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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MULHER QUE VENCEU / Max Du Veuzit
A MULHER QUE VENCEU / Max Du Veuzit

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A MULHER QUE VENCEU

 

- Bons dias, Delfina! Minha boa Delfina! Como me sinto contente por te ver!

De pé na soleira da porta, donde estivera espreitando a chegada dos amos, a velha criada juntava as mãos numa expressão de maravilhada surpresa:

- A menina Nicole! Santo Deus! É possível que tenha voltado, enfim? Não estarei sonhando? É a minha menina, com certeza?

- Claro que sou, Delfina! Toda inteirinha! Viva a saltar!

Era ela, na verdade, a fresca e juvenil rapariga que acabava de se apear lestamente do carro parado diante da porta! Correra cheia de vivacidade ao encontro de Delfina e abraçava-a e beijava-a nas faces - enrugadas como as maçãs ressequidas.

- Cá estou, minha boa Delfina, mas agora para sempre; desta vez é para nunca mais deixar a casa! Acabou-se o internato! E as religiosas! E as condiscípulas! Viva o papá e a liberdade! Viva a Delfina e toda a gente do Ragon, incluindo os cães, as galinhas e os patos.

E com profunda vénia rematou este radiante discurso.

No rosto da velha transparecia feliz sorriso.

- Ah! menina Nicole! Sempre a mesma! Tal qual como dantes... quando era pequenina: divertida, endiabrada, obrigando-me a fazer-lhe todas as vontades!... Mas... agora reparo! - continuou a comovida serva. - Já não é a menina pequenina doutros tempos, não! Vem uma senhora... Muito alta! E que linda!...

- Pois certamente que hei-de estar uma senhora! - exclamou rindo, Nicole. - Deves lembrar-te que acabo de fazer dezoito anos, Delfina!... Uma mulher, realmente... Lá quanto a ser alta e linda - acrescentou a jovem com graciosa e rápida careta -, isso é outra história!...

- Ora essa! Pode-se dizer-lho! - acudiu quase indignada a velha serva. - E eu melhor que ninguém, que nunca vi coisa tão miúda!

Forçoso se tornava reconhecer que a definição de «miúda» ia melhor a Nicole que os termos de alta e linda. Era, efectivamente, de tipo apequenado, estatura regular e harmonioso conjunto de indiscutível encanto. Possuía belos olhos claros e formosa cabeleira dum castanho quase dourado: mas, como se disse, mais baixa que alta, frágil e mimosa, conservava a sua expressão qualquer coisa de infantil ainda.

Se não houvera proclamado os seus dezoito anos, poderia dar-se-lhe quinze. Seu corpo era, no entanto, bem proporcionado e seus gestos leves, dóceis e vivos, não destoavam.

Feliz, satisfeita, Nicole repetia:

- Delfina, que contente me sinto! Que contente! E, antes de entrar em casa, voltou-se para um homem ainda novo, de fisionomia enérgica, pele bronzeada, o qual acabava de descer por sua vez do carro que os trouxera e se ocupava em reunir a bagagem.

- Vem depressa, papá querido! Deixa as malas e vem fazer-me as honras da tua casa.

Falava num tom simultaneamente imperioso e piegas de menina mimada.

O homem ergueu a cabeça e sorriu, os olhos encantados pela graça primaveril da rapariga.

- Na nossa casa, Nicou - rectificou com paternal carinho.

Depois, passou-lhe o braço por cima dos ombros débeis e assim entraram ambos na sala do rés-do-chão, que era vasta.

- Como vês, querida filha... nada mudou. O teu quarto está pronto. Toda a casa te esperava!

Iam da viva claridade da manhã soalhenta, pelo que a casa, ao entrarem, lhes pareceu sombria; e, antes de mais nada, logo ao olfacto acudia esse aroma particular das velhas casas de campo onde se conservam guardados os frutos do pomar e se acendem, durante a maior parte do ano, os grandes fogos de lenha na lareira secular.

Nessa manhã um rico odor de pêssegos maduros pairava - e Nicole encontrou nesse odor, ao qual se aliava o da cozinha, aquela atmosfera acolhedora da casa que a encantava sempre, de cada vez que ali ia passar as férias.

Como era bom tudo aquilo! Que prazer tomar a ver os móveis familiares, tão simples, de carvalho escuro; o ingénuo ramo de flores colhidas pela Delfina e até essa estranha impressão das casas lhe parecerem mais pequenas do que a sua recordação acusava... Essa impressão provinha certamente dos seus olhos habituados às grandes aulas e aos imensos dormitórios do Pensionato... comparação que a sua retina involuntariamente registava.

De ordinário, Nicole pouca atenção dava a essas coisas familiares; só por dias ou semanas vinha ao Ragon passar o escasso período das férias. Desta vez, porém, outro era o caso. Nicole examinava tudo com maior atenção; todas essas coisas se revestiam para ela dum novo aspecto, porque a casa, em vez do quadro passageiro de sempre, ia ser doravante o lar onde ficaria a viver, o lar entregue aos seus cuidados.

E já Nicole lançava sobre cada canto e cada móvel olhares reformadores, organizadores... Os dois meses que acabava de passar na Alemanha, a fim de se aperfeiçoar no idioma aprendido no Pensionato, tinham-na instruído ao mesmo tempo no tocante à utilidade de certos arranjos e sobre certas preciosas comodidades domésticas.

Trazia nesse sentido a cabeça repleta de projectos; mas, ide momento, sentia-se absorvida pela forte alegria do regresso. Modificações, se as havia a operar na velha moradia, constituíam assunto para depois.

Nesse dia só uma coisa desejava: ser feliz, plenamente feliz... fruir, sobretudo, a felicidade de tornar a ver seu pai!

Acabava de lhe lançar carinhosamente os braços ao pescoço, e, obrigando-o a curvar-se para o poder beijar, num beijo lhe segredou:

- Nunca mais te deixarei, querido paizinho! Já pensaste bem nesta felicidade? Este ano não venho a férias! Venho, mas para ficar sempre junto de ti! Ah! Que bom vai ser!

E suspensa do sólido ombro paternal, mostrava-se venturosa com aquela afeição profunda, por aquela confiança recíproca que os unia e dessedentava a ternura do seu juvenil coração.

- Sim, minha Nicole, a tua companhia vai ser uma grande felicidade para mim! Já há muito que desejava isto.

- Então porque me deixaste tanto tempo longe de ti? Porque não me foste buscar logo que alcancei o meu diploma?

- Não se tornava oportuno, minha filha. Já to expliquei. A nossa casa, o Ragon, está num sítio encantador... para quem ama a paz da solidão e do campo! Mas, enfim, sempre é estar-se metido e perdido no coração dum bosque, isolado por completo. E havemos de concordar que tais condições nenhum recurso oferecem à necessária educação duma rapariga... Fiz, portanto, o sacrifício de viver separado de ti por mais dois anos... mas agora acabou-se...

- Querido paizinho! Compreendi... No entanto...

- Assim foi preciso, Nicole... desejei que aperfeiçoasses os teus estudos e que vivesses, também, num meio mais alegre, entre as companheiras da tua idade. Agora já tens amigas com quem te possas corresponder, a quem possas convidar, que venham cá visitar-te... Não queria de forma alguma que te sentisses isolada ou aborrecida junto de mim, pois já estou velho...

- Psiu! - ordenou Nicole, tapando com a pequenina mão a boca do pai. - Psiu! Não quero ouvir coisas dessas! Onde posso, porventura, estar mais feliz e melhor que junto de ti?

Luciano Grammont sorriu, vagamente melancólico.

A filha era sincera, nesse momento, sabia, porém, que viria a época em que Nicole desejaria... um outro amor, outra companhia... E encontraria ela, noutra afeição, a felicidade?

Quanto gostaria que assim fosse! Nessa filha única concentrara todo o afecto que nutrira pela esposa, muito cedo arrebatada pela morte ao seu amor... a mãe de Nicole, que esta mal conhecera.

Quisera ser então para a criança ao mesmo tempo o pai e a mãe; desejara juntar à forte protecção do seu coração de homem, os extremados carinhos que a falecida lhe teria prodigalizado... Como infelicidade, não bastara já a Nicole sofrer a falta de sua mãe?

Afastando para longe tristes pensamentos, Luciano abraçou a filha e afirmou:

- Não nos deixaremos mais, seremos tão felizes. um como o outro... Agora, Nicole, reapossa-te do teu quarto, faz as tuas abluções, necessárias depois de tamanha viagem... E, em seguida, iremos almoçar!

No seu quarto encontrou Nicole sobre a mesinha, perto do leito, e sobre a pedra do fogão, lindas rosas. O pai colhera-as por suas mãos e por suas mãos as dispusera nas jarras que mais estimava.

Nicole sorria, comovida por essa atenção quase feminina, atenção que não seria de esperar da parte dum homem enérgico como Luciano Grammont, primeiro picador ao serviço do duque de La Muette, e que, de vontade rude, a todos dominava com as suas ordens.

Efectivamente, Grammont, mais por natureza do seu ofício que por temperamento, via-se obrigado a exercer firme autoridade sobre o pessoal de caça e de guarda adstrito ao serviço do poderoso senhor. Tinha Luciano pulso livre e carta branca em tudo que respeitava a caça; e nada escapava à sua infatigável actividade; nada que pudesse lesar o bom estado das equipagens ou afectar a vigilância das terras e dos bosques lhe passava; era rigoroso em cumprir quanto lhe competia observar no respeitante ao defeso da caça.

Filho de boa família, género de lavrador fidalgo, Grammont vivera outrora dias prósperos e livremente gerira as terras e domínios duma propriedade herdada de seus pais. Mas a guerra arruinara-o por completo; então, a fim de poder custear as despesas de educação da pequenina Nicole, vira-se forçado a servir os interesses alheios.

A um dos seus antigos companheiros de armas, camarada de maus dias, devia a sua actual situação. Fora o duque de La Muette quem, como proprietário de imensos domínios magnificamente organizados e destinados às grandes caçadas, lhe oferecera as funções de feitor e de primeiro picador.

Senhor duma das últimas e melhores equipagens da França, vivia o duque orgulhoso do seu título de lugar-tenente de montaria, título herdado dos seus antepassados, que haviam sido, alguns deles, monteiros-mores nos tempos da Monarquia.

Caçava-se com galgos nas propriedades de Muette, várias vezes no ano. Isto obrigava à manutenção duma das mais valiosas matilhas desse tempo e de numeroso pessoal respectivo, constituído por guardas, canteiros, criados de canil, amestradores e batedores, porque o duque de La Muette, embora homem moderno, não desdenhava a caça de montaria e as raças de seus cães e cavalos eram cuidadosamente apuradas.

Pessoal e animais achavam-se, pois, entregues aos cuidados vigilantes do pai de Nicole. E tal situação conviera-lhe em absoluto. Além de gozar de apreciável liberdade, podia dar aplicação à sua necessidade de agir, ao seu espírito de iniciativa e às suas qualidades de energia.

Sabiam-no justo, probo; e rigoroso era-o tanto consigo próprio como com os outros; por esta razão se via tão querido quão respeitado pelos seus subordinados.

E nesse pavilhão do Ragon, construído no século dezoito, no seio da floresta - a uma hora de caminho do castelo - o pai de Nicole, auferindo bons honorários e o direito de habitação, gozava quase completa independência.

Em suma: Grammont vivia contente com a sua sorte, pois uma vez assegurado o bem-estar da filha, nada mais ambicionava que continuar a merecer a confiança amigável que o duque lhe dispensava. Dele próprio se comprazia em dizer que mais não era, na realidade, que um simples guarda-caça; e fazia este comentário sem azedume, proferindo-o até com bom humor. O facto de ter adorado sempre a vida rural e campestre permitia-lhe viver sem contrariedade nos seus gostos;     tão-pouco se sentia humilhado ante o proprietário de tudo aquilo, porquanto este, na sua simplicidade de grande senhor, o tratava como camarada da época em que, na qualidade de irmãos de armas, tinham vivido ambos nas trincheiras, expostos aos mesmos perigos.

Mas o que Grammont apreciara acima de tudo nas vantagens pecuniárias da sua situação, fora a possibilidade destas lhe permitirem dar a Nicole uma educação correspondente ao seu grau social de outrora, educação digna principalmente da mulher instruída e educadíssima que fora a mãe de sua filha. Por isso mandara educar a órfã num dos melhores internatos das cercanias de Paris.

O meio era bom, elevado, mas pouco aberto à vida moderna. A proximidade da capital nada tirara ao seu carácter provinciano ligeiramente antiquado. Falando o alemão, sabendo bordar e coser, Nicole saía aos dezoito anos suficientemente instruída; sabia arranjar-se, cantava e tocava piano com bastante habilidade, mas nada conhecia do Mundo nem das realidades da existência.

Seu pai achava-a encantadora assim. À ciência das convenções e pragmáticas mundanas, que a filha ignorava com verdadeira incúria, preferia Grammont essa encantadora e desenvolta ingenuidade com que Nicole executava qualquer coisa.

E contemplava-a com amor - sentado agora na sua frente, à mesa do almoço.

Sobre a toalha de esplêndida alvura, distinguiam-se os pratos de florida faiança, o pão fresco e a fruteira carregada de saborosos frutos, perto do canjirão de vinho novo.

No meio do cenário campesino, e trajando um ligeiro vestido de musselina com pintas cor-de-rosa, tinha Nicole o aspecto duma princesinha de lenda, vinda de longínquo país a fim de espiritualizar com a sua juventude o pavilhão, silencioso à sombra dos frondosos pinheiros.

E como a rapariga contasse com vivacidade certa aventura acontecida durante a sua viagem à Alemanha, pareceram o seu sorriso e o seu entusiasmo harmonizar-se mais ainda com esse ambiente campestre, sim, mas cuidado e elegante.

Compreendeu Luciano Grammont a faculdade de adaptação que transparecia em sua filha e com isto se sentiu intimamente feliz. E assim traduziu o seu contentamento:

- É curioso, querida Nicole, o que sinto ao ver-te, tal qual estás, diante de mim. Parece que nunca aí deixaste de estar, que aí estiveste ontem... anteontem... sempre. Ficas tão bem nesse lugar que nem sequer me recordo de como era esta mesa quando não estavas sentada a ela... O teu sorriso, o teu chilrear!... Não posso compreender agora como pude viver sem a minha querida avezinha!

- Ainda bem que assim é! - exclamou Nicole alegremente. - Dessa forma não pensarás mais em te separar de mim. Também me sinto radiante, papá, juro-to! Verás como vou organizar uma vida deliciosa para nós dois. Quero que gozes da maior felicidade e do maior repouso junto da tua Nicou!

O pai sorria; e, de comovido, humedeceram-se-lhe os olhos.

Pelas persianas semicerradas coava-se o sol de Agosto. Ouvia-se lá fora, na radiante luzerna, o alegre zumbir das abelhas... No Ragon tudo parecia mais aprazível e ridente desde que Nicole chegara e se conservava diante do pai...

E Luciano Grammont sorria - parecendo nada mais visionar do que a continuação dessa tranquila felicidade.

 

Uma por uma, todas as janelas iam sendo abertas...

Ao escancararem-se via-se aparecer por instantes na quadratura de cada uma delas o rosado rosto de Nicole, que logo desaparecia para surgir na seguinte, aberta por sua vez à claridade e ao ar fresco. Daí a pouco aspirava o pavilhão, por todos os seus respiradouros, a brisa matinal que vinha da floresta.

Era muito cedo ainda; mas quisera Nicole aproveitar justamente essa hora em que o calor não apertava para passar revista geral ao seu feudo.

A juvenil rapariga conhecia bem, evidentemente, todo esse adorado Ragon, onde cada canto lhe acordava na lembrança as horas mais felizes da infância. E, embora desejasse torná-lo mais confortável por meio de arranjos interiores apropriados e mais conformes com as exigências da vida moderna, por coisa alguma deste Mundo quereria modificada a simples e graciosa harmonia daquela fachada século XVIII, com as suas três janelas de portas envidraçadas, no rés-do-chão, e as lucarnas circulares que iluminavam as casas do primeiro andar.

O Ragon, modesto, simples, elegante, era um antigo ponto de reunião de caçadores, igual aos que ainda hoje se escondem no frondoso interior das velhas florestas da Sologne.

Só uma dependência tinha espaçosa proporção: a antiga sala onde os caçadores se reuniam. Fizera Grammont dessa casa uma espécie de escritório seu, carregara-o de papéis que se encontravam mais ou menos em ordem e ali conservava também, além da mesa a que tomava as refeições, o antigo cadeirão, sentado no qual - no Inverno perto do fogão, no Verão junto da porta - todas as tardes fumava pensativamente a sua cachimbada.

Esta sala e o quarto monacal em que entrava somente para dormir, eram os únicos lugares habitados em toda a casa por Luciano.

O resto do pavilhão conservava-se fechado, excepção feita à cozinha e ao quarto de Delfina, que ficava no último andar.

Com Nicole acabavam de entrar, porém, no Ragon, a vida e a mocidade. Tudo se abrira e parecia rir ao sol da manhã ou ao entardecer anunciador dum esplêndido serão.

Logo no dia imediato ao da sua chegada, Nicole procedera a determinadas inspecções. Dera-se a procurar e a examinar quanto havia esquecido nos sótãos e desvãos, buscando recursos no precioso conteúdo dos grandes armários.

E depois, sentada a um canto do seu quarto, no meio dum montão de musselinas brancas, passara o tempo a cortar, a medir, a combinar...

Durou esse trabalho alguns dias.

Por fim, decorrida uma semana, Nicole procurou o pai; e, pegando-lhe na mão, conduziu-o à entrada do seu quarto.

Tudo estava transformado.

O antiquado leito de madeira desaparecera. Um divã arranjado com o colchão e com os almofadões substituía-o. Os velhos cortinados de musselina engomada, agora remoçados e cortados doutra forma, velavam as duas janelas, enquanto que um vetusto bonheur du jour já desenvernizado, mas de encantador feitio, bem como certa cómoda maneirinha e torneada, acabavam de dar o estilo àquele quartinho cheio de simplicidade.

- Bravo, Nicole! Que mãos de fada!

- E consentes-me, paizinho, que modifique também a sala?

- Até to agradeço, minha filha... Se é a minha juventude, as coisas do tempo de tua mãe que estás fazendo renascer!

Assim encorajada, Nicole atirou-se ao resto da casa.

Tudo foi então revolvido.

Por política - e sobretudo porque a cozinha estava bem como cozinha - absteve-se de tocar nos domínios de Delfina.

Usou até de finura especial. Elogiou e felicitou a velha criada pelo arranjo em que tinha as suas coisas, com o que logrou obter a sua ajuda em todas aquelas andanças e mudanças.

Assentou-se em que pai e filha passariam a comer numa casa pequena, situada mais perto da cozinha que a sala grande.

- Assim a Delfina terá menos que andar para servir à mesa.

E a boa velha, toda contente, ajudava com a melhor diligência aquela juvenil dona de casa a prosseguir na transformação. Sem se queixar, lavava e passava a ferro os antigos panos de Jouy, com figuras, dos quais Nicole esperava fazer ornamento que desse magnífico realce à nova sala de jantar.

- Será crível, menina, que tenha feito tudo isto, tão bonito, com traparia velha?...

Mas a obra-prima da reformadora foi a casa de entrada, a sala propriamente dita.

Assim se chamaria de futuro à casa de fora, transformada e modernizada o mais possível.

Via-se a um canto um bonito divã de florido cretone; várias estantes para colocação de livros; nas janelas alegres cortinados novos, feitos dum cretone velho, decorado a pássaros vermelhos e azuis, e logo se deparavam por toda a parte, em cima do divã, sobre as cadeiras, almofadas garridas, de cores vivas; a cada canto vasos envernizados, cheios de flores...

Tudo isto, como é natural, não fora feito num só dia.

As semanas, e mesmo os meses, haviam passado, entretanto.

Satisfeito de ver a filha interessar-se de tal modo pelo embelezamento da casa, ajudara-a Luciano no que pudera. Fizera-lhe assim a surpresa de mandar instalar um aparelho de telefonia, instrumento que, nesse perdido recanto da floresta, constituía preciosa distracção.

Grammont receara por vezes que Nicole se aborrecesse no Ragon.

Ausente durante a maior parte do dia, preso sempre às suas obrigações, às voltas de inspecção devida a todos os pontos da imensa propriedade, na área da qual ficavam espalhadas as casas dos guardas, os cerrados, cocheiras e canis, temera Grammont o efeito daquela solidão no ânimo da pequena, que tão nova era.

Mas Nicole despendia actividade tal que o tempo não devia nem sobrar-lhe nem pesar-lhe; e o pai, de cada vez que entrava em casa, sempre lhe ouvia o riso ou o cantar, com o que sossegava.

Na verdade, Nicole era feliz, pois, de momento, pelo menos, a vida activa e livre que levava satisfazia absolutamente os seus desejos.

Outubro chegou. A floresta revestiu-se do seu sumptuoso manto de ouro; a púrpura dos castanheiros surgia, misturava-se ao amarelo vivo dos plátanos e ao ocre sombrio das carvalheiras majestosas.

Pela primeira vez Nicole viu os bosques em todo o seu esplendor. Quis por isso acompanhar o pai nas suas jornadas. E deram ambos longos passeios por entre o admirável cenário de Outono.

Depois vieram as primeiras borrascas sacudir os arvoredos espessos e o solo cobriu-se de maravilhoso tapete. Tanto debaixo dos pés como nos cimos da floresta, portentoso colorido composto de todas as gamas se distendia.

As primeiras invernias acentuavam-se, a preceder as grandes caçadas que Nicole esperava com impaciente curiosidade.

Sua alma palpitava de deslumbrada comoção quando ouvia da boca do pai o relato das pompas faustosas próprias duma grande caçada... E a jovem a si própria perguntava se não pusera tanto ardor e entusiasmo no alindamento da casa, simplesmente por saber que o duque e os seus convidados iam ali ao pavilhão repousar algumas vezes...

Inconscientemente, Nicole guardava talvez em seu âmago a imprecisa nostalgia de uma outra vida... duma vida mais rica... a existência que seu pai e os seus ascendentes haviam vivido outrora...

 

Certa manhã sentiu Nicole um arrepio ao abrir a janela do seu quarto: o frio viera bruscamente.

As vastas lagoas melancólicas orlavam-se de gelo: o solo endurecido ressoava sob os passos; uma noite bastara para despir as árvores das últimas folhas pendentes dos seus troncos.

- Não tardará que o duque de la Muette me anuncie a sua chegada - disse Grammont à filha. - Os guardas já me anunciaram o rasto fresco dos javalis e eu telegrafei ao duque, dando-lhe a boa-nova.

- Oh! - exclamou Nicole. - Quanto me está a interessar ver uma caçada a cavalo!

- O que deves é pensar no trabalho que isso nos vai dar, a mim e a ti. Durante dois ou três dias não me verás nem a sombra; tenho de cuidar de tudo... A primeira caçada requer sempre maior atenção.

- Mas... e eu?

- Tu também terás de te mexer, fazer preparativos. Deves lembrar-te que és agora a dona da casa, no Ragon.

- Mas os caçadores vêm cá?

- Assim costuma suceder. Habitualmente, salvo caso imprevisto, a caçada termina da banda dos Quatro Caminhos, perto da lagoa do Norte... Não fica longe daqui e é tradição virem os caçadores descansar e aquecer-se ao lume do Ragon.

- Oh! Paizinho! A ideia da visita dessas pessoas, que não conheço, intimida-me!

- Ora adeus, Nicole. Não deves fazer-te bicho de mato! Estou convencido de que o duque de la Muette vai ficar contente de te ver. Pede-me sempre notícias tuas... Tu conhece-lo; sabes quanto é amável connosco... Estou certo de que também vais ficar encantada de o receber...

- Com esse, sim, está bem! Mas... e os outros?...

- Os outros são tão cavalheiros como ele... Intimidares-te, porquê? Há-de fazer bastante frio e bem contentes se sentirão em poderem aquecer-se a um bom lume, aceso numa casa tão lindamente preparada pela minha fadazinha... Depois, terás ocasião de lhes ofereceres um copázio daquele belo grogue de canela, de cuja preparação Delfina tem o segredo. E o grogue, quentinho, acabará por lhes dar bom humor. Verás como te há-de alegrar a vinda deles ao Ragon.

- Como és bom, papá! Sabes encontrar sempre as palavras que me animam e dão coragem.

E o pai depôs comovido beijo na fronte da filha.

- Só desejo facilitar a missão que te compete. Tua mãe não está infelizmente aqui para te guiar; cumpre-te tentar substituí-la.

Docemente, em resposta, Nicole murmurou:

- Meu adorado papá...

E, com meiguice, a interessante rapariga, passando os braços ao pescoço do pai, acariciou-o.

Então, a partir desse dia, Nicole teve exclusivamente um pensamento: preparar o Ragon para bem receber os convidados do duque de la Muette. Queria límpido e resplandecente o pavilhão; desejava que toda a casa, enfeitada de flores e oferecendo o máximo conforto, se mostrasse acolhedora.

Neste intuito, adestrou Delfina a servir correcta e prestamente uma chávena de chá ou um refresco. Ela própria quis tornar-se capaz de improvisar, num ápice e nesse perdido recanto, qualquer colação.

A idosa criada, incessantemente chamada e importunada pela jovem ama, a princípio resmungava:

- Burro velho não aprende línguas. Na minha idade não há direito de se fazerem tantos ensaios e repetições!

Porém, suas grossas mãos inábeis habituavam-se, enfim, a manejar habilmente os naperrons de rendas, as finas porcelanas, os frágeis cristais; e tão bem que, ao fim duma semana, Nicole abraçava satisfeita a velha serva, conferindo-lhe o título de primeira camarista da Sologne.

- És espantosa, minha boa Delfina! Os nossos visitantes vão ficar boquiabertos.

O teu serviço vai ser tão impecável que... verás!... todos hão-de ter a mesma ideia: roubar-te a mim no intuito de te levarem para o serviço das casas deles.

- Menina, não diga heresias! Que farei eu, com esta idade, longe de si e de seu pai? Já fez vinte anos que aqui estou... Tinha que ver: abandoná-la a si, que eu criei, para ir para casa de estranhos! Sempre tem ideias!

- Não te zangues que te fazes feia! Bem sei que não nos deixavas. Eu também não podia passar sem ti; mas sinto-me orgulhosa da tua pessoa; agrada-me que te admirem e sinto-me regozijada em possuir uma pérola da tua espécie.

Comovida, lisonjeada, a velha não protestava. No íntimo também sentia certo orgulho em fazer ver que sabia tanto do serviço como toda «essa lacaia-gem agaloada da cidade, como todas as criaditas de avental branco lá da terra».

Um telegrama enviado pelo duque de la Muette e dirigido ao guarda-mor, apareceu efectivamente. Prevenia Luciano de que devia ter tudo preparado, a fim de se realizar a primeira grande caçada.

- O duque chega amanhã ao castelo - comunicou Grammont à filha. - Não virei a casa durante alguns dias. Aviso-te para não estares em cuidados.

- E eu não te posso acompanhar, papazinho?

- Não! Agora, minha filha, já não se trata de passear; agora tenho de preparar tudo por forma que não surjam depois estorvos ou dificuldades. Por teu lado, deves verificar igualmente se nada te esquece.

- Ah! Eu! Tenho tudo pronto.

Mas, com sobressaltada ansiedade, Nicole pensou que o mais difícil estava, todavia, por fazer: saber dominar a timidez que a apoquentaria, que infalivelmente a perturbaria diante de toda aquela gente!

 

Ia a caçada no seu auge: a floresta, varada pelos toques de trompa e cornetas de caça, ressoava.

Madrugada ainda, Nicole acompanhara o pai ao castelo e assistira à partida dos caçadores: o duque de la Muette e os seus convidados, trajados de vermelho com prateados, seguiam precedidos das matilhas de cães, que a criadagem azafamada conduzia, e de Grammont, airoso no seu vistoso fato de picador.

Depois da sua infância não tornara Nicole a ver tal espectáculo, em consequência de, todos os anos, na época das caçadas, se encontrar já a contas com os estudos no Pensionato.

Logo que os caçadores se distanciaram entrou a rapariga apressadamente no pavilhão. Uma hora de caminho separava o castelo de la Muette do Ragon e, como não se pudesse prever o tempo que duraria a caçada, tornava-se necessário obstar a qualquer atraso na recepção devida ao castelão e seus hóspedes.

Tudo no pavilhão estava em ordem e a postos. Enorme lumaréu ardia na boca do fogão; por todos os lados se viam flores que iam desde o crisântemo purpúreo às últimas folhas douradas do Outono.

O pálido sol de Novembro ultrapassara a sua culminância... a tarde avançava... Nicole e Delfina esperavam. Os caçadores deviam estar próximo. As duas mulheres tinham ouvido o toque de «caça à vista» havia um momento já... E nada mais.

Súbito, porém, antes que as trompas voltassem a soar, enorme alvoroço veio rodear o pavilhão. Grande tropel batia o solo... Ama e criada distinguiram a tropeada dos cavalos, o ruído de vozes que se aproximavam.

Curiosas, debruçadas na janela da cozinha, Nicole e Delfina tentavam   aperceber-se do que acontecera.

Mas, de repente, sentiram abrir-se a porta da sala; correram para dentro. E Nicole viu entrar o pai com o duque de la Muette.

Ambos muito sérios, traziam o parecer carregado... E atrás deles, em vez dos convivas esperados, quatro vigorosos criados entraram na sala, transportando em maca improvisada com ramos de árvores e cordas, um homem novo e louro que vinha de olhos cerrados e fisionomia contraída pelo sofrimento.

Apertou-se de angústia o coração sensível de Nicole. Pálida, correu para o pai.

- Que aconteceu, papá? - perguntou, assustada,

- Um acidente.

- Vem morto?

- Não - respondeu Luciano Grammont. - Acalma-te, Nicole. Um primo do senhor de la Muette, lorde Blackenfield, deu uma queda do cavalo... Não deve ser grave! Ouve... corre a dizer à Delfina que prepare já uma tarraçada de grogue... deve fazer bem ao ferido.

Encontrado o meio de afastar a filha, procurando ao mesmo tempo torná-la útil, o que era a melhor maneira de apaziguar a sua comoção, Grammont voltou a ocupar-se do ferido.

Estenderam-no no divã; aconchegaram-no bem nas almofadas e o jovem mostrou sofrer menos que durante o transporte na maca rudimentar.

O duque de la Muette tomava-lhe agora o pulso.

- O pulso está bom - declarou.

O ferido abriu os olhos; distendeu o olhar, vago, pelas pessoas e coisas que o cercavam. Como os tornasse a cerrar, o duque debruçou-se a perguntar-lhe:

- Então, Harry, como se sente?

- Bem... obrigado... muito bem... - respondeu o interpelado com forte pronunciação inglesa.

- Muito bem é, talvez, exagerar - volveu o duque, num sorriso. - Deu uma queda de alto lá com ela!

- Sim... caí... dei uma queda de respeito... Perdi a consciência...

- Perdeu os sentidos, não é o que quer disser?

- Yes.

- Mas não por muito tempo... É verdadeiramente enérgico e resistente, senhor meu primo... homem rijo, como poucos.

- No... como poucos. Forte... nada mais - contrapôs Harry com modéstia.

E quis mexer-se.

- Ai! - gemeu. - Julgo que fracturei qualquer coisa.

- Tem muitas dores?

- Yes... a perna... Aqui... está partida... e todo este lado... ai! dói-me muito também!

Grammont acabava de ajeitar melhor as almofadas à perna dolorida, quando um criado, que o duque de la Muette mandara ao castelo logo que se dera o acidente, chegou a dar conta da sua missão:

- Telefonei para a vila, para casa do médico. Prometeu que vinha.

- Falaste mesmo com ele?

- Sim, senhor duque: com ele próprio.

- E vem já?

- Disse que ia meter-se no automóvel e que estaria aqui dentro dum quarto de hora... com uma enfermeira.

- Muito bem! - exclamou o duque, que começava a inquietar-se com o amigo.

Em seguida, afastando-se do divã onde Harry descansava, falou particularmente ao guarda-mor:

- Grammont: receio muito que o meu primo não possa sair daqui... Se assim for, terá de suportar o transtorno de o ter cá por uns dias... Não diga que não lhe causa transtorno... À cautela mandei que viesse uma enfermeira, a fim de dispensar ao ferido todos os cuidados...

Nesse momento a porta abriu-se e Nicole entrou: trazia uma grande tigela de grogue a fumegar entre as mãos. Parou à beira do divã; depois, silenciosa, olhando o rapaz estendido, hesitou em o incomodar.

Mas, como se pressentisse uma presença de mulher, lorde Blackenfield abriu os olhos.

Distinguiu, através do ligeiro vapor que se elevava do líquido quente, aquele rosto fresco que a emoção ruborizava e também o busto gracioso, moldado por um pull-over de alvíssima lã... E esqueceu-se de falar francês!

- Oh! lovely! - exclamou. - Very lovely indeed! (1).

De inglês, pouco Nicole compreendia. Fez-se vermelha como papoila... No entanto, não saberia dizer se o que o jovem lorde tão amavelmente acabara de elogiar se referia à sua hospitaleira atitude se à sua humilde e simples pessoa.

 

(l) Oh! Adorável! Verdadeiramente simpática e amável, sem dúvida!

 

Harry acordou manhã cedo.

A luz indecisa duma gelada manhã de Novembro entrava pelas frinchas das portas de dentro das janelas, ainda não abertas.

Por efeito da injecção de morfina que a enfermeira lhe aplicara depois de feito o primeiro penso, a horrível dor acalmara-se-lhe e o ferido caíra em profundo sono.

Agora, ao acordar, sentia a cabeça esvaída e azamboada, não compreendendo, no seu estado febril, por que motivo se encontrava nessa enorme sala onde os cortinados de florido cretone e o geral aspecto, simultaneamente confortável e rústico, lembrança alguma acordava no seu espírito.

Fora, o vento soprava tempestuoso, arrancando aos arcanos da floresta, através dos imensos arvoredos, esse ruído especial que lembra o reboar do órgão.

- Casa desconhecida... numa floresta! Hello!... Não estarei sonhando? - perguntou a si próprio o enfermo.

E após um minuto de atenta observação, continuou:

- No. Não sonho... nem tão-pouco abusei do cocktail... Aqui há coisa: estarei acaso no país de Merlin, entregue aos feiticeiros? Mas não há que ver...

Quis soerguer-se; uma dor agudíssima fê-lo recair, porém, sem forças sobre o travesseiro.

- Ai! Prisioneiro do leito! Malefício! Bruxedo! Mau, mau!...

E, para fugir ao cansaço da sua posição de costas, procurou virar-se. Mas, ao tentar esse segundo movimento, a memória acordou-se-lhe subitamente:

- Ai... Agora me lembro!... Tenho as costelas partidas! Bonito serviço! Estou arranjado!

Era, de facto, para aborrecer; e Harry manifestou o seu mau humor por um assoprar que exprimia a raiva de se sentir assim imobilizado, perdido no fundo dum bosque, nesse escuso recanto da Sologne.

- Não me poder mexer e ter livre a ideia para pensar de noite e de dia, sem fim! Muito lindo! Isto vale os nevoeiros de Londres, realmente. Ah! Meu rapaz: vais minar-te de spleen e o spleen não é lá grande companheiro...

E o ferido recordava agora, com nitidez, as circunstâncias devido às quais ali estava estendido.

O médico viera no dia anterior, à tarde... Depois de tactear cuidadosamente o lado dorido, e também a perna inchada, o cirurgião diagnosticara:

- Três costelas partidas e fractura do peróneo... talvez também fractura da tíbia... Nada de grave... - insistira ante o gemido do paciente, que indicava a perna e fazia caretas de dor. - Nada de grave! A consolidação far-se-á natural e normalmente sem deixar defeito: prisão do joelho ou encurtamento da perna.

Recordava-se Harry de quão agradável lhe fora ouvir tal diagnóstico.

Em suma: não sofrera lesões graves. Era o principal.

Mas o médico determinara repouso obrigatório:

- Três semanas de paciência, um mês talvez. Se o tratamento for seguido à risca, nem mesmo pensarei em cá voltar.

Para o belo e sólido rapaz que era Harry, a ideia de ficar tolhido ou manco, aleijado para o resto da vida, aparecia-lhe como coisa insuportável.

Agora, a si próprio repetia:

- Não ficar aleijado! All right! Oh! Mas quem há-de ter coragem para estar aqui um mês, imobilizado nesta solidão e nesta espécie de frigorífico!

Nesse instante, porém, a porta do improvisado quarto acabava de se abrir docemente.

Sem mexer o torso, voltou a cabeça e, decidido a não permitir que a tristeza se apossasse de seu espírito, disse alegremente:

- Oh! yes! Cá estou num reino de fadas. Aí vem uma! Quem é esta? Ah! Sim! Esta é a fada Carabosse... All right!

Riu alto e com seu pronunciado sotaque inglês, exclamou:

- Bom dia!

Delfina, que entrava ajoujada ao peso de enorme braçado de lenha, parecia-se efectivamente com a fada Carabosse; vinha, porém, reanimar o lume do fogão e não lançar mau olhado.

Arreou a lenha junto da boca do fogão e aproximou-se do ferido.

- Muito bons dias, senhor duque... O senhor duque dormiu bem?

Todos os titulares eram para Delfina um «senhor duque».

Não percebendo que se tratasse dele, lorde Blackenfield ergueu ligeiramente a cabeça e dirigiu à serva amável sorriso:

- Generosíssima a velha fada... mas... dá-me o título a mim ou toma-me por meu primo?

Quando se retirou, Delfina deixou a flamejar na boca do fogão óptimo lume. Veio depois a enfermeira que, muito séria na sua bata branca, logo começou com um à-vontade profissional a cuidar do necessário ao tratamento e ao bem-estar do ferido.

Era a enfermeira mulher forte, nada bonita, desgraciosa mesmo, possuidora duma catadura onde raro abria o sorriso.

Harry, que lhe seguia com a vista todos os passos, não cessava de repetir a si próprio:

«Três semanas nisto. Oh! yes, que divertido vai ser!»

E recaía em enfadado silêncio.

Todavia o seu aborrecimento não o impedia de conjecturar:

«Mas nesta casa não haverá mais gente além desta hirta senhora Thomas e da velha fada Carabosse?»

E relembrava a sala, cheia de gente na véspera, quando ali chegara estendido na improvisada maca. Lembrava-se do duque, seu primo, que, muito solícito e amável, organizara tudo, mandara chamar o médico, ordenara a vinda da enfermeira, olhara por quantos cuidados lhe deviam dispensar. Mas, como tivesse mais convidados, a quem devia as suas atenções, ausentara-se, seguira a sua vida logo que tranquilizou o espírito sobre o estado de Harry. Prometera vir vê-lo todos os dias... Infelizmente para o ferido, a visita do primo não representaria mais que um alívio de escassos instantes nas longas horas de tédio.

Tivera na véspera em seu redor todos os outros caçadores, os convidados do duque, pessoas que, na sua grande maioria, apenas algumas horas se demoravam no castelo.

Mas tudo isso nada era, visto que Sabina não estava ali! Todo o rancho de caçadores sem a presença de Sabina de Crault que interesse tinha para lorde Blackenfield? Nenhum.

- Estúpida ideia!... Estúpida ideia a minha em vir a esta caçada na esperança de encontrar Sabina... É o dedo da fatalidade: em vez de ter vindo, devia ir encontrar-me com ela em Paris.

No íntimo, Harry tinha seu quê de supersticioso; sofria agora a sugestão de que a ausência de Sabina lhe trouxera desgraça.

Sabina de Crault, neta do duque de la Muette, estabelecera flirt durante todo o Verão e de modo a dar nas vistas com lorde Blackenfield. Fazia gala de grande desportista e no belo Escocês contava um parceiro que lhe fazia honra... Deste modo, enquanto se tratara de yachting, de ténis, de crawl, bem caminhara o idílio... Mas, com a vinda do Inverno, Sabina tornara-se «demasiado parisiense»; metida nos meios mundanos, distraída, principiara a achar arredio o espírito de seu primo e trocara-o, visivelmente, por outros amigos mais modernos, de Paris.

«É triste - pensava Harry. - Pouca sorte!»

Assim, Sabina não viera nem viria àquela casa. Seria por isso que a achava tão vazia?

Contudo, de espaço a espaço, ouvia no andar superior os passinhos ligeiros de alguém que demonstrava recear fazer bulha.

E lorde Blackenfield forçava a memória.

- Sem dúvida: nesta casa, deveras cómica, há ainda alguém, além do velho fada Carabosse... Há o rapariga bonita... a linda fada... que vi ontem... à tarde...

Como a enfermeira lhe levasse uma poção, a fim de lhe acalmar a dor que voltava, Harry perguntou-lhe à queima-roupa:

- Também partiu... o fada bonita?

- Quem? Quem foi que partiu? - inquiriu a enfermeira, supondo não ter ouvido bem.

- O rapariga bonita... o do grogue quente!...

Perante esta pergunta pensou a enfermeira que o doente caíra em delírio.

Tomou-lhe o pulso, abanou a cabeça e não respondeu.

Harry abafou a custo uma praga. A seguir, impiedosamente, abriu a boca num formidável bocejo e repetiu:

- Oh! yes!... Isto é divertido a valer!

E depois dum instante voltou a perguntar:

- Mas não há mais ninguém nesta casa?

- Como? - tornou a enfermeira, já inquieta, visto o ferido ter simplesmente uma ponta de febre que não justificava o delírio.

- Queria falar ao guarda... Grammont - tornou Harry.

- Onde está ele?

- Nesta casa... que, suponho, lhe pertence... Vou ver se sei alguma coisa.

A enfermeira saiu e não tardou em voltar.

- O senhor Grammont - disse -, anda por fora, em serviço... mas está cá a filha dele. Deseja falar-lhe?

- Oh! yes! Sem demora! - acrescentou o ferido, que se mostrou radiante.

Nicole não tardou a aparecer.

- Oh! O fada boa! O verdadeira! - murmurou Harry.

Entretanto, Nicole avançava, sorridente, até ao ferido. Depois, timidamente, perguntou:

- Mandou-me chamar, lorde Blackenfield?... Deseja qualquer coisa?

- Oh! yes - respondeu o rapaz com sinceridade.

- Desejava ver um rosto simpático, um cara agradável...

Nicole corou bruscamente como na véspera. Perturbada, ficou sem dizer palavra, junto do divã; mas Harry, imperturbável, num tom de pessoa que não receava censuras, continuou:

- Ontem à tarde divisei uma bela princesa como a das lendas, linda como uma fada! Oh! Tão linda! Vi-a dentro duma nuvem... Com essa formosa fada sonhei toda a noite... e... queria tornar a vê-lo! Aí tem...

Nicole escutava-o admirada e ao mesmo tempo cheia de paciência; a enfermeira avisara-a de que o doente delirava.

A filha de Grammont, que tomara a sério o seu papel de dona de casa, não sabia ao certo como haver-se perante um hóspede que delirava e parecia desatinado pela doença.

Começou então a tratá-lo como se o enfermo estivesse em seu completo juízo, e diligenciou saber se ele tinha tudo quanto necessitava.

- Oh! Não, não me falta nada! - respondeu alegremente o rapaz.

Mas, como ouvida esta tranquilizadora declaração Nicole fizesse menção de se retirar, Harry ergueu o seu protesto:

-Oh! miss Grammont!... Já vejo que é uma fada irrequieta... Tem de se lhe atar as asas para que não voe... Não quer ficar junto de mim?

Harry sorria e o seu juvenil rosto parecia mais jovem ainda... Afigurou-se à filha do guarda-mor estar na presença dum garoto.

- Deve ficar... ter piedade de mim... que estou com uma perna partida...

- Mas eu não quero incomodá-lo, lorde Blackenfield - objectou Nicole, um tanto embaraçada. - Deve ter precisão de dormir, de repousar...

- Oh! No!

- Pelo menos, enquanto se dorme não se sofre.

E num tom compungido acrescentou:

- Deve sofrer muito com os seus ferimentos!

- As dores suportam-se! Como sabe, os Ingleses aguentam as dores físicas... Para nós, não é coisa, por aí além cair dum cavalo... Já tenho dado várias... quedas.

- Sim?

- É verdade. O que nunca tinha era partido uma perna.

- Foi mais grave, desta vez...

- Muito aborrecido... realmente!

- Calculo que deva sofrer muito - repetiu a rapariga sem saber que dizer mais.

Porém, o Inglês não queria vê-la contristada com os seus sofrimentos.

- No!... Já disse: não sofro muito... O que mais me custa é não poder mexer a perna metida nas talas... Não gosto... como dizem vocês?... da... imobilidade... Mas, enfim, não quero pensar mais no caso...

Em seguida suspendeu-se por espaço dum segundo... o tempo de formular determinada ideia que acabava de lhe vir ao cérebro.

E, subitamente, com o olhar brilhante, recomeçou:

- Falo deploravelmente o francês!... Muito mal!... Tenciono no entanto   aprendê-lo como deve ser... durante um mês... Se a menina quisesse ser o professor de mim!

- O professor? - balbuciou Nicole, aturdida.

- Yes! A menina ensinava a mim a falar bem a sua formosa língua... Quer?

- Quero.

Nicole fez-se escarlate. Aquela proposta desapontava-a. Não teria ousado entretanto responder negativamente: em primeiro lugar porque lorde Blackenfield era o primo do duque, e devia agradar-lhe, depois, porque também aqueles olhos azuis, implorantes, lhe pareciam os dum rapaz ao mesmo tempo travesso e infinitamente afável.

- É muito boa, pequenina fada... Hei-de ouvi-lo falar... falar muito!

- Não será grande o meu trabalho, porque o senhor faz-se compreender muito bem.

- Diz a verdade? Compreende-me bem?

- Perfeitamente.

- Fico contente... Estou contente por tudo... mesmo com a perna partida e o mais me sinto contente...

E ria como se fora uma criança. Tornou-se depois mais grave. Então, sem abandonar aquele tom meigo de menino mimado, explicou-se:

- Saiba, miss Grammont, que não é a perna partida o que mais me tem feito sofrer... mas sim a solidão em que me encontro.

Reflectiu por momentos e acrescentou como para consigo:

- Detesto a solidão... o isolamento...

Entretanto, a frieza dissipara-se entre os dois jovens.

Nicole nesse dia cuidou do almoço de lorde Harry. Escolheu com apuro o mais tenro pedaço de carne, a melhor cidra do celeiro e a mais bela maçã que havia na fruteira. Enquanto Delfina fazia o seu serviço, a gentil dona de casa preparou por suas mãos o prato, onde logo preponderaram o seu bom gosto inato e o desejo de bem servir... se não também o de agradar; ao enfermo.

De tarde, após a visita que o duque de la Muette fez ao ferido, Nicole só por instantes voltou ao quarto. Demorou-se o tempo indispensável para se informar do seu estado, pois entendia que Harry precisava do maior repouso.

Vestia como na véspera o seu pullover branco e tão fresca e rosada apareceu a lorde Blackenfield que este lhe dirigiu lisonjeiro cumprimento... um cumprimento que indistintamente podia considerar-se dirigido ao rosto ou ao vestuário da rapariga...

Tomou-o Nicole por elogio ao pullover e respondeu com uma pontinha de vaidade:

- Fui eu que o fiz...

E, como se isto lhe recordasse de súbito que a esperava qualquer coisa de urgente, acrescentou:

- Agora vou-me embora. Tenho que fazer...

- Fazer o quê? Trabalhar? - perguntou Harry.

- Estou preparando um outro pullover... azul... que também vai ficar bonito...

- Então, minha fadazinha, traga para aqui o seu tricot. Pode, não é verdade? Não é muito pesado, pois não?

Não, não era pesado...

Nicole foi buscar o tricot e veio instalar-se junto do Inglês.

E assim passou a fazer todos os dias.

A manhã pertencia à enfermeira; eram os pensos, os cuidados, a roupa, o arranjo das talas a que o jovem lorde chamava ligadura de ferro. Tudo isso ocupava a primeira parte do dia.

Mas, depois do almoço, cujo serviço e composição Nicole vigiava, descia enfim com a sua costura ou o seu tricot.

Conversavam então como se fossem velhos amigos, cada um deles desvendando ao outro os tempos idos da infância.

Lorde Harry Blackenfield perdera os pais alguns anos antes. Era muito novo ainda quando sofrera esse duplo desgosto, ocasionado por certo acidente de automóvel. Encontrara-se por isso à testa de imensa fortuna, embora não fosse então mais que um turbulento adolescente.

Sem experiência alguma, abandonara os estudos em Eton, a fim de viajar e correr vida de aventuras que a sua imaginação lhe mostrava como a única digna de ser vivida: os palaces, os desportos, as mulheres... Seguira deste modo o curso de todas as suas fantasias e satisfizera todos os caprichos.

Aos vinte e cinco anos, esse rapaz fabulosamente rico, de tudo estava farto.

Julgara nada mais precisar de saber só porque podia falar de todas as especialidades de vinhos da Europa e do valor dos melhores cavalos de corridas.

Aos vinte e cinco anos imaginara conhecer a fundo o amor... toda a escala do amor... a contar do seu último flirt mundano com Sabina de Crault.

E eis que nesse perdido recanto da Sologne vinha encontrar um tipo de mulher absolutamente novo para ele. Via-se na presença dum ser que não era nem uma vulgar rapariga nem uma grande senhora; uma criatura sã, pura, sincera, espontânea; um ser cuja frescura de alma se tornava tão evidente e agradável de observar como a frescura das suas faces rosadas, como a juvenil graciosidade do seu sorriso.

Nicole constituiu para Harry uma revelação... da qual não se aborreceu.

Entretanto, a rapariga nada conhecia da vida mundana a que o jovem lorde estava habituado. Nicole manifestava admiração e ingenuidades com que o ferido muitas vezes se divertia; mas, em contrapartida, via-a possuidora de uns olhos admiráveis e profundos que o perturbavam singularmente e lhe faziam achar maravilhoso tudo o que a formosa boca enunciava.

Por outro lado, dotada de notório bom senso, revelava Nicole uma sensibilidade através da qual depressa compreendera o que seu cérebro não destrinçava, pelo que os dois jovens se encontravam menos distanciados um do outro do que poderia parecer, dada a sua educação e diferença de mentalidade.

Quando a filha de Grammont não estava junto dele, lorde Blackenfield falava da «pequena» à enfermeira. Este motivo de conversação parecia aprazer-lhe sobremaneira e sorria com ar entendido.

Com Delfina, melhor um pouco. A boa velha não se fartava de elogiar aquela que criara com imensa dedicação.

- Já de pequenina - explicava, erguendo a cabeça - era como agora... miudinha e bonita como um anjo... e tão meiga, tão delicada! Um coração de ouro!

E Harry começou a convencer-se de que a fada Carabosse dispunha de grande e seguro discernimento, apesar da muita idade.

Então, para a lisonjear, cativar por completo, Harry felicitava-a pelas suas excelentes qualidades de boa cozinheira do que logo resultava satisfação para o rapaz, visto Delfina relegar imediata e modestamente o seu mérito para os da sua menina.

- Ela é que me diz o que hei-de fazer... e, a falar a verdade, nunca acha nada suficientemente bom para o senhor duque.

Compreende-se que tais palavras para tudo serviriam, menos para acalmar o ardor do jovem lorde.

Harry era, porém, bastante reservado para demonstrar à rapariga com demasiada viveza os sentimentos que ela lhe inspirava.

Quanto a Luciano Grammont, andava há tempo e quase sempre por fora; não faltavam caçadores furtivos e tornava-se mister estimular o zelo dos guardas. a vigilância do canil ocupava-o quase inteiramente.

Assim, mal se encontrava no pavilhão, todo o tempo era pouco para gozar a companhia da filha e observar a forma como ela cumpria os seus deveres de dona de casa - o que, diga-se de passagem - redundava num motivo mais de amor e admiração por Nicole.

 

Os dias sucediam-se... A cura da perna de lorde Harry ia em bom caminho.

O médico, que espaçara as suas visitas, considerava quase terminada a consolidação.

- Isto vai muito bem - dizia, esfregando as mãos. - Já se podem tirar as talas... Não tarda que possa experimentar uns primeiros passinhos. Que tal? Está contente, lorde Blackenfield?

- No. Não estou muito contente... parece que a perna ainda me dói...

- Sério? - admirou-se o médico. - Ora queira dizer-me: ainda sente a dor?

- A perna dói-me quando me lembro que me hei-de levantar... Sou um pouco preguiçoso... Talvez seja por isso.

O duque de la Muette, que assistia à consulta, depois do médico sair exprimiu a sua admiração:

- Que quer isto dizer, querido primo? Supunha, pelo contrário, que lhe custava imenso suportar esta prisão...

- Custou-me, realmente...

- Acaso o Ragon se revestiu de tantos encantos que lorde Blackenfield deseje prolongar aqui a sua estada?

- Oh! yes! Muitos encantos...

- Pode-se saber quais?... Com os gostos mundanos que lhe conheço, primo, pasmo de que isto lhe possa agradar: viver perdido no meio dos bosques!

- No, no - respondeu com energia Blackenfield.

- Não gosto do isolamento, deste ermo... mas... mas isto não é solitário, porque existe cá aquela fadazinha encantadora, linda, como sabe!...

Sem compreender, o duque olhava-o admirado. Súbito, porém, iluminou-se-lhe o espírito!

- É de Nicole que fala?

