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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A MUSICA DA FOME / J. M. G. Lê Clézio
A MUSICA DA FOME / J. M. G. Lê Clézio

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

"A minha mãe, quando me contou a estreia do Bolero, falou-me da sua emoção, dos gritos, dos aplausos e dos assobios, do tumulto. Algures na mesma sala, encontrava-se um homem que ela nunca conheceu, Claude Lévi-Strauss. Como ele, muito mais tarde, a minha mãe confiou-me que aquela música mudara a sua vida. Agora, compreendo porquê. Sei o que significava para a sua geração aquela frase repetida, seringada, imposta pelo ritmo e o crescendo. O Bolero não é uma peça musical como as outras. É uma profecia. Conta a história de uma raiva, de uma fome. Quando termina em violência, o silêncio que se segue é terrível para os sobreviventes atordoados.
Escrevi esta história em memória de uma jovem que, involuntariamente, foi uma heroína aos vinte anos."
Ethel Brun é filha de um casal de exilados, formado por Justine e Alexandre, um homem afável e irrequieto que muito jovem deixou a ilha Maurícia e que, na alegre Paris dos anos 20 e 30, se dedica a delapidar a herança em negócios pouco recomendáveis. Na infância, o único prazer de Ethel é passear pela cidade com o seu tio-avô, o excêntrico Samuel Soliman, que sonha ir viver para o pavilhão da índia Francesa construído para a Exposição Colonial. E, na adolescência, Ethel conhecerá algo parecido com a amizade pela mão de Xenia, uma colega de escola, vítima da Revolução Russa e que vive quase na miséria. O bem-estar de Ethel começa a resvalar quando, nas refeições que o seu pai oferece a parentes e conhecidos, se repete cada vez mais o nome de Hitler. Serão os primeiros sinais do que ameaça a família Brun: a ruína, a guerra, mas, sobretudo, a fome. Ela marcará o despertar da jovem Ethel para a dor e o vazio, mas também para o amor, num romance em torno das origens perdidas, durante uma época que culminou com um apocalipse anunciado.

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Conheço a fome, sofri-a. Criança, no fim da guerra, faço parte dos que correm pela estrada ao lado dos camiões dos Americanos, estendo as mãos para apanhar embalagens de chewing-gum, chocolates, sacos de pão que os soldados arremessam pelo ar. Criança, sinto tanta sede de gordura que bebo o azeite das latas de sardinha, lambo, deliciado, a colher de óleo de fígado de bacalhau que a minha avó me dá para me fortalecer. Preciso tanto de sal que como às mancheias os cristais de sal cinzento do frasco da cozinha.
Criança, comi pela primeira vez pão branco. Não o pão de miolo do padeiro - pão escuro, esse, feito de farinha deteriorada e serradura, que quase me matou quando eu tinha três anos. Antes um pão quadrado, feito numa forma com farinha de força, leve, odorífera, de miolo tão branco quanto o papel em que escrevo. E, ao escrever, cresce-me água na boca, como se o tempo não tivesse passado e eu continuasse intimamente ligado à minha primeira infância. A fatia de pão macio, fofo, que meto na boca e mal a engulo peço mais, mais, e se a minha avó não o guardasse no armário fechado à chave, poderia devorá-lo todo num instante, até me enjoar. Nunca outra coisa me deixou tão satisfeito, não voltei a comer nada que tanto me agradasse, que assim me saciasse a fome.
Como o SPAM1 americano. Muito tempo depois, ainda guardo as latas que se abriam com uma chave, para fazer navios de guerra que pinto cuidadosamente de cinzento. A pasta cor-de-rosa que contêm, orlada de geleia, com um leve gosto a sabão, enche-me de felicidade. O odor a carne fresca, a fina película de gordura que o patê me deixa na língua, vai revestir o fundo da minha garganta. Mais tarde, para os outros, para os que não conheceram a fome, este patê deve ser sinónimo de horror, de comida para pobres. Encontrei-o vinte e cinco anos mais tarde no México, no Belize, nas lojas de Chetumal, de Felipe Carrillo Puerto, de Orange Walk. Chamam-lhe carne del diablo, carne do diabo. O mesmo SPAM na lata azul enfeitada com uma imagem que exibe o patê em fatias numa folha de salada.
Também o leite Carnation. Distribuído, com certeza nos centros da Cruz Vermelha, grandes latas cilíndricas decoradas com um cravo vermelho. Para mim, durante muito tempo, representa a própria doçura, a doçura e a riqueza. Retiro da lata colheradas de pó branco que lambo até sufocar. Também neste caso, posso falar de felicidade. Nenhum creme, nenhum bolo, nenhuma sobremesa voltou a proporcionar-me igual felicidade. É quente, compacto, ligeiramente salgado, range contra os dentes e as gengivas, escorre em líquido espesso pela garganta.
Esta fome está dentro de mim. Não posso esquecê-la. Contém uma luz intensa que me impede de esquecer a infância. Sem ela, não teria com certeza conservado a memória desses tempos, desses anos tão longos, em que nos faltava tudo. Ser feliz é não ter de recordar. Fui infeliz? Não sei. Lembro-me simplesmente de um dia acordar e experimentar, enfim, o deslumbramento das sensações saciadas. Aquele pão muito branco, muito macio, que cheira muito bem, a gordura do peixe que escorre pela minha garganta,
1 SPAM - Acrónimo de "Spiced Pork And Meat", uma marca de corned-beef. (N. da T.)
os cristais de sal grosso, as colheres de leite em pó que formam uma pasta no fundo da boca, na língua, é então que começo a viver. Saio dos anos cinzentos, entro na luz. Sou livre. Existo. É de outra fome que trata a história que se segue.
A CASA COR DE MALVA
Ethel. Está à entrada do parque. Ao entardecer. A luz é suave, cor de pérola. Talvez uma tempestade ribombe sobre o Sena. Agarra com força a mão de Monsieur Soliman. Só tem dez anos, ainda é pequena, a cabeça mal chega à anca do tio-avô. À frente deles, é como uma cidade, construída no meio das árvores do Bois de Vincennes, vêem-se torres, minaretes, cúpulas. Em redor, nos boulevards, comprime-se a multidão. De repente, o ameaçador aguaceiro cede, e a chuva tépida forma uma camada de vapor que paira sobre a cidade. Instantaneamente, abrem-se centenas de chapéus-de-chuva pretos. O velho tio esqueceu-se do dele. Quando as gotas grossas começam a cair, hesita. Mas Ethel puxa-o pela mão, e correm juntos pelo boukvard em direcção ao alpendre da porta de entrada, frente aos fiacres e às viaturas. Puxa-o pela mão esquerda e, com a direita, o tio-avô equilibra o chapéu preto no crânio pontiagudo. Quando corre, as suíças grisalhas agitam-se em cadência, o que provoca o riso de Ethele, vendo-a rir, o tio também se ri, tanto e tão satisfeitos que param para se abrigar debaixo de um castanheiro.
O local é maravilhoso. Ethel nunca viu nem imaginou nada semelhante. Ultrapassada a entrada, tendo chegado pela porta de Picpus, ladearam o edifício do museu, em frente do qual se comprime a multidão. Monsieur Soliman não está interessado. "Museus, estarás sempre a tempo de os visitar", diz ele. Monsieur Soliman tem uma ideia na cabeça. Foi por isso que ali quis ir com Ethel. Esta procurou saber, há dias que lhe faz perguntas. Ethel é muito esperta, é o que o tio-avô lhe responde. Sabe onde quer chegar. "Se é uma surpresa, e eu ta revelar? Onde está a surpresa?" Ethel voltou à carga. "Podia, pelo menos, tentar adivinhar." O tio-avô está sentado na poltrona habitual, depois do jantar, a fumar um charuto. Ethel sopra para dispersar o fumo do charuto. "Come-se? Bebe-se? É um vestido bonito?" Mas Monsieur Soliman mantém-se firme. Fuma o charuto e bebe o cognac, como todas as noites. "Amanhã saberás." Depois desta conversa, Ethel não consegue adormecer. Durante toda a noite, dá voltas e mais voltas na estreita cama de ferro que range muito. Só adormece de madrugada, e tem dificuldade em acordar às dez horas, quando a mãe a vai chamar para almoçar com as tias. Monsieur Soliman ainda não chegou. Todavia, o Boulevard du Montparnasse não fica a uma grande distância da Rue du Cotentin. Um quarto de hora de marcha, e Monsieur Soliman caminha depressa. Muito direito, chapéu preto enterrado na cabeça, com uma bengala de castão de prata que mal toca no chão. Apesar do bruaá da rua, Ethel diz que o ouve vir ao longe, o barulho ritmado no passeio dos tacões das botas de protectores de ferro. Ethel diz que o tio-avô faz o barulho de um cavalo. Gosta muito de comparar Monsieur Soliman a um cavalo, o que, a ele, também não lhe desagrada e, de vez em quando, apesar dos seus oitenta anos, encavalita-a nos ombros para irem passear ao jardim público, e Ethel consegue tocar nos ramos mais baixos das árvores, porque o tio-avô é muito alto.
Cessou de chover, caminham de mãos dadas até à beira do lago. Debaixo do céu cinzento, o lago parece muito grande, formando uma curva, semelhante a um pântano. Monsieur Soliman costuma falar dos lagos e dos braços de mar que viu outrora, em África, quando era médico militar, no Congo francês. Ethel gosta de o fazer falar. Monsieur Soliman só lhe conta histórias a ela. Tudo o que Ethel sabe do mundo, foi ele que lhe contou. No lago, Ethel vê patos, um cisne algo amarelado que parece enfadar-se. Passam por uma ilha na qual foi construído um templo grego. A multidão comprime-se para atravessar a ponte de madeira e Monsieur Soliman pergunta, mas é evidente que é por descargo de consciência: "Queres...?" Há muita gente, e Ethel puxa o tio-avô pela mão. "Não, não, vamos já para a índia!" Caminham à beira do lago e remontam a corrente da multidão. As pessoas afastam-se perante aquele homem alto que enverga um sobretudo de capuz e usa na cabeça um chapéu arcaico, e aquela menina loura endomingada, de vestido de folhos e botinas calçadas. Ethel sente-se orgulhosa junto de Monsieur Soliman. Tem a impressão de estar na companhia de um gigante, de um homem capaz de abrir caminho em qualquer desordem do mundo.
A multidão, agora, desloca-se no outro sentido, em direcção à extremidade do lago. Acima das árvores, Ethel vê torres estranhas, cor de cimento. Num letreiro, lê o nome, com dificuldade:
- Ang... kor...
- Vat! - termina Monsieur Soliman. - Angkor Vat. É o nome de um templo do Camboja. Parece bem conseguido mas, antes, quero mostrar-te uma coisa. - Tem uma ideia na cabeça. Além disso, Monsieur Soliman não quer caminhar no mesmo sentido da multidão. Desconfia dos movimentos colectivos. Ethel ouviu muitas vezes dizer do tio-avô: "É um original." A mãe de Ethel defende-o, com certeza por ser seu tio: "É muito simpático."
Monsieur Soliman criou-a com dureza. Quando o pai morreu, foi ele que assumiu o encargo da sua educação. Mas não o via muitas vezes, o tio estava sempre longe, do outro lado do mundo. Gosta muito dele. Talvez se sinta ainda mais tocada por aquele tio velho e alto demonstrar uma grande paixão por Ethel. É como se visse, enfim, abrir-se o seu coração, no termo de uma vida solitária e dura.
Para o lado, há um caminho que se afasta da margem. As pessoas são menos numerosas. Um letreiro indica: ANTIGAS COLÓNIAS. Por baixo, estão escritos os nomes, Ethel lê-os devagar:
REUNIÃO
GUADALUPE
MARTINICA
SOMÁLIA
NOVA CALEDÓNIA
GUIANA
ÍNDIA FRANCESA
É para ali que Monsieur Soliman quer ir.
Uma clareira, um pouco afastada do lago. Cabanas de telhado de colmo, outras solidamente construídas, com pilares que imitam troncos de palmeira. Dir-se-ia uma aldeia. Ao centro, uma espécie de praça coberta de gravilha onde se vêem algumas cadeiras disponíveis. Alguns visitantes sentaram-se, mulheres de vestido comprido que ainda trazem os guarda-chuvas abertos, mas agora está sol e os guarda-chuvas servem de sombrinha. Os homens estenderam os lenços nas cadeiras para absorver as gotas de chuva.
- E tão bonito! - Ethel não pôde deixar de se extasiar diante do pavilhão da Martinica. Na fachada da casa (estilo cabana, também ela) encontram-se representadas em alto-relevo todas as espécies de flores e frutos exóticos, ananases, papaias, bananas, ramos de hibiscos e aves-do-paraíso.
- Sim, é muito bonito... queres entrar?
Mas fez a pergunta como há pouco, na mesma voz hesitante, e, além disso, continua a dar a mão a Ethel e permanece imóvel. A menina compreende, diz:
- Mais tarde, se quiseres? De qualquer modo, não há nada lá dentro. - Através da porta, Ethel vislumbra uma antilhana de turbante vermelho, que olha para o exterior sem sorrir. Pensa que gostaria de a ver, de lhe tocar no vestido, de lhe falar, a expressão do seu rosto é tão triste. Mas Ethel não diz nada ao tio-avô. Arrasta-o para a outra extremidade da praça, para o pavilhão da índia Francesa.
A casa não é muito grande. Não atrai a multidão. Esta passa sem se deter, desloca-se num mesmo movimento, fatos escuros, chapéus pretos e o roçagar dos vestidos das senhoras, chapéus enfeitados de plumas, frutos, véus. Algumas crianças que andam por ali lançam-lhes olhares furtivos, a Ethel e a Monsieur Soliman, que continuam a subir, atravessam. Encaminham-se para os monumentos, os rochedos, os templos, as grandes torres que ultrapassam a copa das árvores semelhantes a alcachofras.
Ethel nem sequer perguntou o que havia lá adiante. O tio-avô teve de murmurar uma explicação: "É a cópia do templo de Angkor Vat, um dia, se quiseres, levar-te-ei a visitar o verdadeiro." Monsieur Soliman não gosta de imitações, só se interessa pela verdade, é por isso.
Deteve-se em frente da casa. O seu rosto sanguíneo exprime um real contentamento. Sem uma palavra, aperta a mão de Ethel e sobem juntos os degraus de madeira que conduzem à entrada principal. É uma casa muito simples, de madeira clara, rodeada por uma varanda sustentada por colunas. As janelas são altas, gradeadas por mucharabis de madeira escura. O telhado quase plano, guarnecido de telhas envernizadas, é encimado por um torreão recortado por ameias. Entram e não vêem ninguém. No centro da casa, um pátio interior, iluminado pela torre, mergulha numa estranha luz cor de malva. Do lado do pátio, um tanque circular reflecte o céu. A água é tão calma que Ethel, por breves instantes, julgou ser um espelho. Parou, de coração palpitante, e Monsieur Soliman também se imobiliza, de cabeça um pouco inclinada para trás, para observar a cúpula por cima do pátio. Em nichos de madeira dispostos em octógono regular, barras eléctricas difundem uma cor etérea, irreal como fumo, cor de hortênsia, cor de crepúsculo sobre o mar.
Uma leve vibração. Há qualquer coisa de inacabado, um pouco mágico. Por não se encontrar ninguém, com certeza. Como se fosse ali o verdadeiro templo, abandonado no meio da selva, e Ethel julga ouvir rumores no meio das árvores, gritos estridentes e roucos, o passo sedoso das feras no coberto, arrepia-se e estreita-se contra o tio-avô.
Monsieur Soliman não se mexe. Permanece imóvel no centro do pátio, a luz eléctrica estampa-lhe no rosto um tom de malva e as suíças parecem duas chamas azuis. Agora, Ethel compreendeu: é a emoção do tio-avô que a faz estremecer. Para que um homem tão alto e tão forte se imobilize assim, é que aquela casa contém um segredo, um segredo maravilhoso e perigoso e frágil, e que ao mínimo movimento tudo desaparecerá.
Ei-lo que se exprime como se tudo aquilo lhe pertencesse.
- Ali, porei a secretária, ali, as duas estantes... Ali, a espineta e, ao fundo, as estátuas africanas de pau-preto, com esta iluminação sentir-se-ão em casa, poderei finalmente desenrolar o meu grande tapete berbere...
Ethel não compreende muito bem. Acompanha o homem alto enquanto ele se desloca de compartimento em compartimento, com uma espécie de impaciência que Ethel não lhe conhecia. Por fim, o tio-avô regressa ao pátio, e senta-se nos degraus da escada, a observar o tanque espelho do céu, e é como se contemplassem juntos um pôr do Sol na laguna, longe, alhures, do outro lado do mundo, na índia, na ilha Maurícia, a terra da sua infância.
É como um sonho. Quando Ethel pensa nisto, o que a invade é a cor de malva, e o disco cintilante do tanque que reflecte o céu. Um vapor que vem de um tempo muito distante, muito antigo. Agora, tudo desapareceu. O que resta, não são recordações, como se não tivesse sido criança. A Exposição Colonial. Conservou bugigangas desse dia em que caminhou pelas alamedas cobertas de gravilha com Monsieur Soliman.
- Aqui, porei a cadeira de baloiço, como na varanda coberta, e quando chover verei cair as gotas na água do tanque. Chove muito em Paris... E criarei sapos, só para os ouvir anunciar a chuva...
- Que comem os sapos?
- Moscas, borboletas nocturnas, traças. Há muitas traças em Paris...
- Também precisaremos de plantas, plantas rasteiras, que dão flores cor de malva.
- Sim, lotos. Ou antes nenúfares, os lotos morreriam no Inverno. Mas não no tanque redondo. Terei outro tanque para os sapos, ao fundo do quintal. Este, o tanque espelho, quero-o tão liso como um prato para que o céu se reveja.
A ideia fixa de Monsieur Soliman, só Ethel podia compreendê-la. Quando ele viu os planos da Exposição, escolheu de imediato o pavilhão da índia, e comprou-o. Ignorou os projectos do sobrinho. Nenhuma construção no seu terreno, estava fora de causa que alguém tocasse numa árvore que fosse. Mandara plantar paulównias, cóculos, loureiros-da-índia. Tudo preparado para receber a sua loucura.
- Não tenho vocação para proprietário.
Para contrariar os projectos de Alexandre, fizera de Ethel a sua herdeira. Esta não soube de nada, como é evidente. Ou talvez o tio-avô lho tenha dito, um dia. Pouco tempo depois da visita à Exposição. As peças soltas do pavilhão da índia Francesa começaram a acumular-se no jardim da Rue de l'Armorique. Para as proteger da chuva, Monsieur Soliman cobriu-as com um grande oleado feio e preto. Em seguida, levou Ethel até à paliçada que ocultava o jardim. Abriu o cadeado da porta, ela viu as pilhas negras que reluziam no fundo do terreno, e ficou petrificada.
- Sabes o que é? - gracejou Monsieur Soliman.
- É a Casa Cor de Malva.
O tio-avô olhou-a, admirado.
- É verdade, tens razão. - Acrescentou: - A Casa Cor de Malva, será este o seu nome, foste tu que o inventaste. - Apertou a mão de Ethel, e esta julgou estar a ver o pátio, as galerias, e o tanque espelho, que reflectia o céu cinzento. - Será tua. Só tua.
Mas não voltou a falar do caso. Fosse como fosse, Monsieur Soliman era assim. Dizia uma coisa uma vez, e nunca mais a repetia.
Monsieur Soliman esperou muito tempo. Talvez demasiado tempo. Talvez preferisse sonhar com o que viria a ser o empreendimento, em vez de se lançar ao trabalho. As peças soltas da Casa Cor de Malva continuavam protegidas pela cobertura de tarpaulin, ao fundo do quintal, e começavam a ser invadidas por silvas. Mas Monsieur Soliman persistia religiosamente em levar Ethel ao terreno, pelo menos uma vez por mês. No Inverno, as árvores em redor despiam-se, mas as que Monsieur Soliman mandara plantar resistiam. Os cóculos e os loureiros-da-índia formavam penachos de folhas verde-escuras, que evocavam mais o jardim de uma cidade do que a entrada de uma floresta. O terreno contíguo pertencia a um tal Monsieur Conard, nome mais apropriado não poderia haver1. Um dos mais antigos habitantes do bairro, era filho do homem que abrira a rua, em 1887. Julgando-se investido de autoridade, dirigiu-se um dia a Monsieur Soliman: "Tenho vindo a observar que, devido à folhagem das suas árvores exóticas, as minhas cerejeiras permanecem à sombra entre o meio-dia e as três horas da tarde."
O tio-avô de Ethel fulminara-o com a seguinte resposta: "Pois então, Monsieur Conard, vá à merda." Foi a primeira vez que Ethel ouviu esta expressão, reproduzida pelo pai, que ria às gargalhadas. O facto de o tio se exprimir numa linguagem de carroceiro ou antes de soldado (era o comentário de Alexandre) deleitara Ethel. Ao mesmo tempo, sabia que não poderia proferir semelhantes palavras, sobretudo em frente de quem as dissera. Mas estava bem assim.
Ainda antes do início das obras da Casa Cor de Malva, Monsieur Soliman adoeceu. Na última vez que Ethel o acompanhara ao terreno, vira uma coisa estranha. A vegetação bravia que invadira o jardim tinha sido cortada cerce, e a cobertura de tarpaulin liberta das silvas. Por cima do portão de madeira que dava para a rua, um cartaz exibia a licença de construção. Especificava, Ethel não se esqueceu: "Prédio de habitação de madeira, de um só piso." Monsieur Soliman devia ter lutado contra o seu inimigo Conard, que se opunha a este projecto, susceptível, em sua opinião, de atrair térmitas à cidade de Paris. Mas o apoio do arquitecto que concebera o bungalow, um certo Perotin, persuadira o serviço de urbanismo, e a licença fora concedida.
1 Conard - Termo utilizado em linguagem grosseira e que significa, em francês, grande safado. (N. da T.)
No terreno desbravado, espetaram-se estacas e, entre as estacas, um entrelaçado de cordas esquematizava os planos da casa. Ethel ficara surpreendida com os riscos cor de malva marcados no chão. A cal que reforçava as cordas deixara estas marcas ao cair no chão. Monsieur Soliman ensinara a Ethel como eram feitas estas marcas. com a ponta da bengala, ergueu a corda, depois soltou-a, produzindo o ruído de um arco distendido. Um zing! profundo que incrustou ainda um pouco mais de pó cor de malva na terra.
Foi a última vez. A recordação que Ethel guardou, como se a luz suave que iluminava o interior da Casa Cor de Malva se tivesse impregnado do pó de giz que riscava o chão do jardim.
Naquele Inverno, antes de Ethel completar treze anos, Monsieur Soliman morreu. Primeiro adoeceu. Sufocava. Sempre deitado no quarto do apartamento do Boulevard du Montparnasse. Viu-o muito pálido, rosto coberto de barba, olhos inexpressivos, e sentiu medo. O tio-avô esboçou um trejeito, disse: "É difícil morrer... demora, demora." Como se ela pudesse compreender. De regresso a casa, repetiu à mãe o que dissera Monsieur Soliman. Mas a mãe não lhe explicou nada. Limitou-se a suspirar: "É preciso rezar pelo teu tio-avô." Ethel não rezou, porque não sabia que pedir. Que morresse depressa, ou que se curasse? Pensou unicamente na Casa Cor de Malva, desejando que Monsieur Soliman tivesse tempo suficiente para retirar a lona untada de alcatrão e edificar a casa a partir das marcas.
Mas chovera muito em Outubro, e Ethel pensou que as marcas deviam ter-se apagado. Deve ter sido nesse instante que compreendeu que o tio-avô ia morrer.
XÉNIA
Ethel não se lembra da primeira vez em que se encontraram. Talvez na padaria da Rue de Vaugirard, ou em frente da escola feminina da Rue Marguerin. Recorda a rua muito cinzenta, o cinzento de Paris quando chove, um cinzento que invade tudo e nos penetra fundo até chorarmos. O pai costuma troçar do céu de Paris, do seu céu desbotado. "Um comprimido de aspirina. Uma folha de massa de hóstia." O sol da ilha Maurícia deve ser muito diferente.
Em todo aquele cinzento, Xénia era uma mancha loura, um clarão. Não muito alta para a idade, doze anos, talvez mais. Ethel nunca soube ao certo a idade de Xénia. Nascera quando a mãe fugiu da Rússia depois da revolução. No mesmo ano, o pai morreu na prisão, provavelmente fuzilado pelos revolucionários. A mãe foi de Sampetersburgo para a Suécia, depois de país em país, até Paris. Xénia crescera numa pequena cidade da Alemanha, perto de Frankfurt. Pedaços de história que Ethel aprendeu, e além disso, para não se esquecer, abriu um pequeno caderno na primeira página do qual escreveu, de forma algo solene: "História de Xénia até agora."
Ethel meteu conversa com ela. Ou terá sido Xénia a primeira? No meio de toda aquela multidão, de todo aquele cinzento, Ethel olhou para ela como um sol mais verdadeiro do que uma obreia. Lembrou-se da maneira como o seu coração pulsou, por causa da beleza de Xénia. O rosto de anjo, a pele muito clara e ao mesmo tempo um pouco bronzeada, impregnada de um ligeiro halo dourado de fim de Verão, e a cabeleira dourada apanhada no alto da cabeça, como as asas de um cesto de palha de trigo, entrançado com fios de lã vermelha, e o vestido que usava, comprido e claro, de folhos, muito simples a despeito do bordado a linha vermelha no peito, uma cintura tão fina que caberia numa mão aberta (a mão larga de Monsieur Soliman, sem dúvida).
São os olhos de Xénia. Nunca vira olhos assim. De um azul-claro, um pouco acinzentado - cor de ardósia desbotada, cor do mar do Norte, pensou Ethel - mas não foi a cor que a surpreendeu. Monsieur Soliman também tem olhos azuis, da cor do miosótis, muito luminosos. O que Ethel observou de imediato, foi que conferiam ao rosto de Xénia uma expressão de tristeza doce - ou antes, o sentimento de um olhar distante, vindo do fundo dos tempos, carregado de sofrimento e de esperança, como se filtrassem através de uma poeira de cinzas. Como é evidente, não pensou de imediato em tudo isto. Foi-se explicando com o decorrer dos meses e dos anos, à medida que Ethel reconstituía a história de Xénia. Mas naquele dia, na rua cinzenta e debaixo de uma chuva miudinha, um tempo do início das aulas, o olhar da jovem penetrou-a até ao fundo da alma num clarão indistinto e violento, e Ethel sentiu que o seu coração batia mais intensamente.
Encontrava-se rodeada de outras colegas cujos nomes já esqueceu, que aguardavam ajuizadamente a entrada na escola para a aula de poesia de Mlle Kohler, a estranha mulher que ficara para sempre solteira e de quem as alunas contavam histórias loucas e cómicas de amores falhados, de uma fortuna apostada em corridas, de traficâncias e de expedientes para sobreviver. Ela, Ethel, não ouvia. Fixara a recém-chegada, não conseguia desviar o olhar, dissera, numa voz quase inaudível, dirigindo-se às colegas: "Viram aquela rapariga?"
Xénia viu-a imediatamente. No pátio do recreio, dirigiu-se logo a Ethel, estendeu-lhe a mão: "Chamo-me Xénia Antonina Chavirov." Tinha uma maneira de pronunciar o x do seu nome, arranhando levemente o fundo da garganta, que Ethel achou maravilhosa, tal como lhe agradou o seu apelido - as outras aproveitaram logo o gracejo fácil, Chavirov, chaveta?... Numa pequena agenda, com um lápis miniatura, Xénia escreveu o seu nome, arrancou a página e estendeu-a a Ethel, dizendo: "Desculpa, não tenho cartões-de-visita." O nome, a pequena agenda preta, os cartões-de-visita, era demasiado para Ethel, apertou a mão a Xénia: "Quero ser tua amiga." Xénia sorriu ao de leve, mas os seus olhos azuis permaneceram toldados por um mistério. "com certeza, eu também quero ser tua amiga." Na pequena agenda preta, como para um pacto solene, Ethel escreveu o nome e o endereço. Sem saber porquê, talvez para deslumbrar Xénia, para ter a certeza de corresponder à sua amizade, mentiu um pouco. "Este é o nosso endereço, mas mudaremos de casa brevemente. Quando a casa do meu tio-avô estiver pronta, iremos todos viver com ele." Todavia, naquele momento, Ethel já sabia que a construção da Casa Cor de Malva ainda não estava para breve. A saúde de Monsieur Soliman declinava, e o seu sonho afastava-se. Já não saía do apartamento, renunciara mesmo aos passeios diários ao Luxemburgo. Quando passava pelo portão de madeira do terreno, na Rue de l'Armorique, Ethel sentia um aperto no coração.
Certo dia, depois da escola, levou a amiga até lá. Xénia ia e vinha da escola sempre sozinha, o que provocava ainda mais admiração da parte de Ethel. Naquele dia, Ethel preveniu a mãe. "Não precisas de ir buscar-me, voltarei com a minha amiga Xénia, que é russa, sabes?" A mãe olhou-a, perplexa. Ethel rematou apressadamente: "Depois, viremos lanchar. Farei chá. A Xénia bebe muito chá."
Quando chegaram ao terreno da Rue de l'Armorique, ergueram-se nas pontas dos pés para espreitar através das fendas da madeira do portão. "É grande!", exclamou Xénia. E acrescentou o que Ethel nunca até então pensara: "O teu tio-avô é um homem muito rico."
Numa tarde de Outono, Ethel levou Xénia ao jardim. Retirou do bolso do casaco de Monsieur Soliman a chave do portão de madeira, uma chave grande e enferrujada que parecia destinada a abrir uma porta secreta de um castelo. Ethel envergonhou-se por se apoderar da chave sem pedir licença ao tio-avô. Monsieur Soliman dormitava no quarto, tapado por um grande lençol branco, e os seus pés enormes formavam uma elevação ao fundo da cama. Nem sequer se apercebera da visita de Ethel. Há já algum tempo que tudo se lhe tornara indiferente.
Em frente do portão do jardim, Ethel mostrou a chave a Xénia. A sua impaciência era comunicativa. Xénia soltou uma risada nervosa, pegou na mão de Ethel. "Tens a certeza de que podemos?"
Procuravam assustar-se uma à outra. O velho muro de pedras vermelhas e ocre, partidas à martelada, mal ajustadas, fora invadido por líquenes e vinha-virgem e, desde que Monsieur Soliman adoecera, ninguém parecia preocupar-se em desbastar as lianas que barravam a entrada.
Mesmo a fechadura emperrara. A lingueta só cedeu depois de Ethel ter feito várias tentativas. Ao rodar, a chave produziu um rangido enferrujado que levou as duas amigas a gritar de excitação.
- Espera, creio que estamos a ser observadas por uma mulher!
Xénia apontava para o outro lado da rua, sem voltar a cabeça, só com os olhos. "Não faz mal, trata-se apenas de uma porteira." Entraram e Ethel fechou o portão por dentro, como se alguém atrás delas também quisesse entrar. "Vem, vou mostrar-te o nosso segredo!" Ethel levava Xénia pela mão. Uma mão pequena e macia, uma mão infantil, e Ethel sentia-se emocionada por apertar aquela mão na sua, como uma promessa de amizade que nada conseguiria desfazer. Mais tarde, lembrou-se daquele primeiro instante, do pulsar do seu coração. Pensou: "Finalmente, encontrei uma amiga."
A tarde no jardim da Rue de l'Armorique prolongou-se, prolongou-se muito. Passado o primeiro momento a examinar o monte de tábuas invadido por silvas, as duas jovens sentaram-se ao fundo do jardim, à sombra de um caramanchão onde Monsieur Soliman instalara outrora um banco para sonhar à vontade. Estava húmido naquela tarde de Outono, mas um sol débil iluminava o muro de pedra ao fundo do terreno. Um lagarto castanho saíra da parede para as observar com os seus pequenos olhos brilhantes como botões de metal.
Ethel nunca conversara daquela maneira com ninguém. De repente, sentia-se mais liberta. Ria-se, contava histórias, recordava pormenores acumulados desde a infância. Falava de projectos, de ideias, de um vestido de baile, tirava do bolso do casaco de malha um desenho de moda: "Um cinto de lantejoulas num vestido azul, e uma saia de cetim preto e, por cima, uma túnica roxa, e uma blusa de lamé dourado, ou uma túnica de renda, ou então, olha bem para aqui, uma blusa de cetim preto com tule." Xénia olhava para o desenho. "Que te parece?" Antes de ouvir a resposta, já Ethel prosseguia: "Escarpins dourados, não, talvez um pouco ostensivos, demasiado vistosos?" Recuava, como se visse Xénia desfilar com os modelos. "Sabes, és tão bonita, que gostaria de te vestir, eu desenhava os vestidos e tu usava-los."
Ethel imaginava Xénia, vestida de azul-eléctrico, o cabelo comprido caído sobre os ombros nus, as mãos tão pequenas, tão finas, luvas pretas até aos cotovelos, sandálias de cabedal, de atar com correias, sapatos de verniz como os das meninas pequenas. Riam-se, levantavam-se, caminhavam sobre o tapete de folhas secas como se fosse a grande passadeira vermelha de um hotel de moda. Esqueciam tudo, as dificuldades da vida no caso de Xénia, a sua pobreza e a da irmã, a vida de mendigas. No caso de Ethel, as discussões entre o pai e a mãe, os boatos que corriam sobre a ligação entre o pai e Maude, e Monsieur Soliman acamado, vestido como se fosse partir para uma viagem. Ethel ouvira a criada, Ida, contar à mãe que ele pedia que o vestissem todas as manhãs, e lhe apertassem os sapatos, pois sabia que ia morrer.
Adquiriram o hábito de ir ao terreno quase todos os dias, depois da escola. A fim de ficar com Xénia, Ethel inventava ligeiras mentiras. Dizia que ia a casa da amiga, ajudá-la a fazer os deveres de francês. Xénia nunca a convidara para sua casa. A bem dizer, Ethel nem sabia onde ela morava. Uma ou duas vezes, tinham caminhado juntas até à Rue de Vaugirard, e Xénia apontara vagamente para a descida: "É ali, é para ali que moro."
Ethel compreendeu que Xénia não queria divulgar o estado da sua pobreza, dar a conhecer o miserável alojamento. Certo dia, ao falar do sítio onde vivia, dissera, numa espécie de gracejo: "Sabes, o nosso apartamento é como uma arrecadação, tão exíguo que, de manhã, enrolamos os colchões para podermos andar."
Ethel sentia vergonha de ser rica, de habitar um grande apartamento de rés-do-chão, de ter um quarto só para ela, com uma porta-janela que abria para um jardim florido. Invejava a existência de Xénia, a irmã com quem dormia, o alojamento exíguo, o barulho das vozes, e mesmo a inquietação quanto ao futuro. Imaginava a atmosfera de uma vida de aventuras, as dificuldades da falta de dinheiro, a procura dos meios de sobrevivência. As tardes passadas no jardim de l'Armorique eram momentos privilegiados. Conversavam, sentadas no banco carunchoso, sem sentir o frio. Quando chuviscava, abriam as sombrinhas e comprimiam-se uma contra a outra. Às vezes, se vinha directamente de casa, Xénia trazia chá numa garrafa embrulhado num pano de lã, e duas taças de prata, sobras da glória da família Chavirov, com certeza. Ethel bebia o chá a escaldar, um pouco amargo, excitante. Riam-se, mesmo às gargalhadas. Certo dia, em paga, Ethel também trouxe um bule, num cesto chinês de piquenique, o que a tia Willelmine trouxera da ilha Maurícia e lhe oferecera. Xénia apreciou o acolchoado vermelho, o bule chinês, e as graciosas chávenas sem asas, mas achou o chá de baunilha muito doce, fez uma careta. "Não gostas?", perguntou Ethel, com um aperto no coração. Xénia riu-se. "Não é nada, é do chá. Se não te importas, prefiro trazer o meu, como de costume." Ethel esqueceu a contrariedade. O "como de costume" aqueceu-lhe o coração, significava que continuariam, experimentou tamanha gratidão que os olhos se lhe marejaram de lágrimas, e teve de se desviar para Xénia não se aperceber.
Aos poucos, Xénia contava-lhe a vida. Ethel não a interrogava. Sabia que Xénia só diria o que decidira revelar, que não eram confidências, mas uma espécie de dádiva destinada a selar a amizade entre as duas. Uma espécie de pacto. Falava da grande casa dos Chavirov, em Sampetersburgo. Das festas que organizavam, às quais podiam comparecer todos os vizinhos, nobres e proprietários rurais, militares, artífices e artistas. Xénia exprirnia-se com entusiasmo, como se alguma vez lá tivesse estado, mas passara-se tudo antes do seu nascimento, antes da revolução, quando o pai e a mãe eram um jovem casal. Tinham acreditado no ideal, confiado numa nova era. Pensavam que seria para sempre. Xénia mostrou uma fotografia, já amarelecida e manchada, como se o tempo quisesse apagar aquela época. Na fotografia, Ethel viu um homem ainda jovem, de cabelo comprido e barba romântica, muito moreno, trajando um fato elegante. Ao seu lado, a mãe de Xénia, bonita e loura, de cabelo apanhado num pesado toucado, envergando um vestido branco, comprido e pregueado, e um corpete bordado de camponesa. "Chama-se Martina", declarou Xénia. "O fato é o que usam as raparigas de Vilnius, a minha mãe é lituana." Atrás dos noivos, distinguia-se um cenário de fotógrafo, um templo grego, jardins suspensos. Um ar de eterno Verão.
