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A MORTE FELIZ / Albert Camus
A MORTE FELIZ / Albert Camus

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

       Nesta introdução, não se insiste nos dados biográficos. O essencial do que é preciso saber já foi fornecido por Roger Quilliot nos dois volumes da coleção Pléiade. A Morte Feliz explora as lembranças do bairro pobre, em Belcourt, onde Camus passou a infância; de seu emprego como despachante marítimo; de sua viagem à Europa Central, no verão de 1936; de suas passagens pela Itália, em 1936 e 1937; de suas estadas em sanatórios; de sua vida na Maison Fichu, ou “Casa Diante do Mundo”, nas colinas de Argel, onde se instalou em novembro de 1936. Podem-se ler, também, alguns episódios de sua vida amorosa: os dois anos de relações conjugais e o rompimento com Simone Hié, consumado em Salzburgo, após uma discussão tempestuosa, estão transcritos nesse livro. Outro personagem feminino, de difícil identificação, desempenha um papel importante. Nas notas, poderemos encontrar algumas indicações mais precisas. Ficam algumas interrogações, que a pesquisa erudita talvez venha a responder algum dia: quem foi Lucienne? e Roland Zagreus? e o Doutor Bernard? etc...

       Parece-nos mais útil, nesse caso, esboçar uma gênese literária do que estabelecer a correspondência minuciosa entre um romance e uma vida.

       A primeira menção precisa, nos cadernos, do que se transformará em A Morte Feliz é um plano para a “Parte 11”, que só pode ser posterior à viagem à Europa Central. Os últimos esboços para A Morte Feliz datam de 1938. Encontra-se, ainda, o nome de Mersault em janeiro de 1939, mas, a partir daí, é O Estrangeiro que interessa a Camus. Assim é que A Morte Feliz foi concebida e elaborada de 1936 a 1938. E obra contemporânea dos ensaios de O Avesso e o Direito em sua primeira forma; dos ensaios de Núpcias em suas últimas transformações. A esse romance, sucede a primeira redação de Calígula.

       Para se ter a melhor idéia possível da forma pela qual esse romance foi elaborado, pode-se considerar inicialmente, a versão final. A Morte Feliz divide-se em duas partes, cada uma compreendendo cinco capítulos: “Morte Natural”, depois “A Morte Consciente”. No entanto, de 140 páginas datilografadas, a primeira parte só comporta 49, ou seja, pouco mais de um terço.

       A “Morte Natural” tem como núcleo central o assassinato de Roland Zagreus. O herói, Mersault, mata-o no primeiro capítulo, apodera-se de seu dinheiro e resfria-se ao voltar para casa. Os capítulos seguintes são um retorno ao passado: a vida comum de Mersault (cap. II); suas relações com Marthe e seu ciúme sexual (cap. III); sua longa conversa com Zagreus (cap. IV); e, finalmente, o encontro que teve com Cardona, o tanoeiro, cuja história infeliz é narrada (cap. V). Condensando, eis o fio condutor da narrativa: um empregado subalterno, de vida medíocre, Patrice Mersault, vizinho de um tanoeiro, cuja vida é ainda mais medíocre, amante de uma moça que teve como primeiro amante o inválido Roland Zagreus, entra, graças a ela, em contato com este último, e descobre, em conversa com ele, como fez a sua fortuna: aproveitando-se dessa confidência, assassina-o; parte, então em viagem, com a saúde claudicante, mas com a bolsa cheia.

       Os cinco capítulos de “A Morte Consciente” apresentam a estada de Mersault em Praga (cap. 1), a seqüência de sua viagem e o retomo, via Gênova, até Argel (cap. II), sua vida na Casa Diante do Mundo (cap. III), sua partida para o Chénoua, onde se instala numa casa que dá para o mar (cap. IV), e, finalmente, a pleurisia e a morte (cap. V). A linha narrativa é a seguinte: Mersault, em Praga, sente que a felicidade o abandona; retoma-lhe o gosto ao voltar para o sol. De volta a Argel, tenta duas experiências sucessivas de vida feliz: primeiro, em comunidade, com três amigas, na Casa Diante do Mundo, depois, numa solidão ascética, amenizada pelas visitas de sua mulher Lucienne ou das três amigas, no Chénoua. Conquistou a felicidade, conserva-a até a morte, ao evocar Zagreus.

       Esse breve resumo do romance ressalta o tema principal: como morrer feliz? Isto é, como viver feliz a tal ponto que a morte em si seja feliz? A primeira parte é o avesso deste bem-viver e bem-morrer, pela falta de dinheiro, de tempo e de tranqüilidade sentimental; a segunda, graças à independência financeira, ao equacionamento do tempo e à paz de espírito, é o direito. Estes são, de forma sumária, o conteúdo e o sentimento de A Morte Feliz em sua última versão.

       A divisão em duas partes é muito tardia. Todos os esboços do piano, sem exceção, até o ano de 1938, mostram três partes, e as tentativas de mudança só concernem à distribuição dos capítulos. Portanto, não é de se admirar a dissimetria (49 páginas em oposição a 91) que irrompe no plano final. A divisão tripartite, como comprova um projeto intitulado “redistribuição”, era mais equilibrada: cada parte teria ficado com mais ou menos o mesmo número de páginas.

       O plano final evidencia um sólido contraste. O mesmo não ocorre nos primeiros esboços. No entanto, o contraste, a alternância parecem logo de saída a mola estética da obra, assim como são a mola mestra da filosofia de Camus. Em uma nota na qual se propõe contar “seis histórias”:

História do jogo brilhante. Luxo.

História do bairro pobre. Morte da mãe.

História da Casa Diante do Mundo.

História do ciúme sexual.

História do condenado à morte.

História da descida em direção ao sol,

       Camus nos revela, pela própria ordem de enumeração, essa preocupação com a alternância. As seis histórias podem acoplar-se duas a duas. Mas até o mês de agosto de 1937, inclusive, ele procura duplicar o contraste de polaridade por um contraste de tempo: certos capítulos serão escritos no presente; outros, no passado. Ele chega até, num plano detalhado de “segunda parte”, a tentar fazer os tempos se entrelaçarem rigorosamente. Ele irá renunciar a este formalismo, que não se fundamenta em nenhuma necessidade interior. Mas um traço permanece no texto definitivo: o capítulo dedicado à Casa Diante do Mundo, evocação de uma felicidade pura e contínua, foi escrito no presente, como no projeto inicial.

       As seis histórias antes mencionadas formam o material primitivo daquilo que, pouco a pouco, constituirá o romance. Pode-se reconstituir a gênese do romance a partir delas, de sua metamorfose e distribuição.

       Os primeiros planos insistem na história da Casa Diante do Mundo, que ocupa, com a do ciúme sexual, a “segunda parte”. Eis o primeiro plano, tal como se lê nos cadernos:

 

“Parte II:

  1. no presente
  2. no passado

Cap. A1. A Casa Diante do Mundo. Apresentação.

Cap. B1. Ele se lembrava. Ligação com Lucienne.

Cap. A2. Casa Diante do Mundo. A sua juventude.

Cap. B2. Lucienne conta suas infidelidades.

Cap. A3. Casa Diante do Mundo. Convite.

Cap. B4. Ciúme sexual. Salzburgo. Praga.

Cap. A4. Casa Diante do Mundo. O sol.

Cap. B5. A fuga (carta). Argel. Resfria-se, fica doente.

Cap. A5. Noite diante das estrelas. Catherine.”

       A primeira parte é consagrada, então, como se vê em um plano posterior, de agosto de 1937, ao contraste jogo brilhante—bairro pobre; O Mito de Sísifo demonstrará mais tarde o que é o jogo brilhante, na trindade dom-juanismo, comédia, conquista; esse jogo opõe-se às vicissitudes da vida no “bairro pobre”. Então, esboça-se um duplo antagonismo, revelado por um projeto do mesmo mês de agosto de 1937:

 

“Parte I: A sua vida até então. Parte II: O jogo. Parte III: O abandono dos compromissos e a verdade na natureza.”

 

       A vida “até então” compreende a pobreza, as oito horas diárias de trabalho, o prosaico das relações sociais, ou, melhor dizendo, um modo de ser não-autêntico. O “jogo”, sobre o qual os cadernos são muito lacônicos, deveria designar uma espécie de dandismo, um avanço em relação à pobreza, orgulho no fruir gozo de si próprio, mas, ainda, a falta de autenticidade. Este antagonismo, na versão final de A Morte Feliz, perde sua importância, diluída nas conversas e resumida na promoção de Mersault. Em compensação, a conquista da autenticidade, por um movimento de fuga na solidão e na natureza, surge desde os primeiros esboços e permanece até o último momento de elaboração como a própria finalidade do romance.

       Mas A Morte Feliz não parece terminar, nos primeiros esboços, com a morte do herói: “gosto pela morte e pelo sol”, lê-se num plano; trata-se, apenas, de um gosto. Em outro plano, a morte é confrontada, mas situa-se no fim da primeira parte: “Ultimo capítulo: descida em direção ao sol e à morte (suicídio — morte natural).” Um traço a ser notado: morte e sol relacionados.

       Substitua-se o sol, imagem sensorial, pela felicidade, mito moral, e ter-se-á tomado um passo decisivo no sentido da concepção definitiva. Pode-se datar este passo de agosto de 1937, pela nota: “Romance: o homem que compreendeu que, para viver, é preciso ser rico, que se entrega por inteiro a essa conquista do dinheiro, obtém êxito, vive e morre feliz.” Pela primeira vez, nos cadernos, encontra-se um verdadeiro resumo de A Morte Feliz, e é então que, pela primeira vez, se encontra a palavra “romance”.

       O fio condutor desse romance fica claro a partir de então: será uma ilustração invertida do provérbio: “O dinheiro não traz a felicidade.” A felicidade através do dinheiro torna-se o tema principal, como se vê claramente no início de uma nota de 17 de novembro de 1937:

“17 de novembro.

Desejo de felicidade.

Parte III: Realização da felicidade.”

 

       Nesse momento, porém, surge o personagem Zagreus, que ainda é apenas “o inválido”, para esclarecer Mersault quanto ao problema das relações entre o dinheiro e o tempo, e para fazê-lo descobrir a verdade de outro provérbio: “Tempo é dinheiro”, válido, ainda, em sua forma invertida: “Dinheiro é tempo”, que formará um preceito fundamental de sua arte de viver, O último parágrafo da nota de 17 de novembro o comprova: “Para um homem ‘bem-nascido’, ser feliz é assumir o destino de todos, não com vontade de renúncia, mas com desejo de felicidade. Para ser feliz, é preciso tempo, muito tempo. A felicidade também é uma longa paciência. E quem nos rouba o tempo é a necessidade de dinheiro, O tempo se compra. Tudo se compra. Ser rico é ter tempo para ser feliz quando se é digno de sê-lo.”

       Assim, os diversos elementos do romance agrupam-se segundo a oposição entre tempo perdido e tempo ganho. O tempo perdido será o da pobreza, do trabalho, da vida prosaica: o capítulo consagrado à vida de Mersault intitular-se-á “Matar o tempo”, título que conviria também à ligação com Marthe e à viagem à Europa Central; o assassinato de Zagreus acabará com essa miserável odisséia do tempo perdido. Tempo ganho será o da Casa Diante do Mundo e da fuga na natureza. Daí, numa folha manuscrita, um projeto de plano em três partes, cujo capítulo inicial, a cada vez, era dedicado ao tempo. A primeira tem sete capítulos, a partir de “Matar o tempo”, que abrangem a vida de Mersault, as peripécias argelinas no retomo de Praga (isto é, as páginas de 1 a 75 da versão final): “1 de Matar o tempo”, escreve Camus, até “ele se sentia feito para a felicidade.” Essa última frase é encontrada mais ou menos como na página 75 da versão final “...compreendeu, afinal, que fora feito para a felicidade”.

       O capítulo inicial da segunda parte intitula-se, então, “Ganhar tempo” — trata-se da Casa Diante do Mundo — e o capítulo inicial da Parte III, “O tempo” Ao pensar em Proust, vê-se o romance tomar o rumo do tempo perdido, o do trabalho, para o do tempo ganho, o da ociosidade, entre as jovens em flor da Casa Diante do Mundo, para o tempo recuperado, que é o da harmonia com a natureza na solidão e na morte, resumida numa nota sucinta no manuscrito da última folha: “Tempo.” “Faz, no começo, muitas coisas; e, em seguida, abandona tudo. Não faz rigorosamente nada. Acompanha o tempo e, sobretudo, as estações (diário!)”. O tempo, que se tornara, sob a égide da felicidade, o tema principal, dá ao romance seu esqueleto e seu ritmo. A alternância presente-passado dos primeiros esboços não era indutora. Agora, do tempo pulverizado da Parte 1 ao futuro atemporal da III, a corrente deveria passar e unir as descrições átonas às entonações líricas. Atinge-se, assim, a última metamorfose do romance: sua redução a duas partes. Ela se explica por dois motivos: primeiro, o constrangimento de Camus com relação a episódios eróticos ou sentimentais. Ele deve tê-los limitado. No projeto antes citado, a Parte II , depois de “Ganhar tempo”, anunciava “Encontro com Lucienne” e, depois, “Partida de Catherine”. Camus não pôde, ou não quis, sob essas rubricas, organizar material suficiente. Em seguida, o episódio de Zagreus adquiriu suficiente consistência para formar o núcleo de um sistema. A fuga na Europa Central, que, originalmente, era ligada ao ciúme sexual, foi acrescentada.

       Mas Camus insiste nas suas três partes. Daí esse plano ainda, o último antes da contração final:

       “Parte I — 1°, o bairro pobre; 2°, Patrice Mersault; 3°, Patrice e Marthe; 4° (rasurada, pouco legível): P. e seus amigos (?); 5°, Patrice e Zagreus.”

       “Parte II — 1°, assassinato de Zagreus; 2°, fuga na angústia; 3°, retorno à felicidade.”

       “Parte III — 1°, as mulheres e o sol; 2°, a felicidade ardente e secreta em Tipasa; 3°, a morte feliz.”

       O título final foi encontrado, mas aplicado ao último capítulo. O episódio de Zagreus ainda não está bem definido. Resta transferir o crime, primeiramente para o fim e, depois, para o início da primeira parte. Então, a segunda parte, reduzida à viagem e ao retorno, fica pequena demais. Ela se funde com a última, sob um título comum, “A Morte Consciente”, que sanciona a fusão, pedindo um título paralelo de “Morte Natural”. Em contrapartida, os capítulos que eram dotados de um título perdem-no: o que se chamava “A Casa Diante do Mundo”, e depois “As Mulheres e o Sol”, e depois “As Mulheres e o Mundo”, sucede de agora em diante, sem aviso prévio, na luz insólita do presente do indicativo, ao relato do retomo de Praga. Eis reescrita — “reescrever Romance”, ordena-se Camus, em junho de 1938 — terminada, ou, pelo menos, remanejada, A Morte Feliz.

       Por que não foi publicada? Só examinaremos aqui os motivos puramente literários. Castex, em seu estudo sobre O Estrangeiro, pressupõe que este, no projeto imaginário de Camus, tenha suplantado A Morte Feliz, e vê no mês de agosto de 1937 o momento em que, na gestação deste, o tema de O Estrangeiro sub-repticiamente se introduz. E cita esse texto:

       “Um homem que procurou a vida onde normalmente nós a colocamos (casamento, posição etc...) e que se dá conta, de repente, ao ler um catálogo de moda, de quanto ele foi estranho à sua própria vida (a vida tal como se retrata nos catálogos de moda)”, que dá a primeira formulação do tema, embora ele se refira a A Morte Feliz.

       Essa hipótese é válida. Pode-se reforçá-la com uma reflexão sobre o valor romanesco de A Morte Feliz. Parece que Camus sentiu, à medida que elaborava, o círculo vicioso de sua primeira obra e uma outra possibilidade romanesca.

       Obra “ao mesmo tempo mal alinhavada e notavelmente bem escrita”, observa Roger Quilliot. Não se poderia dizê-lo melhor. As qualidades do estilista irrompem nesse trabalho, mas não as do romancista. Camus procura em vão ordenar e unificar materiais díspares: que relação há entre o assassinato imaginário de Zagreus e a crônica da viagem real a Praga? entre o quadro do miserável Cardona e a lembrança da Casa Diante do Mundo? A disparidade de tons agrava a dos episódios, sem que se possa desculpá-la por um gosto estudado pelo contraste: o patético, a vulgaridade, a descrição seca, o calor sensual, o lirismo solar alternam-se sem se ajustarem. Os episódios são numerosos demais e, às vezes, se duplicam: assim, após a morte da mãe de Mersault, inflige-nos a da mãe de Cardona. Os papéis femininos, sobretudo, são mal distribuídos: no trio das “burrinhas”, destaca-se Catherine, que, inicialmente — como o mostram os primeiros planos — tinha uma ligação com Mersault; mas Lucienne podia prevalecer-se da mesma vantagem. Os planos prevêem a ligação ora com uma, ora com outra. Lê-se também o nome de uma certa Lucile. Marthe, como se vê segundo uma correção, irá substituí-la, e assumirá uma parte dos papéis de Lucienne e Catherine. Ela será a ligação do tempo perdido, Catherine a do tempo recuperado. E óbvio que Camus não fica à vontade com suas mulheres. Elas fornecem uma ilustração literária do provérbio: “Quem beija demais, abraça mal.” Sente-se, na versão final, seu esforço no sentido de estabelecer suas respectivas atribuições, conservar seu traço ou organizar sua entrada em cena. O resultado é medíocre.

       Poderia ter sido melhor com mais trabalho ainda? A Morte Feliz, na qualidade de romance, está condenada em seu princípio. “A qualidade de um romance”, lê-se em recente trabalho sobre o gênero do romance, “depende da tensão na qual se unem a observação exata e a correção ou o aprofundamento do real pelo imaginário.” A esta regra nenhum romance pode fugir. Ora, em A Morte Feliz os elementos de observação, isto é, os trechos autobiográficos, ficam deslocados: lembranças do bairro pobre, do sanatório, da Casa Diante do Mundo, da viagem à Europa Central, das figuras femininas não são tratadas, no sentido químico, para se integrarem em “um todo, um mundo fechado e unificado”, semelhante ao de Proust, que O Homem Revoltado apresentará como modelo. Esses só formariam um todo se retomados pela imaginação criadora. Ora, esta última, em A Morte Feliz, só atua ao nível do estilo. A invenção dos episódios ou dos personagens é muito pobre: nem o assassinato de Zagreus, inspirado em A Condição Humana ou em Crime e Castigo, nem o próprio personagem acedem à verdade romanesca. Nesse romance impossível, são válidas apenas as cenas vividas, que lembram o estilo de O Avesso e o Direito e não se distinguem, quanto à forma, de A Ironia ou A Morte da Alma, ou das evocações líricas ligadas às de Núpcias. O melhor do romance não é o romance. Será que Camus sentiu isso claramente? Ele não o confessa em nenhum ponto. Mas é mais que provável que pelo menos o seu subconsciente de artista o advertisse quanto ao seu erro, dirigindo-o, a contragosto, a um caminho melhor. Parafraseando uma sugestiva comparação de naturalista de Gide, na crisálida de A Morte Feliz formava-se a larva de O Estrangeiro. A Morte Feliz prosseguia em sua ninfose enganadora, o autor esforçava-se para reescrevê-la e reanimá-la em todas as suas partes, mas O Estrangeiro, na qualidade de parasita inspirado, tirara o melhor proveito desse trabalho, que, afinal, em lugar de um falso romance, daria um verdadeiro conto.

       Terminaremos, portanto, este estudo por um breve paralelo entre A Morte Feliz e O Estrangeiro*. Roger Quilliot mostrou que “Mersault é... o irmão caçula de Mersault”; ressaltou que certos episódios e personagens secundários são comuns aos dois textos; mas é sensível, sobretudo, às diferenças, e chega a escrever: “Os dois enredos não têm ligação alguma...”, ou “A Morte Feliz não é absolutamente a matriz de O Estrangeiro, é outro livro diferente...”

       No entanto, apesar das evidentes diferenças de enredo, de elaboração e de intenção, pode-se ver, em A Morte Feliz, uma prefiguração de O Estrangeiro, e até mesmo a sua matriz, se retirarmos desse termo o seu sentido biológico. Para convencer-se disso, basta comparar a estrutura das duas obras: A Morte Feliz, em sua última forma, está reduzida a duas partes, A passagem da divisão ternária à divisão binária significa para Camus a renúncia a uma divisão clássica, em que seria organizada a síntese dos contrários, em favor de uma dialética mais pessoal, em que os contrários seriam postos em curto-circuito. Sob este ponto de vista, O Estrangeiro é apenas um decalque de A Morte Feliz: duas partes igualmente, e quase o mesmo número de capítulos (seis e cinco para cinco e cinco). O esquema da Parte 1, tanto num livro quanto no outro, é sensivelmente o mesmo: cenas da vida prosaica, depois conversa com o homem do cachorro (Salamano ou Cardona), depois um assassinato, o de Zagreus (anteposto, por artifício, in extremis) ou do árabe. Esse assassinato precipita o herói da artificialidade à verdade. Aparentemente, as segundas partes respectivas não têm mais nada em comum. Naturalmente, a viagem a Praga ou a Casa Diante do Mundo, elementos não-assimiláveis em uma narrativa simbólica, desapareceram de O Estrangeiro. Mas, tome-se Mersault em seu retiro do Chénoua, e Mersault em sua prisão argelina, e descobrir-se-á uma correspondência no ritmo das visitas que os distraem, nas estações que os comovem, no tempo imponderável que os conduz aos últimos momentos. E se seu destino parece pouco semelhante, porque um cometeu um crime perfeito, do qual se beneficia, enquanto o outro, criminoso sem talento, toma-se presa dos juízes, é preciso não esquecer que o problema de ambos é o da morte feliz — “O Estrangeiro ou um Homem Feliz”, sustenta um manuscrito como subtítulo — e que ambos o resolvem de modo vitorioso, em harmonia com o mundo e liberados pelos homens.

       Não se faz senão um esboço de comparação, que um estudo atento poderia fundamentar em profundidade, desde que se prendesse menos à matéria do que ao modo dessas duas obras. A superioridade de O Estrangeiro só ficaria, desta forma, mais evidenciada. Mas será necessário dizer, finalmente, que A Morte Feliz, não publicada por Camus, antes de ser uma obra, é um documento, e que basta para sua glória que, neste documento, figurem para crédito de seu gênio peças positivas?

       Deixamos ao leitor o prazer de descobri-las.

 

* O paralelo com Calígula, num estudo completo, seria obrigatório.

 

  

  

 

                                                         CAPÍTULO I

       Eram 10h da manhã, e Patrice (1) Mersault caminhava, com passos regulares, em direção à (2) villa de Zagreus (3). Aquela hora, a governanta saíra para o mercado, e a villa estava deserta (4). Era (5) abril, e fazia uma bela manhã de (6) primavera, cintilante e fria, de um azul puro e gelado, com um grande sol resplandecente, mas sem calor. Perto da villa, por entre os pinheiros que guarneciam as alamedas, escorria uma luz pura ao longo dos troncos (7). A estrada estava deserta. Subia um pouco. Mersault tinha na mão uma mala, e, na glória dessa manhã do mundo, avançava entre o ruído seco de seus passos na estrada fria e o ranger ritmado da alça da mala.

       Um pouco antes da villa, a estrada desembocava numa pracinha, guarnecida de bancos e jardins. Gerânios precoces e vermelhos entre os aloés cinzentos, o azul do céu e os muros caiados, tudo era tão fresco e infantil que Mersault se deteve por um momento, antes de retomar o caminho que, da praça, descia em direção à villa de Zagreus. Diante do patamar, parou e calçou as luvas (8). Abriu (9) a porta, que o inválido mantinha sempre encostada, e tornou a fechá-la com naturalidade. Avançou pelo corredor, e, chegando à terceira porta à esquerda, bateu e (10) entrou. Efetivamente, Zagreus estava lá, numa poltrona, com uma manta sobre os cotos de suas pernas, junto à lareira (11), no lugar exato que Mersault ocupara dois dias antes. Estava lendo, e o livro repousava sobre as cobertas, enquanto ele, com uns olhos onde não se lia nenhuma surpresa, fitava Mersault, agora parado diante da porta fechada. As cortinas estavam puxadas, e, no chão, sobre os móveis e nos cantos dos objetos, havia réstias de sol. Por trás das vidraças, a manhã ria (12) sobre a terra doura4a e fria. Uma grande alegria gélida (13), gritos agudos de pássaros de voz insegura e um transbordar de luz impiedosa davam à manhã uma fisionomia (14) de inocência e verdade. Mersault detivera-se, tomado, na garganta e nas orelhas, pelo calor sufocante do recinto. Apesar da mudança de tempo, Zagreus acendera o fogo na lareira. E Mersault sentia o sangue subir-lhe às têmporas e pulsar na ponta das orelhas. O outro, sempre silencioso, seguia-o com os olhos. Patrice caminhou (15) até o baú, do outro lado da lareira, e, sem olhar para o inválido, depositou a mala sobre a mesa. Nesse momento, sentiu um tremor imperceptível nos tornozelos. Deteve-se, levando à boca um cigarro, que acendeu desajeitadamente, por causa das mãos enluvadas. Atrás dele, um pequeno ruído. Com o cigarro nos lábios, virou-se. Zagreus continuava olhando para ele, mas acabara de fechar o livro. Mersault, enquanto sentia o fogo aquecer-lhe os joelhos até doerem, leu o título de cabeça para baixo: L’Homme de Cour, de Baltasar Gracian. Inclinou-se, sem hesitar, em direção ao baú, abrindo-o. Preto e branco, o revólver reluzia em todas as suas curvas, como um gato bem tratado, e continuava pousado sobre a carta de Zagreus. Mersault pegou-a com a mão esquerda, e o revólver, com a direita. Depois de alguma hesitação, passou a arma para baixo do braço esquerdo e abriu a carta. Continha uma única folha de papel, coberta com apenas algumas linhas na escrita angulosa de Zagreus:

       “Só estou suprimindo uma metade de homem. Não sejam severos comigo. Encontra-se no meu pequeno baú muito mais do que é preciso para libertar os que me serviram até agora. Quanto ao resto, é meu desejo que seja consagrado à melhoria do regime dos condenados à morte. Mas tenho consciência de que é pedir demais.”

       Mersault, com o rosto fechado, tornou a dobrar a carta, e, nesse momento, a fumaça do cigarro veio arder-lhe nos olhos, enquanto um pouco de cinza caía sobre o envelope. Sacudiu o papel, colocou-o bem à vista na mesa e virou-se para Zagreus. Este olhava agora para o envelope, e suas mãos, curtas e musculosas, permaneciam em volta do livro. Mersault inclinou-se, girou a chave no cofre e pegou os maços de que se viam apenas os contornos através de seu envelope de papel pardo. Com a arma sob o braço, encheu compassadamente a mala com uma só mão. Havia menos de 20 pacotes de 100, e Mersault compreendeu que trouxera uma mala grande demais. Deixou no cofre um maço de cem notas. Fechando a mala, atirou no fogo o cigarro consumido pela metade, e, tomando o revólver na mão direita, aproximou-se do inválido.

       Zagreus agora olhava pela janela. Ouviu-se um automóvel passar lentamente diante da porta, com um ruído leve de mastigação. Zagreus, sem se mexer, parecia contemplar (16) toda a beleza desumana da manhã de abril. Quando sentiu o cano do revólver na têmpora direita, não desviou os olhos. Mas Patrice, que o fitava, viu seu olhar encher-se de lágrimas. Foi ele que fechou os olhos. Deu um passo atrás e atirou. Por um momento, apoiado na parede, com os olhos sempre fechados, sentiu o sangue latejar novamente nas orelhas. Abriu os olhos. A cabeça fora lançada sobre o ombro esquerdo, o corpo um pouco desviado. Se bem que não se visse mais Zagreus, e sim uma enorme ferida no seu relevo de massa encefálica, de osso e de sangue. Mersault começou a tremer. Passou para o outro lado da poltrona, tomou-lhe a mão direita, fê-lo pegar o revólver, ergueu-o até a altura da têmpora e deixou-o cair novamente. O revólver caiu no braço da poltrona e, daí, foi parar nos joelhos de Zagreus. Nesse movimento, Mersault distinguiu a boca e o queixo do inválido. Tinha a mesma expressão séria e triste de quando olhava pela janela. Naquele momento, uma buzina soou diante da porta. O chamado irreal fez-se ouvir uma segunda vez. Mersault, sempre curvado sobre a poltrona, não se mexeu. O deslizar de um veículo em movimento anunciou a partida do açougueiro. Mersault pegou a mala, abriu a porta, cuja maçaneta reluzia sob um raio de sol, e saiu, com a cabeça latejando e a língua seca. Atravessou a porta de entrada e saiu com largas passadas. Não havia ninguém, a não ser um grupo de crianças, numa ponta da pracinha. Afastou-se. Ao chegar à praça, subitamente tomou consciência do frio e sentiu um arrepio sob o paletó leve. Espirrou duas vezes, e o vale encheu-se com os ecos claros e zombeteiros, que o cristal do céu elevava cada vez mais alto. Um pouco vacilante, deteve-se, contudo, e respirou com força (17). Do céu azul, desciam milhões de pequenos sorrisos brancos. Brincavam nas folhas ainda cheias de chuva, nos tufos úmidos das alamedas, voavam em direção às casas de telhas cor de sangue fresco e tomavam a subir voando, em direção aos lagos de ar e de sol de onde logo transbordavam. Um suave ronronar descia de um minúsculo avião, que navegava lá no alto. Nessa expansão do ar e nessa fertilidade do céu, parecia que a única tarefa dos homens era viver e ser feliz. Mas tudo se calava em Mersault. Um terceiro espirro o sacudiu, e ele sentiu uma espécie de calafrio de febre. Então, fugiu, sem olhar à sua volta, ao ranger da mala e ao som de seus passos. Chegando à sua casa, colocou a mala num canto, deitou-se e dormiu até o meio da tarde (18).

