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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MULHER DE GABRIEL / Robin Schone
A MULHER DE GABRIEL / Robin Schone

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

   

 

 

Gabriel reconheceu a mulher da capa gasta. Conhecia-a porque uma vez havia sido como ela. Com frio. Com fome. A presa perfeita para um predador preparado. Ela tinha vindo matar um anjo. Não viveria para ver o alvorecer. Vozes misturadas sobressaiam como a fumaça amarela e do fumo cinzento. Homens com casacos negros e coletes brancos e mulheres com trajes brilhantes e jóias reluzentes se moviam entre um labirinto de mesas iluminadas por velas: de pé, sentados, recostados em cadeiras de mogno de Honduras, inclinando-se sobre toalhas de seda branca... Não sabiam que era a caça: a flor e nata da alta sociedade inglesa em busca de prazer, e os prostitutos e prostitutas de Londres que ambicionavam sua riqueza. Não sabiam que uma mulher os espreitava; o corpo de Gabriel palpitava diante aquele conhecimento. De prazer; de riqueza. De vida; de morte. Para a reinauguração da Casa de Gabriel - um local aonde era possível satisfazer qualquer desejo carnal, havia convidado tanto os clientes quanto as prostitutas.

Sexo e morte.

Uma labareda branca chispou em uma vela. Uns metros mais abaixo, um homem o olhou diretamente nos olhos. Um homem de cabelo escuro como a noite, em contraste com o loiro dele. Um homem com olhos de cor violeta, em vez de prateados.

E a face direita escurecida por cicatrizes. Vinte e sete anos de lembranças os uniam. Imagens de uma França faminta por causa da guerra em vez de uma Inglaterra inundada no inverno. Eram então dois jovens de treze anos meio mortos de fome. Tinha passado muito tempo. “Meus dois anjos”, havia dito madame que os tinha recolhido em uma rua de Paris. “O moreno, para as mulheres; o loiro, para os homens”. Tinha-os instruído para exercer a prostituição e se transformarem em autênticos peritos; tinha lhes ensinado o oitavo pecado capital, e o tinham cometido. O brilho da vela enfraqueceu, recordando bruscamente Gabriel da pistola que segurava em sua mão esquerda. Michael, o anjo marcado de cicatrizes, tinha vindo proteger Gabriel, o anjo intocável.

A vingança não seria possível sem ele. Sem ele não haveria necessidade de vingança. A mulher morreria porque um anjo de cabelos escuro vivia. E amava. Seu pulso marcava um ritmo implacável contra a culatra da arma: homens, mulheres; dor, prazer; vida, morte. O revólver Adams tinha um dispositivo de segurança: disparando manual para um disparo de precisão, disparando automático para ganhar rapidez. Podia disparar manualmente o revólver. Podia soltar o gatilho e efetuar um único disparo certeiro.

Uma bala mataria Michael, e pararia aquele ciclo letal que já durava vinte e nove anos. Gabriel não destravou o revólver.

Não podia matar Michael. O segundo homem tinha enviado uma mulher para que fizesse o trabalho que Gabriel não tinha feito seis meses antes. Uma pontada aguda percorreu suas costas. A mulher se interpôs entre a luz que projetavam as velas, com o Michael em seu campo visual. Pela extremidade do olho direito, Gabriel viu um garçom com jaqueta negra e colete branco inclinar-se e levantar um guardanapo de seda branca. Debaixo de Gabriel, dois garçons se aproximaram de Michael. Suas mãos permaneciam ao lado; não iam matar uma mulher. Quatro mesas mais à frente, outro garçom servia champanha de uma garrafa recém aberta. Pôde ver o brilho do vidro e até seu líquido faiscante. Do segundo homem ainda não havia nem rastro. Mas estava ali em baixo, um camaleão vestido com jaqueta negra e colete branco, disfarçado de cliente ou de prostituto, recostado em uma cadeira de mogno de Honduras ou inclinado sobre uma toalha de seda branca. Duro. Ereto. Excitado pelo calor do sexo e a expectativa do assassinato. O tempo pareceu sincronizar-se com os batimentos do coração de Gabriel. A mulher da capa espichou os braços e segurou com firmeza um objeto escuro e opaco entre as mãos. Uma pistola de metal azul não refletia a luz. Gabriel sabia por que a sua tinha essa particularidade. O ensurdecedor bulício da troca sexual se atenuou. A cabeça da mulher permanecia oculta depois de um escuro capuz, impedindo Gabriel de ver suas feições. A tristeza o transpassou como uma faca. Pelos homens e mulheres que tinham morrido; pelos homens e mulheres que morreriam. Pela mulher que estava ali abaixo, e que dentro de um instante estaria morta. Presa perfeita de um predador preparado. Gabriel apontou para a mancha clara que se adivinhava como o rosto da mulher. Nesse mesmo instante, uma clara voz feminina proclamou:

—Cavalheiros, ofereço-lhes minha virgindade. Gabriel ficou petrificado. A mulher se vestia como uma prostituta de ruas, mas falava como uma dama distinta Uma a uma, foi parando as risadas refinadas dos homens e as afogadas risadinhas fingidas das prostitutas. O som da seda se transformou em um sussurro. As velas piscaram. O estupor deixou os garçons petrificados.

Sentiram-se impulsionados a tirar do local a aquela mulher da capa negra, embora a experiência lhes indicasse que já era muito tarde: tinha captado a atenção de alguns dos clientes mais ricos. A carne virgem era uma mercadoria de primeira. Os garçons não podiam intervir.

—O homem que fizer a oferta mais alta obterá sua recompensa nesta noite mesmo - continuou a mulher com voz alta e clara, as mãos quietas, o porte elegante, a morte tão somente a uma bala de distância—Começamos em cento e cinco libras?

As palavras “cento e cinco libras” revoaram entre a neblina e a fumaça. Nas ruas de Londres a virgindade, fosse real ou fictícia, vendia-se por cinco libras, não por cento e cinco. Uma súbita lembrança surgiu na mente de Gabriel. A imagem de uma casa de encontros francesa, em vez de um local inglês; de uma mulher envolta em um vestido de cetim púrpura, quase luxurioso, em vez de uma mulher coberta por uma escura capa puída. Fazia vinte e sete anos, madame tinha vendido a virgindade de Gabriel por dois mil seiscentos e sessenta e quatro francos. Cento e cinco libras inglesas equivaliam a dois mil seiscentos e sessenta e quatro francos. A mulher só podia ter conseguido essa informação de duas pessoas: Michael ou do segundo homem. Gabriel não hesitou nem um segundo sobre a identidade de quem a tinha proporcionado. Destravou o revólver manualmente com o polegar.

—Demônios! —A malícia deixou descoberta à origem de uma prostituta—. Não há bexiga de peixe que valha cento e cinco libras, querida!

As luzes e as sombras se agitaram diante o estalo de nervosas risadas masculinas e femininas.

A mulher da capa não riu. Riu acaso o segundo homem? Apontava com o revólver para Michael enquanto Gabriel dirigia sua pistola para a mulher, ou talvez a mulher da capa fosse apertando lentamente o gatilho de sua arma dentro de sua bolsa, ignorante de seu destino? Tinha vindo à mulher matar um anjo... Ou confundi-lo?

—Asseguro-lhe, senhora - respondeu a mulher sem se alterar—, que minha virgindade não procede de um peixeiro. Sou uma virgem autêntica. Era possível. As circunstâncias forçavam às mulheres castas e instruídas a sair às ruas, como acontecia com as de vida alegre e sem educação. Isso não importava. Uma arma esgrimida por uma virgem era tão mortífera como uma esgrimida por uma prostituta de ruas. O metal curvo servia de apóio ao dedo de Gabriel.

—Então tire a capa, moça, e nos mostre a mercadoria - a desafiou grosseiramente lorde James Ward Hunt, conde de Goulburn e ministro do Interior. Gabriel deu uma olhada. À luz das velas, o cabelo engomado do homem brilhava como azeite negro.

As sombras transformavam o vermelho em negro. O sangue da mulher brilharia como o cabelo do secretário de governo.

—Não vejo razão para me exibir, senhor - respondeu tranqüilamente a mulher da capa—. Não é meu corpo o que tem preço, e sim minha virgindade. O estupor pôs freio a qualquer indício de brincadeira que pudesse parecer. As prostitutas desejosas de se vender não se negavam a mostrar sua mercadoria. Gabriel sabia isso porque tinha exercido a prostituição durante mais de doze anos.

Vestindo-se. Despindo-se. Incitando. Seduzindo. O sexo tinha parecido um preço pequeno que tinha tido que pagar em troca de alimento, sapatos e uma cama onde poder dormir. A princípio. No final, havia fodido só para provar que não era o prostituto instruído que na realidade era. O segundo homem tinha desmentido.

—Fodo-te, se tiver cu! —Gabriel dirigiu um atento olhar à mulher, sem prestar atenção ao membro do parlamento recém eleito que tinha falado—. Dou-te vinte libras, o que diz?

—A virgindade de uma mulher é seu dote - disse a mulher em um tom neutro, dando a volta e deixando de olhar para Michael para concentrar-se no político. A mudança de postura permitiu ver que o objeto escuro que tinha entre as mãos era uma bolsa, não uma arma—. Isso é tudo o que vale para você a virgindade de uma mulher, senhor? Vinte libras? Daria a sua filha, ou a sua irmã, tão pouco em troca de um casamento?

Um murmúrio de desaprovação desatou entre o público masculino. Os homens ou as mulheres que se prostituíam jamais comparavam seu valor com o da classe alta. Fosse qual fosse seu preço. As risadas atravessaram a escuridão mal iluminada pela luz das velas. Um cavalheiro inglês e uma prostituta londrina subiram as suntuosas escadas atapetadas de vermelho que rodeavam o salão, com os extremos da jaqueta agitando-se e o traje de seda rebolando sobre as anquinhas. Tinham chegado a um acordo entre um gole e outro de champanha; selariam o trato com seus corpos em um quarto do segundo andar. O corpo de Gabriel se contraiu, preparando-se para disparar o revólver Adams, enquanto o calor, o cheiro, o som e a vista dos homens com aquelas mulheres provocavam um estremecimento. Gabriel não temia sua própria morte essa noite. Isso viria depois. Ver Michael morrer seria seu castigo; a morte seria sua recompensa. Pela dor, pelo prazer...

—Eu darei cento e cinco libras, mademoiselle, por sua... Inocência - ofereceu uma sedosa voz masculina.

O pêlo de Gabriel se arrepiou como sinal de alarme. Da última vez que tinha ouvido aquela voz falava em um francês fluido, em vez daquele inglês entrecortado e torpe que agora ouvia. Não tinha dúvida de sua procedência: o segundo homem tinha puxado a mulher pela capa. Um movimento a sua direita o fez virar a cabeça, como um ato reflito, com o coração acelerado, a mão esquerda firme, desejando que a espera chegasse a seu fim. Um homem de jaqueta negra se inclinou sobre uma toalha de seda branca. Uma labareda azul e laranja estalou entre um charuto e uma esbelta vela. O cabelo cinza do homem resplandeceu, durante um instante, o reflexo da chama bicolor para ficar oculto imediatamente entre uma nuvem de fumaça. Não era o homem que tinha devotado às cento e cinco libras. Não era o homem a quem Gabriel mataria ou que o mataria. Uma badalada distante atravessou a madeira, o vidro, a sexualidade palpitante e a morte iminente com que se construiu a Casa de Gabriel. O Big Ben deu uma hora, duas, três...

—Ofereço cento e vinte e cinco libras.

Uma cabeça calva brilhou como uma lua cheia sobre uns reluzentes botões dourados.

—Ofereço cento e cinqüenta libras.

Brilhos luminosos se desprendiam do vidro, refletindo-se nos cabelos escuros.

—Mein Got - gritou o barão Strathgar do centro do salão. Seu rosto redondo estava nublado pelo álcool e seu acento alemão parecia mais forte por causa da excitação—. Ofereço duzentas libras.

O intenso estado de alerta de Michael oprimiu o peito de Gabriel que, ao mesmo tempo, percebeu a ansiedade do segundo homem como um murro no estômago. Os murmúrios subiram de tom, transformando-se em uma surda cacofonia composta por duzentas vozes que faziam conjeturas. Na Casa de Gabriel nunca tinha havido um leilão. Mas agora havia. Os homens não ofereciam duzentas libras para perfurar o hímen de uma mulher. Entretanto, isso era justamente o que tinha feito Strathgar.

Gabriel se preparou para a seguinte oferta. Olhando. Esperando. Recordando... Lendo o nome Gabriel pela primeira vez, escrito por Michael enquanto esperavam a que o dia cedesse à noite... Escrevendo sua primeira palavra, Michael, praticando as letras entre as mulheres que compravam o menino de cabelo escuro e os homens que compravam a ele. Perguntando-se...

Quando se apagaria a necessidade de sexo e deixaria de palpitar pelo que nunca poderia ter. Não podia esquecer os bons agouros de uma pessoa: que encontrasse uma mulher que lhe desse prazer. Que compensasse tudo o que tinha suportado.

A espera terminou com uma rajada de movimento. Jogando bruscamente para trás sua cadeira de mogno de Honduras, o barão alemão se levantou para reclamar seu prêmio.

—Darei-lhe quinhentas libras.

Strathgar parou em seco. O homem de cabelo cinza tinha puxado. O olhar de Gabriel passou rapidamente das costas do homem de cabelo cinza à mulher de cabelo loiro sentada diante ele, e em seguida cravou no homem que se encontrava na mesa atrás deles.

A parte de atrás de seu cabelo era tão negra que resplandecia com brilhos azuis. Gabriel não tinha necessidade de ver seus olhos para saber a cor. Via-os cada vez que fechava os seus para dormir. De repente, por todo o salão se estendeu um alvoroço de hipóteses masculinas e ressentimento feminino. Feito uma oferta de quinhentas libras pela mulher da capa. Todos os clientes masculinos estavam empenhados em tê-la.

Vozes crispadas se escutaram em rápida sucessão:

—Quinhentas e vinte e cinco libras.

—Quinhentas e setenta e cinco libras.

—Seiscentas libras.

—Seiscentas e cinqüenta libras.

—Setecentas libras...

Um ruído próximo interrompeu o estrepitoso ardor, uma porta que se abria a suas costas. A luz atravessou a escuridão, pressentindo já o final.

Um homem parou atrás dele, a escassos metros de distância; alguns metros abaixo dele, Michael fixou o olhar.

—Mil libras.

As palavras roçaram a pele tensa de Gabriel. Provinham do segundo homem. Uma incredulidade estupefata impregnou o salão.

Só dois prostitutos haviam obtido um preço tão alto. Michel de Anges - Michael dos Anjos, chamado assim por sua habilidade para levar às mulheres ao orgasmo— e o homem que durante os últimos vinte e sete anos só tinha sido conhecido como Gabriel.

Gabriel, o prostituto. Gabriel, o proprietário. Gabriel, o anjo intocável. A luz faiscante das velas obscureceu o pressentimento que atravessou o rosto de Michael ao se dar conta de que o segundo homem tinha puxado duas vezes. Mas tinha reconhecido sua voz? Perguntou-se Gabriel. Apontou o revólver Adams para um cabelo tão negro que despedia um brilho azul. Reconheceria Michael os traços daquele homem depois de que uma bala entrasse pela parte posterior de sua cabeça e saísse por seu rosto?

—Monsieur. —O homem que tinha aparecido atrás de Gabriel não se aproximou muito. Gastón estava muito tempo a seu serviço para cometer esse engano—. Monsieur veio, tal como você falou.

Todos os empregados de Gabriel tinham aprendido a esperar o segundo homem. Era a razão pela qual tinha reconstruído a Casa de Gabriel, para atraí-lo com sexo... Com morte. Michael. Gabriel. Mas não sabiam que aspecto tinha. Não sabiam que cheiro tinha.

Não podiam sentir, como sentia Gabriel, um câncer que devorava a esperança e o desespero, o amor e o ódio.

—Como sabe que está aqui, Gastón? —perguntou com voz neutra, empunhando a pistola com mais firmeza.

—Deixou uma mensagem para você, monsieur.

Gastón falava com acento francês nativo. Michael falava francês como se tivesse nascido e vivido sempre na França. Entretanto, era inglês. Gabriel falava inglês como um inglês. Sem embarque, era francês. Não sabia de que país procedia o segundo homem. Gabriel tinha matado à única pessoa que poderia haver-lhe dito. Não importava. Não era necessário conhecer a nacionalidade de um homem para matá-lo. Gabriel se dispôs a apertar o gatilho... O homem do cabelo cinza se levantou de repente, e seu corpo protegeu o segundo homem. Ajudou à mulher loira a ficar de pé. Ela era mais alta que o homem de cabelo cinza, elegante como só uma prostituta com êxito podia sê-lo. Em seu pescoço e em suas orelhas resplandeciam os diamantes. A neblina e a fumaça se entreteciam em seu cabelo, que era quase tão claro como o de Gabriel. Gabriel teve a sensação de já ter visto o homem de cabelo cinza e à mulher de cabelo loiro, antes. Mas onde?

—Quando te deu essa mensagem, Gastón? —perguntou bruscamente.

O segundo homem tinha subornado os seus dois porteiros, pois do contrário à mulher jamais teria conseguido entrar.

A Casa de Gabriel não atendia a indigentes. Perguntou se o segundo homem também tinha subornado o seu administrador.

E soube que era muito possível. Qualquer homem ou mulher em sua casa tinham um preço. Não estariam trabalhando para Gabriel se não fosse assim. O homem de cabelo cinza e a mulher loira caminharam sem pressa entre as mesas iluminadas pela luz das velas. Seguiu-os um rastro de fumaça cinza. A mulher da capa continuava imóvel como uma estátua. Indiferente ao perigo que crepitava a seu redor.

—Um garçom recolheu a mensagem do chão - informou Gastón com voz crispada, ofendido pela suspeita tácita de Gabriel—. Estava escrito para um servente. A imagem de um garçom agachando e levantando de novo com um guardanapo na mão cruzou a mente de Gabriel. Seu corpo estremeceu com súbito receio. O garçom não tinha estado perto do homem de cabelo negro azulado.

Queria apertar o gatilho. Queria matar o segundo homem. Ansiava a irrevogável liberação da morte. Mas não o fez. Em vez disso, observou o homem de cabelo cinza e à mulher loira. Viu o casal parar na saída. Atrás de Gabriel, Gastón aguardou tenso. Na parte inferior, a mulher de cabelo loiro deu a volta com graça, fazendo revoar seu traje de seda pálida. O homem de cabelo cinza atravessou a soleira. No mesmo momento em que desapareceu de sua vista, Gabriel recordou quem era: um membro do Clube das Cem Guinés, um estabelecimento que atendia exclusivamente a homens homossexuais que assumiam personalidades femininas.

A mulher loira olhou fixamente para Gabriel. Subitamente a lembrança o invadiu. Não eram os olhos de uma mulher que o olhavam; eram os olhos do segundo homem. Disfarçado de prostituta e não de cliente. Uma mulher em vez de um homem.

Depois de havê-lo reconhecido, compreendeu. O segundo homem não havia trazido mulher da capa para matar o Michael, o anjo moreno, e sim para acabar com ele, o anjo loiro. Sorrindo, o segundo homem lhe lançou um beijo zombador e avançou. Fora do alcance do Gabriel. Fora da Casa de Gabriel. Enquanto ele ficava olhando, incapaz de detê-lo. Como tinha sido incapaz de detê-lo quando estava preso em um sótão, enquanto ensinava Gabriel o que a madame francesa não podia ensinar. A ira intumesceu os músculos. Tinha feito uma armadilha, só para cair ele mesmo nela. O segundo homem não ia matar Michael essa noite, mas sem dúvida mataria. Não deixaria vivo ninguém que o pudesse identificar. Ninguém exceto à mulher da capa... Se Gabriel a possuísse.

—O que diz a nota? —perguntou Gabriel com voz tensa.

—Diz... —Gastón clareou a voz—. Diz: “Gabriel, cito Shakespeare, um homem que sem dúvida haveria sentido inspirado tanto por sua beleza como por sua experiência: "O mundo inteiro é um cenário, e os homens e mulheres não são mais que simples atores". Preparou um cenário delicioso, mon ange, e agora te trago uma mulher. Uma atriz protagonista, se você quiser. Laissez lejeu commencer”. Diretamente debaixo de Gabriel, Michael examinava o salão em busca do segundo homem. Sua ingenuidade fez que formasse um nó no estômago de Gabriel. A única coisa que Michael tinha desejado em sua vida era uma mulher a quem amar. A única coisa que Gabriel tinha desejado em sua vida era ser como Michael. Um homem com paixão; um homem com inocência. Um homem com uma alma. A mulher da capa continuava de pé, solitária, aparentemente indiferente ao furor que tinha suscitado. O temor estremeceu o corpo de Gabriel. Trago-te uma mulher, ressoava em seus ouvidos. A nota depois dizia: Laissez o jeu commencer. Nas ruas de Londres abundavam as prostitutas; as mulheres dormiam nos cantos dos asilos. Entretanto, o segundo homem tinha escolhido esta mulher. Era uma virgem ou uma prostituta. Tinha sido contratada para assassinar Gabriel ou para ser assassinada por Gabriel. Era o último vínculo vivo com o segundo homem. Não havia nada que Gabriel não estivesse disposto a fazer para apanhá-lo. E ele sabia.

—Ofereço duas mil libras pela mulher - se ouviu claramente entre o bulício de baixo.

A voz pertencia a Gabriel. Sentiu o impacto de duzentos pares de olhos. Gabriel não tinha estado com uma mulher em quatorze anos, oito meses, duas semanas e seis dias. Os clientes sabiam. As prostitutas sabiam. O homem que o salvaria sabia. O homem que mataria dois anjos sabia. O rosto da mulher estava envolto na escuridão. Gabriel não sabia o que ela sabia. Ainda.

Mas saberia. Antes que terminasse a noite, saberia tudo sobre aquela mulher. Esperava, pelo bem dela, que fosse uma assassina.

Seria muito melhor para ambos que o fosse. Se Gabriel não a matasse, o segundo homem o faria. E estava seguro de que seria uma morte muito pior que a que proporcionaria a Gabriel. Laissez o jeu commencer. Que comece o jogo.

 

CAPITULO 2

 

Paixão.

Vitória olhou os olhos prateados e entendeu por que homens e mulheres respeitáveis iam à Casa de Gabriel. Iam experimentar paixão. Ela tinha ido escapar precisamente daquele sentimento.

—Nos deixe sozinhos, Gastón.

A sedosa voz masculina perfurou a neblina, a fumaça, o tecido, a carne, os ossos. Um sussurro roçou a pele de Vitória, o ruído de uma porta que se fechava, encerrando-a no interior de uma biblioteca, e não em um quarto como tinha esperado. Isso não alteraria o resultado da noite. Vitória sabia que um homem não precisava de uma cama para copular com uma mulher; freqüentemente bastavam um portal ou um beco. Em cima dela, uma aranha elétrica a alagou de luz; frente a ela, uma mesa de escritório com tampa de mármore negro com nervuras prateadas e uma cadeira rainha Ana de couro azul pálido se interpunham entre ela e o homem loiro. Seu capuz tampava parte de sua visão, mas não a cegava ao perigo que crepitava a seu redor. Não a protegia do fato de que acabava de vender seu corpo ao melhor pagador. Gabriel permanecia imóvel. Aquele homem que tinha comprado sua virgindade parecia uma estátua grega vestida com jaqueta de seda negra e colete branco feitos sob medida, e um cabelo loiro tão claro e brilhante como fios de prata. Uma pontada transpassou seu peito. Era tão lindo que doía olhá-lo. Vitória desviou rapidamente seu olhar, com o coração pulsando rapidamente e seus pensamentos alvoroçados. Tinha-o visto antes: as maçãs do rosto pronunciadas, a boca esculpida, olhos que transpassavam o desejo mais primitivo... Sua mão esquerda descansava com a palma para baixo sobre o mármore negro, com seus dedos claros, compridos e magros, de unhas curtas cuidadosamente lixadas. Um pequeno montículo de seda branca aparecia sob seu dedo mindinho.

Vitória não tinha ilusões sobre o que os homens podiam fazer às mulheres. A mão que as acariciava, também podia lhes fazer mal. Desfigurá-las. Matá-las. Olhou bruscamente para cima para encontrar aqueles enigmáticos olhar prateado.

O estômago de Vitória se contraiu. De fome, disse-se a si mesma. Mas sabia que era mentira. Tinha medo. Mas não podia permitir o luxo de sentir medo.

—Você ofereceu duas mil libras por minha virgindade - disse sem rodeios.

—Ofereci duas mil libras - Assentiu o homem em tom neutro, seus olhos prateados inescrutáveis.

Vitória quis gritar que a virgindade de uma mulher não valia duas mil libras. Não o fez.

—Não tenho experiência nestes assuntos. —Agarrou sua bolsa de rede para cabelo, passando o dedo anelar por um ponto solto—. Como pensa me pagar?

—Isso depende de você, mademoiselle.

Mademoiselle. O homem que a tinha conduzido até aquela biblioteca aonde a esperava Gabriel diante a mesa de tampa escura também a tinha chamado mademoiselle. Tinha falado com um acento francês inconfundível. O homem que tinha oferecido cento e cinco libras e depois mil se dirigiu a ela igualmente como mademoiselle. Mas tinha um acento inglês inconfundível. Como o homem que estava na frente dela. Invadiu-a uma necessidade compulsiva de saber a nacionalidade do homem que tiraria sua virgindade. Mas teve que freá-la. As prostitutas não interrogavam seus clientes. E por causa de sua atuação aquela noite, tinha abandonado definitivamente as filas das instruídas sem emprego e se transformado em prostituta. Levantou as mãos lentamente para jogar o capuz para trás. O ar pareceu carregar-se de eletricidade. Vitória ficou petrificada, com as mãos suspensas no ar.

O mindinho do homem, que antes repousava sobre o montículo de seda branca, agora se encontrava debaixo dele.

Não o tinha visto mover-se, mas tinha feito.

—Tire a capa.

A ordem foi fria, peremptória.

Levantou a vista. O rosto e os olhos do homem careciam de desejo. Nos últimos seis meses, Vitória tinha aprendido que os homens não tinham que desejar uma mulher para possuí-la. Alguns desfrutavam com o poder e outros, simplesmente, com a dor.

O suor acumulou debaixo de seus seios, deslizando devagar para seu estômago. Perguntou-se com o que desfrutaria daquele homem, com o poder... Ou com a dor? Por que razão um homem como ele, que, sem dúvida, podia conseguir quem quisesse, pagaria duas mil libras pela virgindade de uma mulher? Em seu olhar prateado não pareceu vacilar em nenhum momento, e não afastou seus compridos e claros dedos do tecido de seda. Logo a tocaria com esses dedos, pensou Vitória com uma sensação crescente de irrealidade. Acariciaria seus seios e exploraria sua vagina. Ou talvez não. Talvez a possuísse recostada contra a parede ou inclinada sobre a mesa de mármore sem beijos preliminares. Sem carícias. O único contato seria através de suas genitais. Algo em seu interior gritava constantemente que fugisse. Mas se obrigou a recordar-se que não tinha para onde ir.

Uma brasa da lareira soltou um chiado, sublinhando sua decisão. O que acontecesse essa noite, com aquele homem, devia-se unicamente a sua decisão. Não voltaria atrás. Desabotoou tremulamente os botões de madeira de sua capa de lã, apertando os lábios com determinação, com a bolsa balançando. Depois de ficar livre seu braço esquerdo, trocou a bolsa de mão e deslizou a capa pelo ombro direito. Dobrou cuidadosamente sobre o antebraço esquerdo aquele objeto carcomido pelas traças, como se tivesse algum valor. Não tinha. Nos últimos seis meses tinha vendido tudo que possuía. E mesmo assim não tinha sido suficiente.

O homem de olhos prateados examinou fugazmente a prega de seu vestido de lã marrom. Suas escuras pestanas jogaram sombras ainda mais escuras sobre suas faces. Sabia no que se fixou. A saia se pegava a seus pés. Vitória tinha vendido suas anquinhas fazia dois meses. O homem levantou as pálpebras com lentidão. Seu rosto parecia uma máscara de alabastro. Vitória viu si mesma como ele certamente estaria vendo. Com o rosto gasto de frio, medo e fome, o cabelo castanho escuro opaco por havê-lo lavado unicamente com água gelada. Não era bonita, mas não queria oferecer beleza, e sim sua virgindade. Vitória se endireitou.

—Como se chama mademoiselle? —perguntou o homem com um tom de voz agradável, impessoal, como se acabassem de se conhecer em um baile, e não em um local de má reputação. Pela mente de Vitória desfilaram vários nomes. Castidade. Prudência.

Nenhum era aplicável no seu caso. Uma mulher casta e prudente não estaria em sua situação nesse momento.

—Mary - mentiu.

Sedeu conta de que ele sabia que tinha mentido.

—Deixe sua capa e sua bolsa sobre na cadeira.

Vitória apertou os lábios para afogar uma onda emergente de ira. Aquele homem elegante, rodeado de beleza e luxo, ainda podia desprezá-la. E não queria pensar, nem sequer por um segundo, no inferno que a condenaria seu desprezo. A sua esquerda, o ouro brilhava em uma parede coberta de livros de couro esculpida. A sua direita, chamas azuis e alaranjadas dançavam em uma lareira de mármore negro. Durante um instante cego odiou o homem de cabelo e olhos prateados pela riqueza que possuía e a masculinidade com que tinha nascido. Ela tinha se visto reduzida a aquela situação - a vender sua virgindade— exclusivamente por seu sexo e pela sensação de poder que a dominação de uma mulher conferia aos homens. Vitória deu um passo e colocou a capa de lã puída no respaldo da cadeira de couro azul claro que era seu único meio de amparo. A contra gosto, deixou a bolsa sobre o assento, sentindo-se enormemente ridícula diante sua reticência a desprender-se dele. O único item valioso que ficava era seu hímen. E, muito em breve, também teria que renunciar a ele. A brutalidade outorgou um tom mordaz à voz do homem.

—Afaste-se da cadeira.

Quando levantou os olhos, Vitória se sentiu apanhada por aquele frio olhar prateado.

Seu coração começou a pulsar apressadamente, mas a ira que bulia em seu interior a obrigou a tirar forças de sua fraqueza.

Não se transformaria em uma vítima. Não desse homem. Não do homem que tinha destruído sistematicamente sua vida simplesmente porque queria de graça o que o homem de cabelo prateado estava disposto a comprar. Vitória se afastou da cadeira.

—Fico com o vestido? —perguntou com naturalidade, enquanto os batimentos do coração golpeavam em seus ouvidos, suas têmporas, seu seio—. Ou só levanto a saia e me inclino contra uma parede?

—Levanta a saia com freqüência, mademoiselle? —perguntou o homem cortesmente, olhando-a com olhos penetrantes.

Vitória recuperou a prudência.

—Não sou uma prostituta - replicou com voz controlada.

Mas a quem beneficiava aquela afirmação? Uma sombra atravessou os olhos de Gabriel, transformando seu brilho prateado em cinza.

—Você acaba de leiloar seu corpo, mademoiselle. E asseguro que isso a transforma em prostituta.

—E você comprou meu corpo, senhor - respondeu com mordacidade -no que isso o transforma?

—Em um prostituto, mademoiselle - respondeu com voz cansada, e seu rosto claro transformado em uma bela máscara—. Está úmida além de dura? O assombro deixou Vitória sem palavras durante uns segundos. Certamente tinha entendido mal.

—Desculpe?

—Seus mamilos estão duros, mademoiselle. Simplesmente me perguntava se também estava úmida de desejo. Vitória apertou as mãos contra os lados, sendo agudamente consciente, de repente, do tecido que roçava os mamilos cada vez que seu peito subia e descia com cada respiração. O tapete granada, o alto teto branco e as paredes de cor azul clara esmaltada silenciavam os ruídos dos clientes e as prostitutas que copulavam no piso inferior; mas não obstruíam as imagens que as palavras de Gabriel forçosamente invocavam.

De homens e mulheres.

Abraçando-se.

Beijando-se.

Tocando-se.

Corpos nus retorcendo-se. Dando prazer. Recebendo prazer. Realizando todos os atos sexuais que as mulheres respeitáveis não desejavam realizar. Ou pelo menos isso era o que quis acreditar. Nos últimos seis meses também tinha aprendido outra coisa.

—Meus mamilos estão duros - disse rapidamente—, porque faz frio lá fora.

—Mas aqui não faz frio. O medo, mademoiselle, é um poderoso afrodisíaco. Acaso o tem?

—Sou virgem, senhor. —Endireitou as costas; seus mamilos se cravaram contra seu sutiã de lã—. Nunca antes tive um homem dentro de meu corpo. Sim, estou um pouco atemorizada.

—Quantos anos têm?

O coração de Vitória se paralisou um segundo, perguntando se aparentava mais ou menos idade da que realmente tinha.

Devia mentir ou dizer a verdade? O que procurava um homem como ele em uma mulher?

—Tenho trinta e quatro anos - anunciou por fim com reticência.

—Não é uma moça jovem.

—Tampouco você é um jovem - replicou.

Vitória apertou os lábios, mas era muito tarde. Suas palavras ficaram flutuando como um eco entre os dois.

—Não, não sou um jovem, mademoiselle - declarou ele imperturbável—. Mas sinto uma enorme curiosidade pelo motivo que a levou com a sua idade, a decidir desprender-se de sua virgindade esta noite, na Casa de Gabriel.

Fome. Desespero. Mas um homem como ele não quereria ouvir nada sobre a pobreza. Vitória tentou agir com paquera.

—Talvez porque sabia que você estaria aqui esta noite. É muito bonito, sabe? A primeira vez de uma mulher deveria ser com um homem como você. O complemento não funcionou. Vitória não era uma mulher coquete.

—Eu poderia machucá-la - disse ele com suavidade.

Mas em seu olhar não havia suavidade.

—Sei muito bem o que um homem pode fazer a uma mulher.

—Poderia matá-la, mademoiselle.

O coração de Vitória deu um tombo.

—Você é tão grande, senhor? —perguntou cortesmente.

Querendo fugir. Querendo lutar. Desejando com todas suas forças que a noite terminasse para poder reconstruir sua vida destruída.

—Sim, mademoiselle, sou grande - enfatizou de propósito, olhando-a atentamente—. Meço mais de vinte centímetros. Por que não tirou a capa no salão?

Os troncos ardentes chisparam. Mais de vinte centímetros cravados entre suas coxas. A imagem do membro de um homem - veias escuras protuberantes, glande vermelha inchada— apareceu na mente de Vitória. Foi varrida pela figura de lorde James Ward Hunt, conde de Goulburn, ministro do Interior... Tire a capa, moça, e nos mostre a mercadoria. Os domingos, o ministro do Interior jantava com o pai de Victória; durante a semana injuriava as mulheres desencaminhadas - a “irmandade frágil”— na Câmara dos Lordes em um persistente intento de limpar as ruas londrinas da prostituição. Perguntou se seu pai conhecia as atividades noturnas de seu amigo e, sobre tudo, se as compartilhava. Nada parecia ser como tinha imaginado seis meses antes: nem os homens e mulheres supostamente respeitáveis, nem os habitantes de Londres, e nem sequer ela mesma. Durante toda sua vida se escondeu do desejo; agora não podia fugir dele.

—Não me pareceu que fosse necessário exibir meu corpo em público - respondeu Vitória rigidamente—. O que tem valor é minha virgindade, não minha aparência.

—Teve medo de que os homens não a achassem atraente?

Teve medo de que os homens pudessem reconhecê-la.

—Não estava oferecendo beleza - disse na defensiva, mordendo os lábios imediatamente ao haver se deixado arrastar a dar uma resposta emocional.

As damas não mostravam suas emoções em público. Ninguém imaginava, simplesmente, que as prostitutas, ao igual às instruídas, tivessem-nas, e muito menos que as manifestassem. Como antiga dama, instruída, e agora prostituta praticante, Vitória tinha emoções. Mas não queria as revelar.

—Você não se considera bonita? —perguntou Gabriel sem dar muita importância, olhando-a com seus inteligentes olhos prateados.

—Não, não acredito que seja - replicou Vitória tensamente. Honestamente.

As mulheres dedicavam suas vidas a seus pais, seus maridos, seus filhos. Não havia beleza na subjugação.

—E, entretanto acredita que vale duas mil libras.

—Pedi cento e cinco libras, senhor - replicou—. Foi você quem ofereceu dois mil.

—O dinheiro é importante para você - sondou, cravando uma vez mais nela aqueles olhos insondáveis. Victória apertou os dentes.

—Com o dinheiro compra-se carvão, mantimentos, proteção. Sim, o dinheiro é importante para mim, como para todo mundo.

O dinheiro que ele tinha ganhado no aluguel daquela casa durante uma hora a manteria comodamente durante várias semanas.

—E que faria você por dinheiro exatamente, mademoiselle?

Um calafrio percorreu as costas de Vitória, seguido por uma onda de calor.

Estava perguntando que ato sexual realizaria?

—Farei o que você desejar.

—Me deixaria machucá-la.

Não era uma pergunta. Seu coração parou durante um segundo, e depois se acelerou de forma frenética.

—Preferiria que não o fizesse.

—Quando foi à última vez que comeu?

A ira atravessou Vitória. Estava jogando com ela. Simplesmente porque podia fazê-lo.

—Não estou aqui para falar de meu apetite, senhor.

—Mas tem fome.

Seu estômago rugiu em sinal de assentimento.

—Não - mentiu Vitória—. Não tenho fome.

—Mas sabe o que é sentir fome.

Não ia admitir nenhuma fraqueza diante daquele homem cuja beleza apelava a todos os instintos femininos que ela alguma vez tinha tentado de reprimir.

—Algumas vezes, sim.

Vitória tinha comido o último mendrugo de uma fogaça de um quarto de libra três dias antes.

—Mataria por dinheiro, mademoiselle?

As prostitutas de ruas às vezes roubavam e matavam os clientes que atendiam. Acaso acreditava que era uma prostituta de ruas?

Uma unha irregular afundou em sua palma direita.

—Talvez me prostitua esta noite, senhor, mas não sou uma santa e tampouco uma assassina. Não tem por que me temer.

—Já matou um homem? —insistiu.

—Não - disse ela categoricamente, embora alguma vez tivesse desejado fazê-lo.

Vendo suas escassas economias diminuir dia a dia, teve vontade de fazer mal ao homem que tinha sido responsável por sua situação, da mesma forma que ela tinha sofrido por suas ações.

—Suplicaria mademoiselle?

O frio que percorria as costas de Vitória se instalou na metade de seu peito.

—Não - respondeu decididamente, sustentando o olhar dele—. Não, não suplicarei.

Não imploraria a nenhum homem. Uma acha de lenha ardente desabou no interior da lareira, soltando uma nuvem de faíscas.

—Tire o vestido.

O estômago de Vitória grunhiu, recordando traiçoeiramente sua condição de mortal.

Se ele a possuísse, poderia morrer. Se não o fizesse, morreria. De frio. De fome. Ou talvez fosse assassinada por sua capa e seus sapatos, para que outra pessoa pudesse sobreviver nas ruas de Londres outra noite, outra semana, outro mês. Sentindo-se como se estivesse fora de seu corpo, Vitória levou as mãos ao sutiã, sem deixar de olhar aqueles hipnotizantes olhos prateados. Seus dedos avermelhados e machucados desabotoaram pouco a pouco os botões. Sua clara pele brilhou no espaço cada vez maior que deixava o sutiã de lã marrom. A base de seu pescoço, o vale entre seus seios, a curva de seu abdômen, côncava e não arredondada...

Respirando fundo, Vitória encolheu os ombros. O áspero tecido caiu como uma cascata por suas costas e seus quadris até rodear seus pés. Não havia regata, nem espartilho, nem anáguas atrás dos quais se esconder. Todo isso tinha sido vendido em St. Giles Street. Endireitou-se, mais consciente das largas calcinhas de seda que cobriam seus quadris, das meias de lã que se enrugavam em seus joelhos e das botas curtas que rodeavam seus tornozelos, que de sua própria respiração. Tentou não pensar em nada.

O calor lambia sua pele enquanto a frieza do olhar do homem percorria seu corpo. Seus ombros, seus seios, as calcinhas de seda que cobriam a parte superior de suas coxas. De novo seus ombros, seus seios. Olhou com mais atenção os mamilos. Estavam duros. Por causa do frio, disse ela. E uma vez mais soube que estava mentindo. Vitória queria sentir as mãos de um homem sobre seu corpo. Queria sentir as mãos desse homem sobre seu corpo. Queria acabar de uma vez por todas com a virgindade que era para uma mulher, ao mesmo tempo, a posse mais apreciada e o instrumento de sua queda. Em um impulso, Vitória agarrou o cordão de suas puídas calcinhas de seda. Então elas também caíram, desaparecendo entre seu vestido de lã. Suas nádegas nuas se arrepiaram. Não teve que seguir o olhar do homem para saber em onde parou: o pêlo entre suas coxas era encaracolado, justamente o contrário de seu cabelo. O calor seguiu o rastro de seu olhar. Nenhum homem a tinha visto nua antes.

Sem dúvida aquele homem tinha visto centenas de mulheres nuas. Mulheres de pele suave e de quadris cheios e grátis, mulheres cujas costelas não se sobressaíam, como baleias costuradas dentro de um espartilho... Mulheres que sabiam o que esperar de um homem como aquele. Vitória se inclinou apressadamente para desatar a liga que rodeava sua coxa direita, as costas arqueadas, os seios balançando...

—Levante-se.

Aquela ordem a fez endireitar-se imediatamente. Uma pálida cor tingiu as bochechas do homem, endurecendo a perfeição esculpida de seu rosto. O ar palpitou a seu redor. Ou talvez eram as veias das têmporas de Vitória as que palpitavam.

O homem de olhos e cabelo prateados não parecia tão distante como se esforçava em aparentar. Ela não era tão distante como parecia.

—Saia de entre o montão de roupa.

Com o estômago dando voltas, Vitória se afastou de suas calcinhas de seda e da fortaleza ruída que tinha sido seu vestido de lã. Já não ficava nada sob o que esconder-se. Os cordões gêmeos que mantinham suas meias em seu lugar morderam sua pele enquanto flexionava seus joelhos para avançar. Seus pés se afundaram no pântano em que se transformou o luxuoso tapete granada.

—Solte o cabelo.

A voz do homem continuava sendo brusca, embora as palavras não parecessem tão cortantes como antes naquele inglês com ligeiro acento francês. Os seios de Vitória palpitavam dolorosamente ao ritmo dos batimentos de seu coração. Ocorreu-lhe perguntar se aqueles batimentos do coração eram perceptíveis. Levantando os braços procurou uma presilha. Com aquele simples movimento seus seios se fizeram mais proeminentes e seu ventre se endureceu.

—Vire-se.

Vitória ficou paralisada, com o coração desbocado.

—Como disse?

—Se vire e solte o cabelo me dando as costas.

De costas para ele não poderia se proteger. Mas tampouco tinha podido proteger-se seis meses antes, apanhada dentro de um espartilho e escondendo-se atrás de sua virtude. Vitória se virou. Um divã de couro azul claro se apoiava na parede que havia frente a ela. Em cima dele, um mar azul contrastava com um entardecer cor laranja. Vitória reconheceu vagamente o quadro como pertencente à escola dos impressionistas, criadores de luz dançante e cores brilhantes. Retirou as presilhas com cuidado; atrás dela, o olhar do homem era quase evidente. Sobre suas nádegas. Sobre sua nuca. Seus ombros. De novo sobre suas nádegas.

No quadro, um homem de perfis difusos se inclinava sobre um pequeno barco; remava no tecido sobre uma água ondulante frente ao sol do ocaso. Ninguém saberia nunca seu nome. Talvez nem sequer o tinha, sendo unicamente produto da imaginação do artista. Um homem que não tinha vida fora do quadro. Uma mistura de emoções inexplicáveis alagou a Vitória: humilhação, excitação, ira, temor... O cabelo caiu sobre suas costas como um manto grosso e pesado que escondia sua nudez e o fazia cócegas em suas nádegas. A realidade iminente era já impossível de parar.

—Agora se vire e me olhe.

Com as presilhas cravando em sua palma direita, Vitória deu a volta lentamente. A calidez da sala não se refletia nos olhos prateados que a observavam. Agora sim, pensou. Naquele momento perderia o último vestígio de sua juventude. Os últimos seis meses tinham desembocado naquela situação, e a frenética oferta no andar de abaixo a tinha conduzido até ali. O futuro se abria diante dela. Não sabia o que lhe esperava depois desse momento, dessa noite. Não sabia quem despertaria o dia seguinte: Vitória a mulher ou Vitória a prostituta. O temor que Vitória tinha contido durante o leilão a invadiu como uma onda negra de puro pânico.

Mentiu a si mesma quando disse que uma mulher que vendia seu corpo mantinha o controle. Vitória não era capaz de conservar a calma. Era o homem de olhos prateados quem tinha controle sobre ela. E ele sabia.

—Não sei seu nome - soltou, enquanto seu cabelo parecia haver-se transformado em uma pesada bigorna que arrastava sua cabeça para trás.

—Na verdade não sabe mademoiselle? —perguntou ele, suave e sedutoramente.

Vitória abriu a boca para responder que era impossível que soubesse seu nome. As mulheres como ela não estavam acostumada freqüentar os mesmos círculos que os homens como ele. Mas em lugar disso, surpreendeu-se perguntando:

—Pareço-lhe desejável?

Amanhã se sentiria horrorizada ao recordar sua pergunta. Mas não naquele momento.

Nenhum homem havia dito nunca que era desejável.

Durante dezoito anos se penteou e vestiu com grande simplicidade para evitar que os homens se fixassem nela, por temor de perder seu emprego. Embora o tivesse perdido de qualquer forma. Seu emprego. Sua independência. Sua auto-estima.

Estava oferecendo a aquele homem sua virgindade, sem importar o que pagasse por ela. Precisava ouvir que parecia desejável.

Precisava saber que uma mulher possuía valor por seu sexo, como também por sua virtude. O abajur que havia sobre ela resplandecia refletiam aqueles olhos prateados, como um espelho para as trevas de sua própria alma.

Os batimentos do coração de Vitória contavam os segundos que passavam... Se a desprezasse...

—Sim, parece-me desejável - respondeu por fim.

E mentiu.

A dor se transformou rapidamente em ira.

—Não, não é verdade - o contradisse precipitadamente.

Queria mesmo que o outro homem: um corpo e não uma mulher.

As luzes prateadas que brilhavam dentro de seus olhos paralisaram.

—Como sabe você o que sinto mademoiselle?

O sangue se amontoou nos seios e nas coxas de Vitória, insistindo-a a seguir.

—Se me desejasse senhor, não ficaria aí sentado me olhando fixamente como se estivesse infestada de insetos. Estou tão limpa como você.

Era tão digna como ele.

A quietude que rodeava o homem se estendeu até absorver o próprio ar.

—Por que haveria, eu de pagar por você se não a desejasse? —perguntou com suavidade.

—Você não sabia qual era meu aspecto - assinalou Vitória, tentando conter suas emoções desbocadas sem consegui. Ela não tinha pedido aquilo—. Como pode desejar algo que não viu?

Como podia ela desejar o que nunca tinha conhecido? Entretanto, assim era. Tinha sonhado em segredo que um homem amaria a mulher que havia em seu interior e não ao modelo de virtudes no que ela mesma tinha procurado se transformar. E agora esse sonho se evaporou. Nenhum homem a amaria jamais. Os homens não amavam às prostitutas. O homem sentado diante dela parecia uma estátua, olhando-a sem piscar. Tinha amado alguma vez? Tinha sido amado?

—Por que acredita que fiz uma oferta se não a desejava? —perguntou, e sua voz se transformou em uma terna carícia.

Mas não havia ternura em seus olhos. E Vitória queria que houvesse ternura. Queria que ele sentisse... Não ia ser a mesma depois dessa noite, e precisava de alguém que chorasse a morte da antiga Vitória Childers e desse as boas vindas à nova.

—Alguns homens acreditam que a sífilis se cura deitando-se com uma virgem - afirmou sem rodeios, desejosa de provocar algum tipo de emoção, alguma resposta, naquele homem que nunca em sua vida tinha passado um dia faminto. conseguiu.

Seus olhos prateados se entrecerrarão.

—Não tenho sífilis, mademoiselle.

Vitória não se deixou intimidar pela ameaça evidente em sua voz e seus olhos.

—Tampouco eu - replicou com estridência.

O perigo impregnava o ar.

—O que quer mademoiselle? —perguntou Gabriel com doçura.

Ela queria o mesmo que qualquer mulher.

—Quero que um homem me queira, e não unicamente minha virgindade - respondeu francamente.

—Quer que deseje você e não a sua virgindade? —repetiu ele, como se a idéia de que uma mulher pudesse querer ser desejada por si mesma em vez de por sua inocência jamais tivesse cruzado pela mente. O momento de mentir tinha passado.

—Sim. Quero.

Luz. Sombra. Prateado. Cinza.

Vitória se negou a afastar o olhar dos olhos do homem, que refletiam a luz e a escuridão de forma alternada, prateado e aço cinza.

Essa era a mulher que ela era, e a que sempre tinha sido...

—E como gostaria que demonstrasse meu desejo? —perguntou ele de novo, sustentando o olhar dela, absorvendo-a...

Vitória recordou o homem que tinha demonstrado seu desejo fazendo que a despedissem de seu emprego.

—Você pagou duas mil libras pelo privilégio de tocar meu corpo - disse com o coração na garganta.

—Quer que a toque? —perguntou com aquela enganosa voz suave e sedutora sob a qual o perigo era evidente.

—Não quero ser possuída como uma mulher da rua.

A verdade ressonou asperamente por cima do rugido das chamas e do sangue que se amontoava nos ouvidos de Vitória.

Durante um instante de desconcerto, a dor que ela sentia se viu refletida nos olhos dele. Mas foi um momento fugaz. Imediatamente, a dor desapareceu. Dos olhos dele, mas não dos dela.

—E, entretanto você veio aqui vender sua virgindade. —Não havia emoção alguma em sua voz, nenhuma faísca vital em seus olhos—. Como uma mulher da rua.

Vitória não podia evitar a realidade.

—Sim.

—Como quer ser possuída, mademoiselle? —perguntou o homem bruscamente.

Com paixão. Com ternura. Mas ambos sabiam que ela tinha vendido esse direito. O seio de Vitória tremia com a força dos batimentos de seu coração. Uma presilha de aço cravou na palma de sua mão.

—Com respeito - respondeu com voz crispada—. Quero ser possuída com respeito... Porque sou uma mulher.

Não porque fosse uma virgem. Queria ser respeitada porque era uma mulher. Porque não era pura. Por causa da tensão, Vitória respirava com dificuldade, enquanto o ar se concentrava em seus pulmões.

—“O mundo inteiro é um cenário, e os homens e mulheres não são mais que simples atores” - recitou ele inesperadamente, observando-a. O olhar prateado era mais agudo que a presilha de aço que cravava sua mão—. Gosta de Shakespeare, mademoiselle?

Vitória piscou diante a súbita mudança da conversa. Os batimentos de seu coração acelerado não diminuíram.

—Não me agrada especialmente essa obra em particular do senhor Shakespeare - conseguiu dizer.

—Que obra é?

—Como gosta - disse Vitória—. É a obra de onde extraiu a citação.

O ar vibrou; uma porta que se abria em algum lugar do edifício, talvez. Ou que se fechava.

—Gosta de teatro? —perguntou ele com essa voz tentadoramente sedutora que nenhum homem tinha direito de possuir.

Dançava sobre sua pele como um fogo fátuo. Zombadora. Tentadora. Provocando-a com o que ela não podia ter.

Obrigou-se a concentrar sua atenção na pergunta e não em sua própria necessidade e sua nudez. Vitória só tinha ido ao teatro uma vez.

—Sim - respondeu—. Eu gosto de teatro.

Uma vez mais sentiu uma vibração sutil, um acorde de resposta. Mas a que?

—Aproxime-se, mademoiselle.

A suave ordem não atenuou a pressão que oprimia o peito de Vitória. Agora a possuiria. Completamente vestido, enquanto ela usava umas meias enrugadas e aquela botas gastas. Inclinada contra a parede ou dobrada sobre a mesa. Como uma puta.

Vitória se deu conta do ridículo que devia parecer: uma antiga instruída desprovida de elegância e cujo único valor redentor era seu hímen. Tinha que parecer patética, exigindo respeito quando suas roupas seriam desprezadas até pelo mais miserável dos escravos.

—Minhas botas de cano longo... —começou a dizer.

—Deixe-lhe como estão.

—Isso não é... —A voz de Vitória se foi apagando.

—Digno mademoiselle? —concluiu ele, curvando seus lábios em uma cínica careta.

A imagem de outras noites e outras mulheres estava gravada em seu rosto de forma indelével. Quantas vezes teria passado por este ritual? Perguntou-se ela. A quantas virgens atemorizadas tinha tranqüilizado?

—Ia dizer... Prático - respondeu Vitória, lutando por recuperar um pouco de controle.

Ela não reconhecia aquela mulher que se despiu descaradamente diante um estranho, que mostrava a gritos sua dor e sua necessidade. Aquela mulher atemorizava tanto a Vitória quanto o homem dos olhos prateados.

—Asseguro-lhe, mademoiselle, que suas botas não interferirão - declarou ele criticamente.

Os pés de Vitória se afundavam na amaciado tapete; deu uns passos, com a pélvis para diante. Suas coxas roçaram entre si; a fricção que produziram em seus lábios inferiores inchados brilhou nos olhos dele. Ele conhecia o desejo que ocasionava sua beleza, diziam esses olhos. Conhecia a umidade que se filtrava de sua vagina e o calor que cobria seus mamilos de gotas.

Sabia mais sobre Vitória no breve tempo que tinham compartilhado que qualquer outra pessoa que ela tinha conhecido.

O salto esquerdo dobrou. Endireitou-se como pôde, com seu cabelo oscilando como um pêndulo e o rosto aceso de vergonha.

O homem dos olhos prateados não manifestou nem aprovação nem escárnio, como se fosse mármore convertido em carne. Fez virar a cadeira, que rangeu sob seu peso, seguindo fisicamente seu avanço com expressão inescrutável. Vitória parou, aprisionada entre o corpo dele e a mesa. Atrás dela, os troncos da lareira crepitavam indiferentes a iminente perda da inocência de uma mulher. O homem cheirava a sabão caro; e por debaixo, ela pôde apreciar também o ligeiro cheiro de tabaco e perfume que impregnava o salão do piso inferior. A parte superior de sua cabeça estava ao nível dos seios dela; as pontas das botas de cano longo desgastados da jovem estavam a poucos centímetros das pontas das botas de pele e verniz negro dele. Mas aquela vantagem em altura não era importante. Vitória não tinha dúvida alguma sobre qual dos dois era o mais forte. O mais rápido. O mais perigoso. Olhou fixamente os seios durante longos segundos, observando o mamilo que aparecia entre o longo cabelo que pendurava sobre seu ombro direito. As pestanas do homem eram longas, grosas, negras como a fuligem. Lançavam sombras escuras e irregulares sobre sua impecável pele clara. Embora agora não estivesse tão pálido. Um rosado escuro tingia suas maçãs do rosto ressaltadas. Vitória podia sentir seus mamilos aumentar-se e endurecer-se sob seu olhar. Levantou lentamente as pestanas. Os olhos prateados cravaram nos seus.

—Não quero desejar... —sussurrou ela com ferocidade, sentindo-se excessivamente vulnerável.

Nunca quis desejar... As carícias, os beijos, a paixão de um homem... As pupilas de Gabriel se dilataram, e o prateado se metamorfoseou em negro.

—O desejo forma parte de todos nós, mademoiselle.

A garganta de Vitória secou inexplicavelmente.

—Você não parece... Aflito... Por esses desejos.

Certo pesar atravessou o rosto do homem como uma sombra, que foi absorvida pelo negrume de suas pupilas.

—Alguns não consideram que o desejo seja uma aflição.

Mas ele sim percebeu Vitória de repente. Aquele homem lutava contra suas paixões, como ela o fazia contra as suas. Temerosa de querer, incapaz de parar o medo ou o desejo.

—Essa é a razão de que tenha vindo esta noite à Casa de Gabriel... A procurar uma mulher que não negue seus desejos? —perguntou Vitória vacilante.

Sentiu uma palpitação no mais profundo de sua vagina... Uma, duas, três vezes; uma palpitação equivalente fez que as têmporas dele pulsassem... Uma, duas, três vezes...

—Até quando pensa continuar com este jogo, mademoiselle? —perguntou ele com um tom de voz estranhamente áspero.

—Não é um jogo quando uma mulher entrega sua virgindade a um homem - repôs Vitória com voz incerta.

—E se eu quisesse algo mais que sua virgindade?

Alguns cachos soltos coroavam sua cabeça, criando uma auréola prateada.

Então se deu conta de onde tinha visto aquele homem anteriormente. Estava representado nas vidraças. Tinha o rosto de um anjo.

Um anjo que trazia a salvação em uma mão e a destruição na outra.

As lágrimas se amontoaram em suas pálpebras.

—É o só que tenho.

—Viu homens com mulheres.

As imagens que Vitória tinha visto nos últimos seis meses - de cópulas apressadas e manuseios sem dissimular— se refletiam nos olhos dele.

—Sim - afirmou.

Não havia nada que não tivesse visto nesses últimos seis meses.

—Então sabe que há muitas maneiras em que os homens desejam às mulheres.

Um calafrio percorreu a espinha dorsal de Vitória.

Eram palavras cruas, sem dúvida.

—Sim.

—Alguma vez tomou um homem em sua boca, mademoiselle?

De repente, o fôlego abrasador que queimava a pele se tornou frio como o gelo, contrastando com o calor ardente que descia por seu pescoço e seu seio.

—Não.

Luzes e sombras brilhavam nos olhos do homem.

—Mas faria isso... Para mim?

Vitória lutou contra toda uma vida de inibições.

—Sim.

Só por esta noite...

Só com este homem...

— Fala francês?

—Um petit peu—admitiu. Um pouco.

Suficiente para ensinar gramática a crianças. Mas ele não ia querer saber qual tinha sido sua profissão anterior. Depois daquela noite, não voltariam vê-la.

As espetadas das presilhas de aço em sua palma direita subiam por seu braço.

—Os franceses têm uma expressão, empétarder - disse. Sua pele de mármore reluzia como alabastro iluminado pela luz de uma vela—. A conhece?

—Petarader significa... O tiro sair pela culatra - replicou Vitória vacilante.

Os seios inchados. Os mamilos duros.

—Empétarder é um antônimo - murmurou ele, calibrando sua reação—. Usa-se unicamente em um contexto sexual, e significa receber algo por trás.

Por... Trás.

A respiração de Vitória ficou entupida em sua garganta.

Sua compreensão brilhou nas dilatadas pupilas do homem.

—Você me daria acesso ali, mademoiselle? —perguntou deliberadamente, com provocação—.Você compartilharia seu corpo comigo... Da forma em que eu pedisse?

A resposta instintiva de Vitória foi recuar.

Não.

A escuridão dentro do olhar dele não a deixou.

—Sim. Se isso for o que você quer.

—Mas sentiria você prazer nessa posse?

—Eu... —Não sei. Vitória engoliu seco; seus seios tremeram com o movimento; seios que ele ainda tinha que tocar—. O prazer sempre é preferível à dor.

—Sempre há dor no prazer, mademoiselle - revelou ele com uma voz estranhamente distante—. Os franceses às vezes se referem ao orgasmo como a petite mort, a pequena morte. Você compartilharia sua dor... Assim como seu prazer?

A pequena morte.

Não havia nenhuma pequena morte nas ruas de Londres; todas eram fatais.

—Tentaria - replicou ela.

—Permitiria-me abraçá-la quando nossos corpos estejam escorregadios de suor e o cheiro de nosso sexo impregne nossos pulmões - disse ele. Era uma afirmação, mais que uma pergunta.

Suas palavras a eletrizavam.

—Ninguém nunca me abraçou - confessou Vitória sem que o pedissem. Ninguém salvo um menino...

Mas Vitória não queria pensar nisso, ao menos essa noite.

—Mas me permitiria abraçá-la - insistiu.

Escorregadios de suor. O cheiro de seu sexo impregnando seus pulmões.

Respirou profundamente, cheirando o fresco e limpo aroma masculino exclusivo do homem.

—Sim.

Vitória deixaria que a abraçasse.

—E você me abraçaria.

A desolação de seus olhos lhe oprimiu o peito. Ele não acreditava que uma mulher queria abraçá-lo.

Ou talvez não acreditasse que uma prostituta queria abraçá-lo.

—Sim - assentiu Vitória.

—Porque eu lhe daria duas mil libras - indagou.

—Sim - mentiu Vitória.

Mas as duas mil libras não eram a razão pela qual ela compartilharia seu corpo com ele. Aquele homem a havia tocado com suas palavras, embora ainda não o tivesse feito com seu corpo. Um diminuto sino de alerta soou no interior da cabeça de Vitória, lhe advertindo que era o cúmulo do atrevimento que uma mulher como ela, uma mulher sem experiência, supusesse que um homem como ele desejava relações íntimas.

Ela ignorou aquela advertência. Gabriel usava o cabelo um pouco mais comprido que ditava a moda, de modo que se encrespava sobre seu pescoço. Sentindo-se estranhamento fraca e, entretanto imensamente poderosa em sua feminilidade, estirou uma mão trêmula para tocar um dos cachos prateados. Não houve nenhum sinal de aviso, nenhum sinal de protesto entre os troncos da lareira para indicar que tinha se movido, mas de repente à distância entre os dois se fez maior que os centímetros que separavam seus corpos.

—Vísta-se, mademoiselle - ordenou com indiferença—. E me diga o nome do homem que a contratou.

 

CAPITULO 3

 

As últimas palavras ressoaram nos ouvidos de Vitória sem chegar a compreender seu verdadeiro sentido. Bruscamente tomou consciência da lareira que esquentava os glúteos e os seios e que, apesar disso, notou como se fossem blocos de gelo.

Sentiu-se pesada. Tola. Indesejável. Não entendia o desprezo do homem de cabelo loiro. Não precisava fazê-lo.

O desprezo era desprezo em qualquer idioma, fosse verbal ou físico. Obstinada em sua dor, Vitória deu um passo atrás.

Seu salto esquerdo se dobrou. Agarrou instintivamente o tecido branco. Uma chuva de presilhas pulverizou sobre o mármore negro. Ao cair pesadamente sobre a mesa, viu, entre suas mechas de cabelo escuro, uma pistola. A culatra era de palisandro, e o cano de uma cor negra azulada opaco. A mesma cor que o cabelo de seu pai, precaveu-se atordoada. Mas logo só ficou ao descoberto o metal negro azulado, pois a madeira ficou oculta depois de uns dedos longos e elegantes. Voltando para a realidade, Vitória soltou o guardanapo e se separou da mesa. A luz filtrou nas pupilas do homem até que só ficaram visíveis dois minúsculos pontos negros, enquanto sua íris se transformava em prata fundida. Não havia paixão neles. Nem tampouco compaixão.

Não havia evidência alguma das palavras íntimas que tinha pronunciado. Imediatamente, em sua mente viu a própria imagem de seu cadáver vestido unicamente com as meias enrugadas e as botas de meio cano gastas. Não queria que encontrassem seu corpo só com as meias enrugadas, suas desgastados botas de cano longo e o cabelo enredado em seu torso. As palavras lutavam por sair, mas tratou de contê-las. Havia dito que não imploraria. E não o faria.

—Vai me matar? —perguntou Vitória com voz neutra.

O ranger da madeira foi sua única resposta. O homem de olhos prateados ficou de pé agilmente; ao mesmo tempo, deslizou a pistola debaixo de sua jaqueta, introduzindo-a em uma capa que pendurava do ombro, um relâmpago de couro marrom que desapareceu imediatamente. Dando a volta, rodeou a mesa de tampa de mármore negro e deu uns passos sobre o luxuoso tapete granada, com as abas da jaqueta balançando suavemente. Recolheu a roupa da mulher, deixando transparecer a firmeza de suas nádegas contra suas calças de seda negra. A seda e a lã bateram em seu peito. Vitória apanhou sua roupa com um gesto autômato.

O homem era tão elegante por trás como o era de frente. Mas, naquele momento, o homem a olhava fixamente. Os frios olhos cinza ignoraram sua nudez e seu valor como mulher, virgem ou não.

—Devo matá-la? —perguntou imperturbável.

Parecia como se a mulher tivesse vivido com a ameaça da morte toda sua vida. Vitória tremeu. Suas pernas, suas mãos, seu estômago, pareceram agitar-se involuntariamente. Por nada do mundo lhe daria a satisfação de mostrar seu temor. Levantando os braços, passou com atitude desafiante o puído vestido de lã sobre sua cabeça, acomodando os braços entre as mangas, liberando-se. Inclinando-se para frente, colocou as calcinhas. Pareceu que transcorriam horas enquanto fechava os dois minúsculos botões da cintura de suas calcinhas de seda, e ainda mais ao segura-los botões de madeira que ajustavam o sutiã de seu vestido.

Os olhos de cor cinza prateada aguardavam os dela.

—Sou uma virgem - disse com voz monótona—. E não tenho nenhum... Cafetão.

Seis meses antes não teria sabido o nome pelo que eram conhecidos os homens que viviam dos ganhos do comércio carnal de uma mulher. Um brilho de gelo prateado apareceu nos olhos do homem.

—Sou totalmente consciente de sua condição virginal, mademoiselle.

Vitória tomou ar, mas não pôde silenciar o tamborilar de seu coração. O desejo que fazia apenas uns instantes tinha endurecido os seios e umedecido o interior de suas coxas continuava pulsando e palpitando, como uma besta que ainda não se precaveu de que tinha morrido. Vitória respirou fundo para acalmar-se, embora não pôde fazê-lo.

—Então temo que não entenda o que é o que quer saber.

—Quero saber por que está aqui.

—Pensei que isso era óbvio, sem dúvida - respondeu com o sangue palpitando e o coração pulsando com força.

—Um homem a enviou aqui, mademoiselle. Quero seu nome.

—Nenhum homem me enviou - repetiu ela. Pelo menos não diretamente.

Embora não estaria ali não fosse por um homem.

—Então a enviou uma mulher.

—Tampouco me enviou uma mulher.

A voz do homem se endureceu.

—Quem lhe deu dinheiro para subornar os porteiros?

Não sucumbiria ao pânico.

—Não subornei os porteiros.

—Minha casa não é um local vulgar, mademoiselle. —Seu olhar era implacável—. Como a deixaram entrar meus porteiros, se não os subornou?

Minha casa. Meus porteiros. Uma premonição letal se misturou com o temor, à ira e o desejo agudo de Vitória.

—Você é o proprietário deste local noturno?

Os olhos prateados do homem não revelaram nenhuma fibra de emoção.

—Sou Gabriel.

Gabriel. A Casa de Gabriel. Por todos os Santos. Vitória havia dito que tinha ido à Casa de Gabriel com a esperança de que ele estivesse ali. A primeira vez de uma mulher deveria ser com um homem como você, havia dito. Acaso pensava ele que ela tinha irrompido deliberadamente em sua casa com o fim de captar seu interesse?

—Você é francês? —interrogou impulsivamente Vitória, enquanto se perguntava se os últimos seis meses teriam afetado o cérebro.

O que importava qual era sua nacionalidade? Um francês podia atirar em uma mulher tão facilmente como um inglês.

—Sou francês - respondeu o homem com toda calma—. Pela última vez, mademoiselle, como conseguiu passar sem que a detivessem meus porteiros?

Vitória recordou os dois homens que vigiavam a entrada: um tinha o cabelo dourado e o outro da tonalidade cálida do cedro.

Sua beleza empalidecia em comparação com a de seu patrão.

—Disse-lhes que precisava de um protetor - disse, perguntando se ele acreditaria.

—E a deixaram entrar? —perguntou o homem causticamente, com um brilho ameaçador nos olhos prateados.

Vitória se endireitou.

—Não acostumo a mentir senhor.

—Não?

Não havia dúvida do cinismo que destilava sua voz.

Como se chama, mademoiselle?

Mary ressonou em seus ouvidos.

—Não - repetiu Vitória—. Não costumo mentir.

—Na rua, o preço da virgindade de uma mulher é de cinco libras.

Ela se agarrou a seu orgulho. Era muito melhor que o medo.

—Sou plenamente consciente do que vale a virgindade de uma mulher.

Sua reputação. Sua posição. Sua vida...

—Então por que pediu cento e cinco libras?

Porque não tinha esperado que as dessem.

—Você não acredita que a virgindade de uma mulher vale essa soma, senhor? —desafiou-o.

—Acredito que as mulheres —e os homens— valem muito mais que cento e cinco libras - respondeu enigmaticamente.

Não era a resposta que Vitória tinha esperado.

—Porque você desfruta desflorando mulheres - disse com ironia.

—Não, mademoiselle, porque eu fui vendido por cento cinco libras. Mas isso você já sabia, não?

Em seus ouvidos retumbaram como um eco as palavras.

Você acaba de leiloar seu corpo, mademoiselle. E lhe asseguro que isso a transforma em prostituta.

E você comprou meu corpo, senhor. Isso no que o transforma você?

Em um prostituto... De repente, Vitória recordou onde tinha visto seus olhos. Tinha-os visto enquanto percorria as ruas de Londres em busca de um trabalho respeitável. As pessoas sem lar possuíam esse mesmo olhar plano. Homens, mulheres e meninos cujo alimento era a fome, o frio e a desesperança. Homens, mulheres e meninos que cotidianamente se prostituíam, roubavam e matavam para poder viver enquanto outros morriam a seu redor. O coração golpeava suas costelas.

—Quem é você? —sussurrou.

—Já disse, sou Gabriel.

Proprietário. Prostituto. Mas não por decisão própria. Nenhuma das duas coisas era por decisão própria. A pobreza despojava os homens, e mesmo às mulheres, de sua capacidade para escolher.

—Sinto muito - exclamou Vitória, e imediatamente se arrependeu de havê-lo dito.

Aquele homem que tinha sobrevivido ao impossível não acolheria com agrado a compaixão.

Não o fez. Em silêncio lhe bloqueou a saída, as calças de seda negra roçando o braço de couro azul da cadeira rainha Ana.

—Por que o sente, mademoiselle? —perguntou tão suavemente que ela teve que esforçar-se para entender.

Vitória se negou a retratar-se, nem metafórica nem literalmente.

—Sinto que tenha sido vendido contra sua vontade.

—Mas não foi contra minha vontade, mademoiselle - repôs ele com voz sedosa—. Ou acaso o homem esqueceu dizer isso?

—Fazemos o que podemos para sobreviver. —Vitória ignorou sua referência ao “homem”—. Não é questão de vontade.

Gabriel soprou ligeiramente.

—E você fez o que tinha que fazer esta noite?

Vitória apertou os lábios.

—Sim, fiz o que tinha que fazer esta noite.

—Aceitou vir a minha casa e leiloar sua virgindade.

A ira a invadiu. Tratou de dominá-la.

—Não aceitei, mas sim, vim a sua casa esta noite com esse fim.

—Então é uma cúmplice involuntária - a aguilhoou.

—Não sou uma cúmplice.

—Mas está aqui por um homem.

Sim. Vitória endireitou suas costas, e o tecido roçou seus mamilos ainda tenros.

—Já disse, não conheço esse homem a quem você se refere.

—Então quem a enviou a minha casa, mademoiselle?

—Uma prosti... —Não, Vitória não chamaria prostituta à mulher que se transformou em sua amiga; as mulheres —e os homens— faziam o que podiam para sobreviver—. Uma pessoa me disse que sua clientela seria mais... Generosa que as da rua.

—E essa pessoa... —perguntou ele, imitando deliberadamente sua vacilação—, é um homem ou uma mulher?

Vitória quis protestar dizendo que aquilo não era assunto dele; mas a razão a advertiu que não o fizesse.

Os músculos de seus ombros se contraíram.

Não gostava que a manipulassem.

—Uma mulher - disse Vitória de maneira cortante.

—Essa mulher disse que devia abrir o leilão com cento e cinco libras?

Vitória se negou a desviar o olhar da intensidade dos olhos dele.

—Lamento que considere que zombei de você, começando o leilão com cento e cinco libras. —Vitória forçou a desculpa—. Mas lhe asseguro que nem minha amiga nem eu conhecíamos suas circunstâncias; de fato, eu nunca tinha ouvido falar de você até esta noite.

O homem de cabelo e olhos prateados não se deixou impressionar por suas desculpas ou por sua ignorância.

—Responda a minha pergunta, mademoiselle.

—Sim - replicou bruscamente Vitória—, foi minha amiga quem sugeriu que começasse com essa soma.

Os olhos do homem se entrecerraram.

—Que estatura tem sua amiga?

—É mais baixa que eu. —Vitória se endireitou para mostrar seu metro setenta de altura—. E agora se me desculpar, senhor, partirei.

O homem não lhe deixou passar.

—Não pode partir mademoiselle.

O coração de Vitória deixou de pulsar um instante.

—Desculpe?

Aquela expressão cortês soou discordante. Já tinha pedido várias vezes que a desculpasse.

—Você fala bem - manifestou ele, mudando de tema, com a mão estirada e um de seus dedos apoiado sobre o braço de couro claro, que tinha uma ruga semelhante a uma pequena ilha no meio.

A Vitória ocorreu que se parecia com a vulva de uma mulher, os lábios abertos, a vagina em uma depressão mais escura...

Ergueu a cabeça.

—Uma professora deve falar corretamente - afirmou Vitória com arrogância. E se deu conta de que acabava de divulgar involuntariamente sua ocupação anterior.

Mordeu o lábio inferior. O brilho prateado nos olhos do homem revelou que se percebeu aquele pequeno deslize.

—Quanto tempo faz que é professora? —perguntou despreocupadamente.

Vitória não se deixou enganar por sua súbita informalidade.

O homem que se fazia chamar Gabriel era como um gato. Um formoso, letal e grande felino que jogava com sua presa um instante e em um descuido lhe rasgava a garganta.

Levantou o queixo com gesto de desafio.

—Acredito que isso não é da sua conta, senhor.

—Mas é sim mademoiselle. —Sua voz era um suave ronronar—. A comprei por duas mil libras.

O coração de Vitória parou momentaneamente.

—Vendi a você minha virgindade - protestou com energia—. Não vendi eu mesma.

E ele não queria sua virgindade. E muito menos à mulher que a possuía.

As pestanas escuras velaram os olhos do homem. Vitória seguiu instintivamente seu olhar.

Ele acariciou suavemente a ruga no couro azul.

—Quanto tempo está sem trabalho?

Pela mente de Vitória cruzou como um relâmpago a imagem de seu corpo nu, com as pernas abertas para facilitar o acesso. Em seguida imaginou um dedo comprido e magro acariciando-a.

Afastou o olhar daquele dedo acariciador. O sangue quente alagou suas bochechas.

—Seis meses.

Gabriel voltou a olhá-la fixamente.

—Quanto tempo faz que é professora? —repetiu.

Vitória compreendeu que repetiria a pergunta até obter uma resposta.

—Dezoito anos - quase cuspiu.

—Fez-se professora aos dezesseis anos?

Vitória baixou o olhar, posando-a sobre a mão do homem, longe das lembranças que tinham determinado sua profissão.

Um dedo comprido empurrou suavemente a escura depressão do couro.

—Sim. —Uma aguda sensação a apunhalou entre as coxas—. Tornei-me professora aos dezesseis anos.

—E depois de dezoito anos acaba de dar-se conta de que a prostituição é mais rentável que a profissão de professora? —perguntou Gabriel com ar divertido.

Vitória o olhou. Não havia nada de divertido no olhar prateado que se encontrou com o seu. Quis dar uma resposta afirmativa e terminante, mas em vez disso, limitou-se a murmurar:

—Despediram-me do trabalho.

Não quis acrescentar que tinha sido despedida sem referências. Disso ele já tinha dado conta. A sociedade não confiava seus filhos a professoras despedidas sem referências, e ninguém contratava professoras sem experiência para desempenhar trabalhos de baixa categoria quando havia grande número de camponeses que chegavam a Londres todos os dias, tentando sair da miséria.

Muitas mulheres compartilhavam a situação de Vitória, mas isso não a fazia mais fácil de agüentar.

—Você considera sua amiga, à prostituta que a envio aqui. —A sombra se escondia em seus olhos, uma confusa lembrança, talvez, de seu próprio passado.

Vitória não hesitou.

—Sim.

—Você a protegeria de mim.

Dolly tinha impedido que um homem a violasse quando ninguém tinha movido um dedo. Havia-a, ajudado e tinha feito confidências, a aconselhando quando mais o necessitava.

Transformou-se em uma amiga quando Vitória necessitou desesperadamente a amizade.

—Sim. —Vitória endireitou os ombros—. A protegeria se pudesse.

Sem prévio aviso, Gabriel deslizou pelo braço acolchoado do assento o comprido dedo branco com o que tinha estado acariciando ociosamente a ruga no couro azul, agarrando os cordões de lã de sua bolsa.

Durante um segundo, Vitória olhou fixamente a beleza impoluta de sua mão e a bolsa disforme e carente de elegância que ele tirou do assento. O efeito de sua ação a surpreendeu. Tinha sua bolsa. Tudo o que Vitória possuía estava ali. Não tinha nenhum direito. Jogou-se para ele para reclamar sua propriedade. Sua vida. Sua dignidade. Introduzindo a mão entre a borda de madeira da abertura, o homem tirou um pedacinho de papel marrom muito bem dobrado.

—O que é isto?

Vitória parou, recordando a pistola que o homem levava baixo a jaqueta.

—É um... Um método para evitar a concepção. Por favor, me devolva minha bolsa.

Mas Gabriel não o soltou.

—Sua amiga... Deu-lhe este anticoncepcional?

Havia homens que se consideravam com pleno direito de deixar grávidas indiscriminadamente às mulheres só porque eles eram homens e as mulheres eram seres inferiores.

Seria ele um deles?

—Sim, minha amiga me deu isso. —Estirou a mão de forma premente—. Por favor, me devolva minha bolsa.

Enrolando os dois cordões de lã no braço para evitar que ela pegasse a bolsa, o homem tirou o pacote, fazendo ranger o papel enquanto suas escuras pestanas escureciam suas bochechas. Duas pastilhas brancas caíram sobre a palma de sua mão direita.

Levantou lentamente as pestanas escuras.

—O que disse sua amiga que era isto?

O silêncio de Vitória foi mais eloqüente que qualquer palavra.

—É sublimado corrosivo, mademoiselle. —Seus olhos prateados a olhavam implacáveis—. Sua amiga disse como administrar estes comprimidos?

