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A MULHER DIABÓLICA / Agatha Christie
A MULHER DIABÓLICA / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A MULHER DIABÓLICA

 

No coração do West End, em Londres, há diversos bolsões tranqüilos, desconhecidos de quase todo o mundo, à exceção dos motoristas de táxi, que os atravessam com sapiência de peritos, chegando triunfalmente, por via deles, a Park Lane, Berkeley Square ou South Audley Street.

Se você se afastar de uma despretensiosa rua que sai do Parque, e depois dobrar à esquerda e à direita uma ou duas vezes, irá dar numa rua tranqüila, com o Hotel Bertram's à direita. O Bertram's já está ali há muito tempo. Durante a guerra demoliram-se casas à direita, e um pouco adiante, à esquerda - só o Bertram's se manteve intocado. Naturalmente, como diria um corretor de imóveis, o prédio não poderia escapar a certos estragos -arranhões, hematomas, cicatrizes, - mas com o dispêndio de apenas uma razoável quantia, foi restaurado e posto tal como era antes. Pelo ano de 1955 mostrava-se igualzinho ao que era em 1939, distinto, sem ouropéis, e moderadamente caro.

Assim era o Bertram’s freqüentado, anos a fio, pelos mais altos escalões do clero, por idosas aristocratas vindas do campo e moças que iam passar em casa as férias de suas dispendiosas escolas de aperfeiçoamento. ("Há tão poucos lugares onde uma moça possa hospedar-se sozinha em Londres; mas no Bertram's, claro, não há inconveniente. Toda a vida nos hospedamos lá".)

Claro que havia muitos outros hotéis do tipo do Bertram’s. Alguns ainda existem, mas quase todos sofreram as rajadas de vento dos tempos novos. Foram forçados a se modernizar, a procurar uma clientela diferente. E também o Bertram's teve que mudar, - mas fê-lo com tanta inteligência que não se deixa descobrir ao primeiro olhar.

Ao pé da pequena escada que leva às grandes portas de vaivém posta-se um cavalheiro que, à primeira vista, a gente jura que é no mínimo um marechal de campo: galões dourados e condecorações lhe adornam o peito amplo e viril. Sua postura é impecável. Recebe-nos com carinhosa solicitude, ao emergirmos, com reumática dificuldade, de um táxi ou de um carro particular, e nos encaminha cuidadosamente degraus acima, e nos pilota através da silenciosa porta de vaivém.

Lá dentro - se é essa a primeira vez que você visita o Bertram's, a gente descobre, quase assustada, que reingressou num mundo desaparecido. O tempo andou para trás, e novamente estamos na Inglaterra de Eduardo VII.

Naturalmente que há aquecimento central - mas invisível. Tal como sempre, na grande sala de entrada vêem-se dois magníficos fogões queimando carvão de pedra; ao lado, dois grandes baldes de latão, brilhando como já brilhavam quando as camareiras dos tempos do Rei Eduardo os poliam, estavam cheios de pedaços de carvão do tamanho certo. O ambiente, poder-se-ia dizer de modo geral, que sugeria rico veludo vermelho e um conforto bem estofado. As poltronas não pertenciam a esta nossa era. Erguiam-se bem acima do nível do piso, permitindo assim que as velhas senhoras reumáticas se pusessem de pé sem se verem obrigadas a lutar ridiculamente para executar esse movimento. E os assentos das cadeiras, ao contrário do que agora acontece com as mais caras poltronas, não acabavam a meio caminho entre a coxa e o joelho, causando dores atrozes em quem sofre de artrite ou ciática. E não eram todas de um único modelo. Havia encostos retos e recostos inclinados, e larguras diferentes para acolher os magros e os obesos. Hóspedes de quaisquer dimensões encontravam sempre uma cadeira confortável no Bertram's.

Era a hora do chá, e a sala estava cheia. Não que a sala de entrada fosse o único lugar onde se pudesse tomar chá. Havia uma sala de visitas (forrada com chitão), uma sala de fumar (reservada só para cavalheiros, em virtude de não sei que desconhecida influência) onde as poltronas eram de couro da melhor qualidade; duas salas de correspondência, para onde se poderia levar um amigo e bater um papinho agradável num recanto tranqüilo, - e até mesmo escrever uma carta, se fosse esse o seu desejo. Além dessas amenidades da era eduardiana, havia ainda outros recantos, menos comentados, mas conhecidos daqueles que os apreciavam. Havia um bar duplo, com dois barmen, - um barman americano para fazer com que os hóspedes americanos se sentissem em casa, e para os abastecer de uísque de milho ou centeio, e quaisquer espécies de coquetéis; e havia o barman inglês, para lidar com as doses de xerez e Pimm's n.° 1, e conversar como entendido a respeito dos corredores de Ascot e Newbury com os cavalheiros de meia-idade que vinham hospedar-se no Bertram's no período das corridas mais importantes. E havia ainda, escondida ao fim de um corredor, uma sala de televisão para os apreciadores.

Mas a grande sala de entrada era o local favorito para o chá da tarde. As senhoras idosas gostavam de observar quem entrava e saía, reconhecendo velhos amigos, e reparando o quanto haviam envelhecido. Havia também clientes americanos, fascinados pelo prometido espetáculo: a aristocracia inglesa entregue, de verdade, aos prazeres do seu chá da tarde. Pois que o chá da tarde era realmente um espetáculo, no Bertram's.

Era esplêndido, simplesmente. Quem presidia o ritual era Henry, grande e magnífica figura de homem, cinqüentão, com ares paternais, simpático, e com as maneiras cortesãs dessa espécie há muito desaparecida: o perfeito mordomo. Esbeltos jovens davam conta do serviço, sob a austera supervisão de Henry. Usavam-se grandes bandejas de prata, brasonadas, e os bules também de prata, georgianos. A louça, mesmo que não fosse puro Rockingham e Davenport, assim parecia. O serviço mais apreciado era o Blind Earl. O chá da melhor qualidade, procedia da índia, Ceilão, Darjeeling, Lapsang, etc. Quanto à parte comestível, você poderia pedir o que quisesse - e seria servido!

Nesse determinado dia, 17 de novembro, Lady Selina Hazy, sessenta e cinco anos, vinda de Leicestershire, comia deliciosos muffins amanteigados com aquele belo apetite de dama idosa.

Mas não se diga que o seu enlevo com os muffins fosse tão grande que a impedisse de olhar vivamente, toda vez que a dupla porta de vaivém se abria para receber um recém-chegado.

E assim, Lady Selina sorriu e, inclinando a cabeça, saudou o Coronel Luscombe, - ereto, porte militar, binóculo de turfe a lhe pender do pescoço. Velha autocrata que era, Lady Selina fez um imperioso gesto de chamada e, dentro de um ou dois minutos, Luscombe estava ao seu lado.

- Olá Selina, que está fazendo aqui na cidade?

- Dentista - respondeu Lady Selina meio indistintamente, por culpa de um muffin. - E pensei que, já estando aqui, o melhor era ir procurar aquele homem de Harley Street para ver a minha artrite. Você sabe quem é.

Embora Harley Street abrigue várias centenas de médicos de renome, que tratam de toda espécie de moléstias, Luscombe sabia a quem ela se referia.

- E adiantou alguma coisa? - perguntou ele.

- Acho que sim - concordou Lady Selina com má vontade. - É um sujeito extraordinário. Me agarrou pelo pescoço quando eu menos esperava e torceu como se fosse um pescoço de frango. - E Lady Selina girou o pescoço com cuidado.

- Doeu?

- Deve ter doído torcendo daquele jeito, mas nem tive tempo de reparar. - E a velhota continuou a mover cuidadosamente o pescoço. - Não sinto nada. Pela primeira vez, nestes últimos anos, posso olhar por cima do ombro direito.

E Lady Selina fez a experiência do movimento; mas de repente disse:

- Olhe; garanto que aquela ali é a velha Jane Marple. Pensei que tivesse morrido anos atrás. Parece que está com cem anos.

O Coronel Luscombe olhou na direção de Jane Marple, assim ressuscitada, mas sem grande interesse; no Bertrams nunca faltava o pequeno contingente que ele costumava chamar "as velhas gatas fofas".

Lady Selina continuava:

- Aqui é o único lugar em Londres onde se consegue um muffin. Imagine que no ano passado, quando estive na América, eles ofereciam uma coisa chamada muffin no menu do café da manhã. Muffin coisa nenhuma: era uma espécie de bolo de chá com passas dentro. Então para que chamar aquilo de muffin?

Lady Selina engoliu o último pedaço amanteigado e olhou vagamente em redor. Henry logo apareceu. Não rápida nem apressadamente. Parecia ter surgido ali de súbito.

- A senhora deseja mais alguma coisa? - E sugeriu atenciosamente: - Bolo, por exemplo?

- Bolo? - Lady Selina pensou nisso, hesitante.

- Estamos servindo um ótimo bolo de cominho que eu recomendo à senhora.

- Bolo de cominho? Faz anos que eu não como bolo de cominho! É bolo de cominho de verdade?

- É, sim, minha senhora. O cozinheiro usa essa receita há não sei quantos anos. A senhora vai gostar, tenho certeza.

Henry olhou para um dos seus ajudantes, e o rapaz disparou em busca do bolo de cominho.

- Quero crer que você esteve em Newbury, Derek.

- Estive. Frio como o diabo. Nem esperei os dois últimos páreos. Foi um dia desastroso. Aquela potranca do Harry não vale nada.

- Eu sabia disso. E que me diz de Swanhilda?

- Ficou em quarto. - Luscombe ergueu-se. - Tenho que reservar meu quarto.

Atravessou o saguão em direção à portaria. De passagem, o coronel ia reparando nas mesas e nos seus ocupantes. Impressionante a quantidade de gente que tomava chá ali. Como nos velhos tempos. Desde a guerra que o chá, como refeição, passara da moda. Mas, evidente, isso não se dera no Bertram's. Quem seriam todas aquelas pessoas? Dois cônegos e o Deão de Chislehampton. Sim, e mais um par de pernas com polainas ali no canto - um bispo, sem dúvida! Simples vigários eram escassos. "Precisa pelo menos ser cônego para se dar ao luxo de freqüentar o Bertram’s", pensou o coronel. A arraia-miúda do clero não podia, coitados. Pensando bem, como é mesmo que a velha Selina podia se dar àquele luxo? Só devia dispor de uns dois vinténs de renda por ano. E ali estavam outras velhas ~ Lady Berry, Mrs. Posselthwaite de Somerset, e Sybil Kerr - todas pobres como ratos de igreja.

Pensando ainda nisso, ele alcançou o balcão da portaria, onde foi gentilmente cumprimentado por Miss Gorringe, a recepcionista. Miss Gorringe era uma velha amiga. Conhecia toda a clientela, e, tal como os membros da família real, jamais esquecia um rosto. Tinha um ar fora de moda, mas respeitável. Cabelo amarelo em caracóis, (sugerindo o emprego de antiquados ferros de frisar) vestido de seda preta, e um busto elevado, sobre o qual repousavam um medalhão de ouro e um broche de camafeu.

- Número quatorze - disse Miss.Gorringe. - Creio que da última vez o senhor ocupou o quatorze e gostou, Coronel Luscombe. É bem sossegado.

- O que me admira é a senhora conseguir lembrar-se sempre dessas coisas, Miss Gorringe.

- Nós aqui gostamos de fazer com que os velhos amigos se sintam bem.

- Vir aqui é como retornar a um passado distante. Parece que nada mudou.

Interrompeu-se ao ver Mr. Humfries, que saía do seu gabinete para o cumprimentar.

Alguns não iniciados muitas vezes tomavam Mr. Humfries pelo próprio Bertram em pessoa. E no entanto quem era o verdadeiro Bertram, ou se existira realmente um Mr. Bertram, era indagação cuja resposta se perdia nas brumas da antigüidade. O hotel Bertram's existia desde cerca de 1840, mas ninguém se preocupara em pesquisar a sua história anterior. Bastava a constatação da sua presença, o que representava um fato concreto. Quando o tratavam por "Mr. Bertram", Mr. Humfries jamais corrigia o engano. Se queriam que ele fosse Mr. Bertram está bem, seria Mr. Bertram. O Coronel Luscombe sabia-lhe o nome, embora ignorasse se Humfries era o gerente do hotel ou o proprietário. E optava pela última hipótese.

Mr. Humfries era homem de uns cinqüenta anos, muito bem educado, com a postura de um Ministro Sem Pasta. Podia, de repente, apresentar uma faceta especial para cada interlocutor. Sabia conversar sobre corridas cricket, política externa, contar anedotas sobre a Família Real, dar informações sobre a Exposição de Automóveis, assistira às peças mais interessantes que estavam em cartaz, dava conselhos sobre os locais que os americanos de passagem deviam visitar na Inglaterra, por mais curta que fosse a estada deles no país. Sabia informar com segurança o bom local para jantar, de acordo com os gostos e as posses do interessado, fosse ele quem fosse. Apesar disso, não se barateava. Não estava sempre acessível. Miss Gorringe tinha também essas informações nas pontas dos dedos, e podia fornecê-las eficientemente. Mr. Humfries mostrava-se a intervalos intermitentes e breves, como o sol, favorecendo com os raios da sua atenção pessoal um ou outro escolhido.

Era agora o Coronel Luscombe que recebia o raio de sol. Trocaram algumas banalidades sobre turfe, mas o Coronel Luscombe continuava impressionado com o seu problema. E aqui estava o homem que o poderia resolver.

- Escute aqui, Humfries, será que todas essas velhotas têm posses para se hospedar aqui?

- Ah, o senhor está intrigado com isso? - Mr. Humfries parecia divertido. - Bem, a resposta é simples. Elas não têm posses para tanto. A menos...

E Mr. Humfries fez uma pausa.

- A menos que se façam preços especiais para elas. Certo?

- Mais ou menos. Em geral elas não se apercebem de que os preços são especiais - ou se se apercebem, pensam que é concessão especial a clientes antigas.

- E não é isso mesmo?

- Bem, Coronel Luscombe, eu dirijo um hotel. Não posso me dar ao luxo de perder dinheiro.

- E qual é então o lucro que você tem?

- É uma questão de atmosfera... Os estrangeiros que vêm à Inglaterra (especialmente os americanos que são os que gastam dinheiro), têm lá as suas idéias a respeito da vida inglesa. Não me refiro, o senhor compreende, aos tubarões milionários que vivem atravessando o Atlântico: esses vão para o Savoy e o Dorchester; querem decoração moderna, comida americana, tudo que os faça sentirem-se como em casa. Mas há um tipo de viajantes que vêm à Europa espaçadamente, e que esperam encontrar uma Inglaterra - bem, não digo a Inglaterra de Dickens, - mas leram Cranford e Henry James e não lhes agrada encontrar uma Inglaterra igual à terra deles! De modo que, conhecendo-nos, quando chegam à América, contam: "Existe em Londres um lugar formidável: chama-se Hotel Bertram's. É o mesmo que a gente recuar um século, e encontrar a velha Inglaterra! O pessoal que se hospeda lá não se encontra mais em lugar nenhum. Umas velhas duquesas estupendas. Servem todos os pratos ingleses tradicionais, como por exemplo um maravilhoso pudim de beefsteak! Em parte alguma do mundo você prova coisa igual. E imensos bifes de alcatra, e lombos de carneiro, e o chá inglês à moda antiga, e o puro pequeno almoço britânico. E, é claro, todas as coisas usuais também. E é maravilhosamente confortável. E bem aquecido. Grandes lareiras de lenha em toros." Mr. Humfries parou com a imitação do americano e permitiu-se a sombra de um sorriso.

- Estou entendendo - comentou Luscombe pensativo. - Esse pessoal, esses aristocratas decadentes, esses membros empobrecidos da velha nobreza latifundiária, funcionam praticamente como mise-en-scène?

Mr. Humfries fez que sim com a cabeça.

- O que me deixa intrigado é que ninguém mais tenha pensado nisso, Ê verdade que já encontrei o Bertram's praticamente pronto, carecendo apenas de um dispendioso trabalho de restauração. Todos os nossos freqüentadores imaginam que o Bertram's é um local que eles descobriram sozinhos e do qual ninguém mais tem notícia.

- Então - observou Luscombe - essa restauração saiu caríssima?

- Sim, saiu cara. O hotel tem que parecer contemporâneo de Eduardo VII e, ao mesmo tempo, oferecer todo o conforto moderno de qualquer hotel atual. As nossas velhotas - se me permite referir-me assim a elas - precisam sentir que nada mudou aqui, desde o começo do século, e os nossos clientes estrangeiros devem sentir que, embora num cenário vitoriano, eles podem gozar de todos os confortos a que estão habituados no seu país - e sem os quais não podem viver!

- É um pouco difícil, às vezes, não? insinuou Luscombe.

- Não é muito difícil, não. Por exemplo, o aquecimento central. Os americanos exigem, ou antes, têm necessidade de pelo menos mais dez graus Fahrenheit de calor ambiente do que os ingleses. Nós então dispomos de dois tipos de quartos, completamente diferentes. Num dos grupos instalamos os ingleses, no outro os americanos. Os quartos parecem todos iguais, mas na realidade são bem diferentes: barbeadores elétricos, chuveiros, além de banheiras em alguns dos quartos de banho, e quem quer um pequeno almoço americano, é servido - cereais, suco de laranja gelado, e tudo o mais - e, a quem prefere, é servido o pequeno almoço inglês.

- Ovos e toucinho?

- Sim, e muito mais, se o senhor assim o quiser: salmão e arenque defumado, rins, galinhola fria, presunto de York, geléia de Oxford.

- Vou procurar me lembrar disso tudo, amanhã pela manhã. Em casa a gente não consegue mais comer nada disso.

Humfries sorriu:

- A maior parte dos cavalheiros pede apenas ovos com toucinho. Já deixaram - bem, já perderam o hábito dessas coisas a que antigamente estavam acostumados.

- Sim, é mesmo... Lembro-me de quando era criança... Os aparadores gemendo ao peso dos pratos quentes. Sim, vivia-se com muito luxo.

- Procuramos dar aos clientes tudo que eles nos pedem.

- Inclusive bolo de cominho e muffins... sim, entendo. A cada um, de acordo com a sua necessidade - entendo... Bem marxista.

- Perdão, não entendi.

- Um pensamento que tive, Humfries. Os extremos se tocam.

O Coronel Luscombe deu meia-volta e afastou-se levando consigo a chave que Miss Gorringe lhe dera. Um dos mensageiros perfilou-se e o encaminhou ao elevador. De passagem o Coronel viu que Lady Selina Hazy estava sentada ao lado de sua amiga Jane Não-Sei-de-Quê.

 

 

- E calculo que você ainda está morando naquela simpática St. Mary Mead? - indagava Lady Selina. - Uma aldeia que a civilização ainda não estragou. Muitas vezes me lembro de lá. Imagino que continua a mesma coisa de sempre.

- Bem, nem tanto. - Miss Marple refletia sobre certos aspectos do seu local de residência. O novo quarteirão dos Edifícios. Os acréscimos ao prédio da Prefeitura, as modificações na Rua Principal, com as fachadas modernas das lojas... - Miss Marple suspirou: - Creio que a gente precisa aceitar as mudanças.

- Progresso - disse vagamente Lady Selina. - Embora muitas vezes me pareça que isso não é progresso. Todas essas vistosas instalações sanitárias que agora estão em moda. Todas aquelas cores e o suntuoso "acabamento", como dizem por aí - mas será que realmente funcionam quando a gente puxa ou calca o botão? Toda vez que se visita uma pessoa amiga lá se encontram aqueles cartazes no banheiro: "Calque com força e solte" ou "Puxe para a esquerda", "Solte rápido". Antigamente bastava a gente puxar uma descarga e imediatamente caíam cataratas de água... Lá está o nosso querido bispo de Medmenham - interrompeu-se Lady Selina, vendo passar um clérigo bonitão e idoso. Acho que está praticamente cego. Mas que padre formidável, combativo!

Entregaram-se então a uma ligeira conversa sobre tema clerical, interrompida de vez em quando por Lady Selina que estava sempre a reconhecer velhos amigos e conhecidos, muitos dos quais não eram as pessoas que ela supunha que fossem. Lady Selina e Miss Marple conversaram ainda um pouco sobre "os velhos tempos", embora a mocidade de Miss Marple houvesse sido muito diferente da de Lady Selina, é claro; as reminiscências de ambas limitavam-se sobretudo aos poucos anos em que Lady Selina, viúva recente e em difícil situação econômica, alugara uma casinhola na aldeia de St. Mary Mead durante o período em que o seu segundo filho estivera lotado num aeroporto próximo.

- Você sempre se hospeda aqui quando vem à cidade Jane? Como é que nunca a vi antes?

- Não, claro que não! Não tenho meios para me hospedar aqui; aliás quase não saio de casa ultimamente. Foi idéia de uma sobrinha, que é muito boa para mim, me proporcionar uma pequena estada em Londres. Joan é uma flor de moça, - bem, já quase não se pode dizer que seja uma "mocinha". - E Miss Marple lembrou-se, com um choque, que Joan já devia estar perto dos cinqüenta. - É pintora, sabia? Pintora bastante conhecida. Joan West. Fez uma exposição pouco tempo atrás.

Lady Selina não se interessava muito por pintores nem por qualquer outra atividade artística. Considerava escritores, pintores e músicos como uma espécie de animais de circo; estava pronta a se mostrar indulgente para com eles - mas intimamente gostaria de saber o porquê do prazer em fazer tais coisas.

- Algum disparate modernista, imagino - observou ela, os olhos correndo pela sala. - Olhe ali a Cicely Longhurst... pintou o cabelo de novo.

- É, não nego que a minha querida Joan seja um tanto modernista.

Nesse ponto Miss Marple estava completamente enganada. Joan West fora modernista cerca de vinte anos atrás, mas agora a jovem guarda a tinha como de todo superada.

Lançando um rápido olhar para o cabelo pintado de Cicely Longhurst, Miss Marple voltou a recordar carinhosamente a gentileza de Joan. Na verdade, Joan dissera ao marido: "Coitadinha da tia Jane, seria ótimo se a gente pudesse fazer um agrado a ela. A pobre da velhota não sai nunca de casa. Você acha que ela gostaria de passar uma ou duas semanas em Bournemouth?"

E Raymond West respondera: "Boa idéia." O último livro dele estava vendendo muito bem e ele se sentia de ânimo generoso.

- Creio que ela gostou muito da excursão que fez às Antilhas. É pena que se tenha visto envolvida naquele assassinato.

Tipo da coisa inconveniente para uma senhora na idade dela.

- Mas essas coisas estão sempre acontecendo à tia Jane.

Raymond queria muito bem à sua tia velha, estava sempre procurando descobrir coisas que fossem do seu agrado e lhe mandando livros que supunha pudessem interessá-la. Ficava surpreso ao vê-la, com freqüência, recusar delicadamente as ofertas; e, embora declarasse sempre que os livros eram "tão interessantes", ele desconfiava às vezes de que a tia não os lera. Talvez os seus olhos estivessem cansados e doentes.

Nesse ponto ele se enganava. Miss Marple tinha uma vista notável para a sua idade, e naquele exato momento examinava tudo que se passava ao seu redor, com o maior prazer e interesse.

Quando Joan lhe oferecera uma estada de uma ou duas semanas num dos melhores hotéis de Bournemouth, Miss Marple hesitara, murmurando:

- É muita bondade sua, meu bem, mas na verdade, não sei...

- Mas vai ser ótimo para a senhora, tia Jane. É bom a gente sair de casa de vez em quando. Dá idéias novas, novas coisas em que pensar.

- Ah, sim, nisso você tem razão, e eu gostaria de dar um passeio de vez em quando, para variar. Mas talvez não a Bournemouth.

Joan ficou levemente surpresa. Pensava que Bournemouth fosse a Meca de Miss Marple.

- Então Eastbourne? Ou Torquay?

- Sabe onde eu gostaria de ir realmente... e Miss Marple hesitou.

- Sim?

- Talvez você vá pensar que é tolice minha...

- Não, não vou pensar nada disso. - (Para onde quereria ir a boa velha?)

- Gostaria de ir para o Hotel Bertram's, em Londres.

- Hotel Bertram's? O nome era vagamente familiar. As palavras acorreram em tropel a Miss Marple:

- Eu me hospedei lá uma vez - quando tinha quatorze anos. Com meu tio e minha tia, tio Thomas, que era então Cônego de Ely. E nunca me esqueci de lá. Se eu pudesse ficar, no Bertram's uma semana seria o bastante... duas semanas deve ser caro demais.

- Ah, ótimo! Claro que a senhora pode ir. Eu devia ter pensado que a senhora gostaria de ir a Londres: andar pelas lojas, etc. Vamos acertar tudo, se é que o Hotel Bertram's ainda existe. Tantos hotéis têm desaparecido, alguns bombardeados, durante a guerra, outros fechando mesmo.

- Não, por acaso eu sei que o Hotel Bertram's ainda está funcionando. Recebi uma carta de lá, da minha amiga americana, Amy McAllister, de Boston. Foi onde ela e o marido se hospedaram.

- Muito bem, então vou lá e combino tudo. - Acrescentou gentilmente: - Só tenho medo é de que a senhora vá achar o lugar muito mudado, em comparação ao que era quando o conheceu. Não vá ficar desapontada.

Mas o Hotel Bertram's não mudara. Era exatamente como sempre fora, o que era praticamente miraculoso, na opinião de Miss Marple. Na verdade, ela ficava a pensar...

Com efeito, parecia bom demais para ser verdade. Miss Marple sabia muito bem, com sua sensatez e sua inteligência, que o seu desejo era apenas reavivar as lembranças do passado nas velhas cores originais. Grande parte da sua vida consumia-se, por força das circunstâncias, na recordação de passadas alegrias. E se a gente descobre alguém com quem as possa rememorar, já chega a ser felicidade. E isso, atualmente, não era fácil de conseguir; Miss Marple já enterrara a maior parte dos seus contemporâneos. Assim mesmo, gostava de ficar sentada, a recordar. Singularmente, aquilo a fazia reviver - Jane Marple, aquela garota em branco e rosa, tão inquieta... tão tolinha, em muitas coisas 4.. e quem seria aquele rapaz muito pouco recomendável que se chamava... Oh, Senhor, não conseguia lembrar-se do nome dele... E, muito sensatamente, a mãe da garota resolvera cortar aquela amizade em botão. Anos depois ela o encontrara - e, com efeito, tivera uma impressão horrível. Mas na ocasião adormecera chorando durante pelo menos uma semana!

Hoje em dias naturalmente. - E Miss Marple se pôs a pensar nos dias atuais... Essas pobrezinhas. Algumas têm mãe - mas parece que é sempre uma mãe que não serve para nada - mães incapazes de proteger as filhas contra paixonites tolas, filhos ilegítimos e casamentos precoces e infelizes. É tudo muito triste.

A voz da amiga interrompeu essas meditações:

- Bem, eu nunca. É... sim, é... é Bess Sedgwick que está ali! Imagine, logo aqui!

Miss Marple escutava só com um ouvido os comentários de Lady Selina a respeito dos presentes. Ambas freqüentavam círculos completamente diversos, de modo que seria impossível a Miss Marple partilhar dos mexericos escandalosos referentes aos diversos amigos e conhecidos que Lady Selina ia reconhecendo ou supunha reconhecer.

Mas Bess Sedgwick era diferente. Bess Sedgwick era um nome conhecido por quase toda a Inglaterra. Fazia mais de trinta anos que a imprensa vinha noticiando que Bess Sedgwick fizera isto ou aquilo e sempre algo de extravagante ou extraordinário. Durante grande parte da guerra lutara entre os membros da Resistência, na França, - contavam que tinha seis entalhes no revólver, representando seis alemães mortos. Cruzara o Atlântico, anos atrás, em vôo solitário, atravessara a Europa a cavalo, chegando até ao Lago Van. Dirigira carros de corrida, certa vez salvara duas crianças de uma casa incendiada, tinha vários casamentos a seu crédito - ou a seu descrédito - e dizia-se que ocupava o segundo lugar entre as mulheres mais bem vestidas da Europa. Dizia-se também que conseguira tomar parte, como passageira clandestina, na viagem de experiência de um submarino nuclear.

Foi portanto com o mais intenso interesse que Miss Marple se endireitou na cadeira e se pôs a olhar francamente a recém-chegada.

Fosse o que fosse que Miss Marple esperara do Hotel Bertram's não esperara encontrar lá Bess Sedgwick. Uma boate das mais caras ou um botequim de motoristas de caminhão, - qualquer desses lugares estaria dentro do largo âmbito de interesses de Bess Sedgwick. Mas aquela hospedaria antiquada e respeitabilíssima parecia estranhamente imprópria.

E contudo estava ela ali - não havia a menor dúvida. Raramente se passava um mês sem que o rosto de Bess Sedgwick aparecesse numa revista da moda ou numa folha da imprensa popular. E estava ali em carne e osso, fumando um cigarro com modos impacientes, e olhando com ares surpresos para a grande bandeja de chá à sua frente, como se jamais houvesse enxergado coisa semelhante. Bess pedira ao garçom - Miss Marple afiou o olhar e espiou bem - estava um pouco distante - sim, pedira rosquinhas. Interessantíssimo.

E enquanto Miss Marple espiava, Bess Sedgwick esmagou o cigarro no pires, apanhou uma rosquinha e deu-lhe uma grande dentada. Uma espessa e vermelha geléia de morango lhe escorreu pelo queixo. Bess atirou a cabeça para trás e deu uma risada - uma das mais altas e alegres risadas a se fazerem ouvir, - desde muito tempo - no saguão do Hotel Bertram's.

Henry acorreu imediatamente, oferecendo a Bess um pequeno e delicado guardanapo. Bess o recebeu, esfregou o queixo com o vigor de um rapazola, exclamando: - Isso é que eu chamo uma rosquinha autêntica! ótimo!

Deixou cair o guardanapo na bandeja e levantou-se. Como sempre, atraía todos os olhares, mas já estava acostumada a isso. Talvez gostasse de que a olhassem, talvez não mais se apercebesse de que a olhavam. Era uma mulher para quem valia a pena*olhar - mais vistosa do que bela. O cabelo louro, quase branco, caía-lhe liso e macio, até aos ombros. Tinha perfeita a ossatura da cabeça e do rosto. O nariz levemente aquilino, os olhos fundos e de um cinzento sem mescla. A boca ampla de uma comediante de nascença. O vestido que usava era de tal simplicidade que deixava intrigados a maioria dos homens. Parecia feito do pano mais grosseiro, não tinha o menor enfeite e nenhuma costura, colchete ou fecho aparente. Mas as mulheres não se deixavam enganar. Até mesmo as velhotas provincianas do Bertram's sabiam, com certeza absoluta, que um vestido daqueles custava os olhos da cara!

Atravessando a sala em direção do elevador, Bess passou pertinho de Miss Marple e Lady Selma, a quem cumprimentou:

- Como vai, Lady Selina? Não a vejo desde o Crufts. Como vão os Borzois?

- Que é que anda fazendo por aqui, Bess?

- Estou hospedada aqui. Vim de carro, de Land's End. Quatro horas e três quartos. Rápido, não?

- Você ainda se mata, qualquer dia desses. Ou mata outra pessoa.

- Oh, espero que não.

- Mas por que é que veio se hospedar aqui?

Bess Sedgwick lançou um olhar em redor. Parecia entender o que Lady Selina queria dizer e recebia a observação com um sorriso irônico.

- Alguém me aconselhou a experimentar isso aqui; e acho que tinha razão. Acabei de comer a rosquinha mais maravilhosa deste mundo.

- E eles também têm muffins, meu bem.

- Muffins - repetiu Lady Sedgwick, pensativa. -Sim... - parecia fazer uma concessão. - Muffins!

Fez um cumprimento de cabeça e seguiu para o elevador.

- Essa menina é extraordinária, - comentou Lady Selina. Para ela, como para Miss Marple, toda mulher abaixo dos sessenta era uma menina. - Conheço-a desde pequena. Ninguém podia com ela. Aos dezesseis anos fugiu de casa com um cavalariço irlandês. Conseguiram trazê-la de volta em tempo... ou talvez não fosse mais em tempo. De qualquer forma, subornaram o rapaz e casaram-na direitinho com o velho Coniston, trinta anos mais velho, farrista aposentado e babado por ela. Casório que não durou muito. Bess foi embora com Johnnie Sedgwick. Já esse casamento poderia ter durado se Johnnie não morresse, de pescoço quebrado, numa corrida de cavalos com obstáculos. Depois então, Bess casou com Ridgway Becker, aquele americano, dono de um iate. Três anos depois divorciaram-se e ouvi dizer que ela andava metida com um corredor de automóvel, parece que polonês. Não sei se se casou com ele ou não. Depois de se divorciar do americano, Bess voltou a usar o sobrenome de Sedgwick. Anda por aí com o pessoal mais esquisito... Dizem que toma drogas... Por mim, não sei ao certo.

- A gente fica pensando se ela será feliz - observou Miss Marple.

Lady Selina, que evidentemente jamais ficara pensando coisa nenhuma a tal respeito, olhou a outra, surpresa:

- Bess tem dinheiro aos montes, suponho - disse sem muita convicção. - Pensão de divórcio e tudo o mais Claro que isso não é tudo...

- Não, não é.

- E ela sempre tem um homem, ou vários homens, andando-lhe à cola.

- Verdade?

- Evidentemente, quando certas mulheres chegam a essa idade, é só o que querem... Mas de qualquer modo...

E Lady Selina fez uma pausa.

- Não, - disse Miss Marple. - Eu também acho que não.

Haveria gente capaz de sorrir em delicada zombaria, ante esse pronunciamento emitido por uma velha senhora antiquada, que dificilmente poderia ser tomada por autoridade em ninfomania, e com efeito Miss Marple jamais usaria tal palavra: teria preferido dizer "por demais dada a companhias masculinas". Mas Lady Selina acolheu a opinião de Miss Marple como confirmação da sua e acentuou:

- Há uma multidão de homens na vida dela.

- Sim, mas talvez esses homens representem para ela mais uma aventura do que necessidade, a senhora não acha?

E, pensava consigo Miss Marple, qual a mulher que procuraria o Bertram's para um encontro com um homem? O Bertram's, definitivamente, não era lugar para isso. Mas talvez uma pessoa do tipo de Bess Sedgwick escolhesse o Bertram's justamente por essa razão.

Miss Marple suspirou, ergueu os olhos para o belo e antigo relógio de armário que batia decentemente o seu pêndulo a um canto, e pôs-se de pé, com a cautela característica dos reumáticos. Dirigiu-se lentamente para o elevador. Lady Selina correu os olhos em torno e avançou para um cavalheiro idoso, de porte militar, que lia o Spectator.

- Que prazer encontrá-lo! Hum... é o general Arlington, não é?

Porém, com grande cortesia, o cavalheiro negou ser o general Arlington. Lady Selina pediu desculpas, mas não se perturbou muito. Combinava miopia com otimismo, e, uma vez que o seu maior prazer era encontrar velhos amigos e conhecidos, vivia a cometer enganos. Muitas outras pessoas faziam o mesmo, ali, pois que as luzes eram agradavelmente coadas por pesados abajures. Mas ninguém jamais se ofendia - parece até que os enganos lhes davam prazer.

Miss Marple sorria consigo, enquanto esperava que o elevador descesse. Selina não mudara! Sempre convencida de que conhecia todo o mundo. Ela, Miss Marple, não poderia gabar-se de proeza idêntica. Seu único feito, nesse terreno, fora a identificação do belo Bispo de Westchester, metido nas suas polainas, a quem chamara carinhosamente de "querido Robbie", e que lhe respondera com igual afeição e com recordações de seus tempos de criança, numa casa paroquial do Hampshire, a lhe exigir: - Finja que agora você é um jacaré, Titia Jane. Finja que é um jacaré e me coma.

O elevador desceu e o cabineiro de meia-idade abriu a porta. Para completa surpresa de Miss Marple, o passageiro que descia era Bess Sedgwick, a quem vira subir apenas um ou dois minutos antes.

E aí, no meio da passada, Bess Sedgwick parou de repente, tão de repente que espantou Miss Marple, e quase fez com que ela própria tropeçasse. Bess Sedgwick olhava por cima do ombro de Miss Marple com tal concentração, que a velha senhora virou-se e olhou também.

O porteiro acabara de abrir as duas portas de vaivém da entrada e segurava-as, para deixar entrar no saguão duas mulheres. Uma delas era uma velhota de ar atarantado, com um lamentável chapéu roxo e florido; a outra era uma moça alta, vestida com elegância discreta, nos seus dezessete ou dezoito anos, de longos e lisos cabelos de cor de linho.

Bess Sedgwick recompôs-se, deu uma meia volta abrupta e tornou a entrar no elevador. E vendo que Miss Marple entrava também, desculpou-se:

- Perdão. Quase esbarrei na senhora. - A voz era cálida e amável. - Lembrei-me de repente que tinha esquecido uma coisa. Até parece um disparate, mas não é.

- Segundo andar - anunciou o ascensorista. Miss Marple sorriu, aceitando as desculpas, saiu do elevador e caminhou lentamente em direção ao seu quarto, revolvendo no espírito com prazer, e segundo era seu costume, alguns pequenos problemas sem maior importância.

Por exemplo, era mentira o que Lady Sedgwick acabava de dizer. Ela mal subira ao quarto quando se "lembrou de que esquecera qualquer coisa" (se acaso havia realmente alguma verdade nessa declaração) e descera em procura dessa tal coisa. Ou descera para procurar alguém, ou encontrar alguém? Mas, nesse caso, aquilo que ela vira ao abrir-se a porta do elevador a assustara e abalara, fazendo-a imediatamente dar meia volta e retornar ao elevador, e subir - a fim de não se encontrar com esse alguém que acabava de ver.

Devia tratar-se das duas recém-chegadas. A mulher de meia-idade e a moça. Mãe e filha? Não, pensou Miss Marple, mãe e filha, não.

Mesmo no Bertram's, disse consigo alegremente Miss Marple, podem acontecer coisas interessantes...

 

 

- AH... o Coronel Luscombe está?

Era a mulher do chapéu roxo no balcão de recepção. Miss Gorringe sorriu em sinal de boas-vindas, e um boy, que estava postado ali perto, foi imediatamente despachado, mas não precisou levar o recado, pois o Coronel Luscombe em pessoa apareceu na sala, naquele mesmo momento, e se dirigiu rapidamente para a recepção.

- Como está, Mrs. Carpenter? - Apertou a mão da senhora, cortesmente, e virou-se para a moça: - Minha querida Elvira - tomou-lhe as duas mãos, afetuosamente. - Bem, bem, que ótimo! Esplêndido, esplêndido» Venham sentar-se. - Levou-as para as poltronas, acomodou-as. - Bem, bem, - repetiu - está ótimo.

Era palpável o esforço que fazia, como o era também a sua falta de jeito.

Não poderia continuar indefinidamente a dizer que "era ótimo". As duas damas não o ajudavam. Elvira sorria docemente. Mrs. Carpenter deu uma risadinha sem sentido e se pôs a alisar as luvas.

- Fizeram boa viagem?

- Fizemos, obrigada - respondeu Elvira.

-Não teve nevoeiro? Nem coisa parecida?

- Oh, não.

-Nosso vôo estava cinco minutos adiantado - informou Mrs. Carpenter.

- Sim, sim. Bem, muito bem. - E a custo acrescentou: - Espero que gostem do hotel.

- Oh, já sei que é ótimo - disse com entusiasmo Mrs. Carpenter, olhando em redor. - Muito confortável.

- Talvez um pouco antiquado - disse o Coronel, como a desculpar-se. - Com um bando de gente velha. Sem... sem danças, ou coisa parecida.

- É verdade - concordou Elvira.

E ela também olhou em redor, de modo inexpressivo. De fato, não seria possível ligar o Bertram's à idéia de dança.

- Um bando de gente velha por aqui - repetiu o Coronel Luscombe. - Eu devia, talvez, ter levado vocês para um local mais moderno. Não sou muito entendido nessas coisas.

- Aqui está ótimo - disse delicadamente Elvira. O Coronel Luscombe continuou:

- Mas é só por umas duas noites. Calculei que vocês gostariam de ir a um teatro, hoje à noite. Um musical... - pronunciou a palavra meio em dúvida, como se não estivesse certo de usar o termo adequado. "Soltem os cabelos, pequenas". Será que esse está bem?

- Que beleza, - exclamou Mrs. Carpenter, - Vai ser agradabilíssimo, não é mesmo, Elvira?

- Agradabilíssimo - respondeu Elvira em tom morno.

- E que tal uma ceia depois? No Savoy?

Novas exclamações da parte de Mrs. Carpenter. O Coronel Luscombe, lançando um olhar de viés a Elvira, animou-se um pouco. Pensava que Elvira estava satisfeita, embora resolvida a demonstrar apenas uma polida aprovação na presença de Mrs. Carpenter. "Eu não a culpo por isso", disse consigo. Falou depois a Mrs. Carpenter:

- Quem sabe querem ver os seus quartos... ver se estão bem, e tudo o mais...

- Oh, tenho certeza de que estão bem.

- Bom, se vocês não gostarem de qualquer coisa, dá-se um jeito. Sou muito conhecido aqui.

Miss Gorringe, que estava na recepção, acolheu-as com simpatia. Os quartos eram os números 28 e 29 com banheiro contíguo.

- Eu vou subir e abrir a bagagem - disse Mrs. Carpenter. - E você, Elvira, talvez queira dar uma prosa com o Coronel Luscombe.

"Isso é o que se chama tato", pensou o Coronel. Um pouco óbvio, talvez, mas de qualquer forma livrava-os dela por algum tempo. Embora não lhe ocorresse nada a respeito de que pudesse dar uma prosa com Elvira. Elvira era uma moça muito educada - mas ele não estava acostumado a moças. Sua esposa morrera de parto, e a criança - um menino - fora criada pela família dela, enquanto uma irmã mais velha viera lhe tomar conta da casa. O filho casara-se e fora morar em Quênia; dera-lhe netos que tinham agora onze, cinco e dois anos e meio e haviam se divertido muito, na sua última estada na Inglaterra, com jogos de futebol e conversas sobre astronáutica, trens elétricos e cavalgadas na perna do avô. Fora fácil! Mas uma moça!

O Coronel perguntou a Elvira se queria um drinque. Ia propor limonada, gengibirra ou laranjada, mas Elvira antecipou-se:

- Quero, sim. Gostaria de um gim e vermute.

O Coronel Luscombe encarou-a, em dúvida. Pelo que imaginava, uma menina - quantos anos teria ela? - dezesseis? dezessete? - não bebia gim com vermute. Mas tranqüilizou-se, imaginando que Elvira decerto saberia o que era bem e o que não era, socialmente. Pediu ao garçom um gim com vermute e um xerez seco.

Limpou a garganta e perguntou:

- Que tal a Itália?

- Gostei muito.

- E esse lugar onde você estava... a tal Contessa... como é mesmo o nome dela? Não era severa demais?

- É um pouco exigente. Mas não deixei que isso me preocupasse.

O Coronel olhou para Elvira, sem saber direito se a resposta era ambígua ou não. E falou, gaguejando um pouco, mas com modos mais naturais do que conseguira mostrar antes:

- Lamento muito que nós não nos conheçamos tão bem quanto devíamos, uma vez que, além de seu tutor, sou seu padrinho. É difícil para mim, sabe?, difícil para um urso velho como eu, saber o que uma moça deseja, pelo menos... quero dizer, saber o que é bom para uma moça. O colégio e depois a escola de aperfeiçoamento, como se dizia no meu tempo. Mas creio que hoje os estudos são mais sérios. Quer uma carreira, não? Um emprego? Correto? Precisamos conversar sobre isso, qualquer dia. Há qualquer coisa de especial que você deseje fazer?

- Acho que vou fazer um curso de secretariado, - disse Elvira sem entusiasmo.

- Ah, quer ser secretária?

- Não faço questão.

- Ah, bom... então...

- É apenas para começar, - explicou Elvira.

O Coronel Luscombe teve a estranha sensação de que o estavam mandando conhecer o seu lugar.

- Esses primos meus, os Melfords. Acha que gostaria de morar com eles? Se não...

- Oh, acho que sim. Gosto bastante de Nancy. E a Prima Mildred é muito boazinha.

- Então está combinado?

- Está, pelo menos por ora.

Luscombe não soube o que responder a esse "por ora". E enquanto procurava o que dizer, Elvira falou. Suas palavras foram simples e diretas.

- Possuo algum dinheiro?

Novamente o coronel custou um pouco a responder, estudando pensativamente a afilhada. Disse afinal:

- Possui, sim. Você tem um bocado de dinheiro. Isto é, terá quando fizer vinte e um anos.

- Quem está com ele agora?

O Coronel sorriu. - Está guardado no banco; todos os anos deduz-se uma certa quantia do rendimento, para manter você e pagar sua educação.

- E o senhor não é o responsável?

- Um dos responsáveis. Somos três.

- Que é que acontece se eu morrer?

- Ora essa, Elvira, você não vai morrer! Que disparate!

- Espero que não, mas nunca se sabe, não é? Na semana passada caiu um avião e todo o mundo a bordo morreu.

- Mas isso não lhe vai acontecer, - disse Luscombe com firmeza.

- Como é que o senhor sabe? Eu estava só pensando em quem herdará o meu dinheiro, se eu morrer.

- Não faço a menor idéia, - respondeu o Coronel, irritado. - Por que pergunta?

- Talvez seja interessante - disse Elvira, pensativa. - Pergunto a mim mesma se adiantaria a alguém me matar.

- Francamente, Elvira! Esta conversa é uma bobagem. Não sei como é que você se preocupa com tais coisas.

- Oh, idéias minhas. A gente gosta de saber os fatos como são.

- Será que você está pensando na Máfia, ou coisa semelhante?

- Oh, não. Isso seria tolice. Mas quem ficaria com o meu dinheiro, se eu fosse casada?

- Seu marido, suponho. Mas realmente...

- O senhor tem certeza?

- Não, não tenho certeza nenhuma. Depende do que se estipulou na curatela. Mas você não é casada. Então por que se preocupar?

Elvira não respondeu. Parecia imersa em pensamentos. Finalmente despertou e fez uma pergunta:

- O senhor está sempre com minha mãe?

- Às vezes. Nem sempre.

- Onde está ela agora?

- Ah... viajando.

- Viajando onde?

- Pela França... ou Portugal. Não sei bem. - Ela nunca teve vontade de me ver?

O límpido olhar da moça encontrou o de Luscombe. Ele não sabia o que responder. Seria a hora de dizer a verdade? Ou deveria responder vagamente? Ou largar uma boa mentira? Que é que se responde a uma menina que faz uma pergunta de tal simplicidade, quando a resposta é da maior complexidade? O Coronel falou, desconsolado:

- Não sei.

Os olhos de Elvira o examinaram gravemente. Luscombe sentiu-se totalmente constrangido. Estava atrapalhando tudo. A pequena deveria estar imaginando... - evidentemente estava imaginando... Qualquer moça o estaria.

- Você não deve pensar... - começou ele. - Quero dizer, é difícil de explicar. Sua mãe - bem, ela é diferente de...

Elvira abanava a cabeça energicamente.

- Eu sei. Estou sempre lendo a respeito dela, nos jornais. É uma pessoa muito diferente das outras, não é? Acho que ela é mesmo uma pessoa maravilhosa.

- É verdade - concordou o Coronel - é a pura verdade. É uma pessoa maravilhosa. - Fez uma pausa, depois prosseguiu: - Mas uma pessoa maravilhosa com freqüência é... - Hesitou, continuando depois: - Nem sempre é uma felicidade a gente ter por mãe uma pessoa maravilhosa. Pode acreditar no que digo, porque é a verdade.

- O senhor não gosta muito de dizer a verdade, gosta? Mas acho que o que disse agora é a verdade.

Quedaram-se os dois a olhar as duas folhas da grande porta de vaivém, com ferragens de latão, que levava para o mundo lá fora.

De repente as portas abriram com violência - uma violência inusitada no Bertram's Hotel - e um rapaz entrou, dirigindo-se à recepção. Usava um casaco preto, de couro. Sua vitalidade era tanta que, por contraste, o Bertrams adquiriu uma atmosfera de museu. As pessoas em redor eram como que relíquias de outra era, incrustadas de poeira. O moço inclinou-se para Miss Gorringe e indagou:

- Lady Sedgwick está hospedada aqui?

Miss Gorringe não mostrava no momento o seu sorriso de boas-vindas. Com um olhar duro, respondeu:

- Está. - Depois, com definitiva má vontade, estendeu a mão para o telefone: - O senhor quererá...

- Não - disse o rapaz. Quero só deixar um bilhete. Tirou o bilhete de um bolso do casaco de couro e o fez deslizar sobre o mogno do balcão.

