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A MUSA DO DEPARTAMENTO / Honoré de Balzac
A MUSA DO DEPARTAMENTO / Honoré de Balzac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

A musa do departamento (em francês: La Muse du département) foi publicado pela primeira vez no jornal Le Messager, em março e abril de 1843, sob o título Dinah Piédefer; editado em volume no mesmo ano, tomou o título atual. A data de 1844, que se lê no fim, explica-se pelo fato de um breve fragmento ter sido acrescentado ainda à história na edição definitiva.
Essa narrativa esplêndida, relativamente pouco conhecida e quase nunca lembrada, é, no entanto, característica de toda a arte de Balzac. Até a história acidentada do texto é característica das vicissitudes por que a maioria dos assuntos passava entre as mãos desse criador sempre perseguido pelos editores e pelos jornais, forçado a utilizar as menores aparas de sua oficina, reduzido, pelas dissipações do homem, a uma estranha economia de escritor.
Uma coletânea intitulada Contes bruns (Contos marrons), publicada sem nome de autor em 1832 e constituída pelas narrativas de três jovens autores, Philarète Chasles, Charles Rabou e Balzac, continha dois trabalhos deste último: Uma conversação entre onze horas e meia-noite e O Grande de Espanha. Uma conversação compunha-se de uma sucessão de doze historietas, que Balzac utilizaria mais tarde em diversas obras; uma delas, a do cavaleiro de Beauvoir, foi incluída em 1837 em La Grande Bretèche (A grande ameia), que acolheu também a história do Grande de Espanha. Mais tarde, Balzac transformaria ainda a La Grande Bretèche dando-lhe o título Autre étude de femme (Outro estudo de mulher) e retirando dela as historietas do cavaleiro de Beauvoir e do Grande de Espanha. Essas duas narrativas, que se referem ambas aos terríveis castigos infligidos por um marido ciumento ao amante de sua mulher, encontrariam seu lugar definitivo em A musa do departamento: lá, como veremos, são contadas, numa reunião, por pessoas desejosas de observar as reações de uma mulher suspeita de adultério e do suposto amante.
Outro episódio preexistente ao romance é o de Olímpia, ou as vinganças romanas. Em 1853, na coletânea Causeries du monde, Balzac publicou um artigo intitulado “Fragmentos de um romance publicado sob o Império por autor desconhecido”, em que conta ter recebido uma encomenda envolta em papel impresso. Ao desdobrar o papel, vê que o mesmo contém algumas páginas de provas tipográficas de um romance intitulado Olímpia, ou as vinganças romanas. Começa a lê-las e verifica tratar-se de um desses romances terríficos, cheios de disfarces, raptos, reconhecimentos, subterrâneos, vinganças e assassínios, em voga no tempo do Império (e cujo número ele mesmo aumentou consideravelmente durante a sua fase clandestina), e põe-se a fazer um comentário pilhérico das páginas desconexas que o acaso lhe pôs sob os olhos.
A ideia era pouco original. O próprio Balzac lembra uma história que Sterne diz ter encontrado no papel em que seu quitandeiro lhe mandou as frutas, e outra, semelhante, incluída nas Memórias do Gato Murr, de Hoffmann. Entretanto, o romancista não quis deixar enterrado numa página de jornal o que lhe parecia uma sátira espirituosa da escola pré-romântica e que era, inclusive, uma condenação mordaz de sua primeira maneira. Inseriu-o, pois, na história de Diná Piédefer, fazendo-o servir de pretexto a uma mistificação pregada por dois literatos parisienses, numa excursão de província, a seus ouvintes basbaques.
Além desses episódios, todo o assunto central, o amor de Diná e Lousteau, aparece em germe num artigo intitulado “A mulher provinciana”, incluído no vol. 1 de Les Français peints par eux-mêmes, publicado em 1842.
Apesar de todos esses avatares, o romance, sob sua forma atual, é uma obra deliciosa. As narrativas nele incluídas talvez lhe estorvem o ritmo; mas num romance de costumes literários não aparecem fora de lugar, sobretudo pela maneira engenhosa por que Balzac as insere no conjunto.
No belo “Prefácio” que escreveu para uma das reedições de A musa do departamento, “que é, como a menor obra do mestre, Balzac inteiro”, Julien Benda assinala a riqueza de aspectos sob os quais ele se nos depara neste romance: pintor da cidadezinha provinciana; jovial criador dos imbróglios mais endiabrados, das fantasias mais impetuosas, das farsas mais robustas; analista de uma paixão humana; filósofo, observador de visão ampla, denunciador da mentira necessária de que vive a sociedade; moralista; mestre do estilo. Poderíamos acrescentar: o satírico do jornalismo; o espectador agudo da luta das correntes literárias; o grande conhecedor de Paris, o renovador do romance.
A musa do departamento levanta a questão das relações de Balzac com o romantismo. Paul Barrière, o autor de uma tese notável em que arrola tudo o que Balzac deve à tradição clássica, vê neste romance um julgamento do romantismo. De qualquer maneira, será um julgamento imparcial, pois Balzac não ridiculariza completamente a poesia romântica representada por Paquita, a sevilhana, o poema anônimo da sra. de La Baudraye, e reconhece méritos até a Olímpia, ou as vinganças romanas, romance de cordel ao qual pelo menos não falta movimento. Quanto ao estilo de vida romântica adotado por Diná, que comporta um rompimento integral com as convenções sociais, a alguns críticos parece que Balzac o desaprova. Marcel Barrière, autor do comentário mais volumoso e menos penetrante de A comédia humana (L’Œuvre de Honoré de BaIzac), chega a comparar Diná Piédefer à sra. Bovary, “para mostrar a superioridade da obra de Balzac sobre a de Flaubert. A moralidade do romance de Balzac não é duvidosa... Na mulher de Balzac, o coração, a imaginação, o que enfim faz na mulher o ser poético, o anjo, vence os sentidos”. Para fazer tal afirmação, Barrière deve ter esquecido a parte final do romance, em que “os sentidos vencem o anjo”. A sra. de La Baudraye, que abandona o marido velho e a asfixiante sociedade provinciana, não encontrará uma felicidade completa ao lado do amante, e o ambiente literário de Paris reserva-lhe muitas desilusões amargas: mas teria sido mais feliz em Sancerre?
Assim pelo menos viveu.
Uma das grandezas de Balzac consiste precisamente nessa incerteza que é provocada pela imparcialidade do autor. Talvez o romancista quisesse mesmo demonstrar que “o amor não consegue conquistar a felicidade sem se dobrar às leis sociais” (Alain, Avec Balzac); entretanto, nada faz para tornar mais atraente a felicidade legítima.
Deixa que as situações e os caracteres iniciais sigam seu curso natural sem alterar-lhes o desenvolvimento para apoiar qualquer tese.
O crescimento progressivo de uma paixão e seu lento decompor-se, a influência corrosiva do ambiente provinciano, a personalidade complexa do “inseto” La Baudraye, o admirável retrato do cabotino em Lousteau, a renovação completa do tipo tradicional do amante infeliz na personagem do sr. de Clagny são outras tantas perfeições de A musa do departamento.
Neste romance tem-se curioso exemplo da maneira por que Balzac costumava incorporar em suas obras as reminiscências livrescas. Servia-se das citações como de pontos de apoio; pondo-as na boca de suas personagens, reforçava ainda mais a extraordinária fusão de realidade e ficção que é A comédia humana. Toda a parte final do romance é, por assim dizer, uma paráfrase do Adolphe, de Benjamin Constant, o qual, revivido pela sra. de La Baudraye e por Estêvão Lousteau, vem a enriquecer-se para sempre de um novo matiz.
A heroína do nosso romance, a sra. de La Baudraye, em solteira Diná Piédefer, terá tido algum modelo na realidade? Anne Marie Meininger, a douta comentadora da presente obra na nova edição da Pléiade, relaciona nada menos de cinco mulheres da época apontadas por diversos pesquisadores como originais possíveis dessa figura de extraordinário relevo, cinco sombras a disputar um pouco de sobrevida à criatura de ficção saída do cérebro do escritor. Todas elas acusam semelhanças inegáveis com a personagem na fisionomia, no espírito, no trajar, no talento, no ambiente, na paixão, no destino, mas, ao mesmo tempo, ostentam diferenças essenciais. São elas: Zulma Carraud, a fiel amiga e correspondente em cuja casa de Frapesle o escritor ia refugiar-se amiúde para descansar ou trabalhar; a aventureira Caroline Marbouty, dando matéria à fofoca internacional, acompanhou-o numa de suas viagens à Itália, disfarçada de homem; Louise Breugniot, que lhe serviu de governanta e algo mais, despertando ciúme da condessa Hanska enquanto noiva do nosso romancista; a sua primeira amante, a maternal sra. de Berny, que tanto o animara em sua estreia difícil; e mesmo uma que parece não ter representado papel em sua vida: Rose de Saint-Surin, literata que recebia em seu salão a elite de Angoulême. Examinando minuciosamente todas essas identificações, a exegeta chega à pertinente conclusão de que, para criar suas personagens principais, Balzac evitava inspirar-se num modelo único, mas pedia a vários deles traços marcantes capazes de reforçar a ilusão de realidade.

 


 


AO SR. CONDE FERDINAND DE GRAMONTI (Conde Ferdinand de Gramont: escritor francês (1815-1897), tradutor de Petrarca e do livro de Job; em seu volume de poema Sextilhas reviveu esse gênero de poesia; amigo de Balzac. Secretário de Balzac durante algum tempo, foi ele quem elaborou o armorial das personagens de A comédia humana.)
Meu caro Ferdinand, se as vicissitudes (habent sua fata libelli (Habent sua fata libelli: frase latina, tornada proverbial, do gramático Terenciano Mauro; significa:
“Os livros têm o seu destino”.)) do mundo literário fazem destas linhas uma longa recordação, isto será certamente pouca coisa em comparação com o trabalho que teve
você, o D’Hozier (D’Hozier: Pierre D’Hozier (1592-1660), genealogista francês, autor de uma Genealogia das principais famílias da França, em 150 volumes.), o Chérin
(Chérin: Louis-Nicolas-Henri Chérin (1762-1799), genealogista e militar francês, autor de uma coletânea de legislação nobiliária.), o rei de armas dos ESTUDOS DE
COSTUMES; você a quem os Navarreins, os Cadignan, os Langeais, os Blamont-Chauvry, os Chaulieu, os D’Arthez, os D’Esgrignon, os Mortsauf, os Valois, as cem casas
nobres que constituem a aristocracia de A COMÉDIA HUMANA devem suas belas divisas e seus brasões tão espirituais. Assim, o ARMORIAL DOS ESTUDOS DE COSTUMES CRIADO
POR FERDINAND DE GRAMONT, GENTIL-HOMEM, é uma história completa da heráldica francesa, onde você nada esqueceu, nem mesmo as armas do Império, e que conservarei
como um monumento de paciência beneditina e de amizade. Que conhecimento da antiga linguagem feudal no Pulchre sedens, melius agens (Pulchre sedens, melius agens:
“Sentando-se bem, agindo melhor”. As divisas dos escudos, muitas vezes, dão uma explicação do nome de quem os usa. A primeira parte desta divisa é a tradução latina
do nome Beauséant (beau séant).)! dos Beauséant, no Des partem leonis (Des partem leonis: “Dá a parte do leão”. Aqui também—como diversas vezes acontece em heráldica—a
divisa é baseada num trocadilho e sugere que o nome de D’Espard deriva das duas primeiras palavras dessa frase latina.)! dos D’Espard, no Ne se vend (Ne se vend:
“Não se vende”. Divisa que constitui um anagrama tirado do nome Vandenesse.)! dos Vandenesse! Quanta elegância, enfim, nos mil detalhes dessa erudita iconografia
que mostrará a que extremos será levada a fidelidade do meu empreendimento, no qual você, poeta, terá auxiliado.
Seu velho amigo
DE BALZAC
PRIMEIRA PARTE
O PROSCÊNIO DAS GRANDES RESOLUÇÕES
I - SANCERRE
Há nos confins do Berry, às margens do Loire, uma cidade que por sua posição atrai infalivelmente o olhar do viajante. Sancerre ocupa o ponto culminante duma cadeia
de pequenas montanhas, última ondulação das irregularidades de terreno do Nivernais. O Loire inunda as terras ao pé dessas colinas, deixando nelas um lodo amarelo
que as fertiliza, quando não as cobre de areia para sempre por uma dessas terríveis enchentes igualmente familiares ao Vístula, esse Loire do Norte. A montanha no
cimo da qual se agrupam as casas de Sancerre ergue-se a uma distância bastante grande do rio para que o pequeno porto de Saint-Thibault possa viver da vida de Sancerre.
Lá se embarcam os vinhos e se desembarcam as aduelas, todos os artigos, enfim, provenientes do alto e do baixo Loire.
Na época em que ocorreu esta história, a ponte de Cosne e a de Saint-Thibault, duas pontes suspensas, já estavam construídas. Os viajantes que vinham de Paris a
Sancerre pela estrada da Itália não mais atravessavam o Loire, de Cosne a Saint-Thibault, em balsa; não basta isso para dizer-vos que já se havia realizado o chassé-croisé
de 1830 (Chassé-croisé: certo passo de dança; em sentido figurado, “série de evoluções que se sucedem sem dar resultado”. Neste trecho, refere-se à Revolução de
Julho de 1830, que fez suceder a casa de Orléans à de Bourbon e à qual Balzac, favorável aos Bourbon, sempre se referia com sarcasmos.)? A casa de Orléans lisonjeou
em toda a parte os interesses materiais, mas o fez mais ou menos como esses maridos que dão presentes às esposas com o dinheiro do dote.
Excetuada a parte de Sancerre que ocupa o planalto, as ruas são mais ou menos em declive e a cidade é contornada de rampas chamadas as Grandes Muralhas, nome que
vos dá uma ideia precisa das grandes ruas da cidade. Além dessas muralhas estende-se um cinturão de parreirais. O vinho constitui a principal indústria e o mais
importante comércio da região, que possui várias herdades produtoras de vinhos generosos, ricos de aroma e suficientemente semelhantes aos produtos da Bourgogne
para que em Paris os paladares vulgares se enganem com eles. Sancerre encontra, assim, nas tabernas parisienses, um rápido consumo, bastante necessário, aliás, a
vinhos que não podem ser guardados por mais de sete ou oito anos. Abaixo da cidade estão situadas algumas aldeias, Fontenay, Saint-Satur, que parecem arrabaldes
e cuja situação recorda os alegres vinhedos de Neuchâtel, na Suíça. A cidade conservou alguns traços de sua antiga fisionomia, suas ruas são estreitas e pavimentadas
com cascalho retirado do leito do Loire. Veem-se ainda ali velhas casas. A torre, esse vestígio da força militar e da época feudal, lembra um dos mais terríveis
teatros de nossas guerras de religião, durante as quais nossos calvinistas ultrapassaram os bárbaros cameronianos de Walter Scott (Os cameronianos: denominação dos
adeptos de uma seita presbiteriana escocesa, inimiga da Monarquia; vem do nome de seu chefe, Archibald Cameron. Sob a direção deste, seus partidários organizaram,
no fim do século XVII, uma revolta republicana, no decorrer da qual praticaram atos de crueldade fanática, descritos no romance de Walter Scott, Os puritanos da
Escócia. Só em 1709 foram vencidos definitivamente.). A cidade de Sancerre, possuidora dum ilustre passado, viúva de seu poderio militar, está, de certo modo, destinada
a um futuro estéril, pois o movimento comercial pertence à margem direita do Loire.
A rápida descrição que acabais de ler demonstra que o isolamento de Sancerre continuará crescendo, apesar das duas pontes que a ligam a Cosne. Sancerre, o orgulho
da margem esquerda, tem no máximo três mil e quinhentas almas, ao passo que já se contam atualmente mais de seis mil em Cosne. Neste último meio século, o papel
dessas duas cidades situadas uma em face da outra tem mudado completamente. A vantagem da situação, entretanto, pertence à cidade histórica, onde, de todos os lados,
se desfruta uma vista encantadora, onde o ar é duma admirável pureza, a vegetação magnífica, e onde os habitantes, em harmonia com essa ridente natureza, são afáveis,
bons companheiros e despidos de puritanismo, embora os dois terços da população se tenham conservado calvinistas.
II - O SANDISMO
Em tais circunstâncias, se, por um lado, todos sofrem lá os inconvenientes da vida das pequenas cidades, quando se precisa viver debaixo dessa vigilância oficiosa
que faz da vida privada uma vida quase pública, em compensação, o patriotismo da localidade, que nunca substituirá o espírito de família, se desenvolve em alto grau.
Assim, a cidade de Sancerre muito se orgulha de ter visto nascer uma das glórias da medicina moderna, Horácio Bianchon, e um autor de segunda categoria, Estêvão
Lousteau (Horácio Bianchon, uma das glórias da medicina moderna, é personagem inventada por Balzac, por sinal uma das mais vivas de toda a sua grande galeria. Já
encontramos Horácio mais de uma vez: como estudante, à cabeceira do moribundo Goriot (em O pai Goriot); como auxiliar do famoso Desplein, curioso de resolver a aparente
contradição entre as palavras e os atos de seu ilustre mestre (em A missa do ateu); como médico de grande número de doentes de A comédia humana: a sra. Bridau (em
Um conchego de solteirão), Luísa de Chaulieu (em Memórias de duas jovens esposas, Pierrette) etc.—Estêvão Lousteau: personagem balzaquiana. Jornalista de talento,
mas sem moral nem compostura, foi quem se encarregou, por dinheiro, de arruinar a condessa Felipe Bridau, a antiga Gapuiadora (Um conchego de solteirão).), um dos
folhetinistas mais distintos.
A circunscrição de Sancerre, chocada por se ver dominada por sete ou oito grandes proprietários, os altos barões de eleição, tentou sacudir o jugo eleitoral da Doutrina
(O partido da Doutrina abrangia os realistas constitucionais que representavam, durante a Restauração, o “justo meio”. O reinado de Luís Felipe marcou, sob a chefia
de Guizot, a ascensão deles ao poder.), que comprara todos os votos do lugar. Essa conjuração de alguns amores-próprios feridos fracassou devido à inveja que despertava
nos coligados a futura ascensão dum dos conspiradores. Quando o resultado revelou o vício radical do empreendimento, quis-se remediá-lo tomando como defensor da
região nas próximas eleições um dos dois homens que representam gloriosamente Sancerre em Paris. Essa ideia era extremamente avançada para a província, onde, a partir
de 1830, a nomeação das notabilidades de campanário fez tais progressos que os homens de Estado se tornam cada vez mais raros na Câmara eletiva. Esse projeto, de
realização bastante hipotética, foi concebido pela mulher superior do distrito, dux femina facti (Dux femina facti: “O chefe da empresa é uma mulher”. Verso de Eneida,
de Virgílio (livro I, verso 364), em que o poeta se refere a Dido, que foge da tirania do irmão para fundar nas margens do Mediterrâneo um novo reino, Cartago.),
inspirada pelo interesse pessoal. Essa inspiração tinha tantas raízes no passado dessa mulher e envolvia de tal modo seu futuro que, sem uma viva e sucinta narração
de sua vida anterior, dificilmente seria compreendida.
Sancerre orgulhava-se, então, duma mulher superior, durante muito tempo incompreendida, mas que, em 1836, desfrutava um belo renome departamental. Essa foi, também,
a época em que os nomes dos dois sancerrenses atingiram, em Paris, cada um em sua esfera, no mais alto grau, um a glória e o outro a popularidade. Estêvão Lousteau,
um dos colaboradores das revistas, redigia o folhetim dum jornal de oito mil assinantes; e Bianchon, já primeiro médico dum hospital, oficial da Legião de Honra
e membro da Academia das Ciências, acabava de obter sua cátedra. Se esta expressão não comportasse, para muita gente, uma espécie de censura, poder-se-ia dizer que
George Sand (George Sand: pseudônimo de Aurore Dupin (1803-1876), célebre autora de romances sentimentais, sociais e campestres. Era amiga de Balzac, que a retratou
na figura de Camille Maupin em Beatriz.) criou o sandismo, tanto é certo que, moralmente falando, o bem é quase sempre acompanhado dum mal. Essa lepra sentimental
estragou muitas mulheres que, sem suas pretensões à genialidade, teriam sido encantadoras. O sandismo tem, entretanto, isto de bom que a mulher por ele atingida,
dirigindo suas pretensas superioridades para sentimentos desconhecidos, torna-se, de certo modo, a literata do amor: disso resulta, então, menos tédio, pois o amor
neutraliza um pouco a literatura. Ora, o exemplo de George Sand teve, como principal efeito, o de demonstrar que a França possui um número exorbitante de mulheres
superiores, suficientemente generosas para deixar, até agora, o campo livre à neta do marechal de Saxe (Marechal de Saxe: conde Maurice de Saxe (1696-1750), marechal
da França, um dos maiores capitães de seu tempo. A avó de George Sand era sua filha ilegítima.). A mulher superior de Sancerre morava em La Baudraye, casa de cidade
e de campo ao mesmo tempo, situada a dez minutos da cidade, na aldeia, ou, se quiserdes, no arrabalde de Saint-Satur. Os atuais La Baudraye, como aconteceu com muitas
casas nobres, substituíram os La Baudraye cujo nome brilha nas cruzadas e se confunde com os grandes acontecimentos da história do Berry. Isto exige uma explicação.
III - OS MILAUD
No reinado de Luís XIV, um certo almotacé chamado Milaud, cujos antepassados foram furiosos calvinistas, converteu-se por ocasião da revogação do Édito de Nantes
(O Édito de Nantes, promulgado por Henrique IV, em 1598, outorgava diversos direitos aos calvinistas da França; sua revogação, em 1685, por Luís XIV, motivou a emigração
de grande número de protestantes.). Para encorajar esse movimento num dos santuários do calvinismo, o rei nomeou o referido Milaud para um elevado cargo na Administração
das Águas e Florestas, conferiu-lhe armas e o título de sir de La Baudraye, presenteando-o com o feudo dos verdadeiros e antigos La Baudraye. Os herdeiros do famoso
capitão La Baudraye caíram numa das ciladas armadas aos heréticos pelos soldados e foram enforcados, tratamento indigno do grande rei. No reinado de Luís XV, Milaud
de La Baudraye passou de simples escudeiro a cavaleiro e adquiriu prestígio suficiente para colocar o filho como porta-estandarte dos mosqueteiros. O porta-estandarte
morreu em Fontenoi (Fontenoi: cenário de famosa batalha em que, no dia 11 de maio de 1745, o marechal de Saxe venceu os ingleses. Quando a cabeça da coluna inglesa
chegou perto dos franceses, um oficial inglês teria gritado ao conde d’Anterroche: “Mande seus soldados atirarem”; “Não, senhor, a honra é vossa”, teria respondido
este. Essa cortesia custou aos franceses muitas baixas.) deixando um filho a quem o rei Luís XVI concedeu, mais tarde, um alvará de feitor-geral, em memória do porta-estandarte
morto no campo de batalha. Esse financista, belo espírito que se ocupava de charadas, glosas e poesias galantes, viveu na alta sociedade, frequentou o círculo de
relações do duque de Nivernois (Duque de Nivernois: Louis Jules Mancini-Mazarini (1716-1798), diplomata e escritor francês, ministro de Necker; autor de poesias
originais e de traduções e imitações de poetas latinos, gregos, italianos, ingleses, é considerado tipo do perfeito gentil-homem. Em 1791 recusou-se a emigrar e
permaneceu na França como “cidadão Mancini”.) e julgou-se obrigado a acompanhar a nobreza no exílio; teve, entretanto, o cuidado de levar seu dinheiro. Assim, o
rico emigrado sustentou, então, mais de uma casa nobre. Cansado de esperar e talvez, também, de emprestar, voltou a Sancerre em 1800 e readquiriu La Baudraye por
um sentimento de amor-próprio e de vaidade nobiliária explicável num neto de almotacé que, durante o Consulado, tinha tanto menos futuro porque o ex-feitor-geral
pouco contava com o herdeiro para continuar os novos La Baudraye.
João Atanásio Polidoro Milaud de La Baudraye, filho único do financista, nascido mais do que definhado, era bem o fruto dum sangue cedo esgotado pelos prazeres exagerados
a que se entregam todas as pessoas ricas que se casam na aurora duma velhice prematura e acabam, assim, por abastardar as sumidades sociais. Durante a emigração,
a sra. de La Baudraye, moça pobre que foi desposada em virtude de sua nobreza, tivera a paciência de educar esse filho pálido e enfermiço, a quem dedicava o amor
exaltado que as mães encerram no coração pelos filhos monstruosos. A morte dessa mulher, que era uma srta. de Castéran la Tour (De Castéran la Tour: família da alta
aristocracia, inventada por Balzac. A protagonista do romance Beatriz, casada com o marquês de Rochefide, era também uma Castéran.), muito contribuiu para a volta
do sr. de La Baudraye à França. Esse Lúculo (Lúculo: general romano que dirigiu, antes de Pompeu, a guerra contra Mitrídates, e se tornou famoso por seu luxo e seu
excessivo amor pelos prazeres da mesa.) dos Milaud morreu legando ao filho o feudo, sem laudêmios, mas ornado de flâmulas com suas armas, mil luíses de ouro, soma
bastante considerável em 1802, e seus créditos sobre os mais ilustres emigrados, contidos na sua carteira de poesias, com esta inscrição: Vanitas vanitatum et omnia
vanitas (Vanitas vanitatum et omnia vanitas: “Vaidade das vaidades e tudo é vaidade”. Palavras do Eclesiastes—na tradução latina da Vulgata—com as quais se deplora
a inanidade das coisas do mundo.)! Se o jovem La Baudraye conseguiu sobreviver, foi devido a hábitos duma regularidade monástica, a essa economia de movimentos que
Fontenelle (Fontenelle: Bernard le Bovier de Fontenelle (1657-1757), sábio francês, famoso por seu espírito; autor, entre outras obras, de Conversações sobre a pluralidade
dos mundos. De compleição pouco robusta, conseguiu, graças a um regime de vida cuidadosamente estudado, chegar à idade de cem anos, conservando até o fim a lucidez
e rindo de alguns contemporâneos que lhe atribuíam a longevidade a um egoísmo excessivo.) pregava como a religião dos valetudinários e, principalmente, ao clima
de Sancerre, à influência desse sítio admirável de onde se descortina um panorama de quarenta léguas no vale do Loire. De 1802 a 1815, o pequeno La Baudraye aumentou
seu ex-feudo de várias terras e dedicou-se intensamente à cultura das parreiras. No início, a Restauração pareceu-lhe tão vacilante que ele não ousou ir a Paris
para fazer suas reclamações; mas, após a morte de Napoleão, tentou amoedar a poesia do pai, pois não compreendeu a profunda filosofia revelada por essa mistura de
notas promissórias e charadas. O vinhateiro perdeu tanto tempo em se fazer reconhecer pelos duques de Navarreins e outros (tal era sua expressão) que voltou a Sancerre,
chamado por suas queridas vindimas, sem ter obtido nada além de oferecimentos de préstimos. A Restauração deu suficiente brilho à nobreza para que La Baudraye desejasse
dar um sentido à sua ambição conseguindo um herdeiro. Esse benefício conjugal parecia-lhe bastante problemático; de outro modo, não teria tardado tanto; mas, no
fim de 1823, vendo-se ainda forte aos quarenta e três anos, idade que nenhum médico, astrólogo nem parteira teria tido a coragem de predizer-lhe, esperou encontrar
a recompensa de sua virtude forçada. Sua escolha, porém, revelou, relativamente à sua constituição débil, tamanha falta de prudência que a malícia provinciana não
pôde deixar de ver nela um profundo cálculo.
IV - DINÁ
Nessa época, sua eminência o senhor arcebispo de Bourges acabava de converter ao catolicismo uma jovem pessoa pertencente a uma dessas famílias burguesas que foram
os primeiros apoios do calvinismo e que, graças à sua posição obscura ou a acomodações com o céu, escaparam às perseguições de Luís XIV. Artesãos do século XVI,
os Piédefer (Piédefer: “pé de ferro”.), cujo nome revela um desses estranhos epítetos que se deram os soldados da Reforma, haviam-se tornado honestos fabricantes
de fazenda. No reinado de Luís XVI, Abraão Piédefer fez tão maus negócios que em 1786, quando morreu, deixou os dois filhos numa situação vizinha da miséria. Um
deles, Silas Piédefer, partiu para as Índias, deixando a modesta herança para o irmão mais velho. Durante a Revolução, Moisés Piédefer comprou bens nacionais, demoliu
abadias e igrejas a exemplo de seus antepassados e casou-se, coisa estranha, com uma católica, filha única dum convencional (Convencional: membro da Convenção Nacional,
assembleia revolucionária que governou a França de 21 de setembro de 1792 a 26 de outubro de 1795.) morto no cadafalso. O ambicioso Piédefer morreu em 1819, deixando
à esposa uma fortuna comprometida por especulações agrícolas e uma filhinha de doze anos de surpreendente beleza. Educada na religião calvinista, a menina chamava-se
Diná, segundo o costume em virtude do qual os reformistas tomavam seus prenomes da Bíblia para não terem nada em comum com os santos da Igreja romana. A srta. Diná
Piédefer, mandada pela mãe para um dos melhores pensionatos de Bourges, o das senhoritas Chamarolles, tornou-se lá tão famosa por suas qualidades de espírito como
por sua beleza; ela, porém, sentiu-se ali sobrepujada por moças nobres, ricas e que deviam mais tarde representar na sociedade um papel muito mais belo que o duma
plebeia cuja mãe estava à espera dos resultados da liquidação Piédefer. Após ter conseguido elevar-se momentaneamente acima de suas companheiras, Diná quis também
alçar-se ao mesmo nível delas na vida. Teve, pois, a ideia de abjurar o calvinismo, esperando que o cardeal protegesse sua conquista espiritual e se ocupasse de
seu futuro. Já podeis, assim, julgar a superioridade da srta. Diná, que, com apenas dezessete anos de idade, se convertia por ambição. O arcebispo, penetrado da
ideia de que Diná Piédefer constituiria um ornamento da sociedade, tentou casá-la. Todas as famílias às quais se dirigiu o prelado encheram-se de receios por uma
moça dotada dum porte de princesa, que era considerada a mais inteligente das jovens educadas na casa das Chamarolles e que, nas solenidades um pouco teatrais da
distribuição de prêmios, representava sempre os principais papéis. Realmente, os mil escudos de renda, que podia produzir o domínio de La Hautoy indiviso entre a
mãe e a filha, eram pouca coisa comparados às despesas a que as superioridades pessoais duma criatura tão inteligente obrigariam o marido.
Logo que o pequeno Polidoro de La Baudraye soube desses detalhes, de que falavam todas as sociedades do departamento do Cher, dirigiu-se a Bourges, no momento em
que a sra. Piédefer, devota das grandes horas canônicas, estava mais ou menos determinada, assim como sua filha, a segurar, segundo a expressão do Berry, o primeiro
pé-rapado que aparecesse. Se o cardeal se sentiu muito feliz por encontrar o sr. de La Baudraye, o sr. de La Baudraye foi ainda mais feliz por aceitar uma esposa
das mãos do cardeal. O homenzinho exigiu de sua eminência a promessa formal de sua proteção junto ao presidente do conselho, a fim de receber o que lhe deviam os
duques de Navarreins e outros, embargando suas indenizações. Esse meio pareceu um pouco violento ao hábil ministro do pavilhão Marsan (Pavilhão Marsan: residência
do conde de Artois, futuro Carlos X. O hábil ministro era Villèle, presidente do Conselho e ministro da Fazenda.), que mandou dizer ao vinhateiro que se ocupariam
dele no devido tempo. Todos podem imaginar o falatório produzido entre os sancerrenses pelo insensato casamento do sr. de La Baudraye.
— Isso é explicável—disse o presidente Boirouge.—Disseram-me que o homenzinho ficara muito chocado de ter ouvido no passeio público o belo sr. Milaud, substituto
de Nevers, dizer ao sr. de Clagny, mostrando-lhe as torrinhas de La Baudraye: “Isso virá às minhas mãos!”. “Mas”, respondeu nosso procurador do rei, “ele pode casar-se
e ter filhos.” “Ele não é capaz disso!” Podeis imaginar o ódio que um monstrengo como o pequeno La Baudraye deve ter sentido por esse colosso de Milaud. Havia em
Nevers um ramo plebeu dos Milaud que se enriquecera suficientemente no comércio de cutelaria para que o representante desse ramo abordasse a carreira do ministério
público, na qual foi protegido pelo falecido Marchangy (Marchangy: Louis-Antoine de Marchangy (1782-1826), nascido em Clamecy, no Nièvre. Autor de A Gália poética
e de Tristão, o Viajante, ou a França do século XIV, epopeias em prosa, respectivamente de oito e seis volumes. Como magistrado, exerceu o cargo de procurador do
rei e celebrizou-se pela ferocidade de seus requisitórios nos processos políticos de maior repercussão, como o dos quatro sargentos da Rochelle.).
V - UM MODO DE PAGAR SUAS DÍVIDAS
Talvez convenha eslagartar esta história, na qual a moral desempenha um grande papel, dos vis interesses materiais de que se preocupava exclusivamente o sr. de La
Baudraye, narrando sucintamente os resultados de suas negociações em Paris. Isto, aliás, explicará muitas partes misteriosas da história contemporânea e as dificuldades
subjacentes que os ministros encontravam no terreno político durante a Restauração. As promessas ministeriais foram tão mal cumpridas que o sr. de La Baudraye se
dirigiu a Paris no momento em que o cardeal foi chamado lá para a sessão das Câmaras. Eis como o duque de Navarreins, o primeiro devedor ameaçado pelo sr. de La
Baudraye, se livrou da questão. O sancerrense viu chegar, uma manhã, ao Hôtel de Mayence, à Rue Saint-Honoré, próximo à Place Vendôme, onde se hospedara, um confidente
dos ministros, perito em liquidações. O distinto personagem, que saiu dum elegante cabriolé vestido da maneira mais elegante, foi obrigado a subir ao número 37,
isto é, ao terceiro andar, a um quartinho onde surpreendeu o provinciano aquecendo ao fogo do aquecedor uma taça de café.
— É ao sr. Milaud de La Baudraye que tenho a honra...
— Sim—respondeu o homenzinho, envolvendo-se no roupão.
Após ter examinado de alto a baixo esse produto incestuoso dum velho sobretudo da sra. Piédefer e dum vestido da falecida sra. de La Baudraye, o negociador achou
o homem, o roupão e o forninho de barro, onde fervia o leite numa caçarola de ferro, tão característicos que julgou inúteis todos os subterfúgios.
— Aposto que o senhor janta por dois francos no Hurbain, no Palais-Royal (Palais-Royal: famoso bloco de edifícios no centro de Paris, construído em 1629 por Lemercier
e que, durante parte do século XVII, serviu de residência real. Na época do romance, suas galerias cobertas constituíam o passeio preferido do mundo elegante, mas
abrangiam também casas de jogo, como veremos no capítulo I de A pele de onagro.)—disse, audaciosamente.
— E por quê?
— Oh! Reconheço-o por tê-lo visto lá—replicou o parisiense, conservando a austeridade.—Todos os credores dos príncipes jantam lá. O senhor sabe que não se recebe
mais de dez por cento das dívidas dos fidalgos mais ilustres... Eu não lhe daria cinco por cento dum crédito sobre o falecido duque de Orléans... nem mesmo sobre...—baixou
a voz—sobre Monsieur (Monsieur: nome que se dava na França ao irmão mais velho do rei; no caso, o conde de Artois, futuro Carlos X.)...
— O senhor veio comprar meus títulos?—perguntou o vinhateiro, que se considerou finório.
— Comprar!...—exclamou o negociador.—Por quem me toma o senhor?... Sou o sr. des Lupeaulx (Des Lupeaulx: personagem de A comédia humana, político ambicioso e inteligente
que serviu ao governo em muitas missões delicadas.), juiz relator dos processos de petição, secretário-geral do ministério, e venho propor-lhe um acordo.
— Qual?
— O senhor não ignora a situação de seu devedor...
— Dos meus devedores.
— Pois bem. O senhor conhece a situação de seus devedores. Eles gozam as boas graças do rei, mas não têm dinheiro e são obrigados a uma grande representação... O
senhor não ignora as dificuldades da política: a aristocracia precisa ser reconstruída, em presença dum Terceiro Estado (Terceiro Estado: em francês, Tiers État,
a parte da nação francesa que não pertencia nem à nobreza nem ao clero; burguesia.) formidável. A intenção do rei, que a França julga muito mal, é criar no pariato
uma instituição nacional, análoga à da Inglaterra. Para realizar esse grande projeto, precisamos de anos e milhões... A nobreza obriga! O duque de Navarreins, que,
como o senhor sabe, é primeiro gentil-homem da Câmara, não nega sua dívida, mas não pode... (Seja razoável! Julgue a política! Estamos saindo do abismo das revoluções.
O senhor também é nobre!) Assim, ele não pode pagar-lhe...
— Senhor...
— O senhor é inteligente—disse des Lupeaulx—,escute... Ele não pode pagar-lhe em dinheiro. Pois bem, como homem inteligente que é, cobre-se em favores... reais ou
ministeriais.
— O quê? Então meu pai teria dado, em 1793, cem mil...
— Meu caro senhor, não recrimine! Ouça uma proposta de aritmética política: a recebedoria de Sancerre está vaga, um antigo pagador geral do Exército tem direito
a ela, mas não tem possibilidades; o senhor tem possibilidades, mas não tem nenhum direito ao cargo; pois o senhor conseguirá a recebedoria. O senhor a exercerá
durante um semestre, pedirá sua demissão e o sr. Gravier lhe dará vinte mil francos. Além disso, o senhor será condecorado com a ordem real da Legião de Honra.
— Já é alguma coisa—disse o vinhateiro, muito mais seduzido pela soma do que pela condecoração.
— Mas—continuou des Lupeaulx—o senhor retribuirá as gentilezas de sua excelência restituindo à sua senhoria o duque de Navarreins todos os seus títulos...
O vinhateiro voltou a Sancerre na qualidade de recebedor das contribuições. Seis meses mais tarde, foi substituído pelo sr. Gravier, que era considerado um dos homens
mais amáveis dos círculos financeiros durante o Império e que naturalmente foi apresentado pelo sr. de La Baudraye à sua mulher. Logo que deixou de ser recebedor,
o sr. de La Baudraye voltou a Paris a fim de entender-se com outros devedores. Dessa vez, foi nomeado referendário do selo, barão e oficial da Legião de Honra. Após
ter vendido o cargo de referendário do selo, o barão de La Baudraye fez algumas visitas a seus últimos devedores e reapareceu em Sancerre com o título de juiz relator
dos processos de petição, com um cargo de comissário do rei junto a uma sociedade anônima estabelecida em Nivernais, com os vencimentos de seis mil francos, uma
verdadeira sinecura. O bom La Baudraye, que passou por ter feito uma loucura, financeiramente falando, fez, pois, um excelente negócio ao desposar sua mulher. Graças
à sua sórdida economia, à indenização que recebeu pelos bens de seu pai, nacionalmente vendidos em 1793, o homenzinho realizou, em 1827, o sonho de toda sua vida!
Pagando quatrocentos mil francos em moeda corrente e assumindo compromissos que o condenavam a viver de brisa, segundo sua expressão, durante seis anos, pôde comprar
às margens do Loire, a duas léguas acima de Sancerre, a propriedade de Anzy, cujo magnífico castelo, construído por Philibert Delorme (Philibert Delorme (1515-1570):
famoso arquiteto francês, construtor das Tuileries e de vários castelos de província, entre os quais o de Anet.), é objeto da justa admiração dos conhecedores e
que, há quinhentos anos, pertencia à casa D’Uxelles (Casa D’Uxelles: família da alta aristocracia inventada por Balzac, à qual pertence a duquesa de Maufrigneuse,
em solteira Diana d’Uxelles, amante, entre outros, de Viturniano D’Esgrignon.). Foi, enfim, incluído entre os grandes proprietários da região! Não é certo que a
alegria causada pela constituição dum morgadio composto da propriedade de Anzy, do feudo de La Baudraye e do domínio de La Hautoy tenha compensado os pesares de
Diná, que se viu assim reduzida a uma secreta indigência até 1835. O prudente La Baudraye não permitiu à esposa morar em Anzy nem fazer lá a mínima reforma até o
pagamento da última prestação. Esse rápido olhar sobre a política do primeiro barão de La Baudraye explica inteiramente o homem. As pessoas familiarizadas com as
manias da gente de província reconhecerão nele a paixão da terra, paixão devoradora, paixão exclusiva, espécie de avareza ostensiva que muitas vezes leva à ruína
por uma falta de equilíbrio entre os juros hipotecários e os produtos territoriais. Os que, de 1802 a 1827, zombaram do pequeno La Baudraye ao vê-lo andar dum lado
para outro em Saint-Thibault com a rudeza dum burguês que vivesse de suas vinhas, os que não compreendiam seu desdém pelo prestígio a que devera seus cargos, abandonados
logo depois de conseguidos, tiveram, finalmente, a chave do enigma quando esse formicaleo (Formicaleo: nome latino da formiga-leão, inseto da família dos mirmelionídeos,
cujas larvas se alimentam de formigas.) se lançou sobre sua presa, após ter esperado o momento em que as prodigalidades da duquesa de Maufrigneuse a obrigaram a
vender essas terras magníficas.
A sra. Piédefer foi morar com a filha. As fortunas reunidas do sr. de La Baudraye e da sogra, que se contentara com uma renda vitalícia de mil e duzentos francos
deixando ao genro o domínio de La Hautoy, formaram um rendimento manifesto de cerca de quinze mil francos.
VI - COMO UMA DAMA FACILMENTE SE TORNA FAMOSA
Durante os primeiros dias de seu casamento, Diná realizou melhoramentos que fizeram de La Baudraye uma casa muito agradável. Transformou em jardim inglês o pátio
imenso, deitando abaixo os celeiros, os lagares e as ignóbeis moradias dos criados. Organizou atrás da habitação pequena construção de torrinhas e pontas a que não
faltava estilo, um segundo jardim com arvoredo, flores e relva, e separou dele o vinhedo por meio dum muro oculto sob plantas trepadeiras. Introduziu, por fim, na
vida doméstica, tanto conforto quanto permitia a exiguidade dos rendimentos. Para não se deixar devorar por uma jovem tão superior como Diná parecia ser, o sr. de
La Baudraye teve a habilidade de calar sobre as cobranças que estava fazendo em Paris. Tal majestade possui o silêncio, que esse profundo segredo sobre seus interesses
conferiu algo de misterioso a seu caráter e engrandeceu-o aos olhos da esposa durante os primeiros anos da vida conjugal! As reformas operadas em La Baudraye inspiraram
um desejo tanto mais vivo de conhecer a recém-casada porque Diná não se quis mostrar nem receber visitas, antes de se ter familiarizado com o lugar e conhecido a
região e, principalmente, o silencioso La Baudraye.
Quando, numa manhã de primavera, em 1825, apareceram no passeio público a bela sra. de La Baudraye com um vestido de veludo azul e sua mãe em vestido de veludo preto,
um grande clamor se elevou em Sancerre. O vestuário confirmou a superioridade da jovem senhora, educada na capital do Berry. Todos tiveram receio de não pronunciar
frases suficientemente brilhantes ao visitar essa fênix berriense e, naturalmente, afetaram uma atitude grave diante da sra. de La Baudraye, que causou uma espécie
de terror entre a gente do sexo feminino. Quando admiraram na sala de visitas de La Baudraye um tapete tecido como uma casimira, um móvel Pompadour de madeira dourada,
cortinas de brocatel nas janelas e, sobre uma mesa redonda, um vaso japonês cheio de flores no meio de livros novos; quando ouviram a bela Diná tocar corretamente,
não fazendo a menor cerimônia para sentar-se diante do piano, a ideia que se fazia de sua superioridade assumiu grandes proporções. Para não se deixar vencer pelo
desleixo e pela deselegância, Diná resolvera manter-se a par das modas e das mínimas revoluções do luxo, entretendo uma ativa correspondência com Ana Grossetête,
sua amiga íntima no pensionato Chamarolles. Filha única do recebedor-geral de Bourges, Ana, graças à sua fortuna, desposara o terceiro filho do conde de Fontaine
(Conde de Fontaine: já nosso conhecido na novela O baile de Sceaux, onde expunha suas ideias políticas de caráter conservador; pai da orgulhosa Emília de Fontaine,
que, depois de recusar todos os partidos, acabou por casar com seu velho tio, o conde de Kergarouët.). As mulheres, quando visitavam La Baudraye, sentiam-se constantemente
ofendidas pela prioridade que Diná se soube atribuir com relação às modas; e, por mais que fizessem, sempre ficavam atrás dela, ou, como dizem os amantes de corridas,
na bagagem. Se todas essas pequenas coisas causaram uma perversa inveja entre as mulheres de Sancerre, a conversação e o espírito de Diná geraram uma verdadeira
aversão. Desejosa de manter sua inteligência no nível de cultura parisiense, a sra. de La Baudraye não tolerava em ninguém palestras vazias nem galanteios fora de
moda nem frases sem valor; recusou-se terminantemente ao alarido das novidades insignificantes, a essa maledicência de baixa classe que constitui o assunto permanente
das conversas na província. Gostando de falar em descobertas no domínio da ciência ou das artes, das obras recentemente surgidas no teatro e na poesia, ela parecia
divulgar ideias enquanto divulgava as expressões da moda.
O padre Duret, vigário de Sancerre, ancião pertencente ao antigo clero da França, pessoa de boa sociedade que não desgostava do jogo, não ousava entregar-se à sua
inclinação num lugar tão liberal como Sancerre. Ficou, pois, muito contente com a chegada da sra. de La Baudraye, com quem se entendeu admiravelmente. O subprefeito,
um visconde de Chargebœuf, ficou encantado de encontrar na sala de visitas da sra. de La Baudraye uma espécie de oásis onde se fazia uma trégua na vida provinciana.
Quanto ao sr. de Clagny, procurador do rei, sua admiração pela bela Diná o fixou em Sancerre. Esse apaixonado magistrado recusou todas as promoções e dedicou-se
a amar devotamente esse anjo de graça e de beleza. Era um homem alto, magro, de rosto patibular ornado de dois olhos terríveis, de órbitas enegrecidas, encimadas
por supercílios enormes, e cuja eloquência, muito diversamente de seu amor, não era destituída de mordacidade.
O sr. Gravier era um homenzinho atarracado e gordo, que, durante o Império, cantava admiravelmente as romanças e conquistou com esse dom o eminente cargo de pagador-geral
do Exército. Metido em grandes negócios, na Espanha, com certos generais então pertencentes à oposição, soube empregar em seu benefício essas ligações parlamentares
junto ao ministro, que, em atenção à sua posição perdida, lhe prometeu a recebedoria de Sancerre e acabou por deixar que ele a comprasse. O espírito ágil, o estilo
do tempo do Império tornara-se pesado em Gravier, que não compreendeu ou não quis compreender a diferença enorme que separou os costumes da Restauração dos do Império;
ele, porém, considerava-se muito superior ao sr. de Clagny, sua apresentação era mais elegante, ele acompanhava as modas, usava colete amarelo, calças cinzentas
e uma sobrecasaca curta e justa no corpo. Usava no pescoço gravatas modernas de seda, ornadas de diamantes, ao passo que o procurador do rei não ia além da casaca,
calças e colete pretos, muitas vezes puídos.
Esses quatro personagens extasiaram-se, antes que os outros, com a cultura, a elegância e a delicadeza de Diná e proclamaram-na mulher de elevada inteligência. As
mulheres disseram, então, entre si:
— A sra. de La Baudraye deve fazer muita troça de nós...
Essa opinião, mais ou menos justa, teve como resultado impedir que as mulheres fossem a La Baudraye. Acusada de pedantismo porque falava corretamente, Diná foi cognominada
a Safo (Safo: poetisa grega, nascida em Lesbos, que viveu entre os séculos VII e VI antes de Cristo. Contemporânea e rival de Alceu, alcançou a celebridade por suas
poesias líricas, pela escola de música e poesia que mantinha em Mitilene e por sua vida amorosa. Uma paixão infeliz a teria levado a suicidar-se jogando-se no mar
do alto de um rochedo.) de Saint-Satur. Todos acabaram por zombar abertamente das pretensas grandes qualidades daquela que se tornou, assim, a inimiga das sancerrenses.
Chegou-se, por fim, até a negar uma superioridade, puramente relativa, aliás, que fazia ressaltar as ignorâncias e não lhes concedia perdão. Onde todos são corcundas,
o corpo esbelto constitui uma monstruosidade; Diná foi, pois, considerada como monstruosa e perigosa e se fez um deserto em torno de si. Admirada de não ver as mulheres,
apesar de seus progressos, senão com longos intervalos e durante visitas de poucos minutos, Diná indagou a razão desse fenômeno ao sr. de Clagny.
— A senhora é uma mulher demasiado superior para que as outras a estimem—respondeu o procurador do rei.
O sr. Gravier, interrogado pela pobre abandonada, fez-se rogar demoradamente para depois dizer-lhe:
— Ora, bela senhora, não lhe basta ser encantadora, a senhora ainda é inteligente, culta, está a par de tudo o que se escreve, gosta da poesia, é musicista e tem
uma palestra arrebatadora: as mulheres não perdoam tantas superioridades!...
Os homens disseram ao sr. de La Baudraye:
— O senhor, que tem uma esposa superior, é muito feliz...
E ele acabou por dizer:
— Eu, que tenho uma esposa superior, sou muito... etc.
A sra. Piédefer, lisonjeada na filha, tomou também a liberdade de dizer coisas deste gênero:
— Minha filha, que é uma mulher muito superior, estava escrevendo, ontem, à sra. de Fontaine, tais e tais coisas.
Para quem conhece o mundo, a França, Paris, não é exato que muitas celebridades são feitas assim?
VII - ONDE O CARÁTER DO SR. DE LA BAUDRAYE COMEÇA A DESENHAR-SE
Ao cabo de dois anos, no fim de 1825, Diná de La Baudraye foi acusada de não querer receber senão homens; depois, fizeram de seu afastamento das mulheres um crime.
Nenhum de seus atos, mesmo o mais indiferente, passava sem ser criticado ou adulterado. Após ter feito todos os sacrifícios que uma mulher bem-educada podia fazer
e ter empregado todos os métodos que lhe competia usar, a sra. de La Baudraye cometeu o erro de responder a uma falsa amiga que foi deplorar seu isolamento.
— Antes só que mal acompanhada!
Essa frase produziu efeitos terríveis em Sancerre e foi, mais tarde, cruelmente aplicada à Safo de Saint-Satur quando, ao vê-la sem filhos após cinco anos de casada,
passaram a fazer troça do pequeno La Baudraye. Para fazer compreender esse gracejo provinciano, é necessário recorrer à lembrança dos que conheceram o Bailio de
Ferrette (Bailio de Ferrette (1745-18?): embaixador do grão-ducado de Bade, protetor das artes, notável pela magreza e pela estatura pequena.), de quem se dizia
ser o homem mais corajoso da Europa porque tinha a coragem de andar a pé e a quem se acusava também de pôr chumbo nos sapatos para não ser levado pelo vento. O sr.
de La Baudraye, homenzinho amarelo e quase diáfano, teria sido convidado pelo duque d’Hérouville (O duque d’Hérouville: personagem balzaquiana, cuja linhagem brilhante
e belos dotes intelectuais contrastavam com sua infeliz aparência física, pois era um verdadeiro anão. Já o encontramos em Modesta Mignon, onde namorava a heroína,
mas foi vencido por Ernesto de La Bastie.) para primeiro gentil-homem de sua câmara, se o grande escudeiro da França tivesse sido um pouco grão-duque de Bade. O
sr. de La Baudraye, cujas pernas eram tão finas que ele usava, por decência, panturrilhas postiças, cujas coxas se assemelhavam ao braço dum homem bem constituído,
cujo tronco imitava muito bem o corpo dum besouro, teria sido para o duque d’Hérouville um constante elogio. Ao andar, o pequeno vinhateiro mudava muitas vezes as
panturrilhas para diante da tíbia, pois fazia pouco mistério disso e agradecia aos que o advertiam desse ligeiro transtorno. Conservou os calções curtos, as meias
pretas de seda e o colete branco até 1824.
