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A MULHER ABANDONADA / Honoré de Balzac
A MULHER ABANDONADA / Honoré de Balzac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

A estrutura de A comédia humana não obedece ao critério cronológico. Se na leitura dos romances, novelas e contos que a compõem seguirmos a ordem definitiva estabelecida por Balzac (e rigorosamente observada na presente edição), acontecer-nos-á mais de uma vez ler o fim de uma história antes de seu começo. Não se trata absolutamente de um desleixo. O escritor preveniu as possíveis censuras a essa aparente desordem no prefácio à primeira edição de Uma filha de Eva (supresso na edição definitiva).
“Esta longa história”—escreve, referindo-se ao conjunto de A comédia humana—“terá infelizmente aos olhos de certas pessoas lógicas um vício capital... Ter-se-á o meio de uma vida antes do seu começo, o começo depois do fim, a história da morte antes da do nascimento. Mas é assim mesmo no mundo social. Encontramos no meio de um salão um homem que teremos perdido de vista há dez anos—é primeiro-ministro ou capitalista; tendo-o conhecido sem redingote, sem espírito público ou privado, admiramo-nos de sua glória, espantamo-nos de sua fortuna ou de seus talentos; depois, a um canto do salão, algum delicioso narrador mundano traça-nos em meia hora a história pitoresca dos dez ou vinte anos que ignorávamos. Muitas vezes essa história, escandalosa ou honrosa, bela ou feia, só nos será contada no dia seguinte ou um mês mais tarde, às vezes fragmentariamente. Não há no mundo nada que saia de um bloco único; tudo nele é mosaico. Não se pode contar cronologicamente senão a história do tempo passado, sistema inaplicável a um presente que progride.”
A mulher abandonada (em francês: La femme abandonnée) é justamente uma das narrativas a que esses reparos se referem em especial. No começo da novela encontramos a marquesa De Beauséant abandonada pelo seu primeiro amante, o aristocrata português D’Ajuda-Pinto. Pois bem, o arrefecimento dessa primeira paixão e o rompimento produzido pelo matrimônio D’Ajuda-Pinto formam um dos episódios de O pai Goriot, esse romance de extrema riqueza, o qual, na estrutura de A comédia humana, é ulterior a A mulher abandonada.
É preciso conhecer os antecedentes sentimentais de Clara de Beauséant para acreditar que ela teve a força de resistir às preces de seu segundo amante, Gastão de Nueil, quando este, arrependido, vem implorar-lhe o perdão. E preciso ter lido O pai Goriot para compreender que ela encontrou essa força na lembrança de sua primeira humilhação. Gastão de Nueil tem o triste fim que leva não porque abandonou Clara, mas porque a abandonou depois de D’Ajuda-Pinto ter agido de igual maneira.
Porém mesmo como história independente, A mulher abandonada constitui uma pura obra-prima, um dos momentos mais felizes da carreira do escritor. A análise dos “caprichos tão lógicos” do coração feminino, dos “movimentos aparentemente contraditórios” do espírito da mulher durante o primeiro encontro de Gastão com Clara e, depois, a descrição das reações da heroína ao receber a carta anódina, em que entrevê o rompimento, são de tão vigorosa exatidão psicológica e mantêm o leitor em tal tensão que este quase chega a esquecer o espirituoso quadro da vida provinciana que serve de preâmbulo à narrativa. O desfecho tão espantoso e no entanto inteiramente conforme à lógica das paixões remata esse admirável estudo, relativamente menos conhecido e cuja importância o próprio Balzac desconhecia, pois a julgava inferior à Honorina e até a A mulher de trinta anos, segundo se depreende de sua correspondência com a condessa Hanska.
A comparação de A mulher abandonada com A mulher de trinta anos não é, aliás, descabida. O capítulo IV da Primeira Parte desse romance (intitulado “A declaração”) apresenta a heroína em situação sensivelmente igual à da sra. de Beauséant no inicio da novela. Mas é precisamente essa analogia de situações que nos permite ver melhor a extraordinária diferença entre aquela colcha de retalhos em que os acontecimentos se sucedem por mero arbítrio do autor e essa pequena obra-prima em que todas as etapas da ação são decorrências de uma fatalidade psicológica.
Quem ficou mais impressionado com a história da mulher abandonada foi um romancista moderno, André Maurois. Um de seus protagonistas, pobre explicador, pratica a temeridade de fazer uma declaração de amor à mãe de seus alunos ricos. Expulso pela grande dama, na antecâmara, lembra-se do estratagema usado por Gastão de Nueil quando repelido por Clara de Beauséant e volta à presença da orgulhosa senhora sob o pretexto de ter esquecido as luvas. Obtém o mesmo êxito de Gastão. Se, apesar disso, a novela traz o título Por culpa do sr. de Balzac (incluída no volume Méipe ou la Délivrance), é por esse êxito ser fatal à carreira, à evolução, à vida inteira da personagem de Maurois.
A novela deste tem tanto maior verossimilhança artística quanto se notaram vários casos da influência de figuras balzaquianas sobre criaturas reais, de carne e osso; o da mulher adúltera que, diante do juiz, citava páginas dos romances de Balzac—relatado por Sainte-Beuve—deve ter sido seguido de inúmeros outros, embora menos comentados.

 


 


Em 1822, no começo da primavera, os médicos de Paris mandaram para a baixa Normandia um rapaz que convalescia então duma doença inflamatória causada por algum excesso
de estudo, ou talvez de vida. Seu restabelecimento exigia um repouso completo, uma alimentação delicada, um ar frio e ausência total de emoções fortes.
As férteis campinas do Bessin e a vida pacata da província pareceram-lhe propícias à convalescença. Foi a Bayeux, formosa cidade situada a duas léguas do mar, para
a casa de uma de suas primas, que o acolheu com essa cordialidade particular às pessoas habituadas a viver na solidão, para quem a chegada dum parente ou dum amigo
constitui uma verdadeira felicidade.
Salvo em alguns poucos hábitos, todas as pequenas cidades se parecem. Ora, após várias noites passadas em casa de sua prima, sra. de Sainte-Sevère, ou na das pessoas
que formavam seu círculo de relações, esse jovem parisiense, que era o barão Gastão de Nueil, ficou logo conhecendo as pessoas que aquela sociedade exclusiva encarava
como sendo toda a cidade. Gastão de Nueil viu nelas o pessoal imutável que os observadores encontram nas numerosas capitais desses velhos estados que formavam a
França de outrora.
Havia, antes de tudo, a família cuja nobreza, desconhecida cinquenta léguas além, passa no departamento por incontestável e por ser da mais alta antiguidade. Essa
espécie de família real em ponto pequeno liga-se por laços de parentesco, sem que ninguém o suspeite, aos Navarreins e aos Grandlieu, prende-se aos Cadignan e vincula-se
aos Blamont-Chauvry (Quatro das famílias (inventadas) da alta nobreza em A comédia humana.). O chefe dessa ilustre linhagem é sempre um caçador determinado. Homem
sem maneiras, confunde toda a gente com sua superioridade nominal; tolera o subprefeito como tolera o imposto; não admite nenhum dos poderes criados pelo século
XIX, e observa, como uma monstruosidade política, que o primeiro-ministro não é um nobre. Sua mulher tem um tom peremptório, fala alto, teve adoradores, mas comunga
regularmente pela Páscoa; educa mal as filhas e julga que o nome lhes bastará para que sejam sempre ricas. Mulher e marido não têm a mínima ideia do luxo atual:
conservam os trajes de teatro e mantêm as antigas formas para a baixela de prata, os móveis, as carruagens, bem como para os costumes e a linguagem. Esse velho fausto
harmoniza-se aliás muito bem com a economia das províncias. Em suma, são os fidalgos de antigamente, menos os laudêmios, menos as matilhas e as casacas agaloadas;
trocam cortesias entre si, e são todos devotados a príncipes que eles só veem à distância. Essa casa histórica incógnita conserva a originalidade duma antiga tapeçaria
de alta contextura. Na família vegeta infalivelmente um tio ou um irmão, tenente-general, cordon rouge e cortesão, que foi a Hannover com o marechal de Richelieu
(Cordon rouge: “fita vermelha”; em sentido figurado, alto dignitário da Legião de Honra. – O marechal De Richelieu: Armand du Plessis. Duque de Richelieu (1696-1788),
sobrinho-neto do cardeal, capitão francês famoso por seu espírito e sua devassidão. Na Guerra da Sucessão da Polônia, ocupou e saqueou com suas tropas a cidade de
Hannover.), e que nela se encontra como uma folha desgarrada dum velho panfleto do tempo de Luís XV.
A essa família fóssil opõe-se uma família mais rica, mas de nobreza menos antiga. Marido e mulher vão passar dois meses do inverno em Paris, e dela trazem o ar irrequieto
e as paixões efêmeras. A senhora é elegante, mas um pouco afetada e sempre em atraso com as modas. Contudo, zomba da ignorância exibida por seus vizinhos; sua prataria
é moderna; ela tem grooms, negras, um criado de quarto. O filho mais velho tem tílburi, não faz nada, possui um morgadio; o mais moço é auditor no Conselho de Estado.
O pai, grande conhecedor das intrigas do ministério, conta anedotas sobre Luís XVIII e sobre a sra. du Cayla (A sra. du Cayla: condessa Zoé du Cayla (1784-1850),
favorita de Luís XVIII, ainda viva no momento da publicação desta novela; retirada no castelo de Saint Quen, que lhe dera o monarca, dirigia experiências agrícolas
em suas terras.), coloca dinheiro a cinco por cento, evita conversar a respeito das cidras, mas ainda cai às vezes na mania de retificar as cifras das fortunas departamentais;
é membro do conselho geral, veste-se em Paris e usa a cruz da Legião de Honra. Em suma, esse fidalgo compreendeu a Restauração e arranja dinheiro na Câmara; mas
sua nobreza é menos pura que a da família com o qual rivaliza. Recebe a Gazette e os Débats. A outra família lê apenas a Quotidienne (Gazette de France: jornal monarquista
moderado que durante a Restauração teve entre seus redatores Joseph de Maistre e Bonald; Journal des Débats, primitivamente simples registro das assembleias revolucionárias;
sob a Restauração, órgão de centro-esquerda, de tendências semiliberais; La Quotidienne, jornal ultramonarquista, aristocrático e clerical, da extrema direita.).
Sua Excelência, o bispo, antigo vigário-geral, oscila entre essas duas potências que lhe rendem as homenagens devidas à religião, mas fazendo por vezes com que ele
sinta a moral que o bom La Fontaine colocou no fim de O asno carregado de relíquias (A moral da fábula em apreço (L’âne portant des reliques) é a seguinte: D’un
magistral ignorant / C’est la robe qu’on salue. (“O que se cumprimenta num magistrado ignorante é a toga.”)). O bom velho é plebeu.
Depois vêm os astros secundários, os gentis-homens que possuem de dez a doze mil francos de renda, e que foram capitães de navio, ou capitães de cavalaria, ou absolutamente
nada. A cavalo pelos caminhos, conservam-se entre o cura conduzindo os sacramentos e o fiscal de contribuições em excursão. Quase todos estiveram nos pagens ou nos
mosqueteiros, e terminam placidamente seus dias numa fazenda, mais ocupados com um corte de mato ou com as suas cidras que com a monarquia. Contudo, falam da Carta
(A Carta era o documento constitucional outorgado por Luís XVIII em 4 de junho de 1814 e revisado depois da Revolução de 1830.) e dos liberais entre dois rubbers
de uíste ou durante uma partida de gamão, depois de terem calculado dotes e arranjado casamentos de acordo com as genealogias que sabem de cor. Suas mulheres são
orgulhosas e tomam os ares da corte nos seus cabriolés de vime; acreditam estar elegantemente vestidas quando estão envolvidas num xale e numa touca; compram anualmente
dois chapéus, mas só depois de maduras reflexões, e os mandam vir de Paris, baratos; são geralmente virtuosas e conversadeiras.
Em torno desses elementos principais da gente aristocrática reúnem-se duas ou três solteironas de qualidade que resolveram o problema da imobilização da criatura
humana. Elas parecem estar chumbadas nas casas em que são vistas: seus rostos e seus trajes fazem parte do imóvel, da cidade, da província; são a tradição, a memória,
o espírito dele e delas. Todas têm qualquer coisa de rijo e de monumental; sabem sorrir ou abanar a cabeça a propósito, e, de tempos em tempos, dizem frases que
passam por inteligentes.
Alguns ricos burgueses infiltraram-se nesse pequeno Faubourg Saint-Germain (Faubourg Saint-Germain: bairro aristocrático de Paris.), graças a suas opiniões aristocráticas
ou a suas fortunas. Mas, a despeito de seus quarenta anos, todos ali dizem deles: “Esse fulaninho pensa direito!”. E fazem-nos deputados. Geralmente eles são protegidos
pelas solteironas, mas são objeto de murmúrios.