- De miss Nicole Grammont, yes!... Linda, hem? - repetiu Harry com olhar de entendido.

- Acho-a bonita, na verdade - volveu o duque gravemente -, mas se o senhor levantou para ela os olhos, meu caro, aconselho-o a que siga, quanto antes, as indicações do médico...

- E porquê?

- Porquê? Porque Nicole é uma rapariga honesta, sossegada, boa filha... Grammont fez grandes sacrifícios para a educar...

- All right! Eu prezo muito a boa educação e também os sacrifícios dos papás!

Uma sombra perpassou pelo rosto do duque:

- Não ria, primo. Falo-lhe muito seriamente. Não se trata duma brincadeira. Grammont é muito digno e merece-me sincera estima. Ora ele adora a filha... e se lhe toca na pequena verá que não é para graças... Fica prevenido!

- Yes, obrigado! As suas palavras são de ouro, mas, infelizmente, vêm tarde, muito tarde... Já não há remédio: estou apaixonado!

Fazia uma cara comicamente desolada, E o duque de la Muette acabou por desatar a rir.

- Nesse caso, meu velho, para os grandes males grandes remédios. Vou já telefonar a mandar vir uma ambulância... O primo já pode ser transportado... Não devemos esperar nem mais um dia...

Contudo, o jovem lorde não entendia assim. Enterrou ainda mais a cabeça no travesseiro e protestou:

- No. Não partirei... Já disse: estou apaixonado... O primo sabe o que isso é?

- Exactamente por saber é que lhe digo: precisa de partir sem demora.

- No... aqui, existe uma coisa interessante... muito exciting! Sobre a face da terra inteira nada há que mais me atraia... nada! Quero aqui ficar.

- Digo-lhe eu, Harry: vai causar desgraça.

- No... não farei desgraça...

- Vai, vai... O senhor não conhece os nossos princípios, não conhece os preconceitos em França...

- Não farei desgraça nenhuma - repetia com energia o Inglês. - Amo Nicole; quero casar com ela!

- Hem? Que diz? - perguntou o duque num sobressalto.

- Isto mesmo.

- Quer casar com Nicole!

- Yes.

- Pois muito bem: se isso não der desgraça, significa pelo menos uma refinada tolice, uma imprudência...

- No... Acho até uma coisa boa. Pode o rei casar com a pastorinha, não é assim que diz o provérbio?

- Deve ser. Mas nem o senhor é rei, nem a pequena é pastora. Pense bem, Harry: Nicole não passa duma burguesinha... O pai está arrumado... sem nada de seu e a própria rapariga nada conhece da vida; tem levado uma existência acanhada...

- No matter... não tem importância. Sou muito rico.

- É verdade que a pequena dispõe de bonita educação... mas o pai o que é se não um simples guarda-mor?... Demais, entendo que a rapariga não tem prática da vida mundana... desconhece por completo a nossa esfera social!

- Não tem importância... Nicole é linda... E o que lhe falta no ponto a que o primo se refere o meu nome lho dará.

- Mas, finalmente... o primo já lhe falou? Ela corresponde-lhe, ama-o?

- Falar de casamento?... Ainda não... nunca pensei a fundo no caso...

- Vê?

- Mas penso agora... Sobre o casamento vou falar ao pai directamente como se usa em França... eu sei!

- Nesse caso, não hesita?

- Hesitar porquê? Amo Nicole, já disse!

- Então, nada mais me resta que apresentar-lhe os meus parabéns... e votos de felicidades... E acima de tudo, desejo-lhe, Harry, que não venha a arrepender-se - concluiu o duque de la Muette, que não quis continuar a insistir contra a decisão do primo.

Esse grande amor de que lorde Blackenfield exagerava talvez inconscientemente a profundeza, nascera a pouco e pouco no seu coração de rapaz rico, precocemente saturado. Tivera momentos de desânimo e tédio ao pensar que tudo experimentara já. Apesar da sua idade, começava a considerar sem interesse a vida, quando repentinamente aquela rapariga surgiu, cândida de rosto e de alma, a

comunicar-lhe qualquer coisa d'exciting, como ele dizia.

Pensava efectivamente em Nicole com exaltada ternura:

«Seria sua mulher... o seu maior bem.»

Que belo gesto o de elevar até si aquela garota tão pura, de grandes olhos fascinantes... Ele, o poderoso e magnífico senhor que cada gesto semeava ouro, ia fazer dessa humilde rapariga, descoberta no fundo dos bosques, uma rainha... e moldá-la-ia então a seu modo... Transformá-la-ia numa altiva e ofuscante lady Blackenfield... mais bela do que as avós de que se orgulhava a extensa linhagem dos Blackenfield. Formosa boneca de luxo, cobri-la-ia de jóias; frágil bibelot de Saxe, metê-la-ia num escrínio digno da sua beleza... Queria-a refulgente... Eclipsaria todas as mulheres... Todos os homens lha invejariam!

Bela, rica e adulada... dentro dum ano Nicole seria o engasgue, o tema de toda a alta sociedade londrina...

E diante desta radiosa perspectiva, o rosto do rapaz brilhava de ventura.

- Minha adorada e linda noiva... Oh! darling, como a amo!...

E como podia a pequenina Nicole, tão jovem ainda, resistir ao amor desse belo rapaz?

Como escapar à fascinação irradiada pelo prestígio daquela imensa fortuna e desse título de baroness?

Lady Blackenfield!

Não havia que olhar para trás. Assim o sentiriam todas as gentis raparigas deste Mundo.

Mas... um ponto negro havia somente nesta brilhante miragem: era-lhe preciso deixar o pai... o adorado pai a quem viera juntar-se, tão feliz com a certeza de ficar a seu lado para sempre. Porém, heroicamente, Luciano Grammont fizera calar o coração. Perante esse casamento ideal, inesperado, que abria à filha um futuro magnífico, abafara a sua mágoa e fora o primeiro a aconselhar-lhe que aceitasse.

Depois, devia notar-se que o melhor e mais forte argumento de Nicole, tão simples e honesta, que não se prendera nem à ideia da riqueza nem à vaidade do nome, consistia no facto de ter sido seu fulcro decisivo o claro olhar de Harry... ou seja: o seu adorável sorriso e a sua maneira enfeitiçante de falar:

- Oh! darling... meu coração... não posso viver sem a sua companhia... Mesmo que a minha perna esteja curada não poderei andar, se a sua pequenina mão não pegar na minha mão... e para sempre, darling... para sempre!...

Um terno beijo selara o juramento... para sempre!

E fora por isso, simplesmente por isso, que a delicada Nicole, radiante de felicidade e de amor, se tornou lady Blackenfield.

 

- Harry, olha que lindo cordeirinho! Que encanto!... Não vás tão depressa... Não o assustes...

Mas, sem dar ouvidos a sua mulher, Harry dirigia-se a grandes passadas para o décimo sexto green, os olhos fitos na péla branca que jogara com boa pontaria até perto da cova. Brandia o seu club sem se importar com o susto dos cordeirinhos e das cabras de comprida lã, glória dos Pirenéus, as quais, pastando sem cessar na erva do Golfo de Nivelle, tornavam tão raso e regular o campo de jogo.

- Quatro tacadas, darling! Quase o boggey. Admirável, não é verdade?

Nicole abriu muito os grandes olhos:

- O boggey! Que quer dizer?

- Oh! Querida! Ainda ontem te ensinei... Pouca atenção... Estás a pensar nos carneirinhos em vez de reparares no jogo! It does not matter!... Recomecemos: o boggey, meu coração, significa o mínimo de pancadas que um bom jogador deve dar na bola para a meter na cova... Compreendeu?

- Compreendi - respondeu Nicole vagamente. - Foi então isso que fizeste, Harry?

O jovem Inglês teve um sorriso indulgente, algo desdenhoso. E, gravemente, concluiu:

- Glorioso, yes! Mas sinto que não lhe dás bem o valor...

Acabavam de subir o talude relvado.

No cimo, entre duas árvores enormes, que formavam qual grandioso pórtico, soltou Nicole um grito de admiração:

- Oh! Harry, que belo! Que belo!... O mar!... Quanto gosto do mar!

E quedou extasiada perante o admirável panorama, súbito descoberto a seus pés: inteira, a pitoresca cidadezinha de São João da Luz aparecia aninhada nos baixos da colina, a bordar a baía maravilhosa onde o mar dançava, até ao negro rochedo de Santa Bárbara, cintilante sob a espuma do mar batido pelo sol esplendoroso do meio-dia... E, por detrás de São João da Luz, avistava-se daquele ponto o doce vale da Nivelle, que adquiria um carácter quase selvagem, dominado como ficava pela massa imponente do Rune.

- Que maravilha! - repetia Nicole.

- Belo... yes - concordou polidamente o marido. - Mas a admiração pela paisagem é uma coisa própria de quando se passeia - acrescentou sentenciosamente - e a concentração sobre o desporto deve aplicar-se à ocasião do jogo ...

Depois, ao fim dum instante, enfronhado sempre na paixão do jogo favorito, repetiu:

- Sabes qual é a melhor forma de alcançar a décima-sétima cova?... Não é fácil por causa da passagem muito acanhada... Ora repara.

Postada a péla no minúsculo montículo de areia e colocado lorde Blackenfield na clássica posição do jogador de golf, bem firme nos pés, erguido o club acima do ombro direito e o olhar firmemente fixo no alvo a atingir, pareceu à jovem esposa estar vendo algo de mais belo que a mais bela paisagem: uma admirável estátua viva.

Acabaram a partida: ele seguro no à-vontade que o caracterizava, ela presa dum desajeitamento infantil. Mas, ainda que cada um dos seus movimentos não lograsse bom resultado no jogo, revelavam a leveza e a graça do seu juvenil corpo... e lorde Harry perdoava-lhe os erros desportivos pelo bem que lhe sabia admirar tanta beleza.

Haviam atingido assim a décima-oitava cova.

Então, depois de entregarem os clubs aos cadets (servos do jogo) que os seguiam, dirigiram-se para a Maison du Golf, onde ficavam os vestiários e o restaurante. Súbito, certa voz cordial interpelou-os jovialmente em inglês.

Acenando-lhes alegremente com a mão, um rapaz seguia com certa velocidade ao volante dum carro.

Nicole ainda não compreendia bem a língua inglesa quando a falavam depressa.

- Que disse o teu amigo Ralph? - perguntou, desinteressada, a esse rapagão sempre jovial que era seu marido.

- Diz que não pode ficar para lanchar connosco... tem uma entrevista - respondeu Harry laconicamente.

Depois, subindo ao peristilo do pavilhão, largo e rústico, inquiriu:

- Tens fome, darling?... Eu tenho e muita...

- Também eu - respondeu Nicole. - Proponho que abanquemos imediatamente.

- Yes... só o tempo de ensaboar as mãos...

Acabavam de entrar na sala, espaçosa, toda envidraçada, mas quase deserta nesse dia. Escolheram então certa mesa florida e graciosa.

- Escolho-a para ti, darling, que tanto gostas de flores...

Nicole ergueu para o marido os grandes olhos encantados.

- Quando queres, Harry, sabes ser amabilíssimo.

- Quero-o sempre!

- É verdade, sim. És sempre amável.

Harry curvou-se e beijou longamente a mão da mulher. Em seguida atacou gravemente o prato que acabava de lhe ser servido.

A Maison du Golf não é verdadeiramente um restaurante, mas uma espécie de salão de chá onde à hora do lanche se encontra o bom presunto, ovos, queijo e fruta.

Lorde Blackenfield pedira bacon frito e Nicole ovos quentes... o que foi uma péssima inspiração nesse dia.

Torna-se bastante difícil comer com elegância um ovo quente. O costume francês de deitar pedacinhos de pão no ovo quente permite saborear por completo o gosto do manjar, ao passo que o ovo comido à colher parece, muitas vezes, coisa insípida e até enjoativa. Ao uso francês falta, porém, cerimónia e os estrangeiros que os observam riem-se dos seus gestos.

Ora Nicole, só com o marido num canto escuro da sala, pouco ou nada tinha nessa ocasião de se inquietar com o protocolo.

Sem pegar no parte-ovos colocado na sua frente e que o esposo lhe indicava com o olhar, a rapariga, numa pancada seca da faca, quebrou a casca do ovo. Com sumo cuidado tinha preparado as sopinhas de pão, bem barradas de manteiga, e começou a comê-las depois de as molhar no ovo.

Lorde Blackenfield observava-a com cara de pasmo... Tinha nos olhos uma expressão quase de horror. Primeiramente, guardou silêncio; mas, ao segundo ovo, não pôde conter-se. E, num tom sério,: disse:

- Estou satisfeito... muito satisfeito com o facto de Ralph não ter podido vir lanchar connosco...

- Porquê? - perguntou Nicole candidamente. - Ralph é gentil e muito engraçado... Não achas?

- Acho, mas não se trata disso... É que Ralph nunca comeu um ovo dessa forma... essa maneira de comer é deveras extraordinária entre nós, sabes? Estimo bem que ele não tenha visto tal coisa.

Súbita vermelhidão purpureou o rosto de Nicole, que baixou, confusa, a cabeça sobre o prato.

Oh! Porque lhe fazia Harry tal censura! Ele bem sabia que ela dava a maior atenção às mínimas exigências quando estavam na presença de outras pessoas...

Em silêncio, ausente o espírito do que suas mãos faziam, Nicole acabou de comer o ovo com a colher.

Partiu maquinalmente o gruyère e começou a levá-lo à boca: mas tão absorvido tinha o pensamento que nem utilizou o garfo do queijo.

E disto resultou nova catástrofe! Na ponta da faca Nicole meteu na boca um pedacito.

De novo lorde Blackenfield franziu as sobrancelhas:

- Oh! Nicole, tem cuidado: olha que és capaz de engolir a faca!

Chamada assim bruscamente à realidade, teve a recém-casada um sobressalto. Olhando o marido, depois a faca, e compreendendo de repente, Nicole fez-se mais vermelha ainda.

- É preciso cuidado - insistiu Harry. - Isso da parte duma lady é absolutamente estupendo!

A jovem não respondeu. Docemente, arredou o prato e parou de comer.

Sentia-se triste, em primeiro lugar porque a sua incorrecção era um facto, pois no colégio lhe tinham ensinado todas essas subtilezas, e, depois, porque o tom de voz de seu marido viera carregado duma rispidez a que não estava habituada.

«Harry era então impiedoso, assim por um nada? Não sabia transigir com uma simples irreflexão, um simples à-vontade! Que mau, para lhe estragar o dia com tamanha crueza!»

E, um tanto amuada, a juvenil esposa não procurou desanuviar a atmosfera incómoda que Blackenfield acabava de criar entre ambos.

 

O casal instalara-se em Biarritz.

Lorde Blackenfield tinha aí numerosos amigos e, posto que não lhes fugisse e ocasionalmente houvesse apresentado quase todos a sua mulher, não desejava no entanto manter com eles contacto diário.

Escolhera para alojamento um hotel selecto e confortável, algo isolado, pouco frequentado por ingleses.

O seu casamento, recente ainda, justificava a sua aparente necessidade de isolamento.

Os amigos pensaram:

«Fantasia de amoroso, compreensível aliás em quem possui uma mulher tão bonita e atraente!»

De Nicole nada mais conheciam, efectivamente, além da sua beleza e graça valorizadas pelas ricas toilettes de imensa elegância e bom gosto; como lorde Blackenfield evitasse as conversações, fugisse a toda e qualquer intimidade, esses amigos diziam:

«É deliciosa a baroness! Mas Harry esconde-se tanto que chega a ser ofensivo connosco.»

Retirá-la era na verdade o que pretendia Harry, pois, embora sinceramente apaixonado por sua mulher pensava por outro lado na impossibilidade de pôr em contacto com figuras da alta roda, enquanto a sua educação não se encontrasse devidamente aperfeiçoada, debaixo do ponto de vista da correcção inglesa.

Na primeira tarde em que Ralph viera cumprimentá-los (na sua qualidade de amigo de infância, Ralph gozava de mais intimidade e fácil acesso) não se tinha Nicole levantado da cadeira e avançado para ele de mão estendida?

Harry corara. Aquela solicitude de sua mulher pelo amigo, celibatário, afigurara-se-lhe grave falta de dignidade. Quase brutal, Harry murmurara entre dentes:

- Em que estás pensando, Nicole?... Esqueces que és uma lady?

«Felizmente - pensara depois Blackenfield ao relembrar a cena - Ralph mais não vira que a deslumbradora beleza de sua mulher. Fascinado, não pudera notar que lady Blackenfield usava de maneiras mais próprias duma rapariguinha provinciana que duma grande dama.»

Entretanto, a vida quotidiana acabou por trazer à superfície mil incidentes análogos - que para o jovem lorde se tornaram verdadeiro suplício e de certo modo alteraram o seu bom humor diante da esposa.

Por seu lado, Nicole, muito sensível, a quem um nada causava prazer, mas a quem, igualmente, uma insignificância magoava, começava a sentir no horizonte da sua felicidade a sombra de ligeiras nuvens.

O caso não se mostrara grave ainda; mas a verdade é que, às vezes, uma palavra dita de certo modo dói mais que áspera reprimenda.

Assim, por exemplo, certo dia, ao descansarem numa pousada, na montanha, onde haviam ido em excursão, Harry proferiu determinada frase desastrosa com que profundamente magoaria sua mulher.

Nicole caminhara muito nesse dia e, como andasse de sapatos novos, estava cheia de dores nos pés. Durante o passeio, e já para não conturbar a boa disposição de Harry, evitara queixar-se; mas, logo que chegara ao hotel, sentou-se na primeira cadeira que lhe ficou à mão e, soltando um «uff!» de alívio, infantilmente fez saltar do pé o sapato, que foi cair a certa distância.

Lorde Blackenfield não reprimiu uma exclamação, quase dolorida.

- Que foi, Harry? - perguntou Nicole, admirada do esgar que o marido acabara de fazer.

- Assustei-me. Cuidei que estivesses ferida... É perigoso descalçar os sapatos... dessa maneira.

Nicole desatou a rir, iludida ainda sobre o verdadeiro sentido daquelas palavras. Explicou de bom humor que sabia fazer saltar os sapatos. E, para demonstrar a sua felicidade em se descalçar daquele modo, estendeu o outro pé e repetiu a cena.

Então Harry, enervado, disse com censura...

- Peço-te, Nicole, que acabes com isso... peço-te... como dizer?... o favor de veres o que fazes e não te portares como... como uma filha de guarda-caça... mesmo quando estejamos sós.

Bem se podia dizer que estavam sós nesse estabelecimento da montanha; salvo o hospedeiro que os servia e um par de amorosos no outro extremo da sala, profundamente ocupados um com o outro, ninguém pudera ter notado a cena, razão por que Nicole achou que Harry exagerava, demasiadamente, a sua exigência de correcção.

Em todo o resto do passeio a filha de Grammont ficou triste e pensativa.

Diversas observações de Harry vinham-lhe agora à ideia e sentia que seu marido era, por vezes, cruel.

Porque, quase sempre as coisas em que reparava, não passavam de meras insignificâncias. E recordava-se do rosto dele, chocado e repreensivo, ao vê-la, certo dia, no hotel de Biarritz, comer uma pêra com casca.

- É o regime naturalista! - afirmara alegremente em resposta às reflexões de Harry. - Há que não desperdiçar as vitaminas!

E rira.

Porém, agora, não - pois se até ali o marido se mostrava rigorista, nunca, pelo menos, fizera alusão à modesta origem dela, sua mulher. Mas daquela vez a frase fora maldosa. Por uma pueril sem-cerimónia de rapariga nova, num sítio público realmente, mas deserto de facto, seu marido humilhara-a. Aquelas poucas palavras eram muito duras!

E Nicole sofria principalmente porque, talvez sem querer, Harry a ferira no mais puro sentimento do seu coração: o amor e a admiração que votava ao pai. Um pai de que se sentia orgulhosa, que a educara bem, nos princípios da melhor moral e do mais elevado grau da honra; um pai, enfim, que não recuara diante das privações e dos sacrifícios de toda a espécie para assegurar à filha sólida instrução, num meio bom.

E demais: em geral, ninguém gosta de se ver criticado nas suas origens familiares ou nos seus hábitos de Raça; Pátria e Família são coisas verdadeiramente pessoais e fazem parte de nós mesmos.

Ora nesse dia, por uma questão de descuido ou indiferença, Harry ousara fazer alusão às suas origens de filha dum trabalhador, como se se tratasse duma coisa má ou pejorativa: «filha de um guarda-mor!».

Oh! O insolente! O orgulhoso, o detestável snob!

Primeiras nuvens na felicidade dos dois esposos, tantas quantas o vento soprava! Mas quando nuvens se amontoam, pressagiam tempestade... e jovens recém-casados deveriam evitar acumulá-las sem terem razões verdadeiramente fortes para fazer.

 

Num quarto claro, inundado por essa luz incomparável que a proximidade do mar, batido pelo sol, dá às coisas, lady Blackenfield acabava de compor sobre os cabelos ondulados o gracioso gorro moderno.

De pé, diante do espelho oval, levantava um dos lados com cuidado e descia o outro sobre a orelha. Lançou em seguida satisfeito olhar ao conjunto da sua figura.

Bem moldada no elegante vestido de passeio, de veludo verde, Nicole estava de facto encantadora - com o rosto fresco, quase infantil, e os olhos sombreados pelos longos cílios escuros.

Sorria à própria imagem, feliz de se ver bela, para agradar ao marido.

Entregava-lhe a criada de quarto a malinha de mão com monograma de prata, e as luvas cujo forro de pele se casava com a opulenta gola do casaco, quando a campainha do telefone retiniu.

- É lorde Blackenfield que chama a senhora baronesa ao telefone.

Nicole apressou-se a pegar no auscultador. Escutou por um instante. No seu rosto espelhou-se então, primeiro, um espanto, depois, ligeira decepção; mas foi com voz natural que respondeu:

- Está entendido, Harry!

- ...

- Mas está bem. Compreendo. Acho que não deves faltar a tão belo passeio.

- ...

- De modo algum. Até logo!

Desligou, vagarosa, o telefone. A criada de quarto retirara discretamente.

Sozinha no quarto cheio de sol, Nicole suspirou; subitamente sua alma deixava de se conjugar, como até aí, com a tarde esplendorosa...

Harry acabava de lhe anunciar que não viria almoçar com ela. Encontrara um grupo de amigos que iam partir para uma excursão à montanha e o levavam com eles no automóvel. Almoçariam no caminho.

Como bom cavalheiro, o marido desculpava-se, pois, galantemente de não poder dar com a esposa o passeio projectado e de a deixar assim almoçar sozinha...

Desculpara-se, era verdade, mas não manifestara a menor hesitação em aceitar o convite nem tão-pouco a consultara nesse sentido...

- Acabou-se! Decidiu ele e é quanto basta. Causar-me uma decepção pouco lhe importa!

Nicole sentia-se tão desnorteada como se a brusca notícia de Harry houvesse suspendido o curso da tarde. Teve de agitar-se para fugir àquela amarga sensação!

«É o carácter inglês, todo independência - pensava. - Tenho de me habituar, sem que me admire.

Um inglês rico não pode limitar, circunscrever a sua vida à mulher, como fazem os casais franceses.»

E recordava agora certos conselhos que a duquesa de la Muette lhe havia dado:

«- Os Ingleses são práticos e muito independentes... mesmo adentro do lar!... Usam mutuamente da maior liberdade nos seus actos... Não se zangue nem tente nunca restringir essa liberdade, que lhes é cara acima de tudo... Pelo contrário, usufrua, somente e sem contradições, a que lhe for dada em compensação...»

«É evidente - pensava Nicole - que essa liberdade é muito cómoda para aquele que a usa... mas para o outro? Para mais, fui educada em França, onde os dois esposos se consultam e apoiam reciprocamente... Nem o próprio pai lhe teria causado semelhante dissabor... sabendo principalmente que estava pronta, à espera dele, à própria hora de se encontrarem!»

Suspirou ainda uma vez; depois, razoável como era, e embora entristecida, desceu para almoçar.

Comeu rapidamente, perguntando a si própria que iria fazer nessa tarde, só, em Biarritz, onde, por assim dizer, não conhecia ninguém.

Acabou por se decidir a um passeio a pé. Desde que casara não tivera ainda ocasião de passear a pé, como dantes habitualmente fazia através dos bosques e dos plainos da Sologne. Aproveitaria então a sua liberdade, para dar um passeio à beira-mar, o mar de que tanto gostava. Seguiria a linha sinuosa do litoral para de mais perto ver o galgar majestoso das vagas nos rochedos... Subiria à ponta da Virgem: descobria-se dali um panorama soberbo... Depois, daí ou doutra parte, que lhe importaria? - se estaria sozinha! Para que a tarde passasse mais depressa, tomaria uma chávena de chá em qualquer pastelaria da moda... E assim chegaria a desejada hora do jantar, que lhe traria Harry - e isso era o importante.

Saiu.

Nesse recanto privilegiado fazia um tempo admirável! O sol, anunciador da Primavera próxima, aquecia qual carícia e entibiava já o vento do largo.

Nicole caminhava alegremente, esquecendo quase a sua melancolia. Seguia sem destino... sem itinerário concebido, atraída simplesmente pelo mar e sua cintilação. E, na passagem, os dafnes brancos das moitas dos jardins   enviavam-lhe seus odores primaveris...

«Mas como tudo aquilo seria bem melhor e mais belo se Harry ali estivesse!» -pensava.

Sacudiu, porém, a tristeza deste pensamento tentando persuadir-se de que, pelo contrário, tudo assim estava bem e sucedia no melhor dos mundos possíveis.

Achava afinal naturalíssimo que o marido aceitasse o convite dos amigos. Apesar de ter alguns ali em Biarritz, sabia bem que Harry raramente se avistava com eles. Não se tornava lógico, portanto, que aproveitasse a oportunidade desse passeio, visto que adorava a montanha?... Era certo que também podia ter ido com ela, levando-a no próprio carro. Mas talvez que a excursão lhe agradasse desse modo mais particularmente...

Chegara entretanto ao grande hotel que se erguia à beira da água, o qual, por sua constituição, parecia desafiar nos dias de tempestade o assalto das vagas enfurecidas.

Com o pensamento sempre ocupado pelo esposo distante, Nicole associava-o ao belo espectáculo do mar coberto de ondulação e do céu listrado de nuvens arruivadas...

«Harry também está vendo coisas lindas... Ele que tanto gosta da montanha!... Dos grandes picos escarpados, dos céus infinitos, do mar a cintilar longinquamente... como deve ser magnífico!»

E acabava Nicole de vislumbrar deste modo as contemplações do marido quando se sentiu sacudida por brusco sobressalto.

E um grito de surpresa morreu nos seus lábios:

- Harry!

Lorde Blackenfield em pessoa acabava de sair do restaurante luxuoso em companhia dum par evidentemente britânico: um cavalheiro seco, de meia-idade, e uma senhora aparentemente mais idosa, não bonita, mas sumptuosamente vestida.

Aturdida, Nicole via vir distraidamente na direcção dela as três figuras. E, como que petrificada, teve a súbita impressão de que, vendo-a, o marido fingia não a notar!...

Passaram junto dela.

O cavalheiro teve mesmo para aquela formosa desconhecida admirativo olhar, a dama notou-a igualmente, mas desviou a vista. Quanto a Harry...

Nicole tinha a certeza de que o marido a vira... Sim. Estava bem certa disso! Porém, Harry continuara a olhar em frente, com fingimento, com afectação.

E, pasmada, galvanizada, Nicole ficou imóvel, sem compreender, perguntando a si própria se não estaria sonhando.

Empalidecera. Repentinas olheiras lhe vincaram e enegreceram os olhos.

O marido dissera-lhe que devia almoçar com os amigos... Estava afinal em Biarritz, a algumas centenas de metros do hotel!... Que queria aquilo dizer?

Mentira-lhe então? Mas porquê? Que significava, nesse caso, aquele pretexto de um passeio à montanha?

E tão flagrante delito de mentira produziu no espírito da recém-casada o efeito duma catástrofe; era como se o esposo a tivesse enganado com outra mulher. Abusara da sua confiança nele... Como poderia doravante acreditar no que ele lhe dissesse? Tornava-se inqualificável a sua premeditada mentira!

Mas o que mais confrangedor e deplorável se tornava ainda, era a sua atitude ao passar junto dela!

Não querer reconhecê-la!... Tratá-la como estranha... Renegara-a... sim... era isso... como mulher de quem se tem vergonha ou que nos não faz honra... como se fora alguma mulher de má vida... tudo, enfim!

Abominável procedimento! Que centelha de loucura transformara assim tão de repente Harry? Era sua mulher e usava o seu nome. Quem poderia dizer que fosse indigna do título de lady Blackenfield? A sua conduta presente e passada, a sua educação, numa palavra, colocavam-na a coberto de semelhante vitupério.

E, todavia, nem mesmo podia enganar-se a si própria, invocar uma falta de atenção: era terrivelmente certo que o marido passara perto, bem perto dela, sem querer vê-la...

Quando os dois homens e a senhora se distanciaram, Nicole mandou parar um táxi e fez-se reconduzir ao hotel.

Foi rápido o trajecto: cinco minutos apenas; a filha de Luciano Grammont sentia as pernas flectirem; a excitação, a confusão eram tamanhas que lhe teria sido impossível regressar por seu pé.

O repouso num quarto escurecido, com as persianas cuidadosamente cerradas, fizeram bem à jovem lady.

Concentrava-se; raciocinando, esforçava-se por atenuar e reduzir as proporções do caso. Antes de se deixar vencer pelo desgosto e de acusar de mentira o esposo até aí adorado, sentia que era indispensável conhecer as verdadeiras razões de tão estranho procedimento.

Talvez fosse menos culpado do que parecia... Podia, por motivo de extraordinárias circunstâncias, ter sido constrangido ou forçado àquela inexplicável atitude... Quem sabia se procedera assim para lhe evitar, a ela, qualquer grave cuidado?... Entrevista de negócios, perda de dinheiro... questão de jogo? Quem sabia?

«Meu Deus! Como é doloroso ter de se encararem semelhantes eventualidades!... Razão demais para não acusar Harry de ânimo leve... para lhe reservar toda a minha boa fé e confiança. Sou sua mulher, uso o seu nome; não será essa a mais bela prova de amor e de estima que ele, pelo contrário, me possa dar?»

E a graciosa lady, de ideias medíocres, apesar de tudo, resignou-se corajosamente a esperar o regresso do marido e as explicações que este lhe daria; intimamente, o seu amor aconselhava-a a não ver os factos pelo lado pior, nem tão-pouco a carregar o quadro com as mais negras cores, certamente imerecidas...

 

Quando à noite lorde Blackenfield voltou, a criada particular da senhora baronesa avisou-o de que sua ama, por estar com dores de cabeça, se retirara ao seu quarto e aí o esperava.

Harry foi encontrar Nicole, pálida, com grandes olhos interrogadores e inquietos... olhos que haviam chorado, mas só ansiedade manifestavam.

Galantemente e com perfeita distinção, cuidou em primeiro lugar de se informar:

- Contrista-me, minha querida, saber-te doente...

Nicole interrompeu-o, porém. Ainda não sabia usar de finura e de diplomacia. Assim, indo logo direita ao fim, perguntou:

- Que significa o que fizeste, Harry? Não compreendo.

- Mas... eu é que te não compreendo, querida! - respondeu Blackenfield num tom amável e sorridente, que contrastava com a angústia da esposa. - O que se passou é tudo quanto há de mais simples: os meus amigos e eu vimos, na ocasião de partir, que se fôssemos até Cambo, o lanche deitaria a muito tarde... Passaríamos fome, sem graça nenhuma. Combinámos então almoçar no hotel e partir depois para o nosso grande passeio... Como vês, querida boneca, é tudo quanto há de mais simples!

Uma lágrima brilhou nos olhos alarmados da pobrezinha. Se era tão meiga e afectuosa a voz do marido!

Por outro lado, Nicole compreendia que Harry dizia a verdade. Não lhe tinha mentido. Devia almoçar durante o passeio; só um acaso portanto o retivera em Biarritz, à hora do almoço. Compreendia; sentia-se mesmo grata por ele lhe haver dissipado imediatamente a aparência de mentira que condenava a sua acção.

Mas, ao mesmo tempo que esse tom simples do marido anulava a suspeita de deslealdade que ela poderia atribuir-lhe, destruía Harry as razões de esperança alimentadas no fundo do seu coração quanto à atitude por ele assumida no momento do encontro ocorrido.

Lorde Blackenfield pretendia dar efectivamente um ar tão natural ao seu acto que Nicole, desorientada, a si própria perguntava se não estaria louca e se as coisas se teriam passado realmente como as vira e sentira...

Precisamente nesse instante o marido lhe pegava na mão com ternura, a olhava com tão fascinador e jovial sorriso que parecia querer assim convencê-la:

- Minha fadazinha querida...

Puxou-a amorosamente para si e procurou abraçá-la.

Mas Nicole, embora lhe custasse, opôs-se, arisca.

Não sabia que fazer para exigir explicações e sentia que lhe era impossível deixar de as pedir.

- Escuta, Harry: desejo que me elucides sobre as razões da tua atitude - disse, excitada. - O atraso da partida, acho-o muito admissível... também admito o almoço sem mim, noutro hotel que não o nosso, embora os teus amigos pudessem vir muito bem até cá. Com a devida cerimónia, teríamos almoçado todos. Mas, enfim: o que pretendo saber, o que quero que me digas é o motivo do teu procedimento!

- Qual procedimento? Confesso que não te percebo.

- Peço-te, Harry, que não te faças desentendido! Sabes bem onde quero chegar... Olhaste para mim. Reconheceste-me e fizeste que não me viste!...

- Oh!

Caiu entre ambos um profundo silêncio.

Nicole olhava fixamente o marido; a ansiedade transparecia no seu rosto erguido.

Agora já não era a tímida criança. Tornava-se, perante ele, a mulher inquieta e ciosa da sua dignidade, subitamente acordada no seu âmago, a dignidade ferida, que não admitia evasivas nem rodeios.

Queria saber por que razão aquele de quem usava o nome procedera de tal forma. Porque a tinha renegado? Acaso havia na sua vida qualquer coisa de repreensível?

Deveras embaraçado, Harry não procurou furtar-se nem tergiversar. A pergunta vinha demasiadamente directa e compreendia que sua mulher não se contentaria com vãs explicações. Nicole compreendera que a tinha visto: não o podia negar. E, na impossibilidade de o fazer, o seu orgulho de homem logo o levou a reivindicar, a chamar a si com desassombro, a responsabilidade do acto.

Com um pecado na consciência, tem o homem dois caminhos: tornar-se mentiroso ou brutal. Foi pela brutalidade que lorde Blackenfield se decidiu. E com que sobrançaria!

- Ouve, Nicole - disse com altivez - explico porque quero: sabes quais eram os amigos com quem tinha de me encontrar?

- Não.

- Pois bem! Eram lorde Crowner, irmão do antigo vice-rei das índias, e lady Vitória, sua mulher!

- E então? - inquiriu Nicole, sem pasmo de maior.

- Então... compreendes! Se eu te reconhecesse... tornava-se preciso   apresentar-te...

- Como?

- Sim... Não digo bem? Tornava-se preciso apresentar-te e...

- Mas... porque não?

- Nicole... Obrigas-me a dizer... o que não queria... porque... porque era impossível, inviável!

A juvenil esposa sentia bater-lhe violentamente o coração. De olhos fixos nos lábios do marido, esperava com terror as palavras que a feririam talvez profundamente. Mas, como Harry se calasse, insistiu. Queria levar até o fim essa explicação:

- Por que razão não me podias apresentar? Explica-me! Esclarece-me!

- Mas, minha querida... como te hei-de explicar? São pessoas idosas, veneráveis... amigos que antes de serem meus o foram de meu pai: Para eles sou ainda muito novo, tenho ainda muito pouca idade, não compreendes?... Se lhes dissesse: «Sou casado - logo se sentiam no direito de me interrogar... de me perguntarem paternalmente: «E quem é sua mulher? A que família pertence? Quais são os seus títulos?»

- E depois?

- Depois... sejamos claros, até o fim! Eu não podia dizer ao irmão dum vice-rei: eu, Harry Blackenfield, casei com a filha dum picador!

E começou a rir, com um riso pesado, brutal, riso com que procurava adoçar o sentido das palavras pronunciadas, sem observar que desse modo as sublinhava e agravava.

Nicole fizera-se horrivelmente pálida.

- A filha dum picador!... - repetia com voz surda. - É isso que te desgosta! Mas tu sabia-lo quando me pediste que fosse tua mulher! Oh! Harry, porque casaste comigo?

- Amava-te, minha querida, amava-te, como te amo.

Mas, sem dar atenção a essas palavras de ternura, a delicada lady seguia a vertigem dos seus pensamentos.

- Pois eu não deixarei nunca de ser a mesma, a filha de meu pai - balbuciou, sensibilizada, a meia voz.

- Mas, deixa, minha querida: nada perdes com isso... ainda mais minha te tornas... Amo-te tanto, darling!

Aproximava-se da mulher; de novo a queria abraçar.

Mas o seu hálito cheirava a álcool. Pela primeira vez lady Blackenfield se apercebia, com horror, de que o marido estava ligeiramente embriagado.

Repudiou-o com todas as suas forças.

- Bebeste demasiado! Compreendo agora donde vem a grosseria das tuas explicações!... Do álcool. É essa a tua única desculpa!... Apesar de simples guarda e picador, meu pai não se embriaga! Pelo menos, nisso, é-lhe ele superior, lorde Blackenfield!...

Harry olhou-a; e, subitamente, pôs-se a gracejar:

- Zangada, Nicole?... Muito feio, possuir mau carácter! Eu amo o teu sorriso, os teus olhos acariciadores, sim: mas não gosto nada desse olharzinho incendiado pela cólera.

E sem nada mais tentar junto dela, tão altiva a cabeça quão moles as pernas, dirigiu-se para a porta.

No limiar parou:

- Nada bonito, darling, nada bonito, a cólera! É preciso saber evitar tão feia coisa... Uma verdadeira lady Blackenfield fica serena e fleumática... Muito pouco bonito, esse furor francês!

E muito hirto, duro, satisfeito da sua tirada, desapareceu.

Nicole caiu numa longa crise de lágrimas.

Parecia-lhe agora que o coração dilacerado; não mais poderia esquecer tal ofensa.

O seu amor-próprio fora profundamente atingido, na veneranda pessoa de seu pai... tão bom pai, tão leal, a despeito da obscura situação que por infelicidade se vira constrangido a aceitar!

E de que lhe provinha a mágoa e a humilhação? Do marido, que ela adorava e a quem atribuíra todas as qualidades, se revelar afinal mesquinho e odioso.

Durante duas horas julgou-se a mais infeliz das mulheres: Casara mal; seu marido bebia; não tinha coração - via como irremediável tamanho mal! A fadiga teve enfim a sua parte naquele imenso desgosto. E Nicole acabou por adormecer, com uma lágrima mal enxuta ao canto dos olhos.

Na manhã seguinte, ao acordar, sentiu a sensação que fica dos maus sonhos, dum horrível pesadelo.

Depois, como a noção da realidade se aclarasse pouco a pouco, pôs-se a reflectir maduramente. Era casada e, fosse qual fosse o carácter do marido, deveria esforçar-se por viver bem com ele... No íntimo, Harry não era mau rapaz. Muito fátuo, muito vaidoso, sem dúvida, mas nada recusava à mulher. Tinha-a tratado sempre com doçura... não se cansava de repetir que a amava.

Contudo, ferira-a gravemente na véspera; difícil lhe seria esquecer semelhante ofensa. Mister se tornava, no entanto, que ela, Nicole, não transformasse o seu ressentimento em mal-entendido mais grave.

Embora muito nova e sem experiência, a filha de Grammont sentia que, se desejava manter a felicidade do lar, não deveria abrir nova discussão, desencadear nova tempestade sobre o conflituoso assunto.

As melhores questões são as que nada deixam para o dia seguinte, que o mesmo é dizer: dentro do casamento não se devem aguçar rancores.

Todavia, embora disposta a perdoar ao marido e a esquecer os seus erros, quis Nicole tirar do caso uma vingançazinha... simplesmente para demonstrar ao seu lorde que a vida conjugal deve ser feita de mútuas concessões e que má política é faltar com a consideração e o respeito àquele ou àquela com quem temos de viver e de quem depende a nossa ventura e tranquilidade.

Ao trazer à jovem lady o almoço, disse-lhe a criada que lorde Blackenfield estava pronto para sair e mandava perguntar à senhora baronesa se queria acompanhá-lo ao ténis.

- Não, - respondeu a rapariga - não saio esta manhã. Diga a lorde Blackenfield que desejo repousar.

Nicole tinha o seu plano... plano bem ingénuo e sem utilidade de maior,     diga-se... plano que não poderia conceder à ferida do seu amor-próprio se não ligeiríssimo bálsamo.

Para começar, privava Harry da sua distracção favorita. Havia de o fazer andar sozinho, toda a manhã, sem ter em que aplicar o tempo... A falta da companhia habitual havia de aborrecer enormemente aquele rapazola, cujo carácter frívolo não suportava contradição alguma.

O pensamento de que o marido se aborreceria, fazia sorrir Nicole.

Porém, esta satisfação não lhe bastava. Arquitectava o que seria preciso mais para o obrigar a compreender que devia comportar-se bem com sua mulher, para esta o não privar da sua companhia para a outra vez.

«Deve chegar por volta da uma hora, para o almoço - calculava a formosa esposa. - Pois muito bem! Também hoje há-de almoçar sozinho».

Era uma contrapartida inocente e anódina, igual às que os jovens se comprazem de idear nos primeiros tempos de casados... Fúteis conflitos de amorosos em que cada qual procura dominar e submeter à sua vontade o outro... Zangas pueris e simples despeitos é certo, mas que não deixam de constituir, no entanto, com aparências inofensivas, o prelúdio de dramas dolorosos que mais tarde se darão. Desses conflitos mais vale aos recém-casados fugir, porque tais escaramuças abrem sempre a porta às grandes discussões. Mas Nicole era muito nova ainda. Não lhe era possível calcular nem raciocinar tão atiladamente. Contentava-se com ser impulsiva e parecia-lhe boa regra, parecia-lhe normal, fazer a Harry o mesmo que ele lhe fizera na véspera.

Posto isto, não esperou no hotel o regresso do marido.

Vestiu-se cedo, deu um curto passeio, e entrou na estação do correio de Baiona.

Era uma hora e dez quando pediu o número do telefone do hotel. Quisera que o marido esperasse algum tempo... o suficiente para se inquietar, por sua vez, com a sua demora.

Harry sentia-se efectivamente enervado quando, no extremo oposto do fio, Nicole lhe disse com desenvoltura:

- Allô! És tu, Harry?... Quero pedir-te que não esperes por mim. Encontrei uma amiga e antiga condiscípula e vou almoçar com ela.

- Como? Esqueceste, Nicole, que devíamos almoçar e seguir imediatamente para uma partida de golf em São João da Luz... Os dias já são curtos... e não podemos demorar a saída...

- Mas não a demores, Harry; vai tu, sem mim...

- Oh! Nicole... Estás a brincar, com certeza... Não vou sem ti; acho que deves acompanhar-me...

- Não hoje, Harry. Como já te disse, estou comprometida. ..

- Bem! Está muito bem!... És livre, realmente!

Falava num tom enraivecido e desligou bruscamente o telefone.

Que significava aquele capricho de Nicole? Por sua parte, ele quase esquecera a cena da véspera.

Só vagamente se lembrava de ter bebido menos mal uns cocktails na companhia dos Crowner e outros amigos e aquilo empanara de facto a clareza das suas recordações...

Nicole estava, evidentemente, zangada ou ressentida de qualquer coisa... talvez do seu encontro da véspera à saída do restaurante... Na verdade, com as mulheres muito amimadas é sempre de recear o reflexo duma falta de atenção... Harry tanto amimara até aí sua mulher que natural se tornava a sua susceptibilidade pela incorrecção da véspera.

Aquilo não era, contudo, razão para o abandonar assim, mormente nesse dia em que tão boa intenção tinha de sair com ela, a nada mais desejando dedicar-se.

Sentou-se, pois, de mau humor, à mesa.

A meio da refeição, pensou de repente se Nicole não teria inventado aquele encontro com uma amiga para se furtar talvez à sua parte no golf... Por momentos, perguntou a si próprio se seria esse o motivo: e não podia aquela amiga ser muito simplesmente um amigo?... Qualquer antigo conhecimento que ele ignorava ou - quem sabia? - talvez uma nova relação... conhecimento recente... datando, talvez, da véspera, porquanto, até o dia anterior, não deixara Nicole desde que chegara a Biarritz. Conhecia todos que com ela poderiam falar.

Foram-lhe desagradáveis estas reflexões - e entristeceu-se.

Admitia que um dos seus amigos houvesse encontrado Nicole e a tivesse convidado. Nas Ilhas Britânicas essas coisas são usuais e fazem-se correntemente. Ora Nicole era deliciosa; qual daqueles amigos, veraneantes em Biarritz, teria sido capaz de a ocupar toda a tarde pouco importava saber. O que havia da parte deles era o empenho de pregar a Harry uma partida, por vingança dele tanto lhes ter furtado a mulher. Pretendiam marcar uma vitória sobre ele, fazendo-o esperar, inquieto e rabioso, sozinho.

Não tardou então que a ausência de Nicole se lhe tornasse sumamente desagradável e não pôde Blackenfield eximir-se a sentir que o ciúme acordava finalmente na sua alma, até aí despreocupada e tranquila.

Quanto a Nicole, compreendeu muito bem, pelo tom de voz do marido, o descontentamento em que ficara; mas a primeira reacção foi de revolta contra o que considerava uma flagrante injustiça.

«Harry usa de dois pesos e de duas medidas para avaliar as coisas. Julga diferentemente, segundo se trata dele ou de mim! Realmente, é isto o que se chama a lógica masculina!»

Contudo, e raciocinando por esta forma, não se sentia mal disposta com o mau humor do marido.

O golpe dera no alvo... o plano vingara... Se Harry se irritava pela sua ausência era porque lhe estimava a presença... Sim: porque nenhuma precisão tinha de fingir desagrado.

Como lenitivo às maneiras bruscas e desdenhosas do marido, comprazia-se em pensar que lhe queria, pelo menos, verdadeiramente... Amava-a; não era       mal-intencionado, nem mesmo quando a feria, como na véspera.

Fazia estas reflexões enquanto almoçava, sentada sozinha a uma das mesas do elegantíssimo restaurante de Baiona, onde lorde Blackenfield nem por sonhos seria capaz de a supor ou procurar.

E entre a satisfação da partida pregada ao marido, como desforra, e o aborrecimento daquele seu solitário almoço, sentia-se um tanto entristecida...

 

Beaulieu... o sol... as palmeiras verdes... as flores.

Depois da fronteira de Espanha, a Riviera...

Lady e lorde Blackenfield tinham-se inscrito nos registos do hotel mais luxuoso e mais bem situado; no hotel de que se avistava inteiramente a baía cheia de sol e as luxuosas vilas aninhadas entre os pinheirais seculares.

Harry convencera-se de que não encontraria muitos amigos nesse recanto do Mediterrâneo, embora não tencionasse isolar-se dessa vez, como fizera em Biarritz.

Estavam ali há dias. Como de costume, haviam dado já numerosos passeios a Monte-Carlo, Canes e Menton, depois às montanhas que ficavam do lado das pitorescas gargantas do Lobo ou pelas magnificentes altitudes de Peira-Cava.

Uma tarde, no regresso de longa excursão até à aldeia de Sospel, na fronteira italiana, fez Nicole singular descoberta sobre as íntimas e originais preferências do marido a seu respeito...

Tinha subido ao quarto para despir o vestido de viagem e vestir uma toilette ligeira, mas elegantíssima, pois Harry comprara em Nice, para aquela estadia na Cote d'Azur, novas toilettes que de tão modernas eram até um tanto ou quanto excêntricas. A cada passo lorde Blackenfield se mostrava galante em extremo com a mulher. Cobria-a de jóias caras, de sumptuosas sedas, de peles preciosas. Mostrava-se atento e minucioso sobre todos os pormenores de toilette que pudessem realçar a beleza dela. Foi o próprio a pedir a Nicole que alourasse o cabelo e o encanudasse, à última moda.

Nicole obedeceu-lhe. Frisou e encanudou o cabelo, mas não se decidira ainda a mudar-lhe a cor, que era dum castanho ardente.

Em compensação, experimentara pintar-se. Para agradar ao marido colorira de cor-de-rosa as faces e carregara de vermelho os lábios, o que não se tornara muito útil, dada a natural frescura das suas cores.

Naquele dia, feita a breve mudança de toilette, Nicole desceu ao átrio; ia encontrar-se com Harry, a fim de tomar chá na sua companhia.

Uma espécie de galeria afestoada de plantas, cujo acesso era feito por meio de alguns degraus, formava o fundo do átrio; dera Nicole alguns passos nessa galeria quando subitamente a sua atenção foi atraída por certas palavras pronunciadas não longe dela. Era a voz do marido.

Escutou, intrigada, visto não conhecer no hotel pessoa alguma que fosse das relações de Harry.

Através das altas folhas das palmeiras, viu-o um pouco abaixo do sítio em que ela se encontrava.

Imóvel, pôs-se a observar dissimuladamente, por entre as plantas, de forma que o marido não a podia ver.

Harry falava com dois rapazes que ela não conhecia:

- Sim, meu caro - dizia um deles, que parecia Francês, ao passo que o outro era com certeza compatriota de lorde Blackenfield - vimo-lo num automóvel esplêndido ao lado duma linda mulher...

- Yes, lady Blackenfield - respondeu Harry tranquilamente.

- Que diz? - perguntou o outro, que pareceu estupefacto.

- Isto mesmo - repetiu o Inglês. - Lady Blackenfield, minha mulher.

O coração de Nicole teve um sobressalto de alegria; pelo menos, dessa vez, o marido não a renegava!

Mas o que falara por último, ou seja, o Inglês, de novo se admirou:

- Mas como pode ser isso? Casado, você, Harry? Estupenda novidade!

- E desde quando? Quem é ela? - insistiu o outro rapaz, a quem a curiosidade tornara indiscreto.

Lorde Blackenfield teve esse encantador sorriso que lhe dava a graça dum adolescente.

- Eu explico: - disse. - Foi... como lhe chamam vocês?... um casamento fora da tradição das famílias... foi... um casamento de amor...

Nicole ouviu com desvanecimento esta última afirmativa.

Como eram boas e confortadoras as palavras de seu marido!

- Yes... um casamento de amor... Casei com uma estrela... uma formosa estrela de cinema! Oh! Deliciosa, meu caro!

Um duche gelado caiu então sobre o coração de Nicole.

Uma estrela de cinema? Não seria isso renegá-la, embora mais subtilmente?

Entretanto, Harry prosseguia:

- Como calculam, o cinema terminou para a baronesa... Blackenfield... De resto, ela mal tinha! começado... era muito novinha! Quase uma criança... E tão loveley... Oh! yes!

Continuou a falar inglês com o seu compatriota, enquanto que, por detrás do maciço de plantas, a jovem esposa quedava trémula...

- Uma estrela!... Que ideia aquela!... Porque preferia o marido fazer acreditar tal mentira em vez de dizer a verdade, a bela verdade: «uma honesta rapariga, simples, prendada e séria... aninhada no seio da família, no meio dos bosques, na Sologne...»

Não se tornaria mais poético o seu idílio contado assim na sua tocante simplicidade?

E Nicole não deu sinal da sua presença no átrio, em bicos de pés retirou-se docemente e subiu ao seu quarto...

Estava como se acabasse de apanhar atordoante pancada. Sentia a necessidade de se concentrar, de compreender.

Uma estrela de cinema? Era então coisa de grande prestígio, em Inglaterra, desposar uma vedeta de cinema?

Queria isso dizer que lorde Blackenfield, cujo nome figurava na Peerage, o livro de ouro da aristocracia inglesa, para se considerar mal-casado bastava declarar que o fizera com uma artista de cinema... caso que se tornava perdoável devido ao chique... devido a estarem na moda essas senhoras?

Porque podiam confessar-se as origens duma estrela... mesmo quando saída do vão de escada do porteiro... ao passo que nada se poderia dizer da simples filha dum picador, dum guarda-mor, ainda que honesta, séria e instruída!... Ainda que o pai se tivesse feito guarda ou picador em consequência dum revés da fortuna!

Era espantoso!

E julgava encontrar agora a razão porque Harry tanto se empenhava em que ela usasse aquelas toilettes vaporosas, até de mais, em que ela ostentasse pinturas e rebuscado garridismo... Sim. Era preciso que sua mulher alardeasse gostos próprios de comediante... de grande vedeta!

«Ah! Ah! Ah! Que cómico!»

E Nicole ria; seu riso saía, porém, mais nervoso que sincero, pois sentia o coração oprimido.

Ah! Desposara uma estrela, não era verdade? Pois bem! Visto isso, visto que assim desejava, teria cinema...

«Também hei-de ter as minhas aventuras!... E se os jornais começassem a falar de mim, a fazerem certo barulho a meu respeito, que diria ele?»

No entanto, sua alma delicada, cândida e tímida nenhum desejo sentia pelos espalhafatos que dão nas vistas. Mesmo que fosse na tela dum cinema ter-lhe-ia sido desagradável ver postos em si os olhos de toda a gente.

