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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MULHER DO PILOTO / Anita Shreve
A MULHER DO PILOTO / Anita Shreve

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

OUVIU BATER E EM SEGUIDA UM CÃO LADRAR. O Sonho abandonou-a, deslizando para trás de uma porta que se fechava. Não gostou, porque era um sonho agradável, quente e íntimo. Esforçou-se por não acordar. Estava escuro no pequeno quarto, ainda não havia luz por trás dos estores. Estendeu a mão para o candeeiro, tocou no metal, enquanto pensava, O quê? O quê?

O quarto iluminado sobressaltou-a, não se coadunava, parecia um quarto das Urgências à meia-noite. Pensou numa rápida sucessão: Mattie. Depois, Jack. Depois, Vizinho. Depois, Acidente de automóvel. Mas Mattie estava na cama, não estava? Kathryn vira-a ir deitar-se, vira-a caminhar pelo corredor, entrar e fechar a porta, com uma firmeza que por pouco não a fizera bater, o suficiente para se afirmar, mas não para provocar uma repreensão. E Jack - onde estava Jack? Coçou a cabeça metendo os dedos por entre o cabelo achatado pelo sono. Jack estava - onde? Tentou lembrar-se do horário: Londres. Deveria chegar mais ou menos à hora do almoço. Tinha a certeza. Ou ela teria percebido mal e ele perdera de novo as chaves?

Sentou-se e pôs os pés nas tábuas geladas. Nunca compreendera a razão pela qual a madeira numa casa antiga perdia completamente o calor no Inverno. As calças pretas justas tinham-Lhe subido até meio da barriga das pernas e os punhos da camisa com que dormia, uma camisa branca de Jack, já velha, tinham-se desenrolado e chegavam-lhe às pontas dos dedos. já não havia as pancadas na porta e por uns segundos pensou que as tivesse imaginado. Talvez num sonho; por vezes sonhava que acordava dentro de outros sonhos. Estendeu a mão para o pequeno relógio que estava na mesa-de-cabeceira e olhou para o mostrador: 3: 24. Olhou mais de perto para os números fosforescentes e depois voltou a poisar o relógio no tampo de mármore da mesa, com tanta força que a caixa se abriu e a pilha rolou para debaixo da cama.

Mas Jack estava em Londres, repetiu para consigo. E Mattie estava na cama.

 

 

 

 

Ouviu de novo bater, três pancadas rápidas no vidro. Sentiu uma pequena palpitação vir do peito até ao estômago e manter-se aí. Ao longe, o cão recomeçara com os seus latidos curtos e entrecortados.

Deu uns passos cautelosos pelo quarto, como se se movesse demasiado depressa pudesse pôr em movimento qualquer coisa que ainda não começara. Abriu a fechadura da porta do quarto com um suave estalido e desceu pela escada das traseiras. Pensou que a filha estava lá em cima e que deveria ter cuidado.

Atravessou a cozinha e tentou ver pela janela que ficava por cima do lava-loiça, para o caminho que rodeava a casa. Apenas conseguiu ver a forma de um vulgar carro escuro. Voltou a esquina, entrou no hall das traseiras, onde os azulejos estavam ainda pior que o chão de madeira, sentiu o gelo nas solas dos pés. Abriu a luz da porta de trás e, por detrás dos pequenos vidros que havia por cima da porta, viu um homem.

Este pareceu não ficar surpreendido pela luz súbita. Voltou lentamente a cabeça para o lado, sem olhar para o vidro, como se fosse má educação fazê-lo, como se tivesse todo o tempo no mundo, como se não fossem 3: 24 da manhã. Parecia pálido, com o brilho da luz. Tinha as pálpebras pesadas e um bico de viúva, o cabelo era cor de pó, fora cortado muito curto e escovado para trás nos lados. Trazia a gola do sobretudo levantada e tinha os ombros curvados. Moveu-se rapida mente na soleira da porta, batendo com os pés. Ela pôde então avaliá-lo. O rosto longo, um pouco triste; roupas decentes; boca interessante, o lábio inferior levemente curvado e mais cheio do que o superior: não era perigoso. Estendendo a mão para o puxador, pensou: Não é um ladrão, não é um violador. Definitivamente não é um violador. Abriu a porta.

- Mrs. Lyons? - perguntou ele.

Nessa altura percebeu.

Fora o modo como pronunciara o seu nome, o facto de ele conhecer o seu nome. Viu-lhe nos olhos um brilho cauteloso. Ouviu-lhe a respiração um pouco acelerada.

Afastou-se dele e dobrou-se pela cintura. Levou a mão ao peito. Ele estendeu a mão para dentro e tocou-lhe nos rins. O toque fê-la sobressaltar- se. Tentou endireitar-se mas não conseguiu.

- Quando? - perguntou.

Ele entrou em casa e fechou a porta.

- Hoje de manhã, muito cedo.

- Onde?

A cerca de quinze quilómetros ao largo da costa da Irlanda.

- Na água?

- Não. No ar.

- Oh... - Levou a mão à boca.

- Foi com certeza uma explosão - disse ele rapidamente.

- Tem a certeza de que era jack?

Ele desviou os olhos por uns momentos.

- Sim.

Segurou-a pelos cotovelos quando ela se deixou cair. Ficou momen taneamente embaraçada, mas não o conseguiu evitar, as pernas faltaram- lhe. Não sabia que o corpo a podia abandonar assim, ceder daquela maneira. Ele segurava-lhe os cotovelos, mas ela queria os braços de volta. Suavemente ele baixou-a até ao chão.

Ela inclinou o rosto para os joelhos e envolveu a cabeça com os braços. Ouvia dentro de si um ruído branco e não conseguia ouvir o que ele lhe dizia. Conscientemente tentou respirar, encher os pulmões. Ergueu a cabeça e inspirou enormes golfadas de ar. Como que ao longe, ouviu um estranho som sufocado, que não seria exactamente um choro pois o seu rosto estava seco. Atrás de si, o homem tentava erguê-la.

- Deixe-me arranjar-lhe uma cadeira - disse ele.

Ela balançou a cabeça de um lado para o outro. Queria que a largasse. Queria deitar-se nos azulejos, esvair-se no chão.

Desajeitadamente, ele meteu os braços por baixo dos dela. Deixou que a ajudasse.

- Vou... - disse ela.

Rapidamente empurrou-o com as palmas das mãos e encostou-se à parede, para se apoiar. Tossiu e teve um vómito, mas não tinha nada no estômago.

Quando olhou de novo para cima, viu que ele estava apreensivo. Pegou-lhe no braço e obrigou-a a voltar o canto para ir para a cozinha.

- Sente-se nesta cadeira - disse. - Onde está o interruptor?

- Na parede.

Tinha a voz rouca e fraca. Percebeu que estava a tremer.

Ele procurou o interruptor e encontrou-o. Ela ergueu a mão diante do rosto para se proteger da luz. Instintivamente, não queria que a vissem.

- Onde tem os copos? - perguntou ele.

Ela apontou para o armário. Ele encheu um copo de água e entregou-lho, mas ela não conseguia agarrá-lo com firmeza. Ele segurou-lhe os dedos enquanto ela bebia um gole.

- Está em choque - disse. - Onde posso arranjar-lhe um cobertor?

- É da companhia de aviação? - perguntou ela.

Ele despiu o sobretudo e o casaco e pôs-lhe o casaco por cima dos ombros. Obrigou-a a meter os braços nas mangas, que pareciam surpreendentemente sedosas e quentes.

- Não - disse ele. - Do sindicato.

Ela acenou lentamente com a cabeça, tentando perceber.

- Robert Hart - disse ele, apresentando- se.

Ela acenou de novo, bebeu outro gole de água. Tinha a garganta seca e a doer-lhe.

- Estou aqui para a ajudar - disse. - Vai ser difícil. A sua filha está em casa?

- Sabe que eu tenho uma filha? - perguntou ela rapidamente. Depois pensou, claro que sabe.

- Quer que seja eu a dizer-lhe? - perguntou ele.

Kathryn abanou a cabeça.

- Diziam sempre que o sindicato seria o primeiro a chegar - disse ela. - Quer dizer, as esposas. É preciso acordá- la já?

Ele olhou rapidamente para o relógio e depois para Kathryn, como se calculasse quanto tempo tinham ainda.

- Dentro de uns minutos - disse. - Quando estiver preparada. Leve o tempo que quiser.

O telefone tocou, qual rebordo serrado no silêncio da cozinha. Robert Hart atendeu imediatamente.

- Sem comentários - disse.

- Sem comentários.

- Sem comentários.

- Sem comentários.

Ela viu-o colocar o auscultador no descanso e massajar a testa com os dedos. Tinha dedos grossos e mãos enormes, mãos que pareciam demasiado grandes para o seu corpo.

Olhou para a camisa do homem, branca com uma risca cinzenta, mas apenas viu um avião de brincar a explodir à distância, num céu de brincar.

Queria que o homem do sindicato se voltasse e lhe dissesse que estava enganado: que o avião não era aquele; que ela não era a mulher; que não acontecera como ele dissera que tinha acontecido. Quase con seguia sentir a alegria que seria.

- Quer chamar alguém? - perguntou ele. - Para ficar consigo.

- Não - respondeu. - Sim. - Fez uma pausa. - Não. Abanou a cabeça. Ainda não estava preparada. Baixou os olhos e fixou-os no armário debaixo do lava-loiça. Que estaria lá dentro? Detergentes. A graxa preta dos sapatos de Jack. Mordeu o interior da face e olhou à volta da cozinha, para a mesa de pinho, rachada, com um tapete manchado por baixo, o armário antigo. O marido engraxara ali os sapatos dois dias antes, com o pé apoiado numa gaveta, que abrira para o efeito. Costumava ser a última coisa que fazia antes de ir trabalhar. Ela sentava-se numa cadeira a olhar para ele e ultimamente tinha-se tornado numa espécie de ritual, numa parte das suas despedidas.

Fora sempre difícil para ela que ele saísse de casa - por muito trabalho que tivesse para fazer, por muito que desejasse ter tempo para si. E não era que tivesse medo. Habituara-se a não o ter. Era mais seguro do que conduzir um automóvel, dizia sempre ele e tinha uma confiança descontraída, como se a sua segurança não fosse digna de ser discutida. Não, não se tratava da segurança. Era o acto de partir, em si, de Jack sair de casa, que sempre lhe fora difícil. Muitas vezes, ao vê-lo sair pela porta, com o volumoso saco de voo numa mão e o da roupa na outra, o boné do uniforme metido debaixo do braço, sentia que de um modo profundo ele separava-se dela. E claro que assim era. Deixava-a para se meter pelo ar fora num avião de 170 toneladas, atravessando o oceano a caminho de Londres, Amesterdão ou Nairobi. Não era um sentimento difícil e desvanecia-se em poucos momentos. Por vezes, Kathryn ficava de tal modo habituada à sua ausência, que se irritava com a alteração da rotina provocada pelo seu regresso. Depois, três ou quatro dias mais tarde, o ciclo recomeçava.

Não pensava que jack sentisse as suas idas e vindas do mesmo modo que ela. Afinal, partir não era o mesmo que ser deixado.

Sou apenas um condutor de autocarros mais glorificado, costumava dizer.

E nem por isso tão glorificado assim, acrescentava.

Costumava dizer. Tentou convencer-se. Tentou entender que Jack já não existia. Mas apenas conseguia ver balões de fumo de banda desenhada, linhas desenhadas em todas as direcções. Deixou a imagem escapar com a mesma rapidez com que chegara.

- Mrs. Lyons? Haverá uma televisão em qualquer outra sala onde seja possível eu dar uma olhadela? - perguntou Robert Hart.

- Na sala da frente - disse ela, indicando-lha.

- Precisava de saber o que estão a dizer.

- Tudo bem - disse ela. - Não há problema.

Ele assentiu, mas parecia relutante. Ela viu-o sair da cozinha. Fechou os olhos e pensou: De certeza que não consigo dizer a Mattie.

Imaginava já como seria. Abriria a porta do quarto de Mattie e veria na parede os posters de Less Than Jake e de ski no Colorado. No chão deveria haver duas ou três mudas de roupa viradas do avesso. O equipamento desportivo atirado para um canto - os skis e os bastões, a tábua de snowboard, os sticks de hóquei em campo e de lacrosse. O quadro de recados coberto de bandas desenhadas de fotografias dos amigos: Taylor, Alyssa e Kara, miúdas de quinze anos, com rabos de cavalo e longas madeixas à frente. Mattie estaria enrolada debaixo do edredão azul e branco e fingiria não ouvir, até que Kathryn a chamasse pela terceira vez. Depois endireitar-se-ia, a princípio irritada por ter sido acordada, pensando que eram horas de ir para a escola e perguntando a si própria por que razão teria Kathryn entrado no seu quarto. O cabelo de Mattie, ruivo-alourado, com fios metálicos, estaria espalhado sobre os ombros e os pequenos seios estariam cobertos por uma T-shirt púrpura com letras brancas a dizerem Ely Lacrosse". Colocaria as mãos atrás de si, sobre o colchão e erguer-se-ia.

- Que se passa mãe? - haveria de perguntar.

Seria assim.

- Que se passa, mãe?

E repetiria com a voz instantaneamente mais aguda.

- Mãe, o que é?

Kathryn teria de se ajoelhar junto à cama e dizer à filha o que tinha acontecido.

- Não, mãe! - exclamaria Mattie. - Não, mãe!

Quando Kathryn abriu os olhos ouviu o murmúrio surdo da televisão.

Levantou-se da cadeira da cozinha e dirigiu-se à sala da frente, que era comprida e tinha seis pares de janelas a toda a altura da parede, que davam para o relvado e para a água. A árvore de Natal que estava ao canto fê-la parar à entrada. Robert Hart estava sentado no sofá, inclinado para a frente e um velho estava a ser entrevistado na televisão. Perdera o princípio da notícia. Era a CNN ou talvez a CBS. Robert olhou rapidamente para ela.

- Tem a certeza de que quer ver isto? - perguntou.

- Por favor - disse. - Preferia ver.

Entrou na sala e aproximou-se da televisão.

Chovia no sítio onde estava o velho e mais tarde passaram em rodapé o nome dele e do local onde se encontrava. Malin Head, na Irlanda. Não conseguia imaginar onde ficava no mapa. Nem sequer sabia em qual das Irlandas era. A chuva escorria pelas faces do velho, que tinha papos brancos debaixo dos olhos. A câmara mudou de posição, mostrando o relvado da aldeia, com as suas fachadas de um branco imaculado, mesmo em frente. No centro de um quarteirão de prédios, havia um hotel de ar triste e ela leu o nome escrito num pequeno toldo: Malin Hotel. Havia homens à porta, segurando nas mãos canecas de chá ou café, olhando timidamente as equipas da televisão. A câmara

voltou ao velho e aproximou-se-lhe do rosto. Parecia ter no olhar uma expressão de surpresa e a boca aberta, como se tivesse dificuldades em respirar. Kathryn viu-o na televisão e pensou: É com isto que me pareço agora. Tenho o rosto cinzento. Os olhos fixos numa coisa que nem está lá. A boca aberta como a de um peixe pendurado num anzol.

A entrevistadora, uma mulher de cabelo escuro e guarda-chuva preto, pediu ao velho que descrevesse o que vira.

Havia luar e a água estava escura, disse ele hesitante.

Tinha a voz rouca e um sotaque tão cerrado que tiveram de pôr legendas no fundo do ecrã para se perceber o que dizia.

Caiam bocados de prata do céu ao lado do barco, disse.

Os bocados agitavam-se como pássaros.

Pássaros feridos. Caindo. Rodopiando em espiral.

Dirigiu-se ao aparelho de televisão e ajoelhou-se no tapete de modo a ficar com o rosto ao nível do velho no ecrã. O pescador agitava as mãos para acentuar o que queria dizer. Fez a forma de um cone com os dedos, movia-os para baixo e para cima e depois desenhou um rebordo recortado. Disse à entrevistadora que nenhum dos estranhos bocados tinha vindo parar ao seu barco e quando se dirigira aos sítios onde as coisas pareciam ter caído, estas já tinham desaparecido ou afundado no mar e não as conseguira apanhar, nem mesmo com as redes.

De frente para a câmara a repórter disse que o homem se chamava Eamon Gilley. Tinha oitenta e três anos, acrescentou, e fora a primeira testemunha ocular a apresentar-se. Mais ninguém parecia ter visto o que o pescador vira e ainda nada fora confirmado. Kathryn tinha a sensação de que a repórter desejava que a história de Gilley fosse verdade, mas sentira-se obrigada a dizer que poderia não ser.

Kathryn, porém, sabia que era verdade. Conseguia ver a luz da Lua sobre o mar, o seu brilho e cintilação, os bocados prateados a cair do céu, a cair, a cair como pequenos anjos que chegassem à terra. Conseguia ver o barquinho na água e o pescador à proa - o rosto voltado para a Lua e as mãos estendidas. Conseguia vê-lo arriscando desequilibrar-se para apanhar os bocados que flutuavam no ar, tal como uma criança que quer apanhar os insectos numa noite de Verão. Depois pensou que uma desgraça - uma desgraça daquelas, que nos sugava todo o sangue do corpo e o ar dos pulmões, atingindo-nos no rosto uma e outra vez - pudesse, por vezes ser uma coisa tão bela.

Robert estendeu o braço e apagou a televisão.

- Sente-se bem? - perguntou.

- Quando disse que tinha acontecido?

Ele descansou os cotovelos nos joelhos e cruzou as mãos.

- Uma e cinquenta e sete nossas. Seis e cinquenta e sete deles. Tinha uma cicatriz sobre a sobrancelha. Devia ter quase quarenta anos, pensou, mais perto da sua idade que da de Jack. Tinha a pele clara dos louros e olhos castanhos com palhetas cor de ferrugem na íris. Jack tinha olhos azuis de duas cores diferentes - um era de um azul deslavado, quase translúcido, da cor de um céu de aguarela; o outro, bri lhante, azul mais escuro. A invulgar diferença de cores atraía a si outros olhares e fazia com que as pessoas lhe observassem o rosto como se esta característica assimétrica sugerisse desequilíbrio, talvez qualquer coisa que não estivesse certa.

Pensou: Será este o trabalho deste homem?

- Foi essa a hora da última comunicação - disse o homem do sindicato, numa voz que mal conseguia ouvir.

- Qual foi a última comunicação? - perguntou.

- Foi de rotina.

Ela não acreditou. O que haveria de rotina numa última comunicação?

- Sabe quais são as perguntas mais comuns de um piloto que vai cair? - perguntou. - Bom, claro que sabe.

- Mrs. Lyons - disse ele, voltando-se para ela.

- Kathryn.

- A senhora ainda está em choque. Deveria tomar qualquer coisa doce. Tem sumo?

- No frigorífico. Foi uma bomba, não é verdade?

- Quem me dera poder dizer-lhe mais alguma coisa. Ele levantou-se e dirigiu-se à cozinha. Ela apercebeu-se de que ainda não tinha vontade de ficar sozinha numa sala e por isso foi atrás dele. Olhou para o relógio em cima do lava-loiça: 3: 38. Seria possível que apenas se tivessem passado catorze minutos desde que espreitara lá em cima para o relógio da mesa-de-cabeceira?

- Chegou cá depressa - disse ela, sentando-se de novo na cadeira da cozinha.

Ele despejou sumo de laranja num copo.

- Como conseguiu? - perguntou.

- Temos um avião - disse ele em voz baixa.

- Não, diga-me! Como conseguem? Tem um avião à espera? Ficam sentados à espera de um acidente?

Ele entregou-lhe um copo de sumo. Encostou-se ao lava-loiça e passou o dedo médio da mão direita pela testa num movimento vertical, da cana do nariz até à raiz do cabelo. Parecia estar nessa altura a tomar decisões, a ponderar.

- Não, não é assim - disse. - Não me e permitido falar do acidente. Mas se ocorre, temos tudo preparado

no Washington National. Leva-me ao aeroporto mais próximo.

Neste caso, Portsmouth.

- E depois?

- Depois há um carro à espera.

- E fê-lo em...

Calculou o tempo que lhe levaria a chegar de Washington, onde ficava a sede do sindicato, até Ely, New Hampshire, na costa do estado de Massachusetts.

- Um pouco mais de uma hora - disse.

- Mas porquê? - perguntou ela. - Para a informar.

- Para ser o primeiro a chegar - respondeu.

Para a ajudar em tudo isto.

- A razão não é essa - disse ela rapidamente.

Ele pensou durante um minuto.

- Em parte é.

Ela passou a mão pela superfície rachada da mesa de pinho.

Ela pôs a cabeça de lado e fechou os olhos. A dor parecia estender-se do abdómen à garganta. Sentiu pânico, como se se estivesse a aproximar da borda de um precipício. Susteve a respiração com tanta força, que Robert olhou para ela.

Depois passou do choque ao desgosto, como se tivesse entrado noutro compartimento.

As imagens assaltavam-na. A sensação do hálito de Jack no cimo da sua coluna, como se lhe murmurasse aos ossos. A sensação escorregadia da sua boca quando lhe dava um beijo rápido e ia trabalhar. A curva do seu braço à volta de Mattie, no seu último jogo de hóquei, quando Mattie estava peganhenta, suada e chorosa, pois a sua equipa tinha perdido oito a zero. A pele pálida no interior do braço de Jack. A pele levemente marcada das suas omoplatas, legado da adolescência. A estranha sensibi lidade dos seus pés, o modo como não conseguia andar na areia sem ténis. O seu calor, mesmo nas noites mais frias, como se uma fornalha interior ardesse de modo extravagante. As imagens empurravam-se, colidiam e competiam rudemente umas com as outras, procurando espaço. Tentou detê- las, mas não conseguiu.

O homem do sindicato ficou junto ao lava-loiça, olhando-a. Não se mexia.

- Amava-o - disse ela, quando conseguiu falar.

Levantou-se e arrancou uma folha de papel de cozinha, do suporte. Assoou o nariz. Sentiu o espanto momentâneo dos tempos verbais. Perguntou a si mesma se o tempo estaria a abrir um envelope para depois a engolir - durante um dia, uma semana, um mês, ou possivelmente para sempre.

- Eu sei - disse Robert.

- É casado? - perguntou, sentando-se de novo.

Ele meteu as mãos nos bolsos das calças e fez tilintar as moedas que lá tinha. Trazia umas calças cinzentas, de fato. jack quase nunca usava fato. Como muitos homens que usam uniforme para trabalhar, nunca fora um homem muito bem-vestido.

- Não - disse. - Sou divorciado.

- Tem filhos?

- Dois rapazes. Um de nove anos e outro de seis.

- Vivem consigo?

- Com a minha mulher, em Alexandria. A minha ex-mulher.

- Vê-os muitas vezes?

Tento.

- Porque se divorciou?

- Deixei de beber - respondeu.

Disse-o como que por acaso, sem qualquer explicação. Ela não teve a certeza de ter entendido. Assoou-se de novo.

- Tenho de avisar a escola. Sou professora.

- Isso pode esperar. De qualquer modo não está lá ninguém a esta hora. Ainda está toda a gente a dormir. - Olhou para o relógio.

- Fale-me do seu trabalho - pediu ela.

- Não há muito que dizer. Praticamente sou relações públicas.

- Quantas coisas destas já teve de fazer? - perguntou ela.

- Coisas?

- Acidentes - disse. - Acidentes.

- Cinco - respondeu finalmente. - Cinco muito importantes.

- Cinco?

- E quatro mais pequenos.

- Conte-me - pediu.

Ele olhou para a janela. Passaram trinta segundos. Um minuto, talvez. Ela teve de novo a sensação de que ele estava a ponderar, a tomar decisões.

- Uma vez fui a casa da viúva - disse - e encontrei-a na cama com outro homem.

- Onde fica isso?

- Westport. No Connecticut.

- Que aconteceu?

- A mulher desceu de roupão e eu disse-lhe, a seguir o homem vestiu-se e desceu também. Era um vizinho. Depois ele e eu ficámos na cozinha a vê-la ir-se abaixo. Foi uma complicação.

- Conhecia-o? - perguntou Kathryn. - O meu marido?

- Não - disse. - Lamento.

- Era mais velho que o senhor.

- Bem sei.

- Que mais lhe disseram a respeito dele?

- Onze anos com a Vision. Antes disso, cinco anos em Santa Fé. Antes disso, dois anos em Teterboro. Dois anos no Vietname, bombardeiros DC-3. Nasceu em Bóston. Faculdade, Holy Cross. Uma filha de quinze anos e mulher. - Pensou durante um minuto. - Alto. Um metro e noventa? Em forma.

Ela assentiu.

- Bom currículo, ou melhor dizendo, um currículo excelente. Coçou as costas de uma mão.

- Lamento - disse. - Lamento conhecer todos estes factos a respeito do seu marido e não o conhecer a ele.

- Disseram-lhe alguma coisa a meu respeito?

- Apenas que era quinze anos mais nova do que o seu marido. E que estaria aqui com a vossa filha.

Ela examinou os pés, que eram pequenos e brancos, como se o sangue os tivesse abandonado. As plantas não estavam limpas.

- Quantas pessoas havia a bordo? - perguntou.

- Cento e quatro.

- Não ia cheio - comentou ela.

- Não, não ia cheio.

- Há sobreviventes?

- Estão a proceder a buscas...

Intrometiam-se agora outras imagens. Um momento de conhecimento - que conhecimento? - na cabine. As mãos de Jack nos controles. Um corpo girando no ar. Não. Nem sequer era um corpo. Abanou a cabeça agitada.

- Tenho de ser eu a dizer-lhe, sozinha - disse.

Ele assentiu rapidamente, como se isso já estivesse decidido.

- Não - disse. - Tem de sair cá de casa. Não quero que ninguém veja ou oiça nada disto.

- Vou sentar-me no carro - disse.

Ela despiu o casaco que ele lhe tinha dado. O telefone tocou de novo, mas nenhum deles se moveu. Ouviram ao longe o estalido do atendedor de chamadas.

Não estava preparada para ouvir a voz de Jack, profunda e amigável, com um leve sotaque de Bóston nas vogais, com a sua mensagem familiar. Escondeu o rosto nas mãos e esperou pelo fim da mensagem.

Quando levantou os olhos viu que Robert a observava, desviando depois o olhar.

- É para me impedir de falar com a imprensa, não é? - perguntou. - É por isso que está aqui. - Um carro passou na rua, fazendo ranger a gravilha. O homem do sindicato olhou pela janela, apanhou o casaco e vestiu-o. - É para que eu não diga nada que os possa levar a pensar que foi falha do piloto - disse. - Não quer que pensem em falha do piloto.

Ele levantou o auscultador do descanso e colocou-o na bancada. Tempos depois, ela e Jack praticamente tinham deixado de fazer amor na cozinha. Tinham dito um ao outro que Mattie era mais crescida e poderia vir à cozinha para comer alguma coisa. A maior parte das noites, depois de Mattie ir para o quarto ouvir CDs ou falar ao telefone, sentavam-se apenas à mesa a ler revistas, demasiado cansados para meter os pratos na máquina ou mesmo para conversar.

- Vou dizer-lhe agora.

Ele hesitou.

- Entende que não podemos ficar muito tempo lá fora - disse.

- São da companhia aérea, não são? - perguntou ela, olhando pela janela da cozinha. Via na rua duas formas sombrias a sair de um carro. Dirigiu-se às escadas.

Olhou para cima. Havia pelo menos quinhentos degraus, pelo menos quinhentos. Eram cada vez mais. Apercebeu-se de que alguma coisa tinha sido posta em movimento e que começava agora. Não tinha a certeza de ter energia suficiente para chegar ao cimo.

Olhou para o homem do sindicato, que atravessava a cozinha para ir abrir a porta.

- Mãezinha - disse ela e ele voltou-se. - O que costumam dizer é Mãezinha.

 

O BRILHO DO SOL REFLECTIDO NUM CARRO, que passava de vez em quando, move-se ao longo da parede das traseiras da loja como uma luz de discoteca. Hoje a loja parece abafada, sufocante de calor, o ar espesso, com colunas de pé flutuando nos raios de luz. Ela está ali, com um trapo na mão, num labirinto de mesas de mogno e nogueira, de lâmpadas, linhos antigos e livros que cheiram a bafio. Olhou-o quando o viu entrar. Teve a impressão de ser uma entidade oficial com uma tarefa definida ou alguém que se perdera e vinha pedir indicações. Tinha uma camisa branca de mangas curtas que se espetavam dos ombros dele como finas bandeiras brancas. Calças grossas azul-escuras. Usava sapatos de velho, pretos, pesados e enormes.

- Estamos fechados - diz ela.

Ele olha rapidamente para trás de si e vê a placa a dizer ABERTO no lado de dentro da porta. Coça a nuca.

- Desculpe - diz, e volta-se para se ir embora.

Ela sempre se maravilhara com a rapidez com que o cérebro toma decisões - um segundo, dois, no máximo, mesmo antes de alguém se mexer ou dizer uma palavra. Trinta e poucos anos, pensa. Não é exactamente gordo, mas grande. Tem ombros largos e pensa imediatamente que não tem o mínimo ar de anémico. A princípio, fica fascinada pela linha do maxilar, que é rectangular e macio, e pelas orelhas, cómicas até certo ponto, que se aguçam na ponta. Parece-lhe que tem qualquer coisa de estranho nos olhos.

- Estou a fazer o inventário, mas se anda à procura de alguma coisa, tudo bem - diz ela.

Ele passa para um cone de luz do Sol que provém de uma janela redonda sobre a porta. Ela consegue ver-lhe claramente o rosto.

Tem pequenas rugas nos cantos dos olhos e os dentes não são perfeitos. O cabelo muito curto, com corte militar; é escuro, quase preto, e seria encaracolado se estivesse mais comprido. Tem uma marca no cabelo, como se momentos antes tivesse usado boné.

Mete as mãos nos bolsos das calças. Pergunta-lhe se tem tabuleiros antigos de damas.

- Sim - diz ela.

Dirige-se à parede oposta, através do labirinto, pedindo desculpa pela desarrumação. Tem consciência da presença dele atrás de si, do seu andar e postura, que de súbito lhe parecem pouco naturais e demasiado rígidos. Ela traz umas calças de ganga, camisola de alças vermelha e um par de velhas sandálias de couro. Sente o cabelo solto e pegajoso na nuca e parece-lhe que o calor e a humidade, combinados com a poeira que tem levantado, criaram nela uma espécie de película su a. Ao olhar para o seu reflexo no mosaico de um espelho antigo vê algumas madeixas de cabelo molhadas de ambos os lados do rosto, que está brilhante de transpiração. Vê-se a alça do soutien, um raio branco debaixo do vermelho, e a camisola tem uma mancha azul de qualquer coisa que debotou na lavagem.

O tabuleiro está encostado à parede, junto com alguns quadros antigos. O homem movimenta-se diante dela e inclina-se para conseguir ver melhor. Vê a força das suas pernas, o comprimento das costas dobradas, o sítio onde o cinto lhe fazia pressão. Repara nas divisas nos ombros.

- O que é isto? - pergunta ele, atraído por um quadro ao lado do tabuleiro. É uma paisagem, uma representação impressionista de um hotel nas ilhas dos Cardumes. O hotel é antigo, do século dezanove, com enormes varandas e um relvado comprido e macio no meio de uma paisagem rochosa, a qual ela nunca viu antes.

Ele endireita-se e mostra-lhe o quadro, ao qual ela não prestara grande atenção.

- Parece-me muito bom - diz ele. - Quem é o artista? Ela inclina a cabeça e lê o que está atrás do quadro:

- Claude Legny - diz. - Mil oitocentos e noventa. Diz aqui que veio de um leilão em Portsmouth.

- Parece um Childe Hassam - comentou ele.

Ela não responde. Não sabe o que é um Childe Hassam. Ele percorre com os dedos a moldura de madeira e a ela parece-lhe que alguém lhe percorria a espinha de cima a baixo.

- Qual é o preço? - pergunta.

- Vou ver - respondeu.

Vão até à caixa registadora. Quando encontra o preço, vacila, pois parece-lhe muito elevado. Sente-se embaraçada por pronunciar tal quantia, mas a loja não é dela e deveria tentar fazer uma venda para a avó.

Quando lhe diz o preço, ele nem pestaneja.

- Vou levá-lo - diz.

Entrega-lhe o dinheiro e ela dá-lhe o recibo, que ele enfia distraidamente no bolso da camisa. Ela interroga-se sobre a razão de ele, sendo militar, não estar na base à quarta-feira à tarde.

- O que faz? - pergunta ela, olhando de novo para as divisas que ele tem nos ombros.

- Transportes de carga - responde. - Estou de folga. Pedi o carro emprestado a um agente de bilhetes do aeroporto e ando a dar umas voltas.

- É aviador - diz ela, afirmando o óbvio.

- Sou como um camionista, só que conduzo um avião - diz ele, olhando-a intencionalmente.

- O que transporta no seu avião? - pergunta ela.

- Cheques cancelados.

- Cheques cancelados?

Ela ri. Tenta imaginar o avião completamente cheio de cheques cancelados.

- Bela loja - diz ele, olhando à volta.

- É da minha avó. - Cruza os braços. - Tem os olhos de duas cores diferentes, diz.

- É genético. Do lado do meu pai. - Fez uma pausa. - Os olhos são os dois verdadeiros, para o caso de querer saber.

- Por acaso queria.

- Tem um cabelo muito bonito - diz ele.

- É genético - diz ela.

Ele acena afirmativamente, como que a dizer touché.

- É... de que cor? - pergunta.

- Vermelho.

- Não, isto é...

- Depende da luz.

- Quantos anos tem?

- Dezoito.

Ele parece surpreendido. Apanhado de surpresa.

- Porquê? - pergunta ela. - Que idade tem?

- Trinta e três. Pensei...

- Pensou o quê?

Que era mais velha, não sei.

A diferença de idades estende-se diante deles, os quinze anos.

- Olhe - diz ele.

- Olhe - diz ela.

Ele pôs a mão na caixa registadora.

- Nasci em Bóston - diz - e cresci em Chelsea, que é uma parte de Bóston que não vai querer conhecer. Andei no Bóston Latin e no Holy Cross. A minha mãe morreu quando eu tinha nove anos e o meu pai teve um ataque de coração quando eu estava na faculdade. Tinha um número baixo, fui seleccionado para a tropa e aprendi a voar no Vietname. Actualmente não tenho namorada e nunca fui casado. Vivo num apartamento de duas divisões em Teterboro. É muito pequeno e quase nunca...

- Pare - disse ela.

- Quero despachar já esta parte.

Então ela percebe, de um modo que raramente lhe foi permitido perceber tais coisas nos seus dezoito anos; sabe que tem tudo na mão naquele momento, que pode fechar os dedos e agarrar com força, para nunca o soltar. Assim, tão simples quanto isso.

- Sei onde fica Chelsea - diz.

Passam dez segundos, talvez vinte. Ficam no brilho quente da loja, nenhum dos dois fala. Ela sabe que ele a quer tocar. Sente o calor da sua pele mesmo do outro lado da bancada. Respira lentamente e ao de leve, tentando não lhe atrair a atenção para o esforço. Tem um desejo novo e avassalador de fechar os olhos.

- Está calor aqui dentro - diz ele.

- Está calor lá fora - diz ela.

- Calor fora de época.

- Ainda só estamos em Junho.

- Quer ir dar uma volta de carro? - pergunta. - Para refrescar?

- Onde? - pergunta ela.

- A qualquer lado. Só um passeio.

Ela deixa que ele lhe encontre o olhar. Ele sorri lentamente e o sorriso apanha-a de surpresa.

Vão até à praia e acabam por ir nadar vestidos. A água está gelada, mas o ar está quente, de modo que o contraste é delicioso. Jack estraga o uniforme e mais tarde tem de pedir outro emprestado. Quando ela sai da água, ele está ali, de mãos nos bolsos e com um cobertor dobrado debaixo do braço. As roupas encharcadas pendem-lhe no corpo e a camisa ficou translúcida, da cor da carne.

Deitam-se na areia sobre o cobertor. Ela treme encostada à sua camisa molhada. Ele mantém os dedos da mão esquerda presos, enrolados no cabelo dela, enquanto a beija e mete a mão por baixo da camisola de alças, ao longo do estômago liso. Ela sente os membros soltos, soltos e abertos - como se alguém tivesse puxado um fio e a estivesse a desen rolar.

Põe a mão sobre a dele. Está estranhamente quente, áspera, cheia de areia e abrasiva. Sente-se feliz, de uma felicidade, pura sem ser diluída. Sabe que está tudo a começar.

 

MESMO ANTES DE KATHRYN CHEGAR AO CIMO DAS ESCADAS, já ouvia Mattie na casa de banho. O cabelo da filha era bonito e naturalmente encaracolado, mas todas as manhãs Mattie levantava-se para o lavar e para se dar ao trabalho de o esticar com o secador. Parecia sempre a Kathryn que Mattie tentava domar o cabelo, como se lutasse contra uma parte de si mesma que tivesse emergido pouco tempo antes. Kathryn esperava que Mattie ultrapassasse essa fase e pensava que em breve a filha acordaria e deixaria o cabelo natural. Nessa altura, Kathryn saberia que tudo estava bem.

Provavelmente Mattie ouvira já os carros na rua, pensou Kathryn. Talvez também tivesse ouvido vozes na cozinha. Mattie estava habituada a acordar no escuro, principalmente no Inverno.

Sabia que teria de tirar Mattie da casa de banho. Pensava já que não seria um sítio seguro para falar com a filha.

Ficou à porta. Mattie tinha aberto o chuveiro. Kathryn ouvia-a a despir-se.

Kathryn bateu.

- Mattie - disse.

- O que é?

- Preciso de falar contigo.

- Mãezinha... - Mattie disse-o de um modo familiar e cantado, como se já estivesse aborrecida. - Não posso. Estou a tomar duche.

- Mattie, é importante.

- O quê?

A porta da casa de banho abriu-se de repente. Mattie tinha uma toalha verde enrolada à sua volta.

A minha filha, tão bonita e amorosa, pensou Kathryn. Como é que lhe posso fazer isto?

As mãos de Kathryn começaram a tremer. Cruzou os braços no peito e meteu as mãos sob as axilas.

- Põe o roupão, Mattie - disse Kathryn, sentindo que ia começar a chorar. Nunca chorava diante de Mattie. - Preciso de falar contigo. É importante.

Mattie apanhou o roupão do cabide e vestiu-o, obedecendo, de espantada que estava.

- Que se passa, mãe?

O espírito de uma criança não o consegue perceber, concluiu depois Kathryn. O corpo de uma criança não pode absorver factos tão grotescos.

Mattie deixou-se cair no chão, como se lhe tivessem dado um tiro. Ergueu furiosamente os braços por cima da cabeça e Kathryn pensou em abelhas. Tentou agarrar nos braços de Mattie e apertá-la contra si, mas Mattie afastou-a e fugiu. Saiu de casa e já ia a meio do relvado quando Kathryn conseguiu apanhá-la.

- Mattie, Mattie, Mattie - gritou Kathryn quando conseguiu alcançá-la.

Repetiu-o uma vez e outra.

- Mattie, Mattie, Mattie.

Kathryn pôs as mãos atrás da cabeça de Mattie, puxando-lhe o rosto com força para junto do seu, como se lhe quisesse dizer que tinha de a ouvir, que não havia nada a fazer.

- Eu tomo conta de ti - disse Kathryn.

Depois repetiu.

- Escuta, Mattie. Tomo conta de ti.

Kathryn apertou a filha nos braços. Sentiam a geada nos pés. Mattie estava agora a chorar e Kathryn pensou que se lhe partia o coração. Mas sabia que assim era melhor. Assim, era melhor.

Kathryn ajudou Mattie a entrar em casa e obrigou-a a estender-se no sofá. Envolveu a filha num cobertor, apertou-a contra si, esfregando-lhe os braços e as pernas, para que deixasse de tremer. Robert tentou dar água a Mattie, mas esta engasgou- se. Chamaram Julia, a avó de Kathryn, que a tinha criado. Kathryn apercebeu-se vagamente de que havia outras pessoas em casa, um homem e uma mulher de fato, junto à bancada da cozinha, à espera.

Ouvia Robert ao telefone e depois a falar em voz baixa com as pessoas da companhia aérea. Não tinha percebido que a televisão estava ligada, mas, de súbito, Mattie sentou-se e olhou para ela.

- Falaram em bomba? - perguntou Mattie.

Kathryn ouviu depois o noticiário, em retrospectiva, apercebendo-se de que tinha ouvido subliminarmente todas as palavras e que estas estavam no seu espírito à espera de serem solicitadas.

Mais tarde, Kathryn viria a pensar que os noticiários eram como balas. Balas de palavras, que lhe entravam na cabeça e explodiam, apagando as recordações.

- Robert - chamou.

Ele entrou na sala e ficou ao lado dela.

- Não está confirmado - disse.

- Pensam que foi uma bomba?

- É apenas uma teoria. Dê-lhe um destes.

- O que é isso?

- É valium.

- Costuma andar sempre com eles? - perguntou.

Julia andava pela casa com a presença impassível de um membro da protecção civil numa zona de catástrofe: irreverente em relação à morte e recusando sentir-se amedrontada. Com ar de matrona e permanente de caniche - única concessão feita à idade que tinha - retirou Mattie do sofá e levou-a para cima em poucos minutos. Quando Julia teve a certeza de que ela se aguentava sozinha no quarto para vestir um par de calças de ganga, voltou para baixo para tratar da neta. Foi para a cozinha e fez um bule de chá forte. Acrescentou-lhe uma dose generosa de brandy, de uma garrafa que trouxera consigo. Disse à mulher da companhia aérea que visse se Kathryn bebia pelo menos uma caneca. Depois voltou para Mattie e obrigou a rapariga a lavar a cara. Nessa altura já o valium fazia efeito e, excepto pequenos espasmos de espanto e desgosto, Mattie estava a descansar. Entre outras coisas, Kathryn sabia que o desgosto era fisicamente desgastante.

Julia fez com que Mattie se deitasse na cama e em seguida voltou para a sala. Sentou-se no sofá, ao lado de Kathryn, espreitou para a caneca, para ver que quantidade de chá tinha bebido, e disse-lhe que bebesse mais. Perguntou-lhe se tinha tranquilizantes. Robert ofereceu um valium.

- Quem é o senhor? - perguntou Julia. Robert respondeu-lhe e a seguir ela pediu-lhe o comprimido. - Toma isto - disse Julia a Kathryn.

- Não posso - disse Kathryn. - Bebi o brandy.

- O que é que tem? Toma.

Julia não perguntou a Kathryn como se sentia, ou se estava bem. Kathryn sabia que no seu modo de pensar ou se estava bem ou não se estava. Mais nada daria resultado naquele momento. As lágrimas, o choque, a pena - tudo isso viria mais tarde.

- É horrível - disse julia. - Sei que é horrível, Kathryn. Olha para mim. Mas só atravessando tudo isto consegues chegar ao outro lado. Sabes isso, não sabes? Diz que sim com a cabeça.

- Mrs. Lyons?

Kathryn voltou-se da janela. Rita, uma mulher pequena e loura do gabinete dos pilotos vestia o casaco.

- Vou-me embora, fico na estalagem.

Rita que usava baton cor de madeira, estivera lá em casa todo o dia, desde as quatro da manhã, porém tinha o rosto estranhamente fresco e o fato azul-escuro quase sem rugas. O seu colega Jim qualquer coisa, também da companhia, saíra, havia já muito tempo; Kathryn não se lembrava quando.

- Robert Hart ainda cá está - disse Rita. - No escritório. Kathryn estudava a risca perfeita do cabelo liso de Rita, com uma espécie de fascinação. Pensava que Rita tinha uma espantosa semelhança com uma determinada apresentadora de uma cadeia de Portsmouth. Anteriormente Kathryn não gostara de ter estranhos em casa, mas rapidamente percebeu que não conseguiria aguentar-se sozinha.

- Tem quarto nas Marés? - perguntou Kathryn.

- Sim. Marcámos vários.

Kathryn acenou afirmativamente. Apercebeu-se que a Estalagem As Marés, que já se sentia feliz quando, fora da estação alta, tinha dois casais a passar o fim-de-semana, estaria agora cheia com a imprensa e as pessoas da companhia aérea.

- Sente-se bem? - perguntou Rita.

Sim.

- Quer que lhe faça alguma coisa antes de me ir embora?

- Não - disse Kathryn. - Estou bem.

Era uma afirmação absurda, pensava Kathryn, vendo Rita sair da cozinha. Até dava vontade de rir por não querer dizer anda. Provavelmente nunca mais se iria sentir bem.

Ainda não eram quatro e um quarto, mas já era quase escuro. No fim de Dezembro as sombras começam logo depois do almoço e no decorrer da tarde a luz alonga-se, ficando muito fina. Criava cores suaves e fofas que já não via há meses, de modo que nada lhe parecia já familiar. A noite desceria como uma lenta cegueira, retirando a cor às árvores, ao céu baixo, às pedras, à relva gelada, às hortênsias brancas da geada, até nada mais sobrar na janela senão o seu reflexo.

Cruzou os braços e inclinou-se para a frente sobre a borda do lava-loiça, olhando pela janela da cozinha. Fora um dia longo, longo e terrível - tão longo e tão terrível, que havia já muitas horas que ultrapassara qualquer realidade que Kathryn tivesse até então conhecido. Tinha a distinta sensação de que nunca mais dormiria, de que, quando acordara naquela madrugada, tinha emergido de um estado onde não mais poderia voltar a entrar. Viu Rita dirigir-se ao carro, pô-lo a trabalhar e avançar na rua. Agora estavam quatro pessoas em casa - Mattie a dormir no quarto, com Julia e Kathryn tomando conta dela por turnos, e Robert, que segundo Rita dissera estaria no escritório de Jack. Kathryn gostaria de saber o que estava a fazer?

Todo o dia, ao fundo do caminho de gravilha, do outro lado do portão, houvera pessoas a olhar lá para dentro e outras pessoas a afastá-las. Mas Kathryn imaginava que agora, os repórteres, câmaras, produ tores e maquilhadores ter-se-iam provavelmente dirigido à Estalagem As Marés para tomar uma bebida, contar histórias, discutir os rumores, jantar e dormir. Para eles, não seria assim o fim de um dia de trabalho normal?

Kathryn ouviu passos pesados nas escadas, passos de homem e por momentos pensou que era Jack que vinha a descer para ir à cozinha. Depois, quase imediatamente, lembrou-se de que não poderia ser Jack, de que não era Jack.

- Kathryn.

Tirara a gravata, enrolara os punhos da camisa e abrira o botão de cima. Já reparara que Robert Hart tinha o hábito nervoso de segurar a caneta entre os nós dos dedos, fazendo-a andar para trás e para a frente como um bastão.

- Achei que deveria saber - disse Robert. - Falam em falha mecânica.

- Quem falou de falha mecânica?

- Londres.

- Já sabem?

- Não. Nesta altura são apenas tretas. Puseram-se a adivinhar. Encontraram uma parte da fuselagem e um dos motores.

- Oh - disse ela. Penteou o cabelo com os dedos. Era o seu hábito nervoso. Uma parte da fuselagem, pensou. Repetiu a expressão no seu espírito. Tentou ver a parte da fuselagem, imaginar o que seria.

- Que parte da fuselagem? - perguntou.

- A cabina. Cerca de seis metros.

- Algum...

- Não. Não comeu em todo o dia, pois não?

- Não faz mal.

- Faz mal, sim!

Ela olhou para a mesa que estava coberta de pratos de comidaguisados, empadões, jantares completos, em caixas de plástico marcadas separadamente, bolinhos, bolos, biscoitos, saladas. Uma família grande levaria vários dias para comer tudo aquilo.

- É costume das pessoas - disse ela. - Não sabem que mais hão-de fazer, portanto trazem comida.

Durante todo o dia, um polícia percorria de vez em quando a distância do caminho que levava à casa, com mais outra oferta. Kathryn entendia aquele costume, vira-o acontecer muitas vezes, sempre que havia uma morte na família. Mas espantava-a o modo como o corpo continuava a avançar, ultrapassando o choque e o desgosto, ultrapassando a ansiedade e o vazio interiores, continuando a querer sustento, continuando a querer ser alimentado. Parecia pouco adequado, como o desejo do sexo.

- Devia ter mandado tudo lá para a frente - disse Kathryn. Para a polícia e para a imprensa. Aqui vai desperdiçar- se.

- Nunca alimente a imprensa - disse Robert rapidamente. - São como cães em busca de afeição. Estão desejosos de entrar numa casa.

Kathryn sorriu, sentindo-se chocada por o ter conseguido. Doía-lhe o rosto, seco com o sal das lágrimas.

- Bom, agora vou-me embora - disse ele desenrolando as mangas da camisa e abotoando os punhos. - Provavelmente quererá ficar só, com a sua família.

Kathryn não tinha a certeza de querer ficar sozinha.

- Vai voltar para Washington?

- Não. Fico na estalagem. Amanhã passo por aqui antes de partir. - Pegou no casaco, que estava nas costas de uma cadeira, e vestiu-o. Tirou a gravata do bolso.

- Oh - disse ela em tom vago. - Está bem.

Ele fez deslizar a gravata pelo colarinho.

- Pronto - disse, quando fez o nó. Deu-lhe uma pequena pancada.

O telefone tocou. Parecia soar demasiado alto na cozinha, demasiado abrasivo e intrometido. Ela olhou-o desesperada.

- Robert, não posso - disse.

Ele dirigiu-se ao telefone e atendeu.

- Robert Hart.

- Sem comentários - disse.

- Ainda não.

- Sem comentários.

Quando desligou, Kathryn começou a falar.

- Vá lá a cima tomar um duche - disse ele, interrompendo-a. Começou a tirar o casaco. - Vou aquecer qualquer coisa.

- Está bem - respondeu ela, sentindo-se aliviada.

Lá em cima, no corredor, sentiu-se momentaneamente confusa. Era muito comprido, com muitas portas e muitos quartos. As recordações daquele dia tinham começado já a manchá-los, sobrepondo-se a outras anteriores. Percorreu o corredor e entrou no quarto de Mattie. Mattie e Julia estavam ambas na cama profundamente adormecidas. Julia ressonava ligeiramente. Estavam de costas uma para a outra, dividindo os lençóis e o edredão da cama de casal. Kathryn via a roupa subir e descer sobre aquela elevação e viu o brilho do último brinco de Mattie na cartilagem da orelha esquerda.

Julia mexeu-se.

- Olá - murmurou, para não acordar Mattie. - Como está ela?

- Espero que durma toda a noite - disse Julia, esfregando um olho. - Robert ainda aí está?

- Sim.

- Vai ficar?

- Não sei... Não! Imagino que vá para a estalagem como os outros. Kathryn tinha vontade de se deitar com a avó e a filha. Durante todo o dia sentira periodicamente faltar-lhe a força nas pernas e fora avassalada por um enorme desejo de se sentar. Havia aqui uma hierarquia, pensou. Na presença de Kathryn, Mattie podia ser uma criança. Na de Julia, Kathryn descobriu que precisava do consolo e do abraço da avó.

Havia uma fotografia de Julia, lá em baixo, na mesa do hall; era uma fotografia evocativa de outra época. Nela, Julia vestia uma saia escura e estreita, que lhe cobria os joelhos, uma blusa branca e um casaco de malha curto. Um colar de pérolas enfeitava-lhe o pescoço. Era alta e magra, e usava risca ao lado no cabelo escuro e brilhante. Tinha feições fortes e era aquilo a que as pessoas chamavam uma mulher bonita. Na fotografia, Julia estava sentada no sofá, inclinando-se para tocar em qualquer coisa que estava fora da moldura. Na outra mão segurava um cigarro, num tipo de pose que antigamente tornava sedutor o facto de se fumar - o cigarro mantido preguiçosamente entre os dedos esguios, o fumo subindo pelo pescoço até ao queixo. A mulher da fotografia teria talvez vinte anos.

Agora Julia tinha setenta e oito anos e usava calças de ganga largas, que lhe ficavam sempre um pouco curtas, camisolas soltas que tentavam disfarçar-lhe um estômago proeminente. Já não se viam os traços da jovem de cabelo brilhante e cintura esguia na mulher de cabelo branco, cada vez mais fino, que estava agora junto a Mattie. Talvez que nos olhos houvesse ainda uma semelhança, mas, até neles, o tempo destruíra a beleza. Por vezes os olhos de Julia estavam lacrimejantes e tinham perdido quase todas as pestanas. Por muitas vezes que Kathryn observasse o fenómeno, achava-o sempre difícil de compreender: nada permanecia como fora dantes, nem uma casa que caía, nem o rosto de uma mulher, outrora belo, nem a infância, o casamento ou o amor.

- Não consigo explicar - disse Kathryn. - Sinto-me como se tivesse temporariamente perdido Jack e precisasse de o encontrar.

- Não o vais encontrar - respondeu Julia. - Partiu.

- Eu sei, eu sei.

- Não sofreu.

- Isso não sabemos.

- Mr. Hart tem a certeza.

- Ninguém sabe nada ainda. São tudo rumores e especulações.

- Devias sair daqui, Kathryn - disse julia. - O fundo da tua rua parece um manicómio. Não quero assustar-te, mas tiveram de trazer Charlie e Burt para ajudar a manter as pessoas afastadas do portão.

Por trás de Kathryn, uma fatia de ar gelado passou por baixo da janela aberta; inspirou profundamente, sentindo o cheiro do sal. Não saíra de casa durante todo o dia, excepto quando foi buscar Mattie para dentro.

- Não sei quanto tempo levará isto a passar - disse Julia.

- Robert disse que poderia levar algum tempo.

Kathryn inspirou profundamente. Pareceu-lhe ter respirado amoníaco, de tal modo o ar lhe aclarou o espírito e lhe aguçou os sentidos.

- Ninguém te pode ajudar nisto, Kathryn. É uma coisa de que tens de ser tu mesma a tratar. Sabes isso, não sabes?

Kathryn fechou os olhos por breves instantes.

- Kathryn?

- Eu amava-o - disse Kathryn.

- Eu sei, eu sei. Também eu o amava. Todos gostávamos muito dele.

- Porque foi que isto aconteceu?

- Esquece o porquê - disse Julia. - Não há porquê. Não interessa, não adianta. Está feito e não pode ser alterado.

- Estou...

- Estás estafada. Vai para a cama.

- Estou bem.

- Sabes - disse Julia. - Quando o teu pai e a tua mãe se afogaram, pensei que literalmente não o poderia suportar. Pensei que literal mente iria rebentar, mais dia menos dia. A dor foi terrível. Terrível. Perder um filho é... inimaginável, até que isso acontece. E culpei a tua mãe, Kathryn. Não vou fingir que não. Quando bebiam, ela e o teu pai eram letais um para o outro, terrivelmente descuidados e perigosos. Mas ali estavas tu, espantada pela perda desses pais que nem tinham sido teus como deveria ser. Foi isso que me salvou, Kathryn. Salvou-te a ti, salvou-me a mim. Ter de tomar conta de ti. Tive de deixar de perguntar a razão por que Bobby tinha morrido. Tive de deixar de perguntar. Não havia porquê. E agora também não.

Kathryn encostou a cabeça à cama. Julia começou a afagar-lhe o cabelo.

- Amava-lo. Eu sei - disse Julia.

Kathryn saiu do quarto de Mattie e dirigiu-se para a casa de banho. No duche, pôs a água o mais quente que poderia suportar e deixou-a correr pelo corpo sem se mexer. Tinha os olhos inchados e doridos de chorar. Sentia a cabeça pesada. Tivera de assoar o nariz tantas vezes que lhe ardia a pele entre o nariz e o lábio superior. Desde manhã cedo que lhe doía a cabeça e engolira comprimidos de Advil sem os contar. Imaginava que o seu sangue ficava cada vez mais fino e se escoava com a água do duche.

Vai haver muitos dias assim, dissera Robert havia pouco. Não tão maus, mas maus.

Ela não se imaginava a sobreviver a outro dia como o que estava a passar.

Não conseguia lembrar-se da sequência das coisas. O que acontecera em primeiro lugar, em segundo ou em terceiro. O que acontecera de manhã ou à tarde, ao fim da manhã ou ao princípio da tarde. Havia os boletins informativos da televisão, jornalistas a pronunciarem palavras que lhe causavam dor e contracções no estômago quando as ouvia: Caiu depois de levantar voo... Roupas de bebé e um assento aflutuar... Tragédia em... Noventa segundos até cair na água... Choque e dor de ambos os lados do... O T 900, de quinze anos... Destroços espalhados por todo... O desenvolvimento da história do Voo 384 da Vision... Relatos indicam que... De manhã cedo os empresários... A companhia aérea britânico-americana... Reuniram-se no aeroporto... Inspecção da FAA*... Especulação que uma massiva...

