Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A MORTE DO PADRE VERMELHO
Milão, Abril de 1945
Estava tudo acabado. Domenico Salvitti tinha a certeza disso. Não conseguia ver nada agora no seu futuro a não ser a captura, um julgamento para satisfazer as aparências e a corda da forca. Surpreendia-o a calma que o invadia, a estranha serenidade com que enfrentava a inevitável derrota. Seria resignação, perguntava a si mesmo, ou simples alívio por o final estar próximo?
- A sua refeição, Eccellenza.
Salvitti colocou o tabuleiro com uvas e leite sobre a secretária e recuou um passo, aguardando que o Duce o dispensasse. Mas Mussolini mal olhou para a comida. Encarou fixamente o seu ajudante-de-campo, olhando através dele como se não estivesse ali. Salvitti permaneceu em rígida posição de sentido, de olhos postos nos ornatos de madeira esculpida da parede do gabinete, mas no silêncio que se seguiu os seus olhos foram irresistivelmente atraídos para o rosto por detrás da secretária. O Duce estava transfigurado. A sua fisionomia outrora nédia apresentava-se agora pálida e fatigada. Os olhos, com laivos de sangue provocados pela falta de sono, pareciam assombrados por recordações do passado e por gélidos pressentimentos do que estava para vir. O seu estado de saúde, sempre problemático, deteriorara-se profundamente durante as últimas semanas. Era um destroço físico e o seu corpo, assaltado pelos padecimentos, era um frágil e esbatido vestígio do tirano que mesmerizara e inspirara uma nação.
Contudo, se o seu corpo se aproximava do colapso, a mente estava ainda mais fragilizada. Perdera a capacidade, ou a vontade, de tomar uma decisão. Ali sentado detrás da secretária de nogueira polida, estava alheado de tudo, indiferente, remexendo desordenadamente nos papéis, relatórios sem interesse e mexericos irrelevantes que mesmo agora não cessavam de chegar dos postos avançados do seu reino cada vez mais mirrado. Tinha vacilado durante toda a guerra, durante toda a sua carreira, para evitar ver-se confrontado com as questões mais prementes. Mas agora, nestes dias derradeiros, o seu porte parecia reflectir uma fraqueza fatal, indesculpável.
- Que disse? - perguntou abruptamente, como se só agora desse conta de que Salvitti tinha falado.
- Trouxe-lhe a refeição que pediu, Eccellenza.
Mussolini olhou para o tabuleiro sem interesse. Tinha regressado ao seu velho hábito de comer apenas uvas e leite, por vezes seis ou sete litros por dia, apesar dos estragos que lhe provocava no estômago. Arrancou uma uva e brincou com ela entre os dedos, com o pensamento muito distante.
- Deseja mais alguma coisa, Eccellenza} - perguntou Salvitti.
Uma vez mais, o Duce pareceu não tê-lo escutado. Levantou-se da cadeira e caminhou até à janela, olhando para fora por uns instantes, para depois regressar e enfrentar o seu ajudante.
- Tem estado comigo desde há muito tempo, Seniore - disse.
- Com efeito, Eccellenza. - Salvitti empertigou-se um pouco ao ouvi-lo referir-se à sua antiga patente miliciana. Era agora um major da Guarda Nacional Republicana, mas intimamente continuava a ser um "Camisa Negra". Sentiu no estômago um ténue trepidar de orgulho ao recordar o soldado que fora, ao relembrar os tempos em que o triunfo, e não a derrota, era o seu companheiro de armas. Ainda usava o emblema com a caveira e os sabres cruzados da guarda pessoal do Duce; as fitas metálicas das campanhas da Etiópia e do Norte de África formavam uma teia colorida sobre o lado esquerdo do peito; e do cinto pendia um punhal inscrito com a própria caligrafia do Duce: "Ai Moschettieri silenziosi, fedeli" - aos silenciosos e fiéis Mosqueteiros.
- Restam poucos de nós, Seniore. Todos me abandonaram, excepto os meus camaradas mais fiéis. Que devo fazer? Que posso fazer? - murmurava Mussolini incessantemente, andando de um lado para o outro atrás da secretária.
Salvitti não respondeu. Nem estava certo de que deveria responder. O Duce parecia estar a falar sozinho, formulando perguntas retóricas com a esperança de que, se fossem repetidas com frequência, as respostas não tardariam a chegar.
Salvitti não alimentava ilusões sobre as suas hipóteses de sobrevivência. Apenas meia hora antes tinha trazido as mensagens mais recentes recebidas pela rádio. Todas permaneciam intactas numa arrumada pilha sobre a secretária. Mussolini esquecera-se delas ou, mais provavelmente, decidira ignorá-las, por recear o seu conteúdo.
Constituíam com efeito uma leitura preocupante. Os alemães batiam em retirada por toda a parte, lutando numa sangrenta batalha de retaguarda contra o Exército Vermelho nas ruas de Berlim, esforçando-se para atravessar os Alpes antes de serem esmagados pela libertação da Itália pelos Aliados. Génova tinha sido tomada pelos guerrilheiros, e Fiume por Tito. Mântua e Bréscia tinham sido ocupadas pelos americanos, que avançavam a toda a velocidade pela estrada de Bérgamo. Chegariam a Milão dentro de dias, talvez até em menos de vinte e quatro horas.
Salvitti sabia que só tinham um caminho a seguir. Renderem-se aos guerrilheiros ou aos aliados estava fora de questão, pois isso só conduziria à sua imediata execução, enquanto a luta até ao final, ainda que gloriosa, não passaria de um gesto fútil. Tinham de partir imediatamente e tentar alcançar santuário na Suíça. O Duce devia saber isso, mas continuava a protelar, paralisado pela indecisão. Era quase como se estivesse a aguardar qualquer coisa antes de agir.
- Conseguimos chegar até aqui - estava agora Mussolini a dizer. - Nunca me renderei. Nunca. Tenho os homens necessários. Há trinta mil soldados que me são leais aguardando-me no Valtellina. É ali que iremos enfrentar o nosso inimigo, e ali morreremos com honra. É melhor viver um dia como um leão do que mil anos como uma ovelha.
Salvitti olhou-o, tentando perceber se ele teria perdido o juízo. Não era a primeira vez que o Duce falava de fazer finca-pé nas montanhas, mas certamente já devia saber que isso não passava de uma fantasia. Teriam sorte se conseguissem reunir trezentos homens, quanto mais trinta mil. Contudo, a cegueira era o principal ingrediente do carácter de Mussolini, cuidadosamente alimentada pelos aduladores e impostores que o tinham rodeado durante anos. Não havia ninguém que ousasse dizer-lhe a verdade.
O Duce parou por fim atrás da cadeira e fixou em Salvitti o olhar intenso que usava para intimidar os seus oponentes. Parecia ter recuperado um vestígio do seu antigo vigor; uma ténue faísca de esperança parecia ter-se reacendido nas cinzas do seu espírito.
- Está comigo, Seniore? - perguntou.
Salvitti hesitou. A sua lealdade fora sempre inquestionável, mas agora talvez fosse seu dever pôr termo a este disparate acerca do Valtellina. Para o bem de Mussolini, e também para o bem de todos os que restavam.
- Eccellenza... - começou, procurando encontrar as palavras exactas. Mas a frase não chegou a ser completada porque nesse momento a porta do gabinete abriu-se de repente e Luigi Gatti, o secretário pessoal do Duce, entrou a correr.
- Já chegaram, Eccellenza- disse, sem fôlego. -Já estão aqui.
O estômago de Salvitti deu uma guinada súbita, e a onda de choque da náusea dominou-o. Gatti só podia estar a referir-se aos americanos, ou então aos guerrilheiros. Levou a mão à pistola Fixa ao cinto. Contudo, antes de conseguir abrir o coldre de cabedal, um grupo de quatro homens entrou no gabinete atrás de Gatti, e Salvitti viu que se enganara. Os homens eram civis desarmados, chefiados por um padre católico romano. O seu receio transformou-se numa súbita ansiedade. Seria isto o que o Duce estivera a aguardar? Estaria ele pior do que todos pensavam, tendo chamado um padre para ouvir a sua última confissão?
- Eccellenza...
- Obrigado, major. É tudo.
Gatti agarrava com a mão o braço de Salvitti e conduziu-o suavemente para a porta. Salvitti lançou um olhar ao padre e aos seus três companheiros enquanto caminhava para a porta, mas mal teve tempo para lhes fixar os rostos antes de se ver no corredor e a porta do gabinete se fechar prontamente atrás de si. Havia algo de familiar no sacerdote, mas estava certo de que nunca se encontrara com ele, e os outros homens, apesar de usarem sobretudo e chapéu, não lhe pareciam civis. Assemelhavam-se mais a militares.
Percorreu o corredor de volta ao seu próprio gabinete. Olhando pelas janelas do primeiro piso, que davam para o pátio do Palazzo Monforte, viu uma camioneta Fiat com capota de lona a ser descarregada por Camisas Negras; estavam a transferir pesadas caixas de madeira para duas outras camionetas estacionadas próximo da saída do pátio. Uma quarta camioneta, com emblemas alemães nos painéis laterais, cruzou a arcada e entrou no pátio. Um tenente e um pelotão de soldados das SS saltaram do veículo e correram para dentro do edifício.
Estava a passar-se algo, mas Salvitti não sabia o quê. Contudo, sentia-se ofendido por não ter sido informado. Melindrava-o todo aquele segredo, a forma arrogante como Gatti o fizera sair do gabinete do Duce, e lastimava sobretudo a própria intransigência míope de Mussolini que os conduzira à beira do desastre.
A sua lealdade estava a dissipar-se; Mussolini deixara de a merecer. Em face do caos, da incerteza que o cercava, começou a compreender que se não cuidasse dos seus próprios interesses mais ninguém o faria. Ali parado à janela, a observar as idas e vindas das pessoas que cruzavam o pátio, começou a planear a sua fuga.
Saíram de Milão ao princípio da noite, dirigindo-se para Como, a norte. Antes da partida, Mussolini chamou Salvitti ao gabinete e confiou-lhe uma bolsa de cabedal contendo os seus papéis pessoais. O Duce parecia bem disposto, mais optimista do que se apresentara nos últimos dias. Trazia uma metralhadora a tiracolo, mas certamente não sabia utilizá-la, e tinha na mão uma máquina fotográfica que entregou ao seu ajudante.
- Vai tirar-nos um retrato, Seniore. Para assinalar a nossa partida.
Seguiu Mussolini pela escadaria que conduzia ao pátio, no qual uma coluna de camionetas e carros aguardava com a sua escolta de tropas das SS. Os outros líderes da República Fascista de Saló, entre eles Bombacci, Pavolini, Graziani e Mezzasoma, estavam já reunidos em grupo. Mussolini ocupou o seu lugar no meio deles e assumiu a pose heróica que costumava adoptar noutros tempos quando os fotógrafos dos jornais e dos documentários de cinema eram destacados para registar para a posteridade todos os seus trejeitos.
Agora não havia jornalistas: os que não eram completamente estúpidos mantinham-se bem afastados do Palazzo Monfor-te, calculando nervosamente as hipóteses de justificarem o seu débil apoio ao fascismo perante os vingativos guerrilheiros que dentro de pouco tempo iriam controlar a cidade. Salvitti considerava absurdo posar para fotografias quando o Quinto Exército Americano estava apenas a algumas horas de distância.
Mas seguiu as instruções do Duce, prometendo a si mesmo que seriam as últimas a que teria de obedecer.
Terminada a burlesca exibição, Mussolini afastou-se pomposamente da máquina fotográfica, anunciando de forma melodramática: " Para Valtellina!".
Partiram minutos depois numa longa fila de carros e camiões; Luigi Gatti seguia sentado no capô do veículo da frente com uma metralhadora atravessada sobre os joelhos ossudos. Salvitti ia a meio da coluna, conduzindo um dos camiões que tinha visto a serem carregados no pátio da Prefeitura. Atrás de si vinham as individualidades menores da República Fascista, dois camiões com tropas da SS e um Alfa Romeo guiado por um Camisa Negra e trazendo, discretamente escondida na traseira, a amante de Mussolini, Claretta Pettaci.
Eram dez horas quando chegaram à Prefeitura de Como. Mussolini instalou-se no gabinete do Prefeito e teve uma rápida reunião com os ministros que lhe restavam. Havia um ambiente de pânico no local. As linhas telefónicas estavam ainda a funcionar, e a intervalos de poucos minutos chegava um mensageiro apressado que trazia mais más notícias. Os Aliados estavam cada vez mais próximos. Salvitti sentia-se prestes a desfalecer sob o aperto inexorável de um pavor debilitante. A calma que sentira em Milão tinha desaparecido agora que se encontravam em marcha. Os americanos e os ingleses aterrorizavam-no. Eram tropas marcadas pelas batalhas, endurecidas pelo morticínio dos desembarques em Anzio e Salerno, pela carnificina em Cassino e nas linhas Gustav, Trasimene e Gótica. Não seriam misericordiosos com o Duce nem com ninguém capturado na sua companhia. Igualmente preocupantes eram os guerrilheiros. Milão estava já nas suas mãos, e Lecco também, apenas a vinte e cinco quilómetros de distância no lado oriental do lago Como. A rede estava a apertar-se rapidamente, e mesmo assim eles continuavam a adiar. Os nervos de Salvitti estavam prestes a estalar.
Partiram por Fim de Como às primeiras horas da manhã, dirigindo-se para a margem ocidental do lago. Desta vez Salvitti certificou-se de que seguia mesmo na cauda da coluna.
Cinquenta quilómetros ao norte de Como, às portas da aldeia de Musso, foram impedidos de avançar por guerrilheiros da 52ª Brigada Garibaldi. Uma barreira de pedregulhos e árvores caídas tinha sido montada de través na estrada. Não havia maneira de evitá-la. Havia água de um lado, e do outro uma vertente escarpada. Os guerrilheiros eram rudes montanheses, comunistas envergando casacos de cabedal e lenços vermelhos no pescoço. Mal armados com caçadeiras e algumas carabinas Carcano do exército com mais de meio século de idade, não poderiam fazer frente ao destacamento de tropas SS que escoltava a coluna. Mas os alemães não tinham disposição para combater; só queriam ir para casa o mais depressa possível.
O tenente Birzer, que comandava as tropas SS, aproximou-se da barricada para parlamentar com os guerrilheiros. Quando regressou à coluna, dirigiu-se rapidamente ao carro de Mussolini para o informar de que os alemães poderiam passar mas os italianos não.
Os ombros de Mussolini afundaram-se. - Nesse caso - pronunciou em voz baixa -, é o fim.
- Ainda há uma possibilidade de se salvar, Excelência - disse o tenente. - Ponha um dos nossos sobretudos e um capacete. Tentaremos levá-lo connosco.
O Duce recusou. Sabia que não seria possível. A fadiga e a resignação tinham-lhe drenado toda a resistência do corpo debilitado. Mas Birzer persistiu.
- Tem de tentar, Excelência. Devo insistir.
Mussolini encolheu os ombros e cedeu. Deixou que o tenente lhe vestisse um capote de cabo das SS e lhe pusesse um capacete de aço, e a seguir subiu para a traseira de um dos camiões alemães. Estava tão enfraquecido que teve de ser ajudado a acomodar-se num assento atrás da cabina do condutor, onde se deixou cair, fechando os olhos.
A barreira foi levantada e os alemães passaram sem problema. Mas o alívio foi de curta duração porque dois quilómetros mais adiante, em Dongo, os camiões foram novamente impedidos de avançar na praça central da vila, sendo examinados minuciosamente por outros guerrilheiros. Não encontraram nada de suspeito no primeiro camião, mas no segundo o comissário político da brigada parou junto da figura encolhida no recanto dianteiro e examinou-a cuidadosamente. O soldado parecia estar bêbado ou adormecido, com o capacete descaído sobre os olhos.
O comissário sacudiu-o por um ombro. - Deixa-me ver a tua cara - disse em italiano.
O soldado levantou a cabeça e a luz reflectiu-se na pele pálida e nas faces com a barba por fazer. Não ofereceu resistência quando lhe removeram o capacete, revelando a tão conhecida cabeça rapada.
O comissário olhou para ele durante um interminável momento. - Duce - declarou sem emoção. - Temos estado à sua espera.
Salvitti não se encontrava na coluna de viaturas quando esta foi impedida de avançar em Musso. Tinha-a abandonado uma hora antes, ao serpentear pela acanhada estrada que acompanhava o lago. Um pouco antes do alvorecer, com os primeiros raios do sol começando a incidir sobre a superfície da água, deixou que se criasse um intervalo entre o seu carro e o da frente. O intervalo foi-se dilatando gradualmente até que, num ponto onde a estrada se tornava mais tortuosa, perdeu de vista o resto da coluna.
Deixou-se ficar ainda mais para trás, assinalando as povoações por onde passavam. Depois, logo a seguir a Argegno, travou a fundo para permitir que os outros veículos desaparecessem na curva seguinte e depois desviou-se para uma estrada secundária. Sabia que ninguém viria à sua procura. Estavam todos demasiado assustados, demasiado apressados tentando escapar ao avanço dos Aliados, para se preocuparem com um homem e um camião.
Prosseguiu pela estrada secundária até virar para um caminho de terra batida. A distância, com os seus cumes recortados em silhueta contra o céu que clareava, podia ver a cordilheira que assinalava a fronteira com a Suíça.
Os guerrilheiros retiveram Mussolini e a sua amante - capturada em Musso com os outros chefes fascistas - numa remota quinta nas encostas que dominavam o lago Como. O Duce parecia doente. Os seus olhos estavam amarelados e mortiços e, com as faces encovadas e a barba grisalha, parecia um homem de oitenta anos. Claretta tentava animá-lo, mas ele mantinha-se abatido junto da janela do quarto de ambos, recusando-se a falar.
Foi ao final do dia que escutaram o som de passos subindo a escada, alguém que corria apressado. A porta do quarto abriu-se bruscamente e um homem alto de cerca de trinta anos entrou de rompante. Vestia um impermeável castanho e um lenço de pescoço com as cores nacionais de vermelho, branco e verde.
- Rápido - disse sem delonga. - Vamo-nos embora. Mussolini e Claretta olharam-no inexpressivos, ainda a tentar compreendê-lo.
- Pelo amor de Deus, venho salvá-los! - disse o homem, com a sua impaciência a transformar-se em irritação.
- Quem é o senhor? - perguntou Claretta.
- Reunam as vossas coisas. Vamos, temos de apressar-nos. Pegou-lhes pelos braços e quase os empurrou para fora do quarto. Claretta e Mussolini vestiram os casacos com dificuldade enquanto o homem os puxava para fora da casa e pelo carreiro fora. Não havia qualquer sinal dos guerrilheiros.
Desceram desajeitadamente pelo caminho encharcado, salpicando lama sobre os sapatos e as pernas. Claretta tirou os sapatos de salto alto para melhor se equilibrar no escorregadio declive. O homem do impermeável segvirava-os pelos braços, tentando fazê-los andar mais depressa.
Na piazza central de Bonzanigo di Mezzegra pararam para que Claretta pudesse calçar de novo os sapatos. Tinha as meias em farrapos e espapaçadas. Mulheres da aldeia que lavavam roupa no lavadouro de pedra num extremo da praça olharam-nos com curiosidade ao passarem. Um pequeno Fiat negro encontrava-se estacionado ao fundo de um lance de degraus logo abaixo da piazza, com o condutor sentado ao volante e o motor a trabalhar. O homem do impermeável abriu a porta da traseira.
- Para onde vamos? - perguntou Claretta. O Duce parecia atordoado, pronto a fazer o que lhe diziam, mas ela queria mais informações.
- Entrem, por favor. Cada minuto é vital. Os americanos andam por toda a parte à vossa procura.
Empurrou-os para dentro do carro e fechou a porta. O veículo já ia a movimentar-se pela rua abaixo quando o homem abriu a porta do lado do passageiro e saltou para dentro.
Tinham percorrido uma curta distância pela tortuosa estrada quando alcançaram a povoação vizinha de Giulino di Mezzegra. O homem do impermeável fez um sinal ao condutor, que parou junto do portão de uma ampla vivenda.
- Que se passa? - inquiriu Claretta.
- Saiam, por favor.
- Porquê, que aconteceu?
- Temos de esperar aqui, até sabermos como está a estrada para Azzano.
Ajudou-os a sair e fê-los atravessar o portão. Num dos pilares de pedra via-se um desbotado número 14 e as palavras Vil-la Belmonte.
Seguiram ao longo da fachada lateral da casa, que parecia estar encerrada e deserta, com a tinta a soltar-se das portadas de madeira. O jardim estava coberto por ervas daninhas. Trepadeiras e desordenadas tranças de buganvília pendiam das varandas de metal ferrugento. Ramadas de árvores tocavam-lhes na cabeça, forçando-os a baixarem-se para passar por baixo. Nas traseiras da casa a vegetação abria-se de repente para revelar uma gloriosa paisagem do lago Como e dos telhados vermelhos de Bellagio.
- Está bem aqui - disse o homem do impermeável. Claretta voltou-se e reparou pela primeira vez que o homem trazia uma metralhadora.
- Quem é o senhor?
- Sou o coronel Valerio.
Assim que ouviram este nom de guerre, perceberam que se tratava de um guerrilheiro. O rosto de Mussolini perdeu toda a cor. Claretta sentiu as pernas cederem-lhe e teve de encostar-se à parede para não cair.
- Fui mandatado pelo Comité de Libertação Nacional em Milão para vos executar.
Claretta soltou um grito involuntário. Começou a suplicar, tornando-se cada vez mais histérica. Mas Mussolini fê-la calar-se com um gesto brusco. - Basta!
Tomou-lhe a mão entre as suas e olhou-a nos olhos por um momento. Ela soluçava.
- Não, não! Por favor!
- Addio, Clara - disse o Duce.
Endireitou os ombros e voltou-se para enfrentar Valerio. O coronel devolveu-lhe implacavelmente o olhar, e depois levantou a metralhadora e premiu o gatilho.
- Merda! Outra vez não!
Domenico Salvitti acelerou o motor do camião, forçando-o a passar a lomba da rampa antes de puxar o travão de mão e saltar da cabina. O vapor precipitava-se de debaixo do capô numa densa nuvem branca. Penetrou na nuvem e esforçou-se por aliviar o tampão da grelha do radiador. Protegeu o rosto da nova revoada de vapor que saiu a silvar do radiador. Depois abriu o capô e recuou, esperando que o vapor dispersasse.
Avançava com dificuldade. Já por três vezes o motor do camião tinha sobreaquecido. Havia uma fuga no sistema de arrefecimento mas não dispunha de ferramentas que lhe permitissem fazer a reparação. Tinha de se limitar a ir enchendo o radiador com água e rezar para que esta durasse o suficiente para o aproximar mais da fronteira, mas passados uns dois quilómetros aquilo repetia-se.
Pegou num pano oleoso para proteger os dedos e desenroscou o tampão do radiador. O que restava de água e vapor no sistema foi rapidamente expulso. Retirou-se para um penhasco de onde podia observar o vale lá em baixo. Sentou-se na pedra, esperando que o sistema arrefecesse o suficiente para poder introduzir mais um pouco da água que trazia na lata guardada na cabina. Sentia a falta de um cigarro, mas já fumara o seu último Nazionali algumas horas antes.
Precisava de alguma coisa que lhe acalmasse os nervos. Não fazia ideia onde se encontrava. A fronteira tanto podia estar a cinco como a dez quilómetros de distância, ou talvez mais longe ainda, não tinha a certeza. Sabia que havia guerrilheiros nas montanhas, e tinha de contar também com os guardas fronteiriços da Guardia di Finanza. Quanto mais se atrasasse, maiores seriam as hipóteses de o apanharem. Tentou decidir se seria preferível abandonar o camião e prosseguir a pé. Talvez fosse mais rápido, especialmente porque não sabia de nenhuma razão válida para continuar com o veículo.
Subitamente olhou para o camião, lembrando-se de que desconhecia o que se encontrava no seu interior. Até então não lhe ocorrera espreitar, preocupado como estava com a fuga. Levantou-se e aproximou-se da traseira do veículo, soltando as cordas que fixavam as abas de lona e baixando o taipal de madeira. Depois afastou as abas e saltou para dentro da caixa de carga.
Roma, actualidade
Havia ocasiões - quase todas as manhãs, na realidade - em que Elena Fiorini desejava não ter de ver a alvorada ao sair da cama. Que, uma só vez que fosse num dia de semana, pudesse ficar debaixo das cobertas até que a luz do dia não a deixasse dormir mais.
Mal podia imaginar semelhante luxo. Podemos habituar-nos à sensação permanente de exaustão, aos olhos doridos e à cabeça pesada, mas isso não faz com que se tornem mais suportáveis. Continuava a ser um esforço, um acto de autodisciplina masoquista, arrastar-se para fora da cama quando o corpo e a mente suplicavam que os deixassem em paz.
Vestiu o ténue roupão de algodão e arrastou-se até à cozinha. O pavimento de ladrilhos cerâmicos era frio sob os pés nus. Deitou café e água na cafeteira espresso inoxidável e colocou-a em cima do fogão para ferver. Do outro lado da janela também a cidade emergia relutantemente da noite. O nascer-do-sol, apesar do que os turistas e os românticos gostavam de pensar, só muito raramente era de um poético alaranjado. Era cinzento, por vezes lamacento, quase sempre uma decepção enquanto o sol se esforçava por romper a névoa de emanações do trânsito. Abriu a janela. Já havia algo de indolente no ar. Começava a sentir o peso do calor do Verão que dentro de algumas horas seria insuportável.
Entrou no escritório e contemplou a confusão no topo da secretária: uma vastidão de papéis espalhados, relatórios, depoimentos, resumos; o prato manchado com os restos oleosos da insalata mista da noite passada, e o copo e a garrafa vazia de Valpolicella que a recordavam de que andava a beber demasiado. Pôs uma expressão de desânimo e começou a dar uma arrumação aos papéis, separando-os rapidamente em rimas e depois forçando-os a caber na coçada pasta de cabedal que tinha arrumado ao lado da cadeira. Devia pesar dez quilos ou mais. Por vezes pensava que o único exercício que fazia nesses dias era levantar aquela pasta.
O aroma do café chamou-a à cozinha, e a seguir, de espresso na mão, dirigiu-se à minúscula casa de banho, onde se lavou e aplicou a maquilhagem. A roupa de trabalho já estava estendida sobre a cama do quarto de hóspedes, o qual, como nunca tinha hóspedes, transformara num quarto de vestir. Blusa branca, saia e casaco num sóbrio tom escuro: o odioso mas praticamente obrigatório uniforme da sua profissão. Antes de se deitar, nunca se esquecia de escolher a roupa que iria vestir no dia seguinte, um exemplo de eficiência que era apenas contrariado pelo facto de normalmente mudar de ideias à última hora, decidindo usar algo completamente diferente.
Vestiu a saia e examinou-se no espelho alto da parede, tentando decidir se lhe faria as ancas parecerem demasiado volumosas. Nunca fora magra, pelo menos a partir da adolescência, mas preocupava-se com o peso, convencida de estar a transformar-se lentamente numa típica mamma italiana, sem .a justificação de primeiro ter tido filhos. Era nestas ocasiões que mais sentia a falta do marido - possivelmente as únicas ocasiões em que lhe sentia a falta -, quando necessitava de alguém que contrariasse os receios que nutria sobre a sua figura, que lhe assegurasse que não mostrava indícios de celulite, apesar de já ter trinta e cinco anos e de bem os sentir. Precisava de um homem que lhe dissesse que tinha bom aspecto, que lhe desse uma opinião sobre o que deveria vestir, se bem que nunca tivesse atribuído muita importância às opiniões expressas por Franco quando não correspondiam às suas. O papel dele tinha sido aprovar as escolhas dela, reforçar-lhe o amor-próprio, e não dizer-lhe o que deveria fazer.
A saia, decidiu, seria aceitável esta manhã. Mas a blusa tinha de ser substituída. Escolheu outra e vestiu-a, adicionando um lenço de seda turquesa e uma abraçadeira de prata no pescoço para conferir um toque de individualidade. Retirá-los-ia se tivesse de comparecer no tribunal, para que o juiz não se deixasse confundir pelo brilho da sua vestimenta.
Sentiu qualquer coisa a encostar-se-lhe à perna e viu que era a Livia, a anafada e feliz gata que consigo compartilhava o apartamento mas que só ocasionalmente se dignava reconhecer a presença da sua senhoria. Não lhe pegou ao colo. Não queria pêlos cinzentos agarrados à saia, em parte porque eram desagradáveis à vista, e em parte também porque não queria que ninguém do escritório - com a excepção de alguns amigos mais chegados - soubesse que tinha uma gata em casa. Odiava o estereótipo da mulher que vivia sozinha com um gato, as conotações insultuosas da solidão e do desejo frustrado de descendência, que não se aplicavam no seu caso. Na realidade não desejara ter o animal, que lhe tinha sido impingido por uma tia desejosa de se ver livre de uma ninhada não planeada, mas acabara por se habituar. Era asseada e calma, em contraste com os sarnosos felinos que encontrava nas ruas, os esqueléticos gatos de olhos duros que procuravam comida nos montes de lixo ou que sibilavam aos grupos de turistas no Fórum romano.
Pegou na sua bojuda pasta, fazendo uma careta quando lhe embateu no joelho, e dirigiu-se à porta da escada. Lívia foi atrás dela e ficou a vê-la sair, sem mostrar desejo de a seguir. Livia nunca abandonava o apartamento. Elena por vezes pensava se isso não seria uma crueldade, mas, por outro lado, os gatos não eram gente. Se estivessem confortáveis e bem alimentados, não sentiam desejo nem inclinação para aventuras. Era também o que Elena pretendia: uma existência calma e sem grandes emoções. Sentia-se demasiado cansada para aventuras.
Andy Chapman recostou-se nas almofadas e viu Gabriella regressar do duche. Ela parou aos pés da cama e abriu a toalha, dobrando-se ligeiramente para secar-se.
O sol entrava por entre os intervalos das persianas, incidindo-lhe sobre o corpo esbelto. Levantou a cabeça e olhou-o, totalmente alheada da sua nudez.
- Estás a apreciar o espectáculo?
Ele sorriu preguiçosamente. - É muito melhor do que olhar para a televisão ao pequeno-almoço.
- Achas que devo considerar isso um elogio? Voltou-se para o olhar de frente, esfregando a toalha sobre os seios. Gostava que a observassem. Se não fosse por isso, para que voltaria ela ao quarto para secar o corpo com a toalha?
- Chega-te aqui - disse Chapman -, que eu faço-te o melhor dos elogios.
Gabriella deitou-lhe um olhar de pretenso espanto. - O quê? Outra vez?
- Ainda há tempo.
- Tenho de apanhar o comboio.
- Não demoramos muito.
- Fala por ti, carino - disse, e Chapman riu-se.
Vestiu as cuecas e o soutien, olhando-o provocantemente. Ele não deixou de olhar para ela, pensando que por vezes era mais erótico ver uma mulher a vestir-se do que a despir-se. Gabriella enfiou pela cabeça o vestido leve sem mangas e deixou-o baixar lentamente sobre o corpo, alisando as rugas com as palmas. Depois passou rapidamente um pente pelos cabelos e viu-se ao espelho.
- Que tal pareço?
- Sabes bem como pareces - replicou Chapman.
- Por vezes seria agradável se mo dissesses.
- Pareces um milhão de liras.
Ela pegou numa almofada e atirou-lha. Ele apanhou-a em frente da cara. Podia sentir o aroma dela na fronha da almofada.
- Fizeste café? - perguntou ele.
- Está na cozinha.
- Traz-me uma chávena antes de saíres.
- Tenho de ser eu a fazer tudo?
Chapman sorriu. - Bem, tudo não. Já te esqueceste, por acaso?
Ela saiu e regressou com o espresso numa minúscula chávena de porcelana. Colocou-a na mesa de cabeceira e inclinou-se para lhe dar um beijo apressado. Chapman tentou agarrá-la, mas ela foi mais rápida. Recuou e pegou na mala de mão e na pequena maleta de viagem.
- d vediamo, até à vista - disse ela num tom casual.
- Para a semana?
Parou e voltou-se para ele. - Tudo depende do meu marido.
Chapman confirmou com um aceno e viu-a sair. Durante uns momentos quase se esquecera de que ela era casada.
Dirigiu-se a pé para o trabalho através das ruas estreitas e dos vicoli- os apertados becos - de Trastevere, o antigo bairro medievo no qual tinha alugado o apartamento. Tinha um carro, estacionado ao acaso numa piazza próxima, mas nunca se atreveria a usá-lo para ir para o escritório. Uma hora num venenoso engarrafamento do trânsito romano não era um modo aconselhável de se começar o dia.
Nos tempos imperiais, Trastevere tinha sido a zona das docas de Roma, a margem do rio na qual se alinhavam armazéns e cais onde eram descarregados os navios que traziam cereais e azeite e especiarias e um milhar de outros produtos. Era então um gueto para estrangeiros e imigrantes, um viveiro de pátios e diminutas casas, antros de beberricação e bordéis para onde os marinheiros se dirigiam para longas noites de libertinagem com raparigas vindas da Síria e do Levante. Ainda havia estrangeiros no bairro - moradores permanentes, visitantes de passagem ou turistas que aqui vinham à noite para comer em restaurantes dispendiosos e para que as suas malas de mão lhes fossem roubadas por jovens deslocando-se de Vespa.
Chapman gostava do carácter do local, das paredes revestidas de trepadeiras, das ruas pavimentadas com pedras arredondadas, das praças abarrotando de gente e das igrejas frescas e desertas. Como o resto da cidade, o bairro estava atulhado de carros e os seus habitantes sufocavam aos poucos debaixo de uma nuvem de monóxido de carbono, mas ele acostumara-se àquele ar de boémia, à espalhafatosa devassidão dos seus edifícios, e não se habituaria a residir noutro local. Tinha os seus inconvenientes, claro. O ruído, os turistas, os ladrões e os traficantes de droga que tardavam pelas praças, para não mencionar os ostentosos executivos e corretores de Bolsa que se tinham mudado para aqui nos anos oitenta e que não eram muito diferentes dos criminosos, excepto que os seus métodos especiais de roubo e extorsão eram legais.
Atravessou o Tibre pela Ponte Sisto antes de penetrar no labirinto de ruas sombrias em redor do Campo de' Fiori, esquivando-se ao trânsito no Corso Vittorio Emanuele, passando depois pelo Panteão e pelo edifício do Parlamento em Montecitorio. Na Piazza San Silvestro engoliu outro espresso num bar e a seguir dobrou a esquina dirigindo-se à Stampa Estera, o clube de imprensa estrangeira que lhe servia de poiso.
Subiu a escada até junto da sua secretária e conferiu os faxes noticiosos para se actualizar sobre o que estava a acontecer no mundo. Depois abriu o correio particular e acomodou-se para dar uma vista de olhos aos jornais italianos, procurando as notícias que pudessem interessar a Londres, que peças poderia escolher e adaptar ou investigar. Os jornalistas italianos que trabalhassem para ele, mais as agências e os diligentes jovens da Associated Press.
Estava ali há meia hora ou menos quando o telefone tocou. Levantou o auscultador.
- Pronto.
- Andy, daqui é o Enzo - disse a voz ao telefone, em italiano. - Estás ocupado?
- Nada de especial. Porquê?
- Morreu o Padre Vermelho. Vou buscar-te daqui a cinco minutos.
Q lhe aconteceu? - perguntou Chapman quando pararam na luz vermelha, no topo da Via dei Tritone.
Enzo Mattei encolheu os ombros, sem querer comprometer-se. - Não sei. Eles não disseram.
Chapman sabia que não devia perguntar quem seriam esses "eles". Enzo dispunha de contactos em todos os níveis do sistema de justiça criminal e nunca revelaria quem o contactara.
- Acidente? Causas naturais?
- Não me parece. Está lá uma equipa "cena-do-crime" vinda da Questura.
Chapman fez um aceno e deitou um olhar rápido ao amigo. Enzo estava excitado, via-se bem. Havia qualquer coisa no seu porte que o atraiçoava. A posição vigilante e ligeiramente recurvada sobre o volante, a impaciência reflectida nos olhos enquanto esperava que a luz mudasse. Certamente já cobrira centenas de homicídios no decurso da sua carreira, e mesmo assim ainda encontrava algo de emocionante em cada novo caso que lhe surgia. O Padre Vermelho era diferente, claro, mas apesar disso a reacção do amigo perturbava-o. Havia qualquer coisa de doentio no fascínio provocado por uma morte violenta.
Percorreram rapidamente a Via Barberini e atravessaram o cruzamento com a Via XX Settembre, ultrapassando um autocarro próximo da Piazza della Repubblica num exemplo de condução imprudente, mesmo em confronto com os padrões romanos. Chapman fechou os olhos, tentando deduzir o caminho que percorriam usando apenas os outros sentidos. Seguiam em linha recta, e por isso calculava que se dirigiam para Termini, a estação central do caminho de ferro, conjectura que foi confirmada ao escutar o ténue eco do sistema de comunicações públicas das Ferrovie dello Stato que anunciava uma alteração de plataforma.
Viraram à direita, e depois quase imediatamente à esquerda, desacelerando. Abriu os olhos e viu os carros da polícia parados à frente deles. Enzo encostou onde podia e abandonou ilegalmente o carro, praticamente debaixo do nariz de um polícia de uniforme que nem olhou para eles, pois seria abaixo da sua dignidade registar uma simples infracção às regras do estacionamento - função dos Vigili Urbani e não da polícia -, e para mais sabendo quem Enzo era. Enzo Mattei conhecia quase todos os polícias da cidade, e uma boa parte deles estavam na sua lista de Boas Festas, ou tinham esperanças de vir a estar.
- Vamos - disse ele, caminhando apressado rua acima até ao local onde a polícia tinha delimitado com fita plástica uma área em redor de um delapidado edifício de quatro pisos.
Era um bairro degradado, como a maioria dos bairros próximos das estações do caminho de ferro. Hotéis rascas e pensioni faziam concorrência aos pardieiros. Montes de lixo apodreciam nas valetas em frente dos quarteirões de prédios de apartamentos cujos moradores - na sua maioria imigrantes, e todos eles pobres - viviam compactados em diminutos compartimentos, duas ou três famílias em cada piso, partilhando cozinhas, casas de banho e o fedor comunitário dos esgotos.
Um corpo ensacado em plástico estava a ser removido para uma ambulância na presença de uma confusa mistura de vizinhos, transeuntes e polícias enfastiados.
- Bolas! - exclamou Enzo. - Podiam ao menos ter esperado por nós. - Gostava sempre de dar uma olhadela ao cadáver antes de ser removido. Isso permitia-lhe aparentemente apreciar melhor cada caso.
Passou por baixo da fita plástica de contenção dos espectadores. Um poliziotto de uniforme veio impedir-lhe o avanço, mas parou logo ao reconhecê-lo. Fez-lhe um sinal para avançar, mas examinou Chapman mais de perto.
- Tudo bem, ele vem comigo.
Seguiu Enzo por baixo de uma arcada de pedra que dava acesso a um pátio de aspecto desprezível. Por cima o céu estava quase todo encoberto pelas cordas de roupa a secar. Havia no ar um cheiro a cebola frita e a especiarias exóticas, uma mescla de aromas mais africana do que italiana.
Um amplo lanço de escadas desaparecia no interior do edifício. Num dos recantos envoltos em penumbra ao fundo da escada viu uma seringa hipodérmica abandonada. Ao meio da caixa da escada havia um poço de elevador cercado por uma vedação de rede de arame, mas o elevador estava imobilizado num dos andares superiores. Enzo premiu o botão de chamada, mas não aconteceu nada.
- Os sacanas prenderam as portas abertas. Temos de subir a pé.
Chapman sorriu. Enzo desprezava qualquer exercício, a não ser que pudesse ser executado dentro de um carro, ou então numa cadeira de braços a olhar para a televisão. Qualquer coisa que fosse mais cansativa do que isso, deixava-a para os atletas especializados.
Subiram lentamente os degraus, pausando em cada patamar para que Enzo pudesse recuperar o fôlego enquanto fingia examinar os cartões com os nomes dos inquilinos junto à porta de cada apartamento. Quando alcançaram o segundo piso ouviram uma actividade febril acima de si. Ouviram passos no piso de pedra, e a seguir os cabos do elevador começaram a zunir enquanto alguém descia.
Encontraram a porta de um apartamento aberta no terceiro piso. Entraram sem qualquer dificuldade e pararam no corredor. As portas interiores estavam todas escancaradas e diversos homens envergando impecáveis fatos-macaco brancos moviam-se de um compartimento para outro com sacos, pincéis, pós para colheita de impressões digitais e todos os demais instrumentos da ciência forense. Nenhum deles se dignou olhá-los duas vezes.
Era um apartamento escuro, mobilado com simplicidade, com soalhos de madeira polida pelos quais se distribuíam tapetes bastante coçados: não era especialmente espaçoso, mas tinha um ar de largueza por se encontrar parcamente mobilado.
Não havia qualquer móvel no corredor e, segundo Chapman podia ver através das portas abertas, havia poucos nas várias divisões. O quarto de dormir continha uma antiga cama de mogno e uma simples cruz de madeira na parede acima, e isso parecia ser tudo. Mostrava-se tão despido e funcional como a cela de um monge.
Percorreram o corredor até chegarem à sala, na qual um grupo de homens de fato amarrotado - detectives da Questura, a sede da polícia - conversavam com um dos membros da equipa de "cena-do-crime". Enzo deixou o olhar vaguear pelo compartimento, mantendo-se afastado do bulício mas registando tudo o que pudesse interessar-lhe. Uma cadeira de madeira estava derrubada ao centro da divisão, e num tapete próximo havia uma mancha que podia ser de sangue. Tirou do bolso um bloco de apontamentos e escrevinhou qualquer coisa.
Um dos detectives - de fato cinzento e com uma gravata de um amarelo intenso - olhou em volta e reparou neles. Cumprimentou Enzo com um aceno e continuou a conversar com os colegas. Chapman achava quase inacreditável a facilidade com que se podia ingressar numa cena de homicídio sem que ninguém impedisse. Era totalmente contrário à sua experiência sobre as reportagens de crimes no Reino Unido. Enzo tinha o cuidado de não interferir, mas, mesmo assim, as liberdades que lhe concediam eram extraordinárias, reflectindo não só a sua intimidade com os elementos da polícia mas também a generosidade dos cofres do jornal em que trabalhava no que dizia respeito às suas contribuições para os elementos apropriados na força policial.
O detective com a gravata amarela aproximou-se e Enzo perguntou-lhe o que acontecera.
- Não sabemos ainda.
- Causa da morte?
- Idem.
- Vá lá, Guido.
- E verdade. Só saberemos depois da autópsia.
- Quando foi que ele morreu?
- Durante a noite passada, diz o doutor. Talvez ao princípio da madrugada.
- Quem encontrou o corpo?
- Uma freira. Uma das irmãs que... - Calou-se de repente, mudando de expressão, exibindo uma mistura de culpa e preocupação, como um garotito apanhado a fazer qualquer coisa que não devia.
Chapman deu meia-volta e viu uma mulher parada à porta. Estava acompanhada por um homem alto, de aspecto duro, com o uniforme da Polizia Giudiziaria, a polícia judiciária que servia a magistratura, mas Chapman sabia que era a presença da mulher que fizera o detective calar-se. Tinha uma estatura mediana, cabelo castanho-escuro - aparado ao nível dos ombros - penteado a direito sobre um par de atraentes olhos verdes, e uma figura suficientemente cheia para ser roliça sem parecer nédia. Ressumava um calmo mas acentuado ar de autoridade.
Olhou para Enzo franzindo a testa. - Quem o deixou entrar? - perguntou aborrecida, como se isto já tivesse sucedido noutras ocasiões.
Enzo guardou o bloco de apontamentos e moveu-se de forma desastrada. - Estava já de saída, dottoressa.
- Bem sei que estava.
Elena parecia mais decepcionada do que zangada. Detestava quebras de protocolo, não porque tivesse a mania dos regulamentos mas porque eram má política. Provocavam um trabalho policial de fraca qualidade, e isso dificultaria o cumprimento dos seus deveres.
- Contudo, já que estou aqui, talvez quisesse prestar alguma declaração para o jornal? - disse Enzo, arriscando-se.
Os olhos frios de Elena fixaram-se nele. - Se eu tiver algum comentário a fazer, fá-lo-ei mais tarde, pelas vias normais.
- Certamente.
Estava a olhar para Guido. - O senhor conhece bem as regras a respeito das informações à imprensa, detective.
Guido olhou para o chão, murmurando qualquer coisa que ninguém percebeu. Chapman afastou-se discretamente, saindo da linha de fogo. Mas Elena não adiantou mais. Já tinha dito o que pretendia.
- Buon giorno, signor Mattei - disse a Enzo. - Espero não tornar a vê-lo tão perto da cena de um crime.
Ele levantou a mão, conciliador. - Farei com que isso não aconteça de novo, dottoressa.
Ela levantou os olhos para o tecto. - Vá-se embora. - Afastou-se para o deixar passar, ficando a observá-lo para se certificar de que ele saía do apartamento, e a seguir voltou-se para os detectives. Estes aprumaram-se, tentando parecer interessados, profissionais. Chapman, parado próximo da janela e tentando não dar nas vistas, quase sentiu pena deles.
- Pois bem, que temos nós aqui? - disse Elena.
Fez-se silêncio. Depois Guido respondeu de modo soturno: - Tivemos uma chamada, há cerca de uma hora.
Sentia-se envergonhado por ter sido repreendido na presença dos colegas. Elena não ligou. Estava habituada a um certo grau de hostilidade, de desrespeito velado. Os polícias não gostavam de se submeter a uma mulher, mesmo que fosse uma magistrada. Sabia que diziam mal de si pelas costas, que se melindravam com o poder que ela exercia. Infelizmente para o seu sexo, as qualidades que num homem eram aceites como uma força, numa mulher eram consideradas uma prepotência.
- Uma chamada de quem?
- De uma freira. A Irmã Anna Maria. Ela ajudava o Padre Vivaldi no seu trabalho. Veio cá acima esta manhã e encontrou a porta do apartamento entreaberta. Entrou e encontrou-o no chão, morto, ali perto da cadeira.
Elena examinou rapidamente a sala. Iria receber mais tarde os relatórios da polícia e da medicina-legal. Para já pretendia apenas um panorama geral.
- Qual é a avaliação preliminar do modo como morreu? Guido encolheu os ombros. - Achava-se muito maltratado.
Estava completamente despido e tinha sido agredido. Havia marcas de tortura no corpo! Queimaduras de cigarros, segundo parecia.
Elena estremeceu. Estavam a falar de um padre, de um devoto servo de Deus. Quem faria uma coisa daquelas a um padre?
- Essa freira, terá prestado declarações... - Elena interrompeu o que estava a dizer, tendo reparado subitamente no homem próximo da janela. Afastado dos outros detectives, escutava atentamente a conversa sem participar nela. Já o tinha visto anteriormente, mas só agora constatava que não o conhecia.
- Quem é aquele? - perguntou a Guido. - Pertence à Questura? - Não, veio com o Mattei.
Os lábios de Elena comprimiram-se e os olhos semicerraram-se furiosamente. - O senhor é jornalista?
Chapman devolveu-lhe o olhar sem vacilação, com uma expressão de inocente espanto no rosto. - Sou, julgava que sabia.
- Como se chama? Chapman disse-lhe.
- É colega de Enzo Mattei? Mandei-o embora. Por isso, por que é que ainda está aqui?
- A mim não disse nada.
- Não se arme em esperto - ripostou Elena, irada. - Os seus papéis. - Estendeu a mão.
Chapman entregou-lhe toda a documentação que trazia consigo: a carteira de jornalista, o seu permesso di soggiorno ou autorização de residência, todos os documentos exigidos pelo Estado italiano para comprovar a sua existência.
Ela estudou-os atentamente. - O senhor é inglês?
Chapman não respondeu.
- Fiz-lhe uma pergunta.
- Sou. Creio que é o que diz aí.
Havia nele um ar de preguiçosa indolência que a irritava; o seu ar calmo, a expressão semidivertida no rosto.
- Bem, signor... Chapman - disse ela friamente -, não sei o que está habituado a fazer no seu país, mas em Itália não permitimos que os jornalistas se intrometam na cena de um crime.
- Eu não me intrometi em coisa nenhuma.
- Nem que escutem conversas oficiais entre a polícia e um magistrado. Já tenho o seu nome. Terei de pensar se devo tomar alguma medida em relação ao senhor.
; Sabia que estava a parecer pomposa, petulante, mas ele ir] ritara-a bastante.
- Conforme desejar, dottoressa - replicou ele delicadamente.
Saiu lentamente da sala. Elena ficou a observá-lo, franzindo os lábios. Não iria tomar qualquer medida contra ele, evidentemente, e ele sabia-o. Isso irritava-a ainda mais.
Enzo estava à espera dele no pátio.
- Soubeste alguma coisa de interesse?
- Nem por isso. Correram comigo cedo de mais.
- Vamos tomar qualquer coisa.
Atravessaram a rua e encaminharam-se para um bar fronteiro; Enzo pediu um caffè corretto, um espresso com um pouco de fortíssima grappa. Chapman pediu uma água mineral pois já tinha bebido demasiado café para um só dia.
- Como consegues beber essa zurrapa tão cedo? - perguntou a Enzo quando o empregado colocou a chávena no balcão à sua frente.
- Devias experimentar. Provoca um choque no sistema. Cafeína e álcool põem o cérebro a funcionar. - Deu um sorvo no café e passou a língua pelos lábios. - Então o que é que conseguiste escutar?
Chapman contou-lhe o que o detective dissera a respeito do corpo despido do padre, das marcas de tortura.
-Jesus! - exclamou Enzo. - Que coisa terrível!
Parecia genuinamente chocado, uma ocorrência rara, considerando-se as cenas desagradáveis que testemunhava todos os dias no exercício da sua profissão.
Enzo era normalmente mordaz a respeito do clero, mas, como a maioria dos romanos - até os mais cínicos -, tinha um profundo respeito pelo Padre António Vivaldi. II Prete Rosso, o Padre Vermelho, geria - ou melhor, gerira - uma instituição de caridade destinada aos sem-abrigo, àqueles desgraçados que passavam as noites e os dias encostados às paredes da estação a pedir esmola, a esquadrinhar os caixotes de lixo à procura de qualquer coisa que pudessem comer, bebendo vinho ordinário para amortecer a dor da sua vida. O Padre Vivaldi e a sua equipa de religiosas tinham criado um refeitório destinado a estes abandonados pela sorte, oferecendo almoço ou jantar a quem necessitasse. Por outro lado, a Compassione, assim chamava a sua obra, tinha um programa de reabilitação de drogados e fornecia dormidas num albergue instalado nas proximidades do Tibre.
A imprensa italiana, que gostava muito de inventar alcunhas, tinha-lhe dado o nome de II Prete Rosso, inspirado no compositor e padre veneziano do mesmo nome, excepto que o Vivaldi músico devera a sua alcunha à cor do cabelo, enquanto o Vivaldi padre mais recente fora assim alcunhado devido à cor das suas inclinações políticas. Era um socialista à moda antiga, não um membro comprometido do antigo Partido Socialista Italiano - cujos dirigentes e deputados desprezava por os considerar oportunistas e interessados apenas em encher os bolsos - mas sim um autêntico socialista que acreditava na igualdade e na justiça.
Crítico sem rodeios da riqueza do Vaticano e das suas actividades financeiras - que comparava, de modo controverso, aos vendilhões do templo -, sempre vivera uma existência de simplicidade espiritual e temporal. Protestava frequentemente contra a pompa e extravagância da Igreja Católica organizada, e contra aqueles que definia como os "dignitários mimados" da Cúria romana. Comentários deste teor não o tornavam num filho dilecto da Santa Sé, que em numerosas ocasiões tentara discipliná-lo sem qualquer efeito. Vivaldi ignorava-os simplesmente e prosseguia o seu trabalho, confiante de que a Igreja em geral, e também o povo italiano - que muito apreciava um padre com personalidade própria -, apoiavam aquilo que ele simbolizava. A sua morte, particularmente devido à sua natureza violenta, iria chocar e entristecer toda a cidade. Enzo continuava a remexer o seu café, mais para dar aos dedos algo que fazer do que por precisar de ser mexido. Era uma pessoa irrequieta, sempre em movimento, sempre à procura de alguma actividade que queimasse uma parte da sua energia em excesso.
- Disseram mais alguma coisa?
Chapman abanou a cabeça. - A mulher deu comigo ali parado antes que eu pudesse apanhar mais detalhes.
- Foi chata contigo?
- Nem por isso. Acho que estaria por esta altura numa cela da polícia, ou então no hospital, se ela resolvesse ser chata comigo.
Enzo sorriu. - Ela é dura.
- Quem é, afinal?
- Chama-se Elena Fiorini. Pertence ao pubblico ministero.
- É jeitosa.
- Não é para ti, meu amigo.
- Não tinha aliança.
- Reparaste nisso} - Havia uma sugestão de incredulidade na voz de Enzo. - Enquanto apanhavas uma descompostura e um pontapé no rabo?
- Sabes como sou, gosto delas tesas e mandonas.
Enzo sorriu. - Conheço vários que ficaram com as mãos queimadas nela. E não só as mãos.
- Verdade?
- É rija como poucos. Os polícias detestam trabalhar nos casos que lhe são distribuídos.
- E difícil de aturar?
- Não, é só muito meticulosa. Obriga-os a trabalhar como deve ser. Não gostam nada disso.
Enzo acabou de beber o seu café. - Terminaste? Então vamos ver o que descobrimos aqui pelas vizinhanças. Veremos se conseguimos desenterrar alguma coisa antes que a polícia nos dificulte o trabalho.
A freira estava calma, mas demonstrava indícios de angústia. Estava sentada muito direita numa cadeira de madeira no escritório da Compassione, no rés-do-chão do prédio. Tinha as pernas muito juntas e as mãos no colo com os dedos firmemente entrelaçados. Elena entrou acompanhada por Gianni Agostini, o elemento da polícia judiciária que estivera com ela na cena do crime. Achou graça ao reparar que Agostini tocava discretamente nos testículos, um ritual supersticioso entre os italianos quando confrontados com alguma freira. Elena dispensou a mulher-polícia que tinha estado a fazer companhia à freira e puxou uma cadeira para si.
- Irmã Anna Maria? Chamo-me Elena Fiorini e trabalho no gabinete do Ministério Público. Este é o inspector Agostini. Tenho de lhe fazer algumas perguntas. Espero que não sejam muito penosas para si. Está disposta a isso?
- Estou - respondeu a Irmã Anna Maria com voz rouca. Aclarou a garganta. - Sim, estou bem.
- Poderemos fazer isto mais tarde, se preferir.
- Não, prefiro ficar já despachada.
- Muito bem. Estou certa de que isto deve ter sido um choque para si, Irmã. Talvez possa contar-me tudo o que se passou esta manhã.
A freira respirou fundo e começou a falar numa voz calma, quase excessivamente calma, como se tentando desesperada-mente controlar as suas emoções.
Chegara ao escritório da Compassione pouco depois das oito horas. Era sempre a primeira a chegar. Uma funcionária laica vinha mais tarde para tratar da contabilidade e dos assuntos de administração geral, mas a Irmã Anna Maria era responsável pela abertura do escritório e da cozinha onde preparavam as refeições para os necessitados.
- A primeira coisa que faço é preparar o pequeno-almoço para o Padre Vivaldi. Só um caffe latte e um pouco de pão com doce. Compro os pãezinhos na padaria no caminho para cá. O Padre Vivaldi chega habitualmente às oito horas, vindo do apartamento lá em cima, mas esta manhã... - Fez uma pausa. - Esta manhã não chegou.
- Isso já acontecera alguma vez? - perguntou Elena.
- Não, que me lembre. Era sempre muito pontual. Esperei por ele durante vinte minutos e depois fui lá acima. Pensava que teria saído por qualquer motivo, deixando-me algum recado na porta.
- Ele costumava sair?
- Uma vez por outra. Tinha família nos Abruzzi. Mas dizia-me sempre com antecedência quando ia visitá-la.
- São eles os seus parentes mais próximos?
- Acho que sim. Tinha uma irmã em Paganica, perto de L'Aquila.
Elena deitou um olhar a Agostini, que estava a tomar notas sobre o joelho. Ele fez-lhe um aceno e disse: - Vou tratar disso.
- Continue, Irmã - disse Elena, observando a freira. Era jovem, talvez perto dos trinta anos, com pele pálida e óculos de aros dourados. Tinha um vestido cinzento e uma touca branca que lhe cobria o cabelo mas não o pescoço. Tinha um aspecto simples, mas não era feia. Tentou imaginar, como sempre fazia ao encontrar uma freira, o que a teria levado a professar.
- Quando cheguei lá acima, reparei que a porta do apartamento estava entreaberta. Bati e chamei-o, mas não tive resposta. Fiquei sem saber o que fazer. Pensei que talvez alguém tivesse arrombado a porta durante a noite. Esta zona não é muito agradável e, bem, há por aí algumas pessoas que não são muito respeitadoras da lei.
Lançou-lhes um rápido olhar apologético pela sua falta de caridade cristã e prosseguiu: - Empurrei a porta e entrei. A porta do quarto estava aberta e por isso vi que não estava deitado. Depois entrei na sala de estar e... - engoliu em seco - e ele estava ali... no chão.
A boca começou a tremer-lhe. Retorceu os dedos entrelaçados no colo e mordeu o lábio, mas as lágrimas já lhe corriam pelo rosto.
- Desculpem... É só que...
- É melhor fazermos aqui um pequeno intervalo - disse Elena. Levantou-se e fez meia-volta, para dar à freira uma oportunidade para se recompor. Gianni Agostini saiu com ela do escritório e aguardaram por algum tempo na exígua zona de refeitório ao lado da cozinha. Mesas de tábuas apoiadas em cavaletes e bancos corridos de madeira alinhavam-se no compartimento, que exalava um acentuado odor a cantina: alho e óleo de fritar, e alimentos ressessos.
- Deve ter sido terrível para ela deparar com o corpo - comentou Agostini.
- Também acho. Isto vai ser complicado, Gianni. - Não se referia apenas à entrevista com a Irmã Anna Maria. Referia-se ao caso em si.
Subitamente ouviram vozes no pátio. Pesados passos no pavimento de laje, e três freiras irromperam pela porta, perseguidas por um irado polícia.
-Já lhes disse - vinha ele a gritar. - Não podem entrar aí.
A freira que vinha na frente viu o uniforme de Agostini e aproximou-se. - É o senhor que manda aqui?
Era uma imponente matrona de cinquenta e tantos anos, de áspero cabelo grisalho - como um novelo de palha-de-aço - repuxado para trás e preso acima do pescoço por uma braçadeira de metal. O rosto era bochechudo e rosado mas nada tinha de benigno. Havia uma impressão de dureza por baixo daquela carne branda, um desprezo por meias-palavras, que fazia Elena recordar-se da Madre Superiora do colégio católico que frequentara.
- Posso ajudá-la, Irmã? - disse Agostini com suavidade.
- Que se passa aqui? - quis saber a freira. - Por que razão não queriam deixar-nos entrar nas nossas próprias instalações? Que disparate é este a respeito do Padre Vivaldi? Não pode ser verdade.
- Lamento dizer-lhe que é verdade. O Padre Vivaldi foi encontrado morto esta manhã.
A freira ficou a olhá-lo, de boca aberta. Recuou um passo e deixou-se cair num dos bancos de tábuas. As outras duas freiras, ambas mais jovens, apoiaram-se mutuamente, com o rosto paralisado numa contracção de choque.
- O apartamento do Padre Vivaldi e o escritório desta instituição ficam selados até completarmos a investigação - anunciou Agostini.
As freiras pareciam não o terem ouvido, olhando agora umas para as outras. As duas mais novas sentaram-se pesadamente. Havia lágrimas nos seus olhos.
- Não, não pode ser! O Padre Vivaldi não! - exclamou uma delas, olhando com expressão suplicante para Elena e Agostini, como se estes pudessem mudar de opinião e dizer-lhes que não passava tudo de um embuste.
Elena sentiu um movimento atrás de si. A Irmã Anna Maria entrou na área das refeições e dirigiu-se às duas freiras mais novas que envolveu num abraço, ficando as três a soluçar. Elena voltou-se para a freira de cabelos grisalhos.
- Quem encontrou o corpo foi a Irmã Anna Maria. Vai precisar do vosso apoio nos próximos dias.
A freira fez um aceno de compreensão, ainda a digerir a má notícia. Formavam-se perguntas nos seus lábios, mas as palavras não saíam. Elena deu-lhes resposta sem necessidade de serem formuladas.
- Não conhecemos a razão. De momento sabemos muito pouco. Lamento não poder ajudá-la mais.
A freira lançou um olhar às colegas e depois voltou a olhar para Elena. - O refeitório. Temos de arranjar alguma coisa. As pessoas daqui dependem de nós.
Parecia calma, alheada do que tinha acontecido, mas Elena sabia o que ela estava a fazer. As freiras estavam acostumadas a enfrentar as grandes perdas e sabiam que, perante um sofrimento profundo, era importante encontrar uma actividade rotineira que lhes ocupasse o pensamento.
- O Padre Vivaldi havia de querer que déssemos continuidade ao seu trabalho - declarou a Irmã dos cabelos grisalhos.
Elena pensou um pouco no pedido antes de concordar. - O escritório tem de ficar fechado, mas não vejo problema em abrirem a cozinha.
A freira ergueu-se do seu banco. - Irmãs, temos muito que fazer.
A Irmã Anna Maria trocou algumas palavras de consolo com as colegas e em seguida regressou ao escritório. Secou as lágrimas com um lenço e voltou a cruzar as mãos sobre o colo.
- Estou pronta para continuar.
Elena sentou-se à sua frente e Agostini pegou de novo no bloco de apontamentos.
- Depois de ter encontrado o corpo do Padre Vivaldi - prosseguiu Elena -, que fez a seguir?
- Que fiz? - A freira, pouco à vontade, mudou de posição na cadeira.
- Sim. Tocou em alguma coisa? Chegou-se mais perto para ver melhor?
- Oh. - Parecia aliviada. - Não, não quis aproximar-me do corpo.
- Mas tinha a certeza de que ele estava morto?
Ela mordeu o lábio e confirmou com um aceno. -Já tinha visto cadáveres antes. Sabia que ninguém podia ajudá-lo.
- Que telefone usou para chamar a polícia?
- Aquele que está na secretária do Padre Vivaldi.
Elena reviu mentalmente a disposição da sala. A secretária ficava perto da janela. Recordava-se das pernas falhadas, do tampo riscado sem papéis nem livros. A Irmã Anna Maria teria de dar a volta ao corpo para chegar ao telefone.
- Não tocou em nada ao aproximar-se da secretária?
- Não. Tive muito cuidado.
- Quando foi a última vez que o viu com vida?
- Foi ontem à noite, perto das oito horas. Fornecemos uma refeição às seis e a seguir fazemos as arrumações.
- Quem costuma trancar a cozinha?
- Depende. Por vezes sou eu, outras vezes é a Irmã Graziella. O Padre Vivaldi encarregava-se disso uma vez por outra se estivesse a trabalhar no escritório. Há dois jogos de chaves.
- Que fazia normalmente o Padre Vivaldi depois de a Irmã se ir embora?
- Acho que subia para o seu apartamento e punha-se a ler ou a estudar.
- Teria feito isso ontem?
- Não faço ideia.
- Ele costumava ter visitas à noite?
- Lamento, mas não posso ajudá-la. Ele era uma pessoa muito reservada.
- Vivia sozinho?
- Claro.
- Não tinha quem lhe tratasse da lida da casa?
- Uma mulher-a-dias vinha duas vezes por semana para as limpezas. Era ele que lavava a sua roupa, há uma máquina de lavar ao fundo da cozinha. Tomava as refeições cá em baixo, na companhia dos necessitados. Tinha uma vida simples e calma.
Elena não disse nada por uns momentos. Podia ouvir o ressoar das panelas e dos demais utensílios na cozinha. Os primeiros odores de cebola e condimentos começavam a escapar-se pelas frinchas da porta.
- Posso ir-me embora agora? - perguntou a Irmã Anna Maria. - Precisam de mim.
- Há quanto tempo trabalhava com o Padre Vivaldi?
- Há menos de dezoito meses.
- Era muito chegada a ele?
A freira franziu a testa, um pouco ressentida com a pergunta. - Não estou a perceber. Que pretende saber?
- Quero dizer, tinha conhecimento de preocupações que ele pudesse ter? Ou receios?
- Oh! Não, ele nunca falaria connosco a respeito de coisas dessas.
- Portanto, não sabe se ele tinha inimigos?
- Quem, o Padre Vivaldi? - Pela expressão dela, podia-se perceber que achava a pergunta ridícula. - Era um bom homem. Um santo. Inspirava amor e devoção em todas as pessoas que o conheciam. Não tinha inimigos.
- Obrigada, Irmã. É possível que precisemos de voltar a falar consigo.
A freira levantou-se e saiu do escritório. Elena desejou que fosse verdadeiro o que ela dissera a respeito do padre. Que, uma vez na vida, pudesse saber de alguém que não tinha inimigos. Mas conhecia mais do mundo do que uma freira, a sua visão da natureza humana era mais condicionada. Sabia que por vezes era mais fácil odiar alguém pelas suas virtudes do que pelos seus defeitos.
Chapman nunca conhecera ninguém que gostasse tanto de conversar como Enzo Mattei. Era excepcionalmente loquaz, mesmo para os padrões italianos. A sua profissão dava-lhe a justificação necessária para fazer perguntas, mas não era essa a única razão pela qual as fazia; tinha realmente um genuíno interesse pelos assuntos dos outros. Fora abençoado por um talento congénito para extrair informações das pessoas e nunca deixava passar uma oportunidade para aplicar esse talento. Parecia saber instintivamente quem necessitava de ser lisonjeado, quem teria de ser convencido, ameaçado ou subornado. Para um jornalista, isso era um talento de grande valia.
Estavam num prédio fronteiro ao do Padre Vermelho, também de quatro pisos e igualmente delapidado, batendo de porta em porta. Já tinham visitado todos os bares e estabelecimentos das vizinhanças, adiantando-se em relação aos polícias, que andavam a fazer o mesmo mas mais devagar e sem o empenho demonstrado por Enzo.
Este ia coleccionando factos e opiniões como se fosse um pesquisador de ouro, peneirando vastas quantidades de minério sem valor na esperança de encontrar alguma minúscula pepita que pudesse usar. Chapman estava entediado – sabia que a morte de Vivaldi, por maior que fosse o interesse que iria despertar em Itália, pouco significaria para qualquer leitor inglês - mas continuava a acompanhá-lo porque gostava de observar o trabalho do amigo, e além disso sentia-se demasiado preguiçoso para voltar para o escritório.
Enzo bateu à porta de um apartamento no segundo piso. Após uma longa espera, a fechadura abriu-se ruidosamente e o rosto escuro de uma mulher espreitou nervosamente através de uma estreita abertura. Parecia árabe, com o cabelo escondido debaixo de um xaile negro. Enzo explicou quem era e o que pretendia. A mulher fixou-o com olhos desconfiados. Depois pairou qualquer coisa numa língua estranha e fechou apressadamente a porta.
- Percebeste o que ela disse? - perguntou Enzo em tom brincalhão.
- Só o essencial. Parece-me que foi o mesmo que a vizinha do andar de baixo.
- Achas que estarão a tentar dizer-nos alguma coisa? - Atravessou o patamar e foi tocar a outra campainha.
- Vamos embora, Enzo. Neste prédio ninguém fala uma palavra de italiano.
- Só mais duas tentativas.
Chapman suspirou e encostou-se à parede. Enzo era um modelo de persistência. Tinham-se conhecido alguns anos antes na Questura da Via San Vi tale. Então, como agora, Enzo era o correspondente policial de um dos grandes diários romanos. Um grupo de jornalistas estivera a aguardar numa antecâmara quando o suspeito num caso de homicídio foi trazido para uma sala anexa para ser interrogado. Enzo extraiu imediatamente de um bolso um estetoscópio que encostou à porta, passando a relatar os detalhes do interrogatório aos seus atónitos colegas. Era este o seu estilo. Não tinha qualquer respeito pelos canais oficiais ou pelos métodos ortodoxos. Fazia as coisas à sua maneira.
A porta entreabriu-se, presa por uma corrente. Espreitou-os outro rosto de mulher, só que desta vez parecia italiana.
Enzo sorriu-lhe e ligou o charme. - Buon giorno. Signora Guarino? - Tinha visto o nome num cartão por baixo da campainha.
- Sim?
Disse-lhe quem era e depois pediu desculpa pelo incómodo, passando a contar-lhe uma treta sobre um comerciante que lhe tinha afirmado que ela seria a pessoa com quem devia falar se pretendia colher informações sobre a vizinhança.
A mulher mostrou uma chispa de interesse. - Palavra?
- Poderia dispensar-nos uns minutos do seu tempo para falarmos da trágica ocorrência do outro lado da rua?
- Jornalistas, foi o que disse?
- Com efeito, signora.
Ela soltou a corrente e abriu a porta. - Entrem.
Conduziu-os à sala de estar, que tinha um ar de elegância desbotada. Estava mobilada num estilo de bom gosto mas antiquado que recordava uma página de alguma revista de decorações dos anos cinquenta, e parecia que a sua proprietária tinha comprado tudo há uns quarenta anos atrás sem modificar nada desde então. Havia espelhos cheios de enfeites em todas as paredes, cadeiras de braços e um sofá demasiado decorativos para serem realmente confortáveis, e diversas mesinhas de esbeltas pernas, recobertas de fotografias emolduradas e outras recordações familiares. Havia algo na mulher, e também devido à predominância de retratos de um homem de meia-idade, sugeriam a Chapman que se tratava de uma viúva.
- Quem lhes disse para virem cá? O signor Ramoni da ali-mentari, calculo.
- Com efeito - ripostou Enzo sem hesitação.
- Moro aqui desde que me casei. Conheço toda a gente. Excepto os estrangeiros, claro - acrescentou, desdenhosa. - Pode não parecer agora, mas este bairro era bastante agradável. Podíamos andar de um lado para o outro em total segurança, tanto de noite como de dia. Mas agora... é por causa da África do Norte, não é?
Chapman captou um olhar disfarçado de Enzo, que era um grande apreciador de fanáticos racistas pois gostavam muito de falar e não se ralavam com o que diziam. O problema, usualmente, era fazê-los calar.
- O meu marido trabalhou durante trinta e sete anos no caminho de ferro, sabem. E trabalhou no duro. Não era como estes preguiçosos que eles agora empregam. Há trinta anos uma senhora podia atravessar a Termini sem que ninguém se metesse com ela. Agora não se pode andar dois metros sem que algum vagabundo nos importune. Posso oferecer-lhes alguma coisa de beber?
- Não, obrigado - respondeu Enzo. - Conhecia o Padre Vivaldi?
- Ah, conhecia. É verdade o que andam a dizer? Que foi assassinado na noite passada?
Enzo confirmou com um gesto da cabeça. Os olhos da senhora Guarino refulgiram com franca curiosidade. Devia ter uns sessenta anos, tinha um aspecto cuidado naquele vestido azul-escuro e branco, com um broche de prata acima do peito esquerdo; era o género de senhora que se apresenta sempre de cabelo bem tratado e que morreria antes de ousar ir à rua sem maquilhagem.
- Que foi que aconteceu? - perguntou. -Já terão apanhado o culpado?
- Ainda não. Conhecia-o bem?
Ela hesitou, relutante em comprometer-se. Chapman calculava que ela talvez desse os bons-dias ao padre ao encontrá-lo na rua e pouco mais, mas não queria admiti-lo pois devia achar interessante ter-se relacionado com uma conhecida vítima de homicídio.
- Bem, não era um amigo íntimo - disse por fim. - Era um homem bom. Tinha boas intenções mas, pessoalmente, penso que lhe cabe uma boa parte da responsabilidade de como o bairro se tem deteriorado.
- Sim? Porquê? - inquiriu Enzo.
- Toda aquela gente horrível que ele alimenta. Aqueles vagabundos e delinquentes imundos que andam por aí na pedincha. Quero dizer, não sou contra a caridade ou contra o dever cristão de ajudar os pobres, mas muitos deles são jovens e aptos para o trabalho. Podiam ir trabalhar, não podiam? Claro que podiam, mas não estão para isso. O Padre Vivaldi encorajava este tipo de tibieza ao alimentá-los de graça.
- Notou alguma coisa de especial ao fim da tarde de ontem, ou durante a noite?
- A noite nunca saio, com todos esses ladrões e bêbados que andam na rua. Metem-me medo. Tardam por aí, a injectar-se com droga, a fornicar pelos pátios... acredite, já os vi a fazer isso. Deixam as seringas na rua para as crianças apanharem. E uma desgraça. A polícia devia era perguntar a esses o que terá acontecido ao Padre Vivaldi. Há um em quem tenho reparado pois estou sempre a vê-lo. Dorme lá adiante, debaixo do arco. Um sujeito imundo com cabelo comprido e uma orelha a menos.
- Está a sugerir que ele pode ter tido alguma coisa a ver com a morte do Padre Vivaldi?
- Não sei. Mas estas pessoas nunca sabem ficar agradecidas aos que os ajudam. Sabe-se lá, podem ter liquidado o pobre padre por causa do dinheiro que tinha no bolso. Para comprar droga ou vinho.
A boca dela era uma esguia fenda de desaprovação. Estava a descarregar coisas que há muito lhe inflamavam a mente. Chapman sentia uma certa pena dela. O bairro estava sem dúvida degradado, e os vagabundos e imigrantes podiam realmente parecer estranhos e ameaçadores para uma mulher como ela.
- Sabe se o Padre Vivaldi tinha problemas com algumas das pessoas que ajudava? - perguntou Enzo.
A senhora Guarino encolheu os ombros. A luz vinda da janela tocava-lhe no rosto, realçando as rugas profundas à volta dos olhos e da boca, mal disfarçadas por baixo do pó-de-arroz.
- Não me surpreendia nada - disse ela. - São uns vadios. São agressivos, talvez perigosos. Vivem da caridade dos outros mas querem sempre mais. Desprezam as pessoas decentes e civilizadas como nós mas aceitam o nosso dinheiro para alimentarem os seus hábitos anti-sociais.
- Alguns deles são realmente necessitados - comentou Chapman. - Se o Padre Vivaldi não os tivesse ajudado, muitos deles estariam já mortos.
A senhora Guarino lançou-lhe um olhar de piedade, como se quisesse dizer-lhe que era um simplório crédulo por acreditar nas patranhas que lhe contavam.
- Pois, como queira - proclamou, não se dignando discutir o assunto. Mas não resistiu a acrescentar: - Não mora cá por estes lados, pois não? Eu tenho de suportar tudo isto, e o senhor não.
Enzo levantou-se. - Obrigado, signora. Ajudou-nos muito.
Ela lançou-lhe um sorriso gentil. - Tive muito gosto nisso. É tempo de os jornais narrarem as coisas chocantes que por aqui se passam. A que ponto chegou esta cidade, quando um membro do clero pode ser assassinado no seu próprio lar? Deve ter sido terrível para aquele jovem que encontrou o corpo. Tenho muita pena dele.
Chapman, já a encaminhar-se para a porta, quase não deu por nada, mas Enzo reagiu de imediato.
- A que jovem se refere, signora?
A senhora Guarino parecia admirada. - Aquele que veio de manhã cedo. Um homem novo, de fato escuro.
Chapman regressou casualmente à sala, tentando não demonstrar interesse. Enzo estava parado de costas para a janela, pelo que era difícil ver-lhe a expressão, mas tinha assumido uma postura de expectativa, com a cabeça ligeiramente inclinada para a frente como uma víbora prestes a atacar.
- Não estará a referir-se a algum dos polícias à paisana?
- Não, isto foi antes da chegada da polícia. Vi-o à janela da casa do Padre Vivaldi.
Deu dois passos até à janela da sala e apontou para o edifício do outro lado da rua. - E aquela ali. Costumava ver o Padre Vivaldi sentado à secretária, a trabalhar.
- Que horas seriam, sabe?
- Não sei bem, talvez oito e meia. Ele tinha o carro estacionado ao fundo da rua: por acaso reparei, porque era um carro de categoria, todo brilhante, um daqueles carros pintados de azul-escuro em que os ministros do governo se deslocam. Não sei qual é a marca.
- Pensa que seria um carro do governo?
- Não, não era do governo - proclamou a senhora Guarino, certa do que dizia. - Tinha chapas de matrícula SCV.
A cabeça de Enzo deu um violento salto e lançou um olhar a Chapman. SCV. Stato della Città dei Vaticano: a sigla que identificava a Cidade do Vaticano.
As periclitantes resmas de processos em cima da secretária de Elena pareciam-lhe cada vez maiores sempre que regressava ao gabinete, levando-a a imaginar que não eram simplesmente papel e cartão mas algum organismo vivo que se reproduzia durante a noite. Oscilavam precariamente em volta das margens da secretária como paredões mal construídos, ameaçando constantemente cair ao chão, que quase não se via por baixo de outros montes de documentos.
Abriu caminho através da pista de obstáculos e sentou-se na cadeira giratória, enfiando as pernas com cuidado no estreito espaço debaixo da secretária, que até agora tinha escapado ao inexorável avanço da papelada. Até quando iria resistir, era uma questão que raramente tinha tempo para formular. Encontrava-se de tal forma sobrecarregada de trabalho que o caos do gabinete lhe parecia apenas um sintoma trivial da doença endémica que paralisava todo o sistema da justiça criminal.
O elevado número de casos pendentes estava a estrangular o pubblico ministero e os tribunais. O tempo médio que um processo demorava no trajecto desde a instrução inicial até à conclusão de todos os recursos interpostos era agora de dez anos. Parecia-lhe que, fizesse o que fizesse, não conseguia exercer a mínima influência na quantidade de investigações e julgamentos pendentes. O sistema judicial encontrava-se permanentemente à beira do colapso e os magistrados eram como os médicos que tentam manter vivo um paciente ligado a uma máquina de suporte vital sujeita a avariar-se a qualquer momento.
- Que raio vem a ser tudo isto?
Acabava de reparar num novo monte de processos que lhe tinha caído na secretária desde aquela manhã.
A colega, Francesca Lauri, estava a falar ao telefone na secretária da frente e levantou a mão no ar. - Espera só um momento... - Terminou o telefonema e colocou o auscultador no descanso. - Vespignani trouxe-os enquanto estavas fora. Eu também fiquei com mais um monte de processos.
- Merda! Porquê nós?
- Sabes como são as coisas - comentou Francesca com azedume. - Passamos o dia inteiro a polir as unhas e a telefonar ao cabeleireiro. Devemos ter tempo para mais umas dúzias de processos.
- De onde vieram?
- O Mariani está outra vez doente. Estão a redistribuir os processos dele pelos outros magistrados.
Elena rangeu os dentes. - Como se não tivéssemos já um excesso de carga em cima de nós. Que se passa com ele? Pois, está bem, já sei.
Suspirou. Armando Mariani era o exemplo vivo dos seus maiores receios, um magistrado que cedera à pressão a que se sujeitava. As suas ausências periódicas para se submeter a tratamento do stress e da exaustão iam-se tornando cada vez mais prolongadas, e os períodos de trabalho entre recaídas eram já tão reduzidos que estava praticamente com baixa permanente por doença.
- Vespignani diz que ele já não deve voltar.
- O quê? Nunca mais? - Francesca confirmou com um aceno. - Dio. Pobre homem. Acho que já era de esperar.
- A saúde dele está completamente arruinada. Dizem que vai passar o resto da vida a tomar comprimidos.
- Cristo! Que idade tem ele? Trinta e um ou trinta e dois?
- Mais ou menos.
Elena fez um esgar. Podia ter acontecido a qualquer um deles. Poderia ainda acontecer. A linha entre aguentar - e nenhum deles podia fazer mais do que ir aguentando - e ceder era muito ténue. O pessoal disponível era ridiculamente reduzido para a carga de trabalho que o serviço tinha de processar.
Pegou no telefone e ligou para a morgue onde estava a decorrer a autópsia ao corpo de António Vivaldi. Falou com o patologista forense e insistiu na urgência do relatório. - Vou mandar alguém buscá-lo. Preciso dele esta tarde - disse, ignorando os protestos do patologista queixando-se de falta de tempo e excesso de trabalho. - Esta tarde, dottore - repetiu, e desligou o telefone.
Dirigiu-se ao gabinete anexo, onde o seu oficial de diligências, Alberto Baffi, e duas funcionárias estavam apertados num espaço mais ou menos do tamanho de um pequeno quarto de arrumações, que fora aliás a função original do compartimento. O aumento epidémico da papelada tinha-se também propagado aqui, pelo que teve de espreitar por cima de um paredão de processos para ver o rosto atormentado e a calva de Alberto. Estava a escrever laboriosamente à mão num bloco de papel listrado. Tinha um computador ao lado - como aliás em todos os gabinetes - mas evitava usá-lo sempre que podia. O monitor achava-se parcialmente encoberto por caixas de arquivo e o teclado transformara-se num conveniente, ainda que incerto, suporte para a chávena de café e respectivo pires.
- Há recados para mim? - perguntou Elena.
Baffi folheou uma série de pequenos rectângulos amarelos com apontamentos amontoados ao lado do telefone. -Já tratei deste. Deste também. Aquele não interessa; não era para aqui. Lixo. Lixo. Interessante, mas ainda assim lixo... – Afastou esses papéis para um lado. - Rossi telefonou acerca do caso de falsificação. Preguei-lhe uma peta, mas ele não acreditou. Deste vai precisar. - Entregou-lhe um dos recados. - Este não interessa. Nem este. O advogado de defesa no caso Falco-ne telefonou também. Disse-lhe que não voltava hoje. Mais lixo. Idem. Oh, e o Dottore Vespignani - pronunciou com manifesto desprezo o nome do subdirector do Ministério Público __deseja falar-lhe assim que chegar. Portanto, este também pode ir para o caixote. - Amachucou o papel e atirou-o por cima do ombro, um gesto puramente simbólico porque o cesto de papéis estava do outro lado do gabinete.
- E o seu marido também telefonou, mas não deixou recado - acrescentou casualmente.
Elena confirmou com um aceno, sem alterar a expressão. Franco andava ultimamente a telefonar-lhe com frequência, mas até agora conseguira evitar falar-lhe.
- Obrigada, Alberto.
Baffi tinha um carácter difícil e conflituoso, mas era-lhe firmemente leal. Elena não sabia como seria capaz de sobreviver sem ele.
- Podia arranjar um mensageiro para ir à morgue buscar o relatório da autópsia de António Vivaldi?
- Tão cedo? - Alberto lançou-lhe um olhar incrédulo. Normalmente passavam-se dias antes que os papéis das autópsias chegassem ao Procura.
- Vai estar pronto. Já falei com o patologista.
- Elena!
Francesca estava a chamá-la do gabinete. Elena chegou à porta e viu-a com o telefone na mão.
- É da Questura. Está-te confiado um caso de assalto à mão armada ocorrido num bar em Trastevere?
- Que eu saiba, não.
- Está em cima da sua secretária - interveio Baffi. - Nos processos vindos do Dottore Mariani.
Elena fez uma careta. - Diz-lhes que eu já lhes telefono - pediu a Francesca. Depois, dirigindo-se ao funcionário: - Haverá mais alguma coisa de que eu deva ter conhecimento a respeito desses processos?
Baffi encolheu os ombros, aparentemente desinteressado.
- Não os examinei todos.
- Alberto... - Percebia que ele estava a esconder-lhe qualquer coisa.
Baffi aclarou a garganta e olhou para outro lado. - Também ficou com o caso Geminazza.
"Merda!", disse Elena em pensamento. Aquele estafermo do Vespignani. O Estado contra Enrico Geminazza era um daqueles casos envenenados em que ninguém queria tocar. Era um processo de fraude fiscal que tinha sido investigado não só pela Questura mas também pela Guardia di Finanza, a Guarda Fiscal, uma situação de pesadelo na melhor das hipóteses pois era complicada pela rivalidade e pela total ausência de cooperação entre as duas polícias. Mas era sobretudo a complexidade do assunto que tornava tão difícil dar-lhe andamento. Envolvia uma enormidade de números, diversas moedas estrangeiras, contas fiduciárias e paraísos fiscais offshore que eram virtualmente incompreensíveis para todos excepto para um contabilista ou para um trapaceiro, e Geminazza era as duas coisas.
O caso poderia arrastar-se durante anos e talvez nem chegasse a ser julgado, e, se fosse, ninguém na sala de audiências - incluindo o juiz e a acusação - iria entender o que se tinha passado, terminando provavelmente numa absolvição.
O caso tinha andado de mão em mão pela repartição durante meses, parando por fim na secretária de Mariani porque este estava com baixa na ocasião e não podia reclamar. E agora tinha sido tortuosamente reencaminhado para a secretária de Elena.
- Fiz o possível para rejeitá-lo - disse Baffi na defensiva. Aparentemente, a barreira protectora que erguera em redor de Elena tinha sido violada. - Mas o subdirector insistiu em que a aceitasse.
- Está bem, Alberto, sei que a culpa não é sua. Obrigada por ter tentado.
Regressou à secretária, fervilhando interiormente.
] - Isto é uma maravilha - disse para Francesca -, uma autêntica maravilha. - A colega riu-se.
- Não tem piada nenhuma. Tenho cara de palhaço ou ! quê? Por que será que cada pedaço de merda que entra nesta repartição tem de me cair na secretária?
Deitou irritada para o chão uma rima de processos que estavam em cima da secretária e sentou-se.
- Falar na merda - murmurou Francesca entredentes.
- Bom dia, Elena.
Luigi Vespignani estava encostado à ombreira da porta entre os dois gabinetes, com um sorriso arrogante nos lábios grossos. Era baixo e gordo, com a barriga caída sobre o cinto e faces entumecidas que lhe davam o aspecto de ter sido insuflado com uma bomba de ar. Usava fatos dispendiosos, feitos pelo alfaiate mais exclusivo da cidade, mas nenhuma qualidade de fazenda nem nenhum talento de artífice conseguiriam disfarçar a altura insignificante ou o excessivo perímetro do subdirector do Ministério Público. Francesca costumava descrevê-lo como o género de homenzinho ridículo que devia ser pendurado como mascote na janela traseira de um Fiat Cinquecento.
- Está a correr-lhe mal a manhã? - perguntou com uma expressão de chacota.
"Não estava, até que você apareceu", esteve Elena prestes a dizer. Mas conseguiu controlar-se. Ele gostava de exasperar as mulheres da Procura, mas Elena não ia dar-lhe o prazer de uma vitória.
- Estou muito bem, Luigi - respondeu.
- Recebeu os processos que estavam entregues a Mariani?
- Sim, muito agradecida. Foi muita amabilidade sua tê-los partilhado comigo. Tinha uns centímetros quadrados de espaço vazio na secretária que precisavam de ser ocupados.
A boca dele retorceu-se sem humor. - Não ia gostar de vê-la com tempo livre e sem nada que fazer.
- Hei-de ter isso em mente quando ainda estiver aqui às dez da noite.
- Precisava de lhe falar. Não lhe deram o meu recado?
- Não vi ainda. Acabo de chegar.
- Era a respeito disso que queria falar consigo.
Alisou a barba com os dedos. Usava sempre o cabelo um pouco comprido e cultivava a barba e um bigode revirado para cima por pensar que lhe davam um ar ousado, como um mosqueteiro da Gasconha. Elena nunca olhava para ele sem sentir desejos de pegar numa navalha de barba.
- O Chefe vai fazer uma conferência de imprensa hoje à tarde, e vai precisar da sua presença.
- Está a referir-se ao caso Vivaldi?
- Evidentemente.
- Uma conferência de imprensa? Para quê?
- Tem sido inundado com telefonemas. Vai haver muita especulação sobre o caso. É melhor publicitar os factos o mais cedo possível.
- Não tenho ainda nada que possa ser comunicado à imprensa.
- Dar-lhes-emos o que já tiver.
- Escute. Estou assoberbada de trabalho aqui. Tenho coisas mais importantes para fazer do que falar para os jornalistas.
- Às três horas, Elena. Há-de apresentar um resumo a mim e ao Chefe antes de entrarmos na sala.
Soltou-se da ombreira da porta e afastou-se no seu andar bamboleante. Elena praguejou em silêncio e deitou um olhar a Francesca, que fixava sonhadoramente o local que o subdirector acabava de desocupar, com o queixo apoiado na palma da mão como uma adolescente apaixonada.
- Não o achas um sujeito adorável? - perguntou com voz roufenha, imitando a Mae West. - Não te dá vontade de lhe arrancares as calças e abusares dele até ficar maluco?
Elena riu-se. Deveria haver sempre uma Francesca.
Chapman serviu-se de uma fatia de salame com pimenta em grão e um par de olive piccanti, mastigando-as cuidadosamente enquanto olhava à sua volta na movimentada birreria. Enzo estava sentado do outro lado da mesa, com um dedo espetado num ouvido e o telemóvel encostado ao outro, falando com a redacção do seu jornal. Chapman bebeu um sorvo de cerveja e recostou-se na cadeira, deixando que a corrente de ar vinda da ventoinha no tecto lhe refrescasse o topo da cabeça. Estava um calor insuportável. As janelas da birreria estavam todas abertas de par em par, mas isso pouco influenciava a atmosfera pesada do estabelecimento. Sentia as gotas de suor a escorrer-lhe na testa e a humidade que se lhe acumulava nos sovacos e nos refegos das cuecas.
Enzo guardou o telemóvel no bolso do casaco e escolheu uma fatia de salame, dobrando-a cuidadosamente em quatro e introduzindo-a na boca.
- Devias experimentar estas azeitonas - sugeriu Chapman.
- São boas?
- Ardem na garganta.
A marinada em que as azeitonas estavam embebidas ardia de pimenta e malaguetas esmagadas. Escorregavam bem no Verão romano, pois o ardor que provocavam nas vias internas parecia tornar mais suportável a temperatura no exterior.
- Não deixaste muitas para mim.
- Não devias ter passado tanto tempo a telefonar.
- Queres comunicar com o teu escritório?