Não! Não desprezava profissão alguma. Admirava mesmo, sinceramente, as belas artistas que arrebatavam e faziam vibrar as multidões. Mas a verdade era que, nem por gosto, nem por temperamento, essa vida de glória e de brilho a fascinava; preferia a vida suave da esposa e da mãe, que desfruta discretamente as alegrias do lar doméstico.

Nascera para uma vida simples e modesta e não para aquela outra, fictícia e luminosa, das artistas da tela. Podia tornar-se talvez uma grande senhora respeitável e homenageada, mas nunca saberia ser uma rainha de teatro, adulada, dando que falar... Cada qual para o que nasceu, dentro da sua "vocação! Nicole sonhara sempre com serenos passeios sentimentais, trabalhos delicadamente executados num ambiente calmo, entre longas e repousadas conversações, ao canto do fogão. E, arquitectando o futuro, via-se envelhecer, docemente, junto dum marido confiante e respeitoso, no meio de alegre enxame de meninos, que seriam os seus filhos.

Já lorde Blackenfield não parecia acalentar o mesmo sonho...

Queria ver sua mulher num plano de grande brilho, cercada de admirações. Desejava vê-la usar toilettes berrantes, penteados excêntricos, adornos e jóias que dessem bem nas vistas...

A esta ideia, Nicole soltou um suspiro de desgosto. Nunca é agradável à mulher verificar que, tal qual é, desagrada ao homem que ama, necessitando, para o satisfazer, simular um feitio diferente e adoptar maneiras que não são as suas.

No meio destas conjecturas recordou-se repentinamente de que um dos amigos de Harry, encontrado em Biarritz, a informara do recente casamento dum Par de Inglaterra.

Lorde Witthom casara com uma mulher celebrizada por famoso processo... uma actriz que fora chamada à barra dum tribunal criminal de Paris, em consequência da morte dramática dum seu protector. Fora absolvida por nada se ter podido provar contra ela; mas todos os jornais falaram da sua vida íntima, das suas relações com o morto e alguns dos seus amigos... Desencadeara-se com isto grande arruído a seu respeito... E, sem embargo, um homem de estirpe, bem considerado na Câmara inglesa, não hesitara em casar com essa mulher e em fazer dela lady Witthom!

Era então realmente verdade que na Inglaterra as rainhas da cena ou as estrelas de cinema desfrutavam os altos favores da consideração!

Ridículo de admitir para um cérebro feminino francês, o facto consolava-a no entanto pela explicação que dava em parte ao proceder do marido.

Então, passadas as primeiras revoltas, seu coração amante fazia-lhe escutar conselhos apaziguadores.

E visto que Harry parecia achar glorioso que a tomassem por antiga estrela de cinema, muito bem! Curvar-se-ia aos seus desejos e não levantaria questão por semelhante bagatela.

Para lhe agradar, diligenciaria tomar atitudes de menina emancipada e de estadear as mais extravagantes toilettes! Demais, nunca é desagradável a uma mulher aformosear-se quanto possível e apresentar sempre vestidos novos.

«Se com isto satisfaço e contento meu marido, não me importará a garridice!»

A pura e ingénua Nicole não tentava ver mais além... Sentia-se tão reconhecida com o facto de Harry a ter desposado, amava-o tão ternamente, estava, numa palavra, tão orgulhosa de se ver lady Blackenfield, que se dispunha a fazer quanto pudesse para conservar a afeição e a admiração desse criançola vaidoso de quem era mulher.

Já não ia juntar-se ao seu lorde para tomar o chá ou o vinho do Porto. E assim, enquanto esperava pela hora do jantar, refez minuciosamente a toilette. Vestiu o mais provocante dos vestidos de seda: pintou-se como se pintam as ingénuas, isto é: carregadamente; por felicidade, nada podia desfear seu juvenil rosto de dezoito primaveras.

Quando desceu à sala de jantar, quase todas as mesas se encontravam já ocupadas.

Sentado a uma delas, ao fundo da casa, Harry, de smoking, esperava. Os dois amigos de há pouco não deviam ser hóspedes do hotel, porque Nicole não os viu.

Para chegar junto do marido teve de atravessar toda a sala.

Era tão extraordinariamente formosa que nenhum dos hóspedes presentes pôde ficar alheio ao seu encanto.

Mais adivinhou que percebeu um murmúrio de admiração, murmúrio que a cercou, que a acompanhou até o momento dela tomar o seu lugar à mesa.

E esse murmúrio, esse êxito colhido pela esposa, fez com que Harry se tornasse amável como nunca. Terno, afável, teve Nicole a ilusão de que o marido voltara aos seus primeiros dias de fervorosa paixão.

Tal resultado pô-la radiante. E na sua ingénua alegria logo prometeu a si própria, agora que estava no segredo do que agradava ao marido, não descurar nunca o ensejo de se tornar uma das mulheres mais belas e admiradas.

 

Tomaram o chá no terraço, do qual se avistava o mar. Perante seus olhos estendia-se, incendiada pela purpurina luz do sol no ocaso, a admirável baía de Villefranche. Rolando em caótico cenário de sangue e ouro, as nuvens ofereciam uma esplêndida visão, quase trágica.

Muito juntos um do outro, Nicole e Harry mantinham-se silenciosos ante aquela magnificência. A beleza do momento enleava-os na grandiosa harmonia...

Havia dias que Harry achava sua mulher tão formosa como nas primeiras horas da sua paixão. Sentia que a amava com renovado fervor; e, porque Nicole requintava os seus cuidados com a toilette e se apresentava com uma elegância audaz e provocante, começava Harry a sentir-se também deveras orgulhoso.

O que o impacientava, por vezes, era a infantilidade dela, certas má-criações, deslizes, imperceptíveis quase, felizmente, mas próprios duma educação menos formalista que a dele, menos raffinée, conforme suas palavras. Nicole tinha exuberantes admirações ante as paisagens inesperadas, que o deixavam inteiramente frio; ou manifestava publicamente testemunhos de carinho, que o aborreciam... Não se importava de lhe dar familiarmente o braço como qualquer provinciana enamorada. Mas, enfim, tudo aquilo se ia atenuando a pouco e pouco. Estava esperançado em que a sua formosa Nicole se tornaria uma verdadeira lady, apresentável, altiva, original e excitante como lhe parecia que uma esposa moderna devia ser. Nem ao menos concebia que o que desejava de Nicole se tornava absolutamente irrealizável, pois a queria ao mesmo tempo excêntrica e rígida, altiva e fleumática, dando a todos ainda por cima a embriagadora sensação duma estrela da moda; devendo, enfim, corresponder duma assentada à toleima deliquescente da sociedade moderna e à pudibundez rigorista das famílias inglesas... Talvez que este sonho de Harry fosse tecido simplesmente pela lógica masculina: desejar uma mulher, única afinal, que por um lado se tornasse a cobiça de todos os homens e que por outro, devido a seus dons maravilhosos, projectasse na sombra todas as demais mulheres. Rainha de beleza, de todos admirada, que no meio das múltiplas homenagens dos homens não veria nem admitiria se não um: seu marido.

Um anjo!... Ou antes: uma quimera!

Sim, um sonho!... O possível sonho de todos os homens muito novos ainda...

Sem que o supusesse, Harry estava numa idade de verdadeira inexperiência; e, também sem o saber, pedia ao Destino o impossível!

Estaria pensando nestas coisas diante da apoteose do pôr-do-sol, no instante em que a mulher, aninhada contra o seu ombro, estremeceu num arrepio?

Maquinalmente, Harry pousara o queixo sobre os cabelos que o vento de quando em quando erguia até lhe roçarem os lábios.

- Minha fadazinha...

- Voltemos para dentro, queres, Harry? - propôs Nicole.

- Porquê, meu amor? Não te sentes bem aqui?

- Sim, apoiada ao teu peito, sou muito feliz! Mas não me sinto realmente bem.

- Que tens?

- Não sei... Talvez este céu trágico, este mar iluminado de vermelho, como se fosse de sangue...

- Visão esplêndida...

- Mas que me causa uma impressão desagradável: sinto o coração apertado por não sei que mau pressentimento...

E baixinho, numa voz abafada, com novo arrepio, murmurou:

- Tenho medo.

- Oh! darling! medo de quê?... Diante de tão maravilhoso cenário!

Mas a própria rapariga se admirava desse nervosismo, dessa ansiedade que a oprimia.

- Imagina, Harry, que não recebo notícias de meu pai vai para oito dias... Na última carta dizia-me que se sentia muito fatigado.

- Teu pai trabalha muito...

- Agora findaram as caçadas... Costuma ser esta a melhor época do descanso para ele. É a estação que se segue aos grandes frios e antecede a reprodução dos animais.

- Nesse caso podia escrever-te mais assiduamente.

- Sim. Devia fazê-lo... mas não faz!

- Não penses nisso. Sossega. O que estás é sofrendo de uma depressão nervosa... sei o que é, queridinha...

Estavam sós no terraço; Harry passou-lhe com gesto protector o braço pelos ombros e sentiu-a tremer. Então, essa rapagão sólido, alheio sempre a doenças ou nervosismos, experimentou a sensação dum vago receio ao perceber que o delicado corpo da esposa queimava e estremecia contra o seu.

Que teria, nessa noite, a sua Nicole?... Doente, a fadazinha?

Instintivamente, apertou-a mais contra si. Num relâmpago do pensamento acabava de ter a visão dessa frágil criança arrebatada ao seu afecto por um mal súbito e implacável.

Sentiu-se comover; e, pelo doloroso pavor que sacudiu, compreendeu o lugar que apesar de tudo ocupava na sua vida essa cândida companheira, cuja alegre ingenuidade tanto o agastara algumas vezes.

- Vamos, minha querida, visto que assim queres.

Cobriu-a com a grande capa, ligeiramente guarnecida de peles; depois, transportando-a quase, ajudou-a a subir para o automóvel.

Decorridos alguns minutos chegavam a Beaulieu e paravam à porta do hotel.

O reflexo do céu sanguinolento coloria de vermelho, num trágico luar de incêndio, o mar e a costa.

De repente, no átrio, o groom entregou discretamente a lorde Blackenfield um telegrama que trazia: a um canto a nota de «particular».

Nicole acabava de entrar no elevador; Harry deixou-a sozinha. Abrindo o telegrama, leu estas palavras:

«Grammont súbita doença - Previna Nicole com precaução - Venham ambos próximo comboio - Esperamos. - La Muette.»

Harry teve um movimento de incontido mau humor.

«Que aborrecimento! Que contratempo irritante! O pai Grammont bem podia   deixar-nos em paz! Não tinha necessidade nenhuma de nos incomodar desta maneira com a sua pessoa... Prevenir Nicole! Aí estava uma coisa que não podia vir mais a propósito, no estado de nervosismo em que ela se encontrava nessa tarde!»

E, como instintivamente acontece diante duma preocupação que implica pormenores de ordem material, Harry atrasou o passo para não se juntar à mulher. Precisava de saber a hora do comboio, tinha ordens a transmitir para a compra dos bilhetes de dois sleepings -coisas que lhe fariam ganhar ainda algum tempo.

Decidiu-se finalmente a subir e avistar-se com a esposa. Nicole sentara-se num maple e aí estava enovelada, ainda com a capa posta.

Mal viu aparecer o marido dirigiu-lhe lânguido olhar.

- Que ficaste a fazer, Harry? Porque não subiste comigo? - perguntou.

E, como esperasse uma resposta que não vinha, acrescentou, subitamente ansiosa:

- Que se passa, Harry? Sucedeu qualquer coisa... Vens perturbado... Não negues, há qualquer coisa! Estás a querer mostrar-me um ar natural, mas não sabes mentir. Oh! Dize... dize depressa!...

Estranho tremor a sacudiu toda; e compungido, Harry nada podia dizer-lhe que a sossegasse. Pelo contrário. Comovido, avançou então para a esposa de braços estendidos.

- Minha adorada Nicole - murmurou docemente.

Nicole viu, porém, o papel azul do telegrama que o marido descuidadamente esquecera na mão.

- Um telegrama! Meu pai!... Meu pai está doente!

E, sem que Harry houvesse podido prever o gesto, Nicole agarrou o telegrama. E leu...

- Ah!

Foi um grito dilacerante... Depois, com a voz quebrada pela emoção, balbuciou:

- Meu pai está mal... muito mal! Eu bem adivinhava... Bem tinha o pressentimento duma desgraça...

Já não chorava. De olhos desmesurados e febris levantou-se.

- É urgente partirmos.

- Já mandei comprar as passagens - disse Harry, a quem esta cena dramática conturbava desagradavelmente.- Partiremos daqui a uma hora... Mas acalma-te, darling; La Muette tem por teu pai enorme estima... Com esse telegrama alarma-se e alarma-te... Sossega, darling!

Calma, Oh! Nicole estava muito calma! Com os olhos secos e fixos, o rosto crispado, deixara-se cair no maple. Estava imóvel... muito calma, na verdade: como morta por esse golpe!

Foi assim que lady Blackenfield, que não tinha mais de dezoito anos, uma alma de criança e um coração mal defendido dos choques cruéis da vida, recebeu com -precaução a notícia do perigo mortal em que se encontrava seu adorado pai.

 

Viajaram toda a noite - e, no confortável sleeping onde ia estendida, Nicole não fechara os olhos.

Pela manhã fria, que a chuva entristecia, chegaram ao castelo de La Muette.

A limousine travou diante do portão, onde os esperava o duque:

- Nicole... minha querida prima...

La Muette abraçou paternalmente a jovem e repetiu:

- Coragem, minha filha! Tenha coragem!

- Meu pai morreu!...

Por aquele acolhimento, Nicole tinha compreendido...

A bem-dizer, o duque de La Muette testemunhara sempre à encantadora filha de Grammont protectora amizade. Mas, depois de efectuado o casamento, consumada a união que, com vontade ou sem ela, lhe dera entrada na família, passara a tratá-la com perfeita cortesia, como a uma grande dama e como sua prima. Nunca, porém, usara com Nicole a expressão de piedoso afecto que lhe dava agora e em regra se dispensa àqueles que vemos na alçada dum grande desgosto.

- Meu pai morreu!...

Lançara aquele grito desesperado; em seguida, esgotada de forças e de nervos, desmaiou:

Três dias depois, sumida a um canto do divã, entre as almofadas de florido cretone que por suas mãos trabalhara meses antes, naquela sala que ela tão alegremente alindara para si e para seu pai, lady Blackenfield chorava desesperadamente.

Tinha no cérebro a sensação dum vácuo imenso... Parecia-lhe ver agitarem-se num grande espaço vazio as cenas dolorosas desses últimos dias, cenas que passavam e repassavam sem cessar: via o pai estendido no estreito leito mortuário, dentro daquele seu pequeno quarto nu que mais parecia uma cela de monge. Revia-lhe o rosto um tanto rude, solenizado pela morte e como que esculpido em marfim.

Seu pai quase não sofrera. Segundo lhe haviam afirmado, o fim fora rápido.

Ainda que passados quinze anos, Grammont era uma vítima da horrível guerra. Como muitos outros «gaseados», tinha, sem que exteriormente o parecesse, os pulmões profundamente atingidos; e, no decurso duma bronquite, sem gravidade aparente, uma embolia que sobreviera arrebatara-o no espaço de alguns minutos.

É possível que ele próprio houvesse receado esse fim, pois que tais casos não eram raros entre «gaseados». E fora sem dúvida esse receio a principal razão por que aceitara o casamento de Nicole.

«Se desaparecesse, a filha teria um protector!, continuaria rica e feliz!...»

Rica? Sim, certamente. Mas feliz? Quem poderia garantir a felicidade?

Evocava agora o funeral comovedor. Toda a gente viera, com seu fato de cerimónia, toda a gente, desde o duque de La Muette, que era o proprietário, até os guardas e humildes servos dos canis. Todos os criados e gente das aldeias vizinhas tinham vindo prestar igualmente a sua última homenagem ao homem justo que lograra alcançar a simpatia e a estima de todos...

Tão bom que era, o pai adorado!

Nicole chorava... Harry viera sentar-se ao lado dela e olhava-a com esse ar estupidificado dos que não compreendem certas dores.

Efectivamente, lorde Blackenfield não podia conceber que uma mulher de menos de vinte anos, formosa, elegante - e sobretudo casada com um mundano, como ele!-pudesse sentir tamanho apego e afeição por um homem rude como Grammont.

«Um tipo ordinário... um guarda-mor, um couteiro, no fim de contas!»

Bem entendido que não ousava exprimir de viva voz a Nicole aquela sua incompreensão; mas, ainda que por forma obscura, a esposa sentia que o marido não partilhava a sua dor e que nem sequer a compreendia!

Em virtude desta espécie de indiferença, a órfã nenhum conforto experimentava com a presença e a proximidade do marido.

- Nicole... Nicole querida... não chores mais! - pedia Harry inoportunamente, pegando-lhe na mão. - Não gosto de te ver assim desgostosa... Olha para mim... Olha-me e sorri-me, darling!

Procurava agarrar-lhe a cabeça entre as mãos. Nicole ergueu finalmente para ele um olhar cheio de lágrimas. Tornava-se comovedor vê-la assim; muito pálida, a fisionomia contraída, as pálpebras avermelhadas. Harry achou-a menos bonita e teve um sentimento de cólera contra esse desgosto que tirava a sua mulher o nada porque a amava: a beleza do seu rosto.

E, num tom de - voz que desejava fosse terno, mas que, mau grado seu, saía enfastiado, disse:

- Escuta-me: é grande o teu desgosto, compreendo... mas torna-se absolutamente preciso que esse desgosto acabe... Não é razoável: não gosto nada de ver lágrimas.

Nicole sacudia a cabeça sem responder. Harry aproximou-se mais dela. E usando daquele sorriso aliciante que ele sabia feiticeiro, murmurou: - Não penses mais em coisas tristes, querida Nicole... Já não tens o teu pai: era uma coisa que tinha de ser e nada remedeias com essas lágrimas; deves é lembrar-te que possuis para o substituir o teu marido... um maridinho bom, que te ama. E eis tudo, não é verdade?

Falava cariciosamente, com o braço passado pelos ombros da mulher, satisfeito de a enlaçar, de estar junto dela, desejoso de melhor a confortar.

Porém, Nicole continuava a sacudir a cabeça docemente obstinada, dizia-lhe:

- Não, Harry, nada substitui um pai como o meu... o melhor dos pais... tão bom e tão delicado como uma mãe... Quase não conheci mãe, razão por que ele foi tudo para mim! Soube tornar feliz a minha infância... Gostava tanto de mim! E morreu sozinho... longe dos meus carinhos... sem os meus beijos e sem que eu tivesse recebido o seu último olhar!...

Excitada, desesperada por esta última compungida evocação, Nicole desprendeu-se do amoroso abraço do marido; e, com o rosto escondido nas mãos, recaiu sobre as almofadas, a chorar, sacudido o corpo por convulsivos soluços.

Blackenfield exasperou-se então: esse desgosto de Nicole, que ele se via impotente para atenuar, esse redobramento de choro, o ciúme que nascia em seu âmago contra o morto, que - sentia-o bem - ocupava no coração da mulher amada o melhor lugar... tudo isso o desesperou!

Sobreveio-lhe uma cólera brutal e fria, como a sentem por vezes os da sua raça.

- Não compreendo! Toda essa sentimentalidade francesa... não sei para que sirva... Temos de viver com os vivos!... Um pai que, bem vistas as coisas, não passava dum guarda-mor... com uma situação que... como dizer?... nem ao menos era brilhante! Facto este que havia até de criar entraves às nossas relações em Londres. Tornava-se impossível, por exemplo, recebê-lo na nossa casa... Minha querida: tens de ver e compreender as coisas pelo lado da razão...

Que ouviu Nicole daquele arrazoado no meio dos seus soluços? Harry não saberia dizê-lo, o que não o impediu, porém, de continuar enfático e cheio de importância:

- Tens de te lembrar, darling, que usas o meu nome, e que esse nome figura há séculos no Peerage. É preciso que lady Blackenfield esteja à altura do seu título!... Mas que tens tu, então?

Só os soluços continuavam a sacudir o frágil corpo de Nicole; convulsivo tremor a agitava e um grito agudo e plangente partiu de seus lábios descorados.

- Aí temos nova crise de nervos... Não faltava agora mais nada!

Inconsciente do efeito deplorável que as suas reflexões, práticas mas intempestivas, haviam produzido, Harry não achava naquilo se não redobrado motivo de irritação.

Só uma vontade sentia: fugir daquela casa. Nicole estava verdadeiramente importuna nesse dia.

- Delfina! Venha cá depressa...

E, entregando a mulher aos cuidados da velha criada, Blackenfield saiu para a floresta.

Ia furioso! Tudo lhe corria mal havia dias...

Não ousava ainda arrepender-se daquele estúpido casamento, mas era levado a crer que sua mulher não perdia ensejo de o arreliar e de lho lembrar...

E enquanto, atirando largas passadas, tentava acalmar o seu mau humor, dentro de casa a velha criada reanimava Nicole. Acabava de lhe chapinhar as fontes com água fresca e estendia-a no divã.

A pouco e pouco então a gentilíssima lady voltava à sua respiração normal, o arfar do peito apaziguava-se-lhe e ao estado febril sucedeu a calma.

Por muito tempo, Delfina amparou aquela cabeça dolente e embalou, achegada ao peito, a sua menina. Acarinhava-a com a ternura e as boas palavras de outrora, desse tempo em que lady Blackenfield era simplesmente a pequenina Nicou que, de sainhas curtas, corria direita a ela para lhe curar um ache...

Porém, agora, que a sua menina se tornara a senhora baronesa, não ousava a velha serva abraçá-la; somente, como Nicole acabasse por cair em modorra e adormecesse, num sono reparador que lhe serenava o rosto convulsionado, Delfina pegou na pequenina mão branca e pousou nela devotadamente os lábios.

Caminhando a largos passos por debaixo da espessa ramaria, Blackenfield, mais calmo, meditava...

Achava inútil voltar para o sul. A viagem de núpcias durara o suficiente... pretendia evitar, antes de mais nada, a companhia de Nicole triste e lacrimosa, carregada de luto...

Em Londres reencontraria os amigos, o seu clube... todos os hábitos da sua vida de rapaz elegante, vida que não tencionava alterar muito.

Demais, ia começar a época de Inverno e, segundo ouvira em Biarritz aos amigos, anunciavam-se particularmente brilhantes as recepções na capital britânica.

Afastado da alta sociedade havia meses, primeiro em consequência do desastre sofrido, depois por motivo do seu casamento, Harry sentia agora um louco desejo, um verdadeiro frenesi em remergulhar nessa vida fictícia e turbilhonante. Por outro lado, a viagem, a entrada num país desconhecido, todas essas coisas serviriam de distracção a Nicole e arrancá-la-iam àquela tristeza, fazendo-a certamente abreviar o luto.

Quanto à criada de quarto e ao motorista, que tinham ficado em Nice, ia-lhes telegrafar imediatamente a fim de irem juntar-se-lhes em Inglaterra com as bagagens.

Adeus tristezas! Findava o idílio e também a estadia naqueles bosques!

Nessa mesma noite comunicou à esposa a sua decisão.

No dia seguinte os Blackenfield partiam para Londres...

Harry e Nicole iam instalar-se na vida que lhes seria normal, a bela vida de luxo das famílias inglesas ricas!

 

Três semanas depois instalavam-se os Blackenfield na severa e faustosa moradia que Harry possuía nos subúrbios de Londres.

Nicole não deixara ainda os seus aposentos. Muito fatigada e num estado de intensa depressão nervosa, guardara o leito nos primeiros três dias. Só a pouco e pouco ganhara forças. Quando se levantou deu-se ao cuidado de observar com minúcia o seu quarto... Era um aposento vasto onde os móveis, antigos e delicados, em precioso pau-rosa, do mais puro Adam's style, e os longos cortinados de rendas brancas lhe lembravam, apesar de muito maior e mais sumptuoso, a antiga e deliciosa atmosfera do seu modesto quarto do Ragon.

Gostava desse quarto estilo velho Inglaterra... Old England, assim como gostara do estilo antiga França do castelo de la Muette...

Naquele dia, no imenso vestíbulo da vetusta moradia, lorde Harry, confortavelmente sentado num largo cadeirão de couro, esperava Nicole para sair com ela.

Seguindo pensativamente com o olhar as espirais de fumo do cigarro, Blackenfield cogitava...

A isolação da mulher ia findar. A sua saúde parecia restabelecida. Aos dezanove anos possui-se tal reserva de vitalidade que a Natureza triunfa de todos os abalos.

Nicole ia enfim poder acompanhá-lo nas visitas que tinha a fazer. Tornava-se agora necessário e mesmo urgente apresentá-la, pelo menos, no círculo restrito da família e das relações mais escolhidas... a não ser que os Blackenfield quisessem ver-se apodados de singularidade, o que, no meio da tradicionalista e formalista aristocracia inglesa, representava grave risco.

Precisamente, tinha agora excelente ensejo, uma ocasião semioficial de apresentar Nicole; observaria não só a forma porque ela se comportaria como o efeito que ia produzir.

Além de tudo isto, tinha Harry por difícil não aceitar certo convite vindo de seu tio, que o sabia casado! Este tio, membro da Real Academia de Pintura, artista, muito do mundo oficial, e muito condecorado, condescendia em fazer uma exposição das suas obras somente para os do seu nível e família. Ora o artista convidara o sobrinho e a sua nova sobrinha para a festa que naquele mesmo dia se realizava.

Harry achava pois excelente ocasião de estabelecer contacto: veriam muita gente sem terem tempo nem possibilidade de falar de espaço a ninguém, o que constituía vantagem, sobretudo porque Nicole conhecia mal a língua inglesa. Esta circunstância, desfavorável como princípio, tornava-se excelente naquela emergência, a fim de cobrir quaisquer deslizes.

Lorde Blackenfield, que esperava Nicole, começava a achar longa a demora quando o ruído de breves passos lhe fez voltar a cabeça.

Sua mulher acabava de aparecer no alto da escadaria. Ao vê-la, Harry soltou viva exclamação de surpresa, ao mesmo tempo que uma expressão de desgosto lhe alterava a fisionomia.

- Hailoo! Que é isso, querida? Que vestido é esse? Que fazes?

Nicole descia, pequenina no meio dos largos degraus. Vinha vestida de preto e um véu de crepe, preso ao chapéu, envolvia-lhe os ombros e cobria-a quase toda, até aos pés.

O marido aproximou-se dela. Depois, com doçura um tanto irónica, comentou:

- Não me parece ocasião propícia de lançar o uso dessa fantasia, Nicou... Vamos daqui à festa íntima do tio John Huntry... Supus que estivesses pronta para sair...

- Mas para sair é que eu estou pronta - respondeu Nicole com certa perturbação.

Blackenfield olhou-a num susto.

- Ho!... Não queres dizer com certeza que... pretendes sair com esse vestido.

- Perdão, Harry... mas eu não posso vestir-me doutro modo! Esqueces que me encontro de luto.

- De luto?... Não, não o esqueci! Mas o luto não é bonito... aqui! Depois, mesmo «que fosse uma moda, não podias usar essas vestes negras... Assim vestida tinhas de dar explicações... Logo perguntariam quem era o morto e a família... Que tinham dito do defunto os jornais! Explicações que eu não quero dar... compreendes?

Nicole corou violentamente.

Sim, compreendia. Uma vez mais era ferida no ponto doloroso.

- Então, darling... vamos, vai mudar de vestido, peço-te...

Imóvel, Nicole olhava para o marido. Nos olhos deste revolta alguma transparecia; mas também não havia solicitação alguma na sua atitude.

- Vamos, sem demora. Tenho pressa!

O tom de voz de lorde Blackenfield tornava-se imperioso como sempre e Nicole, que guardava ainda certa reserva pelas objecções que o marido lhe fizera em seguida à morte de Grammont, sentiu-se extremamente susceptibilizada logo que Harry aludiu, embora indirectamente, àquele que perdera.

- Depressa, darling, vai vestir um vestido mais próprio da tua idade...

- Não! - contrariou Nicole simplesmente.

- Oh!

Havia um mundo de indignações nessa exclamação. Harry não tinha sentido, nem por um segundo, quanto as suas palavras irónicas e o seu tom brutal de senhor haviam atingido o coração daquela que usava o seu nome e que a fatalidade acabava de deixar órfã, por isso repetiu:

- Não podes... ouviste, Nicole? Não podes sair assim vestida.

- Nesse caso, não sairei - volveu Nicole com a maior calma.

E, sem nada acrescentar, ferida uma vez mais nos seus sentimentos de amor filial e também no seu orgulho de mulher, voltou lentamente para o quarto.

- Como entendas, minha querida - respondeu Harry, absolutamente estupefacto pela inesperada revolta de Nicole... dessa débil Nicou, tão amorável e submissa!

Então, com o pior humor, saiu de casa e entrou no soberbo automóvel que o esperava à porta.

Como primeira saída oficial depois do casamento, lorde Blackenfield viu-se só, como se fora solteiro...

Significativo!

Entretanto, recolhida no seu quarto, Nicole reflectia. Acusava-a a consciência de ter sido susceptível de mais. O que fizera acabava de marcar uma quebra profunda entre ela e o marido.

Era uma insignificância, uma dessas questiúnculas sem consequências como as que se dão muitas vezes e em todas as casas... porém, esse nada era um ponto de partida: aquele desentendimento podia desvanecer-se ou avultar.

Harry não se apercebia talvez disso. Era amiudadamente egoísta e brutal. Não concebia sequer a ideia de que alguma coisa lhe pudesse resistir; não admitia, sobretudo, que qualquer dos que se achavam na sua alçada tivessem sentimentos ou ideias opostas às suas.

«Mas - interrogava-se - acaso ela, Nicole, fora conciliadora?»

No fundo muito simplista mas no exterior formalista acérrimo como o são usualmente os Ingleses, Harry era tão agarrado a todos esses costumes e convenções que, em quase todas as circunstâncias da sua vida mundana, umas e outras lhe substituíam os pensamentos pessoais e geral discernimento.

Apegava-se ao uso inglês e aos seus princípios de bom-tom para decidir fosse o que fosse - o que tornava tudo muito simples.

Era na verdade um rapaz infinitamente mimado pela vida que logo de muito novo o colocara à testa duma fortuna imensa e duma situação mundana das de mais destaque em Londres.

E tudo isso Nicole compreendeu subitamente... Agora que as suas reacções de sensibilidade e mesmo de susceptibilidade se encontravam acalmadas, sentiu-se Nicole repesa do seu movimento de discórdia.

Mais fina de entendimento que o marido, analisava melhor; e compreendendo que a sua felicidade podia estar ameaçada por tão mesquinha questão! sentia-se de certo modo inclinada a determinadas! concessões.

Uma vez que verdadeiramente amava o esposo, tão belo e elegante, uma vez que o queria conservar, devia fazer o sacrifício do seu amor-próprio, encobrir até certas coisas dos próprios sentimentos...

Com fundo suspiro, Nicole olhava agora entristecidamente o chapéu de crepe e o extenso véu preto depostos na chaise-longue... E sobre a seda clara do estofo, véu e chapéu perfaziam lúgubre mancha.

Acaso esse vestido preto resumia o seu luto? Não.

O verdadeiro luto reside na alma e não na cor das vestimentas. Não poderia, portanto, sem alteração do seu sentir, vestir em vez do luto um vestido branco... e deixar igualmente de lado véus e crepes?...

O marido mostrara-se tão generoso e apaixonado ao dar-lhe o seu nome e o seu título que, por sua parte, bem podia corresponder-lhe com uma espontânea condescendência.

Nesse ponto dos seus pensamentos, Nicole suspirou. Afligia-a o facto daquele seu «não» a ter impedido de acompanhar Harry.

Porque havia de exteriorizar semelhantes revoltas? Seria aquilo próprio duma esposa ponderada e cristã? Se seu marido por vezes se mostrava déspota, devia ela ateá-lo? Seria o seu papel lançar azeite no lume?

E de novo Nicole a si atribuía todo o erro; sua natureza dócil e amorável mais não desejava agora que curvar-se perante Harry; e, para reparar aquilo

que considerava o seu «momento de mau humor», chamou a criada de quarto e fê-la levar dali o vestido e o véu: para agradar ao marido a órfã ia encerrar em si, como em relicário hermeticamente fechado, o seu luto e o seu desgosto, tanto mais inconsoláveis quão menos lhe permitiam mostrá-los. Envergando vestidos claros, no meio da sua dor, mais uma vez Nicole aceitava a situação de boneca de luxo, a boneca artificial da qual um homem fazia o seu brinquedo, o seu entretém...

Restava saber se o amor de Harry mereceria que a ingénua esposa a ele se imolasse daquele modo.

A alma forja-se no crisol da dor. Para que um coração de homem compreenda o valor dum sacrifício de mulher é preciso que ele próprio haja passado também pela provação do desgosto e das lágrimas. Ora Harry nunca sofrera... Não estava pois bastante amadurecido para poder compreender a silenciosa eloquência do gesto da mulher.

Mau grado as boas disposições de Nicole, a vida do casal não se tornou mais alegre.

Harry parecia não notar que a companheira se vestia agora de claro. Pelo contrário. Como se a recusa da órfã no dia da festa íntima de John Huntry houvesse estabelecido entre ambos um princípio imutável, nunca mais lorde Blackenfield solicitou da mulher que o acompanhasse nos seus passeios.

Com uma espécie de calculado frenesi, Harry retomara a vida de rapaz solteiro. Logo pela manhã saía para o passeio a cavalo, durante o qual reatava ligeiros flirts com as belas amazonas do seu conhecimento. De tarde, quando estava bom tempo, entregava-se aos prazeres do golf ou do ténis, enquanto que, nos dias de chuva, passava horas inteiras com os amigos, no clube.

Nicole entristecia, desolada por o marido passar tanto tempo longe dela; não obstante, sorria-lhe heroicamente quando ele chegava.

Levantava-se tarde e a parte da manhã, preenchida pelos cuidados da sua requintada toilette, passava relativamente rápida.

O aborrecimento para ela começava à hora do lanche, quando Harry não o vinha saborear na sua companhia. Demais a mais sucedia que o esposo lhe telefonava quase sempre a comunicar que ficava no clube.

E foi ela então quem, o mais afectuosamente possível, procurou acompanhar o marido que lhe estava sendo roubado.

Assim, nos dias em que ele almoçava em casa, se queria em seguida ir ao golf, logo a esposa o acompanhava... como em Biarritz.

Nunca tivera tanto interesse em meter a pequena bola branca sucessivamente nas dezoito covas, bastante distanciadas umas das outras; mas aquilo não era, por assim dizer, muito fatigante, e Nicole prendia-se ao jogo porque este lhe oferecia o ensejo de estar junto de Harry... o seu adorado marido a quem, fora daquilo, quase não via nunca.

Após o jantar, tomado cerimoniosamente em toilette de soirée, Harry saía regularmente todas as noites. A época de Inverno ia no seu apogeu.

Lorde Blackenfield comparecia por vezes em duas ou três reuniões onde era de seu dever apresentar-se. Vivamente induziria sua mulher a sair do seu canto, como era próprio na alta sociedade londrina.

Apresentara-lhe já algumas individualidades... Nicole devia criar amizades, escolher as suas relações.

Muito tímida, porém, a Francesa preferia ficar em casa. O seu luto, recolhido no coração, a sua ignorância da língua e dos costumes ingleses, o medo de ir a casa de pessoas que mal conhecia... o receio por essas senhoras menos bonitas que ela, feias mesmo algumas, mas que dispunham no entanto do chique e do à-vontade que Nicole, embora formosa como uma fada, não possuía... Tudo isso levava a filha do falecido Grammont a isolar-se e a esperar, lendo qualquer livro às vezes até alta noite, o regresso do esposo transviado.

E eis que a sua feminina ternura em breve havia de ser submetida a nova provação.

Quando chegava a casa às primeiras horas da manhã Harry mostrava-se caprichoso, extravagante... geralmente alegre, mas duma alegria constrangedora para a inexperiência da órfã. Usava com ela ou de meiguice excessiva ou duma brusquidão magoadora por vezes brutal! Falava num tom agressivo... tinha as atitudes incoerentes dum homem embriagado.

- Oh! Harry! - disse-lhe Nicole certa noite. - Jura-me que não tornas a beber... que não é possível que uma pessoa da tua importância e categoria desça a cometer tal acto...

Lorde Blackenfield pôs-se a rir... num riso espesso, alvar, que gelou a pobre rapariga.

E Nicole passou a sofrer um tormento mais por cada vez que o marido voltava em estado de embriaguez...

Mas, algumas vezes também, lorde Blackenfield passava as noites fora de casa e, para a esposa que o esperava sem poder dormir, presa de moedora inquietação, tornou-se o facto mais cruel ainda...

Nicole tornava-se, entretanto, e dia a dia, mais bela. Possuidora de maior distinção, mais sonhadores seus olhos, ganhara em encantadora gravidade o que perdera em exuberância.

Não deixava o marido de observar a transformação e sentia-se com o caso sinceramente regozijado.

«Nicole está-se fazendo uma verdadeira lady - pensava, satisfeito. Acho-a tão fina e tão fidalga como a mais autêntica e maior dama inglesa».

Não compreendia esse senhor egoísta e vaidoso que sua gentil mulher andava simplesmente neurastenizada e que a anemia começava a complicar o seu estado de saúde.

Quanto mais a languidez de Nicole se acentuava, mais encantado Harry se sentia com o brilho dos seus olhos, brilho maior no rosto esmaecido. Voltou então a ser o amoroso, meigo e sincero que fora no Ragon, ficando junto dela, atento, doce, feliz...

Por alguns dias Nicole viu reanimar-se nos olhos do marido a chama da paixão; notou que se tornava expansiva a sua alacridade.

Porém, mais ou menos encoberta, a quebra existia... no dia seguinte de novo o marido se evadia e, durante duas ou três noites, não voltava a aparecer.

 

Várias semanas passaram sem mudança alguma se operar no procedimento de Harry Blackenfield. E, no entanto, um dia, o semblante de Nicole iluminou-se duma grande felicidade.

Havia algum tempo que a jovem se sentia cada vez mais fraca e indolente. Apoquentavam-na singulares indisposições, certo mal-estar; qualquer coisa a fatigava, ao mesmo tempo que todo o seu sistema nervoso parecia abalado: tinha enfim crises de choro absolutamente exageradas.

Por tudo isso se decidira a ir consultar um médico.

Ora Nicole voltou quase alegre dessa consulta seguidamente mandou chamar o marido, que, por acaso, não saíra.

Harry encontrou-a com um leve vestido caseiro de seda cor de malva, estendida sobre a coberta branca do divã.

- Vem cá depressa, Harry; senta-te aqui, pertinho de mim... Tenho uma bela novidade para te dar!

Pequenina estatueta, fina e preciosa nesse quadro sumptuoso, Nicole bem linda e deliciosa estava. E como não podia conter a íntima alegria que a alvoroçava, pusera-se corada, seus olhos brilhavam, tornando-a mais deliciosa ainda.

- Que novidade é então? - perguntou, sorridente, o marido, diante daquele rosto radiante erguido para ele.

Nicole estendeu-lhe os braços:

- Vem... aproxima-te mais ainda... tenho qualquer coisa de belo, de maravilhoso a comunicar-te... meu querido maridinho, que amo tanto...

Deleitado, vibrante de emoção, Harry obedeceu e curvou-se mais para a esposa:

- Que será? Dize, minha querida.

Nicole colheu entre as pequeninas mãos a cabeça do marido e puxou-o para si: depois, baixinho, murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido.

O efeito dessa confidência foi inesperado.

- Hem? Que dizes? - exclamou Harry, dando literalmente um salto.

Desconcertada, a pobre Nicole ficou silenciosa.

Porém, de pé diante dela, a fronte vincada por uma ruga de descontentamento, Blackenfield repetia:

- Que disseste tu, Nicole? Quem foi que te meteu na cabeça uma coisa dessas? Vê-se bem que não tens experiência alguma...

- Sei bem o que te estou a dizer. Tenho a certeza! Compreendes: julguei que ia dar-te uma grande alegria...

Harry encolheu os ombros e teve um riso irónico.

- Para ter a certeza... - tornou a adorável lady -, para te não causar uma falsa alegria... consultei um médico!

- Como? Ah! - gemeu, arrasado, o Inglês. - Não há então dúvida? Sou nesse caso o que se chama um infeliz papá!

- Sim, Harry... Não te sentes satisfeito!... Pois eu estou muito contente de ir ter um bebé!... Um bebé do meu querido Harry!

E estava na verdade tão radiante que projectava em derredor de si um clarão de felicidade tal que nem o mau humor do marido a detinha.

- Feliz? No... eu não o estou! Nada mesmo!... Por mim não queria filho algum!... Sou ainda muito novo. Essa história desagrada-me a valer!

- Oh! Harry... Como podes dizer uma coisa dessas?

Blackenfield sentiu-se ridículo em se zangar por uma coisa tão natural.

Vendo desaparecer no rosto de Nicole, progressivamente, à medida que ele falara, toda essa jubilosa exaltação, como se sobre aquela alegria escuro véu se estendesse, Harry teve, pela primeira vez, consciência de que a sua brusquidão podia ferir e fazer a sua mulher sério mal.

E num vago desejo de reparar as palavras proferidas abraçou-a mais ternamente que de costume antes de a deixar.

Ia procurar, longe dela, livre curso ao seu despeito. Bem grotesca lhe parecia essa intempestiva paternidade... se era tão novo ainda!

Nicole não calculava sequer a intensidade do desprazer de seu marido!

«Aquilo não passava de espirituosa partida, com certeza.»

E, fosse como fosse, se o marido não ficara satisfeito, mudaria decerto na altura em que visse o filho e a fibra paternal despertasse nele. Mas o principal para Nicole era a criança! Era esse pequenino ser a amar, a cuidar, esse pequenino ser que veria saltar, crescer, desabrochar, dia a dia...

E lady Blackenfield quedou longamente sonhadora. Visionava o minúsculo corpo rosado e rechonchudo... O pequenino havia de ter os olhos claros de Harry e o seu sorriso. E já lhe parecia ver esse sorriso, ouvir o fio da sua vozita infantil. Esse filho seria a sua consolação, a sua razão de viver...

A sua visão era tão bela que no rosto da futura mamã ressurgira a alegria... apesar do mau acolhimento do marido, que assim ficava relegado a último plano.

A partir dessa hora, conheceu Nicole dias de felicidade. Sozinha agarrada àquele sonho que intimamente crescia nela, fruiu momentos de radiosa ventura.

Comprou lã da mais branca e cambraia da mais fina, e dedicou-se a coser, a bordar, a fazer malha, combinando os mais lindos modelos de enxoval de criança examinando quanto se fazia de melhor no género. Queria fazer por suas mãos todas essas pequeninas coisas que haviam de servir ao seu menino.

- Isto há-de dar-lhe felicidade! - dizia à criada de quarto, a qual andava encantada por ver uma lady tão hábil na costura.

Na realidade, esses minúsculos trabalhos constituíam uma diversão, um refúgio contra o aborrecimento que frequentemente dela se apossava.

Um dia em que estava no seu quarto de vestir e se preparava para cortar algumas camisinhas num finíssimo tecido de linho, Harry entrou de improviso.

Nicole encontrava-se de joelhos sobre as peles de lobos brancos que atapetavam o divã, rodeada de nevados montículos de roupa branca. Ela própria parecia estar brincando e ergueu para o marido o rosto jovial.

Mas logo encontrou irónico olhar, enquanto que a voz seca de Harry desdenhosamente perguntava:

- Que é isso?

- São os vestidinhos para o menino.

- Tem graça! Isto não parece um vestido - disse, erguendo nos dedos um pedaço de cambraia. - Não tem mangas!

Nicole riu.

- Meu Deus! Pois se não está cosido. Espera que esteja pronto.

- Como? Não está cosido? Então compras coisas Por acabar? Que extraordinário!

- Não! - disse Nicole, sorrindo sempre. - Comprei o tecido e sou eu quem faz estas coisinhas.

- Tu?... Estás a caçoar comigo? - exclamou Harry, que principiava a impacientar-se.

- É verdade... estou a falar com a maior seriedade - respondeu Nicole, um tanto admirada. - Sabe-me bem fazer por minhas mãos o enxoval do bebé...

- Tornas-te ridícula, minha querida. Não sabes porventura que tudo isso se compra já feito?

- Sei, mas prefiro fazê-las eu - tornou Nicole. - Estou convencida de que o trabalho feito por minhas mãos há-de dar felicidade ao nosso filhinho.

Lorde Blackenfield irritou-se então ruidosamente:!

- Oh, estes Franceses! - exclamou. - Que sentimentalidade! Que ridículo!... Eu não quero, Nicole que te mostres trivial até esse ponto! Deves compreender!... Deves lembrar-te de que és lady Blackenfield.

- Vejamos, Harry - tentou ela acudir.

Mas o marido continuava:

- O que não falta é vendedores de enxovais... nurses para se ocuparem de meninos! Repito: não deves ser assim...

Traçava largas passadas no aposento, mostrava-se fortemente enervado.

- Mas deixa: eu to farei lembrar... Depois já não poderás parecer tão irrisória, com o garoto... Nada pior para as crianças que a proximidade das mães! O nosso baby há-de ser educado na Escócia, nas nossas propriedades, como eu fui...

- Oh! - gemeu Nicole.

- Yes, o clima é óptimo. Logo de pequenino me mandaram para lá... Por isso me fiz um rapaz rijo; com o garoto há-de acontecer o mesmo!

Era peremptório. Não havia que discutir. Contentou-se Nicole com chorar em silêncio, longo tempo, depois de Harry ter saído...

Os meses passavam.

Lady Blackenfield não gozava saúde... andava cheia de preocupações e cuidados.

Por vezes, verdadeiro desespero a acometia ao pensar que o pequenino ente que trazia em si com tanto amor lhe seria roubado... ao lembrar-se que a privariam dos encantos dessa primeira infância que enche de gozo o coração das mães. Por vezes também, contra todas as hipóteses, esperava que Blackenfield se deixasse comover. Não podia acreditar que esse chefe de família de vinte e cinco anos imporia a sua despótica autoridade no que respeitava a separar da mãe o filho...

«Não mo hão-de levar na ocasião do seu nascimento - dizia consigo num amargo sorriso. - Hão-de deixar-mo nos primeiros tempos. Depois duma hora tão dolorosa, seria injustíssimo que eu não tivesse compensação... ao menos por alguns dias!»

E com a ingenuidade dos seus dezanove anos, acrescentava:

- Por estes dias, há-de ser preciso um berço... Vou arranjar um que depois de pronto há-de ser um montão de rendas!

Mas mal soube daquilo, teve Harry um encolher de ombros. Achava-se muito superior àquela garota sentimental. Tinha decidido que a criança seria enviada para a Escócia... e quanto mais rapidamente melhor!

Nicole esperou, entretanto, até ao dia do nascimento...

Pobre rapariga que outra coisa não pedia se não que lhe deixassem ter nos braços a sua boneca viva, a pairar.

Finalmente, a criança nasceu.

- Que alegria! - balbuciou a juvenil mãe - É um rapaz!

Era um rapaz, efectivamente - uma pequena coisa informe, como todos os     recém-nascidos... com pouco cabelo, a cor dos olhos ainda mal definida... e, à guisa de sorriso, uma terrível careta feita por pequena boca desdentada que vagia.

Nicole sentiu-se talvez algo desiludida; nada, porém, deixou perceber. Era seu filho!

- Oh! Querida! Como podes gostar duma coisa tão feia? Mais tarde, está bem, quando o nosso filho for belo... Estou absolutamente certo de que não pode deixar de ser imensamente belo!... Por agora é horrendo! Precisamos de   ocultá-lo, pô-lo longe depressa. Dá-lhe tempo, Nicole, a tornar-se um rapagão agradável de ver.

- Mas a quem vai ser entregue? - lamuriou Nicole.

- Sossega, darling. Mrs. Berry chega esta tarde... uma das nossas caseiras de Blackenfield. Foi minha ama. Verás como ela o fará medrar!

E Harry sorria com seu ar superior de jovem enfatuado.

- Fica sabendo, amor - repôs carinhosamente - minha mãe, lady Hilda, não era desrazoável como tu. Por coisa nenhuma ela teria querido ficar com o monstrozinho que eu era... como aliás todos os recém-nascidos! Quando Mrs. Berry fez de mim um magnífico rapaz... porque eu sou um bonito rapaz, não é verdade, minha jóia?

Sorria, querendo fazê-la sorrir.

- Meus pais mandaram-me vir de Blackenfield, a, fim de me meterem em Cambridge... Da ama para a Universidade, eis o programa duma boa educação.

Mas Nicole não sorria.

Esteve muito mal durante dias. Foram demasiadamente fortes as comoções sofridas naquele período em que as mulheres por seu melindroso estado de debilidade carecem de calma e repouso.

Teve tanta febre que chegou ao delírio, e foi quase inconscientemente que disse adeus ao filho.

Quando a saúde voltou, estava longe o pequenino Michaélis.

E diante do berço vazio, uma graciosa mamã - pouco mais que uma pequenita ela própria - chorava docemente...

 

Meses decorreram...

Os Blackenfield haviam retomado o seu habitual modo de vida desarmonizada.

Cada vez mais independente, Harry vivia à larga sob a aparência da mais absoluta correcção.

Ausentava-se dias seguidos sem cuidar de saber se o facto agradava ou não a Nicole e sem pensar igualmente em lhe pedir para que o acompanhasse. Na maioria das vezes podia a esposa ir com ele; tratava-se em regra de reuniões desportivas ou de weekend com amigos, mas o marido não a convidava.

Nicole ficava em casa, pensativa e resignada, a ideia fixamente posta no filho distante...

Mrs. Berry enviava regularmente notícias vagas, mas satisfatórias: a criança ia bem.

Um dia, porém, um telegrama chegou, anunciando que o menino se encontrava doente.

Harry achava-se então em Brighton e demorava ainda uns três dias.

A mãe, louca de inquietação, não esperou nem mais um instante. Partiu para Kensington no primeiro comboio.

Todo o perigo estava felizmente conjurado quando Nicole chegou a casa da rendeira e ama.

Ficou no entanto para cuidar do filho. Ao fim de dois dias a criança estava muito melhor.

Já então o pequenito era uma encantadora criança de dez meses; em nada lembrava a criaturinha vermelhusca e enrugada do dia em que viera à luz.

Nicole quedou enlevada. Mick era soberbo, com seus grandes olhos azuis e a ligeira penugem que aveludava a sua cabecita redonda.

Mal que a febre passou, voltou o garoto à sua garrulice. Ria às gargalhadas, mostrando quatro dentinhos novos à mãe, que brincava com ele e o afagava sem cessar.

A fim de que Nicole ficasse mais perto do filho e porque o castelo senhorial, no Inverno, não estivesse aberto nem se encontrasse devidamente provido de aquecimento, Mrs. Berry preparara-lhe melhor quarto na herdade.

Rodeada de atenções e cuidados por parte da caseira e da filha desta, Tatti. Nicole sentia-se verdadeiramente feliz; agarrada ao filhito não pensou mais em se retirar; parecia-lhe que nada a poderia arrancar ao seu adorável encanto.

Mas, na província, as novidades correm depressa, voam de boca em boca, transpondo as maiores distâncias.

Ao terceiro dia da sua chegada a casa da ama viu Nicole aproximar-se Ralph, o amigo de Harry, encontrado outrora em Biarritz e de quem a formosa lady guardara simpática recordação.

Recebeu-o com verdadeiro prazer.

- Porque feliz acaso se encontra aqui? - perguntou Nicole.

- Oh! lady Blackenfield, não é bem o acaso. Harry e eu somos amigos de infância; as nossas terras confinam. Soube em Kensington que a senhora estava de visita... Venho solicitar a permissão de a cumprimentar...

- É muito amável e sinto-me satisfeita de o ver.

- Sentir-me-ia igualmente feliz em conhecer o senhor seu filho - acrescentou o rapaz, rindo.

O petizinho concedeu-lhe o mais encantador acolhimento.

Uma natural simpatia parecia unir o pequenino ser fraco e gracioso a esse forte rapaz de tez bronzeada que percorrera já metade do Mundo.

Nicole, sempre sentimental, pensou que Mick tomava Ralph pelo pai. Crispou-se-lhe o coração; Harry não se importava com o filho: nunca viera vê-lo... Privado da afeição paternal o pequenito fazia festas a um estranho e este, se bem que laço algum o unisse ao garoto, acabava de o achar encantador.

A mãe soltou involuntariamente um suspiro que Ralph surpreendeu.

Disfarçadamente, o amigo de Harry examinou o rosto melancólico e pálido que se esforçava por sorrir à criança. E, sem que desse pela sensação de piedade que dele se apossava, Ralph sentiu dilatar-se-lhe o peito numa espécie de fervor fraternal.

- Conhece a Escócia, lady Blackenfield?

- É a primeira vez que aqui venho.

- Terei nesse caso o maior prazer em lhe fazer as honras da região. Se se dignasse aceitar-me como guia, far-lhe-ia conhecer o nosso lindo País, The Highlands, pitoresco e misterioso rincão.

- Aceito com muito gosto - acedeu Nicole espontaneamente. - O senhor falar-me-á de Harry, de quando ele era pequeno, e há-de mostrar-me os pontos que preferia.

