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O conde Hipólito tinha voltado das suas extensas viagens, a fim de tomar posse da rica herança do pai, que morrera pouco tempo antes.
O solar da família era situado numa das mais pitorescas regiões, e as rendas do patrimônio permitiam embelezá-lo custosamente. O conde resolveu reproduzir ali tudo o que durante as suas viagens o impressionara vivamente pela magnificência e bom gosto. Chamou uma nuvem de artistas e de operários, que começaram logo embelezar, ou para melhor dizer, a reconstruir o castelo, rasgando ao mesmo tempo um parque do mais grandioso estilo, onde se encravaram, como dependências, a igreja paroquial e o cemitério.
Possuidor dos conhecimentos necessários, o conde dirigiu em pessoa os trabalhos e entregou-se completamente a esta ocupação.
E assim decorreu um ano, sem que lhe passasse pela idéia ir brilhar, como lhe aconselhava um tio velho, na sociedade da capital, sob os olhares das meninas casadoiras, a fim de desposar a melhor, a mais bela e a mais nobre de todas.
Estava, uma manhã, sentado à mesa desenhando o plano duma
nova construção, quando lhe anunciaram uma parente de seu pai.
Ao ouvir o nome da baronesa, Hipólito recordou-se logo de que o pai
se lhe referia sempre com uma mistura da mais profunda indignação
e certo receio. Sem explicar o perigo que havia na convivência,
afastara sempre dela as pessoas que lhe eram caras. Se teimavam
em pedir-lhe explicações, o conde respondia que havia coisas em
que era melhor não falar.
O certo é que na capital circulavam certos boatos a respeito de um
processo criminal muito singular, em que a baronesa estivera
envolvida e em conseqüência do qual se havia separado do marido e
fora obrigada a retirar-se para o campo. Todavia o príncipe
perdoara-lhe.
Hipólito experimentou uma sensação desagradável à aproximação
da pessoa detestada pelo pai apesar de desconhecer as razões
dessa aversão. Os deveres da hospitalidade, que se respeitam
principalmente no campo, impunham-lhe, porém, a necessidade de
3 receber a importuna visita.
A baronesa estava longe de ser feia, mas nunca pessoa alguma
produzira no conde repugnância tão manifesta.
Ao entrar, a baronesa cravou no dono da casa um olhar incendiado,
mas logo baixou os olhos, e pediu-lhe desculpa da sua visita nos
termos mais aviltantes de rasteira humildade. Lastimou que o pai do
conde, possuído das mais extraordinárias prevenções inspiradas
maldosamente pelos seus inimigos, a tivesse odiado de maneira tão
acirrada. Apesar de ter caído em profunda miséria, chegando quase
a padecer de fome, o conde nunca a socorrera. Ia agora refugiar-se
numa cidade da província, tendo acabado de receber
inesperadamente uma pequena quantia. Rematou dizendo que não
pudera resistir ao desejo de ver o filho do homem, a cujo ódio
irreconciliável sempre correspondera com profunda estima.
Estas palavras, pronunciadas com o acento tocante da verdade,
conseguiram comover o conde, para o que também muito contribuiu
a presença da graciosa e encantadora menina que acompanhava a
baronesa. Calou-se esta finalmente, mas o conde pareceu não
reparar em tal, e ficou silencioso e contrafeito. A baronesa pediu-lhe
então desculpa duma falta em que o embaraço a fizera incorrer e
apresentou-lhe a sua filha Aurélia.
Corando como um rapaz dominado por suave embriaguez, o conde
suplicou-lhe que lhe permitisse reparar os agravos do pai, devidos
certamente a uma inadvertência, oferecendo-lhe hospitalidade no
castelo. Ao certificar-lhe as suas boas disposições, pegou-lhe na
mão e estremeceu de terror. Sentiu-lhe os dedos gelados, sem vida,
ao mesmo tempo que o vulto descarnado da baronesa, que fixava
nele uns olhos embaçados, tomava o aspecto dum cadáver vestido
de brocado.
- Valha-me Deus! Que contrariedade! E logo nesta ocasião! -
exclamou Aurélia.
E com voz terna, que se insinuava na alma explicou que a sua
desgraçada mãe tinha às vezes ataques de catalepsia, mas que
estas sincopes passavam de pronto sem auxílio de remédios.
O conde retirou com dificuldade a mão que a baronesa apertava
nervosamente, e, no arroubamento dum amor nascente, pegou na
de Aurélia cobrindo-a de beijos.