Chapman abanou a cabeça. - Não de uma barulhenta birreria. Quero que Londres pense que estou tão ocupado que nem tenho tempo para almoçar. Aconteceu alguma coisa de que deva ter conhecimento?
- Não, a não ser que um debate sobre as pensões estatais ou uma colisão múltipla em Modena possam merecer honras de primeira página em Inglaterra.
- Vai outra cerveja?
- Pois, por que não? Que prato encomendaste?
- O prato de massa do dia. Penne aWarrabbiata.
- Safa, Andy. Vou ficar com a boca queimada antes de sairmos daqui.
Chapman sorriu e estendeu um braço para impedir a passagem de um empregado, a quem pediu mais duas cervejas.
- Pois - disse Enzo, desapertando a gravata e soltando o botão do colarinho. - Por acaso já descobriste o que o Vaticano estaria a fazer ali?
- Tenho estado a pensar profundamente no assunto. - E então?
- Não faço a menor ideia.
- Isso não me ajuda nada.
- Talvez tenham mandado alguém para se certificarem de que o padre estava morto. Acho que iam ficar muito satisfeitos por se verem livres dele.
- Estarás por acaso a sugerir que o Vaticano pode ter tido alguma coisa a ver com a morte dele? - A ideia agradava a Enzo, ao seu fraco por teorias de conspiração.
- Seria uma história e pêras, não te parece? O Papa contratando a morte de um padre rebelde, enviando um assassino de batina para dar cabo dele.
- Estou a gostar - comentou Enzo. - Talvez algum cardeal caduco, a prestar o seu último serviço à Igreja. Estrangulando Vivaldi com o rosário, ou envenenando o vinho da comunhão.
- Pena é que não se adapte aos factos.
- Isso nunca foi um obstáculo para mim.
Chapman sorriu. - Como é óbvio, podíamos telefonar ao departamento de imprensa do Vaticano e perguntar quem teria ido ao local e o que estaria a fazer ali.
- Há quantos anos estás aqui, Andy? Pensas que o departamento de imprensa do Vaticano iria dizer-nos alguma coisa? Achas que eles sabem alguma coisa? Há tanta intriga por detrás dos Muros Leoninos (1) que me parece que nem o próprio Nosso Senhor saberá o que se passa ali.
- Nesse caso, o que sugeres?
Enzo fez uma pausa enquanto o empregado trazia as cervejas e dois pratos de pasta. Introduziu o garfo no molho e provou, manifestando a seguir a sua aprovação com um aceno.
- A primeira regra do jornalismo em Itália, e talvez em toda a parte - proclamou -, é que, quando não sabemos alguma coisa, deixamos que alguém se dê ao trabalho de saber.
- Que quererás dizer exactamente com isso?
Enzo encheu a boca com massa. - Espera, e saberás.
- Seria capaz de explicar-nos o que estaria a fazer um funcionário do Vaticano na cena de um crime antes da chegada da polícia?
A pergunta era tão inesperada que toda a sala ficou em silêncio por um momento. A seguir ouviu-se um remexer colectivo de blocos de apontamentos, um ressoar de assentos enquanto os jornalistas presentes se inclinavam para a frente ao mesmo tempo ao cheirar-lhes a sangue.
Elena sentiu o estômago descair-lhe mais ou menos até ao nível dos tornozelos, já indisposto em resultado desta provação perante a imprensa. Odiava as conferências de imprensa. Odiava as câmaras de televisão, os relampejos dos flashes dos fotógrafos. Muitos dos seus colegas - Vespignani em especial - adoravam expor-se, mas ela sentia-se demasiadamente desconfortável sob as luzes da ribalta para conseguir apreciar tais ocasiões. Era capaz de exibir-se numa sala de audiências, pois sabia o que ia dizer e além disso a assistência era limitada, mas estes reencontros de resultados duvidosos com a imprensa enchiam-na de pavor. Eram inúmeras as probabilidades de perder
(1) Muros Leoninos: a zona de Roma fortificada pelo Papa Leão IV e que constitui a Cidade do Vaticano. (N. do T.)
o controlo da situação, sujeitando-se então a uma humilhação demasiadamente pública.
A conferência tinha começado bem. O director do Ministério Público, Alessandra Corona, fez uma breve introdução e depois deu início ao debate. A maioria das perguntas apresentadas tinham sido fáceis de responder, relacionadas com o local do homicídio ou com pormenores forenses a que Elena podia escapar-se com um "ainda é cedo para sabermos" ou "só poderemos dizer quando os relatórios vierem do laboratório". Na realidade já tinha recebido o resultado da autópsia antes de apresentar o resumo a Corona e a Vespignani, mas não tivera tempo para estudá-lo, pelo que não dissera nada a ninguém. Não tinha a menor intenção de transmitir o seu conteúdo a uma carrada de jornalistas.
Tudo tinha corrido de feição durante uns quinze minutos e Corona aprestava-se a dar a reunião por concluída quando Enzo Mattei lançou de repente a sua bomba.
O director do Ministério Público endureceu visivelmente ao escutar a pergunta e voltou-se para Elena: - Talvez queira responder a esta pergunta.
Elena enfureceu-se: com Corona, com Vespignani - que, bem o sabia, tivera a brilhante ideia de organizar a conferência para ver o seu nome nos noticiários da noite -, mas acima de tudo consigo mesma por lhes ter permitido pressionarem-na para estar presente quando sabia tão pouco sobre o caso e não podia disfarçar a sua ignorância.
- Desculpe, pode repetir a pergunta? - pediu. Não faria qualquer diferença; continuaria a não ser capaz de responder, mas dava-lhe um momento de folga.
Podia ver Mattei duas ou três fileiras para a retaguarda, ao lado daquele irritante inglês que expulsara do apartamento de Vivaldi. Estavam agora a gozar a sua vingança.
- Certamente, dottoressa - replicou Enzo. - Sabemos de fonte segura que alguém da Santa Sé esteve no apartamento do Padre Vermelho logo de manhã cedo. E que saiu de lá antes da chegada da polícia. Deseja comentar esta informação?
Elena respirou fundo, seguindo os seus instintos de repelir uma pergunta difícil com outra igualmente difícil de responder. Sabia que estava a ser alvo de todos os olhares, de todas as lentes presentes na sala.
- A que "fonte segura" estará a referir-se? Quem lhe disse que alguém do Vaticano tinha estado lá?
- De certeza que não espera que lhe divulgue a minha fonte, dottoressa. Tem conhecimento de qualquer envolvimento do Vaticano neste homicídio?
Enzo estava a exceder as suas prerrogativas, mas era sempre um método seguro de provocar uma reacção.
Elena esquivou-se à pergunta. - Lamento não estar preparada para responder a isso. Se o senhor ou qualquer outra pessoa tem informações pertinentes para este caso, deverá apresentar uma declaração formal. Esta não é a melhor ocasião para se discutirem alegações infundadas.
- Será que a cena do crime foi de alguma forma sujeita a interferências estranhas? - contrapôs Enzo. - Sabe se terá havido algum contacto com o Vaticano relativamente a este caso? A morte do Padre Vivaldi estará relacionada de algum modo com os seus públicos e bem conhecidos embates com a Cúria?
- Os nossos agradecimentos, senhoras e senhores. Elena recolheu os seus papéis, ciente de estar a quebrar o protocolo do departamento ao declarar finda a conferência. Mas não estava disposta a ficar ali parada a aguentar todos os ataques enquanto os seus dois superiores não faziam nada para a protegerem.
Saiu da sala de conferências com toda a dignidade que conseguiu convocar e aguardou na antecâmara anexa que Corona e Vespignani se lhe juntassem. O subdirector foi o primeiro a cruzar a porta e Elena percebeu que estava a deliciar-se com o mal-estar dele.
- Aquilo saiu mal - declarou ele. - Muito mal. Parecia que estávamos a fugir. Não o devia ter feito.
- O que não devíamos ter feito - ripostou Elena, irritada -, era convocar uma conferência de imprensa sobre um caso difícil quando ainda não sabemos o que raio terá acontecido.
- Sabe alguma coisa a respeito do que alegaram ali?
- Não.
- Então trate de saber.
- Não me diga como devo executar o meu trabalho.
- Digo-lhe o que me apetecer, e você tem de me escutar.
- Luigi!
Corona lançou-lhe uma violenta sacudidela da cabeça e depois olhou para Elena. Era um homem alto, de falas mansas. Podia parecer distante e alheado, mas dava sempre apoio ao seu pessoal. Elena respeitava-o muito.
- Destinei-lhe este caso em particular, Elena. Sabe o que tem de fazer. Não me deixe ficar mal. - E seguiu corredor fora.
Vespignani atrasou-se um pouco para sibilar: - Nada de disparates, ouviu? - e a seguir correu atrás do chefe. O fato escuro e as pernas curtas faziam-no assemelhar-se a uma barata com excesso de peso.
Elena podia adivinhar o que tinha acontecido. Vespignani teria desejado este caso para si pela sua repercussão, mas Corona vetara o pedido, entregando-o antes a ela. A partir de agora o subdirector não desistiria de lhe espreitar por cima do ombro, à espera de que ela cometesse algum erro.
Encaminhou-se para os sanitários das senhoras, o único local do edifício onde poderia desfrutar de alguma privacidade, e sentou-se num dos cubículos, esforçando-se por não chorar. Sentia-se mais transtornada por culpa de Vespignani do que por causa da conferência de imprensa, mas estava igualmente desesperada consigo mesma por permitir que aquele homem a perturbasse. Ela julgava-se mais forte do que isso.
Passados alguns minutos voltou para o gabinete. Baffi aproximou-se quando ela entrou, mas ao olhar-lhe para a cara deu logo meia-volta. Elena pegou no telefone e ligou à sede da Polizia Giudiziaria.
- Gianni - disse, quando Agostini veio atender. - Aquela freira com quem falámos esta manhã, a Irmã Anna Maria. Quero que ma traga imediatamente aqui à Procura.
A aqui?
Irmã Anna Maria olhou-a espantada quando Elena entrou na sala de interrogatório. - Que está a acontecer? Por que me trouxeram para
Elena sentou-se ao lado de Gianni Agostini e ligou o gravador de fita magnética que estava em cima da mesa. Anunciou a hora e a data, os nomes das pessoas presentes, e a seguir informou a freira dos seus direitos legais.
- Percebeu o que acabei de lhe dizer?
- Não entendo por que...
- Conhece os direitos que lhe assistem, Irmã? - interrompeu-a Elena com severidade.
A Irmã Anna Maria mordeu o lábio e confirmou com um aceno. - Sim, compreendo.
Estava nervosa, como qualquer outra pessoa trazida à Procura para ser interrogada. Sem saber o que se passava, a sua indignação inicial ia sendo gradualmente substituída pelo espicaçar de uma consciência culposa.
- Esta manhã, Irmã - prosseguiu Elena -, disse-nos que tinha telefonado à polícia logo depois de ter encontrado o Padre Vivaldi morto em casa. Correcto?
A Irmã Anna Maria confirmou com um aceno.
- Para ficar gravado, por favor, - Sim - disse a freira. - Está correcto.
- Foi esse o único telefonema que fez?
A Irmã Anna Maria hesitou. Os seus olhos precipitaram-se de Elena para Agostini e novamente para Elena. Agora já sabia do que se tratava. A sua repentina apreensão reflectia-se-lhe no rosto.
- Foi esse o único telefonema que fez? - repetiu Elena.
- Não entendo o que se está a passar aqui.
- Fiz-lhe uma pergunta bastante simples, Irmã. Telefonou para mais algum lado além da Questura depois de ter encontrado o corpo do Padre Vivaldi?
A freira baixou o olhar. Curvou os ombros, com as mãos apertadas com tanta força que as veias lhe sobressaíam na pele pálida.
- Devia ter-lhe dito - prosseguiu Elena - que já solicitei os registos da companhia de telefones que demonstrarão quantas chamadas foram feitas do apartamento, a que horas, e para que números. Ficará com a vida facilitada se nos disser já a verdade.
A Irmã Anna Maria conservou os olhos fixos no tampo da secretária, incapaz de olhar para Elena. - Não fiz nada de mal - disse calmamente.
- Telefonou ao Vaticano, não é verdade?
A freira conservou-se em silêncio. Elena sentiu a raiva começar a fervilhar. Como qualquer mulher que tenha frequentado uma escola conventual, não tinha ilusões a respeito das freiras. Sabia que a capacidade delas para o embuste, para a malícia, para o abuso do poder era tão forte como a de qualquer pessoa. Ocasionalmente ainda se deixava intimidar por elas, influenciada pelas suas recordações de infância. Mas agora não. Uma testemunha tinha-lhe mentido, e estava furiosa. O facto de essa testemunha ser uma religiosa tornava a ofensa ainda mais repreensível.
- Se, conforme diz, não fez nada de errado - prosseguiu Elena -, por que não responde à minha pergunta?
- Não sou obrigada a responder a nada.
- Não, com efeito não é. Mas devo avisá-la de que se não disser nada agora e os registos da companhia dos telefones confirmarem que foi feita uma chamada, acusá-la-ei de obstrução a uma investigação judicial. É uma acusação grave, Irmã.
A Irmã Anna Maria levantou os olhos, com uma expressão de desafio. - Sou freira. A minha primeira lealdade é para com a Igreja.
- A sua primeira lealdade é para com a verdade. Telefonou ao Vaticano, não foi?
A freira afastou o olhar. Fez um aceno tão ligeiro que facilmente poderia ter passado despercebido. Depois voltou a olhar para Elena, pertinaz. - Mas isso não é crime.
- Mentiu-me, esta manhã.
- Não menti.
- Não me falou desse telefonema.
- Isso não significa mentir.
- Está a brincar com as palavras, Irmã. Sabe bem o que quero dizer. E sabe o que fez. Será que um pecado por omissão deixa de ser pecado?
A Irmã Anna Maria explodiu com indignação: - Acho que estou mais qualificada para falar do pecado do que a senhora.
- Assim parece, com efeito - replicou Elena com secura.
A freira corou. Elena aproveitou a oportunidade, enquanto a resistência da Irmã Anna Maria parecia enfraquecida pela vergonha.
- Qual foi o objectivo do seu telefonema para o Vaticano?
- Fiz o que qualquer outra freira teria feito na minha posição.
- A sério? Isso faz parte da vossa preparação? Aprender a dificultar uma investigação criminal?
A freira lançou-lhe um olhar cheio de farpas. - Precisava de ser aconselhada. Faz alguma ideia do que me custou encontrar o Padre Vivaldi morto? A senhora talvez esteja habituada. E possível que veja cadáveres todos os dias. - A voz falhou-lhe e depois tremeu ao prosseguir: - No meu caso é diferente. Eu conhecia-o, respeitava-o. Encontrá-lo assim ali... naquele estado... foi... foi horrível.
Soltou um pequeno soluço e baixou a cabeça. Elena não sentia qualquer compaixão por ela. Sabia que estava a ser dura, mas a Irmã Anna Maria tinha sido a culpada disso. Desta vez não haveria intervalo para que ela se recompusesse.
- Aconselhada? - perguntou Elena. - O único conselho que lhe poderiam dar era que chamasse a polícia. Mas em vez disso mandaram alguém a casa do padre, não é verdade? - Dobrou-se sobre a mesa, conservando a voz baixa e áspera. - Não é verdade, Irmã?
As lágrimas corriam agora pelo rosto da freira. Elena deitou um olhar a Agostini, que observava a freira com ar preocupado. Olhou para Elena, como que a dizer-lhe para não ser tão dura. Mas ela sabia que não podia ir com falinhas mansas tratando-se de uma testemunha sem desejo de cooperar.
- A quem telefonou?
A Irmã Anna Maria abanou a cabeça enquanto procurava um lenço no bolso do vestido. - A quem foi?
- Isto não é justo - fungou a freira. - Não pode estar a interrogar-me deste modo.
- Se me dissesse a verdade não precisaria de interrogá-la. Aguardou. A Irmã Anna Maria permaneceu em silêncio.
- Irmã. - Agostini inclinou-se para a frente, falando com suavidade. - Responda às perguntas da magistrada. Se não tem nada a esconder, não tem nada a recear.
A Irmã Anna Maria tirou os óculos e limpou o rosto ao lenço, parecendo não ter escutado o inspector. Elena concedeu-lhe mais uns momentos e depois perdeu a paciência.
- Não me parece que compreenda perfeitamente a sua posição, Irmã - disse friamente. - Vou fazer-lhe de novo a pergunta. Se se recusar a responder-me, solicitarei um mandato imediato para a sua detenção na prisão Regina Coeli.
A cabeça da freira endireitou-se repentinamente. Fixou o olhar em Elena através de uma cortina de lágrimas. - Não pode fazer-me isso. Não se atreveria.
- Acha que não? Tenho o poder necessário, e não hesitarei em servir-me dele. Já esteve alguma vez na Regina Coeli? Sabe que lá não fazem qualquer separação entre condenados e presos preventivos? Pense nas pessoas com quem partilhará uma cela durante vinte horas por dia.
Estava a ser cruel, mas achava que era necessário. Havia na freira um elemento de teimosia que tinha de ser desfeito.
- Portanto, a quem telefonou?
Olhou-a com severidade, com a boca firmemente apertada com aquela determinação de carácter que a conduzira à posição de magistrada. O choque tinha secado as lágrimas da Irmã Anna Maria. Sabia que Elena não estava a enganá-la. Baixou os olhos dolorosamente.
- Ao arcebispo Tomassi - sussurrou com voz empastada. Elena recostou-se na cadeira. - Obrigada. E quem é o arcebispo Tomassi?
- É o secretário da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé.
O título nada significava para Elena, até que Agostini a elucidou: - O Santo Ofício.
- Ah! Já entendo: a Inquisição.
- Agora já não é nada disso - interveio a Irmã Anna Maria. - As coisas mudaram. A Igreja é mais tolerante.
- Será? Acha que foi mais tolerante em relação às opiniões do Padre Vivaldi? - A freira não respondeu, e Elena prosseguiu: - Não, isto não deve ser coisa a que queira responder.
Olhou para a Irmã Anna Maria. Os olhos dela estavam vermelhos e inchados e as faces continuavam húmidas.
- Porquê ele em especial? Porquê o Arcebispo Tomassi?
Era uma pergunta simples, formulada sem segunda intenção, mas a freira mexeu-se na cadeira como se estivesse constrangida. Elena levou apenas alguns segundos a adivinhar a resposta.
- Dezoito meses. Disse que estava a trabalhar com o Padre Vivaldi há apenas dezoito meses. Foi colocada lá para espiá-lo, não é verdade? Para o conservar debaixo de olho, por encargo dos seus patrões.
- Isso é uma acusação ultrajante - protestou a Irmã Anna Maria, ressentida. Mas esta reacção, apesar de toda a sua veemência, não era convincente. Elena sabia que tinha calculado correctamente.
- Não me parece que o arcebispo tenha vindo em pessoa. Portanto, quem foi que ele mandou?
- Um padre novo. Não sei como se chama.
- Para quê?
A Irmã Anna Maria respirou fundo. A sua resistência cedera finalmente. Agora apenas pretendia aliviar a consciência.
- Levou algumas coisas do Padre Vivaldi.
- Que coisas?
- Os papéis.
Elena julgou ter compreendido mal. - Os papéis?
- Os arquivos, a correspondência, os papéis pessoais. O senhor padre levou tudo consigo.
Elena recostou-se pesadamente, demasiado aturdida para responder durante algum tempo. O rosto de Agostini revelava um espanto semelhante.
Finalmente perguntou: - Está a dizer-me que este padre entrou na casa e fez uma busca, com o Padre Vivaldi jazendo morto no soalho?
A Irmã Anna Maria confirmou com um aceno. - Pois. Levou tudo o que estava na secretária.
Resistiu ao desejo de soltar uma praga. Não queria acreditar no que estava a ouvir. A arrogância do Vaticano era de ficar sem fôlego: enviar alguém à cena de um crime, localizada no que era tecnicamente um país estrangeiro, e remover todos os papéis pessoais da vítima, papéis que poderiam ser relevantes para a investigação do crime. Achava isto impossível de compreender. Mas à medida que o choque inicial se dissipava, sentia-se a ferver de raiva.
- Sabe o que constaria nos papéis?
- Não, não estava a par dessa parte da vida do Padre Vivaldi.
- Quantos eram?
A freira encolheu os ombros. - Bastantes. Ele levou-os dentro de duas grandes bolsas de plástico.
- Onde arranjou ele as bolsas?
- Trouxe-as consigo.
- Disse-lhe para que pretendia os papéis?
- Não. Limitou-se a pegar neles e disse-me para telefonar à polícia sem falar da visita dele. -Já estava a ser mais do que cooperante, procurando a absolvição ao transferir a culpa para outra pessoa.
- Ele fez mais alguma coisa?
- Não.
Não era apenas a arrogância deles que provocava espanto, pensou Elena, mas também a estupidez. Julgavam que ninguém ia notar a falta dos papéis nem dar pela vinda do padre, que depois sairia carregado com duas volumosas bolsas? Alguma coisa a inquietava. A Cúria Romana tinha muitos defeitos, mas a estupidez insensata não era geralmente um deles. Gostaria de saber o que se estava a passar.
- Haverá mais alguma coisa que não me tenha contado? A Irmã Anna Maria abanou a cabeça. - Posso ir-me embora agora?
- Ainda não. Vou mandar transcrever este interrogatório. Vai ter de assinar a transcrição antes de ir-se embora.
- Quanto tempo vai demorar? Tenho muito que fazer. Elena empurrou a cadeira para trás e levantou-se. Disse para o gravador as horas que eram e depois desligou-o.
- Devia ter pensado nisso esta manhã.
Abriu a porta. A Irmã Anna Maria olhava-a taciturna. Parecia esgotada pelo interrogatório. O rosto, manchado e inchado pelo choro, tinha a expressão de uma criança perdida. Confusa, transtornada, um pouco assustada. Elena não se orgulhava do que fizera durante o interrogatório, mas também não se sentia envergonhada. O pubblico ministero não era trabalho para pessoas susceptíveis.
Saiu para o corredor. Agostini saiu atrás dela e fechou a porta.
- Que pensa de tudo aquilo? - perguntou Elena.
- Incrível. Que vamos fazer?
- Não faço ideia.
Agostini fez um sorriso manhoso. - Talvez possamos assaltar o Vaticano e arrastar o tal arcebispo para ser interrogado. Elena sorriu também. - Quem dera.
- Ele tinha levado as bolsas de plástico consigo? - Francesca nem queria acreditar.
- Assim parece.
- Portanto foi premeditado? Chegou lá com a intenção de remover indícios criminais da cena do crime.
- Sem tirar nem pôr.
- Jesus!
Francesca afastou a cadeira da secretária e cruzou as pernas, ajustando a saia sobre os joelhos. Mordiscou uma unha pensativamente.
- Isso complica as coisas, não é? - comentou.
Elena concordou com um aceno. -Já tiveste alguns contactos profissionais com o Vaticano?
- Nunca.
- Qual é o procedimento?
- O mesmo que com qualquer outro Estado estrangeiro, suponho. Qualquer comunicação de natureza judicial teria de ser encaminhada através dos Negócios Estrangeiros e do embaixador italiano na Santa Sé.
- Hum... - Elena empurrou para um lado os processos que tinha sobre a secretária e pôs-se a rabiscar num bloco de apontamentos. - Prefiro não dar ao caso um cariz oficial. A não ser que me veja forçada a isso.
- Elena, eles sonegaram indícios. Como é que podemos evitar que isto seja oficial?
- Talvez pudesse falar primeiro informalmente com o arcebispo. Discutir as nossas posições.
- Ele é padre, que poderá saber das posições? - comentou Francesca com um sorriso matreiro. - Quem é ele, afinal?
- É o secretário do Santo Ofício. Agora tem um outro nome qualquer mas, que eu saiba, não passa do mesmo. Ainda trata das questões de doutrina e moral, a denúncia de hereges, a disciplinação de padres. Esse tipo de coisas.
- O departamento da purificação. Deve ser um sujeito divertido. Telefona-lhe e vê se tem programa para esta noite.
- Podemos continuar a falar a sério? Preciso de conhecer alguma coisa a seu respeito, para saber com quem estou a tratar.
- Queres falar à minha tia? É muito devota, vai à missa todos os dias. Conhece toda a gente do outro lado dos Muros.
- Nunca me falaste nela.
- Pois, estás a perceber, é a história do esqueleto escondido no armário. Quando era nova queria ir para freira. Felizmente, a loucura não corre na família.
Francesca inclinou-se e pegou na mala de mão. Procurou lá dentro e extraiu uma agenda.
- Queres o número de telefone dela?
Elena telefonou-lhe. A tia tinha-se encontrado com o arcebispo Tomassi uma única vez, numa cerimónia na igreja de San Giovanni em Laterano, a sede do Papa como Bispo de Roma, mas conhecia algumas coisas a seu respeito. Um homem encantador mas astucioso, era como ela o descrevia. Inteligente, culto, menos solitário do que muitos padres na Cidade do Vaticano, gostava de ir à ópera e ao teatro e tinha reputação de excelente pianista.
- E um homem poderoso? - perguntou Elena.
- Tão poderoso como qualquer outro membro da Cúria fora da Secretaria de Estado. As congregações sagradas são todas teoricamente iguais, mas a Doutrina da Fé é mais igual do que as outras. É um homem muito influente, um futuro cardeal sem dúvida.
Elena agradeceu-lhe o auxílio e desligou.
- Que tal te parece? - inquiriu Francesca, levantando os olhos do trabalho.
- Culto - respondeu Elena.
- Dio. É a última coisa que se pretende num padre. Sê amável com ele. É um alto funcionário numa potência estrangeira.
- Serei o mais diplomática que souber.
Elena procurou o número da central telefónica da Cidade do Vaticano e ligou. Pediu para falar com o arcebispo Tomassi.
- Sacra Congregatio pro Doctrina Fidei - respondeu uma voz de homem quando a ligação foi estabelecida.
A mente de Elena engrenou outra velocidade, convocando vagas recordações do latim escolar. Estava bastante esquecida, mas mesmo assim não lhe foi difícil traduzir. Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Esperava que o resto da conversa não fosse também em latim.
- O arcebispo Tomassi, por favor.
- Quem está ao telefone?
Elena reparou que o homem tinha uma pronúncia estrangeira quando falava em italiano.
- Chamo-me Elena Fiorini. Pertenço ao Ministério Público de Roma.
Não houve qualquer reacção do outro lado.
- Está? - insistiu Elena.
- Vou ver se o arcebispo está disponível.
Ficou à espera durante um tempo considerável até que a voz do homem se fez ouvir de novo.
- É com relação a que assunto?
- Com relação à morte do Padre António Vivaldi - respondeu Elena.
- Um momento, por favor.
Seguiu-se um clique, depois outra curta demora, e finalmente surgiu ao telefone uma voz mais rica, mais segura. - Arcebispo Tomassi. Em que posso servi-la?
Elena explicou-lhe quem era. - Sou a magistrada incumbida da investigação do homicídio do Padre Vivaldi.
- Ah, então é oficialmente homicídio?
- Receio que sim.
- Isso é muito triste. Pobre homem. Posso perguntar-lhe seja registou algum progresso na identificação dos homicidas?
- Não estou autorizada a revelar isso. Pretendo perguntar a respeito dos papéis do Padre Vivaldi.
Após uma pausa, o arcebispo perguntou num tom de perplexidade: - Os papéis dele?
- Aqueles que foram levados esta manhã da casa onde residia.
- E por que haveria eu de saber uma coisa dessas? Elena reparou que estava a apertar o telefone com toda a força. Irritava-a o modo como ele falava. Era difícil identificar exactamente porquê, mas havia na voz dele qualquer coisa de condescendente, como se estivesse a fazer-lhe um favor ao falar com ela. Estava também a tactear, talvez para obter mais informações, mas era uma táctica que não estava disposta a permitir.
- Porque Vossa Reverência mandou alguém buscá-los - respondeu, e acrescentou, para impedir qualquer nova pretensão de ignorância: - A Irmã Anna Maria disse-me que vos telefonou depois de ter descoberto o cadáver. Já vos recordais agora?
Lançou um olhar a Francesca, que estava a fazer-lhe sinais a recomendar-lhe cautela. Elena sorriu-lhe e tentou relaxar-se.
- A Irmã Anna Maria? - perguntou o arcebispo.
- A freira que trabalhava com o Padre Vivaldi.
- Pois, evidentemente. Para que lhe interessam esses papéis?
- Ia fazer-vos a mesma pergunta.
- O Padre Vivaldi era um sacerdote da Igreja Católica Romana. Os seus papéis são propriedade da Igreja.
- Não os seus papéis particulares.
- Por vezes é impossível distinguir entre os papéis particulares e os profissionais. Não pretendemos que quaisquer materiais confidenciais caiam nas mãos erradas.
- Estareis a sugerir que o pubblico ministero poderá ser classificado sob a designação de "mãos erradas"?
O arcebispo soltou um suspiro de impaciência. - Está a ser demasiado sensível, dottoressa.
- Não penso assim - replicou Elena, com a sua resolução de ser delicada começando a fraquejar perante a condescendente oposição de Tomassi. - Estais ciente de que constitui delito remover indícios da cena de um crime?
- Indícios? Quais indícios?
- Vossa Reverência deverá saber ao que me refiro. Tudo o que seja relacionado com a vida privada do Padre Vivaldi ou com o seu trabalho pode ser relevante para se determinar o motivo pelo qual foi assassinado.
- Estes papéis não são relevantes.
- Compete-me determinar isso. Dizei-me: que conterão eles que, na vossa opinião, não deverá chegar ao conhecimento das autoridades italianas?
- Receio não estar autorizado a divulgar isso - declarou Tomassi, fazendo eco das próprias palavras de Elena.
Ela rangeu os dentes. - Vossa Reverência não tinha o direito de mandar removê-los. Estais a interferir na investigação de um crime.
- Não me parece que esteja a gostar do seu tom de voz - disse o arcebispo num tom zangado.
- Não me interessa se gosta ou não - replicou Elena, perdendo finalmente as estribeiras. - Quero que esses papéis sejam imediatamente devolvidos, ou serei forçada a tomar medidas para obtê-los por vias mais oficiais.
- A sua jurisdição não abrange a Cidade do Vaticano, dottoressa. As leis italianas não se aplicam aqui.
- E com respeito às leis da moral? Considera justo dificultar o curso da justiça italiana?
- Não estou a fazer isso.
- Com todo o respeito, Vossa Reverência, é exactamente o que está a fazer. Estava confiada na vossa cooperação nesta matéria. Parece agora que vou ter de exercer outras pressões sobre vós.
- Acha que sim? E quais serão essas outras pressões? - perguntou o arcebispo desdenhosamente.
- A imprensa já anda a fazer perguntas a respeito do envolvimento do Vaticano neste caso.
- Não tenho de prestar contas à imprensa.
- E quanto à opinião pública? A opinião dos católicos italianos respeitadores da lei? Também não tem de lhes prestar contas?
- Este é um assunto de ordem interna - declarou Tomassi. - Não diz respeito a mais ninguém. - Mas havia pela primeira vez um vestígio de incerteza na sua voz.
- O Padre Vivaldi foi assassinado em solo italiano - disse Elena. - É um assunto que as autoridades italianas têm de investigar. Não poderei tolerar qualquer obstrução.
- Esquece-se de com quem está a falar! - A ira do arcebispo era óbvia.
Elena fez uma pausa. Não queria manifestar a sua emoção; pretendia que a sua resposta fosse serena, profissional.
- Concedo-vos vinte e quatro horas para devolver os papéis - declarou com gélida precisão. - Terminado esse prazo, emitirei um comunicado à imprensa descrevendo o que vós haveis feito. Se isso não vos convencer, emitirei um avviso di garanzia informando-vos de que ficareis sujeito a uma investigação criminal na República da Itália.
- Isto é ultrajante! Não pode tocar-me! - exclamou rancoroso. - Possuo imunidade diplomática!
- Adicionalmente, apresentarei à Secretaria de Estado do Vaticano um pedido formal de suspensão da vossa imunidade, para que me seja permitido interrogar-vos.
- Eles nunca irão concordar!
- Devereis compreender que irei até onde for necessário para recuperar esses papéis. Não permitirei a vossa interferência nos meus deveres. Sugiro-vos que pondereis cuidadosamente as consequências das vossas acções. Bons dias, Vossa Reverência.
Atirou o telefone para o suporte e exalou ruidosamente. Os dedos da mão esquerda estavam avermelhados da força com que estivera a agarrar o aparelho.
Francesca observava-a, com a boca entreaberta de descrença. - Isso é que foi diplomacia! - comentou.
O arcebispo cerrou os punhos e bateu com eles uma única vez no tampo da secretária de madeira trabalhada. Estava lívido, mas não era pessoa para exibir a raiva que sentia. Permitiu-se aquele solitário gesto de frustração, e a seguir purgou a fúria do seu sistema. As emoções eram algo que a mente podia controlar, e era capaz de impor uma rígida disciplina aos seus sentimentos. A raiva tinha um objectivo, mas era essencialmente atávica, um regresso aos mais primitivos antepassados do homem. Era imprópria, e por vezes perigosa, num homem dotado de bom senso. E Leonardo Tomassi considerava-se, acima de tudo o mais, um homem de bom senso.
Esperou que a porta se abrisse para dar entrada ao secretário, o Padre Ivan Simcic.
- Esteve a escutar na extensão?
Simcic confirmou com um aceno. - Ela está a lançar-nos poeira aos olhos.
- Talvez.
- Não se atreveria.
- É boa prática nunca se menosprezar um magistrado. Têm muito poder, e estão sempre prontos a manifestar a sua independência em relação ao ramo executivo.
- Tenciona devolver os papéis?
Tomassi tamborilou com as pontas dos dedos no rebordo da secretária, repensando na sua conversa com a delegada do Ministério Público. Teria preferido lidar com um homem, alguém cuja mentalidade e emoções pudesse compreender. As mulheres eram um enigma para ele. Tinha pouca experiência delas, excepção feita ao pessoal doméstico e às obedientes freiras que ia conhecendo no Vaticano. Não era capaz de interpretar os seus estados de espírito, as suas fraquezas. Gostava de conhecer a natureza dos seus adversários antes de se decidir sobre o caminho a tomar, e no caso presente encontrava-se às escuras.
Até que, tendo chegado a uma decisão, olhou para o secretário. - Telefone ao cardeal Secretário de Estado - instruiu-o. - Marque um encontro para eu ir falar-lhe.
- Para quando?
- Diga-lhe que vou já a caminho.
Enzo captou a bola vinda da esquerda. Controlou-a desajeitadamente com o pé direito e ultrapassou à bruta um defesa. Um dos seus filhos tentou tirar-lhe a bola. Enzo fez uma finta para a esquerda e virou para a direita, mas Paolo previu a passada e deteve a bola com as canelas. Enzo aproveitou um ressalto de sorte no joelho e levou a bola à sua frente, quase derrubando e pisando o rapaz. A dez metros da baliza levantou os olhos e apontou por cima da cabeça do guarda-redes.
Levantou os braços no ar, triunfante, e correu à volta do campo, gritando "goooolo!" à maneira de um excitável comentador televisivo, como se tivesse acabado de marcar o golo vitorioso da Lazio contra o AC Milan. Os garotos no campo improvisado olharam-no com um ar indulgente, impassíveis perante o espectáculo de um velho gordo de quarenta e três anos a correr de um lado para o outro como um cão danado.
- A bola passou por cima da barra - informou-o Carlo, o outro filho de Enzo, quando viu o pai concluir a volta triunfal ao campo e imobilizar-se de mãos apoiadas nos joelhos, a combater a falta de ar.
- Que foi? - perguntou Enzo, quase sem poder falar.
- Passou por cima.
- Nem pensar. Entrou pelo canto superior esquerdo. Nem o Roberto Biaggio era capaz de fazer melhor.
- Não contou, pai. Passou três metros acima, pelo menos - disse Paolo, juntando-se ao protesto.
- Estás a brincar? Passou-lhe rente à cabeça!
Enzo olhou à sua volta, tentando descobrir quem pudesse apoiá-lo, mas os jogadores foram-se afastando, desinteressando-se da disputa familiar.
- Andy, qual é a tua opinião? - perguntou Enzo, apelando ao único outro adulto presente.
Chapman encolheu os ombros. - É difícil dizer sem uma baliza em condições.
- Vá lá, foi mesmo golo!
- Passou por cima, não passou, Andy? - disse Paolo.
- Não estava com atenção.
- Não serves para nada - protestou Enzo, desgostoso.
- Pontapé de baliza - disse Carlo, ignorando os protestos do pai e voltando ao jogo.
Enzo amuou e regressou à sua posição de defesa ao fundo do meio-campo, onde Chapman passeava com uma caneca de cerveja na mão. Tinha começado na posição de guarda-redes, mas os miúdos do bairro tinham-no despedido depois de deixar entrar quatro golos durante igual número de minutos. Estava agora armado em apanha-bolas, dando um pontapé ocasional na bola ao mesmo tempo que tentava não entornar a cerveja.
- Vocês, ingleses - bufou Enzo. - Não levam nada a sério. É por isso que nunca mais voltam ao campeonato do mundo.
Chapman sorriu-lhe. - Vai um gole da minha cerveja?
- Tira-me isso da frente! Estás a envergonhar-me em frente dos meus miúdos!
- O quê, mais ainda do que o teu talento futebolístico?
- Vai dar uma volta! Aquilo foi golo, não foi? Sabes que foi. Viste como me voltei, o controlo, o poder do pontapé, o meu porte atlético. Quem te fiz lembrar quando me viste jogar?
- O Luciano Pavarotti? - sugeriu Chapman.
Enzo fez uma expressão de amuo infantil. - É a última vez que te trago para a minha equipa. Vá lá, bebe a cerveja. É só para isso que serves.
Continuaram a jogar pelo entardecer adiante até que os garotos começaram a ir-se embora, convocados das casas vizinhas pelos progenitores. Carlo pegou na bola e encaminharam-se todos para casa, enquanto Enzo continuava a sua disputa com os filhos por causa do golo falhado.
- Carne da minha carne - reclamou à esposa Claudia, que olhou para o tecto e os mandou fazerem as suas abluções com a paciência de uma mulher acostumada a cuidar de três filhos desobedientes.
- O golo mais limpo que já se viu. - Enzo continuava a implicar com os filhos quando foram sentar-se à mesa.
- De que está ele a queixar-se? - perguntou Claudia a Chapman.
- Ele pôs a bola em órbita, e garante que foi golo.
- Foi mesmo golo - insistiu Enzo, indignado.
- Só se a baliza estava em Alpha Centauri.
- Estás a ver como ele abusa da nossa hospitalidade?
- Vá, deita o vinho, Enzo - disse Claudia.
Foi uma refeição ligeira, nada de pesada massa que ficasse assente no estômago até ao dia seguinte. Começou por minestra in brodo de fabrico caseiro, seguida por escalopes de vitela, batatas fritas e uma salada de alface, terminando com a fruta.
Chapman gostava de comer em casa dos Matteis. Enzo era uma companhia divertida, e os seus jovens filhos, quando conseguiam fazer-se ouvir, eram espertos e conversadores. Claudia era mais sossegada do que o marido - não era preciso muito -, mas neste serão parecia invulgarmente calada. Chapman atribuía-o ao cansaço. Trabalhava a tempo inteiro como professora primária, além das suas tarefas domésticas, e Enzo não tinha inclinação para a ajudar. Uma vez por outra Chapman apanhava-a a olhar para o marido com uma expressão perplexa, quase dolorida, no rosto. Era uma impressão momentânea e que o intrigava, mas punha-a logo de parte. A interpretação das nuances de um matrimónio era um exercício fútil, e até mesmo deprimente, e esforçava-se por resistir à tentação.
Contudo, terminada a refeição e com os rapazes a ver televisão na sala ao lado, Chapman estava a ajudar a levantar a mesa e a levar a louça suja para a cozinha quando Claudia lhe disse casualmente: - Duas noites seguidas, Andy. Deve ser um masoquista.
- Perdão?
-Jantar com o Enzo.
Claudia estava a pôr os pratos no lava-louças, de costas para ele, mas voltou-se a tempo de capturar o olhar de interrogação que Chapman lançou a Enzo.
- Oh! É verdade - comentou debilmente. - São muito amáveis por me convidarem. Sabem que gosto muito de estar aqui.
Era uma réplica frágil, mas era a melhor que podia arranjar. Corrigiu a arrumação da louça na mesa da cozinha para evitar ter de olhar para ela.
- Queres ajudar-me a acabar com o vinho? - perguntou Enzo.
- Está bem. Vou buscar o meu copo. Deixei-o na mesa.
- Vou tratar do café. Vai fazer companhia aos rapazes.
Chapman dirigiu-se para a sala de estar. Carlo e Paolo estavam esparramados no sofá a ver um jogo de estúdio tão imbecil que parecia destinado aos espectadores de menos de cinco anos ou com um QI de cinco pontos. O facto de as participantes serem todas raparigas jovens em variados estágios de seminudez poderia talvez justificar a concentração dos rapazes.
Chapman acomodou-se numa cadeira de braços, sem prestar atenção ao jogo, escutando as vozes indistintas na cozinha. Mas não ouviu nada, até que Enzo veio por detrás dele e colocou em cima da mesa um tabuleiro com o café.
- Que porcaria é aquela? - perguntou Enzo. Pegou no comando à distância e mudou de canal, apesar dos protestos dos filhos.
- Espera aí, eu estava a ver aquilo - disse Chapman.
- É demasiado intelectual para ti. De qualquer modo, quero ver o noticiário. Vocês aí, vão-se deitar. Vá, nada de discussões.
Já não conseguiram apanhar o resumo inicial, mas foram a tempo de ver a notícia sobre a morte de António Vivaldi. Havia uma reportagem da conferência de imprensa na Procura, mostrando a reacção dos magistrados à pergunta surpresa de Enzo. Este riu-se ao ver a expressão de espanto deles capturada em película. Chapman olhou de novo para Elena Fiorini, calma e composta ao princípio, ligeiramente perturbada quando lhe passaram a incumbência de responder à pergunta, e depois novamente controlada ao dar por encerrada a conferência. Tinha-se comportado correctamente, pensou Chapman. De qualquer forma, melhor do que os dois espantalhos sentados ao lado dela.
- Não foi realmente justo o que fizeste à mulher - comentou.
- O quê? - bufou Enzo. - Estás a ficar mole, ou quê? Aquela gente não hesita em chatear-nos. Já era tempo de levarem também a sua dose.
- Conseguiste algum comentário do Vaticano?
- Não. E tu?
Chapman abanou a cabeça. - Agora vão ter de comentar.
Acabou de beber o vinho e passou para o café enquanto o noticiário prosseguia. Bastante tempo depois, Claudia veio da cozinha. - Acho que vou deitar-me, se não se importam - disse ela. - Estou cansada. Até qualquer dia, Andy.
- Pois. Obrigado pelo jantar.
Ela dirigiu-lhe um sorriso pálido e saiu. Ela e Enzo não olharam um para o outro.
No silêncio que se seguiu, Chapman disse: - Talvez fosse melhor ir andando.
- Não, estou à espera de uma coisa. É de interesse para ti. Não deve demorar.
Beberam mais café, falando sem grande empenho. A atmosfera estava tensa. Pôs-se a observar Enzo, que olhava para a televisão mas com os pensamentos noutro lugar.
- O que é que se passa?
- O quê?
Chapman pôs-se em pé, aproximou-se da porta da sala de estar e espreitou para o corredor. A porta do quarto dos rapazes estava fechada e podia ouvir o ruído de água a correr na casa de banho. Fechou a porta e sentou-se de novo.
- Disseste à Claudia que tinhas estado comigo ontem à noite? - perguntou em voz baixa.
Enzo não voltou a cabeça nem deu qualquer indicação de ter ouvido.
- Enzo? - Chapman estava zangado. - Não me uses como capa. Isso ofende-me, faz-me sentir que participo no embuste. Gosto da Claudia. Não me obrigues a mentir-lhe.
- 'Tá bem, 'tá bem. Não me chateies.
- Por que é que fizeste isso? A Claudia é tão amável.
- Não tens nada a ver com isso.
- Claro que tenho, se me usas para encobrir o que andas a fazer.
- Olha - disse Enzo com brusquidão -, quando estiveres casado há catorze anos hás-de compreender. Não tem importância nenhuma.
- Para Claudia tem muita importância.
- Ela não sabe.
- Claro que sabe.
Enzo esfregou a boca com as costas da mão. Estava a ficar zangado, uma zanga alimentada pelo sentimento de culpa.
- Olha quem fala. Andas metido com a mulher de outro homem.
- Isso é diferente.
- Achas que é?
- Não estou a cometer adultério.
- Estás a pôr os cornos ao marido dela. Isso dá-te satisfação?
Chapman calou-se. Enzo tinha uma certa razão. Era uma coisa que não queria que lhe recordassem.
- Está bem - disse penosamente. - Não vale a pena ficarmos zangados por causa disso. Mas não voltes a usar-me, está bem?
Enzo concordou. - Eu resolvo o caso com a Claudia. Ela há-de compreender.
Chapman não o contradisse, embora soubesse que as mulheres poderiam perdoar mas nunca compreender. Como poderiam?
A campainha da porta principal do edifício fez-se ouvir no corredor. Enzo levantou-se rapidamente, satisfeito por aquela distracção. Dirigiu-se para o corredor e falou resumidamente através do intercomunicador, e depois abriu a porta da rua. Chapman ouviu as portas do elevador a abrirem-se no patamar, passos no pavimento de ladrilho, algumas palavras murmuradas. Enzo voltou a entrar, trazendo na mão um envelope castanho sem quaisquer dizeres. Abriu-o com um rasgão e extraiu umas folhas de papel reunidas com um agrafo. Estavam dactilografadas a um espaço. Leu tudo, parecendo constrangido ao aproximar-se do final, e entregou as folhas a Chapman.
- O que é isto?
- Uma cópia do relatório da autópsia do Padre Vermelho.
- O quê? Como a conseguiste?
- Lê.
Chapman analisou-a cuidadosamente. Era um relato clínico, directo, cheio de detalhes desagradáveis que lhe transtornavam o estômago. António Vivaldi, um padre de cinquenta e quatro anos reputado pela sua generosidade e espírito compassivo, tinha sido despido e amordaçado para lhe abafarem os gritos e fora torturado da maneira mais desumana. A causa técnica da morte devera-se a um colapso do coração, mas não restavam dúvidas de que isso fora provocado pela violência. O corpo apresentava-se coberto de queimaduras e equimoses provocadas por golpes de algum instrumento rombo.
-Jesus! - suspirou Chapman.
- É de ficar doente, não achas?
- Quem faria uma coisa destas a um padre?
- Vê ao fundo da segunda página - disse Enzo. - O conteúdo do estômago.
Chapman virou a página e localizou o parágrafo em questão, que identificava os alimentos encontrados no estômago e nos intestinos de Vivaldi, os restos do seu jantar parcialmente digerido. Um dos elementos era ólio di rícino.
As implicações assaltaram-no imediatamente. Nos anos vinte, o óleo de rícino era conhecido como "o remédio fascista". Os squadristi de Mussolini obrigavam a bebê-lo as pessoas de quem não gostavam - socialistas, desordeiros, qualquer um que não concordasse com eles.
- Estás a sugerir que Vivaldi foi morto por neofascistas?
- É o que parece.
Chapman levou uns instantes a absorver a informação. - Ou então por alguém que nos quer fazer acreditar que foram neofascistas.
Enzo franziu os lábios, céptico. - É possível.
- Não te parece que tornaram a coisa demasiado óbvia? - Chapman sabia que em Itália poucas coisas eram o que pareciam ser. As pessoas eram tortuosas, receavam instintivamente confiar em alguém ou nalguma coisa. Daí o passatempo nacional de ver conjuras e conspiradores por toda a parte.
Mas Enzo estava preparado para aceitar isto pelo seu valor facial. - A subtileza não é uma característica dos fascistas - comentou. - A arrogância e a vaidade são. Acho que querem que as pessoas saibam que foram eles que o mataram, um padre da esquerda, um homem do povo que odiava os fascistas e tudo o que eles representam. É uma mensagem, um gesto de força. Um desafio às autoridades. Põem-se de pé e dizem: "Fomos nós que o matámos. E agora, que vão fazer?".
Enzo olhou para o relógio e estendeu a mão para o relatório. - Tenho de telefonar à redacção.
Elena leu os jornais matutinos com um sentimento de raiva temperado de resignação. A fuga dos resultados da autópsia enfurecia-a, mas sabia que nunca iria encontrar o culpado. Nem merecia a pena tentar. Não sentia nenhuma animosidade pessoal contra Enzo Mattei, cuja função era obter informações antes que as autoridades pretendessem torná-las públicas. Mas a fuga era um embaraço irritante para ela e para o pubblico ministero, e seria melhor não ter surgido.
Os telefones tinham estado a retinir durante toda a manhã. Jornalistas, estações de televisão, agências noticiosas, todos pretendiam saber que progressos haviam sido alcançados. Baffí despachara a maioria das chamadas, mas Elena não conseguia escapar à pressão, tanto externa como no interior do próprio serviço. Corona enviara uma mensagem dizendo que queria falar com ela às onze horas. Era um sinal de mau agoiro.
Preparou-se o melhor que podia, contactando a Questura e a Polizia Giudiziaria para se pôr a par das investigações, relendo os relatórios da polícia e da medicina legal, analisando de novo os detalhes da autópsia, e por fim reuniu os seus documentos e iniciou a longa caminhada corredor fora até ao gabinete do director do serviço.
Um funcionário fê-la entrar. Corona estava ao telefone, mas fez-lhe sinal para ocupar uma cadeira. Elena sentou-se e colocou os processos no chão, ao seu lado. O gabinete de Corona era o mais arrumado de todos, em parte por ser mais amplo e em parte também porque, devido às suas funções administrativas, o director tinha menos casos a seu cargo, e por isso o número de processos era menor.
Olhou em volta para os livros de Direito que enchiam as estantes, ensaiando mentalmente o que ia dizer ao chefe. Este olhou para ela e levantou as sobrancelhas a pedir desculpa, enquanto tentava pôr termo à conversa telefónica. Mas quem estava do outro lado parecia decidido a prolongá-la.
Corona cobriu o bocal com a mão. - É só um momento. - A seguir, para o telefone: - Pois, pois, evidentemente. Vou já estudar o assunto. Até depois.
Colocou o auscultador no descanso e endireitou os papéis na secretária antes de levantar a cabeça para olhar para ela.
- Dottoressa, bom dia. Obrigado por ter vindo visitar-me. Mantinha com todo o seu pessoal uma formalidade antiquada que o fazia parecer mais frio do que na realidade era.
- Queria falar consigo a respeito do caso Vivaldi. - Pegou num jornal e voltou-o para que Elena pudesse ler a manchete: Neofascistas ligados ao assassínio do Padre Vermelho.
-Já tinha lido isto? Elena confirmou.
- Tem alguma ideia de onde isto terá surgido?
- Poderia ter vindo de vários lados. O pessoal da morgue, o patologista. A Questura e a Polícia Judiciária receberam cópias. Dezenas de pessoas podem ter tido acesso à informação.
- E o seu gabinete?
Elena abanou a cabeça. - Só o meu oficial de diligências e eu vimos o relatório, que eu saiba. Confio implicitamente em Baffi. E eu certamente não informei ninguém.
Corona contorceu as linhas do rosto como se tivesse mordiscado uma rodela de limão. Elena sabia por experiência pessoal que esta manifestação era um prelúdio de afirmações desagradáveis.
- Este caso tem apenas um dia de existência e mesmo assim parece que já estamos a acumular uma série de erros - declarou. - Uma fuga de informação confidencial, uma conferência de imprensa em que um jornalista parece saber mais do que nós a respeito do que aconteceu. Começa a fazer-nos ficar mal vistos.
Corona nunca levantava a voz. As suas opiniões eram sempre expressas num tom calmo, racional, como um gerente bancário a conversar com um cliente valioso que deixara a conta ficar temporária e inesperadamente a débito. Mas essas opiniões eram mais contundentes do que uma explosão de cólera porque colocavam em jogo o sentido de lealdade daqueles a quem eram dirigidas, fazendo-os sentir que o tinham traído e que portanto precisavam de compensar essa negligência. Nada do que dissera era culpa dela, mas Elena percebia que Corona estava a culpabilizá-la. Era ela a magistrada encarregada do caso, e era responsável por quaisquer erros ou omissões.
- Tentarei certificar-me de que não voltará a acontecer - disse ela.
O chefe soltou um murmúrio de aprovação e passou logo a outros assuntos. Admoestar o pessoal era para ele um dever doloroso, e nunca gostava de prolongar isso.
- Até onde já chegámos?
Elena informou-o sobre os detalhes do caso. Escutou-a com muita atenção, inclinando-se para a frente com os cotovelos apoiados no tampo da secretária, as pontas dos dedos encostadas diante do rosto e descansando o queixo sobre os polegares estendidos. Era alto e magro, com cabelos ralos que se espalhavam desordenadamente no topo da cabeça. Tinha uns modos lúgubres que o faziam parecer austero, mas não deixava de exibir um certo sentido de humor. O latido staccato do seu riso, como uma súbita rajada de metralhadora, podia ser frequentemente escutado nos corredores da Procura. Mas era uma pessoa reservada, mais propenso a suscitar respeito do que simpatia. Sabia lidar bem com todo o pessoal, com as suas diversas personalidades e egos. Como todos os detentores de poder no sistema legal italiano, cultivava a arte de procurar o justo compromisso.
- Acredita nesta ligação com os neofascistas?
Elena fugiu a uma resposta directa, não desejando comprometer-se sem mais indícios sólidos.
- Instruí a polícia para investigar o assunto. Veremos o que encontra.
- Teriam algum motivo para matar Vivaldi?
- Depende do que se considera motivo - respondeu Elena. - Não era amigo deles, mas há muitas mais pessoas que não o são e continuam vivas. Há muitos rufiões e sádicos na extrema-direita. Talvez quisessem apenas uma vítima conhecida para torturar e assassinar por gozo.
Corona estremeceu. Eram ambos advogados, treinados para pensarem de um modo racional, lógico. Uma das realidades que tiveram de enfrentar ao trabalharem para o pubblico ministero era a existência de pessoas capazes de cometer crimes brutais sem qualquer motivo inteligível.
-Já surgiu alguma indicação forense?
- Nada significativo. Havia algumas impressões digitais na secretária de Vivaldi que estão ainda por identificar. Podem pertencer à mulher da limpeza, ou a alguma das freiras que o ajudavam. - Fez uma pausa. - Ou então ao padre que levou os papéis pessoais de Vivaldi.
Pensava que o director iria reagir a isto, mas, como de costume, o rosto de Corona permaneceu impassível.
- Ah, então é essa a causa... - disse, como que para si mesmo. - Todos estes telefonemas - explicou. - Parece que perturbou os nossos amigos do outro lado dos Muros Leoninos. Tenho estado a receber telefonemas durante toda a manhã. Agora acho que começo a entender.
- Quem tem estado a telefonar? - perguntou Elena, mais insistentemente do que desejaria.
Corona levantou a mão, procurando acalmá-la. - Não haverá qualquer interferência, venha de onde vier, à sua investigação. Não tenha receio disso. O Ministério da Justiça apenas pretendeu exprimir o seu interesse neste caso.
A boca de Elena crispou-se. O Ministério Público era em teoria completamente independente do Ministério da Justiça, mas sabia que na realidade as coisas não eram assim tão simples. Havia muitas maneiras de se exercer pressões, favores por pagar, velhos amigos a quem não se podia dizer não.
Corona prosseguiu: - Insistem que este assunto não é estritamente judicial mas uma questão de relações com um Estado estrangeiro.
- Isso é um sofisma - declarou Elena. - Houve um homicídio, e tenciono investigá-lo conforme achar melhor.
- E poderá contar com todo o meu apoio. Fale-me desses papéis.
Relatou-lhe os detalhes do interrogatório da Irmã Anna Maria. A testa de Corona enrugou-se um pouco enquanto escutava, mas foi essa a sua única manifestação. No final, franziu os lábios e disse com rara emoção: - Isto é perfeitamente incrível. Se soubesse disso, a minha resposta a quem me telefonou esta manhã teria sido bem diferente. Falou com o arcebispo?
Elena confirmou, e fez um resumo da conversa com Tomassi. Um sorriso oblíquo aflorou à boca do chefe.
- Ameaçou-o com um avviso di garanzia? Foi preciso coragem. Duvido que o eminente arcebispo esteja habituado a que lhe falem dessa maneira.
- Estava a ser deliberadamente obstrutivo - comentou Elena. - Não tive outra hipótese.
- Isso colocou-a sem dúvida numa posição difícil. Talvez uma comunicazione giudiziaria através dos Negócios Estrangeiros tivesse sido um caminho menos litigioso.
- E ter de esperar três meses por uma resposta? Queria agir rapidamente, antes que a pista esfriasse.
- Pensa que estarão envolvidos no caso?
- Não. É apenas uma reacção excessiva dos jornais. Uma boa história para aumentar as tiragens. Acho que estão apenas a esconder a roupa suja, removendo os papéis de Vivaldi para prevenirem a possibilidade de haver neles algo controverso, qualquer coisa que não desejem ver exposta em público. É improvável que tenham alguma coisa a ver com este homicídio, mas mesmo assim preciso de ver aqueles papéis.
Corona recostou-se na cadeira e passou pensativamente um dedo pelos lábios.
- Não quero que tome isto como uma crítica, Elena. Destinei-lhe este caso porque sei que conserva a cabeça fria mesmo sujeita a pressões. Não representa para a plateia. Esta investigação precisa de uma abordagem discreta. Tudo o que fizermos terá de ser legal e indispensável, feito por uma boa razão, e não para fins publicitários ou para dar espectáculo.
Fez uma pausa e olhou-a de frente. - O Vaticano tem muitos amigos influentes, e a magistratura muitos inimigos, pessoas que temem a nossa independência. Tenha cuidado. Não faça nada de impetuoso. Tem de pensar na sua carreira.
- Estou mais preocupada com a justiça - disse Elena.
- É muito louvável. Mas sem trabalho não poderá preocupar-se com a justiça.
Olhou-o espantada. - Que está a dizer?
-Já há punhais desembainhados em sua intenção, Elena. Tenciono protegê-la deles na medida do possível, mas não pode simplesmente ignorá-los. Mais vale prevenir do que remediar. Mantenha-me informado do seu progresso.
Lançou-lhe um ligeiro sorriso para indicar que a reunião tinha terminado. Elena juntou os seus papéis e levantou-se.
- Considere o que lhe disse como um conselho de amigo - disse Corona. - Nada mais.
- Obrigada - disse Elena.
Mas ao encaminhar-se para a porta não conseguia deixar de pensar que por vezes existe apenas uma linha muito fina entre um conselho de amigo e uma ameaça.
A primeira coisa que Chapman notou quando entraram no refeitório foi o calor excessivo, um espesso cobertor de ar quente que se enrolava à volta do corpo, entupindo de tal forma o nariz e a boca que era necessário um esforço consciente para se conseguir respirar. Foi só nesse momento que notou o cheiro. Conseguiu identificar prontamente os odores mais convencionais: cebola e alho e azeite. Foram os outros cheiros, menos óbvios mas igualmente pungentes, que levou mais tempo a reconhecer. Eram os odores emanados pelas pessoas que enchiam o refeitório.
Eram talvez umas trinta, homens e mulheres de diferentes cores e idades, apertados nos bancos de madeira, todos diferentes mas todos caracterizados pelos mesmos traços dos sem-abrigo. Os homens barbudos ou com a barba por fazer, rosto e mãos impregnados de sujidade. As mulheres com manchas no rosto e um ar doentio, cabelos engordurados colados à testa e ao pescoço suado. Todos envergavam roupas sujas e rasgadas, com os seus parcos bens terrenos metidos em sacos de plástico seguros entre as pernas ou depositados nos bancos ao lado. Espalhava-se no ar o fedor acre dos corpos imundos, do suor rançoso e da roupa interior suja.
Por detrás do balcão que separava o refeitório da cozinha três freiras distribuíam pratos de massa com molho de tomate a uma fila cada vez menor de mendigos e vagabundos.
Chapman e Enzo observavam a alguma distância, examinando os rostos inclinados sobre as mesas.
- Estás a vê-lo? - perguntou Enzo.
- Não sei. E difícil reconhecê-los, têm todos o cabelo tão comprido...
- Perguntemos a alguns deles.
Enzo aproximou-se da mesa mais próxima e baixou-se. Um velho de longo cabelo emaranhado e barba hirsuta enfiava sofregamente na boca colheradas de massa como um cão a devorar comida. Este frenético modo de comer era repetido por toda a sala, como se aqueles desgraçados receassem que os pratos lhes fossem retirados antes de chegarem ao fim.
- Com licença.
O velho mendigo nem levantou os olhos. Arrancou um naco de pão do cesto colocado a meio da mesa e mergulhou-o no molho de tomate.
- Posso falar consigo?
O homem agarrou no prato pela borda e puxou-o mais para si, dobrando-se sobre ele até o rosto ficar apenas uns centímetros acima. Tirou mais colheradas de massa do prato e enfiou-as na boca até as bochechas ficarem bojudas como as de um porquinho-da-índia.
- Posso perguntar o que estão a fazer?
Chapman voltou-se. Uma das freiras, a mais idosa das três, com cabelo grisalho e uma expressão de indómita vontade no rosto, estava atrás de si.
- Têm alguma coisa a fazer aqui? - perguntou-lhe com rispidez. - Quem são os senhores?
Enzo mostrou-lhe o seu melhor sorriso. - Irmã, espero que não se importe. Só queremos ter uma conversa com algumas destas pessoas.
A freira observou-o com um ar de suspeita, e a seguir examinou Chapman com idêntico empenho. - São jornalistas, não são?
- Somos - admitiu Enzo com relutância.
- Vão-se embora, por favor.
- Mas só pretendemos...
-Já! - insistiu a freira com firmeza. - Estas pessoas são muito vulneráveis. Não gostam de falar com jornalistas. Particularmente a respeito do Padre Vivaldi.
- Mas isto não tem nada a ver com o Padre Vivaldi...
- Francamente, devem pensar que sou estúpida.
- É para um artigo sobre a situação dos sem-abrigo. Talvez pudéssemos entrevistá-la também a si, Irmã, para discutirmos o trabalho que a Compassione leva a cabo para ajudar estes infelizes.
- É estranho - comentou a freira -, estamos aqui há dez anos a trabalhar entre os pobres e a imprensa nunca se mostrou interessada no que fazemos. Contudo, agora que o Padre Vivaldi está morto, pretendem repentinamente escrever a nosso respeito.
- A publicidade podia ser muito útil para a vossa obra - comentou Enzo, hesitando um pouco sob o olhar rígido da freira.
- Sabe-se lá quanto poderia render-vos.
- Querem ajudar-nos? - inquiriu a freira, parecendo suavizar um pouco. - Querem realmente ajudar-nos?
- Evidentemente.
- Venham comigo.
Seguiram-na, a caminho da saída. Na parede junto da porta encontrava-se uma caixa metálica de esmolas, protegida por um cadeado e com uma ranhura no topo.
- É aqui que melhor poderão ajudar-nos- Dependemos inteiramente de oferendas para mantermos a funcionar esta sopa dos pobres.
Enzo hesitou, olhando para Chapman. Depois encolheu os ombros e tirou a carteira do bolso, introduzindo duas notas de dez mil liras na caixa.
- Espero que isto a convença das nossas boas intenções. A freira voltou-se para Chapman, que se sentiu encolher sob o seu olhar implacável. Tirou também a carteira e juntou mais vinte mil liras à caixa.
- Obrigada, cavalheiros - disse ela. - Agora podem sair, por favor.
Enzo olhou-a, espantado. - O quê?
- Fizeram a vossa parte para nos auxiliarem, e estamos gratas.
- E se nos deixasse conversar com alguns dos sem-abrigo.
- Oh!, não, não posso permitir uma coisa dessas. Seria abusar da confiança que eles têm em nós. Vêm ca para comer, não para serem entrevistados por jornalistas. Bom dia, cavalheiros.
Fê-los cruzar a porta sem lhes tocar, expulsando-os apenas com o peso da sua personalidade. Enzo protestou debilmente, mas sem grande empenho. Sabia reconhecer a derrota. A freira ficou à porta, vendo-os atravessar o pátio e ultrapassar a arcada.
- Aquela vaca! - exclamou Enzo, furioso, parando na pequena faixa de sombra em frente do edifício. - A máfia podia aprender algumas coisas com ela sobre a arte da extorsão.
Chapman encostou-se à parede e sorriu para o amigo, esperando que ele acalmasse.
- Quarenta mil liras, foi quanto nos custou a brincadeira - resmungou Enzo. - E nem sequer almoçarmos.
- Sempre ajudámos os sem-abrigo - comentou Chapman, a espicaçar o amigo.
- Pensas que me ralo com os sem-abrigo? - E deu uns passos ao longo da rua, queimando um pouco da ira.
- Quando te fartares - disse Chapman -, vamos comer alguma coisa ali naquele bar do outro lado da rua.
Enzo voltou-se para ele com uma careta. - A comida não deve prestar.
-Talvez, mas poderemos ver os vagabundos quando saírem. Ela não pode impedir-nos de falarmos com eles na rua, pois não?
Enzo concordou com a ideia. - Sabes o que me chateia? Depois de mais de vinte anos a trabalhar como jornalista nesta cidade, encontro pela primeira vez alguém que não se deixa subornar. A minha fé na natureza humana está destroçada.
Mandaram vir duas cervejas e dois tramezzini de salada de frango, e depois escolheram assento no extremo do balcão mais próximo da rua, de onde tinham total visibilidade sobre a entrada do pátio.
- Ao menos o cheiro é melhor aqui - comentou Enzo. - Se tivéssemos ficado ali mais alguns minutos, era capaz de desmaiar.
Chapman deu uma dentada na sua sanduíche, da qual escorria maionese que lhe pingou para o queixo. Limpou-a com um guardanapo de papel.
- Como está a Claudia? - perguntou.
Enzo atirou-lhe um olhar irritado e baixou os olhos para a cerveja.
- Falaste com ela depois de eu sair?
- Isso não é assunto para discutirmos aqui, Andy.
- Estou preocupado. Vocês são meus amigos.
- Havemos de resolver o assunto, está bem? Falemos de outra coisa.
Ficaram em silêncio, comendo as sanduíches. Chapman bebeu um pouco da cerveja. O bar estava tão silencioso que conseguia ouvir-se a engolir o líquido.
Finalmente Enzo falou: - Vou acabar com aquilo. Tenciono falar com a Claudia esta noite. Pronto, ficas feliz?
- O que interessa é que vocês fiquem felizes.
- Nem sei o que poderá fazer-me feliz. O problema é esse.
- Quem é ela?
- Ninguém. Uma rapariga qualquer.
- Que idade tem?
- Não sei. Uns vinte e quatro anos. - Levantou os olhos. - Está bem, não passo de um imbecil de meia-idade. Mas vou acabar com aquilo. Palavra.
Chapman fez-lhe um ligeiro aceno. Já tinha escutado isso noutras ocasiões. A rapariga não era a primeira, e certamente não seria a última. Mudou de assunto para aliviar o pouco à-vontade do amigo.
- Fizeste um figurão esta manhã. - Foi, não foi? - disse Enzo, satisfeito e aliviado por estarem a falar de um assunto menos litigioso. O seu relato sobre a morte de António Vivaldi tinha merecido quase toda a primeira página do seu jornal. Era uma clássica história italiana de homicídio, religião e política. O crime em si merecera um espaço razoável. Juntando-se-lhe um possível envolvimento do Vaticano, e a seguir os indícios circunstanciais de uma ligação aos neofascistas, era a realização dos sonhos de qualquer jornalista, e Enzo, com o seu talento para a hipérbole, extraíra disso todo o suco que poderia dar. Possuía um jeito especial para sugerir coisas sem chegar a dizê-las, uma espécie de código que dava ao leitor a possibilidade de alcançar conclusões que Enzo, caso lhe conviesse, poderia renegar a pés juntos. Não chegava a acusar o Vaticano ou os neofascistas de envolvimento no homicídio, mas os factos do caso e a reacção das duas partes faziam-nas parecer culpadas a quem fosse de natureza cínica ou desconfiada, como qualquer italiano era. O Vaticano recusara-se a comentar, e esse facto conferia-lhe automaticamente uma conotação matreira e culposa. As várias facções da extrema-direita tinham publicado desmentidos, mas, tratando-se de políticos, ninguém iria acreditar no que diziam. Fosse como fosse, Enzo saía a ganhar.
O que mais apreciava, acima de tudo, era o facto de ter conseguido antecipar-se a todos os outros jornais italianos. Era isso que lhe dava uma verdadeira satisfação.
- Aqueles espertalhões do La Stampa e do Corriere estão a estrebuchar como peixes fora da água. Não fazem qualquer ideia do que hão-de fazer! - exclamou, sem demonstrar qualquer condescendência.
Chapman pôs a sua sande no prato e bebevi um pouco da cerveja. Estava a olhar por cima do ombro de Enzo, sem querer deixar de vigiar a entrada para o pátio.
- Nem toda a gente teve o privilégio de conhecer o relatório da autópsia - comentou.
- É verdade, mas também não sabiam a quem deviam ter perguntado.
- A quem deviam ter subornado, queres tu dizer.
Enzo soltou uma gargalhada. - Consultaste os faxes da Ansa antes de vires para aqui?
- Não.
- O Vaticano resolveu-se por fim a emitir um comunicado.
- Dizendo o quê?
- O que se esperava. Sentem-se chocados com a morte do Padre Vivaldi. Era um excelente padre, um defensor dos pobres e dos oprimidos, etc, etc. A conversa do costume.
- Nada a respeito da ida do funcionário a casa de Vivaldi?
- Esse tinha ido lá naquilo a que chamam uma missão de apoio.
- Que significa...
- Só Deus sabe.
- Quem era ele?
- Não dizem.
- Alguma justificação por ter chegado antes da polícia, ou das suas actividades?
- Andy, estamos a falar de uma comunicação do Vaticano. Esperas sinceramente que diga alguma coisa de interesse?
- Haverá sempre uma primeira vez.
Enzo soltou um ronco de espanto. - Vocês, ingleses, são realmente ingénuos.
Chapman endireitou-se no assento e colocou o copo de cerveja no balcão. - Ora aqui vamos nós.
Enzo dobrou-se no banco para saber o que Chapman estaria a observar. Um velho mendigo andrajoso, de camisa verde manchada e calças rotas, cruzava a arcada vindo do refeitório. Chapman meteu na boca o que restava da sanduíche de frango e correu para a porta.
Atravessaram a rua apressados e chegaram perto do mendigo quando este parou em frente de uma montra a poucos metros do edifício. Fixou-os alheado, com olhos avermelhados e vazios.
- Andamos à procura de um mendigo que só tem uma orelha - disse Enzo. - Conhece-o?
- O quê?
Enzo repetiu a pergunta. O vagabundo sussurrou qualquer coisa repetidamente, num espesso dialecto romano, e afastou-se com passos incertos.
- Que disse ele? - perguntou Chapman.
- Nada que possa interessar. Deixa-o ir, não pode dizer-nos nada que valha a pena.
Retrocederam em direcção à arcada e aguardaram a saída de outros vagabundos vindos da sopa dos pobres. Enzo estava ainda agarrado aos restos do seu tramezzino. Meteu a última migalha na boca e engoliu-a.
- Só com muita sorte conseguiremos saber alguma coisa deles - declarou. - Ou estão bêbados ou são malucos, ou estão zangados de mais para responder.
- Parece que estás a falar da Câmara de Deputados - comentou Chapman.
Enzo achou piada. - Estás a ser injusto para os mendigos.
- Experimentemos este.
Outro representante da gente da rua atravessava o pátio. Meteram-se-lhe no caminho e Enzo fez-lhe a mesma pergunta. Parecia não ter escutado, pois limitou-se a esquivar-se, continuando a andar enquanto falava sozinho.
- Será por causa do modo como lhes faço a pergunta? - disse Enzo.
Passaram para o lado oposto da arcada, olhando para outros andrajosos indivíduos que se aproximavam. Uma mulher passou por eles cheia de actividade. Chapman captou um sopro do perfume dela. Tinha cabelo curto e escuro e uns enormes óculos de sol que lhe encobriam os olhos. Ficou a vê-la entrar na escada do edifício onde o Padre Vivaldi residira até há pouco, virando à direita no vestíbulo, na direcção do escritório da Compassione.
Entretanto, Enzo fizera parar outro dos desprotegidos da sorte; desta vez um jovem malcheiroso com um pé defeituoso e uma barba incipiente, e estava ocupado a interrogá-lo.
- O quê? - perguntou o jovem, com ar beligerante.
- Com uma orelha só. Sabe como ele se chama?
- Tem cigarros?
Enzo percebeu o recado. Tirou do bolso uma nota de cinco mil liras e segurou-a entre os dedos. O mendigo tentou apanhá-la, mas Enzo afastou-a do seu alcance.
- Primeiro, o nome dele.
- Para que querem saber? São da polícia?
- Não.
- Dê-me o dinheiro.
- Como se chama ele?
- Beppe. Agora dê-me o dinheiro.
Enzo deixou-o pegar na nota. - Onde podemos encontrá-lo?
- Outra.
- O quê?
O mendigo tinha a mão estendida, à espera de mais dinheiro.
Enzo tirou da carteira uma segunda nota de cinco mil liras. - E acabou-se, está bem?
O mendigo sacou a nota e meteu-a no bolso das nojentas calças.
- Onde está ele?
O mendigo encolheu os ombros. - Anda por aí.
- Escute! Dei-lhe o dinheiro - disse Enzo, começando a ficar irritado.
- E eu dei-lhe a resposta. Ele não tem morada certa. Anda por aí. Por aqui, na Termini, ao longo dos carris do caminho de ferro. Pode estar num sítio qualquer. Agora ponha-se a andar e não chateie.
Enzo estendeu os braços. - Oh, seu filho da mãe!...
- Enzo! - exclamou Chapman, agarrando-o. - Deixa-o ir. Esquece.
Enzo respirou fundo e concordou com um aceno. O jovem pedinte lançou-lhes uma careta de asco e afastou-se, coxeando sobre o pé deformado.
- Aquele sacaninha - praguejou Enzo. - O dia está a ficar-me caro.
- Bem sei - replicou Chapman. - Mesmo assim, sempre serve para recuperares a tua fé na natureza humana, não é?
- Vamos embora daqui. Já estou farto desta gente.
- Só um momento.
Chapman estava a observar a mulher dos óculos escuros que regressava através do pátio. Vestia uma blusa e uma saia, ambas brancas, que reflectiam a luz do sol. Podia sentir-lhe a frescura do perfume quando ela se aproximou.
- Desculpe - disse ele. - Reparei que entrou na Compassione. Costuma trabalhar na sopa dos pobres?
- Não na sopa dos pobres, mas dou uma ajuda no escritório. Por que pergunta?
Chapman explicou quem era e apresentou Enzo. A mulher reconheceu-lhe o nome.
- Enzo Mattei? Foi quem escreveu aquele artigo no jornal da manhã?
Enzo confirmou. - Poderemos falar consigo a respeito do Padre Vivaldi? Talvez no escritório.
- Está fechado. A polícia selou-o ontem. Pensei que talvez pudesse entrar hoje, mas... - Encolheu os ombros. - De qualquer forma, não tenho muita vontade de trabalhar.
- Podemos oferecer-lhe uma bebida ali no bar do ovitro lado da rua?
Ela hesitou, olhando por cima do ombro como se receasse que alguém estivesse a espreitá-la.
- Está bem - concordou. - Uma bebida rápida. Encontraram uma mesa vaga ao fundo do bar onde tinham almoçado. Estava escondida na penumbra, afastada do sol directo, mas mesmo assim quente de mais para ser confortável. Situava-se perto da porta das instalações sanitárias, pela qual se escapava o ligeiro odor do esgoto, menos fétido do que o mau cheiro na sopa dos pobres, mas mesmo assim desagradável. Os italianos raramente se sentavam às mesas nos bares, porque isso aumentava o preço das bebidas. Estas pequenas mesas de topo acastanhado e as cadeiras ordinárias que as cercavam eram raramente ocupadas, excepto pelos confiantes turistas das pensões baratas das cercanias, que vinham tomar os seus cappuccini do pequeno-almoço que lhes custavam os olhos da cara.
A mulher disse que se chamava Giulietta Ricci. Trabalhara para António Vivaldi durante os últimos quatro anos, dactilografando-lhe a correspondência, atendendo o telefone, organizando reuniões e encarregando-se da contabilidade e da administração geral da instituição de caridade.
- Deve ter sentido muito a morte dele - comentou Chapman.
A boca dela retorceu-se de lástima. - É verdade. Passei quase todo o dia de ontem a chorar. Depois de a polícia me interrogar, fui para casa e chorei durante toda a tarde. Era um homem maravilhoso, do género de padre que nos faz acreditar na bondade. Transbordava de bondade. - Sorriu. - Tinha uma imagem pública de sacerdote turbulento e rebelde, mas não era nada disso. Era muito franco, e acho que gostava de perturbar o Vaticano; considerava que era seu dever sacudir-lhes aquela sua complacência, recordá-los de que era obrigação da Igreja proteger os pobres e os indefesos. Mas na sua vida de todos os dias era um homem muito diferente: amável, de fala suave, engraçado. Perguntem a qualquer pessoa que o tenha conhecido.
Olhou para eles, um pouco apologeticamente. - Desculpem. Estava a ser demasiado exuberante a respeito dele.
Chapman observou-a disfarçadamente enquanto ela tomava um Campari com gelo. Parecia ter trinta e tantos anos, talvez um pouco mais, mas havia nela algo de jovem e quase ingénuo. Era do género de pessoa aberta e confiante que os jornalistas muito apreciavam.
- Há pouco tentámos falar com as freiras do refeitório - disse ele -, mas não foram muito prestimosas.
Giulietta agitou uma mão no ar, desdenhosamente. - Não são nada amigáveis. Ajudam, claro, mas não deixam de ser, como direi, freiras. Quero dizer, fazem parte da Igreja organizada. Não trabalhavam especificamente para o Padre Vivaldi.
- Mas a senhora sim?
- Claro. A Obra paga-me um pequeno ordenado. As freiras são voluntárias. São mulheres boas, mas - era esta a sua grande queixa - muito mandonas. Pensam que podem dizer a toda a gente o que se deve fazer.
Enzo concordou, comentando: - Pois, nós já demos por isso.
- Que irá acontecer agora à Compassione? - perguntou Chapman.
- Não sei. Mas a obra do Padre Vivaldi tem de ter continuidade. Os directores da instituição terão de encontrar alguém que o substitua.
- Os directores, não o Vaticano?
- Oh, não, isto nada tem a ver com eles. Por vontade deles, já teria sido fechada há muito.
- Não aprovam a ideia? Uma sopa dos pobres para os sem-abrigo?
- Não, não é isso. - Fez rodar os cubos de gelo no fundo do copo. - O Padre Vivaldi é que não os aprovava a eles. Não apoiavam a Compassione, quero dizer, financeiramente. Não lhe davam nenhum dinheiro. Mas o que queriam na realidade era correr com o Padre. - Fez uma pausa, parecendo querer reformular o que dissera. - Quero dizer, queriam ver-se livres dele. O Padre era um empecilho.
- Teve bastantes disputas com o Vaticano, não teve? - comentou Chapman.
- Era mais como uma batalha sem fim. Ainda anteontem tinha estado lá, com efeito.
Chapman deitou um olhar a Enzo, que se endireitou na cadeira e começou a dedicar mais atenção à conversa.
- Ele gostava de ir lá - disse Giulietta. - Para lhes eriçar o pêlo e para se defender. Penso que achava isso, bem, tonificante.
Chapman levantou a mão para a interromper. - Disse que ele foi ao Vaticano anteontem?
- Exactamente.
Enzo debruçou-se sobre a mesa. - No dia em que morreu?
- Sim, creio que sim. Da parte da tarde.
- Acha que isso foi invulgar?
Ela confirmou com um aceno. - Fiquei surpreendida. Ele não era exactamente persona grata ali.
- Teria sido convocado?
- Não vejo outra razão para ter ido lá. Não sei muito a respeito disso, lamento. Ele tinha ido ao hospital da parte da manhã...
- Estava doente? - interrompeu Chapman.
- Não, foi visitar um internado. Estava sempre a fazer isso. Depois, quando voltou, subiu para o seu apartamento para fazer algum trabalho. Depois do almoço veio ao escritório e disse que tinha de ir ao Vaticano.
- Deu alguma explicação?
- Não. Estava com pressa. Disse-o de passagem e saiu logo. Não voltei a vê-lo depois disso.
Parecia ter percebido nesse instante as implicações do que dissera. Engoliu em seco e levou a mão à boca para que os lábios não tremessem.
- Para que são estas perguntas? - inquiriu nervosamente. - Não vão servir-se do que eu disse aqui, pois não? - Parecia estar arrependida da sua franqueza.
- São apenas informações gerais - assegurou Chapman.
- Se calhar não devia ter dito nada.
- Foi tudo verdade, não foi?
- Certamente.
- Nesse caso, não tem motivo para se preocupar. Giulietta empurrou a cadeira para trás e pegou na mala de mão. - Tenho de ir andando. Tem a certeza de que o meu nome não aparece no jornal?
- Prometo - disse Enzo.
Ficaram a vê-la atravessar o bar e sair para a rua. Depois Chapman esticou as pernas e colocou as mãos entrelaçadas por detrás da nuca.
- Interessante, não achas? Vai ao Vaticano no dia em que é assassinado. Será só coincidência?
Enzo soltou uns estalidos de impaciência com a língua. - Em Itália, Andy - comentou com lentidão, como se estivesse a falar com um pateta -, as coincidências não existem.
Os papéis estavam dispostos em arrumadas rimas na superfície polida da secretária. O arcebispo Tomassi tocou-lhes pensativamente, acertando as margens num gesto nervoso que reflectia a perturbação que lhe ia na mente. Foram poucas as ocasiões na sua vida em que lhe fora tão difícil tomar uma decisão. Mesmo quando era um jovem sacerdote, sempre tivera uma profunda confiança em si próprio, uma certeza de propósito que demarcava o trajecto que deveria seguir com uma nitidez que não deixava espaço para dúvidas.
Era uma característica que, a par de uma intensa ambição, o conduzira ao topo da mais poderosa congregação sagrada na Igreja Católica. No fechado mundo do Vaticano, um paraíso espiritual rasgado por lutas intestinas e rivalidades temporais, o seu modo de ser transformara-o num agente poderoso e temido, dando-lhe força para esmagar os seus opositores e obrigá-los a aceitar os seus pontos de vista. Contudo, quando essa força fraquejava, ainda que raramente, sentia-se impotente e confuso, porque nem a sua personalidade nem a experiência o tinham preparado para a incerteza.
Levantou-se da cadeira e encaminhou-se para a janela do gabinete. Sentia-se dilacerado entre o dever para consigo mesmo como homem honesto e o seu dever para com a Igreja, como seu fiel servidor. Tinha falado com o cardeal Secretário de Estado e passara também algum tempo na sua capela pessoal a implorar orientação, mas continuava inseguro sobre o que deveria fazer. Até o Senhor, parecia-lhe, o havia desertado temporariamente.
Olhou pela janela. O Palácio do Santo Ofício situava-se do lado sul da Praça de São Pedro, fora dos muros da Cidade do Vaticano mas ainda fazendo parte da Santa Sé. Da janela tinha um campo visual desimpedido até ao Palácio Apostólico e às janelas dos apartamentos papais, onde o Santo Padre residia e trabalhava. Em baixo, na piazza, multidões de turistas deslocavam-se em volta do obelisco de Calígula sob o quente sol da tarde. Outros procuravam sombra debaixo da colunata de Bernini ou subiam a escadaria até à refrescante opulência da basílica. Costumava admirar esta vista todos os dias, mas apesar disso nunca esquecera a sensação de temor respeitoso que sentira ao ver pela primeira vez a Catedral de São Pedro há uns cinquenta anos atrás quando, ainda garoto, o pai o trouxera para Roma. A praça, a cúpula e o interior da catedral continuavam a subjugá-lo pela sua vastidão e beleza. Não era um sentimental, mas sempre que observava este panorama não podia deixar de se sentir comovido pela graça da criação de Deus.
Observou as pessoas, turistas e peregrinos, que enchiam a vasta piazza, tentando imaginar quantos deles não teriam ainda visitado o interior da catedral e invejando-lhes a emoção de um primeiro olhar que ele não poderia voltar a sentir, e recordando-se do rapazito de dez anos que ficara estupefacto ao entrar na nave da basílica, tendo decidido nesse instante que haveria de ser padre.
Voltou para dentro, sentindo-se oprimido pelo peso da sua posição. Era impossível trabalhar no Vaticano sem se tomar conhecimento da sua história, sem se ficar intimidado com os dois mil anos de fé que já tinham decorrido e pelos milhares que ainda estavam para vir. Para o verdadeiro crente, a duração da vida da Igreja era infinita. Permaneceria aqui muito depois de Tomassi ter desaparecido, e por vezes era-lhe difícil aceitar a sua própria insignificância.
Os seus predecessores tinham sem dúvida defrontado decisões de idêntica magnitude, senão mesmo maior. O Santo Ofício durava desde há mais de quatro séculos, tendo tido as suas origens na Congregação para a Santa Inquisição do Erro Herético, nos arrepiantes tempos da roda, do auto-da-fé e do poste dos queimados vivos. Os rebeldes e hereges eram então mais fáceis de controlar mas não menos numerosos, apesar das penalidades draconianas. O espírito humano podia resistir a tudo em defesa das suas crenças. Era isso o que tinha alicerçado e sustentado a Igreja Cristã ao longo de mais de dois milénios. Tomassi admirava a força de ânimo dos dissidentes, mesmo que as opiniões destes o enfurecessem, mas era com desagrado que se ocupava deles. António Vivaldi fora um padre incómodo, mas o seu legado estava a revelar-se bastante mais perigoso.
O arcebispo sentou-se de novo na secretária e tocou uma vez mais nas rimas de papéis. Para o bem ou para o mal, tinha chegado a uma decisão.
Pegou no telefone e pediu ao secretário que lhe ligasse para o Ministério Público de Roma.
- Dottoressa - disse, quando Elena Fiorini veio ao telefone -, revi a minha posição. Ficaria grato se viesse ao meu gabinete. Mando um carro buscá-la. Depois entregar-lhe-ei pessoalmente os papéis do Padre Vivaldi.
O compartimento traseiro do Alfa Romeo parecia um forno. Elena tinha a janela toda aberta, mas o ar que entrava era quente e espesso com as emanações dos escapes. Descansou um braço no rebordo da janela para que o ar forçado lhe circulasse por baixo do casaco e em volta das costas, mas a tentativa não lhe trazia muito alívio. Limpou discretamente uma gota de suor da testa com um lenço e tentou afastar o cabelo das orelhas.
O telefonema do arcebispo surpreendera-a, não só pelo tom conciliador mas também pelo seu teor. Esperara que ele lhe tornasse as coisas muito mais difíceis. Teria preferido fazer o trajecto no seu próprio carro - o envio do veículo dera a Tomassi a iniciativa, e ela não gostava disso - mas pareceria grosseiro recusar a oferta da boleia. Além disso, era muito mais fácil cruzar a fronteira para a Cidade do Vaticano num veículo oficial do que passar pelo incómodo de obter licenças para a entrada e o estacionamento do seu próprio carro.
Partiram da Piazzale Clodio para sul, circundando o extremo aberto da Praça de São Pedro e atravessando os portões do lado esquerdo da basílica. Os Guardas Suíços, resplandecentes nos seus gibões de faixas azuis, alaranjadas e vermelhas, perfilaram-se em continência à passagem do Alfa Romeo, que parou diante do Palácio do Santo Ofício. O jovem padre que a trouxera e que se lhe apresentara delicadamente como Padre Ivan Simcic, permanecendo mudo no resto do trajecto, acompanhou-a ao edifício e ao elevador que os conduziu ao quarto piso. O palácio não dispunha de ar condicionado, mas a espessura das paredes e a penumbra dos corredores conferiam-lhe uma agradável frescura.
O Padre Simcic abriu um par de portas duplas e conduziu-a a um espaçoso gabinete com pavimento de mármore. O arcebispo Tomassi levantou-se e deu meia-volta à secretária, de mão estendida. Era de altura mediana, mas a longa sotaina negra fazia-o parecer mais alto.
Elena apertou a mão que lhe era oferecida. - Vossa Reverência.
- Dottoressa Fiorini. Agradeço-lhe por ter vindo. Posso oferecer-lhe algum refresco? Chá, café, uma bebida fresca? Água mineral, sumo de fruta? Temos um frigorífico na antecâmara.
- Água mineral seria agradável. Obrigada.
O arcebispo fez um sinal ao secretário, que saiu por outra porta, fechando-a atrás de si.
- Sente-se, por favor - disse Tomassi, regressando à sua cadeira. Regulou o ângulo da ventoinha para encaminhar o fluxo de ar fresco na direcção de Elena.
-Já tinha visitado o Vaticano?
- Só a catedral e o museu - respondeu Elena.
Ele falou-lhe um pouco do Palácio do Santo Ofício e da Congregação, e ambos trocaram frases banais enquanto se estudavam e avaliavam.
Elena via à sua frente um homem de certa idade mas ainda enérgico, com traços fisionómicos nédios e olhos argutos por detrás dos óculos de aro de tartaruga. Tinha um rosto ligeiramente avermelhado e um ar de quem apreciava a boa mesa. Era muito diferente da imagem de arcebispo lúgubre e asceta que construíra na sua mente.
Tomassi, pelo seu lado, via uma atraente mulher de cabelo escuro, mais jovem do que suspeitara. Era indiferente em relação às mulheres ao nível sexual, mas continuava a admirar-lhes a beleza, como poderia admirar um belo quadro. Elena não era excepcionalmente bela, mas o seu rosto reflectia cordialidade e carácter, e algo no seu porte sugeria integridade. Não havia nada de condescendente no seu comportamento. Parecia segura de si, nada intimidada pelo Vaticano ou pelo seu anfitrião. Não estava habituado a dar-se com mulheres acostumadas ao poder e que soubessem lidar adequadamente com isso. Teve de se esforçar por ter em mente que se tratava de uma magistrada com considerável influência em Itália. Nenhuma no Vaticano, claro, mas isso não significava que não precisava de estar atento a ela.