 

                                                              CAPÍTULO II

       O verão (1) enchia o porto de clamores e de sol (2). Eram 11h30min. O dia abria-se ao meio para esmagar os cais com todo o peso de seu calor. Diante dos armazéns da Câmara de Comércio de Argel, os “Schiaffino” de casco negro e chaminé vermelha embarcavam sacas de trigo. O cheiro de poeira fina misturava-se aos pesados odores de alcatrão que o sol quente fazia eclodir. Diante de uma pequena barraca com cheiro de verniz e de anisete, alguns homens bebiam, e acrobatas árabes, de malha vermelha, giravam e tomavam a girar o corpo sobre as pedras ardentes, diante do mar, onde a luz se refletia. Sem olhar para eles, os estivadores, com as sacas, ocupavam-se sobre as duas pranchas que subiam do cais para o convés dos cargueiros. Ao chegarem no topo, subitamente recortados no céu e sobre a baía, entre os guindastes e mastros, detinham-se, por um segundo, deslumbrados diante do céu, com os olhos brilhantes no rosto coberto por uma massa esbranquiçada de suor e poeira, antes de mergulhar às cegas no porão, que cheirava a sangue quente. No ar escaldante, uma sirene tocava sem cessar.

       De repente, na passarela, os homens pararam desordenadamente. Um deles havia caído entre as tábuas, próximas o suficiente para retê-lo. Mas, com o braço preso às suas costas, esmagado sob o enorme peso da saca, gritava de dor. Nesse momento, Patrice Mersault saiu de seu escritório. Na soleira da porta, o verão cortou-lhe a respiração. Aspirou com a boca toda aberta o vapor de alcatrão que lhe arranhava a garganta e deteve-se diante dos estivadores. Haviam libertado o ferido, que, com os lábios esbranquiçados pelo sofrimento, tinha pendente o braço quebrado acima do cotovelo. Uma lasca de osso atravessara a carne, numa ferida horrenda, da qual escorria o sangue. Deslizando ao longo do braço, as gotas de sangue caíam, uma por uma, sobre as pedras ardentes, com um pequeno chiado, do qual subia um vapor. Imóvel, Mersault olhava o sangue, quando o agarraram pelo braço. Era Emmanuel, o rapaz das entregas. Mostrara-lhe um caminhão que vinha na sua direção, com um clamor de correntes e explosões.

       — Vamos? — Patrice correu. O caminhão ultrapassou-os. Em seguida, lançaram-se atrás do veículo, mergulhados no barulho e na poeira, ofegantes e cegos, lúcidos apenas o suficiente para se sentirem enlevados pelo impulso desenfreado da corrida, num ritmo desvairado de guindastes e de máquinas, acompanhados pela dança dos mastros no horizonte, e o balanço dos cascos podres. Mersault foi o primeiro a apoiar-se, seguro de seu vigor e de sua leveza, e saltou. Ajudou Emmanuel a sentar-se, com as pernas penduradas, e, em meio à poeira branca de giz, ao vapor luminoso que descia do céu, ao sol, ao imenso e fantástico cenário do porto inchado de mastros e guindastes negros, o caminhão afastou-se a toda velocidade, fazendo saltar, sobre os paralelepípedos desnivelados do cais, Emmanuel e Mersault, que riam até perder o fôlego, numa vertigem de sangue.

       Ao chegarem a Belcourt, Mersault desceu com Emmanuel, que cantava, alto e desafinado.        — Sabe — dizia a Mersault — é uma coisa que vem do peito, quando fico contente. Ou quando tomo banho de mar.

       Era verdade. Emmanuel cantava ao nadar, e sua voz, que a opressão, imperceptível sob o mar, tornava rouca, ritmava os gestos de seus braços curtos e musculosos.

       Subiram a rua de Lyon. Mersault caminhava com largas passadas, muito alto, balançando os ombros largos e musculosos. Pela maneira como colocava o pé na calçada em que ia subir, pela forma de evitar, com um golpe esquivo dos quadris, a multidão que, em determinados momentos, o cercava, sentia-se (3) um corpo estranhamente jovem e vigoroso, capaz de levar seu donos aos extremos da alegria (4) física Em repouso, descansava o corpo sobre um quadril só, com uma ligeira demonstração de leveza, como um homem que aprendera no esporte o estilo do corpo (5).

       Seus olhos brilhavam sob as sobrancelhas um pouco espessas e, enquanto falava com Emmanuel, com um gesto automático, com um movimento crispado dos lábios curvados e ágeis, puxava o colarinho para liberar o pescoço. Entraram no seu restaurante. Instalaram-se e comeram em silêncio. Estava fresco na sombra. Havia moscas, tilintar de pratos e conversas. O proprietário, Céleste, dirigiu-se a eles. Grande e bigodudo, coçava a barriga por cima do avental, que, em seguida, deixava cair novamente (6).

       — Tudo bem — falou Emmanuel. — Como os velhos. — Céleste e Emmanuel trocavam saudações “O, colega!” e tapas no ombro.

       — Sabe, os velhos — dizia Céleste — são um pouco idiotas. Dizem que um verdadeiro homem é o homem de 50 anos. Mas isso é porque têm 50 anos. Eu tinha um colega que só se sentia bem com o filho. Saíam juntos. Farreavam. Iam ao cassino, e meu colega dizia: “Por que querem que eu saia com todos esses velhos? Todos os dias, me dizem que tomaram um purgante, que estão com dor no fígado. E melhor eu sair com meu filho. Quando ele arranja uma menina, eu finjo que não vejo nada, pego um bonde. Até logo e obrigado. Fico muito contente.” — Emmanuel ria. — E claro — falou Céleste — não era uma autoridade, mas eu gostava dele. — E dirigia-se a Mersault. — E, depois, gosto mais disso que de um amigo que tive. Quando ficou importante, falava comigo levantando a cabeça e com pequenos sinais. Agora, está menos prosa, perdeu tudo.

       — Bem feito — disse Mersault.

       — Ah, a gente não precisa ser sujo na vida. Ele aproveitou e teve razão (7). Tinha 900 mil francos... Ah, se fosse eu!

       — Você faria o quê? — perguntou Emmanuel.

— Compraria um barraco, poria um pouco de cola no umbigo e uma bandeira. Assim, eu esperaria para ver de que lado sopra o vento (8).

       Mersault comia (9) com tranqüilidade. Até que Emmanuel começou a contar ao proprietário a sua famosa batalha no Mame.

       — Nós, os zuavos, fizeram-nos ficar de atirador...

       — Você está enchendo — disse Mersault, calmo.

       — O comandante disse: “Atirar!” E depois a gente descia, era uma espécie de barranco com árvores. Ele nos disse para atacar, mas não havia ninguém diante de nós. Então, marchávamos, marchávamos, sempre em frente, assim. E depois, de repente, as metralhadoras começam a despejar tiros em cima de nós. Caímos todos, uns sobre os outros. Havia tantos feridos e mortos que, no fundo do barranco, o sangue poderia ser atravessado de canoa. Havia uns que gritavam “Mamãe!” era terrível...

       Mersault levantou-se e deu um nó no guardanapo. O proprietário foi marcar com giz o almoço, atrás da porta da cozinha. Esse era o seu livro de contas. Quando havia contestação, ele tirava a porta das dobradiças e carregava as contas nas costas (10). Num canto, René, o filho do dono, comia um ovo quente.

       — Coitado — disse Emmanuel — vai morrer do peito.

       Era verdade. René geralmente era silencioso e sério. Não era magro demais, mas o olhar era brilhante. Naquele momento, um consumidor lhe explicava que a tuberculose “com tempo e com cuidado, se cura”. Ele concordava e respondia gravemente, entre duas garfadas. Mersault aproximou-se dele no balcão para tomar um café. O outro continuava:

       — Conheceu o Jean Pérez? Aquele da Companhia de Gás. Morreu. Só tinha um pulmão doente. Mas quis sair do hospital e voltar para casa. Lá, ele tinha a mulher. Ela é um verdadeiro touro. E ele, a doença o deixou assim. Sabe, estava sempre em cima dela. E ela não queria. Mas ele era terrível, e isso, duas, três vezes por dia, isso acaba matando um homem doente. — René, com um pedaço de pão entre os dentes, tinha parado de comer e olhava fixo para o homem.

       — Sim — disse, afinal — a doença vem depressa, mas demora muito para ir embora.

       Mersault escreveu o nome com o dedo numa cafeteira coberta de vapor. Piscou os olhos. Do tuberculoso calmo a Emmanul cheio de canções, sua vida oscilava todos os dias nos odores de café e alcatrão, isolada dele próprio e de seu interesse, estranha a seu coração e à sua verdade. As mesmas coisas que, em outras circunstâncias, o teriam apaixonado, faziam-no calar sobre elas, já que as vivia, até o momento em que se via novamente no quarto e empenhava-se com toda a força e precaução para apagar a chama de vida que lhe ardia no peito.

       — Mersault, você que tem instrução, o que acha? — perguntava o dono.

       — Sim, tudo bem — falou Patrice — você vai sobreviver.

       — Ah, você acordou com o pé esquerdo, hoje.

       Mersault sorriu e, deixando o restaurante, atravessou a rua e subiu até o quarto. Ficava em cima de um açougue de carne de cavalo. Debruçando-se na varanda, chegava até ele o cheiro de sangue e conseguia ler o cartaz: “A mais nobre conquista do homem”.

       Estendeu-se na cama, fumou um cigarro e pegou no sono.

       Instalara-se no quarto de sua mãe. Durante muito tempo, viveram no pequeno apartamento de três peças. Sozinho, Mersault alugara dois cômodos a um amigo tanoeiro, que vivia com a irmã, e conservara o quarto melhor. A mãe havia morrido aos 56 anos. Bonita, achara que podia ser coquete, viver bem e brilhar. Por volta dos 40, um terrível mal apossara-se dela. Fora despojada de vestidos e de pintura, reduzida às camisolas dos doentes, o rosto deformado por terríveis inchações, quase imobilizada por causa das pernas inchadas e sem vigor, meio cega, enfim, tateando perdidamente num apartamento sem cores, que deixava ao abandono. O golpe foi súbito e rápido. Era portadora de diabetes, que não tratara e até favorecera pela sua vida despreocupada. Ele fora obrigado a deixar os estudos para trabalhar. Até a morte da mãe, continuara a ler e a refletir. E, durante 10 anos, a doente suportara essa vida. O martírio havia durado tanto, que os que a cercavam acostumaram-se à doença e esqueceram que, gravemente doente, ela podia sucumbir. Um dia, morreu. No bairro, todos ficaram com pena de Mersault. As expectativas eram grandes em torno do enterro. Todos lembravam o sentimento do filho pela mãe. Os parentes afastados foram obrigados a jurar que não chorariam, para que Patrice não sentisse sua dor aumentar. Suplicaram-lhes que o protegessem e a ele se dedicassem. Patrice, no entanto, vestiu-se da melhor forma que pôde, e, de chapéu na mão, contemplou os preparativos. Acompanhou o cortejo, assistiu ao ofício religioso, jogou o seu punhado de terra e apertou a mão de todos. Apenas uma vez espantou-se e manifestou seu descontentamento com o fato de haver tão poucos carros para os convidados. Foi só. No dia seguinte, viu-se numa das janelas do apartamento o cartaz: “Aluga-se.” Agora, ele morava no quarto da mãe. Antes, a pobreza junto da mãe tinha uma certa ternura. Quando se reencontravam ao anoitecer e comiam em silêncio à volta do lampião a querosene, havia uma felicidade secreta naquela simplicidade e naquele recolhimento. O bairro à volta deles era silencioso. Mersault olhava a boca cansada da mãe e sorria. Ela também sorria. Ele tornava a comer. O lampião soltava um pouco de fumaça. A mãe o regulava com o mesmo gesto gasto, apenas com o braço direito estendido e o corpo caído para trás.

       — Você não está com fome — dizia, pouco depois. — Não. — Ele fumava ou lia. No primeiro caso, a mãe dizia: — Outra vez! — E no segundo: — Chegue mais perto do lampião, vai cansar os olhos.

       Agora, ao contrário, a pobreza na solidão era uma terrível miséria. E quando Mersault pensava com tristeza na falecida, era para si próprio, na verdade, que sua piedade se voltava. Ele teria podido morar com mais conforto, mas gostava deste apartamento e de seu cheiro de pobreza. Ali, pelo menos, reencontrava tudo o que fora, e, numa vida em que procurava voluntariamente apagar-se, esse confronto sórdido e paciente permitia-lhe, ainda, apelar para si mesmo nas horas de tristeza e de arrependimento. Deixara na porta um pedaço de papelão cinzento, roído nos bordos, em que sua mãe escrevera o nome com um lápis azul. Conservara a velha cama de cobre, forrada de cetim de algodão, o retrato do avô com sua barbicha e os olhos claros imóveis. Sobre a lareira, pastores e pastoras rodeavam um antigo relógio de pêndulo, parado, e um lampião a querosene que ele quase nunca acendia. O cenário duvidoso das cadeiras de palha um pouco afundadas, do armário com o espelho amarelado e da penteadeira à qual faltava um canto, não existia para ele, porque o hábito retocava tudo. Passeava na sombra de um apartamento que não lhe exigia nenhum esforço. Em um outro quarto, seria preciso habituar-se ao novo, e, mesmo assim, lutar. Queria diminuir a superfície que oferecia ao mundo e dormir até que tudo se consumasse. Para estes fins, o quarto servia. Lima parte dava para a rua, e outra, para um pátio sempre coberto de roupa, e, além do pátio, para pequenos jardins de laranjeiras comprimidas entre muros altos. As vezes, nas noites de verão, ele deixava o quarto escuro e abria a janela para o pátio e os jardins escuros. Da noite para noite, o cheiro de laranja chegava forte e o envolvia com seus mantos leves. Todas as noites de verão, ele e o quarto ficavam imersos naquele perfume, ao mesmo tempo sutil e denso, e era como se, morto durante longos dias, abrisse pela primeira vez a janela para a vida.

       Despertou com a boca cheia de sono e coberto de suor. Era muito tarde. Penteou-se, desceu correndo e pegou um bonde. As 14h05min estava no escritório. Trabalhava numa peça grande, cujas quatro paredes eram cobertas por 414 nichos onde se amontoavam as pastas de papéis. A peça não era suja, nem sórdida, mas lembrava, a qualquer hora do dia, um pombal onde as horas mortas teriam apodrecido. Mersault verificava os conhecimentos, traduzia as listas de provisões dos navios ingleses, e, das 15 às 16 horas, recebia os clientes que desejavam expedir pacotes. Ele pedira esse trabalho, que, na realidade, não lhe agradava. Mas no início, encontrava nisso uma porta de saída para a vida. Havia rostos vivos, os freqüentadores assíduos, uma paisagem e um sopro em que, afinal, sentia o coração bater. Escapava, assim, dos rostos das três datilógrafas e do chefe do escritório, o Sr. Langlois (11) Uma das datilógrafas era bem bonita e recém-casada. A outra vivia com a mãe, e a terceira era uma velha senhora, enérgica e digna, com uma linguagem rebuscada e uma reserva sobre os seus “dramas”, segundo Langlois, que ele apreciava. Langlois tivera com ela brigas decisivas, em que a velha Senhora Herbillon sempre levava vantagem. Ela desprezava Langlois pelo suor que lhe colava as calças às nádegas e pela perturbação de que era tomado diante do diretor, e, às vezes, no telefone, ao ouvir o nome de um advogado ou de um medalhão (12). O infeliz tentava em vão suavizar a velha senhora ou encontrar o caminho de suas boas graças. Naquela tarde, ele se pavoneava (13) no meio do escritório.

       — Não é verdade, Senhora Herbillon, que me acha simpático?

       Mersault traduzia vegetable, vegetais (14), contemplava acima da cabeça a lâmpada e seu abajur de papelão verde ondulado. Diante dele, havia um calendário de cores berrantes que representava o perdão dos Terre-Neuvas. Uma almofada de carimbos, um mata borrão, um tinteiro e uma régua alinhavam-se sobre a mesa. As janelas davam para enormes pilhas de madeiras trazidas da Noruega por cargueiros amarelos e brancos. Ele aguçava os ouvidos. Atrás da parede, a vida respirava com grandes golpes surdos e profundos sobre o mar e o porto. Tão longe, e ao mesmo tempo, tão perto... A campainha das 18 horas o liberou. Era sábado.

       Ao voltar para casa, deitou-se e dormiu até a hora do jantar. Fritou ovos e comeu-os (sem pão, porque se esquecera de comprá-lo), depois deitou-se e logo dormiu até a manhã do dia seguinte. Acordou um pouco antes do café, arrumou-se e desceu para comer. Tornou a subir, fez palavras cruzadas, recortou minuciosamente um anúncio dos sais Kruschen, que colou (15) num caderno já cheio de velhinhos brincalhões descendo pelos corrimãos de uma escadaria. Feito isto, lavou as mãos e foi para a varanda. A tarde estava linda (16). No entanto, o calçamento mostrava-se gorduroso, as pessoas eram raras e apressadas. Seguia cada homem com o olhar, atento, deixando-o quando saía do alcance de seus olhos para voltar a um novo transeunte. No início, eram famílias que passeavam, dois meninos com roupa de marinheiro, a calça abaixo dos joelhos, desajeitados em suas roupas engomadas, e uma menina, com um laçarote rosa, de sapatos pretos de verniz. Atrás deles, a mãe de vestido de seda marrom (17), animal monstruoso envolto num boá, o pai, mais distinto, de bengala na mão. Pouco depois. passaram os rapazes do bairro, de cabelos gomalinados e gravata vermelha, paletó muito cintado, lenço bordado e sapatos de bico quadrado. Iam aos cinemas do centro e corriam para o bonde, rindo alto. Depois deles, a rua, pouco a pouco, ficou deserta. Em todos os lugares, os espetáculos tinham começado. Agora, o bairro estava entregue aos comerciantes e aos gatos. O céu, embora puro, não tinha brilho acima dos fícus que margeavam a rua. Diante de Mersault, o dono da tabacaria tirou uma cadeira e, diante da loja, sentou-se ao contrário, apoiando os dois braços sobre o encosto. Os bondes, cheios há pouco, estavam quase vazios. No pequeno café Chez Pierrote, o garçom varria a serragem na sala deserta. Mersault virou a cadeira, colocou-a na mesma posição que a do dono da tabacaria e fumou dois cigarros, um após o outro. Voltou para o quarto, partiu um pedaço de chocolate e veio comê-lo à janela. Pouco depois, o céu ficou nublado, e, de repente, descobriu-se. Mas a passagem das nuvens deixara sobre a rua como que uma promessa de chuva, que a tornava mais escura. As 17 horas, os bondes chegavam, barulhentos, trazendo de volta dos estádios de subúrbio pencas de espectadores, empoleirados nos degraus e estribos. Os próximos bondes traziam os jogadores, que eram reconhecidos pelas maletas. Berravam e cantavam a plenos pulmões que seu clube não sucumbiria. Vários deles fizeram sinais para Mersault. Um deles gritou:

       — Demos uma surra neles!

       — Sim — disse apenas Mersault, sacudindo a cabeça. Os carros se tornaram, então, mais numerosos. Alguns tinham carregados de flores os pára-choques. Depois, o dia avançou um pouco mais. Acima dos telhados, o céu tornava-se avermelhado. Com a noite que nascia, as ruas animaram-se novamente. Os passeios recomeçavam. Cansadas, as crianças choravam ou deixavam-se arrastar. Naquele momento, os cinemas do bairro despejavam na rua uma onda de espectadores. Mersault reencontrava, nos gestos decididos e ostentatórios dos jovens que dele saíam, o comentário inconsciente do filme de aventuras que tinham visto. Os que voltavam dos cinemas da cidade chegaram um pouco mais tarde. Estavam mais sérios. Entre os risos e as piadas, ressurgia-lhes, nos olhos e no andar, uma espécie de nostalgia daquelas vidas de estilo brilhante que o cinema lhes mostrara. Ficaram na rua, indo e vindo. E, na calçada diante de Mersault, duas correntes acabaram por se formar. As moças do bairro, de cabeça descoberta, ficavam de braços dados e formavam uma delas. Os rapazes, do outro, lançavam-lhes piadas das quais elas riam, virando a cabeça. As pessoas sérias entravam nos cafés ou formavam grupos (18) nas calçadas, contornados como ilhas pela vaga humana que circulava. A rua agora estava iluminada, e a luz elétrica fazia empalidecer as primeiras estrelas que subiam na noite. Lá embaixo, as calçadas estendiam-se com seus carregamentos de homens e de luzes. A luz fazia brilhar o calçamento gorduroso (19) e os bondes, à distância, colocavam seus reflexos sobre cabelos brilhantes, lábios úmidos, um sorriso ou uma pulseira de prata. Pouco depois, com os bondes escasseando e a noite já negra, acima das árvores e dos postes, o bairro esvaziou-se, e o primeiro gato atravessou lentamente a rua novamente deserta. Mersault pensou no jantar. Estava com um pouco de dor no pescoço por ter ficado tanto tempo apoiado no encosto da cadeira. Desceu para comprar pão (20) e massas, preparou sua refeição e comeu. Voltou à janela. As pessoas saíam, o ar refrescara. Ele tremia, fechou as vidraças (21) e veio até o espelho, em cima da lareira. A não ser em certas noites, quando recebia Marthe ou saía com ela, ou, ainda, quando escrevia para suas amigas de Túnis, toda a sua vida estava naquela perspectiva amarelada que o espelho refletia, de um quarto em que o lampião a álcool, imundo, convivia com pedaços de pão.

       — Mais um domingo — disse Mersault.

 

                                                         CAPÍTULO III

       À noite, quando Mersault passeava pelas ruas, orgulhoso de ver as luzes e as sombras brilharem igualmente no rosto de Marthe, tudo lhe parecia maravilhosamente fácil, até a própria força e coragem. Essa beleza que ela despejava sobre ele todos os dias, como a mais fina embriaguez, ficava reconhecido que a ostentasse em público e a seu lado’. Se Marthe fosse insignificante, isso o teria feito sofrer tanto quanto vê-la feliz e desejada pelos homens.

       Ficava contente ao entrar no cinema com ela nessa noite, um pouco antes de o filme começar, com a sala quase cheia. Caminhava à sua frente, por entre os olhares admiradores, com o rosto florido e sorridente e sua beleza violenta. Ele, de chapéu na mão, sentia uma desenvoltura sobrenatural, como uma consciência interior de sua própria elegância. Assumiu um ar longínquo e sério. Exagerou a cortesia (2), afastou-se para deixar passar o lanterninha, abaixando o assento de Marthe antes que se sentasse. E era menos por desejo de aparecer do que devido a esse reconhecimento que lhe inflava o coração e o enchia de amor por todos os seres. Se deu uma gorjeta exagerada ao lanterninha, foi também porque não sabia como parar sua alegria e porque, através desse gesto de todos os dias, adorava uma divindade cujo sorriso resplandecente brilhava como um óleo em seu olhar. No intervalo, passeando pelo vestíbulo forrado de espelhos, era a fisionomia de sua felicidade que lhe refletiam as paredes, povoando a sala de imagens elegantes e vibrantes, com a sua grande silhueta escura e o sorriso de Marthe vestida de cores claras. E claro, ele gostava da imagem que via assim, a boca trêmula em torno do cigarro e a febre sensível de seus olhos um pouco afundados. Mas qual — a beleza de um homem representa verdades interiores e práticas. No seu rosto, lê-se o que pode fazer. E que representa isso (3) diante da magnífica inutilidade de um rosto de mulher? Mersault, cuja vaidade se regozijava e sorria a seus demônios secretos, sabia muito bem.

       Ao voltar à sala, pensou que, sozinho, nunca saía no intervalo, preferindo fumar e escutar os discos de música ligeira que tocavam naqueles momentos. Mas nessa noite, o jogo continuava. Todas as oportunidades de estendê-lo e renová-lo eram válidas. No momento de sentar-se, no entanto, Marthe retribuiu a saudação de um homem sentado algumas fileiras atrás deles. E Mersault, cumprimentando, por sua vez, julgou ver-lhe um ligeiro sorriso no canto da boca. Sentou-se sem reparar na mão que Marthe colocava sobre seu ombro para falar-lhe, e que, há um instante, teria recebido com alegria, como mais uma prova desse poder que reconhecia nele.

       — Quem é? — perguntou, esperando o “quem?” perfeitamente natural que, na verdade, não deixou de se seguir.

       — Você sabe muito bem. Esse homem...

       — Ah — disse Marthe... e calou-se.

       — E então?

       — Você quer mesmo saber?

       — Não — respondeu Mersault (4).

       Virou-se ligeiramente. O homem olhava a nuca de Marthe, sem que nada em seu rosto se mexesse. Era bastante bonito, com belos lábios bem vermelhos, mas de olhos inexpressivos. Mersault sentiu ondas de sangue subirem-lhe às têmporas (5). Diante de seu olhar, agora sombrio, as cores brilhantes desse cenário ideal em que vivia há algumas horas estavam agora ofuscadas (6). Não tinha necessidade de ouvi-lo. Tinha certeza, o homem dormira com Marthe. E o que crescia em Mersault, como um pânico, era a idéia do que esse homem podia dizer a si próprio. Sabia muito bem, ele que também pensara: “você pode sempre se vangloriar...”. Só ao pensar que esse homem, naquele instante mesmo, revia os gestos precisos de Marthe e seu jeito de cobrir os olhos com o braço no momento do prazer, pensar que esse homem também tentara afastar aquele braço para ler o levantar tumultuado dos deuses sombrios nos olhos da mulher, Mersault sentia tudo desmoronar-se dentro de si, e, sob as pálpebras fechadas, enquanto a campainha do cinema anunciava o recomeço do espetáculo, crescia nele um pranto de raiva. Esquecia Marthe, que fora apenas o pretexto de sua alegria, e, agora, o corpo vivo de sua cólera. Durante muito tempo, Mersault manteve os olhos fechados, até o momento em que os reabriu para a tela. Um carro capotava, e num grande silêncio de toda a orquestra, só uma das rodas continuava a girar lentamente, arrastando no seu circulo obstinado toda a vergonha e a humilhação nascidas do coração mau de Mersault. Mas dentro dele, uma necessidade de certeza, fazia-o esquecer-se de sua dignidade:

       — Marthe, ele foi seu amante?

       — Sim — disse ela. — Mas estou interessada no filme (7).

       Naquele dia, Mersault começou a apegar-se a Marthe. Ele a conhecera há alguns meses, atraído por sua beleza e por sua elegância. Um rosto um pouco largo, mas regular, os olhos dourados, e os lábios tão bem pintados que ela parecia alguma deusa de rosto desenhado. Uma tolice natural que brilhava nos seus olhos acusava, ainda, seu ar longínquo e impassível. Até agora, a cada vez que Mersault tinha com uma mulher os primeiros gestos decisivos, consciente da desgraça que determina que o amor e o desejo se expressem da mesma forma, ele pensava no rompimento antes de ter estreitado esse ser em seus braços. Mas Marthe acontecera num momento em que Mersault se liberava de tudo e de si mesmo. A preocupação de liberdade e de indiferença só é concebível num ser que ainda vive de esperança. Naquela época, para Mersault, nada contava. E, na primeira vez em que Marthe se descontraiu nos seus braços e que ele viu, nos traços que a proximidade tornara suaves, os lábios até então imóveis como flores pintadas, animarem-se e oferecerem-se a ele, não vislumbrou o futuro através dessa mulher, mas toda a força de seu desejo fixou-se nela e encheu-se com essa aparência. Os lábios que ela lhe estendia pareciam-lhe a mensagem de um mundo sem paixão e inflado de desejo, em que seu coração se teria satisfeito. Isso ele sentia como um milagre. O coração batia com uma emoção que quase confundiu com o amor. E, quando sentiu a carne cheia e elástica sob os dentes, foi com uma espécie de liberdade selvagem que mordeu furiosamente, depois de tê-la acariciado com os próprios lábios durante muito tempo. Tomou-se sua amante naquele mesmo dia. Depois de algum tempo, a harmonia no amor era perfeita. Mas, conhecendo-a melhor, perdera pouco a pouco a intuição desta estranheza que lera nela e que, inclinado sobre sua boca, ele procurava agora fazer nascer às vezes. Foi assim que Marthe, habituada à reserva e à frieza de Mersault, jamais compreendera por que, num bonde carregado de gente, ele um dia lhe pedira os lábios. Perplexa, ela os estendera. E ele os beijou como gostava, acariciando-os primeiro com seus lábios e mordendo-os lentamente.

       — Que aconteceu? — perguntara ela, depois. Sorrira do jeito que ela gostava, o sorriso rápido que responde, e dissera: — Estou com vontade de me comportar mal — para voltar novamente ao seu silêncio. Ela também não compreendia o vocabulário de Patrice. Depois do amor, naquele momento em que, no corpo liberado e distendido, o coração cochila, cheio apenas da afeição carinhosa que se dá a um cão gracioso, Mersault dizia-lhe, sorrindo:

       — Bom dia, aparência.

       Marthe era datilógrafa. Não amava Mersault, mas apegara-se a ele, na medida em que ele a intrigava e lisonjeava. Desde o dia em que Emmanuel, a quem Mersault lhe apresentara, havia dito dele:

       — Sabe, Mersault é um bom sujeito. Tem qualquer coisa lá dentro. Mas é muito calado. Então, a gente se engana — ela o olhava com curiosidade. E como ele a fazia feliz no amor, não exigia mais nada, acomodando-se o melhor possível com esse amante silencioso e pouco barulhento, que nunca lhe pedia nada e que a aceitava quando ela bem entendia. Ficava apenas um pouco atrapalhada diante desse homem cujos defeitos não via.

       No entanto, naquela noite, ao sair do cinema, compreendeu que alguma coisa conseguia atingir Mersault. Ficou calada a noite toda e dormiu na casa dele. Não a tocou naquela noite. Mas, a partir daquele momento, ela usou a sua vantagem. Já lhe dissera que tinha tido amantes. Soube encontrar as provas necessárias.

       No dia seguinte, contrariando seus hábitos, veio à casa dele ao sair do trabalho. Encontrou-o dormindo, e sentou-se ao pé da cama de cobre sem despertá-lo. Ele estava em mangas de camisa, e as mangas arregaçadas deixavam ver a parte interna branca do braço musculoso e moreno. Ele respirava regularmente, com o peito e o ventre ao mesmo tempo. Dois sulcos entre as sobrancelhas davam-lhe uma expressão de força e de teimosia, que ela conhecia bem. Os cabelos caíam em cachos na testa muito morena, na qual pulsava uma veia. E, assim, abandonado sobre os ombros largos, com os braços ao longo do corpo, e uma das pernas semidobrada, parecia um deus solitário e teimoso, atirado adormecido em um mundo estranho. Diante de seus lábios inchados pelo sono, ela o desejou. Nesse momento, ele entreabriu os olhos e tornou a fechá-los, dizendo, sem raiva:

       — Não gosto que me olhem quando estou dormindo.

