes, chegava a pensar que lhe agradava. Talvez encontrasse algum significado no facto de só ela saber o que se passava.
A rapariga garantia que Shoko e Menshiki continuavam a ver-se. A tia costumava meter-se no carro e ir a casa dele uma ou duas vezes por semana. O relacionamento entre ambos parecia ser de cariz sexual (Marie pressentia-o na sua inocência). A tia nunca lhe confidenciava o destino das suas escapadelas, mas a jovem sabia, como é óbvio. No regresso, Shoko mostrava-se bastante corada. Fosse qual fosse a natureza do vazio interior que consumia Menshiki, não estava na mão da sobrinha impedir esses encontros. Tinha de calar e deixar correr o marfim, na esperança de não ser arrastada para o meio daquela relação. Queria manter-se à distância, longe do turbilhão.
Eu tinha as minhas dúvidas. Mais cedo ou mais tarde, sem se dar conta, Marie acabaria por ser sugada para o centro do vórtice. Menshiki cortejava Shoko Akikawa, mas com a sobrinha desta no pensamento. Independentemente de o ter planeado desde o início, não conseguia evitá-lo. Estava-lhe na massa do sangue. E, de propósito ou não, eu juntara-os. Menshiki travara conhecimento com Shoko na casa em que eu servia como anfitrião, tal como ele pretendia. E Menshiki alcançava sempre os seus intentos.
Marie ignorava por que razão Menshiki tinha um armário a abarrotar de sapatos de tamanho 36 e de vestidos de tamanho 32. Palpitava-lhe que ele conservara naquele roupeiro (ou noutro sítio qualquer) o guarda-roupa deixado para trás por uma antiga amada. Mesmo que o romance com Shoko Akikawa resultasse, jamais seria capaz de se livrar dele ou de o queimar. Assim se explicava que o guarda-roupa se tivesse tornado parte integrante da sua psique. As peças de vestuário ficariam eternamente consagradas naquele santuário espiritual.
Tomei a decisão de deixar de dar aulas de pintura em Odawara.
«Lamento muito, mas preciso de me focar na minha arte», disse ao diretor do centro de artes e cultura. «É uma pena», retorquiu ele. «Toda a gente diz que é um professor fantástico.» Fiquei com a sensação de que ele estava a ser sincero. Agradeci-lhe e prometi ficar até ao final do ano letivo, dando-lhe tempo de arranjar um substituto – uma professora reformada com sessenta e tal anos que tinha um olhar simpático parecido com o dos elefantes.
Menshiki telefonava de vez em quando. À falta de um assunto em concreto para falar, na maior parte das vezes limitávamo-nos a trocar impressões. Quando calhava ele perguntar-me se houvera alguma mudança no poço junto ao santuário, eu respondia-lhe que não. Era pura verdade. Permanecia tapado com a cobertura de plástico azul. Volta e meia, passava pelo local, nas minhas deambulações, e estava tudo como dantes. As pedras mantinham-se no lugar. Não ocorrera nada de estranho nem de suspeito. Não voltei a ouvir o sino a meio da noite, nem o Comendador (ou outra criatura que tal) saiu lá de dentro. Era apenas um buraco enorme no coração da floresta. O tufo de erva-das-pampas esmagado pela retroescavadora recomeçara a crescer, fazendo com que o poço ficasse novamente ao abrigo dos olhares alheios.
A acreditar em Menshiki, eu passara o período em que andara desaparecido dentro do poço. Apesar de não conseguir explicar como é que tinha ido lá parar, o certo é que ele me resgatara. Era incontornável. Em resultado disso, nunca relacionara a minha ausência e a de Marie. Aos seus olhos, tudo não passara de uma coincidência surreal.
Discretamente, tentei sondá-lo para perceber se Menshiki suspeitava que alguém se tinha refugiado na sua mansão durante quatro dias, mas ele não deu sinais de desconfiar de nada. Se calhar, talvez não tivesse sido Menshiki quem se demorara diante da «câmara proibida». Nesse caso, quem teria sido?
Apesar dos contactos telefónicos, Menshiki nunca mais apareceu. Talvez já não sentisse necessidade de aprofundar a relação comigo, agora que contava com Shoko no seu círculo de conhecimentos. Ou então desinteressara-se da minha pessoa, pura e simplesmente. Se calhar, as duas hipóteses eram possíveis e verosímeis. Dava-me cá um abalo ao pífaro (embora tivesse saudades de ouvir o som do V8 do seu Jaguar a ronronar colina acima).