- A Congregação para a Doutrina da Fé ocupa-se de todos os aspectos dos ensinamentos da fé católica - disse. - Temos o dever de examinar os textos teológicos e outros escritos, para assegurar que são consistentes com a orientação papal.
- E se não forem? - inquiriu Elena.
- Nesse caso, teremos de condenar os erros e assegurar-nos de que serão corrigidos.
- Não acredita então num debate construtivo?
Tomassi fixou-a com os olhos semicerrados, ciente de estarem a pisar terrenos perigosos, mas confiante em que sairia vitorioso de qualquer discussão sobre os assuntos da Igreja.
- Neste mundo, é inevitável um certo grau de pluralismo - disse. - Mas isso não significa que não é possível alcançar-se uma concórdia de conhecimento e fé.
- Quer dizer que toda a gente adoptará eventualmente a sua maneira de pensar? - perguntou Elena de forma provocante. - Era isso o que esperava que acontecesse em relação ao Padre Vivaldi?
- O Padre Vivaldi e eu tínhamos muito em comum.
- Mas era um espinho espetado na sua carne.
- Em relação a certos assuntos. Tínhamos as nossas divergências, evidentemente. Creio que o papel de um padre é primariamente espiritual e pastoral. O Padre Vivaldi juntava-lhe uma dimensão política que era inaceitável para os líderes da Igreja.
Elena observou-o secamente. - Nesse caso, Vossa Reverência estará a dizer-me que não há nada de político no Vaticano?
- Nas nossas relações com a República Italiana, nada. Não compete a qualquer padre influenciar a política social em Itália.
- Mesmo quando depara com injustiças e privações à sua volta?
O arcebispo não teve de responder pois a porta abriu-se nesse instante. O Padre Simcic entrou e depositou um tabuleiro na mesa num dos extremos do gabinete. Deitou água mineral num copo e voltou-se para Elena.
- Limão e gelo, dottoressa?
- Sim, obrigada.
Trouxe-lhe o refresco. Tinha aproximadamente a idade dela, com um aspecto frágil e rosto descorado, de olhos fundos e escuros. Elena estava quase certa de que fora ele quem haviam enviado para remover os papéis da casa de António Vivaldi.
Tomassi aguardou que o secretário lhe trouxesse uma chávena de chá e saísse depois do gabinete, e por fim disse: - As nossas diferenças de opinião com o Padre Vivaldi foram alvo de um infeliz excesso de publicidade, mas admirava-o sob muitos aspectos. Era um homem de consciência, que praticava aquilo que preconizava. Mas era ingénuo nas suas críticas à Igreja.
Tirou a rodela de limão da chávena e depositou-a no pires. Em seguida mexeu cuidadosamente a infusão com uma pequena colher de prata.
- Ele acreditava que a Igreja poderia funcionar hoje como há dois mil anos. Um homem e alguns discípulos divulgando a palavra de Deus, vivendo frugalmente, dependendo das esmolas dos outros. Não é uma proposta realista no mundo moderno. Quer queiramos ou não, a Igreja Católica é uma vasta organização multinacional, com ordenados a pagar e edifícios a manter.
- Uma burocracia que precisa de ser alimentada, como o Padre Vivaldi teria dito - interrompeu Elena.
O arcebispo fungou impacientemente. - Alguém terá de orientá-la. Com efeito, a Cúria é uma burocracia, mas, em comparação com a maioria dos governos, com a maioria do funcionalismo público, trabalhamos com economia e eficácia. Não vivemos no regaço do luxo, os nossos ordenados são baixos. Somos homens sem família para sustentar, e dedicamos a vida ao serviço da Igreja. Que mal haverá nisso?
Elena bebeu a água mineral, pensando quando iriam chegar ao propósito da sua visita. O arcebispo era hospitaleiro e bom conversador, mas não se esquecia do que ele tinha feito, nem lhe perdoava a hostilidade ao telefone.
- Reverência - disse ela. - Os papéis do Padre Vivaldi.
- Ah, sim, evidentemente. Estão prontos para lhe serem entregues, se bem que continue a pensar que não terão muito interesse para si.
- Passou-os em revista?
- Não diria bem isso.
- Como diria, então?
Tomassi mudou de posição na cadeira e mexeu distraído na cruz de ouro que tinha ao peito. - Estou ciente do seu desacordo relativamente ao que fizemos - disse.
- O meu acordo ou desacordo não tem nada a ver para o caso - replicou Elena. - Sou uma funcionária pública. Por isso, ajo em nome do povo.
- Saluspopuli suprema est ler. "O bem do povo...".
- "...é a lei suprema". - Elena concluiu a citação por ele. - Pois, também eu estou familiarizada com Cícero. É um sentimento válido, mas prefiro Juvenal: Omnia Romae cum pretio: "Tudo em Roma tem o seu preço". Esta parece mais aplicável nos dias que correm, não lhe parece?
- Não estamos em Roma, dottoressa.
- Bem sei. Conforme, aliás, teve a bondade de me recordar ao telefone.
Estava a ser descortês e sabia-o. Mas os modos do arcebispo pareciam demasiado conciliatórios para serem credíveis.
- Era importante para nós examinarmos os papéis - declarou Tomassi. - Muitos deles são confidenciais. Muitos referem-se a assuntos da Igreja. Estávamos preocupados. Estas coisas têm tendência para chegar ao conhecimento público assim que passam para as mãos da polícia.
- Posso garantir que não haverá fugas do meu gabinete - disse Elena.
- Estou convicto disso.
Bebeu o resto da água e pôs-se em pé. - Talvez possa tomar agora posse deles.
- São um tanto pesados. O meu secretário levá-los-á até ao carro. Obrigado pelo tempo que me dedicou.
Acompanhou-a à porta e apertou-lhe a mão uma vez mais. Elena sorriu por cortesia, tentando imaginar por que estaria ele a ser tão cooperante. Com o passar dos seus anos ao serviço do pubblico ministero, tinha desenvolvido uma aptidão especial para detectar subterfúgios. Sabia reconhecer quando alguém, mesmo um arcebispo, não estava a contar-lhe toda a verdade.
Tomassi deu-lhe tempo para sair, ficando a ver o secretário abandonar o gabinete atrás dela com duas volumosas caixas de cartão cheias de papéis. Depois fechou a porta e regressou à secretária. Abriu a gaveta de cima, removeu um delgado maço de documentos e estudou-os talvez pela vigésima vez desde que Simcic os trouxera da casa de Vivaldi. Podia ver que se tratava de fotocópias. Agora só precisava de descobrir onde estariam os originais.
A Piazza dei Cinquecento, em frente da Termini, a estação central do caminho de ferro, estava sempre cheia de movimento; pessoas saindo do vasto edifício do terminal, outras formando filas para os táxis ou esperando por autocarros numa das numerosas paragens instaladas em volta da praça. Durante o dia apresentava um aspecto andrajoso funcional. Descontando-se uma mão-cheia de vagabundos ou bêbados, quase todos os presentes tinham alguma razão para se encontrarem ali.
Havia os viajantes apressando-se para apanhar algum comboio, trabalhadores dirigindo-se para o emprego ou para casa, turistas piscando os olhos ante o forte brilho do sol, à procura de hotéis ou do autocarro para San Pietro. Mas à noite assumia um aspecto completamente diferente.
Quando a noite caía e os trabalhadores se dispersavam a caminho dos arredores da cidade, a praça era progressivamente ocupada por uma nova e mais colorida série de personagens. Etíopes trajando longos roupões vendendo bugigangas e peças de madeira esculpida, jovens reunidos em grupo comendo fatias de pizza das trattorie das cercanias, e multidões de filipinos, empregados domésticos em Roma como em todo o mundo, ao encontro de amigos e parentes como se a praça fosse uma espécie de sala de visitas ao ar livre. Turistas de mochila e estudantes de várias nacionalidades vagueavam pelos passeios à procura de algum local onde pudessem comer por pouco dinheiro ou simplesmente absorvendo a atmosfera local, e debaixo dos candeeiros de iluminação públicajuntavam-se prostitutos travestis, vestidos e maquilhados de modo berrante.
Chapman encaminhou-se para a estação, desta vez à procura de vagabundos e pedintes e não tentando evitá-los como habitualmente. Tinha andado a pesquisar as ruas próximas, incluindo os pátios dos edifícios vizinhos do apartamento de António Vivaldi, e todos os recantos da própria piazza. Agora só restava o terminal do caminho de ferro.
Nos bolsos do casaco trazia uma garrafa de forte grappa e um abastecimento de cigarros já parcialmente esgotado sob a forma de suborno na sua busca do mendigo com uma só orelha chamado Beppe.
Cruzou o portão principal, dirigiu-se às bilheteiras da estação e entrou na gare. Mesmo àquela hora da noite, encontrava-se cheia de gente. Os painéis indicadores dos destinos nos extremos das plataformas estavam quase todos em branco, mas alguns anunciavam próximas partidas para locais tão diversos como Nápoles, Milão, Veneza e Paris. O comboio nocturno para Zurique tinha acabado de partir, com o matraquear das carruagens ainda a ecoar nas altas abóbadas da gare.
Adorava as estações europeias dos caminhos de ferro. Mais do que outro lugar no mundo, pareciam ter conservado o verdadeiro atractivo das viagens. A animação das partidas, os cheiros e as multidões, os exóticos destinos que evocavam recordações de vagões-cama destinados a Moscovo, o Expresso do Oriente, imagens de filmes com belas mulheres louras e homens perigosos cruzando plataformas envoltas em fumo e mistério. Eram locais onde até a mais corriqueira das viagens podia, com um pouco de imaginação e um sopro de nostalgia, ser transformada numa aventura.
Mas esta noite a Termini era apenas mais um edifício feio e sem alma, um sítio para viajantes dispersos recolhidos pelos recantos e funcionários enfastiados, carruagens sujas e locomotivas eléctricas incaracterísticas, e um solitário jornalista exausto à procura de um mendigo que parecia ter desaparecido da face da Terra.
Percorreu o perímetro da gare, interrogando os desprotegidos da sorte que estavam a preparar-se para passar a noite, enfrentando a sua hostilidade carregada de obscenidades com ofertas de um cigarro e um gole de grappa. Fez também perguntas a um empregado da limpeza, a um revisor e a um bar-man no café da estação, mas, ainda que conhecessem o Beppe, não o tinham visto há já alguns dias.
Dirigiu-se ao outro extremo da gare e percorreu a plataforma. Dois comboios aguardavam a hora de partida nas bina-ri 10 e 11 ao centro, mas as outras vias estavam desertas. Continuou a caminhar ao longo da plataforma, conservando-se na penumbra junto à parede. Quando alcançou o final da zona coberta da estação, continuou a andar. Havia luzes à sua frente que assinalavam o caminho até à caixa de sinalização. Desceu a rampa na extremidade da plataforma e prosseguiu sobre o cascalho ao lado da via. Diversas carruagens vazias estavam estacionadas num desvio à direita. Subiu a bordo de uma e atravessou o corredor, espreitando para dentro dos compartimentos.
Passou à carruagem seguinte, e à próxima, e encontrou um vagabundo estendido nos assentos. Estava embrulhado num cobertor esburacado e descansava a cabeça num bojudo saco de lona. O compartimento fedia a aguardente ainda mais ordinária do que a da garrafa que tinha no bolso.
- Está acordado?
O mendigo não se moveu. Chapman tocou-lhe com um pé.
- Acorde.
O homem rodou para um lado e grunhiu. Chapman sentou-se no banco fronteiro e tirou do bolso a garrafa de grappa.
- Vai uma pinga?
O outro abriu os olhos e voltou-se para ele. Chapman podia distinguir-lhe o branco dos olhos num rosto tão enegrecido de sujidade que se confundia com a penumbra do ambiente.
- O quê?
- Uma bebida.
Passou-lhe a garrafa. O vagabundo estendeu a mão e agarrou-a pelo gargalo, emborcando-a e bebendo sofregamente até que Chapman conseguiu arrancar-lha.
- Dê-me mais - pediu o mendigo com um ar agressivo.
- Ando à procura de um homem chamado Beppe. Conhece?
- Passe a garrafa.
- Costuma andar aqui pela estação. Onde é que ele dorme?
O vagabundo soergueu-se apoiado num cotovelo inseguro, expelindo vapores de álcool.
- O quê?
- Tem-no visto?
- Quem?
- O Beppe. Só tem uma orelha.
O homem agitou um braço no ar, tentando chegar à garrafa, mas estava tão embriagado que calculou mal a distância e estatelou-se no chão. Chapman levantou os pés e descansou-os nas costas do mendigo.
- Aonde posso encontrá-lo?
- Hã?
Chapman tentou uma derradeira vez. - O Beppe. Sabe onde ele está?
- Sei lá! Lá para diante. Debaixo do muro. Sai de cima de mim.
Retirou os pés de cima do homem e levantou-se, passando sobre ele para alcançar a porta.
- Eh! E a grappa?
- Faz mal à saúde - disse Chapman, e afastou-se.
Saltou do comboio e continuou a andar ao longo dos carris. Neste ponto, quinze ou dezasseis pares de carris corriam lado a lado, mas quanto mais se afastava da estação mais as vias convergiam, até ficarem reduzidas a quatro. Fileiras de prédios baixos surgiam acima do muro que marcava a fronteira dos terrenos do caminho de ferro, e em frente do muro, misturadas incongruentemente com os tijolos modernos, viam-se as ruínas de um antigo aqueduto romano. Era difícil acreditar que toda esta zona, agora uma árida vastidão entrecruzada por carris de aço e uma teia aérea de cabos eléctricos, fora, em tempos, ocupada pelos jardins e pomares de citrinos da Villa Massimo Negroni.
Caminhou por mais meio quilómetro, procurando indícios de vida na penumbra junto do muro, mas, até onde o olhar alcançava, o local estava deserto. Parou e olhou para trás. O telhado da estação era uma rígida silhueta contra o pálido céu romano. Algumas lâmpadas luziam tenuemente na gare, assegurando apenas a claridade suficiente para mostrar as minúsculas figuras que se moviam nas plataformas.
Cá fora não havia ninguém. As vias prolongavam-se interminavelmente na distância, e os carris, prateados e brilhantes, eram como o rasto de uma lesma gigante. Estava tudo em silêncio, excepto pelo zumbido da brisa passando pelas catenárias e pelo latejo quase imperceptível do tráfego citadino. Não valia a pena ir mais para diante. Aquilo era demasiado soturno, demasiado exposto para qualquer vagabundo. Prefeririam ficar mais perto da civilização, para poderem pesquisar as traseiras dos restaurantes e bares ou para procurarem companhia para as longas horas de escuridão.
Voltou para trás e foi só então, aproximando-se de um ângulo diferente, que reparou num débil clarão alaranjado num troço de muro recuado em relação aos restantes. Pelos dedos tremeluzentes de luz e pelos tufos de fumo, podia perceber que era uma fogueira. Atravessou o terreno aberto ao lado das vias e encontrou detrás de uma pilha de chulipas de cimento uma frágil figura sentada de pernas cruzadas diante de uma pequena fogueira. O homem levantou os olhos quando Chapman se aproximou. Tinha cabelos compridos e desprezados pendendo sobre as costas, mas à luz da fogueira podia ver-lhe a terrível cicatriz inchada no sítio onde deveria estar uma orelha.
- Você é o Beppe, não é?
Beppe voltou a olhar para o lume, sem dizer nada. Chapman agachou-se perto dele.
- Posso ficar aqui por um bocadinho?
Tirou um maço de cigarros do bolso e deu um ao vagabundo. Beppe aceitou-o sem uma palavra e acendeu-o com um graveto retirado da fogueira. As mãos tremiam-lhe.
- Está aqui sozinho?
Beppe chupou o cigarro e deitou fumo pelas narinas sujas.
- Precisa desses cigarros? - perguntou.
Chapman entregou-lhe o maço. Depois sacou do bolso do casaco o saco de papel pardo com a garrafa de grappa e colocou-o no chão. Beppe olhou para o gargalo projectando-se do saco.
- Quem é você?
- Quer beber um trago?
- Você não parece um desses sacanas que querem correr comigo.
- Não, só quero conversar.
- Você é algum sacana de um padre?
- Acaso pareço um padre?
Retirou a garrafa do saco enquanto Beppe lhe observava o rosto e a roupa.
- É capaz de não ser. Os padres nunca trazem de beber. Só sermões e dó que até dão vontade de vomitar.
Passou-lhe a garrafa. - António Vivaldi era desses?
Beppe sorveu um longo trago da garrafa e continuou agarrado a ela. Não era muito mais do que um rapazola. O corpo e o rosto eram os de um homem novo, mas os olhos eram muito mais velhos, muito mais cínicos do que deveriam ser num jovem da sua idade.
- Vivaldi? Você é da polícia?
- Não. Você costuma comer na sopa dos pobres da Compassione, não é verdade? Hoje não esteve lá. - Chapman olhou à sua volta. Estavam num local ligeiramente rebaixado, abrigados do vento pela pilha de chulipas. - E habitual passar aqui a noite?
- Às vezes. - Beppe tirou o cigarro dos lábios e apoiou a mão no joelho. O fumo do cigarro pairou no ar, misturado com o da fogueira. - O que é que você quer?
- Conversar a respeito de Vivaldi.
- Vivaldi está morto.
- Ele veio aqui alguma vez? Para lhe pregar um sermão?
- Esse era diferente, fazia alguma coisa de útil. Dava comida às pessoas, mas não achava que por causa disso tínhamos de aturar conversas.
- Por que não esteve lá hoje?
- Não vou todos os dias.
- Porquê? Comida à borla, pessoas com quem falar, por que não hoje?
- Você não é polícia, nem padre, nem do pessoal dos comboios. Quem é, então?
- Sou jornalista.
Beppe pareceu ficar aliviado com a resposta. Chapman pegou na garrafa e bebeu um pequeno gole, só para fazer companhia. Ardeu-lhe na garganta ao escorregar.
- Como foi que me encontrou?
- Foi um acaso.
- Alguém lhe disse onde devia procurar?
- Procurei por toda a parte. Nas ruas, em frente da Termini. Só faltava ver aqui.
Tinha sido uma questão de sorte. Beppe escolhera um bom local, escondido de três lados pelo muro de tijolo e pelas chu-lipas. Se não tivesse feito a fogueira, Chapman nunca o teria encontrado.
- Pensei que passasse a noite perto do refeitório. No pátio.
- Quem lhe disse?
- Uma vizinha.
Beppe pegou na garrafa e emborcou-a como se fosse água. Parecia nervoso. Os dedos ossudos e os braços sem carnes, crivados de marcas de agulha, contorciam-se constantemente. Chapman estava familiarizado com este tipo de indivíduo: rapazes maltratados, cuja ideia de futuro não ia mais longe do que a próxima dose de droga.
- Como foi que perdeu a orelha? - perguntou.
- Para que quer saber?
- Estava só interessado. Gostava do Padre Vivaldi?
- Que lhe interessa?
Beppe estava a ficar irritado com todas aquelas perguntas. Era isso mesmo o que Chapman pretendia: uma fenda na armadura da indiferença, que ele pudesse abrir um pouco mais.
- Está contente por ele estar morto?
- Que raio de merda vem a ser esta? Deixe-me em paz! - Bebeu mais um pouco de grappa e depois acendeu outro cigarro.
- A vizinha pensa que ele é capaz de ter sido morto por um dos mendigos que vão comer à sopa dos pobres.
- O quê? - Beppe olhou para ele através de uma cortina de fumo.
- Por causa do dinheiro que ele tinha em casa. Dinheiro para comprar droga.
- Nós somos sempre os culpados, não é? - disse Beppe, encolerizado. - Qualquer merda que aconteça, os culpados somos nós. Não temos casa, nem trabalho, nem dinheiro, não somos mais do que vadios, parasitas que vivem à custa dos outros. Vagabundos que fazem com que os chatos como você se sintam culpados, e talvez um bocadinho medrosos, e por isso acham melhor dirigir a vossa raiva para cima de nós, ficando assim mais aliviados. Por que haveria algum de nós querer matar Vivaldi? Ele ajudava-nos, porra, o que é mais do que vocês fazem!
- Mas ele era fácil de levar à certa, não era? Alguém de quem poderiam sacar tudo o que quisessem. Teria sido fácil subir à casa dele, convencê-lo a abrir a porta, e depois dar cabo dele e levar tudo o que pudessem.
- Você não sabe o que está a dizer - protestou Beppe, dobrando-se perigosamente sobre a fogueira. - Posso garantir-lhe que nenhum de nós teve nada a ver com o caso.
- Ah sim? Como pode estar tão certo disso? Foi você? Terá sido você quem lhe deu cabo do canastro?
- Vá-se foder!
Bebeu mais um gole de grappa, alimentando com o álcool a fúria que sentia. Chapman não lhe deu trégua.
- De quem te andas a esconder, Beppe?
- O quê? - Levantou prontamente os olhos para ele.
- De quem andas a fugir? Da polícia? - Chapman sabia que esta não era a conversa habitual de qualquer mendigo. Tinha também reparado no ambiente que os cercava, na ausência de lixo, de pontas de cigarros, de qualquer indício de que alguém permanecera aqui durante uns dias.
- Estás com medo, não estás? Com medo de que te encontrem e te levem dentro. Por que fizeste aquilo? Foi a droga? Por que foi que deste cabo dele com tanta violência, Beppe?
- Escuta, ó cara de cu, eu não tive nada a ver com aquilo.
- Nesse caso, por que é que estás cheio de miúfa? Chapman fechou um punho e pressionou-o contra o peito de Beppe, alimentando-lhe a raiva. O rapaz afastou-lhe a mão com violência.
- Claro que estou cheio de medo! - explodiu. - Também tu te cagavas todo se tivesses visto aquele cabrão do Cesare Scarfone a entrar no prédio!
No instante em que o disse, mostrou-se logo arrependido. Cerrou os lábios com força e atirou o resto do cigarro para a escuridão, com a ponta ainda acesa como um pirilampo.
Chapman ficou calado por uns momentos. Estava demasiado aturdido para falar, mas também queria dar a Beppe algum tempo para se acalmar. Agora precisava dele calmo e coerente.
- Cesare Scarfone? - repetiu. - O político?
Beppe estava a olhar para outro lado. Ainda estava agarrado à garrafa. Levou o gargalo à boca e verteu a aguardente tão depressa que esta lhe escorreu para o queixo e para a camisa imunda.
- O político? - insistiu Chapman.
Beppe voltou-se finalmente para ele. - Quantos cabrões chamados Cesare Scarfone podem existir?
- Tens a certeza?
O rapaz limpou a boca na manga e acendeu outro cigarro com mãos trémulas.
Chapman amaciou o tom da voz. - Já que me contaste tudo isto, também podes contar-me o resto.
Beppe levou algum tempo a responder, fumando uma quarta parte do cigarro até dizer por fim: - Claro que tenho a certeza. - A raiva tinha-se transformado em resignação, cansaço.
- Quando foi que ele chegou?
- Como queres que eu saiba? Pensas que tenho algum relógio? Tarde. Meia-noite, ou talvez mais tarde.
- Estava escuro. Talvez te tenhas enganado.
- Vi a cara dele. Conheço-a dos jornais.
- Costumas ler jornais?
- Jesus! Que pensas que faço durante todo o dia, achas que vou para o escritório para foder a minha secretária? Leio-os todos. Apanho-os nos bancos dos jardins, nos caixotes de lixo. Até durmo embrulhado neles!
Meteu a mão dentro do casaco e extraiu algumas folhas amarrotadas do 77 Messaggero.
- Ele estava sozinho? - perguntou Chapman. Beppe abanou a cabeça.
- Iam dois gajos com ele.
- Onde estavas tu?
- Estava encolhido num recanto do pátio. Atrás dos contentores do lixo ao pé da arcada.
- Viste-os sair?
- Não. Devo ter adormecido.
- Portanto eles não te viram.
- Acho que não. - Mas não queres correr riscos. É por isso que vens para aqui.
Beppe hesitou, e a seguir confirmou com um aceno. Chapman encostou-se às chulipas. Escutou um longínquo ruído atrás de si que ia aumentando de intensidade. Voltou a cabeça e viu os faróis de um comboio furando a escuridão. A locomotiva e as carruagens passaram ruidosamente por eles, entrando na noite. Virou-se de novo para Beppe.
- Acho que devias ir à polícia.
Beppe soltou uma risada amarga. - Para quê?
- É uma informação importante.
- Pensas que eles iam acreditar em mim, mesmo se eu quisesse contar-lhes?
Chapman calou-se. O rapaz tinha razão.
- Escuta. Eu podia arranjar-te um quarto de hotel ou algum sítio onde pudesses esconder-te. Talvez te sentisses mais seguro.
- Estou seguro aqui, conheço toda a gente, conheço a área. Agora deixa-me em paz.
Chapman tirou do bolso um cartão com o endereço e o número do telefone do seu local de trabalho.
- Se precisares de ajuda, podes contactar comigo aqui. Beppe aceitou o cartão e atirou-o para a fogueira sem o olhar. - Não te conheço de parte nenhuma, e nunca falei contigo. Diz o contrário e eu digo que é mentira.
Chapman não se moveu. Beppe olhava-o friamente.
- Agora põe-te na alheta.
Chapman pôs-se em pé. Pegou no saco de papel onde trouxera a aguardente. - Fica com a grappa.
Afastou-se da fogueira e rodeou a pilha de chulipas. Quando já se encontrava a uns cinquenta metros de distância, caminhando ao longo dos carris na direcção da estação, abriu o saco de papel e desligou o pequeno gravador de som que tinha dentro.
- Passa esse bocado outra vez - pediu Enzo. Chapman rebobinou a fita e premiu a tecla Play.
Claro que estou cheio de medo! Também tu te cagavas todo se tivesses visto aquele cabrão do Cesare Scarfone a entrar no prédio!
Deixou a fita prosseguir. A qualidade sonora era inferior, as vozes iam e vinham, interrompidas aqui e ali por uma crepitação. Mas as partes que interessavam estavam audíveis. Enzo dobrou-se para a frente na cadeira de braços, apoiando os cotovelos nas pernas. Tinha um copo de vinho na mão mas não o tinha levado à boca, concentrando-se na gravação. Mesmo quando Chapman premiu o botão Stop, Enzo não mudou de posição durante uns segundos. Depois recostou-se pesadamente e soltou um profundo suspiro.
- Merda!
- Que pensas?
- Sei lá, Andy. Se for verdade... Acreditas nele?
- Acredito. Vim a pensar nisso no caminho. Pareceu-me bastante seguro, e para que iria ele mentir?
- Mas Cesare Scarfone... Não estou a gostar.
Enzo pôs-se em pé e deu alguns passos pela sala, aliviando um pouco a tensão que sentia. Cesare Scarfone era membro do Parlamento, líder de uma facção da direita com opiniões tão extremas que fazia com que Mussolini parecesse um liberal.
- Não posso usar essa informação - disse Enzo por fim.
- É demasiado quente para ser tocada. E tu, vais mandá-la ao teu jornal?
- Só se conseguir confirmá-la primeiro.
- Sei já que o meu director não vai aceitá-la. Scarfone é um deputato. Está bem, não tem grande reputação, mas de certeza que ia queixar-se ao tribunal. Quem vai acreditar na palavra de um vagabundo da Termini, se calhar embriagado ou sob a influência de drogas?
- Bem sei, não é uma testemunha credível.
Enzo sentou-se de novo e bebeu um pouco do seu vinho. Era quase uma hora da madrugada. Tinha vestido um roupão turco de banho que se entreabrira revelando-lhe o peito cabeludo, o estômago flácido e um par de cuecas tipo boxerde um amarelo berrante.
- Sabes o que deves fazer? - disse. - Deves oficializar a coisa. Dessa forma não seremos nós a tornar a história pública mas sim o pubblico ministero.
- Queres dizer, passá-la à magistrada, à Fiorini?
Enzo confirmou. - Ela que enfrente as implicações. Uma história de que ela anda a investigar alegações contra Scarfone, isso já poderemos usar. Isto não.
- Não sei bem, Enzo. Ele é uma fonte confidencial.
- Ora, Andy, deixa-te disso. Não passa de um vagabundo, um sem-abrigo que te transmitiu uma informação. Não lhe prometeste nada. Ele não te pediu segredo. Onde está o problema?
- Não passa de um rapazola. Um rapazola assustado.
- Maior motivo ainda para contares ao Ministério Público. Se houver qualquer mérito no que ele diz, e ainda não sabemos se haverá, a Fiorini pode protegê-lo melhor do que tu. Não podes guardar isto só para ti. Trata-se do inquérito a um crime. O Ministério Público deve pelo menos tomar conhecimento. O que a magistrada fizer depois, será lá com ela.
- Achas que sim?
- Claro. Fá-la escutar a fita, e depois ela que decida.
Elena sentiu-se intrigada com o telefonema. Não só pelo conteúdo - um pedido de encontro para discutir um aspecto importante do caso Vivaldi - mas também pela origem. Quando Batti lhe transferiu a chamada para o gabinete, levou uns momentos para se recordar de quem seria Andy Chapman. Mas quando se lembrou sentiu um sobressalto, primeiro de irritação e a seguir de algo diferente, algo mais difícil de identificar. Um toque de interesse que lhe provocou perplexidade e logo suprimiu. Escutou o que ele tinha a dizer e que lhe despertou suficiente curiosidade para encontrar uma folga de dez minutos para o atender no final da tarde.
Passou quase todo o dia no tribunal e tinha acabado de regressar ao gabinete quando o seu telefone directo retiniu. Pegou automaticamente no receptor, para logo se arrepender.
- Elena? Por que não respondeste aos meus telefonemas? Era o marido. Deixou-se cair na cadeira e esfregou os olhos, desesperada. Podia bem passar sem isto.
- Que queres, Franco?
- Preciso de falar contigo. Quando podemos encontrar-nos?
- Não.
- Não me despaches dessa maneira. Não sabes do que quero falar-te.
Elena suspirou. Sabia perfeitamente o que ele pretendia.
- Não estou interessada em conversas - respondeu. - O tempo para isso já passou.
Franco suavizou o tom da voz. - Dá-me uma oportunidade, Elena. Só uma bebida.
-Já passámos por tudo isto. Não vale a pena.
- Conheceste outra pessoa?
- Não é assunto que te diga respeito.
- Sou o teu marido.
-Já não és, Franco. - Elena levantou os olhos. Baffi estava parado à porta. Tapou o bocal com a mão.
- O jornalista, Chapman, está à espera na recepção - anunciou Baffi.
- Dio, claro. Já me esquecia. Traga-o cá acima, está bem?
- Voltou a falar ao telefone. - Franco, tenho de desligar.
- Escuta, Elena. - A voz dele reflectia um laivo de cólera.
- Estás a ser muito teimosa a respeito disto.
- Tenho uma reunião.
- Estás sempre em reunião. Se passasses menos tempo a trabalhar talvez ainda estivéssemos juntos.
A desfaçatez dele deixou-a sem fôlego. - Conheces perfeitamente o motivo da nossa separação - replicou asperamente. - Se tiveres mais alguma coisa a dizer, podes fazê-lo através do meu advogado. Não tornes a telefonar-me.
Colocou o auscultador no descanso e depois levantou-o para desligar o telefone, pensando outra vez em como os sentimentos podem mudar tão depressa e tão irreversivelmente. Como se poderá amar uma pessoa o suficiente para se casar com ela e passados poucos anos já não sentir nada por essa pessoa?
Deu uma ligeira arrumação à confusão da sua secretária e levou um momento a acalmar-se até que o jornalista entrou. Baffi trouxe uma cadeira do outro gabinete e arranjou um espaço para a depositar no meio dos montes de processos. Depois saiu, deixando-os sós.
- Dottoressa, obrigado por me receber - disse Chapman delicadamente.
O seu italiano era bom, apenas com uma ocasional sugestão de pronúncia inglesa para recordar a quem o escutava que ele era estrangeiro. Nada no seu aspecto o indicaria. Tinha cabelo escuro e um rosto bronzeado que lhe dava um ar medi-terrânico, e o corte da roupa - uma camisa branca de meia manga e calças cinzentas - era inegavelmente italiano.
Elena captou um lampejo de divertimento nos olhos dele e deu por si a olhá-lo fixamente. Baixou o olhar, mexeu nos papéis na secretária e disse: - Está a interessar-se muito pela morte de António Vivaldi.
- É uma boa história.
- Parece encontrar-se particularmente bem informado. O senhor e Enzo Mattei. - Olhou-o friamente e prosseguiu: - Ambos chegam à cena do crime antes de mim e parecem ter óptimas relações com a polícia. Depois ambos escrevem artigos contendo detalhes confidenciais que só podem ter saído do relatório da autópsia.
- Costuma ler os jornais ingleses?
- São consultados pelo Departamento de Imprensa. Deram-me um recorte esta manhã, retirado da edição de ontem do seu jornal. Só o senhor e Mattei se referiram a uma possível ligação neofascista com o homicídio.
- Coincidência.
- Claro. Qual de vocês conseguiu a cópia do relatório, o senhor ou ele?
- Relatório, dottoressa?
Elena mostrou um frágil sorriso. - Lancei uma investigação interna para determinar a origem da fuga. Posso assegurar-lhe, o responsável será apanhado.
- Certamente que sim - replicou Chapman, com um sorriso irónico que ela considerou particularmente exasperante. - Mas, de qualquer modo, ia tornar essa informação pública, não ia?
- Só parcialmente.
- Portanto, que importa que a tenhamos obtido um pouco antes do que desejaria? É a nossa função.
- A respeito de que assunto queria falar comigo, Signor Chapman?
Ele removeu um pequeno leitor de cassetes da algibeira do casaco que tinha dobrado sobre as costas da cadeira. - Chegou a saber o que o funcionário do Vaticano foi fazer a casa de Vivaldi antes da polícia? - perguntou.
- Perdão? - Pensou no que ele tinha dito e acrescentou, de modo incisivo: - Espero que não tenha vindo aqui apenas para pescar informações que não tenciono transmitir-lhe. Disse ao telefone que tinha algo importante para me contar.
-Já lá chego - disse Chapman calmamente. - Só pensei que, visto encontrar-me aqui, poderia perguntar.
- Não tenho comentários a fazer a respeito do Vaticano.
Nem teria nada de especial a dizer. Elena ficara no gabinete até às onze horas da noite anterior, analisando os papéis do Padre Vermelho que tinham sido devolvidos pelo arcebispo Tomassi, sem encontrar neles qualquer coisa que pudesse ser relevante para a investigação.
Chapman colocou o leitor na secretária e explicou-lhe o que iria ouvir, como o obtivera, e de quem.
- Antes de ligar o leitor, pretendo que me garanta que o homem será protegido. Não estou a ser melodramático. O que ele tem a dizer é potencialmente muito perigoso.
- Se o que ele diz for pertinente para o caso e o puser em risco, obter-lhe-ei protecção - disse Elena.
Escutou a gravação em silêncio. Reagiu apenas uma vez, quando foi mencionado o nome de Scarfone, mas o choque perdurou até depois de o leitor ter sido desligado.
- Quer escutar outra vez? - perguntou Chapman. Elena abanou a cabeça, ainda a tentar enfrentar as implicações do que acabara de ouvir.
- Disse que obteve isto de um vagabundo?
Chapman confirmou. - Um dos jovens ajudados por Vivaldi.
- Um jovem? De que idade?
- É difícil determinar. Dezanove, vinte.
- Será um drogado?
- Provavelmente.
- Portanto, é capaz de ter imaginado o que viu.
- Não me parece.
- Ele bebe?
- Não bebemos todos?
- Isso poderá afectar a credibilidade do que diz.
- Fale com ele directamente. Decida então se deve ou não acreditar nele.
Elena comprimiu os lábios. - Acho que é melhor ouvir de novo a gravação.
Chapman rebobinou e pôs de novo a rodar. Observou a magistrada discretamente enquanto ela escutava. Era uma mulher atraente. Já tinha visto outras mais bonitas, mulheres com linhas mais esbeltas - Roma estava cheia delas -, mas já há muito que ultrapassara o estágio em que só o aspecto físico lhe interessava. Gostava da confiança que ela demonstrava em si mesma, da dignidade com que se comportava. Tinha um ar honesto e muito directo. Começou a tentar imaginar como ela seria fora do trabalho.
Quando a fita ia a meio a porta do gabinete abriu-se e Francesca entrou. Parou, com a mão ainda no puxador.
- Desculpem. Estou a interromper?
- Não faz mal, Francesca. Entra.
- Só vinha buscar a minha pasta.
Chapman parou a fita enquanto Francesca passava dificilmente por ele, encaminhando-se para a sua secretária. Baixou-se para pegar na pasta. Elena reparou em Chapman a observar a colega, a admirar a saia curta e justa atrás, as pernas esbeltas. Francesca produzia esse efeito nos homens. Nem os juizes estavam imunes.
- Até amanhã.
Francesca sorriu para Elena, lançou um breve aceno a Chapman e saiu. Chapman passou o resto da fita, e a seguir rebobinou-a e empurrou-a sobre a secretária na direcção da magistrada.
- Pode ficar com a fita.
Elena deixou ficar a cassete na sua frente, lembrando-se do velho ditado "Cautela com os gregos que trazem prendas". Gregos. E jornalistas também.
- Por que está a oferecer-me isto?
- Como registo do que ele disse.
- Não me refiro só à fita. Refiro-me à informação.
- Porque me pareceu importante. Pensei que deveria ser do seu conhecimento.
Elena conservou o olhar no rosto dele. Parecia franco, mas ela aprendera a desconfiar dos jornalistas. A única coisa que lhes interessava era a notícia.
- Não acho que seja essa a razão. Pelo menos, não é a única.
- Não é? - inquiriu Chapman, inocentemente.
- Vocês nunca poderiam usar a informação contida nesta fita. Precisam de corroboração antes de usarem acusações deste género contra alguém tão proeminente como Cesare Scarfone. Pensam que vos vou obter isso.
Era astuta. Chapman sentia-se impressionado. Não merecia a pena negar.
- Bem, pensei nisso, de facto.
- Não gosto de ser usada, Signor Chapman - disse Elena em tom de censura. - Agora vou ter de estudar estas alegações, mas acho que os seus métodos deixam muito a desejar.
- Vá lá, dottoressa, não seja tão cheia de probidade. Portanto, acha que os meus motivos para lhe oferecer a fita não são inteiramente isentos de interesse. Mas quem se rala com isso? A senhora parece-me uma mulher ambiciosa. Será que tudo o que faz é para o bem colectivo, ou fará, uma vez por outra, algo só por si? Se o que Beppe tem para dizer é pertinente para o inquérito, então será útil para nós ambos, não é verdade?
Elena não sabia o que pensar. Não estava acostumada a que lhe falassem com tanta franqueza. As pessoas costumavam ser mais circunspectas nos seus contactos com um magistrado. O que mais a desesperava era que ele tinha razão. Havia muita verdade no que ele dizia. Se ela era honesta para consigo, tinha de admitir que ao escutar a fita o seu primeiro pensamento tinha sido: meu Deus, isto é bom material, mas o segundo fora: isto vai ajudar a minha carreira se conseguir usá-lo. Seria hipocrisia pretender que não tinha pensado no seu próprio interesse.
- Onde poderei encontrar este Beppe?
Chapman fez-lhe uma descrição do rapaz e da localização do seu esconderijo perto da estação do caminho de ferro.
Elena tomou algumas notas num bloco de apontamentos e olhou para ele.
- Esclareçamos uma coisa desde já, signor Chapman. Não sou grande apreciadora de interferências alheias nas investigações criminais, particularmente vindas de jornalistas. A vossa presença não-autorizada na cena do crime, o vosso uso de informações confidenciais sobre a autópsia, e agora o seu interrogatório de alguém que poderá vir a ser uma testemunha-chave são actividades totalmente inaceitáveis que não voltarei a tolerar. Pode crer. Se tornar a interferir com testemunhas, ou potenciais testemunhas, terei de lhe pôr um processo. Estamos entendidos?
- Perfeitamente.
Estava reclinado na sua cadeira, com o pé esquerdo calmamente apoiado no joelho direito. Não se mostrava nem remotamente preocupado com a reprimenda.
- Posso fazer-lhe uma pergunta? - disse.
- Certamente.
- Quais são os seus planos para o jantar de hoje?
- Não posso conceder-lhe muito tempo - disse Corona com ar de pedir desculpa, emalando processos na sua velha pasta de cabedal. - Tenho uma reunião no Palácio da Justiça dentro de meia hora.
- Penso que deve ouvir isto - disse Elena.
Inseriu a minúscula cassete no dictafone que trouxera do seu gabinete e colocou-o na secretária do chefe. Premiu a tecla Play mas baixou o volume para poder ir falando durante a primeira parte da gravação.
- Aquela voz, esta, é de um jornalista inglês chamado Chapman. A outra é de um rapaz da rua chamado Beppe. Dorme ao relento na Termini. Costumava comer na sopa dos pobres que António Vivaldi dirigia. Na noite em que Vivaldi foi assassinado, Beppe afirma ter estado no pátio do edifício.
- Aonde pretende chegar, Elena? Estou cheio de pressa.
- Escute esta passagem. Vale a pena.
Aumentou o volume. Quando o nome de Scarfone foi mencionado, Corona ficou imóvel, escutando atentamente a gravação. Quando esta chegou ao fim, afundou-se lentamente na cadeira e passou a mão pelo cabelo ralo. A pasta estava aberta e esquecida em cima da secretária.
- É autêntica?
- A gravação, acho que sim. O conteúdo, não tenho a certeza. Pode ser o produto de uma imaginação desvairada, ou pura malícia. Mas não acho que possamos ignorá-lo.
- Como a conseguiu?
- Foi o jornalista que ma deu.
- O jornalista? - Corona fez uma careta. - Isto parece-me estar cheio de problemas. Um rapaz sem-abrigo, a imprensa. Não sei, Elena. A alegação é bastante incrível. O rapaz talvez tenha inventado tudo para lhe darem atenção.
- Não se apresentou de sua livre vontade. O jornalista teve de se esforçar para o encontrar, quase teve de o forçar a falar. Já escutou a fita. Ele parece ter dito aquilo num impulso do momento. Parece genuíno. Além disso, dá a impressão de estar aterrorizado.
- Descobriu mais algumas testemunhas que tenham visto ou escutado alguma coisa nas proximidades do apartamento?
- Nem uma. A polícia interrogou todos os vizinhos, sem ter descoberto nada de interesse.
Corona ficou a olhar para o tampo da secretária, massajando o queixo com a palma da mão.
- Vou ter de mandar buscar o Beppe, para ser interrogado - disse Elena.
- Concordo. Acho que é melhor eu estar presente no interrogatório. - Levantou-se e fechou a pasta, carregando com força na aba para prender os fechos. - Detenha-o durante a noite. Amanhã interrogá-lo-emos.
Elena acompanhou-o à porta. Quando ele a abriu, Elena captou um ruído no gabinete do secretariado. Mas não era a secretária de Corona, era Vespignani, encostado a uma esquina da mesa desfolhando alguns papéis que tinha na mão.
- Dá-me um minuto? - perguntou a Corona.
- Vai ter de aguardar, a não ser que queira acompanhar-me até ao carro.
Corona ia já a atravessar o gabinete. Vespignani largou a mesa e apressou-se pelo corredor fora atrás do chefe. Elena regressou ao seu gabinete e telefonou a Agostini, apanhando-o mesmo quando ia a sair.
- Desculpe, Gianni. Isto é urgente.
Disse-lhe o que pretendia e ele concordou em destacar dois agentes do turno da noite para a tarefa.
- Obrigada, Gianni. Falamos de manhã.
Sacou a cassete do dictafone e selou-a num robusto envelope castanho. Depois escreveu o conteúdo no exterior do envelope e levou-o para a sala das provas testemunhais, no piso inferior. Registou a entrada no livro de ocorrências e assinou. O funcionário ao balcão aceitou o envelope e afixou-lhe um número de série, depositando-o depois numa das inúmeras prateleiras da sala. Elena olhou para o relógio. Eram seis horas da tarde. Estava a trabalhar desde as sete da manhã. Pensou nas alternativas: ir para casa, ou ficar mais umas horas. Suspirou. Não tinha realmente muito por onde escolher.
Depois de Chapman a ter convidado para jantar, Elena ficou sem fala por alguns segundos. Pensou que estivesse a brincar, e depois depreendeu pela expressão dele que falava a sério. Esteve prestes a expulsá-lo ali mesmo, mas algo a fez parar. Sabia que era isso o que ele esperava, e, por outro lado, alguma fracção recôndita do seu ser, a que raramente dava rédea livre, estava desejosa de ver a reacção dele se aceitasse. Que lata a dele, atirar-se a ela depois de apanhar uma descompostura, mas Elena achava que isso tinha um certo atractivo. Para que servia um homem se não tivesse tomates?
- Está bem - disse ela. - Onde?
Viu a surpresa no rosto dele, a pausa momentânea para pensar. Depois ele sorriu-lhe. Nada de presunçoso ou sardónico ou lascivo. Apenas um sorriso agradável que provocou nela um arrepio de antecipação. Deu-lhe o nome e a localização de um restaurante de que ela nunca ouvira falar, e combinaram encontrar-se lá.
Chapman saiu logo a seguir, evitando momentos incómodos e não lhe dando tempo para mudar de ideias. Foi só depois de ele ter saído que lastimou o impulso perverso que a fizera aceitar o convite. Sabia que fora em parte influenciada nessa decisão pelo telefonema de Franco. A aceitação do convite era um modo de manifestar a sua independência, a sua determinação de se distanciar cada vez mais do casamento falhado. Pensou telefonar a Chapman com uma desculpa qualquer, mas desconhecia o número de telefone, e além disso achava que não podia mostrar-se tão pateticamente frágil. Já estava com trinta e cinco anos. Não devia recear sair com um homem, Santo Deus.
O encontro foi, contudo, uma experiência nova para ela. Não saía acompanhada desde que se separara de Franco, cerca de dezoito meses antes. Alguns dos colegas do serviço tinham-na convidado, incluindo o próprio Vespignani, que - para repugnância de Elena - pretendia levá-la a passar o fim de semana na sua vivenda nas proximidades de Frascati, mas recusara todos os convites. Não tinha confiança nos romances entre colegas de trabalho, especialmente com os sensaborões magistrados - geralmente casados - que, sabendo-a separada do marido, pensavam que estaria agora disponível para devaneios amorosos. Chapman não era colega dela, e isso tornava-o mais aceitável. Além disso, não era italiano, facto que lhe conferia um ar diferente, estrangeiro. Interessava-lhe saber como seria ele na realidade.
Durante cerca de hora e meia adiantou mais alguma papelada pendente no gabinete, depois dirigiu-se aos sanitários e lavou-se e retocou a maquilhagem. Sentia um nó no estômago, parecido com o nervosismo que normalmente sentia quando tinha de comparecer na sala de audiências, mas mesmo assim era diferente.
Deixou o carro na Procura e foi de táxi para o restaurante, que se situava no centro da cidade, onde sabia que nunca encontraria um espaço para estacionar. Chapman esperava-a à porta de uma minúscula trattoria numa das ruas mais sossegadas das proximidades da Piazza Navona. Abriu-lhe a porta do táxi e pegou-lhe na pasta quando ela desceu.
- Que tem aqui dentro? - inquiriu, perante o inesperado peso. - Tijolos? - Fez um gesto de afastar a pasta quando ela tentou retirar-lha. - Não tem problema. Sempre quis ter uma hérnia.
Acompanhou-a ao restaurante, parando ao entrar quando um homem baixo e barrigudo veio a correr apressado por entre as mesas, de braços estendidos.
- Andy, buona sera!
Sacudiu-lhe a mão animadamente e recuou um passo olhando para Elena. - E a signorina?
Chapman apresentou-os, e a seguir o homenzinho conduziu-os a uma mesa para dois em frente da ampla janela dianteira que estava semiaberta para permitir a entrada de uma ligeira brisa que aliviava a temperatura no interior do restaurante.
- Vê-se que vem aqui frequentemente - comentou Elena, tentando imaginar quantas outras mulheres ele teria trazido ao restaurante.
- Há anos que venho aqui. A mulher do Umberto encarrega-se da cozinha. Nada de complicado, mas acho que vai gostar.
Elena observou a sala. Era uma trattoria pequena, íntima, com pouco mais de meia dúzia de mesas entaladas num espaço pouco maior do que uma sala de jantar familiar. As outras mesas estavam ocupadas: alguns casais absortos a conversar e ao fundo, próximo da cozinha, um barulhento grupo de adultos e crianças celebrando um aniversário. Sentia-se confortável neste ambiente, aliviada por não se tratar do género de local em que era preciso trajar de cerimónia. Dizia-lhe algo a respeito de Chapman: dizia-lhe que também ele se sentia bem aqui, que não estava a tentar impressioná-la.
- Deseja um aperitivo? - perguntou ele. - Ou acha melhor mandarmos vir algum vinho?
- O vinho seria agradável.
Umberto trouxe-lhes uma garrafa do tinto da casa e apresentou uma lista das especialidades do dia.
- Não ligue à ementa - recomendou Chapman quando se acomodaram nos assentos. - É uma obra de ficção equiparável ao Decameron. O Umberto dir-nos-á o que há de melhor e, se não tivermos cuidado, acabará por escolher o que devemos comer.
- Os gnocchi estão muito bons - anunciou Umberto. - Alia romana con zafferano.
Elena sentiu-se tentada. Já não se recordava da última vez em que comera as pequenas rodelas de semolina cozinhadas no forno com manteiga e queijo parmesão. Mas engordavam muito, e sabia que depois se arrependeria.
- Acho que vou só comer uma salada - disse ela.
- Uma salada! - Umberto parecia ofendido.
- O Umberto quer que toda a gente fique como ele, não é? - comentou Chapman, dando uma palmada amigável no bojudo estômago do proprietário.
- E por que não? Não viemos ao mundo para sermos só pele e osso. Gosto de ver uma figura rotunda num homem. Mais ainda numa mulher, mas sou um bota-de-elástico. - Soltou um suspiro. - Vai sair uma salada, signorina.
- Mas eu prefiro os gnocchi - disse Chapman -, para fazê-lo sentir-se melhor.
Elena provou o vinho depois de terem encomendado, sentindo-se relaxada. Chapman parecia à vontade, sem pressas de falar.
- Veio directamente da Procura? - perguntou ele passado algum tempo.
Elena confirmou. - Tinha algumas coisas para terminar.
- No caso Vivaldi?
- Não falemos do trabalho, Signor Chapman, por favor.
- Andy - disse ele, sorrindo. - Começámos mal no outro dia. Façamos de conta que nunca aconteceu. Prometo que não lhe farei quaisquer perguntas comprometedoras a respeito do seu trabalho.
- Óptimo. Há aqui um potencial conflito de interesses. Nem sei bem se deveria estar a jantar com um jornalista.
- Se quiser, posso enfiar um saco de papel na cabeça, e ninguém fica a saber.
Elena riu-se. - Isso parece-me um pouco exagerado.
- Se está preocupada, por que aceitou o meu convite?
- Não sei. Por que me terá convidado?
- Acho que pode adivinhar isso.
Olhou-a directamente. Ela baixou o olhar, parecendo-lhe que estava a corar.
- Uma salada para a signorina - interrompeu Umberto, colocando o prato à sua frente com um floreio. - E gnocchi para si, Andy. Buon appetito.
Começaram a comer em silêncio, e depois Chapman disse: - Quer provar um destes?
- Não, estou bem assim.
- Vá lá, estão excelentes.
Aproximou o quente prato de terracota. Elena hesitou e depois espetou um dos gnocchi com o garfo e levou-o à boca. Saboreou o gosto da manteiga derretida e da crosta dourada de parmesão.
- Não me tente - disse Elena com um sorriso.
Pôs-se a brincar com um pedaço de alface, invejando-lhe a liberdade de comer o que queria sem pensar nas consequências.
- De que parte da Inglaterra é?
Ele disse-lhe e perguntou-lhe se ela já tinha estado na Grã-Bretanhha.
- Numa permuta estudantil em Cambridge, há muitos anos - respondeu Elena. - Detestei. Não a Inglaterra ou os ingleses, só o facto de estar longe de casa, aflita com o idioma. Não conseguia perceber o que as pessoas me diziam. Onde aprendeu italiano?
- Estudei-o na universidade, e depois passei um ano a ensinar inglês em Milão. Sabe, a grupos de empresários e executivos que queriam reforçar as hipóteses de promoção.
- Que achou dos milaneses?
- Sérios.
- Deve ter sido um choque para si descer aqui para o Terceiro Mundo e misturar-se com os romanos corruptos e decadentes.
- Ora, não foi assim tão mau. Também aprecio um bocadinho de decadência. Tudo depende da companhia, realmente.
Deitou-lhe outro olhar directo, e desta vez Elena não vacilou.
Comeram os seus pratos principais: saltimbocca alia romana - escalope de vitela com presunto e salva - para Chapman, e para Elena melanzane alia partenopea - beringelas assadas com mozzarella, ovo cozido e molho de tomate.
Ela estava a apreciar o serão. Chapman era uma companhia agradável. Nem muito reservado nem muito falador, era um ouvinte atento mas não insistia quando ela não queria prosseguir. Elena falou-lhe de si mesma, confiando-lhe coisas que não tivera intenção de lhe contar. Falou-lhe do seu passado, referiu-se à separação do marido, sem lhe contar as razões. Ele tinha um modo subtil de lhe extrair informações, e só depois é que ficava ciente de lhas ter dado, admirando-se de ter sido tão aberta. Mas não se importava. Ele estava tão obviamente interessado nela que a fazia sentir-se de novo atraente. Há muito que isso não lhe acontecia.
Foi só quando Umberto veio perguntar-lhes se queriam café que Elena olhou para o relógio e reparou que já era tão tarde. Soltou uma exclamação.
- Lamento muito, mas tenho de ir andando. Ainda tenho que fazer hoje. Poderei chamar um táxi daqui?
- Eu dou-lhe boleia, tenho o carro a seguir à esquina - disse Chapman.
- Não, não poderia aceitar.
- Onde mora?
- Bem, em Parioli, mas...
- Fica-me no caminho.
Ele pediu a conta e tiveram uma disputa bem-humorada sobre como deveriam dividi-la.
- Deixe-me pagar - disse Chapman. - Se a dividíssemos ao meio, poderia parecer que estava a querer subornar-me.
- Mas deste modo parece que está a subornar-me a mim - disse Elena.
- Impossível - replicou Chapman. - Toda a gente sabe que os magistrados são completamente incorruptíveis.
- Acha-se em condições de guiar? - perguntou Elena quando entraram no carro.
- Só bebi dois copos - respondeu, e Elena percebeu com algum alarme que certamente fora ela quem bebera o resto da garrafa.
Pouco falaram durante o trajecto ao longo do Tibre e depois em volta da Villa Borghese até ao elegante subúrbio de Parioli. Elena estava cansada; o longo dia e o vinho faziam-na sentir-se tonta.
- Vire aqui - disse quando alcançaram a Piazza Santiago dei Cile. - Ali ao fundo, à esquerda. Aqui.
Chapman encostou o carro e desligou o motor. Elena olhou para ele, sem saber o que dizer.
- Foi um belo serão, obrigada - disse por fim. Chapman sorriu-lhe. - Vou ajudá-la a levar a pasta.
Ela sabia que devia ter dito logo que não. Mas que mal faria aceitar? Sentia-se senhora da situação. Subiram no elevador e quando chegaram ao apartamento Elena desejou subitamente que ele não se fosse embora.
- Quer tomar café? Terá de ser depressa - acrescentou precipitadamente. - Tenho ainda muito que fazer.
Ele confirmou com um aceno. - Dou-lhe uma ajuda.
Seguiu-a até à cozinha e encostou-se ao balcão enquanto ela punha a cafeteira ao lume e a seguir tirou algumas chávenas e pires que dispôs sobre o balcão, reparando que ele se tinha aproximado. Sentiu os dedos dele tocarem-lhe ligeiramente no ombro e ficou imóvel, mais nervosa do que se sentia desde há anos. Ele afastou-lhe o cabelo para um lado e beijou-a suavemente no pescoço. Sabia que tinha de o impedir. Voltou-se.
- Andy, ouça, não me parece...
Ele puxou-a para si e beijou-a na boca. Os braços dela envolveram-no pelo pescoço. Há tanto tempo que não era beijada que já se esquecera do que aquilo lhe fazia.
Afastou-o. - Não podemos. Tenho de trabalhar.
Os braços de Chapman envolveram-na pela cintura e beijou-a de novo. Ela não apresentou resistência. Sentiu a mão dele enfiar-se por baixo da blusa e acariciar-lhe a pele.
- Andy, não - murmurou. - Tenho de...
- Eu sei. Já mo disseste.
Os dedos dele estavam agora a soltar-lhe os colchetes do soutien. O elástico saltou, aliviando os apoios. A mão dele explorou-lhe o intumescimento dos seios. Isto não devia estar a acontecer, pensou ela. Estou controlada. Estou sempre controlada.
- Andy, isto não...
Os lábios dele não largavam os dela, e as mãos perdiam-se por debaixo da blusa.
- Tenho... processos para ler.
- Bem sei.
- Casos para... preparar. Andy!
Ele afastou a boca, mordiscando-lhe o pescoço, acariciando-a com as pontas dos dedos. Ela enterrou as unhas nas costas dele.
- Vamos fazer isto ou não? - sussurrou ele.
-Jesus, sim - disse Elena. - Estou pronta. E tu?
Ela fez deslizar a mão entre ambos. - Pergunta tonta.
Eram duas horas da manhã quando Elena acordou, vendo-o a vestir-se do outro lado da cama.
- Vais-te embora?
- Vou.
Não tentou dissuadi-lo. Sentia-se decepcionada, mas também um pouco aliviada. Não queria que os vizinhos o vissem sair depois do pequeno-almoço.
- Não me disseste onde moras.
- Trastevere.
Soergueu-se apoiada num cotovelo. - Trastevere? Mas isso é... Disseste que te ficava no caminho!
- Qualquer sítio me ficaria no caminho.
Inclinou-se sobre a cama e beijou-a. - Posso telefonar-te mais tarde?
- Depois do que acaba de acontecer, é melhor que o faças - replicou Elena.
Pela primeira vez desde há vários meses, não assistiu ao nascer-do-sol. Quando abriu os olhos, notou imediatamente a luz que se filtrava através das persianas de madeira. Deu meia-volta na cama, subitamente acordada, e olhou para o despertador que se esquecera de activar. Sete e trinta e dois. Merda! Atirou a coberta para trás e saltou para fora. Uma onda de vertigem fê-la sentar-se na cama e esperar que passasse.
Acalma-te, disse para consigo. Não é assim tão tarde. Mas sentia os músculos tensos, o sentimento de culpa que a levava a esforçar-se tanto e que era tão difícil de combater.
Entrou nua na casa de banho e pôs-se debaixo do chuveiro. Só quando estava a ensaboar-se debaixo do jacto de água morna é que se permitiu pensar em Chapman. Imobilizou-se por um instante, revivendo a noite anterior e tentando imaginar como seria se ele estivesse agora ali consigo no chuveiro.
Não estava arrependida. Pelo menos não por se ter deitado com ele. Fora divertido, terno, confuso. Um escape de que há muito necessitava. Mas estava zangada consigo mesma por se ter esquecido de activar o despertador, e por ter desprezado o trabalho que trouxera para casa. A pasta, símbolo da sua escravidão, continuava por abrir na sala de estar onde a deixara. Não conseguia recordar-se de alguma outra vez em que isso tivesse sucedido.
Fez café e, lembrando-se de que tinha deixado o carro na Procura, telefonou a pedir um táxi. Bebeu o café enquanto se vestia e punha a maquilhagem, e os pensamentos saltitavam-lhe entre o programa de trabalho para hoje e Andy Chapman. Podia ainda ver-lhe a cara, o corpo. Quase sentia o seu toque. Contudo, estava contente por ele não estar aqui. A manhã seguinte era sempre emocionalmente contrastante. Os olhares embaraçados, os silêncios incómodos, as frágeis tentativas para se estabelecer uma conversa, cada um a tentar imaginar o que o outro pensaria. Passava agora muito bem sem isso.
Eram oito e meia quando entrou no gabinete. Contra o que era habitual, Francesca já se encontrava à secretária, ditando correspondência para o dictafone. Desligou o aparelho e esperou que Elena encontrasse caminho por entre o caos até chegar à sua cadeira.
- Vens atrasada hoje.
- Foi o trânsito - desculpou-se Elena, tirando processos da pasta.
- O Agostini falou.
- Quando?
- Há cerca de meia hora. Quer que lhe telefones.
- Obrigada.
Pegou no telefone e premiu o número da linha directa de Agostini.
- Gianni? Elena Fiorini.
- Dottoressa. Aquele mendigo chamado Beppe com quem queria falar...
- Sim, sim. Trouxeram-no?
- Não conseguimos encontrá-lo na noite passada. Procurámos por toda a parte, mas não estava onde tinha dito.
- Não estava? A minha informação parecia digna de confiança.
- Mas já o encontrámos.
- Onde está?
- Na morgue.
- O quê?- O choque atingiu-a como um soco na boca do estômago, deixando-a temporariamente sem fala.
- O corpo dele foi encontrado nos carris ao princípio da manhã - prosseguiu Agostini. - Tinha sido cortado em dois por um comboio.
- Dio! Algum acidente?
- Assim parece.
- Quem deu com ele?
- Uns operários do caminho de ferro que seguiam ao longo da via. Ficou destroçado.
Reagiu a um momento de indisposição. Sabia que não tinha sido por acidente.
- Alguém terá assistido? - perguntou.
- Estava escuro, e o local era isolado. Não vejo muitas hipóteses de encontrarmos alguma testemunha ocular.
- Gianni. - Escolheu cuidadosamente as palavras. - Quem saberia a respeito dele?
- Que quer dizer?
- Quem mais saberia que eu queria que o trouxessem?
- Os dois agentes que mandei para o trazerem. O inspector do turno da noite. Qualquer pessoa que visse a folha de ocorrências. Não está a sugerir que...
- Quero saber o que aconteceu ao desgraçado.
- Não passava de um vagabundo. Se calhar estava bêbado. Mete-se no caminho do comboio. Nada há que o maquinista possa fazer. Pumba! Já tem acontecido.
- Quero que uma equipa de cena-do-crime siga imediatamente para lá, para pesquisar o local onde foi encontrado e toda a área circundante.
- Não vão encontrar nada, bem sabe.
- Por favor, trate disso, Gianni. E interroguem qualquer pessoa que possa ter assistido. Outros mendigos, pessoal do caminho de ferro.
Agostini suspirou. - Pensa que existem circunstâncias suspeitas?
- Até termos a certeza do contrário.
Elena pôs o telefone no descanso e, ignorando os olhares inquisidores de Francesca, saiu do gabinete e seguiu ao longo do corredor à procura de Corona. A secretária do chefe disse-lhe que ele estaria ocupado toda a manhã mas que talvez pudesse recebê-la depois do almoço. Elena disse que voltaria depois e regressou ao seu gabinete. Baffi tapou o bocal do seu telefone quando ela ia a regressar ao gabinete.
- Andy Chapman para lhe falar. Quer que faça a ligação? Elena hesitou. Teria de contar-lhe. - Está bem, pode ligar.
- Ciao, como estás? - disse Chapman quando ela levantou o auscultador.
- Estou bem.
- Dormiste bem?
- Sim.
- Pareces esquisita. Estás mesmo bem?
- Estou. Não estou. - Respirou fundo. - É por causa daquele rapazola, o Beppe.
Contou-lhe o sucedido. Chapman escutou sem interromper, e nem no final falou.
- Poderia ter sido um acidente, ou até suicídio - comentou Elena sem grande convicção, para preencher o silêncio.
- Não é isso o que pensas.
- Nem sei que pensar.
- Não passava de um garoto - comentou Chapman com um toque de amargor. - Disseste que ias protegê-lo.
- Mandei lá a polícia ontem à noite, à procura dele.
- Obviamente, havia mais alguém à procura dele. - A acusação na sua voz era por de mais evidente.
- Fiz tudo o que podia - disse Elena defensivamente.
- A quem terás falado nele?
- Acho que não tens de te preocupar com isso. Trata-se de um problema interno.
- Não me venhas com essa. Entreguei-to numa travessa e agora está morto. Sinto-me responsável por isso.
- Não foste tu quem o matou.
- Pensas que ele estaria agora morto se não te tivesse falado nele?
- Não sabes o que poderá ter acontecido. A culpa não é tua. Não sabemos como nem por que razão deram cabo dele.
- Não tenhamos ilusões. Sabemos ambos por que motivo ele foi morto. Quem o atraiçoou, a polícia?
- Não sei.
- Vais tentar descobrir?
- Não te armes em agressivo comigo. Estou a fazer tudo o que posso. Se isso te faz sentir melhor, considero-me tão responsável como tu pelo que aconteceu.
- Muito agradecido - respondeu ele, sarcástico. - Assim já me sinto bem.
- Escuta - disse Elena asperamente -, ele era um vagabundo. Tu vieste ter comigo porque achavas que havia ali uma história que poderias explorar. Não tentes fingir que te preocupavas com ele. Chafurda no teu sentimento de culpa se quiseres, mas isso não modifica nada. Ele continua morto e nós continuamos sem conhecer os porquês desse facto, portanto não nos apressemos nas conclusões. Estou a investigar o caso, e dispenso os teus comentários.
Seguiu-se um longo silêncio. Depois Chapman disse, agora em tom de perplexidade. - Tu és como duas mulheres diferentes, não sei se sabes. Havia uma ontem à noite, no restaurante e depois. Gostei dela. Depois há a de agora. Não sei se estou a gostar dessa.
- Estou só a fazer o raio do meu trabalho, está bem? - ripostou Elena, e logo devolveu ruidosamente o telefone ao seu descanso.
Segundo parecia, o relacionamento com Andy Chapman não ia passar de uma fátua aventura.
Sempre que tinha alguns momentos de descanso - uma rara ocorrência, devido às premências da sua posição - ou quando sentia necessidade de reflectir sobre qualquer questão num ambiente de paz e tranquilidade, o arcebispo Tomassi gostava de passear nos jardins do Vaticano. Ali, caminhando pelos carreiros entre sebes e cascatas, pausando em grutas solitárias à sombra de palmeiras e ciprestes, podia estar sozinho com os seus pensamentos. Os jardins estavam sempre silenciosos. Ouvia-se o calmante fluir da água nas fontes, o estalido das tesouras de podar ou o triturar das rodas dos carrinhos de mão sobre o saibro enquanto os jardineiros se entregavam às suas tarefas, mas nada estragava a atmosfera que Tomassi considerava conducente à meditação.
Parou junto de um muro forrado de louro verde e olhou para a colina na direcção da basílica. Vista da retaguarda, a cúpula podia ser admirada em todo o seu esplendor, uma visão muito mais bela do que quando observada de frente. Estudou a arquitectura, a perfeita simetria do desenho, e a seguir os seus olhos foram atraídos para a cidade, para além dos Muros Leoninos, para lá do outro lado do Tibre até aos longínquos jardins da Villa Mediei e à Trinità dei Monti no topo da Escadaria Espanhola. Apurou o ouvido. Era um dos raros locais da cidade onde se podia escutar o canto dos pássaros sem o coro importuno dos motores de combustão interna.
Crescera nos campos da Lombardia, nas planícies do rio Pó onde os campos de milho, pintalgados aqui e ali pelos telhados vermelhos das casas agrícolas, se estendiam por quilómetros. Há muito que se transformara numa criatura urbana, mas uma parte de si ainda sentia a falta dos espaços abertos da infância, do vasto céu que se estendia até ao horizonte, dos bosques e dos ribeiros onde se banhava sob o calor estival com os amigos. Onde estariam agora esses amigos? Há mais de trinta anos que não voltava à sua aldeia, e já antes disso perdera todo o contacto com os companheiros de infância. O sacerdócio criava uma barreira de separação em relação aos outros homens. Quem escolhia servir a Igreja abria-se para uma realização espiritual mas fechava-se inevitavelmente às experiências que constituíam o âmago da vida do homem comum: o amor sexual, o casamento, os filhos, os marcos que assinalavam o caminho para a morte pelos quais ele nunca passaria.
Não se arrependia. Sentira a vocação ainda quando adolescente, e os votos do sacerdócio não lhe tinham sido árduos. Nunca se interessara muito por mulheres. Não as desprezava, mas achava-as insípidas. De certo modo, eram demasiado equilibradas, demasiado práticas para poder considerá-las uma companhia estimulante. Os homens eram muito mais egocêntricos. Sabiam encontrar tempo para se dedicarem aos seus caprichos e excentricidades, para perseguir ocupações e paixões em detrimento das famílias.
A exclusão das responsabilidades perante esposas e filhos era aquilo que mais apreciava no sacerdócio. A inexistência de distracções mundanas dava-lhe tempo para reflexão e estudo, tempo para se concentrar em questões espirituais e no serviço a Deus. Quaisquer dúvidas que em tempos pudesse ter alimentado sobre o caminho que escolhera tinham desde há muito sido dissipadas ou purificadas pelo seu trabalho. Era um homem ambicioso. Sabia que iria usar a biretta vermelha de cardeal quando chegasse a ocasião, e que o Secretariado de Estado era um prémio que bem poderia alcançar para culminar a sua carreira. Não sentia desejos de ser Papa. Nenhum homem sensato poderia tê-los. A perda de liberdade ser-lhe-ia intolerável. Mas até a biretta lhe iria fugir se cometesse algum erro relativamente a António Vivaldi.
Deu uma última volta pelos jardins e a seguir desceu energicamente a colina para o complexo de edifícios formado pelos palácios papais e pelo museu do Vaticano. A seguir ao pátio aberto conhecido por Cortile dei Belvedere situavam-se a Biblioteca do Vaticano e L'Archivio Segreto Vaticano, os Arquivos Secretos do Vaticano, que abrigavam a vasta colecção de tesouros históricos da Igreja Católica. Ali, ao longo de trinta e cinco quilómetros de prateleiras, guardavam-se pergaminhos e manuscritos, os documentos e cartas de todos os Papas e dos seus servos, a maioria com séculos de existência. E num maciço cofre de aço conservavam-se papéis de tão incalculável importância que não podiam arriscar-se a ficar expostos: o Dogma da Imaculada Conceição, a última carta de Mary Stuart ao Papa informando-o de que a rainha Isabel a tinha instruído para se preparar para a morte, e a petição enviada pelos Lordes de Inglaterra solicitando a anulação do casamento do rei Henrique VIII com Catarina de Aragão, um pedido que, se tivesse sido correspondido, evitaria a cisão com Roma e a fundação da Igreja Anglicana.
Mas, ainda que os tesouros históricos constituíssem a parte mais valiosa dos Arquivos Secretos, havia outra secção dedicada inteiramente aos arquivos activos da Cúria. Era aqui que se dirigia quem pretendesse consultar a correspondência de rotina, os ficheiros contemporâneos da burocracia católica.
Aproximou-se do arquivista-chefe, sentado à sua secretária próximo da entrada para os Arquivos, e pediu-lhe para consultar os documentos do Secretariado do Estado referentes a 1945. O arquivista conduziu-o pelo labirinto de estantes e indicou-lhe uma secção ao meio. Os arquivos estavam arrumados de forma casual - a organização e catalogação de todos os documentos do Arquivo seria tarefa de muitos séculos - e Tomassi levou cerca de uma hora para localizar o que procurava. Levou a caixa de cartão para uma das mesas e abriu-a. Escolheu alguns dos papéis guardados na caixa e espalhou-os à sua frente, lendo-os cuidadosamente um a um.
Um deles era uma carta com o cabeçalho da Repubblica Sociale Italiana, a República de Saló que Mussolini tinha instalado no Norte de Itália após a sua queda, como um Estado-fantoche dos nazis. Estava datada de 25 de Março de 1945, assinada pelo próprio Duce. Os outros eram cópias de cartas enviadas pelo Vaticano a Mussolini, todas assinadas pelo então Subsecretário de Estado Giovanni Montini, e outro ainda era um memorando interno do Vaticano classificado "Confidencial" e assinado pelo próprio Papa Pio XII.
Ficou a olhar para eles, aterrado e ao mesmo tempo fascinado pelo seu conteúdo. Aqui estava a confirmação, nos mais transparentes termos, dos seus piores receios. Não tinha ilusões sobre a sua importância. Iriam abalar os alicerces da Igreja Católica se alguma vez chegassem ao conhecimento público. Ele próprio, que não ignorava os encobrimentos que ocorriam no Vaticano, estava chocado com o que os documentos revelavam. Sabia que teriam de ser destruídos, que deveria escondê-los por baixo da sotaina e levá-los para o seu gabinete para serem queimados, mas não seria capaz de o fazer. Havia algo de sacrossanto nos Arquivos Secretos, que representavam o testamento escrito de uma fé. Seria um sacrilégio destruí-lo em parte.
Os papéis continuariam em segurança aqui. Era o mais seguro esconderijo da Terra. Ficariam na prateleira a acumular poeira durante séculos e provavelmente nunca veriam a luz do dia. Reuniu-os e guardou-os na caixa. Em seguida colocou-a no local de onde a tinha retirado e abandonou os Arquivos Secretos. Quando regressou ao Palácio do Santo Ofício recolheu-se à sua capela particular, ajoelhou-se e começou a rezar.
- Então quem era aquele sujeito que esteve aqui ontem? perguntou Francesca. - Elena?
Elena levantou o olhar. - Que disseste?
- O sujeito de ontem. Com o gravador.
- Que foi?
- Não estás a escutar, pois não?
- Desculpa. Estava a pensar noutras coisas. -- Quem era ele?
- Ora, ninguém em especial.
Elena apanhou um pouco de tomate que se lhe tinha escapado da sanduíche e colocou-o na boca.
- Vá lá - disse Francesca, insistente. - Não era feio. Não era polícia nem advogado, isso percebi eu. Portanto, quem era?
- Ninguém.
- Elena!
- Pronto, era um jornalista, está bem? - ripostou Elena, irritada pelo interrogatório.
Francesca deitou-lhe um sorriso intimista e mordeu a sua segunda fatia de pizza, segurando a crosta sobre o quadrado de papel impermeável em que vinha embalada. Tinham mandado vir o almoço, como faziam quase sempre nos dias de trabalho. Não tinham tempo para ir a um restaurante. Por vezes até lhes era difícil arranjar uns minutos para comerem qualquer coisa. Elena observou a amiga a saborear a pizza de cogumelos e anchovas e desejou ter à sua frente algo mais do que uma ressequida sande de fiambre e salada. Francesca era uma daquelas incómodas mulheres que podiam comer tudo o que quisessem, na quantidade que desejassem, sem aumentarem de peso. Eram amigas, mas se havia algo que Elena detestava nela era o metabolismo.
- Tens um fraquinho por ele? - perguntou Francesca com malícia.
- O quê?
- Pareceu-me ter a idade apropriada, era atraente, vestia bem. Quantos sujeitos conheces de que possas dizer o mesmo?
- Era em serviço.
- Convida-o para sair.
- Acaba com isso, Francesca.
- Sabes bem o que acontece se ficas sentada à espera deles. - Francesca olhou-a com afecto. -Já é tempo de encontrares alguém, Elena. Aproveita as oportunidades.
- Se queres saber, fomos jantar ontem à noite. Francesca abriu muito os olhos. - E não dizias nada... - comentou em tom de crítica.
- Foi só ontem à noite. Como é que te podia contar?
- Assim que chegaste, esta manhã. Preciso de saber imediatamente. - Francesca fez uma pausa, pensando nalguma coisa. - Então foi por isso que te atrasaste, não foi? Passaste a noite com ele!
Elena baixou o olhar, concentrando-se na sanduíche.
- Foi, não foi? Elena, fala comigo.
- E se passei? - ripostou Elena.
- Oh, estás muito sensível. - Francesca pegou num pedaço de papel e fingiu escrever qualquer coisa. - Vou só preparar um comunicado para colocar no placard: "Elena Fiorini deu ontem uma pinocada. Todo o pessoal vai ter um dia de folga para celebrar o acontecimento".
Elena não pôde deixar de sorrir. - Não tem nada de especial.
- Não? Então por que estás a ser tão reservada? Que tal foi ele? Bem fornecido?
- Francesca!
- Quero os detalhes todos! Sabes que não vou contar a ninguém. Bem, só à minha mãe, e à amiga dela, a Tiziana. E talvez ao Corona, ao Conselho Superior da Magistratura e ao Tribunal de Cassação. Entre amigos não existem segredos.
- Não há nada a dizer - disse Elena. - Foi um erro. Não vai acontecer outra vez.
- Um erro?
- Não quero falar nisso.
- Queres, pois. - Francesca esperou, e depois disse, num tom empolgado e louvaminheiro: -Vá lá, fala-me dele.
Elena demorou o seu tempo a reunir as migalhas da sanduíche e a lambê-las dos dedos. Francesca conhecia-a bem, talvez melhor do que qualquer outra pessoa. Elena desejava realmente contar-lhe, mas não queria adiantar detalhes pessoais por iniciativa própria. Preferia que lhos arrancassem.
- Ele veio falar-me com informações sobre o caso Vivaldi - contou. - Qualquer coisa que uma testemunha tinha visto. Trazia a gravação de uma conversa com essa testemunha. Deu-ma a escutar, e era uma coisa inacreditável.
Narrou-lhe o que estava na fita. E também o que acontecera a Beppe. Francesca não tirava os olhos dela.
- Isto está a ficar feio. Precisas de ter cuidado. Já falaste com Corona?
- Ainda não. Chapman, o jornalista, acha que sou culpada do que aconteceu ao mendigo. Era ele quem estava ao telefone há um bocado. Ouviste o que lhe disse. Duvido que voltemos a encontrar-nos.
- E Scarfone? Que vais fazer a respeito dele?
- Sem a testemunha, nada há que possa implicá-lo.
- Ainda tens a gravação.
Elena tinha-se esquecido da fita. - Sim, ainda...
Calou-se, arrepiando-se com um pressentimento. Empurrou a cadeira para trás e saiu rapidamente do gabinete. Quase correu pelo corredor fora, com o coração batendo furiosamente, e não só pelo esforço. Não esperou pelo elevador, desceu as escadas até ao piso inferior, saltou três degraus de cada vez e quase torceu um tornozelo ao chegar ao patamar. O funcionário ao balcão olhou-a quando ela entrou a correr na sala das provas testemunhais e pediu para ver o livro de ocorrências. Extraiu o espesso volume de debaixo do balcão e abriu-o. Elena folheou-o apressada e encontrou o registo do envelope que trouxera para baixo na noite anterior.
- Este - disse ela, apontando para o registo.
O funcionário anotou o número de série num talão e registou o levantamento noutro volume. Elena mordeu o lábio, tentando controlar a impaciência.
- Tenho muita urgência, por favor.
- Certamente.
O funcionário concluiu as formalidades e encaminhou-se calmamente para as prateleiras. Elena contou os segundos, incapaz de estar quieta.
- Não está lá - disse o funcionário ao regressar ao balcão.
- Deixe-me ver.
Arrancou-lhe o talão da mão e correu para a zona de depósito, verificando os números nas paredes das prateleiras. O funcionário aproximou-se dela e apontou-lhe o espaço onde o envelope deveria estar. Não havia nada ali.
- Poderá ter sido mal arrumado?- perguntou Elena, sentindo um vazio no estômago.
O empregado abanou a cabeça. - Foi aí que o coloquei na noite passada. Era aí que devia estar.
Elena procurou nas prateleiras próximas, conferindo os números de série de todas as peças no caso de o envelope ter de alguma forma mudado de local. Mas sabia que era uma perda de tempo.
- Quem mais esteve aqui esta manhã? - perguntou, já a voltar-se para regressar ao balcão.
Havia numerosos registos no livro dos levantamentos, magistrados ou funcionários seus levantando peças para preparar as audiências. O próprio Corona tinha estado lá, Vespignani, Francesca e Baffi também, além de meia dúzia de outros elementos do Ministério Público. Conferiu todos os números de série ao lado dos nomes, para o caso de o envelope ter sido levantado por engano, mas não encontrou qualquer menção dele.
Voltou-se para o funcionário, pronta a explodir. - Esta sala ficou alguma vez sem ninguém esta manhã?
- Não.
- Viu alguém junto das prateleiras? O homem hesitou. - Não.
Elena sabia que a segurança na sala das provas testemunhais era frágil. Ela própria já tinha ido buscar coisas às prateleiras.
- Então como explica a falta do envelope? - inquiriu. - Era uma prova importante. Onde está?
O funcionário levantou as mãos, na defensiva. - Não sei. Não sei aonde pode ter ido parar.
- Quero que a sala toda seja pesquisada. Todas as prateleiras, todos os artigos devem ser examinados. Se aquele envelope está aqui, quero que seja encontrado. Está a compreender? E vou participar ao director do Ministério Público. Isto não vai ficar por aqui.
Afastou-se furiosa e subiu as escadas até ao seu gabinete, tentando acalmar-se. Sentia as pernas pesadas, mas o cérebro estava alheado, agitado. Tentou imaginar qual dos seus colegas poderia tê-la atraiçoado.
As imagens no noticiário televisivo do princípio da noite eram tão explícitas e tão grotescas que Chapman teve de fazer um grande esforço para poder olhá-las. Dois corpos jaziam numa das artérias secundárias nas proximidades da Termini. Eram ambos imigrantes somalis, jovens de vinte e poucos anos que tinham sido repetidamente apunhalados no peito e no estômago. Setenta e três vezes no total, dizia fleumaticamente o comentador. Chapman já conhecia os detalhes - estivera presente numa conferência de imprensa realizada nessa tarde na Questura - mas só agora via os corpos. A câmara demorou-se a focar os sangrentos torsos, e depois desviou-se para o rosto das vítimas. Recortadas na testa com uma faca viam-se as iniciais SS, marca de um sombrio grupo de extrema-direita que dava a si mesmo a designação de Sansepocristi, nome que tinha desagradáveis conotações históricas em Itália.
Os que tinham pertencido àquela facção, que dera a si mesma o nome de Sansepolcristi, haviam-se transformado no corpo de elite da ditadura de Mussolini. Os seus homónimos modernos também eram fascistas, entregues a uma campanha de terror contra judeus, imigrantes e comunistas. A sinagoga de Roma tinha sido atacada à bomba oito meses antes, matando três judeus e um transeunte, e desde então tinha-se registado uma série de ataques à comunidade imigrante da cidade, ataques conhecidos pela selecção fortuita dos alvos e pela sua frenética brutalidade.
As imagens no televisor passaram bruscamente dos corpos encontrados no beco para um homem de ar sério, de fato escuro e com uma gravata sóbria. Era Cesare Scarfone, líder do Movimento Patrióttico Italiano, um dos mais radicais partidos políticos da extrema-direita com assento no Parlamento. Estava a condenar o ataque aos somalis e a denunciar os culpados como rufiões sem lei. Mas havia algo de ambivalente no seu discurso porque, quase no mesmo fôlego, afirmava que já era tempo de impedir a vinda de imigrantes para o país.
Chapman observou-o. Scarfone era um político astuto, sabia servir-se da comunicação social em seu próprio proveito e mostrava uma personalidade pública que parecia contradizer a sua repugnante filosofia política. Um vigoroso advogado ainda novo, originário do sul do país, era um dos principais beneficiários dos escândalos da corrupção Tangentopoli que destruíra a velha ordem política em Itália.
O Partido Democrático Cristão, a mais poderosa força na política italiana do pós-guerra, havia desaparecido por completo. Os socialistas tinham sido aniquilados, os comunistas haviam mudado de nome, separando-se em diversas facções. Contudo, e bastante significativamente, a extrema-direita saíra do seu gueto político, criando maior respeitabilidade - e mais apoios - do que tivera durante o último meio século.
A Constituição italiana proibia a reformulação do Partido Fascista Nacional, mas isso não evitava a organização de partidos neofascistas sob diferentes nomes mas com as mesmas ideias e os mesmos métodos dos fascistas. Estes partidos foram sempre excluídos do governo até que o caos da Tangentopoli, aliado ao desprezo universal pelos políticos da velha escola, possibilitara o seu regresso. Não estavam manchados pelos escândalos da corrupção, simplesmente porque não detinham qualquer poder e assim ninguém tinha interesse em os subornar, e as suas opiniões sobre a imigração e os impostos estavam a tornar-se mais aceitáveis junto do eleitorado. Esta alteração no clima político possibilitara a chegada ao Parlamento de uma nova vaga de membros da extrema-direita, e entre eles encontrava-se Cesare Scarfone em lugar mais proeminente.
Tinha sido eleito para a Câmara dos Deputados em representação da Allianza Nazionale, mas quase imediatamente entrara em disputa com a liderança do partido, formando a sua própria facção com ideias ainda mais desviadas para a direita. A sua retórica racista e inflamatória e a confessada admiração por Mussolini incomodavam muitos italianos, mas tinham-lhe conquistado numerosos adeptos entre a classe trabalhadora mais jovem e junto de muitos comerciantes da classe média. Em público apresentava-se como um indivíduo encantador e persuasivo, demonstrando um completo domínio do uso da palavra sem o qual nenhum político moderno conseguiria sobreviver. Mas Chapman podia ver através do lustro das relações públicas, sabendo que por baixo desse resplendor existia um manipulador calculista e implacável. Não tinha dúvidas de que este homem era capaz de mandar matar um padre - e um jovem mendigo.
Não houve qualquer referência a Beppe no noticiário. A morte aparentemente acidental de um mendigo não merecia qualquer menção, mas Chapman estivera a pensar nele durante todo o dia. Não a chafurdar num sentimento de culpa, como Elena Fiorini tinha dito, mas mesmo assim considerando-se culpado. Quem mais poderia ter a culpa? Tinha usado o rapazola em seu próprio proveito, explorara-o para conseguir uma história, e a morte dele pesava-lhe na consciência.
Desligou o televisor e foi à cozinha preparar qualquer coisa para comer: esparguete envolvido em manteiga derretida e parmesão ralado. Estava a meio da refeição, pensando agora em Elena e imaginando se ela seria tão dura como parecia, quando o telefone tocou. Era Enzo.
- Estás ocupado esta noite? - perguntou.
- Não. Porquê?
- Falei com um contacto que tem conhecimentos nos círculos neofascistas. Um sujeito chamado Pinocchio.
- Ora aí está um nome infeliz para um informador...
- Ele sabe bem o que faz. Tenho-o usado várias vezes, e é de confiança. Falei-lhe do Padre Vermelho, e ele disse que ia ver o que conseguiria.
- E...?
- Quer encontrar-se comigo esta noite. Acho que é melhor estares lá também.
- Onde?
- Na EUR, na Piazza Marconi. Conheces?
- Conheço.
- Queria ir buscar-te, mas tenho outra coisa para fazer primeiro.
Chapman não lhe perguntou o quê. Bem podia adivinhar.
- As onze e meia, está bem?
- Lá estarei.
Os jantares de família eram um sacrifício para Elena. Em parte por dever, em parte por prazer, despertavam nela uma sensação confusa. Gostava de rever os pais e o irmão, e aguardava com expectativa as infrequentes reuniões, mas quando por fim ocorriam, eram sempre menos agradáveis do que previra.
Estava na cozinha dos pais, a ver a mãe a cozinhar, como gostava de a observar quando era garota. Enquanto beberricava um copo de vinho branco e escutava a mãe a conversar, lembrava-se da razão pela qual durante tanto tempo desejara sair de casa. A família podia acabar por tornar-se num contrapeso. Crescera aqui, vivera aqui enquanto frequentava o curso de Direito, e aqui tinha continuado a residir durante mais alguns anos até poder ter um apartamento seu. A falta de privacidade, de liberdade, tinha sido intolerável. Tinha de prestar contas de todos os seus movimentos: onde tinha estado, com quem, durante quanto tempo. Era sempre difícil trazer amigos para casa, e não tinha outro sítio para onde ir, razão pela qual - como sucedia com a maioria dos seus contemporâneos - as suas experiências sexuais, dos primeiros tacteios hesitantes até à perda da virgindade e por aí além, tinham ocorrido no banco traseiro de um Fiat.
A sua mãe tinha ido buscar à Inquisição Espanhola a inspiração para as suas conversas. Mesmo agora, com Elena já crescida e independente, uma conversa casual com a mãe era mais um interrogatório do que uma charla entre iguais. Nunca seriam iguais, claro. A mãe ainda era a mamma, e Elena continuava a ser a garota agarrada aos atilhos do seu avental. Por vezes era reconfortante saber que pouco tinha mudado, mas havia outras ocasiões em que tudo se tornava intensamente incómodo. A mãe chegava por fim, e não inesperadamente, ao assunto do próximo divórcio de Elena. Era um pormenor doloroso que não desejava voltar a discutir. Mas Franco telefonara, pedindo à mãe de Elena para interceder em sua defesa, e ela estava decidida a advogar a causa dele.
- Mamma - disse Elena, penosamente -, já falámos neste assunto uma centena de vezes.
- Bem sei. Mas tu tens sido tão teimosa a respeito do caso. Devias ser mais compreensiva. Não passou de um namorico sem importância.
- Teve muita importância. Durava há meses. Ele chegou a ir viver com ela, lembra-se?
- Tu expulsaste-o de casa.
Elena suspirou. - Ouça, ele só quer voltar porque ela o trocou por outro.
- Pois, está bem, ele comportou-se mal. Mas isso não é razão para que ajas como uma parvinha.
- Parvinha? Não quero recebê-lo de volta.
- É o teu marido.
- E um mentiroso e um vigarista.
Elena atravessou a cozinha para observar pela janela o jardim ressequido. Nenhum dos seus progenitores tinha qualquer interesse pela jardinagem, e os canteiros de relva amarelecida, cercados por arbustos e feixes de ervas daninhas, reflectiam essa indiferença. Quando era pequena havia um baloiço na relva, mas já desaparecera há muito, e o seu lugar era agora ocupado por uma colecção de cadeiras de plástico nas quais os seus pais se sentavam com as visitas nas noites quentes do Verão.