Chegara à idade madura, mas experimentava agora pela primeira
vez uma forte paixão, tornando-se impossível dissimular o que
4 sentia, tanto mais que era animado pela graça encantadora com que
Aurélia lhe acolhia as amabilidades.
A baronesa voltou a si passados alguns minutos, sem se recordar do
que lhe tinha acontecido. Afirmou ao conde que se sentia honrada
com aquele convite, e que este procedimento lhe apagava para
sempre da lembrança a injusta conduta do pai de Hipólito.
Foi assim que o viver íntimo do fidalgo mudou subitamente. Chegava
a crer que um favor especial do destino lhe trouxera a única pessoa
que podia, como esposa, dar-lhe a suprema ventura.
A velha observou sempre a mesma conduta. Silenciosa, séria,
reservada, deixava a propósito transparecer uma alma cheia de paz
e de bons sentimentos. O conde acostumara-se àquele rosto
singularmente pálido e enrugado, e aquela aparência de espectro, e
atribuía tudo à má saúde da sua hóspede e ao gosto que ela tinha
por sombrios passatempos. Com efeito os criados contaram-lhe que
a baronesa dava passeios noturnos pelo parque, para os lados do
cemitério.
Sentiu-se envergonhado por se ter deixado arrastar, no começo,
pelas prevenções do pai, e o tio velho despendeu em vão a
inesgotável eloqüência, exortando-o a renunciar ao sentimento que o
dominava e a relações que um dia poderiam desgraçá-lo.
Convencido de que Aurélia o amava, pediu-a em casamento. É fácil
de imaginar o quanto a baronesa ficou encantada com esta
proposta, que a arrancava à miséria e lhe assegurava uma
existência feliz.
A palidez desaparecera do rosto de Aurélia anuviado por uma
expressão de invencível pesar, e as delícias do amor deram-lhe aos
olhos suave brilho e às faces frescura e colorido.
Um acontecimento funesto retardou, porém, o cumprimento dos
desejos do conde. Na manhã do dia da boda, encontraram a
baronesa estendida e sem movimento no parque, a pouca distância
do cemitério, com o rosto contra o chão. O conde acabava de
levantar-se e pusera-se à janela, pensando com embriaguez na
felicidade que ia gozar, quando trouxeram a baronesa para o
castelo. Pensou que se tratava dum ataque cataléptico, como era
costume, mas todos os meios empregados para a chamar à vida
foram inúteis. Estava morta!
Aurélia não se entregou a violenta angústia. Parecia consternada e
atônita por causa deste imprevisto golpe do destino, mas não verteu
uma única lágrima.
O conde, temendo melindrá-la, observou-lhe, com precaução e
5 delicadeza infinitas, que era necessário pôr de parte as
conveniências e apressar o mais possível o casamento não obstante
a morte da baronesa, afim de evitar maiores transtornos. Ao ouvi-lo,
Aurélia deitou-lhe os braços ao pescoço e, derramando muitas
lágrimas, exclamou:
- Sim, pela minha salvação, consinto!
O conde atribuiu esta exaltação à idéia de que, órfã e sem asilo,
Aurélia não tinha para onde ir e que o decoro lhe não permitia ficar
no castelo. Teve o cuidado de colocar junto de Aurélia, até ao dia
fixado para a cerimônia, uma aia, matrona respeitável.
No entanto Aurélia estava numa agitação singular, proveniente mais
da angústia cruciante que a perseguia incessantemente, do que do
desgosto causado pela morte da mãe.
Um dia, quando conversava amorosamente com o conde, ergueu-se
de súbito, pálida, num mortal terror, e banhada em lágrimas refugiouse
nos seus braços como se quisesse fugir a um perseguidor
invisível. Exclamou:
- Não, nunca, nunca!
Depois do casamento, que não foi perturbado por nenhum
contratempo, é que a perturbação e a ansiedade de Aurélia
pareceram dissiparem-se.
Como bem se compreende, o conde suspeitou de que no coração de
sua esposa existisse alguma causa desconhecida, que a
atormentava. Contudo, foi bastante delicado para não a interrogar
enquanto a viu aflita, mas depois, com grandes rodeios, perguntoulhe
o que produzira aquela extraordinária disposição de espírito.
Aurélia significou-lhe que ia com vivo prazer patentear o coração ao
esposo da sua alma. O conde, surpreendido, soube que a
perturbação de Aurélia provinha do procedimento criminoso da mãe.