Depois havia as imagens que Kathryn duvidava que um dia a abandonassem. A fotografia de uma rapariga, retirada do livro de curso da escola secundária, enchia o ecrã; o oceano enorme com um helicóptero a pairar lá em cima, fazendo cintilar os destroços no cimo das ondas; uma mãe de braços abertos, empurrando o ar com as palmas das mãos, como se quisesse proteger-se de uma torrente de palavras indesejáveis. Homens com um complicado equipamento de mergulho, espreitando

 

* Abreviatura de Administração Federal de Aeronautica. [N. da T. ]

 

ansiosos pela borda do barco; familiares no aeroporto, lendo a lista das vítimas. E depois, logo a seguir à imagem dos familiares, apareceram três fotografias, na vertical, três homens de uniforme e em pose formal, com os nomes escritos por baixo. Kathryn nunca vira aquela fotografia de Jack, nem imaginava porque tivesse sido tirada. Decerto que não fora para aquela eventualidade. Não fora só para o que pudesse acontecer. Mas quando mais aparecia o rosto de um piloto nas notícias? Era o que perguntava a si própria.

Durante todo o dia Robert dissera-lhe que não olhasse. Avisara-a de que as imagens ficariam com ela, que não desapareceriam. Que era melhor não ver, não as ter, porque voltariam durante o dia e nos seus sonhos.

Era inimaginável, dissera-lhe.

O que significava, Não queiras imaginar.

Mas como poderia não o fazer? Como poderia impedir a chegada dos pormenores, das palavras e das fotografias ao seu espírito?

Durante todo o dia o telefone tocara continuamente. A maior parte das vezes, Robert atendera ou entregara-o a uma das pessoas da com panhia, mas por vezes quando estavam a ver os boletins, deixava-o tocar e ela ouvia as vozes no atendedor de chamadas. Vozes tentadoras e inquiridoras das agências de notícias. Vozes de amigos e vizinhos que telefonavam a dizer como tinha sido horroroso (Não posso acreditar que tenha sido Jack... ), (Se pudermos fazer alguma coisa... ) A voz de uma mulher mais velha do sindicato - profissional, ríspida, exigindo que Robert lhe telefonasse. Kathryn sabia que o sindicato não queria que tivesse sido falha do piloto. Já ouvira dizer que os advogados tinham começado a trabalhar. Gostaria de saber se algum advogado teria tentado contactar com ela e Robert o impedira.

Sabia que os mergulhadores procuravam o gravador de vídeo com as informações de voo e a caixa negra que continha as últimas palavras. Tinha medo que os mergulhadores encontrassem esta última. Sabia que não poderia suportar esse boletim noticioso - ouvir a voz de Jack, autoritário, controlado, e depois o quê? Parecia uma intromissão macabra gravar os últimos segundos da vida de um homem. Onde mais fariam tal coisa a não ser aos condenados no corredor da morte?

Saiu do duche, enrolou-se na toalha e apercebeu-se depois, tal como uma mulher distraída pode entrar no carro e descobrir depois que se esquecera das chaves, que não usara sabonete nem champô.

Voltou a abrir a água e a entrar. Havia agora espaços por entre os seus pensamentos - ar parado, algodão em rama.

Saiu do duche pela segunda vez, secou-se e olhou rapidamente à sua volta, à procura do roupão. A camisa, calças e peúgas que usara durante todo o dia estavam no chão de azulejo, mas tinha-se esquecido do roupão. Olhou para trás da porta.

As calças de ganga de jack estavam penduradas no cabide. Eram velhas e já estavam ruças nos joelhos. Pensou que as tinha vestido no último dia que passara em casa.

Encostou as calças ao rosto. Respirou através da ganga. Retirou-as do cabide e estendeu-as na bancada da casa de banho. Ouviu o tilintar dos trocos nos bolsos e o ruído de papéis. Meteu a mão no bolso de trás e encontrou um maço de papéis, levemente curvo, compacto por alguém se ter sentado em cima dele. Extraiu algumas notas dos papéis. Várias de um dólar e uma de vinte. Havia uma factura da Ames, de cabo para uma extensão, uma embalagem de lâmpadas, uma lata de Right Guard. Um talão cor-de-rosa da lavandaria: seis camisas, goma leve, cabides. Uma factura da Staples: cabo de impressora e doze canetas. Um recibo dos correios de uma compra de vinte e dois dólares; selos, calculou, observando-o rapidamente. Um cartão de visita: Barron Todd, Investimentos. Dois bilhetes de lotaria. Bilhetes de lotaria? Não sabia que Jack comprava lotaria. Olhou mais de perto para um dos bilhetes. Havia uma nota escrita a lápis, quase apagada. em A, dizia. Seguia-se uma série de números. Mattie em casa de alguém? Mas o que significavam os números? E depois examinando com mais cuidado o maço, viu dois bocados de papel pautado. Num deles estavam escritas várias linhas do que parecia ser um poema, escrito a tinta, de caneta de tinta permanente. A caligrafia era de Jack.

Aqui, na passagem estreita do norte impiedoso,

Traições eternas, lutas inexoráveis e inúteis

Fúria impetuosa de punhais por entre a escuridão: luta pela sobrevivência Das células ávidas e cegas; da vida no útero.

Confusa, encostou-se à parede. Perguntou a si mesma que poema seria aquele? Qual o seu significado? Porque o teria Jack escrito ali?

Abriu a outra folha de papel pautado. Era uma lista de, coisas a fazer. Jack fazia uma todas as manhãs, quando estava em casa. Leu os pontos: Cabo para extensão, Chamar o canalizador, Impressora HP a cores de Mattie, Roupão FedEx da Bergdorfchega a 20.

Bergdorf. Roupão FedEx. Chega a 20.

Bergdorf Goodman? A loja de Nova Iorque?

Tentou pensar, lembrar-se da folha de Dezembro no calendário por cima do frigorífico. Hoje, apesar da sua lentidão agonizante, era já dia 17 de Dezembro. No dia 20 teria de estar na escola e seria o último dia antes das férias. Jack estaria em casa nesse dia. Entre duas viagens.

Seria uma referência ao seu presente de Natal?

Apanhou os papéis e apertou-os na mão com toda a força. Encostou-se à porta e deixou-se escorregar.

O cansaço enfiara-se-lhe nos ossos. Mal conseguia levantar a cabeça.

 

O CARRO ENCHEU-SE DE AR QUENTE. Tem o estômago tão cheio do almoço de Natal de Julia que é preciso encostar o banco para trás para ficar mais confortável. Jack vestiu a camisola creme que ela tricotara para ele no primeiro Inverno que tinham passado juntos, a que tem uns enganos nas costas que só ela consegue ver. Veste lealmente a camisola em todos os Dias de Acção de Graças e de Natal quando fazem a viagem desde Santa Fé. Deixou crescer um pouco o cabelo, que se encaracola ligeiramente por trás das orelhas. Pôs os óculos escuros que usa quase sempre, excepto nos dias mais cinzentos.

- És muito bom nestas coisas - diz ela.

- Bom em quê?

- Surpresas.

Uma vez, fora uma súbita viagem ao México. De outra, durante a visita de Natal, levou-a a passar o fim-de-semana ao Ritz, enquanto ela pensava que iam a Bóston, ao ortopedista, por causa das costas dele. Hoje, depois do almoço em casa de julia, disse-lhe que queria ir de carro buscar o presente dela. Só os dois. julia ficaria com Mattie, que, com quatro anos, não se queria separar dos brinquedos novos.

Saem da vila de Ely e dirigem-se a Fortune's Rock, onde ficam as casas de Verão. Quando era rapariga, nos seus passeios da vila até à praia, costumava imaginar que essas casas, vazias dez meses por ano, tinham carácter e personalidade. Esta, orgulhosa e um pouco vaidosa, tornara-se um pouco mais reservada depois de uma violenta tempestade. Outra, alta e elegante parecia uma beleza envelhecida. Aquela era temerária, desafiando os elementos com a fachada avançada. Outra, demasiado calma, mal-humorada, sem adornos como se não fosse amada. Porém havia mais uma, separada das outras, contida apesar da multidão no Verão ou das longas e solitárias noites de Inverno.

- Não imagino o que seja esse presente - diz Kathryn.

- Já vais ver.

No carro permite-se fechar os olhos. Parece ter dormitado apenas um minuto, mas ao acordar fica sobressaltada. O carro está num caminho, um caminho seu conhecido.

- Estás a sentir-te nostálgico? - pergunta.

- Qualquer coisa parecida - diz ele.

Ela espreita para a casa, através do pára-brisas. É, pensa, como tantas outras vezes pensou, a casa mais bonita que já vira. Coberta de madeira branca, a casa tem dois andares e uma generosa varanda a toda a volta. Os estores são de um azul poeirento, opaco e mudo, como o oceano num dia enevoado. O andar superior é coberto de madeira de cedro, em longas tábuas, e recuado, como se alguém lhe tivesse cortado uma fatia. Talvez fosse um telhado de mansarda - nunca tivera a certeza. Nesse andar havia janelas desse tipo, a espaços irregulares, que pareciam sugerir corpos adormecidos por trás delas. Fazia-a pensar em hotéis antigos, hotéis antigos de frente para o mar.

Sem pronunciar palavra, Jack sai do carro, sobe os degraus da varanda e ela segue-o. As cadeiras de baloiço e o vasto chão de madeira estavam cobertos de uma pátina cinzenta, sem idade. Ela ficou junto ao corrimão, olhando o relvado que dava para a linha de costa, onde a água avançava e recuava sobre os rochedos, de modo que parecia ser a própria luz a subir e a descer, para depois cair no mar.

Ao longe há uma neblina sobre o mar, uma neblina fresca e limpa, que apenas aparece nos dias bonitos. Não consegue ver distintamente as ilhas; primeiro estão lá, depois não, para depois parecerem pairar sobre a água. Num dos lados da relva há um prado; no outro um pomar de pequenas pereiras e pessegueiros. Junto à varanda existe um enorme jardim de flores estranhamente plantado com a forma de uma janela em arco, um rectângulo ligado à forma de um leque. No arco existe um banco de mármore branco que agora está coberto de trepadeiras.

Subitamente levanta-se um vento leste, que sopra pela varanda, trazendo consigo, como é costume, uma aragem fria e húmida. Ela sabe que em breve haverá carneirinhos brancos na água. Encolhe os ombros dentro do casaco.

Atrás dela, Jack abre a porta que dá para a cozinha e entra em casa.

- Jack, que estás a fazer? - pergunta ela.

Espantada, segue-o até à sala da frente, um espaço longo que acompanha toda a frente da casa que dá para o mar, um belo compartimento, com seis pares de janelas desde o tecto até ao chão. Nas paredes, o papel amarelo desbotado está a cair aos cantos. Há estores nas janelas, enrolados até um quarto da sua altura, o que a faz recordar as antigas salas de aula.

Já faz quatro anos desde que invadiram ilegalmente aquela casa, para fazer amor num dos quartos lá de cima. Fora depois de terem ido tomar banho vestidos. Ela dissera-lhe que sabia que a casa estava abandonada. Lembra-se de como ele desabotoara a camisa e a deixara cair no chão. Como parecia diferente sem a camisa - muito mais novo, mais solto, como alguém que trabalhasse na fábrica com quem ela pudesse ter saído. Pusera-se de cócoras junto a ela e lambera o sal da sua pele. Ela sentira-se tonta do calor. Sob os seus lábios a pele do peito dele tinha um sabor penetrante e era macia com pêlos muito finos.

Jack atravessa a sala e espera por ela ao fundo das escadas. Antigamente fora um convento e depois pertencera a uma família de Bóston, que a utilizara como casa de Verão. Havia anos que estava para venda e ela interrogava-se por que razão nunca ninguém a quisera comprar. Talvez fosse por ter ar de dormitório com muitos quartos e uma única casa de banho ao fundo do corredor.

Ele segurou-lhe a mão. Enquanto sobe as escadas com ele, pensa que ele lhe quer entregar o presente na sala onde fizeram amor pela primeira vez. Assim, não fica surpreendida quando entram num compartimento com as paredes esverdeadas. Num canto está um divã coberto com uma colcha às flores. Mas o objecto mais espantoso do quarto é uma cadeira vermelha, uma simples cadeira de cozinha que foi pintada com a cor de um carro de bombeiros. A cadeira brilha ao sol - a cadeira vermelha encostada à parede esverdeada, em contraste com o azul do mar que se vê pela janela - e pergunta a si própria, como já antes o fizera, em que voos caprichosos teria o pintor escolhido cores tão espantosas.

- Chamaram-me da Vision - diz ele imediatamente.

- Vision?

- Uma companhia aérea recém-criada, britânica e americana, em consórcio. Está a crescer depressa, para fora de Logan. Dentro de poucos anos posso conseguir uma rota internacional.

Ele sorri, com o sorriso triunfante e complexo de um homem que planeou uma surpresa e a conseguiu concretizar.

Ela avança um passo, prestes a chegar-se a ele.

- Se gostares desta casa, vamos comprá-la.

A frase detém-na. Leva a mão ao peito.

- Vieste cá? - pergunta. Ele acena afirmativamente.

- Com julia.

- Julia já sabe? - pergunta Kathryn, incrédula.

- Queríamos fazer-te uma surpresa. A casa está numa desgraça. Precisa de obras, claro.

- Quando vieste cá com ela?

- Há duas semanas. Tive uma folga em Portsmouth. Kathryn tenta lembrar-se. Vê os dias de Dezembro como se fossem blocos nas páginas do calendário. Cada viagem parece fundir-se na seguinte. Não consegue recordar precisamente nenhuma delas.

- Julia sabia disto? - pergunta de novo.

- Aceitaram a nossa oferta - diz Jack.

- A nossa oferta?

Ela sente-se lenta e tola. As surpresas amontoam-se, sem que as consiga separar.

- Espera aqui - diz ele.

Perturbada, atravessa o compartimento e senta-se na cadeira vermelha. O sol, vindo da janela do lado, desenha na colcha um rectângulo de luz quente e viva que lhe aquece as mãos e os pés.

Como o conseguira? perguntava a si própria. Era um assunto tão importante. Não se tratava de esconder uma caixa numa escrivaninha. Havia outras pessoas envolvidas. Agentes imobiliários. E julia. Julia seria capaz de guardar um segredo daqueles? Talvez por ser uma surpresa. E Jack era muito bom a guardar segredos.

Abana a cabeça. Não se consegue imaginar a fazer uma oferta para comprar uma casa sem Jack.

Quando este volta, traz nas mãos uma garrafa de champanhe e dois copos. Ela reconhece os copos do armário de Julia.

- Gosto disto porque estás aqui - diz. - Adoro ver-te aqui. Ela vê-o tirar a rolha. Pensa: Mas é isto que Jack faz melhor, não é? Faz com que as coisas aconteçam.

Quer sentir-se feliz. Dentro de um minuto, depois de ter digerido a novidade, pensa que se poderá sentir feliz.

- Vais e vens para Bóston? - pergunta.

- Já cronometrei o caminho. Cinquenta minutos.

Meu Deus, pensa ela, já cá esteve e já cronometrou.

Ele serve o champanhe em dois copos e entrega-lhe um. Bebem juntos. A mão dela treme e sabe que ele está a ver. Então ele poisa o copo e aproxima-se. Obriga-a a levantar-se, para que fiquem os dois voltados para a janela. Fala-lhe baixinho ao ouvido.

- Agora teremos a nossa casa - diz. - Vais ficar junto à água, como sempre quiseste. Mattie poderá ir à escola aqui. Quando acabares o curso podes dar aulas. Julia está entusiasmada porque vais... vamos... ficar perto dela.

Lentamente, Kathryn acena com a cabeça.

Ele ergue-lhe o cabelo do pescoço e percorre-lhe a nuca com a língua, até à raiz do cabelo. Ela estremece com a sensação, tal como teria de acontecer, e coloca o champanhe no parapeito da janela. Incli na-se para a frente apoiando-se contra o caixilho. No vidro, vê um leve reflexo de ambos.

 

- GOSTAVA QUE COMESSE ALGUMA COISA - disse Robert Hart, à mesa enquanto terminava uma tigela de chili.

- Não consigo - disse ela. Olhou para a tigela vazia. Mas você estava com fome.

Ele empurrou a tigela para o lado.

Era tarde e Kathryn não fazia ideia de que horas seriam. Lá em cima, Mattie e Julia continuavam a dormir. Diante de Kathryn, junta mente com o chili, havia um pão de alho, uma salada e uma chávena de chá morno. Um pouco antes, tinha-se esforçado por molhar o pão no chili e provar, mas a garganta recusara-se a engolir. Tinha vestido roupa limpa - calças de ganga, uma camisola azul-escura, peúgas velhas e um par de botas de couro. O cabelo ainda estava molhado. Sabia que tinha a boca e o nariz inchados. Pensava que provavelmente teria chorado mais no chão da casa de banho do que em qualquer outro momento naquele dia. Possivelmente em toda a sua vida. Sentia-se esgotada, vazia simplesmente por ter chorado.

- Desculpe - disse ele.

- Porquê? - perguntou. - Porque comeu?

Ele encolheu os ombros.

- Por tudo isto.

- O seu trabalho é incrível. Porque o faz?

Ele pareceu sobressaltado pela pergunta.

- Importa-se que fume? - perguntou. - Se preferir, posso ir lá para fora.

Jack detestava os fumadores, não tolerava estar na mesma sala com um deles.

- Lá fora estão menos de zero graus - respondeu ela. - Claro que pode fumar aqui.

Ficou a olhar, enquanto ele se voltava e procurava o maço de cigarros no casaco que estava nas costas da cadeira.

Ela apoiou os cotovelos na mesa e dobrou as mãos debaixo do queixo. O fumo subia-lhe diante do rosto.

Ele fez um gesto com o cigarro.

- Alcoólicos anónimos - disse. Ela acenou com a cabeça. - Porque o faço? - perguntou aclarando nervosamente a garganta. - Pelo dinheiro, creio eu.

- Não acredito - disse ela.

- Quer saber a verdade?

- Quero saber a verdade!

- Suponho que me sinto atraído pelos momentos de intensidade - respondeu ele. - Numa gama de experiência humana.

Ela ficou em silêncio. Apercebeu-se pela primeira vez que havia música de fundo. Art Tatum. Robert devia ter posto um CD enquanto estava no duche.

- É natural - disse.

- Gosto de ver as pessoas recomporem-se - acrescentou.

- E recompõem-se? - perguntou ela.

- Se tiverem tempo suficiente as mulheres recompõem-se. Infelizmente... - deteve-se. - Desculpe.

- Estou farta de ouvir as pessoas pedir desculpa, palavra que estou.

- As crianças não se curam tão depressa - disse lentamente. Dizem que são elásticas, mas não são. Mudam... alteram-se com a desgraça e acomodam-se. Raras vezes vejo homens destroçados pelo desgosto pois há poucas mulheres-piloto. E quando vejo homens, são os pais e ficam zangados, mas isso é outra história.

- Acredito que fiquem zangados - comentou Kathryn. Pensou em Jack como pai e na sua raiva insana se Mattie fosse naquele avião. Jack e Mattie eram muito chegados. Com ele nunca houvera os choros e as irritações que por vezes tinham caracterizado os desentendimentos de Mattie com Kathryn. Desde o princípio que para Jack os dados e os parâmetros tinham sido diferentes. Não eram tão rígidos.

Pouco depois de se terem mudado os três para Ely, quando Mattie estava no infantário, Jack tinha-a contratado como sua assistente, enquanto trabalhava em casa - a pintar, raspar e arranjar janelas partidas. Falava continuamente com ele. Ensinou-a a esquiar e todos os Invernos faziam excursões de pai e filha, primeiro ao Norte de New Hampshire e do Maine, depois mais a oeste, ao Colorado. Em casa viam os dois os jogos dos Red Sox ou dos Celtics, ou então sentavam-se durante horas diante do computador. Sempre que Jack chegava de uma viagem, ia primeiro ver Mattie ou ela vinha ter com ele e pareciam ter uma relação pai-filha muito rara. Juntos estavam perfeitamente à vontade.

Jack batera em Mattie apenas uma vez. Kathryn via ainda a fúria no rosto de Jack, quando descobrira que Mattie atirara uma companheira de brincadeiras pelas escadas abaixo. Quantos anos teriam Mattie e a amiga? Quatro? Cinco? jack agarrara Mattie por um braço, dera-lhe uma palmada no rabo com toda a força e depois metera-a no quarto e atirara com a porta com tal ferocidade, que até Kathryn ficara abalada. As suas acções eram tão instintivas, tão rápidas, que Kathryn imaginava que quando era pequeno também deveria ter sido castigado daquela maneira e por breves momentos perdera o controle. Mais tarde, tentara falar com ele a respeito do incidente, mas Jack, cujo rosto estava ainda marcado por um profundo rubor, não quisera discuti-lo, dizendo apenas que não sabia o que lhe tinha acontecido.

- Especializou-se nestas coisas - disse Kathryn a Robert. Ele olhou-a do outro lado da bancada, procurando qualquer coisa que pudesse servir de cinzeiro. Ela retirou o pires branco de debaixo da chávena e empurrou-o por cima da mesa na sua direcção. Ele pôs o cigarro no pires e começou a arrumar os pratos.

- Nem por isso - disse.

- Deixe-me fazer isso - disse ela. - Já fez muito.

Ele hesitou.

- Por favor - disse ela. - Estou capaz de lavar os pratos.

Ele sentou-se de novo e voltou a pegar no cigarro. Ela dirigiu-se ao lava-loiça e ligou a máquina. Abriu a água.

- Gosto de pensar que formo um casulo à volta da famíliadisse ele: - Isolando-a do resto do mundo.

- Que interferiu de um modo tão grotesco - disse ela.

- Que interferiu de um modo tão grotesco.

- Controle - disse ela. - É isso que faz. Controle.

- Fale-me do seu trabalho - pediu ele. - Ensina o quê?

- Música e história. E sou a encarregada da banda.

A sério?

- A sério. Há apenas setenta e dois alunos na escola secundária.

- Gosta de ensinar? - perguntou.

Ela pensou um minuto.

- Gosto - respondeu. - Sim, gosto muito. já tive um ou dois alunos verdadeiramente espantosos. O ano passado mandámos uma miúda para o conservatório de New England. Gosto dos miúdos.

- Estar casada com um piloto é uma vida diferente - disse ele. Ela acenou afirmativamente. Pensou nas horas estranhas, em nunca celebrar um feriado no próprio dia. Em Jack querer o pequeno-almoço às sete da tarde ou o jantar e um copo de vinho às sete da manhã. A vida tinha sido diferente da de outras famílias. Jack podia estar fora durante três dias, ficar dois em casa e esse horário continuaria assim por dois ou três meses. Depois, no mês seguinte poderia ter quatro dias de folga, seis dias de trabalho e Mattie e Kathryn teriam de se adaptar a esse ritmo. Não viviam pela rotina, como tantas outras famílias - viviam em segmentos. Extensões de tempo em que jack estava em casa, extensões ainda maiores em que não estava. Quando partia, a casa parecia esvaziar-se um pouco, aconchegando-se sossegadamente a si própria. Por muita atenção que Kathryn desse a Mattie, ou por muito que gostassem de estar na companhia uma da outra, parecia-lhe sempre que estavam suspensas - à espera que a vida real começasse de novo, quando Jack entrasse pela porta.

Sentada diante de Robert, Kathryn perguntava a si própria se se sentiria assim agora - suspensa no tempo, à espera que, mais uma vez, Jack entrasse em casa.

- Partia muitas vezes? - perguntou Robert.

- Daqui? Cerca de seis vezes por mês.

- Nada mau. Quanto tempo? Cinquenta minutos?

- Sim. Tem uma mala preparada no seu escritório? - perguntou ela. - Preparada com tudo lá dentro?

Ele hesitou.

- Uma mala pequena - disse.

- Vai para a estalagem esta noite?

- Sim, mas posso dormir aqui no sofá se preferir.

- Não, fico bem. Tenho Julia e Mattie. Conte-me outra história - pediu.

- Que quer dizer?

Ela meteu o último prato na máquina e fechou-a. Limpou as mãos a uma toalha e enfiou-a no puxador de uma gaveta.

- Como é quando chega a uma casa.

Ele coçou a nuca. Não era alto, mas dava essa impressão, mesmo quando estava sentado. Imaginou que fosse um corredor.

- Kathryn, isto é...

- Diga-me.

- Não.

- Ajuda.

- Não ajuda, não.

- Como sabe? - perguntou bruscamente. - As mulheres são todas iguais? Reagimos todas da mesma maneira?

Ouvia a raiva na sua própria voz, uma raiva que aparecera esporadicamente durante o dia. Bolhas de raiva que se erguiam à superfície de um líquido e depois rebentavam. Sentou-se de novo à mesa, em frente dele.

- Claro que não - disse.

- E se não for verdade? - perguntou ela. - Se desse a notícia à mulher e depois descobrisse que não era verdade?

- Isso não acontece!

- Porque não?

- Passo uma enorme quantidade de tempo nas ruas, em frente à casa, de telemóvel na mão, à espera que mo confirmem. Pode achar difícil de acreditar, mas não quero nunca ter de dizer a uma mulher que o marido morreu, quando de facto está vivo.

- Desculpe.

- Pensei que as desculpas tinham acabado. Ela sorriu.

- Importa-se que lhe faça estas perguntas? - perguntou ela.

- Preocupa-me que as faça, mas não, não me importo.

- Então deixe-me perguntar-lhe isto: o que é que tem medo que eu diga à imprensa?

Ele alargou a gravata e abriu o botão de cima da camisa.

- A mulher de um piloto fica naturalmente muito perturbada. Se disser qualquer coisa e a imprensa estiver aqui e ouvir, fica no relatório. Por exemplo, ela pode dizer que o marido se tinha ultimamente andado a queixar dos mecânicos. Ou pode afirmar, Sabia que isto tinha de acontecer. Ele dizia que a companhia estava afazer restrições no treino das tripulações.

- E não teria razão? Se fosse verdade?

- Quando estão perturbadas, as pessoas dizem coisas que mais tarde não diriam. Coisas que não sentem de modo algum. Mas se passam a fazer parte do relatório, não há maneira de as desdizer.

- Que idade tem? - perguntou.

- Trinta e oito.

- Jack tinha quarenta e nove.

- Eu sei.

- Enquanto espera por um acidente, o que faz?

- Não poria as coisas exactamente assim - disse ele, mudando de posição na cadeira. - Não fico à espera de um acidente. Tenho outras responsabilidades.

- Tais como?

- Estudo pormenorizadamente as investigações dos acidentes. Acompanho as famílias dos pilotos. Quantos anos tem esta casa?

- Está a mudar de assunto.

- Pois estou.

- Foi construída em mil novecentos e cinco. Originalmente era um convento. Uma espécie de retiro.

- É muito bonita.

- Muito obrigada. Precisa de obras. Precisa sempre de obras. Cai mais depressa do que nós a conseguimos reparar.

Ela ouviu o nós.

Não havia nada que não gostasse na casa que parecia mudar constantemente, dependendo da luz, das estações, da cor da água, da temperatura do ar. Kathryn acabara mesmo por gostar das excentricidades: dos soalhos inclinados nos quartos; dos armários pouco fundos, destinados aos hábitos das freiras; as janelas tinham protecções antiquadas, difíceis de colocar no Outono e retirar na Primavera (Jack descobrira que, tal como os flocos de neve, não havia duas perfeitamente iguais. Portanto até termos percebido que tínhamos de marcar todas as janelas, a tarefa era como completar um puzzle em cima de uma escada), mas que quando estavam limpas eram muito bonitas, eram objectos lindos só por si. De facto, por vezes era necessário um esforço para nos afastarmos da vista dessas janelas, quando havia outras coisas para fazer. Muitas vezes Kathryn sentara-se na enorme sala da frente e permitira-se sonhar acordada. Sonhava particularmente que deveria ser fácil naquela casa, naquele local geográfico, retirar-se do mundo e abraçar uma existência solitária e contemplativa, pouco diferente da vocação das primeiras habitantes da casa: as Irmãs da Ordem de São João Baptista da Benfeitoria, vinte freiras com idades compreendidas entre os dezanove e os oitenta e dois anos, casadas com Jesus e com a pobreza. Muitas vezes, naquela sala imaginava a enorme mesa de madeira do refeitório, com um banco corrido, de modo que as irmãs pudessem ver o oceano enquanto comiam. Embora as freiras tivessem feito voto de pobreza, viviam numa paisagem de incomparável beleza.

Durante anos, Kathryn tentara encontrar o local onde as irmãs tinham a capela. Procurara no relvado e no pomar adjacente, mas nunca conseguira localizar os alicerces. Gostaria de saber se a capela teria sido dentro de casa, na divisão que usavam como sala de jantar? Teriam as irmãs, antes de partir, desmontado o altar feito por elas, levando consigo uma imagem da Virgem Maria e uma cruz? Ou atravessariam a enorme extensão de marismas entre Fortune's Rocks e a vila industrial de Ely Falls, para assistirem aos serviços religiosos na Igreja de São José com a comunidade franco-canadiana?

- Vive aqui há onze anos? - perguntou Robert.

- Sim.

Nessa altura o telefone tocou, sobressaltando-os aos dois. Parecia-lhe que haviam decorrido já vinte minutos, talvez trinta, que soara pela última vez, o intervalo mais longo desde as primeiras chamadas de manhã. Viu Robert atender.

Tinha apenas vinte e três anos quando ela e Jack se mudaram para a zona de Ely. Kathryn preocupara-se com a reacção das pessoas da vila. Teria uma casa perto do mar e um marido piloto da Vision. Não viveria exactamente em Ely, mas em Fortune's Rocks, um mundo efémero e transitório de veraneantes que, embora olhassem a loja da avó com ares superiores e mostrassem uma curiosidade condescendente pela pequena vila de estranhos encantos, se mantinham na sua maioria anónimos. Eram corpos esguios e bronzeados que pareciam ter à sua disposição reservas inesgotáveis de dinheiro. Embora Martha, dona da Ingerbretson's, a única mercearia de Fortune's Rocks, pudesse contar mais do que uma história acerca de homens de calções de caqui e T-shirts brancas que tinham enormes contas de vodca, lagostas, batatas e konfetkakke, o bolo de chocolate feito por Martha - para depois desaparecerem em processos de falência, tendo como único legado um cartaz de PARA VENDA espetado na areia diante de uma casa de praia de quatrocentos mil dólares.

Mas as reservas locais de boa vontade em relação a Julia Hull eram profundas e tinham-se estendido a Jack e a Kathryn. Pensava agora em como Jack e ela tinham aparecido na vida de Ely e acompanhado Mattie nas várias escolas. O emprego de Jack levara-o para fora da vila, mas mesmo assim conseguia jogar ténis no clube com Hugh Reney, vice-director da escola preparatória e Arthur Kahler, que tinha a estação de serviço da Mobil, à saída da aldeia. Era espantoso, tendo em conta a facilidade com que Mattie fora concebida, que Jack e Kathryn não tivessem mais filhos. Diziam a si próprios que estavam plenamente felizes com Mattie para levarem a cabo as medidas extraordinárias necessárias a uma nova concepção.

Kathryn olhava Robert ao telefone. Este voltou-se bruscamente, olhou para ela e virou-lhe de novo as costas.

- Sem comentários - disse.

- Creio que não.

- Sem comentários.

- Sem comentários.

Desligou o telefone e ficou a olhar para o armário que ficava por cima dele. Pegou numa caneta que estava sobre a bancada e começou a girá-la para trás e para a frente.

- O que foi? - perguntou ela.

Ele voltou-se.

- Bom, já sabíamos que isto havia de acontecer - disse ele.

- O quê?

- Isto vai ter um prazo de validade de apenas vinte e quatro horas no máximo. Depois passará à história.

- O quê?

Ele olhou para ela preocupado e respirou fundo.

- Falam de falha do piloto - respondeu.

Ela fechou os olhos.

- Não passa de especulação - acrescentou rapidamente. - Pensam ter encontrado alguns dados do voo que não fazem sentido. Mas acredite que não podem ter a certeza.

- Oh!

- Também encontraram alguns cadáveres - disse em voz baixa. Ela pensou que se continuasse a inspirar e a expirar lentamente, estaria tudo bem.

- Não há identificações ainda - continuou.

- Quantos?

- Oito.

Tentou imaginar. Oito corpos. Inteiros? Aos bocados? Queria perguntar, mas não o fez.

- Vai haver mais - disse ele. - Estão a retirar mais. Ingleses? perguntava a si própria. Ou americanos? Mulheres ou homens?

- Quem era? Ao telefone?

- A Reuters.

Ela levantou-se da mesa, atravessou o hall e foi à casa de banho. Por uns momentos teve medo de vomitar. Era uma acção reflexa, pensou, a incapacidade para aceitar, o desejo de expulsar tudo de si. Salpicou a cara com água e limpou-a. Ao espelho o rosto pareceu-lhe quase irreconhecível.

Quando voltou à cozinha, Robert estava de novo ao telefone. Tinha um braço sobre o peito, a mão debaixo do outro braço. Respondia em voz baixa, dizendo Sim e Está bem, e olhou para ela, quando a viu entrar.

- Mais tarde - disse e desligou.

Houve um longo silêncio.

- Quantos são por falha do piloto? - perguntou ela.

- Setenta por cento.

- Que falha é essa? Que acontece?

- Uma série de acontecimentos que levam a um último e esse último diz-se que é falha do piloto, porque nessa altura os pilotos já estão envolvidos.

- Compreendo.

- Posso perguntar-lhe uma coisa?

- Sim.

- Jack estava...

Hesitou.

- Jack estava o quê? - perguntou.

- Jack estava agitado ou deprimido?

Robert fez uma pausa.

- Recentemente? - perguntou ela.

- Sei que é uma pergunta horrível - disse - mas mais cedo ou mais tarde vai ter de a responder. Se houve alguma coisa, se há alguma coisa que saiba ou se lembre, seria melhor conversarmos os dois sobre o assunto.

Ela reflectiu sobre a pergunta. É estranho, pensou. Conhece-se uma pessoa intensamente, ou pensamos conhecê-la, quando estamos apaixonados - encharcados, ensopados em amor - para mais tarde descobrirmos que afinal não conhecíamos a pessoa tão bem como imaginávamos. Ou não a conhecíamos tão bem como esperávamos. No princípio o apaixonado bebe cada palavra e cada gesto e, mais tarde, tenta manter essa intensidade o máximo de tempo possível. Mas inevi tavelmente, se duas pessoas estiverem juntas muito tempo, a intensidade desvanece-se. É assim que as pessoas funcionam, pensou Kathryn, têm necessidade de deixarem de estar doentes de amor para construir a vida com uma pessoa que também está a mudar, a alterar-se, de modo que o casal possa um dia educar um filho.

Alguns apaixonados não o conseguem, sabia-o pelo exemplo dado pelos pais. Kathryn não se lembrava de uma única vez em que não houvesse um sentimento de carência, necessidade ou tensão entre os pais. Embora o pai fosse constantemente infiel e decerto desse à mãe de Kathryn razões suficientes para esta se sentir magoada, Kathryn tinha a certeza que fora esta que destruíra desde muito cedo qualquer possibilidade que ambos pudessem ter tido para ser felizes. O destino de sua mãe fora ser completamente incapaz de esquecer os tempos em que tinha vinte e dois anos, conhecera Bob Hull, que se apaixonara por ela e a fizera sentir viva. Durante um ano - o ano em que os pais estiveram casados e a conceberam - Bobby Hull não fora capaz de tirar os olhos de cima da sua noiva, nem de sair de junto dela, de modo que a mãe de Kathryn se sentiu pela primeira vez na vida profundamente amada e extraordinariamente bonita, droga que acabou por ser ainda mais viciante que o uísque que Bobby Hull a habituou a beber quando se conheceram. Esse ano, que Kathryn nunca duvidou ter sido o mais feliz da vida de sua mãe - e a respeito do qual Kathryn sabia mais do que o que deveria saber, já que quando era pequena o ouvia descrever em grande pormenor sempre que os pais discutiam - tomou uma importância quase sagrada, à medida que o tempo passava. Mesmo quando o pai de Kathryn se arrependia e tentava de facto agradar à mulher, não o conseguia recrear. Kathryn sempre pensara que a tragédia da vida da mãe fora o afastamento gradual das atenções que Bobby Hull lhe prestava, facto que começara de modo perfeitamente natural. Mesmo duas pessoas profundamente apaixonadas, acabam por ter de viver a sua vida, ir trabalhar e tomar conta dos filhos. Assim que a mãe sentiu e reconheceu o afastamento - o identificou, por assim dizer -, este tornou-se um modo de ser. Kathryn ouvia ainda a mãe gritar do quarto lá de cima, uma e outra vez, repetindo em voz agonizante uma única palavra Porquê? Por vezes (e Kathryn encolhia-se sempre que se lembrava) a mãe pedia a Bob Hull que lhe dissesse que era bela, o que fazia com que o pai de Kathryn, que era teimoso, fosse avarento no seu amor, embora amasse muito a mulher e lho pudesse ter dito, se ela não lho pedisse.

Quanto ao seu próprio casamento, Kathryn concluiu que lhe fora mais difícil a ela fazer a transição entre o serem amantes e se tornarem um casal, do que fora para Jack. Com ela e Jack acontecera mais tarde do que aquilo que ela suspeitava que acontecia com os outros e que por isso tinham tido sorte. Seria quando Mattie tinha onze anos? Doze? Jack parecera afastar-se ligeiramente de Kathryn. Não conseguia apontá-lo ou sequer articulá-lo. Sempre pensara que em todos os casamentos, o casal criava o seu próprio drama sexual, representado no quarto ou em público, silenciosamente ou até ao telefone, um drama várias vezes repetido, com diálogo semelhante, direcção semelhante, partes do corpo semelhantes, como adereços para a imaginação. Mas se um dos parceiros altera ligeiramente o papel ou tenta eliminar algumas falas, a peça já não corre tão bem como de costume. O outro actor, ainda sem se aperceber de que a peça mudou, esquece por vezes as deixas, engole-as ou sente-se confuso pela coreografia diferente.

E fora assim com ela e Jack, pensou. Na cama, ele começara a voltar-se menos vezes para ela. Depois, quando o fazia, parecia que faltava qualquer coisa. Era um afastamento gradual, que por vezes era quase imperceptível, até que um dia ocorrera a Kathryn que ela e Jack não faziam amor havia mais de duas semanas. Na altura pensara que fora a necessidade de dormir que o invadira; o horário era difícil e muitas vezes parecia estar cansado. Mas por vezes preocupava-se com a possibilidade de ser ela a responsável por aquele padrão novo, por se ter tornado tão passiva. Assim, durante algum tempo tentou ser mais imaginativa e activa, esforço esse que não fora completamente bem sucedido.

Kathryn decidira não se queixar. Não entrar em pânico. Nem sequer discutir o assunto. Mas em breve se apercebera de que o preço de tal firmeza fora a criação de uma subtil neblina à sua volta, um véu que fazia com que ela e Jack não estivessem tão próximos um do outro. Algum tempo depois a tal neblina começara a fazê-la sentir-se ansiosa.

Depois viera a discussão. A única discussão terrível em todo o seu casamento. Mas agora não queria pensar em tal.

- Não houve nada - disse a Robert. - Creio que vou para a cama. Robert acenou com a cabeça, concordando com a ideia.

- Foi um bom casamento - disse Kathryn.

Passou a palma da mão sobre a mesa.

- Foi bom - repetiu.

De facto pensava que todos os casamentos eram como a recepção das ondas de rádio: iam e vinham. De vez em quando, o casamento e Jack eram muito claros. Outras vezes havia interferências, estática, entre eles. Nessas alturas era como se não conseguisse ouvir Jack claramente, como se as mensagens que ele lhe mandava vagueassem pela estratosfera numa direcção errada.

- Será necessário notificar mais alguém da família dele? - perguntou Robert.

Kathryn abanou a cabeça.

- Era filho único. A mãe morreu quando tinha nove anosdisse. - O pai morreu quando estava na faculdade. - Gostaria de saber se Robert Hart já sabia disto. - Jack nunca falava da sua infância. Sempre tive a impressão de que não foi muito feliz. - A infância de jack fora um daqueles assuntos que Kathryn pensara ter todo o tempo do mundo para falar com o marido.

- A sério - disse Robert. - Não me importo de ficar aqui.

- Não. Vá-se embora. Se precisar de alguém, Julia está aqui. O que faz a sua ex-mulher?

- Trabalha para o senador Hanson. Da Virgínia.

- Quando me perguntou aquilo a respeito de Jack - disse Kathryn. - Sobre se ele estava deprimido?

- Sim.

- Bom, houve uma altura em que eu diria que ele não estava exactamente deprimido, mas sentia-se definitivamente infeliz.

- Conte-me lá - disse Robert.

- Era por causa do trabalho - disse ela. - Foi há cinco anos. Estava aborrecido com a companhia. E por algum tempo terrivelmente aborrecido. Começou a fantasiar que se demitia, que desistia de tudo e arranjava outro emprego, acrobacia aérea, dizia. Num YAK 27, de fabrico russo. Ou então criava sua própria empresa. Sabe, uma escola de pilotagem, uma companhia de charters, vender aviões.

- Cheguei também a pensar nisso - disse Robert. - Creio que em determinada altura, todos os pilotos o fazem.

- A companhia crescera demasiado depressa, dizia Jack. Tornara-se demasiado impessoal e ele mal conhecia a tripulação com quem voava. Muitos dos pilotos eram ingleses e viviam em Londres. Também tinha saudades das técnicas de voo mais antigas. Queria poder sentir de novo o aparelho. Durante algum tempo recebemos pelo correio folhetos de aviões acrobáticos de aspecto estranho e chegou mesmo a perguntar-me uma manhã se eu queria ir com ele a Boulder onde havia uma mulher que queria vender a escola. Claro que tive de dizer que sim, pois já uma vez o fizera por mim e lembro-me que estava preocupada por ele se sentir infeliz e pensava que de facto precisaria de uma mudança. Mesmo assim fiquei aliviada quando o assunto morreu. Depois nunca mais falou em sair da companhia.

- Foi há cinco anos?

- Mais ou menos. Não sou muito boa a lembrar-me de datas. Sei que ajudou o facto de ter ficado com a rota Bóston-Heathrowdisse. - Penso que fiquei tão contente por a crise ter terminado que nunca mais mencionei o assunto, nem lhe perguntei nada. Agora, quem me dera tê-lo feito.

- Depois disso nunca mais pareceu deprimido? - perguntou

Robert.

- Não. De maneira nenhuma.

Ela pensou que seria impossível afirmar com toda a certeza os arranjos que Jack teria feito dentro de si. Parecia ter colocado o seu descontentamento no mesmo sítio em que tinha escondido a sua infân cia - num compartimento estanque.

- Está com ar cansado - disse ela a Robert.

- E estou.

- Provavelmente seria melhor ir - continuou. Ele ficou em silêncio e não se mexeu. - Como é ela? - perguntou. - A sua mulher? Isto é, a sua ex-mulher.

- É da sua idade. Alta, cabelo curto e escuro. Muito bonita.

- Confiei em que ele não morresse - disse Kathryn. - Sinto-me

como se tivesse sido enganada. Não lhe parece horrível? Afinal ele morreu e eu não. Pode ter sofrido. Sei que sofreu, nem que tivesse sido apenas por alguns segundos.

- Está a sofrer agora.

- Não é a mesma coisa.

- Foi enganada - disse ele. - E a sua filha também.

Ao ouvi-lo mencionar a filha, Kathryn sentiu a garganta apertada. Pôs as mãos diante do rosto, como se lhe fosse pedir que não dissesse mais nada.

- Tem de deixar que tudo isto lhe aconteça - disse ele em voz baixa. - Tudo tem um movimento próprio.

- Sinto-me como se me tivesse passado um comboio por cimadisse ela. - Um comboio que não parou.

- Gostava de a ajudar, mas pouco posso fazer, para além de ficar a assistir - disse Robert. - O desgosto é complicado. Não se pode fazer nada.

Ela encostou a cabeça à mesa e fechou os olhos.

- Tem de se lhe fazer o funeral, não é verdade? - perguntou ela.

- Podemos falar desse assunto amanhã.

- Mas, e se o corpo não aparecer?

- A que religião pertence? - perguntou ele.

- A nenhuma. Dantes era metodista. Julia é metodista.

- E jack? O que era?

- Católico. Mas também não era nada. Não pertencia a uma igreja. Não casámos religiosamente.

Sentiu que os dedos de Robert lhe tocavam o alto da cabeça. Ao de leve. Rapidamente.

- Vou-me embora - disse.

Quando Robert partiu, Kathryn ficou uns momentos sentada sozinha, mas depois levantou-se e percorreu os compartimentos do andar de baixo da casa, apagando as luzes. Gostaria de saber o que quereria exactamente dizer falha do piloto. Uma curva à esquerda, quando deveria ter voltado à direita? Cálculos errados em relação ao combustível? Desobediência a instruções? Um interruptor accionado acidentalmente? Em que outro emprego poderia um homem cometer um erro que matasse cento e três pessoas? Maquinista de comboio? Condutor de autocarro? Alguém que trabalhasse com produtos químicos, com resíduos nucleares?

Não poderia ter sido falha do piloto, disse para consigo. Para o bem de Mattie, não podia.

Ficou muito tempo no cimo das escadas, depois continuou pelo corredor.

O quarto estava frio. A porta estivera todo o dia fechada. Deixou que os olhos se habituassem ao escuro. A cama estava por fazer, tal como a deixara às 3: 24 da madrugada.

Deu a volta à cama e ficou a olhar, tal como um animal faria: cautelosa, calculista. Puxou para trás o edredão e o lençol de cima e observou o de baixo ao luar. Era creme, de flanela, por ser Inverno. Perguntou a si mesma quantas vezes teria feito amor com Jack naquela cama, em dezasseis anos de casamento? Tocou os lençóis com as pontas dos dedos. Sentiu-os gastos e suaves. Macios. Experimentou sentar-se na beira da cama para ver se conseguia aguentar. Já não confiava em si própria, já não tinha a certeza de como o seu corpo reagira às notícias. Mas enquanto estava ali sentada, não sentia nada. Pensou que talvez durante aquele dia tão longo, tivesse finalmente ficado anestesiada. Os sentidos aguentavam tanto.

- Falha do piloto - disse em voz alta, para se testar. Mas não poderia ser falha do piloto, pensou rapidamente. No fim, não seria falha do piloto.

Deitou-se na cama completamente vestida. Pensou que agora seria aquela a sua cama. Só dela. Todo o quarto só para si.

Olhou para o relógio da mesa-de-cabeceira: 9: 27.

Cuidadosamente - como se estivesse a medir movimentos sísmicos - estendeu a mão e puxou o lençol de cima para si. Imaginou que sentia o cheiro de Jack na flanela. Era possível - não tinha ainda lavado os lençóis desde que ele partira na terça-feira. Mas não podia confiar nos seus sentidos, não sabia o que era real ou imaginado. Olhou para a camisa de Jack, pendurada na cadeira. Desde que se casara que Kathryn arranjara o hábito de não se preocupar em limpar a casa senão quando jack estava para chegar de viagem. Agora sabia que não quereria tirar a camisa da cadeira. Passariam muitos dias até conseguir tocar-lhe, não podia arriscar-se a chegá-la ao rosto, conseguir sentir o cheiro dele no tecido. E quando todos os vestígios de Jack tivessem sido limpos e eliminados, com que ficaria então?

Voltou-se de lado, olhando o quarto ao luar. Pela pequena greta da janela, conseguia ouvir o barulho do mar.

Tinha a imagem vívida de Jack na água, batendo na areia no fundo do oceano.

Tapou a boca e o nariz com o lençol de flanela, respirando lenta mente através dele, pensando que assim conseguiria deter o pânico.

Pensou em ir até ao quarto de Mattie e em deitar-se no chão junto dela e de Julia. Pensara mesmo conseguir passar a primeira noite sozinha no leito conjugal?

Levantou-se rapidamente da cama e dirigiu-se à casa de banho, onde Robert deixara um frasco de Valium. Tomou um comprimido, depois outro, por precaução. Pensou em tomar um terceiro. Sentou-se na borda da banheira até começar a sentir-se sonolenta.

Pensou talvez em deitar-se no divã do quarto de hóspedes. Mas ao passar pela porta do escritório de Jack viu a luz acesa. Abriu a porta.

O escritório era brilhante mas descorado - branco, metálico, plástico, cinzento. Era um compartimento em que raramente entrava, um espaço pouco atraente, sem cortinas nas janelas e armários metálicos encostados às paredes. Uma sala masculina.

Parecia-lhe que teria a sua própria ordem - uma ordem conhecida apenas de Jack. Na enorme secretária de metal havia dois computadores, um teclado, um fax, dois telefones, um scanner, chávenas de café, miniaturas poeirentas de aviões, uma caneca com sumo vermelho (pensou que fosse de Mattie) e um copo de barro azul para canetas, que Mattie fizera para Jack quando estava na segunda classe.

Olhou para o fax que tinha a luz a piscar.

Dirigiu-se à secretária e sentou-se. Robert estivera ali e usara o telefone e o fax. Kathryn abriu a gaveta da esquerda. Lá dentro estavam os livros de bordo de Jack, pesados, escuros, com capas de plástico e outros mais pequenos que cabiam no bolso de uma camisa. Viu uma pequena lanterna, um corta-papel de marfim que trouxera de África havia muitos anos, manuais acerca de aviões que já não pilotava, um livro sobre radares meteorológicos. Um vídeo didáctico a respeito das mudanças de vento. As divisas de Santa Fé. Suportes com a forma de instrumentos de voo.

Fechou aquela gaveta e abriu a do meio, que era mais comprida: mexeu com o dedo num molhe de chaves que pensou poderem ter sido trazidas do apartamento de Santa Fé. Pegou num velho par de óculos de ver ao perto, com aros de tartaruga que Jack atropelara com o carro. Teimava que ainda lhe serviam. Havia caixas de clipes de papel, canetas, lápis, elásticos, pionaises, duas pilhas uma vela do carro. Levantou uma embalagem de papel Post-it e viu um conjunto de costura dos Marriott Hotels. Sorriu e beijou-o.

Abriu a gaveta de arquivo da direita. Viu que estava destinada a pastas de tamanho normalizado, mas que havia lá dentro um monte de papéis de trinta centímetros de altura. Pegou nela e pô-la no colo. Estavam juntos ao acaso e não lhes conseguia ver qualquer ordem. Um postal de parabéns de Mattie, memorandos da companhia, uma lista telefónica local, uma série de impressos do seguro de saúde, um rascunho de um trabalho que Mattie fizera para a escola, um catálogo de livros de aviação, um postal do Dia dos Namorados que Kathryn lhe dera no ano anterior. Olhou para a frente do cartão. Dizia: São valentim, adoro o que fazes pelo meu espirito. Abriu-o... E as coisas que fazes ao meu corpo. Fechou os olhos.

Algum tempo depois, encostou ao peito os papéis que já tinha visto e continuou a folhear o resto. Descobriu vários extractos da conta de Jack agrafados. Ela e Jack tinham contas diferentes. Ela pagava a sua roupa e a de Mattie, a comida e outros artigos de casa. Jack pagava o resto. Jack dizia que as poupanças que conseguisse fazer iriam direitas para a reforma.

Começava a ter dificuldade em manter os olhos abertos. Fez um esforço para arranjar os papéis que tinha no colo e metê-los de novo na gaveta. Aí dentro, um pouco preso na junção estava um envelope por abrir, publicidade, mais um convite para aderir a um cartão Visa. Bay Bank, dez por cento de juros. Aquilo era já antigo, pensou.

Pegou no envelope e ia deitá-lo no cesto dos papéis quando viu que havia qualquer coisa escrita atrás. Outra lista: telefonar para afarmá cia de Ely Falls; telefonar Alex, depósito no banco, despesas de Março; telefonar Larry Johnson por causa dos impostos; telefonar a Finn por causa do Caravan. Lembrava-se que Finn era o agente da Dodge-Plymouth de Ely Falls. Tinham comprado lá o Caravan havia quatro anos e que soubesse nunca mais tinham tido quaisquer contactos com Tommy Finn.

Voltou o envelope. No outro extremo da parte em branco estava também uma nota escrita na caligrafia de Jack. Muire 3: 30, dizia.

Quem seria Muire? perguntou Kathryn a si própria. Randall Muire do banco? Estaria Jack a negociar algum empréstimo?

Kathryn olhou de novo para a parte da frente do envelope. Viu o carimbo dos correios. Viu que, de facto, tinha já quatro anos.

Voltou a meter a pilha de papéis na gaveta e fechou-a com o pé. Agora estava desejosa de se deitar. Saiu do escritório de Jack e meteu- se no quarto de hóspedes, o seu refúgio. Deitou-se na coberta às flores e segundos depois estava a dormir.

Foi acordada com o barulho de vozes - uma aos gritos, quase histérica, e outra, mais calma, que tentava fazer- se ouvir por cima de toda a agitação.

Kathryn levantou-se, abriu a porta e as vozes aumentaram de volume. Ouviu Mattie e julia lá em baixo na sala.

Estavam ajoelhadas no chão quando Kathryn lá chegou, Julia de camisa de flanela, Mattie de T shirt e calções. A volta delas espalhava-se um jardim grotesco de papel de embrulho - bolas e bocados amarrotados vermelhos, dourados, às riscas, azuis e prateados, intercalados com o que pareciam ser centenas de metros de fita colorida.

Julia olhou-a da porta.

- Acordou e veio para baixo - explicou Julia. - Está a tentar embrulhar os presentes.

Mattie baixou-se e deitou-se sobre a carpete na posição fetal.

Kathryn deitou-se ao lado da filha.

- Não aguento, mãe - disse Mattie. - Para onde quer que olhe, lá está ele. Está em todos os quartos, em todas as cadeiras, em todas as janelas, no papel da parede. Não aguento mesmo, mãe.

- Estavas a tentar embrulhar o presente dele? - perguntou Kathryn, retirando com ternura os cabelos do rosto da filha.

Mattie acenou afirmativamente e começou a chorar.

- Vou levá-la para minha casa - disse Julia.

- Que horas são?

- Passa, da meia-noite. Levo-a para casa e meto-a na camadisse Julia.

- Vou também - disse Kathryn.

- Não - disse Julia. - Estás exausta. Fica aqui e vai deitar-te. Mattie fica bem comigo. Precisa de mudar de cenário, de uma zona neutra, de um quarto neutro.

Kathryn pensou que a imagem era de facto muito apropriada, pois tinha a sensação nítida de que estavam envolvidas numa guerra e corriam o risco de se tornarem vítimas da batalha.

Enquanto Julia arranjava um pequeno saco com as coisas de Mattie, Kathryn continuou estendida ao lado da filha acariciando-lhe as costas. De vez em quando Mattie estremecia convulsivamente. Kathryn cantou-lhe uma canção que inventara quando Mattie era bebé: de Matigan... começava a canção.

Depois de Julia e Mattie terem saído, Kathryn subiu para o seu quarto. Desta vez, sentindo-se mais corajosa, meteu-se entre os lençóis de flanela.

Não sonhou.

De manhã, ouviu um cão ladrar.

Havia qualquer coisa discordantemente familiar no ladrar do cão. Depois segurou-se, como faria se tivesse parado num sinal e ao olhar pelo retrovisor reparasse que o condutor atrás de si vinha demasiado depressa.

Robert tinha o cabelo molhado e acabado de pentear. Via a marca dos dentes do pente no seu bico de viúva. Tinha uma camisa diferente, azul, quase cor de ganga e uma gravata vermelho-escura. Camisa para o segundo dia, pensou distraída.

Havia uma chávena de café na bancada. Tinha as mãos nos bolsos das calças e andava de um lado para o outro.

Olhou para o relógio: 6: 40. Porque estaria ali tão cedo? perguntou a si própria.

Quando a viu ao fundo das escadas tirou as mãos dos bolsos e dirigiu-se a ela.

Pôs-lhe as mãos nos ombros.

- O que foi? - perguntou ela alarmada.

- Sabe o que é a caixa negra?

- Sim - disse ela. - É a gravação do que se disse na cabine.

- Bom, encontraram-na.

- E...

Ele hesitou um pouco.

- Falam em suicídio - disse.

 

ELE CAMINHA COM O BRAÇO À VOLTA DELA EM DIRECÇÃO AOS AVIÕES, que parecem muito pequenos, apenas brinquedos onde apenas as crianças podem trepar, entrar e sair. Do chão emana um calor, profundo e abrasador. É um mundo masculino, pensa ela, com as suas máquinas, a sala de reuniões, a torre. Tudo à sua volta é de metal brilhante ou escuro à luz do Sol.