- Todos os homens têm aventuras amorosas - disse a mãe. - É uma estupidez dar-se importância a isso. Para uma mulher sensata não é motivo para divórcio. Há coisas mais importantes do que a fidelidade de um marido.
Acabou de descascar as batatas e começou a cortá-las em pequenos cubos para fritar em azeite. Elena voltou-se e analisou-a. A mãe era uma pragmática. Qualquer vestígio de romance que pudesse alguma vez ter existido na sua vida volatilizara-se enquanto gerava e criava cinco filhos. Dedicara-se à família e ao lar, e não permitiria que uma coisa tão corriqueira como o adultério arruinasse tudo o que construíra. Elena sabia que, aos olhos da mãe, a culposa era ela. Tinha expulsado o marido de casa. Isso era um pecado cardinal num casamento.
- Os homens foram sempre infiéis. Vocês, mulheres modernas, são tontas se esperam outra coisa. Se eles põem comida na mesa e nos tratam com respeito, não podemos exigir mais. Se ele fosse jantar fora em vez de ir jantar a casa, não ias expulsá-lo por isso.
- Acha que ir comer fora é a mesma coisa que o adultério? - perguntou Elena.
- Para os homens é. Para eles não tem qualquer importância.
- Pois para mim é importante.
- Todos eles fazem o mesmo.
- O papá também?
A mãe olhou zangada para ela. - Como te atreves? Não tens o direito de fazer perguntas dessas!
- A mim faz-mas a mãe.
- O teu pai é um bom marido e um bom pai.
Será que o pai alguma vez foi infiel?, pensou Elena. Oportunidades não lhe tinham faltado. Quase nunca estava em casa, e, quando estava, fechava-se quase sempre no escritório, a trabalhar. Seria isso ser um bom pai?
- É melhor largarmos o assunto, está bem? - comentou Elena, demasiado cansada para discutir.
Mas a mãe nunca deixava o assunto esfriar. - Só estou a dizer que devias dar-lhe uma segunda oportunidade.
- Já não o amo. Pela minha parte, o casamento está terminado.
- Vocês, gente nova, querem tudo facilitado. Se alguma coisa não funciona, desistem e procuram outra. O casamento exige esforço.
- Acha que o Franco se esforçou?
A mãe comprimiu os lábios, mas desta vez não disse nada. Tirou do frigorífico alguns pedaços de borrego e começou a enrolá-los em farinha condimentada.
O relacionamento de Elena com a mãe nunca fora isento de atritos. Procurara sempre a aprovação da mãe, desejara sempre que se sentisse orgulhosa dela, mas sempre sentira resistência. A mãe não atribuía qualquer importância ao facto de ela ser magistrada. Se chegasse a pensar nisso, iria considerar logo que a carreira da filha fora a causa da destruição do seu casamento. Se Elena tivesse tido filhos e escolhesse uma vida de domesticidade, ela e Franco ainda estariam juntos e felizes. Era assim que a mãe encarava a situação. Não compreendia, ou não queria compreender, que os tempos eram outros. Por vezes suspeitava que a mãe tinha inveja das alternativas e da liberdade que a geração da filha conquistara, ressentindo-se de nunca ter tido oportunidades semelhantes, e por isso também não queria que a filha as tivesse. Era uma mulher muito confusa: dura na sua relação com a filha, mas sempre pronta a oferecer-lhe o seu incondicional amor materno. Desejava que Elena fosse feliz, mas não conseguia deixar de ser exigente.
Uma chave rodou na fechadura da porta da escada e o irmão mais novo de Elena, Ugo, entrou em correria.
- Onde está toda a gente?
- Aqui! - chamou Elena.
- Ciao.
Ugo apresentou-se à porta da cozinha trajando umas elegantes calças, sapatos Gucci e uma camisa Armani aberta no pescoço. Beijou a mãe e a irmã e atirou para um canto o saco desportivo que trazia. O fecho de correr estava parcialmente aberto e Elena podia ver uma meia suja a espreitar. Com trinta anos de idade, Ugo ainda trazia a roupa suja para casa dos progenitores, para que a mamma tratasse dela. E, o que era mais grave, ela tratava mesmo. Elena achava a ideia deprimente, e sabia qual seria a reacção da mãe se fosse ela a trazer a sua roupa suja para casa.
- Que estás a beber? - perguntou Ugo.
- Vinho - respondeu Elena.
- Isso posso eu ver. De que tipo?
- Não faço ideia. Vinho.
Ugo pegou na garrafa e examinou o rótulo. - Mmm... Uma boa colheita. Que tal te parece? Leve e frutado, com um toque de baunilha? É assim que gosto dos meus brancos.
Ugo era licenciado em conversa de chacha, o que talvez fosse apropriado visto que trabalhava no ramo da Publicidade, no qual aquela era a única linguagem que toda a gente entendia. Elena invejava a vida fácil do irmão, que a melindrava um pouco. Tudo parecia correr-lhe bem, sem qualquer esforço da parte dele. Acontecesse o que acontecesse, caía sempre de pé, acreditando que isso se devia às suas capacidades e não à sorte. Possuía uma inatacável confiança em si mesmo e uma certeza da sua própria superioridade, que na realidade não existia mas que lhe amortecia a passagem pelo mundo. Desde criança que nada sucedia por culpa dele. Alguém - geralmente a mãe - estava sempre por perto para apanhar os cacos e para o absolver de qualquer responsabilidade. E continuava a fazê-lo, quando, na opinião de Elena, já deveria ter-lhe dito há muito para se aguentar sozinho. O problema era que a mãe pensava que o filho era o centro do universo. Em contraste com a sua atitude para com Elena, nunca o criticava, mas ele não lhe demonstrava qualquer gratidão, tratando-a com desdém e vindo visitá-la apenas quando precisava de qualquer coisa.
Ugo deitou vinho num copo e deixou-se cair numa cadeira, estendendo as longas pernas.
- Então, quantos meteste hoje na choça? - perguntou chistosamente à irmã. Não ficou à espera de resposta e acrescentou: - Vi-te no noticiário, no outro dia. Parecias esquisita, debaixo de todas aquelas luzes. Tu sabes, pálida e desvairada.
- Obrigadíssima.
- Pregaram-vos uma rasteira com aquela pergunta, não foi? Devias ter visto as vossas caras: boca aberta, olhos parados. Teve muita piada, realmente.
Elena não disse nada. Não queria que lhe recordassem aquele momento.
- O que é que se come? - perguntou Ugo.
- Borrego com azeitonas pretas - informou a mãe.
- Fartei-me de comer ao almoço. Se calhar vou só petiscar.
Elena viu o rosto da mãe e espantou-se com a insensibilidade do irmão. Mas ele já estava noutra onda, dizendo-lhes onde tinha almoçado, quem eram os clientes, quanto tinha custado. Deixou de o escutar e tentou combater a irritação.
O pai chegou pouco depois e sentaram-se à mesa, conversando sobre o que tinham feito, sobre as últimas notícias dos três outros filhos que se tinham mudado para fora de Roma, dois deles já com famílias também; todas as minúcias da sua vida que, apesar de entediantes para um estranho, eram a argamassa que os conservava unidos.
Elena ajudou a mãe a lavar a louça, enquanto Ugo se sentava na sala a navegar pelos canais da televisão para tentar encontrar alguma coisa de interesse. Depois dirigiu-se ao gabinete de trabalho do pai. Eugênio Fiorini estava sentado à sua antiga secretária, a examinar os papéis espalhados à sua frente. Olhou para Elena quando ela entrou e removeu os óculos de ler.
- Incomodo, papá?
Ele sorriu. - Não, entra.
Deu meia-volta à secretária e apoiou a mão num ombro do pai. Ele tocou-lhe na mão com os dedos e rodou a cadeira para poder olhá-la.
- Está a trabalhar de mais, papá.
- Como sempre.
- Venha tomar um licor connosco.
- Esta noite não. Tenho umas coisas para acabar. Eugênio tinha um movimentado escritório de advocacia, tratando principalmente de casos relacionados com o Direito Comercial. Tinha sessenta e sete anos de idade, mas não apresentava indícios de afrouxar a sua actividade. Elena sabia que ele nunca se reformaria, pois não saberia o que fazer com o tempo livre. O trabalho era a sua vida. Por vezes pensava que era também a válvula de escape dele - em relação à mulher, aos filhos, às responsabilidades domésticas. Nunca os tinha acompanhado nas férias familiares enquanto ela crescera. Levava-os até à costa e deixava-os ali, visitando-os nos fins de semana se não estivesse muito ocupado. Percebia agora como deveria ter sido árduo para a mãe ter de criar sozinha cinco filhos. Elena era parecida com ele sob muitos aspectos, e não só porque escolhera uma carreira em Direito. Tinham a mesma determinação teimosa, a mesma dedicação ao trabalho. Contudo, olhando agora para o pai, virtualmente acorrentado à secretária, com o cabelo a embranquecer, o corpo começando a desgastar-se, perguntava a si mesma se era isto que esperaria da sua vida. Nunca ninguém morrera a desejar ter passado mais tempo no seu gabinete de trabalho.
- Como estás tu, Elena?
- Estou óptima.
- Pareces cansada.
- Tenho tido muito que fazer.
- Não deves abusar.
Elena riu-se. - Olha quem fala.
-Já sou um velho. Tu és nova. Devias sair mais, conhecer pessoas, gozar a vida.
- A mamã acha que eu devia voltar para o Franco.
- Ah, ela esteve a falar contigo, foi?
Havia um lampejo de humor nos seus olhos. Estava casado há trinta e sete anos e conhecia a tendência da mulher para se agarrar com toda a força a um assunto para nunca mais o largar.
- Queres voltar para o Franco?
- Não.
- Então não se fala mais nisso. - Fez uma pausa, e depois acrescentou: - Há mais alguém?
Elena pensou momentaneamente em Andy Chapman. - Não - respondeu.
Ficou no gabinete por mais algum tempo, conversando com o pai a respeito do seu trabalho. Era o único membro da família que se interessava realmente pelo que ela fazia. A mãe achava tudo muito aborrecido e complicado, e Ugo estava demasiadamente interessado em si próprio para se ralar. Mas o pai gostava de conversar com ela a respeito do Direito, e orgulhava-se da carreira dela. Sabia como fora difícil para ela: concluir a licenciatura em quatro anos, um cometimento de que poucos poderiam gabar-se; passar nos exames para a Magistratura com a sexta classificação mais alta no país; ser nomeada para um lugar cobiçado no pubblico ministero de Roma. Sabia avaliar a aplicação e as capacidades que estes feitos tinham exigido, e orgulhava-se da filha.
- Agora vou deixar-te com o teu trabalho, papá - disse Elena por fim.
- Volta a visitar-nos em breve.
Ela deu-lhe um beijo na face e saiu para ir despedir-se da mãe. Ugo estava a ver uma comédia pueril qualquer na televisão, levantou um braço mas não se pôs de pé para se despedir da irmã.
A porta, Elena abraçou a mãe e beijou-a nas duas faces.
- Fala com o Franco - recomendou a mãe. Elena afastou-se sem responder.
A EUR era um dos mais extraordinários locais em que Chapman já estivera. Um vasto subúrbio artificial no extremo sul da cidade criado por Mussolini nos anos trinta para a Esposizione Universais di Roma, que seria um mostruário do fascismo e dos seus empreendimentos mas que nunca chegara a realizar-se devido ao advento da Segunda Guerra Mundial. Desde então o local transformara-se numa cidade-satélite e num centro empresarial, mas nunca perdera a macabra atmosfera de vacuidade e o frio modernismo que o fazia parecer mais um cenário de cinema do que um sítio onde as pessoas viviam e trabalhavam. As amplas artérias, com nomes bizarros como Alameda da Electrónica e Avenida da Segurança Social, eram tão desconfortáveis como os sólidos e desengraçados edifícios fascistas que as orlavam. A luz do dia, a esterilidade clínica do local era amenizada pelas multidões de funcionários que entravam e saíam dos volumosos quarteirões de escritórios. Contudo, à noite era como uma cidade-fantasma surrealista, desertada pelos seus cidadãos, como se uma praga ou algum vírus mortífero a tivesse deixado envenenada e inabitável. As ruas e praças, fervilhando de actividade apenas umas horas antes, transformavam-se em escuros e sinistros guetos fustigados por ventos cortantes e pelos ecos de uma civilização desaparecida.
A Piazza Marconi, o coração geográfico da EUR, era uma vasta praça cortada ao meio por uma ampla estrada de seis faixas e cercada por diversos melancólicos monumentos fascistas. Foi só ao chegar ali que se recordou da vastidão da piazza, constatando como tinham sido parcas as instruções que Enzo lhe transmitira: tinha-se referido à praça sem lhe dizer em que ponto iriam encontrar-se. Estacionou o carro no canto sudoeste e desligou as luzes. Pouco passava das onze e meia, e ficou sentado na escuridão, esperando ver o carro de Enzo através do pára-brisas.
Passaram-se alguns minutos até discernir os faróis de um carro entrando lentamente pelo lado oposto da piazza. Um BMW negro encostou à berma, com três vultos no interior. Sentiu os pêlos do pescoço começarem a eriçar-se. Olhou para o outro lado da praça. Os três homens continuavam dentro do carro. A espera. Sentia-se nervoso. Não sabia se estaria a ser pateta. Podiam ser fosse quem fosse. Um deles poderia até ser Pinnochio, o contacto de Enzo. Mas a presença deles não deixava de o perturbar.
Entrou outro carro na praça. Reconheceu as linhas aerodinâmicas do Alfa Romeo de Enzo. Estacionou a uns cinquenta metros do BMW. Chapman saiu do carro e começou a atravessar a piazza. A porta dianteira do lado do passageiro do BMW abriu-se e um homem apeou-se. Enzo viu-o e apeou-se também, levantando um braço em saudação. Ao atravessar o relvado ao centro da praça, Chapman viu um segundo homem sair pela porta traseira do BMW. A luz de um candeeiro de iluminação pública reflectiu-se por um instante em algo que o homem levava na mão. Demasiado tarde, Chapman percebeu o que era. Uma arma. Gritou um aviso para Enzo, que corria na sua direcção. Enzo voltou a cabeça. - Volta para trás! - gritou Chapman. Mas o segundo homem já estava a aproximar-se. Enzo viu-o a avançar na sua direcção e deu meia-volta, correndo para o carro. A primeira bala atingiu-o nas costas quando ainda não tinha percorrido três metros. A segunda fez-lhe explodir a cabeça, espalhando tecidos e sangue a toda a volta. O corpo de Enzo esparramou-se no chão como um fantoche.
O atirador deu meia volta. Chapman viu-lhe por um instante o rosto à luz do candeeiro e depois correu para o carro. O homem veio atrás de si. Chapman ouviu portas de carro a bater e um motor a começar a trabalhar. O BMW pôs-se em movimento. Chapman deu a volta ao carro no momento em que uma bala estilhaçava uma das janelas laterais. Agachou-se e abriu a porta dianteira, com as chaves na mão, procurando a ignição. O atirador disparou de novo. A bala ricocheteou no tejadilho e perdeu-se na noite. O motor arrancou e Chapman carregou a fundo no acelerador, rodando o volante para se meter no trajecto do atirador. Este mergulhou para o lado ao ver o carro quase em cima de si. Chapman viu o BMW à luz dos seus faróis e continuou em frente. Quando a colisão parecia inevitável, o BMW desviou-se no derradeiro momento, num guincho de travões. Chapman tinha o avanço de que precisava. Virou para uma rua lateral, fez duas curvas para a direita e atravessou uma luz vermelha entrando na via rápida que levava ao centro da cidade. Podia ver mentalmente o corpo de Enzo a estremecer e a estatelar-se no chão, e, gravado na retina, nítido como numa fotografia, o rosto do homem que o abatera.
Desta vez, as disposições de ambas pareciam coincidir. Elena achava-se necessitada de companhia, de algo que pudesse acariciar e acarinhar, e Livia, sempre tão distante e altiva, mostrava-se afectuosa. A gata aproximou-se pelo corredor fora quando Elena entrou em casa e roçou-se-lhe nas pernas, ronronando. Elena pegou-lhe ao colo e levou-a para a sala de estar, deixando-se cair numa cadeira de braços com Livia aninhada nos braços. Era muito tarde. Sabia que devia ir deitar-se, mas sentia que era um esforço excessivo. Fechou os olhos e descansou a cabeça nas costas da cadeira.
O barulho do telefone despertou-a com um sobressalto. Piscou os olhos, demorando uns momentos a compreender onde estava, tentando perceber que tilintar era aquele que escutava. Pôs-se em pé com dificuldade e caminhou aos tropeços em direcção ao telefone.
- Pronto ?
- Elena? És tu? - Uma voz de homem, urgente, um pouco confusa. - Fala Andy Chapman.
- Chapman? Como conseguiste este número?
- O Enzo está morto. O Enzo Mattei. Acaba de ser abatido. Eu vi. Estás a ouvir?
Elena já estava acordada. - Mais devagar. Onde estás?
- Não sei o que hei-de fazer. Jesus, eles mataram-no! Abateram-no à minha frente!
Estava angustiado, quase soluçando as palavras.
- Andy - disse ela, esforçando-se para se conservar calma. O coração batia-lhe como um martelo pneumático. - Onde foi isso?
- Na EUR. Não sabia a quem telefonar. -Já contactaste a polícia?
- Quem?
- A polícia.
- Merda, não me lembrei. Vinham atrás de mim. Eram três. Num BMW preto. Ele caiu redondo no chão. Duas balas. Cristo, foi terrível!
- Em que ponto da EUR?
- Na Piazza Marconi. Ele ficou lá no chão, morto.
- Andy, cala-te. Responde às minhas perguntas, mais nada. Onde estás agora?
- Numa cabina telefónica.
- Na EUR?
- Não. Nas Tre Fontane. Vim pela Cristoforo Columbo. Estou ao pé do Centro Sportivo.
- Fica aí. Eu vou buscar-te.
- A polícia... achas que...
- Deixa isso comigo. Chego aí o mais depressa que puder. Desligou o telefone e ligou ao oficial de serviço na Questura. Depois desceu e meteu-se no seu carro, dirigindo-se para o sul da cidade. Ao sair da artéria principal viu a cabina telefónica junto do centro desportivo das Tre Fontane. Havia um carro próximo, com um vulto no interior. Passou por ele para se certificar. Chapman virou a cabeça e viu-a. Encostou à frente do carro dele e pelo retrovisor viu-o sair do carro e aproximar-se da janela.
- Entra - disse Elena. Ele deu a volta ao carro e sentou-se no lugar do passageiro.
- Obrigado por teres vindo - disse. Estava agora mais calmo, mas parecia aturdido. Elena já vira esta reacção em vítimas de choque.
- Estás bem? - inquiriu ela.
Ele confirmou com um aceno. - E o meu carro?
- Vimos buscá-lo depois.
Inverteu o sentido de marcha e regressou pelo caminho por onde viera. A polícia já se encontrava na Piazza Marconi quando lá chegaram. Elena estacionou atrás de um dos carros deles. - Fica aqui - disse a Chapman. Um policial fardado fez-lhe sinal para recuar e depois abriu-lhe caminho quando ela se identificou. Chapman observou-a através do pára-brisas: a passar por baixo da fita plástica que demarcava o recanto noroeste da praça, a falar com o oficial em comando, e depois a olhar para algo no chão que Chapman não podia distinguir mas que sabia tratar-se do corpo de Enzo. Sentia-se frio e entorpecido. Parecia-lhe que toda a energia se lhe tinha escapado. Não tinha sono, mas qualquer movimento que fazia, qualquer pensamento, exigia-lhe um esforço.
Chegou uma ambulância, seguida por mais polícias à paisana e um camião com equipamento. Dois homens de fato-macaco começaram a instalar projectores para iluminar a cena que até agora tinha estado banhada apenas pela luz dos faróis dos carros. Elena estava a dizer qualquer coisa a um detective à paisana. Podia ver-lhe o rosto de perfil, com uma das mãos levantada para resguardar os olhos do brilho duro dos projectores. Lembrou-se do primeiro dia em que a vira, à porta da casa do Padre Vermelho. O ar de competência e a calma autoridade natural que projectava faziam com que até os policiais mais experientes a escutassem com atenção.
Voltou-se e regressou ao carro, com o detective ao seu lado. Sentou-se ao volante, enquanto o detective ocupava o banco traseiro, extraindo do bolso uma caneta e um bloco de apontamentos.
- Este é o inspector Piccoli - disse Elena para Chapman. - É melhor contares-lhe o que se passou.
Chapman ajustou-se no banco para poder virar-se para Elena e para o inspector. Era um homem baixo e trigueiro, com maxilas salientes e uma cabeça que parecia nascer-lhe directamente do tronco sem pescoço.
- O Enzo e eu tínhamos combinado encontrar-nos aqui com alguém - disse Chapman. - Um contacto seu que afirmava ter informações para nós a respeito do envolvimento neofascista na morte de António Vivaldi. Primeiro cheguei eu, e depois o Enzo.
Contou-lhes o que se tinha passado a seguir, falando lentamente para que Piccoli pudesse tomar apontamentos.
- Escapei-lhes na rua principal - disse finalmente. - Depois fui à procura de uma cabina telefónica. E é tudo.
- Tomou nota do número da matrícula do BMW?
- Estava demasiado escuro. E para o final já não conseguia pensar em coisas desse género. Só queria escapar-lhes.
- Já os tinha visto anteriormente? Chapman sacudiu a cabeça.
- Consegue descrevê-los?
- Não muito bem. O terceiro homem nunca chegou a sair do carro. Não cheguei a vê-lo. Mas o atirador, acho que seria capaz de o reconhecer. Vi-lhe a cara à luz do candeeiro da rua.
- Tens alguma ideia da informação que ele ia dar-te? - perguntou Elena.
- Não.
- Ou de quem seria o contacto dele?
- Não sei nada a respeito dele.
- Gostaria que viesse à Questura para ver alguns retratos - disse Piccoli. - Para ver se consegue reconhecer o atirador.
- Tenho de participar à esposa do Enzo.
- A polícia encarrega-se disso - disse Elena.
- Não, isso compete-me a mim.
Piccoli lançou um olhar a Elena, que concordou com um aceno.
- Depois disso, então. Logo que possa - disse o inspector, guardando o bloco de apontamentos.
Elena apeou-se de novo e teve uma breve conversa com o inspector antes de voltar a sentar-se ao volante para levar Chapman até ao seu carro.
- Estou-te grato pelo que fizeste - disse Chapman.
- É o meu trabalho.
- Não eras obrigada a vir pessoalmente.
- Também conhecia Enzo Mattei. - Fez uma pausa. - Não ouviste o que te disse, pois não? Disse-te para não interferires. Andas a pescar em águas turvas. Não te avisarei outra vez.
- Pensas que vou desistir agora? Com o Enzo morto?
- És teimoso, não és?
- Não comecemos a discutir de novo, Elena.
Ela olhou pela janela. - Aonde foste buscar o meu número? Não vem na lista.
- Vi-o no teu telefone. Tomei nota dele antes de sair na noite passada. Queres que o deite fora?
Virou-se para ele. - Não, se não quiseres.
- Não quero - declarou Chapman.
Apeou-se e dirigiu-se para o seu carro. Elena viu-o levantar a mão em despedida quando ela se afastou.
Chapman não pôs o motor a trabalhar imediatamente. Ficou sentado a pensar em Enzo, tentando imaginar o que iria dizer a Claudia, o que eles iriam fazer sem Enzo. Os olhos enevoaram-se-lhe. Esfregou-os com força e rodou a chave na ignição.
A voz de Claudia no intercomunicador parecia ensonada, intrigada.
- Andy? Que fazes aqui? Sabes que horas são?
- Deixa-me subir, Claudia.
- Que se passa, Andy? - disse ela ao abrir a porta de casa. - Onde está o Enzo?
- O Enzo está morto, Claudia. Apanhou-a nos braços quando ela desfaleceu.
Claudia ficou em choque, a que se seguiu uma descrença entorpecida, e depois vieram as lágrimas, que Chapman sabia que não poderia fazer parar. Nem tentou. Ficou sentado com ela na sala em penumbra, apoiando-a e escutando os seus soluços, sentindo-lhe o corpo a tremer. Tinha esperança de que os rapazes não acordassem. Não saberia consolá-los aos três.
Quando ela deixou de chorar por fim, ele foi fazer café e ficaram a conversar em voz baixa, como conspiradores. Claudia também queria que os filhos continuassem a dormir. Em breve saberiam o que tinha acontecido.
Falaram repetidamente das mesmas coisas. Não era muito o que poderiam dizer, mas parecia importante que fossem insistindo, porque cada minuto passado a falar era um minuto em que não precisavam de pensar. E agora Claudia não queria ter muito tempo para pensar. Teria o resto da sua vida para isso.
Chapman ficou até de manhã. Claudia dormitou apoiada no seu ombro e depois também ele adormeceu, acordando ao alvorecer com um braço dormente e os olhos doridos. Saiu antes de Carlo e Paolo se levantarem. Claudia queria estar sozinha quando lhes dissesse.
Regressou à cidade e encontrou um bar na Via Nazionale onde tomou um caffe latte antes de se dirigir à Questura. Picco-li conduziu-o ao seu gabinete e fê-lo assinar uma declaração do que sucedera na EUR. Depois trouxe uma colecção de grandes álbuns contendo fotografias de cadastrados e pediu a Chapman para os analisar, página a página. Era um procedimento longo e laborioso. Fizeram um intervalo passada uma hora e Piccoli interrogou-o um pouco mais sobre o sucedido na Piazza Marconi, como se não acreditasse em tudo o que ele já lhe dissera. Chapman recontou tudo pacientemente, desejoso de ir para casa e deitar-se, e depois voltou à tarefa de examinar as fotografias, que começavam a parecer-lhe todas iguais. Sabia que era um trabalho que tinha de ser feito, mas considerava-o uma perda de tempo. - Só mais um - disse Piccoli, colocando o último álbum sobre a secretária à frente de ambos. Chapman suspirou e abriu a capa.
Quinze páginas depois, deram com ele. Uma fotografia a preto e branco de um homem com cabelo curto, nariz achatado e uma boca flácida contorcida numa careta de sarcasmo. Sabia sem qualquer dúvida que era aquele homem. Nunca esqueceria uma cara daquelas.
- Tem a certeza? - inquiriu Piccoli. Chapman confirmou. - Quem é ele?
- Vincenzo Volpi. Tenho de ir buscar o cadastro dele ao computador, mas tenho a ideia de que foi condenado várias vezes por assalto. Um tipo violento e desagradável, mas assassínio é uma novidade nele.
- Vão prendê-lo?
- Se conseguirmos dar com ele - respondeu Piccoli. Chapman seguiu para casa em semitranse, manobrando automaticamente o veículo mas com os pensamentos noutro local, num limbo de exaustão e incompreensão. Tinha estado presente, mas ainda assim não acreditava plenamente que Enzo estivesse morto.
Uma senhora idosa estava a abrir a porta da escada do edifício quando ele chegou. Deu-lhe os bons-dias e trocaram algumas palavras. Ela residia no apartamento abaixo do seu, mas sabia pouco a respeito dela, excepto que se chamava signora Campanella. O apelido era italiano mas ela não era italiana. Falava com uma pronúncia estrangeira que lhe parecia ser de um dos países de Leste, talvez polaca, mas não tinha a certeza. A relação entre ambos era tão delicada e superficial que nunca tivera oportunidade para conhecer as origens dela.
A senhora levava dois volumosos sacos de plástico com produtos alimentares que tinha comprado no mercado local. Ajudou-a a transportá-los escadas acima e esperou enquanto ela procurava as chaves da porta.
Ouviu passos vindos de cima. Alguém vinha a descer pesadamente as escadas. Inclinou-se sobre o corrimão e captou o vislumbre de uma mão, a manga de um casaco escuro. A cabeça desanuviou-se-lhe num instante. Pegou nas chaves da senhora Campannela e meteu-as na fechadura. Abriu a porta e entrou, semicerrando-a para se esconder atrás dela.
Os passos pararam. Uma voz de homem exclamou: "Oh". Chapman espreitou pela abertura entre a porta e a ombreira. Não conseguia ver o rosto do homem, apenas o lado esquerdo do corpo, com a mão ainda apoiada no corrimão. O homem grunhiu indistintamente e voltou a subir as escadas. Chapman escutou atentamente. Ouviu outra voz mais vaga, e a seguir o estalido de uma porta a fechar-se. Estavam à sua espera dentro de casa.
A senhora Campannela entrou em casa com um ar de estranheza. Chapman fechou a porta atrás dela.
- Signora - perguntou -, posso usar o seu telefone?
Era o segundo choque do dia para Elena. O primeiro, o telefonema de Chapman ainda ao começo da madrugada, tinha-a aturdido e a seguir angustiara-a. Enzo Mattei não era um amigo, nem sequer um conhecido, mas encontrara-o no exercício do seu trabalho e tinha por ele um respeito profissional.
A sua morte comovera-a, apesar de não sentir pessoalmente a sua perda.
Este agora era diferente. Não era uma morte, e à primeira vista nem parecia muito importante, mas mesmo assim deixava-a preocupada.
- Diga outra vez, por favor - pediu a Corona.
- Vai ser fiscalizada pela Guardia di Finanza.
Puxou a cadeira arrumada em frente da secretária do Chefe e deixou-se cair nela.
- Fiscalizada? - sussurrou.
- Não tem nada com que se preocupar - disse Corona.
Entregou-lhe uma carta com cabeçalho da Guardia di Finanza, Comando Generale. Elena leu-a, surpreendida por reparar que a mão lhe tremia. Parecia que estavam a apertar-lhe o estômago num torno. Numa primeira leitura não havia nada na carta que devesse preocupá-la. Estava escrita em termos delicados, diplomáticos, e parecia ser apenas um pedido de informação. Mas sabia que não era tão simples como isso.
- É uma fiscalização de rotina - assegurou-lhe Corona. - Como sabe, eles estão constantemente a fazer inspecções ao acaso. Pode calhar a qualquer trabalhador do país.
- Acredita nisso?
- Por que não hei-de acreditar? É apenas um pedido de detalhes sobre o seu salário e despesas, mais nada.
- Eles já têm essas informações, constantes na minha declaração de rendimentos.
- Por isso eles conferem essas informações com as que constam dos registos dos empregados. Não tem nada de sinistro, Elena.
- Não estou a gostar da ocasião que escolheram. Corona olhou para ela. - Da ocasião?
- É uma estranha coincidência os fiscais dos impostos decidirem fazer uma investigação de rotina às minhas finanças pessoais precisamente quando estou a investigar possíveis ligações dos neofascistas a três homicídios.
- Acha que os neofascistas podem influenciar a Guardia?
- Não sei. Só penso que é suspeito.
- Não se deixe ficar paranóica, Elena.
Ela inclinou-se sobre a secretária. - Estão a exercer uma pressão imprópria sobre mim - disse com severidade.
- Eles têm todo o direito de fiscalizar quem quiserem. Elena afastou o olhar. Depois da morte de Beppe e do desaparecimento da gravação, tinha relutância em confiar em Corona ou em qualquer outra pessoa da Procura.
- Vai fornecer os elementos? - perguntou.
- Não tenho outra alternativa. Sou obrigado a fornecer-lhes as informações que solicitam. Tem alguma coisa a esconder?
- Claro que não.
- Nesse caso, é apenas uma formalidade. Provavelmente não passará disso.
Mas Elena sabia que não estava a ser paranóica. O que contava era o que sentia no estômago, a intuição, os dedos fantasmas martelando-lhe a espinha, dizendo-lhe que deveria proteger o dorso.
O telefone estava a tocar quando regressou ao gabinete. Era Piccoli.
- Temos uma identificação do atirador que abateu Mattei - disse ele.
- Óptimo. Conseguiram localizá-lo?
- Está à espera numa das salas de interrogatório - disse Piccoli. - Quando pode vir cá?
Elena espreitou através da diminuta vigia de observação na porta da sala de interrogatório. Havia dois homens sentados lado a lado à mesa no interior da sala. Reconheceu um deles, um astuto advogado de cabelo lustroso chamado Francesco Menotti que representara diversos agitadores da extrema-direita, incluindo quatro alegados Sansepolcristi actualmente presos preventivamente na prisão de Regina Coeli e que aguardavam julgamento pelo ataque bombista à sinagoga de Roma. Nunca vira anteriormente o outro homem, Vincenzo Volpi, mas mostrava certas características comuns a outros criminosos violentos. Era fisicamente repelente, com um rosto rude de campônio ainda mais desagradável por causa do cabelo cortado rente e das orelhas salientes. Mas era a expressão dos seus olhos que ela reconhecia. Tinham a obtusidade fria de alguém que não hesitaria em matar sem sentir nada.
Elena fechou a vigia e voltou-se para Piccoli. - Onde o encontraram?
- O jornalista, Chapman, telefonou. Achava que estava alguém à sua espera em casa. Fomos lá. Havia dois homens em casa, mas conseguiram fugir pela escada de serviço. Pesquisámos as ruas em redor e demos com o Volpi num bar, a beber um espresso.
- Que coincidência... Ele mora para esses lados?
- Não, mora em Cencocelle.
- Como foi que Menotti entrou em cena?
- Apareceu cá, não se sabe como, exigindo ver o seu cliente. O outro sujeito, aquele que se escapou, deve ter-nos visto a caçar o Volpi, e se calhar chamou o advogado.
- Muito bem, vejamos que conto de fadas tem para nos contar - disse Elena.
Entraram na sala de interrogatório e sentaram-se à mesa. Menotti esperou que Elena ligasse o gravador e completasse as formalidades do interrogatório antes de começar a protestar.
- A forma como trataram o meu cliente é um ultraje. Um cidadão já não pode apreciar calmamente um café sem ser molestado pela polícia? Já será proibido estar-se sentado num bar? É uma grave violação dos seus direitos civis, e recomendo a sua libertação imediata.
- Registamos a sua reclamação, dottore - disse Elena. - Mas gostaríamos de falar ao seu cliente a respeito de algo um tanto mais sério do que estar sentado num bar. Onde estava ontem à noite, cerca das onze e meia?
- O meu cliente estava com alguns amigos, a jogar póquer - disse Menotti.
- Gostaria que fosse o senhor Volpi a responder às perguntas.
Olhou para Volpi. Os olhos dele fixaram-na, e quase se arrepiou. Tinha já visto bondade e maldade no rosto das pessoas que interrogara, mas a cara de Volpi não mostrava nada. Havia apenas uma fria amoralidade que desconhecia qualquer conceito do bem ou do mal.
- Estive a jogar póquer com uns amigos - disse Volpi. A entoação era baixa, com as palavras mal articuladas num cerrado sotaque romano.
- Onde?
Ele olhou para o advogado. Menotti deu-lhe autorização para falar e Volpi indicou uma morada na Via Nomentana.
- Esses amigos - disse Elena. - Dê-me os nomes e as moradas deles.
Outro aceno de Menotti. Volpi recitou uma lista de nomes e Piccoli anotou-os num bloco de apontamentos.
- Diz que esteve a jogar póquer com eles - prosseguiu Elena. - Desde que horas?
- Não sei. Talvez desde as nove ou dez horas.
- Até quando?
- Até às duas da manhã.
- Saiu de casa em qualquer ocasião?
- O meu cliente já lhe disse que esteve a jogar sem intervalos - interrompeu Menotti.
- Responda à minha pergunta, por favor - disse Elena a Volpi.
- Nunca saí de casa.
- Esteve na EUR na noite passada?
- Dottoressa - disse Menotti -, se ele estava na Via Nomentana, como poderia ter estado na EUR?
- Ouviu falar de um jornalista chamado Enzo Mattei?
- Não leio jornais.
- Foi abatido a tiro na noite passada, na EUR Temos uma testemunha que pode identificá-lo como o atirador.
- Perdão - interrompeu Menotti de novo. - Não posso permitir que faça perguntas ao meu cliente sobre algo que ocorreu quando ele se encontrava noutro local. Ele não sabe nada a respeito de qualquer tiroteio na EUR
- Foi o senhor que matou Enzo Mattei? - perguntou Elena.
O rosto de Volpi estava isento de qualquer expressão. - Não.
- Nesse caso, como explica que a nossa testemunha o tenha identificado?
- Ele não precisa de explicar nada - disse Menotti irritadamente. - Não esteve lá. A vossa testemunha enganou-se. Era de noite, e pensou ter visto alguém parecido com o meu cliente mas que não era ele. E é tudo. Portanto, vai soltar o signor Volpi ou não?
Elena ignorou o advogado, concentrando a sua atenção em Volpi.
- Qual é o partido político que apoia? - perguntou-lhe.
- Francamente, isto é completamente irrelevante.
- Dottore Menotti - disse Elena friamente -, poderíamos terminar isto mais rapidamente se acabasse com as interrupções.
Menotti levantou os braços no ar num gesto de desespero e abanou a cabeça. Mas não disse nada.
- Então? - disse Elena a Volpi.
Volpi encolheu os ombros e endireitou as lapelas do enrugado casaco de cabedal. Era um ignorante, sem educação, mas havia nele um elemento de astúcia que na sua profissão era mais importante do que a inteligência.
- Não estou interessado em política - respondeu.
- O senhor foi várias vezes condenado por actos de violência. Um deles foi um ataque não provocado a um africano. Não gosta de imigrantes, pois não?
- Não responda - disse Menotti instantaneamente.
Volpi sorriu-lhe num trejeito lúbrico, vulpino, que a incomodou mas que também a enfureceu. Sabia que não lhe ia arrancar nada, mas queria fazer-lhe todas as perguntas necessárias, para que constassem da transcrição do interrogatório.
- O que estava a fazer em Trastevere esta manhã?
- A tomar um café.
- É bastante longe de sua casa.
- E depois?
- Para quê ter de andar tanto para ir tomar um café?
- E por que não?
- Deixe-me dizer-lhe uma coisa. O senhor esteve na EUR na noite passada. O senhor matou a tiro Enzo Mattei e tentou matar um colega dele. Depois foi ao apartamento desse colega e esperou que ele voltasse para casa, mas em vez dele surgiu a polícia. O senhor conseguiu escapar-se e entrou num bar com o propósito de se esconder. Era por isso que estava a tomar café.
- Não faço ideia do que está para aí a dizer. - Reclinou-se casualmente e sorriu de novo para Elena. Já tinha estado preso antes, e isso não o incomodava nada. Elena desligou o gravador e levantou-se.
- Calculo que irá agora libertar o meu cliente - insistiu Menotti. - Não tem fundamento para o conservar detido.
- Dir-lhe-ei a minha decisão na altura devida - declarou Elena.
Saiu da sala de interrogatório e esperou por Piccoli.
- Com aquele não consegue ir longe - comentou Piccoli, desgostoso.
Elena concordou com um aceno. - Confira o álibi dele com os amigos. Todos irão confirmar, claro, mas temos de nos certificar.
- Foi tudo preparado antecipadamente.
- Bem sei. Menotti demonstrou-o quando respondeu à minha primeira pergunta em vez do Volpi. Parecia saber adiantadamente a que dia e hora me ia referir.
- E se o álibi for sólido, que faremos?
Elena tinha estado a pensar nisso. Podia mandar deter Volpi sem acusação formada. Era com frequência um modo útil de levar os prisioneiros a cooperarem. Mas achava que não iria resultar no caso de Volpi. Não era do género de confessar e já tinha estado preso, e por isso uma cela não lhe causava qualquer temor.
- Liberte-o - disse ela. - O homicida foi ele, como sabe - comentou Piccoli. - Talvez devêssemos mantê-lo afastado das ruas enquanto pudéssemos.
- Não me serve para nada na prisão. Deixe-o ir, e ponha-o sob vigilância. Tem pessoal disponível para isso?
- Hei-de arranjar. - Ele é um convencido, muito seguro de si mesmo. Mais cedo ou mais tarde acabará por tropeçar. Alguém deve tê-lo contactado, ou contratado, para abater Mattei. Se formos pacientes, talvez nos conduza até a essa pessoa.
Sabia que havia algo errado assim que abriu a porta do apartamento. Parou no limiar, à escuta. Não conseguia ouvir nada. Acendeu a luz do corredor. Não se sentia nervosa, não havia qualquer sensação de perigo, apenas a impressão de que algo não estava bem.
Avançou pelo corredor e acendeu as luzes da sala de estar. Nada parecia fora do seu lugar. A sala estava exactamente como a deixara de manhã. Farejou o ar. Sentia um cheiro a algo desagradável, mas isso não era invulgar durante o Verão romano, quando os esgotos começavam a transudar. Mas este cheiro era diferente, e mais localizado.
Pousou a pasta no chão e abriu a porta da cozinha. O fedor quase a fez desmaiar, tão avassalador era. No chão, perto do fogão, estava uma massa disforme que lhe parecia carne crua. Havia sangue enodoando o chão e manchas vermelhas na porta do forno. Percebeu o que era e começou aos vómitos. Cobriu a boca com a mão e correu para a casa de banho, deixando-se cair de joelhos a vomitar para a sanita.
Os espasmos demoraram algum tempo a acalmar. Permaneceu agachada no pavimento, respirando pesadamente, com a transpiração escorrendo-lhe do nariz. Quando conseguiu forçar-se a pôr-se de pé, lavou a cara. O telefone tocou quando estava a secar o rosto.
Hesitou antes de atender, com receio de quem estaria a telefonar-lhe. Mas quando levantou o auscultador soube que era Chapman.
- Elena? Elena, está lá?
Ela aclarou a garganta. - Mataram-me a gata.
- O quê?
- A Livia. Acabo de a encontrar. Mataram-na à pancada.
- Chego aí dentro de dez minutos.
Quando lhe abriu a porta, a náusea já passara, mas as pernas ainda lhe tremiam.
- Onde está ela? - perguntou Chapman.
- Na cozinha.
Ouviu-o a abrir a porta da cozinha e a sua interjeição de horror.
- Chamaste a polícia?
Elena disse que não com um aceno. - Talvez seja melhor. Devem ter arrombado a porta. Meu Deus, não consigo enfrentar isto.
Os polícias tomando-lhe conta do apartamento durante várias horas; as perguntas, a invasão, a equipa forense à procura de indícios. E tudo isto ia ser uma perda de tempo, porque quem quer que lhe fizera aquilo não ia deixar pistas atrás de si. Mas sabia que tinha de ser assim. Era uma magistrada, o caso tinha de ficar registado.
- Eu trato do assunto - disse Chapman.
- Andy, não precisas de fazer isso.
- Tu ajudaste-me ontem à noite. Agora é a minha vez de te ajudar.
Já passava da meia-noite quando a equipa da polícia finalmente partiu. Levaram os restos mortais da gata, mas as marcas do massacre permaneciam na cozinha. Chapman encontrou um balde e produtos de limpeza e, ajoelhando-se, lavou o sangue dos mosaicos e da porta do forno, e o forte aroma do desinfectante fumigou o compartimento.
Quando terminou, encontrou Elena deitada na cama, de olhos fechados. Percebeu que tinha estado a chorar.
- Posso trazer-te alguma coisa, uma bebida, qualquer coisa para comeres? - perguntou-lhe.
- Não me sinto capaz de comer.
Hesitou, olhando para ela. - O meu telefonema esta manhã... - começou.
Elena respondeu acenando com a cabeça. - Sim, trouxe-o.
Virou as pernas para a beira da cama e pôs-se de pé. Dirigiu-se à sala de estar e pesquisou na pasta, extraindo um saco de plástico transparente contendo um livro espesso e muito folheado. Tomou-lhe o peso nas mãos, reconhecendo que estava prestes a fazer algo que nunca teria ousado fazer no passado. Estava um pouco assustada também. Esta investigação estava a tornar-se muito diferente de todas as que realizara. Primeiro a fiscalização às suas finanças pela Guardia di Finanza., agora a gata. Começava a tornar-se em algo de pessoal. O desaparecimento da gravação também continuava a preocupá-la. Não sabia em quem poderia confiar. Mas tinha fé em Chapman. O seu amigo tinha sido assassinado e ele próprio escapara por pouco. Conhecia a posição dele e chegara a altura de confiar nele um pouco mais. Entregou-lhe o saco de plástico.
- Não devia fazer isto, é contra todas as regras.
- Não existem regras - afirmou Chapman. - Achas que tudo isto teria acontecido - fez um sinal na direcção da cozinha - se existissem regras? Temos de agir à maneira deles.
Elena passou-lhe um par de finas luvas de algodão branco, do tipo usado pelos especialistas das cenas-de-crime. Depois atravessou a sala e abriu a janela, tentando expulsar o cheiro do desinfectante. Começara a chover, pesadas gotas que se desfaziam ao bater no pavimento, como glóbulos de cuspo. Viu um súbito clarão de relâmpago no horizonte, o rugido distante do trovão. Apoiou-se no peitoril da janela, deixando o ar tormentoso limpar-lhe os pulmões.
Chapman calçou as luvas, retirou o livro do saco protector de plástico e examinou-o. Era o livro de contactos de Enzo, que ele levava sempre consigo. Tinha-o no bolso do casaco quando foi abatido. Folheou-o até à página dos "P". Ali estava, escrevinhado sem preocupações de estética na lista de nomes e números: Pinnochio. Não tinha morada, apenas um número de telefone. Copiou-o para um pedaço de papel arrancado da sua agenda e guardou o livro de contactos no saco de plástico.
Elena tinha-se voltado e observava-o. - Vais procurar a pessoa que lhe lançou a armadilha, não vais?
- É melhor que ignores o que tenciono fazer - replicou Chapman. - Poderias investigar este número, conhecer o respectivo endereço? Compreendo se me disseres que não.
- Devias deixar a polícia tratar disso.
- Do mesmo modo que trataram do Beppe?
- O Enzo Mattei foi morto por estar a meter-se num assunto contra a vontade de alguém.
- Reconheço os riscos. É por isso que quero ser eu a tratar do caso, sem passar por ti.
- Não preciso que me protejas - disse Elena.
- Pensas que eles se vão ficar pela tua gata se continuares a fazer perguntas?
- Existem procedimentos para isto. Estou mais habilitada para descobrir o que se passa.
- Estes tipos não respeitam procedimentos. És magistrada, Elena. Há coisas que não podes fazer. As minhas mãos não estão atadas do mesmo modo.
Elena fechou as persianas e sentou-se ao lado dele no sofá. -Já há três pessoas mortas, Andy.
- Sei bem o que estou a fazer.
Puxou-a para si. Ela encostou a cabeça ao peito dele e envolveu-o nos braços.
- Podes ficar cá esta noite? - perguntou-lhe. - Não me sinto com ânimo para ficar sozinha.
- Posso.
Chapman acariciou-lhe o cabelo, sentindo o calor do seu corpo. Ficaram abraçados, a escutar a chuva a chicotear as persianas e a borrasca a açoitar o céu lá fora.
Piemonte, Junho de 1944
Michaela subiu o caminho de pedra que partia da aldeia, passando o ribeiro a vau no ponto onde formava uma cascata sobre um penhasco enviando para o ar uma névoa de gotículas, e a seguir escalou a colina por entre as árvores, ingressando no fresco coração do bosque. Uma vez fora do alcance de olhares curiosos, prendeu a saia em redor da cintura para caminhar mais à vontade. Sentia a brisa nas coxas nuas, o raspar da vegetação nos tornozelos e nas barrigas das pernas enquanto trepava a vertente pedregosa.
Ultrapassado o bosque, atingiu as elevadas pastagens de Verão. A erva era aqui bem alta, ondulando-lhe acariciante contra as pernas. Para onde quer que olhasse, via flores, uma tapeçaria de vermelhos, verdes e violetas entretecidos com a erva. Ainda era cedo, mas o calor já começava a abafar as colinas, banhando-as numa névoa luminosa.
Ele estava à sua espera onde o chão começava a ficar plano, com um cobertor enrolado debaixo do braço. Olharam um para o outro sem dizerem nada e depois começaram a alisar um quadrado da campina, pisando a vegetação e dobrando as hastes até ao chão. O jovem estendeu o cobertor na clareira assim aberta e deitaram-se aí. Estavam cercados por uma parede de erva alta que os abrigava de qualquer olhar. Michaela podia cheirar o perfume das flores - papoilas, celidónia, alecrim selvagem - que ficaram esmagadas debaixo deles.
A mão dele tocou-lhe no rosto. Agora sentia também o odor másculo da sua pele. Sem uma palavra, beijaram-se. Ao princípio suavemente, depois com ferocidade. Sentia no rosto a aspereza da barba dele. Ainda tinha a saia acima das coxas. A mão dele escorregou-lhe por entre as pernas, explorando as curvas, afundando-se no húmido vale. Ela puxou-lhe a camisa, soltando os botões e arrancando-lha dos ombros. Tocou-lhe no peito, passando os dedos pelos músculos e pelo corpo magro e rijo do exercício e das privações da guerra.
Não podiam esperar mais. Arrancaram as roupas um do outro, atrapalhando-se com botões, cintos e fechos, despindo-se. Fizeram uma pausa, absortos na nudez um do outro. As linhas esbeltas, os pêlos, as sombras. Depois beijaram-se de novo, numa paixão feroz e desesperada. Ele agarrou-lhe os seios, massajando-os como se fossem massa de padeiro e mordiscando-lhe os mamilos. Ela deitou-lhe a mão às virilhas e apertou-o, querendo também fazer-lhe doer. Mas quando abriu as pernas e ele a penetrou, soltou um grito que não era de dor mas de prazer.
Depois ficaram deitados de costas sobre o cobertor áspero, olhando para o céu e semicerrando os olhos para os defender do sol brilhante. Não tinham trocado uma palavra. Lá no alto uma formação de "fortalezas voadoras" americanas cruzou os céus como um cardume de peixes prateados. As tripulações, olhando para baixo, poderiam ter visto os feixes de erva nas colinas mas não os corpos nus, não as quentes e húmidas lascas de carne que resplandeciam e se abriam como mais duas flores do prado.
O jovem apoiou a mão na coxa dela, agora ternamente, com suavidade.
Ela virou o rosto para o olhar. - Em que pensas? - perguntou.
- Quando tudo isto acabar, quero casar contigo.
Comoveu-se, mas não acreditou nele. Estava habituada aos homens e ao seu uso descuidado das palavras. Conhecia-o apenas pelo nome de Scuro, o escuro, um nom de guerre que ocultava o seu verdadeiro nome e outras facetas mais importantes da sua identidade. Como se poderia conhecer realmente um homem cujo nome constituía um mistério?
Como ela não respondeu, voltou-se de lado para poder olhá-la e soergueu-se apoiado num cotovelo.
- Estou a falar a sério - declarou.
- Quando tudo isto acabar, vais esquecer-te de mim - replicou Michaela.
- Não. Quero que sejas minha mulher.
- Não digas coisas dessas. Podemos não sair vivos disto.
- Nesse caso, é ainda mais importante que te diga uma coisa agora. Amo-te, Michaela. Também me amas?
- Nem sequer sei quem tu és, de onde vens, o que fizeste antes da guerra. Para mim és uma sombra sem substância. Como posso amar uma sombra?
Olhou para ela, passou um dedo em volta do seu rosto, tocou-lhe a testa, as faces, os lábios.
- Chamo-me Roberto Ferrero. Sou da Lombardia, de uma aldeia próximo de Bellagio, no lago Como. Antes da guerra não passava de um rapaz que ajudava o pai a trabalhar a terra.
Pegou nas calças abandonadas no chão e tirou de um bolso uma pequena corrente da qual pendia um disco metálico com números e letras gravados em relevo. Era uma chapa de identificação do Exército Real. Michaela já tinha visto outra igual, mas não nas mãos de um guerrilheiro. Eles não deviam trazer coisas que pudessem identificá-los a eles ou às famílias. Roberto entregou-lhe a corrente. A chapa podia ser separada em duas metades, uma para ficar com o corpo e a outra para ser enviada à família. Michaela leu os dizeres, que indicavam o número de série e o nome, além de outros detalhes incluindo a aldeia de origem e o nome dos pais. Sabia que ele lha mostrava como prova de sinceridade, para que percebesse que estava a dizer a verdade. Não era muito mas no meio de tanta incerteza, de tanto caos, era como um juramento de eterna fidelidade.
- Devia ter deitado isso fora - disse Roberto. - Mas se for morto, quero que os meus pais saibam. Não quero que passem o resto da vida sem saberem o que aconteceu ao filho.
Michaela devolveu-lhe o disco. O sol estava mais alto no céu. Sentir os raios a espicaçarem-lhe a pele, a arderem-lhe nas zonas mais claras dos seios e do estômago.
- Devíamos ir para a sombra - disse ela.
Pegaram nas roupas e no cobertor e atravessaram nus a campina até à orla do bosque, onde se sentaram debaixo das árvores e comeram o pão e o queijo de cabra que ela trouxera da herdade no vale. Depois fizeram amor de novo, lentamente, saboreando-se, sem saberem quando seria a próxima vez.
- Tens de me dar uma resposta - disse Roberto quando já estavam vestidos e prestes a separarem-se.
Michaela pôs os braços à volta da cintura dele e descansou a cabeça sobre o seu coração.
- Sim - respondeu.
Roberto estava deitado de costas na colina exposta, tentando descobrir como seria possível sentir-se ao mesmo tempo aborrecido de morte e assustado de morte. Era a irresoluta dicotomia da vida de um guerrilheiro: os dias e meses de tédio nas montanhas, vivendo cercado de piolhos, frio e fome, intercalados uma vez por outra com momentos de puro terror.
Tinha acontecido o mesmo no exército. Recordava-se da sua primeira acção de combate com uma vívida clareza que ainda lhe fazia vibrar as entranhas, tal como também se lembrava do seu primeiro e enervante dia de escola ou da primeira vez que fizera amor com uma rapariga. Tinha enjoado no navio em que atravessaram o Adriático a caminho da Albânia. Ao princípio pensara que era por causa da agitação do mar, mas, para ele como para os milhares de soldados que seguiam no comboio de navios, na realidade a causa era o temor que sentiam - da morte, do desconhecido, de irem entrar em combate sem saberem que raio estavam a fazer.
Deviam ter percebido que ia ser um pesadelo a partir do momento em que chegaram a Durazzo e encontraram o porto pejado de navios mercantes a descarregar mármore para um qualquer programa fascista de construção civil na Albânia. Era um mau presságio que apenas sugeria a farsa que iria seguir-se: a escassez de transportes, devido à qual teriam de seguir para a frente de batalha deixando a maior parte do equipamento no cais a aguardar transporte, a inexistência de botas e roupas apropriadas para combater o frio nas montanhas; mas, mais importante ainda, a total ignorância das capacidades dos gregos, facto que os tinha levado a cometer o erro fatal de não avaliarem devidamente o inimigo.
O objectivo era chegarem a Atenas em cerca de duas semanas. Os gregos, cujos chefes tinham sido subornados para se renderem, deveriam ter largado as armas, fugindo na direcção oposta. Mas, aparentemente, ninguém se lembrara de avisar a infantaria grega na Macedónia. Depois de terem avançado apenas uns dez quilómetros para além da fronteira grega, entrincheirando-se ao longo do rio Ralamos, os italianos enfrentaram uma tal resistência do exército grego que foram forçados a bater em retirada. Isto repetiu-se várias vezes, enquanto os gregos os perseguiam até ao interior do Sul da Albânia com um tal vigor que, segundo se afirmava, os franceses tinham montado letreiros nos Alpes dizendo: "Gregos! Não passem daqui. Esta é a fronteira da França".
Mesmo agora, suando no Verão italiano, recordava-se do frio agreste nas montanhas da Albânia, acocorado numa trincheira molhada calçando botas de cartão que se desfaziam à chuva, tiritando de frio no capote Lanital que o protegia do mau tempo tanto quanto uma folha de papel higiénico. Tinha visto homens perderem dedos dos pés e das mãos devido à ulceração causada pelo frio, morrendo às centenas de algidez e fome. E era este o Exército Real, o orgulho de Itália. Jovens valorosos e desorientados que lutavam com coragem mas que tinham de enfrentar não só a tenacidade do inimigo mas também a incompetência dos seus próprios chefes.
Foram essas recordações dos oficiais realistas que o levaram a fugir para o Norte para evitar a deportação para um campo de trabalho na Alemanha após o Armistício, juntando-se assim aos guerrilheiros comunistas, os Garibaldini vermelhos, e não aos guerrilheiros realistas Badogliani. Preferia ser comandado por trabalhadores e camponeses, pela gente da sua classe, do que por antigos capitães do exército cujo passado militar o fazia desconfiar das suas capacidades.
Pôs o braço sobre os olhos para os proteger do sol. Estava quente na colina. Em qualquer outra ocasião, poderia ser agradável estar aqui deitado a escutar o zumbido das moscas e os estalidos das cigarras na erva, a respirar os aromas das flores e dos pinheiros. Poderia adormecer e sonhar com Michaela. Mas hoje não. Estava demasiado tenso para dormir.
Voltou a cabeça. Ettore estava ao seu lado, segurando nos braços a metralhadora Breda. No meio de ambos, embrulhadas num pano para que não se sujassem na terra, estavam as tiras de balas e os canos sobresselentes. Ele próprio tinha uma carabina Lee Enfield inglesa, atirada de pára-quedas pela RAF dois dias antes. Era destinada aos realistas, mas os Garibaldini tinham captado a mensagem em código enviada pela BBC e copiaram a disposição dos fachos de demarcação dos Badogliani, levando os pilotos a largar os abastecimentos no local errado. A remessa continha carabinas, munições, cigarros ingleses com ponta de cortiça e pacotes de rações de combate que os guerrilheiros provaram e prontamente deitaram fora, tão repugnantes eram.
Mas, mesmo assim, estavam pobremente equipados em comparação com os alemães e os fascistas. Era essa constatação que lhe provocava o nó apertado no estômago. Isso, e a espera.
Um pouco mais abaixo na colina, o guerrilheiro que dava a si mesmo o nome de Jimmy rolou sobre um lado e urinou. O mijo sibilou no chão de calcário e correu em fio encosta abaixo. Roberto pensou em Michaela, no seu corpo macio e na pele morna, e depois escorraçou o pensamento, não porque tivesse mais em que pensar, mas porque poderia trazer-lhe azar pensar agora nela.
Sentiu Ettore mudar de posição ao seu lado e escutou as palavras murmuradas que aguardara com temor durante toda a tarde: - Vêm aí!
Levantou a cabeça e olhou para o esporão rochoso do qual o vigia da frente observava o vale ao fundo da encosta. Um pequeno espelho de mão reflectia o sol, repetindo o sinal por três vezes antes que o vigia descesse para se juntar aos camaradas. Roberto já ouvia os motores, o ronco gutural dos camiões a subirem a tortuosa estrada de montanha.
Ettore tinha a Breda montada no tripé e estava estendido atrás dela, com a mira apontando para um troço recto da estrada onde não existiam árvores que obstruíssem a linha de fogo. Roberto agachou-se ao seu lado, pronto para alimentar a metralhadora com as tiras de balas e para substituir os canos. Tinha a boca seca e sentia o sangue a pulsar-lhe no crânio. Os outros guerrilheiros estavam preparados, aguardando o sinal do comandante da brigada. O ruído dos motores ia aumentando de intensidade e parecia-lhe que se reflectia nas paredes do vale para incidir num ponto situado precisamente entre os seus ouvidos, vibrando tão fortemente que lhe expulsava da cabeça todos os pensamentos.
Surgiu o primeiro veículo a sair da curva. Surpreendeu-os a todos. Era um autobilinda, um carro blindado com uma metralhadora pesada montada no topo. Atrás dele vinham dois camiões de milicianos fascistas. A coluna ia subindo a íngreme ladeira, parcialmente escondida pela folhagem das árvores e pelos muros de pedra que flanqueavam a estrada. O comandante da brigada esperou que o AB estivesse totalmente à vista para dar o sinal de ataque. Ettore começou a soltar rajadas sucessivas da Breda enquanto os outros disparavam as carabinas. As balas penetraram nas paredes de lona dos camiões ou ressaltaram sobre as superfícies metálicas como se fossem ervilhas.
Os camiões imobilizaram-se bruscamente e os milicianos saltaram para o chão, procurando protecção atrás dos muros. A metralhadora montada no topo do autobilinda rodou e disparou uma longa e radical rajada que varreu a colina. Jimmy foi atingido ao correr para se esconder. As balas acertaram-lhe no peito e a camisa branca transformou-se num repuxo escarlate. Caiu no chão e ficou imóvel.
Ettore estava de pé, com a metralhadora nos braços. Agachou-se atrás de um grupo de pedregulhos e montou a arma no topo. Roberto correu apressado atrás dele e substituiu o cano, que estava quase em brasa. Um projéctil de morteiro foi disparado da estrada e explodiu a meia altura da colina. Um segundo projéctil chegou mais perto, arremessando pedras e terra sobre eles. O atirador estava a calcular o ângulo de tiro. Em breve faria chover uma barragem de explosivos por toda a colina.
Ettore viu um miliciano espreitar por cima do muro e disparou sobre ele, mas a Breda, como acontecia com frequência, encravou-se, com a bomba de lubrificação entupida com terra. Praguejou. Pegou na arma e correu agachado atrás dos pedregulhos, refugiando-se num barranco pouco profundo. Outros guerrilheiros juntaram-se-lhe. O AB estava a disparar de novo, e o crepitar da metralhadora era interrompido por explosões intermitentes dos projécteis do morteiro. O comandante da brigada entrou aos tropeços no barranco, com o braço à volta de um companheiro ferido.
- Quantos? - perguntou.
- O Jimmy ficou-se - disse Roberto.
- E o Biondo também - disse outro. - Maldito AB. Pegaram no guerrilheiro ferido e bateram em retirada ao longo do barranco, pelo trajecto de fuga cuidadosamente estudado antecipadamente. Nunca prolongavam uma escaramuça. Atacavam, provocavam os danos que podiam e retiravam. Na luta de guerrilha não havia heróis, apenas os rápidos e os mortos.
Os Camisas Negras chegaram de manhã cedo, antes que a aldeia acordasse, antes que os contadini partissem para os campos. Arrombaram as portas das casas e arrastaram os moradores até à praça. Michaela estava horrorizada. Sabia o que estava prestes a acontecer.
Foram empurrados para um recanto junto da bomba de água que servia a aldeia: mulheres, crianças e velhos. Não havia homens válidos. Todos haviam sido deportados para a Alemanha ou forçados ajuntar-se às milícias; alguns haviam escapado para as colinas, para se juntarem aos guerrilheiros. Os aldeãos ficaram ali nas suas roupas de dormir enquanto o oficial dos Camisas Negras dizia que no dia anterior tinha havido um ataque a uma coluna das milícias e que dois soldados tinham sido abatidos. Como represália, por cada um desses soldados iriam ser executadas dez pessoas da aldeia, para que aprendessem a não colaborar com os guerrilheiros.
Camisas Negras armados aproximaram-se da multidão de gente aterrorizada, agarraram em todos os velhos e levaram-nos para o centro da praça, entre eles o pai e o avô de Michaela. O oficial contou-os. Apenas dezanove. Deu uma ordem e um rapazinho de dez anos foi arrancado dos braços da mãe, que se agarrou a ele, gritando aos soldados, suplicando-lhes que a levassem em vez dele. Mas um dos soldados atingiu-a no estômago com a coronha da espingarda e ela caiu no chão a chorar. Os homens - alguns tão enfraquecidos que mal podiam suster-se de pé - e o trémulo rapaz foram alinhados contra uma parede e abatidos a tiro. Michaela virou-se e abraçou a mãe enquanto a ensurdecedora rajada reverberava pela praça.
Os Camisas Negras abandonaram os corpos onde tinham caído. Depois tiraram dos camiões algumas latas de tinta preta e garatujaram Viva o Duce! Viva Graziano! nas paredes das casas próximas enquanto o ar da alvorada se enchia com o choro das mulheres e os gritos das crianças.
Michaela deu à luz um rapaz em Fevereiro do ano seguinte. Tinha sido um Inverno rigoroso e frígido e o combustível escasseava, e por isso a criança nasceu no curral dos animais situado debaixo da casa, onde a exalação das vacas e do burro e o efeito isolador dos fardos de palha mantinham uma temperatura amena.
Michaela permaneceu deitada num colchão de palha durante as longas e dolorosas horas de parto, com a mãe ao lado segurando-lhe a mão quando gritava. Quando tudo acabou, colocou o bebé junto do peito, mantendo-o dentro das suas roupas para o conservar quente. Enquanto a criança era amamentada pensou em Roberto. Há quatro meses que não o via. Os guerrilheiros tinham passado o Inverno escondidos nas montanhas, conservando-se inactivos enquanto os alemães e os fascistas aceleravam a campanha para acabarem com eles. Ignorava onde ele estaria; nem sequer sabia se estava vivo.
Olhou para o pequeno fardo de vida que tinha no colo. Os olhos da criança estavam fechados e as bochechas moviam-se para dentro e para fora enquanto engolia satisfeito o leite materno. Era o único ser em toda a aldeia que hoje estaria quente e bem alimentado. Agarrou-se muito a ele, para o conservar em segurança até ao regresso do pai.
Roma, actualidade
O funeral de Enzo era para ser uma sóbria cerimónia de despedida, apenas na presença da família e de alguns amigos e colegas. Contudo, e inevitavelmente, dada a sua proeminência nos meios jornalísticos de Roma, transformou-se num acontecimento, com os fotógrafos e as equipas de televisão trepando uns sobre os outros para registar o acontecimento.
Chapman isolou-se dos outros presentes e deixou-se ficar junto da campa, combatendo as lágrimas quando o caixão baixou à terra. Não conseguia olhar para Claudia ou para os dois rapazes, todos agrupados num amplo abraço e soluçando em silêncio. Ao lado deles, isolada e frágil, estava a idosa mãe de Enzo, com o rosto frouxo e dolorido, ainda sem conseguir compreender que o filho partira antes dela.
A manhã estava límpida e quente, banhada por uma luz encandeante que, apesar de brilhante, não conseguia dispersar a nuvem de melancolia que pendia como uma mortalha sobre todos. Era o género de dia que, noutro local e em circunstâncias diferentes, poderia transmitir o prazer de se estar vivo, mas que agora só recordava a todos os presentes aquilo que tinha sido roubado a Enzo e que a esposa e os filhos, ainda mal refeitos da dor, nunca poderiam voltar a compartilhar com ele.
Depois do funeral dirigiram-se a um restaurante onde tinha sido preparada uma refeição para os participantes. Chapman conservou-se afastado dos outros, sem vontade de estar ali mas considerando que era esse o seu dever. Tinha assistido a outros funerais em que o falecido era uma pessoa idosa ou que sofrera de alguma dolorosa doença terminal, pelo que se poderia admitir que a morte tinha sido uma libertação, tanto para essa pessoa como para a família, e por essa razão, ainda que envolto em pesar, havia um vestígio de esperança no futuro. Mas desta vez não era assim. Aqui não havia nada que tornasse a angústia mais suportável, nada que se pudesse dizer a Claudia ou a Paolo ou a Carlo para lhes amenizar o sofrimento. Tinham-lhes roubado um marido e um pai na Primavera da vida, e as palavras de condolência produziam tanto efeito como a poeira soprada pelo vento.
Por isso, Chapman abraçou-os em silêncio, e os braços com que envolvia o sofrimento deles serviam também para lhes transmitir o seu. Claudia segurou-lhe a mão entre as suas e agradeceu-lhe por ter vindo. Depois disse-lhe para ir visitá-los um dia e ele confirmou.
Sentiu alívio ao afastar-se por fim. Regressou à cidade e passeou durante algum tempo pelos jardins da Villa Borghese, meditando sobre a morte e tentando fazer um balanço da sua vida. Desceu a colina até ao Giardino Zoológico, onde o ar estava condimentado pelo cheiro do esterco dos animais. A estrada que passava pelo Zoo era um local preferido para os encontros amorosos de namorados e amantes ilícitos. A noite havia carros estacionados a todo o seu comprimento: jovens casais sem outro sítio para onde irem, colegas de trabalho num último abraço furtivo antes de partirem para junto dos respectivos cônjuges. Estivera aqui com Gabriella antes de ela mudar para Florença com o marido. Já estava a ficar velho para esse género de coisa. Encontrava-se perto dos quarenta, deixando atrás de si uma fiada de amantes como se fosse um curriculum vitae que publicitasse a sua incapacidade para assumir compromissos. O fogo tinha desaparecido do seu relacionamento com Gabriella. Seria ainda um relacionamento? Parecia-lhe mais um convénio comercial, conveniente para ambas as partes mas que ultimamente se tornara transitório e insípido. O sexo uma vez por semana quando o trabalho a trazia a Roma. Era um simples arranjo, sem complicações excepto o desejo animal, mas seria isso tudo o que ele pretendia de uma mulher? Receava estar a apaixonar-se por Elena Fiorini.
Passou pelo Templo de Esculápio, o velho relicário de mármore erguido numa língua de terra que entrava num pequeno lago, e sentou-se num banco de madeira a ver os patos a cruzar a água. Enzo fora um dos seus maiores amigos em Itália. Um verdadeiro amigo e também colega porque não houvera entre eles qualquer rivalidade profissional dado trabalharem para mercados diferentes em países diferentes. O pesar que sentia era pela perda desse amigo, mas também pela perda de uma relação que dera estabilidade e continuidade à sua vida em Itália. Com Enzo desaparecido, era-lhe impossível deixar de reavaliar o seu futuro no país.
Era correspondente estrangeiro em Roma há oito anos. Era muito tempo para uma colocação temporária. Tinham-lhe sido oferecidos lugares noutros países, mas recusara-os sempre. Tinha em cima da secretária uma carta recebida há pouco do seu editor, oferecendo-lhe trabalho na secção estrangeira do jornal em Londres, mas hesitava em tomar uma decisão. Amava a Itália e os italianos, sentia-se seduzido pelo seu modo de vida. Não era um inocente forçado a fazer qualquer coisa contra a sua vontade. A sedução exigia o consentimento de ambas as partes, e ele sucumbira à dolce vita com os olhos bem abertos. Mas estava ciente de que os anos iam passando e não sabia para onde teriam ido. A vida era demasiado fácil, demasiado confortável. Estava prestes a tornar-se numa pessoa sem país, nem inglês nem italiano, incapaz de se readaptar à vida em Inglaterra, tornando-se para sempre num estrangeiro em Itália.
Levantou-se e encaminhou-se para a saída do parque, esquivando-se aos cavalos que se exercitavam no Galoppatoio até subir a colina para os jardins do Pincio. Parou por um instante para se encostar ao parapeito e admirar a vista da catedral de São Pedro, e a seguir desceu a Escadaria Espanhola e percorreu as derradeiras centenas de metros até à sua secretária na Stampa Estera.
Entregou-se à rotina de um dia de trabalho normal, falando para Londres, lendo os jornais, tentando esquecer-se do funeral. Mas não conseguia concentrar-se. Foi só quando o telefone tocou e escutou a voz de Elena que sentiu a primeira ligeira centelha de prazer em toda a manhã.
- Como correu? - perguntou ela.
- Não foi fácil. Vim para aqui para fugir de tudo, mas não resultou.
- E porque continuas a ter dentro da cabeça tudo o que se passou. Não faz diferença onde possas estar. Faz uma folga, vai dar um passeio.
-Já fiz isso.
Seguiu-se um silêncio momentâneo e depois Elena disse: - Não sei se esta será uma boa altura.
- Para quê?
- Investiguei aquele número de telefone que me deste. Queres falar no assunto ou fica para depois?
- Podes dizer - disse Chapman.
- Está em nome de Bruno Cavallo. Isto diz-te alguma coisa?
- Não. Qual é a morada?
Elena indicou-lhe uma rua em Centocelle, um dos subúrbios violentos na zona oriental da cidade.
- Posso mandar buscá-lo para ser interrogado - disse ela.
- Elena, isto não é uma crítica, mas até aonde conseguiste chegar a respeito de Volpi? Irá acontecer o mesmo com este tipo. Vai apresentar um álibi para a ocasião do crime. Negará ter conhecido Enzo. Não conseguirás chegar a lado nenhum.
- Ele teria estado lá?
- Penso que sim. Não posso ter a certeza antes de o ver.
- Quero ir contigo. A investigação é minha.
- Tenho de fazer isto à minha maneira.
- Terás de entregar-me qualquer coisa que encontres e que me possa ser útil - recomendou ela.
- Não sei se isso será boa ideia.
- Que queres dizer?
- Sabes bem o que quero dizer. Tu mesma mo disseste. Que aconteceu à gravação do Beppe? Se dermos um carácter oficial a isto, esse Cavallo é capaz de acabar morto.
Elena não disse nada. Ele tinha razão, mas ela não gostava de intromissões alheias à investigação, pois tendiam a decorrer à margem da lei. Isso ia contra todos os seus instintos de magistrada.
- Está bem, deixemos isto sem carácter oficial - concordou ela por fim. Sabia que ele iria em frente por mais objecções que lhe apresentasse, e desta forma ela poderia exercer um certo controlo sobre o caso.
- Mas, mesmo assim, quero ir contigo. Deves-me isso, Andy.
- Vamos procurá-lo esta noite - concordou Chapman. - Vou buscar-te a casa às oito.
- A essa hora ainda devo estar a trabalhar - comentou ela com um ar duvidoso.
- Elena, isto também é trabalho.
Claudia abriu-lhe a porta ainda com o vestido negro que levara ao funeral e que lhe acentuava a palidez do rosto. Parecia doente, pensou Chapman, mas não é verdade que a mágoa é uma forma de doença?
Abraçou-a com força, mantendo o amplexo por muito tempo. Ela sentia-se pequena, insubstancial nos braços dele, e Chapman pensou como iria ela suportar os rigores dos próximos tempos. Mas quando ela recuou por fim, viu-lhe nos olhos uma calma resignação que o convenceu de que ela era mais forte do que parecia.
- Como te sentes, Claudia? - perguntou, sabendo que era uma pergunta insensata pois ambos sabiam a resposta. Mas tinha de lhe perguntar. Não podia ignorar o que ela sentia, não podia fingir que não havia nada para discutir.
- Um pouco melhor, agora que tudo acabou - respondeu.
- E os rapazes?
- Mandei-os dar um passeio com a minha irmã. Andavam para aí a arrastar-se pelos cantos sem saberem o que fazer. Queremos regressar à normalidade, mas pode dar a impressão, sei lá, de falta de respeito. Não parece correcto continuarmos a fazer coisas rotineiras, de todos os dias. Cozinhar, comer, ver televisão. Mas que mais podemos fazer? Que mais haverá?
- Não é falta de respeito - comentou Chapman. - Faças o que fizeres, não deixarás de deplorar a morte dele.
- Posso oferecer-te alguma coisa de comer? Tenho uma garrafa de Frascati no frigorífico.
Aceitou. Não estava a apetecer-lhe vinho, mas isso dava-lhes qualquer coisa para fazer, algo para preencher os silêncios incómodos e a falta de palavras que constituía o acompanhamento inescapável do sentimento de perda.
Estavam na cozinha e Claudia deitou vinho em dois copos, segurando o dela na mão mas sem beber. Talvez não estivesse a apetecer-lhe.
- Desculpa ter-te pedido para me visitar - disse ela. - Calculo que não deve ser muito agradável fazer companhia a uma viúva.
- Não sejas tonta. Folgo muito em estar aqui.
- Não quero parecer uma sentimentalona. Sei o que as pessoas costumam sentir, em ocasiões destas, querem afastar-se o mais possível, esquecer o que se passou, e fazer companhia à viúva só serve para nos recordar tudo de novo.
- Claudia, o Enzo era meu amigo. Tu és minha amiga. Não vou esquecer o que aconteceu. Podes contar comigo para o que precisares. Sabes que sim.
Ela fez um sorriso pálido. - Obrigada, Andy. As pessoas estão a ser muito amáveis, mas ninguém sabe realmente o que há-de dizer-me. Tenho realmente de prosseguir a minha vida, mesmo que seja um dia de cada vez.
- Se houver alguma coisa que eu possa fazer, é só dizeres - declarou. - Estou a ser sincero. Não são apenas palavras. Claudia puxou uma das cadeiras da cozinha e sentou-se.
Descansou o copo de vinho sobre a mesa e acariciou o rebordo pensativamente.
- É estranho pensar que conhecemos alguém de verdade - disse ela. - O Enzo e eu estivemos casados durante catorze anos, e julgava que o conhecia bem. Os seus estados de espírito, o carácter, as fraquezas, até os seus segredos, as coisas que tentava esconder-me mas que eu descobria de qualquer modo.
- Levantou os olhos para Chapman. - É preciso ser-se muito cuidadoso, ou muito tortuoso, para esconder segredos da pessoa com quem se vive, e Enzo não era nenhuma destas coisas.
Fez uma pausa, e prosseguiu: - Mas agora já se foi, e não tenho a certeza de ter chegado a conhecê-lo. Só se passaram alguns dias e já começo a esquecer-me de detalhes. Ou então talvez não esteja a esquecer-me, talvez nunca os tivesse conhecido. Creio que não estou a explicar-me bem. O Enzo continua vivo na minha memória, e ainda não acredito que tenha partido para sempre. Nem o funeral me fez acreditar nisso. Parecia-me impossível que o Enzo estivesse naquela urna. Mas agora estou novamente em casa e esta parece-me terrivelmente vazia. A personalidade do Enzo enchia-a por completo. Sem ele aqui, sem sinais que me façam pensar nele todos os dias, sinto que vai começar a desvanecer-se na minha memória, como um fantasma que passa através de uma parede. Vai desaparecendo aos poucos e poucos, até não restar mais nada. Isso enche-me de pavor.
- Ele não vai desvanecer-se, Claudia - afirmou Chapman, tocando-lhe na mão. - Mas também não vai permanecer aqui. A dor acaba por se tornar mais branda com o passar do tempo. Se assim não fosse, passaríamos toda a nossa vida a sofrer.
- E não deveríamos continuar sempre a sofrer? Será que um marido, um pai, não merece mais do que algumas semanas ou meses de luto?
- Se fosse assim, qual era o propósito de continuarmos vivos? Nascemos, e depois morremos. Temos de fazer alguma coisa entretanto. Nunca poderemos evitar a perda de pessoas que amamos. Choramos a sua morte e com o tempo aprendemos a aceitar essa perda, e continuamos a viver o melhor que pudermos. Isto pode soar agora como um lugar-comum porque não consegues imaginar que um dia deixarás de sentir essa perda. Mas tudo passa. Se não fosse assim, a vida seria insuportável.
Claudia confirmou com um aceno triste. - Sim, tens razão. Só que neste momento não parece assim.
Chapman bebeu um ligeiro trago do seu copo, aliviando a secura da boca. Sentia-se desconfortável, mas tentava não o mostrar.
- Vais ficar bem em questões financeiras? - perguntou, tentando desviar a conversa para um plano mais prático.
- Penso que sim. Tenho o meu trabalho, e o Enzo estava no seguro. Ainda não pensei nisso. O jornal dele diz que vai ajudar. Foi morto no exercício da profissão, bem vistas as coisas. Ainda não consigo concentrar-me em assuntos desses. - Deitou-lhe um olhar. - E bom conversarmos, mas não foi por isso que te pedi para vires falar comigo.
Levantou-se e saiu da cozinha. Chapman viu-a atravessar o corredor e dirigir-se ao quarto. Quando regressou, trazia um envelope de grandes dimensões.
- Vieram entregar isto para o Enzo no dia a seguir à morte dele. Só ontem é que o abri.
Chapman virou a aba do envelope e espreitou para dentro. Continha um fino maço de papéis e puxou-os parcialmente para fora. Pareciam ser cartas, quase todas amarelecidas com o tempo. Mas a folha de cima era mais recente, uma nota manuscrita datada de há poucos dias. Tinha no topo um endereço de Roma e dizia: "Caro Senhor Mattei, li os seus artigos no jornal a respeito da morte do Padre Vivaldi. Não sei se estes documentos são relevantes, mas creio que deverão interessar-lhe". Estava assinada "Maria Casella".
- Conhece esta mulher? - perguntou Chapman.
- Não.
- Que contêm esses papéis?
- Não cheguei a vê-los. Li só a carta de cima e pensei que deveria entregar-tos. O Enzo haveria de querer isso.
Folheou cuidadosamente os papéis. Estavam rasgados e desbotados, o que dificultava a leitura. No topo de uma das folhas viu algumas palavras que não conseguiu decifrar pois pareciam estar num idioma estrangeiro que não era capaz de identificar. Encolheu os ombros e guardou os documentos no envelope.
- Examino-os depois. Foram entregues aqui?
Claudia confirmou. - Pelo correio normal.
- Sabes se o Enzo estaria à espera disto?
- Se estava, não me disse nada.
- Verei o que posso fazer com isto.
Claudia viu-o deitar um olhar ao relógio da parede. - Tens de ir embora?
- Tenho um encontro. Mas não gosto de te deixar sozinha.
- A minha irmã vem ficar comigo por alguns dias. E os meus filhos também me fazem companhia. Não te preocupes comigo.
- Mas não posso deixar de me preocupar, Claudia.
Ela pegou-lhe na mão, segurando-a com força.
- Faz-me um grande favor, Andy - disse. - Descobre quem matou o Enzo. Leva-os perante a justiça.
Desde a manhã em que Enzo morrera, Chapman quase não fora a casa - só para ir buscar o correio ou alguma roupa lavada -, e sempre durante o dia. Os dois homens que o tinham aguardado haviam-no enervado bastante, forçando-o a ir para um hotel logo a seguir, como medida de precaução. Estava convencido de que os homens não iam aparecer de novo depois de escorraçados pela polícia, mas queria jogar pelo seguro.
No instante em que meteu a chave na fechadura e abriu a porta de casa sentiu-se invadido por um terror profundo só comparável ao que sentira no recontro na EUR Nessa altura, contudo, reagira automaticamente à ameaça que enfrentava. A reacção tinha sido tão inesperada, tão instintiva, que nem pensara no que estava a fazer. Só sabia que tinha de fugir. Mas agora, no patamar à porta de casa, estava perfeitamente ciente dos riscos que corria. O cérebro dizia-lhe que muito provavelmente não haveria ninguém escondido no interior, mas os sentidos e o estômago não se preocupavam com a lógica nem com a lei das probabilidades, bombardeando-o com impulsos, vertendo-lhe fluidos químicos no sistema que lhe faziam fervilhar as entranhas e tremer os músculos, preparando-o para responder ao ataque.
Rodou a chave e empurrou a porta, recuando rápido, pronto a correr escada abaixo se alguém lhe saltasse ao caminho. A casa parecia vazia. Ficou à escuta durante um minuto e por fim entrou e inspeccionou todas as divisões com cuidado. Não encontrou ninguém. Trancou a porta da frente e a seguir tomou um duche e vestiu-se de lavado.
Passavam já das sete e meia quando se despachou. O envelope que Claudia lhe dera estava em cima da cama. Não tinha tempo para estudar detalhadamente os papéis agora mas tirou-os do envelope e examinou-os de novo, tentando decifrar o texto indistinto. Não era tarefa fácil. As cartas não só eram antigas - conseguia perceber a data, 2 de Abril de 1945, no princípio de uma delas - como estavam muito manchadas. Pareciam ter sido salpicadas com água ou gordura, ou então guardadas nalgum local húmido. Havia um bolor acinzentado no papel e várias porções do texto estavam obscurecidas ou totalmente obliteradas.
No meio das cartas encontrou uma velha fotografia a preto e branco. Mostrava Mussolini de pé num grupo diante de um elegante edifício de alvenaria. Examinou de passagem a fotografia e voltou a metê-la no envelope com os outros documentos. Sentia, sem saber porquê, que aqueles papéis eram importantes. Ali em casa não era um local seguro para os guardar, nem o carro. Mas onde poderia escondê-los?
Meteu alguma roupa interior e algumas camisas num saco desportivo e saiu de casa. Bateu à porta da senhora Campa-nella no andar inferior.
- Quem é? - perguntou ela do interior.
- Sou o seu vizinho Chapman, do andar de cima. Aguardou que ela destrancasse e abrisse a porta.
- Desculpe-me incomodá-la - disse Chapman. - Gostaria de lhe pedir um favor. Tenho de ir para fora por uns dias. Podia guardar-me este envelope? Não quero deixá-lo em casa sem ninguém lá.
A senhora Campanella olhou para o envelope e encolheu os ombros. - Está bem. O que tem aí dentro?
- São só alguns papéis do meu trabalho. Nada de importante.
Entregou-lhe o envelope. - Obrigado, signora. Fico-lhe muito grato. Buona será.
A senhora Campanella fechou a porta e trancou-a. Chapman ficou ali até ouvir os passos dela a afastarem-se, e depois desceu a escada e saiu para a azáfama do anoitecer.
Estacionaram o carro do lado oposto da rua, em frente do lúgubre prédio de betão em que Bruno Cavallo residia. Estava a escurecer, mas nem as profundezas tenebrosas da noite conseguiam esconder as repelentes fiadas de casebres e paredes cheias de graffiti que formavam o decadente coração de Centocelle. Elena examinou o local através do pára-brisas, sabendo que nunca visitaria sozinha um sítio daqueles, e ao mesmo tempo pensando no que estaria a fazer ali com Chapman.
- Que tencionas fazer? - perguntou-lhe quando ele desligou o motor e se recostou no assento.
Chapman encolheu os ombros. - Vou conversar com ele, calculo.
- A respeito de Mattei?
- A respeito de tudo. O Enzo já se servira dele noutras ocasiões. Era uma boa fonte de informações.
- Mas preparou-lhe uma armadilha.
- Bem sei. Mas porquê? E porquê agora?
- Pensas que ele vai dizer-te alguma coisa?
- Tenho mais probabilidades do que se fosse um polícia a interrogá-lo. Ou um magistrado. Primeiro quero vê-lo frente a frente. Avaliá-lo. - Voltou o rosto para ela. - Acho que será melhor ir sozinho.
- Nem penses.
- Sei tomar conta de mim.
- E quem vai tomar conta de mim? Julgas que vou ficar aqui sentada no carro enquanto todos estes gorilas da vizinhança me deitam olhares porcos através das janelas, ou pior?
- Tu quiseste vir, Elena.
- Quis vir contigo. E é isso o que tenciono fazer. Não precisas de lhe dizeres quem sou.
- Gostas muito de ter a última palavra, não é? Ela sorriu-lhe. - Claro, sou mulher.
- Que mais sabes a respeito deste Cavallo?
- Não entendo.
- Não queiras convencer-me de que investigaste o número de telefone dum suspeito de envolvimento num homicídio e que só descobriste a morada. Vá lá, Elena. A Itália é praticamente um Estado policial, com fichas de toda a gente e a respeito de tudo: impostos, registos de emprego, cadastros criminais, tudo metido no computador. Aposto que não deixaste nada por verificar.
- Não tenho acesso a todas as informações. Não sem um mandato judicial.
- Mas sabes se ele tem condenações anteriores. Elena não respondeu.
- Preciso de saber quem vou enfrentar.
- Duas - esclareceu ela. - Uma por roubo, outra por causar ferimentos intencionalmente. Esteve envolvido numa rixa de rua e espetou uma faca nas costas de alguém. É uma rica peça, Andy. Continuo a pensar que devias deixá-lo para a polícia.
- Já falámos a respeito disso. Estás pronta? - Agarrou o manípulo para abrir a porta, e parou. - Espera um momento.
Um homem de cabeça rapada vinha a sair do prédio. Parou no passeio, olhando para ambos os lados da rua, à espera de alguém. Chapman viu-lhe o rosto de perfil. Na fraca iluminação ambiente, e à distância a que se encontrava, não estava absolutamente seguro de se tratar do homem que tinha visto sair do BMW na EUR. Mas havia algumas parecenças. Mais importante ainda, o homem tinha um longo nariz afilado que sobressaía do rosto como um charuto encurtado. Se alguém mereceria o cognome de Pinnochio, era sem dúvida este indivíduo.
- É ele - disse, observando Pinnochio com atenção enquanto este se dirigia apressado para um amolgado Fiat Uno que se imobilizara ao lado dos carros estacionados ao longo do passeio. Entrou para o banco traseiro e o Fiat seguiu pela rua fora. Chapman pôs o motor a trabalhar e foi atrás dele.
- Tens a certeza? - perguntou Elena.
Chapman confirmou. - Reparaste nalgum pormenor esquisito nele?
- Não, nada de especial.
- Estava de sobretudo. Eras capaz de vestir um sobretudo com este calor?
- Era só um impermeável ligeiro. Talvez receie chuva.
- Nesse caso, por que não o levaria no braço? Não, penso que tinha qualquer coisa escondida por baixo.
Seguiram para sul saindo da cidade, acompanhando o trajecto da Via Ostiense que nos tempos romanos conduzia ao porto de Ostia na foz do Tibre. A antiga Ostia já não era habitada. As ruas em ruínas eram agora o domínio de arqueólogos e turistas, mas a estrada ainda passava por aí; no Verão, esta estrada era um longo engarrafamento de romanos suados a caminho da praia do Lido di Ostia para o seu fim de semana estival, uma jornada repleta de perigos porque se uma colisão múltipla não os vitimasse no trajecto, então a poluição do mar quase certamente o faria.
Chapman tinha o cuidado de se conservar bem para trás, mantendo sempre um carro ou dois entre eles e o Fiat. Seguiram sem interrupções durante meia hora, com o condutor do Fiat demonstrando um respeito total pelos limites de velocidade, o que era algo de invulgar em qualquer automobilista romano, que habitualmente considerava os ditames do Código da Estrada mais como sugestões do que imposições. Aproximavam-se de um desvio e o Fiat reduziu de velocidade e deu sinal de mudança de direcção. Chapman seguiu-o pela estrada que servia a moderna cidade de Ostia. Atravessaram-na sem parar e prosseguiram pela estrada que conduzia às escavações da Ostia Antica.
Chapman conhecia bem esta região. Gostava de vir para aqui nos dias calmos da Primavera, para deambular por entre as antigas construções e sentar-se debaixo das amplas copas dos pinheiros, observando os lagartos expondo-se ao calor do sol sobre pedras talhadas dois mil anos antes por algum pedreiro romano. Era um local amplo, uma cidade inteira escavada da terra. Mesmo durante o Verão, havia aqui bastante espaço para escapar às excursões de autocarros e aos guias, mas na época baixa possuía a tranquilidade de um jardim solitário.