—Você parece muito bem informado sobre o produto - replicou Vitória, deixando cair à mão enquanto seus dedos se fechavam cravando as unhas na pele—. Por que não me diz isso?

—Cada pastilha contém 8,75 grãos de sublimado corrosivo. Uma só provoca convulsões violentas, freqüentemente seguidas pela morte. Dois tabletes inseridos em sua vagina, mademoiselle, com toda segurança a matariam.

O rosto de Vitória adquiriu uma palidez mortal. Dolly havia dito que colocasse ambas as pastilhas em seu corpo com o fim de impedir a concepção. Não havia dito nada sobre seus efeitos. Não havia dito que poderiam lhe causar mal, e muito menos que a matariam.

—Está mentindo - replicou Vitória com pouca convicção.

O homem de olhos e cabelo prateados não fez nenhum comentário.

Não precisava fazê-lo.

Colocou os dois tabletes no papel marrom, e procedeu a dobrá-lo de novo.

—Ela disse que muitas mulheres usam este método - insistiu Vitória.

—Sem dúvida. Entretanto, as mulheres que o usam uma vez, evidentemente, não o voltam a fazer. E se uma mulher chega a sobreviver a seu uso, certamente não o recomendará para fins anticoncepcionais. —Retorceu os extremos do papel e elevou lentamente suas pestanas, como se quisesse recalcar a verdade—. Sua amiga é jovem e sem experiência, mademoiselle?

Dolly era uma prostituta de três a quarto que se vendeu desde os dez anos. Uma mulher de cabelo castanho já grisalho a que lhe faltavam os dentes da frente. Tinha animado a Vitória a entrar na Casa de Gabriel. Havia dito que ninguém se fixaria nela em meio da multidão. E tinha acrescentado que só permitiam o acesso a homens ricos e poderosos, que pagariam muito mais por sua virgindade que os clientes de qualquer bordel ou da rua. E todo o tempo tinha planejado a morte de sua suposta amiga, esperando, sem dúvida, apoderar do dinheiro de Vitória enquanto seu corpo jazia inerte em um beco. Tudo em nome da sobrevivência.

Deu-lhe a sensação de que a elegante estadia se estreitava, o abajur se tornou muito brilhante, o fogo crepitante despedia um calor excessivo e seu cabelo, solto sobre as costas, era muito pesado. Vitória precisava afastar-se daqueles penetrantes olhos prateados.

Caminhou com receio em volta do homem e pegou sua capa do respaldo da cadeira de couro azul claro. Não precisava de sua bolsa; o homem podia ficar com ela, e também com o veneno, sua escova de dente, seu pente. As presilhas. Ele não a deteve.

A porta era feita de uma madeira brilhante como um espelho de um tom que oscilava entre o marrom e o amarelo. Vitória identificou a madeira de lei, originária da Índia e SriLanka. Não estava fechada com chave. Não era necessário.

O homem que a tinha conduzido até aquele estúdio esperava do outro lado. Vitória teve a certeza de que também ele tinha uma pistola debaixo de sua jaqueta negra.

—Nos traga algo de comer, Gastón. —A voz já tão familiar deslizou por suas costas, mais suave que o cetim—. E um bule de chá. Mademoiselle ficará conosco.

—Muito bem, monsieur.

Gastón fechou suavemente a porta de madeira no nariz de Vitória.

Ela deu meia volta. Seu vestido se enredou nos tornozelos, seu cabelo balançou ao compasso de seu giro. Sentia o coração apanhado na garganta.

—Não pode me reter aqui contra minha vontade.

—Au contraire. —Gabriel se deteve ante ela, e não ante a mesa—. Se sua vida não fosse dispensável, mademoiselle, não estaria aqui.

O cruel desprezo por sua vida lhe cortou momentaneamente a respiração.

—Você não me deseja - declarou Vitória impulsivamente, agarrando sua capa de lã como se fosse um salva-vidas.

—Surpreenderia-lhe saber o que desejo - respondeu ele enigmaticamente.

Observando. Esperando. Como se ela fosse perigosa e não ele.

—Você nunca teve intenções de se deitar comigo - o acusou temerariamente Vitória.

—Não - admitiu. Luzes e sombras brilharam em seus olhos prateados—. Não tinha intenções de me deitar com você.

—Pediu-me que me despisse - disse ela. Não precisou acrescentar, sabendo que não me possuiria.

Tinha visto sua lastimosa liga, suas meias enrugadas, suas calcinhas puídas e suas botas de cano longo desgastados.

Seus olhos prateados continuavam sendo frios. Impenetráveis.

—por quê? —O grito de Vitória ricocheteou contra o chão, alcançando as paredes pintadas de azul pálido—. Por que mentiu?

Por que a tinha seduzido com imagens de corpos entrelaçados brilhantes de suor depois do prazer compartilhado?

Por que havia dito que a achava desejável?

—Precisava saber - respondeu ele simplesmente.

Antes, ela tinha confundido as sombras que sulcavam seus olhos com pesar; desta vez não cometeu esse engano.

—O que precisava saber? Até onde chegaria uma virgem para conseguir dinheiro? —Vitória se esforçou por conter a estridência que o temor tinha em sua voz—. Você vendeu seu corpo. Asseguro-lhe, senhor, que teria ido muito mais longe que ficar parada frente a você com meus seios contra seu rosto.

Fechou bruscamente a boca, deixando atrás de si o eco de suas palavras. As paredes azuis claro pareceram estreitar-se, até que as sentiu contra suas costas, seu peito, seus flancos. Teria o tomado em sua boca. Teria o tomado em todos e cada um de seus orifícios. E ele sabia. Tinha ficado perfeitamente claro que sua virgindade não apresentava valor algum para ele. Mas era o único que ficava. E isso ele também sabia.

—Precisava saber se usava uma arma, mademoiselle - disse.

—Você me pediu que tirasse às calcinhas - tomou ar—, para ver se escondia uma arma nelas?

—Sim.

—Onde acreditava que podia escondê-la, dentro de minha vagina?

—É possível.

Vitória o olhou fixamente.

—As mulheres são certamente um sexo perigoso. E que afortunadas. —A borbulha de risada apanhada entre seu peito se abriu passo por sua garganta. Recordou o irmão maior de um menino que teve a seu cargo, que devorava novelas sobre o Oeste americano—. Não precisamos de uma cartucheira, temos nossas vaginas prontas para guardar uma arma.

A risada que subia por sua garganta não encontrou reflexo nos olhos dele.

—Os homens também têm cavidades, mademoiselle - disse ele com tom neutro.

A borbulha de risada estalou.

Vitória recordou... Empétarder... Receber algo por atrás.

A humilhação fez arder suas bochechas.

—Não acredito que os orifícios de uma mulher, ou de um homem, estão desenhados para acomodar pistolas, senhor.

—As facas são igualmente letais, mademoiselle. E as pistolas têm tamanhos e desenhos variados.

Sim, estava na moda que as mulheres usassem colares ou inclusive brincos com pistolas em miniatura providas de peças móveis.

—Considera necessário revistar todas as mulheres que compra? —perguntou com voz contida.

—Não compro mulheres para sexo.

Comprava mulheres para matá-las?

—Então não sei por que comprou a mim.

—Você tem algo que eu quero.

—Disse que não queria minha virgindade.

—Quero o nome do homem —ou da mulher— que a enviou.

A irritação fez que o temor cedesse.

—Já lhe disse que ninguém tinha enviado à Casa de Gabriel.

Vitória tinha escolhido livremente vender-se.

—Então me diga o nome da mulher que lhe deu o sublimado corrosivo.

Sua sedosa e culta voz adquiriu o tom firme do aço.

—O que acontecerá se o fizer?

—Procurarei e encontrarei a essa pessoa.

—E se não o fizer?

—Essa pessoa morrerá.

Não cederia à histeria.

—E quando encontrar a essa pessoa? O que lhe fará?

—O que for necessário para obter a informação que preciso.

A machucaria.

O... Vitória abriu desmesuradamente os olhos ao compreender de repente.

—Você acredita que minha... Amiga —vacilou ante a palavra— me enviou deliberadamente aqui.

O homem não respondeu. Não precisava fazê-lo.

—Você acredita que eu vim aqui para lhe fazer mal - continuou Vitória com incredulidade. No olhar prateado do homem não houve nem um sinal de vacilação—. Recordo-lhe, senhor, que foi você quem deu os lances por mim. Por que o fez se acreditava que podia lhe fazer mal?

—Se não tivesse dado os lances por você, mademoiselle, teria sofrido uma morte muito pior que a causada pelo sublimado corrosivo.

Vitória recordou o homem que tinha aceitado seu preço de saída. Darei-lhe cento e cinco libras, mademoiselle, por sua... Inocência. Um calafrio lhe percorreu a espinha dorsal. Tinha tentado comprar sua virgindade ou sua vida? Tragou com decisão o pânico crescente que borbulhava em seu interior como água de seltz.

—E agora?

—Ainda pode morrer.

—Você ameaçou atirar, senhor. —Apertou compulsivamente a capa—. Arriscarei-me com esse outro homem.

A negativa de Gabriel se lia claramente em seus olhos.

Vitória não conseguia introduzir oxigênio suficiente em seus pulmões.

—Por favor, me deixe partir.

—Está implorando, mademoiselle?

Ela recuou.

—Não.

Nunca. O homem entrecerrou as pálpebras; sombras entrecortadas obscureciam sua face suave como o mármore. Abrindo de par em par a bolsa, procurou no interior. Vitória sentiu que fazia um nó no estômago. Sabia o que ia encontrar.

—Me devolva minha bolsa.

Ele extraiu um pacote de cartas. Cada uma das palavras que continham estava impressa na mente de Vitória. Um estremecimento percorreu seu corpo. O homem a olhou fixamente através de suas pestanas escuras.

—Tem você um admirador, mademoiselle.

Nenhum admirador tinha escrito aquelas cartas. O horror que Vitória sentia diante a possibilidade de que Gabriel as lesse era maior que seu temor. Cortou a distância entre os dois e estirou a mão.

—Não lhe dou permissão para ler essas cartas, senhor. Por favor, devolva-me São particulares.

—Não pedi permissão... —Abrindo bem as pálpebras, olhou-a fixamente e pronunciou seu nome com firmeza—. Vitória.

Era dez centímetros mais alto que ela. Vitória nunca havia sentido tão pequena e impotente.

—Me deixe partir - repetiu.

—Não posso fazer isso.

O desespero a insistia a atuar.

—Você conheceu a fome - disse sem pensar.

—Há muitas espécies de fome, mademoiselle.

Fome do corpo, da alma. Fome da carne. Vitória evitou esta última. Não deve ler essas cartas.     

—Viveu nas ruas. 

—Nasci nos baixos recursos de Calais.

Calais França, ficava do outro lado do canal. Tinha vendido seu corpo na França ou na Inglaterra? Perguntou-se. E então, eram as ruas da França mais seguras que as da Inglaterra?

—Não sei que crime você acha que cometi, senhor —declarou com sua voz de professora razoável—, mas as ruas de Londres me castigarão com muita mais inclemência que você. O peço uma vez mais: por favor, deixe ir.

O homem inclinou a cabeça. A frieza em seus olhos lhe cortou a respiração.

—Você teme que o que possa encontrar nas cartas.

Ela temia o que ela tinha encontrado nas cartas.

—Você não me deseja - repetiu Vitória.

—Claro que sim, mademoiselle - respondeu ele, mas seus olhos prateados estavam desprovidos de desejo.

Não, não a desejava, mas sabia que ela desejava a ele. Perguntou-se fugazmente se tinha notado quando acariciou a ruga no couro que ela sentiu sua carícia dentro de seu próprio corpo. Imediatamente descartou a idéia. Certamente que o tinha sabido. Cada movimento, cada palavra que pronunciava, tinha sido calculado.

—Se você tivesse me desejado senhor, já haveria me possuído.

Uma quietude familiar se assentou sobre Gabriel.

O rosto de Vitória se refletia em suas pupilas, duas pálidas órbitas rodeadas de negrume.

—Não posso possuí-la, mademoiselle - exclamou finalmente.

—Por quê?

Aquela pergunta ricocheteou contra as paredes de cor azul pálida.

—Porque se o fizesse você morreria.

Morreria. Sofreu um estremecimento para ouvir aquela palavra.

—Posso morrer se ficar com você, mas também posso fazê-lo se vou. —Não era Vitória quem falava, não podia ser, e, entretanto era sua voz a que retumbava em seus ouvidos—. Parece-me, senhor, que se vou morrer de qualquer forma, preferiria que não fosse sendo virgem.

Suas descaradas palavras ficaram suspensas sobre eles. Os olhos do homem ardiam. Como podia arder o gelo prateado? Perguntou Vitória nessa parte de seu cérebro que ainda era capaz de perguntar algo.

—Não deixarei que morra - assegurou ele.

—Mas disse que isso não podia garantir - replicou Vitória.

O homem não respondeu.

—Se me obrigar a ficar senhor, seduzirei-o - afirmou Vitória, fanfarronando, apesar de que não ter nem idéia de como seduzir um homem.

—Então pagará as conseqüências, mademoiselle. —Suas pupilas se dilataram até absorver o prateado de sua íris—. E também o farei eu.

A escuridão se fechou em torno da mulher.

—Por que você acha que eu lhe faria mal? —perguntou Vitória sem poder esconder o desespero em sua voz.  

—Por que você teme que eu leia suas cartas? —perguntou ele a sua vez.

—Talvez, senhor, porque ambos compartilhamos o mesmo temor.

Os olhos prateados brilharam de novo.

—O que você acha que eu temo mademoiselle? —indagou cortesmente.

A morte espreitava em seus olhos, em sua voz. Vitória não tinha matado, mas ele sim. Ela não duvidou nem por um segundo que o faria de novo.

—Acredito que você teme ser tocado pelo sexo oposto, senhor. —Vitória apertou a capa, respirando neblina, respirando umidade, respirando o ácido aroma de seu temor.

—Você acredita que eu temo ser tocado pelo sexo oposto - repetiu ele suavemente, saboreando cada palavra—. Você acredita que me dá medo ser tocado por mulheres. Você teme que a toquem as mulheres, mademoiselle?

Toquem as mulheres... Da mesma maneira que ele tinha sido tocado pelos homens?

Vitória engoliu seco.

—Não, não temo que me toquem as mulheres.

—Então o que teme mademoiselle, para que compartilhemos o mesmo medo?

—Tenho medo do toque de um homem - respondeu Vitória com esforço. A luz que bordeava as pupilas do homem brilhou mais que o abajur do teto, um pequeno e perigoso círculo de prata pura—. Dá-me medo que eu goste de ser tocada por um homem - prosseguiu ela com decisão.

Vitória ouvia os batimentos de seu próprio coração desbocado, palpitando dentro de seus ouvidos, ao admitir a verdade que tinha oculto durante tanto tempo, uma verdade que as cartas a tinham obrigado a reconhecer.

—Temo ser uma puta não só de fato, mas também no mais profundo de meu ser.

 

CAPITULO 4

 

O som da voz de Vitória se interpôs durante um instante entre os dois como um eco. O homem de olhos e cabelo prateados parecia fascinado por suas palavras: medo de ser tocada... Medo que eu goste de ser tocada... Medo de ser uma puta não só de fato, mas também no mais profundo de meu ser. Ou talvez Vitória estava fascinada pelo fato de ter pronunciado semelhantes palavras. Não sentiu a onda de vergonha que devia ter provocado sua confissão. Inclinou o queixo, desafiando a ele, que tinha vendido seu corpo igual a ela, a julgá-la.

—As cartas que há em minha bolsa me fizeram compreender minha verdadeira natureza. Sim estava úmida de desejo. Porque sim queria que você, um estranho me tocasse. —A dor rasgou seu peito—. Não é a venda do próprio corpo o que a transforma em uma prostituta, ou sim? —continuou com ar despreocupado, embora seu tom de voz não fosse precisamente indiferente—. Do roçar sexual deriva o próprio prazer. Eu desejava suas carícias; portanto, sou uma prostituta. Não acreditei que ia me sentir comovida desta maneira esta noite. —Vitória piscou para afastar uma lágrima fugaz—. Mas sim estou. Isso garante minha morte?

Os segundos passavam lentamente e pareceram uma eternidade. Só os olhos de Gabriel estavam vivos, como faróis de prata brilhando de desejo.

Tocar... Ser tocado. Abraçar... Ser abraçado. Uma lenha desabou, e com ele a realidade irrompeu de repente.

Ele não queria tocar ou ser tocado por ela. E certamente não queria que ela o abraçasse.

—Não posso deixá-la ir, mademoiselle.

A angústia deixou transparecia em sua voz, em seu rosto. E em seguida desapareceu. Seu desejo. Seu sofrimento.

O desejo de tocar. De abraçar. Uma vez mais o homem que estava diante ela se transformou em uma estátua viva, que respirava, sem que sua beleza se visse alterada pelas emoções.

—Gabriel era o mensageiro de Deus - disse Vitória impulsivamente.

—Sim. E Michael seu eleito - respondeu ele enquanto suas pupilas voltavam a diminuir-se.

Vitória se endireitou.

—O que pensa fazer comigo?

—Vou tentar salvá-la.

Mas ainda poderia morrer.

—Duvido que a mulher que me deu as... Pastilhas anticoncepcionais constitua uma ameaça tão grande - replicou Vitória desafiante—. Suponho que só queria era me roubar. Já não ganharei dinheiro suficiente para que ela se dê ao trabalho.

E tampouco ganharia dinheiro suficiente para escapar. Da fome. Do frio. Do homem que tinha escrito as cartas.

—Não, ela não voltará a incomodar - admitiu ele com um tom de voz neutro.

Vitória suspirou com alívio.

—Como sabe...

—Não a voltará a incomodar, mademoiselle, porque está morta. Ou logo estará.

Dolly tinha prometido acompanhar à Casa de Gabriel; Vitória tinha esperado até que o Big Ben deu as doze para as quarto.

Não tinha se apresentado. A náusea fechou a garganta de Vitória.

—Como sabe isso? —conseguiu dizer.

O homem dos olhos prateados se virou um pouco; piscou umas vezes e depois olhou a Vitória, mostrando a parte de seda branca com o que antes tinha oculto sua pistola.

—Sei por isso, mademoiselle.

Vitória estirou instintivamente a mão; o tecido branco caiu sobre sua palma. Examinou perplexa o quadrado de seda, certamente um guardanapo.

—vira-o.

Do outro lado da seda branca estava manchado de tinta negra. Lentamente, as manchas negras tomaram forma.

Eram letras. Letras de risco forte, negras, masculinas. Havia uma nota escrita sobre o tecido. Vitória leu a curta missiva. Uma, dois, três vezes. Em cada ocasião, parou na última frase:

“preparou um delicioso cenário, mon ange, e agora te trago uma mulher. Uma atriz protagonista, se você quiser. Laissez o jeu commencer”.

Que comece o jogo...

Com uma calma que estava longe de sentir, Vitória dobrou cuidadosamente o guardanapo e fez gesto de devolver para Gabriel.

Gabriel não a aceitou. Ela deixou cair sua mão torpemente, enrugando o tecido entre seus dedos apertados.

—Mi... A mulher que me deu as pastilhas não escreveu isto.

Embora Dolly soubesse escrever, e com uma letra tão forte e masculina, não teria podido citar Shakespeare.

—Não, não o fez.

O mundo inteiro é um cenário, e os homens e mulheres não são mais que simples atores. Vitória tinha identificado a entrevista da nota, tanto pelo autor como por sua obra. Mas ele não acreditaria...?

—Sou professora - declarou à defensiva.

—Sim.

Sua resposta não era nada prometedora.

—Meu posto exige certo conhecimento das obras de William Shakespeare. —Ele observou sua vacilação em silencio—. Eu não... Conheço homem que escreveu a nota. —Vitória passou a língua pelos lábios—. O que significa “preparou um delicioso cenário”? Para quem preparou o cenário?

—Para um homem, mademoiselle. O homem que escreveu esta nota.

—E você acredita que esse homem... Que estou aqui por ele.

—Sim.

—Isso é absurdo. Como poderia ele saber...? A respiração entupiu na garganta. Seis meses antes, o marido de sua patroa tinha acusado a Vitória de paquerar com ele. Vitória não o tinha feito.

A sua patroa não tinha interessado a verdade, e a tinha despedido sem referência alguma. Três meses depois tinham começado a chegar às cartas, missivas matutinas deixadas por debaixo da porta de seu quarto de aluguel. Nelas diziam que alguém a vigiava. Que alguém a estava esperando. E descreviam com todo detalhe os prazeres que logo experimentaria. Dos lábios de um homem. Das mãos de um homem. De seu...

—Não é possível - disse Vitória bruscamente.

Ela sabia que as cartas eram escritas pelo marido de sua antiga patroa. Sua letra não coincidia com a do guardanapo de seda.

A diferença do homem que tinha escrito naquela parte de tecido, o marido de sua antiga patroa não freqüentava lugares como a Casa de Gabriel. Se o fizesse, teria pagado por uma mulher em vez de acabar com a reputação e a carreira de Vitória.

Só para poder possuir sua virgindade.

—Quero minha bolsa já, por favor.

—Logo, mademoiselle.

Depois de ler as cartas.    

—Asseguro-lhe, senhor, que não possuo nenhuma carta que coincida com a letra deste guardanapo.

—Então não tem nada que temer.

A luz elétrica queimava sua pele.

—Não o conhecia você antes de esta noite - raciocinou Vitória.

—Isso disse isso.

—Não tenho intenção alguma de lhe fazer mal.

—Nem eu a você.

—Com que objetivo me enviaria esse homem? —estalou Vitória.

Não conhecia nem o homem que respondia pelo nome de Gabriel nem o que supostamente queria matá-la.

Aquilo parecia uma loucura. Baixando as pestanas, Gabriel colocou novamente as cartas na bolsa. Lentamente, elevou os olhos.

A expressão no fundo de seu olhar prateado cortou sua respiração. Pôde ver seu temor.

Sim, ele tinha medo...

—Não sei mademoiselle. —Em um instante o temor desapareceu de seu olhar. Deixou a bolsa de novo na cadeira—. Sua bandeja logo chegará. Quer refrescar-se um pouco?

Não.

—Sim, obrigado.

Talvez houvesse uma janela no banheiro pela qual pudesse escapar.

Em silêncio, o homem deu meia volta. Vitória resistiu o impulso de reclamar sua bolsa. Se a pegasse, ele a tiraria.

Não sabia o que faria se ele recorresse à força. Gritaria desmaiaria? Lutaria. O que Vitória tinha pensado que era um armário de madeira era uma porta, que se abria a uma espantosa escuridão. Seu coração começou a pulsar desbocado. Um tênue resplendor atravessou um chão de madeira nu, o brilho de uma cama de bronze. O aroma de polidor de cera dos móveis e lençóis limpos a envolveu. Espremendo o guardanapo de seda na mão direita e sua capa na esquerda, Vitória o seguiu para aquelas trevas perfumadas. As pisadas de Gabriel eram suaves e discretas; as de Vitória ruidosas, invasoras. Não havia janelas no quarto.

O ligeiro som de uma porta que se abria pareceu ensurdecedor em meio daquele opressivo silêncio onde só podia ouvir os batimentos de seu coração. Gabriel deslizou de novo para as sombras, com o cabelo prateado brilhando.

—Pode reunir-se comigo quando terminar, mademoiselle.

Vitória avançou resolutamente. A porta se fechou, deixando-a só naquele cômodo . Reparou imediatamente na ampla banheira de cobre revestida de madeira, com um biombo também de cobre rodeando três de seus lados. Vitória tinha visto uma mistura de banheira e ducha exibida no Palácio de Cristal - feita de mogno ou nogueira em vez de teca—, mas nunca antes tinha estado em uma casa que tivesse um artefato tão luxuoso. O biombo, de mais de dois metros de altura, era impressionante. No outro extremo, uma cisterna de teca pendia sobre um vaso de porcelana de cor marfim. Uma caixa de lenços de papel repousava sobre o estreito armário que ocultava os tubos que conectavam a cisterna e o vaso. Uma das regras da etiqueta dizia que os lenços higiênicos não deviam estar nunca à vista, pois do contrário corria o risco de que alguém recordasse seu uso. Evidentemente, aquele homem que se chamava Gabriel não reparava em sutilezas corteses. Era difícil recordar a época em que ela havia se sentido ofendida ante semelhante espetáculo. No outro extremo do banheiro, uma mulher de rosto pálido, emoldurado por um cabelo escuro e sem brilho, observava-a. A faísca de prazer que tinha sentido ao ver a extraordinária banheira desapareceu imediatamente. Aquela mulher que a olhava não era outra que seu próprio reflexo no espelho, sobre um lavabo de mármore branco com nervuras douradas. Também se deu conta de que não havia janelas no banheiro. Estava presa.

 

Gabriel baixou o interruptor. A placa de bronze estava fria, mas o botão de madeira era suave. A luz encheu quarto.

Um simples armário de madeira ocupava a parede interior do quarto; no outro extremo estava colocada uma cama de bronze coberta com uma colcha de seda azul claro. A madame francesa preferia uma decoração carregada em vez da simplicidade; a opulência em vez da elegância. O perfume em vez da limpeza. Ela não aprovaria sua casa. Vitória o faria? Tirou um fósforo de uma urna de obsidiana que adornava o suporte da lareira, agachou e acendeu o montão de finas lascas colocadas sob os grossos troncos. As chamas azuis e amarelas tomaram vida. Segurou o fósforo aceso durante vários segundos, recordando os anos nos que tinha vivido totalmente desamparado, sem comida, sem refúgio. Sem segurança. Suplicaria-me, mademoiselle?

Não. Não, não suplicarei. E não o tinha feito. Vitória não tinha suplicado pela comida, nem por dinheiro. E tampouco por sua vida. Não tinha rogado que satisfizesse o desejo que sentia por um anjo intocável. Em vez disso, ela, uma virgem, tinha ameaçado seduzi-lo, um homem que durante doze anos tinha sido o sedutor. Vitória o teria tomado em sua boca. O teria aceitado qualquer das formas em que Gabriel tinha tomado um homem ou uma mulher. Ainda o faria apesar de já saber quem era. Seu pênis palpitava, recordando o cheiro fresco do desejo dela, sem diminuir o ritmo dos pensamentos que cruzavam por sua mente.

Há seis meses, Vitória tinha sido despedida de seu emprego. Há seis meses, Gabriel tinha matado o primeiro homem.

...Agora te trazido uma mulher. Uma mulher que tinha vivido o suficiente nas ruas para entender as regras da sobrevivência, mas que ainda não tinha sido destruída por esse conhecimento. Uma mulher que não julgava seu passado. Fazemos o que podemos para sobreviver. O calor roçou sua pele. Gabriel olhou o fósforo que segurava entre seu polegar e o dedo do meio. O fogo azul roçou a madeira enegrecida. Os olhos de Vitória eram daquele mesmo azul vivido e cândido do fogo ardente. Esperava o segundo homem distraí-lo com escarcéus sexuais? Vitória temia que Gabriel podia encontrar em suas cartas. Tinha mentido sobre seu nome. Tinha-o feito também sobre o segundo homem? Imediatamente, Gabriel recordou a dor surpresa nos olhos dela quando contou o efeito que o sublimado corrosivo podia ter. Uma prostituta a teria matado e, mesmo assim, Vitória a tinha protegido.

Perguntou até onde chegaria para proteger um amante. E onde a tinha encontrado o segundo homem? Como a tinha encontrado?

Por que a tinha encontrado? Jogando o fósforo no fogo, Gabriel ficou de pé. Um revólver Colt de grande calibre e uma faca Bowie ocupavam a gaveta superior da mesinha de noite. Instrumentos de morte. Ela tinha se aproximado dele sem armas; não encontraria nenhuma nos quartos dele. A morte chegaria do segundo homem ou por Gabriel, mas não por uma mulher. Tomou a pistola e a faca, e atravessou silenciosamente o quarto que durante os seguintes dias, semanas ou meses seria quarto de Vitória.

O cheiro de chá recém feito deslizou pela porta entreaberta. Gabriel parou. Mas não era Gastón quem o esperava no estúdio.

 

CAPITULO 5

 

   Michael sentou sobre a beirada da mesa de escritório com a cabeça inclinada. Seu cabelo negro brilhava com brilhos azuis.

Uma bandeja de prata de grande tamanho roçava seus quadril; um vapor cinza subia em forma de volutas de um bule de prata. Michael segurava uma pequena xícara de porcelana marrom em uma mão, e na outra um pequeno sandwich. Em ambas as mãos se viam claramente o rastro de umas horríveis cicatrize avermelhadas. Nos dedos, nas palmas, no dorso. Gabriel o olhou enquanto inundava o sandwich dentro da xícara. Saiu cheio de chocolate. A palpitação na virilha de Gabriel viajou até suas mãos, a direita agarrava a faca, a esquerda segurava o revólver. Não estava preparado para enfrentar Michael. E muito menos com o cheiro persistente do desejo de Vitória ainda em seu nariz, e com o som da voz do segundo homem em seus ouvidos.

Não importava. O desejo de Gabriel; o desejo de Vitória.

Morte.

Laissez o jeu commencer. Que comece o jogo. Gabriel tinha preparado o cenário; agora devia interpretar seu papel. Avançou silenciosamente e fechou a porta do quarto atrás dele. Michael parecia estar concentrado em seu sandwich, mas não era assim. Era perfeitamente consciente da presença de Gabriel, da mesma forma que se percebeu a presença do segundo homem no salão.

—Disse a Gastón que o acompanhasse à porta, Michael - disse Gabriel em um tom de voz neutro.

Michael levantou lentamente a cabeça, olhando com seus olhos de cor violeta com frieza calculada. As cicatrizes enrrugadas que cobriam suas mãos beiravam também a bochecha direita, em brusco contraste com a perfeição de seus traços.

—De verdade achou que eu não viria te ver, Gabriel? —perguntou com suavidade.

A voz de Michael não tinha mudado nos seis meses transcorridos desde que Gabriel tinha falado com ele pela última vez. Conservava sua tonalidade grave, sensual e sedutora, a voz de um homem que fez sua fortuna com a prostituição.

Não, Gabriel não esperava que Michael se afastasse dele. Mas era o que queria. Depois de todos aqueles anos, ainda desejava proteger o anjo moreno de ofegantes olhos violeta. Gabriel deixou de olhar para Michael e se centrou no sandwich coberto de chocolate que este estava a ponto de comer. Uma forte pontada lhe contraiu o peito. Desde vinte e sete anos atrás, Michael não podia suportar o cheiro de chocolate, e muito menos seu sabor.

—Desde quando você gosta de chocolat, mon frère? —perguntou com uma voz sem emoção.

Gabriel sabia que sua voz continha a mesma cadência perita que a de Michael: ambos tinham sido treinados para atrair, para seduzir, para agradar.

—Há seis meses - respondeu Michael, introduzindo o sandwich em sua boca.

Os lábios de Gabriel arderam ao recordar. Seis meses antes tinha beijado a cicatriz na bochecha de Michael. E então tinha matado o primeiro homem. Que fácil teria sido apertar o gatilho e matar Michael... Seis meses antes. Essa noite...

—Como está Anne? —perguntou Gabriel com brutalidade.

A ternura que se apoderou dos olhos de Michael e o sorriso que iluminou seu rosto quase prostraram Gabriel de joelhos.

Durante um segundo interminável não reconheceu o homem que tinha diante ele. Gabriel tinha visto Michael meio morto de fome e de medo, e também louco de dor e tristeza. Mas nunca o havia visto feliz. E agora o era. Michael tinha encontrado o que Gabriel jamais conseguiria: amor, aceitação. Paz. E tudo isso com uma mulher que tinha preferido os olhos violetas aos cinzas, um anjo moreno e não um loiro. Um homem que valorizava a vida e não quem, como ele, levava a vida por levar. Em um instante, a luz que iluminava o rosto de Michael se atenuou, e seus olhos de cor violeta adquiriram de novo uma frieza calculada.

—Por que não vem nos visitar e o comprova por si mesmo, Gabriel?

—Sente falta de mim, mon frère?-em tom de mofa.

—Sim.

Durante um momento de descuido, Michael tirou a máscara. Não havia engano em seus olhos, nem artifício algum em sua voz.

Um punho invisível se contraiu dentro do estômago de Gabriel.Michael o amava, e Gabriel não compreendia por que. Ele nunca tinha condenado Gabriel por ser um bastardo sem nome nem pelas decisões que tinha tomado. Gabriel desejava que o tivesse menosprezado que o tivesse julgado. Desejava que pudesse odiar, e saber que era ódio o que sentia em vez de um medo disfarçado. Afastou a vista dos olhos violetas de Michael. Não tinham mudado nos vinte e sete anos que tinham de amizade; ainda refletiam um fervente desejo. Os olhos de Vitória também mostravam o desejo. Cândidos olhos azuis que desejavam sexo. Amor. Aceitação. O segundo homem tinha enviado Vitória porque ela desejava. Igual a Michael. Porque desejava. Como Gabriel era incapaz de desejar. Mas por quê?

—Você me ensinou a ler e a escrever - disse Gabriel, tentando entender os motivos do segundo homem. E também os de Michael—. Por que?

—Você me ensinou a roubar; pareceu-me uma troca justa. —A mordacidade endureceu a voz de Michael—. Quem é o segundo homem, Gabriel?

Gabriel sustentou impavidamente o olhar de Michael.

—Você sabe quem é - respondeu imperturbável.

Michael tinha sido quem encontrou Gabriel encadeado em um sótão como um cão, em meio de sua própria imundície, suplicando que o deixassem morrer. Mas Michael não tinha deixado ele morrer. Gabriel desejava que o tivesse feito.

—Disse-me que o segundo homem foi o que te violentou - declarou Michael.

Dois homens tinham violentado Gabriel; ele tinha matado um, o segundo ainda vivia.

Gabriel não afastou a vista da suspeita que brilhava no olhar de Michael.

—Achou que havia um segundo homem - corrigiu com um tom de voz monótono.

—Mas faz só seis meses mencionou que havia um segundo homem.

—Não pensei que se interessassem os detalhes. Sinto muito, mon vieux - replicou Gabriel suavemente, aguilhoando Michael de propósito—. Pensei que seus interesses estavam em outro lugar.

Nas mulheres e não nos homens, insinuou. Michael não mordeu o anzol.

—O que pensei Gabriel, foi que você foi à única pessoa em minha vida a quem meu passado não tinha destruído.

Michael piscou para afastar uma sombra fugaz que obscureceu seus olhos, enquanto deixava a xícara de chocolate sobre a bandeja de prata. A dor transpassou Gabriel. Era inevitável que Michael acabasse por completar o quebra-cabeça. E desejava evitá-lo.

O choque da porcelana contra o metal se sobrepôs aos fortes batimentos de seu coração. Lentamente, Michael levantou a cabeça e cravou nele aquele olhar de incrível cor violeta.

—Mas estava errado, não é assim, mon frère?

—Ninguém pode escapar do passado, Michael - afirmou Gabriel acertadamente.

E esperou, sabendo que não havia nada que pudesse fazer para deter a sucessão de acontecimentos que iria se produzir.   

Michael desceu silenciosamente da mesa, com um olhar intenso em seus profundos olhos violetas e as cicatrizes de suas bochechas brancas por causa da tensão. Avançou um passo...

—Por que essa mulher leiloou seu corpo em sua casa, Gabriel?

Dois passos...

—Por que alguém vende seu corpo, Michael? —perguntou Gabriel com ironia.

Os batimentos de seu coração se aceleraram. Perguntou-se até onde o conduziria Michael em sua busca da verdade, e também até onde o levaria o segundo homem naquele jogo mortal. E o que faria se Vitória tentasse seduzi-lo.

Três passos...

—Jamais tinha permitido leilões, mon ami - o desafiou Michael.

Quatro passos...

—Hoje foi a grande reinauguração de meu estabelecimento - respondeu Gabriel com toda tranqüilidade, selecionando a verdade e as mentiras com idêntico cuidado—. Pareceu-me apropriado.

Cinco passos...

Michael arqueou uma sobrancelha com expressão irônica.

—E acha que é apropriado que o proprietário ofereça mais que seus clientes, Gabriel?

Seis passos...

—Talvez me sinta sozinho, Michael - disse suavemente—. Talvez queira uma mulher para mim.

Gabriel não sabia se estava mentindo ou não.

Sete passos...

—E o segundo homem, também se sentia sozinho? —perguntou Michael causticamente, implacável em sua busca da verdade—. Por isso fez duas ofertas por sua mulher?

Sua mulher. Aquelas palavras pareceram ricochetear como um eco contra a pintura branca acetinada do teto. O cabelo negro, masculino, pareceu transformar-se no cabelo escuro feminino, enquanto a voz de Vitória ressoava em seus ouvidos: Dá-me medo ser tocada por um homem... Dá-me medo que eu goste de ser tocada... Temo ser uma puta não só de fato, mas também no mais profundo de meu ser. Mas, em um instante, tudo voltou a ser igual. A imagem de Vitória sumiu dando lugar a de Michael, e a nudez daquela mulher que tinha visto em sua mente se transformou na determinação de um anjo com cicatrizes. Gabriel sentiu o calor do corpo de Michael, muito perto. Forçou-se a não recuar, da mesma forma que o tinha feito antes, quando Vitória se aproximou dele com passos vacilantes, sua pélvis para frente, movendo os quadris e balançando seus seios. Quase o tinha roçado. E durante um instante aterrador, ele quase tinha permitido. Vitória não conhecia as conseqüências que poderia ter se o tocasse; Gabriel sim. Michael também.

—Talvez - respondeu Gabriel sem alterar-se, mas com todos os músculos de seu corpo em tensão.

Se Michael não parasse...

Oito passos...

Gabriel ficou ainda mais tenso, agarrando firmemente em sua mão esquerda o punho da faca e com o dedo do meio da direita curvando-se para acariciar o gatilho de seu revólver. Michael parou. Seu fôlego com cheiro, a chocolate acariciou a face de Gabriel. Dois anjos de pé frente a frente, um moreno, outro loiro. Um instruído para agradar às mulheres, o outro para agradar os homens.

—Por que não o matou, Gabriel? —Os olhos prateados se viram refletidos nos violetas. Eram dois homens presos em um passado que nenhum deles tinha escolhido—. Sei que estava aqui. Estava disposto a atirar na mulher; por que não no segundo homem?

De modo que Michael tinha visto a pistola de metal azul. Sabia quão perto tinha estado da morte? Sabia quão perto estava agora da morte?

—Você o viu, Michael? —perguntou Gabriel em tom monótono.

—Não, não o vi, mas você estava na parte superior, Gabriel. É impossível que não o tenha visto.

Gabriel concentrou a atenção no doce cheiro de chocolate e desviou o olhar daqueles olhos violetas que pareciam lhe perfurar, tentando penetrar em sua alma, enquanto seus dedos se esticavam involuntariamente para proteger-se.

—Talvez eu não veja tão claramente quanto quisesse.

Outra verdade. Gabriel não tinha contado que uma cúmplice entraria em sua casa com o pretexto de leiloar seu corpo.

Não tinha planejado encontrar-se com uma mulher que não o julgaria. Para compensar tudo o que tinha tido que suportar.

—A mulher está viva? —perguntou Michael com o olhar alerta.

—Quando a deixei faz uns minutos, sim - respondeu Gabriel.

Mas durante quanto tempo?

—É uma prostituta?

Gabriel reprimiu um arrebatamento de ira.

—Não.

Vitória não era uma prostituta. As prostitutas não ofereciam tudo, sua vida, sua dor, seu prazer.

—É virgem?

—Sim. —O cheiro do chocolate envolveu Gabriel—. É virgem.

—E como pode sabê-lo, Gabriel? —As palavras pareciam cortar o ar entre eles—. A tocou?

Dor... Gabriel não queria sentir dor. Não quero desejar...

—Sabe perfeitamente que não, Michael - replicou Gabriel deliberadamente, com uma absoluta tranqüilidade, e todos os sentidos atentos à mulher que se encontrava na sala contigua e no homem que tinha de frente a ele—. Sabe com exatidão o tempo que faz desde que não toco ninguém.

Em qualquer momento, Vitória abriria a porta... Perguntou-se, no mais profundo de sua mente, se ela preferiria também os olhos violetas em lugar dos cinzas. O aguilhão do ciúmes provocados por aquele pensamento lhe causou uma enorme surpresa.

O segundo homem a tinha enviado para Gabriel, não para Michael. Ele não queria que ela escolhesse o anjo de cabelo escuro e sim a ele. Gabriel queria o que Michael tinha com uma mulher que aceitasse seu passado e as necessidades de um homem que vendia seu corpo. Um músculo palpitou em sua mandíbula. Sentiu que o calor aumentava e a pressão era cada vez maior.

Se Michael não desse um passo atrás... O anjo moreno não recuou.

—Ela sabe que foi vendido por dois mil seiscentos e sessenta e quatro francos - insistiu.

O equivalente de cento e cinco libras inglesas.

—Ela sabe - afirmou Gabriel com os músculos cada vez mais tensos, preparando-se para agir ou reagir.

Para matar ou sair correndo. Mas não havia nenhum lugar para onde fugir.

—O segundo homem a enviou.

Gabriel não negou o óbvio.

—Sim.

—Por que quer te matar, Gabriel? —perguntou Michael com provocação.

Gabriel sabia o que Michael estava fazendo, tinha usado esse mesmo padrão com Vitória. Agressão. Sedução.

Ficou perfeitamente quieto, respirando o fôlego de Michael, enjaulado pelo calor do corpo de Michael.

Apanhado pela verdade.

—Quer me matar - admitiu Gabriel tranqüilamente—, porque sabe que se não o fizer, eu o matarei.

Era a verdade, embora não completa.

—A mulher te tocou Gabriel?

Contraiu todos os músculos, sabendo para onde se dirigiam as perguntas do Michael, incapaz de detê-las.

—Não.

—Faz seis meses você me tocou.

As lembranças compartilhadas vibraram entre os dois.

Pele coberta de cicatrizes. Lábios frios.

Sangue de cor vermelha.

—O que faria Gabriel, se eu te tocasse? —sondou Michael lentamente.

Perderia o controle. Gabriel perderia o controle se Michael o tocasse. E um deles morreria. Talvez ambos.

Michael nunca tinha matado, mas isso não significava que não fosse capaz de fazê-lo.

—Não entre nesse jogo, mon frère - advertiu Gabriel com um tom de voz contido.

—Mas é um jogo, mon ami - declarou Michael, acariciando-o com as palavras—. Está procurando o segundo homem há quase quinze anos. E em todo esse tempo, não pode encontrá-lo. Por que ele teria que tentar te caçar agora, temendo por sua vida?

—Talvez tenha cansado de fugir.

Da mesma forma que Gabriel estava cansado de fazê-lo. O tempo parecia palpitar, em sua face, em suas mãos. Contava os segundos até que a mulher aparecesse na porta e escolhesse ao anjo de cabelo escuro e não o de cabelo loiro.

Até que Michael tocasse Gabriel. Até que Gabriel matasse Michael. E se descontrolasse.

—Não acredito - sussurrou Michael suavemente.

—O que é que não acredita Michael? —perguntou Gabriel, ligeiramente enjoado pelo cheiro de chocolate.

—Não acredito que esteja cansado de fugir. —Michael sabia muito. Via-se refletido em seus olhos—. Acho que nunca esteve fugindo de você, Gabriel.

—Então me diga por que acha que veio esta noite - murmurou Gabriel sedutoramente, entrando no jogo.

Sempre tinha sido um jogo: o primeiro homem, o segundo homem.

—Meu tio destruiu todas as pessoas que eu amava —disse Michael com calma, mas com um olhar intenso em seus olhos violetas.

A todas menos Anne. Outra mulher. Outro peão.

—Eu matei seu tio, Michael.

O primeiro homem.

E Gabriel o faria de novo.

Uma faísca de ira cintilou fugazmente nos olhos de cor violeta. Michael ainda não tinha perdoado Gabriel por matar a seu tio, para que ele não se visse manchado por um assassinato. Depois recuperou a compostura.

—Disse que meu tio sabia o nome do segundo homem que te violentou.

—Seu tio sabia muitas coisas - disse Gabriel evasivamente.

—Meu tio sabia seu nome, Gabriel - declarou Michael com ênfase—, porque ele contratou os dois homens que te violentaram.

Gabriel lutou por reprimir as lembranças incessantes da dor transformada em prazer, um prazer que destruía a vontade de sobreviver.

Michael não podia saber a verdade.

—Como sabe isso, Michael?

—Sei Gabriel, porque começou a me odiar no momento em que te violentaram.

O fôlego perfumado de chocolate de Michael voltou a acariciar a bochecha de Gabriel.

—Compensação - sussurrou Michael. Parecia um eco da voz de Gabriel seis meses antes.

Por quê? Tinha perguntado Michael. Prazer. Dor.

—Queria me matar quando apontou para minha têmpora com a pistola. —Os olhos violetas de Michael estavam desprovidos tanto de prazer como de dor—. E agora quer me matar. Mas não por causa da mulher que me escolheu em vez de você.

O rosto de Gabriel era uma máscara imperturbável.

—Não, Michael? —perguntou com desinteresse, interpretando um papel.

Incapaz de lutar. Incapaz de fugir.

—Nunca teve ciúmes de mim, mon frère - afirmou Michael com determinação.

Impossível deter a verdade.

—Sempre tive ciúmes de você, Michael.

Gabriel tinha invejado Michael quando tinha treze anos; tinha invejado sua necessidade de amar. E depois o tinha invejado quando se transformou em adulto por sua coragem para amar. Michael não se alterou, lendo a verdade no olhar de Gabriel. O amor. O ódio.

—Não o entendia até seis meses atrás, Gabriel. Mas você e Anne me fizeram compreender a verdade. Você me amava, e sofria por causa desse amor. E por ele me protegia. Estou certo que meu tio tirou um grande benefício de sua nobreza e de minha ignorância. —Uma breve ironia coloriu a voz de Michael, e desapareceu imediatamente—. E também estou convencido de que haveria sentido um grande prazer em arrumar sua morte no caso de que ele mesmo morresse. Pela simples razão de me fazer sofrer. E te asseguro Gabriel, que se você morresse eu sofreria muito.

—Assim acha que seu tio deixou instruções para que o segundo homem me matasse em caso de que ele mesmo fosse assassinado? —A voz de Gabriel saiu lenta e grave—. E tudo para te causar dor?

—Isso foi exatamente o que fez Gabriel - respondeu Michael imperturbável.

—Então, em caso de que tenha razão, Michael, se eu estivesse em seu lugar não deixaria Anne desprotegida. Sua morte te causaria um sofrimento muito mais profundo que a minha. —Diante seus olhos surgiu uma imagem do conde, com as pernas torcidas e os olhos de cor violeta esvaída com um brilho malévolo de ódio—. E tenha por certo que seu tio era muito consciente desse fato.

A dúvida que brilhava no olhar de Michael desapareceu.

—Anne não está sozinha. Tenho homens que a protegem além dos que você enviou.

Os homens de Gabriel eram profissionais: prostitutos, ladrões e assassinos profissionais.

Deveriam ter dissimulado melhor sua presença.

—Os vigilantes podem ser subornados - disse Gabriel.

Igual os porteiros.

—Não permitirá que aconteça nada mau a Anne.

Michael falou com convicção, seguro.

Três horas antes também Gabriel se sentia seguro de si mesmo.

Mas isso tinha sido três horas antes.

Tinha pensado que o segundo homem mataria o anjo de cabelo escuro, mas não o tinha feito. Em vez disso, tinha enviado uma mulher ao anjo de cabelo loiro.

Uma atriz protagonista desprovida de armas, conhecimento ou malícia. E Gabriel não sabia por que.

—Talvez não seja capaz de detê-lo - reconheceu Gabriel com sinceridade.

—E a mulher poderia fazê-lo? —perguntou Michael com atitude alerta.

—Não sei.

—O que fará com ela?

O que faria Gabriel com uma mulher que o desejava, uma mulher que o aceitava?

Uma mulher a qual ele desejava?

—Ainda não sei.

—Pensa em se deitar com ela?

Como quer que a possua, mademoiselle?

Quero que o façam com respeito... Porque sou uma mulher.

As palpitações se estenderam pelos braços de Gabriel até chegarem a seu peito, sua virilha, seu testículo.

—Vai matá-la, Gabriel? —insistiu Michael deliberadamente.

Um tronco caiu, como a realidade convertida em cinza.

Michael tinha sido queimado pelo fogo, mas mesmo assim não tinha aprendido... As pulsações se acentuaram até que Gabriel não soube distinguir onde paravam ou onde tinham começado. Com um jovem de treze anos ou com uma mulher de trinta e quatro?

—O que prefere que faça Michael? —perguntou Gabriel com voz tensa—. Que a possua ou que a mate?

As pupilas de Michael dilataram até que Gabriel pôde ver dentro de seus olhos foi um aro violeta que circundava um halo de cabelo prateado.

—Faz seis meses queria me ajudar.

—Tentei fazê-lo o melhor que pude.

Outra mentira encerrada dentro de uma verdade. Gabriel deveria ter matado o primeiro homem de uma vez por todas, em vez de seguir seu jogo.

—Me deixe levar a mulher.

Seis meses antes Gabriel tinha pedido para levar a mulher de Michael. Para salvá-la do primeiro homem.

A história se repetia.

—Não posso fazer isso, mon vieux. —Não havia pesar na voz de Gabriel, como não tinha havido na voz de Michael quando tinha recusado a oferta de seu amigo seis meses atrás—. Enviaram a mim, não a ti.

Uma mulher para o anjo intocável.

—Já conhece este jogo, Gabriel.

Mas não tinha participado dele antes de...

—Acha que seu tio dispôs que enviassem uma mulher para me empurrar para minha própria morte? —indagou Gabriel.

Era possível. O primeiro homem poderia ter arrumado a demissão de Vitória de seu emprego anterior. Tinha matado a todas as pessoas a quem Michael tinha amado. Destruir uma vida mais não teria nenhuma importância para um homem morto.

—Acredito que é muito mais vulnerável do que pensa. —Uma faísca violeta fez resplandecer nos olhos de Michael—. E meu tio sabia.

Gabriel não duvidou nem um segundo.

—O sexo causava prazer para você, Michael, não para mim - confessou em tom monótono.

—Mentira, Gabriel.

O corpo de Gabriel se contraiu. Fazia muito tempo que ninguém o chamava mentiroso na cara.

—Não é aconselhável que chame um homem mentiroso quando leva consigo uma pistola e uma faca - anunciou lentamente Gabriel—, que sabe usá-los com perfeição.

Nos olhos de Michael não se refletiu temor algum.

—Então me diga que não deseja Gabriel.

—Não desejo, Michael. —A verdade vibrou na voz de Gabriel.

—Me diga que não recorda como é provar uma mulher, tocar seu corpo - continuou Michael imperturbável, sem medo, embora devesse senti-lo—. Diga-me que não quer se perder dentro do prazer de uma mulher.

O som distante das badaladas do Big Ben atravessou a madeira e o vidro.

Gabriel recordou... Os homens que havia possuído por dinheiro, e às mulheres que havia possuído para compensar.

—Me diga que não deseja uma mulher, Gabriel. —A dor de Gabriel se refletiu nos olhos de Michael—. Diga-me e me convença de que é verdade.

Gabriel não podia negar. Mas tampouco podia admiti-lo. Não quero desejar...

—Vai pra casa, Michael - ordenou Gabriel. Vai antes de que as lembranças prazerosas superem as lembranças dolorosas—. Vai para casa, para junto de Anne.

Anne com o cabelo castanho claro e os olhos de cor azul clara, que tinha desejado que encontrasse uma mulher, para compensar tudo o que tinha suportado.

—Por quê? —desafiou-o Michael.

Estava disposto a ficar, disposto a morrer.

Tudo pelo amor de um homem que em duas ocasiões tinha apontado uma pistola na cabeça.

Não havia necessidade de que Gabriel mentisse.

—Enquanto se mantiver longe, mon vieux, eu sobreviverei.

E também o faria Michael. Nenhum dos dois piscou, respirou, moveu-se. O calor do corpo de Michael e o cheiro de chocolate de seu fôlego se estenderam sobre Gabriel. Se não recuasse... Gabriel balançou o punho da faca na mão esquerda, com o marfim esquentando-se ao contato com sua pele, ajustando-se a seus dedos. Entre um batimento do coração e outro, Michael deu um passo atrás.

Gabriel respirou profundamente, inalando o cheiro de chá recém preparado e a fumaça da lenha em vez do cheiro de chocolate.

—Por isso não me enviou um convite? —perguntou Michael laconicamente.

—É possível.

Talvez Gabriel não tinha sido capaz de enviar um convite, pedindo que assistisse a inauguração da Casa de Gabriel, porque sabia quais seriam as conseqüências de seus atos. Ou talvez soubesse que Michael desconfiaria ainda mais se não recebesse um convite que se recebesse.

Ao não convidá-lo, tinha assegurado melhor o papel de Michael naquela peça de teatro da qual nada sabia.

—Imobilizou a mulher?

Vitória tinha desejado Gabriel, mas não confiava nele. Tinha pensado que ia matá-la. E Talvez deveria ter feito.

—Não, não a imobilizei.

Estaria acaso, nesse momento, procurando em seu quarto uma arma para se proteger?

Gabriel tinha retirado as mais evidentes, mas qualquer objeto podia se transformar em arma. Uma escova de dente. Uma urna. Uma gravata. Recordou da bengala que guardava em seu armário. Com um giro, o pomo de prata se transformaria no punho de uma espada curta. Michael possuía outro igual, mas com o punho de ouro. Ambos tinham sido desenhados expressamente pelo mesmo homem com o único propósito de matar. De uma forma falsa e cortês, perguntando o que aconteceria se Michael aceitasse o convite, Gabriel o convidou:

—Você gostaria de conhecê-la?

Michael adivinhou as intenções de seu amigo. E aceitou como sempre tinha aceitado Gabriel.

Seu passado. Suas preferências... Ao jovem de treze anos que tinha sido, e o homem de quarenta e quatro anos em que se transformou.

—Não te deixarei morrer, Gabriel - declarou Michael com simplicidade—. Lembre-se sempre.

Apesar de que Gabriel tinha posto deliberadamente em perigo a vida de Michael.

Antes que seu amigo pudesse responder, com uma meia verdade ou uma meia mentira, Michael deu a volta, parando diante a mesa do escritório. Dobrou o cotovelo direito, ao tempo que sua jaqueta negra se estirava nos ombros. Poderia estar tirando uma arma.

Gabriel se forçou a não levantar a pistola para disparar antes que ele, sabendo que tinha vantagem. Michael era a única coisa boa que Gabriel tivera em toda sua vida. Um envelope branco sulcou o ar e aterrissou junto à bandeja de prata sobre a tampa de mármore negro do escritório.

—É um convite, Gabriel. —Michael não se voltou. Sabia o perigo que se abatia sobre ele—. Anne e eu vamos nos casar.

Michael. Anne. Vão casar. Durante um segundo, Gabriel não pôde respirar.

—E que nome pensa lhe dar, Michael? —arremeteu—. Chamarão-lhe madame dê Anges ou lady Anne Sturges Bourne? Será a esposa de um prostituto ou a condessa de Granville?

Muito tarde, já não podia retratar-se daquelas ofensivas palavras. Michael não tinha reclamado o título nobiliário que correspondia por lei depois da morte de seu tio. Não merecia o afã de vingança de Gabriel. Com aquela atitude, obteve que Michael saísse de seu estúdio, de sua casa, de sua vida. O cheiro e o sabor do chocolate permaneceram em seu nariz e em sua língua. Michael sobreviveria sem Gabriel, mas podia Gabriel sobreviver sem Michael? Seu olhar parou na andrajosa bolsa de lã que repousava sobre a cadeira de couro azul claro. Nem sequer um malandro de rua tomaria o trabalho de roubar-la. Não conteria nada de valor, nem sequer para St. Giles Street, onde os farrapos mais estragados se descosturavam para tirar fios que pudessem ser vendidos. Havia desejo em Vitória, mas também orgulho. Teria necessitado cuidado e paciência para conduzi-la ao extremo de que fosse capaz de vender sua virgindade. Sua demissão poderia ter sido planejada pelo primeiro homem. Ou talvez pelo segundo.

Quando ela tinha desprezado a possibilidade de que um estranho tivesse planejado o leilão de seu hímen, seu protesto ficou dentro de sua garganta. As cartas determinariam se Vitória tinha mentido ou se havia dito a verdade. E permitiriam a Gabriel saber o que esperar quando abrisse a porta de seu quarto. Encontraria-se diante de uma atriz, uma assassina, uma mulher que amaria a um homem que vendia seu corpo ou alguém que mataria para escapar da pobreza? Permitir-lhe-iam saber se ela viveria ou morreria.

 

CAPITULO 6

 

Victoria não sabia o que estava procurando, mas precisava   encontrar algo que a ajudasse a escapar, uma arma para se proteger.

Uma chave que permitisse abrir a porta do quarto. Gabriel não a deixaria sozinha muito mais tempo. Cada respiração, cada pulsar de seu coração determinavam os minutos que passavam, e recordavam que, a qualquer momento, ele viria procurá-la. E não havia nada que ela pudesse fazer. Vitória abriu de um puxão a gaveta inferior da cômoda de madeira. O cabelo de sua nuca se arrepiou ao dar-se conta de repente.

—“Conheço-a, Vitória Childers”.

Ficou paralisada.

—“Quer aquilo que toda mulher deseja secretamente”.

As cartas. Ele as tinha lido.

—“Quer ser beijada e acariciada”. —Vitória deu a volta apressadamente, caindo de joelhos sobre o chão de madeira polida. Estendeu as palmas das mãos para o chão para evitar cair; o cabelo balançou de um lado a outro como um pêndulo escuro.

Gabriel estava de pé na soleira, com os olhos prateados brilhando e seu cabelo como um halo de prata. Entre suas mãos pôde ver o rastro de um brilho prateado. Não tinha ouvido abrir a porta. Mas por que teria que havê-lo feito? Perguntou na parte de seu cérebro que ainda era capaz de raciocinar. Vitória não o tinha ouvido apesar de que se encontrava bem atrás dele. O homem nem fez gesto de ocultar a pistola de grande calibre, de metal prateado brilhante em vez de negro azulado opaco, nem a faca de aspecto letal que empunhava. Não tinham precisamente um tamanho ou uma forma para poder ser ocultos dentro do corpo de uma mulher... Ou de um homem. Vitória olhou fixamente a faca. A ponta era irregular, como os dentes de uma serra, e a folha eram larga. Nunca tinha visto nada semelhante. Seu olhar se afastou da faca e se concentrou em Gabriel.

—“Anseia que seus seios sejam acariciados e lambidos por um homem” - citou com olhos brilhantes, muito mais perigosos que o fio de uma faca—. “O eterno desejo de uma mulher”.

As palavras, sedutoras por escrito, pronunciadas em voz alta com aquela cadência sedosa e acariciante se transformaram em uma fantasia falada.

—“Eu aliviaria seu corpo insaciável” —prosseguiu—. “Eu satisfaria seu desejo”.

Vitória sentiu seu coração dar um pulo. O homem de olhos e cabelo prateados parecia nunca em sua vida ter ansiado ou desejado.

Qual era o verdadeiro Gabriel? O homem que tinha perguntado se deixaria que a abraçasse com seu corpo escorregadio de suor, ou o homem que brandia sem esforço a mortífera faca?

—“Logo seu sofrimento cessará e você conhecerá o prazer que oferecem os braços de um homem” - seguiu citando Gabriel—. “Conhecerá o prazer que oferecem meus braços, Vitória Childers. Eu cuidarei reconfortá-la-ei, resgatá-la-ei do peso de sua pobreza... Só o que tem que fazer, minha querida professora, é me dar de presente sua virgindade, e já não sofrerá nunca mais”.

—Possui uma memória excelente, senhor - disse Vitória em tom uniforme, perguntando quando a abandonaria sua aparente serenidade.

Não era possível que um homem que se movia tão lentamente percorresse o espaço que os separava com tanta rapidez.

—Sim, Vitória Childers. —Gabriel a olhava de frente. Seu rosto estava pálido e tinha uma enigmática expressão. Mostrando-lhe a faca e a pistola, perguntou suavemente—: Procurava isto?

Parecia tranqüilo, mas não estava. Vitória podia sentir a energia que irradiava. Não gostava que revolvessem em suas gavetas; ela não podia culpá-lo. Tampouco gostava que ela tentasse escapar dele, mas disso sim o culpava. A mataria agora ou a deixaria viver? Fosse qual fosse o resultado, ela não pensava em suplicar.

—Não sei - respondeu com sinceridade.

O homem se aproximou da gaveta aberta, sob o olhar receoso dela. Sem saber o que esperar. Sem saber o que poderia acontecer.

Gabriel deixou cair à pistola e a faca. Instintivamente, Vitória seguiu com o olhar os movimentos de Gabriel. As duas armas caíram dentro da gaveta inferior da cômoda, sobre um montão de camisas engomadas muito bem dobradas. A culatra de madeira escura da pistola e o punho de marfim da faca afundaram mais entre as brancas camisas que o canhão e a folha chapeada.

—Não tinha que revirar meu quarto, mademoiselle - disse com aquele tom de voz enganosamente suave—. Há armas no banheiro. —Vitória não respondeu—. Uma escova de dente, por exemplo, pode atravessar a garganta se afundar com força suficiente.

Sim, Vitória tinha visto todo tipo de mortes nos últimos seis meses. Levantou a cabeça e sustentou com decisão seu olhar chapeado; o fogo crepitante chispou em seus ouvidos.

—Não parece ser uma arma muito efetiva.

—Então recomendaria usar a pistola. —A seda sussurrou, as botas de couro rangeram. Durante um momento Gabriel se inclinou sobre Vitória e, imediatamente, ficou de cócoras, com as mãos apoiadas ligeiramente sobre as coxas—. Acerta com precisão a poucos metros de distância. Uma faca sem dúvida é mais afiada que uma escova de dente, mas também requer certa força. Além disso, representa mais risco que um revólver, sobre tudo para uma mulher. É preciso aproximar-se muito da vítima para poder usá-lo; se o homem —ou a mulher— a quem quer matar é mais forte, poderia tirar a arma e usá-la contra você. A menos, certamente, que saiba jogar uma faca, coisa que duvido. Mas deixo em suas mãos a possibilidade de escolher a arma.

Vitória abriu desmesuradamente os olhos.

—Está me pedindo que o mate, senhor?

—Sim. —Agarrou o revólver, deu a volta e fez gesto de entregar-lhe pela culatra—. Tome-o, mademoiselle.

Aquelas palavras ressoaram por cima do fogo crepitante.

Ela tinha rebuscado entre a roupa interior: elegantes meia de seda, lenços de seda bordados, cueca de lã fina muito suave.

Aquilo não podia estar acontecendo. Um homem que usava meias de seda, lenços bordados e cueca de lã fina não pedia a uma mulher que o matasse. Confusa, Vitória pegou a pistola que ele oferecia; a dura culatra de madeira estava morna pelo contato da mão dele. No olhar chapeado não se via refletida emoção alguma. Vitória umedeceu os lábios ásperos e gretados.

—Se atirar, o homem que está lá fora me deterá.

Os lábios de Gabriel pareciam tão suaves como uma pétala de rosa.

—É muito provável.

Deixou escorregar a pistola de seus dedos, provocando um impacto amortecido ao contato com as camisas engomadas.

—Então terá que me perdoar se não aceitar fazer o que me pede.

Ele se inclinou, agarrando... Vitória não podia deixar de olhá-lo. Lentamente, o homem levantou a faca frente a ela.

Naquela folha, desenhada com o único propósito de matar, refletiu-se um metálico brilho de luz. Podia assassinar produzindo o máximo de dor possível. Ele sabia como usar essa faca, pensou Vitória, contendo a respiração. Para causar dor. Para matar.

Com habilidade, segurou o punho de marfim na palma da mão.

—Mas acontece, mademoiselle, que não estou pedindo que escolha. —Baixou suas pálpebras de espessas e escuras pestanas, e voltou a elevá-los lentamente. Seus olhos de cor cinza prateada brilhavam sem obstáculos—. Se você não me matar, então eu a matarei.

Vitória olhou para pistola meio escondida entre o montão de camisas engomadas, e depois a faca que ele brandia sem esforço em sua mão esquerda. O desejo de viver enfrentado ao desejo de sobreviver. Respirando profundamente, Vitória sustentou seu olhar.

—Em tal caso, preferiria que você me matasse com a pistola, senhor. Acredito que seria menos doloroso que a faca. A menos, certamente, que sua intenção seja causar dor.

—Isto não é um jogo.

O coração de Vitória parou, e em seguida acelerou para compensar o batimento perdido do coração.

—Sem dúvida não é um com o que eu esteja familiarizada.

—Você não acredita que eu a vá matar - afirmou Gabriel impassível.

—Ao contrário, senhor. —O coração de Vitória se acelerou de novo perigosamente. Estava segura de que morreria de um enfarte—. Você foi bastante generoso para me aconselhar sobre que arma seria mais efetiva em mãos de uma mulher. Agora, simplesmente, digo-lhe que arma preferiria que fosse usada para me matar.

—Tem medo a morrer, mademoiselle?

Sim.

—Vivi com a idéia da morte durante os últimos seis meses - reconheceu Vitória com uma calma que estava longe de sentir—. Estou cansada de sentir medo.

—Mas está assustada.

—O temor é uma resposta natural diante o desconhecido. —Os dentes serrados de faca brilhavam com ansiedade—. Nunca tinha enfrentado à morte. A pequena morte. A morte definitiva.

—O desejo também é natural, mademoiselle. E, entretanto, também o teme.

A ira se sobrepôs ao medo de Vitória.

—Não me transformarei em vítima da luxúria de um homem.

—Nem suplicará.

—Não. —Apertou firmemente os lábios—. Não o farei.

—Um homem pode fazer uma mulher suplicar, mademoiselle.

De prazer. O sangue fluiu candente às bochechas de Vitória.

—A algumas mulheres, talvez. —Levantou desafiante o queixo—. Eu não sou assim.

—Todos são assim.

—Os homens não suplicam por seu prazer sexual - replicou Vitória com ironia.

Seu pai tinha ensinado que as mulheres eram fracas, os homens não. As mulheres pagavam as conseqüências de seus desejos, os homens não.

—Eu supliquei pelo prazer sexual, mademoiselle.

Vitória se sobressaltou. A escuridão brilhava nos olhos de Gabriel. Ela recordou como ele tinha evitado o contato de sua mão quando a tinha estirado para tomar o guardanapo de seda. Se eu não tivesse dado um lance por você, mademoiselle teria sofrido uma morte muito pior que a causada pelo sublimado corrosivo. Vitória tentou resistir à verdade.

—O homem que, segundo você, enviou-me à Casa de... A sua casa... —Gabriel aguardou em silêncio a que Vitória estabelecesse a conexão—, foi ele quem o fez suplicar?

—Sim - respondeu ele sem rodeios, esperando que Vitória o condenasse.

Talvez seis meses antes o tivesse feito.

—E você acredita que esse homem faria... Coisas... Para me fazer suplicar.

—Se você sair desta casa, sim.

—Por quê?

Por que teria que querer fazer mal um homem a quem nem sequer conhecia e do que não tinha a mínima referência até aquela noite?

—Os homens matam por muitas razões. Alguns o fazem por dinheiro, outros por esporte. E há outros, mademoiselle, que matam, simplesmente, porque podem fazê-lo. Vitória ficou mortalmente pálida. Nos últimos seis meses tinha visto homens respeitáveis maltratar fisicamente a mendigos, a damas elegantes insultar a prostitutas de ruas e a meninos mofar-se de outros meninos porque não tinham sapatos ou roupas elegantes. Simplesmente porque podiam fazê-lo.

—Você disse que ele me mataria senhor, não que me violentaria para seu próprio prazer - replicou ela.

—O que ele faz não tem que ver com o prazer ou o deleite. —Nenhuma daquelas duas emoções tinham capacidade nos olhos do Gabriel. O que lhe tinha feito aquele homem?—. No final, te mataria.

—A você não o matou.

—Não era parte de seu plano.

Violação. Morte. Laissez o jeu commencer. Que comece o jogo. Quando terminaria?

Vitória tentou imitar a fria lógica de Gabriel.

—Então minha morte faz parte desse plano.

—Sim.

—Porque sou dispensável - afirmou, repetindo as palavras que antes tinha ouvido de Gabriel.

A folha de prata dentada brilhou em sinal de assentimento.

—Sim.

Chamas amarelas, alaranjadas e azuis crepitaram na lareira. Vitória não sabia que os troncos ardentes pudessem desprender tanto frio.

—Então decidiu me matar você mesmo para me economizar essa... Morte?

—Terminaria me agradecendo por isso - A ira surgiu no mais profundo de Vitória.

—O homem que escreveu essas cartas disse que depois de lhe dar de presente minha virgindade entenderia o “mal necessário” de perder tudo pelo que trabalhei. Agora você assegura que agradecerei que me mate. Vai me desculpar, senhor, se não me mostrar de acordo com nenhum dos dois.

—O homem que escreveu as cartas não lhe concede nenhuma opção. Eu sim a ofereço.

—E o que posso escolher? —A histeria se apoderou de sua voz—. A forma em que me matará?

—Dou-lhe a opção de vida, mademoiselle.

Primeiro morte, agora...

—E o que devo fazer para obter essa vida que você me oferece?

—Ser minha convidada.    

—Desculpe?

Vitória se perguntou inconscientemente quanta vez tinha pedido que a desculpasse. Quatro? Cinco? Mais?

—Fique aqui, em minhas acomodações, até que esteja segura. —Segurança... Não havia segurança em seus olhos. Seu quarto. Sua casa—. Tenho homens que a protegerão.

—Antes disse que não podia garantir minha segurança - objetou Vitória.

—E não posso fazê-lo.

A cama de bronze resplandecia. Em seus olhos não havia nenhum oferecimento para compartilhá-la. Pensou nas ruas que a esperavam e, apesar de tudo, preferiu-as.

—Não posso ficar em suas acomodações particulares —declarou com firmeza, soando como a professora solteirona de trinta e quatro anos que tinha sido.

—Você veio aqui disposta a algo mais que dormir em minha cama, mademoiselle.

A lembrança do desprezo quando ela tinha querido tocá-lo se fez intenso, quase doloroso.

—Mas você não me deseja... Dessa maneira.

Fechou a boca de repente. Por que havia dito isso? Gabriel havia dito que se a possuísse, ela morreria.

—Quando isto terminar, pagarei as duas mil libras - ofereceu Gabriel.

Com duas mil libras, Vitória poderia viver o resto de sua vida confortavelmente. Sem temor à fome, ao frio.

Ou a um homem que aguardava para lhe arrebatar sua virgindade...

—Não desejo dinheiro que não possa ganhar.

Vitória estremeceu. Seus ares de superioridade moral a surpreenderam inclusive a ela mesma.

—Buscarei-lhe um emprego, então - disse tranqüilamente o homem de olhos chapeados.

—Como professora? —perguntou ela, embora não se entusiasmava muito reatar sua antiga profissão.

—Sim.

—Não acredito que os homens respeitáveis queiram contratar a uma professora que esteve na Casa de Gabriel.

—Mademoiselle, meus clientes prefeririam mil vezes contratar uma professora que foi minha hóspede que arriscar-se a que suas inclinações sexuais saiam à luz pública.

Vitória não tinha por que surpreender-se. Então, por que o fez?

—Isso é chantagem - admitiu vacilante.

—Esse é o preço do pecado - respondeu ele implacável.

—Você está me oferecendo sua proteção - disse ela lentamente, tentando entender, raciocinar, de não ceder ao pânico.

—Efetivamente.

Sentiu um grande alívio. E se desprezou por isso. Não queria depender de um homem para seu sustento ou alojamento.

Nem para sua satisfação sexual.

—Durante quanto tempo? —perguntou Vitória de modo cortante.

—Todo o que for preciso.

Tudo o que precisasse para dar caça a um homem, foi o que quis dizer. E matá-lo. 

—Como sabe que não sou cúmplice desse homem?

O horror invadiu Vitória. Não devia ter dito isso. Mas o fez.

—Como sabe você que eu não tenho feito esta oferta para poder matá-la quando seus gritos perturbarem menos a minha clientela? —perguntou ele razoavelmente.

Ela o olhou fixamente, afastando seu olhar da faca que ele sustentava na mão.

—Faria isso? —perguntou sem afastar a vista.

—Este é um local noturno, mademoiselle - respondeu com naturalidade—. Se alguém a ouvisse gritar, pensaria que é produto do êxtase da paixão.

Os homens na rua às vezes grunhiam quando copulavam como porcos escavando em busca de alimento; as prostitutas de ruas os suportavam em silêncio.

—Os homens... E as mulheres... Gritam com freqüência em seu estabelecimento, senhor? —atreveu-se a perguntar.

—As paredes estão desenhadas para garantir a privacidade - respondeu Gabriel cortesmente, a interpretando mal deliberadamente—. Não os ouvirá.

—Os homens e as mulheres que... Se... Nas ruas... Não gritam no clímax da paixão - confessou Vitória fracamente.

Viu seu passado refletido em seu olhar: a fome. O frio. O sexo. A vontade de sobreviver. A qualquer preço. O que faria que um homem como ele suplicasse?

—Os homens e as mulheres na rua se aparean como vivem, mademoiselle - disse Gabriel com indiferença—. Roubam uns instantes de prazer aqui, uma bolsa lá.

E no meio, uma vida. O forro do vestido de Vitória estava desgastado, e doíam os joelhos. Suas palmas estavam úmidas. Esfregou-as sobre suas coxas para secá-las. Sentiu a lã áspera, abrasiva.

—Não posso lhe dizer o nome da prostituta—disse.

Vitória já não podia referir-se a Dolly como uma amiga, mas não queria ser responsável pela morte de outra mulher.

Também ela tinha sido uma vítima das circunstâncias.

—Já lhe disse que se ainda não está morta, logo o estará. —A folha da faca brilhava em sua mão de dedos longos e elegantes—. Seu nome não serve de nada.

Vitória desviou o olhar. Os olhos prateados do homem esperavam que ela voltasse a olhá-lo. Não estava pedindo ajuda. Então, por que se sentia obrigado a oferecer?

—O homem que escreveu as cartas... —Vitória umedeceu lábio superior. Notou áspera a língua—. Não acredito que ele saiba quem é o homem que... Abusou de você.

—Por que está tão certa disso, mademoiselle?

Vitória não se deixou enganar pelo tom cortês de Gabriel.

—Sei por que não acredito que o conheça, senhor.

—Muitos homens me conhecem, mademoiselle - replicou Gabriel cinicamente.

—Se conhecesse sua casa, senhor - respondeu Vitória—, não perseguiria a professora de seus filhos.

Aquelas últimas palavras ressoaram em seus ouvidos.

Os olhos prateados a olharam com expressão dura, intransigente.

—Ou você é uma estúpida, mademoiselle, ou uma mentirosa.

Vitória o olhou muda.  

—Não posso ajudá-lo, senhor.

Se lhe dissesse o nome de quem tinha escrito as cartas, Gabriel iria atrás dele até encontrá-lo.

Ela não queria que soubesse quem era seu pai, nem que descobrisse seu passado.

—Não posso ajudá-lo - repetiu.

—Mas eu sim posso ajudá-la, mademoiselle - disse ele com voz sedosa.

Dando-lhe de comer, proporcionando alojamento e um emprego. Tinha que tomar uma decisão. Vida. Morte.

Mas a que preço? As lágrimas afloraram a seus olhos. Tentou convencer-se de que era produto do esgotamento.

Mas soube que não era verdade.

—Por que quer me ajudar sabendo que eu não posso ajudar você? —perguntou fatigosamente.

Ele ficou de pé, com um súbito rangido de suas botas de couro. Os olhos de Vitória ficaram à altura de sua virilha. Não havia dúvida de seu sexo, que ressaltava através das calças de seda negra. Você é tão grande senhor? Mede mais de vinte centímetros.

Vitória jogou a cabeça para trás. Os olhos chapeados de Gabriel brilharam.

—Talvez, mademoiselle, porque também eu uma vez disse que não suplicaria, agora queira lhe poupar disso.

Havia muito dor em seus olhos. Muita morte. Teria rido alguma vez aquele homem que tinha nascido nos baixos recursos do Calais?

—Alguma vez suplicou a uma mulher por seu prazer sexual? —perguntou impulsivamente.

O calor que invadia a quarto pareceu cristalizar-se.

—Sou Gabriel, mademoiselle. Fui prostituto de homens, não de mulheres.

—Para comer - afirmou Vitória firmemente.

—Para enriquecer - replicou Gabriel com voz fica—. Como acha que pude construir esta casa?

O pai de Vitória lhe tinha ensinado que o pecado era repugnante. Ela tinha experimentado aquela repugnância. Mas não havia nada horrível nem repugnante em Gabriel nem em sua casa. Vitória se deu conta de que nesse momento corria muito mais perigo que quando ele a tinha encontrado revolvendo em suas gavetas. Gabriel perdoaria uma intrusa, mas não uma mulher que indagava sobre seu passado. Podia matá-la com uma faca, uma pistola, uma escova de dente... Ninguém lamentaria a morte de Vitória Childers, uma solteirona virgem. Quem lamentaria a morte de Gabriel?

—Você não respondeu a minha pergunta, senhor. —A voz de Vitória soava como se procedesse de algum lugar longínquo—. Se você não responder a minhas perguntas, não pode pretender que eu responda às suas.

Por um instante, pensou que Gabriel não responderia, e depois...

—Não, mademoiselle, nunca implorei a uma mulher por prazer.

—E alguma vez uma mulher pediu a você esse prazer? —insistiu com o coração pulsando rapidamente.

O sexo como atração sedutora.

—Sim.

—E desfrutou?

—Sim.

—E você... Gritou... De êxtase? —perguntou Vitória, incapaz de parar aquele interrogatório.

Querendo saber mais... Sobre sexo. Sobre um homem chamado Gabriel e uma mulher chamada Vitória. Queria saber por que tinha sido ela a escolhida para ser enviada a sua casa, e não outra mulher. Transcorreram vários segundos eternos, os batimentos do coração pareciam ir compassados com o tempo que transcorria lentamente. Vitória se esforçou por ouvir os sons que podia apreciar na lonjura: os homens e as mulheres no piso inferior, uma carruagem que passava pela rua... Finalmente...

—Não, mademoiselle— não gritei de êxtase.

Mas tinha dado prazer. Agradar para compensar o que ele não tinha recebido. Ambos ficaram em silêncio uns instantes, escutando o crepitar do fogo, os batimentos do coração e a verdade escondida entre as sombras.