- Há nada mais horrível, perguntou ela, do que vermo-nos obrigados
a aborrecer, e odiar a nossa própria mãe?
Provaram estas palavras que o pai e o tio do conde não se haviam
enganado, e que a baronesa captara este último por meio de
requintada hipocrisia.
O castelão nem tentou ocultar que a morte da baronesa lhe parecia
mercê da Providência, mas Aurélia declarou-lhe que fora
precisamente a morte da mãe que a enchera de pressentimentos
6 sombrios, e que o receio de que não poderia ainda triunfar, lhe dizia
que a mãe havia de ressuscitar algum dia, para vir precipitá-la num
abismo, depois de arrancá-la dos braços do seu amado esposo.
E falou das recordações que tinha conservado da sua infância.
Eram estas.
Um dia, ao acordar, achou a casa em completa desordem. Abriamse
e fechavam-se as portas com estrondo, ouviam-se gritos soltos
por vozes desconhecidas. Quando o sossego se restabeleceu, a
ama de Aurélia pegou-lhe ao colo e levou-a para uma vasta sala
onde estava muita gente. Sobre uma grande mesa, no meio da casa,
viu estendido um homem, que brincava sempre muito com ela e lhe
dava bolos, e a quem a pequena chamava papá. Estendeu-lhe os
braços para o beijar, mas aqueles lábios, que tinha conhecido
quentes e cheios de vida, estavam gelados. Desatou a chorar sem
saber porquê. Dali a ama levou-a para uma casa desconhecida,
onde ficou por muitos dias. Passado tempo a mãe foi buscá-la de
carruagem e levou-a para a capital.
Completava Aurélia dezesseis anos, quando se apresentou em casa
da baronesa um homem a quem ela recebeu com alegria e
familiaridade, como antigo conhecimento. Multiplicaram-se as visitas
e dentro em pouco operou-se considerável mudança na vida da
baronesa. Em vez de morar numa água-furtada, de vestir
pobremente, de passar mal, foi habitar uma casa esplêndida no
melhor bairro da cidade, passou a ter fatos magníficos, e mesa lauta,
sendo seu inseparável comensal o desconhecido, e, finalmente, não
faltava a nenhum divertimento público.
Só Aurélia não participava da melhoria, que, segundo era fácil de
conhecer, provinha do desconhecido. Não vestia melhor do que
dantes e estava sempre fechada no quarto, ao passo que a mãe ia
às festas com o tal homem.
Este, apesar de já ter ultrapassado os quarenta anos, parecia muito
mais novo. Bonito de semblante e esbelto de figura, nem por isso
deixava de repugnar a Aurélia, porque às vezes era ordinário e
desastrado de maneiras, contradizendo assim as pretensões que
tinha a homem amável e afidalgado.
Por este tempo, começou a deitar à menina certos olhares, que lhe
infundiam inexplicável horror.
Até então a mãe nunca lhe falara a respeito dele. Limitara-se a dizerlhe
o seu nome e que o barão era um parente afastado, possuidor de
colossal fortuna. Outra vez, gabou-lhe os dotes físicos e perguntou à
7 filha que tal o achava, e, como esta não ocultasse a repugnância que
tinha por ele, chamou-a de tola e dardejou-lhe um olhar de meter
medo, mas passou depois a tratá-la com agrado, deu-lhe bons
vestidos, e levou-a aos divertimentos. O intitulado barão manifestava
tanta solicitude e um tal desejo de agradar a Aurélia, que se lhe
tornou verdadeiramente insuportável, tanto mais que ela um dia
presenciou, cheia de mágoa, uma cena escandalosa, que lhe tirou
todas as dúvidas acerca das relações da mãe com o barão. Este,
meio ébrio, apertou-a nos braços, mostrando-lhe claramente as suas
intenções abomináveis. O desespero deu forças à donzela, que
repeliu o miserável com vigor, fazendo-o cair para trás, e correu a
fechar-se no quarto.
A baronesa declarou à filha, com frieza e terminantemente, que se
deixasse de esquisitices fora de propósito, pois era o titular quem
fazia todas as despesas da casa. Como não estava para recair na
miséria de outros tempos, aconselhou-a a ceder à vontade do barão,
o qual, em caso de recusa, já ameaçara deixá-las. Longe de se
impressionar com as lágrimas e queixumes de Aurélia, a velha
recebeu-os às gargalhadas e com zombaria provocante. Gabou-lhe
impudicamente uma ligação, que lhe ofereceria todas as
voluptuosidades mundanas, servindo-se de termos tão abomináveis
e desbragados que Aurélia ficou aterrorizada.