Combinaram encontrar-se no dia seguinte... muito simplesmente, como dois velhos camaradas livres de qualquer mau pensamento perturbador.

Após terem dado uma grande volta, de manhã, pelo lado dos lagos, foram lanchar ao solar de Balph, antiga construção típica da arquitectura escocesa, com seu telhado velhinho, suas janelas e suas paredes de fortaleza.

Exploraram depois certo caminho, esplêndido, aberto na montanha; tomaram o chá numa elegante pousada de Kensington, e, finalmente, terminaram a sua tarde na herdade de Mrs. Berry, junto do formidável lumaréu que ardia na lareira. Aí ficaram então a relembrar coisas passadas na infância de Ralph, factos aos quais o nome de Harry sobrevinha a cada instante.

Nicole escutava com apaixonado interesse a narrativa. O tempo decorria... hora suavíssima, passada assim diante do fogo familiar...

Nicole pegara no filho e apertava contra si, ternamente, num jeito protector e abarcante, o débil e pequenino corpo que seria mais tarde um homem... um homem bonito e brusco como Harry!... mas que, naquela hora, era apenas o seu menino, com que abandono adormecido no encosto do seu braço nu!

O grupo de mãe e filho tornava-se tão encantador daquele modo, alumiados no escuro da casa pelo róseo clarão do fogo, que Ralph não pôde coibir-se de ficar pensativo, sonhador por momentos na contemplação daquela graça tocante.

- Lembra-me certa madona italiana que vi em tempos numa igreja da Toscana - acabou por dizer, quase sem querer. - Não sei quem era o autor... Talvez não seja célebre. Mas no dia em que pintou aquela Virgem executou uma obra-prima! Soube achar a expressão do sentimento maternal, tanto no jeito do braço, como no olhar consolado e triunfante que lhe desce das pupilas.

Olhava-a como se olhasse a linda tela e repetia:

- Sim, era bem isto... nem mais nem menos! Como lhe fica bem, lady Blackenfield, o seu menino nos braços!

E fora aquela a única familiaridade que ele se permitira em todo o dia; mas, ainda assim, o tom dessa familiaridade cabia no da camaradagem franca, inteiramente correcta, como os Ingleses a sabem compreender.

- Harry é um pai feliz - tornou Ralph ao fim de uma pausa. - Deve sentir-se orgulhoso dum filho tão lindo!

A fisionomia de Nicole alterou-se levemente. Tivera um clarão de triunfo ante a admiração de Ralph por Mick; mas logo ligeiro véu atenuara esse clarão, ao ouvir-lhe as últimas reflexões.

- Harry ainda é um pai muito novo. Um baby não é personagem que tenha suficiente importância para encher de orgulho um homem... É assim... o senhor verá, mais tarde... quando também for papá!

- Se meu filho tiver uma mamã... que seja como lady Blackenfield, decerto me deliciarei, todos os dias, a contemplar ambos...

Nicole não respondeu: qualquer que fosse a palavra proferida, significaria inevitável censura lançada contra Harry - e jamais a delicada esposa teria permitido a seus lábios pronunciá-la...

- Não é por muito tempo mais que, por minha vez, desempenho o meu papel de mãe - murmurou Nicole, algo pensativa, como se o facto de aliar a sua ausência à do marido atenuasse os erros deste. - Parto amanhã...

- Já amanhã? - protestou Ralph. - Não é possível! Lady Blackenfield não viu se não uma escassa parte da região que devemos explorar e conhecer... Saiba que o seu guia não a deixa partir assim!...

Nicole hesitou um instante, fortemente tentada.

«Seu filho! Seu querido filhinho!... Poderia ela, na verdade, deixá-lo no dia seguinte?»

Ninguém a esperava em Londres... nem mesmo Harry! Contava tão pouco na vida do marido... e, fora dele, não conhecia nem uma amizade.

Saídas as portas do sumptuoso e triste palácio não tinha, sequer, uma relação agradável! Nas diversas reuniões mundanas onde ia com lorde Blackenfield quase não obtivera mais do que os olhares perfidamente admirativos dos homens e sonsamente ciumentos das mulheres, tudo isso velado e dissimulado sob a capa duma banalidade de grande tom.

Ficar... mais um dia? Dar novo passeio com esse jovial companheiro! E sobretudo reencontrar, na volta, o adorável filhinho! Como era tentador!

Mas não. Não o devia fazer! Em Londres, Harry esperava-a, talvez zangado.

E foi sorrindo intrepidamente que Nicole respondeu ao convite de Ralph:

- Não, sir Conway... Compreende que é impossível! Harry espera-me... Ele também está ansioso por saber notícias de Mick... Devo voltar.

Corara um pouco da ligeira mentira: Ralph. mais encantadora a achara.

E murmurou:

- Permite-me, nesse caso, lady Blackenfield, que vá cumprimentá-la na minha próxima passagem por Londres?

- Com o maior prazer! - exclamou a jovem vivamente e sem qualquer preocupação protocolar.

E separaram-se como bons amigos: contente Nicole pela promessa de o tornar a ver, pois no seu isolamento uma verdadeira simpatia constituía riqueza desconhecida até então.

 

O comboio da Escócia chegou a Londres de noite.

Em Euston, Nicole, que não se fizera anunciar e que por ninguém era esperada, tomara um táxi; e dera a direcção de casa.

A vasta moradia encontrava-se inteiramente na sombra e silenciosa, com excepção do átrio fracamente iluminado e onde um criado sonolento esperava o regresso do amo.

À pergunta da jovem, o homem, impassível e respeitoso, respondeu que lorde Blackenfield não voltara ainda do clube, onde jantara.

- Bem - disse Nicole. - Quando voltar, avise-o da minha chegada.

Subiu ao quarto e começou a despir-se. O imenso aposento parecia-lhe tão vazio e dava-lhe uma tal impressão de tristeza e de abandono que a doce lady acendeu todas as lâmpadas do candelabro e das paredes.

Apesar, porém, dessa profusa claridade, um vago terror se conservava fixo no fundo da sua alma... A atmosfera hostil do lar vazio? A tristeza de ter deixado Mick?... Ou um mau pressentimento que não saberia definir?... Nicole sentia-se opressa, constrangida.

Terminava a sua toilette de noite na sala de banho, quando estremeceu, ouvindo ruído de passos.

A pessoa que se aproximava entrou rapidamente no quarto... Era Harry!

Vendo-o, Nicole teve um segundo de íntima consolação, quase alegria.

De sorriso nos lábios avançou ao seu encontro. Mas aquela boa disposição foi cortada cerce pelo glacial acolhimento e pelo estranho aspecto de lorde Blackenfield.

De rosto duro e olhar fixo, nada respondeu à exclamação afectuosa da mulher; depois, cruzando os braços, numa voz que mal reconheceu, perguntou:

- Quer explicar-me o que significa tudo isto?

- Tudo o quê? - murmurou Nicole, pasmada do tom de voz e daquelas maneiras.

- Não sabe então? Tudo, sim! Em primeiro lugar, a sua partida! Estaria louca quando partiu assim... sem ao menos pedir a minha opinião?

Harry pusera-se vermelho e tinha aquela cara ruim das noites em que vinha um tanto embriagado... o que não deixara de continuar a acontecer-lhe.

Tentou Nicole falar-lhe docemente, no intuito de não o irritar mais.

- Sabes bem, Harry, que te encontravas ausente quando recebi o telegrama de Mrs. Berry.

- O caso não era de pressa.

- Não era caso de pressa? O nosso menino estava doentíssimo! Como podia eu esperar?

- Oh! Oh! - mofou Harry. - Doente!... Uma indisposiçãozita! Já está bom, não é verdade?

- Sim, - respondeu Nicole, feliz à simples ideia da cura do seu adorado Mick. -Felizmente que não passou de falso alarme!

Harry teve de novo o seu ricto irónico. E atirou:

- Falso alarme! Muito bem!... E... a entrevista era também um falso alarme?

- A entrevista? Qual entrevista? - inquiriu Nicole, sinceramente admirada.

- Compreendes-me, até de mais! É inútil mentir- tornou Blackenfield brutalmente.

A despeito da sua vontade de se conservar calma, Nicole sentiu que angustiosa comoção a invadia, como diante dum perigo desconhecido.

- Peço, Harry, que te expliques claramente. Nada compreendo das tuas alusões, nem das tuas perguntas. De que se trata?

O marido encolheu os ombros.

- Ah! Não sabes? Com certeza? E o Parrot-Sun, não conheces?

- O Parrot-Sun?

- Também não sabes o que é? Não? Pois mentes! A senhora não tomou chá em Kensington, na casa Parrot-Sun?

- Ah! Sim! - exclamou Nicole com verdadeiro alívio.

Enfim, compreendia! Desfazia-se o enigma. Tomara, com efeito, o chá nessa amena pousada de Perrouquet, antes de voltar à herdade.

Estavam lá dois automobilistas, ainda novos. Talvez fossem conhecidos do marido. Voltando seguidamente a Londres, fora natural que falassem a Harry do seu encontro com ela.

Compreendia agora e regozijava-se candidamente de poder explicar ao marido que era com Ralph Conway que estivera, Ralph Conway o amigo dele.

E repetiu:

- Ah! Sim! Compreendo, compreendo agora. Tomei chá com o teu amigo sir Conway.

- Ah! Ah! - troçou então Blackenfield. - Chegámos onde eu queria!

- O quê?... Que queres dizer?

- Confessas nesse caso o teu encontro com ele Já não dizes que não sabes...

- Mas, Harry, que mal há nisso? Se te estou a dizer que tomei esse chá com Ralph depois dum passeio que ele me convidou a dar nas regiões dos domínios de Blackenfield...

E calou-se à vista do rosto congestionado pela cólera e pelo álcool, o rosto do marido que crescia ameaçador para ela. .

- Ah! - vociferava Harry. - Ah! Ah! Uma bela passeata! Foi para isso que partiste!... enquanto eu estava ausente. Serviu-te de pretexto o garoto doente!... Ah! Ah! E fica-se fora de casa durante quatro, cinco dias! Ah! Ah! Ah!

Não deixava de chacotear, tornando-se inquietante, furioso, quase ameaçador.

Nicole começava a ter medo.

- Afirmo-te, Harry, que nada disso é verdadeiro... Posso mostrar-te o telegrama de Mrs. Berry... podes interrogar a ama, perguntar-lhe se é ou não verídico o Mick ter caído com um febrão enorme durante quarenta e oito horas. Como se sabe, é uma coisa que acontece muitas vezes às crianças... Assim como vem, passa, mais depressa umas vezes que outras, felizmente.

Mas Harry fê-la calar brutalmente:

- Cale-se! Está dizendo coisas... meras coisas com o fito de me enganar...

- Não, não, Harry! Garanto-te...

- Cale-se! Eu sei! Tinha encontro marcado com Ralph e agora... vá de me mentir!

- Não! - repetiu Nicole, indignada. - Não, eu não minto; Não tinha nenhum encontro marcado com Ralph! Pois se eu nem mesmo sabia que ele ali estava! A sua visita foi até uma surpresa para mim... Esta é que é a verdade!

- Ora, ora, ora!... E o passeio de automóvel?

- Aceitei, de facto, dar com ele esse passeio, mas para ver Blackenfield e a região onde passaste a tua infância. Que mal houve nisso?

- Como! - exclamou o marido, cada vez mais furibundo. - Como! Ainda ousas perguntar-me que mal houve nisso?... Achas que seja comportamento próprio de uma lady?... Usas o meu nome! Deves lembrar-te sempre disso! Não eras mais que a filha dum guarda! Não deves tornar a comportar-te como tal... digo e repito!

Nicole ergueu-se, num desespero:

- Nada tens que me censurar! -exclamou, perdendo a paciência. - Proíbo-te dizeres nesse tom de censura que sou filha dum guarda. Apesar de ser um guarda, valia mais do que tu! Foi sempre um homem bem-educado, que não bebia nem insultava mulheres!

- Ah! Tu atreves-te?... Atreves-te? Ousas fazer-me uma proibição! Pois bem! Também eu proíbo... Também eu proíbo de voltares ao solar de Blackenfield... Não és uma lady, não és digna de ser a mãe de meu filho... Proíbo-te... não tornarás a ver Mick... não tornarás a ver Ralph... Nunca mais... sou eu que o não quero... nunca mais!

Escumava de raiva, as palavras saíam-lhe incoerentes e confusas.

Durante dez minutos, sem ter mão na sua violência nem na desordem dos seus pensamentos, Harry crivou a infeliz de todos os epítetos possíveis. Pronunciou tais ameaças e proferiu tais injúrias que Nicole, aterrada, se atirou para um canto; amarfanhada, a cabeça metida entre os braços cruzados, dava a impressão dum animal encurralado que esperasse golpe de morte.

Lorde Blackenfield não era, felizmente, de natureza violenta. No seu estado de embriaguez fazia muita bulha, mas tudo se limitava a palavras.

Inconsciente do mal que acabava de produzir, saiu e dirigiu-se ao seu quarto, onde dormiu pesadamente... o pesado sono dos que se embriagam ocasionalmente e não o daqueles que são, na realidade, inveterados alcoólicos.

Desgraçadamente, Harry deixara atrás de si uma pobre mulher aterrorizada que, não havendo sofrido ainda na sua curta existência uma cena tão violenta, se encontrava naturalmente inapta a descontar a parte que cabia à embriaguez nessas injúrias e ameaças.

Por longo tempo Nicole chorou; depois, um sono, doloroso e pesado como uma síncope, prostrou-a até de manhã. Com o retorno da consciência, o horror da situação apresentou-se de novo a Nicole.

«Não tornar a ver o meu filho!»

Era intolerável a perspectiva. Nunca se poderia conformar com tal proibição!

Seu filho!

E, no estado de depressão nervosa em que a haviam posto os últimos acontecimentos, Nicole, mal refeita ainda do seu penoso acordar, sentia-se como louca.

Esquecia os bons momentos passados com o marido, os seus amplexos, os seus beijos... Não se lembrava, não ponderava que Harry tinha também qualidades e acções apreciáveis, que era generoso, leal, e, antes daquela noite, sempre fora correcto com ela.

Não. De nada se lembrava a não ser das palavras cruéis e odiosas proferidas pelo homem no seu desatino...

Despedaçada pela absurda questão da noite anterior, terrificada pelas ameaças e pelas injúrias lançadas, Nicole, receosa e completamente inexperiente, sentia-se de súbito perdida, como náufrago desprotegido no meio dos elementos desencadeados.

Esse marido ao qual contara apoiar-se toda a vida, aparecia-lhe de repente como um inimigo. Harry era o estrangeiro altivo e rigorista que tudo sacrificava às exigências do seu orgulho; o marido inconstante que desaparecia dias seguidos; o boémio impenitente das bebedeiras nocturnas; o pai indiferente que pusera longe do lar o filho; tudo enfim quanto não era nem belo nem prestigioso, e por culpa de quem a esposa se sentia ulcerada sem indulgência nessa hora...

Esse homem queria então privá-la do seu Mick? Era esse homem que a pretendia separar para sempre do filho!

Mas Harry podia realmente tirar-lho?

E sentia-se presa de verdadeiro susto e alvoroço.

«Não! Não! Não quero que me separem do meu querido Mick!»

Achava-se então capaz de todos os extremos para guardar o pequenito. Febrilmente, via-se na disposição de proceder... imediatamente... antes de Harry!

Iria dali procurar o seu baby, pô-lo ao abrigo das represálias do desumano pai. Nenhuma hesitação a detinha.

Ainda a manhã não avançara e já Nicole sabia que havia um comboio, o Flying-Scotsman, que partia às dez horas para a Escócia. Decidiu tomá-lo.

Premiu a campainha de chamada para a criada de quarto, e perguntou à serva se o senhor ainda estava em casa.

Já tinha saído.

Exultou. Aquilo favorecia o seu projecto. Ganharia desse modo algumas horas de avanço sobre o marido. Deu então as necessárias ordens a fim de que rapidamente lhe fizessem a mala:

- A minha roupa... alguns dos meus vestidos pretos...

E por suas mãos meteu num saco de viagem os seus modestos tesouros: uma fotografia do pai, as suas jóias de solteira e alguns valores legados, valores que haviam ficado à sua disposição e representavam uma pequenina fortuna. Deixou todas as suas outras jóias, assim como todas as suas luxuosas toilettes; Harry não poderia acusá-la de se haver aproveitado das liberalidades dele. E, enquanto a criada aprontava a mala, escrevia Nicole algumas linhas ao marido, que abandonava.

«Harry - eu parto! Não posso suportar mais, nem as tuas censuras, que não mereço, nem as tuas ameaças de me proibires de ver o meu filho...

«O teu filho é meu também, acima de tudo. Amo-o tanto quanto pareces desinteressado dele.

«Não me hás-de tirar o meu Mick, não nos poderás separar; mas, visto que me acusas, como sua mãe não ouvirás mais falar nem de mim nem dele. Adeus.»

Sobrescritou o bilhete com o nome de lorde Blackenfield e, sem outra explicação, não querendo mesmo servir-se do carro da casa, mandou chamar um táxi, no qual se fez conduzir à estação de King's Cross.

Meia hora depois, os nervos mais calmos, enfim liberta, quase feliz apesar da fadiga, rodava para a Escócia dos grandes lagos, ao encontro do seu menino de lindos olhos claros...

 

Harry chegou a casa à hora do lanche; entrou cheio de boas intenções.

Preocupava-o a vaga lembrança de ter sido, na noite anterior, rude e talvez injusto. Sentia obscuramente que havia qualquer coisa a reparar junto de Nicole e entrava disposto a ser amável.

Logo teve certa decepção ao saber que lady Blackenfield não estava em casa. Decidido, no entanto, a comportar-se de forma paciente e conciliadora,; quis esperar pela mulher antes de se sentar à mesa.

«Ela não poderia tardar!»

Acabava então de se refastelar numa boa cadeira, acendera um cigarro quando a criada de quarto veio apresentar-lhe em silêncio, numa bandeja, o bilhete de Nicole...

À primeira leitura, Harry não compreendeu... Aquela revolta da meiga e tímida Nicole representava; qualquer coisa tão inesperada que essa fuga não parecia corresponder claramente à realidade.

Nicole era uma garota... uma garota sem expediente e sem decisão, uma garota que lhe pertencia.. Aquela sua revolta parecia-lhe pueril... ela ia voltar, com certeza... Sabia bem que Nicole não poderia viver sem ele... sem que ele dirigisse a sua vida e pensasse por ela!... Nicole era Francesa... irritava-se facilmente, fervia em pouca água... aí estava. Com facilidade, perdia a cabeça... Palavras, vento!... Resoluções tomadas sem reflexão... a sentimentalidade a imperar, a campear em toda a linha! Ah! Tinha a certeza de que voltaria ainda essa noite...

Releu novamente o curto bilhete; e dessa vez! quedou a pensar menos na infantil Nicou do que nos termos por sua mão traçados à guisa de despedida.

«Sim: compreendia melhor agora: Nicole provocava-o! Nicole ousava proclamar os seus direitos sobre o filho! Pretendia dispor duma criança que lhe pertencia, a ele... que era seu filho! O herdeiro do seu nome!...»

Aí estava a ofensa. Não era o menino rosado e gracioso que lhe dava cuidado: nem sequer o conhecia. Mas, diante da ameaça de Nicole, subia-lhe agora à cabeça brusca onda de cólera que o transformava completamente.

«Meu filho! Apossar-se do meu filho!»

Não era o coração do pai que falava, mas o seu orgulho. Ele e só ele, tinha direitos sobre o pequeno!

Desgraçado de quem ousasse tocar-lhe... mesmo que fosse a mãe.

E, furioso, relia as imprudentes palavras: «Não me hás-de tirar o meu Mick... não poderás separar-me dele...»

Ah! Ela desafiava-o! Pois bem! Far-lhe-ia ver o que custava, fosse a quem fosse, rebelar-se contra um Blackenfield... sobretudo quando* se trata de lhe tocarem no filho... no seu herdeiro! No seu primogénito !

Nicole escrevera: «Eu parto» sem dizer para onde; porém, não tinha Harry a esse respeito sombra de dúvida; sabia bem que ela iria à Escócia ver o filho.

Mas iria só ter com o filho? E... quem sabia?... também com Ralph... talvez!

A esta ideia, nova onda de sangue lhe purpureou a face.

«Ralph?»

Sim. Tudo era possível!

Dominou-se, a fim de dar ao criado, que acudia ao seu toque de chamada, ordens serenas e coerentes.

- Partida imediata... o carro grande de desporto... Um estojo de toilette somente... Nenhuma bagagem... Vou e venho... Depressa; não perder nem um minuto.

Mais não desejava que apanhar Nicole... impedi-la de se apoderar da criança! Pelo filho reteria a mãe... porque Nicole afigurava-se-lhe ridícula ao supor que podia assim, por simples capricho, desfazer os laços que os uniam...

De resto, não admitia que ela fosse viver longe dele, seu marido. Amava-a. Cumpria-lhe detê-la... longe de Ralph!... Contra Ralph!...

Chegou a meio da noite à plácida herdade de Mrs. Berry.

A boa mulher, ensonada, veio abrir.

E ficou boquiaberta, pasmada diante do estado de excitação do amo e senhor, que ela outrora criara.

Lorde Harry, habitualmente de bom humor, sempre alegre e cordial com a que fora sua ama, cumprimentou-a apenas. Seguidamente - e em que tom! - perguntou-lhe:

- Lady Blackenfield?

- Ah! Lorde Harry! Deus o abençoe! Mas deve ter-se cruzado no caminho com a senhora baronesa. Ela saiu daqui anteontem, às primeiras horas. Que pouca sorte!

- Sim... eu sei... eu sei, Berry. O que pergunto é se lady Blackenfield voltou.

- Se voltou?... Ah! Não!... Não tornei a vê-la.

- E Michaêlis?

- Está dormindo, o lindo amor... Vai muito bonzinho agora... A senhora baronesa teve ocasião de ver como era bem tratado!

- Está então aqui?

- Mas, naturalmente... se lhe digo que dorme no seu bercinho.

Um suspiro de alívio acolheu aquelas palavras.

- Uff!

Bem fizera em apressar-se daquele modo. Percorrera o caminho a toda a velocidade, revezando-se com o chauffeur ao volante, a fim de não perder um minuto.

Chegara antes do irreparável! Fora o primeiro!... A louca da Nicole não pudera concluir ainda a execução do insensato projecto... Chegara a tempo de defender os seus direitos de pai e o prestígio do seu nome!

E, sossegado agora quanto à presença do filho, só uma coisa lhe restava: esperar a chegada de Nicole... Explicar-se-ia com ela... reconciliar-se-iam... mas Nicole não obteria a posse do pequeno... Sobre esse ponto não cederia, visto que sua mulher continuava muito inexperiente, muito sentimental, muito garota ainda... Teria Mick mais tarde... quando ela tivesse retomado o seu lugar em Londres e, dentro do seu lar, tudo por sua vez houvesse reentrado na ordem.

Ia mostrar-lhe quem era e como tinha de haver-se com ele, essa indisciplinada menina Nicole!

Porém, nesse ponto de seus raciocínios estremeceu:

«Nicole?... Mas onde estaria metida a essa hora? Porque não chegara ainda?»

Consultou o relógio e calculou:

«O comboio que devia ter tomado chega normalmente a Kensington à noite... Ora, num táxi, teria chegado à herdade pouco depois da meia-noite... E eram quase quatro horas da manhã!»

Um atraso?... Um acidente?

«Não seria antes...»

De novo Harry se sentia invadido por formidável cólera.

«Não se teria dado o caso de, em vez de correr para junto do filho, ter ido muito simplesmente encontrar-se com Ralph?»

Crisparam-se-lhe os punhos.

Ah! Aquela dúvida!

E de novo tudo em Harry sofreu uma reviravolta Só a suposição de que a mulher podia estar àquela hora na companhia de Ralph despertava no seu instinto forças terríveis, como se inconsciente força bruta o pusesse pronto a lançar-se cegamente sobre os obstáculos que se atravessassem no seu caminho.

Nicole com Ralph!... Mas não! Não seria possível. Sua mulher era honesta! Outra qualquer coisa lhe acontecera, certamente!

Mas o ciúme aguilhoava-o; toldava-lhe a razão.; E quanto mais considerava que procedera mal com Nicole, mais nitidamente compreendia que ela tinha mil razões para lhe fugir e se vingar.

Ante a perspectiva duma fuga da órfã, Blackenfield sentia latente o seu mea culpa. Não tinha dado ao seu lar o ambiente necessário. Meses havia que a trazia esquecida, que punha de lado sua mulher ou fazia pesar sobre ela o seu despotismo...

Não era pois com semelhantes processos que se guardava o amor duma esposa de vinte anos.

Já não se sentir amado por Nicole!... Nicou amando outro!

Esse Ralph... esse amigo... esse cavalheiro tão cortês com as mulheres... tão solícito, tão sentimental... Deus do céu!

De pé, em cabelo, Harry ficara à entrada da porta, os olhos perdidos no vago da campina.

E via, cruelmente erguida diante de si, a enlouquecedora visão que o ciúme lhe incrustava no cérebro. Nicole e Ralph... um e outro... Ralph e sua mulher!

Intolerável... tal como se um ferro em brasa lhe queimasse o peito. E tinha de se conter para não rugir de sofrimento! Para ficar dentro da sua calma aos olhos do motorista, que placidamente lubrificava o carro, no cuidado de não deixar adivinhar a sua dor a Mrs. Berry, que o observava do fundo da cozinha, Harry mordia os lábios até os fazer sangrar, e, no fundo dos bolsos, cravava as unhas nas palmas das mãos crispadas.

Intolerável... Tudo aquilo fora um desastre! Sentia-se, entretanto, incapaz de dominar o furor ciumento que o agitava:

«Não. Não esperaria a chegada de Nicole. Tanto pior para ela! Não encontraria o filho... Partiria, levaria a criança: ela não os apanharia...»

Era tudo quanto de melhor seu cérebro sobreexcitado lhe sugeria nesse momento.

«Basta de histórias - murmurava com raiva.- Nada de cenas, nada de explicações... Se eu ficasse, mataria Ralph e não estou certo de que não fosse capaz de a matar também a ela, a miserável!... Parto! Coloco-a diante do facto consumado... Do facto brutal... vingo-me! Não, se ataca impunemente um Blackenfield!... Nicole! Oh! Como a odeio!...»

Toda a sua alma estava em fel; toda a sua razão perdida num distúrbio; todo o seu ser exasperado a rugir vingança.

E não se apercebia de que, se a simples suposição da traição de Nicole o supliciava assim, era porque a adorava, porque não podia admitir que outro lha roubasse, pois só o pensamento de a perder o punha como louco.

- Mrs. Berry - disse bruscamente, voltando-se para o interior da casa - partimos no prazo duma hora.

- Como? - perguntou a boa mulher, seriamente inquieta com o tom e a estranha atitude de Harry. - Como? Quer partir já e ainda não viu o menino?

- Ah! O menino!... Tenho tempo!

- Mas se se vai embora!

- Eu disse: partimos.

- Mas... quem? - repetiu Mrs. Berry, cada vez mais assombrada.

- Quem? Nós. Mrs. Berry, o pequeno e eu... naturalmente!

- Lorde Harry! Bendito seja Deus! Está a falar sério?

- Muito sério, Mrs. Berry. Nada mais digo: não posso perder palavras! Dou-lhe uma hora para fazer todos os preparativos: eu levo o menino... e a ama vem connosco, evidentemente, por alguns dias...

- E onde vamos, meu senhor?

- À nossa propriedade de Sunner...

Riu com certo nervosismo:

- Boa vilegiatura... excelente ar!

Diante da expressão pasmada da boa mulher, lorde Blackenfield consentiu em acrescentar:

- Mais tarde lhe explicarei, mamã Berry. Por agora, avie-se, faça favor. Precisamos de partir antes do amanhecer... E não diga a sua filha onde vamos. Não quero que nos possam procurar.

Só havia que cumprir. Auxiliada por Tattie, sonolenta, Mrs. Berry meteu na mala tudo quanto se tornava necessário a Mick. Uma hora depois, a criança e a idosa ama seguiam com Harry, cujo rosto sombrio e olhos duros impressionavam a boa mulher.

Rodavam a grande velocidade para Sunner, no outro extremo da Escócia.

Harry deixava o berço vazio com o fim de punir a mulher, que cuidava poder esquecer facilmente.

Dir-se-ia que doravante ficaria indiferente a tudo quanto acontecesse àquela que usava o seu nome... Sentia-se convencido de que já não a amava... Persuadia-se de que em breve deixaria de sentir qualquer espécie de cólera pela fugitiva, assente que não mais se importaria com ela.

Mas assim não aconteceria, porém...

 

Tattie Berry sentara-se no limiar do portal da granja para descascar os feijoeiros.

Aguardava pacientemente os acontecimentos.

Era uma bonita rapariga de dezassete anos, cabelos e pálidos olhos de Nórdica. Sua fronte pregueava-se no esforço de pensar.

Tentava a rapariga compreender o que significavam todos aqueles lances teatrais, aquelas cenas inesperadas... A chegada de lorde Harry ainda noite... com estrelas no céu... a sua catadura severa... a sua precipitada partida com a criancinha... e com sua mãe, que a seu cargo deixara todo o serviço da herdade... a pacata existência toda remexida de repente, enfim!

E, de tudo aquilo, só uma coisa era certa: a casa que parecia vazia sem a mãe e sobretudo sem o palrar e o riso do pequenino Mick.

Tattie perguntava então a si própria o que iria passar-se mais. Calculava que lady Blackenfield chegaria essa manhã, sem supor que o filho já ali não estava... O patrão deixara uma carta para sua mulher... um sobrescrito largo onde havia palavras traçadas numa letra regular. Essa carta infundia à rapariga certa inquietação.

Pressentia qualquer triste drama conjugal. Lorde Blackenfield tinha um ar tão orgulhoso, tão frio, ao passo que sua esposa se mostrava sempre dócil e sorridente.

E, no íntimo do seu coração, Tattie sentia-se cheia de indulgência pela mamã de Mick, tão apaixonada pelo seu menino, ao contrário do pai, que nem um olhar tivera ao menos para o louro querubim.

Mas que havia ela de dizer à pobre mãe a quem tinham levado o filho? Como explicar-lhe?

Que enorme desgosto a pobre lady ia sofrer!

E o coração de Tattie apertava-se...

Súbito, sobressaltou-se:

- Bom dia, Tattie!

Lady Blackenfield estava diante dela; deixara à entrada o carro que a trouxera e atravessara o largo pátio a pé.

Sorria. Apesar de tudo, mostrava-se radiante com a ideia de que ia tornar a ver o filho e não notou o ar hesitante e desconcertado da filha de Mrs. Berry.

- Está a dormir, provavelmente... - disse a meia voz, referindo-se ao filho.

Entrava na casa e dirigia-se ao quarto de Mick.

Pensou Tattie que seria melhor não a deixar deparar com o berço devoluto e, a fim de lhe evitar a desagradável surpresa, logo lhe infligiu outra não menos amarga:

- Hoje o menino não está cá, minha senhora - avisou docemente, cortando-lhe o passo.

E diante do susto logo expresso nos olhos de Nicole, Tattie acrescentou:

- Lorde Blackenfield levou-o.

- Meu marido?

- Sim, minha senhora.

- Mas quando?

- Esta noite... eram quatro horas... da madrugada...

Nicole empalideceu subitamente. A rapariga amparou-a, levou-a até à cadeira na qual, três dias antes, semelhante à madona italiana, diante do maravilhado olhar de Ralph, a juvenil mãe embalava o filho.

Entretanto, Nicole reagiu. Apelando para a sua energia, ergueu para Tattie dolorido olhar, embora sem lágrimas. E murmurou:

- Diz-me tudo... Quero saber tudo.

A rapariga contou-lhe então a súbita chegada de lorde Harry, a meio da noite, o espanto de sua mãe, os preparativos à pressa e a partida antes do romper da alva...

- Oh! Aquele atraso... aquele atraso! Que fatalidade! - murmurou como num murmúrio a infeliz Nicole.

A ideia prendia-se-lhe ao estúpido incidente ocorrido na sua viagem. O comboio que tomara ficara, por avaria, retido em pleno campo, durante três horas, sem que os viajantes soubessem de que provinha a demora. Às suas perguntas, os empregados encolhiam os ombros, sem responder. Mais tarde começara a falar-se em «greve»... Nicole não apreendera bem o que aquilo queria dizer, porquanto lhe eram dadas as explicações num inglês muito rápido e com acento diferente da acentuação usada em Londres. Finalmente, aquele atraso fizera-a perder a ligação para Kensington. Tivera de descer e, passar a noite numa gare desconhecida e, ainda que houvesse tomado o primeiro comboio, chegara tarde de mais!

- Esse atraso! - repetiu lamentosamente.

Em seguida, pediu pormenores a Tattie: como estava lorde Blackenfield? Triste ou zangado? Que tinha dito?

- Lorde Blackenfield pouco falou ou nada... Estava de má cara e com muita pressa... Apressava a minha mãe e eu... Depois, enquanto fazíamos as bagagens, o senhor escreveu... Está aqui uma carta.

Estendeu a Nicole o sobrescrito, que a jovem abriu febrilmente.

Pálida e de olhar fixo, eis o que leu:

 

«Nicole

«Não, não me impedirás de guardar o meu filho. Fica sabendo que não há oposição possível à vontade dum Blackenfield. Meu filho está comigo. É ele o herdeiro da minha fortuna e, sobretudo, do meu título. Fica em meu poder. Cumpre-me   guardá-lo de ti, da tua sentimentalidade excessiva e nefasta, da tua mentalidade e dos teus costumes de senhora burguesa.

«Se, como quero crer, reconsiderares nas tuas imprudências e nas inconsequências da tua conduta, reconhecerás que não és digna nem capaz de educar o teu filho, que vai ser confiado a mãos mais seguras. Não esqueço que és, em todo o caso, a mãe dele e que usas também o meu nome. Volta imediatamente para Londres e logo que hajas retomado a tua categoria e o teu lugar de esposa no meu lar, não recusarei dar-te notícias do meu filho.»

 

A carta resvalou dos dedos gelados de Nicole... Lentamente, vergada sobre si própria, o olhar abstracto, caiu inanimada.

Soltando angustioso grito, Tattie correu em seu socorro; mas a infeliz esposa de Harry mantinha-se num estado de prostração terrível.

Baldadamente a rapariga tentava consolá-la, falar-lhe. Nicole não a ouvia.

Ferida em pleno coração, no seu amor de mãe e na sua dignidade de mulher, continuava sucumbida pelo golpe brutal dessa carta.

As frases duras, injustas e cruéis do marido, ecoavam uma a uma no seu cérebro. Por cada uma delas Nicole experimentava o mesmo impulso de revolta e o mesmo frémito nervoso.

«Fica sabendo que não há oposição possível à vontade dum Blackenfield», escrevera Harry.

Frase terrível contra a qual se chocava a meiga esposa de vinte anos.

Que podia ela contra essa vontade implacável que procurava quebrá-la? Nada, se não sofrer.

E Nicole sofria horrivelmente. Cheia de compaixão diante do mal cuja profundeza ignorava, mas a cujos efeitos assistia, Tattie não a deixara um instante. Ajoelhara-se junto dela e pegava-lhe carinhosamente numa das mãos, que afagava entre as suas.

Primeiramente, lady Blackenfield parecera não dar pela humilde carícia, mas, por fim, cuidou aperceber-se do tímido afago. Inclinando-se levemente para Tattie, perguntou em voz baixa:

- Para onde o levaram?

- Não sei, minha senhora... Tomaram o caminho do Norte.

- Lorde Harry não disse nada a esse respeito?

- Talvez confiasse a minha mãe o destino que levavam, mas ambos sabiam que eu não poderia fica calada diante de lady e por isso nada me disseram embora o tivesse perguntado a minha mãe.

Recaiu o silêncio.

Entretanto, Tattie, com meiguice e obstinação conseguiu que Nicole anuísse a ir estender-se no leito que lhe preparara.

 

Estendida entre os frescos lençóis que cheiravam às ervas do monte, depois de bebida a tisana de calmante que Tattie lhe preparara, Nicole caiu numa espécie de torpor, de sonolência...

A noite decorreu, cortada por longos espaços de insónia, permitindo no entanto à pobre mãe certo repouso.

Quando nasceu o dia tinha Nicole uma resolução? tomada: partir!

«Oh! Não voltaria para Londres! Não!...»

A ostentosa e triste moradia inspirava-lhe agora horror. Era como se as suas paredes fossem as duma prisão ou as paredes dum túmulo... O túmulo da sua mísera felicidade, morta antes de verdadeiramente nascida.

«Não! Partiria... Não sabia ainda com que destino... uma cidade ou outra, que importava?»

Levantou-se. Pediu a Tattie, que não a deixara nunca, o necessário para escrever. E, no modesto papel de carta, da caseira, traçou as seguintes linhas:

 

«Harry

«De novo te declaro: não aceito nem as tuas censuras, nem a tua injustificada condescendência. Não voltarei a Londres. Que felicidade foi a minha contigo?... Nada mais espero.

«Sofri todas as decepções e não me sinto com coragem para mais. Estou esgotada. Só o meu filho poderia ter sido a minha alegria: teria constituído um laço entre nós; levando-me, quebraste esse último elo.

«Recusas-me o direito de mãe; nesse caso, eu recuso-te o de ser tua esposa.

«Adeus...»

 

Nicole releu a carta. Profundo desgosto e abatimento lhe pesavam. Sabia bem que a sua decisão a ia privar do filho para sempre; porém, a ideia de voltar a viver junto de Harry transtornava-a por completo.

Recordava-se da última cena com ele, naquela noite em que a si própria perguntara se não acabaria por morrer nas suas mãos de bêbedo colérico.

Não. Acabava-se! Já não tinha coragem para de novo se expor a tais cenas; Harry causava-lhe agora medo e sentia-se cheia de lassidão, quebrantada... desamparada... É que olhava para si e via-se ainda tão nova que mais desalentador lhe parecia estar naquela idade e já reduzida a semelhante extremo.

Então, Nicole, condoída de si própria, rompeu a chorar... sentidamente, em convulsivos soluços.

Por fim, reabrindo a carta destinada ao marido, escreveu por debaixo da sua assinatura estas duas linhas lacrimosas:

 

«Harry! Quão desgraçada sou!... Confiei-te a minha vida, para sempre... Que fizeste dela?... E não tenho ainda vinte anos!...»

 

Nicole ia-se embora. Muito digna, agora que a sua resolução estava tomada, já não chorava... Nos seus grandes olhos, sulcados de profundas olheiras, onde o desespero se alojara, parecia-lhe que não tinha mais lágrimas para chorar; e seu olhar fixo parecia assistir exclusivamente a certa visão interior e desmoralizadora.

Partia, abandonando essa vida fictícia e dourada que não lhe reservara se não amarguras... essa vida que só aparências tinha e não era mais que fementida felicidade...

Tattie acompanhou-a à gare e, com cuidados e atenções de verdadeira irmã, ajudou-a a tomar o seu lugar no comboio.

Era a rapariga que chorava nesse minuto, pois sentia que a mãe de Mick não mais voltaria.

Então, Nicole, que não queria voltar a ser lady Blackenfield e que sentia apenas uma alma dolorosa, e só entre dores, compreendeu todo o valor daquela simples amizade.

Antes que o comboio partisse curvou-se para Tattie. E as duas raparigas, quase da mesma idade, mas das quais uma esgotara o cálice da amargura, abraçaram-se fraternalmente.

- Tattie: se vir o meu filho abrace-o muitas vezes pela pobre mãe, que não o pode fazer.

- Juro, minha senhora, que se o vir lhe ensinarei a adorá-la.

- Obrigada... Tattie, não o esqueça.

- Nunca, minha senhora.

Um silvo estridulou. O comboio moveu-se.

- Adeus, Tattie!

- Adeus, adeus...

Muito pálida, muito direita, sem uma lágrima, mas com o cérebro vazio e como louca, Nicole seguia... sozinha, sem o seu filho... longe do marido... para o desconhecido...

A ave ferida, batida pela tempestade, esforça-se sempre por atingir outro céu; a que abrigo, a que enseada segura a frágil criança precocemente martirizada iria dar?

 

Horas depois, lorde Blackenfield sentia-se nervoso e o seu estado de agitação parecia aumentar de hora para hora.

Tal estado era tão raro nele que não compreendia o que lhe estava acontecendo. Como sólido e fleumático varão não era, em regra, sensível a qualquer contrariedade. Demais, nunca soubera que coisa fosse uma contrariedade; na sua vida ociosa e fácil nada se opunha ou atravessava no caminho de seus desejos ou fantasias. E eis que se encontrava, repentinamente, naquele pé de desequilíbrio particularmente desagradável em que nos coloca a espera duma coisa que não chega ou a impressão dum perigo que nos ameaça sem que possamos evitá-lo.

Sentado num grande cadeirão de coiro, abrira uma revista desportiva, sua leitura favorita. Mas, naquele dia, em vão tentava interessar-se pelo último match de boxe ou pelas provas eliminatórias de natação, que o apaixonavam sempre. Desta vez; nada lograva prender a sua atenção: o mal-estar que dominava na sua alma todo e qualquer motivo de distracção, era grande.

Pondo de parte a revista, acendeu um cigarro e, pôs-se a meditar.

Positivo e sincero consigo próprio, Harry queria saber donde lhe provinha aquela inquietação.

E eis que, à sua inquirição, uma só resposta se Impunha... Havia vinte e quatro horas que chegara de Sunner, onde tinha deixado Michaêlis entregue aos cuidados da boa Mrs. Berry... e, vinte e quatro horas depois, esperava Nicole, que não voltara.

«Bem - pensou ele. - Se nada mais é do que isto, quase não vale a pena atormentar-me! Que há de extraordinário no caso?»

Recostado na cadeira e seguindo com o olhar as volutas azulíneas do ligeiro fumo, prosseguia nos seus raciocínios.

A horrível decepção que a mulher deveria ter sofrido quando chegou depois dele haver partido com o filho... Era bem possível que a surpresa e o choque se tivessem reflectido na saúde de Nicole.

«Ela era tão fraca...»

Este pensamento entristecia-o.

Pela segunda vez, depois do casamento, compreendia que a esposa era um ser delicado que ele deveria ter estimado e cuidado.

- Tattie auxiliou-a, decerto... Cuidará dela durante alguns dias...

Mas aquela ideia de Nicole doente e tratada longe de sua casa por uma humilde aldeã, tornava-se-lhe imensamente desagradável.

- Uma lady Blackenfield não deve expor-se a semelhantes coisas... Para mais, deviam dar-me notícias... escreverem-me uma carta...

Apenas concebida, logo esta esperança trouxe como reacção um raciocínio desfavorável:

«Mas uma carta de quem?»

Nicole, susceptível como era, não lhe escreveria certamente e Tattie nem sequer em tal pensaria,..

Veio-lhe, de momento, a ideia de pedir notícias; porém, a mesma objecção o embaraçava: escrever ou telegrafar a quem? A Tattie?

A sua dignidade não lho permitia!

A Nicole? Fazê-lo, implicava difíceis e embaraçosas explicações.

Não havia, pois, se não um recurso: esperar! Talvez que sua mulher chegasse pela tarde fora... a menos que lhe mandasse carta explicativa...

Coisa curiosa: depois do seu regresso da Escócia, Harry, pela primeira vez, ficava em casa. Ele que, presente a mulher, a deixava sozinha e até muitas vezes à hora da refeição, parecia não poder agora abandonar, à hora do almoço ou do jantar, essa enorme sala de jantar onde o seu talher, sozinho, parecia perdido na imensa mesa de carvalho.

Era ele quem, agora, conhecia o tédio das refeições solitárias, e, no entanto, nem pensava ir tomá-las no clube.

Qualquer coisa o retinha nessa casa vazia sem que ele próprio o compreendesse... qualquer coisa que não era talvez se não a ansiedade de quem espera.

A noite caiu e Nicole não voltou. Todos os correios da tarde haviam sido distribuídos e carta alguma viera falar-lhe da ausente...

Facto extraordinário na vida desse garboso mocetão: Harry dormiu mal. Nunca, na sua existência, tivera preocupação tão forte que fosse capaz de lhe perturbar o sono. E, entretanto, conheceu nessa noite a insónia e as negras ideias que ela proporciona. Experimentou esse estado de espírito especial através do qual as piores calamidades e os mais tenebrosos cataclismos parecem coisas naturais, certas e inevitáveis.

E a mais cruel dessas catástrofes gravara-se-lhe a letra de fogo no cérebro sobreexcitado: «Nicole não fora buscar o filho! Não aparecera em casa de Mrs. Berry! Partira para se encontrar com o outro... estava com ele agora!»

Já não duvidava da perfídia e da infidelidade de Nicole: essa ideia impunha-se-lhe com a força de indubitável convicção.

Era lógico, de resto!... Ralph falava admiravelmente francês, com um à-vontade que ele, Harry, não possuía. Nicole devia tê-lo achado encantador... Ainda se, após o seu encontro com tão agradável companheiro, ela não tivesse sofrido à sua chegada a Londres o duche gelado da odiosa recepção feita por um marido embriagado...

Ah! A incomodativa lembrança!

Quanto deplorava agora, o pobre Harry, a violência e as palavras insensatas que não soubera conter!... Não era então natural que, maltratada, ofendida e cheia de desespero, acabasse por ir refugiar-se junto desse novo amigo tão obsequioso e cortês?

Tornava-se evidente...

Mas essa evidência, mal clareou a manhã, tornou-se-lhe insuportável... sem certeza absoluta e sem provas!

Toda a sua fleuma caía diante da dúvida e tal dúvida tornava-se enlouquecedora!

Sentiu-se incapaz de ficar em Londres, uma tarde mais que fosse, nessa espera irritante. Tinha de partir imediatamente para a Escócia.

Lá encontraria Tattie. Não podendo escrever-lhe, fá-la-ia falar... Verificaria com os próprios olhos!... Adquiriria, enfim, uma certeza!

Esta resolução deixou-o mais calmo para dar as ordens ao velho criado particular quando este lhe veio servir o almoço. Os gestos e as palavras do dia anterior foram repetidos:

- Põe a postos o Bentley-Sport e prepara o estojo de toilette, como da última vez... sem mais nada e o mais rápido possível.

O servo obedeceu seguidamente sem fazer qualquer observação, como era natural; mas, ao dirigir-se para o telefone, meneava pensativamente a cabeça:

«Que haverá? Partir duas vezes seguidas a toda a pressa, como louco... Realmente, mudou muito nestes últimos tempos...»

A sua velha dedicação fazia-lhe prever que grandes nuvens turvavam a ventura dos Blackenfield.

«O casal nunca mais se entenderia? Essas idas e vindas assim o pressagiavam outra vez... E porque não aparecia a lady, agora que o marido, extraordinária coisa, ficava em casa?»

Ainda o bom homem não terminara o seu solilóquio e já o carro, impecável, travava diante da porta e Harry subia a instalar-se no seu interior.

Minutos depois o veículo rodava de novo com velocidade a caminho do Norte, sem que a excessiva rapidez satisfizesse, entretanto, a impaciência do seu proprietário...

Era Tattie uma verdadeira Escocesa, calma e raciocinada. Demais, os últimos casos passados tinham-na preparado e disposto a não se admirar de coisa alguma. Viu chegar como um furacão o amo, pela segunda vez em três dias; e viu-o com a mesma serenidade e a mesma cara amável. Não pôde, contudo, deixar de se admirar do ar exaltado de Harry.

Entregou-lhe sem demora a carta deixada por Nicole e explicou-lhe o melhor que pôde o que se passara.

Impaciente e nervoso, lorde Blackenfield rasgou a aresta do sobrescrito. Pressentia a angústia dos minutos que iam seguir-se. Nicole ameaçava-o de ir unir-se a Ralph ou, melhor, desculpar-se-ia pedindo-lhe perdão?

A leitura da carta confundiu-o, porém. Tudo encarara e admitira, salvo a profunda tristeza e alta dignidade das linhas deixadas por Nicole.

O pós-escrito, sobretudo, desorientou a sua placidez:

 

«Harry! Quão desgraçada sou!... Confiei-te a minha vida, para sempre... Que fizeste dela?... E não tenho ainda vinte anos!...»

 

Aquelas frases tornavam-se ainda mais incómodas e desconcertantes que tudo, que todo o resto!

Harry sentia amargar-lhe a boca e o seu estado de espírito era o de um homem arrasado. Já não hesitava em considerar-se um miserável: um lorde Blackenfield não devia expor-se, dar azo a que uma mulher pensasse dele semelhantes coisas.

Tudo aquilo fora um verdadeiro desastre!

A desmoralizante impressão da própria conduta impedia-o de compreender, imediatamente, tudo quanto havia de definitivo na despedida de Nicole. Harry não sentia de momento se não a viva acrimónia da mulher.

E como a surda ideia de Ralph lhe rondasse o cérebro, calou-se, no consolo inconfessado de que os erros da mulher equivaleriam os seus.

Começou então a fazer a Tattie múltiplas perguntas sobre a última visita de lady Blackenfield à herdade.

Com docilidade, recomeçou a rapariga a sua narrativa desde a chegada de Nicole, em táxi, a meio da manhã que se seguira à saída de Mick.

- Sozinha? - interrompeu Harry com ansiedade.

- Sim, senhor, lady Blackenfield veio sozinha - disse tão naturalmente a filha de Mrs. Berry que ele não pôde duvidar das palavras da rapariga.

Faltava explicar o atraso do comboio.

- Também já lhe disse porquê, lorde Harry. Não se lembra?

E, cheia de paciência, Tattie pôs-se a repetir as explicações dadas por Nicole a respeito da greve súbita, a greve de protesto que naquela noite fizera com que o comboio ficasse retido, com os sinais fechados durante três horas, a paralisação das linhas de que resultara o atraso e a falta de correspondência para Kensington.

À medida que Tattie falava, compreendia Harry as possibilidades de tudo aquilo... embora também pudesse estar ouvindo uma história muito bem imaginada.

Precisava de o saber... primeiro para o bom equilíbrio da sua consciência pessoal... depois e sobre tudo porque a sugestão de Nicole junto de Ralph se lhe tornava profundamente dolorosa.

Ia pois indagar, na estação, a hora aproximada dessa greve de que jornal algum falara. Pelas palavras de Tattie poderia, mais ou menos, fixar a hora e o ponto: na companhia dos caminhos de ferro não estariam certamente tão desmemoriados que não se lembrassem do caso ao fim de quatro dias...

Com mais pressa ainda do que a que trouxera, deixou Blackenfield a herdade para ir colher os informes desejados à gare de Kensington. Se essa greve de que Nicole falara fosse reconhecida como verdadeira, toda a sua outra narrativa poderia ser admitida como digna de fé.

E foi o que aconteceu. Duas horas depois, Harry estava convencido. Não tinha realmente que duvidar das explicações prestadas pela mãe do pequenino Mick e transmitidas por Tattie: Nicole dissera a verdade; o seu atraso fora involuntário...

E as suposições, as suas dúvidas de marido Findavam? Estavam ou não desfeitas?... Afiguravam-se agora a Harry bem ridículas e reprováveis.

Nicole estava inocente!...

Como tinham podido nascer tão estúpidas ideias no seu espírito ponderado? Não compreendia a que motivos obedecera... ou antes: compreendia simplesmente que só a ideia da infidelidade de Nicole o punha como louco e lhe fazia perder a noção dos seus actos...

Nicole, a sua mulher, a sua gentil Nicole fora e era digna sempre do seu amor; Nicole fiel - significava para ele, Harry, reaver, reencontrar a ventura e a tranquilidade perdidas...

Ah! O frémito de alegria que lhe percorrera todo o ser quando o chefe da gare, a quem interrogara sobre a estadia de Ralph na região, lhe dissera:

- Sir Conway deixou a propriedade há cinco dias... Deve ter partido para o Continente, a fim de caçar, na companhia dum amigo, caça grossa nas florestas do Harz,

Esta certeza da inocência de Nicole era, evidentemente, muito penosa para Harry, que a crivara de tantos epítetos injuriosos; mas, em contraposição, quão reconfortante aquilo se tornava para o seu coração de esposo!

E sentiu, antes de mais nada, aliviante desopressão.

Mas, reflectindo, notou que a inocência da mulher de nada servia praticamente, pois que partira e não voltara. E, porque partira sozinha e não fora juntar-se a alguém, mais difícil se tornava encontrá-la.

Encontrá-la? Singular desejo esse num marido que tudo fizera para irritar a esposa até ao extremo; sem embargo, esse era, na verdade, o sentimento que dominava Harry...

Encontrar Nicole, falar-lhe, fazer-lhe esquecer todos os maus bocados do passado, tão recente, e ressuscitar as horas dulcíssimas dos primeiros tempos do seu casamento...

Com verdadeiro espanto, Harry sentiu que em poucas horas todos os seus pensamentos e ideias haviam sofrido profunda reviravolta. E ingenuamente a si próprio perguntava:

- Devo realmente procurar Nicole por uma questão de respeitabilidade... para ficar como um verdadeiro gentleman aos olhos de lady Blackenfield? Ou estou o que se chama apaixonado?

E concluía com maior ingenuidade ainda:

- Há uma semana não teria acreditado... Era por tal forma vexatório e complicado este estado de coisas! Enfim: vejo que o homem não dirige os seus sentimentos. Preciso de encontrar Nicole... Preciso absolutamente!