—E essas mulheres que suplicaram por seu próprio prazer o fizeram antes ou depois de você chegasse ao êxtase?

—Antes.

Vitória estava hipnotizada pela crueldade nos olhos de Gabriel, que tinham adquirido um tom cinza opaco. A verdade foi se abrindo lentamente em sua mente. Era muito tarde para parar as perguntas, mas desejava poder fazê-lo. Tinha pedido a verdade; agora a tinha.

—Faz quatorze anos, oito meses, duas semanas e seis dias que supliquei liberação através do prazer, mademoiselle. —A pessoa que se ocultava atrás daquela máscara perfeita de mármore pareceu iluminar-se. Era um homem que desejava tocar, ser tocado, abraçar e ser abraçado. Mas foi um instante fugaz; imediatamente voltou a encerrar-se atrás de seu muro de beleza de alabastro—. Depois nunca mais toquei nenhuma mulher.

 

CAPITULO 7

 

—Por o que?

A voz de Gabriel ressoou oca no salão vazio. As velas derretendo-se combatiam a escuridão. Tinha chegado o momento da verdade. Os dois porteiros estavam de pé, firmes, com expressão atenta. As luzes e as sombras brincavam em seus rostos; o cabelo loiro dourado adquiria a tonalidade do trigo, o castanho se transformava em fogo e bronze. Nenhum dos homens sustentou o olhar de Gabriel. Nenhum deles mostrava temor ou remorso. Durante um segundo comprido, Gabriel pensou que não fossem responder. Mas de repente...

—C'est... Foram seus olhos, monsieur.

Gabriel virou a cabeça para olhar a Stephen; um fogo vermelho iluminou seu cabelo castanho, tingido. Disse-lhes que precisava de um protetor, havia dito Vitória Childers.

—Desobedeceram minhas ordens por um par de beaux yeux? —perguntou mordazmente.

—Non, monsieur. —Não piscaram os olhos ambarinos ao olhar os chapeados de Gabriel—. Desobedeci suas regras porque recordei o que é sentir fome e não ter nada que vender exceto o próprio corpo.

—Sua memória não era tão aguda há seis meses, Stephen.

Stephen estava a cinco anos trabalhando para Gabriel. Nenhuma só vez tinha permitido que uma prostituta de ruas ou uma esposa ciumenta cruzassem a soleira do estabelecimento.

Até essa noite. Mas Vitória não era nenhuma prostituta nenhuma esposa, e sim um simples peão. Enviada pelo segundo homem.

O porteiro de olhos azul celeste cravou seu olhar em Gabriel.

—Se não a tivéssemos deixado entrar, senhor, não teria sobrevivido está noite.

John era um simples jovem de Lancashire que tinha ido a Londres para fazer fortuna. Um de tantos que anualmente chegavam à cidade. Sua beleza tinha sido a única qualidade que o tinha diferenciado de outros jovens que procuravam emprego. John tinha sido criado como camponês, para dedicar-se a um trabalho simples e honesto. A prostituição ia contra todos seus princípios.

Mas se tinha dob—rado diante dela. E a tinha transformado em sua profissão durante cinco anos. Isso quase o tinha matado.

Gabriel o tinha tirado da rua, tinha-o alimentado, vestido, tinha-lhe dado um emprego e educação. Levava dez anos a seu serviço. Seis meses antes Gabriel tinha ordenado que protegesse a Michael e a sua mulher. Sentiu aproximar o amanhecer.

—Já conhece o preço da deslealdade, John.

Não havia arrependimento nos olhos de seu empregado, nem desconformidades. Tanto John como Stephen sabiam qual ia ser o preço de seu proceder. E, entretanto tinham agido. Por quê? Um sorriso passageiro resplandeceu nos olhos azul celeste de John, mas se extinguiu com a chama de uma das velas.

—Pareceu-me esplêndida, não acha senhor?

De certo ponto de vista...

—Sim - respondeu Gabriel—. Bastante esplêndida.

Os aristocratas e os políticos se horrorizaram ao comprovar que uma prostituta se valorizava tanto como suas esposas, suas filhas e suas irmãs.

—Stephen e eu recolheremos nossas coisas e iremos antes que os serventes levantem—anunciou John com naturalidade.

Gabriel não podia permitir o luxo de conservar os dois homens, e muito menos agora que o segundo homem tinha retornado.

John, mais que qualquer outro empregado dele, compreendia-o. Mais que nunca, Gabriel necessitava homens em quem pudesse confiar. Ao deixar a mulher entrar em sua casa - uma mulher que facilmente poderia ter sido uma assassina—, tinham demonstrado que não podia confiar neles. Nunca mais poderia fazê-lo. Mas aquela convicção não facilitou sua penosa tarefa.

—Gastón lhes dará dois meses de salário como indenização - disse com tom neutro.

Stephen desviou seu olhar ambarino de Gabriel.

—Obrigado, senhor.

Deu a volta e se afastou, fazendo desaparecer seu cabelo castanho escuro entre as sombras.

—John.

John parou; seu cabelo resplandecia como o ouro.

—Senhor?

Os olhos de Gabriel se entrecerraram, examinando seu rosto e seu corpo se por acaso detectava sinais de tensão.

Sinais de traição.

— Alguém acompanhava à mulher?

—Não, senhor - respondeu John olhando por cima do ombro de Gabriel—. Vinha sozinha.

Podia estar mentindo. Ou podia estar dizendo a verdade. Gabriel jamais saberia. John deu meia volta, caminhando lentamente com silenciosas pegadas, mas parou de novo. Gabriel colocou a mão instintivamente debaixo de sua jaqueta, sentindo a cálida carícia do raso e a culatra dura e suave do revólver. John estava armado, igual a Gabriel e todos os garçons e vigilantes de seu estabelecimento. Os braços do porteiro permaneceram imóveis.

—A neblina era mais espessa que um purê de ervilhas, senhor - disse John em tom uniforme—. A verdade é que não sei se a mulher vinha sozinha ou não. Poderia ter havido alguém com ela aguardando fora do perímetro do abajur do portão. Só posso dizer com certeza é que não vi ninguém com ela.

O peito do Gabriel se contraiu. John dizia a verdade. Mas a havia dito Stephen?

—Por que o fez, John?

—Recordou-me ao senhor Michel.

Olhos ofegantes.

—E também a você.

Os olhos de Gabriel nunca tinham sido ofegantes.

—Recordou a todos nós.

Prostitutas. Alcoviteiras. Mendigos. Assassinos. Ladrões. Todos os que trabalhavam na Casa de Gabriel tinham sobrevivido às ruas. Ruas inglesas e francesas.

—Perguntei-me onde estaríamos agora - prosseguiu John—, se alguém não nos tivesse dado a oportunidade de ganhar dinheiro suficiente, a primeira vez, para escapar dos esgotos.

John tinha escapado dos esgotos muito antes que Gabriel o tivesse encontrado.

—Pega seu dinheiro e compra um terreno, John - disse Gabriel quedamente.

—É muito tarde.

Gabriel pensou em Michael e na Anne. E em suas próximas bodas. A gente de Gabriel chamava Michael e seus empregados, todos imigrantes e sem teto. A imagem do homem de cabelo cinza cruzou a mente de Gabriel. Seguiram-lhe imagens do Clube das Cem Guineas. John tinha escapado dos esgotos para trabalhar naquele clube de homossexuais. Tinha razão. Já não poderia voltar a ser um simples jovem camponês.

—Confia em Stephen, John? —perguntou impulsivamente.

Odiou a si mesmo pelos planos que estava forjando em sua mente, sabendo que não tinha alternativa. Gabriel não permitiria que sua casa se transformasse em um lugar aonde o assassinato fosse algo habitual, ao menos se pudesse evitá-lo. Os músculos das costas do John se contraíram.

—Confio em todos aqui, senhor.

Outro engano. Os prostitutos não podiam permitir o luxo de confiar. Amor. Esperança.

—Confia em mim? —perguntou Gabriel em voz baixa.

—Sim.

A final, Vitória Childers também tinha confiado nele. Tinha comido algo e agora dormia em sua cama, com o convencimento de que se transformou em sua hóspede. Mas não era assim. Ela era tão prisioneira como Gabriel.

—Devo confiar em você? —indagou Gabriel brandamente.

—Fiz o que considerei correto - replicou John com voz forçada.

E faria-o de novo. Presa perfeita. A luz da alvorada envolveu Gabriel. Tinha que escolher. Despedir John e Stephen, porque fizeram o que consideraram correto, ou conservá-los, sabendo que sua piedade podia causar mais mortes. O segundo homem poderia havê-los subornado. Se fossem culpados, aquele indivíduo os mataria. Se fossem inocentes, a demissão de Gabriel acabaria com eles. E tratar-se-ia de uma morte muito pior que a que poderia lhes causar o segundo homem. Toda Londres saberia que tinham sido despedidos. Ninguém contrataria empregados que o anjo intocável tinha rechaçado.

Que John e Stephen voltariam para a prostituição. Embora quase fosse um destino muito melhor que o que teriam se Gabriel lhes pedisse que ficassem. Ninguém tinha direito de pedir a um homem que fizesse o que Gabriel tinha pensado lhes propor.

 

—Não mereciam ser despedido, monsieur.

Gabriel olhou fixamente a toalha manchada de vinho, enquanto em sua mente se desenhava um delicado perfil de mulher, com o nariz reto, a frente alta, o queixo firme. Vitória não acreditava que fosse bonita, mas era. Gabriel só tinha visto seu tipo de beleza em outra pessoa, e ela logo pertenceria a Michael.

—Advertiu-lhes que um homem tentaria matar a monsieur Michel; não os acautelou contra uma mulher - protestou Gastón com voz crispada—. John e Stephen não acreditavam fazer mal algum deixando entrar essa mulher esta noite.

A decisão do Gabriel já estava tomada. Não podia permitir o luxo de arrepender-se. Indecisão. Compaixão. Imediatamente, a imagem de Vitória se empanou; o perfil linear de seu rosto se transformou em uma série de manchas sobrepostas.

—Por que acha que fui muito severo, Gastón? —perguntou Gabriel, elevando o olhar da toalha—. Desobedeceram minhas ordens. Talvez devesse ter aumentado o salário em vez de despedi-los?

—Eles o amam monsieur.

Alguns sons longínquos penetraram no salão vazio, o som metálico de uma frigideira, uma maldição em voz baixa. Pierre estava preparando o café da manhã, embora já fosse bastante tarde. Logo os serventes se disporiam a limpar o açougue no salão.

Gabriel recordava as circunstâncias e o ano em que tinha contratado a cada um deles. Não queria seu amor; queria sua lealdade.

—O amor tem um preço, Gastón - replicou Gabriel com ar longínquo—. Entrega-se a quem paga o salário mais alto.

Ou a tarifa mais alta. O amor de quem vendia seu corpo trocava com cada cliente.

—Os homens estão inquietos, monsieur.

—Seus postos não perigam sempre e quando cumprirem as normas da casa.

—Acreditaram que você tinha morrido faz seis meses.

Gabriel ficou imóvel. Nem Gastón nem nenhum de seus empregados tinham comentado jamais os sucessos ocorridos fazia seis meses.

—Como podem ver, estou muito vivo.

—Você queimou a casa - acusou Gastón friamente.

Mas depois a tinha reconstruído. Tinha-a queimado para salvar um anjo; tinha-a reconstruído para apanhar um monstro.

—Compensei-lhes por tudo o que perderam.

—Não é questão de posses, monsieur. —A vela que Gastón tinha a sua direita emitiu um chiado e se apagou; o rosto de Gastón se obscureceu entre as sombras—. Não confiou neles ao ocultar a verdade. Já não sabem se podem confiar em você.

Confiança. Verdade. O suave cheiro de café dissimulou o cheiro rançoso do vinho e tabaco que invadia todos os cantos do salão.

As pessoas que vendiam seu corpo não podiam permitir o luxo de confiar. Houve um tempo em que Gabriel acreditou que conhecia a verdade; o segundo homem tinha demonstrado que estava enganado.

—Está dizendo, Gastón, que não posso confiar em nenhum de meus empregados? —perguntou Gabriel cuidadosamente.

Gastón endireitou os ombros.

—Ninguém de sua casa o trairia.

—E, entretanto não levou daqui monsieur Michel segundo minhas instruções - proclamou Gabriel bruscamente—. Alguns poderiam pensar que essa é uma forma de traição.

A lembrança do passado apareceu refletida nos olhos de Gastón.

—Monsieur Michel não queria soltar seu corpo - disse com emoção contida.

Gabriel recordou... ... O eco de um disparo. ... O bafo prateado da respiração.

Chorou minha morte?

Sim.

—Não era meu corpo - confessou Gabriel com o olhar perdido.

Michael havia segurado o cadáver calcinado de um mendigo, não o do Gabriel.

Gabriel tinha colocado o corpo daquele pobre diabo em seu leito, esperando que o confundissem com ele.

E assim tinha ocorrido. Fez tudo o necessário para salvar Michael. Para que pudesse viver uma vida e não um pesadelo.

Só para descobrir que o pesadelo acabava de começar.

—Ele pensou que fosse seu corpo, monsieur. —Uma estranha onda de emoção iluminou o rosto de Gastón—. Ele o ama. Monsieur Michel forma parte desta família. Não o jogarei daqui. Jamais. Cuidou de nós quando não tínhamos aonde ir.

Duas palavras golpearam a Gabriel como um punho. Jamais. Nunca. Família. Todos eram prostitutos. Alcoviteiras. Mendigos. Assassinos. Ladrões. Seu passado nunca mudaria. Nenhum deles estaria ali se tivessem uma família. Gastón olhou fixamente por cima da cabeça de Gabriel.

—Pago também dois meses de indenização, monsieur?

Um pequeno sorriso apareceu no rosto de Gabriel. Gastón estava quatorze anos com ele. Gabriel o tinha encontrado em um beco no Seven Dials convertido em uma massa sanguinolenta depois de uma surra. A Casa de Gabriel não funcionaria sem ele, que não só se ocupava de sua administração, mas também do pessoal que ali trabalhava.

—Para que possa procurar emprego com monsieur Michel? —perguntou sem indício de aborrecimento—. Je ne crois ps, mon ami. Certamente abririam um local para me fazer concorrência, e o que seria de mim?

Gastón não tranqüilizou com o comentário de Gabriel.

—Os homens têm medo, monsieur.

O ambiente de informalidade se dissipou bruscamente.

—lhes pague mais - ordenou Gabriel com um tom de voz duro.

—Querem saber a quem devem matar, monsieur, em vez de ficar tensos cada vez que se desarrolha uma garrafa de champanha. S'IL vous plait. Se pudesse nos descrever ao homem que o ameaça...

Vitória tinha pronunciado palavras similares. Se você não responder a minhas perguntas, não pode pretender que eu responda às suas. Gabriel abriu a boca. Era um pedido razoável. Os homens que arriscavam suas vidas para salvar a outro mereciam saber que aspecto tinha seu assassino.

Mas não podia responder a aquela questão, e se limitou a dizer:

—Veio um homem aqui esta noite.

—Vieram muitos homens aqui ontem à noite, monsieur.

Gabriel ignorou o comentário sarcástico de Gastón.

—Tratava-se de um homem de cabelo cinza; tem ao redor de cinqüenta e tantos anos. Seu nome é Gerald Fitzjohn. Quero seu endereço de Londres. Envie Jeremy à biblioteca para que a busque.

—Jeremy acaba de se deitar, senhor.

—Então sugiro que o desperte, Gastón - ordenou Gabriel em voz baixa, perigosa.

—Muito bem, monsieur - respondeu Gastón tenso.

—E envia Jacques ao Time e ao News.

Eram dois dos jornais mais populares de Londres.

Gastón abriu a boca para protestar - também Jacques acabava de deitar—, mas fechou imediatamente.

—Quero que Jacques revise a seção de anúncios de trabalho do último ano e meio. —Gabriel recordou as palavras de Vitória: Se conhecesse sua casa, senhor, não perseguiria a professora de seus filhos—. Diga-Lhe que procure anúncios repetidos para contratar a uma professora ordenados pela mesma pessoa. Se encontrar algum, quero que anote os nomes e os endereços.

Vitória podia acreditar que era uma vítima casual de seu patrão; Gabriel sabia que não. Os homens que perseguiam as mulheres, no geral, tinham antecedentes de vítimas anteriores. Certamente a casa em que tinha estado empregada punha anúncios solicitando professoras com regularidade.

—Très bem - disse Gastón.

—Pede a David que vá às agências de emprego. —David estava acostumado a fascinar a homens e mulheres, jovens ou velhos—. Que explique que uma professora chamada Vitória Childers solicitou um emprego, mas que perdeu seu endereço.

Os olhos de Gastón se abriram de par em par, ao inteirar do nome e a profissão da mulher da capa.

—Quando Jeremy encontrar o endereço de Fitzjohn, diga que procure nos arquivos o sobrenome Childers. Se encontrar a uma família Childers com uma filha chamada Vitória, que anote nome e endereço.

—Très bem.

Muito bem. Mas nada bom resultaria dessa noite. As mortes tinham começado.

—Gastón.

—Oui? —perguntou o administrador com cautela.

—Quero essa informação a meio-dia - ordenou Gabriel com voz pausada—. Diga a uma das criadas que me desperte quando voltarem.

De repente, Gabriel se sentiu tremendamente cansado. A idéia de dormir em um sofá de couro não o seduzia muito.

Vinte e sete anos atrás, lhe teria parecido um luxo. Mas já não era um menino, e sim um homem e conhecia o preço da vida.

—Três bem, monsieur. Encarreguei o Evan, Julien e Aliem que vigiem à mulher. Farão turnos de oito horas.

—Merci.

Gastón se retorceu as mãos. Perguntou se a mulher dormia... Ou se também estaria preocupada.

Ninguém me abraçou jamais, tinha confessado. Mas teria deixado que ele a abraçasse... Empapado de suor e de sexo.

—Muitos dos homens sentem compaixão pela mulher - soltou Gastón.

Gabriel sentiu que o cabelo de sua nuca se arrepiava.

—Matarei o que a deixar escapar - disse Gabriel suave e perigosamente—. Comunique aos homens que se comparecem.

—Não gostam de pensar que você a está castigando.

—E por que teriam que pensar isso, Gastón? —perguntou. A suavidade de sua voz adquiriu um tom mordaz.

—Marcel não disse nada sobre a nota que encontrou monsieur - replicou Gastón à defensiva—. Mas os homens acreditam que algo esta errado. Você poderia parar o leilão, mas não o fez.

Não, Gabriel não tinha freado semelhante insensatez. Ao contrário, tinha dado lances pela mulher e agora estava em seu poder.

Antes do meio-dia, a notícia sobre a mulher da capa que tinha tentado o anjo intocável teria se difundido por toda Londres.

—Diga que o homem que quer me matar também matará ela. —Gabriel deixou que a verdade se filtrasse em seus olhos e em sua voz—. Se escapar, não terá nenhuma possibilidade de sobreviver.

Gastón olhou fixamente para Gabriel. Multidões de perguntas se viram refletidas em seus olhos castanhos.

Por quê? Por que tinha construído Gabriel uma casa aonde se podia satisfazer qualquer desejo só para atrair a um assassino?

Por que um assassino queria destruir dois homens prostitutos com tanta veemência que se arriscava a cair em uma armadilha voluntariamente? O que lhe tinha feito o segundo homem, depois de doze anos de prostituição, para que Gabriel não tolerasse nenhuma simples carícia? Mas aquelas perguntas não foram formuladas por Gastón, embora Gabriel soubesse que Vitória sim as faria. Tinha-lhe contado mais do que nunca tinha contado a ninguém. Havia-lhe dito que tinha suplicado, mas não qual tinha sido o objeto de suas súplicas. Entretanto, sabia que ela o perguntaria. Talvez no dia seguinte, ou dentro de dois dias. Vitória perguntaria por que tinha suplicado ao segundo homem. E Gabriel o diria. Ela merecia uma resposta.

—Nós estamos dispostos a morrer por você, monsieur - afirmou Gastón com simplicidade—. Ninguém se oporá a seus desejos.

Alguns homens —e também mulheres— morreriam. Era parte do jogo.

Gastón desviou o olhar.

—O que disse sobre monsieur Michel...

Gabriel recordou as palavras de despedida que tinha dirigido a Michael.

—Acredito que, de momento, não precisamos nos preocupar com monsieur Michel - o interrompeu, tentando ignorar a dor.

Pensou no puído vestido de lã de Vitória, em suas calcinhas de seda desgastadas e em suas meias enrugadas. Minha virgindade é o único que fica, havia dito. Tinha paixão. Desejava que me tocasse; portanto, sou uma prostituta, havia dito. E ele tinha deixado que acreditasse. Mas a paixão não transformava um homem ou uma mulher em prostituto ou prostituta; realizar o ato sexual sem paixão era o que se transformava em tal. Michael tinha entregue seu corpo; nunca tinha sido prostituto. Diferente de Gabriel.

E isso garante minha morte?

—Envia uma mensagem para madame René - ordenou Gabriel com brutalidade—. Diga que precisamos de uma costureira.

 

CAPITULO 8

 

O negrume oprimiu as pálpebras, uma mão masculina... Afogando um grito, Vitória tentou se sentar, com seu peito agitado e o cabelo obstruindo seus movimentos. Para descobrir que aquele negrume não estava provocado por uma mão. Vitória tinha dormido em meio da escuridão, e despertou em meio da escuridão. Tomou consciência da firmeza do colchão debaixo de suas nádegas e da suavidade do lençol que a cobria. Não estava em sua cama. O quarto que Vitória alugava tinha um catre duro e gasto e não incluía lençóis. Pela janela coberta de fuligem não entrava nem a cinzenta luz diurna nem a dourada dos faróis da rua.

Um sabor rico e doce persistia em sua boca. Chocolate. Ao recuperar lentamente a consciência, as lembranças se abriram em sua mente com toda claridade. Vitória estava no quarto do homem de olhos e cabelo chapeados. Não tinha janelas. E o doce sabor que sentia em sua língua procedia da xícara au chocolat que tinha formado parte de seu jantar. Um jantar que tinha comido sozinha.

Sob o cheiro de sabão da roupa e o amido, percebia um leve cheiro que reconheceu como o de Gabriel, uma fragrância a almíscar da pele masculina. Vitória tinha dormido entre os lençóis nos quais ele tinha dormido. Seu cheiro a tinha perseguido em seu sonho a noite anterior. Ou acaso ainda era de noite? Esforçou-se por ouvir... Sua respiração. Sua presença. Seus pensamentos. Mas não percebeu absolutamente nada. Este é um local noturno, mademoiselle... As paredes estão desenhadas para garantir privacidade.

O calor invadiu seu corpo. Os pensamentos que tinha expressado e as perguntas que tinha feito ao belo homem de olhos chapeados a noite anterior fluíram por sua mente como uma corrente. Alguma vez suplicou a uma mulher por seu prazer sexual?...

Não, mademoiselle, nunca roguei a uma mulher por prazer. Alguma vez uma mulher pediu a você esse prazer? Sim. E desfrutou?

Sim. E você... Gritou... De êxtase? Não, mademoiselle, não gritei de êxtase. E essas mulheres que suplicaram por seu próprio prazer o fizeram antes ou depois de que você chegasse ao êxtase?...Faz quatorze anos, oito meses, duas semanas e seis dias que supliquei liberação através do prazer, mademoiselle. Depois disso não toquei nenhuma mulher. A escuridão oprimiu o peito de Vitória. Tinha contado os dias, as semanas e os meses desde que tinha sido despedida de seu emprego. As perdas e as situações indignas que tinha tido que sofrer empalidecia em comparação com o que Gabriel tinha experimentado. Ele negava as necessidades da carne por causa de um ato sobre o qual não tinha tido controle. E tinha contado cada minuto, cada hora de cada ano transcorrido após. Imediatamente, Vitória recordou Dolly, a prostituta de ruas, e o papel dobrado que tinha posto em sua mão, lhe assegurando que era para sua proteção. Uma voz masculina descobriu a mentira em toda sua crueldade. O que sua amiga lhe disse que era isto? Vitória tentou afastar aquela realidade. É sublimado corrosivo, mademoiselle. Sua amiga disse como administrar estes comprimidos? Mas a verdade permaneceu persistente em sua mente. Um só tablete provoca convulsões violentas, freqüentemente seguidas pela morte. Dois tabletes inseridos em sua vagina, mademoiselle, com toda segurança lhe causariam a morte. O peso que oprimia o peito se transformou em uma bigorna; desceu até a parte baixa de seu abdômen.

Vitória retirou as mantas e se levantou. Sentiu o frio chão de madeira sob seus pés descalços, e o ar que envolveu sua nudez pareceu gelado. Na lareira não havia nenhum rescaldo que irradiasse luz nem calor. Nem segurança. Gabriel, proprietário, prostituto e assassino confesso, poderia aparecer na porta em qualquer momento e acender a luz. Sim estava úmida de desejo. Porque sim queria que você, um estranho tocasse-me. De novo, pareceu-lhe surpreendente que não havia sentido vergonha quando fez aquela confissão e continuava não sentindo. Parou com esforço a onda de lembranças. Não podia permitir o luxo de sentir medo. Esperança. Desejo. O eterno desejo de uma mulher. Levantou os braços para o frente, medindo na escuridão enquanto caminhava com cuidado, mas bateu contra uma parede negra. O repentino choque de seu corpo contra a madeira rompeu por um instante o silêncio palpitante. Não era uma parede... Bateu no armário. Vitória ficou paralisada, com o coração acelerado.

A teria ouvido? E se viesse investigar a causa do ruído? Estava completamente nua. Não usava nem sequer um par de meias.

Onde estava seu vestido? Em que direção se encontrava o banheiro? Deslizando as mãos, Vitória tocou a lateral do armário, a parede continua... Apalpou a parede com os dedos da mão esquerda, estirando a direita para proteger do golpe contra algum móvel. Ou para defender do ataque de um homem. Seus dedos tropeçaram contra um marco de madeira e se afundaram em um espaço vazio. Tinha encontrado o banheiro. Aparecendo pelo marco da porta, Vitória deslizou as pontas de seus dedos ligeiramente pela parede, descrevendo círculos. Apalpou a lisa pintura acetinada, metal gelado... E, no fim, um interruptor de madeira. A luz a cegou por um momento. Em seguida foi materializando um móvel de cobre brilhante, aquela mistura de banheira e ducha... Um monólito de mármore, o lavabo... E uma mulher nua envolta em um enredado cabelo escuro. O olhar de Vitória se separou do reflexo de sua imagem no espelho, sobre o lavabo de mármore. Do toalheiro de madeira pendurava uma peça de seda amarelada e malhada e, a seu lado, uns tubos informem vermelhos.Na noite anterior Vitória tinha lavado suas calcinhas e suas meias antes de deitar-se, como era seu costume. Haveria ele entrado no quarto e no banheiro enquanto ela dormia? Teria visto o que nenhum homem tinha direito a ver, o vão intento de uma mulher de seguir sendo refinada quando o refinamento não tinha sentido? Voltou a olhar-se no espelho. Seu próprio reflexo lhe devolveu descaradamente o olhar. Entre suas longas mechas enredadas de cabelo escuro apareciam uns seios brancos; uma mulher despojada de suas posses terrestres e de sua orgulhosa vaidade. Eu a conheço, Vitória Childers, assegurava o homem que tinha escrito as cartas. Mas Vitória não conhecia a mulher do espelho, nem a que se despiu diante um estranho e não tinha sentido vergonha. Seus seios se elevavam vigorosos, como uma proclamação de seu sexo. Um símbolo de fraqueza e vulnerabilidade. O pecado de uma mulher. O desejo forma parte de todos nós, mademoiselle. Vitória recordou os membros e a nata da sociedade que a tinham visto leiloar sua virgindade. Homens que serviam no parlamento; mulheres que regiam a sociedade. Tinham encontrado a paixão que procuravam? Uma mão pálida e magra se levantou no espelho. Quer ser beijada... Murmurou com provocação uma voz masculina familiar. A mulher do espelho se tocou nos lábios avermelhados. As pontas dos dedos de Vitória roçaram a pele rachada; um calafrio percorreu todo seu corpo.

Nenhum homem a tinha beijado nos lábios. Os homens não beijavam as mulheres da rua; só copulavam com elas. Agora entendia por que. As prostitutas de ruas tinham lábios ásperos, rachados... Como os seus. Seis meses antes tinham sido suaves e sensuais.

Acaso tinha admirado em segredo a sensualidade de seus próprios lábios e a suavidade de sua pele? Tinha sido tão evidente sua vaidade? Seus seios... Incitou a insinuante voz masculina. A mão pálida e magra do espelho descendeu lentamente, roçando o queixo proeminente, o pescoço tenso, o delicado terreno baixo de sua clavícula. Sob a cascata de cabelo escuro, seus dedos rodearam um de seus redondos seios. Notou-o suave e turgidos, justamente o contrário que o resto de seu corpo. Um mamilo apareceu entre seus dedos e o cabelo emaranhado, como um escuro casulo de rosa. Mas seu tato nada tinha que ver com as pétalas das rosas. Era duro e estava rodeado por umas protuberâncias minúsculas, e na ponta se notava uma ligeira depressão. Antes de receber as cartas, Vitória nunca tinha examinado seu corpo nu, nem havia se tocado, exceto quando se lavava com uma toalhinha.

Jamais tinha sido consciente da sensualidade latente sob seus simples vestidos de lã, esperando que ela a reconhecesse.

Agora o homem dos olhos e cabelos chapeados tinha lido as cartas. E sabia... Quer aquilo que toda mulher deseja secretamente.

Mas ela não queria desejar. Ser beijada, acariciada... Com as mãos, com os lábios, com a língua. Não queria ansiar. Não queria desejar...O calor de uma carícia. A união da penetração. Não queria suspirar pelos dedos de um homem, seu pênis, sua língua.

Vitória deu a volta, deixando cair sua mão enquanto seu cabelo balançava. Durante os últimos seis meses tinha tido que ficar cócoras sobre um urinol descascado; o luxo de sentar-se sobre a suave tampa de madeira de um vaso era extremamente grato.

Recordava-lhe as comodidades que antes dava por certas e o bem-estar que tinham arrebatado, e que talvez nunca mais poderia voltar a desfrutar. Tudo tinha terminado. Suas bagatelas chinesas. O colar de pérolas cultivadas, os brincos de coral que nunca se atreveu a usar, o relógio de prata gravada que tinha presenteado seu primeiro patrão, sua roupa... O quarto alugado que cheirava a pobreza e desespero, e que já não podia pagar. Certamente já a teriam arrendado a outra pessoa. Receberia as cartas dirigidas a Vitória? Leria, e desejaria que chegassem mais, como tinha acontecido a ela? Estirou a mão para alcançar a caixa de lenços de papel que se encontrava a suas costas. A água da cisterna baixou com um discreto fervo em vez de emitir o ruidoso som a encanamento antigo como acontecia em casa de seus antigos patrões. Sua roupa interior ainda estava úmida, seu futuro ainda era incerto. Podia voltar para a cama ou vestir-se. Podia imaginar que era hóspede de Gabriel... Ou aceitar sua condição real de prisioneira. Podia escolher... A banheira a atraía poderosamente.   Vitória tentou recordar a última vez que tinha agido unicamente por seu próprio prazer. Não foi capaz. De menina tinha tido pânico de pai, temendo que a ofendesse. E o tinha feito. Como professoras aterrorizavam-lhe seus patrões, temendo que a despedissem. E o tinham feito. Agora já não era nenhuma menina nenhuma professora, e sim uma mulher que podia seguir seu próprio instinto. Já não tinha nada a perder. Nem o amor de um pai nem o salário de um patrão. Atravessou com decisão o frio chão de ladrilhos. Seis grifos de metal se destacavam em um painel de madeira no móvel que combinava banheira e ducha. Estavam claramente assinalados com os rótulos “quente”, “fria”, “banheira”, “aspersão ligeira”, “massagem para o fígado” e “ducha”. Com o coração na boca, Vitória abriu o grifo que dizia “ducha”.

Não aconteceu nada. Voltou a fechá-lo com rapidez. A teria quebrado? Transcorreram uns segundos eternos antes que prevalecesse a razão. Tentou de novo com o grifo de água fria. O rugido de água em cascata não saiu do tubo de cobre da banheira —Vitória apalpou sob o capuz de cobre— nem tampouco do amplo disco redondo de cobre perfurado que pendurava na parte superior. Um pequeno termômetro situado sobre os seis grifos chamou sua atenção. Ocorreu-lhe que a água fria podia desembocar em um tanque misturador. Abriu o grifo de água quente. O termômetro registrou instantaneamente um aumento na temperatura. Além disso, um metro calibrava a capacidade do tanque misturador, advertindo que se ia enchendo um quarto, dois quartos, três quartos até alcançar sua completa capacidade. Vitória fechou rapidamente os grifos de água quente e fria. Com a emoção seu pulso se acelerou. A porta do quarto de banho não tinha fechadura. Aquela idéia não diminuiu sua emoção. Introduziu-se na banheira de cobre, encolhendo os dedos dos pés ao entrar em contato com o metal gelado, e deu uns passos cautelosos até ficar debaixo do biombo. Imediatamente, Vitória se sentiu encerrada por todos os lados; era como entrar em uma gruta de cobre. Dois discos menores em cada um dos lados se inclinavam para baixo, à altura do quadril. Nos quatro cantos estava colocado um conduto de cobre perfurado de cima abaixo. O biombo de cobre lhe devolvia sua própria imagem de pele acobreada imitando todos seus movimentos, girando a cabeça, tirando peito, subindo ou baixando os braços... Vitória abriu o grifo marcado com o rótulo “aspersão ligeira”. Instantaneamente sentiu a água quente sobre seus seios, suas nádegas, seu quadril esquerdo, seu tornozelo direito, seu rosto, seu estômago, suas costas. Não ficou uma só fresta de seu corpo que não fosse alcançado pela água que saía a pressão dos quatro tubos perfurados. O cabelo pregou nos ombros e nas costas; o vapor lhe encheu os pulmões.

Fechou o grifo. O jorro de água parou imediatamente. Sentindo-se audaz, abriu o grifo que dizia “ducha”. Quase imediatamente se deslizou sobre seu corpo uma chuva surpreendente. Vitória nunca havia sentido nada semelhante. A força da água derramando-se sobre sua cabeça e seus ombros a aguilhoava e acariciava de uma vez. Era como estar nua sob uma cascata no verão. Instintivamente se deixou inundar na chuva e o calor. Sobre um suporte de cobre viu uma pastilha de sabão e um frasco de xampu. A marca estava imprecisa pelo vapor. Reconheceu o cheiro; era o sabão de Gabriel, e seu xampu. O homem que tinha prometido que a protegeria. Se pudesse. Ensaboou-se vigorosamente, e depois virou o rosto para cima, para aquela ducha como cascata, até que consumiu toda a água do depósito. Durante breves instantes, recuperou a alegria que surgia da inocência. Mas muito em breve também se evaporaram. Sua alegria. Sua inocência. Abriu os olhos e olhou fixamente à mulher de pele acobreada com o cabelo escuro e liso refletida no biombo. Os painéis de cobre estavam cheios de gotas de água, como uma janela açoitada pela chuva.

A água prateada deslizou por seu corpo em gotas lentas e sinuosas; seus traços se viam empanados, apagados, desavergonhadamente sensuais. A mulher antes de ser condenada pelo homem. A imagem da mulher de pele acobreada lhe conferia um estranho poder, que não se dissipou quando Vitória saiu daquela gruta de cobre. A toalha de cor azul clara que repousava na barra de madeira junto à banheira era suave, grosa, voluptuosa. Vitória usou a toalha de Gabriel. O espelho sobre o lavabo de mármore estava embaciado pelo vapor. De momento, não havia nenhum reflexo de pele pálida e cabelo escuro que substituísse à imagem acobreada que havia no interior da ducha. Vitória Childers, durante uns instantes, deixou de existir.

Um cabelo loiro tinha ficado preso entre os dentes de um pente de marfim. Uma pontada aguda atravessou seu peito.

Você não me deseja, tinha acusado ao Gabriel. Surpreenderia-se saber o que eu desejo mademoiselle, tinha respondido ele.

Usou o pente de Gabriel. Uns fios do úmido cabelo escuro se misturavam com o único cabelo loiro. Umas lágrimas causaram ardência nos olhos. Agarrando-se com empenho à ilusão de controle, Vitória abriu a gaveta que havia sob o lavabo de mármore para encontrar uma escova de dente com cabo de marfim.

A escova de dente de Gabriel. Sua própria escova de madeira estava dentro de sua bolsa, junto às cartas e um pente deteriorado que faltavam uns dentes. Havia duas xícaras au chocolat na bandeja do jantar que haviam lhe trazido a noite anterior. Teria retornado ele depois de que Vitória se retirou? Teria bebido a xícara au chocolat? O que tinha feito exatamente o homem a Gabriel para que não houvesse tornado a tocar a uma mulher? Fuçando na gaveta de madeira, Vitória encontrou outra escova de dente idêntico a de Gabriel com seu cabo de marfim. Parecia nova. Usou-a, e também o copo de Gabriel, que estava em um extremo do lavabo, para enxaguar a boca. Sentiu-se limpa, como não o tinha estado em muitos meses. Era uma sensação excitante.

Sua roupa interior ainda estava úmida. Não podia fazer nada salvo esperar a que se secasse. E teria que voltar a usar seu vestido, que não estava limpo, apesar de que Vitória se esforçasse por mantê-lo bem. Tremendo de repente a causa do frio e pelo cabelo úmido que caía sobre as costas e as nádegas, abriu a porta do banheiro. O quarto já não estava às escuras, e sim alagado pela brilhante luz elétrica. Uma mulher de baixa estatura com cabelo de cor vermelha acesa se encontrava de pé junto à poltrona na qual Vitória tinha deixado seu vestido na noite anterior. Usava um pequeno chapéu azul com uma vistosa pluma de pavão sobre seu elegante penteado. Com uma mão segurava com desdém o vestido de lã marrom de Vitória, mantendo-o a distância como se temesse que estivesse infestado de insetos. As magras costas da mulher ruiva estava tensa e em seu rosto maquiado, em um vão intento de tampar as rugas, estava refletido o desgosto. Cravou seus olhos em Vitória quando a viu aparecer. Ambas as mulheres se olharam fixamente em silêncio: uma com olhos assombrados, a outra com olhos críticos. A mulher ruiva examinou Vitória como o tinham feito os homens e as mulheres que tinham sido testemunhas de seu leilão. O assombro deu passo a uma ira crescente. Aquela mulher não tinha nenhum direito de julgar Vitória; nem por suas ações nem por sua roupa. Um colar de pérolas brilhante se enroscava em seu pescoço. Vitória não pôde evitar pensar que com o que abundancia aquele colar poderia alimentar a todos os mendigos de Londres. Tinha várias opções: ocultar-se no banheiro, tampar-se com suas mãos, ou recuperar o que era dela. O orgulho. A dignidade. Seu vestido. Caminhou para a mulher mais velha e lhe arrancou das mãos o vestido de lã marrom, sem encontrar resistência. De seu metro e setenta, pareceu uma mulher diminuta. Não acreditava que medisse mais de um metro e cinqüenta; Vitória teve que baixar a cabeça para olhá-la. Apertando o vestido contra seus seios para tentar cobrir-se com ele, Vitória deu um passo para trás, recuperando sua dignidade.

—Acredito que se confundiu de quarto, senhora - disse gelidamente.

—Madame —corrigiu imperiosamente a mulher mais velha—. Sou madame René.

Falava como se pertencesse à realeza francesa ou, ao menos, como se Vitória tivesse obrigação de reconhecer seu nome.

—Não obstante, madame—disse causticamente—, você está em meu quarto. Faça o favor de partir.

—Esta chambre de coucher, mademoiselle, pertence a monsieur Gabriel, não a você. Não acostumamos fazer visitas a domicílio. Vê... Não percamos tempo. Tenho clientes que me esperam.

Clientes... Homens?... Esperando a ela? Acaso aquela mulher era uma prostituta? Arrebatou-lhe o vestido, e suas mãos pareceram a Vitória incrivelmente mais fortes que as suas, apesar de sua estatura. Durante um segundo, perguntou se Gabriel tinha chegado por trás sigilosamente e tinha tirado o vestido. Mas só estavam elas duas no quarto: uma mulher de idade indefinida, baixa e vestida elegantemente na última moda, e uma mulher de trinta e quatro anos que unicamente se cobria com seu cabelo úmido.

Madame René caminhou em círculo ao redor de Vitória. Vitória virou sobre seus calcanhares, empenhada em recuperar seu vestido. Duas mãos quentes seguravam seus seios, levantando-os e aproximando-os simultaneamente.

—Tem uns seios aceitável, mademoiselle. —Liberou os seios de Vitória imediatamente. Madame René procurou em um bolso interior, tirou uma fita métrica enrolada e a desdobrou entre suas pequenas e delicadas mãos. Um anel com um enorme diamante, do tamanho de um ovo de pomba, brilhou no dedo indicador de sua mão direita—. Mas não tem quadris nem derriére. Desenharemos vestidos que lhe realcem o busto, oui? E depois usaremos enchimentos para os quadris e o derriére.

Vitória olhou fixamente para mulher. Os homens manuseavam os seios das mulheres, mas as mulheres não.

O vestido de lã estava atirado no chão entre as duas mulheres. Vitória deixou de lado a dignidade. Tinha estado nua diante de Gabriel, mas não ia desfilar nua frente a uma mulher que lhe manuseava os seios. Lançou-se precipitadamente a recuperar seu traje. Madame René foi mais rápida, dando um chute com seu pé diminuto no vestido, que se deslizou pela madeira reluzente como um espelho.

—Agora está por minha conta, mademoiselle. —Aquela voz tinha um ar de autoridade que não admitia réplicas—. Não permitirei que uma de minhas mulheres se vista com farrapos. Por minha conta..... Uma de minhas mulheres.

Acaso pensava Gabriel conseguir a Vitória um novo emprego instruindo-a para ser prostituta? Ao se dar conta de que com aquele movimento seus seios se balançavam refletindo-se no chão de madeira brilhante, Vitória se endireitou. Um ligeiro jorro de água gelada deslizou pela abertura das nádegas.

Fechou os punhos, reprimindo um ataque de ira.

—Madame René, não preciso de uma cafetã.

A mulher mais velha estirou tudo o que sua curta estatura lhe permitiu.

—Sou uma couturiére, mademoiselle.

Uma costureira. Gabriel havia dito que sua casa não era um bordel. Por que teria que ir ali uma costureira?

—Madame, é evidente que houve um engano. —Os mamilos de Vitória se elevaram como se quisessem cortar o ar entre eles—. Eu não mandei chamar a nenhuma... couturiére.

Entrecerrou seus brilhantes olhos, semelhantes aos de uma coruja, com expressão reflexiva.

—C'est vrai - afirmou.

—O que é verdade? —perguntou Vitória bruscamente, com os braços retos aos lados, abandonando toda possibilidade de cobrir seu corpo.

—Monsieur Gabriel não pode como dizem em seu idioma? Não pode ter uma ereção para uma mulher.

A imagem das calças de seda negra de Gabriel enquanto se inclinava sobre ela a noite anterior cruzou a mente de Vitória. Seguiu-a o eco das palavras dela, das palavras dele. Contar-lhe a verdade tinha lhe causado uma grande dor, mas o tinha feito. Como se atrevia aquela mulher a julgá-lo? O broto de ira foi contido pela acuidade refletida no olhar de coruja da mulher. Só havia uma razão pela qual aquela autoritária mulher poderia haver-se deslocado até ali. Esta chambre de coucher... Pertence a monsieur Gabriel, havia dito.

—Monsieur Gabriel a mandou vir - disse Vitória com perspicácia.

A mulher maior inclinou a cabeça.

—Mandou vir uma de minhas costureiras, oui.

Mas não tinha pedido expressamente que viesse madame René.

—Mas quis vir você mesma porque queria ver a mulher que ele tinha comprado - conjeturou Vitória.

—Todo Londres quer ver a mulher pela qual monsieur Gabriel deu vários lances mademoiselle.

Para podê-lo julgar. Como ele mesmo já se julgou.

—Já conseguiu seu objetivo, madame René - declarou mordazmente Vitória—. Agora, por favor, saia. Pode informar a seus clientes de que o senhor Gabriel não tem problemas de ereção com uma mulher.

E que Vitória tinha peitos aceitáveis, mas que carecia de quadris ou derriére. Nos olhos de coruja da mulher mais velha apareceu um brilho de curiosidade.

—Está zangada.

Vitória não o negou.

—Eu não gosto das intrigas, madame.

As mentiras haviam tirado o emprego de Vitória. E agora talvez custariam sua vida.

—As intrigas não podem fazer mal a alguém sem nome, mademoiselle - replicou madame René desdenhosamente.

Já fazia tempo que Vitória se acostumou a aquele tipo de desprezo.

—Mas o senhor Gabriel sim tem um nome - afirmou com tom irônico.

De repente, a costureira, com sua cabeça inclinada, recordou a Vitória uma inteligente e ardilosa ave... De rapina.

—E você acredita que o afetariam todas estas fofocas? —perguntou madame René com curiosidade.

—Eu acredito, madame, que qualquer homem se sentiria aflito ao ver sua vida privada na boca de todos. —O tom de Vitória parecia querer resolver aquela conversa.

—Mais monsieur Gabriel não é qualquer homem, est-IL?

—Não, não é - assentiu friamente Vitória. Sua voz tinha a mesma temperatura que sua pele nua—. Se fosse, não estaria vivo.

Madame René endireitou a cabeça, fazendo balançar suavemente a pluma de pavão.

—Não, não estaria - admitiu a costureira com brio.

Vitória piscou. Durante um fugaz instante, a aprovação brilhou nos olhos ambarinos da mulher mais velha; depois foi substituída por uma expressão petulante de condescendência.

—É afortunada, mademoiselle. Monsieur Gabriel é très riche. Nem todo mundo pode pagar meus vestidos.

Vestidos... Gabriel tinha contratado uma costureira para que confeccionasse seus vestidos. Vitória imaginou uma frívola criação feminina de seda e renda. A pontada de desejo por possuir um traje novo quase produziu uma dor física. Imediatamente, a imagem foi substituída pelo vestido de lã marrom que repousava enrugado sobre o chão. Não queria caridade.

—Não preciso de mais trajes, obrigado, madame René - recusou Vitória com desenvoltura—. E agora, se fizer o favor de me desculpar...

Um brilho ardiloso apareceu nos olhos de coruja.

—Se me despedir, mademoiselle, só conseguirá aumentar os rumores sobre as habilidades de monsieur Gabriel.

Diante a manipulação da costureira, no rosto de Vitória apareceu uma careta de desgosto.

A chantagem era o preço do pecado, havia dito Gabriel.

—Está me chantageando, madame René?

—Você ainda é virgem, mademoiselle - opinou a costureira.

Os músculos no interior da vagina de Vitória se contraíram.

—Engana-se, madame.

—Mademoiselle, se monsieur Gabriel a houvesse possuído, seus olhos estariam brilhando de satisfação e sua boca, seus seios e os lábios de seu sexo estariam inchados. Asseguro-lhe que não a tocou. As palavras lábios de seu sexo ressoaram nos ouvidos de Vitória. Sentiu que suas coxas palpitavam. Vitória apertou instintivamente as pernas, enquanto com seus braços rodeava seus seios.

—E você, é obvio, fará um amplo relato destas observações - afirmou com sarcasmo.

—Ele era um prostituée, mademoiselle.

Para homens, não para mulheres, não era necessário acrescentar.    

—Sei muito bem o que era monsieur Gabriel - repôs Vitória com um tom de voz gélido.

—Mas sabe o que é agora? —perguntou a costureira.

Quanto tempo mais teria que permanecer de pé diante daquela mulher com todos seus defeitos visíveis sob a implacável luz elétrica?

—É o proprietário desta casa - respondeu rigidamente.

—É o anjo intocável, mademoiselle - a corrigiu madame René—. E emprega gente como nós. Nem todos tivemos êxito.

Gente como nós. Vitória olhou instintivamente o colar de pérolas que ocultava o pescoço da costureira.

—Mas não foi seu caso - disse impetuosamente.

—Oui, eu tive muito êxito. A maior parte das prostitutas, mademoiselle, morrem por enfermidade ou pobreza. Você viu a pobreza; aprecia-se em seus olhos. Muito poucos homens —ou mulheres— pagam a quantidade de dinheiro que ofereceram por você ontem à noite.

Mas Gabriel não tinha dado duas mil libras para poder ter um encontro sexual com ela. De repente, um frio intenso invadiu Vitória, mas nada tinha que ver com o ambiente gelado do quarto nem com seu úmido cabelo pregado na suas costas.

O homem que tinha dado cento e cinco libras e depois mil, quis sua virgindade... Ou tinha querido sua vida?

—As mulheres também compravam os... Serviços de monsieur Gabriel? —perguntou Vitória impulsivamente.

A pergunta foi espontânea.     

—Oui. —As lembranças afloraram nos olhos de madame René—. Ele e monsieur Michel eram os mais famosos de Londres. Eles eram deux anges.

Os dois anjos. Michel em inglês era Michael. Gabriel era o mensageiro de Deus, havia dito Vitória. E Michael seu escolhido, tinha replicado Gabriel. Era ele quem tinha feito mal a Gabriel? Tinha sido Michael o homem que tinha dado cento e cinco libras e depois mil?...

—Este monsieur Michel... Eram ele e Gabriel... Rivais?

—Eram amigos.

—E agora?

—Há laços, mademoiselle - respondeu enigmaticamente a costureira— que não podem ser destruídos por nada.

Exceto pela morte. Vitória recuou.

—Já me viu, madame. —O tom de Vitória estava adornado por uma ironia aguda—. Agora já pode partir.

Do contrário, morreria a causa do frio e a tensão de estar nua, sem poder esconder-se como tinha feito até seis meses, atrás de recatados vestidos de lã e dos filhos de outras mulheres.

Mas madame René permaneceu imóvel.

—Decepciona-me, mademoiselle.

Doía-lhe o seio, pela pressão dos braços. Não entendia por que teria que se importar o que pensasse a couturiére.

—Desculpe? —disse rigidamente.

—Pensei que era uma mulher valente.

—A história freqüentemente confundiu o desespero com o heroísmo.

—requereria-se uma mulher valente para amar um homem como Gabriel.

E se eu desejasse algo mais que sua virgindade? Vitória não tinha nada mais que oferecer a um homem.

—Então, monsieur Gabriel não me comprou para que o ame - disse.

Madame René entrecerrou os olhos. O diamante de seu dedo indicador brilhou com desaprovação.

—Monsieur Michel deve seu nome a sua habilidade para agradar às mulheres.

O coração de Vitória paralisou por um instante.

—Como é possível isso? —indagou cortesmente.

—Chamam-no Michel de Anges.

Michael dos Anjos.

—Os anjos não têm relações sexuais, madame.

Madame René não se deixou intimidar pelo cinismo de Vitória.

—Nós franceses nos referimos ao orgasmo como voir os anges, ver os anjos.

Gabriel tinha se referido ao orgasmo como a petite mort, a pequena morte.

A pluma de pavão estava imóvel e os olhos da costureira a olhavam fixamente. Todos procuravam... O que?

—Algumas mulheres, mademoiselle - continuou a costureira deliberadamente—, asseguram que a perícia de monsieur Gabriel supera a de seu amigo.

O frio que envolvia a Vitória foi substituído por um calor ardente.

—Madame, desculpe-me mas não costumo conversar nua.

Madame René encolheu os ombros.

—Somos mulheres, mademoiselle. E a monsieur Gabriel não ofende o corpo de uma mulher.

—Monsieur Gabriel não esteve com uma mulher há algum tempo.

Por que havia dito isso?

—Oui.

—Eu não sei como seduzir um homem.

Aquelas palavras ricochetearam como um eco no frio quarto.

A satisfação brilhou nos olhos de coruja de madame René.

—Tournez autour, mademoiselle, et je vous montrerai comment séduire um homme.

Vitória traduziu automaticamente o francês: de a volta... E eu lhe mostrarei como seduzir um homem.

A angústia fez com que revolvesse seu estômago. A mulher mais velha desafiou com o olhar silenciosamente a Vitória a ser uma mulher. A amar a um homem que desdenhava o amor. Vitória deu a volta para olhar-se no espelho de corpo inteiro.

Uns olhos prateados lhe devolveram o olhar.

 

CAPITULO 9

 

Victoria não tinha ouvido Gabriel entrar no quarto, mas ali estava ele. Não tinha percebido sua presença, e agora a sentia em cada centímetro de seu corpo, em seus seios aceitáveis, em seus quadris e seu derriére, que não eram... Três pessoas olhavam Vitória: madame René, com seu vestido azul cobalto e o cabelo vermelho coroado por um chapéu com uma pluma de pavão; Vitória, com o cabelo escuro e úmido pregado a seu corpo nu, e Gabriel, com rosto de alabastro escurecido por uma sombra, e sua camisa branca desabotoada à altura do pescoço. Madame René esperou para comprovar até onde chegava a coragem de Vitória.

Vitória esperava ser abatida pela vergonha. O que esperava Gabriel?

—Levante os braços, mademoiselle, para que tire suas medidas.

Pareceu que a voz de madame René soava muito longínqua. Suas intenções eram muito claras. Queria que Vitória adotasse uma atitude determinada diante o Gabriel. E que seduzisse um homem famoso pela sedução... Um homem que não havia tocado uma mulher ha quatorze anos, oito meses, duas semanas e seis dias. Vitória pensou nos anos nos que tinha vivido nas casas de outras mulheres, cuidando de seus filhos, paga por seus maridos. Não tinha lar, não tinha filhos, não tinha marido. O lar de Gabriel era um bordel, empregava a prostitutos e prostitutas menos afortunados que ele, e não tinha a ninguém que o abraçasse. Viu si mesma refletida no espelho, levantando os braços, sentindo que seus seios se elevavam e seus mamilos se endureciam. Seio aceitável havia dito a costureira. Os olhos prateados refletidos no espelho olharam os seios de Vitória, analisando sua forma, sua plenitude.

Seu atrativo. Também ele os achava aceitáveis? Madame René avançou um passo. Rodeou com seus braços cobertos de azul cobalto o seio de Vitória. Rodeando-a. Tocando-a. Seu busto foi rodeado pela fita métrica, ao tempo que o calor e a luz percorriam sua pele de cima abaixo. Nos olhos de Gabriel parecia estar refletida a percepção que Vitória tinha das coisas. Quanto tempo estava na soleira, escutando, observando? Perguntou-se quase sem respiração. Por que não tinha anunciado sua presença?

Por que não tinha protestado por ser o tema da conversa? Vitória respirou fundo para tranqüilizar-se. Nunca tinha sido corajosa.

Talvez com aquele homem podia ser o que nunca antes tinha sido.

—Madame René. Você disse que se o senhor Gabriel houvesse me possuído, minha boca, meus seios e os... —Vitória vacilou, e tirou coragem da súbita quietude desses olhos prateados que a olhavam— os lábios de meu sexo estariam inchados.

A fita métrica desceu; os mamilos de Vitória se endureceram. O sussurro de um lápis rabiscando números sobre um papel pareceu percorrer suas costas como um calafrio.

—Viu... Mulheres... Assim... Nuas... Depois de ter passado a noite com ele?

A lingüeta de metal da fita métrica, morna pelo calor do corpo, afundou-se na axila esquerda de Vitória.

Gabriel fixou seu olhar na axila esquerda de Vitória.

—Sim as vi, mademoiselle.

A fita se estendeu até o braço de Vitória, alisada por dedos hábeis.

Gabriel seguiu com seu olhar prateado os movimentos de madame René.

Os seios da mulher nua refletida no espelho subiam e desciam, seguindo o ritmo de sua agitada respiração.

—É ele... Era ele... Delicado com as mulheres? —perguntou Vitória.

Não reconhecia sua própria voz, rouca de desejo. Ou talvez de medo.

Tanto a fita como a lingüeta de metal caíram. O homem posou seu olhar nos olhos espectadores de Vitória.

—Um prostituée, mademoiselle - informou madame René com voz falsamente comercial naquela situação que nada tinha de comercial—, é tão delicado ou tão rude como desejar o cliente.

Mais ganchos de ferro rápidos sobre o papel. Vitória percebeu mais que viu, madame René passar por trás dela até colocar-se a seu lado direito. Toda sua atenção estava centrada naqueles hipnóticos olhos prateados.

A lingüeta de metal se afundou em sua axila direita.

Gabriel dirigiu os olhos para aquele lugar, concentrando-se no escuro molho de pêlo.

Vitória passou a língua por seus lábios ásperos e rachados.

A realidade a sacudiu como uma corrente elétrica.

O que estava fazendo?

—Certamente uma mulher... Uma mulher não gosta quando um homem é rude com ela - disse Vitória, vacilante, com a respiração raspando sua garganta.

Sentiu que o olhar prateado aguçava a rápida palpitação em sua nuca.

—Quando nos excitamos mademoiselle, não queremos delicadeza. —Durante um instante a lingüeta se afundou na pele de Vitória, quase dolorosamente, para ser substituída quase imediatamente por um alívio frio—. Um homem —ou uma mulher— com experiência sabe quando une petite dor aumenta o prazer.

Dor. Prazer. Sempre há dor no prazer, mademoiselle.

—E monsieur Gabriel... Ele sabe quando uma pequena dor aumenta o... Prazer de uma mulher? —perguntou Vitória.

—Sabe mademoiselle.

Os olhos prateado permaneceram imperturbáveis, sem confirmar nem negar a afirmação de madame René. A garganta de Vitória se contraiu inexplicavelmente. O homem que violentou Gabriel também soubera quando a dor podia produzir prazer?

—Pode baixar os braços, mademoiselle.

Vitória obedeceu. Gabriel acompanhou com o olhar o movimento de seus seios. De repente, madame René parou na frente de Vitória, interpondo-se entre ela e a imagem do espelho e, imediatamente, desapareceu com um sussurro de seda, ajoelhando-se. Seu rosto ficou à altura do pêlo cacheado que marcava a divisão de suas coxas.

A pluma de pavão se balançou.

—Abra as pernas, mademoiselle.

Vitória olhou os olhos prateados para encontrar neles a coragem que necessitava. Abriu as pernas. Um ar gélido a invadiu.

Um pouco mais evidente que o ar que lhe roçava o ventre: a pluma do chapéu. Ao mesmo tempo, a lingüeta de metal roçou a fenda de sua coxa direita, muito perto da carne feminina que de repente sentiu dolorosamente torcida. Vitória deu um pulo involuntário. Uns dedos mornos mantiveram a lingüeta em seu lugar. Ou talvez eram os olhos prateados do espelho os que o faziam. O olhar de Gabriel queimava... A boca de Vitória, os seios, os lábios de seu sexo.

—Que tipo de... —Vitória tentou de concentrar sua atenção em pronunciar uma frase em vez de em afogar-se dentro dos olhos prateados e o calor debilitante que geravam— de mulher monsieur Gabriel preferia? —perguntou, aprisionada entre o homem que estava atrás dela e a mulher ajoelhada diante.

—Monsieur Gabriel prefere o mesmo que qualquer homem, mademoiselle - disse madame René com um tom de voz enganosamente distraída, enquanto seus hábeis dedos deslizavam a cinta métrica pela parte interna da coxa de Vitória, que absorveu o ar frio, e logo pela curva da panturrilha, exercendo pressão sobre o tornozelo.

Madame René não se deixou distrair nem pelas medidas estava tomando nem pela conversa que sustentava. Sabia exatamente o que estava fazendo. A Vitória. Ao Gabriel. Os dedos invasores se retiraram com brutalidade da fenda de sua virilha e da curva interior de seu tornozelo. O som do lápis sobre o papel voltou a percorrer a pele. Os olhos prateados do espelho desafiaram Vitória a continuar. Até onde está disposta a levar este jogo, mademoiselle? Tinham perguntado. Bastante mais à frente que isto, pensou Vitória.

—E o que preferem os homens, madame René? —A pergunta saiu com certa vacilação.

A escritura apressada parou, embora continuasse ressoando nos ouvidos de Vitória.

A lingüeta de metal se afundou na fenda de sua coxa esquerda. Estava gelada.

—Os homens querem ser desejados pelo que são, assim como por seu sexo. Os homens, mademoiselle, querem ser amado, exatamente igual a nós, oui? —Os olhos prateados do espelho seguiram os dedos diligentes de madame René, percorrendo a parte interna da coxa de Vitória, a curva de sua panturrilha.

Madame René ficou de pé tão rapidamente como se ajoelhou.

—Maintenant, retire o cabelo de suas costas, s'IL vous plait.

Vitória levantou lentamente os braços, cada vez mais alto, enquanto agarrava seu cabelo com ambas as mãos e o segurava sobre sua cabeça. Estava frio, pesado e úmido. Seus seios estavam frios, pesados e inchados. Os olhos que a olhavam eram frios, mortíferos e intensos. Ele era o proprietário, diziam. Era um prostituto, advertiam. Era um assassino, ameaçavam.

Vitória viu um anjo intocável.

—Como uma mulher ama um homem, madame? —perguntou enquanto a costureira estirava a fita métrica ao longo dos ombros—. O beija para demonstrar que o deseja? —No ar pareciam saltar faíscas—. Lambe seus mamilos para lhe prazer? —Os dedos de madame René pressionaram a lingüeta de metal sobre o ombro esquerdo de Vitória, com a fita a sua direita—. Toma em seu corpo para lhe mostrar que nem ela nem ele têm que estar sozinhos?

Os dedos de madame René se retiraram.

—O corpo de um homem não é tão diferente do de uma mulher, mademoiselle - disse—. Deseja a mesma atenção que nós. —Mais ganchos de ferro. Menos oxigênio—. Uma mulher, mademoiselle, não teme explorar o corpo de um homem para descobrir o que lhe produz prazer.

Michael e Gabriel tinham sido amigos. A chave do segredo de Gabriel pensou Vitória, estava nessa amizade.

— Monsieur Michel é tão bem dotado quanto Gabriel? —perguntou temerariamente Vitória.

O perigo acentuou a tensão erótica. Gabriel parecia advertir com seu olhar que estava indo muito longe.

Todos os nervos do corpo de Vitória se mostraram de acordo. A lingüeta de metal se afundou em seu ombro direito.

—Ambos têm fama de serem dotados como dá étalons... Como garanhões. —A fita métrica desceu por suas costas até sua cintura e foi sustentada firmemente em seu lugar.

O calor dos dedos de madame desapareceu, substituído pelo rabisco dos números. Os seios de Vitória vibraram pela força de seu coração palpitante. Não havia nada que Gabriel não pudesse ver naquela postura: os seios levantados, suas axilas desprotegidas, as costelas que se sobressaíam muito, os ossos salientes de seus quadris, o triângulo escuro de pêlo sob seu ventre. Os lábios de cor rosada escura aparecendo entre suas coxas. O que antes dormia, agora estava inchado de desejo. Via ele? Via-o a costureira?

—É necessário que um homem seja grande para satisfazer uma mulher? —perguntou Vitória com o coração na boca.

—Non. Mas não se espera que um homem que exerça a profissão de prostituée seja comum. As mulheres não querem pagar por une bitte que não meça mais que seus próprios dedos, mademoiselle.

Une bitte. Vitória não tinha dificuldades para entender o francês da costureira. Referia-se Gabriel a seu membro como une bitte?

Tinha falado em francês com as mulheres que o compravam... Ou em inglês?

—Que tamanho deve ter um homem, madame, para que o comparem com um... um garanhão?

A lingüeta de metal afundou no ombro esquerdo de Vitória. As unhas de madame René alisaram a fira, deslizando-a por suas costas enquanto contava em voz alta.

—Quatro... Cinco... Seis... Oito centímetros... —As unhas afiadas roçavam suas omoplatas. Vitória sentia as medidas no mais profundo de sua vagina—. Dez, doze, treze, quatorze...

Vitória não podia respirar. Em sua mente tinha aparecido a visão de um membro masculino... Do membro de Gabriel... Vinte, vinte e dois centímetros de comprimento...

—Um homem deve medir pelo menos vinte centímetros para que o compare com um étalon, mademoiselle - informou madame René com rotundidade. Seus dedos peritos baixaram subitamente pelas costas de Vitória e pressionaram a fita contra sua cintura. E depois se afastaram... A visão do membro poderoso de um homem, os dedos de madame, a fita métrica.

Os olhos prateados não se afastaram.

Também mediam e acompanhavam cada centímetro da pele de Vitória.

Gabriel havia dito que media mais de vinte centímetros.

Quanto mais? Perguntou-se.

—Alguma vez um homem lhe suplicou pelo prazer sexual, madame? —perguntou Vitória, sentindo seu corpo tão frágil que parecia a ponto de romper-se.

O olhar líquido de Gabriel se congelou e se tornou gelo prateado.

—Isso é o que um prostituée faz mademoiselle... Dar prazer. —A costureira anotou as medidas, aparentemente alheia ao significado da pergunta de Vitória—. O plus agradar, melhor, oui?

Quanto mais agradar, melhor. Sim.

—Algum... Cliente alguma vez a fez suplicar, madame?

Um pau apertou o pescoço de Vitória.

—Non, non, não se mova, mademoiselle. Só falta tomar esta última medida. Voilà.

Vitória permaneceu imóvel. A fita métrica lhe rodeou o pescoço.

—Quando há respeito e afeto mútuos, há mil métodos mediante os quais um homem e uma mulher podem gritar mutuamente de prazer. —Um fôlego morno fazia cócegas nas costas.

Finalmente Vitória ficou livre. Com um rápido movimento de lápis, a costureira fez a última anotação.

Os olhos prateados do espelho sustentaram o olhar de Vitória.

—E quando não há respeito... —Vitória engoliu seco— ou afeto?

—É uma violação dos sentidos. —Madame René recuou—. Enquanto que a sedução, mademoiselle, é uma provocação dos sentidos, como pintar imagens nuas com palavras, criar a ilusão por... Une baiser, um beijo... Une caresse, uma carícia... Une embrassement, um abraço... Essa é a arte da sedução, n'est-IL ps, monsieur Gabriel?

—Oui, madame René - assentiu Gabriel com voz neutra.

Atrás da frieza de seus olhos se adivinhavam as imagens que a costureira tinha implantado deliberadamente. Um baiser, um beijo. Une caresse, uma carícia. Um embrassement, um abraço.

Vitória imaginou o membro de Gabriel —seu bitte— beijando-a, acariciando-a, penetrando-a mais de vinte centímetros... Gabriel imaginou Vitória o acolhendo, centímetro a centímetro.

A costureira os tinha obrigado habilmente a enfrentar seus desejos.

—Enviarei a roupa para mademoiselle immédiatement, monsieur - disse madame René com satisfação—. Au revoir, mademoiselle.

No espelho, Vitória observou a parte posterior das anquinhas com borlas de madame René balançar-se com descaramento à medida que se afastava. Gabriel saiu repentinamente do campo visual de Vitória; a costureira francesa desapareceu pela porta, deixando atrás de si a um homem completamente vestido que negava seus desejos e uma mulher nua que tinha revelado abertamente sua libertinagem. Vitória baixou os braços. O cabelo frio e úmido deslizou sobre suas costas. Deu a volta com seu cabelo envolvendo seus ombros nus. Gabriel estava de pé junto à porta. A sombra que havia sobre seu rosto no espelho não era mais que a escura barba do dia anterior. Seu pêlo facial era castanho e não loiro, como suas sobrancelhas. Vestia a camisa branca de seda que usava a noite anterior, mas estava muito enrugada, como se tivesse dormido com ela. Da abertura de seu pescoço se sobressaía pêlos escuros cacheados, da cor de suas sobrancelhas e sua barba. Vitória não pôde evitar pensar que aquele pêlo cacheado certamente faria cócegas nos seios a uma mulher. Súbitamente, a imagem da ducha cruzou por sua mente. Os dois aspersores inclinados para baixo estavam à altura dos quadris. Se os levantassem e se desse a volta no grifo, a água teria saído em jorro diretamente entre suas coxas. Seu clitóris palpitou ao compreender. Vitória levantou a cabeça com brutalidade.

Gabriel estava esperando seu olhar.

—O aspersor para o fígado... Não está colocado para massagear o fígado - disse bobamente.

Ele captou em seguida.

—Não.

Vitória pensou nas pessoas sérias e respeitáveis que tinham visto a exposição de banheiras combinadas com duchas no Palácio de Cristal. Saberiam que um grifo que segundo a propaganda massageava o fígado na realidade se usavam para se masturbar?

Baixou o olhar instintivamente até as coxas de Gabriel.

—O jorro é estimulante para os homens?

O coração de Vitória pulsava rapidamente.

—Não tanto quanto para as mulheres.

Sua voz era tranqüila e serena.

O olhar de Vitória voltou a posar-se sobre o dele.

—E, entretanto sua ducha tem esse acessório.

—Vinha equipada com ele.

—Foi Michael o homem de quem você ganhou no leilão?

O pêlo de Vitória se arrepiou com a tensão elétrica que emanava do Gabriel.

—Não - respondeu ele cortesmente—. O homem que deu lances por você não era Michael.

—Mas Michael estava lá, no salão - insistiu Vitória.

—Sim - admitiu Gabriel com claridade.

Eles deux anges. Os dois anjos.

São rivais, havia dito Vitória.

São amigos, tinha corrigido madame René.

—O homem de quem ganhou na luta... É a pessoa que você acredita que me enviou aqui?

—Sim.

Se eu não tivesse dado lances por você, mademoiselle teria sofrido uma morte muito pior que a causada pelo sublimado corrosivo.

O seio de Vitória, que subia e descia com rapidez, desmentia sua calma exterior.

—Ele é a pessoa que você acredita que me matará? —perguntou com um tom de voz sem emoção.

—Se não a proteger, sim.

Mas ele não sabia se poderia protegê-la.

—Quanto tempo estava nos escutando? —perguntou Vitória antes de cair pela fragilidade do perigo e o desejo.

—O suficiente, mademoiselle.

O suficiente para que?

—Os homens desejam ser amados?

—Não saberia lhe dizer, mademoiselle – esquivou-se ele cortesmente.

Tampouco Vitória.

—Refere-se a seu... Membro masculino... Como um bitte?

A luz elétrica brilhava em excesso.

—Não, mademoiselle. —Não reconheceu sua rabugice nem com um ligeiro pestanejo—. Refiro-me a ele como verga.

—Tem ereções quando está com uma mulher?

—Não estive com uma mulher há quatorze anos - disse cansativamente.

—Não sou uma ignorante, senhor. —Vitória cravou as unhas em suas palmas. Prazer. Dor—. Sou plenamente consciente de que um homem não precisa ter relações sexuais com uma mulher para ter uma ereção.

—Então talvez fosse melhor que me perguntasse, mademoiselle —replicou Gabriel, com um tom perigosamente insinuante— se tenho ereções quando estou com homens.

A frieza de seus olhos cortou a respiração de Vitória. Deixou sua vida em suas mãos.

—E tem?

Gabriel se dirigiu para ela. O coração de Vitória começou uma carreira desbocada. Gabriel parou em frente à lareira, agachou e pegou a pá de ferro negro do suporte de bronze para afastar as cinzas do fogo da noite anterior. Inclinando-se para frente, amontoou uns troncos. Sua camisa se estirou, revelando seus músculos tensos. Estava se escondendo. Vitória sabia muito bem, porque tinha passado toda sua vida se escondendo.

—Por que madame René se referiu ao orgasmo como voir os anges e, entretanto você o chama a petite mort?

Gabriel ficou de pé bruscamente e colocou a mão dentro da urna de obsidiana localizada sobre o suporte de madeira da lareira. Voltou a se agachar com os joelhos muito separados. Suas nádegas se perfilaram claramente dentro das calças de seda negra.

Acendeu um fósforo; a fumaça de enxofre causou uma ligeira ardência no nariz de Vitória. Uma diminuta chama amarela acariciou um dos troncos, estendendo-se a outros, explodindo em uma resplandecente labareda azul e laranja. Vitória soube então que não podia permanecer nua frente a ele nem um segundo mais. Deu a volta. Os dedos de seus pés nus ficaram presos ao chão de madeira. Tentou se aproximar do vestido marrom.

—Se recolher esse farrapo miserável, mademoiselle, o tirarei.

Ela parou, os músculos de suas nádegas se esticaram.

O espelho lhe devolveu o frio olhar de Gabriel que se levantou silenciosamente.

—Queria saber se eu tenho ereções quando estou com homens.

Não havia emoção alguma em sua voz; então, por que, de repente, a dor pareceu roubar todo o ar dos pulmões de Vitória?

—Sim - conseguiu dizer.

—Vire-se, mademoiselle, e me olhe se quiser ouvir a verdade.

Vitória se virou lentamente, pressionando com seus pés descalços a madeira polida. Endireitando os ombros, sustentou seu olhar.

Era tão uniforme como o espelho que havia atrás dela.

—Um homem, mademoiselle, não precisa sentir desejo para ter sexo; só precisa de uma verga dura.

Bitte. Verga. Franga.

—Não... Entendo.

—Você se excitou quando madame René a tocou.

Vitória tomou ar.

—Como se atreve...?

—... Porque imaginou que era eu quem a tocava.

Sim.

Mas não o disse.

—Os órgãos sexuais, mademoiselle, são aparelhos. —O cinismo obscureceu o prateado de seus olhos—. Como minha banheira ou minha ducha. Se abrir um grifo - fez uma pausa para enfatizar suas palavras—, libera água. Ao grifo não importa se for um homem ou uma mulher quem o abre.

Se isso era assim, por que seus olhos estavam tão sombrios?

—Você está dizendo que não tem que haver emoção, ou sentimento, para que um homem... —Vitória se esforçou por encontrar as palavras que ela, uma professora que seis meses antes nunca tinha escutado pronunciar a palavra verga— funcione sexualmente...

—É correto.

—... E que a ereção é simplesmente um ato reflito, uma questão de causa e efeito.

—Sim.

Não ia afastar seu olhar do dele.

—Está dizendo, então, que você não tinha orgasmos quando estava com... Um cliente?

—Não, mademoiselle, não estou dizendo isso - respondeu ele com franqueza.

E quando não há respeito... Ou afeto? É uma violação dos sentidos.

—Você não desfruta com o sexo - disse Vitória.

Gabriel não o negou.

—Se sua verga, senhor, não fosse diferente de um aparelho mecânico, não teria medo de tocar uma mulher. E, entretanto o tem.

A escuridão brilhou no fundo dos olhos de Gabriel. Se Vitória continuasse, não haveria a possibilidades de recuar.

Poderia matá-la pelo que estava a ponto de dizer. E ela não poderia culpá-lo. Mas havia coisas piores que a morte. Viver sem o prazer de uma carícia era muito pior. Vitória sabia por que ela se negou esse simples prazer durante mais de dezoito anos.

Disse o que tinha que dizer.

—O homem que o violentou lhe proporcionou prazer. —A advertência no olhar de Gabriel cravou no coração de Vitória. Surpreendeu-se de que as chamas que crepitavam na lareira não se congelaram ainda.

—Ele sabia transformar a dor em algo prazeroso.

A escuridão apagou por completo o prateado dos olhos do Gabriel.

—Fez você gostar de sexo.

 

CAPITULO 10

 

E você jamais se perdoará por isso. A voz de Vitória ressoou com convicção feminina. Jamais. Jamais. Gabriel compassou o ritmo de sua respiração a de Vitória, tentando afastar as lembranças que evocavam suas palavras. Podia matá-la. E ela sabia. Ou podia deixar que o segundo homem a matasse. E isso ela também sabia. Tinha medo, mas não se escondia atrás desse temor. Era a única mulher que se atreveu a enfrentar seu passado. Como a tinha encontrado o segundo homem? Gabriel se aproximou de Vitória com intenção calculada. Ela não recuou. Caminhou deliberadamente em círculo a seu redor. Na noite anterior, seu cabelo tinha parecido opaco e sem brilho, como sua capa. Agora brilhava sob a luz elétrica, como um escudo frio, úmido, liso. Vitória se virou ao mesmo tempo em que Gabriel, seguindo seus movimentos. Ele podia sentir o calor de sua nudez. Viu seu reflexo em seus olhos azuis, nublados pelo medo durante um instante e brilhantes de desejo no seguinte. Podia cheirar seu próprio sabão e seu xampu em sua pele e seu cabelo, cheiros masculinos feminilizados pela doçura de seu sexo. Agachando-se, Gabriel recolheu o vestido. Seu olhar ficou à altura da pélvis da mulher. O pêlo púbico de Vitória era escuro e cacheado; os lábios de seu sexo de um rosa escuro, como seus mamilos. Estavam úmidos pela excitação. Inchados de desejo. E ele nem sequer a havia tocado.

Maldita madame René. A curiosidade de Vitória iria aumentar. E também a de Gabriel. Ela se perguntaria o que sentiria ao ser possuída por um homem centímetro a centímetro. Ele se perguntaria que sensação teria Vitória, quando sua pele lisa e úmida se estirasse para acolher cinco centímetros... Dez centímetros... Quinze centímetros... Vinte centímetros... Perguntaria-se como gritaria primeira pela dor de perder sua virgindade, e depois pelo prazer de alcançar seu primeiro orgasmo com um homem.

Perguntaria-se o que precisaria fazer para conseguir que Vitória suplicasse. Gabriel se endireitou.

—Sim, mademoiselle Childers, ele me fez desfrutar com a violação - revelou com voz fria e deliberada—. Da mesma forma que você se excitava lendo as cartas escritas por um homem que a aterrorizava.Gabriel lhe deu as costas - não podia recordar a última vez que tinha dado as costas a um homem ou uma mulher— e jogou o vestido no fogo.

Uma fumaça negra subiu pelo oco da chaminé. Gabriel ficou tenso. Se Vitória tentasse salvar o vestido, a deteria. Não queria lhe fazer mal, mas o faria.

—Você não tem direito a destruir minha roupa - disse Vitória, também tensa.

Não tentou salvar o vestido. Também ela sabia que ele poderia lhe fazer dano se interferisse. Direito. As prostitutas não tinham direitos. O fogo azul consumiu uma manga de lã marrom e se extinguiu.

—Você viveu tempo suficiente nas ruas para saber que o poder é o que outorga os direitos - declarou ele rudemente.

—E seu poder é maior que o meu.

A ira distorceu a voz de Vitória. Não gostava de ter que depender de um homem. Gabriel conhecia muito bem essa sensação de impotência.

—Sim, mademoiselle Childers - afirmou, lhe dando as costas—, meu poder é maior que o seu.

O cheiro da lã queimando se estendeu por todo o quarto.

Os olhos azuis de Vitória soltavam faíscas.

—Não tenho outra roupa.

