Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A NEBLINA DO PASSADO
Os sintomas surgiram de chofre, como a onda voraz que arrebata o menino da beira-mar mansa e o arrasta para as profundezas do mar: o duplo salto mortal no estômago, o entorpecimento capaz de lhe adormecer as pernas, o suor frio nas palmas das mãos e, sobretudo, a dor quente sob o mamilo esquerdo, que acompanhava a chegada de cada uma das suas premonições.
Assim que se abriram as portas da biblioteca, assaltou-o o cheiro a papel velho e a recinto sagrado que pairava naquele aposento alucinante, e Mário Conde, que nos seus anos longínquos de investigador policial tinha aprendido a reconhecer os reflexos físicos das suas premonições redentoras, deve ter perguntado a si próprio se alguma vez teria sentido um tropel de sensações tão avassalador como o desse instante.
Ao princípio, disposto a lutar com as armas da lógica, tentou persuadir-se de que tinha chegado àquele casarão decadente e sombrio de El Vedado pelo mais puro e vulgar acaso, e mesmo por um insólito resquício da sorte que, por uma vez, se dignava pousar nele os seus olhos estrábicos. Mas passados alguns dias, quando mortos novos e antigos se revolviam nas suas tumbas, Conde começou a pensar, chegando a convencer-se de que nunca tinha havido margem para o fortuito, que tudo fora dramaticamente disposto pelo seu destino, como um espaço teatral pronto para um espectáculo que só teria início com a sua desestabilizadora irrupção em palco.
Desde que abandonara o seu trabalho como investigador criminal, há mais de treze anos, e se dedicara de corpo e alma — o máximo que lhe permitiam o corpo sempre macerado e a alma cada vez mais embrandecida — ao negócio caprichoso da compra e venda de livros usados, Conde conseguira desenvolver habilidades quase caninas para farejar presas capazes de garantir-lhe, por vezes com uma generosidade surpreendente, a subsistência alimentar e alcoólica. Para sua boa ou má fortuna — nem ele próprio saberia precisá-lo — a sua saída da polícia e a sua entrada forçada no mundo dos negócios tinham coincidido com o anúncio oficial da chegada da Crise à ilha, aquela Crise galopante que depressa faria empalidecer todas as anteriores, as mesmas de sempre, as eternas, entre as quais Conde e os seus conterrâneos se tinham passeado durante décadas, períodos recorrentes de penúrias que nesse momento começaram a parecer, por uma inevitável comparação e má memória, tempos de glória ou simples crise sem nome e, portanto, sem direito à personificação terrível de uma maiúscula.
Como por magia negra e com uma celeridade pavorosa, a escassez de tudo o que era imaginável transformara-se em estado permanente, capaz de atacar as mais diversas necessidades humanas. Cada objecto ou serviço redefiniu o seu valor e transmutou-se, por artes da precariedade, em algo diferente do que antes fora: de um fósforo a uma aspirina, de um par de sapatos a um abacate, do sexo aos sonhos e às esperanças, enquanto os confessionários das igrejas e os consultórios de santeros(1), espiritistas, cartomantes, videntes e babalaos(2) se enchiam de novos e numerosos adeptos, ansiosos por uma baforada de consolo espiritual.
A escassez foi tão brutal que chegou mesmo ao venerável mundo dos livros. De um ano para o outro, a publicação mergulhou em queda-livre e as teias de aranha cobriram as estantes das agora tétricas livrarias de onde os próprios empregados tinham roubado as últimas lâmpadas com vida, praticamente inúteis em dias de apagões intermináveis. Foi então que centenas de bibliotecas privadas
*1. Sacerdote das cerimónias de santería, conjunto de crenças e rituais, presente em vários países da América, baseado na adoração de santos, resultante do sincretismo entre as religiões africanas e a católica. (N. da T.)
deixaram de ser fonte de erudição, orgulho bibliófilo e provimento de recordações de tempos possivelmente felizes, e trocaram o seu cheiro a sabedoria pela fetidez ácida e grosseira de algumas notas redentoras. Bibliotecas de valor incalculável, sedimentadas durante gerações, e bibliotecas feitas à pressa, organizadas por todo o tipo de arrivistas; bibliotecas especializadas nos assuntos mais profundos ou insólitos e bibliotecas feitas de presentes de anos e de aniversários de casamento, foram sujeitas pelos seus donos ao sacrifício mais cruel, diante do altar pagão da crescente necessidade de dinheiro em que tinham caído, de repente, quase todos os habitantes de um país ameaçado de morte por inanição acumulativa.
Aquele acto desesperado de ofertar alguns livros específicos, pretensa ou realmente valiosos, ou de pôr à venda caixas, metros, estantes ou mesmo a totalidade dos volumes reunidos numa ou em várias vidas, costumava acarretar um sentimento bicéfalo nos sonhos dos vendedores e dos compradores: enquanto os primeiros diziam sempre oferecer jóias bibliográficas e desejavam ouvir cifras redentoras, dispostas a curá-los do complexo de culpa que representava para a maior parte deles o acto de se desfazerem de alguns amáveis companheiros na viagem da vida, os segundos, ressuscitando um espírito mercantil que se julgava desterrado da ilha, procuravam uma aquisição capaz de se transformar num bom negócio, recorrendo ao artifício de diminuir o valor ou as possibilidades comerciais do produto à venda.
Nos dias da sua estreia na profissão, Mário Conde evitava ouvir as histórias das bibliotecas que lhe caíam nas mãos. Os seus anos de investigador, que o obrigaram a viver diariamente entre processos sórdidos, não tinham conseguido torná-lo imune aos pesares da alma e, quando realizou o seu desejo e deixou de ser polícia, descobriu, dolorosamente, que o lado obscuro da vida se empenhava em persegui-lo, pois cada biblioteca à venda era sempre um romance de amor com um final infeliz, cujo dramatismo não dependia da quantidade ou da qualidade dos livros sacrificados, mas dos caminhos através dos quais aqueles objectos tinham chegado a uma determinada casa e as razões terríveis pelas quais saíam para o matadouro do mercado. No entanto, Conde aprenderia rapidamente que ouvir era parte essencial do negócio, porque a maior parte dos proprietários se sentia na necessidade expiatória de comentar os motivos da sua opção, engalanando-a algumas vezes, outras desnudando-a sem piedade, como se daquele acto de confissão dependesse, no mínimo, a salvação de uma famélica dignidade.
Mais tarde, com as feridas cicatrizadas, Conde acabou por descobrir o lado romântico da sua condição de ouvidor — gostava de qualificar-se com essa palavra — e começou a calibrar as possibilidades literárias daqueles relatos, encarando-os muitas vezes como material para os seus sempre adiados exercícios estéticos, ao mesmo tempo que a sua sagacidade se aguçava até ao requinte de se sentir capaz de determinar se o narrador era sincero ou se não passava de um pobre embusteiro, obrigado a elaborar uma fraude para se sentir melhor consigo próprio ou apenas para tentar tornar a mercadoria mais atractiva.
À medida que penetrava nos mistérios do negócio, Mário Conde descobriu que preferia o exercício da compra ao da venda posterior dos volumes adquiridos. O acto de vender livros na entrada de um prédio, no banco de um parque, numa curva de um passeio prometedor, feria-lhe os restos do seu devastado orgulho mas gerava-lhe, sobretudo, a insatisfação de ter de se desprender de um objecto que muitas vezes teria preferido conservar. Por isso, embora os seus lucros diminuíssem, adoptou a estratégia de funcionar apenas como pesquisador, dedicado a abastecer os fundos dos outros vendedores de rua. Desde essa altura, nas prospecções destinadas a descobrir minas de livros, Conde, tal como todos os seus colegas da cidade, tinha adoptado três técnicas complementares e de certa forma antagónicas: a mais tradicional de visitar alguém que tivesse requerido a sua presença, graças à sua consolidada fama de comprador justo; a sempre vergonhosa e quase medieval de se ir anunciando aos gritos pelas ruas — «Compro livros velhos» — ou a mais agressiva de bater à porta das casas com o ar conveniente e perguntar a quem abria se estava interessado em vender alguns livros usados. A segunda daquelas técnicas mercantis era a mais eficaz nos bairros da periferia, eternamente empobrecidos, regra geral pouco férteis ao seu negócio — embora não isentos de surpresas —, e onde a arte da compra e venda de tudo o que era possível, e mesmo do impossível, tinha sido durante anos o recurso de sobrevivência de centenas de milhares de pessoas. O sistema de escolher as casas com «cheiro» impunha-se, pelo contrário, nos bairros antes aristocráticos de El Vedado, Miramar e Kohly, e em alguns sectores de Santos Suárez, Casino Deportivo e El Cerro, onde as pessoas, apesar da miséria nacional envolvente, tinham tentado preservar certos comportamentos cada vez mais obsoletos.
O mais extraordinário foi aquele casarão sombrio de El Vedado, de pretensões neoclássicas e estrutura definitivamente cansada, não ter sido escolhido com recurso ao método olfactivo e muito menos em resposta aos seus pregões de rua. Mário Conde, mergulhado naqueles dias numa etapa de azar puro e duro — como a do pescador Santiago de certo livro tão admirado noutros tempos —, quase se convencera de estar a sofrer uma atrofia progressiva do olfacto. Já tinha gasto três horas daquela tarde tórrida do Setembro cubano a bater às portas e a receber respostas negativas, muitas vezes motivadas pela passagem prévia de um colega afortunado. A suar e decepcionado, receando a tempestade iminente que a acelerada aglomeração de nuvens negras sobre a costa próxima anunciava, Conde dispunha-se a finalizar o dia de trabalho, contabilizando as perdas na passagem irrecuperável do tempo quando, sem motivos plausíveis, decidiu entrar por uma rua paralela à avenida onde devia tentar apanhar um carro de aluguer — terá gostado do passeio repleto de árvores, terá pensado que encurtaria caminho ou teria simplesmente respondido, mesmo sem o saber, a um chamariz do seu destino? — e, mesmo ao dobrar da esquina, viu a mansão decrépita, fechada a sete chaves, envolta numa espessa atmosfera de abandono. Num primeiro momento teve a certeza de que, pela sua aparência, aquele tipo de casa já devia ter sido visitada por outros colegas de profissão, pois as moradias desse estilo costumavam ser produtivas: um passado de grandeza implicava biblioteca com volumes forrados a pele; um presente de penúrias implicava fome e desespero, e a fórmula tendia a funcionar para o comprador de livros. Por isso, não obstante a falta de sorte das últimas semanas e as enormes possibilidades de os seus concorrentes já terem passado por ali, Conde obedeceu ao impulso quase irracional que o impeliu a abrir a cancela, atravessar o jardim transformado em horta de subsistência repleta de bananeiras, matas raquíticas de milho e trepadeiras vorazes de batata-doce, subir os cinco degraus que davam acesso à entrada fresca e, quase sem pensar, erguer a aldrava de bronze esverdeado da porta de mogno negro indestrutível, quem sabe se envernizada pela última vez antes da descoberta da penicilina.
