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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MORTE DOS REIS - P.2 / Conn Iggulden
A MORTE DOS REIS - P.2 / Conn Iggulden

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Metrídates perdera seus guardas de perímetro e ainda não sabia. Júlio tinha observado o círculo externo durante quase uma hora, sorrindo finalmente ao ver o sistema simples que o rei grego usara. Cada um dos seus guardas ficava ao lado de uma tocha acesa em cima de um mastro de madeira. A intervalos irregulares eles a retiravam e balançavam acima da cabeça, respondidos pelo círculo interno e os outros espaçados em volta.

Mitrídates podia ter sido rei, mas não era um tático, percebeu Júlio. Os Lobos tinham rompido a defesa com pares de arqueiros, um para derrubar a sentinela assim que ela tivesse sinalizado e o outro para assumir seu lugar. Isso foi feito rapidamente, e eles puderam chegar até o círculo interno. Esses homens ficavam mais próximos uns dos outros, e substituí-los levou quase uma hora. Júlio tinha insistido na cautela, mas até ele estava ficando tenso enquanto o tempo passava à espera de que o último grego fizesse o sinal, sem perceber que apenas romanos podiam responder ao seu gesto.

 

 

 

 

Caberá soltou a última flecha silenciosa e o soldado inimigo caiu embolado na sombra, sem emitir um som. Instantes depois a tocha iluminou outra figura escura que ficou parada de pé, calmamente, como se tudo estivesse bem. Não houve alarme, e Júlio apertou o punho, empolgado.

O acampamento ao pé das colinas era iluminado por tochas iguais às sentinelas. Vista de longe, a noite escura de inverno era rompida por um mar de pontos dourados, olhos que não piscavam e espiavam os romanos que aguardavam o sinal de Júlio. Para o jovem comandante, o mundo inteiro parecia estar dependendo de sua palavra. Ele se aproximou de sua falsa sentinela mais próxima e assentiu para Caberá, que acendeu uma flecha encharcada de óleo, usando a tocha, e a disparou rapidamente enquanto as chamas se espalhavam para os seus dedos.

Gadítico viu a tira de fogo saltar para cima e apontou a espada para o acampamento à frente. Seus homens se moveram sem um único grito de batalha. Correram num silêncio fantasmagórico em direção aos poços de luz que marcavam o acampamento, convergindo com a Vêntulus de dois lados, para causar o máximo de pânico e confusão.

O exército grego tinha-se recolhido com a noite, dependendo dos distantes círculos de sentinelas para avisar sobre algum ataque. A primeira coisa que muitos deles souberam sobre o perigo foi quando suas tendas de couro foram rasgadas e espadas invisíveis golpearam seus corpos adormecidos, matando dezenas nos primeiros segundos. Gritos soaram e o acampamento adormecido começou a acordar para pegar em armas.

- Lobos! - gritou Júlio, achando que o tempo de silêncio havia terminado.

A empolgação varreu-o enquanto corria com seus homens pelo acampamento, matando qualquer um que saísse cambaleando das tendas. Dissera aos homens que cada qual devia matar dois inimigos e depois procurar fugir, mas três haviam caído sob sua lâmina e ele mal estava no fim da primeira corrida. Podia sentir o pânico dos homens de Mitrídates. Seus oficiais foram lentos em reagir ao ataque, e, sem ordens, uma centena de indivíduos tentava lutar contra os atacantes no escuro, morrendo aos montes diante das lâminas dos veteranos. O grito de Júlio foi ecoado pela corte de Gadítico, centenas de vozes se somando à confusão e ao medo do inimigo. Caberá atirou as flechas que restavam contra tendas escuras, e Júlio matou um homem nu que tentava levantar a espada. Era o caos, e na confusão ele quase perdeu o momento que tinha jurado não ignorar.

Esse momento chegou depois de muitos minutos, quando trombetas soaram e os gregos começaram a se juntar em suas unidades. Nas tendas que as forças romanas não tinham alcançado o inimigo havia se armado e agora começava a lutar, com ordens em grego ouvidas acima dos ruídos surdos dos golpes.

Júlio girou para decepar a mão de um homem que saltava para ele. Cada corte da lâmina pesada causava um dano enorme, mas seu próximo golpe foi muito bem bloqueado e ele encontrou dois homens enfrentando-o e outros correndo de todas as direções. Tinham se recuperado e era hora de recuar antes que os Lobos fossem destroçados.

- Recuar! - gritou, ao mesmo tempo que dava um golpe por baixo com o gládio, cortando fundo o tornozelo do homem mais próximo. O segundo se esparramou sobre o corpo do colega, enquanto vinha correndo, e Júlio se desviou, com as sandálias escorregando na terra ensangüentada. Seus homens chegaram a ele num instante, virando-se e correndo assim que puderam se livrar do aperto.

Fora da luz das tochas do acampamento a noite era um esconderijo negro. Quando Júlio gritou o comando de recuar, todas as tochas das sentinelas foram apagadas, e os romanos se espalharam invisíveis, desaparecendo depressa das bordas do acampamento, deixando destroços e cadáveres para trás.

As unidades gregas pararam na borda das luzes, não querendo correr para uma escuridão que parecia conter milhares de inimigos - um inimigo que, pelo que lhes disseram, estava a mais de uma semana de marcha, numa direção diferente. Ordens confusas foram gritadas de um lado para o outro enquanto eles hesitavam e os Lobos corriam para longe.

 

Mitrídates ficou furioso. Tinha sido arrancado do sono por gritos na outra extremidade do acampamento. Sua tenda estava na boca da passagem estreita, e enquanto sua mente sonolenta se limpava ele percebeu que estava sob ataque do lado seguro, onde sabia que seus homens tinham destruído os povoados romanos, desde o acampamento até as cidades apavoradas ao longo do litoral.

Seus dez mil homens cobriam uma vasta porção do vale, e, quando levou os capitães ao local do ataque e começou a restaurar a ordem, os romanos tinham ido embora.

Sérios, fizeram a contagem dos mortos. Os oficiais sobreviventes estimaram que uns cinco mil homens tinham vindo contra eles, deixando mais de mil gregos mortos no chão. Mitrídates rugiu, sofrendo, ao ver os corpos empilhados em tendas, mortos antes de ter chance de encarar o inimigo. Era uma carnificina, e ele conheceu de novo a frustração que sentira quando Sila veio enfrentá-lo havia anos.

Como poderiam ter vindo por trás?, perguntou-se em silêncio enquanto andava entre os mortos esparramados. Olhou para o mato escuro e foi dominado pela fúria, jogando a espada para a noite. A escuridão engoliu-a quase assim que saiu de sua mão.

- As sentinelas estão mortas, senhor - informou um oficial. Mitrídates se virou para ele com os olhos vermelhos de fumaça e sono interrompido.

- Coloquem outras e preparem o acampamento para uma marcha ao amanhecer. Quero que eles sejam caçados.

Enquanto o homem corria para mandar cumprir as ordens, Mitrídates olhou de novo para a desolação em volta. Mil homens tinham sido perdidos, e ele só via alguns poucos romanos no chão. Por que eles recuaram? Qualquer legião que fosse, parecia que poderiam ter passado por cima do acampamento antes do amanhecer, tal fora o pânico e a confusão de seus' homens. Onde os gregos estariam em segurança, senão no coração de sua própria terra, de seu próprio acampamento?

Quando tinha se recolhido naquela noite, fora com a confiança de liderar o maior exército que já havia montado ou mesmo visto. Agora sabia que não dormiria de novo sem medo de que zombassem de suas forças, de que ávida de seus soldados fosse cortada com facilidade selvagem. Olhou os rostos em volta, viu o choque e o terror se desbotando, e a dúvida se arrastou para dentro dele. Tinha imaginado que estava cercado de leões, mas descobriu que eram cordeiros.

Tentou descartar o desespero, mas era esmagado por ele. Como poderia ter esperanças de enfrentar Roma? Esses homens tinham vindo lutar sob sua bandeira depois de algumas vitórias rápidas contra os odiados romanos, mas eram jovens cheios de sonhos de Esparta, Tebas e Atenas. Sonhos de Alexandre, que ele talvez não pudesse realizar. Sua cabeça tombou e os punhos se fecharam enquanto os homens corriam de um lado para o outro à sua volta, não ousando falar com o rei furioso.

- Deveríamos voltar - disse Suetônio. - Mais um ataque enquanto eles estão levantando acampamento. Eles nunca vão esperar.

- E como iríamos escapar de novo, com a manhã chegando? - respondeu Júlio, irritado. - Não. Vamos marchar até arranjar cobertura.

Ele desviou o rosto para não ver a expressão carrancuda que sabia que acompanharia suas palavras. Uma expressão pouco mais suportável do que o prazer maligno que tinha dominado o jovem oficial desde o ataque. Isso o enjoava. Para Júlio, a curta batalha tinha sido sem honra, uma simples questão prática de reduzir os números do inimigo. O jorro quente de empolgação que tinha enchido suas veias na luta havia sumido logo que se afastou, mas Suetônio se sentira quase sexualmente excitado com a matança fácil.

Júlio notou que os veteranos também tinham se afastado do acampamento grego o mais rápido que puderam, sem gritos de comemoração nem preocupação com pequenos ferimentos. Mantinham um silêncio profissional, como ele havia ordenado. Apenas Suetônio tinha conversado enquanto marchavam, aparentemente incapaz de parar de se derramar em congratulações a si mesmo.

- Poderíamos mandar nossos arqueiros e disparar de um local coberto, antes da retirada - disse ele, com a boca abrindo-se, salivando diante da perspectiva. - Viu a sentinela em quem eu atirei? Direto pela garganta, foi perfeito.

- Fique quieto! - disse Júlio rispidamente. - Volte para as fileiras e mantenha a boca fechada.

Ele já estava farto de Suetônio, e havia algo profundamente desagradável no modo como ele matava. Aquilo não parecia ter vindo à tona nas batalhas no mar, mas, de algum modo, matar homens adormecidos tinha despertado alguma coisa feia no jovem oficial, e Júlio queria se afastar disso o máximo possível. Um pensamento nas crucificações relampejou em sua mente e ele estremeceu, imaginando se Suetônio teria demonstrado misericórdia ou ido até o fim. Suspeitou que a coisa seria lenta, se Suetônio estivesse dando ordens.

O jovem oficial não recuou imediatamente, e Júlio quase lhe deu um tapa. Suetônio parecia achar que os dois compartilhavam algum relacionamento privado que brotava das lembranças comuns, remontando à cela do navio de Celso. Júlio olhou o rosto dele e viu que estava retorcido de escárnio, a boca parecendo em vias de responder à ordem.

- Volte ou eu mato você aqui - rosnou Júlio, e a figura magra finalmente trotou para longe, para a escuridão dos homens que marchavam atrás.

Um dos veteranos tropeçou e xingou. Isso era fácil de acontecer, sem uma lua para mostrar o chão. Eles tinham estabelecido um passo rápido desde o início, sem reclamações. Cada homem ali sabia que Mitrídates iria procurá-los assim que houvesse luz suficiente para enxergar. Tinham menos de duas horas até o amanhecer, e a toda velocidade poderiam cobrir quase dezesseis quilômetros nesse tempo.

Com os feridos essa distância seria menor. Sem ter de perguntar, os homens que estavam caminhando com dificuldade foram apoiados por dois outros, mas a maioria dos ferimentos era pequena. A natureza da briga tinha deixado os romanos mortos ou incólumes, na maior parte. Júlio não tivera tempo de avaliar as perdas, mas achava que eles tinham se saído bem, muito melhor do que havia esperado.

Enquanto marchava, pensava em como teria defendido o exército grego, se estivesse no comando dele. Para começar, um sistema de sentinelas melhor. Essa fraqueza havia deixado que eles fossem direto ao coração do acampamento sem alarme. Aparentemente os Lobos tinham tido sorte, mas, apesar de todos os seus defeitos, Mitrídates não era idiota. Da próxima vez seria mais difícil, com mais romanos mortos. Sem ser visto na dianteira da longa coluna, Júlio finalmente pôde aproveitar um momento no silêncio da marcha noturna para examinar o sucesso. Apesar de toda a diversão degradante, Suetônio estava certo. Fora perfeito.

Quando o amanhecer chegou, a maioria dos homens estava exausta. Sério, Júlio os obrigou a continuar cambaleando, mantendo uma fieira de ordens e ameaças. Mais alguns quilômetros levaram-nos a uma série de colinas íngremes e cobertas de mato que iriam escondê-los do dia e da descoberta.

Dormiriam e comeriam ali, mas, ouvindo os gemidos dos veteranos enquanto até mesmo a vontade férrea deles ia acabando na marcha interminável, achou que teriam de ficar escondidos mais tempo, para recuperar as forças.

Ao amanhecer Mitrídates mandou sua pequena força de cavaleiros, em grupos de vinte, com ordens para voltar com informações no momento exato em que vissem o inimigo. Seu plano original de levantar todo o acampamento para a busca o havia preocupado. Talvez fosse isso que eles pretendessem que ele fizesse, deixar o aparente abrigo do pequeno vale e marchar para as planícies onde a legião escondida poderia despedaçá-los. Andou de um lado para o outro em sua tenda, numa agonia frustrada, xingando a própria indecisão. Deveria se retirar para uma cidade? Todas eram romanas e defenderiam as muralhas contra ele até o último homem. Mas onde haveria segurança nas planícies? Sabia que era possível que mais legiões estivessem vindo do oeste para esmagar a rebelião e brincou com a idéia de debandar seus homens, mandando-os de volta para as plantações e os vales. Não, não podia fazer isso. Os romanos poderiam pegá-los um por um, procurando rebeldes, e ele não teria obtido nada.

Trincou os maxilares com a mesma fúria impotente que o havia dominado desde que viu os corpos de seus homens na noite anterior. Será que Alexandre se permitiria ficar preso entre legiões?

Parou de andar subitamente. Não, Alexandre não faria isso. Alexandre levaria a luta até eles. Mas em que direção? Se movesse o exército de volta para o leste, ainda poderia ser apanhado pelos que vinham da costa. Se fosse para o oeste, na direção dos portos romanos, teria aqueles matadores noturnos assediando sua retaguarda. Que os deuses o perdoassem: o que Súa faria? Se os batedores viessem sem notícias e se ele não agisse, começaria a perder homens com as deserções, tinha certeza.

Suspirando, serviu-se de um terceiro copo de vinho, apesar da sensação ácida no estômago se rebelando dessa punição tão cedo no dia. Ignorou o desconforto, irritado, enquanto emborcava o copo. Em pouco tempo teria de dizer aos filhos que tinham desperdiçado vidas por não se mover suficientemente rápido à noite.

Bebeu mais e mais à medida que o dia passava e os batedores voltavam com montarias suadas e sem nada a informar. De todos no acampamento, somente o rei Mitrídates tinha bebido até cair no sono quando a noite veio.

Júlio sabia que as estimativas do curto ataque noturno seriam vagas ou exageradas. Era da natureza dos soldados reivindicar um sucesso maior do que tinham alcançado. Mas, mesmo admitindo isso, achava que tinham reduzido a força de Mitrídates em oitocentos a mil homens, perdendo apenas onze dos seus. Esses homens não seriam enterrados sob as vistas dos deuses romanos. Não houvera tempo para recolher os corpos, mas isso ainda era um espinho na carne dos veteranos, que nunca gostavam de deixar os companheiros nas mãos dos inimigos.

Os mais jovens tinham liberado parte da tensão da noite assim que chegaram à segurança das árvores nas colinas, e Júlio dera permissão para ficar à vontade. Eles gritaram e comemoraram até ficar roucos, enquanto os veteranos olhavam sorrindo, mais preocupados em limpar e lubrificar o equipamento do que em comemorar.

Quertoro tinha mandado cinqüenta dos melhores caçadores para trazer carne e no meio da manhã estava com uma refeição fumegante pronta, assando porcos selvagens, lebres e cervos juntos em pequenas fogueiras. Qualquer chama era um risco, mas as árvores esconderiam a fumaça, e Júlio sabia que eles precisavam da recuperação e do calor de uma refeição quente. Só insistiu em que as fogueiras fossem apagadas assim que a última caça fosse preparada.

A diferença da idade ficou clara naquela tarde. Os recrutas jovens estavam totalmente recuperados, movendo-se energicamente pelo acampamento em pequenos grupos, batendo papo e rindo. Os veteranos estavam caídos feito mortos, sem mesmo se virar no sono, por isso acordaram rígidos e com cãibras. Hematomas surgiram debaixo da pele, aparecendo onde não havia marcas na noite anterior. Os mais jovens desconsideravam os ferimentos, mas não zombavam da rigidez dos veteranos. Tinham visto sua habilidade, não a idade.

Júlio achou Cornix mastigando sentado perto das fogueiras, obviamente gostando do calor nos ossos quentes.

- Então sobreviveu - disse Júlio, genuinamente satisfeito ao ver que o velho tinha superado o caos do ataque. O joelho ainda estava bem enrolado, esticado no chão para descansar.

Cornix sinalizou dando as boas-vindas, balançando vagamente um pedaço de carne.

- Eles não conseguiram me matar - concordou, chupando a carne até ficar seca e depois apertando-a contra a bochecha para amaciar antes de mastigar. - Notei que eram muitos. - Seus olhos observaram Júlio, cheios de interesse no rapaz.

- Achamos que sobraram uns oito ou nove mil. Cornix franziu a testa.

- Vai demorar uma eternidade para matar tantos - observou, sério enquanto fazia o pedaço de carne circular dentro da boca, ruminando.

Júlio riu para o velho.

- E, bem... Os artesãos demoram para fazer um bom trabalho. Cornix assentiu, com um sorriso abrindo o rosto enrugado, mesmo contra a vontade.

Júlio deixou-o comendo e achou Gadítico. Percorrendo o acampamento juntos, visitaram cada uma das sentinelas, que estavam paradas em grupos de três para que sempre houvesse uma para alertar um ataque. Cada grupo ficava totalmente à vista do outro, ao redor de todo o acampamento. Para isso era necessário um grande número de homens, mas Júlio tinha ordenado turnos curtos, de apenas duas horas, de modo que as mudanças vinham rapidamente e a noite se passou sem alarme.

No dia seguinte, quando a escuridão baixou cedo na tarde de inverno, eles marcharam para fora da floresta e de novo atacaram o acampamento de Mitrídates.

 

Antonido caminhava de um lado para o outro na sala mobiliada com luxo, a pele pintalgada de fúria, O único outro ocupante, recli-nado num divã macio e roxo, era a figura corpulenta do senador Cato. Os olhos que observavam Antonido pareciam pequenos, perdidos na vastidão carnuda do rosto suado. Brilhavam de intriga seguindo os passos do ex-general de Sila, andando para lá e para cá no mármore. Cato fez uma leve careta ao ver o pó da estrada grudado em Antonido. Ele não deveria ter exigido uma reunião antes mesmo de se lavar.

- Não tenho informações novas, senador. Absolutamente nenhuma - disse Antonido.

Cato suspirou teatralmente, estendendo a mão rechonchuda para o braço do divã e sentando-se ereto. Os dedos que seguravam a madeira estavam escorregadios e grudentos com resíduos açucarados do jantar que Antonido interrompera. Cato chupou-os preguiçosamente enquanto esperava que o irritado soldado encontrasse a calma. O cão de Sila nunca fora um homem paciente, ele sabia. Mesmo quando o ditador era vivo, Antonido tinha conspirado e implorado mais autoridade e ação onde nada disso era necessário. Depois do assassinato sórdido, Antonido tinha agido de modo ultrajante, excedendo de longe sua autoridade ao procurar os assassinos. Cato fora obrigado a apoiá-lo quando suas atividades foram discutidas no Senado ou quando o via ser atacado pelos que ele tinha ofendido. Era uma proteção frágil, mesmo na época, e Cato imaginou se o general que andava sem parar sabia como estava perto da destruição. Nos meses anteriores Antonido ofendera quase todo mundo que importava na cidade, interrogando até mesmo quem estava acima de qualquer suspeita.

Cato ficou imaginando como Sila conseguia suportar a companhia desagradável de seu general. Ele próprio logo se cansou.

- Já pensou que talvez nunca descubra quem ordenou o assassinato? - perguntou.

Antonido parou de andar enquanto falava, girando de frente para o senador.

- Não fracassarei nisso. Já demorou mais do que eu pensava, mas com o tempo alguém vai falar ou alguma prova será encontrada, apontando um dedo sangrento, e eu terei o homem.

Cato observou-o cautelosamente, notando o brilho maníaco dos olhos. Perigosamente obsessivo, pensou, avaliando a hipótese de removê-lo discretamente antes que ele causasse mais problemas. Os esforços públicos tinham sido feitos, e se Sila não fosse vingado, bem, a cidade continuaria mesmo assim, quer Antonido tivesse sucesso ou não.

- Pode demorar anos, você sabe - continuou Cato. - Ou você pode morrer sem encontrar o culpado. Não seria tão estranho. Se alguém fosse se revelar ou ser traído, acho que isso aconteceria logo depois do fato, mas nada aponta esse seu dedo sangrento e talvez nunca aponte. Talvez esteja na hora de abandonar a caçada, Antonido.

Os olhos negros se cravaram nele, mas Cato não se afetou. Não se importava nem um pouco com as obsessões do outro, por mais que tenha ficado contente em deixá-lo percorrer louco as casas de Roma durante um tempo. Sila estava morto, era cinzas. Talvez estivesse na hora de mandar o cão se sentar.

Antonido pareceu sentir os pensamentos na expressão chapada, cheia de tédio, com que Cato retornou seu olhar.

- Dê-me um pouco mais de tempo, senador-pediu ele, com a aparência furiosa substituída por uma súbita cautela.

Talvez, afinal de contas, ele soubesse como Cato o protegia do ultraje de outros senadores, pensou o gordo. Sem dar importância, desviou o olhar e Antonido falou com pressa:

- Tenho quase certeza que o assassinato aconteceu por ordem de três homens. Qualquer um deles pode tê-lo arranjado e todos apoiavam Mário antes da guerra.

- Quem são esses homens perigosos? - perguntou Cato maliciosamente, ainda que ele pudesse dizer os nomes com tanta facilidade quanto o general. Afinal, os informantes lhe prestavam contas antes de fazê-lo a Antonido, com o dinheiro de Cato em suas bolsas.

- Pompeu e Cina são os mais prováveis, eu acho. Talvez Cina acima de todos, já que Sila era... interessado na filha dele. E Crasso, o último. Esses três tinham dinheiro e influência para comprar um assassinato e não eram amigos de Sila. Ou podem ter agido juntos, com Crasso dando o dinheiro e Pompeu os contatos, por exemplo.

- Citou alguns homens poderosos, Antonido. Será que mencionou suas suspeitas a mais alguém? Eu odiaria perder você - disse Cato em tom de zombaria.

Antonido pareceu não notar.

- Guardei meus pensamentos comigo até ter provas para acusá-los. Eles lucraram com a morte de Sila e votam abertamente contra os defensores dele no Senado. Meu instinto diz que foi um deles, ou que eles foram consultados. Se eu ao menos pudesse interrogá-los para ter certeza!

Ele estava praticamente trincando os dentes de raiva, e Cato precisou esperar enquanto a pele do general, perdia as manchas e os espasmos de fúria diminuíam.

- Você não deve abordá-los, Antonido. Esses três são bem protegidos pela tradição do Senado e pelos guardas pessoais. Mesmo que você esteja certo, eles podem escapar.

Cato disse isso principalmente para ver se Antonido poderia ser provocado até uma perda total de controle e se sentiu grato ao ver as veias roxas na testa e no pescoço dele. Cato riu e o general saltou para fora da raiva, espantado com o som súbito. Como Sila pudera suportá-lo?, pensou Cato. O homem era tão aberto quanto uma criança e igualmente fácil de manipular.

- A solução é fácil, Antonido. Você contrata seus próprios assassinos tendo cuidado para que eles não saibam quem você é.

Agora tinha toda a sua atenção, notou Cato com satisfação. Sentia o princípio de uma dor de cabeça causada pelo vinho, e queria que o soldado furioso o deixasse.

- Mande seus assassinos até as famílias, Antonido. Escolha uma esposa amada, uma filha, um filho. Deixe uma marca neles, para mostrar que o negócio foi feito em memória de Sila. Uma das suas flechas vai acertar o alvo, e as outras...? Bem, eles nunca foram meus amigos. Haverá vantagens em deixá-los mais vulneráveis por um tempo. Então deixe que isso termine e imagine Sila descansando de modo sensato, como os bons fantasmas devem fazer.

Sorriu enquanto Antonido pensava na idéia, o rosto magro se iluminando de crueldade. As rugas de preocupação se suavizaram na testa do general, onde tinham sido gravadas nos meses desde o envenenamento. Cato assentiu, sabendo que tinha alcançado o velho soldado. Seus pensamentos se voltaram para a possibilidade de uma pequena refeição fria antes de dormir e mal notou quando Antonido fez uma reverência e saiu da sala, movendo-se com passos rápidos e empolgados.

Mais tarde, enquanto enfiava comida na boca e mastigava devagar, Cato suspirou de irritação com os pensamentos indo para seu filho idiota e Rênio. Lembrou-se de o ter visto lutar na arena, e estremeceu deliciosamente visualizando uma selvageria controlada que chocou até a ruidosa multidão de Roma, deixando-a em silêncio. Um homem que arriscava a vida de modo tão barato não seria fácil de dobrar. O que ele poderia oferecer pelo filho? O menino general Brutus estava devendo muito. Talvez o ouro o abalasse. O poder era uma coisa frágil, e onde dinheiro e influência fracassavam, como ele achava que deviam, era necessário usar ferramentas úteis como Antonido. Seria uma pena perdê-lo.

Alexandria parou antes de bater no portão da propriedade rural que conhecia tão bem. Os oito quilômetros vindo da cidade tinham sido um pouco como uma volta no tempo. Na última vez em que estivera ali fora como escrava, e as lembranças a inundaram. Sendo chicoteada por Rênio, beijando Caio nos estábulos, trabalhando no vento e na chuva até cair, matando homens com uma faca de cozinha no escuro sob as muralhas no auge dos tumultos. Se Júlio não a tivesse levado para a cidade, ela ainda poderia estar trabalhando ali, destroçada pelos anos.

- Quem é? - gritou uma voz estranha, acompanhada por passos rápidos até o topo da muralha pelo lado de dentro. Um rosto que ela não conhecia olhou-a, cuidadosamente inexpressivo enquanto o escravo percebia sua aparência e do menino que segurava sua mão. Ela ergueu a cabeça em desafio sob o exame, olhando de volta com toda a confiança que pôde juntar, apesar do coração disparado.

- Alexandria. Vim ver Tubruk. Ele está?

- Por favor, espere um momento, senhora - respondeu o escravo, desaparecendo.

Alexandria respirou fundo. Ele a havia considerado uma mulher livre. Empertigou os ombros mais um pouco, com a confiança crescendo. Seria difícil encarar Tubruk, e tinha de se obrigar a ficar calma enquanto esperava. Otaviano continuou em silêncio, ainda com raiva da decisão que haviam tomado por ele.

Quando Tubruk abriu o portão e veio até ela, Alexandria quase perdeu a coragem, agarrando a mão de Otaviano com força suficiente para ele dar um ganido. Tubruk parecia não ter mudado, continuava o mesmo enquanto o resto do mundo passava loucamente. Seu sorriso foi genuinamente amigável, e ela sentiu parte da tensão se esvair.

- Ouvi dizer que está se saindo bem - disse ele. - Posso mandar servir comida, se estiver com fome.

- Com sede, depois da caminhada, Tubruk. Este é Otaviano. Tubruk se curvou para olhar o menino que se esgueirou para trás de Alexandria, parecendo preocupado.

- Bom dia, garoto. Imagino que esteja com fome, não é? - Otaviano assentiu convulsivamente e Tubruk deu uma risada. - Nunca conheci um menino que não estivesse. Entrem, mandarei trazer alguma coisa para nós.

Tubruk parou, pensativo, um momento.

- Marco Brutus está aqui - disse ele. - E Rênio também. Alexandria se enrijeceu ligeiramente. O nome de Rênio trazia lembranças amargas. Brutus também era um nome de seu passado esquecido; doçura misturada com dor. Segurou Otaviano com força enquanto passavam pelo portão, mais para o seu próprio conforto do que para o dele.

As sombras do pátio a fizeram estremecer. Tinha estado... ali, esfaqueando um homem que a agarrara, e Susana morrera perto do portão. Balançou a cabeça e respirou fundo. Era fácil demais se perder no passado, principalmente aqui.

- A senhora está em casa? - perguntou.

A expressão de Tubruk mudou ligeiramente enquanto respondia, o que o fez parecer mais velho.

- Aurélia está muito mal. Não poderá vê-la, se é o que deseja.

- Lamento saber, mas vim ver você.

Ele a levou até uma sala silenciosa onde Alexandria raramente havia entrado quando era escrava. O chão era quente, e o espaço parecia confortável e bem habitado. Tubruk deixou-os para pedir uma refeição, e ela começou a relaxar ainda mais enquanto os dois esperavam sozinhos. Otaviano se remexia de um modo irritante, raspando as sandálias no tapete até que Alexandria imobilizou os pés do garoto segurando os joelhos dele com força.

Quando voltou, Tubruk trouxe uma bandeja com uma jarra e tigelas de frutas recém-cortadas. Otaviano partiu para a comida, deliciado, e Tubruk sorriu diante do entusiasmo do garoto enquanto se sentava e esperava Alexandria falar.

- É sobre Otaviano que eu quero conversar com você - disse ela depois de uma pausa.

- Quer que eu peça a alguém que mostre os estábulos a ele? - disse Tubruk rapidamente.

A jovem deu de ombros.

- Ele sabe o que eu vou dizer.

Tubruk encheu um copo de suco de maçã fresco para ela, e Alexandria bebeu enquanto juntava os pensamentos.

- Sou dona de parte de uma oficina de metalurgia na cidade, e pegamos Otaviano como aprendiz. Não vou mentir e dizer que ele era perfeito. Durante um tempo era quase selvagem, mas agora é um menino diferente.

Ela foi interrompida pela visão de Otaviano tentando enfiar fatias de melão na boca.

Tubruk viu o olhar dela e se levantou de repente.

- Por enquanto basta, garoto. Vá procurar o estábulo. Leve uns pedaços de maçã para os cavalos.

Otaviano olhou para Alexandria e, quando ela assentiu, riu e pegou um punhado de frutas, desaparecendo da sala sem dizer palavra. Seus passos ecoaram por um momento, até que tudo ficou em silêncio de novo.

- Ele não se lembra do pai e era um moleque de rua quando o peguei. Você deveria ver como ele mudou, Tubruk! O menino é fascinado pelas coisas que Tabbic ensina. Ele é bom com as mãos e com o tempo pode virar um bom artesão.

- Então por que o trouxe a mim? - perguntou Tubruk gentilmente.

- Não podemos deixá-lo ir à rua há quase um mês. Tabbic tem de levá-lo para casa toda noite e depois voltar sozinho no escuro. Atualmente as ruas não são seguras nem mesmo para ele, mas Otaviano foi espancado três vezes desde que o pegamos. Na primeira vez roubaram um anel de prata e achamos que os outros garotos o procuram para ver se está levando mais alguma coisa. É uma gangue. Tabbic reclamou com os patrões deles, quando soube quem eram, mas o terceiro espancamento veio logo depois. Isso está acabando com o menino, Tubruk. Tabbic fez uma faca para ele, mas Otaviano não quer pegá-la. Diz que os outros iriam matá-lo com ela, se ele puxasse uma faca para uma gangue, e acho que provavelmente está certo.

Ela respirou fundo para continuar.

- A mãe dele está desesperada, e eu disse que iria perguntar se você poderia ficar com ele e ensinar um ofício. Esperávamos que você pudesse colocá-lo trabalhando na propriedade por um ou dois anos. Depois, quando ele estiver mais velho, podemos levá-lo de volta para a oficina, e ele poderá continuar com o aprendizado.

Ela sentiu que estava arengando e parou. Tubruk olhou para as mãos e ela continuou depressa, não querendo deixar que ele falasse e recusasse.

- A família dele tem um parentesco distante com Júlio. Os avós deles eram irmãos, ou alguma coisa assim, ou cunhados. Você é o único que eu conheço que pode afastá-lo das gangues de rua, Tubruk. Isso vai salvar a vida dele. Eu não pediria, se houvesse mais alguém, mas...

- Eu fico com ele - disse Tubruk de repente. Alexandria piscou de surpresa e ele riu. - Você achava que eu não ficaria? Me lembro quando você arriscou a vida por esta casa. Poderia ter fugido e se escondido nos estábulos, mas não fez isso. Para mim é o bastante. Sempre há trabalho numa propriedade como esta, mesmo que tenhamos perdido um pouco de terra desde que você esteve aqui pela última vez. Ele vai trabalhar pela comida não se preocupe. Vai deixá-lo hoje mesmo?

Alexandria sentiu vontade de abraçar o velho gladiador.

- Sim, se você quiser. Eu sabia que podia contar com você. Obrigada Vai deixar a mãe dele visitá-lo de vez em quando?

- Terei de perguntar a Aurélia, mas deve ser possível, desde que não seja freqüente demais. Vou contar a ela sobre a ligação familiar. Ela provavelmente vai adorar a idéia.

Alexandria suspirou de alívio.

- Obrigada - falou de novo.

Os dois viraram a cabeça quando passos rápidos vieram de fora. Otaviano entrou correndo, com o rosto vermelho e empolgado.

- Tem cavalos no estábulo! - anunciou, fazendo os dois sorrir.

- Faz muito tempo que não há meninos neste velho lugar. Vai ser bom tê-lo aqui - disse Tubruk.

Otaviano olhou de um para o outro, arrastando os pés nervosamente.

- Então eu vou ficar? - perguntou em voz baixa. Tubruk assentiu.

- Um monte de trabalho duro espera você, garoto. O menino saltou de prazer.

- Aqui é lindo!

- Ele não saía da cidade desde que era um bebê - disse Alexandria, sem graça. Em seguida pegou as mãos de Otaviano e o segurou imóvel, séria.

- Bom, faça o que mandarem. Sua mãe virá vê-lo assim que você estiver acomodado. Trabalhe duro e aprenda tudo que puder. Entendido?

Otaviano assentiu, rindo de orelha a orelha. Ela o soltou.

- Obrigada, Tubruk. Nem posso dizer o quanto isso significa para mim.

- Olhe, garota - disse ele, carrancudo. - Agora você é uma mulher livre. Percorreu o mesmo caminho que eu. Mesmo que não tivesse lutado no tumulto, eu ajudaria se pudesse. De vez em quando a gente cuida um do outro.

Ela o olhou com uma compreensão súbita. Durante a maior parte de sua juventude ele fora o administrador da propriedade. Alexandria havia esquecido que ele sabia tanto quanto ela sobre escravidão, que os dois compartilhavam um elo que ela não havia percebido. Caminhou com ele até o portão, com a tensão desaparecendo.

Brutus e Rênio estavam lá, puxando duas éguas jovens e conversando em voz baixa. Brutus olhou incisivamente para Alexandria. Sem dizer palavra, entregou as rédeas a Rênio e correu para ela, levantando-a do chão num grande abraço.

- Deuses, garota, faz anos desde que eu vi você.

- Ponha-me no chão - respondeu ela, furiosa, e Brutus quase largou-a ao ouvir o tom gélido.

- O que há de errado? Achei que você ficaria feliz em me ver depois...

- Eu não admito ser manuseada como uma das suas escravas - disse ela rispidamente. Suas bochechas estavam em fogo. Parte dela queria rir do súbito ataque de dignidade, mas tudo estava acontecendo depressa demais. Muda de embaraço, ergueu a mão, sem o anel de ferro que indicava uma escrava.

Brutus riu dela.

- Eu não pretendia ofender, senhora - falou com uma reverência profunda.

Ela se sentiu tentada a lhe dar um chute, mas com Otaviano e Tubruk olhando, teve de suportar a zombaria alegre do rapaz. Insuportável, como ele sempre fora. Uma lembrança de uma coisa que Júlio tinha dito relampejou em sua mente e, enquanto Brutus se erguia, ela girou para lhe dar um tapa no rosto.

Ele começou a se mover para segurar seu pulso, depois claramente pensou melhor e deixou o tapa acertar. Seu sorriso jamais desapareceu.

- Qualquer que tenha sido o motivo disso, espero que agora esteja terminado - disse ele. - Eu...

- Júlio disse que você cantou vantagem a meu respeito - interrompeu Alexandria. Estava tudo errado. Queria sentar-se e rir com aquele jovem lobo que ela conhecera, mas cada expressão e cada palavra dele parecia enfurecê-la.

O rosto de Brutus se clareou numa compreensão súbita.

- Ele disse que eu cantei vantagem...? Ah. Que desgraçado esperto Não, eu nunca fiz isso. Ele pensa longe, o Júlio. Quando eu o vir, terei de dizer como deu certo. Ele vai adorar. Levar um tapa na frente de Rênio! Lindo

Rênio pigarreou.

- Vou levar sua égua aos estábulos até você terminar de brincar - murmurou, guiando os animais para as sombras do fim de tarde.

Alexandria franziu a testa na direção do velho, notando como ele enrolava as duas rédeas no pulso com a facilidade resultante da prática. Nada de boas-vindas da parte dele.

Sem aviso, lágrimas arderam em seus olhos. A não ser por Otaviano, nada parecia ter mudado desde a noite do ataque contra a propriedade. Todos estavam ali, e ela era a única que parecia sentir a passagem dos anos.

Tubruk se balançou de um pé para o outro, olhando a expressão fascinada de Otaviano.

- Feche a boca, garoto. Há trabalho para ser feito antes de você dormir esta noite. - Ele assentiu para Alexandria. - Vou deixar vocês dois conversando sozinhos enquanto mostro o serviço de Otaviano. - Ele balançou a cabeça para Brutus, depois guiou Otaviano com pulso firme.

Deixados a sós no pátio que ia escurecendo, Brutus e Alexandria falaram ao mesmo tempo, pararam e começaram a falar de novo.

- Desculpe - tentou Brutus de novo.

- Não, eu agi feito uma idiota. Faz tanto tempo desde que estive aqui com Tubruk, você... e Rênio, tudo voltou.

- Eu nunca disse a Júlio que nós dois dormimos juntos - continuou Brutus, se aproximando. Ela era muito linda, notou ele, uma daquelas mulheres que ficam melhores ao crepúsculo. Seus olhos eram grandes e escuros, e o modo como sua cabeça se inclinou para cima lhe deu vontade de beijá-la. Lembrou-se de como tinham se beijado uma vez, antes de Mário lhe dar os papéis para o posto na legião na Grécia.

- Tubruk não disse que Júlio estava aqui - disse ela. Ele balançou a cabeça.

- Ainda estamos esperando notícias. Ele foi seqüestrado e trocado por resgate na África, mas deve estar voltando. Nada é realmente como era, você sabe. Você é uma mulher livre, eu sou centurião e Rênio perdeu a capacidade de fazer malabarismo.

Ela riu de repente diante da imagem, e Brutus aproveitou para segurá-la de novo. Desta vez ela devolveu o abraço, mas, quando ele tentou beijá-la, virou a cabeça ligeiramente.

- Não posso lhe dar as boas-vindas direito? - perguntou ele, pasmo.

- Você é um homem terrível, Marco Brutus. Eu não fiquei sofrendo esperando sua volta, você sabe.

- Eu fiquei. Não sou nem metade do homem que já fui – respondeu ele balançando a cabeça com tristeza. - Quero sua permissão para vê-la e, se não a receber, talvez definhe completamente.

Ele suspirou como um fole rasgado, e os dois riram juntos com facilidade, sem embaraço.

Antes que ela pudesse responder, soou um grito do vigia no portão, fazendo Alexandria dar um pulo.

- Cavalos e carroça se aproximando - gritou o escravo.

- Quantos? - respondeu Brutus, afastando-se dela. Todos os traços de flerte desapareceram e, no mínimo, Alexandria preferiu seus novos modos aos antigos.

- Três homens a cavalo. Uma carroça puxada por bois. Os homens estão armados.

- Tubruk! Rênio! Primogênita, ao portão - ordenou Brutus. Soldados saíram das construções da propriedade, um grupo de vinte homens com armaduras, que deixaram Alexandria boquiaberta.

- Então a antiga legião de Mário está com você agora - disse ela, admirada.

Brutus lançou-lhe um olhar.

- Os que sobreviveram. Júlio vai precisar de um general quando voltar, é melhor você não chegar perto do portão até sabermos do que se trata, certo?

Enquanto ela assentia, Brutus se afastou e, longe dele, a jovem se sentiu subitamente só. Lembranças de sangue voltaram e ela estremeceu delicadamente, indo para a luz das construções.

Tubruk saiu dos estábulos com Otaviano ao lado, subitamente esquecido. Deixando o garoto andando pelo pátio de pedras, o administrador subiu a escada ao lado do portão e olhou para o barulho dos soldados que se aproximavam.

- Meio tarde para uma visita, não é?-gritou. - O que desejam aqui?

- Viemos a mando de Cato falar com Marco Brutus e o gladiador Rênio -.- trovejou uma voz grave.

Tubruk olhou para baixo, satisfeito ao ver seus arqueiros em posição em volta do pátio. Eles eram bem exercitados, e qualquer pessoa que tentasse atacar a casa seria destruída em segundos. Brutus estava com seus soldados num círculo de defesa enquanto Tubruk sinalizava para ele abrir o portão.

- Movam-se devagar agora, se dão valor à vida e à saúde - alertou aos homens de Cato.

O portão se abriu e se fechou rapidamente enquanto a carroça e os cavaleiros entravam. Vigiados pelos arcos retesados, os cavaleiros desmontaram lentamente, revelando a tensão. Rênio e Brutus se aproximaram deles e o líder assentiu ao reconhecer o gladiador de um braço só.

- Meu senhor Cato acredita que houve um equívoco. Seu filho prestou juramento erradamente à Primogênita, quando de fato estava prometido a outra legião. Meu senhor entende que o entusiasmo juvenil pode tê-lo dominado no Campo de Marte, mas lamenta que ele não possa servir com o senhor. A carroça está cheia de ouro, como compensação pela perda.

Brutus caminhou em volta dos bois suados e puxou a cobertura da carroça, revelando dois baús pesados. Abriu um e assobiou baixinho ao ver as moedas de ouro dentro.

- Seu senhor tem em alta conta o valor do filho para a Primogênita - disse ele.

O soldado olhou impassível para a vasta riqueza que tinha revelado.

- O sangue de Cato não tem preço. Isso é apenas um presente. Germínio está aqui?

- Você sabe que está - respondeu Brutus, esforçando-se por afastar o olhar do ouro. Aquela riqueza seria rapidamente engolida pelo que ele devia a Crasso, mas mesmo assim era uma quantia gigantesca para recusar. Olhou para Rênio, que deu de ombros, sabendo que a decisão tinha de ser de Brutus. Seria fácil destrancar a porta do quarto de Germínio e entregá-lo. Roma apreciaria a beleza do gesto e Brutus seria conhecido como um negociador astuto por ter colocado Cato em seu devido lugar. Suspirou. Os legionários não eram propriedade de seus comandantes para ser comprados e vendidos.

- Leve de volta - falou, dando um último olhar desejoso para o ouro.

Agradeça ao seu senhor pelo gesto e diga que seu filho será bem-tratado. Não deve haver inimigos aqui, mas Germínio prestou o juramento, que não pode ser quebrado a não ser pela morte.

O soldado inclinou a cabeça rigidamente.

- Levarei a mensagem, mas meu senhor ficará tremendamente insatisfeito pelo fato do senhor não ver um modo de encerrar esse equívoco infeliz. Boa noite, senhores.

Os portões foram abertos de novo, e sem outra palavra o pequeno grupo de guardas partiu para a escuridão, com os bois mugindo lamentosos quando seu guia os cutucou para dar as costas à propriedade.

- Eu teria ficado com o ouro - disse Rênio quando o portão se fechou.

- Não, não teria, velho amigo. E eu também não poderia ficar. Em silêncio, Brutus imaginou o que Cato faria ao saber.

Pompeu chamou as filhas quando entrou em casa na colina Aventina. A casa estava plena do cheiro de pão quente, e ele respirou fundo, apreciando, enquanto entrava no jardim, procurando-as. Depois de um longo dia de informes sobre a continuação da ofensiva contra Mitrídates, estava exausto. Se não tivesse sido tão desesperadamente importante, a situação seria quase uma farsa. Depois de semanas de debates, o Senado finalmente tinha deixado que dois generais levassem suas legiões à Grécia. Pelo que Pompeu podia ver, tinham escolhido os menos capazes e menos ambiciosos dos homens sob o comando do Senado. O raciocínio era claro demais, mas esses generais cautelosos tinham avançado lentamente para a Grécia continental, não querendo correr sequer o risco mínimo. Meticulosamente haviam cercado pequenos povoados, estabelecido sítio quando necessário e ido em frente. Isso fazia Pompeu ter vontade de cuspir.

Quisera ele próprio o comando de uma legião, mas esse desejo provocou a reação imediata dos silanos, e eles tinham votado em bloco contra sua nomeação, no momento em que seu nome apareceu nas listas. Para Pompeu, a luta para proteger as carreiras à custa da cidade era uma coisa obscena, no entanto eles o haviam forçado a obedecer. Se levantasse uma força de "voluntários", com Crasso dando o dinheiro, sabia que o Senado iria declará-lo inimigo da República antes de ter chegado aos navios. Diariamente a frustração crescia enquanto os relatórios revelavam uma falta quase total de realizações. Eles ainda nem tinham encontrado o exército principal.

Coçou a parte de cima do nariz para aliviar parte da pressão. Pelo menos o jardim estava fresco, ainda que a brisa não acalmasse seu mau humor. Ter o manto do Senado preso por cães tão pequenos! Terriers minúsculos e furiosos sem imaginação e sem sentimento de glória. Merceeiros, e Roma era comandada por eles.

Pompeu andou em silêncio pelo jardim, com as mãos cruzadas às costas, perdido em pensamentos. Gradualmente sentiu as tensões do dia se dispersarem. Durante anos fora seu hábito separar o dia de trabalho da vida doméstica com um curto passeio pelos jardins pacíficos. Revigorado, podia se juntar à família na refeição noturna, rir e brincar com as filhas, tendo esquecido o Senado miserável até o novo amanhecer.

Quase não viu o corpo da filha mais nova, caído de rosto para baixo nos arbustos perto do muro externo. Quando seus olhos se viraram para lá, começou a abrir um sorriso de reconhecimento, esperando que ela desse um pulo para abraçá-lo. Ela adorava surpreendê-lo na chegada, dissolvendo-se em ataques de riso quando ele dava um pulo, assustado.

Viu sangue no vestido da menina, em manchas marrons escuras, e seu rosto afrouxou lentamente, tombando numa tristeza à qual nem podia começar a resistir.

- Laura? Anda, menina, levante-se.

A pele dela estava muito branca, e ele podia ver um corte de açougueiro onde o pescoço encontrava o tecido estampado do vestido de menina.

- Anda, menina, fica de pé - sussurrou ele.

Foi até ela e sentou-se nas folhas úmidas perto dos membros pequenos da menina.

Acariciou seu cabelo por longo tempo enquanto o sol se punha e as sombras se alongavam devagar em volta dos dois. Sabia vagamente que deveria estar gritando para pedir ajuda, chorando, mas não queria deixá-la, nem mesmo pelo tempo que levaria para chamar a mulher. Lembrou-se de tê-la carregado nos ombros durante o verão, e do modo como ela imitava tudo que ele dizia, em sua voz aguda e límpida. Ele havia se sentado junto dela durante febres e doenças, e agora estava com ela pela última vez, murmurando gentilmente, puxando a gola do vestido para cima, para cobrir o ferimento avermelhado como lábios que era a única cor forte na filha.

Depois de um tempo levantou-se e andou rigidamente para casa. O tempo passou e uma mulher gritou de sofrimento.

 

Metrídates olhou para a névoa do amanhecer, imaginando se outro ataque viria. Puxou a capa pesada sobre os ombros e estremeceu, dizendo a si mesmo que era apenas o frio da manhã. Era difícil não desesperar.

Os ataques noturnos tinham crescido em ousadia, e praticamente ninguém mais dormia tranqüilo no grande acampamento. A cada noite eles decidiam com sorteios quem ficaria de sentinela, e os escolhidos viravam os olhos vermelhos uns para os outros e davam de ombros, já esperando a morte. Se ela não viesse, eles caminhavam de volta à proteção do acampamento principal, com um retorno da confiança que duraria até pegarem a ficha errada no pote passado de mão em mão.

Freqüentemente não voltavam. Centenas de sentinelas deixavam de responder à chamada a cada amanhecer. Mitrídates tinha certeza de que mais da metade estava desertando em silêncio, mas parecia que o acampamento era rodeado por um inimigo invisível que podia escolher à vontade quem mataria. Algumas sentinelas eram encontradas com ferimentos de flechas que eram cuidadosamente arrancadas da carne para ser usadas de novo. Não parecia importar quantos soldados montavam guarda juntos, ou onde eles os colocava, a cada dia menos homens voltavam ao acampamento.

O rei olhou irado para a névoa úmida que parecia entupir seus pulmões com o frio do inverno. Alguns de seus homens acreditavam que estavam sendo atacados por fantasmas de batalhas antigas, espalhando histórias de guerreiros velhíssimos, de barbas brancas, vislumbrados por um momento antes de desaparecer em silêncio. Sempre em silêncio.

Começou a andar ao longo das fileiras de seus homens. Tão exaustos quanto o rei, mesmo assim estavam com as armas prontas e em posição de alerta, esperando a névoa subir. Tentou sorrir para eles e levantar o moral, mas era difícil. A impotência de ter vidas arrancadas semana após semana havia tirado a coragem de muitos de seus homens. Estremeceu de novo e xingou a névoa branca que parecia se demorar sobre as tendas enquanto o resto do mundo acordava. Às vezes pensava que, se pudesse simplesmente arranjar um cavalo e se afastar depressa, irromperia à luz do sol e, ao se virar, enxergaria apenas o vale coberto pela mortalha.

Um corpo estava caído, intocado, entre duas tendas. O rei parou e olhou para ele, com raiva e vergonha porque o jovem guerreiro não fora enterrado. Isso, ainda mais do que os olhares inexpressivos de seus homens, lhe disse até onde as coisas tinham ido desde que haviam enfiado estacas nos morros e brindado ao sucesso e à destruição de Roma. Como ele odiava esse nome!

Talvez devesse ter marchado com o exército para longe, mas sempre retornava o pensamento incômodo de que o que o inimigo mais esperava era que ele o levasse para as planícies. Em algum lugar, escondida de seus batedores, havia uma legião de homens com um comandante diferente de todos os que Mitrídates conhecera. Ele parecia querer destruí-los aos pedaços. Súbitas saraivadas de flechas caíam sobre os corpos de qualquer pessoa que usasse um elmo de oficial ou carregasse um estandarte. A coisa tinha chegado ao ponto em que homens tinham se recusado a pegar as bandeiras e preferiam suportar o açoite a convidar a morte que viam como inevitável.

Era uma coisa maligna ver o moral cair tanto. Ele tinha dado ordens aos grupos de sentinelas para matar qualquer um que tentasse desertar, mas na noite seguinte um número ainda maior de soldados desapareceu, e ele ainda não sabia se estavam mortos ou tinham fugido. Às vezes simplesmente via uma pilha de armaduras, como se eles simplesmente tivessem descartado o metal junto com a honra, mas ocasionalmente as pilhas estavam manchadas de sangue.

O rei Mitrídates coçou com força o rosto cansado, trazendo cor às bochechas. Não podia se lembrar da última vez em que tinha dormido, sem ousar ficar bêbado, com a chance de ataque a qualquer hora da noite. Ele eram como fantasmas, pensou com uma sensação de chumbo. Espíritos mortais, que se moviam rapidamente e deixavam carne branca tombada no capim depois de passar.

Seus filhos tinham preparado unidades de reforço, de modo que sempre havia novos guerreiros no apoio, mas não dera certo. Mitrídates se perguntou se seus homens estariam protelando, não querendo ser os primeiros a chegar ao inimigo e ser mortos. Quando os romanos desapareciam, os reforços chegavam com um grande rugido e entrechocar de escudos e espadas, formando círculos ao redor dos feridos e gritando insultos para a noite mas parecia um despeito inútil, um último golpe ou riso do covarde ao se sentir em segurança.

A névoa começou a ficar rala, e Mitrídates beliscou as bochechas com os polegares fortes para afastar o frio. Logo receberia o relatório das sentinelas perdidas durante a noite e esperava que fosse uma daquelas vezes em que todos os homens voltavam atordoados com a boa sorte, cambaleando de alívio depois de horas de tensão e medo. Agora essas noites eram raras.

Numa ocasião ele tentara emboscar o inimigo com uma força de cem homens ocultos perto das posições das sentinelas. Cada um deles foi achado morto e frio no dia seguinte. Depois disso não tentou de novo. Fantasmas.

Uma brisa soprou em volta e ele puxou a capa com mais força ainda. A névoa fez redemoinhos e se dissolveu em minutos, revelando a planície escura. Mitrídates se imobilizou de medo enquanto via as fileiras de soldados esperando em silêncio. Fileiras perfeitas de legionários, com as armaduras brilhando dolorosamente num borrão prateado. Duas cortes. Mil homens. A seiscentos metros de distância, esperando-o.

Seu coração martelou dolorosamente sob os músculos amplos do peito, fazendo-o se sentir meio tonto. Ouviu o grito se espalhar pelo acampamento enquanto seus oficiais sobreviventes faziam os homens se levantar e assumir as posições. Então o pânico o tocou. Mil homens de um lado. Onde estava o resto?

- Mande os batedores! - gritou.

Corredores foram rapidamente até os cavalos, galopando pelas fileiras do acampamento.

- Arqueiros comigo! - continuou ele, e sua ordem foi passada pela fileira.

Centenas de arqueiros começaram a convergir para a figura coberta pela capa. Ele juntou os oficiais em volta.

- É um ardil, um truque. Quero que vocês protejam este lado do acampamento. Mandem cada flecha que vocês têm, para mantê-los à distância. Matem todos, se puderem. Vou guardar a frente, de onde deve vir o ataque principal. Gastem todas as flechas, sem restrições. Eles não devem alcançar nossa retaguarda enquanto os outros atacam. O moral não sobreviverá a isso.

Os oficiais assentiram e fizeram reverência, prendendo as cordas nos arcos com habilidade ao mesmo tempo que se empertigavam. Os rostos mostravam os primeiros sinais de empolgação, da alegria poderosa que vem de lançar a morte em enxames que picavam enquanto seus homens permaneciam em segurança.

Mitrídates deixou que as unidades de arqueiros se formassem, pegou o cavalo com o pajem que o segurava e atravessou o acampamento até a dianteira. O desespero o abandonou e ele se sentou mais ereto na sela, enquanto via os homens a postos a toda volta. Era dia, e até os fantasmas podiam ser mortos de dia.

Júlio estava no flanco direito dos veteranos, na vanguarda da corte Vêntulus. Três fileiras de cento e sessenta homens estavam com ele; seis centúrias de oitenta, com os veteranos na primeira e na terceira, e os lutadores mais fracos na segunda fileira, onde não poderiam hesitar ou correr. Com Gadítico e os homens da Accipiter, eles cobriam cerca de um quilômetro e meio de terra, silenciosos e imóveis. Não havia mais jogos. Cada um dos Lobos sabia que poderia estar morto antes que o sol chegasse ao alto, mas se mantinham sem medo. Todas as orações tinham sido feitas, e agora havia apenas a matança.

Fazia um frio cortante e alguns homens tremiam enquanto esperavam que a névoa se levantasse. Não falavam, e nem era necessário que os optios recém-nomeados batessem seu cajado em algum dos mais jovens para mantê-lo quieto. Todos pareciam sentir o momento, enquanto a névoa finalmente se movia com uma brisa revigorante. As cabeças se ergueram quase como cães diante de um cheiro, sabendo do efeito que essa visão causaria.

Alguns veteranos tinham desejado atacar enquanto a névoa ainda estava densa, mas Júlio disse que queria que o inimigo conhecesse o medo antes do ataque final, e eles tinham recebido as ordens sem questionar. Depois de três semanas de ataques destruidores ao acampamento, pareciam ter uma espécie de espanto reverente para com o jovem comandante que marchava ao lado. Ele parecia capaz de adivinhar cada movimento que Mitrídates faria e contrapô-lo brutalmente. Se Júlio dizia que estava na hora de um último golpe aberto para derrotar os gregos, eles marchariam aonde ele marchasse, sem reclamar.

Júlio examinou com curiosidade as fileiras de tendas, saboreando o momento. Imaginou quais das figuras apressadas seria o rei, mas não podia ter certeza. À medida que o sol iluminava o vale, a dúvida o incomodou um momento. Mesmo com as perdas e as deserções às centenas nas últimas noites, aquela ainda era uma gigantesca vastidão que fazia seu exército parecer pequeno. Mostrou os dentes ligeiramente, antecipando, empurrando as dúvidas para o lado e sabendo que tinha a medida deles. Muitas daquelas tendas estavam vazias.

Cada dia de espera fora uma agonia de indecisão para Júlio. Desertores capturados contavam histórias do moral despencando e da má organização. Ele sabia tudo sobre os oficiais, o equipamento e o apetite por batalha dos inimigos. A princípio ficara contente com a idéia dos ataques noturnos e de rasgar pedaços do exército até que Mitrídates perdesse a coragem e fugisse direto para as legiões que vinham do litoral. Mas as semanas tinham se passado sem sinal de que os gregos levantariam acampamento ou de que o apoio romano apareceria no horizonte.

No início da terceira semana Júlio tinha encarado a possibilidade de que as legiões talvez não viessem antes que Mitrídates saltasse de sua letargia defensiva e começasse a pensar como um verdadeiro comandante. Naquela noite, com as sentinelas gregas desertando e passando a apenas alguns metros de seus homens, sem saber, Júlio começou a planejar um ataque total.

Agora o grosso do exército grego estava se formando em grandes blocos com dez fileiras de profundidade, e Júlio assentiu sério, lembrando-se das aulas de seu velho tutor. Eles não poderiam trazer o número total de espadas contra sua linha ampla, mas as dez fileiras impediriam uma debandada enquanto o inimigo que os vinha matando interminavelmente no escuro os encarava finalmente na planície. Engoliu em seco dolorosamente enquanto examinava o terreno, esperando o momento perfeito para dar a ordem. Viu um homem alto saltar num cavalo e galopar para longe, e então centenas de arqueiros se formaram em unidades. Eles deixariam o ar preto com as flechas.

- São mil - sussurrou consigo mesmo.

Agora seus homens tinham escudos, muitos roubados dos gregos que eles haviam matado noite após noite. Mesmo assim, cada saraivada bem-sucedida derrubaria alguns, mesmo quando juntassem os escudos e se abrigassem embaixo,

- Soar o avanço. Depressa! - gritou para o comicen, que levantou uma velha trombeta e soprou a nota dupla.

As duas cortes avançaram como se fossem um só homem, batendo juntas na terra grega. Júlio olhou para a direita e a esquerda e riu selvagem ao ver os veteranos ajustar a fileira enquanto marchavam, quase sem perceber. Ninguém ficava para trás. Os velhos estavam famintos pelo tipo de ataque que entendiam quase tanto quanto Júlio, e agora sua impaciência finalmente podia ser liberada.

A princípio se aproximaram devagar. Júlio esperou que os arqueiros disparassem e quase se imobilizou quando milhares de compridas hastes pretas atravessaram o ar em sua direção. A mira era boa, mas os veteranos tinham enfrentado arqueiros em todas as terras romanas. Moviam-se sem pressa, agachados e com os membros junto do corpo, cada escudo tocando o do irmão ao lado. Aquilo formava uma parede impenetrável e as flechas batiam inúteis na madeira laminada com latão.

Por um momento, houve silêncio, então os veteranos se levantaram como se fossem um só, gritando loucamente. Os escudos estavam cheios de flechas cravadas, mas eles não tinham perdido um único homem. Adiantaram-se vinte passos rápidos e então o ar zumbiu de novo e eles se abaixaram de novo sob os escudos. Em algum lugar um romano gritou de dor, mas eles se adiantaram mais três vezes, perdendo apenas alguns corpos pálidos no campo atrás.

Estavam suficientemente perto para atacar. Júlio deu a ordem e a nota tripla soou ao longo da linha. Os Lobos irromperam numa corrida rápida e de repente estavam a apenas algumas dezenas de metros dos arqueiros e a nuvem preta ia passando por cima.

Os arqueiros gregos mantiveram a posição por tempo demais, desesperados para matar quem os havia ferido tanto. Sua primeira fila tentou se virar e fugir dos romanos que atacavam, mas não havia ordem, e os Lobos rugiram penetrando na confusão, transformando-a em terror enquanto eles lutavam para se afastar.

Júlio exultou quando a linha romana atravessou-os, abrindo caminho para dentro dos quadrados com habilidade sangrenta. As fileiras de gregos se dissolveram num caos cheio de gritos depois de apenas alguns segundos. Júlio ordenou que a Vêntulus os pressionasse, e Gadítico moveu seus homens ligeiramente para a esquerda, para aumentar o ângulo da debandada.

O pânico se espalhou como uma tempestade pelas fileiras gregas. Com seus homens gritando de terror e correndo da linha de frente, e com o ar cheio de gritos dos agonizantes, eles começaram a se afastar da fileira de Lobos, saindo de suas unidades e jogando as armas fora enquanto os oficiais gritavam inutilmente.

Um número cada vez maior de gregos começou a correr, e de repente havia um número suficiente fugindo para que até mesmo os mais corajosos se virassem e se juntassem à multidão em disparada.

Os Lobos atacavam num frenesi, os veteranos partindo o inimigo com toda a habilidade e experiência de uma centena de batalhas, e os mais jovens com a energia crua e a alegria da caçada que fazia suas mãos tremerem e os olhos enlouquecerem enquanto cortavam os gregos, com os membros vermelhos e terríveis na matança.