Julgando-se perdida, só viu recurso na fuga imediata. Achou meio de
apanhar a chave da porta da rua, e à meia noite, depois de fazer
uma trouxa com as coisas mais indispensáveis, encaminhou-se para
a antecâmara, que se achava debilmente alumiada. Julgava que a
mãe estaria dormindo e já ia sair, quando alguém subiu
precipitadamente a escada e empurrou a porta. Soltos os cabelos
grisalhos e vestida com uma camisola suja, que deixava a
descoberto os braços e o peito, a baronesa entrou na antecâmara e
foi cair aos pés de Aurélia. O suposto barão perseguia-a, armado
com uma bengala nodosa, e bradando:
- Espera, filha maldita de Satanás, bruxa do inferno, espera que já
vou dar-te a refeição de núpcias!
E, arrastando-a pelos cabelos para o meio da casa, começou a
maltratá-la cruelmente, espancando-a com a bengala.
A baronesa desatou a gritar desapoderadamente, e Aurélia, quase
desfalecida, abriu a vidraça e clamou por socorro. Por acaso ia
passando uma patrulha policial e acudiu logo.
- Prendam-no! - bradou aos soldados a baronesa, louca de aflição e
de raiva. Prendam-no! Olhem para o ombro, que está a descoberto!
8 É Urian!
Assim que ela pronunciou este nome, o sargento comandante da
patrulha soltou um grito e disse:
- Olá! Apanhei-te finalmente!
Os guardas agarraram o desconhecido e levaram-no, a despeito da
resistência que empregava para desenvencilhar-se.
Não obstante a violência do que se tinha passado, a baronesa
percebeu o que a filha estivera prestes a fazer. Agarrou-a
brutalmente por um braço, empurrou-a para o quarto e fechou a
porta à chave, sem dizer palavra.
No dia seguinte saiu e só voltou tarde de noite. Entretanto Aurélia, ali
encerrada não viu nem ouviu pessoa alguma, e padeceu as torturas
da fome e da sede. Nos dias seguintes não recebeu muito melhor
tratamento. A mãe deitava-lhe por vezes uns olhos cintilantes de
cólera e parecia meditar qualquer projeto sinistro. Afinal recebeu,
certa noite, uma carta que pareceu alegrá-la, e disse a Aurélia:
- Foste tu, criatura disparatada, a causa de tudo isto, mas agora,
felizmente, tudo vai bem e Deus queira que evites o terrível castigo,
que o demônio te reservava.
Dali por diante tornou-se mais complacente, e Aurélia, que desde
que Urian se fora já não pensava em fugir, passou a gozar de mais
ampla liberdade.
Passado tempo, estando sozinha, sentada no seu quarto, ouviu um
grande barulho na rua.
A criada de quarto entrou precipitadamente e disse-lhe que a polícia
levava preso o filho do carrasco de **. O facínora, acusado do crime
de roubo à mão armada, fora, tempos antes marcado a ferro em
brasa e era levado para a cadeia quando conseguiu fugir à escolta.
Desta vez não lograria escapar, certamente.
Aurélia teve um sinistro pressentimento e correu à janela.
Adivinhara. Era o suposto barão que ia passando algemado e
amarrado a uma carroça. Transferiam-no para outra prisão, a fim de
cumprir a pena a que o tinham condenado. Ao ser alvejada pelo
furioso olhar que o malvado ergueu para ela, ao mesmo tempo que
lhe fazia um gesto de ameaça, Aurélia sentiu-se esmorecer e foi cair
numa poltrona.
A baronesa ficava muito tempo fora de casa e deixava a filha ao
9 abandono, pensando tristemente nas desventuras que ainda lhe
estariam iminentes.
A criada de quarto entrara para o serviço depois da cena noturna, e,
sabendo que o ladrão tivera relações íntimas com a ama, disse um
dia a Aurélia que lastimava sinceramente a senhora baronesa, por
ter sido enganada tão indignamente por aquele infame. Aurélia bem
sabia o que havia de pensar a este respeito. Parecia-lhe impossível
que os guardas, que tinham prendido Urian em casa da baronesa,
não ficassem cientes das verdadeiras relações que existiam entre
ambos, pois que ela lhes dissera o nome do criminoso e indicara o
sinal infamante que ele tinha no ombro.