       Ela atirou-se ao pescoço e beijou-o. Ele ficou imóvel.

       — Ah, querido, outra mania sua.

       — Não me chame de querido, por favor. Já lhe disse (8).

       Deitou-se junto dele e olhou-o de perfil.

       — Eu me pergunto o que você parece, assim.

       Ele suspendeu a cabeça e virou-se de costas para ela. Muitas vezes no cinema, no teatro ou em casa de estranhos, Marthe reconhecia gestos ou tiques de Mersault. Nisto, aliás, ele sabia bem a influência que exercia sobre ela, mas esse hábito, que muitas vezes o lisonjeava, hoje o irritava. Ela colou-se às suas costas e recebeu no ventre e nos seios todo o calor de seu sono. A noite caía rapidamente e o quarto mergulhava no escuro. Do interior da casa, chegavam choros de crianças apanhando, um miado, o bater de uma porta. Os postes da rua iluminavam a varanda. De quando em quando, passava um bonde. E, depois dele, o cheiro de bairro, feito de anisete e carne grelhada, chegava ao quarto em baforadas pesadas.

       Marthe sentiu o sono dominá-la.

       — Está com um ar zangado — disse. — Desde ontem... é por isso que eu vim. Você não diz nada? — ela sacudiu-o.

       Mersault continuou imóvel; estava atento, na escuridão já espessa, à curva brilhante de um sapato debaixo da penteadeira.

      — Sabe — disse Marthe — aquele sujeito de ontem, bem, eu exagerei. Não foi meu amante.

       — Não? — perguntou Mersault.

       — Enfim, não completamente.

       Mersault não dizia nada. Via perfeitamente os gestos, os sorrisos... Cerrou os dentes. Depois, levantou-se, abriu a janela e voltou a sentar-se na cama. Ela aninhou-se contra ele, passou a mão entre dois botões de sua camisa e acariciou-lhe o peito.

       — Quantos amantes você teve? — perguntou, afinal.

       — Você me irrita.

       Mersault se calara.

       — Uns dez — disse ela.

       Com Mersault, o sono pedia o cigarro.

       — Eu os conheço? — perguntou ele, tirando o maço.

       Via apenas uma mancha branca no lugar do rosto de Marthe. “Como no amor”, pensava ele.

       — Alguns, sim. Do bairro.

       Esfregava a testa contra o ombro dele e falava com a voz de menininha que sempre enternecia Mersault.

       — Escute, pequena — disse... (Acendeu o cigarro.) — Compreenda. Vai me prometer que me dirá os nomes. E, os outros, os que não conheço, me promete também, se os encontrarmos, que vai mostrá-los.

       Marthe atirou-se para trás.

       — Ah! não!

       Um carro buzinou brutalmente sob a janela do quarto, uma vez, duas vezes mais, longamente. A campanhia do bonde tilintou no fundo da noite. Sobre o mármore da penteadeira, era frio o tique taque do despertador. Mersault disse, com algum esforço:

       — Peço-lhe isto porque me conheço. Se não souber, cada sujeito que eu encontrar, vai ser a mesma coisa. Vou me perguntar, imaginar. E isso. Vou imaginar demais. Não sei se você compreende.

       Ela compreendia muito bem. Disse os nomes. Mersault só desconhecia um. O último era um rapaz que ele conhecia. Era nele que pensava, pois sabia-o bonito e cortejado pelas mulheres. O que o chocava no amor, pela primeira vez ao menos, era a terrível intimidade que a mulher aceitava e o fato de receber no seu ventre o ventre de um desconhecido. Nessa espécie de descontração, de abandono e de vertigem, ele reconhecia o poder exaltante e sórdido do amor. E era essa intimidade que, a princípio, imaginava entre Marthe e seu amante. Nesse momento, chegou até a beira da cama, e, colocando o pé esquerdo sobre a coxa direita, tirou um sapato, depois o outro, e deixou-os cair, um de lado, outro de pé sobre o salto alto. Mersault sentiu um nó na garganta. Alguma coisa no estômago o corroía.

       — E assim que fazia com René? — perguntou, sorrindo.

       Marthe ergueu os olhos.

       — Agora, vai ficar com isso na cabeça — disse ela. — Só foi meu amante uma vez.

       — Ah — disse Mersault.

       — E, aliás, nem tirei os sapatos.

       Mersault levantou-se. Via-a deitada, vestida, numa cama parecida com esta, entregando-se inteira, sem reservas. Gritou:

       — Cale a boca! — e caminhou até a janela.

       — Oh, querido! — disse Marthe, sentada na cama, de meias no chão.

       Mersault acalmava-se, olhando o jogo das luzes nos trilhos. Nunca se sentira tão próximo de Marthe. E, ao compreender que, ao mesmo tempo, abria-se um pouco mais a ela, o orgulho queimava-lhe os olhos. Voltou para ela, e, entre o indicador dobrado e o polegar, pegou a sua orelha, a pele morna do pescoço. Sorriu.

       — E esse Zagreus, quem é? E o único que não conheço.

       — Esse — disse Marthe, rindo — eu o vejo ainda.

       Mersault apertou os dedos sobre a pele.

       — Foi o meu primeiro, compreenda. Eu era muito jovem (9). Era um pouco mais velho. Agora, ele tem as duas pernas cortadas. Vive sozinho. Então, às vezes eu vou vê-lo. E um sujeito fino e instruído. Lê o tempo todo. Naquela época, ele era estudante. E muito alegre. Um tipo, sabe. Aliás, ele fala como você, ele me diz: “Venha cá aparência”.

       Mersault refletia. Soltou Marthe, que se deitou na cama, fechando os olhos. Momentos depois, sentou-se a seu lado e, inclinando-se sobre os lábios entreabertos, procurou os sinais de sua divindade de animal e o esquecimento de uma dor que ele achava indigna. Mas abandonou a boca, sem ir adiante.

       Ao acompanhar Marthe de volta, ela lhe falou de Zagreus:

       — Falei sobre você com ele — disse. — Contei-lhe que meu querido era muito bonito e muito forte. Então, ele me disse que gostaria de conhecê-lo. Porque, como ele disse: “Ver um belo corpo me ajuda a respirar’’.

       — Esse aí é mais um complicado — disse Mersault.

       Marthe queria agradecer-lhe e achou que chegara o momento de fazer a pequena cena de ciúmes em que pensara e que achava lhe ser devida, de algum modo.

       — Oh, menos que as suas amigas.

       — Que amigas? — perguntou Mersault, sinceramente espantado.

       — As “burrinhas”, sabe?

       As burrinhas eram Rose e Claire (10), estudantes de Tunis (11), que Mersault conhecera e com as quais mantinha a única correspondência de sua vida. Sorriu e pegou Marthe pela nuca. Caminharam durante muito tempo. A rua era longa e brilhava em todas as janelas na parte superior, enquanto que a parte baixa, com todas as lojas fechadas, estava escura e sinistra.

       — Diga, querido, você não gosta das “burrinhas”, hem?

       — Ah, não — respondeu Mersault.

       Caminharam, a mão de Mersault na nuca de Marthe, coberta pelo calor dos cabelos.

       — Você me ama? — perguntou Marthe, sem transição.

       De repente, Mersault animou-se e riu muito alto.

       — Eis uma pergunta muito séria.

       — Responda.

       — Mas na nossa idade não se ama. Um agrada ao outro, só isso. E só mais tarde, quando se fica velho e impotente, que se consegue amar. Na nossa idade, a gente pensa que ama. E só isso, nada mais.

       Ela pareceu triste, mas ele a beijou.

       — Até logo, querido — disse.

       Mersault voltou pelas ruas escuras. Caminhava rápido e sensível ao jogo dos músculos da coxa ao longo do tecido macio da calça; pensou em Zagreus e em suas pernas cortadas. Sentiu vontade de conhecê-lo e decidiu pedir a Marthe que o apresentasse.

       Na primeira vez em que Mersault viu Zagreus, ficou irritado (12). No entanto, Zagreus tentara atenuar o que há de inconveniente para a imaginação no encontro de dois amantes de uma mesma mulher, na presença desta. Na verdade, ele tentara fazer de Mersault um cúmplice, ao tratar Marthe de “boa menina” e rindo muito alto. Mersault ficou ensimesmado. E o disse brutalmente a Marthe, quando ficaram sozinhos:

       — Não gosto de meias-porções. Isso me perturba. Impede-me de pensar. E sobretudo meias-porções inteligentes.

       — Ah, você — respondeu Marthe, que não compreendera — se alguém ouvisse...

       Mas, depois, o riso jovem que, no encontro com Zagreus o irritara, a princípio, reteve sua atenção e seu interesse. Da mesma forma, o ciúme mal disfarçado que guiava Mersault em seu julgamento desaparecera ao ver Zagreus.

       A Marthe, que relembrava, inocentemente, o tempo em que conhecera Zagreus, aconselhou:

       — Não perca seu tempo. Não consigo ter ciúmes de um sujeito que não tem mais pernas. Por menos que pense nos dois, eu o vejo como um grande verme em cima de você. Então, sabe, isto me entedia. Não se canse, meu anjo.

       E, em seguida, voltou sozinho à casa de Zagreus. Esse último falava depressa e muito, ria, depois calava-se. Mersault sentia-se bem naquela peça grande onde Zagreus ficava, entre seus livros e cobres marroquinos, o fogo e seus reflexos no rosto discreto do buda khmer sobre a escrivaninha. Escutava Zagreus. O que lhe chamara a atenção no inválido é que refletia antes de falar (13). Quanto ao resto, a paixão contida, a vida ardente que animava aquele tronco ridículo bastavam para reter Mersault e fazer nascer nele alguma coisa que, com um pouco mais de abandono, teria podido considerar amizade.

 

                                                   CAPÍTULO IV

       Naquela (1) tarde de domingo, depois de ter falado e brincado muito, Roland Zagreus mantinha-se em silêncio, junto ao fogo, na sua grande cadeira de rodas, emergindo dos cobertores brancos. Mersault, encostado na estante, olhava o céu e o campo, através das cortinas de seda branca das janelas. Tinha vindo sob uma chuva fina, e, temendo chegar cedo demais, ficara vagando durante uma hora no campo. O tempo estava escuro e, sem ouvir o vento, Mersault via, no entanto, as árvores e as folhagens retorcerem-se em silêncio no pequeno vale. Do lado da rua, passou uma carroça de leiteiro, com um grande barulho de ferro e madeira. Logo depois, a chuva começou a cair com violência, inundando as janelas. Com toda essa água como um óleo espesso sobre as vidraças, o ruído oco e longínquo das ferraduras do cavalo, mais perceptível agora que o barulho da carroça, a tempestade surda e persistente, esse homem-pote junto à lareira e o silêncio da peça, tudo assumia uma fisionomia de passado, cuja melancolia surda penetrava o coração de Mersault, como, há pouco, a água entrara em seus sapatos úmidos, e o frio nos joelhos mal protegidos por um tecido fino. Há poucos instantes, a água vaporizada que descia, nem bruma, nem chuvas, lavara-lhe o rosto, como uma mão leve, destacando-lhe os olhos fortemente contornados. Agora, olhava o céu, no fundo do qual, sem cessar, surgiam nuvens negras, logo apagadas e logo substituídas. O vinco de sua calça desaparecera, e, com ele, o calor e a confiança que um homem normal leva consigo num mundo talhado para ele. Foi por isso que se aproximou do fogo e de Zagreus, sentando-se diante dele, um pouco à sombra da lareira alta, e sempre virado para o céu. Zagreus olhou para ele, desviou os olhos e atirou no fogo uma bola de papel que segurava na mão esquerda. Desse movimento, como sempre ridículo, Mersault recebeu o mal-estar que lhe dava a visão desse corpo vivo apenas pela metade. Zagreus sorriu (2), mas nada falou. E, de repente, inclinou o rosto na sua direção. As chamas reluziam unicamente sobre a face esquerda, mas algo na sua voz e no seu olhar carregavam-se de calor (3).

       — Está com um ar cansado — disse.

       Por pudor, Mersault responde apenas:

       — Sim, estou entediado — e depois de algum tempo, reergueu-se, caminhou até a janela e acrescentou, olhando para fora: — Tenho vontade de me casar, de me suicidar, ou de fazer uma assinatura de L’Illustration. Um gesto desesperado, sei lá.

       O outro sorriu:

       — Você é pobre, Mersault. Isso explica a metade de seu desgosto. E a outra metade, você a deve à absurda aceitação com relação à pobreza.

       Mersault continuava de costas para ele, olhando as árvores sob o vento. Zagreus alisou com a mão a manta que lhe cobria as pernas.

       — Sabe, um homem se julga sempre pelo equilíbrio que obtém entre as necessidades de seu corpo e as exigências de seu espírito. Você, você está se julgando, e de uma maneira suja, Mersault. Vive mal, como bárbaro. — Virou a cabeça na direção de Patrice: — Você gosta de dirigir, não é?

       — Sim.

       — Gosta de mulheres?

       — Quando são bonitas.

       — E o que estou querendo dizer. — Zagreus voltou-se na direção do fogo.        Logo depois, recomeçou:

       — Tudo isso...

       Mersault virou-se, e, apoiado nas vidraças, que cediam um pouco às suas costas, esperou pelo fim da frase. Zagreus continuou mudo. Uma mosca precoce vibrou contra a vidraça. Mersault voltou-se, prendeu-a na mão e depois libertou-a. Zagreus olhava para ele e disse com hesitação:

       — Não gosto de falar a sério. Porque, nesse caso, só há uma coisa da qual se pode falar: a justificativa que se dá à própria vida. Não vejo como eu poderia justificar a mim mesmo as minhas pernas mutiladas.

       — Nem eu — disse Mersault, sem se virar.

       O riso claro de Zagreus explodiu de repente.

       — Obrigado. Não me deixará nenhuma ilusão. — Mudou de tom: — Mas tem razão em ser duro. No entanto, há uma coisa que gostaria de lhe dizer. — Sério, ele calou-se. Mersault veio sentar-se à sua frente.

       “Escute — refletiu Zagreus — e olhe-me. Ajudam-me a fazer minhas necessidades. Depois, lavam-me e me enxugam. O pior é que pago a alguém para fazer isso. Pois bem, eu não faria nunca um gesto para abreviar uma vida na qual creio tanto. Aceitaria pior ainda, cego, mudo, tudo o que quiser, desde que apenas eu sinta no meu ventre esta chama escura e ardente que sou eu, e eu vivo. Não pensarei a não ser em agradecer à vida por ter permitido que eu sobrevivesse.

       — Zagreus reclinou-se, um pouco ofegante. Não conseguia vê-lo tão bem agora, apenas um reflexo lívido que os cobertores deixavam sobre o queixo. Disse, então: — E você, Mersault, com esse seu corpo (4), o seu único dever é viver e ser feliz.

       — Não me faça rir — respondeu Mersault. — Com oito horas de escritório (5). Ah, se eu fosse livre!

       Animara-se ao falar, como acontecia às vezes; a esperança o retomava, mais forte hoje por se sentir ajudado. O fato de poder, afinal, confiar, trazia-lhe confiança. Acalmou-se um pouco. Começou a apagar um cigarro, e prosseguiu, mais seguro:

       — Há alguns anos, tinha tudo diante de mim, falavam-me da minha vida, do futuro. Eu dizia que sim. Fazia até mesmo tudo que era preciso para isso. Mas, então, tudo isso já me parecia alheio. Dedicar-me à impessoalidade, eis o que me ocupava. Não ser feliz, “contra”. Eu me explico mal, mas você compreende, Zagreus?

       — Sim — disse o outro.

       — Até mesmo agora, se tivesse tempo... Só teria que me entregar (6). Tudo que me acontecesse além disso, pois bem, seria como a chuva sobre uma pedrinha. Ela a refresca e isso já é muito bonito. No outro dia, ela estará ardente de sol (7). Sempre me pareceu que a felicidade é exatamente isso.

       Zagreus cruzara as mãos. No silêncio que se seguiu, a chuva pareceu redobrar e as nuvens incharam-se até formar uma bruma indistinta. A sala escureceu um pouco mais, como se o céu tivesse despejado nela sua carga de sombras e silêncios. E o inválido disse com interesse:

       — Um corpo tem sempre o ideal que merece. Esse ideal da pedrinha, se me permite, é preciso um corpo de semideus para sustentá-lo.

       — E verdade — disse Mersault, um tanto surpreso (8) — mas não exageremos. Faço muito esporte, é só. E sou capaz de ir muito longe na volúpia.

       Zagreus refletiu.

       — Sim — disse. — Melhor para você. Conhecer os limites do corpo, essa é a verdadeira psicologia. Aliás (9), isso não tem importância. Não temos tempo de sermos nós mesmos. Só temos tempo de sermos felizes. Mas será que se aborreceria se lhe pedisse para precisar a sua idéia de impessoalidade?

       — Não — disse Mersault, e calou-se.

       Zagreus tomou um gole de chá e abandonou a xícara cheia. Bebia muito pouco, não queria urinar mais do que uma vez por dia. Por força de vontade, conseguia sempre reduzir a carga de humilhações que cada dia lhe trazia. “Não há pequenas economias. E um recorde como outro qualquer”, dissera ele, um dia, a Mersault. Algumas gotas d’água caíram pela primeira vez na lareira. O fogo gemeu. A chuva redobrava nas vidraças. Em algum lugar, uma porta bateu. Na estrada em frente, os carros passavam como ratos luzidios. Um deles buzinou longamente, e, através do vale, o som oco e lúgubre ampliou ainda mais os espaços úmidos do mundo (10), até que a sua própria lembrança tornou-se para Mersault um componente do silêncio e da angústia daquele céu.

       — Peço-lhe perdão, Zagreus, mas há muito que não falo de certas coisas. Então, não sei mais, ou não sei bem (11). Quando vejo a minha apenas: vida e sua cor secreta, sinto em mim como que um tremor de lágrimas (12). Como esse céu. E, ao mesmo tempo, chuva e sol, meio-dia e meia-noite. Ah, Zagreus! Penso nos lábios que beijei, na criança pobre que fui, na loucura de vida e de ambição que me domina em determinados momentos. Sou tudo isso ao mesmo tempo (13). Tenho certeza de que há momentos em que você não me reconheceria (14). Extremo na desgraça, desmedido na felicidade, não sei dizer...

       — Você joga em vários tabuleiros ao mesmo tempo?

       — Sim, mas não como amador — disse Mersault, com veemência (15). — Cada vez que penso nesse caminho de dor e de alegria em mim, sei bem, e com que arrebatamento, que a partida que jogo é a mais séria, a mais exaltante de todas.

      Zagreus sorria (16).

       — Você tem, então, alguma coisa a fazer?

       Mersault disse, violentamente:

       — Tenho que ganhar a vida, O meu trabalho, essas oito horas que outros suportam, me impedem de fazê-lo (17).

       Calou-se e acendeu o cigarro que segurara até agora entre os dedos.

       — E, no entanto — disse, antes de apagar o fósforo — se eu tivesse forças suficientes, e paciência... — Soprou o fósforo e esmagou a ponta carbonizada nas costas da mão esquerda. — ... Sei bem até que ponto da vida vou chegar. Não faria de minha vida uma experiência. Eu serei a experiência de minha vida... Sim, sei que paixão me invadiria com toda a sua força. Antes, era jovem demais. Metia-me no meio do caminho. Hoje — disse ele — compreendi que agir, amar, sofrer, tudo isso é, na verdade, viver, mas é viver na medida em que se é lúcido e se aceita o destino, como o reflexo único de um arco- íris de alegrias e de paixões, que é igual para todos.

       — Sim — disse Zagreus — mas você não pode viver assim e trabalhar...

       — Não, porque estou em estado de revolta, e isso não é bom.

       Zagreus calou-se. A chuva parara, mas no céu a noite substituíra as nuvens, e a escuridão agora pouco a pouco ficava completa no cômodo. Só o fogo iluminava os rostos brilhantes do inválido e de Mersault. Zagreus, há muito silencioso, c1hou para Patrice, e disse apenas:

       — Muitas dores esperam aqueles que o amam... — e deteve-se, surpreendido diante da reação repentina de Mersault, que, com a cabeça na sombra, disse com violência.

      — O amor que me dão não me obriga a nada.

       — E verdade — disse Zagreus — mas só estava fazendo uma constatação. Você ficará só um dia, nada mais. Mas sente-se e ouça. O que você disse me impressionou. Sobretudo uma coisa, porque confirma tudo que minha experiência de homem me ensinou. Gosto muito de você, Mersault. Aliás, por causa de seu corpo. Foi ele que lhe ensinou tudo isso. Hoje, parece-me que lhe posso falar sem reservas.

       Mersault tornou a sentar-se lentamente e seu rosto entrou na luz já mais vermelha de um fogo que chegava ao fim. De repente, na moldura da janela, sentia-se por trás das cortinas de seda como que uma abertura na noite. Alguma coisa se distendia por trás das vidraças. Um brilho leitoso entrou na peça e Mersault reconheceu nos lábios irônicos e discretos do bodhisattva e nos cobres cinzelados o rosto familiar e fugidio das noites estreladas e enluaradas que ele tanto amava. Era como se a noite tivesse perdido seu forro de nuvens e reluzisse agora em seu brilho tranqüilo. Na estrada, os carros passavam menos rápido. No fundo do vale, um alvoroço repentino preparou os pássaros para o sono. Ouviam-se passos diante da casa e, nessa noite como um leite sobre o mundo, os ruídos soavam mais vastos e mais claros. Entre o fogo incandescente, o palpitar do despertador e a vida secreta dos objetos familiares que o cercavam, tecia-se uma poesia fugaz, que preparava Mersault para receber de um outro coração, na confiança e no amor, o que Zagreus ia dizer. Ele inclinou-se um pouco na sua poltrona, e foi diante do céu que escutou a estranha história de Zagreus (18).

       — Tenho certeza — começou — de que não se pode ser feliz sem dinheiro. Só isso. Não gosto nem de facilidade, nem de romantismo. Gosto de estar consciente das coisas. Pois bem, reparei que em certas pessoas de elite há uma espécie de esnobismo espiritual em acreditar que o dinheiro não é necessário à felicidade. E bobagem, está errado, e, de certa forma, é covardia.

      “Veja, Mersault, para um homem bem-nascido, ser feliz nunca é complicado. Basta retomar o destino de todos, não com vontade de renúncia, como tantos falsos grandes homens, mas com o desejo de felicidade. Só que é preciso tempo para ser feliz. Muito tempo. A felicidade também é uma longa paciência. E, em quase todos os casos, gastamos nossa vida ganhando dinheiro, quando seria preciso, pelo dinheiro, ganhar o seu tempo. Esse é o único problema que me interessou. E preciso. E claro.”

       Zagreus deteve-se e fechou os olhos. Mersault olhava para o céu obstinadamente. Por um momento, os ruídos da estrada e do campo tomaram-se nítidos, e Zagreus recomeçou, sem pressa:

       — Oh!, bem sei que a maioria dos homens ricos não tem nenhuma noção da felicidade. Mas não é esta a questão. Ter dinheiro, é ter tempo. Não saio disso. O tempo se compra. Tudo se compra. Ser ou ficar rico é ter tempo de ser feliz quando se é digno de sê-lo.

       Olhou para Patrice:

       — Aos 25 anos, Mersault, eu já havia compreendido que todo ser, com a noção, a vontade e a exigência de felicidade, tinha o direito de ser rico. A exigência de felicidade me parecia o que há de mais nobre no coração do homem. A meu ver, tudo se justificava por isso. Bastava um coração puro (19).

       Zagreus, que continuava olhando para Mersault, de repente começou a falar mais lentamente, com uma voz fria e dura, como se quisesse tirar Mersault de sua aparente distração.

       — Aos 25 anos, comecei minha fortuna. Não recuei diante das trapaças. Não teria recuado diante de nada. Em alguns anos, havia realizado toda a minha fortuna líquida. Calcule, Mersault, quase dois milhões. O mundo abria-se a mim. E, como o mundo, a vida que eu sonhava, na solidão e no ardor... — Depois de algum tempo, Zagreus continuou, num tom mais abafado: — A vida que eu teria tido, Mersault, se não fosse o acidente que, logo depois, levou minhas pernas. Não soube como terminar. E agora, veja. Você compreende bem, não é, que eu não tenha querido viver uma vida diminuída. Há vinte anos, meu dinheiro está ali, perto de mim. Vivi modestamente. Mal toquei na quantia. — Passou as mãos duras pelas pálpebras e disse, um pouco mais baixo: — E preciso não sujar nunca a vida com beijos de inválido.

       Nesse momento, Zagreus abrira o pequeno baú que estava encostado à lareira e mostrara um grande cofre de aço escurecido com a chave. Sobre o cofre, havia uma carta e um grande revólver preto. Ao olhar involuntariamente curioso de Mersault, Zagreus respondera com um sorriso. Era muito simples. Nos dias em que ele sentia demais a tragédia que o privava de sua vida, colocava diante de si essa carta, que não datara, e que fazia parte de seu desejo de morrer. Depois, colocava a arma na mesa, aproximava o revólver e encostava nele a testa, rolava-o pelas têmporas, acalmava sob o frio do aço a febre de suas faces. Ficava assim por um longo momento, deixando vagar os dedos ao longo do gatilho, até que o mundo se calasse à sua volta, quando, já sonolento, todo o seu ser se envolvia na sensação do aço frio e salgado, do qual podia sair a morte. Assim, ao sentir que lhe bastaria datar a carta e atirar, experimentar a absurda facilidade da morte, sua imaginação era bastante viva para representar em todo o seu horror o que significava para ele a negação da vida, e levava, no seu semi-sono, todo o desejo de sobreviver na dignidade e no silêncio. Depois, despertando por completo, com a boca cheia de uma saliva já amarga, lambia o cano da arma, introduzia nele a língua e agonizava afinal com uma felicidade impossível (20).

       — Sem dúvida, fracassei na vida. Mas tinha razão, então: tudo pela felicidade, contra o mundo que nos envolve com sua burrice e sua violência. — Zagreus riu, por fim, e acrescentou: — Veja, Mersault. toda a baixeza e a crueldade de nossa civilização medem-se por este axioma tolo de que os povos felizes não têm história.

       Agora era muito tarde. Mersault não calculava bem as horas. Sua cabeça fervilhava com uma excitação febril. Na boca, tinha o calor e o azedume dos cigarros que fumara. A luz à sua volta continuava cúmplice. Pela primeira vez, desde o seu relato, olhou na direção de Zagreus:

       — Acho que entendo — disse.

       O inválido, cansado pelo longo esforço, respirava surdamente. Depois de um silêncio, disse, no entanto, com dificuldade:

       — Gostaria de ter certeza. Não me faça dizer que o dinheiro faz a felicidade. Entendo apenas que, para uma certa classe de seres, a felicidade é possível, com a condição de ter tempo, e que ter dinheiro é liberar-se do dinheiro.

       Ajeitou-se na sua poltrona, sob os cobertores. A noite fechara-se sobre si mesma, e, agora, Mersault quase não via Roland. Seguiu-se um longo silêncio, e Patrice, querendo restabelecer o contato, assegurar-se na escuridão da presença desse homem, disse, levantando-se e um pouco às cegas:

       — E um belo risco para se correr.

       — Sim — disse o outro, com uma voz abafada. — E melhor apostar nesta vida que na outra. Para mim, é claro, é outro negócio.

       “Um farrapo”, pensou Mersault. “Um zero no mundo”.

       — Há vinte anos, não consegui fazer a experiência de uma certa felicidade. Esta vida que me devora, eu não a teria conhecido por inteiro, e o que me apavora na morte é a certeza que ela me trará de que minha vida foi consumada sem mim. A margem, você entende?

       Sem transição, um riso muito jovem saiu da escuridão:

       — Isso quer dizer, Mersault, que, no fundo, e no meu estado, ainda tenho esperança.        Mersault deu alguns passos em direção à mesa.

       — Pense em tudo isso — disse Zagreus — pense em tudo isso.

       — Posso acender a luz para você?

       O outro respondeu apenas:

       — Por favor.

       As narinas e os olhos redondos de Roland destacaram-se, mais pálidos, na luz resplandecente. Respirava com dificuldade. Ao gesto de Mersault, que lhe estendia a mão, respondeu balançando a cabeça e rindo muito:

       — Não me leve a sério demais. Isso sempre me irrita, sabe, o ar trágico que as pessoas assumem diante de minhas pernas cortadas.

       “Está zombando de mim”, pensou o outro.

       — Considere trágica apenas a felicidade. Pense bem nisso, Mersault, você tem um coração puro. Pense nisso.

       Depois, olhou-o bem nos olhos e, após algum tempo, disse:

       — E tem também duas pernas, o que não estraga nada.

       Sorriu, então, e tocou uma campainha:

       — Vá embora, meu querido, tenho que fazer o meu pipi.

 

                                              CAPÍTULO V

       Ao voltar para casa naquele domingo à noite, com todos os pensamentos em Zagreus, Mersault, antes de entrar no quarto, ouviu gemidos que vinham do apartamento de Cardona, o tanoeiro. Bateu na porta. Não houve resposta. Os lamentos continuavam. Sem hesitar, entrou. O tanoeiro estava enrolado como uma bola na cama, chorando com grandes soluços de criança. A seus pés, a fotografia de uma mulher de idade.

       — Ela morreu — disse a Mersault, com grande esforço. Era verdade, mas isso ocorrera há tanto tempo.

       Ele era surdo, meio mudo, mau e violento. Até então, morara com a irmã. Mas esta, cansada de sua maldade e de seu despotismo refugiara-se junto aos filhos. E ele ficara só, tão desamparado quanto pode ficar um homem que é obrigado a cozinhar e arrumar a casa pela primeira vez. A irmã havia contado suas brigas a Mersault, com quem se encontrara um dia na rua. Ele tinha trinta anos, era baixo, bastante bonito. Desde a infância, morara com a mãe. Era o único ser que lhe inspirava qualquer temor, mais supersticioso que fundamentado. Amara-a com sua alma grosseira, isto é, com rudeza e arrebatamento ao mesmo tempo, e a maior prova de seu afeto era a sua maneira de implicar com a velha senhora, expressando alto e bom som as piores grosserias sobre os padres e a Igreja. Se ficou tanto tempo com a mãe, foi, também, por não ter inspirado a nenhuma mulher um relacionamento sério. Algumas raras aventuras ou o bordel autorizavam-no, contudo, a dizer-se homem.