Enfim, dois ou três eclesiásticos são recebidos nessa sociedade de escol ou por causa da estola, ou porque são inteligentes, e porque essas nobres pessoas, aborrecendo-se
mutuamente, introduzem o elemento burguês em seus salões como um padeiro põe a levedura na massa.
A soma de inteligência acumulada em todas essas cabeças compõe-se duma certa quantidade de ideias antigas às quais se misturam algumas ideias novas que são agitadas
em comum todas as noites. Tal como a água duma pequena enseada, as frases que representam essas ideias têm seu fluxo e refluxo cotidiano, seu borbulhar perpétuo,
exatamente igual: quem lhes ouve hoje a vazia repercussão, ouvi-la-á amanhã, daqui a um ano, sempre. Seus julgamentos, que, invariavelmente, recaem sobre as coisas
deste mundo, constituem uma ciência tradicional à qual ninguém tem poder para acrescentar uma gota de espírito. A vida dessas pessoas rotineiras gravita numa esfera
de hábitos tão imutáveis quanto suas opiniões religiosas, políticas, morais e literárias.
Sendo um estranho admitido nesse cenáculo, cada um lhe dirá, não sem uma espécie de ironia: “Aqui não encontrará a pompa da sociedade parisiense!”, e cada um condenará
a vida de seus vizinhos procurando fazer-se passar por uma exceção nessa sociedade, que em vão tentou renovar. Mas se, por infelicidade, o estranho corrobora, com
algumas observações, o juízo que essas pessoas fazem reciprocamente de si, passa imediatamente por um homem mal-educado, sem fé nem lei, por um parisiense corrupto,
como o são em geral todos os parisienses.
Quando Gastão de Nueil apareceu nessa estreita sociedade, em que a etiqueta era perfeitamente observada, em que cada coisa da vida se harmonizava, em que tudo se
encontrava em dia, em que os valores nobiliárquicos e territoriais eram cotados como o são os fundos da Bolsa na última página dos jornais, ele tinha sido previamente
pesado nas balanças infalíveis da opinião bayeusiense. Já sua prima, a sra. de Sainte-Sevère, declarara as cifras da sua fortuna e as das suas esperanças, exibira
sua árvore genealógica, gabara seus conhecimentos, sua polidez e sua modéstia. Recebeu o acolhimento que estritamente deveria esperar, foi aceito como um bom gentil-homem,
sem cerimônia, pois que tinha apenas vinte e três anos; mas algumas jovens e algumas mães arrastaram asas para ele. Ele auferia dezoito mil francos de renda no vale
de Auge, e seu pai devia, cedo ou tarde, deixar-lhe o castelo de Manerville com todas as suas dependências. Quanto a sua instrução, a seu futuro político, a seu
valor pessoal, a seu talento, nem de leve se cogitou. Suas terras eram boas e a renda absolutamente garantida; tinham sido feitas excelentes plantações; as reparações
e os impostos estavam a cargo dos granjeiros arrendatários; as macieiras tinham trinta e oito anos; e, finalmente, seu pai estava em negociações para comprar duzentas
jeiras de matos contíguos a seu parque, que desejava cercar de muros: nenhuma esperança ministerial, nenhuma celebridade humana podia lutar contra tais vantagens.
Fosse por malícia, fosse por cálculo, a sra. de Sainte-Sevère não falara do irmão mais velho de Gastão, e Gastão também não disse nada a esse respeito. Mas esse
irmão era tísico, e parecia dever ser em breve enterrado, chorado, esquecido. Gastão de Nueil começou divertindo-se com aquelas personagens; desenhou-as, por assim
dizer, em seu álbum na saborosa verdade de suas fisionomias angulosas, aduncas, enrugadas, na engraçada originalidade de seus costumes e seus tiques; deleitou-se
com os normandismos do idioma que falavam, com a mediocridade das suas ideias e dos seus caracteres. Mas, depois de ter seguido durante certo tempo essa existência
semelhante à dos esquilos ocupados em andar à roda nas suas gaiolas, sentiu a ausência das oposições numa vida estacionada antes do tempo, como a dos religiosos
no fundo dos claustros, e caiu numa crise que não era ainda nem o tédio nem o desgosto, mas que lhes comportava quase todos os efeitos. Após os ligeiros sofrimentos
dessa transição, processa-se para o indivíduo o fenômeno da sua transplantação para um terreno que lhe é desfavorável, onde ele deve atrofiar-se e levar uma vida
raquítica. Com efeito, se nada o tira desse ambiente, insensivelmente ele adota seus usos e acostuma-se a seu vácuo, que o domina e o anula. Os pulmões de Gastão
já se habituavam àquela atmosfera. Prestes a ver uma espécie de felicidade vegetal naqueles dias passados sem preocupações e sem ideias, começava a perder a recordação
daquele movimento de seiva, daquela frutificação constante do espírito que tão ardentemente vivera no meio parisiense, e ia petrificar-se entre aquelas petrificações,
nelas permanecer para sempre, como os companheiros de Ulisses (Os companheiros de Ulisses—segundo narra Homero no Canto X da Odisseia -, mal chegados à ilha de Ea,
foram transformados em porcos pela feiticeira Circe.), contentes com seu gorduroso invólucro.
Uma noite, Gastão de Nueil achava-se sentado entre uma senhora idosa e um dos vigários-gerais da diocese, num salão de guarnições pintadas de cinza, pavimentado
com grandes ladrilhos brancos, decorado com alguns retratos de família, provido de quatro mesas de jogo em torno das quais dezesseis pessoas tagarelavam jogando
uíste. Ali, não pensando em nada, mas digerindo um desses jantares deliciosos, a finalidade do dia na província, surpreendeu-se a justificar os costumes da região.
Concebia por que aquela gente continuava a servir-se das cartas da véspera, a atirá-las sobre panos gastos, e como chegavam a não se vestir mais nem para eles nem
para os outros. Enxergava não sei que filosofia no movimento uniforme daquela vida circular, na calma daqueles hábitos lógicos e na ignorância das coisas elegantes.
Enfim, quase compreendia a inutilidade do luxo. A cidade de Paris, com suas paixões, suas tormentas e seus prazeres, já surgia em seu espírito apenas como uma recordação
de infância. Admirava de boa-fé as mãos vermelhas, o ar modesto e tímido de uma criatura jovem que, à primeira vista, parecera-lhe de fisionomia palerma, de maneiras
sem graça, de conjunto repelente e de aparência soberanamente ridícula. Estava acabado. Tendo ido da província para Paris, ele iria retornar da existência inflamatória
de Paris e recair na fria vida de província, se uma frase não lhe tivesse chocado o ouvido, proporcionando-lhe de súbito uma emoção semelhante à que lhe causaria
qualquer motivo original entre os acompanhamentos de uma ópera aborrecida.
— O senhor não foi ver ontem a sra. de Beauséant?—disse uma velha ao chefe da casa principesca da região.
— Fui esta manhã—respondeu ele.—Encontrei-a tão triste e tão dorida que não consegui convencê-la a vir jantar conosco.
— Com a sra. de Champignelles?—exclamou a nobre senhora, manifestando uma espécie de surpresa.
— Com minha mulher—disse tranquilamente o fidalgo.—A sra. de Beauséant não pertence à casa de Borgonha? Pelo lado feminino, é verdade; mas afinal esse nome apaga
tudo. Minha mulher estima muito a viscondessa, e a pobre senhora está há tanto tempo sozinha, que...
Dizendo essas últimas palavras, o marquês de Champignelles fitou com ar calmo e frio as pessoas que o escutavam, examinando-as; mas foi quase impossível adivinhar
se ele fazia uma concessão à infelicidade ou à nobreza da sra. de Beauséant, se estava orgulhoso por recebê-la, ou se queria por orgulho forçar os nobres da localidade
e suas mulheres a vê-la.
Todas as damas pareceram consultar-se, lançando-se o mesmo olhar; e, então, como reinasse no salão o mais profundo silêncio, a atitude delas foi tomada como um sinal
de reprovação.
— Essa sra. de Beauséant será por acaso aquela cuja aventura com o sr. d’Ajuda-Pinto (Acerca da aventura da sra. de Beauséant e do marquês d’Ajuda-Pinto, relatada
em O pai Goriot, ver a nota introdutória.) causou tanto ruído?—perguntou Gastão à pessoa ao lado de quem estava.
— Precisamente—responderam-lhe.—Ela veio morar em Courcelles depois do casamento do marquês d’Ajuda; ninguém aqui a recebe. Ela tem, aliás, bastante inteligência
para não ter sentido quanto é falsa sua posição: por isso não procurou ver ninguém. O sr. de Champignelles e alguns homens apresentaram-se em sua casa; ela, porém,
só recebeu o sr. de Champignelles, talvez por causa de seu parentesco: eles são parentes pelo lado dos Beauséant. O marquês de Beauséant, o pai, desposou uma Champignelles
do ramo mais velho. Se bem que a viscondessa passe por descender da casa de Borgonha, o senhor compreende que nós não podemos admitir aqui uma mulher separada do
marido. São ideias velhas às quais cometemos ainda a tolice de apegar-nos. A viscondessa teve tanto mais culpa nas suas imprudências, por ser o sr. de Beauséant
um cavalheiro, um homem da corte: ele escutaria a voz da razão. Mas sua mulher é uma cabeça de vento...
O sr. de Nueil, embora escutando a voz de sua interlocutora, não lhe prestava mais atenção. Estava absorto em mil fantasias. Existirá outro termo para exprimir os
atrativos duma aventura, no momento em que ela sorri à imaginação, no momento em que a alma concebe vagas esperanças, pressente inexplicáveis felicidades, temores,
acontecimentos, sem que nada ainda alimente nem fixe os caprichos dessa miragem? O espírito então adeja, concebe projetos impossíveis e faz germinar as alegrias
duma paixão. Mas talvez o germe da paixão a contenha inteiramente, como uma semente contém uma bela flor com seus perfumes e seu rico colorido. O sr. de Nueil ignorava
que a sra. de Beauséant se tivesse refugiado na Normandia depois de um escândalo que a maior parte das mulheres inveja e condena, principalmente quando as seduções
da juventude e da beleza quase justificam o erro que o causou. Existe um prestígio inconcebível em toda espécie de celebridade, seja qual for a sua razão. Parece
que, para as mulheres, como outrora para as famílias, a glória de um crime apaga-lhe a vergonha. Assim como certas casas se orgulham de suas cabeças decepadas, uma
formosa, uma jovem mulher torna-se mais atraente pelo fatal renome de um amor feliz ou de uma horrenda traição. Quanto mais lamentável, mais simpatias ela desperta.
Só somos impiedosos para com as coisas, os sentimentos e as aventuras vulgares. Atraindo os olhares, temos a impressão de sermos grandes. Não é necessário, na realidade,
erguermo-nos acima dos outros para sermos vistos? Ora, o povo nutre involuntariamente um sentimento de respeito por todos que se elevam, sem pedir muita conta dos
meios que usaram. Naquele momento, Gastão de Nueil sentia-se impelido para a sra. de Beauséant pela secreta influência dessas razões, ou quem sabe se pela curiosidade,
pela necessidade de criar um interesse em sua vida atual, em suma, por essa série de motivos impossível de ser enunciada, e que a palavra fatalidade serve comumente
para exprimir. A viscondessa de Beauséant surgira de repente diante dele, acompanhada de uma multidão de imagens graciosas: ela era um mundo novo; junto dela sem
dúvida ele teria o que temer, o que esperar, o que combater e o que vencer. Ela devia contrastar com as pessoas que Gastão via naquele salão mesquinho; enfim, era
uma mulher, e ele ainda não tinha encontrado mulheres naquele mundo frio em que os cálculos substituíam os sentimentos, em que a polidez não passava de dever, e
as ideias mais simples tinham qualquer coisa de chocante para ser aceitas ou expostas. A sra. de Beauséant despertava-lhe na alma a recordação de seus sonhos de
rapaz e suas mais vivas paixões, por algum tempo adormecidas. Gastão de Nueil tornou-se alheado durante o resto da noite. Pensava num meio de introduzir-se em casa
da sra. de Beauséant, e não conseguia encontrá-lo. Ela passava por ser eminentemente fina. Mas se as pessoas de espírito culto podem deixar-se seduzir pelas coisas
originais ou delicadas, são exigentes, percebem tudo; junto a elas há tantas possibilidades de fracasso como de triunfo na difícil empresa de agradar. Além disso,
a viscondessa devia aliar ao orgulho da sua situação a dignidade que seu nome lhe conferia. A profunda solidão em que vivia parecia ser a menor das barreiras erguidas
entre ela e o mundo. Era, pois, quase impossível a um desconhecido, da melhor família que fosse, conseguir ser admitido em casa dela.