Xénia começava a desabafar. Ela, cujo rosto se mantinha geralmente impassível, com um sorriso crispado, e um ar contido de quem não deixa escapar nada, sucumbia subitamente encostada ao ombro de Ethel, numa voz rouca, abafada, incapaz de controlar o sotaque. "A vida é tão dura..." Cavava-se-lhe uma ruga entre as sobrancelhas, os olhos azul-acinzentados toldavam-se de lágrimas. com uma solenidade imprevista: "A vida, às vezes, é tão difícil..." Ethel apertava-lhe a mão, abraçava-a. Sabia que não podia dizer nada. A sua própria vida, o fosso cada vez mais fundo entre o pai e a mãe, e as querelas a propósito do dinheiro, uma ameaça difusa e sensível de descambar para o desastre, nada disto se comparava ao que Xénia vivera, a morte trágica do pai, a fuga com a mãe e as irmãs através da Alemanha, e por fim a chegada a França, àquela grande cidade escura e fria onde tivera de viver de expedientes. Ethel teria gostado assim tanto de Xénia sem aquele mistério dentro dela, na sua infância, em cada instante da sua vida? Desconfiava desta fraqueza, censurava-se por isso, mas ignorava como resistir. Então o amor alimentava-se de quimeras como estas, podia ser um sentimento impuro? Às vezes, tinha a impressão de ser um joguete, um joguete das suas ilusões, ou um joguete nas mãos daquela companheira, que alternava tristeza e sarcasmo, cinismo e ingenuidade.
Aos poucos, tornava-se claro que Xénia sentia prazer em dominar, em conduzir a sua relação com Ethel como se fosse um jogo. Certa tarde em que desabafara, de olhos toldados pelas lágrimas, falando da mãe que trabalhava num atelier de costura, e da irmã Marina, dominada por uma raiva destruidora e que ameaçava suicidar-se, Xénia, à saída da escola, pareceu lastimar a sua fraqueza e querer melindrar Ethel, evitando estar sozinha com ela e saindo de braço dado com outra colega. Ethel ficou interdita, de coração apertado, interrogando-se sobre o que podia ter dito, ou feito, para merecer tal tratamento.
Ethel regressou a casa, fechou-se no quarto, recusou-se a comer. "Que tem ela?", perguntou a mãe. Alexandre, com um ar entendido: "A tua filha está apaixonada, é isso." Ethel ouviu o comentário através da porta e sentiu-se atormentada. Apetecia-lhe gritar: Mas não sabem nada, não compreendem nada! Mais tarde, e nos dias seguintes, compreendeu o que lhe magoava o coração. Inveja, simplesmente. Fora Xénia que incutira nela o veneno. Sentiu despeito, mesmo raiva por ela. Inveja, era então isso! Um sentimento banal. O mesmo que corroía a mãe, que a fazia sufocar, por causa da cantora Maude, um sentimento de costureirinha, de rapariga pobre, de vítima! Tudo aquilo a aturdia, lhe provocava náuseas. E depois, um dia, sem razão aparente, à saída da escola, lá estava de novo Xénia à espera dela, linda como um anjo, de olhos cor de mar, cabelo cor de mel discretamente apanhado na nuca com uma fita de veludo preto, envergando um vestido novo com uma faixa de lantejoulas na cintura, a abraçar Ethel: "Vês? A minha mãe executou o modelo que criaste!" Ethel sentiu-se tola, inebriada e tola, uma vaga de calor a percorrer-lhe o corpo. Recuou um pouco para admirar o vestido de Xénia: "É verdade, fica-te bem." Foi tudo o que encontrou para dizer.
E depois, de repente, tornaram-se as melhores amigas do mundo. Sempre juntas, nunca se separavam. Quando se levantava, de manhã, muito cedo, Ethel sentia o coração impar de alegria ante a ideia de passar o dia com Xénia. As tias queixavam-se: "Já não vens visitar-nos, não estás zangada, espero?" Passava por lá a correr aos sábados à tarde, depois da catequese, antes da lição de piano. Entrava de rompante no antigo apartamento de Monsieur Soliman, agora ocupado pela tia Willelmine, dava um beijo à velha senhora, mordiscava um biscoito, beberricava o chá de baunilha, depois saía, descendo os degraus a quatro e quatro, para não ter de esperar pelo elevador. Faltava à lição de piano para se encontrar com Xénia no Boulevard dês Italiens. Iam ver montras. Xénia parecia mais velha do que de facto era, envaidecia-se por os homens olharem para ela, enquanto Ethel achava tudo isso perfeitamente ridículo. "Mas viste aquele, viste como te remirou? Velho nojento!" De repente, enfurecia-se: "Pois bem, àquele, vou dizer-lhe umas palavras! Enfim, estás a ver, cruzou-se contigo e agora vem atrás de nós, como um cãozinho! Não deve ter mais nada para fazer!" Xénia esboçava um leve sorriso de satisfação que não melhorava a situação. Falava de todas estas coisas com um pouco de condescendência, dava a entender que sabia muito sobre homens, sobre o que valem em geral, sobre a sua frivolidade. Um dia, chegou mesmo a dizer a Ethel: "No fundo, és muito ingénua." Ethel sentiu-se mortificada, quis responder mas não soube que dizer. Não era verdade que fosse ingénua, pensou. Devia ter falado da relação entre o pai e a mãe, das suas discussões, de Maude, do lugar que esta mulher ocupara na família, da ruína que a atingira. Mas tudo isto era tão pouco ao lado do destino trágico dos Chavirov, que Ethel nunca ousaria comparar-se a Xénia.
Ethel atribuía um grande valor à amizade de Xénia. Era um milagre. Na escola, todas as raparigas deviam invejá-la. A beleza, o mistério, aquele nome Xénia que ela proferia com um ch muito doce, o apelido Chavirov que fazia pensar no parêntesis que envolvia a sua história. Por ela, para lhe agradar, Ethel mudara a sua maneira de ser. Pessimista por natureza, fechada, transformava-se no momento de se encontrar com Xénia. Mostrava-se divertida, leviana, despreocupada. Fingia-se ingénua, pois era a qualidade que a amiga reconhecia nela. Apontara num caderno pensamentos, historietas, coisas ouvidas em casa, ou na rua. Falaria com Xénia, pedir-lhe-ia a sua opinião. Xénia não ouvia três quartos do que Ethel lhe dizia. Olhava para ela, com o ar de quem pensa em outra coisa. Ou então interrompia-a: "Complicas demasiado a vida." Acrescentava ela, com um breve riso que magoava - mas, acima de tudo, Ethel não devia deixar transparecer o melindre: "Sabes, a vida real já é suficientemente difícil assim, não vale a pena exagerar." Ethel baixava a cabeça, aceitava. "Tens razão, vês sempre as coisas tal como são. É por isso que sou tua amiga."
Acontecera há algum tempo. Para se tranquilizar, para se exprimir, Ethel começara a repetir esta palavra frequentemente. Ela que há muito a eliminara do seu vocabulário, como se só Monsieur Soliman tivesse direito a estes sentimentos - a amizade, o amor, o afecto. Certo dia, atrevera-se. Após um longo dia passado em conjunto, a caminhar pelas ruas, depois na Allée dês Cygnes, em frente do Sena, num fim de tarde de Primavera de tempo ameno. Observava de soslaio o perfil de Xénia, a sua testa alta, o nariz pequeno de asas delicadas, a penugem loura da nuca, por baixo do carrapito, e a boca de lábios bem contornados e muito vermelhos, e as pestanas que projectavam uma sombra nas faces, sentiu um impulso amoroso no fundo de si mesma, irresistível e delicioso como um frémito, e disse muito depressa, sem reflectir: "Sabes, Xénia, nunca tive uma amiga como tu." Xénia não se mexeu durante um longo momento, talvez não tivesse ouvido. Depois voltou-se para Ethel e o azul-acinzentado das suas íris assemelhava-se à cor de um mar muito a norte, muito distante. Xénia disse: "Eu também não, minha querida." E, para esbater a solenidade algo ridícula desta confissão, ironizou. "Não sei se já reparaste, mas encontramo-nos exactamente no sítio em que os apaixonados fazem grandes declarações!" E, logo a seguir, começou a falar da modista para quem a mãe trabalhava, uma mulher alta um pouco máscula, com um nome em is - Ethel achou que podia ser grega, Karvélis, mas na realidade era lituana - e que era conhecida pelo seu comportamento. "Enfim, percebes o que estou a dizer, não?", acrescentou Xénia, "não, claro que não sabes essas coisas, estou a falar de uma mulher que não gosta muito de homens, uma mulher que anda com mulheres."
Gesticulava um pouco e Ethel reparou a que ponto as mãos de Xénia estavam bem cuidadas, mãos de boneca de dedos finos, unhas rosadas e brunidas com um polidor de camurça. Porque contava tudo aquilo a propósito de Karvélis? Certo dia, a mulher entrara na cabina onde Xénia se despia depois de ter provado um vestido, aflorara-lhe o ombro e sussurrara: "Se quiseres, poderemos ser (neste ponto, Xénia engrossava a voz e pronunciava os r à russa) grrrandes, grrrandes amigas!"
Mme Karvélis tornara-se o tema preferido dos seus gracejos. Debaixo de uma aparência de jovem delicada, aristocrática, Xénia ocultava um bom senso realista, e mesmo um espírito descarado que decerto chocaria Justine e Alexandre, e que Ethel achava extremamente divertido. Não lhe escapava nada. Nem os olhares do auxiliar Borna, na escola, nem o ar enamorado de Mlle Jeanson, a professora de Francês. Num dia em que esta se enfeitara com um grande xaile de seda violeta para andar de um lado para o outro no pátio da escola, Xénia dera uma cotovelada a Ethel: "Viste, o xaile vê-se por baixo do casaco, ao nível das nádegas!" Nunca se ria às gargalhadas, a sua voz adquiria sempre um tom mordaz para contar histórias às quais Ethel tinha dificuldade em resistir. "Quando ela caminha, repara bem, forma uma espécie de cauda que se agita contra o seu grande traseiro!" Ethel foi várias vezes encontrar-se com Xénia no atelier de costura em que trabalhava a condessa Chavirov. Era na outra extremidade de Paris, na Rue Geoffroy-Marie, não muito longe da Rue La Fayette, no segundo andar de um prédio, uma verdadeira aventura. Numa das primeiras vezes em que Ethel lá foi, deparou com toda a família Chavirov, a mãe debruçada sobre a bancada, a pospontar, e as filhas a dar voltas em frente de um espelho, vestidas de princesas. O atelier era escuro, extremamente desarrumado, caixas de papelão e cortes de tecidos empilhados no chão. Mme Karvélis trabalhava a uma mesa, à primeira vista poderia passar por uma empregada da condessa. Xénia precisava de público e, quando Ethel chegou, entusiasmou-se. Escarneceu abertamente de Karvélis, pegou-lhe na mão, dançou à sua volta fazendo roçagar um vestido comprido de dama de honor em organdi branco. Marina também rodopiava, um pouco mais atrás, como se dançasse em frente de um espelho, e os seus risos e aplausos ressoavam pelo vasto apartamento. Ethel admirava a cena, fascinada. Era risível e ao mesmo tempo dramático, um turbilhão de loucura empolgava aquelas jovens e levava-as a desafiar a tristeza e o desespero do seu destino. Mme Chavirov não se mexera. Parara de coser e observava o espectáculo, o rosto um pouco macilento, imóvel e inexpressivo. Num determinado momento, Xénia aproximou-se de Ethel e arrastou-a na dança, o corpo muito hirto, pousando as mãos de Ethel na sua cintura, como se fosse ela o cavalheiro, e enlaçando-a com o braço direito, a mão no ombro do seu par. Ethel sentia o corpo rijo de Xénia, os atilhos do corpete, e o leve odor do cabelo, uma mistura de enxofre e água-de-colónia, um pouco picante, um pouco repulsivo. No fim da dança, beijou Ethel na face, não ao de leve, antes num impulso fogoso, quase brutal. Aquele beijo na parte inferior da face, perto da comissura dos lábios, fez estremecer Ethel. Tudo aquilo era um jogo, uma provocação. Sempre com Ethel pela mão, Xénia inclinou-se em frente de Karvélis, e na sua voz um pouco rouca, não muito cortês, disse: "Tenho uma participação a fazer!" E como Marina e a condessa pareciam não ter ouvido, repetiu, forçando a voz: "Hum, hum! Minhas senhoras, tenho uma participação a fazer... Eu e a Ethel anunciamos o nosso noivado!" Era imensamente divertido, Ethel de pé, um pouco constrangida na saia e no camiseiro escuros, o cabelo castanho apanhado na nuca, sapatos austeros de salto raso, e Xénia deslumbrante no meio de véus e folhos brancos, escarpins dourados nos pés graciosos, como uma noiva. Mais tarde, na rua, caminhando do lado de Rivoli, depois em direcção à Pont du Carrousel, Xénia explicava a vida a Ethel: "Por mim, não tenho problemas com Safo, tudo o que peço é que ela não me deseje, compreendes?" Ethel continha-se para não arregalar os olhos. "com certeza, compreendo." De repente, descobria um mundo oculto, a razão do ligeiro embaraço que sentia quando se encontrava a sós com Mlle Decoux, no seu atelier de escultura, impregnado de cheiro a tabaco e a suor. Aquela mulher entroncada de olhos pequenos e negros como azeitonas, e que se mostrava sempre tão familiar, agarrava-a pelo braço e abraçava-a com um vigor muito masculino. Ethel evitava falar do caso. "Esta artista, o meu tio-avô alugou-lhe um atelier do outro lado do pátio, fuma charuto..." Xénia ouvia distraidamente. "Fumar não quer dizer nada. Ela vive com uma mulher?"
Ethel tinha de admitir que ignorava por completo. "Tem muitos gatos, esculpe animais, e..." "Então é maluca", concluiu Xénia. E não voltaram a falar da escultora.
Para lhe agradar, Ethel comprou um compêndio de russo. Treinava-se à noite, na cama. Repetia "ia liubliu", e as lições que se encadeavam sem lógica, mas só fixava o que queria, conjugar o verbo amar. Um dia, no atelier da Rue Geoffroy-Marie, atreveu-se, disse a Mme Chavirov: "Kak pajivaietie?" E como a condessa se extasiasse, Xénia escarneceu, na sua voz mais sarcástica: "Sim, Ethel fala muito bem, sabe dizer Kak pajivaietie, e depois ia znaiu gavaritpá russki, e também gdie toiliet?" Ethel sentiu o rosto ruborizar-se, não sabia se fora acometida de raiva ou de vergonha. Xénia manejava muito bem a ofensa e o carinho, aprendera a fazê-lo na infância, para sobreviver. Passado algum tempo, ao sabor dos passeios pelas ruas de Paris, pelo Jardim do Luxemburgo, deu uma lição particular a Ethel, mas era de facto particular, só falava de amor, uma sucessão de frases sem nenhuma aplicação prática. Obrigava Ethel a repetir: ia dumaiu chto anã ievo liubit, creio bem que ela o ama, ia znaiu chto on ieio liubit, sei que ele a ama, e depois, liubov, vliubliommyi, vliublionna, pronunciava as palavras prolongando a sílaba final, e daragaia, maia daragaia padruga. Semicerrava os olhos, dizia: kharacho, mnie kharachooo... Voltava-se para Ethel: ty, davolnaia? Estás satisfeita?
Em Julho, a Allée dês Cygnes ficava longe de tudo, perdida no meio do Sena. Era ali que Xénia marcava encontros. Nunca dizia, como as outras raparigas: "Então, até amanhã, à mesma hora..." Dava meia volta e afastava-se rapidamente, a passos largos, desaparecia num instante na multidão da Rue de Rennes, do Boulevard du Montparnasse. Ethel saía cedo, com um ar afadigado: "Onde vais", perguntava Justine, e ela permanecia evasiva: "Fazer compras com uma amiga." Não inventava grandes mentiras, não falava de lições de piano, de ensaios do grupo coral.
Chegava à ilha descendo a escada da ponte do metro aéreo. De manhã, a grande alameda encontrava-se deserta, a sombra dos freixos muito fresca. Às vezes, avistava uma silhueta ao longe, na extremidade da alameda. Homens sozinhos, não muito tranquilizadores. Ethel avançava em direcção a eles, num passo decidido, como se não tivesse medo. Fora Xénia que lhe ensinara: "Se andares assim, sem hesitar, és tu que os assustas. Sobretudo, não abrandes, não olhes. Fixas um ponto imaginário, finges que alguém te espera." Devia estar certo, pois ninguém a abordava.
Xénia aguardava-a sempre no mesmo lugar. Chamava-lhe a árvore-elefante, um grande freixo enraizado na margem, cujos ramos principais se curvavam até rasar o rio, semelhantes a defesas, a trombas. Deixavam-se estar ali, de pé, sem falar, a olhar para a água verde e para os cabelos castanhos que ondulavam na corrente. Depois sentavam-se num banco, à sombra dos plátanos, vendo deslizar as chalupas, as que subiam o Sena, repelindo uma vaga amarela, as amarradas do outro lado, ao longo do cais. Falavam de partir. Xénia preferia o Canadá, a neve, as florestas. Imaginava um grande amor com um rapaz que possuísse terras, uma coudelaria. Na realidade, o seu grande amor eram os cavalos, como os que dantes montavam na Rússia, no domínio do pai. Ethel falava da ilha Maurícia, da propriedade de Alma, como se ainda existisse. Descrevia a colheita dos frutos das amborás, os grãos dos baobás, e os banhos nos regatos frios, em plena floresta. Falava como se tivesse vivido tudo isto, mas eram frases soltas ouvidas da boca da tia Milou, da tia Pauline, a voz de Alexandre quando falava crioulo. Xénia não ouvia com atenção. Por vezes, cortava cerce. Apontava para a cidade que bulia do outro lado do rio, para a ponte arqueada onde passam os comboios, para a silhueta da Torre Eiffel, para os prédios. "Para mim, é aqui que tudo acontece. As recordações fazem-me mal. vou mudar de vida, não quero viver como uma mendiga."
Ainda não falava de nenhum noivo, de casamento. Mas lia-se a determinação no seu rosto. Era óbvio que arquitectara a sua vida, que já decidira tudo antecipadamente. Não permitiria que ninguém perturbasse o seu destino.
Conversas de Salão
O salão da Rue du Cotentin não era muito espaçoso, mas no primeiro domingo de cada mês, ao meio-dia e meia hora, enchia-se de visitas, parentes, amigos, relações passageiras, que Alexandre Brun convidava para almoçar e passar a tarde. Era um ritual ao qual o pai de Ethel não gostaria de pôr termo. A Monsieur Soliman, que criticava estas reuniões, dizendo que eram cansativas para a sobrinha e custavam caro, Alexandre respondia: "Meu caro, um advogado não existe sem estas mundanídades, são o seu terreno de caça." Monsieur Soliman encolhia os ombros. De facto, quando chegou da ilha Maurícia, Alexandre concluiu o curso de Direito, mas nunca se servira dele. Nunca advogara e cingira-se ao mundo dos negócios, investindo o dinheiro da herança em projectos obscuros, na compra de participações e de acções de sociedades falidas. Mas era um artista, bom cantor, bom músico, eloquente, causava sucesso com o bigode de pontas retorcidas e a cabeleira negra, os olhos azuis, a estatura elevada, e as reuniões dominicais constituíam sempre um sucesso. Justine adorava o marido e, para não a melindrar, Monsieur Soliman não formulava as suas críticas em público. Limitava-se a evitar as reuniões no salão, invocando uma indisposição, um afazer, ou simplesmente um contratempo. Alexandre não se deixava
enganar, mas não era homem para perder a compostura. Mantinha com o tio por afinidade uma relação distante, cortês, algo irónica, que os seus modos exóticos, o bom humor e sobretudo o sotaque crioulo tornavam muito pouco dramática.
Ethel sempre conhecera o ambiente daquelas reuniões, faziam parte da sua vida familiar, do cenário da sua infância. Quando era pequena, almoçava depressa e corria para o colo do pai para passar o resto da tarde, quando ele se sentava na poltrona de cabedal para conversar com os convidados. Fumava então cigarros atrás de cigarros, que ele próprio enrolava numa estranha maquineta. Ethel tinha o privilégio de pegar nas pitadas de tabaco negro e de as encerrar na faixa de borracha entre os rolos, antes de lamber cuidadosamente o bordo da folha de papel Job - tudo isto sob o olhar reprovador da mãe, que não se atrevia a dizer nada, e, por vezes, o sarcasmo de um convidado: "Não se espantem se, mais tarde, a Ethel fumar cachimbo como George Sand ou charuto como Rosa Bonheur!" Alexandre não se deixava desarmar: "E onde está o mal? Temos uma inquilina que fuma charuto e usa calças!" Mlle Decoux, uma original. No seu atelier, no rés-do-chão da Rue du Cotentin, do outro lado do jardim, esculpia na pedra silhuetas de animais, principalmente cães e gatos. O seu comportamento, a maneira de vestir e o tabagismo escandalizavam muitas pessoas do bairro, mas ela era divertida e simpática, e por tudo isto Monsieur Soliman não hesitara em a albergar, embora não pagasse muito regularmente o aluguer. Às vezes, Ethel ia com o tio-avô visitar Mlle Decoux. No vasto espaço iluminado por um dia pálido vindo das paredes envidraçadas, Ethel circulava pelo meio dos animais imobilizados na sua pose, gatos prontos a saltar ou adormecidos, cães agitados, cães sentados, cães deitados, as patas dianteiras bem firmes, cabeça numa postura hierática. Pelo meio das estátuas, esgueiravam-se formas furtivas, corriam a esconder-se nos cantos, roçavam a barriga das pernas de Ethel, uma parte dos animais vivos de Mlle Decoux, formada sobretudo por gatos vadios que ela recolhia e alimentava, antes de os oferecer a quem os quisesse.
Quando era pequena, Ethel gostava de adormecer ao colo do pai enquanto ouvia o desenrolar da conversa. A poltrona preferida de Alexandre era larga e funda, de cabedal cor de borra de vinho, polido pelo contacto dos casacos de tweed e as calças de Alexandre, impregnado de um odor adocicado, um pouco enjoativo, uma mistura de tabaco, de restos de comida, e do cognac que ele gostava de beber depois do almoço. As vozes soltavam palavras, risos, a música do sotaque mauriciano subia de tom, descia, a voz grave de Alexandre, as vozes agudas e melodiosas das mulheres, a tia Pauline, a tia Willelmine, a tia Milou.
"... os olhos azuis, o cabelo louro..." "Meu caro, garanto-lhe..." "Im-pen-sá-vel!" "Enfim, Santo Deus!"
Mais cedo ou mais tarde, a conversa descambava. Era inevitável. Ethel seria capaz de dizer em que instante preciso, o que desencadeara o descalabro. Cumpria-se uma espécie de ritual secreto. Alexandre repelia o prato, onde o caril deixara uma marca cor de laranja semelhante à da maré alta numa praia. Os restos de legumes e de sementes imitavam muito bem as algas depositadas pela maré.
Mesmo depois de crescida, quando já não se enroscava no colo do pai para dormir, Ethel apreciava aquele momento depois do almoço em que os sentidos se embotavam. Aproximava a cadeira da do pai, respirava o odor agridoce dos cigarros, ouvia-o falar dos tempos antigos, na ilha, quando ainda tudo existia, a casa grande, os jardins, os serões na varanda coberta.
"Era a velha Yaya, lembras-te, Milou? Quando vínhamos da escola de Miss Briggs, mortos de fome, íamos comer mangas do seu quintal, e ela guardava os caroços das mangas que comíamos e bombardeava-nos com os nossos próprios caroços!" Rompiam gargalhadas, as tias comentavam, sobretudo Milou, a irmã mais nova de Alexandre, tão escura quanto as outras eram louras, com uns olhos verdes nos quais a pupila ficava a nadar, toda a gente dizia que ela era má. "É caroço kilil" As outras repetiam, rindo: "Caroço kilil" Era o ditado preferido de Alexandre: mangue ligoút, só noyau kili, a manga é boa, mas que dizer do caroço?
Porque permanecia Monsieur Soliman alheio a tudo aquilo? Rompera as amarras, abandonara a ilha aos dezoito anos, nunca mais lá voltara. Desprezava os seus concidadãos, achava-os mesquinhos, intriguistas, desinteressantes. Um dia, Ethel fizera-lhe a pergunta: "Avô (gostava muito de lhe chamar avô e de não o tratar por tu), porque partiu da ilha Maurícia? Não era bonita?" Ele olhara-a, perplexo, como se nunca tivesse pensado no problema. Depois, limitou-se a responder: "Terra pequena, gente pequena." Mas não explicara nada.
As vozes elevavam-se, baixavam. Ressoavam nomes de lugares, Rose Hill, Beau Bassin, L'Aventure, Riche en Eau, Balaclava, Mahébourg, Moka, Minissy, Grand Bassin, Trou aux Biches, Lês Amourettes, Ébène, Vieux Quatre Bornes, Camp Wolof, Quartier Militaire. Também nomes de pessoas, Thévenin, Malard, Éléonore Békel, Odile Du Jardin, Madeleine Passereau, Céline, Étiennette, Antoinette, e as alcunhas dos homens, Canal d'Água, Estardalhaço, Presumido, Grande Lata, Cara Quadrada, Tio Ziz, Licínio, Lalo, Mão-Morta, Só-Ossos.
Os estranhos sentiam-se excluídos. Os estranhos eram os do clã dos Soliman, tios, tias, primos e primas do lado da mãe de Ethel, sempre em inferioridade numérica, e completamente derrotados pelo clã dos Brun, esses mauricianos de voz grossa, riso comunicativo, dotados de humor e malvadez, capazes, quando se encontravam reunidos, de enfrentar qualquer linguareiro, mesmo parisiense.
Alexandre, de resto, não se cansava de manifestar a falta de consideração que nutria pelos habitantes da capital: "O parisiense, que nasceu para ser astuto", costumava ele dizer para encerrar qualquer debate, "é o maior dos imbecis."
Havia ainda os ocasionais. Entre eles, um careca baixo e amarelado, de olhos muito pretos, que Ethel detestara desde o primeiro momento. Que fazia ele na vida? Não era claro. Um dia, Ethel fizera a pergunta ao pai. "É industrial." E, como se não fosse suficiente, acrescentara: "É um aventureiro dos tempos modernos. Trabalha na Bolsa."
Claudius Talon criara incontestavelmente um ascendente sobre Alexandre. Tinha resposta para tudo, conhecia toda a gente, pretendia ter apoios na política e na finança. Mas não era por causa das suas opiniões ou das suas pretensões que Ethel o detestava. Num dia em que se encontrava sozinha no corredor, Talon acariciara-lhe o pescoço debruçando-se sobre ela, expelindo um bafo tépido sobre a orelha de Ethel. Esta tinha treze anos, não esquecera o medo que a deixara pregada ao lugar, enquanto, atrás dela, as falanges do homem lhe percorriam as costas e a nuca, como se reflectisse sobre a maneira de a estrangular. Ethel fugira, fechara-se no quarto, mas não contara nada a ninguém, imaginara o pai a desculpá-la perante os convidados: "A minha filha não se sente bem, está a atravessar uma idade difícil..."
De quem Ethel gostava muito, era de um jovem chamado Laurent Feld, um inglês de cabelo ruivo e frisado, lindo como uma rapariga, que às vezes visitava os Brun. Ethel tinha a impressão de que sempre o conhecera, ao ponto de julgar que fazia parte da família. Ao sabor das conversas, percebera que Laurent Feld era simplesmente um amigo, ou antes, o filho de um amigo de infância de Alexandre, o Dr. Feld, que conhecera na Reunião. Laurent também viera das ilhas, embora tivesse perdido o sotaque cantante e a Inglaterra tivesse incutido nele modos e uma maneira de vestir que destoavam na Rue du Cotentin. Ethel apreciava a sua timidez, a sua reserva, o bom humor. Quando Laurent entrava na sala, Ethel olhava para a espécie de halo de luz vermelha que lhe envolvia o rosto, sentia-se feliz, sem saber dizer porquê. Ia sentar-se perto dele, fazia-lhe perguntas sobre a vida em Inglaterra, o curso de Direito, os seus hobbies, a música que apreciava, os livros que lera, etc. Agradava-lhe que ele não fumasse. O que porventura a tocava mais naquele rapaz era o facto de já não ter pai nem mãe. A mãe morrera ao dá-lo à luz, e o pai falecera de doença quando Laurent tinha dez anos. Tinha uma irmã mais velha, Édith, e depois da morte dos pais, fora uma tia, Léonora, que os educara, lhes pagara os estudos. Quando Laurent ia a Paris, era essa tia que o alojava, no seu apartamento do Quartier Latin. Ethel imaginava o jovem Laurent, vivendo sozinho em Londres, sem uma verdadeira família, pensava que podia ser seu irmão, que o teria admirado, apoiado, que ele lhe contaria a sua vida e ela partilharia a sua solidão. Para ela, era igualmente uma maneira de se libertar dos pais, da tensão que crescia entre o pai e a mãe, das suas discussões, daquela guerra surda.
Quando Ethel era pequena, as coisas já não corriam muito bem entre Justine e Alexandre. Um dia, depois de uma das querelas habituais, Ethel enfrentara-os com os olhos rasos de lágrimas, gritara-lhes: "Porque não me deram um irmão ou uma irmã? com quem hei-de conversar quando forem os dois velhos!" Ethel lembrava-se da expressão envergonhada dos pais. Depois, não tinham voltado a pensar no caso, continuara tudo como dantes, e ela nunca mais repetira aquela observação.
Alguma coisa mudou quanto ao tom. Ou terá sido Ethel que se tornou de súbito, na adolescência, mais atenta ao que se dizia no salão dos Brun? Um endurecimento, dir-se-ia, uma aspereza. Alexandre sempre tivera a mania da revolução anarquista, da Grande Noite em que a conquista de Paris seria feita a ferro e fogo, e em que os burgueses e os proprietários seriam pendurados nos candeeiros das esquinas. Era mesmo, tão longe quanto podiam remontar as recordações de Ethel, um tema de escárnio na família. Quando Alexandre se entediava, ou depois de uma das suas discussões com Justine, batia à porta do quarto de Ethel: "Arruma o saco, amanhã partimos para o campo, vem aí a Grande Noite." Ethel procurava resistir: "E a escola, papá?" Alexandre, peremptório: "Não quero estar em Paris, quando começar a arder." Iam sempre para o mesmo sítio, uma pequena casa de campo que Alexandre alugava ao ano na orla da floresta, em La Ferté-Alais. Ia ver voar os aviões. No jardim da casa, construíra, com a ajuda de um marceneiro da terra, chamado Bijart, a maqueta de um dirigível com asas que, no seu entender, tornava definitivamente caduco o mais pesado que o ar. "Tolices", resmungara Monsieur Soliman, num dia em que Ethel lhe falou dos planos do pai. "É assim que ele passa o tempo, em vez de trabalhar." Ethel não voltara a tocar no assunto. Mas gostava muito de ir ao campo de aviação, pela mão do pai, e de caminhar pela lama no meio daqueles estranhos aparelhos, de asas esticadas, com hélices imóveis. Sabia todos os seus nomes, Latécoère, Breguet, Hotchkiss, Paleron, Voisin, Humber, Ryan, Farman. Um dia, com o pai, viu o Caudron-Renault pilotado por Hélène Boucher. Foi alguns meses antes da sua morte, em Junho ou Julho de 1934. Um avião que lhe pareceu gigantesco com o seu focinho de tubarão e as asas curtas, e uma hélice única, de alumínio. Ethel sonhava conhecer Hélène, ser como ela. Alexandre esboçou um sorriso. "Iremos a Orly vê-la voar, está combinado." Mas não chegaram a ir, talvez por falta de tempo.
Sentia-se uma espécie de pressa, como se urgisse chegar ao fim. Mas ao fim de quê? Ethel ouvia os adultos falar, trocar ideias. Acontecia depois da refeição, quando Ida, a criada, levantava a mesa. Alexandre organizava o debate à maneira de uma peça de teatro. De um lado, os ilhéus, Maurícia-Reunião, do outro os estrangeiros, parisienses ou assimilados. A conversa insidia sobre a actualidade, mas descambava de imediato, era um confronto de personalidades, de ideologias, de profissões de fé. Ethel gostaria de escrever tudo, tão insensato, tão ridículo lhe parecia.
" - Kerenski compreendeu-o - dizia ele -, mas ninguém lhe dá ouvidos. Sabe do que fala, estava lá no início, quando os bolcheviques tomaram o poder.
- A revolução era inevitável. Mas só Kerenski podia fazer alguma coisa, domar a besta. Era o Mirabeau deles.
- Pois sim, mas os Mirabeau, sabemos o que lhes acontece.
- Evidentemente, toda a gente o abandonou, lavou as mãos, como em Locarno."
Seguia-se um bruaá, momentos em que toda a gente falava ao mesmo tempo. Depois o silêncio adensava-se. Ethel olhava para a mãe, que procurava uma oportunidade de prosseguir num tom mais neutro. Que lançava motes: "... A mim, o que mais me preocupa é o presente, o custo de vida, os aumentos." Era imediatamente contrariada por Talon: "Os aumentos não devem inquietar-nos, são um bom indício económico. Na verdade, o que é preocupante é a deflação, a diminuição do custo de vida. Repare no cabaz de compras, se contiver mais fruta, mais legumes e mais carne pelo mesmo preço, não deve regozijar-se, mas inquietar-se."
Neste ponto, o coronel Rouart, a generala Lemercier e os outros protestavam. Havia quem dissesse: "Tudo aumenta!" E os que deploravam as flutuações, os riscos de desvalorização, o desemprego. A tia Pauline, num momento de calma, prosseguia: "Estamos, portanto, num bom momento de comprar. Consta que, na Cote d'Azur, os palacetes dos bairros chiques perto da estação se vendem ao preço da chuva!" Justine: "Sim, na Cote d'Azur, viram o desenho em Aux Écoutes? Um jornalista pergunta ao dono de um hotel: Como está a decorrer a estação? O homem responde: Não muito brilhante. Que quer, os nossos clientes foram todos presos!" Mas a anedota não suscitava o riso. Foi mais ou menos nessa época que Ethel ouviu proferir o nome de Hitler. De início, diziam Adolfo Hitler, como diziam Aristide Briand, ou Pierre Lavai. Às vezes, Chemin chegava mesmo a dizer, Ethel reparara: o chanceler, ou o chefe do Estado alemão. Depois, aos poucos, à medida que se instalava no poder e se tornava uma figura mundialmente conhecida, diziam simplesmente: Hitler. Ethel ouvia mesmo dizer, a Chemin, ou ao coronel Rouart, ou mesmo à mulher, uma personagem alta de feições angulosas e que usava um chapéu com um véu que lhe descia sobre o rosto, a quem chamavam a coronela: "O Fuhrer", que ela proferia como "fúria", e Ethel perguntava-se se teria o mesmo sentido em alemão.
"O Hitler disse..." "O Hitler fez..." Numa noite em que Justine ligou o aparelho de TSF na sala, aquela voz estranha fez-se ouvir, estridente, um pouco roufenha, discursando, momentaneamente coberta pelos aplausos ou por interferências, difícil de distinguir. Como Ethel parasse para ouvir, a mãe disse: "É o Hitler." E acrescentara, o que levara Alexandre a ironizar: "Esta voz horroriza-me, causa-me arrepios..." Uma voz como qualquer outra, pensou Ethel, pareceu-lhe mesmo que a voz se assemelhava estranhamente à de Chemin.
Mais tarde, depois do descalabro, Ethel procurará recordar-se daquela tarde de domingo no salão dos pais, e o silêncio do presente realçara ainda mais o barulho daquelas reuniões, as exclamações das tias, as suas risadas, o tinido das minúsculas colheres nas chávenas de café, e mesmo os "momentos musicais" que Alexandre instituíra, e que entrecortavam as conversas. As sonatas de Schumann, os trechos de Schubert, de Grieg, de Massenet, de Rimski-Korsakov. Ethel aguardava com impaciência estes parêntesis, sentava-se ao piano e tocava para acompanhar o pai, à flauta ou cantando. Alexandre Brun tinha uma bela voz de barítono e, quando cantava, o sotaque mauriciano desaparecia, fundia-se na música e ela conseguia imaginar a ilha das origens, a oscilação das palmas ao sabor dos ventos alísios, o barulho do mar contra os recifes, o canto dos pica-peixes e das rolas na orla dos campos de canas. A catedral submersa tornava-se um navio naufragado ao largo, porventura na baía do Tombeau, e o sino que se ouvia era o do tombadilho no qual um marinheiro fantasma anunciava os quartos. Uma ou duas vezes na sua infância, a bela Maude fizera uma aparição entre duas peças cantadas, envergando um deslumbrante vestido azul-petróleo ou azul-noite, usando grandes argolas de ouro nas orelhas, aureolada por uma opulenta cabeleira ruiva que ocultava, segundo constava, pequenas pinças que repuxavam a pele do rosto para as têmporas. Tinha uma bela voz quando cantava árias de Aida ou de Ifigénia, mas a sua carreira entrara em declínio, já só se exibia na província e, para sobreviver, trabalhava em ateliers de trajes de teatro. Tudo isto acontecera antes do nascimento de Ethel, mas as consequências da história ainda permaneciam.