       A mãe morreu. A partir daquele momento, passou a morar com a irmã. O quarto que ocupavam lhes fora alugado por Mersault. Sozinhos os dois, sofriam e galgavam uma longa vida suja e escura. Falavam-se com dificuldade. Dessa forma, passavam dias inteiros sem trocar uma única palavra. Mas ela partira. Ele era orgulhoso demais para queixar-se e pedir que voltasse: vivia só. De manhã, comia no restaurante; à noite, em casa, alguns frios. Lavava a roupa de cama e seus pesados macacões de operário. Mas deixava o quarto na mais pegajosa sujeira. Às vezes, contudo, no início aos domingos, pegava um pano e tentava colocar um pouco de ordem na casa. Mas a inexperiência de homem, por exemplo, uma panela sobre a lareira outrora florida e ornamentada, revelavam o abandono no qual tudo era mantido. O que chamava de arrumação consistia em esconder a desordem, em esconder coisas por trás das almofadas e a enfileirar sobre a cômoda os objetos mais estranhos. Por fim, acabara por se cansai, e nem mesmo fazia mais a cama, deitando-se com o cão sobre os lençóis sujos e malcheirosos. A irmã havia dito a Mersault: “Ele banca o esperto nos bares. Mas a proprietária me disse que o viu chorar quando lavava roupa.” E era verdade que, por mais endurecido que fosse, um temor se apossava desse homem em determinados momentos, fazendo-o avaliar a extensão de seu abandono. Certamente, era por piedade que ela morava com ele, dizia a Mersault. Mas ele a impedia de encontrar-se com o homem que amava. Na sua idade, porém, isto não tinha mais grande importância. O homem era casado. Trazia para a amiga flores que colhera nas cercas vivas dos subúrbios, laranjas e licores que ganhava nos parques de diversões. Evidentemente, não era bonito. Mas beleza não põe mesa, e ele era tão bom. Ela gostava dele e ele dela. E que é o amor senão isso? Lavava a roupa dele e esforçava-se para mantê-lo limpo. Ele tinha o costume de usar lenços dobrados em triângulo, amarrados à volta do pescoço: ela fazia lenços muito brancos para ele, e essa era uma de suas alegrias.

       Mas o outro, o irmão, não queria que ela recebesse o amigo. Era obrigada a encontrar-se com ele em segredo. Recebera-o em casa uma vez. Surpreendido, fora uma briga terrível. O lenço em triângulo ficara, depois da partida deles, num canto sujo da peça, e ela refugiara-se em casa do filho. Mersault pensava naquele lenço, diante do quarto sórdido que se oferecia a seus olhos.

       Naquela ocasião, todos se compadeceram do tanoeiro, no entanto, por estar tão só. Ele havia falado a Mersault de um possível casamento. Tratava-se de uma mulher mais velha. E, sem dúvida, fora tentada pela esperança de carícias jovens e robustas... Ela as teve antes do casamento. Depois de algum tempo, o amante renunciara ao projeto, declarando que a achava velha demais. E ele ficou só naquela pequena casa do bairro. Pouco a pouco, a sujeira o cercou, sitiou-o, veio bater em sua cama, submergindo-o, depois, de maneira indelével. A casa era feia demais. E, para um homem pobre que não se sente bem em casa, há uma casa mais acessível, rica, iluminada e sempre acolhedora: o bar. Os do bairro eram particularmente animados. Reinava neles aquele calor de rebanho, que é o último refúgio contra os terrores da solidão e suas vagas aspirações. O homem mudo optou pelo bar como residência. Mersault via-o lá todas as noites. Graças a ele, retardava ao máximo o momento da volta. Lá, reencontrava o seu lugar entre os homens. Naquela noite, porém, os bares não tinham bastado. Ao voltar para casa, deve ter apanhado a fotografia e, com ela, despertado as ressonâncias do passado morto. Redescobriu aquela que havia amado e com quem implicara. No quarto horrendo, só, diante da inutilidade de sua vida, reunindo as últimas forças, tomara consciência do passado que fora sua felicidade. Era preciso acreditar nisso pelo menos, e que, na conjunção desse passado e de seu miserável presente, brotou uma centelha de sublimidade, uma vez que o fizera chorar.

       Como sempre acontecia quando se encontrava diante de uma manifestação brutal da vida, Mersault ficava sem força e cheio de respeito diante dessa dor animal. Sentou-se sobre a colcha suja e amarrotada e colocou a mão no ombro de Cardona. Diante dele, sobre o encerado da mesa, havia, em desordem, um lampião a álcool, uma garrafa de vinho, migalhas de pão, um pedaço de queijo e uma caixa de ferramentas. No teto, teias de aranha. Mersault, que nunca entrara naquele quarto desde a morte da mãe, media, pela sujeira e pela miséria viscosas que o enchiam, o caminho percorrido por esse homem. A janela que dava para o pátio estava fechada. A outra, apenas entreaberta. O lampião, pendurado e cercado por um baralho em miniatura, lançava sua luz redonda e tranqüila sobre a mesa, os pés de Mersault e de Cardona e uma cadeira um pouco adiante da parede que ficava de frente para eles. Cardona, no entanto, pegara a foto nas mãos, olhava para ela, e, beijando-a, dizia, com sua voz de doente: “Pobre mamãe.” Mas era a si mesmo que lamentava. Ela estava enterrada no horrendo cemitério que Mersault conhecia bem, no outro extremo da cidade. Ele quis sair. Disse, articulando bem, para se fazer entender:

       — Não pode ficar assim.

       — Não tenho mais trabalho — disse o outro, com esforço, e, estendendo a fotografia, com uma voz entrecortada: — Eu a amava — e Mersault traduzia: “Ela me amava”. — Está morta — e ele compreendeu: “Estou só”. — Fiz o tonelzinho para ela no dia de seu santo. — Sobre a lareira, havia um pequeno tonel de madeira envernizada, guarnecido de aros de cobre e de uma torneira brilhante.

      Mersault retirou a mão do ombro de Cardona, que se abandonava por inteiro, sobre os travesseiros imundos. De debaixo da cama, chegou um suspiro profundo e um cheiro repugnante. O cão saiu lentamente, encolhendo-se. E pousou sobre os joelhos de Mersault a cabeça de longas orelhas e olhos dourados. Mersault olhava para o pequeno tonel. No quarto sórdido onde o homem respirava com dificuldade, com o calor do cão sob os dedos, fechava os olhos sobre o desespero que, pela primeira vez em muito tempo, o inundara como um mar. Diante da infelicidade e da solidão, seu coração dizia-lhe hoje: “Não”. E, na grande angústia que o enchia, Mersault sentiu bem que sua revolta era a única coisa válida; o resto era miséria e condescendência. A rua, que ontem se animara sob as janelas, continuava cheia de ruídos. Dos jardins sob o terraço subiu um cheiro de ervas. Mersault ofereceu um cigarro a Cardona e ambos fumaram sem falar. Os últimos bondes passaram e, com eles, as lembranças ainda vivas dos homens e das luzes. Cardona adormeceu e logo roncava com o nariz cheio de lágrimas. O cão, enrolado aos pés de Mersault, mexia-se às vezes e gemia em seus sonhos. A cada movimento, seu cheiro chegava até Mersault. Encostado à parede, tentava comprimir no coração a revolta da vida. O lampião queimava, e acabou por se apagar, com um cheiro horrível de querosene. Mersault cochilara e despertou com os olhos fixos na garrafa de vinho. Com um grande esforço, levantou-se, foi até a janela do fundo e ficou imóvel. Do coração da noite, chegavam chamados e silêncios. Nos limites do mundo que cochilava aqui, um navio chamou demoradamente os homens para a partida e os recomeços.

       No dia seguinte, Mersault matava Zagreus, voltava para casa e dormia a tarde toda. Acordava com febre. E, à noite, sempre deitado, mandou chamar o médico do bairro, que o considerou gripado. Um empregado do seu escritório veio saber notícias, trazendo o pedido de licença. Alguns dias depois, tudo se arranjara: um artigo, um inquérito. Tudo justificara o gesto de Zagreus. Marthe veio ver Mersault e disse, suspirando:

       — Há dias em que gostaria de estar no lugar dele. Mas, às vezes, é preciso mais coragem para viver do que para se matar.

       Uma semana depois, Mersault embarcava para Marselha. Para todo mundo, ele ia repousar na França. De Lyon, Marthe recebeu uma carta de rompimento, com a qual apenas seu amor-próprio sofreu. Ao mesmo tempo, ele anunciava que lhe haviam oferecido uma situação excepcional na Europa Central. Marthe escreveu-lhe sobre o seu sofrimento para uma caixa postal. Essa carta jamais chegou às mãos de Mersault, que, no dia seguinte ao de sua chegada a Lyon, teve um violento acesso de febre e pegou um trem para Praga. No entanto, Marthe lhe anunciava que, após vários dias no necrotério, Zagreus havia sido enterrado, e que foram necessárias várias almofadas para acomodar seu tronco no caixão.

 

 

                                                                A MORTE CONSCIENTE

 

                                                 CAPÍTULO I

       — Gostaria de ver um quarto — disse o homem (1), em alemão.

       O porteiro, diante de um painel carregado de chaves, estava separado do vestíbulo por uma, grande mesa. Examinou o homem que acabava de entrar, com uma capa cinzenta atirada sobre os ombros, e que falava desviando o olhar:

       — Certamente, senhor. Por uma noite?

       — Não, não sei.

       — Temos quartos a 18, 25 e 30 coroas.

       Mersault olhava a pequena Rua de Praga, que se via através da porta envidraçada do hotel. Com as mãos nos bolsos, estava sem chapéu, e com o cabelo embaraçado. A alguns passos dali, ouvia-se o ranger dos bondes que desciam a Avenida Wenceslas.

       — Que quarto deseja, senhor?

       — Qualquer um — disse Mersault, com o olhar sempre fixo na porta envidraçada, O porteiro pegou uma chave no painel e estendeu-a a Mersault.

       — Quarto número 12 — disse.

       Mersault pareceu acordar.

       — Quanto é esse quarto?

       — Trinta coroas.

      — É caro demais. Gostaria de um quarto de 18 coroas.

       O homem, sem dizer uma palavra, pegou outra chave e mostrou a Mersault a estrela de cobre que dela pendia:

       — Número 34.

       Sentado no quarto, Mersault tirou o paletó, afrouxou um pouco a gravata, sem desfazer o nó, e arregaçou automaticamente as mangas da camisa. Caminhou em direção ao espelho que ficava acima da pia, ao encontro de um rosto de traços abatidos, um pouco corado nos lugares que não eram escurecidos por uma barba de vários dias. Impressionaram-no os cabelos despenteados pela corrida do trem, que, caindo em desordem sobre a testa, até duas rugas profundas entre as sobrancelhas, lhe davam ao olhar uma espécie de expressão séria e terna. Só então, pensou em olhar à volta para o quarto miserável que era o seu único bem, e além do qual nada mais via. Sob um repugnante papel pintado de grandes flores amarelas sobre fundo cinzento, toda uma geografia de imundície desenhava pegajosos universos de miséria. Atrás do enorme radiador, havia cantos gordurosos. O interruptor estava quebrado e deixava entrever os contatos de cobre. Por cima da cama, de um fio lustroso de sujeira, onde secavam velhos detritos de moscas, pendia uma lâmpada sem cúpula, que se colava aos dedos. Mersault inspecionou os lençóis, que estavam limpos. Pegou seus artigos de toalete na mala, e, um por um, arrumou-os sobre a pia. Depois, apressou-se em lavar as mãos, mas, mal a abriu, fechou a torneira, e foi abrir a janela sem cortinas. Dava para um quintal com um tanque e para umas paredes esburacadas por pequenas janelas. Numa delas, havia roupa de cama secando. Mersault deitou-se e adormeceu logo. Despertou suando, descomposto, e sentindo o quarto girar rapidamente. Depois, acendeu um cigarro, e, sentado, com a cabeça oca, olhou para os vincos de sua calça amarrotada. Na boca, misturavam-se o amargor do sono e do cigarro. Olhou novamente para o quarto, coçando-se por baixo da camisa. Uma terrível suavidade vinha-lhe à boca, diante de tanto abandono e solidão. Por sentir-se tão longe de tudo e até mesmo de sua febre, por experimentar tão claramente o que há de absurdo e de miserável no âmago das vidas mais ordenadas, nesse quarto, erguia-se diante dele a imagem vergonhosa e secreta de uma espécie de liberdade que nasce da dúvida e da fraude. À sua volta, marulhavam, como lama, todo o tempo, as horas monótonas e flácidas.

       Bateram à porta com violência, e, num sobressalto, Mersault lembrou-se que fora despertado por batidas semelhantes. Abriu a porta e viu-se diante de um velhinho de cabelo ruivo, esmagado sob as duas malas de Mersault, que, sobre ele, pareciam enormes. Sufocava de raiva, e os dentes espaçados deixavam passar uma baba cheia de ofensas e recriminações. Mersault lembrou-se, então, da alça partida que tornava a mala maior tão incômoda de carregar. Quis desculpar-se, mas não soube como explicar ao velho que não sabia que era tão idoso. O velhinho o interrompeu:

       — São 14 coroas.

       — Para guardar as malas por um dia? — espantou-se Mersault.

       Compreendeu, então, pelas longas explicações que lhe eram dadas, que o velho tomara um táxi. Mas não ousou dizer que ele próprio teria feito o mesmo, nesse caso, e pagou por cansaço. Com a porta novamente fechada, Mersault sentiu lágrimas inexplicáveis subirem-lhe à garganta. Muito próximo, um relógio bateu quatro horas. Havia dormido duas horas. Dava-se conta de que estava separado da rua apenas pela casa em frente, e sentia o rumor surdo e misterioso da vida que nela decorria. Era melhor sair. Mersault lavou as mãos demoradamente. Para lixar as unhas, sentou-se novamente na beira da cama, manobrando regularmente a lixa. Duas ou três buzinas ecoaram no pátio, com tanta brutalidade que Mersault foi até a janela. Viu, então, que , lá embaixo, uma arcada conduzia à rua. Era como se todas as vozes da rua, toda a vida desconhecida do outro lado das casas, os ruídos dos homens que têm um endereço, uma família, rixas com um tio, preferências à mesa, uma doença crônica, o formigamento dos seres, cada um com a sua personalidade, como grandes pulsações para sempre separadas do coração monstruoso da multidão, se infiltrassem naquela arcada e subissem ao longo do pátio para arrebentarem como bolhas no quarto de Mersault. Tão poroso e atento a cada sinal do mundo, Mersauh sentiu a fenda profunda que o abria para a vida. Acendeu outro cigarro e vestiu-se febrilmente. Ao abotoar o paletó, a fumaça veio arder-lhe nas pálpebras. Voltou à pia, enxugou os olhos e quis pentear-se. Mas o pente havia desaparecido. O sono embaraçara-lhe os cabelos, e tentou inutilmente ajeitá-los. Desceu assim mesmo, com os cabelos caindo sobre o rosto, e eriçados atrás. Sentia-se ainda mais diminuído. Ao chegar à rua, deu a volta ao hotel para desembocar diante da pequena arcada que observara. Ela dava para a praça da antiga prefeitura, e, na noite um pouco carregada que descia sobre Praga, as torres góticas da prefeitura e da velha igreja de Tyn recortavam-se em negro. Uma multidão circulava pelas ruelas em arcos. Mersault, diante de cada mulher que passava, perscrutava o olhar que lhe teria permitido considerar-se ainda capaz de jogar o delicado e terno jogo da vida. Mas as pessoas que estão bem de saúde têm uma arte natural para evitar os olhares febris. Mal barbeado, despenteado, com uma expressão de animal inquieto nos olhos, a calça amarrotada, como o colarinho da camisa, perdera a maravilhosa confiança que dá um terno bem cortado ou o volante de um carro. A luz tomava-se acobreada e o dia demorava-se, ainda, no ouro das cúpulas barrocas que se viam ao fundo da praça. Mersault, que se dirigiu a uma delas, entrou na igreja, e, tomado pelo velho cheiro, sentou-se num banco. A abóbada estava totalmente escura, mas o ouro dos capitéis despejava uma água dourada e misteriosa, que escorria pela canelura das colunas, por sobre o rosto inchado dos anjos e o escárnio dos santos. Sim, uma suavidade, havia ali uma suavidade, mas tão amarga, que Mersault voltou ao patamar, e, de pé nos degraus, respirou o ar mais fresco da noite em que agora ia mergulhar. Um instante depois, viu brilhar a primeira estrela, pura e desnudada, entre as torres de Tyn.

       Lançou-se à procura de um restaurante barato. Meteu-se pelas ruas mais escuras e menos povoadas. Sem que tivesse chovido de dia, o chão estava úmido, e Mersault precisava evitar as poças negras por entre os raros paralelepípedos. Depois, uma chuva fina começou a cair. Sem dúvida, as ruas animadas não estavam longe, já que se ouvia daqui os vendedores de jornais, que anunciavam aos gritos o Narodni Politika. Ele, porém, nesse ínterim, rodava pelas ruas. De repente, deteve-se. Um cheiro estranho chegava-lhe do fundo da noite. Picante, azedo, despertava nele toda a força de sua angústia, sentia-o na língua, no fundo do nariz e nos olhos. A princípio longe, e depois, na esquina da rua e entre o céu agora obscurecido e os paralelepípedos gordurosos e pegajosos, lá estava ele, como o agourento sortilégio das noites de Praga. Avançou em direção ao cheiro, que, a cada momento, se tomava mais real, invadindo-o por inteiro, provocando-lhe lágrimas nos olhos e deixando-o sem defesa. Na esquina de uma rua, entendeu: uma velhinha vendia pepinos embebidos em vinagre. Fora este o cheiro que se apoderara de Mersault. Um transeunte parou e comprou um pepino, que a velha enrolou num papel. Deu alguns passos, e, diante de Mersault, abriu o pacote, mordeu com vontade o pepino, cuja polpa dilacerada e brilhante exalava um cheiro ainda mais poderoso. Com algum mal-estar, Mersault encostou-se numa coluna e respirou durante um longo momento tudo que o mundo lhe oferecia de estranho e de solitário naquele minuto. Em seguida, foi embora e entrou sem pensar num restaurante, de onde saía uma melodia de acordeão. Desceu alguns degraus, parou no meio da escadaria, viu-se num porão bastante sombrio, cheio de brilhos vermelhos. Sem dúvida, tinha um ar estranho, já que o acordeão tocou mais surdamente, a conversa parou e os consumidores viraram-se na sua direção. A um canto, algumas moças comiam, com os lábios muito gordurosos. Os outros comensais bebiam a cerveja escura e adocicada da Tcheco-Eslováquia. Muitos fumavam sem nada consumir. Mersault pegou uma mesa, bem comprida, ocupada por um homem só. Alto e magro, de cabelo louro, ajeitado em sua cadeira, com as mãos nos bolsos, apertava os lábios rachados à volta de um pedaço de fósforo já cheio de saliva, sugando-o com um ruído desagradável, ou fazendo-o passar de um lado para o outro na boca. Quando Mersault se sentou, o homem mal se mexeu, comprimindo-se de encontro à parede, e fazendo o seu fósforo passar para o lado do recém-chegado, com um franzir de cenho imperceptível. Nesse momento, Mersault viu uma estrela vermelha na sua lapela.

       Mersault comeu pouco e rapidamente. Não estava com fome. O acordeão tocava agora com mais nitidez, e o homem que o manejava olhava fixamente para o recém-chegado. Por duas vezes, carregou os olhos de desafio e tentou enfrentar o seu olhar. Mas a febre o enfraquecera. O homem continuava a fitá-lo. De repente, uma das moças deu uma gargalhada, o homem da estrela vermelha chupou com força o seu fósforo, onde se inflou uma pequena bolha de saliva, e o músico, sem deixar de olhar para Mersault, parou a dança animada que tocava para começar uma melodia lenta e recoberta pela poeira dos séculos. Nesse fomento, a porta se abriu diante de um novo cliente. Mersault não o viu, mas pela abertura prontamente infiltrou-se o cheiro de vinagre e pepino. Ele encheu de repente o porão sombrio, misturado à misteriosa melodia do acordeão, inflando a bolha de saliva no fósforo do homem, tornando subitamente a conversa mais significativa, como se, dos confins da noite que dormia sobre Praga, todo o sentido de um velho mundo mau e doloroso tivesse vindo refugiar-se no calor dessa sala e desses homens. Mersault, que comia uma compota doce demais, repentinamente projetado ao fundo de si próprio, sentia a fenda que carregava consigo se rachar e abrir-se mais à angústia e à febre. Levantou-se bruscamente, chamou o garçom, nada compreendeu de suas explicações, e pagou demais ao perceber novamente o olhar do músico, sempre aberto e fixo nele. Chegou até a porta, passou pelo homem, e deu-se conta de que ele continuava a fitar a mesa que acabara de deixar. Compreendeu, então, que era cego; subiu os degraus, e, abrindo a porta, atirado ao cheiro sempre presente, caminhou pelas ruas curtas até o fundo da noite.

       As estrelas brilhavam por cima das casas. Devia estar perto do rio, cujo canto surdo e poderoso ouvia. Diante de uma pequena grade num muro espesso, recoberto de caracteres hebraicos, compreendeu que estava no bairro judeu. Por cima do muro, pendiam os galhos de um salgueiro de aroma doce. Através da grade, podiam-se ver grandes pedras castanhas metidas na grama. Era o velho cemitério judeu de Praga. A alguns passos dali, Mersault se viu, correndo, na velha praça da prefeitura. Perto do hotel, teve que se encostar num muro, e vomitou sem esforço. Com toda a lucidez que a extrema fraqueza traz, encontrou o quarto sem um erro, deitou-se e adormeceu logo.

       No dia seguinte, oi despertado pelos vendedores de jornal. O tempo continuava carregado, mas adivinhava-se o sol por trás das nuvens. Mersault, embora um pouco fraco, sentia-se melhor. Mas pensava na duração do dia que se anunciava. Vivendo assim, em presença de si mesmo, o tempo assumia sua extensão mais extrema, e cada hora do dia parecia-lhe conter um mundo. Antes de tudo, era preciso evitar crises como a da véspera. O melhor era visitar a cidade com método. De pijama, sentou-se à mesa e programou um emprego de tempo sistemático, que devia ocupar cada dia seu durante uma semana2. Mosteiros e igrejas barrocas, museus e bairros antigos, não esqueceu nada. Depois, arrumou-se dando-se conta de que esquecera de comprar um pente, e desceu, como na véspera, despenteado e taciturno, passando pelo porteiro e observando, em plena luz do dia, os seus cabelos eriçados, o ar espantado e o paletó do uniforme ao qual faltava o segundo botão (3). Ao sair do hotel, foi invadido por uma terna e pueril melodia de acordeão. O cego da véspera, a um canto da velha praça, acocorado, manejava o seu instrumento com a mesma expressão vazia e sorridente, como que libertado de si mesmo e totalmente envolvido no movimento de uma vida que o superava. Na esquina, Mersault voltou-se e redescobriu o cheiro de pepino. E, com ele, a sua angústia.

       Esse dia foi igual ao que deviam ser os que se seguiram.

       Mersault levantava-se tarde, visitava mosteiros e igrejas, buscava refúgio no seu cheiro de porão e de incenso, e, depois, voltando ao dia, redescobria seu medo secreto com os vendedores de pepinos que encontrava em todas as esquinas. Era através daquele cheiro que via os museus e compreendia a prodigalidade e o mistério do gênio barroco que enchia Praga com seus ouros e sua magnificência. A luz dourada que brilhava suavemente sobre os altares no fundo da penumbra parecia-lhe tirada do céu acobreado feito de brumas e de sol, tão freqüente por cima de Praga. O bricabraque das volutas e dos entalhes, o cenário complicado que parecia papel dourado, tão comovente na sua semelhança com os presépios de criança que se armam no Natal; Mersault sentia a grandiosidade, o grotesco e a ordem barroca, com um romantismo febril, pueril e grandiloqüente, pelo qual o homem se defende de seus próprios demônios (4). O deus que se adorava ali era o que se teme e o que se honra, não aquele que ri com o homem, diante dos jogos cheios de calor do mar e do sol. Deixando o cheiro frio de poeira e de vazio que reinava sob as arcadas sombrias, Mersault se via sem pátria. Todas as tardes, dirigia-se ao mosteiro dos monges tchecos, a oeste da cidade. No jardim do claustro, as horas voavam com os pombos, os sinos tocavam suavemente sobre a grama, mas era ainda a febre que falava a Mersault. Ao mesmo tempo, contudo, as horas passavam. Mas agora era o momento em que as igrejas e os monumentos fechavam e os restaurantes ainda não estão abertos. Esse era o perigo. Mersault passeava às margens do Vitava, cheias de jardins e de orquestras no dia que acabava. Pequenos barcos subiam o rio, de barragem em barragem. Mersault subia com eles, deixava o ruído ensurdecedor e a espuma de uma represa, redescobrindo, pouco a pouco, a paz e o silêncio da noite. Depois, caminhava novamente ao encontro de um ronco que aumentava. Ao chegar à nova barragem, olhava as pequenas canoas coloridas, tentando em vão atravessar a barragem sem se virar, até que uma delas ultrapassou o ponto perigoso, com clamores elevando-se sobre o ruído das águas. Toda aquela água descendo com a sua carga de gritos, de melodias e de aromas de jardim, cheia dos brilhos acobreados do céu poente e das sombras contorcidas e grotescas das estátuas da ponte Charles, trazia a Mersault a consciência dolorosa (5) e ardente de uma solidão sem fervor, da qual o amor não mais fazia parte. E, detendo-se diante do perfume de água e de folhas que lhe chegava, imaginava as lágrimas que não vinham. Teria bastado um amigo, ou braços abertos. Mas as lágrimas paravam na fronteira do mundo sem ternura onde ele mergulhara. Em outras ocasiões, ao atravessar a ponte Charles, sempre a essa hora da tarde, passeava pelo quarteirão do Hradschin, acima do rio, deserto e silencioso a alguns passos das ruas mais animadas da cidade. Vagava entre os grandes palácios, margeava imensos pátios lajeados, ao longo de grades trabalhadas, em tomo da catedral. Entre os grandes muros dos palácios, seus passos ecoavam no silêncio. Um ruído surdo chegava até ele da cidade. Não havia vendedores de pepinos nesse bairro, mas algo de opressivo naquele silêncio e naquela grandiosidade. Se bem que Mersault acabasse sempre tomando a descer na direção do aroma ou da melodia que de agora em diante era a sua única pátria. Comia no restaurante que havia descoberto, e que já lhe era familiar. Ocupava o mesmo lugar junto ao homem de estrela vermelha, que só vinha à noite, tomava uma cerveja e mastigava o seu fósforo. Ainda no jantar, o cego tocava e Mersault comia depressa, pagava e voltava ao hotel, para um sono de criança febril, que não lhe faltou uma só noite.

       Todos os dias, Mersault pensava em partir, e todos os dias, cada vez mais imerso no abandono, seu desejo de felicidade guiava-o um pouco menos. Há quatro dias estava em Praga e ainda não comprara o pente, cuja falta sentia todas as manhãs. Havia, contudo, o sentimento confuso de uma ausência (6), e era isso que ele esperava de modo obscuro. Certa noite, dirigia-se ao seu restaurante, pela ruela onde descobrira o cheiro na primeira noite. Já o sentia aproximar- se, quando, um pouco antes do restaurante, na calçada em frente, algo o deteve e o fez aproximar-se. Um homem estava estendido na calçada, com os braços cruzados e a cabeça caída sobre o lado esquerdo (7). Três ou quatro pessoas mantinham-se encostadas no muro, parecendo esperar por alguma coisa, mas muito calmas. Uma delas fumava, e as outras falavam em voz baixa. Mas um homem, em mangas de camisa, com o paletó no braço e o chapéu atirado(8) fazia, à volta do corpo, a pantomima de uma dança selvagem (9), uma espécie de passo índio, repetido e irritante. Por cima, a luz fraca de um lampião afastado compunha-se com o brilho surdo que vinha do restaurante muito próximo (10). Aquele homem dançando sem parar, aquele corpo de braços cruzados, os espectadores tão calmos, o contraste irônico e esse silêncio inusitado (11) — havia até, afinal, feito de contemplação e de inocência, entre os jogos um pouco opressivos de sombra e luz, um minuto de equilíbrio depois do qual parecia a Mersault que tudo ruiria na loucura. Aproximou-se um pouco mais. A cabeça do morto estava banhada em sangue, virada sobre o lado da ferida, em repouso. Nesse canto retirado de Praga, entre a luz escassa sobre o calçamento um pouco gorduroso, os longos deslizamentos molhados de automóveis que passavam perto, a passagem longínqua de bondes sonoros e espaçados, a morte revelava-se enjoativa e insistente, e foi o seu próprio chamado e o seu sopro úmido que Mersault sentiu no momento em que partiu, com grandes passadas, sem se voltar. De repente, o cheiro que havia esquecido veio atingi-lo: entrou no restaurante e instalou-se à mesa. O homem estava lá, mas sem o fósforo. Pareceu a Mersault que via algo de perdido no seu olhar. Afastou a idéia tola que se apresentara a ele. Mas tudo girava em sua cabeça. Antes mesmo de fazer seu pedido, fugiu bruscamente, correu para o hotel e atirou-se na cama. Uma dor aguda queimava-lhe as têmporas. Com o coração vazio e o ventre contraído, sua revolta explodia. Nos olhos, afloravam imagens de sua vida. Algo dentro dele clamava por gestos de mulheres, braços que se abrem e lábios momos. Do fundo das noites dolorosas de Praga, com odores de vinagre e melodias pueris, chegava até ele o rosto angustiado do velho mundo barroco que lhe acompanhava a febre. Respirando com dificuldade, com olhos de cego e gestos de máquina, sentou-se na cama. A gaveta da mesa-de-cabeceira estava aberta e forrada com um jornal inglês, no qual leu um artigo (12) inteiro. Depois, tomou a atirar-se na cama. A cabeça do homem estava voltada sobre a ferida e nessa ferida podiam enfiar-se até dedos. Olhou para as mãos e os dedos, e desejos de criança afloraram nele com as lágrimas. Era uma nostalgia de cidades cheias de sol e de mulheres, com tardes verdes que cicatrizam as feridas. As lágrimas irromperam. Crescia nele um grande lago de solidão e silêncio, sobre o qual coma o canto triste de sua libertação (13).