Entretanto, no dia seguinte de manhã, o sr. de Nueil dirigiu seu passeio para o lado do pavilhão de Courcelles e deu várias voltas ao redor do cercado que o envolvia.
Embaído pelas ilusões em que é tão natural crer na sua idade, espiou através das brechas ou por cima do muro, permaneceu em contemplação diante das persianas fechadas
ou examinou as que estavam abertas. Esperava um acaso romanesco, calculava-lhe os efeitos sem se aperceber da sua impossibilidade, para chegar à presença da desconhecida.
Por várias manhãs passeou inutilmente; mas, a cada passeio, aquela mulher afastada do mundo, vítima do amor, sepulta na solidão, avultava-lhe no pensamento e alojava-se-lhe
na alma. Por isso, o coração de Gastão palpitava de esperança e de alegria, se, por acaso, ao perlongar os muros de Courcelles, chegava a ouvir o passo lento de
algum jardineiro.
Ele pensava muito em escrever à sra. de Beauséant; mas que dizer a uma mulher que nunca vira e que não o conhecia? Aliás, Gastão não acreditava muito em si mesmo;
depois, como os jovens ainda cheios de ilusões, temia mais que a morte os terríveis desdéns do silêncio e estremecia ao pensar em todas as possibilidades que teria
sua primeira prosa amorosa de ser lançada ao fogo.
Ele era presa de mil ideias contrárias que se combatiam. Mas, enfim, à força de conceber quimeras, de compor romances e de quebrar a cabeça, encontrou um desses
felizes estratagemas que a gente acaba por descobrir entre todos aqueles em que pensa e que revelam à mulher mais inocente a extensão da paixão que um homem lhe
dedica. Muitas vezes os caprichos sociais criam tantos obstáculos reais entre uma mulher e seu apaixonado quantos os que os poetas orientais colocaram nas deliciosas
ficções de seus contos, e as mais fantásticas de suas imagens raramente são exageradas. Por isso, na natureza, como no mundo das fadas, a mulher sempre há de pertencer
àquele que sabe chegar a ela e libertá-la da situação em que definha. O mais pobre dos calênderes (Calênder: dervixe mendigo.), apaixonando-se pela filha dum califa,
não estaria separado dela por uma distância maior que a existente entre Gastão e a sra. de Beauséant. A viscondessa vivia numa ignorância absoluta das circunvalações
traçadas em torno dela pelo sr. de Nueil, cujo amor crescia com a grandeza dos obstáculos a transpor, os quais davam à sua amante improvisada os atrativos que possui
toda coisa distante.
Um dia, fiado na sua inspiração, ele esperou tudo do amor que deveria jorrar de seus olhos. Julgando a palavra mais eloquente que a mais apaixonada das cartas, e
especulando também sobre a natural curiosidade feminina, foi à casa do sr. de Champignelles com a intenção de valer-se dele para conseguir seu intento. Disse ao
gentil-homem que tinha de se desempenhar duma comissão importante e delicada junto à sra. de Beauséant; mas, não sabendo se ela lia as cartas de uma letra desconhecida
ou se depositava sua confiança num estranho, pedia-lhe indagar da condessa, na sua primeira visita, se ela se dignaria recebê-lo. Suplicando ao marquês que guardasse
segredo em caso de recusa, incitou-o com muita inteligência a não calar à sra. de Beauséant as razões que poderiam fazê-lo recebido em casa dela. Ele havia de ser
um homem honrado, leal e incapaz de prestar-se a algo de mau gosto ou mesmo inconveniente! O altivo fidalgo, cujas vaidadezinhas tinham sido lisonjeadas, foi completamente
iludido por essa diplomacia do amor que empresta a um rapaz o aprumo e a dissimulação refinada de um velho embaixador. Procurou penetrar os segredos de Gastão; mas
este, na impossibilidade de lhos revelar, opôs frases evasivas às agudas interrogações do sr. de Champignelles, que, como cavalheiro francês, cumprimentou-o por
sua discrição.
Imediatamente o marquês correu a Courcelles com essa solicitude que põem as pessoas de uma certa idade em prestar serviços a uma mulher formosa. Na situação em que
se encontrava a viscondessa de Beauséant, uma mensagem dessa espécie era de natureza a intrigá-la. Por isso, se bem que não encontrasse, ao consultar suas recordações,
nenhuma razão que pudesse levar o sr. de Nueil à sua casa, não viu nenhum inconveniente em recebê-lo, o que fez, todavia, após ter, prudentemente, indagado da sua
posição na sociedade. Contudo, tinha de início recusado; depois discutira com o sr. de Champignelles acerca da conveniência dessa atitude, interrogando-o para procurar
descobrir se ele sabia o motivo daquela visita; depois voltara atrás na recusa. A discussão e a discrição forçada do marquês haviam excitado a sua curiosidade.
O sr. de Champignelles, não querendo parecer ridículo, acreditava, como homem instruído mas discreto, que a viscondessa devia conhecer perfeitamente o objeto daquela
visita, embora ela o procurasse com a maior boa-fé sem o encontrar. A sra. de Beauséant imaginava ligações entre Gastão e pessoas que não conhecia, perdia-se em
absurdas suposições e perguntava a si mesma se já teria alguma vez visto o sr. de Nueil. A mais verdadeira ou mais hábil das cartas de amor não teria, por certo,
produzido tanto efeito quanto essa espécie de enigma sem palavras que bastante preocupou a sra. de Beauséant.
Quando Gastão soube que podia ir ver a viscondessa sentiu-se dominado pela alegria de obter tão prontamente uma felicidade ardentemente desejada e ao mesmo tempo
singularmente embaraçado por ter de dar um desfecho ao seu estratagema.
— Bah, vê-la—repetia ele ao vestir-se—, vê-la é tudo!
Ao transpor a porta de Courcelles, esperava achar um expediente para desatar o nó górdio (Nó górdio: dificuldade sem solução. Alusão à lenda do carro do rei Górdio,
guardado como relíquia na antiga Frígia, no qual o nó que atava a lança à canga era feito tão habilmente que não se lhe podiam descobrir as extremidades. Um oráculo
prometia o império da Ásia a quem o desatasse. Depois de infrutíferas tentativas de outros, Alexandre, o Grande, cortou o nó com a espada.) que ele próprio dera.
Gastão era desses que, acreditando na onipotência da necessidade, avançam sempre; e, no último momento, defrontados com o perigo, nele se inspiram e encontram forças
para vencê-lo. Caprichou no trajar-se. Pensava, como os jovens pensam, que de uma fivela bem ou mal colocada dependia seu sucesso, ignorando que na juventude tudo
é encanto e atrativo. Aliás, mulheres de escol como a sra. de Beauséant não se deixam seduzir senão pelas graças do espírito e pela superioridade do caráter. Um
grande caráter lisonjeia-lhes a vaidade, promete-lhes uma grande paixão e parece-lhes que há de admitir as exigências de seus corações. O espírito as distrai, responde
às delicadezas de sua natureza e elas se supõem compreendidas. Ora, que desejam todas as mulheres, senão ser distraídas, compreendidas ou adoradas? Mas é preciso
muito ter meditado sobre as coisas da vida para perceber a alta coqueteria que comportam a negligência do traje e a reserva do espírito numa primeira entrevista.
Quando nos tornamos bastante astutos para sermos hábeis políticos, estamos velhos demais para aproveitarmos nossa experiência. Enquanto Gastão não tinha confiança
na sua inteligência e procurava seduzir por meio da indumentária, a sra. de Beauséant punha instintivamente um cuidado especial em sua arrumação e dizia consigo
ao arranjar o penteado:
— Não quero, apesar de tudo, apresentar um aspecto de meter medo.
O sr. de Nueil tinha no espírito, em sua pessoa e em suas maneiras esse garbo naturalmente original que dá uma espécie de sabor aos gestos e às ideias comuns, que
permite tudo dizer e tudo fazer. Era instruído, penetrante, duma fisionomia aberta e móvel como sua alma impressionável. Havia paixão, havia ternura em seus olhos
vivos; e seu coração, essencialmente bom, não as desmentia. A resolução que tomou entrando em Courcelles estava, pois, em harmonia com seu caráter franco e sua imaginação
ardente. Apesar da intrepidez do amor, não pôde defender-se duma violenta palpitação quando, depois de ter atravessado um grande pátio desenhado como jardim inglês,
chegou a uma sala em que um criado, tendo-lhe perguntado o nome, desapareceu e voltou para o introduzir.
— O sr. barão de Nueil.
Gastão entrou vagarosamente, mas com muito desembaraço, coisa mais difícil num salão onde há uma única mulher do que num onde há vinte. No canto da lareira, onde,
não obstante a estação, brilhava um fogo intenso, e em cima da qual achavam-se dois candelabros acesos difundindo uma luz débil, divisou uma mulher moça sentada
numa dessas modernas poltronas de espaldar elevado. A pouca altura do assento permitia que ela desse à cabeça variadas posições cheias de graça e elegância, incliná-la,
pendê-la, reerguê-la languidamente, como se fosse um fardo pesado; depois, arquear os pés, mostrá-los ou recolhê-los sob as pregas dum amplo vestido negro. A viscondessa
procurou colocar sobre uma mesinha redonda o livro que estava lendo; mas, tendo ao mesmo tempo voltado a cabeça para o sr. de Nueil, o livro, mal apoiado, caiu no
intervalo que separava a mesa da poltrona. Sem parecer surpresa com o incidente, ela alteou-se e inclinou-se para responder ao cumprimento do rapaz, mas duma maneira
imperceptível e quase sem levantar-se do assento, onde seu corpo permaneceu mergulhado. Curvou-se para a frente e remexeu no fogo; depois baixou-se, apanhou uma
luva que calçou com negligência na mão esquerda, procurando a outra com um olhar logo reprimido; porque com a mão direita, mão branca, quase transparente, sem anéis,
delicada, de dedos afilados cujas unhas róseas formavam um oval perfeito, ela indicou uma cadeira como que convidando Gastão a sentar-se. Quando o visitante desconhecido
sentou-se, ela voltou a cabeça para ele num movimento interrogativo e desenvolto, duma finura indescritível; era um desses gestos gentis e graciosos, posto que sóbrios,
frutos da primeira educação e do hábito constante das coisas de bom gosto. Esses movimentos múltiplos sucederam-se rapidamente, num instante, sem irregularidade
nem brusquidão, e encantaram Gastão por esse misto de cuidado e de abandono que uma formosa mulher reúne às maneiras aristocráticas da alta sociedade. A sra. de
Beauséant contrastava vivamente com os autômatos entre os quais ele vivia havia dois meses naquele exílio no fundo da Normandia, para que não personificasse a poesia
de seus sonhos; por isso ele não lhe podia comparar as perfeições com nenhuma daquelas que outrora admirara. Diante daquela mulher e no interior daquele salão mobiliado
como o são os salões do Faubourg Saint-Germain, repleto dessas ninharias tão preciosas que se espalham sobre as mesas, ao perceber os livros e as flores, ele sentiu-se
de novo em Paris. Pisava um legítimo tapete de Paris, revia o tipo distinto, as formas delicadas da parisiense, sua graça esquisita e sua ausência de maneiras afetadas,
que tanto prejudicam as mulheres da província.
A viscondessa de Beauséant era loura, clara como uma loura, e tinha olhos castanhos. Apresentava com nobreza a fronte, uma fronte de anjo decaído que se orgulha
da sua falta e não pede perdão. Seus cabelos, abundantes e trançados acima de dois bandós que lhe descreviam sobre a cabeça amplas curvas, realçavam ainda a majestade
daquela fronte. A imaginação via, nas espirais daquela cabeleira dourada, a coroa ducal de Borgonha; e, nos olhos brilhantes daquela grande dama, toda a coragem
da sua estirpe: a coragem duma mulher forte apenas para repelir o desprezo ou a audácia, mas transbordante de ternura para com os sentimentos meigos. Os contornos
da sua pequena cabeça, admiravelmente engastada num longo colo alvo; os traços do seu rosto fino, seus lábios delgados e sua fisionomia viva guardavam uma expressão
de delicada prudência, um certo quê de ironia afetada que se parecia à astúcia e à impertinência. Era difícil não lhe perdoar esses dois pecados femininos ao pensar
em suas desventuras, na paixão que quase lhe custara a vida, o que se manifestava quer pelas rugas que, ao menor movimento, sulcavam-lhe a fronte, quer pela dolorosa
eloquência de seus lindos olhos quase sempre erguidos para o céu. Não era um espetáculo imponente, tanto mais quanto ampliado pelo pensamento, ver num imenso salão
silencioso aquela mulher isolada do mundo inteiro, e que, havia três anos, permanecia no fundo dum pequeno vale, distante da cidade, sozinha com as recordações duma
juventude brilhante, feliz, apaixonada, outrora repleta de festas, de constantes homenagens, mas agora entregue aos horrores do nada? O sorriso daquela mulher denunciava
uma elevada consciência do seu valor. Não sendo nem mãe nem esposa, repelida pela sociedade, privada do único coração que podia fazer o seu palpitar sem vergonha,
não extraindo de nenhum sentimento os socorros necessários à sua alma vacilante, ela devia buscar forças em si mesma, viver da sua própria vida, e não ter outra
esperança mais que a da mulher abandonada: esperar a morte, abreviar-lhe a demora apesar dos belos dias que ainda lhe restavam. Sentir-se destinada à felicidade
e perecer sem gozá-la, sem proporcioná-la!... Uma mulher! Quantas amarguras! O sr. de Nueil fez essas reflexões com a rapidez do relâmpago e sentiu-se envergonhado
do seu papel em presença da maior poesia de que possa se envolver uma mulher. Triplamente impressionado pela beleza, pela infelicidade e pela nobreza, ficou quase
que estatelado, pensativo, admirando a viscondessa, mas não encontrando nada para lhe dizer.