Após o casamento, passou a usar calças azuis e sapatos com salto alto, o que fez com que toda Sancerre dissesse que ele crescera duas polegadas para alcançar o queixo
da esposa. Viram-no, durante dez anos, com a mesma pequena sobrecasaca verde-garrafa com grandes botões de metal branco e uma gravata preta que realçava seu rosto
frio e magro, iluminado por olhos dum cinza-azulado, penetrantes e calmos como os olhos de gato. Amável como todas as pessoas que seguem um plano de conduta, parecia
tornar muito feliz a mulher, dando a impressão de nunca contrariá-la, deixando-lhe a palavra e contentando-se em agir com a lentidão, mas com a tenacidade dum inseto.
Adorada por sua beleza sem rival, admirada por seu espírito pelos homens mais distintos de Sancerre, Diná alimentou essa admiração por meio de palestras para as
quais, disseram mais tarde, ela se preparava. Sentindo-se escutada com êxtase, habituou-se gradativamente a escutar a si mesma, passou a sentir prazer em perorar
e acabou por considerar os amigos como confidentes de tragédia destinados a dar-lhe a réplica. Organizou, aliás, uma belíssima coleção de frases e de ideias, seja
por meio de leituras, seja assimilando os pensamentos dos visitantes, e tornou-se, assim, uma espécie de realejo cujos acordes partiam logo que um acidente da palestra
acionava seu maquinismo. Sedenta de saber—rendamos-lhe essa justiça—,Diná leu tudo, até livros de medicina, de estatística, de ciência, de jurisprudência, pois não
sabia em que empregar suas manhãs, após ter passado em revista suas flores e ter dado ordens ao jardineiro. Dotada de uma bela memória e desse talento que possuem
certas mulheres para servir-se da expressão exata, ela podia falar sobre todos os assuntos com a clareza dum estilo estudado. Assim, de Cosne, da Charité, de Nevers,
à margem direita, e de Léré, de Vailly, de Argent, de Blancafort e de Aubigny, à margem esquerda, acorriam pessoas desejosas de ser apresentadas à Madame de La Baudraye,
como na Suíça a gente procurava ser apresentada à Madame de Staël (Madame de Staël (1766-1817): filha do ministro Necker, autora de livros muito lidos em seu tempo
(Corina, Delfina, Da Alemanha). De tendências liberais, era inimiga de Napoleão e viveu exilada na Suíça.). Os que ouviam uma vez apenas as palavras dessa tabaqueira
suíça voltavam deslumbrados e diziam de Diná coisas maravilhosas que tornaram invejosas as mulheres a dez léguas de distância.
Existe na admiração que se inspira ou na ação dum papel representado uma certa embriaguez moral que não permite à crítica atingir o ídolo. Uma atmosfera, produzida
talvez por uma constante dilatação nervosa, compõe uma espécie de nimbo através do qual se vê o mundo num plano inferior. Como explicar de outro modo a constante
seriedade que preside a tantas novas representações dos mesmos efeitos e a constante ingratidão pelos conselhos por parte dos filhos, tão terríveis para os pais,
ou por parte dos maridos, tão familiarizados com as inocentes manobras das esposas? O sr. de La Baudraye tinha a candidez dum homem que abre o guarda-chuva ao caírem
as primeiras gotas. Quando sua mulher abordava a questão do tráfico dos negros ou o melhoramento da sorte dos condenados, ele punha o gorrinho azul e fugia sem ruído,
com a certeza de poder ir a Saint-Thibault cuidar duma entrega de tonéis e voltar uma hora mais tarde encontrando a discussão mais ou menos amadurecida. Se não tinha
nada a fazer, ia passear pelo passeio público, de onde se descortina um admirável panorama do vale do Loire, e tomava um banho de ar enquanto a esposa executava
uma sonata de palavras e duetos de dialética.
VIII - CONDUTA EXEMPLAR DOS AMANTES DE DINÁ
Uma vez erigida em mulher superior, Diná quis dar provas visíveis de seu amor pelas criações mais notáveis da arte e associou-se entusiasticamente às ideias da escola
romântica, incluindo na arte a poesia e a pintura, o livro e a estátua, os móveis e a ópera. Tornou-se, além disso, medievalista. Instruiu-se, também, nas curiosidades
que podiam datar da Renascença e fez de seus amigos outros tantos agentes dedicados. Adquiriu, assim, nos primeiros dias após o casamento, o mobiliário dos Rouget,
em Issoudun, por ocasião da venda que se realizou no início de 1824 (Essa venda se realizou depois da morte de João-Jaques Rouget, protagonista de Um conchego de
solteirão.). Comprou coisas muito belas no Nivernais e no alto Loire. Na entrada do Ano-Novo ou no dia de sua festa, os amigos nunca deixavam de oferecer-lhe algumas
raridades. Essas fantasias muito agradaram o sr. de La Baudraye, que deu a impressão de sacrificar alguns escudos aos caprichos da esposa, mas, na verdade, o comprador
de terras pensava em seu castelo de Anzy. Essas antiguidades custavam, então, muito menos que os móveis modernos. Ao cabo de cinco ou seis anos, a sala de espera,
a sala de refeições, as duas salas de visitas e o gabinete que Diná instalara no pavimento térreo de La Baudraye, tudo, até o vão da escada, regurgitava de obras-primas
escolhidas cuidadosamente nos quatro departamentos vizinhos. Esse ambiente, qualificado de estranho na região, estava em harmonia com Diná. Essas maravilhas, em
vésperas de voltar à moda, surpreendiam a imaginação das pessoas que lhe eram apresentadas, que esperavam concepções originais e tinham sua expectativa ultrapassada
ao verem através dum mundo de flores essas catacumbas de velharias dispostas como na casa do falecido Sommerard (Sommerard: Alexandre du Sommerard (1779-1842), arqueólogo
e colecionador francês, cuja coleção foi comprada pelo Estado depois de sua morte e transformada em museu sob o nome de Museu Cluny (assim chamado por estar no palácio
de Cluny).—Old Mortality: romance histórico de Walter Scott publicado em 1816, ambientado entre 1679 e 1689.), esse Old Mortality dos móveis! Esses achados eram,
por outro lado, outros tantos pretextos para, em determinadas questões, provocar frases sobre Jean Goujon (Jean Goujon: arquiteto francês (1510-1568?) que tomou
parte na decoração do Louvre e da igreja de Saint-Germain l’Auxerrois.), Michel Colomb (Michel Colomb: escultor francês (1430-1512), autor do túmulo de Francisco
II de Bretanha, em Nantes.), Germain Pilon (Germain Pilon: escultor francês, autor dos mausoléus de Francisco II e Henrique II, em Saint-Denis.), Boulle, Van Huysium
(Van Huysium: na realidade Van Huysum, nome de uma família de pintores holandeses, entre os quais Jan (1682-1749), que se especializou em naturezas-mortas, e Justus
(1659-1716), em quadros de batalhas.), Boucher (Boucher: Jean Boucher (1575-1632), nascido em Bourges, mestre de Pierre Mignard; seus quadros mais notáveis ornam
diversas igrejas do Berry.), o grande pintor berriense; sobre Clodion (Clodion: Claude Michel (1738-1814), dito Clodion, escultor especializado em trabalhos de madeira,
graciosos e leves.), o escultor em madeira, sobre as marchetarias venezianas, sobre Brustolone (Brustolone: Andrea Brustolon (1662-1732), escultor nascido em Belluno,
em cujas igrejas executou a maioria de seus afamados trabalhos esculpidos em madeira.), tenor italiano, o Michelangelo do carvalho verde; sobre os séculos XIII,
XIV, XV, XVI e XVII, sobre os esmaltes de Bernard Palissy (Bernard Palissy: escritor, sábio e artista francês (1510?-1590?), um dos fundadores da cerâmica francesa,
autor de vasos de terracota ornados de figuras esculpidas.), sobre os de Petitot (Petitot: Jean Petitot (1607-1691), célebre pintor de esmaltes.), sobre as gravuras
de Albrecht Dürer (ela pronunciava Dur) (Albrecht Dürer: pintor e gravador alemão (1471-1528), um dos maiores artistas de todos os tempos; aperfeiçoador das artes
da xilogravura e da água-forte.), sobre os velinos com iluminuras, sobre o gótico florido, em forma de chama, ornado e puro, de transtornar os velhos e entusiasmar
os moços.
Animada do desejo de vivificar Sancerre, a sra. de La Baudraye tentou formar lá uma sociedade dita literária. O presidente do tribunal, sr. Boirouge, que então se
achava de posse duma casa com jardim proveniente da herança Popinot-Chandier, facilitou a criação da sociedade. O astuto magistrado foi entender-se sobre os estatutos
com a sra. de La Baudraye, quis ser um dos fundadores e alugou sua casa por quinze anos à sociedade literária. A partir do segundo ano, lá se jogava dominó, bilhar,
cartas, bebendo vinho quente adoçado, ponche e licores. Realizaram-se algumas ceias finas e bailes de máscaras no Carnaval. Quanto à literatura, liam jornais, discutiam
política e falavam em negócios. O sr. de La Baudraye ia lá com assiduidade, por causa da mulher, dizia espirituosamente.
Esses resultados afligiram a mulher superior, que desesperou de Sancerre e concentrou desde então em sua sala de visitas toda a inteligência da região. Não obstante,
apesar da boa vontade dos srs. de Chargebœuf, Gravier, de Clagny, do padre Duret, do primeiro e segundo substitutos, dum jovem médico, dum jovem juiz substituto,
cegos admiradores de Diná, houve momentos de tédio em que se permitiram excursões pelos domínios das agradáveis futilidades que constituem o assunto comum das palestras
da sociedade. O sr. Gravier chamava isso passar do sério ao suave. O uíste do padre Duret constituía uma útil diversão aos quase monólogos da divindade. Os três
rivais, cansados de manter o espírito atento às discussões de ordem mais elevada, pois assim classificavam suas palestras, mas não ousando testemunhar a mínima saciedade,
voltavam-se, às vezes, com uma atitude carinhosa para o velho padre.
— O senhor cura está morrendo de vontade de jogar sua partidazinha—diziam.
O espirituoso padre prestava-se admiravelmente bem à hipocrisia de seus cúmplices, resistia, exclamava:
— Perderíamos muito não escutando nossa bela inspirada!
E estimulava a generosidade de Diná, que acabava por ter compaixão de seu bom cura. Essa manobra atrevida, inventada pelo subprefeito, foi praticada com tamanha
astúcia que Diná nunca suspeitou da evasão de seus forçados para o pátio livre da mesa de jogo: deixavam-lhe, então, o jovem substituto ou o médico a martirizar-se.
Um jovem proprietário, o elegante de Sancerre, perdeu as boas graças de Diná por algumas demonstrações imprudentes. Após ter solicitado a honra de ser admitido no
cenáculo, gabando-se de arrebatar de lá a flor às autoridades constituídas que a cultivavam, teve o infortúnio de bocejar durante uma explicação que Diná tinha a
bondade de dar-lhe, pela quarta vez, é verdade, da filosofia de Kant (Immanuel Kant (1724-1804): filósofo alemão, autor, entre outras obras, da Crítica da razão
pura e da Crítica da razão prática.). O sr. de La Thaumassière, neto do historiador do Berry, foi considerado um homem completamente destituído de inteligência e
de espírito.
Os três apaixonados oficiais submetiam-se a esses exorbitantes dispêndios de inteligência e de atenção na esperança do mais doce dos triunfos no momento em que Diná
se humanizasse, pois nenhum deles teve a audácia de pensar que ela perderia sua inocência conjugal antes de ter perdido suas ilusões. Em 1826, época em que Diná
se viu cercada de homenagens, ela completou vinte anos e o padre Duret a mantinha numa espécie de fervor católico; os adoradores de Diná contentavam-se, pois, em
cumulá-la de pequenos cuidados, em enchê-la de obséquios e de atenções, felizes por serem tomados pelos cavalheiros de honra dessa rainha pelos recém-apresentados
que assistiam a um ou dois serões em La Baudraye.
— A sra. de La Baudraye é um fruto que se precisa deixar amadurecer—tal era a opinião do sr. Gravier, que esperava.
Quanto ao magistrado, escrevia cartas de quatro páginas, às quais Diná respondia por palavras sedativas ao dar uma volta, após o jantar, pelo seu relvado, apoiada
ao braço de seu adorador. Protegida por essas três paixões, a sra. de La Baudraye, que além disso vivia acompanhada de sua devota mãe, evitou todas as desgraças
da maledicência. Foi tão notado em Sancerre que nenhum dos três homens deixava que um deles ficasse a sós com a sra. de La Baudraye, que seu ciúme passou a constituir
uma verdadeira comédia.
Para ir da Porte César à Saint-Thibault, há um caminho muito mais curto que o das Grandes Muralhas e que, nas regiões montanhosas, se chama uma vereda, mas que em
Sancerre se denomina o precipício. Esse nome indica claramente uma estrada traçada sobre a inclinação mais íngreme da montanha, atravancada de pedras e aberta entre
as escarpas dos vinhedos. Seguindo-se pelo precipício, encurta-se a estrada de Sancerre a La Baudraye. As mulheres, invejosas da Safo de Saint-Satur, passeavam pelo
passeio público para contemplar esse Longchamp das autoridades, que muitas vezes detinham, interessando-se em alguma palestra ora o subprefeito, ora o procurador
do rei, que davam, então, mostras duma evidente impaciência ou duma impertinente distração. Como do passeio público se avistam as torrinhas de La Baudraye, mais
de um rapaz ia contemplar de lá a morada de Diná, invejando o privilégio dos dez ou doze amigos que passavam os serões junto da rainha dos sancerrenses. O sr. de
La Baudraye logo percebeu o prestígio que sua qualidade de marido lhe conferia junto aos namorados da esposa e serviu-se deles com a maior candura, obtendo assim
reduções de impostos e ganho de causa em dois pequenos processos. Em todos os seus litígios, fez sentir a autoridade do procurador do rei, de maneira a não mais
receber contestação. Era dificultoso e demandista em negócios, como todos os anões, mas sempre com brandura.
Não obstante, quanto mais brilhava a inocência da sra. de La Baudraye, menos sustentável parecia sua situação aos olhos curiosos das mulheres. Muitas vezes, na casa
da presidenta Boirouge, as senhoras duma certa idade discutiam durante serões inteiros, na intimidade, bem entendido, sobre a vida em La Baudraye. Todas pressentiam
um desses mistérios cujo segredo interessa vivamente as mulheres que conhecem a vida. Desenrolava-se, efetivamente, em La Baudraye uma dessas longas e monótonas
tragédias conjugais que permaneceriam eternamente ignoradas se o ávido escalpelo do século XIX não tivesse ido investigar, levado pela necessidade de encontrar novidades,
os recantos mais obscuros do coração ou, se preferirdes, os que o pudor dos séculos precedentes havia respeitado. E esse drama doméstico explica suficientemente
bem a virtude de Diná durante os primeiros anos de sua vida conjugal.
IX - A VIDA ÍNTIMA DE MUITOS CASAIS
Uma moça cujos triunfos no pensionato Chamarolles haviam tido como ponto de partida o orgulho, cujo primeiro projeto fora recompensado por uma primeira vitória,
não podia deter-se em tão belo caminho. Por mais enfermiço que parecesse o sr. de La Baudraye, ele constituiu, para a srta. Diná Piédefer, um partido verdadeiramente
inesperado. Qual poderia ser a intenção oculta desse vinhateiro ao casar-se aos quarenta e quatro anos com uma mocinha de dezessete e que partido sua esposa poderia
tirar dele? Tal foi o primeiro assunto das meditações de Diná. O homenzinho iludiu constantemente a observação da esposa. Assim, já de início, deixou que ela empregasse
num jardim de recreio os dois preciosos hectares em torno de La Baudraye, que assim ficaram perdidos, e deu-lhe quase generosamente os sete ou oito mil francos necessários
aos arranjos interiores dirigidos por Diná, que pôde comprar em Issoudun o mobiliário Rouget e realizar em seus aposentos decorações nos estilos Idade Média, Luís
XIV e Pompadour. A recém-casada pôde, assim, pensar que o sr. de La Baudraye não fosse tão avarento como lhe haviam dito ou que conquistara um pouco de ascendência
sobre ele. Esse engano durou dezoito meses. Após a segunda viagem do sr. de La Baudraye a Paris, Diná descobriu nele a frieza polar dos avarentos provincianos no
que se refere ao dinheiro. Ao fazer o primeiro pedido, ela representou a mais graciosa dessas comédias cujo segredo vem de Eva; mas o homenzinho explicou claramente
à mulher que lhe dava duzentos francos por mês para suas despesas pessoais e pagava mil e duzentos francos de renda vitalícia à sra. Piédefer pelo domínio de Hautoy,
e que assim os mil escudos do dote estavam ultrapassados em duzentos francos por ano.
— Não falo nas despesas de nossa casa—disse, ao terminar.—Deixo-te oferecer bolinhos e chá a teus amigos, à noite, pois é necessário que te divirtas. Mas eu, que
não gastava nem mil e quinhentos francos por ano antes de meu casamento, gasto atualmente seis mil francos, incluídos nisso os impostos e as reparações, o que é
um pouco demais tendo em vista a natureza de nossas posses. Um vinhateiro nunca tem certeza senão da despesa, da mão de obra, dos impostos, dos tonéis, ao passo
que a receita depende dum raio de sol ou duma geada. Os pequenos proprietários, como nós, cujos rendimentos estão longe de ser fixos, devem fazer seus cálculos baseados
no mínimo, pois não têm nenhum meio de reparar um excedente de despesa ou uma perda. Que seria de nós se um comprador de vinho falisse? Assim, para mim, as contas
a receber não representam nada. Para viver como vivemos, precisamos ter sempre um ano de rendimentos adiantadamente e contar apenas com dois terços de nossas rendas.
Basta uma resistência qualquer para que uma mulher deseje vencê-la, e Diná esbarrou contra uma alma de bronze acolchoada com as maneiras mais suaves. Tentou inspirar
receios e ciúme ao homenzinho, mas encontrou-o acantonado na mais insolente tranquilidade. Deixava Diná para ir a Paris com a mesma certeza que Medoro teria da fidelidade
de Angélica (Medoro e Angélica: personagens de Orlando furioso, de Ariosto. A linda Angélica, apaixonada pelo nobre Medoro, desdenha o amor dos paladinos mais ilustres,
inclusive de Orlando.). Quando ela se fez fria e desdenhosa para ferir o monstrengo com o desprezo que as cortesãs empregavam com seus protetores e que age sobre
eles com a precisão dum parafuso de lagar, o sr. de La Baudraye cravou na esposa seus olhos fixos como os dum gato que, diante dum distúrbio doméstico, espera a
ameaça dum golpe antes de deixar o lugar. A espécie de inexplicável inquietação que transparecia nessa muda indiferença quase aterrorizou a jovem mulher de vinte
anos; ela não compreendeu a princípio a egoísta serenidade desse homem, comparado a um vaso rachado, que, para viver, regulara os movimentos de sua existência com
a precisão fatal que os relojoeiros dão a seus pêndulos. Assim, o homenzinho livrava-se sempre da esposa; ela o combatia sempre a dez pés acima da cabeça. É mais
fácil compreender que descrever as crises de cólera a que Diná se entregou quando se viu condenada a não mais sair de La Baudraye nem de Sancerre, ela que sonhava
com a gerência da fortuna e a direção daquele anão a quem ela, gigante, no início, obedecera para depois governar. Na esperança de estrear um dia no grande teatro
de Paris, ela aceitava o incenso vulgar de seus cavalheiros de honra, queria fazer sair o nome de La Baudraye da urna eleitoral, pois julgou-o ambicioso ao vê-lo
voltar por três vezes de Paris após ter galgado, de cada vez, um novo degrau da escada social. Mas, quando interrogou o coração daquele homem, foi como se batesse
contra o mármore!... O ex-recebedor, o ex-referendário, o juiz relator dos processos de petição, o oficial da Legião de Honra, o comissário real era uma toupeira
ocupada em cavar seus subterrâneos em torno dum pé de parreira! Algumas elegias foram então derramadas no coração do procurador do rei, do subprefeito e até do sr.
Gravier, e todos eles ficaram ainda mais afeiçoados à sublime vítima, pois ela evitou muito bem, como, aliás, todas as mulheres, de falar de seus projetos e, também
como todas as mulheres, não estando em condições de especular, odiou a especulação. Batida por essas tempestades íntimas, Diná atingiu, indecisa, o ano de 1827,
quando, no fim do outono, ressoou a notícia da aquisição das terras de Anzy pelo barão de La Baudraye. O velhote teve, então, um gesto de alegria orgulhosa que modificou,
por alguns meses, as ideias da esposa; ela acreditou em algo de grandioso nele ao vê-lo solicitar a criação dum morgadio. Em seu triunfo, o barãozinho exclamou:
— Diná, um dia serás condessa!
Fez-se, então, entre os esposos, uma dessas reconciliações superficiais que não duram e que deviam tanto fatigar como humilhar uma mulher cujas superioridades aparentes
eram falsas e as superioridades ocultas eram reais. Esse absurdo é mais frequente do que se supõe. Diná, que se fazia ridícula pelos caprichos de seu espírito, era
grande pelas qualidades de sua alma; as circunstâncias, porém, não punham em destaque esses raros predicados, ao passo que a vida provinciana adulterava dia a dia
a pequenez de seu espírito. Por um fenômeno oposto, o sr. de La Baudraye, sem forças, sem alma e sem inteligência, havia de revelar um dia um grande caráter, seguindo
tranquilamente um plano de conduta do qual sua fraqueza não lhe permitia desviar-se.
X - COMO DINÁ SE TORNOU MULHER PROVINCIANA
Isso constituiu, em sua existência, uma primeira fase, que durou seis anos e durante a qual Diná se tornou uma mulher provinciana. Em Paris, há várias espécies de
mulheres: há a duquesa e a mulher do financista, a embaixatriz e a esposa do cônsul, a esposa do ministro que é ministro e a do que não o é mais; há a mulher distinta
da margem direita e a da margem esquerda do Sena; na província, porém, há apenas uma mulher, e essa pobre mulher é a mulher provinciana. Essa observação mostra uma
das grandes chagas da nossa sociedade moderna. Estejamos certos duma coisa: a França, no século XIX, está dividida em duas grandes zonas, Paris e a província. A
província invejosa de Paris, Paris não pensando na província senão para pedir-lhe dinheiro. Antigamente, Paris era a primeira cidade da província, a Corte sobrepujava
a cidade; atualmente, Paris é a própria Corte e qualquer outra cidade é província. Por grande, bela e forte que seja no começo uma moça nascida num departamento
qualquer, se, como Diná Piédefer, ela se casa na província e lá permanece, logo se torna uma mulher provinciana. Apesar dos projetos feitos, os lugares-comuns, a
mediocridade das ideias, a negligência do vestuário e a horticultura das vulgaridades invadem a criatura sublime oculta nessa alma nova e tudo está consumado, a
bela planta se estiola. E como poderia ser de outra forma?
Nos seus verdes anos, as moças da província veem em torno de si somente pessoas da província, não imaginam coisa melhor e não têm a escolher senão entre mediocridades;
os pais da província casam suas filhas somente com rapazes da província; ninguém tem a ideia de cruzar as raças e o espírito fatalmente se abastarda; assim, em muitas
cidades, a inteligência se tornou tão rara como o tipo racial se tornou feio.
Lá o homem definha sob as duas formas, pois a sinistra ideia das conveniências de fortuna domina todas as convenções matrimoniais. As pessoas de talento, os artistas,
os homens superiores, todas as criaturas brilhantes vão para Paris. Inferior como mulher, a mulher da província torna-se ainda mais inferior devido ao marido. Como
viver contente com esses dois esmagadores pensamentos? A inferioridade conjugal e a inferioridade radical da mulher provinciana são, além disso, agravadas por uma
terceira e terrível inferioridade, que contribui para torná-la seca e sombria, para encolhê-la, apequená-la, desfigurá-la fatalmente. Uma das mais agradáveis lisonjas
que as mulheres se dirigem a si mesmas não é a convicção de representar alguma coisa na vida dum homem superior escolhido por elas com conhecimento de causa, como
uma réplica a seu casamento, em que seus caprichos foram pouco consultados?
Ora, na província, se não há superioridade entre os maridos, muito menos entre os celibatários. Assim, quando a mulher provinciana comete sua faltazinha, imagina
estar apaixonada por um suposto homem belo ou um elegante indígena, um rapaz que usa luvas e que passa por saber montar a cavalo, mas, no fundo de seu coração, sabe
muito bem que seus anseios perseguem um lugar-comum mais ou menos bem-vestido.
Diná foi preservada desse perigo pela noção que lhe deram de sua superioridade. Se não tivesse sido tão bem guardada no primeiro período de sua vida conjugal pela
mãe, cuja presença não lhe foi importuna senão no momento em que ela teve interesse em afastá-la, teria sido preservada por seu orgulho e pela altura em que colocava
seu destino. Bastante lisonjeada por se ver cercada de admiradores, não encontrou um amante entre eles. Homem algum realizou o ideal poético que ela um dia esboçara
em companhia de Ana Grossetête. Quando, vencida pelas tentações involuntárias que as homenagens despertavam nela, pensou: “Quem escolheria, se fosse absolutamente
necessário entregar-me?”, sentiu preferência pelo sr. de Chargebœuf, fidalgo de boa casa, cuja pessoa e maneiras lhe agradavam, mas cujo espírito árido, egoísmo
e ambição limitada a uma prefeitura e a um bom casamento a revoltavam. À primeira alusão da família, que teve receios de que ele comprometesse a existência com um
namoro, o visconde já deixara, sem remorsos, em sua primeira subprefeitura, uma mulher adorada. Ao contrário, a pessoa do sr. de Clagny, o único cujo espírito falava
ao de Diná, cuja ambição tinha o amor por princípio e que sabia amar, desgostava-a soberanamente. Quando se viu condenada a ficar ainda seis anos em La Baudraye,
ia aceitar as atenções do sr. Visconde de Chargebœuf; ele, porém, foi nomeado prefeito e deixou a região. Com grande contentamento do procurador do rei, o novo subprefeito
era um homem casado, cuja esposa se tornou íntima de Diná. O sr. de Clagny não teve outra rivalidade a combater além da do sr. Gravier. Ora, o sr. Gravier era o
tipo do quadragenário de que as mulheres se servem e zombam, cujas esperanças são entretidas prudentemente e sem remorsos por elas como se cuida dum animal de carga.
Em seis anos, entre todas as pessoas que lhe foram apresentadas, de vinte léguas em derredor, não houve uma só cuja presença causasse a Diná essa comoção causada
pela beleza, pela crença na felicidade, pelo contato duma alma superior ou o pressentimento dum amor qualquer, mesmo infeliz.
Nenhuma das preciosas faculdades de Diná pôde, pois, desenvolver-se. Suportou as ofensas feitas a seu orgulho constantemente oprimido pelo marido, que passeava tranquilamente,
como figurante, no teatro de sua existência.
Obrigada a enterrar os tesouros de seu amor, não deu mais que aparências à sua sociedade. Às vezes, agitava-se, tinha desejos de tomar uma resolução viril; era,
porém, impedida pela questão financeira. Assim, lentamente e a despeito dos protestos ambiciosos, apesar das recriminações elegíacas de seu espírito, ela sofria
as transformações provinciais que acabam de ser descritas. Cada dia levava um fragmento de suas primeiras resoluções. Traçara-se um programa de cuidados de vestuário
que, aos poucos, abandonou. Se, no começo, acompanhou as modas, se se conservou a par das pequenas inovações do luxo, foi, contudo, forçada a restringir suas compras
à importância de sua pensão. Em vez de quatro chapéus, seis toucas e seis vestidos, contentou-se com um vestido por estação. Acharam Diná tão bela com certo chapéu
que ela o usou no ano seguinte. E assim aconteceu com tudo. Muitas vezes a artista imolou as exigências do vestuário ao desejo de possuir um móvel gótico. No sétimo
ano, chegou a achar mais cômodo mandar fazer em casa seus vestidos matinais pela mais hábil costureira do lugar, e a mãe, o marido e os amigos a acharam encantadora
nesses trajes econômicos, nos quais, segundo seus hábitos, se manifestava seu bom gosto. Copiavam suas ideias!...
Como não tinha sob os olhos nenhum termo de comparação, Diná caiu nas ciladas armadas às mulheres provincianas. Se uma parisiense não tem as cadeiras muito bem-feitas,
sua faculdade inventiva e o desejo de agradar fazem com que encontre algum remédio heroico; se tem algum defeito, um pouco de fealdade, uma tara qualquer, ela é
capaz de transformá-lo num motivo de agrado, isso se vê frequentemente; mas a mulher provinciana, nunca! Se sua estatura é muito baixa, se sua gordura se distribui
mal, pois bem, ela se conforma, e seus adoradores, sob pena de não amá-la, devem aceitá-la tal como é, ao passo que a parisiense sempre quer ser tomada pelo que
não é. Daí esses corpos grotescos, essas magrezas extremas, essas amplitudes ridículas, essas linhas deselegantes ostentadas com ingenuidade, a que toda uma cidade
se habituou e que causam espanto quando uma mulher provinciana aparece em Paris ou diante das parisienses. Diná, cujo corpo era esbelto, valorizou-o o quanto pôde
e não percebeu o momento em que se tornou ridícula, em que o tédio, tendo-a emagrecido, fez com que ela parecesse um esqueleto vestido; os amigos, vendo-a todos
os dias, também não notaram as lentas transformações por que passava sua pessoa.
Esse fenômeno é um dos resultados naturais da vida provinciana. Apesar do casamento, a moça continua bela durante algum tempo ainda e a cidade orgulha-se dela; é
que todos a veem diariamente e quando se vê todos os dias a observação se enfraquece. Se, como a sra. de La Baudraye, ela perde um pouco de seu brilho, a gente mal
o percebe. Ainda há mais: se aparece um ligeiro rubor na pele, todos o compreendem e interessam-se por ele. Uma pequena negligência é adorada. Além disso, a fisionomia
é tão bem estudada, tão bem compreendida que as leves alterações são apenas notadas e muitas vezes termina-se considerando-as como elementos de beleza. Quando Diná
deixou de renovar seu guarda-roupa em cada estação, deu a impressão de fazer uma concessão à filosofia do lugar.
Dá-se com a maneira de falar e de pensar o mesmo que com o sentimento: o espírito se embota, do mesmo modo que o corpo, se não se renova no meio parisiense; mas,
no que a vida provinciana mais se caracteriza, é no gesto, na marcha, nos movimentos que perdem essa agilidade que Paris comunica incessantemente. A mulher provinciana
habitua-se a andar, a movimentar-se numa esfera sem acidentes, sem transições; nada precisa evitar, anda como os recrutas em Paris, certa de que não há obstáculos,
pois não há obstáculos para ela em sua província, onde é conhecida, onde está sempre em seu lugar e onde todos lhe dão lugar. A mulher perde, então, o encanto do
imprevisto.
E, por fim, já notaram o singular fenômeno da reação que produz sobre o homem a vida em comum? As criaturas tendem, pela faculdade indelével da imitação simiesca,
a modelar-se umas pelas outras. Uns tomam aos outros, sem percebê-lo, os gestos, o modo de falar, as atitudes, as expressões, o rosto. Em seis anos, Diná ajustou-se
ao diapasão da sociedade. Ao adotar as ideias do sr. de Clagny, adotou o som de sua voz. Vendo apenas homens, passou a imitar, sem o sentir, as maneiras masculinas:
acreditou defender-se de todos os seus ridículos zombando deles; mas, como acontece a certos zombeteiros, um pouco dessa zombaria permaneceu no seu temperamento.
A parisiense tem suficientes exemplos de bom gosto para que o fenômeno contrário não suceda. Assim, as mulheres de Paris esperam a hora e o dia de impor seu prestígio;
ao passo que a sra. de La Baudraye, habituada a exibir-se, contraiu uma certa atitude teatral e dominadora, uma expressão de prima-dona ao entrar em cena, que em
Paris os sorrisos escarnecedores logo teriam reformado.
Quando formou seu cabedal de ridículos e, iludida por seus admiradores encantados, julgou ter adquirido graças novas, teve um terrível despertar que foi como uma
avalancha que cai da montanha. Diná foi assolada num dia por uma horrível comparação.
Em 1828, após a partida do sr. de Chargebœuf, ela foi agitada pela expectativa duma pequena felicidade: ia rever a Baronesa de Fontaine. Ao morrer seu pai, o marido
de Ana, tornado diretor-geral do Ministério das Finanças, aproveitou uma licença para levar a esposa à Itália durante o luto. Ana quis passar um dia em Sancerre
com sua amiga de infância. Essa entrevista teve algo de funesto. Ana, no pensionato Chamarolles, muito menos bela que Diná, apareceu, como baronesa de Fontaine,
mil vezes mais bela que a baronesa de La Baudraye, apesar da fadiga e do costume de viagem. Ana desceu dum encantador cupê de viagem cercada de todos os característicos
da parisiense: trazia consigo uma criada cuja elegância causou espanto a Diná. Todas as diferenças que distinguem a parisiense da provinciana saltaram aos olhos
inteligentes de Diná, que se viu então tal como parecia à amiga, que a achou irreconhecível. Ana gastava consigo seis mil francos por ano, o total das despesas da
casa do sr. de La Baudraye. Em vinte e quatro horas, as duas amigas trocaram muitas confidências; e a parisiense, sentindo-se superior à fênix do pensionato Chamarolles,
teve para a amiga provinciana gentilezas e atenções, ao explicar-lhe cenas, coisas, que constituíram outras tantas ofensas a Diná, pois a provinciana reconheceu
que as superioridades da parisiense brilhavam na superfície, ao passo que as suas estavam sepultadas para sempre.
Após a partida de Ana, a sra. de La Baudraye, que então contava vinte e dois anos, caiu num desespero sem limites.
— Que tem a senhora?—perguntou-lhe o sr. de Clagny, ao vê-la tão abatida.
— Ana—respondeu ela—aprendeu a viver, enquanto eu aprendi a sofrer...
Desenrolava-se, com efeito, no lar da sra. de La Baudraye, uma tragicomédia em harmonia com suas lutas relativamente à fortuna, com suas transformações sucessivas,
e da qual, além do padre Duret, o sr. de Clagny foi o único a ter conhecimento, quando Diná, por falta de outro assunto e talvez por vaidade, lhe confiou o segredo
de sua glória anônima.
XI - HISTÓRIA DE MUITAS POESIAS E POESIA DA HISTÓRIA
Embora a aliança dos versos e da prosa seja verdadeiramente monstruosa na literatura francesa, há, contudo, exceções a essa regra. Esta história oferecerá, assim,
uma das duas violações que, nestes estudos, serão cometidas contra as leis do conto, pois, para fazer entrever as lutas íntimas que podem desculpar Diná sem absolvê-la,
é necessário analisar um poema, o fruto de seu profundo desespero.
Levada ao extremo de sua paciência e de sua resignação pela partida do visconde de Chargebœuf, Diná seguiu o conselho do bom padre Duret, que lhe sugeriu transformar
seus maus pensamentos em poesia, o que talvez explique certos poetas.
— Acontecerá à senhora o que acontece aos que rimam epitáfios ou elegias sobre as criaturas que perderam: a dor se acalma no coração à medida que os alexandrinos
fervilham na cabeça.
Esse poema estranho revolucionou os departamentos de Allier, Nièvre e Cher, contentes de possuir um poeta capaz de enfrentar as ilustrações parisienses. Paquita,
a sevilhana, por Jan Diaz, foi publicado no Écho du Morvan, espécie de revista que lutou durante dezoito meses contra a indiferença provinciana. Algumas pessoas
de espírito pretenderam, em Nevers, que Jan Diaz quisera zombar da jovem escola que produzia então poesias excêntricas, cheias de estro e de imagens, em que obteve
grandes efeitos violando a musa sob o pretexto de fantasias alemãs, inglesas e romanas.
O poema começava com este canto:
Se conhecêsseis a Espanha,
Sua fragrante campanha
Com seus dias de calor,
Suas noites de luar,
Deixaríeis de falar
Em céu, em pátria, em amor.
É porque os homens de lá
São diversos dos de cá.
E na relva do jardim
Dança a andaluza faceira
Durante uma noite inteira
Com sapatos de cetim.
Ficaríeis acanhadas
Das danças desajeitadas
E do vosso Carnaval
Cujo frio o rosto inflama
E que chapinha na lama
Numa triste bacanal.
É num recanto escuro, a pálidas meninas,
Que diz Paquita versos tais;
Nessa negra Rouen cujas agulhas finas
Enfrentam rudes temporais;
Nessa Rouen bravia, rumorosa e feia...
Uma descrição magnífica de Rouen, onde Diná jamais fora, feita com essa brutalidade artificial que ditou mais tarde tantas poesias juvenalescas (Poesias juvenalescas:
isto é, pertencentes ao gênero do poeta latino Juvenal, a sátira.), opunha a vida das cidades industriais à vida despreocupada da Espanha, o amor do céu e das belezas
humanas ao culto das máquinas, enfim, a poesia à especulação. E Jan Diaz descrevia o horror de Paquita pela Normandia, dizendo:
Paquita, como vedes, nasceu na Sevilha
De céu azul e noites perfumadas;
Aos treze anos apenas, essa maravilha
Despertava paixões alucinadas.
Três toureiros deixaram-se matar por ela;
Pois o alto galardão que os esperava
Era um beijo a colher dos lábios dessa bela
A quem Sevilha inteira cobiçava.
...........................................................................................................
A descrição minuciosa do retrato da jovem espanhola serviu, depois disso, a tantas cortesãs em tantos pretensos poemas que seria fastidioso reproduzir os cem versos
de que se compõe. Mas, para avaliar as ousadias a que Diná se entregara, basta transcrever sua conclusão. Segundo a ardente sra. de La Baudraye, Paquita foi tão
bem-criada para o amor que dificilmente podia encontrar cavalheiros dignos dela; pois
em seu voluptuoso ardor
Todos teriam sucumbido
Antes que ela, acercando-se ao festim do amor,
Tivesse ao menos se servido.
...........................................................................................................
Mas um dia surgiu um soldado normando
E ela ficou apaixonada
E com ele partiu, assim abandonando
Sua Sevilha bem-amada.
Ela não lamentou deixar a Andaluzia
Para seguir o seu amor.
...........................................................................................................
Ele, porém, partiu para a Rússia, um dia,
Atrás do grande imperador.
Nada mais delicado que a descrição das despedidas da espanhola e do capitão normando de artilharia, que, no delírio duma paixão correspondida com um sentimento digno
de Byron, exigiu de Paquita uma promessa de fidelidade absoluta, na catedral de Rouen, no altar da Virgem,
Que, embora virgem, é mulher e não perdoa
A quem não cumpre suas juras.
Uma grande parte do poema era consagrada à descrição dos sofrimentos de Paquita, sozinha em Rouen, esperando o fim da campanha; contorcia-se junto às janelas ao
ver passarem casais alegres, sufocava o amor em seu coração com uma energia que a devorava, vivia de narcóticos, consumia-se em sonhos!
Ela quase morreu, porém fiel ficou.
E ao fim de um ano de terror
Seu soldado, ao voltar da Rússia, a encontrou
Digna de todo o seu amor.
Mas ele, enregelado, pálido e doente,
Sem mais calor no coração
Acolheu a querida amiga tristemente.
...........................................................................................................
O poema fora concebido para essa situação, explorada com um espírito e uma audácia que davam razão um pouco demais ao padre Duret. Paquita, reconhecendo os limites
em que terminava o amor, não se lançava, como Heloísa e Júlia (Heloísa: religiosa francesa (1101-1164), famosa por seu amor a Abelardo.—Júlia: personagem imaginária,
heroína da Nova Heloísa, de Rousseau.), ao infinito, ao ideal; não, ela ia, o que talvez seja atrozmente natural, para o caminho do vício, mas sem nenhuma grandiosidade,
por falta de meios, pois é difícil encontrar em Rouen pessoas suficientemente apaixonadas para introduzir Paquita no seu meio de luxo e de elegância. Essa terrível
realidade, revelada por uma poesia triste, ditara algumas dessas páginas de que abusa a poesia moderna e um pouco semelhantes demais a isso que os pintores chamam
de escorchados. Num rodeio cheio de filosofia, o poeta, após ter descrito a infame casa onde a andaluza acabava seus dias, voltava ao canto inicial:
Paquita agora está velhinha e encarquilhada,
E era ela mesma que cantava:
Se conhecêsseis a Espanha,
Sua fragrante campanha... etc.
A lúgubre energia contida nesse poema de cerca de seiscentos versos e que, se permitem pedir emprestada a expressão à pintura, fazia vigoroso o contraste a duas
seguidilhas, semelhantes à que começa e termina a obra, essa expressão varonil duma dor indizível atemorizou a mulher que três departamentos admiravam sob o fraque
negro do anonimato. Enquanto saboreava as inebriantes delícias do êxito, Diná teve receio das maledicências da província, onde mais de uma mulher aproveitaria uma
indiscrição para descobrir relações entre o autor e Paquita. Depois, veio a reflexão. Diná estremeceu de vergonha à ideia de ter explorado algumas de suas dores.
— Não faça mais nada—disse-lhe o padre Duret—,pois assim a senhora não seria uma mulher, e sim um poeta.
Procurou-se Jan Diaz em Moulins, em Nevers, em Bourges; Diná, porém, conservou-se impenetrável. Para não deixar má impressão, no caso de que um acontecimento fortuito
revelasse seu nome, ela compôs um encantador poema em dois cantos sobre O carvalho da missa, uma tradição de Nevers que diz o seguinte: um dia, os habitantes de
Nevers e os de Saint-Saulge, que estavam em guerra, puseram-se a caminho ao alvorecer para travar uma batalha mortal e encontraram-se na floresta de Faye. Entre
os dois partidos ergueu-se de sob um carvalho um padre, cuja atitude, ao nascer do sol, teve qualquer coisa de tão impressionante que os dois partidos, atendendo
suas ordens, ouviram a missa, que foi celebrada sob o carvalho; e, à voz do Evangelho, reconciliaram-se. Ainda hoje mostram um carvalho na floresta de Faye. Esse
poema, infinitamente superior a Paquita, a sevilhana, teve muito menor êxito. Depois desse duplo ensaio, a sra. de La Baudraye, sabendo-se poeta, passou a ter súbitos
clarões na fronte e nos olhos, que a tornaram mais bela do que antes. Ela alongava o olhar para Paris, aspirava à glória e voltava a cair no seu buraco de La Baudraye,
nas discussões cotidianas com o marido, no seu círculo de amigos, onde os temperamentos, as intenções e as palestras eram demasiado conhecidos para que, com o correr
do tempo, não se tornassem tediosos. Se ela encontrou, em suas atividades literárias, uma distração para seus dissabores; se, no vácuo de sua existência, a poesia
teve grande repercussão; se ofereceu campo às suas energias, a literatura, também, inspirou-lhe ódio pela obscura e pesada atmosfera da província.
XII - COMO A REVOLUÇÃO DE JULHO PRODUZIU OUTRA REVOLUÇÃO EM DINÁ
Quando, após a Revolução de 1830, a glória de George Sand se irradiou sobre o Berry, muitas cidades invejaram a La Châtre o privilégio de ter visto nascer uma rival
da Madame de Staël, de Camille Maupin (Camille Maupin: pseudônimo literário de Felicidade des Touches, uma das protagonistas de Beatriz.), e mostraram-se muito dispostos
a honrar os menores talentos femininos. Apareceram, então, muitas décimas musas na França, mocinhas ou senhoras jovens, desviadas duma vida tranquila por uma aparência
de glória! Estranhas doutrinas divulgavam-se, então, sobre o papel que as mulheres deviam desempenhar na sociedade. Sem que o bom senso, que constitui a base da
inteligência na França, fosse pervertido, passou-se a admitir que as mulheres exprimissem ideias, professassem sentimentos que elas não teriam confessado alguns
anos antes. O sr. de Clagny aproveitou essa fase de liberdade para reunir num pequeno volume in-18, que foi impresso por Desrosiers, em Moulins, as obras de Jan
Diaz. Ele compôs, sobre o jovem escritor tão prematuramente arrebatado às letras, um artigo espirituoso para os que conheciam a chave do enigma, mas que não tinha,
então, na literatura, o mérito da novidade. Esses gracejos, excelentes quando se guarda o incógnito, tornam-se um pouco sem graça, mais tarde, quando o autor se
revela. A esse respeito, porém, o artigo sobre Jan Diaz, filho dum prisioneiro espanhol e nascido em 1807, em Bourges, é capaz de enganar, mais tarde, os autores
de Biografias universais. Nada falta ali: nem os nomes dos professores do colégio de Bourges nem os dos condiscípulos do poeta morto, tais como Lousteau, Bianchon
e outros célebres berrienses, que o teriam conhecido sonhador, melancólico, revelando precoces disposições para a poesia. Uma elegia intitulada Tristeza, feita no
colégio, os dois poemas Paquita, a sevilhana e O carvalho da missa, três sonetos, uma descrição da catedral de Bourges e do palácio de Jacques Coeur e, finalmente,
uma novela intitulada Carola, dada como a obra durante a qual ele fora surpreendido pela morte, formavam a bagagem literária do defunto, cujos últimos momentos,
cheios de miséria e de desespero, eram de natureza a confranger o coração das criaturas sensíveis de Nièvre, do Bourbonnais, do Cher e do Morvan, onde ele expirara,
perto de Château-Chinon, ignorado de todos, mesmo daquela a quem amava!...
Do pequeno volume amarelo foram impressos duzentos exemplares, cento e cinquenta dos quais foram vendidos, cerca de cinquenta em cada departamento. Essa proporção
de almas sensíveis e poéticas em três departamentos da França é de natureza a resfriar o entusiasmo dos autores sobre a furia francese, que, atualmente, se volta
muito mais para os interesses que para os livros. Depois que o sr. de Clagny fez as devidas ofertas de livros, pois ele assinara o artigo, Diná guardou sete ou oito
exemplares envoltos nos jornais de outros lugares que haviam noticiado a publicação. Vinte exemplares enviados aos jornais de Paris perderam-se no abismo das salas
de redação. Nathan (Nathan: personagem balzaquiana; já o encontramos num episódio em que esteve a ponto de conquistar a condessa Maria de Vandenesse e em que só
por um triz escapou de morte vergonhosa, tentando contra a própria vida, num momento de desespero (Uma filha de Eva).), escolhido para vítima, como vários berrienses,
escreveu sobre o grande homem um artigo conferindo-lhe todas as qualidades que se concedem às pessoas enterradas. Lousteau, cheio de prudência porque nenhum camarada
seu do colégio se chamava Jan Diaz, esperou informações de Sancerre e soube que Jan Diaz era o pseudônimo duma mulher. Apaixonaram-se, no distrito de Sancerre, pela
sra. de La Baudraye, em quem quiseram ver a futura rival de George Sand. De Sancerre a Bourges, exaltaram, louvaram o poema de que, em outra época, certamente haveriam
troçado. O público da província, como, talvez, todos os públicos franceses, pouco adota a paixão do rei dos franceses, o meio-termo (O meio-termo: alusão à política
de Luís Felipe, que procurava manter-se a igual distância da direita (os Bourbon) e da esquerda (os liberais fiéis às ideias da Revolução Francesa).): erguem-vos
às nuvens ou mergulham-vos no lodo.
Nessa época, o bom padre Duret, conselheiro da sra. de La Baudraye, morrera; se não fosse isso, ele teria impedido que ela se entregasse à publicidade. Mas três
anos de trabalho e de incógnito pesavam no coração de Diná, que substituiu pelo rumor da glória todas as suas ambições malogradas. A poesia e os anseios de celebridade,
que desde seu encontro com Ana Grossetête haviam acalentado suas dores, não bastavam mais, após 1830, à atividade desse coração enfermo. O padre Duret, que falava
como homem de sociedade quando a voz da religião se mostrava impotente, o padre Duret, que compreendia Diná, que lhe acenava com um belo futuro dizendo-lhe que Deus
recompensaria todos os sofrimentos nobremente suportados, esse amável ancião não mais se podia interpor entre uma falta a cometer e sua bela penitente, a quem chamava
de filha. O hábil e sábio padre tentara mais de uma vez esclarecer Diná sobre o caráter do marido, dizendo-lhe que esse homem sabia odiar; as mulheres, porém, não
estão dispostas a reconhecer uma força em seres fracos, e o ódio é uma ação demasiado constante para que não seja uma força viva. Vendo o marido profundamente indiferente
ao amor, Diná recusava-lhe a faculdade de odiar.
— Não confunda ódio com vingança—dizia-lhe o padre.—São dois sentimentos completamente diferentes: um é próprio dos espíritos mesquinhos, o outro é resultante duma
lei a que as almas grandes obedecem. Deus vinga-se e não odeia. O ódio é o defeito das almas estreitas, que o alimentam com todas as suas baixezas e fazem dele o
pretexto de suas infames tiranias. Assim, evite ofender o sr. de La Baudraye; ele lhe perdoaria uma falta, pois tiraria partido disso, mas não o fira no ponto em
que o atingiu tão cruelmente o sr. Milaud, de Nevers, ou a vida não seria mais possível para a senhora.
Enquanto o Nivernais, o Sancerrois, o Morvan e o Berry se orgulhavam da sra. de La Baudraye e a celebravam sob o nome de Jan Diaz, o pequeno La Baudraye recebia
dessa glória um golpe mortal. Somente ele conhecia os segredos do poema Paquita, a sevilhana. Quando se falava dessa obra terrível, todos diziam de Diná: “Pobre
mulher! Pobre mulher!”. As mulheres sentiam-se felizes de poder lamentar aquela que tanto as humilhara, e nunca Diná pareceu maior que então aos olhos de todos.
O pequeno ancião, que se tornara mais amarelo, mais enrugado, mais débil que nunca, não manifestou nada; mas Diná surpreendeu, algumas vezes, dirigidos para ela,
olhares cheios duma venenosa frieza, que desmentiam seus redobramentos de polidez e de amabilidade. Ela acabou por perceber o que imaginou ser apenas um arrufo conjugal;
mas, ao entender-se com seu inseto, como o denominava o sr. Gravier, ela sentiu o frio, a dureza, a impassibilidade do aço; ela enfureceu-se, censurou-lhe sua vida
há onze anos; fez, deliberadamente, o que as mulheres chamam uma cena; o pequeno La Baudraye, porém, conservou-se numa poltrona, com os olhos fechados, escutando
tudo sem perder a calma. E o anão teve, como sempre, razão sobre a mulher. Diná compreendeu que fizera mal em escrever: prometeu-se nunca mais fazer um verso e manteve
a palavra. Isso constituiu uma desolação em todo o Sancerrois.
— Por que a sra. de La Baudraye não compõe mais versos?—perguntavam todos.
XIII - O AMOR PREMEDITADO
Nessa época, a sra. de La Baudraye não tinha mais inimigos. Acorriam à sua casa e não se passava uma semana sem que houvesse lá novas apresentações. A esposa do
presidente do Tribunal, uma augusta burguesa nascida Popinot-Chandier (Popinot-Chandier: provavelmente ligado à família do juiz João-Júlio Popinot, protagonista
de A interdição.), disse ao filho, rapaz de vinte e dois anos, que fosse a La Baudraye fazer-lhe a corte e envaidecia-se de ver seu Gatien nas boas graças daquela
mulher superior. A expressão mulher superior substituíra o grotesco epíteto de Safo de Saint-Satur. A presidenta, que durante nove anos dirigiu a oposição contra
Diná, ficou tão contente ao ver o filho feito advogado que passou a falar imensamente bem a propósito da Musa de Sancerre.
— Além de tudo—exclamou, ao responder a uma frase da sra. de Clagny, que odiava mortalmente a pretensa amante de seu marido—,é a mulher mais bela e mais inteligente
de todo o Berry!