Gabriel podia proporcionar isso.

—Madame René lhe enviará muito em breve um guarda-roupa completo.

Veludo. Seda. Renda. Trajes bonitos, além de práticos. Gabriel faria todo o possível para lhe dar uma vida em que pudesse desfrutar. Vitória levantou o queixo, seus lábios maltratados, sua maçã do rosto muito saliente, a linha da mandíbula muito vulnerável.

—Não quero sua caridade.

Não, uma mulher como ela não queria caridade.

—O que quer? —perguntou Gabriel com calma, conhecendo de antemão a resposta.

Queria o prazer que um anjo podia proporcionar. Voir de anges. Mas desejaria também a dor que um anjo podia lhe causar? A petite mort?

—Você disse que me ajudaria a conseguir um emprego como professora - respondeu Vitória secamente.

Gabriel não respondeu. Não queria vê-la trabalhando na casa de outro homem, vigiada pela esposa de outro homem, cuidando os filhos de outro homem. A tensão os envolveu. Temor. Desejo. Uma mecha de cabelo escuro já quase seco adquiriu uma cor castanha avermelhado sob a luz elétrica.

—Não acredito que os trajes desenhados por madame René sejam adequados para uma professora.

Gabriel queria estirar a mão e tocar o cabelo de Vitória, sentir o frio exterior e o calor da pele que havia debaixo. Ela não sobreviveria na rua, e seria impossível escapar do segundo homem. Sobreviveria com Gabriel? Era hora de descobrir.

—Mas você não é uma professora, mademoiselle Childers - disse, sustentando seu olhar—. Não é verdade?

Vitória leu a verdade em seus olhos. Endireitou-se; Gabriel lamentou fugazmente que seus mamilos já não estivessem duros.

—Como descobriu quem é meu pai?

—As bibliotecas são instituições maravilhosas, mademoiselle - afirmou Gabriel cortesmente—. Os nascimentos e falecimentos dos membros da alta sociedade se registram meticulosamente para benefício do público em geral.

Vitória se aproximou dele com passo rápido, balançando seus seios ligeiramente. Passou junto a ele com altivez, movendo suas nádegas com suavidade. Gabriel a olhou através de seus olhos entrecerrados. Vitória arrancou da cama a colcha de seda azul claro e se envolveu torpemente com ela. Estava se escondendo de um passado que não queria admitir. Gabriel ouviu o ranger da seda, o chiado de um tronco, esperando a que ela recuperasse a coragem. Não demorou muito. Lentamente, apertando a colcha contra seu seio, Vitória Childers, filha de sir Reginald Fitzgerald, um dos homens mais ricos da Inglaterra, deu a volta e o olhou de frente.

—Meu pai não pagará para que me devolva - disse com discreta dignidade.

Gabriel acreditou.

—Não tenho intenção de fazê-la retornar - replicou francamente.

—Tampouco lhe pagará para que guarde silêncio sobre mim... Ele tem dúvidas com respeito a minha respeitabilidade.

Uma palpitação tremeu na base de sua garganta. Tinha um pescoço lindo. Comprido. Fino. Seria fácil machucá-la.

—Não preciso de mais dinheiro.

Gabriel possuía mais dinheiro de que poderia gastar em duas vistas. Vitória não acreditou.

—Então por que se incomodou em descobrir meus antecedentes familiares se não pensar me chantagear? —perguntou bruscamente—. A chantagem é o preço do pecado, não é assim?

Suas próprias palavras, cínicas, pronunciadas por ela, sobressaltaram momentaneamente Gabriel. Mas não o dissuadiram.

—Pecou , mademoiselle? —provocou-a com suavidade.

Vitória o olhou fixamente.

—Ainda não.

Os testículo de Gabriel se contraíram. De ira. De desejo. Não podia tocá-la. Não permitiria que outro homem o fizesse.

Ao menos enquanto estivesse sob sua proteção.

—Seu pai poderia estar indiretamente relacionado com o homem que a enviou você aqui - sugeriu.

Um rápido suspiro, seguido de uma negação igualmente apressada, foi sua resposta.

—Você não acha isso.

—Não?

Gabriel já não sabia o que acreditava.

Acredito que é muito mais vulnerável do que pensa, havia dito Michael. E meu tio sabia.

Mas sabia o segundo homem?

—Não, não acha - replicou Vitória com veemência.

O temor, o desejo e a ira que palpitavam nas veias de Gabriel encontraram uma saída. Não queria desejar aquela mulher. Mas a desejava. E seu desejo o tornava vulnerável.

—Então me diga mademoiselle - continuou implacavelmente—, o que supõe que devo pensar de um homem rico e com uma reputação irrepreensível, que permite que sua única filha se rebaixe para procurar comida e um lugar para viver? E que não se importava que a matassem ou lhe fizessem mal.

A emoção se deixou transparecer nos olhos azuis de Vitória; olhos que tinham visto sentido e desejado muito.

—Ele não sabe que eu estou aqui.

—Está certa disso? —espetou Gabriel.

—Sim, estou certa. —Suas mãos que sustentavam o edredom de seda azul sobre seu seio empalideceram—. Meu pai não se interessa por sua filha.

O registro mencionava um filho, Daniel Childers. Vitória tinha um irmão quatro anos mais jovem que ela. Em uma sociedade onde a riqueza e o título se transmitiam por via masculina, era muito freqüente que os homens favorecessem os filhos varões a cima das filhas. Gabriel queria poupar Vitória; mas não podia. Os segredos matavam. Homens. Mulheres. Prostitutas.

—Por que diz isso, mademoiselle Childers? —desafiou-a, enquanto o cheiro da lã queimada invadia suas narinas—. Por que razão permitiria um pai que sua filha se transforme em prostituta?

A dor atravessou Gabriel; vinha de Vitória. Ela não afastou o olhar.

—Porque meu pai acredita que todas as mulheres são prostitutas, senhor.

Havia dito que tinha sido professora durante dezoito anos. Assim tinha começado a trabalhar aos dezesseis. Ou seu pai a tinha expulsado de casa, ou Vitória, empenhada em escapar do domínio paterno, tinha escolhido viver a vida de uma faxineira em vez de ocupar o lugar de uma dama que lhe correspondia por nascimento. Havia uma terceira razão, mas embora Gabriel não queria pensar nela, tinha que fazê-lo.

—Ele se casou com uma mulher, mademoiselle - insistiu Gabriel.

—E ela era uma prostituta - respondeu Vitória com os lábios ressecados apertados e o queixo levantado.

Os registros só mencionavam os nomes e as filas.

—Sua mãe pertence à aristocracia sem títulos - disse Gabriel com dureza.

—Meu pai acredita que as mulheres nascem pecadoras. —As sombras que obscureciam os olhos de Vitória pesavam sobre os ombros de Gabriel—. E tinha razão. Minha mãe o abandonou quando eu tinha onze anos. Por outro homem. Eu sou como minha mãe. Sou uma prostituta.

A emoção matava. Então, por que não podia atenuar as emoções daquela mulher? Gabriel ofereceu a Vitória o único consolo que pôde.

—Você não é uma prostituta, mademoiselle.

—Se não fosse uma prostituta, por que... —Vitória engoliu seco, agarrando-se ao último de seus segredos, o nome de seu patrão— por que ele me despediu? Por que me escreveu essas cartas? Por que as li? Li-as uma e outra vez. Por quê?

O segundo homem chamava Gabriel. Estava ali fora, esperando a que o encontrasse. Pela primeira vez, tinha deixado um rastro.

Gabriel não podia deixar Vitória sozinha. E muito menos assim.

—Todos temos desejos, Vitória.

As palavras pareceram arrancadas do peito do anjo intocável. Vitória guardou silêncio, envolta na seda azul pálida.

Sua mulher, enviada a ele pelo segundo homem.

—Quando eu era menino, desejava uma cama para dormir nela. —A madame a tinha dado—. Ao me dedicar à prostituição, quis ter êxito. —Para não voltar a passar fome nunca mais, e a madame o tinha feito possível—. Ao me transformar em homem, ansiava sentir a paixão de uma mulher, embora fosse só por uma vez queria sentir o prazer que eu dava.

O tempo passava. Gabriel recordou seu membro sedoso e úmido enquanto suplicava que lhe dessem satisfação. Evocou o sabor de uma mulher, e seu cheiro. A seda rangeu, dissipando imediatamente a lembrança de outras mulheres, mas a lembrança de seu desejo persistiu nele. Depois de tantos anos, ainda não tinha se extinguido definitivamente. Concentrou-se nos olhos de Vitória, e em seu corpo. O cheiro dela se estendeu por todo o quarto e, apesar de ter sido oculto em parte pelo cheiro da lã queimada, podia percebê-lo claramente.

—E o fez? —perguntou ela em voz baixa.

—Não.

A verdade. Gabriel nunca se inundou no prazer de uma mulher. A verdade já não teria que machucar; por que o fazia?

—Você perguntou a madame René como se seduzia um homem —disse Gabriel—. O direi. Se tiver fome, alimente-o. Se sofrer, lhe ofereça esperança. Se não tiver aonde ir, de uma cama para que durma. Para poder seduzir, é preciso criar a ilusão de confiança. O homem que escreveu as cartas fez com que dependesse dele: você tinha fome; disse que a alimentaria. Você tinha medo; disse que a confortaria. E quando você não tinha onde dormir, disse que compartilharia sua cama. Você não é uma prostituta. Quando a gente não tem nada que perder e, em troca, pode ganhar tudo, Vitória, é muito fácil sucumbir ao sexo.

A fumaça provocada pelo tecido queimado causou ardência nos olhos de Vitória e a fez chorar. Ele não deveria queimar o vestido.

Não deveria tentar consolar Vitória; era impossível encontrar consolo em um homem que tinha matado, e que mataria de novo.

Gabriel lhe deu as costas, pela segunda vez nesse dia, e se dirigiu ao banheiro a grandes pernadas, fechando suavemente a porta atrás de si. Uma barreira que devia reforçar a que se abriu momentaneamente. A bruma cinza continuava empanando o ar.

Vitória tinha usado seu vaso. Gabriel levantou a tampa de madeira e o usou também. Estragados os objetos interiores dela ainda penduravam do toalheiro. O grito cheio de dor de Vitória ressoou em seu interior. Estou tão limpa como você. Havia gotas de água no lavabo de mármore. Gabriel se olhou fixamente no espelho. Um cinza escuro apareceu no meio do vapor que começava a dissipar-se. Durante um instante fugaz, viu olhos de esperança, mas aquela sensação de vã ilusão se esfumou tão rápido como tinha aparecido.

Vitória ficou olhando a porta fechada, incapaz de respirar. O som fraco de um jorro atravessou a madeira, suas faces avermelharam ao identificá-lo. Até um anjo tinha que urinar. A sensação de irrealidade que tinha gerado sua confissão se dissipou. E uma vez mais Vitória tomou ar e pôde respirar.Ajustou firmemente o edredom de seda sobre seu peito e, levantando a parte de baixo para liberar seus pés, dirigiu-se ao estúdio para dar a Gabriel privacidade. Uma bandeja de prata brilhava sobre o escritório com tampa de mármore negro. Pôde perceber o agradável acheiro de ovos com presunto e café que impregnava o ar.

O estômago de Vitória emitiu um grunhido de protesto. Se tiver fome, alimente-o. Se sofrer, lhe ofereça esperança. Se não tiver aonde ir, de uma cama para que durma. Todas aquelas palavras ressoaram com força em seus ouvidos. Gabriel a tinha alimentado e tinha renunciado a sua cama para que Vitória dormisse nela. Não tinha dado esperança, mas tinha tentado consolá-la.

Sedução. Uma miragem de confiança. Havia uma só xícara na bandeja, e Vitória não queria comer sozinha. Serviu-se de uma xícara de café, desfrutando de seu quente aroma. Pareceu-lhe puro néctar. Uma luz cinzenta banhava a biblioteca. As letras douradas das capas dos livros despediam um reflexo. Vitória conhecia os livros; tinham sido sua vida até onde alcançava sua memória. Não sabia como consolar um anjo. Com ar distraído, examinou as fileiras de tomos encadernados em couro. Esforçando-se por ouvir... Um sussurro de ar. Um passo. Gabriel. Uma série de volumes com enormes letras esculpidas chamou poderosamente sua atenção. Julho Verne. Viajem ao centro da terra; Voyage au centre da terre; Vinte mil léguas de viagem submarina; Vingt mille lieues sous os mers; A ilha misteriosa; L'Ile mistérieuse; A volta ao mundo em oitenta dias; O Tour du pode em quatre-vingts jours... Gabriel possuía muitas obras de Julho Verne, tanto em inglês como em francês. Examinou mais atentamente outros livros de Víctor Hugo, George Sand, Shakespeare... De cada um deles havia um exemplar em francês e outro em inglês. Esquecendo o café, Vitória tomou a edição francesa da ilha misteriosa, de Julho Verne, e se colocou junto à única janela para ver melhor. A versão inglesa era muito mais ligeira. Em que idioma preferiria ler Gabriel? Perguntou-se... Em inglês ou em francês? Uma luz cegadora invadiu a estadia de repente. Vitória piscou. Não tinha que ver Gabriel para saber que era ele quem tinha acendido o abajur. Cada fibra de seu corpo o percebia. Ele se encontrava de pé junto ao divã de couro azul, emoldurado pelo quente sol poente e o mar luminoso do quadro a suas costas. Seu rosto estava ligeiramente rosado; barbeou-se. Um casaco Derby de lã negra e uma jaqueta cinza de raias penduravam de seu braço direito. Ao redor do branco pescoço engomado de sua camisa tinha atado uma gravata de seda vermelha. O corte de sua calça cinza de raias finas se ajustava a seu corpo com perfeição. Na mão esquerda levava uma bengala de prata, e na direita um chapéu cogumelo negro. Não havia rastro algum do homem com barba do dia anterior que tinha compartilhado confidências com ela. Transformou-se em um elegante homem recém barbeado. Vinte e quatro horas antes ela o teria tomado por um cavalheiro favorecido pela fortuna.

Mas agora já sabia muito. Gabriel era elegante, bonito, mas também perigoso.

—Não se coloque em frente à janela - lhe ordenou secamente—. E mantenha as cortinas fechadas.

Vitória não se moveu.

—Ninguém pode olhar.

—Não verá o homem lhe apontando com uma pistola, mademoiselle - disse Gabriel com voz sedosa—. Talvez perceba um brilho de luz quando apertar o gatilho, ou talvez não. Mas uma coisa é certa. Não ouvirá o disparo porque estará morta.

O risco de que levasse um tiro de um homem a quem nunca tinha visto não era real; mas o homem que tinha frente a ela sim o era.

—Vai sair - disse Vitória com voz neutra—. Quem vai impedir que alguém mate você?

Gabriel deixou o casaco, a bengala e o chapéu sobre o sofá de couro azul claro que lhe tinha servido de cama umas poucas horas antes. Agachando-se, tomou a capa de uma pistola e, depois de levantar uma almofada, tirou uma arma.

—Não me matará.

O cano da pistola era de cor negra azulada opaco. De repente, os cheiros do presunto e dos ovos pareceram enjoativos a Vitória.

Reconheceu a pistola. Era a mesma que a noite anterior ele tinha escondido debaixo do guardanapo de seda branca, e com a que tinha estado a ponto de atirar. Separou-se da janela, com as pernas tremendo, enquanto sentia um nó no estômago.

O sabor do café se ficou amargo em sua língua.

—Vai sair para caçá-lo.

E matá-lo.

Aquelas palavras não pronunciadas pareceram cair entre eles como uma chuva de desesperança.

—Sim. —Gabriel deslizou a capa sob seu braço direito e ajustou a correia ao redor das costelas.

—A... —começou Vitória enquanto as lágrimas afloravam em seus olhos; não queria sentir medo, por ela, por Gabriel— a prostituta disse que havia outra Casa de Gabriel antes que se inaugurasse esta. Disse que se queimou. O homem ao qual busca foi quem provocou o incêndio?

—Não. —antes de colocar o revólver na capa, Gabriel ajustou a correia de couro que rodeava o ombro com movimentos precisos e hábeis, como se tivesse repetido aquele gesto milhares de vezes. Tomou a jaqueta de lã cinza que tinha deixado no sofá e olhou para Vitória—. Eu o fiz.

Vitória respirou profundamente; a seda atada sobre seu seio se afrouxou. Os olhos prateados de Gabriel a desafiaram que fizesse a pergunta que invadia sua mente: por quê?

—Seus livros... Tem edições em inglês e em francês - comentou mudando de tema—. Em que idioma prefere ler?

—Aprendi a ler em inglês. —Não mentia—. Algum dia espero estar igualmente capacitado para fazê-lo em francês.

Os dedos de Vitória apertaram o couro suave.

—Quem o ensinou a ler em inglês?

—Michael.

—Michael é inglês.

—Sim.

A pergunta não saiu deliberadamente:

—Meu pai nunca esteve em sua casa, não é?

O sobressalto que Vitória tinha sofrido na noite anterior ao ver homens e mulheres distintos, conhecidos de seu pai, continuava vivo em sua lembrança.

—Não, seu pai nunca esteve em minha casa.

Vitória acreditou.

—Meu pai não me machucaria - declarou firmemente.

Mas a quem queria convencer? A ela mesma? Ou ao Gabriel?

—Nem sequer para proteger sua reputação? —perguntou Gabriel suavemente.

—Acredito que se sentiria compensado ao saber o lugar onde estou - respondeu com naturalidade.

Por uma vez, a verdade não produziu dor. Já conhecia o preço de renunciar sua proteção quando tinha dezesseis anos. Nunca voltaria, embora ele estivesse disposto a aceitá-la.

—E seu irmão?

A pergunta de Gabriel a deixou surpreendida uns instantes. Seus dedos se afundaram no couro, insensíveis ao dano que poderiam causar.

—Como sabe que tenho um irmão?

Aquela era uma pergunta estúpida. A indagação na biblioteca...

—Sei que tem trinta anos. —Era impossível não ver o desdém que apareceu em seus olhos—. Sei que é um homem, mademoiselle, perfeitamente capaz de cuidar de uma irmã. Mas não o fez.

Vitória elevou o queixo. Ele não tinha nenhum direito de julgá-la...

—Meu irmão não conhece minhas circunstâncias.

—por que não?

—Fugiu de casa quando tinha doze anos.

—E alguma vez se preocupou de voltar para ver como estava sua irmã?

Vitória sentiu dor momentaneamente ao perceber a ira na voz de Gabriel.

Seu irmão tinha se importado... Muito.

—Meu irmão fugiu por minha culpa. —As lembranças nublaram os olhos—. Não o culpo.

Mas Vitória culpava seu pai. Sempre culparia a seu pai.

—Por que seu irmão fugiu mademoiselle Childers?

A repulsão fez que seu estômago se contraísse.

—Meu pai castigou Daniel - respondeu a contra gosto.

Seu pai o castigava freqüentemente. A mulher que tinha sido e que ainda habitava nela se negava a fazer confidências a Gabriel. Mas a nova Vitória considerou que ele merecia saber a verdade. Gabriel ficou em silêncio, esperando sua decisão.

Vitória recordou...

—Uma noite ouvi Daniel chorando, de modo que fui a seu quarto, deitei em sua cama e o abracei. Para consolá-lo - acrescentou na defensiva, odiando o fato de que tivesse que justificar-se depois de tantos anos—. Dormiu em meus braços. Eu também fiquei dormindo, abraçando-o. Meu pai despertou. —Vitória não pôde reprimir a dor e a ira—. Acusou-nos de... Estar cometendo pecado. —Engoliu seco de forma audível—. Meu pai não entende que alguém pode amar, tocar, sem sentir desejo carnal.

—E então você se transformou em professora - concluiu Gabriel.

—Sim.

—E amou os filhos de outras mulheres...

Os lábios de Vitória se curvaram em um sorriso irônico.

—Nem todas as crianças são adoráveis...

—... Porque não confiava em si mesma no que diz respeito aos homens.

Vitória já não podia continuar fugindo da verdade.

—Sim.

Duas fracas badaladas do Big Ben na lonjura invadiram o ar tenso.

—O desejo é natural, mademoiselle. —Luzes prateadas dançavam nos olhos de Gabriel—. O homem que usouseu desejo contra você é o culpado, não você.

Vitória imaginou um menino que sonhava com uma cama para dormir... Um adolescente que desejava o êxito para não voltar a ser pobre nunca mais...Um homem que desejava sentir o prazer que ele proporcionava a outros.

—O homem que usou seu desejo contra você foi o culpado, senhor—repetiu Vitória compassadamente—, não você.

Gabriel jogou a cabeça para trás como se tivesse recebido uma bofetada. Vitória esperou que aceitasse a verdade. Vestindo a jaqueta riscada, Gabriel deu meia a volta, pegou o casaco, a bengala e o chapéu. Ela pôde ver fugazmente o vigilante de cabelo escuro que esperava do outro lado da porta. Gabriel saiu sem dizer nenhuma palavra. Vitória olhou fixamente nos olhos escuros e curiosos do vigilante, e logo a porta se fechou, deixando-a sozinha. De repente se sentiu faminta. Acomodou-se na poltrona de Gabriel, deixou de lado o livro em francês e levantou a tampa semicircular que cobria o prato. Um aro azul esmaltado adornava a porcelana branca. Comeu com apetite, e quando terminou o último bocado de presunto, a última parte de ovo e os últimos miolos de um croissant, voltou a colocar a tampa de prata e levou a bandeja até a porta. O homem de cabelo escuro, uns dez anos mais jovem que Gabriel, deu a volta com a pistola desencapada. Vitória o tinha pego despreparado. E ela também ficou totalmente surpreendida diante aquela reação.

—Por favor, diga ao cozinheiro que o café da manhã estava delicioso - disse com voz neutra, lhe entregando a bandeja.

Lentamente, o homem percorreu com seus olhos escuros a colcha de seda azul que deixava descoberto os ombros de Vitória.

Uma faísca travessa brilhou em seu olhar. Aparentemente, a prostituição não tinha tirado nem a alegria nem o desejo.

—Obrigado, senhora. —Deslizando a pistola debaixo de sua jaqueta negra, sorriu e tomou a bandeja. Sua voz era suave, cultivada, a voz da sedução—. Pierre se sentirá muito agradado.

O coração de Vitória sofreu um sobressalto. Realmente era um homem muito atraente.

—Obrigado - respondeu Vitória coibida. Respirou profundamente. Na realidade, não tinha nenhum motivo para sentir-se turvada... Não havia nada que pudesse surpreender alguém na Casa de Gabriel—. Por favor, diga a Pierre que agradeceria se me servisse a próxima comida com uma caixa de camisinhas...

 

CAPITULO 11 

 

O ar londrino era úmido e frio, e uma neblina amarelada envolvia a cidade. Gabriel balançou a bengala de prata com ar distraído.

Tinha chegado o momento da caçada. Conhecia o endereço que o interessava; o que não sabia era se o homem a quem procurava estaria ali. Encontrou a casa sem problemas. Junto a ela se estendia um parque no qual as vozes infantis impregnavam a penumbra amarela que cobria a cidade. Os meninos jogavam enquanto suas babás aproveitavam para botar em dia as últimas fofocas.

Ninguém repararia em dois homens caminhando entre a névoa. E se alguém o fazia, seria impossível identificá-los.

—Só lhe cobrarei um penique por limpar seus sapatos, patrão - ofereceu uma voz áspera.

Gabriel olhou para baixo. O pequeno engraxate de seis anos parecia ter refletido em seus olhos uma vida de sessenta e seis. Assentiu em silêncio, deixando que o menininho desse brilho a seus sapatos. Mas não pensava nos sapatos, e nem sequer no homem a quem procurava. Gabriel pensava em Vitória. Ela acreditava que podia salvar um anjo. Gabriel não era um anjo.

Como ama uma mulher um homem?... Michael o amava, e seu amor tinha destruído a vida de Gabriel. Gastón dizia que seus empregados o amavam. Seu amor permitia que Gabriel destruísse suas vidas. Nenhuma mulher tinha amado Gabriel. Não queria que nenhuma o fizesse. O engraxate permaneceu de cócoras enquanto Gabriel inspecionava seu trabalho. Seus olhos de uma vez jovens e velhos estavam coloridos de azul. O homem que usou seu desejo contra você é o culpado, senhor, não você. Gabriel retirou bruscamente o pé da caixa e jogou um florín ao menino. A porta da casa se abriu. Uma mulher e duas meninas, de oito e dez anos, saíram dela. A mulher ia embelezada com uma capa e um chapéu desgracioso; as duas meninas usavam gorros e manguitos de pele combinando. A professora pegou nas mãos cada uma das meninas que lhe tinham sido confiadas. Vitória havia dito que não todas as crianças eram adoráveis. Teria ela amado às duas meninas? Perguntou fugazmente. Amaria os filhos de um bastardo? Gabriel esperou para ver se as duas meninas e sua professora entrassem em parque. Entraram. Quando transpassaram a grade, a neblina as envolveu. Ouviu um vendedor de pão-doces apregoando sua mercadoria. Vitória não comeu o café da manhã em sua presença. O teria feito depois? Comprou um pão-doce de canela. Justo quando o tinha terminado, a porta da casa voltou a abrir. Era o homem a quem Gabriel andava procurando. Usava uma bengala de mogno corrente em sua mão direita. A bengala de punho prateado que Gabriel segurava em sua mão esquerda serviu para recordar que nada era o que parecia. Gabriel se afastou da grade de entrada do parque e cruzou a rua sem pressa, esquivando habilmente de um montículo de esterco fumegante enquanto sorteava um ônibus que avançava com lentidão e uma carreta puxada por uma mula para chegar à calçada. O homem desceu as escadas pausadamente e virou para o norte, em direção contrária ao parque. Em meio da neblina que os rodeava ressoou suas pegadas. Aos pouco, os passos de Gabriel se uniram aos dele. Gabriel trocou a bengala para a mão direita e colocou a outra na jaqueta para tirar o revólver Adams da capa que levava presa no ombro, mas o manteve escondido debaixo do casaco. O homem apurou um pouco o passo. Na esquina da seguinte rua havia um policial, e um carro de cavalos se aproximava rapidamente deles. O homem levantou o braço, e fez gestos para que parasse. Gabriel não tinha mais remedeio que agir rapidamente.

—Senhor, senhor! —gritou, tentando alcançá-lo. Com um tom de voz tranqüilo, sem ameaça alguma, perguntou—: Você é o senhor Thornton?

O homem parou e, com o braço ainda levantado, olhou para Gabriel com precaução. Tratava-se de um homem maduro, com um rosto pálido, largo e cheio de sardas, que se vestia de uma forma muito convencional. Não tinha o aspecto de ser uma pessoa capaz de aterrorizar uma mulher. Mas Gabriel sabia que parecia exatamente o tipo de homem que tinha matado e que mataria de novo.

—Sim, eu mesmo - respondeu o homem nervoso.

Seu primeiro engano. Nenhum homem só - e tampouco nenhuma mulher— devia reconhecer jamais seu nome a um estranho na rua. Gabriel aproveitou sem piedade a inocência daquele homem.

—Sua filha Penélope teve um acidente, senhor. A professora, uma tal senhorita Abercarthy —a mulher da agência de emprego a quem tinha interrogado o arrumado David se mostrou muito solícita na hora de lhe contar tudo o que quis saber—, pediu-me que o avisasse.

O homem baixou o braço. O carro de aluguel passou ao lado, deixando atrás dele o eco dos cascos do cavalo sobre o pavimento.

—Penélope! —exclamou o homem com um gesto de surpresa—. O que aconteceu? Onde está?

Gabriel não teve necessidade de mentir.

—Está no parque - respondeu, esperando para ver se teria que recorrer à força.

O homem deu a volta para encaminhar-se ao parque, sem opor resistência. Gabriel cruzou a rua com rapidez, como se tivesse pressa por retornar ao lugar do acidente. O homem o seguiu a passo acelerado. Franquearam juntos a grade aberta do parque.

—Onde está? —perguntou ansioso o homem.

As vozes dos meninos seguiam com seus jogos. No parque, envolto na neblina, ouvia-se A ponte de Londres vai cair, vai cair, vai cair...

—Ali —disse Gabriel, dirigindo-se para um retalho de névoa mais densa próxima a uma árvore, longe do lugar onde jogavam os meninos.

Sem ser consciente do perigo, Thornton caiu na armadilha de Gabriel, que esmagou o punho de sua bengala contra seu peito.

O homem bateu de costas contra a árvore, soltando o ar de seus pulmões com dificuldade. Seu chapéu cambaleou tampando um olho; ao mesmo tempo, a bengala escorregou de seus dedos, deixando-a cair no chão. Gabriel pressionou o punho de prata contra a traquéia do homem, deixando-o imobilizado contra a árvore, enquanto levantava contra ele a pistola de cano azulado. Thornton emitiu um grito afogado. A causa do medo abriu desmesuradamente o único olho que ficava descoberto.

—Eu se fosse você não gritaria, Thornton. —O bafo da respiração de Gabriel brilhou como prata na névoa amarela. Não reduziu a pressão sobre a traquéia do homem—. Não vai querer que suas duas filhas o vejam com o rosto destroçado por causa de um disparo.

—Mas o que... —A voz do homem adquiriu um timbre histérico e sua respiração se misturou com a de Gabriel.

—Silêncio - advertiu Gabriel em voz baixa.

—O dinheiro... Está em meu casaco. —O branco do olho direito parecia uma lua cheia em miniatura—. Posso pagar... Sou um homem rico...

Vitória tinha pensado que Gabriel queria chantagear a seu pai. Por um instante, desejou que o homem que tinha frente a ele fosse o pai dela. Mostraria o pouco que valia o dinheiro.

—Não quero seu dinheiro, Thornton.

O olho de Thornton quase se saiu de sua órbita.

—Por favor, não me mate.

Vitória não tinha suplicado por sua vida. Havia Thornton esperado que o fizesse? Tinha esperado fazê-la rogar por prazer?

Introduziu-se às escondidas em seu quarto e tinha visto suas calcinhas de seda quando ainda eram suaves e brancas?

Gabriel conteve sua ira.

—Não o matarei se me disser o que quero saber - disse com voz suave.

Gabriel não mentia. Um disparo chamaria a atenção; mas se esmagasse sua traquéia ninguém perceberia.

—O que você quiser, senhor - balbuciou o homem. Não tinha orgulho, nem dignidade, só o título de cavalheiro, por sua educação e sua riqueza—. Direi tudo o que quiser saber.

Gabriel não o pôs em dúvida.

—Tudo, Thornton? —perguntou com voz suave, sedutora.

—Sim... Sim! —respondeu Thornton ansioso, com uma luz de esperança em seu único olho visível.

Esse foi seu segundo engano. A esperança matava. Tinha chegado o momento de pôr fim ao jogo.

—Me diga por que está aterrorizando a Vitória Childers.

O homem piscou.

—Vitória Child... Mas ela já não trabalha em minha casa.

—Por que não? —perguntou Gabriel com sua sedosa voz.

O homem pôs o olho em branco nervosamente.

—Ela... Ela... Minha esposa a despediu.

—E por que o fez?

—Ela... Ela... Vitória Childers... Ela paquerava comigo...

Esse foi o terceiro engano de Thornton. Um homem não devia mentir quando enfrentava à morte.

—Vitória Childers não é uma mulher coquete. —Gabriel pressionou delicadamente o cano da pistola contra a bochecha direita de Thornton. O osso e o metal chocaram—. Por que mentiu para sua esposa?

—Ai, por favor...

—A verdade, Thornton - sussurrou Gabriel—. Só peço a verdade.

—Eu... —o homem tentou engolir a saliva e não pôde—. Eu não menti para minha esposa.

—Está dizendo que Vitória Childers paquerou com você, Thornton? —perguntou perigosamente.

O homem não cometeu um quarto engano. Levantou o olhar, como se procurasse alguém que o salvasse nas alturas.

—Não, não, não disse isso.

—Então o que quis dizer?

—Minha esposa —gaguejou—, minha esposa é uma mulher ciumenta.

—A agência de emprego o subministra uma professora nova em poucos meses, Thornton. Certamente não pensaria que seu plano passaria despercebido.

—Não sei... Não sei do que me está falando. —O cano introduziu um pouco mais em sua bochecha, o impedindo de fechar bem os lábios e dificultando sua pronúncia—. Minha esposa é quem emprega e despede as professoras.

Sua esposa...

—Já deve ter um harém bastante grande.

Thornton começava a dar-se conta do quão perigoso podia ser Gabriel.

—Por favor, não me machuque - suplicou.

—Você não acredita que merece que o machuque? —perguntou Gabriel com suavidade, enquanto se perguntava o que tinha planejado fazer Thornton com Vitória se tivesse satisfeito seus desejos e o que teria feito quando tivesse terminado com ela.

A teria entregue ao segundo homem antes ou depois de havê-la usado?

—Não tenho feito nada, já disse - resmungou dolorosamente o homem.

—E, entretanto Vitória Childers foi despedida sem referências. As professoras sem referências não podem conseguir empregos dignos. Você não dá opção a essas mulheres se não satisfazem a seus desejos, não é verdade, Thornton?

O sustento e um lugar onde viver em troca de sexo...

—Não sei do que me está falando. Não tenho mulheres. Tenho a minha esposa. Ela saberá aonde vão às professoras. Não voltam para mim. Nenhuma delas. Não entendo o que está me perguntando. Já disse que não fiz nada.

Uma nota discordante de verdade ressonou na voz do homem. Gabriel pressionou o cano da pistola com mais força contra seu rosto. O homem teria uma marca na face no dia seguinte. Combinaria com o pescoço arroxeado.

—Por favor, senhor, por favor, retire a pistola.

O fôlego do homem cheirava a café; o ácido aroma do amoníaco flutuou no ar.

A causa do medo, Thornton tinha urinado nas calças. Em algum lugar do parque se ouviu uma risada infantil, como um distante aviso de inocência. Vitória havia dito que seu patrão tinha mentido para que a despedissem, e que tinha escrito as cartas para seduzi-la. Acha que seu tio dispôs que enviassem uma mulher para me empurrar para minha própria morte? Tinha insinuado Gabriel a Michael.

—Aonde se dirigia quando saiu de sua casa? —perguntou Gabriel com brutalidade.

—A me... —titubeou com voz distorcida— clube.

A dúvida provocou um calafrio nas costas do Gabriel. O homem tinha admitido que Vitória tinha sido empregada. Por sua esposa.

Se não era o homem...

—Se não tiver uma estilográfica, Thornton, o matarei - disse Gabriel deliberadamente.

—Sim, tenho uma estilográfica, senhor! —respondeu o homem ansioso—. Dentro de meu traje, aqui! Veja!

Podia tratar-se de um truque. Aquele homem podia ter uma arma oculta na jaqueta. Só havia uma maneira de que Gabriel pudesse saber a verdade.

—Tire a pluma de seu traje - ordenou Gabriel.

—N-n-não posso. O a-a-abrigo está abotoado.

—Desabotoe-o.

—N-n-n-não posso fazê-lo com a pistola contra a bochecha, senhor.

Uma careta cínica apareceu nos lábios de Gabriel.

—Surpreenderia-lhe o que um homem é capaz de fazer, Thornton. —Um homem podia matar ou conceder a vida—. Desabotoe o casaco.

O homem mediu os botões torpemente. Depois de alguns segundos o casaco se abriu.

—Agora procure no traje. Lentamente.

Thornton o fez com cuidado. Gabriel acionou o percussor com o polegar, produzindo um som letal que ecoou na névoa.

Se Thornton tirasse uma pistola, era homem morto. Gotas de suor rodaram pela bochecha de Thornton, deslizando-se contra o cano azulado da arma. Tirou com supremo cuidado uma estilográfica grosa, de cor bronze, enquanto se balançava incontrolavelmente de um lado a outro. Haveria Vitória tremido de medo? Perguntou.

—Quero que escreva algo - exigiu Gabriel bruscamente.

Tinha chegado o momento de descobrir quem era que tinha escrito as cartas.

—Não tenho... Não tenho papel.

—Tire o punho esquerdo da camisa.

Gabriel recuou o suficiente para permitir que Thornton pôr as mãos para frente, adivinhando suas intenções antes que o homem tivesse tempo suficiente para as pôr em prática: ia correr.

—Sabe o que faz uma bala no rosto de um homem a esta distância? —perguntou Gabriel com suavidade.

Thornton arrancou o punho esquerdo. Pausadamente, Gabriel retirou um pouco a pistola. Uma mancha branca e redonda, produto da pressão, tinha aparecido na face direita do homem.

—Se gritar, matarei-o - ameaçou claramente—. E se correr, também o matarei. Compreendeu?

—Sim. —Thornton tomava pequenas baforadas de ar—. Sim, entendo, senhor.

—Bom. Quero que escreva no punho.

—O que? O que quer que escreva? Escreverei o que você quiser. O que seja. Só me diga o que devo escrever...

Gabriel pensou rapidamente.

—Escreva: O eterno desejo de uma mulher.

Não houve nenhum indício na expressão de Thornton de que tivesse reconhecido aquela frase, só o temor de morrer e a vontade de fazer algo para evitar a morte. Usando a boca para retirar a tampa da pluma e a palma da mão esquerda como apoio, Thornton escreveu rapidamente as palavras no punho branco engomado, com o bafo de sua respiração elevando-se no ar.

Quando terminou, olhou ansioso para Gabriel, como um menino à espera de aprovação.

—Levante o punho para que eu possa ler - ordenou Gabriel.

O homem obedeceu, com a tampa de cor bronze na boca e a mão tremendo visivelmente, fazendo que o punho se movesse e as letras negras dançassem. Gabriel arrancou o punho da mão. A letra negra não coincidia com a das cartas de Vitória. Suas vísceras se contraíram ao se dar conta. Thornton não era o homem que tinha escrito as cartas de Vitória Childers.

 

CAPITULO 12

Uma parte de tecido branco engomado caiu sobre o lençol de linho que Vitória estava acomodando debaixo do colchão.

Surpreendida, recolheu-a. Era o punho da camisa de um homem. Tinha algo escrito em tinta negra. Deu a volta para poder lê-lo.

O eterno desejo de uma mulher produziu um desagradável impacto. O coração pareceu pegar-se a suas costelas. Soltou o punho e se ergueu imediatamente. O improvisado papel caiu ao chão. Um fôlego quente lhe fez cócegas na nuca. Deu a volta. Gabriel estava ali de pé, a poucos centímetros dela. Cheirava a ar frio e neblina londrina. Os ovos com presunto e o croissant que Vitória tinha comido um pouco antes se revolveram em seu estômago.

—Conheci seu antigo patrão, mademoiselle Childers.

Tinha conhecido seu antigo patrão...

—O homem que escreveu essa nota no punho não era meu patrão - disse tensamente.

—Au contraire, mademoiselle. —O fôlego do Gabriel despedia um ligeiro aroma de canela—. Peter Thornton sim era seu patrão.

Era seu patrão?

Gabriel estava insinuando que Peter Thornton tinha sido seu antigo patrão, ou falava em passado porque já não existia?

Acaso Gabriel o tinha matado? Vitória levou a mão ao pescoço. O pulso palpitava contra seus dedos a maneira de advertência: morte, perigo, desejo.

— Como sabe que Peter Thornton é o nome de meu antigo patrão?

—Enviei um de meus homens a investigar nas agências de emprego. —O calor do fôlego de Gabriel contrastava com a frieza de seus olhos—. Disse-lhes que tinha entrevistado uma professora chamada Vitória Childers a quem queria contratar, mas que tinha perdido seu endereço. A agência West encontrou sua documentação. Não tinham seu endereço atual, mas confiavam em que seu antigo patrão o teria.

A admiração lutou com o ressentimento de Vitória.

—É você muito meticuloso senhor.

Aterradoramente meticuloso. O homem que tinha escrito as cartas poderia aprender com ele.

—A ignorância mata mademoiselle - disse Gabriel em voz baixa—. E os segredos também.

Ele já sabia quem era seu pai, e conhecia a história de seu irmão. Vitória já não tinha mais segredos. Seus pensamentos passavam rapidamente. Vitória nunca tinha visto a letra de Peter Thornton, mas se não tinha sido ele quem tinha escrito aquelas cartas? Nesse mesmo instante ocorreu que nunca antes tinha visto a letra do homem de cabelo e olhos prateado que tinha diante ela.

Laissez o jeu commencer. Que comece o jogo. Mas os quais eram os jogadores? Uma dor inesperada oprimiu o peito de Vitória.

Gabriel não confiava nela. Mas ela sim tinha confiado nele. Não podia abandonar-se ao medo. Baixando a mão, Vitória se endireitou; seu seio pressionou a colcha de seda atada.

—E você acha outra vez que eu estou confabulada com esse... Esse homem que conforme diz o está procurando.

Um fôlego quente abrasou sua face.

—E não o está? —perguntou Gabriel como subtraindo importância.

Ela percebeu a canela. As pestanas de Gabriel eram muito longas, muito grosas. Seu rosto era muito bonito, muito distante.

O cheiro de queimado ainda persistia no ar. Vitória usava a colcha da cama dele, e embora tivesse tido um lugar seguro aonde poder refugiar-se, não teria podido sair correndo. Tinha queimado o seu vestido. Estava presa. Somente a verdade poderia salvá-la. Apesar de tudo, a verdade não a tinha salvado quando tinha perdido seu emprego fazia seis meses.

—Não - replicou Vitória, apertando os dentes—. Não estou.

—O homem que escreveu as cartas sabia que você usava calcinhas de seda, mademoiselle.

Peter Thornton era o único homem que conhecia que podia ter tido acesso a seu quarto e a seus objetos íntimos. Quem mais poderia saber...

—Vendi toda minha roupa interior, exceto a que usava, no St. Giles Street. —Vitória não afastou o olhar daqueles perigosos olhos prateados—. Qualquer que um que me seguisse poderia ter entrado no armazém quando eu saí e ter comprado o que acabava de vender.

A idéia de que um estranho a tivesse seguido a incomodou.

—É possível - admitiu Gabriel.

Mas improvável, diziam seus olhos prateados. Ela não ia suplicar. Nem chorar. Não se sentiria ferida porque um anjo intocável não acreditava. Vitória elevou o queixo um pouco mais.

—Não serei uma vítima.

O negro das pupilas de Gabriel devorou o prateado de sua íris.

—Já é Vitória Childers.

De repente, tomou consciência de sua própria nudez sob a colcha azul claro que deixava a descoberto seus ombros, e não pôde evitar que um calafrio percorresse sua pele. Ele estava muito perto, o calor que emanava seu corpo era muito ardente. Como podia duvidar dela? Tinha falado... Tinha confessado seus desejos ocultos...

—E de quem sou vítima, senhor? —desafiou-o Vitória—. Você diz que há um homem que pode me fazer mal; não vi esse homem. E depois diz que me protegerá, mas é você o que me está ameaçando. De quem sou vítima?

Sua dor se refletiu brevemente no olhar dele, sendo substituído imediatamente por uma expressão friamente calculista.  

—Um homem a está aterrorizando, mademoiselle. —O fôlego quente com sabor a canela roçou os lábios—. E entretanto não quer me dizer seu nome. Por que razão?

—Não conheço seu nome - repetiu Vitória com obstinação. Não havia forma de disfarçar o desespero que aparecia em sua voz.

—Você disse que tinha sido Thornton.

—Sim - espetou ela.

—Por que não me disse seu nome?

Vitória passou a língua pelos lábios com sabor a canela, com sabor do fôlego de Gabriel.

—Porque tinha medo.

Ainda tinha medo.

—Do que, mademoiselle?

Tanto sua voz como seu fôlego eram uma carícia, mas a frieza de seus olhos pareceu congelar-se nas pestanas de Vitória.

—Tinha medo de que você o encontrasse - respondeu Vitória.

—Mas o encontrei.

—Temia que falasse com ele.

—E o fiz.

Uns pontos negros nublaram a visão de Vitória.

—Temia que dissesse quem sou eu.

—Isso já sei.

—Não, não sabe! —gritou ela.

Ele não pestanejou diante aquele arrebatamento de Vitória, um arrebatamento que demonstrava, uma vez mais, que ela não era a mulher que sempre tinha acreditado ser. Tranqüila. Racional. Acima dos desejos da carne. Um conhecimento escuro brilhou nos olhos do Gabriel.

—Eu a conheço, Vitória.

Tinha visto seu corpo nu, diziam seus olhos. Gabriel conhecia o tamanho de seus seios, a estreiteza de seus quadris, a curvatura de suas nádegas. Mas não conhecia ela.

—O que sabe de mim?

—Sei que desfruta da sensação da seda contra seu corpo. —Seu olhar roçou seus ombros nus, brincou com a seda enrugada entre seus seios—. Sei que é corajosa e leal.

Levantou suas pestanas, fixando nela seu olhar prateado.

—Sei que vou morrer por sua culpa.

A respiração de Vitória se entupiu em sua garganta... Ou talvez era o fôlego dele o que sentia na garganta.

—Eu nunca lhe faria mal.

—Isso também sei.

—E como sabe?

—Por seus olhos. —Os olhos de Gabriel se escureceram e o tom prateado adquiriu tinturas cinzentas—. Você está aqui por seus olhos.

Vitória acreditou que não tinha ouvido bem.

—Como diz?

—Madame René lhe disse que Michael e eu somos amigos.

Vitória demorou um segundo na mudança de um tema a outro.

—Sim. Disse que há laços entre vocês que nunca poderão se quebrar.

Exceto com a morte...

—Quando tínhamos treze anos, uma madame em Paris nos acolheu. —O passado se concentrou no olhar de Gabriel—. Instruiu-nos para exercer a prostituição.

Seis meses antes Vitória teria se sentido horrorizada. Mas, nesse tempo, tinha visto meninos e meninas muito mais jovens vendendo seus corpos na rua.

—Michael. —Vitória escolheu cuidadosamente as palavras antes de formular seu pergunta seguinte, temerosa de perturbar o precário equilíbrio que novamente se estabeleceu entre eles—. Também ele foi treinado para agradar... Aos homens?

O rosto do Gabriel continuava impassível.

—Non.

Vitória tentou imaginar o tipo de amizade que podia estabelecer entre dois moços ensinados de modo tão diferente.

—Não se compadeça mademoiselle - exclamou Gabriel com dureza.

—Não o faço. —A garganta de Vitória se contraiu—. Acredito que é afortunado de ter um amigo como Michael.

Um amigo que podia compreender o menino que tinha sido Gabriel e ao homem no qual se transformou. Um músculo palpitou no interior da face esquerda do Gabriel.

—Você está aqui porque tem os olhos iguais ao de Michael.

Vitória pestanejou confusa.

—Seu amigo tem os olhos azuis?

—Michael tem olhos ofegantes, mademoiselle. A cor não importa.

Olhos ofegantes... Uma onda de calor percorreu a Vitória.

—Eu não... Flerto.

Ela não tinha tentado seduzir ninguém nos últimos seis meses...

—Você quer ser amada, mademoiselle.

Os cinco anos que Vitória tinha vivido com seu pai depois da partida de sua mãe caíram sobre ela como uma pedra. Ele tinha proibido qualquer expressão emocional, o contato físico, manifestações de carinho. A necessidade de amar, tinha-lhe repetido constantemente, era o maior pecado de uma mulher.

—E isso é mau? —perguntou Vitória com certo timbre de menina em sua voz—. É pecado precisar de amor?

—Quem se prostitue não podem permitir o luxo de amar.

—Por que não? Por que teria que se privar alguém do simples afeto?

Um sentimento de pesar com sabor a canela cintilou nos olhos de Gabriel, que passaram do prateado à cinza, do cinza ao prateado.

—Eu não tenho capacidade para amar uma mulher, mademoiselle.

Vitória se endireitou tudo o que pôde.

—Eu não pedi seu amor, senhor.

—Compartilhei com você mais do que jamais compartilhei com outra pessoa...

—Obrigado...

—... Mas a confiança tem um preço.

Tudo se reduzia sempre a um homem. Vitória não pôde conter a fúria em sua voz.

—Não sei quem é o homem a quem busca.

—Já sei.

Então por que continuava interrogando-a?

—Não sei quem escreveu as cartas.

O cheiro de canela se pulverizou sobre sua face e seus lábios.

—Então me diga algo que saiba mademoiselle.

Vitória não sabia como amar um homem, nem como seduzi-lo.

—Não me ocorre nada que eu saiba que possa interessar ao senhor - disse—. Sou uma professora, não uma... Uma...

Vitória não pôde seguir.

—Prostituta? —aventurou Gabriel cinicamente.

—Não disse isso - replicou ela.

—Você me defendeu diante de madame René - disse inesperadamente. O receio tingiu sua voz e nublou seus olhos—. Por quê?

Por que tinha defendido Vitória um homem que às vezes tentava seduzi-la e no momento seguinte a ameaçava?

—Porque você deseja - respondeu Vitória.

Apesar de seu passado, ou por causa dele. Gabriel não negou seus desejos. A aflição se refletiu em seus olhos.

—Se você pudesse mademoiselle, me ajudaria?

Ajudar um anjo intocável...

—Sim.

Vitória o faria.

—Você possui informação que eu preciso.

Outra vez o mesmo... Vitória abriu a boca.

—Que?

—Quero conhecer a distribuição interior da residência Thornton - disse Gabriel.

Vitória fechou a boca de repente.

—Que?

—Quero saber em que quarto dorme a senhora Thornton - disse, como se fosse o mais natural do mundo que um homem pedisse a uma mulher a quem tinha elogiado por sua coragem e sua lealdade que lhe desse informação sobre o quarto de outra mulher—. Independentemente de que você me dê essa informação ou não, eu irei atrás dessa mulher. Entretanto, se me proporcionar esses dados será menos provável que surpreenda acidentalmente a alguém. E o mate.

—Você... Machucou o senhor Thornton - perguntou Vitória sem poder evitar.

—Está vivo, mademoiselle.     

Por enquanto. Sedução. A ilusão de confiança. Vitória apertou os lábios.

—Você está me seduzindo para que lhe dê informação confidencias.

—Não, mademoiselle, estou lhe pedindo que confie em mim. Como eu confio em você.

Com cada respiração, Vitória recebia o calor do fôlego de Gabriel.

—Por quer ver a senhora Thornton em seu quarto? Por que não tomar o chá com ela? —raciocinou Vitória—. Estou certa de que você pareceria encantador. Vitória se horrorizou ao perceber o ciúme em sua voz. A senhora Thornton era uma mulher muito bonita. Seu claro cabelo loiro brilhava seus lábios e suas mãos não estavam rachados pelo frio ou o trabalho.

—Ela contratou você - disse Gabriel enigmaticamente.

—Sim - respondeu Vitória—. Não é estranho que a senhora da casa fiscalize a contratação de... —fazia muito tempo que Vitória se acostumou a referir-se a si mesmo como empregada, não entendia por que agora dava tanto trabalho— os serventes.

—Quanto tempo, por termo médio, é necessário que uma professora permaneça em uma casa?

Vitória franziu o cenho.

—Isso depende das necessidades do lar e da idoneidade da professora.

—A senhora Thornton contrata e despede de dois, e inclusive três, professora por ano. —Gabriel fez uma pausa, observando sua reação—. Todos os anos.

Dois, e inclusive três, professoras... Todos os anos.

Gabriel não podia estar sugerindo o que Vitória estava pensando.

—Isso... Suas filhas são umas malcriadas. —Penélope, a maior, adorava a fofoca; sem dúvida isso havia custado o emprego de muitos —. As professoras muitas vezes procuram outro emprego.

O olhar de Gabriel era implacável; seu fôlego era calidamente incitante.

—Você não procurou outro emprego, mademoiselle.        

E como podia ele sabê-lo?

—Fiz algumas sondagens - disse ela.

Era a verdade.

—Sabia a senhora Thornton que você estava procurando outro trabalho?

—Eu... —Vitória recordou o dia em que a senhora Thornton tinha irrompido em seu quarto, sem aviso prévio, uma noite pouco antes de despedi-la, e a tinha encontrado examinando o jornal—. Talvez.

—Muitas empregadas não têm lar ou família.

Gabriel estava no certo.

—E como muitas de nós não temos lar, você acredita que a senhora Thornton está contratando e despedindo professoras com algum infame propósito?

—Sim - disse ele, examinando-a...

—Você acha que essas outras professoras foram submetidas ao mesmo tratamento que eu recebi?

—É possível - respondeu Gabriel.

Mas se esse fosse o caso...

—E pensa que o homem que me escreveu as cartas fez o mesmo com as demais empregadas...

Gabriel não respondeu. Não tinha que fazê-lo. A resposta estava em seus olhos prateados. Vitória sentiu sua pele fria.

—E acredita que essas outras empregadas estão mortas - continuou ela, horrorizada.

Em troca, Vitória continuava viva, salva por sua obstinada independência. Ele observava imperturbável as reações de Vitória; o calor de seu corpo não a fez encontrar calor.

—Sem dúvida o senhor Thornton saberia se sua esposa fosse cúmplice de... —Vitória se esforçou por conter o pânico— assassinato.

—Agrada-lhe acreditar que sua esposa é uma mulher ciumenta.

Vitória não tinha visto nunca na senhora Thornton o mínimo ataque de ciúmes.

—Por que ela... Que prazer obteria uma mulher em...? Eu vi a letra da senhora Thornton. —A voz vacilante de Vitória se agarrou à razão—. Não foi ela quem escreveu essas cartas.

O quente fôlego com aroma de canela roçou seu rosto.

—Então teremos que descobrir quem o fez.

Vitória podia confiar em Gabriel. Ou não. A opção era dela...

—Como posso saber que a letra do punho da camisa não é dela?

—Isso é fácil de comprovar.

Como era fácil provar a relação da senhora Thornton com o homem que esperava que Vitória fosse a ele em busca de sustento, refúgio, prazer.

—Você não fará mal à senhora Thornton - afirmou Vitória com escassa convicção.

—Não vou matá-la - admitiu Gabriel.

—Como... Persuadiu o senhor Thornton para que se reunisse com você?

—Encontrei-me com ele no parque, em frente a sua casa.

Sim, o parque envolto em névoa era um lugar particular.

—A senhora Thornton vai às compras pelas manhãs - sugeriu Vitória apressadamente—. Talvez poderia falar com ela nesse momento...

—Vi a empregada que a substituiu, mademoiselle - comentou Gabriel com calma deliberada—. Talvez percam a paciência com você e se concentrem nela.

E outra mulher se transformaria em vítima do mesmo patrão. Demissão sem referências. Morrendo um pouco cada dia de pobreza e desespero. Recebendo cartas que prometiam prazer e segurança.

—Muito bem - assentiu Vitória com determinação—. Ajudarei você.

—Merci, mademoiselle.

Sem aviso, Gabriel deu um passo atrás.

—Confiança, mademoiselle. —O quente fôlego com cheiro de canela foi substituído pelo cheiro acre da lã queimada—. Devemos confiar um no outro.

Vitória não ia permitir que mentisse para ela.

—E, entretanto, você não confia em mim, senhor.

Uma gota de névoa londrina brilhava no ombro.

—Talvez não confio nem em mim mesmo.

—Não faça isso.

A objeção saiu de sua boca antes que Vitória pudesse detê-la.

Umas brasas estalaram na chaminé.

—Que não faça o que? —perguntou Gabriel suavemente.

—Não me seduza com uma ilusão de confiança.

Vitória queria acreditar que o homem arrumado que tinha diante ela a considerava atraente. Queria acreditar que podia confiar em um anjo intocável. Queria acreditar que ele não a seduziria com palavras só para ganhar sua confiança. Vitória sabia que não devia acreditar simplesmente porque precisava fazê-lo.

—Você pensa que o homem que escreveu as cartas pode lhe conduzir até a pessoa a quem busca. —Sustentou seu olhar com decisão—. Talvez tenha razão, e já disse que ajudarei, de modo que, por favor, não minta.

—Não o faço.

Não gostava que bisbilhotassem em suas gavetas, nem que o chamassem mentiroso...

—Há muitos tipos de mentiras, senhor. —Vitória inclinou o queixo como se o estivesse desafiando—. A omissão também pode se considerar uma mentira.

—Eu sempre pago minhas dívidas, mademoiselle.

Não era a resposta que ela esperava.

—Você acha que me deve algo? —Vitória engoliu seco—. E que pode pagar me dizendo o que acha que eu quero escutar?

—Sim - replicou ele—. Acredito que estou em dívida com você, Vitória Childers.

—Por quê?

—Eu amei um homem, mademoiselle. Se não o tivesse feito, você não estaria aqui.

Michael. O anjo escolhido.

—Amou-o... Como um amigo?

—Amei-o como um irmão.

Vitória tinha amado David como irmão. Seu pai tinha deformado seu amor inocente e o tinha profanado.

—Não pecou no amor - protestou involuntariamente.

—Não, mademoiselle, não pecou no amor - disse Gabriel imperturbável—. O pecado está em amar.

Um homem como ele não deveria sentir tanto dor. E uma mulher como eu não se deveria importar.

—Melhor seria que não tivesse lido nunca essas cartas - murmurou Vitória—. E não tivesse conhecido essa falha de meu caráter.

Gabriel não se moveu; de repente, sentiu como se tivesse a quilômetros de distância.

—Preferia não ter desejado um anjo?

Não havia maneira de esconder da verdade.

—Não. —Para bem ou para mau, Vitória desejava Gabriel—. Não, não é isso o que quero.

Não teve a coragem de perguntar se lamentava ter dado lances por ela.

—Madame René enviou sua roupa - anunciou Gabriel, mudando bruscamente de tema, com seus olhos prateados alerta.

Roupa. Madame René. Vitória respirou profundamente. Só tinham passado umas horas desde que madame René tinha tomado medidas, embora parecesse como se tivessem transcorrido vários anos. Gabriel pensou que ela ia desprezar sua roupa. Sua pessoa. Seu passado. Opções...

—Trouxe a roupa com você? —perguntou Vitória com energia.

—Não.

Ela o olhou fixamente.

—Então como sabe que chegou?

—Quando retornei, Gastón me disse que haviam trazido. Pedi que a subisse. Faz uns minutos ouvi abrir a porta do estúdio.

E não havia dito nada. Apesar da omissão de Gabriel, não pôde evitar sentir uma faísca de curiosidade. Agarrando a seda com as duas mãos, Vitória o seguiu à sala continua. Várias caixas brancas se amontoavam sobre o sofá de couro azul claro; três delas continham os vestidos; depois havia umas caixas retangulares menores, três chapeleiras e quatro caixas de sapatos. Todas vinham estampadas com pétalas de rosa. Vitória não tinha tido um vestido novo fazia mais de um ano. Nunca havia possuído um traje sob medida. Parecia impróprio obter um prazer frívolo da roupa cara quando havia tantas pessoas na rua que possuíam tão pouco.

—Há muitas caixas - disse, reprimindo-se.

—Madame René me assegurou que as mulheres nunca têm muita roupa.

Deixava transparecer um sorriso na voz de Gabriel? Vitória o olhou rapidamente; tinha visto como seus lábios se torciam em uma careta cínica, mas nunca o tinha visto sorrir. E tampouco o fez agora. Mas em seus olhos sim brilhava um sorriso. Naqueles bonitos olhos prateados...

—Os pagarei - se apressou a dizer.

A voz dele era como uma carícia leve.

—Talvez, mademoiselle, considere pagamento suficiente contemplar o prazer que sente agora.

Seu estômago deu um pulo.

—Está flertando comigo, senhor?

—Não, mademoiselle. —O sorriso abandonou seus olhos—. Eu jamais paquero.

—Mas sabe fazê-lo? —perguntou ela sem fôlego.

—Sim, sei fazê-lo.

Paquerar. Beijar. Dar prazer. Mas não sabia como receber prazer.

—Que caixa abro primeiro? —perguntou.

Sabia que parecia uma menina no Natal. A longínqua lembrança de uma voz amorosa e risadas quentes cruzou por sua mente. Sons familiares para uma menina de onze anos, mas não para uma mulher de trinta e quatro. As lembranças desapareceram com a mesma rapidez com que tinham chegado. Gabriel assinalou o sofá com um gesto.

—A que preferir mademoiselle.

Vitória se sentou com certa vacilação; o couro e a seda rangeram em uníssono. Com supremo cuidado, pegou uma das caixas estampadas com pétalas de rosa. Pareceu que pesava muito. Levantou a tampa com curiosidade. A caixa estava repleta de luvas de todo tipo, de lã, de couro, de seda branca, compridos de seda negra para usar de noite, e alguns estavam manchados de vermelho.

Alguém tinha derramado tinta sobre eles. Vitória franziu o cenho. Duas das luvas de couro negro tinham umas mãos de manequim em seu interior, como se tivessem sido tirados de uma vitrine. Lentamente, Vitória se deu conta de que as mãos que havia dentro das luvas de couro negro não eram de madeira, e sim de carne e osso. Aquelas mãos eram humanas. E a tinta vermelha que manchava as luvas era sangue.

 

13

 

Deus Santo! —Aquela exclamação ressoou nos ouvidos de Vitória. Era uma voz de mulher, mas não a reconheceu. Parecia provir de muito longe. Parecia muito longínqua para ser sua própria voz. A caixa que até fazia um instante repousava sobre seu colo tinha desaparecido. Ela ficou segurando a tampa entre seus dedos, enquanto olhava para cima confusa. O rosto do Gabriel estava muito perto dela. Pensou que tinha poros finos e sua pele era suave como a de um bebê. Os olhos prateados se fixaram em seu olhar. Uma sedosa voz masculina foi a sua memória... Se ainda não está morta, logo estará.

—São... Da prostituta. —Vitória parecia não encontrar o nome apropriado para designar as partes do corpo que tinham sido amputadas—. São dela.

—Possivelmente.

Gabriel se endireitou, jogando a cabeça para trás e segurando a caixa entre seus longos dedos brancos.

Vitória soltou a tampa.

—Não é madame...

—Não, não são de madame René. —Não havia nenhuma emoção nos olhos do Gabriel, nem prazer nem horror—. Suas mãos são menores.

Vitória jamais desmaiou. Jamais quis desmaiar. Agora o desejava com todas suas forças. De repente se deu conta de que havia outra pessoa que conhecia como eram seus objetos íntimos.    

—Dolly sabia que eu usava calcinhas de seda - sussurrou.

E agora Dolly estava morta. Como tinha dito Gabriel. Vitória engoliu seco compulsivamente. O quarto começou a dar voltas.

—Coloque a cabeça entre as pernas - ordenou uma voz cortante.

Vitória olhou o resto das caixas; as três caixas dos vestidos eram o bastante grandes para conter um torso, e as três chapeleiras eram bastante profundas para incluir uma cabeça...    Os ovos com presunto e o croissant que comeu de café da manhã fizeram que seu estômago se revolvesse. Ficou de pé cambaleando, tropeçando, enquanto a colcha de seda atada sobre seu seio se soltava, deslizando-se por seu corpo. Correu para o banheiro. Gabriel tinha falado de morte, mas tinha parecido irreal; agora tudo tinha adquirido um ar absolutamente real. Vitória se perguntou se madame René se sentiria desiludida por seu fraco estômago. E depois não se perguntou nada mais. Caiu de joelhos em frente ao vaso de porcelana. E recordou outras palavras... As dela, as de Gabriel.

Planeja me matar, então, para me poupar desta... Morte? Terminaria me agradecendo isso. Possivelmente tivesse razão.

 

Gabriel abriu uma das chapeleiras. Um chapéu tingido de vermelho tinha sido colocado sobre a cabeça de uma mulher.

A morte tinha apagado a dor e o horror de Dolly. A segunda chapeleira continha um elegante chapéu Windsor com um curto véu negro. Não havia nela nada que tivesse relação com a morte. Gabriel abriu a terceira caixa. A frívola criação adornada com plumas continha a cabeça de um homem, com o cabelo cinza manchado de vermelho escuro. O rosto de Gerald Fitzjohn parecia relaxado. Viu o prazer de Vitória, e também seu horror. Durante um breve instante tinha compartilhado seu prazer. Não compartilhou seu horror: Gabriel tinha vivido muito tempo nas ruas para sentir repulsão pelos rostos da morte. Dolly e Fitzjohn estavam destinados a morrer, e tinham morrido. O preço do pecado. Chantagem. Morte. Pecou você, mademoiselle? Ainda não.

Gabriel tampou as caixas, endireitou-se e se dirigiu ao escritório; apertou um timbre sob a tampa de mármore negro. Depois se encaminhou a grandes pernadas para a porta de madeira e a abriu de par em par. Um homem de espesso cabelo cor mogno deu um pulo.

—Senhor Gabriel!

—Retira as caixas do sofá, Evan - ordenou Gabriel com toda calma, sentindo-se invadido pela ira.

Ele queria evitar para Vitória a realidade da morte. Mas, evidentemente, o segundo homem não queria que a evitassem.

Evan cravou em Gabriel seus olhos verdes.

—Sim, senhor - assentiu.

Perguntou se seu empregado compadecia-se por Vitória, e se tentaria deixá-la em liberdade.

Afastou-se para um lado para que Evan entrasse. O homem se inclinou para pegar uma caixa.

—Evan... Há despojos humanos em algumas das outras caixas.

Possivelmente havia restos em todas as caixas, embora Gabriel duvidasse. O peso de todas juntas teria levantado suspeitas quando as tinham subido. Evan ficou rígido de horror, prova de que nem todos os homens que tinham vivido nas ruas tinham perdido a capacidade de sentir repulsão ante a morte.

—Recolhe os membros amputados e jogue no Tamise - ordenou Gabriel com um tom de voz neutro—. Queima a roupa e as caixas.

Muitas pessoas desapareciam no Tamise. Gabriel não queria lascas de ossos humanos em sua caldeira. Evan não fez nenhuma pergunta, e se limitou a levantar uma das pesadas chapeleiras.

—Evan.

—Senhor? —disse Evan com voz contida. Sim se compadecia de Vitória.

—Gastón te advertiu que devia vigiar muito bem a mademoiselle Childers, não é assim?

Evan não se virou.

—Sim, senhor.

—Quero que diga ao Julien e a Aliem o que contém na chapeleira que leva nas mãos - ordenou Gabriel com indiferença—. E também que poderia ter sido a cabeça de mademoiselle Childers se não a tivéssemos protegido.

Gastón entrou bem no momento em que Evan saía com as primeiras caixas.

—O que acontece, monsieur? —perguntou surpreso—. A mademoiselle não gostou da roupa?

Gabriel lhe mostrou a caixa com as luvas.

O rosto moreno de Gastón adquiriu uma tonalidade cinza.

—Quando chegou às roupas, Gastón? —perguntou Gabriel com calma.

—Antes que você chegasse monsieur.

—Quem entregou as caixas?

—Je ne sais ps. Um homem. Sozinho... —O horror fez que seu rosto se enrugasse momentaneamente—. As caixas vinham da oficina de madame René. Eu não sabia monsieur.

Gabriel acreditou. Podia advertir a Gastón que devia revisar qualquer outra caixa que se entregasse na casa, mas não havia necessidade de fazê-lo. O segundo homem não repetiria o truque. Queria advertir a Gastón o que poderia esperar no futuro. Mas Gabriel não sabia qual ia ser a seguinte jogada do segundo homem. Não sabia se mataria um homem ou uma mulher.

Um amigo ou a um inimigo.

—Dá isto ao Evan. E peça ao Julien que vigie a porta em vez do Evan.

—Très ben, monsieur.

Gastón deu meia volta.

—Gastón...

O homem parou.

Gabriel olhou a colcha de seda azul claro estendida sobre o tapete, onde tinha deslizado do corpo de Vitória.

—Leve-a colcha de seda.

Gabriel cruzou seu estúdio em silêncio, entrou no quarto e parou frente ao grande armário. Abriu a porta e rebuscou entre casacos e calças até encontrar um robe de seda azul cobalto que se aderiu a seus dedos como o cabelo de uma mulher. Vitória estava sentada sobre os frios ladrilhos em frente ao vaso, com as costas retas e uma palidez extrema em seu rosto. Seu cabelo caía descuidado sobre o ombro direito. Tinha o cabelo escuro, com reflexos vermelhos e acobreados que brilhavam com a luz.

Um cabelo lindo.

—Chamava-se Dolly - revelou Vitória com voz entrecortada.

Gabriel segurava em sua mão o robe de seda. Não sabia como consolá-la, embora quisesse fazê-lo. A ira que se mexia em seu interior se intensificou. O segundo homem tinha planejado tudo. E já não podia parar o jogo. Mas teria dado tudo para fazê-lo.

—Faz três meses um homem tentou de me violentar - prosseguiu Vitória com um tom apagado pelo horror—. Estava chovendo. Dolly me ajudou. Todos outros se limitaram a passar a meu lado, baixando seu guarda-chuva para não ver o que estava acontecendo. Gabriel ficou tenso, sentindo uma palpitação repentina na têmpora esquerda. Sabia quem tinha atacado Vitória; sabia tudo sobre ele exceto seu nome, e até onde seria capaz de chegar para cumprir a vontade de um homem morto.

—Como era esse homem? —perguntou com voz aparentemente tranqüila.

Vitória não se deixou enganar, e em seu gasto rosto apareceu um brilho de entendimento.

—O homem a quem você está procurando - disse, engolindo ruidosamente—, pagou a Dolly para que me salvasse aquela noite.

E depois tinha matado à prostituta, como também mataria a Vitória. Ela leu a verdade nos olhos de Gabriel.

—Encontrei a primeira carta debaixo da porta na manhã seguinte - continuou Vitória com um estremecimento.

Gabriel esperou que ela juntasse as peças do quebra-cabeça. Seus olhos horrorizados deixaram transparecer uma faísca de compreensão.

—Sinto muito- disse ela, com essa estranha calma que chega depois de ter sido testemunha de uma morte violenta. Não havia desejo em seus olhos, nem desejo pelas carícias de um anjo—. Agarrou-me por trás. Não pude ver sua cara. Mas isso não importa, não é? Vai me matar. Por isso deu a Dolly os tabletes para que eu as usasse, não é? Matará a qualquer pessoa que se relacionou com ele. Gabriel não ia mentir.      

—Sim.

—Você falou com o senhor Thornton hoje.

—Em efeito. —Os músculos de Gabriel se contraíram um pouco mais, consciente do curso dos pensamentos dela, sabendo que só podia chegar a uma conclusão possível—. O senhor Thornton estava vivo.

Vitória traduziu em palavras os temores de Gabriel.

—Mas se ele ou sua esposa estivessem relacionados com o homem que você está procurando, estariam mortos, não é?

E se não era assim, então Vitória estava sendo perseguida por dois homens, diziam seus olhos.

O segundo homem queria matá-la. O que procurava o outro?

—Medo - sussurrou Vitória.

Gabriel se esforçou por ouvi-la, por consolá-la.

—O que?

—Você disse que me tinha enviado aqui por meus olhos.

Olhos ofegantes. Uma dor aguda contraiu as vísceras de Gabriel.

—Sim.

—Não. —Vitória dirigiu o olhar ao vaso de porcelana, enquanto Gabriel a olhava fixamente—. Não escolheu por meus olhos.

Gabriel lutou contra seus próprios sentimentos. Você não me conhece, tinha-o acusado Vitória. Mas sim a conhecia. Conhecia-a e a desejava.

—Então por que acredita que a escolheu? —pergunto Gabriel com voz tensa.

Vitória levantou a cabeça e sustentou seu olhar.

—Escolheu-me porque eu tinha medo. E você também.

Ainda tinham medo. Tomar consciência desse fato se refletiu atrás do temor e do horror nos olhos de Vitória.

—Você disse que o medo é um afrodisíaco poderoso.

Gabriel sentiu que suas vísceras se contraíam um pouco mais. Sexo. Assassinato. O medo era um afrodisíaco. Através do sexo, os homens e as mulheres tinham o poder de criar vida nova. Um triunfo fulminante sobre a morte.

—Tenho frio - exclamou Vitória repentinamente.

Seus seios tremiam. Todo seu corpo estremecia. Thornton tinha tremido de medo, e Gabriel só tinha sentido desprezo. Vitória tremia de medo, e ele queria chorar pela dor que lhe tinha causado. Mas não o fez. Os anjos não choravam. O lábio inferior de Vitória tremeu.

—Acredito que nunca voltarei a sentir calor.

Ele tinha o poder de lhe dar calor. Entrou cambaleando no banheiro. O cobre brilhava; o espelho resplandecia. As paredes pareceram fechar-se sobre ele. Vitória o olhou. Não esperava calor, nem consolo. Ele ficou atrás dela, incapaz de olhá-la nos olhos. Ela não o culpava por haver se prostituído, pelo perigo em que a tinha posto, pelo consolo carnal que não lhe tinha dado.

Gabriel desejava que o culpasse. Agachou-se, e quase tocou com seus joelhos as costas dela; o cabelo de Vitória brilhava como uma cascata escura. Lenta e delicadamente, pôs o robe de seda sobre seus ombros. Sentindo seu calor e sua fragilidade; inalando sua feminilidade e sua vulnerabilidade. Quase a roçando, mas sem atrever-se a fazê-lo.

—Não deixarei que lhe faça mal - murmurou.

Ambos sabiam que estava mentindo. Gabriel não podia deter o segundo homem. Só o que podia fazer era tentar de encontrá-lo antes que matasse Vitória.

 

CAPITULO 14

 

A neblina amarela envolvia Londres como os braços de um amante possessivo. Um carro de aluguel manobrou com cautela entre a bruma causada pela fumaça do carvão. Os cascos do cavalo pareciam repetir insistentemente - Estariam mortos, não é?

E estariam mortos se estavam relacionados com o segundo homem. Mas os Thornton ainda viviam. E Gabriel não sabia por que.

Uma luz opaca brilhou na noite carregada de enxofre como um farol em sinal de alarme. Gabriel não tinha precisado que Vitória descrevesse a distribuição interior da residência Thornton; Peter Thornton o tinha feito com todo luxo de detalhes. O que Gabriel tinha querido saber era se podia confiar em Vitória. E em efeito parecia uma pessoa de confiança, diferente de Gabriel. Recostou-se contra a grade de metal do parque, olhando as janelas da casa, mais brilhantes que a névoa. E pensou em Vitória. Tinha vivido com os Thornton como faxineira dela. Tinha cuidado de suas filhas como sua professora. Uma das janelas do andar de baixo se escureceu e a tragou a bruma amarela. Outra peça que faltava. Medo. Não me escolheu por meus olhos... Escolheu-me porque eu tinha medo. E você também. O medo é um afrodisíaco poderoso. Uma janela do segundo andar se acendeu subitamente em meio da névoa, como uma revelação. Vitória não queria desejar as carícias de um homem e, entretanto, o fazia. Gabriel não queria desejar as carícias de uma mulher e, entretanto, o fazia. Era seu desejo o que garantia a morte de Vitória, não o desejo dela.

A luz da entrada enfraqueceu até extinguir-se. Gabriel observou sem mover-se a janela de acima. O tempo passava muito lentamente. Estaria Vitória dormindo? Perguntou-se Gabriel. Sentiria-se ardente? Ainda desejava ser tocada por um anjo?

Por que continuavam vivos os Thornton? A janela do andar superior escureceu, desaparecendo na neblina e a noite. O último membro da família Thornton se retirou. Gabriel esperou a que o Big Ben desse as doze. Em silêncio, cruzou a rua até a casa dos Thornton. A porta principal se abriu sem ruído. Thornton tinha completado sua parte do trato. Em última instância, o que tinha persuadido a Peter Thornton para ajudar Gabriel não tinha sido a violência, a não sim o temor do escândalo. Gabriel tinha ameaçado enviando a informação sobre as professoras ao The London Time. Deixou que seus olhos se adaptassem à escuridão que reinava no interior da casa. Os móveis se erguiam como sentinelas silenciosas: uma mesa, uma cadeira. À direita havia uma porta; à esquerda estavam as escadas. Um degrau rangeu ruidosamente. Umas trevas amareladas se abriam ante ele. Gabriel ficou petrificado, quase sem respirar, e com a mão esquerda agarrando com força o punho da bengala. Não queria matar, mas o faria.

Não queria possuir Vitória, e sabia que também o faria. Ninguém se moveu. Com mais cuidado, Gabriel subiu os degraus restantes. Girou à esquerda, para uma nova escuridão. Um tapete de lã amortecia seus passos. Podia sentir Thornton em seu quarto no final do corredor, perguntando-se nervosamente quando entraria Gabriel, sem dar-se conta de que já se encontrava a poucos metros de distância. Gabriel não percebia nada em Mary Thornton; nem temor, nem desafio. E certamente não era consciente de sua presença. Abriu silenciosamente uma porta de madeira enegrecida de noite. O quarto cheirava a fumaça de carvão e a caro perfume de mulher. Umas brasas vermelhas brilhavam em uma lareira de mármore branco; as chamas brancas e azuis dançavam sobre os carvões cheios de cinza. A esposa de Thornton dormia com toda tranqüilidade em uma cama com dossel. Um abajur de bronze reluzia na mesinha de noite; a seu lado, um líquido brilhava dentro de uma garrafa de cristal. Junto a um copo de água vazio, pôde adivinhar a sombra de um frasco pequeno. Gabriel soltou uma silenciosa maldição. O sono da mulher tinha sido induzido com láudano. O teria posto em guarda Thornton? Recordou a imediata traição do homem e o cheiro de amoníaco de sua urina. Peter Thornton se importava mais com sua reputação que com sua família. Não teria posto de sobre aviso a sua esposa.

Fechou suavemente a porta atrás dele, que produziu um som amortecido que se deixou ouvir por cima do crepitar faminto dos carvões ardentes. Mary Thornton dormia envolta em uma camisola de seda. Seu cabelo loiro, escurecido pelas sombras, estendia-se sobre um pequeno travesseiro branco. Apesar da escuridão, apreciava-se que era uma mulher atraente. Mas Gabriel não sentiu nenhuma atração por ela. Subiu as mantas lentamente até os ombros da mulher e colocou com supremo cuidado os lados debaixo do colchão. Seguiu a borda da cama pelo lateral, até os pés. Dirigiu-se em silencio até o outro lado da cama e deslizou as mantas até o travesseiro; depois foi segura firmemente debaixo do colchão da cabeça aos pés. Tirou o gorro de lã e o meteu no bolso de seu casaco. Fez girar o punho de prata da bengala e tirou a espada curta. O aço, afiado como uma lança, brilhou à luz da lareira.

Ajoelhando-se em frente à cama, junto à cabeça da esposa de Thornton, Gabriel deixou suavemente a capa da arma sobre o chão, para deixar livre sua mão direita.

—Mary - sussurrou sedutoramente—. Mary desperte.

Uns reflexos de cor vermelha brilhavam em seu cabelo loiro. Não respondeu. Precisaria algo mais que sussurros para despertá-la.