- Eu só queria saber se era mesmo este o hotel. Havia uma leve incredulidade na voz dele, enquanto olhava em torno de si, e depois se voltou para a entrada. Seus olhos passaram indiferentes por sobre as pessoas que estavam sentadas. Passaram por sobre Luscombe e Elvira, e Luscombe sentiu de repente uma cólera inesperada. "Diabos o levem", pensou consigo. "Elvira é uma pequena bonita. Quando eu era novo, sempre enxergava uma moça bonita, especialmente no meio de todos esses fósseis." Mas o moço parecia não ter olhos interessados em garotas bonitas. Virou-se para a recepção e perguntou, erguendo ligeiramente a voz, como para chamar a atenção de Miss Gorringe.

- Qual é o número do telefone daqui? Não é 1129?

- Não - respondeu Miss Gorringe - é 3925.

- Regent?

- Não, Mayfair.

O rapaz agradeceu com um movimento da cabeça. Em seguida caminhou rapidamente para a porta e saiu, abanando as duas folhas atrás de si, com aquela mesma característica explosiva que mostrara ao chegar.

Parecia que todos tomavam fôlego; e encontravam dificuldade em retornar ao que conversavam antes.

- Bem - disse o Coronel Luscombe meio sem jeito, como se lhe faltassem palavras. - Com efeito! Esses moços de hoje...

Elvira sorria.

- O senhor não o reconheceu? - perguntou. - Sabe quem é? Falava num tom levemente respeitoso ao lhe passar a informação. - Ladislaus Malinowski.

- Ah, aquele sujeito. - O nome era, em verdade, vagamente familiar ao Coronel Luscombe. - Corredor de automóvel.

- Isso mesmo. Foi campeão mundial dois anos seguidos. No ano passado deu uma batida séria. Quebrou uma porção de ossos mas acho que já está correndo de novo. - Levantou a cabeça para escutar.

- É de corrida o carro que ele está dirigindo agora.

O ronco do motor, vindo da rua, penetrara no interior do Bertram's. O Coronel Luscombe percebeu que Ladislaus Malinowski era um dos heróis de Elvira. "Bem", pensou ele, "melhor isso do que um desses cantores populares ou um desses cabeludos Beatles ou que outro nome tenham". Luscombe era muito antiquado nas suas opiniões sobre rapazes. As portas de vaivém abriram-se novamente. Elvira e o Coronel olharam-nas com certa ansiedade, mas o Bertram's revertera ao normal. Quem entrava era apenas um idoso clérigo de cabelos brancos; ficou por momentos olhando em redor, com a expressão levemente intrigada - como se não conseguisse lembrar onde estava e como é que chegara ali. Aliás, essa experiência não representava uma novidade para o Cônego Pennyfather. Acontecia-lhe em trens, quando de repente não se lembrava de onde viera, para onde estava indo, nem por quê! Acontecia-lhe quando caminhava na rua, acontecia-lhe ao se ver sentado à mesa de um comitê. Já lhe acontecera quando, sentado na sua poltrona no coro da catedral, não sabia dizer se já pregara ou não o seu sermão.

- Creio que conheço aquele velhote - disse Luscombe olhando atento o Cônego. - Quem será, mesmo? Acho que se hospeda aqui com freqüência. Abercrombie? Arcediago Abercrombie? Não, não é Abercrombie, embora se pareça com Abercrombie.

Elvira olhou sem interesse para o Cônego Pennyfather. Comparado com um campeão de corridas, não tinha o menor encanto. Ela não se interessava por nenhuma espécie de padres, embora, desde quando estava na Itália, confessasse certa admiração pelos cardeais que pelo menos eram pitorescos.

O rosto do Cônego Pennyfather se iluminou, e ele se pôs a abanar a cabeça, satisfeito. Descobrira onde estava. No Hotel Bertram's, claro; onde vinha passar a noite, a caminho de... a caminho de onde? Chadminster? Não, não vinha de Chadminster. Ia para... claro, para o Congresso, em Lucerna. E caminhou, felicíssimo, para o balcão da recepção, onde foi calorosamente cumprimentado por Miss Gorringe.

- Que prazer revê-lo, Cônego Pennyfather. Está com ótima aparência!

- Obrigado... obrigado... tive um resfriado forte, esta semana, mas já passou. A senhora me reservou um quarto. Será que eu escrevi?

Miss Gorringe o tranqüilizou.

- Escreveu, sim, Cônego Pennyfather. Recebemos sua carta. Reservamos para o senhor o quarto n.° 19, o mesmo em que esteve da última vez.

- Obrigado, obrigado. Olhe... deixe ver... quero ficar com o quarto por quatro dias. É verdade que estou viajando para Lucerna e ficarei fora uma noite, mas por favor não alugue o quarto a outro. Quero deixar aqui a maior parte da minha bagagem, só levo para a Suíça uma maleta. Será que há alguma dificuldade nisso?

Novamente Miss Gorringe o tranqüilizou:

- Não há o menor problema. Na sua carta o senhor já tinha explicado claramente.

Outra pessoa talvez não houvesse empregado a palavra "claramente". "Amplamente" seria mais próprio, dada a minúcia da carta.

Com todas as suas inquietações pacificadas, o Cônego Pennyfather deu um suspiro de alívio e foi levado, junto com a sua bagagem, para o quarto n.° 19.

No quarto n.° 28, Mrs. Carpenter tirara da cabeça a sua coroa de violetas e estava arrumando com cuidado a camisola em cima do travesseiro, na cama. Ergueu os olhos quando Elvira entrou.

- Ah, cá está você, meu bem. Quer que eu ajude a desarrumar a mala?

- Não, obrigada, - disse Elvira com polidez. - Não vou desarrumar quase nada.

- Qual dos quartos você prefere? O banheiro fica entre os dois. Eu disse a eles que pusessem a sua bagagem no quarto mais afastado. Creio que este aqui é um pouco barulhento.

- Muita gentileza sua, - disse Elvira na sua voz inexpressiva.

- Tem certeza de que não quer ajuda?

- Não, obrigada, não preciso mesmo. Acho que vou tomar um banho,

- Sim, me parece uma boa idéia. Quer tomar o seu banho antes de mim? Prefiro acabar a minha arrumação primeiro.

Elvira fez sinal que sim. Dirigiu-se ao banheiro contíguo, fechou a porta atrás de si e correu os ferrolhos. Foi até ao quarto, abriu a maleta e jogou algumas roupas em cima da cama. Despiu-se então, enfiou um robe, foi para o banheiro e abriu as torneiras. Voltou ao quarto e sentou-se na cama, junto ao telefone, Escutou um momento, para prever interrupções, depois levantou o fone:

- Fala do quarto 29. A senhora quer ligar para Regent 1129, por favor?

 

Dentro do recinto da Scotland Yard realizava-se uma reunião. Tudo fazia crer que era uma reunião informal. Seis ou sete homens sentavam-se à vontade em torno de uma mesa, e cada um daqueles seis homens era uma autoridade no seu ramo. O assunto que prendia a atenção desses defensores da lei era um problema que assumira terrível importância nos últimos dois ou três anos, Referia-se a um setor criminal cujo sucesso dava motivo a enormes preocupações. Os roubos em grande escala aumentavam sempre. Assaltos a bancos, roubos do dinheiro das folhas de pagamento, desvios de remessas de jóias registradas pelo correio, assaltos a trens. Quase não se passava um mês sem que um golpe espantosamente atrevido fosse tentado e levado a cabo com pleno êxito.

Ocupava a cabeceira da mesa, na presidência, Sir Ronald Graves, Comissário Assistente da Scotland Yard. Como era seu costume, Sir Ronald escutava mais do que falava. Não estavam sendo apresentados relatórios oficiais, como seria da rotina ordinária de trabalho do C.I.D.¹  Aquela era uma conferência de alto nível, um encontro geral de idéias, entre homens que encaravam o problema sob pontos de vista levemente discordantes. Sir Ronald Graves correu lentamente os olhos pelo seu pequeno grupo e depois fez um sinal de cabeça ao homem do outro extremo da mesa.

 

- Bem, 'Tapai", - disse ele - queremos ouvir algumas das suas rudes piadas.

O homem a que chamavam Papai era o Inspetor-Chefe Fred Davy. Sua aposentadoria não demoraria a vir e ele aparentava mais idade do que realmente tinha. Daí o apelido de Papai. Tinha uma vasta, aconchegante presença e uma expressão tão bondosa e condescendente, que muitos criminosos se haviam sentido desagradavelmente surpreendidos ao descobrirem que ele era um homem muito menos bem humorado e crédulo do que aparentava.

- Vamos, Papai, diga a sua opinião, - falou outro Inspetor-Chefe.

- A coisa cresceu muito - disse o Inspetor-Chefe Davy com um suspiro fundo. - Cresceu muito. E talvez ainda esteja crescendo.

- Você quer dizer que cresceu numericamente, não é isso?

- É, sim.

Outro dos homens, Comstock, de rosto inteligente, astuto, olhar vivo, interrompeu:

- E o senhor acha que isso para eles é vantagem?

- Sim e não - respondeu Papai. - Pode ser até um desastre. Mas o diabo é que até agora eles têm mantido tudo muito bem controlado.

O Superintendente Andrews, um homem louro, franzino, de expressão sonhadora, disse pensativo:

- Sempre acreditei que essa questão de volume é muito mais importante do que em geral se pensa. Vejam por exemplo um sujeito que opera sozinho. Se o negócio é bem dirigido e do tamanho certo, o lucro é infalível. Mas se abre filial, cresce, aumenta o pessoal, é possível que de repente a coisa adquira o tamanho errado e degringole. Acontece o mesmo com uma grande cadeia de lojas. Ou com um império industrial. Se for suficientemente grande, dá resultado. Mas se não for bastante grande, fracassa. Tudo tem que ser do tamanho certo. Quando é do tamanho certo e bem dirigido, não tem quem segure.

- E de que tamanho acha você que é esse negócio? - indagou rispidamente Sir Ronald.

- Maior do que a princípio julgamos - respondeu Comstock.

O Inspetor McNeill, homem de aparência dura. comentou :

- Está crescendo, sim. Papai tem razão. - Está crescendo sempre.

- Talvez seja uma boa coisa - disse Davy. - Pode crescer um pouco depressa demais, e então sair dos trilhos.

- A questão, Sir Ronald - interveio McNeill - é saber quem é que a gente pode pegar e quando.

-Há uma boa dúzia deles que a gente pode pegar - respondeu Comstock. - O pessoal do Harris anda metido nisso, nós sabemos. Há um pontinho muito bem montado no caminho de Luton. E uma garagem em Epsom, uma taverna perto de Maidenhead, e uma granja em Great Norton Road.

- E vale a pena pegar algum desses?

- Acho que não. Tudo é peixe miúdo. Elos. Apenas elos dispersos da corrente. Um local onde reformam carros e os repõem rapidamente em circulação; uma taverna respeitável, onde se recebem e transmitem recados; uma loja de roupas de segunda mão, onde um camarada pode mudar de aspecto, um costureiro de teatro no East End, também muito útil. É tudo gente alugada. Muito bem paga, mas na verdade não sabem de nada!

O sonhador Superintendente Andrews falou de novo:

- Nós lutamos contra gente muitíssimo inteligente. E ainda não chegamos nem perto deles. Conhecemos alguns dos seus auxiliares, e nada mais. Como eu disse, o bando do Harris está metido na coisa, e Marks cuida da parte financeira. Os contatos do estrangeiro procuram Weber, mas Weber é apenas um agente. Não temos nada de concreto contra nenhuma dessas pessoas. Sabemos que todos eles dispõem de meios para entrar em contato uns com os outros e com as diferentes ramificações do grupo, mas não sabemos exatamente como o conseguem. Nós os vigiamos e os seguimos, e eles sabem que os vigiamos. O escritório central há de estar em algum lugar. O que queremos apanhar são os planejadores.

Comstock interveio:

- É como uma rede gigante. Concordo que deve haver em qualquer parte uma sede de operações. Um local onde se planeja, detalha e encaixa cada operação. Em algum lugar alguém bola tudo e prepara um roteiro para a Operação Mala Postal, ou Operação Trem-Pagador. São essas pessoas que temos de apanhar.

- É possível que nem vivam no nosso país - observou Papai em voz baixa.

- Sim, também me atrevo a dizer que talvez nem morem aqui. Talvez morem num iglu, numa tenda em Marrocos, ou num chalé na Suíça.

- Eu não acredito nesses supercérebros - disse McNeill abanando a cabeça. - Só funcionam em romances. Tem que haver um cérebro, é claro, mas não acredito num supercriminoso. Por mim, o que eles têm é uma habilíssima Junta de Diretores, com planejamento central e um presidente. Deram com algum processo bom, e estão sempre melhorando de técnica. Apesar disso...

- Sim? - animou-o Sir Ronald.

- Mesmo num grupo compacto e reduzido, deve haver entre eles os dispensáveis. O que eu chamo "princípio do Trenó Russo". De vez em quando, se acham que estamos pisando os calcanhares deles, jogam-nos um dos seus, um dos que podem dispensar.

- Admiro eles se atreverem a tanto; não será arriscado demais?

- Imagino que a coisa poderia ser feita de tal modo que nem mesmo aquele que foi jogado fora compreendesse que o haviam atirado do trenó. Ele deve pensar apenas que caiu. E ficará calado, porque pensará que vale a pena calar-se. E valerá a pena, mesmo. Eles dispõem de muito dinheiro e podem se dar ao luxo de serem generosos. Cuidam da família, se o camarada tem família, enquanto ele está preso. Possivelmente até lhe preparam a fuga.

- Tem havido muitos casos desses - disse Comstock.

- A meu ver - interveio Sir Ronald - não nos adianta muito insistirmos nas nossas especulações. Dizemos sempre a mesma coisa.

McNeill riu:

- E que é que o senhor deseja que a gente faça?

- Bem... - Sir Ronald ficou a pensar, por um momento, e depois falou lentamente: - Nós todos estamos de acordo nos pontos principais. Concordamos na nossa diretiva principal a respeito do que tentamos fazer. Acho que valeria a pena fazermos um inventário de pequenas coisas, as coisas sem muita importância, mas que têm em si algo de inusitado. É difícil de explicar a que me refiro, mas lembro aquele detalhe do caso Culver, alguns anos atrás, Uma mancha de tinta. Estão lembrados? Uma mancha de tinta em torno de um buraco de rato. Para que um sujeito haveria de esvaziar uma garrafa de tinta num buraco de rato? Não parecia importante. Era difícil de se obter uma resposta. Mas quando obtivemos essa resposta, estávamos no bom caminho. É isso, mais ou menos, o tipo de pesquisa em que estava pensando. Procurarmos coisas singulares. Não tenham medo de contar, se derem com alguma circunstância que lhes pareça fora do comum. Insignificante, talvez, mas irritante, porque não combina com o resto. Vejo que Papai concorda.

- Concordo mil por cento - disse o Inspetor-Chefe

Davy. - Vamos, rapazes, tratem de aparecer com alguma novidade, Nem que seja um homem na rua com um chapéu esquisito.

Não houve resposta imediata. Todos pareciam um pouco incertos e hesitantes.

- Vamos lá - disse Papai. - Vou ser o primeiro a me arriscar. Talvez seja apenas um casinho engraçado, mas vale a pena contar. O assalto no London & Metropolitan Bank, agência de Carmolly Street. Lembram-se? Uma lista completa de números, cores e marcas de carro. Fizemos um apelo à população para se manifestar e o pessoal atendeu. E como atendeu! Cerca de cento e cinqüenta comunicações e todas enganosas! Depois de muita triagem, chegamos à conclusão de que sete carros tinham aparecido pelos arredores do banco, e qualquer um deles poderia estar ligado ao assalto.

- Sim - disse Sir Ronald - continue.

- Havia um ou dois que não conseguíamos identificar. Deviam ter as placas trocadas. Nada de especial nisso, acontece freqüentemente. A maioria acaba sendo descoberta. Vou dar apenas um exemplo: o Morris Oxford, sedan preto, número CMG 256, apontado por um oficial de justiça. Segundo ele, estava sendo dirigido pelo Meritíssimo Juiz Ludgrove.

Papai olhou em torno; os outros o escutavam, mas sem interesse visível.

- Eu sei - continuou Papai.- informação tola, como sempre. O Juiz Ludgrove é fácil de notar, principalmente porque é feio como a necessidade. Bem, mas não se tratava do Juiz Ludgrove, porque nessa hora ele estava no Tribunal. E ele possui um Morris Oxford, mas a placa do carro não e CMG 256. - Tornou a olhar para os outros: - Já sei, já sei. Vocês vão dizer que não há nada de especial nisso. Mas sabem qual era o número do carro? CMG 265. Parecidíssimo, não é? O tipo do erro em que a gente pode cair quando tenta recordar a placa de um carro, não?

- Desculpe - disse Sir Ronald - mas não vejo...

- Exato - conveio o Inspetor-Chefe Davy - não há propriamente nada para se ver, não é? Apenas registre-se a semelhança com o carro verdadeiro: 265-256 CMG. É uma coincidência curiosa que exista um carro Morris Oxford da mesma cor, com o mesmo número na placa, apenas com um algarismo invertido, e, na direção, um homem parecidíssimo com o proprietário.

- Você quer dizer então.,.

- Só uma diferençazinha de algarismo. O "engano deliberado" de hoje. Ou pelo menos parece ser.

- Desculpe, Davy, mas ainda não vi aonde você quer chegar.

- Ah, não pretendo chegar a nenhuma conclusão especial. Temos um carro Morris Oxford, placa CMG 265, passando pela rua dois minutos e meio depois do assalto ao Banco. E nele, o oficial de justiça reconhece o Juiz Ludgrove.

- Você estará querendo dizer que era realmente o Juiz Ludgrove? Ora vamos, Davy.

- Não, não estou insinuando que era o Juiz Ludgrove, nem que ele esteja envolvido num assalto a um banco. Ele estava hospedado no Hotel Bertram's, em Pond Street, e no momento exato do roubo achava-se no Tribunal. Tudo isso ficou mais do que provado. O que eu digo é que o número e a marca do carro, mais a identificação por um oficial de justiça que conhece muito bem o velho Ludgrove, é uma coincidência que deve significar alguma coisa. Mas, pelo que se viu, não significa nada. É pena.

Comstock mexeu-se, pouco à vontade.

- Houve outro caso semelhante a esse, quando se deu o roubo na joalheria de Brighton. Tratava-se de um velho almirante, creio eu. Esqueço o nome dele agora. Segundo a mulher que o identificou, ele estava presente no local.

- E não estava?

- Não, estava em Londres naquela noite. Tinha vindo para um desses jantares comemorativos da Marinha.

- Hospedou-se no clube?

- Não, num hotel. Acho que o mesmo que você mencionou há pouco, Papai. Bertram's, não é isso? Lugar sossegado, freqüentado por vários desses velhos oficiais reformados.

- Hotel Bertram's - repetiu, pensativo, o Inspetor-Chefe Davy.

 

 

Miss Marple acordou cedo porque sempre acordava cedo. Muito lhe agradava a cama - confortabilíssima.

Dirigiu-se à janela e abriu as cortinas, deixando entrar a pálida luz do dia londrino. Mas não dispensou a luz elétrica. Muitíssimo agradável o quarto que lhe haviam reservado, bem dentro da tradição do Bertram’s. Papel de parede florido de rosas, uma grande cômoda de mogno polido e penteadeira combinando. Duas cadeiras, uma poltrona a boa altura do chão. Uma porta levava ao banheiro que, embora moderno, tinha um papel de parede também estampado de rosas, evitando assim o efeito de superfrígida higiene.

Miss Marple voltou à cama, levantou os travesseiros, olhou o relógio - sete e meia - apanhou o livrinho de orações que sempre a acompanhava e leu a costumeira página e meia, que era a sua cota diária. Em seguida pegou o tricô e se pôs a tricotar, a princípio lentamente, porque sempre sentia os dedos rígidos e reumáticos assim que acordava; mas logo a velocidade aumentou e os dedos perderam a dolorida rigidez.

"Outro dia", disse consigo Miss Marple, saudando o fato com o seu costumeiro e discreto prazer. Outro dia, e quem sabe o que ele lhe reservava?

Largou o tricô, deixando que os pensamentos lhe corressem preguiçosos pela cabeça... Selina Hazy - que linda casinha tinha ela em St. Mary Mead's - e agora tinham pregado por cima aquele horroroso teto verde... Muffins desperdiçam manteiga demais... mas ótimos... E imagine, servirem bolo de cominho, coisa tão antiga! Jamais ela esperara, nem por um instante, que as coisas ali fossem tao parecidas com as de outrora... porque, afinal de contas, o tempo não pára... E fazê-lo parar assim, como no Bertram's, devia custar uma porção de dinheiro... Não se via pelo hotel inteiro um só pedacinho de plástico! Devia dar resultado, claro. As coisas fora da moda voltam à moda como elemento pitoresco... Basta ver como o pessoal adora as rosas do tempo antigo, e desdenha o chá híbrido. Nada, ali, parecia verdadeiramente real... bem, e por que haveria de parecer? Fazia cinqüenta anos... não, quase sessenta, que ela se hospedara ali... E se o hotel não lhe parecia real é porque ela já estava aclimatada a este ano da graça... na verdade, o caso punha em aberto uma série nova de problemas... A atmosfera e as pessoas... E os dedos de Miss Marple afastaram o tricô para mais longe de si.

- Muito dinheiro - disse ela em voz alta. - Muito dinheiro, creio. E dificílimo de encontrar...

Seria isso responsável pela curiosa sensação de constrangimento que a afetara na noite passada? A sensação de que qualquer coisa estava errada...

Todas aquelas velhas - na verdade parecidíssimas com aquelas outras de cinqüenta anos atrás, quando ela ali se hospedara. Naquele tempo elas pareciam naturais - mas não eram naturais agora. As pessoas idosas de hoje não eram iguais às pessoas idosas de antigamente - agora, tinham um ar preocupado, atribulado pelas inquietações domésticas que lhes esgotavam as forças; ou participavam de.comitês, procurando mostrar-se ocupadíssimas e competentes, ou tingiam o cabelo de azul de genciana, ou usavam perucas; e as mãos não eram as mãos de que ela se recordava, mãos finas, delicadas - eram ásperas por culpa da lavagem de roupa e dos detergentes...

E assim - bem, aquelas pessoas não pareciam reais. Mas a verdade é que eram reais. Selina Hazy era real. E aquele bonito velho militar, sentado ao canto da sala, era real - ela o encontrara uma vez, embora não lhe recordasse o nome - e o Bispo (querido Robbie) já tinha morrido.

Miss Marple consultou seu minúsculo relógio. Eram oito e meia - hora do café.

Releu as instruções da gerência do hotel. Impressão ótima, graúda, não precisava a gente nem botar os óculos.

As refeições podiam ser servidas no quarto, bastava ligar para a copa, ou apertar o botão da campainha com o nome da camareira.

Miss Marple apertou o botão. Falar para a copa a intimidava.

O resultado foi excelente. Quase no mesmo instante bateram à porta, e apareceu uma camareira impecável. Uma camareira real que parecia irreal, usando um uniforme de listras cor de alfazema, e até mesmo uma touca, uma touca engomada. Um rosto sorridente, rosado, de camponesa autêntica. (Onde é que eles encontravam gente assim?)

Miss Marple escolheu o seu pequeno almoço. Chá, ovos escalfados, brioches frescos. E tão perfeita era a camareira que nem chegou sequer a mencionar mingau ou flocos de cereal ou suco de laranja.

Cinco minutos depois chegou a refeição. Uma bandeja espaçosa, com um grande bule ventrudo, leite cremoso, um jarro de prata com água quente. Dois ovos lindamente escalfados sobre torradas, escalfados da maneira correta, não aqueles bolões duros, cozidos em fôrmas de folha; e uma boa rodela de manteiga, estampada com um cardo. Geléia do laranja, mel, geléia de morango. Brioches esplêndidos, não aqueles duros com a parte interna fina como papel - cheiravam a pão fresco (o cheiro mais delicioso do mundo!) E havia ainda uma maçã, uma pera e uma banana.

Miss Marple enfiou a faca num ovo, cautelosa mas confiante. Não se desapontou. Uma gema bem amarela escorreu, grossa e cremosa. Ovos de verdade!

E tudo quentíssimo. Um senhor pequeno almoço. Como os que ela sabia preparar - mas não tivera que o fazer. Era-lhe servido como se - não, não como se ela fosse uma rainha - como se ela fosse uma senhora de meia-idade, hospedada num hotel bom, mas não muito caro, - no ano de 1909. Miss Marple deu seus agradecimentos à camareira, que respondeu com um sorriso:

- Sim, senhora, o chef dá muita importância ao pequeno almoço.

Miss Marple examinou com prazer a moça. O Hotel Bertram's especializava-se em oferecer maravilhas. Uma camareira autêntica. Beliscou o braço esquerdo, disfarçada-mente. E indagou:

- Você já está aqui há muito tempo?

- Acabo de fazer três anos, Madame.

- E onde estava antes disso?

- Num hotel em Eastbourne. Muito moderno, mas eu prefiro lugares antigos, como este.

Miss Marple tomou um gole de chá. Deu por si a cantarolar vagamente - as palavras se arrumando numa cantiga há muito esquecida.

"Oh, por onde andou você em toda a minha vida..." A camareira parecia levemente espantada.

- Eu estava me lembrando de uma canção antiga <- pipilou Miss Marple. - Um sucesso do meu tempo.

E tornou a cantar, suavemente: "Oh, por onde andou você em toda a minha vida..."

- Será que você conhece esta cantiga?

- Bem - a camareira parecia encabulada.

- Para você é muito antiga - observou Miss Marple. - Ah, á gente dá para recordar coisas num lugar como este.

- Sim, Madame, acho que muitas senhoras que se hospedam aqui se sentem assim.

- Em parte é por isso que elas vêm para cá, creio eu - disse Miss Marple.

A camareira saiu. Evidentemente estava habituada a senhoras idosas que pipilavam e se entregavam a recordações.

Terminado o pequeno almoço, Miss Marple levantou-se, satisfeita e indolente. Já tinha um plano para uma manhã agradável nas lojas. Nada muito estrênuo - para não se fatigar. Talvez Oxford Street, hoje, e amanhã Knights-bridge, projetava ela, feliz.

Eram cerca de dez horas quando Miss Marple saiu do quarto devidamente equipada: chapéu, luvas, sombrinha - por segurança, embora o tempo estivesse bonito - bolsa - a sua melhor bolsa de compras...

A porta, dois quartos além no corredor, abriu-se bruscamente e alguém espiou para fora. Era Bess Sedgwick que logo recuou para dentro do quarto e fechou a porta incisivamente.

Miss Marple se pôs a cismar enquanto descia a escada. Preferia a escada ao elevador, assim pela manhã. Era um bom exercício, estimulava-a. Mas seus passos agora se tornavam lentos, mais lentos... e Miss Marple parou.

 

O Coronel Luscombe atravessava o corredor, após deixar o seu quarto, quando uma porta, no alto da escada, abriu-se inesperadamente e Lady Sedgwick lhe falou:

- Afinal você aparece! Tenho estado à sua espera, para lhe saltar em cima! Onde podemos conversar? Quero dizer, sem que nos interrompa a cada segundo uma dessas gatas velhas.

- Bem, na verdade, Bess, nem sei direito... Acho que na sobreloja há uma espécie de sala de correspondência.

- É melhor você entrar aqui. E depressa, antes que a camareira imagine coisas estranhas a nosso respeito.

O Coronel, um pouco a contragosto, passou pela porta e fechou-a firmemente atrás de si.

- Eu não tinha a menor idéia de que você fosse se hospedar aqui, Bess, não tinha a mínima idéia.

- Suponho que não teve mesmo.

- Quero dizer... eu jamais teria trazido Elvira para cá. Estou com Elvira aqui, você já sabe, não?

- Sei, via-a ontem à noite com você.

- Mas eu não sabia realmente que você estava aqui. Parecia um lugar tão pouco condizente com você.

- Não sei por que - respondeu Bess Sedgwick friamente. - Na verdade é o hotel mais confortável de Londres. Por que eu não viria para cá?

- Você precisa compreender que eu não tinha a mínima idéia... Quero dizer...

Lady Sedgwick olhou o Coronel e riu. Estava vestida para sair, com um costume escuro, muito, bem talhado, e blusa de um brilhante verde esmeralda. Parecia alegre e animadíssima. Ao seu lado, o Coronel Luscombe parecia velho e desbotado.

- Derek querido, não fique tão preocupado. Não o estou acusando de preparar a encenação de um encontro sentimental entre mãe e filha. Foi apenas uma dessas coisas que acontecem: pessoas que se encontram nos locais mais inesperados. Mas você tem que tirar Elvira daqui, Derek. Tem que tirá-la daqui imediatamente - hoje.

- Ah, ela vai embora. Sabe que só a trouxe para ca por uma ou duas noites. Levá-la a um teatro... coisas assim. Amanhã ela vai para a casa dos Melfords.

- Coitada, deve ser maçante para ela.

Luscombe olhou preocupado para Bess. - Acha mesmo que ela vai ficar muito maçada? Bess apiedou-se dele.

- Provavelmente não, depois do que deve ter enfrentado na Itália. Quem sabe até vai achar muito divertido.

Luscombe tomou a coragem com ambas as mãos.

- Escute, Bess, fiquei espantado por encontrá-la aqui, mas não acha que foi - bem, não acha que de certo modo foi providencial? Quero dizer: talvez seja uma oportunidade. Não creio que você saiba realmente... bom, como a pequena se sentiria.

- Que é que está tentando dizer, Derek?

- Bem, afinal você é mãe dela.

- Claro que sou mãe dela. Ela é minha filha. E qual a vantagem desse fato para qualquer de nós duas, hoje ou no futuro?

- Você não pode ter certeza. Creio... creio que ela sente isso.

- De onde lhe veio essa idéia? - indagou rispidamente Bess Sedgwick.

- De uma coisa que ela me disse ontem. Perguntou onde você estava, que é que fazia.

Bess Sedgwick atravessou o quarto e chegou à janela. Ficou um momento a tamborilar na vidraça.

- Você é tão bonzinho, Derek. Tem idéias tão amáveis. Mas que não funcionam, meu anjo. Isto é o que você deve compreender. Não funcionam e podem ser perigosas.

- Ora essa, Bess. Perigosas?

- Sim, sim, sim. Perigosas. Eu sou perigosa. Sempre fui perigosa.

- Quando penso em certas coisas que você fez - disse o Coronel.

- Ninguém tem nada com isso - retrucou Bess. - Já se tornou um hábito para mim, correr perigo. Não, não direi um hábito. Antes um vício. Como um narcótico. Como aquela pitadinha de heroína que os viciados têm que tomar com tanta freqüência para que a vida lhes pareça alegre e digna de ser vivida. Bem, é isso mesmo. É a minha desgraça... ou não, quem sabe? Nunca tomei narcóticos... nunca precisei deles. Meu vício é o perigo. Mas as pessoas que vivem como eu podem causar danos a outras. Ora, não seja um velho boboca e teimoso, Derek. Você cuida bem dessa menina longe de mim. Não posso fazer bem nenhum a ela. Só mal. Se for possível, não a deixe saber que estamos hospedados no mesmo hotel. Telefone aos Melfords e leve-a para a casa deles ainda hoje. Invente uma desculpa, um contratempo de última hora...

O Coronel Luscombe hesitou, puxando pelo bigode.

- Acho que você está cometendo em erro, Bess. - Suspirou. - Ela me perguntou onde é que você estava. E eu disse que você estava viajando.

- Bem, dentro de umas doze horas estarei viajando mesmo, de forma que a explicação calhou.

Bess aproximou-se do Coronel, beijou-o na ponta do queixo, fê-lo dar meia volta, como se fossem começar a brincar de cabra-cega, abriu a porta e empurrou-o brandamente para fora. Quando a porta se fechou, o Coronel avistou uma senhora idosa que dobrava o canto, vinda da escada. Murmurava qualquer coisa, examinando a bolsa. "Deus meu! Devo ter deixado no quarto."

Passou pelo Coronel sem aparentemente lhe prestar muita atenção, mas quando ele começou a descer a escada, Miss Marple parou junto à porta do quarto dela e lançou um olhar inquisitivo na direção do homem. Depois olhou para a porta de Bess Sedgwick. "Então era por ele que ela esperava", disse consigo Miss Marple. "Gostaria de saber por que".

 

O Cônego Pennyfather, fortificado pelo pequeno almoço, atravessou a sala de entrada, lembrou-se de entregar a chave na recepção, passou peia porta de vaivém e foi devidamente colocado num táxi pelo porteiro irlandês, que estava ali justamente para fazer esse serviço.

- Onde o senhor vai?

- Ah meu Deus! - disse o Cônego Pennyfather subitamente desconsolado. - Deixe-me ver... para onde é que eu ia?

O tráfego em Pond Street ficou paralisado alguns minutos, enquanto o Cônego Pennyfather e o porteiro debatiam o intricado problema.

Finalmente o Cônego Pennyfather teve um estalo e o táxi recebeu ordem de se dirigir ao Museu Britânico.

O porteiro ficou na calçada, com um largo sorriso na cara, e já que ninguém mais parecia estar de saída, permitiu-se passear um pouco ao longo da fachada do hotel, assobiando baixinho uma melodia antiga.

Uma das vidraças do andar térreo do Bertram's foi puxada violentamente para o alto, mas o porteiro só virou a cabeça quando uma voz se fez ouvir através da janela aberta.

- Então foi aqui que você veio parar, Micky. Que diabo o trouxe para cá?

O porteiro deu meia volta, assombrado, e arregalou os olhos.

Lady Sedgwick enfiou a cabeça pela janela e perguntou:

- Você não está me reconhecendo?

Um brilho súbito de reconhecimento percorreu o rosto do homem.

- Ora, pois não é Bessie! Vejam só. Depois de tantos anos. Bessie, menina!

- Só você me chama de Bessie. É um nome repugnante. Que é que você andou fazendo esses anos todos?

- Uma coisa e outra - respondeu Micky com alguma reserva. - Não sou notícia como você. Estou sempre lendo suas façanhas nos jornais.

Bess Sedgwick riu. - De qualquer forma, estou muito mais conservada do que você. Você bebe demais. Sempre bebeu.

- Você está mais bem conservada porque nada em dinheiro.

- Dinheiro não lhe adiantaria coisa nenhuma. Você beberia ainda mais e iria completamente de água abaixo. Iria, iria sim! Mas que foi que o trouxe aqui? Isso é que eu queria saber. Como foi que você veio parar neste lugar?

- Eu precisava de emprego. Tinha esses cacarecos... - e Micky passou a mão pelas medalhas do peito.

- Sim, estou vendo. - Bess ficou pensativa. - São todas verdadeiras, não são?

- Claro que são. Por que não seriam?

- Oh, eu acredito em você. Você sempre foi corajoso. Sempre foi um bom lutador. Sim, o exército deve ter sido o seu elemento, tenho certeza.

- O exército é bom em tempo de guerra. Em tempo de paz não presta.

- E então você se agarrou a esse negocio. Eu não tinha a menor idéia... - Bess fez uma pausa.

- Você não tinha a menor idéia de que, Bessie?

- De nada. É curioso rever você depois de tantos anos.

- Eu não me esqueci - disse o homem. - Nunca me esqueci de você, Bessie. Ah, como você era linda! Uma guria linda.

- Uma guria maluca, eis o que eu era - respondeu Lady Sedgwick.

- Isso é verdade. Você não tinha muito juízo. Se tivesse, não se meteria comigo. Que mãos que você tinha para dominar um cavalo! Lembra-se daquela égua? Como é que ela se chamava? Molly O' Flynn. Era um demônio, aquela égua.

- Só você podia montá-la - disse Lady Sedgwick.

- Se ela pudesse, me atirava ao chão! Mas quando viu que não podia, entregou os pontos. Era uma beleza de animal. Mas falando em montar a cavalo, não havia naquela redondeza uma só mulher que montasse como você. Firme na sela, firme nas rédeas. Sem medo, nunca teve medo, um minuto que fosse. E continua do mesmo jeito, ao que parece. Aviões, carros de corrida.

Bess Sedgwick riu.

- Preciso acabar as minhas cartas. E afastou-se da janela.

Micky debruçou-se no peitoril. - Não me esqueci de Ballygowlan - disse com entonação especial. - Cheguei até a pensar em lhe mandar uma carta...

A voz de Bess Sedgwick soou áspera.

- Que é que está insinuando, Mick Gorman?

- Estava só dizendo que não me esqueci... de nada. Estava só... lhe lembrando.

A voz de Bess Sedgwick mantinha a mesma nota áspera.

- Se você quer dizer o que eu penso que está querendo dizer, dou-lhe um conselho. Se você me arranjar alguma complicação dou-lhe um tiro, como se desse um tiro num rato. Já dei tiro em homem...

- No estrangeiro, talvez...

- No estrangeiro ou aqui... pra mim tanto faz.

- Chega, santo Deus! Eu acredito que você seja capaz disso mesmo. - Havia admiração na voz dele. - Em Ballygowlan...

- Em Ballygowlan - interrompeu ela - pagaram a você para ficar de bico calado e pagaram bem. Você recebeu o dinheiro. E de mim não receberá mais nada. Portanto nem pense!

- Seria uma interessante história romântica para os jornais de domingo...

- Você ouviu o que eu disse.

- Ah - riu ele, - não estou falando sério. Só estava brincando. Jamais faria qualquer coisa para magoar a minha pequena Bessie. Continuarei de bico calado.

- Isso mesmo - retrucou Lady Sedgwick, fechando a janela. E baixando os olhos para a mesa à sua frente, olhou para a carta inacabada no bloco de papel. Arrancou-a, releu-a, amarrotou-a até reduzi-la a uma bola e atirou-a à cesta de papéis. Depois levantou-se abruptamente da cadeira e atravessou a sala. Nem sequer olhou em torno antes de sair. As salinhas de correspondência do Bertram's tinham um jeito de parecer vazias, mesmo quando não o estavam. Duas escrivaninhas bem arranjadas ficavam junto às janelas; havia uma mesa à direita, com algumas revistas; à esquerda viam-se duas grandes poltronas de espaldar alto, voltadas para a lareira. Eram locais prediletos, à tarde, de velhos militares - exército ou marinha - que ali se escondiam para tirar uma boa soneca até à hora do chá. Quem chegasse para escrever uma carta não os avistaria. Pela manhã, as poltronas não eram muito procuradas.

Mas por acaso, naquela manhã, estavam ambas ocupadas. Numa achava-se uma senhora idosa, na outra uma jovem. A mocinha levantou-se. Ficou de pé um momento, olhando em dúvida para a porta por onde passara Lady Sedgwick, e em seguida dirigiu-se lentamente para lá. Uma palidez mortal cobria o rosto de Elvira Blake.

Ao cabo de cinco minutos, a senhora idosa mexeu-se. Miss Marple concluiu então que o breve repouso que costumava dar a si mesma sempre que acabava de vestir-se e descer, já durara o suficiente. Era tempo de sair e gozar dos prazeres de Londres. Caminharia até Piccadily e lá tomaria o ônibus 9 para High Street, Kensington, ou iria até Bond Street e pegaria o 25 para Marshall & Snelgrove's; ou tomaria o 25 em sentido contrário, que, pelo que se lembrava, haveria de levá-la às Army and Navy Stores. Ao passar pelas portas de vaivém ainda saboreava mentalmente essas prometidas delícias. O porteiro irlandês, já de volta ao posto, decidiu por ela.

- A senhora está precisando de um táxi - disse ele com firmeza.

- Creio que não - respondeu Miss Marple. - Acho que posso tomar o ônibus 25 bem perto daqui - ou o 2, que vem de Park Lane.

- Ônibus não serve para a senhora - disse convicto o porteiro. - É muito perigoso pegar ônibus quando não se é mais criança. Eles param e arrancam aos solavancos, não querem saber se derrubam as pessoas. Essa gente de hoje não tem coração. Eu apito, o táxi vem, e a senhora vai para onde quiser, feito uma rainha.

Miss Marple pensou um pouco e sucumbiu.

- Então está certo - disse ela - talvez seja melhor eu tomar um táxi.

O porteiro nem precisou apitar. Limitou-se a estalar o dedo, e um táxi apareceu como num passe de mágica. Miss Marple recebeu todo o auxílio possível para entrar e, ato contínuo, resolveu impulsivamente ir até Robinson & Cleaver's para ver as lindas ofertas de lençóis de linho puro. Acomodou-se satisfeita no táxi, sentindo-se realmente, como lhe anunciara o porteiro, tal qual uma rainha. Enchia-lhe a cabeça a agradável expectativa de encontrar lençóis de linho, fronhas de linho, panos de enxugar copos e louça sem estamparias de bananas, figos ou cachorros ensinados e outras figuras coloridas que só fazem distrair a gente na hora de enxugar os pratos.

Lady Sedgwick aproximou-se do balcão de recepção.

- Mr. Humfries está no escritório?

- Está, sim, Lady Sedgwick. - Miss Gorringe parecia espantada.

Lady Sedgwick passou por trás do balcão, bateu na porta e entrou sem esperar resposta.

Mr. Humfries levantou a vista, surpreendido.

- Que...?

- Quem empregou aquele tal Michael Gorman? Mr. Humfries gaguejou um pouco.

- Parfitt foi embora. Sofreu um acidente de automóvel há coisa de um mês. Tivemos de substituí-lo às pressas. Esse camarada parecia servir. Boas referências, veterano do exército, ótima folha de serviço. Talvez não seja muito inteligente, mas isso às vezes é até melhor. A senhora sabe de alguma coisa contra ele?

- O bastante para não o querer aqui.

- Já que insiste - respondeu Humfries com fleuma - nós o despediremos.

- Não - disse Lady Sedgwick com igual lentidão. - Não, agora é tarde... Não faz mal.

 

 

- Elvira!

- Olá, Bridget.

A aristocrata Elvira Blake cruzou a porta da frente do n° 180 de Onslow Square, porta que sua amiga Bridget correra a abrir, já que estivera de atalaia na janela.

- Vamos lá para cima - propôs Elvira.

- Sim, é melhor. Senão mamãe agarra a gente.

As duas pequenas subiram correndo a escada, escapando assim à mãe de Bridget, que saiu do seu quarto para o patamar mas não conseguiu chegar a tempo.

- É muita sorte sua não ter mãe - disse Bridget quase sem fôlego, enquanto conduzia a amiga para o quarto e trancava a porta. - É certo que mamãe é um anjo e tudo mais, mas as perguntas que ela faz! De manhã, ao meio-dia e de noite. Para onde vai, com quem se encontrou? Não serão primos de fulaninho lá de Yorkshire? Pense na futilidade disso tudo!

- Acho que esse pessoal não tem é no que pensar - disse vagamente Elvira. - Escute, Bridget, preciso fazer uma coisa muito importante, e você tem que me ajudar.

- Bem, se eu puder ajudo. De que se trata? Algum homem?

- Não, não se trata de homem. - Bridget parecia decepcionada. - Tenho que ir passar vinte e quatro horas na Irlanda, talvez um pouco mais, e preciso que você me dê cobertura.

- Na Irlanda? Por quê?

- Ainda não posso lhe contar tudo. Não há tempo. Tenho que encontrar meu tutor, Coronel Luscombe, no Prunier's, para o almoço, à uma e meia.

-Que é que você fez da velha Carpenter?

- Livrei-me dela no Debenham's.

Bridget deu uma risadinha.

- E depois do almoço vão me levar para a casa dos Melfords. Vou morar com eles até completar vinte e um anos.

.- Que horror!

- Mas eu me arranjo. A prima Mildred é facílima de tapear. Já está combinado que virei à cidade para aulas e outras coisas. Existe um lugar chamado Mundo de Hoje. Lá eles levam a gente para conferências, museus, galerias, Câmara dos Lordes, etc. O importante é que ninguém vai saber se você está onde deve estar ou não! Faremos uma porção de coisas.

- Espero que sim. - Bridget deu outra risadinha. - Conseguimos na Itália, não foi? A velha macarrone pensava que era muito rigorosa. Mal sabia ela o que a gente era capaz de fazer quando queria.

As duas pequenas riram, recordando com prazer bem sucedidas travessuras.

- Mesmo assim, precisava muito planejamento - lembrou Elvira.

- E algumas mentirinhas espetaculares - ajuntou Bridget. - Você teve alguma notícia de Guido?

- Tive sim; me escreveu uma carta enorme assinada "Ginevra" como se fosse uma amiguinha. Mas vê se você cala a boca um instante, Bridget. Temos um monte de coisas a fazer e só hora e meia para dar conta de tudo. Pra começo de conversa, escute. Amanhã, vou sair para o dentista. Isso é fácil, posso adiar por telefone, ou você pode, por mim. Aí, pela altura do meio-dia, você telefona para os Melfords, fingindo que é sua mãe e explicando que o dentista quer que eu vá lá depois de amanhã e assim tenho que passar mais um dia com vocês.

- Vai dar tudo certo. Eles dirão que pena, quanta gentileza de vocês etc. Mas e se você não estiver de volta depois de amanhã?

- Então você dá outro telefonema. Bridget parecia hesitar.

- Até lá teremos tempo suficiente para inventar uma desculpa - disse Elvira, impaciente. - O que me preocupa agora é dinheiro. Você não tem nenhum, hem? - Elvira falou sem muita esperança.

- Só umas duas libras.

- Não dá. Tenho que comprar a passagem aérea; já olhei o horário dos vôos. Não leva mais de duas horas. Muita coisa vai depender do tempo que terei de ficar lá.

- Não pode me dizer o que vai fazer?

- Não, não posso. Mas é importante, tremendamente importante.

A voz de Elvira soou tão diferente que Bridget a olhou, surpresa.

- É coisa séria mesmo, Elvira?

- É sim.

- Coisa de que ninguém pode saber?

- É sim. Ultra, ultra-secreta. Preciso descobrir se um certo negócio é verdadeiro ou não. A questão do dinheiro é que chateia. E o que dá ódio é que eu sou muito rica; foi meu tutor mesmo que me disse. Mas só o que eles me dão é a miséria dessa mesada para comprar roupa. E que parece sumir mal a recebo.

- Será que o seu tutor, o tal Coronel Não-sei-de-quan-tas, não pode lhe adiantar algum dinheiro?

- De jeito nenhum. Ele ia me encher de perguntas, procurando saber para que é que eu queria.

- Bom, isso é verdade. Não sei por que todo o mundo tem a mania de fazer perguntas. Sabe que toda vez que me chamam no telefone, mamãe tem que vir perguntar quem foi? Afinal, não é da conta dela!

Elvira concordou, mas estava com o pensamento longe.

- Já empenhou alguma coisa, Bridget?

- Nunca. Acho que nem sei como é.

- É muito fácil - disse Elvira. - Você vai a um daqueles joalheiros que têm três bolas em cima da porta, compreendeu?

- Mas eu não possuo coisa alguma que valha a pena empenhar - lembrou Bridget.

- Sua mãe não tem nenhuma jóia por aí?

- Não é bom a gente pedir a ajuda dela.

- É, talvez não. Mas bem que a gente podia surrupiar alguma coisa.

- Oh! Não podemos fazer uma coisa dessas - exclamou Bridget alarmada.

- Não? Bom, talvez tenha razão. Mas garanto que ela não ia descobrir. Á gente devolvia antes que ela desse pela falta. Eu sei. Iremos a Mr. Bollard.

- Quem é Mr. Bollard?

- Ah, é uma espécie de joalheiro da família. De vez em quando levo lá o meu relógio para consertarem. Já me conhece desde quando eu tinha uns seis anos. Vamos, Bridget, vamos lá agora mesmo. Temos pouco tempo.

- É melhor a gente sair pelos fundos - lembrou Bridget - senão mamãe quer logo saber para onde é que nós vamos.

Do lado de fora do tradicional estabelecimento de Bollard & Whitley, em Bond Street, as duas pequenas fizeram as combinações finais:

- Entendeu bem, Bridget?

- Creio que sim - respondeu Bridget num tom que nada tinha de contente.

- Primeiro - determinou Elvira - vamos sincronizar os nossos relógios.

Bridget animou-se um pouco. Essa conhecida frase literária teve um efeito estimulante. Solenemente, sincronizaram os relógios, Bridget ajustando o seu, que acusava uma diferença de um minuto.

- A hora zero será exatamente dentro de vinte e cinco minutos - disse Elvira. - Isso me dá bastante tempo. Talvez mais do que preciso, mas é melhor assim.

- Mas se... - começou Bridget.

- Se o quê?

- Se eu for mesmo atropelada?

- É claro que não será atropelada! Você sabe que é muito ágil, e que o tráfego de Londres costuma parar de repente. Vai dar tudo certo.

Bridget não parecia convencida.

- Você não vai me faltar, Bridget, não é mesmo?

- Está bem - disse Bridget. - Não faltarei.

- Ótimo - disse Elvira.