Os inimigos se espalharam em todas as direções. Por duas vezes os oficiais tentaram juntá-los e Júlio foi obrigado a apoiar a Accipiter para romper o maior grupo de homens. O nó de soldados apavorados se sustentou por menos de um minuto e então se rompeu de novo.

O acampamento se transformou numa carnificina de corpos pisoteados e equipamentos quebrados, e os veteranos começaram a se cansar, com os fracos doloridos depois de centenas de golpes.

Júlio ordenou a formação de serra para a Vêntulus, em que a fileira do meio se movia para a direita e a esquerda no sentido contrário às outras, para bloquear aberturas e sustentar os pontos mais fracos. Sua corte varreu o acampamento e parecia que estavam matando durante o dia inteiro.

Gadítico tinha avançado mais, e foram seus homens que alcançaram Mitrídates com os filhos, rodeados por quase mil homens. Eles pareciam agir como uma âncora para os desertores que corriam em volta, reduzindo a velocidade de sua fuga e puxando-os para se juntar ao último baluarte. Júlio ordenou a cunha para romper a linha, e seus homens abandonaram o cansaço uma última vez. Ele assumiu pessoalmente a segunda fileira, atrás de Cornix na ponta. Precisavam romper o último baluarte rapidamente. Aqueles homens não tinham fugido e estavam sob os olhos do rei, descansados e esperando.

A Vêntulus formou a cunha como se os guerreiros tivessem lutado juntos a vida inteira. Os escudos se levantaram para proteger as bordas da ponta de flecha e se chocaram contra as fileiras gregas, fazendo com que girassem trombando umas nas outras. Somente o homem da frente estava desprotegido, e Cornix caiu durante os primeiros golpes. Ele se levantou coberto de sangue e segurando a barriga com uma das mãos, enquanto a outra golpeava e golpeava até que ele caiu de novo, desta vez para não se levantar mais. Júlio assumiu a posição, com o gigante Ciro ao lado.

Podia ver Mitrídates movendo-se no meio dos homens, vindo em direção aos romanos com expressão maníaca. À medida que sentia, mais do que via, o impulso para a frente começar a diminuir, Júlio poderia ter comemorado enquanto o rei empurrava seus homens para o lado, querendo chegar até os romanos. Sabia que o rei grego deveria ter ficado para trás e que assim os romanos não iriam alcançá-lo. Em vez disso, Mitrídates estava rugin-do ordens, e os que estavam mais perto dele recuaram para lhe permitir a matança.

Era um homem enorme, enrolado numa pesada capa roxa. Não fez qualquer tentativa de se defender, mas baixou a espada com força terrível. Júlio se desviou, e seu golpe de resposta foi bloqueado com um estrondo de metal que entorpeceu seu braço. O homem era forte e rápido. Mais gregos caíam em volta enquanto os veteranos rugiam de novo e iam em frente, empurrando os guardas para trás e cortando-os com dezenas de golpes. Mitrídates parecia não notar enquanto a linha de batalha passava por ele e gritou ao girar a espada de novo num golpe maligno destinado ao peito de Júlio, fazendo o rapaz cambalear para trás, com a armadura amassada numa linha Os dois estavam ofegando de exaustão e fúria. Júlio pensou que uma de suas costelas havia estalado, mas agora Mitrídates estava bem atrás da fila da frente e Júlio soube que só precisava chamar e o rei seria cortado por todos os lados.

Com o rei sozinho e cercado, os guardas lutavam desesperadamente para alcançá-lo. Os veteranos se cansavam e caíam contra eles, com a força acabando. Mitrídates pareceu sentir isso.

- A mim, meus filhos! - gritou. - Venham a mim! - E os esforços dele se redobraram num frenesi.

Júlio se inclinou para trás para evitar um golpe e depois deu uma estocada rápida, rasgando o ombro com sua lâmina de gume amassado. Mitrídates cambaleou enquanto Ciro o golpeava no peito amplo, chocando-se contra ele numa explosão de força. O sangue do rei jorrou e ele largou a espada dos membros frouxos. Seus olhos encontraram os de Júlio por um momento, depois ele escorregou para a massa de lama e corpos. Júlio levantou a espada vermelha em triunfo, e a Accipiter acertou o flanco dos gregos, rompendo-o completamente e fazendo com que eles corressem com os últimos irmãos.

Não tinham óleo para queimar os corpos, por isso Júlio ordenou que fossem escavadas grandes valas na parte de trás do acampamento. Demorou uma semana para fazê-las de tamanho suficiente para os mortos de Mitrídates. Júlio tinha proibido comemorações, com tantos do exército derrotado ainda vivos. A ironia de ter estabelecido um perímetro armado no próprio acampamento que havia atacado por tanto tempo não lhe escapou, mas ele sabia que, com o carismático rei morto, havia pouca chance dos sobreviventes se juntarem para outro ataque. Esperava que a coragem deles tivesse sido destruída, mas ainda que os filhos de Mitrídates tivessem sido mortos no final, Gadítico achava que mais de quatro mil outros haviam escapado, e Júlio queria se afastar do vale assim que os últimos dos seus homens machucados tivessem se recuperado ou morrido.

Menos de quinhentos Lobos tinham sobrevivido ao ataque contra o acampamento, e a maioria foi perdida na última batalha ao redor do rei grego. Júlio mandou enterrá-los separadamente e ninguém reclamou do trabalho. Fizeram um funeral completo, que durou a maior parte de um dia, e as tochas fúnebres soltavam uma fedorenta fumaça preta que parecia adequada ao sacrifício.

Quando todos os mortos estavam enterrados e o acampamento livre dos destroços, ele escolheu os dez centuriões mais importantes para representar a voz de todos e ficou triste porque Cornix não tinha sobrevivido à luta para se juntar a eles, mas sabia que o velho guerreiro tinha escolhido o modo de morrer sem lamentações. Quertoro veio com os outros, e somente quando se sentaram juntos Júlio notou que Suetônio tinha se juntado a eles, apesar de não ter posto de comando. O braço do rapaz estava bastante enrolado com ataduras onde sofrera um corte, e a visão daquilo impediu que Júlio o mandasse embora. Ele tinha merecido o lugar, talvez, mas Júlio se perguntou se Suetônio gostara daquilo pelo menos a metade do que gostara dos ataques noturnos.

- Quero ir para o litoral e me encontrar de novo com Duro e Prax. Em algum lugar entre aqui e o mar deve haver uma legião, a não ser que o Senado tenha perdido a cabeça completamente. Mandaremos o corpo de Mitrídates para eles e vamos velejar para casa. Não há mais nada que nos segure aqui.

- O senhor vai debandar os homens? - perguntou Quertoro. Júlio olhou para ele e sorriu.

- Vou, mas no litoral. Há muitos sobreviventes do exército grego para que eu mande o nosso embora agora. Além disso, vários homens que eu trouxe à cidade de vocês morreram na luta, e eu tenho ouro para dividir entre os sobreviventes. Acho que seria justo dar uma parte para todos os que sobreviveram.

- E você vai tirar essa parte da sua metade? - perguntou Suetônio rapidamente.

- Não. Todos os resgates serão devolvidos aos donos de direito, como eu prometi. O que restar da metade será dividido entre os Lobos. Se você não gostar disso, sugiro que diga a eles. Diga que eles não merecem um pouquinho de ouro para levar de volta aos seus povoados, pelo que fizeram aqui.

Suetônio ficou quieto, com a testa franzida, e os veteranos o observaram com interesse. Ele não os encarou.

- De quanto ouro estamos falando? - perguntou Quertoro, interessado.

Júlio deu de ombros.

- Vinte, talvez trinta aurei para cada homem. Terei de calcular quando encontrar Duro.

- Esse homem está com todo esse ouro no navio dele - interveio um dos outros -, e o senhor espera que ele esteja lá?

- Ele deu a palavra. E eu dei a minha de que iria achá-lo e matá-lo se ele não a cumprisse. Ele vai estar. Agora quero todo mundo pronto para marchar dentro de uma hora. Já estou farto deste acampamento. Já estou farto da Grécia.

Em seguida se virou para Gadítico com uma expressão pensativa.

- Agora podemos ir para casa.

 

Acharam a primeira das duas legiões a apenas cento e trinta quilômetros terra adentro, sob o comando de Severo Lépido. No acampamento muito bem fortificado,.Júlio e Ciro entregaram o corpo de Mitrídates a Lépido, num esquife de madeira entalhada. Ciro permaneceu quieto enquanto eles punham o corpo numa mesa baixa numa tenda vazia, mas Júlio viu que os lábios dele estavam se movendo numa oração silenciosa, mostrando respeito pelo inimigo derrotado. Quando terminou, Ciro sentiu Júlio observan-do-o e devolveu o olhar sem embaraço.

- Ele era um homem corajoso - disse Ciro simplesmente, e Júlio ficou impressionado com a mudança nele desde que o conhecera num povoado minúsculo da costa africana.

- Você reza aos deuses romanos? - perguntou Júlio. O grandalhão deu de ombros.

- Eles ainda não me conhecem. Quando chegar a Roma, falarei com eles. O legado romano mandou uma escolta de soldados para guiar os Lobos até o mar. Júlio não protestou contra a decisão, mas a escolta mais parecia um destacamento para levar prisioneiros do que uma garantia de passagem livre.

Duro estava a bordo do navio quando finalmente chegaram ao cais e o chamaram. O comerciante não pareceu muito feliz por eles terem sobrevivido, mas rapidamente se abrandou quando Júlio lhe disse que ele receberia pelo tempo perdido, além da passagem de volta até Brundísio, o porto mais próximo na Roma continental.

Era estranho estar de volta a um navio, e Júlio gastou parte de sua nova riqueza comprando cada barril de vinho do porto para uma última comemoração. Apesar das objeções de Suetônio, a riqueza de Celso foi dividida entre os Lobos sobreviventes, e muitos voltariam para casa ricos segundo seus padrões anteriores, mesmo depois de uma cara viagem no conforto de uma caravana ou montados a cavalo.

Os veteranos pediram para ver Júlio em particular uma última vez, antes de partirem para casa no leste. Ele tinha lhes oferecido postos em Roma, mas eles apenas riram e olharam uns para os outros. Era difícil tentar homens da idade deles que tinham ouro nas bolsas, e Júlio realmente não esperava que fossem. Quertoro agradeceu em nome de todos e eles o saudaram, enchendo o navio com o barulho. Depois foram embora.

Duro pegou a maré da manhã sem fanfarras nem anúncios. Todos os jovens sobreviventes dos Lobos tinham permanecido, e eles gostaram da curta experiência como marinheiros, com o entusiasmo fácil da juventude. O mar estava calmo e se passaram apenas algumas curtas semanas até atracarem no porto de Brundísio e descerem em terra.

Os que tinham estado juntos desde o início se entreolharam atordoados por longos instantes enquanto três centúrias dos Lobos se formavam numa coluna para marchar até Roma. Recém-promovido ao comando de cinqüenta homens, Ciro alinhou a fileira e ficou maravilhado enquanto pensava que finalmente veria a cidade que o havia convocado. Estremeceu, girando os ombros. Fazia mais frio do que em sua minúscula fazenda na costa da África, mas mesmo assim ele sentia ter direito àquela terra. Sentia que os fantasmas de sua linhagem tinham vindo receber o filho e estavam orgulhosos.

Júlio se ajoelhou e beijou o chão poeirento com lágrimas nos olhos, emocionado demais para falar. Tinha perdido amigos e sofrido ferimentos que carregaria pelo resto da vida, mas Sila estava morto, e ele estava em casa.

 

Cato passou a mão gorducha pela testa. Mesmo com o frio do inverno ainda agarrando Roma, o prédio do Senado estava cheio e o ar pesado com o calor de trezentos membros da nobilitas apinhados no espaço pequeno. Cato levantou a mão pedindo silêncio e esperou com paciência enquanto a balbúrdia diminuía lentamente.

- Esse tal de César, esse rapaz imprudente, demonstrou apenas desdém pela vontade do Senado. Agindo sozinho, causou a morte de centenas de cidadãos romanos, muitos deles veteranos de nossas legiões. Pelo que entendo, ele assumiu uma autoridade que nunca recebeu e se comportou totalmente como eu esperaria de um sobrinho de Mário. Convoco o corpo do Senado para censurar esse pequeno garnizé: que demonstremos nossa repugnância diante de seu desperdício de vidas romanas e de sua desconsideração por nossa autoridade.

Cato voltou ao seu lugar com um grunhido satisfeito, e o mestre dos debates se levantou, parecendo relaxado. Era um homem grande e espalhafatoso, com pouca paciência com os tolos. Ainda que sua autoridade fosse nominal, ele parecia gostar de controlar os homens mais poderosos do Senado.

Cina tinha-se levantado diante das palavras de Cato, o rosto vermelho de raiva. O mestre dos debates assentiu para que ele falasse, e Cina varreu as fileiras com seu olhar, prendendo a atenção de todos.

- Como muitos de vocês sabem, sou parente de César através do casamento de minha filha - começou. - Não vim aqui para falar em sua defesa, e sim participar do que esperava fossem nossos parabéns justos e adequados.

Uma onda de murmúrios da parte dos que apoiavam Cato o impediu de ir em frente por um momento, mas ele esperou com paciência gélida até que pudesse fazer-se ouvir novamente.

- Será que não deveríamos dar os parabéns a um homem que derrubou um dos inimigos de Roma? Mitrídates está morto, seu exército disperso e alguns de vocês falam em censura? Não dá para acreditar. Em vez de contar a vida dos homens perdidos numa batalha contra uma força maior, pensem nos inocentes que vivem porque Mitrídates foi esmagado. Quantos de nossos cidadãos teriam morrido quando nossas legiões finalmente tivessem se esgueirado suficientemente perto para lutar contra o inimigo? Pelos relatos, parece que eles talvez nunca encontrariam as forças gregas!

Outra tempestade de murmúrios irrompeu, com zombarias e gritos erguendo-se. Muitos dos senadores de ambos os lados se levantaram para falar e se remexeram enquanto esperavam. O mestre dos debates captou o olhar de Cina e levantou as sobrancelhas interrogativamente. Cina cedeu de má vontade e se sentou de novo.

O senador Prando estava de pé ao lado de Cato. Era uma figura alta e magra perto do patrono corpulento, e pigarreou ligeiramente quando recebeu o sinal para falar.

- Meu filho Suetônio foi um dos seqüestrados pelos piratas com esse tal de César. Tenho os relatórios dele, para basear minhas opiniões, e eles mostram o perigo desse romano para tudo que defendemos. Ele age sem qualquer tipo de consulta. Corre para o conflito sem pensar em outros métodos para resolver um problema. Sua primeira e última resposta a tudo é o ataque cego. Tenho detalhes de execuções e torturas realizadas em seu nome, não sancionadas pelo Senado. Ele obrigou soldados velhos a entrar em batalha em troca de pouco mais do que glória pessoal. Devo concordar com o honrado Cato, esse César deveria ser convocado aqui para uma justa punição por seus atos. Não devemos nos esquecer das alegações de pirataria que foram feitas contra ele pelo questor Pravitas. Se ele for elogiado, como alguns acham que seria correto, poderíamos muito bem criar outro Mário e com o tempo vir a lamentar nossa generosidade.

Cato empurrou de pé um homem de aparência nervosa. O senador Bíbilo quase tropeçou ao se levantar sob a pressão das mãos pesadas. Seu rosto era pálido e gotas de suor nervoso brotaram na testa. Rompendo o costume, ele começou a falar antes de ter recebido permissão e suas primeiras palavras se perderam nas vaias de desprezo que se seguiram.

- ... deveríamos considerar a retirada do posto de senador - disse ele, engolindo a saliva da garganta. - Ou possivelmente um banimento de qualquer posto no exército. Deixem que ele seja um mercador com o ouro saqueado que ele trouxe de volta.

Enquanto falava, o mestre dos debates olhou-o com expressão pétrea, e um breve gesto fez Bíbilo sentar-se de novo, com o rosto vermelho de embaraço. O mestre dos debates estava sério e se virou para recuperar o equilíbrio com suas escolhas. Crasso teve permissão de falar. Ele assentiu agradecendo e olhou calmamente as fileiras apinhadas, até haver de novo um silêncio adequado.

- Como vocês revelam seus medos secretos! - disse rispidamente. - Outro Mário, dizem vocês. Sobrinho dele! Como devemos tremer! Isso me deixa enojado. Vocês achavam que nossa preciosa República poderia sobreviver sem poder militar? Quantos de vocês comandaram homens em batalhas bem-sucedidas?

Seu olhar varreu as fileiras, sabendo que Cato tinha servido apenas os dois anos mínimos para garantir a escada política. Outras cabeças assentiram enquanto Cato continha um bocejo e desviava o olhar.

- Temos um rapaz que sabe liderar soldados - continuou Crasso. - Ele juntou um pequeno exército e derrotou uma força oito ou nove vezes maior. Certo, agiu sem primeiro buscar nossa aprovação, mas não poderia ter esperado um ou dois anos até que finalmente terminássemos de discutir!

O mestre dos debates atraiu seu olhar, mas Crasso o ignorou.

- Não, o que causa um despeito tão venenoso em alguns de nós é o fato vergonhoso de que esse rapaz demonstrou que nossa escolha de comandantes de legiões foi errada. Seu sucesso é prova de que não agimos com energia e velocidade suficientes para defender nossas posses na Grécia.

Isso é que incomoda esses senhores. Deixem-me lembrá-los de que ele recebeu a coroa de carvalho pela bravura em Mitilene. É um soldado talentoso e leal a Roma, e para nós seria vergonha não reconhecer isso publicamente Ouvi Bíbilo murmurar sobre tirar seu posto de legião e me pergunto: que vitórias Bíbilo nos trouxe? Ou Cato? E Prando sugere pirataria quando sabe que as acusações foram provadas como idiotices quando todos os fatos vieram à luz. Não é de espantar que ele toque superficialmente um assunto tão difícil quando seu próprio filho foi um dos acusados! Deveríamos cobrir César de homenagens pelo que ele fez.

- Chega, Crasso - disse sério o mestre dos debates, satisfeito por ter permitido tempo suficiente para reparar a fala brusca de Bíbilo. - Os dois lados do debate falaram. Podemos partir para a votação.

Os que ainda estavam de pé se sentaram com relutância, olhando o salão em volta e tentando avaliar o resultado antes do início. Antes que a votação pudesse começar, as enormes portas de bronze da câmara se abriram e Pompeu entrou, causando uma nova agitação de interesse. Desde a morte da filha, não fora visto perto do fórum ou do Senado, e havia muitas perguntas sussurradas sobre sua tragédia e o que resultaria dela.

O mestre dos debates sinalizou para Pompeu, indicando um lugar para ele nas fileiras. Em vez de se sentar, Pompeu foi até seu lugar e ficou de pé, esperando ser reconhecido.

Suspirando, o mestre dos debates levantou a mão para ele. Todo o barulho cessou, enquanto cada olhar se fixava no recém-chegado.

Cato, em particular, observava-o com uma intensidade brilhante, absorvendo cada detalhe. As cinzas da filha não podiam estar há muito tempo enterradas, mas nenhum sinal desse sofrimento aparecia em seu rosto. Ele parecia calmo enquanto olhava os bancos apinhados.

- Desculpem minhas ausências e meu atraso, senadores. Eu enterrei minha filha - disse ele em voz baixa, sem um traço de insegurança. - Faço uma promessa, diante de vocês, que os responsáveis lamentarão o uso de inocentes nos jogos de poder, mas este é um problema para outro dia.

Ele falava em tom razoável, mas os que estavam perto podiam ver cada músculo dos ombros rígido, como se mal conseguisse conter uma enorme fúria.

- Qual é a votação desta manhã? - perguntou então ao mestre dos debates.

- Votamos para decidir entre censurar ou aprovar os atos de Júlio César na Grécia.

- Sei. Qual é a posição de Cato? - perguntou Pompeu, sem olhar para a enorme figura esparramada que se empertigou subitamente.

O mestre dos debates arriscou um olhar para Cato.

- Argumentou a favor da censura - respondeu, perplexo. Pompeu juntou as mãos nas costas, e os que estavam perto puderam ver a brancura nos nós dos dedos enquanto ele falava.

- Então votarei contra.

Por um longo momento, Pompeu sustentou o olhar de Cato no silêncio, até que todo mundo teve consciência da nova inimizade entre eles. Sussurros começaram enquanto os mais velhos se empertigavam com interesse renovado.

- Além do mais, convoco os que me apoiam a votar contra ele. Convoco cada voto de quem me deve algo. Descarreguem-no aqui e limpem a ficha comigo.

O Senado irrompeu em conversas enquanto eles discutiam as implicações desse gesto. Era praticamente uma declaração de guerra, e Cato apertou a boca carnuda numa fina linha de irritação enquanto o mestre dos debates anunciava a votação. Ao cobrar todos os seus favores ao mesmo tempo, Pompeu estava jogando fora anos de arranjos e alianças cuidadosas, simplesmente para mostrar seu desprezo em público.

Crasso empalideceu ligeiramente. Era uma idiotice o que Pompeu tinha feito, mas achava que entendia. Ninguém ali podia duvidar de que Pompeu identificara sutilmente o responsável pelo assassinato de sua filha. Cato perderia muito de seu poder enquanto os que estavam ao redor avaliavam essa nova ameaça e decidiam se deviam se distanciar. Ele suspirou. Pelo menos a votação seria vencida, e Cato seria prejudicado pela decisão. Ainda que os números refletissem muitas dívidas antigas para com Pompeu, ainda era difícil o senador gordo se manter de pé sozinho com centenas de seus colegas se voltando contra ele

A votação foi rápida, e Pompeu retomou seu lugar para participar da discussão sobre o posto de legião que Júlio receberia em sua volta ao Senado.

Com a maioria dos senadores querendo sair do prédio para o ar fresco ela foi surpreendentemente rápida, e Cato mal tomou parte, perplexo e imóvel pela humilhação imposta.

Enquanto passavam pelas portas de bronze, Cato fez uma careta e inclinou a cabeça na direção de Pompeu, reconhecendo a vitória. Pompeu o ignorou e saiu rapidamente para casa, sem falar com ninguém.

Tubruk subiu a escada interna da muralha da propriedade, agradecendo o aviso precoce dado pelos escravos dos campos. Esforçou-se por ver os detalhes da coluna que marchava pela estrada vindo em sua direção.

- Parecem duas ou três centúrias - gritou para Cornélia, que tinha saído das construções ao ouvir o chamado. - Não dá para ver os estandartes, mas estão com armadura completa. Pode ser parte da guarnição romana.

- Vai acionar os homens? - perguntou Cornélia, nervosa.

A princípio Tubruk não respondeu, atento ao exame da força que se aproximava. Era bem disciplinada e estava com armaduras, mas a ausência de estandartes o preocupava imensamente. A morte da filha de Pompeu trouxera de volta às velhas famílias de Roma a tensão que estivera ausente desde a morte de Sila. Se um senador tão poderoso podia sofrer um ataque em casa, ninguém estava em segurança. Tubruk hesitou. Se convocasse Brutus e seus soldados para guardar o portão, isso poderia ser considerado uma provocação ou um insulto a uma força legítima. Segurou a pedra dura da muralha enquanto se decidia. Preferia ofender alguém a ficar vulnerável, e as centúrias que se aproximavam podiam ser compostas de assassinos com todas as identificações de legião removidas.

- Chame Brutus. Diga que preciso dos homens dele aqui agora! - gritou Tubruk.

Cornélia abandonou a dignidade e correu de volta para as construções.

Quando a coluna estava a menos de mil passos, Brutus pôs seus soldados em forma junto ao portão, prontos para o ataque. Havia apenas vinte homens com ele, e Tubruk desejou que tivessem espaço para mais, se bem que havia rido para o jovem comandante que a princípio viera para a propriedade no campo com tantos assim.

Brutus sentiu a velha antecipação apertando as entranhas. A criança que havia nele desejava não ter deixado Rênio no alojamento da cidade, mas esta foi uma fraqueza momentânea. Enquanto desembainhava o gládio, a confiança cresceu e seus homens reagiram, com a tensão dando lugar a sorrisos rígidos. Todos podiam ouvir o barulho de soldados movendo-se mais perto, mas não havia um traço de medo.

Uma pequena figura saiu correndo dos estábulos e escorregou parando quase aos pés de Brutus.

- Você não vem conosco - disse Brutus rispidamente, antes que a pergunta viesse. Sabia muito pouco sobre o moleque de rua que Tubruk tinha resgatado e naquele momento não tinha paciência para discutir. Otaviano abriu a boca e Brutus rosnou uma ordem para ele, irritado pela visão de uma adaga brilhante na mão do menino. - Saia daqui.

Otaviano se imobilizou, com os olhos arregalados, depois girou nos calcanhares e se afastou batendo os pés, sem dizer palavra. Brutus o ignorou, observando Tubruk em busca de novos sinais do que estava acontecendo do lado de fora. Era frustrante estar esperando às cegas, mas sabia que os soldados enviados pelos senadores não deveriam ser recebidos com espadas à mostra. Certamente se seguiria um derramamento de sangue, mesmo que a missão original fosse inocente.

Em cima da muralha Tubruk forçou a vista à medida que o exército se aproximava, marchando com firmeza ao longo da estrada. Expulsando o ar profundamente, toda a tensão o abandonou num instante, sem ser vista pelos que estavam embaixo.

- Marco Brutus - gritou ele para baixo. - Peça a seus homens que abram o portão e saiam para recebê-los.

Brutus o olhou interrogativamente.

- Tem certeza? Se forem hostis, poderemos nos defender melhor de dentro das muralhas.

- Abra o portão - respondeu Tubruk em voz baixa, com uma expressão curiosa no rosto.

Brutus encolheu os ombros e deu a ordem aos homens da Primogênita, que puxaram as espadas enquanto se adiantavam. Seu coração martelava e ele sentiu a alegria selvagem que vinha da certeza. Não havia ninguém vivo que pudesse vencê-lo com uma espada, desde o dia com Rênio, naquele mesmo pátio, há muitos anos.

- Certo, seu velho demônio, mas se eu for morto estarei esperando por você quando chegar sua hora.

Júlio viu os homens armados saírem do portão e se enrijeceu. O que tinha acontecido?

- Preparar armas! - disse rispidamente, e seus homens perderam num instante as expressões animadas.

O que parecera um retorno vitorioso estava de repente cheio de perigo. Caberá levou um susto com a ordem, examinando a força desconhecida e franzindo a vista. Estendeu a mão para atrair a atenção de Júlio, mas pensou melhor e riu sozinho, levantando a adaga e gesticulando com fúria. Estava se divertindo tremendamente, mas seu humor não era compartilhado pelos soldados em volta. Estes haviam esperado as boas-vindas para um herói, depois de muitos meses difíceis de viagens e matanças. Suas expressões eram selvagens quando as espadas saíram de novo.

- Formação de linha! - ordenou Júlio, fervilhando.

Se sua casa fora tomada, ele iria destruí-los, sem deixar ninguém vivo. O coração ardia por sua mãe e por Tubruk.

Passou um olhar profissional pelos soldados que se arrumavam diante das muralhas. Não eram mais de vinte, mas podia haver outros escondidos dentro. Legionários. Moviam-se bem, mas ele confiaria em seus Lobos contra qualquer outro soldado em qualquer lugar e tinham a vantagem do número. Afastou todos os pensamentos na família e se preparou para ordenar o ataque.

- Doce Marte! Eles vão atacar! - exclamou Brutus enquanto via a coluna passar para uma formação ofensiva. Ao ver o número de homens, sentiu-se tentado a ordenar que seus soldados voltassem à segurança do lado de dentro, mas não haveria tempo para fechar os portões, e o inimigo iria despedaçá-los enquanto eles recuavam.

- Feche o portão, Tubruk! - gritou ele.

O velho idiota tinha avaliado pessimamente a ameaça e agora havia um preço a ser pago.

Para o orgulho de Brutus, os homens da Primogênita não hesitaram enquanto entendiam o fato da destruição inevitável. Assumiram posição perto da muralha e prepararam as armas, desamarrando as lanças para atirar quando viesse o ataque. Cada homem carregava quatro lanças, e muitos inimigos cairiam diante delas antes de estarem suficientemente perto para usar espadas.

- Firmes... - gritou Brutus acima da cabeça de seus homens. Só mais alguns passos e as linhas que avançavam estariam ao alcance.

Sem aviso, a ordem para parar ressoou, e as fileiras opostas estacaram disciplinadas. Brutus levantou as sobrancelhas, surpreso, examinando os rostos do inimigo. Viu Júlio e subitamente riu alto, para diversão dos que estavam em volta.

- Descansar! - ordenou à sua vintena, e ficou olhando-os amarrar de novo as lanças e embainhar as espadas. Quando tudo estava de volta no lugar, marchou com eles na direção dos soldados imóveis, rindo.

Júlio falou primeiro:

- Faz alguma idéia de como cheguei perto de acabar com vocês? - perguntou, rindo.

- Eu estava pensando a mesma coisa. Meus homens teriam atravessado os seus com algumas lanças antes de vocês se aproximarem dez passos. Continua com sorte, pelo que vejo.

- Eu reconheci você - exclamou Caberá, presunçosamente. Brutus gritou ao ver o velho ainda vivo. Os três se abraçaram, para a total confusão das linhas de batalha ao redor. Júlio se afastou primeiro e notou as três flechas cruzadas no peitoral de Brutus.

- Deuses! É a Primogênita, não é? Brutus assentiu, com os olhos luminosos.

- Tenho o comando, ainda que estejamos com uma certa carência de homens por enquanto.

- Carência de quantos?

- Uns quatro mil, mas estou trabalhando nisso. Júlio assobiou baixinho.

- Temos muito a conversar. Tubruk sabe que voltei?

Brutus olhou por cima do ombro, para o muro branco da propriedade No topo a figura do administrador levantou um braço cumprimentando Caberá acenou de volta entusiasmado.

- Sim, sabe - respondeu Brutus, dando um sorriso torto.

- Terei de arranjar alojamento para os meus homens na cidade - disse Júlio. - Eles podem montar tendas na propriedade enquanto cuido de algumas coisas, mas preciso de um lugar permanente, além de instalações de treinamento.

- Conheço o lugar e o homem perfeito para treiná-los - respondeu Brutus. - Rênio voltou comigo.

- Vou precisar dele... e de você - respondeu Júlio, já planejando. Brutus sorriu. Seu coração ficou leve ao olhar para o velho amigo. Havia novas cicatrizes no rosto dele, que lhe davam um ar mais áspero do que recordava, mas era o mesmo homem. Num impulso, estendeu o braço e Júlio segurou-o com força, apanhado na mesma emoção.

- Minha mulher está em segurança? - perguntou Júlio, examinando o rosto do velho amigo em busca de notícias.

- Ela está aqui, com sua filha.

- Eu tenho uma filha? - Um sorriso idiota se esparramou pelo rosto dele. - Por que estamos aqui parados? Uma filha! Venha!

Ele gritou uma ordem rápida para montar acampamento ao redor das muralhas e partiu depressa, com Brutus marchando com sua vintena atrás, a mente num redemoinho. Havia muita coisa para contar a Júlio. O assassinato de Sila, da filha de Pompeu, as fofocas do Senado que sua mãe lhe contava. Júlio teria de conhecer Servília! Com Júlio de volta, parecia que o mundo estava de novo no lugar, e Brutus sentiu as preocupações irem embora. Tendo o velho amigo para ajudar, ele colocaria a Primogênita em sua força antiga, começando com os homens que Júlio tinha trazido. Júlio fazia os problemas parecerem fáceis e entenderia por que a "Legião Traidora" tinha de renascer.

Brutus riu ao encarar Tubruk, que tinha esperado por ele dentro do portão, com expressão divertida.

- Você tem bons olhos, para um homem da sua idade - disse ele ao velho gladiador.

Tubruk deu um risinho.

- Um soldado presta atenção aos detalhes, como em quem é o comandante - disse, animado.

Brutus descartou o embaraço. -- Para onde Júlio foi correndo?

- Ele está com a mulher e a filha, garoto. Dê-lhe um tempo junto delas. Brutus franziu a testa ligeiramente.

- Claro. Vou levar meus homens de volta ao alojamento da cidade e passar a noite lá. Diga a ele onde estou.

- Eu não quis dizer... Você não precisa ir, garoto - disse Tubruk rapidamente.

Brutus balançou a cabeça.

- Não. Você está certo. Este é um momento para ele estar com a família. Eu o verei amanhã.

Em seguida se virou rigidamente e ordenou que os homens fizessem uma coluna de marcha saindo pelo portão.

Caberá andava pelo pátio da propriedade, rindo para tudo.

- Tubruk! - gritou. -Vai nos alimentar bem, não é? Faz muito tempo que não tenho um bom vinho e aqueles pequenos pratos civilizados, dos quais vocês, romanos, têm tanto orgulho. Quer que eu veja o cozinheiro? Eu gostava do sujeito, era um bom cantor. Você está bem?

Tubruk perdeu o franzido na testa enquanto Brutus marchava para longe. Era impossível não se emocionar com a onda de entusiasmo que Caberá parecia levar aonde ia. Tubruk sentira falta do velho, como todos os outros, e desceu a escada para cumprimentá-lo.

Caberá viu o velho gladiador olhar para Brutus e lhe deu um tapinha no ombro.

- Deixe o garoto ir. Ele sempre foi melindroso, lembra? Os dois serão como irmãos de novo amanhã, mas primeiro Júlio tem de ficar a par de muita coisa.

Tubruk soprou o ar dos pulmões e segurou os ombros magros do curandeiro, com o entusiasmo se acendendo de novo.

- O cozinheiro vai desesperar quando vir quantos terá de alimentar, mas prometo que será melhor do que as rações às quais vocês estavam acostumados.

- Pode mirar bem mais alto do que isso - respondeu Caberá, sério

Cornélia se virou depressa ao escutar passos correndo. Por um segundo não reconheceu o oficial ali parado, bronzeado e magro das viagens. Então o rosto dele se iluminou de prazer e ele se adiantou para envolvê-la com os braços Ela o abraçou com força, sentindo o cheiro de sua pele e rindo quando ele a levantou na ponta dos pés.

- Faz muito tempo que estou sem você - disse Júlio, com os olhos brilhando por cima dos dela, fazendo o ar ser expulso dos seus pulmões. As costelas de Cornélia doíam quando ele a soltou, mas ela não se incomodou.

Por longo tempo, Júlio conseguiu esquecer tudo que não fosse a bela mulher em seus braços. Finalmente colocou-a no chão e deu um passo atrás, segurando sua mão como se não quisesse deixá-la ficar longe de novo.

- Você continua estupenda, mulher - disse ele. - E ouvi dizer que temos uma filha.

Cornélia franziu os lábios, irritada.

- Queria que fosse eu a lhe contar. Clódia, traga-a - gritou, e a aia entrou suficientemente rápido para deixar óbvio que estivera parada do lado de fora, esperando que eles terminassem.

A menininha olhou em volta com interesse enquanto era trazida nos braços de Clódia até os pais. Seus olhos tinham o mesmo castanho suave da mãe, mas o cabelo era escuro como o de Júlio. Ele sorriu para a criança e ela riu de volta, fazendo covinhas nas bochechas.

- Ela está com quase dois anos, e é o terror da casa. Já sabe um monte de palavras quando não está tímida demais - disse Cornélia com orgulho, pegando-a com Clódia.

Júlio abraçou as duas e fez uma pressão suave.

- Eu sonhava que via você de novo nos piores momentos. Nem sabia que estava grávida quando fui embora - disse quando soltou-as. - Ela já anda?

Clódia e Cornélia assentiram e sorriram uma para a outra. Cornélia pôs a filha no chão e eles ficaram olhando-a trotar pela sala, parando para examinar tudo que encontrava.

- Eu lhe dei o nome de Júlia, por sua causa. Não sabia se ia voltar, e... Os olhos de Cornélia se encheram de lágrimas e Júlio segurou-a com força de novo.

- Certo, mulher, eu estou em casa. Isto é o fim.

- As coisas ficaram... difíceis durante um tempo. Tubruk teve de vender parte das terras para pagar o resgate.

Ela hesitou antes de contar tudo. Sila estava morto, graças a todos os deuses misericordiosos. Só iria magoar Júlio o conhecimento do que ela sofrera nas mãos dele. Alertaria Tubruk a não dizer nada.

- Tubruk vendeu parte das terras? - disse Júlio, surpreso. - Eu esperava... não, não importa. Eu as terei de volta. Quero saber de tudo que aconteceu na cidade desde que fui embora, mas primeiro terei de tomar um longo banho e trocar de roupa. Viemos do litoral direto para cá, sem entrar na cidade. - Ele levantou a mão para acariciar o cabelo dela, e Cornélia estremeceu ligeiramente ao toque. - Tenho uma surpresa para você - disse ele, chamando seus homens.

Cornélia esperou pacientemente com Clódia e a filha enquanto os homens de Júlio traziam pacotes, empilhando-os no centro da sala. Seu marido ainda era o mesmo redemoinho de energia que ela recordava. Ele mandou os serviçais mostrarem aos homens o caminho até os depósitos de vinho, para pegarem o quanto precisassem. Outros foram despachados numa dúzia de tarefas e a casa entrou numa agitação ao redor. Por fim, ele fechou a porta e chamou Cornélia para perto dos sacos de couro.

Ela e Clódia ofegaram involuntariamente ao ver o brilho das moedas de ouro dentro enquanto ele abria as abas. Ele riu de prazer e mostrou mais e mais sacos, cheios de barras ou moedas de prata e ouro.

- Todo o resgate e quatro vezes mais - disse animado enquanto amarrava de novo os sacos. - Vamos comprar nossas terras de volta.

Cornélia queria perguntar onde ele havia encontrado tamanha riqueza, mas enquanto seu olhar viajava pelas cicatrizes brancas nos braços morenos e a outra mais profunda na testa, ficou quieta, Ele pagara caro por aquilo.

- Papá? - disse uma vozinha, e Júlio riu ao achar a figurinha de mãos levantadas querendo colo.

- Sim, minha querida. Eu sou o seu pai, que vim dos navios para casa. Agora estou querendo um belo banho e uma boa refeição antes de dormir. A idéia de estar na minha cama é um prazer que mal pode ser descrito.

Sua filha riu ao ouvir as palavras e ele a abraçou.

- Devagar! Ela não é um dos seus soldados, você sabe - disse Clódia estendendo a mão para pegá-la.

Júlio sentiu uma pontada quando a criança saiu de seus braços e suspirou de satisfação ao olhar para todas elas.

- Há muita coisa a fazer, querida - disse à mulher.

Impaciente demais para esperar, Júlio chamou Tubruk para dar os informes enquanto se lavava para tirar o pó e a sujeira da viagem. A água quente ficou de um cinza-escuro depois de instantes esfregando-se, e o calor fez seu coração bater forte afastando parte do cansaço.

Tubruk ficou na extremidade da piscina estreita e recitou a situação financeira da propriedade nos últimos três anos, como fizera antigamente com o pai de Júlio. Quando ficou finalmente limpo, Júlio pareceu mais jovem do que o guerreiro moreno que tinha surgido na frente da coluna de homens. Seus olhos eram de um azul lavado, e quando o jorro de energia da água quente se esvaiu ele mal conseguia ficar de pé para ouvir.

Antes que o rapaz caísse no sono na piscina, Tubruk lhe entregou um roupão macio e toalhas, e o deixou. Seu passo era leve andando pelos corredores, ouvindo as canções dos soldados bêbados lá fora. Pela primeira vez desde a morte de Sila, a culpa que o assolava pela participação pareceu nunca ter existido. Pensou que contaria a Júlio quando todos os negócios da volta a Roma fossem resolvidos e as coisas estivessem calmas de novo. O assassinato fora cometido em nome de Júlio, afinal, e se ele ficasse sabendo Tubruk poderia mandar presentes anônimos para a família de Casavério, de Ferco e para os pais do jovem soldado que o havia detido no portão. Especialmente Ferco, cuja família ficara quase na miséria sem ele. Tubruk lhes devia tudo, pela coragem do homem, e sabia que Júlio sentiria a mesma coisa.

Passou pela porta de Aurélia e ouviu um choro baixo vindo de dentro. Hesitou. Júlio estava cansado demais para se levantar e ainda não perguntara pela mãe. Tubruk só queria ir para a cama depois de um dia longo, mas suspirou e entrou.

 

O mensageiro do Senado chegou ao amanhecer do dia seguinte. Tubruk demorou algum tempo para acordar Júlio e, quando este finalmente recebeu o correio dos senadores, ainda não estava totalmente alerta. Depois de tantos meses de tensão, aquela única noite em casa fizera pouco para retirar a exaustão que ia até os ossos.

Bocejando, passou a mão pelo cabelo e sorriu remelento para o rapaz da cidade.

- Sou Júlio César. Qual é a mensagem?

- O Senado requer seu comparecimento a um conselho integral ao meio-dia de hoje, senhor - disse o mensageiro rapidamente.

Júlio piscou.

- Só isso? - perguntou em tom chapado. O mensageiro se remexeu sem jeito.

- Esta é a mensagem oficial, senhor. Sei um pouco mais, pelas fofocas dos mensageiros.

- Tubruk? - disse Júlio enquanto o administrador entregava uma moeda de prata ao correio. - Então? - perguntou Júlio quando a moeda tinha desaparecido num bolso oculto.

O mensageiro sorriu.

- Eles dizem que o senhor receberá o posto de tribuno pelo trabalh feito na Grécia.

- Tribuno? - Júlio olhou para Tubruk, que deu de ombros.

- É um degrau na escada - respondeu o administrador calmamente indicando o mensageiro com os olhos. Júlio entendeu e dispensou o para voltar à cidade.

Quando estavam a sós, Tubruk lhe deu um tapa nas costas.

- Parabéns. Agora vai contar como mereceu isso? Ao contrário do Senado, não tenho mensageiros para mandar correndo a todo lugar. Só ouvi dizer que derrotou Mitrídates e um exército vinte vezes maior do que o seu

Júlio deu um riso surpreso.

- Na semana que vem será trinta vezes maior, segundo os fofoqueiros de Roma. Talvez eu não deva corrigi-los - disse com um riso torto. - Venha dar uma volta comigo, e eu lhe conto os detalhes. Quero ver onde fica essa nova divisa das terras.

Ele viu Tubruk franzir a testa subitamente e sorriu para despreocupá-lo.

- Fiquei surpreso quando Cornélia me contou. Nunca achei que você venderia a terra.

- Era isso ou mandar o resgate a menos, garoto, e só há um filho nesta casa.

Júlio agarrou o ombro dele num afeto súbito.

- Eu sei, só o estou provocando. Foi a coisa certa, e tenho fundos para comprar de volta.

- Vendi ao pai de Suetônio - disse Tubruk, sério. Júlio parou enquanto absorvia isso.

- Ele deve saber que foi para o resgate. Afinal, ele também teve de pagar pelo filho. Conseguiu um bom preço?

Tubruk respondeu com expressão dolorida.

- Na verdade, não. Ele barganhou pesado, e tive de abrir mão de mais do que queria. Tenho certeza que ele considerou um bom negócio, mas foi..-- ele franziu o rosto como se uma coisa amarga tivesse entrado na boca - vergonhoso.

Júlio respirou fundo.

- Mostre o quanto perdemos e depois vamos pensar num modo de fazer o velho me devolver. Se for parecido com o filho, não vai ser fácil. Quero estar de volta para quando minha mãe acordar, Tubruk. Tenho... muita coisa a contar a ela.

Alguma coisa impediu Júlio de contar a Tubruk sobre o ferimento na cabeça e os ataques que vieram depois. Em parte era vergonha pela falta de compreensão que tinha demonstrado com a mãe no correr dos anos, coisa que ele sabia que tinha de consertar. Mais do que isso, não queria ver pena nos olhos do velho gladiador. Não achava que suportaria.

Juntos saíram da propriedade e subiram o morro até a floresta que Júlio tinha percorrido na infância, Tubruk ouvindo Júlio contar tudo que acontecera nos anos em que esteve longe da cidade.

A nova divisa era uma sólida cerca de madeira atravessando o caminho onde Júlio se lembrava de ter cavado uma armadilha de lobos para Suetônio havia anos. A visão daquilo numa terra que fora de sua família durante gerações o fez querer derrubá-la, mas, em vez disso, se encostou nela, imerso em pensamentos.

- Tenho ouro suficiente para oferecer muito mais do que a terra vale, mas isso me deixa com um nó na garganta, Tubruk. Não gosto de ser enganado.

- Ele vai estar na reunião do Senado ao meio-dia. Você poderia sondá-lo. Talvez estejamos julgando mal o sujeito. Talvez ele se ofereça para devolver as terras pelo preço que nós pagamos - disse Tubruk com as dúvidas aparecendo claramente.

Júlio bateu os nós dos dedos na cerca sólida e suspirou.

- Duvido. Suetônio já deve estar em casa, e nós nos desentendemos sobre algumas coisas nos navios e na Grécia. Ele não vai querer me fazer nenhum favor, mas vou conseguir as terras do meu pai de volta. Verei o que Marco acha.

- Agora ele é chamado de Brutus, você sabe. Sabia que ele chegou a centurião na Punho de Bronze? Brutus vai querer o seu conselho sobre a Primogênita também.

Júlio assentiu e riu ao pensar que poderia conversar de novo com o velho amigo.

- Ele deve ser o general mais novo que Roma já teve - falou rindo. Tubruk fungou.

- Um legado sem legião, então. - De repente ficou sério, os olhos se enregelando com a lembrança. - Sila tirou o nome da legião das listas depois da morte de Mário. A coisa em Roma ficou medonha durante um tempo. Ninguém estava em segurança, nem mesmo os senadores. Qualquer um que Sila considerasse inimigo do Estado era arrastado de casa e executado sem julgamento. Pensei em levar Cornélia e o bebê para longe, mas

Tubruk se controlou, lembrando-se do que Cornélia lhe dissera quando ele voltou do quarto de Aurélia na noite anterior, enquanto Júlio dormia a sono solto.

O velho gladiador se sentia dividido entre a lealdade para com Júlio e Cornélia. Seu relacionamento com os dois era muito mais próximo do amor paterno do que do dever profissional de um administrador. Odiava guardar segredos, mas sabia que o que acontecera com Sila deveria ser contado por ela.

Júlio não pareceu notar sua preocupação, perdido em pensamentos.

- Graças às Fúrias o desgraçado está morto, Tubruk. Não sei o que eu teria feito se ele estivesse vivo. Acho que poderia ter escrito para você levar minha família para fora do país, mas uma vida no exílio seria o fim para mim. Não posso descrever como foi a sensação de tocar os pés em solo romano depois de tanto tempo. Eu realmente não sabia da força disso até partir, entende?

- Você sabe que entendo, garoto. Não sei como Caberá suporta andar de um lado para o outro como faz. Uma vida sem raízes é impossível para mim, mas talvez nós tenhamos raízes mais fundas do que outras pessoas, aqui.

Júlio deixou o olhar percorrer os bosques sombreados de verde que guardavam tantas lembranças, e sua decisão se intensificou. Teria de volta o que fora perdido.

Outro pensamento o assaltou.

- E a casa de Mário na cidade?

- Está perdida - disse Tubruk sem olhá-lo. - Foi vendida num leilão quando Sila foi declarado ditador. Muitas propriedades mudaram de mãos por ordem dele. Crasso comprou algumas, mas na maior parte os leilões foram uma farsa, com os que apoiavam Sila ficando com a melhor parte.

- Sabe quem mora lá atualmente? - perguntou Júlio, com a voz tensa de raiva.

Tubruk deu de ombros.

- A casa foi dada a Antonido, o general de Sila, ou melhor, ele pagou uma parte minúscula do valor. Chamam-no de cão de Sila, pela lealdade, mas ele ganhou muito de seu dono.

Júlio fechou o punho lentamente.

- Este é um problema que posso resolver hoje, depois da reunião do Senado. Ele comanda muitos soldados, esse Antonido?

Tubruk franziu a testa enquanto entendia, e então um sorriso repuxou sua boca.

- Alguns guardas domésticos. Ele tem posto nominal, que ninguém pensou em retirar, mas não é ligado a qualquer legião específica. Você tem homens para derrubá-lo, se fizer isso depressa.

- Então farei depressa - respondeu Júlio, virando-se de costas para a cerca e olhando de novo para a propriedade. - Será que minha mãe já está acordada?

- Geralmente está. Ela não dorme muito ultimamente. A doença continua igual, mas você deve saber que ela está mais fraca.

Júlio olhou com afeto para o velho gladiador, cujas emoções estavam sempre mais próximo da superfície do que ele fingia.

- Ela estaria perdida sem você.

Tubruk desviou o olhar e pigarreou enquanto os dois começavam a voltar para a propriedade. Seu serviço contínuo a Aurélia não estava aberto a discussão, apesar de ter ficado em sua mente cada vez mais nos últimos meses. Pensava nisso quando olhava Clódia e admitia o afeto que havia brotado do nada para surpreendê-lo. A aia de Cornélia era uma mulher gentil, e tinha deixado claro que compartilhava o amor silencioso que ele sentia por ela. Mas havia Aurélia para cuidar, e ele sabia que nunca poderia se aposentar e ir morar numa casinha na cidade enquanto ainda houvesse essa obrigação em sua vida, mesmo que os dois pudessem comprar a liberdade de Clódia, como ela parecia ter tanta certeza. Havia pouco a ganhar preocupando-se com o futuro, refletiu enquanto se aproximavam da propriedade. O futuro zombava dos planejamentos, o tempo todo. Só podiam estar preparados para as mudanças rápidas que ele traria.

Otaviano estava esperando-os no portão. Júlio olhou-o inexpressivo enquanto se aproximavam e parou surpreso quando o menino fez uma reverência profunda.

- E quem é este? - perguntou, espantado ao vê-lo ruborizar de embaraço.

- Seu nome é Otaviano, senhor. Eu lhe disse que iria apresentá-lo quando houvesse tempo, mas ele perdeu a paciência de novo, pelo que vejo.

Otaviano empalideceu ligeiramente diante da crítica. Era verdade que não pudera esperar, mas não havia desobedecido, e sim presumido que Tubruk teria mudado de idéia, o que era totalmente diferente, pensava.

- Tubruk está cuidando de mim para minha mãe - disse ele animado para Júlio. - Estou aprendendo a lutar com gládio, montar a cavalo e...

Tubruk deu-lhe um cascudo de leve, para parar com a falação, com o embaraço crescendo. Tinha pretendido explicar a situação a Júlio e se sentia mortificado ao ver a situação jogada diante dele sem um momento para se preparar.

- Alexandria o trouxe - disse ele, fazendo Otaviano correr para longe com um empurrão na direção dos estábulos. - Ele é parente distante seu, pela irmã de seu avô. Aurélia parece gostar dele, mas o garoto ainda está aprendendo bons modos.

- E a lutar com gládio e montar? - perguntou Júlio, divertindo-se com o embaraço de Tubruk.

Ver o administrador sem graça era uma nova experiência para ele, e ficou bastante feliz em deixar isso correr livre por um tempo.

Tubruk coçou a orelha com uma careta e olhou Otaviano enquanto o garoto finalmente captava a dica e trotava para longe.

- Foi minha idéia. Ele estava sendo machucado por outros aprendizes na cidade, e eu achei que poderia ensiná-lo a cuidar de si mesmo. Eu ia explicar a situação a você, mas...

Júlio explodiu numa gargalhada, que piorou com a expressão pasma de Tubruk.

- Nunca vi você tão nervoso. Acho que gostou do molequinho, não é? Tubruk deu de ombros, irritado com a mudança de humor. Era típico de Otaviano ignorar suas ordens de novo. Cada dia parecia começar novo para ele, tendo esquecido completamente as lições e as punições.

- Ele tem um espírito endurecido para um garoto tão novo. Às vezes me faz lembrar de você, agora que nós o limpamos um pouco.

- Não vou questionar nada que você fez na minha ausência, Tubruk. Se seu discernimento foi suficientemente bom para meu pai, sempre será bom para mim. Verei o garoto direito quando voltar esta noite ou amanhã. Ele era meio pequeno para estar brigando nas ruas da cidade, não era?

Tubruk assentiu, satisfeito por Júlio não ter feito objeção. Imaginou se seria a hora certa para mencionar que o menino tinha seu próprio quarto na casa e seu próprio pônei no estábulo. Provavelmente, não.

Ainda sorrindo, Júlio entrou na casa principal, e Tubruk foi deixado sozinho no pátio. Um leve movimento no estábulo se registrou em sua visão, e ele suspirou. O garoto estava espionando de novo, provavelmente preocupado com a hipótese de seu pônei ser levado embora, a única ameaça que provocava qualquer efeito.

Júlio se sentou em silêncio no quarto da mãe e ficou olhando enquanto uma escrava aplicava os óleos e pinturas que tentavam esconder a devastação física. O fato de ela ter permitido que ele a visse sem ajuda da maquiagem o preocupou tanto quanto o choque real de ver como ela ficara magra e com aparência doente. Durante tanto tempo ele havia prometido a si mesmo revelar a compreensão da doença dela e alcançar uma espécie de companheirismo retirado do entulho da infância. Quando o momento chegou, ele não pôde pensar em como começar. A mulher sentada diante do espelho era quase estranha. As bochechas tinham afundado em buracos escuros que resistiam à pintura aplicada pela escrava, aparecendo por entre as cores mais claras como uma sombra da morte que pairava sobre ela. Os olhos escuros eram desatentos e cansados, e os braços eram tão dolorosamente magros que o faziam se encolher, só de olhar.

Aurélia o reconhecera, pelo menos. Tinha-o cumprimentado com lágrimas e um abraço delicado que ele devolveu com cuidado infinito, sentindo que poderia quebrar aquela coisa delicada em que ela havia se tornado. Mesmo assim ela ofegou ligeiramente, e a culpa o dominou.

Quando a escrava tinha guardado os cosméticos numa caixa elegantemente envernizada, feito uma reverência e saído do quarto, Aurélia se virou para o filho e ensaiou um sorriso, apesar de sua pele ter se rachado como um pergaminho sob a aplicação das cores falsas.

Júlio lutou com as emoções. Caberá tinha dito que sua doença era diferente da que assolava a mãe, e ele sabia que ela nunca sofrera um ferimento como o que quase o havia matado. Mesmo assim os dois finalmente tinham algo em comum, ainda que o golfo parecesse intransponível.

- Eu... pensei muito em você enquanto estive longe - começou. Ela não respondeu, aparentemente fascinada pelo exame do próprio rosto no bronze polido. Os dedos compridos e finos subiram para tocar a garganta e o cabelo, enquanto ela se virava de um lado para o outro, franzindo a testa para si mesma.

- Eu me feri numa batalha e fiquei doente por longo tempo - continuou Júlio, esforçando-se - e depois comecei a sofrer uns ataques estranhos. Eles... me fizeram lembrar de sua doença, e eu pensei que deveria lhe contar. Eu gostaria de ter sido um filho melhor. Antes não entendia o que você passava, mas quando aconteceu comigo foi como uma janela se abrindo. Desculpe.

Júlio observou as mãos trêmulas da mãe alisar e acariciar o rosto enquanto ele falava, os movimentos se tornando cada vez mais agitados. Preocupado, ele meio se levantou da cadeira e a distraiu, de modo que ela virasse o rosto em sua direção.

- Júlio? - sussurrou ela. Suas pupilas tinham aumentado, escuras, e o olhar parecia desfocado, passando sobre ele.

- Estou aqui - disse ele com tristeza, imaginando se ela tinha ouvido.

- Pensei que tinha me abandonado - continuou Aurélia, com a voz fazendo-o estremecer.

- Não, eu voltei - disse ele, sentindo os olhos arderem de sofrimento.

- Caio está bem? Ele é um menino tão voluntarioso! - disse ela, fechando os olhos e baixando a cabeça como se quisesse fechar o mundo lá fora.

- Ele está... bem. Ele a ama muito - respondeu Júlio em voz baixa, levantando a mão para enxugar as lágrimas que ardiam.

Aurélia assentiu e se virou de novo para o espelho, para sua contemplação.

- Fico feliz. Pode mandar uma escrava para cuidar de mim, querido? Acho que vou precisar de um pouquinho de maquiagem para enfrentar a casa hoje.

Júlio assentiu e se levantou, olhando-a um momento.

- Vou chamá-la - disse, e saiu do quarto.

 

Enquanto a sombra do meio-dia marcava o relógio de sol do fórum, Júlio entrou na praça ampla com seus guardas, fazendo uma rota direta para o prédio do Senado. Enquanto atravessava o espaço aberto, ficou impressionado com as mudanças na cidade desde que tinha saído. As fortificações que Mário erguera ao longo das muralhas tinham sido desmanteladas e havia apenas alguns legionários à vista. Até mesmo esses estavam relaxados, andando com suas amantes ou parados em pequenos grupos batendo papo, sem sinal da tensão que ele esperava. Era uma cidade em paz outra vez, e um tremor o atravessou enquanto andava sobre as grandes pedras cinzentas. Tinha trazido dez soldados de seu comando para a cidade, querendo-os perto enquanto estava sem armadura, em seu manto formal. Essa preocupação parecia desnecessária, e ele não sabia se estava satisfeito ou se lamentava. A batalha pelas muralhas estava fresca em sua mente, como se nunca tivesse ido embora, mas as pessoas ao pálido sol de inverno riam e brincavam umas com as outras, cegas às cenas que relampejavam em sua imaginação. Viu Mário cair de novo e o choque de figuras sombrias enquanto as forças de Sila matavam os defensores ao redor do general.

Sua boca se retorceu amarga enquanto ele pensava em como era jovem e cheio de júbilo naquela noite. Recém-saído do leito matrimonial, tinha visto todos os sonhos e planejamentos serem esmagados, e o futuro alterado para sempre. Se tivessem derrotado Sila, se ao menos tivessem derrotado Sila, Roma seria poupada de anos de brutalidade, e a República poderia ter recuperado parte da dignidade anterior.

Fez seus homens pararem na base da ampla escadaria de mármore e, apesar do clima contente no fórum, disse para ficarem em alerta. Depois da morte de Mário ele aprendera que era mais seguro esperar encrenca, mesmo no prédio do Senado.

Deixando os homens parados ao sol, Júlio olhou as grossas portas de bronze que tinham sido abertas para a reunião. Os senadores estavam parados aos pares e em trios, discutindo os assuntos do dia enquanto esperavam a convocação. Júlio viu seu sogro Cina com Crasso e subiu a escada para cumprimentá-los. Eles estavam com as cabeças juntas e Júlio viu raiva e frustração nelas. Crasso ainda era o homem moreno e magro como um pedaço de pau, do qual Júlio se lembrava, desdenhando qualquer sinal de riqueza com o manto branco simples e as sandálias. Vira Cina pela última vez no casamento com Cornélia e, dos dois senadores, era ele que havia mudado mais no correr dos anos. Quando se virou para cumprimentar Júlio, este ficou impressionado com as rugas que haviam surgido no rosto do sogro, efeitos visíveis de suas preocupações. Cina lhe deu um sorriso cansado e Júlio o devolveu desconfortável, jamais tendo-o conhecido bem.

- O viajante retorna para nós, com a espada e o arco em descanso citou Crasso. - Seu tio teria orgulho de você, se estivesse aqui.

- Obrigado. Eu estava exatamente pensando nele. Ver a cidade de novo é difícil depois de tanto tempo, especialmente aqui. Fico esperando ouvir a voz dele.

- Enquanto Sila era vivo era proibido até mesmo mencionar o nome dele, você sabia? - perguntou Crasso, observando sua reação. Apenas uma ligeira tensão na boca traiu os sentimentos do rapaz.

- Os desejos de Sila significavam pouco para mim enquanto ele vivia, agora significam menos ainda - disse, peremptório. - Gostaria de visitar o túmulo de Mário depois da reunião no Senado, para prestar respeitos.

Crasso e Cina trocaram olhares, e Crasso tocou o ombro de Júlio, em simpatia.

- Sinto muito, os restos dele foram levados e espalhados. Alguns soldados de Sila fizeram isso, ainda que ele negasse. Acho que foi por isso que ele deixou instruções para ser cremado, ainda que os amigos de Mário não fossem se rebaixar tanto.

Ele baixou a mão enquanto Júlio se retesava de raiva, visivelmente lutando para permanecer controlado. Crasso falou com calma, dando-lhe tempo para se recompor.

- O legado do ditador ainda nos assola na forma dos seguidores dele no Senado. Cato é o primeiro, e Cátalo e Bíbilo parecem contentes em seguir a liderança dele em tudo. Acho que conhece o senador Prando, com cujo filho você foi capturado.

Júlio assentiu.

- Tenho um negócio para discutir com ele depois da reunião de hoje - respondeu, de novo com a aparência externa de calma. Sub-repticiamente segurou a mão direita com a esquerda, preocupado de repente com a possibilidade de que as emoções que cresciam dentro dele dessem início a um ataque bem na escadaria do Senado, desgraçando-o para sempre. Crasso fingiu não notar qualquer coisa errada, e Júlio se sentiu grato por isso.

- Tenha cuidado com Prando, Júlio - disse Crasso, sério, chegando mais perto para que os senadores que entravam no prédio não o ouvissem. - Ele tem conexões poderosas com os silanos, e Cato o considera um amigo.

Júlio inclinou a cabeça ainda mais perto de Crasso e deu um sussurro áspero:

- Os que eram amigos de Sila são meus inimigos.

Sem outra palavra, deu as costas aos dois para subir os últimos degraus até as portas e desapareceu no corredor sombreado lá dentro.

Crasso e Cina se entreolharam com conjecturas silenciosas enquanto seguiam num passo mais lento.

- Parece que nossos objetivos convergem - disse Cina em voz baixa. Crasso assentiu discretamente, não querendo continuar a discussão, enquanto os dois se moviam entre os colegas até seus lugares, passando por amigos e inimigos.