— Bom-dia — disse quando a porta se abriu, e sorriu educadamente, de acordo com o manual.
A mulher, que Mário Conde tratou de situar no interregno descendente dos sessenta aos setenta anos, não se dignou responder ao cumprimento e observou-o com dureza crítica, imaginando com toda a certeza que o visitante era justamente o oposto: um vendedor. Vestida com uma bata cinzenta pintalgada de gotas pré-históricas de gordura, com o cabelo desbotado e salpicado de escamas de caspa, tinha a pele quase transparente, sulcada de veias pálidas, e era dona de uns olhos terrivelmente tristes.
— Desculpe o incómodo... Eu dedico-me a comprar e vender livros em segunda mão — prosseguiu, evitando dizer «velhos» — e ando a averiguar. Se souber de alguém...
Esta era a regra de ouro: nunca é você que anda tão lixado a ponto de se ver obrigado a vender a sua própria biblioteca, a do pai, outrora médico com consultório famoso e cátedra universitária, ou a do avô, que talvez até tenha sido senador da república ou veterano das guerras de independência. Mas talvez saiba quem ande, não é verdade?
A mulher, como que imune às emoções, não pareceu surpreender-se com a missão do recém-chegado. Olhou para ele, impávida, durante alguns segundos morosos e expectantes e Mário Conde sentiu-se no fio da navalha, pois o seu treino avisou-o de que uma decisão terrível parecia consolidar-se no cérebro oxidado, necessitado de gorduras e proteínas, da mulher transparente.
— Bom — começou ela —, a verdade é que não, digo, não sei se por fim... O meu irmão e eu estivemos a pensar... Dionisio pediu-lhe que viesse?
Conde viu uma luz de esperança e tentou situar-se na pergunta, mas sentiu-se a pairar. Será que tinha acertado em cheio?
— Não, não... Dionisio?
— O meu irmão — esclareceu aquela mulher gasta. — É que temos aqui uma biblioteca. Bastante valiosa, sabe? Vamos ver, entre... Sente-se. Um momento... — e Conde julgou descobrir na voz dela uma determinação capaz de superar as calamidades mais duras da vida.
A mulher dos olhos melancólicos desapareceu no interior da mansão, atravessando uma espécie de pórtico erigido sobre duas colunas toscanas de reluzente mármore negro com veios verdes, e Conde lamentou os seus parcos conhecimentos acerca da esfumada aristocracia crioula, ignorância que o impedia de saber, ou sequer imaginar, quem tinham sido os donos originais daquela edificação marmórea e se os actuais ocupantes eram seus descendentes ou apenas os beneficiários da sua possível debandada pós-revolucionária. Aquela sala, com manchas de humidade, paredes descascadas e até algumas gretas nas paredes, não tinha melhor aspecto que o exterior da casa, mas conseguia conservar um ar de elegância solene e a capacidade vigorosa de recordar quanta riqueza se acolhera em tempos entre aquelas paredes agora desguarnecidas. Os tectos altos, rematados por cornijas perigosamente abauladas e estuques decorativos de cores já deslavadas, deviam ser obra de mestres do ofício, tal como as duas vidraças que conservavam, assombrosamente intactos, os vitrais românticos com figuras cavaleirescas, sem dúvida desenhados na Europa embora destinados a atenuar e a colorir a luz excessiva do Verão tropical. Os móveis, mais ecléticos que de estilos conhecidos, mais gastos que vencidos, ainda sólidos, impunham perceptivelmente ao olfacto a sua decrepitude, apesar de o chão, de mosaicos de mármore preto e branco, dispostos como um exagerado tabuleiro de xadrez, brilhar com a alegria da limpeza recente. Num dos lados da sala, duas portas altíssimas cobertas de espelhos biselados rectangulares, embutidos num trabalho de marcenaria em madeira escura, reflectiam, entre as rosetas do mercúrio perdido, a desolação inquietante do local. Foi nesse instante que a incongruência que Conde sentira ao entrar na sala se desvendou: nem nas paredes, nem nas mesas, nem nas prateleiras ou nos tectos havia um único adorno, um quadro, um motivo visual capaz de quebrar o vazio pavoroso. Calculou que as porcelanas nobres, as pratas cinzeladas, os lustres de pingentes, os cristais lavrados e possivelmente as telas com escuras e pesadas naturezas-mortas, que devem ter dado harmonia ao ambiente, tivessem sido desterrados dali antes dos livros, procurando o mesmo remedeio alimentar que, se a sorte o acompanhasse, a biblioteca, anunciada como bastante valiosa, deveria agora assumir.
O momento prometido pela mulher transformou-se numa espera de vários minutos durante os quais Conde se dedicou a fumar um cigarro, atirando a cinza por uma janela, através da qual viu cair as primeiras gotas do aguaceiro vespertino. Quando a sua anfitriã regressou, vinha acompanhada por um homem alguns anos mais velho, definitivamente à beira da decrepitude, tão magro como ela, a precisar urgentemente de se barbear e, tal como a sua presumível irmã, de três refeições por dia com potencial calórico suficiente.
— O meu irmão — anunciou ela.
— Dionisio Ferrero — disse o homem, com uma voz mais jovem que o seu físico, estendendo-lhe uma mão de unhas sujas e pele calejada.
— Mário Conde. Eu...
— A minha irmã já me explicou — disse o homem, cortante, como que habituado à rispidez do comando, e corroborou, ordenando-lhe mais que pedindo: — Venha comigo.
Dionisio Ferrero encaminhou-se para as portas de espelhos biselados e, entre as manchas escuras, Conde comprovou como a sua própria figura, quadriculada no reflexo, não destoava muito no meio das figuras esqueléticas dos irmãos Ferrero. O esgotamento facial de noites sucessivas de muito rum e pouco sono e a sua magreza esquálida e impressionante davam a sensação de que a roupa lhe tinha crescido sobre o corpo. Com um vigor inesperado, Dionisio empurrou as portas e Conde perdeu de vista a sua própria imagem e as suas reflexões fisiológicas ao ser assaltado por uma violenta inquietação no peito porque, diante dos seus olhos, se erguiam agora umas soberbas estantes de madeira, protegidas por portas envidraçadas, onde repousavam, trepando pelas paredes em direcção ao tecto altíssimo, centenas, milhares de livros de lombadas escuras, nas quais ainda conseguiam brilhar as letras douradas da sua identidade, triunfantes sobre a maldita humidade da ilha e da fadiga do tempo.
Paralisado diante daquele prodígio, consciente do ritmo irregular da sua respiração, Conde duvidou que tivesse forças mas atreveu-se a dar três passos cautelosos. Quando transpôs o umbral, descobriu, já totalmente estupefacto, que a acumulação de estantes repletas de volumes se estendia ao longo dos lados do aposento,
cobrindo todo o perímetro do local, de uns cinco por sete metros. E foi justamente nesse momento que, já debilitado pela emoção e pelo deslumbramento mais que justificados, o surpreendeu o aparecimento tumultuoso dos sintomas do pressentimento, uma sensação diferente do assombro livresco e mercantil sofrido até esse instante, mas capaz de o alarmar com a certeza de que alguma coisa extraordinária se escondia ali, clamando a sua presença.
— O que acha?
Paralisado pelos efeitos físicos da premonição, Conde não ouviu a pergunta de Dionisio.
— Diga-me, o que acha? — insistiu o homem, interpondo-se no campo visual de Conde.
— Fabuloso — conseguiu finalmente dizer, pois a comoção só lhe permitia suspeitar que estava, sem dúvida alguma, diante de um veio extraordinário, desses que se procuram sempre mas só se encontram uma vez na vida. Ou nunca. A sua experiência gritava-lhe que ali, certamente, haveria surpresas inimagináveis porque, se apenas cinco por cento daqueles volumes chegassem a ter um valor especial, estava diante de vinte, trinta possíveis tesouros bibliográficos, capazes por si só de matar — ou, pelo menos, de atordoar por um bom período de tempo — a fome dos irmãos Ferrero e a sua.
Quando recuperou a convicção de que podia mover-se, Conde aproximou-se da estante que o desafiava em frente e, sem pedir autorização, abriu as portinhas de vidro. Examinou algumas lombadas ao acaso, esquadrinhando entre os livros colocados à altura dos seus olhos, e descobriu o forro de cabedal avermelhado das Crónicas de La guerra de Cuba, de Miro Argenter, na edição prin-ceps de 1911 e, depois de limpar o suor das mãos, tirou o volume, para ver que estava assinado e dedicado pelo escritor-guerreiro «Ao meu grande amigo, meu querido general Serafín Montes de Oca». Junto das Crónicas de Miro, os dois tomos contundentes do perseguido índice alfabético y de defunciones del ejército libertador de Cuba, do major-general Carlos Roloff, na sua rara e solitária impressão havanesa de 1901 e, com um tremor crescente nas mãos, Conde atreveu-se a tirar do lugar contíguo os tomos dos Apuntes para La historia de Las letras y de La instrucción pública de La ísla de Cuba, o clássico de António Bachiller y Morales, publicado em Havana entre 1859 e 1861. Com um dedo cada vez mais lento, Conde foi acariciando a lombada leve do romance El cafetal, de Domingo Malpica de La Barca, impresso na tipografia havanesa de Los Ninos Huérfanos em 1890, e o lombo musculado, de pele agradável, dos cinco volumes da Historia de La esclavitud de José António Saco, na edição da imprensa Alfa de 1936, até que, como um possesso, agarrou no livro seguinte, em cuja lombada estavam gravadas apenas as iniciais C. V. Quando o abriu sentiu como as pernas lhe fraquejavam, pois tratava-se da primeira edição de Lajoven de La flecha de oro, o romance de Cirilo Villaverde, naquela impressão inicial e mítica feita em Havana pela famosa tipografia de Oliva, em 1842...