Bridget foi para o outro lado de Bond Street e Elvira abriu a porta de Bollard & Whitley, velhos e conceituados joalheiros e relojoeiros. A atmosfera, dentro da loja, era de luxo e quietude. Um fidalgo de fraque adiantou-se e indagou de Elvira em que poderia servi-la.

- Posso falar com Mr. Bollard?

- Mr. Bollard. Quem devo anunciar?

- Miss Elvira Blake.

O fidalgo desapareceu e Elvira deslizou até um balcão onde, sob o vidro, broches, anéis e braceletes se exibiam sobre um fundo de veludo. Instantes depois Mr. Bollard apareceu. Era o sócio principal da firma, um senhor de sessenta e poucos anos. Acolheu Elvira com grande carinho.

- Ah, Miss Blake, então está em Londres! É um grande prazer vê-la. Em que posso servi-la?

Elvira mostrou um elegante reloginho de pulso.

- Este relógio não está andando bem. Será que o senhor pode dar um jeito nele?

- Claro. Não há o menor problema. - Mr. Bollard tomou o relógio das mãos da moça. - Para que endereço devo remetê-lo?

Elvira deu o endereço.

- E outra coisa. Meu tutor... o Coronel Luscombe, a senhor sabe...

- Sim, é claro.

- Perguntou-me o que eu queria como presente de Natal - disse Elvira. - Sugeriu que eu viesse aqui e desse uma olhada em algumas coisas. Perguntou se eu queria que ele viesse comigo, mas eu disse que preferia vir sozinha primeiro, porque me sinto meio encabulada... com essa história de preços e...

- Bem, na verdade, é um aspecto a encarar - concordou Mr. Bollard, sorridente e paternal. - E em que é que está pensando, Miss Blake? Um broche, bracelete... um anel?

- Acho que broches são mais úteis - respondeu Elvira. - Mas... será que eu poderia ver uma porção de coisas? - Elvira lançou um olhar súplice ao velho.

Ele sorriu, compreensivo:

- Naturalmente, naturalmente! Não dá prazer nenhum fazer uma escolha apressada, não é mesmo?

Os cinco ou seis minutos seguintes foram gastos da maneira mais agradável. Mr. Bollard não se poupava. Ia buscar coisas em uma vitrina, em outra, e os broches e pulseiras se empilhavam em cima de um pedaço de veludo aberto diante de Elvira. De vez em quando ela se voltava para se olhar no espelho, experimentando o efeito que fazia um broche ou um brinco. Afinal, meio incerta, pôs de lado uma linda pulseira um pequeno relógio ornado com brilhantes, e dois broches.

- Vamos tomar nota disso aí - prometeu Mr. Bollard, - e quando o Coronel Luscombe aparecer em Londres, esperemos que venha cá, resolver ele próprio o presente que vai lhe dar.

- Assim está bem - disse Elvira. - Ele se sentirá, como se tivesse escolhido ele mesmo o presente, não é? - O seu límpido olhar azul ergueu-se para o rosto do joalheiro. O mesmo olhar azul notara, um momento antes, que se haviam passado exatamente vinte e cinco minutos.

Lá fora ouviu-se um ranger de freios e o grito alto de uma moça. Inevitavelmente os olhos de todos, na loja, voltaram-se para as vitrinas que davam para Bond Street. O movimento da mão de Elvira no balcão à sua frente e do balcão para o bolso do seu bem talhado costume, foi tão rápido e discreto que se diria imperceptível, mesmo que alguém estivesse olhando.

- Ai-ai-ai! - exclamou Mr. Bollard voltando do lugar onde estivera a espiar a rua. - Quase houve um acidente. Que menina louca! Atravessar a rua daquela maneira!

Elvira já se dirigia para a porta. Olhou para o seu relógio de pulso e soltou uma exclamação.

- Puxa vida, demorei demais aqui. Sou capaz de perder o trem. Muito obrigada, Mr. Bollard, não vá esquecer quais foram as quatro coisas que escolhi.

Dentro de um segundo estava do lado de fora. Dobrando rapidamente à esquerda, e depois novamente à esquerda, parou na arcada de uma sapataria, até que Bridget, quase sem fôlego, veio ao seu encontro.

- Oh! exclamou Bridget. - Fiquei apavorada. Pensei que ia morrer mesmo. E fiz um buraco na meia,

- Não faz mal - disse Elvira e conduziu logo a amiga pela rua, dobrando outra esquina à direita. - Vamos.

- Deu... deu... tudo certo?

A mão de Elvira deslizou até ao bolso e voltou trazendo um bracelete de brilhantes e safiras.

- Oh, Elvira, como é que você teve coragem!

- Agora, Bridget, você vai àquela casa de penhores que marcamos. Vá e veja quanto é que você pode receber pela pulseira. Peça cem libras.

- Você pensa... e se eles disserem... veja bem... pode estar numa lista de coisas roubadas...

- Deixe de bobagens. Como é que podia estar numa lista tão depressa? Eles ainda nem deram pela falta.

- Mas Elvira, quando eles derem pela falta... vão pensar... talvez vão saber... que você é que deve ter tirado.

- Talvez pensem... se descobrirem muito depressa...

- Então irão à polícia e aí...

Bridget calou-se ao ver Elvira abanar a cabeça lentamente, os cabelos amarelo-pálido movendo-se de um lado para outro, e um débil e enigmático sorriso curvando-lhe os cantos da boca.

- Não irão à polícia, Bridget. De mode nenhum, se pensarem que fui eu que tirei.

- Por quê? Quer dizer que...

- Já lhe contei que vou receber um monte de dinheiro quando completar vinte e um anos. Poderei comprar jóias e mais jóias a eles. Por isso não vão dar escândalo. Vá depressa pegar o dinheiro. Depois vá ao Aer Lingus e compre a passagem. Tenho que tomar um táxi para o Prunier's. Já estou dez minutos atrasada. Estarei com você amanhã de manhã às dez e meia.

- Oh, Elvira, era tão bom que você não se arriscasse tanto! - gemeu Bridget.

Mas Elvira já estava fazendo sinal para um táxi.

 

Miss Marple passou momentos deliciosos em Robinson & Cleaver's. Além de comprar uns lençóis caros, mas esplêndidos - adorava lençóis de linho, tão frescos e macios - ainda se permitiu a aquisição de uns ótimos panos para enxugar copos, orlados de vermelho. Quanta dificuldade hoje em dia para se conseguir bons panos de enxugar copos! Só se viam panos que mais pareciam toalhas de mesa ornamentais, decoradas com rabanetes e lagostas ou com a Torre Eiffel ou Trafalgar Square, ou sarapintados de limões e laranjas. Depois de dar o seu endereço em St. Mary Mead, Miss Marple descobriu um ônibus que a levou às Army & Navy Stores.

Em tempos passados, Army & Stores era o ponto predileto da tia de Miss Marple. Claro que atualmente já não era a mesma coisa. Miss Marple relembrou tia Helen a procurar o seu caixeiro predileto na seção de secos e molhados, confortavelmente instalada numa cadeira, com a touca na cabeça e o que chamava de manto de "popelina preta" nos ombros. Passava-se então uma longa hora, ninguém tinha pressa, tia Helen imaginando toda espécie de comestível que pudesse ser adquirido e guardado para uso futuro. Faziam-se provisões para o Natal, e até mesmo se providenciava alguma coisa para a Páscoa. A menina Jane impacientava-se um pouco e então recebia ordem de ir olhar a seção de artigos de vidros, para se distrair.

Terminadas as compras, tia Helen entregava-se a minuciosas perguntas a respeito da saúde da família do seu caixeiro predileto: mãe, esposa, o filho segundo, a cunhada defeituosa. E depois de passar uma agradável manhã, tia Helen dizia, no estilo brincalhão daqueles tempos: "Será que a menininha quer almoçar?" Tomavam então o elevador para o quarto andar, almoçavam, terminando sempre por um sorvete de morango. Por fim, compravam meia libra de chocolates ao creme de café, e iam para um matinê numa carruagem, daquelas de quatro rodas.

Evidentemente, Army & Navy Stores tinha sofrido várias operações plásticas desde aquele tempo. Poder-se-ia até dizer que estava irreconhecível para quem a vira outrora. Mais alegre e muito mais iluminada. Miss Marple, embora concedendo um sorriso indulgente ao passado, não punha objeções às comodidades do presente. Ainda havia um restaurante e para lá foi ela, a fim de almoçar.

Enquanto lia cuidadosamente o menu e resolvia o que comer, passeou os olhos pela sala e ergueu levemente as sobrancelhas. Que coincidência extraordinária! Lá estava uma mulher em quem jamais pusera os olhos até à véspera, embora houvesse visto inúmeros retratos dela nos jornais: em corridas de cavalo, nas Bermudas, ou junto ao seu automóvel ou avião. Ontem, pela primeira vez, avistara-a em carne e osso. E agora, como tão freqüentemente acontece, por coincidência tornava a encontrá-la, e no local mais inesperado. Pois não conseguia combinar o almoço em Army & Navy Stores com Bess Sedgwick. Não se admiraria se avistasse Bess Sedgwick saindo de uma furna do Soho, ou descendo a escada da Covent Garden Opera House, em vestido de noite e com um diadema de brilhantes na cabeça. Mas não ali em Army & Navy Stores que, no espírito de Miss Marple, estava e estaria sempre estreitamente ligada ao pessoal das forças armadas, suas esposas, filhas, tias e avós. Contudo, lá estava Bess Sedgwick, muito elegante como sempre, no seu costume escuro e blusa esmeralda, almoçando com um homem. Um rapaz de rosto fino de falcão, metido num casaco de couro preto. Inclinavam-se um para o outro, conversando animados, pondo na boca as garfadas de comida como se nem reparassem no que comiam.

Um encontro amoroso, talvez? Sim, provavelmente. O homem deveria ser quinze ou vinte anos mais novo do que ela, porém Bess era dona de uma atração magnética.

Miss Marple olhou detidamente para o rapaz e chegou à conclusão de que ele era o que ela chamava "um moço bonito". E concluiu também que não gostava muito dele. "Parecido com Harry Russel", disse consigo Miss Marple, colhendo, como de costume, um protótipo no passado. "Nunca prestou. Nunca mulher nenhuma que andou com ele prestou também".

"Ela não aceitaria um conselho meu", pensou Miss Marple, "mas eu lhe poderia dar um". Contudo, os amores dos estranhos não eram da sua conta, e Bess Sedgwick, pelo que se dizia, era muito capaz de proteger-se em matéria de amores.

Miss Marple suspirou, comeu o seu almoço e preparou-se para uma visita à seção de papelaria.

A curiosidade, ou como ela preferia dizer "ter interesse" pelos negócios dos outros, era uma das características de Miss Marple.

Deixando deliberadamente as luvas sobre a mesa, levantou-se e foi até à caixa, tomando o caminho que passava perto da mesa de Lady Sedgwick. Depois de pagar a conta. "descobriu" a falta das luvas e voltou para apanhá-las, deixando, por infelicidade, cair a bolsa no caminho de retorno. A bolsa abriu-se e espalhou pelo chão um monte de bugigangas. Uma garçonete apressou-se a ajudá-la a apanhar os objetos caídos, e Miss Marple viu-se forçada a simular grandes tremuras, derrubando moedas e chaves pela segunda vez.

Não conseguiu muito com esses subterfúgios, mas não foram eles inteiramente inúteis; e o interessante é que nenhum dos dois alvos da sua curiosidade dedicou sequer um olhar à desastrada velhota que estava sempre a derrubar coisas.

Enquanto esperava que o elevador descesse, Miss Marple recordou alguns retalhos de frase que ouvira:

"E a previsão do tempo?"

"O.K. Não haverá nevoeiro.

"Tudo pronto para Lucerna?

- Está. O avião sai às 9.40.

Fora tudo o que conseguira apanhar da primeira vez. A viagem de volta rendera um pouco mais: Bess Sedgwick falava zangada:

"Por que diabo você foi ao Bertram's ontem? Não devia passar nem por perto de lá.

"Não houve nada de mal. Perguntei se você estava hospedada lá, e todo o mundo sabe que somos amigos íntimos...

"A questão não é essa. O Bertram's está muito certo para mim... não para você. Você lá chama a atenção como um bêbado na missa. Todo o mundo deve ter ficado olhando para você. "Que olhem!

"Você é mesmo um idiota. Por que... por quê? Que motivos você tinha? Você tinha um motivo... eu conheço você...

"Calma, Bess.

“Você é um mentiroso de marca!"

Fora tudo que Miss Marple conseguira escutar. Parecia-lhe muito interessante.

 

 

Na noite de 19 de novembro o Cônego Pennyfather acabara de jantar cedo no Athenaeum, cumprimentara de longe um ou dois amigos, mantivera uma acalorada mas agradável discussão acerca de certos pontos cruciais da data dos Manuscritos do Mar Morto, e então, consultando o relógio, viu que era hora de partir, a fim de pegar o avião para Lucerna. Quando atravessava o vestíbulo, foi cumprimentado por outro amigo: o Dr. Whittaker, do S.O.A.S., que lhe disse alegremente:

- Como vai, Pennyfather? Não o vejo há muito tempo. Como foi de Congresso? Discutiu-se algum assunto interessante?

- Espero que sim.

- Está chegando de lá, não é?

- Não, não, estou indo para lá. Vou tomar um avião esta noite.

- Ah, compreendo. - Whittaker parecia levemente embaraçado. - Não sei por que pensei que o Congresso era hoje.

- Não, não. Amanhã, 19.

O Cônego Pennyfather saía pela porta enquanto seu amigo, seguindo-o com o olhar, dizia:

- Mas meu caro amigo, hoje é 19, não?

O Cônego Pennyfather, entretanto, não estava mais ao alcance da voz do outro. Apanhou um táxi em Pall Mall e rumou para o terminal aéreo em Kensington. Havia lá uma verdadeira multidão naquela noite. Postando-se ele junto ao balcão, viu afinal chegar a sua vez. Conseguiu apresentar a passagem, o passaporte e outras coisas necessárias à viagem. A moça do balcão, que já ia carimbando essas credenciais, parou abruptamente:

- O senhor desculpe, mas parece que a passagem está errada,

- Errada? Não, está correta. Vôo certo e... bem, não leio direito sem os óculos... cento e não sei quantos, para Lucerna.

- É a data, cavalheiro. A data: quarta-feira, 18.

- Não, claro que não. Pelo menos... quero dizer, hoje é quarta-feira, 18.

- Desculpe, mas hoje é 19.

- 19! - O Cônego ficou desolado. Tirou uma pequena agenda do bolso e virou as páginas, ansioso. Por fim, teve de se convencer. Hoje era 19. O avião que deveria tomar partira na véspera.

- Então quer dizer... quer dizer... meu Deus, quer dizer que o Congresso de Lucerna se realizou hoje.

E ficou a olhar para o balcão, em profundo abatimento; mas como havia muitos outros viajantes, o Cônego e suas perplexidades foram postos de lado. E ele continuou ali de

pé, na maior tristeza, segurando a passagem agora inútil. Examinava mentalmente várias possibilidades. Será que poderia trocar a passagem? Mas não adiantava - não adiantava - que horas seriam? Quase 9 horas? A conferência já se realizara; começara às l0h da manhã. Claro, fora isso que Whittaker procurara dizer no Athenaeum. Pensara que o Cônego Pennyfather já voltara do Congresso.

- Oh, Senhor - lamentava-se consigo o Cônego Pennyfather. - Que confusão que eu fiz! - E saiu andando triste e silencioso por Cromwell Road, que mesmo nos seus dias melhores não era uma rua alegre.

Caminhava lentamente pela rua, carregando a sua valise e revolvendo perplexidades no espírito. Afinal, depois de examinar à vontade as várias razões que o haviam levado àquele engano, abanou tristemente a cabeça.

Agora - disse de si para si - deixe-me ver, já passam das nove, o melhor é comer qualquer coisa.

E o curioso, pensava ele, é que não sentia fome.

Andando desconsolado por Cromwell Road, escolheu finalmente um pequeno restaurante que servia pratos indianos preparados com caril. Pareceu-lhe que, embora não sentisse tanta fome quanto deveria sentir, era melhor refazer-se com uma boa refeição, e depois tinha que procurar um hotel e... mas não, não havia necessidade disso. Tinha já um hotel! Claro. Estava hospedado no Bertram’s; e reservara um quarto por quatro dias. Que sorte! Assim pois, o quarto estava lá, esperando por ele. Bastava-lhe pedir a chave na portaria e... aí outra reminiscência o assaltou. Que era aquela coisa pesada no seu bolso?

Meteu a mão no bolso e trouxe de lá uma dessas chaves grandes e sólidas, por meio das quais os hotéis tentam evitar que os hóspedes mais distraídos as carreguem no bolso. O que não evitara que o Cônego carregasse a sua!

- N.° 19 - disse o Cônego alegre ao reconhecê-la. - Está certo. É uma sorte eu não ter que ir procurar um quarto de hotel. Dizem que os hotéis andam cheiíssimos. Sim, Edmunds estava dizendo isso mesmo no Athenaeum, esta noite. Tivera a maior dificuldade em achar um quarto.

Mais satisfeito consigo próprio e com o cuidado que tomara com os seus preparativos de viagem, reservando hotel antecipadamente, o Cônego abandonou o prato de caril, lembrou-se de pagar a conta e, após dar alguns passos, achou-se outra vez em Cromwell Road.

Pareceu-lhe uma tristeza voltar para o hotel assim, quando deveria estar jantando em Lucerna, conversando sobre inúmeros e fascinantes problemas. Seu olhar foi apanhado pela fachada de um cinema. As Muralhas de Jerico. Parecia um título muito convidativo. Valeria a pena verificar se a verdade bíblica fora respeitada.

Comprou uma entrada e internou-se aos tropeções na escuridão. Gostou do filme, embora lhe parecesse que não tinha nenhuma relação com a narrativa bíblica. As muralhas de Jerico eram como que um meio simbólico de aludir aos compromissos matrimoniais de certa dama. Depois de haverem elas caído várias vezes, a linda estrela encontrou o ríspido e mal-encarado herói a quem amara secretamente o tempo todo, e juntos se propuseram a levantar as muralhas de maneira a fazê-las resistir melhor aos assaltos do tempo. Não se tratava propriamente de um filme destinado a interessar um clérigo idoso: mas o fato é que o Cônego Pennyfather o apreciou muitíssimo. E não era a filmes como esse que o Cônego Pennyfather costumava assistir; pareceu-lhe, assim, que estava ampliando os seus conhecimentos sobre a vida. A fita acabou, as luzes se acenderam, tocou-se o Hino Nacional e o Cônego Pennyfather voltou aos tropeções às luzes de Londres, ligeiramente consolado da tristeza que lhe haviam provocado os acontecimentos do começo da noite.

Era uma noite linda, e o Cônego voltou a pé para o Hotel Bertram's, após ter primeiro tomado um ônibus que o levou na direção oposta. Era meia-noite quando chegou ao hotel, e à meia-noite o Bertram's costuma apresentar uma aparência digna, com todo o mundo na cama. O elevador estava num andar de cima, de modo que o Cônego resolveu subir pela escada. Alcançou o seu quarto, enfiou a chave na fechadura, escancarou a porta e entrou!

- Deus do céu, estarei vendo coisas? Mas quem... como... - viu tarde demais o braço levantado...

Estrelas lhe explodiram na cabeça como um buquê de fogos de artifício...

 

 

O Trem Correio Irlandês varava a noite. Ou, mais corretamente, a escuridão da alta madrugada.

A espaços, a locomotiva Diesel, como uma visagem, soltava o seu lamentoso uivo de advertência. Viajava a mais de oitenta milhas por hora. Estava dentro do horário.

De repente, a marcha diminuiu, os freios agiram. As rodas gritaram ao agarrar-se aos trilhos. Mais devagar... mais devagar... O guarda enfiou a cabeça pela janela, reparando no sinal vermelho, à frente, quando o trem afinal parou. Alguns dos passageiros acordaram. A maioria continuou dormindo.

Uma senhora idosa, alarmada pela subtaneidade da desaceleração, abriu a porta e espiou para o fundo do corredor. Um pouco mais além, uma das portas que davam para a linha estava aberta. Um clérigo idoso, com uma maçaroca espessa de cabelos brancos, subia os degraus, vindo da via permanente. A senhora presumiu que ele descera antes até à linha para investigar o que houvera.

O ar matinal estava frígido. Alguém, no fundo do corredor, disse: - Foi só o sinal - A senhora idosa tornou a entrar na cabina e tratou de dormir novamente.

Mais além, na linha, um homem, balançando uma lanterna, correu da guarita do sinaleiro para o trem. O foguista desceu da locomotiva. O guarda que saltara do trem acercou-se dele. O homem da lanterna chegou, sem fôlego, falando aos arrancos:

- Uma batida feia lá adiante... O trem de carga descarrilhou...

O maquinista olhou do alto da sua cabina, depois desceu e foi reunir-se aos outros.

Na parte de trás, seis homens que haviam acabado de subir o aterro, entraram no trem, por uma porta que lhes fora deixada aberta no último carro. Seis passageiros, vindos de diferentes vagões, os encontraram. Com rapidez bem ensaiada, eles trataram de tomar conta do vagão postal, isolando-o do resto da composição. Dois homens, de carapuça de lã à cabeça, puseram-se em guarda à entrada e k saída do carro, cacetes na mão.

Um homem com farda da estrada de ferro passou pelo corredor do trem parado, dando explicações a quem as solicitava:

- A linha está bloqueada à frente. Uma demora de dez minutos talvez. Não passa disso. - Era amigável e tranqüilizador.

Junto à locomotiva, foguista e maquinista estavam bem amordaçados e amarrados. O homem com a lanterna gritou:

- Tudo O.K. aqui!

No aterro o guarda também estava identicamente amarrado e amordaçado.

Os peritos arrombadores no vagão postal tinham feito o seu trabalho. Dois outros corpos bem atados jaziam no chão. As malas registradas foram jogadas no aterro, onde outros homens as esperavam.

Nas cabinas os passageiros resmungavam uns para os outros que as estradas de ferro tinham deixado de ser o que eram.

E quando já se acomodavam novamente para dormir, o ronco de um cano de escape atravessou a escuridão.

- Santo Deus - murmurou uma mulher - será um avião a jato?

- Um carro de corrida, me parece. O ronco diminuía pouco a pouco...

Nove milhas além na rodovia de Bedhampton, uma coluna compacta de caminhões noturnos avançava lentamente para o norte. Um grande carro branco, de corrida, passou por eles feito um raio.

Dez minutos depois o carro afastou-se da rodovia.

A garagem, numa esquina da estrada B, tinha uma placa: FECHADO. Mas as grandes portas se escancararam, o carro branco entrou e as portas tornaram a fechar-se. Três homens, trabalhando numa velocidade febril, pregaram no carro um novo jogo de placas. O motorista trocou o boné e o casaco. Antes vestia casaco branco de pele de carneiro; agora usava couro preto. E partiu outra vez no carro. Três minutos depois, um velho Morris Oxford, dirigido por um clérigo, apareceu pipocando na estrada e mais adiante enveredou por vários caminhos rurais, cheios de curvas e desvios.

Uma camioneta, que rodava por uma estrada carroçável, diminuiu a marcha ao alcançar um velho Morris Oxford parado junto à sebe, com um homem idoso de pé ao lado.

O motorista da camioneta pôs a cabeça de fora:

- Algum problema? Quer ajuda?

- Muita bondade sua. São os faróis.

Os dois motoristas chegaram perto um do outro. Escutaram.

- Barra limpa.

Várias maletas caras, de estilo americano, foram transferidas do Morris Oxford para a camioneta.

Uma ou duas milhas além, a camioneta seguiu por uma trilha tosca que logo adiante deixava ver a entrada dos fundos de uma grande e opulenta mansão. No que fora outrora o pátio do estábulo, estava estacionado um grande Mercedes branco. O motorista da camioneta abriu a mala do Mercedes com uma chave, transferiu para lá as maletas e tornou a partir na camioneta.

Num terreiro de granja próximo, um galo cantou ruidoso.

 

 

Elvira Blake olhou para o céu, notou que era uma linda manhã e entrou numa cabina telefônica. Discou o número de Bridget, em Onslow Square. Vendo que era a própria Bridget que atendia, falou:

- Alô, Bridget!

- Oh, Elvira, é você? - A voz de Bridget parecia agitada.

- Sim. Está tudo bem?

- Que nada! Péssimo. Sua prima, Mrs. Melford, ligou para Mamãe ontem à tarde.

- Pr a perguntar por mim?

- Sim. Eu pensava que tinha me saído muito bem quando telefonei para ela na hora do almoço. Mas parece que ela ficou preocupada com os seus dentes. Pensou que você estivesse com alguma coisa séria, um abscesso, ou coisa parecida. Por isso telefonou para o dentista e descobriu, naturalmente, que você nem tinha ido lá. Aí ela telefonou para Mamãe e por azar Mamãe estava bem perto do telefone, de modo que não pude atender primeiro. E como não podia deixar de acontecer, Mamãe foi logo dizendo que não sabia nada a esse respeito, e que você não estava aqui em casa. Fiquei sem saber o que fazer.

- Não disse nada, então?

- Fingi que não sabia de nada. Afinal contei que me lembrava de ter ouvido você dizer que ia visitar uns amigos -em Wimblendon.

- Por que Wimblendon?

- Foi o primeiro lugar que me veio à cabeça. Elvira suspirou. - Bem, acho que tenho que inventar uma história qualquer. Talvez uma velha governanta, que more em Wimblendon. Os cuidados desse pessoal complicam tudo! Espero que a prima Mildred não tenha feito alguma bobagem maior, como chamar a polícia, ou coisa semelhante.

- Você vai agora para lá?

- Só vou à noite. Ainda tenho uma porção de coisas a fazer.

- E foi mesmo à Irlanda? deu tudo certo?

- Descobri o que eu queria saber.

- Pela sua voz parece que você está... aborrecida.

- Estou me sentindo aborrecida.

- Posso lhe ajudar, Elvira? Fazer qualquer coisa?

- Ninguém pode me ajudar, na verdade... É uma coisa que tenho de fazer sozinha. Eu esperava que certa coisa não fosse verdade... mas é verdade. E não sei o que faça.

- Você está em perigo, Elvira?

- Não seja melodramática, Bridget. Eu preciso ter cuidado, nada mais. Preciso ter o maior cuidado.

- Então você está em perigo. Elvira falou, depois de uma pausa:

- Talvez eu esteja só imaginando coisas.

- Elvira, que é que você vai fazer a respeito da pulseira?

- Ah, isso não é problema. Arranjei dinheiro com uma certa pessoa e, assim, logo mais posso ir... como é que se diz?... resgatar a pulseira. E de lá vou diretamente aos Bollards.

- Acha que eles não vão reclamar nada?... Não, mamãe, é da lavanderia. Estão dizendo que não mandamos nunca o tal lençol. Sim, mamãe, sim, direi à moça. Tudo certo então.

Do outro lado do fio Elvira sorriu e pendurou o fone.

Abriu a bolsa, tirou dinheiro de dentro, contou as moedas de que precisava, arrumou-as à sua frente e começou uma ligação. Quando obteve o número que desejava, enfiou na fenda as moedas necessárias, apertou o botão A e falou numa vozinha meio sem fôlego:

- Alô, prima Mildred. Sim, sou eu... Lamento infinitamente... Sim, eu sei... bem, eu ia mesmo... sim, foi a pobrezinha da velha Maddy, - você sabe, a nossa velha Mademoiselle... sim, escrevi um postal, e depois me esqueci de pôr na caixa do correio. Ainda está no meu bolso... bem, você compreende, ela estava doente e não tinha ninguém que ficasse com ela e por isso vim até cá para ver como ela ia... Sim, eu ia para a casa de Bridget, mas a notícia sobre Maddy mudou tudo.,. Não entendo o recado que você recebeu. Alguém deve ter feito confusão... Sim, eu lhe explico tudo quando chegar aí... sim, hoje à tarde. Não, vou só esperar que chegue a enfermeira que vem cuidar de Maddy... bem, não é propriamente uma enfermeira. É uma dessas mulheres com prática de enfermagem, se não me engano. Não, ela não quer nem ouvir falar em hospital... Mas lamento muito, prima Mildred, lamento muitíssimo.

- Elvira pôs o fone no gancho e suspirou exasperada; "Se ao menos não precisasse dizer tantas mentiras a tanta gente", murmurou para si mesma.

Ao sair da cabina telefônica deparou com manchetes enormes nos jornais: "GRANDE ASSALTO. TREM POSTAL DA IRLANDA ATACADO POR BANDIDOS.

 

Mr. Bollard atendia a um freguês quando a porta da loja se abriu. Ergueu os olhos e viu entrar a jovem aristocrata Elvira Blake.

- Não - disse ela a um empregado que veio ao seu encontro. - Vou esperar que Mr. Bollard se desocupe.

Afinal o cliente de Mr. Bollard despediu-se e Elvira tomou o lugar vago.

- Bom dia, Mr. Bollard - disse ela.

- Infelizmente o seu relógio ainda não ficou pronto, Miss Elvira - falou Bollard.

- Não se trata do relógio. - explicou Elvira. - Vim pedir desculpas. Aconteceu uma coisa horrível. - Abriu a bolsa e tirou uma caixinha, da qual retirou a pulseira de safiras e brilhantes. - O senhor deve estar lembrado de que, quando vim trazer o relógio para consertar e escolher umas coisas para o meu presente de Natal, houve um acidente na rua. Uma pessoa foi atropelada, ou quase. Suponho que eu estava com a pulseira na mão e, sem pensai% enfiei-a no bolso do casaco. Mas só descobri isso hoje de manhã. Então vim correndo devolvê-la. Lamento sinceramente, Mr. Bollard» não sei como é que pude fazer uma coisa tão estúpida.

- Ora, não tem importância - disse Mr. Bollard, fleumático.

- Certamente o senhor pensou que alguém tinha roubado o bracelete.

Os límpidos olhos azuis de Elvira encontraram os do velho.

- Já tínhamos dado pela falta da jóia, - confessou Mr. Bollard. - Muitíssimo obrigado, Miss Elvira, por devolvê-la tão depressa.

- Fiquei horrorizada quando a encontrei - disse Elvira. - Bem, muito obrigada, Mr. Bollard, o senhor foi muito gentil.

- Enganos como este acontecem - respondeu Mr. Bollard sorrindo de modo paternal. - Não pensemos mais no assunto. Mas não faça isso outra vez. - Riu com o ar de quem dizia um gracejo amável.

- Não farei - disse Elvira. - No futuro hei de ter o maior cuidado.

Sorriu, deu meia volta e saiu da loja. "Eu só queria saber", disse consigo Mr. Bollard, "só queria saber..."

Um dos sócios, que estava perto, aproximou-se mais.

- Então foi ela que tirou?

- Foi, sim. Tirou sem mais aquela - disse Mr. Bollard.

- Mas trouxe de volta - observou o sócio.

- Trouxe de volta - concordou Mr. Bollard. - Essa eu não esperava.

- Não esperava que ela devolvesse a jóia?

- Isso mesmo, no caso de ter sido ela quem houvesse levado.

- Acha que a história dela é verdadeira? - indagou o sócio, curioso. - Que enfiou a jóia no bolso por distração?

-Creio que é possível, - admitiu Bollard, pensativo.

- Pode ser cleptomania.

-É. Pode ser cleptomania, - conveio Bollard. - O mais provável é que ela tenha tirado de caso pensado... Mas, sendo assim, como é que trouxe de volta tão depressa? É curioso...

- Foi bom não termos dado parte à polícia. Confesso que tive vontade de fazê-lo.

- Eu sei, eu sei. Você não tem tanta experiência quanto eu. Nesse caso, foi melhor não dar. - E Mr. Bollard acrescentou baixinho, só para si: - Mas a coisa é interessante. Muito interessante. Que idade terá ela? Dezessete ou dezoito, suponho. Deve ter-se metido em alguma complicação.

- Parece que ouvi você dizer que ela nadava em dinheiro.

- Pode-se ser uma herdeira e nadar em dinheiro - disse Bollard - mas aos dezessete anos nem sempre se pode pôr a mão no cobre. É engraçado. As herdeiras em geral andam com a bolsa mais vazia do que as moças menos endinheiradas. O que nem sempre é uma boa coisa. Bem, creio que jamais saberemos a verdade sobre esse caso.

Repôs o bracelete em seu lugar no mostruário e fechou a tampa.

 

 

Os Escritórios de Egerton, Forbes & Wilborough situavam-se em Bloomsbury, numa daquelas praças imponentes e cheias de dignidade que até agora não foram varridas pelo vento das mudanças. A placa de cobre estava tão gasta que se tornara praticamente ilegível. A firma funcionava há mais de um século, e boa parte da aristocracia rural da Inglaterra figurava entre os seus clientes. Não havia mais nenhum Forbes na firma, nem Wilborough. No lugar deles estavam os Atkinsons, pai e filho, um galés Lloyd e um escocês MacAllister. Contudo, havia ainda um Egerton, descendente do Egerton fundador. Esse Egerton, um homem cinqüenta e dois anos, era consultor de várias famílias Que, no correr do tempo, tinham sido aconselhadas por seu avô, seu tio e seu pai.

Nesse momento, ele, sentado atrás de uma grande mesa de mogno na sua bela sala do primeiro andar, falava com bondade, mas com firmeza, a um cliente de ar abatido. Richard Egerton era um homem bonito, alto, moreno, com umas manchas grisalhas nas têmporas e olhos cinzentos muito vivos. Seus conselhos eram sempre bons conselhos, mas normalmente ele não tinha papas na língua.

- Com toda franqueza, você não tem escapatória, Freddie - dizia ele. - Nenhuma escapatória, depois das cartas que escreveu.

- Você não acha... - murmurou desolado Freddie.

- Não, não acho, - disse Egerton. - A única esperança é fazer um acordo fora de tribunal. Podem até sustentar que você é passível de acusação criminal.

- Mas escute, Richard, isso seria levar as coisas muito longe.

Ouviu-se uma cigarra discreta na mesa de Egerton, que pegou o fone de cenho franzido.

- Creio ter dito que não me incomodassem. Houve um murmúrio do outro lado. Egerton falou:

- Ah, sim, entendo. Sim, peça a ela que espere. Recolocou o fone no gancho e virou-se mais uma vez para a cara infeliz do seu cliente.

- Escute aqui, Freddie, eu conheço a lei. Você não. Você está numa encrenca infernal. Farei o possível para tirá-lo disso, mas vai lhe custar um bom dinheiro. Duvido muito que eles aceitem um acordo por menos de doze mil.

- Doze mil! - O desventurado Freddie estava consternado. - Mas como? Eu não tenho esse dinheiro, Richard!

- Bem, então terá que pedir um empréstimo. Sempre se dá um jeito. Dê-se por feliz se ela aceitar o acordo por doze mil; se você resolver ir a juízo, talvez lhe custe muito mais.

- Vocês advogados! - disse Freddie. - São todos uns tubarões!

Ergueu-se. - Bem, - disse ele - faça tudo o que puder por mim, Richard, meu velho.

Partiu, abanando tristemente a cabeça. Richard Egerton afastou do espírito Freddie e os seus negócios e tratou de pensar na próxima cliente. Disse com seus botões: "A jovem Elvira Blake. Como será ela agora? Levantou o fone: - Lord Frederick foi embora. Mande entrar Miss Blake.

Enquanto esperava, fez alguns cálculos no mata-borrão da mesa. Quantos anos desde...? Ela devia ter quinze...' dezessete... talvez mais do que isso. O tempo passou tão depressa. "Filha de Conniston", pensou ele, "e filha de Bess. A qual dos dois terá puxado?"

Abriu-se a porta, o escriturário anunciou Miss Elvira Blake e a moça entrou na sala. Egerton levantou-se da cadeira e dirigiu-se a ela. Quanto à aparência, pensou ele, não tinha semelhança com o pai nem com a mãe. Alta, esbelta, muito loura, a mesma cor de Bess mas sem a vitalidade de Bess, com um leve jeitinho antiquado, embora fosse difícil ter muita certeza disso, já que a moda, no momento, acontecia ser de babadinhos e corpetes.

- Muito bem, - foi ele dizendo enquanto apertava a mão de Elvira. - Que surpresa! Da última vez que a vi, você tinha onze anos. Venha, sente-se aqui. - Empurrou uma cadeira e Elvira sentou-se.

- Creio - disse Elvira um pouco indecisa - que deveria ter-lhe escrito antes, marcando uma entrevista. Era o que devia ter feito, mas me resolvi muito de repente e aproveitei a oportunidade, já que estava em Londres.

- E que é que está fazendo em Londres?

- Uma revisão nos dentes.

- Coisinha enjoada, dentes, - disse Egerton. - Amolam a gente do berço ao túmulo. Mas agradeço aos seus dentes, que me dão a oportunidade de vê-la. Vejamos: você esteve na Itália, não foi? completando a sua educação num desses lugares para onde vão hoje todas as moças.

- Sim, - respondeu Elvira - na casa da Contessa Martinelli. Mas já a deixei definitivamente. Estou morando com os Melfords, em Kent, até que me decida por alguma coisa.

- Bem, espero que encontre alguma coisa do seu agrado. Não pensou numa universidade?

- Não. - disse Elvira. - Não me acho suficientemente inteligente para tanto. - Fez uma pausa e continuou: - Parece-me que preciso do seu consentimento para fazer qualquer coisa.

Os olhos sagazes de Egerton fitaram-na com interesse.

- Sou um dos seus tutores, e. curador, por força do testamento de seu pai - disse ele. - Portanto, você tem todo o direito de me procurar quando quiser.

Elvira disse cortesmente: - Muito obrigada. - Egerton perguntou:

- Alguma preocupação?

- Não. Não. Mas o senhor compreende, eu não sei de coisa alguma. Ninguém nunca me falou nada. E a gente nem sempre gosta de perguntar. - Ele olhou-a com atenção,

- Refere-se a coisas que lhe dizem respeito?

- Sim. Ainda bem que o senhor me compreende. O tio Derek... - ela hesitou.

- Derek Luscombe?

- Sim. Sempre o chamei de tio.

- Entendo.

- Ele é muito bonzinho - continuou Elvira - mas é uma pessoa que não diz nada à gente. Limita-se a arranjar coisas mas fica receoso de que não me agradem. Claro que ouve a opinião de uma porção de gente... de mulheres, sim, que lhe dizem o que deve fazer. Como a Contessa Martinelli. Ele é quem providencia a minha ida para os colégios ou para as escolas femininas de aperfeiçoamento.

- Mas não era para lá que você queria ir.

- Não, não é bem isso. Os lugares são bons. O que eu quero dizer é que de uma forma ou de outra é para lá que todo o mundo vai.

- Compreendo.

- Mas eu não sei de nada a meu próprio respeito. Por exemplo, tenho algum dinheiro? Quanto? E que é que posso fazer com ele?

- Na realidade - disse Egerton com o seu sorriso atraente - você quer conversar sobre negócios. Correto? Bem, acho que está com toda a razão. Vejamos: que idade você tem? Dezesseis - dezessete?

- Tenho quase vinte.

- Santo Deus! Não fazia idéia.

- Pois bem - explicou Elvira - sinto constantemente que estou sendo escudada, protegida. De certo modo é agradável, mas pode também ser muito irritante.

- É uma atitude completamente ultrapassada - concordou Egerton - mas vejo que é a que mais agrada a Derek Luscombe.

- Ele é um anjo - disse Elvira - mas é muito difícil conversar seriamente com ele.

-Sim, é possível. Bem, que é que você sabe sobre você mesma, Elvira? E sobre sua família?

-Sei que meu pai morreu quando eu tinha cinco anos e que minha mãe o tinha deixado por outro, quando eu tinha dois anos. Não guardo nenhuma lembrança dela, e mal me lembro de meu pai. Ele era muito velho e tinha sempre a perna em cima de uma cadeira. Gostava de praguejar, e eu tinha muito medo dele. Depois que ele morreu, fui viver primeiro com uma tia, ou prima, ou parenta de meu pai até que ela morreu; então fui morar com o tio Derek e a irmã dele. Mas aí ela morreu e eu fui para a Itália. Agora o tio Derek combinou que eu fosse morar com os Melfords, que são primos dele, muito bonzinhos, e têm duas filhas mais ou menos da minha idade.

- Você se sente feliz lá?

- Ainda não sei. Fui para lá agora. São todos muito chatos. O que eu queria mesmo saber é quanto dinheiro possuo,

- Então o que você deseja são informações financeiras.

- Sim, - respondeu Elvira. - Sei que possuo algum dinheiro. Muito?

Egerton agora estava sério:

- Sim. Você é dona de muito dinheiro. Seu pai era um homem muito rico e você é filha única. Quando ele morreu, o título e as terras passaram para um primo. Como ele não gostava do primo, deixou todos os bens pessoais, que eram consideráveis, para a filha, para você, Elvira. Você é uma mulher muito rica, ou será, quando completar vinte e um anos.

- Quer dizer que agora ainda não sou rica?

- Não é isso - respondeu Egerton. - Você já é rica, mas o dinheiro só estará à sua disposição quando você fizer vinte e um anos ou casar. Até lá, o dinheiro ficará nas mãos de seus curadores. Luscombe, eu e um outro. - Sorriu para a moça. - Não desviamos o seu dinheiro, que continua guardado. Na verdade, aumentamos consideravelmente o seu capital através de investimentos.

- Quanto vou receber?

- Aos vinte e um anos, ou quando casar, receberá uma quantia que, numa estimativa aproximada, chegará a seiscentas ou setecentas mil libras.

- É um dinheirão, - disse Elvira, impressionada.

- Sim, é um dinheirão. Provavelmente por isso é que ninguém lhe falou muito a esse respeito.

Egerton pôs-se a observá-la enquanto Elvira refletia no que acabava de ouvir. Garota muito interessante, pensava ele. Parece uma mocinha incrivelmente sentimental, mas é muito mais do que isso. Muitíssimo mais. Com um sorriso levemente irônico, ele perguntou:

- Está satisfeita?

Ela o encarou, sorrindo.

- Devo estar, não é mesmo?

- Melhor do que ganhar na loteria - sugeriu ele. Ela fez que sim, com a cabeça, mas pensava em outra coisa. Instantes depois saiu-se com uma pergunta:

- Quem ficará com o dinheiro se eu morrer?

- No pé em que as coisas estão, seria o seu parente mais próximo.

- Não posso fazer um testamento agora, posso? Só depois que completar vinte e um anos. Foi o que me disseram.

- É verdade.

- Isso é irritante. Se eu fosse casada e morresse, meu marido herdaria o dinheiro?

- Sim.

- Não sendo eu casada, minha mãe seria meu parente mais próximo e herdaria tudo. Aliás, parece-me que tenho pouquíssimos parentes... Mas eu nem conheço minha mãe. Como é ela?

- É uma mulher notável - disse Egerton secamente. - Qualquer um lhe dirá a mesma coisa.

- Ela nunca quis me ver?

- Talvez tenha querido... na minha opinião, é bem possível que tenha querido. Mas com a vida... atrapalhada que escolheu, talvez tenha pensado que seria melhor para você ser educada longe dela.

- O senhor tem certeza de que ela pensa assim?

- Não. Na verdade não posso garantir. Elvira ergueu-se.

- Muito obrigada. - disse ela. - É muita gentileza da sua parte me contar todas essas coisas.

- Creio que talvez tivesse sido melhor se lhe houvessem falado antes a respeito dessas coisas - disse Egerton.

- É meio humilhante a gente não saber de nada - observou Elvira. - O tio Derek, é claro, acha que eu sou uma criança.

-Bom, ele também não é nenhum rapazola. Ele e eu, compreende?, já estamos bem avançados em anos. Você deve nos desculpar, se encaramos as coisas sob o ponto de vista da nossa idade avançada.

Elvira fitou-o por alguns instantes.

- Mas o senhor não pensa que eu sou realmente uma criança, pensa? - disse ela astutamente, e acrescentou: - Espero que o senhor entenda muito mais de moças do que o tio Derek. Ele viveu sempre com a irmã. - Estendeu a mão e disse, encantadoramente: - Muito, muito obrigada. Espero não ter interrompido algum trabalho importante que o senhor tivesse para fazer - e saiu.

Egerton, de pé, continuou a olhar a porta, que se fechara atrás de Elvira. Apertou os lábios, assobiou um momento, abanou a cabeça, tornou a sentar-se, apanhou uma caneta e tamborilou na mesa, pensativo. Puxou uns papéis para si, depois afastou-os e pegou o telefone:

- Miss Cordell, quer me ligar com o Coronel Luscombe, por favor? Tente primeiro o clube dele. E depois o endereço de Shropshire.

Largou o fone, tornou a puxar para si os papéis e começou a ler, mas não conseguia se fixar no que estava fazendo. Afinal a cigarra tocou:

- O Coronel Luscombe está na linha, Mr. Egerton.

- Ótimo. Alô, Derek. É Richard Egerton que fala. Como vai você? Acabo de receber a visita de alguém que você conhece. A visita de sua pupila.

- De Elvira? - Derek Luscombe parecia muito surpreso.

- Sim.

- Mas por que... por que cargas d'água... ela procurou você? Alguma complicação?

- Não, eu não diria isso. Pelo contrário, ela me pareceu bastante... bastante satisfeita consigo própria. Queria informar-se a respeito de sua situação financeira.

- Espero que você não tenha dito nada a ela - disse o Coronel Luscombe alarmado.

- Por que não? Para que o segredo?

- Bem, não posso deixar de pensar que é um pouco imprudente fazer saber a uma menina que ela vai receber uma grande quantidade de dinheiro.

- Alguém iria dizer isso a ela, se nós não disséssemos. Lembre-se que ela tem que estar preparada. Dinheiro é responsabilidade.

- Sim, mas ela ainda é muito criança.

- Tem certeza disso?

- Que é que você quer dizer? Claro que ela é uma criança.

- Eu não a qualificaria de criança. Quem é o namorado?

- Como?

- Perguntei quem é o namorado. Porque deve haver um namorado nessa história, não?

- Não, não há. Absolutamente nenhum. Que é que faz você pensar em namorado?

- Nada do que ela me disse. Mas você sabe que eu tenho alguma experiência. Creio que você descobrirá que existe um namorado.

- Pois posso lhe garantir que você está completamente errado. Ela foi educada com o maior cuidado, esteve interna em colégios dos mais severos, e freqüentou uma escola de aperfeiçoamento das mais seletas, na Itália. Eu saberia, se houvesse alguma coisa. Talvez ela tenha sido apresentada a um ou dois rapazes agradáveis, mas tenho certeza que não ocorreu nada do que você sugere.

- Pois o meu diagnóstico é um namorado... e provavelmente indesejável.

- Mas por que, Richard, por quê? Que sabe você a respeito de mocinhas?

- Muita coisa - respondeu secamente Egerton. - Tive três clientes no ano passado, duas das quais foram declaradas pupilas do Estado e a terceira obrigou os pais a consentirem num casamento inevitavelmente desastrado. As moças de hoje não são vigiadas como eram antigamente. Nas atuais condições é dificílimo tomar conta delas...

- Mas eu lhe asseguro que Elvira tem sido assistida com o maior cuidado.

- A esperteza das moças ultrapassa qualquer das nossas conjeturas! Fique de olho nela, Derek. Faça algumas investigações a respeito do que ela anda fazendo.

- Tolice. Ela é apenas uma mocinha meiga e simples.

- As coisas que você ignora a respeito de mocinhas meigas e simples dariam para encher um álbum! A mãe dela fugiu de casa e provocou um escândalo... lembra-se? quando era ainda mais nova do que é hoje Elvira. E quanto ao velho Conniston, foi um dos piores libertinos da Inglaterra.

- Você me deixa preocupado, Richard. Muito preocupado.

- É bom que fique avisado, Mas o de que não gostei foi de uma outra das perguntas que ela me fez. Por que está a menina tão aflita em saber quem lhe herdará o dinheiro, se ela morrer?

- É esquisito você me contar isso, porque ela me fez a mesma pergunta.

- A você também? Por que será que ela se preocupa com uma morte prematura? Aliás, também me fez perguntas a respeito da mãe.

A voz do Coronel Luscombe pareceu inquieta. - Seria bom que Bess entrasse em contato com a filha.

- Você conversou com ela.sobre o assunto?.,.Com Bess, quero dizer.

- Bem... Conversei, sim. Encontrei-me com ela por acaso. Aconteceu que estávamos hospedados no mesmo hotel. Insisti com Bess para que desse um jeito de se avistar com a menina.

- E ela, o que respondeu? - indagou Egerton, curioso.

- Recusou-se terminantemente. Chegou até a dizer que não era bom para a menina conhecer uma pessoa como ela.

- Sob certo ponto de vista, quero crer que não é mesmo, - conveio Egerton. - Anda metida com aquele sujeito das corridas, não é?

- Ouvi alguns boatos.

- Também ouvi, Mas não sei se merecem crédito. Talvez mereçam. E por isso é que ela disse o que disse. De vez em quando Bess arranja cada amigo que Deus me livre! Mas que mulher, hem Derek? Que mulher!