Houvera vagas, e mesmo tempestades, e o navio que era o casamento dos pais estivera por diversas vezes quase a afundar-se. Depois, o tempo varrera tudo, e só alguns arrepios passageiros vinham ainda perturbar aquela superfície muito calma. Maude desaparecera durante anos, Ethel ouvira falar da sua aventura com um banqueiro, da viagem que fizera. Quando entrara no salão dos Brun sem se fazer anunciar, provocara um momento de surpresa. Ethel, com o coração aos pulos, aguardava a voz audível e fina de Maude, embora esta, nas notas muito altas desse uma fífia ou se fosse abaixo. Alexandre Brun, por uma espécie de acordo tácito, nunca cantara em público com ela.
À noite, Ethel apontava febrilmente nas páginas da agenda a transcrição das conversas, como se fossem frases da mais elevada importância que nunca devesse esquecer:
Conversas de salão
" - O inimigo, nunca nos enganarmos quanto ao inimigo, ele está aqui, cá dentro, entre as nossas quatro paredes.
- O inimigo do interior, velho estribilho da direita nacionalista. (Risos.)
- Riam-se, riam-se, verão daqui a alguns anos, quando vos acontecer o que aconteceu na Rússia, quando se virem reduzidos a arrumadores de carros em Londres, ou a governantas de meninas na Austrália!
-A Austrália não me desagradaria (Pauline), é o único país novo onde nos pedem unicamente que sejamos nós próprios.
- O Canadá, a neve, a floresta, é tudo o que me faz sonhar (a minha mãe).
- Demasiado frio para nós (o meu pai).
- Porque não regressar à ilha Maurícia?
- Nunca na vida! Depois de conhecer Paris.
- Paris, a cidade das ilusões (Chemin).
- Charlatães (o meu pai).
- Mas o inimigo, enfim, devem compreender, desfila debaixo das vossas janelas, organiza a greve, mesmo nos grandes armazéns, na Samaritaine, nas Galeries Lafayette. Torpedear, sabotar, provocar rombos, é a palavra de ordem de Moscovo.
- Está a pôr o carro à frente dos bois, meu caro. Não se esqueça de que a escala é mundial. Começou pela libra em
31 e agora o dólar desvalorizou 41% em poucas horas.
- Sim, os Americanos, mas, sabe, eles fazem o que querem com o dólar. Quando lhes convém, desvalorizam! (Talon.)
- Sempre as eternas histórias de finanças! (Pauline.) Não parece que estamos numa casa de banqueiros? Será realmente impossível falar de outra coisa?
- Sim, sim (generala Lemercier), eu e o coronel falamos de automóveis, é o que mais lhe interessa, Peugeot Légère, Mathis, Licorne II CV, ou Viva Six?
- Por mim, gosto muito do Ford V8, é uma viatura potente (o meu pai}.
- Sim, mas cara, e nem sequer sabemos se haverá petróleo no próximo ano (a minha mãe). Nós, aqui, instalámos uma caldeira para toda a espécie de combustíveis, de circulação de ar quente comprimido, se o petróleo vier a faltar, queimaremos os detritos domésticos.
- Que horror (generala Lemercier), está a imaginar o fedor!
- Mas enfim, vejamos, é sabido que o fumo não tem cheiro (Milou).
- As economias também não.
- Seja como for, com a guerra que se aproxima, não terão mais nada para alimentar a caldeira.
-A guerra (Pauline), mas que mania de voltar sempre à guerra, eu estou convencida de que é absolutamente impossível haver guerra, os Alemães nunca se arriscarão a sofrer uma segunda derrota.
- Mas não são só os Alemães (Milou), há a Itália, a Espanha.
- O Japão começou pela China, viram o que estão a fazer em Xangai?
- Sim, mas são os interesses da Europa que eles querem sabotar, já começaram.
- Agora interessam-se pelos Amarelos? (generala Lemercier).
- Eu também não quero acreditar na guerra (Chemin), trata-se de uma conspiração dos Vermelhos, o Mussolini disse e repetiu que nunca atacará a França, a Etiópia já lhe dá muito que fazer, e o Hitler tem os Sudetas, não, sabemos quem nos empurra para a guerra, conhecemo-los, basta procurar saber a quem aproveita o crime."
Como se fosse um único dia, sempre o mesmo. A conversa subia de tom, ressoava pela vasta sala, toda a gente falava ao mesmo tempo, Justine, Pauline e Milou com as suas vozes cantantes, Alexandre, e os convidados, a generala Lemercier, o coronel Rouart, Maurel, a professora de piano Odile Séverine, e o sempre insuportável Claudius Talon que, depois do incidente do corredor, evitava olhar para Ethel. E esta deslocava-se sistematicamente para a outra extremidade da sala e, quando ele se encontrava presente, para junto de Laurent Feld. Ethel apreciava que o jovem não tomasse parte na conversa. Ficava sentado na cadeira, muito hirto, e Ethel lançava olhares de soslaio ao seu perfil, ao nariz pequeno, ao queixo muito redondo e à cabeleira ruiva e frisada que lhe dava um ar efeminado e tingia a pele de um rubor muito quente, como se estivesse emocionado. Nunca respondia a provocações, apenas uma ligeira ruga entre as sobrancelhas quando Talon, grande leitor de L'Actionfrançaise, atacava os imigrantes estrangeiros, reclamava a sua expulsão do território nacional, ou a prisão dos refugiados espanhóis pela gendarmaria e a sua entrega imediata às forças franquistas.
Laurent Feld era o amigo de sempre. Voltava regularmente, esbelto e elegante, tão diferente dos outros jovens com quem Ethel se cruzava em Paris, tão estrangeiro que se tornava estranho. No salão, tomou a palavra uma única vez. Talon brandia a habitual folha de couve, atacava a Inglaterra: "Uma nação de traidores, de figurões, de vendidos, são eles que nos impelem para a guerra, podem ter a certeza de que fornecerão os Franceses como carne para canhão a fim de triunfar nos negócios, toda a gente sabe o que consta: a França tem os blindados, a City de Londres tem os cofres-fortes blindados!" As faces rosadas de Laurent haviam adquirido a mesma cor do cabelo, como um reflexo de incêndio. Cuspinhava indignação. "O senhor, o senhor não sabe o que diz, o senhor - é inaceitável, é vergonhoso, garanto-lhe que a Inglaterra é nossa aliada, nunca abandonará a França!" O tumulto era indescritível. Falavam todos ao mesmo tempo e, sobrepondo-se ao bruaá, a voz azeda de Talon, sublinhando as sílabas finais, uma voz de pantomineiro: "Então, meu pobre rapaz, ou é muito ingénuo ou finge esquecer..." Alexandre afundara-se na poltrona, fumava um cigarro, visivelmente à vontade naquele tumulto, dominando com a sua voz grave, um pouco arrastada: "Enfim, não falemos da Inglaterra, bem sabem que, na ilha Maurícia, os sentimentos se dividem quanto a esse grande país..."
"O senhor parece esquecer-se", prosseguia Talon, empinado nas pontas dos pés, mas já não se dirigia a Laurent Feld, abarcava todos os presentes, "do detestável papel que a Inglaterra desempenhou durante a última guerra, recusando intervir enquanto o inimigo nos massacrava." A tia Milou estava sempre de acordo quando se atacava a Inglaterra, fundara mesmo, em Paris, um clube de retrocessores que apoiava o partido que defendia o retorno da ilha Maurícia à mãe pátria. "Importa reconhecer, meu caro, que a política do Churchill não é clara, e a do Chamberlain ainda menos. E não se esqueçam de que foi de Londres que veio o bolchevismo."
Talon: "É sempre a mesma história, somos nós que temos de tirar as castanhas do lume." Laurent Feld não podia intervir. Levantou-se para sair, a despeito dos protestos de Alexandre. A Ethel, o jovem disse, debruçando-se sobre ela, e foi a primeira vez que a adolescente sentiu que deixava para trás a infância, pois ele falou-lhe como à única pessoa razoável ali presente: "Não lhe dê ouvidos, mademoisel. A Inglaterra é um grande país, eterna aliada da França, nunca aceitará o regime criminoso da Alemanha." Mas o bruaá esmorecia. Nunca durava muito tempo. Ethel deu a mão a Laurent, saíram para respirar o ar do jardim. O chá fumegava nas chávenas, as minúsculas colheres tiniam contra a porcelana, o cheiro a bolinhos de canela feitos por Pauline misturava-se com o fumo dos cigarros e dos charutos na grande sala envidraçada. Era tudo barulho, simplesmente barulho. Nada de importante.
As coisas precipitaram-se. Reflectindo, mais tarde, Ethel apercebeu-se de que não antevira nada. Foi o desencadear de uma engrenagem. Uma mecânica que se pusera em marcha e ninguém poderia ter detido. Começou com a morte de Monsieur Soliman no fim de 34. Ethel lembra-se do relato que lhe fizeram dos seus últimos momentos. Ida, a criada, servira-lhe o jantar na véspera, ele queixara-se de cansaço, de dores de cabeça. De manhã cedo, Ida encontrou-o deitado na cama, de fato cinzento-escuro, sapatos bem engraxados, nó da gravata bem apertado no pescoço magro. Tão calmo e elegante que Ida julgou que dormisse, mas quando lhe tocou na mão, sentiu o frio da morte. As exéquias realizaram-se três dias mais tarde na Igreja Saint-Philippe-du-Roule. Samuel Soliman não era propriamente praticante, mas tinha o sentido das conveniências, deixara bem à vista, no mármore da chaminé, um envelope contendo instruções e o número do túmulo no Cemitério du Montparnasse, e um cheque passado ao padre para as despesas da cerimónia.
Ethel tivera direito a vê-lo pela última vez antes de pregarem a tampa do caixão. "Anda, podes dar-lhe um beijo, ele gostava tanto de ti!" A mãe empurrava-a, mas ela retraía-se, resistia. Não queria. Por fim desviou-se, e saiu rapidamente do quarto, tapando o rosto. Deixou-se ficar no corredor, em frente da pequena mesa coberta com um pano preto drapeado no qual as visitas depunham um cartão. Tudo aquilo tinha um ar de peça de teatro medíocre. Mais tarde, ouvirá a mãe descrever a cena, afirmando que Ethel estava demasiado emocionada para uma derradeira despedida. Todavia, nunca tivera os olhos tão secos.
Não contara nada a Xénia. A morte de Samuel Soliman não era nada em comparação com a morte do conde Chavirov. Um dia, ouvira alguém relatar os últimos momentos da família Romanov, a maneira como tinham sido mortos numa cave pelos Vermelhos. Mas tinha a certeza de que Xénia não chorara, nunca chorava. Havia alguma coisa de triste nos seus olhos azuis, de duro e de triste. Xénia era uma verdadeira heroína.
Não decorreu muito tempo antes de Alexandre levar Ethel ao notário, a fim de elaborar um documento que o autorizasse a dispor da herança da filha menor.
O notário Bondy era um ser caricatural, dengoso e cheio de mesuras, possuidor de um extraordinário bigode de pontas retorcidas no qual o olhar apurado de Ethel distinguia restos de tinta preta. Alexandre Brun mostrava-se habitualmente nervoso, o que, nele, se traduzia por um fluxo de palavreado que o seu sotaque crioulo tornava vagamente ridículo. Não fornecera nenhuma explicação a Ethel, mas, na noite anterior, Ethel ouvira vozes no quarto dos pais, uma porta a bater e mesmo, no silêncio da noite, qualquer coisa que se assemelhava a um soluço. No dia seguinte, ao almoço, encontrando-se a sós, Ethel olhara com insistência para o rosto da mãe, como para lhe pedir explicações, mas Justine desviara o olhar, com uma ligeira ruga de ressentimento na comissura dos lábios, bonita como sempre. "Um rosto de estátua grega", dizia Alexandre, em guisa de cumprimento.
O notário convidara Alexandre Brun a sentar-se na poltrona à frente da sua secretária, e Ethel um pouco atrás, numa cadeira. Ele próprio ficara de pé, e empurrava em direcção ao interlocutor uma resma de papéis, como para se desembaraçar rapidamente da tarefa a cumprir. "Como é evidente, o seu pai informou-a?" Curiosamente, dirigia-se a Ethel olhando para Alexandre, e foi portanto este que respondeu. "Não chegámos propriamente a conversar, mas eu e a mãe pensámos que devíamos simplificar o processo, e tendo em conta a sua idade..." O Dr. Bondy prosseguira, como se fosse uma evidência. "com certeza, mas ainda assim..." Procurava as palavras. Alexandre impacientava-se: "Minha querida." Pegara na mão de Ethel, procurava fixá-la, mas a rigidez do pescoço - o colarinho postiço muito apertado pelo nó da gravata - impedia-o de se virar. Ethel olhava para o seu perfil, gostava muito da cana do nariz do pai, do bigode e da barba, e a farta cabeleira negra - não precisava de tinta preta para encobrir os cabelos brancos -, desenhara muitas vezes aquele perfil, como o de um mosqueteiro, ou de um corsário do tempo de Surcouf. "Não te falei do assunto, sabes a que ponto o teu tio-avô gostava de ti, como se fosses sua neta, sempre desejou legar-te uma boa parte do seu património, é uma sobrecarga demasiado pesada para uma criança da tua idade..."
Em seguida, o notário Bondy dera início à leitura do documento. A linguagem era um pouco difícil de compreender, sobretudo porque o notário comia as palavras, o que recordava a Ethel o professor de História e Geografia e o comentário da companheira de carteira, Gisèle Hamelin: "Pujol come tudo mole." Ethel apreendera o sentido do documento, que conferia ao pai plenos poderes para administrar, gerir e vender o seu património, incluindo ordenar construções e subscrever os empréstimos necessários à realização dos projectos. A fórmula não continha ambiguidades e, todavia, Ethel recordar-se-á mais tarde de ter acreditado, naquele instante, que o pai decidira prosseguir a construção da Casa Cor de Malva, o que a encheu de uma vaga de alegria.
O notário acabara de discursar, estendera os papéis a Alexandre para que os relesse, rubricasse e assinasse, depois tinham falado de outras coisas. Tratava-se de empréstimos, de letras do banco, porventura também da situação política internacional, mas Ethel não ouvia. Sentia-se ansiosa por sair do cartório, da atmosfera sufocante daquele gabinete atravancado de papelada por fugir da presença daquele homem e do seu bigode, dos seus olhos negros, do seu discurso, do seu cuspinhar. Marcara encontro com Xénia, em frente do liceu, tinha pressa de lhe contar o que se passara, de lhe falar da Casa Cor de Malva que em breve sairia da terra, com as suas grandes janelas abertas sobre o jardim, e o espelho de água para reflectir o céu de Outono. Xénia teria um quarto para ela, não precisaria de continuar a habitar o rés-do-chão infecto e sem luz da Rue de Vaugirard, daquele "armazém" onde a família inteira dormia no mesmo compartimento, em colchões.
Mal se encontrara na rua, beijara o pai. "Obrigada! Obrigada!" Ele olhara-a sem dizer nada, com um ar perplexo, como se pensasse em outra coisa. Ia a Montparnasse, consultar os bancos e almoçar como um rapaz solteiro, como ele costumava dizer Ethel correra sem parar até à Rue Marguerin. Ainda não completara quinze anos e acabava de perder tudo.
CONVERSAS DE SALÃO (CONTINUAÇÃO)
Num dia à tarde, talvez por ter bebido em segredo, ou por alguma coisa a atormentar, Justine decidiu exibir-se. Maude encontrava-se presente, sempre ruidosa, elegante, no centro das atenções, falando de operetas, de concertos, de projectos, como se ainda fosse uma actriz pronta para partir em digressão, e não aquela mulher velha, solitária e pobre, que vivia, segundo constava, numa mansarda de um prédio da cidade, na Rue Jacob, com meia dúzia de gatos. Laurent Feld sentara-se num pufe, um pouco afastado, ao lado de Ethel. Pairava no ar uma encenação teatral, pensou Ethel, uma soberba, uma irrealidade irónica.
Morriam pessoas em Nanquim, na Eritreia, em Espanha, os campos de refugiados perto de Perpignan transbordavam de mulheres e crianças que só esperavam por uma palavra do governo que os tirasse daquela cloaca e os restituísse à liberdade. E ali, na Rue du Cotentin, no salão banhado por um ameno sol primaveril, o sussurro das línguas tecia um ninho protector, um porto de abrigo, uma amnésia tranquila e sem consequências.
Justine anunciou: "La Coccinelle, poema de Victor Hugo." Era a tia Willelmine ao piano, muito digna, como se se preparasse para tocar um hino. Justine tinha uma voz clara, um pouco aflautada, uma elocução impecável, destacava bem as sílabas, acentuava todas as consoantes. Era a primeira vez que cantava aquela ária em público.
E-la diz-me qualquer coi-sa Atormenta-me -e eu ve-jo O seu pescoço al-vo e - ne-le Umpe-que-no insec-to ver-melho!
Ethel sentiu as faces ao rubro, leves picadas. Tinha os olhos fixos num ponto à sua frente, sem olhar para ninguém. O ruído das conversas do salão desaparecera. Era o que a jovem mais detestava, aquele ar convencional, adequado, um jeito de cautela preciosa, uma mentira requintada que escondia medos e rancores.
Dir-se-ia - uma con-cha
Vermelha e salpicada de preto As touti-negras para nos verem debruçavam-se da folhagem!
Era longo, lento. A tia Willelmine trinava ao piano no fim de cada quadra, com certeza para imitar o concerto dos pássaros nas árvores. As mulheres abanavam-se com os leques, estava um calor sufocante - a generala Lemercier, de ar deliciado, a boca enrugada em ô circunflexo. Ethel sentia as gotas de suor picarem-lhe as costelas, debaixo das axilas. Olhou em seguida para Justine, sem pestanejar, atenta à sua voz fina, a fim de prevenir a mínima derrapagem. De repente, revelou-se-lhe o ridículo da situação: era ela a mãe, acompanhando a filha como num concurso de fim de ano na escola. E o poema tortuoso, afectado, insensato, essa obra insípida e enfatuada, as palavras que soavam como um guizo estridente, brusco e convulsivo como ao pescoço de um pónei enfeitado num carrossel infantil.
A bo-ca fresca ofere-cida
Curvei-me - sobre a bel-da-de
E peguei - na coc-ci-ne-lle mas-o-bei-jo-fiigiu!!
Mais um trinado e Justine prosseguiu: "Mas-o-bei-jo-fu-giu!!", saudada por risos - com a generala a desdenhar aplaudir, batendo com o leque fechado na palma da mão esquerda.
Porque terá sido ali, no meio daquela cena ridícula, que Ethel começou a odiar Maude, com um ódio tão violento que lhe fez palpitar o coração? Deixara de ouvir, enquanto Justine, encorajada pelo murmúrio da assistência, retomava o estribilho da beldade, da coccinelle e do beijo que voara.
"... Os bichos são do bom Deus
mas o bicho é o homem!"
O último verso cantado, ritmado e palpitante pela tia Willelmine, acompanhado pelos aplausos do público. Ethel ia levantar-se, impelida por uma indisposição, quando Laurent Feld, que ouvira toda a canção sem se manifestar, lhe passou para a mão um bilhete garatujado à pressa. Ethel leu: "Que Deus nos livre desta loucura francesa!"
Parecia muito sério. Batia nos joelhos com a cabeça dos dedos, mas nos seus olhos azuis Ethel viu brilhar uma centelha de satisfação, e de repente recobrou os sentidos. Percorreu-a uma vaga de intensa ironia.
Talon: A situação é precária, ninguém parece incomodar-se mas o krach espreita-nos, não é a clique actual que o evitará.
Alexandre: Ora, o senhor é muito exagerado, tudo isso
ficou para trás.
Talon: Pois, é disso que nos querem convencer todos os
que jogam na Bolsa, mas fixe bem o que lhe digo...
Tia Wiílelmine: Não vão recomeçar a falar do krachl
Vozes das mulheres: Sim, sim, falemos de outra coisa!
O dinheiro não é tudo!
Chemin: Blum chega, vai-se o ouro!
- Já se fora há muito!
- Seja como for, a Frente está por pouco.
Talon: Felizmente, o Hitler está a limpar a Alemanha dos bolcheviques, mas aqui talvez já seja demasiado tarde. Justine: Bem podem falar do vosso Hitlar. (Vozes corrigem: é Hitler, não Hitlar.) Tanto faz! Não me inspira confiança! Chemin: Leram o artigo do académico Abel Bonnard no PetitJournaK Foi visitar o chanceler a Berlim, que se mostrou muito pesaroso por o apresentarem em França como um ditador.
Alexandre: Ora! E o que é ele, então? Chemin: Meu caro, um regime popular não pode existir sujeito a opressões! O próprio Hitler o disse, o povo está comigo por saber que me preocupo com as suas necessidades, que é a sua alma que me interessa. Wiílelmine: A sua alma! Ah sim, falemos da alma do boche!
Chemin: Mas, com certeza, o povo alemão tem uma grande e bela alma, não é a uma música como a senhora... Wiílelmine: Ah não, nada de confusões! Não podemos juntar Mozart, Schubert e Hitler! (Risos.) Talon: No entanto, leu como eu, na imprensa, o acolhimento que teve por ocasião da representação dos Mestres Cantores, em Nuremberga: o chanceler foi ovacionado, o que não aconteceria em Paris, não estou a inventar nada!
Chemin: Porque estamos em plena decadência, Debussy, Ravel, etc.
Ethel deu um salto: "Não é verdade, não sabem nada, Ravel é um génio, e Debussy..." Os olhos enchem-se-lhe de lágrimas, e Laurent aperta-lhe a mão para lhe assegurar o seu apoio.
Alexandre: Então, então, a música vale mais do que uma querela, cinjamo-nos à política, é mais... leve! (Risos.) Pauline: Entretanto, há quem faça negócios, souberam da venda de quadros que o vosso chanceler devolveu à Suíça por os achar degenerados? Vlaminck a duzentos francos suíços!
Generala Lemercier: Tanto mais que o vosso Hitler faz certas coisas hum... em suma, parecem os erros que comete a nossa mascarada de governo, não acham? Férias pagas, fábricas floridas, enfim, mimos para o povo! Chemin: Importa dizer que o país mudou, tenho um amigo que foi a Berlim nos últimos tempos, disse-me que, depois da chegada do chanceler, a Alemanha passou a estar limpa e agradável, há flores por todo o lado, mesmo nas quintas e nas pequenas aldeias...
Milou: Não queira convencer-nos de que é o paraíso! Talon: Ainda assim, abriu praias no Báltico a um milhão de trabalhadores, sempre é melhor do que o que fizeram os socialistas, não?
Pauline: O Báltico, que horror! (Sotaque mauriciano:) Deve ser pior do que a vossa Bretanha! (Risos.) Alexandre: Evidentemente, Rúgen não é Nice! A minha irmã torce sempre pela Riviera.
Milou: Estão à espera de que o Fiihrer envie operários para Nice?
Chemin: Entretanto, emprega termos que Blum nunca se atreveu a proferir diante dos seus leitores, fala-lhes de progresso, da honra do trabalho que lhes restituiu, imaginam um político a dizer isto no nosso país? A generala: Mas com certeza! Pede-lhes que trabalhem menos e ganhem mais! Compra os votos dos trabalhadores com férias pagas passadas à beira-mar! Chemin: Atreve-se mesmo a dizer coisas que os bolcheviques e os socialistas nunca disseram, que urge restituir a dignidade aos trabalhadores manuais, que para ele um operário especializado realiza um trabalho cerebral e um contabilista de um banco um trabalho mecânico. A generala: Enfim, importa ultrapassar o interesse pessoal, devemos ver mais longe, de olhos mais abertos! Para que havia eu de negar a verdade? Alinhar números não tem nada de superior ao trabalho do operário que aperfeiçoa a mecânica de um automóvel, ou de um artífice que fabrica um móvel de estilo.
Alexandre: Chemin socialista, só nos faltava mais esta! Chemin: Não diga isso! Bem sabe que detesto as mentiras dos socialistas, os crimes dos bolcheviques na Rússia! Mas importa inventar uma nova via, é o que diz Bonnard, leiam-no! Pauline: Uma nova via! Mas acreditam nisso? O vosso Hitler, peço desculpa, mas é um patife que diz o que as pessoas querem ouvir, e nunca cumprirá nada. Estão a imaginar um país em que os operários mandem nos patrões? Mesmo na Rússia, nunca se fez tal coisa! Vejam Estaline! Alexandre: Ttt, tt! Começamos de novo a falar de política! Talon: Entretanto, a Alemanha está melhor do que a Erança, recuperou!
A generala: Não admira, não contribuíram com nada para pagar os estragos da guerra, mais um presente dos socialistas!
- Estão a ver, são incorrigíveis!
Justine: Consta que, na Alemanha, criaram novas variedades de rosas, muito brancas.
- Não me faça rir, minha querida! (A generala.) Roubaram-nos as nossas, em 14, não conheceu a Maravilha de Lyon, que baptizaram Frau não sei o quê, Douski, Drouchi, copiaram tudo, a nossa Malmaison, a nossa Soleil d'Or, e deram-lhes nomes que ninguém consegue pronunciar, só espirrando!
Alexandre: Então, então! Não discutam por causa de
roseiras!
Pauline: Enfim, Alex, não seja ingénuo! Bem sabe que nada
é inocente, mesmo nos floristas! Tudo isto cheira mais a
intriga do que a rosas, não lhe parece?
Alexandre: Nesse caso, dispensemos as rosas, minhas
senhoras! É esta a palavra de ordem!
Sempre o mesmo barulho. Palavras, risos, o tinido das minúsculas colheres nas chávenas de moca. Sentada no fundo da sala de jantar, Ethel observava os convivas uns após outros, com curiosidade, quando dantes experimentava um sentimento de segurança ou, melhor dizendo, um certo torpor ao ouvir as suas vozes, o sotaque cantante da ilha Maurícia, que conseguia conferir encanto às afirmações mais violentas, tudo isto pontuado por exclamações, os "Aio!" das tias, envolto na bruma dos cigarros de tabaco louro Justine conseguira proibir o tabaco negro, que a fazia tossir. Presentemente, Ethel sentia-se dominada pela angústia e pela raiva, levantava-se da cadeira, isolava-se na cozinha onde a criada Ida lavava a louça, ajudava-a a limpar e arrumar os pratos. Num dia em que Justine lhe fez uma observação - "Sabes como o teu pai gosta de que estejas presente, procura-te com os olhos" -, Ethel respondeu, maldosa: "Pois sim, palavreados, tolices! Deviam ouvir-se os mesmos no salão do Titanic quando se afundou!"
À medida que o navio familiar naufragava, Ethel recordava todos os ruídos de vozes, conversas absurdas, vãs, esse ácido que acompanhava o fluxo de palavras como se, tarde após tarde, da banalidade das conversas se libertasse uma espécie de veneno que corroesse tudo em volta, os rostos, os corações, e mesmo o papel pintado do apartamento.
No mesmo caderno em que, na adolescência, apontava as tiradas, as palavras difíceis, as frases poéticas de Alexandre, o humor fantasista das tias mauricianas, escrevia agora, raivosamente, os ditos ridículos, as calúnias, os jogos de palavras maldosos, as imagens odiosas:
"Lutero, Rousseau, Kant, Fichte, os quatro kakangelistas."
"As famílias judias, protestantes, o Estado meteco ou
monod, o mundo maçónico."
"A lepra semita."
"O honesto francês explorado pelo banqueiro judeu
cosmopolita."
"A cabala, o reino de Satã" (Gougenot dês Mousseaux,
aprovado por Sua Santidade o Papa Pio IX).
"O judeu contraprodutivo" (Proudhon).
"O judeu não é como nós: tem o nariz adunco, as unhas
quadradas, os pés chatos, um braço mais curto do que o
outro" (Drumont).
"Cheira mal."
"Está naturalmente imunizado contra as doenças que nos
matam."
"O seu cérebro não é feito como o nosso."
"Para o judeu, a França é um país rendível. Só acredita no
dinheiro, o seu paraíso é na terra" (Maurras).
"Os Judeus são aliados da quiromancia e da feitiçaria."
"Os nossos grandes políticos chamam-se Jean Zay, aliás
Isaías Ezequiel, e Léon Blum, aliás Karfunkelstein."
"Os colaboradores de L'Humanitéchamam-se Blum, Rosenfeld, Hermann, Moch, Zyromski, Weil-Reynal, Cohen Adria, Goldschild, Modiano, Oppenheim, Hirschowitz, Schwartzentruber (à vossa!), Ilmre Gyomai, Hausser." "Os Ingleses são mais bárbaros do que os Alemães, vejam a Irlanda."
"Olier Mordrel bem o disse: não devemos permitir que a Bretanha enegreça."
"Hitler afirmou em Nuremberga: a França e a Alemanha têm mais razões para se admirar do que para se odiar." "Preveniu os culpados: os Judeus e os bolcheviques não serão esquecidos."
"Maurras escreveu em L'Allée dês philosophes: o génio semita extinguiu-se depois da Bíblia. Hoje, a República é um Estado sem ordem, no qual triunfam os quatro confederados, os Judeus, os maçons, os protestantes e os metecos." "Julius Streicher disse-o em Nuremberga: a única solução é a destruição física dos Israelitas."
Depois destas vagas de violência sobrevinha a acalmia, observava Ethel, como se, atingido o auge do acesso, restasse apenas um langor doloroso, uma cãibra humilhante, que a verve das tias dificilmente dissipava. Falava-se de moda, de automóveis, de desporto ou de cinema.
"O Peugeot 402 Légère vai destronar todos os outros, Renault, Delage, Talbot, De Dion, Panhard, Hotchkiss e mesmo o famoso Rolls-Royce!
- Vimo-lo exposto na Garagem Messine, na Avenue Wagram, é uma beleza!
- Mas o preço! Viram o preço?
- com todas as desvalorizações, primeiro na América e depois aqui, neste Verão!
- As férias pagas e os inseparáveis bonés!
- Enfim, é natural que essa pobre gente também tenha direito a ir ver o mar! (Justine.)
- Já ouviram falar da última invenção, a radiovisão?
- Béatrice Bretty em nossa casa para falar connosco! Sarah Bernhardt!
- Sim, mas horríveis, minhas queridas! Todas horríveis, como se fossem trolls.
- Por mim, prefiro ir ao cinema, viram A Grande Ilusão?
- Ah não, a guerra ainda não! Eu preferia ir ver os irmãos Marxem Os Grandes Aldrabõesl"
Era então que a generala não deixava de comentar: "Eu só irei ao cinema quando estiver aperfeiçoado."
Os homens, por seu lado, formavam um pequeno comité. Na ausência de Chemin, a atmosfera descontraía-se. Ethel preferia esta parte do salão. Ouvia o ronronar. Justamente, o ronronar dos motores de avião que Alexandre adorava. O seu grande projecto de construir uma aeronave munida de asas e hélices. Ainda acreditaria em tal coisa? Ethel perguntava-se se seria a única a saber que se aproximava a bancarrota. Olhava para aquele homem de estatura elevada, para a sua cor de velho mauriciano que o Inverno parisiense não conseguira empalidecer, a cabeleira negra e brilhante, a barba cuidadosamente aparada, as mãos de artista de dedos compridos e nervosos.
"O problema está na hélice, desde o princípio que o digo. A hélice integral é boa, foi com ela que batemos os primeiros recordes, Paulhan em Inglaterra, Morane, Chavez. Nessa época, o motor era o Gnôme, setenta cavalos e alesagem dupla. Mas a hélice Ratmanoff é a minha preferida. É antiga, concordo. Mas fornece o máximo de potência no mínimo espaço.
- Então defende a madeira?
- com certeza. Repara-se depressa, e sobretudo é mais leve.
- E Breguet?
- Esse trabalha para o exército, é muito diferente, para o combate, a hélice de aço é indispensável."
Fumava cigarros, de olhar azul-acinzentado perdido nas volutas. Ethel podia detestá-lo, por causa de todo o mal que lhe fizera, das mentiras e das traições cometidas em relação à mãe, das suas fanfarronadas. Mas não conseguia distanciar-se, olhá-lo com frieza, como um estranho.
Talvez, agora que o pai se encontrava à beira da ruína, prestes a soçobrar, Ethel se sentisse mais próxima dele do que nunca. Acudia-lhe ao espírito o julgamento severo deMonsieurSoliman sobre o marido da sobrinha: "Um fruto seco, nunca fez nada de bom. Só te fez a ti!" Como se tivesse sido por acaso, graças à milagrosa providência. Dizia a Ethel: "Tu, a minha felicidade, a minha boa estrela."
"Conhecem a obra de Drzewiecki sobre as hélices aéreas? É essa a minha bíblia!"
O tema do mais-pesado-que-o-ar era, para os homens, inesgotável:
"Em caso de guerra, podem crer que são os aviões que farão a diferença. Mas, em França, ninguém parece aperceber-se disso!
- E os dirigíveis! Não se esqueçam dos dirigíveis! (Alexandre.)
- Mas, os dirigíveis, já vimos o que lhes acontece! (Rouart.)
- Um acidente! Os aviões também caem todos os dias!
- Sim, mas são mais difíceis de alvejar!
- Ainda não tirámos lições da guerra. Lembrem-se de que, há vinte anos, houve quem predissesse os efeitos dos bombardeamentos aéreos, mas os nossos ministros da Guerra não se comoveram!
- Tinham apostado tudo na linha!
- Mas está muito bem, a linha, leram a reportagem de L'Illustration?. Embora os aviões passem por cima, a infantaria terá sempre de avançar por terra! Não são como os patos! (Agenerala.)
- É verdade, minha cara senhora. Mas sabe que os nossos aviões podiam transportar quatro mil projécteis de aletas capazes de enviar, à razão de cinco saídas por dia, em seis meses mais de um milhão e seiscentos mil projécteis, e à razão de um por cento de alvos atingidos, o que perfazia perto de vinte mil inimigos fora de combate! Multiplique por cem aviões, faça a conta! (Alexandre.)
- Dois milhões de mortos em seis meses, dá que pensar! Não foi suficientemente dito, a arma aérea é a arma absoluta. É tão terrível que torna a guerra impossível. (Rouart.)
- Pois sim, mas já foi utilizada em Espanha.
- Os famosos Potez que os socialistas entregaram ao exército dos Vermelhos!
- Em Guernica!
- A propósito, viram o quadro de Picasso na Exposição?
- Obrigada! Que horror! (Vozesfemininas.)
- Justamente, os bombardeamentos, que horror! Deve ter sido isso que ele quis dizer!" (Alguns risos.)
A tensão crescia por vagas. Ethel sentia a mesma náusea na garganta, ao ouvir este concerto de palavras, de exclamações. Era com certeza, dada a sua idade, a única que ouvia sem dizer nada.
Os outros já tinham vivido mais de metade da vida e as palavras resumiam-se a ruído, a vento. Não tinham verdadeiramente realidade. Talvez servissem mesmo para encobrir a vida.
"Enfim, o avião, o aeróstato, não são apenas máquinas de guerra! Leram o pequena artigo de H. G. Wells intitulado "Antecipações"? (Alexandre.)
- Mas já morreu há muito tempo, não?
- Antes da guerra, predisse que, em menos de cem anos, o avião substituirá o comboio e o barco em todas as viagens de longo curso.
- Fale por si! Por mim, nunca porei os pés num avião, essas cigarras voadoras! (Agenerala.)
- A verdade é que o avião ainda não é isso. (Justine.)
- A solução é o voo automático. (Alexandre.)
- Que horror! Está a referir-se a um avião sem piloto?
- Não, munido de um sistema que corrigirá automaticamente as instabilidades, os poços de ar.
- Em todo o caso, há um domínio em que os aviões não fazem progresso, é o das estradas do céu! Continuam a voar não se sabe por onde!
- Ah sim, isso recorda-me o caso Buc. (Alguns risos.)
- Não, é demasiado jovem para se lembrar disso. Aquele malandro, como se chamava ele? Bugue?
- Burgue. (Agenerala.)
- Sim, Burgue, é isso. Criou uma sociedade universal para exigir direitos a todos os aviões que passassem por cima dos terrenos perto do aeródromo. Ludibriou imensos camponeses crédulos.
- Tinha definido a propriedade dos camponeses como um prisma cuja base era o terreno e cujas faces se erguiam para o céu!
- No fundo, estaria equivocado? (Justine.) Estão a imaginar um dirigível permanentemente estacionado por cima das nossas casas? E se cair no nosso jardim, passa a ser nosso?