Gabriel levantou a mão direita até sua boca; fincando os dentes na luva de couro, tirando-a, liberando sua mão, e depois o meteu no bolso. Ficando de pé, pegou a garrafa de cristal da mesinha de noite e colocou água no copo vazio. Sentou-se na cama, assegurando com a coxa as mantas que aprisionavam os ombros da mulher, e introduziu os dedos no copo. Lentamente, orvalhou água sobre a cara da senhora Thornton.

—Mary - sussurrou—. Desperte Mary.

Ela afastou a face para escapar da água que gotejava em cima.

—Mmmm.

Uma vez mais, Gabriel colocou os dedos no copo.

—Mary, desperte. —Uma gota de água prateada salpicou a bochecha; ela voltou a virar a face instintivamente para ele. Com suavidade, Gabriel colocou a borda da espada contra o pescoço da mulher, enquanto continuava jogando água sobre o rosto—. Desperte Mary...

Piscou delicadamente, lutando para abrir os olhos. De repente, olhou-o sem compreender. Gabriel sabia que estava vendo um anjo com um halo de cabelo prateado. Um assassino. Pressionou o fio da espada para que a mulher sentisse o contato agudo com o aço frio. Seus olhos se abriram de par em par, compreendendo finalmente. Seu corpo estava aprisionado pelas mantas; não podia se mover. Abriu a boca para gritar. Gabriel pegou o travesseiro a seu lado. Podia amortecer seus gritos. Ou podia asfixiá-la.

E ela não poderia fazer nada para evitá-lo. Mary sabia. Gabriel também.

—Eu sei o que você tem feito Mary - murmurou—. Acredita que seria prudente gritar?

Durante uns segundos intermináveis, olhou-o fixamente, com a boca aberta. Depois fechou a mandíbula de forma audível.

—Quem é você? —perguntou com brutalidade.

Não havia reconhecimento em seus olhos. Não conhecia o anjo intocável.

—Sou um homem que pode cortar o seu pescoço e deixar que sangre até morrer. —Esperou que suas palavras fizessem eco em sua mente—. Ou posso deixar que viva.

Ira. Medo. Gabriel esperou para ver qual das duas emoções era mais forte na Mary Thornton.

—Como entrou? —sussurrou furiosa.

—Seu marido me deixou entrar. —Não havia necessidade de mentir—. Era mais fácil assim.

Ela não pareceu surpreender-se pela traição de seu marido.

—O que quer?

—Quero... —murmurou Gabriel insinuante— seu sangue. —Afundou ligeiramente a folha em seu fino pescoço branco; umas sombras negras líquidas gotejaram a luz do fogo—. Mas me contentarei com informação. A quem agrada Mary?

Ela não se moveu. Sua quietude admitia aos gritos sua culpa.

—Se me machucar, meu marido irá à polícia.

—Então matarei ele também - afirmou Gabriel em tom brincalhão. O medo e a ira que o rodeavam se intensificaram.

Mary Thornton estava viva. Mas não deveria estar.

—Eu não agrado a ninguém - negou Mary.

Diferente de Peter Thornton, ela não estava disposta a suplicar. Diferente de Vitória Childers, sua arrogância não lhe provocava nenhuma admiração. Mary Thornton era uma puta de classe alta que se aproveitava da fraqueza de quem era menos afortunado que ela. Aproveitou-se de Vitória Childers.

—Me diga quem escreveu as cartas, Mary.

—Não sei. —Mary Thornton se contorceu convulsivamente, tentando liberar-se das mantas que a mantinham aprisionada, mas não conseguiu—. Solte-me imediatamente!

—Sei que está mentindo, Mary. —Os olhos de Gabriel eram frios e letais; sua voz era enganosamente sedutora—. Diga-me quem escreveu as cartas e a soltarei. Foi um amante?

Mary ficou quieta.

—Não tenho amante.

—Quanto o sinto - disse Gabriel compasivamente.

Mary não se deixou enganar nem por sua atitude sedutora nem por sua compaixão.

—Por que veio aqui?

—Você foi um pouco descuidada, madame. Não deveria contratar tantas empregadas através da agência de emprego West.

O espanto que ainda se produzia podia ter sido despertada com a ponta de uma espada, se transformou em puro medo.

—Não sei do que me está falando - mentiu.

As mulheres como Mary Thornton brincavam com a morte, mas havia coisas piores que a morte para pessoas como ela.

—E se houvesse uma investigação? —disse Gabriel como se não fosse nada—. Tantas professoras só para duas meninas. Pergunto-me qual seria o resultado dessa investigação: cumplicidade, prostituição, assassinato...

—Nós não assassinamos...

Mary se deu conta de seu engano logo que saíram as palavras de sua boca. Gabriel sorriu sem nenhum prazer. Teria Vitória percebido o prazer que tinha experimentado ao ver seu sincero entusiasmo diante as roupas novas? Teria se dado conta de que lhe doía sua inocência, sua capacidade de horrorizar-se diante a morte?

—A quem se refere como nós, Mary? —perguntou Gabriel acariciador—. Um amante?

—Não fizemos mal a ninguém - replicou Mary Thornton furiosa.

—Estou certo que outros diriam algo diferente. Vitória Childers, por exemplo. Ela sente que sim têm lhes feito mal...

—Não lhe fizemos mal algum - repetiu obstinadamente a mulher.

Mas o tinham feito.

—De quem é cúmplice, Mary? —Do homem que escreveu as cartas? Do segundo homem?—. Acredito que ver seu nome no The Teme lhe faria muito mais mal que se lhe cortar o pescoço. Quer que vá à imprensa? A ruína de Mary se viu refletida em seus olhos. A sociedade a repudiaria. Os amigos torceriam a cara. Os bancos exigiriam o cancelamento das hipotecas. Os sócios comerciais reclamariam o pagamento das dívidas. E finalmente, seu marido não teria outra opção que divorciar-se dela.

—Seu amante a ajudará Mary? —sussurrou Gabriel—. Seu marido continuará com você?

Não, diziam seus olhos. Perderia seu amante e sua posição social. Mary Thornton perderia tudo aquilo que fazia com que a vida valesse a pena para uma mulher como ela.

—Que vale mais, Mary? Isto —esfregou o travesseiro de seda contra a face da mulher— ou seu amante?

Não se surpreendeu com a resposta em seus olhos. Gabriel havia fodido mulheres como Mary. Só eram leais a si mesmas.

Nunca havia fodido uma mulher como Vitória. Tinha protegido uma prostituta que a teria matado, um pai que a tinha maltratado emocionalmente e um irmão que a tinha abandonado. A derrota dançou nos olhos de Mary Thornton como as chamas que dançavam sobre as brasas.

—Seu nome é Mitchell - confessou amargamente—. Mitchell Delaney.

Gabriel nunca tinha ouvido aquele nome, mas conhecia os de sua índole. Alguns homens se aproveitavam do medo, outros da inocência. Alguns homens caçavam para matar, outros caçavam para foder. Homens como o segundo homem se aproveitavam tanto do temor como da inocência; caçavam para matar e para foder. O que fazia Mitchell Delaney? A imagem de Vitória Childers cruzou por sua mente. Ela estava sozinha, e tinha medo. Vitória não era uma mulher ociosa. Procuraria distração. O caro perfume de Mary Thornton o envolveu. Gabriel soube, de repente, a onde Vitória procuraria distração. E sabia que a encontraria. Encontraria os espelhos transparentes. Sexo. Assassinato. O segundo ato estava a ponto de começar. O medo acelerou o coração de Gabriel, mas não era o temor o que punha seu corpo em tensão. Olhou para Mary Thornton e ao aço que acariciava o pescoço.

Ela viu a ira. E o desejo. Os olhos da mulher se aumentaram até se transformar em lagos gêmeos de terror branco.

 

Vitória olhou fixamente o teto. O sangue de cor vermelho parecia invadir toda a casa, sobrepondo-se à pintura branca.

Fechou as pálpebras. Podia ver o sangue inclusive com os olhos fechados. Recordou as palavras de Gabriel. Não verá o homem lhe apontando com uma pistola, mademoiselle. Talvez perceba um brilho de luz quando apertar o gatilho, ou talvez não. Mas uma coisa é certa. Não ouvirá o disparo porque estará morta. Vitória abriu as pálpebras de repente. Não queria morrer. O cheiro de Gabriel a envolvia. Procedia de seus lençóis, de seu robe. Não serei uma vítima. Já o é. A imagem do guardanapo de seda com grosa tinta negra abriu espaço em sua mente.... Trago-te uma mulher. Uma atriz protagonista para um homem que tentava evitar os homens, às mulheres, o amor, o prazer. Aprendi a ler em inglês. Algum dia espero estar igualmente capacitado para fazê-lo em francês. Michael tinha ensinado Gabriel a ler. Eles deux anges. Os dois anjos. Amei um homem, mademoiselle. Se não o tivesse feito, você não estaria aqui. Era Michael um dos atores daquela obra sem diretor? O pecado está em amar, havia dito Gabriel.

Tinha sido ferido pelo amor que sentia por seu amigo. Mas amar não era pecado. Ao me transformar em homem, ansiava sentir a paixão de uma mulher, embora fosse por uma só vez queria sentir o prazer que eu dava. Ela tinha respirado o calor do corpo de Gabriel. Tinha provado seu fôlego. Vitória não conhecia o contato com sua pele. Não queria morrer sem saber se valia a pena fazê-lo pelas carícias de Gabriel. O temor era um afrodisíaco poderoso e o vazio que criava exigia ser preenchido. Pelo conhecimento. Pela ação. Por Gabriel. Laissez o jeu commencer. Retirando de um golpe as mantas, Vitória saltou da cama.

Uma caixa de metal brilhava sobre a mesinha de noite. Estava cheia de camisinhas. Capas de borracha que se enrolavam no pênis ereto de um homem. A sedução de um anjo... Dolly havia dito que um homem não tentaria proteger-se com uma virgem, e em seguida tinha dado a Vitória às pastilhas de sublimado corrosivo. Agora Dolly estava morta e Vitória viva. O robe de seda de Gabriel se pegou em seus seios e suas nádegas. Quase a arrastava, por isso supôs que em Gabriel chegaria até as panturrilhas.

Estariam cobertas do mesmo pêlo escuro que tinha visto em seu peito ou de um pêlo loiro prateado como seu cabelo?

De repente, pensou em chapéus. Vitória se dirigiu rapidamente para o... Estúdio, como tinha chamado ele. Outra forma de designar à biblioteca. Uma desilusão ridícula a invadiu. Sabia que ele não estava ali simplesmente pelo vazio palpitante que sentia no mais profundo de seu ser. Vitória examinou os livros com letras esculpidas em ouro... Mas não parou em nenhum autor ou título. Só via sangue. Via a Mary Thornton.   E a Gabriel. Perguntou-se o que estaria fazendo. Talvez se encontrava ainda escondido entre as sombras ou irrompendo na casa dos Thornton ou, talvez, havia já tomado o caminho de volta. Teria descoberto se os Thornton estavam relacionados com o homem que andava procurando ou se trabalhavam por sua conta para destruir as vidas de mulheres como ela? Gabriel havia dito que não tinha medo das balas, e também que não sabia a que apegar-se. Não pôde evitar perguntar se ele ainda estaria com vida, e quanto tempo mais viveria ela. Gabriel tinha queimado seu antigo estabelecimento. Por quê? Tinha tantas perguntas... Examinou despreocupadamente o estúdio, procurando não aproximar-se do sofá de couro azul claro. O solitário barqueiro recortado no luminoso entardecer sobre a água azul brilhante a olhava em silencio da segurança do quadro. O que acreditou que era um armário, era uma porta similar a que conduzia à quarto. Vitória a abriu. O luxuoso tapete granada do estúdio de Gabriel se transformava ali em um tapete de lã escura e lisa. Uma luz elétrica tênue iluminava o corredor.

Liberdade. Vitória saiu ao estreito corredor. A porta se fechou de um golpe atrás dela. Soltou um grito sufocado e se voltou rapidamente, com a cabeça cheia das terríveis imagens que tinha visto na caixa de luvas. A porta não tinha fechadura.

A freqüência cardíaca de Vitória não diminuiu. Havia perigo no corredor, mas também no estúdio de Gabriel. Respirou fundo, disposta a enfrentar o corredor e o perigo. O corredor era curto, de uns escassos doze metros. No extremo se via uma luz, mais brilhante que a que iluminava aquele lance. Se deu conta de que desembocava em outro corredor no que parecia entrar a luz pelas janelas. Com o coração acelerado, Vitória se dirigiu cautelosamente por volta do segundo corredor. Quando chegou no final viu que o segundo corredor estava esboçado em diagonal com respeito ao primeiro. A luz salpicava a parede exterior a intervalos regulares, mas não procedia das janelas. Havia janelas nos muros externos, mas a iluminação se originava nos arcos envidraçados de uma parede interna. Não havia razão alguma para onda de temor que alagou Vitória, nem para a ânsia subjacente que a impulsionava a seguir. Com as veias palpitando nos ouvidos, dirigiu-se ao primeiro dos arcos. Uma luz brilhante iluminava um luxuoso quarto de cor vermelha. O quarto não estava vazio. Aproximou-se da segunda janela; o quarto do outro lado era de uma suntuosa cor verde. Também estava ocupado. O terceiro quarto tinha uma decoração dourada; o quarto era azul... Vitória viu homens e mulheres. E se deu de frente com o mundo que Michael e Gabriel tinham regido, no qual não estava proibida nenhuma carícia e o prazer era o preço do desejo. Ali estava a necessidade nua em todas suas manifestações...

 

CAPITULO 15

Victoria soube o instante em que Gabriel entrou no corredor. Percebeu-o através da seda de Seu robe e de sua própria pele. A consciência ardente daquilo no que a madame francesa o tinha transformado e do que o homem que estava procurando lhe tinha arrebatado. Duas pessoas estavam refletidas no vidro, uma mulher de cabelo escuro a quem tinham ensinado que tocar-se era moralmente censurável e um homem de cabelo prateado que se permitiu os prazeres da carne sem ter experimentado nunca sua beleza. Do outro lado do vidro, um homem e uma mulher experimentavam tanto o prazer como a beleza. Tocavam-se. As mãos femininas percorriam a firme carne masculina; as mãos masculinas deslizavam pelo suave corpo feminino. Beijavam-se, roçando-se com seus lábios, agarrando-se, devorando-se um ao outro. Abraçavam-se, unindo seus peitos, seu ventre, suas coxas.

Ele era jovem e bonito; ela não era nem jovem nem bela. Ignoravam as diferenças de idade e a aparência externa. A paixão os transformavam em casal; a necessidade os fazia iguais.

—Podem nos ver? —perguntou Vitória em voz baixa.

—Não. —A voz de Gabriel soou estranhamente tensa—. Só vêem um espelho.

Ao contrário, Vitória e Gabriel viam uma janela. E através dela, viam o homem e à mulher que nem Gabriel nem Vitória se atreviam a ser.

—Como é possível que nós os vejamos e eles não?

—O espelho não está prateado em sua totalidade. —O olhar de Gabriel não se separou dos amantes—. Uma luz forte se reflete da lâmina de prata, como em um espelho corrente, de modo que a pessoa só pode ver sua imagem em vez do vidro; mas se enfocar uma luz forte atrás e na frente do espelho, tornaria-se transparente.

Vitória não conhecia a existência de espelhos transparentes.

—Podem nos ouvir? —perguntou de novo.

—Não se falarmos em voz baixa.

O homem e a mulher se afastaram. Conversaram um instante. Vitória via seus lábios movendo-se, mas não podia ouvir o que diziam. Só podia olhar, e imaginar as palavras que murmuravam. Palavras elogiando a paixão de uma mulher ou venerando o desejo de um homem. Palavras que Vitória nunca tinha escutado ou pronunciado, mas que gostaria de escutar e pronunciar antes de morrer. O homem se dirigiu para uma mesinha de mogno, com seu ereto membro no ar e seu testículo balançando, e agarrou um bote branco de boca larga. Vitória tinha visto homens mostrar brevemente seus apêndices na rua; mas jamais tinha visto um completamente nu. As nádegas esculpidas, os músculos perfilados, o corpo coberto de pêlo. A imagem era imponente.

—Sabem eles que o espelho não é... Um espelho? —perguntou Vitória.

Soava como se estivesse sem fôlego. E assim era. As cartas haviam descrito muitas das coisas que tinha visto essa noite, mas ver era muito mais convincente que ler.

—O homem sabe - disse Gabriel.

Não havia necessidade de acrescentar que o homem era um prostituto.

—E a mulher não?

—Só se ele disse. —Os olhos do Gabriel pareciam olhar mais à frente do espelho—. Ela vinha a meu antigo estabelecimento uma vez ao mês.

O local que ele tinha queimado. Mas Vitória não queria pensar no incêndio. Destruição. Morte.

—Com o mesmo homem? —inquiriu, com a boca seca e as bochechas cobertas de rubor.

—Sim.

—Você já os viu juntos antes.

—Vi-os ocasionalmente.

Ela observou o reflexo de Gabriel.

—Você olha às pessoas durante o coito.

—A Casa de Gabriel é um negócio, mademoiselle. E, às vezes, neste negócio morrem homens e mulheres. É minha responsabilidade me certificar de que ninguém morra em minha casa.

Gabriel não era um homem vaidoso. Entretanto, tinha posto seu nome no seu estabelecimento...

—Por que a chama a Casa de Gabriel?

—Para que o segundo homem soubesse onde me encontrar.

Vitória engoliu seco.

—Há um primeiro homem?

—Está morto.

Gabriel o tinha matado. Vitória tentou ajustar aquela última peça do quebra-cabeça no marco de sua vida.

—Você disse que chantageava as pessoas.

Agora Vitória sabia como obtinha a informação com a qual podia chantagear.

—Eu só faço recomendações a certas pessoas, mademoiselle - respondeu Gabriel imperturbável.

E emprega gente como nós, havia dito madame René. Chantageava Gabriel seus clientes para dar trabalho aos prostitutos que tinham caído em desgraça? Um movimento no interior da estadia atraiu a atenção de Vitória. A mulher sentou sobre a cama, de costas para o espelho; seu cabelo castanho encanecido roçava o lençol de seda. Sua ansiedade por sentir o tato do homem jovem era evidente. Vitória podia identificar-se com sua necessidade. Durante um instante sentiu a pressão sobre o colchão, escutou o ranger das molas, percebeu a fresca carícia da seda. Impossível.

—Você se... Excita quando os observa? —perguntou Vitória apressadamente.

O robe de seda lhe acariciava os mamilos ao respirar, como se fosse uma lixa. Podia notar sua pele como uma fruta excessivamente amadurecida a ponto de abrir-se.

—É um negócio - respondeu Gabriel sem comprometer-se.

O negócio do prazer. Vitória tinha entrado naquele negocio ao leiloar sua virgindade. Teria tido coragem para fazê-lo se tivesse sabido o que agora sabia? Se perguntou. Teria se vendido sabendo que o contato sexual tocava a alma tanto como o corpo?

O homem destampou o bote branco e o colocou junto à tampa sobre a mesinha de mogno. Vitória tratou de controlar a respiração.

—O que contém esse bote?

—Creme lubrificante.

Sentiu uma pontada em sua vagina, e se deu conta de que estava úmida. E Gabriel sabia. Ele teria uma ereção?

—Todos os quartos estão equipados com botes de... Creme lubrificante?

—Sim.

—O homem a... Tocou - disse Vitória vacilante—. Certamente a mulher não precisa de lubrificação artificial para... Aceitá-lo.

Os olhos prateados refletidos no espelho captaram a atenção de Vitória.

—Isso depende, mademoiselle, do lugar por onde a penetre. E com o que.

Onde. Com o que. Não precisava perguntar sobre o onde. Mas...

—A que se refere quando diz com o que a penetre? —perguntou com cautela, observando os amantes.

—Cada quarto está equipado com um sortimento de... —Gabriel titubeou— godemichés.

Vitória ficou cativada tanto pela hesitação de Gabriel como pela palavra francesa que não conhecia.

—O que é um... Godemiché?

Os olhos masculinos refletidos no espelho brilhavam como prata pura.

—É um artefato de couro com forma de pênis.

A vagina de Vitória se contraiu involuntariamente. Antes tinha visto um homem inserindo um dispositivo em forma de pênis no corpo de uma mulher. Ambos pareciam desfrutar com esse ato.

—O sortimento que você proporciona... Vem em diferentes tamanhos? —perguntou ela.

A imagem de Gabriel se sobrepôs a do homem jovem e da mulher amadurecida. Usava a camisa desabotoada, e pela abertura se via a sombra de pêlo.

—Sim.

Mais ou menos de vinte centímetros?

—Com o que outros artefatos pode um homem penetrar a uma mulher?

—Espere e observe mademoiselle.

A mulher se recostou sobre os lençóis de seda envolta em um matagal de cabelo castanho grisalho. O homem mais jovem se ajoelhou entre suas pernas. Vitória cravou o olhar neles. Ele a estava... Beijando... Entre as coxas, na carne mais sensível de uma mulher. Os lábios genitais de Vitória palpitaram.

—Não acredito que necessite lubrificação para beijá-la - disse, inalando com força.

Tinha visto esse ato essa noite; mas era muito diferente ver um homem beijar as partes intima de uma mulher com Gabriel parado atrás dela.

—Está preparando-a - anunciou Gabriel impassível.

Não era insensível ao que estava vendo. A intensidade de seu olhar abrasou a pele de Vitória.

—Para que a está preparando? —insistiu Vitória.

As pernas da mulher se elevaram; seus calcanhares se apoiaram na borda da cama. Agarrou a cabeça do homem para mantê-la em seu lugar. Vitória apertou os dedos. O homem jovem esquivou à mulher, tomou o bote branco da mesinha e introduziu os dedos da mão direita nele. Gabriel era canhoto. Aquele pensamento surgiu de um nada. O homem colocou a mão lubrificada entre as pernas abertas da mulher. Vitória apertou as coxas. A mulher jogou a cabeça para trás, com o rosto contorsionado pelo êxtase. Ou talvez pela agonia.

—O que está fazendo? —perguntou Vitória contendo o fôlego.

—Está-a estirando.

Vitória sentiu a penetração da mulher até a garganta. Quase fica sem fôlego.

—Com toda a mão?

—Começará com um ou dois dedos.

Vitória recordou os dedos de Gabriel. Eram longos. Brancos. O homem se inclinou e beijou a mulher mais velha entre as coxas, sem retirar a mão. Vitória não tinha que ver o que estava fazendo para senti-lo. Tremeu... De desejo. Antes tinha tremido de medo.

—Como se sente uma mulher quando um homem tem seus dedos dentro dela?

Sua voz saiu trêmula

—Como seda ardente e úmida.

A ira na voz de Gabriel lhe causou certa surpresa. Seus olhos no espelho não estavam olhando o reflexo de Vitória, estavam perdidos na lonjura de seu passado, vendo as mulheres com quem tinha estado. As mulheres que tinham rogado que lhes desse prazer e que depois tinham rogado liberação. Mas ele não tinha rogado. Gabriel só tinha suplicado pelo êxtase uma vez em sua vida. Uma violação dos sentidos. Vitória viu o prazer que Gabriel tinha dado às mulheres na expressão de sua boca, e em seus olhos prateados percebeu sua dor. A mulher madura do outro lado do espelho balançava a cabeça para frente e para trás, com o cabelo emaranhado, e a seda deslizando-se. Seus seios tremiam como se estivesse em uma corrida.

Uma corrida a ponto de terminar. Gabriel corria com ela. A mulher abriu a boca... Para tomar ar ou para gritar, Vitória não podia sabê-lo. Gabriel se encontrava perdido... Nas lembranças de prazer ou de dor, ela não estava segura.

—O que sentiu? —perguntou a Gabriel, ardendo de prazer, de dor—. Quantos dedos introduziu dentro dela? Um ou dois?

—Cinco - respondeu Gabriel com voz rouca.

Vitória quase não podia respirar. Cinco dedos inseridos no mais profundo de seu corpo.

—Quero sentir seu prazer - disse ele asperamente—. Quero formar parte de seu prazer... Só uma vez, e não ser alheio a ele. Quero fazer parte de uma mulher a quem estou dando prazer.

E não ser alheio a ele. Não deveria ser possível cindir-se de dor ao tempo que se inflamava de desejo, mas sim o era.

—Essa mulher. —Vitória dominou sua voz—. Ela desfrutou tendo cinco seus dedos dentro dela?

Uma gota de suor se instalou na testa de Gabriel; brilhava como um diamante a tênue luz—. A vagina de uma mulher foi criada para ampliar-se. Mas certamente não para acomodar uma mão completa. Então por que o corpo de Vitória ansiava aceitá-la?

—Como a... Penetrou com cinco dedos?  

—Um dedo de cada vez. —A gota de suor desapareceu na sobrancelha de Gabriel—. Estive três horas preparando seu corpo.

Vitória imaginou receber um dedo, dois, três, quatro, cinco. Um a um. Hora depois de hora. A respiração ofegante compassando os minutos... O corpo abrindo-se... A mão lubrificada deslizando-se... Entrando através do mais íntimo de seu ser. O prazer intensificando-se. Êxtase. Agonia.

—Me diga... —pediu Vitória, respirando ao ritmo da ascensão e descida dos seios da mulher madura—, me diga o que você sente.

Luzes prateadas brilharam no olhar do Gabriel.

—Sinto o clitóris de uma mulher contra minha língua. —O clitóris de Vitória se inchou até o extremo de doer—. Está tão duro que parece como se fosse explodir por sua necessidade de orgasmo. —A voz de Gabriel raspava a pele de Vitória—. Meus dedos estão estirados, com o polegar metido entre eles. A vagina da mulher está tão quente que queima. Posso sentir sua carne estirando-se, aceitando as pontas de meus dedos... Meus dedos... Até os primeiros nódulos... Até os segundos nódulos... O largo de minha palma. As paredes de sua vagina me forçam a fechar o punho. Só o que posso ver, cheirar, ouvir e sentir é ela. O aroma do desejo de uma mulher, que suga minha mão. Vejo seu ventre contraindo-se. Vitória sentiu as pontas dos dedos de Gabriel deslizando-se dentro dela... Até os primeiros nódulos... Até os segundos nódulos... O largo da palma. Seu ventre se contraiu, cheio de um anjo.

O corpo da mulher do outro lado do espelho se arqueou até que só sua cabeça e seus calcanhares suportaram seu peso. Abriu a boca completamente, soltando um grito gutural.

—Sinto seu orgasmo explodindo em cima de mim - continuou Gabriel, ofegando no estreito corredor—. Agarra-me o braço e me aperta o punho até que só existe seu prazer.

Lentamente, o corpo da mulher se foi afundando na cama, já relaxado. O homem jovem levantou a cabeça: seus traços estavam tensos por sua própria necessidade. Vitória havia visto muitos tipos diferentes de necessidade essa noite. A necessidade de intimidade, de gratificação sexual e, também, algumas vezes, nos olhos tanto do cliente como do prostituto ou prostituta, a simples necessidade de contato humano. A necessidade do homem jovem se refletia no rosto de Gabriel.

—Mas foi o prazer dela o que oprimiu minha mão...

De repente, os olhos prateados refletidos no vidro se cravaram em Vitória. Ela sustentou o olhar sem piscar.

—... Não o meu.

Fugazmente, observou que o homem atrás do vidro limpava a mão no lençol junto à mulher e alcançava uma pequena caixa plana que estava junto ao bote de creme. Era idêntica à caixa de camisinhas que tinham incluído para ela na bandeja do jantar.

O homem jovem ficou de pé de um salto e se colocou entre as pernas da mulher madura; ela elevou suas mãos e seu corpo para tomá-lo, enquanto o homem atrás de Vitória permanecia alheio a sua paixão. Alheio à paixão de Vitória. Alheio a sua própria paixão.

—Isto é o que ele deseja - compreendeu Vitória de repente.

Gabriel deu um pulo.

—O que?

—Quer que você sofra.

Mas Vitória não queria que Gabriel sofresse. Tomou a vida de ambos em suas mãos, deu meia volta e enfrentou o desejo dos dois.

—Você quer me tocar - disse, rezando para que fosse verdade.

A verdade brilhou nos olhos dele.

—Sim.

O seio de Vitória se contraiu diante a necessidade que destilavam dos olhos de Gabriel.

—Mas tem medo.

—Sim.

De tocar. De ser tocado. Vitória apostou.

—Quero que me toque.

Cinza. Prateado. Medo. Paixão.

—Já sei - exclamou Gabriel.

Mas não o fez.

—Quero que sinta meu prazer - disse Vitória sem rodeios—. Quero me deitar em sua cama, nua. Como a mulher que está do outro lado do espelho, como a mulher que acaba de lembrar. Quero que prepare meu corpo, e que me dê o prazer que deu a ela. E quero compartilhá-lo com você.

Gabriel tomou ar.

—Você é virgem.

Se Vitória afastasse o olhar da necessidade nua dentro desses olhos prateados, começaria a correr.

Mas não o fez.

—Você comprou minha virgindade.

O ar parecia tremer ao redor de ambos.

—Não sei o que faria Vitória, se você me tocasse.

A voz de Gabriel era tensa. Dor. Prazer.

Agarravam-se ao peito dela.

—Então não o tocarei - o tranqüilizou Vitória.

—Mas me permitirá... Tocá-la da forma em que eu desejar.

Empétarder... Daria-me acesso ali, mademoiselle?

Vitória procurou ar.

—Sim.

—Permitiria-me fazer tudo...

Permitiria-me abraçá-la quando nossos corpos estejam escorregadios de suor e o aroma de nosso sexo impregne nossos pulmões.

—Sim.

—E não me tocará. —O olhar do Gabriel refletia sua crua necessidade—. Não importa a dor ou o prazer que eu cause a você.

Vitória sentiu uma ligeira asfixia... Com o robe de Gabriel, e seu aroma.

As palavras de Gabriel... Dor... Prazer...

—Não o tocarei - prometeu.

Gabriel esticou a mão... E a tocou, um contato de mariposa, um roçar com as pontas de seus dedos contra os lábios ressecados.

Uma sensação erótica transpassou a Vitória.

—Sinto muito. —estremeceu—. Meus lábios não são... Suaves.

Enquanto que os lábios dele pareciam mais suaves que uma pétala de rosa. Gabriel não ia permitir que se afastasse. Seu olhar a mantinha presa; seu dedo a eletrizava. Passou a mão ligeiramente pelo lábio inferior.

—Abra a boca.

O lábio inferior de Vitória tremeu. Um fogo prateado ardia nos olhos dele; um rubor escuro invadiu suas bochechas. Passou o dedo pela abertura de seus lábios.  

Gabriel tremia. De medo. De necessidade. Dela. Por ela. Vitória abriu a boca.

—Me chupe o dedo - ordenou ele com voz rouca.

Os olhos azuis se entrelaçaram com os prateados; Vitória tomou o dedo indicador de Gabriel em sua boca, como uma penetração preliminar. Um dedo invisível encravado em sua vagina. Provou-o com uma lambida. Gabriel jogou bruscamente a cabeça para trás, como se sentisse dor.

—Dieu.

Vitória olhou fixamente os músculos tensos de seu pescoço. Uma veia palpitava bem em cima da abertura de sua camisa branca e os redemoinhos de pêlo encaracolado. A ponta de seu dedo era ligeiramente áspera e tinha um sabor salgado. Ela chupou o dedo, como se fosse um doce. E sentiu como se tivesse a língua entre as coxas, os lábios úmidos, o dedo duro... Gabriel baixou lentamente a cabeça. O que tinha provocado aquele Dieu agônico tinha sido sem dúvida, prazer. Um prazer tão intenso que causava dor. Vitória sentiu o prazer dele, o prazer dela; e também sua dor, acompanhando a sua própria dor... Em um instante, Gabriel deslizou seu dedo fora de sua boca e, suavizado pela saliva, alisou-lhe as bordas internos de seus lábios ressecados.

Beijou-a. Os olhos prateados cravados nos dela; o dedo lhe abrindo os lábios. Um fôlego quente encheu seus pulmões, um calor abrasador percorreu o caminho que seus dedos tinham esboçado. Gabriel aliviou os lábios ressecados de Vitória com sua língua.

Morna. Úmida. Sua língua. Seus lábios. O sabor; a insinuação. Uma mistura de fôlego e saliva. De Gabriel e Vitória. Era o primeiro beijo de Vitória. Queria mais; sorver seu fôlego, sentir sua língua. Tudo de Gabriel. Ela curvou os dedos para aproximar sua cabeça e tomar mais. Gabriel observou como o desejo ia crescendo em seus olhos... E ela sabia que isso era o que ele estava esperando: que ela o tocasse. Mas não podia fazê-lo. Vitória fechou os olhos e apertou os punhos. A língua dele encheu sua boca imediatamente, mais profundamente que seu dedo, mais quente, mais úmida. A segunda penetração. Vagamente, foi consciente do dedo com saliva de Gabriel que lhe roçava a face, junto ao resto de sua mão. Tomou suavemente sua face com as mãos enquanto sua língua a acariciava... Sobre sua língua... Debaixo de sua língua... O paladar. Ai... Deus... Meu. Vitória tentou tomar ar fresco.

Abriu suas pálpebras de repente. A língua, os dedos e o fôlego de Gabriel já não formavam parte dela. Ele tinha se afastado e a observava, esperando a que ela o buscasse.Vitória não o fez. Mas o desejava com todas suas forças, enquanto rogava mentalmente, por favor, que não se afaste de mim... Necessitava-o. Precisava ser amada. Pela primeira vez em sua vida não ia negar seu desejo. Gabriel olhou por cima de seu ombro. Por um breve instante, Vitória recordou os amantes atrás do espelho, mas imediatamente, ele voltou a fixar nela seu olhar.

—Só confiei em uma pessoa em minha vida.

Michael.

E tinham feito mal a Gabriel.

—Não o tocarei, Gabriel - disse Vitória titubeando.

—Que Deus a ajude se o fizer, Vitória. —Sua voz foi cortante-—. Puisque je ne puis ps.

Porque eu não posso.

 

CAPITULO 16

 

Gabriel afastou-se de um lado para deixar que Vitória o precedesse pelo corredor. Ela não olhou nem a sua esquerda nem a sua direita, concentrando todos seus sentidos no homem que caminhava atrás. A aranha de luz elétrica no estúdio pareceu tão cegadora que Vitória tropeçou. Gabriel não fez gesto de ajudá-la. Tinham que confiar um no outro, havia dito ele. Ela devia confiar que lhe daria prazer. Ele devia confiar em que ela não o tocaria. A luz no quarto de Gabriel era mais tênue que a do estúdio. Vitória parou um instante junto à cama, tentando desatar o cinturão do robe.

—Estou... Mais magra do habitual.

As mulheres que havia atrás dos espelhos transparentes eram todas as magras, mas nenhuma delas lhe sobressaía às costelas.

O rosto de Gabriel se endureceu.

—Não vou apagar a luz, Vitória.

O coração dela deixou de pulsar uns segundos.

—Não quero que... Se decepcione com minha aparência.

Uma sombra obscureceu o rosto de Gabriel.

—Já a vi, mademoiselle, e asseguro que não estou decepcionado.

Sentiu-se tremendamente ridícula. Vitória tinha se despido para ele a primeira vez que se viram. Tinha permanecido nua diante dele enquanto madame René tomava medidas e lhe perguntava como seduzir um homem. Como amar um homem. Endireitou-se. O olhar de Gabriel cravou em seus seios. Vitória não tinha que olhá-los para saber que seus mamilos se deixavam ver sob o fino tecido. Subiu o queixo um pouco mais.

—Eu gostaria de ver você.

—Não sou um anjo, Vitória.

Ela não pôde evitar esboçar um sorriso.

—Asseguro-lhe, senhor, que não espero encontrar asas debaixo de sua roupa.

Gabriel não lhe devolveu o sorriso.

—Mas espera um milagre.

Gabriel era o mensageiro de Deus, havia dito Vitória. E Michael o escolhido, tinha respondido Gabriel. Para bem ou para mau, a vida de dois jovens tinham sido transformadas para sempre por uma madame francesa. Esse tinha sido o preço de sua sobrevivência. Quando era menina, Vitória acreditava nos contos de fadas, mas...

—Nunca acreditei em milagres, Gabriel.

—Tentarei não te machucar.

Confiança. Mas Gabriel ainda não confiava nela. Não confiava o bastante para que ela o tocasse, nem para que ela o visse nu.

Mas ela sim confiava nele.

—Eu sei - disse Vitória tremendo. Deixou cair o robe.

Gabriel mediu seus seios com o olhar, e depois os sopesou com as mãos. Ela contraiu os joelhos para impedir que se dobrassem com a sensação elétrica que a transpassou.

—Tem seios lindos, Vitória - afirmou ele com voz rouca, enquanto os roçava com suas mãos ásperas e seu tato abrasador.

Ela engoliu seco para poder falar.

—Obrigado.

Ele deslizou os dedos pelas costelas de seu lado direito, um caminho áspero de prazer, e lhe roçou a cintura.

—As mulheres usam espartilhos para ter cinturas como a sua...

—Obrigado...

Seu olhar se cravou no dela.

—Sei o que é ter fome. Não tem que se desculpar por sua aparência. Ao menos comigo. Jamais. Nunca.

O calor de sua mão e de seu olhar lhe abrasavam a pele.

—Não tenho creme - disse ela sem fôlego.

—Não vai precisar.

Ela aspirou uma baforada de ar.

—Mas você disse...

—Sente-se, Vitória.

Ela obedeceu, sentando-se na beira da cama.

Seu olhar cravou nas calças de lã cinza. Notava a protuberância.

—Tem uma ereção - sussurrou Vitória.

—Tive-a desde que você entrou no meu estúdio.

A crua verdade impregnava as palavras de Gabriel. Parecia-lhe que tinha transcorrido uma vida inteira desde que tinha entrado naquela biblioteca a que ele se empenhava em chamar estúdio. Mas só tinham passado um dia e uma noite. Tinha visto a morte. E nas últimas horas tinha sido testemunha da necessidade que impulsionava a todo homem e toda mulher. Vitória tinha visto outros homens nus. Afundou as unhas nas palmas das mãos para se impedir de estendê-las para desabotoar as calças de Gabriel.

Olhou-o.

—Quero que você também sinta prazer, Gabriel

—Então se deite Vitória, e me deixe tocá-la.

Com toda a roupa no corpo, enquanto que ela estava nua. Vitória fez o que ele mandava. Imediatamente, Gabriel colocou com firmeza suas mãos sob suas nádegas e a arrastou pela cama. Agarrou-se às mantas. Suas nádegas ficaram contra a borda da cama, a obrigando a abrir as pernas. Ele dirigiu suas mãos para suas pernas e, com suavidade, abriu-as ainda mais. O frio ar invasor foi rapidamente substituído pelo calor de uns olhos prateados. Gabriel tomou ar com força. Tocou-a. Agora foi Vitória quem teve que tomar ar.

—Está úmida, Vitória.

Sim. O dedo de Gabriel explorava ali onde ninguém nunca havia tocado. Ela só se tocara ali seis meses antes. Vitória olhou fixamente para o teto branco esmaltado e se agarrou à colcha de veludo. Se ele tocasse o clitóris... Um calor duro e caloso subiu pelos lábios escorregadios de seu sexo e lhe pressionou o clitóris. Vitória afogou um grito. E alcançou o clímax, enquanto a luz elétrica martelava a face e a pressão do dedo de lhe perfurava a alma.

—Acaba de ter um orgasmo.

A voz de Gabriel lhe crispava os ouvidos.

Tomou mais ar. Umas pequenas sacudidas, como impulsos elétricos, continuavam passando do dedo dele a seus clitóris.

—Sim.

—O que viu?

Vitória se retorceu para liberar do dedo. Ele não a deixou escapar.

Continuou pressionando, suavemente, o pulso agudo e palpitante.

—Luz - respondeu ela.

Justo quando acreditou que ia explodir novamente, o dedo deslizou de volta pelos lábios escorregadios de seu sexo.

Ele explorou suavemente. Os músculos de Vitória se contraíram. Mordeu os lábios.

—O que você vê quando alcança o orgasmo?

—Escuridão - resmungou Gabriel.

Escuridão. Morte.

—O que vê agora? —apressou-se a perguntar Vitória.

—Vejo você, Vitória, com seus lábios vermelhos, inchados e brilhantes. Vejo meu dedo, girando em seu desejo. Seu portail é de um vermelho mais escuro. Vejo meu dedo afundando-se em seu portail...

Ai...Abrasava. Vitória se arqueou para cima, juntando as pernas. A mão dele estava colocada entre suas coxas. Ela afastou bruscamente o olhar do punho e a manga brancas que se sobressaíam do escuro arbusto de pêlo púbico. Os olhos prateados aguardavam os dela. E você não me tocará... Sem importar a dor ou o prazer que eu lhe dê, ressoava em seus ouvidos.

Não o tocarei, tinha prometido. Vitória apalpou a cama para encontrar um ponto de apoio, com os braços sustentando tensamente seu peso. A mão dele estava entre suas coxas. Sentia-se como se a penetrasse com uma vara ardente. Lenta, muito lentamente, Vitória relaxou os músculos e aceitou o dedo. O alívio se refletiu nos olhos de Gabriel. Ou talvez fosse o brilho da luz do teto. Vitória não estava bastante familiarizada com Gabriel nem com a luz para julgar.

—Abra as pernas - murmurou Gabriel—, e lhe direi o que vejo.

Havia dito que tinha penetrado uma mulher com a mão inteira. Vitória não sabia se poderia suportar outro dedo.

Umedeceu os lábios.

—O que é... Portail?

O dedo do Gabriel continuava ardendo e palpitando.

—Portal. É um termo francês para designar a vagina de uma mulher.

O corpo de Vitória tinha vontade própria. Abriu um pouco mais, facilitando o acesso ao dedo. O rosto do Gabriel se endureceu.

De desejo? De desgosto?

—Sempre se refere à anatomia feminina em francês?

—Não.

—Que palavra usa?

—Vagina.

Uma palavra vulgar da linguagem de ruas.

—Mas agora não usa essa palavra.

—Non.

Não havia nada de suave naquela negação francesa. Sua vagina apertava e soltava o dedo dele, como se o estivesse sugando.

Esforçou-se por entender.

—Por quê?

Durante uns instantes, Vitória pensou que Gabriel não ia responder.

—Falei francês antes do inglês.

Antes de prostituir-se. Antes que o homem tivesse tirado o controle que tanto tinha valorizado. Antes que a necessidade de Gabriel se voltou contra ele. Vitória abriu as pernas. As pestanas escuras de Gabriel velavam seus olhos. Ela seguiu seu olhar. Só podia ver seu próprio pêlo público escuro e o punho branco que emoldurava a mão que explorava entre suas coxas.

—Vejo... Meu dedo que aparece... Está úmido e escorregadio...

Vitória sentiu como saía o dedo de Gabriel de suas vísceras... Lentamente... Visualizou-o mentalmente... Comprido, claro, úmido e escorregadio... Seu corpo, pelo contrário, contraiu-se para mantê-lo dentro.

—Acalme-toi - murmurou Gabriel com voz rouca.

Relaxe.

—Lembro a primeira vez que vi uma mulher assim.

O olhar de Gabriel estava cravado em Vitória.

—Que idade tinha?

—Treze anos.

A mesma idade que tinha quando a madame tinha vendido seus serviços. O dedo de Gabriel voltou a iniciar sua viagem, lentamente... Lentamente... Afundando-se dentro dela até enchê-la.

—O que pensou, quando a viu... Assim? —conseguiu murmurar Vitória.

—Pensei que se o homem tinha uma alma, existia dentro de uma mulher.

O peito de Vitória se contraiu, e depois sua vagina. O dedo único se transformou em dois. Estirando-a. Abrindo-a.

Vitória tomou uma baforada de ar.

—Gabriel...

Ele elevou pausadamente suas pestanas escuras.

—Eu gosto da maneira em que diz meu nome.

Suavemente seus dois dedos deslizaram dentro dela, enquanto olhava seu rosto em busca de indícios de dor... De prazer.

—Como? —perguntou com voz trêmula.

—Como se acreditasse que tenho uma alma.

Curvou os dedos como se fossem um gancho de ferro e esfregou suavemente a parede interior de sua vagina.

—Alcance seu orgasmo para mim, Vitória. Você disse que compartilharia seu prazer comigo. Faça-o.

Sustentou-lhe o olhar, deslizando os dedos curvados, girando, explorando... Uma sacudida elétrica sacudiu seu corpo.

Sentiu como se tivesse um segundo clitóris na vagina, ou como se seus clitóris fosse acessível de dentro. Gabriel a acariciava, sustentando seu olhar.

O fogo abrasou as veias de Vitória e percorreu sua espinha dorsal. Não havia fogo nos olhos dele, só uma intenção calculada.

Ela queria mais que sua perícia.

—Não posso - se engasgou.

Um sorriso cruzou o rosto de Gabriel.

—Sim pode. Sim o fará... Está fazendo.

O corpo de Vitória cedeu, explodiu. Não pôde evitar um grito. Quando abriu seus olhos de novo, Gabriel a estava esperando.

—O que viu?

—Luz - ofegou ela.

Tremendo. Por dentro. Por fora. Os dois dedos se transformaram em três. Seu corpo estava totalmente aberto; ele não podia tirar. O orgasmo de Vitória batia as asas ao redor dele... Três dedos.

—Posso sentir - balbuciou ela—. Sinto-me... Agitando ao redor de seus dedos...

—Sim. —Uma expressão estranha lhe cobriu o rosto—. Eu sinto.

Vitória não conseguia respirar oxigênio suficiente.

—Disse-lhe que não o tocaria.

O olhar dele se intensificou.

—Sim.

—Mas não disse que não lhe diria o que quero.

—O que quer Vitória? —perguntou Gabriel, com o olhar repentinamente remoto.

Quantas pessoas haviam dito o que queriam... E alguma vez tinham perguntado o que queria ele?

—Quero que você me saboreie, e que lembre meu sabor. —Não uma violação dos sentidos... —. E quero que faça o que você desejar. Tudo. Tudo.

As pestanas escuras do Gabriel obstruíram seu olhar. Ela podia sentir umidade gotejando de sua vagina A via ele?

Talvez não gostava do sabor do sexo... Gabriel se afundou entre suas coxas. Três dedos deslizando-se... Dentro... Fora... Dentro. Profundamente. Duros. Compassando um orgasmo, criando a necessidade do seguinte. O cabelo loiro prateado se fundiu com o pêlo púbico escuro. Quando o fôlego de Gabriel sussurrou sobre sua vulva, Vitória pensou que ia morrer. Quando os lábios de Gabriel se fecharam ao redor dela, soube que ia morrer. Quando a língua de Gabriel tocou a dura ponta de seus clitóris, Vitória morreu. Sempre há dor no prazer, havia dito Gabriel. A escuridão brilhou dentro da luz, mas mesmo assim só havia luz.

Vitória abriu os olhos. E viu pintura branca acetinada. Não recordava ter fechado os olhos; não recordava haver-se recostado.

Só o que sentia era o vazio dentro de seu corpo e as minúsculas descargas que continuavam sacudindo seus clitóris.

O ruído surdo do metal ao se chocar contra a madeira penetrou em sua mente.

—O que viu Vitória?

Vitória tinha visto...

—Luz.

Lentamente, voltou à cabeça para Gabriel e o som que tinha ouvido. Gabriel tomou uma caixa aberta. Sua boca estava úmida e brilhante. Dela.

—O que me pediu Vitória - disse roucamente.

Vitória demorou vários segundos em recordar o que havia na caixa, e alguns mais em se dar conta o que estava fazendo Gabriel.

Uma gota prateada de umidade reluzia na ponta da enorme glande com forma de ameixa... Bitte, tinha-o chamado madame René. O tecido de raias emoldurava um arbusto de pêlo púbico loiro escuro. Lubrificando a gota prateada de umidade sobre a cabeça purpúrea, foi subindo com perícia uma capa de borracha, centímetro a centímetro até alcançar os vinte...

O ventre de Vitória se contraiu convulsivamente. Seu olhar se cravou no rosto da Gabriel. Não o reconheceu. Tinha os lábios apertados, a pele avermelhada, os olhos eram fragmentos prateados de luz.

—Você disse tudo o que eu quisesse.

Sim

—Isto é o que quero - disse asperamente—. Quero me afundar em seu interior e depois quero que você alcance o êxtase até que eu chegue ao meu.

Gabriel a olhou como se esperasse que ela tivesse algo que objetar. Vitória procurou ar, e durante um segundo paralisante quis negar-se.

—Isso soa —aterrador, excitante— celestial.

Seu membro coberto de borracha se sobressaía entre as calças de lã de listradas.

—Não há céu, Vitória, mas posso lhe mostrar o inferno.

Vitória não duvidou. Gabriel se ajoelhou no chão e inclinou a cabeça, com o cabelo prateado caindo sobre sua testa. O tecido roçou a parte interior das coxas. A borracha empurrou uma carne que ainda não estava preparada. Vitória se tornou para trás sobre a cama. A borracha era muito, muito mais grosso do que tinham sido seus dedos. Um dedo pressionou ligeiramente o clitóris.

Vitória ficou sem respiração, paralisada pelos olhos prateados.

—Tome Vitória - disse ele ofegante—. Retirei-lhe o hímen com os dedos. Agora tome...

—Você é maior que seus dedos...

Mas menor que sua mão. Gabriel lhe esfregou o clitóris, delicada e sedutoramente. Sua opção... Os músculos de Vitória se relaxaram. Um punho... Sentiu como se um punho a estivesse empurrando, incrivelmente grande... E depois ficasse agasalhado dentro dela. Esfregou-lhe o clitóris, delicadamente, mais forte, lentamente, com precisão... Dor. Prazer... O corpo de Vitória se abriu, de maneira impossível, para receber mais. Mais dor. Mais prazer. A dor se aquietou; o prazer não. O coração palpitava com força em seu interior. Os ofegos encheram o quarto.

—Alcance o orgasmo para mim, Vitória, e lhe darei outro centímetro.

O punho agasalhado em seu interior permaneceu quieto; o dedo que esfregava não. Baixou... Provou a firmeza do magro aro de carne que o rodeava, voltou a subir úmido e escorregadio, esfregando em círculos, sem aprofundar mais; mas ela necessitava que entrasse até o fundo de seu ser...

Vitória gritou. E se convulsionou.

—Deus!

A enorme glande em forma de punho que a estirava mais do que podia suportar se afundou em seu interior... Uns centímetros mais.

—O que viu? —perguntou ele com voz rouca.

Luz. Escuridão. Prateado. Cinza.

—Luz... —Em círculos—. Gabriel...

O corpo de Vitória se abriu de maneira involuntária. Uma sensação de ruptura a percorreu. Ele se afundou nela uns centímetros mais... Vitória ofegou em busca de ar. Uns centímetros por orgasmo... Faltavam alguns ainda...

—O que viu Vitória?

Ela palpitava com força. Ele palpitava com força. As mantas que tinha agarradas com os punhos palpitavam.

—O que viu Vitória? —repetiu ele tenso.

—Luz - disse ela com obstinação. Não havia escuridão no prazer... Não tinha pecado no amor... —. Ai, Deus. —As palavras saíram entrecortadas de sua garganta—. Gabriel... Não posso... Gabriel...

—O que, Vitória? —O suor se deslizava pelo rosto de Gabriel como se fossem lágrimas—. Que não pode fazer?

Ou não fazer... Ele queria que ela o detivesse. Vitória não o fez.

—Preciso... —ofegou ela enquanto a luz do seguinte orgasmo dava voltas diante seus olhos, e o dedo de Gabriel trotava em círculos seus clitóris.

—O que precisa? —sussurrou Gabriel, adiando o prazer.

A ira invadiu Vitória. Ele tinha que estar sentindo. Como podia não sentir sua carne acariciando-o, sugando-o?

Tragando-lhe Outro orgasmo. Outro centímetro.

—Preciso ter outro orgasmo.

Gabriel lhe deu outro orgasmo. E depois lhe deu outro centímetro. Quase não podia respirar pelo punho agasalhado em sua vagina.

—O que vê Vitória?

—Luz.

Outro orgasmo. Outro centímetro. Ainda faltavam sete centímetros...

—O que vê? —repetiu, querendo que ela visse a escuridão que ele via.

—Luz - ofegou ela. Os fios prateado de seu cabelo formavam um halo sobre a cabeça dele—. Vejo luz

Vitória já não podia diferenciar a dor do prazer. Quis o seguinte orgasmo, dois centímetros mais de Gabriel.

Quinze... Dezessete... Dezenove centímetros...

—O que vê Vitória? —A agonia quebrava a voz de Gabriel.

Sua camisa branca de linho pregava em seu peito. O linho empapado de suor revelava sua respiração, compassada ao pulso que vibrava dentro de sua vagina e contra seus clitóris. Vitória se concentrou com dificuldade nele e não no orgasmo que finalizava e anunciava a necessidade de outro. Mas não havia mais espaço em seu corpo. O membro dentro dela embotava todos seus sentidos.

O corpo de Gabriel. A necessidade de Gabriel. Morreria se ele não parasse; morreria se parasse. O prazer de um anjo... O dedo de Gabriel, movendo-se em círculos, não dava pausa a Vitória. O que via?

—Vejo você, Gabriel - ofegou Vitória—. Quando alcanço o orgasmo vejo você.

Dor. A dor no rosto brilhante dele selou o ar dentro de seus pulmões. O impacto de seu corpo o expulsou bruscamente.

Gabriel arremeteu dentro dela, contra ela, carne, pêlo, calças de lã, passado, presente. Ao mesmo tempo, outro orgasmo percorreu seu corpo. Ouviu um grito, mas Vitória não soube discernir a quem pertencia. Os batimentos do coração dele eram os dela, a carne dela era dele, o orgasmo que os estremeceu era de ambos. Vitória soube que Gabriel havia sentido seu prazer. Soube por que saiu dela. Seu corpo. Sua alma. Seus punhos agarravam com força as mantas desordenadas. Não havia tocado seu corpo, mas havia tocado um anjo. Vitória não sabia se Gabriel a perdoaria. Fechou as pálpebras com muita força e olhou fixamente para a escuridão, escutando seus passos percorrendo o chão do quarto para entrar no banheiro... Contou os segundos que passavam os batimentos de seu coração. Sentia-se oca por dentro, como se ele tivesse brocado um túnel em seu interior. O fraco som dos encanamentos vibrou no ar. Gabriel tinha soltado a água do vaso. O suave rangido da porta que se abria rompeu o silêncio.

Podia sentir seu olhar; era tão evidente como as palpitações no mais profundo de seu útero.

—Mary Thornton colaborou - disse com um tom de voz sem emoção, mas a tensão palpitava dentro de sua voz—. O homem que escreveu as cartas se chama Mitchell Delaney.

Ela não ia chorar.

—Não conheço nenhum Mitchell Delaney.

—Ele conhece você, mademoiselle.

—Meu nome é Vitória - afirmou ela. Gostava da maneira em que Gabriel o pronunciava, arrastando o v como uma suave carícia.

Sim, o homem que tinha escrito aquelas cartas sabia que ela usava calcinhas de seda e não de lã, e também sabia que as mulheres tinham as mesmas necessidades que os homens. Ele não conhecia a mulher que habitava no interior de Vitória Childers, mas Gabriel sim. Havia tocado o centro de sua alma. Gabriel deu meia volta e se afastou.

 

CAPITULO 17

 

Gabriel percorreu multidão de ruas, girou nas esquinas, metendo-se por becos, esperando, com seu fôlego atravessando a névoa amarela e os batimentos do coração medindo o silêncio, com sua espada de prata preparada. Ninguém o seguia. Desejava que alguém o tivesse feito. Gabriel queria matar. E fugir do cheiro e a sensação de Vitória. Gabriel queria negar o prazer que ela tinha lhe dado. Vejo você, Gabriel. Quando alcanço o orgasmo, vejo você. Durante um instante.... quando a ponta de seu membro abria caminho, palpitante, entre sua vagina.....quase tinha chegado a pensar que tinha alma. Obrigou-se a concentrar sua atenção na noite. Ninguém o tinha seguido até a residência dos Thornton, nem de dia nem de noite. E, entretanto alguém tinha visto madame René entrar em sua casa. Alguém tinha interceptado as caixas de roupa que tinha enviado a Vitória. O som dos cascos de um cavalo solitário irrompeu seus pensamentos. Com o coração acelerado, recuou para a entrada do beco. As lanternas de um veículo apareceram em meio da neblina. Tratava-se de um carro de aluguel que passava lentamente. O condutor podia estar retornando aos estábulos ou seguindo Gabriel. A névoa o tragou. Gabriel percorreu outras três ruas. Outros carros de aluguel perambulavam sem rumo fixo em meio da cerrada névoa matutina. Fez gestos a um deles, detendo-se frente ao cavalo que passava e agarrando as rédeas de couro.

O cavalo relinchou, enquanto o condutor soltava uma maldição.

—Tire suas mãos de meu cavalo, grande...

—Darei-lhe dois soberanos de ouro se me levar - ofereceu Gabriel suavemente.

A tarifa média dos carros de aluguel era seis peniques por milha; um soberano equivalia a duzentos e quarenta peniques. Gabriel não precisou ver com claridade o rosto do condutor para ver como calculava mentalmente. Teria que percorrer oitenta milhas para ganhar dois soberanos. Gabriel entendia as ruas e os homens e mulheres que trabalhavam nelas. Não compreendia a Vitória.

—Aonde quer ir? —perguntou com cautela o condutor—. Tenho que voltar para os estábulos.

—Não muito longe - informou Gabriel de bom humor, ofegante pelo sexo, desejando mais sexo—. Quero ir ao Clube das Cem Guineas. Dê lentamente uma volta na quadra até que eu golpeie o teto. Então parará para que suba outro homem. Ele dirá aonde nos levar. O condutor não teve que perguntar onde ficava o Clube das Cem Guineas. Era igual à Casa do Gabriel, todo mundo o conhecia.

—Farei se me der o ouro primeiro - disse astutamente o condutor.

O cavalo se moveu nervoso, e esteve a ponto de pisar em Gabriel. Ele o tranqüilizou rapidamente, acariciando com firmeza o pescoço suarento com sua mão enluvada, recordou a sensação da dor de Vitória, acolhendo seus dedos e depois seu membro; recordou seu prazer, alcançando os orgasmos que lhe proporcionava à força e pedindo mais. Sabia que o condutor estava pensando que Gabriel andava procurando um prostituto. Uma sensação incomum de ira o invadiu, mas a conteve. Os pensamentos não matavam; o segundo homem sim.

—Darei lhe um soberano agora e o outro quando chegarmos - disse Gabriel com naturalidade.

A avareza superou os escrúpulos morais do condutor.

—Vamos, patrão.

O carro cheirava a fumaça de charuto rançoso, genebra, perfume e suor. Gabriel olhou pela janela. O sistema de iluminação de ruas tentava abrir espaço entre a névoa, ganhando em uma rua, perdendo na seguinte. Homens, mulheres e meninos entravam e saíam da neblina amarela. Pensou em Vitória, percorrendo as ruas, sozinha. Vivendo nelas. Terrivelmente sozinha. Tentou afastar aquela imagem imediatamente. Não voltaria para as ruas. Gabriel se certificaria disso. Uma fileira de carros de aluguel ocupava a rua diante o Clube das Cem Guineas. Gabriel tirou um pesado relógio de prata de seu bolso; ainda não era a hora. O carro deu lentamente à volta na quadra quatro vezes. Na quinta vez, uma mulher alta, de cabelo loiro com uma capa de veludo vermelho, aproximou-se do lugar onde estavam estacionados os veículos. Gabriel levantou a bengala com o punho para cima e golpeou com força o teto do carro três vezes. O carro parou junto à calçada. Estirando-se sobre o assento de couro, Gabriel abriu a porta de um chute, mantendo-o mais afastado possível da janela que dava à calçada. A mulher titubeou. Gabriel tirou o punho de sua bengala pela porta aberta, à prata brilhou contra a neblina amarela. A mulher se aproximou e parou um momento para dar ao condutor seu endereço. A parte dianteira do carro se inclinou com um estalo da madeira; segundos mais tarde a mulher se afundou no assento, fazendo ranger o couro desgastado com um sussurro de veludo. Seu quadril roçou o de Gabriel; ele apertou os dentes. O perfume enjoativo afogou outros cheiros. Inclinando-se para frente, a mulher agarrou o cabo da porta. A escuridão que envolveu Gabriel não tinha nada que ver com a porta que acabava de se fechar e sim com o ombro que de repente roçou o seu, bloqueando-o e deixando-o sem espaço entre ele e o lateral do carro, e entre ele e o outro corpo. O veículo avançou lentamente. Gabriel olhou a cabeça loira que tinha a seu lado, ao mesmo tempo que todos os músculos de seu corpo se prepararam para abrir a porta com um chute e escapar. Retornar para junto de Vitória e à esperança que prometia.

—Descobriu algo? —perguntou em um tom neutro.

—Sim.

A voz não era feminina, mas masculina. Um ar de amargura invadiu o veículo. Seu peito se contraiu. Ele tinha obrigado o homem que estava sentado a seu lado a fazer aquilo; ele e o segundo homem.

—Já te disse que não tinha que fazer isto, John - disse Gabriel em voz baixa, lutando contra o balanço do carro e contra o medo com o que tinha vivido durante quase quinze anos.

—Não tenho feito nada esta noite que não tenha feito milhares de vezes antes - repôs John em um tom apagado.

Dez anos antes, John tinha se prostituído para sobreviver; aquela noite o tinha feito por Gabriel. John nunca perdoaria Gabriel, e tampouco perdoaria a si mesmo. Gabriel não o culpou. Levantando a mão, o homem arrancou a peruca loira.

—Você não tinha obrigação de me acolher faz dez anos. —O cabelo dourado de John brilhou fugazmente à luz de um farol; imediatamente se obscureceu por efeito da neblina—. Ainda estaria nas ruas de não fosse por você.

Ambos sabiam que isso não era certo. John não exerceria a prostituição no Clube da Cem Guineas; estaria morto.

—Não vi o Stephen.

—Supõe-se que não tinha que vê-lo. —John continuou olhando fixamente a porta do carro—. Stephen está vigiando o clube, como você ordenou.

Enquanto que Gabriel tinha pedido a John que desempenhasse o papel de prostituto. John girou lentamente a cabeça; seus olhos brilharam na escuridão.

—Usam nomes femininos. Não pude perguntar diretamente por Gerald Fitzjohn.    

John não disse a Gabriel nada que não soubesse, mas, em troca, ele sim tinha uma informação que lhe dar.  

—Fitzjohn está morto - informou Gabriel com ar longínquo e, imediatamente, recordando o horror de Evan e Gastón, acrescentou—: O decapitaram.     

John não manifestou nem surpresa nem horror. Aquela noite tinha suportado coisas piores que a morte.     

—Um homem disse que Geraldine o tinha deixado plantado.

Geraldine era a versão feminina de Gerald. Gabriel esticou os músculos. Gerald Fitzjohn podia usar o nome Geraldine, mas também podia usar qualquer outro.

O veículo virou em uma esquina. Gabriel se agarrou à correia do teto.

—Como se chamava o homem?

—Se fazia chamar Francine.

Francine... Frances.

O visconde Riley se chamava Frances. Era cupincha do duque de Clarence, o herdeiro ao trono da Inglaterra. O duque assinava no livro de registro do clube com o nome de sua mãe: Vitória.

—Na noite anterior disse que Lenora os deixou plantados tanto Geraldine quanto a ele - prosseguiu John com um tom de voz desprovido de emoção—, e que não tinha visto a Lenora após.

Lenora... Leonard.

Gabriel não recordava nenhum membro da alta sociedade ou do parlamento que se chamasse Leonard. Saberia o segundo homem? Tinha matado o homem que se fazia chamar Lenora, como a Gerald Fitzjohn? As perguntas se faziam cada vez mais prementes, com a pressão palpitante do quadril e o ombro de John. Por que ninguém tinha seguido Gabriel? Por que os Thornton continuavam vivos?

—Conhece um homem chamado Mitchell Delaney? —perguntou Gabriel, afrouxando um pouco a pressão diante o aroma enjoativo do perfume e John e o prazer que seguia palpitando em sua virilha. O prazer de Vitória.

O que tinha o segundo homem planejado para Michael, para Gabriel ou para Vitória?

—Não. —John se moveu na escuridão, criando o máximo espaço possível entre ambos, fosse porque não podia suportar o contato com outro homem depois dessa noite ou para aliviar a Gabriel—. É membro do clube?

—Não sei - disse Gabriel. As rodas do carro chiaram pondo eco a seu receio.

Gabriel não era tolo. Havia homens mais peritos em perseguições que ele. Os homens que protegiam a Michael e a Anne podiam ser subornados ou assassinados. Um homem poderia ter seguido Gabriel sem que ele se percebesse.

Em qualquer momento, o carro pararia. Poderia haver homens aguardando diante da porta de John, que poderiam matá-lo e levar Gabriel. O carro parou.

John colocou a peruca, roçando indevidamente o corpo de Gabriel.

—A proprietária do apartamento não sabe o que sou eu - disse tenso a modo de desculpa—. Prefiro que pense que uma mulher me visitou.

—Conhece a caseira? —perguntou Gabriel, esperando pelo bem do John que a conhecesse carnalmente e que pudesse encontrar o prazer do que o segundo homem tinha privado a ele.

—É viúva. Ocasionalmente nos consolamos o um ao outro.

— A console esta noite, John.

O homem não respondeu. Inclinou-se para frente abriu a porta da carruagem e se levantou. Com as costas arqueadas, disse abruptamente:

—Dizem que você não teve uma mulher há quase quinze anos.

—Isso dizem - assentiu Gabriel enigmaticamente.

Um breve sorriso lhe torceu os lábios. O que pensariam seus empregados agora que Vitória tinha pedido uma caixa de camisinhas?

—Quem lhe dará consolo esta noite, Gabriel? —perguntou John.

Gabriel não conseguia afastar as imagens de Vitória que atravessavam sua mente. Vitória olhando o prostituto e à mulher através do espelho transparente. Vitória pedindo a Gabriel que a tocasse. Os seios de Vitória erguidos de prazer enquanto seu ventre se contraía preparando-se para o orgasmo, e suas pernas totalmente abertas pedindo que introduzisse mais dedos, uma parte maior de Gabriel.

—Não há consolo para alguns homens - afirmou de maneira cortante.

E, entretanto Gabriel tinha sido consolado. A lembrança do segundo homem produziu calafrios. Se chegasse a tocá-lo agora...

—Esta noite agi por minha própria vontade, Gabriel. —A luz da luz de gás perfilou a cabeça do John—. Não se culpe.

Gabriel se perguntou exatamente até onde tinha chegado John para o ajudar. Ofereceu-lhe o único consolo que podia.

—Aumentarei seu salário.

—Não faz falta. —Não pôde ver a expressão de John, mas não precisava fazê-lo—. Quando encontrar o homem que busca, vou comprar uma chácara. Esta noite descobri que nos últimos dez anos você devolveu minha humanidade. Isso eu agradeço.

E por lhe pedir que desempenhasse o papel de prostituto que estava acostumado a ser no clube no que acostumava a trabalhar, nunca perdoaria Gabriel. Gabriel havia devolvido a John sua humanidade, só para arrebatar-lhe de novo. O carro se inclinou; a porta se fechou. Gabriel ficou sozinho. Não havia razão alguma para que a escuridão oprimisse seu peito. Tampouco havia nenhuma razão para lamentar a perda de um empregado. Gabriel ajudava a homens e mulheres que não tinham mais opção que roubar ou prostituir-se. Deixaria partir outro homem de suas filas e contrataria a alguém para substituí-lo. Deveria sentir-se contente pela partida de John, mas não era assim. O segundo homem estava destruindo sistematicamente a nova vida de Gabriel, da mesma forma que tinha destruído a antiga. Mas tinha lhe dado uma mulher. E Gabriel ainda não sabia por que.

 

CAPITULO 18

 

Victoria observou cegamente Gabriel abrir o armário, vendo em sua mente o que ouvia. O silêncio invadiu seus ouvidos. Ouviu como abria uma, duas, três gavetas. Visualizou o conteúdo de cada gaveta. Tinha visto seus objetos interiores, tocado sua cueca de lã - uma lã fina e tão suave como a seda—, tinha visto uma pistola e uma faca afundar-se no montão de camisas brancas de linho engomado. A terceira gaveta se fechou. Viu Gabriel partir, tentando não fazer ruído ao fechar a porta. Perguntou-se que hora seria. E quando Gabriel a perdoaria. E nesse instante compreendeu que só o faria quando perdoasse a si mesmo. Vitória não sabia a sensação que teria depois de perder sua virgindade; mas agora já a estava experimentando. Sentia um enorme vazio.

Abriu os olhos e olhou fixamente para o escuro teto; em sua mente voltou a ver o brilho da pintura branca acetinada e o suor que deslizou pelo rosto de Gabriel como se fossem lágrimas. Vitória tinha conhecido o contato com Gabriel. Nunca mais estaria completa sem ele. Tirando as pernas pelo beirada da cama, sentou-se. Fez uma careta de dor. Sentia como se a tivessem perfurado, como se estivessem arrancando o coração do peito. Não tinham contado isso... Nas cartas. A dor. O prazer. Vitória entrou no quarto de banho. E lembrou...Tenho frio. Acredito que nunca mais vou sentir calor. Gabriel a tinha esquentado, primeiro com um robe e depois com seu dedo, seus lábios, sua língua, seu bitte. Meteu-se na banheira de cobre. E recordou... O aspersor para o fígado... Não está colocado para massagear o fígado. Não. O jorro é estimulante para os homens? Não tanto quanto para as mulheres. Vitória tomou uma ducha com água fervendo. E recordou... Lembro a primeira vez que vi uma mulher assim.

O que pensou quando a viu?...Pensei que se o homem tinha uma alma, existiria dentro de uma mulher. Vitória se ensaboou. E evocou... Todos os lugares aonde Gabriel a havia tocado. Seus lábios. Sua língua. Sua face. Seus seios. Seus clitóris. Estremeceu com a lembrança. Aconteceria o mesmo a Gabriel? Tinha a vulva torcida; irradiava calor. Tinha chamado a sua vagina um portail. Eu gosto da maneira em que você diz meu nome Como? Como se eu tivesse uma alma. Vitória se enxaguou rapidamente e se secou com a toalha. O pente de Gabriel não tinha cabelos escuros nem loiros. Toda evidência de sua união tinha sido destruída.

A escova de dente de Gabriel estava úmida afastou o olhar de sua própria imagem refletida no espelho, e escovou os dentes energicamente. Vitória continuava nua. O robe de seda estava no quarto, no chão, no mesmo lugar onde ela a tinha deixado. Sentindo-se repentinamente coibida, envolveu seu corpo na toalha úmida. Não deveria se surpreender ao encontrar que alguém no quarto de Gabriel, mas o fez. Agarrou-se à toalha atada em seu seio. Ao ouvi-la, um homem de cabelo castanho se virou para olhá-la. Parecia ter uns trinta e tantos anos, mas não dava a impressão de sentir-se incômodo ao ver uma mulher nua envolta em uma toalha. Ela o reconheceu imediatamente. Era o homem que a tinha conduzido ao estúdio de Gabriel na noite em que tinha vendido sua virgindade. Acreditava recordar que seu nome era Gastón.

Um amontoado de pensamentos cruzaram por sua mente a toda velocidade. Ele saberia que ela tinha pedido as camisinhas. Descreveria com detalhe agora aos serventes seu corpo esquálido? Respirou fundo para tomar força. Tinha permanecido de pé nua diante madame René sem tentar tampar-se; por conseguinte, poderia permanecer diante de Gastón coberta por uma toalha sem ficar histérica.

—Posso o ajudar em algo, senhor? —perguntou friamente, com aquela mesma voz com a que às vezes tinha sossegado acusações temerárias.

Gastón sorriu com seus quentes olhos de cor café.

—Mais non, mademoiselle. Vim unicamente para trazer estas caixas.

Mostrou-lhe umas caixas brancas estampadas com pétalas de rosa vermelhas.

Vitória recuou.

—Non, non, mademoiselle - se apressou a tranqüilizá-la Gastón—. As recolhi eu mesmo na loja de madame René. Olhe.

Apoiou as caixas sobre a cama desfeita.

Vitória sentiu calor, mas não era de natureza sexual. Uma grande mancha, causada por seu próprio prazer, sujava beira do lençol aonde ela tinha deitado. Uma tampa de metal repousava sobre a mesinha de noite de madeira; não havia forma de dissimular as capas enroladas que continha a pequena caixa desentupida. Gastón pareceu não dar-se conta. Ou talvez, acostumado à Casa de Gabriel, já não prestava atenção às realidades físicas da união sexual. Levantou a tampa de uma caixa retangular.

Vitória se armou de coragem, recordando o sangue, as mãos de Dolly... Em seu interior havia um espartilho de cetim negro.

Sua angústia deixou lugar à curiosidade feminina.

—Voilà. —Gastón olhou a Vitória, lhe dirigindo um sorriso. Tinha uma dentadura branca perfeita—. É só um bonito espartilho, mademoiselle.

O calor que percorria o corpo de Vitória não se mitigou com a tranqüilidade de Gastón, uma reminiscência dos anos passados simulando ser um modelo de virtudes. Não importava que seu prazer tivesse manchado os lençóis ou que houvesse uma caixa de camisinhas aberta na mesinha de noite. Os homens não mencionavam —nem exibiam— os objetos interiores das mulheres.

Mas Gastón era imune às restrições impostas pela sociedade. Procedeu a abrir todas as caixas, descrevendo a suavidade dos sutiãs de seda, levantando um par de calcinhas adornadas com laços azuis para que ela admirasse a delicada malha, tão fino como o papel, mostrando orgulhosamente ligas, meias de seda, finos guates, umas anquinhas que se assemelhavam mais a uma anágua que à jaula de arames que Vitória tinha usado durante anos Um brilho de aprovação se refletiu nos escuros olhos de Gastón.

—É très À a mode. Monsieur Gabriel o escolheu.

Enquanto Vitória sopesava a idéia de que Gabriel tivesse escolhido pessoalmente um objeto íntimo para ela, Gastón - como um mago tirando um coelho de uma cartola— levantou um traje formal de seda, marrom dourada, que poderia ter parecido brega com seus adornos de veludo granada e seu fundo cor creme com estampados em verde, amarelo e vermelho escuro, e que, entretanto, pareceu-lhe incrivelmente lindo. Involuntariamente, quis tocá-lo. A seda entrelaçada pregou às pontas dos dedos. Era muito mais suave que as calcinhas de seda caras que estava acostumado a comprar; embora não tão caras para o salário de uma professora.

—Mademoiselle precisará de ajuda com o vestido - disse Gastón com evidente curiosidade.

Vitória retirou a mão bruscamente, muito consciente da toalha que envolvia seu corpo e a pele nua que mal ocultava. Não ia permitir que outro homem a visse nua.

—Asseguro-lhe, senhor, que sou capaz de me vestir sozinha.

Gastón tinha realmente um sorriso encantador. Ela recordou o sorriso nos olhos de Gabriel quando no dia anterior o tinha repreendido pela quantidade de caixas que havia sobre o sofá. E agora tinha escolhido objetos íntimos para ela.

—Non, non, mademoiselle, você não me entendeu - se apressou a dizer Gastón—. Não estou oferecendo meus serviços; monsieur Gabriel tem também criadas. Enviarei-lhe uma.

Vitória tinha se vestido sozinha desde que abandonou a casa de seu pai.

—Obrigado, mas não é necessário.

—Mais oui, é necessário, mademoiselle - implorou Gastón—. Monsieur Gabriel deixou instruções expressas para que atendamos todas suas necessidades.

Não havia maneira de deter o calor ardente que invadia as bochechas de Vitória.

—Asseguro-lhe, senhor, que todas minhas necessidades foram atendidas.

—C'est très bon... É bom que tenha vindo. —O brilho cúmplice nos olhos cor café de Gastón era inconfundível—. Monsieur Gabriel está a muito tempo sozinho.

—Não me permite tocá-lo - exclamou Vitória.

Mordeu os lábios, mas era muito tarde, já tinha pronunciado aquelas palavras.

Os olhos de Gastón não mostraram nenhum sinal de acusação.

—Mas ele sim tocou em você, n'est-ps?

As evidências não deixavam dúvidas.

Seus lábios estavam inchados, seus olhos velados.

—Sim. —Vitória se endireitou—. Tocou-me.

Gastón voltou a dobrar lentamente o traje.

—Monsieur Gabriel não tinha tocado em uma mulher - nem em um homem— desde que eu estou com ele, mademoiselle.

—Quanto tempo esta com ele? —A Vitória custou formular a pergunta.

O francês de cabelo castanho voltou a colocar cuidadosamente o formoso traje marrom dourado na caixa.

—Estou há quatorze anos com monsieur Gabriel.

—E você é seu amigo?

A tampa estampada com pétalas de rosa se fechou sobre o traje de seda.

—Nós, na Maison de Gabriel, não somos seus amigos, mademoiselle.

Ela abriu seus olhos com surpresa. Uma vez guardado o traje, Gastón elevou as grosas pestanas escuras. Vitória pensou que possuía os mesmos olhos que Gabriel, mas de cor café em vez de prateado.

—Somos sua família - afirmou Gastón com voz neutra—. Nesta casa todos somos família de todos.

Também Gastón tinha sobrevivido às ruas.

—Você também é... Une prostituée? —perguntou impulsivamente.

O administrador não se alterou.

—Oui, mademoiselle, fui une prostituée, se havia clientes que solicitassem meus serviços. Quando não havia, fui como diriam vocês os ingleses, ladrão de carteira e assassino.

Um assassino...Vitória respirou fundo.

—Devo supor que já não se dedica a semelhantes atividades.

A frieza das ruas abandonou repentinamente os olhos de Gastón, dando lugar a um atraente brilho.

—Non, mademoiselle, já não sou nem ladrão de carteira nem assassino. Monsieur Gabriel não gostaria que roubássemos ou assassinássemos seus clientes. Eu dirijo os negócios de monsieur Gabriel e este estabelecimento.

E os empregados que trabalhavam na Casa de Gabriel. Uma família de prostitutos, ladrões e assassinos. Vitória se endireitou.

—Alivia-me escutar isso, senhor.

—Ps du tout, mademoiselle. —Havia admiração e também uma faísca de humor nos olhos café de Gastón—. Seu café da manhã está no estúdio. Pode tomá-lo já ou esperar até que uma criada a ajude a se vestir.

Como professora, Vitória sempre tinha comido com os serventes. Não estava acostumada que a atendessem. O calor da vergonha foi cedendo diante a novidade de ser mimada.