Júlio sentiu a energia vibrante da reunião assim que entrou. Havia poucos lugares vazios, e ele teve de ocupar um assento na terceira fileira a partir da tribuna do orador. Absorveu satisfeito os sons e as imagens, sabendo que finalmente havia retornado ao coração do poder. Vendo tantos estranhos, desejou ter ficado com Crasso e seu sogro, para que eles dissessem os nomes dos novos rostos. Mas por enquanto estava contente em simplesmente observar e ficar sabendo, sem ser percebido pelos predadores até ter defesas melhores. Sorriu tenso consigo mesmo diante da visão de batalha que o Senado representava para ele. Era uma visão falsa, ele sabia. Aqui os inimigos podiam ser os que o cumprimentavam com mais apreço e depois mandavam assassinos contra ele assim que viravam as costas. Seu pai sempre se mantivera afastado do grosso da nobilitas, apesar de admitir um respeito relutante pelos poucos que colocavam a honra acima da política.

A assembléia silenciou e um cônsul idoso que Júlio não conhecia começou o juramento do dia. Como se fossem um só, todos se levantaram para dizer as palavras solenes.

- Nós, que somos Roma, entregamos a vida por sua paz, a força por sua força, e a honra por seus cidadãos.

Júlio repetiu as palavras entoadas junto com os outros e sentiu o início de uma empolgação. O coração do mundo continuava batendo. Ouviu com concentração absoluta a agenda de discussões que seriam feitas e conseguiu permanecer inabalável externamente quando o cônsul chegou ao "Posto de tribuno a ser dado a Caio Júlio César por suas ações na Grécia". Alguns dos que o conheciam se viraram para ver sua reação, mas ele não demonstrou coisa alguma, satisfeito pelo aviso trazido pelo mensageiro. Decidiu contratar conselheiros imediatamente para ajudá-lo a entender cada uma das questões do dia. Precisaria de bons juristas para preparar os processos judiciais que iniciaria assim que recebesse o primeiro posto de sua carreira política. Tinha uma séria certeza de que o primeiro julgamento diante dos magistrados seria contra Antonido, depois de retomar a casa do tio. O fato de que os argumentos teriam de envolver uma defesa pública de Mário lhe deu enorme satisfação.

Cato era fácil de ser reconhecido por causa da gordura, se bem que Júlio não se lembrava de tê-lo visto em sua única visita ao Senado havia anos. O senador era de um tamanho obsceno, e suas feições quase pareciam ser esmagadas nas dobras de carne, de modo que o homem verdadeiro olhava de algum lugar nas profundezas do rosto. Tinha um séquito de amigos e defensores em volta, e Júlio pôde ver, pela deferência demonstrada, que era um homem influente, como Crasso alertara. O pai de Suetônio estava lá, e os olhos dos dois se encontraram brevemente antes que o homem mais velho desviasse o olhar, fingindo não ter visto. Um instante depois ele sussurrou alguma coisa no ouvido de Cato, e Júlio se pegou como objeto de um olhar que parecia mais divertido do que preocupado. Com expressão impassível, marcou o sujeito na mente como inimigo. Notou com interesse o modo como os olhos de Cato saltaram para se fixar em Pompeu quando este entrou e assumiu um lugar que seus apoiadores tinham guardado.

Júlio também observou Pompeu, avaliando as mudanças nele. A tendência para a suavidade da carne tinha desaparecido de sua figura. Ele parecia em boa forma e com músculos rijos, como um soldado deveria ser, um galgo comparado a Cato. Sua pele era queimada de sol e Júlio se lembrou de que ele passara um tempo na Espanha supervisionando as legiões de lá. Sem dúvida, a tarefa de lidar com as tribos rebeldes das províncias tinha derretido a gordura.

Pompeu se levantou tranqüilamente para o primeiro assunto e falou da necessidade de mandar uma força contra os piratas do mar, avaliando que eles teriam mil navios e dois mil povoados e cidades sob controle. Dadas suas experiências amargas, Júlio ouviu com interesse, um pouco chocado ao ver que a situação pudera escapar tanto ao controle. Ficou espantado quando outros se levantaram para refutar os números de Pompeu e argumentar contra o aumento das forças.

- Eu poderia limpar os mares em quarenta dias se tivesse navios e homens - disse Pompeu rispidamente, mas perdeu a votação e ocupou seu lugar de novo, com as sobrancelhas franzidas, frustrado.

Júlio votou três outras questões, notando que Pompeu, Crasso e Cina tinham o mesmo posicionamento que o seu em cada ocasião. Em todas as três eles foram derrotados, e Júlio sentiu a frustração crescer. Uma revolta de escravos perto do Vesúvio tinha se mostrado difícil de ser encerrada, mas em vez de mandar uma força esmagadora, o Senado deu permissão para apenas uma legião enfrentá-la. Júlio balançou a cabeça, incrédulo. A princípio não tinha notado como os senadores haviam ficado cautelosos. Pelas experiências com Mário e por suas batalhas, Júlio sabia que um império tinha de ser forte para sobreviver, mas muitos senadores eram cegos aos problemas que seus comandantes enfrentavam ao redor do Maré Internum. No fim de uma hora de discursos Júlio tinha uma compreensão muito maior da irritação sentida por homens como Prax e Gadítico diante das protelações do Senado. Ele esperara ver uma nobreza de atos e aspecto à altura do juramento que tinham feito, e não picuinhas e facções se opondo umas às outras.

Perdido nesses pensamentos, deixou de ouvir o item seguinte, e apenas o som de seu nome rompeu o devaneio.

- ... César, que deve receber o posto de tribuno militar com todos os direitos e honras em agradecimento pela derrota de Mitrídates na Grécia e a tomada de dois navios piratas.

Todos os senadores ficaram de pé, e até mesmo Cato se ergueu pesadamente.

Júlio deu um riso de menino quando eles o aplaudiram, e fingiu não notar os que ficaram em silêncio, apesar de ter marcado cada rosto enquanto seu olhar varria as fileiras apinhadas.

Sentou-se com o coração batendo de empolgação. Um tribuno podia convocar tropas, e sabia de trezentos soldados não muito longe, que seriam os primeiros a entrar sob seu comando. Cato captou seu olhar e assentiu testando. Júlio devolveu o gesto com um sorriso aberto. Não faria mal alertar o sujeito de que ele tinha um novo inimigo.

Quando as portas de bronze foram abertas de novo para admitir a luz do dia no prédio do Senado, Júlio andou rapidamente para interceptar o pai de Suetônio que ia saindo.

- Gostaria de trocar uma palavra, senador - disse ele, interrompendo uma conversa.

O senador Prando se virou para ele, levantando as sobrancelhas em surpresa.

- Não posso imaginar o que teríamos a discutir, César.

Júlio ignorou o tom frio e continuou como se o assunto fosse entre amigos:

- São as terras que meu administrador lhe vendeu para pagar meu resgate. O senhor sabe que eu tive sucesso em conseguir o ouro de volta, inclusive o do seu filho. Gostaria de me encontrar com o senhor para discutir o preço para devolvê-las à minha família.

O senador balançou a cabeça ligeiramente.

- Creio que ficará desapontado. Faz um bom tempo que eu queria expandir minhas posses e tenho planos de construir outra casa lá para o meu filho, assim que a floresta for derrubada. Sinto muito não poder ajudá-lo.

Ele deu um sorriso tenso para Júlio e já ia se virar para os companheiros. Júlio estendeu a mão e segurou seu braço, mas o senador Prando se soltou com um repelão. O rosto dele ficou vermelho com o toque.

- Tenha cuidado, rapaz. Você está no Senado, não num povoado distante. Se me tocar de novo, mandarei prendê-lo. Pelo que meu filho contou, você não é o tipo de pessoa com quem vou querer fazer negócios.

- Ele também deve ter mencionado que eu não sou uma boa pessoa para se ter como inimigo - murmurou Júlio, mantendo a voz baixa para não ser ouvido por outros.

O senador se imobilizou um momento enquanto considerava a ameaça, depois se virou com o pescoço rígido para alcançar Cato, que ia passando pelas portas.

Pensativamente, Júlio olhou-o se afastar. Tinha esperado algo assim do sujeito, mas a notícia de uma casa a ser construída em suas antigas terras era um golpe forte. No topo da colina ela olharia para a sua propriedade embaixo, uma posição de superioridade que sem dúvida daria enorme satisfação a Suetônio. Olhou em volta procurando Crasso e Cina, querendo falar com eles antes que partissem para suas casas. De certa forma, o que o pai de Suetônio tinha dito era verdade. Usar força em Roma levaria rapidamente ao desastre. Ele teria de ser sutil.

- Mas primeiro Antonido - murmurou baixinho. A força funcionaria muito bem com ele.

 

Andar pela cidade à frente de seus dez soldados provocou lembranças dolorosas enquanto Júlio ia até a rua da antiga casa de Mário. Lembrou-se da empolgação que sentira quando a tempestade de energia em volta do general o apanhara em sua esteira. Cada rua e cada esquina o lembravam daquela primeira jornada barulhenta até o Senado, rodeado pelos homens mais duros da Primogênita. Quantos anos ele tinha na época, quatorze? Idade suficiente para entender a lição de que a lei se dobrava diante da força. Até mesmo Sila se encolheu diante dos soldados no fórum, sobre as pedras úmidas do sangue da multidão. Mário recebera o triunfo que queria e o cargo de cônsul que se seguira, mas Sila o derrubara no fim. A tristeza pesou sobre Júlio enquanto ele desejava apenas mais um momento com o general de ouro.

Nenhum dos homens de Júlio tinha visto Roma antes, e quatro eram de pequenos povoados ao longo da costa africana. Eles lutavam para não ficar olhando maravilhados, mas era uma batalha perdida enquanto viam a cidade mítica tornada real diante de seus olhos.

Ciro parecia espantado simplesmente pelo número de pessoas pelas quais passavam nas ruas agitadas, e Júlio via a cidade com novos olhos através das reações do grandalhão. Não havia coisa igual no mundo. Os cheiros de comida e temperos se misturavam a gritos e marteladas, e entretecidas na multidão havia togas em azul, vermelho e ouro. Era um festim para os sentidos, e Júlio desfrutava do espanto deles, lembrando-se de como estivera junto ao ombro de Mário numa carruagem dourada, vendo cada rua cheia de pessoas aplaudindo. Na lembrança, a doce glória daquilo se misturava à dor do que viera depois, mas mesmo assim ele estivera ali naquele dia.

Mesmo que apenas as ruas maiores tivessem nome, Júlio se lembrou do caminho sem dificuldade, quase inconscientemente tomando a rota exata que percorrera na primeira visita depois de passar pelo fórum. Gradualmente as ruas ficaram menos apinhadas e mais limpas à medida que subiam a colina pavimentada, ladeada por modestas portas e portões, cada um escondendo esplendor do lado de dentro.

Júlio fez seus homens pararem a trinta metros do portão do qual se lembrava e se aproximou sozinho. Enquanto chegava perto, uma figura pequena e atarracada, vestida numa túnica simples de escravo e sandálias, chegou às barras para recebê-lo. Ainda que o homem tenha sorrido educadamente, Júlio notou que seus olhos iam de um lado para o outro da rua, com cautela automática.

- Vim falar com o dono da casa - disse Júlio, sorrindo e relaxado.

- O general Antonido não está - respondeu o porteiro, cauteloso. Júlio assentiu como se esperasse a notícia.

- Então terei de esperar. Ele precisa ouvir a notícia que eu trago.

- O senhor não pode entrar enquanto... - começou o homem. Com um movimento rápido, Júlio enfiou o braço por entre as barras, como tinha visto Rênio fazer um dia. O porteiro recuou enquanto ele se movia e quase conseguiu escapar, mas os dedos de Júlio agarraram sua túnica e o puxaram com força de encontro às barras.

-- Abra o portão - disse no ouvido do homem, enquanto este lutava.

- Não vou abrir! Se o senhor conhecesse o homem a quem esta casa pertence, não ousaria. Estará morto antes do pôr-do-sol a não ser que me solte!

Júlio puxou com toda a força o homem contra as barras.

- Eu conheço. Eu sou o dono desta casa. Agora abra a porta ou eu o mato.

- Então me mate. Mesmo assim o senhor não vai entrar - disse o homem rispidamente, ainda lutando feito louco.

Ele encheu os pulmões para pedir ajuda, e Júlio riu subitamente de sua coragem. Sem dizer outra palavra, enfiou a mão por entre as barras e tirou a chave do cinto do homem. O porteiro ofegou diante do ultraje e Júlio deu um assobio baixo, para que seus homens se aproximassem.

- Segurem este aqui e o mantenham quieto. Preciso das duas mãos para abrir a fechadura. Não o machuquem. Ele é um homem corajoso.

- Socorro! - conseguiu gritar o porteiro antes que as mãos grandes de Ciro fechassem sua boca.

Júlio enfiou a chave na fechadura e sorriu quando ela estalou. Levantou a barra, e o portão se abriu enquanto dois guardas vinham correndo pelo pátio, com as espadas erguidas.

Os homens de Júlio se moveram rapidamente para desarmá-los. Contra tantos, os dois guardas largaram as espadas ao ser rodeados, mas o porteiro ficou vermelho de fúria olhando. Tentou morder a mão de Ciro e levou uma bofetada violenta, em resposta.

- Amarrem-nos e revistem a casa. Não derramem sangue - ordenou Júlio, observando com frieza seus homens se dividirem em pares para revistar a casa que ele conhecia tão bem.

Ela praticamente não havia mudado. A fonte ainda estava lá, e Antonido deixara os jardins como havia encontrado. Júlio podia ver o local onde tinha beijado Alexandria, e poderia ter ido sem guia até o quarto dela na área dos escravos. Era fácil imaginar Mário gargalhando em algum ponto fora das vistas, e Júlio teria dado muita coisa para ver de novo aquele sujeito enorme. A súbita tristeza da lembrança pesou sobre ele.

Não reconheceu nenhum dos escravos ou empregados que foram trazidos e amarrados no pátio por seus homens, trabalhando com eficiência animada. Um ou dois legionários tinham arranhões no rosto, mas Júlio ficou satisfeito ao ver que mesmo assim nenhum prisioneiro foi machucado. Se quisesse ter sucesso em apelar à justiça e restabelecer o direito à casa como herdeiro sobrevivente, sabia que era importante que isso fosse alcançado pacificamente. Os magistrados seriam membros da nobilitas, e qualquer história de derramamento de sangue no meio da cidade iria deixá-los tendenciosos contra ele desde o início.

Tudo foi feito rapidamente, e sem mais discussão seus homens colocaram os cativos na rua, sendo o último o porteiro. Ele fora amordaçado para parar de gritar, mas continuava furioso quando Ciro o colocou na rua. Júlio fechou pessoalmente o portão e trancou com a chave que fora tirada dele, piscando para a figura furiosa antes de se virar.

Seus homens estavam em duas fileiras de cinco, à sua frente. Não era o bastante para sustentar a casa contra um ataque decidido, e a primeira coisa a fazer seria mandar dois corredores de volta à propriedade para pegar cinqüenta de seus melhores guerreiros. Estava certo planejar um processo jurídico, mas quem estivesse de posse da casa teria uma vantagem clara, e Júlio estava decidido a não perdê-la quando Antonido voltasse.

No fim, mandou três de seus corredores mais rápidos usando túnicas de mensageiros tirados dos depósitos da casa. Sua principal preocupação era de que eles se perdessem na cidade desconhecida e xingou-se por não ter trazido alguém da propriedade para ajudá-los a achar o caminho de volta para a ponte do Tibre.

Quando eles tinham ido, Júlio se virou para seus homens com um sorriso lento se espalhando no rosto.

- Eu lhes disse que iria arranjar alojamento em Roma. Eles riram, olhando em volta de um jeito apreciador.

- Preciso de três de vocês montando guarda junto ao portão. Os outros vão substituí-los em duas horas. Fiquem em alerta. Antonido voltará antes que este dia esteja muito velho, tenho certeza. Quero ser chamado quando ele chegar.

O pensamento nessa conversa o animou tremendamente enquanto os guardas assumiam posição. A casa estaria segura à noite, e então ele poderia voltar a atenção para restabelecer o nome de Mário na cidade, nem que tivesse de lutar com todo o Senado para conseguir isso.

Brutus e Caberá estavam na propriedade quando dois dos mensageiros chegaram com notícias de Júlio, com o terceiro alguns quilômetros atrás. Acostumado a comandar, Brutus organizou rapidamente cinqüenta homens e começou a marcha rápida de volta à cidade. Júlio não poderia saber que tantos soldados teriam sido impedidos de entrar, por isso Brutus mandou que retirassem as armaduras e espadas. Mandou-os à cidade em grupos de dois ou três, para se juntarem de novo fora das vistas dos guardas, que eram os olhos do Senado em Roma. A última coisa a entrar foi uma carroça cheia com as armas, e Brutus ficou com ela, para subornar o capitão do portão. Caberá tirou uma garrafa de vinho de baixo da lona para colocar na mão do sujeito junto com moedas e, com uma piscadela conspiratória, eles tiveram permissão de entrar.

- Não sei se fico satisfeito ou pasmo com a facilidade disso - murmurou Brutus enquanto Caberá sacudia as rédeas do par de bois que puxavam a carroça pesada. - Quando isso terminar, vou me sentir tentado a voltar àquele guarda e trocar uma palavra com ele. Nem foi um suborno grande.

Caberá riu enquanto estalava as rédeas no ar.

- Ele suspeitaria muito se fosse um suborno alto. Não, nós pagamos exatamente o bastante para ele pensar que somos comerciantes de vinho evitando a tarifa da cidade. Você parece um guarda, e ele provavelmente achou que eu era o rico proprietário.

Brutus fungou.

- Ele pensou que você era um carroceiro. Esse seu manto velho e puído não parece pertencer a um homem rico - respondeu ele enquanto serpenteavam pelas ruas. Caberá estalou de novo as rédeas de couro, irritado com a resposta.

A carroça bloqueava a rua completamente, com as rodas se ajustando entre as pedras mais altas usadas pelos pedestres. Não havia onde passar ou dar a volta, e seu progresso na direção da casa de Mário era lento, ainda que Caberá adorasse gritar para os outros carroceiros e sacudir o punho contra qualquer um que ousasse atravessar à sua frente. Quatro dos homens de Júlio passaram a andar atrás deles, obviamente satisfeitos por ter a carroça para seguir pelo tortuoso labirinto de ruas. Nem Brutus nem Caberá ousavam olhar para eles, mas Brutus imaginou quantos ainda estariam andando pelos mercados ao pôr-do-sol. Suas orientações tinham sido bastante simples, tinha certeza, mas depois de meses trabalhando com a Primogênita no alojamento, além das viagens para ver a mãe, conhecia Roma melhor do que muita gente. Fingindo verificar as rodas da carroça, olhou em volta e ficou aliviado ao ver que o número de seguidores tinha aumentado para nove dos homens que Júlio queria. Esperava que eles não tornassem aquilo óbvio demais, caso contrário o povo curioso de Roma rapidamente estaria se juntando a eles, e uma procissão improvisada chegaria à antiga casa de Mário, com a carroça na frente e a tentativa de discrição arruinada.

Quando entraram na colina que levava à grande casa da qual se lembrava tão nitidamente, Brutus viu uma figura gesticulando e gritando com alguém dentro do portão. Pelo menos a rua era suficientemente larga, de modo que parar nela não interromperia todo o tráfego, pensou agradecido.

- Saia e verifique as rodas ou alguma coisa - sibilou para Caberá, que desceu desengonçado e andou em volta da carroça pronunciando "Roda", enquanto chegava a cada uma. O homem que gritava no portão pareceu notar a carroça carregada que vinha pouco abaixo, e Brutus arriscou outro olhar para trás, piscando de surpresa ao ver o grupo de homens que havia se reunido ali. Pior ainda, eles haviam formado fileiras e, apesar das roupas, pareciam exatamente o que eram: um grupo de legionários fingindo ser cidadãos. Brutus saltou da carroça e correu até eles.

- Não fiquem em posição de sentido, idiotas. Cada casa das redondezas vai mandar guardas se virem o que vocês estão fazendo!

Os homens se remexeram inseguros, e Brutus levantou os olhos, exasperado. Não havia saída. Os serviçais e guardas dos portões próximos tinham chegado às barras para olhar o grupo de soldados. À distância pôde ouvir gritos de alarme soando em volta.

- Certo. Podemos esquecer o segredo. Peguem as espadas e armaduras na carroça e me sigam até o portão. Depressa! Os senadores vão ter um ataque quando descobrirem que pusemos um exército na cidade.

Tendo afastado toda a incerteza, os soldados aliviados pegaram seu equipamento e o vestiram sem agitação. Levaram apenas alguns minutos, e então Brutus disse a Caberá para parar a inspeção da carroça, que ele havia continuado sem pausa, com o anúncio que fazia de cada roda ficando cada vez mais cauteloso.

- Agora, para a frente - resmungou Brutus, com as bochechas se avermelhando diante do número cada vez maior de espectadores.

Marcharam para o portão em fileiras perfeitas, e por um segundo ele foi distraído do embaraço por uma rápida avaliação profissional dos homens que o seguiam. Seriam muito bons para a Primogênita.

Antonido estava pálido de fúria quando Júlio terminou de explicar sua posição.

- Você ousa! - gritou ele. - Vou apelar ao Senado. Esta casa é minha por direito de compra, e eu verei você morto antes que a roube de mim.

- Eu não roubei de ninguém. Você não tinha direito de oferecer dinheiro em troca de uma propriedade que era do meu tio - respondeu Júlio com calma, desfrutando da fúria do outro.

- Um inimigo do Estado, cujas terras e riquezas foram confiscadas. Um traidor! - gritou Antonido.

Ele adoraria enfiar a mão por entre as barras e pegar a garganta daquele rapaz insolente, mas os guardas que o vigiavam de dentro tinham as espadas desembainhadas, e os seus dois estavam em número muito menor. Ele pensou detalhadamente no que Júlio poderia encontrar nos cômodos da casa. Haveria alguma prova ligando-o à filha de Pompeu? Achava que não, mas o pensamento o incomodava, dando um louco tom de pânico ao seu ultraje.

- Um homem considerado traidor por Sila, que atacou a própria cidade? - respondeu Júlio, com os olhos se estreitando. - Então foi considerado erradamente. Mário defendeu o Senado de um homem que iria se estabelecer como ditador. Ele era um homem honrado.

Antonido cuspiu com nojo no chão, e a saliva quase tocou a bainha da roupa do porteiro ainda amarrado.

- Isto é para a sua honra - rugiu ele, segurando as barras do portão. Júlio sinalizou para um dos seus homens se adiantar, e Antonido foi forçado a baixar as mãos.

- Nem pense em colocar as mãos em nada que seja meu - disse Júlio.

Antonido teria respondido, mas um súbito barulho de sandálias de legionários abaixo no morro o fez parar. Ele olhou na direção do som, e um riso de desprezo cobriu suas feições.

- Agora você verá, seu criminoso. O Senado enviou homens para restaurar a ordem. Mandarei espancá-lo e deixá-lo na rua, como fez com meus homens.

Ele se afastou do portão para receber os recém-chegados.

- Este homem invadiu minha casa e abusou de meus serviçais. Quero que ele seja preso - disse ao soldado mais próximo, com saliva branca se juntando nos cantos da boca, devido aos esforços furiosos.

- Bem, ele tem um rosto amigável. Deixe que ele fique com a casa - respondeu Brutus, rindo.

Por alguns segundos Antonido não entendeu, depois observou o número de homens armados que estavam diante dele e notou que não tinham insígnia de alguma legião.

Recuou devagar, com a cabeça subindo em desafio. Brutus riu dele.

Antonido foi até seus dois guardas e ficou entre eles. Os dois se mexeram nervosos por ser identificados como seus, diante de tantos possíveis inimigos.

- O Senado vai me ouvir - disse Antonido, rouco de tanto gritar.

- Diga aos seus senhores para marcar uma data para a audiência. Vou defender meus atos dentro da lei - respondeu Júlio, finalmente destrancando o portão para Brutus trazer os homens da rua.

Antonido olhou-o com raiva, depois girou nos calcanhares e se afastou seguido pelos dois guardas.

Júlio fez Brutus parar com um toque em seu braço.

- Não foi a chegada discreta que eu visualizei, Brutus.

Seu amigo franziu a boca, por um momento incapaz de encará-lo.

- Eu os trouxe, não foi? Você não faz idéia de como é difícil entrar com homens armados nesta cidade. Os dias em que Mário entrava com meia-centúria aqui se foram.

Caberá se juntou a eles, passando pelo portão com os últimos soldados.

- Os guardas da cidade acharam que eu era um mercador próspero. - disse animado.

Júlio e Brutus o ignoraram, os olhos fixos um no outro. Finalmente Brutus baixou a cabeça ligeiramente.

- Certo, a coisa poderia ter sido mais discreta.

A tensão entre os dois desapareceu enquanto ele falava e Júlio ria.

- Gostei quando ele pensou que vocês eram do Senado - disse este rindo. - Só esse momento provavelmente valeu a chegada pública dos homens.

Brutus ainda parecia pesaroso, mas um sorriso surgiu rapidamente em seu rosto, em resposta.

- Talvez. Olha, os senadores vão saber com ele que você trouxe tantos homens assim. Eles não vão permitir. Você deveria pensar em mandar alguns para o alojamento da Primogênita.

- Daqui a pouco farei isso, antes precisamos fazer alguns planos. Minhas outras centúrias na propriedade do campo também devem ser trazidas.

- Um pensamento ocorreu a Júlio. - Por que o Senado não é contra a presença da Primogênita na cidade?

Brutus deu de ombros.

- Ela está na lista das legiões, não se esqueça, mas na verdade o alojamento fica fora das muralhas, no lado norte, perto da porta do Quirinal. Tenho um dos melhores terrenos de treinamento em Roma, e Rênio como mestre de espadas. Devia ver.

- Você fez muita coisa, Brutus - disse Júlio, segurando seu ombro.

- Roma não será a mesma agora que voltamos. Vou trazer meus homens para você assim que tiver certeza de que Antonido não tentará de novo.

Brutus segurou o braço, com o entusiasmo se derramando.

- Precisamos mesmo dos seus homens. A Primogênita precisa crescer. Não descansarei enquanto ela não estiver de volta à velha força. Mário...

- Não, Brutus. -Júlio baixou o braço. - Você entendeu mal. Meus homens são jurados apenas a mim. Eles não podem ser usados sob seu comando.

Ele não queria ser duro com o amigo, mas era melhor ser claro desde o início.

- O quê? - respondeu Brutus, surpreso. - Olha, eles não fazem parte de nenhuma legião, e a Primogênita tem menos de mil homens. Você só precisa...

Júlio balançou a cabeça com firmeza.

- Vou ajudá-lo a recrutar, como prometi, mas não com esses. Sinto muito.

Brutus olhou-o, incrédulo.

- Mas estou reconstruindo a Primogênita para você. Seria a sua espada em Roma, lembra?

- Lembro - respondeu Júlio, segurando seu braço de novo. - Sua amizade significa mais para mim do que tudo, a não ser a vida de minha mulher e minha filha. Seu sangue está nas minhas veias, lembra? O meu está nas suas.

Ele parou e segurou o braço com firmeza.

- Esses homens são meus Lobos. Eles não podem estar sob seu comando. Deixe assim.

Brutus puxou o braço com força, endurecendo o rosto.

- Certo. Fique com os seus Lobos enquanto eu luto por cada novo recruta. Voltarei ao meu alojamento e aos meus homens. Procure-me lá quando quiser trazer seus soldados. Talvez possamos discutir o preço do alojamento deles.

Ele se virou e girou a chave no portão.

- Marco! - gritou Júlio às suas costas.

Brutus se imobilizou um momento, depois abriu o portão e se afastou, deixando-o balançando.

 

Mesmo na companhia dos dois guardas que restavam, Antonido manteve a mão na adaga ao cinto enquanto andava pelos becos escuros. Por mais estreitos que fossem, à noite havia muito lugar para os ladrões o esperarem, e não podia relaxar. Respirava pelo nariz enquanto andava, tentando ignorar as poças de água fétida que tinham arruinado suas sandálias nos primeiros passos longe das ruas principais. Um dos seus homens conteve um palavrão quando escorregou o pé num monte suficientemente fresco para não estar totalmente frio.

A luz do dia raramente alcançava esta parte de Roma, mas à noite as sombras assumiam um aspecto temível. Ali não havia lei, nenhum soldado viria, e nenhum cidadão ousaria responder a um chamado. Antonido segurou sua adaga com mais força ainda, levando um susto com alguma coisa que se afastou rapidamente de seus pés enquanto eles passavam. Não investigou, mas continuou andando quase às cegas e contava as esquinas tateando com as mãos. Três esquinas a partir da entrada, depois mais quatro à esquerda.

Mesmo à noite os becos tinham um tráfego de pedestres que o grosso de Roma jamais via. Havia pouca conversa entre as pessoas que eles viam, e mesmo assim era em voz baixa. Figuras apressadas passavam pelos três homens sem cumprimentá-los, desviando-se das poças imundas de cabeça baixa. Onde tochas iluminavam o caminho por alguns passos, as pessoas se afastavam da luz, como se cair em seu âmbito fosse convidar o desastre.

Somente a fúria fazia Antonido ir em frente, e mesmo assim não era sem medo. O homem que ele conhecera disse para nunca vir sem ser convidado a essas ruas, mas a perda da casa lhe dera uma coragem nascida da raiva. Até mesmo isso estava sumindo no escuro e no desconforto crescente.

Finalmente chegou ao ponto que tinha achado antes, um cruzamento de quatro becos entre paredes mofadas, em algum lugar no coração do labirinto. Parou para procurar seus homens, forçando a vista no escuro. Água pingava devagar sobre pedra ali perto, e um ruído súbito de pés fez seus homens girarem nervosamente, estendendo as adagas, como se para afastar espíritos.

- Você sabe que só deve me procurar na última noite do mês - disse uma voz sibilante junto ao ouvido do general.

Antonido quase caiu de pânico, os pés escorregando nas pedras molhadas enquanto pulava de horror por causa da proximidade. Sua adaga saiu do cinto, numa reação, mas o pulso foi preso num aperto que o deixou desamparado.

O homem que o encarava usava capa e capuz de pano escuro e áspero, com as feições cobertas, mas isso não era necessário no negrume denso dos becos. Antonido quase engasgou diante do cheiro estranho e doce que vinha dele. Era o cheiro de doença, de corrupção macia mascarada com óleo perfumado, e ele imaginou de novo se a capa escondia mais do que apenas a identidade. O homem sombrio se inclinou para perto, a ponto de quase tocar seu ouvido com os lábios ocultos.

- Por que veio aqui fazendo tanto barulho, perturbando metade dos meus vigilantes com sua falta de jeito?

A voz tinha um sibilar de fúria e era tão próxima que transportava a doçura num jorro de hálito quente que fez Antonido sentir vontade de vomitar. Ele estremeceu reagindo quando o capuz tocou seu rosto de leve.

- Tive de vir. Tenho mais trabalho para você e quero que seja feito depressa.

O aperto no pulso ficou mais forte, quase ao ponto de causar dor. Antonido não podia virar o rosto para olhar diretamente o homem, por medo de que os rostos se tocassem. Em vez disso, olhou para o outro lado, tentando não fazer uma careta enquanto o odor parecia manchar cada respiração.

A figura sombria fez "tsk, tsk", uma série de cliques minúsculos.

- Ainda não achei um modo de chegar ao filho de Crasso. É cedo demais para outro. Com pressa, meus irmãos morrem. Você não pagou o bastante para eu perder homens por você, só pelo serviço.

- Esqueça Crasso. Agora ele não representa nada para mim. Quero que procure a filha de Cina e mate-a. Agora é ela o seu alvo. Deixe algo com o nome de Sila, como fez com a cadela do Pompeu.

Suavemente, Antonido sentiu o punho ser guiado de volta ao cinto e, entendendo, embainhou a adaga enquanto a pressão diminuía. Manteve-se firme enquanto esperava, não ousando demonstrar abertamente a repulsa afastando-se. Sabia que, se um insulto fosse percebido, nem ele nem seus homens viveriam para ver as ruas principais de novo.

- Ela deve estar bem guardada. Você terá de pagar pelas vidas dos que vou perder para alcançá-la. Dez mil sestércios é o preço.

Antonido trincou o maxilar para que o ar não entrasse. Cato cobriria a dívida, tinha certeza. Não tinha sido idéia dele contratar esses homens? Assentiu convulsivamente.

- Bom. Será pago. Mandarei meus guardas trazer o ouro aqui no dia do qual falamos, como antes.

- Você terá de arranjar outros guardas. Não venha aqui de novo sem ser convidado ou o custo será mais alto - sussurrou a voz, afastando-se rapidamente.

Seguiram-se passos rápidos, e, num momento, Antonido pôde sentir que estava sozinho. Cautelosamente, foi até onde seus homens tinham estado, abaixou-se estendendo as mãos e se encolheu ao sentir a umidade nas gargantas abertas. Estremeceu e voltou rapidamente por onde tinha vindo.

 

Júlio trouxe seus homens para o alojamento da primogênita uma hora antes do alvorecer. Como Brutus dissera, as construções e a área de treinamento eram impressionantes, e Júlio assobiou baixinho enquanto marchava por baixo do arco externo do portão principal, notando as sentinelas bem espaçadas e as posições fortificadas dentro.

Os guardas do portão deviam estar esperando-os e sinalizaram para os soldados entrarem sem parar. Mas assim que estavam dentro, com o pesado portão fechado, Júlio se pegou num campo de matança semelhante ao que havia entre as muralhas de Mitilene. Qualquer um dos prédios que davam para o pátio principal poderia receber fileiras de arqueiros e, sem ter como recuar, o único caminho para a frente era estreito e interrompido por aberturas nas paredes, para mais arqueiros. Júlio deu de ombros enquanto suas centúrias paravam em posição de sentido, organizando-se até encherem o pátio num quadrado perfeito.

Júlio imaginou quanto tempo Brutus iria mantê-lo esperando. Era uma coisa difícil de prever depois de tanto tempo longe do amigo mais antigo. O garoto que ele conhecera já estaria ali, mas o homem que liderava os remanescentes da Primogênita tinha mudado muito no tempo que passaram longe - talvez o bastante para enterrar o garoto, conjecturava.

Sem qualquer sinal externo da impaciência que sentia, Júlio ficou impassível com seus homens enquanto os minutos se estendiam. Realmente precisava do alojamento, e, pelo que Tubruk dissera, ele era tão bom quanto Brutus afirmava. Mas com Crasso bancando a compra, a bolsa era suficientemente pesada para adquirir o melhor da cidade. Enquanto esperava, Júlio pensou em comprar parte do alojamento com Crasso. Em particular concordava com Tubruk, que o relacionamento que o rico senador estava estimulando poderia ser um espinho no futuro, não obstante o quanto parecesse amistoso no presente.

Brutus saiu do prédio principal com Rênio ao lado. Com interesse, Júlio viu o cotoco do braço esquerdo de Rênio, coberto de couro, mas manteve o rosto imóvel. Brutus parecia furioso, e as esperanças de Júlio morreram com ele.

Quando chegou perto, Brutus parou rigidamente, dando-lhe a saudação de um igual para outro. Júlio devolveu-a sem hesitação. Por um segundo Júlio sentiu dor diante do espaço que os separava, antes de sua decisão se firmar. Não cederia. Brutus não era alguém com quem ele queria usar a inteligência para lisonjear e controlar. Esse tipo de manipulação era para inimigos e aliados formais, não para o menino com quem apanhara um corvo há tantos anos.

- Bem-vindo ao alojamento da Primogênita, tribuno - disse Brutus. Júlio balançou a cabeça diante do tom formal. Um toque de irritação o incomodou e ele dirigiu-se a Rênio, ignorando Brutus:

- Que bom ver você, velho amigo. Não pode fazê-lo entender que estes homens não são para a Primogênita?

Impassível, Rênio olhou-o de volta por um momento antes de responder.

- Este não é o momento de dividir as forças, garoto. O dia de escolha no Campo terminou este ano, não haverá homens extras para outra legião, Vocês dois deveriam parar de estufar o peito diante do outro e fazer as pazes.

Júlio fungou, irritado.

- Pelos deuses, Brutus, o que queria que eu fizesse? A Primogênita não pode ter dois comandantes, e meus homens prestaram juramento somente a mim. Eu os encontrei em povoados e os transformei do nada em legionários. Você não pode esperar que eu os entregue a outro comandante depois de tudo que passaram comigo.

- Eu pensei... que você, mais do que qualquer pessoa, quereria ver a Primogênita forte de novo.

- Como tribuno, posso convocar tropas para você. Vou mandar revirar o campo em busca deles. Juro que vamos refazer a Primogênita Devo isso a Mário tanto quanto você, e mais ainda.

Os olhos de Brutus se fixaram nos dele, avaliando suas palavras.

- Mas você vai estar montando uma legião também? Vai requisitar que outro nome seja acrescentado às listas? - perguntou com a voz tensa.

Júlio hesitou, e Rênio pigarreou para falar. O hábito de anos de obediência fez com que os dois esperassem. Ele olhou Júlio nos olhos, susten-tando-o.

- A lealdade é uma coisa rara, garoto, mas Brutus arriscou a vida por você quando conseguiu que a Primogênita fosse recolocada nas listas. Homens como Cato estão contra ele agora, e ele fez isso por você. Não há conflito. A Primogênita é a sua legião, não vê isso? Seus homens podem servir sob um novo juramento e continuar sendo seus.

Júlio olhou os dois, e era como olhar de volta para a infância. Relutante, balançou a cabeça.

- Eles não podem ter dois comandantes. Brutus o encarou.

- Está pedindo que eu preste juramento a você? Que entregue o comando?

- De que outro modo poderia ser minha espada, Brutus? Mas não posso pedir que você abandone o posto que sempre sonhou em ter. É demais.

Júlio segurou seu braço suavemente.

- Não - murmurou Brutus, subitamente firmando a decisão. - Não é demais. Temos juramentos mais antigos, e sempre jurei que estaria presente quando você chamasse. Está chamando agora?

Júlio respirou longa e lentamente, avaliando o amigo e sentindo o coração martelar no peito, acelerando subitamente.

- Eu chamo - disse em voz baixa.

Brutus assentiu com firmeza, tendo tomado a decisão.

- Então farei o juramento com esses seus Lobos e começaremos este dia com a Primogênita renascida.

Mantendo uma guarda de apenas cinco de seus homens, Júlio caminhou pelas ruas movimentadas da cidade seguindo as orientações dadas por Tubruk. Seu ânimo estava leve enquanto passava pela multidão. Estava com a casa do tio em sua posse e bem guardada por vinte soldados. Mais importante ainda, o problema do que fazer com a Primogênita fora resolvido. Em silêncio abençoou Brutus e Rênio pela lealdade para com ele. Mesmo em seu orgulho, uma parte sua sussurrava que, no fim, havia manipulado o amor dos dois com tanta frieza como se fosse qualquer inimigo. Não houvera outro modo, disse a si mesmo, mas a voz interior não se calava.

Não muito longe da casa de Mário, Júlio achou com facilidade a oficina de Tabbic. Enquanto se aproximava, a empolgação o preencheu. Não via Alexandria desde o casamento, e a princípio sentira medo de perguntar a Tubruk se ela havia sobrevivido às lutas violentas que se seguiram à sua fuga da cidade. Quando pôs a mão na porta hesitou, sentindo um toque do velho nervosismo que o assolava na presença dela. Balançou a cabeça, divertido, ao reconhecer o sentimento, depois entrou, com seus homens bloqueando a rua estreita do lado de fora.

Alexandria estava parada a apenas alguns passos da porta e se virou para receber quem havia entrado. Riu ao vê-lo, com o prazer simples de encontrar um velho amigo. Tinha um colar de ouro no pescoço, com Tabbic trabalhando no fecho atrás dela.

Júlio bebeu a visão da jovem. O ouro iluminava sua garganta com reflexos e ela parecia ter encontrado uma postura ou uma confiança que não existia antes.

- Você está linda - disse ele, fechando a porta da oficina.

- É porque estou perto do Tabbic, aqui - disse ela em tom leve. Tabbic grunhiu, erguendo o olhar de seu trabalho. O joalheiro observou o homem que tinha entrado e se empertigou com a mão apertada às costas, na cintura.

- Quer comprar ou vender? - perguntou ele, tirando o colar do pescoço de Alexandria enquanto falava. Júlio lamentou ver a jóia sair.

- Nenhum dos dois, Tabbic. Júlio é um velho amigo - respondeu Alexandria.

Tabbic assentiu, numa recepção cautelosa.

- É o que está cuidando de Otaviano?

- Ele está se saindo bem - disse Júlio.

Tabbic fungou, sem conseguir esconder um breve sorriso de afeto.

- Fico satisfeito - disse em voz baixa, antes de voltar aos fundos da loja com o colar, deixando-os a sós.

- Você está magro, Júlio. Aquela sua linda esposa não está lhe dando comida? - perguntou Alexandria ineptamente.

Júlio riu.

- Só voltei há dois dias. Estou na antiga casa de Mário na cidade. Alexandria piscou de surpresa.

- Trabalho rápido - disse ela. - Pensei que o general de Sila morava lá.

- Morava. Tenho de ir ao tribunal do fórum para mantê-la, mas isso me dará a chance de limpar o nome de Mário na cidade.

O sorriso de Alexandria desapareceu com a lembrança de tempos mais difíceis, e ela ocupou as mãos tirando o avental, xingando quando o nó resistiu aos dedos. Júlio sentiu vontade de ajudá-la, mas resistiu com esforço. Ficara chocado ao sentir um jorro da antiga atração ao entrar na loja. Isso o preocupou o bastante para ficar longe até ela terminar de desfazer os nós sozinha.

Você é um homem casado, disse a si mesmo com firmeza, no entanto se pegou ruborizando quando ela o olhou de novo.

- Então, por que veio à nossa humilde oficina? Duvido que seja só para me olhar, Júlio.

- Poderia ser. Fiquei satisfeito quando Tubruk disse que você tinha sobrevivido. Ouvi falar que Metela tirou a própria vida.

Como sempre acontecia diante dela, Júlio se pegou procurando palavras, irritado com a própria falta de fluência.

Alexandria se virou para ele, com os olhos brilhando.

- Eu não a teria deixado se soubesse o que ela ia fazer. Deuses, eu a teria levado à casa de Tabbic. Ela foi vítima, tanto quanto os homens que o desgraçado do Sila matou nas ruas. Só lamento por ele ter morrido depressa, pelo que dizem. Queria que fosse bem devagar.

- Eu não me esqueci, por mais que o Senado pareça querer - concordou Júlio, com a voz amarga.

Uma comunicação silenciosa passou entre os dois, uma lembrança dos entes que eles haviam perdido e uma intimidade que estava mais viva do que poderiam ter adivinhado.

- Vai fazer com que eles paguem, Júlio? Odeio a idéia da imundície que vi na época continuar correndo solta. Roma é um lugar mais sujo do que dá para ver do fórum.

- Farei o que puder. Vou começar fazendo com que honrem Mário, o que deve ser difícil de engolir para algumas gargantas - respondeu sério.

Ela sorriu de novo.

- Deuses, fico feliz por ver seu rosto depois de tanto tempo. Traz o passado de volta - disse ela, e o rubor dele voltou, fazendo-a rir, lembrando. Sua confiança de mulher livre a tornava quase irreconhecível, mas mesmo assim ele sentia que ela era alguém em quem podia confiar simplesmente porque fizera parte dos velhos tempos. A voz mais cínica dentro dele suspeitava de que estivesse sendo insuportavelmente ingênuo. Todos tinham mudado, e Brutus já deveria bastar como lembrança disso.

- Nunca agradeci pelo dinheiro que você deixou com Metela para quando estivesse livre - disse ela. - Comprei com ele uma parte desta oficina. Significou muito para mim.

Ele descartou o agradecimento com um gesto.

- Queria ajudá-la - respondeu remexendo-se de um pé para o outro.

- Veio à oficina ver como eu o tinha gastado?

- Não, sei que disse que viria vê-la só pela amizade, mas do jeito como aconteceu... - começou ele.

- Eu sabia! Você quer um pendente para sua mulher ou um broche lindo? Eu faço uma coisa especial para combinar com os olhos dela.

Sua animação contrastava com o humor mais sério dele, tão diferente do garoto atrapalhado que ela havia conhecido.

- Não, é para o julgamento e depois. Quero encomendar escudos de bronze para homenagear Mário; a efígie dele, as batalhas, até a morte, quando a cidade caiu. Quero que contem a história da vida dele.

Alexandria passou a mão sobre o cabelo preso, deixando uma minúscula mancha de pó de ouro junto às raízes na testa. Os grãos captaram a luz quando ela se moveu e, mesmo contra a vontade, Júlio gostaria de passar o polegar suavemente na pele dela, para tirá-los. Concentrou-se, irritado consigo mesmo.

Ela franziu a testa, pensando, pegando um estilete e uma tabuleta de cera numa prateleira.

- Eles devem ser grandes, talvez com noventa centímetros de largura para ser visíveis à distância.

Alexandria começou a fazer esboços na placa de cera, franzindo um olho até quase fechar. Júlio olhou-a afastar um fiapo solto de cabelo na testa. Tubruk tinha dito que ela era boa, e o julgamento dele geralmente era confiável.

- O primeiro deveria ser uma efígie. O que acha disso?

Ela virou a placa e Júlio relaxou ao ver um rosto que reconhecia. As feições tinham parte da força que ele recordava, ainda que as linhas simples nunca pudessem ser mais do que um eco da vida que preenchera Mário.

- É ele. Não sei como você consegue fazer isso.

- Tabbic adora ensinar. Posso fazer seus escudos, mas só o metal já vai ser caro. Não quero barganhar, Júlio, mas você está falando em meses de trabalho. É o tipo de coisa que poderia fazer o meu nome na cidade.

- O custo não importa. Confio em que cobrará um preço justo, mas preciso deles em semanas, não meses. O Senado não deixará o julgamento esperar muito tempo, com Antonido furioso com a casa perdida. Preciso do melhor que possa fazer o mais rápido que puder produzir.

- Tabbic? - chamou Alexandria.

O artesão grisalho veio da sala dos fundos, ainda segurando ferramentas. Ela explicou rapidamente e Júlio sorriu quando o rosto do sujeito se iluminou com interesse. Finalmente, ele assentiu.

- Posso ficar com o trabalho normal da oficina, mas os broches encomendados terão de ser entregues. Veja bem - ele coçou o queixo pensativamente -, isso poderia aumentar o preço dos que você terminou, o que não seria mau. Teremos de alugar um lugar maior e uma forja bem maior. Vejamos...

Ele pegou outra plaqueta na prateleira e juntos os dois escreveram e conversaram em voz baixa durante longo tempo, enquanto Júlio olhava, exasperado. Finalmente chegaram a um acordo, e Alexandria se virou de novo para ele, com o ouro no cabelo ainda brilhando contra a pele.

- Aceito o trabalho. O preço vai depender de quantos derem defeito e tivermos de fundir de novo. Terei de discutir que cenas vai querer, quando você tiver algumas horas livres.

- Você sabe onde eu estou - disse ele. - Pode ir lá quando quiser, se precisar me ver.

Alexandria ficou remexendo o estilete, subitamente desconfortável.

- Eu preferiria se você viesse aqui - falou, não querendo explicar como a velha propriedade havia testado sua força na última vez em que passara pelo portão.

Júlio entendeu o que ela não disse.

- Farei isso. Talvez até traga aquele garoto quando vier. Tubruk diz que ele vive falando de você e de... Tabbic.

- Deve fazer isso. Nós dois sentimos falta dele. A mãe do menino vai vê-lo sempre que pode, mas deve ser difícil para ele ficar longe dela - respondeu Alexandria.

- Ele é um terror na propriedade. Tubruk o pegou montando meu cavalo nos campos há alguns dias.

- Ele não o espancou? - perguntou Alexandria depressa demais. Júlio balançou a cabeça, rindo.

- Tubruk não faria isso. Felizmente Rênio não achou o garoto, se bem que não sei como conseguiria lhe dar uma surra com uma mão só. Diga à mãe dele para não se preocupar. O menino é do meu sangue, eu cuidarei dele.

- Ele nunca teve um pai, Júlio. Um menino precisa mais de um pai do que uma menina.

Júlio hesitou, não querendo a responsabilidade.

- Entre Rênio e Tubruk, ouso dizer que ele vai crescer direito.

- Os dois não são do sangue dele, Júlio - respondeu Alexandria, sustentando seu olhar até ele desviá-lo.

- Certo, vou mantê-lo comigo, se bem que não tive um momento de paz desde que voltei à cidade. Eu cuido dele.

Ela deu um riso maroto.

- Não há exercício maior para os talentos de um homem do que criar o filho - citou.

Júlio suspirou.

- Meu pai costumava dizer isso.

- Eu sei. E ele estava certo. Não existe futuro para aquele menino correndo pelas ruas desta cidade. Nenhum. Onde Brutus estaria se sua família não o tivesse criado?

- Já concordei, Alexandria. Não precisa se estender sobre o assunto. Sem aviso, ela levantou a mão para tocar a cicatriz branca que atravessava a testa dele.

- Deixe-me olhá-lo - disse chegando mais perto e assobiando baixinho. - Você tem sorte de estar vivo. É por isso que seu olho está diferente?

Ele deu de ombros, pronto para desviar o assunto. Então a história lhe escapou: a luta na Accipiter, o ferimento na cabeça que levou meses para curar, os ataques que permaneceram.

- Nada é igual desde que eu parti - falou. - Ou tudo é, e eu mudei demais para ver. Caberá diz que os ataques podem continuar até o fim da vida ou parar amanhã, de repente. Não há como saber. - Ele levantou a mão esquerda e forçou a vista, mas ela estava firme.

- Às vezes acho que a vida não passa de dor com momentos de alegria - respondeu Alexandria. - Você está mais forte do que antes, Júlio, mesmo com o ferimento. Descobri que o truque é esperar que a dor passe e aceitar os momentos de felicidade sem me preocupar com o futuro.

Júlio baixou a mão, subitamente com vergonha de ter falado tão intimamente de seus temores. Aquilo não era um fardo para ela, nem para ninguém, exceto ele. Ele era o chefe de uma família, tribuno de Roma e general da Primogênita. Estranho como não conseguia invocar o tipo de prazer que sabia que um sonho assim teria lhe dado antigamente.

- Você... viu Brutus? - perguntou Júlio depois de uma pausa.

Ela se virou para o outro lado e ocupou as mãos tirando as ferramentas da bancada de Tabbic.

- Temos nos visto.

- Ah. Eu não disse a ele que nós... hmm... Alexandria riu de súbito, olhando-o por cima do ombro.

- É melhor não contar. Já existe competição suficiente entre vocês sem me colocar no meio.

Para sua perplexidade, Júlio reconheceu uma pontada de ciúme entrando em seus pensamentos. Lutou contra isso. Ela não era sua, e, a não ser por uma lembrança perfeita e congelada havia anos, nunca fora. Alexandria não pareceu sentir o redemoinho interno de seus sentimentos enquanto a olhava.

- Mantenha-o perto de você, Júlio. Roma é mais perigosa do que você imagina.

Júlio quase riu ao pensar no que tinha sobrevivido para voltar à cidade, mas o fato de que sua vida importava para ela o deixou sério.

- Eu o manterei perto - falou.

Júlio desmontou do cavalo para andar os últimos três quilômetros até a propriedade no campo. Planos faziam redemoinhos em sua cabeça enquanto caminhava com as rédeas enroladas no braço. Desde a volta, os acontecimentos tinham se movido depressa demais para ser acompanhados. O posto de tribuno, a tomada da casa de Mário e o comando da Primogênita, o reencontro com Alexandria. Otaviano. Cornélia. Ela parecia uma estranha. Franziu a testa enquanto andava, acalentado pelo barulho dos cascos no pó ao lado. A lembrança da mulher o tinha ajudado a suportar a pior parte do cativeiro. O desejo de voltar a ela era uma força secreta que suplantava os ferimentos, a doença e a dor. Mas quando finalmente a abraçou foi como se ela fosse outra pessoa. Esperava que isso passasse com o tempo, mas parte dele ainda ansiava pela mulher amada, ainda que ela estivesse a apenas um quilômetro e esperando por ele.

O processo judicial que viria não o preocupava. Ele tivera mais de seis meses de monotonia numa cela de navio para montar uma defesa para Mário e, se Antonido não lhe tivesse dado a chance, ele sabia que teria forçado o assunto de algum outro modo. A continuação da imagem de seu tio como uma figura de vergonha na cidade não era uma coisa que ele pudesse suportar.

Cornélia veio encontrá-lo no portão e ele beijou-a. Tardiamente ocorreu-lhe que havia outras coisas entre marido e mulher que ele havia negligenciado nas duas noites desde a volta. A intimidade restauraria seu amor por ela, tinha certeza. Com a exaustão das viagens desaparecendo depressa beijou-a de novo,-demoradamente, e, preocupado com seus pensamentos, não a notou enrijecer num pânico súbito encostada nele. Júlio entregou o cavalo a um escravo que esperava.

- Você está bem? - sussurrou no ouvido dela. O cheiro do perfume de Cornélia preencheu seus pulmões com frescor. Ela assentiu em silêncio.

- O neném está dormindo, mulher? Ela afastou a cabeça para olhá-lo.

- O que tem em mente? - perguntou, lutando para ficar calma.

- Eu lhe mostro, se você quiser - disse ele, beijando-a de novo. A pele dela estava pálida e linda enquanto andavam juntos para a privacidade da casa.

Júlio se sentiu desajeitado no quarto, cobrindo o nervosismo com beijos enquanto jogava as roupas no chão. Havia alguma coisa errada nas reações dela, mas ele não tinha certeza se seria apenas devido à longa separação. Os dois tinham se conhecido por tão pouco tempo, no total, que ele sabia que não deveria esperar uma intimidade fácil, e instigou-a a relaxar acariciando sua nuca e passando as mãos de leve pelas costas dela quando se sentaram nus, com apenas uma lâmpada fraca para tornar o quarto dourado.

Cornélia suportou seus beijos e sentiu vontade de soluçar de sofrimento pelo que passara. Não tinha contado a ninguém sobre o que Sila havia feito, nem mesmo a Clódia. Era uma vergonha que esperava esquecer, uma coisa que tinha conseguido empurrar para o fundo até quase achar que não havia acontecido. Moveu-se junto com Júlio enquanto ele se excitava, mas não sentiu nada além de medo enquanto as lembranças da última visita ao ditador relampejavam soltas na memória. Ouviu de novo o grito da filha no catre ao lado enquanto Sila montava nela, e lágrimas escorreram lentas dos olhos à medida que a crueldade vinha à tona com uma força avassaladora.

- Acho que não consigo, Caio - falou com a voz embargando.

- O que é? - respondeu Júlio, chocado diante das lágrimas. Cornélia se enrolou nele e ele a abraçou, pousando a cabeça na dela enquanto os soluços a faziam se convulsionar.

- Alguém machucou você? - sussurrou ele, e um grande vazio penetrou em seu peito enquanto verbalizava o pensamento terrível.

A princípio ela não pôde responder, mas então começou a sussurrar, com os olhos fechados com força. Não o pior, mas o início, o terror da gravidez, a raiva impotente por saber que não havia ninguém para impedir Sila em toda Roma.

Júlio sentiu uma grande tristeza pesando enquanto ouvia. Sem aviso, lágrimas de raiva e frustração surgiram diante do que ela havia passado. Controlou-se ferozmente, mordendo o lábio contra as perguntas que queria fazer, as perguntas inúteis e estúpidas que serviriam apenas para ferir os dois ainda mais. Nada disso importava, a não ser ele abraçá-la até os soluços desaparecerem lentamente em minúsculos tremores doloridos.

- Ele está morto, Lia. Ele não pode machucar nem amedrontar você mais.

Contou como o amor dela o mantivera forte quando achava que ficaria louco na cela escura, como sentiu orgulho no casamento, o quanto ela significava em sua vida. Suas lágrimas se secaram junto das dela, e enquanto a lua baixava perto do amanhecer os dois dormiram, escorregando para longe um do outro.

 

Com o sol apenas dois palmos acima do horizonte, Tubruk encontrou Júlio encostado na muralha da propriedade, com um cobertor sobre o peito nu para se proteger do frio da manhã.

- Você parece doente - disse o velho gladiador.

Para sua surpresa, Júlio não respondeu e mal pareceu notar a aproximação. Os olhos do rapaz estavam vermelhos devido a apenas duas horas de sono, e a brisa fria provocava arrepios na pele, que ele ignorava. Tubruk pôde ver os traços brancos de cicatrizes contra a pele bronzeada, uma escrita de dores e lutas antigas.

- Júlio? - perguntou baixinho.

Não houve resposta, mas Júlio deixou o cobertor cair, ficando apenas de sandálias e com a bracae, os calções justos que chegavam até a metade das coxas.

- Preciso correr um pouco - disse Júlio, olhando a mata na colina acima. Sua voz estava fria como a brisa, e Tubruk estreitou os olhos, preocupado.

- Vou com você, garoto, se não se importar de esperar - respondeu, e quando Júlio deu de ombros, Tubruk voltou à casa para tirar a túnica pesada e a calça.

Quando voltou, Júlio estava alongando devagar os músculos das pernas, e o administrador se juntou a ele, amarrando as tiras de couro das sandálias até o meio da canela.

Quando ambos estavam prontos, partiram juntos morro acima, Júlio estabelecendo o ritmo.

Tubruk correu com facilidade o primeiro quilômetro e meio pela mata, agradecendo por não ter negligenciado a forma física. Então, quando seu peito começou a queimar de exaustão, olhou para Júlio. Ele corria com leveza pela trilha irregular, os pulmões expandindo o peito em respirações longas e lentas. Tubruk o acompanhou, ficando ao seu lado por curtos jorros de velocidade, depois voltando ao passo mais lento. Júlio não falava enquanto se esforçava, o suor escorrendo em gotas que ardiam nos olhos.

Depois de mais um quilômetro e meio eles saíram da escuridão fresca e verde da floresta e correram pelo perímetro da propriedade. Tubruk começou a bufar com a respiração curta e brusca, as pernas protestando. Por mais que estivesse em forma, nenhum homem de sua idade poderia suportar aquele ritmo feroz por longo tempo, e Júlio não mostrava qualquer sinal de cansaço, como se o desconforto do corpo fosse ignorado ou mesmo esquecido. Seus olhos estavam fixos numa concentração interna, e ele não viu que Tubruk estava começando a sentir dor. O velho gladiador entendia, de algum modo, que era importante estar junto quando Júlio finalmente se exaurisse, mas o esforço estava fazendo com que luzes relampejantes aparecessem em sua vista, e o coração martelava dolorosamente nos pontos de pulsação, criando ondas de calor que faziam aumentar a tontura.

Júlio parou sem aviso, apoiando as mãos nos joelhos e respirando ofegante. Tubruk parou instantaneamente, agradecido pela pausa. Avançou para bloquear o caminho de Júlio, esperando que ele não recomeçasse depois de alguns segundos parado.

- Sabia do que aconteceu com Cornélia? - perguntou Júlio. Tubruk sentiu frio, com a exaustão subitamente irrelevante.

- Sabia. Clódia me contou.

De repente Júlio xingou numa fúria violenta, apertando os punhos, o rosto ficando mais vermelho numa emoção descontrolada. Tubruk quase recuou um passo e ficou pensando. O rapaz andou de um lado para o outro, com a fúria fazendo suas mãos agarrarem o ar querendo algo que pudesse prender e matar. Seus olhos se fixaram no administrador, e Tübruk teve de usar toda a força para sustentar o olhar.

- Você me disse que iria protegê-la - rosnou Júlio, dando um passo que o trouxe a centímetros do rosto de Tubruk. - Confiei em você para mantê-la em segurança.

Júlio levantou o punho num espasmo súbito, e Tubruk ficou imóvel aceitando o soco que viria. Em vez disso, Júlio fungou e girou.

Tubruk falou em voz baixa, conhecendo parte das emoções violentas que tinham roubado o controle de Júlio:

- Quando Clódia me contou, eu agi - disse ele. Júlio não pareceu ouvi-lo.

- Aquele desgraçado do Sila a aterrorizou. Colocou as mãos imundas nela - disse Júlio e irrompeu em soluços. Ajoelhou-se lentamente no capim baixo, uma das mãos cobrindo os olhos. Tubruk se agachou e abraçou o rapaz, puxando-o para o peito com uma força enorme. Júlio não resistiu, sua voz era um grasnido abafado. - Ela achou que eu iria odiá-la,Tubruk. Dá para acreditar?

Tubruk o apertou firme, deixando a tristeza sair. Quando Júlio finalmente se acalmou, o administrador soltou-o e olhou seu rosto, pálido de sofrimento.

- Eu o matei, Júlio. Matei Sila, quando fiquei sabendo. -Júlio arregalou os olhos, chocado, e Tubruk continuou, aliviado por finalmente poder dizer: - Consegui um lugar como escravo na cozinha dele e coloquei acônito em sua comida.

Júlio se descongelou ao perceber o perigo que enfrentavam. Agarrou o braço de Tubruk com força.

- Quem mais sabe?

- Somente Clódia. Não contei a Cornélia para protegê-la - respondeu Tubruk, resistindo à ânsia de se soltar.

- Ninguém mais? Tem certeza? Você poderia ser reconhecido? Finalmente com raiva, Tubruk levantou as mãos e tirou os dedos rígidos de Júlio, com um grunhido.

- Todo mundo que poderia me identificar está morto. Meu amigo de trinta anos que me vendeu à casa de Sila morreu sob tortura sem me denunciar. A não ser Clódia e nós, ninguém mais pode fazer a ligação, eu juro.