Conde teve a nítida sensação de que aquele aposento era como um santuário perdido no tempo e, pela primeira vez, pensou se não estaria a cometer um acto de profanação. Com delicadeza, devolveu cada um dos livros ao lugar e respirou o odor conhecido que saía da estante aberta. Inalou várias vezes até encher os pulmões e só quando se sentiu embriagado fechou as portas. Tentando esconder o seu desassossego, voltou-se para os irmãos Ferrero, em cujos rostos encontrou uma chama de esperança, decidida a impor-se aos desastres mais visíveis da vida.
— Por que razão querem vender estes livros? — acabou por perguntar, contra os seus princípios e procurando já um caminho para a história daquela biblioteca bastante singular. Ninguém se desfazia assim, consciente e repentinamente, de um tesouro como aquele (do qual apenas entrevira algumas jóias prometedoras), a menos que, além da fome, houvesse outra razão, e Conde sentiu que precisava de conhecê-la.
— É uma longa história... — hesitou Dionisio Ferrero, pela primeira vez desde que se encontrara com Conde, recuperando imediatamente o seu aprumo quase marcial. — Ainda não sabemos se queremos vendê-los. Isso depende do que nos oferecer. No negócio das antiguidades há muito bandido, você sabe... Um dia destes passaram dois por aqui. Queriam comprar-nos as janelas com os vitrais e ofereciam-nos, os grandes descarados, trezentos dólares por cada uma... Pensam que somos imbecis ou que estamos a morrer de fome...
— Sim, evidentemente, há muito oportunista. Mas o que gostaria de saber é a razão de terem decidido vender os livros agora...
Dionisio olhou para a irmã, como se não compreendesse. Aquele tipo seria estúpido para perguntar semelhante coisa? Conde compreendeu de imediato e sorriu, tentando, pela terceira vez, reo-rientar a sua curiosidade.
— Porque não se decidiram a vendê-los até agora}
Foi a mulher transparente, talvez movida pelas exigências dos seus apetites, quem se decidiu a responder.
— Pela mãe. A nossa mãe — esclareceu. — Ela comprometeu-se, há muitos anos, a cuidar destes livros...
Conde sentiu que penetrava no clássico terreno pantanoso, mas não tinha outro recurso senão seguir em frente.
— E a vossa mãe... ?
— Não, não morreu. Está muito velhinha. Faz este ano noventa e um. E a pobre está...
Conde não se atreveu a insistir. A primeira parte da confissão estava em marcha e esperou em silêncio. O resto viria por arrasto.
— A velhinha está senil... bom, está mal dos nervos há muito tempo. E, para dizer a verdade, faz-nos falta algum dinheiro — largou Dionisio, estendendo a mão na direcção dos livros. — Você sabe como estão as coisas e a reforma não dá nem...
Conde confirmou, sim, sabia. Seguindo a mão do homem dirigiu os olhos para as prateleiras repletas de livros e comprovou como o pressentimento de estar à beira de alguma coisa definitivamente extraordinária não o abandonava, continuava ali, imperturbável, pressionando-o debaixo do mamilo, humedecendo-lhe as mãos, e perguntou a si próprio porquê tanta veemência. Se já sabia que estava rodeado de livros valiosos, o que poderia continuar a transtorná-lo com esta intensidade? Seria pela existência possível de um livro demasiado inesperado? Estaria ali, esquecido e feliz, o livro impossível que qualquer bibliófilo sonha encontrar alguma vez? Devia ser isso, tinha de ser, disse para consigo, e se fosse essa a razão só teria remédio quando tivesse revistado todas as estantes de cima a baixo.
— Desculpem a minha curiosidade, mas é que... Há quanto tempo ninguém toca nesta biblioteca? — perguntou então.
— Há quarenta... quarenta e três anos — precisou a mulher e Conde voltou a cabeça, impelido pela incredulidade.
— Durante todo esse tempo não entrou nem saiu um livro daqui?
— Nem um — interveio Dionisio, certo de valorizar o conteúdo da biblioteca com a sua afirmação. — A mãe pediu que a arejássemos uma vez por mês e que a limpássemos só com um espanador, assim, por cima...
— Olhem, vou ser franco — preferiu avisar Mário Conde, consciente de que ia trair as regras mais sagradas da sua profissão —, tenho o pressentimento, é uma forma de dizer, tenho a certeza de que aqui pode haver livros que valem muito dinheiro e outros talvez tão valiosos que não podem ou não devem ser vendidos... Eu explico: é possível que haja livros, sobretudo livros cubanos, que não deveriam sair de Cuba e quase ninguém em Cuba pode pagar por eles o que realmente valem. A Biblioteca Nacional ainda menos. E isto que vou dizer-lhes vai contra o meu negócio, mas eu penso que seria um crime vendê-los a algum estrangeiro que depois os levasse do país... e digo crime porque, além de imperdoável, seria um delito, embora isso seja o que, neste momento, menos importa. Se nos pusermos de acordo, podemos fazer negócio com os livros vendáveis e se, mais tarde, quiserem vender esses outros livros mais valiosos, eu saio do caminho...
Dionisio olhou para Conde com uma intensidade inesperada.
— Disse-me que o seu nome era... ?
— Mário Conde.
— Mário Conde — repetiu, lentamente, como se das suas letras obtivesse a dose de dignidade que o seu sangue lhe exigia nesse instante. — Aqui onde nos vê, a minha irmã e eu lixámo-nos muito por este país, muito. Eu cheguei a arriscar a vida, aqui e até em África. E mesmo que esteja a morrer de fome não vou fazer uma coisa dessas... Nem por mil nem por dez mil pesos — e voltou-se para a irmã, como que procurando o último refúgio para o seu orgulho. — Não é verdade, Amalia?
— Claro, Dionisio — asseverou ela.
— Vejo que nos compreendemos — admitiu Conde, comovido com a ingenuidade do épico Dionisio, que pensava em pesos enquanto ele calculava cifras similares, mas em dólares. — Vamos fazer o seguinte. Eu vou escolher, assim pela rama, vinte ou trinta livros que se vendam bem, mesmo que não sejam particularmente valiosos.
Vou separá-los e amanhã venho buscá-los já com o dinheiro. Depois quero ver toda a biblioteca, para vos poder dizer o que me interessa levar, que livros não interessam a nenhum comprador e também que livros não se podem vender, ou melhor, não se deveriam vender, de acordo? Mas antes gostaria de ouvir a história completa, isto é, se não vos incomodar... Desculpem que insista, mas uma biblioteca onde há livros como os que tirei agora e que há quarenta e três anos ninguém toca...
Dionisio Ferrero olhou para a irmã, e a mulher sem cor susteve o olhar, sem deixar de morder a pele dos dedos. Depois voltou a cabeça na direcção de Conde:
— Qual história? A da biblioteca ou a que nos leva a vendê-la agora?
— Não é a mesma história, com um princípio e um fim?
Quando os Montes de Oca saíram de Cuba, a mãe e eu ficámos nesta casa, que era uma das mais elegantes de El Vedado... como ainda se pode ver, apesar da passagem do tempo. O senhor Alcides Montes de Oca, que inicialmente simpatizou com a Revolução, apercebeu-se de que as coisas iam mudar mais do que ele tinha imaginado e, em Setembro de 1960, quando começou a intervenção nas companhias americanas, foi para o Norte com os dois filhos, pois a mulher morrera quatro ou cinco anos antes, em 1956, e ele não tinha tornado a casar. Embora os negócios não lhe tivessem corrido bem com Batista, o senhor Alcides ainda tinha muito, mesmo muito dinheiro, dele e da herança da sua defunta mulher, Alba Margarita, que era uma Méndez-Figueredo, donos de duas centrais açucareiras em Las Villas e sabe-se lá de que mais... E foi aí que ele nos propôs, à minha mãe e a mim, irmos com ele, se quiséssemos. Imagine, a mãe era o braço direito dele em todos os negócios e era, além disso, como uma irmã. Ela até tinha nascido nesta casa, quero dizer, na casa que os Montes de Oca tinham em El Cerro antes de mandarem construir esta, porque a mãe nasceu em 1912 e esta casa ficou pronta em 1922, depois da guerra, que foi quando os Montes de Oca fizeram mais dinheiro. Por isso puderam trazer mármores de Itália e da Bélgica, azulejos de Coimbra, madeiras das Honduras, aço de Chicago, cortinas de Inglaterra, vidros de Veneza e decoradores de Paris... Nessa época, os meus avós eram o jardineiro e a lavadeira dos Montes de Oca e, como a mãe tinha nascido lá em casa, foi criada como sendo quase da família, como lhe digo, como irmã do senhor Alcides, e por isso pôde estudar, até terminar o ensino secundário. Mas quando ia entrar na Escola de Magistério Primário, ela própria decidiu não estudar mais e pediu à dona Ana, a mulher de dom Tomás, pais do senhor Alcides, que a deixasse trabalhar em casa como governanta ou como administradora, porque ela gostava mais de estar aqui, entre coisas bonitas, limpas e caras, do que numa escola pública como professora, lidando com crianças ranhosas por cem pesos ao mês. Isso passou-se quando a mãe tinha dezanove, vinte anos, e os Montes de Oca já não tinham tanto dinheiro, porque em 1929 perderam muito com a crise e porque dom Serafín, que tinha lutado na Guerra de Independência, e o filho dom Tomás, um advogado bastante conhecido, não quiseram fazer o jogo de Machado, que se tinha tornado um ditador e um assassino, e Machado e a gente dele fizeram-lhes a vida impossível, fizeram-nos perder muitos negócios, tal como aconteceria mais tarde ao senhor Alcides com Batista, embora antes de Batista dar o golpe de Estado o senhor Alcides tenha ganho uma fortuna com negócios que fez aquando da outra guerra, e por isso não o incomodou ficar de fora das talhadas que aquele degenerado distribuía... Ai, estou sempre a perder-me... Bom, o caso é que a mãe ajudou muitíssimo o senhor Alcides, era ela quem tratava de todos os documentos, das contas, das declarações de impostos, era a sua secretária de confiança e, quando morreu a mulher dele, dona Alba Margarita, a mãe também se encarregou das crianças. Por tudo isso, quando o senhor Alcides decidiu partir propôs à minha mãe que fôssemos com ele, mas ela pediu-lhe algum tempo para pensar, nesse momento não tinha a certeza se devíamos ir ou ficar, porque Dionisio, que desde muito novo estava na clandestinidade para derrubar Batista, já se tinha metido de cabeça na Revolução, tinha ido alfabetizar para as serras de Oriente e a mãe não queria deixá-lo só. Tu tinhas quantos anos, Dionisio? Vinte e quatro? Mas, ao mesmo tempo, a mãe não queria separar-se de Jorgito e de Anita, os filhos do senhor Alcides, ela criara-os, praticamente, e sabia que ia fazer muita falta ao senhor Alcides quando este começasse outros negócios lá no Norte. A mãe estava num dilema tremendo.