 

                                                   CAPÍTULO II

       No trem que o levava para o norte, Mersault examinava as mãos. O céu era de tempestade, e a corrida do trem arrastava uma série de nuvens baixas e carregadas. Mersault estava só no vagão superaquecido Partira precipitadamente na noite, e agora, só, diante da manhã escura, deixava-se penetrar pela suavidade daquela paisagem da Boêmia, em que a espera pela chuva, entre grandes choupos sedosos e longínquas chaminés de fábricas, dava uma espécie de vontade de chorar. Depois, ele olhava para a placa branca com três inscrições: “Nicht hinauslehnen, E pericoloso sporgersi, E perigo s debruçar-se.” Dali, as mãos, animais vivos e ferozes sobre os joelhos, atraíam a sua atenção. Uma, a esquerda, era longa e flexível; a outra, musculosa e cheia de nós. Ele as conhecia, reconhecia-as, e, ao mesmo tempo, sentia-as distintas, como se capazes de ação em que a sua vontade não interviesse. Uma delas veio encostar-se à testa, para servir de obstáculo à febre que lhe palpitava nas têmporas. A outra deslizou ao longo do paletó para pegar um cigarro no bolso, abandonando-o tão logo tomou - consciência da vontade de vomitar que o deixava sem forças. Voltando para os joelhos, as mãos se entregaram, e, com as palmas em forma de taça, ofereceram a Mersault a imagem de sua vida, voltada para a indiferença e oferecendo-se a quem a quisesse pegar (1).

       Viajou durante dois dias. Mas desta vez, não era um instinto de fuga que o empurrava. A própria monotonia dessa corrida lhe bastava. Esse vagão que o conduzia através de meia Europa conservava-o entre dois mundos. Ele acabava de tomá-lo e ia deixá-lo. Arrancava-o de uma vida da qual gostaria de apagar até mesmo a lembrança, para conduzi-lo ao limiar de um mundo novo, onde o desejo seria rei. Em nenhum momento Mersault se entediou. Ficara no seu canto, raramente perturbado, olhara as mãos, depois a paisagem, e refletia. Prolongou voluntariamente a viagem até Breslau, fazendo esforço apenas nas alfândegas para trocar de passagem. Queria ficar ainda a sós diante de sua liberdade. Estava cansado e quase não tinha força para mexer-se. Recebia em si as menores parcelas de sua força e de suas esperanças, agarrava-as e as reagrupava, refazendo-se a si mesmo, e, também, ao seu destino. Gostava dessas noites longas, em que o trem corria sobre os trilhos escorregadios, da passagem pelas pequenas estações, onde apenas o relógio é iluminado, o frear repentino antes do ninho de luzes das grandes estações, que mal se viam, e já engoliam o trem, despejando nos compartimentos a sua profusão de ouro, luz e calor. Os martelos soando nas rodas, a locomotiva resfolegando com todo o seu vapor, e o gesto de autômato do ferroviário, abaixando o disco vermelho, relançavam Mersault na corrida louca do trem, em que apenas sua lucidez e sua inquietude se mantinham em vigília. Novamente no compartimento, o jogo cruzado das luzes e das sombras recobria-o de negro e ouro. Dresden, Bautzen, Goerlitz, Liegnitz. A longa noite, só diante de si, com todo o tempo para formular os gestos de uma vida futura, a luta paciente com a idéia que foge na curva de uma estação, deixa-se novamente apanhar e perseguir, vai ao encontro de suas conseqüências, para fugir outra vez, diante da dança dos fios cintilantes de chuva e de luzes. Mersault buscava a palavra, a frase que formularia a esperança de seu coração, onde se encerraria a sua inquietação. No estado de fraqueza em que se encontrava, tinha necessidade de fórmulas. A noite e o dia se sucediam nessa luta obstinada contra o verbo, a imagem que a partir de agora daria nova cor a seu olhar diante da vida, ao sonho enternecido ou infeliz que fazia de seu futuro. Fechava os olhos. E preciso tempo para viver. Como toda obra de arte, a vida exige que se pense nela. Mersault pensava em sua vida e passeava a consciência desvairada e o desejo de felicidade num compartimento que, naqueles dias, era para ele, na Europa, como uma dessas celas em que o homem aprende a conhecer o homem através daquilo que o transcende.

       Na manhã do segundo dia, embora estivesse no campo plano, o trem diminuiu sensivelmente a marcha. Breslau ficava a algumas horas de distância, e o dia abria-se sobre a longa planície da Silésia, sem uma árvore, pegajosa de lama, sob um céu encoberto e inchado de chuva. A perder de vista, e a distância regulares, grandes pássaros negros, de asas luzidias, voavam em bando, a alguns metros do chão, incapazes de elevarem-se mais alto, sob o céu pesado como uma imensa laje. Voavam em círculos, num vôo lento e pesado, e, às vezes, um deles deixava o bando, fazia um vôo rasante, quase confundindo-se com a terra, e afastava-se com o mesmo vôo arrastado, interminável, até que estivesse bastante longe para destacar-se como um ponto negro no alvorecer. Mersault apagara com as mãos o vapor da vidraça e olhava avidamente pelas longas estrias que seus dedos haviam deixado no vidro. Da terra devastada ao céu sem cor erguia-se para ele a imagem (2) de um mundo ingrato, onde, pela primeira vez, voltava finalmente a si mesmo. Nesta terra, levada ao desespero da inocência, viajante perdido num mundo primitivo, ele redescobria suas amarras, e, com o punho cerrado contra o peito, o rosto esmagado contra a vidraça, representava o seu arrebatamento em relação a si próprio e à certeza das grandezas que nele dormiam. Gostaria de ter-se deitado naquela lama, de ter entrado na terra por aquele banho de barro, e, erguido sobre a planície sem limite, coberto de lama e os braços abertos diante do céu de esponja e de fuligem, como que diante do símbolo desesperador e esplêndido da vida, gostaria de afirmar a sua solidariedade com o mundo, naquilo que tinha de mais repugnante, e de declarar-se cúmplice da vida até na sua ingratidão e na sua imundície. O imenso arrebatamento que o soerguia explodiu, afinal, pela primeira vez desde a sua partida. Mersault esmagou as lágrimas e os lábios contra o vidro frio. Novamente, o vidro tremeu, a planície desapareceu.

       Horas depois, ele chegava a Breslau. De longe, a cidade apareceu-lhe como uma floresta de chaminés de fábricas e de torres de catedrais. De perto, era feita de tijolos e de pedras negras; homens de boné com uma viseira curta perambulavam lentamente pelas ruas. Ele seguiu-os, passou a manhã num bar de operários. Lá, um rapaz tocava gaita: melodias de uma boa e pesada frivolidade, que repousavam a alma. Mersault decidiu descer em direção ao sul, depois de ter comprado um pente. No dia seguinte, estava em Viena. Dormiu uma parte do dia e a noite toda. Quando acordou, a febre baixara totalmente. Encheu-se de ovos quentes e de creme de leite no café da manhã, e, um pouco enjoado, saiu para uma manhã cortada de sol e de chuva. Viena era uma cidade revigorante: lá não havia nada a visitar. A catedral de Santo Estêvão, grande demais, entediava-o. Preferiu os bares que ficavam em frente, e, à noite, um pequeno cabaré à beira do canal. De dia, passeava pelo Ring, no luxo das belas-vitrines e das mulheres elegantes. Por algum tempo, usufruía desse cenário frívolo e luxuoso, que separa o homem de si próprio na cidade menos natural do mundo. Mas as mulheres eram belas, as flores carnudas e reluzentes nos jardins, e, no Ring, ao cair da tarde, na multidão brilhante e fácil que circulava, Mersault contemplava, no topo dos monumentos, a vã decolagem dos cavalos de pedra na tarde vermelha. Foi então que se lembrou de Rose e Claire, suas amigas. Pela primeira vez desde a partida, escreveu uma carta. Era, na verdade, o excesso de seu silêncio que transbordava no papel (3):

 

                            Minhas Filhas:

       Escrevo-lhes de Viena. Não sei o que está acontecendo com vocês. Por mim, ganho a vida viajando. Com o coração amargo, vi muitas coisas bonitas. Aqui, a beleza deu lugar à civilização. É repousante. Não estou visitando nem igrejas nem lugares antigos. Passeio pelo Ring. E quando chega a noite por cima dos teatros e dos palácios suntuosos, o arrebatamento cego dos cavalos de pedra no vermelho do poente me traz uma singular mistura de amargura e felicidade ao coração. De manhã, como ovos quentes e creme fresco. Levanto-me tarde, o hotel me cerca de atenções, sou sensível ao estilo dos maítres d’hôtel, estou empanturrado de boa comida (ah, esse creme de leite). Há espetáculos e mulheres bonitas. Só falta um sol de verdade.

       Que estão fazendo (4)? Falem de vocês e do sol ao infeliz que nada, nem lugar algum retêm e que continua o seu fiel.

                    Patrice Mersault.

       Naquela noite, tendo escrito, voltou ao cabaré. Havia comprado a noite de uma das animadoras, Helen, que sabia um pouco de francês e compreendia o seu mau alemão. Ao sair do dancing às 2 da manhã, acompanhou-a até a casa, fez o amor mais correto do mundo e, de manhã, descobriu-se numa cama estranha, voltado para as costas de Helen, cujos largos quadris e ombros admirou com desinteresse e bom humor. Partiu sem querer despertá-la, e enfiou uma nota num de seus sapatos. No momento em que chegara à porta, ouviu um chamado:

       — Mas querido, você se enganou.

       Ele voltou até a cama. Na verdade, ele se enganara. Conhecendo mal o dinheiro austríaco, deixara uma nota de 500 shillings, em vez de 100.

       — Não — disse ele, sorrindo — é para você. Você esteve muito bem.

       O rosto de Helen, manchado de sardas, sob os cabelos louros e embaraçados, iluminou-se com um sorriso. Bruscamente, ela pôs-se de pé em cima da cama e beijou-o no rosto. Aquele beijo, sem dúvida o primeiro que ela dava de boa vontade, fez despertar em Mersault um sobressalto de emoção. Deitou-a na cama e puxou as cobertas; voltou para a porta e olhou-a, sorridente:

       — Adeus — disse. A outra abriu uns olhos grandes por cima do lençol puxado até o nariz e deixou-o desaparecer em encontrar uma palavra.

       Alguns dias depois, Mersault recebeu uma resposta expedida de Argel (5):

                                Querido Patrice:

       Estamos em Argel. As suas filhas ficariam muito felizes em revê-lo. Se nada o retém em lugar nenhum, venha, pois, a Argel; nós podemos hospedá-lo na Casa (6). Nós estamos felizes. Temos um pouco de vergonha, é claro, mas é mais por conveniência. E também por causa dos preconceitos. Se quer ser feliz, venha tentá-lo aqui. E melhor do que ser suboficial reengajado (7). Estendemos nossas testas aos seus beijos paternais.

                      Rose, Claire e Catherine.

P.S. — Catherine protesta contra a palavra paternal (8). Ela está morando conosco. Será, se você quiser, a sua terceira filha.

       Decidiu voltar a Argel por Gênova. Assim como outras pessoas têm necessidade de solidão antes de tomarem grandes decisões e de jogar a parte essencial de sua vida, ele, envenenado de solidão e de isolamento, tinha necessidade de refugiar-se na amizade e na confiança e de provar uma segurança aparente antes de começar a partida.

       No trem que levava a Gênova (9), pelo norte da Itália, escutava as mil vozes que nele cantavam em direção à felicidade. Desde o primeiro cipreste, reto na terra pura, ele cedera. Sentia, ainda, a fraqueza e a febre. Mas algo dentro dele amolecera, se descontraíra. Logo, à medida que o sol avançava no dia e que o mar se aproximava, sob o vasto céu luzidio do qual escorriam rios de ar e de luz sobre as oliveiras agitadas, a exaltação que o envolvia no compartimento abarrotado, tudo que ria e cantava à sua volta ritmava e acompanhava uma espécie de dança interior, que o projetou, durante horas, imóvel, aos quatro cantos do mundo, despejando-o, finalmente, rejubilante e desorientado, na Gênova ensurdecedora, que explodia de saúde diante de seu golfo, de seu céu, onde lutavam até a noite o desejo e a preguiça. Ele estava com sede, com fome de amar, de gozar e de beijar. Os deuses que o queimavam lançaram-no ao mar, num cantinho do porto, onde sentiu o gosto de alcatrão e de sal misturados, e perdeu a noção de seus limites de tanto nadar. Em seguida, perdeu-se pelas ruas estreitas e cheias de aromas do bairro antigo, deixou as cores gritarem por ele, deixou o sol consumir o céu acima das casas, sob seu peso de sol, e os gatos repousarem em seu lugar, por entre o lixo e o verão. Foi até a estrada que domina Gênova e deixou que lhe chegasse todo o mar carregado de perfumes e de luzes. Fechando os olhos, abraçou a pedra quente onde se sentara e reabriu os braços diante dessa cidade em que o excesso de vida urrava num exaltante mau gosto. Nos dias que se seguiram, gostava também de sentar-se na rampa que descia até o porto, e, ao meio-dia, via passar as moças que vêm dos escritórios para o cais. De sandálias, com os seios soltes dentro de vestidos brilhantes e leves, deixavam Mersault com a língua seca e o coração palpitante de desejo, no qual redescobria, ao mesmo tempo, uma liberdade e uma justificativa (10). A noite, eram as mesmas mulheres que reencontrava nas ruas e que seguia, sentindo dentro de si o animal quente e inconfessável do desejo, que se remexia com uma suavidade feroz. Durante dois dias, ardeu naquela exaltação desumana. No terceiro dia, deixou Gênova e foi para Argel.

       Durante toda a viagem, contemplando os jogos de água e de luz, pela manhã, depois, no âmago do dia, e à noite, sobre o mar, harmonizou seu coração às lentas pulsações do céu e voltou a si. Desconfiava da vulgaridade de certas curas. Estendido na ponte, compreendia que não se devia adormecer, e sim permanecer em vigília, contra os amigos, contra o conforto da alma e do corpo. Ele tinha de construir sua felicidade e sua justificação. E, sem dúvida, a tarefa agora ser-lhe-ia mais fácil. Com a paz estranha que o penetrava diante da tarde subitamente mais fresca sobre o mar, com a primeira estrela lentamente consolidada no céu em que a luz morria verde, para renascer amarela, sentia que, depois desse grande tumulto e dessa tempestade, o que havia nele de obscuro e de mau se depositava, para deixar, transparente a partir de agora, a água clara de uma alma que voltava à bondade e à decisão. Ele via claro. Há muito tempo esperava pelo amor de uma mulher. E não fora feito para o amor. Através de sua vida, do escritório do cais, do seu quarto e de seu sono, de seu restaurante e de sua amante, perseguira, numa busca única, uma felicidade que, no seu íntimo, e como todo mundo, julgava impossível. Brincara de querer ser feliz. Nunca o quisera com uma vontade consciente e deliberada. Nunca, até o dia... E a partir daquele momento, por causa de um só gesto calculado com toda a lucidez, sua vida mudara, e a felicidade lhe parecia possível. Sem dúvida, ele dera à luz esse novo ser com sofrimento. Mas que era isso diante do preço da degradante comédia que desempenhara antes? Via, por exemplo, que o que o prendera a Marthe (11) fora a vaidade, mais que o amor. Até o milagre dos lábios que ela lhe oferecia, e que não era senão o espanto alegre de uma potência que se reconhece e se desperta à conquista. Toda a história de seu amor era, na verdade, a substituição desse espanto inicial por uma certeza, de sua modéstia por uma vaidade. Havia amado nela aquelas noites em que apareciam no cinema, quando os olhares s voltavam para ela, aquele momento em que a apresentava ao mundo. Amava-se nela, e, através dela, sua potência e sua vontade de viver, O seu próprio desejo, o gosto profundo de sua carne vinham, talvez, desse espanto do começo, ao possuir um corpo particularmente belo, dominá-lo e humilhá-la (12). Agora, sabia que não fora feito para esse amor, e sim para o amor inocente e terrível do deus negro a quem a partir de agora ele servia.

       Como acontece freqüentemente, o que havia de melhor na vida se cristalizara em torno do que ‘havia de pior. Claire e suas amigas, Zagreus e o desejo de felicidade junto de Marthe. Sabia agora que a iniciativa dependia do desejo de felicidade (13). Mas, para isso, compreendia que precisava conciliar-se ao tempo, que dispor de seu tempo era, simultaneamente, a mais magnífica e a mais perigosa das experiências. A ociosidade só é fatal aos medíocres. Muitos não conseguem nem mesmo provar que não são medíocres. Ele conquistara esse direito. Mas era preciso prová-lo (14). Uma única coisa mudara. Sentia-se livre em relação ao passado e ao que perdera. Só queria esse retraimento e esse espaço dentro de si, o lúcido e paciente fervor diante do mundo. Como um pão quente que se amassa, queria apenas segurar a vida nas mãos. Como nas duas longas noites do trem em que conseguira falar a si próprio e preparar-se para viver. Lamber a vida como um torrão de açúcar, moldá-la, afiá-la, enfim — amá-la. Nisso residia toda a sua paixão. Essa presença de si mesmo em si mesmo, seu esforço a partir de agora era mantê-la diante de todas as imagens de sua vida, mesmo à custa de uma solidão que, agora, sabia tão difícil de suportar. Não cederia. Toda a sua violência ajudava-o nisso e levava-o a um ponto no qual o seu amor a ela se juntava, como uma furiosa paixão de viver.

       O mar roçava lentamente os flancos do navio, O céu enchia-se de estrelas. E Mersault, silencioso, sentia em si forças extremas e profundas para amar e admirar aquela vida com fisionomia de lágrimas e de sol, a vida no sal e na pedra quente: parecia-lhe que, ao acariciá-la, todas as forças de amor e de desespero se conjugariam. Nisso residiam sua pobreza e sua riqueza única. Era como se, partindo de zero, recomeçasse, mas com a consciência de suas forças e a febre lúcida que o empurravam ao seu destino. E depois veio Argel, a lenta chegada da manhã, a deslumbrante Kasbah sobre o mar, as colinas e o céu, a baía de braços abertos, as casas entre as árvores e o cheiro já próximo do cais. Então, Mersault deu-se conta de que nem uma só vez, desde Viena, pensara em Zagreus como em um homem que matara com as próprias mãos. Reconheceu em si a faculdade de esquecimento que só pertence às crianças, aos gênios e aos inocentes. Inocente, transtornado pela alegria, compreendeu, afinal, que fora feito para a felicidade.

 

                                             CAPÍTULO III

       Patrice e Catherine tomam o café da manhã ao sol, no terraço. Catherine está de maiô, e o “garoto”, como as suas amigas o chamam, está de calção, com uma toalha em volta do pescoço. Estão comendo tomates com sal, uma salada de batatas, mel e frutas em grande quantidade. Colocam pêssegos para refrescar no gelo, e, ao retirá-los, lambem as gotas que ficam na penugem aveludada. Fazem, também, suco de uva, que bebem erguendo o rosto ao sol para bronzeá-lo (pelo menos Patrice, que sabe que o bronzeado o favorece).

       — Sinta o sol — diz Patrice, com o braço estendido para Catherine.

       Ela lambe o braço.

       — Sim — diz ela — sinta também.

       Ele sente, e depois se deita, acariciando as próprias costelas. Ela, por sua vez, deita-se de bruços e deixa o maiô cair até a cintura.

       — Não estou indecente?

       — Não — diz o “garoto”, sem olhar.

       O sol escorre e demora-se no seu rosto. Com os poros ligeiramente úmidos, ele respira esse fogo que o invade e o adormece. Catherine absorve o seu sol, suspira e geme:

       — É tão bom — diz ela.

       — Sim — diz o “garoto”.

       A casa ficava agarrada ao topo de uma colina de onde se via a baía. No bairro, chamavam-na de casa das três estudantes. Subia-se por um caminho muito difícil, que começava e terminava nas oliveiras. No meio, formava uma espécie de patamar ao longo de um muro cinzento, coberto de desenhos obscenos e de reivindicações políticas, cuja leitura devolvia o fôlego ao viajante esgotado. Depois, continuavam as oliveiras, o lençol azul do céu entre os galhos, e o cheiro de aroeira ao longo de prados chamuscados, onde secavam panos violetas, amarelos e vermelhos. Chegava-se numa grande angústia de suor e de respiração, empurrava-se uma pequena barreira azul, evitando os arranhões das buganvílias e ainda era preciso escalar uma escadaria íngreme como uma escada de madeira, mas coberta de uma penumbra azul, onde já se podia acalmar a sede. Rose, Catherine e o “garoto” chamavam-na de Casa Diante do Mundo. Toda aberta à paisagem, era como um barco suspenso num céu explodindo por cima da dança colorida do mundo. Desde a baía até a curva perfeita, lá embaixo, uma espécie de arrebatamento agitava a grama e o sol, e levava os pinheiros e os ciprestes, as oliveiras poeirentas e os eucaliptos até a entrada da casa. No âmago dessa oferenda floresciam, conforme as estações, rosas silvestres brancas e mimosas, ou a hera que, das paredes da casa, exalava seu perfume nas tardes de verão. Roupas brancas e tetos vermelhos, sorrisos do mar sob o céu esticado, sem uma dobra, de uma ponta à outra do horizonte, a Casa Diante do Mundo apontava suas grandes janelas para essa feira de cores e de luzes. Mas, ao longe, uma linha de altas montanhas violetas juntava-se à baía pela sua encosta extrema e continha essa embriaguez em seu desenho longínquo. Então, ninguém se queixava do caminho íngreme e do cansaço. Cada dia, era necessário conquistar-se a alegria.

       Vivendo assim, diante do mundo, sentindo o seu peso, vendo, todos os dias, a sua fisionomia iluminar-se e depois apagar-se, para no dia seguinte arder com toda a sua juventude, os quatro habitantes da casa tinham consciência de uma presença que lhes era, ao mesmo tempo, um juiz e uma justificação. Aqui, o mundo tomava-se personagem, contava entre aqueles cujo conselho se segue com boa vontade, e nos quais o equilíbrio não matou o amor. Eles o tomavam como testemunha:

       — Eu e o mundo — dizia Patrice, a propósito de nada — nós discordamos de vocês.

       Catherine, para quem estar nua significava libertar-se dos preconceitos, aproveitava as ausências do “garoto” para despir-se no terraço. E vendo mudar as cores do céu, dizia, à mesa, com uma espécie de orgulho sensual:

       — Eu estava nua diante do mundo.

       — Sim — dizia Patrice, com desprezo — as mulheres preferem, naturalmente, as idéias às sensações.

       Catherine irritava-se, porque não queria ser uma intelectual. E Rose e Claire diziam, em coro:

       — Cale-se, Catherine, você não tem razão.

       Isto porque ficava entendido que Catherine sempre estava errada, sendo a que todo mundo amava do mesmo modo. Tinha um corpo sólido e desenhado, cor de pão queimado, e o instinto animal do que existe de essencial no mundo. Ninguém melhor do que ela para esclarecer a linguagem profunda das árvores, do mar e do vento.

       — Essa pequena — dizia Claire, comendo sem parar — é uma força da natureza.

       Depois, todos iam aquecer-se ao sol e se calar. O homem diminui a força do homem. O mundo deixa-a intacta. Rose, Claire, Catherine e Patrice, na janela de sua casa, viviam de imagens e aparências, consentiam nessa espécie de jogo que encetavam entre si, riam para a amizade e para a ternura, mas, reconciliados diante da dança secreta do céu e do mar, redescobriam a cor secreta de seu destino e se reencontravam, finalmente, com o mais profundo de si mesmos. As vezes, os gatos vinham juntar-se aos donos. Gula aproximava-se, perpetuamente ofendida, negro ponto de interrogação de olhos verdes, magra e delicada, subitamente possuída pela demência, lutando contra as sombras.

       — E uma questão de glândulas internas — dizia Rose. Depois ria, toda entregue ao seu riso, sob os cabelos ondulados, franzindo os olhos alegres, por trás dos óculos redondos, até que Gula saltasse sobre ela (favor especial); com os dedos errando no pêlo luzidio, Rose suavizou-se, descontraiu-se e tornou-se gata de olhos ternos, acalmando o animal com mãos suaves e fraternas. Isto porque os gatos eram a porta de saída de Rose para o mundo, assim como a nudez de Catherine. Claire preferia o outro gato, Cali. Ele era manso e ingênuo, com o seu pêlo de um branco sujo, e deixava-se torturar. Claire, com o seu rosto florentino, sentia, então, a alma magnífica. Silenciosa e fechada, com rompantes bruscos, tinha bom apetite. E, vendo-a engordar, Patrice a censurava:

       — Você nos decepciona — dizia. — “Um ser belo não tem o direito de enfear.”

       Mas Rose intervinha:

       — Quando vai parar de ralhar com essa criança!

       — Coma, minha irmã Claire.

       E o dia passava do nascente ao poente, à volta das colinas e sobre o mar, em meio ao delicado sol. Ria-se, brincava-se e faziam-se projetos. Todos sorriam às aparências e fingiam submeter-se a elas. Patrice ia da fisionomia do mundo aos rostos graves e sorridentes das moças. As vezes, espantava-se com aquele universo surgido à sua volta. Confiança e amizade, sol e casas brancas, matizes apenas perceptíveis, daí nasciam as felicidades intactas, cuja exata ressonância ele media. A Casa Diante do Mundo, diziam entre si, não é uma casa onde as pessoas se divertem, e sim uma casa onde se é feliz. Patrice sentia-o efetivamente, quando, com o rosto voltado para a tarde, todos deixavam impregnar-se, com a última brisa, da tentação humana e perigosa de não se parecer com coisa alguma.

       Hoje, depois do banho de sol, Catherine (2) foi para o escritório.

       — Meu caro Patrice — diz Rose, surgindo de repente — tenho uma boa notícia para lhe anunciar.

       No terraço, o “garoto”, nesse dia, está corajosamente estendido num sofá, com um romance policial nas mãos.

       — Minha querida Rose, sou todo ouvidos.

       — Hoje é a sua vez de cozinhar.

       — Está bem — diz Patrice, sem se mexer.

       Rose sai, com sua pasta de estudante, na qual ela põe, indiferentemente, os pimentões do almoço e o volume III da História, tediosa, de Lavisse. Patrice, encarregado de preparar lentilhas, fica flanando até 11 horas, contempla a grande peça de paredes ocre, mobiliada com sofás e estantes, com máscaras verdes, amarelas e vermelhas, com tapeçarias listradas. Depois, com pressa, separa as lentilhas, põe azeite na panela, uma cebola para refogar, um tomate, um molho de salsa e cebolinha, muito atarefado, amaldiçoando Gula e Cali, que protestam a sua fome. No entanto, Rose lhes explicou ontem:

       — Saibam, bichos — disse ela — que no verão faz calor demais para se ter fome.

       As quinze para o meio-dia, chega Catherine, com um vestido leve e sandálias. Precisa de um chuveiro e de um banho de sol Será a última a vir para a mesa. Rose dirá com severidade: “Catherine, você é insuportável.” A água sibila no banheiro e eis Claire ofegante:

       — Está fazendo lentilhas? Tenho uma receita ótima...

       — Eu sei. Pego o creme de leite... Volte mais tarde, minha cara Claire.

       E verdade que as receitas de Claire começam sempre pelo creme de leite (3).

       — Ele tem razão — diz Rose, que acaba de chegar.

       — Sim — diz o “garoto”. — Está na mesa.

       Comem numa cozinha que parece também uma loja de acessórios. Há de tudo, até mesmo uma agenda para anotar as tiradas de Rose. Claire diz:

       — Sejamos finos, mas simples — e come a sua lingüiça com os dedos. Catherine chega com o atraso conveniente, embriagada e preguiçosa, com os olhos pálidos de sono. Tem a alma carregada de amargura em relação ao seu escritório, oito horas que ela subtrai ao mundo e à sua vida para dá-las a uma máquina de escrever. As amigas compreendem e imaginam o que seriam as suas vidas amputadas dessas oito horas. Patrice se cala.

       — Sim — diz Rose, que não gosta de sentimentalismo — no fundo, isso a ocupa. E você nos fala todos os dias do seu escritório. Nós cortamos a sua palavra.

       — Mas... — suspira Catherine.

       — Nesse caso, vamos votar. Um, dois, três, a maioria é contra você.

       — Está vendo — diz Claire.

       Chegam as lentilhas, secas demais, e todos comem em silêncio. Claire, quando cozinha, ao experimentar a comida à mesa, acrescenta sempre, com um ar satisfeito:

       — Mas está excelente!

       Patrice, que tem a sua dignidade, prefere calar-se até o momento em que todos começam a rir. Catherine, hoje sem inspiração, mas que desejaria conseguir a semana de 40 horas, pede, então, que a acompanhem à C.G.T.* Confederação Geral do Trabalho, poderoso órgão sindical. (N. da T.)

       — Não — diz Rose — afinal, é você quem trabalha.

       Exasperada, a “força da natureza (4)” vai deitar-se ao sol. Mas logo os outros se juntam a ela. E, acariciando negligentemente os cabelos de Catherine, Claire acha efetivamente que o que falta a “essa criança” é um homem. Isto porque é uso corrente na Casa Diante do Mundo decidir o destino de Catherine, atribuir-lhe necessidades, fixando-lhes a sua extensão e variedade. Naturalmente, ela faz notar de vez em quando que já está bastante crescida, etc..., mas ninguém ouve.

       — Coitada — diz Rose — ela precisa de um amante.

       Depois, todos se abandonam ao sol. Catherine, que não é rancorosa, conta, então, um boato de seu escritório e diz como a Srta. Perez, a loura alta, que deve casar-se dentro de pouco tempo, faz a ronda dos serviços para documentar-se, que descrições horripilantes os viajantes se comprarem em fazer-lhe, e com que alívio, de volta de licença de casamento, ela declarou, sorridente: “Não era tão terrível”.

       — Ela tem 30 anos — acrescenta Catherine, penalizada.

       E Rose, censurando essas histórias escusas:

       — Vamos, Catherine — diz ela. — Aqui não há moças apenas.