- Ele olhou nos olhos duros de Júlio e falou devagar e com força por entre os dentes, adivinhando seus pensamentos: - Você não vai tocar em Clódia, Júlio. Nem pense nisso.

- Enquanto ela viver, minha mulher e minha filha correm perigo - respondeu Júlio, sem se abalar.

- Enquanto eu viver também. Vai me matar? Terá de fazer isso, se ferir Clódia, dou minha palavra. Caso contrário, eu mesmo irei atrás de você.

Os dois ficaram parados próximos, ambos rígidos de tensão. O silêncio entre eles cresceu, mas nenhum desviou o olhar. Então Júlio estremeceu e o ar maníaco abandonou seus olhos. Tubruk continuou olhando-o irado, precisando de que ele admitisse. Finalmente o rapaz falou:

- Certo, Tubruk. Mas se os silanos vierem atrás dela ou de você, não deve haver qualquer ligação com minha família.

- Não me peça isso! - respondeu Tubruk furioso. - Servi à sua família por décadas. Não darei meu sangue e o dela também! Eu a amo, Júlio, e ela me ama. Meu dever, meu amor por você não chegarão ao ponto de fazer mal a ela. Isso não acontecerá. De qualquer modo, sei que não existe caminho ligando Sila a mim ou a você. Tenho sangue nas mãos para provar isso.

Quando Júlio falou de novo, sua voz estava pesada de cansaço.

- Então deve partir. Tenho fundos suficientes para você se estabelecer em algum lugar longe de Roma. Posso libertar Clódia e você poderá levá-la.

Tubruk trincou o maxilar.

- E sua mãe? Quem cuidará dela?

Toda a paixão se esvaiu do rapaz, deixando-o exausto e vazio.

- Há Cornélia, e eu posso contratar outra aia. Que outra opção existe, Tubruk? Acha que quero isso? Esteve comigo a vida inteira. Mal posso imaginar não tê-lo administrando a propriedade, mas os silanos ainda estão procurando os assassinos, você sabe. Ah, deuses, a filha de Pompeu!

Ele se imobilizou de terror quando as implicações da morte ficaram claras. Sua voz era um sussurro áspero.

- Eles atacaram às cegas. Cornélia já corre perigo! - falou.

Sem outra palavra, começou a correr de volta para a propriedade, cortando à esquerda até a ponte estreita sobre o riacho. Tubruk xingou e correu atrás, incapaz de diminuir a distância com as pernas cansadas. Assim que isso fora dito, o velho gladiador sabia que Júlio estava certo, e o pânico o tocou. Perder Cornélia depois de tudo que tinha feito para protegê-la o fez sentir vontade de gritar de fúria enquanto forçava um passo mais rápido ignorando a dor.

Cornélia tinha dormido tão pouco quanto o esposo, e quando os dois homens chegaram ofegando estava com Clódia e Júlia, falando de uma ida à cidade. Ouviu Júlio chamando os soldados e se levantou do divã, com o nervosismo evidente. Apesar dos momentos de ternura que ele havia demonstrado, Júlio não era o homem que saíra de Roma em chamas havia anos. Sua inocência havia sumido, talvez com as cicatrizes das quais não queria falar. Havia momentos em que ela pensava que não tinha mais lágrimas pelo que Sila havia tirado dos dois.

Quando ele entrou intempestivamente na sala, os olhos dela se arregalaram, nervosos.

- O que é? - perguntou.

Júlio franziu a testa para Clódia em resposta, sabendo, como Tubruk, que tornar Cornélia parte do segredo só aumentaria o risco. Tubruk o acompanhou e trocou um olhar com a velha aia, assentindo levemente para confirmar o que ela adivinhara. Júlio falou com urgência, aliviado por ver Cornélia em segurança. A corrida até em casa fora uma agonia para ele, enquanto se atormentava com imagens de assassinos se esgueirando para feri-la.

- Acho que você pode estar correndo perigo da parte dos amigos de Sila. Pompeu perdeu a filha e ele era chegado a Mário. Eu deveria ter pensado nisso antes! Pode ser que os que querem vingar o ditador estejam atacando os inimigos dele agora mesmo, esperando pegar o verdadeiro assassino em suas redes. Terei de chamar alguns homens da Primogênita para guardá-la agora mesmo e mandar mensageiros a Crasso. Ele pode ser outro alvo. Deuses, e até mesmo Brutus! Se bem que este pelo menos está bem protegido.

Andou de um lado para o outro no cômodo, com o peito nu ainda ar-fando pela corrida até em casa.

- Terei de usar astúcia contra eles, mas não posso deixar esses homens vivos. De um modo ou de outro terei de quebrar a espinha dorsal da aliança deles em nome de Sila. Não podemos viver na expectativa da faca do assassino.

Ele se virou de repente e apontou para o administrador, banhado em suor junto à porta.

- Tubruk, quero que mantenha minha família em segurança até que isto termine. Se eu estiver em Roma, quero alguém em quem possa confiar para cuidar de minha família aqui.

O homem mais velho se empertigou cheio de dignidade. Não iria mencionar as ameaças violentas que Júlio fizera durante a corrida, mas era impossível tentar adivinhar constantemente para onde o pensamento de Júlio iria no momento seguinte.

- Me quer aqui? - disse ele, as palavras com um significado que fez Júlio parar de andar.

- Quero. Eu estava errado. Minha mãe precisa de você. Eu preciso de você mais do que nunca. Em quem mais posso confiar?

Tubruk assentiu, sabendo que a conversa no morro não seria mais mencionada. O rapaz que andava de um lado para o outro como um leopardo não era de demorar nos erros do passado.

- Quem é a ameaça? - perguntou Cornélia, mantendo a cabeça erguida contra o medo que crescia por dentro.

- Cato os lidera, com seus seguidores. Talvez Antonido. Até mesmo o pai de Suetônio pode fazer parte. Eles devem estar por trás ou devem saber - respondeu Júlio.

Cornélia estremeceu ao ouvir o nome do general de quem se lembrava. Seu marido xingou ao ter um pensamento.

- Eu deveria ter matado o cão de Sila quando tive chance. Ele estava muito perto do portão de Mário. Se teve participação no assassinato da filha de Pompeu, é mais perigoso do que eu tinha percebido. Deuses, eu fui cego!

- Então deve procurar Pompeu. Ele é seu aliado, quer saiba disso ou não - disse Tubruk rapidamente.

- E Crasso, e o seu pai Cina também - respondeu Júlio, sinalizando para Cornélia. - Devo me encontrar com todos eles.

Enquanto Cornélia se deixava afundar de volta no divã, Júlio se apoiou num joelho e segurou a mão dela.

- Não deixarei que nada lhe faça mal, prometo. Posso transformar este lugar numa fortaleza com cinqüenta dos meus homens.

Ela viu nos olhos de Júlio a necessidade que ele tinha de protegê-la. Não amor, mas dever de marido. Pensou que tinha ficado entorpecida para a perda, mas ver o rosto dele tão frio e sério foi pior do que qualquer coisa.

Forçando um sorriso, Cornélia encostou a mão na bochecha dele, ainda quente da corrida. Uma fortaleza ou uma prisão, pensou ela.

 

Quando foram vistos cavaleiros na estrada da cidade dois dias depois, Júlio e Brutus deixaram a propriedade em alerta em minutos. Rênio tinha trazido cinqüenta homens da Primogênita, e quando os cavaleiros se aproximaram do portão teria sido necessário um exército para romper as defesas. Havia arqueiros em cada muro, e Cornélia estava escondida com os outros num novo conjunto de cômodos que Júlio destinara exatamente a esse propósito. Clódia tinha levado Júlia para baixo sem discutir, mas um tempo precioso fora perdido transportando Aurélia, que não entendia nada do que estava acontecendo.

Júlio ficou parado sozinho no pátio, observando enquanto Tubruk e Rênio assumiam suas posições finais. Otaviano fora mandado para baixo com as mulheres, sob protestos furiosos. Tudo ficou quieto e Júlio assentiu sozinho. A propriedade estava segura.

Com a espada na bainha, subiu a escada até a laje em cima do portão e olhou quando os cavaleiros pararam a alguma distância, cautelosos com a súbita demonstração de força nas muralhas. Uma carruagem vinha entre eles, puxada por dois cavalos que deram alguns passos relutantes, sentindo a tensão. Júlio olhou sem falar quando um dos cavaleiros desmontou e estendeu um pedaço de seda no chão.

Cato pisou no pano pesadamente, ajeitando as dobras da toga com atenção delicada. O pó da estrada não o havia tocado, e ele fixou os olhos de Júlio, inexpressivo, antes de sinalizar para seus homens desmontarem e se aproximarem do portão.

Pelas costas Júlio levantou os dedos sinalizando o número de estranhos. Eram muito poucos para um ataque aberto, mas Júlio se sentia desconfortável em ter aquele homem perto das pessoas que amava. Retesou o queixo enquanto eles andavam até a sombra do portão. Brutus lhe contara sobre o filho de Cato, mas ele não podia fazer nada para mudar o que havia acontecido. Como Brutus, simplesmente teria de ir até o fim.

Um punho bateu nas tábuas grossas do portão.

- Quem vem à minha casa? - perguntou Júlio, olhando Cato nos olhos, abaixo. O sujeito encarou de volta impassível, contente em esperar as formalidades. Sabia melhor do que ninguém do tumulto na mente de Júlio. A visita de um senador não poderia ser recusada.

Um soldado ao lado de Cato falou suficientemente alto para sua voz chegar à casa.

- O senador Cato deseja entrar para discutir um assunto particular. Dispense seus homens e abra este portão.

Júlio não respondeu. Em vez disso, desceu ao pátio e conferenciou rapidamente com Brutus e Tubruk. Os defensores nas muralhas foram trazidos para baixo e mandados para as construções, com ordem de esperar um chamado às armas. Os outros receberam tarefas que lhes permitiram ficar por perto. Era uma farsa ver homens armados tirando cavalos dos estábulos e cuidando deles ao ar livre, mas Júlio não estava com clima para arriscar e, quando abriu pessoalmente o portão, imaginou se algum sangue seria derramado na hora seguinte.

Cato passou pelo portão, sorrindo ligeiramente ao ver o número de homens armados na área.

- Esperando uma guerra, César? - perguntou.

- Uma legião precisa se exercitar, senador. Não gostaria de ser apanhado desprevenido.

Júlio franziu a testa quando os homens de Cato entraram atrás de seu senhor. Ele tinha de permitir isso, mas agradeceu aos seus deuses domésticos por ter tido a previdência de trazer tantos soldados da Primogênita. Os homens de Cato estariam mortos em segundos se ele desse a ordem. Os rostos deles mostravam que entendiam isso tão bem quanto todos os outros, enquanto seus cavalos eram levados para longe, deixando-os expostos no pátio.

Cato olhou para ele.

- Então agora é o general da Primogênita? Não me lembro de ter sido apresentada uma candidatura ao Senado.

Sua voz era leve e sem ameaça, mas Júlio se enrijeceu, sabendo que tinha de tomar cuidado com cada palavra.

- Ainda não é oficial, mas eu falo por eles - respondeu.

A cortesia exigia que oferecesse ao senador um assento e algo para comer depois da viagem, mas não conseguia se obrigar a pronunciar a ficção de polidez, mesmo sabendo que Cato receberia isso como um pequeno triunfo.

Rênio e Brutus chegaram ao lado de Júlio, e Cato olhou de um para o outro, aparentemente sem se afetar.

- Muito bem, Júlio. Quero falar sobre o meu filho - disse Cato. - Ofereci ouro por ele e foi recusado. Vim esta noite perguntar o que você quer em troca.

Cato levantou a cabeça e Júlio viu que seus olhos fundos estavam brilhantes. Imaginou se aquele homem tinha ordenado a morte da filha de Pompeu. Será que o risco da parte dele seria diminuído se devolvesse Germínio ao pai? Ou será que isso seria visto como uma fraqueza que Cato usaria para transformar sua casa em cinzas?

- Ele fez um juramento, senador. Há...

- Está com pouca gente, não é? - interrompeu Cato. - Posso trazer mil homens aqui amanhã de manhã. Escravos saudáveis da minha propriedade para serem a espinha dorsal da Primogênita.

Rênio grunhiu de repente.

- Não há escravos nas legiões, senador. Os homens da Primogênita são livres.

Cato balançou a mão como se isso não importasse.

- Então liberte-os depois de terem feito seu precioso juramento. Não tenho dúvida de que um homem como você encontraria um modo, Rênio. Você é tão... cheio de recursos.

Enquanto ele falava, uma fração de seu desprezo brilhou, e Júlio soube que ceder seria convidar a destruição.

- Minha resposta é negativa, senador. O juramento não pode ser retirado.


Cato olhou-o sem falar por um momento.

- Então você me deixa sem escolha. Se meu filho tem de servir dois anos sob seu comando, eu o quero vivo no fim. Mandarei os homens - ele fez uma pausa -, escravos libertos, Rênio. Irei mandá-los a você, para protegerem meu filho.

- Quando o senhor os tiver libertado, eles podem não fazer o que o senhor quiser-respondeu Rênio, encarando o senador com um olhar igualmente feroz.

- Eles virão - disse Cato rispidamente. - Poucos homens são tão encrenqueiros comigo como vocês têm sido.

- Eles não serão guardas do seu filho se vierem para a Primogênita - disse Júlio. - Acredite quando digo que não permitirei.

- Você não vai me dar nada? - disse Cato, com a voz subindo em fúria. Todo o movimento no pátio mudou quando mãos começaram a se esgueirar para as espadas.

- Se os deuses permitirem, entregarei seu filho de volta daqui a dois anos. Só isso - respondeu Júlio com firmeza.

- Faça isso, César. Se ele não sobreviver... - Cato falou com os dentes trincados, sem qualquer fingimento de calma. - Certifique-se de que ele sobreviva.

Girando nos calcanhares, ele sinalizou para seus homens abrirem o portão. Os soldados da Primogênita chegaram primeiro, e Cato subiu na carruagem sem olhar para trás.

Brutus se virou para Júlio enquanto o portão escondia a visão dos homens de Cato.

- O que você está pensando! Quantos dos "escravos libertos" dele você acha que serão espiões? Quantos serão assassinos? Você pensou nisso? Deuses, tem de achar um modo de impedi-lo.

- Você não quer mais mil homens na Primogênita? - perguntou Júlio.

- A esse custo? Não, acho que eu preferiria devolver Germínio ao pai ou ter recebido o ouro. Se fosse um número menor, poderíamos vigiá-los, mil! Não poderemos confiar em metade da Primogênita. É insano.

- Ele está certo, você sabe - disse Rênio. - Cem seria mais do que gostaria de pegar, quanto mais um número assim.

Júlio olhou para os dois. Os dois não tinham estado presentes quando ele percorreu o litoral pegando filhos dos romanos, nem quando encontrou seus veteranos na Grécia.

- Iremos torná-los nossos - falou, ignorando suas próprias dúvidas

 

Tendo dormido até o sol chegar à altura máxima acima da cidade invernal Cato sofria com uma dor de cabeça que nem o vinho quente podia aplacar. Latejava ligeiramente enquanto ele ouvia Antonido, praticamente não conseguindo suportar a pose do outro.

- Dez mil sestércios é alto, mesmo para uma morte, Antonido.

Cato gostou de ver o risco de suor que brotou na testa do general, sabendo tanto quanto ele que, se o dinheiro não fosse pago, uma morte certa viria dos assassinos. Mantê-lo esperando era uma bela resposta, sabia Cato, mas mesmo assim deixou o tempo se arrastar, batendo os dedos preguiçosamente no braço do divã. A inimizade pública de Pompeu seria de esperar, claro, mesmo que os assassinos não tivessem deixado um pedaço de argila com o lembrete no punho fechado da menininha, como fora mandado. Cato não teria adivinhado que o senador jogaria fora seus favores simplesmente para deixar claro o argumento, mas podia aplaudir a sutileza do gesto. Ele esperara que Pompeu agisse a partir do sofrimento e da tolice, permitindo que Cato o prendesse e o retirasse dos jogos de poder no Senado. Em vez disso, Pompeu tinha mostrado uma contenção que o marcava como um inimigo mais perigoso do que Cato havia percebido. Suspirou e coçou o canto da boca. Se fosse avaliado pelos inimigos, ele certamente era uma força em Roma.

- Eu me sentiria tentado a retirar o apoio e as verbas da sua vingança, Antonido, se não fosse pela questão desse seu julgamento. Contratei Rufo Sulpício para ser seu advogado.

- Posso me defender de César, senador. É um caso bastante simples - respondeu Antonido, surpreso.

- Não. Quero que aquele garnizé seja humilhado. Pelo que vi, ele é suficientemente jovem e impetuoso para ser derrubado com facilidade. Um embaraço público diante dos magistrados e dos plebeus deverá remover parte do brilho recente de seu posto de tribuno. Talvez até possamos exigir sua morte pelos males que você sofreu. - Cato coçou a testa com os olhos fechados, a boca grossa se franzindo. - Há um preço pelo meu filho, e ele deve pagá-lo. Use Sulpício. Há poucas mentes melhores do que a dele em Roma. Ele vai nomear os juristas para você e encontrar os precedentes na lei. Não tenho dúvida de que o tal de César estará bem preparado. Viu a convocação?

- Não, estava esperando que uma data fosse marcada. Mandei uma representação ao pretor, mas ainda não houve resposta.

- Por isso, Antonido, é que você precisa de um homem como Sulpício. Encontre-se com ele e deixe-o cuidar do processo. Ele garantirá uma data para o julgamento em um mês ou menos. Esse é o serviço dele, você sabe. Sua preciosa casa estará de volta às suas mãos, e por isso espero que você seja adequadamente agradecido a mim.

- Eu sou, senador. E o dinheiro?

- Sim, sim - disse Cato, irritado. - Você terá a sua verba, tanto para o tribunal quanto para... o outro assunto. Agora me deixe descansar. O dia foi longo e cansativo.

Mesmo na privacidade de sua própria casa ele não falava sem tomar cuidados, sentindo prazer nas formas de conspiração que o forçavam a empregar homens como Antonido. Sabia que muitos senadores o viam como um homem apenas de palavras, que preferia o corte de uma resposta à postura marcial deles. Os assassinos eram um delicioso distanciamento de sua intriga usual, e ele achava inebriante o poder que isso lhe dava. Poder apontar qualquer homem e invocar a morte sobre ele era uma emoção até mesmo para um palato acostumado como o seu. Quando o general saiu, Cato pediu um pano frio para cobrir o rosto.

 

O julgamento começou enquanto o céu se iluminava a leste de Roma, o falso amanhecer que despertava os trabalhadores e mandava os ladrões e as prostitutas para a cama. A área do fórum separada para os procedimentos legais ainda estava iluminada por tochas, e uma grande multidão tinha-se reunido nos limites externos, contida apenas pela sólida fileira de soldados do alojamento da cidade. Sob o comando direto do pretor que supervisionaria o julgamento, eles eram encarregados de manter a paz no caso de um veredicto impopular, e a multidão tinha o cuidado de não chegar ao alcance dos cajados que eles carregavam. De modo pouco comum para um processo aparentemente tão sem importância, os bancos de cada lado do quadrado dos advogados também estavam cheios. Muitas pessoas que Júlio conhecia do Senado tinham vindo ouvir - a seu convite ou chamados por Antonido. Sua família tinha ficado na propriedade fora de Roma. Cornélia e a filha tiveram de permanecer sob a proteção da Primogênita, e Júlio não queria Tubruk perto de Antonido ou dos senadores, apesar de todas as garantias de que não podia ser reconhecido.

Seu olhar encontrou Brutus na segunda fileira das três, sentado perto de uma mulher que levantou a cabeça para olhá-lo de volta. Havia alguma coisa perturbadora na avaliação fria que ela fez, e Júlio observou como ela parecia se destacar das pessoas em volta, como se estivesse sentada um pouquinho mais perto do que todo mundo. Num instante atemporal ela se recostou lentamente, prendendo sua atenção. O cabelo estava solto, e antes que ele juntasse a vontade para romper o contato a mulher levantou a mão para puxar uma madeixa de volta, que havia caído solta no rosto.

Obrigando-se a relaxar e se concentrar, respirou o ar quente, repassando os pontos que havia preparado com seus juristas nas semanas antes da convocação formal. Se o caso fosse julgado com justiça, ele sabia que tinha uma chance excelente de ganhar, mas se qualquer um dos três magistrados fosse pago por seus inimigos, o julgamento poderia transformar-se numa farsa, e ele venceria tudo menos o veredicto final. Seu olhar passou sobre a multidão que não sabia do que estava em jogo. Ela veio para a diversão da oratória, para aplaudir ou xingar pontos inteligentes do debate. Júlio também esperava que alguns tivessem vindo por causa dos boatos que seus juristas haviam espalhado pela cidade: que o julgamento seria nada menos do que a defesa de Mário. Parecia haver muitos plebeus presentes, e os vendedores de peixe assado e pão quente já faziam bons negócios enquanto o povo esperava com paciência que os magistrados e o pretor entrassem.

Júlio olhou de novo para os escudos cobertos que Alexandria tinha terminado e notou que muitas pessoas da multidão esticavam o pescoço para vislumbrá-los também, apontando e falando. Só Alexandria, Tabbic e ele próprio sabiam o que havia sob as grossas dobras de panos, e Júlio sentiu um toque de empolgação diante da reação que eles provocariam quando finalmente os revelasse.

Atrás dele seus três juristas folheavam os documentos e as anotações mais uma vez, as cabeças baixas murmurando. Contratar Quinto Cévola para ajudá-lo a preparar o processo tinha lhe custado dois talentos de ouro, mas havia poucos homens em Roma que conhecessem melhor as leis consuetudinárias e as Doze Tabelas. Fora necessário uma enorme soma simplesmente para tirá-lo da aposentadoria, mas apesar da rigidez da artrite o cérebro atrás dos olhos de pálpebras pesadas tinha-se mostrado tão afiado quanto o disseram a Júlio. Júlio observou Quinto rabiscar uma nota nos documentos do julgamento e captou seu olhar quando ele ergueu os olhos, pensativo.

- Nervoso? - perguntou Quinto, balançando a folha na direção do tribunal e da multidão na sombra atrás.

- Um pouco - admitiu Júlio. - Há muita coisa em jogo.

- Lembre-se do ponto do valor. Você sempre o deixa de fora.

- Eu lembro, Quinto. Repassamos isso bastante.

Júlio tinha passado a gostar do jurista idoso, se bem que o sujeito parecesse viver apenas para a lei e não se importar nem um pouco com as outras questões da cidade. De brincadeira, na primeira semana de preparativos Júlio tinha perguntado o que ele faria se achasse um dos seus filhos ateando fogo a uma casa na cidade. Depois de pensar em silêncio durante longo tempo, Quinto disse que não poderia assumir o processo, já que a lei o proibia de invocar a si mesmo como testemunha.

Quinto pôs as anotações nas mãos de Júlio, com a expressão séria.

- Não tenha medo de consultá-las, lembre-se. Eles tentarão fazer com que você fale sem pensar. Se sentir que os argumentos estão lhe escapando, vire-se e eu o aconselharei do melhor modo possível. Lembra-se da passagem das Doze Tabelas?

Júlio ergueu os olhos, exasperado.

- Aquela que todos nós decoramos na infância? Sim, eu sei. Quinto fungou diante do sarcasmo.

- Talvez você deva recitá-la de novo para ter certeza - falou, inabalável. Júlio abriu a boca para responder, mas um leve aplauso da multidão o interrompeu.

- São os magistrados... e o pretor. Apenas uma hora atrasados, mestre Cévola - sibilou um dos jurados mais novos para Quinto. Júlio seguiu o olhar deles e viu o grupo sair do prédio do Senado onde tinham estado se preparando.

A multidão ficou em silêncio ansioso enquanto os quatro homens entravam lentamente com seus guardas na área do tribunal. Júlio os examinou cuidadosamente. O pretor era desconhecido, um homem baixo, de rosto vermelho, com o topo da cabeça careca. Andava de cabeça baixa como se rezasse e ocupou seu lugar na plataforma elevada que fora montada para o julgamento. Júlio observou quando o pretor assentiu para o centurião dos guardas e sinalizou para os magistrados ocuparem seus lugares ao lado.

Esses homens eram bastante familiares, e Júlio soltou um suspiro silencioso de alívio ao ver que nenhum deles eram rostos que ele reconhecia das facções do Senado. Seu maior medo era que fossem criaturas de Cato, mas animou-se quando um deles lhe sorriu. Por fim, o tribuno do povo ocupou seu lugar, como o magistrado mais importante. A multidão aplaudiu seu representante e o homem sorriu de volta, levantando a mão brevemente em agradecimento. Seu nome era Sérvio Pela, praticamente a única coisa que Júlio pôde encontrar na mente sobre ele. Tinha cabelo branco e curto, num crânio anguloso com olhos fundos que pareciam pretos à luz fraca das tochas. Naquele instante Júlio desejou ter tido tempo para conhecê-lo numa das reuniões do Senado, mas descartou o pensamento. Sabia que era inútil se preocupar com os magistrados. Se pudesse lidar com a posição de Rufo, o advogado de Antonido, teria boas possibilidades. Se fosse humilhado, perderia não somente a casa que pertencera a Mário, mas também boa parte de seu status no Senado e na cidade propriamente dita. Não podia lamentar os riscos que tinha corrido ao forçar o julgamento. Mário não esperaria menos do que isso.

Júlio olhou para onde Cato estava sentado e encontrou o olhar denso grudado nele, com interesse. Como sempre, Bíbilo e Cátalo estavam ao lado. Júlio viu que Suetônio estava sentado com o pai, com o mesmo sorriso superior no rosto. A expressão dos dois indicaria que eram parentes, mesmo que ele já não o soubesse.

Júlio desviou o olhar para não demonstrar a raiva. Com o tempo os que apoiavam Cato conheceriam o medo, enquanto ele tirasse os pilares de sua influência, um a um.

Quinto deu um tapinha no ombro de Júlio e se sentou com os outros juristas. A multidão se remexeu e sussurrou enquanto sentia que o julgamento estava para começar. Júlio olhou de novo para os escudos, verificando que os panos não tivessem escorregado para revelar sequer uma parte deles.

O pretor se levantou devagar, as mãos alisando as dobras da toga. Com um movimento ordenou que as tochas fossem apagadas e todos os presentes esperaram até que cada luz se extinguisse, deixando o alvorecer cinzento iluminar o fórum.

- Este augusto tribunal se reúne no nonagésimo quarto dia do ano consular. Que sejam feitos os registros. Afirmo a todos os presentes, à vista dos deuses, que devem falar apenas a verdade, sob pena de banimento. Se algum homem declarar falsidade neste tribunal, ser-lhe-á negado fogo, sal e água e será mandado para longe desta cidade, para jamais retornar, segundo os editos.

O pretor fez uma pausa, virando-se para captar primeiro o olhar de Antonido depois o de Júlio. Os dois baixaram a cabeça para demonstrar entendimento, e ele continuou, com a voz ressoando nítida por sobre as fileiras silenciosas.

- Neste caso de reivindicatio, quem é o reclamante? Antonido se adiantou.

- Sou eu. O general Antonido Severo Sertório. Declaro posse irregular de minha propriedade.

- E quem falará em seu nome?

- Rufo Sulpício é o meu advogado - respondeu Antonido.

Suas palavras criaram um zumbido de empolgação, fazendo com que o pretor olhasse sério para a turba.

- Adiante-se o acusado - disse em voz alta.

Júlio desceu da plataforma onde estavam os escudos e encarou Antonido, do lado oposto.

- Sou Caio Júlio César, o acusado diante deste tribunal. Reivindico a posse da propriedade. Falo por mim mesmo.

- Trouxe parte dela como símbolo?

- Sim, meritíssimo.

Em seguida Júlio se virou para a fileira de panos pendurados e habilmente retirou um, revelando o primeiro escudo de bronze ao tribunal. A multidão arfou e teve início um sussurro satisfeito.

O escudo era exatamente o que Júlio esperava. Alexandria dera tudo à sua criação, tendo toda a consciência de que, diante do tribunal e do Senado, poderia fazer o seu nome num único dia.

O escudo tinha uma borda toda elaborada, mas todos os olhos estavam fixos no rosto e nos ombros da figura de Mário, um relevo em tamanho real que olhava para as pessoas reunidas. Os sussurros continuaram, e a multidão começou a aplaudir, tentando demonstrar aprovação ao general morto.

Antonido teve uma conversa feroz com o seu advogado, e o sujeito pigarreou pedindo a atenção dos magistrados. O ruído da multidão foi demais para o pretor, e ele fez um sinal com a mão chapada ao centurião dos guardas do tribunal. Como se fossem um só, os soldados bateram com os cajados no pavimento, e a multidão se acalmou, com medo de ser atacada. Rufo se adiantou, parecendo um abutre ossudo vestido num manto escuro. Apontou para o escudo com ar de zombaria.

- Honrado pretor. Meu cliente insiste em que este... item não fazia parte da casa sob disputa. Não pode se qualificar como símbolo dela, uma vez que não fazia parte da propriedade.

- Conheço a lei, Rufo. Não tenha a presunção de querer me ensinar - respondeu o pretor rigidamente. Em seguida se virou para Júlio. - Pode responder?

- É verdade que enquanto Antonido tinha a posse ilegítima da casa de Mário nenhum desses escudos estava pendurado nas paredes, mas estavam pendurados hoje de manhã, e servirão tão bem quanto qualquer outra coisa como símbolo da propriedade em disputa. Posso apresentar testemunhas que confirmem isso.

O pretor assentiu.

- Não será necessário, César. Aceito o seu argumento. O escudo será usado.

Ele franziu a testa quando novos aplausos irromperam da multidão em volta e começou a erguer a mão para outro sinal aos guardas. Diante disso, o povo ficou em silêncio, sabendo que não deveria testar demais sua paciência.

- Reclamante e acusado, aproximem-se do símbolo e realizem o ritual da disputa.

Antonido atravessou o piso do tribunal segurando uma lança esguia. Júlio subiu à plataforma com ele, mantendo o rosto vazio de qualquer triunfo que ofendesse os magistrados. Júlio tocou sua lança no escudo com um minúsculo som de metal, depois recuou. Antonido baixou a ponta da sua, e sua boca se retesou quando alguém na multidão zombou do ato. Então deu as costas para Júlio e foi até seu lugar perto de Rufo, que ficou parado, com os braços cruzados, relaxado e sem se abalar.

- A propriedade foi marcada para disputa. O julgamento pode ter início - entoou o pretor, acomodando-se confortável no assento. Sua parte nos procedimentos estava terminada até que chegasse a hora de dispensar o tribunal. Os três magistrados se levantaram e fizeram uma reverência a ele, antes que um dos três pigarreasse.

- Como reclamante, seu advogado deve falar primeiro - disse o Magistrado a Antonido.

Rufo fez uma reverência e deu três passos, entrando no piso do tribunal, para ter melhor domínio do espaço.

- Pretor, magistrados, senadores - começou. - Este é um caso simples, ainda que as penalidades incorridas envolvam os extremos de nossa lei. Há cinco semanas o acusado trouxe homens armados para dentro da cidade com o propósito de cometer violência. Esse crime é passível de punição pela morte ou por banimento. Além disso, o acusado empregou seus homens para invadir uma casa particular, a do reclamante, o general Antonido. A punição para esse crime é apenas um açoitamento, mas depois da morte isso talvez seja visto como crueldade desnecessária.

Ele parou enquanto alguns risos soavam nos bancos do tribunal. A multidão do lado de fora permaneceu em silêncio.

- Mãos ásperas foram usadas contra os serviçais e guardas da casa, e quando o proprietário retornou foi proibido pelos mesmos soldados de entrar em sua própria casa.

"O general Antonido não é um homem vingativo, mas os crimes cometidos contra ele são muitos e graves. Como seu advogado, peço que administrem a punição mais séria. A morte pela espada é a única resposta possível a esse insulto contra as leis de Roma.

Alguns aplausos educados partiram dos homens ao redor de Cato, e Rufo assentiu brevemente para eles enquanto voltava ao seu lugar, com os olhos brilhantes negando o ar de relaxamento que fingia ter.(

- E agora o acusado - continuou o magistrado.

Nada em seus modos demonstrava se se comovera com as palavras de Rufo, mas mesmo assim Júlio se adiantou com um sentimento de vazio no estômago. Já sabia que eles poderiam pedir a pena de morte, mas ouvir isso no tribunal a tornava uma realidade que abalou sua confiança.

- Pretor, magistrados, senadores, povo de Roma - disse Júlio suficientemente alto para chegar à multidão.

Eles aplaudiram isso, ainda que o pretor tenha franzido a testa para ele. Júlio organizou os pensamentos antes de continuar. Instintivamente sentia que a defesa de Mário seria mais atraente para o povo que havia sofrido sob o domínio de Sila do que para os juizes silenciosos, mas jogar com o povo era um caminho perigoso e poderia até mesmo induzir os magistrados a ficar contra um argumento forte. Precisaria ter cuidado.

- Este caso tem uma história mais longa do que cinco semanas - começou. - Ele tem início numa noite há três anos quando a cidade se preparava para uma guerra civil. Mário era o cônsul de Roma nomeado legalmente e sua legião tinha fortificado a cidade contra ataque...

- Meritíssimo, apelo para que o mandem parar com essa arenga - interrompeu Rufo, levantando-se. - A questão é a propriedade de uma casa, não as lutas da História.

Os magistrados conferenciaram um momento, depois um deles se levantou.

- Não interrompa, Rufo. O acusado tem o direito de fazer sua defesa como achar melhor.

Rufo cedeu e se sentou.

- Obrigado, meritíssimo - continuou Júlio. - O fato de Mário ser meu tio é bem conhecido. Ele assumiu a defesa da cidade sozinho quando Sila partiu para a Grécia para derrotar Mitrídates, uma tarefa que Sila deixou incompleta.

A multidão riu disso, depois ficou em silêncio quando o pretor a varreu com seu olhar furioso. Júlio prosseguiu:

- Mário estava convencido de que Sila voltaria à cidade com o objetivo de assumir o poder total. Para evitar isso, fortificou as muralhas de Roma e preparou seus homens para defender o povo da cidade contra o ataque armado. Se Sila tivesse se aproximado das muralhas sem violência, teria permissão de retomar seu cargo consular e a paz da cidade teria continuado. Em vez disso, deixara assassinos dentro dos muros, e estes atacaram o general Mário na escuridão, numa tentativa covarde de assassinato. Os homens de Sila abriram os portões e deixaram seu senhor entrar na cidade. Acho que foi o primeiro ataque armado contra ela em mais de duzentos anos.

Júlio parou para respirar, olhando os magistrados para ver como estavam reagindo às suas palavras. Eles responderam impassivelmente, sem que as expressões revelassem qualquer coisa.

- Meu tio foi morto com uma adaga, pelas próprias mãos de Sila, e, ainda que seus legionários tivessem lutado valorosamente durante dias, eles também caíram diante do invasor.

- Isto é demais! - gritou Rufo, saltando de pé. - Ele mancha o nome de um amado líder de Roma aproveitando-se da proteção deste julgamento. Devo pedir que o condenem por sua tolice.

O magistrado que havia falado antes se inclinou para a frente e se dirigiu a Júlio.

- Você está testando nossa paciência, César. Se o julgamento for contrário a você, saiba que consideraremos seu desrespeito no momento da sentença. Entende?

Júlio assentiu, engolindo com a garganta subitamente seca.

- Entendo, ainda que as palavras devam ser ditas - respondeu ele. O magistrado deu de ombros.

- A cabeça é sua - murmurou, enquanto Júlio respirava acalmando-se, antes de falar de novo.

- A maior parte do resto os senhores já sabem. Vitorioso, Sila reivindicou o título de ditador. Não falarei desse período da história da cidade.

O magistrado assentiu incisivamente e Júlio continuou:

- Ainda que tenha defendido a cidade segundo a lei, Mário foi declarado traidor e suas posses foram vendidas pelo Estado. Sua casa foi a leilão público e comprada pelo reclamante deste julgamento, o general Antonido. Sua legião foi dispersa e o nome dela retirado das listas de honra do Senado.

Júlio fez uma pausa e baixou a cabeça, como se com vergonha do ato. Um murmúrio percorreu os senadores presentes enquanto sussurravam perguntas e comentários uns aos outros. Então Júlio levantou a cabeça de novo e sua voz ressoou sobre os juizes e a multidão.

- Minha argumentação baseia-se em três pontos. O primeiro é que a Primogênita foi restaurada às listas das legiões sem desonra. Se ela não sofreu mancha, como seu general poderia ser chamado de traidor? Segundo, se Mário foi punido erradamente, então suas posses deveriam ir para o único herdeiro, que sou eu. E último, minhas ações para reivindicar minha casa dos ladrões que estavam dentro dela foram feitas sabendo que o tribunal iria perdoá-las à luz do destino injusto de Mário. Um grande erro foi cometido, mas contra mim, e não por mim.

A multidão aplaudiu e de novo os guardas bateram com os cajados no chão.

Os magistrados juntaram as cabeças um momento, depois um deles sinalizou para Rufo falar em resposta. Ele se levantou, suspirando visivelmente.

- As tentativas de César para confundir a questão são admiráveis em sua seriedade, mas a lei vê todas as coisas claramente. Tenho certeza que os juizes gostaram tanto quanto eu da viagem pela História, mas suspeito que sabem que a interpretação foi colorida pelo relacionamento pessoal do acusado com o general. Por mais que eu gostasse de argumentar contra a visão que ele apresentou como fato, sou a favor de reduzir o caso aos elementos fundamentais segundo a lei e a não fazer com que os presentes percam tempo. O advogado olhou para Júlio e deu um sorriso amigável, para que todos os presentes pudessem ver que ele perdoava a tolice daquele jovem.

- Numa venda totalmente legal, meu cliente adquiriu a casa em questão num leilão, como nos disseram. Seu nome está no contrato e na nota de venda. Mandar guardas armados roubarem sua propriedade é uma volta ao uso da força para resolver disputas. Tenho certeza que todos vocês notaram o toque das lanças naquele belo escudo no início do julgamento. Lembro aos senhores que o ato simbólico da luta é exatamente isso. Em Roma nós não desembainhamos espadas para encerrar discussões sem as submeter à lei.

"Simpatizo com os argumentos levantados pelo jovem César, mas eles não têm a ver com o caso atual. Tenho certeza que ele gostaria de recuar ainda mais e revelar a história da casa até a colocação dos alicerces, mas não há necessidade de ampliar tanto assim as questões. Devo repetir meu chamado pela espada, se bem que lamentando que Roma perderá um jovem advogado tão passional.

Sua expressão demonstrava tristeza pelas duras penalidades que viriam, enquanto retomava seu lugar e conferenciava com Antonido, que observava Júlio com os olhos semicerrados.

Júlio se levantou e encarou os magistrados de novo,

- Como Rufo se referiu a um contrato e uma nota de venda, acho que ele deveria apresentar esses documentos para o exame do tribunal - disse ele rapidamente.

Os magistrados olharam para Rufo, que fez uma careta.

- Se a propriedade fosse um cavalo, ou um escravo, meritíssimos, eu poderia, claro, apresentar esses itens. Infelizmente, como uma casa está em disputa, e como essa casa foi tomada de surpresa por uma força armada, os documentos estavam dentro dela, como César sabe muito bem.

O magistrado que parecia falar pelos outros espiou Júlio, franzindo a testa.

- Esses papéis estão em sua posse? - perguntou ele.

- Juro que não. Não há qualquer sinal deles na casa de Mário, falo por minha honra.

Ele se sentou de novo. Como tinha queimado o contrato e a nota de compra na noite anterior, sob orientação de Quinto, sua consciência estava limpa.

- Então nenhum documento de posse pode ser apresentado por nenhuma das partes? - continuou o magistrado calmamente. Júlio balançou a cabeça e Rufo ecoou o movimento, com o rosto se retesando de irritação. Ele se levantou para falar de novo aos magistrados.

- Meu cliente suspeitava que esses documentos fundamentais "desapareceriam" antes do julgamento - disse ele com um ar de desprezo mal contido na direção de Júlio. - Em vez disso, temos uma testemunha que estava presente no leilão e que pode atestar a venda legal ao general Antonido.

A testemunha se adiantou de onde estava sentada perto de Antonido. Júlio o reconheceu como um dos que se sentavam perto de Cato no Senado. Era um homem curvado e de aparência frágil, que vivia puxando um cacho dos cabelos ralos para longe da testa enquanto falava.

- Eu sou Públio Tenélia. Posso atestar a venda legal.

- Posso interrogar este homem? - perguntou Júlio, subindo no tablado ao receber a permissão. - O senhor testemunhou todo o leilão? - perguntou Júlio.

- Sim. Fiquei lá do início ao fim.

- O senhor viu o contrato de venda sendo assinado em nome de Antonido?

O homem hesitou ligeiramente antes de responder.

- Eu vi o nome - falou.

Seus olhos estavam nervosos, e Júlio soube que ele estava aumentando a verdade.

- Então o senhor vislumbrou o documento brevemente? -pressionou.

- Não, eu o vi claramente - respondeu o homem com mais confiança.

- Qual foi a quantia que o general pagou?

Atrás do homem, Rufo sorriu do estratagema. Não funcionaria, já que a testemunha fora muito bem preparada nessas perguntas.

.- Foi de mil sestércios - retrucou o homem, triunfante. Seu sorriso terminou quando um súbito coro de zombaria veio da multidão fora do tribunal.

Muitas cabeças se viraram para a massa de plebeus, e Júlio viu com os juizes que as ruas tinham se enchido enquanto o julgamento prosseguia. Cada espaço disponível fora tomado, e o fórum em si estava cheio de gente. Os magistrados se entreolharam e o pretor firmou a boca, ansioso. Uma platéia tão grande fazia aumentar os perigos de distúrbios, e ele pensou em mandar um mensageiro ao alojamento chamar mais soldados para manter a paz.

Quando a multidão ficou em silêncio, Júlio falou de novo:

- Ao preparar este processo, meritíssimo, mandei avaliar a casa. Se ela fosse vendida hoje de manhã, provavelmente o comprador pagaria algo como um milhão de sestércios, e não mil. Há uma passagem nas Doze Tabelas que aborda o assunto.

Enquanto ele se preparava para citar o texto antigo, Rufo levantou os olhos cheio de tédio e a testemunha se remexeu, não tendo sido dispensada ainda.

- "Uma propriedade não deve passar do vendedor ao comprador até que seu valor seja pago" - disse Júlio em voz alta. A multidão aplaudiu o argumento, com várias conversas irrompendo enquanto ela era explicada às pessoas ao redor. - Mil sestércios por uma propriedade que vale um milhão não é "valor", meritíssimos. A venda foi uma farsa de favores, uma zombaria de leilão. Sem ter sequer um contrato de venda para mostrar que ela existiu, nenhuma transação legal aconteceu.

Lentamente Rufo se levantou.

- César quer nos fazer acreditar que qualquer barganha é uma violação das Tabelas - começou.

A multidão vaiou-o e o pretor mandou seu mensageiro trazer mais soldados.

- Torno a dizer que César tenta confundir o tribunal com distrações inúteis. A testemunha prova que a venda foi real. A quantia não tem importância. Meu cliente é um negociador hábil.

Ele se sentou, escondendo a irritação com o argumento. Não podia admitir que o leilão fora um mero espetáculo para Sila recompensar seus favoritos, ainda que César tivesse deixado isso claro para todos os presentes, se é que eles já não sabiam. Certamente a multidão não sabia, e muitos olhares furiosos foram voltados para Antonido, que visivelmente se encolheu no assento.

- Além disso - continuou Júlio, como se Rufo não tivesse falado como a questão do valor da casa foi levantada pela própria testemunha de Antonido, há outra questão que eu gostaria de trazer à atenção do tribunal. Se o veredicto for a meu favor, como herdeiro legítimo da propriedade exigirei o aluguel de dois anos de ocupação por parte do general Antonido. Uma estimativa generosa desta quantia é de trinta mil sestércios, que acrescento à minha reivindicação pela casa, como dinheiro negado à minha família durante o tempo em que ele esteve lá.

- O quê? Como ousa pedir isso? - explodiu Antonido, furioso, levantando-se. Rufo o apertou de novo no lugar, com dificuldade, murmurando ansioso em seu ouvido.

Quando Antonido ficou quieto, Rufo se virou de novo para os magistrados.

- Ele acrescenta escárnio público aos seus crimes, meritíssimo, ao espicaçar meu cliente. A casa estava vazia quando o general Antonido assumiu a posse legal depois da venda. Não existe uma questão de aluguel.

- Minha família optou por mantê-la vazia, como era seu direito. Mesmo assim o dinheiro poderia ter sido ganhado para mim, não fosse o inquilino que o senhor representa - respondeu Júlio incisivamente.

O magistrado pigarreou, depois inclinou a cabeça para ouvir os outros dois depois de falar. Após uma conferência que se estendeu por um minuto ou mais, ele falou de novo:

- O caso parece bastante claro. Algum de vocês tem algo a acrescentar antes de deliberarmos sobre o veredicto?

Júlio revirou o cérebro, mas dissera tudo que queria dizer. Seu olhar foi até os escudos de bronze que continuavam cobertos, mas resistiu à ânsia de revelá-los para a multidão, sabendo que os juizes veriam isso como uma demonstração barata. Não tinha certeza de qual seria o veredicto, e, quando se virou para olhar Quinto, o velho simplesmente deu de ombros, inexpressivo.

- Mais nada, meritíssimo. Encerro a argumentação - disse Júlio. A multidão o aplaudiu e gritou insultos contra Rufo, que também deu por encerrada sua argumentação. Os três magistrados se levantaram e fizeram uma reverência para o pretor antes de sair para o prédio do Senado, onde iriam discutir o veredicto final. Os soldados extras que tinham vindo correndo dos alojamentos abriram caminho para eles, armados não com cajados, e sim com espadas.

Quando eles haviam saído, o pretor se levantou para falar à multidão, fazendo sua voz poderosa ressoar acima das cabeças.

- Quando os juizes retornarem, não haverá distúrbios, qualquer que seja o resultado. Tenham certeza de que qualquer hostilidade será enfrentada com uma punição rápida e definitiva. Vocês partirão em paz, e qualquer pessoa que não fizer isso sofrerá meu desagrado.

O pretor se sentou de novo ignorando os olhares malévolos que o povo de Roma focalizava nele. Isso se sustentou durante apenas alguns segundos, e então uma voz solitária gritou: "Mário!", e rapidamente os que estavam ao redor se juntaram. Em alguns instantes toda a multidão estava batendo os pés e gritando o nome, e os membros do Senado reunidos olharam em volta, nervosos, subitamente cônscios de que apenas uma fina linha de soldados estava entre eles e a turba.

Movendo-se com lentidão senhorial, Júlio decidiu que esse era o momento de revelar o resto da obra de Alexandria. Captou o olhar dela nos bancos enquanto segurava o pano áspero que cobria o primeiro e viu que ela estava rindo de empolgação. Então puxou-o, e a multidão aplaudiu e gritou ferozmente. Eram as três flechas cruzadas da Primogênita, a amada legião de Mário. Nos bancos, Brutus se levantou num impulso para aplaudir tão loucamente quanto a multidão, e outros que estavam perto seguiram-no.

O pretor deu uma ordem ríspida a Júlio, mas ela não foi ouvida acima da multidão agitada, e Júlio foi até os outros, puxando as coberturas uma a uma. A cada escudo a multidão ficava mais barulhenta, rugindo, enquanto os que podiam ver gritavam as descrições para quem estava atrás. Crianças eram postas nos ombros dos pais para ver, e punhos davam socos no ar, em júbilo. Cenas da vida de Mário foram mostradas, suas batalhas na África, o triunfo pelas ruas da cidade, sua postura orgulhosa nas muralhas enquanto esperava Sila.

Júlio fez uma pausa dramática enquanto chegava ao último, e a multidão silenciou como se tivesse havido um sinal invisível. Então ele puxou o pano para revelar o último escudo. Ele brilhou à luz da manhã, completamente vazio.

No silêncio, Júlio falou:

- Povo de Roma, gravamos a última imagem neste dia! - gritou ele e a turba irrompeu em gritos e aplausos que fizeram o pretor se levantar gritando para os guardas.

O espaço entre a multidão e o tribunal ficou maior, com os soldados usando os cajados para empurrar as pessoas para trás. Elas se afastaram em confusão, gritando desafios e zombando de Antonido. O nome de Mário começou de novo como um canto e parecia que toda Roma gritava junto.

Cornélia observava à luz cinzenta quando Tubruk se inclinou para Clódia e beijou-a. Foi tão gentil que quase doía olhar, mas ela não conseguia virar a cabeça para o outro lado. Escondeu-se deles numa janela escura e se sentiu mais sozinha do que nunca. Clódia pediria a liberdade, tinha certeza, e então ela não teria ninguém.

Deu um sorriso amargo enquanto sondava os lugares mais ternos de suas lembranças. Deveria ter sido diferente. Júlio parecia cheio de vida e energia enquanto tomava Roma nas mãos, mas nenhuma parte dessa energia era para ela. Lembrou-se das palavras que costumavam jorrar dele quando Mário estava vivo. Ela tivera de pôr a mão em sua boca para impedir que os empregados de seu pai ouvissem enquanto ele falava e ria. Naquela época existia um júbilo enorme no rapaz. Agora ele era um estranho e, ainda que uma ou duas vezes ela o tivesse apanhado olhando-a com o fogo antigo, este sumira assim que ela o reconheceu. Houvera tempos em que tinha juntado coragem para exigir que ele fizesse amor, só para romper o gelo que estava se formando entre os dois. Ela queria, até mesmo sonhava com isso, mas a cada vez a lembrança dos dedos ásperos de Sila tiravam sua coragem e ela escorregava sozinha para os pesadelos. Sila estava morto, dizia a si mesma, mas ainda podia ver o rosto dele e às vezes, no vento, pensava sentir o cheiro dele. Então o terror a fazia se enrolar nas cobertas, abrigando-se contra o mundo.

Tubruk passou o braço em volta de sua aia e Clódia pousou a cabeça no ombro dele, sussurrando. Cornélia ouviu o riso profundo dele por um momento e invejou-os pelo que tinham encontrado. Não seria capaz de recusar se Clódia pedisse, mas a idéia de ser a esposa esquecida enquanto Júlio se glorificava em sua cidade e sua legião era insuportável. Ela já vira aquelas venenosas matronas romanas com babás para os filhos e escravos para trabalhar nas casas. Passavam o dia comprando tecidos caros ou organizando um círculo social que Clódia considerava uma espécie de morte. Como sentiriam pena dela quando descobrissem a verdade de um casamento sem amor!

Esfregou os olhos com raiva. Era jovem demais para ser destruída por isso, disse a si mesma. Nem que demorasse um ano para se recuperar, esperaria a cura. Mesmo que ele tivesse mudado durante o período de prisão, ainda havia em Júlio o rapaz que ela conhecera. O que tinha arriscado a vida e a fúria de seu pai para vir ao seu quarto por sobre os telhados escorregadios. Se ao menos pudesse manter aquele homem na mente, conseguiria falar com ele de novo e talvez ele se lembrasse da garota que havia amado. Talvez a conversa não virasse uma briga e nenhum dos dois deixasse o outro sozinho.

Uma sombra se moveu no pátio e Cornélia ergueu a cabeça para ver. Podia ser um dos soldados fazendo a ronda, pensou, depois soltou o ar quando o início de noite cinzenta o revelou. Otaviano, espionando os amantes. Se ela o chamasse, o momento de privacidade que Clódia e Tubruk tinham encontrado se estragaria, e ela esperava que o garoto tivesse o bom senso de não chegar perto demais.

Júlio também havia crescido dentro daqueles muros, e um dia fora tão fascinado pelo amor quanto Otaviano.

- Volte para a cama - gritou Tubruk para o garoto.

Cornélia sorriu, virando-se para aceitar o conselho também.

- As portas do Senado estão se abrindo! - disse Quinto junto ao ombro de Júlio.

Júlio se virou para ver os magistrados voltando.

- Foi rápido - disse ele ao jurista, nervoso. O velho assentiu.

- Rapidez não me parece bom numa disputa de propriedade - murmurou ele agourentamente.

Júlio se retesou num medo súbito. Teria feito o bastante? Se a decisão fosse contra ele e os juizes aceitassem o pedido de pena de morte, estaria morto antes do pôr-do-sol. Podia ouvir as sandálias deles nas pedras do fórum, como se o som marcasse seus últimos momentos. Sentiu o suor escorrer pelas costas por baixo da toga, frio de encontro à pele.

Com o resto do tribunal, ele se levantou para receber os magistrados fazendo uma reverência quando entraram. Os soldados que os tinham acompanhado do prédio do Senado ocuparam seus postos numa segunda fila entre a multidão e o tribunal, com as mãos nas espadas. O coração de Júlio se encolheu. Se estavam esperando encrenca, podia ser que os magistrados os tivessem alertado sobre o veredicto.

Os três juizes foram até seus lugares com lenta dignidade. Júlio tentou captar o olhar deles enquanto se acomodavam, desesperado por alguma pista do que viria. Eles não revelaram coisa alguma, e a multidão ficou quieta enquanto a tensão crescia, à espera.

O magistrado que falara durante os procedimentos levantou-se pesadamente, com a expressão séria.

- Ouça nosso veredicto, Roma - gritou ele. - Nós procuramos a verdade e falamos como a lei.

Júlio prendeu o fôlego inconscientemente, e o silêncio que o rodeou pareceu quase doloroso depois dos aplausos e gritos de antes.

- Eu sou favorável ao general Antonido - disse o primeiro juiz, com a cabeça e o pescoço rígidos. A multidão rugiu de fúria, e então o silêncio caiu de novo enquanto o segundo juiz se levantava.

- Eu também sou favorável ao general Antonido - disse o segundo, com o olhar percorrendo o caos da multidão. Novos gritos e vaias seguiram suas palavras, e Júlio sentiu-se subitamente tonto com a reação.

O tribuno se levantou e examinou a multidão e as imagens de bronze de Mário, seu olhar finalmente caindo sobre Júlio.

- Como tribuno, tenho o direito de vetar o julgamento de meus colegas magistrados. Não é um caminho que eu escolheria levianamente e pesei os argumentos com muito cuidado.

Ele parou para dar ênfase, e cada olhar estava fixo em sua figura.

- Eu exerço esse veto hoje. O julgamento é favorável a César - disse ele.

A multidão ficou louca de júbilo, e o canto de "Mário" pôde ser ouvido de novo, mais alto do que nunca.

Júlio desmoronou em sua cadeira, enxugando o suor da testa.

- Muito bem, garoto. - Quinto sorriu sem dentes para ele. - Há muita gente que saberá seu nome se algum dia você se candidatar a um cargo mais alto. Achei bom o modo como usou esses seus escudos. Espalhafatoso, mas eles gostaram. Parabéns.

Júlio soltou o ar lentamente, ainda com a cabeça leve por ter estado tão perto da catástrofe. Suas pernas tremiam enquanto ele atravessava o tablado até onde Antonido estava sentado. Falando suficientemente alto para que os magistrados ouvissem, partiu para a primeira parte da vingança por Cornélia.

- Ponho as mãos em você pela quantia de trinta mil sestércios - falou, agarrando rudemente o manto de Antonido.

O general se enrijeceu numa fúria desamparada, os olhos procurando Cato na multidão nos bancos. Júlio também se virou, ainda segurando-o. Viu Cato encarar o general e depois balançar a cabeça lentamente, com uma expressão de nojo. Antonido pareceu atordoado pela reviravolta de sua sorte.

- Eu não tenho tanto dinheiro - disse ele. Rufo interrompeu, ao lado de Júlio.

- É costume dar trinta dias para o pagamento de uma dívida. Júlio sorriu sem humor.

- Não. Quero o dinheiro agora, caso contrário o general será amarrado e vendido como escravo nos mercados.

Antonido lutou violentamente para se livrar da mão de Júlio, sem conseguir.

- Você não pode! Cato! Você não pode deixar que eu seja levado! - gritou ele enquanto Cato lhe dava as costas e se preparava para deixar o tribunal. Pompeu estava na multidão, olhando a cena com interesse ávido. Antonido manteve o bom senso a ponto de não abrir a boca sobre o segredo dos assassinos. Pompeu, Cato ou os próprios assassinos iriam torturá-lo e matá-lo se isso fosse revelado.

Brutus desceu de seu banco para ficar perto de Júlio. Tinha uma corda nas mãos.

- Amarre-o, Brutus, mas gentilmente. Quero conseguir o máximo possível por ele no quarteirão dos escravos - disse Júlio asperamente, dei-xando a raiva e o desprezo se derramarem por um momento.

Brutus completou a tarefa com rápida eficiência, finalmente amordaçando Antonido para abafar seus urros. Os magistrados olhavam sem reação, sabendo que o ato estava dentro da lei, ainda que os dois que tivessem votado contra Júlio estivessem vermelhos de fúria silenciosa.

Quando o serviço terminou, Rufo atraiu a atenção de Júlio com uma das mãos em seu braço.

- Você falou bem, César, mas Quinto é velho demais para ser escolhido como jurista no futuro. Espero que se lembre de meu nome se precisar de um advogado.

Júlio o encarou.

- Acho pouco provável que eu me esqueça de você.

Com Antonido amarrado e reivindicado como escravo, o pretor dispensou o tribunal e a multidão aplaudiu de novo. Apesar de Cato ter se movido primeiro, a maioria dos outros senadores desceu rapidamente dos bancos, claramente desconfortáveis na presença de uma multidão tão grande formada pelos cidadãos que eles representavam.

Juntos, Júlio e Brutus arrastaram o general deitado pelo chão do tribunal, depositando-o rudemente de encontro à plataforma onde estavam os escudos.

Alexandria rodeou os senadores reunidos para chegar a Júlio, com os olhos luminosos de triunfo.

- Muito bem. Por um momento pensei que eles tinham pegado você.

- Eu também. Devo agradecer ao tribuno pelo que ele fez. Ele salvou minha vida.

Brutus fungou.

- Ele faz parte do povo, lembre-se. A população iria despedaçá-lo se ele julgasse contra você, como os outros. Deuses, olhem só! - Brutus sinalizou para os cidadãos que se juntavam o mais perto possível para captar um vislumbre de Júlio.

- Fique perto dos escudos e cumprimente-os - disse Alexandria, rindo de orelha a orelha. O que quer que tivesse acontecido, ela sabia que sua obra estaria em demanda e que cobraria preços altíssimos dos bons e grandes de Roma.

Júlio subiu e a multidão o saudou. Um novo canto começou, e um rumor satisfeito surgiu em suas bochechas quando ouviu seu nome lentamente suplantando o de Mário.

Ergueu o braço em saudação e soube que Quinto estava certo. O nome de César ficaria na mente deles, e quem sabia aonde isso poderia levá-lo?

O sol da manhã tinha subido para iluminar o fórum e dar brilho às superfícies dos escudos de bronze que Alexandria tinha criado. Eles luziram, e Júlio sorriu ao vê-los, esperando que Mário pudesse ver, onde quer que estivesse.

 

O primeiro calor da Primavera estava no ar enquanto Júlio corria por sua amada floresta, sentindo que as pernas liberavam as tensões do dia. Com a empolgação do julgamento para trás, ele passava a maior parte do tempo com Rênio e Brutus no alojamento da Primogênita, voltando para casa apenas para dormir. Os homens que tinha recrutado na Grécia e na África estavam se saindo bem e havia um novo sentimento de orgulho entre os sobreviventes originais ao verem a amada legião de Mário viva outra vez. Os homens que Cato conseguira para eles eram jovens e sem cicatrizes. Júlio se sentira tentado a interrogá-los sobre o passado, mas resistiu ao impulso. Nada anterior ao juramento importava, independentemente do poder que Cato tivesse sobre eles. Eles aprenderiam isso com o tempo. Rênio passava com eles cada hora em que estava acordado, usando os homens experientes para ajudar a treinar os novos.

Apesar de ainda estarem com menos de metade da força necessária, a notícia fora mandada a outras cidades, e Crasso prometera pagar tantos quantos eles conseguissem chamar para o estandarte da Primogênita. A dívida para com ele era de deixar tonto, mas Júlio concordara. Apesar de todo o ouro tirado de Celso, era preciso uma fortuna para montar uma legião, e ao fazer isso Crasso se colocava contra os silanos. As vastas quantias fervilhavam no fundo da mente de Júlio, ignoradas. Cada dia trazia viajantes de pés cansados de todo o país, atraídos pela promessa feita por batedores em províncias distantes. Era uma época empolgante, e quando o sol se punha a cada noite Júlio os deixava com relutância, tendo pela frente apenas uma recepção gélida em casa.

Apesar de compartilharem a cama, Cornélia pulava ao ser tocada e depois se enfurecia contra ele até que o humor de Júlio estourava ou ele saía para achar um divã em outro cômodo. Cada noite era pior, e ele ia dormir atormentado pelos desejos por ela. Sentia falta da jovem antiga e às vezes se virava para contar um pensamento ou uma piada, e encontrava seu rosto cheio de uma amargura que nem podia começar a entender. Às vezes sentia-se tentado a ocupar outro cômodo e mandar que trouxessem uma garota escrava só para lhe dar alívio. Sabia que ela iria odiá-lo por isso e sofria as longas noites até que uma raiva constante e irritante coloria suas horas de vigília, e o sono era a única paz. Sonhava com Alexandria.

Apesar de sentir vergonha, tinha trazido Otaviano à cidade em três ocasiões, só para ter a desculpa de ir à oficina de Tabbic. Na terceira ocasião Brutus estava lá, e, depois de os três terem gaguejado durante alguns minutos de embaraço, Júlio prometeu a si mesmo não ir de novo.

Parou, ofegando, quando chegou ao topo da colina que dava para a sua propriedade, não longe da nova cerca colocada pelo pai de Suetônio. Talvez fosse hora de fazer alguma coisa a respeito, finalmente. Com o bom ar preenchendo os pulmões e um leve suor da corrida, sentiu um novo ânimo ao examinar a terra que fora sua. Roma estava pronta para a mudança. Podia sentir do mesmo modo como sentia a mudança das estações que traria de volta o calor do verão às ruas e aos campos.