O Fiat aproximou-se lentamente da entrada principal do recinto das escavações. Os portões metálicos, de accionamento eléctrico, estavam abertos. O Fiat entrou e estacionou atrás de uma fiada de carros arrumados ao longo da orla da estrada que conduzia ao museu. Chapman parou no parque de estacionamento no exterior dos portões e desligou os faróis. Passaram outros carros em direcção à cidade arruinada. Obscuras figuras masculinas saíram dos veículos e desapareceram na escuridão.
- Parece uma espécie de reunião - comentou Chapman, abrindo a porta do seu lado. - É melhor ficares aqui.
- Não, não, eu disse-te...
- Volto já - interrompeu-a ele. - És mulher, darias muito nas vistas.
Aproximou-se da entrada, conservando-se ao abrigo das árvores que orlavam o lado norte do parque de estacionamento. Imobilizou-se e ficou a observar os grupos de homens que iam entrando silenciosamente nas escavações. Todos eles usavam longos casacos oujaquetas de cabedal. Alguns transportavam sacos. Chapman deu meia-volta e regressou ao carro.
- Que está a passar-se?
- Não sei. Aguardamos uns minutos e depois vamos ver.
Abriu o compartimento do tablier e tirou uma máquina fotográfica de 35 mm com teleobjectiva. Confirmou que tinha rolo e pousou-a no colo, pondo-se a observar a estrada. Não chegaram mais carros. Esperou até não haver movimento do outro lado dos portões e apeou-se de novo. Colocou a máquina ao ombro e encaminhou-se para a entrada, com Elena ao lado. Não falaram. Aqui o som podia ser escutado à distância.
Ultrapassaram os portões. Havia dúzias de carros arrumados ao longo das orlas relvadas do caminho. Os ocupantes tinham escolhido bem o local, muito afastado da estrada principal e de olhares curiosos provenientes das casas nos subúrbios de Ostia.
Passaram por detrás das bilheteiras e encaminharam-se para a antiga estrada de pedra que levava à cidade desenterrada. As lajes de pedra eram duras e irregulares sob os pés, exibindo os profundos sulcos escavados na superfície pelas rodas dos carros - bigas, trigas e quadrigas - e dos carroções puxados por cavalos. Dos dois lados do caminho eriçavam-se do solo fragmentos de paredes que pareciam dentes ratados. Pinheiros e cedros lançavam profundas sombras no terreno que estava a ser gradualmente colonizado por ervas, relva alta e arbustos rebeldes.
Mais para a frente, no coração da cidade antiga, muitas construções conservavam-se de pé, algumas com dois pisos, uma ou outra ainda com o telhado intacto. Havia banhos públicos e templos e dezenas de horroae, os armazéns usados para a guarda dos cereais e outros géneros alimentares que inundavam Ostia vindos da florescente capital do império situada uns vinte quilómetros Tibre acima. Era nestes armazéns que se guardava os Annona, as oferendas de alimentos destinadas aos ociosos cidadãos de Roma, o pão que, a par dos circos, evitava o desassossego da populaça descontente.
O local estava totalmente às escuras pois não havia luar para lhes alumiar o caminho, mas uma ténue claridade subia até ao céu à distância, escudada pelos edifícios. Chapman tomou a mão de Elena.
- Conheço um caminho melhor. É preferível afastarmo-nos do trajecto principal.
Levou-a por uma das artérias secundárias e depois fê-la passar por uma abertura num muro e através do interior de uma casa em ruínas. Circundaram uma zona defendida por uma vedação à volta de um precioso pavimento de mosaicos e passaram por baixo de uma arcada, ingressando numa cripta envolta em escuridão. Continuava a segurar a mão dela, tac-teando o caminho através do escuro.
- Para onde vamos? - perguntou ela num sussurro.
- Anda.
Parou para se orientar.
-Já estiveste aqui antes? - inquiriu Elena.
- Muitas vezes. Amo esta cidade. Gosto da sensação de estarmos a atravessar as ruas que os antigos romanos pisavam, os edifícios em que viviam. Sabes, ali, daquele lado - apontou -, existia um bordel especializado em fornecer sexo com anões masculinos.
- A cidade dos meus sonhos... - comentou Elena com secura.
Ingressaram num caminho que se assemelhava a um túnel ou a uma arcada, com o tecto arqueado sobre as suas cabeças. Ao aproximarem-se do extremo, notaram uma ténue luz no exterior e também um ruído, familiar mas ao mesmo tempo difícil de identificar. Elena apurou o ouvido e constatou que se tratava do barulho de uma multidão agitada a conversar e a mover-se de um lado para o outro.
Saíram para o ar livre e Chapman parou abruptamente. Puxou Elena para as sombras e fez-lhe sinal para não fazer ruído. Apenas a alguns metros de distância, de costas para eles, estava um homem com botas altas de cabedal, calças de montar e uma camisa negra de mangas compridas, sem quaisquer sinais excepto um distintivo branco na parte superior da manga. O emblema captou um reflexo e Chapman pôde distinguir o machado e o feixe de varas de ulmeiro bordados nele: o fasces que os antigos romanos usavam para representar os poderes militar e judicial do seu império e de que Mussolini se apropriara mais tarde para símbolo do seu movimento político e do qual originava o nome do seu partido. Completado pelo fez cerimonial negro com uma borla pendente na cabeça rapada do homem, era este o uniforme de um Camisa Negra, um soldado fascista.
Chapman bateu em retirada para dentro do túnel, sabendo agora sem sombra de dúvida aonde tinham vindo parar. Conduziu Elena de volta pelo caminho por onde tinham vindo e virou para um outro corredor que terminava num recinto murado. Um lance de degraus de pedra conduzia ao que restava do telhado. Subiu os degraus meio-agachado e fez sinal a Elena para se conservar abaixada. Apoiados nas mãos e nos joelhos, arrastaram-se pelo telhado e espreitaram por sobre o baixo parapeito que protegia a orla.
Chapman ficou de boca aberta perante a cena que se desenrolava em baixo. No Fórum da antiga Ostia, encontrava-se uma vasta multidão de homens novos alinhados numa sólida formação militar, todos vestidos com camisas negras que exibiam o fasces na manga. Deviam ser uns quatrocentos ou quinhentos. A cabeça de cada fileira encontrava-se um Camisa Negra segurando um estandarte do género do vexittum romano: um rectângulo de pano negro suspenso de um travessão horizontal. Bordada em cada estandarte estava uma águia de asas abertas e o nome e número da legião que representava. No remate do bordão metálico exibia-se outra águia de asas abertas no centro de um festão e imediatamente por baixo uma placa com as iniciais MVSN.
-Jesus Cristo! - murmurou Elena.
Por um momento, olhou estupefacta para a multidão, e a seguir deixou-se cair atrás do parapeito e encostou os ombros. Chapman acocorou-se ao lado e retirou a cobertura da lente da máquina.
Elena olhou-o receosa. - Temos de pôr-nos a andar daqui para fora - disse ela. - Imediatamente. Viste os estandartes? São legiões da MVSN. Sabes o que significa MVSN, não sabes?
- Milizia Volontaria per la Sicuressa Nazionale. A milícia dos Camisas Negras de Mussolini.
- Ali em baixo não há neofascistas. Aqueles são mesmo a sério.
- Vou tentar tirar algumas fotos. Não sei se haverá luz que chegue.
Elena abriu a boca para protestar mas as suas palavras foram amortecidas por um compacto bramido dos Camisas Negras. Espreitaram de novo por cima do parapeito. No outro extremo do Fórum tinha sido erguida uma plataforma de madeira sobre a escadaria do Capitolium iluminada por projectores. Uma ampla bandeira estendida sobre a plataforma exibia os dizeres: Credire, Ubbidire, Combattere-Crer, Obedecer, Combater -, um dos aforismos tão papagueados por Mussolini. Por baixo da bandeira um grupo de homens com camisas negras agradecia a adulação da multidão. A frente deles encontrava-se o óbvio líder do grupo, Cesare Scarfone.
Elena observou-o com os braços levantados no ar numa postura militarista, e não se sentiu surpreendida ao vê-lo num comício fascista. Mas ao passar os olhos pelas outras figuras na plataforma, viu alguém cuja presença a fez vacilar com o choque. Respirou fundo, sentindo-se ligeiramente entontecida. Dio, não era possível.
Os aplausos amainaram e as fileiras de Camisas Negras começaram a cantar em uníssono o hino fascista, Giovinezza. Sentiu um súbito arrepio na nuca. O som, como os cânticos num estádio de futebol cheio de hooligans, encheu-a de pavor.
- Vamo-nos embora, Andy - pediu.
Chapman tinha a máquina fotográfica apoiada no topo do parapeito, com a teleobjectiva focada na plataforma amplamente iluminada. Tirou diversas fotografias e depois sentou-se ao lado de Elena enquanto a cantoria chegava ao fim, ouvindo-se depois a voz de Scarfone, ampliada pelos altifalantes instalados de ambos os lados da plataforma.
- Meus amigos, estamos aqui reunidos para testemunhar o renascimento de uma nação. Para iniciar a luta para escorraçarmos os traidores que puseram o nosso país de rastos. Para construir uma Itália nova e mais forte. Para trazer de volta as glórias da Antiga Roma para a juventude do século XXI.
Chapman ajoelhou-se de novo e tirou mais algumas fotos enquanto Scarfone, gritando acima das bem orquestradas réplicas da multidão, prosseguia o seu discurso eivado de nacionalismo, fanatismo e ódio, um discurso que poderia ter sido apresentado em Nuremberga ou das varandas do Palazzo Venezia.
Então, por um instante apenas, a multidão ficou em silêncio e o clique do obturador da máquina pareceu tão forte e conspícuo como uma bomba de Carnaval. Uma sentinela dos Camisas Negras, de guarda ao perímetro do Fórum, olhou para cima e viu o rosto de Chapman a espreitar por cima do parapeito. Soltou um aviso, mas o seu grito foi abafado por um súbito clamor da multidão. Chapman agarrou na mão de Elena e correram para os degraus, descendo-os tão depressa quanto podiam. Atravessaram o pátio ao fundo dos degraus e entraram por uma arcada numa estreita rua lateral. Chapman olhou para ambos os lados, tentando adivinhar de que lado surgiria a sentinela. Qualquer dos lados era um risco. Virou à esquerda, procurando o caminho sobre o piso irregular. Havia buracos por toda a parte, fendas traiçoeiras no pavimento de pedra que eram impossíveis de ver na escuridão reinante. Olhou para trás. A sentinela acabava de virar a esquina vindo do Fórum. Não poderia deixar de os ver.
Chapman penetrou numa estreita passagem entre dois edifícios. Elena vinha atrás dele, de braços esticados, tocando nas duas paredes para manter o equilíbrio ao correr. A frente deles, no extremo da passagem, passou uma figura a correr, outro Camisa Negra. Chapman supunha que o homem não os tinha visto, mas não ia depender dessa suposição. A parede da direita tinha fendas nos locais onde a alvenaria se desfizera. Passou por uma dessas aberturas, penetrando numa câmara a céu aberto. Havia uma vala profunda mesmo em frente deles, e bancadas de pedra à volta das paredes, com orifícios no topo.
- Cuidado com os pés - sussurrou Chapman. - É fácil torcer um tornozelo ali.
- Que lugar é este aqui?
- O forica. Os sanitários públicos - informou Chapman. - Tinham espaço para vinte pessoas. Os homens ricos da antiga Ostia costumavam juntar-se aqui na conversa. Enviavam um servo à frente para aquecer o assento.
- És um reservatório de informações fascinantes - comentou Elena -, mas não sei bem se este será o momento apropriado para as compartilhares comigo.
Saíram por outra abertura na parede, entrando num escuro corredor. Era tentador ficarem onde estavam em vez de se aventurarem em campo aberto, mas Chapman sabia que não havia esconderijos seguros na Ostia Antica. Quanto mais tempo se demorassem, mais numeroso seria o número de Camisas Negras chamados para os procurarem. Iriam buscar lanternas e pesquisariam todos os edifícios até os encontrarem.
Existia outra abertura na parede da esquerda. Chapman espreitou cuidadosamente por ela. Havia um pátio do outro lado da parede. Penetrou pela abertura e estendeu os braços para ajudar Elena a passar. Quando ela entrou, ambos ouviram passos rápidos correndo na rua atrás do pátio. Chapman abraçou-a e puxou-a para um recanto sombrio. Um homem entrou por uma arcada e examinou superficialmente o pátio. Chapman reteve a respiração. Elena estava ainda nos seus braços. Podia senti-la a tremer ligeiramente. O homem saiu pela arcada e Chapman descansou. Ouviam à distância a voz de Scarfone através dos altifalantes e os aplausos intermitentes da multidão. Sentiu-se aliviado. O comício prosseguia. Com sorte, poderiam escapar a algumas sentinelas. Quinhentos Camisas Negras excitados eram uma coisa bem diferente.
Havia uma segunda saída no pátio. Espreitaram para a rua e atravessaram-na a correr até ao abrigo oferecido por uma parede arruinada. Elena tinha perdido todo o sentido de orientação naquele labirinto de passagens e becos.
- Qual é o caminho até ao carro? - perguntou numa voz sussurrada.
- Fica comigo - respondeu Chapman.
Saiu do esconderijo e foi apanhado em silhueta contra o céu quando uma das sentinelas dobrou a esquina de um edifício. A sentinela gritou e correu para eles. Arrancaram a correr pela rua fora e meteram-se num portal que dava para um vasto armazém. Algo embateu contra a ombreira da porta, enviando lascas de pedra para o ar. No mesmo instante, Elena escutou uma detonação que só poderia ser um tiro.
-Jesus! - exclamou. - Estão a disparar sobre nós!
Estavam agora de joelhos, arrastando-se para uma das câmaras existentes ao longo do armazém. Acocoraram-se num recanto escuro e ficaram imóveis, observando a porta. Chapman sentia no rosto a respiração dela. A sua pulsação estava muito acelerada e o estômago parecia-lhe ter-se transformado em geleia.
O Camisa Negra atravessou a abertura, de pistola levantada na mão direita, e caminhou ao longo da parede do armazém. Chapman tacteou o chão à sua volta e os dedos fecharam-se em redor de uma pequena pedra. Ficou à espera. O Camisa Negra estava a aproximar-se, virando a cabeça de um lado para o outro ao tentar examinar os recantos do edifício. Chapman segurou a pedra na mão esquerda, enquanto a mão direita continuava a agarrar a correia da máquina fotográfica. O Camisa Negra estava quase diante deles. Chapman atirou a pedra para o centro do armazém, caindo ruidosamente sobre o chão de pedra. O Camisa Negra deu meia-volta na direcção do inesperado ruído e Chapman atirou-se sobre ele nesse momento, enquanto a máquina descrevia um longo e perigoso arco no ar. A caixa metálica embateu lateralmente na cabeça do Camisa Negra, que caiu no chão, inconsciente.
Chapman olhou para ele enquanto Elena se aproximava.
- Devem ter ouvido o tiro - comentou ela.
Aproximaram-se da porta e pararam no limiar. Os altifalantes no Fórum estavam agora em silêncio. Tinham-se acabado os aplausos, as aclamações aduladoras. Talvez o comício tivesse terminado, ou então teria sido suspenso para enviar os Camisas Negras à caça dos dois intrusos. Chapman orou pela primeira hipótese, mas logo compreendeu, com uma nauseante estocada de terror, que as suas preces não tinham sido correspondidas. Ao fundo da rua, saindo do Fórum, podia ver dezenas de luzes dançantes, lanternas, com indecisas figuras movendo-se por trás delas. Não paravam de surgir, separando-se em grupos e desaparecendo no labirinto de antigas avenidas.
Por um instante sentiram-se paralisados pelo medo. Por fim Chapman forçou-se a não olhar mais e, segurando a mão dela, começou a correr em direcção ao perímetro da cidade antiga. Mantinham-se rentes às construções, aos muros, a tudo o que pudesse dar-lhes alguma cobertura. As lanternas atrás deles apareciam e desapareciam por entre os edifícios. Os Camisas Negras pesquisavam metodicamente cada escaninho, cada recanto das escavações, partindo do Fórum para fora, mas não demorariam muito a enviar uma guarda avançada para selar a saída e começar a caça de fora para dentro.
As ruínas começavam a rarear. Ainda havia muros baixos e tocos de pilares e de arcadas, mas não serviam para se esconderem dos olhares dos caçadores. Chapman corria dobrado, tentando reduzir a possibilidade de se realçar contra o pálido pano de fundo do céu.
Elena tocou-lhe num braço. - Andy... - Estava quase sem fôlego.
Olhou-a de lado e viu-a a apontar para a esquerda. Baixou-se imediatamente e puxou-a também para o chão. Deixaram-se ficar deitados no pavimento, vendo um esquadrão de Camisas Negras a correr ao longo da pista que levava ao portão de acesso às ruínas.
- Merda! - exclamou Chapman.
- Vão tentar apanhar-nos no meio - sussurrou Elena. - Temos de chegar à vedação.
Chapman ergueu-se parcialmente. Podia ver diversos pontos de luz nas escavações e um novo grupo agora próximo do portão. Um motor zumbiu e os pesados portões metálicos fecharam-se com ruído.
- Conserva-te o mais baixa que puderes e segue-me - disse-lhe.
Arrastaram-se através do labirinto de construções arruinadas, dirigindo-se para a vedação. Os Camisas Negras junto da saída estavam a espalhar-se, preparando-se para prosseguirem a busca na direcção das escavações. Chapman deixou-se cair num barranco no extremo de uma clareira. Olhou na direcção da vedação. Não tinha possibilidade de saber para onde os Camisas Negras estariam a olhar, mas sabia que qualquer atraso podia ser fatal. Restava-lhes a esperança de a atenção deles estar momentaneamente concentrada no perímetro. Semier-gueu-se e correu agachado através da clareira, atirando-se para o chão do outro lado. O corpo de Elena caiu pesadamente ao seu lado. Ficaram à espera de um grito, uma indicação de que tinham sido observados, mas nada. Depois abrigaram-se atrás de uma parede baixa e começaram a aproximar-se em diagonal da vedação do perímetro.
O terreno era-lhes favorável, entrecruzado de ruínas, o chão escavado por valas e fossos cobertos de vegetação. Tinham as mãos e os pés feridos, mas mal notavam as dores. A sua única preocupação era permanecerem escondidos e alcançar a vedação. Nada mais interessava.
Os Camisas Negras estavam separados cerca de cinquenta metros uns dos outros, afastando-se do perímetro numa longa linha, com as lanternas ceifando a escuridão. Chapman arriscou-se a espreitar por cima de um muro. O espaço que separava os caçadores era demasiado para ser adequadamente coberto pelas lanternas de mão, e esse facto deu-lhe alguma esperança. Tinham de encontrar um local a meia distância entre dois dos Camisas Negras e confiar em que os focos fossem demasiado frágeis para iluminar todas as cavidades do terreno.
Voltou-se para a vedação enquanto Elena se arrastava atrás dele. Os Camisas Negras estavam a menos de trinta metros de distância, movendo-se muito mais depressa do que ele esperara. Tinham de encontrar algum local onde pudessem esconder-se, pois de outro modo seriam apanhados. Um feixe perdido de luz passou por cima deles. Chapman comprimiu-se contra o chão e a luz passou sem lhes tocar. Havia Camisas Negras de ambos os flancos. Tinham de encontrar um buraco algures, algum barranco onde pudessem esconder-se. Por fim encontrou o que procurava, uma vala mesmo à frente deles. Arrastou-se para diante e atirou-se para dentro da vala logo seguido por Elena, a quem empurrou para a protecção de uma pequena saliência no terreno. Ali permaneceram, abraçados um ao outro enquanto os focos de luz varriam o terreno à sua volta. Depois as lanternas desapareceram quando os Camisas Negras foram inspeccionar as escavações.
Ficaram imóveis por mais uns momentos. Depois arrastaram-se para fora do abrigo e abriram caminho através da espessa vegetação até alcançarem a vedação. Ajudou-a a alcançar o topo da vedação e a saltar para a estrada do outro lado. Depois seguiu-a e ambos correram para o carro. Pôs o motor a trabalhar, sabendo que os Camisas Negras os escutariam, mas já não interessava. Esperou até estarem a uma centena de metros de distância antes de ligar os faróis e depois começou a acelerar. Elena recostou-se no assento, recuperando o fôlego.
- Estás bem? - perguntou Chapman.
Ela acenou a confirmar. - Dio! Nunca estive tão aterrorizada em toda a minha vida. O coração quase me saltava do peito.
Ele descansou a mão no joelho dela. - Já estamos livres daquilo.
- Aqueles homens que estavam na plataforma com Scarfone - acrescentou Elena. - Reconheci um deles. Estava atrás, tentando fugir das luzes. Tinha um colarinho de padre.
- Havia lá um padre? - A cabeça de Chapman rodopiou. - Tens a certeza?
- Conheço-o. É o Padre Ivan Simcic, secretário do Arcebispo Tomassi. Foi o funcionário do Vaticano que esteve em casa de António Vivaldi antes da polícia.
Encontraram um bar em Ostia donde Elena telefonou para o quartel-general dos Carabinieri em Roma. Falou com o oficial de dia durante cerca de dez minutos e depois regressou ao carro.
- Eles vão tratar do assunto - declarou. - Não há mais nada que possamos fazer.
Regressaram a casa dela e Chapman entrou também. Não era nada que tivessem combinado; ambos assumiram simplesmente que ele iria ficar. Repartiram uma garrafa de cerveja, conversando um pouco sobre o que tinha acontecido de modo a aliviarem a tensão acumulada. Depois Elena entrou na casa de banho e abriu o chuveiro. Despiram ambos as roupas imundas e empapadas de suor e meteram-se no cubículo, ensaboando-se reciprocamente e mantendo-se abraçados enquanto o jacto de água removia a sujidade juntamente com a espuma do sabonete.
Entraram no quarto ainda nus e semimolhados. Chapman puxou Elena para cima da cama e beijaram-se durante muito tempo. A mão leve tocou-lhe na pele, acariciando-lhe a maciez do corpo, excitando-a. Ela puxou-o para cima dela, envolvendo-o com as pernas ao mesmo tempo que ele a penetrava. Depois o telefone tocou.
- Não atendas - pediu Chapman.
- Pode ser importante. Não saias daí.
Estendeu um braço e pegou no auscultador, escutando por um momento. Chapman soergueu-se apoiado nos braços esticados, concentrando-se no corpo nu de Elena, fechando-se ao som da sua voz ao telefone. Passados alguns minutos ela colocou o telefone no descanso.
- Eram os Carabinieri. Vedaram a Ostia Antica e pesquisaram o local. Não estava lá ninguém. Encontraram a plataforma e os projectores, mas os Camisas Negras tinham todos desaparecido. Os carros deles também. O oficial de dia disse que...
- Elena - interrompeu-a ele. - Se me permites citar-te, és um poço de informações fascinantes, mas não creio que este seja um momento oportuno para as compartilhares comigo.
Elena sorriu. - Tens razão. - Passou-lhe as mãos pelas costas e enterrou-lhe os dedos nas nádegas.
- Ora bem, onde íamos nós?
Chapman acordou e viu-se sozinho na ampla cama. Apalpou o lençol ao seu lado, que ainda estava morno do corpo de Elena. Levantou-se e vestiu as cuecas e as calças. Ao dirigir-se à cozinha para fazer café, escutou o indistinto murmúrio da voz dela vindo do escritório do outro lado do corredor.
Já tinha o espresso em cima da mesa, ao lado das chávenas e de um jarro de leite quente, quando Elena entrou. Estava descalça, com o roupão de tecido de algodão ajustado na cintura.
- Ena, era capaz de me habituar a isto - comentou, servindo-se de café.
- Não consegui descobrir nada de comer - disse Chapman.
- Se calhar é porque não existe nada.
Passou a mão pelo cabelo emaranhado. Pensara ter tempo para se arranjar e aplicar um pouco de maquilhagem antes de Chapman acordar, mas ele apanhara-a de surpresa. Não que ele estivesse muito melhor de aspecto: barba por fazer, o cabelo espetado em tufos, as calças amarrotadas e manchadas com a terra da Ostia Antica.
- Estive a falar com o oficial de dia dos Carabiniere - disse ela. - Não conseguiram apanhar um único daqueles estuporados Camisas Negras.
- Achas que se terão esforçado? - perguntou Chapman. Os Carabinieri não eram famosos pelas suas tendências esquerdistas.
Elena encolheu os ombros. - Quem sabe? Quinhentos rufias de cabeças rapadas devem chamar bastante a atenção. Os Carabinieri só começaram a pesquisar as estradas e povoações das cercanias depois de terem inspeccionado toda a Ostia Antica.
- Portanto, não encontraram ninguém?
- Detiveram um dos vigilantes do recinto. Confessou ter recebido quinhentas mil liras para deixar os portões abertos e desaparecer durante toda a noite.
- Quinhentas mil? De quem?
- De alguém que nunca conseguiremos identificar. - Deitou mais leite no seu café e bebeu um pouco. -Vou ter de ficar com a película da tua máquina fotográfica.
Chapman olhou-a pensativamente. - Não tenho voto na matéria, pois não?
- Não. - Lançou-lhe um breve sorriso. - É uma prova testemunhal. Preciso dela para organizar um processo contra Scarfone, sabes isso bem. Talvez nos ajude a identificar alguns dos presentes.
- Podemos sempre contar com Bruno Cavallo - comentou Chapman.
- Esse anda a monte. Dei o nome e a morada dele aos Carabinieri pelo telefone na noite passada. Mandaram um carro, mas ele não voltou a casa.
- E o padre? Como é o nome dele?
- Ivan Simcic. Por agora estará seguro no Vaticano. Chapman sorriu, fazendo rodopiar o sedimento do café no fundo da chávena.
- Quanto ao meu rolo de película - disse -, fica com os negativos, mas dá-me uma colecção de cópias.
- Vais escrever uma reportagem?
- Só depois de saber bem tudo o que se passa. Mas nessa altura vou precisar delas.
Elena pensou por um momento. - Concordo. Depois mando-tas. - Levantou-se da mesa. - Queres tomar um duche?
Chapman abanou a cabeça. - Lavo-me depois no hotel. Tenho de ir lá, de qualquer forma, para fazer a barba e mudar de calças.
- Não vais já voltar para casa, pois não?
- Não, vou esperar mais um dia ou dois.
Elena foi para a casa de banho. Chapman acabou de beber o café e vestiu-se. Elena estava a sair do chuveiro, com o corpo rebrilhante de humidade, quando ele entrou na casa de banho para se despedir. Olhou para ela, imóvel, absorvendo os suaves contornos do seu corpo. Ela embrulhou-se numa toalha e afastou do rosto uma madeixa de cabelo molhado.
- Na gaveta de cima da secretária, no meu escritório - disse ela com naturalidade -, há um jogo sobresselente de chaves aqui de casa. Leva-as se quiseres.
Os olhos dele fixaram-se nos dela. - Tens a certeza?
- Não - respondeu ela. - Não tenho a certeza. Mas que raio, tu já não fazes as tuas necessidades pelos cantos da casa...
Aproximou-se dela e rodeou-a com os braços, sentindo a toalha quente e húmida contra si. Elena cheirava a sabonete e champô. Beijaram-se. Os dedos dele deslizaram-lhe pelas costas, levantando a toalha e afagando-lhe o corpo. Ela afastou-lhe as mãos.
- Tenho que ir trabalhar. E tu também.
- Ainda é cedo.
- Ainda agora tomei um duche.
- Depois tomamos outro os dois.
- Andy...
Tomou-lhe a mão e conduziu-a ao quarto. Beijou-a outra vez, com as mãos a acariciá-la por baixo da toalha. Elena soltou um suspiro.
- De qualquer modo, trabalhas de mais - disse ele.
- Santo Deus, és uma influência perniciosa para mim. Premiu a boca contra a dela e soltou-lhe desajeitadamente os botões da camisa, tirando-lha por fim. Depois as mãos dela desceram-lhe até ao cinto, soltando-o ao mesmo tempo que ele a libertava da toalha. Caíram sobre a cama, de pernas enlaçadas, agarrando-se um ao outro num frenesi de paixão.
Chapman afastou-se por um instante para desligar o telefone. - Nada de interrupções desta vez - proclamou.
Maria Casella residia no fresco labirinto de ruas entre o Corso Vittorio Emanuele e o Tibre, um longo troço de terreno triangular atravessado por artérias empedradas e edifícios de alvenaria cujas paredes maciças se erguiam ameaçadoras sobre os transeuntes e sobre as inevitáveis aglomerações de carros estacionados que se agarravam a cada recanto do bairro como baratas adormecidas. Aqui fora em tempos o coração da Roma renascentista, onde mercadores e artesãos - fabricantes de arcos e flechas, serralheiros, seleiros - mercadejavam os seus produtos à sombra dos grandes palácios, o Farnese e o Spada; onde Benevenuto Cellini bebericava e se envolvia em rixas e os Borgias concebiam as suas sinistras intrigas. A atmosfera do bairro era agora mais calma: não havia cavalos a galopar pelos caminhos, não havia lutas à espadeirada nas ruas nem procissões papais exibindo a sua magnificência no trajecto entre o Vaticano e o Latrão. Mas no Campo de Fiori, com o seu movimentado mercado de fruta e hortaliça, os berros dos rudes negociantes e os seus pungentes aromas, ainda se podia captar um vislumbre do passado.
O prédio onde a senhora Casella residia situava-se no topo de um modesto quarteirão a oeste do Campo, um sólido edifício do século XVI com estabelecimentos do tamanho de caixas de sapatos, enegrecidos por séculos de sujidade e poluição. Do exterior não era nada que merecesse ser visto, mas neste valioso trecho do centro da cidade, apenas a alguns metros das elegantes galerias na Via Giulia e - mais importante - dividido em espaçosos apartamentos de renda controlada, era uma casa pela qual qualquer romano seria capaz de matar.
- Signora Casella?
- Sou, sim...
- Chamo-me Chapman e sou jornalista. Amigo de Enzo Mattei.
Maria Casella estudou-o durante alguns momentos com olhos nervosos e irrequietos.
- Venho por causa dos documentos que lhe mandou.
- Tem alguma identificação?
Mostrou-lhe o seu cartão de jornalista através da estreita abertura da porta. Ela examinou-o cuidadosamente e depois empurrou a porta para libertar a corrente, fazendo-lhe sinal para entrar.
- Desculpe-me, estou um bocado nervosa - explicou ela, fechando e trancando a porta atrás dele. Tinha as mãos a tremer.
Em contraste com o tenebroso exterior do edifício, o apartamento era claro e arejado. Chapman já tinha estado em velhos apartamentos deste género e esperava encontrar montes de mobílias escuras e pesadas, heranças transmitidas de geração em geração por famílias de inquilinos que, uma vez na posse dos apartamentos, nunca mais desistiriam deles.
Mas a luz do sol que entrava através das janelas sem persianas iluminava uma sala de estar cujo ambiente moderno e minimalista, apesar de não ligar com o estilo do edifício, parecia perfeitamente apropriado para os altos e grandiosos interiores. Mobilada com parcimónia, exibia um sofá com armação de pinho e o correspondente cadeirão de braços ao centro do pavimento de mosaicos, e coloridas gravuras abstractas nas paredes pintadas de branco.
- Posso oferecer-lhe café?
- Obrigado.
Viu-a dirigir-se à cozinha, e depois deambulou até à janela. O apartamento situava-se num andar suficientemente alto para escapar às sombras dos edifícios vizinhos. Olhando na direcção oeste, podia avistar a estátua de Garibaldi na colina de Janiculum e, por baixo, os jardins botânicos que acompanhavam a encosta até ao rio. Um recanto da prisão Regina Coeli - Rainha dos Céus, nome maravilhosamente evocativo para semelhante carbúnculo - podia ser visto por cima dos telhados das cercanias e, um pouco mais abaixo, uma parte da Villa Farnesina na qual Agostino Chigi, o banqueiro da Renascença, organizara em tempos extravagantes banquetes durante os quais os servos arremessavam ao Tibre as peças da baixela de ouro e prata que iam sendo usadas entre os vários pratos que compunham a refeição, uma ostentosa exibição de riqueza um pouco contrariada pelo facto de o anfitrião ter mandado instalar redes debaixo de água para que a baixela pudesse ser recuperada depois da saída dos convidados.
- Como prefere o café?
Chapman voltou-se. - Simples, sem açúcar. - Ela passou-lhe para as mãos uma pequena chávena de porcelana que, como o respectivo pires, ostentava a mesma decoração que se observava na mobília.
- Sabe que Enzo faleceu, não é verdade? - inquiriu Chapman.
- Sei, sim, li nos jornais.
- Conhecia-o? . - Não.
- E apesar disso enviou-lhe alguns papeis.
- Li as reportagens dele sobre a morte do Padre Vivaldi. Pareceu-me a pessoa indicada para ficar com os papéis.
Sentou-se na beira do sofá, muito direita e tensa. Tinha a chávena de café apoiada no joelho, com uma das mãos apertando a asa e a outra segurando o pires. Pelas rugas do rosto, Chapman calculou que estaria na casa dos cinquenta. De pernas ossudas, braços como gravetos quebradiços e a pele do pescoço começando a ficar frouxa, estava prestes a poder considerar-se descarnada. Contudo, exibia uma postura elegante e estudada, levando-o a imaginar que teria sido talvez bailarina ou modelo.
- A viúva dele cedeu-me os documentos - explicou Chapman. - Não são muito fáceis de interpretar. Poderia explicar-me a que se referem?
A senhora Casella abanou a cabeça. - Lamento não poder. Também não os examinei com cuidado.
- Contudo pensou que poderiam ser úteis a Enzo.
- Pareceu-me possível.
- Porquê?
Ela mostrou um ligeiro encolher de ombros. - Não sei bem. Talvez devido à atitude do António em relação a eles.
- António? Refere-se ao Padre Vivaldi?
- Foi ele quem mos entregou.
Chapman afastou-se dajanela e afundou-se no cadeirão. - O Padre Vivaldi entregou-lhos? - repetiu.
- Para que eu os guardasse em local seguro, disse ele. É por isso que sei que devem ser importantes. Nunca tinha feito isso antes.
- Era sua amiga?
Houve nela apenas uma ligeira hesitação antes de responder: - Sim, creio que se poderia afirmar isso.
- Mas não lhe disse o que constava deles?
- Disse-me que seria melhor eu não saber.
- Por que teria ele feito isso?
- Penso que estava assustado.
- Assustado? Assustado porquê?
A senhora Casella engoliu um sorvo de café. Quando descansou a chávena no pires, teve de o segurar com cuidado para não trepidar.
- Disse que andava nervosa, signora - comentou Chapman. - Por alguma razão em especial?
Ela olhou-o. Ainda era uma mulher bela. A carne começava a afrouxar um pouco, mas a estrutura óssea por baixo permanecia fundamentalmente sã. Seria certamente uma das raras mulheres capazes de envelhecer com graciosidade.
- É colega do signor Mattei? - perguntou ela.
- Sou.
- Mas o senhor não é italiano.
- Trabalhávamos em conjunto na investigação da morte do Padre Vivaldi. Enzo era um bom amigo. Eu estava presente quando o abateram. Pode confiar em mim, signora. Pode ter a certeza disso.
Como ela não respondia, acrescentou com suavidade: - De que tem receio?
- O António está morto. O seu amigo Enzo Mattei está morto - disse ela abruptamente. - O senhor não tem receio?
- Isso é diferente. Estou no meio de tudo isto, e conheço os riscos que corro. Mas a senhora está na periferia. Por que razão haveria de estar em perigo?
Ela colocou a chávena e o pires no chão e levantou-se, alisando a saia com as palmas das mãos. Viu-a dirigir-se à janela e olhar para fora. Não tentou apressá-la. Quem era jornalista há tanto tempo como ele já teria aprendido a sentir quando alguém estava prestes a falar. Só era preciso dar-lhe espaço.
Sem se voltar, ela disse: - Eu era... muito chegada ao António. - Fez uma pausa para que as palavras fizessem efeito. - Mais chegada do que qualquer outra pessoa.
Tinha o rosto escondido, mas podia ver-lhe os ombros hirtos, inclinada sobre o peitoril da janela.
- Não sei bem se compreendi, signora.
Ela voltou a cabeça, e depois o corpo. - No dia em que ele morreu, esteve aqui durante a tarde.
- Esteve aqui? Então foi antes de ir ao Vaticano.
A senhora Casella mostrou-se surpreendida. - Soube disso? Sim, ele dirigia-se à Cidade do Vaticano quando parou aqui. Estava com pressa. Tinha um táxi à espera lá em baixo. Trazia os papéis num envelope. Pediu-me para os guardar num sítio seguro.
Afastou-se da janela, com os saltos dos sapatos batendo levemente no pavimento de mosaicos.
- Só ficou aqui durante uns minutos. Guardei-os numa gaveta e não pensei mais neles. Foi só mais tarde, depois... daquilo acontecer... que voltei a pensar neles. Tirei-os da gaveta e examinei-os. Estava curiosa por saber o que seriam. Quase todos eram impossíveis de ler, mas um deles estava suficientemente legível para ver o emblema do Vaticano na folha. Foi então que decidi enviá-los ao seu amigo.
- Por que não os entregou à polícia?
- A polícia? - Os lábios moveram-se numa expressão de desprezo. - Se o António foi morto por neofascistas, a polícia seria o último organismo a quem pediria que investigasse.
- Crê então que foram os neofascistas?
- Não sei.
- Alguém teria ameaçado o Padre Vivaldi?
- Não.
- Parece muito certa disso.
- Ele ter-me-ia dito. Dizia-me tudo.
Chapman baixou os olhos para a chávena enquanto pensava como colocar a próxima pergunta.
- Signora - disse por fim -, permite-me que lhe faça uma pergunta muito pessoal? Espero que não se sinta ofendida. Quando me disse que era muito chegada ao Padre Vivaldi, que pretendia realmente dizer com isso?
Levantou os olhos para o rosto dela, procurando indícios de zanga na sua expressão. Mas ela parecia quase aliviada com a pergunta. Encolheu-se no canto do sofá e encostou-se às almofadas, relaxando pela primeira vez desde a chegada dele.
- O António e eu éramos amantes - disse fleumatica-mente. - Há cinco anos.
O silêncio que se seguiu era opressivo, sufocante. Chapman resistiu à tentação de o encher com tagarelice. Parecia-lhe não ter nada apropriado para dizer.
- Vejo que ficou chocado - comentou a senhora Casella.
- Não, não fiquei chocado. Surpreendido, talvez.
- O António era padre. Mas também era homem. Acontece.
Chapman concordou com um aceno. Sabia que não era invulgar em Itália. Na religião, como em tudo o mais, os italianos demonstravam uma tolerância secular perante as fraquezas humanas. Era a sede do catolicismo e contudo, apesar da proximidade - ou talvez por causa dela -, os italianos não eram dogmáticos a respeito da aceitação de todo e qualquer preceito da fé. Se não fosse assim, como poderiam aceitar o aborto, como podia a taxa de natalidade italiana ser a mais baixa da Europa, como se explicaria que tantas pessoas, apesar de professarem a sua submissão à Igreja, se esforçassem tão pouco para seguir os seus ditames mais rigorosos?
- O António era um pensador independente - disse ela. - Achava que o nosso relacionamento fazia dele um padre melhor. Não considerava isso um pecado. Tinha feito um voto de celibato, um compromisso de não se casar, e não um voto de castidade. É fácil confundir-se as duas coisas.
Calou-se por um momento e prosseguiu: - O meu marido faleceu com um cancro há dez anos. O António era um amigo da família. Ajudou-me muito durante os últimos meses de vida do meu marido e depois deu-me conforto na minha dor. É essa a diferença entre então e agora. Amei dois homens na minha vida. Quando o meu marido morreu, foi-me permitido manifestar publicamente a minha perda. Com o António, tenho de suportar tudo em silêncio e isolamento.
Chapman compreendia-a. Nunca era fácil ser-se amante, sempre na sombra, e mais ainda em caso de morte. Mas, tratando-se de um padre, a amante tinha de manter-se totalmente invisível.
- Quando uma pessoa está com uma doença terminal durante vários meses, temos tempo para nos prepararmos para o final - prosseguiu ela. - Tempo para lhe dizermos coisas que nunca lhe tínhamos dito antes. Vai-nos preparando espiritualmente. Mas, no caso do António, não houve tempo para nada disso. Trocámos algumas palavras apressadas, e foi tudo. As últimas palavras que dissemos um ao outro foram banalidades sem sentido. É isso que me custa a enfrentar.
- Ele não chegou a telefonar depois, ou a mandar recado?
- Não. Sempre fomos discretos. Visitava-me uma ou duas vezes por semana. Tínhamos de ser cautelosos.
- Nunca chegou a ir a casa dele?
- Nunca.
- Sabe o motivo da convocação dele ao Vaticano naquela tarde?
- Convocação? Ele não foi convocado. Foi ele próprio que pediu para ser recebido.
- Sim? Por quem?
- Pelo arcebispo Tomassi.
- Disse-lhe alguma coisa sobre a razão desse encontro?
- Não, não me disse nada.
- Teria alguma coisa a ver com os documentos?
- O António não disse nada, mas...
- Mas acha que foi?
- Acho.
- Bem, obrigado, signora. Desculpe-me tê-la incomodado.
- Tenho muito gosto em ajudar conforme posso. O António era um homem extraordinário, Quero que alguém seja castigado pela sua morte - replicou Maria Casella.
O calor na rua atingiu-o no rosto como o sopro de um forno ao abrir-se-lhe a porta. Deambulou até ao rio e parou à sombra de um plátano olhando sobre o parapeito de pedra para as indolentes águas do Tibre. Atrás dele o trânsito passava ininterrupto pela Lungotevere, produzindo emanações que lhe irritavam a garganta. António Vivaldi possuía muitas excelentes qualidades como homem e como padre. Mas Chapman não podia deixar de pensar que a mais admirável de todas fora a sua coragem para amar uma mulher.
Elena sentia-se nervosa. Registava todos os sintomas que lhe eram familiares: uma ponta de náusea no estômago, humidade nas palmas das mãos e na nuca, uma ligeira falta de ar que tornava o calor do dia ainda mais insuportável. Estava habituada a esta sensação; sentia-a sempre que se levantava para contra-interrogar uma testemunha ou quando se dirigia a alguns dos juizes mais reaccionários que não concordavam com a existência de delegadas do Ministério Público e consideravam que a sua missão na vida era colocá-las no seu lugar.
Mas desta vez havia algo de diferente no que sentia. Era mais do que um simples ataque de nervos. O massacre da gata e o comício na Ostia Antica tinham-lhe transmitido pela primeira vez na vida uma desagradável impressão de verdadeiro perigo para a sua pessoa. Sentia-se ameaçada. Sentia que cada passo da investigação em que estava empenhada a conduzia cada vez mais para o interior de uma escura floresta na qual não conseguia discernir o caminho nem os inimigos que se dissimulavam atrás das árvores. Possuía uma resistência inata, uma tenacidade natural que no passado lhe havia permitido ultrapassar quase todas as crises surgidas na profissão e na vida. Mas agora chocava-a perceber que desta vez não se sentia simplesmente nervosa com os acontecimentos, estava genuinamente apavorada.
- O doutor Guarnieri vai atendê-la daqui a uns instantes. Voltou-se para olhar para a lânguida loura sentada por detrás da longa mesa da recepção.
- Obrigada.
Voltou a examinar os quadros expostos nas paredes da sala. Eram óleos e acrílicos modernos, quase todos pouco mais do que indefiníveis manchas de cor sobre telas neutras. Havia mais arte no fabrico das molduras do que nas próprias pinturas, mas sabia que deviam ter custado uma pequena fortuna. Fausto Guarnieri tinha fama de coleccionador, uma fama obviamente baseada não tanto na qualidade do seu gosto mas no tamanho da carteira.
Estava a olhar para os quadros, mas mal os via. O seu cérebro estava por de mais ocupado com o encontro que ocorreria em breve, revendo mentalmente os factos, ensaiando o que iria dizer a Cesare Scarfone e ao seu advogado. Era-lhe impossível permanecer quieta. A sua vontade era sair para a rua e queimar uma parte da energia em excesso que lhe fazia vibrar o corpo, dispersar a ansiedade que a corroía.
Scarfone, como aliás ela previra, fora difícil de apanhar. Arrogante, evasivo, desdenhoso, recusara simplesmente apresentar-se na Procura para ser inquirido. Elena, perfeitamente ciente dos subtis jogos de poder a que um político do calibre de Scarfone estaria habituado, não tinha qualquer intenção de o enfrentar no território dele, tanto na Câmara dos Deputados como na sede da sua facção política, e por isso fora necessário alcançar-se um consenso, tendo sido resolvido que a reunião se faria no escritório do advogado de Scarfone, nas proximidades de Montecitorio.
Já estava à espera há dez minutos. Tinha a certeza de que a demora era propositada, uma rude demonstração de falta de respeito com o objectivo de a humilhar, de a fazer recordar-se de quem estava a enfrentar. Sentia-se irritada, mas estava decidida a não o demonstrar. Iria conservar-se calma e fleumática nesta entrevista.
- Dottoressa Fiorini, queira desculpar-me. Faça o favor de entrar.
Fausto Guarnieri estava junto da porta aberta do seu gabinete. Alto, de cabelo negro lustroso penteado para trás acima de uma testa estreita e de um magnificente nariz aquilino, era o digno representante dos patrícios advogados que haviam gerido Roma desde a sua fundação. Recuou para deixar Elena passar e a seguir fechou a porta atrás de si.
O gabinete tinha a atmosfera sossegada e devota de uma capela: iluminação suave, tapete espesso e janelas duplas para absorver o ruído da rua, uma pesada secretária de carvalho instalada em frente da parede principal como um altar. Elena quase esperava ouvir um órgão de câmara tocando em surdina alguma peça de Bach. Contudo, pelo aspecto de Guarnieri, com o seu fato dispendioso e gravata de seda, sapatos polidos e mãos bem cuidadas, sabia que este templo não era consagrado a Deus, mas sim a Mamona (1).
- Sente-se, por favor.
Foi só ao pousar a pasta no chão que deu pela presença de Cesare Scarfone, entronado num alto cadeirão de braços de um dos lados da secretária. Vestia um fato cinzento claro e gravata num tom pérola que realçava o profundo bronzeado do rosto e das mãos. Não fez qualquer esforço para anunciar a sua presença, tratando Elena com o desdém que exibiria em relação a um servo ou a uma mosca varejeira. Elena cruzou as pernas e obrigou-se a esperar. Eles que dessem o primeiro passo.
- Bem, dottoressa - disse Guarnieri, sentando-se à secretária -, cá estamos.
Tinha uma voz profunda, tranquilizadora, que usava como se fosse um hipnotizador de palco a colocar o auditório em transe.
- O meu cliente é uma pessoa muito ocupada - acrescentou quando Elena não deu resposta.
Ela deitou um olhar a Scarfone, que exibia uma expressão de intenso tédio, a olhar para as unhas e ocasionalmente elevando os olhos para o tecto num dos muitos gestos teatrais que usava com grande efeito no pódio político.
- Estou certa de que é - disse ela. - Todos nós somos.
- Nesse caso, será melhor irmos ao que interessa - comentou Guarnieri com um vestígio de irritação na voz.
- Assim que o doutor Scarfone estiver preparado - disse Elena calmamente.
(1) Mamona: o deus das riquezas na mitologia síria e fenícia. (N. do T.)
Aguardou. Não tinha qualquer intenção de prosseguir antes que o deputado lhe prestasse toda a sua atenção.
Ele encarou-a de frente pela primeira vez. - Estou pronto - disse, conciso. - De que assunto se trata?
- O senhor esteve presente num comício político em Ostia Antica, na noite de ontem - declarou Elena.
- Como sabe?
Ignorou a evasiva. - Quem organizou o comício?
- Que tem a senhora a ver com aquilo que eu faço?
- Pode confirmar que estava presente?
- Dottoressa Fiorini - interveio Guarnieri com suavidade -, o meu cliente será incapaz de colaborar a não ser que lhe diga exactamente a razão pela qual está tão interessada nas suas actividades.
Elena continuou a olhar fixamente para Scarfone. - Está ciente de que se tratava de uma reunião ilegal?
- Ilegal? - Scarfone levantou um sobrolho numa expressão trocista. - Desde quando é que os comícios políticos são ilegais em Itália?
- Ostia Antica é um recinto arqueológico protegido. É necessária uma autorização especial para se realizar ali qualquer género de reunião. Essa autorização não foi solicitada.
Scarfone soltou uma curta rajada de riso incrédulo. - Foi por isso que me fez vir aqui esta tarde? Para me inquirir a respeito de uma licença corriqueira? Santo Deus, será que o pub-blico ministero não tem coisas mais importantes para fazer?
- A reunião foi organizada pelo senhor?
- Não.
- E pelo seu partido?
- Se precisa realmente de saber, foi organizada por alguns patriotas entusiastas que me convidaram a discursar.
- Que patriotas entusiastas?
Scarfone olhou suplicante para o seu advogado. - Isto é ridículo. Diz-lhe, Fausto.
Guarnieri franziu a testa para Elena, numa expressão de desagrado. - Está a fazer-nos perder o nosso tempo, dottoressa. Quando solicitou esta reunião, fez-nos pensar que tínhamos assuntos de grande importância para discutir. Não me parece que uma discrepância a respeito de uma simples autorização possa pertencer a essa categoria.
Elena voltou-se para o examinar. Raramente encontrava advogados do calibre de Guarnieri no decurso normal do seu trabalho. Ocasionalmente encontrava colegas e conhecidos do pai, advogados civis respeitados e com carreiras de sucesso cuja actividade prosperava mercê das custosas e complexas tramas do sistema jurídico italiano. Mas Guarnieri situava-se numa classe à parte, pertencia à elite privilegiada que se deslocava sem esforço entre o mundo político e o mundo do Direito. Um homem sem princípios nem crenças políticas especiais cuja função era lubrificar as rodas da corrupção e do patronato que ainda accionavam o Estado italiano, e estava viciado no poder que essas actividades lhe conferiam.
- Infelizmente, não se trata apenas de uma questão de autorização - disse Elena. - Há outros factores mais graves a considerar.
- Tais como? - exigiu Scarfone.
Elena pegou na pasta e abriu-a no colo, extraindo um envelope de grandes dimensões que pôs de lado enquanto fechava a pasta. Não tinha pressas. Estava no comando da entrevista. Os dois homens, apesar de toda a sua arrogância, teriam de respeitar a agenda que ela impunha.
Abriu o envelope. No interior havia um espesso maço de ampliações de fotografias a preto e branco extraídas do rolo de película usado por Chapman em Ostia Antica e que tinha sido revelado e copiado logo de manhã no laboratório da polícia. Apoiou-as no joelho, de face para baixo. Scarfone inclinou-se para a frente, tentando ver de que se trataria.
Elena voltou-se para ele. - Esses patriotas entusiastas a que se referiu ter-lhe-iam dito em que género de comício iria discursar?
- Em que género de comício? - repetiu Scarfone, olhando para o seu advogado.
- Precisamente. Ter-lhe-iam dito quem formaria o auditório?
- Não me recordo de o terem feito.
- Vá lá, Onorevole, o senhor é um político. Costuma fazer discursos sem saber antecipadamente quem vai estar a escutá-lo? Não me parece.
- Por aí demonstra a sua ignorância da política - replicou Scarfone com impaciência. - Como posso eu saber com antecedência, como poderá alguém saber, quem irá estar presente numa reunião pública?
- Está a afirmar que foi uma reunião pública? Em Ostia Antica, pela noite dentro? Quando lhe foi dada publicidade? Onde estavam os cartazes, o anúncio nos jornais a anunciarem a sua realização?
- A publicidade da reunião não era responsabilidade minha.
- Quem estava presente então? - perguntou Elena. - Deve tê-los visto enquanto falava.
- Aonde nos levará tudo isto? - perguntou Guarnieri displicentemente.
- Deve ter estado ciente de que discursava perante um exército privado ilegal - declarou ela.
Scarfone recostou-se pesadamente no cadeirão. - Não faço ideia daquilo a que estará a referir-se - disse. Mas não havia convicção na sua voz.
Uma expressão de alarme cruzou o rosto de Guarnieri. Apoiou os cotovelos no tampo da secretária e lançou um olhar irado a Elena.
- Essa é uma acusação muito séria, dottoressa.
- Bem sei.
- Possui qualquer prova para apoiar a alegação? Porque, se não tiver, desde já a aviso...
- Avocato - interrompeu Elena -, poupe a sua indignação para os que possam ser influenciados por ela. Está a desperdiçar o fôlego comigo.
Espalhou as fotografias no topo da secretária do advogado. - Diria que isto é bastante convincente, não acha?
Recostou-se na cadeira e viu a mudança na expressão de Guarnieri ao examinar as fotografias. O advogado deitou um olhar a Scarfone, com os lábios comprimidos. Não devia estar à espera disto.
- Acho que também deve vê-las - disse Elena a Scarfone.
- Porquê? Não tenho nada a ver com quem estaria presente. Não posso seleccionar as pessoas para quem discurso.
- Deixe-me formular-lhe uma pergunta. Pediram-lhe para fazer um discurso. Quando subiu à plataforma, deve ter visto quem formava o auditório. Seria difícil não ter reparado: legiões de Camisas Negras, muitos deles empunhando armas, alinhados em filas. Devia saber que se tratava de uma reunião ilegal de um exército privado e, por isso, qual teria sido a razão para discursar perante eles? Por que não deu meia-volta e saiu para telefonar à polícia, como faria qualquer cidadão respeitador da lei, quanto mais um membro do Parlamento?
- Camisas Negras? Quais Camisas Negras?
Elena pegou numa da fotografias e segurou-a em frente do nariz de Scarfone.
- Isto parece-me um uniforme dos Camisas Negras. Não lhe parece também?
- Estava escuro - barafustou Scarfone. - Tinha as luzes dos projectores a incidir-me nos olhos. Não conseguia ver quem estava a escutar-me.
- Pensa que vou acreditar nisso?
- Está a chamar-me mentiroso? - Estava agora na defensiva, tentando disfarçar a insegurança com uma reacção agressiva.
- O que estou a afirmar é que qualquer pessoa com uma visão normal não deixaria de reparar nas formações militares assumidas pelos presentes. Ou nos estandartes empunhados à cabeça de cada fileira.
Levantou outra fotografia. - É difícil não reparar nos estandartes, ou nas imagens exibidas neles: a águia, os números e nomes das legiões. Sabia exactamente perante quem estava a discursar.
Scarfone levantou-se da cadeira num salto, de rosto lívido. - Tenha tento naquilo que está a dizer-me!
- Está a ameaçar-me, doutor Scarfone?
Guarnieri pôs a mão no ar. - Parece-me que devemos pôr imediatamente termo a esta discussão. Se tiver mais perguntas, dottoressa, sugiro que mas apresente por escrito.
Scarfone puxou as mangas do casaco para cima, como se estivesse prestes a entrar numa rixa. A pele acastanhada luzia com uma capa de suor e respirava apressadamente. Acercou-se de Elena. Ela podia cheirar o perfume enjoativo da loção de barbear que ele usava.
- Como se atreve a vir aqui e tentar denegrir o meu bom nome? - disse ele rancorosamente. - Lembre-se de que sou um membro eleito da Câmara de Deputados. Não me pode tocar, e sabe isso muito bem.
- Doutor Scarfone - interveio Guarnieri com rispidez. - Devo aconselhá-lo a ficar em silêncio.
Mas Scarfone ignorou-o. Empurrou as fotografias para o chão com um gesto de raiva, permitindo que o rufião viesse à superfície através das camadas de sofisticação acumuladas com o passar do tempo, surgindo agora em toda a sua fealdade primitiva.
- Essas fotografias não valem nada. Como posso saber que não são falsificações produzidas pelos meus inimigos para me desacreditarem? Como posso ter a certeza de que não se trata apenas de um mero ardil para me montarem uma armadilha?
- Tenho duas testemunhas que assistiram a tudo - declarou Elena. - E pode crer que são de inteira confiança.
Guarnieri tinha-se levantado já da sua cadeira, metendo-se entre eles.
- Terminou a reunião. Não temos mais nada a dizer.
- Quem organizou o comício? - insistiu Elena, sem deixar de olhar para Scarfone. - Responda-me a isso. Quem forneceu o armamento e os uniformes dos Camisas Negras? Preciso de respostas.
- Tenho de lhe pedir que saia, dottoressa - disse Guarnieri, recolhendo as fotografias espalhadas no chão.
Scarfone tinha recuperado a compostura. Ajustou a gravata e o casaco, transformando-se de novo num político cortês.
- Nada mais tenho a acrescentar - afirmou, falacioso.
- Preciso dos nomes - prosseguiu Elena sem se deixar desarmar. - Sabe bem onde poderá contactar-me.
- Vai ter muito que esperar - replicou Scarfone. - Na parte que me toca, o assunto está terminado.
- Bem pelo contrário - retorquiu Elena. - Ainda mal começou.
Chapman demorou-se por mais algum tempo na margem do Tibre, nas proximidades da casa de Maria Casella, e depois regressou a pé ao centro da cidade, absorto nos seus pensamentos. Quando se sentou à sua secretária na Stampa Estera, procurou o número de telefone do escritório da Compassione e pediu para falar com Giulietta Ricci. Ela recordou-se dele, ainda que demonstrasse alguma relutância em falar-lhe.
- Então, o escritório está de novo em actividade? - perguntou Chapman, para dizer alguma coisa.
- Sim, a polícia ficou despachada daqui há alguns dias. Desejava alguma coisa?
- Naquele dia em que conversámos, no café do outro lado da rua? Recorda-se?
- Sim, lembro-me. - Parecia desconfiada agora. - Lamento, mas não posso dizer mais nada a respeito do Padre Vivaldi. Já falei demasiado.
- Disse-me da outra vez que ele tinha ido visitar alguém ao hospital. Sabe o nome do doente?
- Escute, estou muito ocupada agora.
- Só pretendo saber isso. Não volto a incomodá-la, signora.
- É capaz de estar escrito no diário. É possível que o tenha apontado. Mas tenho mais que fazer.
- Posso esperar. Ficaria muito agradecido se me desse agora a informação. Assim não precisava de tornar a incomodá-la.
Ouviu-a respirar fundo no outro extremo da linha.
- Está bem, vou ver se encontro.
Ficou à espera, fazendo gatafunhos no papel que tinha à sua frente. Um dos outros correspondentes estrangeiros passou por si, dirigindo-se para a respectiva secretária. Chapman levantou o olhar e retribuiu o cumprimento que o outro lhe lançou.
- Pronto, aqui está... Está a ouvir-me?
- Estou sim, minha senhora.
- O nome dele era Roberto Ferrero.
- Em que hospital estava?
- No Santo Stefano.
- Aquele que fica para lá da Villa Ada?
- Sim, sim.
- Sabe por que motivo o Padre Vivaldi o visitou?
- Não, não sei. Mesmo que soubesse, seria uma informação confidencial. Pensei que só quisesse saber o nome dele.
- Tem razão - disse Chapman. -Já o teria visitado noutras ocasiões?
- Signor Chapman, não posso dizer-lhe mais nada. O Padre Vivaldi fazia muitas visitas hospitalares, algumas a paroquianos, outras a pessoas que nunca tinha visto. Recebíamos telefonemas, pessoas que queriam falar com ele. Era certamente o padre mais conhecido de Roma. Quando alguém precisava de um padre e não conhecia nenhum, era frequente pedirem o Padre Vivaldi. Nunca dei por ele ter recusado um pedido. Agora tenho mesmo de voltar ao meu trabalho. Bom dia.
Desligou. Chapman pôs o auscultador no descanso e procurou na lista o número de telefone do Clinico Santo Stefano. Conhecia o hospital de nome e por reputação, mas nunca tinha ido lá. Era um daqueles hospitais particulares, discretos e dispendiosos, usados por políticos e empresários ricos que, em Itália como noutros países, louvavam as realizações do sistema de saúde pública, a dedicação e o profissionalismo do atarefado pessoal, mas que preferiam não o experimentarem em pessoa. Ninguém os culpava por isso, pois os riscos do serviço de saúde italiano eram lendários. Quando Chapman chegara a Itália, uma das primeiras coisas que os colegas experientes lhe tinham assegurado - sem qualquer intenção de serem engraçados - fora que o melhor hospital em Roma era o Aeroporto de Fiumicino. Quem tivesse algum problema de saúde, o melhor que tinha a fazer era meter-se num avião e ir a qualquer outro lado tratar do assunto.
Roberto Ferrero, fosse ele quem fosse, era obviamente uma pessoa de meios porque, após uma estadia de apenas alguns dias no Clinico Santo Stefano, não sobrariam muitos trocos de uma maquia de dez milhões de liras correspondente ao salário de vários meses de um trabalhador médio.
Marcou o número de telefone do hospital e transferiram-lhe a chamada para o departamento administrativo. Explicou que era um velho amigo de Roberto Ferrero e que só agora soubera que ele tinha adoecido, estando a telefonar agora para saber do seu estado. Fez-se um silêncio embaraçoso até que a funcionária da administração, uma senhora de falas mansas com os modos delicados e solícitos de alguém habituado a lidar com os muito ricos, lhe transmitiu por fim a triste notícia.
- Roberto Ferrero? Lamento informar que o signor Ferrero faleceu há uma semana.
- Faleceu?
- Reconheço que esta notícia deve constituir um choque para o senhor. Mas os ferimentos dele eram, infelizmente, bastante graves. Entrou em coma e nunca mais acordou. Lamento muito.
- Que ferimentos? - perguntou Chapman, e depois escutou atentamente enquanto a funcionária explicava que Ferrero tinha sido severamente agredido em casa, tendo sofrido fortes danos na cabeça.
- Manteve-se bastante lúcido até entrar em coma - prosseguiu. - Tínhamos esperanças de que iria recuperar, mas... - Deixou a frase a meio.
- Quando foi isso? - perguntou Chapman.
- Desculpe, tenho de consultar os registos.
Quando regressou ao telefone, explicou que a agressão ocorrera a 8 de Junho. O signor Ferrero fora internado no final da tarde do mesmo dia, tendo falecido quatro dias mais tarde, na noite de 12 de Junho. Chapman apontou os detalhes na agenda. 12 de Junho. O mesmo dia em que Vivaldi fora assassinado.
Agradeceu à funcionária e desligou. Em seguida deixou a secretária e percorreu a pé a curta distância entre a Stampa Estera e a sede do jornal de Enzo Mattei, no qual estava autorizado a consultar a biblioteca de recortes.
Procurou o nome de Roberto Ferrero nos ficheiros e encontrou uma magra pasta de cartolina contendo somente dois pequenos artigos recortados do jornal. Um deles era um breve obituário que apenas incluía os detalhes do falecimento: nome, idade, o hospital onde morrera. O outro era uma peça mais longa sobre a agressão que levara ao seu internamento em Santo Stefano. Desconhecia-se a identidade do assaltante, bem como as circunstâncias do ataque. A polícia apenas sabia que Ferrero, de oitenta e oito anos de idade, tinha sido encontrado inconsciente no chão do seu gabinete de trabalho pela governanta, a senhora Potesta. Tinha sangue no rosto, proveniente de um corte profundo num dos lados da cabeça e fora encontrado um atiçador de lareira abandonado nas proximidades, que aparentemente tinha sido usado para provocar o ferimento. Não existiam indícios de arrombamento e parecia que nada fora levado da casa, pelo que se ignoravam os motivos da agressão. Roberto Ferrero, negociante reformado, vivera uma existência calma e solitária. Segundo a governanta, era raro receber visitas e quase nunca cruzava os limites da casa e do jardim.
Anotou o endereço e foi buscar o carro. Dirigindo-se para sudeste, saiu da cidade e penetrou nas colinas de Albano, a orla em ferradura de uma antiga cratera vulcânica que era hoje em dia o vinhedo de Roma e um fresco retiro para os cidadãos suficientemente abastados para possuírem ali uma vivenda de fim de semana. Havia Castelli Romani espalhados pelas encostas arborizadas das colinas, os antigos povoados que há dois mil anos tinham formado o baluarte da Liga Latina e que, apesar de fortemente bombardeados durante a conquista de Roma em 1944, ainda constituíam destinos muito procurados durante os dias de folga por quem pretendia escapar ao calor tórrido da capital.
Chapman tinha-os visitado quase todos desde que chegara a Itália, vindo durante o Verão sentar-se na penumbra de alguma adega a beber Frascati ou a passear ao longo das margens de um dos lagos formados nas crateras que se espalhavam pela região como enormes órbitas oculares.
A casa de Roberto Ferrero situava-se nas cercanias de Castel Gandolfo, a pitoresca e acanhada povoação onde o Papa tinha o seu palácio de Verão. Era maior do que previra, uma ampla e elegante villa de alvenaria escondida da estrada por um alto muro de tijolos. Havia uma pequena casa de guarda logo a seguir aos portões de aço e a seguir uma alameda de gravilha que circundava um relvado tão liso e verde como uma mesa de bilhar e que terminava no pórtico da casa. Examinou o edifício através da cortina de água projectada pelos bicos de rega que aspergiam a bem cuidada relva. As persianas das janelas estavam parcialmente abertas, com as vidraças recuadas para permitir a entrada do ar. Parecia habitada, apesar da morte do proprietário. Uma camioneta de caixa aberta com o nome de uma empresa de jardinagem pintado na cabina estava estacionada perto da porta dianteira da casa, e de algures nas proximidades, por detrás dos altos arbustos, vinham os sons intermitentes de um aparador de sebes.
Premiu o botão da campainha no portão e esperou que uma voz no intercomunicador lhe perguntasse o que desejava. Mas nada. A fechadura abriu-se com um estalido e o portão recuou em arco para lhe permitir o ingresso. Ultrapassou a casa de guarda e caminhou pela alameda. O sol já estava quente e ardia-lhe na pele exposta dos braços e da cara. Sentiu-se tentado a penetrar na fresca neblina dos bicos de rega, mas uma mulher nos degraus dianteiros da vivenda impediu-o de satisfazer esse desejo. Ela ficou a vê-lo aproximar-se, com uma ruga de dúvida cruzando-lhe a testa.
- O senhor não é o signor Locatelli - disse ela em tom de acusação quando ele parou à sua frente.
- Pois não.
- Estava à espera do signor Locatelli. Vem da parte da imobiliária?
- Não venho, não.
Explicou quem era. O nariz da mulher enrugou-se e Chapman, baseado na sua longa experiência, reconheceu os primeiros indícios da alergia aos jornalistas, o que resultaria na sua expulsão da propriedade se não agisse prontamente.
- Deve ser a senhora Potesta - disse. Ela tinha a robustez e o ar disciplinador que era a marca universal das professoras primárias, das enfermeiras-chefe e das governantas. Sabia que ela seria inacessível a qualquer género de suborno ou instigação, mas isso não significava que não tivesse algum ponto fraco que pudesse ser explorado para os fins em vista.
- Li a seu respeito nos jornais - declarou. - Deve ter sido terrível para si encontrar o signor Ferrero caído no chão. Terrível. Espero não estar a abusar, mas gostaria de saber seja estaria disposta a falar sobre o caso.
Olhou desconfiada para ele. - Falar sobre o que aconteceu?
- Pois - confirmou Chapman. - Ainda ninguém ouviu a sua versão pessoal do acontecimento. Talvez pudesse dispor agora de alguns minutos para conversar comigo? Apenas uma ligeira troca de impressões, talvez algumas fotos, se não se importar.
- Fotos?
Corrigiu ligeiramente a postura, já a assumir uma pose diferente ao escutar a palavra. Levou uma mão ao cabelo, tentando ajeitá-lo.
- Esta casa é maravilhosa. Cuida dela sozinha? Começou a subir os degraus, conversando facilmente com ela, mostrando interesse pela sua vida. Era uma forma de lisonja que sabia que desarmava até o mais hostil dos entrevistados.
- A casa está à venda, segundo percebi? - disse, espreitando pela porta aberta. - Aquilo ali é mármore autêntico? Extraordinário. Posso...?
Entrou no átrio e admirou a escadaria, o pavimento de pedra polida.
- Seria possível mostrar-me a casa? Não lhe ocuparei muito tempo. Podemos conversar enquanto andamos.
A governanta pensou e depois encolheu os ombros e disse: - Por que não? Já a mostrei a tanta gente...
- Só moravam aqui o signor Ferrero e a senhora?
- Bem, o meu alojamento é na casa do guarda - esclareceu ela com alguma formalidade.
- Certamente.
- Mas o signor Ferrero vivia sozinho. Era viúvo, e não tinha filhos. A esposa morreu antes de eu vir para cá, e por isso nunca a conheci.
Atravessaram uma arcada e entraram numa espaçosa sala de estar. Tapetes de aspecto dispendioso cobriam uma parte do pavimento de mármore, quadros com molduras douradas pendiam das paredes, e o mobiliário antigo parecia ter sido adquirido mais como investimento do que para ser usado em conforto. A sala era demasiado perfeita, demasiado arrumada para satisfazer os gostos de Chapman, mas a opulência era impressionante.
- Disseram-me que o signor Ferrero era um negociante reformado - comentou. - Qual era o seu ramo de negócio?
- Não lhe sei dizer - respondeu ela. - Era uma pessoa muito privada. Desde que o conheci, nunca o vi fazer nada. Penso que deve ter ganho muito dinheiro quando era novo, tendo-se reformado cedo. Recebia uma pensão de guerra, mas é claro que não chegaria para pagar tudo isto.
- Uma pensão? Tinha sido soldado?
Ela confirmou. - Nunca falava a respeito disso. Mas a pensão chegava todos os meses até ter morrido. O senhor parece muito interessado nele.
- Morreu em circunstâncias estranhas. Os leitores dos jornais gostam muito de histórias de mistério. Não chegou a ver quem o matou?
- Não. Tinha ido à vila comprar provisões. Quando voltei, encontrei-o caído no chão, num charco de sangue.
- Aqui?
- Não, no gabinete de trabalho dele.
- Posso ir ver?
- Não tem nada que ver.
Chapman abriu uma porta que conduzia ao que parecia ser a sala de jantar. Havia ao centro uma longa e rebrilhante mesa, com doze cadeiras iguais. Tentou imaginar o idoso Fer-rero tomando aqui sozinho as suas refeições.
- Cozinhava também para ele? - perguntou.
- Claro.
- Ele tinha companhia por vezes?
- Nunca. Gostava muito da solidão. Não me parece que tivesse muitos amigos. No funeral só estávamos eu, o senhor padre e os homens da agência funerária.
- É triste.
- Sim, também acho.
- O Padre António Vivaldi não era amigo dele?
A governanta olhou rapidamente para ele. - O Padre Vivaldi? Por que pergunta isso?
Parecia novamente desconfiada. Chapman olhou por cima do ombro, como se quisesse ter a certeza de que estavam sós, e baixou a voz.
- Signora? Há algum local mais privado em que possamos conversar?
- Privado? Bem, há o gabinete de trabalho. Por aqui. Mas, porquê...?
Segurou-a firmemente por um braço e conduziu-a à sala anexa. Era mais pequena do que as outras, e um pouco mais pessoal. Parecia que alguém vivera realmente ali e não que apenas tinha servido para ser exibida.
- Perdoe-me, signora - disse Chapman -, mas precisamos de ter cuidado.
Já lhe captara a atenção. Os olhos dela fixaram-se-lhe no rosto, rebrilhando de curiosidade mal contida. Chapman aprendera há muito que um dos mais garantidos métodos para se sacar informações a alguém era partilhar algo de confidencial. Especialmente no caso dos italianos, para quem as conspirações eram como uma droga que cria vício.
- Tem conhecimento de que o Padre Vivaldi visitou o signor Ferrero no hospital? - perguntou.
A governanta parecia decepcionada. - Claro que tenho - retorquiu. - Fui eu quem tratou de tudo.
- Palavra?
- Certamente. Estava a visitá-lo como de costume, ia lá duas vezes por dia, para ver como ele estava, e ele disse-me para telefonar ao Padre Vivaldi e pedir-lhe que o visitasse no hospital.
- Quando foi isso?
- No dia anterior ao da sua morte. Telefonei para o escritório do senhor padre e disse-lhe o que tinha acontecido ao signor Ferrero. Ele concordou em ir ao hospital no dia seguinte.
- Eles conheciam-se?
- Não me parece. O signor Ferrero não era um homem religioso. Nunca foi à igreja durante todo o tempo em que trabalhei aqui em casa.
- Ele não chegou a dizer por que razão pretendia que o Padre Vivaldi fosse vê-lo?
- Não. - E fez uma pausa. - Ele não disse... mas fiquei com a impressão de que queria conversar com um padre.
Sabe, é uma coisa em que se pensa quando se tem a idade que ele tinha e se está no hospital.
- Quer dizer, para receber a unção dos doentes?
- Não, isso não. Morreu antes de fazer a confissão final. Entrou em coma tão depressa, sabe... Não houve tempo para se chamar um padre.
- Mas pretendia contar algum segredo, seria?
- Foi isso que pensei na altura.
Chapman deambulou pelo gabinete de trabalho, tocando nas mobílias, apalpando a superfície da vasta secretária com tampo revestido a cabedal, passando os dedos pelo encosto da cadeira, tentando captar uma percepção do homem que Roberto Ferrero fora.
Do outro lado da janela havia um terraço que se prolongava a toda a largura da casa. Para lá do terraço, o terreno descaía abruptamente para uma profunda caldeira vulcânica, uma descida precipitosa que terminava uns trezentos metros mais abaixo nas escuras e insondáveis águas do lago Albano. Os antigos romanos vinham aqui para assistirem das suas villas nas margens do lago a sangrentas reconstituições de batalhas navais. Ainda lá havia embarcações, esbeltos veleiros ancorados ao longo das margens arenosas, barcos a motor cheios de jovens bronzeados com as suas namoradas topless navegando em redor das cabeças baloiçantes dos banhistas. Mas o drama já não residia ali. O lago Albano continuava a ser um recreio de fim de semana para os romanos endinheirados, mas os gostos violentos dos seus antepassados tinham sido substituídos pelos passatempos mais tranquilos dos banhos de sol e dos copos de Campari bebidos nos terraços dos cafés.
- Foi aqui que o encontrou?
A senhora Potesta confirmou. - No chão, ali adiante. Estava inconsciente. Havia sangue por toda a parte.
- Como acha que o assassino pode ter entrado?
- Não sei. A polícia examinou toda a casa e não encontrou sinais de arrombamento.
- Talvez o próprio signor Ferrero o tenha deixado entrar?
- É possível.
- A notícia no jornal dizia que não tinha sido roubado nada.
- Não dei pela falta de nada.
- O signor Ferrero deve ter sido bastante rico para possuir tudo isto. Há muitos artigos de grande valor aqui em casa.
- Sim, era uma pessoa abastada.
- Deve ter-lhe dado alguma indicação da origem dessa fortuna.
A governanta encolheu os ombros. - Penso que tinha investimentos: acções, coisas desse género. Costumava ir ao Norte uma vez por ano. Em Junho. A Milão e à Suíça, parece-me. Mas isso foi só até há cerca de sete ou oito anos, quando começou a sentir a idade. As pernas, sabe. Era-lhe difícil movimentar-se.
Na parede ao lado da janela havia um retrato emoldurado de um homem de idade.
- É ele? - perguntou Chapman, apontando.
- Sim, fui eu que tirei a fotografia quando ele fez 75 anos. Não gostava de ser fotografado, mas convenci-o. Não tinha nenhumas fotografias dele em casa, nem uma. Eu não conseguia entender porquê. Mas não era um homem sentimental.
Parecia um velho rijo, pensou Chapman, observando mais cuidadosamente a fotografia: rosto ossudo, testa enrugada terminando numa calva luzidia, olhos com uma expressão de crueldade.
- Estava presente quando o Padre Vivaldi o visitou no hospital?
- Não.
- Portanto não conhece o motivo da conversa?
A senhora Potesta abanou a cabeça. - Perguntei mais tarde ao senhor padre se o signor Ferrero estava bem mas ele não foi muito aberto comigo.
- Mais tarde?
- Quando ele veio cá.
Chapman olhou-a espantado. - O Padre Vivaldi veio aqui a casa?
- Veio buscar uns papéis que o signor Ferrero queria entregar-lhe.
- Que papéis?
- Umas cartas antigas, acho eu. O signor Ferrero guardava-as numa bolsa de cabedal na última gaveta da secretária. Nunca a tinha visto antes. É aquela ali.
Apontou para uma velha bolsa de documentos que estava numa mesa encostada à parede. Chapman pegou nela e soltou as correias de cabedal. Não tinha nada no interior.
- O senhor padre não quis a bolsa, só os documentos - explicou ela.
A pasta estava roçada e suja, com o cabedal muito desgastado. Nalgumas partes parecia que alguém a tinha esfregado com um material abrasivo. A superfície estava áspera e cheia de sulcos, com as fibras do cabedal a descascarem e expondo as camadas inferiores mais pálidas. Na parte da frente tinha sido gravado em relevo um emblema circular qualquer, mas estava de tal forma riscado e danificado que não era possível defini-lo.
- Ele possuía mais papéis? - perguntou Chapman.
- Só a papelada do costume: contas, extractos bancários. Separei-os e embalei-os para os advogados.
- Onde estão agora?
- No escritório dos advogados. Queriam que os bens pessoais do meu patrão fossem retirados da casa antes de ser posta à venda.
- Diga-me uma coisa, signora - disse ele. - Contou à polícia que o Padre Vivaldi tinha estado aqui?
- Não. Não falei à polícia desde que o signor Ferrero foi atacado.
- Não voltaram cá depois de ele ter morrido?
- Não. - Franziu a testa. - Pensa que...
As palavras dela foram interrompidas por uma campainha soando algures na parte dianteira da casa. Pediu licença e foi atender, deixando Chapman sozinho no gabinete. Este aproveitou a oportunidade para abrir as gavetas da secretária e examiná-las rapidamente. Tinham sido totalmente esvaziadas.
Olhou em redor da sala. As prateleiras que ocupavam uma das paredes estavam carregadas de livros de aspecto velho e mal encadernados. Passou os dedos por eles, reparando de passagem em alguns dos títulos. Muitos eram relacionados com assuntos militares, as campanhas da Etiópia e do Norte de África, biografias de Garibaldi e Mussolini, e também viu garridas traduções de livros policiais ingleses e americanos. No extremo de uma das prateleiras estava uma caixa de madeira entalada de lado como um volume espesso. Puxou-a para fora. Era aproximadamente do tamanho de um estojo para jóias, envernizada e com entalhes de marfim amarelado. Tentou abri-la, mas estava fechada à chave.
Ouviu os passos da senhora Potesta que regressava. A caixa era demasiado volumosa para a dissimular na sua pessoa, mas sabia que tinha de examinar o seu conteúdo. Pegou numa faca metálica para papel que estava num tabuleiro em cima da mesa e inseriu a ponta entre as duas metades da caixa. A madeira rachou em volta da fechadura, ao mesmo tempo que a tampa se abria com um estalido. Viu no interior algumas medalhas cintilantes e algo comprido e fino embrulhado num pedaço de tecido impermeável. Escondeu os objectos nos bolsos das calças e devolveu a caixa à prateleira justamente quando a porta se abriu e a governanta reentrou no gabinete.
- Já chegou o homem da agência imobiliária. O senhor vai ter de ir-se embora agora.
- Com certeza. Signora, será possível emprestar-me a bolsa por alguns dias?
- A bolsa?
- Prometo devolvê-la. Não está a utilizá-la, pois não?
- Não, não estou. - Encolheu os ombros. - Não vejo razão para não poder levá-la.
- Obrigado, signora. A sua ajuda foi preciosa. Regressou pela estrada principal até Castel Gandolfo e estacionou numa das ruas mais sossegadas, afastada do centro. Tirou dos bolsos a colecção de medalhas e examinou-as. Tinham sido cuidadas com esmero. O metal fora polido para evitar a perda do lustre e as fitas estavam engomadas e limpas. Duas em especial chamaram-lhe a atenção. Quase idênticas, excepto quanto a uma variação no tom das fitas azuis, exibiam o brasão da Casa de Sabóia, a família real italiana, cercado por uma coroa de louros e as palavras Al Valore Militare. Virou-as. No reverso estava gravado o que parecia ser o nome do condecorado. Mas nenhuma das medalhas dizia "Roberto Ferrero". Diziam Domenico Salvitti. Numa delas, além do nome viam-se as palavras CC.NN Divisione 3 '21 Aprile', Adowa, 1935, enquanto na outra os dizeres eram CC.NN Divisione 1 '23 Marzo' Libica, Bardia, 1941.
Viu as restantes medalhas. Todas exibiam o nome Domenico Salvitti no reverso. Havia um outro objecto misturado com elas, um disco de metal mais leve que não chegava a ser uma medalha. Dividido em duas metades idênticas e gravadas em relevo com fiadas de diminutas palavras e números, era claramente uma etiqueta de identificação militar. Apenas nesta peça se lia o nome Roberto Ferrero.
Chapman voltou a sua atenção para o longo pedaço de tecido impermeável, desenrolando-o para revelar um punhal polido e esbelto. Tinha um punho simples de metal brunido e algumas palavras gravadas na afiada lâmina: Ai Moschettiere silenziosi, fedeli - "aos silenciosos e fiéis Mosqueteiros". Abaixo da inscrição, gravada no aço, via-se a assinatura de Mussolini.
Voltou a embrulhar o punhal e guardou-o com as medalhas no compartimento do tablier. Depois deu várias voltas de carro pela vila, até localizar uma papelaria numa rua estreita por detrás de uma igreja. Entrou e adquiriu uma folha de papel vegetal e um lápis macio. Regressou ao carro, colocou a bolsa de cabedal no colo e cobriu o ilegível emblema com o papel vegetal. Roçou cuidadosamente o bico do lápis sobre a superfície do papel, deixando a grafite realçar gradualmente o desenho em relevo na aba da bolsa.
Levantou o papel vegetal. A imagem estava um pouco esborratada mas era possível identificá-la. Ao meio estava o fasces da Roma Antiga, o feixe de varas de ulmeiro atado a um machado, e no círculo à volta liam-se as palavras Repubblica Sociale Italiana.
Levantou a cabeça e olhou fixamente através do pára-brisas, mordiscando pensativo a ponta do lápis.
Elena trabalhou pela noite dentro, preparando um relatório detalhado do incidente em Ostia Antica e da entrevista com Cesare Scarfone. Este tinha exagerado ao dizer que ela não poderia tocar-lhe. Como deputado, gozava de certos privilégios, mas não estava totalmente acima da lei. Já fora abolida a imunidade de que os membros do Parlamento tinham desfrutado e que havia tornado tão difícil investigar os escândalos da corrupção Tangentopoli Não podia mandar pôr-lhe uma escuta no telefone ou fazer-lhe uma busca à casa, mas poderia ordenar a sua detenção desde que conseguisse obter autorização do Parlamento.
Perante a falta de cooperação demonstrada por Scarfone e considerando os indícios recolhidos em Ostia Antica sobre o seu envolvimento em actividades ilegais, estava disposta a ir até ao fim, e passou algum tempo a preparar o pedido oficial a submeter ao Presidente da Câmara dos Deputados para que a imunidade de Scarfone fosse suspensa. Ainda que detivesse o poder necessário para apresentar o pedido por iniciativa própria, em circunstâncias normais preferiria conhecer primeiro a opinião de Corona. Contudo, este encontrava-se ausente em Milão, só regressando na noite seguinte. Guardou os papéis na secretária, adiando para a manhã seguinte a decisão sobre o que faria com eles.
Estava a aprontar-se para deixar o gabinete quando o telefone tocou. Era Chapman.
- Estás a fazer serão? - perguntou ele.
- Estou quase despachada. Onde estás?
- Em tua casa. Queres ir jantar a qualquer parte?
- Prefiro não sair.
- Então vou preparar qualquer coisa para comermos. Que tal linguini com porcini e azeitonas pretas, uma salada de alface e uma garrafa de Chianti?
- Por que não te conheci há mais tempo? Também limpas o chão e lavas a roupa?
- Ias ficar surpreendida se soubesses tudo o que sou capaz de fazer...
- Acho que sim - comentou Elena.
Arrumou a secretária e desceu a escadaria para a saída principal, apreciando a ideia de que desta vez não ia regressar a uma casa vazia. A Procura estava silenciosa, com as repartições encerradas até ao dia seguinte, com as salas de audiências e os corredores - uma confusão de advogados, réus e testemunhas durante o dia - escuros e desertos. Tinha arrumado o carro a alguma distância do edifício principal, numa das ruas laterais junto da Piazzale Clodio. Cruzou a porta e voltou à esquerda, seguindo ao longo da fachada do edifício. O sol já se tinha posto, mas o ar ainda estava quente e opressivo. Caminhava apressada, com a pasta a bater-lhe desconfortavelmente na perna.
Eles estavam à sua espera quando dobrou a esquina seguinte.
Um braço surgiu de parte nenhuma e envolveu-lhe o pescoço. Uma mão forte e calejada, cheirando a óleo de motor, tapou-lhe firmemente a boca para abafar qualquer grito. Outras mãos seguraram-lhe os braços e as pernas. Viu-se tão fortemente refreada como se estivesse atada com cordas. Tentou libertar-se, mas estava completamente imobilizada. Três, ou talvez quatro, homens seguravam-na. Conseguia cheirar a presença deles, mesmo que não conseguisse rodar a cabeça para os ver. Respirou fundo e tentou lançar um grito, mas a pressão sobre a traqueia e a boca aumentou, sufocando o apelo antes de poder soltá-lo.
Arrastaram-na para as sombras. Sentia as pernas a tremer, o estômago apertado no feroz amplexo de uma náusea debilitante. Se os homens não estivessem a suportar-lhe o peso as pernas tê-la-iam atraiçoado e teria caído no pavimento.
Um deles colocou-se à sua frente. Tinha aproximadamente a mesma altura que ela, ombros largos e um corpo compacto e atarracado. O peito e os músculos dos braços, apertados nas mangas curtas de uma camisola interior suja, assemelhavam-se aos de um dedicado praticante de musculação. Não conseguia ver-lhe o rosto, encoberto por um capuz negro com aberturas para os olhos e a boca.
O homem olhou para ela durante um longo momento, como se estivesse a saborear aquela superioridade física sobre ela.
- É tempo de alguém te dar uma lição - declarou num áspero sotaque romano.
Elena estava como que petrificada, incapaz de deixar de olhar para o negro capuz de carrasco. O seu instinto era tentar chamar o homem à razão, dissuadi-lo com palavras. Mas não era capaz de falar, mal conseguia respirar. Além disso, sabia que as palavras seriam inúteis. Eram homens violentos, primitivos, aos quais alguém confiara uma tarefa que iriam executar com eficácia.
O homem estendeu as mãos e apertou-lhe os seios, sentindo a carne sob o ténue tecido da blusa. Podia ver-lhe os dentes irregulares e lascados através da abertura para a boca no capuz e percebeu que ele estava a sorrir. Esforçou-se para libertar uma das pernas para lhe dar um pontapé, mas estava tão firmemente retida como uma borboleta num tabuleiro de espécimes.
As mãos deslizaram-lhe pelo corpo, tocando-a com aspereza, desejoso de a fazer sofrer. Sentiu que lhe levantavam a saia, mãos que se moviam por baixo da roupa. Os olhos encheram-se de lágrimas: de dor, de pavor e frustração por não poder reagir.
Não sabia o que iriam fazer-lhe, e, com o corpo e o espírito tão paralisados pelo terror, já nem conseguia pensar em fugir. Só queria escapar com vida.
O homem tirou qualquer coisa do bolso das calças, algo que reluzia na penumbra. Um pequeno frasco. Desenroscou a tampa e levou-o ao rosto dela. Viu o líquido viscoso e incolor rodopiando dentro do frasco. A mão que lhe tapava a boca afastou-se e o homem do capuz meteu-lhe o gargalo entre os lábios, vertendo-lhe o líquido pela garganta abaixo. Engasgou-se quando o fluido lhe encheu a boca e transbordou para o queixo. Tinha um gosto horrível, pior do que tudo o que provara até então. Pensou que talvez fosse algum veneno, até perceber, quase com alívio, que se tratava de óleo de rícino. O homem segurou-lhe o queixo com força, mantendo-lhe a boca aberta até esvaziar o frasco. Teve ânsias de vomitar, com o estômago a agitar-se em convulsões incontroláveis. Sentiu a náusea a intensificar-se. Os homens atrás de si sabiam o que estava para vir. Soltaram-lhe os braços e as pernas e recuaram enquanto o vómito lhe explodia da boca.
Lançou a mistela para o chão, semiengasgada com a vaga de líquido e aquele gosto acre que lhe fazia arder as membranas da garganta e dos lábios. Dobrou-se ao meio, tentando aliviar as convulsões do estômago. Mas, através da névoa de dor, constatou que os homens a tinham largado. Começou a correr, tropeçando nos sapatos de salto alto. Livrou-se deles e continuou a correr, descalça. Um par de faróis curvou para a rua à sua frente. Os focos de luz passaram-lhe pelo rosto. Olhou para trás: os homens tinham parado ao verem o carro, inseguros sobre o que haviam de fazer. Um deles entrou em pânico e afastou-se a correr. Outro seguiu-o, e um terceiro. O homem do capuz gritou-lhes furioso, mas eles já estavam a dobrar a esquina. O carro parou em frente de um prédio e um casal apeou-se. O homem do capuz virou-se para olhar para Elena, que tinha estacado ofegante ao chegar às luzes da artéria principal, tentando recuperar o fôlego enquanto os espasmos de pavor e de náusea começavam a acalmar. O homem ficou a observá-la imóvel por um curto espaço de tempo e por fim voltou-se também e correu para a penumbra. Elena encostou-se à parede, soluçando, com as pernas a tremer, o estômago a doer, o gosto revoltante do óleo de rícino a fazer-lhe arder a boca.
Chapman estava à janela da cozinha e viu o carro da polícia parar à porta do edifício. Observou a figura curvada saindo vacilante do banco traseiro do carro e levou um momento a reconhecer quem era. Saiu a correr do apartamento e correu pela escada a tempo de lhe abrir a porta da rua e ajudá-la a entrar.