- Bem, digamos que a paga seria uma garrafa de espumante! (Risos.)
- Mas é Wells quem tem razão, talvez já cá não estejamos para confirmar, mas digo-vos que, um dia, os dirigíveis serão tão numerosos no céu de Paris quanto as viaturas, hoje.
- Um dirigível para cada pessoa? Está a falar de uma catástrofe!
- Sim, se a guerra não destruir tudo! (Justine.)
- Por mim, creio que é do céu que virá a paz. (Talon.)
- Que o céu o ouça, meu caro! (Alexandre.)
- Esta agora! Outra vez a guerra! Não podemos falar de outra coisa?" (Aprovação das mulheres.)
Era como se tivessem escondido tudo. Ethel experimentava aquela vertigem, aquela dor. Certa tarde, ao regressar da escola, teria mais ou menos dez anos. O salão encontrava-se anormalmente deserto e silencioso. Na penumbra, com os reposteiros de veludo corridos, distinguiu a grande poltrona em que o pai se sentava para ler o jornal e dormitar depois de comer. Uma forma escura, envergando um casacão cinzento. Um chapéu de feltro, um pouco inclinado para a frente como na cabeça de um homem adormecido. Ethel avançou a passos curtos, sem uma palavra. A grande poltrona servia de anteparo à luz pálida filtrada pelos reposteiros. A silhueta adormecida não se mexia. Ethel sustinha a respiração. Para caminhar mais depressa, pousou a pasta no chão, muito devagar, encostando-a a uma das pernas da poltrona, a fim de não escorregar.
Porque não se ouvia nenhum barulho em casa? O casacão cinzento, Ethel reconheceu-o, era o de Monsieur Soliman, que já não o usava há muito tempo, desde que deixara de passear pelo Jardim do Luxemburgo. Mas não era Monsieur Soliman que estava sentado na poltrona. Era uma figura prostrada, magra, a nadar num fato demasiado grande. Então, quem se atrevera? Ethel aproximou-se, debruçada para a frente. E, de repente, vira-o. Talvez o sol tivesse despontado das nuvens, iluminando o rosto. Um rosto, macilento, cinzento, marcado por rugas profundas, uma boca larga de lábios roxos, e um nariz monstruoso, comprido, grosso, de narinas dilatadas. Por baixo do chapéu de feltro, o rosto olhava-a, escarnecedor, de olhos vazios e pálpebras orladas de vermelho. Ethel lembrava-se de ter gritado, corrido pelo corredor, até ao quarto, sentia os pêlos eriçados nos braços e nas pernas, e um frio, uma vaga de frio a percorrer-lhe as costas. O coração saltava-lhe do peito. Chorara nos braços da mãe, sem conseguir retomar o fôlego. Depois, um pouco mais tarde, ouvira a voz grave do pai responder às censuras, procurar acalmar Justine, uma voz que não conhecia, triste, culpada. Ethel pensou que gostava mais do pai quando este se zangava e gritava com o seu sotaque, "Senhô'Jesus!" e prosseguia em crioulo com os seus "quê está a falar" e tudo o resto, e foi então que compreendeu o que se passava entre eles, o que entristecia a mãe e contrariava o pai, a guerra que travavam todos os dias por um sim ou por um não, por nada.
Quando regressara ao salão, depois de acalmar, a grande poltrona estava livre, o casacão cinzento, o chapéu de feltro e os sapatos engraxados de Monsieur Soliman tinham sido arrumados no armário, e sobretudo a máscara, a carantonha feia retalhada, de olhos reduzidos a dois buracos negros desaparecera para sempre.
Mais tarde, procurara atribuir um nome àquele desconhecido, àquele intruso. Quando falou do caso a Alexandre, ele fingira não se recordar. "Uma máscara de papelão, dizes tu? Não, não estou a ver..." Talvez sentisse vergonha, ou tivesse esquecido realmente o incidente.
Todavia, só podia ter sido ele. Num dia de semana, não no dia das reuniões de família. À hora em que Ethel regressava da escola. Uma brincadeira que o pai inventara sem o conhecimento de Justine, e depois escondera-se atrás da porta. Quando vira o resultado, a crise de choro, o pavor, refugiara-se no escritório, fingira não ouvir. Talvez na quinta-feira da terceira semana da Quaresma... Ainda no tempo em que Chemin lá ia todos os dias, ou quase, para tratar de negócios. Poderia ter sido ele? Não, nunca se atreveria.
Muito tempo depois, Ethel ouviu-o. Falava com Alexandre, no salão. Que dizia? Ethel não sabia muito bem. Proferira um nome e acrescentara: "Uma verdadeira cara de Shylock, lábios grossos, sobrancelhas farfalhudas, olhos pequenos e muito juntos, testa enrugada, cabelo crespo, e o nariz, aquele nariz! um bico de ave de rapina, um enorme bico de abutre!" Ethel estremecera. Estava a falar da máscara! Do homem de casacão cinzento, sentado na poltrona, na penumbra do salão. Corou de raiva, saiu do salão sem se desculpar, sem olhar para ninguém. Acontecera há anos e, no entanto, Ethel ainda tremia. A máscara de papelão, um esgar, cinzenta como uma cabeça cortada, um único pesadelo e de repente compreendia o que ele significava, o que manifestava. Uma espécie de lufada de ódio e de malefício que Chemin instalara naquela casa para a destruir, ela e a família.
Numa tarde em que Alexandre se ausentara para os seus negócios (começara a actividade do estaleiro da Rue de l'Armorique), Justine fora às compras, visitar as tias, Ethel revolvera a casa à procura da cara de Shylock. Vasculhando metodicamente todos os compartimentos, o quarto da mãe, o escritório do pai, o reduto onde Ida passava, às vezes, o fim-de-semana, a arrecadação, a lavandaria, os armários. Ethel só conseguiu apurar um revólver regulamentar que a mãe escondera no roupeiro por baixo de uma pilha de lençóis ásperos.
Mais de uma hora a remexer todos os cantos, a esvaziar os baús de verga, a explorar os velhos brinquedos da sua infância (seria possível que os adultos fossem tão insensíveis que dissimulassem um pesadelo no meio de objectos familiares?) - em vão.
Justine regressara um pouco mais cedo do que o previsto, e encontrara Ethel sentada no chão no meio da desordem. Às suas interrogações, Ethel respondera entre lágrimas, como dantes, abraçando-se à mãe. Quando finalmente conseguira explicar-se, a mãe reagira com um entusiasmo que provava nada ter esquecido. "A máscara, essa famosa máscara, sim, fui eu que a lancei imediatamente para o lixo, não era um brinquedo para crianças, era uma coisa horrível, maldosa, deitei-a fora nesse mesmo dia, minha querida filha, nunca pensei que te tivesse molestado tanto, perdoa-nos!"
Ethel chorou, sentiu-se liberta. Mas tratava-se com certeza de uma ilusão. A máscara ainda existia, fora fabricada em série, e aqueles que ela divertira não haviam mudado. A máscara continuava a ver com os olhos vazados, na escuridão, com o chapéu de feltro, indelével, invencível.
Depois, Ethel apercebeu-se de que, de facto, nada fora esquecido. Era demasiado sensível, nada mais. Era filha única, numa família em guerra, numa casa ameaçada. Não tinha sentido de humor, como teria dito Alexandre. Qualquer coisa a punha fora de si.
A QUEDA
Foi por Xénia que Ethel tomou conhecimento da notícia. Viam-se menos nos últimos tempos. Não havia nenhuma razão especial para o esmorecimento da amizade. Porventura uma certa saturação de ambas as partes, e Ethel imaginou que fora Xénia que se fartara. As dificuldades da vida também tinham alguma interferência. No início das aulas, Xénia não apareceu. Ethel escreveu-lhe para a Rue de Vaugirard, não obteve resposta. O Verão fora escaldante, Ethel descobrira na Bretanha os prazeres da aventura em grupo, com os raparigas e os rapazes em férias em Perros-Guirec. Os passeios de bicicleta, os banhos de mar até às nove horas da noite, os bailes populares, os namoricos nas dunas, um bonito rapaz moreno de olhos verdes chamado Stephen, os jogos de cartas nos cafés à beira-mar. Combinaram voltar a encontrar-se, trocaram endereços. De regresso a Paris, Ethel foi de novo dominada por um sentimento de opressão, no fundo dos olhos, uma impressão de não poder respirar livremente. Os gritos de Alexandre e Justine, por tudo e por nada, por uma bagatela teriam, outrora, feito palpitar o coração de Ethel, como quando corria a separar os pais, na infância, dizendo: "Papá, mamã, parem por favor!" Para se acalmar, tocava piano muito alto, os trechos mais ruidosos, o Cake-Walk de Debussy, mazurcas, ou ouvia um disco no velho fonógrafo roufenho. Laurent Feld levara-lhe de Londres discos desconhecidos em França, Rhapsody in Blue de Gershwin, Dimitri Tiomkin, e também Dizzy Gillespie, Count Basie, Eddie Condon, Bix Beiderbecke. Era sem dúvida a resposta de Laurent aos queixumes recorrentes dos convidados de Alexandre sobre os negros e os metecos que invadiam a França, que transformariam Notre-Dame em sinagoga ou em mesquita.
E um dia, um pouco antes do Natal, Ethel encontrou Xénia à saída do liceu. Ficou estupefacta com a mudança. Já era uma mulher, envergando um saia e casaco azul-escuro, pequeno chapéu na cabeça, sobrancelhas desenhadas a lápis e um tom rosado nas faces, o bonito cabelo louro apanhado na nuca, deixando para trás os adoráveis caracóis entrançados em fitas de seda. Caminharam pelas ruas, ao acaso como antigamente. Num dado momento, Xénia disse: "Nunca mais voltaremos ao jardim do teu tio-avô." Como Ethel a olhasse sem compreender: "Não sabes? A construção já começou." Ethel sentiu voltar a recordação, uma coisa muito longínqua, embora só tivessem decorrido dois anos. "Não, não sabia." Xénia encarou-a com dureza: "Os teus pais não te disseram? Estão a construir um prédio, as obras começaram pouco antes do Verão." Fora por isso que Ethel estremecera. As recordações traziam com elas a má notícia. Como se o tempo tivesse amadurecido a traição, sem ela saber, preparando o inelutável. Sentiu um ligeiro sobressalto, surpreendida, no fundo, por aquela traição não a impressionar. Pestanejou e, numa voz segura, respondeu a Xénia: "com certeza, estou ao corrente, o meu pai informou-me quando assinei a autorização, simplesmente, como compreendes, não tive muita vontade de ir ver." Xénia disse: "Ah sim, compreendo." Lançou-lhe um olhar frio. Considerou, sem dúvida, que se tratava de negócios de gente rica, interessada em enriquecer ainda mais, enquanto ela e os seus, na sua pobreza, continuavam sem saber como fazer render o dinheiro até ao fim da semana.
Separaram-se, após um passeio pelo Luxemburgo, como dantes, vendo as crianças brincar com os absurdos barcos à vela no lago conspurcado. Estava frio, as árvores tinham perdido as folhas. Xénia disse: "Bem, agora tenho de ir por aquele lado."
Ethel tinha pressa de partir, também ela. "E eu tenho de ir depressa para casa, por causa da lição de piano." Xénia lembrou-se de repente, tinham falado muito do assunto, na Primavera do ano anterior. "Ah sim, continuas a preparar-te para o concurso?" No jardim da Rue de l'Armorique, debaixo do caramanchão, tinham pensado apresentar-se em conjunto, Ethel ao piano, Xénia a cantar. Como numa audição. Tinham mesmo ensaiado uma romança de Desbordes-Valmore, com música de Massenet. Tudo isso parecia muito longínquo, depois do Verão, do rufar dos tambores nas conversas do salão da Rue du Cotentin, das discussões familiares. E agora, o edifício que ia nascer das ruínas do seu sonho, aquela traição. Trocaram um beijo rápido. Ethel apercebeu-se do novo perfume de Xénia, ou antes, corrigiu mentalmente, do odor do seu rosto, um pouco acre, do pó das faces, ou do champô de menta do cabelo. Um cheiro a pobre, um cheiro a austeridade, a necessidade de subir. Foi o que pensou ao caminhar, apressada, pela Rue de Vaugirard e, precisamente no momento em que esta evidência se lhe revelou, confirmada pelo contacto do espartilho que se ocultava debaixo da blusa de Xénia, sentiu os olhos marejados de lágrimas, de despeito ou de desdém, lágrimas amargas, em todo o caso.
A impaciência era tanta que não apanhou o autocarro para Montparnasse, caminhando a passos largos, ultrapassando a multidão, evitando os obstáculos, esgueirando-se pelo meio das viaturas engarrafadas, como quando caminhava na Bretanha pelos rochedos negros da maré baixa, calculando cada salto, cada pulo, de sentidos bem despertos. Sem ouvir os piropos dos moços de recados, nem as buzinas dos automobilistas irascíveis.
Não sabia onde ia. Parecia-lhe que abandonara há meses, há anos, a Casa Cor de Malva e o jardim da Rue de l'Armorique. Mentalmente, calculava o tempo passado: Outono, Inverno. Sentada comXénia no banco carunchoso, a conversar. As videiras avermelhadas na parede do fundo do jardim, e o grande toldo untado de alcatrão que protegia da chuva e das lesmas. Xénia, muito pálida, cabelo louro-cinza coberto por um lenço, como uma camponesa russa, e as palavras que deslizavam como a chuva, as emoções, os juramentos. A mão de Xénia na sua, pequena e fria. Um dia, Xénia dissera-lhe: "Tens um pulso de rapaz, sabes?" "É o piano, desenvolve muito os músculos dos pulsos", dissera Ethel. Sentia alguma vergonha das suas grandes mãos. No Inverno, estava sempre muito frio no jardim, ficavam com as mãos vermelhas, como as das lavadeiras. Um tempo ameno, apesar da chuva e do céu cinzento. As grandes árvores, outrora plantadas por Monsieur Soliman pareciam protegê-las de um vapor verde. As horas passavam. Na verdade, era como se o tempo deixasse de existir.
Ethel deteve-se à entrada da rua. Estava tudo calmo e silencioso, como de costume. Monsieur Soliman chamara a sua atenção para o silêncio: "Não consigo compreender como esta parcela de campo sobreviveu em pleno Paris." Ao anoitecer, ensinara-lhe a ouvir o rouxinol na paulównia.
"Quando viveres aqui", dissera ele, "acordar-te-ei de noite para o ouvires cantar. É para isso que haverá um pátio coberto com um tanque de água. Plantarei cerejeiras para ele, os pássaros adoram cerejeiras." O alto muro de pedras cobertas de musgo formava uma barreira contínua até ao fim da rua. Depois começavam os ateliers, os armazéns. A via-férrea distava menos de cem metros, numa vala enegrecida pelo fumo. De vez em quando, ouvia-se uma mudança de agulhas. Monsieur Soliman gostava muito do barulho dos comboios. Talvez tivesse a nostalgia das grandes viagens. Além disso, dizia que as proximidades das gares eram os antípodas da burguesia reinante, eram o ambiente privilegiado dos artistas e dos proscritos políticos. Contara que, antes da guerra, antes da revolução, jogara xadrez num café perto da gare, com um certo Ilitch, que depois ficou mais conhecido pelo nome de Lenine.
Foi ao aproximar-se que Ethel compreendeu. A fachada do café da frente continuava intacta. O dono limitara-se a enfeitar a montra com uma grinalda de azevinho que continha um erro ortográfico, "Festas Felises", para preparar a refeição festiva.
O muro de pedra fora demolido numa extensão de uma dezena de metros. O pequeno portão de madeira ainda lá estava, mas o lintel desmoronara-se com as marteladas, bloqueando a entrada. No lugar do muro, um tapume de tábuas servia de anteparo. No cimo do tapume, um aviso afixava a licença de construção, mas Ethel não teve vontade de decifrar. Olhou através das tábuas, um grande buraco negro ocupava a totalidade do jardim, até ao fundo. A chuva enchera o buraco de água suja e, de onde em onde, aflorava uma rocha branca, porosa, que parecia um osso. Ethel deixou-se ali estar muito tempo, com a testa apoiada contra a balaustrada. O grande buraco negro penetrava-a, escavava um vazio no interior do seu corpo. com um desespero infantil, Ethel procurou afastar um pouco mais as tábuas, a fim de escrutar o fundo do jardim, onde se encontrava a lona preta que cobria os pilares e os painéis da Casa Cor de Malva. Pensou, com uma certa frieza, que o terreno limpo, liberto das silvas, parecia pequeno, reduzido. Mesmo as árvores tinham desaparecido. A única que restava, a paulównia que Monsieur Soliman reservara ao rouxinol, parecia ter sido repelida contra o muro do fundo, rejeitada, com as grandes folhas comidas por ferrugem. Curiosamente, Ethel não experimentava nenhuma raiva. Simplesmente, perante o descalabro, compreendia de repente o que se passara dentro dela. Os conciliábulos, as discussões entre o pai e a mãe, as portas a bater, as vagas ameaças. A sessão no cartório do notário Bondy, a assinatura da autorização. Escapara-lhe alguma coisa? Ou não quisera compreender, não quisera ouvir? Recordava excertos de frases, o nome de um arquitecto, Paul Painvain, as queixas do vizinho Conard, mas pensara que era a vindicta contra o tio-avô que continuava, o perigo que apresentava para todo o bairro uma construção de madeira, "e ainda por cima feita de madeiras exóticas!" Andava tudo à roda na sua cabeça, num turbilhão que culminava num mal-estar. Encostou-se às tábuas. Perto da esquina, do outro lado, o café-sanduíche decorado para o Natal parecia convidá-la, trocista. Sem reflectir, numa passada de autómato, Ethel afastou-se do terreno, caminhou até ao estabelecimento, empurrou a porta. Nunca vira o interior do café, só de raspão, ao passar por ali com Xénia, madeiras escuras, e um odor a absinto ou anis. Esperava ver o rosto congestionado do dono do café e sentiu-se quase aliviada por ser recebida por uma mulher, nem mais feia nem mais ordinária do que qualquer outra, que se aproximou em silêncio da mesa. "Um grogue", pediu Ethel. A mulher pareceu hesitar. "Sim, sim, pode perfeitamente, estou habituada", disse Ethel. Não ingerira nenhuma bebida alcoólica depois da morte de Monsieur Soliman. Era um segredo dos dois, o dedal de rum diluído em água a escaldar com sumo de limão e açúcar, que Ethel, à frente do tio-avô, mexia com uma colher enquanto ouvia a música produzida. Em seguida, acendeu um cigarro, o maço dos Week-End da Virgínia que levava sempre na carteira quando ia encontrar-se com Xénia.
Depois daquele dia, durante semanas, meses, Ethel transportou aquele buraco no fundo de si mesma. Era uma dor, um vazio. Às vezes, perdia o equilíbrio. O chão subia até ela, na rua, ou no recreio, entre duas aulas, procurava uma parede contra a qual se apoiar, uma árvore, um pilar, fosse o que fosse. Certa manhã, à hora de se levantar para ir para a escola, o chão do quarto inclinou-se para a esquerda, como a ponte de um navio prestes a afundar-se. A mãe acorreu em seu auxílio, depois o pai. Telefonaram ao médico, o Dr. Guzman. "Não foi nada, mademoiselle. Uma vertigem. Uma pequena avaria mecânica do ouvido interno. Nada de grave na sua idade. Precisa simplesmente de repouso." Receitou gotas de láudano, e a criada Ida preparou tisanas de chá de gengibre para fazer subir a tensão arterial. Depois, entrou tudo na ordem, mas o buraco continuou presente. Durante várias noites, Ethel sonhou que se encontrava em frente da campa do tio-avô. Estava de pé à beira da cova e, no fundo lamacento, via surgir a forma do seu corpo, muito grande, o rosto muito pálido, mas a barba e o cabelo comprido e preto, como quando tinha quarenta anos.
Depois, aos poucos, restabeleceu-se o equilíbrio. O Inverno chegava ao fim, as obras de construção do edifício haviam realmente começado. com a mesma determinação que teria empenhado para impedir a realização do projecto, Ethel quis saber tudo, conhecer tudo. Foi sozinha ao gabinete do arquitecto Painvin, Boulevard du Montparnasse, para que lhe mostrassem os planos. Na grande folha de calco, examinou o desenho de um prédio de seis andares, de uma grande banalidade. "Veja, mademoiselle." O arquitecto mostrou-lhe os ornamentos dos varandins e de cada lado da porta de entrada. Parecia inchar, como um grande pombo abrindo as penas do pescoço. "O seu pai pensou que gostasse mais de uma fachada um pouco mais, hum, fantasista, qualquer coisa mais jovem." Numa reprodução à parte do plano, Painvain desenhara vários motivos decorativos de formas arredondadas e, por cima do lintel da porta, plantas semelhantes a acantos, enlaçando um rosto de mulher de perfil greco-romano - o perfil de Justine, evidentemente. Era grotesco. com uma malvadez fria, Ethel disse: "Então o senhor acha que isto é fantasista? Acha que tem um ar jovem?" O homem olhava, consternado. "Mas foi o seu pai..." Ethel interrompeu-o: "Não foi o meu pai que desenhou estes horrores. Nada de ornamentos. Queremos uma fachada completamente despida. Fique sabendo." Saiu bruscamente, a fim de disfarçar a raiva que a invadia. A ideia de tentarem introduzir alguma beleza àquela coisa que ia crescer no jardim da Rue de l'Armorique parecia-lhe insuportável, provocava-lhe náuseas.
Ethel foi quase todos os dias ao gabinete do arquitecto, ou às instalações do construtor Charpentiers-Réunis, ou de Pica & Hetter que tinham a seu cargo a construção da estrutura. Discutia orçamentos, corrigia erros, exageros. Rejeitou os mosaicos do átrio de entrada, o ferro forjado do vão do elevador, os vitrais da escada, a bola de cristal a rematar o corrimão, as janelas de arco de volta abatida, o estuque a imitar mármore, as tábuas do soalho dispostas à maneira da Hungria, as portas interiores trabalhadas, as chaminés de cariátides, as maçanetas de cobre, os arredondados, as janelas dos salões em bow-window, os tectos de caixotão, os escalfadores para conservar as travessas quentes, as escadas de serviço, os botões de marfim, as caixas de correio de madeiras exóticas, a passadeira vermelha da escada, e mesmo o nome que o arquitecto inventara para o conjunto, um nome afectado e pretensioso como ele, A Tebaida, ao que Ethel respondera com um sarcasmo: "Porque não Atlântida, já agora?" Por outro lado, conseguira que o cubículo da futura porteira fosse aumentado e provido de um calorífero. Em seguida, Ethel dedicou-se ao exame das contas. Reviu todos os orçamentos, recusou as paredes de tijolo compacto de 30 em substituição das pedra molares, recusou os tabiques de 8 em vez de 15, recusou o reboco da fachada granuloso em vez de liso, e sobretudo discutiu cara a cara com os Charpentiers-Réunis, Pica & Hetter a redução do preço da construção da estrutura: a terraplenagem e a instalação da fossa, e a distribuição da água por todos os andares. Ao cabo de muitas negociações, conseguiu reduzir o preço da construção, sem os acabamentos, a 857,14 francos o metro quadrado, o que perfazia, para os seis níveis i 542 850 francos. Quanto ao elevador e aos acabamentos, seria preciso acrescentar cerca de 70 000 francos. Uma vez combinado o preço, Ethel acompanhou o pai ao banco, tendo em vista a obtenção de um empréstimo a quinze anos, com uma entrega de 250 000, o que determinava anuidades de 99 000 francos nos cinco primeiros anos, 96 000 a partir do sexto ano, e 88 570 a partir do décimo primeiro.
Ethel empreendia tudo isto com uma excitação, uma espécie de impaciência, como se tivesse pressa de que o antigo jardim de Monsieur Soliman fosse eliminado por aquela construção horrível e dispendiosa que deveria, no entender do pai, assegurar-lhe uma renda até ao fim dos seus dias e mesmo para além da morte.
Mas Ethel bem via que as coisas não se passavam como ele previra, as dificuldades multiplicavam-se com o decorrer dos meses, o projecto parecia enguiçado. As fundações nunca mais estavam prontas. A todo o momento, chegavam relatórios sobre o subsolo instável, as galerias na pedra calcária, a subida das águas, para não falar das ameaças de Monsieur Conard, cuja casa se situava mesmo ao lado do terreno, e que se queixava de fissuras, de ondas de choque, de cheiros pestilentos, como se sofresse explosões de mina ou perfurações de bolsas de grisu. Por sua causa, o alvará fora suspenso várias vezes, acabara por ser anulado. A interferência do arquitecto Painvain resolvera provisoriamente as coisas, mas fora preciso distribuir gorjetas e luvas, e alterar os planos. Em vez de simples escoras, era preciso escavar a rocha calcária para enterrar pilares de betão e, semana a semana, a profundidade aumentava, seis metros, depois doze, depois dezoito. Atravessavam grutas subterrâneas, porventura antigos cemitérios. Ethel sonhava com aqueles espaços em profundidade, acudia-lhe à ideia a imagem do tio-avô, como se continuasse a habitar aquele mundo subterrâneo, se opusesse à construção do prédio, à espoliação da sobrinha-neta, à destruição do seu sonho fantasista. No início dos trabalhos, quando Ethel fora pela primeira vez ao estaleiro, pedira ao contramestre dos Charpentiers-Réunis: "Onde está o material que se encontrava ao fundo do terreno?" O homem tentara compreender, antes de responder: "Ah sim, está a referir-se ao amontoado de velhas tábuas podres? Foi tudo para o lixo, não havia nada que pudesse ser recuperado." Como Ethel protestasse, exigindo mais informações, o homem encolheu os ombros: "Pode crer que não havia nada de aproveitável, apodrecera tudo por baixo da lona, apodrecera e enferrujara, até as pedras se encontravam em mau estado." Ethel insurgira-se para não ficar calada. No fundo, tranquilizava-a a ideia de que não restaria nada da Casa Cor de Malva, absolutamente nada, nem mesmo uma bugiganga que ornamentasse a fachada de uma casa dos subúrbios.
Os almoços na Rue du Cotentin prosseguiam mas sentia-se que o ambiente já não era bem o mesmo. A despeito da discrição dos convivas, tinham surgido rumores quanto à catástrofe em curso. As fugas deviam ter vindo da família, das tias, dos sobrinhos, habituados a viver na ilusão da prosperidade da casa Brun, e que começavam a vislumbrar sinais preocupantes, estalidos, fissuras. Nas situações em que, outrora, a tia Pauline, a tia Milou, a tia Willelmine, ou mesmo o parasita Talon, quando precisavam de se livrar de apuros, de cem ou mil francos, se dirigiam a Justine, que intercedia junto do marido, agora viam-se obrigados a recorrer directamente a Alexandre, a insistir, a argumentar, para no fim ouvirem uma recusa: "Na verdade, é um mau momento, lamento mas a situação está complicada, veremos no próximo mês." Economizava-se em tudo. Nas refeições, no vinho, nas saídas, e mesmo nos cigarros. Os almoços resumiram-se então a caril simples e lentilhas, com muito pouca carne, muito poucas bebidas alcoólicas.
A conversa desenvolvia-se em torno dos mesmos assuntos, mas sentia-se perfeitamente que a liberdade já não era a mesma. Dantes, observara Ethel, as discussões mais amargas, as tiradas mais impulsivas terminavam em gargalhadas. A tia Pauline, a tia Milou eram verdadeiras mauricianas que sabiam discutir, ironizar, treinadas no exercício de trazer à baila os temas mais "contundentes". Agora, os seus comentários já não suscitavam a mesma hilaridade. Justine, essa, mostrava-se francamente sinistra. Ainda antes de Alexandre servir o café - era Alexandre que detinha o privilégio de o verter para as pequenas chícaras - Justine levantava-se da mesa e ia fechar-se no quarto, invocando uma dor de cabeça, uma vertigem, uma tontura.
Ethel ficava. Abandonara o lugar ao lado do pai para ir sentar-se ao fundo da sala, perto da janela - e eclipsar-se mais facilmente. Era o que dizia Alexandre, em ar de gracejo. Ao mesmo tempo, observava-a pelo canto do olho. Após um dito espirituoso, uma boa tirada, procurava a sua aprovação, aguardava um sorriso. Ou às vezes, e era o que mais a perturbava, o pai não dizia nada, parecia perdido num sonho, e o seu olhar vazio voltava-se para Ethel, um olhar azul-acinzentado indefinido, um pouco triste. Gostaria de dizer qualquer coisa que o tranquilizasse.
Ethel tinha dezoito anos. Não vivera nada, não conhecia nada, e todavia era ela que sabia tudo, que compreendia tudo, enquanto Alexandre e Justine pareciam duas crianças. Dois adolescentes egoístas e caprichosos. As paixões, as invejas, as pequenas acções mesquinhas e ridículas, as palavras proferidas entre portas, os subentendidos, as palavras azedas, rancorosas, as pequenas vinganças, as pequenas conspirações.
Um dia, à saída do liceu - era o último ano, depois abria-se o desconhecido, a liberdade -, as raparigas começaram a falar de casamentos. Uma delas, a tender para o bonito, chamada Florence, anunciara o seu próximo casamento, os preparativos, o vestido, as prendas, as alianças, sabe Deus que mais. Ethel não pudera evitar a ironia: "Parece mais uma venda em leilão, a tua história." Acrescentara um desafio: "Por mim, nunca me casarei. De que serve?" Ethel sabia que o comentário seria comentado, propalado, mas não se importava. "Não faltam por aí rapazes, não precisamos de nos casar para viver com alguém." "E os filhos?" Ethel ficou contente por marcar um ponto: "Ah sim? É por causa dos filhos que te casas? Para depois te sentires presa se ameaçarem tirar-tos? Quem faz os filhos? Não são os homens, tanto quanto sei!"
Falavam de casamentos e foi justamente nesse momento que se soube a novidade. Um pouco antes das férias, em Junho. Estava um tempo ameno, um céu claro de nuvens soltas. Ethel esperava uma carta de Inglaterra, Laurent Feld terminara os estudos, viria, passeariam por Vincennes, e depois partiriam para a Bretanha, ele queria alugar bicicletas em Quimper para dar uma grande volta, dormir em granjas, visitar pequenas igrejas.
O que chegou foi uma participação. Justine não a abrira, mas só por a ver, pela caligrafia infantil, e ainda antes de ler o conteúdo, Ethel foi comparar o envelope com os que Xénia lhe enviara. Escrevera pelo seu punho o endereço e a participação, Ethel reconheceu a maneira de fazer o traço dos te de escrever o A maiúsculo em estrela:
A Mademoiselle Ethel Brun Nesta
Esforçara-se simplesmente por fazer uma coisa bonita, um pequeno nada ridículo que melindrou Ethel, como se não bastasse anunciar-lhe o noivado com esse tal Monsieur Donner, Daniel de seu nome próprio, e os endereços cruzados, Rue de Vaugirard, no caso de Xénia, Villa Solferino, no caso dele. Um exagero.
Ethel encolheu os ombros. Nos dias seguintes, quis esquecer. Dedicou toda a sua atenção ao estaleiro da Rue de l'Armorique. Chegava a ir lá três vezes por dia, para ver as fundações finalmente terminadas, os troços de parede que começavam a elevar-se acima do chão. Nos últimos meses, as obras haviam retomado com uma espécie de ardor, apesar das greves, apesar das ameaças de revolução. Ethel experimentava uma espécie de felicidade por ver o muro da propriedade vizinha de Monsieur Conard tapado com lonas para lutar contra a poeira. Lembrava-se das cartas incriminatórias com aviso de recepção endereçadas a Monsieur Soliman. "Tenho vindo a verificar que entre as dez horas da manhã e as três horas da tarde as suas árvores ensombram as minhas árvores de fruto, previno-o de que, dentro de oito dias..." Agora, cada pancada no chão, cada ruído produzido pelos varões de metal que sustentam as construções de alvenaria, cada nuvem de pó de cimento se tornava um meio de vingança que feria a carne arrepiada e mole do inimigo do tio-avô, o mesmo que impedira a construção da Casa Cor de Malva.
Passado algum tempo, voltou tudo atrás. As vertigens, o vazio. Ethel ficava deitada na cama, sem se despir, sem ter jantado, de olhos abertos a olhar para o rectângulo da janela em que a luz do céu desenhava a quadrícula dos caixilhos. Não se sentia propriamente triste, e no entanto as lágrimas corriam-lhe pelas faces até molharem o travesseiro, como um recipiente que transborda. Adormecia a pensar que o vazio que a trespassava seria colmatado no dia seguinte, mas acabava por verificar, ao acordar, que os bordos da ferida continuavam por cicatrizar.
Era possível viver assim, o que a surpreendia imensamente. Podia ir, vir, fazer coisas, sair para as compras, receber lições de piano, encontrar-se com as amigas, tomar chá em casa das tias, coser à máquina o vestido azul para o baile do fim do ano na Escola Politécnica, falar, falar, comer um pouco menos, beber álcool às escondidas (uma garrafa, de scotch Knockando num estojo de madeira fechado por correias de couro, um presente secreto de Laurent), podia ler os jornais e interessar-se por política, ouvir o discurso do chanceler alemão pela rádio, no Biickeberg, por ocasião da Festa das Colheitas, numa voz que vibrava de sons agudos, arrebatada, patética, ridícula, perigosa, que dizia: "A liberdade fez da Alemanha um belo jardim!"
Mas nada disto colmatava o vazio, fechava os bordos da ferida, voltava a encher o ser com a substância de que se esvaziara, ano após ano, e que desaparecera no ar.
Justine bem tentara fazer alguma coisa. Entrara uma noite no quarto de Ethel, sentara-se à beira da cama. Há anos que tal não acontecia. Desde a infância de Ethel, por ocasião das discussões violentas com Alexandre, quando se interpelavam duramente, ferozmente, sem insultos, mas ele com raiva e ela com sarcasmo, e a troca de palavras não era menos cruel nem menos dolorosa do que se lutassem corpo a corpo, lançassem ao ar pratos e livros, como acontecia entre outros casais. Ethel ficava presa à poltrona, com o coração a pulsar intensamente, as mãos trémulas. Não podia dizer nada, limitara-se a gritar, uma ou duas vezes: "Basta!" E Justine entrara no seu quarto, sentara-se na cama, como naquela noite, sem dizer nada, talvez tivesse chorado às escuras. Agora, tudo aquilo acabara. Já não discutiam, mas o vazio crescera, escavara entre os dois um fosso que nada poderia colmatar. Xénia, por sua vez, traíra Ethel, afastara-se, noiva de um rapaz que não valia nada, que não a merecia.
Tinha de abandonar a infância, de se tornar adulta. De começar a viver. Tudo isso para quê? Para não ter de fingir. Para ser alguém, tornar-se alguém. Para endurecer, para esquecer. Acabou por se acalmar. De olhos enxutos, ouvia a respiração de Justine, ali mesmo ao seu lado, e o ritmo regular adormecia-a.
O declínio começou sem que ninguém se apercebesse verdadeiramente. Ethel, porém, estava atenta. Sabia que podia acontecer. O próprio Monsieur Soliman previra-o há muito. Falara do assunto repetidamente, em voz baixa. "Quando eu já cá não estiver, terás de prestar muita atenção." Ethel tinha onze, doze anos, poderia compreender? Dizia: "Estará sempre cá, avô. Porque diz isso?" Monsieur Soliman mostrava-se muito compenetrado, mesmo um pouco preocupado. "Gostaria muito que não tivesses de te inquietar quanto ao teu futuro, gostaria que nunca te faltasse nada." Tomara uma decisão, escreveria um testamento, legar-lhe-ia tudo, o terreno, o apartamento no Boulevard du Montparnasse, ficaria com a certeza de que Ethel teria aquela garantia, acontecesse o que acontecesse. Não odiava o seu quase genro, simplesmente, não confiava nele. Aquela maneira que Alexandre Brun tinha de se exibir, de acalentar sonhos vãos, de construir uma maqueta de aeróstato, de experimentar uma hélice, e sobretudo o talento de cair nas mãos de negociantes fraudulentos, de cavaleiros da indústria, de corruptos. "O teu pai falou-te do que faz, do projecto do canal da América, das minas de ouro do Gourara-Touat, de tudo isso?" Mas não podia descambar para a espionagem, e desculpava-se logo de seguida: "Esquece tudo isto, mesmo que ouças falar do caso, esquece. São tolices, não interfiras."