       A essa hora, o avião do correio aéreo passa sobre a cidade, exibindo a glória de seu metal reluzente sobre a terra e no céu. Ele entra no movimento da baía, inclina-se como ela, incorpora-se à corrida do mundo, e, de repente, acabando o seu jogo, vira bruscamente, mergulha no mar, amerrissando numa grande explosão de água branca e azul. Gula e Cali estão deitados sobre o flanco, com as pequenas bocas de serpente deixando entrever o rosa do céu da boca, invadidos por sonhos luxuosos e obscenos que lhes provocam tremores no flanco. O céu lá do alto, com o seu peso de sol e de cores. De olhos fechados, Catherine sente a longa e profunda queda que a traz de volta ao âmago de si mesma, onde suavemente se remexe um animal que respira como um deus.

       No domingo seguinte, esperam-se convidados. E Claire quem deve cozinhar. Rose, portanto, descascou legumes, preparou a louça e pôs a mesa; Claire vai colocar os legumes nos recipientes e supervisionará o cozimento enquanto lê no seu quarto. Como Mina, a Moura, não veio essa manhã, por ter perdido o pai pela terceira vez este ano, Rose também arrumou a casa. Os convidados chegam. Éliane, que Mersault chama de idealista:

       — Por quê? — pergunta Éliane.

       — Porque quando alguém lhe diz uma coisa verdadeira que a choca, você diz: “é verdade, mas não está certo.”

       Éliane tem bom coração e acha-se parecida com o “Homem da Luva”, o que todos negam. Mas seu quarto é forrado de reproduções do “Homem da Luva”. Éliane estuda. Na primeira vez que veio à Casa Diante do Mundo, declarou-se encantada com a “falta de preconceitos” de seus moradores. Com o tempo, ela achou isso menos cômodo. Não ter preconceitos consistia em dizer-lhe que as histórias contadas e trabalhadas pelos seus bons ofícios são muito chatas, e em afirmar amavelmente, à menor frase:

       — Éliane, você não passa de uma burrinha.

       Quando Éliane entrou na cozinha com Noël, o segundo convidado, escultor por profissão, ela encontrou com Catherine, que nunca cozinha em posição normal. Deitada de costas, come uvas com uma das mãos, e, com a outra, bate uma maionese ainda em seus primórdios. Rose, trajando um grande avental azul, admira a inteligência de Gula, que saltou sobre a prateleira para comer as guloseimas do meio-dia.

       — É ou não é verdade — diz Rose — que essa gata é inteligente?

       — É — diz Catherine — hoje ela está se superando — e acrescenta que, de manhã, Gula, cada vez mais inteligente, quebrou o pequeno lampião verde e um jarro de flores.

       Éliane e Noël, ofegantes demais para exprimirem seu desgosto, decidem sentar-se, já que ninguém pensou em lhes oferecer uma cadeira. Chega Claire, amável e lânguida, distribui apertos de mãos e prova a bouillabaisse que está no fogo. Acha que já podem ir para a mesa. Mas, hoje, Patrice está atrasado. No entanto, quando chega, distraído, explica a Éliane que está de bom humor porque as mulheres estavam bonitas nas ruas. A estação quente, mal começou, mas já surgem os vestidos frescos, nos quais tremem corpos rijos. Patrice diz que sente a boca seca, as têmporas latejando e os rins quentes. Diante dessa precisão de termos, Éliane e seu pudor ficam em silêncio. A mesa, uma consternação segue-se às primeiras colheradas de bouillabaisse. Claire, coquete, numa dicção muito pura, pronuncia-se:

       — Acho — diz ela — que esta bouillabaisse está com gosto de cebola queimada.

       — Não está, não — diz Noël, de quem todos gostam pela sua bondade.

       Então, para testar esse bom coração, Rose pede que ele compre um certo número de coisas úteis para a casa, tais como um aquecedor, tapetes persas e uma geladeira. Noël responde, encorajando Rose a rezar para que ele primeiro ganhe na loteria:

       — Já que é assim — diz Rose (5), com realismo — vamos rezar é por nós!

       Faz calor, um gostoso calor espesso, que torna mais precioso o vinho gelado e as frutas que logo vêm à mesa. Durante o café, Éliane fala do amor com uma bela coragem. Se ela amasse, casar-se-ia. Catherine lhe diz que a maior pressa quando se ama é fazer amor, e essa política materialista convulsiona Éliane. Rose, pragmática, o aprovaria, se “infelizmente, a experiência não provasse que o casamento mata o amor”.

       Mas Éliane e Catherine forçam seus pensamentos no antagonismo, tornando-se injustas, como ocorre quando se é temperamental. Noël, que pensa em formas e argila, acredita na mulher, nos filhos e na verdade patriarcal de uma vida concreta e séria. Então, Rose, irritada pelos gritos de Éliane e Catherine, finge compreender, de repente, o objetivo das inúmeras visitas de Noël.

       — Eu lhe agradeço — diz ela — nem sei como lhe dizer o quanto essa descoberta me anima. Amanhã mesmo vou falar a meu pai de nosso projeto, e você poderá fazer-lhe o pedido daqui a alguns dias.

       — Mas... — diz Noël, que não está entendendo muito bem.

       — Oh — diz Rose, num grande arrebatamento — eu sei. Mas eu o compreendo sem que você tenha necessidade de falar. Você é do tipo que se cala e tem necessidade de ser adivinhado. Aliás, estou contente que se tenha declarado, pois a freqüência das suas visitas já começava a denegrir a pureza da minha reputação.

       Noël, entre divertido e vagamente inquieto, declara-se encantado em ver os seus desejos realizados:

      — Sem contar — diz Patrice, antes de acender um cigarro — que será necessário apressar-se. O estado de Rose o obriga a precipitar as coisas.

      — O quê? — pergunta Noël.

       — Meu Deus! — diz Claire — nós estamos apenas no segundo mês.

       — E depois — acrescenta Rose, terna e persuasiva — você chegou à idade em que se fica feliz ao reconhecer-se no filho de um outro.

       Noël franze um pouco a testa e Claire, boazinha, o tranqüiliza:

       — E brincadeira. E preciso aceitá-la com bom humor. Passemos ao salão.

       Ao mesmo tempo, a discussão de princípios chegou ao fim. No entanto, Rose, que faz suas boas ações às escondidas, conversa amavelmente com Éliane. No salão, Patrice colocou-se junto à janela, Claire mantém-se de pé, encostada à mesa, e Catherine deitou-se na esteira. Os outros estão no sofá. Há uma bruma espessa sobre a cidade e o porto. Mas os rebocadores retomam o trabalho, e seus chamados graves chegam até aqui, com cheiro de alcatrão e de peixe, o mundo de cascos vermelhos e negros, de rebites enferrujados e de correntes pegajosas de algas, que desperta lá embaixo. Como todos os dias, é o apelo viril e fraternal de uma vida com gosto de força, cuja tentação ou chamado direto todos aqui sentem.

       Éliane diz a Rose com tristeza:

       — No fundo, você é como eu.

       — Não — diz Rose — procuro apenas ser feliz, e o máximo possível.

       — E o amor não é o único meio — responde Patrice, sem se voltar.

       Ele sente muita afeição por Éliane e receia tê-la magoado há pouco. Mas compreende que Rose queira ser feliz.

       — É um ideal medíocre — diz Éliane.

       — Não sei se é um ideal medíocre, mas é um ideal sadio. É isso, veja... — Patrice não continua. Rose fechou um pouco os olhos. Gula ganhou-lhe os joelhos, e, em meio a longas carícias nos ossos do crânio, Rose pensa nesse casamento secreto em que o gato de olhos semicerrados e a mulher imóvel verão, com o mesmo olhar, um universo semelhante. Todos sonham entre os longos chamados do rebocador. Rose deixa-se invadir pelo ronronar de Gula, aninhada no seu colo. O calor pesa-lhe nos olhos e a faz mergulhar num silêncio povoado pelo pulsar de seu sangue (7). Os gatos dormem o dia inteiro e amam desde a primeira estrela até o amanhecer. Suas volúpias mordem e seu sono é pesado. Sabem, também, que o corpo tem uma alma com a qual a alma nada tem a ver.

       — Sim — diz Rose, abrindo os olhos — ser feliz ao máximo.

       Mersault pensava em Lucienne Raynal. Quando dissera há pouco que as mulheres estavam bonitas nas ruas, queria dizer, sobretudo, que uma mulher lhe parecera bela. Ele a havia encontrado em casa de amigos. Há uma semana, haviam saído juntos, e, sem ter o que fazer, passearam pelas avenidas ao longo do porto, numa bela manhã de calor. Ele não abrira a boca, e, ao acompanhá-la, de volta à sua casa, Mersault surpreendera-se ao apertar-lhe a mão demoradamente e sorrir-lhe. Era bastante alta, não usava chapéu, estava de sandálias abertas, com um vestido de linho branco. Nas avenidas, haviam caminhado sob um vento suave. Ela colocava o pé bem firme nas lajes quentes, buscando apoio para enfrentar ligeiramente o vento. Naquele movimento, o vestido colava-se nela, desenhando-lhe o ventre achatado e liso. Com os cabelos louros para trás, o nariz pequeno e reto e o magnífico ímpeto de seus seios, ela configurava e sancionava uma espécie de acordo secreto que a ligava à terra, e comandava o mundo em tomo de seus movimentos. Com a bolsa pendurada na mão direita, ornada de uma pulseira de prata que tilintava de encontro ao fecho da bolsa, quando levava a mão esquerda à testa para proteger-se do sol, com a ponta do pé direito ainda no chão, mas prestes a deixá-lo, parecia a Patrice que ela unia seus gestos ao mundo.

       Foi então que ele sentiu o misterioso acordo que harmonizava seus passos com os de Lucienne. Caminhavam bem, juntos, e sem esforço de sua parte para adaptar-se. Sem dúvida, esse acordo era facilitado pelos sapatos baixos de Lucienne. Mas, ao mesmo tempo, havia em seus passos respectivos algo que lhes era comum, no comprimento e na flexibilidade. Ao mesmo tempo, Mersault observou o silêncio de Lucienne e o ar fechado de seu rosto. Pensou que provavelmente não era inteligente, e regozijou-se com isso. Há qualquer coisa de divino na beleza sem espírito, e, melhor do que ninguém, Mersault sabia ser sensível a isso. Tudo fez com que ele se demorasse nos dedos de Lucienne, com que a revisse freqüentemente e passeasse muito tempo com ela, com o mesmo movimento silencioso, oferecendo seus rostos queimados ao sol ou às estrelas, banhando-se juntos, harmonizando seus gestos e passos, sem nada em troca a não ser a presença de seus corpos. Tudo isso até a noite de ontem, em que Mersault encontrara um milagre familiar e perturbador nos lábios de Lucienne. Até agora, o que o comovia era sua maneira de agarrar-se às suas roupas, de segui-lo, segurando-o pelo braço, essa entrega e essa confiança que emocionavam o homem que havia nele. Seu silêncio, também, que a colocava por inteiro no seu gesto do momento e completava sua semelhança com os gatos, a quem ela já devia a gravidade de todos os seus atos (8). Ontem, depois do jantar, haviam passeado pelo cais. Em dado momento, detiveram-se, encostados na amurada, e Lucienne deslizara de encontro a Mersault. Na noite, sentiu sob os dedos as faces geladas e salientes, e os lábios quentes, de uma tepidez em que os dedos se colavam.

       Então, houve nele como que um grande grito desinteressado e ardente. Diante da noite carregada de estrelas, e da cidade, como um céu invertido, inchada de luzes humanas sob o sopro quente e profundo que chegava do porto até o seu rosto, vinha-lhe a sede dessa fonte morna, a vontade desenfreada de colher nesses lábios vivos todo o sentido daquele mundo desumano e adormecido, como um silêncio encerrado em sua boca. Inclinou-se, e foi como se pousasse os lábios num pássaro. Lucienne gemeu. Mordeu-lhe os lábios, e, durante alguns segundos, boca contra boca, aspirou a tepidez que o transportava como se apertasse o mundo nos braços. Ela, no entanto, agarrava-se a ele, como náufraga, surgia por ímpetos do grande e profundo poço onde se atirara, repelindo, então, os lábios, que, em seguida, ele atraía, voltando a cair, então, nas águas gélidas e negras que a queimavam como um cortejo de deuses.

       Mas Éliane já ia partir. Uma longa tarde de silêncio e de reflexão esperava por Mersault em seu quarto. No jantar, todos ficaram silenciosos. Mas, de comum acordo, todos passaram ao terraço. Os dias acabam sempre indo ao encontro dos dias. Da manhã sobre a baía, reluzente de brumas e de sol, ao frescor da noite, sobre a baía. O dia nasce sobre o mar e se põe por trás das colinas, porque o céu só mostra um rumo, que vai do mar às colinas. O mundo só diz uma coisa, e ela interessa, e depois cansa. Mas vem sempre o tempo em que ele conquista, por força da repetição, e recebe o prêmio de sua perseverança. Desta forma, os dias da Casa Diante do Mundo, tecidos no pano luxuoso dos risos e dos gestos simples, acabavam no terraço, diante da noite inchada de estrelas. Estendiam-se nas espreguiçadeiras, Catherine sentada no parapeito.

       No céu, ardente e secreto, brilha o rosto da noite escura. Muito longe, no porto, passam luzes, e os uivos dos trens se tornam mais espaçados. As estrelas crescem, depois diminuem; desaparecem e renascem, formando figuras instáveis entre si, sempre renovadas. No silêncio, a noite retoma sua espessura e sua carne. Plena do deslizar de suas estrelas, ela deixa nos olhos o jogo de luzes que os enchem de lágrimas. E cada um, mergulhando na profundeza do céu, encontra, naquele ponto extremo onde tudo coincide, o pensamento secreto e terno que faz toda a solidão de sua vida.

       Catherine, que o amor sufoca de repente, só conseguiu suspirar. Patrice, que sente a voz mudada, pergunta, contudo:

       — Não está com frio?

       — Não — diz Rose — aliás, está tão bonito.

       Claire levantou-se, colocou as mãos no parapeito, e com o rosto erguido para o céu, diante de tudo que há de elementar e nobre no mundo, confunde sua vida com o desejar de viver, e mistura sua esperança ao movimento das estrelas. Virando-se bruscamente, dirige-se a Patrice:

       — Nos bons dias — diz — ter confiança na vida obriga-a a reagir bem.

       — Sim — responde Patrice, sem olhar para ela.

       Uma estrela risca o céu. Atrás dela, amplia-se o brilho de um farol longínquo, na noite agora mais negra. Em silêncio, alguns homens sobem o caminho. Ouvem-se os seus passos e a respiração forte. Pouco depois, chega um cheiro de flores.

       O mundo só diz uma única coisa. E, nessa verdade paciente que vai de estrela a estrela, reside uma liberdade (9), que nos desliga de nós mesmos e dos outros, como nessa outra verdade paciente, que vai da morte à morte. Patrice, Catherine, Rose e Claire tomam consciência, então, da felicidade que nasce de sua entrega ao mundo. Se essa noite é imagem de seu destino, admiram-se de que sei a, ao mesmo tempo, carnal e secreto, e que, no seu rosto, se misturem as lágrimas e o sol. E seu coração de dor e alegria sabe ouvir essa dupla lição que leva à morte feliz.

       Agora é tarde. Meia-noite já. Na face dessa noite, que é como o repouso e o pensamento do mundo, um inflar surdo e um rumor de estrelas anunciam o despertar próximo. Do céu regurgitante de astros, desce uma luz trêmula. Patrice olha para os amigos: Catherine, sentada no muro, com a cabeça atirada para trás; Rose, aninhada na espreguiçadeira, com as mãos estendidas sobre Gula; Claire, de pé e esticada junto ao muro, com a mancha branca de sua fronte. Seres jovens, capazes de felicidade, que permutam sua juventude e guardam seus segredos (10). Patrice aproximou-se de Catherine e olha por cima de seu ombro de carne e de sol, na sua curvatura de céu. Rose aproximou-se do muro”, e todos os quatro estão diante do mundo. E como se, de repente, o orvalho mais fresco da noite lavasse das suas frontes os sinais da solidão, libertando-os de si mesmos, e, com esse batismo trêmulo e fugidio, os devolvesse ao mundo. Nessa hora em que a noite transborda de estrelas, seus gestos se mobilizam na grande e muda fisionomia do céu. Patrice ergue o braço em direção à noite, arrasta no seu arrebatamento ramos de estrelas, a água do céu batida por seu braço e Argel a seus pés, à volta deles como um manto reluzente e sombrio de pedrarias e conchas.

 

                                                        CAPÍTULO IV

       Na madrugada, o carro de Mersault rodava pela estrada do litoral, com os faróis baixos. Ao sair de Argel, ele avançara e ultrapassara carroças de leiteiros, e o cheiro dos cavalos, feito de suor quente e de estrebaria, tornara-o mais sensível ao frescor da manhã. Ainda estava escuro. Uma última estrela derretia-se lentamente no céu, e, na estrada reluzente na escuridão, ele captava apenas o ruído de animal feliz do motor, e, às vezes, um pouco mais distante, o trote de um cavalo e o alarido de uma viatura cheia de latões, até que se lhe tornasse perceptível, sobre o fundo negro da estrada, o brilho quádruplo das ferraduras reluzentes nas patas do cavalo. Depois, tudo desmaiava no ruído da velocidade. Agora, ele ia mais depressa e a noite transformava-Se rapidamente em dia.

       Do fundo da noite comprimida entre as colinas de Argel, o automóvel saía numa estrada livre, dominando o mar, em que já se desenhava a manhã. Mersault imprimiu toda a velocidade ao carro. As rodas multiplicavam na estrada úmida de orvalho seus pequenos ruídos de ventosa. A cada uma das numerosas curvas, uma freada fazia guinchar os pneus e, na reta, o ronco grave da mudança cobria, por um momento, as pequenas vozes do mar, que chegavam das praias em plano inferior. Só o avião permite uma solidão mais sensível ao homem do que aquela que ele descobre no automóvel. Inteiramente entregue a si próprio, conscientemente satisfeito com a precisão de seus gestos, Mersault conseguia, ao mesmo tempo, voltar a si mesmo e ao que o preocupava. Agora, o dia estava claro no fim da estrada. O sol erguia-se sobre o mar e, com ele, os campos da orla, ainda há pouco desertos, despertavam, cheios de pássaros e de insetos de vôo vermelho. As vezes, um camponês atravessava o campo, e Mersault, dominado pela velocidade, guardava apenas a imagem de uma silhueta carregando um saco, com seus passos pesados sobre a terra gordurosa e fértil. De modo regular, o carro o reconduzia de encontro às encostas que dominavam o mar. Elas aumentavam de tamanho, e a sua silhueta, há pouco apenas indicada em sombra chinesa contra a luz do dia, aproximava-se rapidamente, incorporava-se nos seus detalhes e apresentava a Mersault, cheios de oliveiras, de pinheiros e de casas caiadas, os seus flancos subitamente descobertos. Depois, uma outra curva lançava o carro na direção do mar, cuja maré subia em direção a Mersault, como uma oferenda cheia de sal, de sono e de brilhos vermelhos. O carro assoviava, então, na estrada e tornava a partir em direção a outras encostas e ao mar sempre parecido.

       Há um (1) mês, Mersault anunciara sua partida da Casa Diante do Mundo. Primeiro, ia viajar, e, em seguida, fixar-se nos arredores de Argel. Depois de algumas semanas, estava de volta, certo de que a viagem representava para ele uma vida estranha de agora em diante: essa mudança parecia-lhe apenas uma felicidade para inquietos. Da mesma forma, sentia um cansaço obscuro. Tinha pressa em realizar o seu projeto de comprar uma casa pequena entre o mar e a montanha, no Chénoua, a alguns quilômetros das ruínas de Tipasa. Na chegada a Argel, armara o cenário exterior de sua vida. Ele havia adquirido importante representação de produtos farmacêuticos alemães e colocara à testa do negócio um empregado que contratara, justificando, assim, suas ausências de Argel e a vida independente que levava. O negócio, aliás, funcionava razoavelmente, e ele subvencionava os déficits ocasionais, rendendo, sem remorso, esse tributo à sua liberdade profunda. Na verdade, basta apresentar ao mundo uma aparência que ele possa compreender. A preguiça e a covardia encarregam-se do resto. A independência ganha-se com algumas palavras baratas de confidência. Em seguida, Mersault ocupou-se do destino de Lucienne.

       Ela não tinha parentes, vivia só, era secretária numa firma de carvão, alimentava-se de frutas e fazia ginástica. Mersault emprestou-lhe alguns livros. Ela os devolveu, sem nada dizer. As suas perguntas, respondia sempre: “Sim, é bom” ou, ainda: “E um pouco triste.” No dia em que resolveu deixar Argel, ele lhe propôs viverem juntos, desde que ela morasse em Argel, sem trabalhar, e que se encontrassem quando ele tivesse necessidade dela. Disse isso com convicção suficiente para que Lucienne nada visse de humilhante, o que, de fato, ocorreu. Muitas vezes, Lucienne entendia com o corpo o que seu espírito não conseguia compreender. Ela aceitou. E Mersault acrescentou:

       — Se você insistir, posso prometer que me casarei com você. Mas isso não me parece útil.

       — Será como você quiser — disse Lucienne.

       Uma semana depois, casaram-se e ele preparava-se para partir. Nesse ínterim, Lucienne comprou um barco laranja para passear no mar azul.

       Com um golpe de volante, Mersault evitou uma galinha matinal. Pensava na conversa que tivera com Catherine. Na véspera da partida, deixara a Casa Diante do Mundo para passar uma noite sozinho no hotel.

       Era um início de tarde, e, como chovera pela manhã, toda a baía mostrava-se como uma vidraça lavada, e o céu, como lençóis limpos. Bem de frente, o cabo que terminava a curva da baía desenhava-se com uma pureza maravilhosa, e, dourado por um raio de sol, alongava-se no mar, como uma grande serpente de verão. Patrice acabara de fechar as malas, e agora, com os braços apoiados no parapeito da janela, olhava avidamente para esse novo nascimento do mundo (2).

       — Não compreendo por que você vai embora, se está feliz aqui — dissera-lhe Catherine.        — Correria o risco de ser amado aqui, minha pequena Catherine, e isso me impediria de ser feliz.

       Catherine, enroscada no sofá, com a cabeça um pouco baixa, olhava para Patrice com o seu belo olhar sem fundo (3).

       Sem se voltar, ele disse:

       — Muitos homens complicam a sua existência e inventam destinos para si mesmos. Comigo é muito simples. Veja...

       Ele falava voltado para o mundo, e Catherine sentia-se esquecida. Olhava para os dedos longos de Patrice, pendendo na extremidade do antebraço dobrado de encontro ao batente, sua maneira de apoiar o corpo num só lado dos quadris e o olhar perdido que ela adivinhava sem se dar conta.

       — O que eu gostaria... — diz ela (4), mas calou-se e olhou para Patrice.

       Pequenas velas começavam a ganhar o mar, aproveitando a calmaria. Abordavam o canal, enchiam-no com o seu bater de asas, e, de repente, iniciavam sua corrida ao largo, com um rastro de ar e de água que desabrochava em longos tremores espumantes. De sua posição, e à medida que avançavam no mar, Cathenne os via elevarem-se à volta de Patrice como um vôo de pássaros brancos (5). Ele pareceu sentir o seu silêncio e o seu olhar. Voltou-se, tomou-lhe as mãos e puxou-a para si.

       — Nunca renuncie, Catherine. Você tem tantas coisas dentro de si, e a mais nobre de todas, a, noção de felicidade. Não espere apenas a vida de um homem. E por isso que tantas mulheres se enganam. Mas espere-a de si própria (6).

       — Não me queixo, Mersault — diz Catherine suavemente, apertando o ombro de Patrice (7). — Só uma coisa importa no momento: cuide-se bem.

       Ele sentiu, então, o quanto a sua certeza se prendia a pouca coisa. Seu coração estava estranhamente seco (8).

       — Você não deveria ter dito isso agora.

       Pegou a mala e desceu, primeiramente, a escadaria íngreme, e, depois, o caminho das oliveiras que levava às oliveiras. Nada esperava mais por ele, a não ser o Chénoua (9), uma floresta de ruínas e de absintos, um amor sem esperança nem desespero, com a lembrança de uma vida de fel e de flores. Virou-se. Lá no alto, Chaterine o via partir, sem um gesto.

       Pouco menos de duas horas depois, Mersault viu o Chénoua. Naquele momento, os últimos brilhos violeta da noite arrastavam-se ainda pelas suas encostas, que mergulhavam no mar, enquanto o pico iluminava-se de clarões vermelhos e amarelos. Havia como que um arrebatamento vigoroso e maciço de terra, partindo das colinas do Sahel que se perfilavam no horizonte, para desembocar nesse enorme dorso de animal musculoso que mergulhava no mar de toda a sua altura. A casa que Mersault comprara elevava-se nas últimas escarpas, a uns cem metros do mar, que já se dourava de calor. Tinha apenas um andar acima do térreo e, nesse andar, um só quarto com suas dependências. Mas o quarto era amplo e dava para o jardim em frente, e, depois, para o mar, através de uma magnífica janela, prolongamento de um terraço. O mar já começava a enraivecer-se e, ao mesmo tempo, o seu azul escurecia, enquanto o vermelho quente do piso do terraço ganhava o seu esplendor. A balaustrada caiada já deixava passar as primeiras flores de uma magnífica roseira. As rosas eram brancas, e, nas que estavam abertas, destacando-se sobre o mar, havia, ao mesmo tempo, algo de saturado e de abundante na firmeza de sua carne. Das peças do andar inferior, uma dava para as primeiras encostas do Chénoua, povoadas de árvores frutíferas, e as duas outras, para o jardim e o mar. No jardim, dois pinheiros lançavam ao céu seus troncos desmedidos, apenas cobertos nas extremidades de um pêlo amarelado e verde. Da casa, só se conseguia ver o espaço compreendido entre essas duas árvores e a curva do mar entre os troncos. Naquele momento, um pequeno navio passava ao largo, e Mersault ficou olhando para ele, durante toda a longa viagem que fez de um pinheiro ao outro.

       Era lá que ia viver. Sem dúvida, a beleza do lugar tocava-lhe o coração. Essa fora a razão pela qual comprara a casa. Mas o repouso que ali esperava encontrar agora o assustava. E a solidão, que procurara com tanta lucidez, parecia-lhe mais inquietante agora que conhecia o seu cenário. A aldeia não era longe ficava a uns cem menos. Ele saiu. Um pequeno caminho descia da estrada até o mar. No momento de descer, ele se deu conta, pela primeira vez, de que se divisava, do outro lado do mar, a pequena ponta de Tipasa. Na extremidade da ponta, recortavam-se as colunas dóricas do templo, e, à sua volta, as ruínas gastas por entre os absintos, que formavam, à distância, como que uma lã cinzenta. Nas tardes de junho, pensou Mersault, o vento devia levar em direção ao Chénoua, através do mar, o perfume que exalavam os absintos inchados de sol.

       Era preciso instalar sua casa e organizá-la. Os primeiros dias passaram rapidamente. Ele caiou as paredes, comprou cortinas em Argel, restaurou a instalação elétrica. E, nesse trabalho, interrompido durante o dia pelas refeições que fazia no hotel da aldeia e por banhos de mar, esquecia por que viera para esse lugar e dispersava-se no cansaço de seu corpo, com as pernas rígidas e os rins doloridos, preocupado com a falta de pintura ou a instalação defeituosa de uma porta no fim do corredor. Dormia no hotel e, pouco a pouco, travava conhecimento com a aldeia: os rapazes que, nas tardes de domingo, vinham jogar bilhar e pingue-pongue (ocupavam os jogos a tarde toda, e, para grande furor do proprietário, só faziam uma consumação); as moças que passeavam ao entardecer pela estrada que dava para o mar (de braços dados, cantando um pouco, ao falar, as últimas sílabas das palavras); Pérez, o pescador, que só tinha um braço e fornecia peixe para o hotel. Foi lá também que encontrou o médico local, Bernard. Mas no dia em que acabou de fazer as instalações da casa, Mersault trouxe as suas coisas e voltou a preocupar-se um pouco consigo mesmo. Era fim de tarde. Estava no quarto de cima e, por trás da janela, dois mundos disputavam o espaço entre os dois pinheiros. Num deles, quase transparente, multiplicavam-se as estrelas. No outro, mais denso e mais escuro, uma secreta palpitação de água anunciava o mar.

       Até então, vivera na disponibilidade, acompanhando os operários que o ajudavam ou conversando com o dono do café. Mas, naquela tarde, tomou consciência de que não havia ninguém para encontrar, nem amanhã, nem nunca, e que estava só, diante da solidão tão desejada. Sabendo que não teria ninguém para ver, o dia seguinte pareceu-lhe terrivelmente próximo. No entanto, convenceu-se de que era o que desejara: a sós consigo mesmo, durante muito tempo, até a consumação. Resolveu ficar fumando e refletindo pela noite adentro, mas, por volta de 2 horas, ficou com sono e deitou-se. No dia seguinte, acordou tarde, em torno de 10 horas, preparou o café da manhã e tomou-o antes de se lavar. Sentia-se um pouco cansado. Não fizera a barba e estava despenteado. No entanto, depois de ter comido, em vez de entrar no banheiro, ficou vagando de um quarto para outro, folheou uma revista e, finalmente, satisfeito ao ver um interruptor solto na parede, começou a trabalhar. Bateram à porta. Era o empregado do hotel, que lhe trazia o almoço, como ficara combinado na véspera. Assim como estava, e por pura preguiça, sentou-se à mesa, comeu sem apetite antes que os pratos esfriassem, e acendeu um cigarro, estendido no sofá da peça do térreo. Ao acordar, furioso consigo mesmo por ter adormecido, eram quatro horas da tarde. Lavou-se, então, barbeou-se cuidadosamente, vestiu-se, por fim, e escreveu duas cartas, uma para Lucienne, a outra para as três estudantes. Já era bastante tarde e a noite caía. Apesar disso, foi ao correio e voltou para casa sem ter encontrado ninguém. Subiu para o quarto e foi até o terraço. O mar e a noite dialogavam sobre o cais nas ruínas. Patrice meditava. A recordação daquele dia perdido o envenenava. Esta noite, ao menos, queria trabalhar, fazer qualquer coisa, ler ou sair para caminhar na noite. O portão do jardim rangeu. Era o jantar que chegava. Estava com fome, comeu com apetite e acabou sentido-se incapaz de sair. Decidiu ler na cama. Mas, após as primeiras páginas, seus olhos se fecharam e, no dia seguinte, acordou tarde.