Após ter rolado por tantos espinheiros, ter-se lançado em mil caminhos diferentes, ter sonhado com o amor em seu esplendor, ter aspirado as aflições dos dramas mais
negros encontrando neles os tristes prazeres baratos, tão fatigante era a monotonia de sua vida, Diná caiu um dia no abismo que jurara evitar. Ao ver o sr. de Clagny
sacrificar-se a ponto de recusar-se a ser advogado-geral em Paris, para onde o chamava a família, ela pensou: “Ele me ama!”. Venceu sua repugnância e demonstrou
querer recompensar tanta constância. Foi a esse impulso de generosidade em Diná que Sancerre ficou devendo a coalizão feita nas eleições em favor do sr. de Clagny.
A sra. de La Baudraye sonhara acompanhar a Paris o deputado de Sancerre. A despeito, porém, de solenes promessas, os cento e cinquenta votos dados ao adorador da
bela Diná, que queria fazer o defensor das viúvas e dos órfãos vestir a samarra do ministro da Justiça, transformaram-se numa respeitável minoria de cinquenta votos.
A inveja do presidente Boirouge, o ódio do sr. de Gravier, que acreditou na preponderância do candidato no coração de Diná, foram explorados por um jovem subprefeito,
que, devido a esse fato, os doutrinários fizeram nomear prefeito.
— Nunca me consolarei—disse ele a um amigo, ao deixar Sancerre—de não ter conseguido agradar à sra. de La Baudraye, pois assim meu triunfo seria completo...
Essa vida intimamente tão atormentada aparentava uma vida conjugal calma entre duas criaturas mal adaptadas, mas resignadas, algo de ordenado, de decente, essa mentira
que a sociedade exige, mas que constituía para Diná um jugo insuportável. Por que queria ela tirar a máscara após tê-la usado durante doze anos? De onde provinha
aquele desânimo, uma vez que cada dia que passava aumentava sua esperança de ficar viúva? Quem acompanhou todas as fases dessa existência compreenderá perfeitamente
as diferentes decepções de que Diná, como muitas mulheres, foi vítima. Do desejo de dominar o sr. de La Baudraye, ela passara à esperança de ser mãe. Entre as discussões
conjugais e a triste verificação de sua sorte decorreu todo um período. Depois, quando se quisera consolar, o consolador, sr. de Chargebœuf partira. A tentação,
que produz as faltas da maioria das mulheres, faltara-lhe até então. Se há mulheres que marcham diretamente à falta, não há muitas que se apegam a inúmeras esperanças
e que a ela não chegam senão após terem errado num dédalo de infortúnios secretos? Assim aconteceu a Diná. Estava tão pouco inclinada a faltar a seus deveres que
não amou suficientemente o sr. de Clagny para perdoar-lhe o insucesso. Sua instalação no castelo de Anzy, o arranjo de suas coleções, de suas curiosidades, que adquiriram
um novo valor na moldura magnífica e grandiosa que Philibert Delorme parecia ter construído para aquele museu, ocuparam-na durante alguns meses e permitiram-lhe
meditar uma dessas resoluções que surpreendem o público, que desconhece seus motivos, mas que, muitas vezes, os encontra à custa de comentários e de suposições.
A reputação de Lousteau, que tinha fama de conquistador em virtude de suas ligações com atrizes, impressionou a sra. de La Baudraye: ela quis conhecê-lo, leu suas
obras e apaixonou-se por ele, menos, talvez, devido a seu talento do que por causa de seu êxito junto às mulheres; para fazer com que ele viesse a Sancerre, lançou
a ideia de que a cidade tinha a obrigação de eleger, nas próximas eleições, uma de suas duas celebridades. Fez com que Gatien Boirouge, que se dizia primo de Bianchon
pelos Popinot, escrevesse ao ilustre médico; depois, conseguiu que um velho amigo da falecida sra. Lousteau despertasse a ambição do folhetinista, informando-o das
intenções de certas pessoas de Sancerre de eleger seus deputados entre as pessoas famosas de Paris. Cansada de seu medíocre círculo de relações, a sra. de La Baudraye
ia, finalmente, encontrar homens verdadeiramente superiores e poderia, assim, enobrecer sua falta com o brilho da glória. Lousteau e Bianchon não responderam; talvez
esperassem as férias. Bianchon, que no ano precedente obtivera sua cátedra após um brilhante concurso, não podia abandonar as aulas.
SEGUNDA PARTE
A FALTA
XIV - AS DUAS PAIXÕES
No mês de setembro, em plena vindima, os dois parisienses chegaram à terra natal e encontraram-na mergulhada nas tirânicas ocupações da safra de 1836; não houve,
assim, nenhuma manifestação da opinião pública em seu favor.
- Estamos pesados—disse Lousteau, falando a seu compatriota na linguagem da gíria.
Em 1836, Lousteau, fatigado por dezesseis anos de lutas em Paris, gasto tanto pelo prazer como pela miséria, pelos trabalhos e pelos fracassos, parecia ter quarenta
e oito anos embora não tivesse mais de trinta e sete. Já calvo, adquirira uma expressão byroniana em harmonia com seu envelhecimento precoce, com os estragos traçados
no seu rosto pelo abuso do vinho de Champagne. Atribuía os estigmas da libertinagem à vida literária, acusando a imprensa de ser assassina, dizendo que ela devorava
os grandes talentos para valorizar sua indolência. Achou necessário exagerar na sua terra natal seu falso desprezo pela vida e sua fingida misantropia. Às vezes,
não obstante isso, seus olhos ainda lançavam chamas, como esses vulcões que se julgam extintos, e tentou substituir pela elegância do vestuário tudo quanto lhe podia
faltar de mocidade aos olhos duma mulher.
Horácio Bianchon, condecorado com a Legião de Honra, alto e gordo como um médico da moda, tinha uma expressão patriarcal, longos cabelos louros, testa arqueada,
as espáduas do trabalhador e a calma do pensador. Essa aparência muito pouco poética fazia ressaltar admiravelmente seu esbelto compatriota.
As duas notabilidades ficaram despercebidas durante uma manhã inteira na hospedaria onde haviam descido, e o sr. de Clagny só soube de sua chegada por acaso. A sra.
de La Baudraye, desesperada, mandou Gatien Boirouge, que não tinha vinhedos, convidar os dois parisienses a passar alguns dias no castelo de Anzy. Diná vivia há
um ano como castelã e só passava os invernos em La Baudraye. O sr. Gravier, procurador do rei, o presidente e Gatien Boirouge ofereceram aos dois homens célebres
um banquete, a que compareceram as maiores figuras literárias da cidade.
Ao serem informados de que a bela sra. de La Baudraye era Jan Diaz, os dois parisienses deixaram-se levar por três dias ao castelo de Anzy, num churrião conduzido
pelo próprio Gatien. Esse rapaz, cheio de ilusões, apresentou a sra. de La Baudraye aos dois parisienses não somente como a mais bela mulher do Sancerrois e como
uma mulher superior capaz de inspirar inquietação a George Sand, mas, ainda, como uma mulher que causaria em Paris a mais profunda sensação. Também o dr. Bianchon
e o folgazão folhetinista tiveram um singular espanto, que souberam dominar, ao ver na escadaria de Anzy a castelã com um vestido singelo de leve casimira preta,
semelhante a uma amazona sem cauda, pois verificaram que havia exageradas pretensões naquela excessiva simplicidade. Diná tinha uma touca de veludo preto à Rafael,
sob a qual caíam os cabelos em grossos cachos. O vestido realçava um corpo muito bonito, com belos olhos e belas pálpebras quase murchas devido ao tédio da existência
que acaba de ser descrita. No Berry a singularidade dessa aparência artística disfarçava as românticas presunções da mulher superior. Diante das afetações de sua
amabilíssima hospedeira, que eram, de certo modo, afetações de alma e de pensamento, os dois amigos trocaram um olhar e assumiram uma atitude profundamente séria
para escutar a sra. de La Baudraye, que lhes dirigiu uma alocução estudada, agradecendo-lhes por terem vindo quebrar a monotonia de sua vida.
XV - MANOBRAS HÁBEIS DE DINÁ
Diná levou os hóspedes a passear em torno do relvado ornado de flores que se estendia diante da fachada de Anzy.
— Como é que uma mulher bela como a senhora e que parece tão superior pôde ficar na província?—perguntou Lousteau, o mistificador.—Como faz para resistir a esta
vida?
— Ah! Aí está—disse a castelã.—Não se resiste. Um profundo desespero ou uma estúpida resignação, uma coisa ou outra, não há escolha, tal é o tufo sobre o qual repousa
nossa existência e onde se detêm mil pensamentos estagnantes que, sem fecundar o terreno, nutrem nele as flores estioladas de nossas almas desertas. Não creiam na
apatia! A apatia resulta do desespero ou da resignação. Cada mulher se entrega àquilo que, segundo seu temperamento, lhe parece um prazer. Umas dedicam-se à confecção
de doces e à lavagem da roupa, aos trabalhos domésticos, às alegrias rurais da vindima ou da ceifa, à conservação dos frutos, ao bordado, aos cuidados da maternidade,
às intrigas de cidadezinha. Outras martelam um piano inamovível que ao fim de sete anos soa como um caldeirão e que termina seus dias, asmático, no castelo de Anzy.
Algumas devotas preocupam-se com os diversos portadores da palavra de Deus: compara-se o padre Fritaud ao padre Guinard. Jogam-se cartas à noite, dança-se durante
doze anos com as mesmas pessoas, nos mesmos salões, nas mesmas épocas. Esta bela vida é entremeada de passeios solenes pelo passeio público, de visitas de cerimônia
entre mulheres que nos perguntam onde compramos nossas fazendas. A palestra é limitada, ao sul da inteligência, pelas observações sobre as intrigas ocultas no fundo
da água parada da vida provinciana; ao norte, pelos casamentos em projeto; ao oeste, pelas invejas; e, ao leste, pelos ditinhos picantes. Assim, como veem—disse
ela, empertigando-se—,a mulher tem rugas aos vinte e nove anos, dez anos antes da época fixada pelas leis do dr. Bianchon; fica com a pele áspera muito cedo e amarelece
como um marmelo, quando fica amarela, pois sabemos de algumas que ficam verdes. Quando chegamos a esse ponto, queremos justificar nosso estado normal. Atacamos,
então, com os dentes agudos como os dos ratos silvestres, as terríveis paixões de Paris. Temos aqui puritanas a contragosto, que rasgam as rendas da elegância e
roem a poesia das beldades parisienses, que criticam a felicidade alheia louvando suas nozes e seu toucinho rançosos, exaltando sua toca de coelhas econômicas, as
cores sombrias e os perfumes monásticos de nossa bela vida sancerrense.
— Gosto dessa coragem, minha senhora—disse Bianchon.—Quando se passa por tais desgraças, é preciso ter espírito para transformá-las em virtudes.
Espantado com a brilhante manobra pela qual Diná apresentava a província a seus hóspedes, cujos sarcasmos ficavam assim prevenidos, Gatien Boirouge tocou Lousteau
com o cotovelo, dirigindo-lhe um sorriso que dizia: “Hein! Acaso os enganei?”.
— Mas, minha senhora—disse Lousteau—,a senhora nos dá a impressão de que ainda estamos em Paris. Vou furtar-lhe esse trecho de palestra. Conseguirei com ele dez
francos no meu folhetim...
— Oh, senhor—replicou ela—,desconfie das mulheres provincianas!
— E por quê?—perguntou Lousteau.
A sra. de La Baudraye teve a leviandade, inocente, aliás, de mostrar aos dois parisienses, entre os quais ela queria escolher um vencedor, a cilada amorosa em que
ele cairia, pensando que, no momento em que ele não visse mais a armadilha, ela seria a mais forte.
— Zomba-se delas ao chegar; depois, quando se perdeu a lembrança do esplendor parisiense, faz-se-lhes a corte, nem que seja por passatempo. O senhor, cujas paixões
o tornaram famoso, será alvo duma atenção que o lisonjeará... Tome cuidado!—exclamou Diná, fazendo um gesto gracioso e elevando-se, por essas reflexões sarcásticas,
acima dos ridículos da província e de Lousteau.—Quando uma pobre provincianazinha sente uma paixão excêntrica por uma notabilidade, por um parisiense perdido na
província, ela a transforma em alguma coisa maior que um sentimento, faz dela uma ocupação e a estende por toda sua existência. Não há nada mais perigoso que a afeição
duma mulher provinciana: ela compara, estuda, reflete, sonha, não abandona mais seu sonho e pensa naquele que ama quando este não pensa mais nela. Ora, uma das fatalidades
que pesam sobre a mulher provinciana é esse brusco desfecho de suas paixões, que se observa frequentemente na Inglaterra. Na província, a vida confinada ao estado
de contemplação indiana força a mulher a marchar em linha reta sobre os trilhos ou a saltar violentamente deles como uma máquina a vapor que encontra um obstáculo.
Os combates estratégicos da paixão, as faceirices, que constituem a metade da parisiense, nada disso existe aqui.
— É verdade—disse Lousteau.—Há, no coração da mulher provinciana, surpresas, como em certos brinquedos.
— Oh! Meu Deus—replicou Diná—,quando uma mulher lhe fala três vezes durante um inverno, já o prende no coração sem o querer; vem uma excursão pelo campo, um passeio,
e tudo está dito, ou, se quiser, está feito. Essa conduta, estranha para os que não observam, tem algo de muito natural. Em vez de caluniar a mulher provinciana
julgando-a depravada, um poeta como o senhor, um filósofo ou um observador como o dr. Bianchon saberão descobrir suas maravilhosas poesias inéditas, todas as páginas,
enfim, desse belo romance cujo desfecho aproveita a algum feliz tenente, a algum grande homem da província.
— As mulheres provincianas que vi em Paris—disse Lousteau—eram, realmente, muito arrebatadoras...
— Ora! Elas são curiosas—disse a castelã, comentando sua frase com um leve movimento de ombros.
— Elas parecem esses amadores que vão à segunda representação, certos de que a peça não sairá de cartaz—replicou o jornalista.
— Qual é, então, a causa de suas desgraças?—perguntou Bianchon.
— Paris é o monstro que causa nossos pesares—respondeu a mulher superior.—O mal tem sete léguas de circunferência e atinge o país inteiro. A província não existe
por si mesma. Somente lá, onde a nação é dividida em cinquenta pequenos Estados, cada um pode ter uma fisionomia e a mulher reflete então o brilho da esfera onde
impera. Esse fenômeno social encontra-se também, segundo me disseram, na Itália, na Suíça e na Alemanha; mas, na França, como em todos os países de capital única,
o aplainamento dos costumes será a consequência forçada da centralização.
— Segundo a senhora, os costumes só adquiririam realce e originalidade por uma federação de Estados franceses formando um mesmo Império?—disse Lousteau.
— Isso não é desejável, pois a França teria ainda de conquistar muitos países—disse Bianchon.
— A Inglaterra não conhece essa desgraça!—exclamou Diná.—Londres não exerce a tirania que Paris faz pesar sobre a França e que o gênio francês acabará remediando;
ela possui, porém, uma coisa mais horrível em sua atroz hipocrisia, que é realmente um outro mal!
— A aristocracia inglesa—replicou o jornalista, que previu uma dissertação byroniana e se apressou a tomar a palavra—tem sobre a nossa a vantagem de assimilar todas
as superioridades, vive em seus magníficos parques, vai a Londres apenas por dois meses, nem mais nem menos; vive na província, lá floresce e a faz florescer.
— Sim—disse a sra. de La Baudraye—,Londres é a capital das lojas e das especulações, lá se exerce o governo. A aristocracia lembra-se dela apenas durante sessenta
dias, lá recebe as palavras de ordem, dá uma olhadela pela cozinha governamental, põe em exposição as filhas a casar e as equipagens a vender, troca um bom-dia e
vai embora rapidamente; ela é tão pouco divertida que não se suporta mais que durante os poucos dias chamados de saison.
— Assim, na pérfida Albion do Constitutionnel (Le Constitutionnel: jornal liberal, fundado durante os Cem Dias, em 1815, de tendências bonapartistas e cujas campanhas
contra os Bourbon preparavam a Revolução de Julho de 1830. Sua antipatia pela Inglaterra, carcereira de Napoleão, levou-o a servir-se frequentemente da locução “pérfida
Albion”, usada para caracterizar a má-fé tradicional dos governos ingleses.)—exclamou Lousteau, para reprimir com um epigrama aquela facilidade de falar—,há possibilidade
de encontrar mulheres encantadoras em todos os pontos do reino.
— Mas encantadoras mulheres inglesas!—replicou a sra. de La Baudraye, sorrindo.—Aqui está minha mãe, a quem vou apresentá-los—disse ao ver chegar a sra. Piédefer.
Feita a apresentação dos dois leões àquele esqueleto ambicioso do nome de mulher que se chamava sra. Piédefer, de grande corpo seco, de rosto avermelhado, dentes
suspeitos e cabelos tingidos, Diná deixou os dois parisienses livres durante uns momentos.
— Então—disse Gatien a Lousteau—,que acha?
— Acho que a mulher mais inteligente de Sancerre é, também, a mais tagarela—replicou o folhetinista.
— Uma mulher que quer fazer com que o elejam deputado!—exclamou Gatien.—Um anjo!
— Perdão. Esquecia-me de que você a ama—replicou Lousteau.—Desculpe o cinismo dum velho idiota como eu. Pergunte a Bianchon, eu não tenho mais ilusões, digo as coisas
como elas são. Essa mulher certamente secou a mãe como uma perdiz exposta a um fogo muito forte...
XVI - DIABO LEVE OS ÁLBUNS
Gatien Boirouge conseguiu transmitir a frase do folhetinista à sra. de La Baudraye durante o jantar, que foi copioso, se não esplêndido, e durante o qual a castelã
teve o cuidado de falar pouco. Essa languidez na linguagem denunciou a indiscrição de Gatien. Estêvão tentou recuperar a preferência, mas todas as amabilidades de
Diná dirigiram-se a Bianchon. No meio do serão, entretanto, a baronesa voltou a ser gentil com Lousteau. Já notastes quantas grandes fraquezas são cometidas por
pequenas coisas? Assim, essa nobre Diná, que não queria cair nas mãos dos tolos, que levava, no fundo de sua província, uma existência pavorosa de lutas, de revoltas
sufocadas, de poesias inéditas e que acabara de galgar, para afastar-se de Lousteau, a rocha mais alta e mais escarpada de seu desdém, e de lá não teria descido
se visse aquele falso Byron a seus pés pedindo-lhe perdão, rolou subitamente dessa altura ao pensar em seu álbum. A sra. de La Baudraye contraíra a mania dos autógrafos;
possuía um volume oblongo que merecia com tanta maior razão seu nome porque os dois terços das folhas estavam em branco. A baronesa de Fontaine, em cujas mãos ela
o deixara durante três meses, obtivera, com grande dificuldade, uma linha de Rossini (Rossini, Meyerber etc. Todos os escritores e artistas aqui enumerados eram
amigos de Balzac, e este, evidentemente, quis ser atencioso com eles, incluindo-lhes os nomes neste romance. Entre eles, exigem explicação apenas os nomes de Jules
Dupré (1811-1889), pintor francês, um dos fundadores da escola paisagística moderna, e de David d’Angers (1783-1856), ilustre escultor francês que fez um busto de
Balzac; o escritor dedicou-lhe O cura de Tours.), seis compassos de Meyerber, os quatro versos que Victor Hugo escreve em todos os álbuns, uma estrofe de Lamartine,
uma frase de Béranger, Calipso não podia consolar-se da partida de Ulisses, escrita por George Sand, os famosos versos sobre o guarda-chuva por Scribe, uma frase
de Charles Nodier, uma linha de horizonte de Jules Dupré, a assinatura de David (D’Angers), três notas de Hector Berlioz. O sr. de Clagny recolhera, durante uma
permanência em Paris, uma canção de Lacenaire, autógrafo muito procurado, duas linhas de Fieschi (Lacenaire: Pierre-François Lacenaire (1800-1836), criminoso responsável
por vários assassínios que perante o tribunal se fez passar por um revoltado contra a organização social, e, antes de ser executado, redigiu na prisão suas memórias.—Fieschi:
autor de um atentado malogrado contra Luís Felipe, em 1836, por meio de uma máquina infernal; preso e executado com seus cúmplices.) e uma carta excessivamente curta
de Napoleão, que foram, as três, coladas ao velino do álbum. O sr. Gravier, durante uma viagem, fizera escrever nesse álbum as srtas. Mars, Georges, Taglioni e Grisi
(Srtas. Mars etc.: Anne Boutet, dita srta. Mars (1779-1847), célebre atriz cômica; Maria Taglioni (1804-1884), bailarina; Giuditta Grisi, condessa Barni (1805-1840),
cantora italiana.), os primeiros artistas, como Frédéric Lemaître, Monrose, Bouffé, Rubini, Lablache, Nourrit e Arnal (Frédéric Lemaître etc. Todos personagens reais:
Frédéric Lemaître (1800-1876), famoso ator, de estatura atlética, que representava magistralmente as grandes paixões em quase todas as cenas de Paris; Monrose (1811-1883),
ator da Comédie Française; Hugues Désiré Bouffé (1800-1884), ator cômico que representou nas principais cenas de Paris; Giovanni-Batttista Rubini, tenor italiano
que cantou durante muitos anos no Théâtre des Italiens de Paris; Louis Lablache (1794-1858), cantor italiano, contratado sucessivamente pelo Teatro San Carlo, de
Nápoles, pelo Italiens, de Paris, e a Ópera de São Petersburgo; Adolphe Nourrit (1802-18?), cantor francês, professor do Conservatório; Étienne Arnal (1794-1872),
ator cômico, cujo papel mais notável foi o de Jocrisse, cujo tipo rejuvenesceu.), pois conhecia uma sociedade de rapazes, criados, segundo sua expressão, no serralho,
que lhe facilitaram essa tarefa. Esse começo de coleção foi tanto mais precioso para Diná porque ela era a única pessoa, num círculo de duas léguas, que possuía
um álbum. Nos últimos dois anos, muitas jovens possuíam álbuns nos quais faziam os amigos e conhecidos escrever frases mais ou menos grotescas. Oh! Vós que passais
a vida a recolher autógrafos, criaturas felizes e primitivas, holandeses com tulipas, desculpareis certamente Diná, que, receando não conservar seus hóspedes mais
de dois dias, pediu a Bianchon que enriquecesse seu tesouro com algumas linhas.
O médico fez Lousteau sorrir mostrando-lhe esse pensamento, na primeira página:
“O que torna o povo tão perigoso é que ele tem no bolso uma absolvição para seus crimes.”—J.-B. de Clagny.
— Apoiemos esse homem suficientemente corajoso para advogar a causa da monarquia—disse ao ouvido de Lousteau o erudito aluno de Desplein. E Bianchon escreveu abaixo
daquela frase:
“O que distingue Napoleão dum aguadeiro só tem importância para a sociedade, não significa nada para a natureza. Também, a democracia, que não admite a desigualdade
de condições, queixa-se dela a todo instante à natureza.”—H. Bianchon.
— Vejam como são os ricos—exclamou Diná, estupefata.—Tiram da bolsa uma moeda de ouro como os pobres tiram uma de cobre...—Não sei—disse, voltando-se para Lousteau—se
seria abusar da hospitalidade pedir-lhe alguns versos...
— Ah! A senhora me lisonjeia! Bianchon é um grande homem; mas eu sou muito obscuro!... Daqui a vinte anos, meu nome será mais difícil de explicar que o do procurador
do rei, cujo pensamento, inscrito em seu álbum, certamente indicará um Montesquieu ignorado. Além disso, precisarei de vinte e quatro horas no mínimo para improvisar
alguma meditação amarga, pois só sei descrever o que sinto...
— Gostaria que o senhor me pedisse quinze dias—disse, amavelmente, a sra. de La Baudraye, entregando-lhe o álbum—,pois assim o teria mais tempo conosco.
XVII - UMA CONSPIRAÇÃO INOCENTE
No dia seguinte, às cinco da manhã, os hóspedes do castelo de Anzy estavam de pé. O pequeno La Baudraye organizara para os parisienses uma caçada; menos para agradar-lhes
que por vaidade de proprietário, sentia-se satisfeito por fazê-los percorrer seus bosques e fazê-los atravessar os mil e duzentos hectares de terra que ele sonhava
cultivar, empresa que exigiria alguns cem mil francos, mas que podia elevar de trinta a sessenta mil francos os rendimentos da propriedade de Anzy.
— Sabe por que o procurador do rei não veio caçar conosco?—disse Gatien Boirouge ao sr. Gravier.
— Sim, ele nos disse. Deve presidir a audiência hoje, pois o tribunal julga correcionalmente—respondeu o recebedor das contribuições.
— E você acredita nisso?—exclamou Gatien.—Pois bem, papai me disse: “Vocês não terão o sr. Lebas cedo, pois o sr. de Clagny pediu a seu substituto que presidisse
a audiência”.
— Ah! Ah!—exclamou Gravier, cuja fisionomia se alterou.—E o sr. de La Baudraye, que vai partir para a Charité!
— Mas por que é que vocês se intrometem nesses assuntos?—disse Horácio Bianchon a Gatien.
— Horácio tem razão—disse Lousteau.—Não compreendo por que é que vocês se preocupam tanto uns com os outros. Perdem um tempo enorme com ninharias.
Horácio Bianchon olhou para Estêvão Lousteau como para dizer-lhe que as malícias de folhetim, os ditos espirituosos de jornaleco eram incompreendidos em Sancerre.
Ao chegarem à parte mais densa do bosque, o sr. Gravier deixou os dois homens famosos e Gatien embrenharem-se por ali, guiados pelo guarda.
— Esperemos o financista—disse Bianchon, quando os caçadores chegaram a uma clareira.
— Ora—replicou Gatien—,o senhor é um grande homem em medicina, mas é um ignorante no que se refere à vida de província. Espera o sr. Gravier?... Ele deve andar correndo
como uma lebre, apesar de seu ventrezinho rechonchudo; e já está a uns vinte minutos de Anzy...—Gatien tirou o relógio.—Bem, chegará a tempo.
— Aonde?
— Ao castelo, para o almoço—respondeu Gatien.—Pensa que eu ficaria descansado se a sra. de La Baudraye ficasse a sós com o sr. de Clagny? Lá estão os dois, um vigiará
o outro e Diná ficará bem guardada.
— Ah! É assim? Então a sra. de La Baudraye ainda não escolheu?—perguntou Lousteau.
— Mamãe acha que não, mas tenho medo de que o sr. de Clagny tenha acabado por fascinar a sra. de La Baudraye. Se ele pôde mostrar-lhe na deputação algumas possibilidades
de envergar a samarra do Ministério da Justiça, pôde, também, transformar em atrativos de Adônis sua pele de toupeira, seus olhos terríveis, sua cabeleira desgrenhada,
sua voz rouca de hussardo, sua magreza de poeta de segunda ordem. Se Diná vir o sr. de Clagny procurador-geral, pode achá-lo um belo rapaz. A eloquência tem grandes
privilégios. Além disso, a sra. de La Baudraye tem muita ambição, não gosta de Sancerre e sonha com os esplendores parisienses.
— Mas que interesse tem você nisso?—perguntou Lousteau.—Uma vez que ela gosta do procurador do rei... Ah! Você acha que ela não o amará por muito tempo e espera
suceder-lhe.
— Os senhores—disse Gatien—encontram em Paris tantas mulheres diferentes quantos são os dias do ano. Mas em Sancerre, onde não há nem seis, cinco das quais têm pretensões
desordenadas à virtude, quando a mais bela nos mantém a uma distância enorme por olhares desdenhosos como se fosse uma princesa de sangue real, é lícito a um rapaz
de vinte e dois anos procurar descobrir os segredos dessa mulher, pois assim ela será obrigada a ter atenções para ele.
— Isto se chama aqui atenções?—disse o jornalista, sorrindo.
— Acho que a sra. de La Baudraye tem muito bom gosto para que se vá preocupar com aquele macaco—disse Horácio Bianchon.
— Horácio, sábio intérprete da natureza humana—disse o jornalista—,vamos armar uma cilada ao procurador do rei. Assim, prestaremos um serviço ao nosso amigo Gatien
e nos divertiremos. Não gosto dos procuradores do rei.
— Tens um justo pressentimento do teu destino—disse Horácio.—Mas que vamos fazer?
— Bem, contaremos, após o jantar, algumas histórias de mulheres surpreendidas pelos maridos e que tenham sido mortas, assassinadas em circunstâncias pavorosas. Veremos
a cara que farão a sra. de La Baudraye e o sr. de Clagny.
— Não é mau—disse Bianchon.—Será difícil que um ou outro não se denuncie por um gesto ou uma reflexão.
— Conheço um diretor de jornal—continuou o jornalista, dirigindo-se a Gatien—que, a fim de evitar que seja enganado pela mulher, só aceita histórias em que os amantes
são queimados, esquartejados, moídos, retalhados; em que as mulheres são escaldadas, fritas, cozidas; leva, então, essas medonhas histórias à esposa, esperando que
ela lhe seja fiel por medo. O modesto marido contenta-se com esses exemplos. “Vês, querida, aonde leva a mínima falta!”, diz ele, traduzindo o discurso de Arnolfo
a Inês (O discurso de Arnolfo a Inês encontra-se na segunda cena do III ato da Escola de mulheres, de Molière. Arnolfo, que mantém Inês na maior ingenuidade para
depois ter nela uma esposa modelo, faz-lhe uma preleção a respeito de suas obrigações, pintando-lhe em cores sombrias as consequências da infidelidade conjugal e
mandando-a ler um folheto sobre As máximas do casamento ou os deveres da mulher casada.).
— A sra. de La Baudraye é completamente inocente, esse rapaz está enganado—disse Bianchon.—A sra. Piédefer parece-me muito devota para que fosse convidar ao castelo
de Anzy o amante da filha. A sra. de La Baudraye teria de enganar a mãe, o marido, sua criada e a da mãe. Seria muito trabalhoso. Considero-a inocente.
— Tanto mais que o marido não a deixa um momento—disse Gatien.
— Nós nos recordaremos de uma ou duas histórias capazes de fazer Diná tremer—disse Lousteau.—Peço que você, rapaz, e Bianchon mantenham uma atitude grave, mostrem-se
diplomatas, ostentem uma indiferença sem afetação e observem, sem dar mostras disso, o rosto dos criminosos, sabem?... Por baixo, ou pelo espelho, de soslaio. Esta
manhã estamos caçando lebre; à noite, caçaremos o procurador do rei.
XVIII - O PROCURADOR DO REI MELINDRA-SE
O serão começou triunfalmente para Lousteau, que entregou à castelã seu álbum, onde ela encontrou esta elegia:
tédio
Pobres versos de quem, torturado e tristonho,
Rola entre a multidão sem o calor dum sonho,
Sem nenhuma afeição;
De quem nunca alcançou um desejo na vida
E cujo olhar que busca uma imagem querida
Só vê a solidão!
Este álbum, destinado às mãos duma mulher,
Não deve receber um reflexo sequer
Dos desenganos meus.
À mulher só se fala em venturas e amor,
Em dias de alegria e noites de esplendor
E mesmo um pouco em Deus.
Seria uma cruel e amarga zombaria
Pedir-me que escrevesse alguma poesia
Sobre a felicidade.
Louva-se acaso a luz a quem cego nasceu?
Fala-se acaso em mãe a quem a mãe perdeu
E chora na orfandade?
Se desde a mocidade um desespero imenso
Transforma em aflição tudo o que sinto e penso,
Que mais esperarei?
Se, a quem chora sem ter um anjo que o conforte
Ao perder seu amor, resta apenas a morte,
Em breve morrerei.
Tende pena de mim! Pois, às vezes, blasfemo
Contra o nome de Deus, cujo poder supremo
Amaldiçoo assim:
“Que lhe devo, afinal? Por que hei de bendizê-lo,
“Se, podendo criar-me nobre, rico e belo,
Não fez nada por mim?”
ESTÊVÃO LOUSTEAU
Setembro de 1836, castelo de Anzy
— O senhor compôs estes versos de ontem para cá?—exclamou o procurador do rei, num tom desconfiado.
— Oh! Meu Deus. Sim, enquanto caçava. Vê-se claramente! Eu desejaria ter feito coisa melhor, para a senhora.
— Esses versos são arrebatadores—disse Diná, erguendo os olhos para o céu.
— São a expressão dum sentimento desgraçadamente muito sincero—respondeu Lousteau, com uma expressão profundamente triste.
Todos percebiam que o jornalista conservava esses versos na memória há dez anos, pelo menos, pois eles lhe haviam sido inspirados durante a Restauração, pela dificuldade
de triunfar. A sra. de La Baudraye contemplou o jornalista com a compaixão que os infortúnios do gênio inspiram e o sr. de Clagny, que surpreendeu esse olhar, encheu-se
de rancor contra esse falso Jovem Enfermo e foi jogar gamão com o cura de Sancerre. O filho do presidente teve a exagerada bondade de levar um lampião para perto
dos dois jogadores, de maneira que a luz caísse em cheio sobre a sra. de La Baudraye, que tomou seu trabalho; ela estava revestindo de lã o vime duma cesta de papéis.
Os três conspiradores agruparam-se perto desses personagens.
— Para quem é essa bela cesta, senhora?—perguntou o jornalista.—Para alguma loteria de caridade?
— Não—disse ela.—Acho muita afetação na caridade feita a som de trombeta.
— O senhor é muito indiscreto—disse o sr. Gravier.
— Há indiscrição—disse Lousteau—em perguntar qual é o feliz mortal que vai possuir a cesta da senhora?
— Não há nenhum feliz mortal—replicou Diná.—Ela é para o sr. de La Baudraye.
O procurador do rei olhou sorrateiramente para a sra. de La Baudraye e para a cesta, como se se dissesse intimamente: “Perdi minha cesta de papéis!”.
— Como, senhora, então não quer que o consideremos feliz, tendo uma esposa tão bonita, que lhe faz tão belas coisas em cestas de papéis? O desenho é encarnado e
preto, à Robin das florestas (O Robin das florestas: em inglês Robin Hood, herói popular de lendas inglesas. Saxão revoltado pela conquista normanda, Robin fez-se
chefe de um bando de foragidos do fim do século XII, e viveu metido nas florestas, em guerra perpétua com o rei e os nobres, organizando assaltos e saques, mas protegendo
os pobres. Teria morrido por obra de uma freira curandeira a quem pediu, acometido por uma doença, que o sangrasse. A freira, tendo-o reconhecido, em vez de curá-lo,
matou-o.). Se eu me casar um dia, desejo que, após doze anos de vida conjugal, as cestas que minha mulher bordar sejam para mim.
— E por que não seriam para o senhor?—disse a sra. de La Baudraye, erguendo para Estêvão seu belo olhar cinzento cheio de sedução.
— Os parisienses não acreditam em nada—disse o procurador do rei, num tom amargo.—A virtude das mulheres, principalmente, é posta em dúvida com uma audácia assustadora.
Sim, há algum tempo, os livros que os senhores escritores escrevem, suas revistas, peças de teatro, toda sua infame literatura repousa sobre o adultério...
— Com licença, senhor procurador do rei—interveio Estêvão, sorrindo.—Eu estava deixando que o senhor jogasse tranquilamente, não o atacava, e eis que o senhor faz
um libelo contra mim. Palavra de jornalista, já publiquei mais de cem artigos contra os autores de quem o senhor fala; confesso-lhe, porém, que se os ataquei foi
para dizer alguma coisa que parecesse uma crítica. Sejamos justos, se o senhor os condena, deve condenar Homero e sua Ilíada, que versa sobre a bela Helena; deve
condenar o Paraíso perdido de Milton, pois Eva e a serpente parecem-me um gentil adulteriozinho simbólico. Deve suprimir também os salmos de Davi, inspirados nos
amores imensamente adúlteros desse Luís XIV hebreu. Deve lançar ao fogo Mitrídates, o Tartufo, A escola de mulheres, Fedra, Andrômaca, O casamento de Fígaro (Das
obras enumeradas aqui, Mitrídates, Fedra e Andrômaca são dramas de Racine; O tartufo e A escola de mulheres, comédias de Molière; O casamento de Fígaro, de Beaumarchais.),
o Inferno, de Dante, os Sonetos, de Petrarca, todo o Jean-Jacques Rousseau, os romances da Idade Média, a História da França, a História romana etc. etc. Não creio
que, exceto a História das variações (História das variações das igrejas protestantes (1688): uma das obras principais de Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704). O
autor demonstra, nesse livro de polêmica, que o vício fundamental das religiões protestantes é o individualismo, fonte de variações múltiplas.), de Bossuet, e as
Provinciais (Provinciais ou Cartas provinciais: obra contra os jesuítas, publicada anonimamente por Pascal em 1657, posta depois no Índex e considerada obra-prima
da literatura francesa.), de Pascal, haja muitos livros a ler, se o senhor quer interditar aqueles em que se fala em mulheres amadas em oposição às leis.
— Que grande desgraça!—disse o sr. de Clagny.
Estêvão, picado pela atitude magistral que assumia o sr. de Clagny, quis enfurecê-lo por uma dessas frias mistificações que consistem em defender opiniões que não
cultivamos, com o objetivo de encolerizar um pobre homem de boa-fé, verdadeira brincadeira de jornalista.
— Colocando-nos no ponto de vista político que o senhor é forçado a adotar—disse, continuando, sem dar importância à exclamação do magistrado—,envergando a toga
do procurador-geral de todas as épocas, pois todos os governos têm seu ministério público, pois bem, a religião católica se encontra infectada em suas origens por
uma violenta ilegalidade conjugal. Aos olhos do rei Herodes, e aos de Pilatos, que defendia o governo romano, a esposa de José podia parecer adúltera, pois, segundo
sua própria declaração, José não era o pai de Cristo. O juiz pagão não admitia a imaculada concepção como o senhor não admitiria um milagre semelhante se alguma
religião se fundasse hoje apoiada num mistério desse gênero. Acredita que um tribunal de polícia correcional reconheceria uma nova operação do Espírito Santo? Ora,
quem pode ousar dizer que Deus não virá redimir novamente a humanidade? Acaso ela é hoje melhor do que na época de Tibério?
— Seu argumento é um sacrilégio—respondeu o procurador do rei.
— Estou de acordo—disse o jornalista.—Mas não o faço com má intenção. O senhor não pode suprimir os fatos históricos. Segundo penso, Pilatos, ao condenar Jesus Cristo,
e Ânito, do partido aristocrático de Atenas, ao pedir a morte de Sócrates, representavam sociedades estabelecidas, que se julgavam legítimas, revestidas de poderes
reconhecidos, e obrigadas a defender-se. Pilatos e Ânito foram, pois, tão lógicos como os procuradores-gerais que pediram a cabeça dos sargentos de la Rochelle e
que hoje em dia fazem cair as cabeças dos republicanos armados contra o trono de Julho e as dos inovadores cujo objetivo consiste em transformar as sociedades em
seu benefício sob o pretexto de melhor organizá-las. Diante das grandes famílias de Atenas e do império romano, Sócrates e Jesus eram criminosos; para essas antigas
aristocracias, suas opiniões assemelhavam-se às da Montanha (Montanha: nome que se dava ao grupo mais avançado da Convenção; os membros desse grupo ocupavam as filas
mais elevadas da Assembleia Revolucionária; dirigido, no começo, por Danton, Robespierre e Marat, esse grupo, cada vez mais numeroso, depois de esmagar os Girondinos,
tomou conta do poder e iniciou o Terror.). Imagine que seus sectários tivessem triunfado: teriam promovido um breve 93 no Império Romano ou na Ática.
— Aonde quer chegar com isso?—disse o procurador do rei.
— Ao adultério! Assim, meu senhor, um budista, enquanto fuma seu cachimbo, pode perfeitamente dizer que a religião dos cristãos é fundada sobre o adultério, do mesmo
modo como julgamos que Maomé é um impostor, que seu Corão é uma reimpressão da Bíblia e do Evangelho e que Deus nunca teve a intenção de fazer desse condutor de
camelos seu profeta.
— Se houvesse na França muitos homens como o senhor, e desgraçadamente os há demais, qualquer governo seria impossível aqui.
— E não haveria religião—disse a sra. Piédefer, cujo rosto se contraíra em estranhas caretas durante a discussão.
— Assim tu os estás desgostando imensamente—disse Bianchon ao ouvido de Estêvão.—Não fales em religião, estás dizendo coisas que os confundem.
— Se eu fosse escritor ou romancista—disse o sr. Gravier—,tomaria o partido dos maridos infelizes. Eu, que vi muitas coisas, e coisas estranhas, sei que, entre os
maridos enganados, muitos há cuja atitude não é destituída de energia e que, na crise, são muito dramáticos, para empregar uma expressão sua—disse, olhando para
Lousteau.
— Tem razão, meu caro sr. Gravier—disse Lousteau—,nunca achei ridículos os maridos enganados; pelo contrário, gosto deles...
— Não acham que a confiança dum marido é sublime?—disse, então, Bianchon.—Ele acredita na mulher, não desconfia dela, tem uma fé inabalável. Se ele tem a fraqueza
de confiar na mulher, os senhores zombam dele; se é desconfiado e ciumento, os senhores o odeiam; digam-me, qual é o meio-termo para um homem inteligente?
— Se o procurador do rei não se tivesse pronunciado, há pouco, tão abertamente contra a imoralidade das narrativas em que a lei conjugal é violada, eu lhe contaria
uma vingança de marido—disse Lousteau.
O sr. de Clagny jogou os dados com um gesto convulso e não olhou para o jornalista.
— Mas, como uma narrativa sua!—exclamou a sra. de La Baudraye.—Mal me atreveria a pedi-lo...
— Ela não é minha, senhora, não tenho talento para tanto. Foi-me contada, e com que graça!, por um dos nossos mais famosos escritores, o maior musicista literário
que temos, Charles Nodier.
— Muito bem—disse Diná—,nunca ouvi o sr. Nodier. Assim o senhor não precisa recear nenhuma comparação.
XIX - HISTÓRIA DO CAVALEIRO DE BEAUVOIR (Acerca desta história, ver a “Introdução”.)
— Pouco depois do 18 de Brumário (O 18 de Brumário (do ano VIII): 9 de novembro de 1799, data do golpe de Estado que fez de Napoleão Bonaparte primeiro cônsul.)—disse
Lousteau—houve uma imprudente sublevação na Bretanha e na Vendeia. O primeiro cônsul, empenhado em pacificar a França, entabulou negociações com os principais chefes
e empregou as mais vigorosas medidas militares; combinando, entretanto, os planos de campanha com as seduções de sua diplomacia italiana, ele pôs em jogo os mecanismos
maquiavélicos da polícia, então confiada a Fouché (Fouché: Joseph Fouché (1759-1820), ministro da Polícia de Napoleão, a quem traiu depois dos Cem Dias; conhecido
como intrigante dos mais hábeis e dos menos escrupulosos.). Nada disso foi inútil para sufocar a guerra deflagrada no oeste. Nessa época, um jovem pertencente à
família de Maillé foi enviado pelos chouans (Chouans: camponeses monarquistas da Bretanha que se sublevaram em 1799 contra a República; o nome lhes provém de seu
grito, parecido com o do mocho (chouette). Balzac lhes consagrou um romance de A comédia humana, Les Chouans, incluído nesta edição sob o título de A Bretanha em
1799.), da Bretanha a Saumur, a fim de estabelecer um entendimento entre certas pessoas da cidade e das redondezas e os chefes da insurreição realista. Informada
dessa viagem, a polícia de Paris despachou agentes encarregados de apanhar o jovem emissário à sua chegada em Saumur. Efetivamente, o embaixador foi detido no mesmo
dia do desembarque, pois ele fora de barco, disfarçado em marinheiro. Como homem de iniciativa que era, porém, ele havia calculado todas as possibilidades de seu
empreendimento: seu passaporte, seus documentos estavam de tal forma em regra que os agentes enviados para prendê-lo temeram enganar-se. O cavaleiro de Beauvoir,
lembro-me agora de seu nome, meditara bastante sobre seu papel: declarou-se parente de sua família emprestada, alegou seu falso domicílio e sustentou tão ousadamente
o interrogatório que teria sido posto em liberdade se não fosse a crença cega que os espiões tiveram em suas instruções, infelizmente muito precisas. Na dúvida,
os esbirros preferiram cometer um ato arbitrário a deixar escapar um homem a cuja captura o ministro parecia dar grande importância. Naqueles tempos de liberdade,
os agentes do poder nacional se importavam muito pouco com o que atualmente chamamos de legalidade. O cavaleiro foi, assim, provisoriamente preso, até que as autoridades
superiores tivessem tomado uma decisão a seu respeito. Essa sentença burocrática não se fez esperar. A polícia ordenou que guardassem rigorosamente o prisioneiro,
apesar de suas negativas. O cavaleiro de Beauvoir foi, então, transferido, de acordo com novas ordens, para o castelo da Escarpa, cujo nome indica suficientemente
sua situação. Essa fortaleza, assentada sobre rochedos muito altos, é cercada de precipícios. De todos os lados o acesso a ela se faz por declives rápidos e perigosos;
como em todos os antigos castelos, a porta principal é servida por uma ponte levadiça e protegida por um largo fosso. O comandante da prisão, encantado de ter de
guardar um homem distinto, cujas maneiras eram muito amáveis, que falava maravilhosamente e parecia instruído, qualidades raras naquela época, recebeu o cavaleiro
como um benefício da Providência. Propôs-lhe ficar no castelo da Escarpa sob palavra e aliar-se a ele contra o tédio. O prisioneiro não queria outra coisa. Beauvoir
era um fidalgo leal, mas era também, por desgraça, um rapaz muito bonito. Tinha um rosto atraente, uma expressão decidida, a palavra insinuante, uma força prodigiosa.
Ágil, desembaraçado, empreendedor, gostando do perigo, teria dado um excelente chefe de guerrilheiros; é de gente assim que eles precisam. O comandante deu ao prisioneiro
o mais cômodo dos seus apartamentos, admitiu-o em sua mesa e, no começo, só teve motivos para se felicitar pelo vendeano. O comandante era corso e casado; sua esposa,
bela e amável, talvez lhe parecesse difícil de guardar; numa palavra, era ciumento, como corso e, como militar, muito deselegante. Beauvoir agradou à senhora e achou-a
muito a seu gosto; talvez se tenham amado! Na prisão, o amor anda tão depressa! Terão cometido alguma imprudência? O sentimento que tiveram um pelo outro terá ultrapassado
os limites dessa galanteria superficial que é quase um dos nossos deveres para com as mulheres? Beauvoir nunca se explicou francamente sobre esse ponto bastante
obscuro de sua história; o que é certo, porém, é que o comandante se julgou no dever de exercer rigores extraordinários contra seu prisioneiro. Beauvoir, encarcerado
numa pequena torre, foi alimentado com pão preto e servido de água clara e acorrentado segundo o eterno programa dos divertimentos prodigalizados aos prisioneiros.
A cela, situada sob a plataforma, era abobadada de pedra dura, as paredes tinham uma espessura desesperadora, a torre dava para o precipício. Quando o pobre Beauvoir
reconheceu a impossibilidade duma evasão, caiu nessas meditações que são, ao mesmo tempo, o desespero e o consolo dos prisioneiros. Ocupou-se desses nadas que se
tornam grandes problemas: contou as horas e os dias, fez o aprendizado do triste ofício de prisioneiro, concentrou-se e apreciou o valor do ar e do sol. Quinze dias
mais tarde, foi acometido dessa doença terrível, dessa febre de liberdade que impele os prisioneiros a esses sublimes empreendimentos cujos prodigiosos resultados
nos parecem inexplicáveis, embora reais, e que aqui o meu amigo doutor—voltou-se para Bianchon—atribuiria, sem dúvida, a forças desconhecidas, desespero de sua análise
fisiológica, mistérios da vontade humana cuja profundidade surpreende a ciência.—Bianchon fez um gesto negativo.—Beauvoir sentia o coração roído, pois somente a
morte podia libertá-lo. Uma manhã, o carcereiro encarregado de levar o alimento do preso, em vez de retirar-se após ter-lhe entregado sua magra ração, ficou diante
dele com os braços cruzados, contemplando-o de maneira estranha. A conversa entre eles ordinariamente se restringia a pouca coisa e nunca era o guarda que a começava.
Assim, o cavaleiro ficou muito admirado quando o homem lhe disse: “O senhor certamente sabe o que faz, quando insiste em passar por sr. Lebrun ou cidadão Lebrun.
Não tenho nada com isso, minha ocupação não é verificar seu nome. Que o senhor se chame Pedro ou Paulo, isso me é completamente indiferente. Cada um que faça sua
obrigação, assim as vacas ficarão bem guardadas. Sei, entretanto”, disse, piscando um olho, “que o senhor é Carlos Félix Teodoro, cavaleiro de Beauvoir e primo da
duquesa de Maillé... Hein?”, acrescentou com uma expressão de triunfo, após um momento de silêncio, fitando o prisioneiro. Beauvoir, vendo-se seguramente encarcerado,
achou que sua posição não poderia piorar com a confissão de seu verdadeiro nome. “Muito bem, e se eu fosse o cavaleiro de Beauvoir, que ganharias com isso?”, disse-lhe.
“Oh! Já ganhei”, replicou o carcereiro, em voz baixa. “Recebi dinheiro para facilitar sua fuga; mas um momento! Se suspeitassem a menor coisa de mim, eu seria fuzilado.
Eu disse, pois, que me meteria neste negócio unicamente para ganhar dinheiro. Olhe, senhor, aqui tem um meio de sair”, disse, tirando do bolso uma pequena lima;
“com isto, o senhor cortará uma barra. Garanto que não será fácil!”, acrescentou, mostrando a estreita abertura pela qual a luz entrava no cárcere. Era uma abertura
feita acima da linha que circundava externamente a torre, entre as grossas pedras salientes destinadas a representar os suportes das seteiras. “O senhor precisa
cortar o ferro muito rente para poder passar”, disse o carcereiro. “Oh! Podes ficar tranquilo, que eu passarei”, disse o prisioneiro. “É suficientemente alto para
que possa prender a corda”, acrescentou o carcereiro. “Onde está ela?”, perguntou Beauvoir. “Aqui”, respondeu o guarda-chaves atirando-lhe uma corda de nós. “Foi
feita de fazenda, para fazer supor que o senhor mesmo a confeccionou, e tem comprimento suficiente. Quando estiver no último nó, deixe-se escorregar vagarosamente.
O resto é consigo. Provavelmente encontrará nas cercanias um carro atrelado e amigos que o esperam. Mas eu não sei de nada! Não preciso dizer-lhe que há uma sentinela
na torre. O senhor saberá escolher uma noite escura e aproveitar o momento que o soldado de sentinela estiver dormindo. Talvez se arrisque a levar um tiro de fuzil,
mas...” “Ótimo! Ótimo! Assim eu não apodrecerei aqui!”, exclamou o cavaleiro. “Ora! Apodrecerá de qualquer maneira”, replicou o carcereiro, com uma expressão estúpida.
Beauvoir tomou essa frase por uma dessas reflexões tolas que essa gente costuma fazer. A esperança de logo ser livre tornava-o tão alegre que ele quase não podia
perder tempo com o falatório daquele homem, um tipo de camponês reforçado. Pôs-se logo a trabalhar e o dia foi suficiente para que ele serrasse as grades. Temendo
uma visita do comandante, ele ocultou seu trabalho tapando as fendas com miolo de pão passado pela ferrugem para tomar a cor do ferro. Amarrou a corda e ficou à
espera duma noite favorável, com essa impaciência concentrada e essa profunda agitação de alma que dramatizam a vida dos prisioneiros. Finalmente, numa noite escura,
de outono, ele acabou de serrar as grades, amarrou firmemente a corda, agachou-se no lado de fora, sobre o suporte de pedra, agarrando-se fortemente a uma ponta
de ferro que deixara ao serrar a grade; e assim esperou o momento mais escuro da noite e a hora em que as sentinelas deviam estar dormindo, que era perto da madrugada.