Agora, Ethel seria capaz de elaborar a lista de todas estas tolices. Não precisara de ouvir atrás da porta. Nas conversas de salão, o assunto era recorrente. Primeiro, como uma litania fantástica, com nomes de locais, títulos de sociedades, descrições. Desenvolvimento de Tonquim, Diamantistas de Pretória, Investimento Imobiliário em São Paulo, Madeiras Exóticas dos Camarões e do Orenoco, Construções Portuárias em Port Said, em Buenos Aires, na longa curva do Níger. Ethel gostaria de fazer perguntas, não por interesse, mas por curiosidade. Alexandre inflamava-se, pronunciava estes nomes como se fossem a chave dos seus sonhos, e não tivessem realidade. Acreditava estar no início da aventura, tinha fé na promessa do progresso, da ciência, da prosperidade económica. Achava os Franceses tacanhos, egoístas, inconsistentes. Arrependia-se de ter dado cabo da vida permanecendo em Paris depois de terminar os estudos. Não era a ilha Maurícia que o atraía. Ali, abafara. Como Monsieur Soliman, acreditava que "terra pequena, gente pequena". Queria um auditório mais vasto para as suas actividades. A América do Sul, a pampa. Ou o Oeste americano, as florestas geladas do Grande Norte canadiano. Os seus heróis eram John Reed, Jack London, Stanley. Mas que não lhe falassem de Charles de Foucauld. "Um agente de espionagem ao serviço do exército francês, um intriguista, um pedante." A generala Lemercier insurgia-se, mas as tias mauricianas deixavam-no falar.
Entretanto, Alexandre dera, emprestara, perdera dinheiro por todos os lados. Os negócios, os famosos investimentos, só tinham beneficiado os corruptos, e mesmo assim... Ethel seria capaz de recitar a longa litania dos falsos amigos, dos conselheiros fraudulentos. Tinham frequentado as reuniões da Rue du Cotentin. Ofereciam caixas de charutos, cognac, flores a Justine. Tinham convencido Alexandre a assinar papéis. Os processos empilhavam-se, cada um deles representava uma pequena fortuna. Beuret, Sellier, Pellet, Chalandon, Forestier, Cognard. Tinham-se sucedido, depois desaparecido. Quando Ethel perguntava por eles, Alexandre respondia de forma evasiva. "Esse? É verdade que não o vejo há muito tempo." Se Justine o pressionava ligeiramente, zangava-se: "Meu Deus, levem-me a tribunal, se quiserem! Se insistem em gerir os negócios, transmito-vos todos os processos!"
A respeito de Chemin, baixava as orelhas. O escândalo rebentara pouco tempo antes. As operações bolsistas de Chemin eram totalmente fraudulentas, imaginárias. Os processos sobre as minas do Gourara-Touat na Argélia, sobre os lençóis de petróleo de Sfax, na Tunísia, sobre a via-férrea transariana, era tudo falso. Constituíra-se uma associação que reunia as vítimas de Chemin a fim de o levar a tribunal e obter reparação. Justine insistira, clamara para que Alexandre se juntasse aos queixosos e ele, após numerosas cenas, hesitações, raivas inúteis, concordara em comparecer no tribunal.
Esta história entristecia-o. Ethel, num dia em que se referiu ao caso, por meias-palavras, bem entendido, uma vez que não era lícito estar ao corrente do que se passava, ficou surpreendida por descobrir que a tristeza de Alexandre não advinha de ter sido traído e roubado pelo amigo, mas pelo facto de este, doravante, passar a faltar às reuniões de domingo. "Enfim, papá, compenetra-te do mal que ele nos fez! Por sua culpa, arriscamo-nos a arruinar-nos!"
Alexandre persistira.
"Arruinar-nos, mais devagar! O pobre tipo vai perder muito mais do que nós!" E acrescentou, solenemente, após um silêncio: "Arrisca-se a perder a honra!" Ao que Ethel respondera: "A honra! Tu é que lhe conferes alguma honra, a esse salteador de estradas!" Alexandre fora refugiar-se na sala de fumo: "Não quero ouvir-te falar nesses termos."
O julgamento realizara-se, finalmente, no início do ano judiciário, após um período de instrução que se arrastara durante quase um ano. As testemunhas tinham desfilado, mas Alexandre recusara-se a falar. Por pressão da família, mantivera a assinatura no rol dos queixosos, limitando-se a pedir, dizia ele, uma condenação de princípio. Chemin apresentara-se pessoalmente na barra. Lera, numa voz embargada, uma longa declaração na qual pedia humildemente desculpa aos seus "queridos amigos", reiterando a sinceridade das suas intenções, reconhecendo-se unicamente culpado de ter sido imprudente e "confiante na humanidade". Comprometia-se a reparar os prejuízos causados, "nem que tenha", dizia ele, "de sacrificar a vida, a família, a minha felicidade pessoal". Pelo canto do olho, Ethel vigiava o pai. O exórdio surtira efeito, pois nesse momento Alexandre tirou os óculos para limpar pudicamente uma névoa. O veredicto soou no meio de um bruaá generalizado, e o juiz teve de reler a sentença para clarificar tudo: Monsieur Chemin, Jean-Philippe, residente em Paris, Rue d'Assas, era condenado a seis meses de prisão, com suspensão da pena, bem como a pagar uma indemnização considerável às vítimas, e a custear as despesas do processo. Encontrava-se arruinado, mas o seu rosto não deixava transparecer um desespero nem um arrependimento consideráveis. Alexandre esperava-o à saída. No meio dos presentes, pegou-lhe nas mãos: "Estou consigo do fundo do coração!" Ethel observava a cena como se estivesse a assistir a uma comédia. Logo a seguir, a multidão rodeou Chemin, e outras vítimas se comprimiram para o felicitar, confortar na sua amizade. "Depois de tudo o que ele te fez!", disse Ethel. Sentia a raiva crescer dentro dela, abafando tudo o que pudesse sentir de amizade e amor pelo pai. Afinal, talvez ele merecesse o que lhe acontecera.
A consequência lógica de tudo aquilo fora a bancarrota. A Tebaida, que há um ano aguardava pelo fim das obras, não encontrava comprador. Quanto ao aluguer dos apartamentos, como fora o projecto inicial, tornara-se impossível. A moratória sobre os aumentos das rendas chegara naquele preciso momento. Teria sido necessário alugar com a certeza de perder, correndo o risco de não poder vender um edifício ocupado. Alexandre deixara de blasfemar contra a Frente Popular, contra os grevistas, os manifestantes. Já só acusava o infortúnio. O dinheiro do dote da mulher, as propriedades herdadas na ilha Maurícia, tudo se desvanecera, tragado pela construção do edifício e pelas fraudes. Ethel descobria a extensão do desmoronamento: Monsieur Chemin não agira isoladamente. Dezenas de intermediários, comandados por ele, haviam desfilado pelo salão da Rue du Cotentin. Ethel recordava-se de os ter visto, cavalheiros vestidos de escuro, chapéus de feltro, pareciam gatos-pingados. Pastas de cabedal, arquivadores. Vendedores de vento. Papel do Japão, tabaco da Virgínia, estaleiros navais, poços de petróleo, minas, aeródromos, borracha da Malásia, café do Brasil.
Naquele ano, em vez de estudar para os exames do baccalauréat, opção clássica, Ethel esmiuçara os processos. Depois do julgamento de Chemin, Alexandre renunciara à táctica da denegação. Permitia que Ethel examinasse os seus arquivos, aconselhara-a mesmo a fazê-lo: "Compete-te a ti retomar tudo, já não me julgo em condições de julgar serenamente, sinto-me destroçado, é assim mesmo. Mas encontraremos uma porta de saída, verás. Todos juntos, como uma verdadeira família, formaremos uma frente." Etc.
Palavras apaziguadoras, pensava Ethel. Remontando o curso da história, via perfeitamente que não havia porta de saída. As compras de acções, os empréstimos, nada correspondia a nada. Os beneficiários encontravam-se do outro lado do mundo, em lugares imaginários. Os títulos eram impressos em bom papel - do Japão, com certeza - ornamentado de japonesices, de volutas, rubricados e assinados pelos dirigentes das sociedades, pareciam vindos de outros tempos, como as acções dos caminhos-de-ferro russos, ou do canal de comportas do Panamá, que enchiam as gavetas da cómoda de Justine. Às vezes, eram imprevisíveis e, olhando-os, Ethel sentia-se envolvida numa espécie de fantasia, de deslumbramento.
Um dossier volumoso, que não ficava a dever nada a Chemin, intitulava-se: Sociedade de Prospecção do Tesouro de Klondike, Novas Descobertas, ilha Maurícia. Era uma história antiga. Ethel ouvira falar de Klondike mais de uma vez, quando estava sentada ao colo do pai. Era Klondike para aqui, Klondike para ali. Ninguém se interessava por Klondike, mas só de ouvir Alexandre falar, com a sua voz grave, o seu sotaque, os trémulos da voz, até ao arrebatamento, Ethel sentia vontade de acreditar. Um dia, perguntara-lhe: "O que é Klondike?" Não conseguia pronunciar muito bem a palavra, emperrava na primeira sílaba: "K-lon-dike." O pai baixara a voz. Estava emocionado. Falara do segredo que envolvia aquele local. Na costa norte da ilha Maurícia, num lugar solitário, batido pelas vagas, debaixo de um vento constante, a ilha das Ervas, a ilha do Gato, a ilha do Âmbar. Um barco naufragado, um dos últimos corsários, no tempo da paz de Amiens. A captura do tesouro de Aurang Zeb, rei de Golconde, o resgate que tivera de pagar pela filha, ouro, muito ouro, uma montanha de ouro, pedras preciosas, rubis, topázios, esmeraldas. Era lá longe, no interior das terras, debaixo de um monte de pedras de lava, no fiando de um fosso. Como soubera? Ethel tivera de esperar pela resposta. Ou talvez não se tivesse atrevido a formular a pergunta. Havia a história do pêndulo, as mesas de Chevreul, a antena de Lecher. O maldito corsário falara do além-túmulo. A sessão organizada por Léonida, certa noite, em Mapou. Quem era Léonida? Ethel imaginara-a meio fada, meio feiticeira. Léonida B., dizia Alexandre. Como se o seu nome tivesse de permanecer secreto. Fazia rodopiar as mesas, ironizava Justine. Não, não era isso. Léonida escrevia por ordem dos espíritos. Ao examinar o dossier, Ethel encontrou uma folha de papel, um verdadeiro grimório. A pena prendera-se ao papel, deixara marcas. Uma caligrafia fina, retorcida, palavras agarradas umas às outras, palavras riscadas ou sublinhadas. Palavras incompreensíveis, em alemão, pensara Ethel, mas depois, não, talvez em neerlandês. O corsário holandês, o último que passara ao largo da ilha Maurícia. Oxmuldeeran, ananper, diesteehalmaarich, sarem, sarem. Era ridículo, vergonhosamente absurdo, a coisa mais terrivelmente estúpida que alguma vez lera, mas ao mesmo tempo, quando soletrava aquelas palavras, quando as decifrava com dificuldade, sentia um leve arrepio de horror ou de prazer, permanecia debruçada sobre o velho papel amarrotado, não podia deixar de pensar que estava ali a chave do seu infortúnio, a sua má estrela, o talismã da sua pouca sorte. Léonida, sentada em frente da mesa, dedos em garra pousados na folha de papel, olhos revulsos, entretida a escrever, o vento do mar devia abanar as persianas fechadas, o vento que assobiava nos ramos da monímia, o vento que estilhaçava o navio holandês contra as rochas negras da ilha Maurícia, os montículos de pedras que indicavam o sítio do tesouro maldito. E depois aquele nome, Klondike, as sílabas que a tinham deslumbrado, na infância, as palavras numa língua inventada que não queriam dizer nada, que falavam unicamente de fumo, de fuligem, de miséria. Klondike que não existia, nunca existira.
Tornara-se imperativo vender. Justine não estava habituada a queixar-se. Não dizia nada. Suspirava ligeiramente: "Hum, a vida é difícil." Limitava-se a comentar: "A vida é um saco muito pesado." Que contém o saco? Ethel sabia-o desde a infância, conhecia cada uma das pedras introduzidas no saco. Maude, a ligação nunca terminada, uma espécie de bem-aventurança que afastava Alexandre de Justine e que nada podia reparar. Mas enfim, tinham permanecido juntos. As mentiras não se apagariam, nem as marcas dos golpes desferidos, mas a jangada do casamento continuaria a... Ethel surpreendera-se por praguejar como Xénia. Merda! Merda e merda para a jangada, as tolices, os bons sentimentos. Os pais estavam velhos. Alexandre, muito diminuído desde que caíra no corredor, passava o dia na cama a ressonar, a ofegar, de rosto lívido, coberto de barba como o de um defunto.
As traições. Os pouco-mais-ou-menos. O dinheiro lançado pela janela fora às mancheias. O dinheiro do dote, o dinheiro da venda das doçarias, Alma, Launay, Riche en Eau. Nomes que Ethel ouvira desde a infância. Nos famosos arquivadores, encontrara este desenho: que a divertira, a despeito da amargura. Alma, a lendária, alimentando os herdeiros ávidos e sem escrúpulos, enquanto o prato da balança mergulhava no défice sob o peso das suas enormes flatulências, era a caricatura que Alexandre desenhara com uma pena vingativa - tudo o que restava da fortuna da família na ilha Maurícia!
Que sobrevivera àquela época? Todos arruinados, muitos deles tinham morrido na miséria. As tias velhas não possuíam nada. Sobretudo Milou, que nunca se casara, que vivera a vida inteira da caridade do irmão e das irmãs. As outras não valiam muito mais. Também elas tinham perdido, ao jogo, no casamento, alegremente, deliciosamente ludibriadas!
Foi um pouco antes do Verão. Ethel recordar-se-á, pairava um langor anormal, a cidade parecia adormecida. Alexandre, praticamente recuperado do acidente, recomeçara a sair. Chapéu na cabeça, impecável no fato cinzento de colete do tempo do esplendor, barba aparada com uma tesoura e cabelo preto bem penteado, ia tratar de negócios.
"Mas que espera ele? Descobrir um novo filão?", comentara Ethel. "Não fales dessa maneira", respondera Justine. "O teu pai ficou muito afectado por ter de vender tudo." Ethel não aceitara a resignação de Justine. "Bem pode estar afectado! Que vai ele fazer? De que viveremos?" Era involuntário. As interrogações acudiam-lhe à ponta da língua, sentia-as agitarem-se no fundo do peito, como se comprimissem o diafragma. A indolência de Paris antes de Julho pesava-lhe, provocava-lhe náuseas. O sol pálido como um comprimido de aspirina, o rio sujo. O céu atarraxava-lhe as têmporas como uma tampa. Ethel escrevera no diário um verso jocoso: "Lançar o comprimido ao rio para salvar Paris deste ar doentio."
Xénia, onde estaria ela? Há meses que não recebia notícias. O casamento com Daniel não se realizara. Ethel tinha a certeza. A família do noivo hesitava. O filho era um prémio precioso que tinha de ser merecido. E ele, qual era a sua vontade? Sabia a que ponto Xénia era única, magnífica, e que nunca mereceria sequer apertar-lhe os sapatos, cativar o seu olhar azul-cinza.
Sentia a cabeça a andar à roda. Pegou na mão de Justine. "Anda! Temos de ir! Não podemos continuar de braços caídos! É preciso lutar!"
Ethel sentia-se o valente pobre soldado que parte para a guerra, sem experiência, com todo o ardor e confiança da juventude. Justine fazia-se rogada. Acabou por ceder, pôs o chapéu com o véu a tapar-lhe o rosto (o que levara ao funeral de Monsieur Soliman) e deu o braço à filha, mas era Ethel que a arrastava. Entraram no cartório do notário Bondy. Quando voltou a ver o cenário em que perdera a herança, Ethel sentiu uma raiva fria. Afinal, o notário não era tão responsável quanto Alexandre?
"Madame, Mademoiselle?" Igual a si mesmo, ar entediado, tez de papelão. Como podia Alexandre confiar naquele homem? Ethel não deu oportunidade à mãe de proferir uma única palavra. "Conhece a nossa situação, não é verdade? Sabe que o meu pai perdeu tudo. Resta o apartamento que habitamos, o pequeno terreno, e o atelier alugado a Mlle Decoux. Que nos propõe?"
Bondy fingia consultar os dossiers. Alisava o bigode pintado de ruivo, ao qual se misturavam os pêlos grisalhos saídos das narinas.
- Diz que o seu pai perdeu tudo. Não foi o que ele me disse a mim. Ele está, nós estamos em negociações com um comprador importante, e posso garantir-lhe...
- Não, não, não é isso que lhe peço. - Ethel sentia o coração pulsar intensamente, mas esforçava-se por falar calmamente.
- Não é de promessas que ele precisa. É da certeza de que, uma vez tudo regularizado, tudo pago, poderá continuar a habitar o apartamento da Rue du Cotentin.
O notário Bondy foi apanhado de surpresa. Provavelmente, nunca nos anos que contava de carreira tivera pela frente uma jovem de dezanove anos preparada para lhe pedir contas. Devia sentir-se protegido pela lei, não cometera nenhuma falcatrua. O acto que fazia de Alexandre o detentor dos direitos sobre a herança de Monsieur Soliman era perfeitamente legal. Mas a realidade estava ali à sua frente: lia-a com toda a clareza no rosto destroçado de Justine, no olhar duro e brilhante de Ethel. A ruína, a angústia do futuro, a doença de Alexandre, a incapacidade em que se encontravam as duas mulheres de resolver o problema. Fechou os dossiers. Talvez se sentisse enternecido, ou experimentasse alguma vergonha.
- Mademoiselle Brun, verei o que posso fazer. Espero que não seja demasiado tarde para negociar com o banco. Mas não deposite muitas esperanças em mim, posso aconselhar o seu pai, mas não posso desfazer o que ele fez.
- Mesmo se o seu estado de saúde o impedir de tomar decisões acertadas?
O notário Bondy compreendeu antes de Justine.
- Sim, sim, estamos sempre a tempo de exigir a curadoria dos bens do seu pai, atendendo ao que lhe aconteceu. Precisamos de um certificado do médico que...
- Nunca! - Justine abafou um grito. - Está fora de causa, nunca aceitarei sujeitá-lo a tamanha indignidade.
Saíram as duas. Desta vez, Ethel não deu o braço à mãe. Caminhava depressa, batendo com os tacões no passeio. O Boulevard du Montparnasse estava pejado de gente, barulhento. As esplanadas dos cafés já se encontravam repletas, de homens, de mulheres que bebiam cerveja, as viaturas e as camionetas provocavam engarrafamentos no cruzamento com a Avenue du Maine. Ethel continuava a caminhar sem abrandar, ouvia atrás dela o ruído de certo modo lamentável do pequeno trote da mãe, arquejante, com o véu a colar-se-lhe ao nariz a cada inspiração. Tanta gente, pensava ela. Tanta gente indiferente, cada ser no seu casulo, na sua concha. Pessoas que deambulavam, outras que fingiam estar ocupadas. Pessoas sérias, mulheres levianas, artistas. A comédia do boulevard. Ninguém se preocupava realmente com ninguém. Uma cidade onde as pessoas podiam desorientar-se, onde, perdendo alguém de vista, despistando-a ou deixando-a para trás, se tornava possível nunca mais a encontrar!
De repente, pensou em Xénia. A sua imagem surgiu diante dela, como se o facto de a ter repelido meses antes a tornasse ainda mais necessária. Xénia, algures em Paris, vivendo a sua vida, à sua maneira. A família Chavirov mudara de casa sem deixar nenhum endereço. Ethel lembrara-se do atelier da Rue Geoffroy-Marie, mas não tivera coragem de lá voltar. Poderia ter recorrido a uma qualquer astúcia, refugiar-se num café, espreitar a passagem de Xénia ou da irmã Marina, mas horrorizava-a a simples ideia do olhar matreiro do dono do café ou dos homens que procuravam jovens naquele bairro mal-afamado. Xénia era sua amiga. A sua única amiga. A mais próxima, a que influenciara a sua vida. E, caminhando pelo passeio atravancado de gente, batendo com força os tacões contra o pavimento cimentado, num vaivém, fora Xénia que Ethel imitara. A Xénia que decidia. Que lutava para viver. A Xénia que podia rir-se de tudo, troçar de todos. A Xénia que viera de longe, que decidira triunfar na vida.
Era um fluxo de felicidade, uma embriaguez. Ethel abrandou o passo, chegou mesmo a deter-se à beira do passeio, como se procurasse o caminho. Justine alcançou-a, um pouco ofegante, pendurou-se no braço da filha. "Caminhas demasiado depressa para mim." Era leve, não pesava mais do que um passarinho.
Ethel compreendeu. Olhou para a mãe. Dirigia-se a Xénia, do outro lado da cidade. Não escolhemos a nossa história. Esta apresenta-se-nos sem que a procuremos, e não podemos, não devemos rejeitá-la.
Como é evidente, fora tudo inútil. Como se o nó do destino tivesse sido atado, o fio invisível que prendia Justine e Alexandre puxava-os para a desgraça, para o fundo. O notário Bondy telefonara, no dia seguinte. Conseguira suspender a venda em leilão, um comprador pretendia retomar a dívida, se o terreno e o prédio inacabado fossem hipotecados. Alexandre conservava o apartamento da Rue du Cotentin, o atelier da artista, era como se acordassem de um sonho mau. Justine aguardava o regresso do marido, envergara um lindo vestido, penteara-se, empoara-se, perfumara-se. Fizera chá, bolinhos de milho, Ethel ajudara-a a pôr a mesa. Era um exagero, pensara Ethel, uma espécie de regresso de Ulisses a ítaca. Alguma ostentação, apesar de tudo. Ao cair da noite, Alexandre regressou aniquilado. O calor, lá fora, extenuara-o, deixou-se cair na poltrona. Nem sequer olhou para a chaleira. "Acabou-se", disse ele. "Não há mais nada a dizer. Já não temos dívidas. Vamos começar uma nova vida." Ethel olhava para a mãe. Justine ainda não compreendera. Fazia perguntas, com a voz num crescendo. Parecia uma comédia, agora. Uma ópera, ou antes uma opereta. Ethel imaginava a música, um trecho ligeiro, um pouco antiquado, um ritornelo. "Porquê? Porquê?" E a voz grave de Alexandre, o seu sotaque mauriciano arrastado, os "que poderia fazer?". Como dizia nas conversas de salão: "Kê pode fazê?" com o calor, a tez parecia cor de bistre. Depois do acidente, já não pintava a barba, viam-se os fios brancos dos dois lados, na parte inferior das faces.
Uma nova vida! Alexandre vendera tudo, incluindo o apartamento e o atelier, à companhia parisiense de viaturas l'Urbaine, com sede no número 29 da Rue Dutot, se pudesse ter-se-ia desfeito dos móveis, do piano, e mesmo do horrível José Vendido pelos Irmãos do hipotético Flandrin. Era assim que tinha passado o dia, a assinar, a gloriosa rubrica em que o nome Alexandre surgia rodeado de volutas, em toda a papelada, que dizia sempre a mesma coisa: não tinha nada, não lhe restava nada, além dos olhos de Justine para chorar.
Ethel não pôde deixar de ironizar: a Sociedade de Prospecção do Tesouro de Klondike comprada por uma companhia de táxis, esta história deve ter uma moral! Alexandre não ouviu os seus gritos, os seus protestos. Recobrara rapidamente a soberba. Bigode em riste, olhos brilhantes, conservava a cabeça erguida.
Depois, foi fechar-se no seu cubículo para fumar. Depois do ataque, fora proibido de fumar mas agora já nada disso tinha sentido. Precisava de fumar. O fumo servia-lhe de ecrã para encobrir a realidade. Pouco importava o tempo de vida que lhe restava. Em breve teria de partir, ou de morrer, não havia grande diferença.
Ethel sabia que ele voltava atrás, longe, à ilha da sua infância, ao domínio maravilhoso de Alma, onde tudo parecia eterno. Nem ela nem Justine tinham acesso ao mesmo sonho. Talvez fosse esse o segredo do tesouro de Klondike, um lugar onde mais ninguém podia entrar.
O POULDU
Ethel tinha a impressão de pairar no céu. Era das nuvens que ela gostava. Deitada na areia das dunas, via-as desfilar a alta velocidade, leves, livres. Sonhava com o espaço que tinham percorrido, a extensão dos oceanos, o campo das vagas, antes de chegar até ela. Deslizavam, não muito alto, pequenos flocos brancos que por vezes se entrechocavam, se uniam, se dividiam. Algumas pareciam loucas, corriam mais depressa do que as outras, transformavam-se em novelos de algodão, em sementes de dentes-de-leão, em plumas de canas. A terra agitava-se debaixo delas num movimento lento que provocava vertigens. As vagas iam morrer na praia produzindo o barulho de um motor em marcha, empurrando a planura do mar, derrubando o mundo irresistivelmente. Depois chegou uma grande nuvem cinzenta e branca que se interpôs entre ela e o sol, e Ethel via uma baleia, cabeça enorme e cauda muito pequena lá ao fundo do corpo. A areia da duna rodeava Ethel, limitava-a, comprimia-a suavemente. As rajadas de vento fustigavam-lhe o rosto, as pernas, os braços aplicando-lhe milhões de pequenas picadas. Tinha a impressão de nunca ter saído daquele lugar, daquele sítio no cimo da duna, na areia branca e seca que o mar nunca alcança, onde começam a crescer as plantas espinhosas, os cardos, onde são enterradas as sementes vermelhas de tamariz.
O Verão dos seus doze anos. A primeira vez que se apaixonara por um rapaz cujo nome esquecera, ele tinha quinze ou dezasseis anos, Ethel tremera quando ele se aproximara e a beijara, forçando-lhe os lábios com a ponta da língua. As nuvens passavam como hoje, ela sentia o calor, a queimadura abrir-se e fechar-se no céu, no interior do seu corpo. Qualquer coisa de desconhecido, de angustiante.
Ethel fazia projectos com os companheiros do grupo, andar de bicicleta pelos caminhos das quintas, de lugarejo em lugarejo, de cidade em cidade, dormir nas praias ou, se chovesse, nas granjas. Eram rapazes e raparigas das villas dos arredores, Pouldu, Beg-Meil, e ela hospedara-se na pensão de Mme Liou com os pais. Nesse Verão, falara pela primeira vez com Laurent Feld, ele alugara uma villa à beira-mar, com a tia e a irmã. De início, Ethel achara-o tímido, quase desajeitado. Corava por tudo e por nada. Foi no ano em que Ethel viveu a sua grande amizade com Xénia, ele tinha dinheiro, era sério, sem risos nem lágrimas.
Depois, aos poucos, ao sabor dos encontros, nascera o amor. Não era um grande amor, com explosões e fúrias, nada de dramático como o noivado de Xénia com Daniel Donner - essa espécie de contrato inexplicado pelo qual a filha de uma russa nobre, emigrada, reduzida à miséria, se entregava a um jovem gordo, taciturno e desconfiado, que lhe garantiria a segurança e a respeitabilidade de uma família de industriais e o conforto da burguesia de Rouen. Não, nada a ver com isso. Laurent Feld estava muito apaixonado por Ethel, desde o Verão passado escrevia-lhe uma, por vezes duas cartas por semana, enviadas num envelope de papel reforçado, sempre com a mesma caligrafia a indicar o nome e o endereço:
Mademoisele Ethel Brun
30, rue du Cotentin, 30
Paris XV
E o selo com a efígie de Jorge VI, invariavelmente carimbado da mesma maneira: CharingXStation.
Ethel abria o envelope, respirava o odor do papel um pouco ácido, um odor a suor. O seu olhar percorria a caligrafia regular, as frases demasiado curtas em que Laurent falava de política, de literatura, de jazz, mas nunca dos seus sentimentos. Às vezes, não as lia. Limitava-se, depois de cheirar o papel, a dobrá-lo e guardá-lo no envelope para fingir que não o abrira. Regozijava-se por amar menos do que era amada. Era o axioma de Xénia que lhe acudia ao espírito, quando dizia: "Por mim, quero encontrar um homem que me ame mais do que eu o amarei."
Agora, Laurent estava ali. Desembarcara do navio de Newhaven, com o seu novo uniforme do exército britânico. O bivaque, o capote, as calças de caqui e os sapatos pretos impecavelmente engraxados. Ethel contivera um ligeiro sorriso trocista, porque Laurent ostentava o ar que sempre tivera, não de um soldado, mas de um attorney que se dirigia ao seu escritório, na City, ainda mais hirto, de faces rosadas pelo ar do mar, nariz vermelho em virtude de um golpe de sol, cabelo cortado muito curto, uma pequena mala de cabedal preto na mão, guarda-chuva debaixo do braço.
Reservara um quarto na mesma pensão e, nas bicicletas alugadas na garagem Conan, tinham passeado pelos caminhos baixos até à praia, através das colinas, tinham comido nas quintas pão caseiro com toucinho, crepes nos cafés, tinham tomado banho na maré alta e tinham-se lavado com a água gelada do Laita. Cheiravam a sargaço, a lodo, transportavam areia cinzenta nas sandálias e mesmo na roupa interior, cabelo colado pelo sal. Laurent tinha o nariz pelado, e os ombros, as pernas, o peito dos pés, quando se estendiam na praia Ethel divertia-se a puxar pedaços de pele seca que lançava ao vento. À noite, regressavam à pensão extenuados, desgrenhados, Laurent sentava-se por delicadeza à mesa dos Brun para ouvir os discursos de Alexandre, enquanto Ethel ia direita à sua exígua mansarda e se deitava na cama sem sequer se despir, adormecia num ápice sem ouvir o vento que assobiava no telhado de xisto.
Crescia dentro dela uma espécie de fúria. como um arrepio de febre, exaltante e ao mesmo tempo repulsivo, irreprimível, incompreensível. Como é evidente, não podia falar do caso a ninguém. Talvez a Xénia, se esta ali estivesse. Mas Xénia teria escarnecido dela: tens uma vida demasiado fácil, muito dinheiro, muito de tudo. É por isso que não sabes o que queres. O mundo é para pegar ou largar, só depende de ti. Etc.
Ou então não teria dito nada. Xénia era de um egoísmo feroz, o que lhe era alheio não existia, muito simplesmente.
O mundo estaria realmente doente? Este arrepio, esta náusea, vinha de muito longe, há muito tempo. Agora, no Verão das dunas, no Pouldu, à espera da hora do encontro com o namorado, Ethel era capaz de contar todas as raízes, radículas, vénulas, todos os vasos capilares desta doença, como um tecido que tinha coberto toda a sua vida. Não tinha nada de imaginário. Eram pequenas traições, o silêncio quotidiano que se instalara nos corações, no vazio. As palavras por vezes demasiado fortes, a violência dos sentimentos, quando a voz de Justine crescia na noite, se quebrava num soluço que mais parecia uma estridência, e a voz de Alexandre que lhe respondia, um borborigmo grave que inchava, retumbava. Depois o barulho da porta que batia, o barulho dos passos que se afastavam no corredor, mais uma porta que batia, o barulho dos passos na rua, que desapareciam na noite. Ethel aguardava, ansiava pelo seu regresso, adormecia antes de ouvir os passos discretos no corredor, a respiração que o sono, os cigarros tornavam mais pesada.
Todas as conversas do salão, insignificantes, fanfarronas, todas aquelas vozes, o arrulhar das mauricianas, um odor a açúcar baunilhado, a canela, sobrepondo-se aos restos de caril com açafrão e aos chatinis ácidos. O vazio, arrogante, injusto, a maneira que as pessoas da sua família tinham de negar o real, de invocar os nomes de uma parentela para sempre desaparecida, que provavelmente nem chegara a existir. Esses nomes extravagantes, inventados, edulcorados, da pequena nobreza da ilha Maurícia, aos quais estava mais ou menos ligada pela história da família Brun (esta, pelo menos, não julgara necessário acrescentar-lhe nenhum "de"). Nomes de opereta, nomes de éguas e garanhões cruzados nas coudelarias.
Os Archambault, Besnières, de Gersilly, de Grammont, de Grandpré, d'Espars, os Robin de Thouars, os de Surville, de Stère, de Saint-Dalfour, de Saint-Nolff, os Pichon de Vanves, os Cléry du Jars, Pontalevent, os Seltz de Sterling, Craon de la Mothe, d'Edwards de Jonville, Créach du Reze, de Sinch, d'Armor.
Já no ano anterior, a 23 ou 24, as notícias do êxodo da fronteira norte, todas aquelas pessoas lançadas para as estradas, em carroças puxadas por cavalos ou empurrando carros de mão. A tempestade que os assolara, derrubando árvores nos caminhos. O frio do Inverno precoce, a queda das finanças, os bancos que exigiam o pagamento imediato das dívidas, depois encerravam as portas, e os donos corriam a refugiar-se na Suíça, na Inglaterra, na Argentina.
A voz que se fazia ouvir através do aparelho de TSF, a voz rouca, forte, que subia, crescia. As frases lançadas para o espaço, e o rumor circundante que prosseguia em coro, um rangido de mar contra as pedras arredondadas da praia, um estrondo nas extremidades dos rochedos emergentes. Os clamores de uma multidão, lá longe, algures em Munique, Viena, Berlim. Ou no anfiteatro do VéWHiv1, os fiéis de La Rocque, de Maurras, de Daudet, os que aclamavam a Liga, que conspurcavam os comunistas. E as vozes das mulheres, umas loucas, no salão da Rue du Cotentin, que se entusiasmavam: "Que força, que génio, que poder, minhas queridas, que vontade enternecedora, electriza-nos mesmo sem o compreendermos, é ele que nos salvará dos nossos velhos demónios, que nos protegerá de Lenine, esse asiático de olhos velhacos, é ele que vencerá Estaline, que nos preservará dos bárbaros."
Ethel afundava o corpo na areia quente, via o pinhal avançar debaixo das nuvens. Certa tarde, ao crepúsculo, quando os morcegos começavam a rondar rente às dunas à procura de mosquitos, no ar calmo, com a água parada a alastrar pelo areal, Ethel e Laurent tomaram um banho prolongado, sem nadar, até se deixarem arrastar pelas pequenas ondas. Havia um profundo silêncio na praia, ninguém a quilómetros de distância. No coberto picante da caruma, fizeram amor sem despir os fatos de banho encharcados, mais um simulacro, o sexo de Laurent erecto debaixo do tecido preto encostado ao sexo de Ethel côncavo no fato de banho branco, primeiro uma dança longa e lenta, depois mais rápida, a pele arrepiada pela frescura do ar, perlada de gotas de suor salgado como a água do mar, Ethel de rosto inclinado para trás, olhos fechados à luz do céu, Laurent retesado, de olhos arregalados, um ligeiro esgar no rosto, músculos das costas e dos
1 VéI'd'Hiv, Vélodrome d'Hiver - Velódromo de Paris no qual foram concentrados numa só noite, 16-17 de Julho de 42, milhares de judeus, antes de serem transportados para a prisão de Drancy e daí deportados, na sua grande maioria. (N. da T.)
braços tensos. Ouviam as pulsações ritmadas dos corações, os pulmões ofegantes. Ethel foi a primeira a fruir, depois Laurent, que descaiu imediatamente para o lado, apoiando a mão nos calções de banho, onde alastrava uma estrela tépida.
Laurent retomava o fôlego em silêncio, preparava-se para se desculpar, desajeitado como sempre, quase envergonhado, mas Ethel não lhe deu tempo. Rolou sobre ele e esmagou-o com todo o seu peso, a areia a ranger entre os dentes, as madeixas do cabelo a tapar-lhe completamente o rosto como algas negras. Beijava-o para o calar. Não tinha de dizer nada, de proferir uma única palavra, nem uma, não tinha sobretudo de dizer: amo-te, ou qualquer coisa do género.
Ao anoitecer, regressavam à Pensão Liou, pedalando depressa pelo carreiro arenoso, corados, despenteados, açoitados pelo vento. Jantavam cedo, sem ouvir o bruaá dos hóspedes, sem ouvir a voz de Alexandre que perorava diante do público habitual. Só Justine os observava de soslaio, demoradamente, um pouco triste, significando que sabia. Iam deitar-se, cada um na sua cama estreita, entre lençóis lavados, com a areia escaldante incrustada nas costas e nas pregas das virilhas, uma pequena pedra de areia dura no orifício do umbigo.
Laurent partira para Inglaterra. No cais, na Gare du Nord, estava de pé, mala pequena na mão, o colarinho da camisa desapertado por causa do calor, o bivaque enrolado na ombreira, ainda de corpo dourado pelo sol e pelo mar. Ethel encostara a face ao peito do jovem, mas o barulho dos cais impedia-a de ouvir as pulsações do seu coração.
Precisara de mergulhar imediatamente na realidade. Era como se tudo se acelerasse, um filme em que a manivela da máquina fosse movida com uma grande fúria, cenas a saltar, movimentos bruscos e cómicos, pessoas a correr, olhos revulsos, esgares. A venda em hasta pública começara a seguir ao regresso da Bretanha. No salão, como depois de um falecimento. Os móveis amontoados, tapados, o piano Érard aberto para que os interessados pudessem experimentar as teclas, como se soubessem alguma coisa do assunto. Num determinado momento, furiosa, Ethel sentou-se no banco do piano, de costas muito direitas, respirou fundo. Começou a tocar, primeiro um pouco hirta, depois sentiu o calor invadi-la, suavemente, tocava um Nocturno de Chopin, a repercussão das notas saía pelas portas-janelas abertas e enchia o jardim já amarelado pelo Outono, Ethel pensou que nunca tocara tão bem, nunca experimentara tal força. Ao vento, as folhas dos castanheiros andavam num turbilhão, todas as passagens do Nocturno se misturavam com a queda das folhas, cada nota, cada folha... Era o seu adeus à música, à juventude, ao amor, o adeus a Laurent, a Xénia, a Monsieur Soliman, à Casa Cor de Malva, a tudo o que conhecera. Em breve não restaria nada. Quando acabou de tocar, Ethel fechou o piano como quem fecha uma arca de tesouros, e o velho piano exalou um estranho som grave e complexo, todas as cordas vibrando ao mesmo tempo. Um queixume, ou antes, um escárnio doloroso, pensou Ethel. Justine encontrava-se de pé ao seu lado, de olhos vermelhos por causa das lágrimas. É um bom momento para chorar, murmurou Ethel. Mas as palavras não lhe saíram verdadeiramente da boca. É um bom momento para chorar, sem dúvida, mas era ontem que devia ter chorado as lágrimas que tinha a chorar, quando ainda podia fazer alguma coisa.