Ele parece solícito, mas caminha rapidamente. O avião é bonito com manchas vermelhas e brancas. Ela afasta-lhe as mãos e depois sobe para a asa e entra pela pequena abertura para a cabine, cujo tamanho é imediatamente alarmante. Como pode uma coisa tão monumental como um voo ter lugar num espaço tão insignificante. Voar, que sempre pareceu a Kathryn ser improvável, parece-lhe agora claramente impossível e diz para consigo, tal como sempre o fez num carro com um mau condutor ou num divertimento de feira, que tudo acabará rapidamente e a ela basta-lhe sobreviver.

Jack iça-se para o seu lado. Tem postos óculos escuros com lentes azuis iridescentes. Diz-lhe que aperte cinto e entrega-lhe uns ausculta dores que, segundo lhe explica, farão com que seja mais fácil falarem um com o outro por cima do barulho do motor.

Andam aos solavancos sobre a pista esburacada. O avião parece solto e vacilante. Ela quer-lhe pedir que pare, pois mudou de ideias. O avião ganha velocidade, os balanços terminam e eles estão no ar.

O coração não lhe cabe no peito. Jack volta-se para ela com um sorriso cheio de confiança e divertimento, um sorriso que diz, Vai ser divertido, portanto, descontrai-te.

Diante dela há uma vasta extensão de azul. O que aconteceu ao chão? Tem a imagem de um avião atingindo uma altitude terrível depois inclina-se ligeiramente e cai como a natureza lhe exige que faça. A seu lado, Jack aponta para a janela.

- Olha - diz.

Estão por cima da costa tão alto que a crista das ondas parece estar parada. O azul do oceano é agora mais escuro. A pouca distância da costa vê uma mata de abetos que parece ser um país inteiro. Vê um barco e o seu rasto, uma central eléctrica mais acima junto à costa. A mancha escura de Portsmouth. Os bocados de rocha brilhante que são as ilhas dos Cardumes. Procura Ely, pensa que encontrou, segue a estrada da vila até à casa de Julia.

Ele dá uma volta e ela agita as mãos para se proteger. Quer pedir-lhe que tenha cuidado, o que imediatamente pensa ser uma loucura. Claro que há-de ter cuidado. Ou não?

Como que em resposta, ele inclina o avião para subir num ângulo tão agudo que ela pensa que está a pôr à prova as leis da física. Tem a certeza que vão cair do céu. Chama pelo nome dele, mas ele está com atenção aos instrumentos e não responde.

A gravidade obriga-a a encostar-se às costas do banco. Sobem numa espiral alta e longa e por um segundo ficam no seu vértice, imóveis, de cabeça para baixo, uma mancha suspensa sobre o Atlântico. O avião mergulha e sai do outro lado do loop. Ela grita e agarra-se àquilo que tem à mão. Jack dá-lhe uma olhadela rápida e põe o avião quase vertical ao solo. Ela observa Jack nos controles, os seus movimentos calmos, a concentração do rosto. Espanta-a que um homem obrigue um avião a fazer truques - truques com a gravidade, a física, o destino.

Depois o mundo fica em silêncio. Como se estivesse surpreendido, o avião começa a cair. Não como uma pedra, mas antes como uma folha flutuando um pouco e depois mergulhando para a direita. Aflita olha para Jack. O avião começa então a girar como um louco, com o nariz apontado para o solo. Ela arqueia as costas, incapaz até de gritar.

Quando deixa de girar não estão sequer a trinta metros da água. Ela vê a espuma, o remoinho de uma zona levemente agitada do mar. Espantada, começa a chorar.

- Sentes-te bem? - pergunta ele rapidamente ao ver as lágrimas. Põe-lhe a mão sobre a perna. Abana a cabeça - Não devia ter feito isso - diz. - Desculpa. Pensei que gostasses.

Ela volta-se para olhar para ele. Põe a mão sobre a dele e respira fundo, estremecendo.

Foi emocionante - diz. - E era verdade!

O CARRO ESTAVA GELADO. Kathryn quase não conseguia pôr as mãos no volante, tendo saído de casa a correr e esquecido as luvas. Gostaria de saber que temperatura estaria lá fora. Cinco abaixo de zero? Dez? Abaixo de um certo ponto, parecia que pouco importava. Sentiu a tensão nos ombros e inclinou-se para a frente, tentando não tocar em nada, até que o calor começasse a fazer-se sentir.

Quando Robert lhe deu a notícia - que insistiu se deveria recusar a dar crédito - quisera apenas ir para o pé de Mattie. Enquanto Kathryn se mantinha ao fundo das escadas, olhando para o rosto de Robert, o desejo de ver a filha invadia-a, enchendo-a tão depressa como a água enche um jarro. Ainda com a mesma roupa com que dormira passara por Robert, enfiando quase simultaneamente o anoraque e as botas e apanhando as chaves do carro, que estavam num gancho junto à porta das traseiras. No Caravan, descera o caminho aos solavancos, ganhara velocidade ao passar por vários homens que corriam em direcção ao portão e durante mais de um quilómetro manteve-se a noventa.

Depois derrapou numa curva e deteve-se numa reentrância arenosa da estrada que ia de Fortune's Rocks para Ely. Silenciosamente, encostou a cabeça ao volante.

Não podia ser suicídio, pensava Kathryn. Suicídio era completamente impossível. Inimaginável. Impensável. Fora de questão.

Não sabia quanto tempo ali tinha ficado, talvez dez minutos. Depois pôs de novo o carro em movimento, desta vez mais devagar, enquanto

uma estranha calma - uma calma provavelmente nascida da exaustão, ou que era simplesmente uma dormência disfarçada - descia sobre ela. Disse para consigo que iria ter com Mattie e que o que diziam a respeito de Jack não seria verdade.

O Sol quebrou a linha do horizonte, dando uma tonalidade rosada aos relvados cheios de neve e sombreando-os em ziguezague com a longa forma azulada das árvores e dos carros. A vila estava sossegada, embora de vez em quando Kathryn visse as colunas de fumo que se erguiam dos escapes dos carros deixados a trabalhar na rua enquanto os donos descongelavam o pára-brisas e esperavam para conseguir sentar-se nos bancos. Ao longo dos beirais de algumas casas havia fios de lâmpadas de várias cores e viam-se árvores de Natal diante das janelas. Passou por uma casa azul, que tinha um exagero de luzes coloridas todo à volta da janela panorâmica. Tipo loja de peças de automóvel, como Jack comentara uma vez que por lá tinham passado.

Comentara uma vez. Tinha comentado. Nunca mais comentaria. A envolvência do tempo começara realmente a engoli-la. Mas perguntava a si mesma se não se teria já ajustado, ainda que ligeiramente, ao conceito da ausência de Jack. A ideia da sua morte, vinda por acaso atrás de um outro pensamento - uma recordação dele, uma imagem - já não a abalava com tanta violência como o fizera na véspera. Como o espírito se acomoda rapidamente, pensou, mesmo em pequenos avanços. Talvez que depois de uma série de choques o corpo se aclimatasse, como se tivesse sido inoculado, de modo que em cada choque subsequente o impacto fosse menor. Ou possivelmente aquele estado momentaneamente adormecido seria apenas uma trégua - um cessar-fogo. Como haveria de saber? Nunca houvera qualquer preparação para isto.

Conduziu pelo centro de Ely, enquanto a luz começava agora a inundar a parte da frente das lojas, pois a terra tinha feito a sua habitual viagem para leste, de modo a mostrar ao sol a vila de Ely. Passou pela loja de ferragens e pela Beekman's, uma loja de artigos baratos que sobrevivera ao centro comercial da Estrada 24, embora as suas prateleiras estivessem sempre cheias de pó e quase vazias. Passou por um edifício deserto, que fora uma loja de linhas e fazendas, onde se tinham podido comprar os restos da fábrica de Ely Falls, nos tempos em que esta estava em funcionamento. Passou pelo Bobbin, o único sítio na vila onde se podia tomar uma bebida e comer uma sanduíche. O Bobbin estava aberto, com três carros estacionados cá fora. Olhou para o relógio do tablier: 7: 05. Dentro de dez minutos, janet Riley, professora de interpretação da escola preparatória e Jimmy Hirsch, agente da MetLife, estariam ali a comer uma baguete com queijo creme e uma sanduíche de ovo, respectivamente. Kathryn pensou que era verdade que se podia acertar o relógio pelos hábitos de certas pessoas e depois continuar a fazê-lo regularmente durante todo o dia por outras, que insistiam absolutamente em conservar a rotina.

Kathryn, por exemplo, entendia a rotina, que em casa de Julia fora uma defesa necessária contra o caos. Claro que Jack compreendera a rotina - particularmente num emprego que exigia que um homem se transformasse numa máquina, que se comportasse com precisão, de uma determinada maneira de cada vez que se apresentasse um determinado conjunto de circunstâncias. Porém era estranho que ficasse impaciente com a rotina, uma vez saído do avião. Preferia pensar em possibilidades e estar preparado para elas. Dos dois, era dele que era mais provável virem frases como: Vamos almoçar a Portsmouth, ou Vamos buscar Mattie à escola e fazer ski.

Kathryn passou pela escola secundária, que ficava mesmo à saída do centro da vila. Trabalhava lá havia já sete anos, depois de ter acabado o curso, quando se mudara para Ely. Era um edifício antigo de tijolo, com enormes janelas, um edifício já antigo quando Julia lá andara. Agora havia menos alunos do que no tempo de Julia, quando as fábricas fun cionavam.

Nos quarteirões seguintes as casas eram brancas, com pequenos conjuntos de janelas escuras, muitas delas rodeadas de sebes brancas - na sua maioria ao estilo do Cabo, vitorianas, mas também algumas coloniais antigas - que emprestavam a Ely o seu encanto. Saindo neste anel interior, os arredores eram menos povoados, com pequenos bosques e salinas, que separavam umas casas das outras e continuavam, alongando-se como um chupa-chupa de caramelo, por mais cinco quilómetros, até ao fundo daquela estrada, onde ficava a casa de pedra.

Fez a curva que tão bem conhecia e subiu a rua até o cimo da colina. Ainda não havia luzes acesas, de modo que calculou que Julia e Mattie ainda estivessem deitadas. Saiu do carro e ficou um minuto naquele silêncio. Kathryn tinha a sensação de que todas as manhãs havia um momento entre o silêncio da noite anterior e o bulício do dia seguinte, em que o tempo parava um momento, em que o mundo se imobilizava expectante. A estrada por baixo do carro estava coberta de uma neve fina que caíra três dias antes e ainda não derretera. Sobre as rochas, a neve congelara formando uma renda fina.

A casa de Julia ficava no cimo de uma colina, o que por vezes tornava difíceis certas tarefas, como o transporte das compras, mas para quem quisesse aproveitar, oferecia uma vista magnífica a ocidente. A casa era antiga, construída em meados do século xIx. Fora o anexo de uma quinta, que ficava a um quilómetro e meio de distância. De um lado, era bordejada por uma estrada estreita; do outro havia um muro de pedra. Para lá desse muro havia um pomar bem ordenado de macieiras torcidas que, no fim do Verão, mostrariam frutos rosados e poeirentos.

Fechou a porta do carro, subiu o caminho que levava à porta e entrou. Julia nunca fechava a porta, nem quando Kathryn era rapariga, nem mesmo agora, quando outros o faziam. Na cozinha, Kathryn aspirou de novo o odor único da casa de Julia - uma mistura de pão-de-ló de laranja e cebolas. Kathryn despiu o anoraque que colocou sobre uma cadeira da sala.

A casa era apertada, mas tinha três andares. Quando os pais de Kathryn morreram, Julia insistira para que a neta ficasse com o quarto deles, no último piso. Depois de alguma hesitação, Kathryn pusera lá os seus livros e uma secretária, diante da única janela. No andar do meio, havia dois pequenos quartos, um dos quais pertencia a Julia e no rés-do-chão ficavam a sala e a cozinha. A sala continha a mobília que Julia trouxera quando casara - um sofá de veludo castanho, já desbotado, duas cadeiras fofas, que precisavam de ser estofadas de novo, um tapete, uma mesinha e um piano de cauda, que ocupava quase todo o resto do espaço.

Agarrando-se ao corrimão, Kathryn subiu a escada estreita até ao seu antigo quarto, agora da filha, quando Mattie ficava lá a dormir, o que acontecia com frequência. Kathryn dirigiu-se às janelas e abriu uma greta das cortinas, de modo a poder vê-la deitada na cama. Mattie dormia, como sempre, enrolada em si própria, tendo o tigre de peluche caído para o chão. Kathryn mal via o rosto da filha - estava metido dentro da roupa - mas bastava-lhe ver o cabelo espalhado e a forma do seu corpo delicado por baixo dos cobertores.

Silenciosamente, Kathryn sentou-se numa cadeira em frente à cama, de modo a vigiar Mattie. Kathryn não queria acordá-la ainda, não estava ainda preparada para saber como os acontecimentos do dia anterior afectaram a filha, tal como a tinham afectado a si de manhã cedo. Mas, quando acontecesse, Kathryn queria estar ali.

Mattie ergueu a cabeça da almofada, voltou- a e virou-se para o outro lado.

O Sol ia já alto e a luz escoava-se por entre as cortinas, fazendo uma risca de cor brilhante no lado esquerdo da cama de casal. Era á mesma cama de mogno em que os pais de Kathryn tinham dormido; por vezes interrogava-se se antigamente os casais fariam amor com mais frequência porque as camas eram mais estreitas. Mattie mexeu-se a sonhar, como se se aconchegasse para mais uma hora de sono. Kathryn levantou-se da cadeira, apanhou o tigre e colocou-o junto à cabeça de Mattie. Por um momento sentiu nos dedos o hálito quente da filha. Depois, talvez por sentir a presença da mãe, Mattie endireitou-se. Impulsivamente, Kathryn deitou-se ao seu lado, abraçando-a. Apertou a filha com força, ouvindo a respiração mais pesada.

- Estou aqui - disse Kathryn.

Mattie ficou em silêncio. Kathryn alargou o abraço e começou a acariciar a cabeça da filha. O cabelo espesso e encaracolado estava todo despenteado, como sempre acontecia logo pela manhã. Mattie herdara de Jack o encaracolado do cabelo e de Kathryn a cor. Herdara também do pai, os olhos de dois tons de azul, que até recentemente lhe tinham agradado muito. Pensava que ter uma marca que a diferenciasse dos outros a tornava de certo modo especial. Mas no princípio da segunda fase da adolescência, quando qualquer característica que a diferenciasse das amigas, ainda que ao de leve, era causa de uma grave angústia, tinha começado a usar uma lente de contacto para igualar a tonalidade. Claro que não a usava para dormir.

Houve um movimento no lençol, como se alguém o estivesse a puxar. Suavemente Kathryn baixou os cobertores do rosto de Mattie. A filha tinha a boca cheia de roupa e apertava o lençol branco entre os dentes.

- Mattie, por favor. Vais sufocar.

Os maxilares de Mattie apertaram o tecido ainda com mais força. Kathryn puxou o tecido devagar, mas Mattie não o soltou. Ouvia a filha respirar com força pelo nariz. Tinha pequenas lágrimas sob as pálpebras, prontas a soltarem-se se pestanejasse. Olhou para Kathryn com uma mistura de raiva e súplica. Kathryn via os músculos do rosto da filha ficarem tensos e depois descontraírem-se.

Lentamente Kathryn tentou uma vez mais puxar o lençol. Subitamente, Mattie abriu a boca e retirou o tecido lá de dentro.

- Isto é uma porcaria - disse, quando conseguiu respirar.

Mattie estava no duche. julia, que trazia vestido um roupão curto, de xadrez, sobre uma camisa de dormir anterior à administração Carter, estava junto ao fogão. Julia acreditava que o facto de estar farta de uma peça de vestuário não era razão suficiente para comprar outra. Outra regra não escrita, era que se não se vestisse um determinado vestido mais de um ano, devia dar-se.

Parecia cansada e tinha a pele esbranquiçada. Kathryn ficou surpreendida ao ver - ou talvez ao notá-lo pela primeira vez - um alto no cimo da coluna de Julia que a obrigava a curvar levemente a cabeça e os ombros para diante.

- Robert ainda está na estalagem? - perguntou Julia. As suas costas eram uma barreira macia de xadrez vermelho.

- Não - disse imediatamente Kathryn, sem querer pensar em Robert e naquilo que ele tinha ou não dito. - Ontem à noite ficou na estalagem, mas agora já está lá em casa.

Colocou a caneca do café sobre a mesa de madeira, que estava forrada com uma toalha de oleado dobrada e presa por baixo com pionaises. Com o passar dos anos, as cores da toalha tinham-se alterado - de encarnado, a azul, a verde - mas não a superfície limpa e esticada, a sensação que lhe provocava o material debaixo dos dedos.

Julia pôs um prato de ovos e torradas diante de Kathryn.

- Não consigo - disse esta.

- Come. Bem precisas.

- O meu estômago...

- Se não conservares as forças, não fazes bem nenhum a Mattie, Kathryn. Vejo que sofres, mas és mãe da miúda e é esse o teu dever, quer queiras, quer não.

Houve um longo silêncio.

- Dás-me licença? - pediu Kathryn.

Julia sentou-se.

- Desculpa - disse. - Tenho os nervos em franja.

- Há uma coisa que precisas de saber - disse Kathryn rapidamente.

Julia olhou-a.

- Há uns rumores. É uma loucura, é horroroso.

- O que é?

- Sabes o que é a caixa negra?

A cabeça de Julia voltou-se abruptamente para a porta. Mattie estava ali no limiar, sem saber o que haveria de fazer a seguir, como se esquecesse de como havia de agir. O cabelo encharcara os ombros e a camisola azul, que se enrolara um pouco acima da cintura. Vestira calças de ganga (tamanho dois, estreitas) cuja bainha fora descosida para lhe tapar os ténis Adidas. Metia os pés para dentro, o que lhe dava, da cin tura para baixo, um ar infantil, que contrastava por vezes espantosa mente com a postura calma da parte superior do corpo. Meteu as pontas dos dedos na abertura dos bolsos da frente e ergueu os ombros. Tinha os olhos vermelhos de chorar. Atirou a cabeça para trás, de modo que todo o cabelo lhe caiu momentaneamente para um lado. O lábio superior tremia. Nervosamente, estendeu a mão e enrolou o cabelo, num carrapito, para o soltar logo em seguida.

- Então, que se passa? - perguntou corajosamente, olhando para o chão.

Kathryn teve de se voltar. Não queria que Mattie visse as lágrimas que lhe tinham assomado aos olhos.

- Mattie - disse, quando conseguiu falar. - Senta-te aqui ao pé de mim e come os ovos e as torradas. Ontem quase que não comeste nada.

- Não tenho fome.

Mattie puxou uma cadeira - afinal a cadeira que estava mais longe da mãe - e sentou-se desajeitadamente na beira, com os ombros ligeiramente curvados, as mãos no colo, os pés formando um um no chão.

- Por favor, Mattie - disse.

- Mãe, não tenho fome, está bem? Deixa-me!

Julia pareceu ir dizer alguma coisa a Mattie, mas Kathryn olhou para ela e abanou a cabeça.

- Como queiras - disse Kathryn, no tom de voz mais natural que conseguiu.

- Bom, talvez a torrada - concedeu Mattie.

Julia arranjou-lhe um prato com uma torrada e uma chávena de chá. Mattie retirou da torrada pequenos bocados da côdea - bocados do tamanho das hóstias da comunhão - e mastigou-os lentamente, sem entusiasmo, até a torrada ficar sem côdea. Nessa altura pousou-a.

- Vou à escola? - perguntou Mattie.

- Só depois das férias - disse Kathryn.

O rosto de Mattie estava pálido, cansado, a pele tornara-se branca e granulosa, como se funcionasse apenas com metade da energia. Entre os olhos e sobre as narinas havia pequenas borbulhas na pele avermelhada. Sentou-se, olhando para a torrada, analisando o quadrado de pão frio e pouco apetitoso que tinha no prato.

- Vamos dar uma volta - disse Kathryn.

Mattie encolheu os ombros. Encolheu só um - mais indiferente ainda do que se tivesse encolhido os dois.

Na porta da cozinha, mesmo por detrás de Mattie, estava uma árvore de Natal, de pano, que anos atrás fora comprada numa venda de Natal da Igreja e que no princípio de Dezembro era sempre retirada da sua caixa no sótão. Julia não punha muitas decorações, mas era resolutamente fiel: aquilo que tinha sido usado no ano anterior voltava de novo.

Natal. Um assunto em que Kathryn não queria pensar e que pairava no seu cérebro como uma aborrecida dor de cabeça.

Levantou-se.

- Veste o casaco - disse a Mattie.

O frio clareou-lhe a cabeça e fez com que lhe apetecesse movimentar o corpo mais depressa. Atrás da casa de pedra, a estrada transformava-se num atalho de terra batida, que subia a montanha de Ely. Era uma encosta modesta, numa paisagem graciosa de pinheiros escuros, pomares de macieiras abandonados e campos de amoras silvestres. Em finais dos anos oitenta, um empresário pensou em construir um conjunto de condomínios de luxo perto do cume, tendo até limpo uma zona de terreno e aberto os alicerces. Mas fora numa má altura e o homem fora forçado a declarar falência seis meses depois, com a chegada da recessão que afectara e quase sufocara todo o New Hampshire. Agora, arbustos baixos enchiam o terreno vago, mas os alicerces abandonados, com a primeira cobertura para o chão davam uma vista espantosa de Ely e de Ely Falls, para ocidente, e afinal de todo o vale.

Mattie não trazia nada na cabeça. Caminhava com os punhos fechados, metidos nos bolsos do casaco brilhante, acolchoado, a que não correra o fecho. Kathryn desistira havia muito tempo de dizer a Mattie que fechasse o casaco ou que pusesse alguma coisa na cabeça. Por vezes, quando Kathryn saía da escola depois das aulas, ficava espantada por ver as miúdas sentadas no passeio com uma temperatura de cinco graus e apenas uma camisa de flanela desabotoada sobre as T-shirts.

- Mãe. É Natal - disse Mattie.

- Eu sei.

- O que vamos fazer?

- O que queres fazer?

- Não quero. Não sei. Fazemos Natal, acho eu. Não sei.

- Porque não esperas uns dias para ver?

- Oh, mãe!

Mattie parou de repente, meteu os pulsos nos olhos e começou a tremer incontrolavelmente. Kathryn pôs-lhe os braços à volta, mas

Mattie afastou-se da mãe.

- Oh, meu Deus, mãe. Ontem à noite quando tirei o presente dele... Mattie chorava agora com toda a força: Kathryn sentia que a filha estava demasiado ferida, demasiado magoada para que a tocasse de novo, quase a provocar-lhe também um ataque de nervos.

Kathryn fechou os olhos e esperou. Contou lentamente, como fazia quando batia com uma perna na máquina de lavar a loiça que ficara aberta, ou se entalava numa janela. Um, dois, três, quatro. Um, dois, três, quatro. Quando Kathryn ouviu o choro acalmar um pouco, abriu os olhos. Impeliu a filha para diante como um cão faz a uma ovelha ou a uma vaca. Mattie estava demasiado entorpecida para resistir.

Kathryn entregou à filha um lenço de papel e esperou que a rapariga assoasse o nariz.

- Comprei-lhe um CD - disse Mattie. - Stone Temple Pilots. Ele disse que queria.

As folhas e a neve gelada formavam um complicado tapete nas bermas do atalho. O chão estava duro e cheio de sulcos.

- Mãe, não vamos passar em casa, está bem? Acho que não consigo aguentar, se o passarmos em casa.

- Passamos o Natal com Julia - disse Kathryn.

- Vamos fazer um funeral?

Kathryn tentou acompanhar o passo de Mattie, que caminhava rapidamente, fazendo as perguntas, que se lhe escapavam da boca como nuvens de vapor. Pensou que provavelmente a filha teria passado a noite a pensar nestas questões e só agora tinha coragem de as formular.

Mas Kathryn não sabia responder às últimas perguntas. Se não há corpo, poderá fazer-se funeral, ou será que se chama serviço fúnebre? E se se fizer um serviço fúnebre, será melhor que seja agora ou daqui a mais algum tempo? E o que acontece se fizer o serviço fúnebre agora e depois, daqui a uma semana, o corpo aparecer?

- Não sei - disse Kathryn com sinceridade. - Tenho de falar com... - Quase disse Robert, mas conteve-se a tempo. - Julia - afirmou.

Embora, espantosamente, fosse a Robert que queria perguntar.

- Tenho de ir? - perguntou Mattie.

Kathryn reflectiu uns momentos.

- Sim, deves ir - disse. - Sei que é difícil; é horrível, Mattie, mas dizem que é melhor passar pela experiência do funeral de um ente querido, do que não o fazer. É uma espécie de fecho. Agora já tens idade suficiente para isso. Se fosses mais nova, diria que não.

- Não quero fechar nada, mãe! Não posso! Tenho de o manter aberto o mais tempo possível.

Kathryn sabia precisamente o que a filha queria dizer. Porém, também pensava que deveria fazer por Mattie o que Julia tinha feito por ela. Kathryn gostaria de saber quando seria a altura de deixar de ser uma mãe racional e admitir que estava tão desnorteada como a filha?

- Ele não volta, Mattie.

Mattie tirou as mãos dos bolsos, cruzou os braços e cerrou os punhos.

- Como sabes, mãe? Como podes ter tanta certeza?

- Robert Hart disse que não havia sobreviventes. Que ninguém poderia ter sobrevivido à explosão.

- Que sabe ele?

Não era uma pergunta.

Caminharam algum tempo em silêncio. Mattie começou a agitar os braços com força, apressando o passo. Kathryn tentou por algum tempo acompanhá-la e depois percebeu que não o deveria fazer. A razão era essa.

Kathryn ficou a ver Mattie andar cada vez mais depressa, até começar a correr e virar a esquina, de modo que deixou de a ver.

Não tinha ideia de como sobreviveriam ao Natal, faltavam apenas sete dias: ocorrera um acidente que alterara a ordem do seu universo e giravam agora numa órbita desconhecida - adjacente, mas diferente da dos outros que as rodeavam.

Encontrou Mattie sentada no muro de cimento dos alicerces, respirando com força, como o fazia depois de um jogo de hóquei. Olhou para a mãe.

- Desculpa, mãe.

Kathryn olhou para a paisagem. Pelo menos essa era ainda a mesma. Atrás delas, para leste, ficava o Atlântico. Se continuasse mais para cima, até ao cume, veriam o mar. Quase de certeza que lhe sentiriam o cheiro.

- Vamos declarar uma trégua às desculpas durante algum tempo, está bem? - pediu Kathryn.

- Vamos ficar bem, não vamos, mãe?

Kathryn sentou-se ao lado da filha, rodeando-a com o braço. Mattie encostou a cabeça no ombro da mãe.

- Acabaremos por ficar - disse Kathryn.

Mattie meteu o sapato na neve.

- Sei que também é difícil para ti, mãe. Gostavas dele de verdade, não gostavas?

- Gostava, sim.

- Uma vez vi um documentário acerca dos pinguins. Sabes o que eles fazem?

- Nem por isso - respondeu Kathryn.

Mattie sentou-se. O rosto animara-se-lhe de súbito e estava corada. Kathryn retirou o braço dos ombros da filha.

- Bom, então é assim: o macho escolhe uma fêmea entre todas as outras, que por vezes são às centenas; não sei como conseguem perceber a diferença, parecem todos iguais. Depois de a ter escolhido, vai arranjar cinco pedras lisas e, uma a uma, põe-nas aos pés dela. Se ela gostar dele, aceita as pedras e acasalam para toda a vida.

- Que amoroso - afirmou Kathryn.

- Mais tarde, depois do documentário, fomos ao aquário, quando fomos a Boston com a turma. E os pinguins... ó mãe, foi tão giro... os pinguins estavam assim a acasalar. O macho cobria a fêmea como se fosse um cobertor a tapá-la, depois estremecia e deslizava para o lado dela, parecendo os dois exaustos, mas felizes. Acariciavam a cara e o pescoço um do outro, como se estivessem apaixonados. Ao pé de mim estava um parvo, Dennis Rollins, é um idiota, não o conheces, esteve sempre a dizer piadas parvas. Essa parte é que foi uma porcaria.

Kathryn acariciou o cabelo da filha. Pareceu-lhe uma atitude muito próxima das lágrimas.

- Sabes, mãe, já fiz isso.

A mão de Kathryn deteve-se no caminho que percorria sobre a curva graciosa da cabeça de Mattie.

- Estamos a falar daquilo que eu penso que estamos a falar? perguntou Kathryn em voz baixa.

- Estás zangada?

- Zangada?

Kathryn abanou a cabeça, espantada. Fechou lentamente a boca.

Não sabia o que mais a surpreendia - se o facto de Mattie ter admitido tal coisa, se a facilidade com que o fizera.

- Quando? - perguntou Kathryn.

- No ano passado.

- No ano passado?

Kathryn estava abismada. Tinha acontecido no ano passado e ela não soubera de nada?

- Lembras-te de Tommy? - perguntou Mattie.

Kathryn pestanejou. Tommy Arsenault, segundo se lembrava, era um rapaz giro, de cabelo castanho e ar mal- humorado.

- Só tinhas catorze anos - disse Kathryn incrédula.

- Mal tinha feito os catorze anos - disse Mattie, como se fosse uma grande honra ter sexo tão jovem, com pouco mais de treze anos.

- Mas porquê? - perguntou Kathryn, sabendo desde logo que a pergunta era ridícula.

- Vejo que ficaste aborrecida.

- Não, não. Não estou aborrecida. Estou apenas... estou apenas surpreendida, acho eu.

- Só queria experimentar - disse Mattie.

Kathryn sentiu-se tonta. A vista aborrecia- a. Fechou os olhos, Mattie tivera o período tarde, só em Dezembro do ano passado e... que Kathryn soubesse, só lhe aparecera três vezes desde essa altura. Podia até nem estar amadurecida sexualmente quando isso acontecera.

- Uma vez? - perguntou Kathryn evitando uma nota de esperança.

Mattie hesitou, como se a frequência fosse um assunto demasiado íntimo para discutir com a mãe.

- Não. Algumas vezes.

Kathryn ficou em silêncio.

- Tudo bem, mãe. Não há problema. Não estava apaixonada por ele, nem nada. Só queria saber como era e pronto.

- Doeu-te?

- Ao princípio. Mas depois gostei.

- Tomaste precauções?

- Claro, mãe. O que é que pensas? Que me ia arriscar? Como se o sexo em si não fosse risco bastante.

- Nem sei o que pensar. - Mattie enrolou o cabelo na nuca. E jason? - perguntou Kathryn, referindo-se ao actual namorado da filha. De todos os amigos de Mattie, Jason, um rapaz alto e louro viciado em basquetebol, fora o único que tivera a coragem de telefonar para saber se Mattie estava bem.

- Não, não fazemos. Ele é mais ou menos religioso. Diz que não pode. Para mim, tudo bem. Não o vou pressionar, nem coisa nenhuma.

- Ainda bem - conseguiu dizer Kathryn.

Durante toda a infância de Mattie, Kathryn imaginara o momento, esperando, como todas as mães, que a filha descobrisse o sexo combinado com o amor. Que diálogo tinha preparado no seu espírito para o acontecimento? Decerto não era aquele.

Mattie deu-lhe um abraço.

- Coitadinha da minha mãe - disse.

O tom era trocista, mas afectuoso.

- Sabias - perguntou Kathryn - que no princípio do século dezoito, na Noruega, qualquer mulher que se descobrisse ter praticado sexo antes do casamento era decapitada, a cabeça metida num espeto e o corpo enterrado no local da decapitação?

Mattie olhou para a mãe do mesmo modo que Kathryn imaginava que faria se tivesse tido um ataque.

- Mãe?

- Foram só uns dados históricos - disse Kathryn. - Ainda bem que me contaste.

- Queria tê-lo feito antes, mas pensei... - Mattie mordeu o lábio com força. - Bom, pensei que ficarias aborrecida e que provavelmente terias de contar ao pai. - A voz tremeu-lhe ao falar no pai. - Tens a certeza de que não estás zangada?

- Zangada? Não. A zanga não tem nada a ver com isto. Só que... é uma parte importante da vida, Mattie. Tem significado. É especial. Acredito que seja.

Kathryn conseguia aperceber-se dos lugares-comuns. O sexo era especial? Teria significado? Ou seria apenas um acto natural, desempenhado milhões de vezes por dia em todo o mundo, numa estonteante variedade de maneiras, algumas delas monstruosas? Não sabia o que pensar do assunto e gostaria de saber quantas vezes os pais não seriam obrigados a afirmar sentimentos em que de facto não acreditavam.

- Sei-o agora - disse Mattie. - Só queria livrar-me disto. Pegou na mão de Kathryn. Os dedos de Mattie estavam gelados.

- Pensa só nos pinguins - disse Kathryn em voz baixa.

Mattie riu.

- Mãe, és muito esquisita.

- Isso já se sabia.

Levantaram-se.

- Mattie, escuta.

Kathryn voltou-se para a filha. Queria agora contar a Mattie acerca dos rumores, acerca das terríveis histórias que certamente iria ouvir, mas quando lhe puxou o rosto para si e viu a dor que ainda havia nele, não conseguiu. Robert dissera que Kathryn se deveria recusar a acreditar nos rumores. Então, raciocinou, porquê incomodar Mattie com eles? Mesmo assim sentiu uma espécie de culpa maternal, do mesmo tipo daquela que sentia quando evitava qualquer tarefa difícil.

- Adoro-te, Mattie - disse Kathryn. - Não tens ideia do muito que gosto de ti.

- Oh, mãe, a pior parte...

- O quê? - perguntou Kathryn, separando-se da filha e preparando-se para outra revelação.

- Naquela manhã, antes do pai se ir embora? Veio ao meu quarto e perguntou-me se eu queria ir com ele ao jogo do Celtics quando voltasse na sexta-feira. Eu estava de mau humor e queria saber primeiro o que jason faria na sexta-feira, de modo que lhe disse que depois logo se via. E acho... Oh, sei que sim. Ele ficou magoado, mãe. Li na cara dele.

Mattie começou a torcer a boca. Kathryn reparou que quando chorava parecia muito mais nova. Ainda uma criança.

Como lhe conseguiria explicar que aquelas rejeições aconteciam constantemente? Os pais ficam magoados, mas engolem e vêem que os filhos os deixam, primeiro aos poucos e depois com uma rapidez vertiginosa.

- Ele entendeu - mentiu Kathryn. - Entendeu, de verdade. Disse-me antes de se ir embora.

- Disse?

- Disse uma piada a respeito de agora ser o suplente, mas de verdade que não se importou. Quando diz piadas é porque está tudo bem.

- De verdade?

- Sim, de verdade.

Kathryn abanou a cabeça com toda a força, desejando que a filha acreditasse nela.

Mattie fungou. Limpou o lábio superior com as costas da mão.

- Tens outro lenço? - Pediu.

Kathryn entregou-lho.

- Chorei tanto - disse Mattie que parece que a cabeça me vai rebentar.

- Sei como é - disse Kathryn.

Quando voltaram, Julia estava sentada à mesa. Fizera chocolate quente para as duas, o que pareceu agradar a Mattie. Enquanto Kathryn bebia desajeitadamente o líquido quente, reparou que as pálpebras inferiores de Julia estavam avermelhadas e ficou de súbito assustada com a ideia de a avó ter ficado só a chorar na cozinha.

- Robert telefonou - disse Julia.

Kathryn levantou os olhos e Julia acenou com a cabeça.

- Telefono-lhe do teu quarto - disse Kathryn.

Estranhamente, o quarto de Julia era o mais pequeno da casa. Sempre afirmara que não precisava de muito espaço. Era apenas o seu corpo sozinho na cama e sempre vivera segundo a filosofia de que o que é demais não presta. Mas não deixava de ter o seu encanto, um encanto feminino que Kathryn associava às mulheres daquela geração. Cortinados plissados de chintze, uma cadeira estufada de seda às riscas cor de pêssego, uma colcha de veludo cor-de-rosa e uma coisa que Kathryn nunca mais vira - um toucador com uma saia. Tentara sempre imaginar Julia, enquanto jovem, ali sentada, arranjando o longo cabelo escuro, pensando talvez no marido e na noite que se aproximava.

O telefone estava no toucador. Uma voz que Kathryn não reconheceu atendeu ao primeiro toque.

- Posso falar com Robert Hart? - perguntou.

- Quem fala?

- Kathryn Lyons.

- Só um minuto - disse a voz.

Ouvia outras vozes ao fundo, vozes masculinas. Imaginou a sua cozinha cheia de homens de fato.

- Kathryn.

- Que se passa?

- Está bem?

- Estou.

- Disse à sua avó.

- Percebi que o tinha feito.

- Vou aí buscá-la.

- Não seja ridículo. Tenho carro.

- Deixe-o aí.

- Porquê? O que aconteceu?

- Preciso de saber onde é.

- Robert.

- Há umas pessoas aqui que lhe querem fazer umas perguntas. Penso que deveríamos falar primeiro. Também não vai querer que vão a casa de Julia, pelo menos com a sua filha aí.

- Robert, está a assustar-me.

- Não há problema. Vou ter consigo.

Kathryn deu-lhe as indicações.

- Robert, que perguntas são essas?

Houve um breve silêncio do outro lado do fio. Pareceu-lhe que o silêncio era absoluto, que todas as vozes na sua cozinha distante se tinham de súbito calado.

- Estou aí dentro de cinco minutos - disse.

Mattie assoprava o chocolate quente, quando Kathryn voltou à cozinha.

- Tenho de ir - disse Kathryn. - Estão lá em casa umas pessoas com quem tenho de falar. São da companhia.

- Está bem - disse Mattie.

- Depois telefono-te - disse, curvando- se para beijar a filha.

Kathryn estava à espera, de anoraque, ao fundo do caminho. Tinha as mãos nos bolsos e subira a gola. Naquele dia havia sol e um frio seco, sem vento. Normalmente era aquele o seu tempo preferido.

Viu o carro ao longe, uma forma cinzenta movendo-se rapidamente na estrada que vinha da vila. Robert parou rapidamente, inclinou-se e abriu a porta.

Ela sentou-se voltada para ele, com as costas contra o puxador da porta. À luz crua do Sol conseguia ver os mais pequenos pormenores do rosto de Robert: a linha levemente azulada, onde haveria barba, se não a tivesse feito de manhã, o fantasma branco da pele sob as patilhas, onde o cabelo fora cortado mais curto do que a marca do bronzeado, a sombra do queixo. Estacionou o carro e voltou-se para ela, colocando o braço como uma ponte entre os dois assentos da frente.

- O que foi? - perguntou ela.

- Há dois investigadores do Departamento de Segurança que querem falar consigo.

- Na minha casa?

- Sim.

- Tenho de responder às perguntas deles?

Ele desviou o olhar para a casa de pedra e depois voltou-se de novo para ela. Coçou o lábio superior com a unha do polegar.

- Sim - disse cauteloso. - Se se sentir bem. Suponho que pode sempre dizer que não se sente bem.

Ela acenou lentamente com a cabeça.

- Não a posso proteger da investigação do acidente em si. Ou dos procedimentos legais.

- Procedimentos legais?

- Na eventualidade...

- Pensei que eram apenas boatos à toa.

- São. Até agora.

- Porquê? O que é que sabe? O que havia na gravação? Ele tamborilou no volante com os dedos da outra mão. Um ritmo firme, a pensar.

- Um técnico britânico do que é o equivalente ao nosso Departamento de Segurança estava na sala quando passaram a gravação pela primeira vez, telefonou a uma mulher com quem anda e que trabalha na filial de Birmingham da BBC. Parece que fez declarações a respeito da gravação. Não sei ao certo quais as suas motivações para o revelar, nem as dela, mas podemos fazer algumas especulações. A CNN está a transmitir o que a BBC já transmitiu. Por isso, na melhor das hipóteses, já vem em quarta mão.

- Mas pode ser verdade.

- Pode ser verdade.

Kathryn mexeu-se no assento, erguendo o joelho para não estar tão torcida pela cintura. Cruzou os braços sobre o peito.

Robert retirou do bolso da camisa uma folha de papel branco e brilhante. Entregou-lhe o fax.

- Foi exactamente assim que leram o boletim de notícias na CNN

- disse.

O fax era difícil de ler. As letras quadradas, algumas pouco nítidas, nadavam diante dela. Tentou concentrar-se numa frase e começar do princípio.

A CNN acabou de saber que uma fonte próxima à investigação do Voo 384 da Vision afirmou que a caixa negra - isto é, a gravação do som da cabina - pode, e repetimos, pode revelar uma altercação entre o capitão Jack Lyons, piloto veterano que trabalha há onze anos com a Vision e o engenheiro de voo britânico Trevor Sullivan, alguns momentos antes da explosão do T 900. Segundo essas afirmações, até agora não confirmadas, um defeito defuncionamento num dos auscultadores fez com que Sullivan pegasse no saco do capitão Jack Lyons, cinquenta e oito minutos depois do avião ter levantado voo. O objecto que Sullivan retirou então do saco, pode ter sido, e repetimos, pode ter sido a causa da explosão que destruiu o T 900, enviando para a morte cento e quatro passageiros mais a tripulação. Mais acrescenta a alegadafonte que a transcrição dos últimos segundos do Voo 384 da Vision pode indicar que um qualquer desentendimento teVe lugar entre o capitão Lyons e o engenheiro de voo Sullivan, e que Sullivan soltou várias imprecações.

Daniel Gorzyk, porta-voz do Departamento de Segurança, negou esta manhã acaloradamente todas estas afirmações, que intitulou de maliciOsas, falsas e irresponsáveis. Repetimos que as declarações nos chegaraM de umafonte ainda não identificada, que afirma ter estado presente quando afita da caixa negra foi ouvida. Conforme anteriormente noticiámos, esta foi encontrada nas águas ao largo de Malin Head, na República DA Irlanda...

Kathryn fechou os olhos e encostou a cabeça ao assento.

- Que significa isto? - perguntou. Robert olhou por uns momentos para o tecto do carro.

- Primeiro que tudo, nem sequer sabemos se é verdade. O Departamento de Segurança já emitiu um enérgico desmentido. Parece que a fonte da fuga de informação foi despedida. Não dizem o nome, e ele não se identificou. Depois, mesmo que seja verdade, provavelmente não prova nada. Não significa nada. Provavelmente.

- Mas prova - disse Kathryn. - Aconteceu alguma coisa.

- Aconteceu alguma coisa - repetiu Robert.

- Valha-me Deus - disse ela.

 

OLHA PARA A BANCADA, PARA AS PANELAS e copos gordurentos, para o tabuleiro sujo do assado, para o monte nojento de legumes a apodrecer, para a máquina de lavar a loiça cheia de loiça lavada, que vai ter de ser arrumada antes mesmo de começar a limpar a bancada. Lá em cima ouve o tape-tape em surdina do teclado e depois o começo, hesitante, de uma ligação à Internet.

Olha para a saia de lã, para os collants pretos, para os sapatos práticos Easy Spirit. Naquela tarde tivera ensaio da banda e chegara tarde a casa. Tinham jantado os três quase em silêncio - não tanto por causa da tensão, pensou, mas pelo cansaço. Depois Jack subiu para o escritório, Mattie fora para o quarto praticar clarinete e Kathryn ficara com a cozinha.

Sobe a escada até ao escritório de Jack e ali fica em silêncio, encostada à ombreira da porta. Não tem pensado nenhum diálogo, apenas pensamentos truncados, frases por terminar. Expressões de frustração.

Talvez tivesse bebido de mais.

Jack olhou para ela com uma expressão vagamente confundida no rosto. Tem vestida uma camisa de flanela e calças de ganga. Engordou recentemente, cerca de cinco quilos. Quando não tem cuidado, tem ten dência para isso.

- Que se passa? - pergunta ela.

- O quê?

- Quer dizer, vens para casa depois de estares cinco dias fora. Mal te vi. Não disseste uma palavra durante o jantar. E depois, pronto, desapareces e deixas-me com toda a loiça suja.

Ele parece surpreendido por estas acusações, na verdade, tal e qual como ela. Pestaneja. Volta a cabeça para qualquer coisa que lhe chamou a atenção no ecrã.

- Mesmo agora, não consegues dar atenção ao que te estou a dizer. Afinal o que é que te interessa tanto no computador?

Ele retira as mãos do teclado e apoia os cotovelos nos braços da cadeira.

- O que se passa? - pergunta.

- Tu - diz ela. - E eu.

- E?

- Não estamos - diz ela. - Simplesmente não estamos. Toma um gole de vinho. - Não estás cá - continua ela. - Costumavas ser tão... não sei... romântico. Costumavas estar sempre a elogiar-me. Já nem me lembro da última vez que me disseste que eu era bonita.

O lábio treme-lhe e ela desvia os olhos. Ouve nessa altura a voz da mãe, chorando no quarto lá de cima da casa de Julia, e sente-se mal disposta. A voz suplicante da mãe, implorando ao marido que lhe dissesse que era bela. Kathryn pergunta a si própria se aquele horrível diálogo estaria à espera dela? Seria uma espécie de legado grotesco?

Estremece, mas não consegue pôr aquilo de lado. Há já meses que Jack anda distante, como se não estivesse presente, como se tivesse uma preocupação constante. Kathryn pensa que a preocupação pode ser tolerada, se for finita.

- Meu Deus - diz erguendo a voz. - Há meses que não vamos jantar fora. A única coisa que fazes é vir cá para cima trabalhar no computador. Ou jogar no computador. Seja o que for que fazes.

Ele encostou-se na cadeira.

Pergunta a si própria que resposta possível poderá um homem dar à acusação de que ultimamente não tem dito à mulher que ela é bonita. Simplesmente que se esqueceu? Que de facto está sempre a pensá-lo, mas não o diz? Que naquele preciso momento está a pensar em como ela é desesperadoramente bonita?

É esse o problema das discussões, conclui Kathryn. Mesmo quando se sabe que as palavras que estamos a dizer são as piores afirmações possíveis. Há sempre um ponto sem retorno. Em que não há recuo, não há fuga. Ela já lá chegou e Jack não demora um instante.

- Vai-te lixar - diz em voz baixa e levanta-se.

Kathryn recua. Dá imediatamente conta, coisa que ainda não havia feito (não enquanto a sua zanga era legítima) de que Mattie estava no corredor.

- Baixa a voz - disse Kathryn.

Jack pôs as mãos nas ancas. Fica com o rosto vermelho, como acontece sempre que se zanga, o que não é frequente. Não levam a vida a discutir.

- Vai-te lixar - repete ele, desta vez em voz mais alta, embora controlada. - Trabalhei cinco dias de seguida sem uma folga. Venho para casa para dormir uma noite descansada. Venho cá para cima para me descontrair, mexendo aqui no computador. E num abrir e fechar de olhos vens cá acima para te queixares.

- Vieste a casa para dormir uma noite descansada? - pergunta ela incrédula.

- Sabes muito bem o que quero dizer.

- Isto não acontece só hoje, sabes? - diz ela. - Já vem acontecendo há muitos meses.

- Meses?

- Sim.

- O que é que vem acontecendo há meses?

- Não estás cá. Estás mais interessado no computador do que em mim.

- Vai-te lixar - diz ele, passando por ela em direcção à escada. Ouve-o descer os degraus quase a correr. Ouve-o abrir a porta do frigorífico, seguida do som de uma lata de cerveja a ser aberta.

Quando ela chega à cozinha está ele a beber a cerveja de um só gole. Poisa a lata na bancada com uma pancada forte e olha pela janela da cozinha.

Ela observa-lhe o perfil, o rosto que ama, a posição agressiva do pescoço, que a alarma. Quer ceder, quer ir ter com ele e pedir desculpa, abraçá-lo e dizer-lhe que o ama. Mas antes de poder fazer qualquer movimento, pensa de novo na sensação de ser abandonada, pois é isso que lhe quer descrever e o arrependimento dá lugar à mágoa. Porque haveria de recuar?

- Nunca falas comigo - diz. - Sinto que já não te conheço.

O queixo dele avança um pouco mais e aperta os dentes. Atira a lata de cerveja para dentro do lava-loiça, onde bate contra os pratos sujos.

- Queres que me vá embora? - pergunta, olhando para ela.

- Embora?

- Sim. Queres acabar com tudo, ou quê?

- Não, não quero acabar com tudo - diz ela, apanhada de surpresa. - De que estás a falar? Estás maluco.

- Estou maluco?

- Sim, estás maluco. Só disse que estavas demasiado preocupado com o computador, e tu...

- Estou maluco? - repete, desta vez em voz mais alta. Quando passa por ela e se dirige às escadas, Kathryn tenta pegar-lhe num braço, mas ele afasta-a. Ela fica completamente imóvel na cozinha a ouvir os passos zangados pelas escadas, ouve a porta do escritório bater, ouve a queda abafada de objectos que são atirados da secretária, ouve o puxão dos fios.

Irá deixá-la e levar o computador?

Depois, horrorizada, vê o monitor do computador vir pelas escadas abaixo.

O monitor bate na parede ao fundo das escadas. Bocados de plástico cinzento e vidro fumado do ecrã partido voam pelo ar e caem na escada e no chão da cozinha. É uma destruição espectacular, ruidosa e teatral.

Kathryn emite um gemido surdo, sabendo que as coisas tinham ido longe de mais e que fora ela a causadora, porque o provocara.

Depois pensa em Mattie.

No momento em que Kathryn passou por cima do monitor esmagado e chegou ao cimo das escadas, Mattie vem em pijama pelo corredor.

- Que aconteceu? - pergunta Mattie, embora Kathryn veja que ela sabe. Ouviu tudo.

Jack parece perturbado, com o remorso imediato que se segue a um acto disparatadamente infantil diante de um filho.

- Mattie - diz Kathryn. - O pai deixou cair o computador pelas escadas abaixo. É uma porcaria, mas está tudo bem.

Mattie lança a ambos o olhar, aquele que, embora ela tenha apenas onze anos, é sempre mortífero e nunca falha. Mas Kathryn vê que no rosto da filha aquela vigilância superior compete ferozmente com um horror puro e simples.

Jack volta-se para Mattie e toma a filha nos braços. Para Kathryn o gesto diz tudo. Não finge que nada aconteceu. Apenas talvez seja melhor não o dizer em voz alta.

Depois, Jack estende o braço e atrai Kathryn para si, de modo que os três ficam no corredor, balançando e chorando, pedindo desculpas e beijando-se, abraçando-se de novo, depois afastando-se, rindo ligeiramente através das lágrimas e dos narizes a pingar. Com Mattie oferecendo-se, prestável, para ir buscar os lenços de papel.

Naquela noite, Kathryn e Jack fizeram amor como havia meses não faziam - com uma dissonante subtileza, como se representassem o resto da cena com as bocas abertas e pequenas dentadas, coxas apertadas e punhos fechados. E o movimento voraz daquela noite muda durante algum tempo o curso do casamento, de modo que se olham nos olhos com mais frequência quando passam um pelo outro no corredor, tentando dizer sem palavras, qualquer coisa de significativo, beijam-se com mais entusiasmo quando se encontram, dentro de casa, lá fora, junto aos carros ou até, várias vezes, em público, o que agrada a Kathryn. Mas algum tempo depois também isto passa e ela e Jack voltam ao normal, como estavam antes, como todos os outros casais que Kathryn conhecera, vivendo num estado de suave declínio, de serem infinitesimamente, mas não aflitivamente menos do que eram no dia anterior.

O que, pensa ela, significa só por si que é um bom casamento.

 

NUNCA ANTES TINHA VISTO TAL COISA - nem na televisão, nem nos filmes, onde, entendia agora, o espectáculo perdia a sua proximidade, a sua cor berrante, a sua ameaça. Ao longo da estrada

da praia, mesmo antes de ela e Robert terem chegado junto à casa, havia carros estacionados e enormes carrinhas, com as grandes rodas enfiadas nas curvas arenosas. Kathryn viu nelas as siglas, WBZ e WNBC e CNN, um homem a correr com uma câmara e uma complicada correia ao ombro. As pessoas começavam a olhar para o carro, a espreitar para os passageiros que iam lá dentro. Robert estava curvado por trás do volante, como se a qualquer momento pudessem ser assaltados. Kathryn resistiu à enorme vontade de voltar a cabeça ou de levar as mãos ao rosto.

- Quer dizer-me porque fizemos isto? - perguntou ela com voz tensa, mal movendo os lábios.

Os repórteres e os câmaras eram cinco, junto ao portão de madeira e grades de metal. jack e ela não o tinham escolhido; ficara simplesmente ali desde os tempos do convento. De facto, Kathryn achava surpreendente que funcionasse: ela e Jack nunca tinham tido razões para o fechar.

- Vamos mandar alguém para casa da sua avó.

- Julia não vai gostar.

- Receio que nesta altura Julia não tenha outro remédio - disse Robert. - E no fim pode até ficar agradecida.

Fez um gesto em direcção à multidão que rodeava o carro.

- Invadem-lhe o relvado em menos de nada.

- Não os quero perto de Mattie - disse Kathryn.

- Julia pareceu-me formidável que baste - contrapôs Robert. Mão sei se quereria tentar passar por ela.

Um homem bateu com força na janela do carro do lado de Kathryn que se encolheu. Robert avançou com o carro, tentando aproximar-se o mais possível do portão. Espreitou pelo pára-brisas à procura de um polícia e quase imediatamente o carro foi engolido por homens e mulheres que gritavam através do vidro.

- Mrs. Lyons, ouviu a gravação?

- É ela, Wally? É ela?

- Mexe-te, apanha-lhe a cara.

- Pode dizer-nos, Mrs. Lyons, pensa que foi suicídio?

- Quem é o Fulano que está com ela? Jerry, será da companhia de aviação?

- Mrs. Lyons, como explica...

Para Kathryn todas aquelas vozes lhe soavam como o ladrar de cães. As bocas pareciam amplificadas e aguadas, as cores à sua volta avivavam-se e depois esbatiam-se. Por instantes perguntou a si própria se iria desmaiar. Como poderia ser o centro de tanta atenção, ela, que vivia a mais vulgar das vidas na mais vulgar das circunstâncias?

- Valha-me Deus - disse Robert quando as lentes de uma câmara bateram com força contra o vidro. - Aquele tipo acabou de partir a câmara.

Endireitando-se para ver por cima da multidão, Kathryn descobriu Burt Sears, um homem alto e magro, curvado da idade, andando de um lado para outro atrás do portão. Tinha apenas a parte de cima do uniforme, como se não tivesse conseguido encontrar o resto, na pressa de sair de casa. Kathryn acenou-lhe através do pára- brisas, tentando atrair-lhe a atenção, mas Burt parecia em estado de choque, com os olhos desfocados, tão inútil do outro lado do portão como eles deste. Mexia as mãos num círculo pouco confiante, como se estivesse a dirigir o trânsito e não o conseguisse fazer como devia.

- É Burt - disse ela. - Está atrás do portão. Está reformado, mas chamaram-no para isto.

- Conduza - disse Robert. - Tranque a porta quando eu sair, Qual é o apelido dele?

- Sears.

Com um movimento leve, tão rápido que pareceu estar terminado antes que alguém desse por isso, Robert saiu do carro e bateu com a porta. Kathryn deslizou com dificuldade sobre a alavanca das mudanças para o lugar do condutor e trancou a porta. Viu Robert meter as mãos nos bolsos do sobretudo e abrir caminho por entre repórter e câmaras. Gritou Burt Sears tão alto, que toda a gente parou por um momento para olhar para o homem que separava a multidão. Kathryn começou a avançar com o carro para o vácuo criado enquanto Robert caminhava.

Gostaria de saber o que aconteceria se pura e simplesmente o muro de pessoas na sua frente, se recusasse afastar-se.

Viu Robert abrir o portão. Viu câmaras por todos os lados, mulheres de fato, homens de blusões coloridos e mesmo assim avançava aos poucos em direcção ao portão, empurrada pela mão insistente de Robert. Preocupou-se por um momento que a multidão pudesse simplesmente entrar com ela, segui-la até casa como um cortejo - um cortejo grotesco, com a viúva metida dentro do carro, sem poder sair, como uma barata debaixo de um copo. Mas uma lei não escrita, que ela ignorava e não compreendia, fez parar toda a gente junto ao portão, quando poderiam ter facilmente engolido Burt e Robert. Uma vez lá dentro, parou.

- Vá - disse Robert, entrando para o lugar do passageiro. Com as mãos a tremer, pôs o carro a andar e começou a avançar devagarinho.

- Não, depressa - disse Robert bruscamente.

Quando vira pela primeira vez toda aquela gente diante do portão, pensara que a sua casa apenas seria um refúgio se Robert e ela lá conse guissem chegar. Mas rapidamente percebeu que não seria o caso. Quatro carros, que ainda não tinha visto, estavam estacionados no caminho da entrada, um, ao acaso, com as portas ainda abertas e uma campainha soando lá dentro. Quatro carros significavam pelo menos outros tantos desconhecidos.