Ele conhecia a duração dos plantões, o momento das rondas, todas essas coisas de que os prisioneiros, mesmo involuntariamente, se ocupam. Aproveitou o momento em
que uma das sentinelas devia estar no fim dos dois terços de seu plantão e metida em sua guarita por causa da neblina. Certo de ter reunido todas as possibilidades
favoráveis à fuga, começou a descer, nó por nó, suspenso entre o céu e a terra, segurando a corda com uma força de gigante. Tudo ia bem. No penúltimo nó, quando
ia deixar-se escorregar para a terra, ele teve a prudente ideia de procurar o solo com os pés; mas não o encontrou. O caso era extremamente embaraçoso para um homem
coberto de suor, fatigado, perplexo e numa situação em que estava jogando sua vida. Ia lançar-se ao solo quando uma razão frívola o impediu de fazê-lo: seu chapéu
caíra e ele, que felizmente ficara à escuta do ruído do chapéu no chão, não ouviu nada! O prisioneiro concebeu vagas suspeitas sobre sua posição; indagou-se se o
comandante não lhe teria armado alguma cilada; mas em que interesse? No meio dessas incertezas, ele mais ou menos resolveu transferir a fuga para outra noite. Provisoriamente,
resolveu esperar a claridade indecisa da madrugada, hora que talvez não fosse completamente desfavorável à fuga. Sua força prodigiosa permitiu-lhe subir à torre;
foi, porém, quase esgotado que alcançou o suporte externo, espreitando tudo como um gato no beiral dum telhado. Logo depois, à débil claridade da aurora, ele percebeu,
fazendo flutuar a corda, uma pequena distância de cem pés entre o último nó e os picos agudos do precipício. “Muito obrigado, comandante!”, disse, com o sangue-frio
que o caracterizava. Após ter refletido um pouco sobre essa hábil vingança, achou necessário voltar para seu cárcere. Estendeu a roupa ostensivamente sobre o leito
e deixou a corda do lado de fora para fazer acreditar que tivesse caído. Agachou-se tranquilamente atrás da porta e esperou a chegada do pérfido carcereiro, segurando
na mão uma das barras de ferro que limara. O carcereiro, que não deixou de ir mais cedo naquele dia para recolher a herança do morto, abriu a porta assobiando; mas,
quando chegou a uma distância conveniente, Beauvoir vibrou-lhe um golpe tão violento com a barra de ferro na cabeça que o traidor caiu pesadamente por terra, sem
dar um grito: a barra quebrara-lhe a cabeça. O cavaleiro despiu rapidamente o morto, vestiu suas roupas, saiu imitando seu modo de andar e, graças à hora matinal
e à falta de suspeita das sentinelas da porta principal, fugiu.
Nem o procurador do rei nem a sra. de La Baudraye puderam acreditar que houvesse nessa narrativa a mínima profecia que lhes dissesse respeito. Os interessados trocaram
olhares interrogativos, surpresos com a perfeita indiferença dos dois supostos amantes.
— Ora! Tenho coisa melhor para contar—disse Bianchon.
— Vejamos—disseram os ouvintes, a um sinal que fez Lousteau para dizer que Bianchon tinha reputação como narrador.
XX - A GRANDE AMEIA
Entre as histórias que compunham seu repertório de palestra, pois todas as pessoas inteligentes têm uma certa quantidade de anedotas, como a sra. de La Baudraye
tinha sua coleção de frases, o ilustre doutor escolheu aquela conhecida sob o título de “A grande ameia”, que se tornou tão famosa que fizeram dela uma comédia musicada,
no Gymnase-Dramatique, intitulada Valentina (Ver Outro estudo de mulher. (Nota de Balzac.)).
Assim, é inteiramente inútil repetir aqui essa aventura, embora constituísse uma novidade para os moradores do castelo de Anzy. Ela foi narrada com a mesma perfeição
de gestos, de entonações, que valeu tantos elogios ao doutor quando ele a narrou pela primeira vez na casa da srta. des Touches. A cena final do grande de Espanha
a morrer de fome, de pé, no armário onde o marido da sra. de Merret o murou, e a última frase do marido, respondendo à derradeira súplica da esposa: “Juraste sobre
este crucifixo que não havia ninguém ali!”, alcançaram todo seu efeito. Houve um momento de silêncio, muito lisonjeiro para Bianchon.
— Sabem os senhores—disse, então, a sra. de La Baudraye—que o amor deve ser uma coisa imensa para animar uma mulher a colocar-se em situações semelhantes?
— Eu, que, realmente, tenho visto coisas estranhas na vida—disse o sr. Gravier—,quase fui testemunha, na Espanha, duma aventura desse gênero.
— O senhor chega depois de grandes atores—disse-lhe a sra. de La Baudraye, felicitando os dois parisienses com um olhar expressivo.—Mas não faz mal, conte sua história.
XXI - HISTÓRIA DE UM APERTO DE QUE O SR. GRAVIER SE SAI BASTANTE BEM
— Pouco depois de entrar em Madri—disse o recebedor das contribuições—o grão-duque de Berg (Grão-duque de Berg: um dos títulos de Murat.) convidou os principais
elementos da cidade para uma festa oferecida pelo Exército francês à capital recentemente conquistada. Apesar do esplendor da festa, os espanhóis não se mostraram
muito alegres, suas mulheres dançaram pouco e a maioria dos convidados ficou jogando. Os jardins do palácio estavam iluminados tão esplendidamente que as damas podiam
passear por eles com a mesma segurança com que o fariam à luz do dia. A festa estava imperialmente bela. Nada foi poupado no objetivo de dar aos espanhóis uma elevada
ideia do imperador se eles quisessem julgá-lo segundo seus oficiais. Num bosque próximo ao palácio, vários militares franceses, entre uma e duas horas da madrugada,
entretinham-se comentando as possibilidades da guerra e o futuro pouco tranquilizador prognosticado pela atitude dos espanhóis presentes à pomposa festa. “Pois eu
lhes digo que ontem mesmo”, disse o cirurgião-chefe do batalhão de que eu era pagador-geral, “pedi formalmente minha transferência ao príncipe Murat (Príncipe Murat:
Joaquim Murat (1767-1815), cunhado de Napoleão e marechal da França; rei de Nápoles de 1808 a 1815. Chefe da Expedição da Espanha, tomou Madri em março de 1808;
pouco tempo depois sufocou em sangue uma poderosa conspiração de patriotas espanhóis.). Sem ter, precisamente, medo de deixar meus ossos na península, prefiro ir
tratar dos ferimentos feitos pelos nossos bons vizinhos alemães; suas armas não penetram tão profundamente no corpo como os punhais castelhanos. Além disso, o temor
da Espanha é, em mim, como uma superstição. Desde minha infância, tenho lido livros espanhóis, uma imensidade de aventuras e mil histórias deste país, que me preveniram
vivamente contra seus costumes. Pois bem, depois de nossa entrada em Madri, já me aconteceu ser, se não o herói, pelo menos o cúmplice duma perigosa intriga, tão
negra, tão obscura como um romance de Lady Radcliffe (Lady Radicliffe: Ann Radcliffe (1768-1823), romancista inglesa, autora de romances terrificantes, entre os
quais O italiano, ou o confessionário dos penitentes negros. Em sua cena mais patética, o herói, Schedoni, um sacerdote depravado, está querendo matar a inocente
Helena, quando, à luz de sua lâmpada, que de repente ilumina o rosto da moça, descobre que esta não é senão a sua própria filha, perdida havia muitos anos.). Gosto
de obedecer aos meus pressentimentos e amanhã mesmo vou embora. Murat certamente não recusará minha licença, pois, graças aos serviços que prestamos, temos proteções
sempre eficazes.” “Já que vais dar o fora, conta-nos tua história”, disse um coronel, velho republicano que não se preocupava muito com a boa linguagem nem com o
servilismo imperiais. O cirurgião-chefe correu cuidadosamente o olhar em torno de si, como para verificar os rostos dos que o cercavam, e, seguro de que não havia
nenhum espanhol na vizinhança, disse: “Com muito prazer, coronel Hulot (Coronel Hulot: personagem de A comédia humana; aparecerá em A Bretanha em 1799 e A prima
Bete.), já que aqui todos somos franceses. Há seis dias, voltava eu tranquilamente para minha moradia, pelas onze horas da noite, após ter deixado o general Montcornet
(General Montcornet: personagem balzaquiana, já encontrada em A paz conjugal.) em seu hotel, que fica a poucos passos do meu. Saíamos ambos da casa do ordenador-chefe,
onde havíamos organizado um jogo de cartas muito animado. Subitamente, à esquina duma ruazinha, dois desconhecidos, ou melhor, dois diabos lançaram-se sobre mim
e enrolaram-me a cabeça e os braços numa capa. Como podem imaginar, gritei como um cão açoitado; mas a fazenda abafava minha voz e fui metido num carro com a mais
rápida destreza. Quando meus dois companheiros me desembaraçaram da capa, ouvi essas desoladoras palavras pronunciadas por uma voz de mulher, em mau francês: ‘Se
gritar ou fizer a menor tentativa de escapar, se fizer o menor gesto equívoco, o cavalheiro que está diante do senhor é capaz de apunhalá-lo sem escrúpulo. Fique,
portanto, tranquilo. Agora, vou informar-lhe a causa de seu rapto. Se quiser dar-se ao trabalho de estender sua mão para mim, encontrará entre nós dois seus instrumentos
de cirurgia, que mandamos buscar em sua casa, de sua parte; o senhor vai precisar deles; vamos levá-lo a uma casa para salvar a honra duma dama que está para ter
um menino que ela quer dar a esse cavalheiro sem que seu marido o saiba. Embora aquele senhor deixe raramente a esposa, por quem continua loucamente apaixonado,
e a vigie com toda a atenção do ciúme espanhol, ela pôde ocultar-lhe sua gravidez e ele a julga enferma. Assim, o senhor vai fazer o parto. Os perigos do empreendimento
não lhe dizem respeito: obedeça-nos, apenas. Se não o fizer, o amante, que está diante do senhor no carro e que não sabe uma palavra de francês, o apunhalará à menor
imprudência’. ‘E quem é a senhora?’, perguntei-lhe, procurando a mão de minha interlocutora, cujo braço estava envolto na manga duma túnica de uniforme. ‘Sou a camareira
da senhora, sua confidente, e estou pronta a recompensá-lo por minha própria conta se o senhor se prestar gentilmente às exigências da nossa situação.’ ‘Com muito
prazer’, disse eu, ao ver-me metido à força numa aventura perigosa. Protegido pela sombra, pus-me a verificar se o rosto e as formas daquela moça estavam em harmonia
com as ideias que o timbre de sua voz me inspirara. A boa criatura submetera-se, sem dúvida, antecipadamente, a todos os azares daquele rapto singular, pois conservou
o mais complacente silêncio e o carro não tinha rodado mais de dez minutos pelas ruas de Madri quando ela recebeu e me retribuiu um beijo satisfatório. O amante
que eu tinha à minha frente também não se ofendeu com alguns pontapés com que o gratifiquei involuntariamente; mas, como ele não entendia o francês, suponho que
não prestasse atenção. ‘Só poderei ser sua amante sob uma condição’, disse-me a camareira em resposta às tolices que eu lhe dizia, arrebatado pelo calor duma paixão
improvisada e cheia de obstáculos. ‘E qual é?’ ‘O senhor nunca procurará saber a quem sirvo. Se eu for à sua casa, será à noite e o senhor me receberá no escuro.’
‘Está bem’, disse-lhe eu. Nossa palestra estava nesse ponto quando o carro estacou próximo a um muro de jardim. ‘Deixe-me vendar-lhe os olhos’, disse-me a camareira.
‘O senhor se apoiará a meu braço e eu mesma o conduzirei.’ Ela colocou sobre meus olhos um lenço, que apertou fortemente na parte posterior da minha cabeça. Ouvi
o ruído duma chave metida cautelosamente na fechadura duma porta pelo silencioso amante que estivera à minha frente no carro. Logo depois, a camareira, que tinha
um corpo onduloso e certo meneho (Meneho: no Diccionario general de la lengua española, Roque Barcia define assim a palavra meneo: “Movimento do corpo ou de alguma
parte do mesmo. Diz-se especialmente do que é afetado”. O sentido que Balzac atribui à palavra assemelha-se ao do nosso requebro.) no andar...” Essa é uma expressão
da língua espanhola—disse o recebedor, assumindo um tom de superioridade—,um idiotismo que traduz as torções que as mulheres sabem imprimir a uma certa parte do
vestido que os senhores bem adivinham... “A camareira”, retomo a narrativa do cirurgião-chefe, “conduziu-me através das aleias cobertas de areia dum grande jardim,
até um certo ponto onde parou. Pelo ruído que nossos passos fizeram, presumi que estivéssemos diante da casa. ‘Silêncio agora’, disse-me ela ao ouvido, ‘e preste
atenção! Não perca de vista um só dos meus sinais, pois não poderei mais falar sem perigo para nós ambos e neste momento trata-se de salvar sua vida.’ Depois, acrescentou,
em voz alta: ‘A senhora está num quarto do rés do chão. Para chegar lá, teremos de passar pelo quarto do marido, diante de seu próprio leito. Não tussa, caminhe
suavemente e acompanhe-me, para não esbarrar em algum móvel nem pôr os pés fora do tapete que arranjei’. Nesse ponto, o amante resmungou surdamente, como se manifestasse
impaciência por tamanha demora. A camareira calou-se, ouvi abrir uma porta, senti a atmosfera quente dum quarto e entramos pé ante pé, como ladrões. Finalmente,
a doce mão da moça tirou-me a venda dos olhos. Encontrei-me num grande quarto, muito alto e mal iluminado por uma candeia fumegante. A janela estava aberta, mas
fora guarnecida de grossas barras de ferro pelo ciumento marido. Senti-me lá como no fundo dum saco. No chão, estendida sobre uma esteira, uma mulher cuja cabeça
estava coberta com um véu de musselina, através do qual seus olhos cheios de lágrimas brilhavam com o resplendor das estrelas, apertava com força um lenço entre
os dentes e o mordia tão vigorosamente que seus dentes penetravam nele; eu nunca vira um corpo tão belo, mas esse corpo contorcia-se de dor como uma corda de harpa
lançada ao fogo. A infeliz colocara as pernas em arco, apoiando-as sobre uma espécie de cômoda, e com as mãos segurava-se a uma cadeira, com os braços tensos, nos
quais se viam as veias horrivelmente intumescidas. Parecia um criminoso nas angústias da tortura. Não se ouvia um só grito, nenhum outro ruído além dos surdos estalidos
dos seus ossos. Estávamos lá, os três, mudos e imóveis. O ressonar do marido fazia-se ouvir com uma consoladora regularidade. Quis examinar a camareira; ela, porém,
tornara a pôr a máscara de que certamente se desembaraçara durante o trajeto e não pude ver mais que dois olhos negros e formas agradavelmente pronunciadas. Imediatamente
o amante cobriu as pernas da dama com umas toalhas e dobrou-lhe o véu de musselina sobre o rosto. Ao observar minuciosamente a senhora, reconheci, por certos sintomas
que já uma vez notara numa circunstância muito triste de minha vida, que a criança estava morta. Inclinei-me para a moça para comunicar-lhe o fato. Nesse momento,
o desconfiado desconhecido sacou o punhal; tive, porém, tempo de contar tudo à camareira, que lhe disse duas palavras em voz baixa. Ao ouvir minha afirmação, o amante
teve um ligeiro calafrio, que o atravessou como um raio; tive a impressão de que seu rosto empalideceu sob a máscara de veludo preto. A camareira aproveitou um momento
em que o homem desesperado contemplava a moribunda, que se tornava violácea, e mostrou-me, sobre uma mesa, copos de limonada já preparada, fazendo-me um sinal negativo.
Compreendi que devia abster-me de beber, apesar do horrível calor que me queimava a garganta. O amante sentiu sede, tomou um copo vazio, encheu-o de limonada e bebeu-o.
Nesse momento, a dama teve uma convulsão violenta que me anunciou a ocasião favorável para a operação. Armei-me de coragem e pude, após uma hora de trabalho, extrair
a criança em pedaços. O espanhol não pensou mais em envenenar-me ao compreender que eu acabava de salvar-lhe a amante. Grossas lágrimas rolaram pela sua capa. A
mulher não deu um só grito, mas estremeceu como uma fera surpresa e suava abundantemente. Num instante horrivelmente crítico, fez um gesto para mostrar o quarto
do marido, que acabava de voltar-se na cama; de nós quatro, somente ela ouvira o ruído dos lençóis, do leito ou do cortinado. Ficamos suspensos e, através dos orifícios
de suas máscaras, a camareira e o amante trocaram olhares de fogo, como se interrogassem: ‘Matá-lo-emos, se despertar?’. Estendi então a mão para apanhar o copo
de limonada que o desconhecido havia começado a beber. O espanhol pensou que eu fosse beber um dos copos cheios, saltou como um gato, colocou o punhal sobre os dois
copos envenenados e deixou-me o seu, fazendo-me sinal para que bebesse o resto. Havia tantas ideias, tanta gratidão naquele movimento e no seu gesto brusco que eu
lhe perdoei os terríveis projetos que fizera para matar-me e assim enterrar qualquer recordação daquele fato. Após duas horas de cuidados e temores, a camareira
e eu tornamos a deitar sua amante no leito. Aquele homem, metido numa empresa tão aventurosa, enrolara uns diamantes num pedaço de papel, para a eventualidade duma
fuga; meteu-os no meu bolso. Entre parênteses, como eu ignorava o suntuoso presente do espanhol, meu criado furtou-me esse tesouro no dia seguinte e fugiu levando
uma verdadeira fortuna. Disse ao ouvido da camareira as precauções que era necessário ter e quis retirar-me. A camareira ficou ao lado da patroa, circunstância que
não me tranquilizou muito, e, assim, resolvi ficar atento. O amante fez um embrulho com a criança morta e as roupas em que a criada recolhera o sangue da patroa;
amarrou-o fortemente, escondeu-o sob a capa, passou-me a mão sobre os olhos como para dizer-me que os fechasse e saiu na frente, convidando-me por um gesto a segurar
a aba de seu casaco. Obedeci, não sem lançar um último olhar à minha amante fortuita. A camareira retirou a máscara ao ver o espanhol fora da casa e mostrou-me o
rosto mais delicioso do mundo. Quando me vi no jardim, ao ar livre, confesso que respirei como se me tivessem tirado um peso enorme de cima do tórax. Eu caminhava
a uma distância respeitosa do meu guia, vigiando seus menores movimentos com a máxima atenção. Ao chegarmos à porta, ele me tomou pela mão, encostou em meus lábios
um sinete montado num anel que eu vira em sua mão esquerda e eu dei-lhe a entender que compreendia aquele gesto eloquente. Chegamos à rua, onde dois cavalos nos
esperavam; cada um montou num animal, meu espanhol apoderou-se das minhas rédeas, segurou-as com a mão esquerda, tomou entre os dentes as rédeas da sua montaria,
pois tinha a mão direita ocupada com o embrulho sanguinolento, e partimos com a rapidez do raio. Foi-me impossível notar o menor objeto que me pudesse servir para
reconhecer a estrada que percorremos. Pela madrugada, encontrei-me perto da porta da minha casa e o espanhol fugiu dirigindo-se para a porta de Atocha.” “E não percebeu
nada que lhe permita suspeitar quem fosse a mulher a que você atendeu?”, perguntou o coronel ao cirurgião. “Somente uma coisa”, respondeu. “Quando estava atendendo
a desconhecida, notei no seu braço, mais ou menos no meio, um sinalzinho, do tamanho duma lentilha e cercado de pelos escuros.” Nesse momento, o indiscreto cirurgião
empalideceu; todos os olhares, que estavam fixados no seu, seguiram a mesma direção: vimos, então, um espanhol cujo olhar brilhava num maciço de laranjeiras. Vendo-se
objeto de nossa atenção, o homem desapareceu com uma rapidez de silfo. Um capitão lançou-se rapidamente à sua procura. “Estou desgraçado, meus amigos!”, exclamou
o cirurgião. “Esse olhar de basilisco me enregelou. Já estou ouvindo os sinos dobrando a finados! Recebam minhas despedidas, pois vocês me enterrarão aqui!” “És
idiota?”, disse o coronel Hulot. “Falcon está na pista do espanhol que nos escutava e saberá dar conta dele.” “E então?”, perguntaram os oficiais ao ver o capitão
voltar esbaforido. “Foi o diabo!”, respondeu Falcon. “Acho que ele passou através das paredes. Como não creio que ele seja um bruxo, penso que certamente ele é da
casa! Conhece todas as entradas e todas as voltas e escapou-me facilmente.” “Estou perdido!”, disse o cirurgião, com uma voz desalentada. “Vamos, tenha calma, Bega
(ele se chamava Bega)”, respondi-lhe. “Nós nos quartearemos em tua casa até a tua partida. Esta noite, nós te acompanharemos.” Efetivamente, três jovens oficiais
que haviam perdido o dinheiro no jogo acompanharam o cirurgião à sua habitação e um de nós ofereceu-se para ficar com ele. Dois dias depois, Bega obtivera sua transferência
para a França e estava fazendo todos os preparativos para partir com uma dama a quem Murat dera uma poderosa escolta; ele acabava de jantar em companhia dos amigos
quando o criado o avisou de que uma jovem senhora queria falar-lhe. O cirurgião e os três oficiais desceram imediatamente temendo alguma cilada. A desconhecida pôde
apenas dizer ao amante: “Tome cuidado!”, e caiu morta. Essa mulher era a camareira, que, sentindo-se envenenada, esperava chegar a tempo para salvar o cirurgião.
“Diabo! Diabo!”, exclamou o capitão Falcon. “Isso é que se chama amar! A espanhola é a única mulher no mundo capaz de correr com uma enorme quantidade de veneno
no corpo.” Bega ficou singularmente pensativo. Para afogar os sinistros pressentimentos que o atormentavam, voltou à mesa e bebeu imoderadamente, assim como os companheiros.
Todos, mais ou menos embriagados, deitaram-se cedo. No meio da noite, o pobre Bega foi despertado pelo ruído agudo das cortinas violentamente puxadas nos varões.
Recostou-se no leito, entregue à trepidação mecânica que nos assalta no momento de semelhante despertar. Viu então, diante de si, um espanhol envolto numa capa e
que lhe lançou o mesmo olhar candente que surpreendera na moita durante a festa. Bega gritou: “Socorro! Acudam-me, amigos!”. A esse grito de desespero, o espanhol
respondeu com um sorriso amargo. “O ópio nasce para todos”, murmurou. Pronunciada essa sentença, o desconhecido mostrou os três amigos profundamente adormecidos,
tirou de sob a capa um braço de mulher recentemente decepado e apresentou-o energicamente a Bega, mostrando-lhe um sinal igual ao que ele tão imprudentemente descrevera.
“É este mesmo?”, perguntou-lhe. Ao clarão duma lanterna colocada sobre o leito, Bega respondeu com um gesto de estupor. Sem mais amplas informações, o marido da
desconhecida enterrou-lhe o punhal no coração...
XXII - O JORNALISTA REVOLTA-SE
— Precisa contar isso aos carvoeiros (Precisa contar isso aos carvoeiros, que o povo, na França, considera protótipos de credulidade; daí a expressão foi du charbonnier,
“fé do carvoeiro”, com que se designa uma fé sincera, ingênua e cega.)—disse o jornalista—,pois só mesmo com sua fé robusta se pode acreditar. Poderia explicar-me
se foi o morto ou o espanhol que falou?
— Meu senhor—respondeu o recebedor das contribuições—,eu cuidei desse pobre Bega, que morreu cinco dias mais tarde no meio de terríveis sofrimentos. Isso não é tudo.
Por ocasião da expedição realizada para repor Fernando VII (Fernando VII, de Espanha, com seu despotismo provocou a revolução liberal de 1820, que o forçou a outorgar
a Constituição; ao cabo de três anos, porém, com o auxílio de um exército francês comandado pelo duque de Angoulême, conseguiu derrubar as cortes e inaugurar outro
período de reação absolutista.), fui nomeado para um posto na Espanha e, por felicidade, não fui além de Tours, pois então me fizeram esperar a recebedoria de Sancerre.
Na véspera da partida, eu estava num baile na casa da sra. de Listomère (Sra. de Listomère: há três personagens com este nome em A comédia humana. Aqui se trata
da protetora do padre Francisco Birotteau, a qual não conseguiu defender o seu protegido contra as intrigas do padre Trouben (ver O cura de Tours).), ao qual deviam
comparecer vários espanhóis ilustres. Ao deixar a mesa de jogo, percebi um nobre espanhol, um afrancesado (Afrancesado: nome que se dava na Espanha aos partidários
dos franceses durante as guerras napoleônicas e durante a invasão de 1823.) exilado, que chegara à Touraine há quinze dias. Ele entrara muito tarde no baile, que
era sua primeira aparição na sociedade, e percorria os salões acompanhado da esposa, cujo braço direito era absolutamente imóvel. Separamo-nos em silêncio, para
deixar passar esse par, que não contemplamos sem emoção. Imaginem um quadro vivo de Murilo! Sob as órbitas fundas e escuras, o homem mostrava olhos de fogo que se
conservavam fixos; sua face era descarnada, seu crânio sem cabelos oferecia tons ardentes e seu corpo era tão magro que causava medo. A mulher... imaginem-na!...
Não, os senhores não poderiam fazê-lo com exatidão. Tinha esse corpo admirável que fez criar a palavra meneho na língua espanhola; embora pálida, ainda era bela;
sua cútis, por um privilégio excepcional para uma espanhola, resplandecia de alvura; seu olhar, porém, cheio do sol da Espanha, caía sobre nós como um jato de chumbo
derretido. “Minha senhora”, perguntei-lhe, no fim do serão, “como perdeu o braço?” “Na guerra da Independência”, respondeu-me ela.
— A Espanha é um país estranho—disse a sra. de La Braudraye.—Lá ainda persiste alguma coisa dos costumes árabes.
— Oh!—disse o jornalista, rindo.—Essa mania de decepar o braço é muito antiga. Ela reaparece em certas épocas, como alguns de nossos boatos nos jornais, pois esse
assunto já fornecera peças ao teatro espanhol, desde 1570...
— Julga-me então capaz de inventar uma história?—disse o sr. Gravier, ferido pela atitude impertinente de Lousteau.
— O senhor é incapaz disso—respondeu ironicamente o jornalista.
— Ora!—disse Bianchon.—É tão comum ver as invenções dos romancistas e dos dramaturgos transpostas de seus livros e de suas peças para a vida real como ver os fatos
da vida real subirem à cena e serem reproduzidos nos livros. Vi desenrolar-se diante de meus olhos a comédia de Tartufo (Na comédia de Tartufo, o protagonista, um
hipócrita devasso que finge devoção, insinua-se na simpatia de Orgon, instala-se-lhe em casa, mete-se em todos os seus negócios e torna-o alheio aos verdadeiros
interesses de sua família. Em vão amigos e parentes de Orgon procuram mostrar-lhe a verdade; ele só vem a abrir os olhos quando Tartufo lhe quer seduzir a mulher.),
com exceção do desfecho: nunca puderam abrir os olhos a Orgon.
— E a tragicomédia de Adolfo, por Benjamin Constant (A tragicomédia de Adolfo... Para melhor compreensão das alusões constantes que Balzac faz neste romance à narrativa
de Benjamin Constant, parece-me interessante dar um resumo das situações principais desta última, extraído da introdução de Gustave Planche, a que Balzac se refere
com elogios. “Há, na posse dessa mulher, um alimento magnífico para a sua vaidade; será invejado por todos aqueles que falam mal dela e que se vingam de seus desdéns,
aumentando-lhe o isolamento; será apontado a dedo pela cidade como um lutador hábil, como um justador manhoso; cada vez que entrar num salão, ouvirá em redor de
si o cochicho glorioso de seus rivais...
“Após o último abandono, porém, o despertar será terrível. Mal instalado na fortaleza que tão vivamente assediara, não saberá o que fazer da vitória. Depois de ter
obtido pela posse um amor tão ardentemente desejado, tremerá ante a duração de seu compromisso. À vista dos anos que seguirão, sentirá desfalecer a coragem e arrepender-se-á
do êxtase que mal esperara...
“Aos poucos, entre essas duas almas enganadas, mas ambas excessivamente orgulhosas para confessá-lo, estabelecer-se-á uma intimidade dolorosa e resignada, intimidade
de mentira e hipocrisia, fértil em subterfúgios e em lisonjas, pródiga de carícias e beijos, procurando distrair-se e afirmando sem interrupção o que não crê...
“Por piedade da sua vítima, Adolfo disfarçará o seu tédio e forçará o seu olhar a sorrir. Estudará as menores palavras, para poupar à sua amante a vergonha de um
arrependimento. Impor-se-ão a jovialidade e a serenidade por delicadeza. Por sua vez Elenora, se surpreender no rosto do amante o vestígio do tédio, terá receio
de se queixar e se resignará silenciosamente. Cada dia a confirmará nessa reserva dolorosa, e ela arremedará o entusiasmo, até o dia em que os dois, cansados enfim
dessa lastimável comédia, tirarão a máscara e se examinarão face a face.”
O romance de Benjamin Constant tem um fim trágico: Adolfo não tem a coragem de romper uma ligação que detesta e acaba por causar a morte de Elenora.), está sendo
representada agora mesmo!—exclamou Lousteau.
— Acreditam que ainda possam ocorrer na França aventuras como a que o sr. Gravier acaba de contar-nos?—perguntou a sra. de La Baudraye.
XXIII - ONDE O SR. DE CLAGNY MOSTRA A SUA INOCÊNCIA
— Meu Deus!—exclamou o procurador do rei.—De cada dez ou doze crimes brilhantes que se cometem por ano na França, a metade se reveste de circunstâncias tão extraordinárias
como as de suas narrativas e muitas vezes as ultrapassa em romanesco. Essa verdade, aliás, é comprovada pela publicação de La Gazette des Tribunaux (La Gazette des
Tribunaux: jornal que reproduzia as sessões dos tribunais, forneceu mais de um assunto aos romancistas. O mais famoso de todos esses casos é o de O vermelho e o
negro, de Stendhal, cujos dados essenciais são os de um crime que fez sensação na época.), que é, a meu ver, um dos maiores abusos da imprensa. Esse jornal, que
data apenas de 1826 ou 1827, não existia, portanto, por ocasião do meu início na carreira do ministério público, e os detalhes do crime de que lhes vou falar não
foram conhecidos além do departamento onde foi perpetrado. No arrabalde de Saint-Pierre-des-Corps, em Tours, uma mulher, cujo marido desaparecera por ocasião do
licenciamento do Exército do Loire, em 1816, e que naturalmente foi muito chorado, fez-se notar por uma excessiva devoção. Quando os missionários percorreram as
cidades da província para lá replantar as cruzes abatidas e apagar os vestígios das impiedades revolucionárias, essa viúva foi um dos mais ardorosos prosélitos,
carregou a cruz, nela cravou seu coração de prata atravessado por uma flecha e, muito tempo após a missão, continuou a ir todas as tardes fazer suas preces ao pé
da cruz que foi levantada atrás da catedral. Finalmente, vencida pelos remorsos, confessou um crime pavoroso. Degolara o marido como fora degolado Fualdès (Fualdès:
nome de um magistrado assassinado por seus dois amigos num prostíbulo de Rodez em 1817; o processo teve repercussão excepcional e originou uma canção famosa.), sangrando-o,
e o salgara, guardando-o em dois velhos barris, em pedaços, exatamente como se se tratasse dum porco. E, durante muito tempo, todas as manhãs ela cortava um pedaço
e ia atirá-lo ao Loire. O confessor consultou seus superiores e advertiu a penitente de que ela devia comunicar o fato ao procurador do rei. A mulher esperou a ação
da justiça. O procurador do rei e o juiz de instrução, percorrendo a adega, encontraram ainda a cabeça do marido envolta em sal, num dos barris. “Mas, desgraçada”,
disse o juiz de instrução à acusada, “já que cometeste a atrocidade de jogar ao rio o corpo do teu marido, por que não fizeste desaparecer também a cabeça? Assim,
não haveria mais provas...” “Muitas vezes o tentei”, disse ela. “Mas sempre a achei muito pesada.”
— E, então, que fizeram da mulher?!—exclamaram os dois parisienses.
— Foi condenada e executada em Tours—respondeu o magistrado.—Mas seu arrependimento e sua devoção haviam acabado por atrair o interesse geral para ela, apesar da
enormidade do crime.
XXIV - UMA BRINCADEIRA SOB O IMPÉRIO
— Eh! Nunca se sabem—disse Bianchon—todas as tragédias que se desenrolam nos bastidores do lar e que o público nunca desvenda... Acho a justiça humana incompetente
para julgar os crimes entre esposos; ela tem direito a isso, como polícia, mas não entende nada do assunto em suas pretensões a equidade.
— Muitas vezes a vítima foi durante tanto tempo o carrasco—respondeu ingenuamente a sra. de La Baudraye—que o crime, em alguns casos, pareceria perdoável se os acusados
ousassem dizer tudo.
Essa resposta, provocada por Bianchon, e a história narrada pelo procurador do rei deixaram os dois parisienses muito perplexos sobre a situação de Diná. Assim,
quando chegou a hora de irem deitar-se, houve um desses conciliábulos que se realizam nos corredores desses velhos castelos, onde os rapazes ficam todos, com o castiçal
na mão, a conversar misteriosamente. O sr. Gravier ficou conhecendo, então, o objetivo daquele divertido serão, onde a inocência da sra. de La Baudraye foi posta
em destaque.
— A impassibilidade da nossa castelã, entretanto—disse Lousteau—,pode significar tanto uma profunda depravação como uma candidez infantil... O procurador do rei
deu-me a impressão de sugerir que transformasse o pequeno La Baudraye em salada...
— Ele só voltará amanhã. Quem sabe o que se passará esta noite?—disse Gatien.
— Nós o saberemos!—exclamou o sr. Gravier.
A vida de castelo comporta uma infinidade de brincadeiras de mau gosto, algumas das quais são duma terrível perfídia. O sr. Gravier, que vira tantas coisas, propôs
colocar selos às portas dos quartos da sra. de La Baudraye e do procurador do rei. Os patos acusadores do poeta Íbico (Os patos acusadores do poeta Íbico... Segundo
a tradição, o poeta grego Íbico (do século VI a.C.) morreu assassinado por ladrões no meio de uma floresta. Moribundo, invocou um bando de grous (e não de patos,
como diz Balzac), que o sobrevoaram como testemunhas do crime. Algum tempo depois, um dos assassinos, enquanto assistia aos jogos olímpicos, viu passar um bando
de grous e exclamou imprudentemente: “Eis as testemunhas de Íbico!”, e assim descobriu o crime.) nada são em comparação com o fio de cabelo que os espiões da vida
de castelo fixam à abertura duma porta por meio de duas bolinhas de cera achatadas e colocadas tão alto ou tão baixo que é impossível desconfiar da armadilha. O
galanteador sai e abre a outra porta suspeita e a coincidência dos fios de cabelo arrancados diz tudo. Quando acharam que todos estivessem dormindo, o médico, o
jornalista, o recebedor das contribuições e Gatien foram, com os pés descalços, como verdadeiros ladrões, condenar misteriosamente as duas portas e combinaram voltar
às cinco da manhã para verificar o estado dos selos. Imaginem seu espanto e a satisfação de Gatien quando os quatro, cada um com um castiçal na mão, pouco vestidos,
foram examinar os fios de cabelo e encontraram o do procurador do rei e o da sra. de La Baudraye em satisfatório estado de conservação.
— É a mesma cera?—perguntou o sr. Gravier.
— São os mesmos fios de cabelo?—perguntou Lousteau.
— Sim—disse Gatien.
— Isso altera tudo!—exclamou Lousteau.—Vocês perderam seu tempo.
O recebedor das contribuições e o filho do presidente interrogaram-se por um olhar que queria dizer: “Não haverá nessa frase algo de ofensivo para nós? Devemos rir
ou ficar zangados?”.
— Se Diná é virtuosa—disse o jornalista ao ouvido de Bianchon—,merece que eu colha o fruto de seu primeiro amor.
XXV - DECLARAÇÃO INDISCRETA
A ideia de tomar de assalto, em poucos instantes, uma cidadela que há nove anos resistia aos sancerrenses sorriu então a Lousteau. Com essa intenção, ele desceu
antes dos outros ao jardim, esperando encontrar lá a castelã. Esse encontro por acaso foi facilitado pelo fato de a sra. de La Baudraye ter também desejo de conversar
com seu crítico. A maioria dos acasos é provocada.
— Ontem o senhor caçou—disse a sra. de La Baudraye.—Esta manhã, estou muito embaraçada para oferecer-lhe outro divertimento, a não ser que o senhor queira ir a La
Baudraye, onde poderá observar a província um pouco melhor do que aqui, pois num instante descobriu o que tenho de ridículo. O provérbio sobre a moça mais linda
do mundo (O provérbio sobre a moça mais linda do mundo é este: La plus belle fille du monde ne peut donner que ce qu’elle a [(Mesmo) a moça mais linda do mundo só
pode dar o que tem].), porém, diz respeito também à pobre mulher provinciana.
— Esse tolinho de Gatien—respondeu Lousteau—certamente lhe repetiu uma frase pronunciada por mim para a senhora arrancar-lhe a confissão de que a adora. Seu silêncio,
anteontem, durante o jantar e durante todo o serão, revelou-me suficientemente uma dessas indiscrições que nunca se cometem em Paris. Que quer! Não me gabo de ser
inteligível. Assim, combinei narrarmos todas essas histórias, ontem, unicamente para saber se causaríamos, à senhora e ao sr. de Clagny, alguns remorsos... Oh! Fique
tranquila, temos certeza de sua inocência. Se a senhora tivesse a menor inclinação por esse virtuoso magistrado, teria perdido todo seu mérito a meus olhos... Gosto
do que é completo. A senhora não ama, a senhora não pode amar esse frio, esse pequeno, esse seco, esse mudo usurário de barris e terras que a mantém encarcerada
aqui para conseguir vinte e cinco cêntimos de lucros em sua colheita! Oh! Percebi muito bem a identidade do sr. de La Baudraye com os nossos agiotas de Paris: é
a mesma natureza. Vinte e oito anos, bela, culta, sem filhos... Escute, minha senhora, nunca encontrei o problema da virtude tão bem formulado... A autora de Paquita,
a sevilhana deve ter sonhado muitos sonhos!... Posso falar-lhe nessas coisas todas sem a hipocrisia de palavras que os moços usam nesses assuntos, pois sou velho
antes do tempo. Não tenho mais ilusões: não se as conserva na minha profissão...
Começando assim, Lousteau suprimia todo o código do país da Ternura (Todo o código do país da Ternura... A expressão Pays du Tendre provém do romance heroico-precioso
Clélia, de Madeleine de Scudéry, que se deu ao trabalho de ilustrar a edição deste seu livro com um mapa daquele país, figurando as fases do amor por acidentes geográficos
(como lago da Indiferença, mar da Amizade etc.).), no qual as paixões fazem longos rodeios, e ia diretamente ao assunto, colocando-se em posição de fazer-se oferecer
aquilo que as mulheres se fazem suplicar durante anos, como acontecia com o pobre procurador do rei, para quem o mais alto favor consistia em apertar um pouco mais
que de costume o braço de Diná contra seu coração, ao andar, o felizardo! Assim, para não mentir ao seu renome de mulher superior, a sra. de La Baudraye tentou consolar
o Manfredo (Manfredo: herói romântico de um drama de Byron, o qual vive torturado pelo remorso de um misterioso crime.) do folhetim, profetizando-lhe um futuro de
amor que ele não havia imaginado.
— O senhor procurou o prazer, mas ainda não amou—disse ela.—Acredite-me, o verdadeiro amor chega muitas vezes de maneira absurda. Veja o sr. de Gentz, apaixonando-se,
na velhice, por Fanny Elssler (Sr. de Gentz: Friedrich von Gentz, diplomata e publicista alemão (1764-1832), íntimo de Metternich; jornalista oficioso da Corte de
Áustria, apaixonou-se fortemente pela famosa bailarina Fanny Elssler, quarenta e seis anos mais moça do que ele.) e abandonando as revoluções de julho pelos revoluteios
dessa bailarina!
— Isso me parece difícil—respondeu Lousteau.—Acredito no amor, mas não creio nas mulheres... Há em mim, sem dúvida, defeitos que me impedem de ser amado, pois muitas
vezes tenho sido abandonado. É possível que eu tenha num grau excessivo o sentimento do ideal... como todos os que sondaram a realidade...
A sra. de La Baudraye ouviu, finalmente, falar um homem que, lançado no mais espiritual meio parisiense, trazia de lá os axiomas ousados, as depravações quase inocentes,
as convicções avançadas e que, se não era superior, pelo menos imitava muito bem a superioridade. Estêvão teve, perante Diná, todo o êxito duma primeira representação.
Paquita, a sancerrense, aspirou as tempestades de Paris, o ar de Paris. Passou um dos dias mais agradáveis de sua vida entre Estêvão e Bianchon, que lhe narraram
as anedotas curiosas sobre os grandes homens do momento, os ditos espirituosos que constituirão um dia o ana (Ana: coletânea de ditos espirituosos.) de nosso século,
frases e fatos vulgares em Paris, mas inteiramente novos para ela. Lousteau, naturalmente, falou muito mal da grande celebridade feminina do Berry (A grande celebridade
feminina do Berry: George Sand, que morava no castelo de Nohant, no Berry.), mas isso com a evidente intenção de lisonjear a sra. de La Baudraye e de levá-la para
o terreno das confidências literárias, fazendo-a considerar aquela escritora como sua rival. Esse louvor inebriou a sra. de La Baudraye, que pareceu ao sr. de Clagny,
ao recebedor das contribuições e a Gatien mais afetuosa com Estêvão que na véspera. Os apaixonados de Diná lamentaram muito terem ido a Sancerre, onde exaltaram
o serão de Anzy. Segundo eles, nunca se dissera nada tão espirituoso. As horas haviam voado sem que se lhes pudessem ver os pés ágeis. Os dois parisienses foram
celebrados por eles como dois prodígios. Esses exageros trombeteados pelo passeio público tiveram como resultado fazer chegar dezesseis pessoas à noite ao castelo
de Anzy, uns em cabriolé, outros em churrião e alguns celibatários em cavalos de aluguel. Pelas sete horas, os provincianos fizeram, mais ou menos bem, sua entrada
no imenso salão de Anzy, que Diná, prevenida da invasão, iluminara fartamente e deixara em todo seu esplendor, retirando as cobertas escuras dos móveis, pois ela
considerou esse serão como um de seus grandes dias. Lousteau, Bianchon e Diná trocaram olhares perspicazes ao examinar as atitudes, ao ouvir as frases desses visitantes
atraídos pela curiosidade. Quantas fitas em desuso, rendas hereditárias, velhas flores, mais artificiosas que artificiais apareceram audaciosamente sobre toucados
bisanuais! A presidenta Boirouge, prima de Bianchon, trocou algumas frases com o doutor, conseguindo dele uma consulta gratuita descrevendo-lhe supostas dores nervosas
no estômago, nas quais ele reconheceu indigestões periódicas.
— Tome chá todos os dias, uma hora após o jantar, como os ingleses, e ficará curada, pois o que a senhora sente é uma doença inglesa—respondeu gravemente Bianchon.
— Decididamente, é um grande médico—disse a presidenta, ao voltar para junto da sra. de Clagny, da sra. Popinot-Chandier e da sra. Gorju, a esposa do prefeito.
— Dizem—comentou por detrás do leque a sra. de Clagny—que Diná fez com que ele viesse cá menos para as eleições que para saber de onde provém sua esterilidade...
No primeiro momento de triunfo, Lousteau apresentou o sábio médico como o único candidato possível às próximas eleições. Bianchon, porém, com grande alegria para
o novo subprefeito, disse que lhe parecia quase impossível abandonar a ciência pela política.
— Somente os médicos sem clientela—disse ele—podem fazer-se deputados. Elejam, portanto, homens de Estado, pensadores, pessoas cujos conhecimentos sejam universais
e que saibam colocar-se à altura em que deve estar um legislador: eis o que falta em nossas câmaras e o que é necessário à nossa terra!
XXVI - UMA MISTIFICAÇÃO DE POUCO ÊXITO
Duas ou três moças, alguns rapazes e as senhoras examinaram Lousteau como se ele fosse um prestidigitador.
— O sr. Gatien Boirouge assegura que o sr. Lousteau ganha vinte mil francos por ano, escrevendo—disse a senhora do prefeito à sra. de Clagny.—Acredita nisso?
— Será possível? Se pagam só mil escudos a um procurador do rei...
— Sr. Gatien—disse a sra. Chandier—,faça o sr. Lousteau falar alto, ainda não o ouvi...
— Que belos sapatos tem ele—disse a srta. Chandier ao irmão—,e como reluzem!
— Ora, são de verniz.
— Por que não tens uns iguais?
Lousteau acabou percebendo que estava posando um pouco demais e reconheceu na atitude dos sancerrenses os indícios do desejo que os havia levado até lá.
— Que trote poderíamos pregar-lhes?—pensou.
Nesse momento, o falso criado grave do sr. de La Baudraye, um empregado da granja envergando uma libré, trouxe as cartas, os jornais e entregou um pacote de provas
que o jornalista deixou Bianchon apanhar, pois a sra. de La Baudraye lhe disse, ao ver o embrulho, cuja forma e cujos cordões eram bastante tipográficos:
— Como! A literatura o persegue até aqui?
— Não a literatura—respondeu ele—,mas a revista na qual estou terminando uma novela e que sairá dentro de dez dias. Vim para cá sob o aviso de O fim no próximo fascículo
e tive de dar meu endereço ao impressor. Ah! Comemos um pão vendido muito caro pelos especuladores de papel impresso! Vou descrever-lhe essa espécie curiosa dos
diretores de revistas.
— Quando começará a palestra?—perguntou então a Diná a sra. de Clagny, como se pergunta: “A que horas é o fogo de artifício?”.
— Eu pensava—disse a sra. Popinot-Chandier à sua prima, a presidenta Boirouge—que iríamos ouvir histórias.
Enquanto os sancerrenses, como uma plateia impaciente, faziam ouvir murmúrios, Lousteau viu Bianchon perdido numa meditação inspirada pelo invólucro das provas.
— Que tens?—perguntou-lhe Estêvão.
— Eis aqui o mais belo romance do mundo, contido numa folha de papel que veio cobrindo tuas provas. Olha, lê: Olímpia, ou as vinganças romanas (Olímpia, ou as vinganças
romanas: os extratos que serão lidos desse romance poderiam constituir uma amostra do que eram os romances pseudônimos publicados por Balzac na sua primeira fase,
até a idade de vinte e nove anos. Será que o escritor está zombando de si mesmo? O leitor atento poderia pensar que ele está se divertindo à custa do seu público,
assim como Lousteau se diverte mistificando o seu auditório provinciano. Senão como explicar o tamanho reduzido das páginas do romance de cordel Olímpia? Mas esse
pormenor é apenas um reflexo dos hábitos editoriais da época. Os editores de ficção porfiavam em incluir cada vez menos texto numa página, para satisfazer as exigências
dos “gabinetes de leitura”, que formavam parte importante de sua freguesia. Como os assinantes tinham direito a um determinado número de volumes por mês, essas locadoras
de livros tinham interesse em que cada romance fosse publicado na maior quantidade possível de volumes.).
— Vejamos—disse Lousteau, tomando o pedaço de papel impresso que lhe alcançou o doutor e leu em voz alta o seguinte:
[204] olímpia,
caverna. Rinaldo, indignado com a covardia de seus companheiros, que só tinham coragem em campo aberto e não se animavam a aventurar-se em Roma, dirigiu-lhes um
olhar de desprezo.
— Então estou só?...—disse-lhes.
Pareceu meditar e depois continuou:
— Vocês são uns miseráveis! Irei só e terei sozinho essa rica presa... Estão ouvindo!... Adeus.
— Meu capitão!...—disse Lamberti.—E se for preso sem ter conseguido êxito?...
— Deus me protege—replicou Rinaldo, apontando para o céu.
Dito isto, saiu e encontrou na estrada o intendente de Bracciano.
— A página acabou—disse Lousteau, a quem todos haviam escutado religiosamente.—Ele nos está lendo sua obra—disse Gatien ao filho da sra. Popinot-Chandier.
— Pelas primeiras palavras, é evidente, minhas senhoras—continuou o jornalista, aproveitando a oportunidade para mistificar os sancerrenses—,que os salteadores estão
numa caverna. Com que negligência os romancistas então tratavam dos detalhes, hoje tão minuciosamente, tão demoradamente observados, sob o pretexto de cor local!
Se os bandidos estão numa caverna, em vez de apontando para o céu devia ser apontando para o teto. Apesar dessa incorreção, Rinaldo me parece um homem de ação e
sua apóstrofe a Deus lembra a Itália. Havia nesse romance um pouquinho de cor local. Peste! Salteadores, uma caverna, um Lamberti que sabe calcular... Vejo toda
uma comédia musicada nessa página. Acrescentem-se a esses primeiros elementos uma pontinha de intriga, uma jovem camponesa de cabeleira erguida, saia curta e uma
centena de cançonetas detestáveis... Oh, meu Deus, o público virá! E depois, Rinaldo... como esse nome convém a Lafont (Lafont: Pierre-Chéri Lafont (1801-1873),
ator que desempenhava com muito êxito papéis de amoroso.)! Imaginando-o de costeletas pretas, calças colantes, uma capa, bigodes, uma pistola e um chapéu pontudo;
se o diretor do teatro tiver a coragem de pagar alguns artigos de jornal, serão cinquenta representações garantidas à comédia e seis mil francos de direitos autorais,
se eu quiser falar bem da peça no meu folhetim. Continuemos:
ou as vinganças romanas [197]
A duquesa de Bracciano encontrou a luva. Adolfo, que a levara ao bosque de laranjeiras, pôde supor com razão que havia coqueteria nesse esquecimento, pois então
o bosque estava deserto. O rumor da festa ressoava vagamente ao longe. Os fantoccini (Fantoccini (em italiano no original): títeres.) anunciados haviam levado todos
para a galeria. Olímpia nunca pareceu mais bela ao amante. Seus olhares, animados do mesmo ardor, entenderam-se. Houve um momento de silêncio delicioso para suas
almas e impossível de descrever. Sentaram-se no mesmo banco onde se haviam encontrado em presença do cavaleiro de Paluzzi e de alegres
— Que diabo! Não vejo mais nosso Rinaldo!—exclamou Lousteau.—Mas que progresso na compreensão da intriga não fará um literato montado sobre esta página? A duquesa
Olímpia é uma mulher que podia esquecer de propósito suas luvas num bosque deserto!
— A menos que se esteja situado entre a ostra e o subchefe da repartição, as duas criações mais vizinhas do mármore no reino zoológico, é impossível deixar de reconhecer
em Olímpia...—disse Bianchon.
- Uma mulher de trinta anos (Uma mulher de trinta anos: a expressão alude evidentemente ao famoso romance de Balzac publicado em 1842. Em seus últimos anos, o escritor
recorria de vez em quando a esse tipo de autopublicidade.)—disse animadamente a sra. de La Baudraye, que ficou com receio dum apelido demasiado médico.
— Então Adolfo deve ter vinte e dois—replicou o doutor—,pois uma italiana de trinta anos é como uma parisiense de quarenta.
— Com essas duas suposições, pode-se reconstruir o romance—disse Lousteau.—E esse cavaleiro de Paluzzi, hein?... Que homem! Nessas duas páginas, o estilo é fraco,
o autor talvez fosse funcionário dos impostos reunidos e tivesse escrito o romance para pagar o alfaiate...
— Naquela época—disse Bianchon—havia censura e é preciso ser tão indulgente para o homem que passava pelas tesouras de 1805 como para os que iam ao cadafalso em
1793.
— Está compreendendo alguma coisa?—perguntou timidamente a sra. Gorju, esposa do prefeito, à sra. de Clagny.
A esposa do procurador do rei, que, segundo a expressão do sr. Gravier, seria capaz de pôr em fuga um jovem cossaco de 1814 (Nos exércitos aliados que em 1814, após
a derrota de Napoleão, invadiram a França, havia também cossacos.), firmou-se sobre as cadeiras como um cavaleiro sobre os estribos e fez uma careta à vizinha, que
significava: “Estão nos olhando! Vamos sorrir como se entendêssemos”.
— É encantador!—disse a prefeita a Gatien.—Por favor, sr. Lousteau, continue!
XXVII - O ROMANCE PROGRIDE
Lousteau olhou para as duas mulheres, dois verdadeiros pagodes indianos, e conseguiu conservar-se sério. Achou necessário gritar: “Atenção!” ao continuar:
ou as vinganças romanas [209]
vestido farfalhou no silêncio. Subitamente, o cardeal Borborigano apareceu aos olhos da duquesa. Tinha uma fisionomia sombria, a fronte carregada de nuvens e um
sorriso amargo se desenhava em suas rugas.