O senhor Alcides disse-lhe que pensasse sem pressas e, quando decidisse, a casa dele, a que ele tivesse, onde a tivesse, estaria sempre aberta para nós, e podíamos juntar-nos a ele quando quiséssemos. Mas, se ficássemos algum tempo em Cuba, podíamos viver aqui e ele pedia-nos apenas um favor: que lhe cuidássemos da casa, mas sobretudo da biblioteca e dos dois jarrões de porcelana de Sèvres que a avó, dona Marina Azcárate, tinha comprado em Paris, pois já não podia levá-los com ele. Ele era dos que pensavam que a Revolução ia cair e que, quando isso acontecesse, poderia regressar para junto das suas coisas e dos negócios que tinha aqui. E se a Revolução não caísse e nós não nos fôssemos embora, pedia-nos a mesma coisa, até um dia ser possível, se não ele, o seu filho Jorgito ou a sua filha Anita virem buscar os livros e os jarrões, levando-os para onde estivesse a família. Evidentemente, a mãe prometeu-lhe que, se ficasse em Cuba, o senhor Alcides podia ter a certeza de que, quando voltasse, tudo estaria no seu lugar, ela jurava-o e, para ela, esse era um compromisso sagrado...
Eu nunca consegui perceber qual era a verdadeira intenção da mãe, se já tinha decidido ficar ou se estava apenas a dar tempo para ver o que acontecia aqui a Dionisio ou lá ao senhor Alcides, quando se instalasse. Perguntei-lhe duas ou três vezes e ela dizia-me sempre a mesma coisa: andava com a cabeça perdida, queria dar um tempo, era uma decisão muito importante... Mas uma mulher como ela tinha de saber, com certeza, por muito perdida que tivesse a cabeça. A complicação definitiva surgiu sete meses mais tarde, em Março de 1961, quando o senhor Alcides, conduzindo um automóvel completamente bêbado, teve um acidente e morreu. A notícia chegou-nos cerca de uma semana depois. Quando desligou o telefone, a mãe, que já andava meio deprimida, fechou-se no quarto e esteve uma semana sem sair nem deixar ninguém entrar. Quando, finalmente, me abriu a porta, deparei com outra mulher: aquela não era a mesma mãe de sempre e soubemos imediatamente que a dor e um sentimento de culpa por não ter ido com o senhor Alcides a tinham transtornado.
Creio que foi nesse momento que tive uma ideia exacta do que significava para ela a família Montes de Oca, ter trabalhado com dom Alcides, ter-se sentido tão importante para aquele homem poderoso, que já não existia. Depois de tantos anos, ela não podia imaginar que dom Alcides já não estivesse nesta terra para lhe dar ordens e pedir-lhe conselhos... Pobre mãe, tinha vivido a sua vida em função daquele homem e agora perdera o rumo. O caso é que começou a viver fechada no quarto, petrificada, porque se alguma vez pensara partir com o senhor Alcides, ajudá-lo com os filhos e com os negócios, isso deixara de fazer sentido, porque Jorgito e Anita estavam a viver com a tia Eva, que também saíra de Cuba, e a promessa do senhor Alcides de nos receber em sua casa jazia na tumba juntamente com ele... Enquanto ela passava os dias fechada, remoendo a sua dor e a sua desorientação, Dionisio e eu tratámos de encaminhar as nossas vidas, imagine, eu tinha vinte e um anos e começara a trabalhar num banco, primeiro tornei-me federada(3), depois miliciana, Dionisio entrou no exército quando voltou das campanhas de alfabetização e imediatamente o fizeram sargento e começámos ambos a viver, não sei, de outra maneira, por nossa conta, por nós próprios, sem pensar nos Montes de Oca nem depender deles para nada, como tinha acontecido na minha família durante quase cem anos, como tinha acontecido com a minha mãe desde que teve uso da razão... Embora Dionisio diga o contrário, a verdade é que isso foi só uma ilusão, porque o fantasma dos Montes de Oca permaneceu nesta casa: a clausura doentia da mãe que acabou por transformar-se em loucura, as loiças, a biblioteca, as porcelanas de Sèvres, os móveis, muitos objectos decorativos e duas ou três pinturas que o senhor Alcides não quis levar com ele e que continuaram onde estavam, aqui, como uma lembrança, esperando pelo senhor Alcides, que nunca mais voltaria, e mais tarde pelos filhos, que nunca vieram nem se interessaram pelo que aqui tinha ficado. Durante vários anos correspondi-me com a menina Eva, ela tinha ido viver para New Jersey, lembro-me, para uma povoação ou cidade chamada Rutherford, e o contacto manteve-se, embora fossem uma ou duas cartas por ano. Mas por volta de 1968 a menina Eva mudou-se, porque duas cartas minhas foram devolvidas com um carimbo de destinatário desconhecido, e estivemos anos sem saber deles. Eu até comecei a pensar o pior, escrevi a outras pessoas que viviam lá, talvez eles soubessem onde estavam
*3. Federada: Membro da Federação de Mulheres Cubanas. (N. da T.)
os Montes de Oca, mas passaram-se cerca de dez anos sem termos notícias deles, até ter vindo a Cuba uma senhora amiga da família e nos inteirarmos de que tinham ido viver para São Francisco e de que a menina Eva tinha morrido de cancro três ou quatro anos antes. Mas havia os filhos e, por respeito à promessa da minha mãe, continuei esperando que eles algum dia se interessassem pelas porcelanas e pelos livros, e decidi conservá-los como sempre fizera. Os livros mais velhos tinham sido quase todos de dom Serafín, o pai do senhor Tomás, que também comprou muitos, pois era um homem muito culto, advogado e professor de Direito na universidade, e que tinha o hábito, tal como o pai, de comprar qualquer livro que lhe interessasse sem se importar com o preço, e de nos aniversários dos netos e dos amigos só oferecer livros. Os dois jarrões de Sèvres estavam na família desde o século XIX, quando os Azcárate e os velhos Montes de Oca se exilaram em França, esperando que começasse novamente a guerra contra Espanha. Esses livros e as porcelanas, tal como esta casa, eram a própria história da família, e como a mãe se sentira uma Montes de Oca, porque eles a trataram sempre como se o fosse, para ela tudo isto teve sempre um valor sentimental e a nós competia-nos respeitar o seu compromisso... Embora a verdade é que dos Montes de Oca já não restava nada, ninguém se lembrava deles, e esta biblioteca e as porcelanas eram a sua única relação com o passado e com este país... Mas os anos passavam e os livros e as porcelanas continuavam aqui. Como eu ganhava um bom salário e Dionisio me dava sempre algum dinheiro para a mãe, governávamo-nos muito bem e eu nunca pensei em vender nada, porque não nos fazia falta para viver. Mas as coisas começaram a ficar verdadeiramente más em 1990, 1991. Como se não bastasse, Dionisio teve um enfarte, desmobilizaram-no do exército e depois separou-se da mulher. Embora no ano em que o desmobilizaram Dionisio tenha começado a trabalhar numa corporação que servia o exército, com o mesmo salário, a verdade é que o que ganhávamos ambos depressa passou a não nos dar para nada, porque não havia comida e a que aparecia, imagine, seria preciso ser tão rico como os Montes de Oca para a poder comprar. Para rematar a situação, Dionisio saiu da corporação e foi preciso passar a contar com ele também para o almoço e para o jantar... Não, não me custa dizê-lo, porque você passou com certeza pelo mesmo: as coisas puseram-se tão feias que, por mais de uma noite, o meu irmão e eu fomo-nos deitar com um jarro de água com açúcar no estômago, com um chá de laranjeira ou de hortelã, para que a pouca comida que havia ficasse para a mãe, e às vezes nem para ela chegava como deve ser... Foi aí que pensei fazer alguma coisa com os objectos de decoração, com os quadros, com as porcelanas e com os livros, as únicas coisas de valor que tínhamos. Era uma questão de vida ou de morte, juro-lhe. Mesmo assim, foram meses de hesitações, até me ter convencido de que, se continuássemos como estávamos, íamos morrer de fome, de fome de não comer, era preciso ver como Dionisio estava magro, depois de ter sido importante e de mandar em gente na guerra de Angola teve de começar a plantar bananeiras e iúcas no jardim e de arranjar um emprego como guarda-nocturno para ganhar mais alguns pesos... Um dia parámos de pensar e começámos primeiro a vender as peças que ainda restavam dos serviços, depois os objectos decorativos e os quadros, que não eram nada de especial, embora tivéssemos praticamente de os oferecer porque não encontrávamos ninguém que pudesse pagar o que supostamente valiam. Mais tarde vendemos alguns móveis, uns candeeiros, e entre tudo isso fomos fazendo um bom dinheiro, não pense, que não, mas que desaparecia como água entre os dedos, e, finalmente, há quatro anos decidimos vender os jarrões de Sèvres a um francês que vive aqui em Cuba e tem negócios com o governo, um homem sério, garanto-lhe. Pelos jarrões, imagine, eram deste tamanho, pintados à mão, deram-nos bom dinheiro e com isso nos fomos remediando até agora. A verdade é que esses jarrões nos salvaram a vida... Mas em tantos anos, com os preços como estão... Há algum tempo, Dionisio e eu começámos a pensar que já era altura de vender os livros. Bom, Dionisio começou a pensar, porque eu queria fazê-lo há muito tempo. Cada vez que entrava na biblioteca para a limpar dizia para comigo, no fim de contas, se já ninguém os lê e ninguém os vai reclamar... não é verdade? Além disso, sempre tive, não sei, uma má vontade contra esses livros, não pelos livros em si, mas pelo que significavam ou significaram: são a alma viva dos Montes de Oca, a lembrança do que foram eles e outros como eles, que se julgavam os donos do país, e só o facto de entrar nessa biblioteca me era desagradável, é um lugar que me rejeita e que eu rejeito... E pronto, essa é a história. Eu sei que agora há gente que já não passa tantas aflições como há cinco, dez anos, há mesmo gente a viver muito bem, mas nós, faça as contas, com duas reformas e sem que ninguém nos mande dólares, bom, continuamos na mesma, ou pior, não sei. No fim foi a própria vida que se encarregou de tornar tudo menos difícil, nós já não temos alternativas e o meu irmão sabe-o... Ou vendemos os livros ou morremos de fome pouco a pouco, todos, até a minha pobre mãe, que felizmente está completamente desligada da realidade, porque se calhar até poderia perdoar-nos termos vendido o resto, mesmo os jarrões, mas se ficasse a par do que pensamos fazer com a biblioteca dos Montes de Oca, creio que seria capaz de nos matar a ambos e de se deixar morrer de fome...