- Bess foi sempre a pior inimiga dela mesma - resmungou Derek Luscombe.

- Uma observação brilhantemente convencional, -retrucou Egerton. - Bem, lamento tê-lo incomodado, Derek, mas esteja atento à atuação oculta dos indesejáveis. Não diga que não o avisei.

Recolocou o fone no gancho e novamente puxou para si os papéis de cima da mesa. Agora já podia dedicar toda a atenção ao que fazia.

 

 

Mrs. McCrae, a governanta do Cônego Pennyfather, encomendara um linguado de Dover para a noite da chegada do patrão. Muitas eram as vantagens proporcionadas por um bom linguado de Dover. Não precisava ser posto na grelha ou na frigideira enquanto o Cônego não estivesse em casa são e salvo. Poderia ser guardado para o dia seguinte, se necessário. O Cônego Pennyfather gostava muito de linguado de Dover; e se viesse um telefonema ou telegrama avisando que o Cônego passaria a noite em outro lugar, Mrs. McCrae também apreciava muitíssimo um bom linguado de Dover. Assim, estava tudo em muito boas condições, à espera do patrão. O linguado de Dover seria acompanhado de panquecas. O linguado jazia na mesa da cozinha, e a batedeira das panquecas já estava na tigela. Tudo pronto. Os objetos de latão reluziam, as pratas espelhavam, não havia uma parcela de poeira em lugar nenhum. Só uma coisa faltava: o Cônego em pessoa.

O Cônego deveria regressar pelo trem de Londres, que chegava às 6:30.

Às sete horas ele ainda não voltara. Decerto o trem se atrasara. Às 7:30 ainda não chegara. Mrs. McCrae soltou um suspiro de aborrecimento. Desconfiava de que a velha história iria se repetir. Oito horas soaram, e nada do Cônego. Mrs. McCrae soltou um longo suspiro exasperado. Logo mais, sem dúvida, receberia um telefonema, embora não estivesse fora de possibilidade que não houvesse sequer um telefonema. Ele poderia ter escrito. Com certeza escrevera, mas provavelmente se esquecera de postar a carta.

- Oh, Senhor, oh Senhor! exclamava Mrs. McCrae.

Às nove horas a governanta fez para si três panquecas, na batedeira. O linguado, guardara-o cuidadosamente na Frigidaire. "Só queria saber onde anda o santo homem", dizia ela consigo. Sabia, por experiência, que ele poderia estar em qualquer parte. Era provável que descobrisse o engano a tempo de telegrafar ou telefonar antes que ela se recolhesse à cama. "Vou esperar até 11 horas, nem mais um minuto". Dez e trinta era sua hora de ir para a cama, mas julgava de seu dever aguardar até às onze. Se às onze horas não chegasse notícia alguma do Cônego, Mrs. McCrae trancaria a casa e iria para o leito.

Não se pode dizer que estivesse aflita, pois coisa igual já sucedera antes. Não havia nada a fazer senão esperar por alguma notícia. Eram inúmeras as possibilidades a encarar. O Cônego Pennyfather poderia ter tomado o trem errado e só ter descoberto o engano em Land’s End ou John o' Groats; podia ainda estar em Londres, tendo se enganado a respeito da data em que estava, e portanto convencido de que só deveria voltar no dia seguinte. Poderia ter encontrado algum amigo ou amigos nessa conferência no estrangeiro, para a qual se dirigira, e ser induzido a demorar-se talvez por todo o. fim da semana. Ele tencionara informá-la, mas esquecera-se completamente de o fazer. Assim, como já foi dito, a governanta não estava aflita. Depois de amanhã, o grande amigo do Cônego, o Arcediago Simmons, viria hospedar-se com ele. Isso era coisa que o Cônego não esquecia; portanto, sem dúvida ele em pessoa ou um telegrama deveria chegar amanhã, e, no mais tardar, estaria em casa depois de amanhã, ou mandaria uma carta.

A manhã do dia seguinte chegou, entretanto, sem uma palavra do Cônego. Pela primeira vez, Mrs. McCrae começou a se sentir inquieta. Entre 9 da manhã e 1 da tarde, Mrs, McCrae se pôs a relancear o telefone, com ar de dúvida. A governanta tinha opiniões próprias a respeito do telefone. Usava-o e reconhecia-lhe a utilidade, mas não gostava dele. Algumas das suas compras de gêneros fazia-as por telefone; mas preferia muito mais fazê-las pessoalmente, graças à firme convicção de que, quando a gente não está com os olhos naquilo que compra, o vendeiro na certa nos rouba. Assim mesmo, telefones eram objetos úteis para se ter em casa. Ocasionalmente, embora raramente, ela telefonava para amigas e parentes da vizinhança. Mas detestava fazer um telefonema interurbano, para Londres, por exemplo. Agora, porém, pensava em enfrentar esse problema.

Finalmente, quando nasceu mais um dia, sem notícias do patrão, Mrs. McCrae resolveu agir. Sabia onde se hospedava o Cônego em Londres; Hotel Bertram's, um belo hotel

à moda antiga. Talvez agisse certo se tocasse o telefone e fizesse certas perguntas. Provavelmente lá saberiam onde é que estava o Cônego, não era um hotel qualquer. Pediria ligação para Miss Gorringe. Miss Gorringe mostrava-se sempre eficiente e atenciosa, É claro que o Cônego poderia voltar pelo trem das doze e meia; assim sendo estaria em casa a qualquer momento.

Mas os minutos passavam e nada do Cônego. Mrs. McCrae tomou fôlego, fundo, encheu-se de coragem e pediu ligação para Londres. Esperou, mordendo os lábios e com o fone firmemente atarraxado ao ouvido.

- Hotel Bertram's, às ordens - disse uma voz.

- Por favor, eu queria falar com Miss Gorringe, - disse Mrs. McCrae.

- Um momento. Quem quer falar com ela?

- É a governanta do Cônego Pennyfather. Mrs. McCrae.

- Um momento por favor.

E logo a voz calma e eficiente de Miss Gorringe se fez. ouvir.

- Miss Gorringe que está falando. Ê a governanta do Cônego Pennyfather?

- Isso mesmo. Mrs. McCrae.

- Oh sim. Claro. Em que posso servi-la, Mrs. McCrae?

- O Cônego Pennyfather ainda está hospedado aí no hotel?

- Foi bom a senhora ter telefonado - respondeu Miss Gorringe. - Nós estávamos preocupados, sem saber o que fazer.

- Aconteceu alguma coisa ao Cônego Pennyfather? Será que ele sofreu algum acidente?

- Não, nada disso. Mas nós o esperávamos de volta de Lucerna na sexta-feira ou no sábado.

- Era isso mesmo,

- Mas ele não chegou. Bem, na verdade isso não surpreende. Ele reservara o quarto... reservara o quarto até ontem. Mas não apareceu ontem, nem mandou dizer nada, e as coisas dele ainda estão aqui... a maior parte da bagagem. Nós ficamos sem saber o que fazer. É claro que... - e Miss Gorringe concluiu apressadamente - nós sabemos que o Cônego é bastante esquecido às vezes.

- A senhora tem toda razão!

- Isso dificulta as coisas para nós. Estamos com a casa cheia. O quarto dele está reservado para outro hóspede. - Acrescentou: - A senhora não tem idéia de onde é que ele está?

Mrs. McCrae confessou com amargura.- Aquele homem pode estar em qualquer lucrar! - Logo conteve-se: - Bem, muito obrigada, Miss Gorringe.

- Se houver algo que eu possa fazer... - sugeriu bondosamente Miss Gorringe.

- Acho que em breve terei notícias dele. - disse Mrs. McCrae. Agradeceu a Miss Gorringe e desligou.

Sentou-se junto ao telefone. Parecia perturbada. Não temia pela segurança pessoal do Cônego. Se ele houvesse sofrido um acidente, a estas horas ela já teria sido informada. Disso tinha certeza. Aliás, não se poderia dizer que o Cônego fosse dado a acidentes. Ele era o que Mrs. McCrae costumava chamar de "desligado", e parece que os desligados têm sempre uma providência especial a protegê-los. Mesmo sem ligarem à mínima coisa, escapam incólumes a tudo. Não, Mrs. McCrae não imaginava o Cônego Pennyfather a gemer num leito de hospital. Ele andava por aí, alegre e inocentemente batendo papo com algum amigo. Talvez ainda estivesse no estrangeiro. O problema é que o Arcediago Simmons estava para chegar naquela noite, e o Arcediago Simmons esperava ser recebido pelo dono da casa. Ela não podia avisar o Arcediago Simmons porque não sabia onde ele estava no momento. Era uma complicação enorme mas, como toda complicação, tinha o seu lado bom. E o lado bom era o próprio Arcediago Simmons. O Arcediago Simmons saberia o que fazer. Ela poria o problema nas mãos dele. O Arcediago Simmons era um completo contraste com o patrão de Mrs. McCrae. Sabia para onde ia, o que estava fazendo, e tinha sempre uma convicção profunda a respeito da coisa certa a fazer - e fazia-a. Era um homem confiante. Assim, quando o Arcediago Simmons chegou e se defrontou com as explicações, desculpas e inquietações de Mrs. McCrae, mostrou-se como uma torre de segurança. Ele também não se sentia alarmado.

- Vamos, não se aflija, Mrs. McCrae, - disse o hóspede no seu modo jovial, sentando-se à mesa, para comer a ceia que ela lhe preparara. - Encontraremos aquele distraído. Já ouviu contar aquela história a respeito de Chesterton? G, K. Chesterton, o escritor.

Certa vez tinha viajado para fazer umas conferências e passou o seguinte telegrama para a esposa: "Estou na estação de Crewe. Onde é que eu devia estar?"

Riu-se. Mrs. McCrae sorriu obedientemente. Não achava a história muito engraçada porque se referia precisamente ao tipo de coisa que o Cônego Pennyfather era capaz de fazer.

- Ah! - disse o Arcediago Simmons, encantado - uma das suas excelentes costeletas de vitela! A senhora é uma cozinheira maravilhosa, Mrs. McCrae. Espero que o meu velho amigo saiba apreciá-la.

Às costeletas de vitela seguiram-se pequenos pudins com caldo de amoras pretas (Mrs. McCrae lembrara-se de que esse era um dos doces favoritos do Arcediago) ; e depois o santo homem entregou-se à tarefa de rastrear o seu sumido amigo. Dirigiu-se ao telefone com um vigor e uma completa indiferença por despesas, o que fez com que Mrs. McCrae apertasse os lábios, ansiosa, embora em verdade não censurasse o Arcediago, porque realmente era preciso descobrir-se o patrão.

Tendo inicialmente cumprido o dever de se comunicar com a irmã do Cônego, que pouco sabia das idas e vindas do irmão e, como de costume, não tinha a menor idéia de onde ele pudesse estar, o Arcediago alargou o campo de pesquisas. Novamente falou com o Hotel Bertram's, informando-se com a maior minúcia possível. O Cônego saíra de lá ao anoitecer do dia 19. Levava uma sacola da BEA, mas o resto da bagagem ficara no quarto, por ele devidamente reservado. Declarara que iria tomar parte numa conferência em Lucerna. Não fora direto do hotel para o aeroporto. O porteiro, que o conhecia bem de vista, pusera-o num táxi e dera o endereço do Clube Athenaeum, por indicação do Cônego. Fora essa a última vez que o pessoal do Bertram's avistara o Cônego Pennyfather. Ah, sim, um pequeno detalhe: ele se esquecera de entregar a chave do quarto, levando-a consigo. E não era a primeira vez que tal coisa acontecia.

O Arcediago Simmons refletiu alguns minutos antes de fazer nova chamada. Podia ligar para o aeroporto, em Londres. Isso na certa tomaria algum tempo. Mas havia um caminho mais curto. Telefonou para o Dr. Weissgarten, um erudito especialista em hebraico, que com toda a certeza estivera presente à conferência.

O Dr. Weissgarten estava em casa. Tão logo se deu conta de quem lhe falava, iniciou um discurso torrencial dedicado quase todo a desancar dois trabalhos que tinham sido lidos na reunião de Lucerna.

- Fraquíssimo, aquele Hogarov - disse ele - fraquíssimo! Não sei como é que ele se arranja. Não é um erudito, absolutamente. Sabe o que foi que ele disse?

O Arcediago suspirou e teve que se mostrar firme com o Dr. Weissgarten. Senão, com toda probabilidade, o resto da noite seria gasto em críticas aos outros sábios presentes à conferência de Lucerna. Com certa relutância, o Dr. Weissgarten fixou-se em assuntos mais pessoais.

- Pennyfather? - disse ele. - Pennyfather? Devia estar lá, nem sei por que não apareceu. Disse que iria. Me disse isso uma semana antes, quando o encontrei no Athenaeum.

- Quer dizer que ele não foi à conferência?

- Foi o que eu disse. E devia ir.

- Por acaso sabe por que ele não esteve lá? Será que enviou alguma desculpa?

- Como é que vou saber? Posso lhe afirmar que ele falou que iria à conferência. Sim, agora me lembro. Ele era esperado, e várias pessoas lhe notaram a ausência. Pensaram que talvez se houvesse resfriado. O tempo anda muito traiçoeiro. - Estava prestes a voltar às suas críticas aos colegas, mas o Arcediago desligou.

Descobrira um fato, mas era um fato que, pela primeira vez, lhe provocava uma certa inquietação. O Cônego Pennyfather não comparecera à conferência de Lucerna. Tencionara ir a essa conferência. Parecia extraordinário ao Arcediago que ele não tivesse estado lá. Evidentemente o velhote poderia ter embarcado no avião errado, embora a B.E.A. tomasse o maior cuidado com os seus passageiros e os pastorasse bem, evitando tais ocorrências. Será que o Cônego Pennyfather esquecera o dia em que devia comparecer à conferência? Não era impossível. Mas nesse caso, Para onde teria ido?

Telefonou então para o aeroporto. A operação exigia muita paciência, a ligação era transferida de uma seção para outra; ao cabo, porém, o Arcediago estava de posse de um fato definitivo: o Cônego Pennyfather reservara passagem no avião das 21:40 do dia 18 para Lucerna, mas não embarcara.

- Vamos nos adiantando, - disse o Arcediago Simmons a Mrs, McCrae, que pairava no fundo de cena. - Vejamos, então. Com quem devo falar agora?

- Esses telefonemas todos vão custar um dinheirão - comentou Mrs. McCrae.

- Acho que sim. Acho que sim, concordou o Arcediago Simmons. - Mas temos que rastreá-lo, compreende? Ele não é um menino.

- Oh, o senhor acha que terá realmente lhe acontecido alguma coisa?

- Espero que não... creio mesmo que não aconteceu nada, senão a senhora já teria sabido. Ele... bem... sempre levava consigo o nome e o endereço, não?

- Sim senhor, sempre levava cartões de visita. Levava cartas também, e objetos de todos os tipos na carteira.

- Bem, então acho que não deve estar num hospital - disse o Arcediago. - Vejamos. Quando deixou o hotel, tomou um táxi para o Athenaeum. Vou telefonar para lá.

No Athenaeum, o Arcediago Simmons colheu algumas informações definidas. O Cônego Pennyfather, que era muito conhecido no clube, jantara ali às sete e meia, na noite do dia 19, Foi então que acudiu ao espírito do Arcediago algo que ele passara por alto até então. A passagem aérea era para o dia 18, mas fora no dia 19 que o Cônego saíra do Hotel Bertram's num táxi para o Athenaeum, tendo mencionado que ia assistir à conferência em Lucerna. Começava a aparecer alguma luz. ''Aquele pateta", pensou o Arcediago com os seus botões, tendo, contudo, o maior cuidado em não dizer nada diante de Mrs. McCrae, "enganou-se na data; a conferência era no dia 19, disso eu tenho certeza. Provavelmente ele pensava que estava embarcando no dia 18. Enganou-se em um dia".

E o Arcediago prosseguiu cuidadosamente na sua re-constituição. O Cônego devia ter ido ao Athenaeum; lá jantou e de lá teria ido para a estação aérea de Kensington. Aí provavelmente lhe tinham dito que a sua passagem era para o dia anterior; ele então compreendeu que a conferência a que pretendia assistir já terminara.

- Isso foi o que aconteceu, garanto - disse o Arcediago. E explicou o seu raciocínio a Mrs. McCrae, que o achou plausível. - E agora, que faria ele?

-Voltou ao hotel - sugeriu Mrs. McCrae.

- Não viria direto para cá, quero dizer, direto para a estação de trem?

- Não, porque a bagagem dele estava no hotel. Pelo menos teria telefonado para que mandassem a bagagem.

- É verdade - concordou o Arcediago. - Muito bem.

Admitamos que as coisas se passaram deste modo. Ele saiu do aeroporto com a valise e voltou ao hotel, ou pelo menos iniciou o trajeto de regresso ao hotel. Talvez tenha jantado.não, já havia jantado no Athenaeum. Muito bem, voltou para o hotel. Mas não chegou lá. - Fez uma pausa e depois disse indeciso: - Será que voltou mesmo? Parece que ninguém o viu por lá. Que lhe sucedeu então no caminho?

- Talvez tenha encontrado alguém - disse Mrs. McCrae, também em dúvida.

- Sim. Claro, é perfeitamente possível. Algum velho amigo que ele não via há muito tempo... Podia ter ido para o hotel ou a casa desse amigo... mas não ficaria três dias lá. Não se esqueceria, durante três dias, de que deixara a bagagem no Bertram's. Teria telefonado a respeito dela, teria ido buscá-la ou, num ataque agudo de distração, teria vindo direto para casa. Três dias de silêncio. Isso é que é inexplicável.

- Se sofreu um acidente...

- Sim, Mrs. McCrae, isso é perfeitamente possível. Podemos procurar nos hospitais. Mas a senhora não disse que ele andava sempre com uma porção de papéis de identificação? Hum... Só vejo agora uma saída,

Mrs. McCrae olhou-o apreensiva.

- Penso - disse brandamente o Arcediago - penso que temos de recorrer à polícia.

 

 

Miss Marple não encontrara dificuldade em aproveitar devidamente a sua estada em Londres. Fez uma porção de coisas que, nas suas rápidas viagens anteriores à capital. Jamais tivera tempo de fazer. Devemos registrar, com pesar, que Miss Marple não aproveitou as amplas facilidades de que dispunha para se entregar a atividades de natureza cultural. Não visitou galerias de pintura nem museus; tampouco lhe ocorreria a idéia de assistir a um desfile de modas. O que ela visitou foram as seções de louças e cristais das grandes lojas de departamentos, bem como as seções de roupa de cama e mesa, e chegou mesmo a adquirir algumas fazendas para estofamento, nas liquidações. E depois de empregar o que considerava uma soma apreciável nesses investimentos de natureza doméstica, proporcionou a si mesma o deleite de algumas excursões. Foi a locais de que se lembrava dos tempos de mocidade, levada às vezes apenas pela curiosidade de verificar se ainda estavam nos mesmos lugares. Após uma agradável sesta, saía e evitando, quando possível, as atenções do porteiro, já que ele tinha a absoluta convicção de que senhoras da idade e da fragilidade dela só deviam andar de táxi, encaminhava-se para um ponto de ônibus, ou uma estação de metrô. Comprara um pequeno guia dos ônibus e seus percursos, e um Mapa do Transporte Subterrâneo; e planejava com cuidado as excursões. Certas tardes poderia ser encontrada a passear satisfeita e nostálgica por Evelyn Gardens ou Onslow Square, murmurando de si para si: "Sim, ali era a casa de Mrs. Van Dylan. Claro que agora tem um aspecto muito diferente, parece que foi reformada. Meu Deus, vejo que tem quatro campainhas. Quatro apartamentos, suponho. Esta praça teve sempre um aspecto antiquado, tão simpático."

Um pouco envergonhada, fez uma visita à loja de Madame Tussaud, um prazer inesquecível dos tempos da infância. Em Westbourne Grove procurou em vão por Bradley's. A tia Helen sempre entregava a Bradley's a limpeza do seu casaco de pele de foca.

Olhar vitrinas, da forma comum, não seduzia Miss Marple; ela porém divertia-se imenso descobrindo novos modelos de tricô, novas variedades de lã para tricotar, e outras preciosidades idênticas. Fez uma excursão especial a Richmond a fim de rever a casa onde morara seu tio-avô Thomas, o almirante reformado. O bonito terraço ainda existia, mas parece que a casa fora transformada em apartamentos. Mais penoso ainda foi o caso de Lowndes Square, onde vivera com relativo esplendor uma sua prima distante, Lady Merridew: lá se erguia agora um vasto arranha-céu de aspecto modernista. Miss Marple abanou a cabeça tristemente e disse com firmeza de si para si: "Sei que precisa haver progresso. Mas a prima Ethel estremeceria na sepultura se soubesse disso".

Numa tarde especialmente amena e agradável, Miss Marple embarcou num ônibus que a levou a Battersea Bridge. Ia entregar-se ao duplo prazer de dar uma espiada sentimental em Princes Terrace Mansions, onde vivera outrora uma antiga governanta sua, e visitar Battersea Park. A primeira parte do programa fracassou. A antiga residência de Miss Ledbury desaparecera sem deixar vestígios e fora substituída por um grande monte de concreto reluzente. Miss Marple dirigiu-se então para Battersea Park. Sempre fora boa andarilha, mas devia confessar agora que a sua capacidade de caminhar já não era mais a mesma. Bastava meia milha para a fatigar. Pensou, porém, que poderia dar conta da travessia do parque, chegando até a Chelsea Bridge e lá descobrindo uma linha de ônibus que lhe servisse; aos poucos, porém, seus passos iam-se tornando mais lentos, cada vez mais lentos, e foi com prazer que Miss Marple descobriu uma casa de chá situada num caramanchão à margem do lago.

Apesar da friagem do outono, ainda serviam chá ali; mas hoje não havia muita gente: certa quantidade de mães com os seus bebês nos carrinhos e alguns pares de namorados. Miss Marple reuniu numa bandeja uma xícara de chá e duas fatias de pão-de-ló. Levou cuidadosamente a bandeja para uma mesa e sentou-se. Era de chá que estava precisando. Forte, quente, reanimador, Reanimada, ela olhou em torno, e avistando de repente uma certa mesa, empertigou-se na cadeira. Que estranha coincidência! Estranhíssima; primeiro na Army & Navy Stores e agora ali. Que lugares mais inesperados aqueles dois escolhiam! Mas não! Havia engano. Notava-se uma certa semelhança, claro - o cabelo louro, comprido, mas não era Bess Sedgwick, era alguém mais jovem. Claro! Era a filha dela! A mocinha que entrara no Bertram's com o amigo de Lady Selina Hazy, o Coronel Luscombe. Mas o homem era o mesmo que almoçara com Lady Sedgwick em Army & Navy Stores. Quanto a isso não havia a menor dúvida: o mesmo perfil bonito, aquilino, o mesmo corpo esguio e rijo, a mesma obstinação predatória e... sim, a mesma atração forte e viril.

- Não está bem! - disse consigo Miss Marple. - Não está nada bem! Cruel! Inescrupuloso. Não gosto de ver essas coisas. Primeiro a mãe, agora a filha. Que significa isso?

Coisa boa não significava. Disso Miss Marple tinha certeza. Raramente Miss Marple concedia a alguém o benefício da dúvida; invariavelmente pensava o pior e, nove vezes em dez - assim afirmava ela insistentemente, - tinha razão. Aqueles encontros, estava certa disso, eram mais ou menos secretos. Notou ela então o modo como aqueles dois se debruçavam sobre a mesa, até quase tocarem as cabeças; e a seriedade com que falavam. O rosto da moça - Miss Marple tirou os óculos, limpou cuidadosamente as lentes e tornou a pô-los. Sim, aquela moça estava apaixonada. Perdidamente apaixonada, como só os jovens podem estar. Mas como é que os tutores dela consentiam que a menina andasse assim, solta, pela cidade de Londres, e mareasse esses encontros clandestinos em Battersea Park? Uma moça tão bem criada, tão bem educada. Bem criada demais, sem dúvida! O pessoal dela com certeza a imaginava em local muito diferente. Ela provavelmente tivera que mentir.

Ao sair, Miss Marple passou pela mesa onde estavam os namorados - tão lentamente quanto podia fazê-lo sem se trair. Infelizmente os dois falavam em voz tão baixa que ela não pôde escutar o que diziam. O homem falava, a menina escutava, meio feliz, meio assustada. ''Quem sabe estão planejando fugir?" pensou Miss Marple. "Ela ainda é menor".

Miss Marple atravessou um pequeno portão aberto na cerca, o qual dava para a calçada do parque. Havia automóveis estacionados ao longo da calçada, e Miss Marple se deteve ao chegar a um deles. Não era muito entendida em automóveis, mas um carro como aquele não lhe aparecia com freqüência; por isso, ela reparara nele e não o esquecera. Um sobrinho-neto, que "era fã das corridas de automóvel, lhe dera algumas informações sobre esse tipo de veículos. Era um carro de corridas. De marca estrangeira. - Agora não conseguiu lembrar o nome. Mas não era só isto: vira esse carro, ou um exatamente igual, ainda ontem, numa rua lateral perto do Hotel Bertram’s. Prestara atenção nele não só por causa do tamanho e da aparência poderosa e incomum, mas porque o número despertara alguma vaga recordação, algum vestígio de associação de idéias em sua memória. FAN 2266. Fizera-a pensar na prima Fanny Godfrey. A pobrezinha da Fanny, que dizia gaguejando: "Tenho d - d - d - d - uas m - m - m - m - eias...

Caminhou um pouco mais e olhou o número do carro. Sim, estava certa. FAN 2266. - Era o mesmo carro. Miss Marple, sentindo a cada passo aumentar-lhe a fadiga, chegou, mergulhada em profundos pensamentos, ao outro lado da Chelsea Bridge; estava tão exausta que chamou com decisão o primeiro táxi que passou. Sentia-se inquieta, preocupada, com a impressão de que deveria tomar uma providência com relação àquelas coisas. Mas que coisas e que fazer a respeito delas? Era tudo tão indefinido. Fixou 03 olhos, distraída, nas manchetes dos jornais:

"Novidades sensacionais no assalto ao trem" - dizia uma. "A história do maquinista" - dizia outra. Que coisa! pensou Miss Marple, quase todos os dias havia assaltos a bancos, trens, carros-pagadores.

O crime parecia ter passado dos limites.

 

 

Lembrando vagamente um abelhão, o Inspetor-Chefe Fred Davy zanzava pelas salas do Departamento de Investigações Criminais, cantarolando baixinho. Era uma conhecida mania sua, que não causava maior interesse e apenas dava motivo a que alguém comentasse que "Papai andava outra vez farejando caça".

O farejar do Inspetor-Chefe levou-o afinal à sala onde se achava o Inspetor Campbell, sentado à sua mesa, com expressão aborrecida. O Inspetor Campbell era um rapaz ambicioso e considerava extremamente tediosa a maioria das suas ocupações. Isso não o impedia de dar conta das tarefas que lhe eram entregues, e até realizá-las com certo brilho. As autoridades do Departamento viam-no com bons olhos, gostavam do que ele fazia e, de vez em quando, lhe diziam algumas palavrinhas de estímulo ou elogio.

- Bom dia, Inspetor-Chefe, - disse respeitosamente o Inspetor Campbell quando Papai entrou em seus domínios. Claro que nas costas dele Campbell também chamava Davy de Papai como o faziam todos; mas ainda não tinha idade suficiente para lhe falar assim de cara.

- Em que lhe posso ser útil, Inspetor? - perguntou.

- Lá, lá, lá, bum, bum - cantarolava o Inspetor-Chefe, levemente desafinado. - Por que me chamam de Mary quando o meu nome é Miss Gibbs? - Após essa inesperada ressurreição de uma esquecida comédia musical, Davy puxou uma cadeira e sentou-se.

- Ocupado? - perguntou ele.

- Não muito.

- Às voltas com um caso de desaparecimento não é isso? ocorrido num hotel. Como é mesmo o nome do hotel? Bertram's. Está certo?

- Está, sim senhor. Hotel Bertram's.

- Infração do horário de venda de bebidas? Lenocínio?

- Oh, não senhor, - respondeu o Inspetor Campbell levemente chocado ao ouvir mencionar tais coisas a propósito do Hotel Bertram's.

- O lugar é muito agradável e calmo, à moda antiga.

- Será? - disse Papai. - Será mesmo? Bom, é interessante!

O Inspetor Campbell gostaria de saber por que a coisa seria interessante. Não quis fazer perguntas, já que a alta hierarquia andava toda de mau humor desde o assalto ao trem postal, o qual representara um êxito espetacular para os criminosos. Campbell olhou para o rosto largo, bovino, de Papai e pensou consigo, como já o pensara uma ou outra vez antes: como é que o Inspetor-Chefe Davy chegara à alta posição que ocupava e por que faziam dele tão bom juízo, no Departamento? "Deve ter sido bom no tempo dele", pensava o inspetor Campbell, "mas agora há por cá muito sujeito ativo que bem merece uma promoção, se os velhotes desocupassem o caminho''. Mas o velhote começara outra cantiga, entremeada com uma palavrinha aqui e ali.

"Dize-me, linda estrangeira, há por lá outras como tu?" entoou Papai, e logo em repentino falsete: "Algumas, meu bom senhor, e moças tão meigas jamais conhecestes". Não, vejamos, acho que confundi os sexos. Floradora. Foi também um belo espetáculo.

- Creio que ouvi falar a respeito, Inspetor-Chefe, - disse o Inspetor Campbell.

- Sua mãe deve ter cantado essa cantiga para embalar você - falou o Inspetor-Chefe Davy. - Mas que é que está havendo no Hotel Bertram's? Quem desapareceu, como e por quê?

- Um certo Cônego Pennyfather. Um clérigo idoso.

- Caso chato, não?

O Inspetor Campbell sorriu:

- Sim senhor, de certo modo é bem chato.

- Como é ele?

-Quem? O Cônego Pennyfather?

- Sim... Você tem uma descrição dele, não?

- Claro. - Campbell remexeu nuns papéis e leu: - Altura 1,72 m. Cabelo branco, meio corcunda...

- E desapareceu do Hotel Bertram's... quando?

- Cerca de uma semana atrás... a 19 de novembro.

- E só agora eles deram parte. Levaram tempo, não?

- Bem, parece que esperavam que o velho voltasse a qualquer momento.

- Tem alguma idéia do que está por trás disso? - indagou Papai. - Será que um homem decente e temente a Deus sumiu de repente com a mulher de um dos curadores da igreja? Ou será ele um desses velhotes distraídos que não sabem por onde andam?

- Bem, Inspetor-Chefe, creio que se trata da última hipótese. O Cônego já se perdeu antes.

- Como? Desapareceu de um respeitável hotel do West End?

- Não, isso ainda não fez, mas já tem deixado de voltar para casa no dia esperado. Às vezes vai se hospedar na casa de amigos num dia em que não o convidam ou deixa de ir quando o esperam. Essas coisas.

- Sim - disse Papai - tudo parece muito natural, direitinho e de acordo com um plano, não? Quando foi exatamente que ele desapareceu?

- Quinta-feira, 19 de novembro. Deveria comparecer a um congresso em... - Curvou-se, examinou uns papéis sobre a mesa - ah sim, Lucerna. Sociedade de Estudos Históricos Bíblicos. Esse é o nome inglês da sociedade que, segundo creio, é alemã.

- E o congresso se realizava em Lucerna? O velhote... suponho que é um velhote.

- Sessenta e três anos, pelo que sei.

- O velhote, então, não deu mais as caras?

O Inspetor Campbell puxou para si os papéis e forneceu a Papai os fatos comprováveis na medida em que tinham sido comprovados.

- Não dá a impressão de ter fugido com um menino do coro - observou o Inspetor-Chefe Davy.

- Espero que no fim ele apareça - explicou Campbell. - mas estamos investigando, naturalmente. Será que o senhor... está especialmente interessado no caso? - Mal podia refrear a curiosidade.

- Não - respondeu Davy, pensativo. - Não estou interessado no caso. Não vejo nele nada que desperte interesse.

Houve uma pausa, pausa em que evidentemente estavam implícitas as palavras "Bem, e então?" seguidas de um ponto de interrogação, mas que o Inspetor Campbell sabia que não devia articular audivelmente.

- O que realmente me interessa - continuou Papai - é a data. E o Hotel Bertram's, é claro.

- É um hotel muito bem administrado. Nunca houve queixas a seu respeito.

- Isso é ótimo, sem dúvida - disse Papai, e acrescentou, pensativo: - Mas eu gostaria de dar uma olhadela no local.

- Certamente - acudiu o Inspetor Campbell. -Quando quiser. Eu estava pensando em dar um pulo até lá.

- Nesse caso eu poderia ir com você - propôs Papai.

- Não é para me intrometer, não. Gostaria só de dar uma olhadela no local, e esse seu Arcediago desaparecido, ou quem quer que ele seja, é um bom pretexto. Não precisa me chamar de "senhor" quando estivermos lá... você é quem estará mandando, Serei seu secretário.

O Inspetor Campbell começou a interessar-se.

- Acha o senhor que há alguma coisa por lá... que se ligue com outra coisa?

- Até agora não há razão para tais conclusões - disse Papai. - Mas você sabe como são essas coisas. A gente tem... nem sei que palavra empregue... a gente tem um palpite, digamos. E o Hotel Bertram's parece bom demais para ser verdadeiro.

Voltou a personificar o abelhão, cantarolando o "Vamos todos descer o Strand".

Os dois detetives saíram juntos, Campbell muito elegante no seu terno fazia excelente figura e o Inspetor-Chefe

Davy, com uma roupa velha de tweed, parecia recém-chegado do campo. Combinavam muito bem os dois. Mas o olhar astuto de Miss Gorringe, ao se erguer do registro de hóspedes, logo os identificou, dando o seu ao seu dono. Desde que ela mesma dera parte do desaparecimento do Cônego Pennyfather e tivera contato com um elemento subalterno da polícia, estivera aguardando uma visita dessa natureza.

Um cochicho sussurrado à sua auxiliar, que estava ali perto, fez com que esta última se pusesse em primeiro plano, pronta a atender a quaisquer solicitações dos hóspedes, enquanto Miss Gorringe deslizou discretamente para o canto do balcão e encarou os dois homens. O Inspetor Campbell depôs seu cartão na mesa, diante de Miss Gorringe, e ela lhe fez um aceno de cabeça. Alongando o olhar até o vulto gordo metido num paletó de tweed atrás de Campbell, ela notou que ele se virará um pouco de lado, e observava a sala e os seus ocupantes, entregue ao prazer aparentemente ingênuo de contemplar o espetáculo daquela gente aristocrática e bem educada em ação.

- Querem vir até ao escritório? - indagou Miss Gorringe. - Lá talvez possamos conversar mais à vontade.

- Sim, creio que será melhor.

- Bonito local este - comentou o grandalhão gordo, de ar bovino, volvendo a cabeça para o lado de Miss Gorringe. - Muito confortável - acrescentou, olhando com aprovação para a enorme lareira. - Bom conforto à moda antiga.

Miss Gorringe sorriu, visivelmente satisfeita.

- De fato. Orgulhamo-nos de fazer com que os nossos hóspedes gozem de conforto - disse ela. E voltou-se para a sua assistente: - Assuma o meu lugar, sim, Alice? Está ali o livro de registro. Lady Jocelyn chegará daqui a pouco. Com toda a certeza vai querer trocar de quarto, assim que vir o que lhe demos, mas você explique que estamos com a casa cheia. Se for necessário, mostre a ela o 340, no terceiro andar, e proponha a troca. O 340 não é dos melhores, e garanto que ela ficará satisfeita com o atual, logo que vir esse outro.

- Sim, Miss Gorringe. Farei o que me diz, Miss Gore.

- E lembre ao Coronel Mortimer que o binóculo dele está aqui. Ele me pediu para o guardar hoje de manhã. Não o deixe sair sem o binóculo.

- Sim, Miss Gorringe.

Cumpridas essas obrigações, Miss Gorringe olhou para os dois homens, passou por baixo do balcão e encaminhou-se para uma porta lisa de mogno que não ostentava nenhum letreiro. Abriu a porta, e as visitas entraram num pequeno escritório de aspecto um pouco triste.

- O hóspede desaparecido é o Cônego Pennyfather, pelo que sei, - falou o Inspetor Campbell, olhando para as suas notas: - Tenho aqui o relatório do Sargento Wadell. Quer ter a bondade de me dizer, com suas próprias palavras, o que foi que ocorreu?

- Não creio que o Cônego Pennyfather tenha desaparecido no sentido usual da palavra, - explicou Miss Gorringe. - O senhor sabe, eu penso que ele deve ter-se encontrado com alguém, em algum lugar, um velho amigo ou coisa parecida, e foi com ele para alguma reunião de eruditos, ou coisa assim, no Continente... Ele é tão distraído!

- A senhora o conhece há muito tempo?

- Sim, ele vem se hospedando aqui... deixe-me ver... pelo menos há cinco ou seis anos, creio.

- A senhora também já está aqui há bastante tempo, não? - interveio de repente o Inspetor-Chefe Davy.

- Estou aqui... deixe-me ver... há quatorze anos, - respondeu Miss Gorringe.

- É um bonito local - repetiu Davy. - E o Cônego Pennyfather costumava hospedar-se aqui quando vinha a Londres, não é?

- Sim, sempre nos procura. Escreveu antes, mandando reservar um quarto. Por escrito ele é muito menos vago do que na vida real. Reservou o quarto do dia 17 ao dia 21. Durante esse período esperava estar ausente uma ou duas noites, e explicou que queria ficar com o quarto enquanto estivesse fora. Freqüentemente faz isso.

- Quando a senhora começou a se preocupar com a ausência dele? - perguntou Campbell.

- Bem, na verdade eu não me preocupei. Mas a situação era embaraçosa. O quarto estava reservado para outro hóspede a partir do dia 23 e quando me dei conta... a princípio não notei... de que ele não tinha voltado de Lugano...

- Lucerna, segundo as minhas notas... - interrompeu

Campbell

- Sim, sim, creio que era Lucerna. Algum congresso arqueológico. De qualquer forma, quando me dei conta de que ele não voltara, e de que a bagagem dele ainda estava esperando no quarto, vi que era uma atrapalhação. O senhor compreende, estamos com a casa cheia por esta época do ano e tínhamos um cliente para o quarto. Mrs. Daunders, residente em Lyme Regis. Ela sempre fica com esse quarto. Foi então que a governanta dele telefonou. Estava preocupada.

- Segundo a informação do Arcediago Simmons, o nome da governanta é Mrs. McCrae. A senhora a conhece?

- Não, pessoalmente não, mas já falei com ela pelo telefone uma ou duas vezes. Parece uma mulher de toda confiança e trabalha há muitos anos para o Cônego Pennyfather. Naturalmente está preocupada. Creio que ela e o Arcediago Simmons já falaram com amigos e parentes, mas ninguém sabe por onde anda o Cônego. E uma vez que o Cônego Pennyfather estava esperando a chegada do Arcediago, que vinha passar uns dias em sua casa, é esquisitíssimo realmente que não tenha voltado.

- O Cônego é habitualmente assim distraído? - indagou Papai.

Miss Gorringe não respondeu. Aquele homenzarrão, presumivelmente o sargento acompanhante, parecia-lhe um pouco saliente.

- E agora sei - continuou Miss Gorringe em voz aborrecida - e agora sei, pelo Arcediago Simmons, que o Cônego não compareceu à Conferência de Lucerna.

- Ele mandou avisar que não iria?

- Acho que não...' não daqui. Não passou telegrama nem enviou qualquer outro aviso. Aliás, nada sei a respeito dessa Conferência de Lucerna. O que me preocupa nessa questão é a parte que se refere a nós. Saiu nos vespertinos... # notícia de que ele desapareceu. Não disseram que estava hospedado aqui, e espero que não o digam. Não queremos a Imprensa no hotel, nossos hóspedes não gostariam disso. Ficaríamos gratíssimos ao senhor, Inspetor, se pudesse manter os jornalistas longe de nós. Afinal, não foi daqui Que o Cônego desapareceu.

- A bagagem dele ainda está aqui?

- Sim. No depósito de bagagens. E se ele não foi para Lucerna, os senhores já encararam a hipótese de um atropelamento, ou coisa parecida?

- Não lhe aconteceu nada disso.

- De fato, parece muito, muito curioso - disse" Miss Gorringe, com um leve tom de interesse na voz, em substituição ao aborrecimento. - A gente fica pensando para onde teria ido ele e por quê?

Papai encarou-a, compreensivo.

- É justo - disse ele. - A senhora só está pensando no caso do ponto de vista do hotel. Muito natural.

- Pelo que sei - disse o Inspetor Campbell consultando novamente as suas notas - o Cônego Pennyfather saiu daqui por volta das seis e meia da tarde de quinta-feira, 19. Levava consigo uma pequena valise, e partiu num táxi, pedindo ao porteiro que desse ao motorista o endereço do clube Athenaeum.

Miss Gorringe balançou a cabeça, concordando.

- Sim, jantou no Athenaeum. O Arcediago Simmons me contou que foi lá que o viram pela última vez.

Havia certa firmeza na voz de Miss Gorringe quando ela transferiu do Hotel Bertram's para o clube Athenaeum a responsabilidade de ver o Cônego pela última vez.

- Nada melhor que obter os fatos corretamente - disse Papai, com voz calma e cavernosa. - E cá estão os fatos, corretamente expostos: o Cônego saiu daqui com a sua sacola azul da B.O.A.C., ou coisa parecida, - era uma sacola azul da B.O.A.C., não era? Saiu e não voltou, e pronto.

- Como os senhores vêem, não os posso ajudar - disse Miss Gorringe, mostrando-se disposta a levantar-se e voltar ao trabalho.

- A senhora parece que não nos pode auxiliar - falou Papai - mas talvez alguma outra pessoa possa - acrescentou.

- Outra pessoa?

- Sim, outra pessoa, - disse Papai. - Um dos empregados, talvez.

- Não creio que alguém saiba de alguma coisa. Se soubessem, teriam vindo me falar.

- Talvez viessem. Talvez não. O que eu quero dizer é que teriam contado à senhora se soubessem indiscutivelmente de qualquer coisa. Mas eu estava pensando mais em alguma coisa que o Cônego poderia ter dito.

- Que tipo de coisa? - indagou Miss Gorringe, perplexa.

- Oh, uma palavra casual, que nos desse uma pista. Por exemplo: "esta noite vou visitar um velho amigo, a quem não vejo desde que nos encontramos no Arizona". Uma coisa assim. Ou: "Na próxima semana pretendo ir à casa de minha sobrinha para a crisma da filha dela". Quando se trata de gente distraída, pistas como estas são de grande ajuda. Indicam em que é que a pessoa estava pensando. É possível que depois do jantar no Athenaeum, ele tenha tomado um táxi e pensado: "E agora, para onde é que eu vou?" e digamos, com a história da crisma na cabeça, ter ido para a casa da sobrinha.

- Estou compreendendo o que o senhor quer dizer - falou Miss Gorringe com ar de dúvida. - Não me parece provável.

- Oh, a gente nunca sabe quando tem sorte nesses casos, - foi o comentário bem humorado de Papai. - Há também os vários hóspedes do hotel Provavelmente o Cônego Pennyfather conhecia alguns, já que era cliente assíduo.

- Ah, sim - concordou Miss Gorringe. - Vejamos... Já o vi conversando com... sim, com Lady Selina Hazy. E também com o Bispo de Norwich. Creio que são velhos amigos, foram colegas em Oxford. E Mrs. Jameson e as filhas. Vêm da mesma região. É verdade, uma porção de gente,

- Está vendo? - insistiu Papai - o Cônego pode ter conversado com alguma dessas pessoas. Pode ter feito referência a qualquer pequeno nada que nos forneça uma pista. Haverá aqui alguém, no momento, que o Cônego conhecesse bem?

Miss Gorringe franziu o cenho, pensando:

- Bem, creio que o General Radley ainda está aqui. E temos também uma senhora idosa que veio do campo... e que se hospedava aqui quando menina, segundo me contou. No momento não recordo o nome dela. mas posso descobri-lo Para os senhores. Ah, sim, Miss Marple, esse é o nome dela. Acho que ela conhece o Cônego Pennyfather.

- Bem, poderemos começar por esses dois. E deve haver uma camareira, suponho.

- Claro - disse Miss Gorringe. - Mas ela já foi interrogada pelo Sargento Wadell.

- Eu sei. Mas não talvez sob este prisma. E o garçom que servia a mesa dele? Ou o maître?

- Ah, sim, Henry, naturalmente - lembrou-se Miss Gorringe.

- Quem é Henry? - perguntou Papai.

Miss Gorringe parecia quase ofendida. Para ela, era impossível que alguém não conhecesse Henry.

- Henry está aqui há tanto tempo que nem sei dizer

- explicou. - Quando o senhor entrou, deve tê-lo visto a servir o chá.

- Trata-se então de uma personalidade - disse Davy.

- Lembro-me que o vi.

- Não sei o que seria de nós sem Henry, - disse Miss Gorringe com emoção. - Ele é realmente maravilhoso. Como que dá o tom à casa, compreende?

- Talvez ele me quisesse servir um chá, - falou o Inspetor-Chefe Davy. - Já vi que têm muffins. Gostaria de comer de novo um bom muffin.

- Certamente - respondeu Miss Gorringe com certa frieza. - Querem que lhes mande servir o chá na sala de entrada? - acrescentou ela, virando-se para o Inspetor Campbell.

- Seria... - começou a dizer o Inspetor, quando de repente abriu-se a porta e apareceu Mr. Humfries, na sua maneira olímpica.

Pareceu levemente surpreso, depois olhou indagador para Miss Gorringe. Miss Gorringe explicou:

- Estes dois cavalheiros são da Scotland Yard, Mr. Humfries.

Campbell apresentou-se:

- Detetive-Inspetor Campbell

- Oh, sim, sim, é claro - disse Mr. Humfries. - O caso do Cônego Pennyfather, não? Caso dos mais extraordinários. Espero que não tenha acontecido nada ao pobre velho.

- O mesmo digo eu - a juntou Miss Gorringe. - Um senhor tão bondoso.

- É um dos da velha guarda, - acrescentou aprobativamente Mr. Humfries.

- Parece que os senhores recebem aqui um bom contingente da velha guarda - comentou o Inspetor-Chefe Davy.

- Sim, creio que sim - disse Mr. Humfries. - Sob muitos aspectos, somos sobreviventes de outros tempos.

- Temos os nossos hóspedes certos - disse Miss Gorringe com orgulho- - As mesmas pessoas, que vêm para cá ano após ano. Recebemos muitos americanos... de Boston e Washington. Gente fina, educada.

- Apreciam nossa atmosfera inglesa, - explicou Mr. Humfries, exibindo num sorriso os seus dentes alvíssimos.

Papai observava-o, pensativo. O Inspetor Campbell falou:

- O senhor tem certeza de que não chegou aqui nenhum recado do Cônego? Um recado recebido por alguém que se esquecesse de anotar, ou passar adiante?

- Os recados telefônicos são sempre cuidadosamente anotados, - disse Miss Gorringe com gelo na voz. - Não posso nem conceber a possibilidade de um recado não ser transmitido a mim, ou à pessoa que esteja de serviço. - Encarou firme o Inspetor.

Campbell ficou um instante desconcertado. E Mr. Humfries acrescentou também com um toque de gelo na voz:

- O senhor sabe que já respondemos a essas perguntas antes. Fornecemos ao seu sargento... - não recordo o nome dele, agora... todas as informações de que dispúnhamos.

Papai mexeu-se um pouco e disse num tom meio familiar:

- Bem, o senhor compreende, as coisas ficaram um pouco mais sérias. Parece que não se trata apenas de um caso de distração. É por isso que me parece útil a gente trocar algumas palavras com essas duas pessoas que a senhora mencionou: o General Radley e Miss Marple.

- Quer que eu... arranje uma entrevista com eles? - Mr. Humfries parecia muito mal satisfeito. - O General Radley é muito surdo.

- Não creio que seja necessário marcar uma entrevista formal - disse o Inspetor-Chefe Davy. - Não queremos atormentar ninguém. Pode deixar tudo conosco. Basta que nos aponte as duas pessoas indicadas. Há talvez a possibilidade de ter o Cônego Pennyfather mencionado algum plano,?u alguma pessoa que iria encontrar em Lucerna, ou que!na com ele até Lucerna. Pelo menos, vale a pena tentar,

Mr. Humfries estava agora mais aliviado.

- - E em que mais poderemos servi-lo? - perguntou.

Tenho certeza de que o senhor sabe que o nosso desejo é ajudá-lo em tudo... pedimos apenas que compreenda o nosso receio de publicidade pela imprensa.

- Claro - respondeu o Inspetor Campbell.

- E eu quero dar uma palavrinha com a camareira, - disse Papai.

- Pois não, quando quiser. Mas duvido muito que ela lhe possa dizer alguma coisa.