Desligou o motor.

- Não precisa fazer isto agora - disse.

- Mas vou ter de o fazer mais cedo ou mais tarde - respondeu ela. - Provavelmente.

- Não deveria arranjar um advogado?

- O sindicato está a tratar disso. - Pôs-lhe a mão no ombro. Não dê a esses Fulanos respostas das quais não esteja absolutamente certa.

- Não estou certa de nada - disse.

Estavam na sua cozinha e na sua sala; eram homens de uniformes negros e fatos escuros, e Rita, do dia anterior, vestida de cinzento-claro. Um homem enorme, com óculos enormes de aros de metal e cabelo com excesso de gel, aproximou-se para ser o primeiro a cumprimentar Kathryn. Esta reparou que o colarinho quase lhe cortava a pele do pescoço e que tinha o rosto avermelhado. Tinha o andar bamboleante próprio dos homens pesados, de estômago proeminente.

- Mrs. Lyons - disse estendendo a mão. - Dick Somers. Ela deixou que ele lhe pegasse na mão. A dele era hesitante e húmida. O telefone tocou e ela ficou satisfeita por Robert não a deixar atender.

- O senhor vem de onde? - perguntou Kathryn.

- Sou investigador do Departamento de Segurança. Deixe-me dizer-lhe que lamento muito, todos lamentamos a sua terrível perda.

Kathryn ouvia uma voz masculina e firme na televisão que estava ligada na sala.

- Muito obrigada - disse.

- Sei que a altura é muito difícil para si e para a sua filha - acrescentou. O rosto dela deveria ter registado cansaço à menção da palavra filha, pois deu por ele a observar-lhe rapidamente as feições. - Mas tenho de lhe fazer algumas perguntas - disse.

Havia copos de plástico de café sobre a bancada da cozinha e duas embalagens cor-de-rosa forte, de donuts, sobre a mesa. Kathryn sentiu um súbito desejo de comer um donut, simples, molhado em café quente; desfazendo-se quando o levasse à boca. Lembrou-se que havia mais de trinta e seis horas que não comia nada.

- O meu colega, Henry Boyd - disse Somers, apresentando um homem mais jovem com bigode louro.

Ela apertou a mão ao colega.

Avançaram outros quatro homens para serem apresentados, homens com uniformes da Vision e os bonés metidos de baixo do braço; o de uniforme, seu conhecido, de botões dourados e debrum, fez com que Kathryn sustivesse a respiração. Eram da companhia aérea, do departamento dos pilotos, afirmaram, e Kathryn pensou como todos estes cumprimenttos eram estranhos, estas delicadezas e condolências, aquelas condolências cautelosas, quando à sua volta se sentia a pressão palpável da espera.

Um homem com o cabelo espetado como arame avançou mais que os outros.

- Mrs. Lyons sou o piloto principal Bill Tierney... falámos ontem ao telefone por momentos.

- Sim - disse ela.

- Deixe que mais uma vez exprima em meu nome e de toda a companhia como lamentamos profundamente a perda do seu marido e a sua perda pessoal. Era um piloto excelente. Um dos melhores.

- Muito obrigada - disse.

As palavras lamentamos profundamente pareciam flutuar no ar da cozinha. Gostaria de saber por que lhe pareceriam tão cansadas todas as manifestações de condolências, sempre tão iguais. Não haveria outra linguagem com a qual exprimir o desgosto? Ou o que interessava era a formalidade? Pensou em quantas vezes o piloto principal se devia ter imaginado a dizer aquelas mesmas palavras à viúva de um dos pilotos, talvez tivesse até ensaiado as palavras em voz alta. A companhia era recente e nunca antes tivera qualquer acidente.

- Que me pode dizer acerca da gravação? - perguntou ao piloto. Tierney apertou os lábios e abanou a cabeça.

- Não foi ainda dada qualquer informação oficial acerca da gravação - disse Somers, avançando uns passos.

- Compreendo - disse Kathryn, voltando-se para o investigador. Mas o senhor sabe alguma coisa, não é verdade? Sabe o que está na gravação.

- Não, receio não saber - disse ele.

Mas por detrás dos aros de metal, o olhar do investigador era fugidio e evasivo.

Kathryn ficou no centro da cozinha, de botas, calças de ganga e casaco, sujeita a um escrutínio intenso. Sentia-se vagamente embaraçada, como se tivesse cometido um grave erro social.

- Um dos senhores deixou aberta a porta do carro - disse ela, fazendo um gesto em direcção à rua.

- Porque não nos sentamos na sua sala? - sugeriu Somers.

Sentindo-se estranha na sua própria casa, Kathryn dirigiu-se à sala e franziu os olhos à luz difusa que vinha dos seis vidros rectangulares. Havia apenas um lugar vazio, uma enorme cadeira de braços, diante da janela, a cadeira de Jack, não dela, e sentiu-se diminuída pelos seus apêndices estofados. Reparou então que tinham desligado a televisão.

Somers pareceu tomar conta da situação. Ficou de pé, enquanto os outros se sentaram.

- Vou fazer-lhe apenas uma ou duas perguntas - disse, pondo as mãos nos bolsos das calças. - Vou tomar-lhe apenas uns minutos. Pode dizer-nos qual o comportamento do seu marido no domingo, anteriormente à sua partida para o aeroporto?

Kathryn viu que nenhum deles tinha um gravador ou estava a tomar notas. Somers parecia quase exageradamente à vontade. Aquilo não poderia ser oficial, pois não?

- Não tenho grande coisa a dizer - disse. - Foi rotineiro. Jack tomou duche cerca das quatro da tarde, vestiu o uniforme, veio para baixo e engraxou os sapatos.

- E onde estava a senhora?

- Fui ter com ele à cozinha. Para lhe dizer adeus.

A palavra adeus despoletou nela uma onda de tristeza que a fez morder o lábio. Tentou lembrar-se de domingo, do último dia que Jack estivera em casa. De vez em quando chegavam-lhe fragmentos, bocadinhos de sonho, como que reflexos prateados esvoaçando no escuro. Parecia-lhe que tinha sido um dia vulgar, sem nada de especial. Conseguia ver o pé de Jack sobre a gaveta aberta, o velho pano de quadrados verdes na mão, quando passara pela cozinha em direcção ao quarto das lavagens. O comprimento dos seus braços, aumentado ainda mais pelo peso dos sacos, quando se dirigiu ao carro, que estava no caminho da casa. Dissera qualquer coisa por cima do ombro. Ela ficara com o trapo na mão. Não te esqueças de chamar Alfred, dissera. E diz-lhe que venho sexta feira.

Tinha engraxado os sapatos. Tinha saído de casa. Dissera que voltaria na terça-feira. Ela ficara à porta, cheia de frio, levemente aborrecida que ele o não tenha feito. Por não ter chamado Alfred.

- Sabe se Jack telefonou a alguém nesse dia? - perguntou o investigador. - Se falou com alguém?

- Não tenho ideia - respondeu ela.

Pensou: Poderia jack ter falado com alguém naquele dia? Claro que poderia. Tanto quanto sabia até poderia ter falado com vinte pessoas.

Robert cruzara os braços sobre o peito. Parecia estudar a mesa

baixa com grande interesse. Sobre ela estavam livros de arte, uma figura de pedra que ela e Jack tinham trazido do Quénia e uma caixa de esmalte de Espanha.

- Mrs. Lyons - continuou Somers. - O seu marido pareceu-lhe agitado ou deprimido nesse dia, ou na noite anterior?

- Não - disse ela. - Nada fora do habitual. Lembro-me que o duche pingava, o que o deixou um pouco aborrecido, pois tínhamo-lo mandado arranjar há pouco tempo. Lembro-me que disse para chamar Alfred.

- Quem é Alfred?

- Alfred Zacharian. O canalizador.

- Quando lhe pediu ele que chamasse Alfred?

- De facto pediu-mo duas vezes. Uma vez lá em cima, cerca de dez minutos antes de partir, e outra quando já ia a caminho do carro.

- Jack tomou alguma bebida antes de partir para o aeroporto?

- Não responda - disse Robert, inclinando-se para a frente no sofá. Kathryn cruzou as pernas e pensou no vinho que ela e Jack tinham bebido ao jantar no sábado e à noite e que tinham continuado a beber depois do jantar, calculando rapidamente o número de horas entre a última bebida e o voo. Pelo menos dezoito. Então não havia problema. Como era a expressão? Doze horas, da bebida à corrida?

- Não faz mal - disse ela a Robert. - Nada - disse para Somers.

- Nada mesmo nada?

- Nada mesmo nada.

- Fez-lhe a mala? - perguntou.

- Não, nunca a faço. - E o saco de mão?

- Não. De modo algum. Praticamente nem nunca olho para dentro dele.

- Costuma desfazer-lhe a mala?

- Não. É da responsabilidade dele. É ele que trata das suas malas. Ouviu a palavra trata. Presente do indicativo.

Olhou para os homens que estavam à sua volta na sala, todos eles a observavam atentamente. Perguntou a si própria se a companhia aérea quereria interrogá-la. Pensou que talvez devesse ter consigo um advogado. Mas, se assim fosse, Robert não lho teria dito? - O seu marido tinha amigos íntimos no Reino Unido? - pergontou Somers. - Falava regularmente com alguém de lá?

- Reino Unido?

- Inglaterra.

- Eu sei o que quer dizer Reino Unido - disse ela. - Só não entendo a relevância da pergunta. Conhecia muita gente no Reino Unido. Voava com eles.

- Notou alguns levantamentos ou depósitos fora do normal das vossas contas bancárias? - perguntou Somers.

Ela ficou a pensar onde quereriam chegar com aquilo, qual o significado. Sentiu-se sobre terreno pouco seguro, como se a qualquer momento pudesse, sem pensar, pôr o pé numa fenda.

- Não compreendo - afirmou.

- Nas últimas semanas, ou em qualquer altura, deu conta de levantamentos ou depósitos fora do normal nas vossas contas bancárias?

- Não.

- Nas últimas semanas notou algum comportamento menos habitual no seu marido?

Tinha de responder, para bem de Jack. Queria responder.

- Não - disse.

- Nada de invulgar?

- Nada.

Rita, da companhia aérea, entrou na sala e os homens olharam para ela. Por baixo do fato, tinha uma blusa de seda com decote recortado. Kathryn já nem se lembrava da última vez em que tinha vestido um fato. Na escola usava a maior parte das vezes calças e camisola, por vezes um casaco, de vez em quando calças de ganga e botas, quando o tempo estava mau.

- Mrs. Lyons - disse Rita. - A sua filha está ao telefone. Diz que tem de falar consigo imediatamente.

Alarmada, Kathryn saltou da cadeira e seguiu Rita até à cozinha. Olhou para o relógio por cima do lava-loiças: 9: 14.

- Mattie - disse, apanhando o auscultador da bancada.

- Mãe?

- Que se passa? Está tudo bem?

- Mãe, telefonei a Taylor. Só para falar com alguém. E ela está esquisita. - A voz de Mattie estava tensa e elevada, um tom que Kathryn conhecia de experiências anteriores e que sabia indicar um pleno controle sobre uma histeria iminente. Kathryn fechou os olhos e encostou a cabeça ao armário. - Então perguntei-lhe o que era - continuou Mattie - e Taylor disse que era a notícia a respeito de ter sido suicídio.

Kathryn conseguia imaginar o rosto de Mattie do outro lado da linha, os olhos incertos, muito abertos do pânico: conseguia imaginar como a notícia magoaria Mattie, como a filha deveria ter detestado ouvir aquele rumor da boca de Taylor. Como Taylor, sendo uma adolescente normal, teria ficado ligeiramente orgulhosa de ter sido a primeira a dar a notícia a Mattie. De como Taylor se teria sentido obrigada a telefonar a todos os amigos comuns, com a descrição pormenorizada do modo como Mattie reagira.

- Oh, Mattie - disse Kathryn. - É apenas um rumor. Os meios de comunicação arranjam uma ideia e põem-na cá fora, mesmo ainda antes de se certificarem. É horrível. É irresponsável. E não é verdade. Não é, de modo algum verdade. Estou aqui com o Departamento de Segurança da companhia e eles saberiam, no entanto, negaram veementemente o rumor.

Fez-se silêncio.

- Mas, mãe - disse Mattie. - E se for verdade?

- Não é verdade.

- Como sabes? Kathryn ouviu uma nota de raiva na voz da filha. Inegável. Porque não teria dito a verdade a Mattie naquela manhã, durante o passeio?

- Sei e pronto - disse Kathryn.

Houve outro silêncio.

- Provavelmente é verdade - disse Mattie.

- Mattie, tu conhecias o teu pai.

- Talvez.

- Que quer isso dizer?

- Talvez eu não o conhecesse - disse Mattie. - Talvez fosse infeliz.

- Se o teu pai fosse infeliz, eu tê-lo-ia sabido.

- Mas como se sabe se se conhece mesmo uma pessoa? - perguntou.

A questão deteve momentaneamente o vai e vem de perguntas e respostas entre elas, permitindo que uma onda de incerteza se erguesse diante de Kathryn. Mas sabia que, naquela altura, Mattie não queria a incerteza, por muito que estivesse a desafiar a mãe. Kathryn tinha a certeza disso.

- Sente-se - disse Kathryn com mais atrevimento que convicção.

- Achas que me conheces? - perguntou Mattie.

- Bastante bem - disse Kathryn.

Nessa altura Kathryn apercebeu-se de que tinha caído numa armadilha. Mattie era muito boa nestas coisas, sempre fora.

- Pois então não conheces - disse Mattie com um misto de satisfação e medo. - Metade do tempo não tens a mínima ideia daquilo em que estou a pensar.

- Muito bem - disse Kathryn recuando, admitindo. - Mas é diferente.

- Não é, não. - Kathryn levou o pulso à testa e massajou-a. - Mãe, se for verdade, quer dizer que o pai matou aquela gente toda? Será assassínio?

- Onde ouviste tu isso? - perguntou Kathryn imediatamente, como se Mattie fosse uma criança que tivesse dito uma obscenidade aprendida na escola ou com algum amigo. Porém, pensava Kathryn, a palavra era profana. Era espantoso. Mais espantoso ainda por vir da boca da sua filha de quinze anos.

- Não ouvi em lado nenhum, mãe. Mas posso pensar, não posso?

- Olha, Mattie. Espera lá. Vou já para aí.

- Não, mãe, não venhas. Não quero. Não quero que venhas para cá e tentes contar- me um monte de mentiras para as coisas ficarem melhores; não quero fingir. Só quero que me deixem em paz.

Kathryn perguntava a si própria como conseguia uma miúda de quinze anos apresentar uma honestidade tão inabalável. A verdade era mais do que a maioria dos adultos podiam tolerar. Concluiu que talvez os jovens aguentassem melhor a realidade, tendo menos tempo para dissimular, para apresentar ficções.

Kathryn sufocou o impulso de erguer a voz, apenas para se sobrepor aos medos e dúvidas da filha, mas sabia por experiência própria que naquela altura não deveria pressionar Mattie.

- Mãe, estão aqui uns homens - disse Mattie. - Homens desconhecidos. Por toda a parte.

- Eu sei, Mattie. São seguranças para manter a imprensa e o público longe da casa.

- Achas que pessoas que não conhecemos podiam querer entrar? Kathryn não queria assustar a filha mais do que o necessário.

- Não, acho que não - disse Kathryn. - Mas a imprensa seria muito aborrecida. Olha, fica sossegada, que daqui a bocado estou aí.

- Está bem - disse Mattie num tom indiferente.

Kathryn ficou uns instantes encostada à bancada, com o telefone na mão, lamentando ter cortado a ligação. Pensou ligar imediatamente para Mattie, para tentar acalmá-la, mas sabia que tal esforço seria fútil. Aprendera que, para lidar com uma adolescente de quinze anos, era preciso por vezes haver conciliação. Kathryn pousou o telefone, enca minhando-se para a porta da sala. Encostou-se à ombreira. Cruzou os braços sobre o peito e observou o grupo de investigadores e pilotos.

No rosto de Robert havia uma interrogação.

- Está tudo bem, Mrs. Lyons? - perguntou Somers, do Departamento de Segurança.

- Tudo bem - respondeu Kathryn. - Tudo bem. À parte o facto da minha filha se esforçar por absorver a ideia de que o pai se suicidou e levou cento e três pessoas com ele.

- Mrs. Lyons...

- Permite-me que lhe faça uma pergunta, Mr. Somers? Kathryn ouviu a raiva na sua voz, uma boa imitação da sua filha. Talvez fosse contagioso, pensou.

- Sim, claro - disse o investigador cautelosamente.

- Que outras possibilidades, para além do suicídio, imaginou, a partir do material que está teoricamente contido na caixa negra?

Somers pareceu pouco à vontade.

- Não estou autorizado a discutir agora o assunto, Mrs. Lyons. Kathryn descruzou os braços e cruzou as mãos na sua frente. - Ah, sim? - perguntou calmamente. Olhou para os pés e depois para os rostos dos que estavam na sala. Estavam iluminados por trás.

com o reflexo da luz que vinha da janela. - Então, creio que não estou autorizada agora a responder a mais perguntas - concluiu. Robert levantou-se e disse:

- A entrevista terminou.

 

CAMINHAVA AS CEGAS PELA RELVA, a CabeÇa baixa contra o vento, deixando leves pegadas no véu de geada. Minutos depois estava junto ao paredão da praia, sobre as pedras de granito, escorregadias pela humidade do mar. Saltou para uma pedra do tamanho de uma banheira, sentindo-se deslizar, sentindo depois que a única maneira de se manter direita era continuar a andar, tocando ao de leve em cada uma das pedras e saltando depois para a seguinte. Deste modo chegou à pedra lisa", assim denominada por Mattie, quando tinha cinco anos e fora capaz, pela primeira vez, de chegar à beira-mar através das rochas. A partir daí a pedra lisa tornou-se um sítio preferido para as duas fazerem piqueniques, nos dias de sol. Kathryn saltou da beira da rocha para os cinco metros quadrados de areia aninhada entre rochedos - como que um quarto ao ar livre, um abrigo temporário do vento, um esconderijo. Voltou as costas à casa e sentou-se na areia molhada. Retirou os braços de dentro das mangas do anoraque e cruzou-os à frente do peito, dentro do anoraque fechado.

- Merda - disse para os pés.

Deixou que o barulho de fundo da água lhe enchesse a cabeça, em purrando as vozes e os rostos que tinham ficado em casa, rostos com pequenos véus de compaixão sobre feições marcadas por uma ambição intensa, rostos de bocas solenes por baixo de olhos ávidos. Kathryn ouvia o estalido suave das pedrinhas rolando nas ondas. Havia nelas uma formação que brincava com ela, provocando-a. Fechou os olhos e tentou concentrar-se, depois desistiu mas nesse preciso momento encontrou-a. A recordação do pai e dela sentados sobre as pedrinhas, em fato de banho, deixando que o mar passasse por baixo deles, fazendo rolar os pequenos seixos debaixo das pernas. Era Verão, um dia quente e ela tinha talvez nove ou dez anos. Lembrava-se que estavam em Fortune's Roks e que as pedrinhas lhe faziam cócegas na pele. Mas porque estaria ela e o pai na praia sem a mãe ou Julia? Talvez Kathryn se recordasse deste momento por ser uma ocorrência rara, o pai e ela estarem os dois sós. Lembrava-se de que ele ria, ria com um prazer puro e genuíno o que era invulgar. Pensou que o deveria acompanhar à vontade no seu riso, mas estava tão espantada por ver o pai feliz - feliz na sua presença - que se sentia mais reverente do que inibida e, como resultado, ficara confusa. Quando ele se voltou para lhe perguntar o que se passava, teve a nítida sensação de o ter desapontado. Por isso riu, alto de mais, intencionalmente, esperando que ele esquecesse a desilusão, mas o momento passara e já estava a olhar para o mar. Lembrava-se de como o seu riso ficara oco e artificial e de como o pai parecera afastar-se dela, perdido já nos seus devaneios, de tal modo que Kathryn teve de o chamar para que ele lhe desse atenção.

Kathryn desenhou arabescos na areia molhada. Pensou que ela e Jack tinham uma coisa em comum: eram órfãos. Não precisamente órfãos, e não durante toda a infância, mas fora quase o mesmo, ambos abandonados cedo de mais para saberem o que lhes estava a acontecer. No caso de Jack, ficar órfão acontecera de um modo mais convencional. A mãe morrera quando tinha nove anos e o pai, que nunca fora homem de demonstrar emoções, afastara-se aparentemente para tão longe depois da morte da mulher, que Jack sentira sempre que fora deixado só. No caso de Kathryn, os pais tinham estado fisicamente presentes, mas emocional mente ausentes e nem sequer tinham sido rudimentarmente capazes de criar uma criança. Durante quase toda a sua infância, Kathryn e os pais tinham vivido com Julia, na estreita casa de pedra, cinco quilómetros a sudoeste da cidade. Fora Julia que os sustentara, quando ambos ficaram sem emprego, na sequência do fecho das fábricas de Ely Falls. Julia, cujo marido morrera quando Kathryn tinha apenas três anos, fizera isto com os proventos da sua loja de antiguidades. Esta situação nada vulgar, pouco fez para melhorar a relação entre a mãe de Kathryn e Julia que deu a esta uma posição de controle dentro da casa, que por vezes até o pai tinha dificuldade em aceitar. Mas quando Kathryn era pequena não pensava que a família fosse de modo algum, fora do vulgar. Na sua turma na escola, que começara por ter trinta e dois alunos na primeira classe, e todos os anos diminuíra, até ficarem apenas dezoito no fim da secundária, quase todas as crianças pareciam pertencer a franjas. Kathryn tinha amigos que viviam em caravanas, sem aquecimento central no Inverno, ou cujas casas se mantinham escuras e fechadas todo o dia, de modo que os pais ou os tios pudessem dormir. Por vezes os pais de Kathryn discutiam e bebiam todos os dias, mas mesmo isso não deixava de ser vulgar. O que era estranho era não se comportarem como adultos.

Durante anos, fora Julia quem alimentara e vestira Kathryn, quem a ensinara a ler e a tocar piano e quem a mandava todos os dias para a escola. À tarde, Kathryn ajudava-a na loja ou era mandada para a rua, brincar. Juntas viam desenrolar-se a telenovela que era a vida dos pais

- talvez nem sempre de longe, mas de um local seguro, dentro da casa de julia, que era alta e tinha uma forma invulgar. Durante quase toda a infância de Kathryn, ela e Julia tinham actuado no curioso papel de pais dos pais dela.

Quando Kathryn partiu para a faculdade e se sentava no seu dormitório em Bóston, tinha por vezes a certeza de que não seria capaz de voltar a Ely, nem queria testemunhar de novo as cenas de bebedeira dos pais, infinitamente repetidas. Mas durante o primeiro ano de Kathryn, numa tarde de Janeiro invulgarmente quente, os pais caíram no canal de Ely Falls que, inexplicavelmente, pareciam ter querido atravessar e afogaram-se. Para grande surpresa sua, Kathryn descobriu que o desgosto a invadia - como se tivessem morrido crianças - e depois do funeral dos dois, quando chegou a altura de voltar para Bóston, não conseguiu sair de Ely, nem deixar Julia.

Kathryn pensava agora que Julia fora para ela pelo menos tão boa como dois pais e que, por isso, tivera sorte.

Sobressaltou-se ao sentir cair uma pedra lá de cima, mesmo por trás de si. Robert tinha o cabelo em pé e semicerrava os olhos.

- Estava à espera que se assustasse - disse ele, dando um salto para o espaço protegido.

Ela voltou a meter os braços nas mangas do casaco e tentou segurar o cabelo do vento, de modo que ele lhe pudesse ver o rosto.

Ele encostou-se à rocha e pôs o cabelo no lugar. Retirou do bolso do casaco o isqueiro e o maço de cigarros. Voltou-se contra o vento, mas mesmo naquele abrigo de rochas teve problemas com o isqueiro. Finalmente acendeu o cigarro e inspirou profundamente o fumo; imediatamente o vento levantou fagulhas da extremidade do cigarro, ameaçando apagá-lo.

Robert Hart estaria a dizer a verdade? perguntava a si própria. Estava satisfeito por ela se ter vindo embora?

- Já saíram? - perguntou.

- Não.

- E então?

- Não há problema. Têm de o fazer. Não creio que estivessem à espera que lhes dissesse alguma coisa.

Ela descansou os cotovelos nos joelhos erguidos, e apanhou o cabelo num rabo de cavalo.

- Precisamos de lhe fazer o funeral - disse.

Ele acenou afirmativamente.

- Mattie e eu precisamos de prestar a última homenagem a Jack. De repente, pensou que era mesmo verdade. Jack deveria ser homenageado. - Não foi suicídio - disse. - Tenho a certeza.

Uma gaivota gritou na direcção de ambos, fazendo-os erguer a cabeça para olharem para o pássaro, que voava em círculo lá em cima.

- Quando era pequena - disse ela - pensava que gostaria de voltar à vida como gaivota. Até que Julia me disse que eram nojentas.

- As ratazanas do mar - disse Robert, apagando com o pé o cigarro na areia. Meteu as mãos nos bolsos e pareceu curvar-se ainda mais dentro do casaco. Percebeu que ele tinha frio. A pele à volta dos olhos tornara-se seca e esbranquiçada.

Ela tirou um fio de cabelo da boca.

- As pessoas de Ely - disse ela - dizem que não se deve viver junto à água, que é demasiado deprimente no Inverno. Mas nunca me senti deprimida.

- Invejo-a - afirmou ele.

- Bom, já me senti deprimida, mas nunca por causa do mar.

Agora, com a luz forte, via que tinha os olhos cor de avelã e não castanhos.

- Mas nos vidros é um inferno - acrescentou olhando na direcção da casa. - A humidade salgada.

Ele baixou-se mais junto à areia, onde estava mais calor.

- Quando Mattie era pequena, preocupava-me por estar tão perto do mar. Tinha de a vigiar constantemente. - Kathryn olhou para a água, contemplando o perigo. Há dois Verões - disse - uma miúda afogou-se não muito longe daqui. Uma menina de cinco anos. Estava num barco com os pais e caiu borda fora. Chamava-se Guilhelermina. Lembro-me de pensar que era um nome muito antiquado para uma criança.

Ele acenou afirmativamente.

- Quando isso se passou, pensei apenas em como o oceano podia ser traiçoeiro, com que rapidez podia arrebatar uma pessoa. Aconteceu tão depressa, não é verdade? Num instante a nossa vida é normal, logo a seguir não é.

- Sabe muito bem que é assim.

Ela enfiou os saltos das botas na areia.

- Está a pensar que poderia ter sido pior - disse Kathryn. Não está?

- Sim.

- Mattie poderia ter ido no avião.

- Sim.

- Teria sido insuportável. Literalmente insuportável.

Ele sacudiu as mãos para retirar delas a areia molhada.

- Podia ir-se embora, sabe. E levar Mattie.

- Ir-me embora?

- Para as Baamas. Para as Bermudas. Durante umas semanas, enquanto isto acalma.

Kathryn tentou imaginar-se nas Bermudas com Mattie, naquele preciso momento, e abanou a cabeça.

- Não o poderia fazer - respondeu Kathryn. - Pensariam que essa história de Jack era verdade. Achariam que tínhamos fugido. Além do mais, Mattie não quereria ir. Não penso que quisesse.

- Alguns familiares foram à Irlanda - disse ele.

- E depois? Ficava num motel com outras famílias que não estão boas da cabeça? Ou ia até ao sítio do acidente e esperava que os mergulhadores trouxessem os bocados do corpo? Não. Acho que não.

Meteu as mãos nos bolsos do anoraque. Um lenço de papel usado.

Moedas. Um cartão de crédito fora da validade. Umas notas de dólar.

Um pacote de pastilhas de mentol.

- Quer uma? - perguntou, estendendo-lhe o tubo.

- Obrigado - respondeu ele.

Cansado de estar de cócoras, sentou-se na areia e encostou-se a uma rocha.

Vai estragar o casaco, pensou ela.

- Isto aqui é bonito - disse ela. - É um belo recanto do mundo.

- Pois é.

Ela esticou as pernas na sua frente. A areia, embora molhada, estava estranhamente quente.

- Até que isto passe, os media vão ser implacáveis - disse ele.

- Tenho muita pena.

- A culpa não é sua.

- Mesmo assim, nunca tinha visto nada como aquela cena ali ao portão.

- Foi assustadora.

- Deve estar habituada a ter aqui uma vida muito calma.

- Uma vida calma e vulgar - acrescentou ela.

Ele rodeara os joelhos com os braços e tinha as mãos apertadas diante de si.

- Como era a sua vida antes disto? - perguntou. - Como era a sua rotina?

- Era diferente todos os dias. Qual deles quer?

- Oh, não sei. Quintas-feiras.

- Quintas. - Pensou um minuto. - Às quintas, Mattie tinha jogo de hóquei ou de lacrosse. Ao meio-dia eu tinha ensaio da banda.

Era dia de piza no bufete. Comíamos frango assado ao jantar. Víamos Seinfield e as Urgências na televisão.

- E Jack?

- Quando Jack estava, estava. Fazia tudo. Os jogos. O frango assado.

Seinfield. E você? O que faz quando não trabalha para o sindicato?

- Sou instrutor de voo - respondeu. - Nos meus tempos livres dou lições de voo num aeroporto da Virgínia. Na verdade, não passa de uma pastagem com uns quantos Cessnas. É bem divertido, excepto quando não baixam.

- O que é que não baixa?

- Os alunos no seu primeiro voo sozinhos.

Ela riu.

Ficaram sentados em silêncio, à vontade, encostados às rochas. O som embalador do mar era momentaneamente pacífico.

- Talvez devesse começar a pensar acerca dos pormenores do funeral - disse ela algum tempo depois.

- Já pensou onde quer fazê-lo?

- Suponho que terá de ser na Igreja de São José, em Ely Falls respondeu. - É a igreja católica mais perto. - Fez uma pausa. Com certeza vão ficar surpreendidos por me ver - acrescentou.

- Valha-me Deus! - exclamou Robert.

Confusa com aquela reacção, sentiu que Robert lhe puxava a manga, obrigando-a a levantar. Voltou-se para ver o que Robert via. Um jovem de rabo de cavalo apontava para eles uma câmara do tamanho de um aparelho de televisão. Kathryn viu-se reflectida nas lentes enormes juntamente com Robert.

Ouviu o clic, clic, clic suave e profissional de um homem a trabalhar.

Estavam na cozinha quando voltou: Somers tinha um fax nas mãos, Rita segurava o telefone com o queixo. Sem tirar o casaco, Kathryn anunciou que tinha uma curta declaração a fazer. Somers levantou os olhos do fax.

- Jack, o meu marido, nunca me deu a mim, ou a alguém qualquer indicação de instabilidade, uso de drogas, abuso de álcool, depressão ou doença física - disse. Viu Somers dobrar o fax em quadrados.

- Tanto quanto sei - continuou - era física e mentalmente saudável. Tínhamos um casamento feliz. Éramos uma família feliz e normal, vivendo numa pequena comunidade. Não responderei a quaisquer outras perguntas sem um advogado estar presente e nada deverá ser retirado cá de casa sem os necessários documentos legais. Como sabem, a minha filha está em casa da minha avó, na vila. Nenhuma delas deverá, de modo algum, ser entrevistada ou contactada. É tudo.

- Mrs. Lyons - disse Somers. - Esteve em contacto com a mãe de Jack?

- A mãe dele morreu - disse Kathryn rapidamente. Depois, no silêncio que se seguiu, percebeu que havia qualquer coisa que não estava bem. Talvez tivesse sido um ligeiro erguer de sobrancelhas, a leve sugestão de um sorriso no rosto de Somers. Possivelmente, só mais tarde dera por estes sinais. O silêncio era tão completo que mesmo com nove pessoas na cozinha, apenas conseguia ouvir o som do frigorífico.

- Não penso que seja esse o caso - disse Somers em voz baixa, colocando o quadrado de papel brilhante no bolso do peito.

O chão pareceu deslizar e inclinar-se como nos carrocéis de um parque de diversões.

Somers retirou um bocado de papel, arrancado de uma agenda, de um outro bolso.

- Matigan Rice - leu. - Forest Park Nursing Home, 47 Adams Street, Welsey, Minnesota.

O carrocel aumentou a velocidade e a inclinação. Kathryn sentia a cabeça leve e tonta.

- Setenta e dois anos, nascida a 22 de Outubro de 1924 - lia ele. Casada três vezes. Divorciada três vezes. Primeiro casamento com John Francis Lyons. Um filho, John Fitzwilliam Lyons, nascido a 18 de Abril de 1947, no Faulkner Hospital em Bóston.

Kathryn sentiu a boca seca e passou a língua pelo lábio superior. Talvez houvesse alguma coisa que não tivesse compreendido perfeitamente.

- A mãe de Jack está viva? - perguntou.

- Sim.

- Jack sempre disse...

Deteve-se. Pensou naquilo que jack sempre dissera. A mãe morrera quando tinha nove anos. De cancro. Kathryn lançou um rápido olhar a Robert e conseguiu ver pela expressão do rosto, que também ele fora apanhado de surpresa. Pensou na arrogância, na certeza complacente com que alguns minutos antes fizera a afirmação.

- Aparentemente - disse Somers.

Kathryn pensou que o investigador estava a gozar os acontecimentos.

- Como a descobriu? - perguntou.

Ela era mencionada nos seus registos militares.

- E o pai de Jack?

- Falecido.

Sentou-se na cadeira que tinha mais próxima e fechou os olhos. Sentia- se vagamente embriagada com o compartimento a girar-lhe desagradavelmente sob as pálpebras.

Todo este tempo, pensou, e nunca soubera. Todo este tempo, Mattie tivera uma avó. Uma avó de quem recebera o nome.

Mas porquê? perguntava a si própria.

Jack, porquê? perguntava silenciosamente ao marido.

 

CAMINHAM PELO NEVOEIRO AO LONGO DA PRAIA. Mattie, com um casaco Red Sox, corre adiante à procura de caranguejos. A praia está completamente rasa, curva como uma concha, a areia cor de madeira gasta, com uma caligrafia de algas aplicada ao longo da costa. Por trás das muralhas, estão as casas de Verão, agora vazias. Tarde de mais, Kathryn apercebe-se que deveria ter dito a Mattie, apenas com cinco anos, que tirasse os sapatos.

jack curva os ombros contra o frio. Usa sempre o casaco de cabedal, mesmo nos dias mais frios, pouco disposto a investir num anoraque, ou talvez demasiado vaidoso, na verdade nunca o soube. Nela, a camisa de flanela aparece-lhe por baixo do casaco e tem um cachecol de lã enrolado à volta do pescoço.

- Que se passa? - pergunta.

- Nada - responde ele. - Está tudo bem.

- Pareces aborrecido.

- Estou bem.

Caminha com as mãos nos bolsos, olhando em frente. A sua boca é uma linha dura. Pergunta a si própria o que o terá perturbado.

- Fiz alguma coisa? - pergunta.

- Não - responde ele.

- Mattie tem um jogo de futebol amanhã.

- Está bem - responde ele.

- Podes ir?

- Não. Vou de viagem.

Há uma pausa.

- Sabes - continua ela. - De vez em quando poderias pedir um horário que te desse mais tempo livre, mais tempo para estares em casa.

Ele fica em silêncio.

- Mattie sente a tua falta.

Olha - diz ele. - Não faças as coisas piores do que já são para mim.

Pelo canto do olho ela vê Mattie descrevendo círculos na praia. Kathryn sente-se abstraída, atraída pelo homem que está a seu lado por uma força que parece pouco natural. Gostaria de saber se ele se sente bem. Talvez esteja apenas cansado. Já ouviu as histórias, as estatísticas: a maior parte dos pilotos das linhas aéreas morre antes da idade da reforma, que é aos sessenta anos. É o stress, a tensão dos horários pouco naturais. O desgaste do corpo.

Chega-se a ele. Envolve-lhe o braço rígido com as mãos. Ele continua a andar em frente.

- Jack, diz-me. Que se passa?

- Deixa, está bem?

Magoada, ela larga-lhe o braço e afasta-se.

- É do tempo - diz ele, indo ter com ela. - Não sei. Pedia desculpas. Apaziguava-a.

- O que é que tem o tempo? - pergunta ela friamente, sem ser capaz de se sentir tão facilmente apaziguada.

- Está cinzento. O nevoeiro. Detesto-o.

- Não penso que haja muito quem goste - comentou ela distraidamente.

- Kathryn, não compreendes.

Ele retira as mãos dos bolsos e sobe a gola contra o frio. Parece meter-se mais no casaco de cabedal.

- Amanhã é o aniversário da minha mãe - diz calmamente. Ou seria.

- Oh, Jack! - diz, indo ter com ele. - Deverias ter-me dito.

- Tens sorte - respondeu ele. - Tens sorte em ter Julia. Dizes

que não tiveste pais, mas tiveste.

Estaria a ouvir uma nota de ciúme?

- Sim, tenho sorte em ter Julia - concorda.

Jack tem o rosto contraído e vermelho. Os olhos estão lacrimejantes do frio.

- Foi muito mau quando a tua mãe morreu? - pergunta.

- Não quero falar desse assunto.

- Sei que não queres - disse ela delicadamente. - Mas por vezes falar do assunto pode melhorar as coisas.

- Duvido.

- Esteve muito tempo doente?

Ele hesita.

- Muito tempo, não. Foi rápido.

- O que foi?

- Já te disse. Cancro.

- Não, eu sei - diz ela. - Mas de quê?

Ele suspirou levemente.

- Seio. Naqueles tempos não havia os tratamentos...

Ela pôs-lhe a mão no braço.

- É uma idade terrível para ficar sem mãe.

Só com mais quatro anos que Mattie, pensa ela de súbito, e o facto de se ter apercebido disso fá-la ficar completamente gelada. É uma agonia pensar em Mattie sem mãe.

- Disseste-me uma vez que ela era irlandesa.

- Nasceu lá. Tinha uma linda voz, um belo sotaque.

- Tinhas o teu pai.

Jack faz um breve som de desprezo.

- Pai não é exactamente a palavra correcta. O meu pai era um estúpido.

A palavra, que jack raramente usava, chocou-a. Abre o fecho do casaco dele e enfia os braços lá dentro.

- jack!

Ele suaviza-se um pouco e puxa a cabeça dela para si. Ela sente o cheiro a cabedal misturado com o ar do mar.

- Não sei o que é - diz. - Por vezes tenho medo. Por vezes parece-me que nos dias cinzentos não me consigo centrar. Não tenho crenças.

- Tens-me a mim - diz ela rapidamente.

- É verdade.

- Tens Mattie - diz.

- Eu sei, eu sei. Claro.

- Não te bastamos? - pergunta.

- Onde está Mattie? - pergunta ele, afastando-se de súbito.

Kathryn dá uma volta e olha a praia. jack vê-a primeiro, uma breve centelha vermelha entre o cinzento. Kathryn fica inexplicavelmente paralisada, vê Jack correr pela praia e com passos enormes saltar para as ondas. Espera um infindável minuto e depois vê Jack arrancar Mattie da espuma como se fosse um cãozinho. Segura a filha pela cintura, mantendo-lhe a cara para baixo e, por um momento, ela pensa que ele vai sacudir Mattie para a secar também como se fosse um cão. Mas depois ouve um grito familiar. Jack ajoelha na praia, sacode o casaco de cabedal e enrola o corpinho. Quando Kathryn chega junto dos dois, ele está a limpar a água do rosto da filha com a fralda da camisa.

Mattie parece espantada.

- A onda atirou-a ao chão - diz Jack ofegante. - E estava a levá-la para fora.

Kathryn pega em Mattie ao colo e embala-a nos braços.

- Vamos embora, Jack - diz ela. - Daqui a um minuto começa a ficar gelada.

Começam a andar depressa de volta a casa. Mattie tosse e espirra por causa da água do mar. Kathryn murmura-lhe palavras doces. O rosto de Mattie está encarnado do frio.

Jack segura a mão de Mattie como se estivesse ligado à filha por um cordão umbilical. Tem as calças encharcadas e a camisa de fora.

Kathryn pensa que, também ele, deve estar gelado. A ideia do que poderia ter acontecido a Mattie, se ele não a tivesse visto a tempo, faz com que sinta os braços e os joelhos fracos.

Pára abruptamente na praia e, num movimento natural, Jack abraça-a a ela e a Mattie ao mesmo tempo.

- Não te bastamos? - pergunta novamente.

Jack inclina a cabeça e beija a testa de Kathryn.

- Bastamos de quê? - pergunta Mattie.

 

POR VEZES ERA COMO SE TIVESSE VIVIDO três ou quatro anos em onze dias. Outras vezes parecia ter sido apenas uns minutos antes, que Robert Hart lhe aparecera à porta e pronunciara as duas palavras - Mrs. Lyons? - que lhe tinham mudado a vida. Não se lembrava de outra altura em que o tempo tivesse girado num turbilhão assim, excepto talvez nos dois ou três primeiros dias sublimes em que conhecera Jack Lyons, se apaixonara e a vida fora medida em minutos e não em horas.

Estava deitada no divã do quarto de hóspedes, com os braços estendidos, a cabeça levemente erguida por uma almofada, de modo a que pudesse ver o mar por cima da cadeira pintada de encarnado. Estava sol quando voltara para casa, mas agora o céu começara a ficar nublado. Redemoinhos de nuvens como pingos de leite num copo de água.

Tirou um gancho em forma de borboleta do cabelo e atirou-o ao chão, fazendo-o escorregar pelas tábuas de madeira envernizada, indo deter-se junto ao rodapé. Naquela manhã pensara em voltar a casa para iniciar o longo processo de limpar e apagar todos os vestígios dos últi mos onze dias, de modo a que ela e Mattie pudessem voltar de casa de Julia e recomeçar a vida. Kathryn pensou que o gesto fora admirável, mas a coragem diminuíra e acabara por se dissipar quando se dirigira à cozinha e vira um monte de jornais com fotografias suas, de Jack e de Mattie na primeira página; um exemplar tinha caído, fazendo pequenas tendas sobre os azulejos. Sobre a mesa havia pães duros como pedras, dentro de um saco de papel encerado e meia dúzia de latas abertas de Coca-Cola de dieta, embora alguém tivesse prestavelmente despejado o caixote do lixo, de modo que a casa não cheirava tão mal como Kathryn temera que acontecesse. Subira as escadas, abrira a porta do escritório de Jack, olhara para as gavetas abertas e para os papéis espalhados pelo chão, para a nudez estranha da secretária sem o computador. Sabia que o FBI haveria de vir com mandatos de busca e outros documentos, mas não sabia precisamente quando. Não voltara a casa desde o serviço religioso, dois dias antes do Natal. Nem Robert, que voltara a Washington dois dias a seguir ao serviço. Fechando a porta do escritório de jack, Kathryn seguira pelo corredor, entrara no quarto de hóspedes e deitara-se na cama.

Pensava que fora uma loucura ter voltado tão cedo, mas não poderia ignorar a casa para sempre. Teria de fazer a limpeza. Kathryn sabia que julia teria vindo no seu lugar, mas não o poderia permitir. Julia estava exausta, quase à beira de um colapso, não só pelo serviço religioso, por tomar conta de Kath e de Mattie, mas também pelo seu apurado sentido de obrigação: Julia estava decidida a entregar as últimas enco mendas de Natal da loja. Kathryn pensara para consigo que este esforço exagerado poderia matar a avó, mas não conseguira dissuadi-la do seu sentido de dever. Assim, as duas, com Mattie ajudando esporadicamente, tinham passado várias noites a embalar, embrulhar e endereçar, seguindo os nomes de uma lista. Kathryn pensara que de certa forma o trabalho fora até certo ponto terapêutico. julia e ela tinham ido dormir quando literalmente não conseguiam ver, evitando assim a insónia que lhes poderia ter estado destinada.

Porém, naquela manhã, Kathryn insistira para que Julia ficasse na cama e, esta acabara por aquiescer, o que não fora surpreendente. Também Mattie dormia até tarde e poderia ficar na cama a até depois do meio-dia como ultimamente vinha a fazer. Kathryn desejava mesmo que a filha pudesse dormir durante meses num pacífico estado de coma e depois acordasse para uma consciência apaziguada pelo tempo, de modo a não ser magoada uma e outra vez pela dor que absurdamente continuava tão recente. Era por isso que Mattie dormia tanto, pensava Kathryn, para adiar o horrível momento em que teria de saber.

Também Kathryn desejava poder entrar em coma. Mas, pelo contrário, sentia-se dentro de um íntimo sistema meteorológico em que era continuamente atingida e esbofeteada por notícias e informações, por vezes gelada pela ideia daquilo que poderia vir a seguir, enternecida pela bondade dos outros (julia, Robert e estranhos), frequentemente esgotada pelas recordações que pareciam não ter respeito pelas circunstâncias ou locais, e depois sujeita ao calor quase insuportável de repórteres, fotógrafos ou simples curiosos. Apercebia-se de que era um sistema sem lógica, sem padrão, progressão ou forma. Por vezes era incapaz de dormir, comer ou, estranhamente, ler um artigo do princípio ao fim.

Não porque o assunto fosse Jack, ou a explosão, mas porque não conseguia concentrar-se o suficiente. Outras vezes, quando falava com Julia ou Mattie, não conseguia chegar ao fim de uma frase sem se esquecer de como a tinha começado, nem se lembrava, de um momento para o outro, da tarefa que se dispusera levar a cabo. De vez em quando dava por si com o telefone encostado ao ouvido, tendo marcado um número sem fazer ideia a quem tinha ligado ou porquê. Tinha o espírito cheio, como se um facto crítico a incomodasse na periferia do cérebro, um pormenor em que deveria pensar, uma recordação de que se deveria lembrar, a solução de um problema que parecia para além do seu alcance.

Porém, piores eram os momentos de relativa calma que, de súbito, davam lugar à raiva, mais confusos ainda por não poder ligar essa raiva à pessoa ou ao acontecimento apropriados. Pareciam formados por bocadinhos, pequenas lascas de pedra de um feio mosaico: irritação contra Jack, como se ele estivesse a seu lado, contra uma coisa tão trivial como o facto de ele não lhe ter dito o nome do agente de seguros (que ela percebera que poderia facilmente conseguir, como o fez, telefonando à companhia) ou pelo facto infinitamente mais inocente porém terrivelmente irritante, de ele a ter deixado para sempre. Ou a zanga contra Arthur Kahler, com quem Jack jogara ténis durante anos, por tratar Kathryn como se fosse vagamente tóxica quando um dia a encontrara no Ingerbretson's. Até a visão de um casal de turistas agarrados diante da loja de Julia (um casal intacto, enquanto ela e Jack já não o estavam) causou tal fúria em Kathryn que não conseguiu falar com eles quando entraram na loja.

Kathryn sabia que havia alvos mais apropriados e óbvios para a sua raiva, mas, inexplicavelmente, muitas vezes sentia-se muda ou inútil diante deles: os media, a companhia aérea, as agências e os seus curiosos - perturbados e assustadores, ao telefone, nas ruas, no serviço religioso e até mesmo uma vez, paralisantes, na televisão, quando uma mulher, depois de lhe terem pedido um comentário na rua acerca da investigação do acidente, se voltara para a câmara e acusara Kathryn de esconder informações críticas sobre a explosão.

Pouco tempo depois da entrevista com o investigador do Departamento de Segurança, Robert sugerira que fossem dar uma volta. Saíram de casa e dirigiram-se ao carro. Ele segurara a porta para ela entrar e apenas depois dela fechada lhe ocorreu perguntar-lhe onde iam.

- À Igreja de São José - disse ele imediatamente.

- Porquê? - perguntou ela.

- Penso que já é altura de falar com um padre. Atravessaram Ely e a seguir a estrada que atravessava as salinas e levava a Ely Falls, passando pelas fábricas abandonadas e pelas montras com sinais de não terem sido actualizadas desde os anos sessenta.

Robert estacionou diante da reitoria, um edifício de pedra escura, que precisava de ser limpo, um edifício onde Kathryn nunca tinha entrado. Quando era rapariga muitas vezes apanhara autocarro para Ely Falls ao sábado à tarde e fora com as amigas à confissão em São José. Sentada no banco, sozinha, sentira-se encantada com as paredes de pedra aparentemente húmida, com os cubículos de madeira artisticamente talhados, com cortinas castanhas, atrás das quais as amigas confessavam os seus pecados (Kathryn nem imaginava quais seriam), com os quadros sedutoramente cativantes da Via Sacra (que Patty Regan, a sua melhor amiga, uma vez lhe tentara explicar sem sucesso) e os espalhafatosos globos de vidro vermelho que cobriam as velas tremeluzentes e que Patty pagava e depois acendia. Em comparação a igreja da infância de Kathryn, a Metodista de São Mateus, na rua principal de Ely, parecera quase agressivamente estéril; era uma igreja feita de tábuas castanhas; enfeitada a madeira amarela, com janelas compridas, com muitos painéis, através dos quais o sol brilhava generosamente ao domingo de manhã, como se tivessem encomendado especificamente ao arquitecto que incluísse a luz e o ar do protestantismo no seu desenho. Julia leva Kathryn à catequese, embora só até ao quinto ano, idade em que as histórias da Bíblia já não a encantavam como dantes. Depois dessa altura, Kathryn quase não fora à igreja, excepto no Natal e na Páscoa com o marido. Por vezes, Kathryn sentira algum remorso maternal por não mandar Mattie à catequese, por não permitir que a filha tivesse a oportunidade de aprender as coisas do cristianismo e decidisse por si a sua importância, tal como Kathryn pudera fazer. Kathryn calculava que Mathie quase nunca pensasse em Deus, embora soubesse que poderia estar enganada.

Nos primeiros anos do casamento, Jack desprezara agressivamente

a Igreja Católica. Frequentara a escola do Sagrado Nome em Chelsea.

Para Kathryn era difícil imaginar uma escola pior que a sua, pois fora tão espectacularmente aborrecida, que quando pensava nos anos que passara na Elementar de Ely, a primeira imagem que lhe vinha à ideia era o pó dos corredores. Ultimamente, porém, a veemência de Jack contra a Igreja parecera diminuir, e ela imaginava que ele pudesse ter mudado de ideias. Como ele nunca falava do assunto não o podia dizer.

Saíram do carro e bateram a uma enorme porta de madeira. Abriu um homem alto, de cabelo castanho, encaracolado.

- Houve uma morte terrível - disse imediatamente Robert.

Calmamente, o padre acenou com a cabeça e olhou para Robert e Kathryn.

- Kathryn Lyons - disse Robert. - O marido morreu ontem num acidente de avião.

Kathryn teve a sensação de que a cor tinha fugido do rosto do padre, para depois voltar.

- Sou o padre Paul LeFevre - disse para ambos, estendendo a mão. - Entrem, por favor.

Seguiram o padre até uma sala grande com janelas de pinázios e livros, aparentemente aos milhares. O padre Paul fez um gesto para que se sentassem junto a uma pequena lareira escura. Parecia ter quase cinquenta anos e ser invulgarmente musculoso e saudável, sob a camisa escura. Distraidamente ela perguntava a si mesma o que fariam os padres para manter a forma, se seriam autorizados a ir a ginásios e levantar pesos.

- Quero prestar uma homenagem ao meu marido - disse Kathryn quando o padre Paul se sentou com um bloco de papel e uma caneta no colo.

Kathryn procurou palavras mais explícitas, mas não as conseguiu encontrar. O padre Paul acenou lentamente e pareceu compreender. De facto, Kathryn teve a distinta impressão, durante toda a entrevista de que o padre católico sabia muito mais sobre as suas necessidades e o seu futuro imediato do que ela própria.

- Não sou católica - explicou. - Mas o meu marido era. Foi criado como católico e educado em escolas católicas. Lamento dizer que há muito tempo que não ia à igreja.

Houve uma pausa enquanto o padre tomava notas. Kathryn perguntou a si própria porque achara necessário desculpar Jack.

- E a senhora? - perguntou o padre Paul.

- Eu fui criada como metodista, mas também não tenho ido muito à igreja.

Não, pensou, ela e Jack não iam à igreja aos domingos de manhã. Os domingos de manhã, quando Jack estava em casa, eram para acordar na cama com o sussurro do sono sobre ambos, para a facilidade lânguida com que se procuravam - sem uma palavra entre eles, sem o dia entre eles, no rasto dos sonhos e sem responsabilidades - e depois para ficar encostada ao braço de jack enquanto ele dormia.

- Há outros membros da família a informar? - perguntou o padre. Kathryn hesitou e olhou para Robert.

- Não - disse, pouco à vontade, consciente de que estava a mentir a um padre, numa reitoria católica.

- Fale-me do seu marido - disse o padre suavemente.

- Morreu ontem, quando o avião explodiu - disse ela. - Era o piloto.

O padre Paul acenou afirmativamente.

- Li no jornal - disse em voz baixa.

Kathryn procurou uma maneira de descrever Jack.

- Era um bom homem - disse. - Trabalhador, amoroso. Tinha uma relação especial com a filha.

Kathryn cerrou os lábios e instantaneamente os olhos encheram-se- lhe de lágrimas. Robert estendeu a mão e pô-la sobre a dela. O padre esperou pacientemente que ela se recompusesse.

- Era filho único - disse Kathryn vacilante. - A mãe morreu; quando ele tinha nove anos e o pai quando estava na faculdade. Cresceu em Bóston e andou no Holy Cross. Esteve no Vietname. Conheci-o mais tarde, quando era piloto de aviões de carga. Agora trabalha para..

- Deteve-se, abanando a cabeça. - Gostava de pescar e de jogar computador - disse ela, quando conseguiu continuar. - Jogava ténis. Passava muito tempo com Mattie, a nossa filha.

Eram estes os factos, pensou, mas o verdadeiro Jack, o Jack que conhecia e amava, não estava neles.

- Gostava do risco - disse de repente, surpreendendo o padre.

- Não gostava de dias de chuva. Limpava a piza para tirar a gordura.

O seu filme preferido era A Testemunha. Vi-o chorar no fim de filmes tristes. Não tolerava engarrafamentos. Saía da auto-estrada e andava setenta quilómetros a mais, só para os evitar. Não se vestia muito bem. Usava uniforme no trabalho e nunca se preocupou muito com a roupa. Tinha um casaco de cabedal de que gostava muito. Era muito terno e amoroso...

Desviou o olhar.

- E a senhora? - perguntou o padre. - A senhora como é?

- Eu? - perguntou Kathryn. - Eu sinto-me como se tivesse levado uma sova.

O padre acenou com ar de quem compreende. Talvez como um

terapeuta, pensou ela.

- E o vosso casamento? - perguntou o padre. - Como era o

vosso casamento?

Kathryn olhou para Robert.

- Era um bom casamento - disse. - Éramos muito chegados.

Diria que estivemos apaixonados durante muito tempo, mais tempo do

que a maioria dos outros casais. Bom, não sei se se pode falar dos outros. É uma coisa que se calcula.

- E depois, o que aconteceu? - perguntou o padre.

- Depois? - repetiu. - Depois amávamo-nos. Passámos de estar apaixonados a amar-nos.

- Amor é o que Deus nos pede - disse o padre.

Kathryn pensou que nem uma única vez durante o seu casamento

tinha tido em conta o que Deus queria.

- Estivemos casados dezasseis anos - disse.

O padre cruzou as pernas.

- O capitão Lyons foi-lhe devolvido?

- Devolvido? - perguntou ela, a princípio espantada.

- O corpo - disse o padre.

- Não há corpo - disse Kathryn rapidamente. - O corpo do meu marido ainda não foi encontrado.

- Então suponho que esteja a falar de uma missa por sua alma.

Kathryn olhou para Robert, em busca de ajuda.

- Creio que sim - disse.

- Bom - disse o Padre Paul - das duas uma: ou poderíamos

dizer uma missa por alma do capitão Lyons e nesse caso aconselho a que seja antes do Natal, para que as festas possam fazer parte de um processo de resignação e não de uma tragédia para si e para a sua filha.

Kathryn reflectiu na ideia, sem se sentir muito esperançosa.

- Ou - acrescentou o padre - poderemos esperar até que o seu marido seja encontrado.

- Não - disse Kathryn veementemente. - Para bem da minha filha, meu e de Jack, precisamos de lhe prestar já a nossa homenagem. Estão a crucificá-lo nos jornais e na televisão.

Ouviu a palavra crucificar e ficou embaraçada por estar a usá-la diante de um padre. Mas não era isso que estava a acontecer? pensou. Crucificavam a honra de Jack, a sua memória.