E, sempre veloz, pondo-se ele próprio ao volante do Bentley-Sport, apesar de enganar com a actividade física a sua imensa impaciência, Harry retomou o caminho de Londres, onde Nicole não voltara e onde, quinze dias depois, não havia reaparecido ainda.

 

Lorde Blackenfield jamais entrara em combinações com qualquer detective. Não conhecera nunca dificuldades; ora, um detective acha-se geralmente ligado a uma dificuldade.

Na sua aristocrática imaginação, aquele termo lembrava qualquer coisa de simultaneamente romanesco e maravilhoso: jocosa ideia de folhetim policial; mas, também, por contraste, uma esperança de êxito quase sobrenatural, idêntico ao que se pode esperar dum grande médico ou quiromante célebre.

Foi nestas disposições de espírito que Harry se dirigiu uma tarde a casa do ilustre Lewis, o supra-sumo dos detectives londrinos, aquele que a alta sociedade inglesa escolhia de preferência pela sua discrição e magnífico faro de perdigueiro anglo-saxónico, capaz de deslindar os imbróglios mais bem montados.

Não quisera Blackenfield chamar a sua casa o célebre agente. Sentia esse pudor, bem inglês, de expor aos olhos do pessoal, ou mesmo aos do velho e fiel criado que de criança o conhecia, um caso que considerava individual e privado: o drama íntimo da sua vida conjugal. Fizera, portanto, preceder a sua visita ao agente dum aviso telefónico.

Harry sentia-se então quase surpreendido de se ver num simples e moderno escritório comercial. Lewis, propriamente, era correcto e banal, vulgar como qualquer outro homem. Recebeu o marido de Nicole com aquele misto de cortesia e de bonomia reconfortante devido a um consulente inscrito no Peerage, ou seja: um cliente que deveria estar seriamente aborrecido e preocupado para recorrer aos seus méritos.

Escutou, sem interromper, as explicações algo confusas de Harry, tomando apenas algumas notas num canhenho.

Em seguida, formulou breves perguntas:

- Família? Amigos?

Àquilo não podia o visitante responder se não pela negativa:

- Minha mulher não tem, absolutamente, parente algum. Por minha parte, órfão, sem irmãos, não mantenho com meus tios e numerosos primos se não vagas relações, puramente convencionais e mundanas.

- E amizades?

- Lady Blackenfield quase as não tinha... conhecimentos apenas. Estou certo de que minha mulher não se refugiou em casa de qualquer desses conhecimentos.

Uma ideia, rápida como um clarão, atravessou seu espírito:

«Ralph?... Ralph?»

Mas não! Não falaria de sir Conway àquele estranho!

À primeira impressão repudiou essa ideia. Não queria admitir tal pensamento nem mesmo no segredo do seu coração... e ainda muito menos falar e arriscar-se a lançar a sombra duma suspeita sobre aquela que usava o seu nome!

- Não conheço lar algum no qual minha mulher pudesse procurar asilo - afirmou deliberadamente.

- A senhora partiu levando consigo alguma quantia importante?

Esta pergunta oprimiu-o. Já havia procurado verificá-lo.

- Não, não levou - respondeu com ar sombrio. - Deixou todas as suas jóias e não tocou no dinheiro que se encontrava na secretária, dinheiro que, sem embargo, podia gastar à vontade nas despesas da casa.

- Foi então com limitados recursos?

- Sim. Muito limitados...

- E a bagagem que levou?

- Insignificante... uma mala com roupa branca e alguns vestidos pretos... a bem-dizer: quase nada: eu não gostava de a ver vestida de luto.

- Lady tinha perdido qualquer pessoa de família, recentemente?

- Sim, o pai.

- Nesse caso, ia de luto, com certeza.

- É muito provável.

- Eis finalmente uma indicação útil - afirmou Lewis com cara de dúvida ante os escassos esclarecimentos prestados pelo cliente. - Lorde Blackenfield - volveu o detective após um momento de reflexão - vamos começar as investigações; fica assente. Mas não lhe oculto que o caso se apresenta muito difícil...

Como Harry, a fim de lhe estimular o zelo, metesse a mão à carteira, o polícia conteve-lhe o gesto:

- Ainda não. Depois, quando conseguir o que deseja... Se falo das dificuldades que vamos encontrar, é porque, no caso de lady Blackenfield se disfarçar, quase nenhuma possibilidade temos de a encontrar...

Hesitou por instantes; em seguida, mais lentamente acrescentou:

- Se, pelo contrário, existir um acidente, crime ou suicídio...

- Ah!

Harry acabava de sofrer um sobressalto; teve uma brusca contracção do semblante, descomposto pela suposição sinistra.

- Desculpe-me, peço-lhe - disse Lewis, compungido. - Sou obrigado... a falar assim, compreende... A profissão obriga-me a encarar todos os casos e possibilidades...

- Compreendo... queira continuar - murmurou Harry, esforçando-se por ficar impassível.

O detective retomou então o fio das suas deduções, mas pesando melhor as palavras:

- Segundo o que compreendi, lady Blackenfield deixou a herdade que possuía na Escócia, voluntariamente, com a ideia de partir e não voltar à casa de Londres... Não há pois razão para descobrir ou procurar o motivo que, exteriormente, haja podido causar-lhe demora... ou... ou... a inibição, contra sua vontade. Faço-me compreender?

- Perfeitamente.

- Mas procuremos esse motivo por descargo de consciência, embora, pessoalmente, eu não creia nem num acidente, nem... num crime! Simplesmente, dado o estado de espírito... agitado, deprimido, em que sua esposa ia na ocasião da partida... não pensou vossa excelência?...

Hesitava, parava, constrangido pela necessidade de precisar a sua suposição na presença desse marido que empalidecia tão sensitivamente. Mas Harry ergueu a cabeça e concluiu ele próprio, numa voz que se esforçava por se tornar forte:

- Se pensei no suicídio?... Sim. Tenho pensado... Também ele hesitava, parava. A hipótese era terrivelmente dolorosa de encarar.

Esse mesmo receio já uma vez o apavorara, ao certificar-se de que Nicole fora à herdade. Devia ter sofrido ali um choque terrível; o desespero em que abalara permitia todas as conjecturas... Lembrou-se, felizmente, de que Tattie lhe repetira uma das últimas frases da desaurida mãe:

«Só peço a Deus me dê forças para viver e para tornar a ver o meu filho...»

Aquela frase mortificante serenara-o, contudo. Mas não a quis explicar a Lewis. Disse simplesmente:

- Estou convencido de que lady Blackenfield se encontra ainda com vida. Devemos pôr de parte a ideia do suicídio.

- Tem uma razão forte para chegar a essa conclusão?

- Tenho - respondeu. - Minha mulher tinha muito amor ao filho... Muito amor... - insistiu. - O seu maior desejo consiste em tornar a vê-lo...

- Ali right! - exclamou o agente. - Aí está uma óptima indicação. Pelo filho prenderemos a mãe! Deveremos ter esperança. Não desanime, lorde Blackenfield: havemos de o conseguir!

Optimismo profissional ou convicção sincera? Fosse, porém, como fosse, logo que se despediu do detective, Harry sentiu-se reconfortado.

 

O tempo decorria.

Todos os dias Blackenfield recebia de Lewis uma comunicação, simples nota a indicar que infelizmente nada ainda conseguira saber-se daquela que estava encarregue de encontrar.

O negativo resultado começava a abater o bom humor de Harry; lorde Blackenfield havia aconselhado ao detective que estendesse as suas investigações até ao Ragon, onde sua mulher podia ter ido juntar-se à velha e fiel Delfina. Mas, quando Lewis voltou de França com a certeza de que Nicole não aparecera sequer na região em que a antiga criada se refugiara após a morte de seu amo, o Inglês desesperou.

Nada! Vestígio algum! Esperança alguma!

Harry sentia-se abatido... Já não tinha coragem para esperar mais... Subitamente, a sua vida mundana e brilhante enfastiava-o. Que lhe importavam as suas riquezas se Nicole não compartilhava delas? Por estranho fenómeno, esta, que outrora, quando presente, parecia não contar na sua vida, enchia-lhe agora, que estava ausente, o coração e o cérebro até à obsessão.

No clube, entre os amigos, mesmo a jogar o râguebi, o que fazia no intento de conseguir distrair-se, a ideia fixa de que ao entrar em casa a encontraria vazia, o pensamento de que não voltaria a ver o sorriso um pouco melancólico da mulher, os seus grandes olhos brilhantes e cândidos, tornavam-lhe insuportável a vida em Londres.

O forte e alegre rapagão, sem cuidados, que não pensava se não em si próprio com o mais ingénuo interesse, achava-se mudado: inquieto, nervoso, vencido por momentos de infinita tristeza.

Seus sentimentos tornavam-se, desse modo, mais finos e subtis. Agora que, por experiência própria, conhecia a solidão e o aborrecimento, compreendia melhor quanto deveria ter sofrido o sensível coração da pobre rapariga, esmagada pelo indiferente egoísmo com ela usado.

Tudo parecia vingar nele os próprios erros e dar-lhe um remorso mal definido, mas que, dia a dia, se tornava mais conciso e se misturava ao amargo arrependimento de ver, por sua culpa, destruído o lar.

Decididamente, a vida em Londres acabara por se lhe tornar moralmente insuportável!

Teve então uma ideia... vaga, primeiro... clara, em seguida... imperiosa, depois! A ideia que nasce naturalmente em todos os Ingleses atacados de spleen e faz deles os globe-trotters que se encontram em todas as latitudes... a ideia de partir... a ideia duma grande viagem, até muito longe, até onde esperam encontrar a cura do cérebro atormentado.

Durante quarenta e oito horas pensou sem cessar nesta evasão... que se lhe tornara uma ideia fixa dentro da incoercível necessidade de movimento e de acção. Ao fim de certo tempo estava decidido. Sem hesitar mais, mandou reservar uma cabina de luxo no próximo paquete que partia para Ceilão.

Esta decisão reanimou-o; contava com o poder da viagem e da força invencível da juventude, para se curar do seu obsidiante pensamento. Previdente e atencioso, deu ordens aos seus criados de Londres a fim de que a casa ficasse aberta e no mesmo estado durante todo o tempo que a sua ausência durasse. Queria que Nicole, no caso de voltar, encontrasse, acolhedora e com seu ar habitual, a moradia: flores no seu quarto e o breakfast servido pelos mesmos criados.

Ao seu procurador deixou instruções respeitantes à manutenção do filho, confiado sempre a Mrs. Berry, a qual fora reconduzida à herdade de Kensington com o pequenito que o pai não pensara sequer tornar a ver! Previra assim o conforto de Nicole no caso de Lewis ter encontrado a sua morada. Depositara na mão deste uma rica pensão a favor do filho e ordenara que a mãe fosse informada do paradeiro de Mick, a fim de que pudesse ver livremente o filho e até mesmo tomá-lo para a sua companhia se assim o desejasse.

O procurador estava também encarregado de avisar telegraficamente de tudo quanto pudesse passar-se em sua casa. Devia, enfim, entregar ou endereçar a lady Blackenfield a carta que o marido para ela deixara escrita antes de partir.

Ao escrever essa carta, quanto Harry procurara e pesara todos os termos!

A um carácter frio e reservado como o de lorde Blackenfield difícil se tornara exprimir o seu verdadeiro sentir.

Nessa carta dizia à esposa todo o amor que sempre lhe dedicara, sem que o soubesse adivinhar enquanto a tivera junto de si, amor, porém, de que ele próprio não podia duvidar agora que ela partira... Queria fazer-lhe compreender igualmente o seu arrependimento em ter-lhe ocasionado a saída de casa... procurava fazer-lhe adivinhar o remorso que confessava apenas, mas obsidiava o seu coração...

Tudo aquilo era embaraçoso de dizer... difícil para o seu orgulho! Tinha ainda contra si a dificuldade de se exprimir em francês... sobretudo, num caso sentimental como aquele!

Disto resultou um curto bilhete inepto e tocante:

 

«Nicole querida

«Estou triste, muito triste para ficar na solitária casa onde tudo me fala de ti.

«Porque partiste? Eu sei: porque sou culpado, mas fui-o sem querer... Não pensei fazer o mal... assim... tão forte!

«Darling, logo que leres esta carta, voltarás e tudo acabará. Mas... pobre de mim... estarei muito longe... Escreverei, Nicole, saberás sempre onde me encontro.

Tu, querida, me darás, caso queiras, notícias tuas, simples notícias. Se não quiseres dar-mas eu esperarei: será essa a minha punição.

«Mr. Brown, meu procurador, deve ocupar-se da tua vida material. Deixo-lhe ordens para mandar vir o menino para junto de ti, se assim desejares.

«Nicole: penso que lerás estas linhas já em casa. Já lá estarás e eu ainda muito longe nos imensos campos de canaviais... Considerarás tudo isto, darling... que eu estou longe... e talvez me chames para me dares o teu perdão.

«Permites-me que te beije as mãos, Nicole? Minha pequenina Nicole... minha querida mulher.

Harry».

 

Vinte e quatro horas depois, o jovem Inglês, de cotovelos apoiados na amurada do paquete Astra, via pensativamente sumir-se nas brumas do horizonte a costa da velha Inglaterra.

Pensava em que vinte dias mais tarde, debaixo do sol ardente, desembarcaria nas índias... E ainda aí estaria só!... Mais longe de Nicole... tão longe!

 

Os meses, os anos decorreram...

Harry Blackenfield estava enfim de volta a sua casa e os seus primeiros passos na vasta moradia conduziram-no ao quarto da mulher.

O grande quarto de preciosos móveis, com as janelas veladas por longos cortinados de rendas brancas, pareceu, na sua meia penumbra, pouco menos que sombrio aos olhos do viajante habituado à luz estrepitosa da Ásia.

Harry caminhava sem ruído, como em misterioso local, capela ou quarto de doente; caminhava profundamente comovido... mais ainda do que previra.

O ambiente conservado por esses móveis familiares, cuja disposição não se alterara em mais de dois anos, essa doce penumbra e essas frescas flores, até esse indefinível perfume que persiste meses e às vezes anos nas casas fechadas, tudo lhe evocava por forma ao mesmo tempo suave e cruel aquela que não voltara.

Atravessou inteiramente o espaçoso quarto de Nicole e aproximou-se da cómoda de pau-rosa e acaju do mais puro Adam's style. Sobre o mármore luzente e patinado, as suas cartas amontoavam-se. Todas tinham o endereço de lady Blackenfield e se encontravam intactamente fechadas. A sua franquia postal variava: desde os Straits Stettlements da Malásia, no reino do Nepal, ao extremo norte da índia; mas todos os endereços estavam traçados pela mesma letra.

Harry olhou as cartas pensativamente; depois ergueu-as por maços. Tinham ficado pela ordem do recebimento. Fora ele quem escrevera aqueles endereços e, pelos carimbos do correio, poderia refazer o itinerário da sua longa viagem às índias.

Essas cartas comportavam o pensamento do viajante. Eram, segundo a promessa feita, todas as que escrevera a Nicole para lhe dar notícias... para que ela soubesse por sua vez onde encontrá-lo e avisá-lo do regresso ao lar...

Escrevera quase semanalmente. Na maior parte das vezes, não traçara mais que um curto bilhete ou a breve indicação do endereço; mas, por vezes também, a fim de a interessar pelo seu destino, dava-lhe longos descritivos da viagem. Assim se recordava de haver feito a narrativa duma sensacional caçada ao tigre e logo duma recepção deslumbrante, magnificente, no palácio de certo marajá faustoso. Falara-lhe ainda de Benares, a Santa, e das alucinantes incinerações noite fora, à beira do Ganges, o rio sagrado; enfim, doutra vez, cheio de entusiasmo, contava-lhe - o que fora para ele infinitamente mais interessante - uma notável partida de pólo, no clube de Simba, com aqueles belos cavalos indígenas, leves e vivíssimos, que lá existem.

Agora tudo isso lhe parecia distante... longe, muito longe daquele quarto docemente clareado pela leitosa claridade que atravessava difusamente os largos cortinados de renda a velarem o quarto silencioso e devoluto.

Sim! Terrivelmente devoluto!

Harry continuava de olhar fixo nas cartas evocadoras... todas essas recordações... Umas datando de alguns meses, outras de dois anos... e mais!

Os sobrescritos recentes eram muito delgados, leves: Harry não tivera coragem de escrever mais longamente. À força de esperar uma resposta que não vinha, perdera toda a esperança... Depois, um belo dia, não podendo mais, decidira bruscamente, tal como fizera com a partida - voltar a Londres.

Que fazia ele longe de sua casa? Tão longe do drama que esfacelara a sua vida? Acaso não levara consigo o coração e nesse coração o sudário dos seus arrependimentos?

De facto, a viagem fora, ao princípio, uma distracção poderosa; mas o interesse pelo espectáculo exótico e pitoresco esgotara-se. A lassidão, nesse clima tórrido e depressor, apoderara-se da robusta constituição do jovem lorde, uma espécie de langor o afilara e envelhecera.

Regressava a Inglaterra verdadeiramente mudado. No seu rosto emagrecido e bronzeado, os olhos claros pareciam mais profundos; mas mais profundos ainda vinham seus pensamentos; fora principalmente o coração que se lhe transformara: porque ele sofrera e acabara por compreender...

Voltava cheio de amor por aquela que perdera e que, apesar de tudo, esperava encontrar em casa. Sua alma vinha repleta de boas resoluções destinadas a fazer-lhe esquecer as ofensas e as feridas abertas outrora. A sua vida poderia ser bela ainda: eram ambos novos!

Durante as longas horas da travessia, Harry embalara seus sonhos de futuro no ritmo ondulatório das vagas... Não duvidava de que Nicole, advertida por secreto pressentimento, o estivesse esperando em casa.

«Tenho pensado nela por tal forma que o meu pensamento com certeza tocou o seu. Não seria assim?»

Chegara então cheio de amor e de esperança... E todo esse amor era vão! Toda essa esperança baldada!

Mais de dois anos haviam decorrido e Nicole não voltara!

Diante dos maços de cartas intactas, com os olhos postos nessa prova tangível da ausência da mulher, Harry quedava-se acabrunhado!

Súbito, num repente, agarrou nas cartas:

«Essa correspondência inútil, desdenhada, devia ser destruída!... Ia queimá-la!»

Já às mãos ambas levava as cartas para a boca do fogão, quando se conteve:

«Destruída aquela correspondência, que provas lhe restariam de ter dado, com tamanha dedicação, apesar da ausência e do afastamento, todos os seus pensamentos à esposa?...»

Essas missivas constituíam a prova irrefutável do amor constante... subsistiriam como a única desculpa susceptível de comover um dia a esposa ofendida.

Então, de coração esmagado pela esperança desfeita duma reconciliação, desencorajado diante de tudo quanto lhe restava fazer no sentido de reconquistar o amor de Nicole, lorde Blackenfield abriu uma das gavetas da antiga cómoda e ali arrumou a inútil epistolografia.

Subitamente, o resto duma fotografia rasgada, a um canto da gaveta, atraiu a sua atenção. Essa fotografia mostrava Nicole em trajo de golf. Fora tirada em Biarritz; estavam no princípio de casados, e tirara-a certo Espanhol que se encontrava na roda dos amigos ali encontrados.

Mas, naquela prova de amador. Nicole não estava só... Ele, Harry, figurava a seu lado.

Lorde Blackenfield lembrava-se muito bem da particular afeição que Nicole dedicava a essa fotografia em grupo; segundo dizia, o marido estava ali muito bem e ambos formavam o que costuma chamar-se «um bonito par!»

Agora, naquele dia, aparecia-lhe rasgado o retrato e no pedaço que tinha na mão Harry só encontrava a figura da esposa.

Maquinalmente, procurou a outra metade do cartão, pois a existência daquele resto intrigava-o, impressionava-o mal. Teve a impressão de que Nicole, antes de deixar a casa, desfizera todas as boas recordações... mesmo aquelas que, como esse retrato, por evocadoras dos dias de ternura e de felicidade, deveriam ser sagradas...

«Sim! Desfez tudo... fez tábua rasa do passado... Pobre de mim!»

E como não encontrasse a parte que faltava para reconstituir a fotografia, pôs-se a examinar mais atentamente o pedaço que tinha na mão.

«O retrato não foi rasgado... mas cortado... por tesoura que cortava muito mal ou corte dado muito à pressa, pois deixou rebarba, que, à primeira vista parece o rasgado... Cortada! Ou seja: separada intencionalmente em duas partes!»

A fronte vincada pelo esforço, Harry reflectiu.

«Teria Nicole querido destruir o meu retrato e conservar o seu?... Ou... o contrário?»

Mas não! Se sua mulher desejava respeitar as felizes recordações representadas pelas duas imagens, lado a lado, não as teria separado.

«Para guardar o meu retrato, também ela não tinha precisão de dar cabo da fotografia... a menos que...»

A menos que Nicole não tivesse querido deixar essa outra metade.

«Com o fim de recordar... quem sabe?»

A suposição tornava-se-lhe ao mesmo tempo doce e pungidora,

«Querida Nicole... fez talvez isto como quem diz: lembra-te!»

Curvou a cabeça, vencido pela comoção que lhe apertava a garganta.

Em seguida, puxando da carteira, meteu aquela preciosa metade no meio de outros retratos de Nicole, dos quais tinha um compartimento repleto, retratos que sempre o haviam acompanhado, mesmo na sua longínqua viagem.

Não fora necessário que a fugitiva deixasse o seu retrato. O marido abandonado coleccionara todas as fotografias que pudera encontrar!

O frio e fleumático Inglês era, afinal, um homem semelhante aos de todas as latitudes; perante a ausência da mulher amada, fazia como todos os apaixonados: alimentava a sua solidão com as recordações que o papel lhe proporcionava.

Quando a tivera perto não fora Nicole se não a companheira a quem se ama sem saber como nem quanto; mas, longe, a esposa de que se via privado tornara-se o ídolo adorado que ele contemplava com paixão e ao qual votava os mais palpitantes sentimentos.

Iam longe os tempos em que Harry chasqueava da sentimentalidade da meiga francesinha que lhe confiara a vida e cujas pueris ternuras o chegavam a aborrecer. Conhecia agora todos os frémitos da alma, todos os frémitos que comprimem ou dilatam o coração, segundo o que em vão se espera...

Exteriormente, lorde Blackenfield podia mostrar-se o calmo e impassível gentleman de quem a sociedade inglesa admirava a firme e impecável atitude; mas, a sós consigo, longe de todos os olhares, sabia bem que não passava dum pobre rapaz com o coração retalhado por sofrimentos e desesperos... iguais aos de toda a gente!

E empurrando a gaveta onde acabava de arrumar as cartas por abrir, não sentia o jovem lorde ilusões sobre o seu estado de alma.

Ao fechar-se, a lingueta da fechadura deu-lhe a sensação amarga da porta dum túmulo fechando-se sobre cinzas preciosas.

Fundo suspiro lhe saiu então do peito: quantos dias ainda se passariam antes que a doce mão de Nicole ali chegasse, desse volta à chave daquele receptáculo, acordando assim todas as palavras de amor adormecidas nos seus sudários de papel?...

Nicole... pequenina Nicole distante... não sentes tu no teu exílio quão perdidamente és desejada por aquele que não soube conservar-te?

 

Larga explicação acabava de ser travada entre lorde Blackenfield e Lewis no escritório deste último.

E, diante do descontentamento do cliente, procurava o detective justificar-se:

- Garanto-lhe, lorde Blackenfield, que não poupei nem o meu tempo nem as minhas diligências... Desgraçadamente, não pudemos recolher indício algum, qualquer fio condutor... Todavia lhe digo que, embora sem resultado, não nos sentimos por isso desencorajados. Os meus agentes, eu, nós, continuá-las-emos com o mesmo zelo...

- Mais de dois anos sem conseguirem a menor indicação! Há-de concordar que tenho o direito de perder a confiança nos senhores!

- Faz mal, lorde Blackenfield... Nada temos de concreto para lhe dar, mas, em compensação, quantos casos, circunstâncias, quantos factos temos examinado, tentado, para agora o poder tranquilizar! Não se deu crime, suicídio, aparecimento de cadáver na via pública sobre que não recaísse imediatamente o nosso exame... não só em Inglaterra, assim como na França, onde lady Blackenfield poderá estar. Actualmente, posso garantir-lhe que, a não ser por motivo de circunstâncias absolutamente imprevistas, sua esposa está viva... Nem se suicidou nem foi vítima de qualquer acidente... razão por que nos reservamos a esperança de a encontrar.

- Acho muito problemático agora!

- Tão problemático agora como no primeiro dia... Logo preveni vossa excelência de que o caso se tornaria demorado.

- Mas nunca supus tanto.

- Contudo, previno-o. Dignar-se-á admitir, lorde Blackenfield, que se, por hipótese, lady Blackenfield mudou de estado e se oculta sob um falso nome, não poderemos descobri-la a não ser por um acaso feliz... tanto mais que vossa excelência me recomendou a maior discrição, não podendo eu falar abertamente sobre a desaparição da pobre senhora.

E, enquanto Harry, desanimado, ficava em silêncio, o detective expandia-se, expunha-lhe pormenorizadamente quais os seus trabalhos, a fim de justificar os chorudos honorários acumulados no espaço de quase três anos.

Lorde Blackenfield continuava, porém, imóvel, a expressão dura e concentrada. Lewis temeu aquele silêncio reprovador. Precisava de segurar tão bom cliente e multiplicava os seus argumentos.

Assim, insistiu, de novo voltou à carga sobre a sugestão feita no começo da conversa.

- Já lhe disse o que se me afigura como a melhor forma de atrair a atenção de lady Blackenfield e, talvez, de a descobrir.

Harry cortou com novo gesto de evasiva, num ar descrente.

- Já perdi as esperanças - confessou.

- Peço perdão, lorde Blackenfield, mas não sou da sua opinião! Devemos confiar, pois não estão esgotados ainda todos os recursos... Vossa excelência não se encontrava em Londres e eu não podia decidir nem proceder sem a sua concordância... Mas julgo que não devemos deixar por mais tempo de lado esse meio. Para mais, não é difícil... Disse e repito: mande lorde Blackenfield vir seu filho para junto de si, faremos com que os jornais comecem a falar.

- Como posso fazer tal coisa? - perguntou Harry com um encolher de ombros.

Mostrava-se abandonado, abatido, sem entusiasmo. Nenhuma fibra paternal acordara no seu coração; acabrunhava-o a ideia de mandar buscar o filho - esse garoto que mal conhecia e não trazia ao seu espírito se não desagradáveis lembranças.

- Como? - tornou Lewis. - Acho muito simples: logo que o menino esteja com vossa excelência mostrar-se-á com ele, sairá com ele...

- Hem? - exclamou Harry num sobressalto. - Acha que eu possa andar acompanhado por um garoto de três anos? Não sou ama seca! Cairia no ridículo!

De volta a Londres, lorde Harry retomara insensivelmente, automaticamente seus hábitos mundanos. A ideia de sair e de aparecer em público com Mick podia parecer loucura num inglês da alta sociedade.

Porém, Lewis mostrava-se tenaz.

- Vejamos, lorde Blackenfield - volveu em tom persuasivo - há sítios onde o cavalheiro mais chique pode apresentar-se com os filhos: por exemplo, no Jardim Zoológico, na pista de patinagem, nos circos... Bastar-lhe-ia aparecer... com certa regularidade, se fosse possível! Depois, eu me encarregaria de vos surpreender pelo fotógrafo duma revista da moda ou dos jornais diários. Os actos de lorde Blackenfield, regressado das índias, são assaz notórios para justificar fotografias e artigos na imprensa a seu respeito...

Harry abanou a cabeça, num enfado cada vez mais visível.

- Tudo isso... todos esses ridículos... essas maçadas e incómodos... de nada servirão!

- Vejamos! Vejamos! Não sejamos pessimistas! É preciso não desesperar...

- Se minha mulher tivesse de voltar, já tinha voltado!

- Perdão! O caso é diferente! A esposa não quis manifestar-se, é natural: mas a mãe, essa não resistirá ao desejo de ver o filho... Procuremos dar-lhe a possibilidade, o ensejo.

- Muito problemático!- murmurou Harry, já abalado, meio convencido.

E concluiu:

- Pois bem: vou estudar o assunto... Talvez me decida... não já, em todo o caso. Quero ir passar alguns dias a França... virei visitá-lo na volta e falaremos então de tudo isso.

- Seja como quiser, lorde Blackenfield... Creia, entretanto, na minha velha experiência: no nosso ofício torna-se mister observar os casos e seus respectivos aspectos exteriores: mas temos, mais ainda, de contar com o factor sentimento. A psicologia constitui o nosso melhor trunfo. Note bem, excelência: é-nos mister conhecer o coração humano e metermo-nos nele. É baseando-me nesta regra que lhe digo e repito: o filho trazer-nos-á a mãe: pelo primeiro atingiremos a segunda; temos na nossa mão o melhor e talvez único meio de ganhar a partida.

 

No salão principal do castelo de la Muette o fogo flamejava forte na boca do fogão.

Fora, debaixo dum céu cinzento da Primavera, que se ia tonalizando àquela hora com as cores do crepúsculo, o vento passava vertiginoso nos arvoredos com esse ruído que toma nas florestas e lembra o som de reboar dos órgãos.

Sentado em confortável fauteuil, perto do lume, Harry tremia de frio.

- Este tempo húmido há-de fazer-lhe sentir bem a diferença do clima das índias, não é verdade, primo? - observou o duque de la Muette, que se sentara do outro lado do fogão.

- Oh! yes... uma diferença terrível! Estava lá em baixo... - como dizem vocês? - acanhado de frio...

- Transido... se quer falar bom francês - volveu o duque, sorrindo.

- Oh! O francês! Esqueci-o quase... Nunca mais o falei depois que...

Hesitou. E logo:

- Vai para dois anos... os dois anos que estive fora.

Ia quase a dizer: «Depois da partida de Nicole», mas contivera-se a tempo. Havia momentos que chegara ao castelo de La Muette e não falara ainda da mulher.

Os dois primos acabavam de tomar uma chávena de chá e de falar de várias coisas vagas: do tempo, da viagem de Harry; porém, o nome da ausente não fora pronunciado sequer nem por um nem por outro.

Agora, a lembrança de Nicole interpunha-se, perpassava entre os dois homens e, quanto mais tempo decorria, mais cada um deles hesitava em abordar o assunto.

Harry nunca falara explicitamente do seu drama ao duque de la Muette, nem a sua família, nem aos seus amigos de Inglaterra; mas o duque, que conhecia Nicole desde a infância e que nutria por ela verdadeira afeição, muitas vezes pensava na filha de Grammont. Não deixara de adivinhar a metade, pelo menos, da situação anormal e dramática do juvenil casal. O duque sabia que Blackenfield partira sozinho para as índias; essa certeza, junta a outras informações que pudera obter, haviam bastado para inquietá-lo e várias vezes a si próprio perguntara o que poderia ter acontecido à formosa lady.

Contudo, a discrição e a fina cortesia de la Muette inibiam-no de procurar forçar um segredo que não se lhe abrira espontaneamente.

Por seu lado, lorde Blackenfield viera a França na esperança de que o primo lhe pudesse dar novas de Nicole. Ansiava por falar dela, mas compreendia bem a situação quase ridícula em que se colocaria pedindo a um terceiro, que nada sabia talvez, notícias da própria mulher... de sua mulher, da qual não estava nem divorciado, nem oficialmente separado.

Um silêncio que, com o prolongar-se, mais pesado se tornava, caíra entre os dois homens.

Foi Harry quem o rompeu. Não viera para saber qualquer coisa? O fim da sua viagem não era informar-se? Buscava muito ardentemente a verdade para se deixar entravar por vã e falsa vergonha.

E foi com o ar mais natural e desprendido possível que Harry lançou estas palavras:

- Há muito tempo já que o primo não vê Nicole?

O duque esperava quase a pergunta. Respondeu! então com a maior simplicidade:

- Sim, há muito tempo... vi-a a última vez na vossa casa, em Londres, naquele Inverno anterior à sua partida para as índias...

E como se adivinhasse que o primo com aquele rodeio pretendia saber outra coisa, acrescentou:

- Nunca mais a vi, mas tenho tido notícias dela...

- Ah! - exclamou Harry, com um movimento de apaixonada curiosidade, a qual não pôde reprimir nem escapou aos olhos atentos do duque.

- Sim, tenho tido notícias dela - continuou tranquilamente o castelão - e notícias que me penalizam imensamente.

- Como? Porquê?

- Há cerca de ano e meio, pouco tempo depois da morte da velha Delfina...

- Delfina morreu?

- Morreu... pouco tempo depois do patrão, isto é: há um ano ou dois aproximadamente. Quem informou Nicole do falecimento dela, não sei... Mas garantiram-me que sua mulher esteve aqui na região...

- Quando? Pode precisar a data?

- Três semanas talvez após a morte da criada... Nicole foi ao cemitério rezar na campa do pai e de Delfina... Não veio cá ver-me e nem sequer me avisou da sua passagem por aqui... Eis o motivo por que não estou muito satisfeito com Nicole.

Quaisquer que sejam os lutos ou desgostos que ela haja sofrido, devia lembrar-se de que existo e de que poderia contar comigo: antes de ser primo dela, já eu era um amigo do pai...

- Sim - murmurou Harry pensativamente. - Deveria tê-lo visitado.

Falava assim, mas compreendia bem que a esposa, magoada e desgostosa como estava, não tivera coragem de visitar o duque de la Muette. Não podendo falar da partida do marido para as índias, nem do filho, de que se encontrava separada há meses, não querendo tão-pouco entrar em explicações sobre o drama íntimo que despedaçara a sua vida, Nicole abstivera-se de aparecer a de la Muette. Não teria também evitado encontrar-se com o duque no intuito de se não ver obrigada a acusar Harry?

E tal reserva comovia-o subitamente. Seu coração estremecera de ternura e gratidão pela ausente. A filha do falecido guarda-mor nenhum título de fidalguia guardava no seu nome, mas, dentro da sua simplicidade, quão nobre e delicada se afirmava a sua alma!

Harry empenhou-se então em desculpá-la aos olhos do primo:

- Nicole é, como sabe, muito sensível... A visita aos seus mortos queridos... as recordações do passado... deve ter chorado muito... Talvez que o chorar lhe tenha parecido uma fraqueza... Como nunca é bonito, não quis, por uma questão de recato, que vissem... É um poucochinho orgulhosa, a Nicole...

- Seja! Mas parece-me que não tinha que envergonhar-se de chorar um pai tão ternamente adorado e uma servidora fiel como foi Delfina, Nicole sabia bem que eu próprio sentia por Grammont muita estima e amizade... Teríamos comungado na mesma recordação, na mesma saudade...

E como Harry fizesse um gesto vago, o duque insistiu:

- Não tenho o feitio e o carácter um tanto frio dos Ingleses! Da trisavô que nos é comum, meu caro Harry, e nos faz primos, perdi o atavismo britânico. Sou, sobretudo, Francês e compreendo todas as manifestações... mesmo as do sentimento... mesmo as da fraqueza duma mulher...

- Sim - murmurou Harry, sempre vago, quase sonhador.

- Demais, continuou o duque - estou cometendo um erro ao dizer que estou pouco satisfeito com Nicole; não estou nem tenho que estar zangado. Ela é livre; se assim procedeu, lá tinha as suas razões e não lhe quero mal por isso. Sinto-me somente penalizado por não a ter visto... Conheci-a de pequenina e estimo-a muito... Tinha-me dado uma grande satisfação se cá tivesse vindo... e...

Hesitou um instante; concluiu depois:

- E talvez... que, na sua ausência, primo, eu lhe tivesse sido útil.

- Certamente! - exclamou Harry, desta vez com entusiasmo. - Também eu lamento profundamente que não se houvessem encontrado.

Blackenfield acabava de compreender, sentir o interesse afectuoso e sincero que o duque de la Muette votava a Nicole... e talvez também a ele!

«Porque não lhe dizer a verdade? - pensou. - Porque não lhe confessar o drama desses dois últimos anos, os erros e martírios que infligi a essa pobre criança, assim como a esperança que conservo de reaver a fugitiva e de lhe fazer esquecer o passado?...»

O silêncio caíra, uma vez mais, entre ambos. Daqueles dois homens o mais velho sentia o escrúpulo de forçar as confidências do seu parente: este, vacilando nas hesitações de falar e se abrir.

Mas decidiu-se de chofre. E, numa violência feita ao seu orgulho e à sua reserva britânica, Harry confidenciou ao primo os factos que haviam dramatizado a sua vida.

Por amor da verdade, forçoso é dizer que uma espécie de masculino pudor o impediu de se alongar sobre certas particularidades íntimas que só a ele e a Nicole diziam respeito.

Explicou-se pois o mais breve e conscisamente possível; o duque não se admirou muito; suspeitava já de qualquer coisa.

Pelas meias palavras do primo compreendeu o fidalgo a situação. Então, abalado pelas confidências de Harry, desejou sinceramente poder ajudá-lo a reconstruir o ninho tão levianamente demolido pelo acriançado marido.

Mas como encontrar Nicole?

Esse era, evidentemente, o ponto essencial, e o duque interrogava-se sobre o que poderia fazer nesse sentido.

Para começar, repetiu a Harry tudo quanto sabia.

Pouco era: Nicole estivera na região ia para dezoito meses; mas feita a sua visita ao cemitério, tornara a partir sem ter ido ao castelo e sem ter dito a ninguém donde vinha ou para onde ia.

Pouco era, na verdade! E, todavia, Harry sentia-se aliviado dum peso enorme; seu coração parecia dilatar-se, alegre por íntimo pensamento: Nicole vivia!

Lewis afirmara-lho já diferentes vezes; mas a certeza do detective somente em deduções e probabilidades se apoiava, ao passo que a do duque constituía uma realidade.

Sem que tivesse querido nunca confessá-lo a si próprio, e embora o não tivesse querido admitir diante de Lewis, Harry guardara sempre no fundo da sua alma o medo horroroso de que Nicole estivesse morta!...

Agora, não. Podia dizer: «Minha mulher vive!»

Verdade, verdade que as notícias não eram frescas nem recentes. Remontavam a dezoito meses! No entanto, se Nicole tivera a coragem de viver até àquela data, não havia a recear, logicamente, que ela houvesse sucumbido posteriormente ao seu desespero.

Nicole vivia! Era o alívio, a coragem, a esperança!... Todas as perspectivas da felicidade que voltavam e se abriam!... A sua Nicou havia de se encontrar em qualquer parte sobre a terra... neste Mundo que não era infinito, apesar de tudo!

«All right! Acabaremos um dia por a encontrar!»

E terminando a conversação, que se prolongara até tarde, pela noite, o duque de la Muette disse ao primo:

- Amanhã, se quiser, Harry, vamos à vila... Certas perguntas discretamente formuladas far-nos-ão talvez encontrar um indício... Por fraca que seja esta esperança, não devemos desprezá-la...

No dia seguinte, logo de manhã, o automóvel que fazia serviço no castelo saiu conduzindo para o burgo os dois homens.

Iam, em primeiro lugar, ao cemitério; aí findara certamente a visita de Nicole. No fúnebre recinto que circundava a pequena igreja, certas roseiras mostravam já seus rebentos sedosos junto dos sombrios ciprestes. O vento soprava menos violento que na véspera, mas, por entre as espessas nuvens brancas um raio de sol primaveril surgia de tempo a tempo e vinha alumiar as lajes dos túmulos alinhados.

O de Delfina, cujo nome se lia gravado recentemente na pedra, achava-se próximo do seu amo.

Harry teve, ao vê-los, um aperto de coração: em cada um dos canteiros, cuidadosamente tratados, um ramo de flores, ainda frescas, denunciava a piedosa mão que ali os havia disposto na antevéspera, o mais tardar.

Nervoso, apertou o braço do companheiro:

- Veja - disse. - Estas flores... Seria ela quem voltou?

Mas de la Muette abanou a cabeça:

- Era muita sorte! - murmurou. E mais alto:

- Vamos falar com o guarda. Com certeza nos explicará...

Foram. Estavam perto. O homenzinho habitava uma casa vizinha.

Mas nada de novo puderam saber. O aldeão explicou que a «senhora Nicole» viera à vila, após a morte de Delfina. Entregara-lhe certa quantia para que ele tratasse dos dois túmulos.

- Por um ano, meu senhor! E eu nunca deixo de cumprir o meu dever: tem sempre flores frescas. Vossa excelência viu, senhor duque?

- Vi. Efectivamente estão bem cuidados... Mas diga-me, você não tornou a ver a senhora depois desse dia?

- Não, senhor... não tornei. Foi o senhor notário quem no mês de Janeiro me entregou o dinheiro para pagamento do outro ano...

- Ah! Sim... muito bem... é mais prático assim... Mas, fora da sua passagem por aqui, não se teria demorado a minha parenta nestes sítios? Uns dois dias, me parece?

- Julgo que não, senhor duque... A senhora chegou de carro e partiu uma hora depois... Não tomou qualquer refeição na vila, nem visitou o presbítero... Sua senhoria parecia estar com muita pressa...

- Sim... é natural porque eu estava esperando, realmente! - disse de la Muette com tranquila segurança. - Agora me lembro que até disse não me querer fazer esperar...

E deixaram o homem sem que dele houvessem colhido qualquer informe preciso.

- É inútil ir ter com o cura. O padre Anselmo dir-nos-ia que ela não veio - aconselhou o duque de la Muette. - Vamos antes visitar o notário, o Ramondin. Talvez estejam em relações epistolares.

Com esse, teve Harry nova decepção. O tabelião, que fora encarregado de liquidar o espólio de Luciano Grammont, não recebera a visita da senhora.

Um Banco de Paris, de que ele deu o nome, escrevera-lhe da parte de Nicole a dar instruções tendentes à regularização de certas despesas e daí o tratamento dos dois túmulos. Junto a essa carta existia a devida procuração; afora esta vaga questão comercial, a jovem lady não tivera com o notário de seu pai qualquer outra comunicação recente.

- Mas lady Blackenfield reside em Londres, com o marido... Então ele não há-de saber onde se encontra a esposa?

E o homem, que conhecia de vista Harry, olhava-o com sincero pasmo.

- Evidentemente que sabe - respondeu o duque com o ar amável dum cão que ferra o dente. - Mas meu primo acaba de chegar das índias e queria juntar-se a sua mulher, que está de viagem... Como passámos aqui à porta do seu cartório, quis perguntar-lhe se ela não teria escrito...

- Não recebi absolutamente nada de lady Blackenfield - afirmou Ramondin. - Lamento sinceramente não poder ser-lhe prestável.

- Belo! Quer dizer que a esta hora deve estar qualquer carta no castelo - replicou o duque, com tranquilidade.

E para Harry, que ficara muito hirto, acrescentou num tom convicto, no qual se dirigia também ao notário:

- Nicole pode ter tido a boa ideia de me enviar uma palavra antes de o ir esperar a Marselha.

- Se assim fosse, tanto melhor - respondeu lorde Blackenfield, que olhava seu primo com certa admiração.

Quando cá fora se encontraram sós, não pôde Harry deixar de agradecer ao duque a sua presença de espírito:

- É tão aborrecido sermos forçados a dar satisfações a esta gente perguntadora!

- Mas este caso é íntimo. Não se devem explicações nem satisfações a ninguém... Se falei assim diante do Ramondin foi simplesmente para evitar os comentários que o sujeito faria nas nossas costas...

Como Harry ficasse calado, o duque prosseguiu:

- Guardei de memória o nome e a direcção do Banco de Paris que enviou o dinheiro. Talvez por aí possa saber qualquer coisa... uma palavra pode pô-lo na pista... Não é preciso muito, às vezes, para deslindar um caso complicado.

- Não descurarei, nem desprezarei nada - afirmou Blackenfield.

Ficou, entretanto, muito preocupado e quando, ao meio-dia, manifestou desejo de voltar imediatamente a Inglaterra, o duque nem sequer lhe recordou a intenção com que o primo se apresentara de passar alguns dias junto dele.

Pelo contrário. Aceitou todas as suas razões e acompanhou-o à estação.

- Não se esqueça de me ir informando, Harry. Por minha parte, prometo-lhe que não deixarei de tentar obter notícias de Nicole.

Na mesma tarde em que chegou a Londres, dirigiu-se Blackenfield ao escritório de Lewis a fim de o pôr na frágil, mas nova pista:

- O senhor tem suficientes facilidades de conseguir informações junto dos Bancos?

O detective sorriu imperceptivelmente.

- É uma coisa a tentar... mas não nos bastará, de momento; não tenha ilusões a esse respeito, lorde Blackenfield.

- Há dezoito meses, apenas, meu amigo! Compreende: não tive ainda uma certeza tão próxima de reencontrar minha mulher!

- É certo... o facto torna-se deveras encorajador. Enfim!... Dentro de dois, três dias o máximo, dar-lhe-ei a resposta.

Foram três dias de espera febril, de alternativas, de esperanças loucas e de desalento, abismado nos quais o jovem lorde via tudo negro.

Bem arrasado parecia agora o magnífico equilíbrio britânico de que Harry fora tão orgulhoso outrora.

A resposta chegou, enfim, sem os resultados que se esperava. No Banco informaram que lady Blackenfield, dezoito meses antes, fizera um depósito e dera instruções para que certas quantias fossem entregues periodicamente em datas indicadas. A cliente fornecera então, como endereço, a direcção dum hotel parisiense onde se hospedara; mas, depois dessa época, não voltara a dar sinais de vida e ninguém sabia presentemente onde parava.

Sabendo a decepção que tal resposta infligiria a Blackenfield, Lewis   incomodou-se a ir pessoalmente levar-lhe a casa a negativa notícia, preferindo isto a comunicar-lho por carta.

Ao mesmo tempo, queria o detective aproveitar a ocasião de instar com o lorde no intento de que este aceitasse a única solução que lhe parecia, agora, susceptível de bom resultado.

- Será necessário repetir-lhe, lorde Blackenfield - dizia o agente no seu tom calmo e convicto - será preciso renovar todas as razões que já por mais duma vez lhe expus? Não temos se não um meio de alcançar o resultado: e esse meio é o filho de vossa excelência! Mande vir o pequenito... e verá! Mostre-se com ele em publico. Nada encontro de mais eficaz.

Mas Harry não se convencia. Aquela espécie de comédia continuava a   desagradar-lhe! E quem sabia mesmo se, no fundo, não sentiria o escrúpulo de se aproveitar da presença do filho quando a mãe ali não estava?

«Privei-a dos beijos do pequeno e vou eu agora| gozar as suas festas...» Parecia-lhe isto uma profanação feita à memória daquela que não estava ali para defender os seus direitos.

«Nicole não fez mal algum... Eu e só eu fui intransigente e desvairado... e ainda por cima lhe hei-de causar a mágoa de fazer com que me veja com Mick...»

Baixara a cabeça; de fronte vincada por uma ruga de preocupação, meditava. Era terrível, sob todos os pontos de vista, a proposta que Lewis lhe fazia.

Apresentou ainda uma objecção:

- Admitamos que eu mando vir meu filho... Saio com ele, seja! Serei ridículo, seja ainda, visto que assim é preciso! E depois?... Se lady Blackenfield quiser ver a criança e esconder-se ao mesmo tempo de mim, arranjar-se-á de forma que, em público, me verá sem que eu a veja... Contemplará o filho sem que eu consiga descobri-la!

Lewis sorriu, desta vez, abertamente:

- Lá estaremos então, os meus agentes e eu. Tenha confiança, lorde Blackenfield. Há-de fazer-nos a justiça de crer que somos bons fisionomistas, capazes de reconhecer no meio da multidão uma mulher que talvez nunca tivéssemos visto, mas da qual possuímos grande número de fotografias... É nossa obrigação ter boa vista. Fique descansado. Lá estaremos.

Harry ergueu ligeiramente os ombros, como se deles tirasse pesado fardo. Não resistia mais a Lewis.

- Seja - disse. - Está entendido. Faço-lhe a vontade.

Não tinha fé alguma naquele estranho meio, mas, fiel à sua promessa, escreveu imediatamente a Mrs. Berry a fim de trazer o filho.

Dadas embora todas as suas relutâncias, estaria ele no direito de renunciar àquele último procedimento que poderia talvez fazer-lhe encontrar Nicole?

 

Naquele dia, logo que Harry entrou em casa à hora do jantar, o criado de quarto anunciou-lhe que Mrs. Berry chegara com o menino Michaêlis.

O primeiro pensamento do pai, foi:

«Já!»

Escrevera a ordenar que lhe trouxessem o filho, calculando por alto que os preparativos seriam longos e demorariam mais ou menos. Mas eis que cinco dias passados sobre a ida da carta, o pequenito e a respectiva ama lhe apareciam!

Esta vinda inopinada dispunha-o mal. Não supusera tamanha prontidão; não se habituara sequer à ideia daquela dupla presença. Raciocinou, porém:

«Visto que se encontravam em Londres, não havia que recuar. Era coisa assente... Depois, a casa era tão grande, tão vasta; ama e criança podiam lá viver sem o incomodar muito... Não veria o filho se não quando julgasse conveniente... não o veria diariamente, bem entendido! De momento, mais valia recebê-lo sem perda de tempo e seria caso arrumado.

Harry deu ao criado ordem de lhe trazer Michaêlis.

- Que venha só - ordenou ele. - Espero-o no átrio... Diga a Mrs. Berry que lhe falarei depois...

Não despira o sobretudo nem descalçara as luvas. Ficara de pé, apoiado ao espaldar dum cadeirão de couro. Sentindo um vago aborrecimento pela ideia dessa entrevista com o filho, experimentava de súbito horrível cansaço. E até, com singular clarividência, verificava de maneira concisa quanto a ausência de Nicole lhe adormecera e esvaziara o coração.

Era bem aquilo, o vácuo! Nada o interessava, de facto; nada o animava!

Seu filho, o filho da sua Nicole, o laço carnal que o ligava à mulher amada... tudo parecia deixá-lo insensível.

A fibra paterna? Que idiotas esses romancistas que dissertavam sobre o assunto, como se a tal fibra existisse por instinto!

E, nitidamente, aquela impressão de vácuo apossou-se-lhe do cérebro.

«Nada vibrava nele... Estaria velho?»

Maquinalmente, relanceou o olhar a um grande espelho que lhe ficava fronteiro: e viu reflectida uma figura leve, jovem, reparou na expressão dum rosto que conservava ainda os traços da adolescência, mas cuja expressão triste e concentrada trazia apagado aquele brilho que vem da alma.

Depois do seu regresso das índias, Harry mais e mais se metera consigo, fugindo a toda a curiosidade e a todo o motivo de simpatia. À força de se couraçar numa atitude de fleuma e de indiferença, parecia ter fechado a cadeado toda a sua sensibilidade.

Entretanto, o velho criado particular abrira cerimoniosamente a porta, ao fundo do átrio, e afastava-se a dar passagem a uma coisa minúscula...

O homem retirou-se em seguida e a tal coisa minúscula ficou no extremo da imensa quadratura.

Foi assim que pai e filho trocaram o seu primeiro olhar...

A criança parara interdita. Era um belo rapazinho de grandes olhos vivos, de bem proporcionado corpo, um tanto canhestro e deselegante na sua vestimenta campónia, comprida e mal cortada, mas encantador mesmo assim.

Harry estava silencioso. A cabeça estendida para a frente, olhava com intensidade, mas de longe, o recém-vindo. Absorvido no seu exame, nem ao menos se lembrava de dirigir a palavra ao petiz, que, cada vez mais estranho e perturbado, quedara imóvel sob o olhar perscrutador que o defrontava.

Começava bem extraordinariamente essa primeira entrevista. Mas o pai sentiu de súbito a incongruência da sua dúbia atitude. Compreendeu que não podiam ficar ambos assim, infinitamente, um em frente do outro, a observarem-se. Devia competir-lhe romper o silêncio. Chamou:

- Michaêlis!

O pequenito olhou-o sem se mover. Então, o mais docemente que pôde, Harry repetiu:

- Mick, vem cá...

- Não! - respondeu claramente uma vozita argentina.

- Oh! Mick, vem cá... Sê bonito, não queres?

E o juvenil pai, perdendo enfim a rigidez, avançou por seu pé em direcção à criança, que continuava imóvel.

- Vem junto de mim, Michaêlis - repetiu num tom encorajante, mas sem obter melhor êxito.

O garoto compreendia-o, mas olhava-o com grandes olhos muito abertos; e como o pai se aproximasse mais dele, o filho recuou dois passos. Então com uma voz cantante e engraçada de acento escocês, observou com justeza:

- Não o conheço.

- É justo - concedeu Blackenfield com paciência. - Não podes, Mick, ter de mim lembrança alguma... Mas eu sou o papá.

O garotinho continuava em silêncio.

- Teu papá, compreendes? Mrs. Berry não te disse que vinhas ver o teu papá?

O pequeno abanou a cabeça sem dizer palavra.

- Sentes-te bem? Estás contente, Michaêlis? - insistiu Blackenfield.

Silêncio persistente. Harry não sabia verdadeiramente como continuar a difícil conversação, tanto mais que se apercebia do medo em que a criança estava: tremiam-lhe os lábios, tinha os olhos inquietos, tudo a indicar a sua perturbação.

Blackenfield pensou de repente que deveria abraçar o filho; as carícias serenam as crianças. Compreendeu que, para não assustar mais o pequenito, precisaria de lhe pedir um primeiro beijo.