- Provavelmente não. Mas talvez haja algum pequeno detalhe, alguma observação do Cônego a respeito de uma carta, ou de um compromisso, Nunca se sabe.

Mr. Humfries olhou o relógio.

- Ela entra no serviço às seis - disse ele. - Segundo andar. E enquanto esperam, querem tomar um chá?

- Com prazer - disse prontamente Papai. Saíram juntos do escritório.

Miss Gorringe disse: - O General Radley deve estar na sala de fumar. A primeira sala, ao longo desse corredor, à esquerda. Deve estar diante da lareira, com o Times. E é capaz - acrescentou discretamente - que esteja cochilando. Não quererá que eu...

- Não, não, eu me arranjo - disse Papai. - E a outra? A senhora idosa?

- Está sentada ali, junto à lareira -r- mostrou Miss Gorringe.

- Aquela do cabelo fofo, que está fazendo tricô? - perguntou Papai, dando uma espiada. - Poderia estar num palco. É a própria encarnação da tia-avó de todos nós.

- As tias-avós de hoje em dia não se parecem com ela. - observou Miss Gorringe. - Nem as avós, nem as bisavós. Ainda ontem esteve aqui a Marquesa de Barlowe, que já é bisavó. Juro que não a reconheci, quando entrou. Voltava de Paris, o rosto muito maquiado em branco e rosa, o cabelo platinado, uma figura inteiramente artificial, suponho... mas estava maravilhosa.

- Ah - comentou Papai, - eu por mim prefiro as da moda antiga, Bem, muito obrigado, minha senhora. - Virou-se para Campbell. - O senhor não quer deixar o caso comigo? Sei que tem um compromisso importante.

Campbell pegou a deixa: - É verdade, Não creio que se consiga grande coisa, mas vale a pena tentar.

Mr. Humfries desapareceu no interior do seu gabinete particular, dizendo:

- Miss Gorringe... um momento, por favor.

Miss Gorringe seguiu-o e fechou a porta atrás de si.

Humfries, caminhava dum lado para outro. Perguntou rispidamente:

- Para que é que eles querem falar com Rose? Wadell já fez todas as perguntas necessárias.

- Acho que são só as perguntas de rotina - disse Miss Gorringe, em dúvida.

- É melhor você falar com ela antes.

Miss Gorringe parecia um tanto assustada.

- Mas seguramente o Inspetor Campbell...

- Não estou preocupado com Campbell. Mas com o outro. Sabe quem é ele?

- Acho que não disse como se chamava. Um sargento qualquer, penso eu. Tem jeito de caipira.

- Caipira uma ova - disse Mr. Humfries, abandonando sua elegância. - Esse aí é o Inspetor-Chefe Davy, uma raposa velha e das mais espertas. É muito conceituado na Scotland Yard. Só queria saber o que foi que ele veio fazer aqui, farejando e se fazendo de boa praça. Não estou gostando disso, nem um pouco.

- Não vá pensar...

- Não sei o que pensar. Mas estou lhe dizendo que não gosto nada disso. Ele pediu para ver alguém, além de Rose?

- Acho que vai falar com Henry.

Mr. Humfries riu, Miss Gorringe também.

- Com Henry não precisamos nos preocupar.

- É verdade.

- E os hóspedes que conheciam o Cônego Pennyfather? Mr. Humfries tornou a rir.

- Que se divirta com o velho Radley. Terá que botar a casa abaixo, aos gritos, e não conseguirá nada. Que tire bom proveito de Radley e de Miss Marple, aquela gatinha velha. Mas seja como for, não gosto de vê-lo enfiando o nariz por aqui...

 

 

- Sabe, NÃO gosto muito desse tal de Humfries, - disse pensativo o Inspetor-Chefe Davy.

- Que foi que o senhor viu nele? - indagou Campbell,

- Bem... - Papai parecia pedir desculpas - você sabe, é a impressão que a gente tem. Sujeito meloso. Queria saber se ele é o dono ou só o gerente.

- Posso perguntar. - Campbell deu um passo em direção à recepção.

- Não, não pergunte a ele. Descubra... discretamente. Campbell olhou-o, curioso.

- Em que é que o senhor está pensando?

- Nada de especial. Só que eu gostaria de ter muito_ mais informações a respeito disto aqui. Gostaria de saber quem está por trás desse negócio, qual é a situação financeira da firma. Essa coisa toda.

Campbell abanou a cabeça.

- Pois se me perguntassem se existe em Londres algum lugar absolutamente acima de qualquer suspeita...

- Eu sei, eu sei - retrucou Papai. - É como é útil ter uma reputação dessas!

Campbell abanou a cabeça e saiu. Papai seguiu pelo corredor até à sala de fumar. O General Radley estava acordando. O Times lhe escorregou dos joelhos e se desintegrou um pouco. Papai apanhou o jornal, arrumou as folhas desarranjadas e o entregou ao velho.

- Muito obrigado. Muita bondade sua - disse o general numa voz rouca.

- General Radley?

- Sim.

- Queira desculpar, - disse Papai elevando a voz - mas queria falar com o senhor a respeito do Cônego Pennyfather.

- Eh... como? - O General chegou a mão à orelha.

- Cônego Pennyfather, - berrou Papai.

- Meu pai? Morreu há muitos anos.

- O Cônego Pennyfather.

- Ah! Que houve com ele? Vi-o outro dia; estava hospedado aqui.

- Ele tinha que me dar um endereço; disse que o deixaria com o senhor.

Isso já era mais difícil de fazer compreender, mas afinal Davy o conseguiu:

- Não me deu endereço nenhum. Deve ter confundido com outra pessoa. É um velhote maluco. Sempre foi. Erudito, sabe? Gente assim é sempre distraída.

Papai perseverou mais um pouco, mas logo entendeu que a conversa com o General Radley era praticamente impossível e, com toda certeza, inteiramente improdutiva. Foi para a saía de entrada e sentou-se a uma mesa adjacente à de Miss Jane Marple.

- Chá, senhor?

Papai levantou os olhos. Impressionou-o, como a todo o mundo, a personalidade de Henry. Apesar da majestosa corpulência, parecia, por assim dizer, uma vasta encarnação de Ariel, capaz de materializar-se e sumir à vontade. Papai pediu chá:

- Eram muffins que vi você servir? - perguntou.

Henry sorriu beatífico :

- Eram, sim senhor. São excelentes os nossos muffins, se me permite dizê-lo. Todos os apreciam. Quer que mande vir muffins? Chá da índia ou da China?

- Da índia - respondeu Papai. - Ou do Ceilão, caso vocês tenham.

- Claro que temos.

Henry fez um leve gesto com um dedo e o pálido jovem que era o seu auxiliar partiu, em busca de chá do Ceilão e muffins. Henry deslocou-se graciosamente para outro lugar.

"Você é Alguém, garanto", pensou Papai. "Gostaria de saber onde é que eles o descobriram, e quanto lhe pagam. Uma nota, aposto, e você merece'. Pôs-se a olhar Henry que se inclinava de modo paternal para uma senhora idosa. Que pensaria Henry - se é que pensava alguma coisa - a respeito dele, Papai? Papai achaVa que não destoava do ambiente do Hotel Bertrams: poderia ser um agricultor rico, ou mesmo um par do reino que se parecesse com um bookmaker. Conhecia dois pares do reino que eram assim mesmo. Em suma, pensou, talvez o tivesse convencido, mas também achou possível não ter enganado Henry. "Sim, você é Alguém, você é", tornou a pensar Papai.

Chegaram o chá e os muffins. Papai deu uma boa dentada e a manteiga lhe escorreu pelo queixo. Limpou-a com um lenço enorme. Tomou duas chávenas de chá, com bastante açúcar. Depois inclinou-se para a frente e falou com a senhora sentada na cadeira ao lado:

- Desculpe, mas a senhora não é Miss Jane Marple?

Miss Marple transferiu o olhar do tricô para o Inspetor-Chefe Davy.

- Sim, sou Miss Marple.

- Espero que não se aborreça por eu lhe falar. Quero que saiba que sou um policial.

- Realmente? Espero que não tenha acontecido nada de sério aqui.

Papai apressou-se em tranqüilizá-la do modo mais paternal.

- Não se assuste, Miss Marple, não é nada do que a senhora está pensando. Nada de furto ou coisa parecida. Apenas um pequeno problema com um cônego distraído, só isso. Creio que é um amigo seu. O Cônego Pennyfather.

- Oh, o Cônego Pennyfather. Ele estava aqui ainda outro dia. Sim, conheço-o mais ou menos, há muitos anos. Como o senhor diz, é um homem muito distraído. - Acrescentou, com algum interesse:

- Que foi que ele fez agora?

- Bem, pode-se dizer que desta vez ele não sabe onde anda.

- Santo Deus! - exclamou Miss Marple - Onde ele deveria estar?

- Na cidade dele, no cabido da catedral, - respondeu Papai. - Mas não está lá.

- Ele me contou - disse Miss Marple - que ia a uma conferência em Lucerna. Parece que a reunião deveria tratar dos Manuscritos do Mar Morto, creio. O senhor sabe que ele é um grande conhecedor de hebraico e aramaico.

- Sei, sim - disse Papai. - A senhora tem razão. Era para Lucerna que ele... bem, é para lá que se esperava que ele fosse.

- Quer dizer então que ele não apareceu lá?

- Não, não apareceu.

- Oh, então - comentou Miss Marple, - imagino que se enganou nas datas.

- Provavelmente, muito provavelmente.

- Infelizmente - continuou Miss Marple - não foi a primeira vez que tal coisa lhe aconteceu. Um dia fui tomar chá com ele em Chadminster. Pois não estava em casa. A governanta me contou que ele era extremamente distraído.

- E ele, quando a encontrou aqui, não lhe disse nada que nos pudesse dar uma pista? - perguntou Papai, falando de maneira fluente e confidencial. - A senhora sabe o que quero dizer, algum velho amigo que ele esperava encontrar, algum outro programa, além da Conferência de Lucerna?

- Não. Apenas mencionou a Conferência de Lucerna. Creio que me disse que se realizaria no dia 19. Correto?

- Essa era a data da Conferência de Lucerna, exatamente.

- Não prestei muita atenção à data. Quero dizer... - como a maioria das damas idosas, Miss Marple nesse ponto ficou meio atrapalhada - penso que ele falou em 19, e deve ter dito 19, mas pode ter falado em 19 querendo se referir ao dia 20. Isto é, ele pode ter pensado que o 20 era o 19, ou que o 19 era o 20.

- Bem... - disse Papai ligeiramente confuso.

- Estou me explicando mal - declarou Miss Marple - mas o que eu quero dizer é que pessoas como o Cônego Pennyfather, quando falam que vão a tal parte na quinta-feira. a gente não se admira ao verificar que elas não queriam dizer quinta-feira, mas realmente quarta ou sexta-feira. Geralmente descobrem o engano em tempo, mas às vezes não. Naquele momento parece-me que deve ter acontecido uma coisa assim.

Papai estava levemente intrigado.

- A senhora fala, Miss Marple, como se já soubesse que o Cônego Pennyfather não fora a Lucerna.

- Sei que ele não estava em Lucerna na quinta-feira, - explicou Miss Marple. - Ele passou o dia todo aqui ou quase todo. Foi por isso, é claro, que eu pensei que ele me tivesse falado em quinta-feira querendo dizer sexta-feira. E ele saiu daqui na quinta-feira à tarde, levando uma sacola de mão da B.E.A.

- Isso mesmo.

- Calculei que ele se dirigia ao aeroporto; e por isso mesmo fiquei muito surpresa quando o vi de volta.

- Perdão, mas que quer dizer esse "quando o vi de volta?"

- Bem, que ele voltara para cá, é o que quero dizer.

- Vamos esclarecer isso direitinho - disse Papai, procurando falar em voz agradável, propícia às reminiscências, e não como se o caso fosse realmente importante. - A senhora viu o velho idio... isto é, a senhora viu o Cônego sair daqui como se fosse para o aeroporto, com a valise, à noitinha. Está certo?

- Sim. Por volta de seis e meia, talvez, ou um quarto para sete.

- Mas diz que ele voltou.

- Talvez tenha perdido o avião. É a explicação que encontro.

- Quando foi que ele voltou?

- Bem, não sei dizer. Não o vi voltar.

- Oh! - exclamou Papai, desapontado. - Pensei ter ouvido a senhora dizer que o tinha visto.

- Oh, eu o vi mais tarde, - explicou Miss Marple. - O que eu quis dizer é que não o vi entrar no hotel.

- A senhora o viu mais tarde? Quando? Miss Marple pensou.

- Deixe-me ver. Eram cerca das três da madrugada. Eu não conseguia dormir direito. Uma coisa qualquer me acordou. Algum barulho. Há tantos barulhos esquisitos, em Londres. Olhei para o meu reloginho, eram três e dez. Por um motivo qualquer... não sei bem por que... senti-me inquieta. Passos, talvez, diante da minha porta, Quem mora no campo, se escuta passos no meio da noite, fica nervoso. De forma que abri a minha porta e olhei para fora. Vi o Cônego Pennyfather saindo do quarto dele, que é contíguo ao meu, e descendo a escada, vestido com o sobretudo.

- Quer dizer que ele saiu do quarto e desceu a escada, vestido com o sobretudo, às três horas da manhã?

- Sim, - disse Miss Marple. E acrescentou: - Na hora eu achei a coisa estranha.

Papai encarou-a por uns momentos.

- Miss Marple, por que a senhora não contou isso antes a ninguém?

- Ninguém me perguntou - disse Miss Marple com simplicidade.

 

 

Papai soltou um suspiro fundo.

- É, sim - disse ele - suponho que ninguém lhe perguntaria. Simplesmente isso.

E voltou ao silêncio.

- O senhor acha que aconteceu alguma coisa ao Cônego, não? - perguntou Miss Marple.

- Já se passou uma semana - explicou Davy. - Ele não teve nenhum ataque na rua. Não está em nenhum hospital em conseqüência de acidente. E então onde está? Os jornais noticiaram o desaparecimento do Cônego, mas até agora não apareceu ninguém com nenhuma informação.

- Talvez nem todo mundo tenha lido a notícia do desaparecimento. Eu não li.

- Parece até... parece até... - Papai seguia a sua linha de pensamento - que ele tencionava desaparecer, saindo daqui assim, em plena noite. A senhora tem absoluta certeza de que era ele? - perguntou de repente. - Não foi um sonho?

- Tenho absoluta certeza, - disse Miss Marple com segurança.

Papai levantou-se pesadamente.

- É melhor eu ir entrevistar a camareira - disse ele. Davy encontrou Rose Sheldon em atividade, e percorreu com um olhar aprobativo a bela figura da moça.

- Lamento incomodá-la - disse ele. - Sei que já conversou com o nosso sargento. É a respeito do cavalheiro desaparecido, o Cônego Pennyfather.

- Ah, sim, senhor, um cavalheiro muito distinto. Sempre se hospeda aqui.

- Muito distraído - lembrou Papai.

Rose Sheldon permitiu que um sorriso discreto aparecesse na respeitosa máscara do rosto.

- Deixe-me ver. - Papai fingiu consultar umas notas. - A última vez que você viu o Cônego Pennyfather foi...

- Na manhã de quinta-feira. Quinta-feira 19. Ele me disse que não voltaria naquela noite nem possivelmente na noite seguinte. Acho que ia viajar para Genebra, ou qualquer outro lugar da Suíça. Deu-me duas camisas para mandar lavar e eu prometi que estariam prontas no outro dia de manhã.

- E esta foi a última vez que você o viu.

- Foi, sim senhor. Não estou de serviço na parte da tarde. Volto só às seis horas. Nesse ínterim ele já devia ter ido embora, ou pelo menos descera para as salas do primeiro andar. Não estava no quarto. E deixou lá duas malas.

- Está certo - disse Papai. O conteúdo das malas fora examinado, mas não fornecera nenhuma pista útil. Ele continuou: - Você o chamou na manhã seguinte?

- Se eu chamei? Não senhor, ele estava fora.

- Como é que você fazia comumente? Levava um chá simples? O pequeno almoço?

- Chá simples. Ele tomava o primeiro almoço no salão, lá embaixo.

- Quer dizer que você não entrou no quarto dele durante todo o dia seguinte?

- Entrei, sim. - Rose pareceu chocada. - Entrei no quarto dele, como de costume. Apanhei as camisas e, é claro, espanei o quarto. Espanamos todos os quartos diariamente.

- E a cama? Algum sinal de que houvesse dormido nela?

Rose encarou-o. - A cama? Não senhor.

- Não estava desarrumada... ou pelo menos amarrotada?

Rose abanou a cabeça.

- E o banheiro?

- Encontrei uma toalha de rosto úmida, que fora usada, creio eu, na tarde anterior. Provavelmente antes de sair ele lavou as mãos.

- E não havia nada que indicasse que o Cônego Pennyfather voltara ao quarto... talvez muito tarde... depois de meia-noite?

A moça tornou a olhar para Davy, espantada. Papai abriu a boca, mas fechou-a novamente. Ou ela não sabia nada a respeito da volta do Cônego, ou era uma atriz exímia.

- E o que me diz da roupa dele... dos ternos? Estavam arrumados nas malas?

- Não penhor, estavam pendurados no guarda-roupa. Ele tinha ficado com o quarto, como o senhor sabe,

- Quem foi que fez as malas dele?

- Miss Gorringe deu ordem. Quando foi preciso desocupar o quarto para a mulher que o tinha reservado.

Um relato honesto e coerente. Mas se a velha senhora não mentira ao declarar que vira o Cônego Pennyfather deixando o quarto às 3 horas da madrugada de sexta-feira, então ele voltara àquele quarto em alguma ocasião. Ninguém o vira entrar no hotel Será que, por algum motivo, o Cônego evitara deliberadamente que o vissem? Não deixara sinais de sua presença no quarto. Nem sequer se deitara na cama. Será que Miss Marple sonhara com aquela história toda? Na idade dela, era possível. Davy teve uma idéia:

- E a sacola da companhia aérea que ele carregava?

- Como? Não estou entendendo.

- Uma bolsa, azul-escuro, da B. E. A. ou da B. O. A. C.... você não viu?

- Oh, a bolsa, vi, sim senhor. Mas naturalmente ele a levou consigo quando viajou.

- Mas ele não viajou. Acabou não indo à Suíça. Portanto, deve ter deixado a sacola aqui. Ou então voltou e deixou-a aqui com o resto da bagagem.

- Sim... acho... não tenho bem certeza... creio que deixou.

Inesperadamente, o pensamento aflorou ao cérebro de Papai: Eles não lhe deram nenhuma instrução sobre isso, não foi?

Rose Sheldon mostrara-se calma e competente até então. Mas a última pergunta a abalara. Ignorava a resposta que deveria dar, Mas ela deveria saber.

O Cônego levara a sacola para o aeroporto, e voltara de lá. Se estivera outra vez no Bertram’s devia trazer consigo a sacola. Mas Miss Marple não a mencionara ao contar que vira o Cônego sair do quarto e descer a escada.

Presumivelmente a sacola fora largada no quarto, mas não fora posta junto com as malas no depósito de bagagem. Por quê? Seria porque se pretendia que o Cônego fora à Suíça?

Papai agradeceu jovialmente a Rose e desceu a escada.

Cônego Pennyfather! Um enigma, o Cônego Pennyfather. Falou um bocado a respeito da viagem à Suíça, embaralhou tudo de modo a não ir à Suíça, voltou ao hotel em tal segredo que ninguém o viu e tornou a sair em plena madrugada. (Ia para onde? Fazer o quê?)

Poderia a simples distração explicar tudo isso?

Da escada Papai lançou um olhar despeitado aos ocupantes do saguão, e perguntou a si mesmo se alguém ali era o que todos pareciam ser. Ele mesmo chegara àquele estágio! Gente idosa, gente de meia-idade, (não havia ninguém jovem),, gente simpática à moda antiga, quase todos de posse, todos respeitabilíssimos. Funcionários, advogados, eclesiásticos; junto à porta, um casal americano; perto da lareira, uma família francesa. Ninguém que chamasse a atenção, ninguém deslocado ali; a maioria degustando, feliz, um chá das cinco

à inglesa. Poderia haver algo de errado num lugar onde se servia o chá das cinco à moda antiga?

O francês fez para a mulher um comentário que se enquadrava bem no ambiente:

- Le five-o'-clock! - dizia ele. - C’est bien anglais ça, n’est ce pas? - E olhou em volta com aprovação.

“Le five-o'-clock", pensou Davy enquanto atravessava a porta de vaivém e chegava na rua. "Aquele camarada não sabe que "le five-o'-clock está tão extinto quanto a ave Dodô!"

Do lado de fora, várias malas e valises americanas estavam sendo transportadas para um táxi. Parecia que Mr. e Mrs. Elmer Cabot estavam a caminho do Hotel Vendôme, em Paris.

Ao lado de Mr. Cabot, no meio-fio, Mrs. Cabot dava suas opiniões ao marido:

- Os Pendleburys tinham razão quanto a este local, Elmer. É de fato a velha Inglaterra. Lindamente Eduardiano! Eu tinha a impressão de que a qualquer momento Eduardo VI poderia entrar na sala e sentar-se para tomar o chá das cinco. Estou resolvida a voltar no ano que vem... resolvida mesmo.

- Se você tiver um milhão de dólares para gastar - respondeu secamente o marido.

- Ora, Elmer, não foi tão caro assim.

Arrumada á bagagem, o porteiro alto ajudou os clientes a subirem no táxi, murmurando "Muito obrigado" quando Mr. Cabot fez o esperado gesto. O táxi partiu. O porteiro transferiu suas atenções para Davy.

- Táxi?

Papai examinou o homem.

Mais de um metro e oitenta de altura. Bem-apessoado. Um tanto desmazelado. Ex-combatente. Um monte de medalhas - provavelmente genuínas. Esperto? Bebe demais. Em voz alta, Papai perguntou:

- Ex-combatente?

- Sim senhor. Guarda Irlandesa.

- Medalha militar, estou vendo. Onde a ganhou?

- Birmânia.

- Como se chama?

- Michael Gorman. Sargento.

- Bom emprego aqui?

- O lugar é sossegado.

- Não preferiria o Hilton?

- Não. Gosto daqui. A clientela é gente fina, com muitos turfistas que vêm assistir às corridas de Ascot e Newbury. De vez em quando me dão bons palpites.

- Ah, então é irlandês e jogador, hem?

- Ora! Que seria a vida sem um joguinho?

- Pacata e chata - disse o Inspetor-Chefe Davy. - Igual à minha.

- Verdade?

- É capaz de adivinhar a minha profissão? O irlandês sorriu:

- Não me leve a mal, mas eu diria que é um tira.

- Acertou em cheio. Lembra-se do Cônego Pennyfather?

- Cônego Pennyfather, não recordo bem o nome...

- Um pastor idoso. Michael Gorman riu:

- Bem, pastor é o que mais dá aí dentro.

- Mas esse desapareceu daqui.

- Ah, aquele - O porteiro pareceu levemente desconfiado.

- Você o conheceu?

- Não me lembraria dele se tanta gente não me fizesse perguntas sobre ele. Tudo o que eu sei é que o embarquei num táxi e que ele foi para a Suíça, mas ouvi dizer que não chegou lá. Parece que se perdeu.

- Não o viu mais tarde, naquele dia?

- Mais tarde... Não senhor.

- A que horas deixa o serviço?

- Onze e meia.

O Inspetor-Chefe Davy fez um aceno de cabeça, recusou um táxi e pôs-se a caminho lentamente, ao longo de Pond Street. Um carro passou roncando ao seu lado, rente ao meio-fio, e parou defronte ao Hotel Bertram's, com um ranger de freios. O Inspetor-Chefe Davy virou a cabeça calmamente e reparou no número da placa: FAN 2266. Aquele número lhe lembrava qualquer coisa, embora no momento não lhe fosse possível dizer o quê.

Vagarosamente, voltou para o ponto de onde viera. Mal alcançara a entrada do hotel, quando o motorista, que atravessara a porta um momento antes, tornou a sair. Combinava muito bem com o carro, que era um modelo de corrida, branco, de linhas alongadas e brilhantes. O rapaz tinha o mesmo ar inquieto de um galgo, rosto bonito e, no corpo, nem uma polegada de carne supérflua.

O porteiro segurou a porta aberta do carro, o moço saltou para dentro, atirou uma moeda ao porteiro e arrancou com uma explosão do possante motor.

- Sabe quem é ele? - perguntou Michael Gorman a Papai.

- Um sujeito perigoso, na certa.

- Ladislaus Malinowski. Ganhou o Grand Prix dois anos atrás... foi campeão mundial. No ano passado deu uma batida feia, mas dizem que já está em forma.

- Não me diga que ele está hospedado no Bertram's. Não combina.

Michael Gorman sorriu com malícia.

- Não senhor, não está hospedado aqui, não. Quem está hospedada aqui é uma amiga dele. - E piscou o olho.

Um servente do hotel, de avental listrado, apareceu com novo carregamento de bagagem americana, de luxo.

Papai assistiu distraído à acomodação da bagagem num Daimler de aluguel, enquanto procurava recordar-se do que sabia a respeito de Ladislaus Malinowski. Um sujeito aloucado - dizia-se que tinha uma ligação com uma mulher bastante conhecida - como se chamava ela? Ainda contemplando uma elegante mala-camarote, ia dar meia volta quando mudou de idéia e tornou a entrar no hotel.

Foi à recepção e pediu a Miss Gorringe o registro do.s hóspedes. Miss Gorringe estava ocupada com os americanos que partiam, e empurrou o livro na direção dele por cima do balcão. Davy foi virando as páginas: Lady Selina Hazy, Little Cottage, Merryfield, Hants. Mr.e Mrs. Hennessey King, Elderberries, Essex. Sir John Woodstock, Beaumont Crescent 5, Cheltenham. Lady Sedgwick, Hurstings House, Northumberland. Mr. e Mrs. Elmer Cabot, Connecticut. General Radley, The Green, 14, Chichester. Mr. e Mrs, Wolmer Pickinton, Marble Head, Connecticut. La Comtesse de Beauville, Les Sapins, St. Germain en Laye. Miss Jane Marple, St. Mary Mead, Much Benham. Coronel Luscombe, Little Green, Suffolk. Mrs. Carpenter, Hon. Elvira Blake, Cônego Pennyfather, The Close, Chadminster. Mrs, Holding, Miss Holding, Miss Audrey Holding, The Manor House, Carmanton. Mr. e Mrs. Ryesville, Valley Forge, Pennsylvania. Duque de Barnstable, Doone Castle, N. Devon... Uma amostra das pessoas que se hospedavam no Hotel Bertram's. Formavam, pensou, uma espécie de ordem preestabelecida...

E quando fechava o livro, saltou-lhe aos olhos um nome escrito numa página anterior: Sir William Ludgrove.

O Juiz Ludgrove, que fora reconhecido por um oficial de justiça, próximo ao banco assaltado. O Juiz Ludgrove... o Cônego Pennyfather... ambos clientes do Hotel Bertram’s...

- Espero que o senhor tenha gostado do chá. - Era Henry, de pé a seu lado. Falava polidamente, e com a leve ansiedade do perfeito anfitrião.

- O melhor chá que tomei nestes últimos anos - disse o Inspetor-Chefe Davy.

Lembrou-se então de que não pagara o chá. Tratou de fazê-lo, mas Henry levantou a mão, súplice:

- Oh, não senhor. Disseram-me que o seu chá era por conta da casa. Ordens de Mr. Humfries.

Henry afastou-se. Papai ficou sem saber se devia ou não dar uma gorjeta a Henry. Era mortificante pensar que Henry sabia muito melhor do que ele a resposta para esse problema social!

Já ia andando pela rua quando, de repente, parou. Tirou do bolso a agenda e escreveu nela um nome e um endereço - não havia tempo a perder. Entrou numa cabina telefônica: ia arriscar-se. Fosse como fosse, estava resolvido a apostar tudo num palpite.

 

 

Era o guarda-roupa que estava preocupando o Cônego Pennyfather. Ainda não estava bem desperto, e o guarda-roupa o preocupava. Mas aí adormeceu de novo e esqueceu-se do guarda-roupa. Quando, porém, os seus olhos novamente se abriram, lá estava o guarda-roupa no lugar errado, O Cônego estava deitado sobre o lado esquerdo, de frente para a janela, e o guarda-roupa deveria estar ali, entre ele e a janela, encostado à parede da esquerda. Mas não estava. Estava à direita, e aquilo o preocupava. Preocupavam tanto que o deixava exausto. Ele tinha consciência de que a cabeça lhe doía muito, e, além do mais, aquele guarda-roupa no lugar errado... Nesse ponto, seus olhos mais uma vez se fecharam.

Da vez seguinte em que acordou, havia muito mais luz no quarto. Ainda não amanhecera. Só havia a débil luz da madrugada. "Oh? Senhor", pensou consigo o Cônego Pennyfather, resolvendo subitamente o problema do guarda-roupa. "Que estúpido que eu sou! É evidente, não estou em casa!"

Mexeu-se com cuidado. Não, aquela não era a sua cama. Estava em outra casa. Estava - onde é que estaria? Oh, claro. Fora para Londres, não fora? Estava no Botei Bertram's e... mas não, não estava no Hotel Bertram's. No Bertram's a cama ficava defronte à janela. Portanto essa idéia de Bertram's também era errada.

- Oh, meu Deus, onde é que estou? - indagava o Cônego Pennyfather.

Lembrou-se então que ia para Lucerna. "Claro" admitiu ele "estou em Lucerna." Começou a pensar na comunicação que ia ler; mas não pensou nisso muito tempo. Pensar na conferência fazia-lhe doer a cabeça; assim novamente tratou de dormir.

Quando outra vez despertou, sua cabeça estava muitíssimo mais clara, e também havia muito mais luz no quarto. Não estava em casa, não estava no Hotel Bertram's e sabia perfeitamente que não estava em Lucerna^-Aquilo não era um quarto de hotel. Examinou mais detidamente o local: era um quarto inteiramente estranho, com muito pouca mobília. Uma espécie de armário (que ele tomara pelo guarda-roupa) e uma janela com cortinas floridas, através das quais passava a luz. Uma cadeira, uma mesa, uma cômoda. E só.

- Oh, Senhor - disse o Cônego Pennyfather. - Que coisa estranha! Onde será que estou?

Estava pensando em se levantar a fim de investigar; mas quando se sentou na cama, a cabeça recomeçou a doer, de forma que ele tornou a deitar-se.

- Devo ter adoecido - concluiu o Cônego. - Sim, devo ter adoecido, sem nenhuma dúvida. - Pensou um ou dois minutos, depois disse de si para si: "Aliás, creio que ainda estou doente. Gripe, quem sabe? Dizem que a gripe chega às vezes de repente. Talvez... talvez tenha me pegado no jantar lá no Athenaeum. Sim, é isso." Lembrava-se de que jantara no Athenaeum.

Ouviram-se ruídos de movimento dentro de casa. Talvez o tivessem levado para uma casa de saúde. Mas não, não lhe parecia que aquilo ali fosse uma casa de saúde. Aumentando a luz do dia, via-se que se tratava de um quartinho modesto e mal mobiliado. Continuaram os sons de movimento. Lá embaixo, uma voz gritou: "Adeus, meus anjos, Esta noite vai ter salsicha e purê".

O Cônego Pennyfather ficou a pensar naquilo. Salsicha e purê. As palavras tinham uma qualidade agradável.

- Creio - disse consigo - que estou com fome. Abriu-se a porta. Uma mulher de meia-idade entrou, caminhou até às cortinas, puxou-as um pouco e virou-se para a cama.

- Ah, o senhor já acordou. E que é que está sentindo?

- Na verdade - respondeu debilmente o Cônego Pennyfather - nem sei bem.

- Ah, acho mesmo que não. O senhor esteve muito mal, sabe? Levou uma pancada feia, não sei com que... pelo menos foi o que o médico disse. Esses motoristas! Não param, nem depois de atropelar uma pessoa!

- Sofri um acidente? - indagou o Cônego. - Um acidente de automóvel?

- Isso mesmo - respondeu a mulher. - Nós o encontramos no acostamento da estrada, quando vínhamos para casa. A princípio pensamos que fosse um bêbado. - Riu-se ao recordar a cena. - Mas aí meu marido achou que era melhor dar uma espiada. "Talvez tenha sido um acidente", disse ele. Não se sentia nenhum cheiro de bebida; nem havia sangue. Mas assim mesmo, lá estava o senhor, feito um defunto. Então meu marido disse: "Não podemos deixar esse homem estirado aí" e carregou o senhor para cá. Entendeu?

- Ah - disse vagamente o Cônego Pennyfather, aturdido por tais revelações. - Um bm bom samaritano!

- Vimos que o senhor era um pastor, e o meu marido disse: "é um homem respeitável". Achou que era melhor não chamar a polícia, porque, sendo um eclesiástico, o senhor poderia não gostar... se estivesse bêbado, embora não cheirasse a bebida. Assim resolvemos chamar o Dr. Stokes para examinar o senhor. Nós ainda o chamamos de Dr. Stokes, embora ele esteja proibido de clinicar. É um homem muito bom, amargurado, evidentemente, pela proibição de clinicar. E tudo porque tem um coração muito bom; ajudou um bando de moças, boas biscas, todas elas. De qualquer modo, ele como médico é ótimo, e nós o chamamos para olhar o senhor. Disse ele que o senhor não sofreu nada grave, só uma ligeira concussão. Bastava que a gente o deitasse bem estirado, quieto, num quarto escuro. "Tenham cuidado", disse o doutor, ^não estou fazendo diagnóstico nenhum. O que digo é em caráter extra-oficial. Não tenho direito de receitar nem de dizer nada. O correto seria vocês darem parte à polícia, mas se não o querem fazer, por que o farão? Dêem uma oportunidade ao pobre-diabo", foi o que ele disse. O senhor desculpe, parece até que estou lhe faltando com o respeito, mas o doutor é assim mesmo, diz tudo que lhe vem à boca. E agora que tal uma colherada de sopa ou um pão com leite, bem quentinho?

- Qualquer coisa - balbuciou o Cônego Pennyfather - seria bem recebida.

E o velho deixou-se cair novamente nos travesseiros. Um acidente? Então fora isso. Um acidente, e ele não conseguia recordar-se de coisíssima nenhuma! Poucos minutos mais tarde a boa mulher voltou, com uma bandeja onde carregava uma tigela fumegante.

- O senhor vai se sentir melhor depois de se alimentar. Tive vontade de botar dentro uma gotinha de uísque, ou uma gotinha de conhaque, mas o doutor disse que o senhor não podia tomar álcool nenhum.

- Claro que não - disse o Cônego Pennyfather - com uma concussão não poderia. Não. Não seria aconselhável.

- Quer que eu lhe ponha mais um travesseiro às costas, benzinho? Pronto. Está bem assim?

O Cônego Pennyfather espantou-se um pouco ao ver-se tratado por "benzinho". Mas disse consigo que decerto a intenção era boa.

- Bonitinho, assim!

- Sim, mas onde é que estamos? - indagou o Cônego Pennyfather, - Quero dizer, onde é que eu estou? Que lugar é este?

- Milton St. John - informou a mulher. - Não sabia?

- Milton St. John? - disse o Cônego, abanando a cabeça. - É a primeira vez que ouço esse nome.

- Oh, não é nenhum lugar importante. É só uma aldeia.

- A senhora tem sido,muito bondosa - declarou o Cônego Pennyfather. - Posso saber o seu nome?

- Mrs. Wheeling.

- A senhora é extremamente bondosa - tornou a dizer o Cônego Pennyfather. - Mas o acidente? Não me lembro de nada...

- Tire isso da cabeça, benzinho, e se sentirá melhor e em condições de se lembrar das coisas.

- Milton St. John - disse consigo o Cônego Pennyfather, admirado. - Esse nome não tem para mim a menor significação! Que coisa extraordinária!

 

 

Sir Ronald Graves desenhou um gato no seu bloco de notas. Olhou para a volumosa figura do Inspetor-Chefe Davy, sentado diante dele, e desenhou um buldogue.

- Ladislaus Malinowski? - disse. -Pode ser. Tem alguma prova?

- Não. Mas ele preenchia os requisitos, não?

- Um sujeito temerário, sem nervos. Conquistou o campeonato mundial. Sofreu um grande desastre no ano passado. Péssima reputação com as mulheres. Fontes de renda duvidosas. Gasta à vontade, tanto aqui como no exterior. Sempre viajando daqui para o Continente. Acha que ele é o homem que está por trás desses roubos e assaltos?

- Não creio que seja ele quem planeja. Mas acho que anda metido nisso.

- Por quê?

- Em primeiro lugar, é dono de um Mercedes-Otto, modelo de corridas. Um carro que corresponde àquele que foi visto perto de Bedhampton na manhã do assalto à mala do trem. Os números da placa são diferentes, mas já estamos acostumados com isso. E o truque é o mesmo de sempre: diferentes, mas não tão diferentes assim. FAN 2299 em vez de 2266. Afinal, não há tantos Mercedes-Otto daquele tipo. Lady Sedgwick tem um, e Lorde Marrivale outro.

- Não acredita que Malinowski seja o chefão. Ou acredita?

- Não. Acho que há cabeças melhores que a dele na direção. Mas ele faz parte do grupo. Deu uma olhada no dossiê. Está lembrado do assalto ao Midland & West London? Três furgões... veja quanta coincidência!... acertaram de bloquear a rua. E uma Mercedes-Otto que estava no local conseguiu escapulir graças a esse engarrafamento.

- Mas foi detida um pouco mais tarde.

- Sim, e foi liberada. Principalmente porque as pessoas que deram parte dela não estavam bem certas quanto ao número da placa. Diziam que era FAN 3366... o número da placa de Malinowski é FAN 2266. É sempre o mesmo quadro.

- E você teima em ligar tudo isso ao Hotel Bertram's. Devem ter desencavado algum material sobre o Bertram's para você...

Papai bateu no bolso:

- Está comigo. Firma devidamente registrada. Balanço... capital realizado... diretores, etc, etc, etc Não significa nada! Esses grupos financeiros são todos iguais... cobra engolindo cobra! Firmas, companhias administradoras... dão até vertigem na gente.

- Ora vamos, Papai. Esse é o procedimento normal do pessoal da City. É um meio de enfrentar o fisco...

- O que eu quero são dados reais. Se o senhor me der autorização, terei muito prazer em ir falar com certos chefões.

O Comissário Assistente encarou Davy.

- E quais são esses chefões? Pode me dizer? Papai mencionou um nome.

O Comissário pareceu perturbar-se. - Não sei de nada. Seria muita ousadia abordar esse homem.

- Mas isso poderia ajudar-nos e muito.

Houve uma pausa. Os dois homens se encararam. Papai, bovino, plácido, paciente. O Comissário cedeu.

- Você é um diabo velho e teimoso, Fred - disse ele.

- Faça como bem entender. Se quiser, pode ir amolar os mentores dos financistas internacionais da Europa.

- Garanto que ele sabe - disse o Inspetor-Chefe Davy.

- Ele sabe. E se não souber, pode descobrir logo, basta tocar uma cigarra, na mesa, ou dar um telefonema.

- Não me parece que ele vá ficar muito satisfeito.

- Provavelmente não, mas não lhe tomará muito tempo. Só que eu preciso do apoio de uma autoridade.

- Você está levando a sério mesmo esse Hotel Bertram's, não está? Afinal, que foi que você descobriu? É um hotel bem dirigido, tem uma clientela respeitabilíssima, nunca teve problemas com as posturas municipais...

- Eu sei, eu sei. Nada de bebidas, de drogas, de jogo, nem de hospedagem a criminosos. Tudo alvíssimo como a neve recém-caída. Nada de beatniks, de marginais, de delinqüentes juvenis. Só matronas vitorianas-eduardianas, famílias da nobreza rural, viajantes estrangeiros, de Boston ou dos locais mais respeitáveis dos Estados Unidos. Apesar disso, um venerando Cônego da nossa Igreja é visto saindo de lá às 3 da manhã, de maneira um tanto sub-reptícia...

- Quem lhe disse isso?

- Uma das matronas.

- Como ela conseguiu vê-lo? Por que não estava ela na cama dormindo?

- Senhoras idosas são assim, meu caro senhor.

- Você está falando do... como se chama ele... Cônego Pennyfather?

- Estou, sim senhor. Comunicaram o desaparecimento dele, e Campbell andou investigando.

- Coincidência curiosa. O nome desse Cônego foi citado também a propósito do roubo das malas do correio em Bedhampton.

- Foi mesmo? E por quem?

- Por outra senhora idosa... ou pelo menos de meia-idade. Quando o trem foi detido por aquele sinal falso, muitas pessoas se levantaram e olharam para o corredor. Essa senhora, que mora em Chadminster e conhece de vista o Cônego Pennyfather, diz que o viu entrar no trem, por uma das portas. Ela pensou que ele tinha saído para ver o que havia acontecido, e estivesse entrando de volta. E nós íamos seguir essa pista, já que haviam comunicado o desaparecimento do Cônego...

- Vejamos... o trem foi detido às 5,30 da manhã. O Cônego Pennyfather saiu do Hotel Bertram's pouco depois das 3 da madrugada. Sim, podia ser. Se o levassem lá... digamos, num carro de corrida...

- E assim voltamos a Ladislaus Malinowski!

O Comissário contemplava as garatujas que fizera no bloco. - Você é mesmo um buldogue, Fred.

Meia hora depois o Inspetor-Chefe Davy entrava num

escritório tranqüilo e bastante modesto. O homenzarrão por trás da mesa levantou-se e estendeu-lhe a mão.

- Inspetor-Chefe Davy? Sente-se, por favor - disse ele. - Aceita um charuto?

O Inspetor-Chefe Davy abanou a cabeça:

- Peço-lhe desculpas - disse ele na sua voz profunda de camponês - em roubar o seu precioso tempo.

Mr. Robinson sorriu. Era um homem gordo e muito bem vestido. Tinha a cara amarela, os olhos escuros e tristes, a boca larga e generosa. Sorria freqüentemente, mostrando uns dentes muito grandes. "São para comer você melhor" pensou incongruentemente o Inspetor-Chefe Davy. Robinson falava um inglês perfeito e sem sotaque, mas não era inglês. Papai, como inúmeras pessoas antes dele, estava curioso por saber qual seria a nacionalidade de Mr. Robinson.

- Bem, em que posso servi-lo?

- Gostaria de saber - disse Davy - quem é o proprietário do Hotel Bertram's.

A expressão do rosto de Mr. Robinson não se alterou. Ele não mostrou surpresa ao ouvir aquele nome, nem deu nenhum sinal de conhecê-lo. Disse pensativo:

- O senhor quer saber quem é o proprietário do Hotel Bertram's. Isso, creio eu, fica em Pond Street, na altura de Piccadilly.

- Exatamente.

- Uma vez ou outra me hospedo lá. Lugar sossegado, bem administrado.

- É sim senhor - disse Papai. - Muito bem administrado.

- E o senhor quer saber quem é o dono? Certamente é fácil verificar.

Havia uma leve ironia por trás do sorriso.

- Pelos canais costumeiros, é isso que o senhor quer dizer? - Ah, sim. - Papai tirou do bolso um pedacinho de papel e leu três ou quatro nomes e endereços.

- Compreendo - disse Mr. Robinson. - Alguém deve ter tido um trabalhão com isso. Interessante. E o senhor veio me procurar!

- O senhor é a pessoa mais indicada.

- Realmente não sei. Mas é verdade que tenho meios de obter informações. Temos... - encolheu os ombros gordos, enormes - temos os nossos contatos.

- É, sim - disse Papai com rosto impassível.

Mr. Robinson olhou para Davy e em seguida apanhou o telefone em cima da mesa:

- Sônia? Me chame o Carlos - Esperou um ou dois minutos, e então falou: - Carlos? - Pronunciou rapidamente meia dúzia de frases numa língua estrangeira. Não era sequer uma língua que Papai pudesse identificar.

Papai podia dialogar em bom francês-de-inglês. Tinha umas tinturas de italiano e entendia por alto o alemão simples dos viajantes. Conhecia os sons do espanhol, do russo, do árabe, embora não os entendesse. Mas aquele idioma não era nenhum desses. Talvez se tratasse de turco, ou persa, ou armênio, mas não tinha certeza. Mr. Robinson recolocou o fone no gancho.

- Não creio - disse ele bem humorado - que tenhamos de esperar muito tempo. Sabe que fiquei interessado? Muitíssimo interessado. Eu mesmo tenho pensado, uma vez ou outra...

Papai o olhava, com ar inquisitivo.

- No Hotel Bertram's - explicou Mr. Robinson. - Do ponto de vista financeiro, evidentemente. A gente se pergunta como é que aquilo pode dar lucro. Mas isso não é da minha conta. Faz gosto saber... - deu de ombros - que existe um hotel confortável, com uma gerência excepcionalmente capaz e empregados... Sim, tenho pensado nisso. - Fixou o olhar em Papai. - Sabe como e por quê?

- Ainda não. Mas quero saber.

- Há várias possibilidades - disse Mr. Robinson pensativo. - É, como a música. Apenas tantas notas para cada oitava, e no entanto é possível combiná-las de... que sei eu? de mil maneiras diferentes. Um músico certa vez me disse que não se pode obter a mesma melodia duas vezes. Interessantíssimo.

Uma cigarra, na mesa, tocou de leve e Mr. Robinson pegou de novo o telefone.

- Sim? Sim, você foi rápido. Estou satisfeito. Entendo. Oh! Amsterdã, sim... Ah... Obrigado. Sim. Quer soletrar isso? Muito bem.

Anotou qualquer coisa num bloco que tinha à mão.

- Espero que isso lhe sirva - disse ele, arrancando a folha do bloco e passando-a por cima da mesa para Davy, que leu o nome em voz alta: Wilhelm Hoffman.

- Nacionalidade suíça - disse Mr. Robinson - Mas, a meu ver, não nasceu na Suíça. Tem grande influência nos círculos bancários e embora se mantenha rigorosamente à direita da lei, tem estado por trás de inúmeros... negócios suspeitos. Opera apenas no Continente, nunca neste país.

- Mas tem um irmão - explicou Mr. Robinson. - Robert Hoffman: este mora em Londres, negocia com diamantes... firma respeitabilíssima. É casado com uma holandesa e também tem escritórios em Amsterdã. A Scotland Yard deve ter informações sobre ele. Como eu disse, negocia principalmente com diamantes, mas é um homem muito rico, possui muitas propriedades, que em geral não estão no seu nome. Sim, ele está por trás de uma porção de empresas. E o irmão dele é o verdadeiro proprietário do Hotel Bertram's.

- Muito agradecido. - O Inspetor-Chefe Davy levantou-se. - Não preciso dizer quanto sou grato ao senhor. É formidável - acrescentou, permitindo-se demonstrar mais entusiasmo do que o normal.

- Formidável eu saber? - indagou Mr. Robinson, dando um dos seus mais amplos sorrisos. - Mas essa é uma das minhas especialidades. Informação. Gosto de saber. Foi por isso que me procurou, não?

- Bem - disse o Inspetor-Chefe Davy - nós temos informações sobre o senhor. O Ministério do Interior. A Divisão Especializada e os outros departamentos. - Acrescentou, quase ingenuamente: - Foi preciso um pouco de audácia da minha parte, para vir procurá-lo.

Novamente Mr. Robinson sorriu.

- Considero o senhor uma personalidade muito interessante, Inspetor-Chefe Davy - disse ele. - Desejo que tenha êxito na sua tarefa, qualquer que seja ela.

- Muito obrigado. Acho que preciso dos seus bons votos. A propósito, esses dois irmãos, o senhor diria que são homens violentos?

- Certamente não - disse Mr. Robinson. - Isso seria contrário à política deles. Os irmãos Hoffman não usam de violência em questões comerciais. Têm outros métodos, que lhes servem melhor. Pode-se dizer que a cada ano que passa vão ficando mais ricos, pelo menos é o que consta nos círculos bancários suíços.

- A Suíça é uma terra muito útil, não? - disse o Inspetor-Chefe Davy.

- Realmente. Nem sei o que faríamos sem a Suíça! Tanta correção. Tanta sensibilidade para os negócios! Sim, todos nós, homens de negócios, devemos ser gratos à Suíça. Eu próprio - acrescentou ele - também faço excelente juízo sobre Amsterdã. - Fitou Davy, depois tornou a sorrir, e o Inspetor-Chefe saiu.

Quando chegou novamente à repartição, Davy encontrou um bilhete à sua espera:

"O Cônego Pennyfather apareceu - salvo mas não ileso. Parece que foi atropelado por um carro em Milton St. John e sofreu uma concussão."

 

 

O Cônego Pennyfather olhou para o Inspetor-Chefe Davy e para o Inspetor Campbell, e o Inspetor-Chefe Davy e o Inspetor Campbell também o olharam. O Cônego Pennyfather estava novamente em casa, sentado na grande poltrona da sua biblioteca, um travesseiro sob a cabeça, os pés num banquinho, com uma manta sobre os joelhos para acentuar a sua condição de enfermo.