A sra. de Beauséant, a quem essa surpresa sem dúvida não desagradou, estendeu-lhe a mão com um gesto doce mas imperativo; depois, estampando um sorriso nos lábios
pálidos, como que para obedecer ainda aos encantos do seu sexo, disse-lhe:
— O sr. de Champignelles preveniu-me, senhor, da mensagem que tão gentilmente se encarregou de trazer-me. Será por acaso da parte de...
Ao ouvir essa terrível frase, Gastão compreendeu melhor ainda o ridículo da sua situação, o mau gosto, a deslealdade do seu procedimento para com uma mulher, e uma
mulher tão nobre e tão infeliz. Corou. Seu olhar, sob a ação de mil pensamentos, turvou-se; mas, de repente, com essa força que os corações jovens sabem extrair
do sentimento de suas culpas, tranquilizou-se. Interrompendo a sra. de Beauséant, não sem fazer um gesto cheio de submissão, respondeu-lhe com voz emocionada:
— Senhora, não mereço a ventura de vê-la; eu a iludi de um modo indigno. O sentimento a que obedeci, por maior que seja, não será suficiente para desculpar o miserável
subterfúgio de que me servi para chegar à sua presença. Mas, senhora, se tivesse a bondade de me permitir dizer-lhe...
A viscondessa lançou ao sr. de Nueil um olhar cheio de altivez e de desprezo, ergueu a mão para puxar o cordão da campainha e tocou; o criado apareceu; ela disse-lhe,
fitando o rapaz com dignidade:
— Jacques, acompanhe este senhor.
Ergueu-se altiva, cumprimentou Gastão e baixou-se para apanhar o livro caído. Seus movimentos foram tão secos, tão frios quanto tinham sido elegantes e graciosos
os com que o recebera. O sr. de Nueil erguera-se, mas continuava firme. A sra. de Beauséant lançou-lhe um novo olhar como quem diz: “Então, não se retira?”.
Esse olhar estampava um escárnio tão violento, que Gastão tornou-se pálido como um homem prestes a desmaiar. Algumas lágrimas marejaram-lhe os olhos; ele, porém,
as reteve, secou-as no fogo da vergonha e do desespero e fitou a sra. de Beauséant com uma espécie de orgulho que exprimia ao mesmo tempo resignação e uma certa
consciência de seu valor: a viscondessa tinha o direito de puni-lo, mas deveria fazê-lo? Saiu. Ao atravessar a antecâmara, a perspicácia de seu espírito e sua inteligência
aguçada pela paixão fizeram-no compreender todo o perigo da situação.
“Se eu sair desta casa”, pensou consigo, “jamais poderei aqui voltar; a viscondessa ter-me-á sempre por um idiota. É impossível a uma mulher, e ela é mulher!, não
adivinhar o amor que inspira. Talvez ela sinta um vago remorso por me ter despedido assim bruscamente; ela porém não pode, não deve voltar atrás; é a mim que compete
compreendê-la.”
A essa reflexão, Gastão estaca sobre o patamar, deixa escapar uma exclamação, volta-se vivamente e diz:
— Esqueci uma coisa!
Voltou ao salão, seguido pelo criado, que, cheio de respeito por um barão e pelos direitos sagrados da propriedade, foi completamente iludido pelo tom natural com
que essa frase foi dita. Gastão entrou de mansinho sem ser anunciado. Quando a viscondessa, pensando talvez que o intruso fosse o criado, ergueu a cabeça, encontrou
diante de si o sr. de Nueil.
— Jacques iluminou-me—disse ele sorrindo.
Seu sorriso, marcado de uma graça meio triste, retirava à frase tudo o que ela tinha de jocoso, e a entonação com que foi pronunciada devia tocar a alma.
A sra. de Beauséant ficou desarmada.
— Pois bem, sente-se—disse ela.
Gastão apoderou-se da cadeira num movimento ávido. Seus olhos, animados pela felicidade, lançaram um lampejo tão vivo que a viscondessa não pôde sustentar aquele
olhar jovem; baixou os olhos para o livro e saboreou o prazer novo de ser para um homem a causa de sua felicidade, sentimento imperecível na mulher. Além disso,
a sra. de Beauséant tinha sido adivinhada. A mulher fica sempre grata por encontrar um homem que compreenda os caprichos tão lógicos de seu coração, que compreenda
a conduta aparentemente contraditória de seu espírito, os fugazes pudores de suas sensações umas vezes tímidas, outras ousadas, surpreendente mistura de coqueteria
e de ingenuidade!
— A senhora—exclamou Gastão—conhece minha falta, mas ignora meus crimes. Se soubesse com que felicidade eu...
— Ah, tome cuidado!—disse ela erguendo com ar misterioso um dos dedos à altura do nariz, roçando-o; em seguida, com a outra mão, fez um gesto para pegar o cordão
da campainha.
Esse encantador movimento, essa graciosa ameaça provocaram sem dúvida um melancólico pensamento, uma recordação de sua vida feliz, do tempo em que ela podia ser
toda encanto e toda gentileza, em que a felicidade justificava os caprichos de seu espírito, assim como dava um atrativo a mais aos menores movimentos de sua pessoa.
Reuniu as rugas da testa entre as duas sobrancelhas; seu rosto, suavemente iluminado pelas velas, adquiriu uma expressão sombria; fitou o sr. de Nueil com uma gravidade
despida de frieza e disse-lhe, como mulher profundamente convicta do sentido de suas palavras:
— Tudo isto é bastante ridículo! Houve um tempo, senhor, em que eu tinha o direito de ser doidamente alegre, em que eu poderia rir com o senhor e recebê-lo sem receio;
mas hoje a minha vida está muito mudada, não sou mais senhora das minhas ações, e sou forçada a refletir sobre elas. A que sentimento devo a sua visita? Será curiosidade?
Pago então bastante caro um frágil momento de alegria. Será que ama já apaixonadamente uma mulher infalivelmente caluniada e a quem jamais viu? Seus sentimentos
seriam, neste caso, fundados sobre o menosprezo, sobre uma falta a quem o acaso deu celebridade.
Atirou o livro sobre a mesa, despeitada.
— Ora—tornou ela depois de ter lançado a Gastão um olhar terrível -, porque eu fui fraca uma vez, a sociedade quer que eu o seja sempre? Isso é horrível, degradante.
Vem à minha casa para lamentar-me? O senhor é muito jovem para simpatizar com os sofrimentos afetivos. Saiba, senhor, que eu prefiro o desprezo à piedade; não quero
ser objeto da compaixão de ninguém.
Houve um momento de silêncio.
— Pois bem, como vê, senhor—tornou ela erguendo a cabeça para Gastão com um ar triste e meigo -, qualquer que seja o sentimento que o tenha impelido a lançar-se
imprudentemente em meu isolamento, o senhor me fere. É ainda muito jovem para ser completamente destituído de bondade, portanto compreenderá a inconveniência da
sua atitude; eu a perdoo e dela falo-lhe agora sem rancor. Não voltará mais aqui, não é? Peço-lhe, quando poderia ordenar-lhe. Se tornasse a visitar-me, não estaria
no seu poder nem no meu evitar que toda a cidade acreditasse que o senhor se tornara meu amante, e com isso acrescentaria ao meu desgosto um desgosto bem grande.
E este não é o seu desejo, creio eu.
Calou-se, fitando-o com uma dignidade verdadeira que o deixou confuso.
— Procedi mal, senhora—respondeu ele num tom compenetrado -, mas o ardor, a irreflexão, um vivo desejo de felicidade são na minha idade qualidades e defeitos. Agora—continuou—compr
eendo que não deveria ter procurado visitá-la, e contudo meu desejo era bem natural...
Procurou narrar, mais com sentimento que com espírito, os sofrimentos a que o tinha condenado seu exílio necessário. Descreveu o estado dum jovem que era devorado
por paixões não saciadas, insinuando ser digno de ser amado com ternura, e todavia não tendo jamais conhecido as delícias dum amor inspirado por uma mulher jovem,
bela, possuidora de bom gosto e delicadeza. Explicou sua inconsideração sem querer justificá-la. Lisonjeou a sra. de Beauséant demonstrando-lhe que ela representava
para ele o tipo ideal incessantemente mas em vão procurado pela maioria dos jovens. Depois, falando de seus passeios matinais em volta de Courcelles, e das ideias
desordenadas que o assaltavam à vista do pavilhão onde por fim tinha penetrado, provocou essa indefinível indulgência que as mulheres encontram no coração para as
loucuras que inspiram. Ele fez ouvir uma voz apaixonada naquela fria solidão, que invadia com as ardentes inspirações da juventude e os encantos de espírito que
revelam uma educação acurada.
A sra. de Beauséant havia muito estava privada das emoções que proporcionam os sentimentos verdadeiros discretamente manifestados para não sentir-lhes toda a delícia.
Ela não se pôde furtar a fitar a figura expressiva do sr. de Nueil, e de nele admirar essa formosa confiança da alma que ainda não foi nem despedaçada pelos cruéis
ensinamentos da vida mundana nem devorada pelos perpétuos cálculos da ambição ou da vaidade. Gastão era a imagem do moço em plena florescência, e apresentava-se
como homem de caráter que desconhece ainda seus altos destinos. Desse modo, ambos faziam à revelia um do outro as reflexões mais perigosas para seus respectivos
repousos e procuravam escondê-las a si mesmos. O sr. de Nueil reconhecia na viscondessa uma dessas mulheres raríssimas, sempre vítimas de sua própria perfeição e
de sua inextinguível ternura, cuja graciosa beleza é o menor dos encantos, uma vez que permitam o acesso à sua alma, onde os sentimentos são infinitos, onde tudo
é bom, onde o instinto do belo une-se às mais variadas expressões do amor para purificar as volúpias e torná-las quase santas: admirável segredo feminino, presente
precioso raramente concedido pela natureza. Por sua vez, a viscondessa, percebendo o tom de verdade com que Gastão lhe falava dos infortúnios da sua mocidade, compreendia
os sofrimentos infligidos pela timidez às crianças grandes de vinte e cinco anos, quando o estudo os preservou da corrupção e do contato mundano, cuja experiência
raciocinadora corrói as belas qualidades da juventude. Ela encontrava nele o ideal de todas as mulheres, um homem em quem não havia ainda nem esse egoísmo de família
e de fortuna nem esse sentimento pessoal que termina por matar, no primeiro arrojo, o devotamento, a honra, a abnegação, a estima de si mesmo, flores da alma que
definham tão depressa quanto de início enriquecem a vida de emoções delicadas, se bem que fortes, e reavivam no homem a probidade do coração. Uma vez lançados nos
vastos espaços dos sentimentos, eles foram muito longe na teoria, sondaram um e outro a profundidade de suas almas, informaram-se da veracidade de suas expressões.
Esse exame, involuntário em Gastão, era na sra. de Beauséant premeditado. Usando de sua finura natural ou adquirida, ela expendia, sem prejudicar a si mesma, opiniões
contrárias às suas para conhecer as do sr. de Nueil. Foi tão engenhosa, tão graciosa, foi tão integralmente ela mesma com um rapaz que não despertava sua desconfiança,
acreditando não mais tornar a vê-lo, que Gastão exclamou ingenuamente a uma frase deliciosa dita por ela:
— Como é possível, senhora, que um homem tenha sido capaz de abandoná-la?