Um trovejar de cascos o arrancou do devaneio e Júlio saiu do caminho quando o barulho ficou mais alto. Adivinhou quem era antes de ver a pequena figura empoleirada na garupa do garanhão mais forte dos estábulos. Observou o equilíbrio e a habilidade do garoto, ao mesmo tempo que forçava uma cara séria que fez Otaviano parar, estremecendo, nas folhas úmidas da floresta.

O garanhão fungou e dançou ao ser contido, puxando as rédeas num claro sinal para ir em frente. Otaviano desceu das costas nuas do animal com uma das mãos enterrada na crina. Júlio ficou quieto enquanto ele se aproximava.


- Desculpe - começou Otaviano, vermelho de embaraço. - Ele precisava de uma corrida, e o pessoal dos estábulos não gosta de exercitar com ele. Sei que falei...

- Venha comigo - interrompeu Júlio.

Andaram em silêncio morro abaixo, Otaviano desamparado puxando o garanhão atrás de Júlio. Sabia que uma surra era provável, ou pior, poderia ser mandado de volta para a cidade e nunca mais ver um cavalo. Seus olhos se encheram de lágrimas que ele enxugou rapidamente. Júlio iria desprezá-lo se o visse chorando como um bebê. Resolveu receber a punição sem lágrimas, mesmo que fosse mandado embora.

Júlio gritou para abrirem o portão e marchou com Otaviano até os estábulos. Alguns cavalos tinham sido vendidos quando Tubruk levantou dinheiro para o resgate, mas o administrador mantivera as melhores linhagens para que eles reconstruíssem a reserva.

O sol estava subindo quando Júlio entrou nas baias sombreadas, trazendo um abençoado sopro de calor. Ele hesitou quando os cavalos viraram a cabeça para dar as boas-vindas, farejando o ar com as narinas macias. Sem uma palavra de explicação, foi até um jovem garanhão que Tubruk tinha criado e treinado desde que era um potro e passou a mão sobre o poderoso ombro castanho.

Enquanto Otaviano olhava, Júlio prendeu as rédeas e escolheu uma sela no suporte na parede da baia. Em silêncio guiou o cavalo que bufava baixinho até o sol da manhã.

- Por que não monta mais o seu pônei? - perguntou. Otaviano o encarou, totalmente sem palavras.

- Ele é lento demais - falou, batendo no pescoço do garanhão sem notar. O poderoso cavalo erguia-se altíssimo acima dele, mas se mantinha calmo ao seu toque, sem mostrar nada do temperamento que irritava os cavalariços da propriedade.

- Sabe que é meu parente, não sabe?

- Minha mãe me disse.

Júlio pensou um momento. Suspeitava que seu pai lhe daria uma surra se ele ou Brutus tivesse arriscado seu melhor garanhão galopando pela floresta, mas não queria estragar o clima de otimismo que estava sentindo. Afinal, tinha prometido a Alexandria.

- Então venha, primo. Vejamos se você é tão bom quanto acha.

O rosto de Otaviano se iluminou quando Júlio guiou os cavalos juntos e olhou o garoto saltar leve nas costas do garanhão. Júlio montou num ritmo mais calmo, depois gritou subitamente e incitou a montaria a galopar morro acima.

Otaviano olhou-o boquiaberto, depois um sorriso cobriu seu rosto enquanto ele apertava os calcanhares e gritava em resposta, com o vento fazendo seu cabelo voar.

Quando Júlio voltou para casa, Cornélia sentiu vontade de abraçá-lo. Vermelho da corrida e com o cabelo revolto pelo pó, ele parecia tão jovem e cheio de vida que lhe partiu o coração. Queria vê-lo sorrir para ela e sentir a força de seus braços envolvendo-a, mas em vez disso se pegou falando furiosa, com a amargura escorrendo descontrolada ao mesmo tempo que uma parte dela implorava por palavras mais suaves que não conseguia encontrar.

- Quanto tempo mais espera que eu viva aqui como prisioneira? - perguntou. -Você tem sua liberdade, enquanto eu não posso comer nem andar em lugar nenhum sem um grupo dos seus desgraçados da Primogênita me acompanhando!

- Eles estão aí para proteger você! - respondeu Júlio, chocado com a profundidade dos sentimentos da mulher.

Cornélia olhou furiosa para o marido.

- Durante quanto tempo, Júlio? Sabe melhor do que ninguém que podem se passar anos antes que seus inimigos deixem de ser um perigo. Vai me manter confinada pelo resto da vida? E sua filha? Quando a abraçou pela última vez? Quer que ela cresça sozinha? Esses soldados revistam até os amigos do meu pai quando vêm fazer uma visita. Eles não vão voltar, pode ter certeza.

- Estive trabalhando, Cornélia, você sabe. Vou arranjar tempo para ela, prometo. Talvez os guardas da Primogênita tenham sido cautelosos demais. Mas eu disse a eles para manter você em segurança até eu acabar com a ameaça dos assassinos.

Cornélia xingou, surpreendendo-o.

- Tudo isso baseado no que aconteceu à filha de Pompeu! Já pensou que talvez não haja perigo nenhum? Pelo que sabemos de verdade, Pompeu pode ter sido atacado por alguma coisa que não tem nada a ver com o Senado, e por causa disso eu sou proibida até mesmo de fazer viagens curtas à cidade para romper a monotonia. É demais, Júlio. Eu não suporto.

As palavras não queriam ser contidas, por mais que ela se retorcesse em confusão. Não era para ser assim. Ele deveria ver seu amor, mas estava se afastando.

Júlio olhou-a, com a expressão endurecendo.

- Quer que eu deixe minha família aberta a um ataque? Não posso. Não, eu não vou. Já estou agindo contra meus inimigos. Derrubei Antonido diante de Cato e dos que o apoiam. Eles saberão que sou perigoso, e isso aumenta muitas vezes o risco para você. Mesmo que os assassinos ataquem apenas a mim, eles poderiam esbarrar em você.

Cornélia respirou fundo para diminuir a velocidade do sangue que martelava.

- Então é para nos salvar ou para salvar o seu orgulho que somos prisioneiras em nossa própria casa?

Ela ficou olhando enquanto os olhos de Júlio se endureciam de raiva e sentiu um desejo dolorido por ele.

- O que quer que eu diga? - replicou ele, ríspido. - Quer voltar para o seu pai? Então vá, mas a Primogênita vai viajar com você e tornar aquele local uma fortaleza. Até que meus inimigos estejam mortos, deve ficar em segurança.

Ele apertou os olhos com as mãos, como se quisesse conter a frustração que o varria. Estendeu a mão para ela e abraçou seu corpo rígido.

- Meu orgulho não tem nada a ver com isso, Cornélia. Não há nada mais importante na minha vida do que Júlia e você. A idéia de alguém ferindo vocês é... insuportável. Preciso saber que estão em segurança.

- Mas isso não é verdadeiro, é? - sussurrou ela. - Você se importa mais com a cidade do que com sua família. Você se importa mais com sua reputação e com o amor do povo do que conosco.

Lágrimas brotaram, e ele a segurou com força, apoiando a cabeça na dela. Suas palavras o deixavam pasmo, e Júlio lutou contra uma voz interna que sinalizava um núcleo de verdade nelas.

- Não, mulher - falou forçando um sorriso. - Vocês são mais do que todo o resto.

Ela se afastou, olhando em seus olhos.

- Então vá para longe conosco, Júlio. Se isso é verdade, pegue seu ouro e sua família e deixe essa disputa horrenda para trás. Há outras terras onde podemos nos estabelecer, onde Roma é distante demais para nos perturbar e onde sua filha pode crescer sem medo de facas na noite. Ela tem pesadelos mesmo agora, Júlio. Temo mais pelo que o confinamento está fazendo a ela do que a mim. Se significamos tanto para você, saia de Roma.

Os olhos dele se fecharam, cheios de sofrimento.

- Você não pode... me pedir isso.

Enquanto ele falava, Cornélia se soltou e se afastou, e, por mais que os braços de Júlio ansiassem por segurá-la de novo, ele não podia fazer isso. A voz dela soava áspera e alta, preenchendo o cômodo.

- Então não me faça sermões sobre como se importa conosco, Júlio. Nunca mais diga isso. Sua preciosa cidade nos mantém em perigo e você se envolve em mentiras de dever e amor.

Lágrimas de raiva escorriam de seus olhos vermelhos de novo, e ela escancarou a porta, passando rapidamente pelos soldados da Primogênita que se mantinham a postos do outro lado. Os rostos deles estavam pálidos pelo que tinham ouvido, mas os dois mantiveram o olhar fixo no chão enquanto seguiam Cornélia à distância, temendo provocá-la ainda mais.

Dentro de instantes Júlio ficou sozinho no cômodo e se deixou afundar num divã. Era a terceira vez que discutiam desde o julgamento, e a pior. Tinha vindo para casa cheio de empolgação com o triunfo, e, enquanto contava, aquilo de algum modo exaltou os sentimentos dela, fazendo-a falar com uma raiva que ele nunca vira. Esperava que Clódia estivesse à mão. Só a aia parecia capaz de acalmá-la. Qualquer coisa que ele dissesse só fazia piorar.

Mal-humorado, pensou de novo na briga. Cornélia não entendia o trabalho que ele fizera na cidade, e Júlio fechou os punhos numa súbita irritação contra si mesmo. Ela estava certa: ele possuía riqueza suficiente para levá-los todos para longe. A propriedade seria vendida aos vizinhos avarentos e ele poderia deixar as lutas do Senado e seus domínios para outros. Tubruk poderia se aposentar e seria como se a família de César jamais tivesse representado um papel na maior cidade de todas.

Uma lembrança relampejou em sua mente: Tubruk enfiando seus dedos na terra preta dos campos quando Júlio era um menino. Ele era da terra e nunca poderia deixá-la, ainda que magoar Cornélia o envergonhasse. Ela veria, quando seus inimigos estivessem derrotados, que isso era simplesmente um sofrimento passageiro, e os dois poderiam ver a filha crescer em paz, nos braços de Roma. Se ela ao menos conseguisse suportar o presente, com o tempo ele compensaria tudo. Por fim, afastou a letargia negra que o assolava e ficou de pé. Era quase meio-dia, e, com uma reunião do Senado programada para o início da tarde, teria de ser rápido para terminar seus negócios com a casa de Suetônio antes de ir para a cidade.

Otaviano estava nos estábulos ajudando Tubruk a montar. O garanhão que Júlio havia montado de manhã brilhava depois de ser escovado. Júlio deu um tapinha no ombro do garoto agradecendo, enquanto a lembrança da cavalgada empolgante aliviava sua raiva por um momento. Sentindo-se culpado, percebeu que estava satisfeito em se afastar da propriedade, e também da mulher.

As terras do pai de Suetônio ficavam muito mais perto da cidade do que as de Júlio, com um grande trecho que fazia divisa com as dele. Apesar de não ter patente militar, o senador empregava uma quantidade de guardas que fizeram os dois cavaleiros pararem assim que atravessaram os limites, e depois os acompanharam até as construções principais com cautela e velocidade profissionais. Mensageiros foram mandados à frente, e os dois homens trocaram olhares diante da eficiência.

O lugar onde Suetônio tinha crescido era uma ampla massa de recintos cercados por muros brancos, com quase o dobro do tamanho da propriedade que Júlio herdara. O mesmo rio que alimentava sua terra passava pelas posses de Prando, e o terreno era luxuriante de plantas e cores. Antigos pinheiros sombreavam a entrada, e o caminho era fresco devido às sombras dos galhos pendentes. Tubruk fungou, desaprovando.

- Este lugar é impossível de ser defendido - murmurou. - As árvores dão cobertura demais, e é preciso uma muralha externa e um portão muito bons. Eu poderia tomá-lo com vinte homens.


Júlio não respondeu, pensando em sua casa, com a terra limpa ao redor. Não tinha percebido antes a marca deixada pela influência de Tubruk, especialmente depois do levante dos escravos havia anos. A casa de Suetônio era bela e fazia a sua parecer severa e nua em comparação. Talvez Cornélia achasse que o tempo passaria mais facilmente se o lugar onde estava não parecesse um alojamento de soldados.

Desmontaram para passar pela entrada, um arco de ladrilhos levando a um jardim aberto onde podiam ouvir o murmúrio de água corrente escondido por arbustos com flores. Júlio tirou os pesados embrulhos dos cavalos e colocou o seu no ombro, enquanto Tubruk pegava o outro, entregando as rédeas nas mãos dos escravos que vieram recebê-los. Foram levados até assentos numa antecâmara fresca onde deveriam esperar.

Júlio se acomodou confortavelmente, sabendo que o senador poderia ignorar sua presença por boa parte do dia. Tubruk foi até uma janela olhar as flores que Júlio achou que poderiam ser atraentes para Cornélia se estivessem em volta de sua casa.

Um jovem escravo veio do interior da casa e se aproximou dos dois.

- O senador Prando dá as boas-vindas, tribuno. Por favor, siga-me. Tubruk levantou os olhos surpreso com a velocidade da resposta. Júlio deu de ombros e os dois acompanharam o escravo até uma ala distante, onde o sujeito abriu a porta para eles e fez uma reverência quando entraram.

O senador Prando estava de pé com o filho numa sala que mais parecia um templo do que um lugar de morar. Mármore caro e cheio de redemoinhos cobria as paredes e o piso, com o nicho dos deuses domésticos na parede mais distante. O ar cheirava levemente a um incenso suave e perfumado, e Júlio inspirou, apreciando. Sem dúvida teriam de ser feitas mudanças em sua propriedade. Cada passo de seus pés trazia novos e interessantes detalhes ao olhar, desde o busto de um ancestral no templo até uma coleção de relíquias gregas e egípcias numa parede, que ele estava doido para examinar. Era uma demonstração calculada de riqueza, mas Júlio via tudo aquilo como um guia para as mudanças que ia fazer e deixava totalmente de sentir o efeito pretendido.

- Isso é inesperado, César - começou Prando.

Júlio forçou a atenção a se afastar do ambiente e deu um sorriso aberto para os dois que o observavam.

- O senhor tem uma bela casa, senador. Especialmente os jardins. Prando piscou, surpreso, depois franziu a testa enquanto se obrigava a ser cortês.

- Obrigado, tribuno. Trabalhei muitos anos para torná-la assim, mas o senhor não disse por que veio.

Júlio tirou o saco do ombro e jogou no chão de mármore com o ruído inconfundível de moedas.

- O senhor sabe exatamente por que vim, senador. Vim para comprar de volta as terras que lhe foram vendidas durante meu confinamento com seu filho.

Júlio olhou para Suetônio enquanto falava e viu que o rapaz estava com as feições fixas num riso arrogante. Júlio não reagiu, mantendo o rosto inexpressivo. Era com o pai que teria de lidar.

- Eu esperava construir uma casa para meu filho naquelas terras - começou o senador.

Júlio o interrompeu:

- Eu me lembro do senhor ter dito isso. Trouxe o preço que o senhor pagou e mais um quarto, para compensar a perda. Não vou barganhar por minhas terras. Não vou oferecer de novo - disse ele com firmeza, desamarrando o saco para revelar o ouro.

- Esta é... uma proposta justa - disse Prando, olhando os sacos. - Muito bem, mandarei meus escravos removerem as cercas.

- O quê? Papai, o senhor não pode simplesmente... - começou Suetônio com raiva.

O senador se virou para o filho e agarrou o braço dele com força.

- Fica quieto!

O rapaz balançou a cabeça incrédulo enquanto Júlio se aproximava e apertava a mão de seu pai, para selar o acordo. Sem outra palavra, Júlio e Tubruk partiram, deixando Suetônio sozinho com o pai.

- Por que fez isso? - perguntou ele num espanto furioso.

A boca do pai se retorceu num espelho do riso de desprezo de Suetônio.

- Você é um idiota, meu filho. Eu o amo, mas você é um idiota. Esteve no julgamento comigo. Esse homem não é alguém para se ter como inimigo. Está suficientemente claro?

- Mas e a casa que o senhor ia construir? Deuses, já passei dias com os arquitetos.

O senador Prando olhou para o filho, os olhos demonstrando um desapontamento que feriu mais o rapaz do que se fosse um soco.

- Confie em mim, Suetônio. Você teria morrido naquela casa tão perto das terras dele. Quer você perceba ou não, eu o mantive vivo. Não temo César por mim mesmo, mas você é meu filho mais velho, e ele é perigoso demais. Ele amedronta Cato, e deveria aterrorizar você.

- Não tenho medo de César nem dos soldados dele! - gritou Suetônio.

O pai balançou a cabeça, triste.

- Isso, meu filho, é porque você é um idiota.

Enquanto guiavam os cavalos pelo portão da propriedade, Júlio e Tubruk ouviram um grito vindo da construção principal. Brutus correu para recebê-los, e os cumprimentos alegres dos dois morreram nos lábios ao verem sua expressão.

- Graças aos deuses vocês voltaram - disse ele. - Os senadores estão chamando todo mundo. A Primogênita tem de estar pronta para agir.

Enquanto falava, um escravo trouxe sua montaria e ele saltou na sela.

- O que está acontecendo? - perguntou Júlio rapidamente enquanto Brutus pegava as rédeas, sentindo um jorro de empolgação.

- Uma rebelião de escravos no norte. Milhares deles e centenas de gladiadores que mataram os guardiões. Módena foi dominada - respondeu Brutus, o rosto pálido sob o pó da estrada.

- Não é possível! Há duas legiões lá - disse Tubruk, aterrorizado.

- Esse foi o informe. Os mensageiros partiram a toda pressa, mas achei que você ia querer a notícia o mais rápido possível.

Júlio virou a cabeça do cavalo e pegou as rédeas com força.

- Não posso levar os homens que estão guardando minha mulher, não com o perigo de outra rebelião se espalhando aqui - disse peremptoria-mente.

Brutus deu de ombros.

- A ordem foi mandar cada soldado disponível marchar para o norte, Júlio, mas vou esquecer esses - respondeu ele, dando um tapinha no ombro do amigo. Júlio puxou as rédeas, pronto para bater os calcanhares nos flancos do cavalo.

- Deixe a casa segura, Tubruk - ordenou Júlio. - Se a rebelião se espalhar, provavelmente vamos agradecer o modo como você estabeleceu as defesas. Mantenha minha família em segurança, como já fez antes.

Eles compartilharam um momento de compreensão privada, enquanto Tubruk encarava Júlio. Para que Brutus não pudesse ouvir, Júlio se inclinou sobre o ombro do garanhão e sussurrou no ouvido de Tubruk:

- Sei o que devo a você - falou.

A morte de Sila tinha salvado todos eles.

- Não se preocupe. Agora vá! - respondeu Tubruk rispidamente, dando um tapa na anca do cavalo de Júlio.

Os dois rapazes se curvaram sobre as selas enquanto colocavam as mon-tarias em pleno galope, levantando uma névoa de poeira na estrada para Roma.

 

O prédio do Senado estava zumbindo de atividade enquanto Júlio e Brutus se aproximavam. Desmontaram na borda do fórum e guiaram os cavalos até os grupos de senadores que vinham de todas as direções, convocados de toda a cidade e de fora para a reunião de emergência.

- Como recebeu a notícia tão depressa? - perguntou Júlio ao amigo enquanto atravessavam a praça.

Brutus parecia inquieto, então sua cabeça se levantou.

- Minha mãe me disse. Ela tem vários... contatos no Senado. Provavelmente foi uma das primeiras pessoas a saber.

Júlio notou uma cautela nos modos de Brutus e pensou naquilo. O rapaz vinha pressionando por uma reunião entre ele e Servília, e Júlio sentia como isso era importante para ele.

- Realmente tenho de conhecer essa sua mãe - disse em tom animado. Brutus lançou-lhe um olhar, procurando alguma zombaria, e então relaxou, satisfeito.

- Ela ficou muito interessada em conhecer você, depois do julgamento. Servília não se parece com ninguém que eu conheça.

- Então talvez esta noite, se houver tempo - respondeu Júlio, escondendo a relutância.

Tubruk já dera várias opiniões sobre a mulher, mas ele devia a Brutus, se isso era uma coisa que ele desejava.

Brutus pegou as rédeas dos dois cavalos numa das mãos quando eles chegaram à base da escadaria.

- Venha ao alojamento depois, se puder. Deixarei a Primogênita pronta para marchar sob suas ordens - disse ele.

Seus olhos estavam brilhantes de uma empolgação que fez Júlio rir.

- Assim que eu estiver livre - falou, subindo a escadaria e entrando na escuridão dentro do prédio.

O mestre dos debates e o cônsul ainda estavam a caminho, de modo que nenhuma discussão oficial tinha começado quando Júlio entrou no prédio. Em vez disso, metade do número total de seus colegas estava reunida em grupos ansiosos, gritando perguntas e comentários uns para os outros num ruído que só servia para aumentar a impressão de emergência. Não havia qualquer ordem, e Júlio se demorou contatando os conhecidos, pegando os detalhes que Brutus não ficara sabendo.

Pompeu estava com Crasso e Cina, envolvidos numa discussão acalorada. Os três cumprimentaram Júlio com a cabeça quando ele se aproximou, depois continuaram a conversa rápida.

- Claro que você terá um comando, meu amigo. Não há mais ninguém importante, e nem mesmo Cato hesitaria, tendo apenas as forças em Arimino para guardar o sul - disse Crasso a Pompeu.

O comandante moreno deu de ombros, o rosto cheio de um conhecimento amargo.

- Cato faria qualquer coisa para me impedir de assumir o controle militar, você sabe. Ele não deve ter permissão de colocar gente sua. Veja o que aconteceu na Grécia! E os piratas que circulam à vontade, atacando nossos mercadores. Se esses gladiadores são os mesmos que não conseguimos derrotar no Vesúvio, Módena se perdeu por causa de nossa política tímida desde a morte de Sila. Tudo porque Cato impede o Senado de mandar um general à altura da tarefa. Acha que desta vez será diferente?

- Pode ser - respondeu Cina. - Cato tem posses no norte, que podem estar sofrendo ameaças por parte dos escravos. Eles até podem se virar para o sul e atacar a cidade. Cato não seria idiota a ponto de ignorar uma ameaça a Roma. Eles devem mandar você. Pelo menos nós temos as legiões que voltaram da Grécia para se juntar às outras.

- Aí vem o cônsul. Ele deve usar seu veto contra Cato se o gordo idiota interferir. Isso é mais do que uma questão pessoal entre nós. A segurança do norte está em risco. A segurança da própria Roma.

Pompeu deixou-os, atravessando rudemente os grupos de senadores para falar com o cônsul que entrava. Júlio ficou olhando quando ele se encontrou com o homem, um ancião eleito para o cargo como um meio-termo entre as facções do Senado. Enquanto Pompeu falava, com as mãos se movendo acompanhando as palavras, o sujeito pareceu nervoso e intimidado. Júlio franziu a testa, batendo os dedos na barriga, tenso, enquanto o cônsul dava as costas a Pompeu, que continuava gesticulando, e subiu até o rostro.

- Ocupem seus lugares, senadores - gritou o cônsul.

O juramento da reunião foi feito rapidamente, e então o cônsul pigarreou para se dirigir às fileiras tensas.

- Os senhores foram convocados a uma reunião de emergência para debater uma reação ao levante. Tenho os últimos relatórios, e eles são preocupantes. Foi uma revolta de gladiadores de uma escola em Cápua. A princípio, o pretor local parecia capaz de controlar, mas não conseguiu conter a rebelião. Parece que eles conseguiram juntar um exército de escravos e fugir para o norte. Saquearam várias cidades e propriedades, matando centenas de pessoas e queimando tudo que não pudessem roubar, O legado de Módena lutou contra os escravos e a guarnição foi destruída, sem sobreviventes.

Ele fez uma pausa. Os senadores que não tinham ouvido a notícia ficaram boquiabertos e gritaram ultrajados, e o cônsul levantou a mão para acalmá-los.

- Senadores, a importância disso não pode ser subestimada. As legiões em Arimino receberam ordem de garantir a cidade, mas com Módena perdida o norte está completamente aberto. As estimativas que tenho são variadas, mas talvez eles tenham até trinta mil escravos sob seu comando, com outros se juntando enquanto assolam cada cidade. Só posso presumir que eles dominaram as legiões de Módena com um vasto número de pessoas. Devemos enfrentá-los com a maior força que pudermos reunir, ao mesmo tempo que mantemos nossas fronteiras ao sul garantidas. Não preciso dizer que não podemos tirar guarnições da Grécia sem corrermos um tremendo risco, logo depois da rebelião que houve por lá.

"No momento eles não mostram qualquer sinal de se virarem para Roma mas, se fizerem isso, há mais de oitenta mil escravos que poderiam se juntar à causa quando chegarem ao sul. Esta é uma ameaça grave, e nossa reação deve ser rápida e definitiva.

O cônsul olhou rapidamente para Cato, depois para Pompeu.

- Desta vez peço que ponham de lado suas diferenças pelo bem da cidade e das terras romanas. Convoco o mestre dos debates para ouvir as respostas.

O cônsul se sentou, enxugando a testa nervoso, obviamente aliviado por poder passar a reunião a outro. O mestre dos debates tinha esse posto há vários anos, e sua experiência lhe dava um distanciamento que servia para esfriar os ânimos mais esquentados. Esperou pacientemente pelo silêncio antes de escolher o primeiro orador.

- Pompeu?

- Obrigado. Senadores, peço o comando das legiões mandadas contra esses rebeldes. Minha ficha fala por mim, como qualificação, e insisto em que votem rapidamente. Cada soldado de Roma, num raio de cento e cinqüenta quilômetros, foi chamado de volta à cidade. Dentro de uma semana deveremos ter um exército de seis legiões para mandar contra os escravos, juntando-se às duas de Arimino quando chegarmos lá. Se demorarmos, esse exército de escravos crescerá ainda mais, até ser impossível pará-lo. Lembrem-se de que eles são em maior número do que nós, senadores, mesmo em nossas casas. Dêem-me o comando e eu os destruirei em nome do Senado.

Pompeu sentou-se sob aplausos esparsos e batidas de pés. Não respondeu ao barulho, com o olhar fixo na figura de Cato, que tinha se levantado devagar, o rosto vermelho.

- Que fale Cato - confirmou o mestre dos debates.

- A ficha de Pompeu é realmente ótima - começou Cato, sorrindo para o senador de rosto pétreo do outro lado dos bancos. - Concordo com ele que deve ser reunida uma força a ser enviada para atacar rapidamente, antes que o incêndio da rebelião queime o norte. Mas há outras escolhas de homens para comandar a força que mandaremos, outros que tenham o posto de general e experiência em lutar por Roma. Parece-me que um homem que se oferece talvez não seja adequado a esse papel. Melhor nomearmos um general aceitável a todos nós para essa tarefa difícil. Confesso que a ânsia de Pompeu me deixa inquieto, dada a história recente da cidade, e em vez disso sugiro que o comando seja dado a Lépido, que acaba de voltar da Grécia.

Ele se sentou em silêncio diante de uma confusão de gritos irados e conversas, com as duas facções xingando-se mutuamente.

- Silêncio, senhores. Os senhores não servem a Roma com o seu rancor - disse o mestre dos debates, trazendo de volta um silêncio inquieto.

Ele olhou em volta para os senadores sentados e assentiu para Júlio, que tinha se levantado ao fim do discurso de Cato.

- Fui testemunha da cautela de Lépido contra Mitrídates. Ele demorou a entrar em combate e mal tinha se afastado do ponto de desembarque quando o encontrei para entregar o corpo do rei grego. Já vi muitas concessões assim neste Senado. Lépido é má escolha, quando precisamos agir depressa e esmagar a rebelião antes que fuja ao controle. Devemos colocar de lado nossos ressentimentos e nossas facções para dar o comando a quem poderá obter os melhores e mais rápidos resultados: Pompeu.

O mestre dos debates assentiu, concordando, abandonando sua postura geralmente imparcial, mas então foi compelido a dar a palavra a Cato quando este se levantou de novo.

- Estou preocupado com a possibilidade de a ameaça que existe contra nós ser usada como ambição cega, senadores. Lépido jamais nos colocará em perigo quando as batalhas terminarem, mas Pompeu pode muito bem estar de olho no futuro, já enquanto discutimos a escolha. Meu voto será por Lépido. - E sentou-se cuidadosamente de volta, olhando furioso para Júlio por um momento.

- Há mais algum candidato? Se houver, que se levante, caso contrário passaremos diretamente à votação.

O mestre dos debates esperou, com o olhar percorrendo as fileiras.

Crasso se levantou rigidamente, ignorando a surpresa dos que apoiavam Cato. Recebeu o sinal para falar e cruzou as mãos às costas, como um professor dirigindo-se aos alunos.

- Senadores, temo que a política nos leve à opção errada para a cidade. Não sei quem venceria a eleição entre Pompeu e Lépido como comandantes, mas, se for Lépido, isso só poderia levar ao desastre. Eu me coloco como terceiro candidato para impedir o desperdício de vidas que certamente resultaria do comando de Lépido. Apesar de nos últimos anos ter me dedicado aos negócios, também conto com minha ficha anterior nas legiões, para sua aprovação.

De novo o ruído de conversas irrompeu por todo o salão do Senado enquanto Crasso se levantava. Pompeu ficou pasmo com a revelação do amigo e tentou captar o olhar dele sem sucesso, enquanto Crasso virava a cabeça para o outro lado. Quando o ruído morreu, Pompeu se levantou, com as mãos inconscientemente se apertando em punhos.

- Eu retiro meu nome em favor de Crasso - falou em tom amargo.

- Então passaremos à votação sem mais demora. Levantem-se para o escolhido, senhores - respondeu o mestre dos debates, tão surpreso quanto todos pela reviravolta nos acontecimentos. Esperou mais alguns instantes para que os senadores se decidissem, depois fez a chamada dos nomes.

- Lépido!

Júlio esticou o pescoço junto com todo mundo que ainda estava sentado, para avaliar os números, depois soltou o ar, satisfeito. Não havia um número suficiente para vencer.

- Crasso! - entoou o mestre dos debates, sorrindo.

Júlio se levantou com Pompeu e os outros que tinham considerado a opção correta. O mestre dos debates assentiu ao cônsul, que se levantou e se apoiou no rostro diante dele.

- Crasso é nomeado general dos exércitos do norte que estão sendo reunidos e recebe a ordem de enfrentar a rebelião e destruí-la completamente - disse o cônsul.

Crasso se levantou para agradecer aos senadores.

- Farei de tudo para preservar nossas terras e a cidade, senhores. Assim que as legiões forem reunidas no Campo de Marte, partirei contra os rebeldes.

Ele parou um momento e deu um sorriso maroto.

- Manterei os legados no lugar, sob minhas ordens, mas devo ter um subcomandante, para o caso de eu cair. Nomeio Gneu Pompeu como este segundo.

Xingamentos e aplausos irromperam em toda parte, ignorando os gritos do mestre dos debates pedindo silêncio. Júlio riu do golpe, e Crasso inclinou a cabeça para ele em reconhecimento, claramente se divertindo.

- Façam silêncio! - gritou o mestre dos debates, finalmente perdendo as estribeiras. A balbúrdia foi sumindo sob seu olhar furioso, mas lentamente.

- Devemos partir para os detalhes, senadores - disse o cônsul, folheando seus documentos. - Nossos mensageiros informam que os escravos estão bem armados depois de Módena, tendo levado suprimentos e armamentos dos legionários. Um dos nossos afirma que viu os gladiadores treinando os escravos com espada e lança, imitando nossas formações no campo. Depois de Módena, eles não devem ser subestimados.

O cônsul lambeu os dedos nervosamente enquanto examinava o maço de pergaminhos.

- Eles têm oficiais? - perguntou Pompeu. O cônsul assentiu enquanto lia.

- Parece que têm uma estrutura baseada nas nossas legiões em todos os sentidos. Estou com a mensagem original do dono do alojamento de onde os gladiadores escaparam. Está aqui, em algum lugar.

Os senadores esperaram com paciência enquanto o cônsul encontrava o documento procurado.

- Sim, eram setenta, e todos os guardas foram mortos. Os escravos dos alojamentos foram com eles, mas o tal homem não sabe se foram de livre vontade ou obrigados. Ele afirma que mal conseguiu escapar com a própria vida. Parece que esses gladiadores formam a classe de oficiais do exército.

- Quem lidera essa corja de gladiadores? - perguntou Pompeu, sem se importar que seu tom de voz atrapalhasse até certo ponto a ficção da liderança de Crasso.

O cônsul remexeu os documentos de novo e lambeu os lábios mais de uma vez para separá-los.

- Sim, eu tenho seu nome Eles são liderados por um gladiador chamado Espártaco, um trácio. Ele começou, e o resto o seguiu. Não há mais nada, mas passarei qualquer outra coisa a Crasso, à medida que os relatórios chegarem.

- Com sua permissão, senhores, gostaria de sair com o meu subcomandante para me preparar para a marcha - disse Crasso.

Enquanto se virava, ele deu um tapinha no ombro de Júlio.

- Quero a Primogênita comigo quando formos, Júlio - falou em voz baixa.

- Ela estará pronta.

Crasso se reclinou no calor de um banho quente, permitindo que as dificuldades do dia escorregassem do corpo. A escuridão tinha chegado rápido lá fora, mas a sala de banhos era iluminada por lâmpadas e velas suaves, o ar estava denso com o vapor d'água. Ele pousou os braços ao longo do assento de mármore, desfrutando o frescor na pele. A água vinha até o pescoço, mas com o assento de pedra lisa sob a superfície ele podia relaxar completamente. Exalou devagar, imaginando por que a piscina de sua própria propriedade nunca era tão confortável assim.

Servília estava sentada nua na água à sua frente, com apenas os ombros acima da superfície. Quando se movia, as curvas dos seios surgiam por momentos hipnotizantes antes de baixarem de novo, turvadas pelos óleos doces que tinha derramado para os dois. Ela sabia que era isso que ele queria, assim que chegou depois de deixar os generais, cansado e irritadiço. Isso tudo fora embora enquanto os dedos dela afastavam os pontos doloridos no pescoço antes de ele entrar na piscina funda, aberta no piso de uma área particular da casa. Aquela mulher sempre podia sentir seu humor.

Ela ficou olhando enquanto a tensão do dia abandonava Crasso, divertida com os sussurros e gemidos dele. Sabia do que praticamente mais ninguém suspeitava sobre o idoso senador, que ele era um homem terrivelmente solitário que acumulara fortunas e influência sem manter os amigos da juventude. Raramente queria dela algo mais do que a chance de conversar em privacidade, mas Servília sabia que a visão de sua nudez ainda podia excitá-lo, se ela deixasse. Era um relacionamento confortável, sem a preocupação sórdida do pagamento para estragar a intimidade. Ele não lhe oferecia qualquer moeda além das conversas, ainda que às vezes elas valessem muito mais do que ouro.

Os óleos brilharam na superfície da piscina, e Servília traçou desenhos nela com o dedo, sabendo que ele estaria gostando de vê-la.

- Você trouxe a Primogênita de volta - disse ela. - Meu filho sente um orgulho maravilhoso dos homens que encontrou para lutar sob esse nome.

Crasso sorriu lentamente.

- Se você tivesse conhecido Mário, entenderia por que me dá tanto prazer fazer isso.

Ele optou por não lembrar o papel representado por Pompeu e Cina, preferindo não ouvir esses nomes naquela casa. Esta era outra coisa que ela entendia sem precisar que lhe dissessem.

Servília se levantou, apoiando os braços esguios nas laterais, de modo que os seios ficaram totalmente visíveis. Era muito vaidosa com eles e se movia sem timidez. Crasso deu um sorriso apreciador, completamente à vontade.

- Fiquei um pouco surpreso ao saber que ele entregou o comando a Júlio.

Servília deu de ombros, o que o fascinou.

- Ele adora Júlio - disse ela. - Roma tem sorte de ter filhos como aqueles dois.

- Cato não concordaria, minha cara. Você deve ter cuidado com ele.

- Eu sei, Crasso. Os dois são muito jovens. Jovens demais até mesmo para ver o perigo das dívidas crescentes.

Crasso suspirou.

- Você veio me pedir ajuda, lembra? Eu não estabeleci limites para os gastos da Primogênita. Gostaria que eu cancelasse a dívida? Ririam de mim.

- Por ter trazido a legião de Mário de volta das cinzas? Jamais. Você agiu como estadista, Crasso, eles saberão disso. Foi uma coisa nobre de fazer.

Crasso deu um risinho, repousando a cabeça na pedra fria e olhando o teto onde o vapor pairava numa névoa que ia se resfriando.

- Está me lisonjeando de modo muito óbvio, não acha? Não estamos falando de uma pequena quantia, apesar de todo o prazer que senti em ver a Primogênita de volta aos registros.

- Já pensou que Júlio pode pagar a dívida? Ele tem ouro para isso. - Enquanto o ar esfriava em sua pele, ela estremeceu ligeiramente e afundou de novo na água. - Seria muito melhor você dar de presente, um gesto grandioso para envergonhar os homens mesquinhos do Senado. Sei que você não se importa nada com o dinheiro, Crasso, e é por isso que tem tanto. É a influência que ele traz que você ama. Há outros tipos de dívida. Quantas vezes lhe passei informações que você usou para obter lucro?

Ela deu de ombros respondendo à sua própria pergunta, criando marolas na água quente. Crasso levantou a cabeça com esforço, deixando o olhar brincar sobre ela. Ela sorriu.

- Faz parte da minha amizade e me deu prazer ajudá-lo de vez em quando. Meu filho sempre vai pensar bem a seu respeito se você der o dinheiro a ele de presente. Júlio vai apoiá-lo em qualquer coisa. Você não poderia comprar esses homens com algumas moedas, Crasso. Eles têm orgulho demais, mas uma dívida perdoada? Este é um ato nobre, e você sabe disso tanto quanto eu.

- Eu vou... pensar nisso - disse ele, com os olhos fechando. Servília observou enquanto ele afundava num sono leve e a água esfriava ao redor. Crasso faria o que ela desejava. Seus pensamentos voltaram para a visão de Júlio no tribunal. Era um rapaz muito poderoso. Quando seu filho entregou a Primogênita, ela imaginou se teriam pensado na dívida para com Crasso. Agora não seria um fardo. Estranho como a idéia da gratidão de seu filho era um prazer menor comparado ao fato de Júlio saber que ela fizera parte do presente.

Cheia de preguiça, passou as mãos pela barriga enquanto pensava no jovem romano de olhos estranhos. Ele tinha uma força da qual havia apenas um eco no adormecido Crasso, ainda que o velho é que levaria as legiões para o norte.

Uma das suas escravas entrou num silêncio sedoso, uma garota linda que Servília tinha resgatado de uma fazenda no norte.

- Seu filho está aí, senhora, com o tribuno - sussurrou a garota. Servília olhou para Crasso, depois sinalizou para a garota ocupar seu lugar

na água quente. Se ele acordasse, não ficaria satisfeito em estar sozinho, e a garota era suficientemente bonita para atrair até mesmo o interesse dele.

Servília enrolou um roupão na pele molhada e estremeceu ligeiramente, em antecipação.

Parou um instante na frente de um espelho enorme na parede e empurrou o cabelo úmido para longe da testa. Seu estômago estava leve com uma tensão surpreendente ao pensar que finalmente conheceria Júlio, e sorriu sozinha, divertida.

Brutus estava sentado com Júlio numa câmara que não tinha nada da decoração artística que ela empregava nos cômodos destinados aos negócios. Os móveis eram simples e as paredes eram cobertas por um tecido de padronagem sutil que dava uma sensação calorosa. Um fogo crepitava na grade e a luz era dourada quando os dois se levantaram para cumprimentá-la.

- Que bom conhecê-lo finalmente, César - disse ela, estendendo a mão. Seu roupão se grudava à pele úmida exatamente como ela havia esperado, e a expressão dele lhe deu prazer, lutando para não encará-la.

Júlio se sentiu avassalado por ela. Imaginou se Brutus se perturbava com o fato de ela parecer quase nua, apesar do tecido fino que cobria a pele. Viu que ela estivera tomando banho, e sua pulsação martelou ao pensar no que poderia estar acontecendo antes de sua chegada. Não era linda, pensou, mas quando sorria havia algo absolutamente sem fingimento na sensualidade. Ele tinha uma leve consciência de que não dormia com uma mulher há tanto tempo que quase havia se esquecido, e mesmo assim não se lembrava de Cornélia ou Alexandria o terem abalado como aquela mulher fazia tão sem esforço.

Ruborizou ligeiramente enquanto segurava a mão dela.

- Seu filho fala muito bem da senhora. Fico feliz por nos conhecermos, mesmo que por apenas um momento antes de eu voltar para casa. Sinto muito não poder ficar mais.

- A Primogênita deve estar se reunindo para acabar com a rebelião - disse ela, assentindo. Seus olhos se alargaram ligeiramente enquanto ele absorvia as palavras. - Não vou retê-los e devo voltar ao meu banho. Apenas se lembre de que você tem uma amiga, se um dia precisar de mim.

Júlio imaginou se realmente havia uma promessa naqueles olhos que o encaravam tão calorosamente. A voz dela era baixa e suave, e ele poderia ouvi-la durante longo tempo. Balançou a cabeça de súbito, como se para interromper um transe.

- Vou me lembrar - disse ele, inclinando a cabeça ligeiramente enquanto a avaliava. Quando ela se virou para Brutus, Júlio olhou rapidamente para onde as linhas de tecido úmido se curvavam em volta dos seios e ficou ruborizado de novo quando ela captou seu olhar e sorriu com prazer óbvio.

- Você deve trazê-lo de novo, Brutus, quando tiverem mais tempo. Parece que meu filho fala muito bem de nós dois.

Júlio olhou para o amigo, que estava franzindo a testa ligeiramente.

- Trarei - respondeu Brutus. Em seguida guiou Júlio para fora e deixou-a olhando-os. Os dedos dela roçaram ligeiramente nos seios enquanto pensava no jovem romano, e os mamilos duros tinham pouco a ver com o ar na pele.

Brutus achou facilmente a casa de Alexandria, apesar da escuridão das ruas. Com a armadura da Primogênita, ele era um alvo pouco convidativo para os raptores que atacavam os fracos e os pobres. A mãe de Otaviano, Atia, atendeu à porta com um olhar de medo que se desvaneceu ao reconhecê-lo. Ele entrou atrás dela, imaginando quantos outros viviam no terror dos soldados que vinham procurá-los à noite. Enquanto os senadores se rodeavam de guardas, o povo de Roma não tinha proteção além das portas que os separavam do resto da cidade.

Alexandria estava em casa, e Brutus ficou totalmente sem graça enquanto a mãe de Otaviano preparava o jantar a pouco mais de um metro de distância.

- Há algum lugar mais privado onde a gente possa conversar? - perguntou ele.

Alexandria olhou a porta aberta de seu quarto e Atia apertou a boca numa linha fina.

- Não na minha casa - disse ela, franzindo a testa para Brutus. - Vocês dois não são casados.

Brutus ficou vermelho.

- Vou partir amanhã. Só queria...

- Ah, sim, entendo muito bem o que você queria, mas não vai acontecer na minha casa.

Atia voltou a cortar legumes, deixando Brutus e Alexandria contendo risinhos que só teriam confirmado as suspeitas dela.

- Quer ir lá fora comigo, Brutus? Tenho certeza que Atia pode confiar em você à vista dos vizinhos - disse Alexandria. Em seguida pôs a capa e o seguiu para a noite enquanto Atia levava a tábua de cortar até a panela, inabalável.

Quando estavam sozinhos, Alexandria entrou nos braços dele e os dois se beijaram. Mesmo estando escuro, as ruas continuavam apinhadas. Brutus olhou em volta, irritado. O pequeno portal mal oferecia abrigo do vento, quanto mais o tipo de privacidade que ele queria.

- Isto é ridículo - falou, ainda que de fato estivesse esperando exatamente o tipo de encontro que Atia impedira. Ia partir para lutar em distantes campos de batalha, e era quase uma tradição encontrar uma cama acolhedora para a noite anterior.

Alexandria deu um risinho, beijando-o no pescoço, onde a armadura fazia com que a pele ficasse fria.

- Ponha minha capa em volta de nós - sussurrou ela em seu ouvido, acelerando sua pulsação.

Ele arrumou a capa de modo a enrolar os dois, e cada um estava respirando o hálito do outro.

- Vou sentir falta de você - disse ela, tristonha, sentindo o corpo apertado contra o dele.

Brutus tinha de segurar a capa com uma das mãos, mas a outra estava livre para deslizar no calor das costas dela e, quando seus dedos se esquentaram, sob a estola e contra a pele de Alexandria. Ela ofegou ligeiramente.

- Acho que Atia estava certa - sussurrou ela, não querendo que os ouvidos afiados da outra os escutassem.

Com a mão forte dele nos quadris, era como se estivesse nua, e a multidão que passava no escuro só fazia aumentar a excitação. A capa formava um espaço quente contra o frio, e ela o abraçou com força, sentindo as linhas rígidas da armadura, Ele estava com as pernas nuas, como sempre, e foi com um chocante sentimento de ousadia que ela pôs as mãos nas coxas dele, sentindo sua força lisa.

- Eu deveria chamá-la para me proteger de você - disse ela, movendo as mãos para cima.

Achou cordões macios e os afrouxou sentindo o calor dele na mão. Brutus gemeu baixinho diante do toque que o envolvia, olhando em volta para ver se alguém tinha notado. As pessoas não percebiam nada no escuro, e de repente ele não se importou se podiam ser vistos ou não.

- Quero que se lembre de mim enquanto estiver longe, jovem Brutus. Não quero você olhando cheio de desejo para aquelas prostitutas de acampamento - sussurrou. - Nós dois temos um negócio inacabado.

- Eu não iria... ah, deuses. Desejei você por tanto tempo!

Por baixo da capa ela desabotoou a estola e fez com que ele a penetrasse, os olhos estremecendo fechados com o movimento. Brutus levantou-a com facilidade, e juntos eles se apoiaram no portal, sem perceber nada em volta enquanto se moviam em silêncio. As pessoas passavam perto, mas nenhuma parava, e a noite as engolia.

Alexandria mordeu o lábio de prazer, agarrando a capa com mais força em volta deles, até quase se sufocar. O peitoral de Brutus se comprimia frio contra ela, mas ela não sentia desconforto, só o calor dele por dentro. A respiração dele era quente em seus lábios enquanto ela ofegava e o sentia começando a se retesar.

Pareceu demorar um longo tempo antes de voltarem a ter consciência dos músculos com cãibra e do frio. Alexandria gemeu baixinho enquanto ele saía de dentro. Brutus ficou perto no escuro, acariciando a pele que não podia ver, numa espécie de espanto. O calor redemoinhava no ar, criado por eles. Olhou os olhos dela e eles o espiaram de volta. Havia uma vulnerabilidade ali, apesar de toda a confiança externa, mas isso não importava. Ele não iria magoá-la. Lutou para encontrar palavras para dizer o que ela significava, mas Alexandria pôs a mão em sua boca para calar as bobagens.

- Shhh... eu sei. Só volte para mim, meu homem bonito. Só volte. Ela ajeitou a capa para cobrir seu desalinho e, depois de beijá-lo uma última vez, abriu a porta para a luz que desapareceu junto com ela, deixando-o sozinho.

Brutus passou um momento se ajeitando para ficar decente o bastante para andar pelas ruas. Cada nervo pinicava com o toque dela, e ele se sentia totalmente vivo com a intensidade do que acontecera. Cambaleou um pouco andando de volta ao alojamento, e seu passo era leve.

 

Ofegando ligeiramente no ar frio, Júlio se virou para olhar a cobra brilhante que serpenteava pela Via Flamínia abaixo da passagem elevada. Os primeiros três dias haviam sido duros para ele, antes que a forma física dos tempos na Grécia começasse a voltar. Agora as pernas tinham se enrijecido em cristas de músculos, e ele desfrutava do prazer que vem do simples cansaço com um corpo que parecia inexaurível. No fim do décimo dia estava gostando da marcha para Arimino, com as legiões às costas. Nas noites no campo, treinava o gládio com os especialistas que Crasso trouxera, e mesmo sabendo que jamais seria um mestre, seus pulsos ficavam mais fortes dia a dia, e somente os professores de espada podiam romper sua guarda.

O vento soprava em volta da coluna em marcha e Júlio estremeceu ligeiramente. Apesar de ter visto muitas terras no tempo passado longe de Roma, o frio dos Apeninos era novo, e ele o recebia com uma aversão séria espelhada em muitos dos soldados à sua volta.

Para tirar o gosto de pó da garganta, Júlio tomou um gole d'água de seu odre, mudando o peso do equipamento para encostar o gargalo na boca. A coluna só parava duas vezes por dia: brevemente ao meio-dia e depois a parada noturna, que começava com três horas de trabalho exaustivo para preparar os limites do acampamento contra emboscadas ou ataque. Olhou de novo para a coluna da legião e se maravilhou com o tamanho. Da passagem elevada entre as montanhas ele podia ver uma distância enorme no ar límpido mas a retaguarda invisível da cavalaria estava a mais de quarenta e cinco quilômetros atrás. Com Crasso estabelecendo um ritmo rápido de trinta quilômetros do alvorecer ao crepúsculo, isso significava que os da retaguarda estavam um dia atrás dos da frente, e só iriam alcançá-los em Arimino. Cada parada tinha de ser repassada pela coluna pelos cornicens, com as notas das trombetas sumindo à distância até não poderem mais ser ouvidas.

Acima das encostas íngremes estavam as unidades de cavaleiros extraordinariis, como batedores na linha de frente. Montados em animais fortes, Júlio achava que eles deviam cobrir três ou quatro vezes a distância que a coluna marchava, em seus padrões entrecruzados. Era uma tática padronizada, ele sabia, ainda que qualquer um que tentasse atacar uma coluna tão forte teria de ser suicida.

Na frente estava a legião de vanguarda, escolhida a cada dia por sorteio. Tendo números inferiores, a Primogênita não podia tomar parte nas trocas, e ficava permanentemente estacionada dezesseis quilômetros atrás, perdida das vistas no centro da coluna. Júlio tentava imaginar o que Brutus e Rênio estavam achando da marcha. Caberá era mais velho do que alguns dos veteranos que haviam lutado contra Mitrídates com ele. Em Roma, Júlio achou que seria importante estar perto de Crasso, mas sentia falta dos amigos. Não obstante o quanto se esforçasse, não conseguia destacar o estandarte da águia da Primogênita na confusão de bandeiras lá atrás. Via a cavalaria da legião percorrendo para cima e para baixo a coluna, como as formigas-soldado que tinha visto na África, sempre olhando para fora, esperando um ataque que enfrentariam enquanto as linhas de luta se formassem.

Júlio marchava com a vanguarda, a uma distância em que era capaz de se comunicar gritando com Crasso e Pompeu, que cavalgavam no ritmo dos homens que eles lideravam. Com mais de quatro mil homens à frente quando soou o toque para a interrupção da noite, os generais tinham arranjado tudo de modo que o acampamento principal estivesse montado e as tendas erguidas quando eles chegassem. Assim podiam iniciar as discussões e comer, enquanto o resto cavava as imensas barreiras de terra em volta, criando um perímetro capaz de parar quase qualquer coisa.

Os três acampamentos eram marcados com bandeiras exatamente do mesmo modo a cada noite. Quando o sol finalmente se punha atrás das montanhas, as seis legiões eram organizadas em quadrados enormes, tendo até ruas principais: cidades brotavam do nada no ermo. Júlio ficara pasmo com a organização que os soldados mais velhos consideravam ponto pacífico. A cada noite ele martelava os prendedores de ferro da tenda com os outros, no lugar marcado para eles. Depois se juntava às unidades que cavavam a trincheira e colocava estacas em cima da barreira de terra que formava o muro externo da área segura, ininterrupta a não ser por quatro portões que tinham até mesmo guardas e vigias. Ainda que seus tutores lhe tivessem ensinado muita coisa sobre as rotinas e táticas das legiões, a realidade era fascinante e, desde o início, viu que parte da força vinha dos erros cometidos no passado. Se Mitrídates tivesse estabelecido um perímetro como o das legiões, ele sabia que ainda poderia estar na Grécia, procurando um modo de entrar.

O caminho para a colocação das pedras da Via Flamínia fora cortado através de um vale estreito entre encostas de cascalho solto. Apesar da luz já estar se esvaindo, Júlio achou que Crasso manteria os soldados marchando até que a vanguarda chegasse a um terreno limpo, suficientemente grande para o primeiro acampamento. Uma das legiões teria de voltar às planícies abaixo em busca de segurança, o que deixaria o passo livre a não ser pelos guardas extraordinariis que permaneciam fazendo patrulha montada durante o período de escuridão. Não importando o que acontecesse, as legiões não podiam ser surpreendidas por qualquer inimigo, precaução que tinham aprendido havia mais de cem anos, lutando contra Aníbal nas planícies. Júlio se lembrou da admiração de Mário pelo antigo inimigo. No entanto até ele havia caído diante de Roma.

Ainda que aquelas terras já pudessem ter sido selvagens, agora as grandes pedras da Via Flamínia cortavam as montanhas, com postos de guarda a intervalos de trinta quilômetros. Povoados brotavam freqüentemente em volta desses postos, à medida que as pessoas se reuniam à sombra de Roma. Muitos arranjavam emprego fazendo manutenção da estrada, e algumas vezes Júlio via pequenos grupos de trabalhadores, esperando numa monótona indiferença a qualquer coisa que não fosse a interrupção de seu trabalho.

Em outras ocasiões Júlio passava por mercadores forçados a sair da estrada, que viam os soldados com uma combinação de raiva e espanto reverente.

Eles não podiam ir para Roma enquanto as legiões marchassem, e os que levavam mercadorias perecíveis olhavam com expressão sombria enquanto calculavam as perdas. Os legionários os ignoravam. Eles haviam construído as artérias de comércio com suas mãos e suas costas, e tinham prioridade no uso.

Júlio desejou que Tubruk estivesse junto. Em sua época ele havia percorrido a mesma rota pelas montanhas e através das vastas planícies do norte, onde Crasso esperava enfrentar o exército de escravos. O administrador da propriedade no campo não desejaria outra campanha, mesmo que Júlio pudesse poupá-lo da tarefa de manter Cornélia em segurança.

Sua boca se apertou inconscientemente enquanto pensava na despedida. Fora amarga, e ainda que ele odiasse ter de deixá-la com a raiva ainda recente entre os dois não podia adiar o encontro com a Primogênita no meio da grande hoste no Campo de Marte, pronta para marchar em direção ao norte.

As lembranças da última vez em que tinha deixado a cidade ainda estavam em carne viva. Roma havia queimado no horizonte atrás dele enquanto os homens de Sila caçavam os restos da Primogênita. Júlio fez uma careta, marchando. A legião vivia, enquanto a carne envenenada de Sila estava reduzida a cinzas.

O julgamento tinha feito muito para restaurar o nome de Mário na cidade, mas enquanto os amigos de Sila ainda viviam e faziam seus jogos mesquinhos no Senado, Júlio sabia que não podia construir o tipo de Roma desejado por Mário. Cato ficava em segurança enquanto seus principais oponentes estavam no campo, mas quando voltassem Júlio iria juntar forças com Pompeu para derrubá-lo. O general entendia a necessidade como poucos outros. Por um momento Júlio pensou no destino do filho de Cato. Seria fácil demais colocá-lo na primeira fileira de cada ataque até que fosse morto, mas essa era uma vitória covarde sobre o gordo senador. Prometeu que, se Germínio morresse, seria do mesmo modo como qualquer outro soldado, pelo capricho do destino. A filha de Pompeu fora encontrada com o nome de Sila numa plaqueta de argila na mão frouxa, mas Júlio não se rebaixaria a matar inocentes, mesmo esperando que Cato estivesse aterrorizado por causa do filho.

Primeiro teriam de vir longos e amargos meses de campanha. Júlio sabia que teria sorte se visse as muralhas da cidade outra vez em menos de um ano. Podia ser paciente. Só um exército poderia tomar sua propriedade, e o pai de Cornélia, Cina, tinha permanecido atrás para bloquear Cato no Senado. Eles haviam formado uma aliança muito particular, e Júlio sabia que, com a força de Pompeu e a riqueza de Crasso, havia pouco que não poderiam alcançar.

Os comicens soaram o sinal de parada enquanto Júlio atravessava o passo em direção à luz do sol que se esvaía. Podia ver a Via Flamínia se estendendo para baixo num vale profundo antes de subir nas alturas de um distante pico negro que, segundo diziam, era a última subida antes de Arimino. Desejou que Brutus pudesse estar com ele para ver, ou Caberá, que viajava com seus auxiliares mais atrás ainda, na coluna. Seu posto de tribuno lhe permitira se posicionar perto da vanguarda, mas a marcha em ordem de batalha não era um lugar para os amigos passarem preguiçosamente o tempo.

Com o sol se pondo, o primeiro turno de vigia assumiu as posições, deixando os escudos com suas unidades, segundo uma longa tradição. A ordem era imposta na paisagem irregular. Dez mil soldados comeram rapidamente e foram dormir na cidade miniatura que tinham feito. Durante a noite eram acordados em turnos para montar guarda, enquanto as sentinelas que voltavam assumiam os estrados ainda quentes, com alívio depois do frio da montanha.

Júlio fez seu turno de guarda no escuro, olhando da parede de terra para o terreno áspero do outro lado. Aceitou um quadrado de madeira das mãos de um centurião e memorizou a senha gravada nele. Depois foi deixado sozinho no escuro, com o campo silencioso às costas. Com um sorriso torto, entendia por que os guardas não podiam ficar com os escudos: era fácil demais descansar os braços no topo deles, depois a cabeça nos braços, e cochilar. Ficou alerta e imaginou quanto tempo se passara desde que uma sentinela fora encontrada dormindo. A punição era uma surra até a morte dada pelos próprios colegas de tenda, o que impedia que até mesmo o soldado mais cansado fechasse os olhos.

O turno de vigia se passou sem surpresas, e Júlio trocou de lugar com outro de sua tenda, forçando o sono a vir depressa. Os problemas com Cornélia e Cato pareciam distantes enquanto se deitava de olhos fechados, ouvindo os roncos dos homens ao redor. Era fácil imaginar que não havia uma força no mundo capaz de perturbar a vasta reunião de poder que Crasso fazia marchar para o norte a partir de Roma. Enquanto caía no sono, o último pensamento de Júlio foi a esperança de que ele e Brutus tivessem chance de transformar o nome da Primogênita num farol durante a carnificina que viria.

Otaviano deu um grito agudo de desafio para o enxame de adversários em volta. Eles não percebiam que o garoto era um guerreiro nato, e cada golpe que dava deixava mais um agonizando, chamando pela mãe. Saltou para enfiar a lança no líder, que tinha uma grande semelhança com o aprendiz do açougueiro em sua imaginação febril. O soldado inimigo caiu com um gorgolejo e chamou Otaviano para perto da boca sangrenta para ouvir suas últimas palavras.

- Eu lutei cem batalhas, mas nunca encontrei um oponente tão capaz - sussurrou junto com o último suspiro.

Otaviano gritou de júbilo e correu pelo estábulo, girando o pesado gládio sobre a cabeça. Sem aviso, uma mão poderosa agarrou seu pulso por trás e ele gritou de surpresa.

- O que acha que está fazendo com minha espada? - perguntou Tubruk, respirando forte pelo nariz.

Otaviano se encolheu esperando um tapa, depois abriu os olhos devagar quando ele não veio. Viu que o velho gladiador ainda estava olhando feroz, esperando a resposta.

- Desculpe, Tubruk. Só a peguei emprestada para treinar.

Ainda segurando o pulso do menino com firmeza para impedir a fuga, Tubruk tirou a espada dos dedos que não resistiram. Levantou a lâmina e xingou furioso ao olhá-la, fazendo Otaviano dar um pulo. Os olhos do menino ficaram arregalados de medo diante da expressão que atravessou o rosto de Tubruk. Ele não esperava que o administrador voltasse dos campos nas próximas horas, e nesse tempo a espada estaria de volta ao lugar.

- Olha isso! Você faz alguma idéia de quanto tempo vou demorar para afiar de novo? Não, claro que não. Não passa de um idiotazinho estúpido que acha que pode roubar tudo que quer.

Os olhos de Otaviano se encheram de lágrimas. Não queria nada no mundo além da aprovação do velho gladiador, e o desapontamento era pior do que a dor física.

- Desculpe. Só quis pegar emprestada. Vou afiar até você não ver as marcas!

Tubruk olhou a lâmina de novo.

- O que você fez? Bateu com ela deliberadamente? Isso não pode ser afiado. Ela precisa ser completamente amolada de novo ou, melhor ainda, ser jogada fora como lixo. Usei esta espada na arena dos gladiadores e em três guerras, e tudo isso é desfeito por uma hora insensata com um garoto que não consegue ficar com a mão longe das coisas dos outros. Desta vez você passou das medidas, eu garanto.

Furioso demais para continuar falando, Tubruk jogou a espada no chão e se afastou do garoto que choramingava, saiu do estábulo e o deixou sozinho com seu sofrimento.

Otaviano pegou a arma e passou o polegar pelo gume, que tinha sido praticamente dobrado em alguns pontos. Pensou que, se pudesse achar uma boa pedra de amolar e desaparecer da propriedade durante algumas horas, quando voltasse Tubruk teria se acalmado e ele poderia devolver a espada. Uma visão da surpresa do velho gladiador quando ele entregasse a espada entrou em sua mente.

- Eu pensava que não teria jeito!

Otaviano imaginou Tubruk dizendo isso enquanto examinava o novo gume. Pensou que talvez não diria nada, simplesmente assumiria uma expressão humilde até Tubruk desalinhar seu cabelo, tendo esquecido o incidente.