No entanto, os telefonemas (sempre antes das oito) sugeriam que Menshiki sentia necessidade de se manter em contacto. Será que o facto de me ter revelado que poderia ser o pai biológico da Marie lhe pesa na alma? Não creio que tivesse receio de que eu me descaísse – junto de Shoko ou Marie, sobretudo. Sabia que eu guardaria segredo. Possuía a capacidade de ler nos outros, o que é o mesmo que dizer que lia em mim como num livro aberto. E, no entanto, dificilmente alguém imaginaria que uma pessoa como Menshiki fosse capaz de entrar em confidências. Embora possuísse uma vontade de ferro, talvez achasse cansativo guardar os segredos só para si. Precisara de desabafar. E deve ter visto em mim uma pessoa relativamente inofensiva.
Mesmo que o sujeito andasse a explorar-me desde o princípio, tinha razões para lhe estar grato. Vendo bem, resgatara-me do poço. Se Menshiki não tivesse aparecido, se não tivesse descido a escada a fim de me ajudar a voltar para a superfície, eu estaria condenado a tornar-me um cadáver ressequido. De certa maneira, a minha vida e a de Menshiki ficaram a dada altura nas mãos um do outro. Estávamos quites.
Menshiki limitou-se a anuir quando lhe comuniquei que oferecera Um Retrato de Marie Akikawa à própria, apesar de inacabado. Creio que já não sentia necessidade do quadro, apesar de a obra ter começado por ser uma encomenda feita por ele. Também podia acontecer que não visse razão de ser numa obra incompleta. Ou então andava distraído com outras bizarrices.
Alguns dias depois de termos tido esta conversa, coloquei uma moldura vulgar no quadro O Poço na Floresta, enfiei-o no porta-bagagens da minha carrinha Corolla e levei-o para sua casa. Foi a última vez que nos vimos cara a cara.
– Obrigado por me ter salvado a vida. Peço-lhe que aceite isto – disse eu.
Menshiki deu mostras de apreciar o quadro. (Também eu achava que não me saíra nada mal, admito.) Quis à viva força acertar contas comigo, mas recusei. Pagara-me principescamente pelo primeiro trabalho e não via necessidade de prolongar o compromisso, tanto por ele como pela parte que me dizia respeito. De agora em diante, passaríamos a ser vizinhos, vivendo cada um no seu lado do vale, e era assim que as coisas deviam ser.
Num sábado, no final da semana em que fui resgatado do poço, Tomohiko Amada exalou o derradeiro suspiro. Esteve em coma durante três dias, altura em que o coração deixou de bater. Como uma locomotiva, quando se aproxima pouco a pouco da estação terminal, a máquina desistira de trabalhar. Masahiko não saíra de ao pé dele. Telefonou-me no dia em que o pai faleceu.
– Morreu tranquilamente – disse ele. – Também eu gostava de partir assim deste mundo. Juro que até lhe vi um sorriso nos lábios.
– Um sorriso? – espantei-me.
– Bom, talvez não fosse um sorriso. Mas era uma expressão parecida. Pelo menos, foi a ideia com que fiquei.
– Acredita que tenho muita pena – declarei, escolhendo cuidadosamente as palavras. – Por outro lado, ainda bem que o teu pai partiu em paz.
– Passou a semana quase toda num estado de semiconsciência, mas quis-me parecer que ainda tinha algo para dizer – acrescentou Masahiko. – No fundo, acho que não se arrependeu de nada: chegou aos noventa e viveu como quis.
Aí é que te enganas, pensei. O mestre tinha a sua quota-parte de arrependimentos. A bem dizer, carregava um fardo pesado. Qual o fardo em concreto, desconhecia. Agora já ninguém pode tirar-lhe nabos da púcara. Ficaremos eternamente sem saber.
– Vou estar incomunicável durante uma temporada – informou Masahiko. – O meu pai era um homem conhecido, e quando uma pessoa morre, há uma data de imbróglios para resolver. Na qualidade de filho e herdeiro, cabe-me tratar de tudo. Conversaremos com calma quando os ânimos serenarem.
Agradeci-lhe por se ter dado ao trabalho de me telefonar e desligámos.
A morte de Tomohiko Amada parecia ter mergulhado a moradia num silêncio rigoroso. Era a coisa mais natural do mundo. Vivi paredes-meias com esse silêncio durante vários dias. Um silêncio intenso, mas não inteiramente desagradável. Sinto-me tentado a chamar-lhe um silêncio puro, desligado de tudo. A cadeia de acontecimentos chegara ao fim. Era assim que eu encarava o assunto. Tratava-se do tipo de silêncio que se instala quando uma missão da maior importância tem êxito.