A viscondessa emudeceu. Gastão corou, pensando tê-la ofendido. Mas aquela mulher tinha sido surpreendida pelo primeiro prazer profundo e verdadeiro que sentira desde
o dia de sua desdita. O mais hábil dos sedutores não teria feito, à força de astúcia, o progresso que o sr. de Nueil deveu a esse brado partido do coração. Tal julgamento,
arrancado à candura de um rapaz, tornava-a inocente a seus olhos, condenava a sociedade, acusava aquele que a havia deixado e justificava a solidão em que ela tinha
vindo definhar. A absolvição mundana, as tocantes simpatias, a estima social, tão desejadas, tão cruelmente recusadas, em suma, suas mais íntimas aspirações tinham
sido realizadas por aquela exclamação, embelezada ainda pelas mais doces lisonjas do coração e por aquela admiração sempre avidamente saboreada pelas mulheres. Ela
tinha sido, pois, ouvida e compreendida; o sr. de Nueil dava-lhe com toda a naturalidade uma ocasião de reerguer-se da queda. Ela olhou o relógio.
— Oh senhora—exclamou Gastão -, não me puna pelo meu desatino! Se não me vai conceder mais que uma tarde, então, por favor, não a abrevie.
Ela sorriu ao galanteio.
— Mas—disse -, já que não nos tornaremos a ver, que importa um momento a menos ou mais? Se eu lhe agradasse isso seria um mal.
— Um mal que já aconteceu—respondeu ele tristemente.
— Não me diga isso—retrucou ela gravemente.—Em qualquer outra situação, eu o receberia com prazer. Falar-lhe-ei francamente, o senhor compreenderá por que eu não
quero, por que eu não devo tornar a vê-lo. Julgo-o de coração bem grande para não sentir que, se recair sobre mim, nem que seja de leve, a suspeita de uma segunda
falta, tornar-me-ei, para toda a gente, uma mulher desprezível e vulgar, serei igual às outras mulheres. Uma vida pura e sem mácula ressaltará o meu caráter. Sou
demasiado altiva para não tentar permanecer em meio à sociedade como um ser à parte, vítima das leis por meu casamento, vítima dos homens por meu amor. Se eu não
permanecesse fiel à minha posição, mereceria toda a censura que me acabrunha e perderia meu próprio respeito. Não tive a alta virtude social de pertencer a um homem
que eu não amava. Rompi, a despeito das leis, os laços do casamento: foi um erro, um crime, será tudo o que o senhor quiser; mas, para mim, esse estado equivalia
à morte. Eu quis viver. Se eu fosse mãe, talvez tivesse encontrado forças para suportar o suplício de um casamento imposto pelas conveniências. Aos dezoito anos,
nós, pobres moças, não sabemos o que nos mandam fazer. Violei as leis da sociedade e a sociedade me puniu; uma e outra fomos justas. Procurei a felicidade. Ser feliz
não é uma lei da nossa natureza? Eu era jovem, era bela... Encontrei um ser que julguei tão amoroso quanto parecia apaixonado. Fui amada durante um momento!...
Ela fez uma pausa.
— Eu pensava—prosseguiu—que um homem não haveria nunca de abandonar uma mulher na situação em que eu me achava. Fui abandonada, devo ter desagradado. Sim, faltei
sem dúvida a alguma lei natural: devo ter sido ou terna, ou dedicada, ou exigente demais, não sei. A desventura me iluminou. Depois de ter sido durante muito tempo
acusadora, resignei-me a ser a única criminosa. Absolvi, pois, à minha custa, aquele de quem eu julgava dever queixar-me. Não fui bastante inteligente para o conservar:
o destino puniu-me cruelmente por minha inabilidade. Sei apenas amar: e quem é que pensa em si quando ama? Fui, pois, escrava quando devia ter sido tirana. Os que
me conhecerem poderão condenar-me, mas me estimarão. Meus sofrimentos ensinaram-me a não mais me expor ao abandono. Não compreendo como existo ainda, depois de ter
sofrido as angústias dos oito primeiros dias que se seguiram a essa crise, a mais horrível na vida de uma mulher. É preciso ter vivido só, durante três anos, para
adquirir forças para falar de uma tal dor como eu o faço neste momento. A agonia termina ordinariamente pela morte; pois bem, senhor, isso foi para mim uma agonia
sem o túmulo por desenlace. Oh, como sofri!
A viscondessa ergueu os olhos para a cornija, à qual sem dúvida confiou tudo o que um desconhecido não devia ouvir.
Uma cornija é certamente a mais doce, a mais submissa, a mais benévola confidente que as mulheres podem encontrar nas ocasiões em que não ousam fitar seu interlocutor.
A cornija dum boudoir é uma instituição. Não será um confessionário sem o padre? Nesse momento, a sra. de Beauséant estava eloquente e bela; dever-se-ia dizer coquete,
se esse termo não fosse demasiadamente forte. Ao fazer-se justiça, ao colocar entre ela e o amor as mais altas barreiras, ela excitava todos os sentimentos do homem;
e, quanto mais elevava o alvo, melhor o oferecia aos olhares. Finalmente, ela baixou os olhos para Gastão, depois de fazer com que perdessem a expressão realmente
sedutora que lhes havia comunicado a recordação de seus sofrimentos.
— Há de concordar que devo permanecer fria e solitária—disse ela num tom calmo.
O sr. de Nueil sentia um desejo violento de rojar-se aos pés daquela mulher, agora sublime de razão e de loucura, mas receou parecer-lhe ridículo. Reprimiu por isso
sua exaltação e seus pensamentos; experimentava, ao mesmo tempo, o temor de não conseguir exprimi-los perfeitamente e o medo de alguma terrível recusa ou dum desprezo
capaz de gelar a magia ardente das almas. A reação dos sentimentos que recalcava no momento em que brotavam do seu coração causava-lhe essa dor profunda que conhecem
os tímidos e os ambiciosos, frequentemente forçados a sopitarem seus desejos. Contudo, não pôde deixar de romper o silêncio para dizer com voz trêmula:
— Permita-me, senhora, que me entregue a uma das maiores emoções da minha vida, confessando-lhe o que me faz sentir. A senhora dilata-me o coração! Sinto em mim
o desejo de dedicar minha vida a fazer-lhe esquecer suas mágoas, a amá-la por todos os que a odiaram ou feriram. Mas isso é uma efusão sentimental súbita, que nada
hoje justifica e que eu deveria...
— Basta, senhor—disse a sra. de Beauséant.—Fomos demasiado longe tanto um quanto outro. Eu quis despojar de toda aspereza a recusa que me é imposta, explicar-lhe
suas tristes razões, e não atrair homenagens. A coqueteria só cai bem em uma mulher feliz. Ouça-me, permaneçamos estranhos um ao outro. Mais tarde compreenderá que
não se devem estabelecer laços quando eles hão necessariamente de romper-se um dia.
Ela soltou um leve suspiro, e a testa se lhe enrugou para retomar imediatamente a pureza de sua forma.
— Que sofrimento para uma mulher—volveu ela—não poder seguir o homem a quem ama em todas as fases de sua vida! Será possível que esse pesar profundo não repercuta
intensamente no coração desse homem, no caso de ela ser amada? Não é isso uma dupla infelicidade?
Houve um momento de silêncio, após o qual ela disse sorrindo e se levantando para fazer o visitante levantar-se:
— Ao vir a Courcelles o senhor não esperava ouvir aqui um sermão, não é verdade?
Gastão encontrava-se nesse momento mais distante daquela mulher extraordinária do que quando dela se aproximara. Atribuindo o encanto daquela hora deliciosa à coqueteria
duma dona de casa desejosa de espairecer seu espírito, cumprimentou friamente a viscondessa e saiu desesperado.
Uma vez no caminho, o barão procurou descobrir o verdadeiro caráter daquela criatura elástica e forte como uma mola; mas vira-a tomar tantos aspectos que lhe foi
impossível formular sobre ela um julgamento seguro. De resto, repercutiam-lhe de tal forma nos ouvidos as entonações da sua voz, e a recordação emprestava tais encantos
aos gestos, aos movimentos de cabeça, à expressão dos olhos, que nesse exame ainda mais se apaixonou. Para ele, a beleza da viscondessa brilhava mesmo nas trevas,
as impressões que dela recebera despertavam chamadas uma pela outra, para de novo o seduzirem revelando-lhe graças feminis e espirituais de início despercebidas.
Mergulhou numa dessas meditações erradias durante as quais os pensamentos mais lúcidos se combatem, chocam-se uns contra os outros e lançam a alma num curto acesso
de loucura. É preciso ser jovem para revelar e para compreender os segredos dessas espécies de ditirambos, em que o coração, assaltado pelas mais justas e pelas
mais loucas ideias, cede à última que se apresenta, a um pensamento de esperança ou de desespero, ao léu de um poder desconhecido. Aos vinte e três anos de idade,
o homem é quase sempre dominado por um sentimento de modéstia: as timidezes e as inquietações da rapariga o agitam, ele teme expressar mal o seu amor, não vê senão
dificuldades e assusta-se delas, tem medo de não agradar, seria ousado se não amasse tanto; quanto mais sente o preço da felicidade, menos acredita que a criatura
amada lha possa facilmente conceder; além de que talvez se entregue de um modo por demais absoluto a seu prazer, e tema não poder proporcioná-lo. Quando, por infelicidade,
seu ídolo infunde respeito, ele o adora em segredo e a distância; se não é correspondido, seu amor expira. Muitas vezes essa paixão prematura, morta num coração
jovem, nele permanece cintilante de ilusões. Qual é o homem que não possui várias dessas recordações virgens que, mais tarde, despertam sempre mais graciosas e evocam
a imagem duma felicidade perfeita? Recordações semelhantes a esses filhos mortos na flor da idade e de quem os pais só conheceram os sorrisos. O sr. de Nueil voltou
pois de Courcelles dominado por uma ânsia de resoluções extremas. A sra. de Beauséant já se tinha tornado para ele a condição de sua existência: preferiria morrer
a viver sem ela. Muito moço ainda para sofrer as cruéis fascinações que a mulher perfeita exerce sobre as almas novas e apaixonadas, ele passou uma dessas noites
tormentosas durante as quais os jovens vão da felicidade ao suicídio e do suicídio à felicidade, devoram toda uma vida feliz e adormecem esgotados. Noites fatais,
em que o maior mal que pode acontecer é acordar filosófico. Excessivamente apaixonado para dormir, o sr. de Nueil levantou-se, pôs-se a escrever cartas das quais
nenhuma o satisfez, e queimou-as todas.
No dia seguinte ele foi dar um giro por Courcelles, mas ao cair da noite, porque receava ser visto pela viscondessa. O sentimento a que obedecia então pertence a
um estado de alma tão misterioso, que é preciso ser ainda jovem, ou encontrar-se numa situação semelhante, para compreender-lhe as mudas felicidades e as esquisitices;
coisas essas que fariam dar de ombros às pessoas suficientemente felizes para verem somente o positivo da vida.
Após hesitações cruéis, Gastão escreveu à sra. de Beauséant a seguinte carta, que pode passar por modelo da fraseologia peculiar aos apaixonados, e comparar-se aos
desenhos feitos em segredo pelas crianças para o aniversário dos pais; presentes detestáveis para toda a gente, exceto para aqueles que os recebem:
Senhora,
É tão grande o império que exerce sobre meu coração, sobre minha alma e minha pessoa, que presentemente meu destino depende inteiramente da senhora. Não lance minha
carta ao fogo. Seja benevolente e leia-a. Talvez me perdoe essa primeira frase ao perceber que ela não é uma declaração vulgar nem interessada, mas a expressão de
um fato natural. Talvez fique sensibilizada pela modéstia das minhas súplicas, pela resignação que me inspira o sentimento da minha inferioridade, pela influência
de sua determinação sobre a minha vida. Na minha idade, senhora, eu apenas sei amar; ignoro completamente o que possa agradar a uma mulher, o que a seduz; mas em
meu coração sinto por ela uma embriagadora adoração. Sou irresistivelmente atraído para a senhora pelo prazer imenso que me faz experimentar, penso na senhora com
todo o egoísmo que nos arrasta aonde, para nós, está o calor vital. Não me julgo digno da senhora. Não, parece-me impossível a mim, jovem, ignorante, tímido, proporcionar-lhe
a milésima parte da felicidade a que aspirei ao ouvi-la, ao vê-la. A senhora é para mim a única mulher que existe no mundo. Não concebendo a vida sem a senhora,
tomei a resolução de deixar a França e de ir jogar minha existência até perdê-la em qualquer empreendimento impossível, nas Índias, na África, em qualquer parte.