— A senhora—disse—está sob suspeita. Se é culpada, fuja! Se não o é, fuja do mesmo modo, porque, virtuosa ou pecadora, a senhora, longe, terá melhores meios de se
defender...
— Agradeço a Vossa Eminência por essa solicitude—disse ela.—O duque de Bracciano reaparecerá quando eu julgar necessário mostrar que ele existe.
— O cardeal Borborigano!—exclamou Bianchon.—Pelas chaves do papa! Se não concordam comigo que há uma criação magnífica já apenas no nome, se não veem nessas palavras
vestido farfalhou no silêncio toda a poesia do papel de Schedoni encarnado por Lady Radcliffe no Confessionário dos penitentes negros, são indignos de ler romances...
— Para mim—replicou Diná, que ficou com pena dos dezoito rostos que contemplavam os dois parisienses—a história continua. Sei tudo: estou em Roma, vejo o cadáver
dum marido assassinado cuja esposa, audaciosa e perversa, colocou o leito sobre uma cratera. Todas as noites, a cada sensação de prazer, ela diz: “Tudo vai ser descoberto!...”.
— A senhora a vê—exclamou Lousteau—estreitando nos braços esse sr. Adolfo?! Abraça-o, procura pôr toda sua vida num beijo!... Adolfo me dá a impressão de ser um
rapaz muito elegante, mas sem espírito, um desses rapazes que brilham nos Italianos (Os Italianos, ou Théâtre des Italiens, instalado em 1801, sob a direção de Montausier,
para representar óperas italianas; funcionou em várias salas até seu desaparecimento.). Rinaldo paira sobre a intriga, que não conhecemos, mas que deve ser picante
como a de um melodrama de Pixerécourt (Pixerécourt: René-Charles Guilbert de Pixerécourt (1773-1844), dramaturgo francês, “o pai do melodrama”.). Podemos imaginar,
aliás, Rinaldo passando pelo fundo do palco, como um personagem dos dramas de Victor Hugo.
— E talvez seja o marido!—exclamou a sra. de La Baudraye.
— Entende alguma coisa disso tudo?—perguntou a sra. Piédefer à presidenta.
— É encantador—disse a sra. de La Baudraye à mãe.
Todas as pessoas de Sancerre arregalaram olhos do tamanho de moedas de cinco francos.
— Continue, por favor—pediu a sra. de La Baudraye.
Lousteau continuou:
[216] OLÍMPIA,
— Vossa chave!...—Tereis perdido?—Está no bosque...—Corramos...—O cardeal a terá apanhado?—Não... Aqui está...—De que perigo nos livramos! Olímpia olhou para a chave,
julgou reconhecer a sua; mas Rinaldo a trocara. Seus ardis haviam sido bem-sucedidos, ele possuía a verdadeira chave. Moderno Cartouche (Cartouche: alcunha de Louis-Dominique
Bourguignon (1693-1721), chefe de um bando de salteadores, de audácia e habilidade lendárias; condenado à morte na roda na Place de Grève.), tinha tanta habilidade
quanto coragem, e, suspeitando que somente consideráveis tesouros podiam obrigar uma duquesa a trazer sempre à cintura
— Que pena!...—exclamou Lousteau.—A página que devia estar no verso dessa não existe. Para tirar-nos da inquietação só temos a página 212:
[212] OLÍMPIA,
— Se a chave se perdesse?
— Ele seria morto...
— Morto! Não deverias atender a última súplica que ele te fez e dar-lhe a liberdade sob a condição de...
— Não o conheces...
— Mas...
— Cala-te. Tomei-te como amante, e não como confessor.
Adolfo ficou em silêncio.
— Aqui há um Amor sobre uma cabra a galope, uma vinheta desenhada por Normand, gravada por Duplant... Oh! Os nomes aí estão—disse Lousteau.
— Bem, e a continuação?—disseram aqueles dentre os ouvintes que estavam compreendendo.
— O capítulo terminou—respondeu Lousteau.—A circunstância da vinheta altera completamente minha opinião sobre o autor. Para ter conseguido, durante o Império, vinhetas
gravadas em madeira, o autor devia ser conselheiro de Estado, ou a sra. Barthélemy-Hadot (Sra. Barthélemy-Hadot: ver mais adiante a explicação da sra. de La Baudraye.),
o falecido Desforges (Desforges: nome do teatro de Pierre-Jean-Baptiste Choudard (1746-1806), ator e escritor francês, autor de grande número de óperas, comédias
e romances bastante licenciosos.) ou Sewrin (Sewrin: Charles-Augustin Sewrin (1771-1853), escritor francês, autor de grande número de óperas, comédias, vaudevilles
e romances.).
- Adolfo ficou em silêncio... Ah!—disse Bianchon.—A duquesa tem menos de trinta anos.
— Se não há mais nada, invente um desfecho!—disse a sra. de La Baudraye.
— Mas—disse Lousteau—a maculatura só foi tirada dum lado. Em estilo tipográfico, o lado da segunda, ou, para que compreendam melhor, o verso, que deveria ter sido
impresso, recebeu um número incomensurável de impressões diversas, pertence à classe das folhas ditas de prensa. Como seria horrivelmente longo ensinar-vos em que
consiste a confusão duma folha de prensa, basta que saibais que ela não pode guardar um vestígio sequer das doze primeiras páginas que nela foram impressas, do mesmo
modo que não poderíeis guardar a mínima lembrança da primeira bordoada se algum paxá vos tivesse condenado a receber cento e cinquenta na planta dos pés.
— Estou como louca—disse a sra. Popinot-Chandier ao sr. Gravier.—Esforço-me por entender o conselheiro de Estado, o cardeal, a chave e essa maculatura...
— A senhora não tem a chave dessa brincadeira—disse o sr. Gravier.—Pois pode estar certa de que nem eu, bela senhora.
— Mas ainda há outra folha—disse Bianchon, olhando para a mesa onde estavam as provas.
XXVIII - O ROMANCE É DOS BONS TEMPOS DE ANN RADCLIFFE
— Bom—disse Lousteau—,ela está sã e inteira! Está assinalada IV; J, 2ª edição. Minhas senhoras, o IV indica o quarto volume. O J, décima letra do alfabeto, a décima
folha. Parece-me provado, por isso, que este romance em quatro volumes in-12, salvo as astúcias do editor, obteve êxito, pois teve duas edições. Leiamos e decifremos
o enigma:
OU AS VINGANÇAS ROMANAS [217]
corredor. Mas sentindo-se perseguido pelos criados da duquesa, Rinaldo
— Ora bolas!
— Oh!—disse a sra. de La Baudraye.—Houve acontecimentos importantes entre o fragmento da maculatura e essa página.
— Justo, senhora, essa preciosa folha boa! Mas a maculatura onde a duquesa esqueceu suas luvas no bosque pertence ao quarto volume? Para o diabo! Continuemos:
não encontra asilo mais seguro que dirigir-se imediatamente para o subterrâneo, onde deviam estar os tesouros da casa de Bracciano. Lépido como a Camila do poeta
latino (A Camila do poeta latino: Camila, rainha dos volscos, uma das heroínas de Eneida, de Virgílio, morta por Arno; célebre pela sua velocidade.), correu para
a entrada misteriosa dos banhos de Vespasiano. As tochas já iluminavam as muralhas quando o ágil Rinaldo, tendo descoberto, com a perspicácia de que o dotara a natureza,
a porta oculta na parede, desapareceu imediatamente. Uma horrível reflexão atravessou-lhe o cérebro como o raio quando rasga as nuvens. Ele estava aprisionado...
Tateou a
— Oh! Esta folha boa e o fragmento da maculatura se seguem! A última página do fragmento é a 212 e temos aqui a 217! Com efeito, se Rinaldo, na maculatura, roubou
a chave dos tesouros da duquesa Olímpia, substituindo-a por uma quase igual, e nesta folha boa está no palácio dos duques de Bracciano, o romance me parece encaminhar-se
para alguma conclusão. Faço votos para que isto seja tão claro para vós como se está tornando para mim... Para mim, a festa acabou, os dois amantes voltaram ao palácio
Bracciano, é noite, é uma hora da madrugada. Rinaldo vai dar um bom golpe!
— E Adolfo?...—disse o presidente Boirouge, que era considerado um pouco lesto em palavras.
— E que estilo!—disse Bianchon.—Rinaldo não encontra asilo mais seguro que dirigir-se...
— Evidentemente, não foi Maradan, nem os Treuttel e Wurtz, nem Doguereau quem imprimiu esse romance—disse Lousteau—,pois eles tinham a seu soldo revisores que liam
suas provas, um luxo que os editores atuais bem se deveriam dar, pois os autores atuais ficariam à maravilha... Deve ser algum vendedor do cais...
— Que cais?—perguntou uma senhora à vizinha.—Falavam em banhos...
— Continue—disse a sra. de La Baudraye.
— Em todo caso, não é dum conselheiro de Estado—disse Bianchon.
— Talvez seja de madame Hadot—disse Lousteau.
— Por que estão metendo nisso madame Hadot de La Charité?—perguntou a presidenta a seu filho.
— Essa madame Hadot, minha cara presidenta—respondeu a castelã—,era uma autora que viveu na época do consulado...
— Então as mulheres escreviam no tempo do imperador?—perguntou a sra. Popinot-Chandier.
— E a sra. de Genlis? E a Madame de Staël (Sra. de Genlis: Stéphanie-Félicité de Genlis (1746-1830), preceptora dos filhos do duque de Orléans, autora de várias
obras sobre educação. )?—interveio o procurador do rei, picado por Diná com a observação.
— Ah!
— Continue, por favor—disse a sra. de La Baudraye a Lousteau.
Lousteau retomou a leitura, dizendo:—Página 218!
[218] olímpia,
parede com uma inquieta precipitação e lançou um grito de desespero quando procurou em vão a fechadura de segredo. Foi-lhe impossível recusar-se a reconhecer a horrível
verdade. A porta, habilmente construída para servir às vinganças da duquesa, não se podia abrir por dentro. Rinaldo colou a face a vários lugares e em nenhum deles
sentiu o ar quente da galeria. Esperava encontrar uma fenda que lhe indicasse o ponto onde terminava a parede, mas nada, nada!... A parede parecia um só bloco de
mármore...
Escapou-lhe, então, um surdo rugido de hiena...
— Muito bem, julgávamos ter inventado recentemente os gritos de hiena!?—disse Lousteau.—A literatura do Império já os conhecia, punha-os mesmo em cena com um certo
talento de história natural, como o prova a palavra surdo.
— Não faça reflexões, senhor—disse a sra. de La Baudraye.
— Aí está!—exclamou Bianchon.—O enredo, esse monstro romântico, segurou-a pela gola, como a mim, agora mesmo.
— Leia!—gritou o procurador do rei.—Eu compreendo!
— Que pretensioso!—disse o presidente ao ouvido de seu vizinho, o subprefeito.
— Ele quer lisonjear a sra. de La Baudraye—respondeu o novo subprefeito.
— Pois bem, vou ler em seguida—disse solenemente Lousteau.
Escutaram o jornalista no mais profundo silêncio:
ou as vinganças romanas [219]
Um gemido profundo respondeu ao grito de Rinaldo; mas, na sua angústia, ele o tomou por um eco, tão débil e cavernoso era esse gemido! Não podia ter saído dum peito
humano...
— Santa Maria!—disse o desconhecido.
— Se eu não sair deste lugar, não saberei mais encontrá-lo—pensou Rinaldo, quando recobrou seu habitual sangue-frio.—Se bater, serei descoberto. Que fazer?
— Quem está aí?—perguntou a voz.
— Hein?—disse o bandido.—Será que aqui os sapos falam?
— Sou o duque de Bracciano! Quem
[220] olímpia,
quer que sejais, se não pertenceis à duquesa, em nome de todos os santos, vinde a mim!...
— Eu precisaria saber onde estás, senhor duque—respondeu Rinaldo, com a impertinência dum homem que se sabe necessário.
— Eu te vejo, meu amigo, pois meus olhos estão acostumados à obscuridade. Escuta, segue para a frente... Bem... Volta à esquerda... Vem... aqui... Estamos juntos.
Rinaldo estendeu as mãos para a frente por prudência e encontrou barras de ferro.
— Estão me enganando!—gritou o bandido.
— Não, tocaste na minha cela...
ou as vinganças romanas [221]
Senta-te num fuste de mármore que existe aí.
- Como pode o duque de Bracciano estar numa prisão?—perguntou o bandido.
— Meu amigo, estou aqui há trinta meses, de pé, sem poder sentar-me... Mas quem és?
— Sou Rinaldo, o príncipe do campo, o chefe de oitenta bravos que a lei denomina erroneamente celerados, que todas as damas admiram e os juízes enforcam por um hábito
antigo.
— Deus seja louvado!... Estou salvo... Um homem de bem ficaria com medo, ao passo que contigo tenho certeza de entender-me
[222] olímpia,
— exclamou o duque. Oh! Meu caro libertador, deves estar armado até os dentes...
— È verissimo!
— Terás...?
— Sim, limas, alicates... Corpo di Bacco! Eu vinha tomar emprestados indefinidamente os tesouros dos Bracciani.
— Terás legitimamente uma boa parte deles, meu caro Rinaldo, e talvez eu vá fazer caça aos homens em tua companhia...
— Espantais-me, excelência!...
— Escuta-me, Rinaldo! Não preciso falar-te do desejo de vingança que me rói o coração: estou aqui há trinta meses... és italiano?... tu me compreen
ou as vinganças romanas [223]
derás! Ah, meu amigo, minha fadiga e meu pavoroso cativeiro nada são comparados ao mal que me rói o coração! A duquesa de Bracciano ainda é uma das mais lindas mulheres
de Roma, eu a amava bastante para ter ciúme...
— Vós, seu marido!...
— Sim, talvez estivesse errado!
— Realmente, isso não se faz—disse Rinaldo.
— Meu ciúme foi excitado pela conduta da duquesa—acrescentou o duque.—O fato provou que eu tinha razão. Um jovem francês amava Olímpia, era amado por ela, tive provas
de sua mútua afeição...
— Mil perdões, minhas senhoras—disse Lousteau.—Mas, como estão vendo, é-me impossível deixar de observar-lhes o quanto a literatura do Império ia diretamente aos
fatos sem nenhum detalhe, o que me parece característico dos tempos primitivos. A literatura dessa época guardava o meio-termo entre o resumo dos capítulos do Telêmaco
(Telêmaco: A famosa edição de Versalhes desta obra, feita em 1820-1824—e muitas outras feitas depois—,continha breves sumários de todos os capítulos e que os precediam.)
e as exposições de motivos do ministério público. Tinha ideias, mas não as exprimia, a desdenhosa! Observava, mas não participava suas observações a ninguém, a avarenta!
Fouché era o único que comunicava suas obsevações a qualquer um. A literatura se contentava, então, segundo a expressão dum dos mais ingênuos críticos da Revue des
Deux Mondes (Revue des Deux Mondes: a revista literária mais importante da França, fundada em 1828 e, a partir de 1831, dirigida por Buloz.), com uma rigorosa simplicidade
de enredo e uma descrição bem nítida de todas as imagens à antiga; não dançava sobre períodos! Estou inteiramente de acordo com isso, ela não tinha períodos, não
tinha expressões que lhe dessem brilho. Ela dizia apenas: “Lubin amava Toinette, Toinette não amava Lubin; Lubin matou Toinette e os guardas prenderam Lubin, que
foi encarcerado, levado a julgamento e guilhotinado”. Vigoroso enredo, descrição nítida! Que belo drama! Pois bem, atualmente os bárbaros dão brilho ao estilo.
— E às vezes ao estrilo—disse o sr. de Clagny.
— Ah!—replicou Lousteau.—O senhor se dedica a isso?
— Que é que ele quer dizer?—perguntou a sra. de Clagny, preocupada com o trocadilho.
— Tenho a impressão de estar andando dentro dum forno—respondeu a prefeita.
— Seu gracejo perderia a graça ao ser explicado—observou Gatien.
— Atualmente—continuou Lousteau—os romancistas descrevem os caracteres; e, em lugar de restringir-se à narrativa, desvendam o coração humano, interessam-nos em Toinette
ou em Lubin.
— Quanto a mim, estou receoso da educação do público no que se refere à literatura—disse Bianchon.—Assim como os russos derrotados por Carlos XII (Carlos XII venceu
Pedro, o Grande, em Narva, em 1700, mas nove anos depois veio a sofrer dele em Pultava uma fragorosa derrota, que o forçou a refugiar-se na Turquia.) que acabaram
aprendendo a técnica da guerra, o leitor acabou aprendendo a arte. Antigamente não se exigia do romance mais que enredo; quanto ao estilo, ninguém se importava com
ele, nem mesmo o autor; quanto às ideias, zero; quanto à cor local, nada. Insensivelmente, o leitor passou a reclamar estilo, enredo, emoção, conhecimentos positivos;
passou a exigir os cinco sentidos literários: imaginação, estilo, ideia, erudição e sentimento. Depois, veio a crítica com novas exigências. O crítico, incapaz de
criar outra coisa além de calúnias (Esse requisitório contra a crítica reflete a opinião do próprio Balzac, que, na época, muito sofreu nas mãos de seus resenhadores.),
pretendeu que toda a obra que não emanava dum cérebro completo era aleijada. Alguns charlatães, como Walter Scott, que podiam reunir os cinco sentidos literários,
haviam aparecido; os que não tinham mais que espírito, erudição, estilo ou sentimento, esses coxos, esses acéfalos, esses manetas, esses caolhos literários puseram-se
a gritar que tudo estava perdido, pregaram cruzadas contra as pessoas que estragavam o ofício ou negaram suas obras.
— É a história de suas últimas discussões literárias, senhores—observou Diná.
— Por favor!—exclamou o sr. de Clagny.—Voltemos ao duque de Bracciano.
Com grande desespero da assembleia, Lousteau continuou a leitura da folha boa:
[224] olímpia,
Quis, então, assegurar-me de meu infortúnio para poder vingar-me sob a proteção da Providência e da lei. A duquesa descobrira meus projetos. Já nos combatíamos em
pensamento antes de nos combatermos com o veneno na mão. Queríamos impor-nos mutuamente uma confiança que não tínhamos: eu, para fazer-lhe ingerir uma beberagem;
ela, para arrebatá-la de mim. Ela era uma mulher e venceu; pois as mulheres têm uma cilada a mais do que nós para armar, e caí nela: fui feliz, mas, na manhã seguinte,
despertei nesta jaula de ferro. Rugi durante todo o dia na obscuridade
ou as vinganças romanas [225]
deste subterrâneo, situado sob o quarto de dormir da duquesa. À noite, erguido por uma maromba habilmente manejada, atravessei o teto e vi, nos braços do amante,
a duquesa, que me jogou um pedaço de pão, minha ração de todas as noites. E essa tem sido minha vida, nesses últimos trinta meses. Nesta prisão de mármore, meus
gritos não podem chegar a ouvido algum. Nenhum acaso podia valer-me. Eu não tinha mais esperança! Realmente, o quarto da duquesa fica no fundo do palácio, e minha
voz, quando subo até ele, não pode ser ouvida por ninguém. Cada vez que vou ver minha mulher, ela me mostra o veneno que eu preparara
[226] olímpia,
para ela e seu amante; peço-o para mim. Mas ela me recusa a morte, dá-me pão e eu como! Fiz bem em comer, em viver, não contava com os bandidos!...
— Sim, excelência, enquanto os imbecis dos homens de bem dormem, nós vigiamos...
— Ah! Rinaldo, todos os meus tesouros serão teus, nós os partilharemos como irmãos, e eu gostaria de dar-te tudo... até meu ducado...
— Excelência, consiga-me do papa uma absolvição in articulo mortis, isso me será mais útil para exercer minha profissão...
— Tudo o que quiseres; mas lima
ou as vinganças romanas [227]
as barras da minha prisão e empresta-me teu punhal... Não temos muito tempo a perder, anda depressa... Ah! Se meus dentes fossem limas... Tentei mastigar esse ferro...
— Excelência—disse Rinaldo, ao ouvir as últimas palavras do duque—,já cortei uma barra.
— És um deus!
— Sua esposa estava na festa da princesa Villaviciosa; voltou com seu francesinho, está ébria de amor. Assim, temos tempo.
— Terminaste?
— Sim...
[228] olímpia,
— Teu punhal!—pediu energicamente o duque ao bandido.
— Ei-lo.
— Muito bem. Estou ouvindo o ruído da alavanca.
— Não se esqueça de mim!—disse o bandido, que tinha bastante experiência de gratidão.
— Lembrar-me-ei de ti como de meu pai—disse o duque.
— Adeus!—disse-lhe Rinaldo.—Como voa!—acrescentou o bandido, ao ver o duque desaparecer.—Como de seu pai—pensou.—Se é assim que ele espera lembrar-se de mim!...
Ah! E eu que jurara nunca fazer mal às mulheres!... Mas deixemos por um momento o
ou as vinganças romanas [229]
salteador entregue às suas reflexões e subamos, com o duque, às dependências do palácio.
— Ainda uma vinheta, um Cupido sobre um caracol! A página seguinte, a 230, está em branco—disse o jornalista.—E eis duas páginas em branco ocupadas por este título
tão delicioso de redigir quando se tem a venturosa desgraça de escrever romances: Conclusão!
conclusão
A duquesa nunca estivera tão bela. Saiu do banho vestida como uma deusa, e, ao ver Adolfo voluptuo
[234] olímpia,
samente deitado sobre pilhas de almofadas:
— Como és belo!—disse-lhe.
— E tu, Olímpia!...
— Ainda me amas?
— Cada vez mais—disse ele.
— Ah! Só os franceses sabem amar!—exclamou a duquesa.
— Esta noite me amarás muito?
— Sim...
— Então vem!
E, com um gesto de ódio e de amor, ou porque o cardeal de Borborigano lhe tivesse feito recordar-se mais intensamente do marido, ou porque sentisse mais amor a demonstrar-lhe,
ela puxou a alavanca e estendeu os braços a
— Acabou-se!—exclamou Lousteau—pois o impressor rasgou o resto ao embrulhar minhas provas; mas isso basta para demonstrar-nos que o autor prometia muito.
XXIX - ONDE O SR. DE LA BAUDRAYE SE REVELA PLENAMENTE
— Não compreendo nada disso—comentou Gatien Boirouge, que foi o primeiro a romper o silêncio em que se mantinham os sancerrenses.
— Nem eu—respondeu o sr. Gravier, exasperado.
— É, entretanto, um romance escrito durante o Império—disse-lhe Lousteau.
— Ah!—disse o sr. Gravier.—Pela maneira de falar que atribui ao salteador, vê-se que o autor não conhecia a Itália. Os bandidos não se permitem tais concetti (Concetti
(em italiano): pensamentos brilhantes e afetados.).
A sra. Gorju aproximou-se de Bianchon, ao vê-lo pensativo, e disse-lhe, mostrando-lhe Eufêmia Gorju, sua filha, dotada dum belíssimo dote:
— Que lengalenga! As receitas que o senhor escreve valem mais que essas coisas.
A prefeita meditara profundamente essa frase, que, na sua opinião, denunciava um espírito vigoroso.
— Ah! Minha senhora, precisamos ser indulgentes, pois temos apenas vinte páginas, em mil—respondeu Bianchon, observando a srta. Gorju, cujo corpo ameaçava deformar-se
à primeira gravidez.
— E então, sr. de Clagny?—disse Lousteau.—Ontem falávamos das vinganças inventadas pelos maridos. Que diz das que as mulheres inventam?
— Penso—respondeu o procurador do rei—que esse romance não é dum conselheiro de Estado, e sim duma mulher. Em concepções bizarras, a imaginação das mulheres vai
mais longe que a dos homens, como o provam o Frankenstein, de Mistress Shelley, Leone Leoni, as obras de Ann Radcliffe e O moderno prometeu, de Camille Maupin (Mistress
Shelley: em solteira Mary Wollstonecraft (1798-1815), esposa do poeta Percy Bysshe Shelley. Romancista muito popular na época, seu livro mais renomado era Frankenstein.
Nesse romance fantástico, a autora narra a história de um alquimista que consegue fabricar um ser quase humano e do monstro assim produzido, que acaba por tomar
conta de seu criador.—Leone Leoni: romance de George Sand (1834) em que a autora refez, de certa maneira, a conhecida história de Manon Lescaut, com a diferença
de que aqui é um homem completamente pervertido que arrasta após ele, pela força da paixão, uma mulher que, se não o houvesse encontrado, teria levado vida pura
e honesta. (No romance do abade Prévost é a cortesã Manon que arrasta o amante Des Grieux às piores infâmias.) Segundo seu hábito, o escritor inclui na mesma enumeração
três pessoas reais (Mary Shelley, George Sand e Ann Radcliffe) e uma (Camille Maupin) nascida em sua imaginação.). Diná olhou fixamente para o sr. de Clagny, dando-lhe
a entender, por uma expressão que o enregelou, que, apesar de tantos ilustres exemplos, ela tomava essa reflexão para Paquita, a sevilhana.
— Ora!—disse o pequeno La Baudraye.—O duque de Bracciano, a quem a mulher prendeu numa cela e a quem ela se mostra todas as noites nos braços do amante, vai matá-la...
Chamais a isso uma vingança?... Nossos tribunais e a sociedade são muito mais cruéis...
— Como?—perguntou Lousteau.
— Repara, o pequeno La Baudraye está falando—disse o presidente Boirouge à esposa.
— Pois deixam a mulher viver com uma miserável pensão e a sociedade volta-lhe as costas. Fica privada do luxo e da consideração, duas coisas que, no meu entender,
são tudo para a mulher.
— Mas ela tem a felicidade—replicou pomposamente a sra. de La Baudraye.
— Não—contestou o monstrengo, acendendo sua vela para ir deitar-se—,pois tem um amante...
— Para um homem que só pensa nos seus sarmentos e nos seus tocos de árvores, ele tem espírito—disse Lousteau.
— Bem que ele precisa ter alguma coisa—comentou Bianchon.
A sra. de La Baudraye, a única que pôde ouvir a frase de Bianchon, pôs-se a rir tão sutilmente e tão amargamente ao mesmo tempo que o médico descobriu o segredo
da vida íntima da castelã, cujas rugas prematuras o preocupavam desde a manhã. Diná, porém, não percebeu as sinistras profecias que seu marido acabava de fazer-lhe
numa frase e que o falecido bom padre Duret não teria deixado de explicar-lhe. O pequeno La Baudraye notara nos olhos de Diná, quando ela fitava o jornalista ao
retribuir-lhe um gracejo, essa súbita e luminosa ternura que doura o olhar duma mulher no instante em que a prudência se acaba e começa o arrebatamento. Diná não
se importou com o aviso que assim lhe dava o marido de guardar as conveniências, do mesmo modo que Lousteau não tomou para si os maliciosos conselhos de Diná no
dia de sua chegada.
Outro que não fosse Bianchon se teria admirado do rápido êxito de Lousteau; mas tão médico era ele que nem mesmo se sentiu ofendido com a preferência que Diná manifestava
pelo folhetim sobre a faculdade! Com efeito, Diná, por ser ela própria grande, devia ser mais acessível à inteligência que à grandeza. O amor prefere ordinariamente
os contrastes às semelhanças. A franqueza e a bonomia do doutor, sua profissão, tudo o diminuía a seus olhos. Eis por quê: as mulheres que querem amar, e Diná tanto
queria amar como ser amada, têm um horror instintivo pelos homens que se dedicam a ocupações tirânicas; apesar de suas superioridades, elas sempre são mulheres no
que se refere a usurpações. Poeta e folhetinista, o libertino Lousteau, armado de sua misantropia, oferecia essa alma ornada de ouropéis e essa vida meio ociosa
que agrada às mulheres. O sólido bom senso, os olhares de homem verdadeiramente superior aborreciam Diná, que não confessava a si mesma sua pequenez e se dizia:
— Talvez o doutor valha mais que o folhetinista, mas me agrada menos.
Depois, punha-se a pensar nos afazeres de sua profissão e se indagava se uma mulher podia ser mais que um caso aos olhos dum médico, que vê tantos casos durante
o dia! A primeira proposição do pensamento inscrito por Bianchon no álbum era o resultado duma observação clínica que caía muito pesadamente sobre a mulher para
que Diná não fosse atingida por ela. Enfim, Bianchon, a quem a clientela impedia uma permanência mais longa, ia partir no dia seguinte. Que mulher, a menos que receba
no coração a seta mitológica de Cupido, pode se decidir em tão pouco tempo? Logo que Bianchon viu em conjunto essas pequenas coisas, que causam as grandes catástrofes,
comunicou em quatro palavras a Lousteau a singular opinião que formou sobre a sra. de La Baudraye e que causou a mais viva surpresa ao jornalista.
XXX - UMA CONVERSA AUTORIZADA PELO CÓDIGO DOS HOMENS
Enquanto os dois parisienses cochichavam, erguia-se contra a castelã um temporal entre os sancerrenses, que não compreendiam nada da paráfrase nem dos comentários
de Lousteau. Longe de ver nisso o romance que o procurador do rei, o subprefeito, o primeiro substituto Lebas, o sr. de La Baudraye e Diná haviam reconstituído,
todas as mulheres reunidas em torno da mesa de chá não viam ali mais que uma mistificação e acusavam a Musa de Sancerre de participar dela. Todas haviam esperado
passar uma noitada encantadora, todas haviam avivado inutilmente as faculdades de seu espírito. Nada revolta mais a gente da província do que servir de joguete à
gente de Paris.
A sra. Piédefer deixou a mesa de chá para ir dizer à filha:
— Vai falar com as senhoras, elas estão muito chocadas com tua conduta.
Lousteau não pôde evitar de notar, então, a evidente superioridade de Diná sobre o escol das mulheres de Sancerre. Ela era a que melhor se vestia, seus movimentos
eram cheios de graça, sua cútis adquiria à luz artificial uma deliciosa brancura, ela se destacava, enfim, sobre essa tapeçaria de rostos velhos, de moças malvestidas,
de maneiras tímidas, como uma rainha no meio de sua corte. As imagens parisienses apagavam-se. Lousteau adaptava-se à vida da província. E, se tinha suficiente imaginação
para não se impressionar com as magnificências reais desse castelo, por suas delicadas esculturas, pelas belezas antigas do interior, era, por outro lado, suficientemente
instruído para saber o valor do mobiliário que enriquecia essa joia da Renascença. Assim, logo que os sancerrenses, um a um, se retiraram, acompanhados por Diná,
pois todos eles tinham de andar cerca de uma hora, e quando se encontravam no salão apenas o procurador do rei, o sr. Lebas, Gatien e o sr. Gravier, que iam dormir
em Anzy, o jornalista já modificara sua opinião sobre Diná. Seu pensamento descrevera essa evolução de que a sra. de La Baudraye tivera a audácia de falar-lhe em
seu primeiro encontro.
— Ah! Como vão falar mal de nós pelo caminho!—exclamou a castelã, entrando no salão após ter acompanhado à carruagem o presidente, a presidenta, a sra. e a srta.
Popinot-Chandier.
O resto do serão teve seu lado agradável. Em pequeno grupo, cada um derramou na palestra seu contingente de epigramas sobre as diferentes caras que os sancerrenses
haviam feito durante os comentários de Lousteau sobre o invólucro das provas.
— Meu caro—disse, ao deitar-se, Bianchon a Lousteau (haviam-nos acomodado juntos num enorme quarto com duas camas)—,serás o feliz mortal eleito por essa mulher,
nascida Piédefer!
— Achas?
— Ora, isso se explica: passas aqui por teres tido muitas aventuras em Paris e, para as mulheres, os homens que têm sorte no amor possuem algo de excitante que os
torna atraentes e agradáveis. Será a vaidade de fazer triunfar suas recordações entre todas as outras? Recorrem elas à sua experiência, como um doente recorre por
qualquer preço a um médico famoso? Ou sentem-se lisonjeadas em despertar um coração enfastiado?
— Os sentidos e a vaidade exercem papéis tão importantes no amor que todas essas suposições podem ser exatas—respondeu Lousteau.—Mas, se fico, é por causa do certificado
de inocência que dás a Diná! Ela é linda, não é?
— Tornar-se-á encantadora, amando—disse o médico.—E depois, o que é mais, será, um dia ou outro, uma rica viúva! E um filho lhe asseguraria a posse da fortuna do
sr. de La Baudraye...
— Mas então é uma boa ação amar a essa mulher!—exclamou Lousteau.
— Uma vez mãe, ela tornará a engordar, as rugas se apagarão, ela parecerá não ter mais de vinte anos...
— Bem—disse Lousteau, enrolando-se nos lençóis—,se quiseres ajudar-me, amanhã, sim, amanhã, eu... Basta, boa noite.
XXXI - O SENTIMENTO VAI DEPRESSA DE CARRO
No dia seguinte a sra. de La Baudraye, a quem o marido dera, há seis meses, cavalos de que se servia nos trabalhos do campo e uma caleça que ringia como ferros velhos,
teve a ideia de acompanhar Bianchon até Cosne, onde ele ia tomar a diligência de Lyon na passagem. Ela levou juntos sua mãe e Lousteau; decidiu, porém, deixar a
mãe em La Baudraye, dirigir-se a Cosne com os dois parisienses e voltar de lá a sós com Estêvão. Vestiu-se de maneira encantadora, que chamou a atenção do jornalista:
borzeguins bronzeados, meias de seda cinza, um vestido de organdi, um xale verde de longas franjas matizadas e um gracioso chapéu de seda preta, enfeitado de flores.
Quanto a Lousteau, o patife pusera-se em pé de guerra: sapatos lustrados, calças de tecido inglês pregueadas na parte dianteira, um colete muito decotado que deixava
ver uma camisa extrafina e as catadupas de cetim preto em relevo de sua mais bela gravata, uma sobrecasaca preta, muito curta e muito leve. O procurador do rei e
o sr. Gravier entreolharam-se de maneira muito singular ao verem os dois parisienses na caleça enquanto eles ficavam como dois idiotas ao pé da escadaria. O sr.
de La Baudraye, que, do alto do último degrau, dirigia ao doutor uma pequena saudação com sua mãozinha, não pôde evitar de sorrir ao ouvir o sr. de Clagny dizer
ao sr. Gravier:
— O senhor devia acompanhá-los a cavalo.
Nesse momento, Gatien, montado na tranquila mula do sr. de La Baudraye, surgiu pela alameda que levava às cavalariças e juntou-se à caleça.
— Ótimo!—disse o recebedor das contribuições.—O menino ficou de plantão.
— Que aborrecimento!—exclamou Diná ao ver Gatien.—Em treze anos, pois logo fará treze anos que estou casada, ainda não tive três horas de liberdade...
— Casada, senhora?—disse o jornalista, sorrindo.—A senhora faz-me lembrar uma frase do falecido Michaud (Michaud: Joseph-François Michaud (1767-1839), autor de uma
História das Cruzadas; organizador de uma Biografia universal.), das muitas frases sutis que ele pronunciou. Ele ia partir para a Palestina e seus amigos lhe faziam
considerações sobre sua idade e sobre os perigos de semelhante excursão. “Além disso”, comentou um deles, “o senhor é casado!” “Oh!”, respondeu ele. “Eu o sou tão
pouco!”
A severa sra. Piédefer não pôde impedir-se de sorrir.
— Eu não me admiraria de ver o sr. de Clagny vir completar a escolta montado em meu pônei—disse Diná.
— Oh! Se o procurador do rei não se vier juntar a nós—disse Lousteau—,a senhora poderá desembaraçar-se desse rapazinho ao chegar a Sancerre. Bianchon terá necessariamente
esquecido alguma coisa sobre a mesa, como o manuscrito da primeira lição de seu curso, e a senhora pedirá a Gatien que vá a Anzy buscá-lo.
Essa astúcia, embora simples, deixou a sra. de La Baudraye bem-humorada. O caminho de Anzy a Sancerre, no qual se descobrem, por momentos, magníficas paisagens e
onde muitas vezes o lençol do Loire produz o efeito dum lago, foi percorrido alegremente, pois Diná sentia-se feliz por se ver tão bem compreendida. Falou-se de
amor, em teoria, o que permite aos amigos in petto (In petto (em italiano): intimamente, em segredo.) tomar, de certo modo, a medida de seus corações. O jornalista
adotou um tom de elegante corrupção para provar que o amor não obedece a lei alguma, que o caráter dos amantes varia seus acidentes ao infinito, que os acontecimentos
da vida social aumentam ainda mais a variedade dos fenômenos, que tudo é possível e acenado nesse sentimento; que uma mulher, após ter resistido durante muito tempo
a todas as seduções e a paixões verdadeiras, pode sucumbir em algumas horas a um pensamento, a um furacão interior cujo segredo só é conhecido de Deus!
— E então! Não é esse o sentido de todas as histórias que nos temos contado nestes três dias?—disse ele.
Há três dias a ardente imaginação de Diná estava ocupada com os romances mais insidiosos, e a palestra dos dois parisienses agira sobre ela como os livros mais perigosos.
Lousteau seguia com o olhar os efeitos dessa hábil manobra, para aproveitar o momento em que sua presa, cuja boa vontade se ocultava sob o devaneio que produz a
irresolução, estivesse inteiramente aturdida. Diná quis mostrar La Baudraye aos dois parisienses e lá se representou a comédia convencionada do manuscrito esquecido
por Bianchon em seu quarto de Anzy. Por ordem de sua soberana, Gatien partiu a galope, a sra. Piédefer foi fazer compras em Sancerre e Diná, a sós com os dois amigos,
tomou a estrada de Cosne.
XXXII - SERVIÇOS QUE PRESTAM ENTRE SI OS AMIGOS DE COLÉGIO
Lousteau sentou-se junto da castelã e Bianchon colocou-se na parte dianteira da carruagem. A conversa dos dois amigos foi afetuosa e cheia de compaixão pela sorte
dessa alma de escol tão pouco compreendida e, principalmente, tão mal cercada. Bianchon ajudou admiravelmente o jornalista, zombando do procurador do rei, do recebedor
das contribuições e de Gatien; suas observações revestiram-se dum sentido tão deprimente que a sra. de La Baudraye não teve coragem de defender seus adoradores.
— Explico-me perfeitamente—disse o médico, ao atravessar o Loire—a situação em que a senhora tem vivido. A senhora só podia ser acessível ao amor cerebral, que muitas
vezes leva ao amor do coração, e certamente nenhum desses homens é capaz de dissimular o que os sentidos têm de odioso nos primeiros dias da vida duma mulher delicada.
Atualmente, para a senhora, amar constitui uma necessidade...
— Uma necessidade!—exclamou Diná, fitando o médico com curiosidade.—Quer dizer que devo amar por prescrição médica?
— Se continuar a viver como está vivendo, dentro de três anos ficará pavorosa—respondeu Bianchon, num tom magistral.
— Senhor!—disse a sra. de La Baudraye, quase aterrorizada.
— Desculpe meu amigo—disse Lousteau com um ar brincalhão à baronesa.—Ele é médico em tudo e o amor não representa para ele mais que uma questão de higiene. Mas não
é egoísta e evidentemente é apenas com a senhora que se preocupa, pois vai partir daqui a uma hora...
Em Cosne, muita gente se aglomerou em torno da velha caleça reformada, sobre cujas almofadas se viam as armas dadas por Luís XIV aos neo-La Baudraye: de goles, com
uma balança de ouro e um chefe cosido de blau, carregado de três cruzetas recruzetadas de prata; como suportes, dois lebréus de prata coleirados de blau e acorrentados
de ouro. A irônica divisa Deo sic patet fides et hominibus ( Deo sic patet fides et hominibus (em latim): “A fé se torna manifesta, assim, aos olhos de Deus e dos
homens”.) fora infligida ao calvinista convertido pelo satírico D’Hozier .—Vamos sair, virão avisar-nos quando chegar a hora—disse a baronesa, deixando o cocheiro
de sentinela.
Diná tomou o braço de Bianchon e o médico pôs-se a passear pela margem do Loire com um passo tão rápido que o jornalista teve de ficar atrás. Uma simples piscadela
bastara ao doutor para dar a entender a Lousteau que queria ajudá-lo.
— Estêvão agradou-lhe—disse Bianchon a Diná—,falou vivamente à sua imaginação. Ontem à noite nós nos ocupamos de si, e ele a ama... Mas é um homem leviano, difícil
de fixar-se e sua pobreza o obriga a viver em Paris, ao passo que tudo exige que a senhora viva em Sancerre... Veja a vida um pouco de cima... Faça de Lousteau seu
amigo, não seja exigente, ele virá três vezes por ano passar alguns belos dias junto de si e a senhora ficará devendo-lhe a beleza, a felicidade e a fortuna. O sr.
de La Baudraye pode viver cem anos, mas também pode morrer em nove dias, bastando para isso deixar de usar o pano de flanela em que vive enrolado; portanto, não
comprometam nada. Sejam ambos prudentes. Não me diga nem uma palavra... Li em seu coração.
A sra. de La Baudraye estava sem defesa diante das afirmações tão precisas e diante dum homem que se colocava ao mesmo tempo na posição de médico, de confessor e
de confidente.
— Como pode o senhor imaginar—disse ela—que uma mulher se possa lançar em concorrência com as amantes dum jornalista? O sr. Lousteau parece-me agradável, espiritual;
mas está enfastiado... etc. etc.
Diná recuou, e foi obrigada a interromper o fluxo de palavras sob o qual pretendia ocultar suas intenções, pois Estêvão, que parecia interessado nos progressos de
Cosne, vinha ao encontro deles.
— Acredite-me—disse-lhe Bianchon—,ele tem necessidade de ser amado seriamente. E, se mudar de vida, seu talento lucrará muito.
O cocheiro de Diná aproximou-se deles esbaforido para anunciar-lhes a chegada da diligência e todos estugaram o passo. A sra. de La Baudraye seguia entre os dois
parisienses.
— Adeus, meus filhos—disse Bianchon, antes de entrar em Cosne—,eu os abençoo...
Soltou o braço da sra. de La Baudraye, fazendo com que Lousteau o tomasse após estreitá-lo de encontro ao coração com uma expressão de afeto. Que diferença para
Diná! O braço de Estêvão causou-lhe a mais viva emoção, ao passo que o de Bianchon não lhe dera sensação alguma. Trocou-se, então, entre ela e o jornalista, um desses
olhares candentes que são mais que consentimentos.
— Só mesmo as mulheres da província para usar vestidos de organdi, a única fazenda que uma vez amarrotada não pode ser alisada—disse consigo Lousteau.—Essa mulher,
que me escolheu para amante, vai fazer fita por causa do vestido. Se tivesse posto um vestido de seda, eu seria feliz... Aí está do que dependem as resistências!...
Enquanto Lousteau conjeturava se a sra. de La Baudraye tivera a intenção de se impor uma barreira intransponível ao escolher um vestido de organdi, Bianchon, auxiliado
pelo cocheiro, acomodava sua bagagem na diligência. Quando terminou, foi despedir-se de Diná, que se mostrou imensamente afetuosa para ele.
— Volte, senhora baronesa, deixe-me... Gatien estará de regresso em seguida—disse-lhe ao ouvido.—Já é tarde...—acrescentou, em voz alta.—Adeus!
— Adeus, grande homem!—exclamou Lousteau, apertando a mão de Bianchon.
XXXIII - EM QUE AS MULHERES VIRTUOSAS APRENDERÃO A DESCONFIAR DO ORGANDI
Quando o jornalista e a sra. de La Baudraye, sentados um junto do outro ao fundo da velha caleça, tornaram a atravessar o Loire, hesitaram ambos em falar. Em tal
situação, a palavra pela qual se rompe o silêncio possui uma importância extraordinária.
— Sabe quanto a amo?—disse então o jornalista à queima-roupa.
A vitória podia lisonjear Lousteau, mas a derrota não lhe causava o menor desgosto. Essa indiferença constituiu o segredo de sua audácia. Tomou a mão da sra. de
La Baudraye ao dizer-lhe essas palavras tão claras e apertou-a entre as suas; Diná, porém, retirou docemente a mão.
— Sim, valho tanto como uma corista ou uma atriz—disse ela, com a voz comovida, embora em tom de gracejo.—Mas acredita que uma mulher que, apesar de seus ridículos,
tem alguma inteligência tenha reservado os mais belos tesouros do coração para um homem que não pode ver nela mais que um prazer passageiro?... Não me surpreendo
de ouvir de sua boca uma frase que tantas pessoas já me disseram... mas...
O cocheiro voltou-se.
— Aí está o sr. Gatien—disse.
— Amo-a, quero-a e você será minha, pois nunca senti por mulher alguma o que você me inspira!—gritou Lousteau ao ouvido de Diná.
— Mesmo contra a minha vontade?—replicou ela, sorrindo.
— É preciso ao menos, para salvar minha dignidade, que você pareça ter sido violentamente atacada—disse o parisiense, a quem a funesta propriedade do organdi sugeriu
uma ideia cômica.
Antes que Gatien tivesse atingido a extremidade da ponte, o audacioso jornalista amassou tão lestamente o vestido de organdi (Amassou tão lestamente o vestido de
organdi... A respeito deste episódio, lê-se nas Cartas à Estrangeira, de Balzac, na data de 9 de abril de 1843, um trecho que nos parece interessante reproduzir:
“Você quer ter uma ideia a respeito da Câmara dos Deputados? Pois ela estava amotinada e assaltara o ministro do Interior pelo seguinte motivo: Diná Piédefer usa
um vestido de organdi, a única fazenda que, uma vez amarrotada, não se pode alisar. Estêvão Lousteau, que, em companhia dela, reconduz Bianchon, encontra-se a sós
com ela durante o tempo em que a caleça atravessa a ponte de Cosne. O jornalista declara sua paixão a Diná e, como esta cria dificuldades, ele, vendo chegar um jovem
a cavalo, que vem para acompanhá-los e fiscalizá-los, lembra-se de amarrotar o vestido de Diná para fazer crer que Diná se rendeu. Você lerá isto: é bastante divertido.
Os deputados pensaram na sujeira mais atroz e acharam a ação impossível em face da brevidade do tempo. Quando, no Messager, soube disso, fiquei pasmado. No entanto,
há entre eles fabricantes que devem saber que o que eles supunham poderia fazer-se em qualquer espécie de vestido e que só o organdi se prestava para essa brincadeira.
E atribuíram isso ao autor, que, posso dizê-lo, é considerado o mais elegante em matéria de forma. E eles pretendem ser a elite da França! Vá a gente escrever! Fico
espantado com tudo isso, pois não há nada mais claro do que esse trecho do meu romance”.) que a sra. de La Baudraye se viu num estado de não poder mostrar-se.
— Ah! Senhor!—exclamou majestosamente Diná.
— A senhora me desafiou—respondeu o parisiense.
Gatien, porém, chegava com a celeridade dum apaixonado logrado. Para reconquistar um pouco da estima da sra. de La Baudraye, Lousteau esforçou-se por ocultar de
Gatien o vestido amarrotado e saltou da carruagem para falar com ele fora dela e no lado oposto ao em que estava Diná.
— Corra ao nosso hotel—disse-lhe.—Ainda há tempo, a diligência só parte daqui a uma hora. O manuscrito está em cima da mesa do quarto que Bianchon ocupou e ele precisa
disso, pois de outro modo não poderia dar sua aula.
— Vá logo, Gatien!—disse a sra. de La Baudraye, olhando para seu jovem adorador com uma expressão de despotismo.
O rapaz, diante dessa insistência, voltou à rédea solta.
— Depressa, para La Baudraye!—gritou Lousteau ao cocheiro.—A senhora baronesa está indisposta... Sua mãe será a única pessoa a saber do meu ardil—disse ele, voltando
a sentar-se junto de Diná.
— O senhor chama essa infâmia de ardil?—disse a sra. de La Baudraye, reprimindo algumas lágrimas que secaram ao fogo do orgulho ferido.
Recostou-se ao canto da caleça, cruzou os braços sobre o peito e ficou a olhar para o Loire, o campo, tudo, exceto para Lousteau. O jornalista assumiu então um tom
carinhoso e pôs-se a falar até chegarem a La Baudraye, onde Diná correu da caleça para dentro de casa esforçando-se para não ser vista por ninguém. Em sua perturbação,
atirou-se a um sofá para chorar.
— Se sou para a senhora um objeto de horror, de ódio ou de desprezo, está bem, vou-me embora—disse então Lousteau, que a seguia.
E o velhaco lançou-se aos pés de Diná. Foi nessa crise que a sra. Piédefer apareceu, dizendo à filha:
— Então, que tens? Que é que está acontecendo?
— Dê, imediatamente, outro vestido à sua filha—disse o audacioso parisiense ao ouvido da devota.
Ao ouvir o galope do cavalo de Gatien, a sra. de La Baudraye correu para o quarto, seguida da mãe.
— Não há nada no hotel!—disse Gatien a Lousteau, que foi a seu encontro.
— E no castelo de Anzy também não!—acrescentou Lousteau.
— Os senhores me fizeram de bobo—replicou Gatien num tom seco.
— Exatamente—respondeu Lousteau.—A sra. de La Baudraye achou muito inconveniente que você a seguisse sem que ela pedisse. Acredite-me, aborrecer as mulheres não
é um meio de seduzi-las. Diná o mistificou, você a fez rir e isso constitui um êxito que nenhum de vocês conseguira junto dela durante treze anos. E é a Bianchon
que você deve isso, pois seu primo é o autor da farsa do manuscrito!... O cavalo terá ficado desgostoso por isso?—observou Lousteau com uma expressão divertida,
enquanto Gatien se indagava se devia zangar-se ou não.
— O cavalo!—repetiu Gatien.
Nesse momento, apareceu a sra. de La Baudraye, com um vestido de veludo e acompanhada da mãe, que dirigiu a Lousteau olhares irritados. Diante de Gatien, era imprudente
a Diná mostrar-se fria ou severa com Lousteau, que, aproveitando-se dessa circunstância, ofereceu o braço à falsa Lucrécia (Lucrécia: dama romana que se matou por
ter sido violada por um filho do rei Tarquínio, o Soberbo, fato que provocou o estabelecimento da república romana. Seu nome costuma ser aplicado às mulheres orgulhosas
e virtuosas que preferem a morte à desonra.); porém ela o recusou.
— Quer então mandar embora um homem que lhe consagrou a vida?—disse ele, andando junto dela.—Vou ficar em Sancerre e partir amanhã.
— Vens junto, mamãe?—disse a sra. de La Baudraye à sra. Piédefer, evitando, assim, de responder ao argumento direto pelo qual Lousteau a forçava a tomar um partido.
O parisiense ajudou a mãe a subir à carruagem, ajudou também a sra. de La Baudraye segurando-a docemente pelo braço e sentou-se no banco da frente com Gatien, que
deixou o cavalo em La Baudraye.
— A senhora mudou de vestido—disse inabilmente Gatien a Diná.
— A senhora baronesa apanhou um golpe de ar frio do Loire—respondeu Lousteau.—Bianchon aconselhou-a a agasalhar-se.
Diná ficou vermelha como uma papoula e a sra. Piédefer assumiu uma expressão severa.
XXXIV - COMO O ORGANDI SE ESTIRA
— Pobre Bianchon, está a caminho de Paris! Que coração nobre!—disse Lousteau.
— Sim, sim—respondeu a sra. de La Baudraye—,ele, sim, é grande e delicado...
— Estávamos tão alegres ao partir—disse Lousteau—e ei-la indisposta, falando-me com amargura, e por quê?... Não está acostumada a ouvir dizerem-lhe que é bela e
inteligente? Pois eu declaro diante de Gatien que renuncio a Paris, vou ficar em Sancerre e incorporar-me entre seus vassalos. Senti-me tão jovem em minha terra
natal que já esqueci Paris e suas corrupções, seus aborrecimentos e seus prazeres fatigantes... Sim, minha vida me parece purificada...