- Dizem que se suicidou, que matou cento e três pessoas - disse Kathryn. - Se eu e Mattie não lhe prestarmos homenagem, não sei quem o fará. - O padre observou-a. - Prestar-lhe homenagem - acrescentou, embora não conseguisse explicar-se melhor. - E eu...

- aclarou a voz e tentou sentar-se direita. - Duvido muito de que haja um corpo - disse.

NESSA NOITE, CAMINHANDO INSONE NA COZINHA DE JULIA, muito depois desta e de Mattie se terem ido deitar, Kathryn começara a pensar se afinal não deveria ter dito ao padre que havia um parente vivo - a mãe de Jack. Perguntava a si mesma se não seria errado da sua parte não a informar de que o filho tinha morrido. Suspeitava que sim, mas só o facto de pensar que a mãe de Jack estava viva, na imagem de uma mulher idosa parecida com Jack, sentada num lar, provocava em Kathryn um desagradável ruído no ar, como o zumbido irritante e insistente que queria que se fosse embora. Não era simplesmente o facto de ter descoberto que Jack lhe tinha mentido que a perturbava; era a existência da pessoa em si, de uma mulher com a qual Kathryn não sabia o que fazer. Impulsivamente, Kathryn levou a mão ao telefone da parede e falou para as informações.

Quando conseguiu o número, ligou para o lar.

- Forest Park - respondeu uma mulher jovem.

- Oh, boa noite - disse Kathryn nervosa. - Gostaria de falar com Matigan Rice.

- Ora, que espanto - disse a mulher; que estava a comer ou a mastigar pastilha elástica. - É a terceira chamada que Mrs. Rice recebe

hoje - acrescentou. - Havia já seis meses que não recebia nenhuma.

- A mulher fez um som, como se estivesse a chupar um líquido por uma palhinha. - De qualquer modo - continuou a mulher - Mrs. Rice não pode vir ao telefone. Não está bem para poder sair do quarto e, para além de todos os seus problemas, não ouve muito bem, portanto atender um telefonema está fora de questão.

- Como está ela? - perguntou Kathryn.

- Mais ou menos na mesma.

- Oh - disse Kathryn e hesitou. - Estava a tentar lembrar- me... acrescentou -, quando foi exactamente que Mrs. Rice entrou para o lar?

Fez-se silêncio no outro extremo da linha.

- A senhora é parente? - perguntou a jovem cautelosa. Kathryn reflectiu na pergunta. Seria parente? Por razões muito próprias, Jack tinha preferido não dizer que a mãe estava viva e, portanto, intencionalmente não o seria, nem ela, nem Mattie. Kathryn não tinha a certeza com que intenção poderia Matigan Rice ser ressuscitada. Fora a vergonha que obrigara Jack a mentir a respeito da mãe? Ele e a mãe teriam tido algum desentendimento irreparável?

- Não, não sou parente - disse Kathryn. - Vai haver um serviço religioso pela morte do filho, de modo que queria que ela fosse informada.

- O filho morreu?

- Sim.

- Como se chamava ele?

- Jack. Jack Lyons.

- Muito bem.

- Morreu num acidente de avião - acrescentou Kathryn.

- Sim? No acidente da Vision?

- Exactamente.

- Meu Deus, que horror. Que espécie de homem haveria de se suicidar, levando consigo toda aquela gente inocente?

Kathryn ficou em silêncio.

- Bom, é a primeira vez que oiço dizer que o filho de Mrs. Rice estava no avião - disse a mulher. - Quer que eu experimente dizer-lhe? Não posso é prometer que ela entenda...

- Sim - disse Kathryn calmamente. - Acho que deveria tentar dizer-lhe.

- Talvez seja melhor falar primeiro com a minha chefe. Escute, de qualquer modo, muito obrigado por nos ter dito, espero que no avião não estivessem também pessoas da sua família.

- Para dizer a verdade, estavam.

- Valha-me Deus, lamento muito.

- O meu marido era o piloto - disse Kathryn.

Nos dias que se seguiram ao seu encontro, Kathryn e o padre falaram bastante e, por duas vezes, o padre foi visitá-la a casa de Julia. No primeiro encontro, na reitoria, Robert acentuara a necessidade de segurança e o padre Paul parecera pensar que isto não estava para além do seu alcance, embora nisto estivesse afinal demasiado confiante.

Quando pensava nele, era com um estremecimento de alívio pois sem a sua mão firme, o serviço religioso teria sido um enorme fiasco.

Mattie vestiu uma saia comprida de seda cinzenta e um casaco preto e estremeceu violentamente quando o padre Paul disse que o pai tinha feito uma aterragem segura. Julia e Kathryn vestiram fatos e deram as mãos. Ou antes, Julia dera a mão a Kathrin e Kathryn fizera o mesmo a Mattie, pelo que esta passagem de força resultara o melhor possível. Quando a celebração acabou, o mais difícil foi passarem pelos muitos pilotos que se encontravam presentes. No dia seguinte, nos jornais, havia uma fotografia de Kathryn saindo de São José, o que a fez ficar surpreendida, não só pela sua repetição na primeira página de todos os jornais no quiosque que havia do lado de fora do Ingerbretson's, mas também pela imagem propriamente dita: viu que a tristeza lhe transformara o rosto, cavando-o, desenhando-lhe rugas e tornando os músculos flácidos, de modo que a sua cara era quase irreconhecível. Na imagem, agarrada à mão da filha, em busca de apoio, Kathryn parecia espantada e cansada, muitos anos mais velha do que de facto era.

Estremecia agora pensando nessa fotografia e noutras, sendo a mais infeliz aquela em que aparecia com Robert no abrigo da praia, Robert puxando-lhe o braço, ambos parecendo momentaneamente escondidos e comprometidos. Pensava que era uma fotografia particularmente dolorosa porque de facto, Robert ficara irritado pelo destemido oportunismo do fotógrafo e, mesmo naquela altura, conseguia ainda ouvi-lo gritar atrás do homem, enquanto trepava às pedras e perseguia o fotógrafo pela relva. Nessa altura a raiva de Robert e a perseguição tinham enchido Kathryn de uma confiança tão justificada que a tinha levado a fazer aquela declaração logo que entrara em casa - a declaração que rapidamente se desintegrara quando Somers lhe falara da mãe de Jack.

Depois daquele dia no Ingerbretson's, Kathryn deixara de olhar para os jornais ou ver televisão. Uma visita a Julia que deveria durar apenas a noite depois do serviço religioso, estendera-se a todo o Natal e para lá dele. Kathryn, tal como Mattie, não conseguia voltar a entrar em casa e não poderia pedir à filha que voltasse com ela até ter retirado todos os indícios que fariam Mattie fugir porta fora. Apenas uma vez, em casa de Julia, a televisão fora inadvertidamente deixada ligada, de modo que, antes que Kathryn se tivesse apercebido daquilo que estava a acontecer, encontrou-se a olhar para a apresentação animada dos acontecimentos a seguir à explosão da cabina do Voo 384 da Vision. Segundo a sequência, a cabina separara-se do corpo do avião, que por sua vez se desintegrara em fragmentos mais pequenos no decorrer de uma segunda explosão. A animação mostrava a trajectória das várias partes enquanto caíam no oceano. Segundo o repórter, a descida teria levado exactamente noventa segundos. Kathryn não conseguira afastar os olhos do ecrã. Seguira o arco da pequena cabina animada até à água, onde dera um pequeno mergulho de desenho animado e se afundara.

A camada de nuvens, com os seus torvelinhos leitosos que se tornavam gradualmente mais espessos, ofuscavam a luz que vinha da janela do quarto de hóspedes. Kathryn sentou-se no divã, decidida então a começar a limpeza. Ouviu passos no corredor e atirou as pernas para fora da cama. Pensou que fosse Julia que afinal viera ajudá-la. quando Kathryn olhou viu que não era Julia, mas Robert Hart estava à porta.

- Fui a casa da sua avó - disse imediatamente - e ela disse que estava aqui.

Tinha as mãos metidas nos bolsos do casaco desportivo, de cor suave e indistinta, talvez acastanhado. Tinha um ar diferente, de calças de ganga. Trazia o cabelo despenteado pelo vento, embora o tivesse penteado com os dedos.

- Não estou aqui oficialmente - disse. - Tenho uns dias de férias. Queria ver como estava. - Entrou no quarto.

Perguntou a si própria se ele teria batido à porta das traseiras e, se assim fosse, por que razão não o teria ouvido.

- Estou contente por voltar a vê-lo - disse, surpreendendo-se a si própria.

Era verdade. Sentia um peso - não todo o peso, mas uma coisa pequena e gelatinosa - deslizar-lhe dos ombros.

- Como está a Mattie? - perguntou ele, atravessando o quarto e sentando-se na cadeira pintada de vermelho.

Daria uma fotografia interessante, pensou Kathryn de súbito, o homem sentado na cadeira vermelha, encostada à parede pintada de verde. Um homem atraente, um rosto interessante. O bico de viúva e o cabelo cor de pó, combinados com o modo como se sentava, descontraído, com as mãos nos bolsos, faziam-no parecer vagamente inglês, como uma personagem de um filme da Segunda Guerra Mundial.

Alguém que descodificasse mensagens, pensou.

- Terrível - disse Kathryn, aliviada por ter alguém com quem falar sobre Mattie. A fadiga de Julia era tanta, que Kathryn não quisera sobrecarregar demasiado a avó com as suas preocupações íntimas.

As de Julia já eram bastantes, mais do que uma mulher de setenta e quatro anos deveria ter de suportar.

Mattie está numa lástima - disse Kathryn a Robert, simplesmente. - Está apreensiva. Está nervosa. Não consegue concentrar- se em coisa alguma. Por vezes tenta ver televisão, o que já não é seguro.

Mesmo que não seja o noticiário, há sempre qualquer coisa que lhe faz lembrar o pai. Ontem à noite foi a casa de Taylor para estar com uns amigos e voltou inconsolável. Um amigo do pai de Taylor, que estava lá em casa, perguntou a Mattie se haveria julgamento e parece que esta não aguentou. O pai de Taylor teve de a levar a casa.

Kathryn reparou que Robert a ubservava atentamente.

- Não sei - continuou. - Estou preocupada, Rubert, mesmo preocupada. Mattie está frágil. Não come. Por vezes desata a rir histericamente. Já não parece ter uma reacção acertada em relação ao que quer que seja, embora eu gostasse de saber a que posso chamar apropriado. Disse a Mattie que a vida não se desintegra pura e simplesmente, que não podemos quebrar todas as regras, e Mattie respondeu-me que muito bem, que todas as regras já tinham sido quebradas.

Ele cruzou as pernas, como os homens costumam fazer, colocando o tornozelo sobre o joelho.

- Que tal foi o Natal? - perguntou.

- Triste - disse ela. - Patético. Todos os minutos foram patéticos. O pior foi ver como Mattie realmente tentou. Como se o devesse a Julia e a mim. Como se, de qualquer forma, o devesse ao pai. Agora, quem me dera que tivéssemos cancelado tudo. Que tal o seu?

- Triste - respondeu ele. - Patético.

Kathryn sorriu.

- Que está a fazer aqui? - perguntou ele, olhando à volta como se alguma coisa no quarto lhe pudesse dar uma pista.

- Estou a tentar evitar limpar a casa. Sempre utilizei este quarto como uma espécie de refúgio. Escondo-me aqui. Mas será melhor perguntar-lhe a si o que está aqui a fazer?

- Tenho uns dias de férias - disse.

- E então?

Descruzou as pernas e meteu as mãos nos bolsos das calças.

- Jack não passou a última noite no apartamento da tripulação - disse.

No quarto o ar tornou-se pesado e espesso.

- Onde esteve? - perguntou Kathryn calmamente. Kathryn pensou que já não era a primeira vez que uma pessoa faz muito rapidamente perguntas das quais não quer saber as respostas. Como se uma parte da mente desafiasse a outra para poder sobreviver.

- Não sabemos - disse Robert. - Como tem conhecimento, era o único americano da tripulação. Quando o avião aterrou, Martin e Sulivan meteram-se nos seus carros e foram para casa. Sabemos que jack foi ao apartamento, embora por pouco tempo, pois fez duas chamadas, uma para si e outra para um restaurante onde fez uma reserva para essa noite. Mas, segundo a empregada, ninguém lá dormiu na segunda-feira à noite. Parece que o Departamento de Segurança já sabia há algum tempo. Hoje ao meio-dia vai aparecer nas notícias.

Kathryn deitou-se na cama a olhar para o tecto. Não estivera em casa quando Jack telefonara e ele deixara-lhe uma mensagem no atendedor.

Olá, amor, dissera. Estou aqui. Vou lá abaixo arranjar alguma coisa para comer. Chamaste o Alfred? Logo falo contigo.

- Não quis que fosse apanhada de surpresa - disse. - Não quis que estivesse sozinha.

- Mattie... - disse ela.

- Já disse a Julia - continuou ele. Levantou-se, atravessou o quarto e sentou-se aos pés do divã, na beira, quase sem estar apoiado.

Tinha uma camisa escura de algodão, possivelmente cinzenta, embora Kathryn não tivesse a certeza de que não fosse antes acastanhada.

Sentia o espírito empurrado, comprimido. Se Jack não tinha dormido no apartamento da tripulação, então onde teria ficado? Fechou os olhos, sem querer pensar no assunto. Se alguém lho tivesse perguntado, teria dito que tinha a certeza que o marido nunca lhe tinha sido infiel.

Não seria próprio dele, diria a Robert. Não seria, de maneira nenhuma.

- Isto há-de terminar - disse Robert.

- Não foi suicídio - foi o mínimo que se sentiu obrigada a dizer.

Sentia-o sinceramente.

Ele estendeu a mão e pô-la sobre a dela. Instintivamente ela começou a retirar a mão, mas ele agarrou-lha.

Ela não queria perguntar-lhe, não queria, mas tinha de o fazer e percebia que ele estava à espera da pergunta. Sentou-se lentamente, retirando a mão e, desta vez, Robert soltou-a.

- A reserva era para quantas pessoas? - perguntou o mais distraidamente que pôde.

- Para duas.

Apertou os lábios. Não era forçoso que tivesse qualquer significado.

Poderia facilmente ter sido para Jack e outro membro da tripulação, não podia? Viu o olhar de Jack dirigir-se para a janela e depois voltar.

Que membro da tripulação? Gostaria de saber.

- Como se mantinha em contacto com jack quando ele não estava? - perguntou Robert.

- Ele telefonava-me - respondeu ela. - Era mais fácil desse modo, pois o meu horário era sempre o mesmo. Telefonava-me logo que chegava ao apartamento da tripulação. Se eu precisasse de falar com ele, deixava uma mensagem no voice mail. Combinámos assim porque eu nunca sabia quando ele quereria dormir um pouco.

Pensou naquela combinação. Fora ideia sua ou de Jack? Faziam-no havia tantos anos, que já não se lembrava de como tinha começado.

Sempre parecera um sistema lógico, demasiado prático para ser questionado. Era estranho, pensou, como um facto visto de uma maneira era uma coisa. Mas depois, visto de um ângulo diferente, era uma coisa completamente diferente. Ou talvez não fosse assim tão estranho.

- É óbvio que não podemos perguntar à tripulação - disse ela.

- Não.

Lembrou-se da pergunta que Mattie lhe fizera no dia em que soubera dos rumores do suicídio: Como se sabe que se conhece uma pessoa?

Kathryn levantou-se e caminhou até à janela. Tinha uma camisola velha e umas calças de ganga com os joelhos gastos, que já vestia há vários dias. Nem sequer as peúgas eram limpas. Não pensara encontrar ninguém naquele dia. Pensou que com o desgosto, a aparência era a primeira coisa a ser esquecida. Ou seria a dignidade?

- Já não consigo chorar - disse. - Essa parte acabou.

- Kathryn...

- Não tem precedentes - disse. - Não tem qualquer precedente. Nenhum piloto foi alguma vez acusado de se ter suicidado num avião.

- De facto - disse Robert - tem precedentes. Há um caso. Kathryn, que estava à janela, voltou-se.

- Em Marrocos. Um avião da Royal Air Maroc despenhou-se junto a Agadir em Agosto de mil novecentos e noventa e quatro. O governo marroquino, baseando a opinião nas gravações da caixa negra, disse que o acidente tinha sido causado pelo acto suicida do capitão. Parece que o homem desligou deliberadamente o piloto automático e apontou o aparelho para o chão. O avião começou a desintegrar-se antes do impacto.

Morreram quarenta e quatro pessoas.

- Meu Deus - disse ela.

Pôs as mãos sobre os olhos. Era impossível não ver, nem que fosse por um instante, o horror do co-piloto ao ver o capitão matar-se, o espanto aterrorizado dos passageiros quando sentiram a súbita descida.

- Quando irão revelar a gravação? - perguntou ela. - A gravação de Jack?

Robert abanou a cabeça.

- Duvido muito que alguma vez o façam - respondeu. Não são obrigados a fazê-lo. As transcrições estão isentas da Lei de Liberdade de Informação. Quando as gravações forem reveladas, ou o que está nelas não é conclusivo, ou terão sido muito censuradas.

- Então não terei nunca de as ouvir.

- Duvido.

- Mas então... como saberemos o que aconteceu?

- Trinta agências individuais de três países estão a trabalhar neste acidente - disse Robert. - Acredite que, mais que a ninguém, a acusação de suicídio desagrada ao sindicato, até mesmo a insinuação de suicídio. Todos os congressistas de Washington pedem um rigoroso teste psicológico aos pilotos, o que do ponto de vista do sindicato é um verdadeiro pesadelo. Quanto mais depressa o caso ficar resolvido, melhor.

Kathryn esfregou os braços, tentando restabelecer a circulação.

- É tudo político, não é verdade? - perguntou.

- Normalmente.

- É por isso que aqui está.

Ele sentou-se na cama, em silêncio. Com a palma das mãos alisou a colcha.

- Não - disse. - Neste momento não.

- Então está aqui como...

- Estou aqui - disse ele, olhando para ela. - Estou simplesmente aqui.

Ela acenou lentamente com a cabeça. Queria sorrir. Queria dizer a

Robert Hart que estava satisfeita por ele ali estar, que era muito difícil

atravessar tudo aquilo sozinha, sem ter consigo a pessoa que mais necessitava e que era Jack.

- Essa camisa é boa? - perguntou-lhe rapidamente.

- Não em especial - respondeu ele.

- Apetece-lhe ajudar na limpeza?

 

A CHUVA CAI PESADAMENTE fora das enormes janelas do auditório.

A sala é velha e inclinada, construída nos anos vinte e até agora nunca renovada. As paredes são forradas de madeira, com declarações de amor e iniciais de alunos gravadas aqui e ali. Pesadas cortinas castanhas que nunca parecem funcionar como deve ser pendem dos dois lados do palco. Apenas as cadeiras, impiedosamente furadas e rasgadas devido a anos de canetas e canivetes, tinham sido substituídas.

Agora o público senta-se nas cadeiras retiradas do cinema de Ely Falls, de quando o edifício foi demolido, para dar lugar a um banco.

O auditório enche-se lentamente de pais, à medida que a banda se esforça corajosamente por tocar a Marcha de Pompa e Circunstância.

Conduzindo do poço, mesmo por baixo do palco, Kathryn consegue extrair dos vinte e três músicos da Escola Secundária uma versão mais ou menos aceitável da música do fim de curso. Susan Ingalls, no clarinete, está completamente desafinada e Spence Closson, no bombo, parece particularmente nervoso esta noite, hesitando uma fracção de segundo antes de cada pancada.

Horas extraordinárias, pensa Kathryn. Em qualquer outro emprego, isto seria considerado trabalho extraordinário.

Felizmente, não era ainda a formatura, apenas a Noite dos Prémios.

Kathryn tinha cinco finalistas na banda, dois dos quais poderiam ganhar prémios académicos. É uma das poucas vantagens de uma escola pequena, pensa. A Noite dos Prémios é normalmente curta.

Ainda com a batuta na mão, senta-se na cadeira ao lado de Jimrny DeMartino, tuba. Reflecte sobre o mérito de levar Susan Ingalls aos bastidores para lhe tentar afinar o clarinete. O director começa o discurso, a que se seguirá o do vice-director e o de despedida da turma de finalistas. Kathryn tenta tomar atenção, mas tem o espírito fixo nas notas que terá de dar esta noite, quando chegar a casa. As últimas semanas do ano escolar são um tormento emocional. Nos últimos cinco dias tem conduzido o ensaio da banda na hora de almoço, de modo que os finalistas - vinte e oito ao todo - possam praticar a Marcha de Pompa e Circunstância para a formatura. Esta semana, nem uma única vez a canção, mesmo mal tocada, deixou de provocar lágrimas. Mas Kathryn sabe que na noite de formatura, as lágrimas já estarão gastas, a tristeza ansiosa do abandono da escola já terá passado e os finalistas pensarão apenas na festa que durará toda a noite. Todos ns anos é o mesmo.

Terminados os discursos, o director começa a anunciar os prémios.

Kathryn olha para o relógio. Meia hora lá fora, calcula. Depois a banda começará a tocar Trumpet Voluntary, toda a gente irá para casa e ela poderá começar a calcular as notas dos alunos de história da turma do penúltimo ano. Mattie tem um teste final de matemática no dia seguinte.

Ouve os aplausos, o murmúrio de antecipação quando um nome é lido, mais aplausos, por vezes um assobio do público. Os finalistas na primeira fila sobem ao palco e voltam, trazendo na mão um rolo de papel com fitas e de vez em quando um troféu. A seu lado, Jimmy DeMartino recebe um prémio pelos seus extraordinários resultados académicos em Física. Ela segura-lhe a tuba enquanto ele está no palco.

Trinta minutos depois, Kathryn sente a acalmia na cerimónia que indica a chegada do fim da noite. Preparando-se, levanta-se e dirige-se ao lugar do maestro, fazendo alguns movimentos com as mãos, de modo a recordar aos músicos que devem pegar nos instrumentos. Muda a música na estante e espera, com as mãos cruzadas diante de si o momento de começar.

Mas engana-se. O director ainda não terminou. Há ainda mais um prémio a entregar.

Kathryn ouve as palavras, a mais alta pontuação possivel e duma aluna do terceiro ano. Ouve-se um nome. Uma rapariga levanta-se e entrega o clarinete a Kathryn. De t-shirt branca, saia preta curta e botas de trabalho, a rapariga sobe ao palco. O público começa a aplaudir num misto de admiração pelo resultado conseguido e porque a entrega de prémios chegou ao fim. Kathryn mete o clarinete de Mattie debaixo do braço e aplaude tanto como os outros.

Jack devia aqui estar, pensa Kathryn.

Depois, na sala da banda, Kathryn abraça Mattie com força.

- Estou tão orgulhosa - diz.

- Mãe! - diz Mattie, libertando-se sufocada - posso telefonar ao pai para lhe dizer? Queria tanto.

Kathryn pensa um instante. jack está a dormir em Londres, antes de outra viagem, mas ela sabe que ele não se importará de ser acordado por isto.

- Claro - diz Kathryn a Mattie. - Porque não? Usamos o telefone do gabinete do director.

Utilizando o número do seu credifone, liga para o apartamento da tripulação mas ninguém atende. Desliga e marca de novo. Pela janela vê a chuva batida pelas rajadas de vento. Kathryn tenta uma terceira vez, pensando que a repetição de chamadas indicará a Jack que tentava falar com ele. Em Londres é uma e meia da manhã. Onde estará?

- Tentamos de casa - diz a Mattie com um sorriso. Mas em casa também não há resposta quando marca o número de Londres. Kathryn tenta três vezes, enquanto Mattie não está a olhar. Deixa uma mensagem no voice mail. Sentindo o entusiasmo e orgulho da noite começar a dissipar- se, Kathryn abandona o esforço de tentar ligar a Jack e, para comemorar o êxito de Mattie, faz um tabuleiro de biscoitos. Mattie, demasiado excitada para estudar para o teste de Matemática, senta-se à mesa da cozinha enquanto a mãe bate a massa. Pela primeira vez discutem faculdades e Kathryn pensa em escolas que até aí nunca tinha pensado. Olha para a filha de uma nova perspectiva.

Quando Mattie vai para a cama, o bom humor forçado de Kathryn começa a desaparecer. Fica acordada até tarde, dando as notas. Liga para o número de Londres à meia-noite, cinco da manhã em Londres, e sente-se frustrada por ouvir o telefone tocar no apartamento da tripulação, sem que ninguém o atenda. Dentro de uma hora, jack terá de partir para o aeroporto, para o seu voo de Amesterdão e Nairobi. Começa a ficar preocupada que alguma coisa lhe possa ter acontecido. Durante algum tempo vacila entre a zanga e a preocupação, até que adormece no sofá, com a caderneta das notas e a calculadora no colo.

Ele telefona a um quarto para a uma. Um quarto para as seis, hora de Londres. A voz dele acorda-a com sons interrompidos.

- Kathryn, que se passa? Que aconteceu? Estás bem?

- Onde estiveste? - pergunta ela sentando-se sonolenta.

- Aqui - diz ele. - Estava aqui. Acabei de ligar o voice mail.

- Porque não atendeste o telefone?

- Tirei a campainha. Estava estafado e precisava de dormir. Creio que vou ter gripe.

Ela escuta-lhe a voz congestionada. As companhias aéreas são sítios óptimos para chocar constipações.

- Ainda bem que não era uma emergência - diz ela, permitindo que uma nota de aborrecimento se lhe notasse na voz.

- Olha, desculpa. Estava tão cansado que pensei que era mais importante ir dormir. Afinal o que é? - pergunta. - Qual é a novidade?

- Não posso dizer-te. Mattie quer falar pessoalmente contigo.

- Não é nada de mal?

- Não, não. É óptimo.

- Dá-me só uma pista.

- Não, não posso. Prometi-lhe.

- Suponho que não queiras acordá-la agora.

- Não. Amanhã tem um teste final.

- Então telefono-lhe do avião - diz. - Vou ver se consigo apanhá-la logo que acorde.

Kathryn esfrega os olhos. Há um pequeno silêncio ao telefone. Gostava de ver o rosto do marido naquela altura. Gostava de ir para a cama com ele no apartamento da tripulação. Nunca lá estivera. Ele descrevera-o como estéril. Como os quartos de hotel.

- Pronto - diz ela.

- Kathryn, desculpa. Vou pedir à companhia que me passe o voice mail, se for urgente. Vou arranjar um bip.

Ela suspira ao telefone.

- Jack, ainda me amas?

Ele fica em silêncio durante um minuto.

- Porque perguntas?

- Não sei - diz ela. - Acho que há algum tempo que não te oiço dizer isso.

- Claro que te amo - diz ele. Aclarara a voz. - Amo-te mesmo. Agora vai dormir. Telefono às sete.

Mas não desliga e ela também não.

- Kathryn?

- Estou aqui.

- Que se passa?

Ela não sabe exactamente o que se passa. Tem apenas uma vaga sensação de vulnerabilidade, de ter sido abandonada durante muitos dias. Talvez apenas por também ela estar cansada.

- Tudo fixe - diz, utilizando a expressão preferida de Mattie naquele momento.

- Tudo fixe - repete Jack.

- Sim, tudo bem.

Quase consegue ver o marido a sorrir.

- Até logo - diz ele e desliga.

- Até logo - diz ela segurando na mão o telefone mudo.

 

FORAM DE COMPARTIMENTO EM COMPARTIMENTO, limpando o pó, aspirando. Lavando os azulejos, retirando o lixo, fazendo camas, pondo a roupa suja nos sacos. Reparou que Robert executava estas tarefas como um homem, era descuidado com as camas, bom na cozinha e lava o chão como se o estivesse a castigar. Com Robert no seu quarto e no de Mattie, foram retirados objectos potencialmente perigosos: uma camisa atirada para cima de uma cadeira, foi atirada por Robert para o chão juntamente com um monte de roupa suja. Roupa de cama era roupa de cama e precisava de ser lavada como as outras coisas. Pegou nos papéis espalhados no escritório de Jack e, sem os examinar, como Kathryn teria de fazer, meteu-os todos numa gaveta e fechou-a. No quarto de Mattie, Kathryn sentiu o escrutínio de Robert. Pressentira que seria aí que ela iria vacilar, mas ela surpreendera-o, sendo especialmente rápida e eficiente. Ainda com maior coragem, ajudara Robert a retirar a árvore de Natal já seca, que ambos arrastaram pela cozinha até às traseiras, espalhando-se as agulhas pelo chão de madeira e azulejo.

Quando terminaram a limpeza, os turbilhões leitosos no céu tinham dado lugar a nuvens baixas, cor de chumbo.

- Deve nevar - disse ele, despejando o lava-loiça da cozinha.

Kathryn abriu o armário que ficava por baixo e guardou o detergente da casa de banho, o Pine Sol, o Comet. Passou as mãos por água na torneira e secou-as num pano da loiça.

- Tenho fome - disse, sentindo a leve satisfação que sempre acompanha uma casa limpa. Tal como tomar banho.

- Óptimo - disse ele voltando-se. - Tenho umas lagostas no carro.

Ela ergueu uma sobrancelha.

- Comprei-as no Ingerbretson - explicou. - Fui buscá-las quando vinha para cá. Não consegui resistir.

- Eu podia não gostar de lagosta - disse ela.

- Vi as pinças para a comer na gaveta dos talheres.

- Que observador - disse ela.

- De vez em quando.

Mas ficando ali, de repente teve a sensação de que Robert Hart era sempre observador. Que olhava para tudo.

Robert cozeu as lagostas enquanto Kathryn punha a mesa na sala. Começara um aguaceiro de neve e os flocos rodopiavam batendo silenciosamente nos vidros das janelas. Kathryn abriu o frigorífico e tirou de lá duas garrafas de cerveja. Já tinha aberto uma e ia abrir a segunda quando se lembrou de que Robert não bebia. Tentou voltar a meter as garrafas no frigorífico, sem que Robert desse por isso.

- Por favor - disse este do fogão. - Beba a cerveja. Não tem problema. De facto aborrecia-me mais se não bebesse.

Kathryn olhou para o relógio: 12: 20. O tempo fora do tempo. Mais uma vez o envelope começava a abrir-se. Era sexta-feira. Normalmente estaria na escola, na quinta aula. Normalmente não estaria a beber cerveja. Porém, eram as férias do Natal, pensou; teoricamente não voltaria a trabalhar senão a 2 de Janeiro. Ainda nem tinha pensado como se haveria de portar nas aulas. Dentro dela ergueu-se a imagem dos alunos passando no corredor, mas afastou-a.

Cinco minutos antes do meio-dia, Robert desligara a campainha do telefone. Não havia nada de tão urgente que não pudesse esperar uma hora ou duas, dissera, e ela concordara.

Com esse espírito pusera uma toalha vermelha às flores na mesa diante da janela da sala, fazendo contrastar os tons vivos com o céu sombrio lá fora. Robert pôs música: B. B. King. Kathryn desejou ter flores. Mas afinal o que estava a comemorar? perguntou a si própria, sentindo-se vagamente culpada. O facto de ter sobrevivido aos últimos dez dias? Colocou sobre a mesa as pinças, as taças para as cascas, pão, manteiga derretida e um grande rolo de papel. Robert veio da cozinha com as travessas das lagostas molhadas e escorregadias. Tinha manchas de água no peito da camisa.

- Estou a morrer de fome - disse, pousando as travessas e sentando-se diante dela.

Kathryn examinou a lagosta que tinha diante de si. E foi nessa altura que, uma vez mais, o choque agudo da recordação a assaltou de novo. Levantou rapidamente os olhos e em seguida voltou-se para a janela. Levou a mão à boca.

- Que se passa? - perguntou Robert.

Ela abanou a cabeça rapidamente de um lado para o outro. Manteve- se quieta, fechada numa imagem, sem se atrever a mexer-se nem para a frente, nem para trás com medo das fendas. Respirou fundo, deixando sair o ar e estendeu os braços sobre a mesa.

- Lembrei-me de uma coisa - disse.

- De quê?

- Jack e eu.

- Aqui?

Ela acenou afirmativamente.

- A fazer isto?

Queria dizer-lhe que fora assim, mas não fora assim. Era o princí pio do Verão e as persianas estavam descidas. Mattie estava em casa de uma amiga e era mais tarde, por volta das quatro ou cinco horas. Recordava-se de que a luz era especial, tremeluzente e verde, como a água do mar. Tinham bebido champanhe. O que estariam a comemorar? Não se lembrava. Possivelmente nada, possivelmente eles mesmos. Lembrava-se de que quisera fazer amor e ele também, mas nenhum sacrificaria uma lagosta suada, de modo que tinham esperado com uma tensão deliciosa entre eles. Ela chupara as pernas da lagosta com beijos exagerados, Jack rira, dizendo que ela o estava a provocar, o que lhe agradara. Provocá-lo. Raras vezes o fazia.

- Desculpe - disse Robert. - Devia ter calculado. Como na cozinha.

- Não - disse rapidamente, detendo-lhe a mão que se dirigia ao prato. - Não. Não poderia ter calculado. De qualquer modo, a minha vida está cheia de lembranças. Centenas delas, que me vão apanhar de surpresa. São como as minas de um campo à espera de serem detonadas. Francamente, gostaria de fazer uma lobotomia.

Ele retirou a mão de debaixo da dela e colocou-a sobre os seus dedos. Segurou-lha do mesmo modo que um homem segura a mão de uma amiga, à espera que termine uma pequena crise. Tinha a mão quente, porque a de Kathryn ficara subitamente fria. Todas as recordações lhe faziam isto; parecia que o sangue lhe abandonava as mãos e os pés.

- Tem sido muito bom para mim - disse ela.

O tempo passou. Quanto? Já não conseguia medir os segundos, os minutos. Fechou os olhos. A cerveja tornara-a um pouco sonolenta.

Queria voltar a mão para que ele lhe tocasse a palma, queria que ele fizesse deslizar a mão pela sua, até ao pulso. Imaginou sentir o calor da mão dele viajando pela parte interior do braço, acima do cotovelo.

Os dedos, sob os de Robert ficaram flácidos e sentiu a tensão escoar-se-lhe do corpo. Não só essa flacidez era erótica, mas também o facto de ter desistido. Os olhos pareciam ter deixado de focar fosse o que fosse, não conseguia ver Robert nem nada como devia ser, tendo apenas uma sensação de luz que lhe vinha das janelas. Essa luz, difusa e baça criava uma aura de lânguido à vontade. Pensou que deveria sentir-se perturbada por pensar em Robert e nela nesses termos, mas uma espécie de suavidade parecia ter descido sobre eles como uma neblina e sentia-se apenas vaga e à deriva. De tal modo que quando Robert, talvez num esforço para a trazer de volta, aumentou a pressão exercida sobre a mão, sentiu-se voltar ao momento presente.

- É como se fosse um padre - disse.

Ele riu-se.

- Mas não sou.

- Acho que é assim que o vejo.

- Padre Robert - disse ele a sorrir.

Depois pensou: Quem saberia se a mão deste homem subisse pelo braço? Quem se importaria? As regras não tinham sido todas quebradas? Mattie não o tinha dito?

O silêncio da queda de neve envolvia-os. Ela via que ele se esforçava por entender com precisão o sítio em que ela se situava e porquê, mas não o podia ajudar, porque nem ela sabia. Pensou que a sala estava sempre um pouco fria no Inverno e estremeceu apesar do vapor que ouvia dentro dos radiadores. Lá fora o céu tornara- se tão escuro que poderia ser tomado pelo crepúsculo.

Ele retirou a mão, deixando a dela descoberta. Sentiu-se exposta. Bebeu outra garrafa de cerveja. Entre os dois comeram o pão todo e as lagostas. A meio do almoço, Robert levantou-se e mudou o CD. De B. B. King para Brahams.

- Tem uma música maravilhosa - disse ele quando voltou.

- Aprecia música?

- Sim.

- Que espécie?

- Piano, principalmente. A música era de Jack ou sua? - perguntou, sentando-se.

Kathryn inclinou a cabeça sem ter a certeza de que compreendera o que ele quisera dizer.

- Normalmente os CDs e a aparelhagem são a paixão ou do marido ou da mulher, mas não de ambos - explicou ele. - Pelo menos, segundo a minha experiência.

Ela reflectiu no assunto.

- Era minha - disse. - Jack não tinha ouvido. Mas gostava de rock and roll. E de alguma da música de Mattie, penso que era o ritmo. E consigo?

- Era minha também - disse. - Embora a minha ex-mulher tivesse ficado com a aparelhagem e a maior parte dos CDs. Um dos meus filhos herdou o ouvido. Toca saxofone na escola. O outro não parece interessado.

- Mattie toca clarinete. Tentei que aprendesse a tocar piano - disse Kathryn - mas era uma tortura.

Kathryn pensou em todas as horas que passara com Mattie ao piano, sem que esta quisesse lá estar, exagerando a sua relutância quase patológica, tendo obsessivamente de coçar as costas em sítios onde não chegava, de ajustar o banco ou de levar imenso tempo a encontrar o dedilhado. Era um esforço enorme conseguir que Mattie tocasse uma canção de uma vez, já para não falar de praticar a mesma peça várias vezes. Muitas vezes, Kathryn acabava por ter de sair da sala com uma raiva mal contida, no ponto em que Mattie começava a chorar. Antes do primeiro ano ter terminado, Kathryn percebeu que, se insistisse em dar lições à filha, a sua relação iria ser uma desgraça.

Claro que agora, Mattie quase não passava sem a sua música - no quarto, no carro, ligada aos fones, como se eles lhe passassem oxigénio pelos ouvidos.

- Toca? - perguntou Kathryn.

- Dantes tocava.

Ela observou-o e acrescentou um pequeno pormenor ao retrato que vinha a formar desde o dia em que ele lhe entrara em casa. Kathryn pensava que era o que se fazia com as pessoas, formavam-se retratos, acrescentavam-se pinceladas, esperava-se que se materializasse a forma e a cor.

Meteu um bocado da calda na manteiga e levou-a à boca a pingar.

- Na noite antes de Jack sair de viagem - disse Kathryn - foi ao quarto de Mattie e perguntou-lhe se ela queria ir com ele a um jogo do Celtics na sexta-feira à noite. Um amigo tinha-lhe dado bilhetes para uns lugares muito bons. O que eu queria saber é isto: acha que um homem pediria à filha que fosse com ele a um jogo do Celtics, se planeasse matar-se antes de voltar?

Robert limpou o queixo e reflectiu uns momentos.

- Será que um homem com bilhetes para lugares realmente bons para um jogo do Celtics se iria matar antes de ver o jogo?

Ela abriu muito os olhos.

- Desculpe - disse imediatamente. - Não. Não faz sentido, nunca ouvi falar em tal, em qualquer domínio da vida humana.

- Jack disse-me que chamasse Alfred - disse Kathryn. - Disse-me que o mandasse vir sexta-feira, para arranjar o chuveiro que pingava. Se Jack não pensasse voltar, nunca o teria feito. Não da maneira como o fez, quase como se só se tivesse lembrado quando se dirigia ao carro. E ter-se-ia mostrado diferente comigo. Teria dito adeus de modo diferente. Sei que teria. Haveria qualquer coisa em que na altura não teria reparado, mas fá-lo-ia depois. Qualquer coisa.

Robert estendeu a mão para o copo de água e afastou-se um pouco da mesa.

- Lembra-se - perguntou ela - de quando o Departamento de Segurança me perguntou se Jack tinha amigos chegados em Inglaterra?

- Sim.

Ela olhou para a tigela que tinha as cascas vazias.

- Lembrei-me de uma coisa - disse. - Volto já.

Enquanto subia as escadas, tentava lembrar- se se já teria lavado aquilo. Usara as calças de ganga durante dois dias e depois atirara-as para o cesto da roupa. Mas não para o seu, para o de Mattie. E Kathryn não lavara ainda nada de Mattie, pois esta não estava em casa. A roupa que Mattie precisara fora lavada em casa de Julia.

Encontrou as calças no fundo de um monte de roupa suja, enterradas por baixo das roupas que ela e Robert tinham atirado para lá. Retirou uma mão-cheia de papéis e talões, que estavam levemente húmidos por causa de uma toalha há muito lá enterrada.

Quando voltou à sala, Robert admirava o nevão. Ficou a olhá-la enquanto ela empurrava o prato e desdobrava os papéis.

- Olhe para isto - disse, entregando a Robert o bilhete de lotaria. - Encontrei estes papéis enrolados no bolso de dentro das calças de ganga de Jack atrás da porta da casa de banho, no dia em que morreu. Não pensei muito neles e acabei por metê-los no bolso das minhas calças. Mas está a ver a anotação, em A, e os números que se seguem? Que lhe parecem ser?

Robert estudou o número e ela viu pelo brilho dos olhos que ele percebia o que estava a pensar.

- Acha que é um número de telefone do Reino Unido? - perguntou ele.

- É o código de Londres, não é verdade? O um oito um?

- Creio que sim.

- Tem o número correcto de dígitos?

- Não tenho a certeza.

- Deixe-me ver - disse ela. Estendeu a mão e Robert estendeu-lhe o bilhete, embora não sem uma certa relutância.

- Fiquei curiosa - disse ela defendendo-se. - Se é um número de telefone, porque estará escrito neste bilhete? E é recente. Deve tê-lo comprado no dia antes da partida. - Olhou para a data do bilhete. Sim, comprou - disse. - No dia catorze de Dezembro.

Era uma coisa perfeitamente normal de se fazer, pensou ela, enquanto se dirigia ao telefone junto ao sofá. Pegou nos auscultadores e marcou os números. Quase imediatamente começou a ouvir o toque distintamente estrangeiro, um som que sempre lhe fazia lembrar os telefones parisienses com descansos pretos e recortados.

Do outro lado atendeu uma voz e Kathryn sobressaltada, sem estar à espera olhou rapidamente para Robert. Não pensara naquilo que haveria de dizer. Uma mulher disse de novo está, desta vez num tom levemente irritado. Não era uma mulher velha, nem uma rapariga.

Kathryn procurou um nome. Queria perguntar: Conhece um homem chamado Jack Lyons? Mas a pergunta pareceu-lhe subitamente absurda.

- Deve ser engano - disse Kathryn imediatamente. - Desculpe o incómodo.

- Quem fala? - perguntou a mulher já cautelosa.

Kathryn não teve coragem de dizer o nome.

Ouviu-se um estalido e o telefone foi desligado com aborrecimento. Depois, o silêncio.

Com as mãos a tremer muito, Kathryn colocou o auscultador no descanso. Sentira-se perturbada, do mesmo modo que uma vez, quando era caloira na escola secundária, telefonara a um rapaz de quem gostava mas não fora capaz de dizer o nome.

- Deixe estar - disse Robert da mesa em voz baixa. Kathryn esfregou as mãos nas pernas das calças para deixar de tremer.

- Escute - disse. - Consegue descobrir- me uma coisa?

- O quê?

- Consegue descobrir os nomes dos membros das tripulações com quem Jack voou?

- Por quê? - perguntou.

- Posso conseguir reconhecer um nome quando o vir. Ou dar nome a um rosto que tenha visto alguma vez.

- Se é isso que quer - disse ele lentamente.

- É dificil saber aquilo que quero - disse ela.

Enquanto Robert foi ao escritório de Jack para arranjar a lista dos membros da tripulação, Kathryn espalhou os outros papéis amarrotados e observou-os. Reparou particularmente no recibo dos correios de uma compra de vinte e dois dólares. Talvez não fosse da compra de selos, pensou, observando o recibo mais de perto. Abriu o bocado de papel pautado e olhou para os versos do poema que Jack tinha copiado:

Aqui, na passagem estreita do norte impiedoso,

Traições eternas, lutas inexoráveis e inúteis

Fúria impetuosa de punhais por entre a escuridão: luta pela sobrevivência Das células ávidas e cegas, da vida no útero.

Que significaria aquele poema? Olhou para o manto branco do outro lado da janela. Já havia uma quantidade razoável de neve amontoada no relvado e pensou que provavelmente deveria telefonar a Julia para saber se ela e Mattie estavam bem. Gostaria de saber se Mattie já se teria levantado.

Abriu o segundo bocado de papel dobrado - a lista. Roupão Fed da Bergdorfchega a 20.

Estranho, pensou, mas no dia vinte não chegara qualquer encomenda da FedEx. Tinha a certeza.

Levantando-se da mesa, reflectiu mais uma vez no significado dos versos do poema. Significavam pouco para ela, mas talvez, se conseguisse encontrar o poema completo, ficasse com uma ideia. Dirigiu-se à estante. Pouco mais era do que uma série de prateleiras de madeira quase até ao tecto. Jack lera livros sobre aviação, biografias de homens, por vezes um romance com um enredo interessante. Por seu lado, Kathryn lia principalmente ficção escrita por mulheres, normalmente romances contemporâneos, embora tivesse uma predilecção especial por Edith Wharton e Willa Cather. Procurou uma antiga antologia de poesia e encontrou-a na prateleira de baixo.

Sentou-se na beira do sofá. Abriu o livro no colo e começou a folheá-lo. Ao ver que nada se revelava imediatamente, decidiu começar pelo princípio, com intenção de passar todas as páginas até encontrar os versos que procurava. Rapidamente viu que não seria preciso: os pri meiros poemas eram antigos. Usando como guia a linguagem do poema, abriu o livro mais ou menos a meio. A partir daí os poetas escreviam com uma sintaxe semelhante à dos versos que tinha na mão. Começara a examinar metodicamente as páginas quando Robert a chamou do escritório de Jack.

Lá fora a neve aumentava, caindo contra os vidros em rápidas cas catas. Robert dissera que os meteorologistas tinham previsto uma camada entre quinze e vinte centímetros. Pelo menos Kathryn sabia onde Mattie estava e que não iria sair de carro.

Pousou o livro e foi ao escritório, onde Robert estava sentado à secretária. Tinha nas mãos o papel brilhante de um fax. Quando de súbito o viu sentado na cadeira de Jack percebeu que Robert sabia o que estava na caixa negra - era evidente que sabia.

- Fale-me da caixa negra - disse.

- Está aqui a lista de todas as pessoas da Vision com quem Jack voou - disse, entregando-lhe o fax.

- Obrigada - disse ela recebendo o papel sem o ver. Percebeu que ele não estava à espera que ela lho pedisse. - Por favor - disse. Conte- me o que sabe.

Ele cruzou os braços e afastou a cadeira da secretária, pondo alguma distância entre eles.

- Não ouvi a gravação propriamente dita - disse. - Nenhum de nós a ouviu.

- Não. Já sei.

- Só lhe posso dizer o que me contou um amigo que também trabalha no sindicato.

- Eu sei.

- Quer mesmo ouvir?

- Sim - disse ela, embora não o soubesse, não pudesse ter a certeza. Como poderia estar certa de o querer ouvir antes de o ter ouvido?

Ele levantou-se bruscamente e dirigiu-se à janela, de costas para Kathryn. Falou rapidamente de modo convencional, como se quisesse despir as palavras de qualquer conteúdo emocional.

- O voo foi normal até aos cinquenta e seis minutos - disse. Aparentemente Jack precisou de se levantar com urgência.

- Com urgência?

- Saiu da cabina aos cinquenta e seis minutos e catorze segundos do voo. Não disse o que se passava, apenas que voltava já. Eles, as pessoas que ouviram a gravação, pensaram que pudesse ter ido à casa de banho.

- Voltou-se para olhar na direcção dela, mas não exactamente para ela. Kathryn acenou com a cabeça.

- Dois minutos depois, o primeiro-oficial Roger Martin afirmou estar com problemas nos auscultadores. Pediu emprestados os de Trevor Sullivan, o engenheiro de voo. Sullivan entregou-lhos dizendo Experimenta estes. Martin experimenta os do engenheiro dizendo que funcionam perfeitamente e acrescenta, Bom, não é da ficha. Os meus auscultadores não devem estar afuncionar bem.

- Os auscultadores de Roger Martin não funcionavam bem - disse Kathryn.

- Sim. Então Martin entrega os seus a Sullivan e depois Sullivan diz, Espera lá. Pode ser que Lyons tenha uns a mais. Parece então que Sullivan tenta desapertar o cinto de segurança e chegar ao saco de Jack. Sabe onde arrumam os sacos?

- Ao lado dos pilotos?

- Num compartimento exterior, ao lado de cada piloto. Sim. Nessa altura Sullivan deve ter tirado qualquer coisa do saco de Jack que estranhou. Porque diz, Mas que diabo é isto?

- Alguma coisa que não esperasse.

- Parece que sim.

- Não eram os auscultadores.

- Não sabemos.

- E depois?

- Depois Jack entra na cabine. Sullivan diz, Lyons isto é alguma brincadeira?

Robert fez uma pausa. Encostou-se ao parapeito da janela, quase sentado.

- Nessa altura pode ter havido uma luta - disse Robert. - Ouvi afirmações contrárias. Mas se houve, foi rápida. Porque Sullivan disse imediatamente, Mas que merda é esta?

- E?

- Depois disse, valha-me Deus.

- Quem disse valha-me Deus?

- Sullivan.

- E depois?

- É tudo.

- Ninguém diz mais nada?

- A fita termina aqui.

Ela voltou a cabeça para o tecto, contemplando o que poderia significar ter sido aquele o fim da fita.

- Tinha uma bomba no saco - disse em voz baixa. - Uma bomba despoletada. É por isso que pensam que foi suicídio.

Robert pôs-se de pé. Meteu as mãos nos bolsos.

- Bastava apenas uma frase diferente para que o significado da fita fosse completamente diferente. Mesmo com as palavras tal e qual como eu as disse, a gravação não quer dizer necessariamente alguma coisa, sabe? Já falámos disso.

- Têm a certeza de que Jack estava nessa altura na cabina?

- Ouviram o fecho da porta abrir e fechar. Depois disso Sullivan dirige-se-lhe especificamente.

- O que não compreendo - disse ela - é como Jack poderia levar no saco alguma coisa perigosa.

- De facto - disse Robert - essa é a parte mais fácil. - Voltou-se para olhar para a neve. - É inofensivo. Completamente inofensivo. Toda a gente o faz.

- Faz o quê?

- A maior parte dos pilotos faz isso, quase todo o pessoal de voo que conheço também - disse Robert. - Principalmente jóias. Ouro, prata, por vezes pedras preciosas.

Ela não estava a perceber bem. Pensou nas jóias que recebera de Jack nos últimos anos: uma pulseira fina, de ouro, num aniversário de casamento, um fio de ouro no dia dos anos, uns brincos de brilhantes uma vez no Natal.

- Quem entra e sai centenas de vezes num aeroporto acaba por conhecer bem o pessoal da segurança - disse Robert. - Conversam a

respeito da família e acenam para nos cumprimentar. É uma delicadeza. Quando eu voava, tive talvez de mostrar o meu passaporte uma vez em cinquenta. E a alfândega quase nunca olhava para dentro do meu saco.

Kathryn abanou a cabeça.

- Não tinha ideia - disse. - jack nunca me disse.

- Alguns pilotos não falam do assunto. Acho que, se o que trazem é um presente, estraga a surpresa à mulher o saber que foi passado como contrabando pela alfândega. Não sei...

- Fazia isso?

- No Natal, sempre - disse. - A pergunta no átrio quando íamos apanhar a carrinha do aeroporto era sempre: O que levas para a tua mulher?

Ela meteu as mãos nos bolsos das calças; ficou com os ombros curvados.

- Porque é que Jack não diz nada na gravação? - perguntou Kathryn. - Se não sabia que era uma bomba, teria ficado tão surpreendido como Trevor Sullivan. Deveria ter dito alguma coisa. Deveria ter dito, Mas de que é que estão a falar? Deveria ter feito uma exclamação ou gritado.

- Não necessariamente.

- Jack mentiu a respeito da mãe - disse Kathryn.

- E então?

- Não dormiu no apartamento da tripulação - disse ela.

- Não basta.

- Alguém pôs uma bomba no avião - continuou ela.

- Se era uma bomba, alguém a pôs lá, isso garanto eu.

- E Jack deveria ter conhecimento - disse. - Estava no saco dele.

- Isso já não garanto.

- O piloto marroquino suicidou-se - disse ela.

- Foi inteiramente diferente.

- Como sabemos que foi diferente?

- Está a fazer de advogado do diabo - disse-lhe Robert, um pouco acalorado. - Não acredita que Jack tenha feito isto. – Suspirou frustrado e voltou-se de costas. - Quis saber o que estava na gravação - disse ele. - Eu disse-lho.

Ela desdobrou o fax que metera debaixo do braço. Havia muitos nomes, nove ou dez páginas de nomes, começando com a tripulação mais recente de Jack e indo até 1986, ano em que começara a trabalhar para a companhia. Olhou para a lista: Cristopher Haverstraw, Paul Kennedy, Michael DiSantis, Richard Goldthwaite... De vez em quando aparecia um rosto, um homem ou uma mulher com quem ela e Jack tinham jantado, ou alguém que ela tivesse encontrado numa festa, apesar da maior parte dos nomes lhe serem desconhecidos e metade deles viverem em Inglaterra. Assim, pensou, a vida de um piloto da Vision era estranha e a sua profissão quase anti-social. Os membros da tripulação de Jack tanto poderiam viver a setenta quilómetros dali como do outro lado do oceano.

Depois, na lista datada de 1992, viu um nome que nem tinha percebido que procurava, um nome estranho que se erguia do papel e lhe passava rapidamente pelos ossos.

Muire Boland.

Assistente de bordo.

Kathryn disse o nome dela em voz alta.

Muire Boland.

Tinha a certeza de que era um nome de mulher. Perguntou a si pró pria se seria francês e se estaria a pronunciá-lo correctamente. Kathryn estendeu a mão e abriu a gaveta grande da secretária de Jack. O envelope da publicidade com o nome escrito a lápis num canto não estava lá, mas via-o tão claramente como o nome dactilografado na lista que tinha na mão. Muire 3: 30, dizia a nota escrita à pressa. Num envelope com uma solicitação do Bay Bank.

Sabendo instintivamente que se hesitasse ficaria paralisada de indecisão, Kathryn tirou do bolso o bilhete de lotaria e colocou-o sobre a secretária de Jack. Ergueu o auscultador do telefone e marcou o número que lá estava escrito. Atendeu uma voz, a mesma voz de antes.

- Está - disse Kathryn rapidamente. - Muire está?

- Quem?

Kathryn repetiu o nome.

- Oh, Muire - disse a voz do outro lado e Kathryn ouviu a pronúncia correcta: Meur-ah, com um um pouco rolado. - Não - disse a mulher.

- Oh, desculpe - disse Kathryn sentindo-se terrivelmente aliviada. Agora apenas queria desligar o telefone.

- Muire esteve aqui - disse a voz inglesa - mas voltou para casa. É uma amiga dela?

Kathryn não conseguiu responder. Sentou-se pesadamente na cadeira.

- Quem fala? - perguntou a mulher em Londres.

Kathryn abriu a boca, mas não conseguiu dizer o nome. Apertou o auscultador contra o peito.

em A's, dizia o bilhete de lotaria. Muire 3: 30, estava escrito no envelope da publicidade. Duas anotações, na caligrafia de Jack, escritas com um intervalo de quatro anos e ligados com uma chamada telefónica.

Robert tirou-lhe o auscultador e colocou-o no descanso.

- O que a fez perguntar por Muire? - perguntou-lhe em voz baixa. - Ficou muito pálida.

- Foi um palpite - respondeu.

Quem era a mulher chamada Muire? Qual era a ligação de Jack com ela? Poderia ter passado a sua última noite com essa mulher? Jack teria um caso? Sentia as questões pressionadas contra o peito, ameaçando sufocá-la. Pensou em todas as piadas rotineiras que as pessoas faziam a respeito de pilotos e hospedeiras. Nunca lhes dera importância, como se nenhum piloto fosse assim tão óbvio.

- Robert, poderá descobrir mais a respeito de um determinado nome? - perguntou. - Onde vive a pessoa?

- Se tem a certeza de que é isso que quer - respondeu.

- Isto é um inferno.

- Então esqueça.

Ela pensou na possibilidade de esquecer tudo aquilo.

- No seu caso, conseguia? - perguntou- lhe.

- Quis ver televisão - dizia Julia. - Tive de pensar noutra Coisa. Ofereceram-me A Testemunha no Natal.

Robert saíra do escritório. Kathryn pensou que estaria a lavar a loiça.

- Foi Jack.

- Bom, parece interessada. Acordou às duas. Já comeu.

- Não a deixes ver televisão - disse Kathryn. - A sério. Desliga o cabo se for preciso.

Kathryn girou na cadeira do escritório e viu o amontoado de neve subir no parapeito exterior da janela. Parecia a água num aquário. Muire esteve aqui, dissera a voz.

- Robert está contigo? - perguntou Julia.

- Sim.

- Sabes que veio cá.

- Sei.

- Então sabes...