Não é necessário que eu combata um amor sem limites por meio de qualquer coisa de infinito? Mas, se me der a esperança, não de pertencer à senhora, mas de obter
sua amizade, eu fico. Permita-me passar ao seu lado, raramente mesmo, se assim o exigir, algumas horas semelhantes às que eu consegui furtivamente. Essa frágil felicidade,
cujos vivos prazeres me podem ser interditos à mínima palavra que se exceda em veemência, bastará para me fazer suportar o fervilhar de meu sangue. Será pretender
muito de sua generosidade pedir-lhe que consinta um comércio em que o lucro é exclusivamente meu? A senhora saberá fazer ver a essa sociedade, a que tanto sacrifica,
que eu nada represento a seus olhos. Tão inteligente e tão elevada como é, que tem a temer? Gostaria de poder abrir-lhe meu coração para mostrar-lhe que minha humilde
súplica não esconde segundas intenções. Não lhe teria dito que meu amor era sem limites, pedindo-lhe que me concedesse sua amizade, se tivesse a esperança de fazer
com que partilhasse do sentimento profundo sepultado em minha alma. Não, eu serei a seu lado aquilo que a senhora desejar que eu seja, contanto que eu aí esteja.
Se me recusar isso, e a senhora o pode, absolutamente não me queixarei. Partirei. Se, mais tarde, uma outra mulher por qualquer motivo entrar na minha vida, a senhora
terá tido razão; mas, se eu morrer fiel ao seu amor, talvez a senhora sinta algum arrependimento! A esperança de causar-lhe um arrependimento atenuará minhas angústias
e será toda a vingança de meu coração desprezado...
É preciso ter conhecido todos os incomensuráveis infortúnios da mocidade, é preciso ter montado em todas as Quimeras de duplas asas brancas, que oferecem suas ancas
femininas a ardentes imaginações, para compreender o suplício que sofreu Gastão de Nueil quando supôs seu primeiro ultimatum entre as mãos da sra. de Beauséant.
Via a viscondessa fria, risonha e zombando do amor como as criaturas que nele não acreditam mais. Desejaria reaver sua carta; achava-a absurda, ocorriam-lhe mil
e uma ideias infinitamente melhores, ou que teriam sido mais afetuosas que suas frases frias, suas malditas frases alambicadas, sofisticadas, pretensiosas, mas felizmente
bastante mal pontuadas e bem irregularmente escritas. Procurou não pensar, não sentir; mas pensava, sentia e sofria. Se tivesse trinta anos, ter-se-ia embriagado;
mas esse rapaz ainda ingênuo não conhecia os recursos do ópio, nem os expedientes da requintada civilização. Ele não tinha ali, ao seu lado, nenhum daqueles bons
amigos de Paris, que tão bem saber dizer: Paete, non dolet (Paete, non dolet: famosa frase de Árria, dama romana do século I de nossa era. Tendo seu esposo, Paetus
Caecina, sido condenado à morte como conspirador contra a vida do imperador Cláudio, Árria, para encorajá-lo ao suicídio, cravou um punhal no próprio seio e, já
moribunda, retirou-o, entregando-o ao marido com estas palavras: “Paetus, não dói”.)! estendendo-nos uma garrafa de champanha, ou nos arrastam a uma orgia para suavizar-nos
as angústias da incerteza. Excelentes amigos, sempre arruinados quando somos ricos, sempre numa estação de águas quando os procuramos, tendo sempre perdido no jogo
o último luís quando lhes pedimos um, tendo, porém, sempre um cavalo ruim para nos vender; mas, afinal, as melhores criaturas da terra, sempre prontas a embarcar
conosco para descerem uma dessas ladeiras íngremes em que se consomem o tempo, a alma e a vida!
Finalmente, o sr. de Nueil recebeu das mãos de Jacques uma carta lacrada de cera perfumada, com as armas de Borgonha, escrita num papelzinho velino, e que cheirava
à linda mulher.
Correu imediatamente a fechar-se para ler e reler sua carta.
Pune-me severamente, senhor, pela boa vontade que empreguei em poupar-lhe a rudeza duma recusa, e pela sedução que o espírito sempre exerce sobre mim. Confiei na
nobreza da juventude, e o senhor me enganou. Contudo falei-lhe, senão com o coração aberto, o que teria sido perfeitamente ridículo, pelo menos com franqueza, e
expus-lhe minha situação, a fim de fazer compreender minha frieza a uma alma jovem. Quanto mais o senhor me interessou, mais viva foi a pena que me causou. Eu sou
naturalmente terna e boa; mas as circunstâncias me tornam má. Outra mulher teria queimado sua carta sem a ler; eu a li e lhe respondo. Meus raciocínios provar-lhe-ão
que, se não sou insensível à expressão de um sentimento que fiz nascer, mesmo involuntariamente, estou longe de compartilhá-lo, e minha conduta lhe demonstrará muito
melhor ainda a sinceridade da minha alma. Além disso, quis, para seu bem, empregar a espécie de autoridade que o senhor me dá sobre sua vida, e desejo exercê-la
uma única vez para fazer cair o véu que lhe tapa os olhos.
Em breve terei trinta anos, e o senhor tem apenas vinte e dois (Tratar-se-ia de uma distração do autor, que no começo da novela apresenta Gastão de Nueil como tendo
23 anos, ao passo que a sra. de Beauséant nesta carta lhe dá 22 e, na segunda, escrita nove anos depois, lhe dará trinta? Ou deveremos atribuir essas contradições
ao estado de espírito perturbado da viscondessa, que a leva duas vezes a aumentar a diferença de idade entre ela e Gastão de Nueil? Outra confusão psíquica semelhante
poderia explicar por que, nessa mesma carta, ela atribui ora nove, ora dez anos à duração da felicidade de ambos.). O senhor mesmo ignora quais serão suas ideias
quando tiver a minha idade. Os juramentos que faz com tanta facilidade hoje poderão então parecer-lhe muito pesados. Hoje, acredito, o senhor me daria toda sua vida
sem hesitar, capaz mesmo de morrer por um prazer efêmero; mas aos trinta anos a experiência tirar-lhe-ia a força de fazer-me sacrifícios cada dia, e eu me sentiria
profundamente humilhada em aceitá-los. Um dia, tudo lhe mandará, a própria natureza lhe ordenará abandonar-me; e eu já lhe disse que prefiro a morte ao abandono.
Como vê, o infortúnio ensinou-me a ser calculista. Eu raciocino, não tenho nenhuma paixão. O senhor força-me a dizer-lhe que eu não o amo, que eu não devo, não posso
nem quero amá-lo. Já passei o momento da vida em que as mulheres cedem a impulsos irrefletidos do coração, e não saberia ser a amante que o senhor procura. Meu consolo,
senhor, vem de Deus, não dos homens. Além disso, leio demasiado claramente nos corações à luz do amor enganado, para aceitar a amizade que me pede, que me oferece.
Seu coração o engana, e o senhor espera muito mais da minha fraqueza que da sua força. Tudo isso é um produto do instinto.
Perdoo-lhe essa astúcia de criança; o senhor ainda não é cúmplice dela. Ordeno-lhe, em nome desse amor passageiro, em nome de sua vida, em nome de minha tranquilidade,
que fique na sua terra, que não ponha em risco, por uma ilusão que necessariamente se extinguirá, uma vida digna e bela. Mais tarde, quando, realizando seu verdadeiro
destino, tiver desenvolvido todos os sentimentos que estão reservados ao homem, o senhor apreciará minha resposta, que talvez agora acuse de seca. Tornará então
a encontrar com prazer uma mulher velha cuja amizade ser-lhe-á certamente doce e preciosa: ela não terá sido submetida nem às vicissitudes da paixão, nem aos desencantos
da vida; nobres ideias, ideias sagradas conservá-la-ão pura e santa. Adeus, senhor; atenda-me considerando que seus triunfos hão de trazer alegria à minha solidão,
e só pense em mim como se pensa numa pessoa ausente.
Depois de ter lido essa carta, Gastão de Nueil escreveu estas linhas:
Senhora, se deixasse de amá-la, aceitando a oportunidade que me oferece de ser um homem comum, eu bem mereceria minha sorte, confesse! Não, não atenderei, e juro-lhe
uma fidelidade que só se acabará com a morte. Oh! aceite minha vida, a menos que não tema causar um remorso na sua...
Quando o criado do sr. de Nueil voltou de Courcelles, seu patrão disse-lhe:
— A quem entregaste meu bilhete?
— À própria senhora viscondessa; ela estava numa carruagem e já ia partindo...
— Para vir à cidade?
— Acho que não, senhor. A berlinda da senhora viscondessa estava atrelada com dois cavalos de posta.
— Ah, ela vai-se!—exclamou o barão.
— Sim, senhor—respondeu o criado.
Imediatamente Gastão fez seus preparativos para seguir a sra. de Beauséant. Ela arrastou-o até Genebra sem saber-se acompanhada por ele. Entre as mil reflexões que
o assediaram durante essa viagem, esta: “Por que terá ela ido embora?” preocupou-o mais particularmente. Essa interrogação foi motivo para mil suposições, dentre
as quais ele escolheu naturalmente a mais animadora e que foi: “Se a viscondessa quer amar-me, não há dúvida que, mulher inteligente, ela deve preferir a Suíça,
onde ninguém nos conhece, à França, onde encontraria censores”.
Certos homens seriam incapazes de amar uma mulher bastante hábil para escolher seu terreno; só os amorosos refinados o fazem. Aliás, nada prova que a suposição de
Gastão fosse verdadeira.
A viscondessa alugou uma pequena casa à borda do lago. Quando já estava instalada, Gastão ali se apresentou por uma linda tarde, ao anoitecer. Jacques, criado essencialmente
aristocrático, absolutamente não se espantou de ver o sr. de Nueil, e anunciou-o como criado habituado a tudo compreender. Ao ouvir aquele nome, ao ver o rapaz,
a sra. de Beauséant deixou cair o livro que tinha na mão; sua surpresa deu tempo a Gastão de chegar até ela e de dizer-lhe numa voz que lhe pareceu deliciosa:
— Com que prazer me vali dos mesmos cavalos que a trouxeram!
Ser assim atendida em seus secretos desejos! Qual mulher não cederia a uma tal felicidade? Uma italiana, uma dessas divinas criaturas cuja alma é antípoda da das
parisienses, e que desse lado dos Alpes seria considerada profundamente imoral, dizia ao ler romances franceses: “Não vejo por que esses pobres apaixonados levam
tanto tempo a arranjar o que deve ser ocupação para uma única manhã”. Por que não poderia o narrador, a exemplo dessa italiana, evitar enlanguescer demais seus ouvintes
e sua narrativa? Bem que haveria cenas amorosas lindas de descrever, doces retardamentos que a sra. de Beauséant desejava impor à felicidade de Gastão para sucumbir
galhardamente como as virgens da Antiguidade; talvez também para gozar as castas volúpias do primeiro amor e fazê-lo atingir sua mais alta expressão de força e veemência.
O sr. de Nueil ainda estava na idade em que um homem é vítima desses caprichos, desses meios que tanto engodam as mulheres, e que elas prolongam, seja para bem estipular
suas condições, seja para fruir por mais tempo seu poder, cujo declínio próximo instintivamente pressentem. Mas esses pequenos protocolos de boudoir, menos numerosos
que os da conferência de Londres, têm muito pouca importância na história duma paixão verdadeira para serem mencionados.
A sra. de Beauséant e o sr. de Nueil permaneceram durante três anos na vila situada à beira do lago de Genebra e que a viscondessa alugara. Ali ficaram sozinhos,
sem ver ninguém, sem dar que falar de si, passeando de bote, levantando-se tarde, felizes, enfim, como todos nós sonhamos ser. A pequena casa era simples, com persianas
verdes, cercada de amplas varandas ornadas de toldos, um verdadeiro ninho de amor com canapés brancos, tapetes fofos, pintura nova, onde tudo brilhava de alegria.
De cada janela divisava-se o lago sob um aspecto diferente; ao longe, as montanhas e seus contornos esfumados, coloridos, fugidios; acima deles, um céu maravilhoso;
à frente, um extenso lençol de água caprichosa, cambiante! As coisas pareciam sonhar por eles, e tudo lhes sorria.
Importantes interesses chamaram o sr. de Nueil à França; seu pai e seu irmão tinham morrido; ele teve que deixar Genebra. Os dois amantes compraram aquela casa e
gostariam de poder cortar as montanhas e retirar a água do lago abrindo uma válvula, para levarem tudo com eles. A sra. de Beauséant acompanhou o sr. de Nueil. Vendeu
sua casa e comprou, perto de Manerville, uma propriedade considerável que limitava com as terras de Gastão, e onde continuaram juntos. O sr. de Nueil concedeu bondosamente
à mãe o usufruto dos domínios de Manerville, em troca da liberdade que ela lhe deu de continuar solteiro. A terra da sra. de Beauséant ficava situada perto de uma
cidadezinha, numa das mais lindas posições do vale de Auge. Ali, os dois amantes ergueram entre eles e o mundo barreiras que nem as ideias sociais nem as pessoas
podiam transpor, e tornaram a encontrar os felizes dias da Suíça. Durante nove anos a fio gozaram de uma felicidade que é inútil descrever: o desfecho desta história
deixará sem dúvida entrever as delícias desse tempo àqueles cuja alma pode compreender, no infinito de suas maneiras de ser, a poesia e a oração.