Conde tinha devorado as palavras de Amalia sentado na beira de um sofá coçado, fumando e utilizando a sua própria mão como cinzeiro, até Dionisio sair e voltar com um prato de sobremesa, esbotenado num rebordo guarnecido a ouro, que estendeu ao fumador com um gesto de desculpa. Mas o movimento de Dionisio passou inadvertido a Conde, comovido como estava com aquela crónica de uma fidelidade quase irracional. A comoção, no entanto, não tinha conseguido toldar-lhe a sua capacidade crítica. O alarme automático desenvolvido nos seus tempos de polícia alertou-o de que aquela era só uma parte da história, talvez a mais agradável ou a mais dramática, embora nesse momento tivesse de se conformar com o que ouvira.
— Pois se estão decididos... Eu volto amanhã...
— E não vai levar hoje nenhum livro? — interrompeu-o Amalia, quase com um eco de súplica na voz.
— A verdade é que hoje não trago dinheiro suficiente... Amalia olhou para o irmão e decidiu-se:
— Olhe, vê-se que é um homem sério, uma pessoa decente...
— Há anos que não ouvia isso — interrompeu-a Conde. — Uma pessoa decente...
— Sim, isso vê-se — assegurou a mulher translúcida. — Imagina com quantos bandidos tivemos de nos relacionar para vender as porcelanas e os restantes objectos? Quantas vezes quiseram pagar-nos uma miséria por coisas que tinham o seu valor? Olhe, faça-nos uma oferta, leve alguns livros e... pague-nos o que puder. Acha bem? Mais tarde volta, faz o inventário que quiser e leva os que decidir comprar...
Conde tinha reparado que, enquanto Amalia falava, Dionisio exibia uma expressão quase defensiva, como se quisesse proteger-se das palavras que ouvia. Discretamente, desviara o olhar na direcção da biblioteca, cujas portas de espelho tinham ficado abertas, como um convite a transpô-las e a servir-se do régio banquete ali disposto.
— Trago comigo quinhentos pesos... Quatrocentos e noventa. Se vou levar alguns livros, fazem-me falta dez para um carro.
— Sim, está bem, isso mesmo... — disse ela, sem conseguir conter a sua ansiedade.
Conde preferiu dirigir-se à biblioteca em vez de voltar a olhar Amália nos olhos, e muito menos Dionisio. Aquele desespero, capaz de triturar os restos de uma velha promessa e qualquer reminiscência de orgulho, devia ser o último degrau de uma dignidade macerada pelas calamidades de vidas arruinadas. Lamentou, tal como outras vezes, o lado sórdido do seu ofício, mas aliviou-o dos seus remorsos encontrar livros de fácil saída no mercado. Dois volumes de censos da população anteriores a 1940 procurados por um italiano, cliente do seu sócio Yoyi, o Pombo, foram os primeiros a ser postos de lado; depois escolheu três primeiras edições de obras de Fernando Ortiz, sempre fáceis de colocar entre os que procuravam mistérios do mundo negro cubano; uma primeira edição do romance El negrero, de Lino Novas Calvo; e, depois de afastar alguns livros impressos no século XIX cujo valor tinha de verificar, colocou no saco várias monografias históricas publicadas em Havana, Madrid e Barcelona nos anos vinte e trinta, sem grande valor bibliográfico, mas cobiçadas pelos compradores não cubanos que esvoaçavam entre as bancas de vendedores de livros usados. Prestes a fechar o saco, disposto a fazer contas, viu diante dos olhos, na zona central da estante, aquele livro que quase chamava por ele aos gritos: era um exemplar intacto, sólido, magnífico e bem alimentado de Gusta usted?, mais conhecido por «Prontuário culinário e... necessário», impresso por Ucar y Garcia em 1956, e ilustrado pelo grande caricaturista Conrado Massaguer. Desde a tarde longínqua em que Conde vira aquele livro pela primeira vez, nas mãos do dono enriquecido de um daqueles restaurantes privados nascidos nos dias de maior carência, comprador compulsivo de literatura gastronómica, seguira-lhe a pista, deslumbrado com o seu conjunto de receitas de pratos crioulos e de cozinha internacional, compilado para satisfazer as mesas mais aristocráticas numa época em que ainda havia mesas aristocráticas em Cuba. Mas a perseguição interessada de Conde não tinha fins bibliófilos e muito menos mercantis, mas sim o grandioso e interessado propósito de oferecer aquela maravilha à velha Josefina, a única pessoa que Conde conhecia com a capacidade mágica de realizar o milagre — mesmo em tempos de Crise — de transformar alguns daqueles pratos de sonho numa realidade digerível.
Com o seu saco de livros às costas e o estômago vazio dando saltos de alegria antecipada, Mário Conde regressou à sala onde o esperavam os irmãos Ferrero, sérios e ansiosos. Só nessa altura reparou no pormenor de os dedos de Amalia, que nesse instante secava o suor das mãos, terem os rebordos das cutículas atrofiados e avermelhados, como dedinhos de rã, sem dúvida devido à necessidade compulsiva de roer as unhas e a pele em volta.
— Bom, levo aqui dezasseis livros. Só um é excepcional, o de cozinha cubana, embora não tenha um valor particular no mercado... Mas esse quero-o para mim. Acham bem quinhentos pesos por este lote?...
Os olhos de Dionisio procuraram a irmã e os seus olhares sus-tiveram-se mutuamente. Depois, lentamente, voltaram-se ambos para Conde que, desconcertado, se adiantou a qualquer possível censura.
— Acham pouco?
— Não — reagiu Dionisio de imediato. — Não... a sério. Quero dizer, está bem assim.
Conde sorriu, aliviado.
— Não é muito, mas é justo. Neste preço estou a calcular um lucro para mim e outro para o vendedor dos livros, depois de este pagar o espaço e os impostos... Vocês ficam mais ou menos com trinta por cento do preço final possível. Com os livros que se vendem facilmente, calculamos sempre o lucro numa percentagem de três para um.
— Tão pouco? — Agora foi Amalia quem não conseguiu conter a exclamação.
— Não é pouco se se convencerem de que não os vou vigarizar. Sou uma pessoa decente e, se continuarmos de acordo, hei-de comprar-lhes muitos livros a bom preço — sorriu, dando por concluído o diferendo e, antes que os irmãos fizessem outros cálculos, entregou-lhes o dinheiro acordado.
Já na rua, recebeu-o o vapor húmido da tarde, fustigada novamente pelo sol depois do aguaceiro efémero em que se diluíra a previsível tempestade e que servira apenas para aumentar a humidade do ambiente. De imediato, Conde reparou na diferença térmica. A casa dos Ferrero, anteriormente dos opulentos Montes de Oca, tinha a capacidade de sobrepor-se ao Verão havanês e, por momentos, teve a tentação de voltar para observar novamente a fresca mansão, mas um clarão de lucidez avisou-o de que não devia olhar para trás porque, se o fizesse, ficaria quase com certeza petrificado ao ver um dos irmãos sair a correr de casa na direcção do mercado mais próximo, tentando chegar antes das cinco e de fecharem as bancas da carne, dos vegetais e dos tubérculos destinados a livrá-los, nessa mesma noite, da dieta forçada de arroz com feijão que partilhavam com vários milhões de compatriotas. Mas enquanto se afastava, em busca das ruas onde fosse possível apanhar um carro de aluguer, Mário Conde notou que, ainda que alguns sintomas tivessem diminuído, a sua premonição continuava agitando a cauda, presa à pele do seu mamilo esquerdo, como uma sanguessuga voraz.
Yoyi, o Pombo, que fora registado no civil e baptizado catolicamente com o nome sonoro de Jorge Reutilio Casamayor Ri-quelmes, tinha vinte e oito anos, um peito ligeiramente convexo ao qual devia a sua alcunha columbófila e uma propensão irreprimível para as bengalas linguísticas. Era, além disso, um homem de pensamento rápido e eficiente nos cálculos mais intrincados, tal como academicamente o avalizava o diploma de engenheiro civil, emoldurado numa sóbria e elegante moldura de bronze lavrado, dependurada na sala da sua casa de Víbora Park, numa espera paciente, dizia o laureado engenheiro, de que o papel higiénico escasseasse ainda mais e ele se decidisse a utilizar para esses fins o estaladiço pergaminho universitário que não lhe tinha trazido grandes satisfações sociais nem qualquer vantagem económica. Apesar de ter menos vinte anos que Conde, este, com uma pontinha de inveja, reconhecia em Yoyi um cinismo natural e uma pragmática sabedoria da vida que ele nunca possuíra e, pelos vistos, jamais chegaria a possuir, apesar de aquelas qualidades lhe parecerem cada vez mais necessárias para subsistir na selva da vida crioula do terceiro milénio.
Desde que há três ou quatro anos Conde se transformara num dos fornecedores de Pombo, os seus lucros na faina da compra e venda de livros usados tinham-se multiplicado satisfatoriamente. Entre outros rótulos comerciais — compra de jóias e de antiguidades, de obras de arte, de dois automóveis, dedicados de momento ao aluguer, e da posse de vinte e cinco por cento das acções de uma pequena empresa construtora, totalmente clandestina —, Yoyi tinha, como vínculo oficial com as autoridades, licença para montar um posto de venda de livros na plaza de Armas, na realidade mantido por um tio materno, a quem visitava duas vezes por semana para lhe fornecer novidades e controlar a saúde mercantil do negócio que lhe servia de fachada. Conde tinha chegado a considerar que a capacidade inata daquele jovem para o comércio, para vender bem, para convencer possíveis clientes — a quem, por princípio, era sempre preciso tratar de lixar, repetia como outro bordão —, devia ser resultado da herança genética trazida pelo avô galego e merceeiro a quem devia também o nome de Reutilio, pois o rapaz crescera num país onde a escassez e a penúria tinham desterrado há várias décadas a arte da boa venda. As pessoas vendiam por necessidade e compravam pela mesma razão. Uns vendiam o que podiam e os outros compravam o que lhes permitiam os seus desprovidos bolsos, sem grandes complicações bolsistas e, sobretudo, sem a agonia que implica escolher: levas ou deixas, é este ou nenhum, despacha-te ou acaba-se, compra o que aparece mesmo que agora não te faça falta... Mas Yoyi, o Pombo, não. Ele era um artista consumado, capaz de colocar objectos sumptuosos a preços impossíveis e Conde apostava que quando realizasse o seu sonho de partir da ilha — para qualquer parte, Madagáscar incluída — chegaria a ser um comerciante bem-sucedido.