O devaneio foi interrompido pela volta de Tubruk, e Otaviano largou a espada com medo ao ver que o velho gladiador estava segurando uma pesada tira de couro.

- Não! Pedi desculpa! Vou consertar a espada, prometo - gemeu Otaviano, mas Tubruk manteve um silêncio feroz enquanto o arrastava do estábulo para a luz do sol. O menino lutava impotente enquanto era puxado pelo pátio, mas a mão que o segurava estava rígida com uma força de adulto que ele não podia romper, apesar do tanto que havia crescido.

Tubruk abriu o portão principal com a mão que segurava a tira, gru-nhindo pelo esforço.

- Eu deveria ter feito isso há muito tempo. Aí está a estrada de volta para a cidade. Sugiro que vá por ela e se certifique de que eu não ponha os olhos em você de novo. Se ficar aqui, vou bater nas suas costas até tornar jeito. Qual é a palavra? Ir ou ficar?

- Não quero ir, Tubruk - gritou o menino, soluçando de terror e confusão.

Tubruk firmou a boca, surdo aos rogos.

- Então, certo - disse sério, e segurou Otaviano pela túnica, acertando a tira em seu traseiro com um estalo que ecoou pelo pátio. Otaviano puxava loucamente para escapar e uivava incoerentemente, mas Tubruk o ignorou, levantando a tira de novo.

- Tubruk! Pára com isso! - disse Cornélia.

Ela viera ao pátio ver a fonte de tamanho ruído e agora encarava os dois, os olhos chamejando. Otaviano aproveitou o momento para arrancar a túnica da mão de Tubruk e correr até ela, envolvendo-a com os braços e escondendo a cabeça em seu vestido.

- O que está fazendo com o garoto, Tubruk? - perguntou Cornélia rispidamente.

O administrador não respondeu, aproximando-se dela para segurar Otaviano de novo. Mesmo com a cabeça apertada no vestido, Otaviano sentiu-o vindo e se escondeu atrás dela. Cornélia usou as mãos para manter Tubruk à distância num jorro frenético de energia que o fez dar um passo atrás, com o peito arfando.

- Pare com isso agora mesmo. Ele está aterrorizado, não dá para ver? - perguntou Cornélia.

Tubruk balançou a cabeça devagar, os olhos saltando na direção dela.

- Não vai servir de nada para ele, quando crescer, se o deixar se esconder às suas costas agora. Quero que ele se lembre disso e quero que isso volte à cabeça dele na próxima vez em que pensar em roubar alguma coisa.

Cornélia se curvou e segurou as mãos de Otaviano.

- O que pegou desta vez? - perguntou.

- Só peguei a espada dele emprestada. Ia guardar de volta, mas ela ficou cega, e antes que eu pudesse amolar de novo Tubruk voltou - gemeu Otaviano arrasado, olhando Tubruk com o canto do olho para o caso de ele fazer outra tentativa de lhe pôr as mãos.

Cornélia balançou a cabeça.

- Estragou a espada dele? Ah, Otaviano, isso é demais. Terei de dar você de volta a Tubruk. Sinto muito.

Otaviano gritou enquanto ela soltava seus dedos do vestido com firmeza, e Tubruk segurou sua túnica de novo. Cornélia mordeu o lábio inferior, infeliz, enquanto Tubruk baixava a tira de couro mais quatro vezes e depois deixava Otaviano correr para a escuridão tranqüilizadora do estábulo.

- Ele está morrendo de medo de você - disse Cornélia, vendo o menino correr.

- Talvez, mas era necessário. Deixei passar coisas que nunca teria suportado de Júlio ou Brutus quando eles eram meninos. Esse aí passa metade do tempo num mundo de sonhos. Não fará mal algum ele ficar com o traseiro quente. Talvez na próxima vez em que pensar em roubar, isso deixe suas mãos um pouco mais lentas.

- A espada está estragada? - perguntou Cornélia, ainda insegura perto daquele homem que conhecera Júlio quando ele era tão pequeno quanto Otaviano.

Tubruk deu de ombros.

- Provavelmente. Mas o garoto não vai estar, o que é mais do que eu poderia dizer se ele ficasse como estava na cidade por mais algum tempo. Ele vai chorar um bocado e depois vai comer como se nada tivesse acontecido, se é que eu o conheço.

Otaviano não apareceu para a refeição noturna, e Clódia trouxe uma tigela de comida quando a escuridão caiu. Não pôde achá-lo no estábulo, e uma busca pela propriedade não revelou qualquer sinal do menino. Ele e o gládio tinham desaparecido.

- Você é feio demais para ser um bom espadachim - disse Brutus animado enquanto se movia nos calcanhares com leveza em volta do legionário furioso.

À medida que a luz se desbotava, os homens tinham se reunido no centro do acampamento, como tinham feito nas últimas três noites, para ver as disputas que Brutus havia organizado.

- Você precisa de uma certa habilidade, é certo, mas ser bonito também é importante - continuou Brutus, olhando o homem com um exame atento negado pela bazófia.

O legionário se virou para encará-lo, segurando a espada de treino com um pouco de força demais, devido à tensão. Ainda que as espadas de madeira não fossem mortais, um golpe forte poderia quebrar um dedo ou arrancar um olho. A madeira era oca ao longo de toda a lâmina grossa e fora enchida com chumbo, ficando mais pesada do que um gládio. Quando os soldados pegavam as espadas de verdade, sentiam-nas quase milagrosamente leves.

Brutus se virou para evitar uma estocada, deixando a lâmina passar a centímetros dele. Tinha começado as disputas no fim da sexta noite, quando percebeu que nem de longe estava tão cansado quanto esperava. As lutas haviam se tornado rapidamente a principal diversão para os soldados cheios de tédio, atraídos pela confiança petulante de Brutus, de que não havia nenhum deles que pudesse vencê-lo. Freqüentemente lutava contra três ou quatro legionários seguidos, e até mesmo os jogos de azar haviam parado no acampamento depois da segunda noite, com todo o dinheiro sendo apostado contra ou a favor de Brutus. Se ele continuasse vencendo, terminaria a marcha com uma pequena fortuna.

- As pessoas gostam de heróis bonitos, veja bem. Você está longe disso - anunciou Brutus, rechaçando um ataque súbito com um grunhido ao terminar. - Não é uma coisa óbvia como um nariz ou uma boca peculiar...

Ele fez uma combinação de giros que foi defendida desesperadamente e recuou para deixar que o sujeito se recuperasse. O legionário estivera igualmente petulante no início, mas agora o suor escorria do cabelo enquanto ele se desviava e atacava. Brutus franziu os olhos para o rosto dele, como se avaliasse suas feições.

- Não, é feiúra acumulada, como se nada estivesse no lugar certo - disse ele.

O soldado rosnou e deu um golpe com força suficiente para partir o crânio de Brutus, se acertasse. O ataque passou longe, e enquanto o soldado ia atrás Brutus bateu com sua espada na nuca do outro, apenas com força suficiente para desequilibrá-lo. Ele caiu chapado e se levantou ofegando enquanto falava:

- Amanhã? Acho que poderia vencê-lo se tivesse outra chance, sendo feio ou não.

Brutus deu de ombros e apontou para a fila de soldados que esperavam.

- Há alguns na sua frente, mas vou tentar fazer com que Caberá ponha você na frente amanhã à noite, se estiver disposto. Você ainda está segurando a espada com muita força, sabe?

O soldado examinou o punho e assentiu.

- Trabalhe os punhos - continuou Brutus, sério. - Se confiar na força deles, vai poder relaxar um pouco.

O soldado se retirou para a turba, movendo a espada de madeira lentamente, concentrado. Caberá trouxe o próximo, empurrando-o para a frente como se fosse um filho predileto.

- Este aqui diz que é bom. Foi campeão da centúria dele há alguns anos. O intendente quer saber se você vai deixar as apostas recomeçarem. Acho que você o deixou preocupado.

Caberá riu para Brutus, satisfeito por ter voltado à Primogênita depois da primeira noite monótona na retaguarda.

Brutus olhou o último oponente de cima a baixo, notando os ombros fortes e a cintura fina. O homem ignorou a inspeção e gastou o tempo alongando os músculos.

- Qual é o seu nome? - perguntou Brutus.

- Domício. Sou centurião - respondeu o homem.

Havia nele alguma coisa que fez Brutus estreitar os olhos, cheio de suspeitas.

- Você foi campeão de centúria? Há quantos anos?

- Três. Fui campeão da legião no ano passado - respondeu Domício, continuando com os exercícios sem olhar para o rapaz.

Brutus trocou um olhar rápido com Caberá e observou que a multidão em volta tinha crescido ao ponto em que todo mundo, menos as sentinelas, deveria estar ali. Rênio havia se juntado a eles, e Brutus franziu a vista ao vê-lo. Era difícil relaxar quando o homem que lhe havia ensinado estava balançando a cabeça numa aparente incredulidade. Ele juntou a confiança.

- O negócio, Domício, é que tenho certeza que você é bastante competente, mas em cada geração tem de haver alguém melhor do que todo mundo. É a lei da natureza.

Domício espreguiçou lentamente os músculos das pernas. Ele pareceu pensar nisso.

- Você provavelmente está certo - respondeu ele.

- Eu estou. Alguém tem de ser o melhor de cada geração, e sinto quase vergonha de dizer que essa pessoa sou eu.

Brutus ficou olhando Domício, esperando uma reação.

- Quase vergonha? - murmurou Domício enquanto relaxava os músculos das costas.

Brutus se sentiu irritado com a calma do legionário. Alguma coisa no alongamento quase hipnótico o incomodava.

- Certo. Caberá? Vá ao intendente e diga que vou deixar que corram as apostas para mais uma luta, com o Domício aqui.

- Acho que não... - começou Caberá, olhando em dúvida para o recém-chegado. Domício era quase uma cabeça mais alto do que Brutus e se movia com controle e um equilíbrio fácil que era raro de ver.

- Só diga a ele. Mais um, e recolho os ganhos. Caberá fez uma careta e foi trotando.

Domício se levantou como se estivesse se desenrolando e sorriu para Brutus.

- Era isso que eu estava esperando - disse ele. - Meus amigos têm um monte de dinheiro apostado contra você.

- E isso não lhe diz alguma coisa? Então, vamos logo. Domício suspirou.

- Vocês, baixinhos, são sempre impacientes - falou, balançando a cabeça.

Otaviano enxugou o nariz ao longo do braço, deixando um rastro prateado na pele. A princípio a cidade parecera um lugar diferente. Tinha sido bastante fácil passar pelos guardas do portão, usando uma carroça como cobertura, mas, assim que chegou dentro, o ruído, os cheiros e a simples pressa da multidão eram desconcertantes. Percebeu que os meses na propriedade do campo tinham feito com que esquecesse a energia da cidade, mesmo à noite. Esperava que Tubruk estivesse preocupado com ele. Achava que dentro de um ou dois dias seria recebido de volta de braços abertos. Especialmente se pudesse convencer Tabbic a amolar a espada de novo, deixando-a com belo gume. Só precisava ficar longe de encrenca até de manhã, quando a pequena oficina se abria. A lâmina estava enrolada numa manta de cavalo debaixo do braço. Caso contrário, não iria longe com ela. Algum cidadão de espírito público iria pará-lo ou, pior, um ladrão poderia pegá-la pelo dinheiro que renderia numa das lojas mais baratas do que a de Tabbic.

Quase inconscientemente Otaviano deixou seus passos o levarem na direção da casa de sua mãe. Se ao menos pudesse passar a noite lá, procuraria Tabbic e estaria de volta ao campo em um ou dois dias, e Tubruk ficaria satisfeito com ele de novo. Pensou na provável reação dela ao vê-lo e se encolheu. A espada seria descoberta e sua mãe pensaria que ele a havia roubado. Para uma mãe, ela não tinha muita confiança, admitiu o garoto com tristeza. Nunca acreditava nele, nem quando estava dizendo a verdade, o que era sempre enfurecedor.

Talvez devesse tentar um sinal para Alexandria, fazer com que ela saísse para recebê-lo sem perturbar o resto da casa. Ela poderia entender melhor do que sua mãe o que ele tinha de fazer.

Seguiu rapidamente em meio à multidão noturna, desviando-se dos vendedores de rua e resistindo à ânsia de pegar a comida quente que enchia o ar com cheiros hipnotizantes. Estava faminto, mas a sensação de vazio no estômago ficava em segundo lugar diante da necessidade de consertar as coisas com Tubruk. Ser apanhado por um vendedor furioso estragaria as coisas tanto quanto uma conversa com a mãe.

- É o rato!

A exclamação súbita o arrancou dos pensamentos sofridos. Ergueu a cabeça e viu os olhos surpresos do aprendiz de açougueiro, e o pânico relampejou em sua mente. Pulou na rua para evitar as mãos que tentavam agarrá-lo por trás. Estavam todos lá! Desesperado, abriu a manta e pôs a mão no gládio de Tubruk. Trouxe-o na frente do corpo enquanto o garoto do açougueiro vinha para ele, com as mãos se fechando de antecipação. Um giro louco da espada quase tocou os dedos esticados, e o aprendiz xingou de surpresa.

- Você vai morrer por causa disso, seu desgraçado de Turim. Eu estava imaginando para onde você tinha ido. Andou roubando, não foi?

Enquanto o garoto rosnava para ele, Otaviano pôde ver os outros se es-gueirando para bloquear sua retirada. Em alguns instantes estava cercado, e a multidão se movia ao redor sem notar a cena ou com medo demais da violência para interferir.

Otaviano segurou a espada na primeira posição, como Tubruk ensinara. Não podia correr, por isso prometeu dar um belo corte antes que eles o pegassem.

O garoto do açougueiro riu, diminuindo o espaço.

- Agora não está tão metido, não é, rato?

Ele parecia enorme para Otaviano, e era como se a espada fosse inútil em suas mãos. O garoto do açougueiro se aproximou com a mão estendida para afastar qualquer ataque súbito, o rosto iluminado por uma empolgação feroz.

- Me dá isso, e eu deixo você viver - disse ele, rindo.

Otaviano segurou o punho ainda mais alto, contra essa ameaça, tentando pensar no que Tubruk faria se estivesse em sua posição. A resposta lhe veio quando o aprendiz entrou no alcance da espada.

Otaviano gritou e atacou, girando a ponta contra a mão estendida. Se a lâmina estivesse afiada, o garoto ficaria aleijado. Como aconteceu, ele gritou e dançou para trás, saindo do alcance, xingando e segurando a mão machucada com a outra.

- Me deixa em paz! - gritou Otaviano, procurando um espaço por onde fugir.

Não havia, e o garoto do açougueiro inspecionou a mão cortada antes de seu rosto se retorcer de modo maligno. Levando a mão atrás do corpo, tirou uma faca pesada do cinto e mostrou a Otaviano. Estava enferrujada com o sangue de sua profissão, e Otaviano mal podia afastar os olhos dela.

- Vou cortar você, rato. Vou arrancar seus olhos e deixar você cego - rosnou o garoto mais velho.

Otaviano tentou fugir, mas, em vez de segurá-lo, os outros aprendizes riram e o empurraram de volta para o garoto do açougueiro. Levantou a espada de novo e então uma sombra surgiu sobre os aprendizes, e uma mão pesada bateu na cabeça do garoto do açougueiro, derrubando-o chapado.

Tubruk baixou a mão e pegou a faca onde ela caíra. O garoto do açougueiro começou a se levantar. Tubruk fechou o punho e deu um soco derrubando-o na imundície da rua onde ele ficou se retorcendo, atordoado.

- Nunca pensei que chegaria um dia em que eu ia lutar com uma criança - murmurou Tubruk. - Você está bem? - Otaviano olhou-o com espanto boquiaberto. - Estou procurando você há horas.

- Eu ia... levar a espada para Tabbic. Eu não roubei - respondeu Otaviano, com as lágrimas ameaçando sair de novo.

- Eu sei, garoto. Clódia achou que você devia estar fazendo isso. Parece uma boa coisa eu ter vindo procurar você, não foi?

O velho gladiador olhou para o círculo de aprendizes parados nervosos ao redor, sem saber se deveriam correr ou não.

- Se eu fosse vocês, garotos, iria embora antes que eu perdesse a cabeça. Sua expressão deixou claras as conseqüências, e eles não perderam tempo em desaparecer.

- Eu mesmo vou mandar a espada para Tabbic, certo? Agora, você vai voltar à propriedade ou não?

Otaviano assentiu. Tubruk se virou para voltar através da turba até o portão. Já seria quase madrugada quando chegassem à propriedade, mas ele sabia que não dormiria com Otaviano desaparecido. Apesar de todos os defeitos, gostava do garoto.

- Espera, Tubruk. Só um momento - disse Otaviano. Tubruk se virou franzindo a testa.

- O que é?

Otaviano foi até o aprendiz caído e deu-lhe um chute no saco com o máximo de força possível. Tubruk se encolheu quase como se sentisse a dor.

- Deuses, você tem muito a aprender. Não é esportivo bater num homem caído.

- Talvez não, mas ele me devia isso.

Tubruk soprou o ar das bochechas enquanto Otaviano seguia seu passo.

- Talvez devesse mesmo, garoto.

Brutus não podia acreditar no que estava acontecendo. Domício não era pumano. Ele não tinha fôlego para cantar vantagem e quase havia perdido a luta nos primeiros segundos quando Domício atacou com uma velocidade que ele nunca vira. Sua raiva tinha acionado os reflexos para o ataque, e o som dos golpes aparados foi implacável por mais tempo do que ele acharia possível. O lutador não parecia parar para respirar. Os golpes vinham constantemente, de todos os ângulos, e por duas vezes Brutus quase perdeu a espada quando foi acertado no braço. Com armas verdadeiras isso poderia bastar para acabar com a luta, mas nas disputas de treino era preciso um golpe claramente fatal, especialmente quando havia dinheiro apostado.

Brutus tinha recuperado um pouco de terreno quando passou para o estilo fluido que aprendera com o guerreiro tribal na Grécia. Como esperava, os ritmos diferentes haviam interrompido o ataque de Domício e ele acertou o antebraço do outro com um golpe que teria cortado sua mão no pulso se a lâmina tivesse gume.

Então Domício recuou, parecendo surpreso, e Brutus usou o momento para forçar sua raiva a se reduzir até uma calma igual à do oponente. Domício nem estava respirando pesado e parecia num relaxamento completo.

Para não abafar o som de um possível ataque inimigo, os soldados que observavam eram proibidos de aplaudir ou gritar. Em vez disso, sibilavam ou ofegavam enquanto a luta prosseguia no círculo, balançando os punhos fechados e mostrando os dentes numa empolgação reprimida.

Brutus teve a chance de dar um soco quando as espadas ficaram presas juntas, mas isso também era proibido, para o caso de os soldados se machucarem a ponto de não poder lutar ou marchar no dia seguinte.

- Eu... poderia ter acabado com você - ofegou ele. Domício assentiu.

- Também tive a chance antes. Claro, tenho o braço mais comprido do que você.

O ataque veio de novo, e Brutus bloqueou duas vezes antes que o terceiro atravessasse sua guarda, e ele olhou a ponta de madeira apertando dolorosamente seu peito abaixo das costelas.

- Vitória, acho - disse Domício. - Você é realmente muito bom. Quase me venceu com aquele estilo que usou na metade. Precisa me mostrar isso uma hora qualquer. - Ele viu a crista caída de Brutus e riu. - Filho, fui campeão da legião cinco vezes desde que tinha sua idade. Você ainda é muito novo para ter a velocidade total, e a habilidade demora ainda mais. Tente comigo de novo daqui a um ano ou dois, e pode haver um resultado diferente. Você se saiu muito bem, e eu sei disso.

Domício entrou numa multidão de soldados que lhe deram tapinhas nas costas e nos ombros, parabenizando. Caberá se aproximou de Brutus, parecendo azedo.

- Ele foi muito bom - murmurou Brutus. - Melhor do que Rênio ou qualquer um.

- Você poderia vencê-lo se lutasse de novo?

Brutus pensou, coçando o queixo e a boca.

- Pode ser, se eu aprendesse a partir desta vez.

- Isso é bom, porque peguei os ganhos com o intendente antes do início da luta.

- O quê? Eu disse para você deixar correr! - disse Brutus com um riso espantado. - Ha! Quanto a gente ganhou?

- Vinte aurei, o dinheiro original dobrado pelas sete lutas que você ganhou. Tive de apostar um pouco do seu contra Domício, por educação, mas o resto está limpo.

Brutus riu alto, depois se encolheu quando começou a sentir os machucados.

- Ele só me desafiou para deixar os amigos ganharem o dinheiro de volta. Parece que terei outra chance, afinal.

- Posso marcar para amanhã, se você quiser. As apostas contra você serão incríveis. Se você ganhar, não restará uma moeda no acampamento.

- Faça isso. Eu gostaria de outra tentativa com Domício. Seu velho esperto! Como sabia que eu ia perder?

Caberá suspirou, inclinando-se para perto como se fosse contar um segredo.

- Eu sabia porque você é um idiota. Ninguém vence um campeão de legião depois de três outras lutas.

Brutus fungou.

- Da próxima vez vou deixar Rênio fazer as apostas.

- Nesse caso vou tirar minha parte antes de você começar.

 

Júlio pensou que tinha visto portos movimentados na África e na Grécia, mas Arimino era o centro do comércio de grãos de todo o país, e o cais estava apinhado de navios carregando e descarregando. Havia até mesmo um fórum central e templos para os soldados fazerem as pazes e rezarem por segurança no conflito vindouro. Era uma pequena Roma, construída na borda da grande planície do Pó, e servia como portão para o sul. Tudo do norte que ia parar em Roma passava primeiro por Arimino.

Crasso e Pompeu tinham requisitado uma casa particular na extremidade do fórum, e foi para lá que Júlio se dirigiu na segunda noite, tendo de pedir informação mais de uma vez. Ia com dez soldados da Primogênita como precaução numa cidade estranha, mas os habitantes pareciam preocupados demais com o comércio para ter tempo para tramas ou política. Se a gigantesca força acampada em círculo em volta da cidade os perturbava, ele não sabia. Os navios e as caravanas de grãos chegavam e saíam, e os negócios continuavam sem interrupção, como se a única ameaça da guerra fosse a possibilidade do aumento dos preços nos mercados.

Júlio passou facilmente pela multidão com seus homens, ouvindo a conversa das pessoas que faziam acordos enquanto andavam, mal notando os soldados dos quais se desviavam. Com as duas legiões do norte que tinham encontrado na cidade, o exército reunido chegava perto de quarenta mil soldados experientes. Era difícil imaginar uma força que eles não pudessem enfrentar, apesar de todo o choque que a rebelião de Espártaco havia causado depois do tumulto em Módena.

Achou o lugar certo ao ver as sentinelas que guardavam a escadaria até a porta. Era típico de Crasso achar uma casa tão opulenta, pensou Júlio com um sorriso. Apesar de toda a sua contenção pessoal, ele adorava ser rodeado por coisas belas. Júlio imaginou se o verdadeiro proprietário encontraria alguns espaços vazios em seus tesouros quando os romanos fossem embora. Lembrou-se de Mário dizendo que Crasso era confiável com qualquer coisa, menos arte.

Júlio foi guiado por um soldado e entrou numa sala dominada por uma estátua de uma jovem nua, cor creme. Crasso e Pompeu tinham colocado cadeiras aos pés dela e mais assentos num círculo diante deles.

Seis dos oito legados já estavam ali e, enquanto os últimos dois entravam, Júlio se sentou com as mãos no colo e esperou. O último a entrar foi Lépido, que aceitara o corpo de Mitrídates entregue por ele na Grécia. Isso parecia ter acontecido há uma vida inteira, mas Lépido ainda tinha a mesma expressão frouxa e despreocupada quando assentiu para Júlio vagamente e começou a limpar as unhas de uma das mãos com a outra.

Pompeu se inclinou para a frente, com as pernas de trás da cadeira saindo do chão.

- A partir deste ponto, senhores, espero vê-los todas as noites depois das sentinelas serem postadas. Em vez de ter uma linha vulnerável de quatro acampamentos, dei ordens para apenas dois, com quatro legiões em cada. Vocês devem ficar suficientemente perto para chegar ao posto de comando duas horas antes de cada meia-noite.

Houve um murmúrio de interesse enquanto os legados digeriam isso. Pompeu continuou:

- Os últimos relatórios sugerem que o exército de escravos está indo para o norte o mais rápido possível. Crasso e eu acreditamos que há perigo de eles chegarem aos Alpes e à Gália. Se não pudermos pegá-los antes, eles vão desaparecer. A Gália é vasta, e temos pouca influência lá. Eles não devem escapar livres, do contrário no ano que vem teremos outra rebelião de cada escravo que ainda estiver em terras romanas. A destruição e a perda de vidas seriam enormes.

Ele parou esperando comentários, mas os generais reunidos ficaram em silêncio, observando. Um ou dois olharam para Crasso, claramente pensando no comando designado pelo Senado, mas o companheiro de Pompeu estava relaxado em seu assento, concordando com a cabeça enquanto Pompeu enfatizava cada ponto.

- Suas ordens são de marchar para o oeste ao longo das estradas de planície até que eu dê sinal para virarem para o norte. É uma rota mais longa no total, mas teremos mais velocidade na estrada do que pelo campo. Quero cinqüenta quilômetros num dia, depois trinta, depois mais cinqüenta.

- Durante quanto tempo? - interrompeu Lépido.

Pompeu se imobilizou e deixou que o silêncio mostrasse sua irritação.

- Nossas melhores estimativas são de oitocentos quilômetros para o oeste e depois uma distância que não podemos avaliar, para o norte, sem saber o paradeiro exato do inimigo. Depende, claro, do quanto eles chegarem perto das montanhas. Eu espero...

- Isso não pode ser feito - disse Lépido, peremptoriamente. Pompeu parou de novo, depois se levantou para olhar o general a partir de uma posição mais elevada.

- Estou dizendo o que vai acontecer, Lépido. Se sua legião não conseguir marchar no ritmo das outras sob meu comando, retirarei seu posto e darei a alguém que possa fazer seus homens marchar.

Lépido ofegou, indignado. Júlio imaginou se teriam dito a ele o quanto estivera perto do controle total das legiões. Não fosse por alguns votos no Senado, as posições dos dois estariam invertidas. Observando Lépido atentamente, Júlio suspeitou que ele soubesse muito bem. Sem dúvida, Cato tinha deixado a notícia vazar até ele, enquanto se reuniam no Campo de Marte, na esperança de fomentar problemas mais tarde.

- Meus homens já cobriram quinhentos quilômetros num ritmo forte nesta viagem, Pompeu. Eles poderiam fazer isso de novo, mas preciso de duas semanas para que descansem, e depois não mais de trinta, trinta e oito quilômetros por dia. Mais do que isso, perderemos homens.

- Então perderemos! - disse Pompeu rispidamente. - Cada dia que esperamos em Arimino leva esse tal de Espártaco para mais perto das montanhas e da liberdade na Gália. Não vou ficar aqui nem mais um dia do que o necessário para carregar as provisões. Se tivermos algumas dúzias de homens machucados e mancando no fim, é um preço que vale pagar. Ou mesmo algumas centenas, se isso significar a diferença entre pegá-los e vê-los escapar à punição pelo sangue romano que têm nas mãos. Nove mil mortos em Módena!

A voz de Pompeu tinha se erguido até um grito, e ele se inclinou na direção de Lépido, que olhou de volta com uma calma enfurecedora.

- Quem está no comando aqui? - perguntou Lépido, balançando a mão para Crasso. - Deram-me a entender que o Senado escolheu Crasso em vez de mim. Não reconheço esse negócio de "subcomandante". Isso é ao menos legal?

Os outros legados sabiam, como Júlio, que Lépido poderia ter liderado. Como felinos, observavam os que falavam, com as garras cuidadosamente escondidas, esperando o resultado. Crasso também se levantou para ficar ao lado de Pompeu.

- Pompeu fala com minha voz, Lépido, e esta é a voz do Senado. Independentemente do que você tenha ouvido, deve saber que não pode questionar o comando.

O rosto de Pompeu estava tenso de fúria.

- Vou lhe dizer, Lépido. Farei com que seu posto seja retirado no primeiro instante em que você cometer um erro. Questione uma só ordem minha de novo que eu mando matá-lo e deixá-lo na estrada. Entendeu?

- Completamente - respondeu Lépido, aparentemente satisfeito. Júlio imaginou o que ele tinha esperado ganhar com a discussão. Será que o legado esperava minar Crasso? Júlio sabia que não poderia servir sob o comando de um homem daqueles, não importando o quanto ele se retorcesse para ganhar autoridade. A ameaça feita por Pompeu era perigosa. Se os homens de Lépido tivessem o tipo de lealdade que Júlio vira com a Primogênita e Mário, Pompeu havia assumido um risco. Na posição de Pompeu, Júlio achou que teria sido melhor mandar matar Lépido imediatamente e enviar sua legião de volta a Roma, sob vergonha. Perder os homens era uma penalidade menor do que marchar com quem poderia traí-los.

- Marcharemos dentro de dois dias, ao alvorecer - disse Pompeu.

- Já coloquei espiões na estrada com ordens para se juntar à força principal quando chegarmos perto. As táticas de batalha terão de esperar até termos informações melhores. Estão dispensados. Tribuno César, gostaria de trocar uma palavra com você, se puder ficar.

Lépido se levantou com os outros legados, começando uma conversa com dois deles enquanto saíam da sala. Antes que suas vozes sumissem, Júlio o ouviu rir de alguma coisa, e viu Pompeu se enrijecer, irritado.

- Esse aí são os olhos e ouvidos de Cato - disse Pompeu a Crasso.

- Pode ter certeza que está tomando nota de tudo que fazemos, para informar quando voltarmos.

Crasso deu de ombros.

- Então mande-o de volta a Roma. Coloco meu selo na ordem, e podemos derrotar os rebeldes com sete legiões tão facilmente quanto com oito.

Pompeu balançou a cabeça.

- Talvez, mas há outros relatórios que não mencionei. Júlio, isto não deve sair daqui, entendeu? Não há sentido em que os boatos circulem pelo acampamento antes de amanhã, coisa que aconteceria se eu contasse aos outros, especialmente a Lépido. O exército de escravos cresceu de modo alarmante. Recebi relatórios de mais de cinqüenta mil. Centenas de fazendas e propriedades nos campos foram destruídas. Não há mais volta para eles, e isso fará com que lutem desesperadamente. Eles sabem como nós punimos os escravos fugitivos, e a rebelião não terminará sem uma enorme demonstração de força. Acho que vamos precisar de cada legião que tivermos.

Júlio assobiou baixinho.

- Não podemos depender de uma derrota fragorosa - disse ele. Pompeu franziu a testa.

- Não parece que isso vá acontecer. Eu esperaria que eles cedessem e fugissem ao primeiro ataque, não fosse o fato de que eles têm mulheres e crianças, e não têm para onde ir, se perderem. Aqueles gladiadores já tiveram alguns sucessos e podem ser mais do que uma turba desorganizada. - Ele fungou baixinho. - Se eu não soubesse, imaginaria se Cato estaria esperando que perdêssemos, mas, não, isso seria demais até mesmo para ele. Os escravos poderiam se virar para o sul de novo, e a partir de Arimino todo o país está aberto. Eles precisam ser esmagados, e eu preciso de bons comandantes para fazer isso, Júlio.

- Tenho mais de dois mil homens sob a águia da Primogênita - respondeu Júlio.

Optou por não mencionar que Cato havia fornecido metade deles para proteger o filho. Rênio os havia treinado até a exaustão, mas eles ainda eram de má qualidade comparados com as legiões estabelecidas. Imaginou quantos estariam esperando o momento certo para lhe enfiar uma faca. Homens assim às suas costas não inspiravam confiança, apesar de todas as garantias que dera a Rênio, de que eles se tornariam a Primogênita.

- É bom ver esse nome no campo de novo. Nem posso lhe dizer quanto - respondeu Pompeu, parecendo surpreendentemente juvenil. Então o manto de sua fúria constante o cobriu de novo, como acontecia desde a morte da filha. - Quero que a Primogênita marche no flanco de Lépido. Não confio em ninguém que tenha Cato como patrono. Quando chegar a luta, fique perto dele. Confio em que você fará tudo que tenha de ser feito. Vocês serão meus extraordinarii, eu acho. Você se saiu bem na Grécia. Saia-se bem para mim.

- Estou às suas ordens - confirmou Júlio com um ligeiro movimento de cabeça. Encontrou o olhar de Crasso, incluindo-o enquanto começava a planejar. Brutus teria de ficar sabendo.

Enquanto saía, com os soldados da Primogênita arrumando-se ao redor, Júlio sentiu um toque de empolgação e orgulho. Não fora esquecido e iria se certificar de que Pompeu não lamentasse a confiança.

O escravo enfiou a enxada no chão duro, partindo os torrões de terra clara com um grunhido. O suor escorria de seu rosto deixando marcas escuras no pó, e os ombros queimavam com o esforço. A princípio não notou o outro parado perto, já que estava envolto demais no próprio sofrimento. Levantou a ferramenta de novo e captou um movimento com o canto do olho. Não reagiu imediatamente, com a surpresa coberta pelos movimentos do trabalho. As bolhas nas mãos tinham se rompido de novo, e ele pousou a enxada para cuidar delas, consciente do homem, mas ainda não querendo revelar seu conhecimento. Tinha aprendido a guardar até a mínima vantagem contra os seus senhores.

- Quem é você? - perguntou a figura sombria em voz baixa.

O escravo se virou para ele calmamente. O homem estava envolvido num manto marrom áspero sobre uma túnica rasgada. Seu rosto estava parcialmente coberto, mas os olhos eram iluminados por interesse e pena.

- Sou um escravo - disse ele, estreitando os olhos por causa do sol. Mesmo nas filas de parreiras a luz batia forte na pele, queimando e criando bolhas. Seus ombros estavam marcados por uma vermelhidão crua e com uma pele solta, em flocos, que coçava o tempo todo. Ele coçou distraida-mente a área enquanto olhava o recém-chegado. Imaginou se o homem saberia como os guardas estavam perto.

- Não deveria ficar aqui, amigo. O dono tem guardas no campo. Eles vão matá-lo por invadir o terreno, se acharem você.

O estranho deu de ombros sem desviar o olhar.

- Os guardas estão mortos.

O escravo parou de coçar e ficou ereto. Sua mente estava entorpecida de exaustão. Como os guardas poderiam estar mortos? Ele era louco? O que desejava? Suas roupas pareciam as dele próprio. O estranho não era rico, talvez fosse um serviçal do dono que tinha vindo testar sua lealdade. Ou então só um mendigo.

- Eu... tenho de voltar - murmurou ele.

- Os guardas estão mortos, não ouviu? Não precisa ir a lugar nenhum. Quem é você?

- Um escravo - falou rispidamente, incapaz de afastar a amargura da voz.

Os olhos do estranho se franziram de tal modo que o escravo soube que ele estava sorrindo por baixo do pano.

- Não, meu irmão. Nós o libertamos.

- Impossível.

O homem riu alto diante disso e tirou o manto de cima da boca, revelando um rosto forte e saudável. Sem aviso, pôs dois dedos na boca e deu um assobio baixo. As parreiras farfalharam e o escravo pegou a enxada com um jorro de medo, a mente se enchendo de imagens de assassinos vindo de Roma para matá-lo. Quase podia sentir a doçura de que se lembrava, e seu estômago pulou num espasmo, mas não havia nada para subir até a garganta.

Homens saíram das sombras verdes, sorrindo para ele. Ele levantou a enxada e a segurou ameaçadoramente.

- Quem quer que vocês sejam, deixem-me em paz. Não direi a ninguém que vocês estiveram aqui - sibilou, o coração martelando e a falta de comida deixando-o tonto.

O primeiro homem riu.

- Não há ninguém a quem contar, meu amigo. Você era escravo e foi libertado. Esta é a verdade. Os guardas estão mortos e nós estamos indo em frente. Quer vir conosco?

-E o... - Ele não conseguia se obrigar a dizer "senhor" na frente daqueles homens. - ... Proprietário e a família dele?

- São prisioneiros na casa. Quer vê-los de novo?

O escravo olhou para os homens, captando as expressões. Havia uma empolgação ali que ele entendia, e finalmente começou a acreditar.

- Sim, quero vê-los. Quero uma hora sozinho com as filhas e o pai. O homem riu de novo e não foi um som agradável.

- Que ódio! Mas eu entendo. Consegue segurar uma espada? Tenho uma aqui para você, se quiser.

Ele estendeu-a, como um teste. Um escravo era proibido de portar armas. Se a pegasse, estaria marcado para a morte junto com todos eles. O escravo estendeu a mão e segurou o gládio com firmeza, rejubilando-se com o peso.

- E quem é você? - perguntou o estranho.

- Meu nome é Antonido. Já fui general de Roma - falou, empertigando-se sutilmente.

O homem levantou as sobrancelhas.

- Espártaco vai querer conhecê-lo. Ele também já foi do exército antes de... tudo isto.

- Vai me deixar ter a família? - perguntou Antonido, impaciente.

- Terá uma hora, mas depois temos de ir. Há outros para ser libertados hoje e nosso exército precisa dos grãos do depósito daqui.

Antonido sorriu lentamente ao pensar no que faria com as pessoas que se diziam seus senhores. Só os tinha visto à distância enquanto trabalhava, mas sua imaginação havia proporcionado os risos de desprezo e a desconsideração que ele não podia ver. Passou o polegar pelo gume da espada.

- Primeiro me levem lá. Depois de ter minha satisfação, sou de vocês.

 

O labirinto de ruas imundas parecia afastado da vida e da luz de Roma. Os dois homens que Cato mandara seguiam cautelosamente pelo lixo e pelos excrementos, tentando não reagir aos sons dos ratos e dos predadores maiores nos becos escuros. Em algum lugar uma criança gritou, e então o som foi cortado, como se o abafassem. Os dois homens prenderam o fôlego esperando que o choro começasse de novo, encolhendo-se na compreensão quando o silêncio demorou demais. A vida era barata naquele lugar.

Contaram o número de viradas a cada etapa, ocasionalmente sussurrando um para o outro para discutir se uma abertura minúscula entre os cortiços fazia parte da contagem. Algumas vezes esses espaços tinham menos de trinta centímetros de largura e eram cheios de uma massa escura que eles não ousavam investigar. Um deles tinha um cachorro morto meio enfiado no lixo, e o animal parecia se inclinar para eles enquanto passavam estremecendo ligeiramente, ao perceber que a parte escondida era devorada por bocas invisíveis.

Os dois estavam desesperadamente inquietos quando chegaram à encruzilhada onde Cato lhes dissera para esperar. O lugar estava quase deserto, com apenas algumas pessoas apressadas passando sem dizer nada.

Depois de um tempo uma sombra se destacou do escuro embaixo de uma laje e foi em silêncio até eles.

- Quem vocês procuram aqui? - sussurrou uma voz.

Os dois homens engoliram em seco, com medo, os olhos se esforçando para identificar as feições na semi-escuridão.

- Não olhem para mim! - disse a voz rispidamente.

Eles se viraram como se fossem empurrados, olhando para o beco cheio de lixo. Um cheiro enjoativo os envolveu enquanto a figura chegava suficientemente perto para tocá-los.

- Nosso senhor disse para mencionarmos o nome de Antonido a quem viesse - disse um deles, respirando pela boca.

- Ele foi vendido como escravo, no norte. Quem é o seu senhor agora? - respondeu a voz.

Um dos homens se lembrou subitamente do cheiro de quando seu pai tinha morrido, e vomitou, curvando-se e derramando a última refeição na gosma irreconhecível que cobria o beco. O outro falou hesitante:

- Nenhum nome, foi o que nos disseram. Meu senhor deseja continuar a associação com o senhor, mas não deve haver nomes.

Um cheiro quente de podridão passou sobre eles.

- Eu poderia adivinhar, seus idiotas, mas esse é um jogo que eu sei jogar. Muito bem, então, o que o seu senhor deseja de mim? Dêem a mensagem enquanto ainda tenho paciência.

- Ele... o nosso senhor disse que o senhor deveria esquecer a pessoa que Antonido pediu, já que o general foi feito escravo. Ele terá outros nomes para o senhor e pagará o preço. Ele quer que a associação continue.

A figura soltou um leve grunhido lamentando.

- Diga a ele para dizer os nomes e eu decidirei. Não prometerei serviço a nenhum homem. Quanto à morte comprada por Antonido, é tarde demais para chamar de volta os homens que mandei. Aquela pessoa está morta, mesmo que continue andando sem saber. Agora volte ao seu senhor e leve seu colega de estômago fraco.

A pressão desapareceu e o serviçal de Cato respirou fundo, reagindo, preferindo o fedor da rua ao odor suave que parecia ter penetrado em suas roupas e na pele enquanto conversavam. O cheiro permaneceu com os dois enquanto voltavam até as ruas abertas e a um mundo que ria e gritava, sem saber dos becos pestilentos tão próximos.

 

Uma crista de montanhas cobertas de branco delineava o horizonte. Em algum lugar entre os dentes havia três passagens que eles esperavam usar para escapar à ira de Roma. Os picos frios traziam uma dor de saudade enquanto Espártaco olhava para eles. Mesmo não tendo visto a Trácia desde a infância, lembrava-se de subir as encostas mais baixas daquela grande cordilheira. Sempre havia amado os lugares altos onde o vento era uma força constante contra a pele. Fazia com que a gente se sentisse viva.

- Eles estão tão perto! - disse em voz alta. - Poderíamos atravessá-los em uma ou duas semanas e jamais ver um uniforme romano de novo.

- Até eles virem na semana que vem e despedaçarem a Gália procurando por nós - disse Crixo.

Crixo sempre fora grosseiro, comparado ao gladiador a quem acompanhava. Crixo gostava da reputação de ser um homem prático, sem permitir que sonhos loucos ou planos insensatos o distraíssem da realidade pesada do que tinham alcançado. Era uma figura baixa e atarracada ao lado de Espártaco, que ainda mantinha a magreza que sugeria velocidade mesmo quando estava imóvel. Crixo não tinha esse tipo de graça. Nascido numa mina, era tão feio quanto forte, e era o único gladiador que conseguia empatar com Espártaco numa luta.

- Eles não poderiam nos achar, Crixo. Os gauleses dizem que a terra do outro lado das montanhas é cheia de tribos que lutam entre si. As legiões teriam de guerrear durante décadas, e eles não têm estômago para isso. Agora que Sila se foi, eles não têm um líder decente em toda a matilha. Se atravessarmos os Alpes estaremos livres.

- Continua sonhador, Espártaco? - disse Crixo, com frustração evidente. - Que tipo de liberdade você vê, a ponto de ser um prêmio tão grande? Liberdade para trabalhar mais duro do que quando éramos escravos, arrancando algumas colheitas em terra ameaçada pelos moradores do local? Eles não vão nos querer, tanto quanto os romanos, pode ter certeza. Essa sua liberdade vai ser de partir as costas, eu sei. Vamos deixar as mulheres e crianças em segurança, só isso. Deixe que cem homens os levem pelos passos das montanhas e nós poderemos terminar o que começamos.

Espártaco olhou para seu subcomandante. Crixo tinha uma sede por sangue que só fora espicaçada no triunfo em Módena. Depois de tudo que havia passado nas mãos dos romanos, isso era bastante fácil de entender, mas Espártaco sabia que havia mais coisas.

- É a vida mansa deles que você quer, Crixo?

- Por que não? Fizemos a colméia deles, o mel deveria ser nosso. Você se lembra da guerra civil, e eu também. Quem tiver Roma tem o controle. ISe pudermos tomar a cidade, o resto vai cair. Sila sabia disso!

- Ele era um general romano, não um escravo.

- Isso não importa! Assim que você estiver dentro, pode mudar as regras a seu favor. Não existem regras a não ser as que você escolhe quando tem a força. Eu lhe digo, se perder essa chance, vai jogar fora tudo que fizemos. Dentro de dez anos os escribas vão dizer que a guarnição de Módena eram os rebeldes, e que nós éramos os romanos leais! Se pudermos tomar a cidade, poderemos enfiar a história e o orgulho deles garganta abaixo efazer com que eles aceitem a nova ordem. Basta dar a ordem, Espártaco. Eu garanto que seja feito.

- E os palácios e as grandes propriedades? - sondou Espártaco, com os olhos se estreitando.

- Serão nossos! Por que não? O que há na Gália além de mato e povoados?

- Você vai precisar de escravos para cuidar das propriedades, Crixo, já pensou nisso? Quem vai cuidar das plantações e dos vinhedos?

Crixo balançou o punho cheio de cicatrizes para o homem a quem amava acima de todos os outros.

- Eu sei o que você está pensando, mas nós não faremos como aqueles desgraçados. Não precisa ser assim.

Espártaco olhou-o em silêncio e ele prosseguiu irado:

- Certo, se você quer uma resposta: eu colocarei os senadores para trabalhar nos meus campos, e até pago um salário aos desgraçados.

Espártaco riu.

- Quem está sonhando agora, Crixo? Olha, nós já chegamos até aqui. Chegamos a um lugar onde podemos deixar tudo aquilo para trás, recomeçar nossa vida. Não, podemos voltar para a nossa vida como deveria ter sido. Eles podem vir atrás de nós no final, mas como eu disse, a Gália é suficientemente grande para esconder mais do que um exército. Vamos continuar para o norte até acharmos um lugar onde Roma seja apenas uma palavra, ou nem seja conhecida. Se virarmos para o sul de novo, mesmo sem as mulheres e crianças, nos arriscamos a perder tudo que conseguimos. E em troca de quê? Para que você possa se sentar numa casa de mármore e cuspir em velhos?

- Você vai deixar que eles os expulsem da terra? - perguntou Crixo, amargo.

Espártaco segurou o braço dele com uma de suas mãos poderosas.

- Você esperaria até eles nos matarem? - perguntou gentilmente. A raiva abandonou Crixo diante de suas palavras.

- Você não entende, seu filho da puta trácio - disse com um sorriso tenso. - Esta é minha terra também. Aqui eu sou seu general, o martelo escravo que derrubou uma legião em seu próprio terreno e mais duas em Módena. Na Gália sou apenas outro membro de tribo vestindo peles mal curtidas. Você também. Seríamos loucos em dar as costas para toda aquela riqueza e poder só para passar os anos que nos restam esperando que eles nunca nos encontrem. Olha, agora nós temos Antonido. Ele sabe onde os romanos são fracos. Se eu não achasse que podíamos vencer, viraria o rabo para eles e desapareceria antes de ver outro legionário, mas nós podemos vencer. Antonido disse que eles estão amarrados em cada uma das fronteiras, na Grécia, na África, em toda parte. Não há legiões suficientes no país para nos vencer. Deuses, o norte está aberto, você viu isso. Antonido disse que podemos colocar três homens no campo para cada legionário. Você não vai ter uma chance melhor do que essa, não nesta vida. O que quer que eles tenham, nós podemos vencê-los, e depois disso, Roma, as cidades, o país, a riqueza, tudo será nosso. Tudo.

Ele retirou a mão e sussurrou as palavras que tinham marcado cada estágio da rebelião, desde os primeiros dias loucos até a crença espantosa de que podiam romper a ordem que existira durante séculos:

- Tudo ou nada, Espártaco? - disse ele.

O gladiador olhou para a mão e para o elo de amizade jurada que ela representava. Seu olhar foi até a águia de Módena, encostada na parede da tenda. Depois de um momento de contemplação silenciosa, soltou o fôlego.

- Certo, tudo ou nada. Mande as mulheres e as crianças para longe e depois quero falar com Antonido antes de informar aos homens. Você acha que eles vão nos seguir?

- Não, Espártaco. Mas eles vão seguir você a qualquer lugar. Espártaco assentiu.

- Então vamos virar para o sul e atacar o coração deles,

- E arrancar o desgraçado.

Pompeu tinha ordenado que Lépido fosse para a frente da coluna, com sua legião, obrigando-os a determinar o ritmo. Atrás deles a Primogênita marchava com Crasso e Pompeu na dianteira. A mensagem era clara, e os primeiros cento e cinqüenta quilômetros tinham sido cobertos na velocidade que Pompeu queria, sem que nenhum homem sofresse qualquer dano.

As noites eram mais silenciosas nos dois grandes acampamentos do que tinham sido na Via Flamínia. O espaço minava a energia dos legionários, e quando era dado o sinal de parada, eles estavam prontos para comer, dormir e pouca coisa mais. Até mesmo Brutus tinha parado com suas disputas de espadas, declarando empate depois de duas derrotas e duas vitórias contra Domício. A intervalos, Caberá falava com alguma amargura do dinheiro que tinham perdido.

Cavaleiros dos extraordinarii voltavam a cada dia, atuando como batedores à frente da força principal. As mensagens que traziam eram de uma brevidade preocupante, sem qualquer sinal do exército de escravos ao alcance. Pompeu mandou um número cada vez maior de batedores com ordens de ir para o norte e para o oeste até achá-lo. Não era dito em voz alta, mas o medo era de que, numa região tão vasta, os rebeldes pudessem passar por eles e ir na direção do sul desprotegido.

A cada noite as reuniões dos generais eram cheias de discussões e ânimos exaltados. Em vez de ver isso como prova da aversão de Pompeu, Lépido parecia se deliciar em liderar a coluna, e Pompeu foi ficando cada vez menos disposto a ouvir suas reclamações. Segundo Lépido, somente sua própria autoridade podia forçar o ritmo que Pompeu queria das legiões, e a cada noite ele afirmava que o preço final poderia ser desastroso. Era um mestre em saber quando parar de pressionar a paciência de Pompeu, e as reuniões tinham se transformado quase numa batalha de vontades entre os dois, com Crasso se mostrando impotente para intervir. Júlio esperava que Lépido lutasse tão bem quanto sabia discutir.

Depois de duas semanas na estrada do oeste, Lépido informou triun-fante que alguns homens tinham caído e sido deixados nos postos de guarda ou em povoados, com ordens para se juntar ao resto quando estivessem curados. Cada noite era uma agonia de bolhas e distensões para centenas de legionários em toda a coluna. As legiões estavam se aproximando da exaustão, e os outros legados tinham começado a apoiar Lépido no pedido de descanso para os homens. Pompeu cedeu com relutância para não ver sua autoridade ser minada, e parou durante quatro dias. Só aos extraordinaríi foi negado descanso, e Pompeu os mandou numa última tentativa de achar o exército de escravos.

Finalmente os cavaleiros voltaram galopando com notícias de avistamento. Os rebeldes estavam se movendo para o sul e para o leste, voltando das montanhas para as planícies. Pompeu reuniu seus generais naquela noite, para dar a má notícia.

- Eles estão voltando para Roma, e os batedores dizem que têm mais de oitenta mil homens na marcha. Cada escravo do norte se juntou a eles.

Havia pouco sentido em esconder dos generais os números preocupantes, com os rebeldes a apenas algumas centenas de quilômetros de distância.

Agora que os batedores os tinham achado, eles não teriam permissão de escapar. Independentemente dos números, restava apenas escolher o melhor lugar de ataque.

- Se eles estão vindo para o sul, podemos marchar para nos encontrar com eles ou esperar que nos alcancem - continuou Pompeu. - Não importando o que aconteça, eles não podem passar, caso contrário perderemos Roma. Não se enganem, senhores, se eles atravessarem nossa linha, Roma cairá e tudo que nós amamos morrerá, como aconteceu com Cartago. Firmaremos posição aqui até o último homem, se necessário. Deixem isso claro aos seus homens. Não há para onde recuar, nenhum porto seguro onde possamos nos reagrupar e atacar de novo. A República depende apenas de nós.

Lépido estava tão chocado quanto os outros.

- Oitenta mil! Tenho tanta confiança em nossos soldados quanto qualquer um, mas... as legiões que estão na Grécia e na Espanha devem ser chamadas de volta. O Senado não sabia do tamanho da ameaça quando nos mandou.

Pela primeira vez Pompeu suportou sua explosão sem censura.

- Eu mandei mensageiros a Roma, mas nós estamos aqui agora. Mesmo que as fronteiras pudessem ser abandonadas sem que perdêssemos tudo que ganhamos numa centena de anos, aquelas legiões não poderiam nos alcançar a tempo de fazer diferença nesta batalha.

- Mas nós poderíamos fazer uma retirada lutando até a chegada do apoio. Oitenta mil podem nos derrotar. Seríamos flanqueados e derrotados na primeira hora de luta. É impossível!

- Fale assim na frente dos homens e é exatamente isso que acontecerá - rosnou Pompeu ao general. - Não vamos enfrentar soldados treinados, Lépido. Eles provavelmente poderiam ter escapado pelas montanhas, mas em vez disso estão atrás de riquezas e pilhagem, ao passo que nossos homens podem lutar por nossa cidade e pela vida de todos que estão nela. Eles vão se partir diante de nós. Nós nos sustentaremos.

- O comandante de Módena provavelmente disse a mesma coisa - murmurou Lépido, não suficientemente alto para que Pompeu fosse obrigado a responder, apesar de ter olhado furioso para o legado.

- As ordens que recebi são para lutar e destruir, senhores. Faremos exatamente isso. Se ficarmos esperando, eles podem nos rodear, por isso levaremos a guerra até eles. Deixem os homens prontos para marchar para o norte. Lépido, você pega o flanco esquerdo e mantenha uma linha ampla para evitar que sejamos cercados. Eles praticamente não têm cavalaria, a não ser por alguns animais roubados, então use a nossa para manter as laterais firmes. Júlio, quero você na esquerda para ajudar Lépido se for necessário. Crasso e eu pegaremos o flanco direito como sempre, e eu vou concentrar o grosso da cavalaria lá para impedir que eles se derramem em volta de nós e sigam para o sul e o leste na direção de Arimino. Eles não devem ter permissão de chegar lá.

Um dos dois legados de Arimino pigarreou.

- Eu gostaria de ficar nesse flanco com o senhor. Muitos dos meus homens têm família em Arimino. Eu mesmo tenho. Eles lutarão muito mais sabendo o que poderia acontecer caso a direita se rompa.

Pompeu assentiu.

- Certo. As legiões de Arimino serão o âmago do flanco direito. O resto de vocês assume o centro. Quero os manípulos dos hastati na linha de frente, em vez dos velites. Precisamos mais de peso do que de velocidade para rompê-los no primeiro ataque. Tragam os triarii rapidamente se o avanço tiver a velocidade diminuída ou se for revertido. Ainda não encontrei uma força capaz de suportar nossos veteranos.

Amanheceu antes que a reunião terminasse, e o dia foi passado na preparação para a marcha. Júlio ficou com a Primogênita, repassando ordens e posições para Brutus e os centuriões. Naquele início de noite cada homem sabia da seriedade da batalha que viria, e muitos ferimentos que tinham recebido na marcha foram esquecidos ou ignorados diante do pensamento nos conflitos próximos. Mesmo com os boatos dos números gigantescos do inimigo, cada soldado estava decidido a não deixar Roma e suas famílias à mercê do invasor. Melhor do que qualquer um, eles sabiam que sua disciplina e sua habilidade não tinham iguais, não importando quem viesse contra, ou quantos.

 

O exército de Espártaco foi visto ao pôr-do-sol. Foram dados os sinais para criar um acampamento hostil, com as barreiras tendo o dobro da altura e cada soldado dormindo em turnos curtos, pronto para repelir um ataque noturno. Os soldados passavam o tempo de vigília verificando a armadura e as espadas, lubrificando couro e polindo metal. Lanças eram afiadas ou tinham as pontas substituídas por outras novas, vindas das oficinas de ferreiro. Pesadas bestas e balistas foram reunidas deixando sulcos profundos no solo, e as pedras que elas atiravam foram preparadas para o alvorecer. O exército de escravos não tinha nada como as grandes máquinas de guerra e, mesmo tendo apenas um alcance específico, a balista "coice de mula" podia abrir brechas enormes através de um ataque inimigo.

Brutus acordou Júlio de um sono leve, sacudindo seu ombro.

- É o meu turno? - perguntou Júlio sonolento, sentando-se na tenda escura.

- Shh. Venha cá fora. Quero mostrar uma coisa.

Vagamente irritado, Júlio acompanhou Brutus pelo acampamento, parando duas vezes para dar a senha do dia às sentinelas alertas. Ao alcance de um ataque inimigo, o acampamento não estava nem um pouco silencioso. Muitos homens que não conseguiam dormir estavam sentados do lado de fora das tendas ou em volta de pequenas fogueiras, conversando baixo. A tensão e o medo apertavam as bexigas durante a noite, e Júlio e Brutus viram que a trincheira de urina já estava encharcada e fedendo quando passaram por ela.

Júlio percebeu que Brutus estava indo direto para o portão pretoriano na barreira norte do acampamento.

- O que está fazendo? - sibilou para o amigo.

- Preciso que você me leve para fora do acampamento. Eles vão deixar um tribuno passar, se você der a ordem.

Brutus sussurrou sua idéia e Júlio franziu a vista para o amigo no escuro, pensando na energia louca que parecia compor uma parte tão grande dele. pensou em recusar e voltar à tenda, mas o ar da noite havia clareado sua cabeça, e ele duvidou de que pudesse dormir de novo. Não se sentia cansado. Em vez disso, seus músculos tremiam de energia nervosa, e esperar parado seria pior do que qualquer coisa.

O portão era guardado por uma centúria de extraordinarii, ainda empoeirados das expedições como batedores. O comandante veio trotando com o cavalo quando eles se aproximaram.

- Sim? - disse ele rispidamente.

- Quero sair do acampamento por duas horas - respondeu Júlio.

- As ordens são para não deixar o acampamento.

- Eu sou legado da Primogênita, tribuno de Roma e sobrinho de Mário. Deixe-nos passar.

O centurião hesitou diante da ordem.

- Eu deveria informar isso, senhor. Se sair estará desobedecendo ordens diretas de Pompeu.

Júlio olhou para Brutus, xingando-o silenciosamente por colocá-lo nessa posição.

- Eu resolvo com o general quando voltar. Informe o que achar necessário.

- Ele quererá saber o que o senhor está fazendo - continuou o centurião, encolhendo-se ligeiramente.

Júlio podia admirar a lealdade do soldado, mas sentia pavor do que Pompeu diria se o sujeito cumprisse a ameaça de informar.

- Há uma agulha de rocha que dá para o campo de batalha - disse ele em voz baixa. - Brutus acha que o lugar nos dará uma visão da força inimiga.

- Eu sei, senhor, mas os batedores dizem que ela é íngreme demais para ser escalada. É praticamente vertical - respondeu o homem, coçando o queixo.

- Vale pelo menos a tentativa - disse Brutus rapidamente.

O centurião o olhou pela primeira vez, com a expressão ficando pensativa.

- Eu posso adiar o informe até a mudança de vigia dentro de três horas. Se os dois não estiverem de volta até então, vou denunciá-los como desertores. É o que posso fazer por um sobrinho de Mário, mas só isso.

- Bom homem. Não será necessário. Qual é o seu nome? - perguntou Júlio.

- Tarano, senhor.

Júlio deu um tapinha no pescoço trêmulo do cavalo.

- Sou Júlio César, e este é Marco Brutus. Estaremos de volta antes do novo turno, Tarano. Dou minha palavra.

Os guardas ficaram de lado para deixar que passassem, por ordem de Tarano, e Júlio se viu na planície rochosa, com o inimigo em algum lugar à frente. Quando estavam fora do alcance da audição dos guardas, ele se virou para Brutus.

- Não acredito que deixei você me convencer disso. Se Pompeu ficar sabendo, no mínimo vai tirar a pele das nossas costas.

Brutus deu de ombros, sem se preocupar.

- Não vai, se nós escalarmos a pedra. Os batedores dele são cavaleiros, lembra? Eles pensam que qualquer lugar aonde não possam levar um cavalo não pode ser subido. Eu dei uma olhada antes de escurecer, e o topo vai nos dar uma boa visão. Há luar suficiente para ver o acampamento inimigo, e isso será útil, não importando o que Pompeu diga sobre nós sairmos do acampamento.

- É melhor você estar certo - disse Júlio, sério. - Venha, três horas não é muito tempo.

Os dois rapazes começaram a correr para a massa escura que viam em silhueta contra as estrelas. Era uma escarpa difícil, um dente na planície.

 

- É maior de perto - sussurrou Brutus, tirando as sandálias e a espada para subir. Ainda que isso fosse machucar os pés, as sandálias com placas de ferro na sola escorregariam e fariam barulho nas pedras e poderiam alertar o inimigo. Não havia como dizer a que distância estavam as patrulhas deles, mas deviam estar perto.

Júlio olhou para a lua e tentou avaliar quanto tempo teriam antes de ela baixar no horizonte.

Insatisfeito com o cálculo, tirou a espada e as sandálias e respirou fundo, lentamente. Sem falar, estendeu a mão para o primeiro apoio, enfiando-a numa rachadura e alçando-se, com os pés nus procurando sustentação.

Mesmo com a lua para ajudar, era uma escalada difícil e apavorante. Durante toda a subida Júlio se viu atormentado com a possibilidade de algum arqueiro escravo vê-los e enchê-los de flechas que pudessem derrubá-los na planície rochosa abaixo. A torre de pedra parecia ficar mais alta à medida que escalavam, e Júlio tinha certeza de que teria mais de trinta metros de altura, talvez até sessenta. Depois de um tempo seus pés se tornaram blocos entorpecidos, praticamente incapazes de sustentá-lo.

Os dedos estavam com cãibras e doloridos, e ele começou a se preocupar com a hipótese de não conseguirem voltar ao acampamento antes de serem denunciados.

Segundo suas melhores estimativas, demoraram quase uma hora para chegar à crista estéril da rocha, e nos primeiros momentos ele e Brutus não puderam fazer nada além de ficar deitados ofegando, esperando que os músculos torturados se recuperassem.

O topo era um local irregular, quase branco com a luz da lua. Júlio ergueu a cabeça e se agachou subitamente, com o horror inundando-o.

Havia mais alguém ali, a poucos metros deles. Duas figuras estavam sentadas olhando enquanto Júlio levava a mão para onde sua espada costumava ficar, quase xingando alto ao se lembrar de que a deixara lá embaixo.