Segundo dizia a criada nas suas palavras ambíguas, falava-se muito
àquele respeito. Andava de boca em boca o fato de que a justiça
fizera uma severa sindicância e que ameaçara a baronesa com a
prisão, porque o filho do carrasco tinha revelado casos
verdadeiramente extraordinários.
A pobre Aurélia era obrigada a reconhecer a depravação da mãe,
visto que, depois daquele terrível acontecimento ela continuava
ainda a residir na capital.
A baronesa viu-se enfim reduzida à necessidade de sair de uma
cidade onde estava exposta a infames suspeitas, aliás muito bem
fundadas, e de fugir para lugar distante. Durante esta viagem é que
tinha ido ter ao castelo do conde.
Aurélia considerava-se sumamente venturosa e ao abrigo de
receios, mas qual não foi o seu espanto quando, num dia em que
manifestava à mãe a alegria que o céu lhe concedera, esta, com os
olhos cintilantes, exclamou desabridamente:
- Foste a causa da minha desgraça, criatura abjeta e maldita; mas
ainda que a morte me leve repentinamente, a vingança virá
surpreender-te no meio da tua imaginária felicidade. É nestes
acessos nervosos, cuja origem remonta ao teu nascimento, que os
artifícios de Satanás...
A mulher do conde calou-se de repente, e, abraçando-se ao marido,
pediu-lhe que a dispensasse de repetir as palavras que a mãe
pronunciara numa crise de furor insensato. Sentia o coração
esfacelar-se, ao recordar as medonhas ameaças daquela possessa
do demônio, ameaças que excediam todos os horrores imagináveis.
O conde consolou a esposa o melhor que pôde, sem contudo
esquivar-se a ter medo.
10 Quando sossegou um pouco mais, não deixou de reconhecer que os
crimes da baronesa, apesar de ela já ter falecido, haviam lançado
uma sombra funesta numa existência que ele viverá cheia de
felicidade.
Passado pouco tempo, Aurélia foi mudando sensivelmente. A palidez
do rosto e o olhar extinto pareciam indicar doença, mas ao mesmo
tempo os seus modos extraordinários e inquietos faziam suspeitar
novo mistério. Afastava-se de todos, até do marido; fechava-me no
quarto ou buscava os sítios mais solitários do parque; quando
aparecia, trazia os olhos vermelhos de chorar, o rosto desfigurado,
denunciando o pesar que a devorava.
Em vão o conde se esforçou por indagar as causas que punham a
mulher naquele estado. Aurélia caiu em profundo abatimento, de que
saiu tão somente depois de consultar uma celebridade médica.
O homem de ciência foi de parecer que a grande irritabilidade
nervosa da condessa e os seus incômodos de saúde podiam fazer
conceber a esperança de que ia ter fruto aquele casamento
venturoso. Um dia, durante o jantar, aludiu ao estado de Aurélia.
Esta, a princípio, não deu atenção à conversa do doutor com o
conde, mas aplicou depois o ouvido, quando ouviu falar nos
singulares caprichos que as mulheres tinham quando grávidas, e a
que não podiam resistir sem prejuízo da sua saúde e até da saúde
do filho. Fez então ao médico perguntas sobre perguntas, e este não
se cansou de lhe citar muitos fatos, alguns altamente burlescos.
- Contudo, acrescentou ele, há também exemplos de desejos
desregrados, que levaram diversas mulheres a ações
verdadeiramente horríveis. Por exemplo, a mulher dum ferreiro
sentia irresistível desejo de comer carne do marido, fez esforços
baldados para se dominar, mas um dia em que o viu entrar em casa
embriagado, atirou-se a ele com uma faca, e feriu-o tão cruelmente,
que o desgraçado expirou poucas horas depois.
Mal o doutor acabava de pronunciar estas palavras, a condessa
desmaiou, e as convulsões que se seguiram ao desmaio acalmaramse
com grande dificuldade. O médico reconheceu que andara mal
contando semelhante aventura na presença duma senhora tão
impressionável.
Pareceu, todavia, que esta crise tivera salutar influência no estado
da condessa, dando-lhe algum sossego, mas pouco depois caía ela
novamente num acesso de profunda melancolia.
Brilhavam-lhe os olhos com estranho fulgor e seu rosto cobria-se de
11 palidez mortal, sempre crescente. O conde tornou a inquietar-se com
a saúde da esposa. Havia no seu estado uma coisa inexplicável: não
tomava o mínimo alimento, manifestando invencível horror por todas
as iguarias, especialmente pela carne. Quando se servia qualquer
prato desta substância, era obrigada a levantar-se da mesa, dando
evidentes sinais de nojo.