Quando se conheceram, Conde sentiu uma rejeição primária pela aparência do jovem, amante das jóias, que exibia nas mãos e no pescoço, e cultor empedernido do seu próprio corpo. No entanto, a relação entre aqueles dois homens, nascida para um relacionamento puramente comercial, conseguiu superar a barreira férrea dos preconceitos de Conde e começou a transformar-se em amizade, talvez pelas carências de cada um deles, que se complementavam com a personalidade e com as qualidades do outro. A impiedosa visão mercantilista do jovem e o romantismo anacrónico de Conde, a perigosa celeridade do primeiro e a parcimónia e os escrúpulos do outro, a veemência por vezes irreflectida de Pombo e a experiência perniciosa que os anos de polícia tinham dado a Conde, equilibravam-nos de uma forma peculiar.
A relação de amizade atingira a sua sedimentação definitiva há três anos, na tarde em que Conde passou pela casa do seu sócio com o pretexto de lhe comunicar que no dia seguinte lhe traria alguns livros, embora o verdadeiro objectivo fosse tomar uma chávena do excelente café que a mãe do rapaz costumava fazer. Mas naquela tarde, com a sua presença, Conde salvara-o, no mínimo, de uma burla que estava a passar, invisível, sob os olhos de falcão de Pombo.
Conde chegara lá a casa no instante preciso em que Yoyi, deslumbrado com um lote de jóias oferecido a um preço demasiado razoável por duas personagens que lhe chegaram através da referência de um joalheiro, se preparava para ir buscar ao quarto os dois mil e duzentos dólares acordados pelo conjunto. Ao chegar, Conde cumprimentou Yoyi e os dois vendedores das jóias e, discretamente, dirigiu-se à entrada da casa, com o pressentimento de que alguma coisa não estava bem. Espremendo a sua memória, conseguiu recordar o rosto de um dos supostos vendedores, cadastrado há muitos anos num caso de roubo com violência. De imediato teve a certeza de que o negócio era uma fraude. Ou as jóias eram produto de um roubo prestes a ser descoberto ou, mais perigoso ainda, serviam apenas de isco para despojar Yoyi do dinheiro acordado. Sem tempo para intervir e abortar a operação, Conde entrou no corredor lateral da casa para aceder ao pátio, onde se armou com um tubo de ferro que se podia brandir como um taco de base-ball. Voltou atrás e, quando chegou à sala, deparou com a cena no seu ponto culminante: um dos vendedores já ameaçava Yoyi com uma navalha enorme, exigindo-lhe o dinheiro, enquanto o outro agarrava nas jóias. Conde, quase sem pensar, descarregou o tubo contra as costelas do homem armado, que largou a navalha e caiu de joelhos diante de Pombo, que o atirou de costas para o chão com um pontapé nos queixos. O outro vendedor, ao ver o que se passava, agarrou nas jóias de qualquer maneira e passou entre Yoyi e Conde, chegando à rua antes que o ex-polícia pudesse voltar a brandir a sua arma. Sentindo o corpo a tremer pelo acto de violência cometido, Conde tinha entregue o tubo de ferro a Yoyi e, depois de afastar a navalha com o pé, deixou-se cair num sofá, exigindo ao jovem:
— Não tornes a desancá-lo. Deixa-o ir. Não compliques a vida...
Mas esta tarde, tal como em outras de boa sorte, Yoyi sorriu feliz ao ver chegar o sócio com um saco repleto de livros. Depois de pedir à mãe que preparasse o imprescindível café, Yoyi seguiu Conde até ao terraço da casa, onde vários vasos de fetos e orelhas-de-elefante, beneficiadas pela sombra protectora das árvores de fruto que cresciam no pátio contíguo, disputavam o espaço. Conde esvaziou o saco em cima da mesa e contou a Pombo que aquele pequeno lote era apenas o minúsculo aperitivo de um festim de livros recém-descoberto. O rapaz ouviu-o com grande impaciência e depois acariciou a quilha saliente do esterno.
— Compadre, juro, você tem de ser um tanso — acabou por dizer. — Como me vai dizer a esses mortos de fome que há livros que não se vendem? Como é possível, Conde?
— Tive pena deles. Estão a morrer de fome... E porque tu sabes que eu não entro nisso...
— Sim, basta olhar para ti... Olha para essa camisa, pá, vai-te cair do corpo. Podias encher-te de guita e sais-te com essa parvoíce de que há livros que não se vendem...
— Isso é problema meu — Conde tratou de dar o assunto por encerrado.
— Claro, claro — resignou-se Pombo e sacudiu a mão esquerda, onde constantemente se lhe embaraçavam as duas pulseiras de ouro. — E o que vais fazer?
— Combinei com eles passar lá por casa com mais dinheiro para inventariar o que têm e levar outro lote. De modo que paga-me este e adianta-me algum dinheiro para comprar mais.
Sem fazer perguntas, com uma confiança comercial que só depositava no Conde, o rapaz meteu a mão no bolso e tirou um maço de notas que fez o outro empalidecer. Com uma habilidade digital impressionante começou a contar, passando as notas a uma velocidade superior à capacidade de somar de Conde.
— Aqui tenho mil, que são teus, e mais três mil para começar o negócio. Está bem, pá?
— Se lhes mostro esta quantidade, assim de repente, podem morrer de susto. — Recordou os olhos ávidos de Dionisio Ferrero e os dedos carcomidos da sua irmã transparente, aferrados ao dinheiro que lhes tinha entregue. — Mas lembra-te de que estes dois censos têm preço especial.
— Quando os vender a Giovanni liquido a tua conta. Com a obsessão que esse tonto do italiano tem pelos censos, consigo arrancar-lhe vinte e cinco verdinhas por cada um... E estes estão como novos. Estás a ver como são as coisas? Esse negócio com os censos soma, por si só, mil e trezentos pesos, porque tenho o cliente adequado. Ouviste bem? Se realmente me vais trazer livros bons, vou fazer de ti um homem rico, pá...
Pombo sorriu e mostrou a Conde uma expressão de satisfação. Foi até à cozinha e voltou com uma bandeja onde fumegavam as chávenas de café e se erguia uma garrafa de rum de sete anos, escoltada por dois copos pequenos, de vidro trabalhado, entre os quais vinha enfiada uma folha de lixa de grão fino.
— Vai limpando os livros — pediu a Conde, entregando-lhe a lixa.
Enquanto saboreava o café e observava, guloso, como Pombo servia o rum, Conde dividiu a lixa em duas metades para lhe facilitar a tarefa e puxou para si a pilha de livros.
— E esse aí? — perguntou Pombo, apontando com o vaso de rum para o volume meio escondido sob o saco.
— É para oferecer à mãe do Magricela. Um livro de cozinha, há muito tempo que o procurava.
O jovem bebeu um gole e sorriu outra vez.
— Um livro de cozinha? Para cozinhar o quê? Ouve, pá, tu e os teus amigos são incríveis: o Magricela, o Coelho(4), o negro Candito com a sua loucura de Jeová e toda essa baboseira... Parecem marcianos, porra, juro-te. Eu vejo-vos e pergunto a mim próprio que diacho vos meteram na cabeça para ficarem assim...
Conde bebeu um gole e acendeu um cigarro. Agarrou num dos livros e começou a lixar delicadamente os cortes, para apagar as marcas possíveis de humidade e eliminar qualquer vestígio de pó.
— Fizeram-nos acreditar que éramos todos iguais e que o mundo ia ser melhor. Que já era melhor...
— Pois enganaram-vos, juro-te. Em toda a parte há uns que são menos iguais que outros e o mundo vai de mal a pior. Aqui mesmo, aquele que não tem verdes está fora de jogo e há pessoas neste instante que estão a enriquecer, a bem ou a mal...
Conde concordou, com a vista perdida entre as árvores do jardim.
— Foi bonito enquanto durou.
— Por isso agora estão tão lixados... Demasiado tempo a sonhar. No fundo, para quê?
Conde sorriu, afastou o livro lixado e foi buscar outro. Lembrou-se de que Yoyi era um leitor fanático das páginas desportivas dos jornais, onde se falava sempre de vencedores e perdedores, a única divisão válida, segundo ele, entre os povoadores da Terra.
— Nesse caso tu pensas que perdemos tempo e que não há solução?
— Perderam tempo e meia vida, mas há solução, Conde. Aquela que procurares para ti próprio, para as pessoas que estão contigo, a tua família, os teus amigos. E isto não é egoísmo... Olha, hoje mesmo... com este negócio, sem sair da minha casa, dormindo a sesta com ar condicionado e sem roubar ninguém, estou a ganhar mais dinheiro que se trabalhasse como engenheiro um mês inteiro, levantando-me às seis da manhã, esfalfando-me para apanhar um autocarro (quando o cabrão do autocarro passa), comendo a bodega que servem nas cantinas e suportando um chefe decidido a sobressair à custa dos outros, para ver se agarra um tacho que lhe permita
*4. Coelho: alcunha de um dos amigos de Conde, devido ao tamanho descomunal dos seus incisivos superiores (ver livros anteriores de Leonardo Padura). (N. da T.)
viajar para o estrangeiro... e que, para ir ganhando pontos, se dedica a lixar a vida dos outros com a cantilena da emulação, do trabalho voluntário e dos planos de produção. Mais claro não pode ser, pá.
— Se calhar tens razão — admitiu Conde, que conhecia perfeitamente a realidade apresentada por Pombo. Soprou o corte superior do livro e deu por terminada a limpeza.