Diná deixou Lousteau falar sem fitá-lo; houve, porém, um momento em que o improviso do sedutor se tornou tão espirituoso devido ao esforço que ele fez para fingir-se
apaixonado através de frases e ideias cujo sentido, obscuro para Gatien, era perfeitamente claro ao coração de Diná que ela levantou os olhos para ele. Esse olhar
pareceu encher de alegria a Lousteau, que redobrou de graça e acabou por fazer a sra. de La Baudraye rir. Sempre que, numa situação em que seu orgulho foi cruelmente
ofendido, a mulher ri, tudo fica comprometido. Quando entraram no imenso pátio coberto de areão e ornado de um tabuleiro de relva com tufos de flores que tanto realça
a fachada de Anzy, o jornalista estava dizendo:
— Quando as mulheres nos amam, perdoam-nos tudo, mesmo nossos crimes; quando não nos amam, não nos perdoam nada, nem mesmo nossas virtudes. Perdoa-me?—acrescentou
ao ouvido da sra. de La Baudraye, apertando-lhe o braço sobre seu coração num gesto cheio de ternura.
Diná não pôde evitar de sorrir.
Durante o jantar e o resto do serão, Lousteau manifestou uma alegria e uma animação encantadoras; mesmo, porém, no meio dessas demonstrações de sua embriaguez, entregava-se,
por momentos, à meditação, como quem se sente absorvido pela felicidade. Após o café, a sra. de La Baudraye e a mãe deixaram os homens ir passear no jardim. O sr.
Gravier disse, então, ao procurador do rei:
— Notou que a sra. de La Baudraye, que saíra com vestido de organdi, voltou com vestido de veludo?
— Ao subir à carruagem, em Cosne, o vestido ficou preso a um botão de cobre da caleça e rasgou-se de alto a baixo—respondeu Lousteau.
— Oh!—exclamou Gatien, sentindo o coração trespassado pela cruel diferença das duas explicações do jornalista.
Lousteau, que contava com essa surpresa de Gatien, segurou-lhe o braço e apertou-o, para pedir-lhe silêncio. Alguns momentos mais tarde, Lousteau deixou os três
adoradores de Diná e apoderou-se do pequeno La Baudraye. Gatien foi então interrogado sobre os acontecimentos da viagem. O sr. Gravier e o sr. de Clagny ficaram
estupefatos ao saber que Diná voltara de Cosne a sós com Lousteau, mas ainda mais estupefatos ficaram com as duas versões do parisiense sobre a troca do vestido.
Assim, os três homens derrotados mantiveram uma atitude muito embaraçada durante o serão. Na manhã seguinte, todos tiveram negócios que os obrigaram a deixar Anzy,
onde Diná ficou a sós com a mãe, o marido e Lousteau. O despeito dos três sancerrenses ergueu um grande clamor na cidade. A queda da Musa do Berry, do Nivernais
e do Morvan foi acompanhada dum verdadeiro dilúvio de maledicências, calúnias e conjeturas diversas, entre as quais figurava, na primeira linha, a história do vestido
de organdi. Nunca o vestuário de Diná alcançou tamanho êxito nem despertou maior atenção entre as moças, que não compreendiam as relações entre o amor e o organdi,
de que tanto riam as mulheres casadas. A presidenta Boirouge, furiosa com o infortúnio de seu Gatien, esqueceu os elogios que havia prodigalizado ao poema Paquita,
a sevilhana; fulminou censuras terríveis contra uma mulher capaz de publicar semelhante infâmia.
— A desgraçada pratica tudo o que escreveu!—dizia ela.—Talvez termine como sua heroína!...
Aconteceu com Diná entre os sancerrenses o mesmo que com o marechal Soult (Marechal Soult: Nicolas Soult (1769-1851), marechal da França, mandado por Napoleão para
conter a invasão inglesa no Béarn, parte do atual departamento dos Baixos Pireneus; derrotado em Pampeluna e em Baiona, conseguiu infligir uma derrota aos invasores
em Tolosa, em 1814. Depois da queda de Napoleão, aderiu aos Bourbon, que lhe concederam um lugar na Câmara dos Pares; isto não o impediu, porém, de, em 1830, se
tornar o partidário entusiástico de Luís Felipe, que o nomearia duas vezes primeiro-ministro.) entre os jornais da oposição; enquanto foi ministro, diziam que perdeu
a batalha de Toulouse; logo que se retirou da atividade, passaram a dizer que a ganhou! Virtuosa, Diná era considerada rival das Camille Maupin, das mulheres mais
ilustres; mas, feliz, passou a ser uma infeliz.
O sr. de Clagny defendeu corajosamente Diná, foi repetidas vezes ao castelo de Anzy para ter o direito de desmentir o boato que corria sobre ela, a quem continuava
a adorar, mesmo caída, e sustentou que ela e Lousteau estavam apenas trabalhando em colaboração numa grande obra. Riram-se do procurador do rei.
XXXV - ONDE O SR. DE LA BAUDRAYE SE SENTE VINGADO DO BELO MILAUD DE NEVERS
O mês de outubro foi encantador. O outono é a mais bela estação do vale do Loire; mas, em 1836, ele foi particularmente magnífico. A natureza parecia fazer-se cúmplice
da felicidade de Diná, que, de acordo com as previsões de Bianchon, chegou gradativamente a uma violenta paixão. Em um mês, a castelã mudou completamente. Admirou-se
de encontrar em si tantas faculdades inertes, adormecidas, inúteis até então. Lousteau foi para ela um anjo, pois a paixão, essa necessidade real das almas grandes,
fazia dela uma mulher inteiramente nova. Diná vivia! Achava em que empregar suas forças, descobria perspectivas inesperadas em seu futuro, era feliz, enfim, feliz
sem preocupações, sem obstáculos. O imenso castelo, os jardins, o parque e a floresta eram tão favoráveis ao amor! Lousteau encontrou na sra. de La Baudraye uma
ingenuidade de sensações, uma inocência, se quiserdes, que a tornou original: o que ela ofereceu de excitante, de imprevisto, excedeu ao que se poderia esperar duma
donzela. Lousteau foi sensível a uma lisonja que em quase todas as mulheres é uma comédia, mas que, em Diná, era sincera: ela aprendia com ele o amor, pois ele era
realmente o primeiro em seu coração. Além disso, ele se esforçou por ser imensamente amável. Os homens, como também as mulheres, têm um repertório de recitativos,
de cantilenas, de noturnos, de motivos, de reentradas (deve-se dizer de fórmulas, embora se trate de amor?) que eles acreditam ser de sua exclusiva propriedade.
Os que chegam à idade de Lousteau procuram distribuir habilmente as peças desse tesouro na ópera duma paixão; vendo, porém, em sua aventura com Diná, apenas a conquista
duma bela mulher, o parisiense quis gravar sua recordação em traços indeléveis no coração da baronesa e durante esse belo mês de outubro prodigalizou suas mais sedutoras
melodias e suas mais sábias barcarolas. Esgotou, enfim, os recursos da encenação do amor, para nos servirmos duma dessas expressões deturpadoras da gíria teatral
e que traduz admiravelmente bem essa manobra.
— Se essa mulher me esquecer—dizia às vezes para si mesmo, ao voltar com ela para o castelo após um longo passeio pelo bosque—,não lhe quererei mal por isso, pois
ela terá achado algo melhor!...
Quando duas criaturas, após terem gasto os duetos dessa deliciosa partitura, continuam a gostar uma da outra, pode-se dizer que se amam de verdade. Além disso, Lousteau
não teria tempo para repetir-se, pois esperava deixar Anzy nos primeiros dias de novembro, visto que seu folhetim o chamava a Paris. Antes do almoço, na véspera
da projetada partida, o jornalista e Diná viram chegar o pequeno La Baudraye acompanhado dum artista de Nevers, um restaurador de esculturas.
— Que é que há?—perguntou Lousteau.—Que pensa fazer em seu castelo?
— Eis o que quero—respondeu o velhote, levando o jornalista, a esposa e o artista provinciano ao terraço.
Mostrou na fachada, acima da porta de entrada, um precioso cartucho sustido por duas sereias, muito semelhante ao que decora a arcada, atualmente condenada, pela
qual se passava antigamente do Quai des Tuileries ao pátio de entrada do antigo Louvre e acima do qual se lia: BIBLIOTECA DO GABINETE DO REI. Esse cartucho apresentava
o antigo escudo dos D’Uxelles que trazem partido de ouro e de goles, com uma faixa entrecambada; como suportes, dois leões, o da destra de goles e o da sinistra
de ouro; por timbre o elmo de cavaleiro com paquife dos esmaltes do escudo, encimado pela coroa ducal. E como divisa Cy paroist! (Cy paroist (em francês antigo):
“Vê-se logo”.), frase altiva e sonora.
— Quero substituir as armas da casa D’Uxelles pelas minhas; e, como elas figuram seis vezes nas duas fachadas e nas duas alas, vamos ter muito que fazer.
— Suas armas tão recentes!—exclamou Diná.—E depois de 1830!...
— Não constitui um morgadio?
— Eu compreenderia esse projeto se o senhor tivesse filhos—disse-lhe o jornalista.
— Oh!—respondeu o velhote.—A sra. de La Baudraye é jovem, ainda há tempo.
Essa fatuidade fez sorrir Lousteau, que não compreendeu o sr. de La Baudraye.
— Então, Didine—disse ele ao ouvido da sra. de La Baudraye—,por que hás de ter remorsos?
Diná pediu e obteve um dia a mais e os dois amantes despediram-se à maneira desses teatros que levam duas vezes seguidas a última representação duma peça de sucesso.
E quantas promessas trocadas! Quantos pactos solenes exigidos por Diná e firmados sem dificuldade pelo impudente jornalista! Com a superioridade duma mulher superior,
Diná acompanhou, à vista de todos, Lousteau até Cosne, em companhia da mãe e do pequeno La Baudraye. Quando, dez dias mais tarde, a sra. de La Baudraye recebeu em
seu salão em La Baudraye os srs. de Clagny, Gatien e Gravier, aproveitou a oportunidade para dizer audaciosamente a cada um deles:
— Devo ao sr. Lousteau ter ficado sabendo que não era por mim mesma que me amavam.
E que cortes deu na pele dos homens, a propósito da natureza de seus sentimentos, do objetivo de seu vil amor etc.! Dos três apaixonados de Diná, o sr. de Clagny
foi o único a dizer-lhe: “Amo-a apesar de tudo!...”. Assim, Diná tomou-o como confidente e prodigalizou-lhe todas as doçuras que as mulheres preparam para os Gurth
(Gurth: personagem de Ivanhoé, de Walter Scott.) que assim carregam a cadeia duma adorada escravidão.
TERCEIRA PARTE
UMA DUPLA CORRENTE
XXXVI - O JORNALISTA VISTO DE PERTO
De volta a Paris, Lousteau perdeu em algumas semanas a lembrança dos belos dias passados no castelo de Anzy. Eis por quê: Lousteau vivia da pena. Neste século, e
principalmente após a vitória duma burguesia que se resguarda de imitar Francisco I ou Luís XIV, viver da pena é um trabalho a que os forçados se negariam, pois
prefeririam a morte. Viver da pena não é criar, criar hoje, amanhã, sempre... ou dar a impressão de criar? Ora, a aparência custa tão caro como a realidade! Além
do seu folhetim num jornal diário, que parecia o rochedo de Sísifo e que desabava todas as segundas-feiras sobre a barba de sua pena, Estêvão trabalhava para três
ou quatro jornais literários. Mas, podeis crer!, ele não punha nenhuma consciência artística em suas produções. O sancerrense pertencia, por sua leviandade, por
sua negligência, se quiserdes, a esse grupo de escritores conhecidos pelo nome de profissionais. Na literatura, atualmente, em Paris, o profissional é o homem que
renunciou a todas as aspirações a uma posição qualquer. Quando não pode ou não consegue ser nada, o escritor se faz profissional. Leva então uma vida bastante agradável.
Os estreantes, as literatas, as atrizes que iniciam ou encerram sua carreira, os autores, os editores, todos lisonjeiam ou amimam essas penas que fazem tudo. Lousteau,
tornado desfrutador, quase não tinha outra despesa além do aluguel da casa. Tinha camarotes em todos os teatros. A venda dos livros de que ele dava ou não dava notícia
proporcionava-lhe uma verba suficiente para pagar a conta do luveiro; assim, dizia ele aos autores que se imprimiam por conta própria:
— Estou sempre com seus livros nas mãos.
Arrecadava taxas sobre o amor-próprio, representadas em desenhos e quadros. Todas suas tardes estavam tomadas por jantares, a noite pelo teatro, a manhã pelos amigos,
por visitas ou passeios. Seu folhetim, seus artigos e as duas novelas que ele escrevia por ano para os semanários constituíam o imposto pago por essa existência
venturosa. Estêvão lutara, entretanto, durante dez anos, para chegar a essa posição. Conhecido, enfim, em todos os meios literários, estimado pelo bem como pelo
mal que praticava com uma irrepreensível bonomia, ele deixava o barco correr, despreocupado do futuro. Reinava no meio dum círculo de novatos, tinha amizades, isto
é, hábitos que duravam há quinze anos, pessoas com as quais ceava, jantava e se divertia. Ganhava setecentos a oitocentos francos por mês, soma que a prodigalidade
peculiar aos pobres tornava insuficiente. Assim, Lousteau ainda se sentia tão pobre como ao iniciar-se em Paris, quando pensava: “Como eu seria rico se ganhasse
quinhentos francos por mês!”.
Eis a razão desse fenômeno. Lousteau morava à Rue des Martyrs, num belo rés do chão com jardim, magnificamente mobiliado. Quando se instalou ali, em 1833, fez uma
compra a um estofador que restringiu seu bem-estar durante muito tempo. O apartamento custava duzentos francos de aluguel. Ora, os meses de janeiro, abril, julho
e outubro eram, segundo sua expressão, meses miseráveis. O aluguel e as contas do porteiro levavam tudo. Nem por isso Lousteau saía menos de carro nem gastava uma
centena de francos a menos em almoços; gastava trinta francos em charutos e não sabia recusar um jantar ou um vestido a suas amantes ocasionais. E, assim, avançava
tanto sobre o produto sempre incerto dos meses seguintes que não era mais fácil ver cem francos sobre o aquecedor quando ganhava setecentos a oitocentos francos
por mês do que quando ganhava apenas duzentos, em 1822. Cansado, às vezes, dessas vicissitudes da vida literária, farto de prazeres como uma cortesã, Lousteau se
aborrecia com essa vida fácil, sentava-se à ribanceira e dizia a alguns íntimos, a Nathan, a Bixiou (Bixiou: outra personagem balzaquiana de primeiro plano, neto
da velha Descoings, cuja história é contada em Um conchego de solteirão.), enquanto fumava um charuto ao fundo de seu jardinzinho, diante dum relvado sempre verde
do tamanho duma mesa de refeições:
— Como acabaremos? Os cabelos brancos já nos estão fazendo suas respeitosas intimações!...
— Ora, nós nos casaremos, quando quisermos ocupar-nos de nosso casamento como nos ocupamos dum drama ou dum livro—dizia Nathan.
— E Florina?—intervinha Bixiou.
— Todos nós temos uma Florina—dizia Estêvão, jogando o toco do charuto à relva e pensando na sra. Schontz (Florina: amante e mais tarde esposa de Nathan; já apareceu
em Uma filha de Eva.—Sra. Schontz: desempenha papel importante no desfecho de Beatriz.). A sra. Schontz era uma mulher bastante bonita para poder vender caro o usufruto
de sua beleza e reservar sua nua propriedade a Lousteau, seu amigo íntimo. Como todas essas mulheres de vida equívoca conhecidas pelo nome de lorettes, tirado da
igreja em torno da qual se agrupavam (A igreja em torno da qual as mulheres de vida equívoca se agrupavam chama-se Notre-Dame de Lorette.), ela morava à Rue Fléchier,
a dois passos de Lousteau. A sra. Schontz regalava seu amor-próprio afrontando as amigas com a declaração de ser amada por um homem inteligente. Esses detalhes sobre
a vida e as finanças de Lousteau são necessários, pois essa penúria e essa existência de boêmio a quem o luxo parisiense era indispensável deviam influir cruelmente
sobre o futuro de Diná.
XXXVII - COMO SE TROÇA DO VERDADEIRO AMOR
Os que conhecem a vida boêmia de Paris compreenderão como, ao fim de quinze dias, o jornalista, novamente mergulhado em seu meio literário, podia rir de sua baronesa,
entre amigos e mesmo com a sra. Schontz. Quanto aos que acham infames tais processos, é mais ou menos inútil apresentar-lhes escusas inadmissíveis.
— Que fizeste em Sancerre?—perguntou Bixiou a Lousteau, quando se encontraram.
— Fiz um favor a três bravos provincianos, um recebedor de contribuições, um primo e um procurador do rei, que há dez anos—respondeu ele—andavam rondando uma dessas
cento e uma décimas musas que adornam os departamentos, sem lhe tocar, como se fosse um desses bolos de sobremesa em que não se toca até que um espírito mais decidido
o corte...
— Pobre rapaz!—exclamou Bixiou.—Bem eu dizia que ias a Sancerre para tratar de assuntos di... versos.
— Teu trocadilho é tão detestável quanto minha musa é bela, meu caro—respondeu ele.—Pergunta a Bianchon.
— Uma musa e um poeta—replicou Bixiou.—Tua aventura é um verdadeiro tratamento homeopático.
No décimo dia, Lousteau recebeu uma carta com o carimbo de Sancerre.
— Bem! Bem!—murmurou Lousteau. “Amigo querido, ídolo de meu coração e de minha alma...”—Vinte páginas de escrita! Uma folha por dia e datada à meia-noite! Escreve-me
quando está só... Pobre mulher! Ah! Ah! Post-scriptum. “Não ouso pedir-te que me escrevas, como faço, todos os dias; espero, porém, receber de meu bem-amado duas
linhas por semana, para tranquilizar-me...”.—Que pena queimar isto! Está muito bem escrito—disse Lousteau consigo, jogando as dez folhas ao fogo após tê-las lido.—Essa
mulher nasceu para fazer literatura.
Lousteau pouco temia a sra. Schontz, de quem era amado por si mesmo; mas ele suplantara um amigo no coração duma marquesa. A marquesa, mulher muito independente,
vinha às vezes de surpresa à sua casa, à noite, em fiacre, com o rosto coberto por um véu e se permitia, em sua qualidade de mulher de letras, remexer as gavetas.
Oito dias mais tarde, Lousteau, que mal se recordava de Diná, foi abalado por outro maço de papéis de Sancerre: oito folhas! dezesseis páginas! Ouviu os passos duma
mulher, pensou que fosse alguma visita domiciliar da marquesa e jogou as encantadoras e deliciosas provas de amor ao fogo... sem as ler.
— Uma carta de mulher!—exclamou a sra. Schontz ao entrar.—O papel e o lacre são perfumados...
— Para o senhor—disse um carregador da companhia de transportes, deixando na sala de espera duas enormes cestas.—Tudo está pago. Faça o favor de assinar o recibo.
— Tudo está pago!—exclamou a sra. Schontz.—Só pode ter vindo de Sancerre.
— Sim, senhora—disse o carregador.
— Tua décima musa é uma senhora de elevada inteligência—disse a mulher, abrindo uma cesta enquanto Lousteau assinava o recibo.—Gosto duma musa que conhece a lida
de casa, que faz ao mesmo tempo pastéis de tinta e pastéis de carne... Oh! Que lindas flores!—exclamou, ao abrir a segunda cesta.—Não há nada mais belo que isto
em Paris... O quê! O quê! Uma lebre, perdizes, a metade dum cabrito! Convidaremos teus amigos e faremos um jantar formidável, pois Atália tem um jeito especial para
preparar cabritos.
Lousteau respondeu a Diná; mas, em vez de responder com o coração, ele o fez com a inteligência. Assim, a carta foi ainda mais perigosa, parecia uma carta de Mirabeau
a Sophie (Mirabeau: Honoré-Gabriel Mirabeau (1749-1791), o orador mais eminente da Revolução. Teve uma mocidade escandalosa, que levou o pai a fazê-lo encarcerar
várias vezes, a última na fortaleza de Joux, onde conheceu e conquistou Sophie, a jovem esposa do velho marquês de Monnier, fugindo com ela para Amsterdã. As cartas
que mais tarde lhe escreveria da prisão de Vincennes, onde passou quarenta e quatro meses, foram publicadas em 1792; são documentos curiosos, cheios de paixão e
eloquência.). O estilo dos verdadeiros apaixonados é límpido. É uma água pura que deixa ver o fundo do coração entre duas margens ataviadas dos nadas da vida, ornadas
dessas flores que nascem cada dia e cujo encanto é inebriante, mas apenas para duas criaturas. Assim, sempre que a leitura duma carta de amor pode dar prazer a um
terceiro, é porque saiu, seguramente, do cérebro, e não do coração. As mulheres, porém, sempre hão de se deixar iludir com tais cartas, pois julgam-se a fonte exclusiva
desse brilho de estilo.
XXXVIII - UM CASAMENTO COMO SE DESFAZEM MUITOS
No fim de dezembro, Lousteau já não lia mais as cartas de Diná, que se foram acumulando numa gaveta sempre aberta da cômoda, sob as camisas, às quais perfumavam.
Sucedera a Lousteau uma dessas aventuras a que os boêmios se devem agarrar com todas as forças. Em meados desse mês, a sra. Schontz, que se interessava muito por
Lousteau, pediu-lhe que passasse por sua casa pela manhã para tratar de negócios.
— Querido, podes casar-te—disse-lhe ela.
— Todos os dias, querida, felizmente.
— Quando digo casar-te, falo em arranjar casamento vantajoso. Não tens preconceitos, não se precisa fingir comigo; eis o negócio: uma moça cometeu uma falta e a
mãe não sabe nem do primeiro beijo. O pai é um honesto tabelião cheio de dignidade e teve a sensatez de calar-se. Quer casar a filha dentro de quinze dias, dá um
dote de cento e cinquenta mil francos, pois tem outros filhos; além disso... nada mau!... dá um suplemento de cem mil francos de mão beijada para indenizar a quebra.
Trata-se duma antiga família da burguesia parisiense, do Quartier des Lombards...
— Ora, por que o amante não se casa?
— Morreu.
— Que romance! Só mesmo na Rue des Lombards acontecem essas coisas...
— Mas não vás pensar que um irmão zeloso tenha matado o sedutor!... O rapaz morreu estupidamente duma pleurisia que apanhou ao sair do teatro. Primeiro escrevente,
e completamente pronto, o rapaz seduziu a moça para ficar com o cartório. Aí está uma vingança do céu!
— Por quem soubeste isso?
— Por Málaga (Málaga: alcunha de Margarida Turquet, já encontrada em A falsa amante, Tadeu Paz fê-la passar por sua amante para dissimular a sua paixão pela condessa
Laginski.). O tabelião é o seu coronel.
— O quê! Então é Cardot (Cardot pai era o tio e protetor de Oscar Husson (em Uma estreia na vida), que se zangou com ele quando o encontrou dormindo, bêbado, em
casa de Florentina.), filho daquele velhote de cabeleira empoada e rabicho, o primeiro amigo de Florentina (Florentina: amante do velho Cardot (ver Uma estreia na
vida).)?
— Precisamente. Málaga, cujo amante é um fedelho de dezoito anos, músico, não pode, em consciência, casá-lo nessa idade; ela ainda não tem nenhuma razão para querer-lhe
mal. Além disso, o sr. Cardot quer um homem de trinta anos, pelo menos. Acho que o tabelião se sentirá muito honrado em ter por genro uma celebridade. Assim, pensa
bem, meu caro! Pagas tuas dívidas, ficas com doze mil francos de renda e não precisas ter o aborrecimento de te tornares pai: vê quantas vantagens! E, além disso,
desposas uma viúva consolável. A família tem cinquenta mil francos de renda, além do cargo; assim, não poderás deixar de ter um dia mais quinze mil francos de renda
e ficarás pertencendo a uma família que, politicamente, está numa bela posição. Cardot é cunhado do velho Camusot, o deputado, que esteve durante tanto tempo com
Fanny Beaupré (Fanny Beaupré: cortesã amiga primeiramente de Camusot (Uma estreia na vida) e, depois, do duque de Hérouville (Modesta Mignon).).
— Sim—disse Lousteau—,o velho Camusot casou-se com a filha mais velha do finado tio Cardot e faziam suas farras juntos.
— A sra. Cardot, a tabeliã—acrescenrou a sra. Schontz—,é uma Chiffreville, fabricante de produtos químicos, a aristocracia atual, imagina! Esse é o lado mau: terás
uma sogra terrível... Oh! Uma mulher capaz de matar a filha se soubesse em que estado... Essa Cardot é devota, seus lábios são duas garantias dum passado puro...
Um gozador como tu nunca seria aceito por aquela mulher, que, com boa intenção, espionaria tua vida de rapaz e descobriria todo teu passado; dizem, porém, que Cardot
empregará sua autoridade paterna. O pobre homem será obrigado a mostrar-se amável, durante alguns dias, com sua mulher, uma mulher de pau, meu caro; Málaga, que
a viu, denominou-a instrumento de suplício. Cardot tem quarenta anos, será administrador de seu distrito e talvez chegue a deputado. Ele oferece, em vez dos cem
mil francos, uma linda casa à Rue Saint-Lazare, com jardim e quintal, que lhe custou apenas sessenta mil francos na crise de julho. Ele simulará uma venda e isso
te dará a oportunidade de ir à sua casa, ver a moça, agradar a mãe... A casa te dará prestígio aos olhos da sra. Cardot. Serás, enfim, um príncipe nesse pequeno
palácio. Com a influência de Camusot, farás com que te nomeiem bibliotecário dum ministério que não tenha livros. Ou então, se colocares esse dinheiro em caução
de jornal, ficarás com dez mil francos de renda, pois isso te dará seis mil e a biblioteca quatro mil... Pode haver coisa melhor? Se te casasses com um cordeiro
sem mancha, ele se poderia transformar numa mulher leviana no fim de dois anos... Que é isso para ti, então? Apenas um dividendo antecipado. É a moda! Se quiseres,
iremos jantar amanhã na casa de Málaga. Lá verás teu sogro, ele pensará que a indiscrição foi cometida por Málaga, contra quem não se pode zangar, e então o dominarás.
Quanto à tua esposa... Ora!... Sua falta te permite continuar solteiro...
— Ah! Tua linguagem não é nada hipócrita.
— Amo-te por ti mesmo, eis tudo, e raciocino. Então, que é que te faz ficares aí como um Abd-el-Kader de cerimoniosa (Abd-el-Kader: o famoso emir árabe (1807-1883),
que fez guerra à França de 1832 a 1847, estava na ordem do dia no momento do romance.)? Não há o que pensar. O casamento é cara ou coroa. Então, tiraste coroa?
— Terás minha resposta amanhã—disse Lousteau.
— Eu preferiria que fosse agora. Málaga preparará tudo esta tarde. Pois bem, sim...
Lousteau passou a tarde a escrever à marquesa uma longa carta, na qual lhe expunha as razões que o obrigavam a casar-se: sua constante pobreza, a indolência de sua
imaginação, os cabelos brancos, sua fadiga moral e física, enfim, quatro páginas de motivos.
— Quanto a Diná, mandarei uma participação—disse consigo.—Como diz Bixiou, não há ninguém como eu para acabar com uma paixão...
XXXIX - UMA PÉROLA
Lousteau, que no primeiro momento se enchera de escrúpulos, chegara, no dia seguinte, a temer que o casamento falhasse. Assim, mostrou-se encantador com o tabelião.
— Conheci seu pai—disse-lhe—na casa de Florentina e devia ter conhecido o senhor na casa da srta. Turquet. Filho de peixe sabe nadar. Era muito bom rapaz, e filósofo,
o tio Cardot, pois, permita-me, era assim que o chamávamos. Naquele tempo, Florina, Florentina, Túlia (Túlia: bailarina da Ópera, amante do duque de Rhétoré e depois
de De Bruel, que casou com ela; protagonista de Um príncipe da Boêmia.), Corália (Corália: cortesã, cuja grande paixão por Luciano de Rubempré é contada em Ilusões
perdidas.) e Marieta (Marieta: nome galante de Maria Godeschal, bailarina da Ópera, já encontrada em Uma estreia na vida; durante algum tempo, amante de Felipe Bridau
(Um conchego de solteirão).) eram como os cinco dedos da mão... E já lá vão quinze anos... Compreende o senhor que a época das minhas loucuras já passou... Naquele
tempo, o prazer arrebatava-me e hoje tenho ambições; estamos numa época em que, para vencer, precisamos ser livres de dívidas, ter uma fortuna, esposa e filhos.
Se eu pagar impostos e for proprietário de meu jornal, em vez de ser apenas redator, chegarei a deputado, como tantos outros!
O tabelião Cardot gostou dessa profissão de fé. Lousteau fizera esforços para agradar ao tabelião e conseguiu-o, pois este, como é fácil conceber, teve mais franqueza
com um homem que conhecera os segredos da vida de seu pai do que teria tido com qualquer outro. No dia seguinte, Lousteau foi apresentado como comprador da casa
da Rue Saint-Lazare, no seio da família Cardot, e jantou com ela três dias mais tarde.
Cardot morava numa velha casa próxima à Place Châtelet. Tudo lá era ordinário. A economia cobrira as menores douraduras com gazes verdes. Os móveis estavam encapados.
Se, por um lado, a abastança da casa não dava lugar à mínima preocupação, por outro, dava desejo de bocejar desde a primeira meia hora. O tédio espalhava-se por
todos os móveis. Os cortinados caíam tristemente. A sala de refeições parecia a do Avarento. Mesmo que Lousteau já não conhecesse Málaga, à simples inspeção da casa
teria descoberto que a existência do tabelião decorria em outro teatro. O jornalista viu uma moça alta e loura, de olhos azuis, tímida e lânguida ao mesmo tempo.
Lousteau agradou ao irmão mais velho, quarto escrevente do cartório, a quem a glória literária atraía em suas armadilhas e que devia ser o sucessor de Cardot. A
caçula tinha doze anos. Lousteau, enfeitado com um arzinho jesuítico, fingiu-se de religioso e monarquista com a mãe, mostrou-se sóbrio, amável, sério, lisonjeador.
Vinte dias após a apresentação, no quarto jantar, Felícia Cardot, que estudava Lousteau com o canto dos olhos, levou-lhe o café a um vão da janela e disse-lhe em
voz baixa, com lágrimas nos olhos:
— Toda minha vida, senhor, será empregada em agradecer sua dedicação por uma pobre moça...
Lousteau comoveu-se, tantas coisas havia no olhar, na inflexão da voz, na atitude.
— Ela faria a felicidade dum homem de bem—disse ele consigo, apertando-lhe a mão como resposta.
A sra. Cardot via no genro um homem cheio de futuro; entre todas as belas qualidades que lhe atribuía, a que mais a encantava era a moralidade. Instigado pelo velhaco
tabelião, Estêvão dera sua palavra de honra de que não tinha filho natural nem ligação alguma que pudesse comprometer o futuro da querida Felícia.
— O senhor pode achar-me um pouco exagerada—dizia a beata ao jornalista.—Mas, quando se dá uma pérola como minha Felícia a um homem, deve-se zelar por seu futuro.
Não sou dessas mães que ficam encantadas por livrar-se dos filhos. O sr. Cardot precipita-se, apressa o casamento da filha, quereria vê-lo realizado. É a única coisa
em que discordamos... É verdade que com um homem como o senhor, um literato cuja mocidade foi preservada da desmoralização atual pelo trabalho, a gente pode ficar
descansada; apesar disso, o senhor zombaria de mim se eu casasse minha filha de olhos vendados. Sei muito bem que o senhor não é inocente, e eu me aborreceria se
o fosse, por causa de Felícia.—Disse-lhe ao ouvido:—Mas, se o senhor tem alguma ligação... Repare, o senhor já deve ter ouvido falar da sra. Roguin (Sra. Roguin:
parenta dos Guillaume, a tabeliã protegia os amores de Augustina Guillaume e Teodoro de Sommervieux (Ao “Chat-qui-pelote”); sua ligação com Du Tillet já nos é conhecida
de Uma filha de Eva.), esposa dum tabelião, que, desgraçadamente para nossa classe, teve uma celebridade tão cruel. Ela está ligada, desde 1820, com um banqueiro...
— Sim, Du Tillet (Du Tillet: protagonista de A comédia humana, já conhecido nosso de Uma filha de Eva. Em Um conchego de solteirão, ele e Nucingen foram os instrumentos
da ruína de Felipe Bridau.)—respondeu Estêvão, que mordeu a língua ao perceber a imprudência com que confessara conhecer Du Tillet.
— Pois bem, se o senhor fosse mãe, não estremeceria ao pensar que sua filha podia ter a sorte da sra. Du Tillet? Na sua idade, e nascida Granville, ter como rival
uma mulher de mais de cinquenta anos!... Eu preferiria ver minha filha morta a dá-la a um homem que tivesse relações com uma mulher casada... Uma rapariga, uma mulher
de teatro, pega-se hoje e deixa-se amanhã! Segundo penso, essas mulheres não são perigosas, o amor é um meio de vida para elas, não pertencem a ninguém; se perdem
um, logo encontram dois!... Mas uma mulher que faltou a seus deveres tem de se apegar à sua falta, só é desculpável por sua constância, se é que semelhante crime
pode ser desculpável! É assim, pelo menos, que entendo a falta duma mulher honesta, e é isso que a torna tão temível...
Em vez de investigar o sentido dessas palavras, Estêvão pôs-se a gracejar na casa de Málaga, para onde se dirigiu com o futuro sogro, pois o tabelião e o jornalista
deram-se muito bem um com o outro.
XL - SANCTA SIMPLICITAS
Lousteau já se arvorava em homem importante diante dos amigos; sua vida ia, finalmente, ter um sentido, a sorte o bafejava, dentro de poucos dias ia tornar-se proprietário
de um encantador palacete à Rue Saint-Lazare, ia casar-se, desposar uma mulher encantadora e passaria a ter cerca de vinte mil francos de renda; poderia dar asas
a sua ambição; era amado pela moça, ia pertencer a várias famílias importantes. Navegava, enfim, com as velas soltas, no lago azul da esperança. A sra. Cardot mostrara
desejos de ver as gravuras de Gil Blas ( Gil Blas ou História de Gil Blas de Santillane: famoso romance de costumes de Lesage (1668-1747).), um desses livros ilustrados
que os editores franceses então estavam começando a publicar, e Lousteau, na véspera, enviara os primeiros fascículos à sra. Cardot. A tabeliã tinha um plano, pedira
o livro unicamente para devolvê-lo, queria um pretexto para ir de surpresa à casa do futuro genro. Vendo seu apartamento de solteiro, que o marido lhe descrevia
como encantador, ela ficaria sabendo mais, dizia, do que tudo quanto lhe contassem sobre os costumes de Lousteau. Sua cunhada, sra. Camusot, que ignorava o fatal
segredo, via com temor esse casamento. O sr. Camusot, conselheiro da Corte real, filho dum primeiro matrimônio, dissera à sogra, irmã do tabelião Cardot, coisas
pouco lisonjeiras a respeito do jornalista. Lousteau, homem tão inteligente, não achou nada extraordinário que a esposa de um rico tabelião quisesse ver um volume
de quinze francos antes de comprá-lo. Um homem de espírito nunca se rebaixa a examinar os burgueses, que lhe escapam justamente graças a essa falta de atenção; e,
enquanto ele ri à sua custa, eles têm tempo de enredá-lo.
Num dos primeiros dias de janeiro de 1837, a sra. Cardot e a filha tomaram, pois, um carro de aluguel e dirigiram-se à Rue des Martyrs a fim de devolver os fascículos
de Gil Blas, ao noivo de Felícia, encantadas ambas de ir conhecer o apartamento de Lousteau. Essas visitas domiciliares são habituais nas antigas famílias burguesas.
O porteiro de Estêvão não estava; mas sua filha, ao saber da digna burguesa que estava falando com a sogra e a noiva do sr. Lousteau, entregou-lhes a chave do apartamento
com satisfação tanto maior porque a sra. Cardot lhe pusera uma moeda de ouro na mão. Era cerca de meio-dia, hora em que o jornalista voltava do almoço no Café Anglais.
Ao transpor o espaço que existe entre Notre Dame de Lorette e a Rue des Martyrs, Lousteau viu por acaso um carro que subia pela Rue du Faubourg Montmartre e julgou
ter tido uma visão ao perceber dentro dele o rosto de Diná! Ficou enregelado de pasmo ao encontrar efetivamente sua Didine à portinhola.
— Que vens fazer aqui?!—exclamou ele.
Não podia usar senhora para uma mulher a quem queria mandar de volta.
— Meu amor!—exclamou ela.—Então não leste minhas cartas?...
— Sim—respondeu Lousteau.
— E então?
— E então?
— És pai—respondeu a provinciana.
— Bah!—exclamou ele, sem se importar com a crueldade da exclamação. “Enfim”, pensou, “é preciso prepará-la para a catástrofe.”
Fez um sinal ao cocheiro para parar, deu a mão à sra. de La Baudraye e deixou o cocheiro com o carro cheio de malas, decidido a mandar de volta a mulher com toda
a bagagem.
— Senhor! Senhor!—gritou a pequena Pamela.
A menina era inteligente e sabia que três mulheres não se devem encontrar num apartamento de rapaz.
— Bem! Bem!—disse o jornalista, conduzindo Diná.
Pamela julgou então que aquela mulher desconhecida fosse uma parenta. Acrescentou, contudo:
— A chave está na porta, sua noiva e a mãe estão lá.
Em sua perturbação e com os ouvidos cheios de miríades de frases que a sra. de La Baudraye lhe dizia, Estêvão entendeu: Minha mãe está lá, única coisa que lhe pareceu
possível, e entrou. A noiva e a sogra, que estavam no quarto de dormir, agacharam-se a um canto ao ver Estêvão com uma mulher.
— Enfim, meu Estêvão, meu anjo, sou tua para sempre!—exclamou Diná, saltando-lhe ao pescoço e abraçando-o, enquanto ele passava a chave pelo lado de dentro.—A vida
era uma perpétua agonia para mim, no castelo de Anzy. Eu não suportava mais e, no dia em que foi preciso declarar o que hoje constitui minha felicidade, não tive
mais forças para resistir. Trago-te tua mulher e teu filho! Oh! Não me escreveste! Deixaste-me dois meses sem notícias!...
— Mas, Diná, tu me metes num embaraço...
— Tu me amas?...
— Como não te amaria!... Mas não seria melhor teres ficado em Sancerre?... Vivo aqui na mais profunda miséria e tenho medo de que venhas a sofrê-la também...
— Tua miséria será o paraíso para mim. Quero viver aqui, sem nunca sair...
— Meu Deus, isso é bonito de dizer, mas...
Diná sentou-se e pôs-se a chorar ao ouvir essa frase rudemente pronunciada. Lousteau não pôde resistir a essa explosão, estreitou a baronesa nos braços e beijou-a.
— Não chores, Didine!—exclamou.
Ao soltar essa frase, o folhetinista viu no espelho o vulto da sra. Cardot, que, do fundo do quarto, o observava.
— Está bem, Didine, vai com Pamela mandar descarregar tuas malas—disse-lhe ao ouvido.—Vai, não chores mais, seremos felizes. Acompanhou-a até a porta e aproximou-se
da tabeliã para conjurar a tempestade.
— Meu senhor—disse-lhe a sra. Cardot—,felicito-me por ter tido a ideia de examinar o apartamento daquele que ia ser meu genro. Mesmo que minha Felícia tenha de morrer,
não será esposa dum homem como o senhor. O senhor tem de cuidar da felicidade de sua Didine.
E a beata saiu levando Felícia, que chorava, pois já se afeiçoara a Lousteau. A terrível sra. Cardot subiu ao carro fitando com insolência a pobre Diná, que ainda
sentia no coração a punhalada do “Isso é bonito de dizer”, mas que, como todas as mulheres apaixonadas, acreditava, apesar de tudo, no “Não chores, Didine!”. Lousteau,
a quem não faltava essa decisão especial conferida pelas vicissitudes duma vida agitada, disse consigo:
— Didine tem nobreza; uma vez inteirada de meu casamento, se imolará ao meu futuro e sei como fazer para que ela seja informada.
XLI - O SR. BIXIOU DESEMPENHANDO O PAPEL DE GÉRONTE
Contente por encontrar um ardil cujo êxito lhe pareceu certo, pôs-se a dançar ao som duma ária muito conhecida: Larifla fla fla!
— Depois, quando Didine for despachada—continuou, sempre falando sozinho—,irei fazer uma visita e um romance à sra. Cardot: direi que seduzi sua filha em Saint-Eustache...
Felícia, culpada por amor, guarda no coração o penhor da nossa felicidade... e... larifla fla fla!... O pai não pode desmentir-me, fla fla... nem a filha... larifla!
Ergo, o tabelião, a esposa e a filha estão no papo, larifla fla fla!
Com grande espanto, Diná surpreendeu Estêvão dançando uma dança extravagante.
— Tua chegada e nossa felicidade deixaram-me ébrio de alegria—disse-lhe, explicando, assim, seu gesto de desatino.
— E eu que já não me julgava amada!—exclamou a pobre mulher, soltando o saco de viagem que trazia e chorando de alegria na poltrona onde se deixou cair.
— Fica à vontade, meu anjo—disse Estêvão, rindo sozinho—,tenho que escrever um bilhete para desobrigar-me dum compromisso com amigos, pois quero ser todo teu. Ordena,
estás em tua casa.
Estêvão escreveu a Bixiou:
Meu caro, minha baronesa chegou de surpresa e vai fazer-me perder o casamento se não pusermos em cena um dos ardis mais conhecidos das mil e uma comédias musicadas
do Gymnase. Conto contigo, portanto, para vires, como o ancião de Molière, censurar teu sobrinho Leandro por sua tolice (Como o ancião de Molière: alusão à segunda
cena do IV ato do Estouvado, em que Anselmo, pai de uma moça casadoura, censura o jovem Leandro por querer casar com uma aventureira. Papel semelhante já foi, aliás,
executado por Bixiou em Um conchego de solteirão; esse desempenho contribuiu para a ruína de Felipe Bridau.), enquanto a décima musa estiver escondida no meu quarto.
É preciso prendê-la pelos sentimentos, bate com força, sê mau, ofende-a. Quanto a mim, compreendes, expresso uma dedicação cega e serei surdo para te dar o direito
de gritar. Vem, se puderes, às sete horas.
Teu
estêvão lousteau
Logo que mandou a carta, por um mensageiro, ao parisiense que gostava, mais que tudo, dessas brincadeiras que os artistas denominam mistificações, Lousteau mostrou-se
interessado em instalar em casa a Musa de Sancerre; ocupou-se da arrumação da bagagem que ela trouxera, falou-lhe das pessoas e das coisas da casa com tão perfeita
boa-fé, com um prazer que transbordava tão claramente em palavras e carícias que Diná pôde considerar-se a mulher mais amada do mundo. O apartamento, onde as menores
coisas tinham o cunho da última moda, agradava-lhe muito mais que seu castelo de Anzy. Pamela Migeon, a inteligente menina de catorze anos, foi interrogada pelo
jornalista sobre se queria ser a criada de quarto da imponente baronesa. Pamela, encantada, entrou imediatamente em serviço, indo encomendar o jantar a um restaurante
da avenida. Diná percebeu, então, a pobreza oculta sob o luxo puramente exterior daquela moradia de rapaz, pois não via ali nenhum dos utensílios necessários à vida.
Enquanto tomava posse dos armários, das cômodas, concebeu os mais doces projetos, mudaria os hábitos de Lousteau, torná-lo-ia caseiro, completaria seu bem-estar
em casa. A novidade de sua situação ocultava a Diná o infortúnio que representava, pois ela via num mútuo amor a absolvição de sua falta e ainda não alongava o olhar
para além do apartamento. Pamela, inteligente como uma cortesã, foi imediatamente à casa da sra. Schontz pedir-lhe a prataria, contando-lhe o que acabara de suceder
a Lousteau. Após ter posto tudo quanto tinha em casa à disposição de Pamela, a sra. Schontz correu à casa de Málaga, sua amiga íntima, a fim de prevenir Cardot da
desgraça que acontecera a seu futuro genro. Sem se preocupar com a crise que ameaçava seu casamento, o jornalista mostrou-se cada vez mais amável com a mulher provinciana.
O jantar deu lugar a uma dessas deliciosas infantilidades dos amantes que se veem livres e felizes por poderem ser inteiramente um do outro. Depois de tomarem o
café, Lousteau tinha sua Diná sobre os joelhos, diante do aquecedor, quando Pamela apareceu muito assustada.
— Aí está o sr. Bixiou! Que é que devo dizer-lhe?—perguntou ela.
— Entra no quarto—disse o jornalista à amante.—Logo o mandarei de volta. É um dos meus mais íntimos amigos, a quem, aliás, preciso confessar meu novo gênero de vida.
— Olá! Dois talheres e um chapéu de veludo azul!—exclamou o camarada.—Bem, vou andando... Aí está o que é a gente casar-se. Faz as despedidas. Como a gente se sente
rica quando muda de casa, hein?
— Então vou me casar?—disse Lousteau.
— Como! Não vais mais te casar?!—exclamou Bixiou.
— Não!
— Não? Ora essa! Que te aconteceu? Acaso vais fazer alguma asneira? Quê!... Tu que, por uma bênção do céu, encontraste vinte mil francos de renda, um palácio, uma
mulher que pertence às principais famílias da alta burguesia, uma mulher, enfim, da Rue des Lombards...
— Basta, basta, Bixiou. Tudo está acabado. Vai-te embora!
— Ir embora, eu? Tenho direitos, como amigo, e abusarei deles. Que te aconteceu?
— Aquela senhora de Sancerre chegou, vai ser mãe e vamos viver juntos o resto da vida... Amanhã saberias de tudo, é melhor que te conte hoje mesmo.
— Quantas telhas me caem na cabeça!, como diz Arnal! Mas, se essa mulher te ama de verdade, meu caro, ela voltará para o lugar de onde veio. Já viste uma provinciana
dar-se bem em Paris? Ela te fará sofrer de todos os modos em teu amor-próprio. Esqueces o que é uma mulher provinciana? Ela tornará tua felicidade tão aborrecida
como a desgraça e empregará mais talento em tornar-se desagradável do que o de que necessita uma parisiense para fazer-se encantadora. Escuta, Lousteau! Que a paixão
te faça esquecer a época em que vivemos eu compreendo; mas eu, teu amigo, não tenho a venda mitológica sobre os olhos... Pois bem, examina tua situação! Rolas, há
quinze anos, pela vida literária, já não és moço e tens caminhado tanto que já estás com as solas gastas!... Sim, meu caro, fazes como os garotos de Paris, que,
para esconder os buracos das meias, os entopem. E já estás com os sapatos cambaios! Sim, teus gracejos estão velhos. Tua frase está mais conhecida do que um remédio
secreto...
— Digo-te como o regente ao cardeal Dubois (Cardeal Dubois: Guillaume Dubois (1656-1723), político e prelado francês, educador do duque de Orléans, o qual, quando
nomeado regente, o fez seu primeiro-ministro. Homem de espírito, vivo e de costumes pouco recomendáveis, Dubois, herói de vasto anedotário, notabilizou-se pelos
esforços com que conseguiu o chapéu de cardeal.): Chega de pontapés assim!—disse Lousteau em voz baixa.
— Oh, velho rapaz—replicou Bixiou—,estás sentindo o ferro do operador na tua ferida! Estás esgotado, não é? Pois bem, no ardor da mocidade, sob a pressão da miséria,
que ganhaste? Não estás na primeira linha nem tens mil francos que te pertençam. Tal é tua situação, em algarismos. Poderás, acaso, no declínio de tuas forças, manter
pela pena uma casa, sabendo que tua mulher, se for honesta, não terá os recursos duma cortesã para arrancar uma nota de mil das profundidades onde os homens as guardam?
Estás mergulhando no terceiro porão do teatro social... E esse é apenas o lado financeiro. Vejamos o lado político. Estamos navegando numa época essencialmente burguesa,
em que a honra, a virtude, a delicadeza, o talento, a sabedoria, o gênio, numa palavra, consiste em pagar as contas, não dever nada a ninguém e saber fazer pequenos
negócios. Sê metódico, sê decente, constitui família, paga aluguéis e impostos, cumpre teu dever, sê igual a todos os fuzileiros de tua companhia e poderás aspirar
a tudo, tornar-te ministro, e tens possibilidades disso, pois não és um Montmorency (Montmorency: família francesa da nobreza mais antiga, cujos membros desempenharam
papéis importantes na história da França.)! Ias preencher todas as condições necessárias para ser um político, poderias cometer todas as baixezas exigidas pelo cargo,
mesmo fingir a mediocridade, pois parecerias quase natural. E, por uma mulher que te abandonará, ao termo de todas as paixões eternas, em três, cinco ou sete anos,
após teres consumido tuas últimas forças intelectuais e físicas, dás as costas à santa família, à Rue dos Lombards, a todo um futuro político, a trinta mil francos
de renda, à consideração... É assim que devia acabar um homem que não tinha mais ilusões?... Farias um arranjo com uma atriz que te tornaria feliz, eis o que se
chama uma questão de gabinete; mas viver com uma mulher casada!... É sacar a descoberto sobre a desgraça! É aguentar todos os aborrecimentos do vício sem desfrutar
seus prazeres...
— Basta, estou te dizendo, tudo isso acaba por uma simples frase: amo a sra. de La Baudraye e prefiro-a a todas as fortunas do mundo, a todas as posições... Deixei-me
arrastar por uma rajada de ambição... mas tudo cede à ventura de ser pai.
— Ah! Agora deste para te fazeres pai? Mas, desgraçado, nós somente somos pais dos filhos de nossas esposas legítimas! Que é que significa um menino que não leva
nosso nome? É o último capítulo dum romance! Arrebatarão teu filho! Já vimos isso em vinte comédias, nos últimos dez anos... A sociedade, meu caro, cairá em cima
de vós, cedo ou tarde. Relê Adolfo. Oh! Meu Deus! Já vos estou vendo quando vos conhecerdes bem, vejo-vos, infelizes pés-rapados, sem consideração, sem fortuna,
debatendo-vos como os acionistas duma comandita logrados pelo gerente! Vosso gerente é a felicidade!
— Nem mais uma palavra, Bixiou.
— Mas estou apenas começando. Escuta, meu caro. Tem-se atacado muito o casamento nos últimos tempos; como, porém, além da vantagem de ser a única maneira de estabelecer
as heranças, ele oferece aos belos rapazes sem dinheiro o único meio de fazer fortuna em dois meses, ele resiste a todos os seus inconvenientes! Não há nenhum rapaz
que cedo ou tarde não se arrependa de ter perdido por culpa própria um casamento de trinta mil francos de renda...
— Não queres compreender-me!—exclamou Lousteau, com uma voz exasperada.—Vai-te... Ela está aqui...
— Perdão! Por que não mo disseste antes?... És maior... e ela também—acrescentou, num tom mais baixo, mas suficientemente alto para ser ouvido por Diná.—Vais ver
como ela fará com que te arrependas de sua felicidade...
— Se isto é uma loucura, quero cometê-la... Adeus!
— Homem ao mar!—gritou Bixiou.
— Que o diabo leve esses amigos que se julgam com direito de censurar-nos—disse Lousteau, abrindo a porta do quarto, onde viu, sobre uma poltrona, a sra. de La Baudraye
acabrunhada, enxugando os olhos com um lencinho bordado.
— Que vim fazer aqui?—disse ela.—Oh! Meu Deus! Por quê?... Estêvão, não sou tão provinciana como pensas... Estás zombando de mim.
— Anjo querido—respondeu Lousteau, tomando Diná nos braços, levantando-a da poltrona e levando-a quase morta para a sala de visitas—,alteramos ambos nosso futuro,
é um sacrifício em troca de outro sacrifício. Enquanto eu amava em Sancerre, casavam-me aqui; mas eu resistia... sentia-me muito infeliz.
— Oh! Vou-me embora!—exclamou Diná, levantando-se como uma louca e dando dois passos em direção da porta.
— Ficarás, minha Didine, tudo acabou. Ora! Essa fortuna será um negócio tão bom assim? Teria que casar-me com uma loura gorda de nariz vermelho, filha dum tabelião,
e aturar uma sogra que bateria a sra. Piédefer em matéria de devoção!...
Pamela entrou correndo na sala e disse ao ouvido de Lousteau:
— A sra. Schontz!...
Lousteau levantou-se, deixou Diná no divã e saiu.