Passado o instante musical, as vendas prosseguiram como habitualmente. Negociantes em velharias, antiguidades, tecidos, mudanças de casa. As tias também por lá passaram, à socapa, como pequenos ratos, tiravam uma coisa aqui, uma coisa ali, um par de jarras chinesas, uma fruteira em cristal de Baccarat, um prato de motivos florais da Companhia das índias, um relógio de sala de carrilhão, um pesa-papéis galgo de bronze que Ethel sempre vira em cima da secretária de Monsieur Soliman. Objectos díspares que Justine e Alexandre viam partir, atordoados. "Uma recordação dos bons tempos", diziam as tias, em jeito de desculpa. Ethel observava-as sem indulgência. Afinal, Monsieur Juge, o oficial de justiça que procedera ao primeiro inventário, não embolsara a colecção de colheres de chá, de esmalte, sem pestanejar, declarando numa voz delico-doce: "Não se preocupe, mademoiselle, elaborarei um inventário que a favorecerá em absoluto."
A única coisa que revoltara Justine fora José Vendido pelos Irmãos, o grande e horrível quadro atribuído a Hippolyte Flandrin, porque pertencera à sua avó materna, e fora omitido no inventário. No momento do dê-me-aquele-quadro, postara-se em frente da parede, de braços cruzados, com uma tal determinação no olhar que os encarregados da mudança não tinham ousado aproximar-se. O quadro fora juntar-se, no corredor, ao amontoado heteróclito de tudo o que ficara por vender, e sem dono. Como é evidente, ninguém, e sobretudo Justine, podia então desconfiar de que o vagão fechado a chumbo no qual depositaram aqueles objectos viria a ser bombardeado por ocasião de um dos últimos ataques dos Stukas contra uma ponte de caminho-de-ferro, e que José seria pilhado, roubado, desapareceria para sempre! Vendido, como era seu destino, pelos irmãos, essa boa gente que se apressava a arrecadar o conteúdo dos vagões esventrados pelas bombas.
O SILÊNCIO
O silêncio de Paris no mês de Junho. Depois a efervescência, os rumores, e em seguida as raras bombas que haviam caído ao acaso na capital, e as sirenes da defesa passiva, as correrias das famílias pelas caves, o retorno à superfície das crianças carbonizadas pelas balas de coque, as fugas pelos corredores do metro o barulho das vozes, sobretudo, os comentários, os boatos, os prognósticos, os distúrbios causados pela imprensa, depois de Mers el-Kébir, Baudouin, conhecido por ministro dos Negócios Estrangeiros, que proclamara: "A Inglaterra cortou o último nó que nos prendia a ela." E as conversações, Bloch, Pomaret na prisão em Pellevoisin, na companhia de Blum, Auriol, de Mandei, de Daladier, de Jean Zay - "o Ministério dos Tempos Livres!", comentara a generala Lemercier, citando Gringoire1.
O silêncio em Paris, e uma chuva amena e suave que corria pelo jardim abandonado. Desde o dia 12 de Junho, Alexandre não voltara a falar. Já nem sequer ouvia rádio, aquela voz que divulgava mentiras, as nossas tropas vitoriosas contêm o inimigo na frente do Meuse, não ultrapassarão o Marne, quando os Alemães
1 Semanário francês publicado entre 1928 e 1944, que se pretendeu panfletário desde o seu aparecimento. De tendência xenófoba e belicista, favorável ao fascismo, defendeu os regimes de Salazar e de Franco. (N. da T.)
já acampavam às portas de Paris, os seus tanques e carros blindados abalavam a calçada, Boulevard du Montparnasse, Boulevard Saint-Germain, Avenue dês Champs-Élysées!
O apartamento assemelhava-se a uma zona devastada. As marcas dos quadros nas paredes, o rasto dos pés do piano, dos roupeiros, das cómodas neogóticas, da secretária de Alexandre. Um pouco por toda a parte, rolos de papel, fios eléctricos, lustres de berloques de vidro que ninguém quisera, transbordando de caixotes poeirentos, juntamente com vestuário e sapatos, louça, utensílios de cozinha. Esperava-se não se sabe o quê. O retorno à normalidade, com certeza. Uma vez que a crise passara, uma vez que não acontecera nada. Nem sequer uma guerra a sério. Uma vez que tudo acabara ainda antes de ter começado. As notícias destinadas a criar a confusão, a voz do Fuhrer, aquela voz que ressoava entre as paredes despidas, que se amplificava, que parecia vir do céu de Verão, que ribombava ao jeito de uma tempestade.
Os almoços ao domingo tinham acabado. Os convivas tinham desertado, uns atrás dos outros, sem fornecer nenhuma explicação. Eles já não sabiam onde se sentar. Restava-lhes apenas a velha cadeira de Justine, carunchosa, gasta, reparada com cola de madeira e arame, que nenhum negociante de velharias quisera levar.
Claudius Talon fora um dos últimos a aparecer. Exibia a pequena insígnia tricolor de metal cromado e esmaltado da L.V.F.1 Perorava. A Action Française exigia que fosse interdita aos judeus a direcção de salas de cinema! Lia solenemente a declaração do capitão Casablanca: "O povo alemão regozija-se ante a ideia de que esta França, ontem sua inimiga, possa tornar-se hoje sua aliada." Ethel sentia-se enojada, por muito que caminhasse pelas
1 L. V. F. - Legião dos Voluntários Franceses contra o Bolchevismo, destinada a combater na frente russa sob o uniforme da Wehrmacht. (N. da T.)
ruas desertas, a voz fanhosa de Talon continuava a ressoar, com os seus sarcasmos: "Goldenberg, Weiskopf, Lévy, Cot, Geneviève Tabouis, Géraud, "Aqui Londres, os Franceses falam aos Franceses"!" E nas paredes da câmara municipal do décimo quinto bairro, afixados os decretos publicados pelo Diário da República:
"Artigo primeiro, é considerado judeu todo o indivíduo oriundo de três avós de raça judia ou de dois avós se o cônjuge for judeu. Artigo dois, o acesso e o exercício das funções públicas e mandatos são proibidos aos judeus, como se segue: 1º) Chefe de Estado, membro do governo, do Conselho de Estado, do Conselho da Legião de Honra, do Supremo Tribunal de Justiça, dos corpos de minas e obras públicas, dos tribunais de primeira instância, dos juizes de paz; 2º) agentes dos Negócios Estrangeiros, prefeitos, subprefeitos, funcionários da polícia nacional; 3º) residentes em geral, governadores e administradores das colónias; 4º) corpo docente no seu conjunto; 5º) oficiais do exército de terra, ar e mar, 6º) agentes da administração e das empresas públicas. Além disso, os judeus não poderão exercer as seguintes profissões: redactores ou administradores de jornais, de revistas (excepto científicas), produtores de filmes, realizadores, argumentistas. Gerentes de salas de cinema ou de teatro. O decreto é aplicável no conjunto do território, bem como na Argélia e nas outras colónias.
Assinado: Pétain, Lavai, Alibert, Darlan, d'Huntziger, Belin."
Depois, num outro dia:
"Lei de 2 de Junho prescrevendo o recenseamento dos judeus.
Toda a pessoa definida como judia deve apresentar-se no prazo de um mês ao prefeito do departamento e declarar por escrito a sua profissão, estado civil e elaborar a lista de todos os seus bens. Todo o contraventor será punido de prisão. A lei será aplicada em França, na Argélia, nas Colónias bem como na Síria e no Líbano."
Ainda:
"Lei de 17 de Junho:
É interdito a todas as pessoas de raça judia exercer as seguintes profissões: banqueiro, agente de seguros, publicista, emprestador de capitais, corretor da Bolsa, vendedor de quadros, antiquário, explorador florestal, proprietário de casas de jogo, jornalista de informação da imprensa escrita ou da rádio, editor.
Assinado: Pétain, Dalan, Bathelemy (ministro da Justiça), Lehideux (secretário de Estado da Produção Industrial), Jérôme Carcopino (secretário de Estado da Educação Nacional)."
No Gringoire, os nomes:
"Herschell Grynszpan, o assassino de von Rath. Loeb e Blum culpados de terem provocado o Anschluss, de terem aberto as fronteiras aos refugiados espanhóis, de terem fornecido aviões à Espanha vermelha."
Os nomes revelados por Henri Béraud: Jean Zay, aliás Isaías Ezequiel, Léon Blum, aliás Karfunkelstein. Os nomes dos directores de empresas judeus na praça pública, afixados no Diário da República, por ordem alfabética, uma lista humilhante, sem fim:
Aksebrad Achtenkiem Abramoivski
Astrowicz
Berger Gidel
Blumkind
Braun
Cahen
Chapochnik
com
David
Fain
Fatermann
Finkielstein
Foncks
Fridman
Galazka
que Ethel lia de passagem, e instintivamente procurara o nome de Laurent Feld, como se esta lista de ignomínia pudesse tê-lo descoberto, lá onde ele estava, do outro lado da Mancha, ter revelado o seu esconderijo, o seu segredo no coração de Ethel, denunciado pela voz agreste de Talon, ou realçado pela ironia da generala Lemercier, pela sua maneira de abanar a cabeça balbuciando ttt ttt! com a ponta da língua, quando regressara entusiasmada pela grande reunião da L.V.F. no Vél'd'Hiv e, juntamente com vinte mil parisienses, anunciara o seu apoio indefectível às tropas alemães, finlandesas e romenas no grande combate contra o bolchevismo universal! Alexandre baixara a cabeça, mas Justine indignara-se e acompanhara-a à porta do salão devastado, como se ainda houvesse alguma coisa a salvar, a honra, a memória, sabe Deus o quê!
Tudo aquilo era patético, vagamente ridículo, calunioso, sem dúvida. Ethel pensara então que era demasiado tarde, que não poderia abandonar a família, como gostaria de fazer, e partir à aventura para o outro lado do mundo, o Canadá - o sonho de Maria Chapdelaine, um país frio e puro, onde a neve brilhava ao sol, onde as florestas não têm fim, onde Laurent se lhe juntaria para uma nova vida. Tinham falado sobre o assunto, na praia, para quando terminasse a guerra. Tinham delineado projectos, ele num gabinete internacional, ela a ensinar poesia num liceu privado. Mas demasiado tarde agora, à beira desta jangada de náufragos que o vento da realidade ia arrebatar. No meio dos escombros, as malas já fechadas, os caixotes atados com cordas, uma torrente de objectos flutuando ao sabor incoerente dos acontecimentos, no caos das notícias falsas, dos comunicados fabricados, dos artigos de propaganda, do ódio ao estrangeiro, da desconfiança dos espiões, dos comentários reles, da fome e do vazio, da falta de amor e de orgulho.
1942
O carregamento efectuou-se na Gare d'Austerlitz cercada por barricadas, coberta por redes contra os ataques aéreos, entre sacos de areia, no frio de Março. Alexandre não se deslocou. Ficou sentado na única poltrona, prostrado, silencioso. Depois do descalabro, renunciara a todas as pequenas coisas que o mantinham de pé há lustros, aos almoços que se oferecia a si mesmo nos cafés frequentados por jovens artistas em Montparnasse, nos cafés com os mauricianos na Rue de Vaugirard, aos passeios pelos Champs-Élysées ("Para assistir ao render dos boches, não obrigado, com todos esses safados na parada", comentara Justine). Desistira da assinatura de Gringoire, por falta de dinheiro, mas também por causa do artigo de Maxence sobre "Bagatelas para Um Massacre", de Je suispartout1 por causa da peçonha de Mareei Jouhandeau sobre René Schwob - a curta frase: "Rejeito que a Virgem Maria seja uma pequena judia da Rue dês Rosiers." Já não ouvia os noticiários da rádio. Ficava a fumar todas as senhas de tabaco que Justine conseguia recolher. Tossia como por hábito. Talvez não pensasse em nada.
Ethel olhava para o perfil do pai, o nariz aquilino, a testa alta, a barba cuidadosamente aparada, o cabelo preto e comprido
1 Publicação semanal que, depois do seu renascimento (a sua primeira existência ocorrera entre 1930 e 1936), contribuiu fortemente para o desenvolvimento do anti-semitismo em França. (N. da T.)
penteado para trás, tão anormalmente forte para um homem da sua idade, imaginava-o aos vinte e cinco anos, quando abandonara a ilha Maurícia pela primeira vez, audacioso, sem dinheiro, sedutor, para começar uma nova vida em França. Tudo o que o separava dessa glória, dessa juventude, tudo o que desaparecera, morrera, ano após ano, até àquela sala deserta da qual em breve seria expulso.
Justine assumira o comando das actividades. Na gare, afadigava-se, multiplicava as recomendações, as gorjetas aos carregadores. Por aqui, o espelho, ao fundo, entre as duas cómodas, e os caixotes de louça, o armário desmontado, os baús, as arcas de vime que continham pilhas de lençóis de linho amarelecidos pelo tempo, o vestuário, e a espécie de ucha na qual amontoara todos os brinquedos de Ethel, bonecas de cabeça de porcelana, jantarzinhos, um jogo do anão-amarelo, caixas de jogos de loto, de dominó, diábolos, um giroscópio, pulgas de saltar, uma lanterna mágica, um Ludo, uma rede para pescar rãs, um minicroquet, e mesmo o engole-bolas que tanto assustava Ethel na sua infância, uma espécie de monstro de papelão que abria uma grande boca para engolir bolas de trapos, e que fora necessário esconder na cave. "Para que precisaremos de tudo isto em Nice?", perguntara Ethel por perguntar no momento de embarcar toda aquela tralha. "E os meus netos, com que brincarão?" A resposta de Justine irritara Ethel. "Netos? Estás a referir-te aos meus filhos?"
Era de facto o momento mais apropriado para tal conversa, naquele cais atravancado de gente amedrontada, atarefada, que só se preocupava em salvar móveis e vestuário, como se alguém neste mundo quisesse aquilo, o inimigo, porventura o Russo sanguinário que ia destruir os diques e invadir a Europa, era o que contava a meio demente generala Lemercier quando ainda ia à Rue du Cotentin.
O De Dion-Bouton, retirado da garagem onde dormira nos últimos anos por falta de dinheiro para comprar gasolina, tinha o aspecto de um animal antediluviano, empoleirado nas patas magras, com a carroçaria amarela e preta salpicada de ferrugem. Justine confeccionara, para a grande partida, uma cobertura de borracha forrada de veludo (o reposteiro vermelho da entrada fornecera o tecido e os pequenos pesos de chumbo) para proteger os pés do vento e da chuva. Um ferreiro completara a obra soldando arcos por cima da capota rasgada, aos quais se prendia uma plataforma de madeira semelhante ao tecto de uma gôndola. Tudo o que não embarcou no vagão de mercadorias foi desviado para aquele espaço, colchões, tapetes enrolados, reposteiros e, ao fundo, empilhadas umas nas outras, as velhas cadeiras de jardim, de vime, no meio dos quais Justine conseguira arrecadar roupa de casa, lençóis, toalhas, sabão, e mesmo sacos de batatas escondidos no meio de trapos como no tempo em que se pagavam direitos. Era lamentável, cómico, e ao mesmo tempo vagamente humilhante, pensara Ethel. A carta de condução acabada de obter (Alexandre reprovara em todas as tentativas que fizera do exame, embora conduzisse desde o início dos automóveis) fazia dela o piloto daquele camião munido de bancos. Na companhia de Justine, fora à câmara municipal do décimo quinto bairro procurar saber como escapar ao cerco de Paris. O oficial alemão, elegante, impecável e cortês, e o seu intérprete, um jovem enfezado, de casaco de cabedal preto, ar de marialva, que passara o tempo a olhar de soslaio para Ethel, como se quisesse espreitar a sua silhueta e as pernas através do casaco comprido castanho.
Certificado de repatriamento por estrada:
Heimschajfungs-Bestãtigung der Fluchtlinge durch Strassenverkehr a carimbar na câmara municipal de Lussac-les-Châteaux.
No envelope não fechado, as senhas de requisição de gasolina, a controlar na câmara municipal de Lussac-les-Châteaux e, quatro dias mais tarde, na câmara municipal de Castelnau-le-Lez.
Como é evidente, fora preciso mentir. Quando o jovem examinara com uma atenção de analfabeto o bilhete de identidade de Alexandre, e soletrara: nascido no distrito de Moka, ilha Maurícia, fizera um comentário deselegante sobre os estrangeiros que enchem as nossas estradas... Ethel interrompera-o: "Trata-se de um velho grabatário, o clima do Midi é a sua única hipótese de sobreviver." Justine nem sequer mexera a cabeça. "Um velho grabatário", no que o seu marido se tornara!
Para o Sul, poderiam estar a ir de férias. A Páscoa à beira do Mediterrâneo nos campos de mimosas e de limoeiros, numa enseada escarpada perto de Toulon, na baía de Alon, ou então na praia de Hyères, no Lavandou. Ethel e Laurent tinham falado muito dessa viagem perfumada, apaixonada, mas nada que pudesse assemelhar-se a uma lua-de-mel xaroposa.
Agora, as estradas eram cortadas a direito, desertas, atravessavam regiões admiráveis, campos de rebentos de trigo, pastagens, escarpas de fetos. O céu leve, salpicado de flocos de pequenas nuvens, um azul desbotado no horizonte. Ethel cantava enquanto conduzia, um pouco de tudo. La Traviata, Lúcia de Lammermoor, A Clemência de Tito. "O rei barbudo que avança, bebido que avança1." Depois, uma vez esgotado o repertório, Meia-Noite Cristãos, Jingle Bells, e mesmo O Tannenbaum, pois, já que doravante convinha treinar a aprendizagem da língua! Era um pretexto para
1 Jacques Offenbach, A Bela Helena. Entrada de Agamémnon (A Marcha dos Reis). (N. da T.)
não pensar no ruído desregrado do motor que ameaçava ceder a qualquer momento, ou nos roncos comatosos de Alexandre, instalado em cima da bagagem, lá atrás. Justine recobrara a confiança. Juntava-se a Ethel para cantar. Talvez a fórmula de Alexandre, agora celebrizada, tivesse encontrado eco no seu espírito: o começo de uma nova vida!
Ethel via as marcas da guerra, ao longo da estrada, as paredes meio desmoronadas nas quais ainda era possível ler um nome, um slogan, os buracos negros nos campos, os restos de viaturas calcinadas, uma carroça sem rodas, um esqueleto de cavalo meio erguido contra uma barreira, cor de fuligem vermelha, dentes à mostra apelando aos pardais e às gralhas? Pouca coisa, de facto, em relação às ruínas de Dunquerque, de Verdun, de Châlons, às pontes derruídas de Orleães, Poitiers. Mas ali, ao longo daquela estrada sem fim, não eram fotos, imagens tremidas dos filmes do Pathé-Journal. Nenhuma voz para mentir, para adulterar a realidade. O que era estranho, mesmo angustiante, era aquela calma exagerada, os campos tão bonitos, o céu tão azul, uma paz exangue ou, de forma mais realista, o vazio vertiginoso da derrota.
De repente, em Lussac-les-Châteaux, a realidade. A fila de automóveis, camiões, autocarros, viaturas munidas de bancos, carros de mão, para tentar passar o estrangulamento de arame farpado. As injúrias de um cabo e dois gendarmes, os basbaques, as viúvas chorosas, as crianças constipadas, todo o dia à espera, avançar metro a metro, empurrar o De Dion para não desperdiçar o precioso carburante. À entrada da aldeia, a pausa, o café do comércio, uma praça como qualquer outra, uma encruzilhada, uma igreja com um campanário como se estivessem no Brasil. Alexandre reanimara. "Não sei quem, mas alguém me falou, há muito tempo, da colecção de sarcófagos merovíngios, dos esqueletos de mulheres, parece que eram gigantes!" Ethel insinuou: "Talvez pudéssemos visitá-los?" Era realmente incorrigível. Do género beija-mão numa cloaca, ou dito espirituoso no meio de um desastre. Pensava nos Grandes Mounes da ilha Maurícia, tão elegantes, tão distintos, tão prontos, outrora, a cortar o jarrete aos escravos revoltados ou a engravidar as nativas da ilha.
Mas hoje, nada tinha importância. Avançavam rumo ao Sul, talvez não regressassem. Ethel sentia um gosto amargo na boca. A estrada sempre igual, direita, deserta, pelo meio dos campos, cada marco quilométrico arrancava qualquer coisa, desenterrava, demolia, petrificava. Ethel compenetrava-se de que tinha vinte anos, e nunca fora jovem. Um dia, Xénia dissera-lhe: "Pareces uma rapariga eternamente solteira!" E logo de seguida, como era seu hábito, batera duramente com os punhos no peito da amiga: "Anda, não chores! É o meu presente de aniversário!"
Avançar sempre a direito por aquela estrada, na viatura Belle Epoque que ostentava o esplendor do passado como uma mulher da vida ostenta as jóias gastas e as peles comidas pela traça. Justine digna e hirta, de chapéu na cabeça, de luvas, para servir de exemplo aos boches. Alexandre, a tez morena de velho colonial, algo de indiano nas madeixas brancas que salpicavam as melenas negras. A confusão mais do que improvável no interior do De Dion, sobretudo a colecção de bengalas-espadas provenientes da ilha Maurícia, da qual Alexandre recusara desfazer-se e que oscilava no tejadilho, presa por cordas e atada com nós de marinheiro. Teria conseguido levar, na ignorância da mulher, o modelo reduzido da grande hélice de madeira fabricada por um marceneiro de acordo com os seus planos, que devia revolucionar definitivamente a propulsão do mais-leve-que-o-ar? A não ser que Justine, no último momento, tivesse conseguido livrar-se do aparelho ("Se nos mandarem parar, com a espionite que grassa neste momento, estamos tramados!")?
Avaria atrás de avaria, depois de Béziers. A gasolina fora adulterada, Ethel tinha de desmontar o carburador, soprar para o pulverizador, depois dar à manivela, evitando o contragolpe, capaz de fracturar um braço, ou de parar junto de uma fonte de água salobra, retirar a tampa do radiador com um trapo, prestar atenção a cada ruído, silvo, rangido de um cotovelo, uma juntura, a cada martelada das bielas, pancadas do relógio da morte para o De Dion, e para os passageiros, com certeza, naquele no man's lana, naquele deserto florido, naquele campo mortífero, cadavérico, naqueles pequenos pinhais à beira da charneca, onde se acoitavam ladrões e assassinos.
Nos albergues, nos pequenos hotéis para viajantes de comércio, daqueles que, outrora, teriam provocado o riso de Justine
- palácios para as férias pagas! -, ouviam todas as noites os mesmos rumores: "Não vão por aqui, não vão por ali, evitem a ponte sobre o Vienne, consta que está minada, não conversem com as freiras na estrada, prenderam um padre e a criada, era a quinta coluna. Mademoiselle, nunca pergunte qual é o caminho, enviá-la-iam para um carreiro recôndito, e hop! assassinados, pior ainda, lançados a um poço, os boches vingam-se do que os marroquinos fizeram na Alemanha, até mesmo uma família com crianças pode constituir uma armadilha!"
O viático era o papel dobrado em quatro, uma cópia a lápis azul, que dizia:
Bescheinigung
Die Frau Brun, Ethel Mane,
Aus... Paris ist berechtigt, mit irhem Kraftfahrzeug n.o 1451 DU2
Nach... Nizzazufahren.
Es fahren mit ihr Familiaren
Paris, XII, 1942
Der Standortkommandant
Assinado: Oberleutnant Ernst Broll
E lacrado, uma águia de asas abertas, cabeça voltada para a esquerda, apertando nas garras uma coroa e uma cruz gamada.
Um homem elegante, sóbrio num uniforme negro, de cabeça descoberta, Ethel achara-o parecido com o professor de Filosofia do liceu da Rue Marguerin. O mesmo olhar míope, um pouco enevoado, o mesmo sorriso fino que lhe fazia uma covinha na face. Preenchera o Ausweis com cuidado, depois, na sua bela caligrafia inclinada, acrescentara, em baixo, à esquerda, talvez para aligeirar o desenho da feroz ave de rapina que brandia o símbolo mais odiado do mundo, a cruz potentada semelhante a um eixo guarnecido de patíbulos, uma palavra seguida de um ponto de exclamação:
Fluchtlinge!
E, ingenuamente, Ethel imaginara que ele lhes estava a desejar boa sorte. Muito mais tarde, procurando num dicionário, compreenderá que o valente homem, o funcionário zeloso, se limitara a resumir numa palavra o que eram aquelas pessoas, aquela família de ciganos empilhada num automóvel a desfazer-se no meio de uma grande confusão:
Refugiados!
A FOME
uma sensação estranha, duradoura, invariável, quase familiar, porém. Como um Inverno sem fim.
Cinzento, baço. Nice, dantes, na boca das tias mauricianas, era um lugar de delícias, o mar muito azul, as palmeiras, o sol, máscaras de Carnaval, batalhas de flores e limões, o entardecer sereno sob um céu de veludo, e a curva iluminada que elas admiravam do molhe-passeio, Pauline dizia: "A minha gargantilha de diamantes."
À chegada, Ethel sentira a palpitação do coração própria de início de uma nova aventura. O mistral lavara o horizonte, os cumes estavam cobertos de neve e, na praia de seixos brancos, as banhistas faziam ginástica sueca, crianças louras e bronzeadas tomavam banho nuas.
E depois havia os italianos! Eram muito jovens, muito bonitos, não pareciam muito a sério nos uniformes verdes com a pena de galo nos chapéus. Olhavam para as raparigas! Falavam francês carregando nos r, tocavam nos orfeões, pintavam a aguarela!
Ethel passou dias inteiros ao sol, nas pequenas enseadas do bairro do Lazaret. Precisava daqueles momentos para se atordoar. Nadava até longe, num mar frio onde circulavam medusas, depois esperava na praia que o sol secasse cada gota salgada da sua pele. Não havia ninguém. Excepto, de vez em quando, mulheres com crianças, alguns velhos. Na maior parte do tempo, ninguém. O horizonte livre, sem um navio, sem uma ave.
Um dia, teve medo. Um homem de cerca de cinquenta anos aproximou-se, exibiu-se. Ethel levantou-se e afastou-se sem olhar para ele. Outra vez, dois jovens tentaram barrar-lhe a passagem quando trepava pelos rochedos. Então, mergulhou, nadou tão longe quanto possível, para o largo, depois retomou o pé num dique, do lado dos viveiros. Mais tarde, regressou à baía para recuperar as suas coisas. Não falou do caso a Justine. Considerava-se responsável pelos seus actos. Era a sua maneira de estar em guerra.
A sua pele adquirira um tom castanho muito quente, tinha o cabelo dourado. Gostava de passar os dedos pela pele das tíbias, para a sentir lisa, para seguir os pequenos riscos claros, de pergaminho.
O dinheiro começava a escassear. As economias que Justine reunira vendendo o que escapara à avidez dos oficiais de diligências já tinham levado um grande rombo no início do Inverno. Precisavam de coque para o fogão de sala, de serradura, de petróleo que ardesse bem para os períodos de corte de corrente. O apartamento situava-se no último andar de um velho prédio sem nome que dominava o porto, a vista era admirável mas o frio atravessava o zinco do tecto, as janelas da mansarda provocavam correntes de ar. Devido à moratória sobre o pagamento de rendas (afinal, continuavam em guerra, não?), os proprietários já não procediam a reparações, a chuva inundava a cozinha, o WC. Justine colocara vasos de fetos no lugar das goteiras, empreendera uma plantação de alfaces e cenouras nas floreiras penduradas nas varandas. Alexandre misturava as folhas das cenouras secas com o tabaco racionado, pretendia que ganhava um leve sabor adocicado a Virgínia.
Aos poucos, o quotidiano adquirira um lugar importante. Era como ter os olhos sempre fixos no chão, à procura de qualquer coisa, uma moeda, um alfinete, uma beata. Sentia-se um gosto a bolor, um cheiro a fumo nas ruas, nos pátios dos prédios. Ethel subia a estrada marginal com a bicicleta pela mão, carregada de provisões, legumes, lenha para o lume. Sentia o hálito das caves, ao longo das paredes, baforadas escuras que saíam dos respiradouros. Estremecia como dantes, quando descia à cave, na Rue du Cotentin, apertando com muita força a mão da criada, para ir buscar garrafas de vinho ou encher de batatas um cesto de verga.
Era preciso ir cada vez mais longe, cada vez mais cedo. No mercado, tudo encarecera. Vendia-se tudo. Ethel comprava rama de nabo, folhas de aboboreira, folhas de couve. Ser mauriciana (pelo menos de origem), da terra dos "margozes" (amargos, não comestíveis), tinha uma vantagem, pois sabia, com um resto de açafrão e pó de caril, temperar aquela comida de coelhos.
Por volta do meio-dia, não havia quase nada. Entre as bancas vazias circulavam sombras, velhos, mulheres miseráveis que espetavam detritos na ponta de um pau e os guardavam nos sacos de juta. Legumes deteriorados, fruta pisada, raízes bolorentas, sobras, cascas. Silenciosos como cães, curvados ao meio, embiocados em lenços, em mantas, mãos encardidas, unhas demasiado compridas, deixavam ver rostos afiados, de nariz adunco, queixo proeminente. A roda da bicicleta avançava pelo meio dos escombros, o pedal batia na barriga da perna de Ethel, não precisava de accionar a campainha enferrujada, as sombras afastavam-se à sua passagem, paravam, de cabeça voltada, olhar de soslaio. Uma delas, uma velha estropiada, magra, ergueu subitamente a cabeça, e Ethel sobressaltou-se ao julgar reconhecer os olhos contornados a negro e as faces maquilhadas de carmim de Maude. O seu coração pulsava intensamente enquanto caminhava em direcção à saída do mercado, empurrando a bicicleta. Depois fugira, pedalando com todas as suas forças através do dédalo da cidade velha, perseguida pelo rosto da velha, pelo nariz em bico de abutre, as íris cinzentas contornadas a carvão, a boca enrugada manchada de vermelho, e sobretudo a expressão do rosto, uma expressão de avidez e tristeza. Ao mesmo tempo, repetia para consigo, em parte para tentar convencer-se, não, não é ela, não é Maude, é simplesmente uma velha abandonada que morre serenamente de fome.
Não falou deste encontro a Justine. A inimiga da família, a que trouxera o escândalo com ela, a mulher que estivera presente no momento em que Alexandre começara a arruinar-se, como pudera transformar-se naquela mendiga em busca de legumes deteriorados para sobreviver?
Ethel reflectiu. De certo modo, era justo. Todos eles tinham sido punidos, abandonados, traídos, como paga do seu primitivo orgulho. Os levianos, os "artistas", os oportunistas, os corruptos, os saqueadores. E também todos os que tinham professado com orgulho a sua superioridade moral e intelectual, os realistas, os fourieristas, os racistas, os suprematistas, os misticistas, os espiritistas, discípulos de Swedenborg, de Claude de Saint-Martin, de Martinez de Pasqually, de Gobineau, de Rivarol, os maurrassianos, camelots du rói1, mordrelianos2, pacifistas, defensores dos acordos de Munique, colaboracionistas, anglófobos, celtomaníacos,
1 Organização de combate realista que lançava um clima de agitação destinado a intimidar o próprio regime republicano. Esta organização paramilitar, disciplinada e violenta criou um novo estilo de acção que viria a inspirar os movimentos fascistas. (N. da T.)
2 Partidário de Olier Mordrel, dirigente do Partido Nacionalista Bretão, empenhado na colaboração com a Alemanha nazi. (N. da T.)
oligarcas, sinarcas, anarquistas, imperialistas, membros da Cagoule1 e da Liga. Durante todos estes anos, tinham ocupado lugares de topo, tinham-se pavoneado do alto das tribunas, discursavam, difundiam ideias antijudeus, antinegros, antiárabes, com as suas bravatas, os seus ares de justiceiros e valentões. Todos os que, como Alexandre Brun, tremiam pelos seus privilégios, esperavam o Grande Dia, a revolução bolchevique, a conspiração dos anarquistas. Os que se reuniam no Vél'd'Hiv para aclamar a libertação de Charles Maurras, os que encorajavam a Liga contra Daladier, que haviam amuado quando La Rocque se esquivara, que haviam aplaudido Pio XI e Hitler quando este apelara ao extermínio dos comunistas. Os que haviam reclamado a morte no processo de Nguyen Ai Quoc quando ele exigira o direito da Indochina a dispor de si mesma, os que haviam aplaudido a execução pública do professor Nguyen Thai Hoc que proclamava a independência do Aname, todos os que liam Paul Chack, J.-P. Maxence e L.-F. Céline, que se riam ao ver nos jornais os desenhos de Carb: "Uf! A França já não é uma pátria para os sem-pátria!" A Estátua da Liberdade em Nova Iorque brandia um candelabro de sete braços, legendada: "Tio Sem"!
Agora, o seu mundo desmoronara-se, esboroara-se, ficara reduzido à água de um canal. Agora, estavam condenados a vaguear como sombras, por sua vez, sem esperar nada, sem outro sustento para além das cascas e das raízes bolorentas, como se comessem terra, carvão e ferro naquele Inverno interminável.
O mundo novo que reclamavam não se concretizara. Tinham-se julgado da raça dos senhores, descendentes dos amos e dos Grandes Mounes que vergavam o universo aos seus desejos.
1 Nome por que ficou conhecida a organização secreta intitulada Comissão Secreta de Acção Revolucionária (CSAR), cujas actividades subversivas se desenvolveram em França entre 1935 e
1940. Era composta sobretudo por antigos membros das Ligas de extrema direita e por dissidentes da Acção Francesa. (N. da T.)
A realidade mal lhes abrira os olhos. Tinham sido remetidos aos seus apelidos de família imaginários, descendentes da "segunda raça". Ainda não tinham compreendido bem. Não tinham visto chegar nada.
Que mais esperavam? Alguns deles, que o detestado Inglês depois da batalha do Grand Port, o Inglês traidor que desembarcara no Cap Malheureux e atravessara os campos de canas do Mapou envolvendo os cascos dos cavalos em trapos para melhor surpreender a retaguarda dos Franceses em Port Louis, o Inglês hipócrita de Mers el-Kébir que reduzira a nada a frota francesa sem lhe dar uma oportunidade, que recusara lutar no reduto de Dunquerque, caísse finalmente do trono e curvasse a cabeça como eles próprios tinham feito, e sofresse por sua vez a infâmia do estandarte preto e vermelho ornado da sinistra aranha!
Aos poucos, o mundo encolhia. Tinham querido reinar, para alcançar os seus fins, estavam dispostos a todas as ignomínias. Agora, compreendiam que o ocupante não estabeleceria nenhuma diferença entre eles e os outros, que seriam ceifados e colhidos como aqueles de quem tinham desdenhado, todos esses pés-descalços e esses sem-nome, esses sem-estrela nascidos para os servir.
Alguns tinham conseguido manter-se à tona, pelo que Ethel ouvira dizer à generala Lemercier, que a amargura tornara ainda mais maldizente. O astuto Chemin, entre outros, que pusera o cartório de notário ao serviço da Alemanha e apontara nos seus registos o inventário dos bens dos judeus espoliados e vendidos em leilão. Havia pior: Talon, o infecto Talon, um empecilho para os novos senhores, que se proclamara administrador das empresas e dos prédios de rendimento confiscados aos judeus, e abrira no Boulevard dês Capucines (número 9), e depois na Rue Montmartre, juntamente com Labro e Champion, um gabinete de administração para Rubinstein e Weinberg, e em Viroflay outro posto para os bens de Abraham Low. Ethel pensava neles com uma raiva fria, porque não tinham mudado, e os acontecimentos dramáticos, o êxodo, a ruína, a deportação dos seus contemporâneos, em vez de os prejudicar, multiplicara o seu poder.
Ethel censurava os outros, os fantasmas humanos que se tinham lançado para a boca do lobo, sem reflectir, que tinham engolido todas as mentiras da época, que tinham acreditado no seu destino, como se fossem realmente de uma essência superior, nascidos de outra raça? Já nem restava tempo para os odiar, com certeza.
Nice, cidade de opereta, pano de fundo dos ingleses do tempo de Lord Brougham & Vaux, russos do tempo da imperatriz e de Marie Bashkirtseff, cidade indiferente e cruel, sobreexposta ao sol e ao vento acre dos vales cheios de cimento, e os seus habitantes em sombras negras incrustadas no asfalto - uma bela cilada, pensava Ethel.