—Na verdade, senhor, não preciso dos serviços de uma criada, mas o agradeço. Desfrutarei do café da manhã... E da roupa. É muito bonita.

Gastón pareceu agradado com o elogio.

—Se precisar de algo, não duvide em pedi-lo.

Ela precisava curar um anjo. Só havia uma maneira de fazê-lo. Vitória olhou fixamente os amáveis olhos de Gastón e pediu o que precisava. O que Gabriel precisava.

 

CAPITULO 19

 

Uma sombra se abateu sobre Vitória. A imagem de Gabriel pesava sobre suas pálpebras, seus seios, seu ventre, suas coxas.

Instantaneamente despertou, com o coração pulsando com força e a respiração entrecortada. A porta do banheiro se fechou suavemente. Uma fina linha de luz branca iluminou a ranhura entre o chão e a porta. Gabriel tinha retornado. Jogando as mantas para trás, saiu de entre os lençóis de linho. Seus mamilos se endureceram. A causa do frio, disse. Mas sabia que era pelo medo.

Vitória não tinha muitos desejos de desempenhar a parte que lhe correspondia nessa noite, mas o faria. Ia libertar um anjo.

As chamas alaranjadas e azuis lambiam as lenhas enegrecidos. O fogo estava se extinguindo. Vitória tinha estado apagando desde que sua mãe a tinha deixado a mercê de um pai frio e pouco carinhoso. Gabriel tinha ido se extinguindo um pouco cada vez que dava prazer, mas não recebia. O bote branco de boca larga sobre a mesinha de noite parecia uma mancha pálida na tênue luz.

Era toda a luz que Vitória precisava. Estirou a mão e seus dedos agarraram... Metal. A caixa prateada de camisinhas.

Soltou-a e tomou o frasco de vidro que Gastón tinha entregado anteriormente. Com dedos trêmulos, desenroscou a tampa e a colocou com cuidado sobre a mesinha. Sentiu o impacto do metal ao se chocar contra o metal na espinha dorsal. Vitória tinha posto a tampa em cima da caixa pequena. Esperava que sua determinação fosse mais certeira que sua coordenação. O chão de madeira polida estava frio. Seus seios.... passáveis, segundo madame René; símbolos do pecado de uma mulher, segundo seu pai......se elevaram no ar. Gabriel tinha visto os seios de Vitória; ela não o tinha visto. Gabriel havia tocado Vitória; Vitória não o tocado. Ainda. Que Deus a ajudasse se o fizesse, havia dito Gabriel. Porque ele não poderia fazê-lo. Ou não queria. Vitória abriu a porta do banheiro. Sentiu como Gabriel ficava alerta no mesmo instante em que entrou. Uma mão longa e elegante emergiu da ducha, fazendo girar um grifo. A água deslizou em silêncio; o banheiro estava envolto em vapor. Agarrando fortemente o frasco de vidro com lubrificante que tinha pedido a Gastón, Vitória avançou. Gabriel tinha o rosto voltado para o disco da ducha, o cabelo murcho e escuro. A água caía por suas costas musculosas, suas nádegas firmes e suas longas pernas. Era lindo. Muito mais lindo que qualquer outro homem que tinha visto. Gabriel sabia que Vitória tinha entrado no banheiro, e que o observava.

Também soube o que pensava fazer. Baixou a cabeça lentamente. O cabelo escurecido pela água pregou na sua nuca, moldando-a.

—Te matarei se me tocar, Vitória.

A voz de Gabriel era distante; a tensão atravessou a água e o vapor cada vez mais denso.

—Eu não estaria aqui, Gabriel, se você não quisesse que eu o tocasse - respondeu Vitória com grande tranqüilidade. E sabia que era certo.

O homem pelo qual ela estava ali conhecia as necessidades de Gabriel. Tinha enviado Vitória para que as satisfizesse.

—Não me chamo Gabriel.

Vitória se armou de coragem para resistir as verdades que escutaria essa noite.

—Qual é seu nome, então?

—Garçon. Com. Fumier.

Vitória sabia que garçon significava “jovem” em francês. Com e fumier não formavam parte de seu vocabulário francês, como tampouco portail, vagina, e godémiche, falo de couro.

—Não somos responsáveis pelo que outras pessoas nos chamam — repôs com um tom de voz uniforme.

—Sabe você o que é com, mademoiselle?

A voz de Gabriel ricocheteava como um eco naquela gruta de cobre, sobrepondo-se ao som da queda monótona da água.

—Não - respondeu Vitória com franqueza.

—Significa “bastardo”. E fumier?

—Não. —Mas não tinha dúvida de que Gabriel diria—. Não sei.

—Fumier quer dizer “lixo”. Os baixos recursos são esgotos; eu nasci e vivi em um esgoto. Um bastardo sem nome. A prostituição não me transformou no que sou — declarou Gabriel no meio do vapor denso enquanto a água deslizava sobre seu corpo—. Foi viver.

O preço da sobrevivência.

—Viver não é pecado, Gabriel.

Viver não é pecado, e tampouco amar. Vitória sabia que precisaria algo mais que simples palavras para convencer a Gabriel da verdade de sua afirmação.

—Uma vez entrei em uma catedral e vi uma vitral em que estavam representados dois anjos; eu não sabia que eram anjos. Um deles tinha o cabelo escuro, o outro era loiro. Nas escadas da entrada havia uma anciã, o que vocês os ingleses chamariam uma indigente que pede esmola aos mendigos. Perguntei-lhe quem eram lhes deux hommes, os dois homens, e me disse que se tratava de anjos. O anjo do cabelo loiro era Gabriel, o mensageiro de Deus. Michael, o de cabelo escuro, era o escolhido de Deus. Também me disse que no céu não existia a fome e que os anjos não mendigavam. Michael e Gabriel eram os favoritos de Deus. —O vapor emanava espesso do biombo de cobre, introduzindo-se no nariz e os seios de Vitória—. Quando encontrei Michael em Calais, era um menino faminto de olhos ofegantes que não mendigava e não sabia como roubar. Recordou-me o anjo de cabelo escuro da vitral. Queria ser como ele; ter olhos que desejassem algo mais que um pedaço de pão e um lugar seco e quente para dormir. Queria ser um anjo, e por isso escolhi o nome de Gabriel. Quando a madame francesa me ofereceu a oportunidade de escapar da pobreza, também a aceitei. E o voltaria a fazer, nessas mesmas circunstâncias. Não se engane, sou um bastardo. Se me tocar a machucarei. E lhe asseguro, Vitória, que posso machucá-la de maneiras que nunca imaginaria.

A emoção oprimiu o peito de Vitória até que não pôde respirar pela pressão e o vapor. O temor era evidente, mas havia algo mais por cima dele. Gabriel sofria. Ela tinha poder para pôr fim a seu sofrimento. Se tivesse coragem suficiente.

—Fazemos o que podemos para sobreviver - disse Vitória suavemente, repetindo como um eco palavras que já tinham sido pronunciadas por ele... Por ela.

—Sinto que tenha sido vendido contra sua vontade.

—Mas não foi contra minha vontade, mademoiselle.

—Fazemo-lo, Vitória? —perguntou Gabriel sem curiosidade na voz, com a água derramando-se sobre ele

—Sim - afirmou Vitória com determinação—. O faremos.

Do contrario, ela não teria leiloado sua virgindade na Casa de Gabriel. E nunca tivesse conhecido um anjo de cabelo loiro que desejava amor. Gabriel virou tão rapidamente que o movimento cortou a respiração de Vitória. Ou talvez foi o fato de vê-lo completamente nu pela primeira vez. A água se aderia a suas pestanas, deslizava-se por seu queixo, caía sobre o pêlo loiro escuro que cobria seu peito e descia como uma flecha até sua virilha. Vitória o olhou fixamente. Seu membro estava ereto. A água saltava da ponta bulbosa de seu sexo inchado. Os músculos de sua vagina se contraíram de desejo. Tinha visto Gabriel fugazmente a noite anterior, enquanto colocava a camisinha, e ainda mais brevemente quando se aproximou com seu membro coberto pela borracha se sobressaindo da abertura de suas calças de lã cinza. Agora tinha diante dela um homem que se exibia sem vergonha alguma, com as palpitantes veias azuis, mostrando toda a gama de cores, da pele pálida a púrpura. Seus testículos se balançavam sob um arbusto de pêlo escurecido pela água. Não duvidou nem um instante de que Gabriel podia lhe fazer dano de maneiras inimagináveis. Da mesma forma que tinham feito a ele. E ainda continuava sofrendo. Ela tinha escolhido... Lentamente, Vitória elevou as pestanas. Através dos volutos de vapor cinza, o olhar de Gabriel era cortante e intransigente. Os olhos de um jovem que tinha querido ser um anjo e de um homem que tinha perdido a promessa do paraíso. Pela primeira vez, Vitória agradeceu os seis meses nos que tinha sido privada de mantimentos e roupa, e inclusive de moradia. Agradeceu seus ossos proeminentes e sua magreza. Sabia o que era sentir frio e fome. Sabia o que era vender a esperança do amor em troca de comida e refúgio.

Madame René havia dito que a sedução consistia em pintar imagens nuas com palavras. Criar a ilusão de... Um beijo... Uma carícia... Um abraço.

—Meu pai proibiu os beijos - disse Vitória deliberadamente—. Eu gostaria de beijá-lo.

Os únicos sons que podiam ouvir no banheiro eram o tamborilar da água e os fortes batimentos do coração de Vitória. Muito devagar, colocou o frasco de cristal sobre o móvel de madeira que rodeava a banheira. Seus seios se balançaram. Manteve a cabeça levantada para sustentar o olhar de Gabriel.

—Meu pai proibiu os abraços. —endireitou-se— Eu gostaria de abraçar seu corpo com o meu.

Com cuidado, introduziu-se na banheira de cobre.

—Meu pai proibiu tocar a outro. —A água quente orvalhou sua cara, caindo em seus pés—. Eu gostaria de tocá-lo, Gabriel.

Durante um segundo interminável, Gabriel não pôde respirar, apanhado dentro de uns olhos azuis ofegantes enquanto a água quente caía por sua cabeça e seus ombros, deslizando-se por suas costas, seu seio, sua virilha, suas nádegas. Cada centímetro de seu corpo gritava o acautelando. Se Vitória o tocasse... Uns dedos frios agarraram o membro ereto de Gabriel. Necessidade elétrica. Ira cegadora. Ele não queria aquilo. Mas Vitória não lhe tinha dado opção. Nem o segundo homem. Agarrando bruscamente o braço de Vitória, Gabriel a colocou de um puxão sob o disco da ducha; ao mesmo tempo, a fez girar e a empurrou de frente contra o biombo de cobre.

As mãos de Vitória se agarraram ao biombo.

—Você prometeu... —resmungou entre dentes, enquanto a água enchia sua boca, queimava seus olhos, seu peito, suas coxas, cada centímetro de sua pele que tocava a Vitória—. Prometeu não me tocar.

Mas o havia tocado. Tinha aberto seu corpo e tinha recebido seus dedos e seu pênis até que a escuridão do orgasmo iminente desapareceu no resplendor cegador de seu prazer.

—Prometi que não o tocaria ontem à noite - ofegou Vitória contra a água que a golpeava, agarrando-se ao biombo de cobre—, e não o fiz. Cumpri minha promessa.

Mas não era assim. Havia-o tocado com sua paixão e seu prazer. Vejo você, Gabriel... Mas não o tinha visto. Não tinha visto o jovem que tinha pedido esmola aos mendigos nem o prostituto que tinha suplicado a um homem. Gabriel podia sentir o medo de Vitória, cheirá-lo por cima de seu desejo; tinha sentido medo quando entrou no banheiro. E seu temor tinha revelado seus planos.

Ela tinha planejado liberar um anjo. Mas ele não o era. Era um bastardo sem nome que quis mais, atreveu-se a mais e tinha pago preço. Gabriel pressionou seu corpo contra o de Vitória, rodeando com seus dedos seus suaves braços, aprisionando-a com as coxas, fazendo que sentisse na greta de suas nádegas toda a longitude de sue verga. Deixou que ela notasse sua dureza, sua força.

A vulnerabilidade dela.

—Isto é o que quer Vitória? —sussurrou enquanto a água açoitava sua pele.

Vitória virou seu rosto, com a face direita contra o cobre escorregadio. A água deslizava pelo rosto dele, caía sobre a face esquerda dela, pregava o cabelo na cabeça,na orelha,no seu frágil pescoço.

—Sim - disse sem ceder ao medo—. Quero que me toque.

Havia tocado na noite anterior, mas não tinha sido suficiente. Para ela. Para ele.

—Como quer que a toque, Vitória? —murmurou sedutoramente, sabendo como agradar, como machucar. Não sabia como amar. Os prostitutos não amavam—, Quer que a toque como tocava uma mulher, ou quero que a toque como tocava um homem?

A água posava nas pestanas de Vitória, arrastando-se pela face.

—Há alguma diferença?

O vapor os envolvia. Insinuante. Provocador.

—As mulheres são mais suaves. —Gabriel roçou a orelha de Vitória com seus lábios; tinha uma orelha pequena, delicada, imensamente vulnerável. Queimava-lhe os lábios; a fenda entre seus glúteos apertava sue verga—. Sangram mais facilmente.

Vitória ficou rígida com aquele beijo fugaz, desconfiando de sua suavidade. Um anjo com presentes...

—Os homens são mais duros, mais musculosos. —Gabriel mordeu delicadamente o lóbulo de sua orelha, e depois deslizou a língua por seu interior. A água escorregava sobre seu rosto, seu queixo, gotejando sobre os ombros dela—. Gostam da rudeza. Quer que seja rude com você, Vitória?

—O homem que o fez suplicar foi rude com você, Gabriel? —desafiou-o Vitória com o cabelo escurecido pela água pregando-se aos lábios dele.

Gabriel apertou os dentes ao recordar. O segundo homem não tinha sido rude, mas seu cúmplice sim. Gabriel tinha acolhido gostoso a dor. Vitória não o faria. Mas isso era só o que Gabriel podia lhe dar.

—Excita-a a idéia de homens fodendo com homens? —disse com voz suave, deliberadamente cru.

As mulheres que tinham estado com Gabriel no passado sim se excitaram. Tinham procurado um anjo loiro para compará-lo com um anjo de cabelo escuro. Mas Michael era o anjo; só ele podia fazer uma mulher ver anjos. Gabriel lhes tinha mostrado a escuridão do desejo.

—O violentou - insistiu Vitória rodeada de vapor e de água.

Inocente. Michael também era inocente. Ofegante. Como Gabriel nunca poderia sê-lo.

—Dois homens me violentaram - disse com voz sedosa, aproximando sua face da sua até roçá-la, com o pulso pulsando nos dedos que aprisionavam os braços dela, seu peito encaixado em suas costas e seu membro em toda sua longitude instalado na greta de suas nádegas.

—Mas um deles lhe deu prazer - insistiu Vitória com obstinação.

Maldição.

—Sim - admitiu Gabriel em voz baixa.

Um dos homens tinha dado a dor; o outro prazer. Poderia suportar a dor, mas não conseguiu fazer o mesmo com o prazer. Gabriel ficou manchado para sempre. E ela sabia, aquela mulher que tinha sido enviada pelo homem tinha conseguido penetrar pouco a pouco a couraça daquele anjo até destrui-la por completo. Os anjos não rogavam, mas ele tinha obrigado Gabriel a fazê-lo.

Vitória se apertou contra Gabriel; vê-lo, tocá-lo, formar parte dele, que tinha lutado tanto para permanecer alheio a todos.

—Quero saber!

Gabriel também quis saber... Como se sentia com o estômago satisfeito, para poder desejar algo mais que comida, que sensação teria ao não ter frio, para poder desejar algo mais que sapatos e roupa, e o que se sentia ao ter um lar, um lugar aonde não tivesse que competir com outros mendigos. A curiosidade matava o amor, a esperança... Gabriel percorreu a orelha de Vitória com a ponta de sua língua; seu membro se ajustava entre suas nádegas. As lágrimas que não podia chorar pareciam deslizar-se da ponta de sua glande.

—O que quer saber, Vitória?

—Quero saber o que ele fez.

A lembrança transpassou o calor da água que açoitava seu corpo e a suave pele de Vitória.

Dor. Prazer.

—Você viu homens copulando com homens através dos espelhos transparentes, Vitória. —Sentia o fôlego de Gabriel em sua orelha—. Quer que lhe diga o que se sente ao foder pelo ânus? Ou quer que diga o que se sente ao ser violentado?

O cobre salpicado de água emoldurava o queixo de Vitória.

—Eu sei o que significa querer formar parte de alguém, Gabriel.

Na noite anterior ele se transformou em uma parte dela, e o mesmo tinha acontecido com Gabriel, embora não quisesse admitir.

A escura verdade o golpeou até que sentiu que ia explodir.

—Não me mantive indiferente a um homem - disse sedutoramente.

Nunca tinha sido indiferente a um homem. Michael. Michel. Durante um tempo, Gabriel tinha pensado que também ele podia ser um anjo. O segundo homem lhe tinha mostrado o que era. Com. Fumier.

—O machucou, Gabriel. —O vapor empanava o rosto de Vitória—. Quero curar essa ferida.

O homem ou os homens que haviam possuído John teriam prejudicado seu corpo além de sua alma? Perguntou-se Gabriel.

Sua viúva aliviaria seu sofrimento? Tinha aliviado Anne o sofrimento de Michael? Com quem se consolaria ele... Gabriel?

Com ninguém. Jamais. Nunca. Gabriel não merecia consolo.

—E você acredita que pode curar minha ferida fazendo... O que, Vitória? —perguntou sem dar importância, compartilhando seu fôlego, seu calor, a água que caía sobre seu corpo—. Deixando que a viole?

—Quero que me mostre o que ele fez a você.

A água gotejou do nariz de Gabriel na face de Vitória; escorreu-se entre seus corpos e dançou no extremo da verga, arrastando suas lágrimas.

—Sobre qual dos homens quer saber, Vitória?

—Quero saber o que fez o homem que lhe causou tanto dor. —A voz de Vitória formava um eco dentro do biombo de cobre, incitando-o, eletrizando-o—. E depois quero que me ensine o que fez o homem que o impulsionou a suplicar por seu próprio prazer. Quero que me faça suplicar, Gabriel.

Gabriel não tinha suplicado pelo prazer, e sim pela liberação.

E depois quis morrer. Não queria que Vitória fizesse o mesmo, com seus olhos azuis ofegantes.

—Você sabe por onde violentam os homens, Vitória? —murmurou Gabriel insinuante. Seu membro ereto descansava entre os glúteos dela. O peito roçava seus estreitos ombros e suas costas. Sua glande palpitava com cada respiração, com cada pulsado de seu coração. A água os açoitava a ambos. Seria tão fácil matá-la...

—Sim, sei por onde violentam os homens - respondeu Vitória, fazendo-se ouvir por cima do ruído de ducha.

Mas não sabia. Os homens não eram violentados em seus corpos, e sim em suas mentes. Girando o torso, Gabriel esticou o braço para trás e colocou os dedos no frasco de creme que Vitória tinha deixado em cima do móvel que rodeava a banheira. Saíram lubrificados de um espesso creme branco. A água gotejava por seus dedos, dando ao creme um tom nacarado.

Uma parte de si mesmo e, entretanto, alheia a ele. Mas ele não queria estar separado de uma mulher.

—Quer saber o que senti Vitória? —provocou-a. Matando-a. Matando a si mesmo—. Quer saber o que se sente ao copular pelo ânus?

—Sim. —Vitória jogou a cabeça para trás, engolindo água, engolindo seu próprio medo. Suas mãos continuavam apoiadas contra a parede de cobre, um sacrifício voluntário—. Quero saber o que sentiu.

Mas não era o que Gabriel queria. Não queria que uma mulher soubesse o que ele havia sentido. Não queria que ninguém soubesse nunca o que ele havia sentido. Recuou um pouco, Gabriel introduziu sua mão entre os dois corpos. Lubrificou com o creme frio e brilhante sua glande e seu membro. Os glúteos de Vitória acariciavam a mão e os nódulos.

Agarrando seu pênis com firmeza, acariciou-a em círculos com a ponta lubrificada... Deslizando-se, roçando, incitando, cativando.

—É isto o que quer Vitória? —sussurrou. Um prostituto tão por natureza como por aprendizagem.

Vitória ficou tensa, sem estar preparada nem para o prazer nem para a dor. Na noite anterior ele tinha rasgado sua virgindade, uma fina membrana que tinha estirado gradualmente para permitir o acesso de um, dois, três dedos. Não a tinha quebrado, nem com seus dedos nem com seu pênis. Uma prostituta ardilosa repararia o hímen e o venderia outra vez. Mas Vitória não era uma prostituta. Sua virgindade se podia recuperar. Se ele tomasse Vitória agora, jamais poderia reclamar sua inocência. Não curaria a Gabriel; mas ele poderia destrui-la. Gabriel não queria lhe fazer mal. O que ele desejava não o tinha detido no passado... Não tinha impedido a prostituição. O assassinato. Sabia que não o deteria agora. Em círculos, Gabriel pressionou para dentro. E quase desmaiou diante do prazer que percorreu seu testículo. Mas ele não desejava o prazer. Vitória arqueou instintivamente o corpo. Até nisso o aceitava. Ela que nunca tinha conhecido a dor que os homens podiam causar às mulheres, nem o que os homens podiam ocasionar aos homens.

—Assim? —sussurrou Gabriel incitante ao ouvido de Vitória contra sua úmida bochecha. Pressionando, em círculos, cada vez mais forte, obrigando seu corpo a aceitar o seu, como lhe tinham ensinado a fazer fazia vinte e sete anos - Isto é o que quer mademoiselle Childers?

—Sim. —Vitória apertou as pálpebras e virou a cabeça para os lábios dele, procurando consolo no homem a quem tinha convidado a violá-la. Para que ele deixasse de sofrer. Mas ele nunca o faria.

—Me diga Vitória, é isto o que quer? —murmurou, roçando com o peito suas costas enquanto as mãos dela, apoiadas contra o biombo de cobre, tentavam conter seu prazer e sua dor. Mas não conseguiria. Por muito perito que tivesse sido Gabriel na prostituição, tampouco ele era capaz de contê-los—. É só pedir que pare e não continuarei adiante. Diga-me Vitória. Diga-me pra parar.

Ou morreria. E a levaria com ele. Vitória dirigiu a ponta inclinada de seu pênis para seu próprio corpo. E ofegou sua sentença de morte.

—Não pare!

Ecos do passado ressoaram na mente de Gabriel

Pare... Pare... Pare...

Seguidos por N'arrête ps... N'arrête ps... N'arrête ps...

Não pare... Não pare... Não pare...

Os músculos de Gabriel se esticaram em suas coxas e suas nádegas. Deslizou seu braço esquerdo para baixo roçando o braço de Vitória, suave, magro, tão fácil de machucar ou quebrar, rodeou a cintura e lhe agarrou o quadril. Não parou. Vitória fechou os punhos. Absorveu seu membro, tentando freneticamente de adaptar-se à invasão daquele corpo estranho. Sua dor vibrou no vapor quente. Gabriel afundou seu rosto no cabelo molhado de Vitória. Ele não queria que aquilo acontecesse. A água caía implacável sobre eles, um homem e uma mulher unidos por seu medo e seu desejo.

—Me peça pra parar, Vitória - sussurrou Gabriel, afogando-se na água que caía e o refúgio firme do corpo dela, o passado que tinha sobrevivido e o futuro que lhe tinham negado.

—Não pare! —ofegou ela.

—Me diga que pare, Vitória - repetiu, retirando-se até que só ficou dentro dela sua glande.

Os músculos de Vitória se contraíram, tentando detê-lo e de atraí-lo de novo para seu interior.

O prazer. A dor. Gabriel não queria que Vitória visse a escuridão quando alcançasse o clímax.

Voir os anges. O petit morte. Desejava que Vitória visse anjos, não a morte.

—Não pare! —gritou ela, um clamor de morte.

Ele a penetrou uns centímetros mais.

—Me diga que pare.

—Já o noto dentro de mim. —Vitória inalou o vapor quente, enquanto lhe entrava água na boca—. Ai Deus!

Gabriel podia sentir Vitória com a mesma intensidade que ela sentia ele. Sua carne escorregadia, dentro e fora. O prazer acentuando-se, crescendo, procurando uma saída. Tinha que detê-lo. Arremeteu com força. A pélvis de Vitória chocou duramente com a parede de cobre.

—Meu deus! —Aquele grito estalou em sua garganta.

Calor. Gabriel não recordava que uma mulher tivesse estado tão quente. Podia sentir a tenra umidade de sua pele e o escorregadio calor de seu corpo concentrado em seu testículo.

—Me diga que pare Vitória - repetiu com voz rouca, deslizando-se, caindo no passado.

—Você pediu que parasse? —ofegou ela, tomando em seu corpo o menino francês que tinha querido ser um anjo e o prostituto que tinha suplicado que o liberassem de seu intenso desejo.

—Sim! —gritou Gabriel com os dentes apertados. - E não pôde parar. Saiu de Vitória. – Parar o prazer dele, não meu —. Disse que parasse.

Vitória mordeu o lábio inferior; tinha uns bonitos lábios, o inferior só ligeiramente mais grosso que o superior. A água escorregava por sua têmpora.

—Mas ele não parou.

Não parou. Não o fez até que o segundo homem disse que se parasse.

E então tinha começado o pesadelo.

—Me mande parar - disse Gabriel.

Implorando. Mas os anjos não imploravam. Vitória contraiu as nádegas.

—Não.

Durante um segundo, Gabriel foi incapaz de respirar pela dor e o prazer.

—Então me rogue que não pare - exclamou implacável.

—Me faça suplicar, Gabriel - desafiou ela, uma parte dele.

Mas ele não queria que ela formasse parte dele.

—Fazê-la suplicar... Como, Vitória? —perguntou Gabriel, com a voz perigosamente suave, o corpo tremendo de necessidade, dentro, fora—. Quer que a faça rogar para que pare?

Dor.

—Sim.

—Ou quer que a faça rogar para que não pare?

Prazer.

—Sim—repetiu ela, ofegando, tremendo.

Disposta a receber tanto sua dor como seu prazer. Mas Gabriel não queria dar a Vitória sua dor. Queria acreditar, embora só por um instante, que tinha encontrado uma alma, e que seu nome era Vitória Childers. Uma mulher que tinha visto seu rosto quando tinha estalado de prazer, o rosto de um homem que tinha renunciado a si mesmo. Gabriel agarrou o quadril esquerdo de Vitória. Seus dedos abrangeram sua pélvis. Os músculos se esticaram. Queria investir em Vitória até que ela gritasse que parasse. E depois queria investi-la até que implorasse que não parasse. Queria que Vitória levasse a verdade e devolvesse ao menino sem nome que tinha pensado que podia ser um anjo.

—Prenderam-me. —Sua voz se misturou com o vapor que os envolvia e a água que os açoitava—. Não me podia mover. Não podia lutar.

Só o que podia fazer foi agüentar até que já não pôde mais. Gabriel retirou lentamente seu membro. No interior de Vitória só ficou agasalhado o batimento de seu coração. A verdade não se podia negar.

—Não usou lubrificante - disse asperamente.

Os dois homens o haviam possuído só porque queriam machucar. Porque tinha amado um jovem de cabelo negro e olhos de cor violeta. Um jovem que tinha o ensinado a ler e a escrever. Alguém a quem Gabriel tinha acompanhado na prostituição para não afastar-se dele. Flexionou os quadris. Vitória tomou. Como ele tinha sido tomado. A água caía implacável sobre suas cabeças.

—Existe uma palavra. —A água deslizou pelo rosto de Gabriel—. Algolagnia. É quando o prazer não se pode diferenciar da dor. Quer saber como a dor pode se transformar em prazer, Vitória? —sussurrou.

Morrendo por dentro. Morrendo por fora. Seu pênis palpitando. O passado sobrepondo-se ao presente.

—Sim. —Vitória tomou uma baforada de ar, de água. Seu membro—. Sim, quero.

Gabriel não tinha rogado até que a dor se transformou em prazer. Mas Vitória não entenderia isso se não o experimentasse ela mesma. De repente, ele quis que ela compreendesse. Queria que ela fosse parte dele. Que ela perdoasse o que ele nunca poderia perdoar. Agarrando-lhe o quadril direito, Gabriel deslizou a mão esquerda para frente, os dedos úmidos e escorregadios pelo creme e a água, procurando... Encontrando. Seu clitóris palpitou entre o polegar e o indicador dele, a carne mais sensível de uma mulher, mais suave que a seda. Estava dura... Tão dura como o membro de Gabriel naquele momento. Com a mesma dureza que tinha ele em seu interior desde aquele tempo. Vitória se sacudiu convulsivamente, tremeu, ficou quieta, dando-se conta de como um homem podia fazer com que uma violação fosse dolorosa enquanto que outro a fazia prazerosa.

—Gabriel - sussurrou com a água escorregando por sua face.

Na noite anterior ela tinha chegado dez vezes ao orgasmo para ele. Em todas elas, tinha gritado de prazer, e as contrações internas de seu portail lhe tinham oprimido o coração.

—Gritaria por um anjo, Vitória? —murmurou.

—Sim - afirmou ela com voz entrecortada e seu coração pulsando com força dentro de seu peito. Ou talvez eram os batimentos do coração dele os que estremeciam seu corpo. A água que sulcava as faces de Vitória se transformou em salgada. Lágrimas por um anjo. Gabriel penetrou delicadamente a Vitória; ao mesmo tempo massageou com força seu inchado clitóris, como se fosse um pênis em miniatura. Palpitava. Como ele tinha palpitado. Envolvendo-lhe a cintura com o braço direito, Gabriel sustentou a Vitória contra ele enquanto friccionava até que tanto a carne dela como a dele se incharam mais do que podiam suportar. Até que a necessidade do orgasmo foi maior que a necessidade de respirar. Então a soltou, contendo-se na beira do êxtase. Seu membro deslizando-se dentro do corpo dela, contra o corpo dela. Não havia nada que ela pudesse fazer para alcançar o clímax.

—Você rogaria a um anjo, Vitória? —murmurou Gabriel, acariciando com os dedos delicadamente seu clitóris inchado que clamava por ser tocado, ao tempo que a enchia tão profundamente que roçou a essência da mulher que era Vitória Childers.

Com dor. Com prazer. Uma mulher cujo único pecado era desejar um anjo.

—Me suplique Vitória - ordenou suavemente.

Da mesma forma que Gabriel tinha rogado no final. O temor contorcionou subitamente o rosto úmido de Vitória.

Compreendeu que seu corpo era um objeto ao qual se podia obrigar a sentir prazer, desejasse ou não. Nunca mais poderia acreditar que ela o controlava.

—Não! —ofegou.

Muito tarde. Sua dor e seu prazer envolveram os testículos de Gabriel. Procurou a liberação que não lhe tinha permitido, inclusive enquanto lutava por recuperar o controle de seu corpo. Tampouco o permitiu. Em qualquer instante suplicaria, da mesma forma que o tinha feito Gabriel. E nunca mais voltaria a ver a luz. Apesar do que lhe havia dito Gabriel não queria que Vitória rogasse. Não queria que vivesse com o conhecimento de que seu corpo podia transformar-se facilmente em uma arma. Não queria que ela visse a escuridão quando ele a tocava. O segundo homem lhe tinha dado uma mulher. Se Vitória morresse por causa de seu desejo de tocar a um anjo, ele pelo menos podia lhe proporcionar um prazer pelo qual valesse a pena morrer. Pouco a pouco, girando, deslizando o pênis internamente, Gabriel a fez dar a volta com cuidado de modo que ficasse olhando para a parede lateral da ducha.

—Abra o aspersor para o fígado - ordenou.

Não tinha que explicar por que. Vitória se inclinou para frente. A dor e o prazer que provocou em Gabriel seu movimento cortaram a respiração. Não podia detê-los. Ele notou cada movimento do braço de Vitória, como se em vez do grifo estivesse abrindo seu pênis, escorregadio, deslizando-se dentro do calor apertado do corpo dela uns centímetros delirantes fora, uns centímetros dentro. Um jorro de água quente bateu em seu pé.

—Dirija o jorro para cima - ordenou Gabriel com voz rouca e entrecortada, agarrando-se à cintura de Vitória e a sua própria prudência. Não reconheceu sua voz. Reconheceria Vitória? Ela mudou torpemente à direção do jorro. Com suavidade, Gabriel a apertou contra ele, deslizando seu pênis, enquanto os músculos internos dela o acariciavam, beliscavam-no. Eram dois corpos em uníssono, até que a pélvis de Vitória pressionou o jorro e a água orvalhou seu inchado clitóris.

—Ai Deus... Gabriel!

Surpresa, prazer, e depois orgasmo iminente se misturavam no grito de Vitória. Não tinha havido gozo no êxtase de Gabriel.

Fechando fortemente as pálpebras e voltando a cara para a água, Gabriel agarrou ambos os quadris de Vitória e empurrou tão profundamente em seu interior que as nádegas dela se pegaram a sua virilha. A morte iminente desapareceu de sua mente, e também a lembranças dolorosas, e até o segundo homem. Só ficaram dois corpos fundidos em um só. O sobressalto de sua penetração foi eclipsado pela força do orgasmo de Vitória. Seus músculos apertaram Gabriel até o ponto de lhe fazer chiar os dentes, rodeado de água quente e carne escorregadia. A suavidade de uma mulher. A necessidade de um homem. Gabriel penetrou Vitória uma e outra vez, e a segurou de modo que ela pudesse obter o máximo prazer tanto de sua penetração como do jorro de água. Sentiu o segundo orgasmo da mulher antes que ela o notasse.

—Gabriel, por favor... Não! —chorou Vitória.

Gabriel tinha chorado, um homem de vinte e seis anos que nunca antes tinha chorado. Por favor. Pare.

Não tinha parado o segundo homem. Afundou o rosto na nuca de Vitória, procurando consolo na úmida textura de seu cabelo e de sua pele; Vitória apoiou sua cabeça contra seu ombro.

—Ai... Deus... Meu! —ofegou com prazer agônico—. Gabriel. Gabriel. Por favor... Não... Pare!

A verdade não se podia negar.

—Não o pude parar—disse Gabriel, deslizando seus lábios sobre o cabelo de Vitória, sobre seu pescoço, deslizando seu membro dentro de seu corpo. Uma mancha vermelha manchou a escuridão depois das pálpebras de Gabriel. Tinha rasgado o pescoço do cúmplice. Seu sangue tinha fluido quente e escorregadio. Como a água da ducha. Como o corpo de Vitória. Como o sexo.

—Não o pude parar - repetiu.

E moveu seus quadris para frente e para trás, com prazer e dor. Incapaz de deter o fluxo de lembranças, De cabelo negro. De olhos violetas. De amor. De ódio. A mão esquerda de Gabriel procurou cegamente alívio, subindo pela tenra cintura molhada de Vitória, roçando as costelas salientes, curvando-se ao redor de sua carne suave e redonda, fechando os dedos convulsivamente sobre seu seio esquerdo. Notava o coração dela pulsando contra seus dedos; seu mamilo se afundou na palma de sua mão, uma paixão que era bálsamo e açoite de uma vez. Ela podia ser destruída tão facilmente pelo segundo homem... Por Gabriel. Pressionou os lábios atrás da orelha de Vitória. Não silenciou as palavras que surgiram em seu peito e explodiram em sua boca.

—Não... Pude... Pará-lo.

Nem a dor. Nem o prazer. Nem a perda. O amor não era inocente. Não importava o quanto tinha desejado Gabriel que fosse. O segundo homem tinha ensinado isso. Um grito surdo saiu da garganta de Vitória, vibrando contra os lábios de Gabriel. De repente ela arqueou. Parecia como se seu corpo se rasgava, agarrando, sugando o membro de Gabriel até que suas pernas se dobraram com a verdade e começou a deslizar, a cair... Seus joelhos impactaram contra o duro cobre. Vitória caiu com Gabriel, tragando em seu corpo a liberação de um anjo. Ele não tinha podido detê-lo.

 

CAPITULO 20

 

Um jorro de água açoitou a face de Vitória e depois se extinguiu o clímax que a tinha feito cair de joelhos, a água que a tinha levado a orgasmo, o batimento do coração interno do homem que a tinha deixado ver seu mundo e tinha mostrado a dor e o prazer do sexo. Não... Pude... Detê-lo, soava como um eco dentro do biombo de cobre. O grito de um anjo. O cobre era duro; Vitória sentiu dor nos joelhos. Sacudidas elétricas continuavam percorrendo seu interior, sua pélvis e seus seios. Cinco dedos queimavam o ventre; seu coração pulsava contra a palma de uma mão. A mão de Gabriel. Sua garganta se contraiu, recordando seu prazer, a dor dele. Acorrentaram-me. Não podia me mover. Não podia lutar. Em seu desejo de liberar um anjo, Vitória tinha privado Gabriel da opção que o segundo homem o tinha condenado. Ela o tinha forçado a ter uma relação carnal. Uma desculpa aflorou em seus lábios.

—Acabou a água - murmurou em vez da desculpa.

Era muito tarde para se desculpar.

—Sim - afirmou Gabriel em tom apagado; sua voz foi uma carícia fugaz contra a nuca e o ombro dela.

Vitória olhou fixamente à mulher de pele acobreada aprisionada dentro da ducha. Cinco dedos de cobre apertavam o ventre; seu seio esquerdo estava coberto de forma protetora por uma mão de cobre. Um cabelo loiro acobreado se misturava com um cabelo enegrecido pela água.

As lágrimas brotaram dos olhos de Vitória. Tinha que saber.

—O que aconteceu quando terminaram com você?    

—Abandonaram-me.

Mas não para morrer. As palavras de Gabriel saíam amortecidas pelo cabelo e a pele de Vitória; mas não sua implicação. Não queriam que Gabriel morresse. Mas ele sim quis morrer.

—Quem o liberou? —perguntou ela com voz entrecortada, sabendo de antemão a resposta.

—Michael.

O escolhido. Um jovem com olhos ofegantes que não tinha querido mendigar.

—Ele não é francês. —Gotas de água rodaram por sua face—. Por que estava em Calais?

—Viajou como vagabundo em um navio que zarpou de Dover quando tínhamos treze anos. —A voz de Gabriel parecia longínqua; seus lábios se moveram contra a nuca de Vitória. O pêlo que cobria seu peito e o ventre picava as costas; o pêlo hirsuto que cobria a virilha fazia cócegas nas nádegas—. O vi roubar um pão através da janela de uma padaria; era evidente que nunca tinha roubado antes. Bati no vidro para distrair o padeiro de modo que não o apanhasse; depois o segui. Michael compartilhou o pão comigo em uma estrada rumo a Paris. E em Paris ambos tinham sido instruídos para se prostituir. Vitória adivinhou o que implicavam as palavras de Gabriel, embora não fossem pronunciadas. Se Michael não sabia roubar, então não tinha nascido na rua. Michael representava tudo o que Gabriel não era, um menino que não tinha crescido nos baixos recursos e que tampouco haviam dito que era uma escória. Gabriel tinha adotado o nome de um anjo para ser digno da amizade de Michael. Transcorreram vários segundos eternos; o vapor se dispersou, transformando-se em tênues brumas. As gotas de água deslizavam sobre o homem e a mulher de cobre dentro daquela gruta. Doía-lhe as nádegas por Gabriel, o homem; doía-lhe o coração pelo menino que tinha querido ser um anjo. O fôlego quente acariciou a orelha esquerda de Vitória.

—Implorei a Michael que me deixasse morrer.

Mas Michael não o tinha feito. As palavras de Gabriel abrasaram a pele de Vitória com a verdade: Michael amava Gabriel, da mesma forma que Gabriel amava Michael. Não merecia sofrer.

—Você matou o primeiro homem. —A ira ressoou repentinamente dentro da gruta de cobre—. Por que não matou o outro?

Seis meses antes Vitória se sentiria horrorizada por sua sede de sangue. Então não sabia como o prazer podia se transformar em uma arma.

—Não pude encontrá-lo.

O coração de Vitória palpitou contra a mão de Gabriel. Um homem tinha destroçado Gabriel e...Tentou virar a cabeça, para olha-lo, mas seu cabelo estava preso entre os dois a impedindo de mover-se.

—Não sabia seu nome?

—Não.

—E agora?

—Ainda não sei como se chama.

Não obstante, Gabriel sabia algo sobre aquele homem que tinha feito tanto dano. Mas não queria dizer a Vitória. Algo que havia interposto entre o amor de dois anjos. Doíam os joelhos de Vitória; o calor do corpo de Gabriel a tinha presa. Queria tocá-lo; dava-lhe medo. Temia causar mais dor.

—Quanto tempo faz que é proprietário deste local? —perguntou, querendo distraí-lo, querendo abraçá-lo.

Querendo dar o consolo que ele ainda não podia receber.

Gabriel se moveu. Sentou-se sobre seus calcanhares, atraindo com ele Vitória para que se acomodasse sobre suas coxas duras em vez de ficar de joelhos sobre o duro chão de cobre. Uma carne igualmente dura segurava suas nádegas. O pulso de Vitória se acelerou. A respiração de Gabriel se fez mais profunda.

—Quatorze anos.

Não toquei em uma mulher há quatorze anos, oito meses, duas semanas e seis dias, havia dito na noite em que ela tinha leiloado sua virgindade.

—Construiu sua primeira casa - Vitória tentava discernir a verdade— com o fim de atrair esse homem?

—Sim.

Mas não tinha conseguido. E Gabriel tinha queimado sua casa. Só para reconstruí-la.

—Por que retornou depois de tantos anos?

Gabriel soltou o seio de Vitória.

—Para se vingar.

—Mas foi ele quem fez mal a você.

Gabriel soltou a cintura de Vitória.

—Por dinheiro.

A chantagem é o preço do pecado...

—Ele o chantageou?

Gabriel levantou Vitória de seus joelhos.

—Por esporte.

Imediatamente, a mulher de pele acobreada dentro da gruta ficou livre e uma vez mais Vitória pôde sentir a fria banheira de metal, a umidade de sua pele, o desconforto ardente aonde Gabriel a tinha penetrado, a sensação escorregadia do creme entre seus glúteos. A solidão extrema do homem que tinha a suas costas.

Pôde notar como Gabriel ficava em pé, o movimento do ar, o leve rangido de um osso. Gabriel saiu da banheira. Vitória cravou o olhar em uma coxa musculosa e firme, um testículo coberto de pêlo, umas nádegas de mármore pálido. Em silêncio, Gabriel caminhou sobre o mármore com nervuras azuis e parou em frente ao armário de madeira do lavabo. O vapor empanava o espelho; só o que ela podia ver de Gabriel eram seus fortes ombros molhados pela água, suas costas magra, seus quadris estreitos, seus glúteos firmes, umas pernas longas e o tênue reflexo de sua cabeça inclinada. A água salpicou; o vapor ascendeu. Contraindo os glúteos, Gabriel aproximou os quadris do lavabo. Vitória não tinha que olhar para saber que estava lavando seus genitais. As nádegas dela ardiam e palpitavam. A dor dela. A dor dele. Gabriel agarrou a toalhinha de mãos do toalheiro de madeira e a meteu no lavabo. Apoiando as mãos sobre a borda da madeira que rodeava a banheira de cobre, Vitória se levantou torpemente. Gabriel voltou, com a toalhinha na mão. Seu rosto estava pálido, remoto. Afastado dela, em vez de formar parte dela.

—Nada mudou, Vitória.

Vitória não ia chorar, nem por ela nem por um anjo caído. Ao sair da banheira, escorregou sobre o mármore. Tentou agarrar o painel de madeira para frear sua queda. O cabelo frio e molhado bateu na face.

—O homem tentará matá-la - anunciou Gabriel sem emoção na voz.

Imediatamente, o calor da humilhação esfriou. A voz de Gabriel era mais próxima. Vitória olhou para cima.

Ele estava de pé sobre ela, com seu membro ereto. Uma única gota de umidade brilhava na ponta bulbosa de seu pênis. Ele tinha sido uma parte dela... De frente, por detrás. Queria que ele continuasse sendo parte dela.

Vitória se endireitou. O clitóris que ele tinha esfregado suavemente inchou.

—Também tentará matá-lo—respondeu, mais pendente da palpitação entre seus glúteos e a umidade que se acumulava entre suas coxas que de respirar. Gabriel não evitou a verdade.

—Ele tentará me machucar através de você.

O coração de Vitória deixou de pulsar um instante. Quem era aquele homem que perseguia Gabriel, ao mesmo tempo que Gabriel perseguia a ele?

—Sofreria... Se ele me machucasse?

—Sim.

O peito dela se contraiu.

—Por quê?

—Porque a desejo, Vitória. —Os olhos de Vitória arderam—. Quero que me toque. —Sua respiração parou—. Quero que me ame. —Seu coração parou—. Sim, sofreria se a machucasse. — Uma luz prateada dançou nas sombras cinza que formavam parte do passado de Gabriel—. Seria terrível vê-la morrer porque chegou a mim, e não só a meu sexo. Comoveu-me com sua paixão e sua honestidade. Disse que não queria sentir desejo; tampouco eu. Mas sim a desejo e a necessito para que compartilhe esse desejo comigo. Isso é o que me ensinou ele ao enviá-la aqui. Verá você em meus olhos e cheirará seu perfume em minha pele. E não poupará esforços para matá-la. Simplesmente porque chegou a meu interior. Como tinha matado Dolly, a prostituta, pelo simples feito de ter conduzido a Vitória à Casa de Gabriel. A soberba de Vitória a inquietava. Se me obrigar a ficar, senhor, o seduzirei, tinha ameaçado. Então pagará as conseqüências, mademoiselle. E eu também. Gabriel era consciente do perigo que entranhava seu desejo. Tinha vivido quase quinze anos sabendo como era o segundo homem.

—Alguma vez amou outra pessoa que não fosse Michael, Gabriel?

—Não.

Amava-o como um irmão. O peito de Vitória se contraiu até o ponto de dificultar a respiração.

—Não me arrependo de tê-lo tocado.

Gabriel se aproximou dela, com sua pele de alabastro tremendamente clara e o cabelo loiro escurecido pela água. Seu membro endurecido empurrou o ventre de Vitória.

—Se arrependerá, Vitória.

Ela suspirou com força.

—Que busca em uma mulher, Gabriel?

Seu fôlego morno roçou sua face.

—Você sente compaixão por um jovem de treze anos que queria ser um anjo.

Não era uma pergunta.

Vitória não queria mentir.  

—Sim.

—E quando me olho - uma ponta áspera de seu dedo perfilou seu lábio inferior—, vê o rosto de um anjo.

Os lábios de Vitória tremeram.

—O que você vê quando me olha, Gabriel?

Às escuras pestanas velaram os olhos dele. Lentamente, riscou um atalho de fogo ascendente sobre seu rosto, deslizando seus dedos pela face de Vitória.

—Disse que meu nome não era Gabriel.

Vitória umedeceu os lábios, percebendo o fôlego dele, o cheiro do sabão em seu dedo, o prazer que lhe tinha dado.

—Disse-me que chamou a si mesmo de Gabriel, como o anjo, e, portanto, seu nome é Gabriel.

As pestanas de Gabriel se elevaram lentamente.

—E você ainda quer me tocar.

Vitória não podia mentir.

—Sim.

—Chorei Vitória.

Choraria por um anjo, Vitória? As lágrimas afloraram nos olhos dela; uma lágrima solitária saiu do membro duro que lhe oprimia a parte inferior do ventre.

—Não é pecado chorar, Gabriel.

Não é pecado viver. Não é pecado amar.

—Não, não é. —Vitória sentiu que a frieza que percorria sua face esquerda desaparecia diante o roçar da pele quente de Gabriel, que acariciava seu rosto como se fosse de um cristal precioso—. Chorar é natural. O perigo, Victoire, aparece quando não há lágrimas.

Victoire. Vitória em francês. Vitória permaneceu completamente imóvel com a mão de Gabriel em seu rosto, respirando seu fôlego, inalando seu cheiro.

—Enviei um homem ao Clube das Cem Guineas - murmurou, como se aquilo tivesse algum significado,

Não tinha.

—O que é o Clube das Cem Guineas?

O fôlego quente lhe abrasava os lábios.

—É um clube de homens.

—Um clube aonde se reúne homens?

Em Londres abundavam os clubes masculinos.

—Trata-se de um lugar onde os homens assumem a personalidade de mulher - explicou Gabriel, esperando que ela se sobressaltasse—. Alguns se vestem como mulheres.

Vitória tinha visto as mãos amputadas de uma mulher entre as luvas de couro. Não ia se acovardar ante aquela revelação.

—Por que enviou um homem a esse clube?

Gabriel balançou suavemente o rosto de Vitória entre suas mãos.

—Para que se prostituyera por mim.

Prostituir-se... Por Gabriel?

—Certamente não teria que fazer semelhante coisa se não quisesse - respondeu Vitória duvidosa, com o coração pulsando desbocado.

—Não queria. —O fôlego de Gabriel lhe encheu o nariz e a boca—. E agora me odeia.

E, entretanto Gabriel o tinha mandado ao clube, sabendo que ia odiá-lo. Vitória se esforçou por manter as mãos ao lado e não tocar o corpo que tinha tão tentadoramente perto.

Era perigoso tocar um anjo. Gabriel lutaria contra o amor mesmo que o desejasse.

—Por que se... Prostituiu... Se não o desejava?

O membro de Gabriel deslizou suavemente sobre o ventre de Vitória.

—Por lealdade.

—Você pediu, embora soubesse que acabaria o odiando por isso - respirou ela contra sua boca.

A toalhinha era ligeiramente mais fresca que a mão de Gabriel. Mais áspera. Mais abrasiva.

Por quê? Por que tinha posto deliberadamente Gabriel alguém em uma situação que o degradava? Sendo plenamente consciente do dano emocional que causaria? O fôlego do Gabriel obturou os pulmões de Vitória; sua glande obstruía seu umbigo.

—O segundo homem não estava sozinho quando deu lances por você.

O estômago de Vitória deu um tombo. O segundo homem matava todos os que entravam em contato com ele. Se tinha estado com alguém essa noite, talvez as mãos não fossem as de Dolly...

—O homem que o acompanhava ia vestido de mulher?

O fôlego quente queimava seus lábios; o membro igualmente quente abrasava o ventre. Um suave fluido deslizou pelo interior de suas coxas; outro pingo de fluido fluiu pela parte inferior de seu abdômen.

—Não.

—Mas era membro do Clube das Cem Guineas.

—Sim.

Vitória se cravou as unhas nas palmas de suas mãos.

—E agora está morto.

—Sim—respondeu Gabriel imperturbável. Como se a morte fosse algo cotidiano.

Nas ruas, a morte era algo cotidiano. As mulheres às que ele se referiu antes, as que pediam esmola aos mendigos, sentavam-se nas escadas dos albergues para pobres, muito fracas para caminhar, esperando a que a morte as liberasse da pobreza. Os batimentos do coração de Gabriel palpitavam contra suas faces e seu ventre, seguindo o ritmo dos segundos que transcorriam lentamente à medida que ela ia compreendendo.

—Esse homem que o matará —nos matará— se faz passar por uma mulher? —perguntou Vitória, envolta no calor do corpo e o fôlego do Gabriel.

—Às vezes.

As imagens das mulheres que Vitória tinha visto durante o leilão cruzaram por sua mente. Não tinha visto nenhuma que parecesse um homem vestido com roupas femininas. As ruas de Londres eram mais simples que os clubes de Londres. Nas ruas, os homens brigavam contra outros homens para causar a mesma dor que lhes tinham ocasionado. Não existia lógica nem razão no homem que Gabriel descrevia. Não tinha sentido o frio e o calor que palpitava de forma alterna dentro de suas veias. Medo. Desejo. Não deveriam ir da mão.

—Você me disse que ele me faria mal... Sexualmente - disse Vitória, esforçando-se por entender o que Gabriel já sabia—. Então não prefere os homens.

Gabriel a beijou suavemente na pálpebra esquerda, um muito leve roçar de seus lábios.

—É o poder do sexo que desfruta não o ato sexual.

Vitória piscou, batendo as asas com suas pestanas a pele sedosa e tenra, úmida pela carícia da língua do Gabriel.

—Está dizendo que é alheio ao ato de liberação sexual.

—Sim.

Igual a Gabriel. Ela evitou a comparação.

—E quando mata - perguntou—, desfruta com a dor que provoca ou com o poder de causá-lo?

Gabriel beijou sua pálpebra direita, provando suavemente suas pestanas, um roçar úmido de calor.

—O poder.

—Então, ao enviar alguém ao Clube das Cem Guineas - raciocinou Vitória com aparente tranqüilidade, embora seu coração corresse desbocado e seu pulso acelerado—, esperava encontrar uma pista que conduzisse a esse homem que... Nos matará.

O nos ressoou entre eles como um eco.

—Isso foi o que planejei - assentiu Gabriel, uma rajada de fôlego quente.

—Enviou um dos homens que me deixou entrar em sua casa. —Vitória compreendeu em fim. Suas pestanas batiam as asas contra os lábios dele, mas isso não deteve sua acusação—. O mandou ali para castigá-lo.

—Mandei-o porquê ele foi membro do clube. —Os lábios de Gabriel se separaram de suas pestanas; olhou Vitória nos olhos, sustentando firmemente o rosto, forçando-a a encarar a verdade—. Você me perguntou o que procurava eu em uma mulher. Direi-lhe o que quero Vitória Childers.

Mas, de repente, Vitória já não se sentiu com forças para sabê-lo.

—Quero uma mulher que me toque, apesar de saber quem sou - disse, expulsando ar quente, o olhar prateado implacável—. Sou um mendigo, um ladrão, um prostituto e um assassino. Faria tudo para encontrar o segundo homem. Quero que você me deseje, sabendo o que sou. Quero que olhe nos olhos quando me aceitar no interior de seu corpo, e que saiba quem está aceitando: um mendigo, um ladrão, um prostituto, um assassino. Acabo de dizer que queria que me amasse, mas não posso prometer que consiga amá-la. E tampouco posso prometer que seja capaz de salvá-la, ou assegurar que não morrerá. Embora possa garantir que eu daria minha vida para salvar a sua, e que satisfarei todos seus desejos. Não há um só ato sexual que eu não tenha realizado, e que não faria para agradá-la. Sentiu-se excitada pelo que viu através dos espelhos transparentes. Não a compartilharei com outro homem, mas posso mostrar o que se sente ao estar com dois homens. Só peço em troca é que me deixe tocá-la e cuidar de você. E que compartilhe seu prazer comigo. Quero ver a luz quando alcançar o orgasmo, Vitória. É a única luz que poderei ver.

Não posso prometer que consiga amá-la... Nem que seja capaz de salvá-la, ou assegurar que não morrerá.

Não a compartilharei... Vitória não podia respirar pelo fôlego de Gabriel; não podia sentir pelo calor de Gabriel; estava imobilizada por seu membro. Ele tinha sido um prostituto de êxito porque quando era menino tinha aprendido a distanciar da fome, do frio, da entrega emocional. Mas um homem o havia tocado.

Precisaria de uma mulher corajosa para amar um homem como monsieur Gabriel, havia dito madame René.

Mas Vitória não era corajosa. Transformou-se em professora em vez de revelar que seu pai era um misógino que ocultava seu ódio das mulheres atrás do virtuosismo moral. Tinha cuidado dos filhos de outras mulheres em vez de casar e descobrir que era uma puta que ansiava luxuriosamente o amor de um homem por cima do fruto de sua semente. Vitória tinha vindo à Casa de Gabriel para sobreviver, não para morrer. Não tinha vindo para aprender a aceitar a si mesma e aceitar um anjo caído. Mas o tinha feito. Não era corajosa.

—Não preciso que cuide de mim - conseguiu dizer.

Vitória não queria depender de um homem. As mãos de Gabriel a apertaram, seu membro endurecido pressionou. Sentiu a toalhinha de banho fria e áspera.

—Não sobreviveria nas ruas, Vitória.

—Você o fez - disse ela sem titubear.

O olhar prateado não a deixaria ignorar a verdade.

—Eu nasci na rua, mas você nasceu sendo uma dama.

O passado de Vitória se interpôs entre eles, a ponta de seu membro palpitava contra seu ventre, recordando a fraqueza de uma mulher.

—Minha mãe fugiu com outro homem.

—Sua mãe deixou seu pai, o mesmo fez você - afirmou Gabriel com simplicidade—. E forçou seu irmão a partir.

—Não entendo o que quer de mim.

—Já disse o que quero de você.

Queria que ela o aceitasse em sua totalidade. Mendigo. Ladrão. Prostituto. Assassino. Só o que pedia em troca era que ela compartilhasse seu prazer. Vitória umedeceu os lábios, notando a pele rachada.

—Está me pedindo que... Viva em sua casa.

—Sim—afirmou ele sem rodeios, os olhos prateados vigilantes.

—Sempre e enquanto sobrevivermos.

—Sim.

Mas durante quanto tempo? Quanto tempo viveria Gabriel? Quanto tempo viveria ela? A realidade se impôs cruamente.

—Isso não é necessário - replicou ela com frieza de repente dando-se conta dolorosamente de seus ossos muito salientes, sua pele tensa e seus seios inchados—. Entreguei minha virgindade voluntariamente.

—Não a possuí porque era virgem.

Que difícil era admitir a verdade.

—Excitou-se porque eu me exibi frente a você. Não haveria se sentido tentado se eu não tivesse desfilado diante de você... Nua. Ou se não tivesse me insinuado diante do espelho transparente.

—Todas as noites estou rodeado de mulheres que fazem algo mais que exibir sua nudez, Vitória.

A incerteza corroia a Vitória.

—Mas isto é diferente...

—Sim. —Gabriel não soltava seu rosto, olhando-a fixamente—. É.

Vitória não afastou o olhar dos olhos severos de Gabriel.

—Lamenta ter dado lances por mim?

As palpitações que açoitavam seus flancos, sua vagina e seu ventre ressoaram em seus ouvidos, à espera de sua resposta.

—Não.

Vitória leu a verdade nos olhos de Gabriel. Olhos bonitos.

—Não vi luz quando tive o orgasmo na ducha, Gabriel.

Dor. Vitória tinha feito mal a um anjo. O vapor pesava sobre o cabelo de Gabriel, escurecido pela água.

—O que viu?

Vitória olhou nos olhos prateados de Gabriel e seu rosto refletido na ducha, transformado em cobre em vez de alabastro.

—Vi você.

Tinha visto sua dor. Tinha visto seu prazer. As lembranças se refletiram nos olhos de Gabriel: os movimentos circulares de seu membro, o florescimento da carne dela. O grito de seu prazer. Os orgasmos intermináveis que tinha dado na noite anterior, e os que daria essa noite. Mas na noite anterior ela não era a mesma que agora, nem sabia tantas coisas. Nenhum homem quis cuidar dela jamais. As palavras se amontoaram na garganta de Vitória.

—Tenho o cabelo molhado.

Gabriel oprimiu ligeiramente seu rosto com suas mãos.

—Eu o secarei.

Lágrimas quentes afloraram a seus olhos.

—Está embaraçados.

—Eu o pentearei.

O desejo estremeceu as coxas de Vitória; um leve palpitar entre seus glúteos recordou o quão intimamente aquele homem conhecia seus desejos.

—Ontem à noite era virgem.

Vitória engoliu seco. Por que havia dito isso? O conhecimento carnal brilhou no olhar dele.

—Já sei.

—Mas não sangrei.

A escuridão afastou a luz prateada dentro de seus olhos.

—Eu não quis que o fizesse.

Vitória recordou a glande bulboso deslizando dentro dela, centímetro a centímetro, orgasmo atrás de orgasmo... O calor cada vez mais forte que a dominava era impossível de conter.

—Viu luz quando eu tive meu primeiro orgasmo?

—Sim.

—Mas só colocou três dedos em meu interior.

E não os cinco que tinha introduzido dentro da mulher da qual tinha querido formar parte.

O calor no olhar do Gabriel lhe cortou a respiração.

—Não está preparada para esse tipo de penetração.

—Mas estarei... Algum dia? —perguntou vacilante

Se ele sobreviesse. Se ela sobreviesse. Se ele continuasse a desejando quando o perigo deixasse de ser um afrodisíaco.

—Um dia, Vitória, introduzirei cinco dedos. —O rosto de Gabriel tinha uma dureza marmórea—. Um dia a tocarei tão profundamente e a encherei de uma forma tão completa que nunca se arrependerá de ter me tocado. Vitória lutou por respirar oxigênio que não estivesse esquentado por seu fôlego.

—Já o fez, Gabriel.

O calor a esmagava. Ia afogar-se em seu olhar.

—Por favor, me solte.

O fogo prateado que brilhava nos olhos do Gabriel se tranqüilizou. Seu quente fôlego acariciou os lábios.

—Por quê?

—Porque acredito que vou ter um orgasmo - afirmou Vitória francamente, enquanto sua voz repicava no ar nebuloso.

A luz e a escuridão vibraram no olhar de Gabriel. O conhecimento de seu desejo. O conhecimento para acalmar seu desejo. Baixando a cabeça, Gabriel roçou suavemente seus lábios; sua língua pareceu incrustar-se em seu útero. E em um segundo tinha desaparecido, enquanto o corpo de Vitória palpitava na borda do clímax. Como tinha palpitado dentro da ducha, o ventre e o peito dele pregados a suas costas e seus glúteos, seu bitte inundado tão profundamente em seu interior que tinham formado um só corpo. Gabriel envolveu o cabelo de Vitória com uma toalha, secando-o suavemente, cada massagem sensual uma carícia evidente. Ela permaneceu muito quieta enquanto ele secava suas nádegas, passando a toalha pela fenda que ainda levava o rastro de sua penetração, e as pernas com ligeiros tapinhas. Um golpe surdo ressoou em seus ouvidos. O frio roçou bruscamente o local sensível entre os glúteos de Vitória.

Suas pálpebras se abriram subitamente; quando as tinha fechado?

—O que...

—Te machuquei, Vitória. —Um braço musculoso lhe rodeou a cintura, agarrando-a. Com suave pressão, retirou os restos do creme, limpando-a com movimentos circulares—. Deixe-me cuidá-la...

Vitória relaxou seus músculos à força.

—Preferiria que o cuidado fosse mútuo.

Gabriel continuou sua limpeza até que ela se arqueou para que parasse, e depois dobrou seu corpo para que ele fizesse algo mais que lavá-la. Estirou os braços para trás...Só para agarrar o ar vazio. Conteve de onda de frustração.

—Gabriel, vou tocá-lo.

A voz de Gabriel proveio da proximidade do lavabo.

—Já o fez, Vitória.

Ela se virou, enquanto Gabriel dava a volta, com um pente na mão.

—vou tocar algo mais que sua... —Vitória hesitação ligeiramente e levantou o queixo, desafiando a uma sociedade hipócrita que proibia às mulheres usar determinadas palavras para designar o que devia ser chamado por seu nome— sua verga.

Gabriel a observou em silêncio, com o pente de marfim em sua mão direita. Estendeu para ela seus dedos claros e longos.

—Então tome minha mão, Vitória.

Ela olhou fixamente para aqueles dedos nus que tinham formado parte dela na noite anterior, e depois seu olhar se dirigiu por volta do comprido pênis nu que pouco antes tinha estado em seu interior e que logo voltaria a estar. Um diminuto batimento de coração palpitava na glande bulbosa de cor púrpura.

O desejo de Gabriel. Sentindo os joelhos subitamente fracos, agarrou sua mão. Abriu a porta do banheiro e passou diante de Gabriel para a escuridão. Uma súbita luz cegadora a esbofeteou, fazendo piscar. O sólido calor dos dedos de Gabriel desapareceu.

—Sente-se na cama.

Vitória obedeceu em silêncio, aproximando-se da borda da cama, fazendo que as molas rangessem, e se sentou com os pés juntos. Seu traseiro estava sensível. Agachando-se, flexionando os músculos das costas e balançando os testículos, Gabriel tomou três troncos do cubo de bronze e os jogou no fogo, que milagrosamente não se extinguiu. As cinzas negras e a fumaça cinza subiram pela chaminé.

Dava-lhe a sensação de que tinha transcorrido toda uma vida da última vez que ela tinha olhando fixamente aquele mesmo fogo.

—Tentarei permitir que me toque Vitória. —A voz de Gabriel se ouvia amortecida. Suas palavras estavam dirigidas às chamas que envolviam lentamente os troncos.

Tentaria permitir que ela o tocasse. Tentaria não permitir que morresse. Mas não podia prometer nenhuma das duas coisas.

—Eu gostaria de lhe proporcionar lembranças prazerosas para substituir as dolorosas, Gabriel.

Gabriel se voltou para ela.

—Cada vez que tem um orgasmo me dá de presente outra lembrança.

Ela não ia chorar. Vitória observou Gabriel enquanto caminhava lentamente para ela, e suas longas pernas foram cortando a distância, com seu bitte rígido no ar.

—Nunca tinha visto um homem nu antes de ficar sem emprego. Faz cinco meses vi um em uma esquina. Não me dava conta de que suas calças estavam desabotoadas. Pensei que tinha pendurado uma salsicha no bolso.

Gabriel parou de frente a ela. Não havia forma de confundir o membro ereto que se cravava no ar com algo diferente do que era.

—Há um término francês, andouille a couve roule.

Vitória jogou a cabeça para trás.

—O que quer dizer?

—Salsicha com um colar enrolado - disse Gabriel com solenidade.

As bolsas testiculares debaixo de seu pênis estavam tensas.

—Como se chamam os... —Vitória engoliu seco, recordando o jargão de rua inglesa— as bolas de um homem em francês?

—Noisettes - avelãs—. Noix - nozes—. Olives - azeitonas—. Petites oignons.

Nos olhos de Vitória apareceu um brilho divertido,

—Cebolas?

Como resposta, um sorriso se desenhou nas profundidades dos olhos prateados de Gabriel.

—Croquignoles.

—Bolachas - traduziu ela.

A risada abandonou bruscamente o olhar de Gabriel.

—Bonbons.

O olhar de Vitória procurou involuntariamente os objetos gêmeos que estavam sendo objeto de discussão.

—Eu gosto do sabor dos bombons.

Levantou um dedo curioso com ar dúbio. Os testículos de Gabriel eram protuberantes, e tão ásperos como o couro com pêlo do que se pareciam. Uma energia pura e crua transpassou Vitória. Não procedia dela.

Levantou lentamente a mão e, sustentando o olhar de Gabriel, provou a ponta de seu dedo, lambendo-o deliberadamente.

—Não sabe você a petites oignons, senhor.

Vitória nunca antes tinha visto necessidade nua nos olhos de um homem; viu-a agora, nos olhos de Gabriel.

—Que sabor tenho mademoiselle Childers? —perguntou com voz rouca.

Vitória voltou a provar seu dedo.

—Eu diria que tem gosto de... Eles noix de Gabriel.

As nozes de Gabriel. A risada voltou instantaneamente para seus olhos, dissipando a escuridão com sua luz.

Ela baixou a mão imediatamente, com os pés rigidamente juntos sobre o chão, os seios quentes e pesados.

—Obrigado.

—Por quê? —perguntou Gabriel com rigidez, esticando cada músculo de seu corpo para se proteger da dor.

—Por me permitir ser uma mulher.

E por não chamá-la de puta, como teria feito qualquer cavalheiro. Naquele instante, Vitória sentiu que saltava pelos ares. O rangido das molas da cama a rodeou. Dando um bote no colchão se encontrou sentada entre as pernas de Gabriel, que aprisionavam seus quadris com suas musculosas coxas.

—Nunca me agradeça, Vitória.

A voz do Gabriel era áspera. Vitória abriu a boca para responder. Os dentes de marfim do pente se afundaram em seu cabelo embaraçados. Agarrou-se aos músculos duros, afundando as unhas na carne musculosa, compartilhando sua dor. Os dentes de marfim desembaraçaram pouco a pouco seu cabelo.

Vitória não se moveu, embargada pela súbita lembrança de sua mãe penteando-a delicadamente.

Mas não queria pensar em sua mãe. As pernas de Gabriel irradiavam calor.

—Como se chamam os seios de uma mulher em francês? —perguntou de repente.

—Melons.

—Melões - traduziu Vitória—. É muito... Curioso. Muito melhor que peras, parece-me.

Era o nome que se usava no jargão de ruas londrino. Seus olhos se encheram repentinamente de lágrimas. A dor causada pelo pente ao desembaraçar outro nó desapareceu tão logo deslizou o marfim.

—Recheie - murmurou Gabriel.

Vitória sorriu ironicamente.

—Fogaças de pão.

O alimento principal de toda dieta.

—Ananás.

—O que é isso? —perguntou com a respiração entrecortada.

—Abacaxis.

As unhas de Vitória se cravaram mais profundamente nas coxas de Gabriel; ele não se alterou.

—Nunca comi abacaxi. É doce?

—Doce. —O nó em seu cabelo cedeu ante os dentes de marfim—Ácida. Espinhosa por fora. Suculenta por dentro

A professora que havia em Vitória saiu à superfície.

—Os peitos de uma mulher não são espinhosos.

—Seus mamilos, Vitória, são muito duros. Picam na pele.

Igual a sua unha, imaginou ela. Afrouxou a pressão.

O pente deslizou sem esforço por seu cabelo. Vitória jogou a cabeça para trás.

—Estava acostumado a sentir calor e palpitações entre as pernas. —Olhou fixamente o teto pintado de branco acetinado—. Não sabia que o botão de carne entre minhas coxas se chamava clitóris, só sabia que era mau me tocar aí. Mas depois, quando me pareceu que já estava tudo perdido para mim, me toquei. Não vi luz quando o fiz, Gabriel.

Vitória esperava uma condenação, por confessar o que nenhuma dama devia confessar.

—O que viu Vitória? —Notou a voz de Gabriel quente e úmida, ali contra sua cabeça, sua orelha...

—Escuridão, Gabriel.

O pente de marfim deixou de deslizar; uns dedos duros procuraram a parte superior das coxas de Vitória. Um único dedo roçou suas pernas, seus lábios...

—Vi frio, fome e solidão... —Um relâmpago atravessou o clitóris de Vitória, ante o movimento oscilante do dedo de Gabriel; mordeu os lábios—. Mas não vi pecado.

Sentiu a seu lado a áspera bochecha de Gabriel, afastando seu cabelo. Sua língua provocou um calor abrasador em sua orelha.

—Lembre-se Vitória.

Fez com que ela virasse. De repente, Vitória se encontrou de costas. Notou o veludo debaixo de seus glúteos, os lençóis de linho suaves contra suas costas. Pela extremidade do olho, o brilho de bronze do travesseiro da cama a cegou momentaneamente. O colchão se moveu; Gabriel se estirou para agarrar uma lata sobre a mesinha de noite, com seu quadril oprimindo o seu. Ouviu o ruído do metal e depois seu choque contra a madeira. Vitória aguardou tensa, incapaz de respirar mais à frente do cheiro de seu calor e a proximidade de seu corpo. O colchão afundou quando Gabriel se endireitou, com um preservativo de borracha enrolado entre o polegar e o indicador. O desejo oprimiu os pulmões de Vitória. Às escuras pestanas velaram os olhos de Gabriel. Ela observou as sombras irregulares que obscureciam as bochechas, depois seu olhar se dirigiu ao grosso membro sulcado de veias azuis que segurava em sua mão direita, voltou a olhar a sombra em seu rosto, outra vez a glande inchada de cor púrpura que foi tragada pela borracha. Gabriel beliscou a ponta da camisinha. As veias azuis e as gradações de cor desapareceram, deixando passo para uma larga e grosa capa de borracha que culminava em um arbusto encrespado de pêlo de loiro escuro. Como um diminuto bico de mamadeira, a ponta da camisinha, sobressaía-me do extremo bulboso de seu pênis. Vitória elevou as pálpebras. Gabriel estava preparado para ela.

—Meço algo mais de vinte centímetros de comprimento quando estou completamente ereto.

Gabriel leu os pensamentos de Vitória em seus olhos. Esperou que fizesse a pergunta.

Para pôr um anjo contra outro. Vitória não a fez. Não precisava saber como se comparava Gabriel com outro homem. Em vez disso, perguntou:

—Por que deixou espaço na ponta da camisinha?

—Para meu esperma.

Vitória tinha notado sair seu sêmen no interior de seu outro orifício, um jorro quente de fluido. Perguntou-se que sensação experimentaria em sua vagina, quando fluiria banhando seu útero. Gabriel se inclinou sobre ela e agarrou suas mãos.

—Lembre-se...

Vitória estirou os braços sobre sua cabeça, seus dedos foram conduzidos para o frio metal. Gabriel apertou as mãos dela ao redor das grades de bronze.

—Lembre-se, Vitória... —murmurou Gabriel, acariciando sua face com um sussurro de fôlego, enquanto empurrava suavemente com seu membro sua feminilidade.

—Lembre Gabriel.

Lentamente se colocou sobre ela. Sentiu uma ligeira ardência por causa de seu pêlo, o peito oprimindo seus seios, o ventre moldando seu ventre, os quadris inundando-se entre suas coxas.

Vitória lembrou... O frio e a aridez que tinha sido sua vida. Por culpa do ódio que um homem sentia pelas mulheres. Vitória lembrou... A dor que Gabriel havia sentido. Por culpa de... Que sentimento tinha provocado aquela dor? Não sabia por que o segundo homem tinha feito mal a Gabriel, nem por que não tinha matado Gabriel quando estava acorrentado e impotente. Implorando morrer. Não sabia como o amor se transformava em ódio. Só sabia que acontecia. O amor de um marido por sua esposa. O amor de um irmão por sua irmã. O amor entre dois anjos. O ar frio roçava seus nódulos. Com a mão esquerda, Gabriel procurou o centro da vulva. A borracha a arranhou estirou-a, penetrou-a, invadiu-a. Com um grito afogado, Vitória se agarrou compulsivamente aos corrimões de bronze com ambas as mãos.

—Nunca esqueça o que sou eu. —Um fôlego ardente lhe encheu os pulmões, uma língua ardente acariciava seus lábios—. Nem o que posso fazer...

Vitória podia ver cada um dos poros da perfeita pele marmórea de Gabriel, podia contar cada uma das grosas pestanas escuras que emolduravam seus olhos, podia sentir cada nervo dentro de seu corpo estirar-se para adaptar o pênis embainhado em borracha que palpitava em seu interior. O rosto dela, como um círculo pálido, brilhava nos olhos dele. Gabriel seria capaz de ver no interior de seus olhos?

—Lembro tudo o que você disse Gabriel.

Tem olhos ofegantes. Como os de Michael. Não foi a prostituição o que me transformou no que sou e sim o amor. Havia dois anjos. Eu não sabia que eram anjos. Queria ter olhos que desejassem... Como podia Gabriel não ver o desejo em seus próprios olhos?

—E sabendo de onde venho, sabendo o que sou, deseja-me, Vitória? —O fôlego quente encheu sua boca; sua vagina se expandia ao redor de seu pênis. Vitória não teve que pensar sua resposta

—Sim - disse, e sua voz se transformou quase em um grito quando o membro se afundava em seu interior, fazendo que faltasse o ar em seus pulmões. Ele tragou o grito de Vitória. O colchão afundou. Gabriel cobriu com sua mão esquerda a mão direita dela, enquanto absorvia sua alma. Suas virilhas unidas formando um único corpo, à medida que seu membro se ia introduzindo cada vez mais, até chegar ao coração. A cama parecia os acompanhar, interpretando uma sinfonia de rangidos. Lambeu, mordiscou e chupou sua língua, como se sua vida dependesse dela, até que seus fôlegos se misturavam em um e sua carne se transformou na carne do outro. Já não se importou morrer; havia um prazer além da morte. Uma luz atrás da escuridão.

A luz era Gabriel: sua língua, seus lábios, suas mãos, seu membro que se movia como um êmbolo entre os lábios de seu sexo e as paredes de sua vagina. Vitória arqueou as costas, elevou as pernas, abriu cada vez mais a vagina, tentando que ele chegasse ao mais profundo de seu ser...

—Me olhe, Vitória.

Ela abriu os olhos com dificuldade. Os olhos prateados a aguardavam. Lentamente, o brilho de prata desapareceu e só o que Vitória pôde ver foi Gabriel e uma mulher de rosto pálido refletida em seus olhos. As imagens explodiram com um estalo de luz interna. Uma mulher gritou; seu grito não foi seguido pelo de um homem. Pouco a pouco, voltou a enfocar o rosto de Gabriel. O suor banhava sua face; a agonia transformava a voz.

—J'em veux encoré.

Preciso de mais.

As palavras lhe encheram a boca, a alma.

— Me de mais, Vitória. —Mais prazer. Mais orgasmos—. Mostre-me a luz.

Vitória abriu seu corpo e deu a Gabriel o que ele necessitava. Mais prazer. Mais orgasmos. Lembranças para iluminar a escuridão.

 

CAPITULO 21

 

Gabriel abriu as pálpebras de repente, com o coração pulsando rapidamente. A escuridão o cegou; cheirava a sexo e a suor. Um calor líquido deslizava sobre sua coxa esquerda. Imediatamente lembrou... A água quente açoitando-o. O vapor sufocante. Vitória. Havia tocado-o. Tocava-o ainda. O corpo dela estava encolhido a seu lado, com a cabeça recostada sobre seu ombro e a perna sobre sua coxa. O calor líquido da satisfação dela derramava sobre sua perna. Seu pêlo se arrepiou. Podia sentir o segundo homem; percebê-lo por cima do cheiro de Vitória. Gabriel não tinha armas na mesinha de noite nem no armário; sua bengala, junto à pistola, a faca Bowie e o revólver Adams, estavam no estúdio. Ele era o único meio de proteção de Vitória. E era incapaz de protegê-la. Sua ira superou seu medo. Vitória tinha lhe mostrado a luz uma e outra vez; não deixaria que morresse. Separou-se com cuidado da cabeça e do joelho de Vitória. O ar frio evaporou o calor úmido de sua coxa esquerda; seus pés tocaram a gélida madeira. A escuridão era sua aliada. Se Gabriel não podia ver o segundo homem, tampouco o segundo homem o podia vê-lo. Caminhou furtivamente para a porta do estúdio. A sensação de estar sendo observado se dissipou, como se uma porta tivesse sido fechada.

Ficou quieto, com todos os sentidos alerta. Percebeu o cheiro de sexo, o suave som rítmico da respiração de Vitória, os batimentos de seu próprio coração...Não havia ninguém no quarto exceto ele e Vitória. Agora.