       Nos dias que se seguiram, Mersault tentou reagir contra aquele embrutecimento. A medida que os dias passavam, todos preenchidos pelo ranger do portão e por incontáveis cigarros, apoderava-se dele uma angústia, ao medir a desproporção que havia entre o gesto que o levara aquela vida e a própria vida. Certa tarde, escreveu a Lucienne, pedindo-lhe que viesse. Ao colocar a carta no correio, devorava-o uma vergonha secreta. Mas quando Lucienne chegou, a vergonha transformou-se numa espécie de alegria tola e precipitada por reencontrar um ser que lhe era familiar, e a vida fácil que a sua presença implicava. Ocupava-se dela, e Lucienne olhava-o com um pouco de surpresa, sem, contudo, deixar de se preocupar com seus vestidos de linho branco bem passados.

       Ele saía, então, para o campo, mas com Lucienne. Redescobriu sua cumplicidade com o mundo, mas com a sua mão no ombro de Lucienne. E, refugiado na qualidade de homem, escapava, assim, de seu medo secreto. No entanto, dois dias depois, Lucienne o incomodava. Ela escolheu esse momento para lhe pedir que vivessem juntos. Estavam jantando, e Mersault recusara claramente, sem levantar os olhos do prato.

       Após um silêncio, Lucienne acrescentara, com uma voz neutra:

       — Você não gosta de mim.

       Mersault ergueu a cabeça. Ela estava com os olhos cheios de lágrimas. Ele se enterneceu.

       — Mas eu nunca lhe disse isso, minha pequena.

       — E verdade — respondera Lucienne. — E por isso mesmo.

       Mersault levantou-se e encaminhou-se para a janela. Entre os dois pinheiros, as estrelas fulguravam na noite. E Patrice talvez nunca tivesse sentido, ao mesmo tempo, a sua angústia e uma total repulsa pelos dias que acabaram de passar.

       — Você é bela, Lucienne. Só vou até aí. Não lhe peço mais nada (10). Isso basta a nós dois.

       — Eu sei — respondeu Lucienne. Voltava as costas a Patrice e arranhava a toalha com a ponta da faca. Ele aproximou-se dela e segurou-a pela nuca.

       — Acredite: não há grandes dores, nem grandes arrependimentos, nem grandes recordações. Tudo se esquece (11), até mesmo os grandes amores. É o que há de triste e ao mesmo tempo de exaltante na vida. Há apenas uma certa maneira de ver as coisas, e ela surge de vez em quando. E por isso que, apesar de tudo, é bom ter tido um grande amor, uma paixão infeliz na vida. Isso constitui pelo menos um álibi para os desesperos sem razão que se apoderam de nós.

       Após uma pausa, Mersault refletiu e acrescentou:

       — Não sei se você me compreende.

       — Acho que sim — respondeu Lucienne. E, voltando-se bruscamente para ele: — Você não é feliz.

       — Vou sê-lo. E preciso que eu seja feliz — respondeu Mersault, violento. — Tenho de sê-lo. Com esta noite, este mar e esta nuca entre os meus dedos.

       Voltara-se para a janela e apertara a mão no pescoço de Lucienne. Ela estava calada.

       — Ao menos — disse, sem olhar para ele — sente alguma amizade por mim?

       Patrice ajoelhou-se junto dela e mordeu-lhe o ombro.

       — Amizade, certamente, como tenho pela noite. Você é a alegria dos meus olhos, e não sabe o lugar que essa alegria ocupa no meu coração.

       Lucienne partiu no dia seguinte. Um dia depois, Mersault, incapaz de se concentrar, chegava de automóvel a Argel. Foi primeiro à Casa Diante do Mundo. As amigas prometeram ir vê-lo no fim do mês. Patrice quis, então, rever o seu bairro.

       Sua casa fora alugada a um dono de botequim. Perguntou pelo tanoeiro, mas ninguém soube dar informações suas. Constava que tinha ido para Paris, à procura de trabalho. Mersault deu um passeio. No restaurante, Céleste envelhecera pouco. René continuava lá, com sua tuberculose e o seu ar grave. Ficaram todos contentes de rever Patrice, e ele próprio ficou comovido com aquele reencontro (12).

       — Oh, Mersault — disse-lhe Céleste — você não mudou. Continua o mesmo, oh!

       — Sim — respondeu Mersault.

       Admirava a estranha cegueira pela qual os homens, por mais bem informados sobre as mudanças que se produzem neles próprios, impõem aos amigos a imagem que, de uma vez por todas, fizeram deles. Quanto a ele, julgavam-no segundo o que ele tinha sido. Assim como um cão não muda de caráter, os homens são como os cães para os outros homens. E, na própria medida em que Céleste, René e os outros o tinham conhecido bem, Patrice tornava-se para eles tão estranho e tão fechado quanto um planeta desabitado. Deixou-os, no entanto, com amizade. E, ao sair do restaurante, encontrou Marthe. Vendo-a, tomou consciência de que quase a esquecera, e que, ao mesmo tempo, esperava reencontrá-la. Ela conservava o mesmo rosto de deusa pintada. Desejou-a surdamente, mas sem convicção. Caminharam juntos.

       — Oh, Patrice — dizia ela — como fiquei contente! Que é feito de você?

       — Nada, como vê. Vivo no campo.

       — Que bom! Sempre sonhei com isso. — E após um silêncio: — Sabe, não sinto raiva de você.

       — Sim, então arranjou um consolo — comentou Mersault, rindo. Marthe respondeu num tom que ele jamais ouvira:

       — Não seja mau, está bem? Sabia muito bem que isso terminaria assim, um dia. Você era um sujeito estranho. E eu não passo de uma menina, como você dizia. Então, quando aconteceu, fiquei com raiva, é claro, você compreende... Mas acabei dizendo a mim mesma que você era infeliz. E é engraçado, não sei bem como dizer isso, foi a primeira vez que o que houve entre nós me fez ficar triste e feliz ao mesmo tempo.

       Surpreso, Mersault olhou para ela. De repente, verificava que Marthe sempre se portara bem com ele. Aceitara-o como ele era e tinha-lhe feito esquecer bastante a sua solidão. Fora injusto. Ao mesmo tempo que a sua imaginação e a sua vaidade a tinham valorizado em demasia, o seu orgulho não lhe dera o suficiente. Sentia o paradoxo cruel pelo qual nos enganamos sempre duas vezes em relação aos seres que amamos: em seu favor primeiro, e, em seguida, em seu detrimento. Hoje, compreendia que Marthe fora natural com ele — fora exatamente aquilo que era, e, sob esse aspecto, Patrice lhe devia muito. Chovia um pouco, o suficiente para multiplicar e dispersar as luzes da rua. Através das gotas de luz e de chuva, contemplava o rosto subitamente sério de Marthe e sentia-se invadido por um vago sentimento de gratidão que não conseguia exprimir e que, em outros tempos, poderia ter confundido com uma espécie de amor. Não conseguiu achar mais do que algumas pobres palavras:

       — Sabe... gosto muito de você. E mesmo agora, se eu pudesse fazer alguma coisa...

       Sorriu para ele:

       — Não. Sou jovem. Então, eu não me privo, você sabe.

       Ele aprovou. Entre os dois, que distância, e, ao mesmo tempo, que entendimento secreto! Deixou-a diante de sua casa. Ela abrira o guarda-chuva.

       — Espero que voltemos a nos ver.

       — Sim — respondeu Mersault. Ela sorriu, um sorriso pequeno e triste. — Ah — disse Mersault — está com cara de menina. — Ela fechara o guarda-chuva. Patrice estendeu-lhe a mão (13), sorridente: — Até logo, aparência!

       Ela apertou-lhe a mão rapidamente, e, de modo brusco, deu-lhe dois beijos no rosto e subiu as escadas correndo. Mersault, sob a chuva, sentia, ainda, no rosto, o nariz frio e os lábios quentes de Marthe. E aquele beijo repentino e desinteressado tinha toda a pureza dos da pequena prostituta sardenta de Viena.

       No entanto, foi buscar Lucienne, dormiu em casa dela e, no dia seguinte, pediu-lhe que caminhasse com ele pelas avenidas. Era quase meio-dia quando desceram. Os cascos cor de laranja dos navios secavam ao sol como frutas partidas em quatro. Um vôo duplo de pombos e de sombras de pombos descia em direção ao cais, para regressar logo depois numa curva lenta. O sol brilhante aquecia suavemente. Mersault viu o navio-correio, vermelho e negro, sair lentamente da barra, ganhar velocidade e voltar majestosamente na direção da linha luminosa que espumava onde céu e mar se encontravam. Para quem vê uma partida, há sempre um gosto agridoce.

       — Eles têm sorte — diz Lucienne.

       — Sim — responde Patrice. Ele pensava “Não”, ou, pelo menos, não sentia inveja dessa sorte. Também para ele os recomeços, as partidas, as novas vidas conservavam o seu atrativo. Mas sabia que só os preguiçosos e os impotentes podiam encontrar nisso a felicidade. A felicidade implicava uma escolha, e, dentro dessa escolha, uma vontade planejada e lúcida. Ouvia Zagreus: “Não com uma vontade de renúncia, mas com a vontade da felicidade”. Estava com o braço à volta de Lucienne e na sua mão repousava o seio quente e macio da mulher.

       Naquela mesma noite, no automóvel que o conduzia de volta ao Chénoua, Mersault sentia, diante do movimento das águas e das colinas subitamente surgidas, um grande silêncio interior. Ao imaginar alguns recomeços, ao tomar consciência de sua vida passada, tinha definido o que queria e o que não queria ser. Os dias de dispersão, que lhe haviam causado vergonha — ele os julgava perigosos, mas necessários. Poderia ter fracassado, e perder assim a sua única justificação. Mas, afinal, era preciso habituar-se a tudo (14).

       Entre duas freadas, Mersault compenetrava-se daquela verdade ao mesmo tempo humilhante e desprezível: a felicidade singular que procurava encontrava as suas condições num despertar matinal, nos banhos regulares, numa higiene consciente. Agora, estava em alta velocidade, decidido a aproveitar a embalagem para instalar-se numa vida que, de agora em diante, não lhe exigiria mais esforços, e para harmonizar a sua respiração com o ritmo profundo do tempo e da vida.

       No dia seguinte, levantou-se cedo e desceu até o mar. O dia clareava em todo o seu esplendor e a manhã estava cheia de roçar de asas e de piar de pássaros. Mas o sol mal aflorava a cor do horizonte, e quando Mersault entrou na água, ainda sem brilho, pareceu-lhe que nadava numa noite indecisa, até que, com o sol alto, ele lançou os braços pelas ondas geladas, de ouro vermelho. Voltou para casa. Sentia o corpo alerta e disposto a tudo acolher. Nas manhãs que se seguiram, desceu um pouco antes do nascer do sol. E esse primeiro gesto comandava o resto do dia. Na verdade, os banhos o cansavam. Mas, ao mesmo tempo, com a dose de energia e de fraqueza que lhe deixavam, davam ao dia todo um gosto de abandono, de feliz lassidão. No entanto, os dias ainda lhe pareciam compridos. Não tinha ainda conseguido separar o seu tempo de uma carcaça de hábitos que lhe serviam de pontos de reparo. Não tinha nada para fazer, e, assim, o tempo ganhava toda a sua extensão. Cada minuto recuperava o seu valor de milagre, mas ele ainda não o reconhecia como tal. Assim como, ao viajar, os dias parecem intermináveis, no escritório, a passagem de uma segunda-feira a outra segunda-feira se faz rápida como um raio, também ele, privado de seus apoios, tentava reencontrá-los numa existência em que já não tinham qualquer sentido. As vezes, pegava um relógio e ficava vendo o ponteiro passar de um número para outro, e maravilhava-se diante do fato de a duração de cinco minutos lhe parecer interminável. Sem dúvida, aquele relógio abriu-lhe o caminho penoso e torturante que conduz à arte suprema de nada fazer. Aprendeu a passear. A tarde, às vezes, caminhava ao longo da praia até às ruínas da ponta de Tipasa. Deitava-se no meio dos absintos, e, com a mão pousada no calor de uma pedra, abria os olhos e o coração à grandeza insuportável daquele céu transbordante de calor. Ele harmonizava as pulsações de seu sangue com o ritmo violento do sol, das 14 horas e, embrenhado nos aromas selvagens e concertos de insetos sonolentos, via o céu passar do branco ao azul puro, para, pouco depois, assumir um tom verde, despejando a sua suavidade e a sua ternura sobre as ruínas ainda quentes. Voltava cedo para casa e deitava-se. Nesta corrida de um sol a outro sol, os dias de Mersault ordenavam-se, segundo um ritmo cuja lentidão e estranheza começavam a ser-lhes tão necessárias quanto, antigamente, seu escritório, seu restaurante e seu sono. Nos dois casos, ele não estava plenamente consciente disso. Mas agora, ao menos, nos seus momentos de lucidez, sentia que o tempo lhe pertencia, e, nesse curto instante em que o mar passa de vermelho a verde, cada segundo constituía para ele algo de eterno. Assim como não concebia uma felicidade sobre-humana, também não conseguia conceber uma eternidade além da curva dos dias. A felicidade era humana e a eternidade quotidiana. Tudo resumia-se em saber humilhar-se, harmonizar o coração ao ritmo dos dias, em vez de obrigá-los a seguir a curva de nossa esperança.

       Da mesma forma que é necessário, em arte, saber parar, pois chega sempre um momento em que uma escultura não deve ser mais tocada, e que, para isso, a vontade da inteligência serve melhor ao artista do que os mais amplos recursos da clarividência, assim também é necessário um mínimo de ininteligência para se conseguir uma existência feliz. E quem não a tiver, tem de conquistá-la.

       Aos domingos, aliás, Mersault jogava bilhar com Pérez; Pérez era maneta. Seu braço mutilado estava cortado acima do cotovelo. Então, jogava de uma maneira esquisita, e, com o tronco curvado (15), apoiava o taco no coto. Quando ia pescar, de manhã, Mersault admirava sempre a habilidade do velho pescador, que segurava o remo esquerdo debaixo da axila, e, de pé em cima do barco, com o corpo inclinado para a frente, impulsionava um dos remos com o peito e o outro com a mão. Os dois entendiam-se muito bem. Pérez cozinhava chocos com molho picante. Cozinhava-os no próprio molho, e Mersault compartilhava com ele aquele molho negro e escaldante, mergulhando pedaços de pão na panela, velha e gordurosa, na cozinha do pescador. Aliás, Pérez nunca falava. Mersault ficava-lhe reconhecido pela sua capacidade de silêncio. Algumas vezes, de manhã, depois do banho, via-o colocar o barco no mar. Adiantava-se, então:

       — Vou com você, Pérez?

       — Embarque — dizia o outro.

       Punham, então, os dois remos em duas alças diferentes e remavam, tomando cuidado (pelo menos Mersault), para não enredar os pés nos anzóis. Depois, pescavam, e Mersault vigiava as linhas luzidias na superfície, ondulantes e negras sob as águas. O sol estilhaçava-se sobre a água e Mersault respirava o cheiro pesado e sufocante, que subia do mar como uma respiração. De vez em quando, Pérez pegava um peixe pequeno. Então, devolvia-o à água, dizendo: “Volte para a casa da mãe.” As 11 horas, voltavam à terra, e Mersault, com as mãos reluzentes de escamas, entrava em casa como num porão fresco, enquanto Pérez ia preparar o prato que comeriam juntos à tarde. Todos os dias, Mersault abandonava-se àquela vida como quem se deixa arrastar pela água. E, como na água se avança graças à cumplicidade dos braços e da água que carrega e transporta, bastavam-lhe alguns gestos essenciais, uma mão num tronco de árvore, uma corrida na praia, para manter-se intacto e consciente. Reencontrava, assim, uma vida em estado puro, redescobria um paraíso que é dado apenas aos animais dotados de maior ou menor inteligência. Naquele ponto em que o espírito nega o espírito, ele alcançava a sua verdade, e, com ela, a sua glória e o seu amor extremos.

       Graças a Bernard, pôs-se rapidamente a par da vida da aldeia. Fora obrigado a chamá-lo por causa de uma pequena indisposição, e depois voltaram a encontrar-se, muitas vezes, com prazer. Bernard era silencioso, mas com uma espécie de espírito amargurado que colocava brilhos nos seus óculos. Trabalhara durante muito tempo na Indochina, e aposentara-se aos 40 anos naquele rincão da Argélia. Há alguns anos, levava ali uma vida pacata com a mulher, uma indo-chinesa quase muda, com os cabelos presos em coque e com um tailleur moderno. Bernard, devido à sua capacidade de indulgência (16), adaptava-se a todos os meios. Gostava (17) de toda a aldeia, e todos gostavam dele. Para lá, arrastava Mersault. Este já conhecia bem o dono do hotel, um antigo tenor que cantava atrás do balcão e, entre dois mugidos da Tosca, ameaçava dar uma surra na mulher. Pediram a Patrice que participasse, com Bernard, da comissão de festas. E, nos dias de festa, no 14 de Julho e outros, passeavam com uma braçadeira tricolor ou discutiam com os outros membros da comissão, em torno de uma mesa coberta de oleado verde, cheia de velhas manchas de aperitivos doces, se o estrado dos músicos devia ser decorado com bandeirolas ou com ramos de palmeira. Quiseram até envolvê-lo num conflito eleitoral. Mas Mersault tivera tempo de conhecer o prefeito. Presidia “aos destinos de sua comuna” (como ele dizia) há 10 anos, e essa quase perenidade dava-lhe uma certa inclinação a julgar-se Napoleão Bonaparte. Vinhateiro rico, tinha mandado construir uma casa em estilo grego. Mostrara-a a Mersault. Compunha-se de um térreo e um primeiro andar. Mas, não recuando diante de nenhum sacrifício, o prefeito fizera instalar um elevador. Quis que Bernard e Mersault o experimentassem. E Bernard disse placidamente: “Desliza bem.” A partir desse dia, Mersault tomou-se de uma profunda admiração pelo prefeito. Ele e Bernard utilizavam toda a sua influência para conservá-lo no posto que, a tantos títulos, ele merecia.

       Na primavera, a pequena aldeia de telhados vermelhos apertados uns contra os outros, entre a montanha e o mar, regurgitava de flores, rosas-chá, jacintos, buganvílias e zumbidos de insetos. A hora da sesta, Mersault ia para o terraço e contemplava a aldeia, que dormia e fumegava sob a luminosidade transbordante. A grande história da aldeia era a rivalidade entre Moralès e Binguès, dois ricos colonos espanhóis, que uma série de especulações tornara milionários. A partir daquele momento, foram invadidos por uma febre de grandeza. Quando um deles comprava um automóvel, o outro escolhia um mais caro. E o outro mandava colocar maçanetas de prata no seu carro. Verdadeiro gênio, aquele Moralès. Chamavam-no de “Rei de Espanha”. Na verdade, derrotava Binguès, a quem faltava imaginação. Quando, durante a guerra, Binguès comprou ações no valor de vários milhares de francos do Empréstimo Nacional, Moralès declarara: “Eu faço melhor: dou o meu filho.” E tinha obrigado o rapaz a alistar-se, embora fosse ainda novo demais para ser mobilizado. Em 1925, Binguès chegara a Argel num magnífico Bugatti de corrida. Quinze dias depois, Moralès mandava construir um hangar e comprava um avião Caudron. O avião dormia até hoje em seu hangar. Só aos domingos era mostrado aos visitantes. Ao falar de Moralès, Binguès dizia: “Esse pé-rapado...”, e Moralès contra-atacava: “Esse fracassado.

       Bernard levou Mersault à casa de Moralès. Na grande fazenda cheia de vespas e de cheiro de uva, este recebeu-os muito respeitosamente, embora de alparcatas e em mangas de camisa, porque não conseguia suportar nem paletó, nem sapatos. Mostrou-lhes o avião, os automóveis, a medalha que tinham dado ao filho, emoldurada e exposta no salão. Ia explicando a Mersault a necessidade de afastar os estrangeiros da Argélia francesa (ele se naturalizara, “mas esse sujeito, o Binguès”), e levou-os para ver o seu mais recente achado. Embrenharam-se por um vinhedo imenso, no meio do qual se abria uma praça circular. Nela, estava montado um salão estilo Luís XV (18), com móveis e tecidos dos mais preciosos. Era assim que Moralès recebia os visitantes em suas terras. Mersault perguntou-lhe cortesmente como fazia quando chovia, e Moralès respondeu sem hesitar, de charuto na boca: “Eu troco.” Na volta, Bernard e ele passavam, então, a distinguir o novo-rico do poeta. Moralès, segundo Bernard, era poeta. Mersault pensava que ele daria um admirável imperador romano da decadência.

       Decorrido algum tempo (19), Lucienne veio passar uns dias no Chénoua, e voltou a partir. Num domingo de manhã, Claire, Rose e Catherine vieram visitá-lo, como tinham prometido. Mas Patrice já estava bem longe do estado de espírito que o levara a Argel nos primeiros dias do seu retiro. No entanto, ficou feliz em revê-las. Foi buscá-las, com Bernard, à chegada do grande ônibus cor de canário. O dia estava magnífico, com a aldeia cheia de belas carroças vermelhas dos açougueiros ambulantes, de flores carnudas e de gente vestida de cores claras. Sentaram-se num café, a pedido de Catherine. Ela admirava todo esse brilho e essa vida, e adivinhava, por trás do muro em que se encostava, a presença do mar. No momento de partir, uma música surpreendente irrompeu de uma rua próxima. Era, sem dúvida, a “Marcha do Toreador”, de Carmen, mas interpretada com tal vigor e exuberância que os instrumentos mal conseguiam manter o compasso. “E a sociedade de ginástica”, informou Bernard. No entanto, viam-se cerca de 20 músicos desconhecidos, soprando os mais diversos instrumentos sem cessar. Avançavam em direção ao café e, por trás deles, com o chapéu de palha atirado para a nuca e colocado por cima de um lenço, abanando-se com um leque de reclame, surgiu Moralès. Tinha contratado os músicos na cidade porque, explicou mais tarde, “com esta crise, a vida está muito triste”. Instalou-se, e os músicos, dispostos à sua volta, atacaram os últimos acordes da marcha. O café estava apinhado de gente. Então, Moralès levantou-se, e, num movimento circular, disse com dignidade:

       — A meu pedido, a banda vai repetir o “Toreador.”

       Ao saírem do café, as “burrinhas” sufocavam de tanto rir. Mas ao chegarem a casa, na sombra fresca dos quartos, que acentuava a brancura resplandecente das paredes cheias de sol do lado do jardim, encontraram um silêncio e uma harmonia profunda, que, no caso de Catherine, se traduziu num desejo de tomar banho de sol no terraço. Mersault acompanhou Bernard até à porta. Era a segunda vez que Bernard via qualquer coisa da vida de Mersault. Nunca haviam trocado confidências, Mersault consciente de que Bernard não era feliz, e Bernard um pouco desorientado diante da vida de Mersault. Separaram-se sem uma palavra. Mersault propôs às amigas uma excursão ao Chénoua no dia seguinte, de madrugada. O Chénoua era alto e difícil de escalar. Havia, nisso, a perspectiva de um belo dia de cansaço e de sol.

       Ao amanhecer, escalaram as primeiras encostas. Rose e Claire iam à frente, Patrice fechando a coluna com Catherine. Estavam em silêncio. Começavam a elevar-se, pouco a pouco, acima do nível do mar, ainda todo branco nas brumas da manhã. Patrice também estava calado, inteiramente integrado à montanha, com os cabelos cheios de ervas, molhados nas fontes geladas, à sombra e ao sol, e a seu corpo, que consentia e depois recusava. Compenetrava-se no esforço concentrado da caminhada, o ar da manhã como um ferro em brasa ou uma lâmina afiada em seus pulmões. Entregavam-se inteiramente ao esforço, concentrados em se superarem para conquistar a encosta. Rose e Claire, cansadas, diminuíram a marcha. Catherine e Patrice tomaram a dianteira, e rapidamente os teriam perdido de vista. Patrice perguntava:

       — Tudo bem?

       — Sim — respondeu Catherine. — E muito bonito.

       O sol começava a subir no céu, e, com ele, um zumbido de insetos, que aumentava com o calor. Logo depois, Patrice tirou a camisa e, de peito nu, continuou a escalada. O suor escorria-lhe pelas costas, e o sol começara a empolar-lhe a pele. Embrenharam- se por um atalho que parecia margear os flancos da montanha. Lá, a grama que pisavam estava mais úmida. Logo um ruído de fonte os acolheu, e, num recanto, jorravam frescor e sombra. Borrifaram-se de água uns aos outros, beberam um pouco, e Catherine deitou-se na grama, enquanto Patrice, com os cabelos molhados fazendo-lhe cachos na testa, apertava os olhos diante da paisagem coberta de ruínas, de estradas reluzentes e de brilhos de sol. Depois, sentou-se perto de Catherine.

       — Agora que estamos sós, Mersault, diga-me se é realmente feliz.

       — Olhe — respondeu Mersault. A estrada tremulava ao sol e chegava a eles uma vibração multicolorida. Patrice sorria e acariciava os próprios braços (20).

       — Sim, mas eu queria lhe dizer... E claro que não é obrigado a me responder, se não quiser. — E depois de uma hesitação: — Gosta da sua mulher?

       Mersault sorri.

       — Isso não é indispensável. — E, segurando Catherine pelos ombros, borrifou-lhe o rosto de água. — O erro, minha pequena Catherine, é acreditar que é preciso escolher, que é preciso fazer aquilo que se quer, e que, para se ser feliz, existem condições. A única coisa que conta, sabe, é a vontade de felicidade, uma espécie de enorme consciência, sempre presente. O resto, mulheres, obras de arte ou sucessos mundanos, são apenas pretextos. E uma tela em branco que aguarda os nossos bordados.

       — Sim — diz Catherine, com os olhos cheios de sol.

       — O que me interessa é uma certa qualidade de felicidade. Só posso desfrutar dessa felicidade no combate tenaz e violento com o seu oposto. Você me pergunta se sou feliz. Catherine! Conhece a célebre frase: “Se tivesse que recomeçar a vida...” Pois bem, eu recomeçá-la-ia exatamente da mesma forma. E claro que você não pode saber o que isso significa.

       — Não — diz Catherine.

       — Como posso lhe explicar, minha pequena. Se sou feliz, é graças à minha má consciência. Senti necessidade de partir e de conquistar esta solidão na qual pude confrontar dentro de mim tudo o que havia para ser confrontado, o que era sol e o que eram lágrimas... Sim, sou humanamente feliz (21).

       Rose e Claire chegaram. E Mersault e Catherine puseram de novo as mochilas nas costas. O caminho continuava a ladear a montanha, mantendo-os numa zona de abundante vegetação. As veredas estavam ainda cobertas de figueiras, oliveiras e jujubas. Passaram por alguns árabes montados em burros. Depois, continuaram a subir. O sol golpeava cada vez mais forte as pedras do caminho. Ao meio-dia, arrasados pelo calor, embriagados de perfumes e de cansaço, livraram-se das mochilas e desistiram de chegar ao topo. As escarpas eram rochosas e cobertas de sflex. Um pequeno carvalho ressequido abrigou-os na sua sombra redonda. Tiraram as provisões das mochilas e comeram. A montanha inteira vibrava sob a luz e o som das cigarras. O calor aumentava, sitiava-os sob o carvalho. Patrice deitou-se de bruços na terra, e, com o peito contra as pedras, respirou um aroma escaldante. Recebia no ventre os golpes surdos da montanha, que parecia em atividade. A monotonia, o canto ensurdecedor dos insetos por entre as pedras quentes e os perfumes selvagens acabaram por adormecê-lo.

       Quando acordou, estava coberto de suor e exausto. Deviam ser três horas da tarde. As garotas tinham desaparecido. Mas dali a pouco fizeram-se anunciar com risos e gritos. O calor tinha diminuído. Era preciso descer. Foi nesse momento, no meio da descida, que Patrice teve um desmaio. Ao voltar a si, vislumbrou o mar, muito azul, por entre três rostos inquietos. Desceram mais lentamente. Quase no sopé, Mersault pediu para descansar. O mar tomava-se esverdeado com o céu, e havia toda uma suavidade que subia do horizonte. Sobre as colinas que prolongavam o Chénoua, em tomo da pequena baía, os ciprestes escureciam lentamente. Estavam todos silenciosos. No entanto, Claire disse:

       — Você está com um aspecto cansado.

       — E claro, garotinha.

       — Sabe, não tenho nada a ver com isso, mas esta região não lhe deve fazer bem nenhum. Fica perto demais do mar, é úmida demais. Por que não vai viver na França, nas montanhas?

       — Esta região pode não me fazer bem nenhum, Claire, mas eu me sinto feliz aqui. Sinto-me em harmonia com ela.

       — Mas é para poder sê-lo por mais tempo, e mais completamente.

       — As pessoas não são mais ou menos tempo felizes. São felizes ou não, só isso. E a morte não impede nada, é um acidente da felicidade, nesse caso.

       Todos calaram-se.

       — Não me convenceu — disse Rose, porém, depois de algum tempo.

       Retornaram lentamente a casa, sob o crepúsculo que descia.

       Catherine encarregou-se de chamar Bernard. Mersault estava no seu quarto, e via ao longe, por cima das sombras luzidias dos azulejos da casa, a mancha branca da balaustrada, o mar como uma tira de pano escura e ondulante, e, mais acima, a noite mais clara, mas sem estrelas. Sentia-se fraco, mas, por um mistério benfazejo, a fraqueza aliviava-o e tornava-o lúcido. Quando Bernard bateu à porta, Mersault sentiu que lhe ia contar tudo. Não porque o segredo lhe pesasse. Não havia segredo nisso. Se até então se calara, era na medida em que, em certos meios, guardam-se os pensamentos, por saber que se chocariam com os preconceitos e a estupidez. Mas hoje, com todo o cansaço de seu corpo e a sua profunda sinceridade, tal como o artista, após ter longamente acariciado e construído sua obra, sente um dia a necessidade de exibi-la, e, finalmente, comunicar com os outros homens, Mersault sentia que devia falar. E, sem estar certo de que o faria, aguardava Bernard com impaciência.

       Do térreo, vinham dois risos frescos, que o fizeram sorrir. Nesse momento, Bernard entrou.

       — Então? — perguntou.