- Meu Mick, não queres abraçar-me? - disse com maior doçura ainda.

Abaixara-se, estendendo os braços ao filho.

- Vem dar-me um beijo, anda. Vem ter com o teu paizinho.

- Não!

Desta vez a resposta não se fizera esperar; vinha pronta e clara.

Contudo, o pai pôs-se a rir.

- Oh! Michaèlis, então não me queres dar um beijo?

- Não.

- Porquê?

- Mick não beija ninguém.

- Ah! - volveu Harry, divertido. - Tem muita graça! Mas por que motivo não beijas ninguém?

- Porque lorde Blackenfield não quer.

- Hem? - exclamou num sobressalto o pai. - Conheces lorde Blackenfield?

De novo o Mick se calou.

Que se passaria no pequenino cérebro dum garoto de três anos? Quem o poderia saber?

Harry a si própria perguntava se Mick faria a mais pequena ideia da relação existente entre aquele a quem tão comicamente chamava lorde Blackenfield e seu pai. Aproximar-se-ia ele, Harry, desse papá de que lhe deveria ter falado Mrs. Berry.

E diante desse infantil mutismo que lhe parecia cheio de mistério, Harry perdeu a contenção.

Maquinalmente, e quase sem esperança de colher resposta, insistiu:

- Mas porque não quer lorde Blackenfield que tu me beijes?

Com grande espanto seu, porém, ouviu que o pequeno lhe respondia com a maior aplicação, procurando as palavras, como se recitasse uma lição aprendida de cor:

- Lorde Blackenfield não quer... Diz... que Mick não pode ser sentimental.

Viu-se aflito para encontrar esta última palavra, cuja significação não devia compreender, e que articulou com dificuldade, por duas vezes.

Estupefacto, Harry estendeu o pescoço para esse rapazinho de três anos que anunciava semelhante coisa.

- Hem? Que dizes tu?

Muito senhor de si, mas sempre no seu tom de recitação, Mick prosseguiu:

- Lorde Blackenfield é muito mau... sim... um mau! Tem uma pedra...

- Uma pedra...

- Sim... uma pedra aqui... aqui...

Ter-se-ia dito diante dele: «Tem uma pedra no lugar do coração» porque, inocentemente, Mick assentava a mãozita no peito.

- Ele quer que Mick também tenha uma pedra... como ele!... Não se beija Mick.

- Mas quem te disse isso?

- Lorde Blackenfield...

- Isso não é verdade!

- É verdade... é verdade! Mamã Berry disse!

Diante do pequenito imperturbável, o homem ergueu-se, pálido de cólera, prestes a repudiar e a desfazer a acusação.

Mas, de súbito, sobressaltou-se como se acabasse de receber do interior do peito violenta pancada, estilhaçadora da sua boa disposição.

Com horror se lembrava das suas instruções dadas à ama, dentro do carro que os levara para Sunner... quando fugia, roubando o filho a Nicole!

Essa manhã trágica que Harry teria querido poder apagar da sua vida... o dia desse rapto, princípio de toda a desgraça... E possesso de cólera, que mais não teria dito! Recordava-se do seu desespero... da sua fúria destruidora... contra Nicole... contra a sua irritante sensibilidade... contra a sua sensibilidade de rapariga francesa!

Consternado, relembrava as suas ordens à ama:

«Nada de mimos, de pieguices, nada de carícias inúteis. Não quero que se beije o meu filho. Não o quero sentimental. Quero que me apresente um homem prático e frio... um homem como eu!»

Sentimental?

Sim, dissera aquilo... Reconhecia o termo que a honrada e simples Mrs. Berry deveria ter repetido vezes sem conto... esse termo que acabava de ouvir tão pueril e confrangedoramente pronunciado pela infantil boca.

Harry estava perplexo, como arrasado. Muito alto, junto da pequenez do filho, Blackenfield contemplava com trágico sentido aquele cuja alma mandara dissecar... esse rapazinho de estranhas palavras, de voz seca e categórica... esse menino frio... esse pequenino monstro sem coração que ele, pois, exigira formado à sua imagem.

Horrorizado, recuou tapando o rosto com as mãos... para não ver mais... para tentar fugir ao remorso vivo que essa criança representava subitamente a seus olhos.

Só uma ideia tinha agora: afastar de si o filho para não sofrer mais a sua cruel presença.

Tocou nervosamente, depois deixou o átrio sem mesmo esperar o criado que chegou quase logo para vir buscar o pequenito.

Este, sozinho no meio do átrio, esperava impassível...

- Se o menino Mick quer vir comigo, vou levá-lo à sua ama.

Sem dizer palavra, o petiz meteu a mãozita na manápula do criado e, como fosse preciso transpor um corredor menos claro, comprimiu-se contra o servo.

- Tem medo, menino Mick? - perguntou, sorrindo, o velhote.

- Psiu! - disse a criança em voz baixa. - Lorde Blackenfield está escondido naquele canto.

O criado soltou uma risada e logo num tom paternal esclareceu:

- Lorde Blackenfield não é mau, meu menino... Não deve ter medo dele.

Mas o garoto sacudiu a cabeça cheia de caracóis.

- Sim, já sei... é o lobo-mau... come os meninos chorões...

E, transido de medo, Mick falava assustado, olhando em derredor.

Dias passaram durante os quais Harry não quis ver o filho. Aquele primeiro encontro resultara num choque tão desagradável que o pai receava renová-lo.

Tivera entretanto uma longa explicação com Mrs. Berry:

- Que tinham feito para que a criança repetisse, como uma lição aprendida, frases cujo sentido com certeza não compreendia? Sentimental!... Como poderia Mick perceber a significação de tal palavra?

- Ninguém lha ensinou! - explicou a boa mulher. - Ninguém lhe deu lição nenhuma!

Simplesmente, disse a Tattie e dei ao pessoal da granja as instruções que lorde Blackenfield me deu... Muitas vezes repeti essas instruções a fim de que não as esquecessem e cumprissem... Não duvido de que Michaelis prestasse atenção, as guardasse no entendimento... Apoquenta-me que se tenha dado isto, lorde Blackenfield, porque só uma coisa tenho feito e desejado: obedecer às ordens que me deu.

A tais palavras nada Harry teve que retrucar: a ama fizera o seu dever, desastradamente talvez, mas com empenho, com dedicação, sem dúvida!

Limitou-se, pois, a fazer-lhe novas recomendações, mas desta vez, porém, diferentes das primeiras. Principalmente, devia ensinar a Mick a forma de se mostrar menos selvagem na próxima entrevista, a qual teve lugar no dia seguinte.

Mick, bem repreendido e crivadinho de recomendações por Mrs. Berry, que desta vez o acompanhava, consentiu em oferecer a face ao pai.

Mas não se portara bem, visto que, no rosto, súbito muito sério, o bonito olhar desaparecera, logo substituído por olhadelas tímidas e apavoradas.

- Olá, meu menino! - disse-lhe cordialmente Harry. - Olha para mim!

Mas o pequenito, baixando a cabeça mais e mais, murmurou baixinho:

- Tenho medo...

- Oh! - murmurou doloridamente o pai. - Porquê? De que tens tu medo?

- Mick não faz maldades - tartamudeou o garoto a fazer beicinho. - Mick não é mau...

- Efectivamente, Mick é muito bem comportado... Mas que aconteceria se fosse mau? Se fizesse maldades?

Queria Mrs. Berry ajudar a resposta do pequenito, mas Harry, num gesto autoritário, impôs-lhe silêncio; depois, repetiu a sua pergunta:

- Hem! Que dizes, Mick?... Fala. Que aconteceria se fosses mau?

Receosamente, o pequeno ergueu os olhos para Blackenfield, curvado sobre ele.

- Mick não é mau; não é preciso bater-lhe - disse a delicada vozita implorativa.

- Bater-te, Mick! Mas quem fala em te bater?

- Lorde Blackenfield,

- Eu!

- Sim... mamã Barry disse.

Desta vez Harry ergueu-se, furioso... não contra a criança, mas contra a tacanhez da ama, à qual não poupou acres censuras. Mas, na sua cólera, teve um gesto de impaciência que a criança tomou por uma ameaça dirigida à ama.

Então, eis que ocorre esta coisa extraordinária: o bebé, tímido e visivelmente deprimido, colocou-se subitamente à frente de Mrs. Berry como para a defender.

Firme nas pernas, as mãos atrás das costas, numa atitude de desafio, o rapazinho olhou bem de frente o homem forte e vigoroso que se erguia diante dele. E, num ar brigão, ficou imóvel sem nada dizer.

Consternado, Harry sentiu como que uma pancada em pleno coração.

Essa fragilidade que desafiava a sua força, esse olhar que não se baixava diante do seu... esse olhar... esses olhos... era alucinante... era de perder a cabeça!... Era o olhar de Nicole... Era a atitude de Nicole... no momento em que, durante a cena anterior à sua saída de casa, desafiara o marido com tanta calma e com tanta energia na sua fraqueza. Abalado, agitado até ao mais íntimo do seu ser, Harry fez sinal a Mrs. Berry para que saísse.

- Queira retirar-se, peço-lhe.

Ao ficar só com o filho, e embora contra seu hábito, Blackenfield cedeu a irresistível impulso e, sem pensar que se arriscava a amedrontar mais ainda a inocência da criança, agarrou-a, levou-a até à claridade forte duma janela...

E aí, ajoelhando diante de Mick, os olhos nos olhos do filho, procurou excitadamente rever nesse olhar... o olhar da mãe... o olhar da mulher amada que, após dois anos de separação, lhe fazia ainda correr nas veias longo frémito de amor.

- Minha Nicole!... Meu pequenino Mick!

Como o filho se parecia com a ausente! De cabelos mais louros, tinha o mesmo rosto infantil, um nada arredondado... E os olhos! Aqueles olhos dourados... o modo de olhar: o mesmo olhar grave e meigo que parecia sorrir no meio das lágrimas.

- Meu Mick! Meu querido filho! Minha Nicole!

Não sabia qual deles invocar: ambos se confundiam no mesmo único amor. Eram toda a sua vida; dois entes queridos que lhe pertenciam e resumiam para si todo o Universo.

Confundido, sem bem saber o que fazia, Harry puxou ao peito a criança e estreitou-a apaixonadamente.

Repetia:

- Meu pequenino Mick... meu querido filho...

Mas pensava na mãe... pensava na esposa que ele quisera igualmente ter nos seus braços.

E, perdidamente, seus lábios cobriam de beijos loucos o diminuto rosto pasmado.

por momentos mesmo, o pai, cerrando os olhos, apoiou a fronte ardente sobre o pequenino ombro que o peso da sua cabeça fazia vergar.

Caído assim no ombro do filho, como se estivesse caído sobre o ombro de Nicole, sem perceber que o acesso de ternura paternal era feito de todas as suas decepções masculinas longamente concentradas, o desgraçado desatou a soluçar nos braços frágeis que docemente, timidamente, se abraçavam ao seu pescoço... como é costume fazerem os pequeninos ao pretenderem consolar as dores dos maiores...

 

Não estava nos hábitos de lorde Blackenfield deixar-se prender, visivelmente, ao sentimento.

Naqueles últimos meses, sobretudo depois do seu regresso das índias, dissimulara Harry suas íntimas inquietações e ninguém teria podido adivinhar, debaixo da sua aparência fria e fleumática, o verdadeiro desgosto que interiormente o corroía.

O seu último encontro com o filho deixara ao fidalgo inglês dolorosa lembrança, como que martírio atroz ou dura humilhação.

Por espaço de alguns dias, não pôde suportar a ideia de se encontrar em face da criança... ante esse olhar infantil que era a réplica deixada pela mulher desaparecida... olhar que o acusaria, que o faria sofrer... e, talvez, valesse como uma condenação!

Ao mesmo tempo, de mistura com esse receio, experimentava a nostálgica necessidade de tornar a ver aquele rostozinho que lhe recordava Nicole. Doravante, não poderia, diante da criadagem, mostrar-se desinteressado do filho, ficando longo tempo sem o ver.

Decidiu-se então a recebê-lo todas as manhãs. Somente, para evitar a si próprio uma comoção forte de mais e também no intuito de contentar e cativar o filho, adoptou o estratagema de lhe comprar brinquedos... muitos brinquedos! E enquanto Mick, maravilhado, se divertia com essas coisas mágicas tão novas para ele, o pai podia, com descanso e sem o espavorir, contemplá-lo. Dera ordem de lho trazerem, sozinho, ao seu gabinete de trabalho.

Da primeira vez, Michaêlis entrou, ínfima personagem, na vasta sala que não conhecia ainda.

Antes de mais nada, o pequenito passeou seu tranquilo olhar em derredor, examinando com cuidado as paredes de tapeçarias vermelhas e os móveis de acaju maciço e reluzente.

Imóvel, num canto onde se ocultava quase, Harry observava o pequeno sem lhe chamar a atenção. Súbito, viu o gracioso rosto animar-se num sorriso adorável e iluminarem-se-lhe de alegria os infantis olhitos. Mick acabava de ver os brinquedos magníficos!

Teve, instintivamente, um movimento de entusiasmo para eles; o cavalo mecânico era, por certo, a coisa mais fascinante que vira até aí, mas havia também o mistério das grandes caixas fechadas, donas de desconhecidos tesouros, caixas e tesouros que não eram menos atraentes.

Tonto diante de tantas maravilhas, o pequenito ficava parado, no caminho dum raio de sol, hesitante, sem ousar tocar em nada.

Então Blackenfield interveio. Pacientemente, mostrou ao filho todas essas riquezas com as quais montanhês que Mick fora até aí devia familiarizar-se.

O pai abriu as caixas para lhe mostrar o caminho de ferro eléctrico com a sua gare, o seu túnel e a respectiva catástrofe: um aparatoso descarrilamento que se obtinha com dar volta a determinada alavanca.

Gravemente, intensamente, de pescoço estendido, Mick olhava...

O jogo de construções, com seus cubos e colunas, não lhe prendeu a atenção: era coisa que precisava de praticar primeiro para lhe interessar depois. A bola mereceu-lhe franco sorriso, mas o que o entusiasmou mais que tudo foi a espingarda.

Não a tinha descoberto à primeira vista; porém, mal a lobrigou no monte de brinquedos, Mick pegou-lhe, examinou-a com ares de entendedor e não a largou mais.

De todas as belas coisas estadeadas diante dele, o pequenito escolhia imediatamente a arma temível e proibida, que aliás conhecia bem por a ter visto entre as mãos do guarda Mellors.

E logo, esquecendo quase a presença do pai, até aí pessoa intimidante, Mick começou a brincar aos caçadores, a fazer de guarda de caça.

Vibrante de entusiasmo, principiou a dar largas passadas na casa, como o teria feito nas suas colinas do Norte, a arma em bandoleira ou apontando-a a caça imaginária.

- Pum! Pum! Está morto!

- Está morto quem? - perguntou Blackenfield, sorrindo.

Verificava, ao ver brincar o pequeno homenzinho, algumas das suas expressões de infância.

- Fly! Catrapus!... Pum! Pum! Está morto!

- Quem é Fly?-insistiu docemente o pai.

- Fly? Não sabes?... Era o cão velho... está morto... vê: está morto. Pum! Pum!

- Mas porque o mataste?

Sem se perturbar, o garoto explicou:

- Porque estava velho... Mellors já não o queria... e pum! Fly caiu morto.

Suspendeu-se. Depois, com uma espécie de tristeza, observou:

- Mellors tinha uma espingarda verdadeira! A minha é a fingir... não mato a sério! Se matasse, bem sabia como havia de fazer...

O pai teve um sobressalto.

- Foi Mellors quem te mostrou semelhante cena?

- Foi... fez assim...

E Mick recomeçou a exibir a mímica do tiro. Em seguida, repetiu:

- Então, Fly caiu... ficou morto... assim: queres ver?

Nova mímica de impressionante e inocente realismo se seguiu...

O garoto pôs-se a imitar o moribundo. Estendeu-se no chão e, soltando débeis gemidos que terminavam em uivos plangentes, contraía a pequenina perna como o fazem os animais na agonia.

E o pai, interdito, contemplava a linda criança, vendo-a representar a cena da morte, ao mesmo tempo cómica e dolorosa de presenciar.

Esse espectáculo, que de princípio divertira Harry, pareceu-lhe subitamente insuportável representado pelo filho.

- Acaba com isso, Mick - ordenou docemente. Mas o pequenito não o escutava. Erguera-se, muito animado, falava com excitação.

Na sua ingénua linguagem, inçada de locuções montanhesas, narrava o fim do velho cão.

Desagradavelmente impressionado, Harry pensava que o guarda não deveria ter abatido o animal diante da criança; esse acto ferira-lhe perigosamente a imaginação.

- Deixa isso, Mick - repetiu com maior doçura ainda. - Não podes compreender, darling, o que estás dizendo...

- Compreendo, sim! - afirmou o petiz com aguerrido nervosismo. - Tenho visto muita vez Mellors matar os animais.

- Mas isso não é bonito ver. És muito pequeno, Mick; não sabes o que significa a morte.

- Sei, sei! - teimou o bebé.

E no entusiasmo das próprias palavras, incoerentes como são em regra as narrações das crianças, quis explicar-se a Harry:

- Sei, sei! Quando se morre, cai-se, chora-se, grita-se... depois nem pio! Tudo se cala. A mamã também caiu assim... quando lorde Blackenfield a matou... Morreu assim... com uma carta!

- Hem! Que dizes? - exclamou, assombrado, o pai.

E horrorizado agora, olhava Mick; este de novo se estendera no chão. Sobre o tapete escuro, a sua pequena figura branca destacava-se, imaculada, com os olhos cerrados... E era tão parecido com a mãe... tão parecido!

- Assim ficou a mamã... morta... quando lorde Blackenfield atirou... uma carta... bum! e bum!

A fronte crispada, os nervos tensos, Harry olhava o filho, preso de tal alucinação que as palavras balbuciadas pela criança deviam ecoar apenas no seu cérebro. Contudo, de punhos cerrados, avançou um passo no desejo de abafar a boca infantil que pronunciava tais acusações.

Mas a sua loucura, o medonho desejo de esmagar, de bater, não durou mais que um ápice. Dominou-se a tempo e disse ao pequeno:

- Levanta-te, Mick. Levanta-te depressa e não repitas mais semelhantes disparates. Nunca mais, ouviste? Sabes bem que tua mãe não está morta.

- Morreu, sim...

- Cala-te, Mick, cala-te!

- Tattie disse que lorde Blackenfield...

- Não tornes a dizer isso, Mick! Cala-te! Um lorde Blackenfield nunca matou nem poderia matar uma mulher! O que disseste é uma horrível mentira que os teus lábios não devem pronunciar mais!

- Oh! Tattie não mente!

Era de mais!

Harry perdeu todo o domínio sobre os próprios nervos. Agarrou bruscamente o garoto e, segurando-o por debaixo dos braços, levantou-o até à altura do rosto. Depois, arquejante, sacudiu-o com força, bradou:

- Cala-te, Mick, ou esmigalho-te!... Tattie mentiu... Já te disse que isso não é verdade! A tua mãe vive!... Vive, ouviste! Ouviste bem?

Assustado por essa violência que não compreendia, o pequeno não respondeu.

- Vamos! Responde!... Dize que Tattie mentiu!

Mick tinha medo, agora. A cólera daquele homem aterrava-o, desconcertava-o. Sem embargo, porém, agarrava-se à sua ideia com a obstinação do montanhês. Balbuciou:

- Foi Tattie que disse... a minha mamã morreu... uma carta matou-a... É verdade! Tattie disse!...

Com o rosto descomposto, Harry escutava, sem sentir no entanto que as suas fortes mãos apertavam e sacudiam os frágeis ombros do pequenito.

Este, cujo medo aumentava, procurava soltar-se.

Torcia-se com uma careta dolorosa que ia preceder o choro... E esse esgar, e esse mesmo jeito dos lábios, era igual ao de Nicole, nos dias em que o marido a contundia com uma palavra irónica ou brutal...

Terrível repetição das coisas Encontrar essa expressão de medo e sofrimento no rosto infantil tornava-se angustioso. Ao mesmo tempo, apercebia-se com horror que as suas mãos raivosas esmagavam os fracos ombros e sacudiam a frágil figura do filho... tal qual como fizera já à mãe...

Isto marcou um minuto atroz na vida de Harry. Alucinado, largou a criança e recompôs-se. Recorrera a toda a sua energia a fim de se dominar. Depois, como um ébrio, alcançou a porta, que abriu; e, sem poder articular palavra, fez sinal ao pequeno para que saísse.

Mas, logo que o petiz se afastou, o pai começou a passear na casa, atacado por uma espécie de crise nervosa:

- É uma loucura!... É uma loucura!... Nicole... está viva! Não morreu! Não pode ser! Eu não a matei... Minha... Nicole! Minha... adorada... Nicole! Tattie mentiu!... Isto é horroroso!... Ah! que endoideço!

O sobrado do gabinete, juncado de brinquedos magníficos, dir-se-ia não dever despertar se não risos de criança; no entanto, o cavalo de madeira parecia seguir com o seu olho verde os movimentos febris do gigante cujos passos ameaçavam a multidão de coisas frágeis... E o lindo cavalo branco, feito para alegria e diversão do menino, quedava atónito, sem compreender a dor e a cólera do homem...

 

De novo, durante vários dias, não pôde lorde Blackenfield suportar a presença do filho. A visão do rapazinho estendido no tapete a representar a morte do cão e depois a de Nicole, perseguia-o como um remorso. Um remorso esmagador, pesado, angustiosíssimo... um verdadeiro suplício!

Que havia então entre esse petiz e ele para que a sua simples presença, o menor gesto ou a mais insignificante palavra, o incomodassem, o desmoralizassem tão insensatamente? Cada uma das suas inocentes palavras o atingia no coração...

E sempre aquela semelhança... aquela recordação da ausente que Mick relembrava sem cessar, tornado vítima de si próprio, numa crueldade inconsciente... aquela lembrança, o profundo arrependimento de, pelas próprias mãos, ter demolido a sua felicidade... essa recordação amarga, pungente, dolorosa como chaga que nada cicatrizasse...

O pequenino Mick, de olhos profundos, sorriso adorável, vozita infantil, personificava tudo aquilo. Era um remorso vivo que Nicole parecia ter deixado atrás de si, com o fim de perseguir impiedosamente o marido egoísta.

E lorde Blackenfield, dispondo agora de clarividência, julgava implacavelmente as coisas, como até então nunca fizera.

Em primeiro lugar, não deveria ter permitido que o filho, a carne da sua carne, fosse educado longe dele, cuidado por mãos mercenárias.

- Nada de sentimentalidades: façam dele um verdadeiro Inglês - ordenara.

E formulando essa recomendação ilimitada que o seu injustificado ressentimento de esposo ciumento lhe sugerira, o pai não previra as implacáveis consequências que daí resultariam; um Inglês pode ser sensível e amorável, sem por isso se tornar mal-educado ou perder a circunspecção.

A ama seguira à risca as suas recomendações... A sua enorme dedicação, sincera, mas estreita de vistas, não se desviara do traço dado. Mas uma criança sem sensibilidade, sem piedade, sem carinho, é como chão sem sol: tudo nele e em seu derredor se esteriliza.

Entretanto, agudo sofrimento conturbava a alma de Harry ao pensar que o seu encantador Michaêlis, a imagem física de Nicole, podia tornar-se no monstrozinho sem entranhas que ele desejara que fosse. Tornava-se-lhe intolerável esta ideia. Quisera apreciar, avaliar imediatamente o estrago causado para lhe conhecer a extensão e travá-lo, remediá-lo, se possível fosse.

Mandou chamar Mrs. Berry. Queria interrogá-la.

Tornou-se viva a explicação. Harry encontrava-se num estado singularmente susceptível e impressionável.

- Que história é essa do cão que Mellors matou? - perguntou bruscamente.

- Era um cão velho, o Fly - explicou a boa mulher.

E no intento de desculpar o guarda, acrescentou com indulgência:

- O cão ficou surdo, perdeu todo o préstimo... Foi pena porque caçava por sua conta; não havia covil que não esvaziasse como se fosse uma fera... Mellors entendeu por bem abatê-lo!

- Bem, bem - interrompeu Harry com impaciência. - Isso não me interessa. Não estou a censurar Mellors por matar o cão, o que eu censuro é tê-lo feito na presença de meu filho... Compreendeu, Berry? É inadmissível deixar uma criança de três anos assistir a uma cena dessas! A imaginação de Mick sofreu com isso um grande abalo.

- Pensei, pelo contrário, que aquilo podia tornar mais corajoso o menino... fazê-lo menos medroso, menos fraco...

Um clarão de cólera brilhou nas pupilas de lorde Blackenfield. E, tanto mais violento quanto maior era a culpa que a ele próprio cabia, interrompeu a ama:

- Mellors não tem desculpa: uma criança é uma criança! Esse guarda vai ser despedido!

Mrs. Berry não respondeu. Sua envelhecida cabeça não chegava a compreender as severidades súbitas e os nervosismos do amo. Não tentou, porém, defender Mellors, visto que por seu lado se justificara:

- Mas o que é mais grave ainda, Berry, é o facto de terem feito germinar na cabeça de meu filho a ideia de que «lorde Blackenfield lhe matou sua mamã”! Quem foi que inventou, espalhou semelhante absurdo?

- Oh ! - exclamou, fulminada, a mulher. - Como pôde Mick ter dito semelhante coisa?

- Como pôde ter dito? A ama deve saber explicá-lo melhor do que eu, parece-me! Pergunto: quem foi que falou assim diante dele?

- Ninguém, senhor!... Isso não é possível!

- É possível, é... Mas, antes de mais nada, porque motivo se disse que lady Blackenfield estava morta?... Ignoro totalmente se o está ou não! Vamos, fale!... Informe-me, diga-me... Que sabe da sorte ou do destino de lady Blackenfield?

- Nada! Absolutamente nada sei, lorde Harry! Juro-o.

- Recebeu notícias dela?

- Nunca!

- Ouviu falar dela?

- Oh! Não! Não!

- Então como se compreende que Mick diga que a mãe está morta?

- Não sei, não sei como explicar.

- Mas o pequeno di-lo! Mais ainda: repete essa atroz afirmação como uma lição aprendida.

A boa mulher estava aterrada. Que poderia dizer para se desculpar?

- Mick disse exactamente: «lorde Blackenfield matou a minha mamã... matou-a com uma carta!»

Os olhos subitamente fixos, Harry revia com pavor a cena representada pelo filho... estendido no chão, imóvel, de pálpebras cerradas...

Oh! A horrível visão! E como ele se sentia com razão de querer conhecer a origem de tão cruel calúnia!

Mas um brilho de súbita compreensão iluminou de repente o olhar de Mrs. Berry.

- Uma carta?... Mick falou duma carta! Já sei... talvez,

- Sabe?

- Julgo... eu...

- Muito bem! Fale!

- Deve ser... Foi no dia em que lady Blackenfield esteve na granja... depois da nossa partida para Sunner. Tattie ficou sozinha e entregou a carta que vossa excelência tinha deixado para a mamã de Mick.

- E então?

- Lady Blackenfield, depois de ler a carta, desmaiou... Caiu no chão... como morta! A minha filha ficou muito atrapalhada... É novinha, a rapariga; aquele desmaio marcou um grande acontecimento na sua vida... Lorde Harry compreende... muitas vezes depois, falou nisso... Uma rapariga da idade dela não sabe compreender as razões... Cuidou de lady com imensa ternura... nunca mais a pôde esquecer... e muitas vezes... lembra-se do caso...

Harry adivinhou o resto. Os termos empregados pela ama eram os mesmos que o filho repetira... Mick devia ter ouvido repetir muitas vezes o trágico relato que tão fortemente impressionara Tattie.

Mrs. Berry desculpava-se, procurando diminuir a culpa da filha:

- Não supusemos que o menino escutasse e guardasse na ideia tal coisa... Lorde Harry perdoará... mas a gente não sabe o que as crianças podem compreender quando se fala diante delas...

- É certo - disse Harry com dureza. - Por isso mesmo mais vale abstermo-nos de dizer monstruosidades em sua presença...

Fazia pena ver a pobre mulher. Também por sua vez amava esse belo rapaz que era lorde Harry criado por ela com a mesma devoção e amor com que lhe andava criando o filho. Mas, ante o rosto sombrio do jovem Inglês, tremia de medo ao pensar que pudesse sofrer a mesma sorte que o guarda Mellors. Porém, a cólera de lorde Blackenfield caíra diante da natural explicação: o garoto gravara e transmitia as palavras provindas da tagarelice das boas mulheres. E, no caso, salientava-se um pormenor que comovia profundamente Harry: Tattie cuidara de Nicole com imensa ternura e não a esquecera mais...

- Quero ver Tattie - disse, tornando-se calmo. - Deve estar uma mulher... e Michaelis fala muitas vezes dela.

- Tattie tem um grande amor pelo menino... Também ela ficará contentíssima de vir vê-lo.

- Pois bem! Logo que chegue a sua casa, Berry mandar-me-á Tattie.

- Vou-me então embora sem levar o menino? - perguntou, inquieta, a mulher.

Diante da cara da ama, toda tímida e compungida, Harry sentiu-se condoído. E foi quase com doçura que explicou as suas intenções:

- Por agora, Berry, deve voltar para a herdade, porque eu e Mick lá iremos vê-la algumas vezes. Partirá sozinha. Desejo ficar, presentemente, com o meu filho; a ama não pode ficar em Londres: faz falta na sua casa e aos seus... Não deve mesmo prolongar por mais tempo a sua estadia aqui, a fim de que Mick não se habitue de mais à sua companhia...

- Mas quem tratará do menino quando eu aqui não estiver?

- Desejo pôr uma nurse ao serviço dele - disse lentamente Harry. - Uma nurse... até que lady Blackenfield retome o seu lugar junto dele.

- Ah! - exclamou, enlevada, a ama - Lady Blackenfield volta?

- É esse o meu maior desejo - pronunciou com firmeza o jovem lorde.

E seguiu-se uma pausa de comovido silêncio. Mrs. Berry olhava Harry com os olhos rasos de lágrimas.

- Meu querido menino! - murmurou opressa.

Harry encolheu os ombros e disse pensativamente:

- Mamã Berry! - confessou com piedoso sorriso. - Se os homens soubessem o mal que fazem em deixarem falar demasiado o seu orgulho e o seu ciúme, conter-se-iam mais!

- Meu pobre menino! - repetia a mulher, sem poder encontrar outras palavras de consolação.

Novo silêncio, tão constrangido como o primeiro, se estabeleceu entre ambos. Depois, Harry sacudiu-se como se quisesse repelir para longe de si o peso esmagador de seus amargos pensamentos. E, de cabeça erguida, disse:

- Enfim, tudo se arrumará depressa, espero. Mas, Berry, eu fico com o pequeno. Iremos vê-la a Blackenfield. Pode partir sossegada: Michaélis não vos há-de esquecer.

Que surpreendido ficaria Harry se lhe repetissem agora o que ele dissera a Nicole, antes do nascimento de Mick:

«Não é bom para os rapazes serem criados junto dos pais. A ama educa-os primeiro; depois vão para a Universidade. Tal é o programa duma boa educação...»

Quebra da vontade ou fraqueza. Harry não se sentia com coragem de manter tão rígida linha de conduta. Os grandes olhos infantis, sorridentes e graves, que lembravam os de Nicole, haviam vencido sua razão de homem: para os contemplar e se embriagar com a sua perturbadora carícia, renegava todos os seus princípios de educador. Na ausência da esposa amada, Harry, sem o compreender, entregava toda a sua alma à criança que lha recordava.

 

Mrs. Berry voltou às suas montanhas escocesas e uma nurse diplomada, saída da melhor escola de Londres, veio instalar-se junto de Mick. Não tardou que o pequenito aparecesse metamorfoseado. O seu aspecto mudou inteiramente. Deixou de ser o montanhês de cabelo mal cortado e vestido de grosseiro pano; tornou-se um bonito menino correctamente penteado, trajando elegante fato de veludo preto ornado duma gola de renda de Veneza, o que realçava a sua graça fina e aristocrática.

O pai sentia-se orgulhoso. Mick parecia-se com os retratos de certos meninos Blackenfield que, no século dezoito, haviam sido retratados por Gainsborough e mais tarde por Lawrence, e que ornavam no Norte de Inglaterra, o vetusto castelo feudal que Harry herdara.

Um dia, após a visita quotidiana que o fidalguinho lhe fazia todas as manhãs, o pai pegou no filho pela mão e levou-o ao quarto.

Era a primeira vez que introduzia Mick nesse aposento. Ao centro da parede principal, bem às claras, um grande retrato de Nicole parecia olhá-los, vê-los chegar...

O pintor dera admiravelmente aos grandes olhos claros o devido encanto e à boca fina o melancólico sorriso... aquele sorriso dum ser em plena mocidade, mas a quem a vida atropelara e desiludira já. Os olhos tinham no quadro uma expressão tão viva que pai e filho, parados diante da tela, sentiam-se fixados pela imagem.

- Aí tens tua mãe - disse Harry. - Vê, Mick, como é linda e como nos sorri. Não está morta, não; pelo contrário: está bem viva e esplêndida.

O pequenito não respondia. De cabeça levantada, absorto na contemplação, pareciam seus olhos corresponder ao maternal olhar. Seu silêncio durou instantes; depois, algo hesitante, a infantil voz perguntou:

- É a minha verdadeira mamã?

- É, sim - respondeu o pai, que queria habituar o espírito do filho a evocar a imagem duma mãe viva, existente, e não a que na sua mente estava ligada à macabra cena de morte que a sua infantil imaginação guardara.

- Minha verdadeira mamã? - repetiu Mick num tom de dúvida. - Verdadeira como a mamã do Bob e do Yvett?

- Que perguntas tu, Mick?

Laboriosamente, a criança fez por explicar o seu pensamento:

- ...Uma mamã que mexe as mãos... com boca que fala... que beija os meninos?

Repentina tristeza toldou o rosto do pai. Só uma imagem, só um retrato possuía para mostrar a seu filho, o filho que desejava Uma «mamã» viva, como a tinham as demais crianças...

E do facto resultou para aquele que havia criado ao filho uma situação anormal, angustioso momento. Harry procurava agora, instintivamente, uma explicação que satisfizesse o pensamento do pequenito.

- A tua mamãzinha, meu querido Mick, está muito longe... Já te disse que anda viajando... mas há-de voltar, sabes? Há-de voltar, prometo-te. Voltará... breve. Então ficará connosco, para sempre... e seremos muito felizes...

- Há-de voltar? - repetiu Mick docilmente.

- Sim... E então hás-de ter, como os teus amigos, uma mamã que fale e beije o seu menino...

Contra o seu hábito, Harry falava sem poupar as palavras, embora não cresse, em consciência, no» que prometia; porém, observara que o filho se tornara triste e sentiu um medo inconsciente da frase martirizante que a inocente boca pudesse pronunciar em resposta.

E acrescentou, a fim de preencher o silêncio que temia aberto entre eles:

- Enquanto ela não voltar, Mick, virás trazer todos os dias um ramo de violetas, que deporás diante do retrato da tua mãezinha... Será esta, Michaêlis, a forma de saudares tua mãe e de aprenderes a conhecê-la...

- Flores? Oh! Sim! Que bonito!... Ela há-de ficar contente! Mas isto - e com o dedito designava o retrato - não é a verdadeira mamã... Não!... Isto é uma mamã de papel... é um boneco... como há nos livros!...

Havia na sua voz uma espécie de desdém, que atingia o pai, qual bofetada sem mão.

Não percebeu Mick o efeito doloroso que as suas palavras produziam. E com a mobilidade de impressões tão próprias nas crianças da sua idade, o pequeno começou a andar de gatas sobre a pele de urso branco que se estendia aos pés do leito de acaju.

De pé diante dele, Harry ficou parado, numa mancha de sol. Seu olhar ia da criança descuidada à grande tela onde Nicole continuava a sorrir...

«Uma mamã de tela...»

Era tudo o que podia oferecer a seu filho.

De novo o coração de Harry sofreu doloroso golpe... e era ainda a inocente mão da criança que lho vibrava.

Agora, tenaz, lorde Blackenfield exigia que Mick fosse, todos os dias, saudar sua mamã... em efígie.

O petiz prestava-se de boa vontade àquele acto de respeito e amor; mas não deixava nunca de comentar:

- Esta é uma mamã de papel... A verdadeira foi-se embora!

- Anda em viagem.

- Sim... em viagem... muito longe... longe!

- Há-de vir ter connosco, não é verdade, Mick?

- Sim, há-de vir ter com o menino... sim... um dia!

- Com o papá, também, darling! Não contas também comigo?

- Oh! Conto, sim...

Progressivamente e entretanto os liames de afeição estreitavam-se entre pai e filho.

Michaêlis adquirira o hábito de visitar aquele «papá» que brincava com ele e se esforçava por ser um grande camarada. Agora já não tinha medo daquele «senhor» e procurava mesmo todas as ocasiões de se lhe juntar. Mal o avistava, corria para ele e saltava-lhe ao pescoço:

- Gosto muito que tu me abraces - dizia-lhe familiarmente.

E o jovem pai, tocado por esta pueril ternura, dava-lhe outro e outro beijo.

Um dia, Mick ofereceu-lhe a pequenina face:

- Dê mais um... Dois, faz favor!

- Dois quê?

- Beijos.

- Com todo o gosto. Mas porquê?

- Para a mamã.

- Como?

Sempre a sensibilidade de Harry se encontrava acordada, por assim dizer, quando se tratava da ausente.

Mick estendeu para o retrato de Nicole o dedito e explicou:

- Para a minha mamã, visto que ela nunca me beija.

- Se é, como dizes, uma mamã de papel...

- Sim... mas...

A criança hesitou. Em seguida, muito baixo, misteriosamente, saiu-se com esta surpreendente declaração:

- Eu... eu vejo a minha verdadeira mamã à noite... quando faço ó-ó...

- Sonhas... sonhas com ela? - balbuciou, admirado, o pai.

- Vejo-a - declarou Mick simplesmente e sem precisar melhor o que pretendia dizer. - Vamos, papá, dê-me os beijos... para eu lhos dar...

Comovido, Harry abraçou e beijou por duas vezes o filho sem lhe pedir, de momento, outras explicações; mas, pela tarde, voltou à confidência ouvida de manhã.

- É verdade, Mick, que vês a tua mamã, em sonhos? - inquiriu quase timidamente.

- É verdade...

Parecia não querer o pequenito prestar esclarecimentos; só um instante depois, hesitando, como se confiasse um grande segredo, acrescentou:

- Tu também a vês, papá!

- Eu não, meu filho.

- Vês, sim... Eu sei... Estás com ela e comigo...

- Que estás tu a dizer, Míck?

Recaiu o silêncio. O garoto não queria, evidentemente, abrir-se, dar mais satisfações da sua vida... Agora, ao fim de alguns momentos, aproximava-se do pai e passando-lhe os bracinhos em redor do pescoço, abraçou-o repetidamente.

- É também para a mamã - replicou-lhe em voz muito baixa, ao ouvido. - Assim também lhe dou muitos abraços, muitos...

E Blackenfield sentia-se fortemente impressionado com tais palavras.

Materialista, ocupado até então por exterioridades mundanas e desportivas, nunca se dera a examinar profundamente o que podia ser esse mundo invisível em que ausentes podem vir juntar-se àqueles que amam e no qual se torna possível as crianças abraçarem suas mães distantes...

Os sonhos do pequenito iniciavam-no como que numa manifestação do Além. Teve a impressão de que o céu aproximava e unia, sob os tectos da sua casa os dois seres que tanto amava. A ideia de Deus, na qual se detivera apenas nos seus anos de infância, povoou, de novo espectralizou suas longas meditações.

Por outro lado, os amargos dias de tortura sofrida ia para três anos, haviam apurado e subtilizado o seu espírito. Sentia, sem o poder explicar, que outra coisa havia em torno dele, alguma coisa além do que seus olhos podiam ver. E porque o filho parecia muito mais familiarizado do que ele com a religião e as forças superiores que nos dominam, ia, ele, o descrente e ignorante,   encarregá-lo de se tornar o seu intermediário.

E, no dia seguinte, ao conduzi-lo à visita diária ante o retrato de Nicole, candidamente, acanhadamente, o pai fez repetir ao filho esta prece:

«- Senhor, meu Deus, dá-me a minha mãezinha. Fazei com que ela volte da sua longa viagem, porque este é o maior desejo do meu papá...»

A angelical vozita enganara-se às primeiras vezes, mas ao fim duma semana Mick sabia sem erro as palavras ardentes que Harry espontaneamente lhe ensinara; e o pequenito rezava-as juntando as mãos. E nada mais comovente que ver, a par, o homem muito alto e o garotito, muito pequenino, unidos no halo da mesma oração, diante do belo retrato e do olhar profundo que dali sorria melancolicamente...

 

Consoante fora desejo de lorde Blackenfield, Tattie chegou a Londres.

Mick, ao ver a rapariga, demonstrou grande surpresa. Fez-se muito corado e pareceu, primeiro, ficar contrariado.

Em seguida, depois de lançar a lorde Blackenfield um olhar inquieto, cedeu ao afecto pela rapariga e correu para ela.

Tattie tivera a mesma reserva. Mas agora que Mick a devorava com beijos e não se cansava de a abraçar, apertava-o por sua vez ao coração!

- Darling... dear old little thing (1).

Não ousara nunca abraçar o filho diante do pai; porém, desta vez, aquele sorria e a rapariga afoitara-se a ponto de cobrir de beijos a pequenita mão que não parava de lhe afagar as faces.

Lorde Blackenfield tivera então um ar indulgente e cúmplice de que teria sido incapaz semanas antes, quando não conhecia ainda a criança.

A fim de não constranger a filha de Mrs... Berry, levou a sua complacência até se voltar um pouco: não seria necessário que o seu Mick recebesse as carícias a que Tattie, escondidamente, o habituara?

E como agora se voltasse para eles, o pai surpreendeu uma coisa que o fez estremecer.

O pequeno, pegando no fio de ouro que trazia ao pescoço, mostrava a Tattie a medalhinha oval que usava no fio.

- Tenho trazido sempre - disse ingenuamente, enquanto a rapariga lhe fazia sinal de que se calasse.

 

(1) Meu querido! Meu adorado pequenino!

 

Ao mesmo tempo e num movimento discreto, escondia-lhe de novo a medalha, metendo-a entre o fato e o peito de Mick.

Não passou isto despercebido a Blackenfield, que instintivamente se sobressaltou.

- Que é isso? -perguntou, dirigindo-se ao filho. Com gesto autoritário de que não pôde reprimir

a vivacidade, puxou-o para si.

E, sem reparar na repentina atrapalhação de Tattie e no súbito rubor de Michaélis, Harry tirou do interior da roupa da criança a medalha, que abriu.

Continha três minúsculas fotografias. Lorde Blackenfield examinou-as com surpresa.

Dessas três fotografias, a primeira era a sua, depois a de Nicole, sorridente, uma fotografia do seu tempo de solteira, e enfim a de Grammont: os três entes mais chegados a Mick, pelo sangue: seu pai, sua mãe e seu avô!

A comoção oprimiu-lhe a garganta.

- Quem colocou esta medalha ao pescoço do menino? - perguntou num tom de velada brandura.

A rapariga fez-se escarlate. Embaraçada embora, respondeu com voz firme:

- Foi lady Blackenfield...

- Minha esposa?

- Sim, senhor...

- Quando a viu fazer isso?

- Há muito tempo... quando ia tratar do menino... depois da minha mãe lhe ter enviado um telegrama...

Harry sentiu-se oprimido ao ouvir essas palavras que recordavam o seu mau procedimento dessa época.

- Está bem certa de que foi nesse tempo? - insistiu.

- Sim... saiba Vossa Honra que estou... - confirmou a rapariga com certa vivacidade. - Recordo-me até que, dois dias depois do menino estar bom, lady Blackenfield disse esperar aquelas melhoras, visto haver «três amores» - o avô, o pai e a mãe - a velar por ele durante a doença.

- Lady Blackenfield era extremamente sensível - balbuciou Harry, sentindo-se opresso com o facto de Tattie relembrar uma frase tão romanesca da mãe de Michaêlis.

- Lady Blackenfield era muito meiga e afectuosa. - acentuou Tattie com certa gravidade.

Harry não quis destrinçar se essas palavras representavam uma contestação ou uma lição...

- Sim - concordou com simplicidade. - Minha esposa era muito bondosa.

Reinou um silêncio, ao fim do qual Harry se informou com voz ainda mais humilde:

- Não tornou a ver lady Blackenfield, Tattie?

- Depois daquele dia em que ela ia buscar o menino, que Vossa Honra já tinha levado, não, nunca mais voltei a vê-la.

- Não lhe deu notícias?

- Não, senhor.

- É de lamentar.

Um tanto embaraçado, porque a rapariga o observava e porque Harry se adivinhava censurado na sua conduta de então, acrescentou:

- Foi um mal-entendido desastroso, Tattie... Uma espécie de brincadeira de mau gosto que deu péssimo resultado... Quem me dera tornar a ver lady Blackenfield, para me explicar com ela...

De soslaio espiava a cara de Tattie. Não se comoveria a rapariga e lhe confessaria conhecer o refúgio de Nicole?

Porém, a filha de Mrs.... Berry quedou impassível. Não vira a mãe de Mick e, por instantes, seu rosto guardou a maior gravidade; Harry pronunciara a palavra brincadeira e na ideia da rapariga esse termo parecia-lhe horrivelmente escolhido: o desgosto sofrido pela pobre Nicole não podia achar-se ligado a uma brincadeira, de mau gosto que fosse.

Teria Harry adivinhado, em parte, os pensamentos da Escocesa? Era provável, porque o silêncio guardado pela rapariga o impressionava.

Após alguns segundos de constrangimento, Harry retomou a palavra, pois no fito de a interrogar fizera vir Tattie a Londres.

- Disse que foi a lady Blackenfield quem colocou ao pescoço de meu filho a medalha? - insistiu, enquanto acariciava Mick, sentado agora nos seus joelhos.

- Ela própria, meu senhor, quando o menino esteve doente.

- E as fotografias? Quem as meteu?

- Lady Blackenfield igualmente... Como eram muito grandes, a senhora pediu-me a tesoura e cortou-as, fê-las mais pequenas para caberem nos compartimentos da medalha.

Harry olhou de novo os três retratos... O dele fora cortado da metade da fotografia encontrada no fundo da gaveta... Tal descoberta fez-lhe compreender, subitamente, por que motivo Nicole sacrificara aquele retrato comum que tanto estimava.

Sentira a necessidade de colocar ao pescoço do filho o retrato do pai.

Que tristeza lhe dava ainda agora a lembrança de que então se recusara a ver e a seguir de perto o crescimento da criança...

- E as três fotografias estão pela ordem em que lady Blackenfield as dispôs? - perguntou. - Ou mexeu-lhe depois disso, Tattie?

- Nem eu tinha esse atrevimento - protestou a rapariga. - Até Sua Senhoria, quando as meteu na medalha e meteu o retrato dela, disse a rir: «Não é bom deixar assim fechados dois homens sozinhos... comigo entre ambos sempre será mais prudente...». Foi uma graça de que a própria senhora se serviu naquela ocasião, mas cuja intenção respeitei sempre... Cuido que Vossa Honra não esteja zangado...

- De maneira nenhuma, Tattie; pelo contrário: sinto-me satisfeitíssimo de que haja obedecido a lady Blackenfield... Tudo que a senhora fez, fez bem e sempre com as melhores intenções.

Calou-se. Profundamente comovido pelo que acabava de ouvir, por suas mãos repôs ao pescoço do filho o fio de ouro com a medalha; em seguida mandou Mick brincar para outra casa, pedindo a Tattie que o acompanhasse. Quando se retiraram, Harry ficou por muito tempo pensativo.

Esperava que a filha de Mrs. Berry lhe traria qualquer indicação sobre o local em que Nicole se refugiara mas nada!

Porém, a sua decepção achava-se compensada. Bastava-lhe o que ouvira das palavras de sua mulher.

Nesse tempo, Nicole dava provas do seu constante amor, a despeito das intermitências do mau humor dele, Harry, dos ciúmes e das suas atribiliárias inconsequências...

Quão tocante essa ideia de reunir, ao peito do filho doente, os dois entes que ela mais amava no Mundo: o marido e o pai... o vivo e o morto... ambos unidos pela sua imagem e pelo seu pensamento... mau grado o seu desdém de lorde pelo modesto guarda-mor...

A alma de Nicole não fazia distinções: ambos lhe eram queridos: o pai bem-amado e o marido, como o homem escolhido entre todos.

Então, enquanto a ingénua Francesa, de cuja sentimentalidade ele troçara, fazia daquele seu gesto um símbolo, o marido fleumático e seco atribuía à passageira ausência da sua mulher os mais baixos e injuriosos motivos...

Harry reconsiderava longamente esses pensamentos cujos espinhos o aguilhoavam, pois cada um deles lhe lembrava que, apesar dos seus grandes ares de gentleman altivo e impecável, fora imensamente inferior à esposa delicada e honesta, julgada outrora tão plebeia.

Dias e semanas passaram ainda.

Lewis conseguira o que desejava. Depois de apresentadas por lorde Blackenfield inúmeras dificuldades, acabara o nobre senhor por consentir em aparecer publicamente em Londres, acompanhado pelo filho.

- Vou cair no ridículo -- dissera sem entusiasmo. - Isto não é hábito em Inglaterra.

- Ora, procedamos sempre como eu lhe pedi - objectara o detective. - Um Blackenfield pode fazer o que lhe aprouver. Existe um grau social onde o ridículo já não é possível. Dentro de três meses não lhe hão-de faltar imitadores.

- Sim, mas durante esse tempo pode a opinião pública divertir-se à minha custa.

- Garanto-lhe...

- No! No! Não garanta nem explique mais nada, Lewis - interrompeu Harry - compreendo que é absolutamente preciso sair com o menino... mesmo que tal coisa pareça extraordinária.

- Perfeitamente!... Ou antes: isso nada terá de original.

- Se não fossem os indiscretos dos jornais começarem, como pretende, a falar, a espalhar...

- Prometo-lhe ser discreto, tanto quanto possível.

-À força de estoiros no bombo e toques de corneta, não está má discrição!

- Lembre-se que é para chegarmos a um resultado tão desejado, lorde Harry!

- Sim... A ver se lady Blackenfield tem fino ouvido e acode aos primeiros toques.

- Esperemo-lo.

E, formoso como um principezinho, no dia seguinte, o juvenil Mick, pela mão de miss May, sua nurse, passeava no Jardim Zoológico, a que em Londres toda a gente chama simplesmente o Zoo.

Um pouco selvagem ainda, não estando habituado aos jardins públicos e não conhecendo criança alguma com quem brincar, Michaêlis, muito sério, apertava-se contra a professora.

Quando viu chegar o pai na sua direcção, alegrou-se-lhe o rosto e correu instintivamente ao encontro dele como dum amigo preferido.

Entre as grandes mãos do pai e as minúsculas mãos do filho, enluvadas ambas, houve caloroso aperto. Apesar das suas preocupações de decoro, o pai pegou no pequenito por debaixo dos braços e fê-lo dar um grande salto.

Alegre, Mick ria às gargalhadas; mas, como lorde Blackenfield o depusesse no chão, o pequenito viu um homem alto e pálido que guardava no estojo respectivo um kodak, enquanto que a magra silhueta de Lewis discretamente se afastava ao longo de uma álea vizinha.

Não pôde Harry conter um movimento de mau humor. O seu desagrado de gentleman correcto era natural e instintivo, embora devesse prever o incidente.

- Volte para casa com o menino - disse à nurse com precipitação. - Por hoje não posso dispor de mais tempo.

O ambiente do Zoo parecia-lhe de repente insuportável e só desejava ver-se longe dali. Tinha, demais, e por temperamento, horror à multidão.

Contudo, nos dias seguintes, Harry levou Mick ao Circo, ao Palácio de Cristal, ao teatro infantil: levou-o a uma pastelaria e depois a tomar chá num estabelecimento muito frequentado. Foi até mostrar-se com ele nos locais da moda, tais como: concertos, exposições e museus, onde a nurse recebeu ordem de conduzir o pequenino Mick.

Em breve se viu pai e filho aqui e além. E, graças ao detective, que espreitava cada umas das saídas e fazia publicar a tal respeito ecos nos jornais, o público não ignorava que lorde Blackenfield, de regresso das índias, era um papá moderníssimo e seu filho um amor de criança.

Tal publicidade tornava-se odiosa a Harry; resignava-se, porém, à ideia de que era necessária. Não seria natural que Nicole, atraída pelo desejo de ver o filho, se inteirasse dessas saídas? E, para lhe permitir ver a criança de passagem, obrigou-se lorde Blackenfield a uma espécie de programa bem elaborado, indo regularmente, nos mesmos dias e às mesmas horas, a locais previamente designados.

Até ali, Harry pessoalmente e Lewis na sua peugada, nada tinham ainda encontrado que lhes pudesse dar como feliz o prosseguimento da tua táctica. Era em vão que o amoroso marido procurava com o olhar nos grupos compactos da multidão, na esperança de descobrir o rosto entre todos desejado. Quanto ao detective, que se atarefava a observar quantos, de perto ou de longe, pareciam interessar-se pelo seu cliente e respectivo filho, tinha a impressão de não ter obtido também resultado algum.