- Lamento dizer - explicava ele, polidamente - que não me lembro de coisa alguma.

- Não se lembra do acidente, quando o carro o atropelou?

- Lamento dizer que não.

- Então como sabe que um carro o atropelou? - perguntou vivamente o Inspetor Campbell.

- A tal mulher, Mrs.... Mrs.... como era o nome dela? Wheeling?... foi que me contou.

- E como é que ela soube?

O Cônego Pennyfather parecia intrigado.

- Valha-me Deus, o senhor tem razão. Ela não podia saber, não é mesmo? Suponho que pensou que isso é que deve ter acontecido.

- E o senhor não consegue realmente lembrar-se de nada? Como é que veio dar em Milton St. John.

- Não tenho a menor idéia. Até mesmo o nome do lugar me é estranho.

A exasperação do Inspetor Campbell crescia, mas o Inspetor-Chefe Davy disse no seu tom de voz singelo e apaziguador:

- Conte por favor, Cônego Pennyfather, a última coisa de que o senhor se lembra.

O Cônego Pennyfather virou-se aliviado para Davy. O seco ceticismo do inspetor deixara-o constrangido.

- Eu ia para um congresso em Lucerna. Tomei um táxi para o aeroporto... ou antes, para a estação aérea de Kensington.

- Sim. E depois?

- É só. Não me lembro de mais nada. A primeira coisa de que me lembro depois disso é do guarda-roupa.

- Que guarda-roupa? - perguntou o Inspetor Campbell.

- Estava no lugar errado.

O Inspetor Campbell sentiu-se tentado a esmiuçar essa questão do guarda-roupa colocado no lugar errado. Mas o Inspetor-Chefe Davy o interrompeu.

- O senhor se recorda de ter chegado à estação aérea?

- Acho que sim - disse o Cônego Pennyfather, com o ar de quem tinha enormes dúvidas a esse respeito.

- E o senhor então voou para Lucerna.

- Terei voado? Não me lembro absolutamente se voei ou não.

- Lembra-se de ter voltado ao Hotel Bertram's naquela noite?

- Não.

- Lembra-se do Hotel Bertram's?

- Naturalmente. Eu estava hospedado lá. É muito confortável. Mantive a reserva do quarto.

- Lembra-se de ter viajado de trem?

- De trem? Não, não me lembro de trem nenhum.

- Houve um assalto. O trem foi roubado. Não é possível, Cônego Pennyfather, que o senhor não se lembre disso.

- Devia, não devia? Mas a verdade é que... - falava como se pedisse desculpas - não me lembro. - Fitou um policial e depois o outro, com um sorriso afável.

- Então, tudo o que o senhor tem a dizer é que não se recorda de nada desde o instante em que tomou um táxi para a estação aérea, até acordar na casa dos Wheelings em Milton St. John.

- Não há nada de estranho nisso, - afirmou o Cônego. - Sucede muito freqüentemente nos casos de concussão.

- Que foi que o senhor pensou que lhe havia acontecido quando acordou?

- Tinha uma tal dor de cabeça que nem podia pensar. Então, é claro, comecei a imaginar onde é que estava, e Mrs. Wheeling explicou e me serviu uma excelente sopa. Ela me chamava de queridinho e benzinho - contou o Cônego com leve desagrado - mas era muito bondosa, Muito bondosa mesmo.

- Ela devia ter dado parte do acidente à polícia. O senhor então teria sido transportado para um hospital e tratado devidamente - disse Campbell.

- Ela tratou de mim muito bem, - protestou o Cônego com energia - e pelo que sei, em casos de concussão, pouco se pode fazer pelo paciente, além de o manter em repouso.

- Se o senhor se recordar de mais alguma coisa, Cônego Pennyfather...

O Cônego interrompeu-o.

- Parece que perdi quatro dias completos da minha vida. É muito curioso. Realmente muito curioso. Só queria saber por onde é que eu andava e o que estava fazendo. Diz o médico que talvez me volte a lembrança de tudo. Também é possível que não volte. Provavelmente jamais saberei o que foi que me aconteceu durante esses dias. - Suas pálpebras se agitaram. - Desculpem-me, senhores. Acho que estou muito fatigado.

- Agora chega, - disse Mrs. McCrae, que se mantivera junto à porta, pronta a intervir se julgasse necessário. E adiantou-se para os dois policiais: - O doutor disse que ele não podia ter aborrecimentos - falou com firmeza.

Os policiais levantaram-se e caminharam para a porta. Mrs. McCrae conduziu-os ao corredor um pouco à maneira de um consciencioso cão pastor. O Cônego murmurou qualquer coisa e o Inspetor-Chefe Davy, que foi o último a passar pela porta imediatamente deu meia volta.

- Que é que houve? - perguntou, mas os olhos do Cônego já estavam fechados.

- Que acha que ele disse? indagou Campbell quando os dois saíam da casa, após recusarem a formal oferta de refrigerantes que lhes fizera Mrs. McCrae. Papai respondeu, pensativo:

- Creio que ele disse "as muralhas de Jerico".

- Que significaria isso?

- Parece coisa da Bíblia - disse Papai.

- Acredita que algum dia a gente venha a saber - perguntou Campbell - como é que esse velhote foi de Cromwell Road até Milton St. John?

- Parece que não receberemos grande ajuda da parte dele - concordou Davy.

- Aquela mulher que conta que o viu no trem, depois do assalto, será que diz a verdade? Será possível que ele esteja envolvido nos roubos? Parece impossível. É um velho respeitável, sob todos os aspectos. Afinal não se pode suspeitar que um Cônego da Catedral de Chadminster esteja envolvido num roubo de trem, pode-se?

- Não - respondeu Papai pensativa. - Não. Assim como não se pode imaginar que o Juiz Ludgrove esteja envolvido num assalto a um banco.

O Inspetor Campbell olhou com curiosidade para o seu superior.

A expedição a Chadminster terminou com uma improfícua visita ao Dr. Stokes.

O Dr. Stokes mostrou-se agressivo, pouco cooperativo e rude:

- Conheço os Wheelings há bastante tempo. Cultivam de certo modo a boa vizinhança, em relação a mim. Apanharam um velho caído na estrada. Não sabiam se estava morto, bêbedo ou doente. Pediram-me para dar uma olhada. Expliquei que ele não estava bêbedo - que era um caso de concussão...

- E tratou dele.

- Absolutamente. Não tratei, nem receitei nem mediquei. Não sou médico... já fui, mas não sou mais... Disse a eles que o que deveriam fazer era telefonar para a polícia. Se telefonaram ou não, não sei. Não é da minha conta. Os dois são meio burros... mas gente boa.

- E o senhor, não pensou em telefonar à polícia?

- Não, não pensei. Não sou médico. O caso não tinha nada que ver comigo. Como simples ser humano, aconselhei que não lhe dessem uísque e que o mantivessem em repouso, estirado, até que a polícia chegasse.

O Dr. Stokes olhou-os ferozmente, e eles, embora a contragosto, tiveram que deixar tudo como estava.

 

 

MR. Hoffman era um homem alto, de sólida robustez. Parecia que fora esculpido em madeira - em teca, de preferência.

Tinha um rosto tão sem expressão que suscitava a pergunta: seria esse homem capaz de pensar... de sentir emoção? Parecia impossível.

Suas maneiras eram corretíssimas.

Ele se ergueu, inclinou-se e estendeu a mão cuneiforme:

- Inspetor-Chefe Davy? Há alguns anos tive o prazer... talvez o senhor nem se lembre...

- Bem que me lembro, Mr. Hoffman. O caso do diamante Aaronberg. O senhor foi testemunha do promotor, ótima testemunha, permita que lhe diga. A defesa não o conseguiu abalar.

- Não me abalo com facilidade - disse Mr. Hoffman gravemente.

A aparência era de quem realmente não se abalava com facilidade.

- Em que posso servi-lo? - continuou Hoffman. - Nenhum problema, espero... Faço questão de estar sempre em boa paz com a polícia. Tenho a maior admiração por sua excelente força policial.

- Não, não há nenhum problema. Apenas gostaríamos que o senhor confirmasse uma pequena informação.

- Terei o maior prazer em ajudá-lo no que puder. Como digo sempre, tenho no mais alto conceito a Força Policial de Londres. Os seus homens são magníficos. íntegros, honestos e justos.

- O senhor me deixa embaraçado - disse Papai.

- Estou às suas ordens. Que é que deseja saber?

- Ia lhe pedir que me desse algumas informações a respeito do Hotel Bertram's,

O rosto de Mr. Hoffman não se alterou. Talvez se pudesse dizer que a sua atitude toda, por um breve momento, se tornara mais estática do que antes - nada mais.

- Hotel Bertram's? - disse ele. A voz era inquiridora, ligeiramente embaraçada. Parecia até que ele nunca ouvira falar do Hotel Bertram's, ou que não conseguia recordar se conhecia ou não um Hotel Bertram's.

- O senhor tem uma certa ligação com o hotel, não tem, Mr. Hoffman?

Mr. Hoffman mexeu com os ombros.

- São tantas coisas! - disse ele. - A gente não se lembra de tudo. Tantos negócios... tantos... que me mantêm ocupadíssimo.

- O senhor atua em muitos campos, sei disso.

- Sim - admitiu Mr. Hoffman com um sorriso desajeitado, - Faço boas colheitas, é isso o que pensa? E por esse motivo acredita que tenho ligações com esse... Hotel Bertram's.

- Eu não devia ter falado em ligação. Na realidade, o senhor é o dono, não é? - disse Papai com bom humor. Desta vez Mr. Hoffman inegavelmente se empertigou.

- Quem lhe contou isso, posso saber? - perguntou em voz baixa.

- Mas é verdade, não é? - falou com animação o Inspetor-Chefe Davy. - Lugar esplêndido, vale a pena ser dono dele, na minha opinião. Creio que o senhor se orgulha de possuí-lo.

- Ah, sim - respondeu Hoffman. - No momento... não me lembro direito... o senhor sabe... - sorriu como que pedindo desculpas - tenho muitos imóveis em Londres. Representam um bom investimento. Se aparece qualquer coisa no mercado, e eu acho que o negócio é bom e há possibilidade de adquiri-lo barato, compro.

- E o Hotel Bertram’s foi vendido barato?

- Como empresa, estava quase falida, - disse Mr. Hoffman abanando a cabeça.

- Bem, mas agora está próspero - observou Papai. - Andei lá outro dia e fiquei impressionadíssimo com a atmosfera da casa. Excelente clientela da velha guarda, ambiente confortável à moda antiga, tudo em perfeita ordem, muito luxo mas sem alarde.

- Eu, pessoalmente, sei muito pouco a respeito desse hotel, - explicou Mr. Hoffman. - Para mim é apenas um emprego de capital, mas creio que vai indo bem.

- Sim, o senhor parece ter lá um gerente de primeira qualidade. Como se chama ele? Humfries? Sim, Humfries.

- Um ótimo sujeito, - disse Mr. Hoffman. - Entrego tudo a ele. Olho só o balanço uma vez por ano, a fim de verificar se tudo está direito.

- Estava cheinho de aristocratas - disse Papai. - Ricos viajantes americanos, também. - Balançou a cabeça, pensativo. - Maravilhosa combinação.

- Diz que esteve lá outro dia? - indagou Mr. Hoffman. - Mas não... oficialmente, espero.

- Nada de mais. Apenas tentava pôr a limpo um pequeno mistério.

- Um mistério? No Hotel Bertram's?

- É o que parece. O caso do Eclesiástico Desaparecido. Poderíamos chamá-lo assim.

- Isso é pilhéria - disse Mr. Hoffman. - É o seu jeito de falar, à maneira de Sherlock Holmes.

- Esse eclesiástico saiu do hotel uma bela tarde e nunca mais foi visto.

- Singular - comentou Mr. Hoffman. - Mas essas coisas acontecem. Lembro-me que há muitos, muitos anos atrás, houve uma grande sensação. O Coronel... deixe-me recordar o nome... Coronel Fergusson, creio, um dos escudeiros da Rainha Mary. Saiu do clube, certa noite, também, e nunca mais ninguém o viu.

- Evidentemente, - disse Papai com um suspiro - muitos desses desaparecimentos são voluntários.

- O senhor sabe muito mais a respeito dessas coisas do que eu, meu caro Inspetor-Chefe - disse Mr. Hoffman. E acrescentou: - Espero que lhe tenham dado toda a assistência no Hotel Bertram’s.

- Não podiam ter sido mais amáveis, - garantiu Papai. - Aquela Miss Gorringe, creio que está com o senhor há bastante tempo.

- Possivelmente. Na verdade sei muito pouco sobre isso. Não tenho nenhum interesse pessoal, o senhor compreende. Aliás... - sorriu de modo apaziguador - fiquei até surpreso ao ver que o senhor sabia que era eu o dono.

Não chegava a ser uma pergunta; mas novamente aparecia uma ligeira inquietude no olhar de Mr. Hoffman. Papai notou-a sem dar a perceber.

- As ramificações que se estendem pela City são como um gigantesco quebra-cabeças - disse ele. - Se eu tivesse que lidar com essas coisas, ficaria maluco. Segundo entendi, uma companhia... Mayfair Holding Trust ou que outro nome tenha... é o proprietário registrado. Outra companhia é proprietária dessa companhia, e assim por diante. No remate de tudo, a verdade é que o hotel pertence ao senhor. Muito simples. E estou certo, não estou?

- Eu e meus colegas diretores estamos, como diria o senhor, atrás disso, é verdade - admitiu Mr. Hoffman com certa relutância.

- Seus colegas diretores. E quem seriam eles? O senhor e, creio eu, um irmão seu?

- Meu irmão Wilhelm é meu sócio nesse negócio. O senhor deve compreender que o Bertram's é apenas parte de uma cadeia de vários hotéis, escritórios, clubes e outros bens que possuímos em Londres.

- Há outros diretores?

- Lord Pomfret, Abel Isaacstein. - A voz de Hoffman adquiriu súbita rispidez. - O senhor precisa realmente saber disso tudo? Só porque está investigando o Caso do Eclesiástico Desaparecido?

Papai abanou a cabeça e parecia pedir desculpas.

- Creio que realmente é só curiosidade. A procura do meu desaparecido Cônego foi que me levou ao Bertram's, mas aí, fiquei... digamos, interessado, se o senhor me entende. Uma coisa às vezes leva a outra, não é?

- Imagino que sim. E agora - sorriu - está satisfeita a curiosidade?

- Quando a gente quer informações, nada como procurar obtê-las da boca do cavalo - respondeu Papai, bem humorado. Ergueu-se. - Resta apenas uma coisa que eu gostaria muito de saber, mas não creio que o senhor me conte.

- O que é, Inspetor-Chefe? - O tom da voz de Hoffman era cauteloso.

- Onde é que o Bertram's recruta o seu pessoal? Formidável! Aquele sujeito, como é que se chama?... Henry. Aquele que parece um arquiduque ou um arcebispo, nem sei bem. De qualquer modo, é o que serve à gente chá e muffins, - uns muffins maravilhosos! Uma experiência inesquecível.

- O senhor gosta de muffim com bastante manteiga, não? - Os olhos de Mr. Hoffman pousaram por um momento com desaprovação, nas rotundidades da silhueta de Papai.

- O senhor bem vê que eu gosto - disse Papai. - Bom, não devo mais tomar o seu tempo. O senhor certamente está ocupadíssimo com operações de trustes e monopólios, ou coisa parecida.

- Ah, para o senhor é divertido fingir que ignora todas essas coisas. Não, não estou muito ocupado. Não deixo que os negócios me absorvam demais. Meus gostos são singelos, vivo simplesmente, tenho meus lazeres, cultivo rosas, e sou muito dedicado à minha família.

- É a vida ideal - comentou Papai. - Quisera eu viver assim.

Mr. Hoffman sorriu e ergueu-se pesadamente para apertar a mão do visitante.

- Espero que encontre logo o seu Eclesiástico Desaparecido.

- Ah, isso não me preocupa mais. Infelizmente não fui bastante claro. O Cônego foi encontrado... o que não deixa de ser uma decepção. Sofreu um desastre de automóvel e teve concussão... apenas isso.

Papai caminhou para a porta, depois voltou-se e perguntou :

- A propósito, Lady Sedgwick está entre os diretores da sua companhia?

- Lady Sedgwick - Hoffman hesitou um instante. - Não. Por que deveria estar?

- Bem, boatos que a gente ouve... Acionista?

- Eu... sim.

- Bom, adeus, Mr. Hoffman. Muitíssimo obrigado. Papai voltou à Scotland Yard e foi direto ao escritório do Comissário-Assistente.

- Os dois irmãos Hoffman é que estão por trás do Hotel Bertram's... financeiramente.

- O quê? Aqueles canalhas? - perguntou Sir Ronald.

- Sim.

- Então mantinham tudo no maior segredo.

- Sim... e Robert Hoffman não gostou da nossa descoberta. Teve um choque.

- O que foi que ele disse?

- A nossa conversa foi muito formal e polida. Ele tentou, meio disfarçadamente, saber como eu tinha desvendado o mistério.

- E você não lhe deu essa informação, suponho.

- Claro que não.

- Que desculpa deu você para ir vê-lo?

- Não dei desculpa nenhuma - respondeu Papai.

- E ele não achou esquisito?

- Espero que sim. No fim de contas, creio que a jogada foi boa, Sir Ronald.

- Se os Hoffmans estão por trás disso tudo, muita coisa está explicada. Eles nunca se envolvem pessoalmente em nada irregular... ah, não! Não organizam o crime... contentam-se em financiá-lo!

- Wilhelm, na Suíça, cuida do lado bancário. Era ele quem comandava aquelas quadrilhas de moeda estrangeira, logo depois da guerra... nós sabíamos de tudo, mas não podíamos provar nada. Os dois irmãos controlam um monte de dinheiro, e usam esse capital para financiar toda espécie de negócios... alguns lícitos, outros não. Mas são cuidadosos, conhecem todos os pulos de gato do ofício. A corretagem de diamantes de Robert é bastante honesta... mas o quadro é sugestivo: diamantes, interesses em bancos e imóveis... clubes, fundações culturais, edifícios de escritórios, restaurantes, hotéis... tudo aparentemente de outros donos.

- Você acha que é Hoffman quem planeja esses assaltos organizados?

- Não, acho que eles lidam exclusivamente com finanças. Temos que procurar o nosso planejador em outro lugar. Em alguma parte, um cérebro de primeira categoria, trabalha sem parar.

 

 

Repentinamente, naquela noite, o nevoeiro descera sobre Londres. O Inspetor-Chefe Davy levantou a gola do casaco e dobrou a esquina, seguindo por Pond Street. Andando devagarinho como alguém que estivesse pensando em outra coisa, não parecia ter um objetivo definido, mas quem o conhecesse bem, compreenderia que a mente dele estava alerta. Avançava como um gato que está à espreita do momento de saltar sobre a presa.

Pond Street estava silenciosa naquela noite. Poucos automóveis; o fog, tênue a princípio, sumira quase por completo e depois voltara mais espesso. O barulho do tráfego em Park Lane reduzira-se ao nível de ruído de uma estrada suburbana. A maioria dos ônibus deixara de circular. Apenas de vez em quando passava um ou outro carro com obstinado otimismo. O Inspetor-Chefe Davy entrou num beco, foi até ao fim dele, e voltou. Tornou a dar volta, primeiro para um lado, depois para outro, aparentemente sem destino, - mas tinha um destino certo, sim. Na verdade, a sua ronda felina levava-o a descrever um círculo em torno de determinado edifício: o Hotel Bertram's. Verificava cuidadosamente o que havia a leste, do hotel, a oeste, ao sul e ao norte. Examinou os carros parados à beira da calçada, examinou os carros que estavam no beco. Dedicou especial atenção a um pátio de estacionamento: Um carro em particular o interessou, e ele parou. Franziu os lábios e disse então à meia-voz: "Então você está aqui de novo, belezinha". Certificou-se do número e balançou a cabeça, satisfeito: "Esta noite você é FAN 2266" curvou-se, correu os dedos de leve sobre a placa, e de novo balançou a cabeça: "Fizeram um belo trabalho", murmurou.

Continuou a andar, saiu no outro extremo do pátio, dobrou à direita, outra vez à direita, e viu-se novamente em Pond Street, a cinqüenta metros da entrada do Hotel Bertram's. Tornou a parar, admirando as bonitas linhas de um outro carro de corridas.

- Você também é uma beleza - disse o Inspetor-Chefe Davy. - Da última vez que o vi, você tinha na placa esse mesmo número. Tenho a impressão de que o seu numero sempre é o mesmo. E isso quer dizer...- interrompeu-se - será mesmo? - resmungou. Ergueu os olhos para onde devia estar o céu. - O nevoeiro está ficando cada vez mais espesso - disse de si para si.

Do lado de fora do Bertram's, o porteiro irlandês, de pé, sacudia os braços para diante e para trás com certa violência, a fim de se aquecer. O Inspetor-Chefe Davy lhe deu boa noite:

- Boa noite para o senhor também. Que tempo horrível.

- Sim. Acho que hoje uma pessoa só sai por obrigação, A porta de vaivém abriu-se: uma senhora de meia-idade saiu e parou incerta no degrau.

- Quer um táxi, madame?

- Santo Deus! Eu pretendia ir a pé.

- Eu, se fosse a senhora, não fazia isso. O nevoeiro está muito feio. Mesmo num táxi não é fácil.

- Acha que pode me arranjar am táxi? - indagou a mulher, em dúvida.

- Farei o possível. Agora vá lá pra dentro e fique perto da lareira, que eu irei avisá-la quando conseguir um táxi. - A voz do porteiro mudara, assumindo um tom persuasivo. - Aliás, a menos que seja absolutamente necessário, se eu fosse a senhora não sairia à rua esta noite.

- Valha-me Deus! Talvez o senhor tenha razão. Alguns amigos estão me esperando em Chelsea. Não sei. Pode ser muito difícil voltar. Que é que o senhor acha?

Michael Gorman sugeriu, com firmeza:

- Se eu fosse a senhora, madame, telefonava para os amigos. Não fica bem a uma senhora sair para a rua numa noite de nevoeiro como esta.

- Bem... na verdade... sim, talvez o senhor tenha razão.

A mulher tornou a entrar no hotel.

- Tenho que cuidar delas - explicou Michael Gorman, virando-se para Papai. - Uma dessas, a coisa mais fácil do mundo é lhe tomarem a bolsa. Imagine! Sair a esta hora da noite, nesse nevoeiro, e andar a pé por Chelsea ou West Kensington, ou por qualquer outra parte que lhe dê na telha!

- Pelo que vejo, você tem bastante experiência em tratar com senhoras idosas - disse Davy.

- Ah, tenho sim. Esse hotel é para elas o lar fora do lar, benza-as Deus. E o senhor? Será que deseja um táxi?

- Mesmo que eu quisesse, não creio que você pudesse me arranjar um - disse Papai. - Não há sinal deles por aqui. E não os censuro por isso.

- Ah, talvez eu possa lhe arranjar um. Ali na esquina há um lugar onde em geral os motoristas estacionam enquanto tomam um traguinho pára espantar o frio.

- Um táxi não me serve - disse Papai com um suspiro, e apontou com o polegar para o Hotel Bertram’s. - Preciso ir lá dentro. Tenho de fazer um trabalho.

- É mesmo? Ainda o Cônego desaparecido?

- Não é bem isso. Ele já foi encontrado.

- Encontrado? - O porteiro olhou-o espantado. - Encontrado onde?

- Por aí, em estado de choque em conseqüência de um acidente.

- Ah, não se podia esperar outra coisa dele. Provavelmente atravessou a rua sem olhar.

- Essa é a conclusão que se tira - disse Papai.

Fez um sinal com a cabeça, empurrou a porta e entrou no hotel. Naquela noite não havia muita gente no salão.

Avistou Miss Marple, sentada numa poltrona ao pé da lareira, e Miss Marple o viu. Mas não deu mostras de o reconhecer. Papai caminhou até à recepção. Miss Gorringe, como de costume, ocupava-se com os livros de registro. Mas pareceu ao Inspetor-Chefe que ela, ao vê-lo, ficara um pouco perturbada. Embora fosse uma reação muito rápida, não passou despercebida a Davy.

- Lembra-se de mim, Miss Gorringe? - disse ele. - Vim aqui outro dia.

- Sim, claro que me lembro, Inspetor-Chefe. Quer mais alguma informação? Deseja ver Mr. Humfries?

- Não, obrigado. Acho que não será necessário. Gostaria de dar mais uma olhada no seu registro de hóspedes, se fosse possível.

- Naturalmente. - E Miss Gorringe empurrou para ele o livro.

Davy abriu-o e foi olhando lentamente as páginas. Dava a Miss Gorringe a impressão de um homem que procurava um determinado registro. Na verdade, não era isso o que acontecia. Papai possuía uma habilidade aprendida desde cedo e convertida a essa altura numa verdadeira arte. Era capaz de recordar nomes e endereços com memória quase fotográfica. Essa lembrança permanecia com ele durante vinte e quatro ou mesmo quarenta e oito horas. Afinal Davy sacudiu a cabeça, fechou o livro e devolveu-o a Miss Gorringe.

- O Cônego Pennyfather não apareceu mais por aqui - disse ele num tom despreocupado.

- O Cônego Pennyfather?

- Sabe que ele foi encontrado?

- Não. Ninguém me disse nada. Onde?

- Numa aldeia. Acidente de automóvel, parece. Mas não nos comunicaram. Algum bom samaritano o recolheu e cuidou dele.

- Oh, estimo muito saber disso. Muito. Eu estava preocupada com ele.

- Os amigos dele também. Na verdade, eu estava procurando ver se um desses amigos estaria aqui agora. Arcediago... Arcediago... não consigo recordar o nome dele, mas se o visse escrito reconheceria.

- Tomlinson? - disse Miss Gorringe tentando ajudar. - É esperado aqui na próxima semana. Vem de Salisbury.

- Não, não é Tomlinson. Bem, não importa. - Deu meia volta.

O silêncio era quase total na sala.

Um ascético cinqüentão lia uma tese muito mal datilografada e de vez em quando escrevia um comentário na margem do papel, numa letra tão ruim que era quase ilegível. E cada vez que fazia isso, sorria com avinagrada satisfação.

Havia um ou dois casais antigos, que pouca necessidade sentiam de conversar. De vez em quando, duas ou três pessoas reuniam-se para falar do tempo e discutiam inquietas como é que elas ou suas famílias conseguiriam chegar aonde pretendiam ir.

- Telefonei e pedi a Susan que não viesse de carro... a Ml é tão perigosa nos nevoeiros...

- Dizem que nas Midlands está mais claro...

O Inspetor-Chefe Davy prestava atenção nas pessoas que passavam. Sem pressa e sem nenhum propósito aparente, alcançou o seu objetivo.

Miss Marple, sentada perto da lareira, viu-o aproximar-se.

- Então ainda está aqui, Miss Marple. Estimo muito.

- Vou embora amanhã - disse ela.

Esse fato, de certo modo, estava implícito na sua atitude. Sentara-se bem ereta, sem se reclinar, tal como a gente se senta numa sala de espera de aeroporto ou de estrada de ferro. A bagagem - Davy tinha certeza - devia estar arrumada, faltando apenas os objetos de toilette e a roupa de dormir.

- É o fim das minhas férias de quinze dias - explicou ela.

- Aproveitou bem, espero.

Miss Marple não respondeu imediatamente.

- De certo modo... sim... - Fez uma pausa.

- E de outro modo não?

- É difícil explicar o que quero dizer...

- Não está a senhora, talvez, muito perto do fogo? Está um pouco quente aqui. Não quer ir sentar-se... naquele canto, talvez?

Miss Marple olhou para o canto indicado, depois olhou para o Inspetor-Chefe Davy.

- Acho que o senhor tem razão - disse ela.

Ele lhe ofereceu a mão, apanhou a bolsa e o livro dela, e a instalou no canto sossegado que escolhera.

- Está bem assim?

- Perfeito.

- Sabe por que sugeri a mudança de lugar?

- Achou... bondosamente... que ali perto do fogo estava quente demais para mim. Além disso, não há ninguém aqui para escutar a nossa conversa.

- Terá a senhora alguma coisa que me queira contar, Miss Marple?

- Mas por que pensou isso?

- O seu jeito era de quem tinha qualquer coisa para me contar.

- Lamento tê-lo demonstrado assim tão claramente - disse Miss Marple. - Não era esta a minha intenção.

- Bem, de que se trata?

- Não sei se deva dizer. Quero que o senhor acredite, Inspetor, que não gosto de me intrometer. Sou contra intromissões. Intromissões, mesmo bem intencionadas, podem causar grandes males.

- Então é isso? Compreendo. Sim, é um problema sério para a senhora.

- Às vezes a gente vê pessoas fazendo coisas que parecem imprudentes... até mesmo perigosas. Mas será que se tem o direito de interferir? Em geral, não, penso eu.

- A senhora está se referindo ao Cônego Pennyfather?

- O Cônego Pennyfather? - Miss Marple pareceu muito surpreendida. - Não. Oh, Senhor meu, não, o assunto não tem nada a ver com ele. É sobre... uma moça.

- Uma moça, é? E a senhora acha que eu posso ajudar?

- Não sei - respondeu Miss Marple. - Não sei mesmo. Mas estou preocupada, muito preocupada.

Papai não insistiu. Quedou-se ali sentado, enorme, contente, o ar um pouco estúpido. Não havia pressa.

Ela se mostrara disposta a ajudá-lo, e ele estava pronto a fazer o possível para auxiliá-la. Não estava particularmente interessado, é certo. Mas, por outro lado, nunca se sabia...

- A gente lê nos jornais - disse Miss Marple em voz baixa e clara - essas notícias dos processos que passam pelos tribunais... jovens, crianças ou moças "necessitadas de cuidado e proteção”. É só uma frase do jargão forense, me parece, mas bem que pode significar uma coisa real.

- Essa moça que a senhora mencionou... acha que ela está precisando de cuidado e proteção?

- Acho, sim.

- Sozinha no mundo?

- Não. - disse Miss Marple. - Nada disso, muito pelo contrário, se posso falar assim. Segundo todas as aparências, ela é fortemente protegida, muito bem cuidada.

- Parece interessante - disse Papai.

- Ela estava hospedada aqui no hotel, com uma tal de Mrs. Carpenter, creio. Olhei o registro para ver o nome. A moça chama-se Elvira Blake.

Papai ergueu os olhos com viva expressão de interesse.

- Uma garota adorável. Bem novinha e, corno eu já disse, muito protegida. O tutor dela é um certo Coronel Luscombe, homem bem educado, encantador. Idoso, é claro, e receio que terrivelmente inocente.

- O tutor ou a moça?

- O tutor - replicou Miss Marple. - A moça, não sei. Mas creio que ela está em perigo. Encontrei-a por acaso em Battersea Park. Sentada com um rapaz numa casa de chá.

- Ah, então é isso, não é? - disse Papai. - Um indesejável, suponho. Beatnik... vigarista... bandido...

- Um rapaz muito bonito - atalhou Miss Marple. - Não muito moço; trinta e tantos anos, o tipo do homem que eu diria que é muito atraente para as mulheres, mas a cara dele não me engana. Cruel, predatória, cara de gavião.

- Talvez não seja tão ruim quanto parece - disse Papai num tom apaziguador,

- Pelo contrário, é pior do que parece. Estou convencida disso. Dirige um grande carro de corridas.

Papai levantou os olhos rapidamente.

- Carro de corridas?

- Sim. Uma vez ou duas, vi-o estacionado perto deste hotel.

- A senhora não se recorda do número desse carro, recorda-se?

- Recordo sim. FAN 2266. Eu tinha uma prima que gaguejava - explicou Miss Marple - por isso me lembro do número.

Davy parecia intrigado.

- Sabe quem é? - perguntou Miss Marple.

- Para falar a verdade, sei - respondeu o Inspetor-Chefe lentamente. - Meio francês, meio polaco. Corredor muito conhecido, foi campeão mundial três anos atrás. Chama-se Ladislaus Malinowski. E a senhora tem toda razão em algumas de suas opiniões a respeito dele. É homem de má reputação, no que se refere a mulheres. Quero dizer, não é companhia adequada para uma mocinha. Mas não é fácil tomar alguma providência num caso desses. Suponho que ela o encontre às escondidas, não?

- Com toda a certeza.

- A senhora tentou falar com o tutor?

- Não o conheço - respondeu Miss Marple. - Só falei com ele uma vez, quando fui apresentada por uma amiga comum. E não me agrada a idéia de ir procurá-lo para contar mexericos. Pensei que talvez o senhor pudesse fazer alguma coisa,

- Posso tentar, - disse Papai. - Aliás, creio que a senhora gostará de saber que o seu amigo Cônego Pennyfather afinal apareceu.

- Não diga! - Miss Marple mostrou-se animada. - Onde?

- Num lugar chamado Milton St. John.

- Que coisa estranha! Que é que ele estava fazendo lá? Ele sabia?

- Aparentemente... - o Inspetor-Chefe acentuou a palavra - foi vítima de um acidente.

- Que espécie de acidente?

- Atropelado por um carro... sofreu concussão... ou então, naturalmente levou uma paulada na cabeça.

- Ah, compreendo. - Miss Marple pensou um pouco na questão. - Ele mesmo não sabe de nada?

- Ele diz - novamente o Inspetor-Chefe acentuou a palavra - que não sabe de nada.

- Muito curioso.

- Não é? A última coisa de que ele se lembra é de ter ido de táxi para a Estação Aérea de Kensington.

Miss Marple abanou a cabeça, perplexa.

- Sei que isso acontece, em casos de concussão - murmurou. - E ele não disse nada... de útil?

- Resmungou qualquer coisa sobre as muralhas de Jerico.

- Josué? - arriscou Miss Marple - ou arqueologia... escavações? ou... lembro-me de uma peça antiga, da autoria de Mr. Sutro, creio...

- E durante esta semana toda, ao norte do Tâmisa, os cinemas Gaumont passaram As Muralhas de Jerico, com Olga Radbourne e Bart Levine - disse Papai.

Miss Marple olhou para ele, desconfiada.

- Poderia ter ido ver esse filme em Cromwell Road. Poderia ter saído do cinema às onze horas, e voltado para cá... só que, nesse caso, alguém o teria visto... seria muito antes da meia-noite...

- Tomou o ônibus errado - sugeriu Miss Marple. - Qualquer coisa assim...

- Digamos que ele chegou aqui depois da meia-noite - falou Papai - poderia ter subido para o quarto sem que ninguém o visse... Mas se foi assim, que é que aconteceu então... e por que teria saído novamente três horas depois?

Miss Marple não sabia o que dizer.

- A única idéia que me ocorre é... oh!

Deu um salto ao ouvir um estampido vindo da rua.

- O escape de algum carro - disse Papai, tranqüilizador.

- Lamento estar tão sobressaltada... estou nervosa esta noite... esse pressentimento que a gente tem...

- De que alguma coisa vai acontecer? Acho que não precisa se preocupar.

- Jamais gostei do fog.

- Eu queria lhe dizer - falou o Inspetor-Chefe Davy - que a senhora me deu uma grande ajuda. As coisas que observou aqui... coisas pequeninas... somaram-se umas às outras.

- Então, havia mesmo alguma coisa que não andava bem neste hotel?

- Tudo andava e anda mal aqui. Miss Marple suspirou.

- A princípio parecia maravilhoso... inalterado, compreende?... como uma volta ao passado... àquela parte do passado que a gente ama e recorda com alegria.

Fez uma pausa.

- Mas na verdade não era nada disso. Verifiquei (acho, aliás, que já sabia disso antes), que a gente não pode nunca voltar atrás, que não deve tentar voltar atrás... Que a essência da vida é andar para diante. A vida é na realidade uma rua de mão única, não é?

- Mais ou menos - concordou Papai.

- Lembro-me - disse Miss Marple afastando-se do seu tema principal de maneira característica - lembro-me de uma viagem que fiz a Paris, com minha mãe e minha avó, e de que fomos tomar chá no Hotel Elysée. E minha avó, olhando em volta, disse de repente: "Clara, creio que sou a única mulher aqui que está de touca!" E era mesmo! Quando chegamos em casa, ela embrulhou todas as suas toucas e suas capas enfeitadas de contas, e mandou tudo...

- Para um bazar de caridade? - perguntou Papai com simpatia.

- Não. Ninguém quereria aquilo nem num bazar de caridade. Mandou tudo para uma companhia teatral, onde o presente foi apreciadíssimo. Mas deixe-me ver... - Miss Marple retomou o fio da conversa - Onde é que eu estava?

- Dando sua impressão sobre este hotel.

- Ah, sim. Parece normal... mas não é. Tudo misturado... gente real e gente que não é real. Nem sempre se pode distinguir quem é real e quem não é.

- Gente que não é real? Como assim?

- Há aqui oficiais reformados, e há também homens que parecem oficiais reformados mas que nunca estiveram no exército. Eclesiásticos' que não são eclesiásticos. E almirantes e comandantes que nunca estiveram na marinha. Minha amiga Selina Hazy... a princípio eu me divertia com a mania que ela tem de reconhecer pessoas (o que é muito natural), e que a levava a cometer freqüentes enganos, já que as pessoas não eram quem ela pensava que fossem. Mas isso aconteceu tantas vezes. ,. que eu fiquei com a pulga atrás da orelha. Até mesmo Rose, a camareira... tão boazinha... mas eu comecei a pensar que talvez ela também não fosse real...

- Se lhe interessa saber, ela é uma ex-atriz. Boa atriz. Mas ganha aqui um salário melhor do que jamais ganhou no palco.

- Mas... por quê?

- Principalmente para fazer parte do cenário. Pode ser também que não seja só isso.

- Ainda bem que estou de saída - observou Miss Marple com um leve arrepio. - Antes que aconteça qualquer coisa.

O Inspetor-Chefe Davy olhou-a com curiosidade: - Que é que a senhora espera que aconteça?

- Alguma desgraça - disse Miss Marple.

- Desgraça é uma palavra muito forte...

- Acha que é muito melodramática? Mas tenho certa experiência... Parece que estive... tantas vezes... em contato com crimes de morte...

- Crimes de morte? - O Inspetor-Chefe Davy abanou a cabeça. - Não estou suspeitando de crimes de morte. Vejo apenas a possibilidade de apanhar alguns criminosos extraordinariamente inteligentes...

- Não é a mesma coisa. Matar... o desejo de matar... é bem diferente. É... como direi?... é um desafio a Deus.

Ele fitou-a e balançou a cabeça suavemente, tranqüilizadoramente.

- Não haverá nenhum crime de morte.

Um forte estampido, mais alto que o primeiro, soou lá fora. E foi seguido por um grito e outro estampido.

O Inspetor-Chefe Davy já estava de pé, movendo-se com agilidade surpreendente num homem tão corpulento. Em poucos segundos atravessara a porta de entrada e estava na rua.

 

Os gritos - gritos de mulher - varavam a névoa com uma nota de terror. O Inspetor-Chefe Davy deitou a correr por Pond Street, na direção dos gritos. Avistou vagamente um vulto feminino encostado a uma grade. Numa dúzia de passadas alcançou a mulher. Ela usava um longo casaco claro de peles, e seus brilhantes cabelos louros pendiam de ambos os lados do rosto. Por um instante, Davy julgou reconhecê-la, mas logo depois viu que era apenas uma mocinha. Estendido na calçada, aos pés da jovem, estava o corpo de um homem, fardado. O Inspetor-Chefe Davy o reconheceu. Era Michael Gorman.

Quando Davy se aproximou, a moça agarrou-se a ele, trêmula da cabeça aos pés, gaguejando retalhos de frases:

- Alguém tentou me matar... alguém... atiraram em mim... se não fosse ele... - e apontou para o vulto imóvel a seus pés. - Ele me empurrou para trás e postou-se na minha frente... aí veio o segundo tiro... e ele caiu... Salvou minha vida. Acho que está ferido... muito ferido.,.

O Inspetor-Chefe Davy dobrou um joelho e sacou do bolso a lanterna. O alto porteiro irlandês tombara como um soldado. O lado esquerdo da sua túnica mostrava ama mancha úmida que se tornava cada vez mais úmida à medida que o sangue se embebia no pano. Davy soergueu-lhe uma pálpebra, apalpou-lhe o pulso. Afinai levantou-se.

- Acertaram em cheio - disse ele.

A moça soltou um grito agudo, - Quer dizer que ele está morto? Oh, não, não! Ele não pode estar morto!

- Quem foi que atirou na senhora?

- Não sei... Eu tinha deixado o meu carro na esquina e ia tateando, pegada às grades... ia para o Hotel Bertram's. Então, de repente ouvi um tiro e uma bala passou raspando pelo meu rosto. Aí.  ele... o porteiro do Bertram’s... veio correndo peia rua na minha direção, e me empurrou para detrás dele. Ouvi então outro tiro, creio... creio que quem atirou devia estar escondido ali naquela área...

O Inspetor-Chefe Davy olhou para onde ela apontava. Naquele lado do Hotel Bertram's havia uma área antiga, abaixo do nível da rua, com um portão ao qual se chegava descendo alguns degraus. Como o portão dava apenas para uns quartos de depósito, era pouco usado. Mas um homem poderia esconder-se ali com grande facilidade.

- A senhora não viu o homem?

- Não vi direito. Passou por mim como uma sombra. O fog estava muito espesso.

Davy balançou a cabeça e a moça começou a chorar histericamente.

- Mas quem haveria de querer me matar? Por que querem me matar? Já é a segunda vez. Não compreendo... por quê?

Com um braço em volta da moça, o Inspetor-Chefe Davy remexeu no bolso com a outra mão.

As notas estridentes de um apito de polícia penetraram no nevoeiro.

 

Na sala de entrada do Hotel Bertram's, Miss Gorringe levantara bruscamente os olhos do balcão.

Um ou dois hóspedes fizeram a mesma coisa. Os mais velhos e mais surdos continuaram impassíveis.

Henry, que ia depositando numa mesa um copo de conhaque velho, parou no meio, com o copo na mão.

Miss Marple empertigou-se, segurando os braços da poltrona. Um almirante reformado disse em tom categórico:

- Acidente! Colisão de carros no fog com certeza.

As portas de vaivém escancararam-se, dando passagem a um enorme policial, que parecia muito mais volumoso do que se podia imaginar.

Vinha amparando uma moça, metida num casaco de peles de cor clara. Ela parecia quase incapaz de andar. O policial, um pouco embaraçado, olhou em torno como se pedisse ajuda.

Miss Gorringe saiu de trás do balcão e aproximou-se, preparada para enfrentar a situação. Mas nesse momento o elevador desceu. Dele saiu uma mulher alta, e a moça, libertando-se do apoio que lhe dava o policial, atravessou a sala numa carreira frenética.

- Mamãe! - gritou ela. - Oh mamãe, mamãe... - e atirou-se, soluçando, nos braços de Bess Sedgwick.

 

 

O inspetor-chefe Davy reclinou-se na cadeira e olhou para as duas mulheres sentadas diante dele. Passava da meia-noite. Funcionários da polícia tinham chegado e partido. Haviam aparecido médicos, técnicos em datiloscopia, uma ambulância para remover o cadáver; e agora tudo se reduzia àquela única saleta reservada aos trabalhos da lei pelo Hotel Bertram's.

O Inspetor-Chefe Davy ocupava um dos lados da mesa. Bess Sedgwick e Elvira, o outro lado. Perto da parede sentava-se discretamente um policial, escrevendo. O Sargento-detetive Wadell estava numa cadeira junto à porta.

Papai fitava pensativo as duas mulheres. Mãe e filha. Notava entre ambas uma forte semelhança superficial. Compreendia por que, dentro do fog, tomara por um momento Elvira Blake por Bess Sedgwick. Mas agora, olhando para as duas, atentava mais para os pontos de diferença do que para os pontos de semelhança. Elas não se pareciam senão no colorido; e, contudo, persistia a impressão de que tinha ali a versão negativa e a versão positiva da mesma personalidade. Tudo em Bess Sedgwick era positivo. Sua vitalidade, sua energia, sua atração magnética. Davy admirava Lady Sedgwick. Sempre a admirara. Admirara lhe a coragem e sempre se emocionara com as suas façanhas; lendo os jornais de domingo muitas vezes dissera: "Desta vez ela não consegue se safar" e invariavelmente ela se safava! Julgara impossível que ela chegasse ao fim da jornada, e ela chegara ao fim da jornada. Admirava sobretudo a indestrutibilidade daquela mulher. Ela sofrerá um acidente aéreo, várias batidas de automóvel, por duas vezes caíra desastrosamente do cavalo, - mas ao fim de tudo, estava ilesa. Vibrante, vivaz, uma personalidade que não se poderia ignorar. Algum dia, é claro, seria vencida: toda mágica termina tendo um fim. E os olhos de Davy iam da filha à mãe. Davam-lhe que pensar, as duas. Muito lhe davam que pensar.

Em Elvira Blake tudo era dirigido para dentro. Bess Sedgwick atravessara a vida impondo-lhe a sua vontade. Elvira, supunha ele, tinha maneira diversa de enfrentar a vida. Submetia-se. Obedecia. Sorria concordando, mas, por trás, escapulia por entre os dedos de quem pensava prendê-la. "Sonsa", dizia consigo Davy, fazendo uma avaliação geral dos fatos. "IN ao sabe agir de outro modo. É incapaz de enfrentar as coisas, de se impor. E há de ser por isso que as pessoas que cuidam dela jamais tiveram a mínima idéia do seu real procedimento".

Ele procurava adivinhar o que estaria Elvira fazendo ao andar furtivamente pela rua, em direção ao Hotel Bertram's tão tarde numa noite de nevoeiro. Iria fazer-lhe essa pergunta, sem rodeios. Provavelmente a resposta que iria receber não seria a verdadeira. "É assim, pensou ele, que a pobre menina se defende." Viera até ali para se encontrar com a mãe, ou para procurar a mãe? Qualquer dessas hipóteses era perfeitamente possível, mas ele não acreditava que fosse essa a explicação real. Nem por um momento. Pensava, em vez disso, no grande carro esporte escondido na esquina, o carro com a chapa FAN 2266. Ladislaus Malinowski devia andar pelos arredores, já que o carro dele estava ali.

- Bem - disse Papai dirigindo-se a Elvira, na sua maneira mais bondosa e paternal - como está se sentindo agora?

- Estou muito bem - respondeu Elvira.

- Ótimo. Gostaria que me respondesse a algumas perguntas, se lhe fosse possível, porque comumente o tempo é importante nesses casos. Dois tiros lhe foram dirigidos e um homem foi morto. Nós queremos obter o máximo de pistas possível que nos levem à pessoa que o matou.

- Vou dizer ao senhor o que sei, mas tudo aconteceu tão de repente! E a gente não pode ver nada dentro do nevoeiro. Não tenho a mínima idéia de quem pode ter sido... nem que aspecto tinha. Isso é que torna tudo tão assustador.

- A senhorita disse que aquela era a segunda vez que tentavam matá-la. Quer dizer com isso que já haviam atentado antes contra a sua vida?

- Eu disse isso? Não me lembro. - Os olhos de Elvira mexiam-se, inquietos. - Não creio ter dito isso.

- Ah, mas disse, sabe que disse - insistiu Papai.

- Creio que era só... só histeria minha.

- Não - replicou Davy. - Não creio que fosse. Creio que a senhorita queria dizer aquilo mesmo que estava dizendo.

- Com certeza eu estava imaginando coisas - teimou Elvira; seus olhos vagueavam, de novo.

Bess Sedgwick mexeu-se e falou com calma:

- O melhor é você contar a ele, Elvira.

Elvira atirou à mãe um olhar rápido, inquieto. Papai tranqüilizou-a:

- Não precisa se preocupar. Nós da polícia sabemos perfeitamente que as moças jamais contam tudo às mães ou aos tutores. Não levamos essas coisas muito a sério, mas precisamos conhecê-las, porque, veja bem, ajudam.

Bess Sedgwick disse:

- Foi na Itália?

- Foi - respondeu Elvira.

Papai interveio: - Foi onde a senhorita estudou, não? escola ou curso de aperfeiçoamento, ou que outro nome dêem a isso hoje em dia.

- Foi. Eu estive internada na escola da Contessa Martinelli. Éramos umas dezoito ou vinte moças.

- E a senhorita pensa que alguém tentou matá-la. Como foi isso?

- Bem, mandaram-me uma grande caixa de chocolates e bombons; com a caixa vinha um cartão, escrito em italiano, numa letra muito enfeitada. Dizia, naquele jeito deles: "À belíssima Signorina", ou coisa parecida. E minhas amigas e eu... bem... rimos um pouco e ficamos imaginando quem teria mandado o presente.

- Veio pelo correio?