-- Parece que vocês dois tiveram a mesma idéia que nós - disse rindo uma voz profunda.

Brutus xingou e se levantou totalmente, apanhado no mesmo medo súbito de Júlio. A voz falava latim, mas qualquer pensamento de que ela poderia ter pertencido a um dos seus companheiros foi rapidamente descartado.

- Vocês não conseguiriam escalar isso com espadas, garotos, mas eu trouxe uma adaga, e quando vocês estão num lugar tão alto e descalços, é boa idéia se manter pacíficos. Venham lentamente para cá e não me deixem nervoso.

Brutus e Júlio se entreolharam. Não havia como recuar. As duas figuras se levantaram e os encararam, parecendo preencher o espaço minúsculo. Os dois também estavam descalços e usavam apenas túnicas e calções justos. Um deles balançou a adaga.

- Acho que isso me torna o rei da noite, pessoal. Vejo pelas roupas que vocês são romanos. Vieram apreciar a vista, é?

- Vamos matá-los - disse o companheiro dele.

Brutus o olhou com um sentimento de frustração. O outro tinha a compleição forte de um lutador, e o luar revelava uma expressão sem misericórdia. O melhor que ele poderia esperar era cair do penhasco agarrado ao sujeito, o que não era um pensamento capaz de dar algum conforto. Afastou-se ligeiramente da borda às costas.

O outro homem pôs a mão no peito do amigo, segurando-o imóvel.

- Não precisa disso, Crixo. Haverá tempo suficiente na batalha amanhã. Todos podemos derramar o sangue um dos outros, rugindo e ameaçando de acordo com o humor.

O lutador cedeu com um grunhido e deu as costas para os dois romanos. Estava quase suficientemente perto para ser tocado, mas alguma coisa na postura alerta do sujeito alertou Brutus de que ele estava esperando isso. Possivelmente estava esperando que tentassem.

- Vocês estão armados? - disse o primeiro homem em tom agradável, sinalizando para se aproximarem. Quando não se moveram, ele chegou perto de Júlio com a adaga preparada. Atrás dele o mais baixo tinha se virado de novo e estava olhando irado para os jovens, desafiando-os a tentar alguma coisa.

Júlio se permitiu ser revistado e depois ficou de lado enquanto Brutus também era revistado em busca de lâminas ocultas. O homem foi cuidadoso, e seus ombros pareciam suficientemente fortes para lhe dar uma vantagem, mesmo sem adaga.

- Bons garotos - disse ele quando teve certeza de que estavam impotentes. - Eu só trouxe uma porque sou um velho sacana e perigoso. Vocês vão lutar amanhã?

Júlio assentiu, incapaz de acreditar no que estava acontecendo. Sua mente disparava, mas não havia nada a ser feito. Quando percebeu isso, finalmente relaxou e riu, fazendo Brutus dar um pulo. O homem com a adaga riu baixinho enquanto olhava o jovem romano.

- Pode rir, garoto. Este é um espaço muito apertado para lutar. Façam o que vieram fazer; não vai fazer diferença. Não há como nos impedir amanhã, não importando o que informarem de volta.

Observando o homem e preparado para qualquer movimento súbito, Júlio sentou-se, com o coração martelando, ao pensar que um empurrão súbito poderia jogá-lo pela borda. A situação era estranha, para dizer o mínimo, mas o homem com a faca parecia totalmente relaxado, distanciado da luta que todos enfrentariam lá no chão.

Do topo da agulha de granito o acampamento rebelde parecia incrivelmente perto, quase como se um bom salto os levasse ao centro dele. Júlio olhou e se perguntou se teriam permissão de voltar antes que o centurião de vigia os denunciasse como desaparecidos.O homem com a faca guardou-a na túnica e se sentou ao lado de Júlio seguindo seu olhar.

- É o maior exército que eu já vi - disse ele animado, sinalizando para o acampamento rebelde. - Acho que amanhã vai ser difícil para vocês.

Júlio não disse nada, não querendo ser atraído para a conversa. Em particular tinha a mesma impressão. O acampamento inimigo era quase grande demais para ser visto, e parecia capaz de engolir as oito legiões sem problema.

Brutus e o lutador tinham permanecido de pé, cada um de olho no movimento do outro. O homem com a faca riu para os dois.

- Sentem-se - disse ele, sinalizando com um movimento de cabeça. Relutantes, os dois se aproximaram um do outro e se sentaram, tensos como arames.

- Vocês devem ter o quê, trinta, quarenta mil homens? - perguntou o lutador a Brutus.

- Continue adivinhando - respondeu Brutus laconicamente, e o homem começou a se levantar, mas foi seguro por um toque levíssimo do companheiro.

- O que importa agora? Faremos os romanos correr, independentemente de quantos sejam. - Ele riu para Júlio, claramente esperando que este reagisse à provocação. Júlio ignorou-o, ocupado memorizando os detalhes do acampamento que podia ver à luz fraca. Notou que a lua tinha baixado mais, e se levantou lentamente para não alarmar os estranhos companheiros.

- Temos de voltar agora - falou. O nervosismo lhe retornou, retesando os músculos doloridos.

- E, acho que todos nós devemos voltar - respondeu o homem com a faca, levantando-se agilmente. Era de longe o mais alto de todos, e se movia com uma eficiência que marcava um guerreiro. Brutus também tinha isso, e talvez fosse esse reconhecimento inconsciente que havia eriçado o sujeito com corpo de lutador.

- Isso foi... interessante. Espero que nós dois não nos encontremos amanhã - disse Júlio.

- Eu espero que nós nos encontremos - acrescentou Brutus ao lutador, que fungou desdenhoso.

O homem com a faca se espreguiçou e franziu o rosto. Depois deu um tapa no ombro de Júlio e sorriu.

- Está nas mãos dos deuses, rapazes. Agora acho que meu amigo e eu devemos descer primeiro, não acham? Não quero vocês se arrependendo de nossa pequena trégua de soldados quando estiverem com suas espadas de novo. Vão para o lugar por onde chegaram e teremos ido num instante.

Os dois mais velhos sumiram com uma agilidade casual. Brutus soltou o ar numa explosão.

- Eu achei que estávamos mortos.

- Eu também. Acha que aquele era Espártaco?

- Pode ser. Quando eu contar a história, certamente será. - Brutus começou a rir simplesmente para liberar a tensão medonha do encontro.

- É melhor irmos, ou aquele guarda vai nos servir numa bandeja a Pompeu - disse Júlio, ignorando-o. Foram rapidamente e suportaram os arranhões e cortes da descida sem um som. As sandálias estavam onde tinham deixado, mas as duas espadas haviam sido levadas. Brutus procurou as armas nos arbustos, mas voltou com as mãos vazias.

- Desgraçados. Não existe mais honra.

 

As Legiões levantaram o acampamento e formaram a linha de batalha duas horas antes do alvorecer. Assim que houve luz suficiente para enxergar, os tocadores de trompa soaram suas notas plangentes e os enormes quadrados de legionários se adiantaram, afastando a rigidez e a cãibra da manhã enquanto marchavam. Não havia conversa fiada nas fileiras, com o exército de Espártaco enchendo a planície e parecendo se estender até o horizonte. Até mesmo o barulho das sandálias era abafado no capim, e cada homem afrouxava os ombros à medida que se aproximavam do momento em que o silêncio se despedaçaria no caos.

Ao longo de todas as linhas das legiões, as pesadas balistas e catapultas eram posicionadas. Com um alcance colossal, bolas de ferro e flechas com o peso de três homens podiam ser lançadas contra o inimigo. Os homens em volta delas comemoraram quando as grossas cordas de crina de cavalo foram puxadas até a posição de disparo.

Júlio marchava com Brutus e Ciro ao lado, e Rênio um passo atrás. Ainda que fosse suicídio para qualquer recruta de Cato tentar um ataque, os três homens em volta de Júlio estavam em alerta para essa possibilidade. Não havia lugar ali para Caberá, que tinha permanecido no acampamento com o resto dos seguidores, apesar das reclamações. Júlio fora firme com ele, porque, mesmo o velho estando disposto a colocar uma armadura e segurar um gládio, jamais lutara em formação antes e romperia a rotina dos romanos em volta.

Na oitava fileira atrás dos hastati com armaduras pesadas, os quatro estavam rodeados pelos melhores da Primogênita, homens que Rênio tinha treinado e endurecido até estar prontos para um dia assim. Nenhum dos recrutas de Cato se encontrava a uma distância capaz de acertá-los.

Ainda que muitos estivessem loucos para atacar, todos mantinham o passo da linha de vanguarda. Os dentes ficavam à mostra inconscientemente enquanto deixavam todas as coisas do mundo para trás. Cada ânsia violenta que tinham precisado conter nas cidades era bem-vinda naquela linha, e alguns homens continham risos enquanto se lembravam dessa estranha liberdade.

Soou a ordem para parar, e segundos depois o ar foi partido pelo trovão das máquinas de guerra, grandes braços se chocando nos apoios enquanto lançavam suas cargas. Os escravos não podiam evitar a chuva de pedras e ferros, e centenas foram esmagados, virando trapos de carne. Lentamente os braços foram puxados de volta, e Pompeu esperou para dar o sinal, lambendo os lábios secos.

Na terceira saraivada, veio de novo a ordem para avançar. Mais uma seria disparada sobre suas cabeças, antes que as linhas se juntassem.

A medida que os exércitos se aproximavam, os legionários descartavam a pele lisa da civilização, deixando apenas a disciplina da legião para segurar as fileiras contra o desejo crescente de matar. Através das aberturas nas filas, podiam vislumbrar o inimigo que esperava, uma escura parede de homens que tinham vindo testar a força dos últimos defensores de Roma. Alguns tinham gládios, mas outros seguravam machados e foices, ou espadas compridas roubadas dos alojamentos da legião de Módena. Manchas sangrentas no chão marcavam os amplos cortes feitos pelas pedras das balistas, mas eles foram rapidamente engolidos pelos homens de trás.

Júlio se pegou ofegando de empolgação e medo, reagindo aos que estavam em volta enquanto eles se uniam e os pulsos começavam a martelar, enchendo-os de força e de uma energia imprudente. Alguém deu um grito selvagem, perto.

- Firme, Primogênita! - gritou Júlio, sentindo a ânsia de correr para a frente. Viu que Brutus também estava cheio daquele estranho júbilo em que cada momento antes do primeiro choque de dor era mais longo do que todos que tinha vivido. Eram cem anos para atravessar a planície, e então um som rasgou a calma quando as duas primeiras fileiras levantaram as lanças com um grunhido que se fundiu num rugido de desafio. Eles começaram a correr, enquanto as lanças tornavam o ar negro e os primeiros escravos eram cortados por elas.

O inimigo uivou o suficiente para encher o mundo e correu para os legionários. O primeiro encontro foi um choque que amorteceu os sons que vieram depois. Os pesados escudos romanos foram levantados de encontro à linha de ataque, e o impacto tirou do chão uma centena de escravos. Então as espadas estavam mergulhando nos corpos e o sangue espirrava cegando, até que toda a primeira fila estava coberta por ele, os braços e rostos molhados enquanto as espadas cortavam membros e arrancavam a vida dos homens que eles encaravam.

Com Brutus à direita, Júlio podia trabalhar em volta do escudo do amigo, do mesmo modo como Ciro ficava protegido pelo seu. A disciplina en-tranhada mantinha firmes as fileiras que estavam atrás da linha de frente, livres para olhar a carnificina a poucos metros. Gotas de sangue tocavam-nos enquanto viam os hastati avançarem como uma tempestade através dos escravos. Ciro esmagava tudo que vinha para ele, com uma força incansável. Júlio e Brutus se adiantavam no ritmo do avanço, enfiando as espadas nos corpos enquanto passavam, certificando-se das mortes. Quando as fileiras de trás passassem sobre os cadáveres, eles seriam pouco mais do que ossos brancos e carne despedaçada, já que cada soldado ensangüentava a espada neles.

Os hastati eram a espinha dorsal do exército, homens com dez anos de sólida experiência. Não havia medo neles, mas depois de um tempo Júlio começou a sentir uma ligeira mudança no ritmo enquanto o avanço hesitava. Até mesmo os hastati se cansavam diante de uma horda tamanha, e muitos das fileiras se adiantavam para preencher os vazios, passando sobre os corpos retorcidos de homens que eles conheciam e consideravam amigos. Rênio andava com eles, o escudo amarrado ao corpo com fivelas pesadas. Matava com golpes simples, recebendo os ataques no escudo para permitir o contragolpe, repetidamente. O escudo se amassou e rachou sob os impactos, mas resistiu.

Os cornicens tocavam uma série de três notas, repetidamente, e ao longo de toda a vasta linha havia um brilho trêmulo enquanto os manípulos de Roma se moviam com uma disciplina sem igual no mundo. Os hastati levantaram os escudos para se proteger e recuaram habilmente pelas fileiras enquanto os tríarii se adiantavam. Estavam ofegando e cansados, mas ainda cheios de um prazer selvagem, e gritavam encorajamentos para os veteranos de vinte anos que corriam para formar a nova linha de frente. Os triarii eram os melhores homens, em plena força. Sua família e seus amigos eram as legiões às quais serviam, e logo estavam tão cobertos de vermelho quanto os hastati. Afora Rênio, a Primogênita tinha apenas um punhado deles, fazendo número com os soldados novos dados por Cato. Os escravos se lançavam contra as legiões, e a Primogênita sofria a pior contagem de mortos, os novos recrutas morrendo mais rápido do que os homens experientes em volta. Rênio mantinha a linha da Primogênita firme enquanto lutavam para se adiantar.

O avanço aconteceu de novo através dos corpos trucidados. O único caminho era por cima dos mortos, e nenhum dos lados cedia ou recuava da fenda sangrenta que era a fileira da frente. Júlio estava esperando na quinta fileira, com a Primogênita doida para atacar. Braços e espadas tremiam de antecipação enquanto eles permaneciam suficientemente perto dos embates para que mais e mais gotas de sangue batessem neles como chuva, escorrendo pela armadura brilhante.

Alguns exércitos eram derrotados diante dos hastati, outros quando os triarii eram trazidos para esmagar a vontade do inimigo. Os corpos sobre os quais eles andavam, e que eles atravessavam com lanças tão casualmente, chegavam às centenas, talvez milhares ao longo da linha, no entanto só haviam começado a cortar as camadas externas do exército de Espártaco, e logo cada homem sabia que teria de ocupar o lugar deles. Assim que viam o inevitável, os nervos se acalmavam mesmo nos fracos, enquanto esperavam para chegar à primeira fila.

- Primogênita! Segundas lanças! - ordenou Júlio, repetindo o grito à esquerda e à direita.

As fileiras atrás dele atiraram sem pausa por cima da cabeça dos colegas, e as lanças caíam sem ser vistas sobre a massa do inimigo. Ao longo de toda a fileira, a ação era repetida, e apenas gritos distantes revelavam as vidas que as pontas haviam tirado.

Júlio se esticou na ponta dos pés para ver o que estava acontecendo nos flancos. Contra um número tão grande, a cavalaria tinha de impedir que fossem cercados. Enquanto a linha do exército de Espártaco se curvava diante dos romanos, uma lembrança de uma antiga sala de aula relampejou na cabeça de Júlio, uma lição das guerras de Alexandre. Por mais gigantesco que fosse, o exército romano poderia ser engolido e destruído, a não ser que os flancos permanecessem fortes.

Enquanto começava a olhar, sentiu a mudança à esquerda. Viu a linha se dobrar na legião de Lépido e o inimigo jorrar pela brecha. Estava muito longe para ver em detalhe, e enquanto se adiantava com Brutus, Júlio perdeu aquilo de vista e xingou.

- Brutus, você consegue ver Lépido? Os inimigos estão rompendo por lá. Pode ver se eles estão se sustentando?

Brutus se esticou na ponta dos pés para ver.

- A linha está rompida - falou horrorizado. - Deuses, acho que eles estão se virando.

Júlio quase tropeçou no homem à sua frente quando o passo dele encurtou. Olhou a linha, quatro fileiras à frente. Os triarii estavam esmagando os escravos e não pareciam se cansar. Seus pensamentos eram desesperados, e o medo jorrou dentro dele. Se movesse a Primogênita para a esquerda, para apoiar, como tinha prometido a Pompeu, deixaria os tríarii vulneráveis. Se alinha deles fosse afinada ou rompida, os reforços que esperavam não estariam ali, e os escravos teriam duas brechas pelas quais jorrar, cortando a linha romana em ilhas de homens que se encolheriam e desapareceriam sendo mortos.

Enquanto hesitava, viu que o flanco esquerdo estava se compactando à medida que a brecha se alargava e alguns dos homens de Lépido se viravam de costas para o inimigo, começando a fugir. Aquilo se espalharia como a peste, os que corriam estragariam as fileiras de trás infeccionando-as com a covardia. Júlio escolheu.

- Primogênita! Virar à esquerda, para o flanco! - Como antes, repetiu a ordem duas vezes e as fileiras da frente ouviram, mesmo não podendo se virar, Eles saberiam que não havia ninguém atrás para sustentá-los, e lutariam com mais intensidade ainda durante o tempo em que estivessem vulneráveis.

A Primogênita se moveu rapidamente atravessando a linha de avanço, alguns tropeçando nos soldados que não tinham escutado a ordem. Era uma manobra perigosa para se tentar no meio de uma batalha, mas Júlio sabia que precisava usar seus homens para enrijecer a legião de Lépido antes que todo o flanco esquerdo desmoronasse. Correu pelas fileiras gritando ordens, saltando por cima de cadáveres e continuando a gritar para manter seus homens perto e em movimento. Na melhor das hipóteses, tinha segundos para impedir a debandada.

Brutus chegou primeiro, deliberadamente derrubando com o escudo um legionário em fuga. Júlio e Ciro ficaram dos dois lados dele, e juntos formaram o cerne, com a Primogênita fazendo uma parede de soldados sérios que os romanos em retirada teriam de atravessar para fugir. Rênio havia desaparecido na confusão, separado deles por centenas de soldados que esperavam.

- Levantar espadas! - gritou Júlio, com o rosto retorcido numa máscara de fúria animal. - Nenhum soldado atravessa esta linha vivo! Mostrem a esse Lépido quem nós somos.

A debandada de homens em pânico parou quando as fileiras da Primogênita chegaram diante deles, bloqueando a retirada. A luz do pânico sumiu de seus olhos enquanto eles viam as espadas prontas para cortá-los. Não havia dúvida de que elas seriam usadas. Os homens da Primogênita sabiam tão bem quanto Júlio que todos morreriam se a legião de Lépido fugisse do flanco dos escravos. Eles seriam dominados.

O exército de escravos tinha sentido o ponto fraco e os comandantes gritaram ordens, colocando centenas de homens na abertura, para alargá-la. Júlio foi apanhado na dúvida entre continuar andando pelas fileiras e colocar a Primogênita lacrando a brecha ou manter a posição para o caso de os homens de Lépido cederem de novo. Sabia que a recuperação ainda era fraca, com os soldados aterrorizados mal controlando o medo da morte que os havia dominado antes. Seria mais fácil da segunda vez.

- Júlio? - perguntou Brutus, esperando a ordem.

Júlio olhou para o amigo e viu a ânsia dele. Afinal, não havia opção. Tinham de assumir a frente e rezar para que os homens de Lépido não os deixassem desguarnecidos atrás.

- Primogênita! Avançar até a linha! - gritou, e os setecèntos homens sob seu comando correram com ele, mantendo a formação perfeitamente.

Os últimos homens de Lépido se viraram para fugir dos escravos, e a Primogênita os derrubou antes que pudessem levar o pânico de volta. Fizeram isso com uma eficiência maligna que deveria ter alertado os escravos que lutavam para aproveitar a vantagem criada.

Os escudos da Primogênita se chocaram na brecha e as espadas subiam e baixavam o mais rapidamente possível, com cada homem sacrificando o cuidado em nome da velocidade. Pisavam os feridos, deixando-os gritando e freqüentemente vivos, mas a Primogênita pressionava num ritmo tal que corria o perigo de deixar toda a primeira fila para trás e ser separada do resto do exército. Rênio os encontrou, trazendo toda a linha com ordens gritadas.

Júlio lutava num frenesi. Seu braço doía e um longo ferimento havia marcado a pele numa linha vermelha, do pulso até quase ao ombro. Uma lâmina havia deslizado contra seu corpo antes que ele matasse o dono. Um escravo de aparência forte, usando armadura romana, saltou para ele, mas foi derrubado quando Rênio chegou à posição, golpeando o escravo na lateral, através de uma abertura entre as placas.

Júlio matou o próximo homem que o enfrentou, mas então outros três o golpearam. Sentiu-se grato pelas milhares de horas de treino que o fizeram se mover antes de pensar. Saltou de lado desviando-se do homem de fora e o empurrou para cima dos outros, abrindo mão da matança em troca de deixá-los embolados. O homem cambaleou no caminho do segundo e Júlio cortou sua garganta pelo lado, depois saltou sobre o corpo que ia caindo e afundou o gládio no peito arfante do homem do meio. A arma se engastou nas costelas e ele quase gritou de frustração quando sua mão ensangüentada escorregou completamente do punho da espada, ficando desarmado por um instante.

O terceiro homem a encará-lo veio com um gládio de legionário num forte golpe giratório e Júlio teve de se jogar no chão para evitar a lâmina. Então sentiu pânico enquanto esperava sentir o metal entrando em sua carne e fazendo o sangue se misturar à sujeira embaixo. O homem morreu com a espada de Ciro na boca, e Júlio lutou para recuperar sua espada, puxando o corpo e sacudindo-a até ela se soltar com um estalo de osso partido.

Brutus estava um passo adiante e Júlio o viu matar mais dois com uma velocidade e facilidade que nunca vira em ninguém, quanto mais no garoto que conhecia durante toda a vida. Parecia haver um espaço pacífico em volta de Brutus, e seu rosto estava calmo, quase sereno. Qualquer coisa viva que chegasse ao alcance de sua espada morria em um ou dois golpes, e como se sentissem a fronteira, os escravos lhe davam espaço e não pressionavam o jovem soldado tão de perto quanto o resto.

- Brutus! - gritou Júlio. - Gladiadores na frente!

Correndo na direção da Primogênita havia homens vestidos com armadura de gladiadores. Usavam capacetes inteiros que cobriam o rosto, deixando apenas buracos para os olhos que lhes davam uma aparência de ferocidade não humana. A chegada deles pareceu animar os escravos em volta, de modo que a Primogênita parou, plantando os escudos no chão macio.

Júlio imaginou se no meio deles estavam os homens que tinha conhecido na noite anterior. Era impossível ter certeza no choque de metal e corpos. Eram rápidos e treinados, e Júlio viu Rênio derrubar um com o ombro à medida que as fileiras se fechavam e outro lançava um golpe contra ele. I Júlio levantou o escudo bruscamente, sentindo dois choques enquanto seu golpe revidado amassava uma armadura. Seu escudo se embolou com a espada do sujeito, e Júlio martelou e martelou o capacete de ferro até que finalmente este se partiu e ele pôde ir em frente, ofegando. Seus músculos doíam e sua respiração parecia queimar na garganta.

Brutus esperava num poço de imobilidade intocado pela confusão de corpos em volta. O gladiador que ele encarava se desviou uma vez, e Brutus antecipou facilmente o movimento, oscilando de lado para evitar um golpe de verdade. Sua espada saltou em resposta e deu um corte pequeno no pescoço do sujeito. O sangue jorrou, e a um passo de distância Júlio ouviu o som fraco de surpresa dado pelo lutador enquanto levava a mão ao corte, pasmo. Era apenas um arranhão, mas uma veia importante fora cortada, e as pernas dele se dobraram debaixo do corpo. Ele lutou para se levantar, ofegando e gemendo como um bezerro ferido, e a vida o abandonou.

Júlio passou o gládio num pescoço exposto, e então foi derrubado para trás quando mais um se chocou em seu escudo, rasgando as tiras contra seu braço. Deixou-o cair e tentou cegamente agarrar o atacante com a mão esquerda, para enfiar o gládio na carne dele com a outra, mas sentiu uma cutucada nas costas quando o homem tentou levantar a ponta da espada. Sentiu cheiro de alho da última refeição do sujeito que morria.

A Primogênita estava chegando ao seu redor, e ele pôde ver mais gladiadores correndo para aproveitar uma brecha que ainda oscilava. Olhou para trás e viu com um alívio ofegante que a legião de Lépido tinha se formado de novo e estava a postos para se adiantar.

- Primogênita! Formação de manípulo. Reagrupar na quinta! - gritou e matou mais dois escravos furiosos que tentavam se aproveitar da mudança, atacando loucamente a fileira da Primogênita e morrendo de modo igualmente rápido. Havia um número muito grande deles. Sem colocar homens descansados na frente, a Primogênita seria derrubada.

Brutus recuou com ele, e Júlio ficou estranhamente satisfeito ao vê-lo respirando ofegante. Por um tempo seu amigo parecera intocável na batalha, e era tranqüilizador saber que ele poderia ficar tão cansado quanto os outros. Júlio olhou aprovando quando os homens de Lépido assumiram o ataque e o avanço prosseguiu. Estava na hora de voltar à posição original. O flanco esquerdo estava seguro.

- Senhor? - disse uma voz ao lado de Júlio. Ele virou a cabeça rapidamente, tenso demais para ver qualquer coisa além de ameaças. Havia um centurião parado, sem capacete. Um enorme ferimento na bochecha e os antebraços sangrentos mostravam que ele estivera no meio da batalha.

- O que é?

- O general Lépido está morto. Não há ninguém para comandar a esquerda.

Júlio fechou os olhos um segundo, esforçando-se para afastar o cansaço que tinha penetrado seus músculos doloridos a cada passo longe da luta. Olhou para Brutus, que sorriu.

- Você continua com sorte, Júlio - disse ele sem qualquer traço de acidez.

Júlio apertou a mão do amigo com força, num reconhecimento silencioso do que ele havia cedido, depois se virou para o soldado que esperava.

- Muito bem, centurião. Assumirei o comando. Traga a águia até mim para que os homens saibam para onde olhar em busca de ordens. Espalhe a notícia de que, se cederem, eu crucificarei cada um deles quando isto terminar.

O centurião piscou fixando os olhos do jovem comandante. Depois fez uma saudação e correu para chamar o porta-estandarte. Quatro fileiras à frente deles a batalha prosseguia furiosa, sem pausa.

Pompeu e Crasso olhavam de cima das montarias a batalha que se desdobrava. O sol estava subindo no céu e as colinas em volta continuavam cobertas pelo exército inimigo. Pompeu tinha ordenado que as balistas e catapultas continuassem disparando por cima das linhas de frente até terem exaurido os projéteis. Elas haviam silenciado depois das primeiras três horas, e desde então a ferocidade da batalha havia somente aumentado.

Os senadores podiam observar em relativa segurança, a mais de trinta metros atrás das primeiras fileiras do flanco direito. Uma centúria protegia a posição, permitindo que apenas os mensageiros dos extraordinaríi chegassem aos dois comandantes. Depois de tanto tempo os cavalos chegavam ao posto de comando com suor branco e saliva cobrindo a pele. Um cavaleiro trotou até os senadores e fez uma saudação elegante apesar do cansaço.

- A brecha está fechada, senhor. César comanda a esquerda. O general Lépido está morto - falou ofegando.

- Bom - respondeu Pompeu secamente. - Isso me economiza a tarefa de matar o idiota depois da batalha. Vá até Márcio e diga para ele trazer mil soldados para apoiar César. Deixe César no comando. Eu diria que ele mereceu.

O cavaleiro fez uma saudação e galopou por entre os guardas, com o cansaço aparecendo no modo frouxo como se sentava na montaria. Pompeu sinalizou para outro dos extraordinaríi se aproximar e ficar a postos para a próxima ordem. Examinou a batalha, tentando avaliar o progresso.

Sabia que os romanos deviam ter debandado os escravos. Milhares tinham caído, mas eles pareciam possessos, e as legiões estavam ficando exaustas. Não importando a rotatividade que fizessem com as primeiras filas através das ordens de manípulo, não havia carência de novos inimigos para minar a força e a vontade deles. Tinha deixado instruções com os arqueiros para atirar flechas contra qualquer um que pudessem ver com armadura de gladiador, mas acertar alvos individuais era quase impossível.

Crasso olhou para o flanco direito, onde a cavalaria de duas legiões lutava para manter o terreno que tinham ganhado no primeiro ataque. Cavalos gritavam de dor e já havia homens se esparramando em volta deles.

- Pompeu, a direita! - gritou ele para o colega.

Pompeu assumiu o risco e mandou um mensageiro para trazer reforços. Era perigoso tirar muitos homens do centro. Se houvesse uma brecha ali, o exército seria cortado ao meio e isso seria o fim. Pompeu descobriu um sentimento de desespero crescendo por dentro. Não havia fim para aqueles escravos. Apesar de toda a habilidade e disciplina dos romanos, não via como lhes trazer a vitória. Seus homens matavam até ficar exaustos, e então eram mortos, repetidamente.

Sinalizou para os cornicens, pedindo outra ordem de manípulo. Tinha perdido a contagem de quantas vezes mandara dar o sinal, e podia imaginar o que seus homens estavam sentindo enquanto voltavam para a frente de batalha antes de ter se recuperado totalmente da última vez. Precisava manter os intervalos curtos, para poupá-los, mas isso significava menos tempo para recuperar as forças.

Pompeu e Crasso se viraram quando veio um grito de alerta da direita. Os escravos tinham passado pelos últimos cavaleiros e estavam se adiantando num jorro, criando pânico nas fileiras romanas enquanto ameaçavam envolver o flanco ou mesmo atacar por trás. Pompeu xingou e chamou outro cavaleiro.

- Direita, recuar em ordem de batalha. Esquerda, se adiantar. Temos de virar todo o campo antes de eles nos rodearem. Os cornicens toquem "Roda à direita". Vá.

O homem galopou e os dois generais abandonaram a dignidade levantando-se nas selas para ver melhor a ação que se desenvolvia. As mãos de Pompeu estavam com cãibras e brancas nas rédeas, e ele sabia que toda a batalha dependia dessa decisão. Se a retirada se transformasse em pânico, o exército escravo se derramaria em volta e cercaria os romanos. Sua boca estava seca pelo ar frio enquanto ele respirava sibilando.

As ordens demoraram muito tempo para chegar a toda a linha de batalha. Gritos ecoaram perto, e a direita começou a ceder em ordem, mudando a linha para uma diagonal vermelha pela planície. Pompeu apertou os punhos ao ver a esquerda pressionando para compactar os escravos.

Toda a batalha começou a girar, e Pompeu estava frenético de preocupação. Era o único modo de salvar o flanco direito que estava sendo suplantado, mas à medida que os milhares de soldados giravam, os escravos ficariam livres para correr e ir em direção a Arimino, se seus comandantes vissem essa chance.

 

Espártaco se levantou na sela de seu cavalo e xingou baixinho ao ver que as legiões estavam se sustentando. A princípio achou que Antonido estava certo e que a ala seria dominada, mas de algum modo eles haviam girado juntos, oito legiões se movendo como uma só para virar a batalha na direção leste. Assobiou baixinho em admiração, ao mesmo tempo em que via os sonhos virarem pó no campo. As legiões eram tudo que ele sabia que elas poderiam ser, e por um momento lembrou-se de seus dias como soldado nelas. Tinham sido uma grande irmandade antes de ter azedado para ele. Uma briga de bêbados e um oficial morto, e nada mais fora o mesmo. Ele fugira porque sabia que iriam colocá-lo diante dos amigos do homem e condená-lo à morte. Não havia justiça para alguém como ele, pouco mais do que uma criança quando fora recrutado na Trácia. Para eles, Espártaco não era um verdadeiro romano, e era pouco melhor do que um animal. Aquelas lembranças eram diferentes e amargas: captura e escravidão, depois a escola de gladiadores onde eram tratados como cães violentos que deviam ser acorrentados e espancados até ficar ferozes.

- Monturi te salutamus. Nós, que vamos morrer, te saudámos - sussurrou consigo mesmo enquanto olhava seu povo morrer.

Olhou o sol e viu que ele havia subido para além do meio-dia, frio e pálido atrás das nuvens. Os dias mal tinham começado a ficar mais longos, e iriam se passar apenas mais algumas horas até escurecer.

Olhou a batalha por longo tempo, esperando ver as legiões serem partidas, mas elas se mantinham fortes contra a multidão, e desesperou. Finalmente assentiu consigo mesmo. Quando os romanos recuassem para seus acampamentos para a noite, ele iria para Arimino. Seus homens não comiam há quatro dias, e a cidade romana estava cheia de comida para torná-los fortes de novo.

- Teremos de correr, Crixo - murmurou ele.

Seu amigo estava de pé junto de Antonido, segurando as rédeas.

- Eles ainda podem ser derrotados antes do escurecer - respondeu Crixo acidamente.

Antonido resmungou e cuspiu um bolo de catarro no chão, furioso. Tinha lhes prometido uma vitória e sentiu sua influência indo embora junto com o número de mortos.

Espártaco balançou a cabeça.

- Não. Se não os vencemos até agora, eles não correrão de nós. Vão recuar para aquelas fortalezas deles e comer muito bem antes de vir terminar o trabalho amanhã. Não estaremos aqui quando eles fizerem isso.

- Por que eles não se dobram? - perguntou Crixo furioso ao ar.

- Porque, se eles se dobrarem, Roma cai diante de nós - respondeu Antonido rispidamente. - Eles sabem o que está em risco, mas nós ainda podemos vencer. Puxem as linhas de frente para trás e mandem homens descansados. Mandem rodear o flanco esquerdo. Quer eles corram ou não, podemos deixá-los exaustos até não suportarem mais.

Espártaco olhou enojado para o general romano que seus homens tinham encontrado. Antonido tinha apenas bile por dentro e não parecia perceber que as vidas que ele insistia que jogassem fora eram de amigos e irmãos. O gladiador fechou os olhos por um momento. Todos haviam saudado Antonido quando Crixo o apresentou, vestido com uma armadura tirada de um cadáver romano. Ele havia desfilado como um cãozinho de estimação para os homens, mas suas promessas foram inúteis, e suas táticas inteligentes não passavam de confusão para escravos que nunca tinham segurado uma espada antes da rebelião.

- Nossos homens estão fracos de fome - disse Espártaco. - Vi alguns com a boca verde do capim cozido que comeram. Não podemos sobreviver mais um dia lutando.

- Podemos tentar as passagens para a Gália - começou Crixo.

- Quantos acha que alcançarão as altas passagens vivos? - perguntou Espártaco. - As legiões vão nos caçar antes de termos saído das planícies. Não, esta chance desapareceu. Tem de ser Arimino. Vamos pegar a comida de que precisarmos e recuperar as forças. De algum modo, vamos ficar à frente deles.

- Se pudermos arranjar navios, eles talvez nos deixem ir-disse Crixo, olhando o amigo.

- Seria necessária uma frota - respondeu Espártaco, pensando. Ele ansiava por ir para longe do poder de Roma, amargo com o conhecimento de que deveria ter levado seus homens para o outro lado das montanhas. Deixá-los ter seu pouco de terra. Ele se contentaria em ser livre.

Antonido controlava o mau humor com dificuldade. Eles o haviam tirado da escravidão para ser morto por seu próprio povo. Nenhum dos dois percebia que Roma jamais perdoaria um general que deixasse os escravos escapar. Seria uma vergonha que duraria séculos, e cada escravo no país pensaria em se rebelar contra os senhores. A única liberdade que veriam seria resultado de vencer as legiões na planície, não importando quantas vidas fossem necessárias.

Antonido fez uma promessa silenciosa de escapar antes do fim. Não seria obrigado a desfilar em Roma como um troféu. Não podia suportar a idéia de um Cato triunfante condenando-o com um gesto das mãos gordas.

 

- Os homens estão exaustos - disse Crasso. - Você deve soar a retirada antes que eles sejam dominados.

- Não. Eles vão agüentar - disse Pompeu, franzindo a vista por causa do sol que baixava. - Mande os extraordinarii prepararem os acampamentos para a noite. Vamos "recuar quando a luz sumir, mas se eu ordenar agora, os escravos pensarão que venceram as únicas legiões que existem entre este lugar e Roma. Elas devem agüentar.

Crasso torceu as mãos numa agonia de decisão. As legiões estavam sob seu comando, e se Pompeu esperasse demais para chamá-las de volta, isso poderia acabar com tudo pelo qual tinham trabalhado a vida inteira. Se as legiões caíssem, Roma cairia também.

Júlio sugou o ar para os pulmões de chumbo enquanto esperava que as trom-betas soassem o próximo ataque. O sangue sobre seu corpo havia secado há muito, e caía em crostas escuras quando ele se movimentava. Sangue velho. Olhou cauteloso para os braços e levantou uma das mãos, estreitando o olhar para o tremor de exaustão que via ali.

Outro homem ofegou ao seu lado e Júlio olhou-o: tinha lutado bem no último ataque, gastando as forças com a confiança de um jovem imortal. Ele ergueu os olhos e viu Júlio observando-o, e uma sombra passou por seus olhos verdes. Não havia palavras a ser ditas. Júlio imaginou se o filho de Cato sobreviveria à batalha. Se sobrevivesse, Cato jamais entenderia as mudanças no rapaz.

Atrás dele, Ciro escarrou e cuspiu para tirar o sangue da garganta. Seus lábios estavam partidos e inchados, e os dentes estavam vermelhos quando ele riu dolorosamente para o general.

Estavam todos feridos e exaustos. Júlio se encolhia a cada movimento. Alguma coisa tinha se distendido na cintura, às costas, quando ele empurrou um morto para longe. O lugar lançava fagulhas de dor até os ombros, e tudo que ele queria era dormir. Olhou para Brutus, que fora derrubado inconsciente por um escravo furioso. Apenas um contragolpe rápido havia recuperado o terreno e seu corpo. Ciro o havia arrastado para trás, pelas fileiras, para se recuperar, e à medida que o céu ia escurecendo ele havia se juntado de novo aos outros, mas se movia mais devagar e sua habilidade tinha praticamente desaparecido. Júlio imaginou se o crânio dele teria sido rachado pelo golpe, mas não podia mandá-lo de volta ao acampamento. Precisavam de cada homem que pudesse permanecer de pé.

Todos estavam além da exaustão e da dor, penetrando numa espécie de entorpecimento que deixava a mente livre para vaguear. As cores empalideciam e eles perderam a noção do tempo, vendo-o ficar mais lento e depois correr até uma velocidade apavorante, repetidamente.

Pulando de susto, Júlio escutou o grito da trombeta mais próxima. Cambaleou para mais um período na linha de frente e empurrou a mão de Ciro quando ela tocou seu braço.

- Por hoje chega, general - disse Ciro, firmando Júlio com um dos braços. - Não há mais luz. Esse é o chamado de volta ao acampamento.

Júlio olhou-o inexpressivo por um momento, depois assentiu cansado.

- Diga a Brutus e Rênio para formar as linhas e retirar em ordem. Diga aos homens para ficar atentos a um ataque súbito.

Suas palavras saíram engroladas de cansaço, mas ele ergueu a cabeça e sorriu para o homem que tinha encontrado em outro continente, outro mundo.

- É melhor do que a fazenda, Ciro?

O grandalhão olhou os corpos em volta. Tinha sido o dia mais duro de sua vida, mas ele conhecia os homens ao redor melhor do que podia explicar. Na fazenda sentia-se sozinho.

- Sim, senhor - disse ele, e Júlio pareceu entender.

 

Suetônio se encostou na cerca da floresta. No limite de sua visão, viu os escravos do pai trabalhando sem pressa para arrancar os postes e tirar a divisa. Dentro de algumas horas todos os sinais dela teriam sumido, e Suetônio franziu a testa pousando a cabeça nos braços. A casa que tinha planejado seria linda, erguendo-se acima das árvores na terra de César, olhando morro abaixo. Ele teria uma varanda para sentar-se nas noites quentes, com uma bebida fresca. Tudo isso tinha desaparecido com a súbita fraqueza do pai.

Pegou uma lasca do poste, pensando na quantidade de pequenos insultos que Júlio o obrigara a aceitar quando eram prisioneiros e com os Lobos na Grécia. Sabia que, se Júlio não estivesse lá, os outros homens o teriam aceitado mais facilmente, talvez até mesmo concordando com seu comando no fim, como tinham feito com Júlio. Ele teria entregado o corpo de Mitrídates ao legado Lépido, compartilhando uma refeição com o sujeito, em vez de correr para o porto praticamente sem pausa. O Senado o teria nomeado tribuno, e seu pai sentiria orgulho.

Em vez disso tinha apenas um resgate que pertencia ao pai e algumas cicatrizes para mostrar, por tudo que havia suportado. César tinha levado os Lobos para o norte, lisonjeando-os e persuadindo-os a segui-lo enquanto Suetônio era deixado para trás, sem ter ao menos o pequeno consolo de ver sua casa construída.

Quebrou a lasca com uma raiva súbita, encolhendo-se quando parte dela cortou a pele da mão. Tinha se inscrito para ir ao norte com as seis legiões, mas nenhum dos legados o aceitara. Não havia dúvida de quem tinha espalhado a notícia. Sabia que o seu pai poderia ter cobrado favores para que aceitassem o filho, mas acabou não pedindo. A vergonha de como fora tratado queimava no silêncio da floresta.

Outro movimento atraiu seu olhar e ele levantou a cabeça para ver. Quase I esperava que algum escravo de seu pai estivesse evitando o trabalho. Seus açoites serviriam um pouco para romper a letargia. Parecia sentir a vida com mais força nas veias quando chegava a hora de punir os preguiçosos. Sabia que sentiam medo dele, mas isso estava certo.

Respirou fundo para rosnar uma ordem, esperando vê-los pular. Então se imobilizou. Os homens estavam se esgueirando através do mato baixo e denso do outro lado da cerca. Não eram seus escravos. Muito lentamente baixou a cabeça e olhou em silêncio enquanto passavam não muito longe, sem notar sua presença.

Suetônio sentiu o coração martelar num medo súbito, e um rubor lhe veio ao rosto enquanto tentava respirar sem fazer barulho. Eles ainda não o tinham visto, mas havia alguma coisa muito errada naquilo. Eram três homens movendo-se juntos, e um quarto seguia a alguma distância, atrás. Suetônio quase tinha se levantado para olhar depois da passagem do primeiro grupo, e somente algum instinto o alertara a ficar imóvel enquanto eles desapareciam por entre as árvores. Então o quarto homem aparecera, movendo-se com cautela. Vestia roupas escuras ásperas como os outros e andava com passo leve por cima da madeira morta e do musgo, mostrando habilidade de caçador com seu silêncio.

Suetônio viu que ele também estava armado, e subitamente pensou que o sujeito poderia vê-lo através das sombras. Queria correr ou gritar chamando os escravos. Visões da rebelião no norte lhe vieram, e sua mente se encheu com imagens de facas penetrando em seu corpo, vividas e terríveis. Tinha visto muitos morrerem, e era fácil imaginar homens se virando contra ele como animais. Sua espada estava ao lado do corpo, mas ele manteve as mãos imóveis.

Prendeu o fôlego enquanto o último homem passava. Este pareceu sentir um olhar fixo nele e hesitou, examinando as árvores em volta. Não viu Suetônio, e depois de um tempo relaxou e foi em frente, desaparecendo tão completamente quanto os companheiros.

Suetônio soltou o fôlego devagar, ainda não ousando se mover. Eles iam na direção da propriedade de César, e seus olhos ficaram cruéis quando percebeu. Não iria denunciá-los. Aquilo estava nas mãos dos deuses, fora das suas.

Sentindo que boa parte da dor e da amargura tinha sumido, levantou-se e esticou as costas. Quem quer que fossem os caçadores, desejou-lhes sorte enquanto voltava até onde os escravos estavam derrubando a cerca. Deu ordens para que pegassem as ferramentas e voltassem à propriedade do pai, instintivamente querendo estar longe da floresta nos próximos dias.

Os escravos viram que seu humor tinha ficado mais leve e trocaram olhares, imaginando que coisa maligna ele teria visto para ficar tão animado, enquanto punham os fardos nos ombros e voltavam para casa.

Júlio estava exausto, xingando baixinho quando tropeçou numa pedra solta. Sabia que se caísse havia a chance de não se levantar, e de ser deixado na estrada.

Não podiam parar, com o exército de escravos correndo à frente em direção a Arimino. A fuga do campo no escuro tinha lhes garantido meio dia de dianteira, e Pompeu dera a ordem para alcançá-los e derrubá-los. O espaço entre os dois grupos não tinha diminuído em sete dias, com as legiões perseguindo um exército muito mais descansado. Os escravos arrancavam comida da terra enquanto passavam como gafanhotos, e as legiões marchavam na trilha de sua devastação. Júlio sabia que eles podiam perder muitos soldados a mais, porém se os escravos virassem para o sul, Roma estaria nua pela primeira vez na História.

Fixou os olhos no legionário à sua frente. Estivera olhando para aquelas costas o dia inteiro, e cada detalhe minúsculo, desde o cabelo grisalho que se espetava sob o elmo até as manchas de sangue no tornozelo do sujeito, onde ele havia pisado durante um quilômetro e meio para romper as bolhas. Alguém tinha urinado na frente, escurecendo o pó da estrada. Júlio pisou no lugar com indiferença, imaginando quando teria de fazer o mesmo.

Ao lado Brutus pigarreou e cuspiu. Não havia nada de sua energia usual aparecendo. Ele estava curvado sob o peso da mochila, e Júlio sabia que seus ombros estavam em carne viva. Esfregava gordura neles à noite e esperava estoicamente a formação de calos.

Não tinham falado desde o alvorecer, já que a batalha contra a exaustão e a estrada prosseguia sem demonstração pública. Para a maioria era a mesma coisa. Marchavam frouxos e de boca aberta, com toda a consciência estreitada até um ponto logo à frente. Muitas vezes, quando as trombetas soavam para parar, homens tropeçavam nos da frente e praticamente acordavam do sono enquanto eram xingados ou levavam um tapa.

Júlio e Brutus mastigavam pão rançoso e carne que lhes foram entregues sem que a marcha parasse. Enquanto tentavam encontrar saliva para engolir, passaram por outro soldado caído e se perguntaram se eles também seriam deixados na estrada.

Se Espártaco queria exaurir as legiões numa perseguição, não poderia ter feito melhor, e sempre havia o conhecimento de outra batalha quando os escravos e gladiadores finalmente encontrassem um lugar para ficar de pé. Somente a morte pararia as legiões.

Caberá tossiu pó da garganta e Júlio olhou para o velho, maravilhando-se de novo por ele não ter caído com os outros. As rações fracas e os quilômetros tinham reduzido ainda mais seu corpo magro, de modo que ele parecia quase esquelético. Suas bochechas estavam fundas e escuras, e a marcha havia roubado seu humor e sua conversa. Como Brutus e Rênio atrás, ele não tinha falado desde o momento em que foram forçados a ficar de pé pelos exaustos optios, usando os cajados em oficiais e soldados sem interesse, os rostos tão finos e cansados quanto os do resto.

Só tinham permissão de dormir durante quatro horas no escuro. Pompeu sabia que poderiam encontrar Arimino em chamas, mas os escravos mal poderiam parar antes que as legiões estivessem no horizonte, pressionando-os. Não podiam permitir que Espártaco se reagrupasse. Se fosse necessário, iriam persegui-lo até o mar.

Júlio mantinha a cabeça erguida com dificuldade, sabendo que era visto pela Primogênita ao redor. A legião de Lépido marchava ao lado deles, apesar de haver uma diferença sutil entre os grupos. A Primogênita não tinha fugido, e cada soldado sabia que a punição por esse fracasso ainda teria de ser enfrentada. O medo aparecia nos olhos dos homens de Lépido, e minava sua vontade enquanto eles preenchiam as horas com preocupação silenciosa. Não havia nada que Júlio e Brutus pudessem fazer por eles. A morte de Lépido só servia até certo ponto para reparar o momento de pânico na batalha.

Os comicens tocaram ao chegarem ao local de um antigo acampamento. Era duas horas mais cedo do que o programado, mas Pompeu obviamente decidira usar a barreira que tinham erguido antes, precisando apenas de um pouco de trabalho para firmar a terra caída. Assim que chegaram dentro, os homens caíram onde estavam. Alguns ficaram deitados de lado, exaustos demais para tirar as mochilas. Amigos desamarravam uns aos outros, e as rações cada vez menores foram tiradas de sacos e passadas pelas fileiras até os cozinheiros, que acenderam fogueiras nas cinzas das antigas. Os homens queriam dormir, e primeiro precisavam comer, de modo que a refeição de trigo e carne-seca foi esquentada e mandada em pratos de ferro o mais rápido possível. Os legionários enfiaram a comida na boca sem interesse, depois desenrolaram os finos cobertores de campanha e se deitaram.

Júlio tinha acabado de comer e estava lambendo os dedos para tirar cada migalha da papa de que seu corpo precisava tão desesperadamente quando ouviu um comicen tocar uma nota de alerta ali perto. Pompeu e Crasso estavam se aproximando de sua posição.

- Levantem-se! Ponham os homens de pé. Centuriões, formem a Primogênita em quadrados para inspeção. Depressa!

Odiava ter de fazer isso, vendo os homens se arrastar para ficar de pé, atordoados. Alguns tinham dormido e se levantavam frouxamente, os braços pendendo e com apenas uma consciência opaca nos olhos. Os centuriões gritavam e puxavam, até que alguma semelhança de fileiras foi produzida. Não havia gemidos ou reclamações; eles não tinham energia nem força de vontade para resistir a qualquer coisa que lhes fizessem. Ficavam onde eram postos e esperavam a ordem para dormir de novo.

Pompeu e Crasso vieram pelo acampamento, trazendo os cavalos até perto de Júlio antes de desmontar. E não era mais do que justo, já que ambos pareciam mais descansados do que os legionários em volta, mas havia um ar de seriedade tensa nos generais, que acordou alguns dos homens de Lépido para o perigo, fazendo-os se entreolhar nervosos. Pompeu se aproximou de Júlio, que fez uma saudação.

- A Primogênita está a postos, senhor - disse Júlio.

- É o seu outro comando que me traz aqui, César. Diga à Primogênita para descansar e mande os homens de Lépido formarem filas no lugar dela.

Júlio deu as ordens e os três esperaram enquanto os soldados iam rapidamente para as posições. Mesmo depois das perdas que tinham sofrido no pânico da batalha, ainda havia mais de três mil sobreviventes. Alguns estavam feridos, mas os em pior estado já tinham sido deixados na estrada há dias. Pompeu montou em seu cavalo para se dirigir a eles, mas, antes de começar, inclinou-se para Júlio e falou em voz baixa:

- Não interfira, Júlio. A decisão foi tomada.

Júlio devolveu o olhar interrogativo impassivelmente, depois assentiu. Pompeu se aproximou de Crasso e juntos eles fizeram os animais trotar até a primeira fila dos homens reunidos.

- Centuriões, avancem! - gritou Pompeu. Em seguida levantou a cabeça para que sua voz fosse o mais longe possível. - Esta legião tem uma vergonha que deve ser extirpada. Não pode haver desculpa para a covardia. Ouçam agora a punição que vão receber.

"Cada décimo homem da fila será marcado pelos centuriões. Ele morrerá nas mãos dos outros. Vocês não usarão espadas, vão esmagá-los e espancá-los até a morte com punhos e cajados. Vão derramar o sangue dos seus amigos deste modo, e sempre se lembrarão. Um décimo de vocês morrerá neste dia. Centuriões, iniciem a contagem.

Júlio ficou olhando horrorizado enquanto os centuriões gritavam os números. A medida que eles marchavam entre as fileiras, os homens em volta do infeliz se encolhiam de medo enquanto os oficiais iam chegando perto, depois ofegavam quando a mão caía num ombro diferente. Alguns gritavam, por si ou pelos amigos, mas não haveria misericórdia. Crasso e Pompeu observaram todo o processo com um desdém rígido.

Demorou menos de uma hora, mas no fim trezentos homens estavam fora de forma. Alguns choravam, mas outros olhavam inexpressivos para o chão, incapazes de entender o que acontecia, por que tinham sido escolhidos para morrer.

- Lembrem-se disso! - gritou Pompeu aos homens. - Vocês fugiram de escravos de um jeito que nenhuma legião fugiu há gerações. Larguem as espadas e terminem sua tarefa.

As fileiras se dissolveram quando cada homem separado foi cercado por nove de seus amigos e irmãos. Júlio ouviu um deles murmurando um pedido de desculpas antes de dar o primeiro soco. Foi pior do que qualquer coisa que ele já vira. Ainda que os optios tivessem cajados, os soldados comuns tinham apenas os punhos para esmagar os rostos e os peitos de pessoas que conheciam há anos. Alguns soluçavam enquanto golpeavam, os rostos retorcidos como de crianças, mas nenhum se recusou.

Demorou longo tempo. Alguns dos soldados espancados morreram rapidamente, com a garganta esmagada, mas outros se demoraram e demoraram, estremecendo e gritando num coro terrível que fez Brutus estremecer enquanto olhava, hipnotizado pela confusão de homens com as mãos sangrentas, chutando e dando socos selvagemente. Brutus balançou a cabeça, incrédulo, depois desviou o olhar, enjoado. Viu que Rênio estava parado rigidamente, com o rosto empalidecido.

- Nunca pensei que veria isso de novo - murmurou Rênio sozinho. - Pensei que isso havia morrido há muito tempo.

- Tinha morrido - disse Júlio categoricamente. - Parece que Pompeu fez reviver.

Ciro olhava aterrorizado, com os ombros frouxos. Olhou para Júlio com ar interrogativo, mas não havia palavras para ele.

Júlio ficou olhando enquanto os últimos socos eram dados e os centuriões verificavam cada cadáver. Os homens recuaram, com a energia desaparecendo enquanto voltavam frouxamente para as fileiras. Os corpos se espalhavam diante deles em círculos de grama sangrenta, e muitos dos vivos tinham as manchas das execuções, de pé com a cabeça baixa, sofrendo.

- Se estivéssemos em Roma, eu ordenaria que vocês fossem debandados e proibidos de usar armas - rugiu Pompeu no silêncio. - Como a coisa está, as circunstâncias talvez ainda os salvem.

Ele olhou para Crasso, e o senador se remexeu na sela. Júlio franziu a testa subitamente. Pompeu dar o lugar a Crasso significava que ele precisava do peso da autoridade do Senado por trás do que seria dito. Apesar de todas as manobras dos dois, apenas Crasso tinha isso.

O homem mais velho pigarreou para falar.

- Minha ordem é que uma nova legião seja formada, para expurgar a mancha de Lépido. Vocês vão se unir à Primogênita e criar uma nova história. Seus padrões serão mudados. Vocês terão um novo nome, intocado pela vergonha. Nomeio Caio Júlio César para comandá-los. Falo com a autoridade do Senado.

Crasso virou seu cavalo e trotou até onde Júlio estava parado, olhando-o furioso.

- Então eles farão parte da Primogênita? - perguntou Júlio asperamente.

Crasso balançou a cabeça.

- Sei o que isso fará com você, Júlio, mas é o melhor modo. Se eles tomarem armas para você, sempre estarão separados, como estão agora. Um novo nome limpará o campo para eles... e para você. Pompeu e eu concordamos. Obedeça às ordens. A Primogênita termina hoje.

Por um momento Júlio não conseguiu falar, de raiva, e Crasso o observou atentamente, esperando uma resposta. O rapaz entendia o que eles estavam tentando fazer, mas mesmo assim a lembrança de Mário assombrava seus pensamentos. Entendendo isso, Crasso se inclinou e falou baixo, para não ser ouvido por outros:

- Seu tio entenderia, Júlio. Tenha certeza.

Júlio trincou o maxilar e assentiu rapidamente, incapaz de confiar no que falaria. Devia demais àquele homem. Crasso se recostou, relaxando.

- Vai precisar de um nome para eles. Pompeu pensou que deveria ser...

- Não - interrompeu Júlio. - Eu tenho um nome.

Crasso levantou as sobrancelhas, surpreso, enquanto Júlio andava em volta de seu cavalo e encarava os homens ensangüentados que iria comandar. Respirou fundo e lançou a voz para ser ouvido pelo maior número possível.

- Vou tomar os seus juramentos, se vocês fizerem. Lembro-me de que vocês não desertaram no campo, e se juntaram quando eu pedi, mesmo com Lépido morto. - Ele deixou o olhar cair sobre os cadáveres espalhados nas fileiras. - O preço do fracasso foi pago e jamais será mencionado de novo a partir de hoje. Mas ele deve ser lembrado.

O silêncio era terrível, e o ar cheirava a sangue.

- Vocês estão marcados com a vida de um em cada dez homens. Vou chamar a legião de Décima, para que nunca esqueçam o pagamento tomado e nunca se deixem quebrar.

Com o canto do olho Júlio viu Crasso fazer uma careta diante do nome, mas sabia desde o primeiro instante que era a escolha certa. O nome iria sustentá-los através do medo e da dor quando outros perdessem a coragem.

- Primogênita! Este é o meu último comando para vocês. Formem fileiras com seus irmãos. Olhem o rosto deles e aprendam seus nomes. Saibam disso. Quando homens souberem que a Décima está contra eles, terão medo, porque seus membros pagaram as dívidas com o próprio sangue.

Enquanto as fileiras se recompunham, Júlio voltou até Crasso e Pompeu se juntou ao senador. Os dois generais olharam para Júlio com interesse contido.

- Você falou... bem com eles, Júlio - disse Pompeu. Em seguida balançou a cabeça ligeiramente ao ver a Primogênita ser recebida nas fileiras. Tinha pensado que Júlio resistiria à ordem por causa do nome da Primogênita e estivera preparado para forçar a questão. Observar a facilidade com que o jovem comandante assimilara a novidade e a fizera funcionar para ele foi uma surpresa. Pela primeira vez Pompeu teve um vislumbre de como o jovem fora bem-sucedido na Grécia contra Mitrídates e os piratas. Ele parecia saber quais eram as palavras a usar, e sabia que elas podiam morder com mais força do que as espadas.

- Gostaria de estender o tempo no acampamento antes de irmos em frente, senhor. Isso me daria a chance de falar com os homens, além de deixar que eles terminem de comer e durmam um pouco.

Pompeu sentiu-se tentado a recusar. Afora a necessidade premente de perseguir os escravos, seus instintos o alertavam a não tornar as coisas fáceis demais para o jovem que podia falar direto aos corações dos soldados e num instante retirá-los do sofrimento. Então cedeu. César precisaria de cada vantagem, se quisesse ressuscitar das cinzas a dignidade da nova legião.

- Pode dizer a eles que dei mais duas horas, a seu pedido, Júlio. Esteja pronto para marchar ao pôr-do-sol.

- Obrigado, senhor. Arranjarei para que os homens tenham novos escudos e armaduras assim que terminarmos com esta rebelião.

Pompeu assentiu distraidamente, sinalizando para Crasso se afastar até a posição de comando mais adiante, na frente da coluna. Júlio ficou olhando-os ir, o rosto ilegível. Virou-se para Brutus e encontrou Caberá com ele, e viu alguma coisa da antiga vida e do interesse no rosto do curandeiro. Júlio deu um sorriso tenso.

- Brutus, faça com que fiquem à vontade e terminem de comer. Depois quero falar com o maior número possível antes de dormirem. Mário teria aprendido o nome deles. Eu também aprenderei.

- Dói perder a Primogênita - murmurou Brutus. Júlio balançou a cabeça.

- Ela não está perdida. O nome permanecerá nas listas do Senado. Vou me certificar disso. Pompeu e Crasso estavam certos em fazer um recomeço, mas realmente dói. Venham, senhores, vamos andar pela Décima. Está na hora de abandonar o passado.

Arimino estava sob um cobertor de fumaça. O exército de escravos tinha passado por ela como gafanhotos, pegando tudo que poderia ser comido e impelindo ovelhas e gado bovino diante deles na marcha. Enquanto os cidadãos se escondiam atrás das portas trancadas, Espártaco e seu exército andavam lentamente pelas ruas silenciosas com o sol lançando sombras fracas atrás. Incendiaram os depósitos de grãos e os mercados abandonados, sabendo que seus perseguidores poderiam perder tempo apagando o fogo antes de prosseguir. Com as legiões ainda implacáveis em seus calcanhares, cada hora era crucial.

Os guardas do tesouro da cidade tinham fugido, e Espártaco ordenou que o ouro fosse carregado em mulas para a jornada em direção ao sul. Era uma fortuna resultante do comércio, e o sonho de uma frota de navios para levá-los à liberdade ficou real assim que os gladiadores viram os caixotes de moedas.

As docas estavam sem navios. Os cascos escuros se mantinham longe, no mar, de onde era possível ver a horda de escravos saqueando a cidade sob colunas de fumaça e cinzas. Os navios estavam cheios de gente silenciosa, só espiando. Espártaco foi até a beira do cais e olhou para eles.

- Vejam quantos eles carregam, Crixo. Temos ouro suficiente para comprar passagem para todos nós.

- Aqueles preciosos mercadores não vão se mexer para nos salvar - respondeu Crixo. - Têm de ser os piratas. Os deuses sabem que eles têm navios suficientes, e além disso cuspir no olho de Roma vai lhes dar prazer.

- Mas como entrar em contato com eles? Devemos mandar cavaleiros a cada porto. Tem de haver um modo de alcançá-los.

Espártaco olhou por sobre a água, para os rostos pálidos amontoados nos navios. Era possível, se eles pudessem falar com os inimigos de Roma.

Antonido chegou ao seu lado, franzindo a vista por sobre as ondas, com um riso de desprezo.

- Corajosos cidadãos romanos se escondendo de nós como crianças - falou.

Espártaco deu de ombros, cansado da amargura e do rancor dele.

- Com sessenta ou setenta navios desses podemos deixar as terras romanas. Uma frota comprada com o próprio ouro deles parece justiça.