Foi inútil toda a ciência do médico, porque Aurélia não quis nunca
tocar em remédios, apesar das súplicas do marido.
Passaram-se semanas e meses sem que a condessa tomasse
alimento algum. O mistério continuava impenetrável e o médico era
de opinião que havia ali qualquer coisa que frustrava o saber
humano. Afinal despediu-se, apresentando um vago pretexto, mas o
conde percebeu claramente que o estado da esposa parecera muito
perigoso e enigmático ao hábil clínico e que ele não quisera tratar
por mais tempo duma inexplicável doença, que reputava
absolutamente impossível de curar.
Imaginem-se as desagradáveis disposições em que estaria o infeliz.
A desgraça, porém, ainda havia de ir mais longe. Um criado velho
aproveitou um momento, em que o encontrou sozinho, para o avisar
de que a condessa saía todas as noites do castelo e recolhia de
madrugada. O conde estremeceu e lembrou-se de que, havia
tempos, ao soar a meia noite, se apossava dele uma extraordinária
sonolência. Atribuiu-a a qualquer narcótico, que a condessa lhe
ministrasse sem ele dar por isso, para poder sair clandestinamente
do quarto de cama, que tinham em comum infringindo o estabelecido
na sua classe. Aguilhoado pelas mais terríveis suspeitas, Hipólito
recordou-se da sogra e do espírito mau de que ela estivera
possuída, e que talvez houvesse passado para a filha. Lembrou-se
também do filho do carrasco e suspeitou de qualquer ligação
adultera.
A noite seguinte ia desvendar-lhe o mistério abominável, causa única
do estado singular de Aurélia.
Tinha ela por hábito ir deitar-se depois de fazer o chá, que só o
conde bebia. Teve este o cuidado de não o tomar naquela noite,
meteu-se na cama, leu como de costume, e não sentiu a sonolência
habitual. Ainda assim, deixou cair a cabeça no travesseiro e fingiu
que dormia profundamente. A condessa levantou-se então, sem
fazer o mínimo ruído, aproximou uma luz do rosto do marido,
examinou-o por momentos, e saiu devagarinho do quarto.
Todo a tremer, o conde ergueu-se, embuçou-se numa capa e seguiu
a mulher cautelosamente. Esta já ia longe, mas como fazia luar,
avistava-se distintamente o seu vestido branco. Atravessou o parque
12 e dirigiu-se para o cemitério, desaparecendo por trás do muro
Hipólito segui-a, quase de corrida; achou aberta a porta e entrou.
Viu à claridade do luar um espetáculo medonho.
A curta distância, aparições hediondas acocoravam-se no chão,
formando círculo. Eram velhas seminuas, de cabelos desgrenhados,
dilacerando com os dentes, como feras, o cadáver dum homem.
E Aurélia estava no meio delas!... Com que pungente angústia e
profundo horror o desgraçado fugiu àquela cena infernal! Correu ao
acaso pelas alas do parque, e só caiu em si quando, de madrugada,
se encontrou em frente da porta do castelo. Subiu rápida e
maquinalmente a escadaria, atravessou as salas e entrou no quarto
de cama. A condessa parecia dormir serenamente.
Tanto não fora sonho ela sair do castelo, que estava ainda úmida do
orvalho a capa. Ainda assim tentou persuadir-se de que tinha sido
joguete duma alucinação.
Sem esperar que a esposa despertasse, foi dar um passeio a cavalo.
A beleza da manhã, os aromas dos bosques, o gorjeio das aves
fizeram-lhe esquecer os fantasmas noturnos.
Voltou mais tranqüilo ao castelo e sentou-se à mesa com a mulher.
Quando, porém, serviam um prato de carne cosida e a condessa
quis retirar-se mostrando repugnância, o conde reconheceu a
realidade dos fatos de que fora testemunha, e exclamou com
violência:
- Ah! Mulher abominável e diabólica! Bem sei de que provém a tua
aversão pelo comer dos homens. É nas sepulturas que te vais
banquetear!
Mal ouviu estas palavras, Aurélia atirou-se a ele rugindo, e mordeu-o
no peito, com a fúria duma hiena. O marido repeliu violentamente a
possessa, que morreu no meio de atrozes convulsões.
Veio a enlouquecer o desgraçado.
E. T. A. Hoffman
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