Uma noite, duas semanas depois da morte de Tomohiko Amada, Marie entrou-me porta adentro. Esgueirou-se para o interior da casa como um gato, trocou dois dedos de conversa comigo e tornou a desaparecer. A família andava de olho nela, contou-me, razão pela qual deixara de ter a liberdade de movimentos de que antes gozava.
– O meu peito parece estar a crescer – disse ela. – Fui com a minha tia comprar sutiãs. As lojas têm uma coisa chamada «o meu primeiro sutiã». Sabia?
– Não – respondi. Olhei para o peito dela, mas não vislumbrei curvas arredondadas debaixo da camisola Shetland verde.
– Não noto grande diferença – afirmei.
– Porque os chumaços são pequenos. Se fossem maiores, as pessoas dariam pela diferença e punham-se a dizer que eu andava a encher o sutiã. É por isso que a coisa começa devagarinho e o tamanho vai aumentando aos poucos.
Tinha sido interrogada por uma mulher-polícia, adiantou Marie, que pretendia saber onde é que ela passara aqueles quatro dias. Tirando uma ou outra interpelação mais firme, o interrogatório decorrera tranquilamente. A jovem mantivera-se fiel à sua versão da história: só se lembrava de andar a deambular pela montanha e de se ter perdido. O resto varrera-se-lhe por completo. Acreditava que sobrevivera à base de água mineral e chocolate, que trazia sempre no saco. Mais não adiantava. Mantinha a boca cerrada como um túmulo. Era especialista na matéria. Após os agentes terem concluído que ela não fora raptada com o objetivo de se obter um resgate, transportaram-na para o hospital a fim de ser sujeita a exames médicos que determinassem se teria sido vítima de abuso sexual. Descartada a hipótese, a polícia perdeu interesse no caso. Afinal, não passava de mais uma miúda que fugira de casa e andara aos caídos um par de dias. Não se podia dizer que fosse caso único.
Marie desfez-se da roupa que usara durante aquele período – casaco azul-escuro, saia de xadrez, blusa branca, colete de malha, sapatos de camurça – e comprou outro uniforme. Sentia necessidade de começar de novo. Regressou à vida de todos os dias como se não fosse nada com ela, com uma ressalva: deixou de frequentar as aulas de pintura (seja como for, já não tinha idade para frequentar as aulas lecionadas às crianças). Outra coisa que fez foi pendurar o retrato (inacabado) na parede do seu quarto.
Eu sentia uma certa dificuldade em imaginar que tipo de mulher ela viria a ser. As raparigas daquela idade têm a capacidade de se transformar enquanto o diabo esfrega um olho, tanto física como emocionalmente. O mais provável era nem a reconhecer se a encontrasse passado uma temporada. Por conseguinte, alegrava-me sobremaneira ter pintado Marie aos treze anos (apesar de o retrato não estar terminado), fixando a imagem dela no momento. Neste mundo, nada sobrevive aos efeitos do tempo.
Telefonei ao meu antigo agente em Tóquio e disse-lhe que queria voltar a exercer a profissão de retratista. Ele não podia ter ficado mais satisfeito. Andavam sempre à cata de bons artistas.
– Mas disse-me que abandonara os retratos profissionais, não foi? – quis ele saber.
– Mudei de ideias – respondi, sem mais. O agente também não perguntou.
Queria passar um período sem pensar em nada, deixar que as minhas mãos se movessem mecanicamente pela tela pintando retratos «comerciais» em série. No decorrer do processo, alcançaria estabilidade financeira. Ignorava quanto tempo duraria essa fase. Quem pode prever o futuro? Mas, por enquanto, o que me apetecia era ter liberdade para usar a técnica do ofício conquistada com muito sacrifício, sem relação com Ideias, Metáforas, ou lá o que era. Queria manter-me afastado dos melindrosos e desprezíveis negócios levados a efeito pelo rico e misterioso homem que vivia do outro lado do vale. Longe de mim ser arrastado para um túnel escuro depois de ter descoberto uma obra-prima encapotada. Mais do que tudo, era isso que desejava.
Marquei encontro com Yuzu num estaminé perto do trabalho dela. Diante de um café e de uma Perrier, pusemos a conversa em dia. A sua barriga não estava tão grande como eu imaginara.
– Tencionas casar com o pai da criança? – perguntei, abrindo as hostilidades.
Yuzu abanou a cabeça.
– Por enquanto, não.
– Porquê?
– Acho que é melhor assim.
– Mas está nos teus planos ter a criança, correto?
Ela assentiu.
– Óbvio. Agora não há volta a dar.
– Vives com ele?
– Não. Desde que te foste embora, vivo sozinha.
– Porquê?
– Para começar, ainda não estamos divorciados.
– Enviei-te os papéis do divórcio há imenso tempo, assinados e selados. Parti do princípio de que estávamos divorciados.