- Não. Não poderia ter vindo pelo correio. Simplesmente apareceu no meu quarto... alguém deve tê-lo posto lá.

- Compreendo. Provavelmente esse alguém subornou um dos criados. E naturalmente a senhorita não contou nada à tal Contessa não-sei-de-quê.

Um leve sorriso apareceu no rosto de Elvira.

- Não, não. Claro que não contamos. De qualquer forma, abrimos a caixa, e os chocolates eram deliciosos; de diversas qualidades, mas havia alguns de creme de violetas. É um tipo de chocolate que tem por cima uma violeta cristalizada. Meus prediletos. De forma que logo de saída comi um ou dois dos de creme de violetas. E mais tarde, à noite, passei muito mal. Não pensei que fossem os chocolates, pensei que talvez fosse alguma coisa que eu houvesse comido no jantar.

- Ninguém mais adoeceu?

- Não. Só eu. Bem, passei muito mal, mas no fim do dia seguinte já me sentia melhor. Uns dois dias depois comi outro dos mesmos chocolates e aconteceu a mesma coisa. Conversei com Bridget a respeito... Bridget é a minha melhor amiga. Examinamos os chocolates e descobrimos que os de creme de violetas tinham um buraquinho no fundo, por onde o haviam enchido novamente; pensamos por isso que alguém pusera veneno dentro, e só estavam envenenados os de creme de violetas para que eu fosse a única a tomar o veneno.

- Ninguém mais ficou doente?

- Não.

- E assim, provavelmente ninguém mais comeu os que tinham creme de violetas?

- Sim, creio que ninguém comeu. O senhor compreende, o presente era para mim, e elas sabendo que eu gostava dos chocolates de violetas, deixavam todos para mim.

- Mas esse camarada, fosse ele quem fosse, assumiu um risco sério - disse Papai. - O pessoal todo poderia ter sido envenenado.

- É absurdo - disse asperamente Lady Sedgwick. - Completamente absurdo. Nunca soube de nada tão estúpido.

O Inspetor-Chefe Davy fez um ligeiro gesto com a mão. - Por favor - disse ele, voltando-se em seguida para Elvira. - Isso me parece muito interessante, Miss Blake. E apesar de tudo, não contou nada à Contessa?

- Não, não contamos. Ela teria feito um barulho danado.

- E que foi que fizeram com os chocolates?

- Atiramos fora. Eram uns chocolates maravilhosos - acrescentou com um arzinho de pena.

- A senhorita não procurou descobrir quem os tinha enviado?

Elvira pareceu embaraçada.

- Bem, o senhor compreende, pensei em Guido.

- Sim? - disse animado o Inspetor-Chefe Davy. - E quem é Guido?

- Oh, Guido... - Elvira deteve-se, olhou para a mãe.

- Não seja tola - disse Bess Sedgwick. - Fale ao Inspetor-Chefe sobre Guido, seja ele quem for. Na sua idade, toda mocinha tem um Guido em sua vida. Encontrou-o lá, não?

- Sim. Quando fomos à ópera. Ele falou comigo no teatro. É muito simpático, atraente. Costumava vê-lo às vezes quando íamos às aulas. Ele me passava uns bilhetinhos.

- E eu imagino - interrompeu Bess Sedgwick - que você inventou uma porção de mentiras, entrou em combinação com algumas amigas e conseguiu sair e encontrar-se com ele, não foi?

Elvira parecia aliviada por aquela abreviação da confissão.

- Foi. Bridget e eu às vezes saíamos juntas. E às vezes Guido conseguia...

- Qual é o sobrenome de Guido?

- Não sei - respondeu Elvira. - Ele nunca me disse. O Inspetor-Chefe Davy sorriu para a moça,

- Quer dizer que a senhorita não nos dirá? Não importa. Provavelmente poderemos descobrir como é que ele se chama, mesmo sem o seu auxílio, se a informação for necessária. Mas por que foi que a senhorita pensou que o rapaz, que presumivelmente lhe queria bem, desejava envenená-la?

- Oh, porque ele costumava fazer ameaças desse tipo. Isto é, quando brigávamos, o que de vez em quando acontecia. Ele trazia alguns amigos, e eu fingia gostar mais dos amigos do que dele, e ele ficava furioso. Dizia que era melhor eu ter cuidado com o que fazia. Não podia deixá-lo de lado sem mais aquela! Que se eu não lhe fosse fiei, ele me matava! Eu pensava que ele estava sendo apenas melodramático e teatral. - Elvira sorriu súbita e inesperadamente. - Mas tudo era engraçado. Não acreditava que fosse real ou a sério.

- Bem - observou o Inspetor-Chefe Davy - não me parece provável que um rapaz como esse fosse envenenar chocolates para lhe mandar.

- Eu também não acredito, realmente - disse Elvira, - mas deve ter sido ele, porque não podia ser mais ninguém. Fiquei muito preocupada. Depois, quando voltei para cá, recebi um bilhete... - hesitou.

- Que espécie de bilhete?

- Veio num envelope, e estava escrito em letra de imprensa. Dizia: "Tenha andado. Alguém quer matá-la."

As sobrancelhas do Inspetor-Chefe Davy ergueram-se.

- Verdade? É muito curioso, muito curioso mesmo. E isso deixou-a preocupada. Ficou com medo?

- Fiquei. Comecei... comecei a pensar quem poderia querer me tirar do caminho. Foi por isso que procurei saber se na verdade eu era mesmo muito rica.

- Continue.

- E outro dia, em Londres, aconteceu mais uma coisa. Eu estava esperando o metrô e havia uma porção de gente na plataforma. Tive a impressão de que alguém tentou me empurrar para o trilho.

- Minha filha! - exclamou Bess Sedgwick. - Não exagere!

Mas Papai repetiu o seu leve gesto de mão. E Elvira disse, como se se desculpasse:

- Sim, espero que tenha imaginado isso tudo... mas não sei... depois do que aconteceu esta noite, parece que tudo deve ser mesmo verdade, não parece? - Voltou-se de repente para Bess Sedgwick, urgindo: - Minha mãe! A senhora deve saber. Será que alguém quer me matar? Existirá alguém? Terei algum inimigo?

- Claro que você não tem inimigo nenhum - respondeu Bess Sedgwick, impaciente. - Não seja tola. Ninguém quer matar você. Por quê?

- Então quem atirou em mim esta noite?

- Naquele fog - disse Bess Sedgwick - podem ter tomado você por outra pessoa. É possível, não acha o senhor? - continuou ela, virando-se para Papai.

- Sim, penso que é muito possível - admitiu o Inspetor-Chefe Davy.

Bess Sedgwick olhava fixamente o Inspetor-Chefe. Ele teve a vaga impressão de que os lábios de Bess articulavam mudamente as palavras: "Mais tarde".

- Bem, - disse ele então, animado - é melhor voltarmos aos fatos. De onde é que a senhorita vinha esta noite? Que é que andava fazendo, a pé, em Pond Street, numa noite de tal nevoeiro?

- Eu tinha ido a uma aula de arte na Galeria Tate, hoje pela manhã. Depois fui almoçar com minha amiga Bridget, que mora em Onslow Square. Fomos a um cinema e quando saímos já havia fog... bem escuro e ficando cada vez pior. Então eu pensei que era melhor não ir para casa de carro.

- A senhorita sabe dirigir?

- Sei. Tirei carteira de motorista no verão passado. Mas ainda não dirijo muito bem e detesto guiar em nevoeiro.

Por isso, a mãe de Bridget disse que eu podia passar a noite lá; então eu telefonei à prima Mildred, com quem moro, em Kent...

Papai balançou a cabeça.

-... e disse a ela que eu ia passar a noite aqui. Ela achou que era uma boa idéia.

- E que aconteceu em seguida? - indagou Davy.

- De repente o fog clareou. O senhor sabe como o fog é irregular. Resolvi então ir de carro para Kent. Despedi-me de Bridget, e saí. Mas aí o nevoeiro recomeçou, e eu não gostei. Entrei num trecho de fog muito espesso e me perdi, sem saber onde estava. Passado algum tempo, descobri que estava em Hyde Park Corner e disse comigo: "Não posso mesmo ir para Kent nessas condições". No começo pensei em voltar à casa de Bridget, mas aí me lembrei de que me perdera antes. Nisso, compreendi que estava pertinho deste hotel tão simpático, para onde o tio Derek tinha me trazido, quando voltei da Itália, e pensei: "Vou para lá, tenho certeza de que me arranjarão um quarto". E realmente foi muito fácil, descobri um lugar para estacionai: o carro e vim a pé pela rua até o hotel.

- Encontrou alguém, ou ouviu passos de alguém por perto?

- É engraçado o senhor dizer isso, porque julguei ter ouvido os passos atrás de mim. Claro que deve haver milhões de pessoas andando em Londres. Só que num fog como esse, a gente fica nervosa. Esperei e escutei, mas aí parei de ouvir os passos e pensei que era imaginação minha. Já então estava bem perto do hotel.

- E aí?

- Aí, de repente, dispararam um tiro. Como já disse ao senhor, parecia que a bala tinha passado rente à minha orelha. O porteiro que está sempre na calçada do hotel, veio correndo na minha direção, me empurrou para trás dele e então... então veio o outro tiro... Ele... caiu e eu gritei. - Elvira tremia. A mãe lhe disse em voz baixa e firme:

- Calma, menina. Fique calma. - Era a voz que Bess Sedgwick usava com os seus cavalos, e que se mostrou perfeitamente eficaz com a filha. Elvira piscou, endireitou-se e se acalmou.

- Muito bem - falou Bess.

- E aí o senhor chegou - disse Elvira para Davy. - Apitou e mandou que os policiais me trouxessem para o hotel. E assim que entrei vi... vi minha mãe. - Virou-se e olhou para Bess Sedgwick.

- E isso nos põe mais ou menos atualizados - disse Papai, ajeitando o corpanzil na cadeira.

- Conhece um homem chamado Ladislaus Malinowski?

- perguntou ele num tom normal, despreocupado, sem nenhuma inflexão especial. Não olhava para a moça, mas percebeu, já que tinha os ouvidos atentos, que ela subitamente engolira em seco. Os olhos de Papai não se fixavam na filha e sim na mãe.

- Não, - respondeu Elvira - demorando um tantinho para falar - não, não conheço.

- Oh, pensei que o conhecia. Pensei que ele talvez houvesse estado aqui esta noite.

- Oh, e por quê?

- Bem, o carro dele está aqui - informou Papai. - Por isso pensei que ele também estivesse.

- Eu não o conheço - repetiu Elvira.

- Engano meu, então. Mas a senhora o conhece, não?

- ele volveu a cabeça para Bess Sedgwick.

- Naturalmente - respondeu Bess. - Conheço-o há muitos anos. - E acrescentou, sorrindo de leve: - É um maluco. Guia carro como um anjo ou um diabo... qualquer dia quebra o pescoço. Sofreu um desastre terrível há um ano e meio.

- Sim, lembro-me de ter lido a respeito - disse Papai.

- Ainda não voltou a correr, ou já?

- Não, ainda não. Talvez não corra nunca mais.

- Acha que eu já posso ir para a cama? - perguntou Elvira, em tom queixoso. - Estou... estou horrivelmente fatigada.

- Claro. Deve estar - falou Papai. - Contou-nos tudo que podia recordar?

- Oh, sim.

- Vou com você - disse Bess. Mãe e filha saíram juntas.

- Ela o conhece muito bem - observou Papai.

- O senhor acha? - perguntou o Sargento Wadell.

- Eu sei que conhece. Faz um dia ou dois que tomou chá com ele em Battersea Park.

- Como é que o senhor descobriu?

- Uma senhora idosa me contou... muito mortificada. Não achava que fosse um amigo para uma mocinha. E de fato não é.

- Especialmente se ele e a mãe... - Wadell interrompeu-se, delicadamente. - É o boato que corre...

- Sim. Talvez seja verdade, talvez não seja. Provavelmente é.

- Nesse caso, qual das duas ele quer? Papai ignorou a pergunta e disse:

- Quero que o apanhem. De qualquer jeito. O carro dele está aqui... logo ao dobrar a esquina.

- Acha que ele talvez esteja hospedado neste hotel? - Não creio. Isso não se encaixaria no quadro geral.

Não é de se supor que esteja aqui. Se veio cá, foi para encontrar a moça. E ela, evidentemente, veio para o encontrar. Abriu-se a porta e Bess Sedgwick reapareceu.

- Voltei - disse ela - porque queria falar com o senhor.

Assinalou com o olhar os outros dois homens.

- Poderia falar com o senhor a sós? Já lhe dei todas as informações que tenho; mas queria agora uma palavrinha com o senhor em particular.

- Não vejo nenhum impedimento - disse o Inspetor-Chefe Davy. Fez um gesto com a cabeça e o jovem detetive apanhou o seu livro de notas e saiu; Wadell acompanhou-o. - Então? - indagou o Inspetor-Chefe.

Lady Sedgwick sentou-se de novo defronte dele.

- Aquela história idiota a respeito dos chocolates envenenados, é um disparate - disse ela. - Absolutamente ridícula. Não acredito que nada daquilo tenha acontecido.

- Não acredita, eh?

- O senhor acredita?

Papai abanou a cabeça, em dúvida. - Acha que sua filha inventou tudo aquilo?

- Acho. Mas por quê?

- Bem, se a senhora não sabe por que, como é que eu hei de saber? Ela é sua filha. É de presumir que a senhora a conheça melhor do que eu.

- Eu não a conheço, de modo nenhum - explicou Bess, com amargura. - Não a vejo nem tenho o menor contato com ela desde o tempo em que ela tinha dois anos de idade... quando fugi de meu marido.

- Sim, sei de tudo isso e acho muito curioso. A senhora sabe, Lady Sedgwick, que em geral os tribunais dão à mãe a custódia do filho pequenino, quando ela a solicita... mesmo quando é a parte culpada. Quer dizer que a senhora não solicitou a custódia da menina? Não a quis.

- Achei que... seria melhor não pedir.

- Por quê?

- Julguei que não seria seguro... para a criança.

- Por motivos morais?

- Não. Por motivos morais não; adultério, atualmente, é muito comum. As crianças têm de saber disso, têm de crescer com isso. Não. O caso é que eu não sou uma pessoa que ofereça segurança. A vida que eu levo não seria uma vida segura para ela. A gente não pode escolher como é que nasce, e eu nasci para viver perigosamente. Não gosto de respeitar leis nem gosto de convenções. E pensei que seria melhor para Elvira, que ela seria mais feliz se recebesse uma educação inglesa convencional. Protegida, cuidada...

- Mas sem o amor da mãe?

- Pensei que se ela aprendesse a me amar, isso só lhe traria tristezas. Oh, o senhor talvez não me acredite, mas era o que eu sentia.

- Compreendo. Ainda pensa que teve razão?

- Não - respondeu Bess. - Não penso. Acho agora que talvez tenha me enganado redondamente.

- Afinal sua filha conhece Ladislaus Malinowski?

- Tenho certeza de que não o conhece. Ela mesma disse; o senhor ouviu.

- Sim, ouvi.

- E então?

- A senhora sabe que ela estava assustada, sentada aqui. Na nossa profissão aprendemos a reconhecer o medo quando nos defrontamos com ele. E ela estava com medo... por quê? Chocolates, ou não, o fato é que atentaram contra a sua vida. A história da estação do metrô pode ser verdadeira...

- Era ridícula. Como um romance policial...

- Talvez, mas essas coisas acontecem, Lady Sedgwick. E mais freqüentemente do que a senhora imagina. Pode me dar alguma idéia de quem poderia querer matar a sua filha?

- Ninguém! Absolutamente ninguém!

Bess falou com veemência.

O Inspetor-Chefe Davy suspirou e abanou a cabeça.

 

 

O inspetor-chefe Davy esperou pacientemente que Mrs. Melford acabasse de falar. Fora uma entrevista singularmente improdutiva. A prima Mildred mostrara-se incoerente, incrédula e, de modo geral, desmiolada. Pelo menos era essa a opinião particular de Papai. Informações a respeito das boas maneiras de Elvira, do seu gênio meigo, dos problemas que tinha com os dentes, das desculpas esquisitas que dava ao telefone, faziam-na alimentar sérias dúvidas quanto a Bridget: seria a amiga adequada para Elvira? E todos esses temas haviam sido apresentados ao Inspetor-Chefe Davy num bolo apressado. Mrs. Melford não sabia de nada, não vira nada e, aparentemente, deduzira muito pouco.

Um breve telefonema ao tutor de Elvira, o Coronel Luscombe, fora ainda mais improdutivo, embora felizmente, menos verboso. - Mais macaquinhos chineses - murmurou Papai para o sargento, ao largar o fone. - Não ver maldade, não ouvir maldade, não dizer maldade.

- O problema é que todo mundo que tem qualquer coisa a ver com essa menina é gente boa demais... se você entende o que quero dizer. Pessoas excelentes que não sabem nada acerca do mal. Diferentes da velha minha amiga.

- A senhora do Hotel Bertram's?

- Ela, sim. Passou uma longa vida a observar o mal, imaginar o mal, suspeitar o mal e aceitar o combate com o mal. Vejamos agora o que nos tem a dizer a amiguinha Bridget.

As dificuldades dessa entrevista foram representadas do começo ao fim pela mãe de Bridget. E para conseguir conversar com Bridget sem assistência da mãe, precisou o Inspetor-Chefe Davy empregar toda a sua eficiência e capacidade de lisonja. Deve-se admitir, aliás, que ele foi muito ajudado nisso pela própria Bridget. Depois de um certo número de perguntas e respostas estereotipadas, e expressões de horror da parte da mãe de Bridget ao escutar como Elvira por um triz não morrera, Bridget disse:

- Olhe, mamãe, está na hora da reunião do seu comitê. Você disse que era muito importante.

- Oh, Senhor meu - gemeu a mãe de Bridget.

- Você sabe que sem a sua presença, elas fazem a maior confusão.

- Com toda a certeza! Mas talvez seja minha obrigação...

- Absolutamente, minha senhora - disse o Inspetor-Chefe Davy, carregando no jeito bondoso e paternal. - A senhora não precisa se preocupar. Pode sair. Já terminei com as coisas importantes, a senhora me disse tudo de que eu precisava saber. Só tenho a fazer mais uma ou outra pergunta de rotina, a respeito de pessoas da Itália, a que talvez sua filha, Miss Bridget, possa responder.

- Bem, se você acha que se arranja, Bridget...

- Oh, me arranjo sim, mamãe - tornou Bridget. Afinal, com grande espalhafato, a mãe de Bridget saiu para a reunião do comitê.

- Puxa vida! - suspirou Bridget ao voltar, depois de fechar a porta da frente. - Como são difíceis as mães!

- É o que ouço dizer - comentou o Inspetor-Chefe Davy» - Inúmeras mocinhas têm problemas com as mães.

- Pois eu pensava que o senhor fosse dizer o contrário - observou Bridget.

- Realmente - concordou Davy. - Mas o meu ponto de vista não é o das moças. Agora, pode me contar um pouco mais?

- Eu não podia falar francamente diante de Mamãe - explicou Bridget. - Mas sinto, é claro, que é realmente importante que o senhor fique o melhor informado possível a respeito disso tudo. Sei que Elvira andava preocupadíssima com alguma coisa, e com medo. Não queria admitir que estava em perigo, mas estava.

- Foi isso o que eu pensei. Evidentemente não quis fazer muitas perguntas na frente de sua mãe.

- Sim - disse Bridget - não queremos que mamãe ouça essas coisas. Ela se impressiona com facilidade, e logo sai por aí contando tudo a todo o mundo. E se Elvira não deseja que essas coisas se espalhem...

- Primeiro que tudo - disse o Inspetor-Chefe Davy - quero saber o que houve na Itália com uma caixa de chocolates. Pelo que entendi, mandaram para Elvira uma caixa de chocolates que talvez estivessem envenenados.

Bridget arregalou os olhos. - Envenenados! - disse ela. - Não. Creio que não. Pelo menos...

- Houve alguma coisa?

- Sim. Mandaram uma caixa de chocolates, Elvira comeu uma porção e passou mal a noite. Muito mal.

- Mas não suspeitou de veneno?

- Não. Pelo menos... ah, sim, ela disse que alguém estava querendo envenená-la, e nós examinamos os chocolates para ver se tinham injetado alguma coisa neles.

- E tinham?

- Não, não tinham. Pelo menos não descobrimos nada.

- Mas talvez a sua amiga, Miss Elvira, estivesse convencida de que os chocolates estavam envenenados.

- Bem, talvez... mas ela não falou mais nisso.

- Mas acredita que ela estava com medo de alguém?

- Não pensei nisso no momento, nem notei nada. Foi só aqui, mais tarde.

- E que me diz desse homem, desse tal Guido? Bridget começou a rir:

- Ele estava gamado por Elvira.

- E a senhorita e Elvira costumavam encontrá-lo em alguns lugares?

- Bem, não me importo de contar ao senhor - disse Bridget. - Afinal de contas o senhor é a polícia. Para o senhor essas coisas não têm importância, e espero que compreenda. A Contessa Martinelli era horrivelmente rigorosa, ou pensava que era. E naturalmente nós também tínhamos os nossos macetes... Uma por todas... o senhor sabe como é.

- E pregavam as mentiras que cabiam, não?

- Bem, receio que sim - concedeu Bridget. - Mas que é que a gente pode fazer, quando os outros são tão desconfiados?

- E assim vocês se encontravam com Guido e tudo o mais. E ele costumava ameaçar Elvira?

- Não creio que falasse sério.

- Então talvez houvesse alguma outra pessoa com quem ela se encontrava?

- Ah, isso... bem, não sei.

- Conte, por favor, Miss Bridget. Talvez... sabe? talvez seja vital.

- Sim, compreendo. Bem, havia alguém. Não sei quem era, mas havia mais alguém de quem ela gostava muito. Para ela era coisa muito séria. Quero dizer, era uma coisa muito importante.

- Ela costumava encontrá-lo?

- Acho que sim. Quero dizer, ela dizia que ia encontrar-se com Guido, mas nem sempre era com Guido. Era com esse outro homem.

- Não tem nenhuma idéia de quem fosse?

- Não. - Bridget parecia um pouco insegura.

- Não seria um corredor de automóvel, chamado Ladislaus Malinowski?

Bridget ficou boquiaberta:

- Então o senhor sabe?

- Falei certo?

- Sim... acho que sim. Ela tinha uma fotografia dele, tirada de um jornal. Guardava-a debaixo das meias.

- Mas isso não podia ser apenas um entusiasmo de fã?

- Bem, podia ser, mas não creio que fosse.

- A senhorita sabe se ela se encontrou com ele aqui na Inglaterra?

- Não sei. Olhe, não sei mesmo o que ela tem feito desde que chegou da Itália.

- Ela veio a Londres para ir ao dentista - lembrou-lhe Davy. - Ou é o que ela diz. Em vez de ir ao dentista, veio procurá-la aqui. E telefonou a Mrs. Melford com uma história a respeito de uma antiga governanta.

Bridget deu uma risadinha.

- Isso era mentira, não era? - disse sorrindo o Inspetor-Chefe. - Para onde ela foi mesmo?

Bridget hesitou, depois disse: - Foi à Irlanda.

- Foi à Irlanda? Por quê?

- Não quis me dizer. Garantiu que precisava descobrir uma coisa.

- E sabe para onde ela foi, na Irlanda?

- Não sei bem. Mencionou um nome. Bally não sei o quê. Ballygowlan, se não me engano.

- Compreendo. Então tem certeza de que ela foi à Irlanda?

- Fui levá-la ao aeroporto de Kensington. Ela viajou pela Aer Lingus.

- E voltou quando?

- No dia seguinte.

- Por via aérea?

- Sim.

- Tem certeza absoluta de que ela voltou por via aérea?

- Bem... suponho que foi.

- Comprou passagem de ida e volta?

- Não. Não comprou, lembro-me.

- Então poderia ter voltado por outro transporte, não é mesmo?

- Sim, creio que sim.

- Poderia, por exemplo, ter voltado pela Irish Mail?

- Ela não me disse.

- Mas também não disse que voltara de avião, disse? _ Não - concordou Bridget. - Mas por que voltaria ela de navio ou de trem, em vez de voltar de avião?

- Bem, se ela houvesse descoberto o que pretendia saber, e não tinha onde ficar, talvez pensasse que seria mais fácil voltar pelo trem noturno.

- É, talvez.

Davy fez um ar de riso.

- Acho que vocês, moças de hoje, não imaginam que se possa viajar senão por via aérea, não é?

- É, acho que sim.

- De qualquer forma, ela voltou para a Inglaterra. E então, que aconteceu? Veio para cá, ou lhe telefonou?

- Telefonou.

- A que horas?

- Oh, pela manhã. Deve ter sido pelas onze horas, creio.

- E que foi que ela disse?

- Bem, ela só fez perguntar se tudo estava em ordem.

- E estava?

- Não, porque, imagine, Mrs. Melford tinha tocado para cá e mamãe atendeu ao telefone. As coisas se encrencaram e eu não sabia o que dizer. Então Elvira.disse que não viria a Onslow Square, mas que telefonaria para a prima Mildred e arranjaria uma história qualquer.

- E é só isso que a senhorita recorda?

- É só - retrucou Bridget, fazendo certas restrições mentais. Pensava, por exemplo, em Mr. Bollard e na pulseira. Estava aí uma coisa que ela não contaria ao Inspetor-Chefe Davy. Papai sabia perfeitamente que alguma coisa lhe estava sendo ocultada; restava-lhe esperar que tal coisa não fosse importante para o inquérito. Tornou a perguntar:

- Acha que a sua amiga estava com medo de alguém ou de alguma coisa?

- Acho, sim.

- Ela lhe falou nisso, ou a senhorita falou nisso a ela?

- Ah, eu perguntei sem rodeios. A princípio ela disse que não, mas logo confessou que estava com medo. E eu sei que ela estava mesmo - prosseguiu violentamente Bridget» - Ela estava em perigo. E sabia disso muito bem. Mas não sei por que, nem como, nem nada a respeito.

- Sua certeza quanto à realidade do perigo firmou-se naquela manhã em que ela voltou da Irlanda?

- Sim. Foi aí que tive certeza.

- Na manhã em que ela poderia ter voltado pelo trem da Irish Mail?

- Não acho provável que ela tenha voltado de trem. Por que o senhor não pergunta a ela?

- Acabarei perguntando, provavelmente. Mas não quero chamar atenção para esse tópico. Por enquanto. Só iria com certeza, aumentar o perigo que ela está correndo.

Bridget arregalou os olhos.

- Que é que o senhor quer dizer?

- A senhorita talvez não se lembre, Miss Bridget, mas foi naquela noite... ou antes, naquela madrugada, que se deu o assalto ao trem da Irish Mail.

- O senhor quer dizer que Elvira estava metida nisso e nunca me disse uma palavra a respeito?

- Concordo que é pouco provável - disse Papai. - Mas estive pensando que ela talvez tenha visto alguma coisa ou alguma pessoa, ou algum incidente ligado ao assalto da Irish Mail. Talvez tenha visto um conhecido, por exemplo, circunstância que poderia colocá-la em perigo.

- Oh! - exclamou Bridget. E ficou ruminando o que acabava de ouvir. - Quer dizer... alguém que ela conhecia estava envolvido no roubo.

O Inspetor-Chefe Davy levantou-se.

- Acho que é tudo. Tem certeza de que não tem mais nada para me contar? Algum lugar onde sua amiga foi, naquele dia? Ou na véspera?

Novamente assomaram aos olhos de Bridget visões de Mr. Bollard e da joalheria de Bond Street.

- Tenho - disse ela.

- Pois eu creio que ainda há alguma coisa que a senhorita não me contou.

Bridget descobriu uma saída.

- Oh, eu ia esquecendo - disse ela. - Sim, Elvira foi procurar uns advogados, os advogados que são curadores dela, para descobrir certas coisas.

- Ah, Miss Elvira foi procurar uns advogados, que são curadores dela. Será que sabe como se chamam?

- O nome deles é Egerton... Forbes Egerton e não sei que mais. Uma porção de nomes. Todavia é mais ou menos isso.

- Compreendo. E ela então queria descobrir alguma coisa?

- Queria saber quanto dinheiro possui - explicou Bridget.

O Inspetor Davy franziu a sobrancelha.

- Realmente! - exclamou. - Interessante. E por que é que ela própria não sabia disso?

- Oh, porque nunca ninguém falou a ela a respeito de dinheiro. Acho que eles pensam que não é bom a gente saber quanto dinheiro possui.

- E ela estava louca para saber, não?

- Estava, sim. Penso que ela achava que isso era muito importante.

- Bem, muito obrigado - disse o Inspetor-Chefe Davy. - A senhorita me ajudou muitíssimo.

 

 

Richard Egerton tornou a olhar para o cartão oficial que estava à sua frente, depois levantou os olhos para o rosto do Inspetor-Chefe e disse:

- Caso curioso.

- Sim senhor - falou o Inspetor-Chefe Davy. - Caso muito curioso.

- O Hotel Bertram’s - continuou Egerton - no nevoeiro. Sim, o fog estava terrível ontem à noite. Creio que os senhores têm que lidar com uma porção de casos como este em dias de nevoeiro, não? Roubos, furtos... bolsas arrebatadas... essa coisa toda.

- Mas não foi exatamente isso - observou Papai. - Ninguém tentou arrebatar nada a Miss Blake.

- De onde partiu o tiro?

- Devido ao fog, não podemos ter certeza. Ela própria não sabia bem. Mas pensamos... parece a melhor idéia... que o homem deveria estar naquela área,

- Diz o senhor que ele atirou em Elvira duas vezes?

- Sim. O primeiro tiro errou o alvo. O porteiro correu de onde estava, do lado de fora da porta do hotel, e pôs-se à frente dela momentos antes do segundo tiro.

- E por isso o tiro pegou nele?

- Sim.

- Camarada valente.

- Sim. Era valente - concordou o Inspetor-Chefe. - Tinha uma excelente fé de ofício militar. Era irlandês.

- Como se chamava?

- Gorman. Michael Gorman.

- Michael Gorman. - Egerton franziu a testa.

- Conhecia esse homem?

- Não - disse ele ao cabo de um momento. - Por um instante pensei que o nome significava alguma coisa.

- Claro que é um nome muito comum. Mas de qualquer forma, ele salvou a vida da moça.

- E exatamente por que veio o senhor me procurar?

- Esperava obter alguma informação. O senhor sabe que nós sempre procuramos ficar amplamente informados a respeito da vítima de uma tentativa de homicídio.

- Naturalmente, naturalmente. Mas na realidade eu só me avistei com Elvira duas vezes desde o tempo em que ela era menina.

- O senhor a viu quando ela veio procurá-lo há uma semana, não foi?

- Sim, isso mesmo. E que é precisamente que o senhor deseja saber? Se é alguma coisa sobre a pessoa dela, quem são os seus amigos, ou apaixonados, ou a respeito das brigas com os namorados... coisas dessa ordem... é melhor ir ter com uma das mulheres, Há uma Mrs. Carpenter, que a trouxe de volta da Itália, creio eu, e Mrs. Melford, com quem ela mora em Sussex.

- Já falei com Mrs. Melford.

- E então?

- Não adiantou. Não adiantou absolutamente nada. E não são dados pessoais que desejo conhecer... afinal de contas estive eu próprio com ela, ouvi o que ela pôde me dizer.., ou antes, o que ela quis me dizer...

Ante um rápido movimento do cenho de Egerton, Davy verificou que o advogado apanhara bem a importância da palavra "quis".

- Disseram-me que ela estava preocupada, agitada, assustada com alguma coisa, e convencida de que sua vida corria perigo. Foi essa a impressão do senhor, quando ela o veio procurar?

- Não - respondeu Egerton, lentamente. - Não, eu não diria isso. Contudo, ela me disse umas coisinhas que me pareceram muito curiosas.

- Tais como?

- Bem, ela queria saber quem seria o seu herdeiro, caso morresse subitamente.

- Ah - disse Davy - então ela pensava nessa possibilidade, não é? Morrer inesperadamente. Interessante.

- Ela tinha qualquer coisa na cabeça, mas não sei o que era. Queria também saber quanto dinheiro possuía... - ou possuirá, quando fizer vinte e um anos* Isso, creio, é mais compreensível.

- Calculo que seja bastante dinheiro.

- É uma grande fortuna, Inspetor-Chefe.

- Por que acha que ela queria saber?

- A respeito do dinheiro?

- Sim, e a respeito de quem o herdaria.

- Não sei - respondeu Egerton. - Não sei mesmo. Ela também aludiu ao assunto de casamento...

- O senhor teve a impressão de que havia um homem nessa história?

- Não tenho nenhuma prova... mas... sim, pensei nisso mesmo. Achei que devia haver um namorado nesse negócio. Em geral há! Luscombe... isto é, o Coronel Luscombe, tutor de Elvira, parece que não sabe da existência de nenhum namorado. Mas o velho Derek Luscombe jamais descobriria uma coisa dessas. Ficou muito agitado quando insinuei que havia um namoro encoberto e provavelmente indesejável.

- E é mesmo indesejável - disse o Inspetor-Chefe Davy.

- Oh. Então o senhor sabe quem é o rapaz?

- Tenho um palpite muito bom. Ladislaus Malinowski.

- O corredor? Realmente? Simpático e temerário! As mulheres caem por ele à toa. Como será que conheceu Elvira? Não compreendo como é que as órbitas de ambos se encontraram a menos... sim, creio que ele esteve em Roma há uns dois meses atrás. Possivelmente foi lá que ela o conheceu.

- Possivelmente. Ou ela o teria conhecido por intermédio da mãe?

- O quê? Por intermédio de Bess? Não creio nessa hipótese.

Davy tossiu.

- Dizem que Lady Sedgwick e Malinowski são amigos íntimos.

- Sim, sim, é o que todos dizem. Talvez seja verdade, talvez não. São amigos íntimos... na vida que levam, estão constantemente juntos. Bess teve os seus amores, é claro, embora, veja bem, não seja do tipo ninfomaníaco. Não falta gente para dizer isso de uma mulher, mas no caso de Bess não é verdade. Afinal, que me conste, Bess e a filha praticamente não se conhecem.

- Foi o que Lady Sedgwick me disse; E o senhor concorda?

Egerton fez que sim com a cabeça.

- Miss Blake tem outros parentes?

- Para todos os efeitos, nenhum. Os dois irmãos da mãe dela morreram na guerra, e ela própria era a única filha do velho Coniston. Mrs. Melford, embora a menina a chame de "prima Mildred", na verdade é prima do Coronel Luscombe. Luscombe faz o que pode pela menina, à sua maneira conscienciosa e antiquada... mas isso é difícil... para um homem.

- O senhor disse que Miss Blake falou em casamento? Suponho que não há possibilidade de que ela já esteja casada...

- Ela ainda é menor... precisaria do consentimento do tutor e dos curadores-.

- Juridicamente, sim. Mas os moços nem sempre esperam por isso - observou Papai.

- Eu sei. E é lamentável. A gente tem que enfrentar o mecanismo burocrático e tudo o mais para obter a tutela legal. E mesmo isso tem suas dificuldades.

- E uma vez que elas se casam, estão casadas - comentou Papai. - Suponho que se ela estivesse casada e morresse de repente, o marido seria o herdeiro.

- Essa idéia de casamento é absolutamente improvável. Ela foi educada com o maior cuidado e... - Calou-se, vendo o sorriso cético do Inspetor-Chefe Davy.

Por mais cuidadosamente que houvesse sido educada, Elvira conseguira travar conhecimento com um sujeito altamente indesejável, como Ladislaus Malinowski.

- É verdade que a mãe fugiu com outro homem - disse Egerton.

- Sim, fugiu... era de esperar... mas Miss Blake é um tipo diferente. Tal como a mãe, ela se obstina em só fazer o que quer, mas age de outro modo.

- Não me diga que...

- Não digo nada... ainda - retrucou o Inspetor-Chefe Davy.

 

 

Ladislaus Malinowski olhou para um, depois para o outro policial, atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada.

- É muito engraçado! - disse ele. - Vocês parecem duas corujas, assim solenes! É ridículo me fazerem vir aqui, e pretenderem me interrogar. Não têm nada contra mim, nada.

- Pensamos que talvez o senhor nos pudesse ajudar no nosso inquérito, Mr. Malinowski - disse o Inspetor-Chefe Davy com polidez oficial. - O senhor possui um carro, um Mercedes-Otto, número de placa FAN 2266.

- Existe algum motivo que me impeça de possuir um carro como esse?

- Não, nenhum. Há apenas uma ligeira dúvida quanto ao número correto. Seu carro foi visto numa rodovia, a M7, e a placa naquela ocasião era outra.

- Bobagem. Devia ser outro carro.

- Não há muitos carros como o seu. Nós verificamos todos os que existem.

- Acho que vocês acreditam em tudo que os guardas de trânsito contam! É de morrer de rir! Onde foi isso?

- O local onde a polícia deteve o senhor e pediu para ver sua licença, não fica longe de Bedhampton. Foi na noite do assalto ao trem da Irish Mail.

- Os senhores realmente me divertem - foi a resposta de Ladislaus Malinowski.

- O senhor possui um revólver?

- Claro, tenho um revólver e uma pistola automática. Ambos com a licença necessária.

- Ótimo. Ainda estão em seu poder?

- Evidentemente.

- Já o avisei,, Mr. Malinowski.

- O famoso aviso da polícia! "Tudo o que disser será registrado e poderá ser utilizado contra o senhor, no seu julgamento."

- A fórmula não é bem essa - disse Papai com brandura. - Utilizado, sim. Contra o senhor, não. Não quer fazer uma ressalva nessa declaração?

- Não, não quero.

- E tem certeza de que não quer a presença do seu advogado?

- Não gosto de advogados.

- Há pessoas que não gostam. Onde estão as armas agora?

- Creio que o senhor sabe muito bem onde é que estão, Inspetor-Chefe. A pistola pequena está no porta-luvas do meu carro, o Mercedes-Otto cujo número de placa é FAN 2266. O revólver está numa gaveta, no meu apartamento.

- O senhor tem razão quanto à gaveta do apartamento - disse Papai. - Mas a outra, a pistola, não está no seu carro.

- Está sim. No porta-luvas; do lado esquerdo. Papai abanou a cabeça. - Pode ser que tenha estado lá; não está mais. Será esta aqui, Mr. Malinowski?

Empurrou uma pequena pistola automática por cima da mesa. Ladislaus Malinowski, com um ar de imensa surpresa, apanhou-a.

- Ah, ah, sim, é ela. Então foi o senhor que a tirou do meu carro?

- Não - respondeu Papai. - Não a tiramos do seu carro. Ela não estava no seu carro. Foi encontrada em outro local.

- Onde foi que a encontraram?

- Encontramo-la - falou Davy - num trecho de Pond Street, que, como o senhor deve saber, é uma rua perto de Park Lane. Poderia ter sido largada por um homem que caminhasse por essa rua... ou talvez corresse.

Ladislaus Malinowski encolheu os ombros. - Não tenho nada com isso. Não joguei lá a pistola. Estava no meu carro há coisa de dois dias. Ninguém passa o tempo todo olhando para ver se um objeto está no lugar em que foi posto. A gente presume que deve estar.

- Sabe, Mr. Malinowski, que esta foi a pistola usada para atirar contra Michael Gorman, na noite de 26 de novembro?

- Michael Gorman? Não conheço nenhum Michael Gorman.

- O porteiro do Hotel Bertram's.

- Ah, sim, o que morreu baleado. Li no jornal. E o senhor diz que o tiro foi da minha pistola? Conversa!

- Não é conversa não. Os peritos em balística fizeram o exame. O senhor entende bastante de armas de fogo para saber que a prova de balística é irrefutável.

- Os senhores estão procurando me pegar. Eu sei o que a polícia faz!

- Creio que o senhor não faz tal juízo da nossa polícia, Mr. Malinowski.

- Então o senhor quer insinuar que eu atirei em Michael Gorman?

- No momento estamos apenas tomando o seu depoimento. Ainda não foi feita nenhuma acusação.

- Mas é isso o que vocês pensam... que eu atirei naquele palhaço fardado. Por quê? Eu não devia dinheiro a ele, não tinha nada contra ele.

- O tiro foi dirigido contra uma senhorita. Gorman correu para protegê-la e recebeu no peito a segunda bala.

- Uma senhorita?

- Uma senhorita que eu creio que o senhor conhece. Miss Elvira Blake.

- O senhor está dizendo que alguém tentou atirar em Elvira com a minha pistola?

Parecia incrédulo.

- Talvez tenha havido um desentendimento entre ambos.

- Insinua que eu briguei com Elvira e atirei nela? Que loucura! Por que iria eu dar tiros na moça com quem vou me casar?

- Isso é parte do seu depoimento? Que vai se casar com Miss Elvira Blake?

Ladislaus hesitou por um instante. E logo disse, encolhendo os ombros:

- Ela ainda é muito moça. O assunto não está resolvido.

- Talvez ela houvesse prometido casar com o senhor e depois... mudou de idéia. Ela andava com medo de alguém. Era do senhor, Mr. Malinowski?

- Por que desejaria eu a morte de Elvira? Ou estou apaixonado por ela e quero casar com ela, ou se não quero casar com ela, não sou obrigado a casar. É muito simples, como vê. Portanto, para que iria eu matá-la?

- Não há muita gente aparentada com ela o suficiente para querer matá-la. - Davy esperou um momento e depois acrescentou, quase com indiferença: - Salvo a mãe dela, naturalmente.

- O quê? - Malinowski deu um salto. - Bess? Bess matar a própria filha? O senhor está louco! Por que iria Bess matar Elvira?

- Possivelmente porque, sendo a parenta mais próxima, herdaria uma enorme fortuna.

- Bess? Acredita que Bess seria capaz de matar por dinheiro? Ela tem rios de dinheiro, do marido americano. Ou, pelo menos, o bastante.

- Bastante dinheiro não é a mesma coisa que uma grande fortuna - observou Papai. - As pessoas matam por uma grande fortuna, conhecem-se mães que mataram filhos, e filhos que mataram mães.

- Torno a dizer que o senhor está louco.

- O senhor disse que ia casar com Miss Blake. Será que já casou com ela? Se casou, então seria o senhor o herdeiro de uma enorme fortuna.

- Que coisas loucas e estúpidas o senhor diz! Não, não me casei com Elvira; é uma moça bonita, gosto dela e ela está apaixonada por mim. Sim, confesso isso tudo. Conheci-a na Itália, divertimo-nos juntos, mas foi só. Não houve mais nada, compreende?

- Realmente? Mas ainda agora, Mr. Malinowski, o senhor disse peremptoriamente que ela era a moça com quem ia casar.

- Ah, isso.

- Sim, isso. É verdade?

- Disse isso porque... desse modo, a coisa tomava um ar mais respeitável. Vocês neste país... são tão puritanos...

- A sua explicação me parece inverossímil.

- O senhor não compreende nada de nada. A mãe e eu... somos amantes... eu não quis falar assim... de modo que insinuei que a filha e eu... éramos noivos. Isso parece muito inglês e digno.

- Pois a mim me parece ainda mais inverossímil. O senhor anda muito necessitado de dinheiro, não anda, Mr. Malinowski?

- Meu caro Inspetor-Chefe, eu ando sempre necessitado de dinheiro. É uma tristeza.

- Mas há alguns meses o senhor atirava dinheiro fora, da maneira mais despreocupada.

- Ah, tive um momento de sorte. Sou jogador, confesso.

- É fácil de acreditar. Onde foi que teve esse "momento de sorte"?

- Isso eu não digo. O senhor não pode esperar que eu diga.

- Não espero.

- É tudo que tem a me perguntar?

- Por ora é. O senhor reconheceu que a pistola é sua. Isso será muito útil.

- Não compreendo... não posso conceber... - interrompeu-se e estendeu a mão: - Me dê a pistola, por favor.

- Lamento dizer que temos de guardá-la por enquanto. Vou preparar um recibo.

Davy fez o recibo e passou-o a Malinowski. O rapaz foi embora, batendo a porta.

- Sujeito temperamental - comentou Papai.

- O senhor nem o apertou a propósito do número falso da placa, e de Bedhampton.

- Não. Queria que ele ficasse abalado. Mas não abalado demais. Vou dando uma coisa de cada vez para ele se preocupar... e ele está preocupado.

- O Velho quer falar com o senhor, assim que estiver desocupado.

O Inspetor-Chefe Davy balançou a cabeça e encaminhou-se à sala de Sir Ronald.

- Ah, Papai! Fazendo progressos?

- Sim senhor. Vamos indo bem... muito peixe na rede. Na maioria peixe miúdo. Mas já estamos nos aproximando dos grandes. Está tudo andando...

- Ótimo, Fred - disse o Comissário Assistente.

 

Miss Marple desembarcou do trem na estação de Paddington e logo avistou o vulto corpulento do Inspetor-Chefe Davy, de pé, na plataforma, a esperá-la.

Ele disse:

- Muito prazer em vê-la, Miss Marple. - Segurando-a pelo cotovelo, fê-la passar pela grade e conduziu-a até onde os esperava um carro. O motorista abriu a porta, Miss Marple entrou seguida pelo Inspetor-Chefe, e o carro partiu.

- Para onde está me levando, Inspetor-Chefe Davy?

- Para o Hotel Bertram's.

- Ora essa, Hotel Bertrarm's de novo! Por quê?

- A resposta oficial é a seguinte: porque a polícia acredita que a senhora poderá ajudá-la nas investigações.

- A frase é conhecida, mas não é também um tanto sinistra? Serve muitas vezes de prelúdio a uma ordem de prisão, não é?

- Não vou prendê-la, Miss Marple. - Papai sorriu. - A senhora tem um álibi.

Miss Marple digeriu a informação em silêncio. Depois disse:

- Compreendo.

Continuaram calados até chegarem ao Hotel Bertram's. Quando entraram, Miss Gorringe levantou os olhos de trás do balcão, mas o Inspetor-Chefe Davy encaminhou Miss Marple diretamente ao elevador.

- Segundo andar.

O elevador subiu, parou, e Papai tomou a dianteira ao avançarem pelo corredor. Quando ele abriu a porta do n.° 18, Miss Marple falou:

- Era este o meu quarto quando eu estava hospedada aqui.

- Sim - respondeu Papai.

Miss Marple sentou-se na poltrona e comentou, olhando em redor com um leve suspiro:

- É um quarto muito confortável.

- Não se pode negar que eles aqui entendem de conforto - admitiu Papai.

- O senhor parece cansado, Inspetor-Chefe - disse inesperadamente Miss Marple.

- Tenho precisado me mexer um bocado. Para falar a verdade, acabo de chegar da Irlanda.

- Realmente? Foi a Ballygowlan?

- E como diabo a senhora sabe a respeito de Ballygowlan? Desculpe-me... peço-lhe perdão...

Miss Marple perdoou com um sorriso.

- Decerto Michael Gorman lhe disse que vinha de lá... não foi isso?

- Não foi precisamente isso.

- Então como foi, se me permite perguntar, que a senhora soube?

- Deus meu! - disse Miss Marple - é bastante embaraçoso. Foi uma conversa... uma conversa que escutei por acaso.

- Ah, compreendo.

- Eu não estava escutando de propósito. Foi numa sala aberta ao público... pelo menos, tecnicamente aberta ao público. Francamente, gosto de escutar o que as pessoas conversam. Todos gostam. Especialmente quando se é velho e não se sai muito. O que eu quero dizer é que, se há pessoas conversando por perto, a gente escuta.

- Bem, isso me parece muito natural - disse Papai.

- Até certo ponto, sim - concordou Miss Marple. - Se as pessoas que falam não se dão ao trabalho de baixar a voz, pode-se presumir que estão cientes de que serão ouvidas. Mas, é claro que também pode haver imprevistos. Pode acontecer que, embora se saiba que a sala em questão é franqueada ao público, os que estão conversando não se dão conta da presença de outros. Então a gente tem que decidir como é que faz. Levantar-se, tossir, ou ficar quieta e esperar que eles não descubram que a gente está ali. Qualquer das hipóteses é constrangedora.

O Inspetor-Chefe consultou o relógio.

- Veja bem - disse ele - quero ouvir o resto dessa história, mas estou aguardando o Cônego Pennyfather, que deve chegar a qualquer momento. Preciso ir recebê-lo. Se a senhora não se incomoda...

Miss Marple disse que não se incomodava, e o Inspetor-Chefe Davy deixou o quarto.

 

O Cônego Pennyfather atravessou a porta de vaivém e entrou na sala de espera do Hotel Bertram's. Franziu de leve o cenho, procurando descobrir o que é que estava diferente no Bertram's hoje. Será que fora pintado, ou re-decorado? O Cônego abanou a cabeça. Não era isso, mas havia qualquer coisa. Não lhe ocorreu que era a diferença entre um porteiro de 1,80 m de altura, olhos azuis e cabelos pretos, e um outro porteiro de 1,70 m, ombros caídos, sardas, e um tufo de cabelos cor de areia saindo de sob o boné da farda. O Cônego sabia apenas que algo estava diferente. Com seus costumeiros modos vagos, dirigiu-se à recepção. Miss Gorringe estava lá e o cumprimentou:

- Prazer em vê-lo, Cônego Pennyfather. Veio buscar â bagagem? Está às suas ordens. Se o senhor quiser, nós poderemos mandá-la para qualquer endereço que nos der.