- Do apartamento da tripulação? Sim. - Kathryn ergueu uma perna dobrada e pôs o braço à volta do joelho. Duas notas com quatro anos de intervalo, ligadas por uma única inicial. Kathryn sentiu-se estremecer de ansiedade, o que imediatamente lhe produziu gotas de suor na testa.

- Não percas a fé - disse-lhe Julia.

- Que fé será essa, afinal?

- Sabes muito bem o que quero dizer.

- Estou a tentar não o saber.

- Fizeram novas previsões para o tempo - disse Julia. - A neve vai subir.

- É melhor ir - disse Kathryn, limpando a testa com a manga.

- Não sejas parva. Não saias se não precisares. Tens comida? Só Julia, para pensar em comida.

- Já comi - disse Kathryn. - Posso falar com Mattie? Fez-se silêncio do outro lado da linha.

- Sabes - disse Julia cautelosa. - Mattie está ocupada. Está bem. Se falares com ela, ficará de novo triste e distante. Precisa descansar uns dias, ver uns vídeos e comer pipocas. É como um medicamento, e precisa dele o mais tempo possível. Precisa de se curar, Kathryn!

- Mas gostava de estar com ela - protestou.

- Kathryn, há dez dias que estás com ela a cada minuto de cada dia. Percebes que apenas a tua presença vos afasta. Não aguentas o desgosto dela e ela não consegue pensar no muito que sofres. Normalmente não passas assim todo o tempo com ela.

- Isto não é normalmente.

- Bom, talvez agora as coisas se possam tornar de novo normaisdisse Julia.

Kathryn dirigiu-se à janela e limpou o embaciado que se formara nos vidros. A neve estava mesmo espessa e o caminho para a porta não tinha sido limpo. Devia haver talvez já vinte centímetros sobre os carros.

Suspirou. Era sempre difícil refutar o bom senso de Julia, principalmente porque tinha tantas vezes razão.

- Não saias de casa - repetiu Julia.

A neve caiu sem parar durante a longa tarde, tornando-se mais espessa. De vez em quando o vento assobiava e uivava, mas depois parecia parar quase imediatamente, como se a tempestade quisesse passar e transformar-se num aguaceiro. Enquanto Robert fazia telefonemas do escritório de Jack, Kathryn andava de um quarto para outro, olhando para as paredes e pelas janelas, cruzando e descruzando os braços, passando depois para uma sala diferente e ali ficando a olhar de novo para as paredes e pelas janelas. Ultimamente parecia que ficar de pé a pensar era tudo o que conseguia fazer.

Algum tempo depois, deu por si no quarto. Despiu-se, abriu o chuveiro, deixando a água aquecer até estar quase a escaldar. Quando entrou, curvou a nuca para a saída da água e ficou naquela atitude durante muito tempo. A sensação era tão agradável que ali ficou até o cilindro da água quente se ter esgotado e a água começar a sair fria.

Quando fechou o chuveiro ouviu música. Porém, não era um CD, mas sim o piano.

Aconchegou a gola do comprido roupão cinzento, de algodão penteado, que lhe caía até aos tornozelos. Olhou- se ao espelho e viu reflectido uma velha, de cara deslavada e olhos fundos.

Penteando o cabelo ao mesmo tempo, seguiu a música pelas escadas abaixo e entrou na sala onde Robert tocava piano.

Conhecia a peça: Chopin. Estendeu-se no sofá, fechando o roupão sobre o colo e as pernas.

Fechou os olhos. Faintaisie Impromptu era uma peça profusa, perturbavelmente bonita, com um extravagante número de notas. Robert tocava-a como raras vezes a tinha ouvido, sem sentimentalismo, trazendo consigo o peso delicioso de recordações agitadas e serões esquecidos. Quando ouviu os glissandos, pensou em diamantes esquecidos. O piano estava num canto, de lado para as janelas. Robert arregaçara as mangas e ela via-lhe primeiro as mãos, a seguir os antebraços. Havia qualquer coisa no silêncio da neve que melhorava a acústica da sala, ou talvez fosse o facto de não existir contraste com qualquer outro ruído; o piano soava melhor que nunca, embora tivessem já passado muitos meses desde a última afinação.

Devia ter sido assim no passado, pensou enquanto ouvia Robert tocar. Sem televisão, rádio, vídeos, apenas o espaço de uma longa tarde branca, na qual se poderia criar o próprio tempo, o próprio som. E era seguro. Podia pensar noutra coisa que não fosse acidente, Jack ou Mattie. O piano não fora coisa que ela e Jack alguma vez tivessem partilhado. Fora apenas de Kathryn, uma empresa solitária, embora ligada a Julia, o que também era seguro.

- Não tinha ideia - disse ela quando Robert terminou.

- Há já muito tempo - respondeu ele, voltando-se.

- É um romântico - disse ela a sorrir. - Um romântico de gabinete. Toca maravilhosamente.

- Muito obrigado.

- Quer tocar mais alguma coisa?

Kathryn viu então, de um modo como há muito tempo não via, que Robert era um homem com passado - claro que era. Possuía toda uma vida que ela ignorava, uma vida durante a qual tocara piano, aprendera a voar, embebedara-se, casara, tivera filhos, divorciara-se da mulher e depois acabara por se envolver naquele trabalho extraordinário.

Reconheceu a melodia: The Shadow of Your Smile. Num instante mudara o ambiente.

Quando terminou, coçou a nuca e olhou para a neve.

- Deve ter pelo menos trinta centímetros de altura - disse.

- O caminho da casa não está limpo - disse ela. - Que horas são? Ele olhou para o relógio.

- Três - disse. - Acho que vou dar uma volta.

- Com o tempo assim?

- Só até ao fim do passeio e depois volto. Preciso de ar.

- Espero que saiba que esta noite não precisa de ir para a estalagem. Há muitas camas nesta casa. Muitos quartos. Pode dormir no divã do quarto de hóspedes - acrescentou. - E confortável. É para isso que existem.

- Disse que era para se esconder.

- Sim.

- As informações que me pediu estão sobre a secretária de Jackdisse.

Ela começou a falar, mas ele abanou a cabeça.

- Isto não deveria ter-lhe acontecido, logo a si.

Kathryn dormitou uns minutos no sofá e depois, um pouco atordoada, subiu para o quarto com a ideia de se meter na cama e fazer uma longa sesta. Levou consigo o livro de poesia.

Deitou-se de barriga para baixo na cama e começou a voltar as páginas, olhando para elas com alguma indiferença. Leu bocados de poemas de Gerard Manley Hopkins, Wordsworth e Keats. Quase a meio do livro a palavra traições chamou-lhe de súbito a atenção e apercebeu-se de que tinha encontrado o poema. Quase imediatamente, antes ainda de começar a ler os versos, viu uma leve anotação, ao longo da margem interior.

Escrita a lápis, ao de leve, com um ponto de exclamação. Ali. Inequivocamente ali. M!

Sentou-se muito direita, olhou para o poema e leu-o. Chamava-se Antrim e fora escrito por Robinson Jeffers. Parecia ser acerca de antigas lutas por uma pequena parcela de terra, presumivelmente Antrim. Acerca de sangue derramado por muitas causas, várias armadilhas e traições, o patriotismo em si e os corpos sacrificados, todos agora transformados em pó, em pó que esperaria a ressurreição.

Que significaria?

Deixou o livro cair da cama para o chão. Deitou-se de novo, metendo a cabeça na almofada. Sentiu-se como se tivesse viajado milhares de quilómetros.

Quando acordou, olhou instintivamente para o relógio da mesa-de-cabeceira. Eram três e meia da manhã. Dormira nove horas. Que dia era? Vinte e oito? Vinte e nove?

Vacilante, levantou-se da cama e saiu para o corredor. A porta do quarto dos hóspedes estava fechada. Pensou que Robert já deveria ter voltado do passeio e ido dormir. Teria comido? Visto televisão? Lido um livro?

Na cozinha não havia sinais de ninguém ter feito comida. Kathryn fez uma cafeteira de café e serviu-se de uma chávena. Pelas janelas que ficavam por cima do lava-loiça, viu que tinha deixado de nevar. Dirigiu- se à porta das traseiras, abriu-a e foi imediatamente pulverizada por um pó fino e gelado que caía do beiral. Pestanejou e abanou a cabeça. Habituando-se à escuridão, viu o mundo envolvido numa espessa manta branca finamente pespontada, de modo que as árvores, os arbustos e os carros eram simplesmente pequenos montículos. De facto, a neve parecia tanta que perguntou a si própria se as previsões de trinta centímetros não teriam sido optimistas. Fechou a porta e encostou-se a ela. Pensou em A's. Muire 3: 30

Aconchegando-se mais no roupão, Kathryn subiu rapidamente as escadas até ao escritório de Jack, cuja solidão poeirenta a surpreendeu de novo. Sobre a secretária de Jack, viu o papel de que Robert tinha falado.

Muire Boland, leu, tinha deixado a companhia aérea em Janeiro de 1993. Fora treinada pela Vison em Londres e durante três anos exercera a profissão de assistente de bordo. Havia uma morada, um número de telefone e a data de nascimento. Muire Boland tinha agora trinta e um anos.

Robert escrevera uma nota por baixo do número de telefone. Experimentei, dizia. Quando atenderam, ninguém sabia quem era. Por baixo desta informação estava uma lista de números de telefone. Na lista de Londres havia sete M. Boland.

Kathryn tentou formular uma questão, um pedido razoável. A pessoa que atendia o telefone conhecia Jack Lyons? Se assim fosse, Kathryn poderia fazer uma ou duas perguntas? Seria uma coisa assim tão invulgar?

Kathryn olhara à volta do escritório, para a sua suavidade metá lica, para a sua estética masculina. Não se permitiria acreditar que Jack tinha um caso. Como poderia ser, quando vira em primeira mão o que tinha acontecido quando uma história sensacional fora tecida apenas à volta de alguns factos, como acontecera com a imprensa quando tinha havido fuga de informação da gravação da caixa negra?

Pegou no telefone e marcou o primeiro número. Respondeu um homem com voz de quem tinha sido acordado. Calculou rapidamente as horas que seriam em Londres - nove e quarenta da manhã. Perguntou se Muire estava.

O homem tossiu para o telefone com catarro de fumador.

- Com quem deseja falar? - perguntou, como se não tivesse ouvido bem.

- Muire Boland - disse ela.

- Aqui não há nenhuma Muire Boland - disse o homem, em tom de confidência.

- Desculpe - disse Kathryn e desligou o telefone.

Cortou o primeiro número e tentou o segundo. Não atenderam. Tentou o terceiro. Atendeu um homem com voz rápida e profissional.

- Daqui Michael Boland - disse, como se esperasse um determinado telefonema.

- Desculpe - disse Kathryn. - É engano.

Cortou o terceiro número. Tentou o quarto. Atendeu uma mulher.

- Está? - disse.

- Está - disse Kathryn. - Procuro Muire Boland.

O silêncio do outro lado da linha foi tão completo que Kathryn conseguiu ouvir o leve eco de outra conversa transatlântica.

- Está? - insistiu Kathryn.

A mulher desligou. Kathryn ficou sentada com o auscultador mudo junto ao ouvido. Pegou no lápis para cortar o quarto número, mas acabou por hesitar.

Ligou para o quinto número. Depois para o sexto, depois para o sétimo. Quando terminou, olhou para a lista. Tinha nela um homem que não conhecia qualquer Muire; um número que não atendia, um homem de negócios chamado Michael Boland; uma mulher que não falara; uma mensagem num atendedor de chamadas com um sotaque quase ininteligível, dizendo que Kate e Murray esperavam que deixasse o seu número; uma adolescente que dissera não conhecer Muire, mas que o nome da mãe era Mary.

Tentou de novo o quarto número.

- Está - disse a mesma mulher de novo.

- Desculpe incomodá-la - disse Kathryn rapidamente, antes que a outra desligasse. - Mas estou a tentar localizar Muire Boland.

Misteriosamente houve um silêncio semelhante ao primeiro. Havia qualquer coisa no fundo. Seria música? Uma máquina de lavar a loiça? Depois Kathryn ouviu um som vindo do fundo da garganta da mulher, como que o princípio de uma palavra que iria ser pronunciada. Seguiu-se outro silêncio, mais curto, desta vez.

- Aqui não mora nenhuma Muire - disse finalmente a voz.

Kathryn pensou que teria havido demora entre os seus pensamentos e a sua voz, porque quando abriu a boca para falar a linha estava de novo muda.

Quando Robert a encontrou de manhã, estava sentada à mesa da sala. O Sol nascera e a neve lá fora, estava de tal forma brilhante que Robert teve de semicerrar os olhos para olhar para ela. Com aquela luminosidade via todas as linhas e poros do rosto dele.

- Que luz que está aqui - disse, voltando a cabeça.

- Por vezes é preciso andar de óculos escuros nesta sala - respondeu ela. Jack costumava pô-los.

Olhou para Robert enquanto este metia a camisa para dentro das calças.

- Dormiu bem? - perguntou ele.

- Sim - respondeu. - E você?

- Optimamente.

Viu que ele tinha dormido vestido. Pensou que provavelmente estaria demasiado cansado para se despir.

Habituando-se à luz, Robert parecia ver-lhe o rosto com maior clareza.

- Que se passa? - perguntou.

Kathryn inclinou-se para a frente na cadeira.

- Vou a Londres - respondeu.

Ele não hesitou. Não hesitou nada.

- Vou consigo - disse.

 

AS TOALHAS DE MESA ESTAVAM ESPALHADAS PELO CAMPO, como uma gigantesca manta de retalhos. Grupos de famílias estavam sentadas sobre as toalhas com pratos de papel ou loiça verdadeira e chá gelado em termos de plástico. As crianças pequenas corriam pelos atalhos cobertos de relva, atravessando por vezes o almoço de outra família. Kathryn abre o cesto do piquenique, um cesto antigo de julia, e tira de lá uvas e Terra Chips, pão de pita, hummus*, uma fatia de Brie e um pequeno rectângulo de uma coisa malcheirosa. Stilton, descobre ela, cheirando o queijo. Perto dali, Jack fala com dois pais. O dia está nublado, levemente abafado e as moscas já são aborrecidas. Kathryn vê Jack curvar a cabeça para ouvir os outros homens, que são mais baixos que ele. Tem um copo de gasosa numa mão e a outra metida no bolso das calças de ganga. Ri-se e ergue a cabeça, chamando a atenção de Kathryn. Por trás do riso ela vê a leve tensão das relações sociais, com uma pergunta bem- disposta nos olhos: Quando terminará tudo isto?

Kathryn vê Mattie do outro lado do campo, junto a um grupo de amigos, de braços cruzados e bem apertados, como se tivesse frio, o que não é certo. É o simples facto de se ter quinze anos e não saber onde pôr as mãos. O rosto de Mattie que ao mesmo tempo é familiar e desconhecido para Kathryn, parece uma obra de arte em transição, a sua forma ultimamente mais alongada, a boca já não está saliente devido ao aparelho dos dentes.

- Boa jogada - disse Barbara McElroy, de um cobertor adjacente. Kathryn espreita o menu dos McElroy: frango frito, salada de batata do supermercado, couve, fritos, biscoitos.

- Melhor que no ano passado - diz Kathryn.

- Acha que vão fazer o jogo de softball?

- Se não chover.

 

* Pasta feita de grão esmagado com azeite, alho, sumo de limão e sésamo. [N. da T.]

 

- Mattie está mais alta - diz Barbara, olhando na direcção dela. Kathryn acena afirmativamente.

- Roxanne veio? - pergunta. E depois deseja não o ter feito, pois Roxanne, uma jovem esguia de quinze anos com um brinco no lábio, certamente não quereria ser vista no piquenique anual da escola. De vez em quando, Kathryn fala com a rapariga, que falta constantemente e assume uma atitude especial nos corredores da escola. Kathryn pensa que Barbara deve ali estar por causa de Will, o filho de sete anos. Louie, o marido de Barbara, anda na pesca do bacalhau e está fora muitas vezes, por longos períodos de tempo.

Como Jack, pensa Kathryn.

- A sua avó tem uma tarte maravilhosa na janela - diz Joyce, da toalha atrás de Kathryn. Esta repara também no piquenique dos Keys: salada de arroz com caril, salmão frio, Perrier, konfetkakke de Marta Ingerbretson. Joyce e o marido, James, são arquitectos e têm uma firma própria, em Portsmouth. Keys & Keys.

Toda a história social da vila nos piqueniques, pensa Kathryn.

- Não vi - diz Kathryn.

- Jack vai jogar, não vai? - pergunta Barbara.

- Oh, acho que sim - responde Kathryn.

Vê o marido baixar a cabeça para falar com Arthur Kahler, dono da estação de serviço da Mobil e por vezes parceiro de Jack ao ténis. É por isso que as costas o incomodam tanto, pensa; está sempre curvado para falar com os outros. Trás um pólo branco e um par de sapatos de vela. Outro tipo de uniforme. Dá uma palmada atrás da orelha, olha para a mão, retira uma mosca do dedo. Vê-a a olhar para ele.

- Estou cheio de fome - diz, aproximando- se e baixando-se para o cobertor.

- Queres que chame Mattie?

- Não. Há-de vir quando quiser.

- Vais jogar softball?

- Acho que sim - diz ele, servindo-se de outra gasosa.

- Pensas sempre que te vais aborrecer, mas depois adoras. Ele passa-lhe os dedos pelas costas. O toque é inesperado e delicioso. Apetece-lhe curvar a cabeça e fechar os olhos. Não lhe tocava havia dias.

- De facto, apetecia-me uma cerveja bem gelada - disse ele, retirando a mão.

Num piquenique da escola?

- Kahler não parece importar-se.

Kathryn olha na direcção de Arthur Kahler e repara que tem na mão uma enorme caneca de plástico vermelho.

Kathryn entrega a Jack o pão de pita com hummus.

- Martha diz que ele vai fechar as bombas para a semana. Para as substituir por novas. Teremos de meter gasolina em Ely Falls.

Jack acena em silêncio.

- Mas, claro, não vais estar cá - diz Kathryn, lembrando-se de que Jack estará duas semanas em Londres, fazendo o seu treino bianual.

- Pois não.

- Sabes, desta vez podia ir contigo. A escola acaba na quarta- feira que vem. Podia ir de avião para Londres e encontrávamo-nos lá. Passávamos quase uma semana juntos. Seria divertido.

Jack desviou o olhar. O convite pairou sobre a toalha como o fumo de um cigarro num dia húmido.

- Podíamos deixar Mattie com Julia - acrescenta Kathryn. Ficaria encantada por se ver livre de nós por uma semana.

- Não sei - diz ele lentamente, voltando-se para ela.

- Há séculos que não vou a Londres - argumenta. - E nunca lá fui assim, por uns dias.

Ele abana a cabeça.

- Ias detestar. As sessões de treino são intermináveis. Passamos todo o dia num simulador. Temos aulas à noite. Comemos com as tripu lações inglesas. Nunca estaria contigo. Não poderíamos fazer nada.

- Eu sou bem capaz de me entreter sozinha - diz ela. E de súbito interroga-se sobre a razão que a levava a discutir a proposta.

- Então para que vais lá quando eu lá estou? - pergunta ele, querendo pôr fim à questão. - Podes bem ir sozinha.

Ofendida, morde o interior da bochecha.

- Escuta - diz em tom de desculpa - passaria todo o tempo frustrado, sabendo que estavas no hotel, sabendo que poderíamos andar juntos a passear por Londres. Aquelas sessões já são suficientemente desagradáveis. Não me parece que mais essa pressão seja boa ideia.

Ela observa-lhe o rosto. Um rosto bonito, um rosto que faz as pessoas voltarem-se para o olhar, quando passam.

- Olha uma coisa - continua. - Porque não vais ter comigo no fim da sessão e vamos a Espanha? Tiro uns dias e vamos para Madrid. Não, melhor ainda: vou lá ter contigo.

Agora parece mais animado, como que aliviado por ter conseguido um compromisso.

- Vamos também a Barcelona - diz. - Barcelona é fantástica.

- Já lá estiveste? - pergunta.

- Não - diz rapidamente. - Só ouvi falar.

Pensa numa viagem a Espanha com jack. Sabe que seria agradável, mas Espanha não era exactamente aquilo que estava a pensar. Jack estaria do mesmo modo duas semanas longe dela, ainda mais tempo longe de Mattie. Queria ir a Londres.

Por sobre o ombro de Jack, Kathryn vê que Barbara McElroy a observa atentamente. Barbara, que sabe o que é ser deixada só durante longos períodos de tempo.

- Parece um encontro de namorados - diz Kathryn, forçando uma nota alegre.

- Lyons - chamou uma voz sobre o cobertor. Kathryn olha para cima, semicerrando os olhos por causa do brilho do céu nublado. Sonny Philbrick, um homem com uma pronunciada barriga de cerveja sob a sua T shirt dos Patriots, dá por brincadeira um pontapé no sapato de Jack.

- Olá, Sonny - diz Jack.

- Que tal vão os aviões? - pergunta Sonny.

- Muito bem - diz Jack. - Que tal vai o negócio dos vídeos.

- Aguenta-se. Para onde vais agora?

Kathryn ocupa-se a tratar do piquenique.

Jack retira os pés do canto da toalha. Kathryn sabe que ele não se levanta pois não quer encorajar Philbrick. O filho de Philbrick, que tem a mesma idade de Mattie, é um rapaz magro com um rosto bonito, um ás no xadrez, provavelmente um prodígio.

- Londres - diz jack.

- Londres, hum?

- Londres - repete Jack. Kathryn ouve na voz do marido o esforço para ser delicado. Ambos sabem onde leva aquela conversa. Ao mesmo sítio onde levam todas as conversas de Jack com homens como Philbrick.

- Durante quanto tempo? - pergunta Philbrick, olhando directamente para Kathryn.

- Duas semanas - diz Jack.

- Duas semanas! - Philbrick curva-se, fingindo-se surpreendido.

- Vais lá ficar duas semanas com todas aquelas hospedeiras, homem? É melhor que te portes bem.

Atrevido, Philbrick pisca o olho a Kathryn. Esta pensa que quando andava na escola, Philbrick devia ter sido o que batia em todos.

- Assistentes de bordo - diz Jack.

- Ora, tanto faz.

- De facto - disse Jack lentamente e com voz firme - tento levar para a cama o maior número possível.

Por um segundo o rosto de Philbrick mostra incompreensão. Depois sorri e ergue no ar o copo de papel. Ri demasiado alto, fazendo com que as pessoas dos cobertores vizinhos fiquem a olhar.

- Lyons, és cá uma coisa, sabias?

Houve uma pausa difícil. Jack não reagiu.

- Bom, encontramo-nos no jogo - diz Philbrick. - Vais jogar, não é verdade?

Jack acena afirmativamente e volta-se para o cesto do piquenique, como se procurasse qualquer coisa lá dentro. Kathryn vê Philbrick afastar-se.

- Meu Deus - diz Jack em voz baixa.

 

NA PORTA, FICAM SEPARADOS DOS OUTROS. Por trás das janelas de vidro espelhado, montes enormes de neve incrivelmente branca montam guarda à praça de manobra. Robert dobrou o sobretudo duas vezes e colocou-o numa cadeira de plástico. Pôs o saco sobre o casaco (coisa que uma mulher nunca faria, pensa Kathryn) e lia o Wall Street Journal. Kathryn segurava o casaco no braço e examinava o avião que tinha diante de si, ligado à porta por um cordão umbilical. Pensou que o avião era bonito, branco com marcas vermelho-vivo e o logótipo da Vision escrito em letras modernas. O T 900 estava colocado num ângulo tal, que ela conseguia ver para dentro da cabina, onde estavam homens em mangas de camisa, com os rostos na sombra, movendo os braços pelo painel de instrumentos enquanto seguiam uma lista de veri ficação. Perguntou a si própria se conheceria algum dos membros da tripulação. Teriam ido ao serviço religioso?

Doíam-lhe os pés e apetecia-lhe sentar-se. Mas para o fazer teria de se ensanduichar entre dois passageiros sobrecarregados. De qualquer modo, faltavam poucos minutos para o embarque. Kathryn vestira o seu fato preto de crepe de lã que levara ao funeral e a fazia parecer mais uma mulher de negócios do que uma professora. Uma advogada, possivelmente, que se dirigia a Londres para prestar um depoimento. Penteara o cabelo numa trança solta e pusera os brincos de pérolas. Tinha as luvas de pele numa mão e o cachecol preto de chenille à volta do pescoço. Pensou que, dadas as circunstâncias, tinha bom aspecto, certamente mais arranjada do que nas últimas semanas. Mas o rosto emagrecera-lhe e sabia que parecia mais velha do que doze dias antes.

Naquela manhã, depois de ter dito a Robert que se propunha ir a Londres, fora a casa de Julia para contar a Mattie os seus planos. Mattie ficara dolorosamente indiferente ao abraço de Kathryn. O seu único momento de lucidez, por entre suspiros e um gemido abafado de exasperação, fora um Faz como quiseres, para terminar a conversa.

- Vou só por dois dias - dissera Kathryn.

- Fixe - respondera Mattie. - Agora posso voltar para a cama? Na cozinha, Julia tentara explicar a aparente indiferença de Mattie.

- Tem quinze anos - disse Julia, que havia horas estava levantada. Vestira-se para passar o dia com umas calças de ganga com elástico na cintura e uma camisola verde. - Tem de ter alguém sobre quem deitar as culpas, por isso deita-as para cima de ti. Sei que é irracional. Já não te lembras, mas durante uns tempos, depois dos teus pais terem morrido, deitaste as culpas para cima de mim.

- Não deitei - disse Kathryn acaloradamente.

- Deitaste, sim. Nunca o disseste directamente, mas eu sabia. E passou, como também isto há-de passar. Agora Mattie quer culpar o pai. Está furiosa com ele porque a deixou, porque lhe perturbou a vida de um modo tão drástico. Mas culpá-lo está fora de questão. É praticamente a sua única acusadora. Por fim a raiva de Mattie afastar-se-á de ti e encontrará o alvo certo. Só precisas de ter cuidado, para que a raiva não ande em círculos de modo que ela se comece a culpar pela morte do pai.

- Então será melhor ficar - disse Kathryn em voz fraca. Mas Julia insistira para que Kathryn fosse. Kathryn entendeu particularmente que Julia a queria afastar de casa, não para seu bem, mas para o de Mattie.

Como viúva de um piloto, Kathryn tinha direito a um passe para viajar de avião para todos os destinos da Vision, em primeira classe, sempre que houvesse lugares. Fez um gesto para que Robert ficasse do lado da janela e meteu o saco debaixo do banco na sua frente. Imediatamente deu conta do ar parado dentro do avião, com o seu cheiro niti damente artificial. A porta da cabina estava aberta e Kathryn via a tripulação. O tamanho da cabina nunca deixara de a surpreender: muitas eram mais pequenas que os assentos da frente de um automóvel. Gostaria de saber como fora possível ter tido lugar o cenário sugerido pela caixa negra de Jack. Mal parecia haver lugar para três homens se sentarem, quanto mais para se mexerem e lutarem.

Do seu ponto de observação, via apenas um terço do interior da cabina, portanto, parte de cada um dos pilotos em mangas de camisa. Era impossível, olhando para a cena - os braços robustos, os gestos confiantes - não imaginar que o homem do assento da esquerda fosse Jack. Pensava na forma do seu pescoço, na brancura do interior do seu pulso. Nunca fora passageira de um avião pilotado por Jack.

O comandante ergueu-se e voltou-se para a cabina dos passageiros. Os seus olhos encontraram os de Kathryn e esta entendeu que ele queria exprimir as suas condolências. Era um homem mais velho, com uma franja de cabelo grisalho e olhos castanho-claros. Parecia quase bom de mais para comandar. Não conseguiu cumprimentá-la devidamente e ela gostou dele, por ser desajeitado. Agradeceu-lhe, conseguindo até sorrir um pouco. Disse-lhe que estava a reagir bem, apesar das circunstâncias, que era o que toda a gente queria ouvir. Ele perguntou-lhe se iria a Malin Head para estar com os membros das outras famílias e ela respondeu apressadamente e talvez com demasiado ênfase, que não. Ele pareceu embaraçado por ter feito a pergunta. Ela voltou-se então e apresentou Robert Hart ao capitão. Este observou Robert como se fosse alguém que já conhecesse, depois pediu desculpa, voltou para a cabina e fechou a porta atrás de si. Para sua segurança, para segurança deles.

A assistente de bordo recolheu os copos de champanhe que trouxera anteriormente e Kathryn ficou surpreendida ao ver que tinha bebido o seu. Não conseguia lembrar-se de o ter feito, embora sentisse o gosto na boca. Olhou para o relógio: 8: 14 da noite. Seria 1: 14 da madrugada em Londres.

O avião seguiu pela pista. O piloto - um capitão de olhos claros?

- aumentou a velocidade dos motores para a descolagem. Sentiu uma palpitação prolongada no coração, seguida de dolorosos batimentos. A visão resumiu-se-lhe a um ponto, igual à imagem do ecrã, quando se apaga a televisão. Kathryn agarrou-se aos braços do assento e fechou os olhos. Mordeu o lábio inferior. Um véu de bruma protectora dissipava-se e viu o que lhe foi possível: bocados do chão da cabine de passageiros arrancados; uma pessoa, talvez uma criança, atada a um assento que girava no ar; um incêndio que tivera início no porão e se espalhava por toda a cabine.

O avião ganhava velocidade num movimento pouco natural. A pesada massa vacilante do T-900 recusar-se-ia levantar. Fechou os olhos e começou a rezar a única oração de que se lembrava: Pai Nosso...

Nunca antes tivera medo de andar de avião. Mesmo nos voos transatlânticos de maior turbulência. Jack mostrava-se sempre descontraído num avião, quer como piloto quer como passageiro, e a sua calma passara para Kathryn numa espécie de osmose conjugal. Mas agora essa protecção desaparecera. Se se considerava em segurança dentro de um avião, por causa de Jack, não quereria isso dizer que poderia morrer num acidente tal como ele? Sentiu então a vergonha e a repulsa de saber que ia vomitar. Robert pôs-lhe a mão nas costas.

Quando o avião já estava no ar, Robert fez sinal à assistente, que trouxe água gelada e toalhas frias, bem como um discreto saco de papel.

O corpo de Kathryn, incapaz de perceber o alívio de estar já nas alturas, revoltou-se. Para seu desgosto, vomitou o champanhe. Ficou espantada ao perceber como o medo de morrer era visceral. Nunca se sentira assim, nem quando soubera que Jack tinha morrido.

Logo que o sinal dos cintos de segurança foi desligado, Kathryn levantou-se cambaleante para ir à casa de banho. Uma assistente entregou-lhe um saco contendo uma escova e pasta de dentes, um toalhete húmido, um sabonete e um pente, e Kathryn apercebeu-se de que guardavam estes utensílios especialmente para passageiros perturbados.

Seria apenas para os de primeira classe ou todos teriam direito a eles.

Kathryn lavou o rosto no pequeno lavatório. Tinha a combinação e a blusa encharcados em suor e tentou secar os ombros e o pescoço com toalhas de papel. A um solavanco do avião, bateu com a cabeça num armário.

Lavou os dentes o melhor possível e pensou em todas as vezes que se sentira condescendente para com as pessoas que tinham medo de voar.

Quando voltou, Robert levantou-se no assento e pegou-lhe num braço.

- Não consigo explicar - disse ela, sentando-se com um gesto para que ele fizesse o mesmo. - Suponho que fosse o medo. Tive a sensação de que o avião não levantaria e íamos tão depressa que bateríamos contra qualquer coisa.

Ele apertou-lhe suavemente o braço.

Ela baixou as costas do banco e Robert fez o mesmo. Viu que ele tirava uma revista da pasta, quase com relutância.

Kathryn dava voltas à aliança de casamento.

Pelo intercomunicador, o capitão falou em voz ressonante que deveria parecer segura. Mesmo assim, o voo em si não lhe parecia correcto:

A dificuldade estava em o espírito se habituar à noção do avião, com todo o seu peso, a desafiar a gravidade, ficando lá em cima. Sabia os princípios aerodinâmicos do voo, compreendia as leis da física que tornavam possível voar, mas naquele momento o seu coração não queria saber de nada disso. Sabia apenas que o avião poderia cair do céu.

Quando acordou estava escuro dentro e fora do avião. Lá em cima um filme deslavado passava no ecrã. Voavam em direcção à madrugada. Quando Jack morrera voara na escuridão, como se quisesse ultrapassar o sol.

Viu as nuvens pela janela. O que estariam a sobrevoar, perguntou a si própria. A Terra Nova? O Atlântico? Malin Head?

Interrogou-se sobre se o seu coração teria parado do embate da bomba, se quando do momento em que teve conhecimento de que ia morrer, se parara em reacção ao horror de cair no escuro, ou apenas quando o corpo chegou à água.

Como seria ver a cabina separar-se do resto do avião e, mesmo assim, ficar presa ao assento, caindo na noite, sabendo que chegaria à água a uma velocidade terminal, tal como de certeza Jack soubera, se estivesse consciente? Teria gritado o nome de Kathryn? O nome de outra mulher? Teria sido o nome de Mattie o último que gritara? Ou teria Jack, também no último grito desesperado da sua vida, chamado pela mãe?

Esperava que o marido não tivesse tido que gritar nome nenhum, que nem por um segundo tivesse sabido que ia morrer.

A seu lado, no táxi, Robert esticou as pernas. Os botões dourados do casaco tinham feito soar o detector do aeroporto. Trazia umas calças cinzentas, uma camisa branca, e uma gravata com um padrão negro e dourado. Parecia mais magro que na véspera.

Ela levou a mão ao cabelo, tentando ajeitar uma madeixa. Entre eles estavam os dois sacos, ambos notavelmente pequenos. Ela arrumara as suas coisas à pressa, sem pensar muito. A mala continha uma muda de roupa interior, meias e outra blusa. Entraram no perímetro de Londres e começaram a atravessar agradáveis zonas residenciais. O táxi travou abruptamente junto ao passeio.

Através da chuva, Kathryn viu uma rua de casas brancas, com as fachadas imaculadas e quase idênticas. Tinham quatro andares e estavam ornadas por janelas circulares. Delicados gradeamentos de ferro bordejavam o passeio e todas as casas tinham um candeeiro pendurado numa entrada de colunas. Apenas as portas de entrada mostravam alguma individualidade. Umas eram compactas, com painéis de madeira; outras tinham pequenos vidros; outras ainda estavam pintadas de verde escuro. As casas mais perto do táxi estavam identificadas com números discretos em pequenas placas de latão. A casa em frente da qual estacionaram tinha o número 21.

Kathryn encostou-se ao assento estofado.

- Ainda não - disse.

- Quer que vá lá eu? - perguntou ele.

Ela reflectiu sobre o oferecimento e alisou a saia. Tal como o murmúrio firme do motor, o taxista parecia imperturbável pela espera.

- Que faria quando entrasse? - perguntou.

Ele abanou a cabeça, como que a dizer que não tinha pensado no assunto. Ou que faria aquilo que ela lhe pedisse.

- Que faria você? - perguntou ele.

Kathryn sentia-se entontecida e pensou já não conseguir prever com precisão os actos e reacções do seu corpo. Concluiu que a dificuldade em não pensar no futuro imediato era o facto de deixar as pessoas desprevenidas para a sua realidade.

O caminho para o hotel foi breve e o quarteirão em que ficava parecia-se misteriosamente àquele de onde tinham vindo. O hotel ocupava sete ou oito casas e tinha uma entrada discreta. Os andares superiores estavam rodeados por balaustradas de um branco impecável.

Robert marcara dois quartos adjacentes, mas não comunicantes. Levou o saco dela até à porta.

- Almoçamos no pub - disse. Olhou para o relógio. - Ao meio-dia?

- Claro - respondeu ela.

- Não precisa fazer isso - advertiu Robert.

O quarto dela era pequeno mas perfeitamente adequado. As paredes estavam forradas de papel inócuo, com candeeiros de latão. Havia uma secretária e uma cama, uma máquina de engomar calças e um pequeno nicho onde se podia fazer café ou chá.

Tomou duche, mudou a roupa interior e a blusa e escovou o cabelo. Olhando-se ao espelho, levou as mãos ao rosto. Não podia negar que a esperava qualquer coisa nesta cidade.

Pensou que por vezes a coragem era simplesmente uma questão de pôr um pé adiante do outro e não parar.

O pub estava escuro e tinha gabinetes forrados a madeira. Lá em cima, tocava música irlandesa. Nas paredes havia gravuras de cavalos, com um fundo verde e molduras douradas. Meia dúzia de homens estavam sentados no bar bebendo enormes copos de cerveja e nos gabinetes havia pares de homens de negócios. Viu Robert do outro lado da sala, confortavelmente encostado a uma almofada. Parecia satisfeito talvez até mais que isso. Acenou-lhe.

Atravessou a sala e colocou a mala sobre o banco.

- Tomei a liberdade de lhe pedir uma bebida - disse. Ela olhou para a cerveja. Diante de Robert estava um copo de água mineral. Sentou- se ao lado dele. Tocou-lhe com os pés, mas pareceu-lhe indelicado afastar-se.

- Que lhe aconteceu? - perguntou de súbito, apontando para a água. - Quer dizer, a bebida. Desculpe. Importa-se que lhe pergunte?

- Não - disse ele abanando a cabeça. - Os meus pais eram ambos professores universitários em Toronto. Todas as noites recebiam estudantes. Era uma espécie de tertúlia. O tabuleiro das garrafas era sempre o ponto fulcral da reunião. Os estudantes adoravam, claro. Comecei a juntar-me a eles quando tinha quinze anos. Pensando bem, acho que os meus pais criaram uma porção de alcoólicos.

- É canadiano?

- De origem. Agora já não sou.

Kathryn observou o homem que tinha a seu lado. Que sabia dele, excepto que era bom para ela? Parecia fazer bem o seu trabalho e era inegavelmente atraente. Gostaria de saber se o facto de a acompanhar a Londres faria parte das suas funções.

- Podíamos cá ter vindo sem razão - disse ela e ouviu uma nota de esperança na sua própria voz. Pensou que era como descobrir um caroço suspeito no peito e depois o médico dizer que não era nada, que não tinha importância. - Isto é uma loucura. Sei que deve pensar que estou maluca. Desculpe tê-lo arrastado para isto.

- Adoro Londres - disse ele imediatamente, parecendo não querer pôr de lado assim tão depressa a sociedade que tinham formado.

Precisa de comer alguma coisa - disse. - Detesto música irlandesa. Porque terá de ser sempre tão lúgubre?

Ela sorriu.

- Já cá tinha estado? - perguntou ela, condescendendo em mudar de assunto. - Neste hotel?

- Venho cá muitas vezes - disse. - Fazemos permutas, acho que é assim que se diz, com os nossos colegas ingleses. - Ela estudou o menu e colocou-o sobre a mesa polida, mas levemente peganhenta. Tem um rosto muito belo - disse ele de repente.

Ela ficou vermelha. Havia muito tempo que ninguém lhe dizia tal coisa. Ficou embaraçada por ter corado e por ele ter visto que a frase fizera efeito. Pegou de novo no menu e voltou a examiná-lo.

- Não posso comer, Robert. Não consigo.

- Quero dizer-lhe uma coisa - começou ele.

Ela ergueu a mão. Não queria que ele dissesse alguma coisa que a obrigasse a reagir.

- Desculpe - disse ele, afastando os olhos. - Não precisa fazer isto.

- Estava a pensar que tudo isto é agradável - disse ela em voz baixa.

E viu com surpresa que ele não conseguia esconder o desapontamento pela tépida oferta.

- Vou agora - disse ela.

- Vou consigo.

- Não. Tenho de o fazer sozinha. Ele inclinou-se e beijou-lhe a face.

- Tenha cuidado - disse.

Saiu para a rua às cegas, movendo-se de um modo que nem se atrevia a questionar. O táxi deixou-a junto à casa estreita que vira havia pouco mais de uma hora. Observou a rua, observou a pequena lâmpadá cor-de-rosa na janela do rés-do-chão. Pagou ao condutor e teve a certeza, quando saiu para o passeio, de que tinha dado ao homem moedas a mais.

A chuva caía pelos lados do seu guarda-chuva e encharcava-lhe a parte de trás das pernas, manchando-as e depois correndo-lhe pelas meias.

Houve um momento, enquanto se encontrava nos degraus da imponente porta de madeira em que pensou: Não tenho de fazer isto. Embora compreendesse no mesmo momento que fora o facto de saber que tinha inegavelmente de fazer isto que lhe tinha permitido o luxo da indecisão.

Ergueu o pesado puxador e bateu à porta. Ouviu os passos numa escada interior e o grito curto e impaciente de uma criança. A porta abriu-se abruptamente, como se a pessoa por trás dela estivesse à espera de uma encomenda.

Era uma mulher - uma mulher alta e angulosa, de cabelo escuro que lhe caía ao longo do maxilar. Teria trinta anos, talvez trinta e cinco. Tinha uma criança à anca, uma criança tão espantosa, que Kathryn mal se conseguiu conter para não gritar.

Kathryn começou a tremer dentro do casaco. Segurou o guarda- chuva numa posição pouco natural.

A mulher com a criança ao colo pareceu surpreendida e por um momento confusa. Mas depois tudo isso passou.

- Há anos que imaginava este momento - disse a mulher.

 

AS FEIÇÕES DA MULHER GRAVARAM-SE NO ESPíRITO DE KATHRYN como ácido que corroesse uma chapa fotográfica. Os olhos castanhos, as pestanas escuras e espessas. As calças de ganga estreitas, as pernas compridas. Os sapatos rasos cor de marfim, muito usados, como se fossem chinelos. A camisa cor-de-rosa, com as mangas arregaçadas. Um milhar de perguntas competiam entre si pela atenção de Kathryn. Quando? Há quanto tempo? Como foi? Porquê?

O bebé nos braços da mulher era um rapaz. Um rapaz de olhos azuis. O tom era ligeiramente diferente num e noutro olho, embora a diferença não fosse tão pronunciada como nos olhos do pai.

O envelope do tempo abriu-se de rompante e Kathryn entrou nele. Esforçou-se por não precisar de se encostar à ombreira da porta devido ao choque causado pela mulher e pelo rosto do menino.

- Entre.

O convite quebrou a longa nota de silêncio entre as duas mulheres. Embora não fosse afinal um convite, não no sentido em que tais ofereci mentos costumam ser feitos, com um sorriso, um passo para trás no hall, para que se possa entrar. Foi, pelo contrário, uma afirmação simples, sem inflexão, como se a mulher tivesse dito: nenhuma de nós tem mais remédio.

Claro que o instinto era entrar em casa, sair da chuva. Sentar-se. Kathryn baixou o guarda-chuva e fechou-o para passar a porta. A mulher dentro de casa segurou na porta com uma mão e no bebé com o outro braço. Este, talvez por ter reparado no silêncio, olhava para a desconhecida com intensa curiosidade. Uma criança que brincava no hall, parou o que estava a fazer para prestar atenção.

Kathryn deixou que o guarda-chuva pingasse no chão de madeira envernizado. Naqueles segundos em que as duas mulheres ficaram na entrada, Kathryn reparou no modo como o cabelo da outra balançava ao longo da linha do queixo. Estava cortado por um profissional e o de Kathryn não. Tocou na cabeça e arrependeu-se de o ter feito.

Estava calor no hall, calor de mais e muito abafado. Kathryn sentia a transpiração fazer-lhe cócegas dentro da blusa, que estava por baixo do casaco do fato, que por sua vez estava por baixo do casaco comprido de lã.

- A senhora é Muire Boland - disse Kathryn.

O bebé nos braços de Muire Boland, apesar da diferença de sexo, apesar da cor de cabelo ligeiramente mais escura, era precisamente o bebé que Mattie fora naquela idade - cinco meses, calculou Kathryn. A conclusão criou uma dissonância, um guincho nos seus ouvidos, como se a mulher que Kathryn nunca conhecera tivesse a sua filha nos braços.

Jack tivera um filho.

A mulher de cabelo escuro voltou-se e saiu do hall, dirigindo-se à sala, deixando que Kathryn a seguisse. A criança que ficara para trás, uma bela menina de enormes pupilas e boca de Cupido, pegou numa mão-cheia de peças das construções, apertou-as contra o peito e sempre olhando para Kathryn, encostou-se à parede e entrou na sala aproximando-se das pernas da mãe. A menina parecia-se com a mãe, enquanto que o menino, o filho, se parecia com o pai. Kathryn encostou o guarda-chuva a um canto e passou da entrada para a sala. Muire Boland ficou de costas para a lareira, à espera dela, embora não tivesse havido nenhum convite para se sentar, nem fosse haver.

A sala tinha o tecto alto e fora pintada de amarelo-limão, com frisos entalhados e cobertos de tinta branca brilhante. À frente, as janelas abauladas tinham longas cortinas de gaze, que pendiam de varões à francesa. Várias cadeiras pequenas de ferro forjado, com enormes almofadas brancas tinham sido colocadas à volta de uma mesinha de madeira entalhada, fazendo Kathryn pensar em salas árabes. Por cima do rebordo da lareira, atrás da cabeça da mulher, estava um enorme espelho dourado que reflectia a figura de Kathryn à porta, de modo que, por assim dizer, Kathryn e Muire estavam as duas na mesma moldura. Sobre o rebordo havia uma fotografia numa moldura trabalhada, uma jarra de vidro rosado e uma figura de bronze. De ambos os lados da janela havia pesadas estantes. Um tapete em tons neutros de cinzento e verde cobria o chão. O efeito era de luz e ar, apesar da arquitectura imponente da casa, apesar da escuridão do tempo.

Kathryn teve de se sentar. Pôs a mão sobre a cadeira de madeira que ficava à entrada. Sentou-se pesadamente, como se subitamente as pernas tivessem dado de si.

Sentiu-se velha, mais velha que a mulher que tinha na sua frente e que era quase da sua idade. Era o bebé, pensou Kathryn, que afinal testemunhava a novidade do amor e certamente a proximidade relativa do sexo. As calças de ganga em contraste com o fato escuro de Kathryn. Ou a maneira como Kathryn se sentou, com a mala sobre o colo.

Por baixo do casaco, sentiu um espasmo na perna direita, como se acabasse de subir uma montanha.

O bebé começou a choramingar com pequenos gritos impacientes. Muire Boland baixou-se para apanhar uma chupeta de borracha da mesinha, pôs a tetina na boca, chupou-a várias vezes e depois deu-a ao bebé. O menino tinha umas jardineiras de bombazina vestidas e uma T-shirt às riscas. A mulher de cabelo castanho tinha lábios cheios e regulares e não usava baton.

Afastando os olhos dela e do bebé, Kathryn vislumbrou a fotografia sobre a lareira. Quando conseguiu focá-la, sobressaltou-se e quase se levantou da cadeira. A fotografia era de Jack, conseguia vê-lo do outro lado da sala. Era inegável, mesmo do sítio onde se encontrava. Tinha ao colo um bebé recém-nascido. A outra mão acariciava os caracóis de outra criança, a menina que estava ali na sala. Na fotografia a rapariguinha tinha um rosto solene. O trio parecia estar numa praia. Jack sorria abertamente.

Prova visceral de uma outra vida. Porém, Kathryn não precisava de provas.

- Tem um anel - disse Kathryn quase involuntariamente. Muire tocou com o polegar na aliança de ouro.

- É casada? - perguntou Kathryn incrédula.

- Fui.

Kathryn ficou confusa por uns momentos, até perceber o uso do passado.

Muire mudou o bebé para a outra anca.

- Quando? - perguntou Kathryn.

- Há quatro anos e meio.

A mulher mal movia os lábios enquanto falava. As consoantes e vogais rolavam-lhe da língua com uma cadência distintamente melodiosa. Irlandesa, pois.

- Casámos pela Igreja Católica - acrescentou Muire. Kathryn sentiu- se a evitar aquela informação como se se tratasse de uma pancada.

- E sabia... - perguntou.

- De si? Sim, claro.

Como se aquilo fosse evidente. A mulher de cabelo escuro sabia tudo, enquanto Kathryn não.

Kathryn poisou a mala e sacudiu os braços para despir o casaco.

A casa estava sobreaquecida e Kathryn suava copiosamente. Sentia a

transpiração na nuca, por baixo do cabelo.

- Como se chama ele? - perguntou Kathryn referindo-se ao bebé. Ficou espantada com a sua delicadeza, mesmo ao fazer a pergunta.

- Dermot - disse Muire. - Como o meu irmão.

A mulher curvou-se de súbito e beijou a cabeça do bebé.

- Que idade tem? - perguntou Kathryn.

- Cinco meses. Faz hoje.

Como tal, Kathryn pensou imediatamente que Jack poderia estar ali naquela casa, para festejar aquela data. O bebé, já calmo, parecia querer adormecer. Apesar das revelações dos últimos minutos, apesar da relação pouco natural entre ela e o bebé, apesar do facto da própria existência da criança em si, Kathryn sentiu uma necessidade quase sexual de segurar no bebé junto ao peito naquele espaço fundo que quer sempre abraçar uma criança pequena.

A semelhança com Mattie aos cinco meses era espantosa. Poderia ser ela. Kathryn fechou os olhos.

- Sente-se bem? - perguntou Muire do outro lado da sala.

Kathryn abriu os olhos e limpou a testa com a manga do casaco.

- Pensei... - começou Muire. - Perguntei a mim mesma se viria cá. Quando telefonou, tive a certeza de que sabia. Tinha a certeza de que quando ele morresse tudo se descobriria.

- Não sabia - disse Kathryn. - Não sabia mesmo. Só soube quando vi o bebé. Só agora.

Ou teria sabido? perguntou a si mesma. Não teria sabido desde o momento em que escutara o silêncio transatlântico?

Havia pequenas rugas à volta dos olhos da mulher de cabelos escuros, sugerindo os parêntesis que um dia se lhe formariam de ambos os lados da boca. O bebé acordou de repente e começou a chorar de uma maneira desinibida e exagerada, outrora bem conhecida de Kathryn.

Muire tentou acalmar a criança, pondo-a junto ao ombro, batendo-lhe nas costas. Mas nada parecia dar resultado.

- Deixe-me deitá-lo - disse Muire por sobre os gritos. Quando saiu da sala a menina foi atrás dela, sem querer ficar sozinha com uma desconhecida.

Jack casara numa igreja católica. A mulher de cabelo escuro sabia que ele já era casado. Kathryn tentou levantar-se mas não conseguiu. Cruzou as pernas num esforço para não parecer tão afectada. Nem tão humilhada. Rodou lentamente a cabeça, tentando ver toda a sala. Os apli ques de latão com lâmpadas nas paredes. As revistas sobre as mesinhas, uma pintura a óleo representando uma rua de classe média de uma cidade. Perguntava a si mesma porque não sentiria raiva. Era como se tivesse sido cortada com uma faca que entrara tão profundamente, que a ferida ainda não era dolorosa; produzia apenas choque. E o choque parecia torná-la mais delicada.

Muire soubera, imaginara aquele dia. Kathryn não.

Junto a uma parede estava um armário que Kathryn calculou conter a televisão e a aparelhagem. Pensou de repente nos filmes da Pantera Cor-de-Rosa, aqueles que Jack e Mattie tinham alugado e que garantiam reduzi-los a enormes gargalhadas. Orgulhavam-se de ser capazes de citar longas passagens dos diálogos.

Kathryn voltou a cabeça ao ouvir um ruído. Muire Boland estava à porta, olhando-a de lado. Entrou na sala, dirigiu-se a uma das cadeiras brancas e sentou-se. Abriu imediatamente uma caixa de madeira que estava sobre a mesinha e tirou de lá um cigarro que acendeu com um isqueiro de plástico que estava ao lado da caixa.

Jack dissera que não tolerava estar na mesma sala que um fumador.

- Quer saber como as coisas aconteceram - afirmou Muire.

Apesar de ser angulosa, poderia ser descrita como voluptuosa. Era do bebé, pensou Kathryn. De amamentar. Talvez houvesse mesmo uma leve sugestão de barriga, que poderia também ser devido ao bebé.

Nessa altura Kathryn teve outra recordação inesperada, de uma fotografia que Jack tinha tirado. Kathryn estava a dormir de barriga para baixo, com um roupão acolchoado na cama por fazer, com os braços por baixo do corpo. Jack, que andava com Mattie, então com cinco meses, ao colo, tinha colocado o bebé adormecido, também de barriga para baixo na concavidade formada pelo traseiro e pelos rins de Kathryn; Jack, comovido pela visão da mãe e da sua cria, tirara a fotografia.

Muire encostou-se à almofada, com um braço caído ao longo desta. Cruzou as pernas. Kathryn pensou que ela deveria ter mais de um metro e oitenta, quase tão alta como Jack. Kathryn tentou imaginar como seria o seu corpo sem roupa, como seria ela e Jack juntos.

Mas o seu espírito protestou e revoltou- se, de modo que as imagens não se formaram. Tal como a imagem do corpo de Jack deitado no fundo do oceano recusara a princípio formar-se. Kathryn sabia que as imagens viriam mais tarde, quando menos as desejasse.

- Sim - disse.

Muire puxou uma fumaça do cigarro, inclinou-se para a frente e sacudiu a cinza.

- Há cinco anos e meio, voava com ele. Era assistente de bordo da Vision.

- Eu sei.

- Apaixonámo-nos - disse a mulher com simplicidade. - Não vou entrar em todos os pormenores. Só posso dizer que estávamos os dois nas nuvens. Dessa primeira vez estivemos um mês juntos. Tivemos... - a mulher hesitou, talvez por delicadeza, talvez para tentar arranjar palavras mais adequadas. - Tivemos um caso - disse por fim.

- Jack estava dividido. Disse que não deixaria Mattie. Que nunca poderia fazer uma coisa dessas à filha.

O nome de Mattie produziu um arrepio no ar, uma tensão que oscilou entre as duas mulheres. Muire Boland dissera a palavra com toda a facilidade, como se conhecesse a sua filha.

Kathryn pensou: Não podia deixar a filha, mas podia trair a mulher.

- Quando foi isso, exactamente? - perguntou Kathryn. - O caso?

- Junho de mil novecentos e noventa e um.

- Oh!

Kathryn gostaria de se lembrar do que teria feito em Junho de 1991. A mulher tinha pele branca e delicada, uma tez quase imaculada. A tez de quem passava pouco tempo ao ar livre. Porém, poderia ter sido atleta.

- Sabia da minha existência - repetiu Kathryn. A voz não parecia a dela. Era demasiado lenta e hesitante, como se estivesse drogada.

- Soube da sua existência logo desde o princípio - disse Muire. - Jack e eu não tínhamos segredos.

Então a intimidade era maior, pensou Kathryn. Uma facada intencional.

A chuva escorria pelas janelas em arco e as nuvens davam uma falsa aparência de fim de tarde. De um quarto lá de cima, Kathryn ouviu distintamente o ruído de uma personagem de desenhos animados da televisão. Ainda a transpirar, despiu o casaco do fato, percebendo que, ao fazê-lo, a blusa saíra da saia. Fez um esforço para a arranjar. Consciente do intenso escrutínio da mulher que tinha na sua frente, de uma mulher que poderia muito bem ter conhecido Jack melhor que ela, Kathryn rezava para que as pernas não lhe falhassem. Atravessou a sala em direcção à lareira.

Pegou na fotografia na sua moldura trabalhada: Jack tinha uma camisa que Kathryn nunca vira, um pólo preto, desbotado. Embalava o recém-nascido. A menina, a que Kathryn vira a brincar com as peças de construção, tinha os caracóis e as sobrancelhas de Jack, mas não os mesmos olhos.

- Como se chama ela? - perguntou Kathryn.

- Dierdre.

Jack tinha os dedos metidos no cabelo da menina. Jack teria sido com Dierdre o mesmo que fora com Mattie?

Kathryn fechou os olhos por um momento. Para ela, a dor era quase intolerável. Mas a dor para Mattie seria obscena. Via-se - como poderia não se reparar. - que a menina da fotografia era extraordinariamente bonita. Um rosto encantador, com olhos escuros, longas pestanas, lábios vermelhos. Uma verdadeira Branca de Neve. As recordações que para Mattie eram sagradas teriam sido repetidas, revividas, com outra filha?

- Como foi capaz? - gritou Kathryn, voltando-se, como se estivesse ao mesmo tempo a falar com Jack.

Os seus dedos, escorregadios da transpiração deixaram cair a moldura. Escorregou-lhe das mãos e bateu na ponta da mesa. Não queria que aquilo tivesse acontecido e sentiu-se exposta com o pequeno aci dente. A mulher, sentada na cadeira, encolheu-se um pouco, embora não voltasse a cabeça para olhar para os estragos. Era uma pergunta sem resposta. Porém, a mulher quis responder-lhe.

- Amava-o - disse Muire. - Estávamos apaixonados. Como se isso bastasse.