- Elena, que aconteceu?! Jesus, o que se passou?!
O polícia fardado que a acompanhava lançou-lhe um olhar de interrogação. Ela acenou-lhe.
- Tudo bem. Obrigada por me ter trazido a casa.
O guarda soltou-lhe o braço, entregou a Chapman a pasta que trazia na outra mão e voltou para o carro. Elena apoiou-se a Chapman enquanto ele premia o botão de chamada do elevador. Colocou um braço à volta dos ombros dela, e notou que estava a tremer.
Ao chegarem ao patamar, ajudou-a a entrar em casa e a sentar-se numa cadeira de braços.
- Conta-me - pediu, olhando-a com ansiedade.
- Podes arranjar-me qualquer coisa para beber?
- O que é que preferes? Água?
- Talvez um pouco daquele Chianti de que falaste. Bebeu um longo trago de vinho, aliviando o gosto desagradável do óleo de rícino, e contou-lhe o que tinha acontecido.
- Foste vista por algum médico? - perguntou Chapman. O rosto dela estava sem cor. Parecia doente.
- Na esquadra da polícia - respondeu ela. - Estou bem, só abalada. Acho que vou tomar banho. Sinto-me suja.
- Apresentaste queixa?
Ela confirmou com um aceno.
- Precisas de protecção.
- Não quero falar nisso agora.
- Vou pôr o teu banho a correr - disse ele.
Elena acabou de beber o vinho e deixou-se ficar de molho na água quente cheia de sabão durante muito tempo. Depois meteu-se na cama, e Chapman segurou-lhe a mão até ela adormecer.
No dia em que morreu - disse Chapman, vertendo café forte para duas chávenas -, António Vivaldi foi visitar um doente ao hospital, ao Clinico Santo Stefano. O doente era um homem idoso chamado Roberto Ferrero. Tinha sido atacado alguns dias antes em casa, em Castel Gandolfo, e sofrera graves ferimentos na cabeça.
Levou as chávenas para a mesa, adicionou-lhes leite quente e entregou uma a Elena, de cotovelos apoiados na mesa e com o rosto descansando nas mãos em concha. Parecia estar a sofrer uma ressaca.
- Bebe um pouco, vais sentir-te melhor - disse ele. Tomou um sorvo e engoliu com dificuldade. O estômago parecia-lhe oco e dorido. Pensou que ia ficar de novo indisposta, mas o café quente era reconfortante e a sensação momentânea de náusea passou.
Chapman estava a observá-la, preocupado. - Devias tirar uma folga, ficar em casa a descansar.
Elena abanou a cabeça teimosamente. - Tenho muito que fazer.
- Esquece o trabalho. Coloca-te por uma vez em primeiro lugar.
-Já te disse que estou bem.
Olhou-a por cima da chávena de café. - Tiveste uma experiência traumática na noite passada. Ainda que não aches, vais levar algum tempo a recuperar.
- Se ficar em casa, não deixo de pensar naquilo. Prefiro ocupar-me com qualquer coisa, para espairecer. Que estavas a dizer a respeito de Vivaldi?
Chapman espalhou manteiga e compota de alperce numa fatia de pão e tomou-lhe o peso. O pão era vendido ao peso em Itália, pelo que os padeiros fabricavam-no o mais pesado que pudessem. A fatia de pão tinha a textura e a densidade de uma esponja embebida em cimento.
- Foi visitar o velhote ao hospital - prosseguiu -, e a seguir foi a casa dele buscar uns papéis que Ferrero queria confiar-lhe.
- Papéis? - Endireitou-se na cadeira, agora a prestar atenção.
- Levou-os consigo. Nessa noite Ferrero entrou em coma e morreu. Algumas horas depois Vivaldi estava também morto.
- Achas que as duas mortes estão relacionadas? Que as pessoas que mataram Vivaldi também agrediram o velho?
Chapman confirmou com um aceno. - Parece-me uma dedução lógica.
- Por causa desses papéis?
- Desse pormenor não estou certo. Os papéis estavam numa gaveta não fechada à chave, na secretária de Ferrero. Não teria sido difícil encontrá-los. Contudo, quem o agrediu não se deu ao trabalho de os procurar.
- Sabes o que estaria nos papéis?
- Não - respondeu. Bem visto o caso, estava a dizer a verdade. Não lhe disse que os tinha em seu poder, pois ela exigiria que lhos entregasse.
- Por que estás a contar-me isto? - perguntou Elena. Olhou-a com secura. - Ainda não confias em mim, pois não? Estou a tentar ajudar-te. Não achas que poderá ser relevante?
- Talvez.
- E, além disso, estás em melhor posição do que eu para conheceres as circunstâncias exactas da agressão a Ferrero.
- Que queres dizer?
- Tudo o que vi foi um recorte de jornal que não dizia quase nada. Gostaria de saber o que consta do relatório da autópsia. Se haverá semelhanças entre a sova que lhe deram e a que vitimou Vivaldi. Se também haveria óleo de rícino no estômago de Ferrero.
- Mesmo que eu venha a saber, não poderei dizer-te - declarou Elena.
- Talvez mo possas murmurar durante o sono.
- Sou uma magistrada, Andy.
Chapman encolheu os ombros e lançou um rápido sorriso. - Achei que devias saber. Não pretendo comprometer-te pedindo-te para partilhares comigo as informações. Tens de pensar nas tuas obrigações de delegada do Ministério Público. Faz o que te parecer melhor.
- Está bem, está bem! Não precisas de exagerar - comentou ela, mas estava sorridente. - Verei o que posso fazer.
Ele tocou-lhe na mão. - Temos de ajudar-nos um ao outro, Elena. Precisamos um do outro. Depois do que passaste ontem à noite, precisas de alguém que tome conta de ti.
- Sou bem capaz de tomar conta de mim - protestou ela. Levantou-se e dirigiu-se à casa de banho. Chapman foi atrás dela e sentou-se no rebordo da banheira segurando a chávena de café enquanto ela se maquilhava. Gostava da intimidade das manhãs com uma mulher. Acordar ao seu lado, partilhar o pequeno-almoço, vê-la executar as abluções matinais e dedicar-se ao ritual da pintura do rosto. Era uma rotina trivial sob muitos aspectos, mas achava-a sempre um pouco erótica; a privacidade, a nudez - literal ou não - que uma mulher revelava na ensonada desarrumação que raramente exibia fora de casa. Fazia-o sentir-se um voyeur.
Ela lançou um rápido sorriso através do espelho enquanto aplicava rímel nas pestanas.
- Sinto-me bem, palavra.
- Estou preocupado contigo, Elena. Devias ter um guarda-costas.
- Hei-de falar ao meu chefe a respeito disso.
- Aqueles homens podiam ter dado cabo de ti. Aproximou-se dela por detrás e envolveu-lhe a cintura com os braços. Ela recostou-se nele, deixando-o beijar-lhe o pescoço.
- Promete-me que não te esqueces de pedir protecção.
Ela rodou a cabeça e beijou-o levemente, tentando não esborratar a pintura.
- Sou uma mulher crescida, não estejas preocupado.
- Scarfone é um inimigo de meter respeito - comentou Chapman.
- Se eles pensam que podem intimidar-me, escolheram a pessoa errada - retorquiu Elena. Olhou de novo para o espelho, conferindo o seu aspecto.
- Que podes tu fazer? - inquiriu ele. - Um membro do Parlamento é quase intocável.
- Há maneiras de chegar a ele.
- Como por exemplo?
- Até logo à noite. Telefona-me durante o dia se tiveres oportunidade.
- Elena!
Ela levou um dedo aos lábios para o fazer calar-se. - Chega de perguntas. Podes dar-me boleia até ao serviço?
Parecia resoluta. O ataque abalara-a bastante, mas surpreendia-se ao ver como estava a controlar tão bem os efeitos secundários da provação. Tinha dormido razoavelmente bem, tendo em consideração os factos: apenas um pesadelo, a meio do qual acordara em pânico, respirando apressadamente e com o coração a bater de forma desordenada. Mas Chapman tinha-a acalmado e voltara a dormir até ao alvorecer.
Sabia que o choque ainda estava presente, emboscado algures abaixo da superfície. Mas sabia também que o melhor modo de o controlar era mantê-lo escondido, recusar-se a deixá-lo vir à tona para lhe infectar a mente. Sentira-se apavorada, mas se se deixasse vencer pelo medo ficaria paralisada. Scarfone - e não tinha qualquer dúvida de que o homem do capuz e os seus comparsas tinham agido por ordens do deputado - estaria a depender disso para bloquear ou, no mínimo, para atrasar as suas investigações às actividades dele. Era mais uma razão para o atacar, e com toda a força.
Assim que chegou à Procura, retirou da gaveta o pedido para a suspensão da imunidade de Scarfone e preencheu um avviso di garanzia, o mandato oficial informando-o de que estava a ser investigado pelo poder judicial, e entregou os documentos a Baffi para os apresentar na Câmara de Deputados. A aprovação de Corona teria de esperar até mais tarde. Seguidamente efectuou uma série de telefonemas.
O primeiro foi para o inspector de serviço na esquadra de Castel Gandolfo. O segundo foi para Chapman, na Stampa Estera.
- Sou eu - anunciou. - A respeito de Roberto Ferrero. Parece não haver parecenças entre a sua agressão e a de Vival-di. E não foi encontrado óleo de rícino no estômago dele.
- Obrigado.
- Queres um exclusivo? Acabo de apresentar um pedido oficial ao Parlamento para suspender a imunidade de Scarfone.
- Não perdes tempo, pois não?
- Aguarda umas duas horas e depois telefona ao gabinete do Presidente do Parlamento em Montecitorio e aplica-lhe um bocado de pressão. Preciso de uma decisão o mais depressa possível, e uma demonstração de interesse por parte dos meios de comunicação não vai fazer mal nenhum.
- Se eu tivesse adivinhado que eras uma fonte de informações tão boa, há mais tempo que tinha começado a dormir contigo - comentou Chapman.
Elena riu-se e desligou. Depois telefonou para Agostini, na sede da Polícia Judiciária.
- Gianni, fala Elena Fiorini - disse. - Pode arranjar-me alguns homens e uma furgoneta? Tenho um trabalho para si.
- Para onde vamos agora? - perguntou Agostini.
Elena espreitou pela janela do veículo, conferindo a localização. Seguiam para leste ao longo do Corso Vittorio Ema-nuele, aproximando-se do Largo Argentina, de onde partia a Via Arenula em direcção ao rio.
- Para a direita - disse ela.
Agostini travou a fundo e depois atravessou o movimentado cruzamento, enquanto o piscar das luzes e a sirene no tejadilho abriam caminho por entre o tráfico. Atrás deles, o condutor da furgoneta azul da Polícia Judiciária activava a sua sirene e forjava uma trajectória por entre o engarrafamento de veículos, conservando-se rente ao pára-choques do carro de Agostini como se lhe estivesse ligado por um cordão umbilical invisível. Os carros travavam ruidosamente de um lado e do outro, com os condutores protestando com gritos e gestos obscenos enquanto a coluna policial cruzava a praça, deixando atrás de si uma esteira de motores afogados, guarda-lamas riscados e automobilistas irritados.
Agostini lançou um rápido olhar a Elena. - Seria mais fácil se me dissesse para onde vamos - comentou com impaciência.
Elena não reagiu. Sabia que o tinha ofendido por não lhe demonstrar confiança, mas era um preço que pagava com gosto, pois assim teria a certeza de que não haveria fugas de informação. Confiava no inspector, mas não queria correr riscos. Não queria fugas nem palpites anónimos originados na sede da polícia que pudessem provocar o fracasso desta operação; e se tivesse de causar alguns embaraços para assegurar isso, paciência.
- Desligue as luzes e a sirene, por favor - pediu. Agostini engoliu a resposta que estava prestes a soltar e inclinou-se sobre o volante para fazer o que ela solicitava. Seguindo o exemplo do carro da frente, as luzes e a sirene da furgoneta policial foram também prontamente desligadas.
- Desculpe, Gianni - disse Elena complacentemente -, mas cá tenho as minhas razões, e elas não se reflectem de modo algum na confiança que deposito em si.
- Deduzo que estamos a chegar ao destino? Talvez fosse melhor dizer-me qual é o nosso objectivo.
- A sede do MPI.
A cabeça de Agostini rodou bruscamente na direcção de Elena, que lhe retribuiu firmemente o olhar incisivo. O rosto dele espelhava surpresa, expressão que prontamente se alterou para compreensão e respeito. Estava informado do que lhe acontecera na noite anterior. O relatório do assalto - como aliás tudo o que dizia respeito à magistratura - tinha sido prontamente levado ao seu conhecimento. Não tinham ainda trocado impressões sobre o assunto, mas não podia deixar de admirar o modo como ela reagia aos efeitos.
- Se não se importa que lho diga, dottoressa - comentou -, a senhora tem coragem. É tempo de nos atirarmos àqueles malditos neofascistas de um modo que lhes faça mossa.
Virou antes de chegaram perto do rio, para uma das ruas laterais por detrás do Teatro de Marcelo, agarrando o volante com uma das mãos enquanto a outra segurava o rádio portátil, transmitindo instruções aos seus homens na furgoneta que os seguia.
Ao pararem em frente de um alto edifício de aspecto anónimo, com grades de ferro nas janelas do piso térreo, Elena tirou o mandato de busca e entregou-o a Agostini.
- Quero tudo - declarou ela. - Todos os papéis, todos os CDs que puderem encontrar. E também todas as armas, uniformes, estandartes ou qualquer outra parafernália fascista.
O inspector confirmou com um gesto da cabeça e abriu a porta do carro, gesticulando e gritando instruções para os cinco agentes que saíam da furgoneta da Polícia Judiciária. Dois deles correram por uma estreita rua lateral para a traseira do edifício, enquanto Agostini conduzia os outros pela porta dianteira. Elena aguardou uns momentos e depois seguiu-os.
A sede do Movimento Patriottico Italiano localizava-se no primeiro andar, no topo de uma ampla e bem iluminada escadaria. Uma área de recepção revestida de espessas alcatifas conduzia a uma série de seis salas amplas, todas ricamente mobiladas: secretárias e cadeirões de aspecto dispendioso, iluminação indirecta, obras de arte nas paredes e uma abundância de equipamento informático ultramoderno que satisfaria durante meses o mais exigente apreciador das tecnologias modernas.
Elena ficou à porta do salão principal, a analisar o aspecto opulento das instalações e reflectindo sobre o facto de todos os partidos políticos, qualquer que fosse a sua filosofia ou a origem das suas finanças, parecerem empenhados no conforto dos seus líderes e burocratas.
Agostini estava a reunir os funcionários, conduzindo-os para a zona de recepção e mandando-os sentarem-se. Um homem baixo e semicalvo protestava indignado, mas em vão, contra o modo como estavam a ser tratados. Pegou no telefone na secretária do recepcionista e começou a marcar um número.
Agostini retirou-lho das mãos e desligou-o com força.
- Nada de telefonemas - ripostou -, e ninguém sai do edifício.
- Isto é ultrajante - exclamou o homem. - Não podem impedir-nos de fazer telefonemas.
- Fale com a magistrada - retorquiu Agostini, e afastou-se para orientar a remoção de ficheiros dos armários da sala mais próxima.
Ouviu-se uma altercação na traseira do piso, uma voz de homem falando em tom irado e a aproximar-se. Os dois agentes enviados para a retaguarda do edifício traziam entre eles um indivíduo jovem, mal arranjado e de cabeça rapada. O homem praguejava e cuspia sobre os agentes, com a saliva escorrendo-lhe pelos cantos da boca.
- Apanhámo-lo na sala dos fundos - explicou a Elena um dos agentes, esforçando-se para dominar o jovem que esperneava violentamente com as suas botas de couro revestidas de reforços metálicos. - Estava a tentar destruir estes documentos.
O agente entregou-lhe um maço de pastas de cartolina verde.
- Guardem-no ali fora juntamente com os outros - ordenou Elena. - Se ele causar dificuldades, ponham-lhe algemas e metam-no dentro da furgoneta.
- Que raio vem a ser isto? - inquiriu agressivamente o homem baixo e calvo, chegando a cara tão perto da de Elena que esta podia sentir-lhe o bafo quente. - É você quem manda? Que vem a ser isto? Quero falar aos nossos advogados. Não podem levar esses ficheiros.
- Leia o mandato - respondeu-lhe Elena, e afastou-se. O homem segurou-a pela manga. Elena deu meia-volta e olhou-o friamente.
- Se volta a tocar-me, mando-o prender, está a ouvir? Agora, sente-se e cale-se!
Dirigiu-se a outra sala, na qual documentos e disquetes estavam a ser cuidadosamente acondicionados em sacos de plástico.
- Vai ter muito com que se entreter - comentou Agostini com azedume.
- Aprecio muito uma leitura leve - replicou ela olhando em volta da sala. Numa das paredes via-se um vasto retrato emoldurado de Mussolini na varanda do Palazzo Venezia. Aqueles olhos vidrados de alienado olhavam-na fixamente.
- Imagine ter de trabalhar com aquele a observá-lo - comentou.
Permaneceram ali menos de uma hora, ensacando documentos e transportando-os para a furgoneta. Não encontraram armas nem uniformes dos Camisas Negras. Scarfone não era estúpido ao ponto de os guardar na sede do seu partido político.
Elena viu os agentes da polícia removerem os últimos sacos e depois pegou no telefone do recepcionista e marcou um número que tinha anotado e trazido consigo da Procura.
- Cesare Scarfone - disse ela quando alguém atendeu do outro lado.
Esperou por um momento que o deputado viesse ao telefone.
- Daqui fala Elena Fiorini - disse friamente. Depois passou o telefone ao homem baixo e calvo.
- Queixe-se a ele - disse, e veio-se embora.
Era o género de loja em que Chapman só entraria em circunstâncias normais se fosse empurrado. A montra suja estava atulhada com uma tosca exibição de recordações de guerra: capacetes e uniformes nazis, tabuleiros de medalhas e emblemas militares, fotografias de líderes fascistas, tanto alemães como italianos, suásticas e recordações do Terceiro Reich penduradas de cordéis acima de fileiras de punhais e bandoleiras e granadas de mão amolgadas, tudo recoberto por uma espessa camada de pó.
No interior, a mercadoria em exposição era mais ofensiva: prateleiras de literatura fascista, tanto histórica como moderna; fotografias de Hitler e Mussolini em poses arrebatadas; cartazes anti-semitas em italiano e alemão. Havia-um armário com portas de vidro totalmente dedicado a instrumentos de tortura usados pela Gestapo, e uma colecção de fotos feitas em Auschwitz e Belsen, tão revoltantes que se sentiu mal ao passar por elas.
O homem atrás do balcão tinha cabelo negro cortado rente e rolos de gordura como pneus de bicicleta em volta do pescoço. Vestia calças de caqui dos excedentes da tropa e uma camisa do mesmo pano cujas mangas estavam enroladas acima dos cotovelos para revelar uma tatuagem do fasces num rechonchudo antebraço e no outro os raios da insígnia das SS.
Levantou os olhos da revista militar que estava a ler e fixou-os em Chapman com uma expressão dura.
- É o senhor Luca Bracciolini? - perguntou Chapman. Tinha visto o nome na fachada da loja.
O homem soltou um grunhido mas não disse palavra, conservando os olhos fixos nele.
Chapman levou a mão ao bolso do casaco e retirou as medalhas que encontrara em casa de Roberto Ferrero.
- Posso mostrar-lhe estas medalhas?
Os olhos de Bracciolini baixaram-se por um instante, sem demonstrar interesse.
Chapman alinhou as medalhas no balcão. - Poderia dizer-me alguma coisa a respeito delas?
- Que coisa? - perguntou rudemente o lojista.
- A que se referem?
Bracciolini fez um gesto depreciativo na direcção da colecção. - Estas duas são medalhas da Campanha da Etiópia. São muito vulgares. Bastava ter lá estado para se apanhar uma. Tenho quatro ou cinco ali na montra. Estas são da Campanha do Norte de África. Também não têm grande procura.
- E estas duas? - Chapman apontou para as medalhas que tinham as fitas azuis.
Bracciolini encolheu os ombros e pegou nelas. - Estas são Medalhas de Valor Militar. São bastante raras. Normalmente as pessoas não querem dispensá-las. Quer vender?
Chapman abanou a cabeça. - Só pretendo obter algumas informações a respeito delas.
- Isto aqui é uma loja, não um serviço de informações - disse ele, atirando as medalhas para cima do balcão. Chapman reparou que nas juntas dos dedos do lojista estavam tatuadas as palavras Viva II Duce.
- Foram atribuídas muitas dessas medalhas? - inquiriu, imperturbável.
- Bastantes. - Bracciolini olhou-o com desconfiança. - Você não é italiano, pois não?
- Não, sou inglês. Era habitual a mesma pessoa receber duas medalhas destas?
- Às vezes. Havia muitos soldados valorosos no exército italiano. Ao contrário do que os ingleses gostam de pensar.
Voltou a prestar atenção à sua revista, tentando pôr fim à conversa. Mas Chapman persistiu.
- Domenico Salvitti. Reconhece este nome?
O lojista ficou rígido. Continuava a olhar para a revista, mas Chapman tinha a impressão de que ele não estava a absorver as palavras. Depois levantou a cabeça.
- Domenico quê? - perguntou casualmente.
- Salvitti - repetiu Chapman.
- Deixe ver.
Estendeu a mão e pegou de novo nas medalhas, virando-as para estudar a inscrição no reverso.
- Não, não conheço o nome - disse por fim. - Onde foi que as conseguiu?
Chapman fugiu à pergunta formulando outra: - Essas letras e datas, que significam?
- CC.NN. Camicie Neredisse.
- Ele era um Camisa Negra? E o resto da inscrição?
- Divisione 3 '21 Aprile'. As divisões dos Camisas Negras eram baptizadas com datas importantes do calendário fascista. O 21 de Abril era um feriado fascista, o Natale di Roma. E esta aqui - levantou a segunda medalha -, CC.NN Divisione 1 '23 Marzo', Libica. 23 de Março de 1919. A data do primeiro comício dos Sansepolcristi, os fundadores do Partido Fascista. A "23 Marzo" foi uma das divisões de Camisas Negras que combateram ao lado do Exército Real na Líbia em 1941.
- E os nomes de terras?
O lojista suspirou com impaciência. - Adowa. Foi uma das batalhas na Campanha da Etiópia. Demos uma rica ensinadela ao raio dos pretos. Bardia... - fez uma careta - ...esse devia conhecê-lo você. Foi onde vocês deram cabo de quase toda a tropa dos Camisas Negras no Norte de África.
O tom de voz parecia indiferente, e as maneiras mostravam desinteresse, mas agarrava avidamente as medalhas nos dedos grossos.
- Tem a certeza de que não quer vendê-las? Podia oferecer-lhe uma boa soma.
- Não são minhas - respondeu Chapman, tirando do bolso o disco de identificação de Roberto Ferrero. Os olhos de Bracciolini rebrilharam ao vê-lo.
- Onde arranjou isso?
Quase lho arrancou das mãos e examinou-o com cupidez.
- Oh. - Parecia decepcionado. Largou o disco no balcão. - Chapas de identificação do Exército Real. Tenho visto muitas. Não valem quase nada.
Chapman hesitou, sem saber se deveria ir-se embora agora.
O lojista não parecia disposto a responder a mais perguntas, mas mesmo assim decidiu fazê-las.
- Tenho outra coisa para lhe mostrar. - Tirou de outro bolso o embrulho de tecido impermeável e depositou-o no balcão.
- Não me faça perder tempo - disse Bracciolini, mal-humorado.
- Talvez vá gostar disto.
- Escute, ou compra ou vende. Só isso é que interessa. Está a entender? Portanto...
Calou-se, de olhos esbugalhados quando Chapman abriu o pano para revelar o punhal gravado. Bracciolini lambeu os beiços e olhou cobiçoso para a arma.
- Onde arranjou isso? - sussurrou. - Deixe-me ver.
Pegou cuidadosamente no punhal, como se fosse de porcelana e não de aço. Tocou na lâmina e passou a ponta dos dedos pela assinatura gravada de Mussolini, como um cego a ler Braille.
- Isto tenho de comprar-lhe - disse.
- O que é?
- Um punhal de Mosqueteiro. Só os guarda-costas pessoais do Duce os tinham. Só tinha visto um até agora. Dou-lhe vinte milhões por ele.
- Não é meu, não posso vendê-lo.
- Quarenta milhões.
- Lamento.
- A quem pertence? Vou contactar directamente o dono. Chapman abanou a cabeça. - Não está à venda. Tentou pegar no punhal, mas o lojista não o largou.
- Deixe-me segurá-lo por mais uns momentos. Cinquenta milhões.
Chapman observou-o, fascinado e ao mesmo tempo repugnado por esta manifestação de cupidez. Gostaria de saber o que se passava com os coleccionadores que os tornava tão ciosos das suas coisas, o que poderia um objecto ter que despertasse uma tal necessidade de o possuírem. Mas, neste caso em particular, conseguia adivinhar a resposta. Havia qualquer coisa a respeito de Mussolini, como também em relação a Hitler e, antes destes, a Napoleão, que atraía os fanáticos. Na morte como em vida, eram capazes de inspirar uma lealdade tão absoluta que se tornava arrepiante.
Não entendia esse fenómeno, mas sentia o poder disso nesta lojeca escura e suja. Era apenas um punhal, uma simples arma branca que a adjunção de algumas palavras e uma assinatura transformaram num objecto de veneração.
Sacou o punhal das mãos do lojista. Receou que Bracciolini opusesse mais resistência, mas ele largou a arma apenas com um olhar de mágoa.
- Se o dono decidir vendê-la, dê-me prioridade, está bem? Chapman concordou automaticamente enquanto recolhia as medalhas e o disco de identificação, guardando-os nos bolsos com o punhal novamente embrulhado. Estava ansioso por ir-se embora. O homem, mais o ambiente da loja com as suas recordações fascistas, faziam-no sentir-se pouco à vontade.
Bracciolini ficou a vê-lo sair apressado. Depois pegou no telefone e discou um número.
- Daqui é o Bracciolini - disse em voz baixa. - Alguém acaba de sair daqui, um inglês. Trazia as medalhas de Domenico Salvitti e também o punhal de Mosqueteiro. Tinha ainda outra coisa, um disco de identificação do Exército Real.
Amanhã já ia a meio quando Chapman voltou à Stampa Estera. Ligou imediatamente para o gabinete do Presidente da Câmara de Deputados, conforme Elena lhe tinha solicitado, e pediu informações sobre a investigação judicial às actividades de Cesare Scarfone, perguntando se já estaria agendada a votação sobre a suspensão da imunidade parlamentar de Scarfone. O pessoal do Gabinete recusou-se a comentar e transferiu a chamada para o Gabinete de Imprensa que, claramente desconhecedor do assunto, recorreu ao habitual expediente de declarar que oportunamente seria distribuído um comunicado.
Chapman sabia que uma história desta magnitude, e independentemente da vontade de Elena, nunca poderia ser um exclusivo seu. Ao fim da tarde já todos os jornalistas de Roma conheceriam o caso. Portanto, decidiu obter alguns favores compartilhando a notícia com os seus colegas da imprensa estrangeira e com a redacção do jornal de Enzo. Isso iria certamente remexer as coisas, criando assim um aumento da pressão sobre o gabinete do Presidente do Parlamento.
Após um intervalo para o café num bar ao dobrar a esquina, na Piazza San Silvestro, regressou à secretária e telefonou para Londres, dando-lhes a conhecer o que andava a fazer.
- Andy - disse-lhe secamente o chefe da secção estrangeira do jornal ao terminar a conversa -, precisamos de uma decisão tua sobre a oferta de colocação antes de todos morrermos de velhice.
- Ainda estou a pensar no assunto - respondeu Chapman.
-Já tiveste seis semanas para pensar. Precisamos de uma resposta dentro em breve.
- Dá-me mais uma quinzena.
O chefe suspirou. - Está bem, mas mais não.
Estava indeciso. Os anos que passara em Itália tinham modificado o seu modo de encarar a vida. O lugar de correspondente em Roma era uma ocupação tranquila. Os ingleses não estavam muito interessados nos italianos, pelo menos no que dizia respeito às páginas noticiosas (preferiam conhecer o que eles fariam na arena mais frívola das Viagens ou das Artes, ou então sob a designação genérica de Estrangeiros Cómicos). A Itália não era considerada uma nação a sério, como eram por exemplo a França ou a Alemanha ou os EUA, e, em resultado disso, não se esperava um grande contributo dos correspondentes instalados no país. Ao princípio fora frustrante ver os seus artigos, que tanto trabalho lhe tinham dado, postos de parte por falta de espaço ou por não serem considerados importantes. Agora, porém, estava feliz com este estado de coisas, pois podia escolher sem pressas os assuntos das suas crónicas, e dispunha de mais tempo para se sentar ao sol e absorver os sabores de Itália.
Tinha-se tornado preguiçoso, mas abaixo da superfície ainda existia um vestígio da sua velha ambição. O lugar de subchefe da secção estrangeira era uma cenoura tentadora, mas tinha fortes dúvidas sobre se realmente desejaria regressar a um trabalho de secretária em Londres, cidade pela qual não nutria a menor afeição.
Vestiu o casaco e saiu para tomar ar. Deambulou à sombra das árvores até chegar à Piazza Barberini e depois tomou um táxi que o conduziu à Biblioteca Nacional no outro extremo da cidade, nas cercanias dos feios edifícios da Universidade de Roma. Passou quase todo o resto do dia nos arquivos, à procura de informações sobre Domenico Salvitti. Não havia qualquer referência ao nome no índice do computador central, mas localizou algumas breves menções em biografias de Mussolini e uma passagem mais extensa num livro sobre a história da MVSN, a milícia dos Camisas Negras.
Salvitti era uma espécie de herói na mitologia fascista, sendo praticamente desconhecido fora desses círculos. Nascido em Nápoles em 1909, tinha apenas treze anos quando Musso-lini chegou ao poder. Como muitos dos seus contemporâneos, alistou-se em organizações fascistas da juventude, talvez mais pelo espírito de camaradagem, actividades desportivas e refeições gratuitas aos sábados do que por qualquer pendor político. A seguir à Classe Balilla - assim chamada em homenagem ao garoto genovês do século XVIII que arremessara pedras contra os soldados austríacos ocupantes - tinha sido promovido para os Mosqueteiros Balilla, depois para os Vanguardistas e por fim para os Giovani Fascisti. Tornara-se soldado a meio tempo na MVSN em 1930, e profissional a tempo inteiro em 1935, tendo então sido enviado para a Etiópia. No final dessa rápida campanha fora condecorado com a sua primeira Medalha de Valor Militar por ter capturado sozinho uma pesada metralhadora etíope próximo de Adowa, sendo promovido ao posto de Capo Manipolo dos Camisas Negras, equivalente ao posto de tenente no exército.
Contudo, foi na Campanha do Norte de África, na Segunda Guerra Mundial, que realmente conquistou a sua reputação. Era já um Centurione, segundo o costume da MVSN de conferir aos seus oficiais os mesmos postos usados nos antigos exércitos romanos, e foi enviado para a Cirenaica no Norte da Líbia com a Primeira Divisão dos Camisas Negras, a "23 Marzo", combatendo ao lado da 62ª e 63ª Divisões da Infantaria do Exército Real, cujos soldados regulares desprezavam a milícia fascista. Mas Salvitti iria demonstrar ser um combatente melhor e mais corajoso do que qualquer deles.
Em Dezembro de 1940, entrincheirados em Sidi Barrani no Deserto Ocidental, os italianos suportaram um intenso ataque da 7ª Divisão Blindada britânica - que mais tarde se tornaria famosa sob a designação de "Ratos do Deserto" -, tendo sido forçados a bater em retirada ao longo da costa. Após uma fútil resistência na cumeada de Halfaya, os italianos foram finalmente encurralados em Bardia, onde a 5 de Janeiro de 1941, após um assalto de três dias pelos britânicos, toda a guarnição - cerca de 45 000 homens - se rendeu. Domenico Salvitti não era um deles.
Na noite de 4 de Janeiro chefiara um pequeno grupo de Camisas Negras numa tentativa para furar o cerco das forças britânicas. Os seus companheiros foram todos capturados ou abatidos numa escaramuça fora dos muros da fortaleza costeira, mas Salvitti, decidido a não se render, abateu quatro soldados britânicos, apossou-se do jipe e escapou para oeste, em direcção às forças italianas que restavam em Benghazi.
O jipe avariou-se depois de ter percorrido cerca de trezentos e cinquenta quilómetros e Salvitti teve de percorrer os restantes quarenta quilómetros a pé, caminhando durante a noite pelo difícil terreno até que, prestes a morrer de cansaço e desidratação, foi encontrado por uma patrulha italiana. Foi conduzido a um hospital de campanha e depois transferido para Tripoli, e daí para Roma, apenas alguns dias antes de o resto do exército italiano da Cirenaica ser vencido e capturado pelos britânicos.
Em Itália esperava-o um acolhimento de herói, sendo condecorado pelo próprio Mussolini com a sua segunda Medalha de Valor Militar. O Duce, desejoso de se associar a um corajoso soldado, como se a glória deste pudesse ser transferida para ele, promoveu Salvitti a Seniare, posto equivalente a major nos Moschettiere dei Duce, o seu corpo pessoal de guarda-costas, e nomeou-o seu ajudante-de-campo, posição que conservou até ao final da guerra.
O que acontecera depois era um mistério. Chapman investigou todas as referências que conseguiu descobrir, mas não encontrou qualquer indicação do que sucedera a Salvitti depois da libertação de Itália pelos Aliados. Um livro sugeria que teria sido executado pelos guerrilheiros juntamente com os gerarchi fascistas fugidos de Milão com Mussolini. Sabia-se que os elementos mais conhecidos do séquito de Mussolini - Bombacci, Mezzacoma, Pavolini, Luigi Gatti e diversos outros - tinham sido abatidos por Garibaldini nas proximidades do lago Como. Era possível que Salvitti se encontrasse entre eles, mas a sua morte não tinha sido registada. Era tão grande o caos em toda a Itália por essa altura que se desconhecia o destino de milhares de pessoas.
Fez um intervalo nas suas pesquisas e saiu para ir a um bar comer uma sanduíche acompanhada por um chá frio. Tinha as suas suspeitas sobre o que acontecera a Domenico Salvitti depois de 1945.
Quando regressou à biblioteca, foi consultar o arquivo microfilmado dos jornais de Janeiro e Fevereiro de 1941, e leu-os dia a dia. Era um exercício lento e cansativo, ainda mais dificultado pela impressão quase ilegível de muitas das páginas.
Quase no final da tarde encontrou o que procurava. Numa edição do Popolo d'Italia, o jornal que o próprio Mussolini dirigira antes de chegar ao poder, viu uma fotografia de Salvitti a ser condecorado pelo Duce. A foto tinha sido tirada na Sala dei Mappamondo, o vasto gabinete de Mussolini no Palazzo Venezia que possuía um antigo mapa-mundo pintado nas paredes e um pavimento de mosaicos no qual as visitas femininas eram rotineiramente seduzidas pelo libidinoso ditador.
Salvitti estava em posição de sentido no uniforme de gala da MVSN enquanto Mussolini lhe afixava a medalha ao peito. Chapman estudou cuidadosamente o microfilme, fixando os granulados traços fisionómicos de Salvitti. Era um homem novo, de pouco mais de trinta anos, com cabeleira abundante e um rosto isento de rugas. A passagem de meio século tornava-lhe impossível ter a certeza absoluta, mas estava quase convencido de que era o mesmo rosto que vira na fotografia exposta na parede do gabinete de trabalho de Roberto Ferrero.
O pavimento do gabinete de Elena, do compartimento anexo e de uma parte do corredor estava quase completamente ocupado por instáveis rimas de dossiers e papéis. Alberto Baffi e as duas funcionárias analisavam-nos lentamente, produzindo um inventário de tudo o que tinha sido trazido da sede do MPI. A medida que cada rima ia sendo despachada, Elena removia os documentos e empilhava-os no tampo da sua secretária, entretanto aliviado da acumulação dos papéis habituais.
A quantidade de documentos impressionava. Examinando o mar de pastas de cartolina que a cercava, pensava se, pela primeira vez na sua carreira, não se teria lançado numa tarefa superior às suas possibilidades. Demoraria dias a examiná-los por alto, já para não falar de um exame mais detalhado.
Mas não estava arrependida. Ainda tinha o gosto de óleo de rícino na boca, ainda se recordava das mãos do facínora do capuz por baixo da sua saia. Se nada mais conseguisse, a polícia tinha ao menos dado prova da autoridade que ela tinha ao seu alcance, devolvendo-lhe um pouco da dignidade que lhe fora tão brutalmente arrancada na noite anterior.
Enfiou-se com dificuldade por detrás da secretária e abriu a primeira das pastas de cartolina. Sabia que tinha de ser selectiva a respeito do que lia, ou ficaria ali até à meia-noite durante a próxima quinzena. A falta de tempo ia ser sempre um problema, mas mais ainda desde que recebera um telefonema do secretário de um dos magistrados inspectores do Tribunale. Tinha atendido a chamada quase depois de regressar ao gabinete, informando-a de que fora contactado pelos advogados do MPI, que exigiam a devolução dos documentos. A audiência perante o juiz estava marcada para a manhã da quarta-feira seguinte. Sabia que se até lá não conseguisse encontrar nenhuma prova do
envolvimento do MPI em actividades ilegais, seria forçada a devolver os documentos.
Metade do dia de sexta-feira já tinha decorrido entretanto. Dispunha portanto de apenas quatro dias e meio. Aproximava-se um fim de semana quase interminável.
Os primeiros dossiers foram lentos e árduos de interpretar. Documentavam os regulamentos e as normas do MPI, páginas e páginas de palavrório sem significado. Mas tinha de as analisar. Eram textos ofensivos, neofascistas, cheios de bílis e retórica de extrema-direita, mas cuidadosamente compostos com o propósito de se conservarem do lado certo da lei. O subtexto poderia ser considerado uma incitação à agressão de imigrantes ou à profanação de templos judaicos ou muçulmanos, mas Cesare Scarfone era um advogado e político demasiado astuto para permitir a publicação de qualquer texto que o deixasse exposto a uma acção judicial.
Prosseguiu o exame metódico dos processos, procurando algo, fosse o que fosse, que pudesse ser interpretado como uma ligação, por mais ténue que fosse, aos grupos terroristas de extrema-direita como os Sansepolcristi. Era uma experiente analista de documentos, apta a detectar sem demora qualquer passagem relevante, mas ainda assim levou quase o resto da tarde a despachar a primeira remessa de processos. Baffi mandou vir sanduíches e café de um bar das proximidades e Elena tomou um almoço atrasado sentada à secretária, lendo a correspondência do MPI entre dentadas na sande de presunto e mozzarela.
Pouco depois surgiu Vespignani, encostando a sua robusta figura à parede ao lado da porta.
- Parece atarefada - comentou casualmente, observando a inundação de papéis.
- Quer alguma coisa, Luigi?
O subdirector do Ministério Público cofiou a barba, alisando os lustrosos pêlos sobre o duplo queixo.
- Cesare Scarfone telefonou há uns minutos - anunciou.
- Pois claro. - Nem levantou os olhos. Chegou ao final da última página do processo que estava a examinar e colocou-o no topo da rima dos concluídos ao lado da secretária.
- Ele não parecia muito satisfeito.
- Que pena tenho dele...
- Faço votos para que os seus preconceitos pessoais não interfiram no seu trabalho de delegada.
- Que pretende insinuar com isso?
- Nada, não se ofenda. - Vespignani levantou a mão, a recomendar calma. - Acho só que Corona é capaz de não ficar muito satisfeito se o pubblico ministero ficar demasiado envolvido em... bem, em questiúnculas políticas.
- Corona está em Milão - retorquiu Elena. - Quando regressar, irei falar com ele.
- Scarfone não é uma pessoa que se queira ter como inimigo. Tem mais influência do que se pensa.
- Existe algum objectivo nesta conversa? - perguntou Elena com rudeza.
Vespignani hesitou. - Scarfone diz que recebeu um avviso di garantia emitido por si, e uma informação de que solicitou uma suspensão da sua imunidade parlamentar. É verdade?
__É.
- Não deveria ter feito uma coisa dessas sem primeiro me consultar e ao nosso director.
- Não houve oportunidade. Tinha de agir prontamente - explicou.
- Devia ter esperado pela nossa aprovação.
- Não preciso da sua aprovação, Luigi.
- Que provas possui que impliquem Scarfone?
- As suficientes para justificarem um avviso.
- Quero ver cópias dos papéis que mandou a Montecitorio.
- Agora não.
- Agora, Elena.
Ela levantou a cabeça, de olhos dardejantes. - Escute - disse, irada. - Ainda há uns dias, quando voltei a casa, encontrei a minha gata massacrada no chão da cozinha. Depois testemunhei um comício dos rufias dos Camisas Negras em Ostia Antica, uma reunião ilegal na presença de Cesare Scarfone, e dificilmente escapei com vida. Depois, na noite passada fui atacada a alguns metros da Procura. Fui assaltada sexualmente e forçada a engolir óleo de
rícino. Pense em tudo isso, Luigi. Veja se gostaria que isso lhe acontecesse e pergunte a si mesmo por que será que está aí a assediar-me quando devia estar a fazer tudo o que pudesse para me auxiliar.
- Está a sugerir que Scarfone está por detrás destes assaltos?
- Estou certa disso. E vou fazê-lo sofrer por causa disso. Da próxima vez que lhe telefonar para conversar consigo, diga-lhe isso mesmo. E agora dê-me licença, pois tenho muito que fazer.
Dedicou toda a sua atenção à próxima pasta de documentos. Sem desviar o olhar, deu pela saída do subdirector. Ouviu-lhe os passos pesados nos mosaicos do corredor e esperou que se sumissem na distância. Porém, notou que tinham parado de repente.
Ergueu a cabeça. Escutou, e depois levantou-se, intrigada. Deu alguns passos para cruzar a porta aberta que dava para o gabinete de apoio. Baffi e as funcionárias estavam a uma das secretárias, completando o inventário. Passou por eles e espreitou para o corredor, para o qual extravasava o resto dos processos, encostados desordenadamente contra a parede.
Vespignani estava dobrado sobre uma das rimas de documentos, a examinar os processos. Deve ter dado pela presença de Elena, porque se endireitou e olhou, para ela. Nenhum deles disse uma palavra. Vespignani deu simplesmente meia-volta, apressando-se pelo corredor fora com as curtas pernas e os pés virados para os lados patinhando pelo chão de pedra com uma andadura que fez Elena pensar num pinguim obeso.
- Sou eu, signora. O seu vizinho de cima, o Chapman - disse Andy, levantando a voz.
Uma chave rodou na fechadura do outro lado e a porta abriu-se o suficiente para mostrar o rosto enrugado da sua idosa vizinha.
- Desculpe o incómodo. Vinha buscar os papéis que lhe deixei.
A senhora Campanella soltou a corrente e abriu a porta de par em par.
- Pode entrar. Estou agora mesmo a fazer chá. Posso oferecer-lhe uma chávena?
- É muito amável.
Seguiu-a até à sala de estar. Não queria realmente demorar-se, mas parecia-lhe má educação recusar o convite. As persianas estavam fechadas, dando à sala uma atmosfera sombria que era realçada pelo mobiliário escuro e pelo tom verde-gar-rafa do tapete que revestia o chão.
A senhora Campanella abriu uma das persianas para deixar entrar a luz do fim da tarde. Lá fora o ruído do trânsito ecoava nas ruas estreitas, e o bater das panelas e dos tachos na cozinha do restaurante situado no piso térreo prenunciava o iminente influxo da clientela.
- Ora cá estão eles.
Removeu o envelope castanho de uma gaveta da vasta cómoda de carvalho que ocupava quase toda a parede da sala e entregou-lho.
Chapman agradeceu e enterrou-se na maciez de uma cadeira de braços. Nunca tinha estado dentro do apartamento da idosa senhora. Ao longo de cinco anos mal tinham trocado alguns bons-dias. Desconhecia os detalhes da sua vida, quem era, o que faria com o seu tempo.
Olhou em volta. A casa tinha o aspecto de lar de pessoa de idade: mobiliário sólido e bem construído, demasiado volumoso para o espaço disponível, como se tivesse vindo de uma casa de maiores dimensões; uma profusão de recordações e haveres acumulados ao longo de décadas e nunca postos de parte, um leve mas característico cheiro a polimento e decadência que ele sempre associava aos idosos.
Viam-se candelabros e ícones de- origem oriental sobre a pedra da lareira e em diversas superfícies em redor da sala. Recordavam-lhe as igrejas ortodoxas que visitara na Grécia. Talvez a senhora fosse de origem grega, e não polaca como sempre imaginara. Mas na parede ao lado da janela via-se uma imagem religiosa emoldurada, com dizeres em volta que pareciam escritos em caracteres cirílicos e não gregos.
Abriu a aba do envelope e deitou o conteúdo para o colo, para o examinar enquanto a dona da casa preparava o chá. Observou primeiro a fotografia a preto e branco. Fora obviamente tirada no tempo da guerra, ainda que nada mostrasse que pudesse indicar quando ou onde.
Mussolini estava em primeiro plano e ao centro, cercado por diversos homens de meia-idade com fatos escuros. Olhava para a objectiva com uma expressão de desafio, peito esticado para fora, costas direitas como uma tábua. Podia ter sido uma das milhares de fotografias do Duce publicadas nos jornais italianos. Exibia todas as características: o ditador em uniforme de gala, de metralhadora pendurada ao ombro, túnica carregada com todas as medalhas que conferira a si mesmo, dominando os homens que o cercavam, que sempre pareciam frágeis e apagados em confronto com o seu líder.
Contudo, havia qualquer coisa que convencia Chapman de que não se tratava de uma foto de propaganda. Por um lado, ainda que Mussolini estivesse obviamente a posar para o retrato, os outros homens do grupo claramente não estavam. Pareciam embaraçados, acanhados mesmo, como se a fotografia estivesse a ser tirada contra sua vontade. Não fazia ideia de quem seriam, mas calculava que fossem apenas alguns dos acólitos e acompanhantes com que o Duce sempre viajava.
Atrás do grupo, dispostos de uma forma desordenada que nunca seria permitida numa foto de propaganda, viam-se diversos soldados alemães. Não da Wehrmacht mas das SS. Era um detalhe interessante. Não era perito em História italiana, mas a presença dos soldados das SS, conjuntamente com o rosto pálido e emaciado de Mussolini, sugeria-lhe fortemente que a fotografia teria sido tirada perto do final da guerra, quando as tropas SS controlavam a república-fantoche de Saló e a saúde do Duce declinava rapidamente.
Observou com mais cuidado o fundo da fotografia. O grupo encontrava-se no pátio de um edifício que lhe parecia familiar. Uma elegante fachada de alvenaria, com graciosos portais em arco. Estava certo de já a ter visto, mas não conseguia recordar-se do local.
Levantou o olhar quando a senhora Campanella veio da cozinha transportando um tabuleiro com os apetrechos do chá.
- Tem a certeza de que tem tempo? - perguntou ela, descansando o tabuleiro na mesinha à frente dele.
- Certamente - respondeu Chapman.
Colocou a fotografia e os papéis ao lado do tabuleiro e sorriu à idosa senhora. Devia andar na casa dos setenta anos, com profundas rugas no rosto, na testa e em redor dos olhos e da boca. Em algumas pessoas de idade as rugas eram como linhas de riso exageradas, realçando o calor e a bondade dos traços fisionómicos. Contudo, no caso da senhora Campanella pareciam a manifestação superficial de uma profunda melancolia. Raramente tinha visto um rosto tão triste num ser humano.
- Há tantos anos que moramos no mesmo prédio e é a primeira vez que nos sentamos a tomar chá - comentou ela no seu italiano com pronúncia estranha.
Encheu uma chávena e passou-a a Chapman por cima da mesinha.
- É uma patetice, não acha? - replicou ele, e fez uma pausa. - Estou a tentar reconhecer o seu sotaque, signora. De onde é natural?
- Da Jugoslávia. Sou sérvia.
- Ah. Então, e os escritos naquela imagem?
- São servo-croatas. Bem, sérvios - corrigiu-se. - Os croatas usam o alfabeto romano. Mas estou em Itália há cinquenta anos, desde o fim da guerra. O meu marido era italiano. É aquele ali. - Apontou para um retrato emoldurado numa mesa a um canto da sala. - Faleceu há quinze anos.
Pegou na chaleira para encher a sua chávena e estendeu a mão para afastar do tabuleiro os papéis de Chapman. - É melhor tirá-los daqui, para que não se sujem.
- Com certeza. - Chapman fez deslizar a fotografia e as cartas sobre a mesa.
Ouviu um súbito e intenso barulho de qualquer coisa a cair. Levantou o olhar. A velhota deixara cair a chaleira contra o tabuleiro e ficara deitada de lado, com o líquido a verter por baixo da tampa. Chapman deitou a mão para a endireitar.
- Minha senhora...
A velha senhora estava imóvel, de olhos pregados nas cartas que estavam sobre a mesa, com a boca semiaberta e exibindo no rosto uma expressão de horror que o estarreceu.
- Signora, que se passa?
A idosa senhora engoliu em seco. Parecia incapaz de deixar de olhar para os papéis. Chapman viu de relance a carta amarelecida no topo da pilha. O cabeçalho dizia Nezavisna Drzava Hrvatska, e por baixo tinha as palavras Za dom Spremni.
- É por causa das cartas? Signora?
Sentiu a boca secar-lhe. Qualquer coisa se passava de terrivelmente errado. Era como se a velha estivesse temporariamente paralisada. Tinha o corpo rígido, os músculos como que petrificados. Mas era o rosto dela que mais o horrorizava. Uma mistura de choque e terror solidamente esculpida na sua face, transformando-a numa máscara de dor e sofrimento.
- Signora... - Tocou-lhe levemente num braço.
- Ustashe - sussurrou ela.
- Perdão?
- Prebilovci.
Afastou o olhar com grande esforço . Estava agora a tremer, com a boca e o queixo estremecendo como se estivesse com febre.
- Posso ir buscar-lhe qualquer coisa? - perguntou Chapman ansiosamente. - Um copo de água? Um pouco de chá?
A senhora Campanella abanou a cabeça. - Vá-se embora agora.
Chapman levantou a carta no ar. - O que é isto?
A idosa senhora recuou, fazendo um gesto para afastar a carta de si. - Vá, agora. Não posso falar disso.
- Falar de quê?
- Por favor, vá-se embora. Leve-as. Leve-as!
Chapman reuniu a fotografia e os papéis e guardou tudo no envelope.
- Lamento muito - disse. - Não queria perturbá-la. Tem a certeza de que não posso fazer nada? Quer que chame um médico?
A senhora Campanella indicou-lhe a porta, abanando a cabeça mas incapaz de falar. Chapman observou-a, sentindo-se quase doente de preocupação. Mas a sua presença parecia perturbá-la ainda mais. Atravessou a sala e voltou-se para trás uma última vez. A pobre senhora olhava-o fixamente, olhando através dele como se visse alguma coisa para além dele ou então profundamente encerrada na mente dela. Na mesa baixa, o chá derramado transvazava do tabuleiro e pingava vagarosamente para o tapete.
As costas e os ombros de Elena estavam doridos por ter estado sentada durante tanto tempo com as costas recurvadas. Os olhos ardiam-lhe e sentia uma dor latejante no topo da cabeça, como se o interior do crânio estivesse a ser martelado. Levantou-se da secretária e espreguiçou-se. Depois massajou as fontes com as pontas dos dedos, tentando aliviar a dor de cabeça.
Tinha estado a ler sem interrupção durante quase seis horas, e só desejava chegar a casa e deitar-se num quarto às escuras. Contudo, sabia que tinha de persistir. A rima de processos concluídos depositada no chão ao lado da secretária era decepcionantemente diminuta, correspondendo talvez a uma vigésima parte, ou ainda menos, do total que teria de ler antes de quarta-feira. Se não se forçasse a prosseguir, ignorando a fadiga física e mental, nunca conseguiria completar a tarefa.
Era difícil manter-se concentrada, e mais difícil ainda não se sentir desencorajada perante o enfadonho trabalho à sua frente. Tinha lido talvez trinta pastas, não encontrando nada que pudesse, de perto ou de longe, relacionar o MPI com qualquer actividade ilegal. Não encontrara nenhuma referência aos Camisas Negras, nenhuma listagem com nomes de conhecidos meliantes neofascistas, nenhuma correspondência relacionada com o comício de Ostia Antica. Os documentos eram tão insípidos e inócuos como a acta de uma reunião paroquial. Era como se todos os elementos incriminantes tivessem sido removidos e destruídos selectivamente.
Entrou no gabinete do secretariado, tentando exercitar as pernas e os quadris. Baffi e as duas funcionárias tinham já ido para casa, como aliás quase todos os que trabalhavam no edifício. Ninguém trabalhava até tarde a uma sexta-feira se houvesse forma de o evitar. Bocejou e pôs-se à escuta. O Procura estava estranhamente silencioso. Normalmente gostava disso, mas nesta noite o silêncio apenas parecia ampliar a sua sensação de isolamento, a impressão de que estava a desperdiçar o seu tempo numa perseguição que acabaria por se revelar fútil e infrutífera.
Deu meia-volta para regressar ao seu gabinete. E estacou.
Destruídos.
Os processos estavam demasiado limpos para merecerem crédito. O MPI era um partido político extremista, e estava-se em Itália, pelo amor de Deus. Tinha de haver alguma coisa nos seus arquivos que, se não fosse descaradamente ilegal, seria comprometedora sob outros aspectos, talvez embaraçosa, talvez suficiente para provocar um escândalo político ou a ira do público sem chegar a ser eminentemente criminosa. Mas não existia nada.
Lembrou-se do jovem de cabeça rapada que tinha sido arrastado para fora de um dos gabinetes do MPI. Estava a tentar destruir documentos, tendo sido apanhado a meio dessa tarefa. Os registos. O agente da polícia tinha-lhe entregado um maço de pastas de cartolina verde que ela juntara às outras pastas, mas não tinha ideia do que lhes acontecera depois. Talvez tivessem sido metidas num dos sacos de plástico e trazidas na furgoneta para o Procura.
Regressou à secretária e folheou o inventário que Baffi preparara. Era pouco mais do que uma resumida listagem das pastas e do seu conteúdo, verificado através de um rápido olhar aos títulos das páginas e não por um estudo detalhado. Já o tinha lido por várias vezes sem encontrar nada que pudesse despertar-lhe atenção. E esta vez não foi diferente. Não viu nada que lhe parecesse suspeito ou fora do vulgar.
Voltou a atenção para os montes de papéis no gabinete, examinando cada pilha e removendo todas as pastas de cor verde. Depois fez o mesmo com as pilhas existentes na sala do secretariado e no corredor. Juntou-as todas e levou-as para a sua secretária. Eram dezasseis ao todo, todas exteriormente idênticas. Sentou-se e começou a examiná-las, uma a uma.
Na sétima pasta encontrou o que pretendia. Era um tipo de documento que facilmente passaria despercebido: apenas algumas folhas de papel cheias de números dactilografados que pareciam extractos de contas. O que lhe chamou a atenção foi o valor das verbas indicadas. Examinou o documento lentamente, tentando absorver o seu significado. Nem sequer era um documento do MPI. O cabeçalho na primeira página identificava-o como um extracto de conta emitido pela União de Bancos Suíços em Zurique. As páginas seguintes detalhavam as transferências de fundos provenientes de Itália no decurso dos últimos doze meses para diversas contas abertas na Suíça em nome individual.
Leu a lista de nomes e sentiu o coração pular violentamente, como se tivesse recebido uma descarga de um aguilhão eléctrico para gado. Sentiu a pele pegajosa de suor e as mãos começaram a tremer-lhe. Dio. Percorreu de novo a lista. E depois mais outra vez. Não havia engano. Empurrou a cadeira para trás e ficou imóvel durante muito tempo, sem saber o que fazer. Depois estendeu a mão para o telefone e discou um número no Palácio da Justiça.
A casa situava-se perto da Villa Ada, no extremo norte da cidade, num condomínio fechado e exclusivo que era tão protegido e resguardado que se assemelhava mais a uma prisão de máxima segurança do que a uma zona residencial. Só que as casas, construídas por entre luxuriantes jardins com árvores adultas e arbustos para proteger a privacidade dos seus ocupantes, nunca poderiam ser comparadas a qualquer parcela de uma instituição penal.
Eram mansões amplas e dispendiosas e o inebriante aroma do dinheiro ressumava das suas janelas amplamente iluminadas e dos opulentos exteriores. Mas por debaixo dos ornatos superficiais emergia um outro perfume, um perfume encasulado nas altas vedações metálicas que rodeavam o enclave, nas câmaras de circuito fechado que controlavam todo o recinto, na presença constante dos seguranças que patrulhavam as ruas e no posto de controlo situado na única entrada para a propriedade. Era o perfume que, em todo o mundo, é indissociável do cheiro do dinheiro e dos seus privilégios: o aroma do medo.
O carro da Polícia Judiciária em que Elena se deslocava foi imobilizado na barreira que bloqueava o acesso ao condomínio. Depois de se identificar, ficou à espera que o guarda uniformizado fizesse um telefonema para confirmar que a sua chegada estava prevista. Não havia visitantes inesperados neste verdejante arrabalde da cidade.
Completada a verificação, foi autorizada a seguir caminho. Algumas centenas de metros mais adiante abriu-se um par de portões de aço à sua esquerda e o agente que conduzia o carro virou para uma alameda e parou por fim em frente da porta aberta de uma ampla vivenda de dois andares com varandas de pedra no exterior das janelas dos quartos. Havia outros carros arrumados no recinto fronteiro da casa, os Alfa Romeos azuis-escuros usados pelos ministros do governo e por influentes figuras públicas. Uma empregada doméstica de avental branco aguardava-a no limiar para a acompanhar pelo corredor até a um espaçoso gabinete de trabalho com as paredes revestidas de prateleiras cheias de livros de Direito encadernados a carneira.
- O juiz Bassano vem já - disse a empregada, deixando-a sozinha na sala.
Elena deixou-se ficar exactamente onde estava. Não se atrevia a mover-se. Sentia no estômago uma bola do tamanho de um melão e parecia-lhe estar a aumentar constantemente de volume. Sentia-se de novo como uma nervosa colegial, aguardando no gabinete da Madre Superiora o castigo por alguma transgressão. Podia ouvir vozes e ocasionais risadas através da janela aberta, o tilintar de talheres na porcelana. Isto fê-la sentir-se ainda pior, sabendo que estava a interromper um jantar.
- Dottoressa, queira sentar-se.
Emilio Bassano entrou na sala e sentou-se à secretária. Era um homem musculoso e de ombros amplos, na casa dos sessenta, com cabelo prateado e espessas sobrancelhas que lhe davam um ar de estar permanentemente carrancudo. Elena conhecia-o do tribunal e também de o encontrar em casa dos pais. Fora colega do pai na Faculdade de Direito da Universidade de Roma e os dois continuavam amigos. Deve tê-la reconhecido, mas não o manifestou. Esta não era uma visita de sociedade.
- Em que posso ajudá-la? - perguntou com voz grave.
Elena engoliu em seco e depois explicou-lhe como chegara à posse do documento que tinha nas mãos. O juiz Bassano observava-lhe o rosto, escutando atentamente cada palavra. Exibia a imobilidade do poder, a tranquilidade de quem estava habituado a conseguir o que queria sem oposição. Por alguma razão era o Procurador Geral do Tribunal de Cassação, o supremo tribunal do país, e membro sénior do Conselho Superior de Magistratura, que regulava todos os aspectos do sistema judicial italiano. Era um dos mais respeitados advogados de Itália, um juiz que se dava não só com os seus pares mas também com senadores, ministros do gabinete e com o próprio Presidente da República. Elena deu por si a imaginar quem mais estaria presente no jantar que ela estava a perturbar.
Passou-lhe as folhas de papel por cima da secretária.
- Achei melhor trazê-los imediatamente à vossa atenção - disse ela. - Creio que haverá um problema com o terceiro nome da lista.
O juiz pôs os óculos de aro metálico e estudou os papéis durante algum tempo. Depois levantou a cabeça e suspirou com penosa resignação.
- Sim, dottoressa, creio que tem razão. Temos realmente um problema.
O terceiro nome da lista era Alessandro Corona.
Chapman imobilizou-se ao abrir a porta de casa, dilatando as narinas ao detectar um perfume que lhe era familiar mas que ao mesmo tempo não conseguia identificar, um aroma adocicado e ligeiramente enjoativo que parecia permear o pesado ar da tarde. Foi só quando uma voz feminina o chamou da sala de estar que percebeu quem era.
- Andy? És tu?
Fechou a porta atrás de si e por um momento deixou-se ficar ali encostado, tentando decidir o que fazer.
- Andy?
Recuperou a voz. - Sim, sou eu.
Atravessou o corredor e entrou na sala. Gabriella estava reclinada no sofá a beber um copo de vinho e a ler uma revista de moda com uma jovem anoréxica e petulante na capa.
- Ciao - disse casualmente. Nunca mais pensara nela.
- Julgava que chegasses a casa mais cedo - disse ela, repreendendo-o. - Sabes que não gosto de estar à espera. Baloiçou as pernas para fora do sofá e deixou-se ficar sentada. O roupão de seda cor-de-rosa abriu-se um pouco. Podia ver que ela estava nua por baixo do roupão. Sentiu a boca secar de repente. Não sabia como iria resolver isto.
- Gabriella...
- Bebe um pouco de vinho - sugeriu ela. Encheu-lhe um copo de Soave fresco e inclinou-se para lho entregar, sorrindo ao vê-lo observar a abertura do roupão.
- Tiveste saudades minhas? - perguntou.
Chapman bebeu um pouco de vinho. Detestava ocasiões destas.
- Devias ter telefonado primeiro - comentou.
- Queria fazer-te uma surpresa.
Beijou-o na boca. Sentiu-lhe o gosto do bâton, o cheiro do perfume. Uma vaga erótica que não conseguia controlar invadiu-lhe as veias. Ela estava agora a desabotoar-lhe a camisa, passando as mãos pela abertura e acariciando-lhe os músculos do peito e dos ombros. Sabia que tinha de lhe contar, era sua obrigação. Contar-lhe já.
- Gabriella...
Ela reclinou-se nas almofadas e abriu o roupão.
Merda, pensou, só mais uma vez, em atenção ao passado.
Para Elena, a noite passou numa névoa de intensa mas calma actividade, cujos detalhes mal conseguia recordar passadas doze horas. Lembrava-se do catártico sentimento de alívio que sentira ao ver Emilio Bassano tomar conta do caso, removendo-lhe de cima dos ombros o peso de responsabilidade que sentia desde que tinha visto o nome de Corona na lista.
A partir desse momento pareceu-lhe ser apenas uma espectadora do complexo procedimento legal que o juiz pôs em movimento. Permaneceu no gabinete dele, pacificamente sentada do outro lado da secretária, vendo-o fazer uma série de telefonemas, escutando a sua voz calma e tranquilizante enquanto tratava de fazer suspender das suas funções o director do Ministério Público até ficar concluída a investigação das suas relações financeiras com o MPI. Depois falou com o Presidente do Tribunal de Cassação e com o próprio Ministro da Justiça, e a seguir falou para Bolonha a solicitar o envio para Roma de uma equipa independente do pubblico ministero daquela cidade para iniciar o inquérito.
Estava apenas vagamente ciente do que se estava a passar. Uma parte do seu cérebro parecia ter-se desligado logo que Bassano tomara conta do caso e limitara-se a ficar sentada, como que meia-adormecida, até que por fim ojuiz se levantou da secretária.
- Já está fora das suas mãos, dottoressa - declarou ojuiz.
Deu-lhe o braço e acompanhou-a ao longo do corredor até à porta dianteira. - Tomou a decisão acertada ao resolver vir falar-me. Agora não pode fazer mais nada. Boa noite.
Elena desceu os degraus até ao carro. Quando o agente motorista lhe abriu a porta traseira do carro, deitou um breve olhar para a casa, vendo a silhueta de Bassano no limiar da porta, com o rosto na penumbra, levantando a mão numa breve despedida e voltando depois para junto dos convidados.
O apartamento estava às escuras quando chegou a casa. Percorreu todas as divisões a acender as luzes, tentando torná-la mais acolhedora, menos vazia. Tinha vivido sozinha durante muito tempo e pensara que nunca se adaptaria a ter de novo um homem em casa. Mas agora sentia-se decepcionada ao ver que Chapman não estava lá. Era uma patetice, era irracional, dado que se conheciam há tão pouco tempo. Mas estivera esperançada de que ele estaria a aguardá-la.
Foi fazer café e debicou um pedaço de queijo e algumas fatias de presunto ressequido que encontrou no frigorífico, sem saber com que iria ocupar-se durante o resto do serão. Estava cansada mas não lhe apetecia deitar-se. Não podia pensar em ir trabalhar, não havia nada na televisão, e quando tentou ler um livro não conseguiu concentrar-se o suficiente para passar da primeira página.
Deambulou por toda a casa, pensando: o que se passa comigo? Finalmente cedeu. Entrou no quarto e pegou no telefone.
- Atendes ou não? - perguntou Gabriella.
- O quê?
- O telefone.
Chapman abriu os olhos, estremunhado. Estavam ambos estendidos na cama, nus e exaustos. Arrastou-se para fora da cama e saiu para o corredor aos tropeços.
- Pronto.
- Sou eu - disse Elena. - Estou a ver que voltaste a tua casa.
O cérebro confuso de Chapman clareou num instante. Olhou na direcção da porta aberta do quarto e levou o telefone para a cozinha.
- Pois - disse em voz baixa. - Pensei que já seria seguro voltar.
- Podes vir até cá, se quiseres.
-Já é um bocado tarde - disse ele. Sabia que era uma desculpa frágil, e por isso acrescentou: - Estou aqui a arrumar umas coisas. - Seguiu-se um silêncio incómodo. - Telefono-te amanhã. Podíamos fazer qualquer coisa ao serão. Ir jantar fora. Talvez um cinema.
- Está bem - respondeu Elena com simplicidade. Percebia que ele não queria falar. Desligou, desejando agora não ter telefonado.
Chapman colocou o receptor no descanso e levantou os olhos para ver Gabriella parada à porta da cozinha. Tinha vestido o roupão e olhava-o com uma expressão que o enervava.
- Quem era? - perguntou ela.
Hesitou. Pensou dizer-lhe uma mentira, inventar qualquer história que lhe permitisse adiar o momento em que teria de lhe contar. Mas isso iria complicar ainda mais as coisas.
- Uma amiga (2) - respondeu, desejando que a língua italiana fosse tão imprecisa como a língua inglesa. Pelo género feminino da palavra em italiano, ela ficou logo a saber que a pessoa que telefonara era uma mulher.
- Quem é ela? - perguntou calmamente.
- Apenas alguém que conheço.
- Que conheces desde quando?
- Há pouco tempo.
- Meu sacana...
Sabia que não podia evitar a raiva dela. Gabriella tinha uma disposição volátil, imprevisível. A tarefa não ia ser fácil.
- Quem é ela? - repetiu Gabriella.
- Não precisas de saber isso.
- Não me venhas com merdas. Tenho o direito de saber.
(2) "A friend", no original em inglês, que tanto pode significar "um amigo" como "uma amiga". (N. do T.)
Chapman não cedeu. - Escuta, Gabriella. Ia acabar por acontecer, não achas? Não façamos isto com acrimónia.
- Era o que te convinha, não era? Andas a dormir com ela?
Chapman baixou o olhar. Não tinha muito jeito para cenas.
- Andas, não andas? És um merdoso, Chapman. Não tencionavas dizer-me, pois não? Pensavas que podias andar a pôr-te nas duas.
- Não foi nada disso - protestou ele debilmente.
- És como todos os homens, com o cérebro na ponta da picha. Querias passar de mulher para mulher sem sofrer as consequências. Bem, não penses nem por um momento que vou ser toda doçuras, meu nojento.
Prosseguiu em termos idênticos durante algum tempo, dizendo-lhe exactamente o que pensava dele com uma fluência que o fez imaginar se ela teria dito o mesmo a algum dos seus predecessores. Deixou-a falar, sabendo que a raiva acabaria por se diluir.
Quando ela acalmou, perguntou-lhe: - Que pensavas que iria acontecer? Achavas que íamos continuar indefinidamente?
- Nunca pensei que fosse acabar assim.
- Tu és casada, Gabriella.
- Portanto, achas que não faz mal deitares-me fora? Há meses que dormes com esta "amiga", não é verdade? Mantendo-me de reserva, como uma sobremesa?
- Não, nada disso - afirmou Chapman. Não lhe parecia valer a pena chamar-lhe a atenção para o facto de ele ter sido "mantido de reserva" como sobremesa dela durante o último ano. - Na realidade só a conheci na semana passada.
- E foi amor à primeira vista, está-se mesmo a ver - exclamou ela com sarcasmo. - Meu grande vigarista. Que tal é ela? Mais nova do que eu?
- Não pretendo discutir isso. É melhor ficarmos por aqui. Lamento muito, Gabriella.
- Lamentas? Também eu lamento. Lamento ter tido alguma coisa a ver com um merdoso como tu. Vai para o inferno!
Voltou-lhe as costas e marchou furiosamente para o quarto. Não se aproximou dela. Podia ouvi-la a vestir-se e a arrumar a maleta. Estava ainda lívida quando reapareceu à porta da cozinha. Trazia na mão as chaves do apartamento.
- Toma! - disse ela. - Dá-as à tua nova amiga.
Atirou-lhe as chaves. Ele levantou os braços para se proteger, mas o molho de chaves atingiu-o no ombro, cortando-lhe a pele desprotegida.
Gabriella pegou na maleta e encaminhou-se para a porta. Chapman sentiu o chão vibrar quando ela bateu com a porta atrás de si. Respirou fundo, aliviado por tudo ter terminado, satisfeito por ela ter tido uma tal reacção. Se ela se tivesse mostrado agradável e compreensiva, o sentimento de culpa teria sido muito mais forte. Era o orgulho dela que ele ferira, claro, e não as emoções. Ela não o amava, sempre o soubera. Depressa encontraria alguém para satisfazer as suas necessidades, e Chapman, como os anteriores amantes, ficaria esquecido nalgum canto remoto do seu pensamento.
Dirigiu-se à casa de banho e lavou o sangue do ombro.
Elena esforçou-se para se levantar cedo na manhã seguinte. Era sábado, mas tinha no gabinete um enorme monte de processos para estudar. A suspensão do chefe não iria alterar os seus objectivos. Continuava a desejar encontrar alguma coisa com que pudesse acusar Cesare Scarfone.
Estava prestes a sair de casa quando ouviu tocar a campainha da porta da rua. Dirigiu-se ao intercomunicador no corredor.
- Pronto.
- Uma encomenda para Fiorini.
O mensageiro trouxe o pacote até ao patamar e Elena assinou o talão. Era um envelope formato A4 com uns cinco centímetros de espessura. Abriu-o e extraiu um maço de papéis.
Não me digam que é mais papelada para eu ler, pensou aborrecida, procurando alguma mensagem por entre as folhas. Mas não encontrou nada. Verificou o envelope. Estava vazio e não tinha nada que indicasse o remetente. Uma encomenda anónima. Os sinais de perigo começaram a piscar-lhe dentro da cabeça. Já recebera outras encomendas anónimas, mas enviadas sempre para o serviço, nunca para casa. Era preocupante receber uma encomenda anónima na sua própria residência, e o momento do envio perturbava-a ainda mais.
Ficou a olhar para os papéis durante muito tempo, sem lhes tocar. Pensou em levá-los consigo para a Procura, mas não sabia a que se referiam. Finalmente, pegou na folha de cima e leu-a. Depois releu-a. Não conseguiu perceber do que se tratava. A leitura das páginas seguintes não a esclareceu. Eram documentos jurídicos, demasiado complicados para os entender de imediato.
O telefone tocou. Saiu para o corredor e levantou o auscultador.
- Já chegaram, dottoressa? - perguntou uma voz de homem. - Espero que já tenham chegado.
- Quem está ao telefone? - perguntou Elena.
- Não estou a gostar daquilo que está a fazer. Acho que chegou a altura de pensar melhor no assunto, não lhe parece?
Era Scarfone. Agora reconhecia-lhe a voz. Havia qualquer coisa de satisfação maldosa no seu tom.
- O que é que pretende? - perguntou.
- Sabe bem o que pretendo. Aprecie a leitura, dottoressà.
Ouviu um estalido quando ele desligou. Colocou o auscultador no descanso e voltou a olhar para os documentos na cozinha. Folheou-os e depois leu um ou dois com mais atenção. De repente, foi com um baque do coração que compreendeu o que representavam. Sentiu as pernas enfraquecerem e teve de se sentar por um momento à mesa. Estava entorpecida com o choque. Os seus sentidos pareciam ter deixado de funcionar. Os ruídos vindos da rua ficaram obliterados e perdeu toda a sensação dos dedos, pelo que já não podia sentir os papéis que segurava nas mãos. Os olhos fixavam-se nas palavras mas não conseguiam captar o seu significado. Era como se o cérebro tivesse sido anestesiado ou envolto numa espessa camada de algodão.
Fez um esforço para se mover, dirigindo-se a um dos armários à procura de uma velha garrafa de grappa que sabia ter guardado ali. Encheu um copo e bebeu-o de uma só vez, tossindo quando o líquido lhe causticou a garganta. Estava demasiado confusa para fazer qualquer coisa, e ficou ali a olhar fixamente pela janela com olhos que não viam nada, desejando que Chapman estivesse ali consigo para lhe segurar a mão e dizer-lhe que não devia preocupar-se. Mas os homens nunca estavam presentes quando se precisava deles.
Passado muito tempo encheu-se de coragem e foi ao telefone. Ligou para a prisão Regina Coeli, identificou-se e transferiram-lhe a chamada para o gabinete do director.
- Gostaria de ir aí esta manhã para interrogar um prisioneiro - explicou.
- Como se chama ele? - perguntou o director da prisão.
- Germinazza - disse Elena. - Enrico Germinazza.
Chapman experimentou primeiro bater à porta da senhora Campanella. Tocou por diversas vezes à campainha e esperou alguns minutos junto da porta, chamando-a pelo nome antes de desistir por fim e descer a escada. Se ela não estava em casa, calculava onde pudesse estar.
Virou a esquina e desceu a estreita rua que ia dar ao pequeno largo no qual se realizava todas as manhãs um mercado de fruta e hortaliça. Encontrou-a a seleccionar tomates maduros num dos lugares de venda, com o seu cesto entrançado de compras já carregado e pendente de um braço ossudo.
Removeu-lhe o cesto do braço. - Deixe que eu a ajude, signora. Isto parece pesado.
A senhora Campannella levantou o olhar, prestes a protestar, mas quando viu quem era fez um aceno de aquiescência e deixou-o pegar no cesto. Entregou o saco de tomates ao dono da tenda para que este o pesasse.
- Mais alguma coisa? - perguntou o tendeiro.
À idosa senhora abanou a cabeça. - E basta cosi.
Chapman pegou no embrulho e colocou-o cuidadosamente ao lado da alface e dos espinafres que espreitavam do topo do cesto. Depois caminhou ao lado dela enquanto regressava a casa.
- Vim pedir-lhe desculpa - disse ele. - Por a ter transtornado ontem. Não era de forma alguma a minha intenção.
- Tem de perdoar a minha reacção - replicou ela. - Já se tinha passado muito tempo desde que vi aquelas palavras. Apanharam-me de surpresa.
- As palavras? Refere-se ao cabeçalho das cartas? O que significam?
A idosa senhora não respondeu. Seguiram em silêncio ao longo da rua, enquanto Chapman encurtava os passos para se conservar a par. Ela respirava penosamente, mas não percebia se era por causa do esforço ou se era por aquela pergunta a ter perturbado de novo.
Só voltou a insistir com ela quando chegaram à porta do edifício. - Signora, sei que isto lhe causa sofrimento, mas tenho de saber. Preciso da sua ajuda. Que se passa com a carta que viu e que tanto a incomodou?
- A Ustashe - disse a senhora Campanella com a voz fraquejando um pouco. - Sabe o que era a Ustashe}
- Sei.
- Leia a respeito de Probilovci - acrescentou ela. As palavras saíam-lhe com dificuldade e percebia que estava a transtorná-la de novo. Mas não podia deixar o caso por ali. Sabia que era importante.
- É uma pessoa ou um local? - perguntou.
- Eu estive lá - murmurou ela. Levantou a cabeça. Tinha lágrimas nos olhos. - Sobrevivi, mas não posso falar daquilo.
Pegou no cesto de compras que Chapman lhe entregou e entrou no edifício sem olhar para trás.
Chapman estava a acostumar-se ao ambiente no interior da Biblioteca Nacional: o ar morno circulando pelos grandiosos corredores, o cheiro da poeira e do cabedal antigo, os leitores com aspecto de estudiosos deambulando por entre as filas de estantes ou dobrando-se sobre os livros com os seus meios óculos de leitura pendurados na ponta do nariz. Parecia-lhe tão atipicamente italiano, tão distanciado do ruído incessante e da azáfama da cidade lá fora, que julgava estar num outro país. Contudo, apesar do seu comportamento gregário, os italianos eram sob muitos aspectos um povo melancólico e ponderado. Gostavam de dispor de tempo para pensar e ler, e para procurar conforto nos ricos anais do seu passado.
Procurou Ustashe no índice central e encontrou diversas referências que depois localizou em livros e periódicos. Sabia que a Ustashe era uma milícia fascista que realizara uma campanha de terror e genocídio na Jugoslávia durante a Segunda Guerra Mundial, mas precisava de reavivar os detalhes. Fundada em fins da década de vinte por um advogado de nome Ante Pavelic, a Ustashe era originalmente uma organização terrorista que depois de banida da Jugoslávia encontrara refúgio e um considerável apoio militar e político na Itália de Mussolini. Quando os nazis conquistaram a Jugoslávia em Abril de 1941, a Ustashe regressou a casa e Pavelic foi instalado como Poglavnik ou Führer do Estado Independente fantoche da Croácia, o Nezavisna Drzava Hrvatska, cujo lema era Tm dom Spremni, "Prontos para a Pátria".
Quase imediatamente foi lançada uma acção conjunta para eliminar da Croácia os judeus, os ciganos e a população ortodoxa sérvia, uma campanha de genocídio que chocou até os nazis pela sua sangrenta brutalidade. Católicos fanáticos, em muitos casos liderados por padres católicos ou frades franciscanos, a intenção declarada dos membros da Ustashe era expulsar um terço dos sérvios, converter outro terço ao catolicismo e eliminar o terço final, objectivos que foram atingidos com uma crueldade aterradora.
Sentiu-se revoltado perante os factos que encontrou nos livros de História. O genocídio dos nazis achava-se bem documentado e era sobejamente conhecido. O Holocausto pesava na consciência de todo o mundo, mas o que se passara na Croácia entre 1941 e 1945 equivalia-lhe, senão na escala, certamente no horror. As estatísticas eram discutíveis, mas durante aqueles quatro anos cerca de meio milhão de pessoas, na sua maioria sérvios, tinham sido liquidadas pela Ustashe, quase sempre por meios que apenas poderiam ser descritos como uma carnificina. Vilas inteiras foram chacinadas; homens, mulheres e crianças foram cortados em pedaços à machadada, centenas foram enterrados vivos ou amontoados em igrejas ortodoxas a seguir incendiadas.
Poucos eram os adultos na Terra que nunca tinham ouvido falar de Auschwitz ou de Dachau, mas quantos saberiam alguma coisa a respeito de Jasenovac, o campo de concentração da Ustashe onde dezenas de milhares de pessoas tinham sido torturadas e aniquiladas apenas por causa da sua religião? Eram sérvios ortodoxos, mas muitos deles foram poupados ao aceitarem converter-se ao catolicismo.
Era isso que Chapman considerava mais chocante. Os Ustashe eram uns enraivecidos fanáticos católicos. Padres católicos tinham sido participantes activos no morticínio e outros haviam-lhe dado apoio tácito. Aqueles que demonstravam a sua revolta perante o morticínio em massa não eram escutados por Pavelic ou pelos seus milicianos sanguinários. O Vaticano manteve-se em silêncio durante todo este período - apesar de conhecer perfeitamente o que se passava -, parecendo desta forma avalizar as atrocidades. Na realidade, o Papa Pio XII recebeu Pavelic na Santa Sé sem ter aparentemente condenado a carnificina executada pelos verdugos da Ustashe de Poglavnik, de entre os quais um dos mais brutais fora o franciscano Miroslav Filipovic, comandante do campo de Jasenovac, que cortou pessoalmente a garganta a centenas dos prisioneiros.
Continuou a ler as listas de atrocidades, sem saber até onde poderia aguentar. Gudovac, Tuke e outras povoações, duzentos e cinquenta sérvios atados com arame e enterrados vivos; Glina, centenas de sérvios amontados na igreja ortodoxa e massacrados com machados e facas; Grabovac, uma orgia de quatro dias de matança da Ustashe durante a qual foram massacrados inúmeros sérvios; Otocac, trezentos sérvios cortados em pedaços, incluindo o padre ortodoxo local a quem arrancaram a barba e a pele do rosto e lhe escavaram os olhos das órbitas antes de ser morto. A lista prosseguia, até que Chapman se sentiu doente.
Finalmente chegou a Prebilovci, uma aldeia a sul da Herzegovina onde praticamente todos os habitantes foram exterminados pela Ustashe ao tentarem escapar, sendo estripados com baionetas ou atirados para fossas família a família; onde crianças de colo foram lançadas ao ar e atiradas contra as paredes de pedra, onde mulheres e raparigas foram violadas em série e depois massacradas, e outras mortas à pancada ou abandonadas para morrerem nas valas.
Os detalhes eram tão paralisantes na sua injustificável crueldade que passado algum tempo Chapman suspendeu a leitura antes que ficasse tão insensibilizado pelas descrições que deixasse de ter em mente que se tratava de seres humanos, pessoas reais que tinham sido massacradas na mais sádica e desumana forma que se podia imaginar.
E a senhora Campanella, a velhinha que desde há anos residia no andar abaixo, que todos os dias saía para comprar fruta e hortaliça como as vizinhas e falava do tempo e de outras trivialidades como se realmente interessassem, tinha estado lá. Tinha sobrevivido ao morticínio, ainda que Chapman nunca viesse a saber como nem porquê, pois nunca lho perguntaria. Espantava-o a resistência dela, a capacidade que um ser humano tinha para suportar o sofrimento e ultrapassá-lo mantendo intacta a vontade de viver. Era uma constatação simultaneamente espantosa e plena de humildade.
Arrumou a mesa onde estivera a trabalhar, devolveu todos os livros às prateleiras ou ao balcão e dedicou um momento a apagar da memória as perturbadoras cenas sobre as quais tinha estado a ler, para poder sentir-se de novo humano. Depois pegou o envelope que tinha deixado a guardar em casa da senhora Campanella e examinou os papéis com mais atenção. Começou com a carta que tanto transtornara a idosa vizinha. Conhecia agora o significado do cabeçalho, mas foi o conteúdo que mais lhe interessou. Era uma curta missiva escrita em italiano e dirigida a Mussolini na villa em Gargnano de onde dirigia a República de Saló depois da sua derrocada e do armistício italiano com os Aliados. O texto era ilegível aqui e ali mas, por uma das passagens mais legíveis, deduzia-se que se referia a alguma remessa que estava a ser efectuada para o Duce. Não se especificava a natureza exacta da remessa. A assinatura no final da carta, confirmada pelo nome dactilografado por baixo, era a de Ante Pavelic.
Examinou outra das cartas no envelope. Esta apresentava-se bastante danificada por água ou humidade e tinha diversos buracos que a tornavam impossível de ler. Mas podia-se ver que fora enviada por Mussolini, dirigida ao Secretariado de Estado do Vaticano em fins de Março de 1945, apenas algumas semanas antes de o Duce ter sido capturado e executado por guerrilheiros.
Uma terceira missiva, escrita em papel de carta com o emblema do Vaticano e assinada por Giovanni Montini, o Subsecretário de Estado do Vaticano, parecia ser em resposta à carta de Mussolini. Também se apresentava muito danificada, com a tinta esborratada e sumida, estando praticamente indecifrável. Depois de a examinar cuidadosamente, conseguiu decifrar as palavras "Cruz Vermelha" e uma palavra indistinta que poderia ser Poglavnik. Apenas uma curta frase estava completa e realmente legível. Dizia: "Concordamos com as condições e esperamos poder fazer a remessa dentro de um mês".
Tocou pensativamente nas folhas quebradiças e amarelecidas. Não conseguiria extrair mais nada delas sem alguma forma de informação adicional, qualquer coisa que esclarecesse aquilo a que as cartas se referiam. E só havia um local onde poderia obter isso.
Guardou novamente os papéis no envelope e saiu da biblioteca, à procura do seu carro.
- Qual preferes, tinto ou branco?
- O branco estará bem refrigerado? - perguntou Chapman.
- Estás a gozar? - Brian Matheson ajustou os óculos de sol no nariz e olhou-o com um arremedo de severidade.
- Nesse caso, o branco.
Matheson entrou em casa e regressou passados alguns minutos com dois copos e uma garrafa de vinho branco num balde de gelo. Extraiu a rolha e encheu os dois copos, levantando o seu ao sol para avaliar a cor.
- Nada mau - disse em tom de aprovação. - Orvieto. Mandei vir um par de caixas de uma adega que visitei no ano passado. Estão a fazer grandes progressos lá em cima. Transformaram uma zurrapa num vinho bastante aceitável. Prova.
Chapman tomou um sorvo do seu copo. - Parece-me razoável.
- É produzido com noventa por cento de uvas Trebbiano e dez por cento de Grecheto. É daí que vem a qualidade. Notas aquele sabor a avelã, com uma sugestão de amêndoa? E das uvas Grecheto. Dá a este vinho um pouco mais de classe que os outros Orvietos.
- Sabes uma coisa, Brian? Para jornalista, tens cá uma lábia...
Brian sorriu.
- Ex-jornalista. Tens é ciúmes porque consegui arranjar tempo para me dedicar às minhas paixões. Saúde!
Estavam sentados na varanda do apartamento de Matheson, num primeiro andar que dava para uma paisagem de jardins e altos ciprestes tão próximos da varanda que quase se lhes podia tocar. Eram amigos de longa data. Brian Matheson era já um reputado correspondente em Roma quando Chapman chegara à cidade, e prontamente aceitou a função de guia e mentor do colega mais novo. Estava reformado há três anos, mas continuava interessado em questões jornalísticas, em especial nas mexeriquices da Stampa Estera, e Chapman tinha instruções para lhas transmitir a intervalos regulares.
Durante algum tempo falaram de conhecimentos comuns e de assuntos italianos correntes. Pertenciam a gerações diferentes, mas havia entre eles um laço de afecto e respeito que tornava irrelevante a diferença de idades.
Por fim Matheson perguntou: - Então, o que te traz para estes lados a um sábado?
- Queria pedir-te um favor.
- Dispara.
- Sempre tiveste bons contactos no Vaticano. Muito melhores do que os meus.
- A religião ajuda. Sentem-se mais à vontade a falar com um dos seus.
- Consegues arranjar-me acesso aos Arquivos Secretos? Matheson bebeu um pouco do vinho e depois abanou a cabeça apologeticamente. - Lamento. Nem eu consegui lá chegar.
- É assim tão difícil?
- Estão completamente vedados a jornalistas. Só estão acessíveis a investigadores devidamente credenciados.
- Mas isso é apenas uma formalidade, não é? Deve haver maneira de o ultrapassar. Eu podia afirmar que sou um investigador.
- A segurança é extremamente rigorosa. Um leigo precisa de uma carta de apresentação emitida por alguma instituição educacional de reconhecidos méritos. Um padre precisará de uma carta passada pelo seu bispo. Tudo tem de ser cuidadosamente conferido antes de emitirem o passe que confere acesso aos Arquivos. E são muito poucos os passes emitidos em cada ano. Os documentos são geralmente muito frágeis, e por de mais preciosos, para aguentarem um manuseamento frequente.
- Estamos em Itália, Brian - comentou. - Tem de haver algum processo de se dar a volta a toda essa burocracia. Alguém que eu possa convencer ou subornar.
- Não cometas o erro de imaginar que o Vaticano é como Itália só por se situar em Roma - replicou Matheson. - É um mundo fechado, gerido por padres cujo sentido de dever nos envergonharia. Não tens qualquer hipótese de os persuadir ou subornar para obteres acesso aos Arquivos Secretos. Têm um intenso sentido do bem e do mal, e nenhum deles está suficientemente interessado em dinheiro para aceitar umas luvas. Quem quer enriquecer não escolhe o sacerdócio como carreira.
Chapman concordou com um aceno e desviou o olhar. Sentindo a decepção do amigo, Matheson disse: - Lamento não poder ajudar-te, Andy. É muito importante?
- Sim, creio que sim.
- Que pretendias saber?
- Uma coisa a respeito da guerra.
- Da Segunda Guerra Mundial? Chapman confirmou.
- Nesse caso, o acesso aos Arquivos não iria servir-te para nada. Todos os registos posteriores a 1922 estão encerrados, mesmo a investigadores credenciados.
- Palavra? Porquê 1922?
- Tu sabes bem porquê.
- Claro. Já me tinha esquecido.
1922, o ano em que Mussolini chegara ao poder. Era um tópico muito sensível no Vaticano. Ninguém por detrás dos Muros Leoninos desejaria que qualquer pessoa examinasse de perto as relações da Igreja Católica com o ditador fascista. Havia demasiados segredos em demasiados armários.
- Têm cá uma lata - comentou Chapman com um traço de amargor na voz. - Metem-se na cama com um monstro como o Mussolini e depois não querem que ninguém vá examinar a roupa suja.
Matheson encolheu os ombros. - A roupa é deles. Para que haviam de a pendurar onde todo o mundo pudesse vê-la?
- Porque o mundo tem o direito de saber o que se passou. É da Igreja Católica que estamos a falar, uma fé que prega a honestidade e a compaixão cristã e o respeito pelos outros, mas que pensa poder encobrir um período completo da sua história por recear que alguém descubra a verdade.