Yuzu não se descoseu.
– Para ser franca, nunca cheguei a entregá-los ao advogado – acabou ela por confessar. – Não fui capaz. Portanto, continuamos casados. O que significa que a criança será legalmente tua, quer estejamos ou não divorciados. Não tens de assumir qualquer responsabilidade, claro.
Não percebia patavina.
– Mas, biologicamente, é ele o pai, correto?
Yuzu olhou-me nos olhos.
– As coisas não são assim tão simples.
– Em que sentido?
– Como explicar? Não tenho a certeza de que o filho seja dele.
Foi a minha vez de a olhar de frente.
– Estás a dizer que não sabes quem te engravidou?
Yuzu acenou afirmativamente. Não sabia.
– Não é o que estás a pensar – disse ela. – Nunca andei por aí a saltar de cama em cama. Só me envolvo com um homem de cada vez. Foi por isso que deixei de ter relações contigo. Espero que acredites em mim.
Fiz que sim com a cabeça.
– Lamento que seja preciso estarmos a ter esta conversa.
Voltei a assentir.
– Garanto-te que tomei todas as precauções quando dormi com ele. Não queria engravidar. Sabes bem como sempre fui cuidadosa. Mesmo assim, fiquei grávida.
– Por mais precauções que uma pessoa tome, pode haver um acidente de percurso.
– Por experiência própria, as mulheres sabem-no melhor do que ninguém – declarou Yuzu, abanando a cabeça. – Temos uma espécie de sexto sentido. É difícil a um homem perceber isso, acho eu.
Pela minha parte, não tinha opinião formada.
– Em todo o caso, estás a pensar em ter a criança – disse eu.
Yuzu concordou com a cabeça.
– Apesar de nunca teres desejado engravidar quando estávamos juntos.
– É verdade – respondeu ela. – Nunca quis ter um filho teu. Não queria ter filhos, ponto final.
– Ainda assim, estás disposta a levar a gravidez avante e a trazer uma criança ao mundo sem saber quem é o pai. Porque é que não abortaste? Podias tê-lo feito de início.
– Pensei nisso, como é óbvio. Em parte, era o que queria.
– Mas não abortaste.
– Não. Ultimamente, tenho pensado muito no assunto e mudei de ideias – admitiu Yuzu. – Esta é a vida que levo, mas, se formos ver bem, quase tudo pode ser decidido de forma arbitrária, sem que eu seja tida nem achada. Por outras palavras, embora possua livre-arbítrio, as grandes decisões que afetam a minha existência não dependem de mim. Cheguei à conclusão de que esta gravidez é um bom exemplo disso.
Ouvi-a sem fazer comentários.
– Bem sei que isto pode soar a fatalismo, mas é o que acho. Digo isto do fundo do coração e com toda a honestidade. Como tal, decidi ter a criança e criá-la. Vamos ver no que dá. Parece-me o mais importante de tudo.
– Só tenho uma pergunta – disse eu, enchendo-me de coragem.
– Qual é?
– É uma pergunta simples, basta que me respondas «sim» ou «não». A seguir, calo-me.
– Não há problema.
– Posso voltar para ti?
Yuzu olhou para mim com um semblante carregado.
– Referes-te a vivermos novamente como marido e mulher?
– Se for possível.
– Gostaria muito – disse ela baixinho, sem hesitar. – Ainda és o meu marido, e o quarto está como o deixaste. Podes voltar para casa quando quiseres.
– Continuas a ver o outro tipo? – quis eu saber.
Yuzu abanou suavemente a cabeça.
– Não, acabou tudo entre nós.
– Porquê?
– Não quero que ele tenha direitos sobre a criança, aí tens a principal razão.
Fiquei de bico calado.
– Ficou extremamente chocado quando lhe dei a entender isso. É natural, acho – disse ela, esfregando as faces com as mãos.
– Quer dizer que estás disposta a dar-me direitos sobre o bebé?
Ela pousou as mãos na mesa e lançou-me um olhar penetrante.
– Mudaste um bocado, não mudaste? A tua cara está diferente. Ou então é a expressão...
– Não sei se mudei, mas aprendi uma data de coisas.
– Faço minhas as tuas palavras.
Peguei na chávena e bebi o resto do café.
– O pai do Masahiko morreu há pouco – declarei –, por isso ele anda muito assoberbado. Quando tudo estiver mais pacífico, faço as malas e volto para o nosso apartamento em Hiroo, o mais tardar no começo do ano que vem. Parece-te bem?
Yuzu estudou o meu rosto. Parecia estar a observar uma paisagem da qual sentia saudades. Por fim, estendeu o braço sobre a mesa e agarrou com ternura na minha mão.