— Contigo o que acontece é que, como foste polícia, acreditaste nisso de que a justiça é verdade. Mas se as pessoas não fazem os seus bisnes(5) e não metem a mão, como vivem? Por isso, aqui até Deus rouba... E alguns, bom, tu sabes, roubam à maneira.
— Yoyi, há mais de dez anos que não sou polícia mas, quer antes, quer agora, sempre soube como vivem as pessoas... Se calhar o que se passa é que estou a amolecer de mais porque vou ficando velho. — Conde agarrou na edição original de El negrero e pô-la de lado, porque precisava de verificar a lombada. Pegou no seguinte, um dos censos, e começou a lixá-lo como se o acariciasse.
— Claro, ainda mais isso... já estás um cota — admitiu Pombo, sorridente. — E os anos amolecem as pessoas. Bom, vou tomar banho, esta noite vou para a discoteca com uma ninfa. Diz-me, queres que vá contigo amanhã dar uma vista de olhos naquela casa?
Conde pousou o livro na mesa e acabou a bebida. Pensou na resposta.
— Está bem. São muitos livros e entre os dois despachamos aquilo mais depressa... Mas deixa-me avisar-te bem: essa biblioteca encontrei-a eu e, se lá fores, sou eu quem manda, okay. Não quero batotas com aqueles desgraçados...
— Com que então desgraçados... — Pombo tirou a T-shirt e Conde viu como a corrente de grossos elos dourados, com uma medalha enorme onde sobressaía a imagem de Santa Bárbara, repousava sobre o promontório peitoral do jovem. — O homem não foi um manda-chuva do exército e esteve depois metido numa corporação? Não te disseram porque o tiraram de lá e o mandaram à merda? De modo que tu achas que são uns desgraçados?... Fixe, tudo bem, tu mandas. Juro-te, meu.
— Telefono-te amanhã antes de sair — e Conde levantou-se, com um novo cigarro na boca.
*5. Bisnes (do inglês business): negócio. (N. da T.)
Ouve, Conde, e o que vais fazer com esse dinheiro que ganhaste hoje? - perguntou-lhe Pombo, sorrindo com a mais pura zombaria.
— Viva, acabou-se a caderneta de senhas de abastecimento. Preparem-se para comer como Deus manda... — gritou ao transpor o umbral e bateu com a palma da mão no peso compacto das oitocentas páginas daquele compêndio de bem comer, cujo índice, por si só, já lhe tinha alterado todos os órgãos, glândulas e condutos relacionados com a fome. Como sempre, a casa de Carlos, o Magricela, estava aberta de par em par e, como sempre, depois de se anunciar com o primeiro grito, Conde continuou até ao fundo, sem necessidade de protocolos.
— Entra, estamos aqui — ouviu a voz do amigo quando já atravessava a sala de jantar e se dirigia para o quintal, sombreado pelas mangueiras e abacateiros, com os seus troncos cobertos de caprichosas orquídeas, exultantes pela chuva recente. Lá estavam Carlos e a mãe, silenciosos, aferrados ao último reflexo da tarde moribunda, como náufragos de uma vida que também se lhes esgotava sem que aparecesse uma ilhota salvadora no horizonte.
Conde aproximou-se da velhota e beijou-a na testa, obtendo idêntica recompensa.
— Como estás, José?
— Cada dia mais velha, Condecito.
Aproximou-se depois da cadeira de rodas de Carlos, o Magricela, que não era magricela há vinte anos e cuja gordura doentia transbordava os limites daquela cadeira da sua condenação, e, com o braço livre, atraiu para o peito a cabeça húmida de suor do amigo.
— Conta-me coisas, selvagem.
— Aqui, fazendo o mesmo de sempre — disse Carlos, dando duas palmadas afectuosas no estômago vazio de Conde, que percutiu como um tambor mal estirado.
Conde ocupou uma das cadeiras de ferro fundido e suspirou aliviado ao sentar-se. Olhou para Josefina e Carlos e sentiu na paz do entardecer o bálsamo seguro do amor que lhe provocavam aqueles dois entes insubstituíveis com quem tinha partilhado quase toda a sua vida e a maior parte dos seus sonhos e frustrações, desde o dia, cada vez mais longínquo mas nunca esquecido, em que, numa aula do Pre(6) de La Víbora, pediu ao Magricela uma lâmina para afiar a ponta do lápis e, sem esforços adicionais, descobriram que podiam ser amigos e começaram a sê-lo. Depois, a fatalidade ou o destino selou com um ferrolho invencível aquela relação, quando Carlos regressou da sua estadia fugaz na guerra de Angola com a medula destruída por um tiro de espingarda vindo de um sítio e de um ódio que ele nunca soube precisar. A invalidez irreversível do amigo, submetido a várias cirurgias inúteis, transformara-se numa carga espiritual assumida por Conde com um doloroso complexo de culpa — porquê Carlos, porquê ele?, perguntara a si próprio durante todos esses anos. — Desde essa altura, servir de companhia e de suporte material ao amigo passara a ser uma das missões sagradas da sua vida e, por isso, durante os anos mais álgi-dos da Crise, no princípio dos anos noventa, quando os apagões e as penúrias lhes invadiram a vida, Conde investiu cada centavo ganho na sua nova profissão de livreiro na procura de alegrias que tornassem mais suportável o quotidiano atrofiado do Magricela. Mas nos últimos três, quatro anos, quando a imobilidade, a obesidade e as doentias orgias de comida e álcool começaram a pôr em perigo evidente a vida de Carlos — os rins falhavam, o fígado endurecia, o coração batia a ritmos diversos —, Conde viu-se perante o dilema terrível de recusar participar naquelas agressões ou, com pleno conhecimento de causas e consequências, contribuir com o seu ânimo e participação material para o desenlace que o seu velho amigo parecia procurar esforçadamente: uma forma digna de acabar com uma vida de merda, destruída para sempre aos vinte e oito anos. Mário Conde, consciente do peso terrível que assumia com a sua decisão, optou pela solidariedade militante, dizendo para consigo que na vida e na morte o seu dever era ajudar o amigo, estar ao seu lado, e continuou a proporcionar-lhe os recursos e motivações para acelerar, da forma mais alegre possível, a chegada de uma libertação desejada, mediante o sistema lento mas seguro de lhe envenenar o sangue e de lhe entupir as artérias com a gordura, a nicotina e o álcool que Carlos ingeria em quantidades libertadoras.
*6. Pre: pré-universitário. (N. da T.)
— O que é que vinhas gritando por aí, Conde? — perguntou-lhe o Magricela.
Ah, não me ouviram? Claro, por isso vos via tão cândidos e distantes... Dizia para prepararem os dentes porque vamos jantar fora. Reservei uma mesa na paladar(7) do Contreras...
— Mas enlouqueceste? — Carlos olhou-o, com um sorriso tímido, como se não entendesse o que só podia ser uma piada de mau gosto do amigo.
— Hoje ganhei quinhentos pesos num piscar de olhos. E amanhã devo ganhar o dobro, o triplo, o quádruplo e mais ainda... Olhem bem para mim, estou a ficar rico. Vou tornar-me num magnata, como disse o Yoyi.
— No que te tornaste foi num mentiroso — interveio Josefina. — Em que negociata andas metido? Onde já se viu livros velhos valerem tanto?
— José, põe-te bonita que está a chegar um carro para nos vir buscar... Bolas, estou a falar a sério! Estou cheio de massa — insistiu o Conde, batendo com a mão no bolso.
— Velha, os loucos não podem ser contrariados. Anda, arranja-te e traz-me uma camisa — pediu-lhe Carlos. — Hoje estou com uma fome que me fino. No fim de contas, se não o gastar hoje, gasta-o amanhã.
— Isso digo eu, e é melhor gastá-lo hoje, não? — corroborou Conde, pondo-se de pé para ajudar Josefina a levantar-se, vendo-a depois a entrar em casa falando baixinho.
— Magricela, quantos anos já tem a velha?
— Nem sei... Mais de setenta, menos de oitenta.
— Está-nos a ficar velha a sério — lamentou-se o Conde, regressando à cadeira.
— Muda de assunto - exigiu Carlos. - Vamos lá ver, o que é isso? — perguntou, apontando para o sobrescrito de papel que o Conde ainda segurava.
— Ah, é um presente para a tua mãe. Um livro de receitas de cozinha. Segundo dizem, o melhor que se publicou em Cuba.
*7. Paladar: restaurantes privados, muitas vezes em casas particulares, inicialmente clandestinos e mais tarde com inúmeras limitações impostas pelo governo, e que devem o seu nome a uma telenovela brasileira muito famosa em Cuba nos anos 80. (N. da T.)
Mas a primeira condição para o abrir é ter à frente uma mesa repleta de comida, caso contrário podemos morrer de fome à primeira receita. .. Por isso, vamos ao paladar do Contreras.
— Contreras? — Carlos ficou pensativo. — Aquele gordo que foi polícia?
— Esse mesmo... Deram-lhe seis anos, cumpriu dois e, quando saiu, tornou-se empresário. Com o que esse gordo sabe da rua, já deve ser rico a sério.
— Já reparaste, Conde, a quantidade de tipos que foram polícias e militares e que agora vivem de negociozinhos desses?
— Um monte. A vida é o que é e quase todos trataram de se arranjar para fugir... Mas hoje encontrei-me com um que foi major do exército e a verdade é que está prestes a morrer de fome... Bom, o que me vendeu os livros — e acrescentou com entusiasmo: — Magricela, nem podes imaginar, descobri realmente uma mina de ouro. Têm livros que valem nem se sabe quanto... Olha para este, é uma maravilha, com ilustrações de Massaguer e tudo. Bom, como vamos comer agora mesmo, ouve-me isto.
Conde atreveu-se a abrir a primeira página e, tentando encontrar o ângulo mais apropriado para receber a luz do candeeiro do quintal e a melhor distância para a sua galopante miopia, leu:
— jGusta usted? «Prontuário culinário e... necessário». Patrocinado pelas Madrinas de Ias Salas Costales e San Martin do Hospital Universitário «General Calixto Garcia»... O que achas? É um livro de receitas requintadas, escrito pela má consciência da burguesia cubana... Este livro está repleto de receitas impossíveis...
— É um livro subversivo, é o que é — concluiu Carlos.
— Quase terrorista.
Distraidamente, Conde começou a folhear o volume, citando ao amigo os nomes de algumas receitas e mostrando as ilustrações de Conrado Massaguer, sem entrar em detalhes gastricamente alarmantes, quando, entre as páginas 561 e 562, encontrou uma folha de papel de revista dobrada a meio. Com o cuidado que lhe tinham inculcado os seus ofícios de polícia e de livreiro, tirou-a do sítio e observou-a.