— Tudo está acabado, meu totozinho—disse-lhe a cortesã.—Cardot não quer brigar com a mulher por causa dum genro. A beata fez uma cena... uma cena sterling (Sterling:
“autêntico” ou “legítimo” (em inglês no original).)! E, por fim, o atual primeiro escrevente, que há dois anos era ajudante do primeiro, aceita a filha e o cartório.
— Que canalha!—exclamou Lousteau.—Como! Decidiu-se em duas horas apenas?...
— Meu Deus, isso é muito simples. O rapaz, que conhecia o segredo do falecido primeiro escrevente, descobriu a situação do patrão através de algumas palavras da
discussão com a sra. Cardot. O tabelião conta com tua dignidade e tua discrição, pois tudo já está combinado. O escrevente, cuja conduta é excelente (ele se dava
ao luxo de ir à missa, um hipocritazinho completo!), agrada à tabeliã. Cardot e tu ficareis amigos. Ele vai ser diretor duma companhia financeira colossal e poderá
prestar-te serviços. Ah! Despertas dum belo sonho!
— Perco uma fortuna, uma esposa e...
— Uma amante—disse a sra. Schontz, sorrindo—,pois estás agora mais do que casado, ficarás entediante, estarás sempre querendo voltar para casa, não terás mais nada
desalinhado, nem nas roupas nem na conduta; além disso, meu Artur comporta-se muito bem, preciso ser-lhe fiel e romper com Málaga. Deixa-me vê-la pelo buraco da
fechadura!—pediu a mulher.—Não há mais belo animal no deserto!—exclamou ela.—Foste roubado! É imponente, é seca, é choramingas, falta-lhe o turbante de Lady Dudley
(Lady Dudley: personagem de A comédia humana, apaixonada e intrigante; foi ela que fez morrer de dor Lady Brandon (em O romeiral); ela que tentou atirar a condessa
Maria de Vandenesse nos braços de Raul Nathan (em Uma filha de Eva).).
Dito isso, saiu.
— Que é que há ainda?—perguntou a sra. de La Baudraye, a cujo ouvido haviam chegado o frufru do vestido de seda e os murmúrios duma voz de mulher.
— O que há, meu anjo—exclamou Lousteau—,é que estamos indissoluvelmente unidos! Vieram trazer-me uma resposta verbal à carta que me viste escrever e pela qual eu
rompia meu noivado...
— Era esse então o compromisso de que te querias desobrigar?
— Sim!
— Oh! Serei mais que tua esposa, dou-te minha vida, quero ser tua escrava!—disse a pobre criatura iludida.—Não pensava que me fosse possível amar-te ainda mais!...
Não serei, assim, um simples acidente em tua vida, serei toda tua vida!
— Sim, minha bela, minha nobre Didine...
— Jura-me—acrescentou ela—que só nos separaremos pela morte!...
Lousteau quis embelezar seu juramento com as mais sedutoras carícias. Eis por quê:
XLII - OUTRA LUA DE MEL
Enquanto ia da porta de seu apartamento, onde recebera o beijo de despedida da amante, à da sala, onde jazia a musa abalada por tantos choques sucessivos, Lousteau
se recordara do precário estado de saúde do pequeno La Baudraye, de sua grande fortuna e dessa frase de Bianchon a respeito de Diná: “Será uma viúva rica!”. E disse
consigo:
— Prefiro cem vezes a sra. de La Baudraye a Felícia para esposa!
Assim, tomou partido imediatamente. Resolveu tornar a fingir amor com uma admirável perfeição. Seu infame plano e sua falsa violenta paixão tiveram desastrosos resultados.
Realmente, durante sua viagem de Sancerre a Paris, a sra. de La Baudraye projetara morar num apartamento próprio, a dois passos de Lousteau; mas as provas de amor
que o amante acabava de dar-lhe renunciando àquele belo futuro e, principalmente, a completa ventura daquele casamento ilegal impediram-na de falar nessa separação.
O dia seguinte devia ser, como foi, uma festa, no meio da qual fazer uma proposta dessas a seu anjo causaria a mais horrível discordância. De seu lado, Lousteau,
que queria manter Diná sob sua dependência, conservou-a numa contínua embriaguez, por meio de festas. Esses acontecimentos impediram essas duas criaturas tão delicadas
de evitar o lamaçal em que caíram duma insensata coabitação, de que, infelizmente, há tantos exemplos, em Paris, no mundo literário.
Cumpriu-se, assim, nos mínimos detalhes, o programa do amor provinciano, tão escarnecedoramente traçado pela sra. de La Baudraye a Lousteau e de que nenhum dos dois
se lembrou. A paixão é surda-muda de nascença.
Esse inverno foi, assim, em Paris, para a sra. de La Baudraye, o que o mês de outubro fora para ela em Sancerre. Estêvão, para iniciar sua mulher na vida parisiense,
entremeou essa nova lua de mel de espetáculos de teatro, a que Diná só quis assistir de frisa. No começo, a sra. de La Baudraye manteve alguns vestígios de seu recato
provinciano, teve receio de ser vista, ocultou sua felicidade. Dizia: “O sr. de Clagny e o sr. Gravier são capazes de seguir-me!”. Temia Sancerre em Paris. Lousteau,
cujo amor-próprio era imenso, fez a educação de Diná, levou-a às melhores modistas e mostrou-lhe as jovens senhoras que então estavam na moda, recomendando-lhe que
as tomasse por modelo. Assim, a aparência provinciana da sra. de La Baudraye se modificou rapidamente. Lousteau recebeu dos amigos cumprimentos por sua conquista.
Durante essa temporada, Lousteau pouco produziu na literatura e se endividou enormemente, embora a altiva Diná tivesse empregado todas as suas economias no vestuário
e estivesse certa de não ter causado a mínima despesa a seu amado. No fim de três meses, Diná aclimatara-se, embriagara-se de música nos Italiens, conhecia os repertórios
de todos os teatros, seus atores, os jornais e todos os gracejos da época; acostumara-se a essa vida de contínuas emoções, a essa corrente vertiginosa em que tudo
se esquece. Já não alongava o pescoço nem arrebitava o nariz, como uma estátua do Espanto, a propósito das constantes surpresas que Paris oferece aos estranhos.
Sabia respirar o ar dessa atmosfera espiritual, animada, fecunda, onde as pessoas de espírito se sentem no seu elemento e não podem deixá-la. Uma manhã, ao ler os
jornais, pois Lousteau recebia todos, duas linhas recordaram-lhe Sancerre e seu passado, duas linhas a que ela não era estranha e que diziam o seguinte:
O sr. barão de Clagny, procurador do rei junto ao Tribunal de Sancerre, foi nomeado substituto do procurador-geral junto à Corte Real de Paris.
— Como te ama esse virtuoso magistrado!—disse, sorrindo, o jornalista.
— Pobre homem!—respondeu ela.—Que é que eu te dizia? Ele me segue.
Estêvão e Diná encontravam-se, então, na fase mais brilhante e mais completa da paixão, nesse período em que os amantes já se habituaram perfeitamente um ao outro
e, não obstante, o amor conserva seu sabor. Conhecem-se, mas ainda não se compreenderam, não penetraram muitas vezes nos mesmos recantos da alma, não se estudaram
o suficiente para prever, como mais tarde, a ideia, as palavras e o gesto a propósito tanto dos maiores como dos menores fatos. Vivem num encantamento, ainda não
houve nenhum choque nem divergências de opinião nem olhares indiferentes. As almas marcham constantemente do mesmo lado. Além disso, Diná dizia a Lousteau estas
mágicas palavras acompanhadas de expressão, desses olhares mais mágicos ainda que todas as mulheres encontram nesses momentos:
— Mata-me quando não me amares mais. Se não me amasses mais, creio que poderia matar-te e matar-me em seguida.
A esses deliciosos exageros, Lousteau respondia:
— Tudo o que peço a Deus é que te dê a mesma constância que tenho. Serás tu que me abandonarás!
— Meu amor é absoluto...
— Absoluto—repetiu Lousteau.—Vejamos! Sou arrastado a uma festa de rapazes, lá encontro uma de minhas antigas amantes, que zomba de mim; por vaidade, banco o homem
livre e só volto para casa no outro dia pela manhã... Continuarias a amar-me?
— Uma mulher só pode ter certeza de ser amada quando é preferida e, uma vez que voltasses... Oh! Fazes-me compreender a felicidade de perdoar uma falta a quem se
adora...
— Pois bem, então estou sendo amado pela primeira vez na vida!—exclamava Lousteau.
— Até que enfim o notaste!—respondia ela.
Lousteau propôs que escrevessem uma carta em que cada um deles exporia as razões que o teriam levado a suicidar-se; e, de posse dessa carta, cada um poderia matar
sem risco o infiel. Apesar do combinado, nenhum deles escreveu sua carta. Momentaneamente feliz, o jornalista prometia-se enganar Diná quando estivesse cansado dela
e de tudo sacrificar às exigências desse engano. Para ele, a sra. de La Baudraye representava uma fortuna. Contudo, ele teve de suportar um jugo. Casando-se, assim,
a sra. de La Baudraye demonstrou a nobreza de suas ideias e essa força conferida pelo respeito de si mesmo. Nessa completa intimidade, em que cada um tira sua máscara,
a jovem senhora conservou o pudor, mostrou sua corajosa probidade e essa força particular aos ambiciosos, que constituía a base de seu caráter. Também Lousteau passou
a sentir por ela uma involuntária estima. Tornando-se parisiense, Diná mostrou-se, além disso, superior à mais encantadora cortesã: podia ser divertida, dizer frases
como Málaga, mas sua instrução, os hábitos de seu espírito, suas imensas leituras permitiam-lhe generalizar seu espírito, ao passo que as Schontz e as Florinas só
podem exercer o seu num terreno muito restrito.
— Há em Diná—dizia Estêvão a Bixiou—as qualidades duma Ninon (Ninon: Ninon de Lenclos (1620-1705), dama galante, de beleza e espírito igualmente notáveis, cujo salão
era frequentado pelas personagens mais ilustres da época.) e duma Staël.
— Uma mulher em que se encontra uma biblioteca e um serralho é muito perigosa—respondia o brincalhão.
XLIII - A PRIMEIRA RUGA DA ROSA
Logo que sua gravidez se tornou visível, a sra. de La Baudraye resolveu não mais sair do apartamento; mas, antes de encerrar-se nele, de deixar de passear pelo campo,
quis assistir à primeira representação dum drama de Nathan. Essa espécie de solenidade literária ocupava a atenção dessas duas mil pessoas que se julgam ser toda
Paris. Diná, que nunca assistira a uma primeira representação, experimentava uma curiosidade muito natural. Atingira, além disso, um tal grau de afeição por Lousteau
que se glorificava de sua falta, empregava uma força selvagem em enfrentar a sociedade, queria encará-la sem virar o rosto. Fez um vestido deslumbrante, apropriado
à sua expressão doentia, à mórbida languidez de sua fisionomia. Sua tez pálida emprestava-lhe uma expressão distinta e seus cabelos pretos em bandós realçavam ainda
mais sua palidez. Seus olhos castanhos brilhantes pareciam mais belos ainda contornados pelos sinais de fadiga. Esperava-a, porém, um horrível desgosto. Por um acaso
muito comum, o camarote dado ao jornalista, para as primeiras representações, ficava ao lado do alugado por Ana Grossetête. As duas amigas íntimas não se cumprimentaram
nem se quiseram reconhecer. Após o primeiro ato, Lousteau saiu de seu camarote e deixou Diná sozinha, exposta ao ataque de todos os olhares, ao exame de todas as
lunetas, enquanto a baronesa de Fontaine e a condessa Maria de Vandenesse, que estavam com Ana, receberam alguns dos homens mais distintos da alta sociedade. A solidão
em que ficou Diná foi um suplício tanto maior porque ela não soube servir-se de sua luneta para examinar os camarotes; preferiu assumir uma atitude nobre e pensativa,
deixar o olhar vago e assim sentia-se intensamente o alvo de todos os olhos; não pôde ocultar sua preocupação, esteve um pouco provinciana, desdobrou o lenço, fez
convulsivamente gestos que se havia interdito. Finalmente, no intervalo do segundo para o terceiro ato, um homem abriu a porta do camarote de Diná! O sr. de Clagny
mostrou-se respeitoso, mas triste.
— Sinto-me feliz em vê-lo para exprimir-lhe o prazer que me causou sua promoção—disse ela.
— Mas, senhora, por que vim eu para Paris?...
— Como!—disse ela.—Terei acaso alguma coisa a ver com sua nomeação?
— Tudo. Depois que a senhora deixou de viver em Sancerre, Sancerre se me tornou insuportável, senti que morria lá...
— Sua amizade sincera me faz bem—disse ela, estendendo a mão ao substituto.—Estou numa situação em que devo cumular de atenções os meus verdadeiros amigos; agora,
sei qual é seu preço... Julgava ter perdido sua estima, mas o testemunho que me dá com sua visita me comove mais que seus dez anos de dedicação.
— A senhora está sendo alvo da curiosidade de toda a sala—replicou o substituto.—Ah, querida, é esse seu papel? Não podia ser feliz e continuar honrada? Acabo de
ouvir dizer que a senhora é amante do sr. Estêvão Lousteau e que vivem maritalmente!... A senhora rompeu definitivamente com a sociedade, mesmo para a época em que,
se se casar com seu amante, terá necessidade dessa consideração que hoje despreza... Não deveria a senhora estar em sua casa, com sua mãe, que a ama o bastante para
cobri-la com sua proteção? Pelo menos as aparências ficariam salvas...
— Meu erro é estar aqui—respondeu ela—,eis tudo. Despedi-me de maneira irrevogável de todas as regalias que a sociedade concede às mulheres que sabem acomodar sua
felicidade às conveniências. Minha abnegação é tão completa que eu gostaria de abater tudo quanto me cerca para fazer de meu amor um vasto deserto ocupado somente
por Deus, ele e eu... Fizemos um ao outro tantos sacrifícios que não podemos deixar de estar unidos; unidos pela vergonha, se quiser, mas indissoluvelmente unidos...
Sinto-me feliz, e tão feliz que posso estimá-lo quanto quiser, como amigo, ter mais intimidade consigo que no passado, pois agora preciso dum amigo...
O magistrado mostrou-se verdadeiramente grandioso e mesmo sublime. A essa declaração em que vibrava a alma de Diná, ele respondeu, num tom de voz pungente:
— Eu gostaria de ir visitá-la, para verificar se a senhora é amada... Assim, eu ficaria tranquilo, seu futuro não me preocuparia mais... Seu amigo compreenderá a
grandiosidade de seus sacrifícios, e é agradecido em seu amor?...
— Vá visitar-me à Rue des Martyrs e verá!
— Sim, irei—disse ele.—Já passei pela porta de sua casa, sem animar-me a perguntar pela senhora. A senhora ainda não conhece os meios literários—acrescentou.—É verdade
que há neles gloriosas exceções; mas esses homens de letras arrastam consigo males incríveis, entre os quais conto, em primeiro plano, a publicidade, que desonra
tudo! Uma mulher comete uma falta com...
— Um procurador do rei—disse a baronesa, sorrindo.
— Pois bem; após uma ruptura, restam alguns recursos, a sociedade não soube de nada; mas, com um homem mais ou menos famoso, o público tomou conhecimento de tudo.
Olhe, aí tem um belo exemplo. A senhora está de costas para a condessa Maria de Vandenesse (A história do namoro entre a condessa Maria de Vandenesse e Nathan é
contada em Uma filha de Eva.), que esteve a ponto de cometer as piores loucuras por um homem mais célebre que Lousteau, por Nathan, e hoje estão separados a ponto
de não mais se reconhecerem... Após ter ido até a beira do abismo, a condessa salvou-se não se sabe como, não deixou o marido nem o lar; mas, como se tratava dum
homem famoso, falaram dela durante todo um inverno. Se não fossem a grande fortuna, o grande nome e a posição de seu marido, se não fosse a habilidade da conduta
desse homem de Estado, que se mostrou, dizem, excelente para a mulher, ela estaria perdida; em seu lugar, qualquer outra mulher não poderia ter-se conservado honrada
como ela...
— Como estava Sancerre, quando o senhor saiu de lá?—perguntou a sra. de La Baudraye, para mudar de assunto.
— O sr. de La Baudraye disse que sua tardia gravidez exigia que o parto se desse em Paris e que ele mesmo desejara que a senhora viesse para cá para ser atendida
pelos príncipes da medicina—respondeu o substituto, percebendo muito bem o que Diná queria saber.—Assim, apesar do rumor que fizeram a propósito de sua viagem, até
este momento a senhora está dentro da legalidade.
— Ah!—exclamou ela.—Então o sr. de La Baudraye ainda conserva esperanças?
— Seu marido, minha senhora, fez como tem feito sempre: calculou.
O magistrado deixou o camarote ao ver o jornalista entrar e cumprimentou-o altivamente.
— Alcançaste mais sucesso que a peça—disse Estêvão a Diná.
Esse breve momento de triunfo causou mais alegria àquela mulher do que a que tivera durante toda a vida; mas, ao sair do teatro, ia pensativa.
— Que tens, minha Didine?—perguntou Lousteau.
— Indago-me como é que uma mulher pode dominar a sociedade.
— Há duas maneiras para isso: ser Madame de Staël ou ter duzentos mil francos de renda!
— A sociedade—disse ela—mantém-nos presos pela vaidade, pelo desejo de parecer... Ora, seremos filósofos!
XLIV - ENSAIO SOBRE A FECUNDIDADE LITERÁRIA
Essa noitada foi o derradeiro clarão da enganadora despreocupação em que a sra. de La Baudraye vivia desde sua chegada a Paris. Três dias mais tarde, ela percebeu
algumas preocupações na fronte de Lousteau, que dava uma volta pelo jardim, fumando um charuto. A mulher, a quem os costumes do pequeno La Baudraye haviam comunicado
o hábito e o prazer de nunca dever nada, teve conhecimento de que sua casa estava sem dinheiro, diante de dois aluguéis vencidos e às vésperas, enfim, duma ordem
de despejo! Essa realidade da vida parisiense penetrou no coração de Diná como um espinho, arrependeu-se de ter arrastado Lousteau às dissipações do amor. É tão
difícil passar do prazer ao trabalho que a felicidade tem devorado mais poesias do que as que a desgraça tem feito brotar em jatos luminosos. Feliz por ver Lousteau
descuidado, fumando um charuto após o almoço, estendido ao sol como um lagarto, nunca Diná sentira coragem de falar-lhe como se fosse agente duma revista literária.
Teve a ideia de empenhar, por intermédio do sr. Migeon, pai de Pamela, as poucas joias que possuía, e pelas quais o prego, pois ela passava a falar a linguagem do
quarteirão, lhe emprestou novecentos francos. Guardou trezentos francos para o enxoval da criança e as despesas do parto e entregou alegremente o restante a Lousteau,
que trabalhava palmo a palmo, ou melhor, linha a linha, numa novela para uma revista.
— Meu querido—disse-lhe ela—,termina tua novela sem nada sacrificar à necessidade, burila teu estilo, aprofunda teu assunto. Já fui fidalga bastante tempo, agora
vou ser burguesa e sustentar a casa.
Há quatro meses, Estêvão jantava com Diná no Café Riche (Café Riche: famoso café do bulevar durante Luís Felipe.) num gabinete reservado para eles. A provinciana
espantou-se muito ao saber que Estêvão devia lá quinhentos francos pelos últimos quinze dias.
— Como! Então bebemos vinho de seis francos a garrafa! Um linguado custa cem soldos!... Um pãozinho vinte cêntimos!...—exclamou ela, ao ler a nota que o jornalista
lhe mostrou.
— Ora, para nós, há pouca diferença entre ser roubado por um dono de restaurante ou por uma cozinheira—disse Lousteau.
— De hoje em diante, pelo preço do teu jantar, viverás como um príncipe.
Após ter obtido do proprietário uma cozinha e dois quartos de criados, a sra. de La Baudraye escreveu um bilhete à mãe pedindo-lhe roupa branca e um empréstimo de
mil francos; recebeu duas malas com roupas, prataria e dois mil francos, por uma cozinheira honesta e devota que a mãe lhe enviava. Dez dias após a representação
em que se haviam encontrado, o sr. de Clagny foi visitar a sra. de La Baudraye, às quatro horas, ao sair do palácio e encontrou-a bordando uma touquinha. O aspecto
daquela mulher tão altiva, tão ambiciosa, cujo espírito era tão culto, que imperava tão imponentemente no castelo de Anzy, e que agora era obrigada a cuidar da casa
e a costurar para o filho que esperava, comoveu o pobre magistrado que acabava de sair do Tribunal da Justiça. Ao ver umas picadas de agulha num daqueles dedos tão
bem torneados que ele beijara, ele compreendeu que a sra. de La Baudraye não fazia dessa ocupação uma manifestação de amor materno. Durante essa primeira entrevista,
o magistrado leu na alma de Diná. Essa perspicácia num homem apaixonado constituía um esforço sobre-humano. Descobriu que Diná queria fazer-se o gênio bom do jornalista,
encaminhá-lo para um caminho nobre: interpretava essas dificuldades da vida material como o fruto de alguma desordem moral. Entre duas criaturas unidas por um amor
tão sincero dum lado e tão bem fingido do outro, mais de uma confidência fora trocada nesses quatro meses. Apesar da cautela com que Estêvão se encobria, mais de
uma palavra sua esclarecera Diná sobre os antecedentes desse rapaz cujo talento foi tão estrangulado pela miséria, tão pervertido pelo mau exemplo, tão contrariado
por dificuldades superiores à sua coragem. “Ele se tornará grande na abastança”, dissera-se ela. E queria dar-lhe a felicidade, a segurança do lar, pela economia
e pela ordem peculiares às pessoas nascidas na província. Diná tornou-se dona de casa como se fizera poetisa, pela inclinação de sua alma para as coisas mais elevadas.
— Sua felicidade será minha absolvição.
Essa frase, arrancada pelo magistrado à sra. de La Baudraye, explicava o estado atual das coisas. A publicidade dada por Estêvão a seu triunfo no dia daquela primeira
representação pusera suficientemente a nu, aos olhos do magistrado, as intenções do jornalista. Para Estêvão, a sra. de La Baudraye era, segundo uma expressão inglesa,
uma pluma muito bonita para seu chapéu. Longe de desfrutar os encantos de um amor misterioso e tímido, de ocultar a todos tamanha felicidade, ele experimentava uma
alegria de plebeu enriquecido em pavonear-se com a primeira mulher distinta que ele honrava com seu amor. Não obstante, o substituto iludiu-se, durante algum tempo,
com os cuidados que qualquer homem dá a uma mulher na situação em que se encontrava a sra. de La Baudraye e que Lousteau tornava encantadores pelos mimos peculiares
aos homens cujas maneiras são naturalmente agradáveis. Há, com efeito, homens que nascem um pouco macacos, em quem a imitação das mais belas coisas do sentimento
é tão natural que nem deixam perceber quando estão fingindo, e as disposições naturais do sancerrense se haviam desenvolvido muito no teatro em que até então vivera.
Entre os meses de abril e julho, quando Diná devia ter a criança, ela descobriu por que Lousteau não conseguira vencer a pobreza: era preguiçoso e fraco de vontade.
É verdade que o cérebro não obedece senão a suas próprias leis, não reconhece as necessidades da vida nem as imposições da dignidade; não se produz uma bela obra
porque uma mulher está morrendo, ou para pagar dívidas infamantes, ou para dar de comer aos filhos; não há, entretanto, grandes talentos sem uma grande vontade.
Essas duas forças gêmeas são indispensáveis à construção do imenso edifício duma glória. Os homens de escol mantêm o cérebro sempre em atividade. Como no passado
os valores deixavam suas armas de prontidão. Dominam a preguiça, repelem os prazeres enervantes ou não cedem a eles senão numa medida indicada pela extensão de suas
faculdades. Assim se explicam Scribe, Rossini, Walter Scott, Cuvier, Voltaire, Newton, Buffon, Bayle, Bossuet, Leibnitz, Lope de Vega, Calderon, Boccaccio, Aretino,
Aristóteles, todos os homens, enfim, que divertiram, governaram ou orientaram sua época. A vontade pode e deve ser um motivo de orgulho muito maior do que o talento.
Se o talento tem sua origem numa predisposição cultivada, a vontade é uma conquista feita a todo momento sobre os instintos, sobre as tendências dominadas, repelidas,
sobre as fantasias e os obstáculos vencidos, sobre as dificuldades de toda natureza transpostas. O abuso do cigarro alimentava a preguiça de Lousteau. Se o fumo
adormece a tristeza, também entorpece infalivelmente a energia. Tudo quanto o cigarro abatia no físico de Lousteau, o exercício da crítica anulava no moral desse
rapaz tão inclinado aos prazeres. A crítica é funesta ao crítico como o pró e o contra o são ao advogado. Nesse ofício, o espírito se adultera, a inteligência perde
sua lucidez retilínea. O escritor não existe senão pelas ideias preconcebidas. Assim, devem-se distinguir duas críticas, do mesmo modo que na pintura se reconhecem
a arte e o ofício. Criticar à maneira da maior parte dos folhetinistas atuais é proferir certos julgamentos duma maneira mais ou menos sutil, como um advogado defende
no tribunal as causas mais contraditórias. Os críticos encontram sempre um tema a desenvolver na obra que analisam. Concebido dessa forma, esse ofício convém aos
espíritos indolentes, às pessoas desprovidas da faculdade sublime de imaginar, ou que, possuindo-a, não têm coragem de cultivá-la. Qualquer peça de teatro, qualquer
livro, transforma-se, sob sua pena, num assunto que não custa nenhum esforço à imaginação e cuja análise se faz de modo galhofeiro ou sério, ao sabor das paixões
do momento. Quanto ao julgamento, qualquer que seja, é sempre justificável pelo espírito francês, que se presta admiravelmente ao pró e ao contra. A consciência
é tão pouco consultada, esses bravi (Bravi (em italiano): espadachins, capangas. Este desabafo visa inconfundivelmente ao famoso crítico Sainte-Beuve, excessivamente
severo com o nosso romancista, sua “caça preferida”, conforme ele mesmo confessou. Em troca, Balzac “refez” em O lírio do vale o romance Volúpia, de Sainte-Beuve,
e desancou num artigo o primeiro tomo de sua monografia Port-Royal.) ligam tão pouco à própria opinião que elogiam num corredor de teatro a obra que estraçalham
em seus artigos. Passam, quando necessário, dum jornal para outro, sem se importar que as opiniões do novo folhetim tenham de ser opostas às do antigo. Além disso,
a sra. de La Baudraye sorria ao ver Lousteau redigir um artigo no sentido legitimista e outro no sentido dinástico, sobre um mesmo fato. Ela aplaudia essa máxima
dita por ele: “Somos os advogados da opinião pública!...”. A outra crítica é uma verdadeira ciência, exige uma compreensão completa das obras, uma visão lúcida sobre
as tendências duma época, a adoção dum sistema, uma fé em certos princípios; constitui uma jurisprudência, um libelo, uma sentença. Este crítico torna-se, então,
o magistrado das ideias, o censor de seu tempo, exerce um sacerdócio; ao passo que o outro é um acrobata que faz piruetas para ganhar a vida enquanto as pernas o
ajudam. Entre Cláudio Vignon e Lousteau havia a distância que separa o ofício da arte. Diná, cujo espírito rapidamente se apurara e cuja inteligência era bastante
ampla, logo julgou literariamente seu ídolo. Viu Lousteau trabalhando à última hora, sob as mais indignas exigências, e matando o trabalho, como dizem os pintores
duma obra a que falta técnica; ela, porém, o justificava, dizendo-se: “É um poeta!”, tamanha era a necessidade que sentia de se justificar a seus próprios olhos.
Ao descobrir esse segredo da vida literária de muita gente, ela percebeu que a pena de Lousteau nunca seria um meio de vida. O amor levou-a, então, a empreender
manobras a que ela jamais desceria em seu próprio favor. Por intermédio da mãe, entrou em negociações com o marido para obter dele uma pensão, tudo isso, porém,
sem que Lousteau o soubesse, pois não queria ferir seus escrúpulos.
Alguns dias antes do fim de julho, Diná amassou encolerizada a resposta definitiva do pequeno La Baudraye:
A sra. de La Baudraye não precisa de pensão em Paris quando tem a melhor vida do mundo em seu castelo de Anzy: ela que volte para lá.
Lousteau juntou a carta e a leu.
— Eu te vingarei—disse à sra. de La Baudraye, nesse tom sinistro que tanto agrada as mulheres quando se lisonjeiam suas antipatias.
XLV - UM BILHETE DE PARTICIPAÇÃO
Cinco dias mais tarde, Bianchon e Duriau, o famoso obstetra, estavam instalados na casa de Lousteau, que, desde a resposta do pequeno La Baudraye, se vangloriava
de sua felicidade e se mostrava envaidecido com o parto de Diná. O sr. de Clagny e a sra. Piédefer eram os padrinhos do filho esperado, pois o prudente magistrado
temia que Lousteau cometesse alguma falta grave. A sra. de La Baudraye teve um filho capaz de causar inveja às rainhas que esperam um herdeiro presuntivo. Bianchon,
acompanhado do sr. de Clagny, foi registrar o menino no cartório como filho do sr. e sra. de La Baudraye, sem nada dizer a Lousteau, que, por sua vez, correu a uma
tipografia para mandar imprimir a seguinte participação:
O sr. Estêvão Lousteau tem o prazer de participar que a sra. baronesa de La Baudraye deu à luz um menino. A mãe e o filho passam bem.
Uma primeira remessa de sessenta participações já fora feita por Lousteau quando o sr. de Clagny, que fora saber notícias da mãe, viu a lista das pessoas de Sancerre
a quem Lousteau resolvera enviar essa curiosa participação, abaixo da dos sessenta parisienses que já iam recebê-la. O substituto apanhou a lista e o resto das participações,
mostrou-as primeiro à sra. Piédefer recomendando-lhe que não deixasse Lousteau repetir essa infame brincadeira e meteu-se num carro. O dedicado magistrado encomendou
ao mesmo impressor uma outra participação assim redigida:
O sr. barão de La Baudraye tem a honra de participar que a sra. baronesa de La Baudraye deu à luz um menino. A mãe e o filho passam bem.
Após ter feito destruir as provas, a composição, tudo quanto pudesse atestar a existência da primeira participação, o sr. de Clagny pôs-se em campo para interceptar
as participações enviadas; substituiu muitas delas quando já estavam com os porteiros das casas, conseguiu a restituição dumas trinta; três dias mais tarde, finalmente,
só havia uma dessas participações, que era a de Nathan. O substituto fora cinco vezes à casa desse homem famoso sem poder encontrá-lo. Quando, após ter pedido um
encontro, o sr. de Clagny foi recebido, a anedota da participação já circulara em Paris. Uns viam nisso uma dessas espirituosas calúnias a que estão sujeitas todas
as reputações, mesmo as efêmeras. Outros afirmavam ter lido a participação e tê-la devolvido a um amigo da família La Baudraye. Muitos deblateravam contra a imoralidade
dos jornalistas, de sorte que a última participação existente tornara-se uma curiosidade. Florina, com quem Nathan vivia, a mostrara com o selo do correio, o carimbo
do correio e o endereço escrito por Estêvão. Assim, quando o substituto falou na participação, Nathan pôs-se a sorrir.
— Devolver-lhe esse monumento de leviandade e de criancice?—exclamou.—Este autógrafo é uma dessas armas de que não nos devemos privar no meio em que vivemos. Esta
participação prova que Lousteau não tem coração, nem bom gosto, nem dignidade, que não conhece a sociedade nem a moral pública, que se insulta a si mesmo quando
não sabe mais a quem insultar... Só mesmo o filho dum burguês vindo de Sancerre para ser poeta e que se faz o bravo da primeira revista que encontra para enviar
uma participação dessas. Concorde comigo: isto, meu senhor, é uma peça necessária aos arquivos da nossa época... Atualmente, Lousteau me elogia; amanhã, porém, pode
vir a reclamar minha cabeça... Ah! perdoe-me esta brincadeira, não me lembrava de que o senhor é substituto. Tenho no coração uma paixão por uma ilustre dama, tão
superior à sra. de La Baudraye como sua nobreza de sentimentos é superior à gaiatice de Lousteau; mas eu preferiria morrer a pronunciar seu nome... Alguns meses
de suas gentilezas e de suas carícias custaram-me cem mil francos e meu futuro; mas não acho que os tenha pago muito caro!... E nunca me queixei!... Que as mulheres
revelem o segredo de sua paixão, ainda vá, é a sua derradeira oferenda ao amor; mas que sejamos nós a fazê-lo... É preciso ser Lousteau para isso! Não, nem por mil
escudos eu daria este papel.
— Senhor—disse, finalmente, o magistrado, após uma luta oratória de meia hora—,visitei, com este objetivo, quinze ou dezesseis literatos e o senhor seria o único
inacessível a sentimentos de dignidade!... Não se trata aqui de Estêvão Lousteau e sim duma mulher e dum filho que ignoram o mal que estão fazendo à sua fortuna,
ao seu futuro, à sua honra. Quem sabe se um dia o senhor não se verá obrigado a pedir à justiça alguma benevolência para um amigo, para uma pessoa cuja honra o senhor
preze mais que a sua própria? A justiça poderá então lembrar-se de que o senhor foi implacável... Um homem como o senhor pode hesitar?—perguntou o magistrado.
— Quis apenas fazer-lhe sentir o preço do meu sacrifício—respondeu então Nathan, que entregou a participação pensando na posição do magistrado e aceitando essa espécie
de preço.
Após ter reparado a tolice do jornalista, o sr. de Clagny foi pregar-lhe um sermão em presença da sra. Piédefer; encontrou, porém, Lousteau muito irritado com suas
providências.
— O que eu estava fazendo, senhor—respondeu Estêvão—,tinha uma finalidade. O sr. de La Baudraye tem sessenta mil francos de renda e recusa uma pensão à sua esposa.
Eu queria fazer-lhe sentir que sou o dono deste menino.
— Eu bem o percebera—respondeu o magistrado.—E foi por isso que me apressei em fazer-me padrinho do pequeno Polidoro; ele está inscrito no cartório do registro civil
como filho do barão e da baronesa de La Baudraye e, se o senhor tem entranhas de pai, deve alegrar-se por saber que a criança é herdeira dum dos mais belos morgadios
da França.
— Mas a mãe deve morrer de fome?
— Fique descansado, senhor—disse amargamente o magistrado, que arrancara do coração de Lousteau a expressão do sentimento cuja prova esperava há muito tempo.—Encarrego-me
deste assunto com o sr. de La Baudraye.
E o sr. de Clagny saiu com a morte no coração. Diná, seu ídolo, era amada por interesse! Não abriria os olhos demasiado tarde?
“Pobre mulher!”, pensava o magistrado, ao sair.
Façamos-lhe aqui esta justiça—pois a quem a faríamos senão a um substituto?—ele amava Diná muito sinceramente para que visse no aviltamento dessa mulher um meio
de triunfar um dia, ele era todo compaixão, todo devotamento: amava-a.
XLVI - ONDE O SR. DE LA BAUDRAYE SE MOSTRA SUPERIOR AOS OLHOS DA ESPOSA FANTASIADA
Os trabalhos exigidos pela criação do menino, os gritos do menino, o repouso necessário à mãe durante os primeiros dias, a presença da sra. Piédefer, tudo conspirava
tanto contra os trabalhos literários que Lousteau se instalou nos três quartos alugados no primeiro andar para a velha devota. O jornalista, obrigado a comparecer
às primeiras representações sem Diná e separado dela na maior parte do tempo, encontrou um certo atrativo no exercício de sua liberdade. Mais duma vez deixou-se
pegar pelo braço e arrastar-se a uma reunião alegre. Mais duma vez viu-se na casa da amante dum amigo nas rodas boêmias. Revia as mulheres de brilhante mocidade,
esplendidamente vestidas, e às quais a economia parecia uma negação de sua juventude e de seu poder. Diná, apesar da maravilhosa beleza que adquirira a partir do
terceiro mês de amamentação, não podia sustentar uma comparação com essas flores cedo fanadas, mas tão belas enquanto vivem com os pés na opulência. A vida do lar
teve, contudo, grandes atrativos para Estêvão. Em três meses, a mãe e a filha, auxiliadas pela cozinheira vinda de Sancerre e pela pequena Pamela, deram ao apartamento
um aspecto inteiramente novo. O jornalista passou a encontrar seu almoço e seu jantar servidos com uma espécie de luxo. Diná, bela e bem-vestida, preocupava-se em
adivinhar as preferências de seu querido Estêvão, que se sentiu o rei da casa, onde tudo, até o menino, ficou, por assim dizer, subordinado a seu egoísmo. A ternura
de Diná mostrava-se nas menores coisas, e, assim, foi impossível a Lousteau não continuar os encantadores fingimentos de sua paixão extinta. Diná percebeu, contudo,
na vida superficial a que Lousteau se deixava arrastar, uma causa de ruína para seu amor e para seu lar. Após dez meses de aleitamento, ela desmamou o filho, instalou
novamente a mãe no apartamento de Estêvão e restabeleceu essa intimidade que liga indissoluvelmente um homem a uma mulher, quando uma mulher é amorosa e espiritual.
Um dos traços mais nítidos da novela devida a Benjamin Constant e uma das explicações do abandono de Elenora é a falta de intimidade diária, ou noturna, se quiserdes,
entre ela e Adolfo. Cada um dos dois amantes tem seu próprio quarto, um e outro obedeceram à sociedade, guardaram as aparências. Elenora, periodicamente abandonada,
é obrigada a enormes esforços de ternura para afastar as ideias de liberdade que assaltavam Adolfo. A contínua permuta de olhares e pensamentos na vida em comum
dá tais armas às mulheres que, para abandoná-las, um homem deve apresentar razões maiores do que as que elas fornecem enquanto amam.
Esse foi um período inteiramente novo para Estêvão e para Diná. Diná quis ser necessária, quis restituir a energia a esse homem cuja fraqueza lhe sorria, e na qual
ela via grandes garantias; descobriu-lhe assuntos, fez-lhe os esboços de alguns trabalhos; quando foi preciso, escreveu mesmo capítulos inteiros; rejuvenesceu as
veias desse talento que agonizava injetando-lhe um sangue fresco, deu-lhe suas ideias e seus julgamentos. Escreveu, por fim, dois livros que alcançaram êxito. Mais
duma vez salvou o amor-próprio de Estêvão do desespero de se sentir sem ideias, ditando-lhe, corrigindo-lhe ou terminando-lhe os folhetins. O segredo dessa colaboração
foi inviolavelmente guardado; a sra. Piédefer não soube de nada. Esse galvanismo moral foi recompensado por um acréscimo de rendimentos que permitiu ao casal viver
desafogadamente até o fim do ano de 1838. Lousteau habituava-se a ver sua tarefa feita por Diná e a pagava, como diz o povo em sua linguagem expressiva, com conversa
fiada. Esse dispêndio de dedicação representa um tesouro a que se apegam as almas generosas e, quanto mais deu, mais a sra. de La Baudraye amou Lousteau: logo chegou,
pois, um momento em que ele custava demasiado a Diná para que ela pudesse renunciar a ele. Ela teve, porém, uma segunda gravidez. O ano foi terrível.
Apesar dos esforços das duas mulheres, Lousteau contraiu dívidas; ultrapassou suas forças para pagá-las com seu trabalho durante a época do parto de Diná, que o
achou heroico, tão bem o conhecia! Após esse esforço, apavorado com o encargo de duas mulheres, dois filhos e duas criadas, sentiu-se incapaz de lutar com sua pena
para sustentar uma família, quando não pudera sustentar-se sozinho. Deixou, pois, que as coisas corressem ao sabor do acaso. O feroz calculador exagerou a comédia
do amor em casa para ter maior liberdade na rua. A altiva Diná sustentou sozinha o fardo dessa existência. Este pensamento: “Ele me ama!” deu-lhe forças sobre-humanas.
Trabalhou como trabalham os mais vigorosos talentos desta época. Com risco de perder seu frescor e sua saúde, Didine foi para Lousteau o que a srta. Delachaux foi
para Gardano no excelente conto real de Diderot (O excelente conto real de Diderot... A obra de Diderot a que Balzac se refere é Isto não é um conto; nela o autor
apresenta dois casos de amantes mal-avindos: um homem fiel e decente apaixonado por uma cortesã, e uma moça educada e boa devotada a um perverso que a arruína. Este
último é Gardeil (e não Gardano), jovem estudante sem interesse e que não se sabe por que meios conquista a linda srta. de La Chaux (e não Delachaux), a qual abandona
a família para ir viver com ele. Para ajudá-lo em seus trabalhos, ela aprende várias línguas, inclusive o hebraico e o grego; passa noites em claro fazendo traduções
para ele e estraga a saúde pelo excesso de trabalho. Depois, um belo dia, Gardeil a põe no olho da rua, simplesmente porque, perdidos os seus encantos, ela já não
lhe inspira amor. Toda essa história é autêntica; aliás, o título mostra-o.). Além de sacrificar a si mesma, cometeu a falta sublime de sacrificar seu vestuário.
Mandou tingir os vestidos, passou a usar unicamente o preto.
— Ela está vendo as coisas pretas—como dizia Málaga, que escarnecia muito de Lousteau. No fim do ano de 1839, Estêvão, a exemplo de Luís XV (Luís XV guardava a sua
fortuna particular como um avarento e procurava aumentá-la entregando-se a toda espécie de especulações. Segundo Madame Pompadour, sua favorita, com quem esbanjava
importâncias enormes, ele gastava um milhão dos cofres públicos em futilidades, mas hesitava em despender cem luíses de seu pecúlio.), chegara, através de insensíveis
capitulações de consciência, a estabelecer uma distinção entre sua bolsa e a da casa, como Luís XV distinguia entre seu tesouro secreto e sua caixa de despesas.
Passou a enganar Diná sobre o montante dos rendimentos. Ao descobrir essas faltas, a sra. de La Baudraye teve atrozes sofrimentos de ciúme. Ela quis dirigir a vida
de sociedade e a vida literária, acompanhou o jornalista a todas as primeiras representações e surpreendeu nele gestos de amor-próprio ofendido, pois o preto do
vestuário repercutia desfavoravelmente nele, escurecia sua fisionomia e a tornava às vezes brutal. Desempenhando, na vida do casal, o papel de mulher, Lousteau passou
a ter as ferozes exigências femininas: censurava a Diná o desalinho de seu modo de vestir, ao mesmo tempo que se aproveitava desse sacrifício que custa tanto a uma
amante; exatamente como uma mulher que, tendo-vos ordenado que passeis por um esgoto para salvar-lhe a honra, vos diz, ao sairdes dele: “Não gosto de lodo!”. Diná
viu-se, assim, obrigada a tomar as rédeas até então frouxas do domínio que todas as mulheres inteligentes exercem sobre as pessoas sem vontade. Nessa manobra, porém,
perdeu muito de seu brilho moral. As suspeitas que ela deixou perceber atraem sobre as mulheres discussões em que começa a desaparecer o respeito, porque desse modo
elas próprias descem da altura em que primitivamente se colocaram. Depois, fez concessões. Assim, Lousteau pôde receber vários amigos, Nathan, Bixiou, Blondet (Blondet:
personagem de primeiro plano de A comédia humana, jornalista espirituoso e inescrupuloso; foi ele que, em Outro estudo de mulher, deu a definição da mulher comme
il faut.), Finot (Finot: personagem balzaquiana, homem de imprensa, ambicioso e brutal; conhecemo-lo em Um conchego de solteirão.), cujas maneiras, palavras e o
simples contato eram depravantes. Tentaram persuadir a sra. de La Baudraye de que seus princípios e suas aversões eram um resto de preconceito provinciano. Pregaram-lhe,
enfim, o código da superioridade feminina. Logo seu próprio ciúme forneceu armas contra ela. No carnaval de 1840, ela se fantasiava, ia ao baile da Ópera, comparecia
a algumas ceias onde se encontravam cortesãs, a fim de acompanhar Estêvão em todas as diversões. No dia de micarême (Micarême: quinta-feira da terceira semana da
Quaresma, dia de festejos e divertimentos na França. Em Portugal, esse dia é assinalado pela cerimônia popular da “Serração da Velha”.), ou melhor, no dia seguinte,
às oito horas da manhã, Diná, fantasiada, estava chegando em casa para deitar-se. Fora espiar Lousteau, que, julgando-a adoentada, dispusera de sua micarême em favor
de Fanny Beaupré. O jornalista, prevenido por um amigo, comportara-se de maneira a iludir a pobre mulher, que não queria outra coisa. Ao descer do carro, Diná encontrou
o sr. de La Baudraye, a quem o porteiro a designou. O velhote disse friamente à mulher, tomando-a pelo braço:
— É a senhora?...
Essa aparição da autoridade conjugal, diante da qual ela se sentia tão pequena, e sobretudo essa frase quase enregelaram o coração da pobre criatura surpreendida
em trajes carnavalescos. Para melhor escapar à atenção de Estêvão, Diná usara uma fantasia sob a qual ele não poderia descobri-la. Aproveitou-se ainda do fato de
estar mascarada para fugir sem responder, trocou de roupa e subiu ao quarto de sua mãe, onde a esperava o sr. de La Baudraye. Apesar de sua atitude altiva, corou
na presença do velhote.
— Que quer de mim, senhor?—disse ela.—Não nos separamos para sempre?
— De fato, sim—respondeu o sr. de La Baudraye.—Mas, legalmente, não.
A sra. Piédefer fazia à filha sinais que Diná acabou por perceber e compreender.
— Só mesmo seus interesses poderiam tê-lo trazido aqui—disse ela num tom áspero.
— Nossos interesses—corrigiu friamente o homenzinho—,pois temos filhos... Seu tio Silas Piédefer morreu em Nova York, onde, após ter feito e perdido várias fortunas
em diversos países, deixou alguma coisa como setecentos a oitocentos mil francos, dizem mesmo que um milhão e duzentos mil francos; mas é preciso transformar mercadorias
em capital... Sou o chefe da comunidade, exerço seus direitos.
— Oh!—exclamou Diná.—Em tudo quanto se refere a negócios, só tenho confiança no sr. de Clagny; ele conhece as leis, entenda-se com ele; o que ele fizer estará bem-feito.
— Não preciso do sr. de Clagny—disse o sr. de La Baudraye—para retirar-lhe meus filhos.
— Seus filhos!—exclamou Diná.—Seus filhos, a quem o senhor nunca mandou um óbolo! Seus filhos!...
E acrescentou à frase uma imensa gargalhada; a impassibilidade do pequeno La Baudraye, porém, lançou gelo sobre essa explosão.
— A senhora sua mãe acaba de mostrar-me as crianças, são encantadoras, não quero separar-me delas e vou levá-las para nosso castelo de Anzy—disse o sr. de La Baudraye—,quando
mais não fosse, ao menos para poupar-lhes de ver a mãe fantasiada como se fantasiam as...
— Basta!—disse imperiosamente a sra. de La Baudraye.—Que queria de mim, ao vir aqui?
— Uma procuração para receber a herança de nosso tio Silas...
Diná tomou uma pena, escreveu um bilhete ao sr. de Clagny e disse ao marido que voltasse à tarde. Às cinco horas, o advogado-geral, pois o sr. de Clagny fora promovido,
esclareceu a sra. de La Baudraye sobre sua situação. Encarregou-se de regularizar tudo, exigindo um compromisso do velhote, que fora levado unicamente pela avareza.
O sr. de La Baudraye, que precisava da procuração da esposa para agir livremente, comprou-a pelas seguintes concessões: comprometeu-se, preliminarmente, a dar à
esposa uma pensão de dez mil francos, enquanto lhe conviesse, foi declarado no documento, morar em Paris; mas, à medida que os filhos atingissem a idade de seis
anos, seriam entregues ao sr. de La Baudraye. E, por fim, o magistrado conseguiu o pagamento antecipado dum ano de pensão. O pequeno La Baudraye, que foi despedir-se
gentilmente da esposa e dos filhos, apareceu vestido com um pequeno paletó branco de caucho. Estava tão teso e tão igual ao La Baudraye de 1836 que Diná desesperou
de poder enterrar o terrível anão.
XLVII - AS FORCAS CAUDINAS DAS MULHERES QUE AMAM
(Forcas Caudinas: desfiladeiro perto de Caudium, no antigo país dos samnitas, onde um exército romano foi forçado a render-se à discrição em 321 a.C.; em sentido
figurado: concessão humilhante arrancada aos vencidos.)
Do jardim onde fumava um charuto, o jornalista viu o sr. de La Baudraye durante o tempo que esse inseto gastou em atravessar o pátio; mas isso bastou a Lousteau,
pareceu-lhe evidente que o homenzinho queria destruir todas as esperanças que sua morte podia inspirar à esposa. Essa cena tão rápida alterou muito as secretas disposições
do jornalista. Fumando um segundo charuto, Estêvão pôs-se a refletir sobre sua situação; a vida em comum que levava com a baronesa de La Baudraye custara-lhe até
aquele momento tanto dinheiro quanto a ela. Para empregar uma expressão comercial, as contas se balançavam rigorosamente. Tendo em vista suas parcas posses e o esforço
com que ganhara seu dinheiro, Lousteau considerava-se moralmente como credor. O momento era, seguramente, favorável para deixar aquela mulher. Cansado de fingir
há cerca de três anos uma comédia que nunca se transforma em hábito, ele disfarçava constantemente seu tédio. Esse rapaz, habituado a nada dissimular, impunha-se
em casa um sorriso semelhante ao do devedor diante do credor. Essa obrigação se lhe tornava cada dia mais penosa. Até então, o imenso interesse que o futuro representava
dera-lhe forças; mas, quando viu o pequeno La Baudraye prestes a partir tão lestamente para os Estados Unidos como se se tratasse de ir a Rouen, pelo barco a vapor,
deixou de acreditar no futuro. Saindo do jardim, entrou na elegante sala onde Diná acabara de receber as despedidas do marido.
— Estêvão—disse a sra. de La Baudraye—,sabes o que meu dono e senhor veio propor-me? Deu ordens aos criados, para o caso de eu querer morar em Anzy durante sua ausência,
e espera que os bons conselhos de minha mãe me decidam a voltar para lá com meus filhos...
— O conselho é excelente—respondeu secamente Lousteau, que conhecia bastante Diná para saber a resposta apaixonada que ela desejava e mesmo lhe mendigava com o olhar.
Esse tom, a inflexão de voz, o olhar indiferente, tudo feriu tão rudemente aquela mulher que vivia unicamente por seu amor que ela deixou correr dos olhos ao longo
das faces duas grossas lágrimas sem responder, e Lousteau não se apercebeu disso senão no momento em que ela tomou o lenço para enxugar essas duas pérolas de dor.
— Que tens, Didine?—perguntou ele, tocado no coração por essa vivacidade sensitiva.
— No momento em que eu me felicitava por ter conquistado para sempre nossa liberdade—disse ela—ao preço de minha fortuna, vendendo o que uma mãe tem de mais precioso,
seus filhos!... Pois ele mos tomará à idade de seis anos... e, para vê-los, precisaria voltar a Sancerre! Um suplício! Ah! Meu Deus! Que fiz?
Lousteau caiu ajoelhado diante de Diná e beijou-lhe as mãos, prodigalizando-lhe suas mais ardentes carícias.
— Não me compreendes—disse ele.—Examino-me e verifico que não valho todos esses sacrifícios, meu anjo querido. Sou, literariamente falando, um homem muito secundário.
No dia em que eu não puder aparecer no rodapé dum jornal, os diretores me deixarão a um canto, como uma chinela velha que se joga à sarjeta. Pensa nisto! Nós, os
bailarinos de corda, não temos aposentadoria! Haveria muita gente de talento a aposentar, se o Estado empreendesse essa obra de beneficência! Tenho quarenta e dois
anos, tornei-me preguiçoso como uma marmota. Sinto-o: meu amor—beijou-lhe ternamente a mão—só pode ser funesto para ti. Vivi, como sabes, aos vinte e dois anos,
com Florina; mas o que se desculpa na mocidade e então parece bonito, encantador, é infamante aos quarenta anos. Até agora, temos repartido o fardo de nossa existência,
e, nos últimos dezoito meses, ela não tem sido muito bela. Por dedicação a mim, andas vestida inteiramente de preto, o que não me lisonjeia muito...