– Gostaria de tentar novamente – disse ela. – Há muito que penso nisso.
– Eu também – declarei.
– Não sei se dará certo.
– Também eu não, mas vale a pena tentar.
– Estou prestes a ter um filho e nem sei quem é o pai. Não te importas?
– Não tenho problemas com isso – respondi. – Se calhar, achas que estou louco, mas existe a possibilidade de eu ser o pai dessa criança, em teoria. Digo isto porque é o que sinto. Posso ter-te engravidado à distância, mentalmente. De um ponto de vista conceptual, isto é, usando um caminho específico.
– De um ponto de vista conceptual?
– É uma hipótese.
Yuzu ponderou por momentos.
– A ser verdade – disse ela –, é uma hipótese fantástica.
– Não há certezas neste mundo – afirmei. – Mas, pelo menos, somos livres de acreditar em qualquer coisa.
Yuzu sorriu. Foi assim que terminou a nossa conversa nesse dia. Ela apanhou o metro para casa, e eu meti-me na minha velha carrinha Toyota Corolla coberta de poeira e regressei à casa na montanha.
64
EM SINAL DE BOA VONTADE
Alguns anos depois de eu ter voltado para a minha mulher, no dia 11 de março, um terramoto gigantesco abateu-se sobre o Nordeste do Japão. Sentado à frente da televisão, assisti ao desolador espetáculo de vilas e cidades a serem varridas do mapa ao longo da costa, de Iwate a Miyagi. Era a província que eu percorrera no meu velho Peugeot 205. Encontrara o homem do Subaru Forester branco numa dessas cidades. Diante de mim, porém, tinha agora apenas os escombros das povoações arrasadas pelo tsunami que se abatera sobre elas como uma besta descomunal, deixando apenas um rasto de destruição. Por mais que puxasse pelas meninges, não consegui identificar a referida cidade. Dado que não me recordava do nome dos lugares, dificilmente conseguiria descobrir as zonas afetadas ou os prejuízos que sofreram.
Durante dias a fio não fiz mais nada senão ver televisão, mergulhado num silêncio sepulcral. Estava como que hipnotizado. Rezei a todos os santinhos, na esperança de encontrar alguma coisa que despertasse em mim reminiscências, mesmo que vagas. Caso contrário, receava que algo no mais fundo do meu ser acabasse por ser transportado para longe, correndo o risco de se perder. Apetecia-me pegar no carro e viajar até à zona afetada, a fim de testemunhar com os próprios olhos o que ficara de pé depois do desastre. Mas isso estava fora de questão, naturalmente. As estradas principais haviam sido reduzidas a lama e escombros, daí resultando um cenário de cidades e vilas inteiras separadas do mundo. Eletricidade, gás, água potável – todos os abastecimentos vitais estavam cortados. Mais a sul, na costa de Fukushima (onde o Peugeot entregara a alma ao criador), os sistemas de refrigeração de vários reatores nucleares tinham ficado destruídos. Era impossível aventurar-me por aquela região do país.
Quando eu andara a vaguear sem rumo por ali, estava longe de ser um homem feliz. Tinha sido um período solitário, doloroso e profundamente triste, ao ponto de me sentir perdido em muitos aspetos. Apesar de tudo, a viagem permitiu-me conviver com desconhecidos e observar o seu quotidiano. Na altura não fazia ideia do enorme significado que viriam a ter. Tal como me livrara de algumas coisas – quase sempre de forma inconsciente –, apropriara-me de outras tantas. Após ter percorrido todos aqueles lugares, tornara-me uma pessoa diferente.
Pensei no Homem do Subaru Forester Branco escondido no sótão da casa de Odawara. Fizesse ou não parte do mundo real, continuaria ele a viver na cidade atingida pela calamidade? E o que era feito da mulher magra com quem eu passara a noite? Teriam eles e os demais habitantes conseguido escapar ao terramoto e ao tsunami? Ainda estariam vivos? O que teria acontecido ao love hotel e ao restaurante à beira da estrada?
Por volta das cinco horas da tarde, conforme combinado (a minha mulher voltara a trabalhar no ateliê de arquitetura), fui buscar a nossa filha ao infantário. Fazia parte das minhas tarefas. Para um adulto, a escola ficava a dez minutos a pé. Regressaria a casa com a minha filha pela mão. Se estivesse bom tempo, sentar-nos-íamos num banco do parque a ver os cães passearem com os donos. Ela queria muito um cãozinho, mas como a administração do prédio proibia a presença de animais domésticos, tinha de se contentar com o desfile no parque. Volta e meia, deixavam-na fazer festas a um pequeno e inofensivo canídeo.