- Obrigado - respondeu o Cônego - muito obrigado, A senhora é sempre muito amável, Miss Gorringe..Mas como eu precisava de qualquer modo vir a Londres hoje, pensei que o melhor era apanhar pessoalmente a bagagem.

- Ficamos tão preocupados com o senhor - disse Miss Gorringe. - Refiro-me ao seu desaparecimento. Ninguém o encontrava. Sofreu um acidente de automóvel, não foi?

- Foi - falou o Cônego - foi, sim. Esses motoristas de hoje guiam depressa demais. Isso é muito perigoso. Aliás, não me recordo quase nada do que aconteceu. Parece que me afetou a cabeça. Concussão, diz o médico. Ora, o fato é que à medida que a gente envelhece, a memória... - abanou a cabeça, tristemente. - E como vai passando a senhora, Miss Gorringe?

- Eu vou muito bem.

Nesse momento o Cônego Pennyfather subitamente descobriu que Miss Gorringe também estava diferente. Mirou

a mulher, procurando ver onde estava a diferença. No cabelo? Era o de sempre. Talvez um pouco mais frisado. Vestido preto, medalhão enorme, broche de camafeu. Tudo como de costume. Mas havia uma diferença. Estaria um pouco mais magra? Ou... sim, evidentemente. Miss Gorringe parecia preocupada. Não era com freqüência que o Cônego Pennyfather se apercebia de que alguém tinha o ar preocupado; ele não era dessas pessoas que notam a emoção no rosto das outras. Mas naquela noite notou, talvez porque Miss Gorringe, durante tantos anos, apresentava aos hóspedes aquela face imutável.

- A senhora não esteve doente, esteve? - indagou o velho, solícito. - Parece mais magra.

- Bem, nós tivemos aqui muitos aborrecimentos, Cônego Pennyfather.

- É verdade. É verdade. Lamento muito. Espero que não tenham sido provocados pelo meu desaparecimento.

- Não, não - disse Miss Gorringe. - Nós nos preocupamos, é claro, mas assim que soubemos que o senhor estava passando bem... - Fez uma pausa e depois prosseguiu: - Não, não... é que... bem, talvez o senhor não tenha lido nos jornais. Gorman, o nosso porteiro, foi morto.

- Ah, sim - disse o Cônego Pennyfather. - Agora me lembro. Li nos jornais que tinha havido um assassinato aqui.

Miss Gorringe estremeceu ante a menção crua da palavra "assassinato". O estremecimento lhe percorreu todo o vestido preto.

- Terrível - disse ela - terrível. Nunca aconteceu uma coisa dessas no Bertram's. Quero dizer, o Bertram's não é desses hotéis onde ocorrem assassinatos.

- Não, não é - interpôs rapidamente o Cônego. - Tenho certeza de que não é. Quero dizer, jamais ter-me-ia passado pela cabeça que um fato dessa natureza pudesse acontecer aqui.

- Evidentemente não foi dentro do hotel - observou Miss Gorringe, animando-se um pouco ao lembrar-se desse aspecto da questão. - Aconteceu na rua.

- Portanto, não teve propriamente nada que ver com o hotel - observou solícito o Cônego.

Esta, aparentemente, não era a observação certa a fazer.

- Mas envolveu o Bertram's. Tivemos que aturar os interrogatórios da polícia, uma vez que fora o nosso porteiro a vítima do tiro.

- Então vocês estão com porteiro novo lá fora. Eu bem que vi que as coisas pareciam um pouco estranhas.

- Sim, não sei se ele está a altura do emprego. Quero dizer, dentro do nosso estilo. Mas tivemos que arranjar alguém às carreiras.

- Agora estou me lembrando de tudo - falou o Cônego Pennyfather, reunindo algumas recordações vagas do que lera no jornal uma semana antes. - Mas me pareceu que haviam dado um tiro numa moça.

- Refere-se à filha de Lady Sedgwick? Creio que o senhor deve lembrar-se de a ter visto aqui, em companhia do tutor, o Coronel Luscombe. Parece que ela foi atacada por um desconhecido, no meio do fog. Provavelmente alguém lhe queria roubar a bolsa. De qualquer forma, atiraram nela, e então Gorman, que fora soldado e era homem de muita presença de espírito, correu para acudir e levou um tiro, coitado.

O Cônego abanou a cabeça:

- Triste, muito triste.

- Isso dificulta tudo - queixou-se Miss Gorringe. -> A polícia entrando e saindo a toda hora. Creio que é de esperar, mas não gostamos disso, embora eu deva dizer que o Inspetor-Chefe Davy e o Sargento Wadell têm uma aparência muito distinta. Roupa à paisana, sem nada de espalhafatoso, como por exemplo botas e impermeáveis como a gente vê nos filmes. Apresentam-se quase como qualquer um de nós.

- É... sim... - disse o Cônego Pennyfather. Miss Gorringe indagou;

- O senhor teve que ir para o hospital?

- Não. Um casal muito bondoso, dois bons samaritanos... ele é hortelão, creio... me apanhou, e a mulher tratou de mim. Fiquei gratíssimo, gratíssimo. É um consolo descobrir que ainda há bondade no mundo. Não acha a senhora?

Miss Gorringe disse achar que isso era muito consolador. - Afinal de contas, a gente lê a respeito do aumento da criminalidade - acrescentou ela - todos esses rapazes e moças que assaltam bancos, roubam trens, atacam pessoas.

Depois levantou a vista e disse:

- Lá vem o Inspetor-Chefe Davy descendo a escada. Creio que ele deseja falar com o senhor.

- Não sei para que ele há de querer falar comigo - disse, intrigado, o Cônego. - Ele já foi me procurar, sabe? em Chadminster. E acho que ficou muito decepcionado porque não lhe pude dizer nada de útil.

- Não pôde?

O Cônego abanou tristemente a cabeça.

- Não me lembrava de nada. O acidente aconteceu perto de Bedhampton, e na verdade não sei o que é que eu andava fazendo por lá. O Inspetor-Chefe insistia em me perguntar por que eu estava ali, e eu não sabia responder. Esquisito, não é? Parece que ele pensou que eu vinha de carro da estrada de ferro para uma casa paroquial.

- Parece plausível - observou Miss Gorringe.

- Não parece plausível coisa nenhuma! Por que é que eu estaria dirigindo um carro num lugar que nem conheço?

O Inspetor-Chefe Davy aproximara-se dos dois.

- Ah, está aqui, Cônego Pennyfather! - disse ele - já se restabeleceu?

- Sinto-me muito bem, mas com certa tendência a dores de cabeça. E me recomendaram que não fizesse esforço excessivo. Mas ainda não consigo me lembrar do que deveria me lembrar> e os médicos dizem que talvez não me lembre nunca.

O Inspetor-Chefe Davy consolou o velho e o afastou da mesa de recepção.

- Bom, a gente não deve perder as esperanças. - Acrescentou: - Queria que o senhor fizesse uma pequena experiência. Não se recusará a me dar uma ajuda, não é assim?

 

Quando o Inspetor-Chefe Davy abriu a porta do n.° 18, Miss Marple ainda estava sentada na poltrona junto à janela.

- Muita gente na rua, hoje - observou ela. - Mais que de costume.

- Bem... este é o caminho mais curto entre Berkeley Square e Shepherd's Market

- Não me referia apenas aos passantes. Falo em gente trabalhando... homens que consertam a estrada, um caminhão da telefônica, um caminhão de carne, uns dois carros particulares...

- E... posso perguntar? Que é que a senhora deduz disso?

- Eu não falei que deduzia coisa alguma. Papai olhou bem para Miss Marple e pediu:

- Quero que a senhora me ajude.

- Claro. Para isso estou aqui. Que quer que eu faça?

- Quero que a senhora faça exatamente o que fez na noite de 19 de novembro. A senhora estava dormindo... acordou... possivelmente despertada por algum ruído inusitado. Acendeu a luz, olhou as horas, levantou-se da cama, abriu a porta e espiou para fora. Pode repetir esses mesmos atos?

- Naturalmente. - Miss Marple ergueu-se e caminhou até a cama.

- Espere um momento. - O Inspetor-Chefe Davy foi até à parede divisória dos dois quartos e deu uma pancadinha.

- É preciso bater com mais força - observou Miss Marple. - Este prédio é muito bem construído.

O Inspetor-Chefe redobrou o vigor das batidas.

- Eu disse ao Cônego Pennyfather que contasse até dez - explicou ele olhando o relógio. - Agora, pode começar.

Miss Marple tocou na lâmpada de cabeceira, consultou um relógio imaginário, levantou-se, caminhou até à porta, abriu-a e espiou para fora. À sua direita, saindo do quarto naquele momento, e caminhando para a escada, viu o Cônego Pennyfather. Ao chegar à escada, o Cônego começou a descer os degraus. Miss Marple prendeu por um segunda a respiração e voltou-se.

- E então? - indagou o Inspetor-Chefe.

- O homem que eu vi naquela noite não pode ter sido o Cônego Pennyfather - disse Miss Marple. - Ou então este aí não é o Cônego.

- Acho que a senhora disse...

- Eu sei. Parecia o Cônego Pennyfather. Os cabelos, a roupa, tudo. Mas não tinha o mesmo andar. Penso... penso que deve ter sido um homem mais moço. Sinto muito, muitíssimo, ter informado mal ao senhor, mas não foi o Cônego Pennyfather que vi naquela noite. - Tenho certeza disso agora.

- Tem plena certeza desta vez, Miss Marple?

- Sim - disse Miss Marple. - Sinto muito - tornou a acrescentar - ter-lhe dado uma informação errada.

- Por pouco a senhora não acertou. O Cônego Pennyfather voltou de fato ao hotel naquela noite. Ninguém o viu entrar... mas isso não é de admirar. Chegou depois da meia-noite, subiu a escada, abriu a porta do quarto dele, que ficava vizinho ao seu, e entrou. O que viu ou o que lhe aconteceu então, nós não sabemos, porque ele não sabe ou não quer contar. Se houvesse um meio de lhe estimular a memória...

- Bem, há aquela palavra em alemão... - disse Miss Marple, pensativa.

- Que palavra em alemão?

- Ah, meu Deus, esqueci agora, mas... Bateram na porta.

- Posso entrar? - falou o Cônego Pennyfather. E entrou. - Correu tudo bem?

- Muito bem - respondeu Papai. - Eu estava dizendo a Miss Marple... o senhor conhece Miss Marple?

- Oh, sim - disse o Cônego Pennyfather, sem saber ao certo se a conhecia ou não.

- Eu estava contando a Miss Marple como tínhamos reconstituído todos os movimentos do senhor. O senhor voltou ao hotel, naquela noite, logo depois da meia-noite. Subiu ao primeiro andar, abriu a porta do seu quarto, entrou... - Davy fez uma pausa.

Miss Marple soltou uma exclamação:

- Lembrei-me! Lembrei-me da palavra em alemão. Doppelganger!

O Cônego Pennyfather também soltou uma exclamação: - Mas claro! Claro! Como é que pude esquecer? A senhora tem toda a razão. Depois daquele filme, As Muralhas de Jerico, voltei para cá, subi a escada, abri a porta do meu.quarto e vi... inacreditável... vi-me a mim mesmo, nitidamente, sentado numa cadeira, de frente para mim. É como diz, minha cara senhora, doppelganger. Notabilíssimo! E então... deixe-me ver... - E o Cônego levantou os olhos, tentando recordar.

- E então - disse Papai - assombrados com a sua presença, -quando supunham que o senhor estivesse tranqüilamente em Lucerna, alguém lhe deu uma pancada na cabeça.

 

 

O Cônego Pennyfather fora posto num táxi, rumo ao Museu Britânico. Miss Marple fora instalada comodamente na sala de estar pelo Inspetor-Chefe. Concordaria em esperá-lo uns dez minutos? Miss Marple concordou. Estimava muito a oportunidade de ficar sentada ali, olhando à sua volta e pensando.

Hotel Bertram's. Tantas recordações... O passado fundia-se com o presente. Acudiu-lhe à mente uma frase em francês: Plus ça change, plus c'est Ia même chose. Inverteu a ordem: Plus c'est Ia même chose, plus ça change. De ambos os modos é verdade, pensou.

Sentia-se triste - pelo Hotel Bertram's e por si própria. Tinha curiosidade de saber o que o Inspetor-Chefe iria lhe pedir, agora. Percebia nele a animação de quem tem um propósito definido. Era um homem cujos planos afinal se concretizavam. Era o dia D do Inspetor-Chefe Davy.

A vida no Bertram's continuava como de costume. Não, concluiu Miss Marple, como de costume, não. Havia uma diferença, embora ela não pudesse dizer onde é que estava essa diferença. Uma inquietação subjacente, talvez?

A porta se escancarou mais uma vez, dando passagem ao homenzarrão de ar campestre e bovino, que veio direto para o local onde estava Miss Marple.

- Tudo pronto? - perguntou ele, bem humorado. -Para onde vai me levar agora?

- Vamos fazer uma visita a Lady Sedgwick.

- Ela está hospedada aqui?

- Sim. Com a filha.

Miss Marple levantou-se. Lançou um olhar ao seu redor e murmurou:

- Pobre Bertram's.

- Por que "Pobre Bertram’s?

- Acho que o senhor sabe perfeitamente o que eu quero dizer.

- Bem - encarando os fatos sob o seu ponto de vista - creio que sei.

- É sempre triste quando se destrói uma obra de arte.

- E a senhora chama isto aqui de uma obra de arte?

- Chamo sim. E o senhor também.

- Compreendo o que quer dizer - admitiu Papai.

- É como quando a gente descobre um canteiro invadido pelo sabugueiro bravo. O jeito que tem é arrancar tudo.

- Não entendo muito de jardinagem. Mas troque a imagem pelas raízes mortas e eu concordo.

Subiram no elevador e atravessaram o corredor que levava ao apartamento de esquina de Lady Sedgwick e filha.

O Inspetor-Chefe Davy bateu na porta, uma voz mandou entrar, e ele entrou, seguido por Miss Marple.

Bess Sedgwick estava sentada numa cadeira de espaldar alto, perto da janela. Tinha sobre os joelhos um livro que não lia.

- Então é novamente o senhor, Inspetor-Chefe, - Os olhos de Bess fitaram Miss Marple e mostraram-se levemente surpresos.

O Inspetor-Chefe Davy fez as apresentações.

- Esta é Miss Marple. Miss Marple... Lady Sedgwick.

- Já encontrei a senhora antes - disse Bess Sedgwick. - Não era a senhora que estava outro dia com Selina Hazy? Sentem-se, por favor. - E virou-se para o Inspetor-Chefe Davy: - Tem alguma notícia do homem que atirou em Elvira?

- Notícia propriamente não.

- Duvido que jamais venha a ter. Num fog como aquele, os tarados saem por aí à procura de mulheres desacompanhadas.

- Até certo ponto é verdade - concordou Papai. - Como vai sua filha?

- Oh, Elvira já está bem.

- A senhora está com ela aqui?

- Sim. Telefonei para o tutor dela... o Coronel Luscombe. Ele ficou encantado com o meu desejo de tomar conta da menina. - Deu uma risada. - Coitadinho. Está sempre insistindo num ato de reconciliação entre mãe e filha.

- Talvez ele tenha razão nisso - comentou Papai.

- Não, não, não tem. Neste momento, sim, acho que foi a melhor solução. - Virou a cabeça para olhar pela janela aberta e falou noutro tom de voz:

- Ouvi dizer que o senhor prendeu um amigo meu - Ladislaus Malinowski. De que o acusa?

- Não o prendi - corrigiu o Inspetor-Chefe Davy. - Ele está apenas auxiliando as nossas investigações.

- Mandei meu advogado cuidar dele.

Papai aprovou: - Fez bem. Quem quer que tenha qualquer probleminha com a polícia, é bom contratar um advogado. Do contrário, pode facilmente dizer o que não deve.

- Mesmo que seja completamente inocente?

- Talvez seja ainda mais necessário nesse caso.

- O senhor não acredita em nada, não é? Posso saber com que fim o estão interrogando? Ou não posso?

- Em primeiro lugar, gostaríamos de saber com exatidão o que fez ele na noite em que Michael Gorman morreu.

Bess Sedgwick endireitou-se bruscamente na cadeira.

- Será que o senhor alimenta a ridícula idéia de que foi Ladislaus quem atirou em Elvira? Eles nem se conheciam.

- Podia ter sido ele. O carro dele estava na esquina.

- Bobagem - disse energicamente Lady Sedgwick.

- Até que ponto os tiros daquela noite perturbaram a senhora, Lady Sedgwick?

Bess mostrou-se levemente surpresa.

- Naturalmente fiquei abalada, vendo minha filha escapar por um triz. Que é que o senhor esperava?

- Não quis dizer isso. O que desejo saber é até que ponto a morte de Michael Gorman a abalou.

- Tive muita pena. Era um homem valente.

- Só isso?

- Que mais o senhor espera que eu diga?

- A senhora o conhecia, não?

- Claro. Ele trabalhava aqui.

- A senhora não o conhecia só daqui, não é mesmo?

- Que está insinuando?

- Vamos, Lady Sedgwick. Ele era seu marido, não era? Durante um momento ela não respondeu. Mas não deu

mostras de agitação nem de surpresa.

- O senhor sabe de muita coisa, não sabe, Inspetor-Chefe? - Deu um suspiro e reclinou-se na cadeira. - Eu não o via há... deixe-me ver... muitos e muitos anos. Vinte anos... ou mais de vinte. E então, certo dia olhei por uma janela e de repente reconheci Micky.

- E ele a reconheceu?

- É de fato surpreendente que nos tenhamos reconhecido - observou Bess. - Só estivemos juntos cerca de uma semana. Minha família nos apanhou, deu dinheiro a Micky e me levou de volta para casa. Deu outro suspiro.

- Eu era muito criança quando fugi com ele. Não sabia de nada. Uma garota maluca, a cabeça cheia de idéias românticas. Ele para mim era um herói, principalmente porque montava bem a cavalo. Não sabia o que era medo. Era bonito, e alegre, bem falante como só mesmo um irlandês! Acho que fui eu que o raptei! Não creio que ele tivesse a idéia de me raptar. Mas eu era rebelde, voluntariosa, e estava loucamente apaixonada! - Balançou a cabeça. - Não durou muito... Bastaram as primeiras vinte e quatro horas para eu me desiludir. Ele bebia, era grosseiro e brutal Quando minha família apareceu, e me levaram de volta, dei graças a Deus. Nunca mais quis nada com ele.

- Sua família sabia que a senhora se casara com ele?

- Não.

- A senhora não contou?

- Não achava que estivesse casada.

- Como foi que se deu tudo?

- Nós nos casamos em Ballygowland, mas quando o meu pessoal apareceu, Micky me disse que o casamento tinha sido uma farsa. Ele e os amigos tinham combinado a coisa toda; foi o que ele contou. A essa altura, já me parecia que uma coisa dessas era justamente o que se poderia esperar dele. Se ele queria o dinheiro que o meu pessoal ofereceu, ou se receava ter infringido a lei ao casar comigo quando eu era ainda menor, não sei. De qualquer forma, nem por um momento duvidei de que aquilo que ele me dizia fosse verdade. Na ocasião não duvidei.

- E mais tarde?

Bess parecia perdida nas recordações. - Só mesmo... oh, muitos anos depois, quando eu já conhecia um pouco melhor a vida, e as questões legais, foi que subitamente me ocorreu que provavelmente eu estava mesmo casada com Michael Gorman!

- Para dizer a verdade, quando a senhora se casou com Lord Coniston, cometeu bigamia.

- E quando casei com Sedgwick, e ainda quando casei com aquele americano, Ridgeway Becker. - Olhou para o Inspetor-Chefe e riu, parecendo sinceramente divertida.

- Quanta bigamia! Ê o cúmulo do ridículo.

- Nunca pensou em se divorciar?

Ela deu de ombros. - Tudo me parecia um sonho idiota. Para que mexer no que está enterrado? Contei a Johnnie, é claro. - Sua voz se tornou mais suave e terna ao pronunciar esse nome.

- E o que foi que ele disse?

- Não se importou. Nem Johnnie nem eu éramos muito respeitadores da lei.

- Bigamia acarreta certas penalidades, Lady Sedgwick. Ela o encarou e riu-se.

- Quem é que iria se preocupar com uma coisa que acontecera na Irlanda, não sei quantos anos atrás? Tudo estava liquidado. Micky pegara o dinheiro e sumira. Ah, o senhor não compreende? Parecia que se tratava apenas de um incidente bobo, Um incidente que eu queria esquecer. Eu o pus de lado com as coisas... o grande número de coisas... que não têm importância na vida.

- E então - disse Papai numa voz tranqüila - em certo dia de novembro Michael Gorman apareceu e tentou a chantagem.

- Tolice! Quem disse que ele fez isso? Lentamente Papai se voltou para a senhora idosa que estava sentada em silêncio, muito espigada, na sua cadeira.

- A senhora - falou Bess Sedgwick, encarando Miss Marple. - Que é que a senhora sabe a esse respeito?

A voz de Bess era mais curiosa do que acusadora.

- As poltronas deste hotel têm encostos muito altos - disse Miss Marple. - São confortabilíssimas. Eu estava sentada numa dessas poltronas, defronte da lareira, na sala de correspondência. Descansando um pouco antes de sair, pela manhã, A senhora entrou para escrever uma carta. Imagino que não percebeu que havia mais alguém na sala. E assim... escutei a sua conversa com esse tal Gorman.

- Escutou?

- Naturalmente - respondeu Miss Marple, - Por que não? Estávamos numa sala pública. Quando a senhora levantou a janela e chamou o homem que estava lá fora, eu não fazia a menor idéia de que fosse travar uma conversa particular.

Bess fitou Miss Marple durante um momento, depois •«« mm um vagaroso movimento da cabeça.

- É correto - disse ela. - Sim, compreendo. Mas ainda assim a senhora interpretou mal o que escutou. Micky não me fez chantagem. Ele podia ter pensado nisso... mas eu o avisei, antes que ele tentasse! - Os lábios de Bess novamente se encresparam naquele sorriso largo e generoso que lhe tornava o rosto tão atraente. - Eu o assustei!

- Sim - concordou Miss Marple. - Creio que provavelmente a senhora o assustou. Ameaçou dar um tiro nele. A senhora conduziu o caso, se não acha impertinente a minha observação, realmente muito bem.

Bess Sedgwick ergueu as sobrancelhas, meio divertida,

- Mas eu não era a única pessoa que a escutava -continuou Miss Marple.

- Meu Deus! O hotel inteiro estava escutando?

- A outra poltrona estava ocupada.

- Por quem?

Miss Marple cerrou os lábios e fixou no Inspetor-Chefe um olhar quase de súplica. "Se a coisa tem que ser feita, o senhor que a faça", dizia o olhar. - "eu não posso"...

- Sua filha estava na outra poltrona - disse o Inspetor-Chefe Davy.

- Oh, não! - O grito irrompeu asperamente. - Oh, não! Elvira não! Sim, entendo... Ela deve ter pensado...

- Pensou tão seriamente no que ouvira que chegou a ir à Irlanda para descobrir a verdade. Não foi difícil descobrir.

Em voz baixa, Bess Sedgwick tornou a dizer: - Oh, não! - e depois: - Pobre menina!... Pois mesmo agora, não me perguntou nada. Guardou tudo consigo. Se tivesse me falado, eu explicaria tudo... mostraria que não tinha a menor importância...

- Talvez ela não concordasse com a senhora nesse ponto - observou o Inspetor-Chefe. - É uma coisa engraçada, sabe - continuou ele num jeito reminiscente, quase de conversa de vizinho, como velho fazendeiro que discutisse problemas do gado e da terra: - Aprendi, depois de muitos anos de tentativas e erros, aprendi a desconfiar de um caso que se apresenta muito simples. Casos simples são em geral bons demais para serem verdade. E o aspecto desse crime, naquela noite, era assim, simples. A moça contou que alguém atirou nela e errou. O porteiro correu para ver se a salvava

e levou a segunda bala. Podia perfeitamente ser verdade. Podia ser a maneira por que a moça viu o caso. Mas na verdade, por trás das aparências, as coisas poderiam ser muito diversas. - E continuou, mais sério:

- A senhora disse agora mesmo, com grande veemência, Lady Sedgwick, que não podia haver motivo para Ladislaus Malinowski atentar contra a vida de sua filha. Bem, eu concordo com a senhora, não creio que houvesse mesmo razão nenhuma. Ele é o tipo do homem que pode ter uma briga com uma mulher, puxar de uma faca e dar-lhe uma facada. Mas não creio que fosse se esconder numa área vazia e esperar calmamente para lhe dar um tiro. Mas suponhamos que ele quisesse dar um tiro em outra pessoa. Gritos e tiros... mas o que na verdade aconteceu foi que Michael Gorman morreu. Imaginemos que era isso mesmo que se queria que acontecesse. Malinowski planeja tudo cuidadosamente. Escolhe uma noite de nevoeiro, esconde-se na área e espera até que sua filha apareça na rua. Ele sabe que ela vai aparecer porque combinou tudo desse modo. Dá um tiro. Não apontou para a moça. Teve o maior cuidado em não permitir que a bala passasse perto dela, mas a moça pensa naturalmente que é o alvo dos tiros. Grita. O porteiro do hotel, escutando o tiro e o grito, vem correndo pela rua, e então Malinowski atira na pessoa que pretendia atingir: Michael Gorman.

- Não acredito numa palavra do que o senhor está dizendo! Por que cargas d'água Ladislaus quereria matar Micky Gorman?

- Talvez um pequeno caso de chantagem - sugeriu Papai.

- O senhor quer dizer que Micky estava fazendo chantagem com Ladislaus? Por quê?

- Talvez - lembrou Papai - por causa das coisas que se passam no Hotel Bertram's. Michael Gorman talvez houvesse descoberto um monte de coisas.

- Coisas que se passam no Hotel Bertram's? Que quer dizer?

- Foi um golpe formidável - disse Papai. - Bem planejado, lindamente executado. Mas não há nada que dure para sempre. Miss Marple outro dia me perguntou que é que havia de errado aqui. Bem, agora posso responder

à pergunta. O Hotel Bertram's é, para todos os efeitos, o quartel-general de um dos maiores e mais bem organizados sindicatos do crime destes últimos anos.

 

 

Houve silêncio por um minuto, ou meio minuto. E aí Miss Marple falou num tom de conversa:

- É muito interessante!

Bess Sedgwick voltou-se. - A senhora não parece surpresa, Miss Marple.

- Não estou surpresa. Nem um pouco. Havia aqui muitas coisas curiosas que não combinavam com o resto. Era tudo bom demais para ser verdade... se a senhora me entende. Era o que se chama nos círculos teatrais um lindo espetáculo. Mas era um espetáculo... não era real. E uma porção de pequeninas coisas... - gente que julgava reconhecer um amigo, um conhecido... e descobria que se enganava.

- Essas coisas acontecem - comentou o Inspetor-Chefe Davy - mas aconteciam com freqüência excessiva. Não é verdade, Miss Marple?

- Sim - concordou Miss Marple. - Pessoas como Selina Hazy costumam cometer desses enganos. Mas muitas outras pessoas também se enganavam. E a gente não pode deixar de notar.

- Ela nota tudo - explicou o Inspetor-Chefe a Bess Sedgwick, como se Miss Marple fosse o seu cachorrinho ensinado.

Bess Sedgwick virou-se rápida para ele.

- Que é que o senhor queria dizer quando falou que este hotel era o quartel-general de um sindicato do crime? Pois eu diria que o Hotel Bertram's era o local mais respeitável do mundo.

- Naturalmente - concordou Papai. - Tinha que ser. Gastou-se uma porção de dinheiro, de tempo e de cuidados, fazendo disto aqui exatamente o que é. O autêntico e o falsificado se misturavam aqui com grande inteligência. Em Henry vocês têm um magnífico ator-gerente, dirigindo o espetáculo. Arranjaram esse camarada, Humfries, maravilhosamente plausível. Neste país ele não tem ficha na polícia, mas no estrangeiro andou metido com certas atividades hoteleiras muito curiosas. Há vários excelentes atores característicos desempenhando diversos papéis aqui. Se a senhora quiser, devo admitir que não posso deixar de sentir uma enorme admiração por toda a montagem. Custou a este país uma fábula de dinheiro. Tem dado dores de cabeça constantes, tanto ao C.I.D. quanto às polícias de província. Toda vez que a gente pensava estar chegando perto da meta, ou punha o dedo num incidente especial... acabava acontecendo que o tal incidente não tinha nada a ver com coisa nenhuma. Mas nós continuamos com o quebra-cabeças, um pedaço aqui, outro ali. Uma garagem onde se guardava um monte de placas de automóveis, e que se poderiam transferir instantaneamente para certos carros. Uma firma de caminhões de móveis, um caminhão de açougueiro, um caminhão de verdureiro, e até mesmo uns dois caminhões postais falsificados. Um automobilista num carro de corridas, cobrindo distâncias incríveis num tempo incrivelmente curto e, no outro extremo da escala, um velho clérigo sacolejando pela estrada no seu velho Morris-Oxford. Um chalé onde mora um vendedor de hortaliças que presta primeiros socorros quando necessário, e que mantêm contatos com um médico utilíssimo. Não preciso descrever tudo. As ramificações parecem não ter fim. E isso é só metade do fenômeno. Os visitantes estrangeiros que freqüentam o Bertram's são a outra metade. A maior parte vem da América, ou dos Domínios Britânicos, Gente rica, acima de qualquer suspeita, desembarcando com um montão de bagagem de luxo, que parece sempre a mesma, mas não é. Turistas ricos, que chegam à França e não se preocupam com a Alfândega, porque a Alfândega não aborrece turistas que trazem dinheiro para c país. E os mesmos turistas não se repetem excessivamente. Não é bom ir com muita sede ao pote. Não será fácil provar ou juntar todos esses elementos, mas no fim tudo ficará esclarecido. Estamos começando bem. Os Cabots, por exemplo...

- Que há com os Cabots? - perguntou asperamente Bess.

- Lembra-se deles? Uns americanos muito simpáticos, simpaticíssimos. Estiveram aqui no ano passado e voltaram este ano. Mas não viriam uma terceira vez. Ninguém vem cá mais de duas vezes, na mesma jogada. Sim, conseguimos prendê-los quando desembarcavam em Calais. Muitíssimo bem bolada aquela mala-camarote que levavam. Continha três mil libras muito bem arrumadas. Produto do assalto ao trem de Bedhampton. Claro que isso é apenas uma gota no oceano. - E continuou, impassível:

- Deixe-me dizer-lhe de novo, o Hotel Bertram's é o quartel-general disso tudo. A metade dos empregados está metida na tramóia. Certos hóspedes também estão metidos. Alguns são realmente quem dizem que são... outros não são. Os autênticos Cabots, por exemplo, estão no momento no Iucatan. E havia também a quadrilha da identificação. Por exemplo, o Sr. Juiz Ludgrove. Um rosto familiar, nariz de batata e uma verruga. Facílimo de imitar. O Cônego Pennyfather. Um afável clérigo do interior, de grande cabeleira branca e comportamento notoriamente distraído. Seus maneirismos, seu jeito de espiar por cima dos óculos, - tudo facílimo de imitar por um bom ator característico.

- Mas qual a utilidade disso tudo? - indagou Bess.

- A senhora está realmente querendo saber? Não é óbvio. O Juiz Ludgrove é visto perto do local onde se assalta um banco. Alguém o reconhece e o menciona. Começamos a investigar. É tudo engano. Ele estava em local muito diverso, na ocasião. Mas só depois de algum tempo é que descobrimos que, nisso tudo, o que havia era o que se costuma chamar de "enganos deliberados". Ninguém se preocupou em identificar o sujeito que se parecia tanto com o juiz. E ele não parece muito com o juiz, em verdade, quando tira a maquilagem e pára de representar o papel de juiz. A coisa toda causa muita confusão. Certa vez tivemos um Juiz do Supremo, um Arcediago, um Almirante, um General de Divisão, todos vistos perto da cena do crime.

- Depois do assalto ao trem de Bedhampton, pelo menos quatro veículos foram utilizados antes que a bolada chegasse a Londres. Um carro de corridas dirigido por Malinowski tomou parte no trabalho, um falso caminhão Metal Box, um Daimler antiquado com um Almirante na direção, e um velho clérigo de cabeleira branca num Morris Oxford. A coisa toda foi uma operação espetacular, lindamente projetada.

- Mas aí, um belo dia, a quadrilha teve um pouco de azar. Aquele velho eclesiástico biruta, o Cônego Pennyfather, foi pegar o avião no dia errado; na estação aérea não o deixaram embarcar. Ele saiu andando por Cromwell Road, foi ver um filme, voltou depois da meia-noite, subiu para o quarto que ocupava e do qual tinha a chave no bolso, abriu a porta e viu o que lhe pareceu ser ele próprio, sentado numa cadeira de frente para ele! A última coisa que a quadrilha esperava era ver o legítimo Cônego Pennyfather, que deveria estar a bom recado em Lucerna, entrar de repente no quarto! O sósia estava justamente se preparando para desempenhar o seu papel em Bedhampton quando lá entra o Cônego em pessoa. Não sabiam o que fazer, mas houve um rápido ato reflexo da parte de um membro do grupo. Humfries, suponho. Golpeou a cabeça do velho, deixando-o inconsciente. Creio que alguém se zangou com isso. E muito. Examinaram contudo o velhote e decidiram que ele estava apenas desmaiado, que provavelmente despertaria mais tarde, e assim continuaram com o plano. O falso Cônego Pennyfather deixou o quarto, saiu do hotel e seguiu para o cenário das atividades, onde deveria desempenhar o seu papel na corrida de revezamento. O que fizeram com o autêntico Cônego Pennyfather, não sei. Posso apenas adivinhar. Creio que também ele foi transferido mais tarde, na mesma noite, levado num carro até ao chalé do vendedor de hortaliças, que era um local não muito distante do ponto onde o trem seria assaltado, e onde um médico poderia atender ao velho. E, desse modo, se aparecessem notícias de que o Cônego Pennyfather fora visto nas vizinhanças, tudo se encaixaria nos planos. Deve ter sido uma preocupação danada para todos, até que o Cônego voltasse a si, e descobrissem que pelo menos três dias tinham sido apagados da sua memória.

- De outro modo, será que o matariam? - indagou Miss Marple.

- Não - respondeu Papai. - Não creio que o matassem. Alguém não permitiria que tal acontecesse. Parece bastante claro que a pessoa que dirige esse negócio, seja ela quem for, faz objeção a crimes de morte.

- Que coisa fantástica! - exclamou Bess Sedgwick. - Completamente fantástica! Não creio que o senhor tenha qualquer indício de ligação de Ladislaus Malinowski com toda essa embrulhada.

- Tenho provas mais do que suficientes contra Ladislaus Malinowski - respondeu Papai. - A senhora sabe que ele é descuidado. Ficou rondando por aqui, quando deveria estar longe. Da primeira vez, veio estabelecer contato com sua filha. Eles tinham combinado uma espécie de código.

- Tolice. Ela própria disse ao senhor que não o conhecia.

- Pode ter me dito, mas não é verdade. E está apaixonada por ele. Quer que o rapaz case com ela.

- Não acredito!

- A senhora não está em condições de saber - aduziu o Inspetor-Chefe. - Malinowski não é desses que contam todos os seus segredos, e a senhora não conhece a sua filha, A senhora mesma o confessou. E ficou zangadíssima, não ficou, quando soube que Malinowski viera ao Hotel Bertram's?

- Por que me zangaria eu?

- Porque a senhora é o cérebro do bando - disse Papai. - A senhora e Henry. O lado financeiro era dirigido pelos irmãos Hoffman. Eles faziam todos os arranjos com os bancos continentais, tratavam das contas e de coisas desse gênero, mas o chefe do sindicato, a cabeça que dirigia e planejava era a sua, Lady Sedgwick.

Bess olhou para o polícia e riu. - Nunca ouvi uma coisa tão ridícula!

- Não, não tem nada de ridículo. A senhora tem inteligência, coragem e ousadia. Já experimentou quase tudo; e achou que podia fazer uma experiência com o crime. Muito emocionante, muito arriscado. Não era o dinheiro que a atraía, quero crer, era o divertimento. Mas a senhora não tolerava assassínios nem violência desnecessária. Não havia mortes, nem assaltos brutais, apenas pancadinhas científicas em algumas cabeças, quando necessário. Sabe, a senhora é uma mulher interessantíssima. Um dos poucos grandes criminosos realmente interessantes.

Houve silêncio por alguns minutos. Por fim, Bess Sedgwick se pôs de pé.

- Acho que o senhor está louco. - E estendeu a mão para o telefone.

- Quer chamar seu advogado? É o melhor que tem a fazer, antes que fale demais.

Com um gesto violento ela recolocou o fone no gancho.

- Pensando bem, eu detesto advogados... Muito bem. Seja como quer. Sim, eu dirijo o espetáculo. E o senhor está muito certo quando diz que era divertido. Adorei cada minuto da aventura. Era divertidíssimo tirar dinheiro de bancos, trens e agências do correio, e dos chamados carros de segurança! Era divertido planejar e decidir; extremamente divertido. Vai-se com muita sede ao pote? Foi isso o que o senhor disse ainda agora, não foi? Creio que é verdade. Bem, valeu a pena o preço da entrada! Mas o senhor está enganado quando diz que Ladislaus Malinowski atirou em Michael Gorman. Não foi ele. Fui eu. - Soltou uma gargalhada repentina, excitada. - Não importa o que ele fez, o que ameaçou... Eu disse a ele que lhe daria um tiro... Miss Marple ouviu... e dei mesmo um tiro nele. Fiz exatamente o que o senhor insinuou que Ladislaus fez. Escondi-me na área. Quando Elvira passou, dei um tiro para o alto, e quando ela gritou e Micky veio correndo pela rua, tive-o na minha mira e atirei! Claro que possuo chaves de todas as entradas do hotel. Meti-me pela porta da área e subi para meu quarto. Não me passou pela cabeça que vocês pudessem descobrir que a pistola era de Ladislaus, ou que viessem a suspeitar dele. Eu tinha furtado a pistola do carro de Ladislaus, escondida dele. Mas, garanto ao senhor, sem a menor idéia de atirar as suspeitas sobre ele. E virou-se rápida para Miss Marple.

- A senhora é testemunha da minha confissão, lembre-se. Eu matei Gorman.

- Ou talvez a senhora esteja dizendo isso porque está apaixonada por Malinowski - sugeriu Davy.

- Não estou. - A resposta veio ríspida. - Sou amiga dele, e só. Ah sim, fomos amantes, quase por acaso, mas não estou apaixonada por ele. Em toda a minha vida amei apenas uma pessoa: John Sedgwick. - Sua voz mudou, suavizando-se ao pronunciar esse nome.

- Mas Ladislaus é meu amigo. E não quero que ele seja incriminado pelo que não fez. Eu matei Michael Gorman. Já o confessei e Miss Marple me ouviu... E agora, meu caro Inspetor-Chefe Davy... - Sua voz elevou-se excitada, e sua gargalhada vibrou no ar... - Venha me pegar, se é capaz.

Com um gesto do braço, rebentou a vidraça da janela com o pesado telefone e, antes que Papai se pusesse de pé, já estava do lado de fora da janela e deslizava rapidamente ao longo da estreita cornija. Com surpreendente rapidez, e

a despeito da sua corpulência, Davy correu para a outra janela e levantou o caixilho. Ao mesmo tempo soprava o apito que tirara do bolso.

Miss Marple, erguendo-se com um pouco mais de dificuldade, um momento depois estava ao lado de Davy. Juntos, alongaram o olhar pela fachada do Hotel Bertram's.

- Ela vai cair. Está subindo pelo cano de esgoto - exclamou Miss Marple. - Mas por que está subindo?

- Vai para o telhado. É a única chance que tem, sabe disso, Deus do céu, olhe! Trepa como um gato. Parece uma mosca presa à parede. Como está se arriscando!

Miss Marple murmurou, com os olhos semicerrados: - Vai cair... Não conseguirá...

A mulher que eles observavam desapareceu. Papai recuou um pouco para dentro do quarto. Miss Marple perguntou :

-O senhor não quer ir e...

Papai abanou a cabeça:

- Que é que eu posso fazer, com esse corpanzil? Tenho os meus homens a postos, prontos para esta eventualidade. Eles sabem o que fazer. Dentro de poucos minutos saberemos o que houve... Se bem que eu não me admire se ela escapulir no nariz deles! É uma mulher como não existe outra, Miss Marple. - Soltou um suspiro. - Uma dessas mulheres indomáveis. Em cada geração aparecem algumas assim. Ninguém consegue domesticá-las, ninguém consegue trazê-las para a comunidade, e fazê-las obedecer à lei e à ordem. Seguem seu próprio caminho. Se são santas, vão tratar de leprosos ou coisa semelhante, e acabam martirizadas nas selvas. Se não prestam, cometem atrocidades em que a gente não pode nem falar. E às vezes... são apenas indomáveis! Acho que teriam dado certo se tivessem nascido em outra época, num tempo em que cada um tinha que tratar de si, em que todos lutavam para se manterem vivos. Riscos a todo momento, perigo em toda parte, e elas próprias um perigo para os demais. Um mundo assim lhes serviria; sentir-se-iam à vontade nele. Este nosso não lhes serve.

- O senhor sabia o que ela ia fazer?

- Na verdade, não. E essa é uma das qualidades dela: realizar o inesperado. Talvez tenha previsto tudo isso. Sabia o que estava por vir. E ficou sentada, olhando para nós, deixando a bola rolar... e pensando. Pensando e planejando. Espero... ah... - Interrompeu-se ao ouvir o súbito ronco do escape de um carro, o uivo estridente dos pneus, o som de um poderoso motor de corridas. - Debruçou-se no peitoril.

- Ela conseguiu. Pegou o carro.

Houve mais um ranger agudo de pneus quando o carro dobrou a esquina só em duas rodas, um ronco potente, e o belo monstro branco apareceu como um bólido na rua.

- Ela vai matar alguém - disse Papai. - Capaz de matar uma porção de gente... mesmo que não consiga se matar.

- Quem sabe se... - disse Miss Marple.

- Ela dirige muito bem, é claro. Dirige danadamente bem. Puxa, por um triz!

Ouviram o barulho do carro a afastar-se, tocando a buzina, e depois o ruído diminuiu. Soaram gritos, berros, ranger de freios, carros buzinando e parando e, por fim, um grande uivo de pneus e os disparos de um cano de escape.

- Ela bateu - observou Papai.

E ficou muito quieto, esperando com a paciência característica da sua grande e pacata corpulência. Miss Marple mantinha-se silenciosa ao lado dele. Então, como numa corrida de revezamento, uma palavra foi transmitida ao longo da rua. Um homem na calçada oposta levantou o rosto para o Inspetor-Chefe Davy e fez rápidos sinais com as mãos.

- Acabou-se - traduziu pesadamente Papai. - Está morta. Foi de encontro às grades do parque a noventa milhas por hora. Não houve ninguém acidentado, só algumas ligeiras colisões. Dirigia maravilhosamente. Sim, está morta. - Voltou-se para o interior do quarto, acrescentando pesadamente: - Bem, primeiro contou a história toda. A senhora ouviu.

- Sim, - disse Miss Marple. - Ouvi. - Houve uma pausa. - Evidentemente era mentira - concluiu ela calmamente.

Papai encarou-a. - A senhora então não acreditou, não foi?

- E o senhor acreditou?

- Não - respondeu Papai. - Não, não era a versão correta. Ela inventou aquilo esperando que se encaixasse na história, mas não era verdade. Não foi ela que atirou em Michael Gorman. Por acaso a senhora sabe quem foi?

- Claro que sei - tornou Miss Marple. - A moça.

- Ah! E quando começou a pensar assim?

- Sempre suspeitei - assegurou Miss Marple.

- Eu também. Ela estava cheia de medo naquela noite. E as mentiras que contava não convenciam. Mas a princípio não consegui descobrir o motivo.

- Isso também me intrigou - disse Miss Marple. - Ela descobrira que a mãe cometera bigamia, mas será que uma moça, hoje em dia, comete um crime por causa disso? Não acredito! Suponho... que foi a questão do dinheiro, não?

- Sim, foi o dinheiro - concordou o Inspetor-Chefe Davy. - O pai deixou uma fortuna colossal. Quando a menina descobriu que a mãe era casada com Michael Gorman, compreendeu que o casamento com Coniston não era legal. Pensou que isso significaria que o dinheiro não seria seu, pois, embora sendo filha dele, não era filha legítima. Estava enganada, sabe? Já lidamos com um caso parecido com esse. Depende dos termos do testamento. Coniston deixou claramente o dinheiro para a filha, citando-a nominalmente. A pequena iria receber o dinheiro de qualquer forma, mas não sabia disso. E não queria perder toda aquela fortuna.

- Por que faria tanta questão do dinheiro?

O Inspetor-Chefe disse, sombrio: - Para comprar Ladislaus Malinowski. Ele só casaria com ela pelo dinheiro. Sem o dinheiro, não casaria. E ela sabia disso. Mas queria o camarada em quaisquer condições. Estava perdidamente apaixonada por ele.

- Eu sei - disse Miss Marple. E explicou: - Vi o rosto dela naquele dia em Battersea Park...

- Ela sabia que, com o dinheiro, ficaria com ele, sem o dinheiro, perdia-o - continuou Papai. - E por isso planejou um assassinato a sangue-frio. Claro que não se escondeu na área. Não havia ninguém na área. Ficou de pé, junto à grade, deu um tiro e gritou; e quando Michael Gorman chegou correndo pela rua, atirou nele à queima-roupa. Depois continuou a gritar. Na maior calma. Não tinha intenção alguma de incriminar Ladislaus. pegou a pistola dele porque era a única arma de que podia dispor facilmente; jamais sonhou que ele pudesse ser suspeito do crime ou que andasse pelos arredores daqui naquela noite. Pensou que o crime seria atribuído a algum bandido que se aproveitara do nevoeiro. Sim, que calma! Mas depois, naquela noite, ela teve medo! E a mãe teve medo por ela.

- E agora... que é que o senhor vai fazer?

- Sei que foi ela a culpada - explicou Papai - mas não tenho provas. Talvez ela se aproveite da sorte dos principiantes... Parece até que hoje a lei aceita o princípio de permitir ao cão a primeira mordida... traduzido em termos humanos. Um advogado experiente pode fazer disso um dramalhão de primeira: uma mocinha, tão jovem, criada em circunstâncias infelizes... além disso, ela é bonita, a senhora sabe.

- Sim - concordou Miss Marple. - Os filhos de Lúcifer quase sempre são belos. E, como sabemos, florescem como o loureiro ver de jante.

- Mas, conforme eu lhe dizia, talvez nem tenhamos um julgamento. Não há provas... pense na senhora mesma... será chamada como testemunha, testemunha do que disse a mãe... da confissão do crime pela mãe.

- Eu sei. Ela procurou me fazer gravar a confissão, não foi? Escolheu a morte para si, ao preço da liberdade da filha.

- Foi como se me fizesse um último pedido...

A porta que dava para o quarto de dormir abriu-se, e Elvira Blake entrou. Usava um vestido liso, azul claro. Os cabelos louros lhe caíam pelas faces. Parecia um daqueles anjos da pintura italiana primitiva. Olhou para Davy e Miss Marple, e disse:

- Ouvi barulho de carro, de colisão, e gente gritando... Houve algum acidente?

- Lamento informá-la, Miss Blake - disse com formalidade o Inspetor-Chefe Davy - que sua mãe está morta.

Elvira deu um pequeno soluço. - Não. - Era um débil, um inseguro protesto.

- Antes de fugir - continuou o Inspetor-Chefe - porque ela morreu na fuga... sua mãe confessou ter matado Michael Gorman.

- Então ela disse... que foi ela...

- Sim. Foi o que ela disse. Tem alguma coisa a acrescentar?

Elvira fitou o Inspetor-Chefe durante bastante tempo. Depois abanou a cabeça, muito de leve.

- Não. Não tenho nada a acrescentar. Deu meia volta e saiu da sala.

- E agora - disse Miss Marple - o senhor vai consentir que ela se safe assim?

Houve uma pausa. Em seguida, o Inspetor-Chefe baixou o punho, dando um murro em cima da mesa:

- Não - berrou ele. - Não, juro por Deus que não vou!

Miss Marple balançou a cabeça lenta e gravemente.

- Que Deus tenha piedade de sua alma - disse ela.

 

                                                                                            Agatha Christie

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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