Em sua mente não ficou dúvida alguma de que uns instantes antes não tinham estado sozinhos. Gabriel tinha desenhado a porta do quarto de maneira que abrisse para o estúdio, para que ninguém pudesse se esconder atrás dela dentro da sala. Entretanto, alguém podia esconder-se do outro lado, alguém à espera que Gabriel entrasse no estúdio. Alguém armado com uma faca ou uma pistola. Gabriel não tinha medo de morrer. Mas, de repente, sentiu um dilacerador temor por Vitória. Na ducha, tinha lhe mostrado quão fácil era fazer que uma mulher —ou um homem— suplicasse por seu próprio prazer, por sua liberação; não queria que ela aprendesse o quanto era fácil fazer com que uma mulher —ou um homem— rogasse para que o matassem.

Abriu com força a porta do quarto, agarrando-a antes que batesse na parede para não despertar Vitória.

Não havia ninguém atrás da porta. Nem no estúdio. Mas alguém tinha estado ali. A presença do segundo homem podia notar-se no ar, tão persistente como um perfume barato. A bengala de prata estava apoiada no sofá; o revolver Adams e sua capa repousavam sobre o braço do sofá de couro azul. Ninguém os tinha perturbado, nem mesmo o sono de Vitória. Só havia uma maneira de entrar —e de sair— de seu estúdio.

Gabriel extraiu o revólver da capa e avançou uns passos sobre o tapete. De um golpe, abriu a porta de madeira. Alien estava recostado contra a parede, com seus olhos negros vigilantes e seu cabelo negro iluminado com reflexos prateados. Endireitou-se imediatamente. Não pareceu surpreso envergonhado ou alarmado ao ver seu chefe nu na frente dele, com um revólver na mão: os prostitutos, as alcoviteiras, os mendigos, os assassinos e os ladrões não se alteravam facilmente. Ao contrário, Gabriel era muito consciente de que Aliem levava uma pistola debaixo de sua jaqueta negra.

Tinha sido seu empregado, e não o segundo homem, que tinha entrado em seu estúdio?

—Boa tarde, senhor - saudou Aliem cortesmente.

Tardes.

—Que horas são? —perguntou Gabriel com brutalidade.

—Já passou das quatro, senhor.

Gabriel tinha ordenado a Gastón que descobrisse tudo o que pudesse sobre Mitchell Delaney, e havia dito que o informasse sobre isso o mais breve possível.

O terror contraiu seu estômago. Os assassinatos continuariam enquanto o segundo homem estivesse vivo.

—Onde está Gastón?

—Tentou despertá-lo faz um momento, senhor - respondeu Alien com naturalidade.

Os olhos do Gabriel se entrecerraram. Ninguém tinha tentado despertá-lo...Imediatamente recordou onde tinha dormido. Gastón teria golpeado a porta do estúdio, ou talvez não. Mas ao encontrar o estúdio vazio, não teria atrevido entrar no quarto de Vitória. Tinha sido a presença do Gastón que alertou Gabriel em seu quarto?

—Quando Gastón tentou me despertar?

—Veio várias vezes, senhor. —Os olhos negros de Alien não titubearam—. A última vez foi faz uma hora.

De modo que não tinha sido Gastón o que tinha despertado Gabriel. Aparentemente, Alien não pareceu se importar com a nudez do Gabriel ou o fato de que viesse do leito de uma mulher. Mas era impossível confundir o cheiro de sexo. Alien sabia que tinha estado com Vitória. E Gastón também devia saber onde tinha dormido, pois do contrário o teria despertado. O rumor de que Gabriel tinha comprado uma mulher já se propagou por toda Londres. O fato de haver fodido com ela se difundiria com mais rapidez ainda.

Talvez já estava estendendo. Gastón era a única pessoa, além dele, que tinha a chave de seu estúdio.

A poderia ter dado a Alien. Gastón confiava nos homens e as mulheres que Gabriel empregava.

—Entrou em meu estúdio hoje, Alien?

Alien nem sequer piscou.

—Não, senhor. Não tenho chave.

Quantas menos chaves de seus aposentos particular houvesse menos pessoas poderiam ser assassinadas —ou subornadas— para obtê-las. Mas houve alguém...

—Quanto tempo esta de guarda? —pergunto Gabriel.

—Desde meio-dia, senhor.

—Estava aqui há dez minutos?

—Aqui mesmo, senhor.

Gabriel não podia se permitir o luxo de confiar em seus empregados como confiava Gastón neles.

—Isso é impossível, Alien - disse Gabriel, com voz sedosa, perigosa.

—Não, senhor, não é impossível. —O olhar de Alien não se separou do de Gabriel—. Estava aqui, protegendo você e à mulher, tal como me ordenou.

—Então como explica o fato de que houvesse um homem em meus aposentos faz apenas uns minutos?

—Não posso explicá-lo, senhor. —Um sentimento de ira e de dor brilhou nos olhos negros de Alien—. Terá que me desculpar, senhor, mas um intruso teria que entrar em seu quarto por esta porta. E a única forma de fazê-lo seria me matando. Somos leais a você, senhor.

A ira de Alien poderia derivar-se daquela falta de confiança que acabava de demonstrar Gabriel, ou talvez do fato de que Gabriel, aparentemente, tinha despedido John e Stephen. Ninguém sabia que ainda estavam as suas ordens, nem sequer Gastón. Talvez aquela ira nos olhos daquele homem pudesse dever a que Gabriel tinha queimado sua casa seis meses antes. A ira, como a consciência, podia ser explorada. E também o temor. Gabriel tinha vivido aquele último ano com o único propósito de matar o segundo homem. A imagem indefinida do homem, e o cheiro que recordava dele, tinham tingido todos os pensamentos do Gabriel, todos seus sonhos. A sensação de que o estavam observando quando despertou podia ter sido um sonho. O cheiro do homem no quarto escuro podia ter sido extraído da lembrança. A preocupação de Gabriel por Vitória poderia estar deixando-o paranóico. Não podia permitir o luxo de confiar. De sentir. De desejar.

De necessitar. Mas sentia, desejava. E necessitava. A história se estava repetindo. Seis meses antes, Michael tinha permitido que seus sentimentos por uma mulher interferissem em seu julgamento. Michael teria sido assassinado se Gabriel não tivesse intervindo. Teria morrido por uma mulher. Ainda poderia morrer por uma mulher. Por Vitória. Uma mulher que tinha preferido ser faxineira em vez de depender de um homem que desprezava as mulheres; que tinha vendido sua virgindade em vez de sucumbir a um homem que a castigava por causa dela. E agora dependia de Gabriel; prejudicada por um homem a quem nunca tinha conhecido.

Fazemos o que podemos para sobreviver.

—Chame Gastón. —Ocultou o temor que rondava por seu sangue atrás da máscara que sempre levava posta—. Eu vigiarei à mulher enquanto vai buscá-lo.

—Sim, senhor - disse Alien.

Gabriel recordou a sensação do corpo de Vitória pressionado contra o seu. Era tão magra que ele poderia quebrar seus ossos como se fossem gravetos.

—E diga a Pierre que prepare café da manhã À deux - ordenou com brutalidade. Nunca comi abacaxi. É doce?—. Diga-lhe que inclua abacaxi fresco. Tocarei a campainha quando quiser que subam a bandeja.

Gabriel não esperou que Alien respondesse. Fechou a porta. Vitória o atraía de volta para quarto. A luz da janela do estúdio deslizava sobre o chão de madeira. O cheiro de sexo, a suor e a satisfação impregnava o ar.

O cheiro de ambos. O membro de Gabriel se endureceu imediatamente Vitória dormia na mesma postura que Gabriel a tinha deixado, com o cabelo úmido estendido sobre o travesseiro e sua perna sobre o lençol.

Recordou a suavidade sedosa de sua pele, tenra com a água na ducha, escorregadia de suor na cama.

Rememorou a úmida sedosidade de seu cabelo e o calor de seus glúteos entre as coxas dele, enquanto penteava o emaranhado passado de ambos. Evocou o contato do dedo de Vitória sobre seu testículo, e a imagem dela provando aquele dedo iluminou a escuridão de sua vida, o cabelo escuro enegrecido pela água, as bochechas avermelhadas de excitação, os olhos azuis resplandecentes sob a luz elétrica. Eu diria que tem sabor de... Eles noix de Gabriel.

Nenhuma mulher tinha brincado com ele. Tinham chegado ao clímax para ele, mas não tinham brincado com ele. Não o haviam tocado. Não o tinham amado. Vitória abriu as pálpebras de repente. Os olhos azuis estudaram os olhos prateados, a cor enegrecida pela escuridão, a necessidade escurecida.

Vitória tinha sido testemunha de seu orgasmo nu. E nenhuma só vez tinha feito a pergunta que ele não podia responder. Gabriel tinha se considerado imune: à dor, ao prazer. A uma mulher. Uma vez mais o segundo homem tinha demonstrado que estava errado. Gabriel esperou tensamente que Vitória se arrependesse de haver tocado em um fumier sem lar.

—Molhei o travesseiro - disse Vitória em voz baixa. Parecia muito mais jovem que a mulher de trinta e quatro que Gabriel sabia que era.

—Não me importa o travesseiro.

—Molhei você.

O rosto de Gabriel se iluminou com um súbito sorriso, sabendo que Vitória não podia ver, nem tampouco a vulnerabilidade que aparecia detrás dele.

—Sim, é verdade - assentiu solenemente.

—Estou úmida agora - disse Vitória sem malícia.

Gabriel tinha tido dois orgasmos apenas umas horas antes. Seu membro não devia estar duro. Não devia desejar Vitória até o ponto de que doessem os testículos. Ela era tudo o que sempre tinha desejado em uma mulher. Era a morte disfarçada.

—Me mostre - disse Gabriel sedosamente, consciente do perigo que entranhavam os jogos sexuais, mas incapaz de resistir à tentação que representava Vitória Childers.

—Está escuro - raciocinou Vitória. Gabriel imaginou ensinando um menino de cabelo prateado; falaria com esse mesmo tom de voz—. Não pode ver.

—Sim posso.

Gabriel podia ver a armadilha que representava Vitória. E que tinha subestimado seriamente ao segundo homem. Vitória afastou as mantas para um lado com um rangido, fazendo chiar a cama. Sua pele resplandecia como gentil mármore branco. Tinha as pernas longas e magras. Gabriel as tinha sentido ao redor de sua cintura. Perguntou-se como seria quando as apoiasse sobre seus ombros. Não pôde se conter. Sentou-se na cama e tocou Vitória, a isca perfeita. O calor úmido que emanava se incrustou em sua virilha.

Seu clitóris estava inchado de desejo. Suavemente, Gabriel colocou o dedo em sua vagina e olhou a sombra de seu sexo. Seus lábios inferiores se fecharam ao redor de seu dedo médio, como o tinham feito ao redor de sua verga apenas umas horas antes. Estava tão úmida que ele poderia afogar-se nela. Era tal sua resposta que não se importaria morrer dentro dela. Mas havia mais vidas em jogo que a sua. Uma mão vacilante agarrou seu pênis. Gabriel ficou tenso, na defensiva. As lembranças que esperava não chegaram. Teria que pagar por aquela espécie de indulgencia. Mas não tinha nem idéia de como. Não sabia quando viria o segundo homem a levar aquele presente que era Vitória Childers. Ela acariciou com seu polegar a glande; seu roçar provocou um estremecimento no peito de Gabriel.

—Você também está úmido - sussurrou Vitória, incapaz de esconder sua excitação.

Os jogos sexuais eram muito novos para ela para dissimular a excitação. Gabriel tinha sido instruído em jogos sexuais desde os treze anos. Concentrou-se nas mudanças que tinha experimentado no corpo de Vitória, tentando esquecer a vulnerabilidade que ela inspirava. Sua vulva estava quente e torcida, tanto pela penetração recente como pelo desejo que sentia naquele instante. Sua vagina era um aro aberto, em vez de uma fissura diminuta. Aceitou facilmente seu dedo. Imediatamente, Gabriel foi rodeado de seda líquida.

Vitória respirou profundamente; ao mesmo tempo, seus dedos oprimiram seu pênis. Sentiu que o machucava um pouco. A dor de sua penetração palpitava surdamente no peito de Gabriel. Ela afastou as pernas para proporcionar um acesso mais fácil, e também para poder mitigar a dor dele. Gabriel desejava introduzir-se no interior de Vitória e sentir seu útero convulsionar ao redor de sua mão. Entretanto, tirou o dedo. Estava recoberto de um suave calor. A essência de Vitória Childers. Uma mulher que temia a paixão, mas desejava abraçá-la. Da mesma forma que abraçaria um anjo. Gabriel deslizou seu dedo úmido sobre os lábios dela.

Vitória recuou.

—O que...

Gabriel tomou seus lábios, suas palavras, seu fôlego, sua essência. Havia dito a Vitória que compartilhar sua dor e seu prazer na ducha não tinha mudado nada. Tinha mentido. Tudo tinha mudado. O segundo homem lhe tinha dado Vitória, com o convencimento de que Gabriel ia querer passar com ela mais de uma hora, um dia ou uma semana. Sabia que morreria para conseguir mais dela. Vitória tinha um sabor de satisfação doce e salgada de uma vez. Com sua língua e seus dentes, Gabriel quis mais dela: um leve beliscão de dor, seguido de uma carícia calmante de prazer. Usou até a última gota de sua habilidade para tentar captar a alma de Vitória com seu beijo, porque para isso tinha sido instruído. Não era suficiente.

—Prove-se, Vitória - sussurrou Gabriel, levantando a cabeça, com sua boca insinuante.

Não lhe deu tempo para manifestar seu acordo ou seu recuo. Lambeu o interior da boca, transpassando sua essência a sua língua. Ela permaneceu imóvel, sem responder. Gabriel a fez reagir, lambendo o paladar.

Vitória respirou seu fôlego. Ele queria mais. Tinha suficiente habilidade para que proporcionasse algo mais.

Tomando seu mamilo entre os dedos, beliscou e puxou-os suavemente, sabendo que com cada beliscão, cada puxão, seu útero se contraía. Os dedos que o agarravam apertaram e puxaram seu pênis ao mesmo tempo em que os dedos dele apertavam e puxavam seu mamilo. Vitória lambeu lentamente a língua dele, dando e tomando de uma vez. Gabriel fechou fortemente as pálpebras e se concentrou na sensação e no sabor de Vitória, desfrutando também do estremecimento prazeroso que sacudia seu testículo. Um breve golpe suave na porta interrompeu os batimentos de seu coração. Gastón tinha chegado. Gabriel não soltou o mamilo de Vitória. Nem deixou de beijá-la. Não deixou de desejar o que não podia ter. Um lar. Uma mulher. Um suave gemido vibrou em sua língua. Uma aguda pontada subiu por seu ventre. A porta da sala se abriu. Podia ser Gastón. Ou o segundo homem. Gabriel imaginou o útero de Vitória contraindo-se ao redor de sua mão enquanto seguia mentalmente ao homem que tinha entrado no quarto. Escutou um golpe suave, o som dos passos no chão. Vitória sacudiu com força a cabeça de um lado a outro. Gabriel agarrou sua nuca com a mão direita e seguiu implacável, com a boca pregada na sua, lambendo-a com sua língua, enquanto seus peritos dedos continuavam beliscando seu mamilo. Ela estava a ponto de alcançar o orgasmo. Vitória apertou Gabriel com mais força, levando-o para seu interior. Um bufo suave se deixou ouvir na porta aberta do quarto; o homem que se encontrava em seu estúdio sentou na cadeira de couro diante o escritório de Gabriel. Ao mesmo tempo, o corpo de Vitória se arqueou; os dedos se afundaram no cabelo de Gabriel.

Dor. Prazer. O desejo azul e violeta explodiram no negrume atrás das pálpebras de Gabriel. O útero de Vitória se convulsionou, batendo as asas brevemente ao redor de seus dedos e em seguida ele alcançou seu próprio orgasmo na mão de Vitória e a sensação do êxtase dela desapareceu, sendo substituída pela presença do homem de seu estúdio e o conhecimento da informação que ele possuía. Lentamente, Gabriel baixou o ritmo de beliscões durante o breve instante que sentiu seu orgasmo. Seu pênis cuspiu três, quatro, cinco vezes... Vitória desabou, procurando trabalhosamente o ar que por fim a deixava respirar. A ereção de Gabriel cedeu; mas não sua necessidade. Os dedos dela entrelaçados em seu cabelo eram uma intimidade que não tinha permitido fazia quase quinze anos. Gabriel queria mais de Vitória, mais intimidade. Liberou suavemente o mamilo e acariciou sua bochecha, estirando muito os dedos. Ela piscou roçando as pontas de seus dedos como o incitante bater as asas de um orgasmo. Abraçou-a e beijou suas pálpebras. O nó que sentia em sua virilha se propagou até seu peito.

—Você... —Vitória tomou ar—. Meu seio... Estava...

—Shhhh... —Gabriel pressionou seus lábios contra os dela: não queria que Gastón escutasse quão vulnerável era Vitória em sua paixão—. Durma Vitória. Tenho que ir. Voltarei mais tarde.

Sentou. Vitória agarrou seu cabelo um pouco mais forte, enquanto soltava seu membro flácido.

Gabriel não viu a mão que subia até que tocou seu queixo. Estava fria e pegajosa. Antes de poder reagir, os dedos quentes de Vitória deslizou por seus lábios seu esperma frio e pegajoso, e a seguir lhe deu um comprido beijo, lambendo delicadamente sua boca. Gabriel não queria provar a si mesmo. Não queria nada relacionado com seu corpo, que o tinha traído. Abriu a boca para Vitória, mas não soube por que o fez.

Permitiu que Vitória compartilhasse com ele o sabor de seu sêmen, sem poder explicar o que o tinha impulsionado a fazê-lo. A liberação involuntária de um prostituto tinha sabor de esperança. O bater das asas da satisfação de Vitória ressoava em seu peito. E Gabriel soube... Liberando do beijo de Vitória e dos dedos que agarravam seu cabelo, Gabriel se levantou e cobriu com as mantas o corpo nu dela, que se perfilava escuro contra os pálidos lençóis. Procurou roupas em seu armário uma jaqueta, umas calças e um par de botas; tirou umas meias três - quartos, uma camisa e um lenço da cômoda. Recolheu a camisinha usada do chão, junto à cama. ...Gabriel soube que o segundo homem tinha ganhado, mas escapava no que.

 

CAPITULO 22

 

Vitoria ouviu ruídos familiares: uma gaveta que se abria e se fechava... Gabriel rebuscando no armário.

De repente, percebeu o brilho prateado. Gabriel se aproximava da cama. Os batimentos de seu coração se aceleraram. Gabriel se agachou e em seguida se endireitou, com o preservativo de borracha usado na mão esquerda, e sua roupa convertida em um vulto sob seu braço direito. Deu uns passos e se perdeu na sombra escura. A porta do banheiro se fechou suavemente atrás dele. Vitória sentia os dedos pegajosos. Seus lábios e sua língua ardiam. Provar a si mesma; tinha causado surpresa, sem dúvida, mas não repulsão. Depois tinha notado o orgasmo de Gabriel crescer entre sua mão, da mesma forma que o seu tinha crescido entre os dedos dele. Através da porta do banheiro pôde ouvir o som amortecido da água contra o mármore, o ruído da corrente da cisterna, um breve golpe surdo, o impacto da escova de dente de marfim contra a borda do lavabo, talvez? Sentiu uma opressão no peito. Era uma sensação maravilhosamente íntima, escutar o ritual de asseio matutino de Gabriel. Colocou a mão entre as mantas e tocou o mamilo esquerdo. Estava duro e inchado, como o tinha estado o membro de Gabriel. Não sabia que uma mulher pudesse ter um orgasmo só lhe beliscando o mamilo. Nem tampouco quão pegajoso era o esperma de um homem, nem a rapidez com que se esfriava o fluido espesso e viscoso, nem aquele sabor salgado que tinha. Nunca tinha imaginado que o corpo de uma mulher pudesse desejar dolorosamente, ao tempo que se sentia cheio de satisfação. Um ruído suave interrompeu seus pensamentos. Gabriel saiu do banheiro e logo saiu em silêncio do quarto.

Vitória mordeu os lábios para não gritar que voltasse. Havia dito que voltaria. Acreditava. O homem que tinha escrito as cartas pensou com certo desdém, era insignificante ao lado de Gabriel. Umas vozes surdas penetraram pela porta do quarto. Gabriel tinha visita. Havia-lhe dito que se voltasse a dormir. Mas ela não queria fazê-lo. Queria mais de Gabriel. Vitória afastou as mantas. Os lençóis cheiravam a ele, a ela, a seu suor misturado. O chão duro de madeira despertou com uma sensação gelada. Gabriel podia morrer. Ela podia morrer. Entrou no banheiro. E recordou a imagem da ereção de Gabriel entre o vapor. Meteu-se na banheira de cobre. Não pôde evitar recordar como Gabriel tinha utilizado o aspersor de fígado. Em seus lábios apareceu um amplo sorriso. Todas as casas deveriam possuir uma mistura de ducha e banheira.

Imediatamente, seus pensamentos se dirigiram de novo a Gabriel. Estaria tomando o café da manhã?

Fez girar habilmente o grifo da ducha para ela. A sensação não era a mesma que com Gabriel. Com ele sentia tanto dor como prazer. Talvez desprezava o contato, mas não a tinha repelido ela quando agarrou seu cabelo para aproximá-lo de seu corpo. Tampouco tinha evitado seu contato quando ela tinha roçado com seu esperma os lábios, uns lábios suaves como pétalas, e o tinha provado. Tinha permitido compartilhar com ela o sabor de seu prazer. Gabriel tinha pendurado a toalha úmida. Vitória se secou com ela. Tinha enxaguado a toalhinha de banho com a que a tinha lavado a noite anterior e a tinha posto a secar junto a suas puídas calcinhas de seda. Não há um só ato sexual que eu não tenha realizado, e que não faria para agradá-la.

Não havia dito a Gabriel que não queria a nenhum outro homem. Não havia dito a Gabriel... Tantas coisas.

Esqueceu o pente no quarto. Vitória escovou rapidamente os dentes e saiu do banheiro. Ao acionar o interruptor de madeira a escuridão se dissipou do quarto, iluminando-o. Ali estavam à grade da cama de barrotes de bronze ao redor dos quais Gabriel havia segurado seus dedos. Tinha posto sua mão sobre as dela e a tinha segurado enquanto a cama debaixo deles tremia e gemia. As lenhas que Gabriel tinha posto na lareira na noite anterior se transformaram em um montão de cinzas negras e cinzas. O tempo corria.

Procurando entre as caixas amontoadas cuidadosamente junto à cômoda de Gabriel, Vitória encontrou umas calcinhas de seda, um par de sapatos com fivela, o espartilho, com uma liga, meias de seda, anáguas, sutiã; não, o espartilho não tinha ossos de baleias que exigissem um objeto protetor. Voltou a colocar o sutiã na caixa e tirou o vestido marrom dourado daquela espécie de caixão impresso com pétalas de rosa. Do estúdio não chegava nenhum ruído. Vitória não tinha que abrir a porta para saber que Gabriel não estava lá. A parte dianteira do vestido de seda com cordões se ajustava mediante diminutas casas. Os trajes de lã de Vitória tinham sido simples blusas com botões na frente. Seus dedos manipularam com minuciosa lentidão os fechamentos com os quais não estava familiarizada. Depois penteou o cabelo com força. Meias... Meias... Onde tinha posto as meias? A seda marrom reluzia sobre o respaldo do assento de madeira. Levou bastante tempo para prender as meias à parte baixa do espartilho do que havia levado para encontrá-las. Os broches elásticos não eram tão flexíveis como pareciam; ou talvez as meias não fossem tão longas como deveriam ser. Vitória pensou em Gabriel escolhendo o espartilho, as meias, as anquinhas... Os broches das ligas se ajustaram sobre o extremo superior das meias. Os sapatos, combinando com os adornos cor granada do traje, asentavam-lhe como uma luva. Não quis pensar no custo de tanto luxo. Umas manchas circulares obscureciam a borda do lençol aonde Gabriel tinha ejaculado. Tocou suavemente a mancha maior. Ainda estava úmida. Podia notar ainda o sabor dele sob o pó dental. Abriu de par em par a porta do quarto, com um rangido de seda e levantando ar a seu passo. O estúdio estava vazio. Como o corpo de Vitória. A luz que pendurava do teto competia com os raios do ocaso. Ou talvez o sol já se pôs. Nos meses de inverno era difícil saber quando o dia nublado se transformava em noite nebulosa.

Gabriel tinha prometido que morreria para salvar sua vida. Mas Vitória não queria que ele morresse.

Não queria que o temor reduzisse o prazer que ainda palpitava em todo seu corpo. Sobre a mesa de escritório repousava uma bandeja de prata. Vitória levantou a tampa semicircular e viu salsichas e ovos mexidos. Não reconheceu as grossas partes de fruta que apareciam sobre um pequeno recipiente transparente. Mas não precisou que ninguém lhe dissesse o que era. As lágrimas queimaram suas pálpebras. Vitória havia dito que nunca tinha provado abacaxi. Gabriel a brindava agora a oportunidade. Tomou uma parte da exótica fruta amarela entre o polegar e o indicador, deixando que seu suco deslizasse lentamente por sua mão. Tinha um sabor ácido e doce. Tal como Gabriel a havia descrito. Lambeu os dedos. Sentindo certo desconforto pelo roçar da seda e o cetim - com quanta rapidez se acostumou à nudez—, sentou na poltrona de Gabriel.

Vitória recordava o sabor de seu beijo; lambeu uma gota de suco de abacaxi dos lábios, e evocou Gabriel. Levantou uma salsicha, muito menor que o membro de Gabriel, e mordeu a ponta. De repente, perdeu o apetite. Ela podia morrer; Gabriel podia morrer. Encostou para trás bruscamente, e teve que agarrar-se a borda da tampa de mármore para não ser levada contra a parede. A poltrona de Gabriel tinha rodas. Levantou-se, tremendo. Estaria Gabriel na casa, ocupando-se de seus assuntos? Um homem diferente fazia guarda na porta. Tinha um grosso cabelo castanho avermelhado que caía sobre as costas. Vitória se sentiu momentaneamente desconcertada por sua beleza exótica. Era um prostituto? Ele lhe devolveu o olhar, imperturbável.

—Posso ajudá-la, senhora?

Não havia lugar a dúvidas sobre sua origem. Notava-se que era inglês até a medula.

Vitória nunca tinha visto ninguém como ele na Inglaterra. Perguntou-se se o senhor... Monsieur Gastón teria lhe contado algo sobre o bote de creme que ela tinha solicitado. Vitória não duvidou nem um segundo que aquele homem de olhos esmeralda que tinha diante ela sabia perfeitamente as diferentes utilidades que teria aquele creme. Endireitou-se o mais possível.

—Queria ver o senhor... —não seria hipócrita, certamente todos na Casa de Gabriel conheciam sua relação com o proprietário—. Queria ver Gabriel, por favor.

Não havia nem aprovação nem condenação nos olhos verdes,

—O senhor Gabriel não está aqui.

O estômago de Vitória se contraiu. Voltaria. Aquela casa era o lar de Gabriel, gostasse ou não. E o homem que estava de pé ante ela formava parte da família de Gabriel. Repentinamente, Vitória desejou conhecer o lar de Gabriel e visitar sua família.

—A Casa de Gabriel é muito linda.

—Sim, senhora.

—Eu gostaria de conhecê-la melhor.

A expressão do vigilante permaneceu inalterável.

—Isso não é possível, senhora.

Vitória não pensava deixar-se intimidar.

—Por que não?

Homens e mulheres enriquecidos a visitavam todas as noites.

—Tenho ordens de vigiar esta porta.

—Suas ordens são me proteger—replicou Vitória firmemente.

—Sim, senhora.

A idéia do que tinha acontecido a uma mulher desprotegida apareceu na mente de ambos.

Vitória tentou rechaçar a imagem das luvas manchadas de sangue. Inclinou o queixo com gesto de desafio.

—O que ordenaram fazer, senhor, vigiar esta porta ou me proteger?

—As duas coisas - respondeu o homem de cabelo castanho avermelhado com voz neutra.

As ruas espreitavam no interior de seus olhos verde esmeralda. A família havia dito Gastón.

Prostitutos. Ladrões. Assassinos. Embora não tinha participado das últimas duas atividades, Vitória soube, sem dúvida, que tinha formado parte da primeira.

—Como se chama? —perguntou amavelmente.

O vigilante nem sequer piscou ante a pergunta de Vitória.

—Julien, senhora.

—Há clientes lá em baixo?

—Não, senhora. A Casa de Gabriel abre às nove.

Vitória supôs que a Casa de Gabriel só estava aberta umas três horas quando ele tinha comprado sua virgindade.

—Monsieur Gastón disse que vocês são como uma família - disse Vitória impulsivamente.

O guarda piscou. Tinha-o pegado de surpresa.

—Sim, senhora - respondeu com um tom de voz que não dizia absolutamente nada.

—Minha família e eu estamos... Distanciados. —Vitória pensou vagamente em seu pai e em sua mãe, ambos os membros da aristocracia sem títulos. Sua mãe deixou seu pai, assim como você, havia dito Gabriel. E forçou seu irmão a partir—. Tem muita sorte ao estar rodeado de pessoas que o apreciam.

Os olhos verdes esmeralda permaneciam precavidos.

—Não posso deixá-la sair desta sala, senhora.

—Acaso não confia em sua família, senhor?

Vitória tinha confiado em sua família... Fazia muito tempo.

—Sim, senhora - respondeu o homem com reticência—. Confio neles.

Vitória aproveitou imediatamente a aceitação de Julien.

—Então não há perigo se eu sair desse sala, não é?

—Não corresponde a mim decidir isso, senhora.

Vitória o examinou. Não via nenhuma pistola, devia levá-la em uma cartucheira debaixo de sua jaqueta, como fazia Gabriel.

Não atiraria nela; mas Vitória não tinha dúvida de que a podia deter.

Recordou a força do homem que a tinha atacado na rua. O homem que a mataria.

—Sou consciente de que estou em perigo, senhor.

A expressão do guarda continuava impassível.

—Sim, senhora.

—Não quero me pôr em uma situação de maior perigo ainda.

—Não, senhora.

Vitória tinha tido mais êxito persuadindo a meninos rebeldes para que estudassem do que agora estava tendo em seu intento de convencer aquele homem que Gabriel tinha designado como vigilante.

—Você sabe que Gabriel comprou minha virgindade.

Trabalhando na Casa de Gabriel, era impossível que ele não soubesse. A vergonha que queimava o rosto de Vitória não se viu refletida na cara do vigilante.

—Ordenaram-me protegê-la, senhora, e isso farei.

A luz elétrica do teto zumbia sobre a cabeça de Vitória.

—Quero conhecer Gabriel.

—Não aprenderá a conhecer senhor Gabriel através desta casa.

Parecia que tinha transcorrido uma eternidade da noite em que Vitória tinha seguido monsieur Gastón pelas estreitas escadas que agora vislumbrava atrás do guarda.

—Engana-se, senhor. Tudo o que há na Casa de Gabriel é parte do homem que a construiu. —Vitória conseguiu captar a plena atenção do homem—. Quero agradar Gabriel - continuou com voz uniforme—. Eu gostaria de visitar as... Os quartos dos clientes para ver com que meios outras mulheres agradam os homens.

Objetos que possivelmente não tinha visto através dos espelhos transparentes. O sorriso de satisfação que esperava ver no rosto do guarda não apareceu. Em seus olhos verdes esmeralda brilhou, durante um instante, a emoção, que desapareceu imediatamente.

—Talvez, senhora, não sejam ajudas artificiais o que precisa o senhor Gabriel.

—Usarei qualquer ajuda disponível - replicou ela com sinceridade.

O homem olhou por cima dos ombros de Vitória.

Ela se esforçou por aplacar sua frustração. Não podia criticar um empregado por sua lealdade.

—Quanto tempo faz que trabalha para Gabriel? —perguntou com amabilidade.

Ele não a olhou.

—Seis anos.

Gastón estava há quatorze anos com o Gabriel.

—Alguém quer matá-lo.

O vigilante voltou a olhar a Vitória.

—Ninguém fará mal a ele na Casa de Gabriel. —Uma determinação letal coloriu sua voz—. Nós o protegeremos.

Sua família.

—Mas neste momento não está na Casa de Gabriel - assinalou Vitória.

—Não. —A frustração que tinha sentido Vitória uns instantes antes se refletiu nos olhos verdes do guarda—. Você tem razão.

Gabriel lutava contra o amor que sua família sentia por ele, igual lutava contra sua necessidade de uma mulher.

—Gabriel poderia morrer. Se não for hoje, poderia ser amanhã.

Da mesma forma que ela podia morrer. Hoje ou amanhã. Podia morrer nas mãos do homem que queria matar Gabriel, ou do homem que tinha escrito as cartas.

O vigilante não respondeu.

—Chamam-no de anjo intocável - insistiu Vitória desesperada.

O resplendor nos olhos cor verde esmeralda freou bruscamente a Vitória.

—Os que trabalham na Casa do Gabriel sabem o que é o senhor Gabriel.

E não discutiriam esse tema com um estranho. Vitória sentiu aquele rechaço em todo seu corpo.

—Acredito que ele merece ser amado - disse Vitória em voz baixa, ocultando sua própria dor. Ambos mereciam ser amados antes que fosse muito tarde—. Eu gostaria de amá-lo, e gostaria que você me ajudasse.

—Eu não posso ajudá-la, senhora. —O homem piscou—. Perderia meu emprego.

Mas queria lhe ajudar. Queria que Gabriel encontrasse o amor. Todos queriam que Gabriel encontrasse o amor.

—Ninguém tem por que saber nada disto exceto você e eu - assegurou Vitória.

—Nesta casa não há segredos, senhora.

—Em todas as casas há segredos - corrigiu ela.

Tinha havido segredos na casa de seu pai, um homem com uma reputação irrepreensível.

—Não tenho a chave dos quartos do senhor Gabriel; se sairmos, depois não poderá voltar a entrar.

A esperança renasceu em Vitória.

—Certamente alguém mais que Gabriel terá uma chave.

—O senhor Gastón tem uma.

Vitória apertou a seda de sua saia com o punho.

—Explicarei ao senhor Gastón a razão pela qual precisamos que nos empreste a chave.

O vigilante já não parecia imperturbável, e sim apanhado. Dividido entre a lealdade de vigiar a porta como tinham ordenado e o desejo de contribuir para proporcionar a seu patrão um pouco de felicidade.

Seu rosto se iluminou tão subitamente como se escureceu.

—Me siga.

Vitória sorriu. Durante um instante, seu sorriso reverberou nos olhos verdes esmeralda do homem. Ele deu meia volta e desceu pela estreita escada, iluminada com uma luz brilhante. Quando chegou no final parou, com a mão sobre o pomo de bronze da porta. Vitória recordou à mulher aterrorizada que tinha subido aquelas mesmas escadas atrás de Gastón duas noites antes. Essa mulher tinha acreditado que podia permitir uma só noite de desenfreio sexual sem ver-se afetada. Mas já não era a mesma pessoa.

A porta dava para o salão. Uma criada se inclinava sobre uma mesa coberta com uma toalha de seda branco, enquanto colocava uma vela no candelabro de prata. Seu cabelo grisalho estava recolhido em uma rede para cabelo negra. Parou o vê-los entrar.

Vitória estava segura de que a criada sabia quem era. A mulher sorriu, demonstrando uma enorme calor em cada ruga de seu rosto.

—Boa tarde, senhora. Julien.

Falava com um forte acento dos bairros baixos de Londres. O guarda fez um gesto de assentimento.

—Boa tarde, Olhe - disse, e se apressou a conduzir a Vitória para as escadas luxuosamente atapetadas de vermelho no extremo oposto do salão.

As portas pintadas de branco acetinado do primeiro andar eram claramente visíveis do salão. Uma criada com touca empurrava um carrinho de madeira carregado de lençóis e toalhas pelo corredor da parte superior. Sua silhueta podia ver perfilada através do corrimão circundante. Vitória subiu as escadas lentamente, olhando para as filas de mesas cobertas de brancas toalhas do piso inferior, virando a cabeça para ver o lugar misteriosamente brilhante de onde Gabriel a tinha observado e dado lances por ela.

Sempre haviam dito que o pecado era horrível, mas a Casa de Gabriel era tão linda e elegante como seu proprietário. O abajur que pendurava do teto sobre as escadas era de luz elétrica; milhares de cristais diminutos resplandeciam nela. Vitória pensava que o Palácio da Ópera era o único edifício público com iluminação elétrica, mas naquele momento se deu conta de que estava enganada. Em toda a Casa de Gabriel havia eletricidade - as aranhas, os spots de parede— exceto nas mesas do salão, iluminadas com candelabros. O corredor da parte superior, em forma de L, estava coberto por um groso tapete. No final do corredor que girava à direita, uma escada curvada que levava ao segundo andar estava iluminado por outra aranha. O homem que a acompanhava abriu com um movimento brusco a porta branca mais próxima às escadas, sobre a qual aparecia um número sete dourado. O quarto tinha um tapete verde escuro e a cama estava coberta por uma colcha de seda amarela. Não havia janelas. Devia estar protegida dos olhares do exterior, apesar de que ela a tinha visto através do espelho transparente a noite anterior.

Ali, diante ela, estava a grande janela em forma de espelho, com um marco dourado muito elegante, como o resto do quarto, com uma aparência totalmente inofensiva, justamente o contrário do quarto. Vitória não reconheceu à mulher refletida no espelho.

O cabelo da nuca se arrepiou. Alguém estaria olhando-a?..... Mas, de repente, ao ver seu guardião a seu lado, deu-se conta de que as pessoas do espelho não olhavam através dele, mas sim estavam refletidas ali. Vitória não estava olhando a imagem de uma estranha. Tratava-se dela mesma. O delicioso tecido cor de creme com seu estampado verde, amarelo e vermelho escuro conferiam uma nova dimensão a seus quadris, e o profundo e estreito decote de seda bordado de um cordãozinho marrom dourado destacava sutilmente seu pescoço e seu seio. Madame René era um gênio. Sendo plenamente consciente de si mesma, do espelho transparente e do guarda que observava de pé a seu lado, saberia Julien o que havia atrás do espelho? Vitória entrou no quarto.

Um bote branco de boca larga repousava na mesinha de noite junto a uma lata prateada cheia de camisinhas. A lata tinha as palavras A Casa de Gabriel estampadas, o mesmo que havia na mesinha do quarto de Gabriel. Julien observava em silêncio cada movimento de Vitória da porta. Por sua vez, ela podia vê-lo no espelho. Ela abriu a gaveta superior da mesinha e encontrou os instrumentos em forma de pênis que Gabriel tinha mencionado. Godemichés, tinha-os chamado. Eram... Muito reais.

Um era pequeno, outro médio e outro... Uma risadinha fez cócegas na garganta, ao recordar o conto de fadas dos irmãos Grimm Reizinho de Ouro e os três ursos... Era do tamanho perfeito. A sua mente acudiu a lembrança de sua mãe com Daniel no colo. Ele tinha quatro anos e Vitória oito, sentada a seus pés, atenta a um conto de fadas que ela lia. Vitória evocou sua voz melodiosa, mas não pôde recordar que conto estava lendo, só algumas palavras: Sei, disse o anjo, por que... Conheço bem minha própria flor.

Teria encontrado sua mãe a felicidade com outro homem? Perguntou. Estaria viva? Ou talvez ter amado um homem a tinha matado também? Vitória tocou um Godemiché de couro duro, recordando a longitude e a grossura de Gabriel.

Meço mais de vinte centímetros. Seu corpo estremeceu com a lembrança de seu prazer. Retirou rapidamente a mão.

O homem de cabelo castanho avermelhado continuava imperturbável. Parecia que não se sobressaltava por nada.

Fechou apressadamente a gaveta superior e abriu à segunda. Continha uma variedade de compridos lenços de seda.

Vitória tinha visto os usos que podiam dar aqueles lenços. Imaginou Gabriel atando suas mãos por cima de sua cabeça e suas pernas totalmente abertas as barras da cama. Imaginou a si mesma amarando Gabriel. A mulher do quarto vermelho tinha prendido o homem com o que estava, e sentando-se sobre ele, tinha-o montado como se fosse um cavalo. Percebia-se uma sensação de liberdade no abandono da mulher, e uma confiança infantil no homem escravizado. Vitória não tinha conhecido nem liberdade nem confiança em sua vida. As teria conhecido Gabriel? Ele havia dito que não existia nenhum ato sexual que não tivesse realizado. Alguma vez teria amarrado uma mulher para lhe dar prazer? Teria permitido que o atassem? Imediatamente, a imagem de um homem acorrentado cruzou por sua mente. Fechando com cuidado a segunda gaveta, Vitória abriu a terceira e última. Uma espécie de chicote de seda atada e uma vara de couro. Das paredes e do teto penduravam ganchos de cobre.

Tudo... Tudo. Vitória fechou a última gaveta. Julien tinha razão. Não havia nada ali que a ajudasse agradar Gabriel.

Endireitando-se, Vitória vislumbrou uma lata pequena escondida entre o bote branco de creme e a lata prateada de camisinhas.

Um sorriso iluminou seu rosto. Era uma lata de balas de hortelã. Estampadas sobre o metal se liam as letras Menta surpreendentemente forte, seguidas da marca Altoids. Pegou a pequena caixa retangular e a mostrou ao guarda.    

—Alguém esqueceu suas pastilhas de hortelã.

—Ninguém as esqueceu. —O rosto do guarda conservava sua expressão imperturbável, com os olhos verdes esmeralda impenetráveis—. São para os clientes.

O sorriso de Vitória se apagou.

Menta para o mau hálito.

—É muito generoso da parte de Gabriel - disse sobriamente, baixando a mão, para deixar a caixa sobre a mesinha.

—Pode levar lata de Altoids. Essas balas são mais fortes que os de outras marcas. Chupe uma pastilha e tome o senhor Gabriel com sua boca. Ele gostará.

Vitória olhou o vigilante, surpreendida. Seu rosto era inescrutável.

—Desculpe?

—Pode levar a lata de Altoids. Essas balas são mais fortes que os de outras marcas. Chupe uma pastilha e tome o senhor Gabriel com sua boca. Ele gostará.

Vitória se surpreendeu de que o calor que transpassou o corpo não derretesse os caramelos. Julien deu um passo para trás, até que sua costa tropeçou com a porta, lhe assinalando claramente que era hora de partir.Vitória esteve completamente de acordo.

Agarrando os Altoids, deu meia volta e olhou para a janela oculta que os olhos dos clientes não era mais que um espelho.

A mulher de cabelo escuro que aparecia refletida nele era elegante e esbelta, não esfarrapada e esquelética. O rubor de seu rosto combinava com os adornos de veludo vermelho escuro de seu traje. O vigilante de cabelo castanho avermelhado se refletia de perfil no espelho, sua casaca negra em marcado contraste com a cor marrom dourada do traje de Vitória. De repente, ambos desapareceram e, em seu lugar, apareceu um homem só de cabelo negro. Vitória abriu os olhos desmesuradamente. Depois piscou como se estivesse vendo uma alucinação. A imagem dela e do Julien voltaram para os espelho. Da terceira pessoa não havia nem rastro. Só eles dois. O vigilante e Vitória. Piscou de novo.

—É hora de partir - disse Julien.

Vitória estava ansiosa por escapar do elegante quarto. De pé na soleira, com o coração desbocado, deu uma rápida olhada sobre seu ombro no espelho prateado.

Era um espelho, não uma janela transparente.

—Vi-a olhando na gaveta inferior.

Vitória deu um pulo e levantou rapidamente a cabeça.

Os olhos esmeralda olhavam fixamente os seus.

—Você não está acostumada com casas como esta.

Não havia necessidade de negar algo que era óbvio.

—Não - admitiu Vitória—. Não estou acostumada a casas como esta.

—Nos bordéis usam correias e chicotes de nove nós, em lugar de seda atada e varas.

Vitória não precisava perguntar como Julien tinha adquirido esses conhecimentos. Podia percebê-lo em seus olhos verde esmeralda.

—A Casa de Gabriel não é um bordel - disse Vitória.

—Não, senhora, não é. —Lembranças lúgubres foram aos olhos do Julien—. A Casa de Gabriel é mais segura que um bordel. Tanto para os clientes como para os prostitutos e prostitutas.

Vitória se mostrou interessada. Talvez Gabriel pensasse que seu local era um lugar de pecado, mas...

—Você aprova a casa de senhor Gabriel - afirmou com curiosidade.

—Sim - respondeu com convicção o homem de cabelo castanho avermelhado.

Vitória sorriu com calidez.

—Eu também, senhor Julien. Vamos ver se encontrarmos monsieur Gastón?

Não tiveram que buscá-lo. Estava-os esperando ao pé das escadas.

Em seus olhos se via o olhar do homem da rua que alguma vez tinha sido.

Perderei meu emprego, havia dito Julien.

Gastón abriu a boca...

—A culpa é minha, monsieur Gastón. Queria visitar um dos quartos dos clientes para... —Vitória respirou fundo, não havia maneira de dizer o de forma mais suave— ver se havia algum instrumento que pudesse ajudar a agradar monsieur Gabriel.

Gastón fechou a boca com um ligeiro rangido. Depois se recuperou do sobressalto.

—Espero que mademoiselle não tenha ficado... Surpresa... Ao ver os... Artefatos.

—Au contraire, senhor. —Vitória lhe mostrou a lata de balas de hortelã—. O senhor Julien teve a amabilidade de me recomendar que provasse com isto.

O calor vermelho que palpitava nas faces de Vitória tingiu as bochechas de Gastón.

—Merci, mademoiselle. Não mencionaremos este incidente monsieur Gabriel para não arruinar a surpresa de seu presente.

O vigilante de cabelo castanho avermelhado relaxou um pouco. Vitória sorriu.

—Obrigado, senhor Gastón.

—Não deve fatigar-se, mademoiselle. Acompanhe a mademoiselle de volta aos aposentos de monsieur Gabriel, Julien.

Aos aposentos. A porta que conduzia à galeria de janelas transparentes estava no estúdio de Gabriel. Vitória abriu a boca para lhes informar sobre o homem a quem tinha visto através do espelho transparente, mas a fechou imediatamente. O que tinha visto, na realidade? Só uma sombra momentânea... De cabelo negro. Seu próprio cabelo, em condições apropriadas, parecia negro.

Julien havia dito que só Gastón e Gabriel possuíam chave daquelas salas. A imagem no espelho poderia ter sido unicamente um engano provocado pela luz.

—Obrigado, monsieur Gastón. Tem toda a razão. —Vitória ia precisar de todas suas energias para a noite—. Não devo me fatigar.

Gastón precedeu Vitória pelas escadas privadas que conduziam à sala e quarto de Gabriel. Julien a seguia de perto.

Apesar daquela escolta de homens fortes, por que não se sentia segura? Ao chegar ao patamar, Gastón tirou uma chave de bronze brilhante e abriu a porta. Vitória entrou, afundando seus pés no luxuoso tapete vermelho. O estúdio de Gabriel estava vazio.

Que tola tinha sido ao esperar que Gabriel já estivesse de volta. Gastón se dirigiu ao escritório e recolheu a bandeja de prata com os pratos parcialmente vazios.

—Mademoiselle deveria comer mais. Talvez a comida não foi que seu agrado.

Vitória ficou rígida. Não estaria zombando de sua magreza...

—A comida era excelente. Por favor, felicite ao cozinheiro de minha parte. Comerei com Gabriel quando retornar.

Gastón fez uma pausa na soleira, com a bandeja habilmente colocada em uma mão.

—Mademoiselle.

Vitória procurou preparar-se para o que viesse.

—Sim?

Gastón não a olhou de frente.

—Os Altoids têm um efeito extraordinário quando se permite que se dissolvam lentamente na boca enquanto se prova ao mesmo tempo a bitte de um homem. Isso se obtém melhor segurando a pastilha dentro da bochecha e não na língua.

A porta se fechou suavemente. Vitória tocou as faces com as mãos. A lata e suas mãos se esquentou rapidamente, e não conseguiu refrescar seu rosto.

—Mademoiselle.

Durante um instante, Vitória acreditou que Gastón falava do outro lado da porta. Não tinha sido isso. Com o coração golpeando fortemente suas costelas, Vitória deu meia volta. Um homem de cabelo negro estava de pé a poucos centímetros dela. Segurava um comprido lenço de seda azul entre seus dedos longos e elegantes.

—Como vai, mademoiselle Childers? —Um fôlego morno acariciou sua cara—. Agrada-me muito voltar a vê-la.

 

CAPITULO 23

 

O senhor Delaney não está em casa - informou a Gabriel o mordomo de rosto pétreo.

—Mas a senhora Thornton me disse que estava aqui. —Gabriel sorriu amplamente. atrás de seu encantador sorriso, maquinava sobre qual poderia ser a melhor maneira de desarmar o mordomo. Era um pouco mais velho que Gabriel e um pouco mais baixo que ele, mas mais robusto. Atrás do mordomo, Gabriel podia ver uma escada que subia do vestíbulo; um corrimão de madeira polida e um estreito tapete verde subiam até perder-se de vista. Não havia ninguém nas escadas nem no corredor iluminado com gás—. Estou certo que gostaria de me ver.

—Lamento, senhor. —A voz do mordomo adquiriu um tom ligeiramente cínico—. O senhor Delaney não está em casa.

Poderia estar dizendo a verdade. Ou poderia estar mentindo. Em seu rosto podiam ver-se ainda as cicatrizes profundas da varíola. Em muitas casas não contratariam um homem com um rosto como aquele. Um mordomo como ele toleraria muitas manias de um patrão. E inclusive podia haver-se beneficiado da afeição de Delaney de ameaçar empregadas desprotegidas. Havia mulheres, inclusive prostitutas, que não se deitariam com um homem desfigurado. Talvez Delaney entregasse ao mordomo as empregadas que ele abandonava. A névoa amarela penetrava pela porta aberta.

—É um assunto urgente - disse Gabriel em um tom de voz agradável. Recostando-se sobre sua bengala para mantê-lo direito, desenroscou o punho de prata fazendo girar lentamente a palma de sua mão esquerda—. Se me indicar onde posso encontrar ao senhor Delaney, poderíamos evitar uma situação desagradável.

Era a única advertência que pensava fazer Gabriel.

—Não sei onde está o senhor Delaney. —O mordomo não percebeu o perigo—. Se me deixar seu cartão, entregarei a ele quando voltar.

O sorriso de Gabriel não se alterou. Levantando a mão direita como se fosse tirar uma penugem de seu casaco de lã, agarrou ao mordomo pelo pescoço. Ao mesmo tempo, tirou a espada curta da capa da bengala oca. Empurrou o mordomo para o vestíbulo.

Delaney podia estar na parte de cima ou na de baixo. E até podia não estar como acabava de dizer o mordomo. Logo descobriria.

O mordomo não era como Peter Thornton. Tentou lutar. Gabriel não pôde esquivar o primeiro murro que o golpeou na mandíbula. Empurrou fortemente o mordomo contra uma parede em que penduravam as fotografias de família. Um vidro quebrou, caindo feito pedacinhos; uma fotografia com moldura de prata caiu no chão. Os vidros rangeram sob o pé do mordomo. Gabriel afundou a ponta da espada no pescoço do mordomo, bem em cima da noz que subia e baixava; depois apertou o pescoço com seus dedos embainhados nas luvas de couro negro. Três noites antes não haveria tocado homem; agora empurraria qualquer um para proteger Vitória. Com as pupilas dilatadas pelo medo, o mordomo ficou quieto. A respiração pesada se impôs sobre o eco de vidas destruídas.

—Como acabo de dizer - ronronou Gabriel—, poderíamos evitar uma situação desagradável.

Pelas escadas atapetadas, ouviram-se pisadas amortecidas.

—O que significa isto?

Gabriel ficou paralisado. A voz que procedia de acima não era nem servil nem masculina. Gabriel não tirou os olhos de cima do mordomo.

—Peça ajuda senhora Collins! —Pela testa do mordomo escorregava o suor; e a luva negra do Gabriel se salpicou com umas gotas de sangue—. Por favor!

O mordomo não pediria a um cúmplice que chamasse à polícia; imploraria uma ajuda mais imediata. Gabriel podia continuar agarrando o mordomo ou podia deter a mulher. Não podia fazer ambas as coisas ao mesmo tempo. Arriscou-se.

—Senhora Collins, se mover-se, corto o gogó deste homem —disse sem demora—. Podem transcorrer muitos minutos antes que morra, mas asseguro, morrerá. Você pode impedir sua morte.

E a sua também, não havia necessidade de acrescentar. Gabriel pôde sentir a indecisão da mulher. Queria ajudar o mordomo, mas por suas veias palpitava com igual força o instinto de sobreviver. Imobilizada pelo medo, ficou ali parada. Era óbvio que nunca antes enfrentou à violência ou à morte. Gabriel procurou tirar proveito de seu estupor.

—Se me ajudar, senhora Collins, ninguém morrerá.

—Eu... O que... —Sua voz tremia—. O que quer? Minhas jóias estão... Sou uma convidada. Esta é a casa de meu irmão. Só tenho minhas pérolas e...

—Onde está Mitchell Delaney, senhora Collins? —interrompeu-a Gabriel.

Os músculos do mordomo se contraíram.

Gabriel apertou com mais força seu pescoço, enquanto pressionava com a ponta da espada.

—Não se engane, o matarei - murmurou brutalmente. E em seguida, em voz mais alta, mais amável, mais suave, adicionou—: Não quero suas jóias, senhora Collins. Só quero falar com seu irmão. E depois matá-lo.

—Mitch... Meu irmão não está em casa.

A senhora Collins dizia a verdade. O mordomo resfolegou, procurando ar.

—Quem é você? —perguntou imperativamente à senhora Collins. A autoridade se sobrepôs ao medo—. Exijo que solte Keanon.

Gabriel não queria fazer mal a aquela mulher. Mas o faria.

—Você tem empregada, senhora Collins? —perguntou, olhando fixamente ao mordomo.

As marcas de varíola se destacavam em seu rosto lívido. Keanon tinha medo. Conhecia o segredo da coleção de empregadas de Mitchell Delaney.

—Sim, certamente, mas não sei que relação pode ter isso com...

—O seu irmão gosta das professoras. —Gabriel introduziu um pouco mais a ponta da espada na garganta de Keanon, fazendo brotar mais sangue. Ao mesmo tempo, afrouxou os dedos que rodeavam o pescoço do mordomo—. Diga-lhe como Delaney gosta das professoras, Keanon.

O mordomo viu a morte no olhar de Gabriel.

—Ele... —respondeu com voz rouca; um filete de sangue deslizava pelo pescoço—. Eu não tive nada que ver com isso, senhora Collins.

Não era suficiente.

—Diga à senhora Collins do que você está falando exatamente -ordenou com suavidade Gabriel.

O mordomo titubeou. Temia que Delaney o despedisse ou que Gabriel o matasse. A ameaça contra sua vida ganhou a partida.

—O senhor Delaney, ele... Ele tem um lugar especial no sótão. —Uma mancha vermelha sujou o pescoço branco engomado do mordomo—. Ele traz aqui a mulheres...

—Meu irmão é solteiro. —A indignação moral se deixou aparecer na voz da senhora Collins—. Não é assunto dele se trouxer mulheres a sua casa.

Vitória tinha estado durante dezoito anos a mercê de mulheres como à senhora Collins, mulheres que se escondiam arás de sua virtude para sentir-se a gosto com suas vidas e seus homens. Nunca mais.

—Seu irmão aterrorizou a minha mulher, madame —disse Gabriel suavemente—. Sim é meu assunto.

Os olhos do mordomo se abriram de par em par, sobressaltados. Supunha-se que as mulheres às que ele e seu patrão aterrorizavam não tinham homens que as protegessem. Que as cuidassem. Que as amassem. O som dos cascos de um cavalo solitário que se aproximava se sobrepôs à dificultosa respiração do mordomo. A irmã de Delaney só tinha que gritar...

—Se meu irmão for culpado de práticas desprezíveis, essas mulheres teriam que ter informado à polícia.

A senhora Collins continuava se escondendo atrás de sua riqueza e sua virtude. As professoras eram pobres; Delaney era rico.

Nenhum policial o prenderia.

—Você ama seu irmão, senhora Collins? —perguntou Gabriel em tom impessoal.

O cavalo solitário estava já à altura da casa; o fraco chiar das rodas do carro cantarolava entre a neblina noturna.

—É obvio que amo meu irmão! —exclamou a senhora Collins—. É dever de uma mulher virtuosa amar a sua família.

Sem importar os defeitos que tenha. Mas ela não admitiria isso, e muito menos o confessaria. Gabriel se perguntou como Vitória, aos dezesseis anos, tinha conseguido reunir a coragem suficiente para deixar seu pai. O chiar da carruagem se perdeu na neblina e na distância; os cascos do cavalo se foram silenciando até se transformar em um eco moribundo.

—Então não quer que matem seu irmão - disse Gabriel em um tom de voz neutro.

—Claro que não - replicou a irmã de Delaney, tomando uma ruidosa baforada de ar, sem dar-se conta de que o carro que acabava de passar poderia ter sido sua salvação.

—Mas vão matá-lo... —a senhora Collins afogou um grito; a névoa amarela envolveu o rosto lívido do mordomo— se não conseguir o encontrar antes que o faça outro homem.

Gabriel mentiu. Ou talvez não. Não sabia se Delaney trabalhava com o segundo homem. Só descobriria quando o encontrasse.

De qualquer forma, era um homem morto.

—Meu irmão não... Não me disse aonde foi.

A senhora Collins voltou a dizer a verdade.

Um brilho estranho apareceu nos olhos do mordomo. Uma cor verde pálida rodeava suas pupilas dilatadas.

—Você sabe onde está, Keanon - disse Gabriel com voz sedosa.

Os aros gêmeos de cor verde pálida desapareceram; os olhos do mordomo se transformaram em dois buracos negros de terror.

—Não sei - ofegou.

Era Delaney um assassino? Especulou Gabriel. A quem temia mais Keanon, a ele ou Delaney?

—Sim sabe - sussurrou Gabriel—. Mas se não souber, na realidade não há razão pela qual não deva matar a você, não é certo?

—Não sei! —gritou agudamente o mordomo.

Só uns milímetros de pele separavam a ponta da espada do Gabriel da traquéia do mordomo.

—Respire profundamente, Keanon - disse Gabriel suavemente—. Será a última vez que o fará.

O que ficava da lealdade de Keanon se dissipou em uma onda de terror.

—Disse que iria a pela professora! —balbuciou-—. Isso é só o que sei! Eu juro é só o que sei!

O sangue gelou nas veias de Gabriel. Vitória estava na casa de Gabriel. Mas sabia Delaney? Ou planejava ir procurar ela no quarto em que tinha vivido até então?

—Ele sabe onde ela está? —resmungou Gabriel.

—Não sei! Não sei! Juro por Deus que não sei!

Havia tantas pessoas que não sabiam nada.

—Há mulheres no sótão agora, Keanon?

—Não! Não! Agora não.

Mas o sótão estava preparado para uma mulher. Vitória.

—Você observa enquanto ele violenta as mulheres? —perguntou Gabriel lentamente.

—A senhora Thornton... Ela observa!

Havia mulheres - da mesma forma que havia homens— que obtinham prazer da submissão de outros. Gabriel não duvidou nem um instante ao imaginar que Mary Thornton era uma dessas mulheres.

—Delaney entrega as mulheres a você quando eles terminam com elas? —perguntou.

—Não... —Keanon pensou que talvez era melhor não mentir—. Sim. Mas eu não lhes faço mal. Juro que não lhes faço mal.

Grosas gotas de suor escorregavam pelo rosto picado de varíola do mordomo; uma sensação gelada subiu pela coluna vertebral de Gabriel.

Feridas curavam; as lembranças não. Mas talvez tiravam das empregadas inclusive as lembranças...

—Você mata as mulheres para Delaney e Mary Thornton?

—Não, não! —Os olhos saltados do mordomo ficaram em branco—. O senhor Delaney lhes dá dinheiro para que vivam no campo. Eu as levo ao trem. Juro. Posso lhe dizer onde compraram os bilhetes para...

Golpeou a cabeça de Keanon fortemente contra a parede; meia dúzia de molduras de prata e vidro explodiram contra o chão.

Gabriel olhou fixamente a fotografia de um homem de pé junto a uma árvore, que rodeava uma mulher com o braço. Ele estava à sombra, ela à luz. Seus traços estavam imprecisos, embora seu cabelo parecesse negro. Os traços da mulher eram nítidos; tinha o cabelo oculto sob um chapéu de palha. Era o homem da fotografia Mitchell Delaney? Tinha Delaney o cabelo negro? Era Delaney o segundo homem? Virando-se, Gabriel olhou para as escadas. A irmã de Delaney continuava de pé, no oitavo degrau. Ela era a mulher da fotografia, um ícone da maternidade inglesa. A seus trinta e tantos anos, tinha o cabelo castanho claro recolhido no cocuruto com um coque frouxo. Sua blusa branca e sua saia de lã verde escuro estavam habilmente confeccionadas para realçar seus ombros, marcar uma cintura artificialmente rodeada e dissimular seus amplos quadris. Não havia nada artificial na expressão aterrada de seu rosto. A senhora Collins acabava de aprender que toda família tem um segredo. O esqueleto oculto em seu próprio armário era seu irmão. Gabriel deu meia volta e saiu daquela casa. Recordou de Vitória e a textura de sua língua quando tinha compartilhado com ele o sabor de seu sêmen. Recordou as cartas que Delaney tinha escrito missivas sedutoras que prometiam prazer e proteção. A letra não era do mesmo homem que tinha escrito sobre o guardanapo de seda. Mas também era possível que a letra do guardanapo não fosse do segundo homem. Gerald Fitzjohn se sentou a sua mesa. E podia ter escrito a nota no guardanapo de seda. Não importava. Delaney. O segundo homem. Um homem ia procurar a professora. A Vitória. Essa noite. Uns faróis gêmeos brilharam entre a névoa amarela. Gabriel gritou para chamar a atenção de uma carruagem que passava. O percurso pelas ruas envoltas em um véu de névoa lhe pareceu interminável. Disse que iria pela professora, cantavam as rodas do carro.

Queria que me tocasse... Isso garante minha morte? Gabriel saltou do veículo quase em marcha.

—Ouça patrão! —gritou o condutor—. Deve-me dois xelins!

Gabriel não parou para lhe pagar. Oito badaladas distantes atravessaram sordidamente o manto de névoa. O Big Ben anunciava a hora. As portas de seu estabelecimento abririam dentro de uma hora. Com sua chave particular, Gabriel entrou rapidamente. Farrapos amarelos de névoa se retorciam na escuridão. Seguiu o rastro flutuante do cheiro de polidor de cera, cordeiro assado e perigo. A aranha de cristal sobre a escada dos clientes formava sombras entrecortadas na escura caverna que era o salão. As toalhas de seda branca brilhavam como fantasmas dormidos. Uma vela solitária iluminava um homem de cabelo negro sentado em uma mesa do fundo. Usava uma jaqueta de lã negra sobre um colete branco. Inclinou uma taça de brandy, seus dedos longos cheios de cicatrizes balançaram o cristal morno. Gabriel sentiu todas as antigas emoções que Vitória tinha bloqueado brevemente emergir de novo à superfície. Amor. Ódio. O desejo de ser um anjo. A necessidade de proteger um anjo. A certeza de que ele nunca poderia ser um anjo, mendigo como era. Com a emoção, afloraram também as lembranças de fome em seu estômago, do frio que intumescia a pele, da pobreza que tinha derrubado as barreiras sociais, da luxúria que nunca ardia. O sexo tinha sido a salvação de Michael; um jovem de olhos violetas e cabelo negro tinha sido a liberação de Gabriel. Em silêncio, Gabriel caminhou pelo groso tapete de lã granada, obscurecida pelas trementes trevas. A risadinha de uma criada paquerando com um garçom subiu pelas escadas da cozinha. Michael estava sozinho, como o tinha estado no mole em Calais. Um sentimento de nostalgia se apoderou de Gabriel, pelos vinte e sete anos que se interpunham entre dois jovens de treze anos e dois homens de quarenta. Parou antes de chegar ao círculo de luz que jogava a vela solitária.

—Acreditei que havia te dito que não voltasse aqui, Michael.

Sua voz soou oca dentro do salão cavernoso. Uma reminiscência de outras casas, outros salões.

Em uma hora, a Casa de Gabriel estaria transbordante de clientes, prostitutos e prostitutas. A fumaça de tabaco e a fragrância de caros perfumes camuflariam o cheiro da cera para a madeira e cordeiro assado, transformando os aromas caseiros nos de um botequim. Durante um instante, Gabriel imaginou a casa de campo e a casa da cidade de Michael. Cheirariam a rosas, lilás e jacintos, aromas florais vivos para camuflar um passado salpicado de morte. Michael bebeu um gole de brandy antes de baixar a taça de cristal.

—Não leu os jornais de hoje, Gabriel.

—Me perdoe mon vieux - respondeu Gabriel com um tom de ironia—. Estive ocupado.

No piso inferior, seus empregados estavam terminando de jantar, alguns se preparando para terminar sua jornada, e outros para começá-la. Vitória estaria dormindo ainda? O acolheria novamente em sua cama? Como planejaria Delaney levar-la ao segundo homem? Não parariam até que os dois anjos morressem? Os olhos violetas avaliaram com calma a Gabriel.

—Brigou com alguém.

—As ruas são perigosas - replicou Gabriel, evasivo. A face palpitava pelo murro do mordomo. Agarrou ligeiramente o punho de prata da bengala—. Sempre há alguém tentando tomar aquilo que não lhe pertence.

O brandy de cor âmbar envernizou os lados da taça de cristal; as cicatrizes não tinham afetado a perícia das mãos de Michael nem sua habilidade para agradar às mulheres.

—Quem é ele, Gabriel?

O temor saltou dentro do Gabriel, como um animal enjaulado. Michael não pararia até saber a verdade. O segundo homem não pararia até que dois anjos morressem. Mas só havia um anjo entre eles: Michael. Vitória era a única pessoa viva que conhecia essa verdade. As vidas dos dois estavam nas mãos dela.

—É o segundo homem que me violentou, Michael - respondeu Gabriel, entrando no jogo, morrendo um pouco com cada segundo que passava.

Se subisse junto a Vitória agora, Michel o seguiria e a verdade se revelaria. Ele não podia matar Michael, mas verdade mataria Gabriel. Uma risada masculina saiu da cozinha.

O brandy âmbar dava voltas dentro da taça de cristal.

—Ela te tocou Gabriel.

Gabriel recordou o cabelo molhado de Vitória pregado a seu corpo, seus diáfanos olhos azuis resplandecentes de paixão, seu sorriso ao escutar os eufemismos franceses para designar os testículos de um homem. A mão de Vitória estirando-se para agarrar a sua.

—Sim, me tocou Michael - admitiu Gabriel em tom neutro.

Mataria pelo prazer do contato com Vitória. Uma chama amarela subiu com força. Os olhos violetas de Michael cintilaram com a luz.

—Um artigo na primeira página no The Time detalhava um suicídio e um assassinato.

Gabriel não precisou perguntar quem tinham sido as vítimas. O segundo homem se encarregou dos Thornton. Era muito simples forçar as fechaduras. Delaney ou o segundo homem podiam ter entrado na casa enquanto os serventes estavam ocupados em outros afazeres.

—Sempre há artigos com assassinatos e suicídios nos jornais - respondeu Gabriel—. Do contrário, as pessoas não os compraria.

—Sir Neville Jamieson morreu com um disparo na cabeça.

Um estremecimento de surpresa percorreu as costas de Gabriel. Neville Jamieson era um cavalheiro inglês de quase setenta anos. Nunca tinha estado na Casa de Gabriel. Gabriel encolheu os ombros, fingindo uma indiferença que estava longe de sentir.

—É muito desafortunado.

Michael continuou balançando o brandy na taça, seus olhos violetas tentavam avaliar a situação, enquanto o cristal brilhava com cada volta do licor âmbar.

—Possui uma propriedade em Dover.

Gabriel ficou gelado. Fazia vinte e nove anos o pesadelo tinha começado em Dover. Dois anos depois Michael fugiu e embarcou como clandestino no navio que atracou em Calais. Se Michael não fugisse, Gabriel nunca o teria conhecido. Se não tivesse conhecido Michael, jamais teria conhecido o segundo homem. E teria morrido de fome e enfermidade, ou teria sido assassinado de uma navalhada ou um golpe. Gabriel devia tudo a Michael.

—Não conheço Neville Jamieson - afirmou Gabriel, dizendo a verdade.

Os olhos violetas de Michael estavam alerta, tentando romper a couraça de Gabriel.

—Jamieson era sócio de meu tio.

Sócio...

—Como sabe isso? —perguntou Gabriel bruscamente, abandonando sua atitude distante.

—Anne leu no jornal —A luz da vela tremeu, o âmbar girou uma vez mais, o violeta brilhou—. Ela me contou sobre isso.

A propriedade da Anne Aimes estava em Dover, como a do tio de Michael. Ela saberia. Gabriel se esforçou por entender o jogo que o segundo homem tinha posto em movimento. Tinha matado um cavalheiro do Dover. Mas por quê?

—Quem foi o homem que supostamente matou Jamieson? —perguntou Gabriel tenso.

—Leonard Forester.

Leonard Forester era o arquiteto que tinha redesenhado a Casa de Gabriel. O temor que percorria as veias de Gabriel formou um nó em seu estômago. O jornal não dizia a verdade. Forester não havia se suicidado; tinha sido assassinado. Os dois homens estavam relacionados com o segundo homem. Mas como?

—Por que matou Jamieson?

—Leonard Forester é arquiteto - informou Michael, atento à reação de Gabriel. Os dois homens estavam atados a seu passado—. Jamieson era o dono da empresa em que trabalhava Forester. Gabriel recordou... Os olhos vigilantes que o tinham despertado. A fragrância que tinha impregnado seu quarto. O relatório de John sobre o que tinha descoberto no Clube das Cem Guineas... Lenora deixou plantado tanto a Geraldine como a ele mesmo, e não tinha visto a Lenora depois.

Lenora... Leonard.

Leonard Forester tinha reconstruído a Casa de Gabriel, e tinha feito um passadiço secreto para o segundo homem. E agora estava morto. O segundo homem tinha estado em seu quarto. Delaney. O segundo homem. O de menos era seu nome. Estava na Casa de Gabriel. Tinha a Vitória. Gabriel correu entre as mesas, empurrando uma cadeira ao passar, fazendo cambalear uma mesa, atirando um candelabro de prata.

—Gabriel!

A voz de Michael ressonou surdamente em seus ouvidos; não havia tempo para preocupar-se com a verdade. Subiu os degraus de três em três. Viu Julien desabado diante a porta de madeira, com seu cabelo castanho avermelhado pendurando como um cachecol de seda. O sangue carmesim se estendia sobre a madeira do patamar. Tinha sido degolado. Gabriel soube o que Julien tinha visto: podia sentir a surpresa persistente que sobrevivia à morte como os restos de giz apagado sobre uma piçarra. Julien nunca imaginou que morreria na Casa de Gabriel; nem que ia ser assassinado por um homem ao qual considerava seu amigo. Não havia tempo para lamentar-se. Mais tarde. Mais tarde Gabriel lamentaria a morte de outro irmão sem lar. Mas não agora. Vitória o necessitava.

Gabriel pinçou no bolso de suas calças, procurando afanosamente a chave da porta - merde, onde estava a maldita chave?—. Escutou vagamente um ruído de pegadas que subiam pelas escadas atrás dele. Era muito tarde para proteger Michael.

Muito tarde para salvar Julien... Julien, que tinha confiado muito e tinha pagado essa confiança com sua vida. Agora estava morto. Outra vítima daquele pesadelo que durava já vinte e nove anos. Gabriel encontrou a chave de bronze e a introduziu na fechadura. A porta estava obstruída pelo corpo do Julien. Abriu a força, arrastando consigo o homem em meio de um atoleiro de sangue, e se introduziu no interior. Um som parecido ao giz rangeu debaixo das solas de suas botas. Uns nódulos de pó branco estavam pulverizados sobre o tapete granada. Não foi isso o que lhe chamou a atenção. Delaney e o segundo homem tinham deixado de ser um enigma.

 

CAPITULO 24

 

—Gabriel. —O segundo homem estava sentado sobre o escritório de tampa de mármore negro. Seu cabelo negro tinha reflexos azuis à luz da aranha, seus olhos violetas brilhavam. Um sorriso familiar se desenhou em seu rosto—. Mon ange.

Aquelas palavras arrepiaram a pele de Gabriel. A voz do segundo homem tinha a mesma cadência perita que as vozes de Michael e Gabriel. Tratava-se da voz de um homem que tinha sido instruído para insinuar, seduzir, satisfazer. Vitória estava de pé, entre as pernas separadas do homem, seu vestido de seda marrom dourada com lapelas de veludo vermelho escuro e fundo nata salpicado de verde, amarela e granada em marcado contraste com a seda negra da jaqueta e as calças do homem. Gabriel sentiu lhe estremecerem as vísceras, ao reconhecer a criação de madame René. Sentiu uma opressão no peito ao ver o lenço de seda azul que amordaçava a boca de Vitória enquanto outro de seda verde atava suas mãos. O segundo homem acariciava a sua face com uma faca Bowie serrilhada. Era a faca de Gabriel. Uma faca cujo único propósito era matar. Sem dúvida tinha matado Julien.

Brincava com o cano azulado de uma pistola no laço de veludo granada do ombro esquerdo de Vitória; uns dedos longos e afiados sustentavam com ligeireza o revólver Colt de dobro ação. Estava preparado para disparar uma única bala.

Os olhos violetas olharam além de Gabriel.

—Michael. —O sorriso do segundo homem se ampliou-. Que agradável te ter conosco.

O sobressalto de Michael e Vitória foi evidente. Ao olhar o segundo homem, Michael viu si mesmo como era antes das cicatrizes que tinha deixado o incêndio; ao ver Michael, Vitória se deu conta de que o homem que a segurava não era aquele cujo nome se devia a sua habilidade para agradar às mulheres. Gabriel não se surpreendeu nem se sobressaltou ao ver o rosto do homem. Deveria ter sentido satisfação ao enfrentar enfrentá-lo, mas não sentiu.

—Fecha a porta, s'IL vous plait —pediu o segundo homem, agradado pela reação de seu público—. Não queremos que mademoiselle Childers se morra de frio.

O regozijo que produzia sua astúcia brilhou em seus olhos violetas. A Vitória não ia morrer de frio. Se Michael corresse em busca de ajuda, estava advertindo o homem, mataria a mulher que havia tocado Gabriel. Naquele instante. Com uma faca. Ou com uma só bala. E não havia nada que Gabriel pudesse fazer para evitá-lo. O suave rangido da porta fechando-se transpassou a espinha dorsal de Gabriel.

—Acredito que convém fazer as apresentações. —O segundo homem falou com uma cortesia encantadora; tinha usado aquela mesma cortesia insinuante quando Gabriel estava acorrentado, incapaz de lutar contra ele mesmo nem contra o homem que se parecia com o Michael, mas sem um ápice de sua bondade—. Gabriel, sem dúvida reconhece Delaney; parece-se muito com sua irmã, não te parece? Mademoiselle Childers, apresento-lhe Michel de Anges, assim chamado por sua habilidade para agradar às mulheres. Michael apresento-lhe mademoiselle Childers, a mulher que vendeu sua virgindade a Gabriel. Delaney, certamente terá ouvido falar de Gabriel e Michel, eles deux anges; são muito belos, não lhe parece? Embora infelizmente Michael agora tenha cicatrizes. O estúdio com as paredes cobertas de livros se transformou em um estreito sótão, as capas de couro com letras douradas se transformaram em sombrias correntes cinza. Delaney olhou nervosamente para os dois homens, e depois para Vitória, agarrando em sua mão direita uma pistola de culatra de madrepérola. Seu cabelo era negro e engomado; seu fino bigode se curvava em um sorriso perpétuo. A diferença do segundo homem, não esperava dois anjos. Gabriel quase pôde apalpar as suas costas como Michael montava as peças do quebra-cabeça e soube o momento exato no que se deu conta da identidade do segundo homem.

—Adivinhou quem era meu pai, mon cousin - disse o segundo homem com autêntico regozijo.

—William Sturges Bourne - respondeu Michael com voz neutra.

O conde de Granville. Gabriel o tinha matado fazia seis meses.

—Seu tio - afirmou o segundo homem com ar de suficiência.

O tio de Michael tinha sido o primeiro homem; seu filho, o primo de Michael, era o segundo homem. Aquele homem tinha destruído a vida de Michael e depois tinha enviado seu filho para destruir a de Gabriel. Tudo pelo amor inocente que se professavam dois jovens de treze anos. Os olhos violetas de Michael enfrentaram aqueles outros olhos violetas.

—Não considero o William Sturges Bourne meu parente - disse Michael com desdém.

Um tronco desabou na lareira, deixando um rastro de faíscas.

O sorriso não se apagou daquele rosto parecido com o de Michael, embora sem as horríveis cicatrizes.

—E, entretanto herdou seu título, conde de Granville.

Um título que Michael nunca tinha reclamado. Gabriel agarrou com força o punho de prata de sua bengala.

Os olhos violetas se cravaram subitamente em Gabriel.

—Solta a bengala, Gabriel, ou gravarei suas iniciais na face de mademoiselle Childers. Um “g” por garçon. Um “c” por isso. Um “f” por fumier. Moço. Bastardo. Lixo. Vitória procurou Gabriel com seu olhar. Entre eles fluíram os pensamentos: o tamborilar da água, o contato dos corpos palpitantes. O eco da confissão de Gabriel. A convicção de que o segundo homem tinha escutado todas suas palavras, sendo testemunha de toda sua intimidade. Os gritos de dor e de prazer de Vitória. As necessidades de um prostituto. Tinha exigido que ela compartilhasse a luz de seu prazer e a tinha conduzido a aquela situação. Uma linha escura de sangue se formou na face de Vitória, uma pequena advertência feita com a ponta da faca Bowie. Vitória permaneceu muito quieta, incapaz de fugir das conseqüências de haver tocado um anjo. O segundo homem não faria uma segunda advertência. Gabriel tinha prometido que daria sua vida pela dela. E o faria. Soltou a bengala.

—Muito bem, mon ange. —O segundo homem sorriu, mostrando uma fileira de reluzentes dentes brancos—. Agora, com o pé, manda-o para mim.

De um chute, Gabriel empurrou a bengala para a mesa, que foi explodir com uma pequena lata de cor vermelha e branca que dizia Altoids, até parar em um dos pés da mesa. Gabriel se deu conta de que a substância que se pegou à sola de suas botas e os pós brancos pulverizados sobre o tapete granada eram pastilhas de hortelã. A ira arrepiou o cabelo da nuca.