Kathryn viu Muire apagar o cigarro. Como estava calma. Fria até.

- Há coisas de que não posso falar - disse Muire.

Cabra, pensou Kathryn, uma bolha de raiva rebentando à superfície. Tentou acalmar-se. Era difícil imaginar aquela mulher como assistente de bordo, de uniforme e com pequenas asas na lapela, sorrindo aos passageiros que entravam no avião.

De que coisas não poderia Muire Boland falar?

Pôs as mãos sobre o rebordo da lareira e inclinou a cabeça. Respirou fundo para se acalmar. Uma raiva distante provocava-lhe um ruído de fundo nos ouvidos.

Afastou-se da lareira e atravessou a sala. Sentou-se na borda de uma cadeira de madeira como se, em qualquer momento, pudesse ter de se levantar e sair.

- Estava disposta a fazer o que fosse preciso - disse Muire Boland. Afastou o cabelo da testa. - Uma vez tentei pô-lo fora. Mas não consegui.

Kathryn cruzou as mãos no colo, reflectindo sobre esta falta de carácter confessada. A voluptuosidade da amamentação, a leve sugestão do ventre, combinadas com a altura, os ombros angulosos, os braços compridos, eram espantosos e inegavelmente atraentes.

- Como o faziam? - perguntou Kathryn. - Quero dizer, como funcionava? - Muire Boland ergueu o queixo.

- Tínhamos muito pouco tempo para estar juntos - disse. Fazíamos o que podíamos. Eu ia buscá-lo a um sítio combinado, próximo do apartamento da tripulação e trazia-o para aqui. Umas vezes tínhamos apenas a noite. Outras... - hesitou de novo. - Por vezes, Jack fazia os horários ao contrário - continuou Muire.

Kathryn percebeu a linguagem de mulher de piloto.

- Não compreendo - disse Kathryn rapidamente. Embora, de modo doentio, soubesse que compreendia perfeitamente.

- De vez em quando conseguia fazer as coisas de modo que a sua base fosse em Londres. Mas claro que isso era arriscado.

Kathryn lembrava-se dos meses em que Jack parecera ter uns horários terríveis. Cinco dias de trabalho, dois dias de folga, apenas uma noite em casa.

- Sabe que ele nem sempre ficava em Londres - continuou Muire. - Por vezes fazia a rota Amesterdão-Nairóbi. Nessa altura aluguei um apartamento em Amesterdão.

- Foi ele que pagou isto? - perguntou de súbito Kathryn, pensando: tirou-me dinheiro. E também a Mattie.

- Isto é meu - disse Muire, fazendo um gesto na direcção dos quartos. - Herdei de uma tia. Podia vender tudo e mudar-me para os arredores, mas a ideia de ir viver para lá dava-me arrepios.

Era evidente que Kathryn vivia naquilo que poderiam ser consirados arredores.

- Ele dava-lhe dinheiro? - insistiu Kathryn.

Muire desviou o rosto, como se por um momento dividisse com Kathryn a traição particular de tirar dinheiro a uma família para dar a outra.

- De vez em quando - disse. - Tenho dinheiro meu. Kathryn especulou sobre a intensidade do amor engendrado pela separação constante. A intensidade criada pelo facto deste ser furtivo e secreto. Levou a mão à boca, encostou os nós dos dedos aos lábios. O seu amor por Jack não teria sido suficientemente forte? Poderia dizer que ainda estava apaixonada pelo marido quando este morreu? Tê-lo-ia tomado como certo? Pior que isso, teria Jack sugerido a Muire Boland que Kathryn não o amara o suficiente? Encolheu-se interiormente ao pensar nessa possibilidade. Respirou fundo e tentou sentar-se mais direita.

- De onde é? - perguntou Kathryn, quando conseguiu ter confiança na sua voz.

- De Antrim.

Kathryn desviou o olhar. O poema, pensou. Claro. Aqui na passagem estreita do norte impiedoso, traições eternas...

- Mas conheceram-se aqui - disse Kathryn. - Conheceu Jack em Londres.

- Conhecemo-nos no ar.

Kathryn olhou para o tapete, imaginando o encontro no avião.

- Onde está hospedada? - perguntou Muire.

Kathryn olhou para a outra mulher e pestanejou. Não conseguia lembrar-se do nome do hotel. Muire estendeu a mão e tirou outro cigarro da caixa.

- No Kensington Exeter - disse Kathryn, lembrando-se.

- Se a faz sentir melhor - disse Muire. - Tenho a certeza de que nunca houve mais ninguém.

Não se sentiu melhor.

- Como sabe? - perguntou Kathryn.

A luz exterior diminuiu dentro da casa. Muire acendeu um candeeiro e levou a mão à nuca.

- Como soube? - Perguntou Muire. - Como nos descobriu? Kathryn ouviu o nos.

Não queria responder à pergunta. A busca das pistas parecia-lhe agora disparatada.

- O que aconteceu no avião de Jack? - perguntou Kathryn.

Muire abanou a cabeça, fazendo balançar o cabelo sedoso.

- Não sei - disse. Mas havia talvez uma nota evasiva na voz dela e parecia visivelmente mais pálida. - A sugestão de suicídio é ultrajante - disse, inclinando-se, pondo os cotovelos nos joelhos e a cabeça nas mãos. O fumo subia-lhe por entre o cabelo. - Jack nunca, nunca...

Kathryn ficou surpreendida pela súbita paixão da outra mulher, pelo nível de certeza que pensava ser apenas ela a sentir. Fora a única emoção que mostrara desde que Kathryn lhe entrara em casa.

- Invejo-a por lhe ter feito um serviço religioso - disse Muire, levantando os olhos. - Um padre. Gostaria de lá ter estado.

Meu Deus, pensou Kathryn.

- Via a sua fotografia - disse Muire. - Nos jornais. O FBI está a tratar do caso?

- Foi o que me disseram.

- Falaram consigo?

- Não. E consigo?

- Não - disse Muire. - Sabe que Jack nunca o faria.

- Claro que sei - disse Kathryn.

Afinal, Kathryn fora a primeira mulher, a principal, não era? Mas gostaria de saber qual, no espírito de um homem, seria a mulher mais importante. Aquela que procurava proteger não revelando a outra, ou aquela a quem contava todos os seus segredos?

- A última vez que o viu... - começou Kathryn a dizer.

- Foi nessa madrugada. Cerca das quatro. Antes de sair. Acordei... - Ficou por ali.

- Tinham ido jantar fora - disse Kathryn.

- Sim - disse Muire, parecendo levemente surpreendida por Kathryn saber. Não perguntou como.

Kathryn tentava lembrar-se se houvera alguma ocasião em que tivesse suspeitado seriamente que Jack estava a ter um caso. Achava que não. Como a sua confiança nele fora devastadoramente completa.

- Veio cá, só para isto? - perguntou Muire, retirando uma partícula de tabaco do lábio inferior. Parecia ter recuperado a compostura.

- Não será suficiente? - perguntou Kathryn.

Muire exalou uma longa coluna de fumo.

- Quero dizer, não irá até Malin Head?

- Não - disse Kathryn. - Foi lá?

- Não podia ir - respondeu.

Havia mais alguma coisa. Kathryn sentia-o.

- O que foi? - perguntou.

A mulher esfregou a testa.

- Nada - disse, abanando a cabeça ao de leve. - Tivemos um caso

- acrescentou, como que para explicar o que estivera apensar. - Fiquei grávida e pedi uma licença na companhia. Jack queria casar. Para mim não era muito importante. Casar. Ele queria casar pela Igreja Católica.

- Nunca ia à igreja.

- Era muito devoto - disse Muire, olhando firmemente para Kathryn.

- Então era duas pessoas diferentes - disse Kathryn incrédula. Uma coisa era casar numa igreja católica por exigência de uma amante, outra coisa era ele ser crente. Kathryn entrelaçou os dedos, tentando firmá-los.

- Ia à missa sempre que podia - disse Muire.

Em Ely, jack nunca entrara na igreja. Como poderia um homem ser duas pessoas tão diferentes? Mas depois, um novo pensamento percorreu o espírito de Kathryn, um pensamento que não lhe agradou: Jack nem sempre teria sido duas pessoas diferentes.

Algumas das intimidades que tivera com Kathryn, não teriam sido as mesmas que partilhara com Muire? Se se atrevesse a perguntar, não haveria algum reconhecimento da mulher que estava sentada na sua frente? Houvera de facto outra peça? Outro guião? Um diálogo diferente? Adereços irreconhecíveis? Kathryn desenlaçou os dedos e encostou as palmas das mãos aos joelhos. Muire observava-a intensamente. Talvez também ela estivesse a especular.

- Preciso de ir à casa de banho - disse Kathryn, erguendo-se de repente. Como poderia ter feito um bêbado.

Muire levantou-se também.

- É só subir a escada - disse.

Saiu com Kathryn da sala e foi até ao hall. Ficou ao fundo das escadas, fazendo um gesto com a mão. Kathryn teve de passar na frente

dela e os corpos quase se tocaram. Kathryn sentiu-se diminuída pela altura da outra mulher.

A casa de banho era claustrofóbica e fez-lhe bater o coração com força. Olhou para o espelho e viu que o rosto tinha uma cor febril e estava manchado. Retirou os ganchos do cabelo e soltou-o. Sentou- se sobre a tampa da sanita. O papel de parede às flores punha-a tonta.

Quatro anos e meio. Jack e Muire Boland tinham-se casado pela igreja havia quatro anos e meio. Talvez tivessem ido convidados ao casamento. Saberia algum deles a verdade? Jack teria hesitado ao responder às promessas?

Abanou a cabeça com força. Todos os pensamentos traziam consigo uma imagem para que Kathryn não queria olhar. Era essa a dificuldade

- permitir as perguntas. Mas deter as imagens. Jack, de fato, ajoelhado diante de um padre. Jack abrindo a porta de um carro e sentando-se no lugar ao lado do condutor. Uma menina de caracóis abraçada aos joelhos de Jack.

O telefone tocou ao longe.

Kathryn perguntava a si própria como teria Jack conseguido? As mentiras, o engano, a falta de sono? Um dia tinha deixado Kathryn para ir trabalhar e horas depois estava numa igreja, no seu próprio casamento. Que teriam Kathryn e Mattie estado a fazer naquele dia, àquela mesma hora? Teria feito amor com Kathryn nessa noite, na noite seguinte, naquela semana? Estremeceu ao pensar nisso.

As perguntas batiam com um ruído metálico de parede em parede, repetindo-se infindavelmente. Lembrou-se depois, com um baque no estômago, das sessões de treino em Londres duas vezes por ano, duas semanas de cada vez.

Apercebeu-se de que se nunca suspeitara de alguém fora porque não pensara nisso.

Ergueu-se rapidamente, abarcando rapidamente com os olhos o pequeno toilette. Salpicou a cara e secou-a numa toalha bordada. Abriu a porta da casa de banho e, do outro lado do corredor, viu uma cama de casal enorme. Kathryn ouvia lá de baixo a voz de Muire a falar ao telefone, as palavras subindo e descendo com uma entoação estrangeira. Se Jack não tivesse morrido, talvez não tivesse o direito de entrar naquele quarto, mas agora nada importava. Podia ver a casa toda. O seu conhecimento era-lhe devido. Afinal, Muire Boland soubera sempre da sua existência, não era?

Kathryn sentia-se magoada ao pensar nessa realidade. De que pormenores estaria Muire ciente? Até que ponto seriam eles íntimos?

Passou a porta e pensou no esforço feito para agradar a Jack, nas mudanças que fizera por causa dele. O modo como criara toda a teoria de uma intimidade sexual diminuída. A maneira como uma vez tinha confrontado Jack com o seu afastamento e ele o tinha negado, o fizera parecer abaixo da sua consideração e da dela. Pensara que tudo aquilo era normal dentro dos limites de um casamento vulgar. Dissera a Robert que tinham tido um bom casamento. Sentia-se tola, exposta por ter sido idiota, e perguntava a si própria se se importaria com isso.

Aquele seria o quarto do casal. Era comprido e estreito, estranhamente desarrumado, de facto extraordinariamente desarrumado, considerando a ordem das salas lá de baixo. Montes de roupa e revistas atirados pelo chão. Chávenas de chá e uma embalagem meia de iogurte sobre uma secretária, cinzeiros cheios até acima de pontas de cigarro. Frascos de produtos de maquilhagem sobre o toucador que tinha manchas de base líquida. Um lado da cama de madeira não estava desmanchado. Kathryn reparou nos lençóis de linho caros, de bainhas bordadas. Havia roupa interior de renda sobre a colcha. O outro lado da cama, ainda intacto, fora de Jack - via-o na mesa-de-cabeceira com o despertador electrónico, a lâmpada de halogéneo, um livro sobre a guerra do Vietname. Jack leria aqui livros diferentes dos que lia em casa? Teria roupas diferentes? Parecera de facto diferente naquela casa, naquele país do que fora em casa? Teria parecido mais novo ou mais velho?

Em casa, pensou. Que conceito interessante.

Dirigiu-se ao lado da cama que pertencia a Jack e afastou a coberta. Baixou a cabeça para os lençóis e inalou profundamente; não sentia o cheiro dele.

Dirigiu-se ao lado de Muire. Na mesa-de-cabeceira havia um pequeno relógio de ouro e um candeeiro. Como se levasse a cabo uma busca, abriu a gaveta da mesa. Lá dentro havia recortes de jornais, recibos, batons, um frasco de creme para a pele. Moedas soltas, várias canetas, um comando da televisão e um objecto dentro de uma bolsa de veludo. Sem pensar, Kathryn pegou na bolsa de veludo azul e deixou escorregar o objecto lá de dentro. Deixou-o cair como se estivesse quente. Deveria ter calculado apenas pela forma. O vibrador caiu-lhe das mãos e bateu no fundo da gaveta com um estalo.

Ajoelhou-se no chão, encostou o rosto à cama e pôs os braços sobre a cabeça. Queria que as perguntas parassem e tentou esvaziar o espírito, mas em vão. Esfregou o rosto para a frente e para trás no lençol. Ergueu-o e viu que tinha deixado uma mancha de rímel no linho.

Levantou-se, dirigiu-se ao guarda-fato de porta de vidro e abriu- o. A roupa era de Muire e não de Jack. Calças compridas pretas, saias de lã. Camisas de algodão, blusas de linho. Um casaco de pele. Na sua busca, a mão caiu-lhe sobre o que pensou ser uma blusa de seda. Separando os cabides, descobriu que não era uma blusa, mas sim um roupão, um roupão de seda até aos tornozelos, com um cinto de borlas. Uma peça excepcional, num tom escuro de safira. Tremendo levemente, afastou do cabide a gola do roupão e olhou para a etiqueta.

Bergdorf Goodman.

Sabia que seria.

Passou do quarto para a casa de banho, reparando em tudo, como se estivesse numa casa que pudesse vir a comprar um dia.

No cabide, junto à banheira estava um roupão de homem de flanela castanha. Em casa, Jack nunca usara roupão. Dentro do armário, encontrou uma gilette e uma escova de cabelo. Havia também um frasco de água-de-colónia inglesa que não lhe era familiar. Inspeccionando a escova, Kathryn encontrou cabelos escuros curtos.

Ficou muito tempo a olhar para a escova.

Vira o suficiente.

Agora queria sair daquela casa. Fechou a porta do quarto principal. Lá em baixo continuava a ouvir a voz de Muire Boland ao telefone, uma voz agora mais sonora, como se estivesse a discutir. Kathryn passou pela porta aberta do quarto da menina. Dierdre estava deitada na cama de barriga para baixo, com o queixo nas mãos e a mesma expressão notavelmente solene no rosto. Tinha uma T-shirt azul de mangas compridas e um par de jardineiras. Peúgas azuis. Estava tão absorta no seu programa que a princípio não deu pela desconhecida que estava à porta.

- Olá - disse Kathryn.

A menina olhou na sua direcção e depois voltou-se de lado para contemplar esta nova pessoa.

- Que estás a ver? - perguntou Kathryn.

- O Danger Mouse.

- Já vi este. Também passou na América. A minha filha costumava ver o Road Runner. Mas agora já é crescida. É quase da minha altura.

- Como se chama ela? - A menina sentou- se, agora mais interessada na desconhecida.

- Mattie.

Dierdre reflectiu sobre o nome.

Kathryn deu um passo em frente e observou o quarto. Reparou no ursinho Paddington, quase idêntico a um que Mattie tivera. Uma fotografia de Jack de boné de basebol e T shirt branca. O desenho infantil de um homem adulto e de uma menina de caracóis escuros, que poderia ter sido feito havia pouco tempo. Uma pequena secretária branca coberta de gatafunhos de marcador mágico, como o céu que tivesse saído da página. Que teriam dito à menina? Saberia que o pai tinha morrido?

Kathryn lembrava-se de um jantar do básquete de Mattie, quando esta tinha oito anos e de como ela e Jack tinham chorado ao ver o orgu lho quase incontido da filha ao receber o pequeno troféu.

- Tens uma voz esquisita - disse Dierdre.

- Tenho? - A menina tinha um sotaque inglês, sem sombra de irlandês ou americano.

- Falas como o meu pai - disse.

Kathryn acenou lentamente.

- Queres ver a minha boneca Samantha? - perguntou Dierdre.

- Sim - disse Kathryn aclarando a garganta. - Adorava.

- Tens de vir aqui - disse Dierdre, com um gesto. Saltou da cama e encaminhou-se para um canto do quarto. Kathryn reconheceu o guarda- roupa e a mala da boneca de uma famosa série americana muito popular. - O meu pai deu-ma no Natal - disse Dierdre, entregando a boneca a Kathryn.

- Gosto muito dos óculos dela - disse.

- Queres ver a mala que ela tem para a escola?

- Com certeza.

- Olha, vamos sentar-nos na cama e podes ver as minhas coisas todas.

Dierdre trouxe vestidos, uma escrivaninha, uma correia de cabedal com livros. Um lápis minúsculo, uma pequena caneta com a cabeça de um índio.

- O teu pai deu-te tudo isto no Natal?

A menina apertou a boca e pensou:

- São Nicolau também me deixou algumas coisas - disse.

- Gosto do cabelo dela - disse Kathryn. - Mattie tinha uma boneca assim, mas cortou-lhe o cabelo. Sabes que o cabelo não volta a crescer nas bonecas, de modo que não se deve cortar. Mattie ficou com muita pena de o ter feito.

Kathryn lembrou-se de outra recordação. Mattie, com seis anos, partindo para a subida de um monte na sua bicicleta nova, que estremecia debaixo dela como se fosse feita de gelatina. Jack e Kathryn olhavam sem poder fazer nada. Mattie voltara para dizer orgulhosamente aos pais, Bom, disto já eu tratei.

Mais uma ainda: Mattie adormecendo uma noite com um par de óculos com um nariz pegado.

Mais outra: Dia de Acção de Graças com Mattie, só com quatro anos, a anunciar ao pai que a mãe tinha acabado de cozinhar a delícia turca*.

Onde iria Kathryn guardar agora estas recordações? Pensou que era como uma mulher a olhar para o vestido de noiva, depois do divórcio. O vestido já não poderia ser apreciado, se o casamento em si se tivesse desfeito?

- Não lhe corto o cabelo - prometeu Dierdre.

- Está bem. O teu pai esteve cá no Natal? Alguns pais têm de trabalhar nesse dia.

- Esteve cá - disse Dierdre. - Fiz-lhe um marcador de livros. Tem a minha fotografia com ele. Quis que ele ma desse outra vez e ele disse que ficava para os dois. Queres vê-la?

- Quero, sim.

Dierdre procurou o tesouro debaixo da cama. Trouxe um livro de imagens que Kathryn não conhecia. O marcador estava lá dentro e era uma tira de papel laminado. Na fotografia estava Jack com Dierdre ao colo. Ele baixava a cabeça para olhar para o rosto dela.

Kathryn ouviu passos nas escadas.

No sótão, em Fortune's Rocks, estava uma caixa com roupas daquela boneca. Por uns segundos e de modo insano, Kathryn brincou com a ideia de mandar a caixa a Dierdre.

Muire apareceu protectoramente no limiar da porta, de braços cruzados.

- Gosto muito da tua boneca - disse Kathryn, pondo-se de pé.

- Tens de te ir já embora? - perguntou Dierdre.

- Acho que sim - disse Kathryn.

Dierdre olhou-a quando saiu. Muire chegou-se para o lado para permitir que Kathryn passasse. Kathryn desceu apressadamente as escadas, consciente de que a outra mulher estava atrás de si. Kathryn pegou no casaco do fato.

 

* Turkey em inglês significa Turquia e também peru, ave que faz parte do almoço do Dia de Acção de Graças. [N. da T. ]

 

- Dierdre disse que Jack tinha estado aqui no Natal - disse, vestindo-se.

- Comemorámos mais cedo - disse Muire. - Tivemos de o fazer. Kathryn sabia bem o que era comemorar as festas mais cedo. Depois, curiosa, dirigiu-se à estante e leu os títulos. Mentiras de Silêncio de Brian Moore; Cal, de Bernard McLaverty; Corações Rebeldes, de Kevin Toolis; A Grande Fome, de Cecil Woodham-Smith; um título que não conseguiu ler. Tirou o livro da estante.

- É em gaélico? - perguntou.

- Sim.

- Onde estudou?

- Na Queens. Em Belfast.

- Sim. E depois foi para...

- Assistente de bordo. Sim, já sei. A força de trabalho mais culta da Europa: os irlandeses.

- A sua filha sabe o que aconteceu a Jack? - perguntou Kathryn, colocando o livro de novo na prateleira e apanhando o casaco comprido.

- Sabe - disse Muire da porta. - Mas não sei se entendeu. O pai estava tantas vezes fora. Creio que para ela é só mais outra viagem.

O pai.

- E a mãe de Jack? - perguntou Kathryn calmamente. - Dierdre sabe da avó Matigan?

- Sim, claro.

Kathryn ficou em silêncio, abalada, tanto pela sua própria pergunta, como pela resposta.

- Mas, como sabe, a mãe dele tem Alzheimer - acrescentou Muire - e Dierdre nunca pôde falar com ela.

- Sim, eu sei - mentiu.

Gostaria de saber se Jack estaria agora nesta casa, se não tivesse morrido. Se alguma vez teria descoberto esta outra família? Durante Quantos anos poderia este caso - este casamento - durar?

As duas mulheres ali estavam, sobre o chão de madeira. Kathryn olhou para as paredes, para o tecto, para a mulher que tinha na sua frente. Queria abarcar toda a casa, lembrar-se de tudo o que vira. Sabia que não voltaria.

Pensou na impossibilidade de alguma vez conhecer outra pessoa. Na fragilidade das construções feitas pelas pessoas. Um casamento, por exemplo. Uma família.

- Há coisas... - começou Muire a dizer. Deteve-se. - Quem me dera...

Kathryn esperou.

Muire voltou as palmas das mãos para cima, parecendo resignada.

- Há coisas que não posso... - suspirou profundamente e meteu as mãos nos bolsos das calças de ganga. - Lamento ter ficado com ele.

- disse por fim. - Lamento ter tido de a magoar.

Kathryn não se despediria; não parecia necessário.

Porém havia mais uma coisa que Kathryn queria saber - que tinha de perguntar, apesar do seu orgulho.

- O roupão - disse. - O roupão de seda azul. No seu guarda-fato.

Kathryn ouviu-a respirar fundo, mas o rosto nada revelou.

- Chegou depois dele ter morrido - disse Muire. - Era o meu presente de Natal.

- Pensei que assim fosse - disse Kathryn.

Estendeu o braço e pôs a mão no puxador da porta, como se procurasse uma bóia salva-vidas.

- Devia ir para casa - disse Muire, enquanto Kathryn saía para a chuva e esta tomou-o como uma ordem estranha e presumida.

- Para mim foi pior - disse Muire e Kathryn voltou-se, por causa da nota levemente queixosa, uma fenda na fachada de calma.

- Eu sabia da sua existência - disse Muire Boland. - A senhora nunca teve de saber de mim.

 

ERA POSSÍVEL QUE ESTIVESSE A CHORAR. Mais tarde não conseguiu dizer quando tinha começado. Esquecera-se do chapéu-de-chuva e tinha o cabelo encharcado colado à cabeça. A água escorria-lhe pelo pescoço, pelas costas, pela frente da blusa. Estava demasiado exausta para subir a gola ou enrolar o cachecol à volta do pescoço. Os transeuntes, erguiam os guarda-chuvas, olhavam para ela e depois uns para os outros. Ela respirava com a boca aberta.

Andava sem destino, sem ideia de para onde ia. Os pensamentos coerentes recusavam formar-se. Lembrava-se do nome do hotel, mas não queria ir para lá, não queria lá estar dentro com outras pessoas. Não queria estar sozinha num quarto.

Por breves instantes considerou refugiar-se num cinema. Saiu do passeio e, por hábito, olhou na direcção errada. Um táxi travou. Kathryn ficou imóvel, à espera que o condutor pusesse a cabeça fora da janela para a insultar. Em vez disso, este esperou pacientemente que ela atravessasse a rua.

Sabia que não estava bem e sentia-se nervosa, com medo de tropeçar inadvertidamente e cair nalgum buraco de obras ou descer de novo de um passeio e ser atropelada por um autocarro vermelho. Enfiou-se numa cabina telefónica para se pôr momentaneamente a salvo. Soube-lhe bem sair da chuva, sentir-se seca dentro da cabina. Despiu o casaco e limpou a cara com o forro, mas o gesto lembrou-lhe qualquer coisa em que não queria pensar. Começava a chegar-lhe uma dor de cabeça, vinda da nuca e perguntou a si própria se teria algum comprimido dentro da carteira.

Fora da cabina, um homem esperava, impaciente; depois bateu no vidro. Precisava de usar o telefone, leu-lhe ela nos lábios. Kathryn vestiu de novo o casaco e voltou a sair para a chuva. Caminhou numa rua cheia de gente que parecia não ter fim. O trânsito salpicava os passeios ao longo da rua. As pessoas passavam junto a si de cabeça baixa, para se defenderem da chuva. Sem chapéu, ou sombrinha, tinha dificuldade em ver claramente. Pensou em entrar numa loja para comprar um guarda-chuva ou possivelmente uma gabardina.

Num canto viu dois homens de sobretudo a rir. Tinham guarda -chuvas negros e pastas de couro castanhas. Entraram por uma porta.

Havia luz por trás do vidro fosco e o som de risos em conjunto. Já estava escuro e talvez fosse mais seguro entrar.

Dentro do pub, chegou-lhe às narinas o cheiro a lã molhada. Gostou do calor que emanava lá de dentro. Os óculos do homem na sua frente estavam embaciados e ele ria com o companheiro. Um homem por trás do balcão entregou-lhe uma toalha. já alguém a tinha usado; estava húmida, mole e cheirava a loção de barbear. Esfregou o cabelo como se tivesse acabado de tomar duche e viu que os homens estavam a olhar para ela. Tinham copos de cerveja na frente, o que a fez sentir sede.

Os homens separaram-se lentamente, para lhe arranjar lugar. Do outro lado do balcão, duas mulheres vestindo fatos azul-escuros quase idênticos, conversavam animadamente. Toda a gente falava com alguém.

Parecia uma festa, só que aqui as pessoas pareciam mais felizes do que habitualmente estão nas festas.

Quando entregou a toalha ao barman, apontou para a torneira. A cerveja saiu, cor de bronze claro. A luz incidia nas superfícies polidas e os homens fumavam. No tecto havia uma neblina azulada.

Tinha sede e bebeu a cerveja como se fosse água. Sentiu-a queimar-lhe o estômago, o que foi agradável. Tirou os sapatos encharcados dos pés e deitou-os para o chão. Olhou para baixo, viu que a blusa estava quase transparente e aconchegou o casaco, por vergonha. O barman voltou-se na sua direcção e ergueu uma sobrancelha. Acenou afirmativamente, em resposta ele serviu-lhe outro copo de cerveja. O calor, que ela decidira precisar, já se espalhava pelos braços e pernas, bem como pelos dedos das mãos e pés.

De vez em quando, à sua volta percebia palavras, partes de conversas. Faziam-se negócios, namorava-se.

A dor de cabeça piorou, chegando-lhe às têmporas. Pediu uma aspirina ao barman. Um homem de bigode olhou-a de lado. Do outro lado havia um anúncio da Guinness e ela reconheceu a bebida escura pousada em copos sobre o balcão. Por vezes, Jack levara-a para casa:

Mais outra coisa em que não queria pensar. O balcão estava húmido com círculos de cerveja, a madeira saturada do cheiro.

Algum tempo depois precisou de ir à casa de banho, mas não queria sair do banco. Pensou em pedir um terceiro copo de cerveja, para o caso de perder o lugar e não conseguir arranjar outro. O barman ignorou a sua mão levantada, mas as mulheres que estavam do outro lado do balcão repararam. Falaram uma com a outra enquanto olhavam para ela.

Finalmente, o barman atendeu-a, parecendo um pouco menos simpático que antes. Talvez tivesse infringido alguma regra dos pubs. Quando por fim lhe perguntou se queria uma terceira bebida, ela abanou a cabeça e levantou-se, apanhando o casaco do banco. Ergueu-o do plástico do assento. Tentou caminhar com firmeza por entre uma multidão de homens e mulheres que por ali estavam com as suas bebidas. Deveria ter terminado o dia de trabalho, gostaria de saber que horas seriam ali em Londres. Sentiu qualquer coisa pegajosa nos pés e apercebeu-se que tinha deixado os sapatos no bar. Voltou-se, mas não conseguiu ver o caminho de volta. Tinha urgentemente de urinar e não podia voltar atrás. Seguiu a indica ção dos lavabos que parecia desnecessariamente directa.

Era um alívio estar sozinha no cubículo.

Depois teve problemas com as meias. Lembrava-se de ter de vestir um fato de banho molhado quando era pequena. Estrebuchou dentro do pequeno espaço. As palmilhas das meias estavam nojentas. Pensou em tirá- las, pois seria mais fácil puxá-las para baixo do que para cima, mas depois pensou com algum bom senso que poderia ter frio se o fizesse. O estômago ameaçava revoltar-se, mas aguentou, suportando o enjoo.

Lavou as mãos num lavatório sujo e olhou-se ao espelho. Concluiu que a mulher que lá via reflectida não poderia ser ela. O cabelo era demasiado escuro e demasiado colado à cabeça. Tinha meias luas de rimel por baixo dos olhos, como uma maquilhagem macabra. Os olhos em si estavam vermelhos, com pequenas veias. Os lábios sem sangue, embora o rosto aparecesse corado.

Uma mulher sem abrigo, pensou.

Secou as mãos na toalha e abriu a porta. Passou por um telefone de parede. Sentiu uma necessidade urgente de falar com Mattie. A necessi dade era física; sentia-a no centro do corpo, no sítio onde as mulheres gostam de pôr os bebés.

Tentou seguir as instruções do placard junto ao telefone, mas desistiu depois de várias tentativas. Pediu ajuda a um velho de casaco de oleado que ia para a casa de banho. Ditou-lhe os números, contente por se lembrar. Quando conseguiu a ligação, ele entregou-lhe o telefone e olhou-lhe para a blusa. Entrou na casa de banho e, demasiado tarde, ela lembrou-se que não lhe tinha agradecido.

O telefone tocou seis ou sete vezes. Uma porta fechou-se, um copo partiu-se, uma mulher riu alto, o riso agudo ouvindo-se sobre todos os outros. Lá por dentro, Kathryn morria por ouvir a voz de Mattie. O telefone continuava a tocar. Ela recusou-se a pousá-lo.

- Está?

A voz era ofegante, como se tivesse participado numa luta ou numa corrida.

- Mattie! - exclamou Kathryn, espalhando o seu alívio pelo mar fora. - Graças a Deus que estás em casa.

- Mãe, que se passa? Estás bem?

Kathryn recompôs-se. Não queria assustar a filha.

- Como estás? - perguntou em voz mais calma.

- Hum... estou bem. - A voz de Mattie era cautelosa, experimentava.

Kathryn tentou um tom mais alegre.

- Estou em Londres - disse. - Isto aqui é óptimo.

- Mãe, o que estás a fazer?

Havia música de fundo. Um dos CDs de Mattie. Sublime, pensou Kathryn. Sim, eram, sem dúvida os Sublime.

- Podes baixar um pouco o som? - perguntou Kathryn, que já tivera de meter um dedo no outro ouvido por causa do barulho do pub.

- Não consigo ouvir-te.

Kathryn esperou que Mattie voltasse ao telefone. Os clientes do bar juntavam-se perto das mesas. A seu lado, um homem e uma mulher. Com copos de cerveja na mão gritavam ao ouvido um do outro.

- Pronto - disse a filha, que já tinha voltado.

- Está a chover - disse Kathryn. - Estou num pub. Tenho andado a dar umas voltas. A passear.

- O homem está contigo?

- Chama-se Robert.

- Como queiras.

- Agora não.

- Mãe, tens a certeza de que estás bem?

- Estou bem. Que estás a fazer?

- Nada.

- Pareces ofegante - disse Kathryn.

- Pareço? - Houve uma pausa. - Mãe, agora não posso falar.

- A Julia está aí? - perguntou Kathryn.

- Está na loja.

- Por que não podes falar?

No fundo, Kathryn ouviu parte de uma frase, palavras em surdina. Uma voz masculina.

- Mattie?

Ouviu a filha murmurar. Um riso abafado. Partes de outra frase. Uma voz distintamente masculina.

- Mattie? Que se passa? Quem está aí?

- Ninguém, mãe. Tenho de ir.

Sobre o telefone, na parede, havia nomes e números escritos a caneta e a marcador de cor. Roland em casa de Margaret, dizia um apontamento.

- Mattie, quem está aí? Oiço a voz de uma pessoa.

- Oh, é só Tommy.

- Tommy Arsenault?

Sim.

- Mattie...

- Jason e eu zangámo-nos.

O homem a seu lado foi empurrado e salpicou de cerveja a manga de Kathryn. Sorriu como que a pedir desculpa e tentou sem conseguir limpar os salpicos com a mão.

- Quando aconteceu isso? - perguntou Kathryn.

- Ontem à noite. Que horas são aí?

Kathryn olhou para o relógio que ainda não tinha acertado pela hora de Londres. Calculou. - São cinco e quarenta e cinco - disse.

- Cinco horas - disse Mattie.

- Porque te zangaste com Jason? - perguntou Kathryn, sem querer mudar de assunto.

- Acho que já não temos muito em comum.

- Oh, Mattie...

- Tudo bem, mãe. A sério, está tudo bem.

- Que estás tu a fazer com Tommy?

- Estamos por aí. Mãe, tenho de ir. Kathryn tentou de novo acalmar- se.

- Que vais fazer hoje? - perguntou.

- Não sei, mãe. Está sol lá fora, mas há muita neve molhada. Tens a certeza de que estás bem?

Kathryn brincou com a ideia de dizer que não, para meter Mattie na linha, mas sabia que essa seria a pior chantagem paternal.

- Estou bem - disse Kathryn. - Verdade.

- Tenho de ir, mãe.

- Amanhã à noite estou em casa.

- Fixe. De verdade, tenho de ir.

- Adoro-te - disse Kathryn, querendo segurar-se à voz da filha.

- Adoro-te - disse Mattie rapidamente.

Estava livre para ir embora.

Kathryn ouviu o clic transatlântico.

Encostou a cabeça à parede. Um jovem de fato às riscas esperava pacientemente a seu lado e finalmente tirou-lhe o auscultador das mãos.

Engatinhou por entre um mar de pernas, recolheu os sapatos no bar e saiu para a chuva. Comprou um guarda-chuva num quiosque, pensando, enquanto o pagava, que o fabrico de sombrinhas em Inglaterra deveria ser uma empresa sempre florescente. Durante algum tempo sentiu pena de si própria e pensou que, para além de tudo o resto, sem dúvida arranjaria uma constipação. Segundo a teoria de Julia, se uma pessoa chorava em público, constipava-se. Não era a retribuição por exibir a sua emoção, mas sim a irritação das membranas mucosas em presença de micróbios estranhos. Kathryn sentiu-se momentaneamente cheia de saudades de Julia, gostaria de a ver de roupão e de beber uma chávena de chá.

Kathryn maravilhou-se com a protecção do chapéu-de-chuva (um padrão berrante, pensou) e apreciou profundamente o anonimato que conseguira. Se tivesse atenção aos pés que andavam à sua volta, podia esconder o rosto das pessoas que passavam; o guarda-chuva funcionava como um véu.

Toda a Londres ali, debaixo de chuva, e Ely cheia de sol. Caminhou até encontrar um parque. Pensou que possivelmente não deveria entrar num sítio daqueles à noite, embora houvesse candeeiros que desenhavam círculos de luz perto dos bancos. A chuva abrandara parecendo tornar-se agora miudinha. A relva tornara-se cinzenta sob a luz do candeeiro. Caminhou até um banco negro e sentou-se.

Ficou perto do que lhe pareceu ser um roseiral circular. Os candeeiros iluminavam os espinhos dos troncos podados e a barreira parecia formidável. Não me traiu apenas a mim, pensou Kathryn, mas uma traição a Mattie e a Julia. Uma violação do círculo familiar.

A chuva parou de todo e ela colocou o guarda-chuva no banco. Depois de tantas andanças, o cachecol de chenille começara a desfiar-se numa ponta. Apanhou o ponto solto e experimentou puxá-lo. Poderia arranjá-lo quando chegasse a casa, refazer o canto com outro fio de chenille. Voltou a puxar e sentiu as pequenas malhas, vacilantes, a darem de si.

Desmanchou uma volta e depois outra, depois outra e mais outra. O fio amontoava-se agradavelmente nos seus joelhos, nos seus tornozelos. Jack oferecera-lhe o cachecol pelos anos.

Kathryn puxou até ter um amontoado de chenille retorcido, do tamanho de um monte de folhas. Deixou cair o resto do fio na relva. Meteu as mãos geladas nos bolsos do casaco. Teria agora de reformular todas as suas recordações.

Um homem mais velho, de gabardina castanha parou diante dela. Talvez tivesse ficado perturbado por encontrar uma mulher sentada num banco molhado com um monte de fio aos pés. Possivelmente seria casado e pensava na mulher. Antes de ele lhe poder perguntar alguma coisa, Kathryn cumprimentou-o e dobrou-se para apanhar o fio. Encontrou a ponta e começou a enrolar, o chenille preto, com movimentos práticos, formando rapidamente um novelo.

Sorriu.

- Está um tempo horrível - disse ele.

- Está sim - respondeu agradável. Parecendo satisfeito pela mostra de normalidade de Kathryn, o homem foi-se embora.

Depois de ele partir, ela meteu o novelo debaixo do banco, fora da sua vista. Pensou: Não sabia nada da vida sexual da minha filha e também não sabia nada acerca da do meu marido.

Via ao longe o reflexo dos candeeiros, um coro de luzes dos tra vões, um casal correndo pela estrada. Recomeçara a chover. Tinham gabardinas compridas e a jovem calçava sapatos de salto alto. O homem mantinha a gabardina fechada com uma mão diante das suas partes baixas e o outro braço à volta dos ombros da rapariga, apressando-a a atravessar antes que o sinal mudasse.

Muire Boland e Jack deveriam ter feito isto nesta cidade, pensou. Deveriam ter corrido por causa de um sinal. A caminho de um jantar, de um pub, ou do teatro. De uma festa com outras pessoas, da cama.

O casamento com Muire Boland tinha peso. Dois filhos contra um. Dois filhos pequenos.

Depois pensou: Como poderá ser considerada inválida uma coisa que produziu filhos tão bonitos?

Caminhou até ver ao longe o toldo discreto, a fachada que reconheceu. Quando entrou, o hotel estava em silêncio e apenas um empregado

dentro de um cone de luz por trás do balcão a cumprimentou. Quando se dirigia aos elevadores, sentiu as roupas pesadas e encharcadas. Ficou enormemente aliviada por se lembrar do número do quarto.

Assim que meteu a chave na porta, Robert saiu do quarto ao lado.

- Valha-me Deus - disse. Tinha a testa franzida e a gravata desapertada até meio do peito. - Tenho estado como louco, sem saber o que lhe aconteceu - disse.

Ela pestanejou na luz pouco lisonjeira do corredor e afastou o cabelo da cara.

- Sabe que horas são? - perguntou. Na sua genuína preocupação, parecia um pai com uma criança perdida.

Ela não sabia.

- É uma da manhã - informou-a.

Ela retirou a chave da fechadura e foi para junto de Robert, que mantinha a porta aberta. Por esse espaço viu uma refeição virtualmente intacta, num tabuleiro aos pés da cama. Mesmo do corredor o quarto tinha um cheiro pesado a tabaco.

- Entre - disse ele. - Está com um ar péssimo. - Uma vez lá dentro, ela deixou escorregar o casaco dos ombros. - Está mesmo suja

- disse Robert.

Kathryn descalçou os sapatos, que tinham perdido a forma e a cor. Ele puxou a cadeira da secretária.

- Sente-se - disse.

Ela obedeceu. Ele sentou-se na cama, de frente para ela, com os joelhos tocando-se - as meias molhadas dela, a lã cinzenta das calças dele. Tinha uma camisa branca que não era a mesma que trazia à hora do almoço. Parecia um homem diferente, gasto e cansado, rugas à volta dos olhos, mais velho do que quando o vira pela última vez. Imaginava que também ela teria envelhecido consideravelmente.

Ele tomou-lhe as mãos nas suas e ela sentiu-as engolidas pelos dedos compridos.

- Conte-me o que aconteceu - disse.

- Caminhei. Caminhei apenas. Não sei onde fui. Sim, sei. Fui a um pub e bebi cerveja. Caminhei até um jardim de rosas e desmanchei o cachecol.

- Desmanchou o cachecol?

- Quero dizer, a minha vida.

- Calculo que tenha sido desagradável - disse ele.

- Bem pode dizê-lo.

- Dei-lhe trinta e cinco minutos e depois segui-a à tal morada. Já devia ter saído. Andei para a frente e para trás na rua e depois vi uma mulher sair da casa. Tinha duas crianças com ela.

Kathryn olhou para a sanduíche por comer, que estava no tabuleiro. Parecia peru.

- Creio que tenho fome - disse.

Robert estendeu a mão, apanhou a sanduíche do tabuleiro e entregou- lha. Ela equilibrou o prato no colo e estremeceu ligeiramente.

- Coma alguma coisa e depois meta-se num banho quente. Quer que lhe mande vir uma bebida?

- Não. Já bebi o suficiente. Está a ser muito paternal.

- Jesus, Kathryn!

A carne da sanduíche era tão fina que lhe pareceu plástico escorregadio, quando lhe tocou na língua. Pousou-a.

- Estava quase a chamar a polícia - disse. - Já telefonei para o número da casa aonde foi. Várias vezes. Nunca houve resposta.

- Eram os filhos de Jack. Não pareceu surpreendido.

- Calculou? - perguntou ela.

- Era uma possibilidade. Porém não tinha pensado em filhos. Era ela? Muire Boland? Saindo de casa? A...

- Mulher dele - disse ela. - Casaram. Na igreja.

Ele encostou-se. Kathryn viu a incredulidade transformar-se com relutância em aceitação.

- Numa igreja católica - disse.

- Quando?

- Há quatro anos e meio.

Sobre a cama havia um saco com o fecho aberto. A camisa que usara à hora do almoço espreitava pela abertura. Folhas do jornal tinham caído da cama para o chão. Sobre a secretária havia uma garrafa de água mineral meio cheia.

Viu que ele a examinava, como se fosse um médico. Observava-lhe o rosto em busca de sinais de doença.

- O pior já passou - disse ela.

- Tem a roupa estragada.

- Logo seca.

Ele abraçou os joelhos.

- Lamento muito, Kathryn.

- Quero ir para casa.

- Vamos - respondeu. - Amanhã, logo de manhã. Trocamos os bilhetes.

- Não devia ter vindo - disse ela, entregando-lhe o prato.

- Não.

- Tentou avisar-me. Ele desviou o olhar.

- Tenho fome - disse. - Mas não consigo comer isto.

- Vou mandar vir fruta e queijo. Uma sopa.

- Seria bom.

Levantou-se, mas depois cambaleou. Sentia-se tonta. Ele levantou-se também e ela encostou-lhe a testa à camisa.

- Todos estes anos - disse. - Foi tudo falso.

- Shhh...

- Robert, ele tinha um filho. E outra filha. - Ele puxou-a mais para si, tentando consolá-la. - Todas as vezes que fizemos amor - continuou. - Durante quatro anos e meio fiz amor com um homem que tinha outra mulher. Outra esposa. Fiz coisas. Fizemos coisas. Lembro-me delas...

- Não faz mal.

- Faz mal, sim. Mandei-lhe bilhetes amorosos. Escrevi coisas para ele em postais. Ele aceitou-as.

Robert acariciou-lhe as costas.

- É melhor que o saiba - disse.

- Talvez.

- É melhor não viver com uma mentira.

Ele sentiu a mudança rápida na sua respiração, como um soluço. Ela afastou-se e reparou que ele parecia esgotado. Esfregava os olhos.

- Agora vou tomar um banho - disse. - Desculpe tê-lo preocupado. Deveria ter-lhe telefonado.

Ele levantou a mão, como que a dizer-lhe que não era necessário pedir desculpas.

- O que interessa é que voltou - disse. E ela percebeu-lhe no rosto a tensão de ter estado tanto tempo sem saber se ela voltaria.

- Mal se aguenta em pé - disse ele.

- Gostava de tomar o banho aqui. Não quero ficar sozinha no quarto. Depois do banho já fico melhor.

Ela viu que ele duvidava.

Abriu a água quente e esvaziou um frasco de gel na banheira para fazer espuma. Quando se despiu ficou espantada ao ver o estado da roupa, ao ver que parte da bainha da saia ficara descosida. Ficou nua no centro da casa de banho, deixando pegadas sujas nos azulejos brancos. Numa prateleira de vidro estavam toalhas e um bonito cesto com artigos de toilette.

Pôs um pé na água e encolheu-se, depois entrou. Afundou-se lentamente na banheira.

Lavou o cabelo e o rosto usando a água ensaboada, demasiado cansada para abrir o champô. Puxou uma toalha do suporte, enrolou-a e pô-la na borda da banheira. Encostou-se para trás, descansando o pescoço na toalha.

Um estojo de toilette de cabedal estava precariamente equilibrado sobre o pequeno lavatório de porcelana. O casaco de botões dourados pendia de um cabide atrás da porta. Ouviu baterem à porta do quarto, esta abrir-se, uma breve conversa, uma pausa e a seguir a porta a fechar-se de novo. Serviço de quartos, pensou. Desejou ter pedido uma chávena de chá. Uma chávena de chá teria sido perfeito.

A janela estava um pouco aberta, o que lhe permitia ouvir, lá em baixo, os sons do trânsito, um grito ao longe. Mesmo à uma hora da manhã.

Sentiu-se sonolenta e fechou os olhos. Apesar da flutuabilidade da água, seria um esforço enorme mover o corpo para sair da banheira. Desejou esvaziar o espírito, pensar só em água e sabão e em mais nada.

Quando a porta se abriu, não se moveu, não fez qualquer esforço para se cobrir, apesar da espuma estar agora mais fina e dos seus seios puderem estar expostos.

Ergueu os joelhos que emergiram da água como ilhas vulcânicas.

Os dedos dos pés brincavam com a corrente da válvula.

Ele mandara vir chá e um cálice de brandy.

Poisou a chávena e o copo na borda da banheira. Afastou-se, encostando-se ao lavatório e metendo a mão nos bolsos. Cruzou as pernas pelos tornozelos. Ela sabia que ele estava a olhar para o seu corpo.

- Se fosse a si misturava-os - disse.

Ela sentou-se e fez o que ele sugerira.

- Vou deixá-la à vontade - disse.

- Não vá.

Por trás dele, o espelho do lavatório tornara-se opaco do vapor.

Perto da janela, o ar do exterior misturava-se com o calor, criando pequenas nuvens. Deitou o brandy no chá, mexeu e bebeu um longo gole. Sentiu imediatamente o calor no centro do corpo. Pensou em como as propriedades medicinais do brandy eram espantosas.

Segurou na chávena com os dedos cheios de sabão.

O maxilar dele moveu-se. Poderia ser um suspiro. Tirou uma mão do bolso e limpou com o polegar as gotas de transpiração que havia na borda do lavatório.

- Preciso de um roupão - disse ela.

Por fim, contou-lhe tudo. No escuro, deitada na cama dele, contou-lhe cada palavra de que se conseguia lembrar da visita à casa branca. Ele escutou-a sem dizer grande coisa, murmurando aqui e ali, fazendo uma ou duas perguntas. Ela vestira o roupão turco do hotel e ele não se despira. Passava-lhe os dedos pelo braço enquanto ela falava. Quando tiveram frio, ele puxou a colcha para cima. Ela enfiou a cabeça no espaço entre o peito e o braço dele. No escuro sentiu o calor estranho do seu corpo, ouviu-lhe a respiração junto a si. Pensou que talvez quisesse dizer mais qualquer coisa, mas antes que as palavras se formassem, deslizou para um sono sem sonhos.

Na manhã seguinte, sentou-se na beira da cama, com o roupão branco, arranjando a bainha da saia com um estojo de costura que encontrara no cesto dos artigos de toilette. Robert estivera ao telefone, falando com a companhia aérea, trocando os bilhetes de avião, mas agora engraxava os sapatos. Uma réstia de sol iluminava o quarto por trás da cortina branca. Pensou que provavelmente não se tinha mexido durante o sono. Quando acordara, Robert já tinha tomado duche e já se vestira.

- Estes quase não se podem aproveitar - disse Robert.

- Basta que cheguem até casa.

- Vamos tomar o pequeno-almoço lá abaixo - disse. - Um pequeno- almoço a sério.

- Seria agradável.

- Não há pressa.

Ela cosia pacientemente, com pontos regulares, como Julia lhe ensinara havia muito tempo, esperando que o pequeno cartão de linha chegasse. Tinha consciência de que Robert a observava com atenção. Reflectiu que qualquer coisa mudara desde a noite anterior; os gestos dela pareciam ter tomado uma precisão especial por ser observada tão de perto.

- Parece quase feliz - disse ela, olhando-o.

Kathryn sabia que a insanidade do dia anterior se escondia nas sombras e lá ficaria para sempre, num local escuro dum quarto iluminado. Incomodá-la-ia, arrastá-la-ia sempre que o permitisse. Pensou então que poderia dizer que o pior tinha passado e desaparecido. Seria uma espécie de bênção saber que tinha atingido um nadir. Quase sentia a liberdade de viver a vida sem ter medo.

Mas sabia já que essa liberdade era uma ilusão e que poderiam acontecer mais coisas. Bastava-lhe imaginar Mattie no avião que tinha caído. Poderia ser Mattie num avião futuro. A vida poderia apresentar- lhe coisas piores do que já tivera e depois ainda piores. Pensou que, de facto, a sua vida poderia ser mais angustiada por saber o que a poderia esperar.

Poisou a costura e observou Robert que dava brilho aos sapatos. Os gestos faziam-na recordar Jack, com o pé sobre a borda da gaveta. Exactamente há quanto tempo teria sido isso?

Ergueu-se da cadeira e beijou Robert no canto da boca, tendo nas mãos a costura e ele os sapatos. Sentiu a sua surpresa. Pôs-lhe os pulsos nos ombros e olhou para ele.

- Obrigada por ter vindo comigo a Londres - disse. - Não sei como teria passado a noite sem si. - Robert olhou-a e ela percebeu que ele lhe queria dizer alguma coisa. - Vamos comer - disse rapidamente.

- Estou cheia de fome.

A sala de jantar tinha um lambril de madeira e por cima dele um papel de parede azul pálido. No chão havia um tapete oriental, vermelho. Foram levados para uma mesa junto a uma janela redonda com cortinas pesadas. Robert fez um gesto para que ela se sentasse junto ao vidro. A mesa estava posta com uma pesada toalha de linho, quase rígida, de tão engomada, e talheres e loiça que ela nunca tinha visto.

Sentou-se e colocou o guardanapo no colo.

Nas paredes havia gravuras arquitectónicas e do tecto pendia um lustre de cristal. Viu então que a maior parte das pessoas das outras mesas eram homens de negócios.

Olhou pela janela que tinha ao lado. O sol brilhava sobre as ruas molhadas. O compartimento fazia-lhe lembrar as salas dos filmes antigos ingleses e pensou que era exactamente isso, um espaço formal de onde também emanava conforto. Tinham-se esforçado por não esterilizar a sala, como teria acontecido num hotel americano, de modo a poder-se acreditar que já alguém ali vivera. O lume crepitava na lareira. Mandaram vir ovos, salsichas e torradas num suporte de prata. O café estava quente e ela assoprava sobre a beira da chávena.

Ergueu os olhos e viu uma mulher à entrada. Entornou o café na toalha branca. Robert estendeu o guardanapo para limpar, mas Kathryn segurou-lhe na mão. Ele voltou-se para olhar para o que ela tinha visto.

A mulher dirigia-se rapidamente para a mesa. Vestia um casaco comprido sobre uma saia curta de lã e uma camisola. Kathryn teve a impressão de verdes secos e desalinho. A mulher penteara o cabelo num rabo de cavalo e parecia assustada.

- Ontem fui imperdoavelmente cruel para consigo - disse directamente para Kathryn.

- Este é Robert Hart - disse Kathryn.

Ele estendeu a mão.

- Muire Boland - murmurou a mulher, como apresentação, coisa que ele não necessitava. - Preciso de falar consigo - disse para Kathryn e depois hesitou. Kathryn apercebeu-se de que a hesitação era devida a

Robert.

- Não há problema - disse Kathryn.

Robert fez um gesto para que a mulher se sentasse.

- Tenho estado furiosa - começou Muire Boland a dizer. Falava apressadamente, como se tivesse pouco tempo. Sentada agora mais perto da mulher do que no dia anterior, Kathryn reparou que Muire tinha as mesmas pupilas enormes da filha, o que justificava os olhos escuros.

- Furiosa desde o acidente - continuou Muire. - De facto, há anos que estou furiosa. Tive-o tão pouco para mim.

Kathryn estava espantada. Deveria perdoar àquela mulher? Ali, naquela sala? Agora?

- Não foi suicídio - disse Muire.

Kathryn sentia secar-se-lhe a boca. Robert, agindo ainda num mundo que as duas mulheres haviam já abandonado, perguntou se Muire queria uma chávena de café. Ela abanou a cabeça com força.

- Tenho de me apressar - disse Muire. - Saí da minha casa. Não conseguirão entrar em contacto comigo.

A mulher tinha o rosto contraído. Kathryn sabia que o remorso não provocava aquelas feições. O medo, sim.

- Tenho um irmão chamado Dermot - disse Muire. - Tive mais dois irmãos. Um foi morto pelos paramilitares diante da mulher e dos três filhos, enquanto jantavam. O outro morreu numa explosão.

Kathryn tentou entender aquelas informações. Pensou ter compreendido. Sentiu-se ferida, como se alguém tivesse vindo contra ela.

- Fui correio desde que comecei a trabalhar na companhia - continuou Muire. - Foi por isso que fiquei na Vision, na rota Bóston-Heathrow. Passei dinheiro da América para o Reino Unido. Depois outra pessoa tratava de que ele chegasse a Belfast.

Mais tarde, Kathryn teria a ideia de que o tempo parara ali, se entrara em si, e depois começara de novo a desenrolar-se. O mundo à sua volta - as pessoas das outras mesas, os empregados, os veículos nas ruas, até os gritos de quem passava - existia numa espécie de charco. Apenas o que imediatamente a rodeava - ela, Muire Boland, Robert, o linho branco com a mancha de café - parecia nitidamente definido.

Um criado veio limpar o café e substituir o guardanapo. Perguntou a Muire se ela queria pedir o pequeno-almoço, mas esta abanou a cabeça. Os três ficaram num silêncio, pouco à vontade, até o criado partir.

- Tinha um contacto nos dois aeroportos, em Bóston e Heathrow, quando ia e vinha. Tinha um saco pequeno que deixava na sala da tripulação e depois ia-me embora. Voltava uns segundos depois e apanhava-o. Afinal era muito fácil. - A mulher de cabelo escuro estendeu a mão e pegou no copo de água de Robert, de onde bebeu um gole. Depois conheci Jack - disse. - E fiquei grávida.

Kathryn sentiu os pés frios.

- Quando saí da companhia, Dermot foi a minha casa - disse Muire. Perguntou a Jack se queria continuar, apelou para a sua ancestralidade irlandesa e católica. - Fez uma pausa e esfregou a testa. - O meu irmão é um homem muito apaixonado, muito persuasivo. A princípio Jack ficou aborrecido comigo, porque eu não lho tinha dito. Não quisera envolvê-lo. Mas depois, aos poucos, ficou intrigado. Certamente sentiu-se atraído pelo risco, mas era mais que isso. Começou a tomar a causa para si, a fazer parte dela. À medida que o tempo passava, tornou-se tão apaixonado como o meu irmão.