E, no entanto, uma manhã, logo depois da visita quotidiana ao retrato de Nicole, Mick revelou a Harry qualquer coisa que o assombrou.

De nariz no ar, as mãos enfiadas nos bolsos do calção, bem firme nas pequenas pernas abertas em compasso, o garoto olhava a imagem que lhes sorria do quadro.

- Ela ainda é mais bonita que no retrato, a minha mamã - disse de repente com a sua vozita de entoações infantis.

- A mamã que tu vês de noite? - perguntou o pai, sempre alerta sobre as reflexões do garoto.

- Não... a outra!

- Que outra?

- A verdadeira.

Harry teve um sobressalto.

- Que dizes tu?... A tua verdadeira mamã?

- Sim.

- Mas - insistiu Blackenfield, admirado.

Como sabes isso? Viste-a?

- Vi. Lá...

- Lá... onde?

- Lá!...

Era tão claro que o pai, subitamente perturbado, teve de esforçar-se por ficar calmo. Devia evitar qualquer precipitação ou intempestivo nervosismo para não se arriscar a cortar ali a veia lacónica do petiz.

- Quando foi que viste a mamã, meu querido Mick? - inquiriu, dulcificando a voz.

- Logo.

- Logo?... Não. O que queres dizer, é, talvez, ontem, visto que hoje ainda não saímos...

- Sim, ontem.

- Viste a tua mamã?

- Oh! Vi!

Não compreendendo, por tão breves respostas, o que o filho queria dizer e bastante impressionado entretanto com o que ouvia, Harry sentou-se numa cadeira e colocou o pequeno sobre os joelhos,

- Vejamos, Mick, explica-te melhor. Dize ao teu papá o que sabes. Viste a mamã?

- Vi.

- A tua verdadeira mamã?

- Sim... a verdadeira; não é a mamã de papel! Não é aquela que está no quadro...

- A outra?

- Sim... a que tem mãos e que anda como a gente, que abraça e beija os meninos...

- Ela abraçou-te?

O sorriso extinguiu-se nos lábios do pequenito.

- Não! - disse, sacudindo a pequenina cabeça. - Ela não abraçou Mick.

--Ah!... Mas falou-te?

- Não.

- Nesse caso, que fez ela?

- Riu-se...

- Hem? Riu-se?

- Sim... para Mick.

- Ah!... Ela sorriu-te.

- Sorriu.

O rosto irrequieto do pequenito iluminou-se de novo.

Seu olhar, adorável de candura e de alegria, ergueu-se para o retrato:

- A minha mamã! É tão linda!

- É muito linda, é, sim...

- E sorriu-se para mim... há-de ser muito boa!

Pareceu a Harry que invisível mão lhe apertava a garganta.

O filho vira Nicole, pois sem ser Nicole, que outra mulher lhe poderia ter sorrido tão docemente que o pequeno, na sua ingenuidade, o notasse daquele modo?

- Mas quem te disse que a senhora que te sorriu era a tua mamã? - repetiu, na sua emoção.

- Mick viu-a bem.

- Sim... é uma ideia tua... Julgas isso só porque olhou para ti e sorriu?

O pequenito endireitou-se, indignado:

- Não, senhor! - acentuou com força. - É porque era igual ao retrato... à minha mamã de papel! As outras, que se riem, não são a minha mamã!

- Decerto! As outras, como tu dizes, são as senhoras que Mick não conhece... Ela não, não é a mesma coisa...

- É a minha verdadeira mamã!

- E a primeira vez que a viste, foi ontem?

- Foi... e ainda antes...

Palpitante, o pai tentava, palavra a palavra, arrancar a verdade ao filho, que, fatigado de estar tanto tempo preso, procurava evadir-se dos braços paternais para ir brincar.

- Escuta, meu Mick, se tu me contares bem tudo o que a tua mamã fez, compro-te um brinquedo lindíssimo.

- Mick quer o brinquedo.

--Pois bem! Então diligencia recordar-te... Onde foi que viste a mamã?

- Lá... já disse!

- Já sei! Eu estava contigo quando a mamã te sorriu?

- Estava.

- Foi ontem?... Quando bebeste uma chávena de leite no Zoo?

- Não.

- Então no concerto?

- Não.

- Estavas, talvez, com miss May?

- Não... foi lá em baixo... no chá!

- Eu estava sentado ao teu lado... Miss May tinha-se ausentado.

Mostrava-se conhecedor, com o fito de captar melhor o fugitivo pensamento da criança.

- E depois... da outra vez?

- No chá!... Foi sempre no chá! Não estava a senhora dos bolos... quando Tattie escorregou.

- Ah.! No Palácio de Cristal!

- Mick não caiu.

- Pois não! Mick tem as pernas rijas! Mas porque não me falaste logo na senhora que te sorriu?... se ma tivesses mostrado eu ia procurá-la e nós trazíamo-la connosco.

O pequenito corou e ficou pensativo.

- E ela quereria vir? - inquiriu, depois, gravemente.

- E porque não havia de querer? - perguntou, surpreendido, o pai.

- Por causa dos outros.

- Quais outros?

- Os meninos...

- Os meninos?!

Harry deu um pulo na cadeira. Não acreditava que Nicole se houvesse transformado em mãe de família.

Disse de si para si que a criança se enganara: qualquer senhora lhe sorrira e, ingenuamente, Mick acreditara que tal senhora era sua mãe.

Cruel desilusão. A convicção do pequenito mostrava-se tão firme que se tornara contagiosa; contudo, Harry encarava a possibilidade de Nicole ir acompanhada por crianças...

Determinada suspeita não deixou no entanto de se lhe aferrar na alma: Nicole casada em segundas núpcias? Impossível!... Então, infiel?... Nicole, mãe doutras crianças?

- Viste outros meninos com a mamã?

- Vi.

- Quantos?... Já crescidos, como tu... ou muito pequeninos... assim como a Gate?

- Uma menina alta... e um menino pequenino... mais outro ainda, não muito alto... assim...

E com a mãozita marcou nas costas duma cadeira a altura talvez equivalente ao tamanho duma criança de cinco anos.

«Três crianças» - pensou Harry.

Somente o último poderia ser filho dela...

Caiu, entretanto, em cepticismo. A ideia de que Nicole tinha outro filho tornava-se-lhe tão angustiosa que preferiu repudiá-la.

- Estás enganado, Mick... A senhora que tu viste não é a tua mamã...

- Era, sim!

- Não pode ser. A tua mamã não tem outros meninos. A senhora que se sorriu para ti era, com certeza, a mamã dos três meninos de que falas... mas a tua, não. Não pode ser, repito.

Mick não respondeu. Desta vez conseguira soltar-se dos braços que o retinham. E, estendendo-se na pele de urso que o atraía sempre naquele gabinete austero, deitou-se, rebolou-se, fez mil cabriolas sobre os compridos pêlos sedosos.

Enquanto que Harry, a fronte enrugada, reflectia... De repente, o pequenito suspendeu-se.

Deitado de bruços, mas de tronco soerguido, apoiado nos bracitos já vigorosos, ergueu a cabeça para o quadro da sua mamã... de papel, como ele, na sua infantil linguagem, lhe chamava.

- Sabes, papá! - exclamou subitamente. - A senhora... aquela senhora... não era a mamã dos outros. O riso dela era para Mick... Eram para Mick os beijos que deu. Eu bem vi!... Eram para mim... para mim só!

Com uma cambalhota concluiu estas palavras triunfantes. E enquanto as pequeninas pernas frágeis se agitavam no ar, Harry, desconcertado, não sabia que imaginar.

«Beijos... para ele?...»

Se isto era verdade não tinha se não que regozijar-se... todas as esperanças se tornavam lícitas...

Todavia, no seu espírito as dúvidas persistiam: seu filho era tão formoso com seus grandes olhos claros sombreados por longas pestanas, com aquele radioso sorriso na sua adorável expressão angélica! Natural se tornava que uma estranha lhe houvesse sorrido e a criança correspondesse aos seus tagatés...

A esta sugestão se prendeu no intento de se guardar de qualquer consequente e cruel decepção. Entretanto, e por prudência, chamou Lewis ao telefone, a fim de lhe confiar as estranhas confidências do filho.

No outro extremo do fio, o detective escutou atentamente o que o cliente lhe contava. Fez mesmo repetir determinadas particularidades, certas minudências. Depois, sem fazer comentário algum, inquiriu de lorde Blackenfield se conhecia o antigo adido da embaixada americana, Mollisson.

- De vista, apenas - respondeu Harry. - Encontrámo-nos algumas vezes no Royal Yachting Clube... É um amigo de lorde Creven... Está agora de passagem em Londres e, segundo creio, retirará brevemente...

- É desse mesmo que se trata, Mollisson deverá assistir provavelmente às finais de pólo para a taça de Sutton-Smith em Rochampton... Experimente, pois, lorde Blackenfield fazer-se convidar; vá a casa dele antes que regresse à América. Creia que me prestará com isso uma grande fineza.

E provavelmente para não ser obrigado a dar mais amplas explicações, Lewis colocou o auscultador no descanso.

 

No salão impessoal e luxuoso do aposento que sire Mollisson ocupava no Savoy-Hotel, Harry Blackenfield esperava de ar preocupado e vagamente melancólico.

Que podia esperar daquela visita? Diligência vã, como tantas outras... Porque havia cedido uma vez mais às sugestões de Lewis?

Bastantes eram já as passadas, voltas e reviravoltas que esse temível detective lhe fizera dar! Quase sempre contra sua vontade e sempre contra as suas opiniões: os passeios com Mick, a que ele, Harry, chamava exhibitions, as fotografias nos jornais ilustrados, os artigos na imprensa mundana, tudo coisas horripilantes para o inglês correcto e cioso da discrição sobre a sua vida privada, como era lorde Blackenfield.

E tudo para quê?... Coisa bem pouca! Aquela formosa dama de que Mick falava de maneira ao mesmo tempo vaga e obstinada quem seria? Chegar-se-ia a saber?

E aquelas três crianças que vinham complicar a pista em vez de a simplificarem?

Essas crianças... Seria para as ver... ou para obter delas certos informes que estava ali, naquele salão do Savoy?

Para o decidir, dera-lhe Lewis uma única explicação:

- As três crianças de que fala Mick são os filhos de sire Mollisson, antigo adido da embaixada americana. Por eles saberá vossa excelência quem é a senhora que os acompanhava.

- Mas como quer o senhor que eu os interrogue?

- Indo a casa deles!

- Impossível. Eu não conheço suficientemente o pai.

Dissera-o secamente, mas Lewis não se atrapalhava.

- Pode muito bem conhecê-lo melhor, lorde Harry; basta que passe uma tarde com ele. No Royal Yachting Clube facilmente encontrará comuns amigos que o apresentem. O resto é com os pequenos.

- Encontrar-me com Mollisson no Clube não é impossível, seja! - resmungou Blackenfield. - Mas que pretexto quer que arranje para ir a casa dele?

- Queira escutar - repôs tranquilamente Lewis. - Vou dar-lhe indicações.

- O senhor?

- O meu ofício é ou não dar indicações e informes?... Saiba que sire Mollisson é um apaixonado coleccionador de antigas tabaqueiras!... Não pode dar-lhe maior prazer que o de lhe pedir para ver a colecção... Ora aí tem um pretexto bom! Já pode ir bater-lhe ao ferrolho.

E Blackenfield dirigira-se então ao Savoy Hotel, mas sem entusiasmo de maior.

«Era só o que me faltava: interessar-me agora por tabaqueiras». - disse para si com irónico sorriso.

Interrompendo o fio dos pensamentos de lorde Blackenfield, o adido da embaixada entrou no salão e veio apertar-lhe a mão com americana cordialidade.

Após trocarem algumas frases banais sobre o estado do tempo, frases pelas quais começa invariavelmente a conversação inglesa, sire Mollisson desculpou-se amavelmente.

- Gostaria imenso de lhe mostrar a minha colecção inteira, lorde Blackenfield, colecção da qual, devo dizer, me confesso argulhoso. É, na verdade, uma das mais completas e das mais escolhidas que se citam em todo o Mundo: possuo peças raras! Infelizmente, tudo ficou em Boston.

- Calculei, efectivamente, que não viajasse com objectos de tão grande valor - respondeu Harry.

- Tanto mais - tornou o Americano - que, desta vez, não fiz mais que uma espécie de viagem por escala sem me fixar por muito tempo em parte alguma. Como vê, mesmo aqui em Londres preferi hospedar-me num hotel, prova de que a minha estadia por cá não deve ser longa.

Ergueu-se e foi abrir uma vitrina que se encontrava colocada sobre um móvel.

Delicadamente, com mil preocupações, tirou dessa vitrina uma tabaqueira flamenga do século dezassete.

- Desejaria poder mostrar-lhe as minhas últimas aquisições... Não são muito numerosas, mas não deixam de ter o seu interesse... Queira admirar esta que data de...

Suspendeu-se bruscamente.

Insólitos ruídos cortaram subitamente o silêncio do aposento... Um passo miudinho viera correndo pelo corredor; e eis que a porta da sala se abre de repente e uma voz infantil exclama com a maior convicção:

- I want to see my daddy! (1).

 

(1) Quero ver o meu papá!

 

E, sem-cerimónia, um bonito garoto entrou na sala com a imperturbável segurança dos seus cinco anos.

- Então, Teddy! Que maneiras são essas! - exclamou sire Mollisson com voz que pretendia tornar severa.

Vendo que o pai estava com um estranho, a criança parou surpreendida no meio da casa. Porém, repetiu, desta vez em língua francesa e num tom particularmente decidido:

- Eu quero ver o meu papá!

- Não é agora ocasião oportuna, darling - disse o pai. - Bebé está um menino muito mal-educado e vou mandá-lo retirar daqui imediatamente.

Mas, antes que Mollisson houvesse concluído a frase, a porta abriu-se de novo.

- Oh! Teddy, que faz o menino aqui, seu mau? Venha depressa!

O som daquela voz fez estremecer lorde Blackenfield. Instantaneamente, Harry voltou-se. A surpresa arrancou-lhe um grito. Na jovem que acabava de entrar em procura da criança acabava de reconhecer sua mulher.

Na comoção que de súbito o estrangulava, pareceu a Harry que um véu lhe obscurecia a vista.

Nicole!... Nicole estava diante dele!

Repentina palidez alterava a fisionomia do esposo, enquanto que, ao vê-lo, a recém-chegada, perturbadíssima por sua vez, ficava muda, rubra, petrificada.

Esse encontro marcava para os dois esposos um segundo de íntima emoção durante o qual suas pupilas desmesuradas se fixaram com angústia.

Após a longa separação que tempestuosas cenas haviam precedido, cada um deles se poderia perguntar o que o outro pensava desse inopinado encontro.

Entretanto, a correcção, a boa educação de ambos fez com que, passado o primeiro embate da surpresa, se esforçassem por disfarçar a sua perturbação. Exigia a situação que parecessem não se conhecer naquela sala estranha onde um era visita daquele que figurava como dono da casa e a outra uma sua empregada.

Foi Nicole a primeira que se dominou.

Pegando na mão do obstinado menino, procurou levá-lo rapidamente para fora do aposento.

- Venha depressa, Teddy - disse docemente em francês. - Cumprimente esse senhor - ajuntou, obrigando com a mão a inclinar-se numa vénia a pequenina cabeça loira.

Ela própria, antes de sair a porta, teve para a visita do seu amo uma saudação impecável de fria polidez.

Mas logo que se viu fora da sala, teve de se amparar à parede. Necessitava de deixar passar o estado de abatimento e tremura em que se encontrava:

- Harry!

Era possível que o Céu houvesse permitido semelhante encontro?

Na sua comoção havia tanto de instintivo pavor como de tímida doçura:

«Não era seu marido quem acabava de encontrar? O homem que ardentemente amara... aquele que possuíra os seus primeiros enlevos e entusiasmos de rapariga, aquele que em seu seio acordara o amor?... Mas não era também um inimigo, bem capaz de lhe fazer mal?»

Através duma espécie de loucura e atordoamento visionava o mundo de circunstâncias que daquele encontro podiam desencadear-se. Já tinha sofrido tanto por Harry! Não se considerava agora invulnerável aos seus ataques. O marido podia ainda fazê-la sofrer muito mais.

Recobrando forças, respirando, enfim, após o seu minuto de desfalecimento, levou vivamente Teddy para outro aposento...

Como animal longo tempo maltratado, Nicole não sentia se não o desejo de fugir à vista do seu carrasco.

Vendo-a sair, Harry não dissera uma palavra, não fizera um gesto; e, todavia, de todo o coração quereria reter a esposa amada, que há tanto procurava e que ainda uma vez lhe fugia.

A presença de Mollisson obrigava-o à impassibilidade; mas, no íntimo, palpitava de dolorosa comoção e forçoso se lhe tornava exercer sobre a própria vontade tenso esforço para se manter o gentleman correcto que o momento exigia que fosse.

Todo esse drama fora por tal forma silente e decorrera tão rápido que sire Mollisson não se apercebera dele.

Como homem bem-educado, apenas se mostrava incomodado com a incorrecção do pequenito, se bem que o orgulho de ter um filho tão formoso sobrelevasse nele o complexo das convenções mundanas.

- É duma teimosia! Como vê, já sabe o que quer. Revela uma energia de vontade!

- Efectivamente - respondeu, distraído, Blackenfield, cujo pensamento tentava seguir Nicole através do dédalo de casas e compartimentos.

- Mas o imprudente menino veio interromper-nos precisamente no momento em que eu ia mostrar-lhe o melhor da minha colecção... Oh! Isto tem uma história!...

Estendia a Harry um estojo de esmalte finamente trabalhado.

- Imagine que encontrei esta maravilha em Estrasburgo, na loja dum adelo que nem mesmo conhecia o seu valor real... O pior é que, devido à ignorância do homenzinho, esteve em riscos de me escapar, porque...

Continuava o relato, dando minuciosos pormenores que o seu interlocutor não conseguia acompanhar. Todo o pensamento de lorde Blackenfield se concentrava na visão tão rápida quão díspar daquela que procurava há tantos meses.

Nicole! Sua mulher! Ali, a meia dúzia de passos dele, e ver-se, pelas estúpidas convenções mundanas, impedido de a chamar, de a puxar sobre o peito!

Vira-a bem, diante de si, depois desses anos amargos de vã separação, e vira-a sem poder avançar direito a ela, sem ter a possibilidade de lhe gritar o seu amor, os seus arrependimentos, o seu latente e constante desejo dela, que encontrava tão fresca como no primeiro dia.

A sua mulher, a sua Nicole estava ali!

Que esperava então para a chamar imediatamente, para a tomar nos braços, para a cobrir de beijos, para lhe fazer esquecer, à força de carícias, depois de tantas palavras infelizes e ruins, todos os desgostos que pudera ter-lhe infligido.

Nicole estava ali, a dois passos, e ele, lorde Blackenfield, por correcção, por medo ao escândalo e ao que seus iguais poderiam dizer, tinha de ficar rígido, exteriormente calmo, a escutar com fingida atenção o que o seu interlocutor lhe contava a propósito de tabaqueiras antigas e perfeitamente ridículas nos seus velhos atributos.

Em que lhe podia interessar a forma redonda e as incrustações de prata dessa caixinha de tartaruga que outrora contivera rapé?! Não seria mais interessante, apaixonante mesmo, saber o que acontecera a Nicole; informar-se em que condições se encontrava ali, junto de Mollisson, que - soubera-o por Lewis - se encontrava viúvo há dois anos?

Todos estes pensamentos se agitavam, zoando surdamente no cérebro de Harry, enquanto o coleccionador continuava entusiasmado a narrativa da compra daquela maravilhosa tabaqueira.

- Sim... sim... - aprovava maquinalmente lorde Blackenfield, que era bastante educado para, embora automaticamente, dar mostras de interesse, se bem que na realidade só uma ideia fixa o dominasse:

«Tornar a ver Nicole, enchê-la de perguntas... tornar a vê-la, principalmente!...»

Deste modo, logo que a história da tabaqueira findou, não pôde Harry abafar por mais tempo uma pergunta que lhe queimava os lábios:

- Quem é esta senhora que acabou de vir aqui buscar o menino?

Mal proferira tais palavras, sentiu que uma tal pergunta podia parecer incorrecção; experimentou por isso duplo alívio quando muito naturalmente Mollisson lhe respondeu:

- Miss Grammont? É a mestra dos meus filhos.

- Como disse? - perguntou Harry, diligenciando manter-se calmo. - Miss Grammont... é, é Francesa... não?

- É, sim... Conhece-a?

Desta vez o tom de voz de Mollisson deixava perceber ligeira surpresa. Mas logo Harry se recompôs, e foi com ar indiferente que respondeu:

- Não, não conheço. Simplesmente me impressionou a extraordinária semelhança que existe entre ela e uma pessoa da minha amizade... Parece encantadora - acrescentou, a fim de não perder o fio à conversa que tão de perto lhe tocava.

- Encantadora, na verdade - confirmou o Americano. - Mais ainda: Míss Grammont tem muito valor e estou-lhe sinceramente reconhecido pelos devotados e inteligentes cuidados que dispensa aos pequenos... sobretudo depois da morte de minha mulher.

Blackenfield achava-se decidido a não deixar amortecer aquele assunto. E então, com sua desprendida atitude, continuou:

- Pois é sorte de que se pode gabar, meu caro senhor... O problema é grave: sei porque tenho um garoto quase da idade do seu.

- Teddy foi educado, quase inteiramente, por miss Grammont. Pouco mais tinha de dois anos quando minha mulher morreu. Então, na sua qualidade de mestra, começou a cuidar do pequenito com absoluta dedicação. Para os dois mais velhos é uma boa educadora e amiga inexcedível. Dir-se-ia que possui inato sentimento maternal, feito de abnegação e amor.

Na sua impassibilidade, Harry escutava-o profundamente comovido.

Oh! A atroz sensação de escutar, dos lábios doutro homem o elogio de sua própria mulher - quando ele, que tivera a felicidade de possuir tal mulher, admiravelmente dotada para educar as crianças, lhe negara o direito de ser mãe!

- Estimo imensamente a educadora de meus filhos - continuou Mollisson com veemência. - Demais, não creio que miss Grammont tenha ideia de os deixar; quere-lhes sinceramente e eles também lhe pagam na mesma moeda. Até agora tem-nos acompanhado sempre e para toda a parte: foi connosco ao México, a Constantinopla e aos Estados Unidos, onde resido e vivo a maior parte do tempo.

Enquanto o ouvia, Blackenfield comparava datas... Calculava mentalmente e compreendia agora qual o motivo porque Nicole não pudera ser encontrada nem em Inglaterra nem mesmo em França. Mollisson dizia ainda:

- Estou certo de que logo que partamos para Boston, o que acontecerá brevemente, miss Grammont não se recusará a acompanhar-nos; os meus filhos constituem, por assim dizer, a sua verdadeira família...

Desta vez Harry deixou morrer o diálogo.

A perspectiva de ver Nicole partir com destino à América era-lhe odiosa. E desagradável lhe parecia a ideia de que a esposa pudesse estimar profundamente os seus pupilos.

«Acaso Nicole pudera ter esquecido que em certo recanto do Mundo existia uma criança à qual devia todas as suas ternuras?...»

A si próprio repetia o facto da culpa ser exclusivamente sua. E ficava melancólico.

Instantes depois despedia-se Harry de sire Mollisson, ofertando-lhe seus préstimos e a sua casa:

- Interessaram-me imenso, caro sire Mollisson, as maravilhas que possui. Tenho também duas tabaqueiras da Escócia, em chifre, com incrustações de prata. Não têm talvez outro valor além do da sua antiguidade; esta, porém, lhe garanto eu, visto serem recordações da família. Muito gosto teria em que as incluísse na sua esplendida colecção.

Mal escutando os agradecimentos do coleccionador, Blackenfield afastou-se com a instintiva necessidade de se aproximar imediatamente da mulher:

«Encontrei Nicole! É indispensável que lhe fale... que lhe explique... deve vir a minha casa o mais depressa possível. O seu lugar não é aquele nem é ali!»

 

Saindo do ascensor no rés-do-chão do hotel, Blackenfield atravessou lentamente o átrio.

Por momentos abrigou a ideia de ali ficar e esperar a possível saída da mulher... mas compreendeu que tal coisa não seria nem correcta, nem prática.

Demais, não tinha a certeza de que Nicole tivesse de atravessar o átrio a essa hora; podia até acontecer que sire Mollisson saísse e - com razão - pasmasse de o ver ainda no Savoy.

Por outro lado, se esperasse no salão, não veria quem saía ou entrava no hotel e acabaria por perder o tempo.

Todas estas reflexões lhe acudiam ao cérebro com verdadeira lucidez. Foi então que lhe ocorreu nova ideia: mandar chamar Nicole, muito simplesmente, por um empregado do hotel.

Não daria o seu nome... Nicole compreenderia! Quem sabe? Talvez estivesse esperando até por aquela chamada...

Trémulo de esperança e de emoção, Harry espreitava pois a chegada da esposa à sala reservada às visitas. A sua convicção de que ela não faltaria era tão grande que Harry se sentia febril. As fontes latejavam-lhe. A despeito da sua habitual fleuma, agora perdida, exteriorizava o seu nervosismo, cortando a grandes passadas o sobrado.

Finalmente, a porta abriu-se. Foi a telefonista que entrou e disse:

- Miss Grammont saiu há minutos...

Blackenfield ficou pasmado. Aquele seu atraso imprevisto desconcertava-o: no entanto, não se inquietou.

Disse consigo que lhe telefonaria mais tarde, quando a calculasse de volta... Para matar tempo, não tinha outra coisa a fazer se não dirigir-se ao Clube, donde novamente a chamaria ao telefone.

Iria a pé. Andar acalmar-lhe-ia o nervosismo. A ligeira decepção que acabava de sofrer abatera um pouco a sua exaltação. Porque se ausentara Nicole na hora em que deveria supor que ele, seu marido, procuraria falar-lhe? Blackenfield compreendia: a ausência e a separação não haviam curado suficientemente o mal nascido entre ele e sua mulher.

No primeiro impulso dissera: «Quero falar a Nicole!» Mas em que disposição se encontraria ela?... Talvez não desejasse esse encontro!

E, maquinalmente, ao admitir esta amarga suposição, abrandara o passo. Houve um momento em que ficou imóvel à beira do passeio.

Próximo, uma florista mostrava a sua garrida exposição de flores. Harry teve súbita ideia; mandaria entregar à esposa um ramo dessas admiráveis rosas que embalsamavam o ar.

«As flores dir-lhe-ão que a trouxe sempre na alma e que aquele a quem procura esquivar-se não cessou de pensar nela...»

Mas, no momento em que procedia à escolha do ramo multicor, pensou nos comentários que poderiam resultar desse envio. Com que direito, aos olhos do Mundo, e sobretudo aos olhos de Mollisson, caso chegasse a saber, se permitia ele, Harry, tal oferta? Mesmo enviado anonimamente, um ramo de flores poderia comprometer Nicole. E o marido que não reivindicara em alto e bom som os seus direitos sobre a modesta professora de crianças, não devia também expor sua mulher à menor suspeita.

No Clube, esperou Harry impacientemente a hora calculada como a melhor para de novo se informar de Nicole. Então, à hora de jantar, quando a esposa se encontrava certamente junto dos seus educandos, ligou e pediu para a chamarem ao telefone.

Desta vez a resposta, categórica, arrasou literalmente lorde Blackenfield.

«Miss Grammont acabava de ser chamada por telegrama para junto dum parente enfermo. Partira imediatamente, uma hora antes, sem poder precisar a data do seu regresso».

Alucinado, Harry depôs o auscultador.

«Nicole partira... achava-se à cabeceira duma parenta enferma... Não estava má a história! Sabia bem que Nicole não tinha mais família, que era absolutamente só no Mundo... Fugia-lhe... não queria vê-lo nem ouvi-lo!»

Caminhava como ébrio quando saiu da cabina telefónica:

«Encontrara sua mulher para a perder em seguida... Era para dar em doido!...»

Como se encontrou dentro de casa depois de semelhante decepção? Nem sabia. Devia ter tomado maquinalmente um carro ao sair do Clube. Há gestos e actos que o nosso subconsciente executa quando o atordoamento do cérebro nos corta o poder de comando.

Aniquilado, no seu quarto, entregou-se Harry a verdadeira crise de desespero; sentia-se arrependido da sua correcção junto de Mollisson.

Não devia ter-se dirigido logo a Nicole e apontá-la, sem detença, como sua mulher? Tal atitude, tal audácia obrigaria a esposa rebelde a explicar-se com ele e a ficar em Londres.

Em vez disso, que fizera? Fora correcto? Quedara frio! Reservado numa aparente indiferença, cometera exactamente aquilo que podia alienar-lhe Nicole...

Pensando assim, tão infeliz se sentia que perguntou à sua consciência se não seria razoável, depois de tamanho erro, meter, simplesmente, uma bala na cabeça!

Ao menos libertar-se-ia desse pesado desgosto de amor que lhe envenenava a vida!... Só então Nicole se compenetraria de que ele a amara até... à morte e se arrependeria e jamais o poderia esquecer...

Nestes pensamentos, concepções insensatas e desmoralizantes, se abismou por largo espaço de tempo. Depois, a lembrança de Lewis atravessou seu espírito. Era a tábua de salvação lançada ao náufrago prestes a afogar-se; e, imediatamente, chamou o detective para lhe dar conhecimento da situação.

- Lewis, venha sem demora falar comigo aqui a casa. Sinto que endoidecerei se fico mais tempo a sós com os meus pensamentos.

Um quarto de hora depois deste pedido de socorro, cujo imperioso motivo Lewis não compreendeu, mas ao qual obedecia, chegava algo admirado junto de lorde Blackenfield.

- Então que há?

Em palavras entrecortadas, quase tragicamente, Harry contou-lhe o que se passara.

A primeira expressão do agente foi a de um mau humor que lhe não era habitual. E não se poupou a recriminações.

- Quanto tempo decorreu, lorde Blackenfield, entre a sua saída do Savoy e terem-lhe dito pela primeira vez que miss Grammont saíra?

- Cerca de três horas.

- Três horas! E é agora que me previne! Que quer que eu faça?... Três horas? Mas era nesse mesmo instante que deveria ter-me avisado... Eu teria logo mandado vigiar as gares, os navios a sair... Teria tomado, enfim, as necessárias disposições para seguir sua mulher!... Sim, senhor! Arranjou-a bonita! Pode gabar-se de ter estragado tudo! Perdeu a melhor ocasião. Que deseja fazer agora, não me dirá?

- Escute, Lewis, e não me apoquente. Eu estou... compreende... eu sinto-me absolutamente esgotado. Tive uma alegria louca, uma alegria alucinante quando reconheci minha mulher. A partir daquele instante já não sabia ao certo nem o que fazia nem o que dizia. Passei a viver num 'estado de sonho louco, fiquei completamente incapaz de pensar noutra coisa que não se circunscrevesse à felicidade de a ter encontrado... Vê-la, falar-lhe, tornara-se uma necessidade infinita, um entusiasmo arrebatado e inefável... uma verdadeira vertigem...

um deslumbramento... E não saí desta volúpia se não no Clube, quando, ao telefone, me informaram de que ela partira... Então, confesso, não sei como não endoideci... A queda era, como compreende, de muito alto... Um trambolhão medonho. A minha cabeça não podia compreender, assim de repente, como e porque razão a felicidade se transmudara em desolação... É o que me falta saber, Lewis... Veja você o assunto, tome conta do caso: repito: eu estou esgotado...

O detective olhou com lástima o seu cliente.

Para que lhe descobrisse daquela forma seus íntimos sentimentos, era preciso que aquele homem se sentisse efectivamente dsmoralizado... mais do que era permitido a um inglês da sua categoria revelar.

E Lewis sentiu-se comovido com a confiança que Harry lhe dispensava.

- Compreendo, lorde Blackenfield- disse com bonomia - que a partida imprevista de sua esposa, depois de tanta canseira para a encontrar, o tenha abalado... Julgo, no entanto, que não deve desesperar... O primeiro impulso de lady Blackenfield foi naturalmente o de fugir... Cuido que esteja metida em qualquer canto... E aí estará até sentir apaziguados os seus receios. Continue nas suas relações com sire Mollisson: Ela há-de certamente escrever-lhe um dia a desculpar-se de não voltar para o serviço dele. Por mim, vou procurá-la...

- Partiu talvez para França.

- É possível; mas, nesse caso, sabê-lo-emos. Na sua precipitação, não poderá servir-se se não do passaporte passado em seu nome... no nome de miss Grammont, evidentemente. Deste modo poderei conhecer e verificar a partida... a não ser que... oxalá que lady Blackenfield haja ficado em Inglaterra... em Londres mesmo...

- Não creio! Seria bom!

- E porque não? Não deve esquecer esta circunstância: agora que viu o filho, quererá tornar a vê-lo... ou vê-lo ainda por despedida... Tenha confiança, lorde Blackenfield, e espere... Persuada-se de que não ficarei inactivo.

Esta afirmativa enérgica de Lewis acalmou Harry; têm os apaixonados ignoradas fontes de esperanças, mais ou menos falazes, que um nada faz renascer.

Dias passaram sem resultado algum. Nem Nicole reaparecia em casa de sire Mollisson, nem Lewis lhe encontrava a pista.

O agente adquirira a certeza de que mulher alguma com o nome ou sinais de miss Grammont atravessara a Mancha em navio ou avião; era tudo quanto o detective concluíra como resultados positivos.

Não representava o esforço grande coisa e lorde Blackenfield recaíra a pouco e pouco em sua negra atonia.

Um dia tomou Harry o pretexto da tabaqueira oferecida a Mollisson para fazer a este nova visita.

Nesse dia pareceu o coleccionador preocupado e pouco inclinado a deixar que a conversação se desviasse do assunto das «tabaqueiras».

Porém, Harry, a quem as decepções sucessivas começavam a tornar menos formalista, perguntou-lhe um tanto à queima-roupa:

- Diga-me, sire Mollisson, não poderei ver, um instante, miss Grammont? Já lhe disse, creio quanto essa pessoa se parece com um antigo conhecimento meu que há muito perdi de vista...

trata-se duma semelhança espantosa, quase inverosímil! Desejaria certificar-me de que nenhum laço de família liga a mestra de seus filhos à pessoa em questão, que eu conheci e desejaria imenso encontrar...

- Desola-me, lorde Blackenfield, o facto de não poder satisfazer o seu desejo - respondeu Mollisson com certa tristeza. - O senhor está abordando um caso que deveras me preocupa: miss Grammont teve de se ausentar há dias, a fim de ir a França tratar duma pessoa de família. Ora miss Grammont escreveu-me anteontem de Douvres a dizer que sua tia não ia melhor e que se lhe tornava forçoso ficar junto dela... Miss Nicole renuncia, como vê, a partir para a América connosco. Estou contristadíssimo... Como encontrar quem a possa substituir?

- Compreendo... Conheço essas coisas. É extremamente aborrecido...

Harry perdia a sua melhor esperança de tornar a ver, nos tempos mais próximos, sua mulher; por outro lado, porém, sentiu como que uma satisfação em pensar que o afecto dedicado por Nicole aos meninos Mollisson não era tão forte que pudesse acorrentá-la a eles.

E, ao sair do Savoy, Harry dizia consigo que a primeira coisa que tinha a fazer era avisar Lewis; desta vez não quereria incorrer na culpa de o fazer tarde de mais.

Dirigiu-se então directamente a sua casa para daí telefonar e livremente falar com o detective.

Ao atravessar, porém, o átrio majestoso da sua moradia, ao encontro de Harry viu miss May, que voltava do seu passeio com Mick.

O pequenito saltou ao pescoço do pai. Estava alegríssimo.

Mas, miss May interveio:

- Não o deve beijar, lorde Blackenfield! O menino está muito mau; fez-me hoje uma grande travessura.

- Sim?

- É verdade! - afirmou com energia a Inglesa.

- Que foi? Diga-me o que foi...

- Imagine, lorde Blackenfield, que Mick desatou a correr para muito longe de mim, andou à vontade pelas áleas de Hyde Park... De repente não o vi... só voltou muito depois! Durante dez minutos procurei-o aflitíssima por toda a parte!

E tomou o fôlego, enquanto o pai se pôs a ralhar com o filho:

- O menino nunca deve afastar-se de miss May! Há malfeitores que podiam aproveitar o ensejo para te fazerem mal, Mick... Bem sabes que roubam as crianças quando não estão perto das nurses... O menino não torna mais, ouviu? De contrário, vejo-me obrigado a castigá-lo... a mandá-lo pôr de joelhos como os rapazes ruins que não obedecem aos pais... Espero que não há-de ser preciso! Ora veremos!

Mick escutava, de cabeça baixa, a repreensão.

Mas o pai notou, entretanto, que no ar confuso do pequenito faltava verdadeira contrição.

Extraordinária alegria coloria o infantil rosto, cujo semblante feliz e triunfante não traía arrependimento.

- Que tens tu, meu filho? - perguntou o pai, admirado.

O pequeno ergueu então os olhos para o seu progenitor. Um belo sorriso confiante distendeu-lhe os lábios e iluminou seus olhos angelicais.

- O que há é que fui encontrar este mauzinho com uma senhora! - explicou miss May. - Estava de joelhos a deixar-se abraçar e beijar sem se importar nada com isso.

- Uma senhora? - inquiriu Harry num estremecimento.

O coração pulsava-lhe com violência; seu pensamento correra para Nicole.

- Sim, lorde Blackenfield - proseguiu a nurse, com indignação - uma senhora... como direi?... pouco equilibrada, porque assim que me viu largou o menino e desapareceu rapidamente.

Atónito, Harry inclinou-se para o filho.

- Que senhora era essa, darling? Mick lançou ao pai seu adorável olhar.

- Não sabes? - explicou sem receio. - Aquela senhora não era a minha mamã pintada... a de papel!... era a outra!... A verdadeira!

- E ela fez-te festas?

- Sim! Muitas... gostei tanto!

Não compreendeu miss May por que motivo lorde Blackenfield, em vez de ralhar com o filho, como deveria, o agarrou fogosamente e o apertou ao peito num estreito abraço, com um ardor que achou quase impróprio da parte dum gentleman da sua estirpe.

Por sua parte, Mick mostrava-se radiante; mas não compreendia por que razão seu pai o abraçava tão estreitamente e tinha os olhos brilhantes... tão brilhantes que se diria estarem neles lágrimas reprimidas a avivar-lhes o brilho...

E essas lágrimas mais não eram que lágrimas de alívio... quase de felicidade!

 

Travaram-se, entre lorde Blackenfield e Lewis, longos conciliábulos aos quais não pudemos assistir, razão por que os não reproduzimos.

De supor é, no entanto, que basto interesse revestissem e tendessem a resultados precisos, porque a vida dos nossos heróis sofreu grave modificação.

Subitamente, lorde Blackenfield deixou de sair com Michaèlis. A nurse ia agora sozinha passear o menino ao Park do Zoo.

Durante esse tempo, Harry de novo começou fazendo grandes preparativos de viagem e, entre o pessoal da casa, murmurava-se que o amo se aborrecia e ia retomar o caminho das índias.

Não tardou mesmo que os jornais dessem a notícia. Pormenorizaram. Antes de embarcar para a Ásia, o viajante demoraria algumas semanas na Cote d'Azur, junto de alguém muito querido, cujo estado de saúde exigia, há dois anos, repouso sob as palmeiras das cercanias de Nice... Toda a gente adivinhou que se tratava de lady Blackenfield; o nome desta não foi, porém, pronunciado sequer. Não estamos, por nossa vez, bem certos de que estas palavras correspondam à exactidão dos factos. Se destes, por tal forma, nos tornamos eco, é simplesmente no intuito de nos aproximarmos, quanto possível, da verdade e de não deixar na sombra o que a opinião pública tão bem acreditou.

Seja no entanto como for, uma coisa podemos garantir: a notícia da partida! Uma bela manhã, debaixo dos olhares benevolentes de certos repórteres, Harry apertou ternamente, uma última vez, nos seus braços a frágil figurinha de Mick e embarcou para o Continente com todas as suas malas e seus aprestos de caça.

A sua partida era agora um facto consumado.

De novo o pequenito se encontrou só, entregue a mãos mercenárias e privado da ternura paternal, à qual tão depressa se habituara.

Contudo, Mick não sofria grandemente aquela ausência. Esforçavam-se por lhe darem certas compensações e miss May afeiçoara-se-lhe tanto que não descurava coisa alguma que pudesse ser-lhe agradável.

Essa excelente rapariga, cuja ciência de nurse era realmente maravilhosa, recebera determinadas instruções às quais inteligentemente se curvava, embora muitas delas a tivessem deixado boquiaberta.

Recomendara-se-lhe, entre outras coisas, que não se opusesse às efusões de Mick com a desconhecida encontrada em Hyde Park! Devia mesmo, a esse respeito, mostrar-se condescendente e inclinada a não restringir ou evitar a aproximação da estranha e do pequenito. Dera-se-lhe como razão o bem deste; primeiro porque sofrera até aí a privação de femininos carinhos, depois por outras razões de família, das quais haviam feito reserva.

E como a nurse fosse muito dedicada à criança, Lewis, que recebera de lorde Blackenfield certos poderes a exercer na sua ausência, Lewis, dizíamos, não ocultou por muito tempo mais as razões que exigiam a aproximação entre a criança e a dama de Hyde Park.

«Essa senhora - explicou - era uma prima de lorde Harry, malquistada, havia anos, com a família Blackenfield, em consequência de certa questão de interesses. Como essa questão era, em verdade, absurda, esperava-se que o natural encanto da criança fizesse a união... Miss May deveria conduzir-se portanto de forma a não criar obstáculo algum a tal reconciliação... Contava-se mesmo com a sua habilidade feminina para que a amiga de Mick ignorasse sempre que ela, nurse, estava no segredo do caso e também de que recebera tal recomendação».

Miss May, de si muito romanesca, sentiu-se encantada de representar um papel nessa deliciosa história de família e com grande tacto se desempenhou da parte que lhe fora confiada.

Mick encontrou então várias vezes a estrangeira de formoso sorriso acolhedor. Uma espécie de irresistível atracção misteriosa parecia unir a jovem à criança; e, embora a correcção inglesa não permitisse grande intimidade entre o filho dum lorde e uma desconhecida, inúmeras vezes sucedeu que a mãozinha rechonchuda e rosada ficava prisioneira por instantes na mão branca que afectuosamente a premia.

Quanto a miss May, tão intimamente orgulhosa se sentia de que uma parenta de lorde Blackenfield se mostrasse benevolente e amável com ela, que não teve se não sorrisos e palavras agradáveis para a grande amiga de Mick.

Tudo caminhou assim durante algum tempo. Depois, um belo dia - decorrera uma semana apenas sobre a partida de lorde Blackenfield - miss May, pasmada com novas ordens dadas por Lewis, preveniu a desconhecida de Hyde Park que por pouco tempo mais teriam ocasião de se encontrarem.

- Porquê? Vão viajar? - perguntou a jovem, cujo rosto entristeceu subitamente.

- Recebi o encargo de conduzir o menino à Escócia, onde permanecerá até que passe a época dos grandes frios.

- Na Escócia?... Isto é: muito longe daqui?

- Sim, muito longe... na ilha de Skye... Lorde Blackenfield possui aí uma propriedade.

A desconhecida parecia aterrada. Miss May condescendeu uma confidência:

- Não sei se acompanharei Mick até lá. Estou noiva dum rapaz, aqui em Londres. Ele queria casar antes que eu partisse por tanto tempo... Estou deveras embaraçada com isto...

- Mas, se deixa o menino, quem se vai ocupar dele?

- Parece que lorde Blackenfield, antes de partir, deu as suas ordens no sentido de me darem como adjunta uma institutrice... simplesmente para que o menino aprenda a língua e a oiça diariamente... Julgo, portanto, que se me for embora será essa adjunta quem passará a tomar conta de Mick.

- E já encontraram essa institutrice? - inquiriu a estrangeira, cujos grandes olhos de oiro pareciam nimbados de melancolia.

- Não, ainda não. Mr. Lewis, o procurador de lorde Harry, perguntou-me esta manhã se eu não conhecia alguém digno de ocupar este cargo... Prometi ver se sabia... Não me parece muito difícil encontrar uma institutrice! Creio que, se Lewis puser um anúncio, receberá mais de cem respostas!

- Evidentemente - concordou a jovem senhora com súbito clarão no olhar, mas como se não aprovasse o meio proposto pela nurse. - As institurices são às dúzias, à procura de colocação! A crise faz com que muitas pessoas sem qualidades se improvisem educadoras. Quanto a mim, se me encarregassem de tão delicada missão, não gostaria de confiar uma criança à primeira desempregada que aparecesse... É uma responsabilidade muito pesada que a miss põe sobre os ombros!

- Compreendo-o bem! E é exactamente por isso que hesito em deixar partir Mick, entregue a uma estranha... Sabe Deus em que mãos o menino pode cair!

Passaram a falar doutra coisa, mas sem interesse. Tornava-se visível que a desconhecida e a nurse se sentiam ambas preocupadas com o mesmo assunto.

Agora, como a hora do five o’clock chegasse e miss May chamasse Mick, a estrangeira pediu à nurse que lhe desse o endereço de Lewis.

Para miss May este pedido pareceu-lhe uma coisa estupidificante:

«Quereria a parenta de lorde Blackenfield ocupar-se pessoalmente de arranjar a desejada institutrice para Mick? O caso tornava-se deveras romanesco!...»

Miss May enganava-se.

A certeza de que o marido se encontrava longe das costas inglesas tranquilizava Nicole e dava-lhe audácia. Por momentos, encarara a possibilidade de educar o filho e de partir com ele para a América, país de que conhecia os recursos e onde sabia poder governar-se. Mas o pensamento de que esta «passagem de mãos» se tornaria prejudicial para Mick, contivera-a: o filho de lorde Blackenfield estava talvez destinado a ocupar uma alta situação em Inglaterra e ela, sua mãe, não tinha o direito de o privar das vantagens que a razão do seu nascimento lhe dava.

Contudo, na ausência do pai, Nicole podia, com absoluto direito, entrar na posse do filho, e esta era a reivindicação que tinha a expor ao procurador de Blackenfield.

 

Confortavelmente instalada num bom fauteuil da carruagem-salão do Flying Scotsman, do comboio de luxo, directo entre Londres e Glásgua, Nicole via passar ante seus olhos sonhadores as paisagens e as aldeias.

O Verão desdobrava agora por toda a velha Inglaterra o seu esplendor e as suas florescências triunfais. Por toda a parte as cercas e os bosques ofereciam aos olhos essa cor de esmeralda, fresca e brilhante, essa maravilhosa tonalidade das paisagens inglesas que, mesmo sob um sol radioso, têm sempre consequentemente a humidade duma chuvada recente.

No meio das pradarias e campinas, os caminhos direitos ou sinuosos dir-se-iam áleas caprichosamente dispostas. As casas mostravam-se alegres com suas numerosas janelinhas e seus grandes telhados em bico sobre as fachadas, e estas quase sempre revestidas de hera ou de flores de trepadeira.

Não poderia Nicole escapar à influência benfazeja dessa atmosfera tranquila.

Sentia subtilizada e aberta a alma, como a pode sentir um convalescente após longa e cruel doença.

Na mornidão da carruagem doirada pelo sol, Nicole ousava lançar um olhar sobre o passado, tão próximo e doloroso, o passado de que lhe parecia ter-se evadido.

Quase sem amargura, agora que a felicidade se abria para ela, deu-se a evocar os meses amargos passados na casa de saúde, em França, seguidamente à sua fuga da herdade de Mrs. Berry...

Logo que se afastara de Kensington, não tivera se não uma ideia: fugir! Sentia que, no seu país natal, a boa Delfina a acolheria e acarinharia tal qual como quando em pequenina, ao ficar sem mãe.

Tivera a coragem de tomar lugar no comboio, depois no vapor... sem se deter. Em Diepe sentira-se esgotada. No hotel, onde se hospedara, sofrera horrível acesso de febre, seguido dum estado de completa prostração que durara alguns dias.

O médico, chamado urgentemente, prescrevera-lhe a entrada numa modesta casa de saúde nas proximidades de Diepe. Nessa casa teria a calma e o sossego indispensáveis ao seu restabelecimento. E na planície normanda, no meio da verdura e das flores, vivera, ou antes vegetara, quase sem dispor da faculdade de pensar, durante meses.

Todo aquele primeiro Verão o passara estendida num divã à sombra das macieiras carregadas de frutos, no meio dum fresco prado.

Relembrava essas longas semanas em que, prostrada na sua fraqueza física e perdida na bruma do seu cérebro desfalecido, quase não falava, fugindo instintivamente dos outros enfermos, no convívio dos quais se tornaria mister quebrar o seu silêncio e o seu isolamento.

Por companhia tivera apenas, naquele tempo, uma doce rapariguinha de dez anos, pálida e nostálgica que fazia rodar para junto dela a sua cadeira de rodas e ficava horas e horas silenciosa, a enfiar numa linha inúmeras margaridas com que fazia floridos colares para a sua amiga.

Até que um dia Nicole se sentiu curada fisicamente; a chaga aberta em seu coração, essa não sararia provavelmente mais; porém, a força da sua juventude triunfara do formidável choque nervoso: restabelecido o corpo tinha agora no espírito a força necessária a encarar a vida, frente a frente.

Quisera, ao sentir-se curada, retomar o caminho do Ragon, direita à velha criada que a receberia maternalmente. Para não lhe causar emoção forte de mais, escrevera antecipadamente a Delfina, a anunciar-lhe a sua chegada.

Durante três ou quatro dias esperara resposta. E foi a sua carta que voltou... trazendo escritas pelo empregado do correio estas palavras cruéis na sua concisão: «Destinatária falecida no mês passado».

Sentira Nicole profundíssimo desgosto ao receber tal notícia. Tinha pela boa velhota sincero afecto. A sua perda tê-la-ia sensibilizado em qualquer ocasião; mas, nas dolorosas circunstâncias em que se encontrava, a desaparição de Delfina ficava como símbolo da fatalidade e do isolamento que a perseguia.

O único ente que a teria podido amar e consolar, também não existia já.

Estava sozinha no Mundo! Ninguém mais se interessava por ela!

Ninguém?... Alguém, talvez: o duque de la Muette.

Mostrara-se sempre bondoso com ela... Para mais, era agora seu primo... Mas Nicole não sentira vontade de ir ao encontro dele, justamente porque era seu parente ou melhor: parente de Harry... Não sentia coragem de se avistar ou entender com quem quer que fosse que pudesse estar em ligação com seu marido... Não queria tão-pouco que este pudesse descobrir-lhe o rasto.

E na sumptuosa carruagem-salão do Flying-Scotsman, a jovem teve ainda um estremecimento ao lembrar-se desse período da sua vida em que de tudo e todos fugia instintivamente, como animal acossado. Os seus recursos não eram inesgotáveis. Para os aguentar necessitava de arranjar uma situação.

Com a saúde, viera-lhe a firme e tenaz esperança de voltar a ver o filho. Queria viver; e para viver devia trabalhar.

Agora, enquanto rodava para o Norte, direita ao próximo encontro com o seu Mick, encontro que seria talvez passageiro e breve mas que ia dar-se, Nicole felicitava-se de ter sabido esperar...

E já se via de volta a Paris em procura dum emprego. A sorte havia-a favorecido, fazendo-lhe encontrar um lugar de governanta junto dos filhos de sire Mollisson, um Americano de passagem na capital francesa e cuja esposa, muito doente nessa época, não podia ocupar-se das crianças de que era mãe extremosa.

Sire Mollisson ocupava então o posto de adido da embaixada no México. Como tivesse de ir ocupar o seu lugar, deixara na Europa a esposa, muito combalida, para poder viajar, e entregara os filhos à guarda duma nurse experimentada, mas sob a vigilância moral de Nicole. A fatalidade parecia no entanto perseguir a família do diplomata; meses depois a senhora Mollisson morria na clínica, de que não chegara a sair, e o viúvo mandava ir para junto de si os órfãos, e com eles a nurse e Nicole que, a fim de não perder a sua colocação, aceitara o exílio.

Fora então, antes de partir, que a filha do falecido Grammont ousara fazer rapidamente, e sem ir ao palácio de la Muette, uma visita aos túmulos dos seus queridos mortos.

Foi com a indiferença própria dum coração ferido que Nicole vira depois as belezas selvagens da terra mexicana e as cidades ultramodernas dos Estados Unidos, cidades que teve de atravessar à ida e à vinda.

Mas tudo isso representava agora o passado, classificado, abolido... quase esquecido já!

Que de lembranças recentes eram mais vivas e perturbadoras!

Seus primeiros dias de felicidade datavam da leitura desse jornal ilustrado que lhe havia caído sob os olhos, em Londres, e no qual deparara com a fotografia de lorde Blackenfield e do filho!... Seu filho... tão lindo! Tão alegre! Que vivia a alguns passos dela, na mesma cidade, o filho adorado que ela poderia ver!

E recordava o primeiro encontro a medo, o encontro em que o vira de longe, de muito longe... sem que ninguém pudesse notá-la, no Palácio de Cristal... e depois mais três ou quatro encontros tão bem preparados pelo seu coração de mãe... Enfim, obtivera a recordação mais doce: o beijo dado, ou melhor: roubado na face de Mick, um dia e no momento em que a nurse olhava para outro lado...

Depois, mais próximo ainda: o imprevisto teatral do aparecimento de Harry em casa de sire Mollisson.