A nossa filha chamava-se Muro. Yuzu escolhera o nome, sugestionada por um sonho pouco antes de ela nascer. No dito sonho, encontrava-se numa vasta sala em estilo japonês, com vista para um magnífico e espaçoso jardim. Havia uma mesinha baixa, sobre a qual repousava uma folha de papel branco. Na folha, a tinta preta, destacava-se um único ideograma, (Muro), designando a palavra «câmara». Yuzu não sabia quem o desenhara, mas a caligrafia era magnífica. O sonho tinha sido este. A imagem permaneceu indelével no seu espírito mesmo depois de acordada, e foi por esse motivo que decidiu chamar Muro à bebé. Não pus objeções. Afinal de contas, fora ela quem decidira ter a criança.
Fiquei satisfeito por a criança ser do sexo feminino. Tendo crescido com a minha irmã mais nova, Komi de seu nome, sentia-me nas minhas sete quintas com uma menina por perto. Era a coisa mais natural da vida. Também me alegrou ela vir ao mundo tendo já nome escolhido. O nome é algo de muito importante.
Quando Muro e eu chegámos a casa, vimos as notícias na televisão juntos. Esforcei-me por evitar que ela fosse confrontada com as reportagens das cidades destruídas pelo tsunami. Eram imagens demasiado perturbadoras para uma menina da sua idade. Mal as imagens apareciam no pequeno ecrã, apressava-me a tapar-lhe os olhos.
– Papá, porque é que estás a fazer isso? – perguntou-me Muro.
– Porque ainda és muito pequena – respondi.
– Mas é mesmo verdade, não é?
– Sim, tens razão. Aconteceu muito longe daqui. Mas só por ser verdade não quer dizer que tenhas de assistir a isto.
Muro ficou a matutar naquilo. Como é evidente, não percebeu o alcance das minhas palavras. Ainda não tinha idade para compreender o que eram tsunamis e terramotos, e muito menos o significado da morte. Em todo o caso, tratei de lhe pôr as mãos à frente para evitar que ela visse as imagens do maremoto. Compreender um facto e testemunhá-lo são duas coisas diferentes.
Um dia, vi o homem do Subaru Forester branco na televisão. Pelo menos, foi o que me pareceu. A câmara mostrou um grande barco de pesca a uma certa distância da costa, e o homem encontrava-se mesmo ao lado, lembrando um cornaca já incapaz de exercer o mester. Percebi que o tal sujeito de corta-vento preto e o boné com o logo da Yonex só podia ser ele.
O fotograma apareceu e desapareceu. Passado um segundo, a câmara mudou de ângulo.
Além de assistir ao telejornal, pintava retratos «comerciais» à comissão para arredondar o orçamento familiar no fim do mês. Fazia aquilo sem pensar – assim que me sentava diante da tela, os dedos pareciam mover-se mecanicamente. Levava a vida que escolhera. E fazia o que os outros esperavam de mim. O meu trabalho garantia-me um rendimento fixo. Precisava que assim fosse. Tinha uma família para sustentar.
Dois meses depois do terramoto, a velha casa em Odawara foi consumida pelas chamas. A casa nas montanhas onde Tomohiko Amada vivera metade da vida. Masahiko telefonou a dar-me a notícia. Ficara desabitada desde que eu partira, e o meu amigo nunca mais dormira descansado. O incêndio veio confirmar o seu pior receio, pois a casa ardera às primeiras horas do dia, logo a seguir aos feriados de maio, e apesar de os bombeiros terem acorrido rapidamente ao local, a antiga estrutura de madeira ficou quase completamente reduzida a cinzas (os camiões de bombeiros sentiram uma tremenda dificuldade em transitar por aquelas veredas íngremes e sinuosas). Por sorte, tinha chovido durante a noite, o que fez com que o incêndio não se propagasse às árvores. A investigação foi inconclusiva quanto às causas do incêndio. Poderia ter-se devido a um curto-circuito, mas também se falava à boca pequena em fogo posto.
Ao ser informado, a primeira coisa que surgiu na minha mente foi A Morte do Comendador. O quadro devia ter ficado queimado no incêndio. E o mesmo se aplicava a O Homem do Subaru Forester Branco. E à coleção de discos. Teria a coruja conseguido escapar e ficar em segurança?