Acudia-lhe ao espírito um determinado capítulo de As Aventuras do Senhor Pickwick, a prisão para maus pagadores onde se encontram encarcerados todos os falidos, falsos nobres e verdadeiros parasitas, que circulam, se interpelam através das varandas e negoceiam como se ainda estivessem em liberdade na City.
Aos poucos, as ruas ficavam desertas, os locais de prazer encerravam, os jardins com as suas fontes de Cupidos tornavam-se terrenos de caça dos gatos vadios. O Parque Chambrun, a Villa Smith, a Villa Vigier, o Palácio Nestlé, o Palácio Scoffier, o Ateneu, e todos os grandes hotéis magníficos e antigos, o Ruhl, o Negresco, o Splendid, o Westminster, o Plaza, e o que Alexandre e Justine haviam frequentado outrora, nos tempos áureos, o Ermitage, servido por um funicular, cujo parque recordara com certeza a Alexandre a extensão selvagem entrecortada por palmeiras da sua casa natal em Moka (ilha Maurícia).
Os oficiais italianos haviam ocupado um andar inteiro, até ao dia em que - porque existiam categorias mesmo na raça dos senhores - o exército alemão os desalojara. Certa vez, caminhando pelo centro da cidade com Justine, esta deteve-se para mostrar, ao fundo da rua, engastada na encosta da colina de Cimiez, insolentemente iluminada pelo sol de Inverno, o edifício branco: "É tudo o que resta da nossa viagem de núpcias", suspirou ela. Ethel conteve um comentário sarcástico: "Foi neste caravançarai que me conceberam?"
Rolos de arame farpado encerravam os parques, as colinas de mimosas, as praias. Muros de blocos de cimento armado impediam o acesso ao mar. Nos promontórios onde, outrora, Ethel gostava de observar a sucessão das vagas, antes de ir mergulhar entre os rochedos, avistou, um dia, soldados que cimentavam uma espécie de plataforma para um canhão que girava sobre carris. As janelas do grande seminário tinham sido entaipadas, os padres de sotaina substituídos por soldados e convalescentes. Um pouco por toda a parte tinham crescido muros, redes de camuflagem cobriam os telhados. Os olivais tinham sido minados. Um painel escrito em duas línguas ameaçava os transeuntes exibindo uma caveira. A partir das dezoito horas, começava o recolher obrigatório. Numa tarde em que Ethel se atrasou, subia a pé as escadas do prédio quando um tiro cavou um orifício no olho-de-boi do quinto andar e a bala foi espetar-se na parede. A partir daí, sempre que descia as escadas, Ethel não conseguia deixar de introduzir o dedo no orifício para tocar na ponta metálica que não a matara por um triz.
Quando as sirenes ressoavam sobre todos os telhados da cidade, era preciso descer à cave com uma vela acesa, até ao fim do sinal de alerta. Nos primeiros tempos, Justine conseguira arrastar o marido, mas este, depois, começou a afundar-se na poltrona, agarrando-se aos braços. "Vão, se quiserem, por mim, prefiro morrer ao ar livre a ser enterrado como um rato!"
Não se morria debaixo das bombas dos Ingleses e dos Americanos. Mas morria-se aos poucos, sem comer, sem respirar, sem liberdade, sem poder sonhar. O mar resumia-se a um traço azul, ao longe, entre as palmeiras, por cima dos telhados vermelhos. Ethel passava horas a contemplá-lo da janela do quarto dos pais, como se esperasse alguma coisa. O calabre inclinado de uma grua emergia dos telhados dos hangares, imóvel, inútil. Os barcos haviam naufragado à entrada do porto, já nada podia entrar nem sair. O farol já não se acendia à noite. Nas bancas do mercado, não havia nada, quase nada. As mesmas sombras continuavam a circular em redor dos vendedores, mas agora as cascas e as raízes também se vendiam. Nos jardins, os gatos vadios devoravam-se uns aos outros. Os pombos haviam desaparecido, e as armadilhas que Justine dispunha nas goteiras só serviam para apanhar ratos.
Ethel voltou a encontrar Maude, na cave de um prédio, na avenida marginal. Há seis anos que não a via, parecia-lhe uma eternidade, remontar ao tempo da sua adolescência. Foi Justine que lhe disse onde vivia Maude. O edifício pertencia a um velho russo irascível chamado Filatief, que ocupava o primeiro andar e alugava o rés-do-chão e a cave a velhos arruinados, elegantes e antiquados como ele. Alojava uma pessoa por quarto, cozinha e casa de banho comum. Era espaçoso, desconfortável, gelado no Inverno, sufocante no Verão, mas Maude recebeu Ethel com uma afectação algo forçada que simulava amizade. Afinal, talvez experimentasse algum sentimento pela filha do homem por quem se apaixonara outrora, no tempo em que era alguém. Maude chegou mesmo a beijá-la, mal lhe abriu a porta, sem hesitar, como se já a esperasse num qualquer dia. Um gesto que Ethel nunca apreciara, por instinto, simplesmente para evitar o contacto com aquela pele enrugada, tantas vezes repuxada, para não sentir o cheiro a pó-de-arroz seco nas rugas em volta dos olhos e da boca, nem o toque algo viscoso do bâton que Maude - era a história que se contava antes da guerra quando se evocava a sua eterna miséria - engordurava com banha para durar mais.
O compartimento tinha o tecto baixo, era escuro, cheirava a urina de gato e a miséria. Justamente, viam-se lá gatos. Corriam por todos os lados, sombras furtivas, que se escondiam debaixo dos móveis, saltavam para cima da cómoda, deslizavam entre as pernas do velho piano desafinado. "Mimine, Rama, Folettel Venham ver quem aqui está, venham, mostrem-se, é a Ethel, não vos fará mal!" Maude desculpava-se: "Estariam melhor lá fora, no jardim, está bom tempo, mas que queres? Há selvagens que os apanham e os vendem para vivissecção. Já me mataram dois, portanto, vejo-me obrigada a mantê-los fechados. Conheço-o, o malvado que faz isso, mas não posso dizer nada, vivemos uma estranha época, bem sabes." Maude continuava sempre a mesma, um pouco tresloucada, mas divertida, enérgica. Uma sobrevivente de outros tempos, e no entanto tão presente que seria possível duvidar de que esses tempos tivessem realmente acabado, imaginar que algures, longe daquele refúgio e daquela cidade cinzenta, do outro lado do horizonte, em Mostaganem, por exemplo, os homens e as mulheres prosseguiam uma história antiga, se divertiam ao som do cake-walk e da polca, recomeçavam sempre a mesma festa, levantavam a cortina vermelha ante a estreia do Bolerol Maude não tinha culpa de nada, pensava Ethel. Havia nela uma espécie de inocência, uma vontade de viver que a absolvia das suas excentricidades e dos erros do passado.
Ethel adquiriu o hábito de ir à Villa Sivodnia. De início, fazia-o um pouco por dó, um pouco por curiosidade. E depois, o nome da residência era tão bonito, "Hoje", lembrava-lhe Xénia, a maneira que ela tinha de aproveitar todos os momentos, de amar a vida sem ilusões, sem falsas amarguras. Era um nome que se ajustava bem a Maude - não seria mais apropriado se tivesse sido ela a escolhê-lo.
Por fim, gradualmente, haviam surgido outras razões, sem que Ethel se apercebesse. Restava a velha questão que nunca se atrevera a formular - talvez não tivesse a certeza de que Maude soubesse a resposta. A longa relação que unira aquela mulher ao pai, antes do seu nascimento, antes de Alexandre ter conhecido Justine. Outra época, como quem diz outra vida. Um sentimento que se arrastava como uma nuvem em atraso, que se estiolava, se estendia ao longo de toda uma vida, sem ter nome, sem ter saída. E a recordação de uma presença no seio da família, um fantasma de presença, mas não fora um segredo para Ethel, embora ninguém falasse do assunto à sua frente. Poderiam os adultos ser tolos ao ponto de acreditar que uma criança não era capaz de compreender, por meias-palavras, palavras soltas, ou mesmo pelo silêncio? Ethel ainda se lembrava da noite, teria mais ou menos oito anos, em que fora com Maude à estreia do Bolero, a música que inchava, crescia, e o público de pé a gritar, a apupar, a bater palmas. Tudo aquilo parecia longínquo como um sonho e, no entanto, estranhamente, surgia de novo ali, na horrível cave daquela casa, deixava-lhe o coração aos pulos quando transpunha o portão e lia o nome Sivodnia.
Chegava de manhã, pelas dez, onze horas. Maude aguardava-a atrás da porta, abria-a antes de Ethel bater. Muitas vezes, Ethel deixava passar alguns dias sem ir a Sivodnia, mas Maude recebia-a sem a censurar.
Quando ali entrara pela primeira vez, Ethel compreendera a extensão do descalabro na vida daquela mulher. Em cima da mesa, ao lado do lava-louça, vira os restos da refeição que Maude partilhara com os gatos. Fressura, cascas, pedaços de pão embebidos em leite. Maude morria de fome, mas nunca o deixaria transparecer. A partir daí, esforçava-se por dissimular a realidade. Arranjava maneira de preparar uma colação. Bolos secos que guardava há muito tempo, algumas nêsperas de casca manchada, colhidas no quintal do russo, ou então a velha receita mauriciana do pão-perdido, embebido em gema de ovo e frito, tudo isto acompanhado por chá "imaginário", como ela dizia. Na chaleira rachada, uma japonesice que remontava, no seu entender, a Pierre Loti, Maude inventava decocções, de flor de laranjeira, de acácia, com pétalas de rosa ou de crisântemo, casca de maçã e cápsulas de eucalipto, tomilho, folhas de agnocasto, uma espécie de menta que crescia em latas de conserva no rebordo do respiradouro. Na maior parte das vezes, a bebida era azeda, intragável. Ethel molhava os lábios, dizia: "Maude, desculpe, prefiro chá branco."
Ethel levava-lhe alguns presentes, pequenos nadas de que os Brun não precisavam, e que, para Maude, eram a essência vital: arroz, açúcar, courato de toucinho tão rijo que poderia servir de sola de sapatos, chicória, rações de gordura que os gatos lambiam gulosamente, como natas.
Em pleno Inverno, a cave arrefecia tanto que, quando falavam, lhes saía vapor da boca. Não havia nada que alimentasse o Godin preto, nem os jornais velhos que Ethel ia buscar à pilha que Justine guardava na cave conseguiam arder, por causa da humidade. Maude vivia envolta em xailes e mantas, parecia uma bruxa. Dormia com os gatos em cima do peito.
Nos primeiros tempos do reencontro, não conversavam muito. Ethel, pelo menos, falava pouco, nunca fazia perguntas. Maude fazia observações à toa, sinuosas, imprevisíveis como a vida. Nunca se queixava de nada. A guerra, a ocupação pelo exército italiano, tudo lhe era indiferente. No fundo, servira apenas para reduzir o horizonte da sua vida, tornara mais complicada a recolha de restos de comida. Dantes, não matava a fome, agora tinha fome, era assim. O açúcar e o arroz que Ethel lhe levava provocavam-lhe um brilho nos olhos, mas Maude não se precipitava. Quando Ethel voltava com novas provisões, Maude mostrava-lhe com uma satisfação pueril: "Vês, ainda tinha." Ou então: "Justamente, a minha vizinha, uma pobre velha precisa imenso." Como se ela não fosse velha, pobre e não precisasse imenso.
Fora este orgulho que Ethel aprendera a apreciar em Maude. Pensava em todos os anos que aquela mulher vivera no turbilhão da música, cantando num palco, em concertos, e mesmo a bordo de um grande navio de cruzeiro que vogava de ilha em ilha pelo Mediterrâneo. Ocupara o proscénio da ópera de Mostaganem, cantava operetas em voga para os colonos. Conhecera o avesso da cortina vermelha que estremece antes das três pancadinhas. Que lhe restava desse tempo? Nos seus olhos verde-acinzentados em forma de amêndoa - esticados, como é evidente, pelos ganchos presos às têmporas por baixo do cabelo - Ethel procurava decifrar a sequência das recordações.
Agora, não tinha dúvidas: a interrogação que a atormentava, a interrogação que nunca fizera dizia respeito ao amor do pai pela cantora no tempo em que estudava Direito na Rue d'Assas, um tempo tão remoto quanto o da fundação dos tribunais. Teriam realmente sido amantes? Maude chorara quando Alexandre se casara com aquela jovem burguesa da ilha da Reunião, mais nova do que ela? Fora então que decidira fugir, partir para a Argélia com o primeiro banqueiro que aparecera, como uma mulher da vida?
No mesmo momento, Ethel sentira vergonha por ter pensado naquelas perguntas, pequenas, inquisitoriais, ignóbeis. Recusava a obscenidade do amor daquela pele velha e enrugada pelo jovem e elegante galanteador, de cabelo negro e comprido, barba e olhos azuis, e o seu incrível sotaque crioulo, a sua segurança de filho de plantador na mais atarefada capital do mundo!
Raramente, Maude desenterrava relíquias. Um medalhão que dizia representar a mãe, mas que podia ser o retrato de Gabrielle d'Estrées, um rosário de marfim e, num pequeno estojo de sândalo, uma profusão de colares e anéis de jadeíte, de lápis-lazúli, de coral, de strass, parecia tudo vindo da violação de uma sepultura, mas Maude comentou, como se se tratasse de um verdadeiro tesouro: "Sabes, não digas à tua mãe, será tudo para ti depois da minha morte."
Ethel, à saída, sentiu um ligeiro sobressalto ante a ideia de que, naquele bricabraque, podia encontrar-se um anel ou uns brincos outrora oferecidos por Alexandre, porventura uma recordação de família cobardemente delapidada. No fundo, não era a perda de uma jóia que a enfurecia, mas o ridículo da situação.
Esta bizarra cumplicidade entre ela e o passado, esta loucura do tempo perdido. Os colares, os amuletos, as pérolas, eram igualmente as lágrimas da mãe, os gritos, as discussões que ouvira desde a infância, uma espécie de aversão mútua que se instalara no casal, vivendo cada um numa extremidade do vasto apartamento, separado do outro pelo interminável corredor, como nos confins de um campo de batalha, depois do armistício.
Ethel sentira-se tão enraivecida que passou vários dias sem ir a casa de Maude. Justine cozinhara uma gamela, restos para os gatos, uma trouxa de roupa. "Não vais a casa da Maude?", perguntou. "E porque não vais tu?", replicou Ethel. Sim, porquê? Aquela história antiga, um pouco sórdida, um pouco estúpida, não durara o suficiente? Agora, eram velhos, grassava a guerra, morria-se de fome nos bairros chiques. As mulheres levianas tinham-se tornado indigentes e os conquistadores-de-olhos-bonitos velhos caquécticos.
Ethel retomou o caminho de Sivodnia, e Maude recebeu-a com uma humildade que a envergonhou. Por detrás do ar afectado, dos gestos absurdamente obstinados, Ethel adivinhou a angústia da solidão, o medo da morte, o vazio. Até os gatos se emocionaram. Pela primeira vez, a Minette de pelagem branca e amarela, escanzelada, saltou para o colo de Ethel e começou a agitar as patas e a ronronar. Dir-se-ia que estava tudo combinado. Seria possível que Maude fosse bruxa àquele ponto, que soubesse falar ao ouvido dos animais para os levar a representar uma comédia sentimental? Como para confirmar a cilada, Maude preparara um lanche à sua maneira, chá-sabe-se-lá-de-quê e, em destaque no meio da mesa, pousada num prato, uma única maçã vermelha, luxo incrível nos tempos correntes.
Ethel partilhou o fruto com parcimónia, ela e Maude trincaram cada pedaço sem o descascar, Maude, contudo, servindo-se apenas de metade da boca desdentada. Naquele dia, a história da maçã fez as despesas da conversa: "Imagina que fui ao mercado, sabes, as minhas míseras compras, nada de glorioso, legumes para a sopa, nabos, aquelas raízes, como é que se chamam? Parece que vêm do México, do Brasil, e depois a fressura para os animais..." Portanto, era ela, a sombra entre as sombras, curvada para o chão (o que Alexandre chamava "o apelo da terra"), procurando debaixo das bancas a fruta podre e as verduras fanadas para encher a alcofa.
A guerra poderia ter sido aquele langor, cada dia semelhante ao anterior, mas ao qual faltava um pormenor - uma lenta progressão em direcção ao Inverno. Ethel observava Justine, sentada em frente da janela na poltrona sobrevivente, a paisagem de telhados vermelhos e de palmeiras, a grua emergindo acima dos prédios, o farol em ruínas, o horizonte da cor do aço. Uma paisagem tranquila, que poderia inspirar versos, servir de pano de fundo a uma canção de amor, deserta, intangível, um pouco perlada de frio. À direita, dominando as fábricas de moagem, o mastro grande do veleiro americano afundado no início da Ocupação pelos Alemães, como um apelo ao dó geral, uma asa de albatroz fulminado, a vingança de um velho soldado.
Corria toda a espécie de rumores. Ethel tinha a impressão de se encontrar numa ilha, suficientemente longe de tudo para que alguma coisa lhe parecesse verdadeiramente dramático, mas suficientemente perto para que a vaga de violência chegasse, o sopro da deflagração, algures, paralisando a vontade e a imaginação.
Ethel não podia fazer nada. Falava-se de um exército na sombra, de uma resistência dos patriotas, de soldados britânicos que saltavam de pára-quedas nos campos. Mas onde?
De vez em quando, sentia necessidade de música, não só de ouvir sons, ou de tocar um nocturno. Uma necessidade física, que lhe doía até ao âmago do corpo. Duas ou três vezes, experimentara o velho piano de Maude, porque, mesmo desafinadas, as notas de marfim valiam mais para se treinar do que as facas de prata alinhadas na mesa da cozinha. Mas o que lhe faltava não era um piano, era a vontade. "Toca, minha querida! Toca, que eu cantarei", teria dito Maude. Mas nada acontecera.
Alexandre baixara a cabeça quando, algum tempo depois de Ethel começar a visitar Sivodnia, uma boa alma lhe contara que Maude andava de pátio em pátio pelos bairros chiques cantando árias de opereta e recolhendo o que lhe lançavam pela janela.
Era aterrador. Talvez Alexandre tivesse enxugado uma lágrima furtiva, com a cabeça entalada entre as mãos, era pelo menos o que Ethel gostava de pensar.
Os rumores adquiriam a forma destas falsas notícias que circulavam, captadas pela rádio. Os Ingleses, os Americanos vão... As tropas aliadas começaram a rechaçar os Japoneses para o Pacífico. Os Canadianos enviaram tropas. O papa declarou... O desembarque começou na Calábria, na Grécia... Justine agarrava-se a estas informações, alimentava-se delas, quando as levava para casa, brilhavam-lhe os olhos febrilmente. Era a vingança sobre o tempo em que se limitava a ouvir, a aquiescer, no salão do domingo, onde apenas dissera, numa voz tímida, esse Chemin, esse Talon, não gosto muito deles. O tempo em que encolhia os ombros quando Alexandre se empolgava, blasfemava contra os socialistas, os anarquistas: "Exageras sempre tudo!"
Às vezes, chegava-lhes o eco das prisões. O Hotel Excelsior, perto da gare, onde os prisioneiros dos Alemães eram interrogados, espancados, quase afogados. As caves do Hotel do Ermitage, o palácio onde Alexandre e Justine haviam conhecido o amor, onde os torturados gritavam de noite com vozes de cães, unhas arrancadas, mulheres violadas, um pau espetado até à matriz, os bicos dos seios queimados a maçarico. Justine nunca falava do caso, mas o rumor devia ter-lhe chegado aos ouvidos, desviava os olhos quando Ethel a interrogava. Era como se demónios ocupassem a parte alta da cidade, vigiando as ruas. Por vezes, Ethel cruzava-se com uma patrulha de uniforme esverdeado que marchava num passo cadenciado. Estes soldados não se assemelhavam aos gentis galarotes italianos que lhe transportavam o saco das compras e a ajudavam a empurrar a bicicleta na encosta.
Ethel recebeu uma única carta. Foi o antigo cônsul dos Estados Unidos, um irlandês chamado O'Gilvy, que morava no prédio ao lado. com um ar misterioso, estendeu a Ethel um envelope reforçado, atado com uma guita, sem nome de destinatário. Ethel entreabriu a carta, reconheceu a caligrafia fina e redonda de Laurent. Pegou no envelope, guardou-o no bolso do casaco, um pouco para dar continuação ao jogo de mistério do cônsul. O homem disse-lhe, baixando a voz: "Aconselhe os seus pais a sair da cidade. Os cidadãos de origem britânica já não estão em segurança, devem ir refugiar-se na montanha." Depois, sem esperar pela resposta, deu meia volta, significando deste modo que não deviam voltar a encontrar-se.
Na carta, Laurent, como de costume, não dizia grande coisa. Falava de política, criticava a cegueira dos governantes que haviam deixado acontecer o irreparável. Troçava dos convidados do salão da Rue du Cotentin, de Talon, da generala Lemercier. Ethel adivinhava um rangido nas suas palavras, como se Laurent falasse sozinho. Não dizia nada da sua vida, nada sobre o local em que se encontrava. Era a guerra. Não havia maneira de responder.
Ethel leu a carta duas vezes, surpreendida por experimentar tão pouca emoção. Era tão frio, tão distante, tão inglês. Aquele gosto pelo mínimo, aquele tom levemente jocoso... Havia um país em que se continuava a tomar chá, a conversar, em que se tinha tempo para observar o céu, dissertar sobre a actualidade. Podia-se comentar a história porque se fazia parte dela. Ethel segurava o papel nas mãos, relia as linhas como se tivesse de as decorar. Instintivamente, repetiu o gesto de outrora, aproximar a folha do rosto e cheirá-la, procurar um odor familiar, porventura o cheiro da pele salgada ao sol, na areia das dunas. Depois introduziu-a no fogão, onde ardeu numa única chama clara, um pouco azul.
Partiram de madrugada, furtivamente, se assim se pode dizer. Ethel organizara tudo, a autorização da prefeitura da polícia, os salvo-condutos, os cupões de gasolina - o documento oficial, assinado pelo chefe do Serviço da Circulação no território ocupado, referia uma pessoa idosa e doente, e só era válido para o dia 14 de Dezembro. O velho De Dion, retirado da garagem, realizou o milagre. Percorreu todos os quilómetros sem falhar, numa estrada gelada no fundo dos desfiladeiros onde pendiam estalactites. A casa dos Alberti, em Roquebillière, era uma construção de pedra feia, à saída da aldeia, em frente do Vésubie. Alexandre chegou num estado próximo do coma. Foi preciso transportá-lo para o andar de cima, Ethel e Justine empurrando-o por trás, Mme Alberti içando-o pela frente. Deitaram-no na cama sem o despir. A tez macilenta, o cabelo demasiado comprido, a barba hirsuta conferiam-lhe o ar de um prisioneiro foragido. Justine, que passara a vida à sombra do grande homem, ganhou subitamente coragem. Encarregou-se do minúsculo apartamento, limpou-o, arrumou-o, decorou-o como se fosse aquela a sua residência definitiva. Aos poucos, Alexandre foi-se recompondo. Não era do género de se queixar. Reservaram-lhe um lugar num cadeirão de vime, ao lado do fogão de sala, onde fumava os seus cigarros de rama de cenoura e cerefólio. Ethel pensava que chegaria a manhã em que Justine lhe anunciaria: "O pai faleceu durante a noite."
A vida recomeçou sem que Ethel se apercebesse. Na aldeia, não corriam rumores. As altas montanhas em redor erguiam contra o mundo exterior uma barreira gelada. Os jovens partiam para Itália, em luta contra os fascistas, como quem vai caçar camurças, sem jactância, mas sem se esconderem. Transpunham a fronteira em desfiladeiros perdidos nas nuvens, voltavam providos de charcutaria, tabaco louro, chocolate, caixas de cartuchos. Cobriam-se de peles de carneiros, tinham a pele tisnada, eram barbudos, indómitos. As raparigas pareciam camponesas de Breughel. Ethel vestiu-se como elas, para se disfarçar, mas também porque as admirava. Romeira, saia de lã áspera, lenço preto, galochas. As mulheres da aldeia eram generosas, silenciosas. Ao chegar a casa da viúva Alberti, recomendados pelo pároco do porto, Ethel e os membros da sua família sentiram-se protegidos pela aldeia inteira. Sabia que não seriam traídos, que os aldeões mais depressa se deixariam retalhar em pedaços do que os denunciariam.
Havia falta de dinheiro, mas concederam-lhes crédito em todo o lado, na padaria, no talho. "Quando terminar a guerra", dizia Mme Alberti. Era ponto assente que a guerra terminaria. Ali, não precisavam de andar de olhos postos no chão, de procurar restos entre as bancas do mercado. Não havia tesouros escondidos para trocar contra relógios de ouro ou jóias de família. A terra era pobre e árida, o céu de Inverno apresentava-se limpo, o vento cortante, mas dentro de casa os fogões ronronavam e cheirava bem, a sopa de pão azedo, a fumo de lenha seca. A música límpida do rio ouvia-se em todo o lado.
De manhã, Ethel acompanhava a mãe às compras. Quando chegou a Primavera, o céu encheu-se de andorinhas. O sol iluminava os cumes ainda cobertos de neve, e no vale corria uma brisa suave que transportava o cheiro a mar, um cheiro que arrepiava Ethel.
A faca do açougueiro cortava carne em fatias muito finas, orladas de toucinho branco, imediatamente cobertas por moscas azuis. Justine, por causa das preocupações, dizia, por causa dos esforços que tinha de fazer todas as noites para ajudar Alexandre a ir à casa de banho, desenvolvera uma úlcera na perna direita. Ethel via as mesmas moscas pousadas na perna da mãe, nos bordos da ferida, sentia náuseas, como se as moscas estivessem a comer a mãe ainda viva. Expulsava-as mas as moscas voltavam, colavam-se à chaga, mesmo enquanto Justine caminhava. Precisavam de medicamentos, de ligaduras. O farmacêutico local só possuía azul-de-metileno, produto com que pincelara a perna de Justine, em vão.
Ethel observava os pais, Justine estendida na espécie de sofá que lhe servia de leito, ao fundo da sala de estar, Alexandre afundado na cadeira de vime, cabeça apoiada numa almofada, perto do fogão apagado, um número do Temps que datava do ano quarenta aberto entre as mãos, sonhador, ausente. Era demasiado tarde para saber a verdade, para conhecer a sua verdadeira história, como se tinham conhecido, o que os levara a casar, a querer dar à luz uma filha. Ethel descobria que não sentia amor pelos pais, mas experimentava uma espécie de atracção. Era um laço, porventura um elo. Era capaz de os abandonar a qualquer momento, sair nas pontas dos pés, fechar suavemente a porta atrás de si. Subir para a camioneta de Monsieur Nègre, o merceeiro, como este lhe propusera, e descer os meandros do Vésubie até ao mar. Que poderia acontecer-lhe? Tinha vinte anos, sabia lutar, negociar, achar soluções. Nos postos de controlo, bastava-lhe escolher o guarda da alfândega, o carabineiro, cativá-lo. Atravessaria todas as barreiras. Iria a La Spezia, a Livorno. Embarcaria num navio, iria até ao fim do mundo, até ao Canadá. Nada a deteria.
Certa manhã, no mês de Maio, ouviu um barulho desconhecido. A terra tremia, os vidros das janelas, os copos em cima das mesas. Sem perder tempo a vestir-se, correu para a janela. Afastou a cortina. Pela estrada, ao longo do rio, avançava uma coluna, faróis acesos. Camiões, viaturas blindadas, motas, seguidas de tanques. Cobertos de poeira, ar de insectos em marcha para um novo território. Avançavam lentamente, apertados uns contra os outros. Passaram em frente da casa, subiam para norte, em direcção às montanhas. Ethel permanecia imóvel, quase sem respirar. Atrás dos camiões, os tanques abalavam a terra com o barulho das lagartas. As torres blindadas dos canhões apontavam para a frente. Pareciam brinquedos inúteis.
O barulho acordou Justine. Aproximou-se da janela em camisa de noite, braços ligeiramente afastados do corpo, pés descalços encolhidos na lajes frias. Ethel proferiu, num sopro: "Eles vão-se embora." Não estava muito certa de quem seriam "eles", mesmo depois de, atrás dos tanques, terem aparecido os camiões de caixa destapada onde se encontravam os soldados, e o barulho dos motores se ter tornado ainda mais preocupante. Justine puxava pelo braço de Ethel. "Vem!" Sussurrava como se os soldados nos camiões pudessem ouvi-la. Mas Ethel resistia. Queria vê-los todos, até ao último. Homens envergando sobretudos pesados, apertados uns contra os outros, na sua maioria sem capacete, ar extenuado de fadiga. Nem um ergueu a cabeça para observar as janelas. Talvez tivessem medo. Aquela imagem de vazio penetrou no espírito de Ethel, expulsou todas as recordações anteriores. Mais tarde, virá a saber que os homens que avistou da janela da cozinha, em Roquebillière, eram os restos do exército de África do marechal Rommel, a caminho do Norte, na esperança de alcançar a Alemanha pelos Alpes. Ficará a saber que o chefe não ia na coluna, já regressara a Berlim de avião, deixando as tropas abandonadas num território hostil. Tentará imaginar o que teriam sentido aqueles homens, na plataforma dos camiões, quando se dirigiam para a barreira crescente das montanhas, com a vibração das lagartas dos tanques que os ensurdecia, no maior dos silêncios, sem chefe, sem ordens, para transpor a pé as montanhas cobertas de neve do Boréon, perseguidos pelos lobos.
O silêncio em que mergulharam, dia após dia, só era perturbado pelas notícias que chegavam como um murmúrio longínquo. Depois, num dia de Verão, o bruaá de outro exército, triunfante desta feita, e toda a população desceu à rua para assistir à chegada, como se fosse uma corrida. Justine acompanhou Ethel até à ponte. Por volta do meio-dia, o cortejo entrou na aldeia. À frente, as motas e os jipes, seguidos por camiões de caixa aberta onde se equilibravam, de pé, soldados americanos, britânicos, canadianos. Nos estribos, franceses vestidos à civil agarrados às portinholas, armados de carabinas de caça. Ouviram-se alguns gritos, aplausos. As crianças corriam pela beira da estrada, já tinham compreendido a lição, estendiam as mãos, chamavam os soldados: "Chewing-gum!" Pronunciavam, com o sotaque de montanheses: "chuine-gom-m!"
Barras de chocolate pelo ar, pacotes de pão de arroz, latas de corned-beef, de SPAM. Justine baixou-se, apanhou rapidamente tudo o que estava ao seu alcance. Mas Ethel permaneceu de pé, incapaz de se mexer. Justine, demasiado carregada, passou-lhe para as mãos um pacote de pão e uma lata de SPAM. Ethel olhava sem compreender. Não sentia nada, apenas aquele silêncio ensurdecedor, como após um ruído prolongado. Como se ressoassem interminavelmente as quatro pancadas do Bolero, não de timbale, mas explosões, as das bombas caídas sobre Nice na véspera da partida, que haviam liquefeito o chão da casa de banho do apartamento e accionado todas as sirenes da cidade.
Nessa mesma noite, na cozinha de Mme Alberti, Alexandre e Justine jantavam mergulhando com parcimónia fatias de pão branco na sopa, um pão demasiado branco, adocicado e insípido como uma hóstia, e Ethel sentia na boca o gosto do SPAM de carne rosada, cingida por uma orla de espuma amarela que se derretia na boca.
Laurent voltou da guerra. Uma semana antes, chegou um cartão, um pedaço de papelão impresso pelos serviços do exército britânico em França, indicando simplesmente a data e a hora da chegada pelo comboio de Paris. O cartão especificava a chegada à Gare de Nice, mas toda a gente sabia - excepto com certeza aqueles que a tinham bombardeado - que a ponte do Var deixara de existir, que os comboios não circulavam.
Ethel montou na bicicleta, pedalou ao longo do mar até à foz do Var, onde se encontrava a Ponte Bailey. O comboio estava previsto para as onze horas, mas Ethel estava lá desde as nove. O sol já queimava. Debaixo dos pilares da ponte em ruínas, a fusão da neve engrossara o caudal do rio, estendendo sobre o mar uma mancha lamacenta. Bandos de gaivotas descreviam círculos sobre o estuário em busca de alimentos. A ponte provisória arqueava-se a montante, onde o rio é mais estreito, mas a estrada de acesso parecia um carreiro trilhado no terreno da margem. Gendarmes tentavam canalizar a circulação, os pesados camiões subiam a encosta com dificuldade, os travões chiavam na descida. Uma multidão procurava atravessar, viajantes carregando malas, casais, crianças. Ethel conseguiu passar, com a bicicleta pela mão. com o ruído dos motores, os faróis acesos, o pó e o fumo acre dos gasógenos, tinha a impressão de que ainda não se instalara a paz.
Na Gare de Saint-Laurent, as coisas não corriam melhor. As locomotivas tentavam manobrar para voltar a partir, os maquinistas gritavam, os chefes de estação apitavam ordens contraditórias, as próprias agulhagens pareciam queixar-se. Os comboios de partida para Marselha iam tão carregados que as máquinas de tracção patinavam soltando centelhas, para grande satisfação das crianças.
A cada chegada, vagas de homens e mulheres comprimiam-se nos cais para atravessar a porta estreita. Soldados fardados, prisioneiros libertados, alguns exibindo pensos. Ethel punha-se nas pontas dos pés. Não sabia verdadeiramente o que a levara ali, Laurent talvez chegasse de outro lado. O seu coração pulsava de forma acelerada, contra a sua vontade, Ethel dizia para consigo que estava a comportar-se como uma mulher leviana, ou uma noiva. Para sua boa consciência, concluíra que, de qualquer modo, mesmo não encontrando Laurent, sempre podia voltar para casa com legumes comprados aos agricultores da beira do rio. Era o único lugar onde ainda se viam cenouras, nabos, acelgas. com sorte, meia dúzia de ovos.
Os passageiros do comboio proveniente de Paris já tinham descido. A multidão espalhara-se à volta de Ethel. Os olhos escrutavam-na, por vezes olhavam-na, sorrindo, esperançados. E, de repente, quando se preparava para partir, viu-o. Laurent estava ao fundo do cais, aguardava-a. Uma silhueta estranha, num vestuário demasiado folgado para o seu corpo magro, as calças de caqui enfunadas, os sapatos pretos e a mala na mão, como quando desembarcara de Newhaven para ir à Bretanha. Ethel achou que ele tinha alguma coisa de Charlot soldado, sentiu vontade de rir.
No momento seguinte já se beijavam, não o beijo apaixonado de dois namorados que se reencontram após uma longa ausência, mas um abraço viril, os braços de Laurent enlaçando os ombros de Ethel, estreitando-a com força contra o peito.
Ethel perguntava-se se estaria a sentir alguma coisa, uma pequena recordação do último Verão no Pouldu, o contacto do casaco militar áspero, e o cheiro daquele homem, o som da sua voz ressoando no seu peito. Procurava recuperar o tempo passado, quando estavam deitados na areia da duna, e podiam acreditar que tudo seria fácil, que aquele momento perduraria por toda a vida.
Laurent mantinha-se hirto, distante, como era seu hábito. Ao vê-la, esteve quase a apertar-lhe a mão, sem a tratar por tu. Pensara nela a todo o momento, durante a sua ausência, no odor do seu cabelo, no gosto a sal dos seus lábios, na areia incrustada nos poros da pele. Escrevia-lhe poemas que não podia enviar.
O silêncio construíra uma barreira invisível entre eles. Laurent envergonhava-se de se ter esquecido da foto de Ethel na parede da camarata, em Southampton, onde a espetara logo de início para fazer como os outros.
Seguiu-se o regresso de bicicleta, as margens do rio, o caminho ao longo do mar, mas nada se assemelhava aos pequenos carreiros do Pouldu. A Promenade estava obstruída por obstáculos e arcos de arame farpado, por guaritas abandonadas. Em vez de esperarem por um lugar nos autocarros apinhados, tinham-se feito à estrada. Laurent pedalava de pernas abertas, Ethel ia sentada no quadro, em posição de amazona, com um braço a enlaçar o pescoço de Laurent. A pequena mala ia presa ao tansad, o cesto dos legumes! Era divertido, era épico. Demasiado carregada, a velha bicicleta gemia e avançava aos ziguezagues. Pararam diversas vezes para descansar no muro de sustentação, de pernas penduradas no vazio, frente ao mar. Ao longo dos caminhos, os transeuntes olhavam para o jovem par, o militar britânico de cabelo ruivo, e a noiva francesa, de lenço na cabeça e galochas. Aplaudiam, e Laurent respondia com toda a seriedade, fazendo o V da vitória de Churchill. Descobriu mesmo um fotógrafo de imprensa que os fixou num cliché que deve ter vendido para ilustrar a primeira página do jornal e, quem sabe?, dar a volta ao mundo. Ethel ria-se. Era a primeira vez, há muito tempo, que os olhos se lhe marejavam de lágrimas, mas era bom. Os seus corações despertavam, saíam da hibernação. Reencontravam cada segundo de memória, mesmo sem inocência. Lembravam-se de ter sido felizes.