- Um convertido - disse Robert. Kathryn fechou os olhos e vacilou.

- Não estou a tentar magoá-la por lhe estar a dizer isto - disse Muire a Kathryn. - Só quero explicar.

Kathryn abriu os olhos.

- Duvido que me possa magoar mais do que já o fez - respondeu. Ao contrário do que se passara ontem, a mulher sentada à sua frente parecia pouco cuidada, como se tivesse dormido vestida. O empregado trazia mais café, mas Robert acenou-lhe rapidamente para que se fosse embora.

- Sabia que Jack estava totalmente envolvido - disse Muiremas sempre parecera um homem que não tinha medo de se envolver.

- Fez uma pausa. - Era por isso que eu o amava.

A frase doeu-lhe. Depois Kathryn surpreendeu-se com o que pensou a seguir: Era por isso que ele te amava. Porque lhe ofereceste isto.

- Havia outras pessoas envolvidas - disse Muire. - Pessoas em Heathrow, em Logan, em Belfast. - Muire pegou num garfo e começou a riscar a toalha. - Na noite anterior ao voo - continuou - telefonou uma mulher a perguntar se ele podia levar uma coisa ao contrário. De Heathrow para Bóston. Utilizar-se-ia o mesmo processo. Não era um facto sem precedentes. Já acontecera uma vez ou duas. Mas eu não gostava. Era mais arriscado. A segurança é mais severa à saída de Heathrow do que à entrada. Muito mais severa do que em Logan. Mas, na sua essência, a missão não era assim tão diferente.

Muire poisou o garfo. Olhou para o relógio e falou mais depressa.

- Quando soube do acidente, tentei falar com o meu irmão. Fiquei aflitíssima. Como poderiam ter feito uma coisa daquelas a Jack? Teriam perdido a cabeça? Politicamente era uma loucura. Fazer explodir um avião americano? Com que objectivo? Era garantido que teriam o mundo inteiro contra. - Pôs os dedos na testa e suspirou. - Claro que era essa a intenção.

Ficou em silêncio.

Kathryn teve a sensação ansiosa de estar a receber mensagens em código, código esse que precisava ser imediatamente decifrado.

- Porque não tinham sido eles - disse Robert, compreendendo lentamente. - Não foi o IRA que colocou a bomba.

- Não, claro que não - disse Muire.

- A intenção era desacreditar o IRA - disse Robert, acenando lentamente.

- Quando não consegui falar com o meu irmão – acrescentou Muire - pensei que também o tivessem matado. Depois não consegui falar com ninguém.

Kathryn gostaria de saber com quem estariam os filhos de Muire.

- Finalmente, ontem à noite, o meu irmão telefonou. Estava escondido. Pensou que o meu telefone... - Fez um gesto com as mãos.

Kathryn tinha a vaga sensação de que as outras pessoas à sua volta comiam torradas e bebiam café, talvez enquanto tratassem de negócios.

- Jack não sabia o que transportava - disse Robert, como que para consigo, tirando conclusões pela primeira vez.

Muire abanou a cabeça.

- Jack nunca transportava material explosivo. Fora muito claro acerca disso. Estava estabelecido.

Kathryn teve a visão da luta no avião.

- É por isso que na gravação, jack não diz nada - disse Robert de súbito. - Ficou tão chocado como o engenheiro de voo.

Nessa altura Kathryn pensou que também Jack fora traído.

- Vai descobrir-se tudo - disse Muire, levantando-se. – Volte para casa o mais depressa possível.

Pôs a mão sobre a mesa, inclinou-se mais para Kathryn, que sentiu um breve bafo de mau hálito e o cheiro a roupa por lavar.

- Vim aqui - disse Muire - porque a sua filha e os meus filhos são da mesma família. Têm o mesmo sangue.

Kathryn interrogou-se sobre se Muire Boland quereria que um entendimento, um entendimento elementar passasse entre elas. Mas depois, quase simultaneamente percebeu que estavam de facto ligadas, por muito que Kathryn desejasse que isso não fosse verdade. Pelas crianças, que de certo eram meio-irmãs e irmãos, mas também por Jack.

Muire endireitou-se, evidentemente para se ir embora. Em pânico, Kathryn percebeu que nunca mais veria aquela mulher.

- Fale-me da mãe de Jack - disse Kathryn muito depressa, confessando a sua ignorância.

- Ele não lhe disse? - perguntou Muire.

Kathryn abanou a cabeça.

- Pensei que não o fizesse - disse Muire pensativa. - Ontem quando esteve lá em casa... - Fez uma pausa. - A mãe fugiu com outro homem quando ele tinha nove anos - disse.

- Jack afirmara sempre que ela tinha morrido - disse Kathryn.

- Tinha vergonha de ter sido abandonado. Mas, estranhamente, não culpava a mãe. Culpava o pai, a brutalidade do pai. De facto, só há muito pouco tempo Jack reconheceu a existência da mãe.

Kathryn desviou o olhar envergonhada por ter tido de perguntar.

- Agora tenho mesmo de ir - disse Muire. - Estou a pôr-vos aos dois em perigo, só pelo facto de aqui estar.

O sotaque poderia ter despoletado tudo, pensou Kathryn. Ter agido como gatilho. Ou andaria ela simplesmente à procura de uma razão para o inexplicável: porque se apaixonava um homem?

Robert olhou rapidamente de Kathryn para Muire. Tinha no rosto uma expressão que Kathryn nunca lhe vira - angustiada.

- O que foi? - perguntou Kathryn.

Ele abriu a boca, mas depois fechou-a, como se fosse dizer alguma coisa e tivesse mudado de ideias. Pegou numa faca e começou a balançá-la entre os dedos, como ela o vira fazer com uma caneta.

- O que foi? - repetiu Kathryn.

- Adeus - disse Muire a Kathryn. - Lamento.

Kathryn sentia-se tonta. Quanto tempo teria passado desde que Muire Boland entrara na sala? Três minutos? Quatro?

Robert olhou para Kathryn e em seguida colocou cuidadosamente a faca junto ao prato.

- Espere - disse a Muire, quando esta se voltou para partir. Kathryn viu a mulher deter-se, voltar-se lentamente e observar Robert inclinando a cabeça com ar interrogativo.

- Quem eram os outros pilotos? - perguntou rapidamente. Preciso saber os nomes.

Kathryn ficou rígida. Olhou para Robert, depois para Muire. Começou a tremer.

- Sabia disto? - perguntou a Robert, num murmúrio tenso.

Robert baixou os olhos para a mesa. Kathryn viu a cor subir-lhe no rosto.

- Soube sempre? - perguntou Kathryn. - Veio a minha casa, sabendo que Jack poderia estar envolvido nisto?

- Sabíamos apenas que havia um círculo de contrabando - disse Robert. - Não sabíamos quem era, embora suspeitássemos de Jack.

- Sabia onde isto poderia levar? O que eu poderia descobrir? Robert ergueu os olhos para ela e, num instante viu tudo passar-lhe pelo rosto: Amor. Responsabilidade. Perda.

Particularmente, a perda.

Kathryn levantou-se e o guardanapo caiu-lhe no chão. O movimento sobressaltou as outras pessoas que a olharam com expressões vagamente assustadas.

- Eu confiei em si - disse.

Saiu da sala de jantar, direita à porta do hotel, onde entrou num táxi que ali parara. Deixara o casaco comprido e o saco no quarto. Não se importou com o que continha.

Trocaria o bilhete no aeroporto.

Durante o caminho, olhava para as mãos que tinha apertadas no colo, de tal modo que os nós dos dedos estavam brancos, quase trans lúcidos. Não ouvia, nem via nada. Mas sentia a raiva no sangue, sentia-a pulsar e queimar dentro dela. Nunca conhecera uma ira assim. Apenas queria ir para casa.

Em Heathrow, entrou pela porta giratória e viu-se no meio de uma multidão internacional, que caminhava em todas as direcções, como se as pessoas se tivessem perdido em conjunto. Encontrou o balcão da British Airways e meteu-se na fila. Trocaria o bilhete e a própria com panhia, sem se preocupar com os custos.

Na fila, sentiu-se exposta, como se já não tivesse qualquer isolamento. Robert poderia descobrir as suas intenções e vir à sua procura. Decidiu que, se fosse preciso, esperaria pelo voo na casa de banho.

A fila avançava muito lentamente. A sua raiva começou a abranger a ineficiência dos agentes de bilhetes.

Começou apensar se sobrevoaria Malin Head, se tomaria uma rota semelhante àquela que Jack dantes percorria.

Depois sentiu uma atracção gravitacional. Uma força pura que a surpreendeu. Levou a mão ao peito.

A força tornava-se maior, à medida que se aproximava da cabeça da fila.

Quando chegou a vez de Kathryn, esta colocou o bilhete no balcão. O agente olhou-a à espera que falasse.

- Qual é o aeroporto mais próximo de Malin Head?

 

TEM OS BRAÇOS CHEIOS DE ROUPA SUJA - toalhas molhadas, lençóis amarrotados e peúgas que lhe saltam e escorregam dos braços para cair no chão. Curva-se para apanhar um pano, pensando que, se tivesse trazido o cesto da roupa para cima, a tarefa não seria tão com plicada. Abraça-se ainda mais à roupa húmida e encaminha-se para as escadas. Quando passa pela porta do quarto, olha para dentro.

É um quadro passageiro, tão breve que mal o regista. Uma imagem subliminar, que não difere de tantas outras que lhe entram no cérebro sem interessar o consciente. Como ver uma mulher com um casaco creme a escolher laranjas no supermercado, ou ver, sem reparar num medalhão ao pescoço de uma aluna.

Jack está curvado sobre a mala, arrumando as coisas para a viagem. Uma camisa, pensa ela, azul às riscas amarelas. Uma camisa que nunca vira antes. Talvez uma camisa comprada de repente num dos quiosques do aeroporto.

Sorri para mostrar que não quis assustá-lo. Ele endireita-se, deixando cair a tampa da pequena mala.

- Precisas de ajuda para isso? - pergunta.

Ela fica ali um minuto, admirando o modo como o sol da tarde cai sobre as tábuas do chão, tornando-as uma mancha cor de abóbora.

- Quando te vais embora? - pergunta ela.

- Daqui a dez minutos.

- Quando voltas?

- Terça-feira, por volta do meio-dia. Talvez fosse melhor telefonar a Alfred Zacharian, para que ele dê uma olhadela ao cano. Hoje está pior.

Ela repara que ele ainda tem o cabelo molhado do duche. Observa que emagreceu um pouco; agora quase que não se lhe nota o estômago. Vê-o chegar-se ao armário, pegar no casaco do uniforme e vesti-lo. Nunca deixou de se comover com a visão de Jack de uniforme, com a força e autoridade imediata que lhe cobre os ombros, que se esclarece enquanto aperta os três botões dourados.

- Vou sentir a tua falta - diz ela impulsivamente. Ele volta-se, ficando numa zona de luz. Tem um ar cansado à volta dos olhos.

- Que se passa? - pergunta ela.

- Que se passa, como?

- Pareces preocupado com alguma coisa.

- É só uma dor de cabeça - diz, voltando o pescoço e esfregando os olhos.

Ela vê que as feições dele se descontraem, que os músculos da testa ficam mais suaves.

- Queres um comprimido? - pergunta.

- Não, não é preciso - diz.

Corre o fecho da mala, pega nela e faz uma pausa. Parece ir dizer-lhe alguma coisa, depois parece mudar de ideias. Puxa a mala para fora da cama.

- Deixa as coisas para limpar a seco até eu voltar - diz, dirigindo-se a ela. Olha-a nos olhos, mais um segundo do que é costume. Beija-a por cima da trouxa da roupa suja. O beijo escorrega-lhe para o lado da boca. - Na terça, trato disso.

 

ELA TENTAVA LER O MAPA ENQUANTO SE LEMBRAVA que tinha de conduzir à esquerda, um desafio para o qual necessitava toda a concentração, de modo que levou algum tempo a aperceber-se da ironia de se encontrar na Estrada de Antrim, dirigindo-se para oeste do aeroporto de Belfast. O voo fora normal e o aluguer do carro imediato. Sentia uma urgência quase física de chegar ao seu destino.

Ao aterrar a oeste de Belfast, não vira a cidade, nem nenhum dos edifícios destruídos pelas bombas ou fachadas com marcas de balas, de que tanto ouvira falar. De facto, era difícil reconciliar a paisagem pastoral que se espraiava à sua frente com o conflito insolúvel que já reclamara tantas vidas - tendo recentemente levado cento e quatro pessoas de um avião sobre o oceano Atlântico. As casinhas brancas, sem adornos e as pastagens eram apenas interrompidas pelas sebes de arame, linhas telefónicas e, de vez em quando, por uma parabólica. À distância, os montes pareciam mudar de cor e até de forma, dependendo de como o sol passava pelas nuvens de bom tempo. A terra parecia antiga, cansada, e as colinas tinham um ar gasto e musgoso, como se tivessem sido pisadas por demasiados pés. Nos montes mais perto da estrada, podia ver os pontos brancos espalhados, que eram as centenas de carneiros, os bocados de terra lavrada e semeada, as sebes verdes e baixas que debruavam os terrenos como linhas desenhadas por uma criança. Enquanto conduzia, pensava que não seria por isto que havia aquela luta sangrenta. Era qualquer outra coisa que ela não abarcava, não compreendia. Apesar de tudo, Jack, por arrogância ou amor, tinha-se envolvido no complexo conflito da Irlanda do Norte, fazendo com que Kathryn e Mattie fossem participantes periféricos, sem que o desejassem. Sabia poucos factos acerca dos problemas, apenas o que absorvera, como toda a gente, a partir dos jornais e da televisão, quando havia acontecimentos suficientemente catastróficos para fazerem notícia nos Estados Unidos. Lera ou ouvira falar da violência sectária do princípio dos anos setenta, das greves da fome, do cessar-fogo de 1994 e da quebra do cessar-fogo, mas pouco sabia do porquê de tudo aquilo. Soubera dos tiros às pernas, dos carros armadilhados e dos homens de máscaras de ski que entravam em casa de civis, mas não sentia o patriotismo que levava a estas actividades terroristas. Por vezes, era tentada a pensar nos participantes desta luta como criminosos extraviados, que se escondiam num idealismo, como os fanáticos religiosos assassinos, de qualquer época. Outras vezes, a crueldade e a perfeita estupidez dos ingleses parecia convidar à frustração e amargura que levaria qualquer grupo de pessoas a acções violentas.

O que agora a perturbava, não era a razão deste conflito, mas sim a participação de Jack, que mal conseguia absorver. Teria ele acreditado na causa ou ter-se-ia sentido atraído pela sua aparente autenticidade? Conseguia ver a atracção, o significado instantâneo dado a uma vida. A paixão em si, o idealismo romântico, o pertencer a uma organização justa e até a religião teriam feito parte de um todo. Teria significado uma entrega total e desinteressada a uma pessoa ou a um ideal e, neste caso, estariam ambos intrinsecamente ligados. Assim como a causa teria feito parte do caso amoroso, este teria feito parte da causa, de modo que depois não se poderia ter uma sem o outro. Nem se poderia deixar um sem deixar a outra. Visto nesta perspectiva, pensou, a questão não era tanto a razão pela qual Jack tinha ficado com Muire e casado com ela pela Igreja Católica, mas sim o facto de não ter deixado Mattie e Kathryn.

Porque amava muito Mattie, respondeu imediatamente a si própria. Perguntou-se se de facto Jack e Muire teriam estado legalmente casados. Um casamento na igreja conferiria imediatamente um estatuto legal? Não sabia como funcionava, ou como Muire e Jack o tinham feito funcionar. E nunca o saberia. Havia tanta coisa agora, que nunca viria a saber.

Mostrou o passaporte à entrada de Londonderry e passou para a República da Irlanda ao mesmo tempo que entrava no Donegal. Dirigiu-se para norte e oeste através do campo que se tornava nitidamente mais rural, à medida que avançava, começando o número de carneiros a ultrapassar largamente o de pessoas e tornando-se as casas cada vez mais raras. Seguiu as indicações para Malin Head, Cionn Mhalanna em irlandês, através do aroma pesado da turfa. A terra começou a tornar-se mais escarpada e deserta, com longas paisagens de rochedos e rochas recortadas, bem como enormes dunas de areia cobertas de urze e outra vegetação. A estrada estreitava-se até se tornar num pequeno atalho e, percebeu que conduzia depressa de mais quando, depois de uma curva apertada, quase atirou com um carro para a valeta.

Claro que poderia ter sido por causa da mãe, pensou Kathryn. Um desejo de reaver a mãe, de ter essa mãe que lhe fora negada. Certamente fora por essa razão que se apaixonara por Muire Boland e mesmo Muire parecia compreendê-lo. Mas para além desta especulação, pensou Kathryn, o terreno tornava-se obscuro: quem poderia dizer quais eram as motivações de um homem? Mesmo que Jack estivesse vivo e com ela naquele carro poderia ter articulado o seu próprio Porquê? Alguém poderia? Também não o sabia. Apenas podia saber o que imaginava ser verdade.

Enquanto conduzia, chegavam-lhe certas recordações que a incomodavam e sabia que passariam meses, ou anos, antes que passassem. Por exemplo, era insuportável a ideia de que Jack poderia ter tirado dinheiro dela e de Mattie para dar à sua outra família e sentia a tensão arterial a subir ali mesmo no carro. Ou a discussão, lembrava-se de súbito, a horrível discussão pela qual se tinha culpado. O descaramento, pensava agora, de a ter deixado acreditar que as suas imperfeições tinham sido a causa, enquanto durante todo esse tempo estava a ter um caso com outra mulher. Fora isso que Jack fizera no computador durante tanto tempo? Estivera a escrever à amante? Fora por isso que estivera disposto a ultrapassar as hostilidades tão depressa, quando lhe pergun tara se queria que ele se fosse embora? Teria estado a brincar com a ideia? Ou os versos do poema, pensou. Teria Jack abrandado a sua vigilância e permitido que partes da sua relação com Muire Boland se intro duzissem no seu casamento com Kathryn? Teria a vida de Kathryn sido invadida de modo que nunca notara? Quantos livros teria lido ou filmes teria visto sugeridos por Muire? Até que ponto a vida da irlandesa se teria infiltrado na sua?

Mais uma vez, Kathryn nunca o saberia.

Saiu da estrada principal, seguindo as indicações que lhe tinham dado para chegar ao ponto mais a noroeste da Irlanda. Era espantoso que a estrada se tornasse ainda mais estreita, da largura do caminho que levava à sua casa. Enquanto conduzia, perguntava a si própria porque nunca imaginara um caso. Como podia uma mulher viver sempre com um homem e não suspeitar? Parecia, para além do mais, um monumental acto de ingenuidade, de distracção. Mas depois pensou que sabia a resposta até mesmo enquanto formulava a pergunta: percebeu que um adúltero dedicado não levantava suspeitas porque não queria ser apanhado.

Kathryn nunca pensara sequer em suspeitar; nunca sentira o cheiro de outra mulher, nunca encontrara um traço de baton no ombro de uma camisa. Mesmo sexualmente, não adivinhara. Partira do princípio que o abrandamento que ela e jack experimentavam era simplesmente o decurso normal dos acontecimentos num casal casado havia mais de uma década.

Baixou a janela de modo a poder respirar o ar - uma mistura inebriante de água salgada e clorofila. Percebeu de súbito que a terra à sua volta era extraordinária. A textura da paisagem - com os seus ricos tons de verde, a sua densidade - conferia uma sensação de solidez que não sentira em Londres. A confluência do oceano com uma costa rochosa, mais selvagem até do que a própria costa da Nova Inglaterra, tocaram-lhe num ponto sensível. Conseguia respirar regular e profundamente pela primeira vez, desde que Muire Boland aparecera à entrada da sala de jantar do hotel.

Entrou na aldeia e teria passado adiante, se não fosse um cenário que já antes vira: faltava apenas o velho pescador. Abrandou e parou. Estacionou o carro junto a um relvado cercado de lojas e casas. Via o sítio onde os câmaras deviam ter estado, onde a repórter de cabelo escuro e guarda-chuva conduzira a entrevista diante do hotel. O edifício era branco, suave e limpo. Viu o letreiro sobre a porta: Malin Hotel.

Pensou em arranjar um quarto para aquela noite. O voo para Londres apenas partia de manhã. Talvez devesse também comer alguma coisa.

Passaram alguns momentos até conseguir distinguir a madeira gasta do balcão tradicional. Reparou nos cortinados escarlates, nos bancos de plástico creme, na melancolia da sala, até certo ponto aliviada pela lareira num dos extremos. Ao longo das paredes, havia bancos e mesas baixas e cerca de meia dúzia de pessoas jogando às cartas, lendo ou bebendo cerveja.

Kathryn sentou-se ao balcão e mandou vir uma chávena de chá. Quase imediatamente, uma mulher loura, de cabelo armado, sentou-se no banco a seu lado. Kathryn voltou a cabeça e examinou os cartazes sobre a caixa registadora. Percebera demasiado tarde que as pessoas que estavam no bar eram repórteres.

O rosto da mulher reflectia-se no espelho por trás das garrafas. Estava impecavelmente maquilhada e parecia distintamente americana. Os olhares de ambas encontraram-se.

- Posso oferecer-lhe uma bebida? - perguntou a mulher, falando em voz baixa. Kathryn percebeu imediatamente que a voz discreta era porque a loira não queria que mais ninguém no bar percebesse que Kathryn estava ali.

- Não, obrigada - disse Kathryn.

A mulher disse o nome e as siglas da sua estação.

- Sentamo-nos aqui no bar - explicou. - Os familiares sentam-se no salão. De vez em quando um marido ou um pai vêm aqui para beber qualquer coisa mas, em termos de conversa, já nos esgotámos uns aos outros. Estamos todos aborrecidos. Desculpe se pareço insensível.

- Imagino que até um acidente de avião se pode tornar enfadonho - disse Kathryn.

O barman serviu o chá de Kathryn e a jornalista pediu um copo de Smithwick.

- Reconheço-a das fotografias - disse a repórter. - Lamento tudo por que teve de passar.

- Obrigada - disse Kathryn.

- A maior parte das estações importantes e agências noticiosas mantém toda a gente no sítio até as operações de rescaldo estarem terminadas - disse a mulher.

Kathryn quis o chá forte e doce e mexeu-o, para libertar o calor.

- Importa-se que lhe pergunte porque está aqui? - inquiriu a jornalista.

Kathryn experimentou sorver um pouco.

- Não me importo - disse. - Mas não lhe posso dar uma resposta. Nem eu própria sei porque aqui estou.

Pensou na sua raiva e na força gravitacional, naquilo que tinha sabido nessa manhã. Em como seria fácil oferecer à loira tudo aquilo que sabia. Como a repórter ficaria entusiasmada por ter aquilo que seria, sem dúvida, a maior história de toda a investigação, ainda maior que a fuga de informação da gravação da caixa negra. E uma vez a história impressa as autoridades não procurariam Muire Boland? Não a deteriam e mandariam para a prisão?

Mas em seguida Kathryn pensou no bebé que se parecia com Mattie e em Dierdre que tinha uma boneca Molly.

- Não foi suicídio - disse. - É tudo quanto lhe posso dizer. Robert sempre soubera, pensou Kathryn. Teria sido avisado antes de ir para casa dela. O sindicato suspeitara de Jack e pedira a Robert que a vigiasse. Robert teria observado e esperado por qualquer indício de que ela soubesse das actividades do marido e pudesse dizer os nomes dos outros pilotos. Robert usara-a.

Perdeu a vontade de beber o chá. A urgência em chegar ao seu destino voltara. Levantou-se do banco.

- Olhe, ao menos podemos conversar? - perguntou a repórter.

- Acho que não.

- Vai a Malin Head?

Kathryn ficou em silêncio.

- Não conseguirá chegar ao local. Tome. - A loira extraiu um cartão da carteira, voltou-o e escreveu nele um nome. Entregou-o depois a Kathryn. - Quando lá chegar, pergunte por Danny Moore. Ele leva-a lá. Tem aqui o meu cartão. Quando terminar, se mudar de ideias, telefone-me. Ofereço-lhe o jantar.

Kathryn aceitou o cartão e examinou-o.

- Espero que em breve volte a casa - disse.

À saída do hotel, quando passou no salão, Kathryn olhou para dentro e viu uma mulher sentada numa cadeira de braços, com um jornal no colo. O jornal não tinha sido aberto e a mulher não olhava para as letras. Kathryn pensou que ela não poderia ver nada do que tinha na frente, tão vago era o seu olhar. Junto à lareira, no outro extremo da sala, um homem com um olhar semelhante estava de pé, com as mãos nos bolsos.

Voltou a atravessar o relvado e entrou no carro. Olhou de novo para o cartão que tinha na mão.

Já sabia o que fazer. Não poderia controlar as acções que Robert Hart pudesse tomar depois ou mesmo imediatamente. Mas podia controlar aquilo que ia fazer. De facto, sentia-se calmamente mais senhora das suas acções do que alguma vez em muitos anos.

Revelar o que sabia acerca das razões para a explosão do avião, significaria que Mattie iria descobrir a outra família de Jack. E isso, Mattie nunca ultrapassaria, Kathryn estava certa disso. Rasgou o cartão em bocados e deixou-os cair no chão.

Sabendo que o seu destino não era longe, Kathryn seguiu de novo as indicações para Malin Head. Passou por casinhas em ruínas, que não passavam de um amontoado de pedras, de telhados de colmo há muito caídos e apodrecidos. Viu o aveludado do musgo atapetando o rochedo

- verde-esmeralda, mesmo no pino do Inverno. Em estendais esticados entre dois paus, a roupa secava ao sol, a arte abstracta da lavagem posta na corda. O tempo estava bom para secar, pensou.

Ao voltar uma esquina, a linha do horizonte do Atlântico Norte surpreendeu-a. No meio dessa linha do horizonte havia uma forma cinzento-escura. Um navio. Um helicóptero voava em círculos por cima. Barcos de pesca de cores vivas navegavam, junto ao navio grande, como crias à volta de uma mãe-foca. O barco dos socorros, pensou.

Era então ali o local onde o avião tinha caído.

Estacionou o carro e saiu, caminhando o mais depressa que se atreveu em direcção à beira do rochedo. Por baixo ficavam noventa metros de rocha e xistos descendo até ao mar. Daquela altura, a água parecia imóvel, uma margem recortada de uma praia distante. A espuma chegava às rochas lá em baixo, em explosões de estrelas. Um barco de pesca vermelho dirigia-se para a costa. Até onde Kathryn conseguia ver, a água tinha uma cor uniforme, um azul-metálico.

Duvidava ter visto alguma vez uma parte de costa mais teatral crua, mortífera e selvagem. Punha o acidente em perspectiva, se é que tal coisa era possível. Provavelmente já ali houvera muitos acidentes.

Seguiu o barco de pesca com os olhos até este desaparecer detrás da península saliente que era Malin Head propriamente dita.

Pondo de novo o carro a trabalhar, seguiu pela estrada estreita, continuando a olhar para o barco, sempre que o conseguia vislumbrar. Atracou num pequeno porto formado por um longo pontão de betão. Parou o carro e saiu.

Os barcos atados ao pontão eram brilhantes e com cores primárias

- cor de laranja, azul, verde e amarelo - fazendo-lhe lembrar mais barcos portugueses que irlandeses. O barco que observara manobrava agora à volta do pontão, lançando depois a âncora. Kathryn encaminhou-se para o pontão. Num extremo havia guardas fardados e por trás deles grupos de homens vestidos à civil. Enquanto andava, o pescador do barco vermelho descarregava uma peça de metal do tamanho de uma cadeira e colocava-a no pontão, onde imediatamente atraiu a atenção dos homens à civil, que logo a rodearam. Um dos homens chamou o condutor de um camião, que voltou para o pontão. O bocado de metal, presumivelmente um bocado do avião de Jack, foi metido dentro do camião.

À entrada do pontão, um guarda deteve-a.

- Não pode passar daqui, menina.

Talvez fosse soldado. Ou polícia. Tinha uma metralhadora.

- Sou familiar - disse ela, olhando para a metralhadora.

- Lamento a sua perda, minha senhora - disse o guarda. Há barcos a determinadas horas para os familiares. Pode informar-se no hotel.

Como se fossem observar baleias, pensou Kathryn. Ou num cruzeiro.

- Só precisava de falar com Danny Moore por um segundodisse Kathryn.

- Muito bem. Ele está ali - disse o guarda apontando. - O barco azul. Kathryn agradeceu num murmúrio e passou rapidamente pelo homem. Evitando olhar para os agentes à civil, que começavam a reparar nela, Kathryn chamou o pescador do barco azul. Viu que ele se estava a preparar para deixar o pontão.

- Espere - gritou.

Era jovem, de cabelo escuro, cortado rente. Usava uma argola de ouro na orelha esquerda. Tinha uma camisola que deveria em tempos ter sido cor de marfim.

- O senhor é Danny Moore? - perguntou.

Ele acenou afirmativamente.

- Pode levar-me ao local?

Ele pareceu hesitar e talvez fosse informá-la dos barcos marcados para os familiares.

- Sou a mulher do piloto - disse Kathryn rapidamente. - Preciso de ver o local onde o meu marido se afundou. Não tenho muito tempo.

O pescador estendeu o braço e deu-lhe a mão.

Fez um gesto para que ela se sentasse num banco dentro da cabina. Kathryn viu um dos homens vestido à civil encaminhar-se para o barco. O pescador soltou a amarra, veio para a cabina e pôs o motor a trabalhar.

Disse uma palavra que ela não compreendeu. Inclinou-se para a frente, mas o ruído do motor e do vento tornavam a conversa difícil.

Viu que o barco estava limpo e não havia sinais de pesca. Porquê peixe quando havia este trabalho a fazer, pelo qual os encarregados deveriam pagar bom dinheiro.

- Eu pago-lhe - disse Kathryn, ao lembrar-se.

- Ah, não - disse o homem, desviando timidamente o olhar - Não levo dinheiro aos familiares.

Logo que o barco passou o pontão, o vento aumentou. O pescador sorriu levemente quando ela o olhou.

- É daqui? - perguntou Kathryn.

- Sim - respondeu ele e de novo pronunciou uma palavra que Kathryn não conseguiu entender. Pensou que deveria ser o nome da terra onde vivia.

- Faz isto desde o princípio? - gritou ela.

- Desde o princípio - disse, voltando a cabeça. - Agora não é tão mau, mas antes...

Ela não queria pensar como fora antes.

- Lindo barco - disse, para mudar de assunto.

- Espectacular.

Ela ouviu o sotaque que lhe provocou a recordação desagradável de Muire Boland.

- É seu? perguntou.

- Ah, não. do meu irmão, mas pescamos juntos.

- O que é que pesca?

Ouviu-se o guincho do motor através da água.

- Caranguejos e lagostas - respondeu.

Kathryn ergueu-se e voltou-se na direcção da proa. A seu lado, à roda do leme, o jovem mudava de posição. Ela balançou um pouco nos seus sapatos disformes.

- Pescam com este frio? - perguntou, apertando o casaco do fato contra si.

- Sim - disse ele. - Esteja o tempo que estiver.

- Saem todos os dias?

- Ah, não. Saímos domingo à tarde e voltamos na sexta-feira.

- Vida difícil - comentou ela.

Ele encolheu os ombros.

- Agora temos bom tempo - disse. - Há sempre nevoeiro em Malin Head.

Quando se aproximaram do navio dos socorros, Kathryn observou outros barcos de pesca ocupados na operação - barcos de cores alegres, como aquele em que se encontrava, barcos demasiado festivos para tão desagradável missão. No convés do navio havia mergulhadores com os fatos molhados. O helicóptero continuava a voar por cima. Claro que os destroços estariam espalhados por uma área enorme.

Para lá da cabeça do pescador, Kathryn reparou na linha da costa, nos rochedos e na sua exposição geológica de xisto. A paisagem tinha uma forma gótica, atmosférica, mesmo com bom tempo, e facilmente conseguia imaginá-la coberta pela bruma. Tão diferente de Fortune's Rocks, onde a natureza parecia ter-se submetido a si própria. Porém, de ambos os lados do Atlântico, houvera repórteres diante uns dos outros, com o mar pelo meio.

- Foi nestas coordenadas que tiraram para fora a cabina - disse o pescador.

- Aqui? - perguntou ela, começando a tremer. Pelo momento. Pela proximidade da morte.

Saiu da cabina e foi até ao varão do convés. Espreitou pela borda para a água, para a sua superfície sempre em mudança, embora aparentemente calma. Uma pessoa não era o que tinha sido no dia anterior, pensou. Ou no dia anterior a esse.

A água parecia opaca. Lá em cima, as gaivotas voavam em círculo. Também não queria pensar que as gaivotas estavam lá.

O que teria sido real? perguntava a si própria enquanto observava a água, tentando encontrar um ponto fixo, coisa que não conseguia. Teria sido ela a mulher do piloto, ou Muire Boland? Muire Boland, que se casara com ele pela Igreja Católica, que sabia da mãe de Jack e da sua infância. Muire que sabia de Kathryn, enquanto que Kathryn nunca soubera dela.

Ou teria sido Kathryn a verdadeira mulher? A primeira mulher, aquela que ele protegera da verdade, a mulher que não quisera deixar?

Quanto mais Kathryn soubesse a respeito de Jack - e agora, sem dúvida, viria a saber ainda mais, encontraria entre as coisas dele, quando estas lhe fossem devolvidas, outras referências a Moire - mais teria de repensar o passado. Como se tivesse de contar uma história muitas vezes, cada vez de modo ligeiramente diferente, porque um facto mudara, um pormenor fora alterado. Se fossem alterados pormenores suficientes ou os factos fossem muito importantes, talvez a história tomasse uma direcção bem diferente da que tivera da primeira vez que fora contada.

O barco balançou ao cruzar-se com outro e ela teve de se apoiar ao varão. Pensou que jack fora apenas o marido de outra mulher.

Olhou por momentos para o helicóptero, que voava lá em cima. Uma vez vira um avião pairando ao largo de Fortune's Rocks. O dia aparecera com sol e o nevoeiro da manhã estava a levantar. O aparelho voava baixo sobre a água e a enorme fuselagem prateada parecera pesada de mais para ficar no ar. Kathryn temera pelo avião, espantada por o voo ser possível.

Jack deveria ter conhecido o seu destino, pensou. Nos últimos segundos, deveria ter sabido.

Concluiu que no fim teria gritado o nome de Mattie. Acreditaria nisso e isso seria verdade.

Observou de novo a água. Há quanto tempo andaria o pescador em círculos? Perdera a capacidade de se aperceber da passagem do tempo que de facto se desenrolava? Por exemplo, quando começara o futuro? Ou quando terminara o passado?

Tentou descobrir um ponto fixo na água, mas não conseguiu.

A mudança invalidaria tudo o que se tinha passado anteriormente? Em breve deixaria este local, voaria para o seu país e seguiria para casa de Julia. Diria à filha: Agora vamos para casa. A vida de Kathryn era com Mattie. Não poderia haver outra realidade.

Tirou a aliança de casamento do dedo e deixou-a cair no mar. Sabia que os mergulhadores não encontrariam jack, que ele já não existia.

- Sente-se bem?

O jovem pescador espreitou da cabine, mantendo uma mão na roda do leme. Tinha a testa franzida e parecia preocupado.

Ela sorriu para ele e acenou afirmativamente.

Desistir do amor, pensou, é ser aliviada de um peso terrível.

 

ELE ENFIA-LHE O ANEL NO DEDO E, por uns momentos, não o deixa.

O juiz de paz entoa as frases da cerimónia simples. Kathryn olha para os dedos de Jack junto à prata e para o próprio brilho da prata. Comprou um fato para a ocasião, que lhe fica bem, mas que a ela lhe parece estranho, pois é um homem que raramente usa fatos. Kathryn pôs um vestido fino com um padrão às flores, que apertava na cintura e disfarçava o bebé. Tinha mangas curtas, pequenos chumaços e dava-lhe por baixo do joelho. Ainda sente o cheiro da loja no tecido. Também leva um chapéu - cor de pêssego, como o vestido, com uma flor de seda azul pálida na aba, de um azul que combina com as flores do vestido. No corredor, outro casal fala em tom baixo e impaciente. Kathryn ergue a cabeça para um beijo, estranhamente casto, prolongado e formal. O chapéu de aba larga desliza-lhe da cabeça.

- Amar-te-ei sempre - diz Jack.

Vão para um rancho nas montanhas. A temperatura baixa quase dez graus. Ela vestiu o casaco de cabedal dele por cima do vestido. Ainda sente no rosto o sorriso do casamento, um sorriso que não se desvaneceu, como se tivesse sido apanhádo por uma fotografia. A cabeça dela balança com os solavancos. Interroga-se como será a noite de núpcias, se já vivem juntos e se se sentirão diferentes um com o outro na cama. Interroga-se sobre o significado de um casamento diante de uma pessoa que nenhum deles conhece e que não se lembrará deles. O ar seco do Oeste põe-lhe o cabelo mais fino do que é habitual com a humidade de Ely. Ilumina-lhe a pele do rosto.

Continuam a subir. Agora, claro e escuro, o céu da noite desenha linhas brancas nos arbustos e nas rochas, e faz sombras nas pequenas pedras. Vêem uma luz à distância.

Têm a lareira acesa na cabana. Ela gostaria de saber se as canas entre os troncos são verdadeiras ou a fingir. A casa de banho tem um chuveiro de metal e um lavatório cor-de- rosa. Jack parece desiludido pela modéstia do mobiliário, como se tivesse planeado uma coisa diferente.

- Adoro isto - disse Kathryn, descansando-o.

Senta-se na cama, que baixa e emite um estalo metálico. Abre muito os olhos e ele ri-se.

- Ainda bem que é uma cabana - diz.

Despem-se junto à lareira. Ela vê-o puxar a gravata para o lado e desabotoar a camisa. O modo como puxa levemente a fivela do cinto para soltar a lingueta. Despe as calças do fato. Peúgas de homem. Se soubessem o aspecto com que ficam, nunca as usavam.

Nu, tem frio e mergulha na cama. Deslizam um contra o outro como seda seca. Ele puxa para os ombros os edredões altos e pesados, único luxo do quarto.

A cama range à menor alteração de peso. Ficam deitados, lado a lado, os rostos a um centímetro um do outro e tocam-se como nunca o tinham feito antes; lentamente, com uma economia de movimentos, como se executassem uma antiga dança, ritual e intencional. Quando entra nela, movimenta-se com cuidado e paciência especiais. Ela suspira rapidamente.

- Nós os três - diz ele.

 

OS BRAÇOS DE MATTIE TREMEM AO PUXAR A LINHA ESTICADA.

- Ei, viste aquilo? - exclamou.

- Parece enorme - respondeu Kathryn.

- Acho que o apanhei mesmo.

- Tira a linha das rochas senão pode partir-se.

Kathryn via as riscas negras e prateadas estrebuchando debaixo de água. Durante quarenta minutos vira Mattie lutar com um peixe com a cana demasiado grande do pai, deixando a linha correr, preparando o xalavar, gemendo para depois puxar o peixe, metendo a cana debaixo do braço para a equilibrar. Kathryn seguiu-a com o xalavar, aparou e falhou, tentou de novo. Por fim, ergueu o peixe, para que Mattie o visse.

Jack deveria estar aqui, pensou Kathryn automaticamente. Mattie pousou a cana, apanhou o peixe e colocou-o na areia. O pobre bicho abanava a cauda. Mattie pegou na fita métrica e Kathryn pôs-se de cócoras, junto a ela, para ver melhor.

- Noventa e um centímetros - disse orgulhosa.

- Boa! - exclamou Kathryn, acariciando-lhe o alto da cabeça. O cabelo da filha adquirira uma bela cor de cobre, iluminado pelo sol. Usava-o agora natural, deixando-o encaracolar onde queria. Estava quase nua, apenas com duas pequenas peças de um azul gelado, que eram o seu fato de banho.

- Vais comê-lo ou deitá-lo ao mar? - perguntou Kathryn.

- Que achas que faça?

- Se não fosse o primeiro, diria para o deitares ao mar. O pai ensinou-te a arranjar um peixe?

Mattie ergueu-se, levantando o peixe com músculos nada cansados.

- Vou buscar a máquina fotográfica - disse Kathryn.

- Adoro-te, mãezinha - disse Mattie a sorrir.

Kathryn atravessou o relvado e escutou as adriças do pau da bandeira enviando uma batida arritmada de notas cavas. Estava um dia tão bonito como todos os daquele Verão, uma enfiada de dias saturados de rico colorido. Vira naquela manhã um nascer do Sol, quase miraculoso, as nuvens baixas da madrugada dando lugar a um rosa fosforeceente ao longo do horizonte, com espirais de vapor que mais pareciam fumo de alfazema. Depois aparecera o Sol, qual detonação no ar e, por gloriosos minutos, a água transformou-se numa superfície ondulante cor de turquesa, reflectindo o padrão do néon. Pensou que era a beleza paradoxal de uma bomba nuclear ou de um incêndio a bordo de um navio. Uma conflagração em simultâneo entre a terra, o mar e o ar.

A sua única queixa era levantar-se cedo, como uma solteirona, ou como uma viúva, que era na realidade. O facto sugeria uma falta de emoção à noite, que poderia requerer mais sono. Nessas frequentes manhãs fantasmagóricas, Kathryn lia, contente de poder terminar um livro. Lia também o jornal inteiro, como o estivera a fazer na varanda, interessando-se principalmente pelo artigo acerca do cessar- fogo que vinha na primeira página.

A história da bomba colocada no Voo 384 da Vision, com a ajuda inconsciente, mas não inocente do capitão Jack Lyons, estoirara no Belfast Telegraph do Dia de Ano Novo. Também fora relatada a história a longo prazo do contrabando feito pela tripulação dos aviões, o nome dos outros pilotos envolvidos e os efeitos da tentativa por parte do grupo de lealistas dissidentes para desacreditar o IRA e sabotar o processo de paz. Entre outros, Muire Boland e o irmão tinham sido presos e estabelecida a ligação com Jack Lyons. Porém não fora mencionado um casamento ou outra família e, durante meses, Kathryn temera estas notícias finais. Arriscara com Mattie, decidindo nada dizer à filha, a menos que as informações fossem tornadas públicas. Era arriscar muito e, quem poderia dizer, como terminaria tudo? Mattie apenas sabia o que sabia o resto do mundo, e isso era suficiente.

Kathryn não sabia o que acontecera aos filhos de Muire Boland. Por vezes imaginava-os em casa de A.

Na Primavera, Kathryn lera alguns livros a respeito dos Conflitos, num esforço para melhor os compreender. Podia dizer que sabia mais factos então do que em Dezembro, mas pensou que os seus conheci mentos apenas tornavam a saga mais complexa. Nos últimos meses, também lera nos jornais a respeito de revoltas em prisões, execuções de paramilitares e carros armadilhados. Depois houve mais um cessar-fogo. Era possível que um dia tudo se resolvesse, embora Kathryn não acreditasse que tal pudesse acontecer em breve.

Mas não era ela a pessoa indicada para o dizer. Aquela guerra não era sua.

A maior parte das vezes Kathryn apenas se esforçava para levar por diante o dia que tinha pela frente e, como consequência, exigia pouco de si mesma. Vivia de fato de banho, que usava debaixo de uma

camisola azul-escura, desbotada. Estava a tricotar um top para Mattie em algodão colorido e depois queria experimentar fazer um para si.

Parecia ser este o limite das suas ambições. A maior parte dos dias, Julia ia lá a casa, ou Kathryn parava na vila. Comiam juntas as refeições, tentando recriar uma família de três pessoas. Julia tomara as notícias a respeito da infidelidade de Jack muito a peito. Fora a primeira vez que Kathryn se lembrava de ver a avó sem conseguir formular palavras, incapaz de dar um conselho.

Kathryn subiu a correr os degraus da varanda, passou pela sala e pela cozinha. Pensou que a câmara estivesse no guarda-vento das traseiras. Dobrou o canto do hall e parou de repente.

Ele estava junto à porta das traseiras, tendo já batido. Via-lhe o rosto pelos vidros. Levou a mão à parede, para se equilibrar. Entre ela e a porta estava uma recordação pungente, o retomar de um outro tempo em que percorrera o hall para lhe abrir a porta, o momento em que toda a sua vida mudara e o seu curso se alterara para sempre.

Como que em transe, deu os cinco ou seis passos em direcção à porta e abriu-a.

Ele encostou-se à ombreira, com as mãos nos bolsos. Trazia uma T shirt branca e um par de calções de caqui. Viu que tinha cortado o

cabelo e que estava ligeiramente bronzeado. Para além disso, não via muito mais, pois tinha o sol de frente. Porém, sentia-o ali, num misto curioso de determinação e resignação que pareciam emanar- lhe do corpo. Pensou que ele estava à espera que ela fechasse a porta, que lhe pedisse para se ir embora, ou lhe perguntasse em poucas palavras o que esperava dela agora. Entre eles o ar parecia preenchido.

- já passou tempo suficiente? - perguntou.

E ela perguntou a si própria, enquanto ele esperava, quanto tempo seria necessário.

- Mattie pescou um peixe - disse ela, voltando a si e lembrando-se. - Tenho de ir buscar a máquina.

Descobriu-a onde pensara que estivesse. Levou a mão à testa enquanto atravessava a casa. Tinha a pele quente ao toque e abrasada com camadas de areia e sal do mar. De manhã cedo, ela e Mattie tinham feito carreiras nas ondas, saindo delas de gatas, como os marinheiros naufragados.

Atravessou de novo o relvado, agora preocupada com o homem que deixara à porta. Gostaria de saber se já teria sonhado com ele ali, ou o tinha alguma vez imaginado contra o sol. Tirou dúzias de fotografias da filha e do peixe, querendo prolongar o momento, para dar algum tempo a si própria. Apenas quando Mattie se impacientou é que Kathryn resolveu pendurar a máquina ao pescoço e ajudar Mattie a levar o equipamento e o peixe até à varanda.

- Tens a certeza que queres fazer isso? - perguntou a Mattie referindo-se ao arranjar do peixe. Mas pensou que era uma pergunta que poderia pôr a si própria.

- Queria experimentar - disse Mattie.

Mattie tinha boa vista e apercebeu-se do homem que estava na varanda, antes da mãe. A miúda parou e baixou ligeiramente o peixe.

Brilharam-lhe os olhos num aviso, na recordação de um sonho mau.

O mensageiro, pensou Kathryn.

- Tudo bem - disse em voz baixa para a filha. - Chegou agora mesmo.

Atravessaram as duas o relvado, vindas da pesca, como inúmeras pessoas o tinham feito antes delas, a mãe trazendo a cana, a filha o troféu, o primeiro dos muitos peixes pescados numa vida. Na semana anterior, Mattie encontrara a cana de pesca e o xalavar na garagem, e recordara metodicamente o que Jack lhe ensinara no Verão anterior.

Kathryn não conseguira ajudá-la muito, nunca tinha gostado de pesca.

Mas Mattie estava decidida e aprendera a manobrar o equipamento, grande de mais, desenvolvendo ao mesmo tempo certa habilidade.

O vento mudara para leste e Kathryn sentiu imediatamente a leve frieza que este sempre trazia. Dentro de alguns minutos haveria carneirinhos no mar. Pensou então em Jack, como sempre fazia, sabendo que nunca mais sentiria o vento leste sem se lembrar do dia em que estivera na varanda, em que Jack lhe contara a oferta que tinha feito para a compra da casa. Era apenas uma das centenas de detonadores, de pequenos momentos. Aí estava de novo o vento leste.

Muitas vezes tinha esses momentos. Tinha-os acerca de Jack Lyons, Muire Boland e Robert Hart. Tinha-os com os aviões, com qualquer coisa irlandesa, com Londres. Tinha-os com as camisas brancas e também com os guarda-chuvas. Até um copo de cerveja lhe provocava uma recordação estilhaçada. Tinha aprendido a viver com elas, como se aprende a viver com um tique, um defeito na fala ou uma dor no joelho que, de vez em quando, se transmite a todo o corpo.

- Olá, Mattie - disse Robert quando a miúda chegou à varanda. Disse-o de um modo simpático, mas não exagerado, o que teria posto Mattie de sobreaviso e fazê-la ficar ainda menos à vontade do que Kathryn via que ela estava.

Mattie, bem-educada, disse também olá, mas voltou o rosto.

- É uma beleza - disse Robert.

Kathryn, observando Robert e a filha no mesmo enquadramento de visão, disse:

- Mattie tem estado a aprender a pescar.

- Tem oitenta e cinco, noventa centímetros? - perguntou Robert.

- Noventa e um - esclareceu Mattie, não sem uma certa nota de orgulho.

Mattie tirou a caixa dos utensílios das mãos da mãe.

- Vou arranjá-lo mesmo aqui - disse, apontando para um canto da varanda.

- Desde que depois passes a mangueira - respondeu Kathryn. Viu Mattie colocar o peixe no extremo da varanda. A miúda estudou as guelras de diferentes ângulos e depois tirou uma faca de dentro da caixa. Fez um corte experimental. Kathryn desejou que o peixe estivesse bem morto.

Robert dirigiu-se ao outro extremo da varanda. Quer conversar, pensou ela.

- Isto é muito belo - disse Robert, quando ela se encaminhou na sua direcção. Voltou-se e apoiou-se no corrimão. Estava a falar da vista. Via-lhe agora o rosto e pensou que parecia mais arguto do que o que se lembrava, mais definido. Deveria ser por causa da cor, do bronzeado.

- Tinha imaginado isto - acrescentou.

Ambos ouviram simultaneamente a recordação das coisas imaginadas.

As pernas de Robert também estavam bronzeadas e tinham pequenos pêlos louros. As dela estavam nuas, o que ele percebeu.

- Como está ela? - perguntou em voz baixa, o olhar como ela se recordava, intencional e arguto. Observador.

- Melhor - disse Kathryn em voz baixa para que Mattie não ouvisse. - Foi uma Primavera difícil.

Durante semanas, ela e Mattie tinham suportado a marca da raiva colectiva. Se Jack não se tivesse envolvido... diziam uns. Foi o teu pai que levou a bomba... diziam outros. Tinha havido telefonemas ameaçadores de desconhecidos, caras angustiadas de familiares, um plantão de repórteres à porta. Só o caminho para ir trabalhar, fora difícil, mas Kathryn recusara-se a sair de casa. Tivera de pedir à câmara de Ely que colocassem um segurança junto à sua casa. Os vereadores tinham-se reunido e votado e, o pedido invulgar fora, depois de grandes debates, inserido no orçamento, na secção a que davam o nome de Actos de Deus.

A necessidade de segurança diminuíra com o passar dos meses, mas Kathryn sabia que, nem ela nem Mattie recuperariam a vida normal. Isto era agora um facto, um dado das suas existências que todos os dias tinham de se esforçar por aceitar. Pensou no comentário de Robert a respeito dos filhos das vítimas de acidentes: Modificam-se com a desgraça e acomodam-se.

- Como está?

- Estou bem - respondeu.

Ele voltou-se, pôs a mão num poste e observou a relva e o jardim.

- Plantou rosas - disse.

Tentei.

- Estão bonitas.

- É uma tentativa louca, tão perto do mar - disse ela. No arco do jardim tinha Friars amarelas e Wenlocks cheias de espinhos; no rectângulo havia Cressidas e Prosperos. Porém pensou que preferia as Santa Cecilia, pelos seus centros vermelhos. Cresciam bem, apesar do ar marítimo. Kathryn gostava da extravagância nas flores, do luxo dispendioso.

- Devia ter-lhe dito logo de princípio - disse ele e ela ainda não estava preparada para aquilo. - Depois, mais tarde, sabia que se lho dissesse a perderia.

Ela ficou em silêncio.

- Tomei a decisão errada - disse ele.

- Tentou dizer-me.

- Não o fiz com muita insistência.

Pronto. Estava dito. Estava feito.

- Por vezes não consigo acreditar naquilo que aconteceu - disse Kathryn.

- Se os tivéssemos descoberto mais cedo, poderia não ter acontecido.

O que queria dizer era, se tivessem descoberto Jack e Muire mais cedo.

- A bomba deveria ter rebentado no meio do Atlântico, não é verdade? - perguntou ela. - Deveria ter rebentado onde pudesse deixar poucos indícios.

- Pensamos que sim.

- Porque não telefonaram imediatamente a dizer que tinha sido o IRA?

- Não podiam. Há códigos entre o IRA e a polícia.

- Assim esperaram simplesmente que a investigação descobrisse que tinham sido Muire e Jack.

- Com toda a paciência.

Kathryn respirou profunda e ruidosamente.

- Onde está ela?

- No Labirinto - respondeu. - Em Belfast. Ironicamente os terroristas lealistas também lá se encontram.

- Suspeitavam de Jack?

- Sabíamos que teria de ser alguém com aquela rota. Perguntou a si própria, e não pela primeira vez se uma mulher poderia perdoar o homem que a tinha traído. E se pudesse, seria uma afirmação? Ou seria simplesmente tolice?

- O pior para si já passou? - perguntou Robert.

Ela coçou uma picada de mosquito que tinha no braço. A luz era agora mais clara e intensificava-se na direcção do pôr do Sol.

- O pior é não conseguir sentir desgosto - disse Kathryn. - Como posso sentir desgosto por uma pessoa que talvez nem tenha conhecido? Que não era a pessoa que eu pensava que fosse? Apagou as minhas recordações.

- Chore o pai de Mattie - disse Robert, e ela percebeu que ele já tinha pensado no assunto.

Kathryn viu Mattie fazer um corte enorme das guelras à espinha.

- Não consegui afastar-me - disse Robert. - Tinha de vir. Percebeu que Robert também tinha arriscado. Como ela fazia agora com Mattie. Não revelara uma coisa quando o poderia ter feito.

Depois, voltando-se um pouco, de modo a ver o jardim da ponta da varanda como raras vezes acontecia - ou talvez fosse a configuração especial daquele ano - viu-o.

- Ali está - disse baixinho. Mattie, ouvindo a surpresa contida da voz da mãe, ergueu os olhos da sua operação cirúrgica, de bisturi na mão. - A capela - disse Kathryn, explicando.

- O quê? - perguntou Mattie, levemente surpreendida.

- O jardim. O arco, ali. A forma. Aquela coisa de mármore que pensamos sempre ser um banco? Não é um banco.

Mattie observou o jardim por um momento, vendo, Kathryn sabia-o, apenas um jardim.

Porém, Kathryn via as Irmãs da Ordem de São João Baptista da Benfeitoria ajoelhadas nos seus hábitos brancos de Verão numa capela de madeira com a forma de uma janela em arco; talvez tivesse ardido, deixando apenas o altar de mármore.

Aproximou-se do jardim.

Ver as coisas como são, pensou. E como sempre foram.

- Vou arranjar qualquer coisa para bebermos - disse a Robert, intimamente satisfeita com a sua descoberta.

Encaminhou-se para a sala, pensando em continuar até à cozinha, pôr chá gelado nos copos e cortar rodelas de limão, mas, em vez disso, fez uma pausa para olhar através de uma das paredes envidraçadas. No enquadramento da janela, Mattie tratava do peixe e Robert olhava-a do corrimão. Poderia ter-lhe mostrado como se metia a faca, mas aqueles eram os utensílios de Jack e Kathryn sabia que Robert esperaria o que fosse preciso.

Pensou em Muire Boland, numa prisão da Irlanda do Norte. Em Jack, cujo corpo nunca fora encontrado. Pensou que seria mais fácil suportar, se pudesse dizer que fora por a mãe o ter deixado quando era pequeno ou pela brutalidade do pai. Ou que tinha sido a influência de um padre no Sagrado Nome, ou a Guerra do Vietname, ou a meia-idade, ou o facto de estar farto da sua companhia. Ou então a busca de um objectivo na vida. Ou o desejo de dividir o risco com a mulher que amava. Mas sabia que poderiam ter sido todas estas razões ou nenhuma delas. A motivação de Jack, que Kathryn nunca conheceria, fora formada por bocadinhos de motivações, num mosaico espantoso.

Encontrou o bocado de papel onde o deixara uns momentos antes, metido debaixo do relógio do rebordo da lareira. Havia semanas que pensava em fazer isto.

Abriu o bilhete de lotaria.

Na varanda, Mattie ergueu uma posta de peixe e meteu-a num saco de plástico que Robert abria. Em Londres avia silêncio, tal como Kathryn pensara.

- Só queria saber se as crianças estavam bem - disse ela do outro lado do mar.

 

 

                                                                  Anita Shreve

 

 

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