A Morte do Comendador era um dos melhores trabalhos de Tomohiko Amada, e o seu desaparecimento representava uma enorme perda para o mundo artístico japonês. No entanto, pouquíssimas pessoas tinham visto o quadro. Marie Akikawa e eu fazíamos parte do grupo. Shoko Akikawa também, de passagem. Sem esquecer Tomohiko Amada, claro, o seu criador. Tirando nós, possivelmente mais ninguém. Agora que as chamas tinham devorado A Morte do Comendador, assolava-me um sentimento de culpa. Não deveria eu ter tomado a iniciativa de mostrar ao mundo a obra-prima do mestre? Em vez disso, empacotara-o e devolvera-o ao sótão, e agora não passava de um monte de cinzas. (Tivera o cuidado de copiar para o meu caderno de esboços as personagens, tudo o que restava do quadro.) Na qualidade de artista respeitado, a ideia atormentava-me. É uma obra espantosa, pensei. Se calhar, cometi um crime de lesa-arte.
Ao mesmo tempo, ocorreu-me que talvez aquela obra estivesse destinada a perder-se. Tomohiko Amada tinha colocado nela muito da sua paixão e da sua alma. Atendendo ao poder que dela se desprendia, talvez fosse preferível mantê-la ao abrigo dos olhares alheios. Apesar de se tratar de um quadro soberbo, possuía um tipo de poder maléfico, capaz de convocar coisas do arco-da-velha. Ao descobri-lo, eu abrira a caixa de Pandora. Dar a conhecer ao mundo um quadro como aquele talvez fosse um erro de palmatória. Não era isso que pensava o autor? Caso contrário, porque o teria escondido no sótão, longe da curiosidade de terceiros? Nesse caso, eu mais não fizera do que respeitar o seu desejo. Fosse como fosse, o quadro perdera-se naquele pasto de chamas, e ninguém podia fazer o tempo andar para trás.
Confesso que não lamentei por aí além a perda de O Homem do Subaru Forester Branco. Sabia que voltaria ao tema. Nessa altura, já seria um homem seguro de mim e, provavelmente, enquanto artista, dono de maior integridade. Quando chegasse a hora de criar a minha arte, estaria em condições de pintar O Homem do Subaru Forester Branco de uma perspetiva completamente nova. Talvez o quadro se convertesse na minha versão de A Morte do Comendador. A tornar-se realidade, constituiria o maior legado que podia receber de Tomohiko Amada.
Marie ligou-me logo a seguir ao incêndio. Conversámos durante uma hora sobre a velha casa consumida pelo fogo. A casa tinha sido importante para ela. Não tanto o edifício em si, mas o mundo que albergava, assim como o período em que esta fora parte integrante da sua vida. Esse cenário incluía os dias em que Tomohiko Amada ainda ali morava. Sempre que o via, o pintor estava mergulhado em trabalho. Pela experiência dela, um artista era alguém que se fechava durante dias inteiros no estúdio a pintar. Observara-o pela janela. Agora que a casa desaparecera, Marie lamentava amargamente que aquele mundo fosse apenas uma recordação. Eu partilhava da sua tristeza. Apesar de ali ter vivido menos de oito meses, aquela casa revestia-se de um profundo significado para mim.
Já no fim da chamada, Marie confidenciou-me que o peito se tinha desenvolvido. Frequentava agora o décimo primeiro ano. Não tornara a vê-la desde que me viera embora. Falávamos ao telefone de quando em quando. Não me apetecia especialmente visitar a casa na montanha, embora não se pudesse dizer que existia uma razão de peso para tal. Era sempre Marie que tomava a iniciativa de telefonar.
– Ainda não estão totalmente crescidos, mas para lá caminham – murmurou ela em jeito de confidência.
Demorei uns segundos a perceber que falava do tamanho dos seios.
– Tal como o Comendador previu – observou ela.
«Que maravilha», disse eu. Ainda pensei em perguntar-lhe se tinha namorado, mas depois achei melhor deixar o assunto morrer.
Shoko Akikawa andava novamente a encontrar-se com Menshiki. A tia contara a Marie que os dois eram unha com carne. E que o casamento não deveria tardar.
Quando a tia lhe perguntou se ficaria a morar com eles, nessa eventualidade, Marie fingiu que não era nada com ela. Era useira e vezeira nisso.
– Como fica, então? Está nos teus planos ir viver para casa do senhor Menshiki? – perguntei. A meu ver, a simples sugestão tinha qualquer coisa de perturbador.
– Não me parece – respondeu ela. – Ainda não sei.
Ainda não sei?
– Pensava que tinhas péssimas recordações daquela casa – declarei, sem conseguir esconder a minha perplexidade.
– Aconteceu tudo há muito tempo, quando eu era miúda. Além do mais, nem sequer ponho a hipótese de viver sozinha com o meu pai.
Há muito tempo?