Laurent visitou uma única vez os Brun, alojados na mansarda. Justine recebeu Laurent com um "nosso salvador" exagerado, e Alexandre não deu mostras de o reconhecer. Não abandonou o seu mutismo mas, no momento da partida, apertou as mãos de Laurent sem querer largá-las, uma expressão angustiada nos olhos. Talvez compreendesse que estava a perder Ethel para sempre.
Antes de partir para Paris - desta vez num autocarro da companhia dos Phocéens -, Laurent perguntou a Ethel: "Vais viver comigo para o Canadá?" Ethel não respondeu. Não lhe pediu que definisse o que queria dizer aquele "viver comigo". Ser amante dele, sua mulher? Laurent ofereceu-lhe o seu último poema, escrito na véspera de partir de Inglaterra. Uma folha gasta, húmida, de cheiro esquisito, como suor, fadiga.
As letras a lápis começavam a apagar-se. Ethel leu:
Em cada momento sem motivo penso em ti Nos teus olhos na tua voz
Na maneira que tens de terminar as frases No odor do teu rosto
Do teu cabelo molhado
Na maré que subia dentro de nós deitados na areia
Nos espinhos que retirava dos teus pés quando caminhávamos pelas
dunas Viveste todos os segundos comigo na promiscuidade das barracas de
Southampton De Portsmouth
De Penzance
E amanhã tocarei o solo de França Tocar-te-ei
ADEUS
à França, adeus ao passado. Adeus a Paris.
Antes de partir para Toronto, Ethel caminhava pela cidade que conhecia melhor do que ninguém no mundo. Respirava o ar quente, à beira do Sena, via a água brilhar entre a folhagem dos castanheiros. Pairava uma leveza no céu, as cúpulas e as torres pareciam flutuar acima dos telhados das casas. Cruzava-se com pessoas de todas as espécies, bandos de raparigas sorridentes, trocistas, banais, rapazes que a observavam a despeito do velho casaco comprido castanho no qual se escondia. Nas esquinas, nos recantos das portas, nas esplanadas dos cafés, os homens conversavam e fumavam, comentavam as notícias, ou os resultados das corridas, com o entusiasmo que demonstrariam se estivesse em causa o seu futuro. Ethel tinha a impressão de se encontrar numa capital estrangeira.
Do lado da Rue du Cotentin, pelo contrário, nada mudara. O banco alugara o apartamento e o atelier. Consta que muita gente enriqueceu comprando ao desbarato os bens dos colaboracionistas em fuga. E Chemin? E Talon? Ethel tinha a certeza de que se tinham saído bem. Deviam mesmo ter espalhado a ideia de que geriam o melhor possível os bens confiscados aos judeus. O atelier de Mlle Decoux estava ocupado por uma agência de seguros. Ethel lembrou-se dos animais. Como teriam sobrevivido? Deviam ter acabado numa panela como a maior parte dos gatos de Paris. Passando rente às paredes do seu bairro, em direcção ao liceu da Rue Marguerin, pareceu-lhe que se esgueiravam fantasmas entre os transeuntes, a afloravam, a espiavam por detrás das cortinas das janelas. Na Rue de l'Armorique, números 32 e 34, o prédio que determinara o futuro dos Brun estava finalmente pronto. Era uma construção alta encostada a uma outra, do lado esquerdo, cinco pisos de uma pedra triste que parecia cimento, janelas quadradas, uma espécie de muralha feia e cega que parecia estranhamente apertada, como se, com o tempo de infortúnio o edifício tivesse comido a terra. À direita, a casa de Conard, o principal inimigo da Casa Cor de Malva, estava abandonada. Seria de crer que um dia a arrasariam por sua vez e substituiriam por um prédio. Ethel não se deteve. Não procurou ler os nomes dos habitantes nas caixas de correio. Saboreava uma vitória amarga, pois fora ela que impedira o arquitecto de acrescentar o mínimo embelezamento àquele conjunto, rejeitando tudo, os acantos e as cariátides, os mosaicos e os motivos decorativos de formas arredondadas. Só o nome continuava escrito no lintel da porta de entrada, ridículo, vagamente mortífero: A Tebaida.
Excepcionalmente, debaixo de chuva, antes de partir, Ethel pediu a Laurent que a acompanhasse ao Cemitério Montparnasse, à procura do túmulo do tio-avô.
O guarda folheou o registo das concessões perpétuas, indicou o local: "Não há equívoco possível, é ao lado do arcanjo Gabriel." Efectivamente, encontraram uma lápide de mármore cinzento, sem ornamentos, com nomes gravados, alguns ainda legíveis, outros quase apagados. O nome de Samuel Soliman seguido de duas datas: 8 de Dezembro de 1851 - 10 de Setembro de 1934. Apenas um nome, e o rumor da sua lenda.
De Monsieur Soliman, Ethel só guardou uma foto, um velho trajando um fato à moda antiga, de chapéu de feltro na cabeça, bigode e suíças. Ao seu lado, uma menina bem-comportada, de cabelo encaracolado, envergando um vestido direito de gola à marinheiro, exibindo na mão um arco maior do que ela - Ethel. É verdade que, de certo modo, Monsieur Soliman se assemelhava ao arcanjo Gabriel, alto e forte, de suíças que mais pareciam asas, bengala na mão em jeito de espada.
Deixaram-se estar um longo momento em frente da lápide, a ouvir a chuva tamborilar no guarda-chuva. Do cemitério elevava-se um vapor, um cheiro a terra e a erva. Algures nos maciços de loureiros ouviam-se gritos de melros. Aquele podia ser um lugar onde ir frequentemente, pensou Laurent, como quem visita um parente muito idoso. Munido de uma escova de dentes e de uma colher de pedreiro, para limpar, colmatar as juntas. Para reforçar as letras ilegíveis. Laurent sentiu um aperto no coração. Não tinha nenhum túmulo familiar onde se recolher, nenhuma concessão perpétua, nem sequer uma simples lápide assinalada com o nome da tia. Nada que o prendesse àquele solo.
Laurent e Ethel casaram precipitadamente, quase sem reflectir. Na pequena Igreja Saint-Jean-Baptiste-de-La-Salle, sob o painel de Lelouét de que Alexandre Brun tanto gostava de troçar - "Deixai vir a mim as criancinhas, seria sobretudo um elevador para a morte!"
Laurent Feld não invocou objecções de consciência. Afinal, Jesus também era judeu! As testemunhas eram, do lado de Laurent, a irmã Edith e, do lado de Ethel, o velho capelão do tempo da sua comunhão solene.
Ethel gostaria que tivesse sido Xénia, mas os anos de guerra destruíram tudo, apagaram tudo. Xénia e Daniel Donner encontravam-se ausentes, tinham partido sem deixar o novo endereço, para o outro lado do mundo, ou talvez para a Suíça.
Justine não pôde, ou não quis ir. Desculpou-se com Alexandre, com o seu estado de saúde que se deteriorara muito nos últimos tempos, com a falta de dinheiro, a fadiga. Mas devia tratar-se de vergonha, de qualquer coisa no género. Não queria voltar a ver a cidade da qual fora expulsa, sentia-se despeitada, revoltada. "Para quê? Nem sequer vais viver em Paris." Ethel fingiu acreditar. "Então irás visitar-nos." Justine prometeu. Mas apanhar o barco, comboio... Era uma separação definitiva.
Em Paris, no mês de Agosto, o calor era sufocante, a liberdade inebriava de novo. Bandeiras, estandartes. Nas calçadas ainda desertas, os blindados dos Britânicos, dos Americanos, dos Canadianos, seguidos pelas viaturas desconjuntadas das F.F.I.1 Os patriotas atravessavam as praças em autocarros, agitavam bandeiras. No meio da multidão, Ethel foi arrastada por um grupo de homens, arrebatada como numa corrente violenta, a sua mão procurava a de Laurent. Obrigavam-na a dar voltas, a rodopiar, a dançar ao som de uma orquestra dissimulada entre os arbustos. Um dos homens beijou-a brutalmente, desajeitado, apalpando-a, tocando-lhe os seios. Ethel debateu-se, gritando e os homens fugiram a correr, perderam-se na noite. Ethel abraçou-se a Laurent, de pernas trémulas, o coração aos pulos. Quando Laurent
1 F.F.I. (Forças Francesas do Interior) - Conjunto das forças da resistência francesa interna, unificadas em Fevereiro de 1944. (N. da T.)
lhe disse que eram soldados canadianos, sentiu estranhamente um certo prazer, riu-se. Eram então assim, os seus novos compatriotas! Quase desejou voltar a vê-los, saber os seus nomes.
Nos dias que se seguiram ao casamento, andaram por todo o lado, de hotel em hotel. Ao acaso, de bairro em bairro. Rue Blomet, Hotel Blomet. Rue Falguière, Hotel Fleuri, Rue de Vaugirard, Hotel Plomion, Rue Dutot, Hotel du Voyage. Do lado das gares, Rue d'Édimbourg, Hotel d'Édimbourg, Rue Jean-Bouton, Hotel dês Voyageurs, Rue du Départ, Hotel de Bretagne. No Quartier Latin, Rue de Buci, Hotel Louisiana, Rue Monsieur-le-Prince, Hotel dês Balcons, Rue Serpente, Hotel dês Écoliers. Depois a norte, no bairro de La Goutte-d'Or, em Montmartre, nas Buttes-Chaumont. Os quartos eram exíguos, sobreaquecidos, mas na casa de banho os duches eram de água fria por falta de carvão para aquecer a caldeira. Chegavam sem bagagem, Laurent levava a pequena mala com o estojo de barba e alguns acessórios de beleza para Ethel, roupa interior. Às vezes, o olhar do porteiro brilhava, ou a patroa chamava-lhes "pombinhos", qualquer coisa do género, com um ar entendido. Ethel não apreciava muito: "Estás a ver, pensam que não somos casados!" Mas Laurent não se importava, chegava a fingir que se enganava escrevendo na ficha de registo Mademoiselle... antes de corrigir imediatamente: Madame.
Outrora, haviam projectado outras viagens, explorar a Bretanha, ir à Irlanda. Agora, contentavam-se em dar voltas a Paris, de autocarro. Faziam piqueniques nas margens do Sena, iam até ao Marne. Numa tarde, Ethel quis levar Laurent ao sítio onde dantes se encontrava com Xénia, a Allée dês Cygnes. Voltou mesmo a ver, de pé como uma estátua de gesso escamado, o velho sátiro que espreita os namorados no meio da vegetação.
Puxando Laurent pela mão, Ethel conduziu-o até à árvore-elefante, de onde se vê muito bem a Torre Eiffel. Ficaram de pé, porque os bancos tinham sido roubados, e a margem estava demasiado lamacenta para se sentarem. Os barcos passavam devagar, rasgando com a roda da proa uma vaga de água suja. Ethel queria mostrar a Laurent tudo aquilo de que gostava, as cabeleiras de algas na corrente, os turbilhões de luz, as flores de espuma agarradas às raízes imersas. Mas Laurent não se manifestava. Acendeu um cigarro, lançou-o de imediato ao rio, com um piparote. Não quis ficar ali, Ethel pensou que fosse por inveja, por ela ter ido àquele sítio na companhia de Xénia.
Um pouco mais tarde, no quarto do Hotel dês Entrepreneurs, na rua do mesmo nome, Laurent explicou-se: "É um lugar terrível para mim. Mesmo em frente do Vél'd'Hiv, para onde a polícia levou a minha tia Léonora, com todos os judeus de Paris, antes de ser deportada para Drancy. Não quero vê-lo, aproximar-me, compreendes?"
Ethel não percebia. Porque não soubera de nada? Compreendia por que razão Laurent queria partir, nunca mais voltar. Não era pela aventura, nem por ter encontrado trabalho no Canadá. Ethel também nunca mais voltaria.
Laurent levou Ethel uma única vez ao apartamento da tia, Rue de Villersexel. Nunca apresentara Ethel à tia, por timidez, ou por falta de ocasião. Subiram pela escada até ao segundo andar, o elevador estava avariado desde o princípio da guerra. Era um belo prédio de tijolos, com um átrio de entrada de portas trabalhadas e vitrais, escadas de madeira escura guarnecidas por uma velha passadeira vermelha gasta até ao fio. Um local silencioso, algo inquietante. No segundo andar, Laurent deteve-se em frente de uma porta. Por cima do botão da campainha, uma placa de cobre, na qual Ethel leu um nome: Visconde d'Adhémar de Berriac. Ethel pensou que parecia um dos famosos patronímicos mauricianos. Laurent deixou-se estar um momento em frente da porta, como se reflectisse. "Não tocas?", perguntou Ethel. Laurent amuou. "Não vale a pena, não sabem nada. A Edith pediu-lhes. Acabam de se mudar para aqui. Ninguém sabe nada, é como se a minha tia nunca aqui tivesse vivido." Recuou lentamente, de olhos sempre fixos na porta, uma porta bastante feia, de verniz escamado, apresentando marcas de pancadas na parte inferior, podiam ter sido feitas pelos polícias que haviam batido impacientemente com as botas enquanto a velha senhora enfiava o roupão? Não voltaram a falar do caso durante o resto do dia, nem nos dias seguintes. Não se aproximaram mais nenhuma vez da Allée dês Cygnes ou da Ponte de Grenelle. Ressoava na cidade, como numa sala demasiado cheia, o barulho da festa, da embriaguez da liberdade. Ouvia-se o ruído dos motores, as buzinas, a música dos cafés, os bailaricos na Place de la Bastille, na Place Maubert, na Porte Saint-Antoine. Laurent, todavia, não podia deixar de pensar naquela chaga aberta, naquela zona de silêncio no centro de Paris, na terrível pista de ciclismo, nas bancadas, nas portas fechadas sobre aqueles homens e mulheres, aquelas crianças. Presos nas suas próprias casas de madrugada, e conduzidos na ignorância, na inconsciência do que os esperava. A quem os polícias, simpáticos, haviam dito, não se preocupem, trata-se simplesmente de um controlo, sabem, as novas leis, é para vosso bem, para vossa segurança, o governo protege-vos, não têm nada a recear, não vale a pena transportar o que quer que seja, estarão de regresso a casa logo à noite.
Laurent falou da prisão de Drancy, era a primeira vez que Ethel ouvia tal nome - grandes edifícios ao Norte de Paris, construídos antes da guerra para servir de caserna, ó ironia!, aos gendarmes, e nos quais Daladier mandara encarcerar os comunistas. Que tinha a tia Léonora a ver com os comunistas? Depois não disse mais nada, talvez por não saber. No comissariado do bairro, na prefeitura de polícia, calavam-se. Evocavam prudentemente um inquérito em curso, sugeriam delicadamente que apresentassem queixa. Onde estavam os responsáveis? Em fuga, ou teriam sido mortos no momento da Libertação, enforcados nos candeeiros públicos? Haveria com certeza processos, condenações. Mas o silêncio que crescia no coração de Paris, em frente da Allée dês Cygnes, como poderia ele resolver-se?
Laurent mudara. Já não era o rapaz que Ethel conhecera dantes, que corava por tudo e por nada, e de quem as raparigas troçavam. Alguma coisa endurecera dentro dele. Durante as noites de núpcias através dos bairros, falava pouco. Apanhava o autocarro com Ethel e caminhava pelas ruas num passo apressado. Quando encontrava um hotel, arrastava Ethel para o quarto. Tinha pressa de fazer amor, até que os corpos estivessem encharcados de suor, ofegantes, mergulhados numa espécie de insensibilidade próxima da dor.
Ethel nunca imaginara poder encontrar-se naquele estado. Era ao mesmo tempo brutal, animal e transbordante de entusiasmo e desejo. Deixava-se arrebatar como daquela vez na multidão em que os soldados canadianos a haviam arrastado para a sua dança. Agora, era ela que pedia, que exigia. Abraçava Laurent, pernas entrelaçadas, ventre contra ventre, formando um ser único, partilhando a mesma pele. Respiravam ao mesmo ritmo, estremecia-lhes a mesma energia nos músculos, nos tendões. Mal terminavam o acto, Ethel olhava para Laurent, de olhos febris, sem sorrir: "Começamos outra vez?" Como se, de cada vez que retomasse o pé, a corrente a arrastasse de novo.
Já não se falavam. Certa vez, ele contara episódios da sua guerra. Uma operação no Norte de França, ao longo de um rio do qual nem sabia o nome. Prisioneiros por todo o lado, esfarrapados, alucinados, esfomeados, de olhos claros nos rostos sebentos, semelhantes a mendigos, a assassinos. Talvez não tivesse havido guerra, pensava Ethel. Como para ela e a família vagueando pelas ruas, depois escondidos na montanha. Só crimes, crimes e criminosos, bandos espalhados pelos campos para pilhar, matar e violar. Ethel não falara a Laurent da fome que lhe roía o ventre todos os dias, dos velhos que disputavam os detritos entre as bancas dos mercados, da Cote d'Azur, dos vales do interior onde a vida decorria devagar, das nuvens de moscas que devoravam a perna de Justine. Eram coisas difíceis de contar. Acontecidas num outro mundo.
As notícias de Xénia chegaram de forma totalmente inesperada. Laurent leu um número de Ulllustration, no qual se comentava um acontecimento mundano, um desfile de moda em Paris, no Bois de Boulogne, no Relais. A foto não era muito nítida, mostrava jovens da fina flor da burguesia mas, no texto, referia a condessa de Chavirov. Telefonando para o Relais, depois para a agência, Ethel conseguiu contactar Xénia. Ao telefone, a voz continuava a mesma, um pouco grave, roufenha. Havia um distanciamento. Ainda assim, combinaram encontrar-se, não na Allée dês Cygnes, mas na esplanada do Café du Louvre. O que também marcava a mudança.
Ethel foi a primeira a chegar, não se sentou de imediato. Nem sequer estava certa de querer ficar ali. Xénia apareceu sozinha. Parecia mais alta, mais magra. Não trajava nenhum vestido extravagante, mas um fato de saia e casaco clássico, e o cabelo apanhado na nuca. Ethel não a teria reconhecido. Beijaram-se e Ethel reparou que Xénia perdera o cheiro a pobreza que dantes fazia pulsar o seu coração emocionado. Falaram disto e daquilo, como para evitar o passado. O olhar de Xénia continuava a ser o mesmo, mas mais frio.
"E tu?"
Acabara de falar do seu casamento, da empresa de alta costura que pretendia criar, do apartamento que Daniel comprara num bairro chique, perto da Torre Eiffel. Ouvia Ethel distraidamente. Tinha tiques nervosos que Ethel não lhe conhecia, coçava a têmpora direita, estalava as cartilagens dos dedos.
O sol incidia na esplanada, o tempo já aquecera. Aos poucos, tinham reencontrado o antigo enlevo. Xénia não perdera o jeito volúvel de mudar de conversa a todo o momento, troçava das jovens de vestidos curtos sentadas na companhia de soldados americanos. "As mesmas que traficavam com os alemães no Inverno passado!" Recordaram os tempos do liceu na Rue Marguerin, os vigilantes, o professor de Francês que seduzia as alunas, Mlle Jeanson com o vestido cuja saia esvoaçava ao vento, as colegas, as que se tinham casado por terem engravidado, as que tinham encontrado emprego no Ministério da Marinha, ou nos Correios. Quando Ethel falou de Laurent e da sua nova vida com ele, no Canadá, Xénia não lhe pareceu agradada. Não conseguia imaginar que Xénia pudesse invejá-la, pertencer àquele grupo de pessoas que não aceitam a felicidade dos outros. "Sinto-me satisfeita por ti, porque francamente..." Que estava ela a dizer? Xénia prosseguia, e por uma vez não era sarcástica. "Sabes, quando conversava com as outras, no liceu, pensávamos que a tua vida descambaria, serias como a Karvélis, ou como a mulher que esculpia gatos, de quem me falaste, como se chamava ela?" Ethel encarava Xénia, surpreendia-se por não sentir vergonha. No fundo, preferia que tudo terminasse de forma banal. Uma vez passada a graça da juventude extrema, não restava de Xénia mais do que uma mulher como as outras, ainda bonita, sem dúvida, mas algo ordinária, maldosa, provavelmente insatisfeita. Tanto melhor. Não podemos passar a vida a adorar um ícone.
Neste ponto, chegou Daniel Donner. Não correspondia ao que Ethel imaginara. Era alto, moreno, elegante, ar compenetrado.
Sentou-se em frente de Xénia para beber um expresso. Não falava muito, fumava cigarro após cigarro, limpava cuidadosamente os óculos. Num determinado momento, como Ethel evocasse o trabalho de Xénia, a possibilidade de criar uma marca própria, de alargar o projecto à América, Daniel interrompeu-a: "Por mim, tudo o que desejo é viver uma vida normal." Ethel sentiu-se ofendida em nome da amiga, mas Xénia não parecia interrogar-se sobre o que seria, para aquele homem, uma "vida normal". Dominava Daniel, era sua proprietária, estava preparada para aceitar tudo. Ethel compreendeu que nunca mais existiria amizade entre as duas. O que lhe foi confirmado logo de seguida, por um breve olhar trocado entre Xénia e Daniel que parecia significar: "Então, vamos?"
Ethel levantou-se precipitadamente, insistiu em pagar a conta. Apertou a mão a Daniel, acenou ao de leve a Xénia, balbuciou: "Da Svideniya?" em memória dos tempos passados. Talvez sentisse confusamente que também ela se tornara egoísta. Partiu a correr, como se estivesse atrasada.
Alexandre morreu num daqueles dias, enquanto Laurent e Ethel vagueavam pelas ruas de Paris, de hotel em hotel, incontactáveis. Um edema que se apoderara dos pulmões, sufocara. A guerra dos micróbios prolongara-se para lá do armistício e dos bombardeamentos. Foram eles que o levaram.
O funeral realizou-se em Nice, num cemitério novo, na zona alta ocidental, muito longe da cidade, uma necrópole para estrangeiros, simples túmulos de betão na encosta da colina. Não havia por onde escolher. O jazigo de Montparnasse, onde repousava Monsieur Soliman, tornara-se inacessível, não havia caixões herméticos para a viagem de comboio, e o tempo estava muito quente. Quando Ethel chegou, Alexandre estava na morgue.
A funcionária explicou-lhe que era por causa do calor, tratava-se de uma emergência. Ajudada por Laurent, Ethel ocupou-se de tudo, pagou tudo, com o dinheiro do marido. No frontispício do reduto mortuário, recusou qualquer fraseologia, perante o agente funerário escandalizado: "Pelo menos, R.I.P.1, mademoiselle, é o mínimo." O homem devia ser pago à linha. "Não, o meu pai detestava latim. Escreva apenas o nome, a data de nascimento e a data da morte, mais nada." Ethel retomara o tom com que recusara as cariátides na fachada da Rue de TArmorique.
Num instante, toda a gente, ou quase, acorreu a casa de Justine. As tias mauricianas, os primos do lado Soliman, e mesmo o coronel Rouart e a generala Lemercier, que tinham engolido os rancores do passado. A cena podia criar a ilusão de uma família de novo reunida, como se nada tivesse acontecido, ou a morte de Alexandre destruísse a inépcia daquelas pessoas, alheias ao drama e ao horror que assim chegava ao fim.
Ethel observava-as atentamente, procurava inseri-las no passado, no tempo da sua infância. Mas o espírito já não era o mesmo. A fissura não podia ser colmatada. Ethel tinha pressa de partir para o outro lado do mundo, de começar finalmente a viver.
Depois do velório e do funeral, Justine organizara uma breve reunião em sua casa. Não era o salão da Rue du Cotentin com os seus cânticos e conversas brilhantes. Mas, através da janela da mansarda, via-se o mar brilhar ao longe, de novo os veleiros e as embarcações que regressavam da pesca, os cargueiros da Córsega que se dirigiam para a baía de Villefranche. Imóveis ao largo, como cérberos, os cruzadores britânicos e americanos. No porto, a reconstrução já começara, os muros de protecção eram demolidos a golpes de maça, tal como as plataformas dos canhões e, à noite, a luz do farol iluminava de novo a sua torre de Meccano.
1 R.I.P. - Abreviatura de requiescat in pace. (N. da T.)
"Porque não vais viver connosco?", insistiu Ethel. Justine nem sequer soltou um suspiro. "Que faria eu naquela terra? Só vos atrapalharia... Estou velha, cansada. Espero que venham ver-me, de vez em quando."
Teve um gesto instintivo, quase chocante. Pousou a palma da mão no ventre de Ethel: "Quando ele nascer, previne-me, para lhe dedicar uma pequena oração." Como adivinhara? A interrupção das regras, Ethel ainda não tinha a certeza, nem sequer dissera a Laurent. Justine esboçou um breve sorriso cúmplice, uma espécie de esgar enternecido. "Escreve-me e diz-me se o ventre cresce em bico, ficarei a saber se é um rapaz."
Era Justine que tinha razão, por uma vez. Já pertencia àquela cidade. Da varanda do quarto, debruçando-se, avistava ao fundo da baía a colina íngreme onde Alexandre fora enterrado. No pequeno apartamento no cimo do prédio, Justine reunira todas as recordações da vida em comum, os objectos, os livros, os móveis que haviam sobrevivido à mudança e à venda em leilão. Quadros, gravuras. Um desenho feito a esfuminho por Samuel Soliman, aos dezassete anos, antes de abandonar a ilha Maurícia, que representava Pieter Both ao luar. No corredor, pendurara religiosamente a panóplia das bengalas-espadas que atravessara a França de automóvel. Depois da morte de Alexandre, Justine desenvolvera um bom sentido dos negócios. O que restara da herança do tio, colocado em títulos de renda vitalícia num notário, permitia-lhe sobreviver. Deste modo, ainda podia continuar a dar um pouco de dinheiro à tia Milou, facilitar a sua entrada para uma casa religiosa. Os outros possuíam o suficiente para se desenvencilhar. Talvez já tivesse perdoado a Maude e lhe enviasse pequenas dádivas para que não morresse de fome. Uma ou duas vezes por semana, talvez tomasse pessoalmente o caminho de Sivodnia.
HOJE
Talvez fosse ao fim do dia. Em Julho, em Paris, o calor torna os quartos de hotel sufocantes. Para escapar ao abafamento, caminho de manhã à noite, caminho ao acaso pelas ruas.
Não fui visitar monumentos. De certo modo, não me sinto turista. Alguma coisa me prende a esta cidade, apesar da distância, sem que consiga dizer o que é. Um sentimento estranho, entre a culpabilidade e a desconfiança - ou talvez despeito amoroso. Instintivamente, os meus passos - e as mudanças de autocarro - conduziram-me ao Sul da cidade, ao bairro que eu conhecia bem por ouvir dizer. Foi a sucessão dos nomes das ruas, boulevards, avenidas, praça e pracetas que a minha mãe repetia desde a minha infância, e aprendi de cor. Sempre que ela evocava Paris, ocorriam-me nomes:
RUE FALGUIÈRE
RUE DU DOCTEUR-ROUX
RUE DÊS VOLONTAIRES
RUE VIGÉE-LEBRUN
RUE DU COTENTIN
RUE DE L'ARMORIQUE
RUE DE VAUGIRARD
AVENUE DU MA1NE
BOULEVARD DU MONTPARNASSE
E também:
RUE DÊS ENTREPRENEURS
RUE DE LOURMEL
RUE DU COMMERCE NOTRE-DAME-DU-PERPÉTUEL-SECOURS
Procurei o local onde outrora se encontrava o Vél'd'Hiv.
Hoje, chama-se Plate-Forme.
Uma esplanada elevada, deserta, batida pelo vento, onde brincam algumas crianças. Está rodeada por edifícios altos, torres de quinze andares, num tal estado de devastação que, de início, julguei-as condenadas. Depois vi roupa a secar nas varandas, parábolas, cortinas nas janelas. Floreiras com gerânios secos.
É um deserto, um no man's lana suspenso. Os edifícios ostentam nomes estranhos, pretensiosos, um cenário de ficção científica: chamam-se Ilhéu Orion, Torre Cassiopeia, Betelgeuse, Cosmos, Ómega, Torre das Nebulosas, Torre dos Reflexos. Dantes, ter-lhes-iam dado nomes de deusas gregas, indianas, escandinavas. No tempo em que foi construída a Plate-Forme, os arquitectos sonhavam com espaço, voltavam de outros mundos, tinham sido raptados por extraterrestres - ou então iam demasiado ao cinema.
Caminho sobre a Plate-Forme fissurada. Não há sombra, o cimento e as paredes dos prédios reflectem uma luz crua que magoa. Os garotos que vi há pouco aproximaram-se, o som das suas vozes ressoa como uma espécie de eco. Um deles, ouvi os outros chamar-lhe Hakim, chegou-se a mim: "Que procura?" E provocador, agressivo. Esta esplanada abandonada, estas torres, são deles, formam o seu campo de jogos e aventuras. Aqui, debaixo dos seus pés, há cinquenta anos, aconteceu uma coisa atroz, impossível de imaginar, imperdoável. Talvez as mesmas vozes das crianças que brincavam às escondidas entre as filas de assentos, que riam, se interpelavam, e o mesmo eco que ressoava contra as paredes fechadas do estádio, sobrepondo-se aos queixumes e às recriminações das mulheres. Na Plate-Forme, caíram das fachadas pedaços de betão. A Torre dos Reflexos é revestida de ladrilhos azul-turquesa. Orion é azul-noite. O Cosmos é riscado por longas varandas ornadas de uma roda na qual se fixa uma espécie de cruz ansada, que já foi dourada, e recorda a cruz ankh dos antigos Egípcios. São pirâmides da nossa era, tão vaidosas e inúteis quanto os seus gloriosos antepassados certamente menos duradouras. Uma torre imensa e estreita, cilíndrica, semelhante a um minarete, domina o bairro inteiro e, pela sua posição, calculo que deva encontrar-se exactamente no centro geométrico da pista do Vél'd'Hiv.
Ao fundo das esplanadas, ultrapassado o restaurante chinês abandonado, as escadas apodrecidas de Berenice (mais um nome estranho), deparei com a cidade. Abaixo da Plate-Forme, as ruas cobertas, as garagens, a estação de serviço Fina, um superqualquer-coisa, séries de escritórios vazios, quase suspeitos. Rue dês Quatre-Frères-Peignot, Rue Linois, Rue de l'Engénieur-Robert-Keller. Onde se situavam as bancadas? Onde era a porta pela qual Léonora deve ter passado, com todos os prisioneiros, quando desembarcou da viatura da polícia? Quem os aguardava? Havia alguém a tomar nota dos nomes, como nos convites para uma festa? Ou abandonaram-nos ali, à entrada, ao sol, a olhar para a gigantesca pista de circo, como se os jogos fossem começar? Léonora deve ter procurado com os olhos um rosto conhecido, um lugar para se sentar, um recanto à sombra, porventura os WC. Deve ter-se apercebido rapidamente da armadilha que se tinha fechado sobre ela, sobre todos aqueles homens e mulheres, sobre as crianças, compreendendo que não seria só por uma hora ou duas, nem por um dia, mas para sempre, que não haveria saída, nem esperança...
Empurrei a porta do Museu da Fotografia ao lado da sinagoga. Diz-me o instinto que deve ser na vertical da alta chaminé branca no centro da Plate-Forme. Não estou particularmente interessado nos locais de culto. Aqui, é diferente. Os rostos das fotos penetram no meu espírito, abrem caminho até ao coração, entram na memória. São rostos anónimos, sem nenhuma relação comigo, e no entanto sinto o choque da sua realidade, como outrora, quando lia nos arquivos da Rue Oudinot os registos dos escravos vendidos em Nantes, Bordéus, Marselha.
MARION, CÂFRESSE, ÍLE DE FRANGE, KUMBO, CÂFRESSE, ÍLE DE FRANGE. RAGAM, MALBAR, PONDICHERRY. RANAVAL, MALGACHE, ANTONGIL. THOMAS, MULÂTRE, BOURBON.
As crianças de pé à beira da pista, os adultos atrás. Em Drancy, ao pé dos grande edifícios rectilíneos, tão semelhantes aos dos novos guetos de Satrouville, Rueil, Lê Raincy. Envergam sobretudos demasiado quentes para a estação do ano, as crianças usam bonés. Uma delas, em primeiro plano, tem uma estrela pregada no sítio do coração. Sorriem para a objectiva, parecem posar para um retrato de família. Não sabem que vão morrer.
Num mapa, leio a geografia do horror:
Fuhlsbiittel
Neuengamme
Esterwegen
Hertogenbosch
Moringen Dora
Niederhagen-Wewelsburg Buchenwald
Ravensbruck Sachsenhausen Orianenburg
Bergen-Belsen Lichtenburg
Bad-Suza Lublin
Sachsenburg Gross-Rosen
Treblinka Kulmhof
Sobibor Lublin -Majdanek
Belzec
Theresienstadt
Plaszow Auschwitz-Birkenau
Hinzert
Natweiler-Struthof
Dachau
Flossenburg
Mauthausen
Também os nomes das gares de passagem, Drancy, Royallieu, Pithiviers, Riviera di Sabba, Bolzano, Borgho san Dalmazzo, Ventimiglia. Seria necessário ir a todo o lado, conhecer cada um dos lugares, compreender como retomaram a vida, as árvores que plantaram, os monumentos, as inscrições, mas sobretudo observar os rostos de hoje, de todos os que ali residem, ouvir as suas vozes, os gritos, os risos, o ruído das cidades construídas em redor, o ruído do tempo que passa...
É vertiginoso, provoca náuseas. Caminho pelas ruas, ao longo da Plate-Forme. No cais de Grenelle, os automóveis, os autocarros formam uma longa serpente de ferro cujos anéis se entrechocam nas encruzilhadas, buzinando. O Sena deve ter o aspecto que tinha nesses dias de Julho de 42, talvez Léonora e os outros o tenham vislumbrado entre as barras da janela da viatura da polícia enquanto rolavam em direcção ao velódromo. Os rios lavam a História, é sabido. Arrastam os corpos, nada permanece muito tempo nas suas margens.
A minha mãe nunca me falou da Allée dês Cygnes. Todavia, instintivamente, desci a escada até ao longo caminho no meio do rio, à sombra dos freixos. A despeito da beleza do sítio, são raras as pessoas que por ali passeiam. Um casal acompanhado por uma menina de oito anos, alguns turistas sul-americanos, ou italianos, uma japonesa jovem, vestida de preto, que fotografa as árvores. Dois ou três pares de namorados nos bancos, que conversam em voz baixa e não olham para a Torre Eiffel.
Detive-me junto de uma árvore contorcida, à beira do Sena. com os seus ramos baixos, assemelha-se a um animal, uma espécie de réptil vindo do lodo do rio. À sua volta, entre as raízes, ondulam longas algas negras, como cabelos.
Em frente, do outro lado do rio, a Plate-Forme parece irreal na bruma de calor. Observo os grandes edifícios, contra o céu do anoitecer, parecem esteias negras. Ao meio, a inacreditável torre sem cabeça, sem olhos, dilui-se nas nuvens. Compreendo que não preciso de ir mais longe. A história dos desaparecidos, é aqui que está implantada, para sempre.
com o mesmo movimento lento do rio, a cidade deriva, torna a sua memória fluida. É Hakim, o miúdo da Plate-Forme, que tem razão. O olhar duro, a fronte lisa, os olhos escuros: "Que procura?"
A ilha dos Cisnes, a ilha Maurícia. Islã Cisneros. Nunca estabelecera a comparação. É nisto que penso ao atravessar para a outra margem, estugando o passo por causa do aguaceiro que cai sobre o Sena, e tenho dificuldade em reprimir um sorriso.
Os últimos compassos do Bolero são tensos, violentos, quase insuportáveis. O som sobe, enche a sala, agora toda a assistência está de pé, olha para o palco onde os bailarinos rodopiam, aceleram o movimento. Há pessoas que gritam, os tantas returnbarn e sobrepõem-se às vozes. Ida Rubinstein, os bailarinos são fantoches, arrebatados pela loucura. As flautas, os clarinetes, os saxofones, os violinos, os tambores, os címbalos, os timbales, todos os instrumentos se flectem, extremamente tensos, até à estrangulação, até quebrarem as cordas e as vozes, até quebrarem o egoísta silêncio do mundo.
A minha mãe, quando me contou a estreia do Bolero, falou-me da sua emoção, dos gritos, dos aplausos e dos assobios, do tumulto. Algures na mesma sala, encontrava-se um homem que ela nunca conheceu, Claude Lévi-Strauss. Como ele, muito mais tarde, a minha mãe confiou-me que aquela música mudara a sua vida.
Agora, compreendo porquê. Sei o que significava para a sua geração aquela frase repetida, seringada, imposta pelo ritmo e o crescendo. O Bolero não é uma peça musical como as outras. É uma profecia. Conta a história de uma raiva, de uma fome. Quando termina em violência, o silêncio que se segue é terrível para os sobreviventes atordoados.
Escrevi esta história em memória de uma jovem que, involuntariamente, foi uma heroína aos vinte anos.

 

 

                                                                  J. M. G. Lê Clézio

 

 

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