Matheson mostrou um ligeiro sorriso. - Estás realmente interessado nisto, não estás? Deve ser um caso importante.
- Podes crer.
Matheson ficou à espera. Chapman abanou a cabeça.
- É melhor que não saibas. Não estou a exagerar. É um assunto demasiado perigoso. Enzo Mattei foi assassinado porque andava a fazer as mesmas perguntas.
- Não estás a sugerir que o Vaticano teve alguma coisa a ver com a morte dele, pois não? - disse Matheson, incrédulo.
- Não directamente. Mas estão a esconder qualquer coisa que tem uma ligação com esse crime. Tenho a certeza disso.
- Qualquer coisa desde o tempo da guerra? Foi há muitos anos, Andy. Ainda interessará?
- Claro que interessa. A mim interessa. Interessa à viúva e aos filhos de Enzo.
- Estás portanto numa cruzada contra a Igreja Católica? Não respondeu. Matheson fez rodopiar o vinho no copo, admirando a luz do sol a incidir na superfície do líquido dourado. Encheu a boca e saboreou-o por um momento antes de prosseguir.
- Não desculpo à Igreja as suas ligações com o fascismo, mas todos aprendemos alguma coisa com o passado. - Fez uma pausa, olhando para os ciprestes que oscilavam à brisa. - Tens de te lembrar de que a fé cristã, ainda que fundada por Cristo, tem sido interpretada e sustentada ao longo dos séculos por meros seres humanos com todas as fraquezas e preconceitos dos homens.
- Qualquer religião tem de ser capaz de transcender as fraquezas dos seus crentes - retorquiu Chapman.
- Exiges demasiado. Sabias que Eugênio Pacelli, que se tornou no Papa Pio XII em 1939, teve uma pistola apontada à cabeça durante uma rebelião bolchevique quando era o Núncio Papal em Munique depois da Primeira Guerra Mundial? Isso tornou-o virulentamente anticomunista, de tal modo que para ele o fascismo era sempre o menor dos dois males. Os padres são influenciados pelas suas experiências do mesmo modo que qualquer outra pessoa, e baseiam nisso os seus critérios pessoais.
- Pensava que baseassem os seus critérios na palavra de Deus.
- Não sejas ingénuo, Andy. O que é a palavra de Deus senão a opinião de um homem baseada nas suas próprias crenças e experiências com relação ao que Deus desejaria em determinadas circunstâncias? Nem sequer os padres dispõem de uma linha directa com o Céu.
Chapman sorriu. - Está bem, mudemos de assunto. A discussão de política ou religião é um método garantido para se desfazerem amizades.
- Mas com quem discutirias isso senão com amigos? - comentou Matheson, estendendo a mão para a garrafa. Atestou o copo de Chapman e meteu a garrafa no balde de gelo.
- Bebe. Tenho tanto vinho em casa que a Margherita ameaça divorciar-se se não me vejo livre de algum.
- Mas apenas para efeitos de investigação, claro. Matheson sorriu. - Naturalmente.
Desde que se reformara, Matheson andava teoricamente a escrever um livro sobre os vinhos italianos, mas, ainda que muitas garrafas tivessem já sido consumidas em investigações, não escrevera uma única palavra sobre o assunto.
Matheson tirou os óculos de sol e esfregou os olhos com as pontas dos dedos. Estava em boa forma para um homem de sessenta e oito anos. O rosto apresentava um forte bronzeado resultante de anos de exposição ao sol do Mediterrâneo, mas não exibia o tom seco de cabedal que lhe estava normalmente associado. Jogava golfe duas vezes por semana com alguns velhos amigos do jornalismo italiano e ainda aguentava três partidas de ténis sem efeitos adversos. Chapman desejaria ter idêntica condição física quando chegasse à idade dele.
- Queres saber uma coisa? - disse Matheson. - Não te vejo assim motivado desde que... bem, desde que chegaste a Roma. Durante muito tempo mostraste-te desinteressado de tudo, mas desta vez pareces-me realmente envolvido neste... seja lá o que for.
- Talvez seja o reluzir final de uma chama antes de se extinguir de vez.
Matheson soltou uma risada. - Ainda estás um tanto novo para te reformares.
- Certo, mas sou capaz de voltar para casa.
Matheson lançou-lhe um olhar de surpresa. - Para Inglaterra?
- Ofereceram-me um lugar em Londres. Subdirector da secção estrangeira.
- Vais aceitar?
- Ainda não sei. Tenho estado a adiar a decisão há algumas semanas.
- Bem, é uma hipótese. Há quanto tempo estás cá? Há uns seis ou sete anos?
- Oito.
- É bastante tempo.
- Estás cá há um bocado mais - comentou Chapman.
- É diferente. Casei-me com uma italiana. Tenho filhos e netos aqui. Para que havia eu de querer voltar para Londres?
Para que haveria alguém de querer voltar para Londres, pensou Chapman, quando poderia ficar sentado ao sol numa varanda, bebendo vinho e respirando o aroma das buganvílias? Por que haveria alguém de querer regressar à cinzenta humidade de Inglaterra? Contudo, não era assim tão simples.
Matheson percebia o dilema. Ele próprio o tinha enfrentado, e por isso era capaz de pôr em palavras o que o amigo tentava articular.
- Tens dois caminhos à tua frente - disse. - Um deles é fixares-te aqui, como eu fiz, integrares-te na cultura, no modo de vida. O outro é regressares a casa. Entre estas duas hipóteses, não existe nada que possa fazer-te feliz. Neste momento estás apenas de visita.
Chapman suspirou. - Bem sei. Devia ter seguido o meu caminho há anos, mas amo este país. Amo o seu povo. Amo o barulho, a paixão, o caos completo. Não acho que seria capaz de me adaptar de novo a Inglaterra.
Matheson demonstrou a sua compreensão com um aceno. - Quanto mais adiares, mais difícil será.
Chapman bebeu o vinho que restava no copo. Invejava a forma como Matheson se adaptara, a tranquilidade da sua vida. Ainda que uma parte de si fosse para sempre inglesa, habituara-se tão bem a um país estrangeiro, deixara-se assimilar tão completamente que os pedaços que realmente interessavam - a família, os amigos, a rotina diária - eram essencialmente italianos, e faziam-no sentir-se feliz. Sempre que o visitava, sentia o que faltava na sua própria existência, os vácuos que ainda continuavam por preencher.
Como se para realçar esse défice, uma voz feminina chamou do interior do apartamento e Margherita, a mulher de Matheson, entrou na varanda transportando um braçado de sacos de compras. Cumprimentou Chapman com afecto, beijando-o no rosto e abraçando-o.
- Olha para mim, Brian - disse, tocando no pulso. - Pensei que já estivesses pronto.
Matheson voltou-se para Chapman e revirou os olhos para o céu. - Estás a ver o que te faz falta?
- Avia-te, não te levo a sair com essa roupa. Devíamos chegar a casa da Paola daqui a dez minutos - explicou a Chapman enquanto o marido entrava para mudar de vestuário.
Margherita reparou na garrafa quase vazia de Orvieto. - Gostas disto? - perguntou.
- Não sou um grande conhecedor.
- Vem comigo.
Fez sinal a Chapman para a seguir e conduziu-o pelo corredor fora até a um quarto de arrumações. Havia caixotes de garrafas de vinho até quase ao tecto. - Leva algumas - disse Margherita. - Ele nunca vai conseguir despachá-las todas. As adegas não param de lhe enviar amostras, na esperança de uma menção favorável no seu livro. Vá lá, leva algumas. Ele não vai dar pela falta.
Regressaram ao corredor com Chapman debatendo-se sob o peso de uma caixa de Chianti. Matheson emergiu do quarto principal trazendo um pedaço de papel na mão. Havia nele um nome e um número de telefone.
- Aquilo de que estivemos a falar - disse. - Talvez este possa ajudar-te. Foi-me bastante útil no passado.
Meteu o papel no bolso da camisa de Chapman.
- Talvez não consigas subornar os padres do Vaticano - comentou -, mas outros há que não são tão incorruptíveis.
Chegou a casa de Elena ao princípio da noite. Tivera muito que fazer desde que saíra de casa de Brian Matheson e os indícios de fadiga começavam a surgir-lhe no rosto. Abriu a porta do apartamento, antecipando um longo descanso e uma bebida fresca, mas foi logo confrontado por uma encolerizada Elena.
- Por onde andaste? Onde raio estiveste metido? - gritou-lhe ela.
- O quê?
- Disseste que ias telefonar-me.
Pôs-se na defensiva. - Espera aí! O que se passa?
- Por que não me telefonaste?
- Onde é que está o problema? Estive a trabalhar. Não tive oportunidade, Elena. Aconteceu alguma coisa?
Estava especada à porta da sala de estar, com um porte hostil, quase agressivo. Subitamente operou-se nela uma alteração. Deixou descair os ombros, enrugou o rosto e começou a chorar. Chapman olhou-a espantado.
- Elena...
Ela deu meia-volta e entrou aos tropeções na sala de estar. Foi atrás dela. Encontrou-a sentada na beira do sofá, inclinada para a frente e de cotovelos apoiados nos joelhos. Estava a chorar desabridamente. Sentou-se ao lado dela e tocou-lhe tentativamente num ombro.
- Precisei de ti, onde estavas tu? - soluçou ela.
Não respondeu. Ela estava a comportar-se tão irracionalmente que sabia que a ocasião não era propícia para lhe falar. Puxou-a para si. Ao princípio Elena resistiu, mas por fim relaxou-se e caiu-lhe nos braços.
Abraçou-a até ela parar de soluçar. Nunca tinha visto esta faceta do carácter dela. Nunca lhe notara qualquer indício de fraqueza e achava doloroso observá-lo agora.
Passado algum tempo ela afastou-o e limpou as lágrimas com as costas da mão. Havia traços de rímel nas suas faces.
- Desculpa - disse ela, fungando e abafando um último soluço. - Desculpa, estava a ser estúpida.
Levantou-se e encaminhou-se para a casa de banho. Ouviu-a assoar-se e escutou depois o som de água a correr. O que lhe acontecera, fosse o que fosse, não tinha nada a ver com o facto de não lhe ter telefonado.
Quando ela voltou, viu que removera a maquilhagem e secara o rosto, mas os olhos continuavam avermelhados.
- Desculpa - repetiu. - Não sei o que pensarás de mim.
- Que te aconteceu, Elena?
Ela apontou para um monte de papéis no chão ao lado da cadeira de braços. - Dá uma olhada àquilo.
- Que papéis são aqueles?
- Chegaram esta manhã por estafeta.
Chapman pegou neles e folheou-os. - Não entendo. Que são?
- São a arma escolhida por Scarfone para me agredir.
- Foi Scarfone quem os mandou? Elena, vais ter de me explicar isto.
- Ele é diabólico. Mas é esperto. Sabe como aplicar pressão sobre as pessoas, como encontrar os seus pontos fracos e explorá-los.
Sentou-se ao lado de Chapman e passou um lenço pelos olhos. Depois pegou ao acaso em alguns documentos.
- Estes são documentos referentes à formação de uma Società per Azioni. Sabes o que é uma SpA?
- Sei, é como uma sociedade anónima de responsabilidade limitada.
- E estas são cópias de documentos organizando diversas companhias offshore nas ilhas Cayman e nas Antilhas Holandesas, ambos os locais classificados pelo fisco italiano como paraísos fiscais. Agora examina estes. - Tirou mais folhas do maço e colocou-as no colo de Chapman.
- Não me dizem nada, Elena. Não sou advogado.
- São registos de transferências do IOR para estas empresas nas Cayman e nas Antilhas Holandesas.
Chapman levantou a mão no ar para a fazer parar. - O IOE? Queres dizer, o Istitutoper le Opere di Religione~? O Banco do Vaticano?
- Exactamente. O dinheiro vai para as Caraíbas, onde estas empresas o depositam em bancos offshore locais que estão fora do escrutínio das autoridades fiscais italianas. O dinheiro é depois transferido desses bancos para as dependências locais de diversos bancos internacionais. Depois as empresas obtêm empréstimos desses bancos, garantidos pelos depósitos existentes, e transferem os fundos para Itália.
- Acho que já me perdi. Estás a falar com uma pessoa que considera uma experiência assustadora levantar um cheque no Credito Italiano.
- Estas empresas são apenas carapaças - explicou Elena. - Não fazem nada. Não fabricam nem negoceiam legitimamente. São unicamente condutas para o dinheiro sair de Itália por uma via e regressar por outra.
- Referes-te à lavagem de dinheiro, é?
Ela confirmou com um gesto e encolheu-se a um canto do sofá. Chapman lançou um outro olhar aos papéis. Para ele era como se estivessem escritos em swahili.
- Lavagem de dinheiro por conta de quem? - perguntou. - Do Vaticano?
- O Banco do Vaticano é apenas o canal para o dinheiro. Um banco offshore localizado dentro de Itália.
- Pensava que o IOR já tinha acabado com essas manigâncias.
- Deixa-te disso, Andy. Se houver dinheiro a ganhar, o Vaticano, por mais que afirme o contrário, não vai deixar de cobrar o seu quinhão.
- Para quem será, então? Criminosos? A Máfia?
- É impossível saber-se. São apenas transferências de dinheiro, números em pedaços de papel. E aqueles paraísos fiscais offshore são tão reservados que é provavelmente impossível descobrir quem são os verdadeiros beneficiários.
- Como sabes que foram enviados por Scarfone?
- Ele telefonou para saber se eu já os tinha recebido. Não conseguiu resistir.
- Não estou a entender - declarou Chapman, intrigado. - Por que razão os teria enviado a ti?
- Repara nos nomes dos directores dessas companhias. Reconheces algum nome que aparece em quase todas elas?
Leu rapidamente as páginas correspondentes e sentiu o estômago transformar-se numa pedra de gelo.
- Eugênio Fiorini - disse em voz baixa.
- O meu pai.
Durante algum tempo nenhum deles falou. Por fim Elena passou a mão pelo cabelo e disse: - Tenho estado a dar voltas à cabeça durante todo o dia. Estou quase a ficar maluca. Foi por isso que te gritei. Desculpa. Não tinha o direito de descarregar em ti.
- Devia ter-te telefonado, como prometi. Também te peço desculpa - disse Chapman.
Pousou os papéis no chão, desejando irracionalmente ver-se livre deles antes que o contaminassem. - Que pensas fazer?
- Não sei. Estou entre a espada e a parede. Se não fizer nada, se ignorar os papéis, fico dependente deles. Passam a controlar-me. Irão poder exercer domínio sobre mim, e mais vale abandonar imediatamente a minha carreira. Mas se tomar as medidas que, como magistrada, sou obrigada a tomar, coloco o meu pai no tribunal.
Chapman sentiu a raiva crescer dentro de si, uma desesperada vontade de bater em qualquer coisa. Notou que tinha os punhos cerrados, e teve de fazer um esforço para os aliviar.
- Elena, lamento muito - disse com suavidade. - Haverá alguma hipótese de tudo isto ser perfeitamente legítimo?
- Nem pensar. Fui esta manhã à Regina Coeli. Fui visitar um prisioneiro, um dos meus casos. Um homem chamado Ge-minazza.
- Geminazza? Era banqueiro, ou contabilista, ou coisa do género?
- Contabilista - esclareceu Elena. - Foi preso no ano passado por fraude e desfalque. Quarenta mil milhões de liras desapareceram de três empresas controladas por ele. Nada foi recuperado. Ninguém sabe mais do que ele a respeito de contas offshore.
Estava afundada a um canto do sofá, totalmente esgotada. A fúria e a frustração tinham desaparecido. Mal arranjava forças para falar.
- Levei estes papéis comigo. Fiz uma combinação com ele. Concordei em deixar passar em branco algumas acusações sem importância se ele me explicasse o significado dos papéis. São mesmo de carácter criminal. Mais do que o bastante para justificar uma acusação de branqueamento de dinheiro contra o meu pai.
- Que aconteceria se ele fosse julgado?
- É uma acusação grave. Seria quase certamente condenado a prisão. Os recursos poderiam demorar anos, pelo que possivelmente não iria parar à prisão, mas ficaria da mesma forma destroçado. Ficaria desacreditado. A sua carreira chegaria ao fim. Não sou capaz de lhe fazer uma coisa dessas. Não sou.
Levantou a cabeça e olhou para Chapman, com os olhos espelhando um gélido desespero.
- Desde a manhã que me sinto perdida. Já nem sou capaz de pensar direito, Andy. Que hei-de fazer? Diz-me: que hei-de fazer?
Passaram o serão a rever todas as alternativas. Foi exaustivo para ambos: para Elena, por ter de enfrentar os indícios da corrupção do pai, sentindo-se a oscilar entre a família e o seu dever de magistrada; para Chapman, por se ver forçado a assistir ao desespero dela, sabendo que não poderia fazer nada para a aliviar. Podia escutá-la enquanto ela rebatia incessantemente aquele dilema, podia fazer todo o possível para a confortar, mas no final só ela poderia tomar uma decisão.
Estava ansioso por escapar-se, mesmo que só por um momento, mas não se atrevia. Parecia-lhe insensível deixá-la, ou sugerir sequer que mudassem de assunto antes que ambos explodissem de frustração. Quando finalmente, incapaz de aguentar por mais tempo as roeduras da fome, sugeriu que comessem qualquer coisa, Elena pareceu também aliviada. Comeram um pouco de massa e salada na cozinha e depois foram deitar-se.
De manhã, Chapman saiu para comprar os jornais e algum pão e tardou a regressar. Sentia-se incapaz de suportar mais conversa. Depois do pequeno-almoço, preparou-lhe um banho e forçou-a a ficar de molho até se sentir mais relaxada.
Quando ela chegou à sala de estar embrulhada num tênue roupão de algodão, parecia mais calma, mais à vontade consigo mesma. Percebeu que ela tinha tomado uma decisão.
- Vou telefonar-lhe - disse. -Vou combinar visitá-lo esta tarde. Tenho de lhe falar pessoalmente.
Chapman concordou. - É boa ideia. Talvez exista alguma explicação simples que não te tenha ocorrido.
Não acreditava. Elena também não, mas mesmo assim acenou a manifestar o seu acordo.
Quando ela estava a vestir-se para sair, informou-a de que não ia voltar naquela noite. Tinha deixado essa notícia para o último minuto porque sabia que ela iria necessitar dele mais tarde, e agora não podia encarar a ideia de uma discussão prolongada.
- Que queres dizer? - perguntou ela, já com um toque de irritação na voz.
- Não posso voltar esta noite - repetiu ele. - Lamento. Compreendo que não é a melhor altura, mas deixei tudo combinado ontem e posso não ter outra oportunidade.
- Aonde vais?
- Não posso dizer-te.
- Diz-me.
- O que vou fazer não é uma coisa que possa chegar ao conhecimento de uma magistrada. É melhor ficar por aqui.
- O que é, alguma coisa ilegal?
- Elena! Por uma vez na vida, não faças mais perguntas. Ela franziu-lhe os sobrolhos, apertando o roupão à volta da cintura e do busto num gesto inconsciente de despeito. Depois levantou-se e saiu apressadamente da sala.
Saiu de casa pouco tempo depois, ainda zangada com ele. Chapman soltou um suspiro de alívio, satisfeito por ficar só. Fez uma sanduíche de presunto e tomate para o almoço e comeu-a acompanhada por uma cerveja enquanto via televisão, pela primeira vez capaz de descontrair-se sem sentimentos de culpa desde que chegara a casa na noite anterior.
Um pouco antes das duas da tarde foi buscar o carro e dirigiu-se à sua casa em Trastevere, parando num Multibanco para levantar algum dinheiro da conta. Depois retirou de uma gaveta da secretária mais algum dinheiro da sua reserva e juntou-o ao restante. Contou tudo. Tinha ali um pouco mais de um milhão de liras, umas trezentas e cinquenta libras (3). Guardou o maço de notas num envelope e saiu de casa, conduzindo o carro em direcção à catedral de São Pedro.
A tarde já ia quase a meio, mas mesmo assim ainda havia uma fila considerável à entrada do Museu do Vaticano. Com os seus sete quilómetros de exposição, estava normalmente encerrado aos domingos. Contudo, como era o último domingo do mês, por essa razão não só se encontrava aberto como também estava atulhado de visitantes, pois a entrada era gratuita. Era a pior ocasião para se fazer uma visita se se pretendesse admirar os tesouros expostos, mas convinha aos seus objectivos que o museu estivesse cheio de gente. Não estava muito interessado na arte agora.
Depois de aguardar na fila durante quarenta minutos, chegou finalmente à entrada e abriu caminho por entre a multidão até à escadaria que conduzia ao Átrio dei Quattro Cancelli, no qual diversas tabuletas com códigos de cores definiam os vários trajectos que se podia seguir através do museu consoante o tempo disponível. O trajecto mais longo ocuparia quase todo o dia, pois havia muito para ver, enquanto o mais curto - uma corrida até à Capela Sistina e regresso - só levava uns noventa minutos.
Sabia bem aonde queria ir. Já aqui estivera muitas vezes, mas nunca com um objectivo tão perigoso em vista. Sentia-se nervoso. Se fosse apanhado, nem queria pensar nas possíveis consequências.
Consultou o relógio. Dispunha ainda de bastante tempo. O encontro na Capela Sistina com o contacto de Brian Matheson tinha sido combinado para as quatro, um pouco antes de os visitantes começarem a ser encaminhados para o longo
(3) Cerca de cento e quinze mil escudos. (N. do T.)
trajecto até às saídas a tempo de o museu fechar às cinco menos um quarto.
Nuno Casciani era um dos guardas do museu. Chapman telefonara-lhe na tarde do dia anterior, tendo-se encontrado com ele pouco depois num bar da Piazza dei Risorgimento. Era um homem taciturno, com mulher e seis filhos que se esforçava para sustentar com o seu magro salário. A ideia de uma "gratificação" para ajudar o jornalista tinha sido tentadora, mas mesmo assim Chapman precisara de usar todos os seus poderes de persuasão ao descrever-lhe o que pretendia fazer. O homem só concordara depois de lhe assegurar que não lhe seria atribuída qualquer culpa se por acaso viesse a descobrir-se. Contudo, o argumento decisivo tinha sido o dinheiro. Um milhão de liras era uma verba impressionante, mas Casciani estava na realidade a assumir um grande risco. Chapman tentou discutir o preço mas o guarda não cedeu. Um milhão de liras ou nada feito.
Para Chapman aquele dinheiro não contava. Era uma boa parte do seu ordenado, mas sabia que acabaria por o reaver sob a forma de despesas de representação. A secção estrangeira na sede londrina era notoriamente negligente na análise dos documentos de despesa, provavelmente porque também eles se iam governando conforme podiam. Uma vez o carro tinha-se avariado num trabalho em Umbria e tivera de comprar a um agricultor avarento um pedaço de corda semidesfeita para que pudessem rebocar-lhe o carro até à oficina mais próxima. Na folha de despesas incluiu a verba "Compra de corda velha, 100 000 liras" e ninguém reclamou.
Caminhou em bom ritmo ao longo das galerias abobadadas que conduziam à Capela Sistina num trajecto de cerca de oitocentos metros. Centenas de pessoas estavam paradas a admirar as estátuas e as tapeçarias, os coloridos mapas do Mundo Antigo pintados nas paredes, mas Chapman ignorou tudo. Desceu um estreito lanço de escadas e emergiu subitamente na capela.
De cada vez que cruzava aquela porta e olhava para o tecto de Miguel Angelo sentia uma nova e empolgante sensação de espanto, um sentimento quase de reverência perante o génio do artista que o tinha pintado. Em nenhum outro lugar na Terra criado unicamente pela mão do homem seria possível a alguém sentir-se literalmente cercado por um tal testemunho concentrado de grandeza, beleza e discernimento.
Mas hoje não tinha olhos para a Criação do Homem. Apenas pretendia deparar com a figura atarracada de Nino Casciani. A capela estava cheia de pessoas de pescoço retorcido a olharem para a abóbada da capela ou admirando a Última Ceia na parede por cima do altar. Abriu caminho por entre a multidão e viu o guarda sozinho junto da parede no recanto mais afastado. Aproximou-se mas não olhou para ele.
- Trouxe aquilo? - perguntou Casciani.
Retirou do bolso o envelope com o dinheiro e segurou-o rente à perna. O guarda retirou-lhe o envelope da mão com um rápido movimento e arrecadou-o dentro do casaco. Depois olhou casualmente à sua volta.
- Está a ver a porta à minha esquerda? Quando eu a abrir, o senhor entra num instante, está bem?
Chapman confirmou. Casciani passeou o olhar pela capela. Havia um outro guarda com ar de enfastiado no extremo oposto. Casciani esperou que um numeroso grupo de visitantes lhe passasse pela frente e tapasse a visibilidade do colega, e abriu repentinamente a porta. Chapman passou apressado pela estreita abertura. A porta fechou-se atrás de si quase antes de ter transposto a soleira. Parou, deixando os olhos adaptarem-se à penumbra. Estava numa apertada antecâmara iluminada apenas por um par de fracas lâmpadas na parede. Depois da assombrosa riqueza da capela, era quase traumatizante encontrar-se num local tão austero e arruinado. Habituara-se de tal forma à opulência dos salões públicos do Vaticano que lhe era fácil esquecer-se de que as zonas vedadas ao público eram tão simples e funcionais como o gabinete de estudo de um seminarista.
Um longo corredor partia da antecâmara. Virou à direita e começou a percorrê-lo rapidamente, tentando amortecer o som dos passos no pavimento de pedra desgastada. Todo este sector estava vedado aos visitantes. Se fosse apanhado aqui por um clérigo ou um guarda, seria certamente expulso do edifício.
Ia à procura de uma porta que deveria surgir à sua esquerda. Casciani tinha-lhe dito que não estava muito afastada do início do corredor, mas não via sinais dela. Atrás de si abriu-se subitamente a porta que dava para a Capela Sistina. Chapman espreitou por cima do ombro. Viu a orla de uma túnica de padre agitar-se sob o efeito da corrente de ar e escutou as vozes de dois homens. Passou os olhos pela parede. A porta tinha de estar ali perto. As vozes iam-se tornando mais nítidas. Uma figura de sotaina surgiu no corredor, parando para deixar passar o companheiro. Estava de costas para Chapman, mas não demoraria mais do que uns segundos a voltar-se e dar pela presença dele. Chapman estendeu as mãos, tocando na parede à procura de um fecho, de uma ombreira, qualquer coisa. Os dedos encontraram um ressalto na parede: o rebordo de uma almofada de porta. Procurou o puxador e rodou-o para abrir a porta, entrando num instante e fechando-a atrás de si. Esperou, sustendo a respiração. Os passos e as vozes avançaram do outro lado da porta e desapareceram na distância.
Acalmou-se. Estava no patamar de uma apertada escada de caracol que conduzia ao piso superior do museu ou que descia para a cave. Experimentou descer. Ao fundo da escada havia uma pesada porta de madeira que, segundo Casciani, era aberta de manhã e trancada de novo ao anoitecer. Ultrapassou-a e entrou num outro corredor de paredes forradas com prateleiras carregadas de volumes empoeirados e manuscritos encadernados. Estava a aproximar-se do seu objectivo. Casciani tinha-lhe dito que havia acesso aos Arquivos Secretos tanto pelo rés-do-chão como pela cave, onde se armazenavam os documentos mais antigos. Os documentos mais recentes da Cúria - e por recentes o Vaticano entendia os do último século - estavam todos na ala principal dos Arquivos. Para lhes chegar, teria de entrar sem que dessem pela sua presença e depois aguardar que os arquivistas fossem para casa. Iria ser uma operação arriscada, mas até agora as informações de Casciani tinham provado ser fidedignas. Esperava que os conhecimentos do guarda relativamente ao resto dos Arquivos fossem do mesmo modo dignos de confiança.
A meio do corredor, que se prolongava a todo o comprimento do Museu do Vaticano, havia uma passagem lateral que o conduziu ao piso por baixo dos Arquivos e da Biblioteca do Vaticano a eles contígua. Na extremidade da passagem havia um par de altas portas montadas numa arcada de pedra, com maciças dobradiças rebitadas e puxadores circulares de ferro polidos pelas mãos com o passar dos anos. Encostou o ouvido à madeira e escutou, mas não conseguiu ouvir nada do outro lado. Hesitou. Este era sem dúvida o momento mais crucial. Não tinha maneira de saber se haveria alguém na cave dos Arquivos. Tinha de arriscar e ter fé.
Segurou no puxador. Casciani afirmara que a porta estaria destrancada. Rodou o puxador e a tranca deu um estalido, um ruído que naquele espaço limitado se assemelhou a uma detonação. Empurrou a porta, abrindo-a o suficiente para poder espreitar para dentro. Viu novas fileiras de estantes, mais volumes antigos acumulando poeira, mas não havia ninguém. Passou através da estreita abertura e fechou a porta atrás de si, deixando o trinco regressar ao seu lugar sem produzir ruído. Depois aproximou-se cuidadosamente das prateleiras, atento ao menor som proveniente do piso superior. A cave parecia deserta, mas sabia que a qualquer momento poderia chegar algum funcionário vindo do andar de cima. Tinha de encontrar rapidamente um local para se esconder. Agora só podia contar consigo. Casciani sabia como alcançar os Arquivos Secretos, mas a partir daí os seus conhecimentos da disposição interna eram vagos. Incumbia a Chapman assegurar-se de que não seria descoberto.
Explorou metodicamente a sala, parando com frequência para escutar. Era uma área vasta, mas depressa constatou que não lhe oferecia muitas oportunidades para se esconder. Os armários estavam todos trancados e, apesar de existirem numerosos recantos escuros, eram todos demasiado expostos para poder considerá-los esconderijos viáveis. Percorreu as diversas coxias, sentindo-se cada vez mais ansioso. Consultou o relógio. Já passava das cinco da tarde. Não tinha qualquer indicação do horário de trabalho dos arquivistas, mas pensava que estariam prestes a fechar as portas. Era essencial encontrar algum local onde pudesse esconder-se, e depressa.
A dupla porta levantava-se ameaçadora à sua frente. Estava de volta ao ponto de partida. Olhou à sua volta, decidido a não se deixar sentir frustrado. Havia apenas um esconderijo possível: teria de se ocultar entre os livros. Agachou-se e examinou as prateleiras. Pareciam solidamente construídas, capazes de suportar o peso de muitos livros volumosos - alguns deles com mais de quinze centímetros de espessura - e tinham uma profundidade de uns sessenta centímetros. Estavam dispostas em estantes de seis ou sete prateleiras cada, encostadas umas às outras mas sem fundo a dividi-las.
Removeu alguns volumes da prateleira inferior e espreitou. Se empurrasse os livros bem até ao rebordo dianteiro, sobraria atrás um espaço suficiente para esconder um homem deitado. Libertou uma fiada completa e deslizou para cima da prateleira, repondo os livros atrás de si. Podia estender-se ao comprido, mas não havia espaço para manobras laterais. Os braços ficavam apertados e os ombros presos entre as prateleiras. Sentia na boca o gosto da poeira que se acumulava por toda a parte, o odor almiscarado dos velhos pergaminhos e da carneira das encadernações. Fechou os olhos e dispôs-se a aguardar.
A conversa banal estava a pôr Elena louca. Via-se forçada a ficar sentada na sala de estar da casa dos pais a ouvir a mãe dissertar interminavelmente a respeito de nada, quando apenas pretendia entrar no gabinete do pai e enfrentá-lo. Necessitou de muito controlo para continuar sentada a beber café enquanto a mãe lhe descrevia com toda a minúcia a trivialidade do que andara a fazer desde a última visita dela.
Por fim a mãe entrou no assunto que Elena não estava disposta a discutir em nenhumas circunstâncias.
- Falaste com o Franco?
Elena ignorou a pergunta. - O papá vai ficar toda a tarde no gabinete de trabalho?
- É o costume - respondeu a mãe, a despachar. - Falaste ou não?
Elena pôs-se em pé. - Há um assunto que preciso de discutir com ele. Dê-me licença por um minuto.
Pegou na pasta de cabedal que trouxera consigo e caminhou ao longo do corredor até ao escritório do pai. Bateu à porta e entrou.
O pai levantou o olhar dos papéis da secretária e tirou os óculos de ler, sorrindo-lhe. Fechou a porta atrás de si e devolveu-lhe o olhar, vendo-o agora sob uma luz diferente.
- Que se passa? - perguntou Eugênio Fiorini.
- Posso interrompê-lo?
- Claro que podes.
Afastou a cadeira da secretária e recostou-se com as mãos cruzadas no colo.
- Estás com.uma cara muito séria, Elena. Aconteceu alguma coisa?
- Preciso de falar consigo, papá.
Hesitou. Agora que chegara a altura, não sabia como prosseguir. Não seria capaz de testemunhar o efeito devastador do que tinha a dizer.
- Falar comigo a respeito de quê?
Correu o fecho da pasta mas não tirou os papéis.
- Sabe que tenho andado a investigar a morte do Padre António Vivaldi - disse ela.
- Sei.
- Bem, no decurso do inquérito descobri provas de que os neofascistas intervieram no seu homicídio. Provas que implicam o próprio Cesare Scarfone.
O pai franziu as sobrancelhas. - Achas que devias estar a contar-me isto?
- Ele está metido no caso até ao pescoço, papá. Só não tenho ainda indícios suficientes para o meter na cadeia. Mas vou ter dentro em breve. Scarfone sabe-o bem, por isso está a atacar-me pelo meu flanco mais vulnerável: a minha família.
- A tua família? - Eugênio parecia intrigado, e de repente uma sombra de suspeita passou-lhe pelo rosto e foi imediatamente suprimida.
- Recebi ontem estes papéis - disse Elena, retirando o maço de documentos da pasta e colocando-o sobre a secretária do pai.
- Que papéis são?
- Examine-os. Vá lá, leia-os.
Eugênio inclinou-se para diante e pôs os óculos de ler para deitar um olhar aos papéis. Disfarçou bem, mas Elena reparou que o seu corpo se tornou hirto, viu-o humedecer com a língua os lábios subitamente secos. Já interrogara um número suficiente de acusados para reconhecer a culpa quando ela se manifestava.
- Foram-me enviados por Scarfone - explicou. - Não sei como nem onde os obteve, mas sei que foi ele quem mos enviou.
O rosto do pai estava impenetrável, com os olhos escondidos atrás das lentes.
- Sabe que papéis são estes, não sabe, papá?
Eugênio permaneceu imóvel. O sol da tarde entrava pela janela e reflectia-se no tampo polido da secretária. Algures na distância ouvia-se o ruído abafado de crianças a brincar. Mas o mundo exterior não existia para ela.
- Papá, os documentos são autênticos? - perguntou. Ele acenou. - Podia mentir-te, Elena, mas não o faço. Sim, são autênticos.
- Porquê, papá?
- Porquê?
- Por que fez isto?
Ele afastou o olhar e encolheu os ombros. - É a minha profissão. Sou um advogado comercial. Estou sempre a formar empresas para os meus clientes.
- Costuma também branquear dinheiro para os seus clientes?
- Branquear dinheiro? Decerto que não...
- Papá, não insulte a minha inteligência - interrompeu ela.
Eugênio calou-se e baixou a cabeça. Reparou repentinamente como o pai parecia velho e frágil. Foi um choque simultaneamente doloroso e decepcionante. Durante toda a sua vida tinha visto nele uma figura vigorosa, um homem íntegro e de absoluta honestidade. Agora percebia como se tinha enganado, e achava que também ela tinha sido cúmplice nesse embuste. Até que ponto a segurança com que sempre contara ao crescer, o conforto material que sempre apreciara, teriam sido baseados na corrupção?
- Quem era o seu cliente? - perguntou. - De quem era o dinheiro branqueado através de todas estas companhias?
- Sabes bem que não posso dizer-te isso.
- Era o Scarfone? Eram os neofascistas?
- Tenho um dever de confidencialidade para com os meus clientes.
- Mesmo quando o que está a fazer por eles é ilegal?
- Que pretendes de mim, Elena?
- Pretendo a verdade.
- Não ta posso contar.
- Tem de contar, papá. Não percebe o que Scarfone está a fazer? O senhor é o meu pai. A minha família significa mais para mim do que qualquer outra coisa. Contudo, fiz um juramento de dever perante o Estado. Não posso fazer de conta que nunca vi esses papéis.
- Nem eu esperaria que o fizesses.
- Seria capaz de os destruir imediatamente se estivesse certa de que o assunto ficaria encerrado de vez. Mas sabe que não é assim. Sabe como a chantagem funciona. Eles voltarão para exigir mais. Quando quiserem outra coisa, hão-de voltar para me sangrar de novo.
- Nunca poderia exigir que te comprometesses, Elena. Terás de fazer aquilo que achares que tens de fazer.
- Oh, papá! Se ao menos fosse outra pessoa qualquer... Teve de fazer um esforço para reter as lágrimas. Sentia-se como se fosse de novo uma menina. Só desejava que o pai saísse de detrás da secretária e a abraçasse, afugentando todas as suas preocupações e garantindo-lhe que tudo terminaria em bem, como fazia quando era pequena. Contudo, já não era uma criança.
- Não devia ter vindo - comentou. - Devia ter entregue imediatamente os papéis a outro magistrado. Mas achava que devia dar-lhe primeiro uma oportunidade para corrigir a situação.
- Que pretendes que eu faça? - A voz de Eugênio era monótona, sem vida.
- Vá à polícia. Conte-lhes tudo. Não espere que eles venham ter consigo. Parecerá melhor assim. Pode ser que façam um acordo, se cooperar.
Eugênio acenou a concordar com a filha. Elena sentiu um golpe de remorso. Parecia tão frágil e patético, ali sentado sem cor no rosto. Encheu-a de um sentimento de culpa saber que era a responsável pela sua dor.
- Faz o que lhe pedi, papá?
Ele não respondeu. Os papéis que ambos desempenhavam estavam agora trocados. Elena queria avançar e abraçá-lo. Queria agarrá-lo e dizer-lhe que, acontecesse o que acontecesse, tomaria conta dele. Mas não se atreveu. Não ousava correr o risco de ser repelida.
- Faz o que lhe pedi? - repetiu.
Eugênio levantou a cabeça e lançou-lhe um sorriso forçado. Havia nesse sorriso uma tristeza tão grande que Elena não conseguiu suportá-la.
- Sim - respondeu ele. - Fá-lo-ei. Não te preocupes, farei o que tenho de fazer.
Chapman começava a desejar nunca se ter aproximado dos Arquivos Secretos do Vaticano. Pensara que teria de ficar escondido atrás dos livros durante pouco tempo, meia hora ou uma no máximo. Mas já se encontrava ali há três horas e parecia-lhe que o tormento se prolongaria pela noite dentro.
Olhou para o relógio. Faltavam dez minutos para as oito. Os funcionários do Arquivo não tinham nada melhor para fazer numa noite de domingo? Sabia que ainda estavam lá em cima pois podia escutar-lhes os passos, e de vez em quando algum deles vinha cá abaixo tirar qualquer coisa das prateleiras. Eram padres, pensou com indignação; não deveriam estar antes na igreja a rezar, ou lendo a Bíblia na privacidade dos seus alojamentos?
Estava em sofrimento. Sentia súbitos e dolorosos espasmos nas pernas, perdera toda a sensação na anca esquerda sobre a qual estivera deitado, e os ombros e braços estavam adormecidos por se encontrarem apertados num espaço que até um contorcionista de circo consideraria um repto interessante. Fechou os olhos com força, tentando expulsar o desconforto e lamentando não saber alguma coisa a respeito de meditação transcendental, qualquer coisa que lhe permitisse alhear o espírito das dores que sentia no corpo.
Ouviu passos nos degraus. Um dos arquivistas descia de novo para a cave. Escutou atentamente. Os passos aproximavam-se. Demasiado. Vinham pela coxia fora, em direcção ao local onde se encontrava. Ficou imóvel, respirando sem ruído. Viu passar uma sotaina negra por cima do topo dos livros que o escondiam. Ouviu uma chave a ser inserida na fechadura da porta dupla e a lingueta a correr ruidosamente. Graças a Deus, pensou, estão a encerrar a loja.
O arquivista regressou ao piso de cima. Ouviu as portas principais fechando-se com ruído e permaneceu onde estava por mais uns quinze minutos antes de se atrever a sair do seu lugar. Espreguiçou-se e caminhou de um lado para o outro durante algum tempo para que os músculos voltassem a funcionar e depois subiu cuidadosamente a escada.
No patamar parou outra vez para escutar. As luzes estavam apagadas, mas não queria deixar nada ao acaso. Só quando se convenceu por fim de que os Arquivos estavam desertos é que se aventurou a sair da escadaria.
Era quase noite fechada lá fora, mas a luz que entrava pelas janelas era suficiente para mostrar as antigas mesas de madeira em que os arquivistas trabalhavam e as colunas de prateleiras, mas não chegaria para permitir a leitura. Tirou do bolso uma pequena lanterna a pilhas e iniciou a sua pesquisa, resguardando a lâmpada com a mão para tornar o feixe de luz menos visível.
Não sabia por onde começar. Num arquivo normal principiaria por um qualquer índice central, quer num computador quer através de fichas. Mas os Arquivos Secretos do Vaticano eram diferentes de qualquer outro que conhecia. Eram uma autêntica relíquia do passado, não de um passado de há poucos anos, mas sim de há séculos. Tinham a atmosfera de um mosteiro medieval: pavimentos em pedra, paredes nuas, mesas de madeira onde descansavam enormes volumes abertos revelando preciosos manuscritos em latim ou complexas iluminuras. Quase esperava ver monges encapuchados dobrados sobre as mesas escrevendo com penas de pato à luz das velas, enquanto à distância se escutariam cânticos conventuais ecoando nos tectos abobadados.
Explorou primeiro a zona nas proximidades da porta principal, examinando uma série de grossos volumes que se assemelhavam a índices. Havia algumas centenas, todos eles - conforme descobriu ao remover e abrir um - manuscritos em latim. A escrita não lhe impunha um grande problema, o pior era o latim. Não fazia a menor ideia do significado de tudo aquilo. Arrumou o livro no lugar e tentou idealizar outro plano de acção. Se não era capaz de entender os índices, só tinha uma alternativa: ir directamente às prateleiras e examiná-las uma a uma. Era uma tarefa de arrepiar, mas dispunha de uma noite inteira. De certeza que doze horas seriam suficientes.
As colunas de estantes estavam identificadas de acordo com um sistema que lhe era totalmente incompreensível. Decidiu por isso deambular pelas coxias, retirando volumes ao acaso para ver a que se refeririam. Passado pouco tempo constatou que havia uma nítida segregação entre os livros e manuscritos encadernados e os arquivos correntes da Cúria. Concentrou a investigação neste segundo grupo. Sabia como se escrevia 1945 em algarismos romanos e também sabia, devido às conferências de imprensa realizadas ocasionalmente pelos serviços de imprensa do Vaticano, que o nome da Secretaria de Estado em latim era Secretaria Status Seu Papalis. Bastava juntar os dois detalhes e encontraria os registos que procurava.
Pelo menos em teoria. Na prática não foi tão simples. Os Arquivos não tinham sido concebidos para conveniência de estranhos. Se um estudioso ou investigador queria consultar um determinado assunto, não se dirigia a uma estante para retirar o livro pretendido; tinha de pedir a um arquivista que o fosse buscar. Só os arquivistas sabiam onde tudo estava, e se para eles o sistema de arquivo era perfeitamente lógico, era praticamente impenetrável para um visitante casual como ele.
Mas insistiu, e um pouco depois da meia-noite localizou as estantes contendo os registos da Secretaria de Estado relativos a Março e Abril de 1945. Colocou a pasta no chão junto da parede e examinou o conteúdo, resguardando o foco da lanterna com o corpo para impedir que a luz fosse observada do exterior.
Estava ali arquivada a carta de Mussolini para o subsecretário de Estado do Vaticano, cuja cópia danificada já tinha visto. Tinha envelhecido um pouco, mas o texto era perfeitamente legível. Leu-a e sentiu um arrepio na nuca. Jesus! Leu-a de novo, para o caso de ter interpretado mal o texto em italiano. Não tinha.
Folheou os outros papéis e encontrou a resposta enviada por Giovanni Montini. Também esta era perfeitamente legível. Chocou-o ainda mais do que a primeira carta.
Examinou cuidadosamente o resto da pasta, extraindo dela o que lhe pareceu ser um memorando interno do Vaticano, enviado pelo Papa Pio a Montini. Olhou-o fixamente, estudando-o palavra a palavra, seguindo as linhas da assinatura do Papa como se pretendesse gravá-la na memória.
Desligou a lanterna e encostou-se às prateleiras. Estava aturdido. Sentia o cérebro tolhido pelo choque do que acabava de ler. Se os papéis não se encontrassem aqui, nos Arquivos do Vaticano, acreditaria que não passavam de falsificações perfeitas. Contudo, ao compreender as implicações do seu conteúdo, sentiu um frémito de excitação, uma emoção que qualquer jornalista espera sentir ao menos uma vez na sua carreira. Esta história iria produzir cabeçalhos não só em Itália ou em Inglaterra, mas em todo o mundo.
Reuniu as cartas e o memorando e guardou tudo no bolso interior do casaco. Depois arrumou a pasta na prateleira e regressou à zona de leitura dos Arquivos.
Conhecia agora a razão pela qual António Vivaldi tinha sido torturado e assassinado. Sabia o que Cesare Scarfone pretendera do padre, sabia o que os neofascistas procuravam. Outras perguntas permaneciam sem resposta, mas as peças começavam a cair lentamente nos seus lugares.
Sentou-se numa das cadeiras. Já era tarde. Sentia-se cansado, mas excitado de mais para dormir. Fitou as sombras nas paredes, embrenhado nos seus pensamentos, enquanto o pesado silêncio do Vaticano o envolvia.
Eugênio Fiorini levantou-se de madrugada como de costume e dirigiu-se à cozinha de pijama e roupão. Fez uma cafeteira de espresso e levou-a para o gabinete de trabalho. A alvorada começava a penetrar pelas persianas, revestindo o interior da sala de uma névoa prateada. Abriu a janela e ficou por uns momentos a observar a cidade que amava. Podia ver a cúpula da catedral de São Pedro, a Trinità dei Monti e uma estreita faixa do Tibre a passar rente a Castel Sant'Angelo.
Gostava do alvor da manhã, da frescura, da brisa que fazia oscilar suavemente as árvores do jardim. Uma vez por; outra permanecia ali durante dez ou quinze minutos enquanto o sol se elevava acima das colinas e abraçava a metrópole ainda adormecida. Mas hoje não havia tempo para se demorar ali. Sentou-se à secretária, pegou num bloco de apontamentos e começou a escrever.
Escreveu uma carta endereçada à esposa - ainda profundamente adormecida no piso superior - e outra para Elena, e meteu-as em dois envelopes. Levantou-se e foi abrir o cofre embutido na parede atrás da secretária. No interior havia maços de documentos confidenciais relacionados com a sua actividade profissional e uma pistola automática Beretta, carregada. Retirou a pistola e fechou o cofre, guardando a chave no envelope com a missiva destinada à filha. Fechou os dois envelopes e colocou-os ao centro da secretária. Depois sentou-se de novo. Bebeu um último sorvo do café e empunhou a pistola.
Lombardia, Abril de 1945
Domenico Salvitti estava coberto de suor, e a camisa era um trapo húmido que se lhe colava aos ombros e às costas, irritando-lhe a pele enquanto arrastava a pesada caixa de madeira pela colina abaixo.
Parou para descansar. Respirava com dificuldade, e os braços e as pernas doíam-lhe do esforço. O sol incidia implacável sobre ele do alto do céu azul e sem nuvens, sugando-lhe do corpo a pouca resistência que ainda lhe restava. Há três horas que se esforçava para remover os caixotes de madeira da traseira do camião e levá-los colina abaixo até à caverna que descobrira um pouco abaixo da estrada de montanha. Estava prestes a soçobrar de exaustão, mas a férrea autodisciplina que se impusera ao longo da sua carreira militar forçara-o a não desistir. Mais uma caixa e teria terminado a sua tarefa.
Baixou-se para segurar a argola de corda, arrastando o caixote ao longo dos derradeiros metros até à entrada da caverna. Era uma abertura estreita, pouco mais ampla do que a largura dos seus ombros. Lá fora, numa concha escavada na vertente, havia um pequeno charco de água límpida e gelada. Ajoelhou-se e refrescou o rosto e o pescoço. Depois juntou as mãos em taça e bebeu sôfrego, sempre atento a qualquer indício de movimento no vale mais abaixo, a qualquer ruído de pessoas ou veículos passando na estrada escondida pelos rochedos.
Sabia que estava a correr um enorme risco, a desperdiçar tempo valioso. Devia ter-se encaminhado para a fronteira suíça e procurar uma travessia segura, sem perder tempo a descarregar caixotes de madeira na estrada desabrigada. Mas uma faceta do seu carácter era ainda mais forte do que o instinto de sobrevivência: a avidez. Sabia que estava a ser idiota, mas não podia resistir. Não era capaz de abandonar as caixas no camião e passar o resto da vida a imaginar o que poderia ter acontecido se se tivesse dado ao trabalho de as esconder.
Arrastou o caixote pela abertura, cravando os tacões na terra e inclinando-se todo para trás, com os músculos retesando-se perante este esforço adicional. O caixote deslizou aos poucos sobre o piso pedregoso, deixando um sulco no solo. Um pouco mais no interior a caverna abria-se numa pequena câmara com uns cinco metros de largura e uma altura apenas suficiente para um homem de pé. A luz entrava através de fendas no topo da caverna, iluminando o fosso no piso da câmara que ele tinha escavado para acolher os dez caixotes existentes no camião. Juntou a última caixa às restantes e endireitou-se, esforçando-se para recuperar o fôlego.
Depois foi buscar algo que tinha deixado encostado à parede da caverna: uma bolsa de cabedal para documentos que o Duce lhe confiara em Milão. Abriu-a. Lá dentro estava um pacote de papéis, documentos e correspondência que Musso-lini decidira destruir antes de abandonar Milão. Havia também um rolo de película que Salvitti tinha retirado da máquina fotográfica guardada no camião e ainda uma quantidade de notas estrangeiras, francos suíços e dólares americanos. Puxou as notas para fora e meteu-as no bolso das calças, encontrando então algo rijo e pesado envolto num lenço; desdobrou-o e revelou as suas medalhas de campanha. Na sua pressa para abandonar o Palazzo Monforte, tinham sido estes os únicos bens pessoais que conseguira trazer consigo. Não queria abandoná-las, mas eram demasiado perigosas para as conservar. Se fosse capturado por guerrilheiros ou pelos Aliados, talvez conseguisse convencê-los de que era um anónimo soldado das milícias fascistas, mas não se tivesse na sua posse as medalhas que revelavam a sua verdadeira identidade.
Foi com relutância que as embrulhou de novo e as guardou na bolsa de cabedal. Depois tirou do cinto o seu punhal de Mosqueteiro e guardou-o em cima das medalhas. Encravou a bolsa num pequeno espaço entre dois dos caixotes, pegou na pá que trouxera do camião e cobriu-os com uma camada de terra, comprimindo tudo antes de alisar com as mãos o terreno em volta da caverna para disfarçar todos os indícios de pegadas das suas botas.
Regressou à luz do sol e escalou a colina até à estrada. Estava a chegar à cabina para tirar de lá o casaco quando ouviu o ruído de um motor na estrada. Um Fiat negro surgiu na curva a grande velocidade, com as rodas arremessando cascalho e terra à sua volta. O condutor travou quando viu o camião à sua frente. Salvitti não se mexeu. Aguardou com o corpo parcialmente encoberto pela porta aberta da cabina e viu dois homens apeando-se do carro. Eram magros e estavam vestidos andrajosamente, trazendo ao pescoço os lenços vermelhos dos Garibaldini. Ambos traziam carabinas nas mãos.
Um deles gritou para Salvitti: - Identifica-te!
Salvitti levantou uma das mãos no ar num gesto de rendição, e com a outra empunhou a metralhadora ligeira que estava no chão da cabina.
- Afasta-te do camião!
Deu um passo para o lado, fazendo rodar a metralhadora e disparando uma rajada rápida que deitou o primeiro homem ao chão, com o peito explodindo como uma melancia. O segundo homem mergulhou instintivamente para se proteger atrás do Fiat. Salvitti soltou outra rajada, salpicando a carroçaria do carro. O pára-brisas rebentou, enviando para o ar uma chuva de vidro estilhaçado. O segundo homem saltou do seu refúgio atrás do automóvel e precipitou-se para fora da estrada, desaparecendo por detrás de um grupo de penhascos. Salvitti correu em frente. A carabina do homem estava no chão onde a deixara cair ao saltar sobre a orla do caminho. Tinha percorrido uns vinte metros a rolar sobre si mesmo e já estava de pé, ora correndo ora escorregando pela traiçoeira vertente. Salvitti fez pontaria e atirou. O homem caiu para a frente, rodopiando até que o corpo embateu num rochedo e ficou imóvel.
Olhou sem emoção para a figura amarrotada e depois aproximou-se do primeiro guerrilheiro. Estava esparramado de costas perto do Fiat, com a camisa espapaçada de sangue. Observou-lhe o rosto. Era um rapazola, um jovem imberbe como tantos outros que tinham morrido na guerra. Sentiu um golpe de pesar. Pensara que o morticínio já tinha terminado, agora que os Aliados haviam conquistado o país. Mas as coisas nunca eram tão simples. Via que a sangria continuava. A guerra podia ter já terminado, mas havia contas a ajustar. Os italianos tinham estado em guerra uns contra os outros e também com os alemães há já dois anos. Os guerrilheiros iriam extrair todos os benefícios dessa vitória. Não aceitariam nenhum acordo de paz antes que a sua sede de vingança estivesse saciada.
Acocorou-se e passou revista aos bolsos do jovem. Encontrou algumas moedas, um maço amarrotado de cigarros, alguns fósforos e, para sua surpresa, um disco de identificação do Exército Real em nome de Roberto Ferrero. Segurou o disco na mão, com uma ideia a tomar forma na sua cabeça. Conseguira chegar até aqui, mas tinha dúvidas acerca de prosseguir. A travessia da fronteira era perigosa e a recepção que os suíços lhe reservariam era no mínimo incerta. Talvez Fizesse mais sentido permanecer em Itália, regressar a uma das cidades e misturar-se com a multidão. No caos existente seria fácil assumir uma nova identidade.
Guardou o disco e os cigarros na algibeira e removeu o lenço vermelho do rapaz, envolvendo com ele o seu próprio pescoço. Na traseira do carro encontrou um roçado casaco de cabedal e experimentou-o. Quem não o conhecesse, diria tratar-se de um guerrilheiro.
Carregou nos braços o corpo do rapaz e atirou-o para o assento dianteiro do Fiat. Depois engrenou o carro em ponto morto e empurrou-o da berma da estrada, ficando a vê-lo cair aos tropeções pela encosta abaixo, cada vez mais rápido até saltar sobre um precipício e mergulhar numa profunda ravina; escutou o embate e uma súbita explosão surda, e a seguir uma pluma de fumo negro subiu do fundo do vale.
O camião seguiu o mesmo caminho. Limitou-se a soltar o travão de mão, e o veículo começou a rolar pela colina até saltar para fórà da estrada na primeira curva. Aproximou-se a tempo de o ver embater num penhasco e explodir numa bola de fogo. Depois acendeu um cigarro e começou a longa caminhada pela montanha abaixo.
Roma, actualidade
Elena ouviu o telefone tocar através da espessa névoa de sono que a envolvia. Semiabriu os olhos, ao princípio pensando que era o vestígio de algum sonho ou o retinir distante de outro telefone no edifício. Mas quando rolou sobre as costas, reparou que o ruído vinha da mesinha ao lado da cama. Sentou-se, tentando acabar de acordar, e pegou no auscultador.
- Pronto.
- Elena? Elena, és tu? - Era uma voz de mulher, aguda, quase histérica. Era a mãe.
- Sim, mamã, sou eu. Que se passa?
Olhou para o despertador ao lado do telefone. Eram seis e um quarto. A mãe nunca se levantava tão cedo. Sentiu um repentino estremecimento no estômago. Acontecera qualquer coisa de mau.
- Mamã? Que se passa? - repetiu.
O som da voz da mãe indicava que tinha estado a chorar. A respiração saía-lhe em grandes golfadas como soluços.
- Mamã, que aconteceu?
- O teu pai. Encontrei-o. No gabinete. Ouvi o tiro, sabes, e desci logo.
- Tiro? - Estava já completamente desperta. - Que quer dizer?
- Ele está lá agora. Não fui capaz de lhe tocar. Não consegui.
A mãe estava fora de si, debitando palavras numa confusa torrente. Desviou as pernas para fora da cama. Estava completamente gelada.
- Diga-me só o que aconteceu, mamã. Que tiro? De que está a falar.
- O teu pai. Matou-se.
O choque foi tão grande, tão entorpecente, que ficou sem fala por alguns momentos.
- Elena, estás aí? Não sei o que fazer. Elena?
Fez um esforço para dizer alguma coisa. -Já chamou uma ambulância? A polícia?
- Não. Ele está lá, caído sobre a secretária. Aquele sangue... Oh meu Deus! - Começou a soluçar, descontrolada.
- Deixe comigo - disse Elena. - Eu chamo-os. Depois vou para aí. Mamã, ouviu o que lhe disse? Vou ter consigo o mais depressa que puder. Está bem?
A mãe não lhe respondeu. Não perdeu tempo a repetir-se, pois a mãe parecia demasiado perturbada para perceber. Desligou e logo a seguir marcou o 113.
Nunca conseguiria saber como fora capaz de levar o carro desde a sua casa até à dos pais. Estava em transe, quase inconsciente do que se passava à sua volta. As manobras pareciam ser comandadas de algum local recôndito da sua mente sobre a qual não exercia qualquer domínio. Os pensamentos, os sentidos, pareciam estar totalmente absorvidos pelos detalhes do telefonema da mãe, a visão do pai jazendo sobre a secretária.
Não sentia vontade de chorar, apenas choque e medo e, por baixo de tudo o mais, a irracional esperança de que a mãe se tivesse enganado. Não queria acreditar que era verdade. Se fosse, não só tinha perdido o pai como teria de suportar o peso da responsabilidade pela sua morte. Sabia que não podia ser uma coincidência. Só ela teria de carregar o fardo da culpa.
Uma ambulância e dois carros da polícia estavam estacionados à porta da casa quando lá chegou. Entrou no corredor e parou. As pernas tremiam-lhe e o estômago era uma bola retorcida de nervos e náusea. Já tinha estado presente em muitos cenários de morte violenta, mas isto era diferente. Teve de usar toda a sua força de vontade para se aproximar do gabinete de trabalho do pai. Um polícia fardado saía da sala quando ela se aproximou. Elena identificou-se.
- A minha mãe... - começou a dizer.
- Está na cozinha. A equipa da ambulância está a cuidar dela.
- A equipa da ambulância? Então o meu pai...
O polícia abanou a cabeça. - Lamento muito. Já estava morto quando chegámos.
Cruzou a porta aberta do gabinete do pai. Não olhou para dentro. Não seria capaz de ver o corpo do pai. A mãe estava sentada numa cadeira à mesa da cozinha. Estava muito pálida mas parecia calma. Olhava indiferente para nada, com o rosto contorcido e inchado de chorar. Ajoelhou-se ao seu lado, abraçando-a e combatendo as lágrimas.
- A senhora é a filha? - perguntou um dos enfermeiros. Elena confirmou.
- Demos-lhe um sedativo. Ela precisa de descansar. Alguém terá de fazer-lhe companhia.
- Estou aqui agora, mamã - disse Elena com suavidade. Venha descansar um pouco.
Ajudou a mãe a levantar-se e levou-a para fora da cozinha, escondendo-lhe do olhar a actividade no gabinete quando passaram pela porta. No quarto ajudou-a a deitar-se e ficou a acompanhá-la durante algum tempo, segurando-lhe a mão e meditando sobre o modo como a vida evoluía. Durante a maior parte da sua existência tinha sido criada e acarinhada pelos pais. Só agora começava a compreender como as coisas tinham mudado, reparando que havia um ponto pelo qual todos os filhos passavam talvez sem darem por isso, em que se tornavam pais dos seus próprios pais. Tinha-o sentido na tarde anterior com o pai, quando desejara abraçá-lo como se ele fosse seu filho. E agora sentia o mesmo com a mãe, sentia a necessidade de a proteger e confortar.
A mãe fechou os olhos gradualmente enquanto o sedativo ia fazendo efeito, e por fim adormeceu. Elena regressou ao andar inferior. Estava exausta. Queria sentar-se sem fazer nada, mas assustava-a a ideia de ficar sozinha com os seus pensamentos. Tinha de abafar a dor com a actividade.
Fez café e bebeu um pouco, tentando ignorar os sons dos polícias entrando e saindo do gabinete. Um dos guardas veio à cozinha trazendo dois envelopes brancos.
- Estavam em cima da secretária - explicou.
Viu o nome da mãe num dos envelopes, e o seu próprio nome no outro. Mas não lhes tocou. Agradeceu com um gesto e deixou-os ficar sobre a mesa da cozinha. Depois telefonou a Ugo e aos outros três irmãos a participar o sucedido, conseguindo permanecer calma e prática. Foi só depois de terminar os telefonemas que se deixou abater. Guardou no bolso o envelope que lhe era destinado e saiu para o jardim, sentando-se numa das cadeiras plásticas, com as lágrimas correndo como um dilúvio que a cegava.
Ainda ali estava quando Ugo chegou. Aproximou-se dela e, sem uma palavra, abraçou-a e puxou-a contra si enquanto ela soluçava. Só a largou passado algum tempo, entregando-lhe o lenço para ela limpar os olhos.
- Como está a mamã? - perguntou ele.
- Está lá em cima, deitada. Deram-lhe um sedativo. Estava histérica quando me telefonou.
- Por que teria ele feito aquilo?
Elena abanou a cabeça. Não podia contar a Ugo o que fizera. Por agora não. Talvez nem mesmo mais tarde. O sentimento de culpa era demasiado opressivo.
- Que precisa de ser feito? - perguntou Ugo.
- Não tenho a certeza. Depende da polícia.
- Vou falar com eles.
Ugo reentrou em casa. Ela deixou-se ficar no jardim, aliviada pela presença do irmão. Não teria sido capaz de suportar tudo sozinha. Limpou o rosto e secou os olhos, vendo as abelhas pairando em volta da buganvília que pendia sobre o muro no extremo do relvado. Sabia que deveria ir ajudar Ugo, mas não conseguia convocar a energia necessária. Sempre se considerara o elemento mais forte da família, a única pessoa capaz de se manter calma e prática em situações adversas. Mas a sua autoconfiança tinha-a desertado. Sentia-se tão desamparada como uma criança de colo.
Achava-se surpreendida, e grata, pela calma eficiência do irmão. Nunca tinha demonstrado qualidades de liderança, mas agora tinha tomado o comando de tudo; os contactos com a polícia dentro de casa, a supervisão da remoção do corpo para a inevitável autópsia, e a terrível tarefa da limpeza do gabinete.
Só voltou para dentro depois de a polícia ter partido. Dirigiu-se à sala de estar e fechou a porta, bem como tudo o que pudesse recordar-lhe o que se passara ao fundo do corredor. Depois telefonou a Francesca na Procura.
- Onde estás? - Francesca queria saber. - O Baffi tem estado a tentar apanhar-te há horas.
- Porquê? O que aconteceu?
- O que aconteceu? Sabes bem o que aconteceu. Foste tu quem começou tudo. Corona.
- Oh! - Tinha-se esquecido da suspensão do seu chefe.
- Que nos fizeste tu, Elena? O Vespignani foi nomeado director em exercício e está ainda mais insuportável do que dantes. Está cá uma equipa vinda de Bolonha que age como se fôssemos todos uns corruptos. Já aqui estiveram uma série de vezes querendo saber onde te encontras. Onde estás?
- Estou em casa dos meus pais - disse Elena. - O meu pai suicidou-se.
- O quê?
Fez-lhe um rápido resumo do acontecimento.
- Dio! - sussurrou Francesca. - Por que não me disseste isso logo ao princípio? Sinto-me terrivelmente, por ter entrado contigo daquela maneira. Elena, desculpa-me.
- Hoje não vou ao serviço. Não sei quando voltarei. Podes pedir ao Alberto para tomar conta de tudo?
- Claro. Posso fazer alguma coisa?
- Por agora não. Agradeço-te da mesma forma.
A casa encontrava-se agora estranhamente silenciosa. Ugo estava no piso de cima com a mãe. Tirou o envelope do bolso e segurou-o hesitante, mal tendo coragem para o abrir. Olhou para o seu nome escrito nele, sentindo a saliência de algum objecto pequeno e duro. Parecia ser uma chave. Por fim, não conseguiu protelar por mais tempo. Rasgou a aba do envelope e extraiu a folha de papel. Respirando fundo, começou a ler.
Minha querida Elena:
Quando leres isto já te terei deixado. Sei que vou causar-te muita dor, e que me desprezarás pela minha fraqueza, mas pareceu-me ser a saída mais honrosa. Estou demasiado velho e cansado para ver a minha vida - e a minha família - arruinada pela desgraça. É egoísmo, bem sei, mas sempre pensei primeiro em mim em tudo o que fiz, e agora lamento-o.
Não te culpo por tudo isto. O único culpado fui eu. Fiz muitas coisas de que me envergonho, associando-me a pessoas de quem deveria ter-me afastado. Mas já estava demasiado envolvido para procurar desenredar-me. Esta pareceu-me ser a melhor solução para todos os interessados.
Faço-o por mim. Sou cobarde de mais para enfrentar as consequências das minhas acções. Mas espero que também possa proteger-te. Não poderão voltar a atacar-te através de mim.
Não poderão corromper aquela integridade que ao longo de toda a tua vida, Elena, sempre demonstraste nas tuas acções e que eu, para minha eterna vergonha, nunca consegui imitar.
Estou muito orgulhoso de ti, minha filha. Só gostaria de também te ter dado motivo para te orgulhares de mim. Fui um pai ausente e desleixado, mas nunca deixei de te amar. E sempre te amarei. Cuida da tua mãe. Perdoa-me.
Papá
Ficou a olhar para a carta, com as lágrimas caindo sobre o papel até as palavras se transformarem num borrão indistinto.
Chapman regressou a casa de Elena a meio da manhã e foi logo deitar-se. Tinha passado uma desconfortável noite sem dormir no chão dos Arquivos Secretos do Vaticano, seguida por duas horas ainda mais desagradáveis na prateleira da cave a aguardar que o Museu do Vaticano abrisse as suas portas para poder regressar à Capela Sistina e daí sair para a rua.
Dormiu durante quatro horas, depois tomou um duche e arranjou café e torradas. Experimentou ligar para o serviço de Elena e disseram-lhe que estava fora para todo o dia, sem o informarem onde poderia estar. Depois falou a um colega na Stampa Estera para se informar sobre as notícias do dia, antes de telefonar para Londres dizendo que não iria enviar nenhum material.
Estava na cozinha a fazer café quando ouviu a porta da escada abrir-se. Elena entrou lentamente, abatida e exausta.
- Voltaste cedo - disse Chapman. - Queres café? Elena abanou a cabeça, apática. - Não vou ficar. Vim só buscar roupa e alguns acessórios.
- Vais para fora?
Elena deixou-se cair numa cadeira e escondeu a cara entre as mãos.
- O meu pai morreu - disse ela, olhando-o por um instante. - Matou-se esta manhã.
Chapman fixou-a, com a boca aberta. -Jesus!
Puxou outra cadeira e sentou-se ao lado dela, demasiado aturdido para falar. Elena contou-lhe o que se tinha passado, tanto naquele dia como na tarde anterior.
- Matei-o - exclamou. - O meu próprio pai.
- Sabes que isso não é verdade.
- É, sim! - insistiu ela. - Se não tivesse ido lá ontem, ainda estaria vivo.
- Isso não significa que o tenhas matado.
- Pedi-lhe para ir apresentar-se à polícia. Pensei que iria.
- Fizeste o que devias ter feito, Elena. Que mais poderias fazer?
- Podia ter destruído ou escondido os papéis.
- Ontem falámos a respeito disso durante horas - disse Chapman suavemente. - Conheces todas as alternativas de trás para a frente. Se os destruísses, não ia fazer diferença nenhuma, pois eles iriam simplesmente mandar-te mais cópias. Ou a outro magistrado, ou mesmo a um jornal.
- Devia ter-me demitido. Se soubesse que ia acabar assim, demitia-me imediatamente. A responsabilidade é minha. A culpada sou eu.
- Sentes-te culpada, mas a culpa não é tua, Elena. Voltou os olhos para ele. Olhos orlados de vermelho, marcados por uma terrível mágoa.
- Não é? - disse ela. - A minha família vai-me culpar, tal como eu também me culpo.
- Não podias prever que isto iria acontecer.
- Mas eles não vão ver o caso dessa maneira. Meu Deus, como poderei contar-lhes?
- Não contes.
- Não sei se poderia viver com esse segredo. Não sou assim tão forte.
Chapman segurou-lhe as mãos. - Cada um é responsável pelas suas acções. Quem escolheu foi o teu pai, e não tu. Fizeste o que a tua consciência te disse que tinhas de fazer. Isso não é razão para que te sintas culpada.
Ela não respondeu. Pôs-se de pé com dificuldade e entrou no quarto. Chapman seguiu-a, observando-a ansiosamente enquanto ela juntava algumas peças de roupa numa maleta.
- Quando voltas?
- Não sei. A minha mãe não se encontra bem. Sou capaz de ficar com ela durante alguns dias.
- Posso ir contigo, se quiseres.
Elena tocou-lhe num braço e por um momento encostou a cabeça ao peito dele.
- Isto é uma coisa que tenho de fazer sozinha - respondeu.
Estava convencida de que não iria dormir naquela noite, de que a consciência não lhe permitiria fugir ao tormento da culpa. Mas acabou por adormecer ainda antes da meia-noite, demasiado exausta física e emocionalmente para conservar os olhos abertos.
Ugo também passou lá a noite, e, cada um à sua maneira, ambos fizeram o possível para confortar a mãe, a qual, passados os efeitos do sedativo, era uma inconsolável confusão de dor e desorientação. Elena não disse nada sobre a sua conversa com o pai na tarde de domingo; não por não ter coragem, mas por não desejar ampliar a dor da mãe, por não ser capaz de ofender a memória do pai agora que estava morto. Ainda tinha na sua posse os documentos que o incriminavam, ainda tinha de decidir o que faria a respeito deles. Mas para já não.
O novo dia trouxe a todos uma ligeira sensação de alívio. O trauma da morte de Eugênio não tinha diminuído, mas havia coisas para fazer que os iriam ocupar - telefonemas, preparativos para o funeral -, e por isso tinham menos tempo para repisar o que acontecera.
Chapman telefonou à hora do almoço e Elena falou com ele durante alguns momentos. Surpreendia-a a intensidade com que sentia a falta dele, a vontade que tinha de regressar a sua casa e às preocupações rotineiras de uma vida livre de tragédias. Depois Francesca telefonou para saber como ela estava.
- Cá me vou aguentando, nada mais - disse Elena. - Como vão as coisas no serviço relativamente a Corona?
- Ele nega ter conhecimento de alguma conta bancária na Suíça, como seria de esperar. Os magistrados de Bolonha vão interrogá-lo esta tarde.
- E Vespignani? Está com certeza satisfeito com a sua promoção.
- O termo "satisfeito" fica longe da realidade - comentou Francesca com secura. -Já se mudou para o gabinete de Corona e começou a rever a distribuição de casos. Tu entendes: a escolher para si os mais importantes, capazes de pôr o nome dele nos jornais.
- É possível que eu fique ausente por mais algum tempo.
- Era o que eu faria.
Seguiu-se uma pausa. Sentia que havia alguma coisa que a amiga não queria dizer-lhe.
- Tens alguma preocupação?
- Não, nada de especial - respondeu Francesca sem grande convicção.
- Que se passa?
- Agora não é boa altura para te falar disso.
- Falar-me de quê?
- Um dos casos de que Vespignani está a tomar conta é o de António Vivaldi.
- O quê? Ele não me pode fazer isso!
- Veio aqui esta manhã e obrigou o Baffi a entregar-lhe o processo.
Apertou o telefone na mão. Julgara que estava demasiado deprimida para ter qualquer reacção, mas agora sentia-se verdadeiramente irritada.
- É melhor eu falar com ele. Obrigada por me teres avisado, Francesca.
Pôs o telefone no descanso e a seguir marcou o número directo do gabinete do director. Quando Vespignani atendeu, não perdeu tempo com banalidades.
- Luigi, que conversa é esta de tomar conta do caso Vivaldi?
- Safa, que as notícias correm depressa! - ripostou Vespignani com um toque de escárnio. - É verdade, vou tomar conta desse caso, visto que você não está em condições de tratar dele.
- O meu pai morreu, Luigi. É por isso que não fui ao serviço.
- Sei isso muito bem, e é claro que lhe apresento as minhas sentidas condolências. Mas tenho de pensar no funcionamento do serviço. O caso Vivaldi é importante para o modo como o público nos encara, e como até à data você tem progredido pouco na sua investigação, resolvi encarregar-me eu próprio do assunto.
- O caso foi-me confiado - replicou Elena furiosamente - e sinto-me ofendida com a sugestão de que estou a conduzi-lo de modo deficiente.
- Elena, o assunto não está sujeito a debate - disse Vespignani com energia. -Já tomei a minha decisão. Se não está satisfeita, tanto pior. Pode ter sabido manipular Corona, mas comigo não resulta.
- O senhor é um velhaco!
- Cuidado, Elena. Não está em posição de começar a discutir comigo.
- Que quer dizer com isso?- perguntou Elena, esforçando-se para se controlar.
- Quero dizer que tenho aqui na minha secretária um relatório da Guardia di Finanza pedindo autorização, que tenciono dar, para que lhe peçam esclarecimentos a respeito de certas discrepâncias na sua declaração de rendimentos.
O seu estômago sofreu uma súbita reviravolta. Tinha-se esquecido da investigação dos fiscais das Finanças. Respirou fundo antes de falar.
- Discrepâncias?
- Uma verba de dez milhões de liras que foi creditada na sua conta bancária e não foi considerada na declaração de rendimentos.
- Há quanto tempo foi isso?
- Tenho a certeza de que a Guardia lhe fornecerá todos os detalhes quando for interrogada.
- Quando, Luigi?
- Há um ano ou ano e meio.
Suspirou de alívio. - Isso não foi nenhum rendimento. Foi um empréstimo que os meus pais me fizeram para fazer face às despesas temporárias quando me separei do meu marido. Não é nada de importância.
- Pois claro - retorquiu Vespignani num tom que não deixava dúvidas de que não acreditava. - Seja como for, acho que deve tirar umas férias até que este caso esteja resolvido.
- Está a suspender-me? - perguntou Elena, incrédula.
- Oficialmente, não. Estou antes a conceder-lhe uma licença temporária de nojo. Não queremos dois escândalos no serviço. O de Corona já é mais do que suficiente.
- Não posso aceitar isso. As alegações são improcedentes.
- Somos simples funcionários públicos - replicou Vespignani pomposamente. - A sugestão de incorrecção pode ser tão daninha como um caso comprovado. Tenho o dever de proteger o serviço. Fica liberta dos seus deveres até novo aviso. Elena, se me contrariar a respeito disto, tornarei a suspensão oficial e fornecerei à imprensa detalhes do relatório da Guardiã.
O telefone desligou-se. Ficou muda de raiva. As pernas tremiam-lhe e sentia ganas de correr à Procura e esmurrar Vespignani. Mas sabia que a sua posição era difícil. O director do serviço tinha poderes absolutos sobre todos os assuntos internos do pubblico ministero. Não havia ninguém a quem se pudesse recorrer sobre um assunto puramente administrativo como a distribuição dos processos. E o relatório da Guardia di Finanzeera preocupante. Não tinha fundamento, claro, mas era suficientemente sério para lhe causar danos. As pessoas recordavam-se das acusações, mas raramente se lembravam das que tinham sido refutadas.
Saiu para o jardim e começou a andar de um lado para o outro, esforçando-se para dissipar a raiva que sentia, tentando decidir o que deveria fazer. A atitude de Vespignani encrespara-a, e por um momento tinha-se esquecido da perda do pai. Mas foi apenas um fenómeno temporário. A memória logo regressou noutro dilúvio de remorso e deixou-se cair numa cadeira, vencida pela letargia. Que interessava tudo aquilo? Para que haveria de se preocupar com o que Vespignani fizesse, com o que pudesse acontecer a um determinado caso? Tinha coisas mais importantes com que se inquietar.
Contudo, nunca seria capaz de pensar desse modo. Uma parte do que fazia dela a mulher que era residia na sua devoção ao trabalho. Preocupava-se com os seus casos e, ainda que de modo idealista, preocupava-se com a justiça. Lembrou-se do que o pai lhe escrevera na carta a respeito da integridade dela, do orgulho que nutria por ela. Era essa integridade que estava agora em jogo.
Levantou os olhos, recordando-se da chave que estava no envelope. O pai não a teria colocado lá por acaso; devia ter alguma razão para lha destinar.
Ergueu-se rapidamente e entrou em casa. Tirou a chave da carteira e examinou-a: era a chave do cofre do pai. Percorreu o corredor e parou à porta do gabinete de trabalho. Não tinha entrado ali desde que aquilo acontecera. Hesitou, e depois encheu-se de ânimo, rodou o manípulo e entrou.
O cofre estava embutido na parede atrás da secretária, escondido por uma paisagem emoldurada da Toscana, toda ela colinas verdejantes e ciprestes. Abriu-o. No interior viu diversos rolos de documentos. Removeu-os todos e olhou à sua volta, procurando uma superfície onde pudesse colocá-los. Não tinha coragem para tocar na secretária ou na cadeira, e por isso recuou para um canto e sentou-se no chão, lendo cuidadosamente os papéis. Alguns eram documentos oficiais, outros era papéis pessoais relacionados com a reforma do pai, investimentos e assuntos financeiros em geral.
Um maço em especial chamou-lhe a atenção. Continha correspondência relacionada com as empresas offshore nas ilhas Cayman e nas Antilhas Holandesas em cuja criação o pai participara. Continha ainda outra coisa, algo que lhe fez o coração bater um pouco mais apressado: uma série de extractos de conta em nome do Istituto per le Opere di Religione - o Banco do Vaticano.
Espalhou os papéis sobre o tapete e examinou-os. Segundo podia deduzir, tratava-se de registos de depósitos de numerário feitos no banco durante os últimos dois anos. As verbas aturdiram-na. A mais pequena era de duzentos milhões de liras e a maior de setecentos milhões.
Havia um determinado padrão na sequência dos depósitos. Eram efectuados apenas uma vez por mês, na primeira quarta-feira. Encostou-se à parede. Amanhã era a primeira quarta-feira do mês. Roeu uma unha, pensativa. Depois levantou-se, dirigiu-se à secretária e telefonou a Gianni Agostini.
Chapman não foi à Stampa Estera na manhã de quarta-feira. Desejava manter-se alheado das distracções do escritório, dos colegas com quem se sentiria obrigado a conversar, dos telefonemas de Londres. Queria devotar toda a sua atenção ao caso Vivaldi e a nada mais.
Durante algum tempo ficou sentado no sofá da sala de estar, bebendo café e revendo mentalmente todos os factos, desde a morte do Padre Vermelho e o aparente envolvimento dos neofascistas neste homicídio, passando pelos assassínios do mendigo Beppe e de Enzo Mattei, o comício em Ostia Antica, os papéis que Vivaldi tinha ido buscar a casa de Roberto Ferrero, e a sua própria descoberta da verdadeira identidade de Ferrero. Era uma complexa sequência de eventos que, no final, o conduzia de volta aos documentos que retirara dos Arquivos Secretos do Vaticano.
Entrou no escritório e retirou o volumoso envelope castanho da gaveta da secretária onde o guardara. Espalhou o conteúdo no topo da secretária e examinou-o uma vez mais. Empurrou para um lado as medalhas e o punhal: já conhecia tudo o que havia a saber a seu respeito. O disco de identificação do Exército Real era mais enigmático. Tentou imaginar quem teria sido Roberto Ferrero. Estaria provavelmente morto. De outra forma, como poderia Domenico Salvitti ter usurpado a sua identidade? Mas como e quando morrera? Suspeitava que estes factos poderiam ser importantes.
Guardou o disco no bolso e voltou a examinar com atenção a maltratada fotografia a preto e branco. Havia nela qualquer coisa que o incomodava, mas não sabia exactamente o quê. Seriam os homens à volta de Mussolini? O edifício ao fundo, que sabia ter visto antes mas não conseguia reconhecer?
A campainha da porta tocou de súbito, assustando-o. Guardou a fotografia no bolso e reuniu os papéis, devolvendo-os à gaveta com o punhal e as medalhas. Ao sair para o corredor, a campainha retiniu de novo. Hesitou; não estava à espera de ninguém, mas a porta encontrava-se trancada. Não tinha motivo para se inquietar. Aproximou-se cautelosamente da porta e espreitou pela vigia. Não viu ninguém.
- Quem é? - inquiriu.
Algo pesado embateu no painel da porta. A madeira vacilou. Seguiu-se outra pancada súbita e um frágil som de esti-lhaçamento quando os parafusos do fecho de cima cederam. Deu meia-volta e precipitou-se pelo corredor em direcção à escada de salvação nas traseiras do apartamento. Ouviu mais pancadas violentas atrás de si, seguidas de um forte estalido quando a fechadura se soltou. Atravessou a sala de estar a correr e abriu a janela. Outro homem estava ali acocorado no patamar da escada de salvação. Entrou num repente, atirando Chapman contra a parede antes de este ter tempo para perceber o que estava a acontecer. Deu-lhe um soco tão forte no estômago que Chapman caiu dobrado, esforçando-se por respirar. Ouviram-se passos no corredor e um segundo homem entrou na sala. Chapman olhou-o, quase sem fôlego. Era Vincenzo Volpi, o malfeitor que abatera Enzo.
- A gente encontra-se outra vez, meu sacana - disse-lhe Volpi, sorridente.
Chapman engoliu em seco, tentando respirar com normalidade. Estava demasiado atarantado para pensar direito. Só registava aquela dor forte no estômago e a presença de dois rufias de cabelo rapado pairando acima de si. Pegaram nele e atiraram-no para cima do sofá.
- As medalhas de Salvitti, onde estão elas? - disse Volpi com o seu gutural sotaque romano.
- Medalhas?
Volpi aproximou-se e atingiu-o com um soco poderoso. O nariz de Chapman rebentou, espalhando sangue na boca e no queixo.
- Só perguntamos uma vez. Onde estão?
Chapman limpou o sangue com as costas da mão. Podia senti-lo na boca, morno e adocicado.
- Que medalhas? - perguntou com voz arrastada. Volpi socou-o de novo, desta vez num ouvido. Uma dor lancinante atravessou-lhe o crânio.
-Já disse que só perguntamos uma vez.
- Queremos os papéis também - disse o outro. Chapman pestanejou. Tinha a cabeça a latejar, mas através da névoa avermelhada ainda era capaz de pensar, de avaliar em que medida poderia enganá-los, quanta violência o seu corpo poderia suportar.
- Tenho as medalhas - disse com dificuldade. - Que papéis são esses?
- Sabemos muito bem que os tens, meu asno! - explodiu Volpi. - Os papéis do Vivaldi. Tens as medalhas do Salvitti, e os papéis vêm com elas.
- Estão no escritório - disse.
Sabia que acabariam por os encontrar. O que interessava agora era proteger-se, conservando a energia suficiente para ter uma oportunidade de se defender deles.
- Mostra-nos - disse Volpi, fazendo-o pôr-se de pé e empurrando-o na direcção da porta.
Chapman seguiu aos tropeços pelo corredor e entrou no escritório. Os dois homens seguiram-no e esperaram enquanto ele dava a volta à secretária e abria a gaveta. Pegou nas medalhas e atirou-as para o tampo da secretária. Saltitaram no topo da mesa e escorregaram para o chão.
Os dois homens agacharam-se instintivamente para as apanhar e nesse breve momento, vendo-os distraídos, retirou o punhal da gaveta e escondeu-o no bolso das calças.
Volpi veio também à volta da secretária e afastou-o com um empurrão. Tirou os papéis da gaveta e atirou-os para cima da mesa.
- São estes? - perguntou ao comparsa.
O outro folheou os papéis e confirmou. Volpi agarrou Chapman pelo colarinho e arrastou-o para fora do gabinete.
- Sentes a falta do teu amigo? - perguntou-lhe com um sorriso de malícia. - Diverti-me à brava, sabes? - Levantou a mão direita à laia de pistola e apontou-lha à cabeça. - Pum, pum. Dois tiros. Uma execução sem falhas. Viste a cabeça a explodir? Foi giro, não foi?
Chapman mordeu um lábio para sufocar a resposta. Não queria dar-lhe uma desculpa para o agredir de novo.
Sabia que tencionavam acabar com ele. Sabia-o desde que lhe arrombaram a porta. Não se haviam dado ao trabalho de esconder o rosto porque não tencionavam deixá-lo vivo para os identificar. A única dúvida era onde iriam fazê-lo. Não no apartamento, pensava. Não queriam correr riscos. Iriam levá-lo para um sítio solitário algures, onde eles, ou quem os tinha mandado, poderiam concluir o trabalho sem interrupções.
Levaram-no pelas escadas abaixo, um de cada lado, segurando-o bem pelos braços. Na rua estavam dois carros encostados à berma: um Fiat castanho e à frente um Alfa Romeo azul. Um homem novo, de rosto lívido e olhos escuros, apeou-se do Alfa Romeo. Trajava roupa vulgar, fato preto e camisa branca, mas algo no corte do fato sugeria a Chapman que se tratava de um padre.
O homem que lhe segurava o braço direito soltou-o e adiantou-se para entregar ao padre os papéis que tinha trazido do apartamento. Chapman olhou de relance para Volpi e meteu casualmente a mão no bolso direito das calças. Agarrou o cabo do punhal, sentindo na mão a frescura do metal.
- Para o carro - ordenou Volpi, empurrando-o para o Fiat.
Sabia que teria de agir imediatamente. Assim que o apanhassem dentro do carro, não teria uma nova oportunidade. Nunca tinha usado uma faca, nunca atacara outro homem num acesso de cólera ou em autodefesa. Era preciso ter-se um certo género de personalidade para agir violentamente sobre outra pessoa, uma personalidade que ele não tinha. Mas lembrou-se do que tinham feito a Enzo e não hesitou. Sacou do punhal e espetou-o com toda a força na coxa de Volpi. Este gritou e agarrou-se à perna, caindo para o chão. O comparsa deu meia-volta. O padre saltou para dentro do Alfa Romeo. Chapman voltou-se e começou a correr pela rua acima.
Ouviu o outro homem vir no seu encalço. Havia um intervalo de menos de cinquenta metros entre ambos. Virou para uma pequena piazza cheia de carros estacionados, desviando-se para evitar as mesas e cadeiras da esplanada de uma trattoria, e a seguir meteu-se por uma estreita rua que serpenteava entre dois edifícios altos. Trepadeiras pendiam sobre as paredes caiadas num tom laranja desbotado pelo sol, contorcendo-se por entre as varandas de ferro fundido e as persianas de madeira, mas só tinha olhos para o caminho à sua frente. Um grupo de turistas com máquinas fotográficas e guias turísticos obstruiu-lhe a passagem por um momento. Abriu caminho por entre eles e virou para uma rua empedrada, olhando para trás na esperança de que o seu perseguidor tivesse desistido da caça.
A esperança era injustificada. Estava a ganhar terreno sobre o homem, mas este encontrava-se em melhor forma física do que parecia. Apesar de correr com dificuldade, parecia decidido a prosseguir. Não podia permitir que Chapman se escapasse.
Virou à esquerda, e depois à direita, tentando sacudir o seu perseguidor, procurando afastar-se o suficiente para encontrar um esconderijo. Estava a ressentir-se do esforço físico. As pernas pareciam-lhe mais pesadas, a respiração mais trabalhosa. A rua começou a subir, aumentando o esforço exigido dos músculos. Virou para outro vicolo, descobrindo uma reserva extra de velocidade. Dobrou uma esquina, quase embatendo numa Vespa que vinha na
direcção oposta, e emergiu numa praça. A igreja de Santa Maria della Scala encontrava-se mesmo à sua frente. Olhou para trás. O seu perseguidor não estava momentaneamente à vista. Subiu a escadaria e entrou na igreja.
Parou no extremo da nave, olhando em seu redor na penumbra. A igreja encontrava-se deserta. De um dos lados da nave havia uma fileira de confessionários de madeira esculpida. Abriu a porta do primeiro e entrou. Deixou-se cair no banco do padre, respirando em golfadas, à escuta. Durante muito tempo não ouviu nada. Acalmou-se. Limpou o suor do rosto e esperou.
Depois ouviu passos. Alguém entrava na igreja. Reteve a respiração. Os passos aproximavam-se ao longo da coxia lateral da nave. Podia ouvir a respiração laboriosa do homem, cada vez mais próxima e mais nítida. A porta do confessionário abriu-se de repente e o rosto avermelhado do homem apareceu à sua frente. Na mão direita trazia uma pistola automática.
Fez com a pistola um gesto de chamamento e Chapman pôs-se de pé, desiludido. Estava prestes a sair do compartimento quando escutou uma súbita agitação de passos, e dois homens de fato cinzento entraram na igreja numa correria. Vinham armados com pistolas que agitavam de um lado para o outro.
- Polizia!- gritou um deles. -A pistola para o chão, já!
O arcebispo Tomassi estava a olhar fixamente para os papéis que o seu secretário colocara em cima da mesa à sua frente. Não tinha perguntado onde o Padre Simcic os teria obtido. Havia coisas que era melhor ignorar. Mas sentia-se entontecido em consequência do choque que sofrera. A última vez que vira três destes documentos, encontravam-se guardados com toda a segurança nos Arquivos Secretos. Como teriam sido removidos dali constituía para ele uma incógnita e uma preocupação
Mas não manifestou a sua curiosidade. Pouco conhecia da vida privada de Simcic, das pessoas com quem convivia fora das horas de serviço, mas estava convencido de que não aprovaria muitas delas. Tomassi era um homem prático. Não achava apropriado preocupar-se com assuntos com que não tinha nada a ver, em particular quando lhe convinha permanecer ignorante. O que interessava era que os documentos tinham sido recuperados, e que os papéis que António Vivaldi lhe mostrara no dia da sua morte estavam agora na posse dele. Os originais, não as cópias.