—Você disse que não lhe faria mal, Yves - gritou Delaney; a luz brilhava sobre seu cabelo engomado—.Combinamos que mataria Gabriel e depois a levaríamos. Não me disse que haveria outro homem. Isto não foi o que planejamos.

Yves. Poderia ser o nome do segundo homem. Ou podia ser um nome falso. Não importava. Depois de quatorze anos, oito meses, três semanas e um dia, Gabriel podia associar um nome diferente de Michael a seu rosto.

—Delaney, deve aprender a ser mais considerado, amigo - disse Yves, sem deixar de olhar para Gabriel um instante. A faca serrada acariciava em vez de cortar, estendendo o filete de sangue carmesim pela pálida face de Vitória—. Gabriel gosta bastante de mademoiselle Childers, não é verdade, Gabriel?

Via palpitar a artéria na base do pescoço de Vitória; o decote de seu sutiã revelava uma sombra leve, o vale entre seus seios.

O revólver Adams pesava debaixo do ombro de Gabriel. Recordou o sabor de seu grito quando a tinha feito alcançar o orgasmo apenas umas horas antes.

—Sim - respondeu com uma voz sem emoção que não pertencia nem a um jovem que tinha querido ser um anjo nem a um homem que tinha desejado tornar-se parte de uma mulher—. Eu gosto de Vitória.

A risada formou rugas em torno dos olhos violeta.

—Gabriel, acha que eu trouxe as pastilhas de hortelã. Sinto te decepcionar, mas são de mademoiselle Childers. Acredito que as pensava usar com você, mas as soltou quando me viu. Foi bastante divertido, mon ange, observar os dois, uma professora que nunca havia tocado um homem aprendendo com um prostituto temeroso de que o tocassem. Ambos desejavam profundamente ser seduzidos. Gabriel sentiu um grande alívio ao ver que Vitória não tinha sido forçada a realizar uma filassem. Mas o alívio logo deu lugar a um sentimento de ira. Pela primeira vez em quase quinze anos, tinha tomado o que desejava. Tinha chegado o momento de pagar o preço.

—Você disse que ele não podia foder com uma mulher - protestou Delaney, apontando perigosamente para Gabriel com sua pistola de madrepérola. Era óbvio que não lhe era estranha; segurava-a habilmente entre seus dedos curtos e efeminados—. Assegurou-me que ela continuaria sendo virgem.

Aquelas palavras provocaram um calafrio em Gabriel. Estaria Vitória a salvo se ainda fosse virgem?

—Vamos, vamos amigo. —Yves nem sequer olhou para Delaney—. Vai ser muito mais divertido foder à mulher de um anjo. Embora, mademoiselle Childers, de verdade eu lamento. Duvido sinceramente que Delaney, aqui presente, pareça-se com l'etalon, o garanhão, que são nossos dois anjos.

Delaney fulminou Gabriel com o olhar, com uma careta presunçosa em seus lábios sob seu bigode perpetuamente sorridente.

Era um homem ciumento, e também estava assustado. Embora ambas as emoções fossem úteis.

—Quanto tempo está vivendo entre as paredes de minha casa? —perguntou Gabriel ao segundo homem.

—Forester foi bastante esperto, não te parece? —gabou Yves; seus olhos violetas eram frios e calculadores—. Eu não gosto do clima inglês, mas, confesso, vê-lo durante estes últimos meses planejando como me apanhar foi uma diversão constante. Vamos, Gabriel, não percebeu minha presença nenhuma vez?

Sim. Gabriel o tinha notado a cada instante, acordado ou dormido, durante os últimos quatorze anos, oito meses, três semanas e um dia. E sobre tudo aquele mesmo dia ao despertar. Gabriel afastou o olhar dos olhos violetas, precisando saber...

—Quem escreveu as cartas, Delaney?

O peito de Delaney se inchou de orgulho.

—Mary e eu. Era parte de nosso jogo.

Um jogo destinado a destruir sistematicamente as vidas de mulheres.

—Por que está aqui?

O orgulho de Delaney se transformou em temor. Moveu nervosamente os pés. Michael se afastou para um lado, sincronizando suas pegadas com as de Delaney. Já teria se dado conta da verdade?

—Vim procurar o que é meu - respondeu Delaney com a agressividade que deriva do medo.

—Mas quem lhe sugeriu que viesse esta noite, Delaney? —insistiu Gabriel, tentando semear a discórdia entre eles—. Foi coisa dela ou de Yves?

—Isso não importa.

Mas importava muito que o tivessem considerado um peão e não se deu conta disso. Estes tipos de homens não sobreviviam em jogos de poder.

—Nunca terá a mademoiselle Childers - disse Gabriel suavemente.

Vitória tinha sido escolhida para Gabriel.

—E quem vai me impedir isso? —replicou Delaney com ironia—. Não acredito que você esteja em posição de me deter.

—Eu impedirei - disse repentinamente o segundo homem—. Seu papel na função terminou Delaney. Fez uma interpretação estupenda, mas chegou o momento da reverência final.

—Ouça...

Em um abrir e fechar de olhos, o segundo homem desviou a arma do ombro de Vitória, apontou e apertou o gatilho.

O estalo do disparo pareceu rasgar o ar. Delaney se chocou com força contra a porta que estava aberta atrás dele, enquanto em sua testa aparecia um buraco redondo, e uma expressão de surpresa suprema se apoderava de seu rosto. Desabou ruidosamente no chão. O fedor da evacuação se percebeu imediatamente. As pupilas de Vitória se dilataram por causa do choque.

—Michael, se der um passo a mais, terei que decidir a quem matar em segundo lugar - disse o segundo homem em um tom de voz agradável—. Isso não é parte do jogo.

Michael ficou quieto.

—Que faz parte do jogo? —perguntou Gabriel com cautela.

Cada palpitação de seu corpo era uma advertência. Yves havia trazido Delaney para mostrar a Gabriel que tinha sido ele quem tinha escrito as cartas; quando deixou de ser útil, tinha-o matado. Yves tinha enviado Vitória a Gabriel; quando ela deixaria de ser útil?

—Logo saberá mon ange - murmurou Yves—. Mas primeiro, me entregue o revólver Adams que tem debaixo da jaqueta.

Gabriel colocou instintivamente a mão debaixo do casaco e da jaqueta de lã; o forro de seda lhe acariciou os nódulos.

A culatra de palisandro da pistola lhe pareceu acolhedora e suave, e sentiu seu peso como uma carga reconfortante.

Tirou-a da capa. Seu dedo médio se curvou automaticamente contra o gatilho.

—Poderia te matar - disse Gabriel provocando-o.

Tinha esperado quase quinze anos para fazê-lo. O segundo homem não fez nenhum intento de defender-se ou disparar.

—Mas não o fará, Gabriel, não é? Porque quando me alcançar à bala, mademoiselle Childers estará já morta.

A mão invisível que oprimia o coração do Gabriel se fechou um pouco mais.

—Acha que a vida dela vale mais para mim que sua própria morte? —perguntou Gabriel com aparente indiferença.

—Quer que descobrimos, Gabriel? —Umas gotas de sangue carmesim rodaram pela face de Vitória. A faca voltou a roçar a ferida—. Mostraremos a Michael e a mademoiselle Childers o pouco que significa para você a carícia de uma mulher?

A dor de Vitória cortou a respiração de Gabriel. Se admitisse que o tivesse comovido profundamente, ela morreria. Se o negasse, morreria igualmente. O segundo homem sorriu com insolência.

—Foi o que pensei. Dolly demorou três meses para encontrar uma mulher para você, mon ange. Eu teria preferido que mademoiselle Childers tivesse os olhos azuis claros e o cabelo castanho escuro; impressionou-te bastante a mulher de Michael, não é verdade? —Pela extremidade do olho Gabriel viu como Michael ficava tenso para ouvir mencionar Anne Aimes—. Mas o azul mais escuro dos olhos de mademoiselle Childers é esplêndido e seu cabelo é magnífico quando está limpo. É inteligente; você se aborreceria rapidamente com uma mulher que não fosse. De modo que esse foi um dos requisitos. E seus olhos, independentemente de sua cor, rogam-lhe que a fodam, não é certo? Isso era muito mais importante que sua cor. Era indispensável, Gabriel, encontrar uma mulher que desejasse o contato com um homem. Mas também necessitava alguém que tivesse conhecimento suficiente das ruas para que simpatizasse com seu passado, mas não muito, se por acaso fosse insensível à história de um jovem mendigo que quis se transformar em anjo. Vitória ficou na defensiva ao escutar as palavras de Yves; Gabriel rezou para que permanecesse quieta. Não permitiria que morresse. Mas não podia impedir que o segundo homem a matasse.

Não permitiria que Michael morresse. Mas tampouco sabia se podia impedir sua morte.

—Como sabe que eu gosto da mulher de Michael? —desafiou-o Gabriel, tentando ganhar tempo para Vitória e para Michael, sabendo que seu próprio tempo já se esgotara.

Yves acariciou fugazmente o cabelo de Vitória; o olhar dela continuava cravado no de Gabriel.

—Cheira a você, Gabriel. Seu sabão. Seu desejo.

O dedo de Gabriel voltou a esticar-se ao redor do gatilho. Só precisava de uma bala...

Vitória morreria antes ou depois do segundo homem? Yves levantou a cabeça.

—Sei que você gostava de mademoiselle Aimes, Gabriel, porque te segui quando vigiava Michael; segui você quando a levou a aquela confeitaria barata. Eu estava na casa de meu pai quando você o matou. Michael me pressentiu essa noite, não é verdade, Michael?

Presa e predador. Gabriel não tinha que ver as cicatrizes de Michael para saber que estavam brancas por causa da tensão.

—Não sabia que era você.

—Não, claro que não. Como poderia sabê-lo, mon cousin? —raciocinou Yves—. Você nem sequer sabia que eu existia. E Gabriel não podia lhe dizer isso, não é? Você acreditava que ele te odiava porque meu pai tinha contratado um homem para que o violentasse, mas não foi assim. Meu pai na realidade me contratou para matar Gabriel; isso teria te machucado, Michael, e ele vivia unicamente para te machucar. É compreensível. A final de contas estava inválido por sua culpa. Entretanto, eu não pude resistir a Gabriel, tão perfeito, tão lindo, tão ofegante de amor. Fui eu quem o violentou, Michael. Gabriel odiava você porque cada vez que te olhava, via-me. E recordava que tinha me suplicado... n'arrête ps... não pare. Agora esvazie o carregador, Gabriel, mon ange, e jogue lentamente a pistola para mim, ou gravarei a letra “s” na face de mademoiselle Childers. “S” porque te fiz suplicar. Os olhos azuis cravaram nos olhos prateados enquanto Vitória digeria o passado do homem a quem tinha querido redimir. Gabriel não podia respirar. Tinha pensado que a verdade o mataria, e assim tinha sido. Gabriel tirou as balas que caíram sobre o tapete.

—Joga a pistola a meus pés.

Os dedos de Gabriel apertaram a culatra de palisandro.

—Com suavidade, Gabriel.

O sangue fresco rodou pela face de Vitória. Em seus olhos aterrados pôde ver que era perfeitamente consciente de haver se transformado ela mesma em uma arma poderosa. Ou talvez estava aterrorizada ao descobrir que espécie de homem era ele.

Gabriel jogou a pistola; ricocheteou sobre o tapete, que deslizou mais à frente da bengala de punho de prata e da lata de pastilhas de hortelã, desaparecendo debaixo da mesa do escritório.

—O que quer? —perguntou com voz tensa.

O que podia querer de dois anjos para ter feito planos tão elaborados?

—Quero que diga a Michael por que o odeia - disse Yves.

A tensão entre os ombros de Gabriel se intensificou. Não podia dizer a Michael. Nem sequer para salvá-lo. Não podia dizer ao menino que tinha amado como um irmão que seu corpo o tinha traído. Nem que tinha olhado nos olhos violetas de Yves - os olhos de Michael— e tinham feito sentir desejo. E não tinha podido fazer nada por evitar.

—Quero que diga a Michael que roubou o nome de um anjo. —Gabriel olhou cegamente os olhos violetas bordeados de negro—. Quero que diga a Michael que nome gritou ao chegar ao êxtase, Gabriel.

Gabriel recordou... Gritar pela inocência que tinha sido sua durante uns breves momentos quando Michael tinha compartilhado com ele a fogaça de pão roubada.

—Não - advertiu Michael com voz áspera.

Naquela única palavra, Michael transmitiu o conhecimento e a dor que Gabriel tinha tentado ocultar durante quase quinze anos.

Os olhos violetas enfrentaram outros olhos violetas.

—Você ama a Gabriel, Michael.

Michael ignorou a insinuação na voz. Gabriel sim a captou.

—Sempre o amei.

—Gabriel matou meu pai por você, Michael. —A faca emitia reflexos prateados, e do cabelo do segundo homem se desprendia uma luz azul.

Não havia fingimento nos olhos ou a voz de Michael.

—Faria tudo por Gabriel.

—Beijaria-o, Michael?

—Sim.

—Chuparia seu pênis?

Michael não hesitou.

—Para salvá-lo, sim.

—Beije-o, Michael, como um amante, e deixarei que a mulher viva. Chupe seu membro e deixarei que todos vivam.

O tempo pareceu congelar-se no fôlego de Gabriel. Uma chama crepitante fez um estalo na lareira. Gabriel finalmente entendeu.

... Agora te trago uma mulher. Uma atriz protagonista, se você quiser. Laissez o jeu commencer. Que comece o jogo.

—Há outra opção, Gabriel. —Gabriel sabia o que Yves ia dizer—. Diga-me que mate mademoiselle Childers e deixarei que Michael viva - disse o segundo homem, subtraindo importância de suas palavras. A morte brilhava em seus olhos violetas—. Ou me diga que mate Michael e permitirei que mademoiselle Childers viva.

Gabriel não sabia que tinha alma, mas tinha que render-se à evidência.

—Por quê? —Aquela pergunta foi arrancada do mais profundo de seu ser.

—Por quê? —zombou o segundo homem—. Meu pai fodeu com uma prostituta argelina em 1849. Dezenove anos depois um homem se aproximou de mim em um bordel e me perguntou se eu gostaria de viajar para Inglaterra e conhecer meu pai.

Michael e Gabriel tinham chegado à Inglaterra em 1868.

—Disse que precisava de mim. —O cano azulado da pistola que brincava com o laço de veludo granada no ombro de Vitória ficou de repente perigosamente quieto—. E que meu pai era rico, e que me faria rico.

Vim à Inglaterra. Descobri que meu pai sempre soube de minha existência. Tinha enviado para me buscar porque um agente havia dito que me parecia com ele. Eu não sabia que você existia, Michael; nem que meu pai havia me trazido porque me parecia com você. Aprendi a falar inglês e a me comportar como um cavalheiro. Aprendi a ser como você, Michael. Para poder te destruir melhor. Lenta e sistematicamente. Mas quando vi que os deux anges, os dois anjos, eram a grande atração tanto na Inglaterra como na França, foi você, Gabriel, que mais me intrigou. Você foi como eu, um mendigo sem lar, embora, pelo menos, a mim minha mãe prostituta tinha me posto nome. Era um ladrão, um assassino, um prostituto. Mas você não desfrutava nem da riqueza nem do sexo, apesar de que os perseguia. E me perguntei por que. Na França, localizei as mulheres às quais você tinha atendido Michael. Aprendi a beijar e a foder como você, porque queria ver o que precisava para destruir um anjo de cabelo loiro. Meu pai pensou que era um plano esplêndido; e que, no futuro, poderia te usar, Gabriel. Acreditou até o fim que eu tinha conseguido destruir a... Digamos irmandade... Que tinha se estabelecido entre dois prostitutos. Mas você demonstrou que estava errado, não é, Gabriel? Como disse madame René, há laços que não se podem destruir. Meu pai me enviou de volta a Argélia com uma boa retribuição. Faz seis meses voltou a me chamar. Você devia matar Michael, Gabriel, e eu tinha que te matar. Ou talvez não. Possivelmente meu pai teria me entregado você. Isso foi o que prometeu, não é? —Yves encolheu os ombros, com um ligeiro movimento; a faca serrada deslizou pela face ensangüentada de Vitória—. C'est a sex. Meu pai deixou uma carta a seu advogado. Sabia que estava morrendo e fez alguns acertos. Em caso de que morresse prematuramente, prometeu-me uma fortuna bastante considerável se eu matasse os dois.

—Eu tenho mais dinheiro do que meu tio jamais possuiu - disse Michael, com o suborno implícito em suas palavras.

Renunciaria a sua fortuna em troca de três vistas. Sua ingenuidade o tinha impulsionado a fazer aquela oferta.

Gabriel era um pouco mais preparado. Uma risada surda agitou o cabelo acobreado de Vitória.

—E certamente, com o dinheiro de mademoiselle Aimes muito em breve a sua disposição, não te faria nenhuma falta, não é, mon cousin?

A voz de Yves vibrou e seus olhos brilharam divertidos.

—Meu pai me ensinou muitas lições valiosas, Michael. Aprendi sob sua tutela que uma bala pode matar, mas essa morte não é tão satisfatória como a morte que se produz ao destruir a alma. A riqueza não se pode comparar. Tive uma imensa satisfação com você, Gabriel, muito mais da que obtive do dinheiro que me pagou meu pai. Sabia que o desejo que te fiz sentir te carcomeria, a você que nunca havia sentido realmente desejo. Sempre foi tão intocável, mon ange, e, entretanto eu te toquei. E agora esta mulher também o fez. Como seria, pergunto-me, se Michael houvesse te tocado? Excitaria-se tanto como comigo? Gritaria, como fez comigo? Quer saber por que estou te pedindo que escolha, Gabriel? Direi por que. Há algo em seu interior que nunca foi tocado, nem por mim, nem por Michael, nem por mademoiselle Childers. Quero ver o que se presiva para romper essa última barreira. Quero vê-lo agora. A opção é sua, Gabriel. Se não tomar uma decisão quando contar três, eu decidirei por você. Um....

Gabriel notou o movimento; não podia deixar de olhar para Vitória, nem de pensar para que final a tinha conduzido.

—Dois...

Não merecia morrer por tocar um anjo. Ele não tinha merecido que o violentassem por amar um jovem de olhos violetas.

Michael não tinha merecido que o tio matasse todas as pessoas que ele tinha amado.

—Três...

Gabriel percebeu mais que viu, Michael caminhar para ele. Ficou ao lado de Gabriel, como sempre tinha feito.

Um jovem faminto de treze anos que tinha compartilhado sua fogaça de pão. Um homem de vinte e seis anos que se negou a deixá-lo morrer. Um homem de quarenta anos que não o julgava, embora soubesse o que era. Deixou de olhar os olhos azuis, nublados pelo conhecimento da morte, para fixar-se nos violetas. Michael parou de frente a ele. Tinha tomado a decisão que Gabriel não podia tomar.

—Gabriel, mon ami - disse Michael com suavidade, seu fôlego com cheiro de brandy pareceu uma cálida carícia.

Os dedos cheios de cicatrizes roçaram as faces de Gabriel; os polegares queimados tentaram deter as lágrimas ardentes sob os olhos de Gabriel. Os olhos de um homem morto. Mas os homens mortos não choravam.

—IL est bem, Gabriel - sussurrou Michael, o cheiro de brandy de seu fôlego se estendeu por seus pulmões—. Está tudo bem, meu amigo.

A emoção brilhou nos olhos violetas de Michael. Uma mistura de aflição pela mulher a que devia desposar dentro de dois dias, compaixão por Gabriel e a decisão que não podia tomar, e a alternativa do amor por um amigo ou o amor por uma mulher.

Um rosto fez desaparecer a aflição, a compaixão, o amor. O rosto de Gabriel. Os olhos de Michael. Uns lábios suaves como pétalas roçaram outros lábios suaves como pétalas. O beijo de um anjo.

 

CAPITULO 25

 

Cheiro. Medo. Ira. Pesar. As emoções em conflito invadiram Vitória até que não ficou espaço para nada que não fosse ira.

Não ia permitir que aquele monstro destruísse Gabriel. Nem que Gabriel morresse. Faria se Michael fizesse o que o segundo homem tinha feito. Então já não haveria possibilidade de chegar ao jovem que quis ser um anjo.

—Não!

O lenço de seda amorteceu seu protesto. Vitória jogou a cabeça para trás e golpeou com ímpeto o rosto do homem que a mantinha imobilizada. O ruído do impacto ressoou no ar. Ao mesmo tempo, Gabriel foi empurrado através do estúdio e bateu contra a parede grafite de azul claro. Uma dor aguda golpeou sua face e explodiu dentro de sua cabeça. A palavra “Michael!” alagou seus ouvidos. O grito de Gabriel. Um grito cheio de dor. Temor. Ira. Desespero. Michael se voltou, com a mão direita levantada; entre seus dedos cobertos de vermelhas cicatrizes se sobressaía um revólver. O segundo homem não estava preparado para Michael. Levantou por reflexo seu próprio revólver. Vitória recuou e caiu para frente envolta em um torvelinho de seda, apoiando automaticamente as mãos atadas com o lenço para deter a queda. Como uma ficha de dominó, o segundo homem caiu para trás sobre a mesa do escritório, com as abas de sua jaqueta negra voando; sua queda foi interrompida pela aguda detonação da pistola de Michael. Michael cambaleou como se tivesse recebido um chute em pleno peito. Um segundo disparo fez explodir o mundo de Gabriel. Vitória viu a mancha rosa carmesim no colete branco do homem a quem chamavam Michel de Anges. Michael, o anjo de cabelo escuro, tinha recebido a bala destinada a Gabriel, o anjo de cabelo claro. Como se estivesse apanhada no interior de uma lanterna mágica que se movia de fotograma em fotograma, Vitória se levantou do tapete granada. Gabriel também estava apanhado dentro da lanterna mágica. Correu, arrastando-se pelo luxuoso pântano de lã que absorvia o corpo de Vitória, e se encontrou imediatamente agarrando a Michael, segurando-o, caindo sob o peso de seu corpo, gritando seu nome enquanto o brilhante sangue carmesim tingia o colete e a camisa de seda branca de Michael. Michael não respondeu. A ira invadiu Vitória.

Aquilo não podia terminar assim. Não ia permitir que terminasse assim. Vitória lutou com a seda em seu intento por ficar de pé. Não podia mover suas mãos atadas. Com o polegar e o indicador da mão direita e o queixo apoiado sobre o braço esquerdo, tirou o lenço de seda da boca. Não havia tempo para saborear o fluxo de saliva que aliviava a boca ressecada. O sangue que rolava por sua face era uma vivida lembrança do que ainda podia acontecer se Yves ainda estivesse vivo. Vitória se dirigiu ao outro lado da mesa do escritório. A gaveta que o homem tinha forçado fazia um momento continha a pistola de grande calibre de Gabriel.

Estava disposta a matar o homem. Se não estivesse morto, ela o mataria. Mataria-o pelo amor que Michael tinha sentido por um anjo de cabelo prateado. Mataria-o pela dor que tinha derrubado Gabriel e tinha parado o tempo. Com mãos trêmulas, Vitória apontou com a pistola para homem que jazia no chão. Uns olhos violetas frágeis olhavam cegamente ao teto. Do nariz que ela tinha fraturado escorregava um filete de sangue. Estava morto. E Gabriel... Gabriel balançava Michael, misturando seu cabelo prateado com o cabelo negro. Balançava Michael em uma silenciosa litania de dor. Vitória soltou a pistola.

—Gabriel - disse com voz rouca.

Não a ouviu. Yves quis destruir aquele sentimento interior que tinha permitido a Gabriel sobreviver à pobreza, a prostituição e a violação. E o tinha conseguido. Vitória se ajoelhou a seu lado. O rosto de Michael estava pálido sob o tom oliváceo de sua pele, fazendo mais destacadas as cicatrizes na borda da face direita. Suas grosas pestanas negras obscureciam as faces.

Vitória estirou a mão, querendo abraçar Gabriel, amar, consolar.

—Gabriel...

A mancha carmesim captou sua atenção. O coração de Michael batia sob a mancha. Vitória a professora entrou em cena.

O coração de um cadáver não bate.

—Está vivo, Gabriel! —Vitória agarrou a mão de Gabriel e a apertou contra o peito de Michael para deter a hemorragia—. Gabriel me ajude.

O sangue quente borbulhou entre seus dedos. Gabriel levantou o rosto, com sua vida fluindo entre seus dedos e os de Vitória; seus olhos estavam negros pelo choque.

—Não - replicou com voz neutra, remota, os olhos mortos—. Deixe-me abraçá-lo.

Vitória não ia chorar por um anjo. Não agora.

—Mantém a mão sobre seu peito, Gabriel - disse furiosa—. Está vivo. Se retirar a mão, morrerá. Apóia sua maldita mão ensangüentada aí!

O jargão de ruas funcionou. Os olhos prateados de Gabriel se enfocaram: em Vitória... Em Michael. No sangue que filtrava borbulhante entre seus dedos. Na vida e não na morte.

—Vou procurar um médico - disse.

A porta não abria.

Vitória empurrou com uma força que não sabia que possuía, até que conseguiu abri-la. Um líquido escuro encharcava o patamar e gotejava pelas escadas de madeira. Sangue. O sangue de Julien. A bílis subiu por sua garganta; engoliu com fúria. Não podia fazer nada para ajudar Julien; mas havia algo que ainda podia fazer por um anjo caído. Vitória pisou no sangue, patinando sobre ele, e se dirigiu às escadas. A porta ali já estava aberta. A luz das velas iluminava o labirinto de mesas, com os candelabros de prata reluzentes e as chamas amarelas dançando. Um garçom com uma curta jaqueta negra parou em seco ao vê-la, com o fósforo suspenso sobre uma vela apagada. Sua bandagem carmesim sangue que rodeava a cintura contrastava com a brancura de seu colete.

Vitória o reconheceu: era o homem moreno que lhe tinha subido a bandeja do café da manhã dois dias antes.

—Jeremy! —gritou—. David! Patrick! Charlie! A moi!

A mim. De repente vários homens correram para Vitória, desencapando armas ocultas debaixo de suas jaquetas negras; passaram correndo a seu lado, usando pistolas com canos azuis. Ela se perguntou o que pensariam quando vissem o segundo homem.

O que tinha pensado Julien quando tinha visto aquilo olhos violetas? Certamente haveria dito surpreso, “senhor Michel”, quando Yves tinha aberto a porta, e depois teria escutado um grito sufocado de fôlego aquoso e o golpe surdo de um corpo caindo sobre a madeira. Yves teria fechado a porta, sorrindo triunfal.

—O que aconteceu?

Gastón estava em frente a Vitória, com a faca desembainhada, reluzindo à luz da vela. Um açougueiro em vez de um administrador. Vitória deu um passo atrás. Gastón agarrou suas mãos atadas e cortou a seda que as segurava. Ela umedeceu os lábios.

—Estão mortos.

Gastón abriu de par em par seus olhos escuros.

—Messieurs Gabriel e Michel?

—Não. Julien. —Seus olhos se encheram de lágrimas—. Julien e... Outros dois homens. Mas não... Gabriel. Michel está ferido. —Pelo bem de Gabriel, Michael não podia morrer—. Precisa de um médico.

—Andy! —Vitória viu um menino jovem olhando por cima de uma mesa. Podia ter cinco anos, ou talvez quinze: alguns dos meninos nascidos nas ruas nunca alcançavam uma estatura normal—. Vá procurar o docteur François. E diga ao Peter que traga mademoiselle Aimes. Mademoiselle Aimes. A mulher de Michael. A mulher a qual Gabriel tinha gostado e de quem o segundo homem tinha tentado encontrar uma réplica. Em vez disso, tinha encontrado Vitória. Andy partiu a toda pressa a cumprir as ordens de Gastón. Com dificuldade, Vitória fez a um lado a dor e o horror das últimas horas.

—Terei que chamar à polícia...

—Não haverá polícia, mademoiselle. —O rosto do Gastón era impenetrável—. Mira, leva a mademoiselle Childers à cozinha. Pierre curará de sua ferida, mademoiselle. E atrás destas palavras, Gastón desapareceu.

Mira olhou para Vitória com olhos duros e brilhantes, a amistosa calidez que mostrava fazia umas poucas horas tinha sido substituída pela consciência do frio, a fome e a morte. Vitória se perguntou de onde tinha saído Mira... Da cozinha? Não se encontrava no salão quando ela chegou e, de repente, ali estava. Vitória não duvidou nem um instante que tinha saído das ruas. Tinha sido mendiga, prostituta, benjamima, assassina? E depois, sem congruência alguma, perguntou-se quantos anos teria aquela mulher. Seu rosto estava sulcado de rugas que podiam ser pela idade ou talvez às muitas privações sofridas. Só seus olhos, da cor de safiras azuis diáfanas, eram brilhantes e vividos.

—Eu não... —Vitória engoliu seco, tenho feito nada errado, quis acrescentar, mas sabia que tinha prejudicado Gabriel pelo simples feito de ter ido a sua casa; tinha causado mal a Julien por não mencionar o que tinha visto no espelho transparente—. Tenho que ir para junto de Gabriel. Precisa de mim.

Mas sabia que era mentira. Gabriel não precisava de Vitória; precisava de um milagre.

—O senhor Gabriel não está ferido? —perguntou Mira bruscamente.

—Não, não está ferido. —Ferido não era a palavra que Vitória empregaria para descrever Gabriel—. O senhor... Julien está morto. —As lágrimas abrasavam os olhos—. Não pude avisá-lo.

O segundo homem tinha abafado sua boca com um lenço enquanto a agarrava, fazendo soltar a caixa de pastilhas de hortelã.

Julien amava Gabriel. E agora estava morto. A dor obscureceu os brilhantes olhos azul safira de Mira.

—Já sabíamos que ia haver problemas. Melhor que venha comigo. Não tem bom aspecto.

—Estou... —Vitória mordeu o lábio—. Estou bem, obrigado.

Perguntou-se se alguma vez tudo voltaria a estar bem. Michael estaria? Gabriel estaria?

—Está morto?

O estômago de Vitória deu um tombo diante a sede de sangue que percebeu nos olhos da mulher, que, de repente, voltaram-se claros e brilhantes.

—Desculpe?

—O homem que o senhor Gabriel precisava matar... Está morto?

—Sim. —A satisfação impregnou a voz de Vitória—. O senhor Michael o matou.

—Se tomar um, toma os dois. —Os olhos azul safira de Mira pareciam anormalmente ardilosos—. Não pode sentir repulsão pelas cicatrizes do senhor Michael.

Vitória conteve uma risada nervosa. Histeria. Imediatamente visualizou Julien, seu bonito cabelo castanho avermelhado brilhando a luz do corredor de acima enquanto seu sangue se espessava e se obscurecia nas escadas. Qualquer desejo de rir extinguiu.

—Asseguro-lhe que não me produzem repulsão alguma as cicatrizes do senhor Michel.

Mira grunhiu.

—O melhor é que se sente e espere que o senhor Gabriel se ocupe das coisas.

Vitória quis protestar. Talvez nesta ocasião Gabriel não fosse poder ocupar-se das “coisas”. Mas não o fez.

—Sinto muito que Julien tenha morrido. —Vitória engoliu um soluço—. Gostava dele.

O rosto enrugado de Mira suavizou.

—Sim, todos aqui gostavam do senhor Julien. Sente-se antes que caia senhorita Vitória. Não parece muito forte. Vou lhe trazer um pouco de genebra.

Vitória se sentou e esperou intumescida. A espera não era melhor naquele salão iluminado pela luz das velas do que tinha sido nos aposentos de Gabriel, iluminadas com luz elétrica. Essa noite, três vidas se extinguiram. Quantas pessoas mais tinham morrido no passado por culpa do conde de Granville e de seu filho? Tentou convencer a si mesma de que estavam loucos. Mas não tinha visto demência nos olhos violetas do homem que tinha tentado enfrentar deliberadamente dois anjos. Uma dor abrasadora atravessou sua face direita. Jogou a cabeça para trás, com o coração golpeando suas costelas. Os olhos azul safira olharam a Vitória.Mira segurava uma pequena toalha vermelha.

—Segura isso quieta. O senhor Gabriel não gostaria nada se não cuidássemos de sua mulher.

—Meu nome é Vitória - disse ela suavemente—. Vitória Childers.

A criada de rosto enrugado e olhos sem idade não reconheceu o sobrenome Childers. E por que teria que fazê-lo?

Childers era um nome comum. Só quando um “senhor”, um “sir”, um “honorável” ou um “lorde” precediam um nome, este adquiria importância. Meu nome é Gabriel, ressoou em seus ouvidos. Gabriel nunca tinha fingido ser nada diferente do que era. E Michael não tinha querido reclamar o título que lhe pertencia.

—Não se precisam de sobrenomes na Casa de Gabriel. —Mira umedeceu a toalha na água; uma nuvem de vapor subiu do recipiente de metal cinza—. A maioria de nós não tem.

Mira era um nome pouco freqüente para uma mulher nascida na rua. Teria escolhido ela mesma o nome?

—A ferida não é profunda, não precisara de pontos. —Um jorro de água caiu em cascata sobre o recipiente de metal. Mira entregou a toalha para ela—. Tome senhorita Vitória, lave as mãos enquanto ponho algo na face para que não infeccione.

Colocando os dedos dentro do copo comprido cheio de licor transparente, Mira jogou genebra na face dela.

Afogando um grito de dor, Vitória se concentrou em lavar o sangue dos dedos, tentando ignorar a dor que sentia na pele.

A genebra deixou uma dor enorme na ferida.

—Tome a genebra. —Retirou a toalha de entre os dedos de Vitória. O sangue tingia a água—. Tenho que levar água para o senhor Michel e o médico.

As velas titilavam e chispavam enquanto Vitória ficou sozinha, com o copo de genebra intacto diante ela. Pareceu que tinha transcorrido uma eternidade antes que Andy retornasse, acompanhado por um homem alto e magro com um casaco de lã negro, um chapéu cogumelo e uma maleta de couro. O docteur. O homem desapareceu pela porta que conduzia as salas de Gabriel; Andy se aproximou sigilosamente de Vitória e ficou olhando-a com aqueles olhos de idade indefinida. Assinalou o copo de genebra.

—Vai beber isso?

—Não. —Vitória o deslizou para ele. Se a genebra intensificava a dor das feridas externas, não queria saber o que faria com as internas.

Passou muito tempo antes que aparecessem os empregados de Gabriel, transportando Michael sobre uma porta de madeira. Sem dizer uma palavra, subiram pelas luxuosas escadas atapetadas de vermelho que ladeava a parede do fundo, para a resplandecente luz elétrica. O médico os seguiu. Andy ficou sentado em frente a Vitória, bebendo a genebra.

—Não o estariam levando acima se estivesse morto - disse amavelmente. Mas para animar a quem?

Passou outra eternidade antes que aparecesse Gabriel. Vitória ficou de pé, com o coração na garganta. Gabriel não a olhou nos olhos. Seguiu Michael e ao médico ao segundo andar. Vitória voltou a sentar, com os pés rigidamente juntos. Uma dama por nascimento, e não por natureza. Os homens embelezados com a faixa de seda carmesim e as curtas jaquetas negras descenderam em silencio pela escada dos clientes, levando a porta de madeira. Desapareceram pela entrada dos quartos de Gabriel.

Uma rajada de ar frio fez dançar as chamas das velas. Vitória levantou o olhar. Não precisava que ninguém lhe apresentasse à mulher que tinha aparecido seguindo de um jovem pouco mais alto que Andy. Peter tinha ido procurar a mademoiselle Aimes.

Andy se levantou e se aproximou deles. Subiu correndo as escadas, seguido a toda pressa pela mulher e o outro menino. Os olhos de Vitória se encheram de lágrimas, sentindo-se como uma estranha sem família. Sem pensar, levantou a mão para agarrar o copo que Andy quase tinha esvaziado. Ainda ficava um gole de genebra. Bebeu o licor transparente. Durante uns segundos não pôde respirar, enquanto as lágrimas se amontoavam em seus olhos. Imediatamente, um resplendor suave alagou o salão. Mas não foi suficiente para aliviar a solidão, e tampouco pararam os pensamentos que revoavam em sua cabeça. Se perguntou o que faria a mulher mais velha que tinha comprado a habilidade de um homem mais jovem. Perguntou se Michael viveria. Perguntou se Yves tinha quebrado o vínculo que unia os dois anjos. Em meio das luzes e sombras do salão viu aparecer de novo os dois empregados de Gabriel com a porta de madeira. O cabelo castanho avermelhado que pôde entrever era inconfundível. Julien, que aceitava sem reservas a Casa de Gabriel, e a quem tinham encomendado a proteção de Vitória, tinha morrido no lugar dela. Gastón e outro homem, talvez um dos garçons, a julgar por sua vestimenta, levavam um vulto do tamanho de um homem entre os dois. Vitória sabia perfeitamente de quem se tratava. Seguindo Gastón apareceram outros dois garçons com outro vulto. Entre as escadas dos clientes e os quartos particulares de Gabriel se estabeleceu um contínuo ir e vir de pessoas. Pouco a pouco foi diminuindo até desaparecer quase por completo. Vitória observou sentada, em silêncio, da mesma forma que tinha observado às demais pessoas viver suas vidas naqueles últimos dezoito anos. As horas passaram, e ela só se deu conta porque as velas foram se consumindo lentamente. Revisou sua vida. Entre as lembranças do frio julgamento de seu pai surgiu a voz de sua mãe. Uma mãe que tinha amado seus dois filhos, e que lia contos de fadas. Uma mãe que murchou e tinha morrido sem o amor que precisava. Sei, disse o anjo, por que... Conheço bem minha própria flor. Vitória se levantou lentamente e subiu as elegantes escadas atapetadas, fazendo ranger a seda e o cetim ao arrastar a cauda de sua saia. O quarto para o qual tinham levado Michael não tinha como não ver. Bacias com água suja de vermelho e um montão de lençóis ensangüentados repousavam junto à porta. O número sete dourado brilhava na porta branca acetinada. Vitória tinha estado naquele quarto uma hora antes. Teria impedido a morte de Julien se tivesse contado a ele e Gastón o que tinha vislumbrado fugazmente no espelho transparente? Nunca saberia. Silenciosamente, Vitória fez girar o reluzente pomo. O cheiro acre do ácido fénico picou seu nariz. Um homem de cabelo escuro e uma mulher de cabelo castanho claro se refletiam no espelho transparente na parede oposta. Ele deitado de costas debaixo de uma colcha de seda amarela, ela estava sentada junto à cama em uma poltrona de veludo verde, sem chapéu, com seu cabelo recolhido em um elegante coque, e um vestido cor azul cobalto, prova evidente da arte de madame René. Vitória calculou que a mulher teria uns trinta e tantos anos, trinta e cinco ou trinta e seis, uns poucos mais dos trinta e quatro que tinha ela. Seus olhos azuis claros se encontraram de repente com outros olhos azuis obscurecidos pela comoção. Mademoiselle Aimes examinou sem piscar à mulher que tinha aparecido pela porta, com seu traje de seda marrom dourada adornado com veludo granada e franjas com figuras verdes, amarelas e vermelhas, também um inconfundível desenho de madame René.

—Disse que tinha umas pernas passáveis, mas que meus seios eram muito pequenos e minha cintura muito grosa.

Vitória piscou. A mulher de Michael falava como uma dama: em voz baixa, rouca, cultivada. Era inglesa, como Vitória.

—Madame René disse que meus seios eram aceitáveis, mas que meus quadris e meu derrière eram esquálidos - respondeu Vitória em voz baixa—. E que um enchimento resolveria o problema.

Os olhos azuis claros do espelho observaram cautelosamente Vitória.

—Mas para Gabriel não pareceu que faltasse nada.

—Não, para Gabriel não pareceu que me faltasse nada - repetiu Vitória, piscando rapidamente para afastar o esgotamento que nublava sua visão—. Está... —Como devia chamar o homem que estava na cama, Michel ou Michael? Era o conde de Granville. Devia dizer senhor ou lorde?—. Vai ficar bem?

Vitória voltou a piscar diante da beleza cegadora que iluminou o simples rosto da mulher.

—Sim. Obrigado. O doutor lhe deu algo para dormir. Pela manhã o levarei para casa. Obrigado por salvar sua vida.

—Como sabe?... —Vitória olhou involuntariamente para o rosto adormecido de Michael. As cicatrizes que bordeavan sua bochecha direita pareciam menos profundas em repouso.

—Gabriel me contou - explicou Anne Aimes tranqüilamente.

Gabriel tinha falado com a senhorita Aimes, mas não tinha falado com ela. Não podia sentir-se magoada.

—Não podia permitir que morresse - disse Vitória com sinceridade.

Uma sensação de alívio se refletiu nos olhos azul claros da mulher.

—Michael e Gabriel são muito especiais.

—Sim.

Vitória não duvidava daquela afirmação.

—Meu nome é Anne - disse a mulher.

Michael dormia plácidamente.

—E eu Vitória.

Gabriel estaria dormido?

Ou acaso sofria devido a um passado que já não podia mudar? Anne olhou fixamente para Vitória com seus claros olhos azul.

—Gabriel comprou sua virgindade.

O calor subiu imediatamente às faces de Vitória diante daquela inesperada asseveração. Endireitou-se, preparando-se para a condenação.

—Sim.

—Eu comprei Michael para que acabasse com minha virgindade.

Vitória a olhou fixamente. Certamente não tinha entendido bem a Anne Aimes. Respirando profundamente, perguntou com cautela:

—E o fez?

—Os três. —O olhar da Anne não vacilou—. De modo que nenhum pode julgar o outro. Estamos todos aqui porque precisamod de relações íntimas.

O eco dos três foi substituído por estamos todos aqui porque precisamos de relações íntimas.

—Sim. —O segundo homem, Yves, tinha escolhido ela devido a sua necessidade de relações íntimas—. Onde conheceu A... Michael?

—Aqui. —Uma risada rouca e suave impregnou a quarto—. Bom, não aqui. Encontrei-me com o Michael na anterior da Casa de Gabriel. Sempre me perguntei como seriam os quartos aqui em cima.

Anne Aimes havia tornado a surpreender a Vitória.

—Não sabia?

—Não.

Anne parecia ligeiramente desiludida.

—Michael me levou para sua casa.

Uma imagem de cabelo negro pareceu brilhar no espelho aonde deveria estar o rosto de Vitória, mas desapareceu imediatamente. Talvez fosse produto de sua imaginação. Ou não era? Voltaria a sentir-se cômoda frente de um espelho algum dia?

—Os espelhos não são... Espelhos - disse Vitória. E imediatamente se mordeu o lábio.

Anne examinou com curiosidade o espelho dourado de corpo inteiro.

—Vá.

—Chamam-se espelhos transparentes. Sempre e quando a luz for mais brilhante de um lado, uma pessoa pode olhar pelo outro e... Observar.

Não pôde evitar uma lembrança súbita da cena da mulher madura com o homem mais jovem. Iguais em sua paixão.

Os olhos da Anne se dilataram.

—Você já... Olhou?

Vitória não quis mentir.

—Uma vez. —E em seguida acrescentou, à defensiva—: Não são desagradáveis as relações sexuais.

—Tampouco para mim, Vitória. —Não havia censura nos olhos da Anne—. Michael e eu nos vamos casar. Sentiria-se... Magoado se Gabriel não assistisse. Anne Aimes... E Michael. Gabriel sabia que iam se casar? Conheceria Anne os detalhes dos sucessos daquela noite? Quanto sabia a respeito de Gabriel?

—Não é possível saber o que Gabriel fará - disse Vitória com franqueza.

Tampouco podia saber se Gabriel ainda a desejava. Só o que podia fazer era esperar. Anne ficou de pé bruscamente, aproximando-se da mesinha de carvalho. Vitória também se aproximou. Era alguns centímetros mais alta que Anne.

O cabelo da Anne tinha reflexos prateados e dourados. Levantou a lata prateada de camisinhas.

—Existe algo melhor que as camisinhas.

Vitória recordou os tabletes de sublimado corrosivo que Dolly tinha dado. Não acreditava que Anne Aimes...

—Chama-se diafragma - informou Anne. Em seus olhos apreciava que não lhe falava de um método que matasse—. É uma peça de borracha que se ajusta ao pescoço do útero. —Suas faces avermelharam levemente; seu olhar não titubeou—. Os diafragmas são mais prazerosos tanto para o homem como para a mulher porque permitem o máximo de estimulação, mas só se conseguem mediante prescrição médica. Posso-lhe dar o nome de um ginecologista, se lhe interessar. Vitória imaginou como sentiria Gabriel sem uma capa de borracha em seu membro. Sua carne úmida deslizando-se dentro de úmida vagina. O calor que tingia as faces da Anne passou para as suas.

—Obrigado. Isso seria estupendo.

Vitória recordou a lata de pastilhas de hortelã que Julien tinha sugerido que tirasse da mesinha. Ainda não a tinham substituído.

Abriu impulsivamente a gaveta superior, desejosa de compartilhar as maravilhas da Casa do Gabriel com aquela mulher que tinha a coragem de ir atrás de sua paixão em vez de ser vítima dela. Anne cravou o olhar na fileira de godemichés artificiais durante segundos compridos.

—Chamam-se godemichés - disse Vitória com um tom de voz uniforme.

Anne tocou ligeiramente o menor...

—E Ricitos de Ouro disse: este é muito pequeno.

Depois tocou o segundo godemiché.

—E este é muito grande.

Já não precisou tocar o terceiro.

—E este é do tamanho perfeito.

Vitória a olhou surpreendida.

A risada dançava nos claros olhos azuis. Imediatamente, Vitória também sentiu a necessidade de rir, mas se conteve diante a lembrança do rosto de Gabriel e de seus olhos, cuja cor tinha deixado de ser prateado faiscante para transformar-se em um cinza escurecido.

—Tenho que partir.

A compaixão não deveria causar dor, mas vê-la refletida nos olhos da Anne foi muito para Vitória.

—Todos precisamos ser amados, Vitória.

Todos precisamos de relações íntimas... Todos precisamos ser amados.

Compreendeu então por que Gabriel gostava de Anne Aimes. Ela também gostava.

Engoliu seco.

—Não sei onde está.

Não precisou mencionar o nome de Gabriel. Estava presente na mente de ambas.

—Está no quarto ao lado.

Vitória sentiu um forte impulso de abraçar Anne, embora os abraços nunca tivessem formado parte de sua vida. Gabriel era o único adulto que ela tinha mostrado afeto.

—Obrigado - disse torpemente.

Por não julgar Vitória. Por não julgar Gabriel. Por amar um anjo.

 

Gabriel estava estendido sobre uma colcha de seda azul, com o braço esquerdo sobre o rosto. Tinha sangue seco na manga, e na parte dianteira da camisa se formou uma crosta marrom. Vitória se recostou contra a porta de carvalho, com o coração na garganta. Gabriel não estava dormido; cada um de seus músculos estava tenso.

—Não fechou a porta - disse ela, girando a chave com determinação.

Gabriel não baixou o braço e sua voz saiu amortecida.

—Já sabe o que sou Vitória.

A tensão se sentia no ar. Gabriel estava ferido, e era perigoso. Vitória se aproximou e procurou os diminutos colchetes e casas que segurava seu vestido.

—Sei o que é Gabriel, e nunca esquecerei.

O ligeiro estalo dos colchetes de metal ao desabotoá-los ressoou no ar, como disparos em miniatura. Vitória cravou um instante o olhar na manga suja de sangue, e depois olhou fixamente os olhos cinza e sombrios.

—Não sou um anjo.

O ar fresco penetrou entre a abertura que se ia alargando no vestido de seda.

—Acredito Gabriel, que os anjos não são o que pensamos que são.

Um músculo na parte esquerda da boca de Gabriel palpitou ao mesmo ritmo que os batimentos do coração de Vitória.

—Acredito que os anjos devem conhecer o desejo, pois do contrário não seriam anjos. —Vitória tirou o vestido. A seda deslizou sobre o espartilho curto, e depois de ficar brevemente enganchada na enrugada anquinhas, foi escorregando lentamente sobre as anáguas de seda—. Acredito que os anjos devem conhecer o desejo, pois do contrário não poderiam amar.

O pesado vestido de seda caiu ao redor de seus pés, muito diferente do puído vestido de lã que a dois dias tirou na frente dele. Ela era muito diferente da Vitória Childers que se despiu então. Agora Vitória era uma mulher, e não ia negar suas necessidades.

As narinas de Gabriel se alargaram, dando-se conta da transformação. Os dedos de Vitória manipularam as fitas que atavam as delicadas anquinhas. O rosto do Gabriel se endureceu.

—Pergunte-me Vitória.

As anquinhas enrugadas, semelhantes a um avental, caíram no chão com um frufru amortecido. Vitória procurou as fitas de uma anágua.

—O que quer que te pergunte Gabriel?

—Me pergunte se desejo Michael.

Uma anágua de seda branca caiu como se fosse espuma sobre o vestido marrom dourada. Vitória procurou a fita que atava a segunda anágua.

—Deseja-o?

A implacável luz elétrica dançava sobre o cabelo de Gabriel; a escuridão dançava em seus olhos, que não recuperavam seu prateado.

—E se eu dissesse que sim?

A seda branca deslizou sobre o resto da roupa. Gabriel seguiu instintivamente com o olhar a queda da anágua e cravou os olhos nas calcinhas de seda. Imediatamente, desviou o olhar dirigindo ao rosto dela.

—Não sei.

O grito de um anjo. A dor na voz de Gabriel encolheu seu coração. Desabotoou os dois pequenos botões de marfim que segurava as calcinhas, sustentando seu olhar.

—Michael te beijou. —Gabriel tomou uma baforada de ar perceptivelmente—. O desejou nesse momento, Gabriel? —insistiu Vitória.

As calcinhas deslizaram por seus quadris, escorregaram por suas coxas, caindo sobre o montículo de seda. O corpo de Gabriel estava rígido de dor. Dor que ela tinha infligido, mas ela não queria lhe fazer mal.

—Por que não me diz isso, Vitória - disse com desespero.

No chão, o montão de seda tinha aumentado perigosamente. Vitória atravessou com cuidado o espaço que os separava, afundando seus pés no tapete azul claro. Suas coxas nuas se roçavam, fazendo chiar as meias de seda. Já não era uma virgem, e sim uma mulher que conhecia bem a dor e o prazer de amar um anjo.

—Posso te dizer, Gabriel, que sou tão culpada quanto você da morte de Julien.

Gabriel a olhou aturdido. Sua dor contraiu o estômago de Vitória. Tinha prometido a Julien que não diria a Gabriel que tinha lhe permitido sair do quarto; Vitória pensou que já não se importaria que rompesse sua promessa.

—Disse ao Julien que queria ir a um dos quartos dos clientes para ver se encontrava ali algo que me permitisse te dar prazer. Vi um homem moreno no espelho, ou ao menos isso me pareceu. Mas desapareceu tão rapidamente que pensei que tinha sido produto de minha imaginação. Gastón me abriu suas salas para que pudesse entrar de novo. Não comentei nem com Julien nem com Gastón o que tinha visto. Se tivesse feito, talvez Julien estivesse vivo. A negação cintilou nos olhos de Gabriel, com uma tintura prateada.

—Teriam ido investigar no corredor, e o teria matado ali mesmo.

Rodeado de espelhos que não eram espelhos, em vez de morrer atirado no chão de madeira no patamar da escada.

—É provável - assentiu Vitória—. Mas nunca terei sabor de ciência certa, não é assim? Nunca saberei se meu silêncio o matou.

A dor dela se refletiu nos olhos dele.

—Não o faça.

—Mas tenho que fazê-lo, Gabriel. —Vitória se agachou para desabotoar sua camisa manchada de sangue, para liberá-lo do passado—. Tenho que te tocar.

Umas fortes mãos aprisionaram seus braços.

—Se me tocar, Vitória, te possuirei.

Vitória não resistiu ao forte aperto de Gabriel. Teria manchas vermelhas no dia seguinte.

—É disso que se trata senhor.

Gabriel queria que ela o rejeitasse, mas também queria que ela o abraçasse. Aqueles dois desejos opostos o estavam rasgando.

Ela não ia permitir que continuasse sofrendo.

—Você já sabe o que sou - disse Gabriel rudemente.

—Você é Gabriel - respondeu Vitória com enorme tranqüilidade.

Um homem que fazia o possível que outros sobrevivessem. Uma frustração perplexa brilhou em seus olhos, ainda mais cinzas que prateados.

—Nunca reprovou meu passado.

Dez dedos de Gabriel palpitavam contra a pele de Vitória; ela os contou um a um, cinco segurando seu braço esquerdo, cinco ao redor de seu braço direito...

—Sou egoísta, Gabriel.

A verdade saiu da boca de Vitória sem que pedisse. Não era a resposta que ele esperava.

—Você disse que não pode mudar o passado; tampouco eu. Conheci a Anne Aimes. Disse-me que pagou Michael para que tomasse sua virgindade. Gostaria de ter tido o dinheiro e a coragem suficiente para vir a sua casa e propor isso a você.

Gabriel queria acreditar; temia acreditar.

—Anne prefere os olhos violetas.

Os olhos de um homem que tinha nascido com nome de anjo.

—Eu prefiro os prateados. —Os olhos de um homem que tinha querido ser um anjo. Apertou os joelhos para que não tremessem e fez a pergunta que tinha que fazer—. Quais prefere você? Os olhos azuis claros ou os azulados mais profundos?

Gabriel não provocou nenhum mal-entendido.

—Os seus, Vitória.

Com os joelhos ainda apertados, Vitória quase desabou de alívio.

—Tenho fome, Victoire - anunciou Gabriel deliberadamente—. Alimentaria-me?

Na mente de Vitória, duas palavras ficaram flutuando com persistência. Seu nome francês, Victoire, e fome. Suas pupilas dilataram ao recordar subitamente. Como seduzir um homem... Quando tiver fome, alimente-o. Mas ela não tinha subido nada para fazê-lo. Olhou nos olhos de Gabriel e se deu conta de que não era alimento o que ele desejava.

—Temo-me que só tenho... Ananás.

Abacaxis. Um dos términos franceses que designavam os seios de uma mulher. Gabriel liberou seus braços e se sentou. O colchão afundou e um chiado de molas acompanhou seu movimento, enquanto seus joelhos se chocavam contra as coxas dela, arrastando-a para ele entre suas pernas abertas.

—Me alimente.

Com as mãos trêmulas de súbito desejo, Vitória colocou a mão no decote de seu espartilho de cetim negro e levantou um de seus seios. O mamilo estava duro. Inclinando-se, o ofereceu a Gabriel, seu seio, seu mamilo, sua paixão em vez de sua virtude.

Com as pestanas escuras velando seus olhos, Gabriel a acariciou. Suas faces eram ligeiramente ásperas, mas seu cabelo mais suave que a seda. Cada vez que Vitória alcançava o orgasmo, dava de presente a ele outra lembrança, havia dito. Vitória sempre recordaria a textura, o cheiro e o sabor do homem que deu a si mesmo o nome de um anjo. Gabriel a lambeu provou-a com sua língua de textura úmida e ligeiramente áspera. Vitória estremeceu com uma sensação quase dolorosa que atravessou o útero. Não podia evitar; colocou sua mão esquerda na nuca dele, seu seio na mão direita, o cabelo de Gabriel entre seus dedos. E desejou com todas suas forças que ele não se afastasse. Não o fez. Agarrando com suas mãos nas coxas de Vitória, Gabriel a aproximou de seu corpo, tomou seu seio com a boca, e chupou como se alimentasse de sua carne e não de seu desejo. Levou uns segundos se dar conta de que ele se esforçava por desabotoar os alfinetes da liga de seu espartilho, sem afastar sua boca, sua língua e seus dentes de seu seio. Logo que as meias de Vitória deslizaram por suas coxas, Gabriel tentou tirar o espartilho, seus dedos beliscavam sua boca também. Notava uma pressão já familiar em seu útero. O espartilho de Vitória se enredou em seus ombros... Gabriel liberou o mamilo com um ligeiro puxão. Tinha as faces avermelhadas, a boca úmida. Olhava-a com olhos prateados de desejo.

—Me fale sobre os anjos, Vitória.

Quando sofrer, ofereça esperança. Mas ela não sabia nada sobre anjos, só conhecia Gabriel. Não era capaz de articular palavras que brindassem esperança. O conto que sua mãe tinha lido de menina ressoou em seus ouvidos como um eco. E, de repente, soube que palavras dariam esperança ao Gabriel. Sei por quê... Conheço bem minha própria flor.

—Cada vez que um menino bom morre - explicou Vitória, recostando-se para trás para que o espartilho deslizasse por seus ombros, enquanto suas meias ficavam ao redor de seus tornozelos—, um anjo baixa do céu e tomada o menino em seus braços.

Gabriel procurou o botão superior de sua camisa manchada de sangue. Seu olhar prateado se agarrava a cada palavra dela.

Desejando encher-se de esperança. Desejando ser amado.

—O anjo desdobra suas enormes asas brancas - Vitória deixou cair o espartilho, um suave sussurro do cetim sobre o tapete de lã— e leva o menino voando sobre todos os lugares que amou em vida.

Com um movimento brusco, fazendo chiar a cama, Gabriel tirou a camisa pela cabeça. O pêlo loiro escuro se enroscava ao redor de seu peito. Os mamilos de Gabriel estavam tão duros quanto os de Vitória. Ela estirou a mão e o tocou com suavidade. Gabriel estremeceu, mas não se afastou. Ela se endireitou, com a respiração acelerada. Fez provisão de toda a disciplina que tinha necessitado para ensinar os meninos de outras mulheres, com a esperança de poder suportar os próximos minutos, as próximas horas, sua vida...

—O anjo explica ao menino, enquanto o transporta voando, que recolhe flores para levar ao céu, de modo que floresçam melhor lá que na terra.

Gabriel ficou de pé e desabotoou as calças. Não usava cueca. Vitória passou a língua por uns lábios que de repente pareceram muito mais grossos, mais cheios.

—“O Todo-poderoso”, diz o anjo, “pressiona as flores contra seu coração, mas beija a flor que mais gosta, e esta flor recebe uma voz e pode participar dos cânticos do coro da sorte absoluta...”.

O pêlo loiro escuro aparecia pela abertura que se alargava. Vitória levantou a cabeça. Só para ver o cocuruto da cabeça inclinada de Gabriel enquanto abaixava as calças de um puxão.

—Estas palavras foram pronunciadas pelo anjo, enquanto levava a menino para o céu...

Endireitando-se, Gabriel tirou as calças com os pés. Estava nu, sem meias três - quartos que tampassem os tornozelos ou sapatos que escondessem seus pés. Tinha uns bonitos pés. Imediatamente, caiu de joelhos em frente a Vitória. Seu fôlego úmido queimou o estômago, enquanto subia seu pé esquerdo. Vitória cambaleou, perdendo o equilíbrio, até agarrar-se com suas mãos a sua cabeça de cabelo suave como a seda; depois se agarrou aos ombros, com seus músculos tensos debaixo de uma pele tenra...

A pele nua de Gabriel palpitou sob as pontas dos dedos de Vitória. Jogou a cabeça para trás. Seu fôlego beijou os lábios.

—Me conte mais, Vitória.

Contar-lhe como um conto de fadas infantil podia ajudar um homem a quem ninguém tinha contado um conto quando era menino. Vitória cravou o olhar nos olhos de Gabriel e saboreou seu fôlego, inclinada sobre ele. Apanhada entre sua necessidade e sua postura. Continuou seu relato.

—O anjo e o menino passaram por lugares muito conhecidos. —Gabriel tirou o sapato e a meia esquerda, acariciando o tornozelo, o pé, com as pontas de seus dedos indescritivelmente eróticas... Vitória ficou sem ar —. Lugares aonde o menino tinha jogado freqüentemente e jardins repletos de belas flores.

Gabriel soltou o pé esquerdo de Vitória e tomou seu pé direito, fazendo que perdesse momentaneamente o equilíbrio.

Os dedos de Vitória afundaram nos músculos duros dos ombros do Gabriel.

—O anjo perguntou ao menino —tentou regular sua respiração sem consegui— que flores deviam levar com eles ao céu para as transplantar ali.

Gabriel se endireitou; à força, Vitória também o fez. O quarto pareceu inclinar-se. Com um único movimento, Gabriel a tomou em suas mãos e a colocou de joelhos na metade da cama, fazendo mover o colchão e ranger as molas. Gabriel esticou a mão para pegar a lata prateada de camisinhas sobre a mesinha de carvalho. Suas longas pestanas formavam sombras escuras sobre suas face.

—Que flor escolheu o menino?

Esperava uma resposta óbvia: só as flores mais bonitas eram dignas do céu.

—Havia uma... —Gabriel desenrolou um preservativo sobre seu membro, a borracha marrom devorou a glande púrpura... As veias azuis inchadas— uma bela e esbelta roseira, mas alguém lhe tinha quebrado o caule - a capa desapareceu entre o grosso pêlo loiro que se encrespava na base de seu pênis— e os casulos que faltavam abrir estavam murchando.

Teria havido rosas em Calais? Perguntou-se ela fugazmente. Gabriel pôs seu joelho esquerdo sobre a cama, afundando o colchão. Agarrou Vitória para manter erguido seu agitado corpo; ela se agarrou a ele simultaneamente, com o joelho direito dele unindo-se ao outro sobre o leito, de modo que ficou de joelhos na frente dela. Assim peito contra peito, seus ventres unidos, suas virilhas em contato. Gabriel não se moveu, apanhado entre sua necessidade de ser tocado e sua necessidade de ser livre. A camisinha pressionou o clitóris. Vitória o agarrou cuidadosamente pela cintura. Também ali notou os músculos endurecidos e tensos.

A dor obscurecia o prateado dos olhos dele. Gabriel não se afastou. Tomou a face de Vitória com suas fortes mãos, olhando-a com intensidade, abrasando seus lábios com seu fôlego.

—Me coloque dentro de você, Vitória.

Colocá-lo dentro dela... Enquanto...?

Umedeceu os lábios, saboreando seu fôlego.

—Termino... O conto primeiro?

—Não. —Seu fôlego lambia seu lábio superior, seu pênis lambia seus lábios vaginais—. Quando estiver dentro de você, quero que o termine. Preciso te sentir, Vitória. Preciso sentir que me abraça por dentro e por fora. Preciso que me faça acreditar...

Que um menino de treze anos nascido nos baixos recursos podia ser um anjo. Gabriel encheu a mão com sua carne ardente, coberta pela borracha, transbordando-a. Quase não cabia no apertado espaço entre suas coxas. Seu fôlego quente enchia os pulmões de Vitória; o membro duro esfregava contra seus lábios inferiores, deslizando-se com cada inalação, com cada movimento do colchão. Umas mãos igualmente duras deslizaram por seu rosto, seu pescoço, seus ombros, seus braços... Até agarrar firmemente os quadris.

—Levanta o joelho direito e ponha o pé sobre a cama, com a perna aberta.

—E depois? —ofegou ela.

Era uma posição embaraçosa. Era na realidade. Eram um homem e uma mulher compartilhando o consolo, igual ao prazer.

—Depois de me colocar dentro de você - murmurou ele como se sofresse, as palavras quente e úmida— e baixa o joelho para me apertar a verga e que não haja nenhuma parte nossa que não se toque.

Por dentro. Por fora. Vitória levantou o joelho, com a perna aberta, e colocou o pé sobre a seda. A borracha roçou sua abertura.

—Tome Vitória. —Os cabelos soltos formavam um halo sobre a cabeça de Gabriel—. Tome em seu corpo e me faça sentir como um anjo.

Vitória tomou Gabriel em seu corpo, os dedos guiando seu membro, deslizando sobre ele, os mamilos duros em seu seio, o pêlo cacheado picando os seios, enquanto sua elástica vagina se abria de repente e o tragava todo, a glande bulbosa, o caule grosso...

Vitória afogou um grito. Os olhos de Gabriel se fecharam, como se tampouco ele pudesse suportar a pressão. Quase incapaz de respirar, Vitória baixou a perna. O ar ficou apanhado dentro de seu peito. Gabriel a enchia por completo, a vagina, os pulmões...

Ele abriu as pálpebras de repente.

—Me fale da roseira.

A roseira? Vitória se agarrou com desespero aos ombros de Gabriel, com sua cabeça dando voltas, lutando por manter-se a flutuação; onde tinha ficado a história?

—O menino... O menino queria levar a roseira destruida para que... Para que florescesse acima, no céu.

Com cada palavra, Vitória podia sentir Gabriel vibrar dentro de sua vagina e deslizar entre seus lábios genitais.

—Quando o anjo tomou a roseira, beijou os olhos do menino para que os mantivessem abertos, porque estava sonolento. —Uns lábios quentes e úmidos beijaram a pálpebra esquerda de Vitória. As lágrimas se amontoaram em seus olhos, filtrando-se por sua vagina-—. E depois o anjo recolheu umas flores belas e uns simples pensamentos.

Gabriel beijou a pálpebra direita de Vitória, fazendo bater as asas às pestanas, com seus lábios suaves como pétalas. O beijo transpassou a vagina.

—O menino disse... —Vitória apertou firmemente as coxas; o fôlego de Gabriel a envolvia—. O menino disse: “Já temos flores suficientes”, mas o anjo se limitou a assentir; não voou para o céu. Gabriel...

O prazer tirava o fôlego. A agonia nos olhos de Gabriel o devolvia.

—Tudo estava escuro e silencioso na grande cidade. —Afundou as unhas nos ombros dele, forçando-se a concentrar sua atenção na história e não no prazer agonizante que era Gabriel—. O anjo voou sobre uma pequena rua estreita. Mas o menino só pôde ver... Um montão de feno... Uns pratos quebrados... Entulhos, farrapos, chapéus velhos e... Mais lixo.

Os baixos recursos aonde Gabriel tinha crescido se refletiram repentinamente em seus olhos. Feno... Despojos... Vidros quebrados... Farrapos... Lixo... Vitória achou a força suficiente para continuar relatando a história do anjo em vez de explodir como um globo de hélio.

—O anjo assinalou um vaso de barro quebrado... E um pouco de terra a seu redor. Uma flor que tinha sido jogada no lixo.

Da mesma forma que Gabriel tinha sido forçado a viver entre o lixo.

Com. Fumier. O peito de Gabriel subia e descia, seus mamilos esfregavam os dela, o pêlo hirsuto que cobria seu peito cravava seus seios. Vitória desejava dolorosamente Gabriel; Vitória doía por Gabriel.

—O anjo disse: “Levaremos esta”. —Sua garganta e sua vagina se contraíram, com a voz e o sexo tensos até o limite—. Mas o menino... Não entendeu por que.

Entenderia Gabriel? Perguntou fugazmente Vitória.

—O anjo... Disse que... Um... Um menino doente com muletas tinha vivido ali em um porão... Um menino que... Que era pobre... E que não podia... Não podia sair... Ver as flores.

Gabriel vislumbrou sobriamente seu passado, ancorado no presente pelo corpo e as palavras de Vitória.

—Durante o verão - as unhas de Vitória deixaram seus rastros no corpo dele, que parecia haver-se transformado em mármore enquanto o dela gritava seu desejo—, os raios de sol deslizavam sobre o chão do porão durante... Durante meia hora e ele... Sentava-se baixo daquela luz... E dizia que tinha saído.

Os sonhos infantis de Gabriel brilhavam em seu rosto. Quantas vezes tinha fingido ter o que os meninos que via passar tinham: sapatos, roupa que ocultava os cotovelos e os joelhos... Quanto tempo mais podia Vitória concentrar-se em um relato que não tinha escutado fazia vinte e três anos e não pensar no grosso membro que empurrava seu útero e deslizava sobre seus clitóris cada vez que respirava, cada vez que falava?...

—Um dia, o... O filho de um vizinho lhe trouxe umas... Umas flores do campo. Uma delas... Tinha... Uma raiz. O menino a plantou, e esta cresceu. Tinha sobrevivido, como tinha feito Gabriel. O cabelo formava um halo sobre a cabeça do homem que ainda não reconhecia seu valor. O corpo de Vitória apertou com gulodice o de Gabriel, enquanto se esforçava por continuar a história do anjo.

—Todos os anos, a planta... —respirou mais profundamente— florescia. Era o jardim de flores... Do menino. Regava-a... E se assegurava de que recebesse... Todos os raios do sol. Sonhava com... Sua flor. Encontrou nela... Consolo... Inclusive quando... Quando morreu. Mas quando o... O menino morreu... Ninguém se preocupou de... Cuidar daquela flor. E foi... Para o lixo.

Ao lixo.

—E por isso o anjo disse - Vitória podia sentir inchar-se seu corpo— que iriam levar a flor ao... Ao céu... Porque tinha proporcionado mais felicidade real que a mais... A mais bela flor do... Jardim de uma rainha.

Vitória havia visto muitos jardins... Canteiros semeados em plena floração com desenhos na moda. Nenhuma deles tinha proporcionado felicidade.

—“E como sabe você tudo isso?” perguntou o menino - continuou Vitória, elevando a voz—. “Sei”, disse o anjo, “porque eu era o... O menino que caminhava com muletas, e conheço bem minha própria flor”.

Gabriel se centrou repentinamente em Vitória, e não em seu passado.

—E quem sou eu, Vitória? O menino que morreu ou o anjo que o leva?

Vitória se esforçou por se controlar e conseguiu.

—O anjo, Gabriel.

O rosto de Gabriel se contraiu em um espasmo, o mármore voltou a se transformar em carne.

—Por quê?

—Sua casa é seu jardim, Gabriel. Acolhe a pessoas destruidas e lhes oferece uma nova vida. —Vitória recordou à mulher madura e o homem jovem, compartilhando sua paixão; recordou Julien, defendendo a Casa de Gabriel—. Gosta de seu jardim.

Um som áspero e afogado escapou da garganta de Gabriel; jogou para trás a cabeça, com os olhos fechados e suas escuras pestanas como puas. Vitória não confundiu o líquido transparente que rolava por suas faces com suor: eram as lágrimas de um anjo. Gabriel alcançou silenciosamente o clímax, cravando seus dedos nos quadris de Vitória, aproximando-a para ele com suas mãos até que o rosto dela se afundou em seu pescoço e seus braços puderam lhe rodear os ombros. Vitória o abraçou. Compartilhou suas lágrimas. E depois compartilhou seu orgasmo.

 

CAPITULO 26    

 

A porta grafite de branco se abriu de repente. Gabriel ficou imóvel, com sua mão direita preparada para agarrar a aldaba de bronze. A clara luz do sol transformou uns olhos cor café em âmbar. Em seu interior não se via refletida nenhuma emoção.

Gabriel podia reconhecer esses olhos em qualquer lugar. Não podiam ocultar o frio e a fome. O ruído dos cascos de um cavalo sobre uma rua pavimentada se escutou atrás dele.

—Monsieur Gabriel. —O mordomo recuou um passo; uns fios chapeados adornavam seu espesso cabelo castanho. Inclinou a cabeça—. Mademoiselle Childers.

Gabriel apoiou instintivamente a mão na parte inferior das costas de Vitória; suas luvas de couro e a roupa dela bloqueavam sua pele, mas não o consolo de seu contato. Resistiu o intenso desejo de dar meia volta e chamar o carro que passava; em vez disso, insistiu a Vitória a entrar no pequeno vestíbulo da casa de tijolo. Três figuras se refletiram no revestimento de carvalho, brilhante como um espelho: o mordomo de cabelo castanho, com librea negra terminada em abas gêmeas; um homem, mais alto que o mordomo, com casaco de lã cinza de dobro abotoadura e chapéu cogumelo negro; e uma mulher da mesma estatura que o mordomo, com o cabelo oculto debaixo de um chapéu Windsor negro, que cobria seu corpo com uma capa azul escuro.

Vitória estirou a mão e levantou o véu negro de seu chapéu. Inclusive nos painéis de carvalho sua pele resplandecia.

As vísceras de Gabriel se contraíram. Ele tinha dado aquele resplendor a Vitória, um homem que exigia o amor dela, mas que não prometia devolvê-lo. E agora via o passado através de seus olhos. O pequeno saguão não tinha mudado nos sete meses transcorridos da última vez que o tinha visto. As flores de múltiplas tonalidades de azul de um jacinto e uma pequena bandeja de prata brilhavam sobre a superfície polida de uma mesa de carvalho apoiada à parede. O chão brilhante, também de carvalho, estendia-se mais à frente do vestíbulo. Flanqueada por umas balaustradas de ferro forjado, uma escada de mármore subia ao segundo andar.

—Estão os esperando, monsieur, madame. —O mordomo estirou uma mão enluvada e branca—. Se me permitir a bengala, senhor...

A mão esquerda de Gabriel apertou involuntariamente a bengala de punho prateado. Não sabia o que esperar... Das pessoas que aguardavam. Vitória o olhou. Seus olhos azuis pareciam transparentes e tranqüilos. Pareciam dizer que a decisão correspondia a ele. Podia continuar vivendo na escuridão do passado ou podia optar pela luminosidade do futuro. Gabriel entregou a bengala ao mordomo. Voltando-se para Vitória, segurou-lhe a grosa capa de lã azul enquanto a tirava. Com maneiras eficientes, o mordomo tomou a capa, evitando habilmente roçar a Gabriel com seus dedos enluvados. Gabriel tirou as luvas de couro negro; Vitória levantou os braços para tirar o alfinete que segurava seu chapéu. O sutiã de seda avermelhada se esticou sobre seus peitos sensíveis, formosos, e que, inclusive naquele momento, ele sentiu desejos de acariciar. Seu cabelo castanho com reflexos acobreados estava penteado com um coque francês; ele o soltaria quando voltassem para casa. O traje lhe moldava a cintura; ele o tiraria em suas aposentos particulares.

Ou talvez não esperaria. Talvez lhe mostrasse o prazer que poderia obter ao sentar-se escarranchado sobre os quadris dele dentro de um carro em movimento, com as sacudidas e o chiar das rodas levando-os a ambos ao orgasmo. Tirando o chapéu cogumelo, Gabriel deixou as luvas de couro negro dentro do feltro forrado de cetim. O mordomo aceitou o chapéu em silêncio, roçando apenas com seus dedos os de Gabriel. Não esperou a ajuda do mordomo para tirar o casaco; tampouco o servente esperava que o fizesse. Estendeu a mão esquerda para Vitória. Quanto mais o tocava, mais ansiava seu contato. Ela tirou as luvas e os guardou na bolsa que pendurava em seu braço. Gabriel sentiu uma pontada de calor nos testículo: o prazer da pele nua tocando outra pele nua.

Antoine não teve que mostrar o caminho a Gabriel. Os saltos de Vitória ressoaram sobre o chão, acompanhados do som mais suave de suas próprias botas de couro.

—Monsieur Gabriel.

Gabriel parou um instante com o pé esquerdo sobre um degrau de mármore. Vitória se parou a seu lado.

—Sim?

—Je suis heureux que vous soyez vênus.

Me alegro que tenham vindo. Não era um mordomo que tinha falado, era homem que tinha atendido mesas e clientes na antiga Casa de Gabriel; sete meses antes, tinha acolhido feliz a oportunidade de transformar-se em mordomo.

Gabriel oprimiu instintivamente a mão de Vitória.

—Suis ainsi je, Antoine.

Gabriel mentia. Não sabia se estava alegre ou não. O eco dos passos foi ascendendo. O passado estava cada vez mais perto, mas também o futuro. O corredor do piso superior era de carvalho. Gabriel percorreu em silêncio à distância... Recordando... Tentando não recordar... A porta no final do corredor estava aberta, deixando vislumbrar umas paredes cobertas de seda azul claro... Mais revestimento de carvalho... O doce cheiro de umas rosas. Conheço bem minha própria flor... Respirando fundo, Gabriel soltou a mão de Vitória e procurou o calor na parte inferior de suas costas. Ela cruzou a soleira. Ele a seguiu. Os olhos violetas se cravaram nos olhos prateados. No olhar de Michael, Gabriel viu os olhos do jovem de treze anos que tinha lhe ensinado a ler e a comportar-se como um cavalheiro em troca de lições sobre como brigar, roubar e matar. Mas Gabriel nunca quis que Michael matasse. E agora o tinha feito por ele. A voz do segundo homem, Yves, ressoou em seus ouvidos. Você ama Gabriel, Michael.

Sempre o amei. Mas Michael tinha acreditado que seu nome era Gabriel; agora sabia que não. Michael tinha acreditado que era invulnerável; agora sabia que também isso era falso. Gabriel esperou; tomou vagamente consciência de uma voz feminina de tonalidade baixa... Anne. Parou na metade de uma frase.

—Senhorita Aimes? —perguntou uma voz masculina desconhecida.

Gabriel não olhou ao estranho: sabia qual era a profissão do homem, embora não soubesse quem era.

—São estes o homem e a mulher que estavam esperando?

A voz do estranho soava ligeiramente irritada. O pastor tinha tido que esperar por um anjo. Os olhos violetas de Michael refletiram aquela ironia. De repente, Anne se colocou junto a Vitória. Estava muito elegante com seu traje de seda cor azul celeste.

Media uns centímetros menos que Vitória. Uma solteirona e uma professora. Duas mulheres que em suas vidas não tinham conhecido o amor, mas que agora resplandeciam pelo amor de um homem. Vitória tirou solenemente de sua bolsa uma caixa retangular envolta em seda.

—Trouxe-lhes um presente de casamento.

Os olhos azuis claros de Anne refletiram a surpresa de Gabriel. Sentiu-se ferido, vendo que Vitória tinha considerado necessário manter seu presente em segredo. Com as bochechas avermelhadas de prazer, Anne aceitou a caixa envolta em seda.

—Não era necessário. Só o que precisávamos era que viessem.

Um rubor ainda mais forte tingiu as bochechas de Vitória.

—Não é nada, na realidade. Só algo que te vi admirar.

Anne ficou surpreendida.

—Um godemiché.

—Do tamanho perfeito - respondeu Vitória com voz pausada.

Uma gargalhada brotou do peito de Gabriel até que saiu de sua garganta.

E com a risada aumentou o desejo de Vitória. Procurando-a cegamente com as mãos, Gabriel a atraiu para seu peito firmemente. Vitória ficou tensa pela surpresa, com suas costas rígida, acomodando suas nádegas em sua virilha. Ele rodeou com seus braços à mulher que tinha dado o presente de seu contato e que agora lhe dava de volta sua risada. Vitória se derreteu imediatamente, e seus corpos pareceram fundir-se, transformando-se em um só.

Os olhos violetas captaram seu olhar. E Gabriel recordou... IL est bem, Gabriel... Está tudo bem, amigo.

A risada se apagou tão rapidamente como surgiu.

Estava tudo bem.

Afundando o rosto na morna fragrância da pele de Vitória, Gabriel sussurrou as palavras que já não podia conter:

—Je t'aime, Victoire.

Eu te amo, Vitoria. 

 

                                                                                Robin Schone  

 

                      

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