A mim, parecia-me que tudo se passara na véspera. Quando lhe disse isso, Marie não me deu troco. Se calhar, queria esquecer os estranhos acontecimentos que vivera na pele, por aqueles dias. Teria desenvolvido um certo interesse em Menshiki, agora que já era mais velha? Talvez visse algo de especial nele. Diria até que desconfiava da existência de um laço de sangue, não tivesse eu a certeza de que era impossível ela saber, ou pôr essa hipótese sequer.
– Não consigo tirar da cabeça aquela cena do armário cheio de roupa – teimou ela.
– O quarto dele exerce um grande fascínio sobre ti, não é verdade?
– Isso é porque aquelas roupas me protegeram – retorquiu. – Mas ainda não sei o que vai ser da minha vida. Talvez vá morar sozinha quando for para a universidade.
Pareceu-me uma excelente ideia, e fiz questão de lho comunicar.
– O que é que se passa com o poço nas traseiras do santuário? – perguntei.
– Tudo igual – respondeu Marie. – Continua tapado com uma lona azul, mesmo depois do incêndio. Volta e meia, fica coberto de folhas mortas, e ninguém sabe que por baixo existe uma câmara subterrânea.
A velha sineta devia jazer no fundo do poço, juntamente com a lanterna que eu sonegara do quarto de Tomohiko Amada, na casa de repouso.
– Tens visto o Comendador? – perguntei.
– Não tornei a pôr-lhe a vista em cima. Alturas há em que chego a duvidar da sua existência.
– O Comendador existiu mesmo – disse eu. – É bom que acredites.
Aos poucos, aquele cenário acabaria certamente por se desvanecer da sua mente. À medida que entrasse na adolescência, conheceria novas pessoas e novas experiências. Deixaria de perder tempo com coisas inúteis como Ideias e Metáforas.
Por vezes, dava por mim a pensar no pinguim de plástico. Oferecera-o, em jeito de pagamento, ao homem que me ajudara a atravessar o rio. Não tivera escolha, atendendo à rapidez da corrente. Só esperava que, nas mãos de fosse quem fosse, o pequeno pinguim velasse por Marie, porventura num vaivém constante entre a presença e a ausência.
Continuo sem saber quem é o pai de Muro. Um teste de ADN serviria para desfazer todas as dúvidas, mas admito que não tenho vontade de conhecer o resultado. Lá mais para diante, quem sabe? A verdade pode nunca vir a ser revelada. Mas o que significa a «verdade»? Muro é minha filha, legalmente falando, e adoro-a do fundo do coração. Dou valor a todos os minutos passados na sua companhia. Estou-me nas tintas para quem é o pai biológico dela. A questão não interessa a ninguém. Para ser franco, não mudaria nada.
Há tempos, enquanto vagueava pelo Nordeste do Japão, sonhei com Yuzu. Sorrateiro, penetrei no seu sonho, fiz amor com ela adormecida, engravidei-a e, nove meses depois, nasceu um bebé. Esta ideia agrada-me sobremaneira (apesar de a guardar só para mim). Vejo-me como o pai da criança enquanto Ideia ou Metáfora. Tal como o Comendador me visitou, ou como Donna Anna me guiou através da escuridão num mundo alternativo, depositei a minha semente no útero de Yuzu.
Contudo, recuso-me a ser como Menshiki. Ele edificou a sua vida alternando a hipótese de Marie Akikawa poder ser sua filha com a possibilidade de não o ser, tentando descortinar o significado da própria existência mediante a subtil e eterna oscilação entre esses dois polos.
Pela parte que me toca, não sinto necessidade de um desafio tão complexo (para não dizer artificial). Como tal, possuo a capacidade de acreditar. Acredito com toda a sinceridade que aparecerá alguma coisa para me guiar através do túnel escuro e estreito, ou da planície desolada. Foi isso que me ensinaram os estranhos acontecimentos ocorridos durante o tempo que morei na casa da montanha, perto de Odawara.
A Morte do Comendador perdeu-se para sempre naquelas horas que antecedem o amanhecer. Porém, a beleza e o poder do quadro permanecem comigo até hoje. Diante de mim surgem o Comendador, Donna Anna, o homem sem rosto e os outros que tais. De tão nítidos, estendo o braço e tenho a sensação de lhes tocar. Pensar em contemplá-los enche-me de tranquilidade, como se estivesse a ver cair uma chuva miudinha na superfície de uma barragem. Essa chuva silenciosa cairá perpetuamente no meu coração.
O mais certo é estar condenado a viver o resto dos meus dias na sua companhia. A minha jovem filha Muro representa a dádiva que eles me concederam, em sinal de boa vontade. Estou convencido disso.
– O Comendador existiu realmente – digo a Muro, que dorme a meu lado. – Acredita no que te digo.
Haruki Murakami
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