Releu os documentos. Depois pegou numa caixa de fósforos que guardava numa gaveta. Desta vez não haveria enganos. As provas seriam destruídas de uma vez para sempre. Acendeu um fósforo e encostou a chama ao canto da primeira folha. Ficou a vê-la a arder e depois deixou-a cair no cesto metálico de papéis e esperou até não restar mais do que alguns flocos carbonizados de papel. Fez o mesmo com as restantes folhas, misturando as cinzas com a ponta de um lápis para se certificar de que não ficaria nenhum fragmento por arder. Depois dirigiu-se à sua capela particular para suplicar o perdão do Senhor.
Elena estava a ficar aborrecida. Este tipo de vigilância de rotina não era coisa que normalmente orientava pessoalmente. Habitualmente dava instruções à polícia e deixava-a à vontade. Mas este caso era diferente. Tinha um interesse especial no assunto, e considerava importante estar presente.
Agostini estava sentado ao seu lado, ao volante de um carro da polícia que não exibia nenhuma identificação exterior. Encontravam-se estacionados no extremo de uma fileira de veículos na Via di Porta Angélica, a uns cinquenta metros da Porta Santa Anna, a entrada de serviço da Cidade do Vaticano. Do local onde se encontravam podiam observar perfeitamente os portões e o posto de controlo logo a seguir, guarnecido de Guardas Suíços. Para lá dos portões, ao cimo da Via dei Belvedere, localizavam-se os escritórios do Istituto per le Opere di Religione, o Banco do Vaticano. Um outro carro da polícia sem marcas exteriores encontrava-se estacionado a seguir à Via di Porta Angélica, e num café quase em frente dos Portões de Santa Anna estavam dois agentes à paisana, armados.
Agostini olhou para o relógio e depois lançou um olhar de relance a Elena.
-Já sei - disse ela. - Só mais uns minutos.
Estavam ali há quatro horas e começavam a ficar irrequietos. Não era apenas o tédio da espera - a polícia estava habituada a isso -, mas sobretudo o facto de que quanto mais demorasse, menores eram as probabilidades de sucesso. Elena estava certa de que um depósito iria ser feito nesse dia. O problema era identificar o mensageiro. Tinha quase a certeza de que viria a pé, pois levar um carro para dentro do Vaticano era um processo complicado, mas isso não facilitava muito a tarefa. Já tinham registado dois falsos alarmes, pessoas que pareciam ser o alvo mas que, quando detidas e interrogadas, tinham demonstrado possuir actividades legítimas noutras zonas da Santa Sé.
Mas mantinha-se confiante. Teria sido mais fácil dar a operação por concluída, mas estava decidida a levá-la até ao final, mesmo que este resultasse infrutífero. Sentia-se esgotada. Tinha dormido mal, ainda agitada pela morte do pai. Por uma ou duas vezes quase adormecera no carro, mas forçara-se a manter-se desperta. Não ficaria bem se a magistrada responsável pela operação adormecesse no trabalho.
- Dottoressa - chamou Agostini de repente.
Estava a olhar fixamente para o BMW negro que se aproximava pelo lado oposto da estrada. O carro reduziu a velocidade e parou mesmo junto à Porta Santa Anna. Havia dois homens no interior e Elena reconheceu o condutor: era o desordeiro de cabeça rapada que tentara destruir os processos durante o assalto à sede do MPI.
- É agora - disse ela.
Agostini pegou no microfone do rádio.
- Alvo à vista. BMW negro. Avancem.
Pôs o motor a trabalhar e o carro atravessou a estrada, forçando os outros carros a dar prioridade, e foi parar, pára-choques contra pára-choques, em frente do BMW. O segundo carro da polícia aproximou-se vindo da direcção oposta, tapando a saída ao BMW. Os dois homens saltaram do carro, tentando escapar. O cabeça-rapada esquivou-se por entre os carros que passavam e estava quase do outro lado da estrada quando os polícias à paisana saíram a correr do café e o derrubaram. O segundo homem tentou encontrar santuário dentro do Vaticano mas viu o seu progresso interrompido pelos Guardas Suíços. Foi algemado e trazido de volta ao BMW.
Agostini removeu a pasta do assento traseiro do carro e abriu-a. No seu interior encontravam-se numerosos maços bem arrumados de notas de dez mil liras. Tirou um maço e folheou-o.
- As bebidas são por minha conta - declamou.
Interrogaram os dois homens em salas separadas na sede da Polícia Judiciária e não na Procura. Elena não queria aproximar-se do seu gabinete para não ter de enfrentar Vespigna-ni. Começaram pelo cabeça-rapada mas não chegaram a parte nenhuma. Limitou-se a ficar sentado a olhar inexpressivamente para a parede e recusando-se a responder a qualquer pergunta. Frustrados pela reacção, passaram a dedicar-se ao segundo homem.
Estava sentado muito direito no duro assento de madeira da sala de interrogatório, com as espessas mãos apoiadas nos joelhos. Tinha uma constituição poderosa, e os músculos dos braços e dos ombros faziam bojo sob o ralo tecido do fato.
Elena sentou-se à frente dele e estudou-lhe o rosto. O lábio superior recurvou-se numa expressão de desprezo, mostrando os dentes falhados, irregulares. Uma diminuta centelha de reconhecimento cintilou no cérebro dela. Já tinha visto aquela boca noutra ocasião. Dio. Subitamente recordou-se: através da abertura num capuz negro de carrasco. Era o chefe da matilha que a tinha assaltado ao sair da Procura no regresso a casa. Não lhe tinha visto a cara mas os detalhes daquela boca sorridente enquanto lhe explorava o corpo com as mãos tinham ficado para sempre gravados no seu cérebro. Estava certa de que era ele.
Por um instante pareceu-lhe que as pernas lhe enfraqueciam e sentiu na boca o sabor a óleo de rícino. Depois o momento passou e teve vontade de o agredir. Queria fazer-lhe o mesmo que ele lhe tinha feito. Ele estava agora a sorrir-lhe abertamente, percebendo quem ela era. Se fosse homem, teria pedido a Agostini para sair da sala, demonstrando a sua cólera sobre este animal com uma violência clínica. Como não era, dominou-se, satisfazendo-se com a certeza de que, de uma forma ou de outra, iria castigar este malandro por meios legítimos.
Agostini ligou o gravador de fita magnética e despachou as formalidades: data, hora, nome do suspeito que estava a ser interrogado. Sabiam pelo cartão de identidade encontrado na sua carteira que se chamava Fábio Boneschi, ainda que ele se recusasse a confirmar. Tinham garantido a autenticidade do cartão do homem, fotografando-o e tirando-lhe as impressões digitais por uma questão de rotina.
Elena fez-lhe algumas perguntas e logo constatou que não ia ser mais cooperante do que o primeiro.
- O dinheiro que estava na pasta que iam levar para o Vaticano. De onde vinha ele?
- Qual dinheiro? Não levava dinheiro nenhum para parte nenhuma.
- Qual era a origem desse dinheiro? Proventos de jogo ilegal, extorsão, contributos ilegais de empresas aos neofascistas?
- Nunca o tinha visto antes. Não sei como foi parar ao carro. Se calhar foram os polícias que o meteram lá.
- Para quem trabalhas?
- Estou desempregado. O trabalho não abunda.
- Estás filiado no MPI?
- O que é isso?
- Quem te mandou ao Vaticano?
- Eu cá não estava no Vaticano.
- Estavas prestes a entrar pela Porta Santa Anna.
- Estava?
Elena persistiu, apesar de lhe parecer que estava a embater numa parede. Podia deter Boneschi indefinidamente; o tempo jogava a seu favor. Mas a sua atitude sarcástica irritava-a.
Após vinte minutos de interrogatório em vão, Agostini saiu da sala por solicitação de um dos agentes. Elena esperou que ele saísse e depois desligou o gravador.
O homem olhou de relance para o gravador desligado e baixou a voz para que o agente fardado à porta não o ouvisse.
- Queres outra apalpadela? - perguntou-lhe com lascívia. Hã? Queres que te apalpe outra vez as mamas? Gostaste bastante, não gostaste? Uma vaca peneirenta como tu, aposto que não encontras quem te satisfaça. Tranca a porta, e podemos gozar um bocado aqui em cima da mesa. Que achas?
Elena lançou-lhe um olhar de piedade. Era um duro, mas não tanto como ele julgava. Ela sabia que havia pouco que pudesse dizer ou fazer que o levasse a cooperar. Não tinha medo dela, nem da polícia, nem do sistema judicial. Mas sabia de uma coisa que até os homens como ele receavam: os da sua laia.
- Queres que te diga o que vou fazer? - disse ela.
- Não. Gosto muito de surpresas - ripostou o homem.
- Vou emitir um comunicado à imprensa dizendo que estás detido e a cooperar totalmente com as nossas investigações sobre as actividades dos neofascistas. Depois vou transferir-te para a Regina Coeli. - Inclinou-se para a frente, para dar ênfase à mensagem. - E vou certificar-me de que ficas instalado na mesma ala da prisão onde se encontram os Sansepolcristi aguardando julgamento pelo atentado bombista à sinagoga e por outras atrocidades. Vão ter muito gosto em conhecer-te. Podes crer, Fábio, que não vão limitar-se a deitar-te óleo de rícino pela goela abaixo.
Viu Boneschi empalidecer. Ele sabia que a magistrada não estava a atirar-lhe areia aos olhos.
- Sua cabra! - rosnou.
- Talvez - replicou Elena. - Mas sou uma cabra que te tem preso pelos tomates. Pensa nisso.
Levantou-se e saiu da sala. Agostini vinha de regresso pelo corredor.
- Houve um incidente em Trastevere - anunciou. - Aquele jornalista inglês, Chapman.
Elena ficou imóvel. Sentiu a boca repentinamente seca. - Que aconteceu? Que lhe aconteceu?
- Encontra-se bem. Foi agredido, mas não está muito ferido.
- Onde está ele, no hospital?
- Foi tratado por um médico na esquadra. Teve sorte. Parece que um par de rufiões neofascistas iam raptá-lo. Estava prestes a apanhar um tiro quando a polícia chegou. Dois dos homens do Piccoli. Andavam no encalço de um dos malandrões, um tipo chamado Volpi, Vincenzo Volpi. Conhece-o?
- Pedi ao Piccoli para tomar conta do caso. Estão presos?
- Volpi está no hospital. O jornalista esfaqueou-o com um punhal. Vai gostar deste bocado. Parece que o punhal era uma peça de colecção, uma recordação fascista com uma mensagem gravada do próprio Mussolini. O Piccoli vai enviar um relatório completo para o seu gabinete.
- Portanto o Chapman acha-se bem, tem a certeza disso? Agostini confirmou com um aceno e a seguir fez um gesto na direcção da sala de interrogatórios. - Como vai o nosso amigo?
- Continua difícil.
- Sei de uma coisa que talvez lhe solte a língua. Na casa do Padre Vermelho, lembra-se de que havia algumas impressões digitais que não conseguíamos identificar? Adivinhe de quem eram.
Elena sorriu. - Vou deixá-lo transmitir-lhe essa boa notícia.
Regressaram à sala do interrogatório e ligaram o gravador. Boneschi olhou-os com uma expressão de ódio que era quase palpável.
- Quero um advogado - disse ele.
- E bem vais precisar - replicou Agostini. - Não tens cadastro, pois não? Isso surpreende, tratando-se de um estafermo como tu. Como conseguiste safar-te até agora?
- Sou um cidadão respeitador da lei - respondeu ele.
- Pois claro. Um cidadão respeitador da lei que anda com quinhentos milhões de liras numa pasta.
-Já disse que não sei nada a respeito do dinheiro.
- Claro que não sabes. Mas não é disso que queremos falar contigo. Ouviste falar de um padre chamado António Vivaldi?
- Não.
- Palavra? Foi assassinado há cerca de duas semanas. Vinha em todos os jornais.
- Nunca leio jornais.
- Portanto não o conheces.
- Não.
- Nesse caso, como explicas o facto de as tuas impressões digitais terem sido encontradas em casa dele pouco depois de ter sido assassinado?
Boneschi passou a língua pelos lábios, abrindo ligeiramente os olhos. Elena observou-o com atenção. Se o manobrassem correctamente, talvez ele fosse a conduta que os levaria ao próprio Cesare Scarfone.
- Percebes o que estamos a dizer, não percebes? - disse Elena. - Não se trata de uma simples acusação de branqueamento de dinheiro; estamos a falar de homicídio, de um homicídio particularmente grave.
- Não tive nada a ver com isso.
- Mas estiveste lá - insistiu Agostini. - Temos as tuas impressões digitais recolhidas no local. Isso será suficiente para te condenar. A não ser que houvesse mais alguém presente que tivesse sido o autor material do assassínio. Estava lá mais alguém?
Boneschi não respondeu. Mudou de posição no assento, mostrando os primeiros indícios de desconforto desde que fora detido. Elena resolveu insistir nesse ponto.
- Para que hás-de suportar tu toda a culpa? Vais ficar preso por muito tempo, bem o sabes. Vivaldi era padre, uma das pessoas mais respeitadas da cidade. Nenhum juiz vai demonstrar qualquer parcela de piedade por ti. A opinião pública vai garantir que nunca mais verás a luz do sol. E isso que queres? Pretendes que os outros culpados fiquem livres como passarinhos? - Fez uma pausa. - Quem mais estava lá? Cesare Scarfone estava presente?
As mãos de Boneschi moveram-se sobre as coxas. Podia ver a indecisão nos olhos dele. E talvez até um indício de terror.
- Ele estava lá? - insistiu Elena.
- Não vão conseguir tocar em Scarfone - garantiu Boneschi. - Ele é esperto de mais para vocês.
- Tens medo dele, não é? Ficas todo cagado por causa dele. Como é que um matulão como tu se deixa intimidar por um crápula como Scarfone? Queres passar o resto da vida na prisão por causa de um gajo como ele?
- Estão dispostos a entrar num acordo?
- Nada de acordos. O pubblico ministero não faz acordos.
Boneschi riu-se-lhe na cara. - Ai não? Estás tão convencida, tão satisfeita contigo mesma, não estás, minha puttani! Toda limpa e pura quando metade dos teus colegas, incluindo o teu chefe, aceitam luvas. É por isso que nunca hão-de conseguir apanhar o Scarfone. Ele sabe exactamente quem precisa de comprar.
- Sabemos muito bem tudo isso. O meu chefe foi suspenso.
- Ai sim? - Boneschi encolheu os ombros, desinteressado. - É bem feito. Gente como ele mete-me nojo. Todos cheios de moralidade, a julgar os outros ao mesmo tempo que andam a encher os bolsos. Houve uma altura em que era eu quem fazia as entregas, verbas em dinheiro num envelope. Tratava-me como se fosse lixo. Ali sentado no raio da vivenda em Frascati, bebendo vinho e a olhar-me do alto enquanto embolsava dez milhões por mês. Pessoas como ele são piores do que os maiores criminosos.
- Que disseste? - Elena estava a olhá-lo intrigada, de boca entreaberta.
- Disse que as pessoas como ele...
- Frascati? Disseste que ele tinha uma vivenda em Frascati?
- Claro. Uma coisa de luxo. Paga com dinheiro sujo. Se quiser saber...
- Cala-te.
- O quê?
Elena levantou-se da cadeira e deu meia-volta. Corona não tinha nenhuma vivenda em Frascati. Mas ela sabia quem tinha. Passou a mão pelo cabelo, com o coração a bater-lhe desordenadamente, e virou-se de novo para Boneschi.
- De quem estás a falar? De Alessandro Corona?
- Quem? Não. De um sujeito baixote, com uma barbicha estúpida. Vespignani. É o seu chefe, não é? Foi o que sempre pensei. Acusador-chefe, qualquer merda desse género.
Percebia agora o que tinha acontecido. Tinha caído na esparrela de olhos bem abertos. Fizera o trabalhinho todo como eles queriam, entregando-lhes a cabeça de Corona numa travessa. Tinham-lhe facilitado bem a tarefa, até ao ponto de identificarem os processos que interessavam, fingindo que queriam destruí-los na sede do MPI. E ela caíra que nem um patinho. Não havia conta nenhuma na Suíça. Pelo menos nenhuma de que Corona tivesse conhecimento. Não era mais do que uma complicada trama para que Vespignani apanhasse o lugar de director do Ministério Público.
- Esses pagamentos - comentou Elena. - Há registos deles?
- Sei lá. Acho que sim. Para que serve um suborno se não pode ser usado para fazer chantagem com a vítima?
- Onde é que eles guardam esses registos?
- Acha que isso é uma coisa que me digam? O Scarfone é capaz de os ter. Quem sabe?
- Cesare Scarfone estava presente quando António Vival-di foi torturado e morto? - perguntou-lhe.
Boneschi olhou para o chão. Abanou a cabeça, subitamente relutante em responder. Elena debruçou-se sobre a mesa mesmo em frente dele.
- Estava ou não?
Boneschi não respondeu. Elena sentiu uma enorme vontade de lhe aplicar um sopapo, mas controlou-se. Queria que tudo o que dissesse no interrogatório fosse admissível como prova testemunhal. - Estava ou não? - repetiu. - Estava ou não? Quero uma resposta, ou vais parar à Regina Coeli dentro de dez minutos. Scarfone estava presente?
Boneschi hesitou e depois levantou a cabeça e fez um ligeiro aceno.
- Em voz alta, para ficar na gravação! - insistiu Elena.
- Sim, Scarfone estava lá.
Elena desligou o gravador e retirou a fita, guardando-a no bolso do casaco.
- Preciso de usar o seu telefone, Gianni - disse. Subiram ao gabinete de Agostini e ligou para o seu serviço.
- Alberto - disse quando Baffi atendeu. - Sou eu. Os processos que trouxemos da sede do MPI. Preciso que procures uma coisa neles.
- Já estão encaixotados e prontos para serem devolvidos - informou Alberto.
- Estão o quê?
- Na audiência desta manhã, perante o juiz Vasari fomos instruídos para os devolvermos.
- Cristo, já me tinha esquecido disso.
- O doutor Vespignani tratou do assunto. Não pôs entraves à sua devolução.
- Acredito. Alberto, faça-me um favor. Não deixe sair os caixotes. Não interessa como, deixe-os ficar aí até eu chegar. Está bem?
Colocou o auscultador no descanso e voltou-se para Agostini. - Pode arranjar-me um carro?
- Eu mesmo posso levá-la - replicou ele.
Ligaram as luzes intermitentes e a sirene e chegaram à entrada da Procura em poucos minutos. Entraram a correr e tomaram o elevador. As caixas de cartão com os seus selos oficiais estavam empilhadas no corredor no exterior do gabinete. Elena puxou um deles para dentro e rebentou os selos, deitando o conteúdo em cima da secretária de Baffi. Depois trouxe uma segunda caixa e esvaziou-a também.
- Procurem bem: quero qualquer coisa que se pareça com um registo de pagamentos. Documentos de caixa, recibos, qualquer coisa.
Regressou ao corredor e transportou mais caixas para dentro. Agostini ajudou-a. Francesca veio do gabinete interior e ficou a olhar para os papéis.
- Que raio...
- Não fiques aí parada - disse Elena. - Dá-nos uma ajuda.
Voltou de novo ao corredor. Vespignani aproximava-se, saído do seu gabinete. Viu-a e começou a trotar. Elena entrou no gabinete dos funcionários e chamou Francesca de parte.
- Fazes-me um favor? Telefona a Montecitorio e descobre quando vai ser a votação sobre a suspensão de Scarfone.
Francesca olhou para ela. - Não sabes? Foi feita na noite passada. Veio em todos os noticiários. Os jornais desta manhã falam todos no assunto.
- Não tenho estado a par. - Podia sentir a tensão nos músculos. - Qual foi o resultado?
- Correu como tu querias - informou Francesca. Vespignani entrou a correr e olhou para as caixas, para os montes de processos na secretária e no chão.
- Que raio pensam que estão a fazer?
Elena ignorou-o. Afastou-se com Francesca, falando-lhe em voz baixa. - Prepara um mandato de prisão em nome de Scarfone. Pede à Polícia Judiciária para mo trazer imediatamente. Diz-lhes para o procurarem em Montecitorio, em casa, na sede do MPI. Que não falhem.
- Qual é a acusação?
- O homicídio de António Vivaldi.
Podia sentir a força do olhar de Francesca mas ia já a afastar-se, observando Vespignani a pegar no telefone para marcar um número interno.
- Segurança? Daqui fala o delegado-chefe Vespignani. Temos um incidente no terceiro andar. Quero que mandem aqui alguém imediatamente.
Desligou o telefone. - Está suspensa das suas funções a partir deste momento - ladrou para Elena. - Está a ouvir-me?
- Vá-se lixar - retorquiu Elena.
Vespignani segurou-a por um braço e arrastou-a para fora do gabinete.
- Está a desencaminhar documentos selados. Está a violar uma ordem judicial - gritou.
Elena olhou por cima do ombro dele. Dois guardas de uniforme vinham apressados pelo corredor. Soltou-se das mãos dele e correu para o gabinete, aproximando-se de Agostini. Tirou do bolso a cassete gravada e entregou-lha.
- Leve-me isto depressa ao Palácio da Justiça. Tribunal da Cassação. Juiz Bassano.
Agostini confirmou com um aceno. Podiam escutar os passos apressados dos guardas no exterior.
- O que é isso que leva aí? - exigiu Vespignani ao ver Agostini guardar a cassete no bolso da veste.
- Corra, Gianni! - murmurou Elena.
Agostini afastou Vespignani do seu caminho e correu pelo corredor, empurrando os dois seguranças.
- Agarrem aquele agente! - gritou Vespignani.
Os guardas deram meia-volta para o perseguirem. Elena viu o inspector chegar ao patamar da escada no extremo do corredor. Deitou um rápido olhar para trás e depois empurrou as portas e desapareceu.
Vespignani virou-se para Elena de rosto contorcido pela fúria.
- Quanto a si, dottoressa - gritou -, considere-se sob prisão.
A maciça porta de carvalho polido foi aberta por um funcionário e Elena e Vespignani foram conduzidos aos aposentos do juiz pelos dois guardas de uniforme que tinham ido buscá-los à Procura.
Emilio Bassano e um homem que Elena sabia ser o Presidente do Tribunal de Cassação estavam sentados atrás da secretária. Gianni Agostini estava de pé junto da mesa, com um leitor de cassetes à sua frente.
Vespignani olhou desconfiado à sua volta. - Por que fomos trazidos para aqui? Creio que devem saber que a Dottoressa Fiorini está suspensa das suas funções até à conclusão de inquérito...
O juiz Bassano levantou a mão para o calar. - Tudo a seu tempo. Queiram sentar-se.
Esperou até Vespignani e Elena se sentarem e depois virou-se para Agostini.
- Inspector, faça o favor de nos deixar ouvir de novo essa gravação.
A escuridão cercava-os. Elena deitou um olhar ao mostrador luminoso do relógio - passavam dez minutos das oito - e depois olhou de relance para Agostini sentado de olhos fechados ao volante do carro da polícia sem identificação exterior. Parecia estar adormecido, mas sabia que não estava. De vez em quando levantava a cabeça para espreitar pelas janelas, examinando a área em redor com uma indiferença aparente mas sem deixar escapar nada. Depois, a intervalos de quinze minutos, pegava no rádio portátil e falava com um dos seus agentes para a seguir esticar as longas pernas e acomodar-se melhor no assento. Elena invejava o seu desprendimento, a facilidade com que se descontraía enquanto cada músculo do corpo dela parecia retesar-se com a tensão dos nervos.
Estavam estacionados na Aventine, a mais meridional das sete colinas originais de Roma, uma zona residencial de moradias dispendiosas, ruas calmas e praças renascentistas. A frente, atrás de um muro branco coroado por pequenos obeliscos, erguia-se a igreja de San Anselmo com a fachada parcialmente encoberta por pinheiros e frondosas palmeiras. Do lado oposto da praça outro muro alto protegia o Priorato di Malta, a imponente residência do Grão-Mestre dos Cavaleiros de Malta. Durante o dia, quem espreitasse através do buraco da fechadura dos portões de ferro do palacete obtinha uma visão perfeita da cúpula de São Pedro ao fundo de uma alameda. Os guias turísticos mais detalhados referiam-se-lhe de passagem, mas poucos turistas se aventuravam tão longe do roteiro usual para a admirarem por si mesmos. A Aventine era, pelos padrões romanos, um rincão isolado, um paraíso para a nobreza decadente, para os elementos abastados do sistema e também para arrivistas ambiciosos como Cesare Scarfone, cuja elegante mansão do século XVI se situava a menos de duzentos e cinquenta metros dali.
O deputado tinha-se escondido ninguém sabia onde. Depois da manhã passada na Câmara de Deputados a emitir febris desmentidos de envolvimento em qualquer actividade ilegal e jurando combater os membros do Ministério Público que o acusavam tão injustamente, tinha desaparecido subitamente do Parlamento a meio da tarde, não tornando a ser visto. Elena não duvidava de que o seu desaparecimento se devia ao facto de ter tomado conhecimento da detenção de Fábio Boneschi. As autoridades fronteiriças tinham sido alertadas, mas até agora Scarfone permanecia invisível. Alguns dos homens de Agostini vigiavam a sede do MPI e havia mais dois agentes destacados para a casa do deputado, um deles escondido na frente e o outro no jardim traseiro. Elena não tinha necessidade de estar ali. Poderia ter ficado na sede da polícia, em contacto permanente com a operação de vigilância, mas sentia-se demasiado irrequieta para ficar sentada num gabinete. Queria estar activa.
O rádio crepitou e uma voz disse: - Morelli. Está alguém a saltar o muro do jardim.
Agostini endireitou-se repentinamente, estendendo a mão para o microfone. Elena observou-o com o coração a palpitar.
- Será Scarfone? - perguntou Agostini.
- Não, é um rapazola.
Os olhos de Elena encontraram os dele. Só faltava isto, um delinquente qualquer escolhendo esta noite para praticar os seus dotes de arrombador.
- Devo aproximar-me? - perguntou Morelli.
- Não, aguenta - instruiu-o Agostini. - Vejamos o que pretende.
- Tem uma chave para a porta das traseiras. Está a entrar.
- Deixa-o entrar.
Agostini pôs o motor a trabalhar e afastou-se lentamente da berma, ainda a segurar o rádio. Deixou os faróis apagados. Cruzaram lentamente a praça e passaram em frente de San Anselmo, dirigindo-se para a encosta sul da colina.
- Vai agora a sair. - A voz de Morelli era apenas um sussurro no rádio. - Traz qualquer coisa consigo. Uma mala pequena.
- Deixa-o seguir - disse Agostini, tocando ligeiramente no acelerador. Curvou à esquerda e deixou o carro deslizar até parar junto ao passeio, desligando o motor. Elena seguiu o exemplo dele e baixou-se também no assento, pelo que a sua cabeça mal se via no escuro através do pára-brisas. A frente deles, do outro lado do cruzamento, erguia-se o muro traseiro do jardim de Scarfone. A cabeça rapada de um jovem surgiu no alto do muro a olhar cuidadosamente para ambos os lados. Depois passou o topo do muro e deixou-se cair para o pavimento. Olhou de novo à sua volta e caminhou rápido pela rua acima. Agostini deixou-o desaparecer momentaneamente antes de pôr o motor em marcha para seguir atrás dele. O rapaz não se via em parte nenhuma e Elena começou a encher-se de pânico, até que reparou nele subindo apressado uma calçada à direita. Agostini viu-o também. Travou e rodou o volante. A calçada ia desembocar numa piazza. O rapaz dirigiu-se a um Mercedes verde-garrafa estacionado na praça e entrou para o lugar do passageiro. Havia outro homem ao volante. Elena viu-o em perfil quando o carro atravessou a piazza e acelerou rampa abaixo. Era Scarfone.
Agostini acelerou também. O Mercedes virou para a Viale Aventino ao fundo da calçada, dirigindo-se para nordeste em direcção ao centro da cidade. Agostini ligou a sirene e iniciou a perseguição. Elena viu Scarfone inclinar-se para trás para espreitar pelo retrovisor e a seguir o Mercedes aumentou de velocidade e começou a afastar-se. Agostini não o deixou fugir.
Passaram rapidamente em frente da sede da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura e entraram na Piazza di Porta Capena. O Mercedes virou inesperadamente para a esquerda do outro lado da praça, tentando cruzar a sólida fileira de tráfego e atravessar o lado norte do Circus Maximus. Mas Scarfone calculou mal a manobra. A primeira faixa do trânsito conseguiu evitar a colisão, mas na segunda faixa vinha um enorme camião articulado deslocando-se depressa de mais para conseguir travar e foi embater de frente na parte lateral do Mercedes, enviando-o a rodopiar através da piazza. Agostini parou o carro junto da berma e apeou-se num salto. O Mercedes tinha-se imobilizado junto de uma passagem de peões. O guarda-lamas do lado direito estava amarrotado como um lenço de papel. O jovem no assento do passageiro estava descaído para a frente, imóvel, mas Scarfone já tinha a porta do seu lado aberta e tentava sair do veículo. Parecia ileso. Depois de recuperar o equilíbrio por um instante, começou a correr por entre os carros imobilizados.
Agostini chegou perto do Mercedes e tentou forçar a porta do lado do passageiro, a qual se encontrava demasiado distorcida para se abrir. Olhou para Elena, fazendo-lhe gestos furiosos. Ela confirmou com um aceno e pegou no rádio, pedindo o envio urgente de uma ambulância. Viu Scarfone ao longe saltando sobre um muro baixo para o talude inferior do Monte Palatino. Agostini ia em sua perseguição desviando-se dos veículos que circulavam pela Via di San Gregorio. Escalou a vedação e começou a subir aos tropeções a rampa do outro lado.
Elena pegou de novo no rádio e falou para a outra equipa da Polícia Judiciária, dizendo-lhes onde Agostini se encontrava e dando-lhes instruções para circundarem o Palatino e interromperem a fuga de Scarfone do outro lado. Depois dirigiu-se ao Mercedes destroçado e tentou abrir a porta do lado do passageiro, um gesto fútil pois certamente não teria êxito após o insucesso de Agostini. Mas não podia esperar junto do carro da polícia sem fazer nada. O jovem passageiro estava pendurado no cinto de segurança, com o rosto manchado de sangue. Não sabia se estaria morto ou apenas inconsciente.
O lamento persistente das sirenes foi-se aproximando e a seguir entraram na piazza uma motocicleta da polícia e um automóvel. Os guardas fizeram um cordão em redor do Mercedes e restabeleceram a circulação dos carros imobilizados enquanto uma ambulância se aproximava pelo outro lado da estrada. Elena não podia fazer mais nada. Regressou ao passeio e espreitou através da noite para os lados do Palatino. Já não conseguia ver Scarfone ou Agostini. Poderia ficar onde estava e deixar Agostini cuidar de si mesmo, ou poderia seguir atrás deles. Não hesitou.
Os carros mal se moviam. Atravessou apressada as faixas de rodagem e correu ao longo da Via di San Gregorio, que circundava o lado leste do Palatino. A vedação era demasiado alta para poder saltar, mas sabia que uns cinquenta metros adiante iria encontrar a bilheteira e a entrada para as ruínas arqueológicas que se espalhavam por todo o monte. A divisória junto do torniquete da entrada foi mais fácil de escalar. Saltou para o pavimento cimentado do outro lado e correu pela vereda que serpenteava até ao topo do Palatino.
Há anos que não visitava este local, mas recordava-se das ruínas dos palácios imperiais que salpicavam aquela zona, uma amálgama de paredes semidesfeitas e pilares destroçados, demasiado insubstancial e coberta de vegetação para dar uma pálida ideia da magnificência de outrora.
Escalou um íngreme lanço de degraus e virou à direita, entrando num caminho empedrado coberto por altos pinheiros. Ao alcançar a primeira das ruínas, o estádio escavado de Domiciano que se situava logo a seguir ao topo do monte, parou, escutou atentamente e olhou à sua volta. Não via nenhum sinal de Scarfone ou de Agostini. Encontrá-los na escuridão no meio de todos os destroços da Antiga Roma iria ser praticamente impossível. Se Scarfone quisesse esconder-se num dos milhares de recantos sombrios que abundavam no local, não seria descoberto antes do nascer do dia. Mas estava convencida de que ele não iria querer manter-se ali durante tanto tempo. Preferiria abandonar o monte e regressar o mais depressa possível às ruas movimentadas da cidade. E para isso teria de cruzar o monte e escapar-se pelo outro lado.
Prosseguiu a caminhada subindo mais lanços de degraus e contornando a orla norte do estádio. A vereda encontrava-se aqui orlada de árvores e arbustos que encobriam o reflexo dos candeeiros de iluminação pública situados ao fundo do monte. Avançou cautelosamente na escuridão, parando de novo ao atingir o topo.
A sua esquerda situavam-se as extensas ruínas do palácio de Domiciano; à direita, a vereda conduzia ao Fórum. Podia ver ao longe as altaneiras paredes do Coliseu iluminadas por projectores. Observou a colina. Ao fundo via com dificuldade os pilares de mármore branco do Templo de Vesta, no qual as Virgens Vestais tinham cuidado do fogo sagrado de Roma, e os impressionantes arcos da Basílica de Constantino.
Algo se moveu na Sacra Via, a antiga estrada que cruzava o Fórum a toda a sua largura. A figura de um homem. Forçou a vista na escuridão. A figura estava a atravessar o Fórum na direcção da saída no lado norte. As luzes azuis intermitentes de um carro da polícia imobilizado reflectiam-se nas paredes dos edifícios da Via dei Fori Imperiali, e depois enxergou focos de lanternas cruzando as ruínas; eram os agentes que entravam no Fórum. Um dos focos iluminou a figura do homem: era Agostini. Os olhos de Elena vaguearam pelo talude abaixo. Onde estaria Scarfone? Não tivera tempo para se esquivar pela saída norte antes da chegada da polícia, portanto deveria encontrar-se ainda na colina. Mas onde?
Sentiu-se subitamente exposta no topo do monte e correu a abrigar-se num dos muros semidesfeitos que se entrecruzavam por toda a colina. Alguma coisa se moveu do lado oeste da encosta. Uma sombra perpassou nas ruínas do palácio de Domiciano. Poderia ter sido uma ilusão de óptica, mas tinha uma forma demasiado definida para ser apenas isso. Era uma pessoa.
Examinou o Fórum. Agostini e os seus homens tinham-se espalhado para pesquisar a área. Quando alcançassem o topo da colina já Scarfone teria escapado. Pensou lançar-lhes um grito, mas isso iria alertar Scarfone para a sua presença, roubando-lhe a vantagem da surpresa. Pensava que estava a perder demasiado tempo. Só interessava ir atrás de Scarfone sabendo onde ele estaria. Correu pela vereda e seguiu a sombra até ao palácio arruinado.
Já tinha estado aqui por diversas vezes, primeiro nas excursões escolares e depois em visitas particulares, mas recordava-se de poucos detalhes. Na escuridão tudo era uma confusa mistura de pedras caídas e salas semidestruídas cujos tectos tinham desaparecido há muito. Passou pelo que ainda restava do pórtico e encontrou-se num despojado pátio interior em cujo centro estavam os decadentes restos de uma piscina cercada por um baixo labirinto octogonal de tijolos. Sabia o que era. Os aborrecidos e há muito olvidados factos de uma remota visita escolar regressavam-lhe agora à memória. Era o grande peristilo de Domiciano, o pátio que ele mandara forrar de mármore polido para poder ver o reflexo do assassino cuja vinda aguardava constantemente, uma precaução aliás fútil pois fora apunhalado de morte no pórtico a uns metros dali.
Voltou-se lentamente, espreitando os recantos sombrios, tentando escutar qualquer ruído. Algo lhe roçou a perna e esteve prestes a soltar um grito. Olhando para baixo, viu os olhos cintilantes de um dos gatos vadios que infestavam o Palatino e o Fórum e que lhe lançou um sibilo, mergulhando depois na penumbra.
Ficou imóvel. Tinha perdido Scarfone de vista. Poderia estar em qualquer parte neste vasto labirinto impenetrável. Escutou de novo, confiando mais nos ouvidos do que nos olhos.
Mas apenas ouvia o sopro do vento através dos portais e das passagens e a distante pulsação do trânsito citadino.
Até que o viu por fim, uma forma em silhueta contra o céu por um instante antes de se afundar uma vez mais nas sombras. Estava a uns cinquenta metros de distância, talvez menos, encaminhando-se para leste na direcção dos Jardins Farnese que cobriam as ruínas parcialmente escavadas do palácio de Tibério. Elena atravessou silenciosamente o pátio, escolhendo cuidadosamente o caminho por entre os destroços que juncavam o chão, passando depois através de uma fenda aberta na parede. Scarfone vinha a descer um lanço de degraus mesmo à sua frente. Foi atrás dele. Ao fundo dos degraus, prolongando-se para além do que ela poderia ver na escuridão, abria-se um corredor abobadado, mais negro e opressivo do que um túnel.
Hesitou, subitamente nervosa. Era o Criptopórtico, a longa passagem na qual Calígula fora morto pelo punhal de um assassino. Tinha uma atmosfera estranha, sinistra. Sentia o coração a palpitar, um arrepio de terror na nuca. Não se atrevia a entrar na passagem. Estava escuro como breu no interior, frio e silencioso como um mausoléu. Cerrou os dentes, tentando dominar as sensações de terror e pânico que ameaçavam dominá-la. Apoiou-se na parede, entrou no corredor e começou a avançar aos tacteios.
Não via nada. Havia janelas no alto da parede de um dos lados do corredor, mas a luz que entrava por elas era demasiado débil para lhe iluminar o percurso. Continuava a tactear a parede, sentindo as irregularidades da superfície, picada por mais de dois mil anos de decadência. Um dos tijolos estava solto. Um pedaço ficou-lhe na mão e não o largou, sentindo-se mais segura empunhando-o como uma arma.
Parava para escutar a intervalos de poucos metros, mas não ouvia nada. Scarfone seguia muito adiantado em relação a ela. Num espaço assim apertado, a escuridão parecia ter uma presença física, como uma pesada capa que a envolvia, mal a deixando respirar. Parou, sentindo-se subitamente sem fôlego. Mas nada mudara no exterior, tudo residia na sua mente. Mesmo assim, sentia qualquer coisa. Sentia algo perto de si. A boca parecia-lhe uma folha de lixa e a pulsação martelava-lhe o peito. Os pêlos da nuca eriçaram-se-lhe uma vez mais. Sentia uma presença atrás de si. Deu meia-volta, agitando os braços para se proteger. Não encontrou nada.
Respirou fundo, tentando engolir, mas tinha a garganta demasiado seca. Voltou-se de novo.
E foi chocar com ele.
Ficou paralisada por um segundo, débil com o choque. Depois tentou gritar, mas a mão dele tapava-lhe a boca. Puxou-a contra si, premindo-lhe um objecto duro e metálico na fonte.
- Você é uma mulher muito persistente, dottoressa - disse-lhe Cesare Scarfone suavemente ao ouvido. - Sabe o que isto é, não sabe? - Premiu de novo a boca da pistola contra a sua pele. - Não pense que não sou capaz de usá-la.
Elena esforçou-se para acalmar, para reduzir o ritmo da sua palpitação, para que as pernas não lhe tremessem tanto. Estava nauseada de pavor.
- É mais forte do que eu pensava - prosseguiu Scarfone, com o hálito a agitar-lhe o cabelo. - Errei na minha avaliação quando lhe mandei os papéis. Nunca pensei que tivesse coragem para enfrentar o seu pai. Foi um erro de avaliação da minha parte. Julguei que não resistisse.
Elena cerrou os dentes. Os dedos de Scarfone estavam a apertar-lhe a carne em volta da boca e a dor não deixava sentir o medo. Cerrou os punhos, dando pelo pedaço de tijolo que continuava a segurar na mão direita.
Scarfone dobrou-se mais para a frente até os seus lábios ficarem rentes ao ouvido direito dela. Pareceu-lhe que ele estava a sorrir ao sussurrar-lhe: - Que tal se sente depois de ter provocado a morte do seu próprio pai?
Elena fechou os olhos. A fúria era tão intensa, tão repentina, que podia senti-la a fervilhar na corrente sanguínea. A mão descreveu um súbito arco para cima, com os bíceps enrijando ao desfazer o pedaço de tijolo contra o rosto de Scarfone. Este soltou um grito de dor, libertando-lhe a boca e largando a pistola ao mesmo tempo que se agarrava ao nariz partido.
Elena pôs-se a correr por onde tinha vindo, tropeçando no pavimento irregular, arranhando os tornozelos e as canelas nas pedras salientes, quase caindo no seu desesperado esforço por escapar. Uma arcada abria-se à sua esquerda. Entrou nela a correr, ao mesmo tempo que escutava uma explosão, a detonação de um disparo. Uma súbita dor crestante cruzou-lhe a cabeça e tudo enegreceu.
Começou a registar as vozes, as mãos que lhe seguravam os braços e a colocavam numa posição sentada, antes de encontrar a força necessária para abrir os olhos. Pestanejou e voltou a cabeça quando o foco da lanterna lhe bateu no rosto.
Estava demasiado atordoada para falar. Olhou para as pessoas que a cercavam, mal reconhecendo os seus traços fisionómicos. Sentia uma dor intensa e escaldante na testa.
- Ele deu-me um tiro - murmurou, surpreendida ao escutar a sua própria voz.
Agostini dobrou-se sobre ela, abanando a cabeça. - A senhora chocou contra a parede. Foi só uma pancada, nada mais.
O alívio pareceu reanimá-la. - Scarfone...
- Lamento - respondeu Agostini. - Desapareceu...
Durante um momento, depois de Chapman abrir a porta de sua casa, quedaram-se mudos e quedos. Depois Elena comentou: - Não sei qual de nós terá pior aspecto.
Chapman sorriu e acrescentou: - Ou qual se sentirá pior. - Deu um passo atrás para a deixar entrar.
Elena reparou na fechadura rebentada mas não comentou. O apartamento era como imaginara: ligeiro, com pouca mobília, mas o que havia era confortável e elegante. Um pavimento revestido de mosaicos, cores subtis e um ar limpo, masculino.
Chapman deitou vinho para dois copos e sentou-se ao lado dela no sofá.
- O teu nariz está lindo - comentou Elena. - Todo inchado e negro. Dói muito?
- Nem por isso - respondeu Chapman. - O médico deu-me um analgésico.
Elena afastou-lhe o cabelo da testa com um dedo. Ele puxou-a para si e beijou-a, e depois tocou levemente no penso que ela tinha na testa.
- E tu, como te sentes?
- Sinto-me bem - respondeu Elena - Queriam que passasse a noite no hospital, mas não fui capaz.
Enroscou-se contra ele, descansando o rosto no seu peito. Tinha-lhe contado ao telefone o que acontecera. Parecia-lhe que fora há muito tempo.
- Não sabia que andavas armado com um facalhão - comentou ela alguns minutos depois.
- Felizmente também eles não sabiam - replicou Chapman.
Elena bebeu um pouco do seu vinho. - Vais contar-me o que se passou, ou vou ter de usar telepatia?
Ele encolheu os ombros. - Tinha encontrado umas medalhas, e também um punhal de serviço, pertencentes a um homem chamado Domenico Salvitti.
- Quem é esse?
- Era o ajudante-de-campo de Mussolini. Uma espécie de herói nos círculos fascistas, ainda hoje.
- E era isso o que Volpi queria? As medalhas? Chapman abanou a cabeça. - Queriam uns papéis que
Salvitti tinha guardado desde a guerra.
- Papéis? - Endireitou-se, olhando para ele. - Andy, seriam os mesmos papéis que Vivaldi recebeu do velho em Castel Gandolfo?
O súbito retinir do telefone poupou-lhe ter de responder. Dirigiu-se ao corredor e pegou no receptor.
- É para ti - informou, trazendo-lhe o telefone. - É o inspector Agostini.
Ela escutou durante algum tempo e depois desligou.
- Tinha-lhe dado o teu número. Não te importas, pois não?
- Claro que não.
- O rapazote que estava no carro de Scarfone recuperou a consciência. Disse à polícia que o saco que tinha trazido de casa dele continha uma pistola, dois passaportes e uma quantidade de dinheiro em dólares.
- Dois passaportes?
- Um deles falso, claro. Foi-se. O malvado conseguiu escapar à rede. - Bateu com o punho fechado no braço do sofá.
- Um homem de muitos recursos. Um pequeno avião nalguma pista privada, e já deve ter deixado o país. - Olhou para outro lado. - Gente como o Cesare Scarfone safa-se sempre, não é?
- Assim parece - concordou Chapman. - E homens como o arcebispo Tomassi.
Os olhos de Elena voltaram-se num instante para ele. - Tomassi?
Chapman levou a mão ao bolso e tirou uma fotografia a preto e branco. - Só me deixaram isto. Reconheces alguma coisa?
Passou-lhe a fotografia e Elena pôs-se a estudá-la.
- Reconheces os homens que estão na foto com Mussolini? - perguntou ele.
Elena apontou com um dedo. - Este aqui era Alessandra Pavolini, secretário do Partido Fascista no final da guerra. E aquele era Nicola Bombacci, um dos gerarchi de Mussolini. Os outros não conheço. Mais gerarchi, presumo.
- E o edifício? Parece-me que já lá estive, mas não me recordo de onde será.
- Também eu - replicou Elena. -Já lá estive várias vezes. É a Prefeitura em Milão. O Palazzo Monforte.
Chapman endireitou-se de repente. - Cristo, tens razão.
- Arrancou-lhe a fotografia da mão. - Esta foi tirada muito perto do fim. Sabes uma coisa? Acho que foi tirada mesmo antes de Mussolini ter fugido de Milão para Como. Talvez seja até a última fotografia dele em vida.
Olhou para a foto com mais atenção. Reparara subitamente nalguma coisa que não notara anteriormente. Foi ao escritório e remexeu as gavetas, regressando depois com uma lente que colocou sobre a fotografia.
- Estás a ver ali? - perguntou, indicando uma das janelas do Palazzo Monforte. Via-se a cabeça de um homem a espreitar através da vidraça. Elena olhou com cuidado. - É um padre.
Chapman abanou a cabeça. Reconhecia o rosto após a sua investigação na Biblioteca Nacional. - Tem um colarinho rijo mas não é padre.
Olhou para o relógio e pôs-se em pé.
- O lago Como - disse ele. - Temos de acabar isto no local onde tudo começou. O comboio nocturno para Milão parte dentro de meia hora. Se nos apressarmos talvez o apanhemos.
Dispunham de um compartimento de quatro leitos só para eles. Os leitos estavam descidos e cuidadosamente preparados, mas, apesar do cansaço, nenhum deles queria dormir. O compartimento estava excessivamente aquecido. Elena tirou os sapatos e desapertou os botões superiores da blusa. Encostou-se à parede, aos pés de um dos leitos, e dobrou as pernas debaixo de si. Chapman sentou-se no outro extremo. Lá fora, as luzes incertas dos subúrbios de Roma passavam rápidas pela janela enquanto o comboio se apressava para norte.
- Existe o mito de que no final da guerra milhares de nazis escaparam para a América do Sul em submarinos - disse Chapman. - Quantos submarinos teriam os alemães em operação em 1945? Nada que chegasse para transportar todos os criminosos de guerra que conseguiram fugir. Todos ouvimos falar em organizações como a Odessa ou a Die Spinne, mas o maior contrabandista de nazis procurados por crimes de guerra foi o Vaticano. Este facto está bem documentado. A Santa Sé dispunha de uma complexa rede de vias de fuga para enviar os antigos nazis para fora da Europa. Não eram todos criminosos de guerra, claro, mas o Vaticano não era muito exigente na escolha daqueles a quem ajudava. Nem todos eram alemães, também. Alguns dos maiores criminosos de guerra eram da Europa Oriental: húngaros, romenos, eslavos.
- Há muito que isso é do conhecimento comum em Itália - comentou Elena. - Mas nunca consegui compreender a razão.
- É uma questão difícil de explicar. Uma das principais razões talvez seja o receio do comunismo. E nisso não se encontravam sós. Os ingleses e os americanos foram bastante ambivalentes no que dizia respeito aos nazis. Claro, levaram os líderes aos julgamentos de Nuremberga, mas fingiam não dar pela fuga da arraia-miúda. Chegaram até a recrutar alguns para regressarem à Europa Oriental como espiões. Ao chegar-se a 1945, a ameaça para oeste não era Hitler, era Estaline.
Calou-se por um momento e a seguir prosseguiu: - A Igreja Católica tem horror ao comunismo. Talvez por isso ajudavam os nazis a escapar. Podiam estar convencidos de que estavam a ajudar os inimigos do comunismo. Muitos deles foram trazidos para Roma e escondidos em propriedades da igreja situadas por toda a cidade; alguns foram mesmo albergados no palácio de veraneio do Papa em Castel Gandolfo. É um facto comprovado desde há muitos anos. Mas os factos concretos são difíceis de descobrir: nomes que se liguem aos boatos, documentos que suportem as acusações. Por umas horas tive a prova nas mãos, mas agora tudo se perdeu.
Elena olhava fixamente para ele. - O homem na fotografia, vestido de padre: quem era?
- Ante Pavelic.
- Jesus Cristo! - Encarava-o estupefacta. - O ditador croata? Estás a dizer que o Vaticano o ajudou a escapar, um carniceiro como aquele?
- Desapareceu da Croácia em Abril de 1945 e mais tarde reapareceu na Argentina. Sobreviveu a uma tentativa de assassinato na década de cinquenta e morreu em Espanha em 1959. Ninguém sabe como terá conseguido evitar ser capturado e fugir da Europa, mas contou certamente com a ajuda do Vaticano.
- Era a isso que os papéis se referiam, não era?
Chapman confirmou. - Pavelic era um devoto católico, um filho predilecto da Igreja. Em Março de 1945 escreveu a Mussolini em Gargnano pedindo-lhe auxílio para fugir da Croácia. Por essa altura os nazis e os seus ditadores-fantoches já percebiam o que estava para vir. Sabiam que não iria decorrer muito tempo até que os Aliados, e o Exército Vermelho em particular, lhes estivessem a bater à porta. Mussolini, por sua vez, escreveu ao Vaticano para saber se poderiam ajudá-lo, recebendo uma cordial resposta do Subsecretário de Estado, um tal Giovanni Montini. E tu sabes quem Giovanni Montini chegou a ser.
- O Papa Paulo VI - disse ela.
- Precisamente. Este caso foi direito ao coração da hierarquia católica. O próprio Papa Pio aprovou as disposições. Li o memorando interno sobre o assunto. Concordaram em fornecer a Pavelic um passaporte da Cruz Vermelha, que na Itália do pós-guerra conferia ao portador liberdade para se deslocar por todo o país sem qualquer impedimento.
- Aqueles papéis que tinhas - comentou Elena -, constituíam prova inequívoca dessas disposições?
- Isso mesmo.
Chapman pôs-se em pé e aproximou-se da janela do compartimento. Já tinham deixado para trás os arredores da capital e estavam agora em campo aberto. Deixou que a deslocação de ar lhe agitasse os cabelos por um momento e depois puxou a cortina para baixo e voltou-se para Elena. Não era capaz de disfarçar a raiva, a amargura que lhe ia no íntimo.
- Tive-os nas minhas mãos. Todas as provas de que precisava. Uma coisa que nem o Vaticano, com todos os seus subterfúgios, seria capaz de negar.
Deixou descair os ombros. A raiva amainou, substituída pela resignação.
- Fui um idiota ao pensar que poderia fazer-lhes frente e vencer. Já têm dois mil anos de prática de dissimulação e intriga. O seu sórdido segredo está finalmente morto e enterrado.
- Estás a dizer que os neofascistas estão conluiados com o Vaticano? - perguntou Elena. - Que te tiraram os papéis para proteger a reputação da Igreja Católica?
- Não. O Vaticano queria os papéis. Os neofascistas queriam outra coisa.
Sentou-se novamente na cama e estendeu as pernas. Elena tocou-lhe na barriga da perna com as pontas dos dedos, num pequeno gesto de intimidade. Chapman sorriu-lhe. Podia ver-lhe os enfeites rendados do soutien através da abertura da blusa.
- Deixa-me contar-te o que sucedeu no dia em que António Vivaldi morreu - propôs ele.
Já tinha todos os elementos ordenados mentalmente. Uma parte deles dava-os como certos, e os restantes eram baseados numa probabilidade quase garantida. Considerados no seu conjunto, tinham uma plausibilidade que lhe dava a certeza de que teria realmente sido assim.
Naquele dia, 12 de Junho, Vivaldi tinha ido ao Hospital Clinico Santo Stefano na parte da manhã para visitar Roberto Ferrero, gravemente ferido. Ferrero, ou Domenico Salvitti, para se usar o seu verdadeiro nome, estava moribundo e, como muitas pessoas que reconhecem estar próximo o seu fim, sentia a necessidade de aliviar um peso que tinha no coração. Ninguém poderia saber exactamente o que se passara entre eles, mas Salvitti falou a Vivaldi acerca de alguns papéis que guardara em casa e que desejava que passassem para a posse do padre. Vivaldi dirigiu-se a Castel Gandolfo e retirou os papéis de uma bolsa de cabedal com o emblema em relevo da República de Saló instaurada por Mussolini. Os papéis eram uma parte da correspondência pessoal do Duce nos derradeiros meses da guerra e eram altamente embaraçosos para o Vaticano.
Vivaldi tirou cópias dos documentos e combinou uma visita ao Vaticano naquela tarde, para falar com o arcebispo Tomassi. No trajecto, parou em casa da amante e deixou os originais com ela, para que ficassem ali guardados.
- A amante - exclamou Elena. - Vivaldi tinha uma amante?
- Uma fraqueza humana, sem dúvida, também comum entre os padres - comentou Chapman. - Ela guardou os documentos e mais tarde, depois de Vivaldi ter morrido, enviou-os ao Enzo Mattei, cuja viúva mos confiou. No Vaticano, Vivaldi mostrou as cópias a Tomassi. Eram difíceis de ler, mas podia-se ver que se relacionavam com algum negócio escuro entre a Santa Sé e Mussolini, algo que o Vaticano devia estar desejoso de conservar secreto. Vivaldi regressou ao seu apartamento e um pouco mais tarde nessa mesma noite foi visitado por um grupo de neofascistas que o ataram e torturaram com tal selvajaria que o coração dele não aguentou.
- Eles sabiam que o padre tinha esses papéis? - perguntou Elena. - Como?
- Essa é fácil de responder. Foi Ivan Simcic quem lhes disse. Viste-o na plataforma na Ostia Antica. É simpatizante dos neofascistas, o que não é incomum na Igreja Católica. E além disso deduzo pelo nome que é croata, como Pavelic e a Ustashe.
- Para que seria que os neofascistas queriam os papéis? Só por terem pertencido a Mussolini?
Chapman abanou a cabeça. - Para eles os papéis eram irrelevantes. O que queriam era saber onde Vivaldi os teria obtido, e de quem. Foi por isso que o torturaram. Sabiam que Domenico Salvitti os tinha tido em seu poder no final da guerra, mas não sabiam o que lhe tinha acontecido depois disso. E Salvitti era a chave para o verdadeiro objectivo dos neofascistas. - Fez uma pausa. - A verdade é que a decisão do Vaticano de auxiliar Pavelic a fugir não tinha sido puramente ideológica. Também tinham razões financeiras para lhe darem uma ajuda. Pavelic ia pagar-lhes.
- Pagar-lhes com quê?
- Com ouro. A carta de Mussolini a Montini refere o valor. Vinte milhões de dólares. Aos preços de hoje, isso equivaleria a cerca de cem milhões de dólares.
- Dio!- murmurou Elena.
- E lembra-te de onde ele veio. Era ouro da Ustashe. Uma parte tinha sido roubada, mas a maior porção, como no caso do ouro dos nazis, viera das vítimas do seu genocídio: jóias, relógios, moedas, até das obturações dentais dos judeus, ciganos e sérvios assassinados. Agora percebes por que razão o Vaticano tem tanto interesse em manter tudo abafado.
- Chegaram mesmo a receber o ouro? - disse Elena em tom de descrença.
- Evidentemente. Bem, metade do total. Mussolini ficou com o restante. Tinha sido esse o acordo.
- E onde estará agora essa metade?
- Isso era o que os neofascistas bem desejariam saber.
Dormiram juntos no mesmo leito, aconchegados um no outro como um par de colheres. Elena acordou cedo e escapou-se a pouco e pouco do abraço de Chapman. Sentia-se irrequieta, preocupada. Foi sentar-se num dos outros leitos do compartimento, com um cobertor à volta dos ombros nus. Levantou um canto da cortina e espreitou para fora. O céu começava a clarear. O horizonte estava manchado com traços de cinzento-prateado e na vasta planície que se prolongava na distância para lá dos carris podia ver diminutos e indistintos perfis de casas agrícolas salpicando a paisagem como manchas de carvão.
Chapman abriu os olhos e espreitou-a ensonado. - Que estás a fazer?
- Não conseguia dormir. Tenho a cabeça cheia de coisas.
- Volta para a cama.
- Só ia incomodar-te.
- Em que estás a pensar? Em Scarfone? No teu pai?
- Em tudo. Não sou capaz de dormir.
- Anda cá. - Ofereceu-lhe os braços abertos. - Chega-te aqui.
Elena voltou ao leito e deslizou para debaixo do lençol encostada a ele, sentindo-lhe o calor do corpo contra as costas entretanto arrefecidas. As mãos dele cercaram-lhe o tronco e seguraram-lhe os seios. Acariciou-lhe a pele e mordiscou-lhe a nuca com os lábios. Os dedos roçaram-lhe suavemente os mamilos. Ela ajustou languidamente a sua posição e pressionou as nádegas contra ele. Podia perceber que ele estava a devolver-lhe a pressão.
- Reconheço que vou usar um estereotipo - murmurou Chapman -, mas sabes do que estás a precisar?
Elena riu-se com suavidade. - És mesmo homem...
- Estava esperançado de que desses por isso. Beijou-lhe o ombro enquanto lhe acariciava o estômago.
Elena retorceu o pescoço e procurou os lábios dele. Depois deitou-se de costas.
- Detesto admiti-lo - comentou -, mas acho que tens razão.
-Já experimentaste alguma vez fazer isto num comboio?
- Tenho tido uma vida muito recatada.
- É a melhor maneira de se viajar. Que preferes, uma ida simples ou ida-e-volta?
-Já que perguntas, talvez seja melhor um passe para toda a temporada.
Depois de tomarem café e pãezinhos numa cafetaria próximo da estação do caminho de ferro de Milão, alugaram um carro e saíram da cidade na direcção norte. Tomaram a estrada que seguia pela margem oriental do lago Como e subiram as colinas acima de Bellagio até chegarem a uma povoação localizada na vertente de uma escarpada montanha. Havia um café na pequena praça da povoação, com mesas ao ar livre cheias de turistas que ali tinham chegado de autocarro para apreciarem a vista do lago.
Entraram e perguntaram ao proprietário se conhecia algum residente na zona com o apelido Ferrero. Era esta a povoação cujo nome constava no disco de identificação do Exército Real que Chapman tinha no bolso. Os nomes dos pais de Roberto Ferrero também apareciam no disco, mas já estariam mortos há muito tempo. A sua única esperança era encontrar alguém que se recordasse deles.
O dono do estabelecimento não podia ajudá-los, mas indicou-lhes uma senhora idosa sentada debaixo do toldo a beber café com duas amigas. Essa recordava-se dos Ferreros e do filho de ambos, Roberto.
- Mas ele morreu na guerra - informou. - Tinham também uma filha chamada Manuela. Casou-se com um homem de apelido Brembilla, Ettore Brembilla. Tinha uma mercearia em Bellagio mas reformou-se há alguns anos.
- E essa Manuela, ainda estará viva?
- Penso que sim.
Levaram algum tempo a seguir a pista de Manuela Brembilla, até que foram encontrá-la numa pequena casa de pedra no topo de uma íngreme ladeira nas proximidades de Bellagio. Estava a pendurar roupa no quintal que acompanhava a ladeira por detrás da casa numa série de terraços quase todos ocupados com o cultivo de fruta e hortaliças. No terraço mais alto estavam os restos de uma estranha construção de pedra com pequenas aberturas de todos os lados. Parecia ter sido originalmente uma atarracada torre, cortada verticalmente ao meio e nunca reconstruída.
Chapman apresentou-se a si e a Elena e explicou o motivo da sua presença. A senhora Brembilla olhou-os curiosa, e depois encolheu os ombros e levou-os à sua cozinha. Devia ter mais de setenta anos mas não parecia frágil, era uma daquelas resistentes mulheres do campo que parecem velhas aos cinquenta anos mas que não envelhecem muito depois disso.
Chapman mostrou-lhe o disco de identificação e ela tirou do bolso um par de grossos óculos para o estudar.
- Comprei-o numa loja de antiguidades - explicou Chapman.
Manuela fez um aceno, sem motivos para não acreditar.
- Nunca nos foi devolvido - disse ela. - Nem nós estávamos à espera, claro. O Roberto andava com os guerrilheiros. Esses não tinham identificação.
- Quando morreu ele?
- Mesmo no fim da guerra. Aliás, já tinha tudo acabado nessa altura. - Sentou-se à mesa. - Isso foi o mais difícil para nós. Sobreviveu durante tanto tempo e depois mataram-no no final. Custou muito aos meus pais. Era o único filho varão.
- Deve ter sido muito duro para todos vós - disse Elena com simpatia, - Pois foi. Eu tinha quinze anos quando ele foi mobilizado, e perto de vinte quando morreu. Mal o vimos durante todo aquele tempo. Estávamos sempre à espera de más notícias. Mas quando um dos seus amigos guerrilheiros chegou e nos contou que o Roberto tinha morrido, não acreditámos. A minha mãe nunca mais foi a mesma.
- Sabe onde e como ele morreu? - perguntou Chapman.
- O meu marido poderá contar-lhes melhor do que eu. Estava com o Roberto quando ele morreu.
- O seu marido?
Manuela sorriu. - O amigo dele que nos trouxe a notícia. Ficou aqui por uns dias e, bem, as coisas acontecem. Deve estar a chegar para o almoço. Ainda dá uma ajuda lá na loja, apesar de já a ter passado para o nosso filho. Sabe, os homens não gostam de largar as suas coisas.
- Importa-se que esperemos por ele?
- Não - respondeu ela. - Podem sentar-se lá fora no quintal.
Saiu com eles e colheu uma alface e alguns rabanetes na pequena horta.
Chapman apontou para a torre arruinada. - Aquela construção intriga-me, senhora. Pode explicar-me o que é?
- Aquilo? Ora, era o nosso pombal. Ele costumava criar pombos para os vender na loja. Caiu em 1990. Um tremor de terra, sabe. Sacudiu toda esta região.
- Vão reconstruí-la?
- Não compensa a despesa. De qualquer maneira, os pombos davam muito trabalho, e eram também muito barulhentos.
Seguiu em volta da horta, arrancando cenouras e colocando-as num cesto de verga que tinha enfiado num robusto braço.
- No sítio de onde venho, em Inglaterra, há criações de pombos - disse Chapman. - Pombos-correio, para corridas.
Manuela olhou para ele de sobrancelhas franzidas. - Para corridas? - repetiu, como se não tivesse ouvido bem. - Não para comer?
- Não.
Pensou na ideia por um instante e a seguir encolheu os ombros e sacudiu a terra de outro molho de cenouras. Possuía a natureza prática da mulher do campo, com o seu modo imparcial de encarar as criaturas silvestres apenas como animais daninhos ou ingredientes para a panela. O conceito da criação de pombos de corrida era tão incompreensível para ela como a criação de vacas ou de ovelhas para correr.
De um dos lados do terraço mais baixo havia um banco comprido de ripas de madeira. Acomodaram-se nele, olhando para os telhados vermelhos de Bellagio. Um vapor estava a atracar ao cais na margem do lago, libertando a sua carga de turistas e viajantes. Era um dia sem nuvens, tão límpido que se podia descortinar a outra margem do lago. Chapman podia ver os carros percorrendo a sinuosa estrada da margem ocidental, a mesma que Mussolini percorrera na sua última e fatídica jornada.
Já passava do meio-dia quando Ettore Brembilla chegou a casa. Era um velhote jovial de camisa branca e chapéu de palha com amplas abas, de rosto tisnado e enrugado como uma bota com muito uso. Entrou na horta com um andar enérgico, mal acusando a longa subida da ladeira. Manuela apresentou-o a Elena e a Chapman, acrescentando que pretendiam fazer-lhe algumas perguntas a respeito de Roberto.
Ettore olhou-os de modo incisivo. - Ah sim? - Tirou o chapéu e abanou-se com ele.
- Disse-lhes que tu, melhor do que eu, podias contar-lhes o que lhe aconteceu.
- Por que pretendem saber isso? O Roberto morreu há mais de cinquenta anos.
- Encontrei este disco de identificação numa loja em Roma - disse Chapman. - Uma loja de recordações de guerra. Gostava de saber mais factos a respeito dele, é só.
Ettore pegou no disco. - Entrem, façam favor. Entraram na cozinha e sentaram-se à mesa. Ettore examinou o disco de identificação.
- É do Roberto, não há dúvida - disse. Levantou a cabeça, com os olhos argutos movendo-se de Chapman para Elena. - Mas não o encontraram numa loja, pois não?
Chapman hesitou. - Tem razão - admitiu.
- Para quê mentir? - Havia um toque na sua voz que sugeria uma rijeza básica. Chapman recordou-se de que este afável velhote fora guerrilheiro há muitos anos atrás, uma raça especial de homem que aguentara muitas privações que ele nem poderia conceber.
- Queira desculpar-me. Apenas pretendia não complicar as coisas - declarou Chapman.
Fez uma breve narrativa da morte do idoso recluso de Castel Gandolfo, explicando como tinha encontrado o disco em casa dele. - O homem passava por ser Roberto Ferrero, mas na realidade não era assim que se chamava.
Ettore pôs-se em pé e dirigiu-se ao lava-louças. Deitou água para um copo e bebeu-a, olhando através da janela para o quintal.
- Então foi ele que o tirou? - disse sem se voltar. - E agora morreu.
- Não estou a entender - comentou Chapman.
- O Roberto trazia-o consigo. Eu mesmo o vi por diversas vezes. Era contra as regras, mas o Roberto nunca ligou a regras. Tinha o disco consigo quando morreu. Nunca lhe encontrámos o corpo. Ficou no fundo de uma ravina, todo esturricado.
- Queimado?
Ettore acenou a confirmar e regressou à mesa. A esposa dirigiu-se ao fogão e ocupou-se a preparar uma refeição de massa alimentícia.
- Morreu do outro lado do lago Como - contou Ettore.
- Há uma estrada acima de Argegno que sobe a montanha e depois desce até à Suíça. Melhor, agora é uma estrada. Naquele tempo não passava de um caminho de terra. O Roberto e eu tínhamos estado na fronteira, tentando convencer os Guardia di Finanza a passarem-se para o lado dos guerrilheiros. Estávamos de volta e o Roberto queria visitar os pais, mas encontrámos um camião a bloquear o caminho.
Fez uma pausa e depois prosseguiu. - Havia um homem perto da cabina. Disparou contra nós com uma metralhadora. O Roberto morreu logo. Comecei a fugir pela vertente abaixo, mas o homem tentou matar-me também. Caí e fiquei estatelado sem sentidos em cima de um penhasco. Quando despertei, o homem e o camião tinham desaparecido, tal como o nosso carro e o corpo do Roberto. Ele tinha metido o Roberto dentro do carro e empurrara-o para a ravina. Umas horas depois desci a ravina e cheguei a uns cinquenta metros dos destroços. Era perigoso de mais chegar mais perto. O carro tinha explodido, ardendo por completo.
- Esse tal homem, sabe quem seria?
- Só sei que era um fascista qualquer. As montanhas estavam cheias deles por essa altura. Ratazanas a fugir do barco que se afundava. Talvez estivesse também a fugir, tentando passar-se para a Suíça. De certeza que sobreviveu, pois de outro modo não teriam encontrado o disco de identificação - acrescentou com amargura. - Parece-me que devia perguntar-lhes quem ele era, mas nem estou interessado em saber. Prefiro esquecer tudo.
- Poderia indicar-nos num mapa o local aproximado onde foram atacados? - perguntou Chapman.
- Foi há muito tempo. Havia um pequeno lago logo abaixo do caminho, só me recordo disso. Nunca mais lá voltei.
Chapman passou o disco por entre os dedos, sentindo o relevo das letras.
- Isto devia ficar na posse da família - disse ele, oferecendo-o a Manuela.
A velha olhou para o marido. Ettore abanou a cabeça. Não o queremos - declarou. - É melhor darem-no ao filho do Roberto.
Chapman olhou-o, estupefacto. - O Roberto deixou um filho?
A quinta situava-se na planície a oeste de Como, uma manta de retalhos de minúsculas courelas em redor de uma delapidada casa de pedra. Um homem corpulento, envergando um sujo colete de algodão e um par de calças cobertas de nódoas, encontrava-se no quintal trabalhando no motor do seu tractor quando Chapman e Elena atravessaram a cancela. Olhou para eles quando se apearam do carro, reparando no modo como se vestiam, no seu brando aspecto citadino.
- É o senhor Mancini? - perguntou Chapman.
- Sou.
- Pode dispensar-nos um minuto? Gostaríamos de falar consigo a respeito de Roberto Ferrero.
Mancini estremeceu. Olhou para eles e depois deixou descair os seus amplos ombros e fez um aceno de resignação. Limpou o óleo das mãos com um pedaço de desperdício e entrou em casa. Seguiram-no até à frescura da ampla cozinha de lajedo. Mancini estava a lavar as mãos no lava-louças.
- Não sabia quando acabariam por chegar - disse ele, deixando-se cair numa cadeira e passando a mão pelo rosto. - Vêem de Roma? São da polícia?
- Do pubblico ministero - disse Elena.
Mancini baixou a cabeça. A sua poderosa estrutura parecia ter cedido.
- Foi um acidente - protestou. - Não foi com intenção. Chapman olhou de relance para Elena. Ela fez um sinal com a cabeça. Deviam deixá-lo falar sem interrupção.
- Ele provocou-me - disse o agricultor. - Incitou-me. Perdi o controlo, peguei no atiçador da lareira... - A voz fraquejou. - Se calhar vou parar à prisão, não é?
- É melhor contar-nos tudo do princípio - sugeriu Elena. -Já falámos com Ettore Brembilla.
- Pois. Fui visitá-lo naquela Primavera. Isso foi depois de a minha mãe ter morrido. O nome dela antes de se casar era Michaela Rocca. Era de uma aldeia de Piemonte, nas montanhas. Durante a guerra teve uma relação com um guerrilheiro chamado Roberto Ferrero. Foi só no fim que me contou isto. O homem com quem se casou, chamado Giuglielmo Mancini, não foi o meu pai autêntico. O meu verdadeiro pai foi Roberto Ferrero. A minha mãe escondeu-me esse segredo, mas quis que eu soubesse antes de morrer. Disse que o meu pai tinha sido morto no final da guerra. Um amigo dele, que era o Ettore Brembilla, tinha-lho dito, mas depois disso não voltara a encontrá-lo. Sentia-me com curiosidade. Durante toda a vida tinha pensado que conhecia o meu pai, e depois descobri que ele não era o meu pai verdadeiro. Giuglielmo Mancini tinha-me adoptado ao casar-se com a minha mãe. Depois herdou esta propriedade de um primo e mudamo-nos de Piemonte. Era um homem bom. Tratava-me como a um filho. Quando morreu há uns oito anos, comecei a tomar conta da quinta.
Reclinou-se na cadeira, absorto na sua própria narrativa. - A morte da minha mãe destroçou todas as minhas crenças a respeito de quem eu era. De repente tinha um pai que nunca vira. Queria saber mais coisas a seu respeito. Quem ele era, como seria. Por isso fui a Como e contratei um investigador para saber mais coisas sobre ele. Descobriu Ettore Brembilla e vim visitá-lo. Parecia ser este o final da minha busca. O meu pai tinha morrido há muito tempo. Mas o investigador descobriu um outro Roberto Ferrero nos registos do Ministério da Guerra. Um Roberto Ferrero com o mesmo cadastro de guerra do meu pai e que continuava vivo e a receber pensão de sangue. Fui procurar este homem.
Levantou a cabeça. - Era melhor nunca ter ido. Era um velho odioso. Rico, arrogante. Pensou que eu fosse um rústico, um campónio ignorante vindo das berças. Fiz-lhe perguntas sobre a sua identidade, sobre a pensão que recebia em nome do meu pai, e ele perdeu a compostura. Começou a gritar, a insultar-me. Gabou-se do seu passado fascista, admitiu ter abatido o meu pai, ficando com o seu disco de identificação. Chamou ao meu pai um comunista imbecil e outras coisas. Coisas terríveis. Perdi também a cabeça e peguei no atiçador da lareira... Só queria ameaçá-lo, fazê-lo calar-se.
Pôs as mãos sobre a cara e sacudiu a cabeça. - Não queria fazer-lhe mal - repetiu. - Por vezes nem eu reconheço a minha força.
Olhou para Elena. - Que me vai acontecer? Vão levar-me preso?
Elena abanou a cabeça, esquecendo-se por um momento de que era uma magistrada. - Esta visita é particular. Alguém virá tratar do seu caso. Por agora nada acontecerá.
- E mais tarde?
- Não sei. Não dependerá de mim. Se não voltarmos a contactá-lo, é porque foi decidido não formular uma acusação contra si.
Chapman tirou do bolso o disco de identificação e entregou-o a Mancini. - Isto pertencia ao seu pai. Acho que deve ficar com ele.
Mancini aproximou o disco da cara e examinou-o com muita atenção. Depois apertou-o entre os dedos, o único legado precioso de um pai que nunca tinha conhecido.
Ao partirem da quinta, Chapman perguntou a Elena: - Não vais fazer queixa dele?
Ela encolheu os ombros. - Domenico Salvitti não foi chorado por ninguém. Matou o pai do pobre homem. Para que haveria eu de destruir também a vida dele?
- Pensava que fazias tudo de acordo com os regulamentos.
- Vou aprendendo à minha custa - comentou ela.
Estavam cercados por montanhas. Não os altaneiros picos das cordilheiras alpinas situadas mais a norte, mas montes mais baixos, mais arredondados, com as vertentes cobertas de erva grossa e de rebanhos de cabras a pastar. O sol descaía para lá das cumeadas, deixando o lado oeste dos vales envolto em sombras profundas. Estavam parados junto da berma da estrada ao lado do carro, e olhavam do alto da vertente para uma pequena lagoa com água de um tom azul-escuro, numa bacia escavada na colina.
- Deve ser aquela ali - disse Elena. - Não há mais lagoas assinaladas no mapa.
Chapman descreveu lentamente uma volta de trezentos e sessenta graus, observando os campos circundantes, tentando imaginar como teria sido naquele dia de Abril há mais de meio século: o camião impedindo a passagem pelo caminho de terra, Roberto Ferrero e o seu amigo Ettore Brembilla descendo a colina vindos da fronteira. Domenico Salvitti enfrentando-os com uma arma. Agora estava tudo tão pacífico, tão ameno. Um veículo que passava ocasionalmente, o distante tilintar dos badalos das cabras nos penhascos. Era difícil acreditar que um homem morrera aqui numa das derradeiras escaramuças de uma guerra que tinha devastado um continente.
Desceram com dificuldade a íngreme vertente rochosa até à beira da lagoa. Não teria mais de vinte metros de diâmetro, mas era profunda e impenetrável. Chapman experimentou a água com a mão. Estava gelada. Atrás da lagoa erguia-se uma parede de rocha lisa, fendida em duas por uma maciça fissura vertical, e de um dos lados havia o que restava do que parecia ter sido uma caverna. O tecto desmoronara-se, bloqueando a entrada com pedregulhos.
- De que estás à procura? - perguntou Elena.
- De um esconderijo.
- Pensas que Salvitti ficou com o ouro?
- Tenho a certeza disso. Mussolini confiou-lhe os seus papéis pessoais. Quem melhor do que ele para tomar conta do ouro? Salvitti era uma das poucas pessoas em quem ele confiava. Talvez a única pessoa da sua confiança. Não constituía nenhuma ameaça para ele. Não era um rival como todos os outros gerarchi fascistas. Se ele tinha de confiar a alguém a tarefa de transportar o ouro, teria de ser a Salvitti.
- E pensas que ele o escondeu aqui?
- É só um palpite. O que estaria ele a fazer nesta estrada com um camião quando Mussolini e os outros tinham ficado perto do lago Como? Não se arriscaria a tentar entrar na Suíça com um camião cheio de ouro da Ustashe. Que lhe teria então acontecido se Salvitti não o escondeu?
- Se de facto o fez, certamente terá voltado para o remover depois da guerra - comentou Elena.
- Decerto que sim. Como pensas que ele terá pago a mansão de Castel Gandolfo? Salvitti era esperto, mas cuidadoso. Deve ter resolvido ficar na clandestinidade terminada a guerra. Tinha sido o ajudante-de-campo de Mussolini, um homem procurado que vivia sob uma falsa identidade. Não havia de querer chamar as atenções vivendo com demasiada ostentação. Se tivesse experimentado ver-se livre de todo aquele ouro de uma só vez, não deixaria de provocar suspeitas.
- Que fez ele então?
- A governanta contou-me que ele vinha ao Norte uma vez por ano, a Milão e à Suíça. Calculo que terá despachado o ouro aos poucos. Desenterrando-o, pois devia tê-lo enterrado, era a forma mais segura para o esconder, e retirando um bocado de cada vez para ir vendê-lo na Suíça.
- Já se passaram cinquenta anos, Andy. Não deve ter sobrado nada.
Chapman passou o olhar pela parede de rocha. - A governanta disse que ele tinha deixado de fazer as viagens ao Norte há sete ou oito anos, mais ou menos na mesma ocasião em que o tremor de terra destruiu o pombal dos Brembillas. Que pensas tu que terá causado aquela fissura, ou a queda das rochas que bloquearam a caverna?
Circundou a lagoa, procurando onde pôr os pés por entre as pedras e rochas que enchiam a margem. Quando alcançou a parede de pedra, o caminho tornou-se mais perigoso, mas havia um estreito rebordo ao longo da base no qual conseguiu equilibrar-se, e um número suficiente de apoios na face da parede que lhe permitiram atingir a fissura vertical. Estendeu a mão para ajudar Elena a segui-lo.
A fissura tinha quebrado a parede em duas partes desde o topo até à base, agora pejada de pedregulhos caídos e fragmentos soltos. Penetrou na abertura e começou a remover as pedras, arrastando-as para fora e deixando-as cair na água.
Após vinte minutos de trabalho árduo tinha conseguido abrir uma passagem por onde podia entrar. A poucos metros da entrada a fenda abria para uma sombria câmara, fracamente iluminada dos lados e de cima por alguns feixes de luz que penetravam por fendas na pedra. O pavimento da câmara tinha sido rachado pelo mesmo movimento violento da terra que provocara a fissura na parede exterior, abrindo-se numa profunda fenda cujo fundo era invisível na penumbra. Puxou Elena para trás.
- Cuidado, pode ceder.
Deitou-se no chão e aproximou-se cautelosamente do rebordo do precipício. Olhou para baixo e conseguia ver o extremo estilhaçado de um caixote de madeira que se projectava no espaço, e abaixo, num estreito rebordo, alguns objectos que luziam baçamente sob a débil iluminação. Levou alguns segundos a deduzir o que eram aqueles objectos: barras de ouro.
- Olha para isto - disse.
Elena arrastou-se até junto dele. Chapman ouviu-a suster repentinamente a respiração.
- Dio, ainda cá está.
- Folgo muito em ouvir isso - disse uma voz atrás deles. Chapman virou-se de lado e viu Cesare Scarfone penetrar pela abertura da fenda com uma pistola na mão.
- Parecem surpreendidos - disse Scarfone, secamente. Chapman e Elena arrastaram-se para trás e puseram-se de pé. Scarfone entrou na câmara e encostou-se casualmente à parede de rocha.
- Foi um erro ter mostrado o disco de identificação ao Luca Bracciolini - disse ele a Chapman. - Ele tem uma memória excelente.
- Onde nos encontrou? Em Bellagio? - perguntou Chapman.
Scarfone não respondeu. Aproximou-se cuidadosamente do rebordo do precipício e espreitou para baixo.
- Então o Salvitti sempre o tinha... - disse.
-Já não sobra quase nenhum - comentou Elena.
- Para mim chega. - Olhou para Chapman. - Desça e traga-o para cima.
- Vá para o diabo! - ripostou Chapman.
Scarfone apontou a pistola a Elena. - Vou contar até três e depois meto-lhe uma bala na cabeça. Um... dois...
- Está bem - interrompeu Chapman, levantando a mão no ar. - Mas vou precisar de uma corda.
- Está a ver alguma aqui perto?
- Aquele rebordo pode cair a qualquer altura.
- Nesse caso terá um túmulo dourado, não é verdade? - disse Scarfone.
Chapman deitou-lhe um olhar raivoso, sabendo que não tinha alternativa. Deu alguns passos na direcção da fenda e a seguir deitou-se no chão, deixando-se descair lentamente sobre o rebordo. Alguns torrões de terra soltaram-se, precipitando-se no vazio. Procurou uma saliência onde pudesse apoiar os pés. Os primeiros metros da fenda eram de terra, não de pedra, o que tornava a sua situação ainda mais precária. Escavou um buraco na parede com a biqueira e tentou apoiar-se nele. A parede de terra cedeu e ele deslizou alguns centímetros, suspendendo a queda cravando os dedos na terra e encostando-se à parede para que o atrito entre o corpo e a terra amortecesse a descida. Rodou o pescoço para olhar para Scarfone, com o coração a bater-lhe desesperado.
- Não consigo agarrar-me - disse.
- Faça o possível.
- Se quer o ouro, terá de me segurar. Só assim conseguirei chegar lá.
Scarfone fez um sinal para Elena recuar até ao fundo da câmara. Em seguida ajoelhou-se junto do rebordo.
- Dê-me a mão. Chapman hesitou.
- A mão!
Estendeu o braço para cima. Scarfone agarrou-lhe a mão. Por um instante ficou suspenso no espaço. Se Scarfone lhe largasse a mão, cairia inexoravelmente no abismo. Mas o amplexo não cedeu. Scarfone suportou-lhe o peso e inclinou-se para fora, baixando Chapman lentamente até à saliência. Chapman testou-a sob os pés. Pareceu-lhe suficientemente sólida. Scar-fone soltou-lhe a mão.
- O ouro, passe-o cá para cima - ordenou.
Chapman baixou-se e pegou numa das barras. Ficou surpreendido ao sentir o seu peso. Precisou de ambas as mãos para a levantar acima da cabeça e transferi-la para Scarfone, que a alçou sobre a beira do precipício, ficando acocorado a admirá-la com uma expressão rapace.
- Nunca acreditaria que havia de ter uma destas nas minhas mãos. É possível que o Duce tenha chegado a tocar-lhe. - Passou um dedo sobre a superfície da barra, como se procurasse sentir a marca de Mussolini no metal.
Elena deu um passo na direcção dele. Scarfone pegou na pistola e fez-lhe sinal para recuar. - Não se aproxime.
- Foi por causa disso que tanta gente morreu? - comentou Elena. - Por umas míseras barras de metal amarelo. Para que irão servir-lhe?
- Você não consegue perceber - replicou Scarfone com desprezo. - Foram as pessoas como você que puseram este país de joelhos. Deram-lhe cabo da espinha, encheram-no de parasitas, judeus, árabes, maricões. As pessoas estão fartas de governos fracos. Querem uma liderança forte, como a que o Duce lhes deu.
- Diga antes que isso é o que você quer, não as pessoas. As pessoas lembram-se de Mussolini e não querem ver outro do mesmo género, em especial uma patética imitação como você!
Scarfone pôs-se em pé e aproximou-se dela, furioso, esbofeteando-a com as costas da mão com tanta força que Elena foi atirada ao chão.
- Sua cabra! - gritou ele, olhando para ela caída no chão e respirando apressadamente. A boca e o nariz de Scarfone apresentavam-se ainda feridos e inchados de quando Elena o atingira no monte Palatino.
- Há-de chegar a altura, você verá. Disponho de mais apoios do que pode supor. De onde pensa que veio todo aquele dinheiro que encontraram em poder do Boneschi? De empresas, de negociantes, de indivíduos que compartilham da minha visão, homens que estão apenas à espera do momento em que poderão apoiar-me abertamente.
- Você é um sonhador, Scarfone. E um fugitivo procurado pelas autoridades. Já não há lugar para si em Itália.
- Posso organizar tudo lá de fora. Já tenho o ouro na minha posse.
- Não vai dar-lhe para muito.
- Este ouro é simbólico, é por essa razão que é tão importante. Era o ouro do Duce. Para os meus apoiantes, o seu valor é incalculável.
- Você está louco. - Mas, ao dizê-lo, sabia que estava errada. O que tornava Scarfone perigoso era o facto de saber perfeitamente o que estava a fazer.
Scarfone aproximou-se de novo da beira do precipício e olhou para Chapman. - Agora venham as outras.
Chapman passou-lhe as barras restantes. Eram oito ao todo.
- Veja dentro do caixote - insistiu Scarfone. Chapman agachou-se e espreitou pelo extremo rebentado do caixote de madeira semienterrado na parede da fenda. Havia mais quatro barras no interior que não se tinham espalhado pelo rebordo. Entregou-as a Scarfone, uma a uma.
Elena observou-o com o coração na garganta, sufocada de ansiedade. Sabia que assim que o ouro tivesse sido todo transferido para cima, Scarfone iria abatê-los. Esperou, aguardando a sua oportunidade. Chapman levantou a última barra e Scarfone dobrou-se para a frente, segurando-a com as duas mãos. Tinha a pistola no chão ao lado. No momento em que Scarfone suportou o peso da barra, Chapman puxou-a para baixo, forçando-o a perder o equilíbrio. Scarfone soltou uma praga, tentando equilibrar-se, momentaneamente desatento. Elena resolveu agir.
Atravessou a câmara rapidamente. Com um pontapé enviou a pistola a voar para dentro do buraco. Scarfone deu meia-volta, esforçando-se por pôr-se de pé enquanto Elena se atirava a ele, tentando arrancar-lhe os olhos com os dedos. Ele açoitou-a com os braços. Caíram ambos de lado, e ao atingirem o chão o rebordo deu de si. Elena soltou um grito. Scarfone rolou sobre a orla do precipício, tentando agarrar-se ao braço dela. A manga da blusa rasgou-se e ele caiu na fenda. Elena agarrou-se ao chão, sentindo a terra ceder debaixo de si. Retorceu-se e olhou para baixo. Scarfone tinha caído no rebordo ao lado de Chapman. O rebordo começou a abrir fendas, desfazendo-se aos poucos. As pernas de Scarfone começaram a escorregar.
- Agarra-te à minha perna, Andy! - gritou Elena. Chapman esticou o braço e agarrou-lhe a perna direita.
Elena enterrou a perna esquerda e os dedos na terra, sentindo o peso dele a puxá-la. Ele arrastou-se para cima, ao mesmo tempo que o rebordo acabava de se desintegrar. Elena viu o rosto de Scarfone contorcer-se e depois desaparecer com um derradeiro grito de terror a ecoar no tecto da câmara.
Chapman agarrou-se melhor ao chão e soltou a perna de Elena, que se afastou com cuidado da beira do precipício até chegar ao piso sólido da caverna, e a seguir esticou-se para o auxiliar. Ele segurou-lhe a mão e escalou lentamente os derradeiros centímetros até atingir o topo. Rolaram sobre si mesmos e ficaram deitados de costas, ofegantes. Levaram algum tempo a acumular energias para se moverem. Depois Chapman puxou-a para si num prolongado abraço.
- Obrigado - disse-lhe.
Abraçaram-se sem falarem. A luz estava a sumir-se rapidamente, mas ainda era suficiente para observarem a pilha de barras de ouro do outro lado da câmara.
- Que vamos fazer com elas? - perguntou Chapman por fim. - Devem valer mais de um milhão de dólares. Poderemos ficar com elas, ou poderemos entregá-las.
- Sabes bem o que teremos de fazer com elas - disse Elena.
Auxiliaram-se mutuamente a pôr-se de pé e aproximaram-se da pilha de ouro. Elena inclinou-se e pegou numa das barras. Chapman pegou noutra. Olharam um para o outro e depois atiraram as barras uma a uma para dentro do precipício.
Era quase noite quando saíram da caverna. Acocoraram-se e mergulharam as mãos na água gelada da lagoa como se quisessem libertá-las do cheiro do ouro. Depois abriram caminho ao longo da margem.
Chapman descansou o braço em volta dos ombros de Elena, olhando para o vale. Ela encostou a cabeça ao peito dele e cingiu-o pela cintura. O céu para o lado oeste estava eivado de vívidos tons laranja. Elena sentiu um arrepio.
- Acabou-se o pesadelo - disse Chapman.
Ela levantou a cabeça para o olhar nos olhos. - E agora o que acontece?
Sabia que ela estava a referir-se a eles. Pensou em tudo o que tinha sucedido, e pensou na oferta de trabalho em Londres que tinha em cima da secretária e que ainda não decidira se ia aceitar ou recusar. E sentia o corpo dela encostado ao seu, o aroma do cabelo dela e o sopro do vento subindo a vertente.
- Não sei - respondeu-lhe. - E tu, sabes?
- Também não sei. Há tanto que fazer, tantas pontas soltas que precisam de ser atadas. A morte de Scarfone, o caso Vivaldi, o funeral do meu pai. Nem quero sequer começar a pensar nisso.
- Demos tempo ao tempo - disse Chapman. Veremos o que acontece.
Levantou o rosto e beijou-o. Depois, de mãos dadas, escalaram o caminho de regresso à estrada e meteram-se no carro para descer a montanha.
Paul Adam
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