Diná fez um desses magníficos gestos de ombros que valem todas as frases do mundo...
— Sim—disse Estêvão, continuando—,bem o sei, sacrificas tudo a meus gostos, mesmo tua beleza. E eu, com o coração gasto em lutas, a alma cheia de maus pressentimentos
sobre meu futuro, não recompenso teu suave amor com um amor igual. Temos sido muito felizes, vivemos sem tristezas durante muito tempo... Pois bem, não quero ver
terminar mal um poema tão belo. Não tenho razão?
A sra. de La Baudraye amava tanto Estêvão que essa sabedoria, digna do sr. de Clagny, lhe deu prazer e secou suas lágrimas.
“Então ele me ama de verdade!”, pensou ela, fitando-o com um sorriso nos olhos.
Após quatro anos de intimidade, o amor dessa mulher terminara reunindo todas as gradações descobertas por nosso espírito de análise e que a sociedade moderna criou;
um dos homens mais notáveis deste tempo, cuja perda recente aflige ainda as letras, Beyle (Stendhal) (O grande romancista Henri Beyle, conhecido por seu pseudônimo
Stendhal, morreu em 1842. De todos os seus contemporâneos ilustres, Balzac foi o único que lhe reconheceu o valor e que consagrou um estudo entusiástico à Cartuxa
de Parma. As gradações do amor são analisadas por Stendhal no seu livro Do amor.) foi o primeiro a caracterizá-las perfeitamente. Lousteau causava a Diná essa viva
comoção, explicável pelo magnetismo, que põe em desordem as forças da alma e do corpo, que destrói todo o princípio de resistência nas mulheres. Um olhar de Lousteau,
sua mão colocada sobre a de Diná tornavam-na inteiramente obediente. Uma palavra meiga, um sorriso desse homem faziam florir a alma da pobre mulher, comovida ou
entristecida pela carícia ou pela indiferença de seus olhares; quando ela lhe dava o braço ao andar a seu lado na rua ou na avenida, ela se fundia de tal modo nele
que perdia a consciência de seu eu. Encantada pelo espírito, magnetizada pelas maneiras do rapaz, ela não via em seus vícios mais que leves defeitos. Amava as baforadas
de charuto que o vento lhe trazia do jardim para o quarto, ia aspirá-las sem fazer a menor careta, ocultava-se para gozá-las. Odiava o editor ou o diretor de jornal
que recusava dinheiro a Lousteau objetando-lhe a enormidade dos adiantamentos já feitos. Chegava ao ponto de admitir que esse boêmio escrevesse uma novela e recebesse
seu preço, em vez de entregá-la em pagamento do dinheiro recebido há muito tempo. Tal é, sem dúvida, o verdadeiro amor, que compreende todas as maneiras de amar:
amor de coração, amor de cérebro, amor-paixão, amor-capricho, amor-prazer, segundo as definições de Beyle. Didine amava tanto que, em certos momentos em que seu
senso crítico, tão justo, tão continuamente exercido desde que fora para Paris, lhe fazia ver claro na alma de Lousteau, o sentimento se sobrepunha à razão e lhe
sugeria desculpas.
— E eu—respondeu ela—,que sou? Uma mulher que se colocou fora da sociedade! Já que falto à honra das mulheres, por que não me sacrificarias um pouco da honra dos
homens? Acaso não vivemos fora das convenções sociais? Por que não aceitar de mim o que Nathan aceita de Florina? Faremos as contas quando nos separarmos e... tu
sabes!... só a morte nos separará. Tua honra, Estêvão, é a minha felicidade; como a minha é a minha constância e a tua ventura. Se não te faço feliz, tudo está acabado.
Se te causo um desgosto, condena-me. Nossas dívidas estão pagas, temos dez mil francos de renda e ganharemos muito bem, ambos, oito mil francos por ano... Farei
teatro! Com mil e quinhentos francos por mês, não seremos tão ricos como os Rotschild? Fica descansado. Terei, agora, vestidos deliciosos, todos os dias te darei
satisfações de vaidade como no dia da primeira representação de Nathan...
— E tua mãe, que vai todos os dias à missa, que quer trazer-te um padre e fazer-te renunciar a teu gênero de vida?
— Cada um com seu vício. Tu fumas, ela me catequiza, a pobre mulher! Mas ela toma conta das crianças, leva-as a passear, é duma dedicação absoluta, idolatra-me;
queres impedi-la de chorar?
— Que dirão de mim?
— Ora, nós não vivemos para a sociedade!—exclamou ela, levantando Estêvão e fazendo-o sentar-se junto dela.—Além disso, um dia nos casaremos... temos por nós os
azares do mar...
— Não tinha pensado nisso!—exclamou ingenuamente Lousteau, que disse para si mesmo: “Sempre haverá tempo para romper, quando voltar o pequeno La Baudraye”.
A partir desse dia, Lousteau viveu luxuosamente; Diná podia competir, nas primeiras representações, com as mulheres mais bem-vestidas de Paris. Lisonjeado por essa
felicidade íntima, Lousteau representava diante dos amigos, por fatuidade, o personagem dum homem fatigado, entediado, arruinado pela sra. de La Baudraye.
— Oh! Como eu estimaria o amigo que me livrasse de Diná! Mas ninguém o conseguiria—dizia ele—,ela me ama a ponto de atirar-se pela janela se eu lho pedisse.
O jornalista procurava inspirar compaixão, tomava precauções contra o ciúme de Diná quando aceitava um convite para festa. Cometia, enfim, infidelidades com o maior
despudor. Quando o sr. de Clagny, verdadeiramente desesperado de ver Diná numa situação tão aviltante, quando podia ser tão rica, tão altamente colocada e no momento
em que suas primitivas ambições iam ser realizadas, animou-se a dizer-lhe: “A senhora está sendo enganada!”, ela respondeu:
— Eu o sei.
O magistrado ficou pasmo. Quando recuperou a palavra, tentou fazer uma observação.
— Ama-me ainda?—perguntou-lhe a sra. de La Baudraye, interrompendo-o na primeira palavra.
— A ponto de morrer pela senhora!...—exclamou ele, levantando-se.
Os olhos do pobre homem ficaram acesos como tochas, ele tremeu como uma folha, sentiu a laringe paralisada, os cabelos estremeceram nas raízes, ele pensou na ventura
de ser tomado por seu ídolo como vingador, o que o tornou quase louco de alegria.
— De que se espanta?—perguntou-lhe ela, fazendo-o sentar-se de novo.—Pois é assim que amo Estêvão.
O magistrado compreendeu então esse argumento ad hominem (Argumento ad hominem: argumento pelo qual se confunde um adversário opondo-lhe suas próprias palavras ou
seus próprios atos.)! Sentiu lágrimas nos olhos, ele que acabara de condenar um homem à morte!
A saciedade de Lousteau, esse horrível desfecho do concubinato, denunciava-se em mil pequenas coisas que são como grãos de areia lançados às vidraças do pavilhão
encantado em que se sonha quando se ama. Esses grãos de areia que se tornam seixos, Diná só os vira quando já tinham o tamanho duma pedra. A sra. de La Baudraye
acabara por julgar acertadamente Lousteau.
— Ele é um poeta—dizia ela à mãe—indefeso contra a desgraça, covarde por preguiça e não por falta de coragem, um pouco condescendente demais com a voluptuosidade;
é um gatinho que não se pode odiar. Que seria dele sem mim? Impedi seu casamento, ele não tem mais futuro. Seu talento pereceria na miséria.
— Oh! Minha Diná!—exclamara a sra. Piédefer.—Em que inferno vives?... Qual é o sentimento que te dará forças para persistir?...
— Serei sua mãe!—dissera ela.
Há situações horríveis em que não se toma um partido senão quando nossos amigos se apercebem de nossa desonra. Transige-se consigo mesmo, enquanto se escapa a um
censor que vem fazer as vezes de procurador do rei. O sr. de Clagny, inábil como um patito (Patito: palavra italiana que significa “cavalheiro servente” ou “chichisbéu”,
namorado que suporta com paciência os caprichos de sua dama.), acabava de tornar-se o carrasco de Diná!
— Serei, para conservar meu amor, o que a Madame Pompadour (Sra. de Pompadour: em solteira Antoinette Poisson (1721-1764), célebre favorita de Luís XV, sobre cuja
política exerceu influência decisiva, chegando a aliar a França à Áustria e a implicá-la assim na Guerra de Sete Anos. Para manter seu poder sobre o rei inventou
mil distrações, espetáculos, caças, construções suntuosas, viagens etc.) foi para manter o poder—disse ela para si mesma, quando o sr. de Clagny saiu.
Essa frase mostra claramente que seu amor se tornava pesado de carregar e que ia constituir um trabalho em vez de constituir um prazer.
QUARTA PARTE
COMENTÁRIOS SOBRE O ADOLFO DE BENJAMIN CONSTANT
XLVIII - UMA LUTA SECRETA
O novo papel adotado por Diná era horrivelmente penoso e Lousteau não o tornou mais fácil de desempenhar. Quando queria sair após o jantar, ele representava pequenas
cenas de amizade arrebatadoras, dizia a Diná palavras verdadeiramente cheias de ternura, prendia sua companheira pela corrente e, quando a havia ferido bastante
nos pontos sensíveis, o magnífico ingrato perguntava: “Magoei-te?”. Essas mentirosas carícias, esses fingimentos tiveram, algumas vezes, consequências desonrosas
para Diná, que acreditava num renascimento da afeição. Ah! A mãe cedia, com uma vergonhosa facilidade, o lugar a Didine. Sentiu-se como um joguete nas mãos desse
homem e acabou por dizer para si mesma: “Pois bem, quero ser seu joguete!”, encontrando nisso vivas delícias, alegrias de desesperada.
Quando essa mulher de espírito tão viril se lançou pelo pensamento na solidão, sentiu desfalecer a coragem. Preferiu os inevitáveis suplícios previstos dessa feroz
intimidade à privação de prazeres tanto mais deliciosos porque nasciam no meio de remorsos, de pavorosas lutas íntimas, de não que se transformava em sim! Isso foi,
a todo o momento, a gota d’água salobra achada no deserto, bebida com mais delícia do que as que o viajante experimentaria ao saborear os melhores vinhos na mesa
dum príncipe. Quando Diná se interrogava, à meia-noite: “Voltará? Não voltará?”, ela só recuperava as forças ao ruído conhecido dos sapatos de Estêvão, reconhecia
sua maneira de bater à porta. Muitas vezes tentava empregar a voluptuosidade como um freio, comprazia-se em lutar com as rivais, a não deixar-lhes nada naquele coração
saciado. Quantas vezes representou ela a tragédia do Último dia de um condenado (Último dia de um condenado: título de um romance de Victor Hugo (1829), em que o
autor, com o intuito de combater a pena capital, analisa os sentimentos de um condenado à morte com um patético e uma força que fizeram qualificar seu livro de “uma
agonia de trezentas páginas”.), pensando: “Amanhã nos deixaremos!”. E quantas vezes uma palavra, um olhar, uma carícia cheia de naturalidade fizeram com que ela
voltasse a cair no amor! Isso foi muitas vezes terrível! Mais de uma vez ela pensou no suicídio enquanto caminhava em torno desse relvado parisiense onde se ostentavam
algumas flores murchas!... Não esgotara ainda, enfim, o imenso tesouro de dedicação e de amor que as mulheres apaixonadas guardam no coração.
O romance Adolfo era sua Bíblia, estudava-o; pois, acima de tudo, ela não queria ser Elenora. Evitava as lágrimas, preservou-se de todas as amarguras tão sabiamente
descritas pelo crítico a que se deve a análise dessa obra pungente e cuja interpretação Diná considerava quase superior ao livro. Assim, muitas vezes relia o artigo
do único crítico que já teve a Revue des Deux Mondes (O único crítico que já teve a Revue des Deux Mondes: alusão a Gustave Planche (1808-1857), crítico famoso da
época, que teve a sua seção de crítica na Revue des Deux Mondes desde 1831. Balzac, ao comprar em 1836 a Chronique de Paris, confiou-lhe a mesma seção. Era conhecida
a amizade que ligava George Sand a Planche, a quem Balzac faz, aliás, figurar em seu romance Beatriz sob os traços de Cláudio Vignon. O elogio que Balzac lhe dispensa
é, ao mesmo tempo, uma indireta a Sainte-Beuve, que também foi crítico da Revue des Deux Mondes e submeteu a uma crítica severa várias obras de Balzac.) e que figura
nas primeiras páginas da nova edição de Adolfo.
— “Não”—dizia consigo, repetindo as fatais palavras—,“não, não darei às minhas preces a fórmula duma ordem, não me servirei das lágrimas como duma vingança, não
julgarei as ações que outrora aprovava sem controle, não espiarei seus passos; se ele fugir, não encontrará ao voltar uma boca imperiosa cujo beijo seja uma ordem
sem réplica. Não! Meu silêncio não será uma queixa e minha palavra não será uma censura!...” Não serei vulgar—dizia-se, colocando sobre a mesa o pequeno volume amarelo
que já lhe valera essa frase de Lousteau: “Imagina, estás lendo Adolfo!”—Mesmo que eu tivesse apenas um dia para que ele reconhecesse meu valor e pensasse: “A vítima
nunca se queixou”, isto me bastaria! Além disso, as outras não terão mais que alguns momentos, ao passo que eu terei toda sua vida.
Considerando-se autorizado pela conduta da esposa a puni-la no tribunal doméstico, o sr. de La Baudraye teve a amabilidade de furtá-la para completar seu grande
empreendimento de cultivar duzentos hectares de tojo, a que desde 1836 consagrava seus rendimentos vivendo como um rato. Manobrou tão bem os valores deixados pelo
sr. Silas Piédefer que pôde reduzir a liquidação autêntica a oitocentos mil francos, levando consigo, entretanto, um milhão e duzentos mil... Não anunciou o regresso
à esposa; mais ainda, enquanto ela sofria males terríveis, ele construía herdades, cavava fossos, plantava árvores, entregava-se a trabalhos de desmoita que fizeram
com que ele fosse considerado um dos agrônomos mais distintos do Berry. Os quatrocentos mil francos furtados à esposa passaram, em três anos, para essa operação,
e a propriedade de Anzy ficou em condições de dar, dentro de certo tempo, setenta e dois mil francos de renda, livres de impostos. Quanto aos oitocentos mil francos,
ele os empregou a quatro e meio por cento, em títulos a oitenta francos, graças à crise financeira devida ao ministério chamado do primeiro de março (O ministério
chamado do primeiro de março, isto é, o segundo gabinete de Thiers, empossado em 1º de março de 1840, que por pouco não provocou um conflito internacional com sua
política de apoio a Mehemet Ali, paxá do Egito, que exasperava a Inglaterra. Mas Luís Felipe recuou diante da perspectiva de uma guerra e Thiers demitiu-se em outubro
do mesmo ano.). Proporcionando, assim, quarenta e oito mil francos de renda à esposa, ele se considerou quite com ela. Isso não viria a representar os mesmos um
milhão e duzentos mil francos no dia em que os títulos a quatro e meio passassem dos cem francos? Sua importância não foi sobrepujada em Sancerre senão pela do mais
rico proprietário de imóveis da França, de quem se fazia rival. Via-se com cento e quarenta mil francos de renda, noventa dos quais representavam as terras que constituíam
seu morgadio. Após ter calculado que, com seus rendimentos, pagava dez mil francos de impostos, três mil francos de despesas, dez mil francos à esposa e mil e duzentos
à sogra, ele dizia em plena Sociedade Literária:
— Dizem que sou avarento, que não gasto nada, e minha despesa, no entanto, sobe a vinte e seis mil e quinhentos francos por ano. E vou ter de pagar a educação de
meus dois filhos! Isso talvez não agrade muito aos Milaud de Nevers, mas a segunda casa de La Baudraye talvez venha a ter uma carreira tão bela quanto a primeira.
Irei a Paris solicitar ao rei dos franceses o título de conde. (O sr. Roy é conde.) (Sr. Roy: Antoine Roy (1764-1847), homem de negócios e político francês, ministro
da Fazenda de Luís XVIII de 1819 a 1821. Depois da sua renúncia, obteve o título de conde e um lugar na Câmara dos Pares.) Minha mulher ficará muito contente de
chamar-se “senhora condessa”.
Isso foi dito com tão perfeito sangue-frio que ninguém se atreveu a zombar do homenzinho. Apenas o presidente Boirouge lhe replicou:
— Em seu lugar, eu só me julgaria feliz se tivesse uma filha...
— Ora—disse o barão—,irei logo a Paris...
XLIX - O MOMENTO EM QUE A MORAL TEM RAZÃO
No começo do ano de 1842 a sra. de La Baudraye, que sempre se sentia requestada em falta de coisa melhor, voltara a imolar-se ao bem-estar de Lousteau: retomara
os vestidos pretos; dessa vez, porém, ela vestia luto, pois seus prazeres se transformavam em remorsos. Sentia frequentemente demasiada vergonha de si mesma para
que não sentisse às vezes o peso de seu cativeiro, e sua mãe a surpreendeu em momentos de reflexão profunda em que a visão do futuro mergulha os infortunados numa
espécie de torpor. A sra. Piédefer, aconselhada por seu confessor, espreitava o momento de desânimo que o sacerdote anunciava e nessas ocasiões advogava em favor
dos filhos. Contentava-se em pedir uma separação de domicílio, sem exigir uma separação de coração.
Na vida real, as situações violentas como essa não terminam, como nos livros, pela morte ou por catástrofes habilmente arranjadas; acabam muito menos poeticamente
pelo tédio, pelo emurchecimento de todas as flores da alma, pela vulgaridade dos hábitos e, mais frequentemente ainda, por uma outra paixão, que despoja a mulher
desse interesse de que tradicionalmente se cercam as mulheres. Ora, quando o bom senso, a lei das conveniências sociais, o interesse de família, todos os elementos
do que se chamava moral pública, durante a Restauração, por horror à expressão “religião católica”, foram amparados pelo sentimento de ofensas demasiado fortes;
quando a fadiga da abnegação já chegou quase ao desfalecimento e, em tal situação, um golpe demasiado violento, uma dessas infâmias que os homens só deixam ver às
mulheres de quem ainda se consideram senhores leva ao máximo o desgosto, o desencanto, então chega a hora oportuna para o amigo obter a cura. A sra. Piédefer teve,
assim, pouco trabalho para retirar a venda dos olhos da filha. Mandou chamar o advogado-geral. O sr. de Clagny completou a obra afirmando à sra. de La Baudraye que,
se ela renunciasse a viver com Estêvão, seu marido deixaria os filhos com ela, lhe permitiria morar em Paris e lhe restituiria o direito de dispor de seus bens.
— Que vida!—disse ele.—Usando precauções, com o auxílio de pessoas piedosas e caridosas, a senhora poderia ter um salão e reconquistar uma posição. Paris não é Sancerre!
Diná confiou ao sr. de Clagny a tarefa de negociar uma reconciliação com o velhote. O sr. de La Baudraye vendera bem seus vinhos, vendera lãs, cortara as árvores
e chegara, sem nada dizer à esposa, a Paris, para colocar lá duzentos mil francos na aquisição dum encantador palácio na Rue de l’Arcade, proveniente da liquidação
duma grande fortuna aristocrática arruinada. Membro do conselho geral de seu departamento desde 1826 e pagando dez mil francos de contribuições, achava-se duplamente
nas condições exigidas pela nova lei sobre o pariato. Pouco antes da eleição geral de 1842, declarou-se candidato para o caso de não ser feito par de França. Pediu,
igualmente, para ser investido do título de conde e promovido a comendador da Legião de Honra. Em matéria de eleições, tudo quanto pudesse consolidar as nomeações
dinásticas era justo aos olhos dos ministros; ora, no caso de o sr. de La Baudraye ser admitido no governo, Sancerre se tornaria mais do que nunca um baluarte da
Doutrina. O sr. de Clagny, cujo talento e cuja modéstia eram cada vez mais apreciados, apoiou o sr. de La Baudraye; mostrou na elevação desse corajoso agrônomo ao
pariato uma garantia dada aos interesses materiais.
O sr. de La Baudraye, uma vez nomeado conde, par de França e comendador da Legião de Honra, teve a vaidade de fazer-se representar por uma mulher e uma casa bem
instalada: queria, dizia, gozar a vida. Pediu, assim, à esposa, por meio duma carta que lhe foi ditada pelo advogado-geral, para ir morar no seu palácio, mobiliá-lo
com aquele bom gosto de que, dizia, tantas provas o encantavam no seu castelo de Anzy. O novo conde observou à esposa que seus interesses territoriais o impediam
de deixar Sancerre, ao mesmo tempo que a educação dos filhos exigia que ela permanecesse em Paris. O complacente marido encarregava, assim, o sr. de Clagny de entregar
à senhora condessa sessenta mil francos para o arranjo interior do palácio de La Baudraye, recomendando-lhe que mandasse incrustar uma placa de mármore acima do
portão principal com esta inscrição: Palácio de La Baudraye. A seguir, prestando contas à esposa dos resultados da liquidação Silas Piédefer, o sr. de La Baudraye
comunicava-lhe a colocação a quatro e meio por cento dos oitocentos mil francos recebidos em Nova York e concedia-lhe essa inscrição para suas despesas, ficando
compreendidas nestas as da educação dos filhos. Como era obrigado a estar em Paris durante uma parte da sessão da Câmara dos Pares, pedia à esposa que lhe reservasse
um pequeno apartamento num sótão por cima dos seus aposentos.
— Sim, senhor! Ele torna-se jovem, fidalgo, magnífico! Que será mais que vai acontecer? É de fazer a gente tremer—disse a sra. de La Baudraye.
— Ele está satisfazendo todos os desejos que a senhora concebeu na idade de vinte anos—respondeu o magistrado.
A comparação de seu destino futuro com seu destino atual não era sustentável para Diná. Ainda na véspera, Ana de Fontaine voltara o rosto para não ver sua amiga
íntima do pensionato Chamarolles. Diná pensou:
— Sou condessa, terei na minha carruagem o manto azul do pariato e no meu salão as sumidades da política e da literatura... então eu olharei para ela!...
Essa pequena satisfação exerceu toda sua influência no momento da conversão, como o desprezo da sociedade influíra quando ela resolveu ir para Paris.
Um belo dia, em maio de 1842, a sra. de La Baudraye pagou todas as dívidas da casa e deixou mil escudos sobre o maço de todas as notas pagas. Após ter enviado a
mãe e os filhos para o palácio de La Baudraye, esperou Lousteau já vestida para sair. Quando o ex-rei de seu coração entrou em casa para jantar, ela disse-lhe:
— Entornei a panela, meu amigo. A sra. de La Baudraye convida-o para jantar no Rocher de Cancale. Venha!
Arrastou Lousteau, estupefato com a expressão desembaraçada que assumia aquela mulher, que ainda pela manhã estava submissa a seus menores caprichos, pois há dois
meses ela também vinha fingindo!
— A sra. de La Baudraye está alinhada como para uma première—disse ele, servindo-se da abreviação pela qual se designa em gíria de jornal uma primeira representação.
— Não se esqueça do respeito que deve à sra. de La Baudraye—disse gravemente Diná.—Não quero mais saber o que significa essa palavra alinhada...
— A Didine está se revoltando?—disse ele, prendendo-a pela cintura.
— Não há mais Didine, você a matou, meu amigo—respondeu ela, desprendendo-se.—E aproveito para dar-lhe a primeira representação da sra. condessa de La Baudraye...
— Então é verdade, nosso inseto é par de França?
— A nomeação figurará esta noite no Moniteur, segundo me disse o sr. de Clagny, que, por sua vez, passará à corte de cassação.
— Com efeito—disse o jornalista—,a entomologia social precisa estar representada na Câmara...
— Meu amigo, vamos separar-nos para sempre—disse a sra. de La Baudraye, reprimindo o tremor da voz.—Despedi as duas criadas. Quando voltar para casa, você a encontrará
em ordem e sem dívidas. Sempre terei para você, mas secretamente, o coração duma mãe. Deixemo-nos tranquilamente, sem ruído, como gente decente. Tem alguma censura
a fazer-me sobre minha conduta durante esses seis anos?
— Nenhuma, a não ser a de ter despedaçado minha vida e estragado meu futuro—disse ele, num tom seco.—Você leu demasiadamente o livro de Benjamin Constant e estudou
mesmo o último artigo escrito sobre ele; mas você o leu apenas com olhos de mulher. Embora você tenha uma dessas belas inteligências que fariam a fortuna dum poeta,
você não teve coragem de colocar-se no ponto de vista dos homens. Esse livro, querida, tem os dois sexos. Sabe? Estabelecemos que há livros machos ou fêmeas, louros
ou morenos... Em Adolfo, as mulheres veem apenas Elenora, os rapazes veem Adolfo, os políticos veem a vida social! Você se dispensou de entrar na alma de Adolfo,
como, aliás, seu crítico, que só viu Elenora. O que mata o pobre rapaz, querida, é ter perdido seu futuro por uma mulher, é não poder ser nada do que teria sido,
nem embaixador, nem ministro, nem camarista, nem poeta, nem rico. Deu seis anos de sua energia, da época da vida em que o homem pode aceitar as agruras dum aprendizado
qualquer, a uma saia que ele mesmo estimula na carreira da ingratidão, pois uma mulher que pôde deixar seu primeiro amante devia, cedo ou tarde, deixar o segundo.
Adolfo é, além disso, um alemão melado que não se sente capaz de enganar Elenora. Há Adolfos que perdoam às suas Elenoras discussões infamantes, queixas, e que se
dizem: “Não falarei do que perdi! Não irei mostrar sempre ao Egoísmo que coroei meu punho amputado, como faz o Ramorny da Linda moça de Perth” (A linda moça de Perth:
romance de Walter Scott.); mas a esses, minha cara, a gente deixa... Adolfo é um moço de boa família, um coração aristocrata que quer reingressar no caminho da dignidade
e recuperar seu dote social, sua reputação comprometida. Você está representando, no momento, os dois personagens. Está sentindo a dor que causa uma posição perdida
e julga-se no direito de abandonar um pobre amigo que teve a desventura de julgá-la suficientemente superior para admitir que, se no homem o coração deve ser constante,
o sexo pode-se deixar levar por caprichos...
— E acha que não me esforçarei para restituir-lhe o que lhe fiz perder? Fique descansado—respondeu a sra. de La Baudraye, fulminada por essas expressões—,sua Elenora
não morre e, se Deus lhe conceder a vida, se você mudar de conduta, se renunciar às cortesãs e às atrizes, encontraremos para você coisa melhor do que uma Felícia
Cardot.
Os dois amantes tornaram-se insípidos: Lousteau fingia tristeza, queria parecer seco e frio; ao passo que Diná, verdadeiramente triste, escutava as censuras de seu
coração.
— Por que—disse Lousteau—não terminar como deveríamos ter começado, ocultando a todos nosso amor e vendo-nos secretamente?
— Nunca—disse a nova condessa, assumindo uma atitude glacial.—Não percebe que somos, acima de tudo, criaturas acabadas? Nossos sentimentos parecem-nos infinitos
devido ao pressentimento que temos do céu; mas, aqui na terra, eles têm por limites as forças de nossa constituição. Há naturezas moles e frouxas que podem receber
um número infinito de ofensas e subsistir; mas outras há, de têmpera mais firme, que acabam por quebrar-se sob os golpes. Você me...
— Oh! Basta—disse ele—,deixemos de fazer literatura!... Seu discurso me parece inútil, pois você se podia justificar com uma única frase: Não amo mais!...
— É? Sou eu que não amo mais?!—exclamou ela, admirada.
— Certamente. Você calculou que eu lhe estava causando mais pesares, mais aborrecimentos que prazeres e, por isso, abandona seu sócio...
— Abandono?!—exclamou ela, erguendo os braços.
— Pois não acaba de dizer para sempre?
— Pois bem, sim, para sempre!—exclamou ela, com energia.
Esse último para sempre, ditado pelo receio de tornar a cair sob o domínio de Lousteau, foi interpretado por ele como o fim de seu poder, uma vez que Diná permanecia
insensível a seus desdenhosos sarcasmos. O jornalista não pôde conter uma lágrima: perdia uma afeição sincera, ilimitada. Encontrara em Diná a mais meiga La Vallière
(La Vallière: a srta. La Vallière foi favorita de Luís XIV a partir de 1661, durante dez anos. Depois de ter tido quatro filhos dele, ao ver-se eclipsada pela sra.
de Montespan, retirou-se ao convento das Carmelitas.), a mais amável Pompadour que um egoísta que não é rei poderia desejar; e, como a criança que percebe que, à
força de maltratar seu besouro, o matou, Lousteau chorava. A sra. de La Baudraye precipitou-se para fora da saleta onde estava jantando, pagou o jantar e saiu rapidamente
pela Rue de l’Arcade, resmungando e achando-se feroz.
L - A CONDESSA DE LA BAUDRAYE TORNA-SE UMA MULHER HONESTA
Diná, que acabava de fazer de seu palácio um modelo de conforto, transformou-se pessoalmente também; essa dupla metamorfose, porém, custou trinta mil francos mais
caro que as previsões do novo par de França. Como o fatal acontecimento que fez a família de Orléans perder seu herdeiro presuntivo (O herdeiro presuntivo da casa
de Orléans: Ferdinando Felipe, duque de Orléans, filho de Luís Felipe. Morreu em 13 de julho de 1842, na idade de 32 anos, das consequências de um acidente: num
passeio, seus cavalos tomaram o freio nos dentes, o duque saltou da caleça e quebrou a coluna vertebral sobre a calçada.) exigisse a reunião das câmaras em agosto
de 1842, o pequeno La Baudraye foi apresentar suas credenciais à nova Câmara muito antes do que esperava e viu, então, os trabalhos da esposa; ficou tão encantado
com eles que lhe deu os trinta mil francos sem a mínima observação, como outrora dera oito mil para arranjar La Baudraye. Ao voltar do Luxembourg, onde, segundo
a praxe, foi apresentado por dois pares, o barão de Nucingen (O barão de Nucingen: O barão é de origem alsaciana; Balzac transcreve-lhe constantemente a má pronúncia
alemã do francês.) e o marquês de Montriveau (O marquês de Montriveau: personagem balzaquiana, protagonista de A duquesa de Langeais.), o novo conde encontrou o
velho duque de Chaulieu (O velho duque de Chaulieu: provavelmente o pai de Luísa de Chaulieu, heroína de Memórias de duas jovens esposas.), um de seus antigos credores,
a pé, com um guarda-chuva na mão, enquanto ele se encontrava repimpado numa carruagenzinha baixa sobre cujas almofadas se via seu escudo, no qual se lia: Deo sic
patet fides et hominibus. Essa comparação derramou em seu coração uma dose desse bálsamo com que se embriaga a burguesia desde 1830. A sra. de La Baudraye assustou-se
ao ver então o marido mais lépido do que no dia do casamento. Assaltado por uma alegria superlativa, o mostrengo triunfava aos sessenta e quatro anos da vida que
lhe haviam negado, da família que o belo Milaud de Nevers o declarara incapaz de constituir, da esposa que recebia em casa para jantar o sr. e a sra. de Clagny,
o vigário da Assomption e seus dois introdutores na Câmara. Afagou os filhos com uma fatuidade encantadora. A beleza do serviço de mesa teve sua aprovação.
— Eis os tosões do Berry—disse ele, mostrando ao sr. de Nucingen as campainhas encimadas por sua nova coroa—,são de prata.
Embora devorada por uma profunda melancolia, reprimida com a energia duma mulher que se tornara verdadeiramente superior, Diná esteve encantadora, espiritual e,
sobretudo, pareceu rejuvenescida em seu luto.
— Podia-se dizer—exclamou o pequeno La Baudraye, mostrando sua esposa ao sr. de Nucingen—que a condessa tem menos de trinta anos!
— Ah! A zeniorra é uma mulier de trinta anos?—replicou o barão, que se servia dos ditados consagrados, nos quais via uma espécie de moeda corrente da palestra.
— Em toda a expressão do termo—respondeu a condessa—,pois tenho trinta e cinco e ainda creio ter uma paixão no coração...
— Sim, minha mulher arruinou-me com porcelanas, objetos de arte...
— A senhora adquiriu esse gosto muito cedo—disse o marquês de Montriveau, sorrindo.
— Sim—replicou o pequeno La Baudraye, fitando friamente o marquês de Montriveau, a quem conhecera em Bourges—,o senhor sabe que ela gastou em 25, 26 e 27 mais de
um milhão em curiosidades, que fazem de Anzy um museu...
— Que garbo!—pensou o sr. de Clagny, ao ver o avarentozinho da província à altura de sua nova posição.
Os avarentos têm sempre economias a fazer. No dia seguinte ao do voto da lei de regência pela Câmara, o pequeno par de França foi tratar de sua vindima em Sancerre
e retomou seus hábitos.
Durante o inverno de 1842, a condessa de La Baudraye, auxiliada pelo advogado-geral da corte de cassação, tentou constituir uma sociedade. Naturalmente, ela escolheu
um dia; escolheu entre as celebridades, não quis encontrar-se senão com pessoas sérias e de idade madura. Experimentou distrair-se indo aos Italiens e à Ópera. Duas
vezes por semana, levava lá a mãe e a sra. de Clagny, que o magistrado obrigou a visitar a sra. de La Baudraye. Mas, apesar de sua inteligência, de suas maneiras
amáveis e de suas atitudes de mulher moderna, só se sentia feliz pelos filhos, para os quais encaminhou todas suas afeições iludidas. O admirável sr. de Clagny recrutava
mulheres para a sociedade da condessa e alcançava êxito nessa tarefa! Tinha, porém, muito mais sucesso junto às mulheres devotas que junto às mulheres da sociedade.
— Elas a aborrecem!—dizia-se ele com terror, contemplando seu ídolo amadurecido pelo infortúnio, empalidecido pelos remorsos e que estava então em todo o esplendor
duma beleza reconquistada pela vida luxuosa e pela maternidade.
O dedicado magistrado, amparado em sua obra pela mãe e pelo vigário da paróquia, era admirável em expedientes. Todas as quartas-feiras servia alguma celebridade
da Alemanha, da Inglaterra, da Itália ou da Prússia à sua querida condessa. Apresentava-a como uma mulher excepcional a pessoas às quais ela não dizia duas palavras,
mas às quais escutava com tão profunda atenção que elas saíam convencidas de sua superioridade. Diná vencia em Paris pelo silêncio, como em Sancerre pela loquacidade.
De vez em quando, um epigrama sobre as coisas ou alguma observação sobre os ridículos revelavam uma mulher habituada a manejar as ideias e que, quatro anos antes,
havia rejuvenescido o folhetim de Lousteau. Essa época foi, para a paixão do pobre magistrado, como essa estação denominada verão de São Martinho (São Martinho:
a festa deste santo é no dia 12 de novembro.) nos anos sem sol. Fez-se mais velho do que era para ter o direito de ser amigo de Diná sem causar-lhe dano; mas, como
se fosse jovem, belo, comprometedor, ficava a distância como se devesse ocultar sua felicidade. Tentava cobrir do mais profundo segredo seus pequenos cuidados, seus
modestos presentes, que Diná exibia a todos. Procurava dar significações perigosas a suas menores obediências.
— Ele está fingindo-se apaixonado—dizia a condessa, sorrindo.
Ela escarnecia do sr. de Clagny em sua presença e o magistrado pensava: “Ela se ocupa de mim!”.
— Causo tamanha impressão a esse pobre homem—dizia ela, rindo, à mãe—que, se eu lhe dissesse sim, acho que ele diria não.
LI - UMA LEMBRANÇA
Uma noite, o sr. de Clagny trazia de volta para casa, em companhia da esposa, a sua querida condessa, que vinha profundamente preocupada. Os três acabavam de assistir
à primeira representação de A mão direita e a mão esquerda, o primeiro drama de Léon Gozlan (Léon Gozlan: amigo e, depois da morte do romancista, biógrafo de Balzac,
estreou no teatro com A mão direita e a mão esquerda, em 2 de dezembro de 1842, no Odéon. A intriga dessa peça meio histórica é baseada nas complicações do casamento
de Ulrica-Eleonora, rainha da Suécia, com Hermann, Landgrave de Hesse, complicações fáceis de imaginar quando se sabe que ambos os cônjuges já estavam morganaticamente
casados.).—Em que está pensando?—perguntou o magistrado, assustado com a tristeza de seu ídolo.
A persistência da tristeza secreta, mas profunda, que devorava a condessa era um mal perigoso que o advogado-geral não sabia combater, pois o verdadeiro amor é muitas
vezes inábil, sobretudo quando não é correspondido. O verdadeiro amor amolda-se ao temperamento. Ora, o digno magistrado amava à maneira de Alceste (Alceste: personagem
do Misantropo de Molière; franco e intransigente, inflexível com as fraquezas de seus semelhantes.), ao passo que a sra. de La Baudraye queria ser amada à maneira
de Filinto (Filinto: outra personagem da mesma peça, homem de caráter indulgente, que desculpa as fraquezas alheias e procura sempre o apaziguamento.). As infâmias
do amor acomodam-se muito mal à lealdade do Misantropo. Assim, Diná evitava cuidadosamente abrir o coração a seu patito. Como ousar confessar que ela às vezes sentia
saudade de seu lodo antigo? Sentia um vácuo enorme na vida de sociedade, não sabia a quem dedicar seus êxitos, seus triunfos, seus vestidos. As recordações de suas
misérias surgiam às vezes misturadas à lembrança de voluptuosidades devoradoras. Odiava Lousteau, algumas vezes, por não se importar com ela, gostaria de receber
dele cartas ternas ou furiosas. Como Diná não respondesse, o magistrado repetiu a pergunta, tomando a mão da condessa e apertando-a entre as suas numa atitude religiosa.
— Quer a mão direita ou a mão esquerda?—respondeu ela, sorrindo.
— A mão esquerda—disse ele—,pois presumo que a senhora quer referir-se à mentira e à verdade.
— Pois bem, eu o vi—replicou ela, falando de maneira a somente ser ouvida pelo magistrado.—E, ao vê-lo triste, profundamente desanimado, pensei: “Terá charutos?
Terá dinheiro?”.
— Bem, se quer saber a verdade, eu lhe direi—exclamou o sr. de Clagny—que ele está vivendo maritalmente com Fanny Beaupré. A senhora arranca-me esta confidência;
eu não a teria feito nunca, porque a senhora poderia pensar que eu tivesse algum sentimento pouco generoso.
A sra. de La Baudraye apertou a mão do advogado-geral.
— A senhora tem por marido—disse ela à sra. de Clagny—um dos homens mais raros. Ah! Por quê...
E recolheu-se a um canto do carro, olhando pelas vidraças; suprimiu o resto da frase, que o advogado-geral adivinhou: “Por que Lousteau não tem um pouco da nobreza
de coração de seu marido?...”.
Essa notícia, contudo, dissipou a tristeza da sra. de La Baudraye, que se lançou à vida das mulheres da moda; quis alcançar êxito e alcançou-o; fazia, porém, poucos
progressos na sociedade das mulheres, sentia dificuldades em tornar-se conhecida em seu meio. No mês de março, os padres amigos da sra. Piédefer e o advogado-geral
deram um golpe de mestre, fazendo nomear a sra. de La Baudraye pedinte para a obra de beneficência fundada pela sra. de Carcado (Sra. de Carcado: personagem balzaquiana,
de quem este é o único aparecimento em A comédia humana.). Foi, por fim, designada para recolher na corte os donativos em favor das vítimas do tremor de terra de
Guadalupe. A marquesa D’Espard (A marquesa D’Espard: heroína de A interdição. Essa observação benévola é bem pouco característica dessa terrível intrigante.), a
quem o sr. de Canalis (Canalis: personagem balzaquiana, poeta chefe da Escola Angélica; protagonista de Modesta Mignon.) estava lendo os nomes dessas damas na Ópera,
disse, ao ouvir o da condessa:
— Vivo há muito tempo na sociedade e não me recordo de nada mais belo que as manobras feitas para a salvação da honra da sra. de La Baudraye.
LII - UMA IDEIA
Durante os dias de primavera, que um capricho do nosso planeta fez brilhar sobre Paris desde a primeira semana do mês de março de 1843 e que permitiu ver os Champs-Elisées
cobertos de folhas e verdes em Longchamp, várias vezes já o amante de Fanny Beaupré, em seus passeios, avistara a sra. de La Baudraye sem ser visto por ela. Foi,
então, mais de uma vez, picado no coração por um desses impulsos de ciúme e de inveja, muito familiares às pessoas nascidas e criadas na província, quando revia
a antiga amante, bem instalada ao fundo duma bela carruagem, bem-vestida, com uma expressão sonhadora e com os filhos junto às portinholas do carro. Amaldiçoava-se
intimamente com tanto maior razão porque se achava, então, às voltas com a mais aguda de todas as pobrezas, uma pobreza oculta. Como todos os temperamentos essencialmente
vaidosos e levianos, ele vivia sob o jugo desse singular conceito de honra que consiste em não se rebaixar aos olhos do público, que leva os homens da Bolsa a cometer
crimes legais para não serem expulsos do templo da agiotagem, que dá a certos criminosos a coragem de praticar atos de virtude. Lousteau jantava, almoçava e fumava
como se fosse rico. Ao entrar numa tabacaria, nunca deixava de comprar, para si como para o dramaturgo ou prosador que o acompanhasse, os charutos mais caros. O
jornalista passeava com os sapatos lustrosos, mas temia as penhoras que, segundo a expressão dos oficiais de justiça, já haviam recebido todos os sacramentos. Fanny
Beaupré não possuía mais nada que pudesse ser empenhado e seus ordenados estavam sequestrados! Após ter esgotado a soma possível dos adiantamentos às revistas, aos
jornais e aos editores, Estêvão já não sabia com que tinta fazer dinheiro. Os jogos, que desastradamente haviam sido suprimidos, não podiam mais saldar, como outrora,
as letras de câmbio lançadas ao pano verde pelas misérias em desespero. O jornalista chegara, por fim, a tal indigência que acabava de pedir emprestados cem francos
a Bixiou, o mais pobre de seus amigos, a quem nunca pedira nada! O que mais afligia Lousteau não era dever cinco mil francos, mas ver-se despojado de sua elegância,
de seu mobiliário adquirido à custa de tantas privações e enriquecido pela sra. de La Baudraye. Ora, a 3 de abril, um cartaz amarelo, arrancado pelo porteiro depois
de ter brilhado durante algum tempo na parede, anunciava a venda duma bela mobília para o sábado próximo, dia das vendas autorizadas pela justiça.
Lousteau saiu a passear, fumando um charuto e procurando ideias, pois as ideias, em Paris, andam pelo ar, sorriem-nos às esquinas, saltam das rodas dum cabriolé
com um jato de lama! O flâneur já estivera procurando durante um mês ideias para artigos e assuntos para novelas, mas só encontrara amigos que o arrastavam a jantares
e teatros e embriagavam sua aflição dizendo-lhe que o vinho de Champanha o inspiraria.
— Toma cuidado—disse-lhe uma noite o atroz Bixiou, que podia ao mesmo tempo dar cem francos a um camarada e trespassar-lhe o coração com uma frase.—Se continuares
a dormir de barriga cheia, um dia acordarás louco.
Na véspera do dia da venda dos móveis, na sexta-feira, o desgraçado, apesar de estar habituado à pobreza, achava-se abatido como um condenado à morte. Em outros
tempos, ele se teria dito: “Ora, a mobília está velha, comprarei uma nova”. Sentia-se, porém, incapaz de recomeçar seus esforços literários. Os editores, arruinados
com as falsificações (Os editores, arruinados com as falsificações: alusão à chamada contrefaçon belge, edições clandestinas de obras francesas que saíram na Bélgica
logo após as edições francesas, sem que os editores pagassem um tostão de direitos nem ao autor nem ao editor francês. Causaram prejuízos grandes ao próprio Balzac.),
pagavam pouco. Os jornais mostravam-se mesquinhos com os talentos fatigados, como fazem os teatros com os tenores que baixam uma nota. Assim, deixou-se andar sem
rumo, com o olhar na multidão sem nada ver, o charuto à boca e as mãos nos bolsos, a fisionomia crispada por dentro e com um falso sorriso nos lábios. Viu, então,
a sra. de La Baudraye passar numa carruagem, tomando a avenida pela Rue de la Chaussée-d’Antin para dirigir-se ao Bois.
— É o único recurso—pensou.
Voltou para casa para enfeitar-se. À noite, às sete horas, desceu dum carro à porta da casa da sra. de La Baudraye e pediu ao porteiro que fizesse chegar às mãos
da condessa um bilhete assim redigido:
A senhora condessa quer ter a bondade de receber por um momento o sr. Lousteau, agora mesmo?
LIII - DESFECHO HORRÍVEL, MAS VERDADEIRO
O bilhete estava timbrado com um sinete que antigamente servia aos dois amantes. A sra. de La Baudraye mandara gravar sobre uma cornalina legítima: Porque sim! Uma
grande frase, a frase das mulheres, a frase capaz de explicar tudo, mesmo a criação. A condessa acabava de vestir-se para ir à Ópera, pois tinha um camarote para
as sextas-feiras. Empalideceu ao ver o sinete.
— Diga que espere!—disse ela, metendo o bilhete no corpete.
Teve forças para ocultar sua perturbação e pedir à mãe que fosse deitar as crianças. Mandou, então, dizer a Lousteau que entrasse e recebeu-o num elegante gabinete
junto ao salão, com as portas abertas. Como pretendia ir ao baile depois do espetáculo, pusera um delicioso vestido de seda com riscas em relevo, alternadamente
foscas e cheias de flores, dum amarelo-palha. As luvas, guarnecidas de borlas, deixavam ver seus belos braços brancos. Resplandecia de rendas e usava todas essas
encantadoras futilidades exigidas pela moda. Seu penteado à Sévigné dava-lhe uma aparência distinta. Um colar de pérolas sobre o peito parecia uma cadeia de gotas
d’água sobre a neve.
— Que tem, senhor?—perguntou-lhe a condessa, avançando o pé sob o vestido para puxar uma almofada de veludo.—Eu esperava ser completamente esquecida...
— Mesmo que eu lhe dissesse para sempre, a senhora não me acreditaria—disse Lousteau, que permaneceu de pé e se pôs a andar dum lado para outro, mastigando flores
que em cada volta tirava das jardineiras, cujos ramos perfumavam o gabinete.
Reinou um momento de silêncio. A sra. de La Baudraye, examinando Lousteau, achou-o vestido como o mais escrupuloso almofadinha.
— A senhora é a única pessoa no mundo que me pode socorrer e estender-me uma vara, pois estou-me afogando e já bebi mais de um gole d’água!...—disse ele, detendo-se
diante de Diná e dando a impressão de ceder a um esforço supremo.—Se a senhora me vê aqui, é porque meus negócios vão terrivelmente mal.
— Basta!—disse ela.—Eu o compreendo.
Fez-se entre ambos uma nova pausa, durante a qual Lousteau se voltou, tomou o lenço e deu a impressão de enxugar uma lágrima.
— Que precisa, Estêvão?—continuou ela, com uma voz maternal.—Somos, neste momento, velhos camaradas; fale-me como falaria... a... a Bixiou...
— Para impedir que minha mobília vá parar amanhã no leiloeiro judicial, mil e oitocentos francos! Para pagar meus amigos, outro tanto; três aluguéis vencidos ao
proprietário que a senhora conhece. O prego exige quinhentos francos...
— E para você, para viver?
— Oh! Tenho minha pena!
— Ela anda numa indolência tão grande que já não se o reconhece pelo que escreve—disse ela, sorrindo com finura.—Não tenho a soma que você me pede... Venha amanhã
às oito horas, o oficial de justiça poderá esperar até as nove, principalmente se você o trouxer em sua companhia para pagá-lo.
Ela sentiu necessidade de despedir Lousteau, que fingia não ter coragem para fitá-la; experimentava ao mesmo tempo, porém, uma compaixão capaz de desatar todos os
nós górdios feitos pela sociedade.
— Obrigada!—disse ela, levantando-se e estendendo a mão a Lousteau.—Sua confiança me faz tanto bem!... Oh! Há muito tempo que eu não sentia tanta alegria no coração...
Lousteau tomou-lhe a mão, encostou-a sobre seu coração e apertou-a ternamente.
— Uma gota d’água no deserto... e pela mão dum anjo!... Deus sempre faz bem as coisas!
Isso foi dito num tom meio de brincadeira, meio de ternura; mas, podeis acreditar, foi tão belo, como lance teatral, como o de Talma (Talma: François Joseph Talma
(1763-1826), ator trágico francês, comediante preferido de Napoleão. Um de seus papéis mais famosos era o de Leicester em Marie Stuart, tragédia de Lebrun.) em seu
famoso papel de Leicester, onde tudo era representado por ele em cambiantes desse gênero. Diná sentiu o coração dele bater através da espessura da fazenda: ele batia
de prazer, pois o jornalista assim escapava ao abutre judiciário, mas também batia por um desejo natural ao ver Diná rejuvenescida e renovada pela opulência. A sra.
de La Baudraye, examinando Lousteau de soslaio, viu-lhe a fisionomia em harmonia com todas as flores de amor que, para ela, renasciam naquele coração palpitante;
tentou mergulhar o olhar, uma vez, nos olhos daquele a quem tanto amara, mas um sangue tumultuoso precipitou-se em suas veias e perturbou-lhe o cérebro. Os dois
trocaram então o mesmo olhar ardente que, no Quai de Cosne, dera a Lousteau a audácia de amassar o vestido de organdi. O boêmio atraiu Diná pela cintura e as duas
faces se tocaram.
— Esconde-te, mamãe vem vindo!—exclamou Diná, assustada.
E correu ao encontro da sra. Piédefer.
— Mamãe—disse ela (essa expressão era, para a severa sra. Piédefer, um carinho que nunca fracassava)—,faça-me um grande favor, tome o carro, vá pessoalmente ao nosso
banqueiro, sr. Mongenod, com o bilhete que vou lhe dar para retirar lá seis mil francos. Venha, venha, trata-se duma obra de caridade, venha a meu quarto.
E arrastou consigo a mãe, que procurava ver a pessoa que estivera com a filha no gabinete.
LIV - ESTA HISTÓRIA DEVE ENSINAR-LHES QUE...
Dois dias mais tarde, a sra. Piédefer estava em conferência com o cura da paróquia. Após ter escutado as lamentações da velha mãe desesperada, o vigário lhe disse
gravemente:
— Toda a regeneração moral que não se apoia num grande sentimento religioso e não se continua no seio da Igreja repousa sobre alicerces de areia... Todas as práticas,
tão minuciosas e tão pouco compreendidas, que o catolicismo ordena são verdadeiros diques necessários a conter as tempestades do mau espírito. Consiga, pois, que
a senhora sua filha cumpra todos seus deveres religiosos e nós a salvaremos...
Dez dias depois dessa conferência, o palácio de La Baudraye estava fechado. A condessa, os filhos e a mãe, toda a casa, enfim, que ela aumentara dum preceptor, partira
para Sancerre, onde Diná passaria o verão. Dizem que ela se mostrou encantadora com o conde. Assim, a Musa de Sancerre voltava tranquilamente ao seio da família
e à vida conjugal; mas, segundo alguns falatórios, ela voltara obrigada, pois os desejos do pequeno par de França seriam certamente satisfeitos, ele esperava uma
filha!... Gatien e o sr. Gravier cercavam a bela condessa de cuidados e de obsequiosas atenções. O filho do presidente, que, durante a longa ausência da sra. de
La Baudraye, fora tomar lições de elegância em Paris, tinha, segundo se dizia na sociedade literária, possibilidades de agradar aquela mulher superior desiludida.
Outros apostavam no preceptor e a sra. Piédefer a disputava para a religião.
Em 1844, em meados de junho, o conde de La Baudraye estava passeando pelo bosque de Sancerre acompanhado de seus dois lindos filhos; encontrou o sr. Milaud, procurador-geral,
que fora a Sancerre a serviço, e disse-lhe:
— Meu primo, olha os meus filhos...
— Ah! Os nossos filhos—repetiu o malicioso procurador-geral.
Paris, junho de 1843—agosto de 1844

 

 

                                                                  Honoré de Balzac

 

 

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