Antonido olhou os dois gladiadores com mais interesse. Sentira-se tentado a escapar no porto, tirando a armadura e se juntando à multidão que sem dúvida se reuniria assim que os escravos tivessem ido embora. Então viu o ouro que eles haviam apanhado. O bastante para lhe comprar uma propriedade na Espanha ou uma vasta fazenda na África. Havia muitos lugares onde se esconder, lugares que não abrigavam um exército. Sabia que, se ficasse, a confiança nele lhe daria a chance de que precisava. Será que Pompeu o perdoaria se ele trouxesse a cabeça de Espártaco? Não, tinha encarado o tribunal uma vez, e bastava. Melhor simplesmente fugir para um lugar onde pudesse recomeçar.

Espártaco se virou, dando as costas para a água.

- Mandaremos homens a cada porto com algumas moedas, para provar as promessas. Fale com eles, Crixo. Alguém deve saber como encontrar os piratas. Informe o plano a eles. Isso vai levantar os ânimos da marcha para o sul.

- Então estamos indo para o sul, na direção de Roma? - perguntou Antonido incisivamente.

Uma raiva terrível franziu as feições do gladiador por um momento, e Antonido recuou um passo enquanto ele respondia.

- Nunca deveríamos ter dado as costas para as montanhas, mas agora precisamos ficar à frente deles. Vamos deixar os desgraçados se arrebentarem nos perseguindo. Lembre-se, éramos nós que cuidávamos dos campos e trabalhávamos durante cada hora de luz em nome da riqueza deles. Isso nos deixou fortes. Vejamos em que tipo de situação eles ficam quando virmos sua amada cidade.

Enquanto falava, ele espiou o sol no oeste, os olhos brilhando dourados imaginando as legiões que os perseguiam. Seu rosto estava amargo, e Antonido teve de olhar para o outro lado.

 

Quando a lua subiu, Alexandria estava parada na muralha acima da grande cidade de Roma com a chuva batendo nas pedras. Tochas tinham sido acesas ao redor de toda a cidade, e elas estalavam e tremiam, dando apenas um pouco de luz aos defensores. Quando as trombetas de alerta tinham soado, todos vieram, pegando ferramentas e facas para sustentar a muralha contra a massa silenciosa que passava pisando forte no escuro, transformando o Campo de Marte num lamaçal.

Tabbic segurava seu martelo de ferro com as mãos tensas, o rosto fechado e pálido à luz trêmula. Não havia hesitação nele, ou em nenhum dos outros, viu Alexandria. Se os escravos os atacassem eles lutariam tão ferozmente quanto as legiões. Olhou para um lado e outro da fila, para os rostos que espiavam o escuro, e imaginou a que se devia a calma deles. Famílias ficavam juntas em silêncio, até mesmo as crianças se imobilizavam de espanto diante do exército que passava. A lua produzia apenas um pouquinho de luz, mas era o bastante para mostrar os rostos brancos dos escravos que olhavam para a cidade que decretara sua morte. Parecia não haver fim para eles, e a lua chegou ao zênite e começou a cair antes que os últimos maltrapilhos desaparecessem na noite.

A tensão finalmente se aliviou, depois de horas de ansiedade dolorosa. Os mensageiros das legiões tinham dado a notícia de que elas estavam logo atrás, e o Senado ordenara que o povo ficasse nas muralhas até estar em segurança, estabelecendo o exemplo ocupando lugares nas grandes guaritas com as espadas de seus pais e seus avós.

Alexandria sugou o ar frio, sentindo-se viva. A chuva tinha começado a enfraquecer, e Roma tinha sobrevivido. Súbitos sorrisos e gargalhadas mostraram que todos sentiam o mesmo, e por um momento ela soube que eles compartilhavam uma ligação no escuro, mais forte do que quase qualquer outra na vida. No entanto se sentia dividida. Tinha sido escrava, como aqueles que sonhavam em se erguer numa multidão para derrubar suas preciosas casas e muralhas.

- Todos eles serão mortos? - murmurou ela, quase consigo mesma. Tabbic se virou rapidamente, com os olhos sombrios.

- Serão. Os Senadores conheceram o medo, e não perdoarão um único escravo. As legiões farão disso um exemplo sangrento antes do fim.

 

Pompeu deixou as tochas queimando uma luz fraca em sua tenda enquanto lia os despachos de Roma, que estava a menos de cinqüenta quilômetros ao sul. A chuva tamborilava na lona da tenda de comando e pingava em alguns lugares, encharcando o chão. A comida estava intocada na mesa enquanto ele lia e relia cada mensagem. Crasso teria de ser informado.

Depois de um tempo se levantou para andar de um lado para o outro e mal notou quando uma das tochas estremeceu e se apagou. Pegou outra no suporte e segurou-a para iluminar um mapa que cobria toda a parede da tenda. Manchas de umidade escura apareciam no pergaminho, e ele percebeu que teria de tirá-lo dali se a chuva continuasse. Roma era um círculo minúsculo na pele grossa, e em algum lugar ao sul os escravos continuavam seguindo para o mar. Olhou o símbolo da cidade, sabendo que tinha de tomar uma decisão antes da chegada de Crasso.

Ao redor, apenas sentinelas se moviam no acampamento silencioso, num sofrimento úmido. O Senado mandara suprimentos para eles assim que o exército de Espártaco havia marchado para o sul. Pompeu só podia imaginar o medo nas ruas enquanto o mar de escravos passava, mas os portões tinham sido fechados contra eles.

Sentiu orgulho de seu povo quando soube: os velhos e os jovens, mulheres e escravos leais prontos para lutar. Até os senadores haviam se armado como tinham feito há séculos para defender a cidade com a vida. Isso lhe dava esperança.

Um murmúrio de senhas do lado de fora revelou a aproximação de Crasso, que olhou em volta surpreso enquanto entrava. Usava uma pesada capa de couro sobre a armadura e puxou o capuz para trás, espalhando gotas.

- Noite maligna - murmurou. - Quais são as notícias? Pompeu parou e se virou para ele.

- Parte delas é... medonha. Mas isso deve esperar. Há quatro legiões no litoral, que acabaram de chegar da Grécia. Vou me encontrar com elas e trazê-las.

Crasso assentiu cauteloso.

- O que mais, Pompeu? Você poderia mandar os extraordinarii até eles, com nossos selos e ordens. Por que tem de ir?

Pompeu fez uma careta nas sombras.

- O homem que matou minha filha foi encontrado. Os homens que deixei para caçá-lo estão vigiando-o agora. Vou parar na cidade antes de encontrar as legiões que vêm do oeste. Terão de seguir sem mim até que isso esteja terminado.

Crasso pegou um círio e uma jarra de óleo na mesa e acendeu de novo as lâmpadas, com a mão tremendo ligeiramente enquanto se concentrava. Finalmente sentou-se e encarou Pompeu.

- Se eles se virarem para fugir, eu não poderei esperar você - falou. Pompeu balançou a cabeça.

- Então não os force a se virar. Dê-lhes espaço para correr, e em alguns dias, uma semana, eu estarei de volta com homens descansados para terminar essa caçada. Não se arrisque a perder tudo, meu amigo. Apesar de toda a sua habilidade no Senado, você não é general. E sabe disso tanto quanto eu.

Crasso escondeu a raiva. Eles sempre o viam como o mercador, o emprestador, como se houvesse algum grande segredo nas legiões que apenas os poucos escolhidos poderiam entender. Como se houvesse alguma vergonha em sua riqueza. Podia ver que Pompeu estava desesperado para não perder esta vitória. Como seria medonho se o indigno Crasso a roubasse!

Quem quer que dominasse a rebelião seria o próximo cônsul, ele tinha certeza. Como o Senado poderia resistir à vontade do povo depois de tantos meses de medo? Não pela primeira vez, Crasso lamentou sua generosidade ao escolher Pompeu no debate do Senado. Se soubesse como a campanha aconteceria, teria se arriscado a comandá-la sozinho.

- Vou guiá-los para o sul - disse ele, e Pompeu assentiu, satisfeito. Em seguida levantou outro despacho da mesa e mostrou a Crasso, virando-o para a luz. Enquanto Crasso lia, Pompeu se levantou e apontou para o mapa,

- Esses relatos sobre uma frota... só pode ser para os escravos. Eu ficaria se não tivesse certeza de que eles iriam continuar em movimento, mas desde que você não os provoque, eles devem ir para o sul ao encontro dos navios. Vou chamar as galeras contra eles. Não haverá fuga por mar, juro.

- Se for isso que eles pretendem - murmurou Crasso, ainda lendo.

- Eles não podem correr para sempre. Devem estar morrendo de fome, não importando o que tenham encontrado para pilhar. Cada dia os enfraquece, se estiverem esperando travar outra batalha conosco. Não, eles estão tentando fugir, e esses relatórios são a chave para isso.

- E quando virem nossas galeras se reunindo para impedir, você virá com as legiões gregas para acabar com eles? - perguntou Crasso, com parte da bile escorrendo no tom de voz.

- Sim. Não desconsidere essa ameaça, Crasso. Se perdermos agora, perderemos tudo. Precisamos das legiões extras que vou trazer. Não entre em batalha até ver minhas bandeiras. Eu preferiria ver você recuar a ser debandado antes da minha chegada.

- Muito bem - respondeu Crasso, ferido pela desconsideração casual de suas capacidades. Se Espártaco atacasse enquanto Pompeu estivesse longe, o momento seria seu, e a glória que o acompanharia. - Sei que virá o mais rápido possível.

Pompeu relaxou ligeiramente, pousando os nós dos dedos na mesa.

- Há outro assunto. Estou partindo imediatamente para a cidade e não sei se deveria guardar isso comigo até termos acabado aqui ou não.

- Conte - disse Crasso em voz baixa.

As tendas de couro estavam pesadas da chuva que rugia num ritmo entrecortado enquanto os homens dormiam a sono solto. Júlio sonhava com sua propriedade no campo. O dia fora cansativo à medida que as legiões forçavam o passo na direção de Roma, e quando chegara a ordem de montar as tendas os legionários mal se incomodaram em retirar as armaduras antes de cair no sono. Os que tinham sobrevivido às marchas forçadas estavam mais endurecidos do que nunca, com a pele tensa sobre os músculos retesados. Tinham visto amigos morrerem na marcha ou simplesmente caírem fora da estrada, com as pernas estremecendo. Alguns tinham sobrevivido para se juntar ao fim da coluna, mas muitos dos feridos morreram, perdendo sangue a cada passo até que os corações doentes finalmente pararam e eles ficaram onde estavam.

Pés que haviam sangrado e se coberto de uma geada marrom estavam com camadas de calos, brancos, de encontro às sandálias. Músculos dis-tendidos tinham se curado, e as legiões se tornaram mais fortes durante a marcha, com as cabeças se erguendo. Na terceira semana, Pompeu tinha ordenado um ritmo mais rápido na Via Flamínia, e eles haviam obedecido sem protesto, sentindo de novo a emoção da caçada.

Júlio murmurou irritado quando alguém sacudiu seu ombro.

- Há um mensageiro de Pompeu, Júlio. Acorde depressa.

Júlio acordou imediatamente, sacudindo a cabeça para afastar o sonho. Olhou para fora da tenda, para o mensageiro carregando o selo de bronze de Pompeu, e se vestiu depressa, deixando a armadura para trás. Assim que saiu, a chuva o encharcou até a pele.

A sentinela da tenda de comando ficou de lado quando Júlio deu a senha do dia. Crasso e Pompeu estavam lá, e ele os saudou, instantaneamente cauteloso. Nas expressões dos dois havia algo estranho, que ele não tinha visto antes.

- Sente-se, Júlio - disse Crasso.

O velho senador não encarou seus olhos enquanto falava, e Júlio franziu a testa ligeiramente, ocupando um banco perto da mesa. Júlio esperou com paciência, e quando os generais não falaram imediatamente, uma pontada de preocupação se revirou em seu estômago. Enxugou a água do rosto com um movimento nervoso. Pompeu serviu uma taça de vinho e a empurrou para o jovem tribuno.

- Nós... eu tenho más notícias, Júlio. Chegaram mensageiros da cidade - começou ele. Sua expressão era desconfortável, e ele respirou lentamente antes de continuar. - Houve um ataque contra sua propriedade. Sua mulher foi morta. Eu soube...

Júlio se levantou num salto.

- Não. Isso deve estar errado.

- Sinto muito, Júlio. A notícia veio junto com os despachos - disse Pompeu. O horror do rapaz arrancou as lembranças dele, de quando havia encontrado a filha no jardim. Entregou o pergaminho a Júlio e ficou olhando em silêncio enquanto este lia, os olhos ficando turvos à medida que ia lendo de novo e de novo. A respiração de Júlio saía entrecortada e suas mãos tremiam tanto que ele mal conseguia ver as palavras.

- Santos deuses, não - sussurrou. - Praticamente não diz nada. E Tubruk? Otaviano? Minha filha não é mencionada. Não há nada além de algumas palavras. Cornélia... - Ele não pôde terminar, e sua cabeça baixou num sofrimento mudo.

- É um despacho formal, Júlio - disse Pompeu. - Pode ser que eles ainda estejam vivos. Haverá outras cartas. - Ele parou um momento, chegando a uma decisão. - Como estamos perto da cidade, entenderei se você tirar uma licença curta para cuidar de suas coisas em casa.

Júlio não pareceu ouvi-lo. Crasso foi até o rapaz que tinha visto tanta tristeza na vida.

- Se quiser voltar à sua propriedade, eu assino as ordens. Está ouvindo?

Júlio ergueu a cabeça e os dois desviaram o olhar, para não ver sua agonia.

- Requisito permissão para levar a Décima - disse Júlio, tremendo.

- Não posso permitir, Júlio - respondeu Pompeu. - Mesmo que pudéssemos abrir mão deles, não posso lhe dar uma legião para usar contra seus inimigos.

- Então só cinqüenta homens. Ou mesmo dez - disse Júlio, a voz embargada.

Pompeu balançou a cabeça.

- Também vou voltar à cidade, Júlio. A justiça será feita, juro, mas será sob o domínio da lei, da paz da cidade. Tudo pelo qual Mário trabalhou. Você voltará comigo dentro de alguns dias para acabar com a rebelião. É o seu dever e o meu.

Júlio se virou como se fosse sair da tenda, mantendo-se imóvel com um imenso esforço. Pompeu colocou a mão em seu ombro.

- A República não pode ser jogada fora quando nos cansamos das restrições, Júlio. Quando minha filha morreu, eu me obriguei a esperar. O próprio Mário disse que a República valia uma vida, você se lembra disso?

- Não a vida dela - respondeu Júlio. Ele respirava em soluços acima dos quais tentava falar, ao mesmo tempo em que eles os rasgavam por dentro. - Ela não fazia parte disso.

Os dois generais trocaram um olhar sobre sua cabeça.

- Vá para casa, Júlio - disse Crasso em voz baixa. - Há um cavalo esperando por você. Brutus comandará a Décima enquanto você estiver fora.

Júlio se levantou finalmente, respirando fundo para encontrar algum fiapo de controle diante de Crasso e Pompeu.

- Obrigado - disse ele, tentando fazer uma saudação.

Ainda segurava o relatório com força, e então notou isso e o colocou no banco antes de sair da tenda e pegar as rédeas do cavalo que lhe fora trazido. Alguma parte dele queria simplesmente atiçar o animal e galopar para fora do acampamento, mas em vez disso girou e foi até onde a Décima estava dormindo nas tendas. Puxou a aba para acordar Brutus, que saiu rapidamente ao ver sua expressão.

- Vou voltar a Roma, Brutus. Cornélia está morta, não sei como. Eu não... entendo.

- Ah, Júlio, não. - Brutus puxou o amigo num abraço, e o contato trouxe um jorro de lágrimas de Júlio. Durante longo tempo eles ficaram juntos, presos no sofrimento.

- Vamos marchar? - sussurrou Brutus.

- Pompeu proibiu - respondeu Júlio, recuando finalmente.

- Mesmo assim, Júlio. Vamos marchar? Diga.

Júlio fechou os olhos um momento, pensando no que Pompeu tinha dito. O cônsul também sofrerá perdas. Será que Júlio poderia ser mais fraco do que ele? A morte de Cornélia o livrara das restrições. Não havia nada que o impedisse de lançar um exército contra Cato e arrancá-lo da carne de Roma. Parte dele queria desesperadamente ver chamas na cidade, cortando o nome e a memória dos silanos para sempre. Cato, Bíbilo, Prando, o próprio Cato. Todos tinham famílias que podiam pagar com sangue pelo que lhe fora tirado.

Ainda havia sua filha, Júlia. O relatório não tinha mencionado a morte dela.

Enquanto pensava em Júlia, as amarras da vida que tinha escolhido voltaram como uma capa envolvendo-o, abafando seu sofrimento. Brutus ainda o olhava atentamente, esperando.

- Não, Brutus, ainda não. Vou esperar, mas há uma dívida de sangue que deve ser paga. Lidere a Décima até eu voltar.

- Vai sozinho? Deixe-me ir com você - disse Brutus, pondo a mão nas rédeas que Júlio segurava.

- Não, você deve assumir o comando. Pompeu me proibiu de viajar com qualquer soldado da Décima. Chame Caberá. Vou precisar dele.

Brutus correu até onde o velho curandeiro dormia e o acordou com uma sacudida. Quando entendeu, o velho se moveu rapidamente, ainda que seu rosto estivesse com rugas de exaustão enquanto apertava o manto para se proteger da chuva.

Caberá estendeu o braço para montar atrás de Júlio e foi puxado com um movimento firme enquanto Júlio controlava o cavalo arisco. Brutus encarou Júlio e segurou sua mão no cumprimento de legionário.

- Pompeu não sabe dos soldados que nós deixamos na propriedade, Júlio. Eles lutarão por você, se você precisar.

- Se estiverem vivos.

O sofrimento avassalador roubou seu fôlego, e Júlio bateu os calcanhares no flanco do animal. E partiu, curvado baixo com Caberá atrás, cego de lágrimas na chuva.

 

Grossos amontoados de nuvens escuras obscureciam o sol de primavera, e a chuva caía sem sinal de amainar enquanto Júlio e Caberá cavalgavam até a propriedade. Júlio sentia um cansaço profundo olhando seu lar, um cansaço que nada tinha a ver com a cavalgada noturna. Com o peso do velho atrás, Júlio diminuíra o ritmo da montaria até um passo de caminhada através das horas. Não restava urgência nele. Tinha esperado que o tempo se esticasse interminavelmente, lamentando cada passo que o trazia mais perto desse momento. Caberá fizera a jornada em silêncio, e sua antiga alegria contagiante estivera ausente enquanto voltavam ao lugar de tantas lembranças. Sua capa pendia molhada sobre o corpo magro, fazendo-o estremecer.

Júlio desmontou perto do portão e o viu se abrir. De algum modo, agora que estava ali, não queria entrar, mas fez o cavalo andar até o pátio, sentindo-se entorpecido.

Soldados da Primogênita pegaram as rédeas, os rostos num reflexo de sua própria agonia. Não falou com eles. Atravessou o pátio até as construções principais através das poças de lama da tempestade. Caberá o olhava, distraidamente coçando o focinho macio do cavalo e segurando as rédeas.

Clódia estava lá, com um tecido sangrento nas mãos. Estava pálida e parecendo exausta, com olheiras escuras.

- Onde está ela? - perguntou ele, e a aia pareceu desmoronar à sua frente.

- No triclínio. Senhor, eu...

Júlio passou por ela entrando no cômodo e parou junto à porta. Tochas ardiam na cabeceira da cama simples, iluminando o rosto de Cornélia com seu calor. Júlio foi até a esposa e olhou para ela, com as mãos trêmulas. Ela fora lavada e vestida com tecidos brancos, o rosto foi deixado sem pintura, e o cabelo estava amarrado na nuca.

Júlio tocou seu rosto e se encolheu diante da maciez.

Não havia como disfarçar a morte. Os olhos dela tinham se aberto um pouquinho e ele podia ver a parte branca sob as pálpebras. Com a mão, tentou fechá-los de novo, mas eles voltaram a se abrir quando ele afastou os dedos.

- Desculpe - sussurrou, a voz parecendo alta contra os estalos das tochas. Segurou a mão dela, sentindo a rigidez dos dedos enquanto se ajoelhava ao lado. - Desculpe por eles terem ferido você tanto. Você nunca fez parte disso. Desculpe não ter levado você para longe. Se puder me ouvir, eu a amo, sempre amei.

Baixou a cabeça enquanto a vergonha o fazia estremecer. Suas últimas palavras tinham sido de raiva para essa mulher que ele jurara amar, e não havia como afastar a culpa. Fora estúpido demais para ajudá-la, de algum modo tivera certeza de que ela sempre estaria ali, e que as discussões e as palavras feias não importariam. E agora ela havia partido, e ele apertou o punho na cabeça, numa fúria contra si mesmo, cada vez com mais força e gostando da dor que isso provocava. Como havia se ostentado para ela! Seus inimigos cairiam e ela ficaria em segurança!

Finalmente se levantou, mas não pôde dar as costas à mulher.

Uma voz despedaçou o silêncio.

- Não! Não entre aí!

Era Clódia, gritando do lado de fora. Júlio girou, com a mão indo para a espada.

Sua filha Júlia veio correndo em silêncio, parando ao vê-lo. Instintivamente ele se moveu para bloquear Cornélia da visão da menina, indo para ela e pegando-a no colo num abraço apertado.

- Mamãe foi embora - disse ela, e ele balançou a cabeça, com lágrimas se derramando.

- Não, não, ela ainda está aqui, e ama você.

Os homens de Pompeu quase se engasgaram com o cheiro de podre que vinha do homem que eles seguravam. A pele que podiam sentir sob a capa parecia se mover facilmente demais sob o aperto, e quando eles mudaram a posição das mãos o encapuzado ofegou de dor, como se alguma coisa tivesse sido arrancada.

Pompeu estava diante deles, os olhos brilhantes de malícia. Ao seu lado havia duas meninas que ele achara na casa, nas profundezas do labirinto de becos entre os morros. Os rostos delas estavam franzidos de medo, mas não havia para onde correrem, e elas ficaram paradas, num silêncio aterrorizado. A ameaça era clara. Pompeu enxugou um fio de suor do rosto.

- Tirem o capuz dele. Quero ver o homem que matou minha filha.

Os dois soldados estenderam a mão e puxaram o pano áspero, afastando o olhar nauseados quando viram o que se revelou. O assassino olhou-os furioso, com o rosto que era uma massa de pústulas e feridas. Não havia um centímetro de carne boa para ser vista, e a pele cheia de cicatrizes e sangrando rachou enquanto ele falava.

- Eu não sou o homem que vocês procuram. Pompeu mostrou os dentes.

- Você é um deles. E tem um nome para mim, eu sei. Mas sua vida é minha, pelo que você fez.

Os olhos remelentos do sujeito foram rapidamente para as duas garotas, franzindo-se de medo. Se Pompeu já não soubesse, saberia então que eram filhas dele. O senador conhecia esse medo muito bem. O assassino falou rapidamente, como se quisesse encobrir o que tinha mostrado.

- Como me achou?

Pompeu tirou uma faca do cinto, com a lâmina brilhando mesmo na escuridão sombria do cômodo.

- Rastreá-lo demorou tempo, ouro e a vida de quatro homens bons, mas no final a escória que você emprega acabou entregando seu nome. Disseram que você está construindo uma bela propriedade no norte, longe deste monturo. Construída com o meu sangue. Acha que eu iria me esquecer do assassino da minha filha?

O homem tossiu, com o hálito cheio do perfume doce que ele usava para encobrir a podridão.

- Não foi minha faca que...

- Foi sua ordem. Quem lhe deu o nome? De quem era o ouro que você aceitou? Eu já sei, mas fale diante de testemunhas, para que eu possa ter justiça.

Por um longo momento os olhares dos dois ficaram grudados, e então os olhos do assassino baixaram para a lâmina que Pompeu segurava de modo tão casual. Suas filhas observavam, com as lágrimas secando. Não entendiam o perigo, e ele podia ter gritado pela inocência delas enquanto olhavam o pai com tanta confiança. Não estavam chocadas com os ferimentos dele. De fato, sem os banhos suaves que administravam no pai, ele sabia que teria tirado a própria vida há muito tempo. Elas não tinham a doença, sua pele era perfeita sob a sujeira que usavam para se esconder dos predadores dos becos. Quem cuidaria delas quando ele se fosse? Ele sabia o suficiente sobre Pompeu para ter consciência de que sua vida estava acabada. O homem não tinha piedade desde a morte da filha, se é que um dia tivera.

- Deixe minhas filhas irem e eu digo - gemeu o assassino, com os olhos implorando.

Pompeu deu um grunhido baixo, depois estendeu a mão para a mais nova, segurando-a pelos cabelos. Com a outra mão, passou a adaga pela garganta dela e largou-a, enquanto ela se retorcia.

O assassino gritou em uníssono com a outra filha, esforçando-se por se soltar dos homens que o seguravam. Começou a chorar, afrouxando-se nos braços deles.

- Agora você sabe - disse Pompeu.

Em seguida enxugou a lâmina entre dois dedos, deixando o sangue cair em gotas pesadas e sem som no chão de terra. Esperou com paciência até que restassem apenas soluços engasgados no chefe dos assassinos.

- A outra viverá, quem sabe? Pergunto pela última vez. De quem foi o ouro que você recebeu?

- De Cato... foi Cato, através de Antonido. Isso é tudo que sei, juro. Pompeu se virou para os soldados em volta.

- Vocês ouviram?

Eles assentiram, sérios como o comandante.

- Então já terminamos neste lugar.

Ele se virou para sair, com apenas uma mancha leve nas mãos revelando que estivera ali.

- Matem os dois, a garota primeiro - acrescentou enquanto saía para os becos.

- Ele está acordado? - perguntou Júlio. O quarto fedia a doença, e Tubruk estava esparramado numa cama que mostrava manchas enferrujadas de seu sangramento. Antes de entrar, Júlio tinha esperado até que a filha parasse de chorar, e gentilmente retirou os dedos dela que estavam ao redor de seu pescoço. Então ela chorou de novo, mas ele não iria levá-la a outro cômodo da morte, e Clódia tinha arranjado uma jovem escrava para cuidar da menina. Pelo modo como Júlia foi para os braços dela, estava claro que a mulher a havia consolado antes, nos últimos dias terríveis.

- Talvez ele acorde se você falar, mas faz muito tempo que ele não fica consciente - disse Clódia, olhando para dentro do quarto. Seu rosto lhe dizia mais do que ele queria saber, e Júlio fechou os olhos um momento, antes de entrar.

Tubruk estava deitado desajeitadamente, com pontos novos aparecendo no peito e sumindo sob os cobertores. Mesmo parecendo dormir, estremecia, e Júlio puxou o cobertor para cobri-lo. Havia traços de sangue em volta da boca, novos e vermelhos. Clódia pegou no chão uma tigela de água vermelha e passou um pano molhado na mancha enquanto Júlio olhava em desespero. Coisas demais tinham mudado, para ele absorver, e ficou de pé imóvel enquanto Clódia limpava os lábios e os pontos que exsudavam, com um cuidado terno.

Tubruk gemeu e abriu os olhos ao toque dela. Parecia incapaz de focalizar direito.

- Ainda está aí, velha? - sussurrou ele, com um leve sorriso repu-xando a boca.

- Enquanto você precisar de mim, meu amor - respondeu ela. Em seguida olhou para Júlio e de volta para o homem na cama. -Júlio está aqui.

Tubruk virou a cabeça.

- Venha para onde eu possa vê-lo.

Clódia recuou e Júlio chegou perto e o olhou nos olhos. Tubruk respirou fundo e todo o seu corpo estremeceu de novo, com a liberação de tensão.

- Não pude impedi-los, Júlio. Tentei, mas... não consegui chegar perto dela.

Júlio começou a soluçar baixinho enquanto olhava o velho amigo.

- Não é sua culpa - sussurrou.

- Matei todos eles. Matei-os para salvá-la - disse Tubruk, com os olhos inexpressivos.

Sua respiração estava entrecortada, e Júlio perdeu a esperança nos deuses. Eles tinham trazido dor demais às pessoas amadas.

- Chame Caberá. Ele é curandeiro - disse a Clódia.

Ela sinalizou afastando-o da figura torturada na cama, e ele se curvou para escutar.

- Não deixe que ele seja perturbado. Agora não há nada a fazer, senão esperar. Não resta sangue nele.

- Traga Caberá - insistiu Júlio, os olhos ferozes. Pensou por um momento que ela recusaria de novo, mas então Clódia partiu e ele pôde ouvir a voz dela chamando no pátio.

- Caberá está aqui, Tubruk. Ele vai fazer com que melhore - disse Júlio, com os soluços baixos recomeçando na garganta.

Pingando por causa da chuva, o velho entrou e foi rapidamente até a cama, parecendo abalado. Com dedos hábeis, verificou os ferimentos, levantando o cobertor para ver embaixo. Olhou a expressão desesperada de Júlio e suspirou.

- Vou tentar - disse ele. Em seguida pôs a mão na carne ferida, em volta dos pontos, e fechou os olhos.

Júlio se inclinou para a frente, sussurrando uma oração. Não havia nada a ser visto, só a figura do velho curandeiro curvado, as mãos imóveis e escuras contra o peito pálido. Tubruk inspirou longamente, num espasmo súbito, depois soltou o ar lentamente. Abriu os olhos e olhou para Clódia.

- A dor foi embora, amor - disse ele. Então a vida o abandonou. Caberá cambaleou e caiu.

 

Pompeu franziu a testa para o capitão da galera que estava de pé rigidamente diante dele.

- Não importa quais são suas ordens. Estas são as minhas. Você vai velejar em direção à Sicília e chamar qualquer outra galera que vir no caminho pela costa. Cada embarcação romana deve guardar o sul e impedir que os escravos escapem. Está claro ou eu deverei prendê-lo e nomear outro capitão?

Gadíticõ fez uma saudação, com uma aversão pelo senador arrogante que ele não ousava deixar que aparecesse. Depois de seis meses no mar, esperava ter algum tempo na cidade, mas estava recebendo ordens de zarpar de novo sem sequer a chance de limpar o navio. Prax ficaria furioso ao saber, pensou.

- Entendo, senhor. Vamos deixar o cais na próxima maré.

- Não deixe de fazer isso - respondeu Pompeu, antes de voltar para os soldados que esperavam.

Gadíticõ o viu se afastar, e olhou para as outras galeras que já haviam zarpado. Com todas indo para o estreito da Sicília, os outros portos romanos seriam presa fácil. O que quer que o Senado estivesse planejando, ele esperava que valesse o risco.

 

Enquanto o cinza da noite chegava, Clódia encontrou Júlio bebendo num quarto escuro até ficar num estupor. Ele ergueu a cabeça quando ela entrou, e seus olhos não pareciam enxergar.

- O senhor veio para casa de vez? - perguntou ela. Ele balançou a cabeça.

- Não, vou voltar com Pompeu dentro de alguns dias. Primeiro vou cuidar do enterro dos dois.

Sua voz estava engrolada e sofrida, mas não havia palavras de consolo em que ela pudesse pensar. Parte dela queria que ele sentisse dor pelo modo cruel como tratara Cornélia, e era somente com o resto das forças que falava com ele. O rosto de Júlio mostrava que sabia muito bem disso.

- Vai ficar e cuidar de minha mãe e minha filha? - perguntou sem olhá-la.

- Sou escrava. Devo voltar à casa do senador Cina - respondeu ela. Júlio a encarou e balançou a mão, bêbado.

- Então eu a liberto. Compro seus documentos com o pai dela. Posso fazer pelo menos isso, antes de voltar. Só cuide de Júlia. Otaviano está aí?

- No estábulo. Eu não sabia se ele deveria voltar para a mãe, e...

- Cuide dele também. Ele é do meu sangue, e eu fiz uma promessa. Eu sempre cumpro as promessas. - Seu rosto se franziu, angustiado. - Quero que você fique e administre esta casa. Não sei quando vou voltar, mas quando voltar quero que você fale sobre ela. Você a conhecia antes de mim, e eu quero saber tudo.

Ele era tão jovem, pensou Clódia. Jovem, tolo e aprendendo que a vida podia ser amargamente injusta. Quanto tempo ela havia esperado o amor antes de encontrá-lo com Tubruk? Cornélia a teria libertado para se casar, e Tubruk teria pedido, assim que juntasse coragem. Agora nada restava para ela, e a menina que ela havia cuidado desde que era bebê estava imóvel e quieta em outro cômodo. Quando tivesse forças, Clódia sabia que ela é que enrolaria o corpo espancado de Tubruk e limparia sua pele pela última vez. Mas por enquanto, não.

- Eu fico - disse ela, e imaginou se ele teria ouvido.

 

Cato estava de pé no Fórum, sob um céu escuro, a toga arrancada dos ombros revelando uma massa de carne branca que brilhava com gotas de água que escorriam. Suas costas estavam marcadas por tiras onde o chicote acertara, e a dor era apenas um eco da raiva e do nojo que sentia dos homens mesquinhos que o haviam derrubado. Nenhum deles teria desdenhado agir como ele, se houvesse oportunidade. No entanto o olhavam e apontavam como se não fossem iguais. Deu um riso de desprezo, mantendo a cabeça erguida mesmo quando o carrasco se adiantou, com a espada comprida brilhando nas mãos.

Pompeu olhava sem demonstrar o prazer que sentia. Tinha adiado o encontro com Crasso para ver a tarefa terminada. Teria preferido ver as mãos gordas pregadas numa trave de madeira e ele exposto no fórum para uma morte lenta. Um fim desses estaria mais de acordo com Cato. Pelo menos houvera satisfação enquanto a família de Cato era vendida para a escravidão, apesar dos gritos dele. Sua casa fora dada ao Senado, e os fundos obtidos com a venda ajudariam a financiar as legiões que Pompeu levou contra os escravos.

Júlio olhava entorpecido ao lado de Pompeu. O general o havia convocado em triunfo para testemunhar a execução, mas ele não sentia nada. Não havia júbilo em ver Cato ser morto. Não era mais do que acabar com a vida de um cão ou esmagar um inseto incômodo. O senador inchado não entendia a tristeza que tinha causado, e nada que ele sofresse traria Cornélia de volta. Que isso seja rápido, sussurrou consigo mesmo enquanto olhava. Que tudo isso acabe.

Cato cuspiu nas pedras do fórum enquanto olhava a turba de senadores e cidadãos que tinham se reunido para ver a execução. Pela primeira vez não havia sentimento de perigo vindo deles. Ele nunca fora popular com o povo da cidade - como se alguém se importasse com o que o povo pensasse ou fizesse! Cuspiu de novo, a boca se retorcendo de raiva ao ver a multidão que esperava. Animais, todos eles, sem compreensão de como um grande homem podia dobrar as leis. Mário sabia disso, Sila também. Nenhum daqueles outros podia entender que não havia lei além da que podia ser segurada.

Passos ressoaram. Cato virou a cabeça e viu Pompeu caminhando em sua direção. Fez uma careta. O outro nem tinha estilo suficiente para deixá-lo morrer sem mais algumas zombarias e provocações. Não era talhado para a grandeza. Sila teria permitido ao inimigo a dignidade de uma morte em particular, não importando o que tivesse acontecido. Era um homem que entendia o significado do poder.

Pompeu chegou suficientemente perto para falar no ouvido de Cato.

- Seus familiares não viverão muito como escravos. Eu comprei todos eles - sussurrou a voz sibilante.

Cato o olhou com frieza.

- Germínio também?

- Ele não sobreviverá à batalha final.

Cato sorriu diante disso. Imaginou se Pompeu acharia mais fácil lidar com Júlio e Brutus do que ele. Ergueu a cabeça em desafio. Parecia justo que sua linhagem terminasse ali. Tinha ouvido falar de reis antigos que mandaram os familiares serem jogados vivos nas piras funerárias. Pompeu era um idiota em tentar fazer com que ele sofresse.

- Você conhecerá um dia como este - disse a Pompeu. - Você é um homem pequeno demais para segurar esta cidade nas mãos durante muito tempo. - Ele riu alto enquanto o rosto de Pompeu se contorcia num espasmo de fúria.

- Pegue a espada e acabe com ele - disse o general para o carrasco que fez uma reverência profunda em resposta, enquanto Pompeu se afastava pisando forte em direção aos senadores que esperavam.

Cato assentiu para o sujeito. De repente se sentia cansado, quase entorpecido.

- Hoje não, garoto. Algumas coisas têm de ser feitas pela própria mão do homem - murmurou, tirando do pulso um bracelete pesado. Com o polegar, liberou uma lâmina da borda e se virou para encarar a multidão, dando um riso de desprezo. Com um movimento brusco da mão, riscou a lateral da garganta, cortando as artérias grossas. Então ficou parado esperando, enquanto o sangue jorrava de sua carne branca, encharcando-o.

O carrasco se adiantou nervoso, mas Cato teve força suficiente para levantar a mão, recusando a lâmina. A multidão olhou com um fascínio animal suas pernas começarem a tremer, e subitamente ele caiu de joelhos com um estalo audível na pedra. Mesmo então continuou olhando-os feroz antes de tombar para a frente.

Os cidadãos reunidos suspiraram quando a tensão da morte foi liberada. Apesar dos crimes que eles sussurravam uns para os outros, a coragem do senador estragou o prazer que tinham vindo procurar. Começaram a se dispersar sem um som, passando de cabeça baixa pelo corpo caído, e vários murmuraram preces.

Pompeu franziu os lábios com raiva. O júbilo da vingança não existia com um final daqueles, e ele sentia como se alguma coisa lhe tivesse sido roubada. Sinalizou pára os guardas retirarem o corpo, virando-se para Júlio.

- Agora vamos para o sul, terminar com aquilo - falou.

O general olhou para Crasso, pasmo.

- O senhor está falando de mais de trinta quilômetros de terreno irregular! Insisto em que reconsidere. Deveríamos ocupar uma posição central, prontos para impedir que eles atravessem.

Crasso esperou até que o general tivesse terminado, os dedos batendo nervosamente na mesa enquanto ouvia. Era a única coisa a fazer, tinha certeza. Os escravos estavam presos contra o litoral, e, se Pompeu tivesse entrado em contato com as galeras, não haveria ninguém para levá-los. Só precisava sustentá-los, prendê-los na língua de terra na extremidade do país. Olhou o mapa de Pompeu na parede. Ali a distância parecia minúscula.

- Minhas ordens para você são claras, general. Legiões descansadas estão vindo do norte com Pompeu. Sustentaremos a linha até elas chegarem, e eu quero uma fortificação atravessando o terreno. Você está me fazendo perder tempo.

Sua voz tinha uma tensão perigosa. Sem dúvida o sujeito não hesitaria assim se Pompeu estivesse dando as ordens. Era insuportável.

- Saia! - disse rispidamente, levantando-se do assento. Quando ficou sozinho, deixou-se afundar de novo, coçando nervosamente a testa enquanto olhava o mapa outra vez.

Cada ruído na noite o fazia acordar com um susto, aterrorizado com a possibilidade de os escravos terem atravessado a barreira para saquear o país. Isso não poderia ser permitido de novo. A princípio pensara em esmagá-los contra o mar, mas e se eles lutassem como no norte? Com a fuga impedida, ficariam desesperados, e se derrotassem as fileiras romanas Crasso sabia que estaria acabado, mesmo que sobrevivesse à batalha. O Senado pediria sua execução. Fez uma careta. Quantos deles tinham dívidas que somente sua morte apagaria? Podia imaginar os rostos piedosos discutindo seu destino no Senado. Entendia a pressão um pouco melhor desde que Pompeu o deixara. Não havia a quem perguntar, as decisões eram apenas suas.

Foi até o mapa e passou o dedo pela faixa de terra mais estreita na ponta do pé do país.

- Vamos segurar vocês aqui até que as novas legiões cheguem - falou, franzindo a testa.

Uma barreira de terra com mais de trinta quilômetros. Uma linha assim nunca fora construída, e o povo de Roma contaria sobre ela aos filhos. Crasso, que construiu uma muralha atravessando um país. Passou o dedo pela ponta de terra, de novo e de novo, até que uma linha mais escura apareceu no pergaminho.

Isso iria segurá-los, a não ser que Pompeu não tivesse conseguido reunir galeras suficientes para impedir a fuga dos escravos. Nesse caso ele seria o objeto de riso no país, guardando apenas campos. Balançando a cabeça para clareá-la, sentou-se de novo para pensar.

Depois do atraso provocado pela execução de Cato, Pompeu pressionou sem descanso as legiões gregas em direção ao sul. Eram veteranos das fronteiras da Grécia, com grandes números de hastati e triarü para estimular os mais jovens. Com a Via Ápia sob os pés, passaram pelo marco de cinqüenta e cinco quilômetros no primeiro dia. Pompeu sabia que o ritmo ficaria mais lento quando fossem obrigados a sair da estrada, mas mesmo que os escravos tivessem fugido até a ponta extrema do país, ele sabia que poderia levar as legiões gregas até eles em menos de duas semanas.

Júlio cavalgava com Caberá ao lado, trocando de cavalos, como Pompeu, a cada vinte quilômetros nos postos do caminho. Pompeu estava pasmo com o jovem tribuno. Ele lhe havia dirigido apenas algumas palavras desde que viram Cato morrer no grande fórum, mas parecia uma pessoa diferente. O fogo interior que tinha enervado Pompeu quando Júlio assumiu o controle da nova Décima legião parecia tê-lo abandonado. Não era o mesmo homem que agora cavalgava sem cuidado, o cavalo com os olhos arregalados de nervosismo com a falta de sinais do cavaleiro. Pompeu o observava atentamente a cada dia. Sabia de homens que tinham se dobrado depois de uma tragédia, e se Júlio não estivesse mais apto para comandar, ele não hesitaria em tirá-lo do posto. Marco Brutus estava à altura da tarefa, e em seus pensamentos particulares Pompeu podia admitir que Brutus jamais poderia ser uma ameaça para ele, como o outro. O modo como César tinha assumido o controle da Primogênita e ao mesmo tempo mantido a amizade de Brutus falava bastante sobre sua habilidade. Talvez fosse melhor tê-lo removido antes que ele se recuperasse totalmente do assassinato da mulher, enquanto estava fraco.

Pompeu olhava a ampla estrada adiante. Crasso não tivera coragem de lutar contra o exército de escravos, como ele soubera desde o instante em que ouviu seu nome sendo escolhido no senado. A vitória seria apenas sua, e ela resultaria em nada menos do que unir as facções do Senado e levá-lo ao poder em Roma. Em algum lugar à sua frente a frota de galeras estava bloqueando o mar e, mesmo que os escravos ainda não soubessem, sua rebelião estava terminada.

Espártaco olhava por cima dos penhascos, vendo a fumaça quando outra embarcação foi capturada e queimada pelas galeras. O mar estava cheio de navios fugindo da frota romana, com os remos batendo em desespero no mar agitado, enquanto tentavam manobrar uns ao redor dos outros, sem colidir. Não havia misericórdia para os capturados. As galeras da marinha tinham sofrido muitos anos de perseguições impotentes para não estar adorando a destruição. Alguns navios eram abordados, mas a maioria era queimada enquanto duas ou três galeras faziam chover fogo em seus conveses até que os piratas morressem nas chamas ou pulassem no mar gritando. O resto se afastava a toda velocidade da costa, levando com eles a última chance de liberdade.

Os penhascos estavam cobertos por seus homens, olhando enquanto o ar fresco do mar soprava contra eles. Os penhascos estavam verdes com a grama da primavera, e uma garoa fina escurecia os rostos sujos, sem ser percebida.

Espártaco olhou para seu exército maltrapilho. Estavam todos famintos e cansados, sentindo o peso do conhecimento de que a grande corrida pelo país finalmente acabara. Mesmo assim tinha orgulho de todos.

Crixo se virou para ele, mostrando o cansaço.

- Não há como sair disso, há?

- Acho que não. Sem os navios, estamos acabados.

Crixo olhou os homens em volta, sentados e de pé sem esperança sob a chuva fina.

- Sinto muito. Deveríamos ter atravessado as montanhas - falou baixinho.

Espártaco deu de ombros, rindo.

- Mas fizemos com que eles corressem. Por todos os deuses, nós os deixamos apavorados.

Ficaram em silêncio de novo por longo tempo e, no mar, o último navio pirata foi caçado ou capturado, com as galeras indo para lá e para cá impulsionadas pelos grandes remos. A fumaça dos conveses queimados subia contra a chuva, feroz e quente como a vingança.

- Antonido foi embora - disse Crixo subitamente.

- Eu sei. Ele veio ontem à noite, querendo parte do ouro.

- E você deu? Espártaco deu de ombros.

- Por que não? Se ele puder fugir, sorte dele. Não resta nada para nós aqui. Você também deveria ir. Talvez alguns de nós consigam se livrar sozinhos.

- Ele não vai passar pelas legiões. Aquela barreira desgraçada que eles construíram nos cortou.

Espártaco ficou de pé.

- Então vamos rompê-la e nos espalharmos. Não vou esperar até sermos trucidados como cordeiros aqui. Junte os homens, Crixo. Vamos dividir o ouro de modo que todos tenham uma ou duas moedas, e então vamos correr de novo.

- Eles vão nos caçar.

- Não vão pegar todos. O país é grande demais para isso. Espártaco estendeu a mão e Crixo apertou-a.

- Até nos encontrarmos de novo, Crixo.

- Até lá.

Não havia lua para revelá-los aos soldados que estavam na grande cicatriz que se estendia de um litoral ao outro. Quando Espártaco tinha visto aquilo, balançou a cabeça numa incredulidade silenciosa de que um general romano tentaria uma tolice dessas para encurralar os escravos contra o mar. De certo modo era um sinal de respeito aos seus seguidores o fato de que as legiões não ousavam persegui-los, ficavam contentes em permanecer paradas, olhando por cima das trincheiras no escuro.

Espártaco estava deitado de barriga no chão, na grama baixa, o rosto escurecido com lama. Crixo estava ao lado, e atrás dele uma vasta serpente feita de homens se escondia, esperando o grito para atacar. Não houvera oposição a esta última jogada quando ele a sugeriu. Todos tinham visto os navios queimar, e o desespero havia se transformado num fatalismo sério. O grande sonho tinha terminado. Eles se espalhariam como sementes ao vento e os romanos jamais pegariam sequer a metade.

- Deve ser uma linha fina, para guardar uma trincheira tão longa - tinha dito Espártaco enquanto o sol se punha. - Seremos a flecha atravessando a pele deles, e antes que possam se reunir, a maioria de nós terá atravessado.

Não houvera comemoração, todos tinham repassado as palavras sem se empolgar, sentando-se em seguida para afiar as lâminas e esperar. Quando o sol se pôs, Espártaco ficou de pé e eles vieram junto, caminhando agachados na escuridão.

A borda da trincheira era uma linha escura contra o brilho fraco das estrelas no céu claro. Crixo olhou para ela e se esforçou para ver as feições do amigo.

- Três metros de altura, pelo menos, e parece sólida.

Ele sentiu, mais do que viu, Espártaco confirmar com a cabeça e estalar o pescoço devido à tensão. Os dois se levantaram lentamente e Espártaco deu um assobio baixo para convocar o grupo que seria o primeiro a chegar à barreira. Eles o rodearam nas sombras, os mais fortes, armados com marretas e machados.

- Vão agora. O que quer que eles tenham construído pode ser derrubado - sussurrou Espártaco e os homens partiram correndo, com as armas prontas para o primeiro golpe. Os de trás se levantaram e correram para a barreira romana.

 

Júlio murmurou agradecendo enquanto lhe davam uma tigela de cozido quente. Cobrindo os campos ao seu redor, até onde a vista alcançava, os soldados das legiões gregas comiam, com a fumaça branca e fina das fogueiras serpenteando no ar. O chão estava grosso de lama, e torrões pesados se grudavam às sandálias e os deixavam mais lentos. Os que tinham capas usavam-nas para se sentar em cima, virando a parte de dentro do pano para baixo de modo que a lama não aparecesse quando recomeçassem a marcha. Muitos outros se sentavam no que pudessem achar, pedras lisas, capim áspero ou até mesmo uma pilha de feno solto que eles haviam espalhado.

Seria uma pausa curta, Júlio sabia. Os extraordinário tinham chegado do reconhecimento de manhã cedo, e corriam boatos entre os homens, mesmo antes de chegar a ordem oficial através da cadeia de comando.

Não havia nada de bom nos relatórios. Júlio estivera com Pompeu quando o general soube que o exército de escravos vinha para o norte encontrá-los, e nenhum dos estandartes das águias de Crasso fora avistado. Pompeu gritou furioso com o cavaleiro que trouxera a notícia, exigindo detalhes que ele não podia dar. Onde quer que Crasso estivesse, tinha fracassado em segurar os escravos contra o mar. Júlio se perguntou se ele ainda estaria vivo, mas não podia se obrigar a ficar preocupado. Tinha visto morte demais. Mais um senador nesta campanha desastrosa não faria diferença.

Caberá enxugou os dedos em volta da tigela e a entregou de volta aos serviçais da cozinha que percorriam o vasto acampamento. Nunca havia o bastante para comer, e quando as tigelas eram distribuídas, boa parte estava tão fria quanto o dia. Ao redor os homens esperavam naquela paz sonâmbula de antes da batalha. Nenhum deles tinha lutado contra os escravos antes, mas as conversas usuais estavam ausentes. Em algum lugar ao sul era fácil imaginar um campo como aquele em que estavam, coberto de corpos romanos e de corvos.

Júlio suspirou enquanto a chuva recomeçava. Ela tornaria o chão ainda mais mole. Não fazia mal. Isso se ajustava perfeitamente ao seu humor, o céu refletindo a depressão que havia se assentado nele. A imagem do rosto pálido de sua mulher e da cama iluminada pelas tochas era tão clara em sua mente como se ele ainda estivesse vendo. Tubruk, até mesmo Cato. Tudo parecia terrivelmente sem sentido. No início ele amara a luta, quando Mário era o general dourado e eles sabiam que lutavam pela cidade e um pelo outro, mas as linhas tinham ficado turvas no caminho, e agora estava enjoado, devorado pela culpa.

Enfiou os dedos no cozido, colocando-o na boca sem sentir o gosto. Quando Peritas morreu, ele havia chorado, mas não existiam mais lágrimas em seus olhos para os outros. Não tinha mais mentira para eles, nem mais discursos. A grande mentira era de que havia alguma coisa pela qual lutar.

Seu pai parecera ter visto algo que valia salvar na República, mas nada restava disso. Eram apenas homens pequenos como Cato e Pompeu que não enxergavam além de sua própria glória. Homens sem visão, não se importando nada com as coisas que Tubruk lhe dissera que eram importantes. Júlio tinha acreditado no que grandes homens lhe ensinaram, mas todos tinham morrido pelos sonhos.

Baixou a mão até a lama entre os pés separados e traçou uma linha com o dedo. Nada daquilo valia a morte de um deles. Nem a de Cornélia, nem a de Tubruk, nem de qualquer dos homens que ele havia liderado na Grécia. Eles o haviam seguido e lhe dado a vida sem reclamar. Bem, ele podia fazer isso, pelo menos.

Dentre todos os soldados, Júlio recebia bem a batalha vindoura. Iria se colocar na linha de frente durante uma última hora até que tudo aquilo finalmente acabasse. Estava cansado do Senado e do caminho. Encolhia-se ao pensar no dia em que Mário o levara ao prédio pela primeira vez. Ele ficara pasmo no coração do poder. Na época os senadores pareciam muito nobres, antes de ele conhecê-los bem demais para respeitá-los. Puxou a capa de encontro ao corpo enquanto o vento aumentava e uma chuva mais forte começava a cair, espirrando a lama em volta. Alguns dos homens xingavam, mas a maioria estava quieta, fazendo as pazes com os deuses antes do início da matança.

- Júlio? - disse Caberá, espantando-o.

Júlio se virou e viu que o velho estava estendendo as mãos para ele. Sorriu ao ver o que Caberá tinha feito. Era uma coroa de folhas, recolhidas nos arbustos e tecida com um fio de seu manto.

- Para que é isso? - perguntou Júlio. Caberá a estendeu, colocando-a em suas mãos.

- Coloque, garoto. Ela é sua. Júlio balançou a cabeça.

- Hoje não, Caberá. Não aqui.

- Eu fiz para você, Júlio. Por favor.

Os dois se levantaram juntos e Júlio segurou a nuca do velho.

- Certo, velho amigo - disse ele, soltando o ar lentamente. Tirou o elmo e apertou o círculo de folhas no cabelo, sentindo-as pinicar a pele. Alguns dos homens o olharam, mas Júlio não se importou. Caberá estivera com ele o tempo todo, e não merecia estar esperando para morrer num campo lamacento, longe de seu lar. Era outro que morreria ao seu lado.

- Quero que fique longe da linha de frente quando eles vierem, Caberá. Sobreviva a esta.

- Seu caminho é o meu, lembra-se? - disse o velho, com os olhos brilhando na chuva. O cabelo branco pendia em tiras sobre o rosto, e havia nele um ar tão maltrapilho que Júlio riu.

Ao redor dos dois, homens se levantaram em silêncio. Júlio ergueu a cabeça rapidamente ao ver o movimento, pensando que era hora de marchar, mas eles simplesmente se levantaram e o olharam. Mais e mais se juntaram enquanto a notícia se espalhava, até que cada um deles estava de pé. Pratos foram deixados no chão e capas largadas, molhando-se, enquanto eles o encaravam e a chuva caía.

Pensativo, Júlio levantou a mão e tocou o círculo de folhas, e seu coração se animou. Aqueles não eram homens pequenos. Eles davam a vida sem se importar, confiando que seus generais não desperdiçariam o que era oferecido. Sorriram e gargalharam quando ele os olhou, e Júlio sentiu de novo os laços que os uniam.

- Nós somos Roma - sussurrou, e se virou para ver milhares de pé para ele. Naquele momento entendeu o que sustentava a lealdade de Tubruk e a fé do pai. Ele viraria a mão para o sonho, como homens melhores tinham feito antes, e iria honrá-los com sua vida.

A distância, comicens soaram as longas notas para levantar acampamento.

- Continuem em movimento, irmãos - rugiu Espártaco.

Era o fim e, de algum modo, não havia medo. Seus escravos tinham mostrado que as legiões podiam ser derrotadas, e sabia que chegaria um tempo em que as rachaduras que eles fizeram iriam se alargar, e Roma cairia. As legiões atrás deles reluziam ao sol da manhã, lançando um grito enquanto os milhares de Pompeu marchavam em sua direção, cada vez mais rápido, como mandíbulas para esmagar os escravos entre elas. Espártaco viu que seus escravos exauridos seriam engolfados. Desembainhou a espada e pôs o elmo de ferro sobre o rosto.

- Mas, meus deuses, nós demos uma corrida neles - falou consigo mesmo, enquanto o ar escurecia com lanças.

 

Pompeu caminhava com Crasso por entre as fileiras de cruzes. Com Roma à vista, a linha se estendia por quilômetros pela Via Ápia atrás deles, seis mil homens servindo como alerta e prova da vitória. Florestas tinham sido derrubadas para pendurá-los, e quando os carpinteiros das legiões ficaram sem pregos, os escravos foram simplesmente amarrados e espetados com lanças, ou deixados para morrer de sede.

Os dois generais desmontaram para caminhar o último quilômetro até a cidade. Crasso não seria envergonhado, Pompeu tinha prometido. O fim da rebelião tinha apagado os desastres acontecidos antes, e Pompeu estava disposto a lhe dar seu momento de glória. Não tinha nada a temer de Crasso, e sempre havia a riqueza dele a ser considerada. Ele precisaria de homens ricos para financiar seu tempo como cônsul. Talvez, pensou, fosse bom insistir para que Crasso assumisse o segundo posto consular quando acontecessem as eleições. Então eles poderiam dividir os gastos e Crasso sempre seria grato.

A distância os generais podiam ouvir os sons minúsculos de uma multidão aplaudindo, ao vê-los na estrada. Sorriram um para o outro, desfrutando o momento.

- Será que devemos pedir um triunfo? - perguntou Crasso, respirando rapidamente ao pensar nisso. - Não aconteceu nenhum desde Mário.

- Eu lembro - disse Pompeu, pensando no rapaz que ficara de pé ao lado de Mário na ida até o fórum.

Como se adivinhasse seus pensamentos, Crasso olhou para ele.

- É uma pena Júlio não estar aqui para ver isso. Ele lutou muito por nós.

Pompeu franziu a testa. Não admitiria a Crasso, mas quando vira as legiões gregas se levantarem para Júlio na lama e na chuva, aquilo o amedrontou. Todos os grandes homens estavam mortos, mas aquele tinha o sangue de Mário, era general da Décima e com uma fama crescente que poderia ser mortal se ele optasse por usá-la. Não, ele não queria Júlio ou sua preciosa legião em sua cidade. Tinha assinado as ordens mandando-os para a Espanha sem um momento de hesitação.

- A Espanha vai serená-lo, Crasso. Não tenho dúvida.

Crasso olhou-o interrogativamente, mas optou por não responder, e Pompeu assentiu satisfeito enquanto o rugido da multidão que esperava crescia. A Espanha era suficientemente distante para o sobrinho de Mário, e, quando seus cinco anos estivessem terminados, o povo teria se esquecido dele.

 

 

O fato de na juventude Júlio César ter sido capturado por piratas que cobraram resgate por ele está nos registros históricos. Quando eles sugeriram um resgate de vinte talentos, César supostamente exigiu cinqüenta, já que eles não faziam idéia de quem tinham capturado. Disse aos piratas que iria crucificá-los, mas que estrangularia os oficiais, por misericórdia.

Quando foi solto no norte da África, começou a levantar fundos e exigir homens dos povoados até ter um número suficiente para montar uma tripulação e alugar navios. É difícil imaginar o carisma pessoal que deve ter sido necessário para realizar isso. Deve-se lembrar que ele era um jovem, sem autoridade ou posto no Senado.

No livro, presumi que ele recolheu seus recrutas em povoados romanos, filhos de soldados aposentados. É o único modo pelo qual consigo explicar como conseguiu arranjar um navio e revirar o Mediterrâneo atrás dos piratas, encontrá-los e cumprir suas promessas sinistras.

Ao desembarcar na Grécia descobriu a rebelião comandada por Mitrídates e juntou um exército. De fato a batalha que travou para enrijecer a decisão dos romanos hesitantes foi contra o enviado de Mitrídates, não contra o próprio rei. Júlio alcançou uma vitória que manteve a legião junta diante da confusão e da indecisão do Senado. Foi Pompeu que acabou derrotando Mitrídates, e os dois ganharam status em Roma. Júlio foi eleito tribuno militar, com autoridade para alistar soldados, posto que ainda tinha quando a rebelião de escravos comandada por Espártaco começou.

Não existem registros do envolvimento de César na guerra contra Espártaco, mas acho difícil acreditar que um tribuno com o seu empenho e energia não tivesse tomado parte nas legiões comandadas por Crasso e Pompeu.

Apesar de Karl Marx ter descrito Espártaco como "o melhor sujeito que toda a História Antiga tem para mostrar", há pouca dúvida de que o gladiador trácio teve chance de atravessar os Alpes e escapar de Roma para sempre. Não sabemos o que o levou a se virar de novo para o sul, mas, considerando como chegou perto, talvez fosse uma crença genuína de que o poder das legiões poderia ser vencido.

O exército de escravos destruiu e fez debandar várias legiões enviadas contra ele, lançando ondas de medo pela cidade e pelas terras romanas. As estimativas são de que Espártaco tinha mais de setenta mil escravos com ele, assolando a Itália de norte a sul durante dois anos.

Crasso construiu sua barreira pela ponta do pé da Itália, e a esperança de Espártaco, de ser levado por piratas, deu em nada. Os escravos romperam a barreira de Crasso e se derramaram de novo para o norte. Foram necessários três exércitos para impedi-los, e no fim não há registros para saber se Espártaco caiu ou foi crucificado com os milhares de outros ao longo da Via Ápia.

O primeiro ditador vitalício de Roma, Cornélio Sila, conseguiu se aposentar do cargo e viver confortavelmente até morrer em 78 a.C. Ele é mais lembrado por suas listas de proscrições, publicadas a cada dia, citando os que o haviam desagradado ou que eram considerados inimigos da República. Gangues de raptores recebiam pagamento arrastando infelizes para ser executados, e durante um tempo Roma esteve mais perto da anarquia e do terror do que nunca. De muitos modos, Sila foi o arquiteto da queda da República, ainda que as rachaduras demorassem um tempo para aparecer.

Quanto à morte de Sila, achei necessário ocasionalmente mudar os acontecimentos. Apesar de César ter lutado em Mitilene, ganhando a coroa de carvalho por bravura, deixei de fora suas viagens pela Ásia Menor e os processos em que ele atuou em Roma durante esse período.

Otaviano era sobrinho-neto de Júlio, e não primo, como coloquei. A mudança de parentesco me permitiu evitar a inclusão de um personagem menor no primeiro livro. De modo semelhante, com objetivos de trama, eu incluí o suicídio de Cato em A morte dos reis, quando na verdade ele foi inimigo de César por muitos anos a mais.

Júlio César realizou tanto que sempre foi mais difícil decidir o que não contar do que escolher os acontecimentos que imploram para ser dramatizados. Infelizmente a pura limitação de tamanho me impede de lidar com cada aspecto de suas realizações. Para os interessados nos detalhes que fui obrigado a omitir, recomendo de novo o livro de Christian Meier, Caesar.

As minúcias da vida romana eram bem parecidas com o retrato que fiz, desde o assento de parto e da criação de jóias até os modos e costumes da corte romana, e nisso tenho uma dívida para com The Elements ofRoman Law, de R. W Lee.

Espero que os eventos dos próximos livros sejam mais ricos pelo conhecimento do que aconteceu antes.

 

 

                                                                                                    Conn Iggulden

 

 

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