       — Então, aqui estou — respondeu Mersault.

       Auscultou-o. Não podia dizer nada. Mas gostaria de fazer uma radiografia, se Mersault pudesse.

       — Mais tarde — disse Patrice.

       Bernard calou-se e sentou-se no rebordo da grande janela.

       — Não gosto de ficar doente. Sei como é. Não há nada mais feio, nem mais degradante do que a doença.

       Mersault continuava indiferente. Ergueu-se da poltrona, ofereceu cigarros a Bernard, acendeu um, e disse, rindo:

       — Posso fazer-lhe uma pergunta, Bernard? –

       — Sim.

       — Você nunca toma banhos de mar; por que, então, escolheu este lugar para se retirar?

       — Ora, não sei bem por quê. Faz tanto tempo... — Fez uma pausa, e acrescentou: — Além disso, eu sempre agi por despeito. Agora está melhor (22). Antes queria ser feliz, fazer o que era preciso, instalar-me, por exemplo, num país que me agradasse. Mas a antecipação sentimental é sempre falsa. Então, é preciso viver, da maneira mais fácil, sem se forçar (23). E um pouco cínico. Mas é também o ponto de vista da moça mais bonita do mundo. Na Indochina, fui aos extremos. Aqui, limito-me a ruminar. Nada mais.

       — Sim — disse Mersault, sem parar de fumar, metido na poltrona, olhando para o teto. — Mas não tenho certeza de que toda antecipação sentimental seja falsa. Elas são apenas pouco razoáveis. Em todo o caso, as únicas experiências que me interessam são exatamente aquelas em que tudo acontece como esperávamos (24).

       Bernard sorriu.

       — Sim, um destino sob medida.

       — O destino de um homem — disse Mersault, sem se mexer — é sempre apaixonante, desde que ele o assuma com paixão. E, para certas pessoas, um destino apaixonante é sempre um destino sob medida.

       — E — concordou Bernard. Levantou-se com um certo esforço e, por um instante, fitou a noite, com as costas ligeiramente voltadas para Mersault. Sem olhar para ele, prosseguiu: — Você é, além de mim, o único homem desse lugar que vive sem companhia. Não me refiro à sua mulher, nem aos seus amigos. Sei bem que são episódios. E, no entanto, parece-me que você gosta mais da vida do que eu. — E, voltando-se para Mersault: — Porque, para mim, amar a vida não consiste em tomar banhos de mar. Viver, para mim, é viver intensamente, desenfreadamente. Mulheres, aventuras, países Agir, forçar alguma coisa. Ter uma vida ardente e maravilhosa. Enfim, quero dizer... você me compreende — (parecia envergonha d por se ter animado) — gosto demais da vida para me satisfazer com a natureza (25).

       Bernard guardou o estetoscópio e fechou o estojo. Mersault lhe disse:

       — No fundo, você é um idealista.

       Mersault tinha a impressão de que tudo se encerra no momento que vai do nascimento à morte, que tudo se julgava e consagrava aí.

       — Sabe (26) — disse Bernard, com uma espécie de tristeza — o contrário de um idealista é, muitas vezes, um homem sem amor.

       — Nem sempre — disse Mersault, estendendo-lhe a mão. Bernard apertou-a demoradamente.

       — Pelo fato de pensarem como você — disse, sorrindo — só há homens que vivem num grande desespero (27) ou numa grande esperança.

       — Talvez as duas coisas.

       — Quanto a mim, não coloco a questão!

       — Eu sei — disse Mersault, num tom grave.

       Mas quando Bernard ia sair, Mersault, movido por um impulso irrefletido, chamou-o.

       — Sim? — respondeu o médico, voltando-se.

       — Você é capaz de sentir desprezo por um homem?

       — Acho que sim.

       — Em que condições?

       O outro refletiu.

       — Parece-me bem simples. Em todos os casos em que fosse movido pelo interesse ou pelo dinheiro.

       — E simples, na verdade — disse Mersault. — Boa noite, Bernard.

       — Boa noite.

       Uma vez só, Mersault ficou pensando. No ponto que tinha atingido, o desprezo de alguém deixava-o indiferente. Mas reconhecia em Bernard afinidades profundas, que o aproximavam dele. Parecia-lhe insuportável que uma parte dele julgasse a outra. Teria agido por interesse? Tinha consciência daquela verdade essencial e imoral de que o dinheiro é um dos meios mais seguros e mais rápidos de conquistar a dignidade. Conseguira rechaçar a amargura que se apodera de toda alma bem-nascida, por considerar o que têm de digno e de vil o nascimento e as condições de crescimento de um belo destino. Aquela maldição sórdida e revoltante, segundo a qual os pobres acabam na miséria uma vida que começou na miséria, ele a rejeitara, combatendo o dinheiro com o dinheiro, o ódio com o ódio. E desse combate entre feras saía às vezes um anjo, todo entregue à felicidade de suas asas e de sua glória, sob o sopro morno do mar. Mas, afinal, ele não contara nada a Bernard, e toda a sua obra ficaria secreta de agora em diante (28).

       Na tarde do dia seguinte, por volta de cinco horas, as moças foram embora. Ao entrarem no ônibus, Catherine voltou-se para o mar:

       — Até logo, praia — disse (29).

       Momentos depois, três rostos (30) sorridentes olhavam para Mersault através dos vidros traseiros, e, como um grande inseto dourado, o ônibus amarelo desaparecia na luz. O céu, embora puro, estava um pouco opressivo. Mersault, só naquela estrada, sentia no fundo do coração um sentimento mesclado de libertação e tristeza. Só agora, a sua solidão tornava-se real, porque só agora ele se sentia ligado a ela. E, o fato de tê-la aceitado, de saber que de agora em diante seria dono de seus dias, enchia-o de uma melancolia que acompanha toda grandeza.

       Em vez de pegar a estrada, voltou por entre as oliveiras e alfarrobeiras, pelo atalho que passava no sopé da montanha e desembocava atrás da casa. Esmagou com o pé algumas azeitonas e deu-se conta de que todo o caminho estava coberto de manchas negras. No fim do verão, as alfarrobeiras davam um cheiro de amor a toda a Argélia, e à noite, ou depois da chuva, é como se a terra inteira repousasse, depois de se ter entregue ao sol, com o ventre molhado de uma seiva perfumada de amêndoas amargas. Durante o dia todo, aquele cheiro descia das grandes árvores, pesado e opressivo. Naquele atalho, com o crepúsculo e o suspiro descontraído da terra, o cheiro tornava-se leve, quase imperceptível às narinas de Patrice — como uma amante com quem se sai para a rua depois de uma tarde sufocante, e que nos olha, colada ao ombro no ombro, por entre as luzes e a multidão.

       Diante daquele cheiro de amor e dos frutos esmagados e perfumados, Mersault compreendeu, então, que se aproximava o fim da estação. Ia começar um longo inverno. Mas ele estava preparado para esperá-lo. Daquele caminho, não se via o mar, mas no topo da montanha, conseguia-se vislumbrar as brumas leves e avermelhadas, que anunciavam a noite. No chão, manchas de luz empalideciam por entre as sobras da folhagem. Mersault respirou fundo o cheiro amargo e perfumado, que consagrava nessa noite as suas núpcias com a terra. A noite que descia sobre o mundo, no pequeno atalho entre as oliveiras e os lentiscos, sobre os vinhedos e a terra vermelha, perto do mar que assobiava suavemente, penetrava-o como uma maré. Tantas noites idênticas tinham constituído para ele uma promessa de felicidade que, ao sentir aquilo como felicidade, fez com que avaliasse o caminho percorrido entre a esperança e a conquista. Na inocência do seu coração, aceitava aquele céu verde e aquela terra molhada de amor, com o mesmo estremecimento de paixão e de desejo com que matara Zagreus na inocência de seu coração.

 

                                                             CAPÍTULO V

       Em janeiro, floresceram as amendoeiras. Em março, macieiras, pereiras e pessegueiros cobriram-se de flores. No mês seguinte, os riachos incharam imperceptivelmente e voltaram a um nível normal. No início de maio, cortou-se o feno, e, nos últimos dias, fez-se a colheita da aveia e cevada. Os damascos já inflavam com o verão. Em junho, as peras precoces surgiram com as grandes colheitas. As fontes já secavam e o calor aumentava. Mas o sangue da terra, esgotado desse lado, fazia brotar, então, os algodoeiros e adoçava as primeiras uvas. Fez-se um forte vento ardente, que secou as terras e acendeu incêndios por toda a parte. E depois, subitamente, o ano declinou. Apressadamente, as vindimas terminaram. A chuva, em grandes temporais, varreu a terra de setembro a novembro. Com ela, mal terminaram os trabalhos de verão, começaram as primeiras semeaduras, enquanto os riachos bruscamente se engrossavam e jorravam em torrentes de água. No fim do ano, o trigo já germinava em certas terras, enquanto outras mal acabavam de ser trabalhadas. Pouco depois, as amendoeiras novamente mostravam-se brancas no céu gelado e azul. Um novo ano começava na terra e no céu. Plantou-se tabaco, as vinhas foram podadas e impregnadas de enxofre, enxertaram-se árvores. No mesmo mês, as nêsperas amadureceram. Novamente o feno, as colheitas e as lavras de verão. No meio do ano, gordos frutos suculentos, que se colavam aos dedos, guarneciam as mesas: figos, pêssegos e peras, que eram comidos gulosamente entre duas debulhas. Nas vindimas seguintes, o céu se cobriu. Vindos no norte, passaram bandos negros e silenciosos de estorninhos e de tordos. Para eles, as azeitonas já estavam maduras, colhiam-se logo depois da sua passagem. Na terra pegajosa, o trigo germinou pela segunda vez. Grandes nuvens, também vindas do norte, passaram sobre o mar e a terra, escovaram a espuma do mar, deixando-o limpo e gélido sob um céu de cristal (1). Durante vários dias, houve relâmpagos longínquos e silenciosos na noite. Começou o primeiro frio.

       Mais ou menos nessa época; Mersault caiu de cama pela primeira vez. Os ataques de pleurisia prenderam-no um mês em seu quarto. Quando se levantou, as últimas encostas do Chénoua estavam cobertas de árvores floridas, que desciam em direção ao mar. A primavera nunca (2) o encontrara tão sensível. E, na primeira noite de convalescença, caminhou durante muito tempo pelas terras até a colina cheia de ruínas onde dormia Tipasa. Num silêncio povoado de ruídos sedosos do céu, a noite era como um leite sobre o mundo. Mersault caminhava sobre a falésia, impregnado da grave meditação daquela noite. Um pouco abaixo, o mar assobiava suavemente; cheio de lua e veludo, macio e liso como um animal. Naquele momento, em que sua vida parecia tão distante, só, indiferente a tudo e a si próprio, pareceu a Mersault que atingira, afinal, o que buscava, e que essa paz que o envolvia nascera do paciente abandono de si mesmo, que perseguira e alcançara com a ajuda daquele mundo cheio de calor, que o repudiava sem cólera. Caminhava ligeiro, e o ruído de seus passos parecia-lhe alheio, embora familiar, mas na mesma medida em que as lutas dos animais nos bosques de aroeiras, as pancadas do mar ou as pulsações da noite nas profundezas do céu. Da mesma forma, sentia o corpo (3), mas com a mesma consciência exterior que o sopro quente daquela noite de primavera e o cheiro de sal e maresia que vinha do mar. Suas corridas pelo mundo, sua exigência de felicidade, a terrível ferida de Zagreus, cheia de cérebro e de osso, as horas suaves e contidas da Casa Diante do Mundo, sua mulher, suas esperanças e seus deuses, tudo aquilo estava diante dele, mas como uma história que se prefere às outras, sem uma razão válida, ao mesmo tempo estranha e familiar, livro favorito que agrada e confirma o que há de mais profundo em nós, mas escrito por outra pessoa. Pela primeira vez, ele não sentia outra realidade que não a de uma paixão pela aventura, um desejo de seiva, de um relacionamento inteligente e cordial com o mundo. Sem rancor nem ódio, não conhecia o remorso. E, sentado num rochedo, cuja superfície rugosa sentia sob os dedos, olhava o mar que inchava silenciosamente sob a luz do luar. Pensava no rosto de Lucienne, que acariciara, e na tepidez de seus lábios. Sobre a superfície lisa da água, a lua, como um óleo, traçava longos sorrisos errantes. A água devia estar morna como uma boca, mole e pronta a abrir-se sob um homem. Mersault, sempre sentado, sentia, então, como a felicidade está perto das lágrimas, por inteiro absorto nessa silenciosa exaltação em que se tecem e entrelaçam a esperança e o desespero de uma vida de homem. Consciente, e, no entanto, alheio, devorado pela paixão e desinteressado, Mersault compreendia que a sua própria vida e o seu destino encerravam-se ali, e que todo o esforço de agora em diante seria no sentido de contentar-se com essa felicidade e enfrentar sua terrível verdade. Agora, era preciso que se atirasse no mar quente, que se perdesse para reencontrar-se, nadar ao luar e na tepidez, para que se calasse dentro dele aquilo que restava do passado, e para que nascesse o cântico profundo de sua felicidade. Despiu-se, desceu por entre os rochedos e entrou no mar. Estava quente como um corpo, deslizava ao longo do braço, colando-se às suas pernas, num abraço constante que não podia definir. Nadava compassadamente e sentia os músculos das costas ritmarem-lhe o movimento. A cada vez que erguia um braço, lançava sobre o mar imenso gotas de prata, que representavam, diante do céu mudo e vivo, a esplêndida semeadura de uma colheita de felicidade. Depois o braço tornava a mergulhar, e, como um arado vigoroso, sulcava, partindo as águas em dois para nelas buscar um novo apoio e uma esperança mais jovem. Atrás dele, da batida de seus pés, nascia um fervilhar de espuma, ao mesmo tempo que um marulhar de água, estranhamente claro na solidão e no silêncio da noite. Ao sentir a sua cadência e o seu vigor, era tomado de uma exaltação — avançava cada vez mais rápido, e logo viu-se longe da costa, só no âmago da noite e do mundo. Pensou, de repente, na profundidade que se estendia a seus pés e parou o movimento. Tudo o que havia embaixo dele atraía-o como a face de um mundo desconhecido, o prolongamento dessa noite que o devolvia a si próprio, o coração de água e de sal de uma vida ainda inexplorada. Veio-lhe uma tentação, que logo repeliu, uma grande alegria do corpo. Nadou com mais força. Maravilhosamente cansado, voltou em direção à margem. Nesse momento, entrou subitamente numa corrente gelada e foi obrigado a parar, batendo os dentes e com os gestos descoordenados. Essa surpresa do mar deixava-o extasiado: o gelo penetrava-lhe os membros e ardia como o amor de um deus, com uma exaltação lúcida e apaixonada que o deixava sem forças. Voltou com mais dificuldade, e, já na margem, diante do céu e do mar, vestiu-se, batendo os dentes e rindo de felicidade.

       Quando voltou, foi invadido por um mal-estar. Do caminho que subia do mar até a sua villa, conseguia ver o promontório rochoso, os corpos lisos das colunas e das ruínas. E, de repente, a paisagem inverteu-se, e ele se viu apoiado num rochedo, caído sobre um arbusto de aroeiras, cujas folhas esmagadas exalavam o seu cheiro forte. Com dificuldade, chegou à villa. O corpo, que o levara há pouco aos extremos da alegria, mergulhava-o agora numa desgraça que o prendia pelo ventre e lhe fechava os olhos. Fez um pouco de chá. Mas havia apanhado uma panela suja para esquentar a água, e o chá, gorduroso, causava-lhe nojo. Tomou-o, no entanto, antes de deitar-se. Ao tirar os sapatos, nas mãos exangues, observou as unhas muito rosadas, aumentadas, recurvadas até cobrir a extremidade dos dedos. Jamais tivera essas unhas, que lhe davam à mão algo de torturoso e doentio. Sentia o peito como que preso num torno. Tossiu e escarrou normalmente várias vezes, embora a boca conservasse um gosto de sangue. Na cama, longos tremores apoderaram-se dele. Sentia-os subirem desde as extremidades do corpo e reunirem-se nos ombros como dois filetes de água gelada, enquanto os dentes batiam, por sobre os lençóis, que lhe pareciam molhados. A casa parecia-lhe vasta, e os ruídos familiares que ouvia ampliavam-se até o infinito, como se não encontrassem uma parede que pusesse freio à sua ressonância. Ouvia o mar como um movimento de água e de pedras, a pulsação da noite por trás das grandes vidraças e o uivar dos cães nas fazendas afastadas. Sentiu calor, tirou as cobertas, depois sentiu frio, e puxou-as. Nesse balanço entre dois sofrimentos, essa sonolência e essa inquietação que lhe tiravam o sono, subitamente tomou consciência de que estava doente. Veio-lhe uma angústia ao pensar que talvez pudesse morrer, nessa espécie de inconsciência e sem poder olhar à frente. Na aldeia, o relógio da igreja soou, sem que ele conseguisse reconhecer o número de batidas. Não queria morrer como um doente. Para ele, pelo menos, não queria que a doença fosse o que tantas vezes é — uma atenuação e como que uma transição para a morte. O que desejava, ainda inconscientemente, era o encontro de sua vida plena de sangue e de saúde com a morte. E não a presença da morte e do que já era quase a morte. Levantou-se, e com dificuldade, arrastou uma poltrona até a janela, sentou-se, cobrindo- se. Por trás das cortinas leves, nos lugares em que as dobras não engrossavam o tecido, ele via estrelas. Respirou longamente e apertou os braços da poltrona para acalmar as mãos que tremiam. Queria reconquistar a sua lucidez. “E possível”, pensava. Ao mesmo tempo, pensava no gás, que ficara aceso na cozinha. “E possível”, repetia. Também a lucidez era uma longa paciência. Tudo podia ser ganho e alcançado. Batia com os punhos nos braços da poltrona. Não se nasce forte, fraco ou com força de vontade. As pessoas tornam-se fortes, tornam-se lúcidas. O destino não está no homem, e sim à sua volta. Deu-se conta, então, de que chorava. Uma estranha franqueza, uma espécie de covardia nascida da doença devolvia-o à infância e às suas lágrimas. Sentia frio nas mãos e um imenso desgosto no coração. Pensava nas unhas; sob a clavícula, sentiu alguns gânglios, que lhe pareceram enormes. Lá fora, toda aquela beleza espalhada sobre o mundo. Não queria deixar o seu gosto e o seu ciúme de viver. Pensava nas tardes de Argel, onde sobe ao céu verde o ruído dos homens que saem das fábricas quando soa o apito. Entre o gosto do absinto, as flores selvagens em meio às ruínas e à solidão das casinhas cercadas de ciprestes no deserto de Sahel, tecia-se a imagem de uma vida, em que a beleza e a felicidade assumiam um ar de desespero e em que Patrice encontrava uma espécie de eternidade fugidia (4). Isso tudo ele não queria deixar, e que essa imagem perdurasse sem ele. Cheio de revolta e de compaixão, viu, então, o rosto de Zagreus voltado para a janela. Tossiu longamente. Respirava com dificuldade. Sufocava nas roupas de dormir. Estava com frio. Ardia em uma imensa cólera turva, e, com os punhos cerrados, com todo o sangue latejando com força no crânio, e com o olhar vazio, esperava o novo calafrio que o faria mergulhar ainda uma vez na febre cega. O tremor veio, devolvendo-o a um mundo úmido e fechado, em que seus olhos se fecharam e fizeram calar a revolta do animal, ciumento de sua sede e de sua fome. Mas, antes de adormecer, teve tempo de ver a noite clarear um pouco, por trás das cortinas, e de ouvir, com o amanhecer e o despertar do mundo, como que um imenso chamado de tristeza e de esperança, que, sem dúvida, dispersava o seu terror da morte, mas, ao mesmo tempo, lhe assegurava que acharia uma razão de morrer naquilo que fora toda a sua razão de viver.

       Quando acordou, o dia já estava avançado e toda uma multidão de pássaros e insetos cantava no calor. Pensou que Lucienne devia chegar naquele mesmo dia. Estava prostrado, e voltou para a cama com dificuldade. Sentia na boca o gosto da febre e a fraqueza que, aos olhos dos doentes, torna as coisas mais duras, e os seres mais incômodos. Mandou chamar Bernard. Este chegou, sempre silencioso e ocupado, auscultou-o, tirou os óculos para limpar as lentes.

       — Mal — disse. Deu-lhe duas injeções. Durante a segunda aplicação, Mersault, embora pouco sensível (5), desmaiou. Quando voltou a si. Bernard segurava-lhe o pulso com uma das mãos e o relógio na outra, olhava o avanço irregular do ponteiro de segundos.. — Está vendo — disse Bernard — uma síncope de 15 minutos. O seu coração fraqueja. Numa nova síncope, você pode ficar.

       Mersault fechou os olhos. Estava esgotado, com os lábios brancos e secos, a respiração sibilante.

       — Bernard — disse.

       — Sim.

       — Não quero acabar numa síncope. Tenho necessidade de ver claro, você entende?

       — Sim — respondeu Bernard. Ele lhe deu algumas ampolas. — Se se sentir fraco, quebre e tome. E adrenalina.

       Ao sair, Bernard encontrou Lucienne, que acabava de chegar:

       — Sempre encantadora.

       — Patrice está doente?

       — Está.

       — É grave?

       — Não, ele está muito bem — respondeu Bernard. E, antes de partir: — Na verdade, um conselho: deixe-o só, na medida do possível.

       — Ah — disse Lucienne — então não é nada.

       Durante todo o dia, Mersault sufocava. Por duas vezes, sentiu o vazio frio e tenaz que o aspirava numa nova síncope; por duas vezes, a adrenalina tirou-o desse mergulho líquido. E, durante todo o dia, seus olhos escuros contemplavam o campo magnífico. Por volta de quatro horas, um grande barco vermelho despontou no mar e aumentou pouco a pouco. reluzente de sol, de água e de escamas. Pérez, de pé e remando regularmente. Rapidamente, veio a noite. Mersault fechou os olhos, e, pela primeira vez desde a véspera, sorriu. Não havia descerrado os dentes. Lucienne estava no quarto há alguns instantes, vagamente inquieta; atirou-se a ele e o beijou.

       — Sente-se — disse Mersault. — Você pode ficar (6).

       — Não fale — respondeu Lucienne — isso cansa.

       Bernard chegou, deu-lhe mais injeções e partiu (7). Grandes nuvens vermelhas passavam lentamente no céu.

       — Quando eu era criança — disse Mersault, com esforço, metido no travesseiro, com os olhos no céu — minha mãe me dizia que eram as almas dos mortos que iam para o paraíso. Eu ficava maravilhado por ter uma alma vermelha. Agora, sei que, na maioria das vezes, trata-se apenas de uma promessa de vento. Mas ainda é maravilho!

       A noite (8) começou. Vinham imagens, grandes animais fantásticos, que balançavam a cabeça, por cima de paisagens desérticas. Mersault afastava-as suavemente, para o fundo de sua febre. Deixava ficar apenas o rosto de Zagreus na sua fraternidade sangrenta. Aquele que matara ia morrer. E, da mesma forma que Zagreus, o olhar lúcido que mantinha sobre a sua vida era o de um homem. Até aqui, vivera. Agora, podia-se falar de sua vida. Desse grande e devastador arrebatamento que o levara para a frente, da poesia fugaz e criadora da vida, nada mais restava agora senão a verdade sem rugas que é o contrário da poesia. De todos os homens que trouxera em si, como todos no início desta vida, desses seres diversos que mesclavam suas raízes sem se confundirem, agora sabia qual deles fora. E essa escolha, que, no homem, cria o destino, ele a fizera com consciência e coragem. Nisso residia toda a sua felicidade de viver e de morrer. Compreendia que ter medo dessa morte que encarara com o desespero de um animal significava ter medo da vida, O medo de morrer justificava um apego sem limites a tudo que está vivo no homem. E todos aqueles que não tinham feito gestos decisivos para enobrecer sua vida, todos os que temiam e exaltavam a impotência (9), todos tinham medo da morte, devido à sanção que trazia a uma vida em que não se tinham enredado. Não tinham vivido o suficiente, jamais haviam vivido. E a morte era como um gesto que privasse para sempre de água o viajante que procura em vão saciar a sede. Mas, para os outros, ela era o gesto fatal e terno que apaga e nega, sorrindo tanto para a resignação quanto para a revolta.

       Passou um dia e uma noite sentado na cama, com o braço apoiado na mesa-de-cabeceira e a cabeça entre os braços. Deitado, não conseguia respirar. A seu lado, Lucienne ficava sentada, observadoo sem dizer uma palavra (10). Mersault por vezes olhava para ela. Pensava que, depois dele, o primeiro que a tomasse pela cintura, fá-la-ia amolecer. Com os seios vibrantes, ela seria oferecida como lhe havia sido oferecida, e o mundo continuaria na tepidez de seus lábios entreabertos. As vezes, levantava a cabeça e olhava pela janela. Não se barbeara, os olhos avermelhados e profundamente encovados haviam perdido o brilho sombrio, e as faces afundadas e pálidas sob a barba azulada transformavam-no completamente. Seu olhar de gato doente pousou nas vidraças. Respirava e voltava-se para Lucienne. Então, sorria. E, naquele rosto que de toda parte fugia e amolecia, o sorriso duro e lúcido dava uma nova força, uma seriedade alegre.

       — Está melhor? — perguntava Lucienne, com sua voz apagada.

       — Estou — retornava, então, à noite de seus braços. No limite de sua força e de sua resistência, reencontrava pela primeira vez e pelo interior, Roland Zagreus, cujo sorriso tanto o exasperara no início. A respiração curta e precipitada deixara no mármore da mesa-de-cabeceira um vapor úmido que lhe devolvia o calor. E, naquela tepidez doentia que lhe chegava, sentia, de modo mais intenso, a ponta gelada dos dedos das mãos e dos pés. Aquilo mesmo revelava uma vida, e nessa viagem do frio ao calor, ele reencontrava a exaltação que também se apoderara de Zagreus, agradecendo “à vida por permitir que queimasse ainda”. Ele se tomava de um amor violento e fraternal por aquele homem do qual se sentira tão distante, e compreendia que, ao matá-lo, consumira com ele núpcias que os ligavam para sempre. Compreendia que aquele pesado caminhar de lágrimas que estava dentro dele como um gosto misturado de vida e de morte lhes era comum. E, na própria imobilidade de Zagreus diante da morte, revia a imagem secreta e dura de sua própria vida. A febre ajudava-o nisso, e, com ela, essa certeza exaltadora que tinha de manter a consciência até o fim e morrer de olhos abertos. Também Zagreus ficara de olhos abertos naquele dia e as lágrimas deles rolavam. Mas era a última fraqueza de um homem que não participara da vida. Patrice não temia essa fraqueza. Nas pulsações do sangue febril, que parava sempre a alguns centímetros dos limites de seu corpo, ele agora compreendia que não teria aquela fraqueza. Isto porque ele havia desempenhado o seu papel, aperfeiçoara o único dever do homem, que é apenas o de ser feliz. Não por muito tempo, é claro. Mas o tempo nada tinha a ver com isso. Ele nada mais é que um obstáculo, ou, então, não é mais nada. Destruíra o obstáculo, e o irmão interior que gerara dentro de si, pouco importava que tivesse dois ou 20 anos. A felicidade era que ele tivesse existido.

       Lucienne levantou-se e recobriu os ombros de Mersault, de onde o cobertor escorregara. Ele estremeceu sob esse gesto. Desde o dia em que espirrara na pequena praça perto da villa de Zagreus, até aquele momento (11), seu corpo servira-o fielmente e abrindo-o para o mundo. Mas, ao mesmo tempo, continuara uma vida própria e desvinculada do homem que representava. Perseguira, no decorrer desses poucos anos, uma lenta decomposição. Agora, ele perfizera sua curva e estava pronto para deixar Mersault e devolvê-lo ao mundo. Nesse súbito calafrio, do qual Mersault tinha consciência, ele observava, ainda uma vez, a cumplicidade que já lhe havia propiciado tantas alegrias. Apenas por esse motivo, Mersault assumia o tremor como uma alegria. Consciente, sem logros, sem covardia (12) — era assim que desejara, a sós consigo mesmo — num encontro com o seu corpo — com os olhos abertos para a morte. Tratava-se de um negócio entre homens. Nada, nem um amor, nem um cenário, mas um deserto infinito de solidão e felicidade, em que Mersault jogava sua última cartada. Sentia o fôlego enfraquecer-se. Aspirou uma golfada de ar, e, nesse movimento, todos os órgãos do peito roncaram. Sentiu a barriga da perna muito fria e as mãos insensíveis (13). Amanhecia.

       A manhã que despontou estava cheia de pássaros e de ar fresco. O sol subiu rapidamente e, de um salto, ficou acima do horizonte. A terra cobriu-se de ouro e de calor. Na manhã, o céu e o mar se salpicavam de luzes azuis e amarelas, com grandes manchas que saltavam. Um vento leve erguera-se, e, pela janela, um ar com gosto de sal vinha refrescar as mãos de Mersault. Ao meio-dia, o vento cessou, o dia explodiu como um fruto maduro, e sobre toda a extensão do mundo, escorreu um suco morno e sufocante, ao som de um repentino concerto de cigarras. O mar cobriu-se deste suco dourado como de um óleo, e devolveu à terra esmagada pelo sol um sopro quente, que a impregnou, exalando cheiros de absinto, de alecrim e de pedra quente. Da cama, Mersault captou esse choque e essa oferenda, e abriu os olhos sobre o mar imenso e curvo, reluzente, povoado de sorrisos dos seus deuses. Deu-se conta, de repente, de que estava sentado na cama e que o rosto de Lucienne estava bem perto do seu. Lentamente, subia dentro dele, como que desde o ventre, uma pedra que se encaminhava para a garganta.. Respirava cada vez mais rápido, aproveitando a transição. A coisa continuava a subir. Olhou para Lucienne. Sorriu, sem uma crispação, e também esse sorriso vinha do interior (14). Recostou-se na cama, sentindo a lenta subida que havia em si. Olhou para os lábios inchados de Lucienne, e, por trás dele, o sorriso da terra. Ele os via com o mesmo olhar e com o mesmo desejo.

       “Daqui a um minuto, daqui a um segundo”, pensou. A subida terminara. E, pedra entre pedras, ele retornou, na alegria de seu coração, à verdade dos mundos imóveis. 

 

                                                                  Albert Camus

 

 

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