Ah! A enlouquecedora sensação desse encontro! O marido acabara por a encontrar... E olhava-a, estupefacto, furioso por a encontrar no seu caminho... dentro daquela função de preceptora de crianças, ao serviço dum amigo seu!

Quanto a ela, Nicole, não sabia analisar os múltiplos sentimentos que experimentara: a humilhação do seu emprego subalterno, a perturbação, a comoção de tornar a ver o marido tão amado outrora, o receio de sofrer mais, o medo pelo homem que não cessara de ter direitos sobre ela... Não, não saberia dizer de todas qual a sensação que predominara. Duma coisa estava bem certa: era de que havia reagido e que fugira dali, instintivamente, e fora esconder-se numa pensão familiar num dos subúrbios de Londres, onde esperara a sequência do caso ocorrido. E nem mesmo a Mollisson dera conhecimento da sua retirada.

Fora preciso ter lido aquele artigo de jornal que relatava a nova partida de lorde Blackenfield para longe das ilhas Britânicas, para que Nicole se animasse a sair do seu refúgio e a afrontar, de novo, as ruas da capital inglesa.

Depois, seguidamente, tudo parecera combinar-se de molde a favorecê-la. Dir-se-ia que, após tantas infelicidades e torturas, o Céu se comprazia em compensá-la. Então em poucos dias a sorte aproximara-a do filho... tivera nos braços o seu querido Mick... e, agora, ia vê-lo de novo e viver junto dele, pois que nem sequer se havia discutido o seu desejo de estar junto dele até o regresso do pai.

Como era belo o sonho que se realizava! O seu filho, o seu menino todo rosado e loiro junto de quem ia viver largo tempo...

Nem queria pensar no momento em que terminasse esse período... Para que pensar já na época em que de novo teria de o deixar... de partir para longe do seu querubim... o que sucederia logo que Harry voltasse a Inglaterra?

Não. Não devia nem queria pensar nisso. Seria preferível rememorar a sua visita a Lewis, visita que lhe valera tamanha felicidade.

Que bem decorrera e terminara aquela sua visita! E sentia-se ainda como aturdida da facilidade e da rapidez com que tudo se arranjara.

Um verdadeiro caso de sorte de que havia de se lembrar sempre, mil anos que vivesse...

E parecia-lhe estar vendo ainda a chegada a casa do «procurador», com o coração palpitante. Que instruções poderia ter recebido o procurador de Blackenfield contra ela, pobre mãe fugida ao despótico jugo marital?

Antes de visitar Lewis, dera-se a imaginar as mais desagradáveis suposições e eis que encontrara no suposto procurador um homem cortês e amabilíssimo, que lhe dissera logo:

- Nada mais legítimo que o seu desejo, lady Blackenfield. Demais, seu marido, quando da primeira viagem que fez às índias, há mais de dois anos, já então me deixara especiais instruções a seu respeito... instruções que não revogou depois.

- Que instruções foram? - balbuciou Nicole com o coração a bater impetuosamente.

- Em primeiro lugar, dar-lhe a possibilidade de viver junto do menino, se lady manifestasse tal desejo... e, em segundo, pôr à sua disposição os diferentes domínios de lorde Blackenfield, para o que os servos receberam ordens cabais... Muito em breve lhe permitirei, lady Blackenfield, que na ausência de seu esposo frua inteiramente na companhia de seu filho quanto lhe pertence em Inglaterra.

- Foi meu marido quem assim determinou? - perguntou, admirada.

- Ele próprio.

- ... Sobre Mick... quanto a poder tê-lo comigo... também?

- Absolutamente.

Por instantes, Nicole sentira-se aterrada. Dessa forma, a cólera de Harry contra ela fora apenas passageira e sem fundamento... cólera de homem embriagado, sem continuidade, a bem dizer!

Era extraordinário! Quem o poderia imaginar!

Sofrera durante tanto tempo e tão lamentavelmente que se sentia como que emparvecida ao compreender o seu inútil martírio. Devia ter mudado de cor, porque Lewis, iludido sobre o verdadeiro motivo da sua perturbação, se apressara a serená-la:

- Sente-se mal, lady Blackenfield? Estenda-se um bocadinho neste divã, peço-lhe: far-lhe-á bem. Vou mandar preparar um cordial.

Nicole ficara rígida, porém, na cadeira de alto espaldar, e o detective correra a preparar certa mistura de mentol e álcool, enquanto retomara completamente a noção das realidades.

Pois pudera ser tão extraordinário esse mal-entendido que a levara a sair de sua casa! Que ironia da sorte determinara tal destino?...

o furor de seu marido fora superficial... Harry não pensara mais naquilo, enquanto que ela, pobre mãe, crucificada no seu amor maternal, penava doloridamente numa casa de saúde... sozinha, abandonada, sem esperança... desejando quase a morte!

Com os olhos marejados de lágrimas, que Nicole não quisera deixar deslizar, aceitou a beberagem preparada por Lewis.

Apiedado por esse breve delíquio, que não pôde evitar, o detective olhava-a penalizado e constrangido, como se fora responsável pelos erros do seu cliente.

- Se soubesse, minha senhora, quanto lorde Blackenfield tem sofrido com a sua ausência! - murmurou.

Como táctica melhor, parecera-lhe não dever ocultar de Nicole que ele, Lewis, estava no conhecimento da situação dos dois esposos. Assim, o que se dissesse nesse dia, visava a tornar inúteis mais explicações quando se encontrassem marido e mulher.

Nicole ergueu os olhos e fixou-o pensativamente.

- Ele tirou-me o meu filho-dissera então lentamente, como que a desculpar-se do seu procedimento.

- Acto realmente inqualificável de que lorde Blackenfield bem se arrependeu e de que nem mesmo queria lembrar-se.

- O que não impediu que o tivesse feito!

- Mas...

- Eu não vi se não a sua cólera insensata e as suas injustificadas recriminações...

- Entre esposos acontece, por vezes, como sabe, trocarem-se palavras imerecidas... Depois... quantas vezes!... uma hora mais feliz basta para depor as coisas na devida ordem...

- Não creio que uma hora mais feliz baste a fazer esquecer... o que é inesquecível!

- Foi a certeza disso mesmo que levou lorde Blackenfield a expatriar-se. Quando partiu para as índias, lorde Harry abdicou, minha senhora, de todos os seus privilégios e depô-los a seus pés... se lady tivesse voltado para casa, logo compreenderia que seu marido subordinava tudo, a vida inteira, ao desejo do seu regresso.

- Será então por isso que ele partiu de novo... depois de, por acaso, se ter encontrado comigo?

- Cuido que lorde Blackenfield quis deixar-vos viver livremente junto do- vosso filho.

- Viver na companhia de meu filho!-repetiu Nicole com doçura. - É esse o meu maior sonho... Posso então tomar conta de Mick... levá-lo para França?

E seus olhos luminosos interrogavam ansiosamente Lewis.

- É absolutamente senhora de fazer da criança o que lhe agrade... mas, se me permitisse, ousaria sugerir-lhe uma ideia...

- Qual?

- A de que o clima de Skye faria imenso bem a seu filho, atendendo a que foi educado na Escócia.

- Em Sea-Foam?

- Não... em Sunner.

- Mas a ilha de Skye, porquê?

- Porque o seu clima doce e húmido no Verão é excelente para as crianças... porque Sea-Foam foi a casa materna de lady Blackenfield, a mãe de lorde Harry... porque, enfim, ali, naquela maravilhosa solidão, no meio das encostas, das pastagens e das colinas selvagens, uma mãe pode escutar melhor o coração da criança de que se encontrou privada... Que Vossa Graça me perdoe, mas eu assim creio... creio que Sea-Foam seja o ponto ideal, a paragem sonhada para essa vida íntima que se propõe fazer.

- Foi lorde Blackenfield quem escolheu esse ponto para Mick, não é assim? - interrompera com certa vivacidade.

A despeito da sua habitual doçura, teve uma espécie de orgulhosa revolta contra a estranha autoridade que podia entravar ainda a sua independência.

Como Lewis não respondesse, Nicole repetiu mais imperiosamente a sua pergunta.

- Sim - respondeu Lewis por fim. Depois, num tom mais humilde: -:Foi lorde Harry; mas pensou-o subordinando contudo essa vontade à sua aceitação. Os seus desejos, lady, são ordens... Lorde Harry dá-lhe ampla e absoluta liberdade de ir para outra parte se qualquer outra lhe for mais do seu agrado.

Esta submissão venceu a ligeira revolta de Nicole.

- Pois bem: irei para Sea-Foam - decidiu ela. - Partirei com Mick no fim da semana.

- Seu filho deve ter saído de Londres esta manhã, com a nurse - informou Lewis brandamente.

- Já?

- Sim... Eu não tinha, como calcula, previsto a sua vinda aqui... Mas vou telegrafar imediatamente, a fim de que preparem tudo para receber lady... Daqui, se mo permite marcar-lhe-ei lugar no Flying Scotsman e prestar-lhe-ei todas as indicações necessárias para atingir Mallaig e a ilha de Skye.

Nicole aceitava... simplesmente maravilhada ao ver como tudo corria e se arranjava ao sabor de seus desejos...

E cessava de relembrar todas estas recordações no momento em que o comboio entrou na gare de Glásgua.

 

Dois dias depois ainda Nicole julgava estar sonhando...

Sonho - esse pôr-do-sol maravilhoso sobre as águas calmas do canal de Raasay, no cenário incomparável de grandeza e majestade formado pelos cumes de Cuilion-Hill, nas costas mais longínquas da Applecross. Todas essas terras cortadas, penetradas pelo loch, o braço de mar sinuoso que o desfalecente sol tingia de púrpura e oiro...

Sonho - esse acordar no hotel que dominava a cidade de Mallaig, onde tivera de passar a noite para, de barco, continuar a viagem no dia seguinte ao romper da alva, depois de, ao abrir a janela, se sentir deslumbrada ante o magnífico espectáculo da baía cintilante nas brumas irisadas pelo clarão da aurora.

Sonho - essa longa viagem de barco, seguindo as sinuosidades do Sleat-Sund, por entre as maravilhas dos rochedos denteados amontoados num caos grandioso.

Sonho - a chegada à ilha onde o automóvel de Sea-Foam viera esperá-la e a levara, ao clarão de um admirável luar, através das paisagens esplêndidas, alternadamente estranhas ou familiares, a caminho do velho solar de Blackenfield.

Sonho... Maravilhoso sonho o da chegada a Sea-Foam!

Tudo parecia dormir sob a luzerna do luar. A pesada massa de alvenaria, fazendo corpo com a rocha, alargava sua extensão imponente e obscura acima do luminoso mar prateado...

Ao aproximar-se o automóvel, uma luz cor-de-rosa se divisava acesa na névoa luarenta e miss May vinha recebê-la e saudá-la.

- Seu filho, minha senhora, dorme profundamente - dissera, num sorriso. - Venha vê-lo. Dorme como um anjo.

Subiram pela escada circular até uma torre de ameias que lembrava a torre de um farol. Os degraus eram formados de pesadas pedras cinzentas que pareciam húmidas e cheiravam a maresia. No quarto de Mick, iluminado pela doce claridade duma lamparina de azeite, a criança dormia sob um montão de rendas. De olhos fechados, sua loira cabeça repousava no travesseiro bordado; a pequenina mão ficara agarrada a uma das barras do leito.

E esse instante fora então o mais doce do sonho!...

Imóvel, contendo a respiração para não acordar o filho, a mãe quedara embevecida na sua contemplação... com toda a sua vida concentrada nos olhos... Seu filho! O seu pequenino adorado dormia ali ante o seu olhar... tão perto de si que, vendo-o, cuidava sonhar ainda...

Mas a leve respiração, bem ritmada, mostrava-lhe a realidade... e tanto assim que aquela pequenina mão, quente e tentadora, estava ao alcance de seus lábios ávidos.

Então... muito docemente... aflorando apenas os dedos frágeis... a juvenil mãe pousou um longo tímido beijo na graciosa mão pendida.

Depois a vida organizou-se em Sea-Foam num ritmo estranho que continuava para Nicole a mais maravilhosa e fantástica das quimeras...

O primeiro encontro entre ela e Mick, ao acordar, tornou-se inesquecível. Por simples coincidência e sem dúvida porque sempre gostara dessa cor, Nicole vestira um vestido de azul suave, semelhante ao do opulento casaco de veludo que Mick ia saudar diariamente. Note-se que a mãe ignorava este tributo de ternura.

Assim, quando o pequenito a viu entrar no quarto com aquele vestido, com seus olhos profundos e seu melancólico sorriso, igual ao da tela, admirou-a com certa curiosidade.

Nicole olhou-o também imóvel e comovida com o profundo olhar que o filho lhe dançava.

De repente, o pequeno aproximou-se; seu rosto tornara-se radiante. Com mão hesitante tocou no vestido da mãe; depois, timidamente, examinou Nicole como se quisesse certificar-se de que estava em presença duma pessoa viva.

- Mamã! Minha linda mamã!...

A melodiosa voz elevava-se triunfantemente:

- Já não é a minha mamã de papel... É a verdadeira!

Nicole teve um deslumbramento; quase não queria crer no que ouvia. As duas pequeninas mãos agarraram-se-lhe ao braço e fizeram-na curvar, para um beijo.

Louca de amor, a mãe abraçou-se com o filho.

- Minha linda mamã!... Minha verdadeira mamã!

- Meu querido filho... meu pequenino Mick!

Lágrimas de felicidade alagavam os olhos ternos de Nicole...

Mas a graciosa vozita infantil segredava agora ao ouvido da mãe as suas confidências...

- A minha verdadeira mamã... não é a outra.

- Qual outra?

- A outra mamã!

- Não te compreendo, darling. Onde é que tiveste outra mamã?

- Lá em casa!... Com o papá!

Embora tivesse nos braços o filho finalmente encontrado, Nicole não podia ficar indiferente ao que ele lhe dizia como informe.

- Tens outra mamã, meu querido? - perguntou com surpresa.

- Tenho lá... no quarto... do papá!

- Em Londres? - inquiriu Nicole, cada vez mais estupefacta.

- Yes! Lá mesmo.

- Uma segunda mamã... estás certo do que dizes?

- Sim... uma mamã de papel... não a verdadeira! Não tu...

- Ah!

E havia um verdadeiro desapontamento nesta exclamação. ..

Nicole, tomando noutro sentido os termos infantis empregados pelo filho, acreditou imediatamente que havia outra mulher na vida do marido.

Uma verdadeira mamã não podia ser se não aquela que os laços de sangue uniam a Mick... Ao contrário, uma mamã de papel, como dizia o pequeno, devia ser somente a madrasta que o estado civil concedia em regra aos órfãos.

Triste, Nicole apertou ao seio o filho com fervorosa emoção. Não a ameaçaria ainda outra desgraça?

«Que Deus salve o meu filho dessa madrasta!» - pensava ardentemente.

Porém, sentia-se receosa de que tal prece chegasse tarde. Já o seu cérebro maquinava...

Que se teria passado em Inglaterra durante os dois anos da sua ausência? Lorde Blackenfield havia talvez pedido e obtido o divórcio contra ela - o que não era de admirar, pois fora Nicole quem abandonara o domicílio conjugal.

Nunca quisera examinar esse aspecto do caso, nem tão-pouco se dera ao trabalho de analisar como se faziam ou desfaziam os casamentos em Inglaterra... Harry devia, contudo, estar em dia com o assunto... Divorciado, deveria ter-se casado segunda vez, visto que o pequenito falava duma outra mãe... Por que motivo Lewis não lhe dissera então nada? Mas porque aceitavam também que ela, Nicole, tomasse agora conta do filho?

Justamente, Mick insistia, com os olhos risonhos e contente de dar agora pormenores àquela «mamã que mexia as mãos e que tinha boca para falar e beijar...»:

- Mick levava flores à outra... ao quarto do papá.

Fez uma pausa; prendeu a cabeça de Nicole entre as mãos para melhor reter a atenção - e mergulhando seu olhar encantador nos olhos maternais, explicou-se como que num deslumbramento:

- A outra nunca abraçava Mick... Nunca! Não era uma mamã verdadeira.

Adivinhava-se a emoção que semelhante frase fazia correr em todo o ser de Nicole... Vencida, trémula, apertava Mick nos braços e cobria-o de beijos.

- Meu querido filho! - repetia com paixão... - Meu lindo amor. Só eu sou a tua mãe e nenhuma outra, meu filho adorado!

Mick resplandecia de felicidade, e, com o ar desdenhoso dos garotos quando se apercebem do erro cometido por uma pessoa adulta, explicou:

- O papá dizia: é a tua mamã, mas Mick sabia... sabia que não era a verdadeira... A verdadeira diz «bom-dia» com a sua boca, como a mamã do Roby... O papá não sabia!

Belo este grito de triunfal vitória que iluminou inteiramente o rosto infantil.

Nicole abriu a boca para interrogar o baby e fazer-lhe precisar certas minudências que lhe escapavam, quando um pensamento imperioso subiu, nesse instante, do fundo da sua alma leal e recta:

«Ela não poderia interrogar o filho de forma que a interrogação fosse contrária ao pai. Seria indigno da mãe que ela queria ser! A boca inocente não devia, mesmo inconscientemente, trair o pai, ou seja: aquele a quem um filho deve sempre respeito e amor...»

- Não falemos mais da outra mãe, meu filho... Estamos juntos e é o que importa à felicidade de nós ambos.

Os lábios da jovem mãe exprimiam essa radiosa certeza, como se um belo sonho se houvesse materializado; e, no entanto, a fronte juvenil continuava nimbada por invencível melancolia.

- Mick está muito contente! - tornou o pequenito, cujos braços continuavam passados ao pescoço de Nicole.

Pela primeira vez o pequenito fruía a doçura dum amor atento e dedicado, como ninguém ainda lhe dispensara - e por isso abusava um pouco.

- Mick está contente - repetia. - E é preciso que a minha linda mamã também o esteja.

Nicole estremecia, admirada com aquela presciência da criança. Esforçava-se por sorrir.

- Oh! Mas eu também o estou, darling, também me sinto contente.

- Então, ria-se, minha mamã verdadeira... ria-se como a outra.

De novo Nicole sentiu apertar-se-lhe o coração; não queria, contudo, privar o filho do sorriso que ele tão ingenuamente lhe pedia.

- Meu querido baby! - exclamou, pois, alegremente. - És um tiranete adorável, um despotazinho encantador.

E, com docilidade, sorria, abraçando-o. Mas, ao apertar apaixonadamente ao coração o filho, a mãe pensava no marido... naquele que ali deveria estar junto deles... no pai famigerado que um dia surgiria talvez para de novo os separar...

 

Nicole e o filho conheceram em Sea-Foam tardes e horas de tão feliz intimidade que pareceram à jovem mãe como que uma compensação provinda do Céu, a fim de lhe fazer esquecer os dias amaríssimos do seu exílio e do seu abandono.

Poucos dias depois da sua chegada ao castelo, miss May despedia-se. A nurse era chamada a Londres; o noivo reclamava um tanto imperativamente o seu regresso.

Mick e a mãe ficaram então sós na velha moradia solitária, edificada sobre o mar, enraizada no mesmo bloco de rocha com que fazia corpo para a ajudar a afrontar névoas e tempestades... Paisagem de sonho, duma beleza selvagem.   Sea-Foam em inglês significa «espuma do mar». Não podia estar mais bem posto esse nome, pois o antigo solar recebia de maré em maré mais rolos de vagas que um navio ao fender as ondas do oceano...

Mesmo no Verão, com o tempo relativamente calmo, por todas as estreitas janelas abertas para o largo via-se o mar escumante dançar entre os rochedos da costa.

Esta solidão, no meio duma casa situada em região cuja língua compreendia mal, permitira à jovem lady a maior liberdade; agora podia ser verdadeiramente a mãe de seu filho, abraçá-lo sem constrangimento, prodigalizando-lhe todas as expansões do amor maternal transbordantes em seu coração.

Dirigia a casa, os servidores obedeciam. Tudo decidia; finalmente, só com Lewis mantinha correspondência, a fim de prestar notícias de Mick ou receber os fundos necessários, E depressa viveu oficialmente em Sea-Foam usando o seu verdadeiro nome de lady Blackenfield; e conheceu então mais independência e liberdade no velho ninho dos «lochs» escoceses que as fruiria em outra qualquer parte.

Fazia um tempo lindo e quente; mãe e filho andavam quase constantemente por fora, em digressões pelos matagais, escalando as colinas ou passeando à beira-mar, na praia soalhenta que as alturas de Cuilion-Hill, na lonjura, abrigavam dos ventos do norte.

Mick não tornara a falar a Nicole da «outra mamã» que ficara em Londres; e a jovem, cuja melancolia voltava ao mais leve pensamento, evitava tocar no assunto doloroso que transformava o futuro de seu filho em angustiante ponto de interrogação.

Ao princípio, pensara em interrogar directa e claramente miss May; porém, a nurse partira antes que Nicole houvesse encontrado ocasião propícia.

Entretanto, salvo o pequenito, de quem ela se recusava a colher a menor informação, não tinha em Sea-Poam ninguém que conhecesse a vida privada, em Londres, do proprietário daquela casa.

Para mais, não era dos assuntos em que gostava de tocar... Sabia que lorde Blackenfield partira por tempo indefinido e não queria pensar no seu regresso... ocasião em que a apartariam, provavelmente, de seu filho.

Agradava-lhe mais imaginar que a ausência do marido se prolongaria por longos meses, como quando da sua anterior viagem às índias.

Vivia junto do filho, podia dar livre curso à sua ternura maternal - porque havia de lançar importuna sombra nesse maravilhoso espaço de tempo?

Harry riscara-a da sua vida; nem ela queria existir mais para ele nem queria que ele se ocupasse dela.

Sentia, no entanto, involuntária aguilhada no coração ao lembrar-se de que «outra mãe existia, à qual Mick devia levar flores, diariamente». E bastava isso para que Nicole reagisse e desfizesse a importuna sensação, substituindo-a por outra: Com nova mulher ou sem ela, lorde Blackenfield não contaria mais na sua vida, a não ser sob o aspecto da sua paternidade. Era o pai de seu filho e, nessa qualidade, podia privá-la arbitrariamente de ver a criança...

Fora deste liame deplorável, jamais existiria para ela o poderoso lorde que não deveria nunca ter desposado a filha dum simples guarda-mor.

 

A grande sala de jantar de Sea-Foam, austera e simples com seus belos móveis antigos, não era desprovida de elegância.

Alguns retratos dos antepassados de Blackenfield, que o ar do mar levemente empanara, mas que não conservavam por isso menos majestade, davam à vasta sala certo tom aristocrático, ao passo que um fofo tapete do Oriente, estendido sobre as lajes brancas, tornava mais confortável o nobre aposento.

Três varandas, estreitas como todas as aberturas da casa, por causa da violência do vento, davam acesso a uma espécie de terraço sustentado por espessa parede aprumada sobre o mar.

Era como a proa dum navio... Nada diante dos olhos. Só o movimento das ondas... a vastidão... o infinito...

Estendido numa chaise-longue, colocada ao ar livre mas bem abrigada do vento, Mick dormia o sono da sesta cotidiana. Nicole achava-o muito pequeno ainda para se conservar acordado durante toda uma comprida tarde de Verão e exigia por isso que o filho repousasse durante as horas mais quentes desse abafado mês de Agosto.

A alguns passos dele, na grande sala de ventiladores abertos, a mãe vigiava o filho e, para povoar o espírito, tentava exprimir musicalmente no teclado dum velho piano de sons ensurdecidos o que o seu coração continha de sonhadora poesia.

Envergava um formoso vestido de seda clara cujo corte leve lhe dava a fragilidade duma figurinha de Tânagra. Nicole garria-se para seu filho, único admirador de seus inexcedíveis encantos. Não tinha para a estimular ou para lhe agradecer tornar-se tão bela, esse grito que Mick soltara no primeiro dia em que a vira, grito que a seus ouvidos soara como o mais suave dos cânticos?

«- Minha linda mamã!»

Sobre as teclas amareladas do velho piano, os dedos de Nicole cessaram, repentinamente, de correr.

Havia instantes que um indefinível mal-estar crescia nela... como se uma sombra se estivesse interpondo entre a puríssima viração que vinha de fora e o ponto da sala em que Nicole se encontrava... ou ainda porque o seu subconsciente a tivesse avisado duma presença inusitada por detrás dela.

Nenhum ruído chegara a seus ouvidos, e, no entanto, voltou instintivamente a cabeça.

- Ah!

Havia, efectivamente, não uma sombra, mas alguém na extremidade da enorme sala. Uma alta silhueta se recortava na luz clara da tarde, entre as duas varandas.

Nicole ergueu-se dum salto e, cambaleante, apoiada ao piano, fixava no     recém-chegado seus olhos dilatados pelo pasmo.

Na meia luz do vasto aposento acabava de reconhecer lorde Blackenfield; porém, antes mesmo que seus olhos tivessem divisado os traços fisionómicos do marido, sentira, advertida pelo sobressaltado bater do coração e pela angústia que lhe cerrava a garganta, que o pai de Mick estava presente.

Na sua perturbação sentia-se impossibilitada de articular palavra: e foi em voz muito baixa, quase rouca, que Harry a tirou da vertigem em que parecia cair, desfalecida.

- Perdoe-me, lady Blackenfield, a surpresa que lhe causo com a minha inesperada presença... Atravessei a casa toda antes de chegar a este terraço sem encontrar alguém... Começava a crer que Sea-Foam abrigava a Bela do bosque adormecido, quando o som dulcíssimo do piano guiou meus passos até aqui...

No desejo de não perturbar sua mulher, Harry conservara-se de pé, no mesmo lugar, o chapéu na mão, como se fora um simples visitante.

Seu tom cortês e calmo, suas respeitosas palavras tiveram o condão de serenar Nicole.

Diante da entrada imprevista daquele cuja chegada temia, Nicole perdera a presença de espírito.

- Eu... retiro-me - disse, olhando em redor de si, com o ar de quem procura um buraco por onde se meter.

- Porque se há-de retirar, lady Blackenfield? - articulou Harry no mesmo tom delicado. - Está em sua casa... Esta casa pertence-lhe; tem aqui o seu lugar, legítimo, junto de nosso filho...

Nunca a sua voz fora tão persuasiva e doce. E no entanto as suas palavras mal chegavam ao entendimento de Nicole.

Estupefacta de o ver ali, sentindo as pernas trémulas, Nicole não tinha ainda compreendido que Harry lhe permitia ficar junto de Mick. Convencida, pelo contrário, apesar daquele tom cortês, que ele viera para a mandar embora, Nicole mantinha o seu olhar espavorido.

Estava Harry adivinhando a emoção que causava a sua mulher? Era muito provável que assim fosse, porque, colocando o chapéu sobre um móvel, deu na direcção dela alguns passos, enquanto Nicole continuava como petrificada, incapaz de fazer um movimento.

E atravessando a sala em toda a sua extensão, parou a alguns metros de Nicole, ficou-se a contemplá-la. Certa melancolia velava suas pupilas de inglês nórdico.

- Sossegue, acalme-se, lady Blackenfield - murmurou com infinita doçura. - Não vim aqui para perturbar o seu repouso ou o quer que seja. Repito: está em sua casa... Só uma coisa lhe peço... um grande favor: não me mande embora...   deixe-me passar aqui a noite, sob estes tectos. Fiz uma viagem longa com o fim de vir abraçar meu filho; permita-me que o veja e fique algumas horas na companhia dele.

A sua solicitação era tão humilde e ardentemente feita que venceu e penalizou o coração de Nicole. As lágrimas alagaram seus olhos angustiados, sem que ela fosse capaz de proferir uma palavra ou de fazer um movimento. Curvou humilhadamente a cabeça, envergonhada dessas lágrimas que não pudera impedir de rolarem.

Os olhos de Harry perscrutavam com intensidade o rosto de Nicole. Observou então o palor daquelas faces emagrecidas, as olheiras que vincavam os grandes olhos, a ruga desiludida dos lábios, a cor diáfana da pele transparentada, toda essa comovente fraqueza que falava do longo calvário trilhado.

Agudo remorso lhe formou um nó na garganta:

«A fadazinha do Ragon, tão viva e sorridente, como deverá ter sofrido para já não ser mais do que aquele ente de tão dolorosa tristeza...»

Sentiu que uma transfiguração se operava no seu íntimo. Essa mulher que ele não deixara nunca de amar e que acusara injustamente, era-lhe mais querida do que nunca. E teve de fazer apelo à sua energia para conseguir dominar-se, ficar na sua calma em face da esposa, nesse momento em que teria querido lançar-se a seus pés ou tomá-la nos braços e pedir-lhe perdão e cobri-la de carícias.

Compreendia que, antes de reatar com ela o seu doce passado de amor, se tornava indispensável liquidar primeiro os dois anos de separação que acabavam de viver longe um do outro.

Entretanto, Nicole mostrava-se tão desfalecida que receou vê-la cair...

Então, docemente, com gestos cautelosos que procuravam serená-la, correu a prestar-lhe amparo; guiou-a até um fauteuil... Precisava de sentar-se para recobrar as forças e não perder os sentidos.

De pé, junto da esposa, Harry hesitou um instante sobre o que deveria fazer.

Conservava entre as suas a pequenina mão dela... Depois inclinou-se lentamente e ousou beijar os dedos afusados que se abandonavam.

Nesse instante, um chamamento partiu do terraço. Era a voz de Mick.

A mãe, ao ouvi-lo, fez um esforço para se erguer.

- Seu filho - murmurou ela a Harry, designando-lhe, num movimento imperceptível de cabeça, a direcção do terraço.

Mas já Mick, os pés descalços, de sandálias na mão, a cabeleira despenteada e no ar, surgia no outro lado da sala.

- Mamã, estás aí?... Ah!

Acabava de reconhecer o pai.

- Papá!

E, deixando cair as sandálias, saltou ao pescoço de lorde Blackenfield.

- Papá! Papá!... Que felicidade!

Nicole viu o marido abaixar-se e apertar a criança nos braços. E durante alguns segundos não se ouviu se não o ruído de calorosos beijos... Nenhuma reserva por parte do pai... nenhum constrangimento da parte do pequenito.

E a jovem perguntava a si própria por que motivo imaginara sempre que Harry deveria ser um pai austero e solene com o filho.

O homem que tão livremente acariciava a criança diante dela seria o mesmo que em tempos repudiara por momentos a ideia de ser pai? Seria o mesmo que não permitira à esposa e, portanto à mãe, educar e ter na sua companhia o filho?

Ignorando quanto os sentimentos de Harry se haviam modificado na sua ausência, admirava-se, esperando e temendo ao mesmo tempo a palavra irónica que poria termo às efusões da criança.

Mas esta palavra não soava.

Agarrado ao pescoço do pai, Mick tentava pô-lo ao corrente de «coisas que o papá não devia certamente saber:

- Papá, eu tenho uma mamã muito bonita... a verdadeira!... Não a outra!... Esta veio ter com Mick.

O pai sorriu:

- Estás certo do que dizes, meu rapaz?

- Mick sabe!... Venha, papá... Mick vai-lha apresentar.

Agitando as pernas para ir para o chão, o baby puxava o pai pela mão e conduzia-o direito a Nicole.

- Venha, papá... aqui está ela... esta é a verdadeira...

Harry sorria com indulgência:

- Efectivamente - concordou - esta mamã mexe os braços e tem lábios para beijar o seu menino.

O pequeno batia palmas de contente. E radiante de orgulho dizia:

- Mick sabia... Mick sabia... Papá dizia que era a senhora lá de casa! Mick dizia que não!

- De que senhora fala o menino? - interrogou subitamente Nicole, que se levantara e parecera ter retomado o sangue-frio.

- A minha mamã do retrato, a quem Mick levava flores - explicou o rapazinho, sempre triunfante.

Mas a mãe abanou a cabeça,

- Não compreendo - disse com certa firmeza, como se esperasse do pai uma explicação menos confusa.

Teria lorde Blackenfield entendido a dúvida que as palavras do filho fizeram nascer no íntimo da mulher? Antes de responder, olhou Nicole; depois, um pouco emocionado, precisou:

- Michaêlis fala do seu retrato, lady Blackenfield.,. o retrato pintado por Edwin Merrell... Todas as manhãs, Mick entrava no seu quarto para a cumprimentar e lhe levar flores...

- Era essa a outra mamã? - balbuciou Nicole, que compreendia enfim.

- Eu não tinha outra para lhe oferecer... - observou Harry, simplesmente.

E, um pouco mais grave, como se devesse dar prova mais indubitável, acrescentou:

- Não se tornava natural que na sua ausência, lady Blackenfield, o pai e o filho lhe apresentassem as suas homenagens?

Falando assim, pousava na mulher aquele seu olhar que tinha ao mesmo tempo a expressão duma súplica e duma censura... Um olhar suplicante que procurava penetrá-la até tocar-lhe a alma.

Mas Nicole, ruborizada, desviou o olhar, encerrada subitamente numa atitude indiferente.

No pensamento da jovem, Harry continuava sendo o marido egoísta e injusto que a fizera sofrer... o homem meio ébrio, ciumento e brutal, da última noite que passara na casa de Londres... aquele que, com a injúria e o desprezo nos lábios, a tinha separado do filho, herdeiro de imensa fortuna.

E, instintivamente, Nicole não pensava se não em defender-se contra a tentativa desse marido que, com palavras doces e promessas de amor impensadas, a havia seduzido já uma vez.

Não seria ele sempre, irremediavelmente, o lorde orgulhoso, a última vergôntea duma extensa linha de arrogantes antepassados?

E, por seu lado, poderia ela deixar de ser a modesta e humilde filha do antigo guarda-mor?

 

Fora, a noite reinava e todos os ruídos se haviam extinguido, salvo a grande voz do mar que incessantemente fazia ouvir seu majestoso lamento...

Havia uma hora que a nurse escocesa levara Mick. Devia, nesse dia, assumir cuidados de fazer o comer, deitar, etc., pois Nicole não ousara continuar com esses cuidados diante de Harry, o qual não admitiria essa derrogação aos costumes ingleses.

Os dois esposos, um momento separados pela toilette a fazer, a toilette da noite, acabavam de se encontrar de novo no salão.

Nicole vestira uma toilette preta, de soirée, que a tornava mais senhoril e atraente.

Todo esse negro, que jóia alguma alegrava, parecia tornar Nicole mais frágil que nunca e, no entanto, a severidade sumptuosa do vestido emprestava-lhe também inexcedível graça.

Comovido, Harry olhava-a em silêncio. Era uma lady Blackenfield de raça: distinta como uma rainha, delicada como uma boneca de Saxe e linda como o próprio amor.

De garganta seca, tinha Harry de refrear o ardor que a vista de tão desejável companheira lhe infiltrava nas veias.

- Esse vestido fica-lhe às mil maravilhas, lady Blackenfield - não pôde impedir-se de observar, querendo cortar não só o silêncio embaraçoso, mas sobretudo a emoção que o estrangulava.

E, vendo pregado no corpo do vestido uma rosa vermelha, acrescentou:

- Essa rosa purpurina, pregada no seu colo, é dum efeito admirável... Terá essa flor uma significação?

- Pode constituir, efectivamente, um símbolo - respondeu Nicole um tanto ou quanto ligeiramente e olhando a bela flor.

Harry sorriu, e agaiatado, no intuito de fundir o gelo, retorquiu:

- «Rosa vermelha, vivo amor!» - elucidou. - É esta, segundo me parece, a linguagem das flores...

- Talvez - replicou Nicole no mesmo tom grave. - Mas... escarlate não quererá também dizer «sangue»?

Harry não pôde reprimir uma careta de protesto.

- Que quer dizer com isso, lady Blackenfield? Sangue no seu vestido, que coisa horrível.

Nicole teve fugitivo sorriso de desculpa.

- Eu falo de cores... uma mancha vermelha no sítio do coração toda a vida significou... ferida mortal... Como vê, lorde Blackenfield, mais vale não procurar a linguagem das coisas.

Afectava uma grande indiferença, conservava o tom ligeiro da conversação, não lhe alterando a leveza mundana. Entretanto, Harry fitava-a, encarava-a abertamente. Nem o tom, nem as palavras iludiam sua alma inquieta: ele sabia bem que, debaixo da sua aparente frivolidade, cada palavra, cada frase possuía uma significação precisa...

- Um ferimento? - repetiu ele. - Se assim é, Nicole, não será certo que uma só determinada mão poderá sará-lo?

- Em verdade, não sei - confessou a jovem com certa graça, lançando ao marido rápido olhar.- Nunca aprofundei o caso... Creio, no entanto - acrescentou com voz mal segura - que os beijos de meu filho serão capazes de fazer milagres, visto que só eles tiveram o poder de me fazer sorrir de novo...

- Sim - concordou Harry gravemente. - Pensei muitas vezes que o meu pequenino Mick guardava nas suas mãozinhas a nossa felicidade.

Essa frase, expressa diante de Nicole, comovia singularmente aquele que acabava de a proferir.

Compreenderia a jovem lady a oculta mágoa que tais palavras revelavam? Ele, Harry, o lorde orgulhoso, submetia-se finalmente às mãos inocentes duma criança para fazer renascer uma ventura perdida!

Era que, embora tão próxima dele, Nicole lhe parecia muito distante ainda!

Que calma! Que segurança!... Que voz firme e indiferente!... Não se mostrava receosa de lhe desagradar!

Quantas vezes, lorde Blackenfield havia sonhado já com esse primeiro encontro?

Enquanto longe, Harry supusera-se muito senhor de si: dirigir-se-ia a ela e desculpar-se-ia... depois, falar-lhe-ia de amor... com aquelas palavras que perturbam e amolecem as mais bem concertadas resistências!... Amava-a a tal ponto que lhe seria doce a sinceridade com que a seus pés desfiaria a litania apaixonada dos amorosos.

Mas, verificava agora que as belas frases preparadas não logravam sair-lhe dos lábios - a ocasião de as dizer faltava, talvez... Nicole revelava-se tão distante, tão reservada... E eis que, com a sua atitude, o forçava a ser correcto... calmo... reservado... como se ali estivessem dezenas de olhos a vê-los.

Nesse momento o mordomo abriu a porta de comunicação com a sala de jantar.

Anunciou num tom pomposo de mais para o caso, visto não estarem ali se não os dois:

- Lady Blackenfield, o jantar está servido.

Nicole estremeceu. Era a primeira vez que o servo lhe dava aquele título. Habitualmente empregava o clássico: «Senhora: o jantar está servido». Recebera por certo ordem expressa de Harry.

Na sala de jantar dois talheres estavam dispostos, um em cada extremidade da comprida mesa de carvalho, separando os convivas em toda a extensão do tampo solene.

Antes de tomar o seu lugar, Harry considerou essa disposição imponente:

- Foi lady Blackenfield quem deu ordem para esta colocação de talheres?

Nicole abanou negativamente a cabeça, algo divertida agora com o cerimonial observado.

- Não! Foi Barthey. Questão de hábito, julgo eu... do tempo em que o senhor aqui estava...

Harry apontou o lugar que deveria ocupar.

- Não acha que tão longe de si faço figura de estar de penitência?

Nicole sorria; fez um gesto que queria dizer: «não tinha importância».

- Julgo que seja costume em Sea-Foam.

- Sim... costume talvez dos tempos da minha venerável avó! Se o permite, vamos aproximar os nossos pratos, que assim, de longe, parecem lançar um ao outro os olhares dos cães de faiança...

- Como quiser - condescendeu ela.

Nicole ajudou a deslocar os pesados castiçais de prata, as flores e o mais.

E foi Harry quem colocou os pratos e os talheres uns defronte dos outros, desta vez deixando entre ambos a largura da mesa.

Um nada divertidos, apressavam-se marido e mulher como se se tratasse de pregarem uma partida ao mordomo.

Este chegou no momento em que acabavam a modificação.

Seu olhar verificou imediatamente que a ordem da mesa fora alterada e seu rosto a custo disfarçou certa desaprovação.

- Julgo, Barthey, que acharás melhor assim - observou espirituosamente Harry ante a cara séria do velho.

- Oh! Mylord, dispus a mesa como de costume, em Sea-Foam.

- Tens muita razão, Barthey, mas parece-me que os costumes não foram estabelecidos por nossos pais se não para permitir aos seus descendentes modificá-los.

- Se Sua Graça prefere assim, está muito bem - replicou com certa habilidade o idoso servo, mas como que fazendo a Nicole juiz de causa.

De momento, aquele «Sua Graça» constituía parte da censura indirecta jogada assim pelo mordomo ao amo; o velho criado, provavelmente, na tacanhez do seu cérebro de servidor ensinado, pensava que a lady Blackenfield competia fazer respeitar as tradições. E Nicole teve a coragem de dar a sua opinião nesse pleito.

- Tudo quanto agrade a seu amo, meu bom Barthey, me parece infinitamente preferível a manter um hábito mais ou menos justificado... Esta mesa é muito comprida e, quando não haja grande número de convivas, torna-se mais composta e acolhedora assim.

- Farei então com que a mesa seja servida deste modo todos os dias.

O tom do mordomo tornava-se intraduzível. Desta vez Blackenfield desatou a rir. A cara magoada, os lábios cerrados do criado, despertavam-lhe a hilaridade.

- Sempre tenho pensado - explicou Harry, sentando-se à mesa - que os nossos pais deveriam ser extremamente inclinados à gastronomia... Estas mesas eram construídas para pessoas que queriam, antes de mais nada, ver diante deles grandes e numerosos pratos... Os que a elas se sentavam viam-se então obrigados a cuidarem mais de encherem o estômago que a fazerem a corte aos rostos femininos que lhes ficassem fronteiros.

- Eis um ponto de vista que eu ainda não tinha observado - disse Nicole, rindo.

- Pois bem! Pense nisso, minha formosa dama...

Colocou familiarmente os dois cotovelos sobre a mesa e curvou-se para a mulher.

- Imaginemos então que no seu lugar está uma das minhas lindas avós na época em que tinha a sua idade... e admita que eu estou ocupando o lugar daquele que... era o seu eleito... À nossa roda os criados vão e vêm; estais arrebatadora, lady Blackenfield, e bem desejaria murmurar-vos, falar-vos um pouco de perto... Impossível segredar-lhe... a largura da mesa divide-nos impiedosamente... nem ao menos permite a meus pés tocarem nos seus!... Então curvo-me sobre o meu prato... inclino-me para si o mais possível... e com a minha voz mais íntima, mais sincera, tentaria dirigir-vos o meu madrigal.

Escute-me, Nicole, bem vê que é fácil... com todos os nossos servos em redor!... Eu começo. Escute o que ele lhe diria: - «Sois deliciosa, estais um encanto esta noite... vossos olhos brilham como carbúnculos e esse sinalzinho assassino, ao canto dos seus lábios de rubi, tem tão atrevido jeito que parece exigir beijos sem conto...»

Nicole escutava-o, com ar trocista.

Harry suspendera-se para tomar o fôlego; depois, com voz mais abafada, prosseguiu:

- Darling, sinto-me felicíssimo de a ter aqui na minha frente... Há meses que suspiro por este minuto... e vejo enfim realizado este sonho supremo! Minha pequena fada... minha adorada Nicou... és tu realmente que eu encontrei? Inteiramente?... Para sempre?

Nicole, de lábios entreabertos, com um sorriso encantador, parecera escutar complacentemente as primeiras frases da história. Mas às últimas palavras baixou os olhos. Era evidente que não desejava permitir à declaração tomar um tom pessoal.

Despeitado, porém, com aquela impassibilidade, Harry ergueu-se com vivacidade. E, vendo o mordomo imóvel junto deles, increpou-o bruscamente:

- Pois não achas, Barthey? Ouviste? Eis como naturalmente faziam outrora os teus antepassados. Acabar de poder julgar o efeito de semelhante preconceito com uma mesa como esta a separar duas pessoas! Uns comilões, os nossos avós! Não pensavam se não em atochar o estômago!

O velho servo sorria com indulgência. Achava graça àquela saída do amo, que ele conhecera ainda menino.

- Havia tempo para tudo, lorde Blackenfield - respondeu então familiarmente o servo. - As mesas eram largas e os leitos mais estreitos... Uma coisa compensava a outra!

Desta vez Nicole soltou o riso; essa resposta ousada, que ela jamais se permitiria dar ao marido, despertava-lhe irresistível vontade de rir, enquanto Harry estacava, estupefacto.

Mas nesse momento a nurse escocesa interrompia-os forçando a porta que o mordomo até aí lhe impedira de abrir.

- Que há? - inquiriu Nicole com certa inquietação, pois acabava de aperceber de relance a blusa azul da rapariga.

- Perdoe-me, minha senhora - respondeu de longe a nurse - perdoe-me se venho incomodá-la». Mas é por causa do menino Mick... que não quer dormir. Há uma hora que está a chorar...

- Como? A chorar?

- Sim, minha senhora... quer o papá e a mamã... Não desejava de forma alguma incomodar lorde e lady Blackenfield, mas tenho medo que à força de chorar... o menino adoeça...

Nicole já se tinha levantado. Hesitava no entanto em deixar a mesa, conforme lho pedia o instinto. Sabia que era absolutamente incorrecto da parte duma dona de casa esse abandono e não esquecia por outro lado que o marido não admitia qualquer infracção ao protocolo.

Então seus olhos fixaram-no cheios de incerteza. Harry compreendeu o embaraço da mulher. Intimamente, tocou-o aquela hesitação, mas sentiu que lhe competia a ele, como pai, usar de todas as indulgências nessa noite.

Levantou-se e, troçando da própria fraqueza, disse:

- Vamos os dois, visto que Mick nos dá a honra de chamar por um e por outro.

Nicole teve um olhar repassado de gratidão. Acusou-se no entanto:

- Estou admiradíssima de Mick... Sou a culpada; tenho-o amimado de mais depois que o encontrei... Confesso: era eu quem, todas as noites, o deitava...

- Depois de tão longa separação, compreende-se... que assim fosse.

Harry não viu a expressão enternecida que, por instantes, velou aqueles dois olhos femininos. Mas, como ele lhe pegasse no braço para a ajudar a subir a escada um tanto íngreme, Nicole consentiu-o.

E, nessa aproximação, Harry encontrou a necessária coragem de confessar iguais culpas:

- Também tenho amimado Mick demasiadamente - disse. - Quando o olhava   lembrava-me de si... Por causa desta parecença não tinha coragem de lhe resistir.

- É lamentável isto - reconheceu Nicole. - Felizmente, Mick, bem dotado como é, não abusará da nossa fraqueza.

- Por sim por não, julgo conveniente que nos apoiemos um no outro para lhe resistirmos... Não será de mais a conjunção dos nossos esforços para lhe dobrarmos a vontade, porque se ele fisicamente se parece consigo, Nicole, creio que possui o meu carácter enérgico e autoritário.

- E assim crescerá, se fará homem - murmurou a jovem mãe pensativamente.

- Sim... um homem... disparatado e déspota... um homem que fará chorar a mulher que escolher e amar... adorando-a, embora.

Nicole não respondeu. Desligou-se docemente do braço que tentava retê-la e entrou no quarto do filho, que chorava.

Mal viu os pais, Mick estendeu-lhes logo os bracitos.

- Meu papá, minha mamã! - soluçou:

- Meu amor, que tens tu?

- Mick está sozinho!... Sem papá, nem mamã... Coitadinho do Mick!

Lançara os braços ao pescoço da mãe e continuava a chorar.

- Então a chorar, porquê? Um homem já! Não tem vergonha! Os meninos pequeninos é que têm medo!

Dizendo isto, Harry pegara no pequenito ao colo. E desta maneira estreitava no mesmo abraço o filho e Nicole, visto que a criança não se desprendera do pescoço da mãe.

- Hop! Baby! Levanta a carinha, olha o papá e sorri-te, anda!

O garoto voltou os olhos para o pai, fazendo beicinho.

- Mick não rezou, não fez oração com o papá... Mick ainda não tem a verdadeira mamã.

Blackenfield pôs-se a rir.

- És um marotinho, Mick. Vejo que procuras todos os meios de te mostrares rabugento, esta noite. É preciso que rezes sozinho a tua oração, meu rapaz.

- Sozinho, não! Com o papá... sim... como na outra casa... Mick quer!

Harry olhou Nicole com expressão exageradamente aflita:

- E que me diz, hem? Este petiz dispõe duma vontade terrível.

A juvenil mãe sorria com indulgência. Percebia que o pai era incapaz, nesse momento, de ter mão no pequeno.

- Vamos - disse ela, intervindo com energia. - É preciso ser bonito, e dormir, darling. Um baby bem-educado que gosta da sua mamã, adormece caladinho.

- Mick faz primeiro a oração.

- Pois bem! Faz a oração, honey dear (1).

- Quero com o papá - teimou o garoto.

A nurse, logo que os pais entraram no quarto da criança, afastara-se discretamente. Estavam pois só os três. Harry olhou o filho, depois a mulher, depois ainda Mick.

Tinha a impressão de que seria algo humilhante satisfazer o que o petiz exigia: formular diante de Nicole a oração repetida no tempo em que ela estava ausente...

Mas não constituiria ao mesmo tempo essa oração a melhor prova que podia dar a Nicole de que, como marido, contara sempre com o seu regresso?

Esta certeza decidiu-o... Demais, não lhe desagradava forçar um pouco a vontade de Nicole. Era uma espécie de cilada... porquanto a mãe não poderia ficar surda nem indiferente à voz inocente do filho.

A ideia dessa pressão excitou-o de repente: existia ainda nele um pouco do rapaz travesso que fora outrora.

 

(1) Querido amor.

 

- Seja, meu rapazote, vamos dizer a oração...

- Sim, papá!

- Vais dizê-la comigo! Como dois pobres abandonados que éramos quando a mamã não estava cá...

Seu olhar, ligeiramente trocista, aflorou o doce rosto de Nicole.

- O Céu deve talvez escutar-nos desta vez... Põe-te de joelhos, Mick, e une as tuas mãozinhas.

E, com a mão espalmada sobre a cabeça encaracolada do pequenito, os olhos fixos nos de sua mulher, que pasmava dum tal acto de fé por parte do marido, Harry acompanhou, em voz baixa, a oração da criança.

- Senhor Deus, entrega-me a minha mamazinha. Fá-la voltar da sua longa viagem, porque esse é o maior desejo do meu papá...

Pode calcular-se o efeito que semelhantes palavras causariam à sensibilidade de Nicole. Seus olhos subitamente se aguaram de suave e involuntário pranto.

Foi então Harry quem deitou o filho e fez a dobra da pequenina colcha.

- Dorme agora, querido filho. Estou certo que desta vez um anjo bom escutará a tua reza. Boa noite, meu rapaz.

Beijou Mick distraidamente.

Tinha visto o brilho húmido dos olhos de Nicole e com a alma tocada de emoção aspirava a juntar-se-lhe. Passando à proximidade do seu quarto, escutou indeciso. Nicole não voltara com certeza à sala de jantar; refugiara-se talvez no quarto que lhe pertencia.

Hesitou um momento; depois, a sua mão procurou docemente o fecho.

- Nicole!...

No grande silêncio da casa cheia de sombra, um lindo raio de luar distendia sua esteira de prata no soalho. Harry abriu e viu então sua mulher estendida num divã, a cabeça metida nas almofadas, a chorar convulsivamente.

- Não, Nicole! - murmurou ele. - Não chores... Peço-te que acalmes o teu desgosto... Cometi graves erros contigo... perdoa-me esses erros, e consente que tos faça esquecer.

E Nicole deixou que o marido a tomasse nos braços. Apertada contra o peito desse homem cujo coração sentia bater forte, esqueceu as suas amarguras...

- Fui eu que errei. Não devia ter abandonado a casa. Uma mãe não deve deixar nunca o pai de seu filho, uma esposa deve ficar sempre junto do marido... Harry, causei-te um grande desgosto e por minha vez sofri muito.

- Meu doce amor! Como fui tonto e cego... A minha violência tornou-se inqualificável e, se desculpa tenho, só uma desculpa me cabe... Eu estava embriagado!... Não podes compreender ao que a embriaguez leva um homem, o que pode inspirar a quem já de si é ciumento.

- Competia-me tentar corrigir-te... mostrar-te o teu erro... Faltei portanto aos meus deveres de esposa.

- Não digas isso, darling... minha pequenina e encantadora fada. Compreendi tão bem os meus pecados que, depois da tua partida, nunca mais meus lábios tocaram num copo de whisky... Nunca mais bebi, querida Nicou...

nada mais tens a recear da minha parte... meu doce amor que voltaste... Como eu desejo fazer-te esquecer o passado!

Na grande sala iluminada, onde a mesa posta continuava esperando os seus convivas, o velho Barthey impacientava-se.

- Parece impossível! Nunca se viu interromper desta forma um jantar - monologava a meia voz, com indignação. - É a primeira vez que eu vejo uma coisa destas. A falecida Blackenfield nunca teria cometido tal incorrecção!...

E, ao fim de algum tempo, como continuasse a não ver surgir ninguém, perguntou a si próprio:

- Será preciso ou não servir? Ainda quererão jantar quando voltarem?... Que   há-de fazer um criado como eu com patrões tão extravagantes como estes! Esta lady nem mesmo faz respeitar as horas da refeição!... Que costumes, santo Deus! A continuar assim, onde iremos parar?... Não há dúvida: deve ser a isto que chamam a decadência francesa!...

 

                                                                                Max Du Veuzit  

 

                      

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