Entretanto, o marquês de Beauséant (seu pai e seu irmão mais velho tinham morrido), o marido da sra. de Beauséant, gozava de uma perfeita saúde. Nada nos dá mais
força para viver que a certeza de que nossa morte fará a felicidade de outrem. O sr. de Beauséant era uma dessas pessoas irônicas e obstinadas que, semelhantes a
rendeiros vitalícios, encontram mais prazer que qualquer outra ao se levantarem bem-dispostas cada manhã. Galante homem, ademais um pouco metódico, cerimonioso e
calculista, capaz de declarar seu amor a uma mulher tão tranquilamente como seu criado diz: “Senhora, está na mesa”.
Essa pequena notícia biográfica sobre o marquês de Beauséant tem por objeto fazer compreender a impossibilidade em que estava a marquesa de desposar o sr. de Nueil.
Ora, depois desses nove anos de felicidade, o mais doce contrato que uma mulher poderia assinar, o sr. de Nueil e a sra. de Beauséant encontraram-se numa situação
tão natural e tão falsa quanto aquela em que tinham ficado no início desta aventura; crise fatal, todavia, da qual é impossível dar uma ideia, mas cujos termos podem
ser enunciados com uma precisão matemática.
A sra. condessa de Nueil, mãe de Gastão, jamais quisera ver a sra. de Beauséant. Era uma pessoa rígida e virtuosa, que fizera muito legalmente a felicidade do sr.
de Nueil, pai. A sra. de Beauséant compreendeu que essa respeitável matrona devia ser sua inimiga e que tentaria arrancar Gastão à sua vida imoral e antirreligiosa.
A marquesa gostaria de vender suas terras e voltar para Genebra. Mas isso seria não confiar no sr. de Nueil, e ela era incapaz de tal. Além do que, ele precisamente
tinha se tomado de amores pelas terras de Valleroy, onde fazia grandes plantações, grandes movimentos de terrenos. Não seria arrancá-lo a uma espécie de felicidade
mecânica que as mulheres desejam sempre para seus maridos e mesmo para seus amantes?
Havia chegado à região uma tal srta. de la Rodière, jovem de vinte e dois anos de idade e possuidora de uma fortuna que lhe dava quarenta mil francos de renda. Gastão
encontrava essa herdeira em Manerville toda vez que o dever ali o conduzia. Postas assim essas personagens como os números duma proporção aritmética, a carta seguinte,
escrita e remetida uma manhã a Gastão, explicará agora o angustiante problema que, havia um mês, a sra. de Beauséant procurava resolver:
Meu anjo amado, escrever-te, quando vivemos coração com coração, quando nada nos separa, quando nossas carícias tão seguidamente nos servem de linguagem, e quando
as palavras são também carícias, não será um contrassenso? E, no entanto, não é, meu amor. Há certas coisas que uma mulher não pode dizer em presença de seu amado;
o simples fato de pensar nessas coisas paralisa-lhe a voz, faz refluir todo seu sangue para o coração; fica sem força e incapaz de raciocinar.
Sentir-me assim ao teu lado faz-me sofrer; e muitas vezes me sinto assim. Reconheço que meu coração deve ser todo verdade para ti, que não te devo ocultar nenhum
de meus pensamentos, mesmo os mais fugazes; e amo ao extremo esse doce abandono que tão bem se ajusta comigo, para permanecer por mais tempo embaraçada, constrangida.
Por isso quero confiar-te minha angústia. Escuta-me! Não me faças esse tá tá tá... com que me fazes calar com uma impertinência que eu adoro, porque de ti tudo me
agrada. Querido esposo do céu, deixa-me dizer-te que apagaste toda a recordação das dores a cujo peso outrora minha vida ia sucumbir. Só tu me fizeste conhecer o
amor. Foi preciso a candura da tua radiante mocidade, a pureza da tua grande alma para satisfazer as exigências de um coração de mulher exigente. Amigo, muitas vezes
palpitei de alegria ao pensar que, durante esses nove anos, tão rápidos e tão longos, nem uma vez meu ciúme foi provocado. Tive todas as flores da tua alma, todos
os teus pensamentos. Não houve nunca a mais leve nuvem no nosso céu, nunca soubemos o que é um sacrifício, sempre obedecemos ao impulso de nossos corações. Gozei
uma felicidade sem limites para uma mulher. As lágrimas que molham estas páginas poderão expressar-te todo o meu reconhecimento? Gostaria de tê-las escrito de joelhos.
Pois bem, essa felicidade fez-me conhecer um suplício mais horrível que o do abandono. Querido, o coração de uma mulher tem recessos bem profundos: eu mesma até
agora ignorava a extensão do meu, como ignorava a extensão do amor. As maiores misérias que possam nos atormentar são ainda leves de suportar comparadas só à ideia
da infelicidade daquele que amamos. E, se essa infelicidade for causada por nós, não será o caso de morrermos?... Tal é o pensamento que me oprime. Mas ele traz
consigo um outro muito mais opressivo; e esse degrada a glória do amor, mata-o, torna-o uma humilhação que arruína para sempre a vida. Tu tens trinta anos e eu tenho
quarenta. Que terror essa diferença de idade inspira a uma mulher apaixonada! Tu podes ter, a princípio involuntariamente, depois seriamente, sentido os sacrifícios
que me fizeste renunciando a tudo no mundo por mim. Talvez tenhas pensado no teu destino na vida social, nesse casamento que deve aumentar necessariamente tua fortuna,
permitir que confesses tua felicidade, teus filhos, que transmitas teus bens, que frequentes a sociedade e que nela ocupes com honra o teu lugar. Mas deves ter reprimido
esses pensamentos, feliz por sacrificares a mim, sem que eu saiba, uma herdeira, uma fortuna e um belo futuro. Na tua generosidade de moço, deves ter querido permanecer
fiel aos juramentos que só nos ligam à face de Deus. Meus desgostos passados devem ter se apresentado a ti, e eu devo ter sido protegida pela desgraça donde me tiraste.
Deves teu amor à tua piedade! Essa ideia me é ainda mais horrível que o temor de estragar tua vida. Aqueles que sabem apunhalar suas amantes são bem caridosos quando
as matam felizes, inocentes, e no auge de suas ilusões... Sim, a morte é preferível aos dois pensamentos que, há alguns dias, entristecem secretamente minhas horas.
Ontem, quando me perguntaste tão meigamente: “Que é que tens?”, tua voz me fez estremecer. Julguei que, como é teu costume, lias na minha alma, e esperei tuas confidências,
imaginando ter tido justos pressentimentos ao supor as conjecturas da tua razão. Lembrei-me então de algumas atenções que te são habituais, mas nas quais acreditei
perceber essa espécie de afetação pela qual os homens traem uma lealdade penosa de manter. Nesse momento, paguei bem caro minha felicidade, senti que a natureza
nos vende sempre os tesouros do amor. Na verdade, a sorte não nos separou? Tu terás pensado: “Cedo ou tarde deverei deixar a pobre Clara; por que não me separar
dela a tempo?”. Essa frase estava escrita no fundo de teu olhar. Deixei-te para ir chorar longe de ti. Esconder-te lágrimas, as primeiras que o desgosto me vez verter
de dez anos para cá, e eu sou muito altiva para mostrá-las; mas não te acusei. Sim, tens razão, não devo ter o egoísmo de submeter tua vida brilhante e promissora
à minha que em breve estará esgotada... Mas se eu me enganasse?... se eu tivesse tomado uma das tuas melancolias de amor por um pensamento refletido?... Ah! meu
anjo, não me deixes na incerteza, pune tua mulher ciumenta; mas restitui-lhe a consciência de seu amor e do teu: toda mulher está nesse sentimento, que sacrifica
tudo. Desde a chegada de tua mãe, e desde que viste em casa dela a srta. de la Rodière, sou devorada por dúvidas que nos desonram. Faze-me sofrer, mas não me enganes:
quero saber tudo, tanto o que tua mãe te diz como o que pensas! Se hesitaste entre alguma coisa e eu, restituo-te tua liberdade... Ocultar-te-ei meu destino, saberei
não chorar diante de ti; apenas não quero mais tornar a ver-te... Oh, paro, meu coração arrebenta!
Permaneci melancólica e atônita por alguns instantes. Amigo, não encontro forças para me mostrar arrogante contigo. Tu és tão bom, tão franco! Não serias capaz nem
de me ferir, nem de me enganar; mas me dirás a verdade, por mais cruel que ela possa ser. Queres que encoraje tua confissão? Pois bem, meu coração, serei consolada
por um pensamento feminino. Não possuí teu ser jovem e pudico, todo graça, todo beleza, todo delicadeza, um Gastão que mais nenhuma mulher poderá conhecer e que
eu gozei deliciosamente...? Não, tu não amarás mais como me amaste, como me amas; não, eu não poderia ter uma rival. Minhas recordações serão sem amargura ao pensar
em nosso amor, que é todo o meu pensamento. Não está fora de teu poder encantar doravante uma mulher pelas meiguices infantis, pelos juvenis carinhos de um coração
jovem, por essas gentilezas de alma, esses atrativos físicos e esses rápidos entendimentos da sensibilidade, enfim pelo adorável cortejo que acompanha o amor adolescente?
Ah, agora és um homem, obedecerás a teu destino calculando tudo! Terás preocupações, inquietudes, ambições, anseios que te privarão desse sorriso constante e inalterável
que sempre embelezavam teus lábios para mim. Tua voz, para mim sempre tão doce, será por vezes ríspida. Teus olhos, sempre iluminados de um brilho celeste ao ver-me,
embaçar-se-ão amiúde para ela. Depois, como é impossível amar-te como eu te amo, essa mulher jamais te agradará tanto quanto eu te agradei. Ela não terá esse cuidado
perpétuo que eu tive comigo mesma a esse estudo contínuo de tua felicidade, cuja compreensão nunca me faltou. Sim, o homem, o coração, a alma que eu conheci não
existirão mais; eu os sepultarei na minha lembrança para gozá-los ainda e viver feliz por essa maravilhosa vida passada, mas desconhecida de todos que não nós.
Meu querido tesouro, se contudo não tiveste a mais leve ideia de liberdade, se meu amor não te pesa, se meus temores são quimeras, se eu continuo sendo para ti a
tua eva, a única mulher que há no mundo, uma vez lida esta carta, vem, corre! Ah, eu te amarei num instante mais do que te amei, creio eu, durante esses nove anos!
Depois de ter sofrido o suplício inútil dessas suspeitas de que me acuso, cada dia acrescentado ao nosso amor, sim, um único dia, será toda uma vida de felicidades.
Por isso, fala, sê franco: não me enganes, isso seria um crime. Dize: queres tua liberdade? Refletiste sobre tua vida de homem? Tens algum desgosto? Eu, causar-te
um desgosto, eu morreria! Já te disse: tenho-te suficiente amor para preferir tua felicidade à minha, tua vida à minha. Não te lembres, se puderes, dos nossos nove
anos de felicidade, para que essa lembrança não te influencie em tua decisão; mas fala! Sou submissa a ti como a Deus, esse único consolo que me restará se tu me
abandonares.
Quando a sra. de Beauséant soube que esta carta estava em mãos do sr. de Nueil, caiu num abatimento tão profundo e numa meditação tão entorpecente pela grande afluência
de pensamentos, que ficou como que paralisada. Por certo, ela sofria essas dores cuja intensidade nem sempre é proporcionada às forças da mulher e que só as mulheres
conhecem. Enquanto a infeliz marquesa aguardava sua sorte, o sr. de Nueil estava, tendo lido a carta, muito atrapalhado, segundo a expressão empregada pelos jovens
nessas espécies de crises. Ele tinha, então, quase cedido às instâncias da mãe e aos atrativos da srta. de la Rodière, moça bastante insignificante, reta como álamo,
branca e rósea, meio muda, segundo o programa prescrito a todas as raparigas casadouras; mas seus quarenta mil francos de renda em propriedades de terras falavam
eloquentemente por ela. A sra. de Nueil, auxiliada por sua sincera afeição de mãe, procurava atrair o filho à virtude. Fazia-o observar o que havia de lisonjeiro
para ele em ser distinguido pela srta. de la Rodière, quando tantos bons partidos lhe eram propostos; já era tempo de pensar em seu futuro, outra ocasião assim não
se apresentaria; um dia ele teria oitenta mil francos de renda em bens imóveis; a fortuna consolava de tudo; se a sra. de Beauséant o amava por ele, ela deveria
ser a primeira a convencê-lo de casar-se. Enfim, aquela boa mãe não esquecia nenhum dos meios pelos quais uma mulher pode influir sobre a razão de um homem. Com
isso, ela tinha levado o filho a hesitar. A carta da sra. de Beauséant chegou num momento em que o amor de Gastão lutava contra todas as seduções de uma vida arranjada
convenientemente e conforme as ideias da sociedade; mas essa carta decidiu o combate. Ele resolveu deixar a marquesa e casar-se.
— É preciso ser homem na vida!—disse ele consigo.
Depois, imaginou o sofrimento que sua resolução iria causar à amante, sofrimento que sua vaidade de homem tanto quanto sua consciência de amante faziam ainda maior;
sentiu-se invadido por uma sincera piedade. Compreendeu de repente esse imenso infortúnio e achou necessário, caridoso, amortecer esse golpe mortal. Pensou poder
levar a sra. de Beauséant a um estado de calma e fazer com que ela determinasse esse cruel casamento, acostumando-a gradativamente à ideia duma separação necessária,
deixando sempre entre eles a srta. de la Rodière como um fantasma, sacrificando-a primeiro para a impor mais tarde. Chegava, para triunfar nesse piedoso empreendimento,
a contar com a nobreza, com a altivez da marquesa, e com as formosas qualidades da sua alma. Respondeu-lhe, assim, para acalmar suas suspeitas.
Responder! Para uma mulher que juntava à intuição do amor verdadeiro as mais delicadas percepções do espírito feminino, a carta era uma sentença. Por isso, quando
Jacques entrou, quando se dirigiu à sra. de Beauséant para entregar-lhe um papel dobrado triangularmente, a pobre mulher sobressaltou-se como uma andorinha aprisionada.
Um frio desconhecido percorreu-a da cabeça aos pés, envolvendo-a num lençol de gelo. Se ele não vinha prostrar-se a seus joelhos, súplice, se ele não vinha em pranto,
pálido de amor, tudo estava acabado. Contudo, há tanta esperança no coração das mulheres que amam! São precisas muitas punhaladas para matá-las; elas amam e sangram
até a última.
— A senhora necessita de alguma coisa?—perguntou Jacques com voz suave, retirando-se.
— Não—foi a resposta.
“Pobre homem”, pensou ela enxugando uma lágrima, “ele me compreende; ele, um criado!”
Começou a ler: Minha bem-amada, estás criando quimeras... Ao divisar essas palavras seus olhos cobriram-se de um véu espesso. A voz íntima de seu coração gritava-lhe:
“Ele mente!”. Depois, abarcando com a vista toda a primeira página com essa avidez lúcida que a paixão comunica, ela lera embaixo estas palavras: Nada está resolvido...
Voltando a página com uma vivacidade convulsiva, ela percebeu distintamente o espírito que havia ditado as frases enrodilhadas daquela carta em que não encontrava
mais as expansões impetuosas do amor; amassou-a, rasgou-a, enrolou-a, mordeu-a, lançou ao fogo e exclamou:
— Oh, o infame! Ele me possuiu não me amando mais!
Depois, semimorta, deixou-se cair no canapé.
O sr. de Nueil saíra depois de ter escrito a carta. Quando voltou, encontrou Jacques na soleira da porta, e Jacques entregou-lhe uma carta dizendo-lhe:
— A senhora marquesa não está mais no castelo.
O sr. de Nueil, espantado, rasgou a sobrecarta e leu:
Senhora, se deixasse de amá-la aceitando a oportunidade que me oferece de ser um homem comum, eu bem mereceria minha sorte, confesse! Não, não a atenderei, e juro-lhe
uma fidelidade que só se acabará com a morte. Oh! aceite minha vida, a menos que não tema causar um remorso na sua...
Era o bilhete que ele havia escrito à marquesa na ocasião em que ela partira para Genebra. Abaixo, Clara de Borgonha escrevera: “Está livre, senhor”.
Gastão de Nueil voltou para a companhia da mãe, em Manerville. Vinte dias depois, desposou a srta. Estefânia de la Rodière.
Se essa história duma veracidade vulgar terminasse aqui, seria quase uma mistificação. A maioria dos homens não terá uma mais interessante para contar? Mas a celebridade
do desfecho, infelizmente verdadeiro, mas tudo o que ele poderá fazer nascer de recordações na alma daqueles que conheceram as celestiais delícias duma paixão infinita,
que eles próprios destruíram ou perderam por qualquer fatalidade cruel, talvez ponham esta narrativa ao abrigo das críticas.
A marquesa de Beauséant não tinha deixado o seu castelo de Valleroy quando de sua separação do sr. de Nueil por uma infinidade de razões que se devem deixar encerradas
no coração das mulheres, sendo que cada uma saberá quais as que lhe serão próprias. Clara continuou a residir nele depois do casamento do sr. de Nueil. Viveu num
isolamento tão profundo que seus serviçais—exceto Jacques e a criada de quarto—não mais a viram. Ela exigia um silêncio absoluto na casa e só saía de seus aposentos
para ir à capela de Valleroy, onde um padre dos arredores vinha rezar-lhe a missa todas as manhãs.
Poucos dias após seu casamento, o conde de Nueil caiu numa espécie de apatia conjugal, que tanto podia significar felicidade como infelicidade.
Sua mãe dizia a toda a gente:
— Meu filho está completamente feliz.
A sra. Gastão de Nueil, tal como muitas moças, era mais ou menos terna, meiga, paciente; ficou grávida um mês depois de casada. Tudo isso estava de acordo com a
educação recebida. O sr. de Nueil era muito bom para ela; apenas dois meses depois de ter deixado a marquesa, tornou-se extremamente alheado e pensativo. Mas toda
a vida ele tinha sido sério, dizia a mãe.
Após sete meses dessa tépida felicidade, aconteceram alguns fatos insignificantes na aparência, mas que comportam enorme desdobrar de ideias e denunciam imensa inquietação
de espírito para não serem simplesmente referidos e abandonados ao capricho das interpretações de cada inteligência.
Um dia, em que o sr. de Nueil havia caçado nas terras de Manerville e de Valleroy, ele regressou pelo parque da sra. de Beauséant. Mandou chamar Jacques, esperou-o
e perguntou ao criado quando este chegou:
— A marquesa ainda gosta de caça?
À resposta afirmativa de Jacques, Gastão ofereceu-lhe uma soma bastante elevada, acompanhada de argumentos especiosos, para obter dele o pequeno favor de reservar
para a marquesa o resultado de sua caçada. Pareceu sem importância a Jacques que sua ama comesse uma perdiz morta por seu guarda ou pelo sr. de Nueil, pois que este
desejava que a marquesa não soubesse a proveniência da caça.
— Ela foi morta em suas terras—disse o conde.
Durante vários dias, Jacques prestou-se a essa inocente burla. O sr. de Nueil partia de manhã cedo para caçar e só voltava à casa para almoçar, sem nunca ter matado
nada. Uma semana inteira decorreu assim. Gastão cobrou bastante ânimo para escrever uma longa carta à marquesa e fê-la chegar às mãos dela. A carta foi-lhe devolvida
sem ter sido aberta. Era quase noite quando o criado da marquesa a trouxe de volta. De súbito, o conde lançou-se fora do salão, onde parecia escutar um capriccio
de Hérold (Louis-Joseph-Ferdinand Hérold (1791-1833): compositor francês.—O capriccio é uma fantasia musical que não obedece a regras de nenhum gênero.) estropiado
ao piano por sua mulher, e correu à casa da marquesa com a rapidez de um homem que voa a um encontro marcado. Saltou para o parque por uma brecha que lhe era conhecida
e caminhou lentamente através das alamedas, parando por momentos como para tentar reprimir as sonoras palpitações de seu coração; depois, chegando próximo ao castelo,
ouviu uns ruídos surdos e presumiu que todos os criados estivessem à mesa. Encaminhou-se para os aposentos da sra. de Beauséant. A marquesa nunca saía de seu quarto
de dormir. O sr. de Nueil conseguiu chegar até a porta deste sem fazer o mínimo ruído. Ali, viu à luz de duas velas a marquesa, magra e pálida, sentada numa enorme
poltrona, a cabeça inclinada, as mãos pendentes, os olhos fixos num objeto que ela parecia não ver. Era a dor na sua mais completa expressão. Havia naquela atitude
uma vaga esperança, mas não se sabia se Clara de Borgonha olhava para o túmulo ou para o passado. Talvez as lágrimas do sr. de Nueil tenham brilhado nas trevas,
talvez sua respiração se tenha tornado ligeiramente ofegante, talvez tenha tido um estremecimento involuntário, ou talvez sua presença fosse impossível sem o fenômeno
da intussuscepção cuja frequência é a um tempo a glória, a felicidade e a prova do verdadeiro amor. A sra. de Beauséant voltou lentamente o rosto para a porta e
viu o seu antigo amante. O sr. de Nueil deu então alguns passos.
— Se avançar, senhor—exclamou a marquesa, empalidecendo -, eu me atirarei por esta janela!
Ela arremessou-se ao ferrolho, abriu-o e ficou com um pé apoiado no exterior do vão da janela, a mão no parapeito e a cabeça voltada para Gastão.
— Saia, saia—gritou -, senão me atiro!
A esse grito terrível, o sr. de Nueil, ouvindo os criados em agitação, fugiu como um malfeitor.
De volta em casa, Gastão escreveu uma carta muito curta e encarregou seu criado de levá-la à sra. de Beauséant, recomendando-lhe que fizesse saber à marquesa que
se tratava de um assunto de vida ou de morte para ele. Quando o mensageiro saiu, o sr. de Nueil voltou para o salão e nele encontrou a esposa, que continuava a decifrar
o capriccio. Sentou-se, à espera da resposta. Uma hora depois, findo o capriccio, os dois esposos estavam um diante do outro, silenciosos, cada qual de um lado da
lareira, quando o criado voltou de Valleroy e devolveu ao amo a carta, que não tinha sido aberta.
O sr. de Nueil passou para um pequeno gabinete contíguo ao salão onde guardara sua espingarda de volta da caçada, e matou-se.
Esse rápido e fatal desfecho, tão contrário aos hábitos da jovem França, é natural.
As pessoas que bem observaram ou deliciosamente experimentaram os fenômenos a que a união perfeita de dois seres dá lugar, compreenderão perfeitamente esse suicídio.
Uma mulher não se amolda, não se submete num dia aos caprichos da paixão. A voluptuosidade, como uma flor rara, exige os cuidados da mais engenhosa cultura; só o
tempo e a harmonia das almas são capazes de lhe revelar todos os recursos, de fazer nascer esses prazeres ternos, delicados, pelos quais somos imbuídos de mil superstições
e que cremos inerentes à pessoa cujo coração no-los prodiga. Esse admirável entendimento, essa crença religiosa, e a certeza fecunda de experimentar uma felicidade
particular junto da pessoa amada são em parte o segredo das uniões duradouras e das longas paixões. Junto a uma mulher que possui o gênio do seu sexo, o amor nunca
é um hábito: sua adorável ternura sabe revestir-se de formas tão variadas, ela é tão espiritual e tão amorosa ao mesmo tempo, ela põe tantos artifícios em sua natureza
ou tanta naturalidade nos seus artifícios, que se torna tão poderosa pela recordação quanto o é pela sua presença. Comparadas a ela, todas as mulheres empalidecem.
É preciso ter sentido o temor de perder um amor tão vasto, tão ardente, ou tê-lo perdido, para conhecer-lhe todo o valor. Mas se, tendo-o conhecido, um homem dele
se priva para cair num casamento frio; se a mulher em que ele julgou encontrar a mesma felicidade prova-lhe, por qualquer um desses fatos sepultados nas trevas da
vida conjugal, que essa felicidade não reviverá mais para ele; se ele ainda tem nos lábios o gosto de um amor celestial, e se feriu mortalmente sua verdadeira esposa
por uma quimera social, então é preciso morrer ou ter essa filosofia material, egoísta, fria, que horroriza as almas apaixonadas.
Quanto à sra. de Beauséant, sem dúvida ela não acreditou que fosse até o suicídio o desespero de seu amigo, depois de o ter largamente cercado de amor durante nove
anos. Talvez ela pensasse ser a única a sofrer. Ela tinha, aliás, o pleno direito de recusar-se à mais aviltante partilha que existe, e que uma esposa pode tolerar
por elevadas razões sociais, mas que uma amante deve odiar, porque na pureza de seu amor é que reside toda a sua justificação.
Angoulême, setembro de 1832

 

 

                                                                  Honoré de Balzac

 

 

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