— O que é isso? — quis saber Carlos.
Por ter estado a salvo do ar e da luz, a folha da revista, de umas quinze por dez polegadas, conservara quase intacta a sua cor original, ligeiramente esverdeada. No rodapé, Conde conseguiu encontrar a identificação do impresso: Vanidades, Maio de 1960. A parte visível da página fazia a propaganda de umas novas máquinas de lavar automáticas da General Electric à venda nos armazéns Sears, El Encanto e Flogar. Convencido de que o papel tinha outra mensagem mais substancial, abriu a folha e, pela primeira vez, cruzou o seu olhar com os olhos escuros de Violeta dei Rio.
— O que é isso? — insistiu Carlos, o Magricela, aproximando de Conde a sua cadeira de rodas.
— Não sei... «O adeus de Violeta dei Rio»... Porra, Magricela, olha para isto, que mulher!
Tinha sido impressa uma fotografia de página inteira de Violeta del Rio, envergando um vestido de lamê — isso pensou Conde, embora em toda a sua vida nunca tenha tocado num vestido de lamê — colado ao corpo como uma pele de serpente. O tecido, dotado da capacidade de insinuar o volume de uns seios embravecidos, permitia ver umas pernas sólidas, que deixavam em evidência as ancas maciças, nascidas numa cintura estreita e tentadora. O cabelo negro, ligeiramente ondulado, no mais rigoroso estilo dos anos cinquenta, caía-lhe até aos ombros, emoldurando uma cara de pele lisa onde sobressaía a boca, grossa, provocante, e aqueles olhos que, do velho papel, transmitiam um magnetismo vigoroso.
— Bolas, que mulher! — reconheceu Magricela. — Quem era?
— Deixa ver... — e leu, saltando as linhas: — Violeta del Rio... a excitante cantora de boleros... a Dama da Noite... anunciou no fim de uma apresentação memorável ser essa a sua última actuação... Dona e senhora do segundo show do cabaré Parisién... No auge da sua carreira... Gravou recentemente o single promocional Vete de mi, como antecipação do seu longplay Havana Fever... Tu já tinhas ouvido falar dela?
— Não — reconheceu o Magricela. — Mas tu sabes como eram essas revistas. Se calhar não a conheciam em lado nenhum e diziam que era a Rainha de Sabá...
— Sim, sim, é possível. Mas este nome não me é estranho — comentou Conde, sem se dar conta de que o seu olhar continuava preso aos olhos negros daquela mulher de papel, exultante e provocadora, entre os vinte e os vinte e cinco anos que, da sua imobilidade e através do tempo, era capaz de lhe transmitir um calor real.
Josefina regressou, engalanada com o vestido salpicado de minúsculas flores, que usava nas suas saídas mais importantes: as suas visitas periódicas ao médico. A velhota prendera o cabelo e levava uma cor ténue mas brilhante nos lábios, onde pairava um sorriso tímido.
— Ora, ora — observou-a Conde, feliz: — A Dama das noites quentes de La Víbora.
— Estás nos trinques, velha — foi o piropo de Carlos, que perguntou de imediato: — Vem cá, ouviste falar alguma vez de Violeta del Rio, uma cantora de boleros dos anos cinquenta?
Josefina tocou no lábio superior com o lencinho que trazia na mão.
— Não, não me lembro...
— O que te disse, Conde? Ninguém a conhecia...
— Sim, é possível... Mas não sei porquê, soa-me... — e acrescentou: — Bom, vamos para a entrada, o carro de Tinguaro deve estar a chegar.
— Tinguaro? — perguntou Carlos.
— Sim, o que era polícia. Agora é taxista por conta própria, vende charutos Montecristo, Cohiba e Rey del Mundo, iguaizinhos e até melhores que os da fábrica, e também tem uma brigada de pintores que deixam a brilhar uma casa, um prédio ou um jazigo. E Tinguaro arranja as tintas, eh!
2 de Outubro
Meu querido:
O que mais desejo é que ao receberes esta carta te encontres bem, aí tão longe e ao mesmo tempo tão perto, tão longe das minhas mãos e tão perto do meu coração, das minhas mãos que não conseguem alcançar-te enquanto o meu coração te sente a cada batimento, como se estivesses aqui, junto do meu peito, de onde nunca devias ter-te afastado.
Nem imaginas o que significaram estes dias sem te ver, agravados pela incerteza de nem sequer poder calcular quanto tempo durará esta separação. Em cada hora, cada minuto, tive algum pensamento para ti, pois aqui tudo me faz recordar-te, tudo existe porque tu exististe e deste a tua alma a cada coisa, a cada pessoa, mas sobretudo a mim.
Nestes dias ainda quentes, quando saio a tarde para o quintal em busca do frescor da brisa e vejo a folhagem das árvores que foste plantando através dos anos, sinto que esse ar, filtrado pelo rumor áspero das folhas do mamey, do sussurro das folhas da graviola e do suave tilintar das folhas da velha acácia rubra (a tua acácia rubra, lembras-te com que alegria saudavas todos os Verões a chegada das suas primeiras flores?), é uma parte de ti que me chega através da distância e sonho que talvez uma partícula desse ar tenha estado em algum momento dentro de ti e depois, atraída pela minha solidão, tenha voado sobre o mar para vir consolar-me e alimentar-me, manter-me viva para ti.
E tu, meu amor, como estás? O que fizeste nestes primeiros dias? Já viste os teus amigos e sócios? Sei que esse lugar nunca te agradou muito, que preferias viver aqui, mas se conseguires ver esta ausência apenas como um parêntesis na tua vida, com certeza que a distância pode tornar-se mais suportável e, dessa forma, ligar-te-ás melhor a mim (pois quero crer que este tempo é apenas o que faço agora: um parêntesis no meio de uma paixão, dolorosamente cortada, mas só para sair reforçada e seguir até ao seu final feliz). Não achas?
Daqui há pouco que contar. Eu, paralisada como me sinto, julgo ter-me tornado inimiga de um tempo que se recusa a passar, que dilata cada hora e me obriga a olhar para o almanaque várias vezes ao dia, como se nos seus números frios estivessem as respostas de que necessito. Essa sensação de imobilidade torna-se ainda mais patente porque, desde a tua partida, não ponho um pé fora de casa. Aqui está o que preciso para recordar-te e sentir-te perto, enquanto na rua imperam o caos, o esquecimento, apressa, a guerra contra o passado e, sobretudo, esta gente iludida com a mudança, transbordante de alegria, diria mesmo muito contente com o que pensam vir a receber pela sua fervorosa credulidade, sem pensar que depressa lhes chegarão as exigências terríveis da fé inquestionável que agora professam. A minha esperança é que, como dizia o teu pai, neste país nada costuma durar muito, somos definitivamente inconsistentes e aquilo que hoje parece um terramoto devastador, dissolver-se-á amanhã como um pitoresco desfile de Carnaval.
O pior, no entanto, é sentir o vazio que ficou a pairar entre as paredes desta casa, onde reina o silêncio desde que se deixaram de ouvir as vozes das crianças e onde faltas tu que, com o teu espírito, marcavas este espaço que agora parece imenso e no qual me sinto desorientada por tantas ausências.
Do teu filho soube muito pouco nestes dias. Sei que anda por algum canto perdido da ilha, vivendo plenamente a sua aventura revolucionária. Imagino-o magro e feliz, pois está a construir a sua vida e a sua vontade, com essa personalidade de aço que herdou do teu sangue. A tua filha, pelo contrário, parece retraída, triste, mas razões não lhe faltam para isso, sempre se sentiu mais próxima da família (apesar do respeito que a sua distância lhe infundia) e a tua partida arrancou-lhe a esperança de alguma vez poder desfrutar daquilo que, por direito natural, deveria ter (perdoa-me, mas não posso deixar de dizê-lo). Felizmente, ela dedica a maior parte do dia ao seu trabalho e dá-me a impressão de que ali tenta afastar-se de casa, atordoar-se com as suas tarefas, como se quisesse fugir de alguma coisa que a persegue, entregando-se (ela também!) a nova vida de um país onde tudo parece empenhado em mudar, a começar pelas pessoas.
Desta vez já chega. Só queria dizer-te alguma coisa acerca de mim e dos meus sentimentos... Beija as crianças da minha parte e recorda-lhes, sempre, o muito que as amo. Cumprimenta igualmente a tua irmã e o teu cunhado, diz-lhes que não sejam falsos, que um dia deveriam escrever-me. E tu, por favor, não me esqueças. Escreve-me, telefona-me ou, pelo menos, recorda-me, mesmo que seja um pouco... Porque te amo, sempre, sempre...
A tua Pequena.
O estômago destreinado de Mário Conde viu-se na contingência de realizar um esforço especial para albergar, primeiro, e digerir, depois, o esmagador compromisso alimentar que o desconsiderado dono lhe tinha imposto. Enquanto Josefina se contentava com uma posta de peixe grelhado, uma alegre salada de verduras e uma taça de gelado de amêndoas como sobremesa, Conde e Magricela começaram o assédio das suas fomes físicas e intelectuais, históricas e contemporâneas, com cocktails de ostras e camarões, destinados a alvoroçar-lhes o paladar com sabores marinhos extraviados na memória e a prepará-los para se perderem, o primeiro pela senda caldosa de uma carne com batatas ao mais clássico estilo cubano, e o segundo a atirar-se ao poço oleaginoso do pernil com grão-de-bico destinado a fazê-lo transpirar por cada um dos seus muitíssimos poros. Então, com o corpo já quente, como corredores de fundo que encontraram a sua melhor passada, competiram para ver quem comia mais arroz de frango, servido em proporções exageradas — tanto de arroz como de frango, num gesto amável da casa —, para terminarem partilhando uma pizza de presunto que o Magricela tinha insistido em pedir para preencher um buraquinho resistente que clamava o seu horror vacui. Como epílogo, escolheram ambos fatias douradas, bem cobertas de calda de açúcar perfumada com anis e casca de lima, e não se negaram, gentis como costumavam ser em semelhantes circunstâncias, a provar o arroz-doce polvilhado de canela que o gordo Contreras preparava pessoalmente, segundo uma receita da bisavó, uma puta andaluza dada à boa vida, que morrera aos oitenta e oito anos com um charuto na boca e um copo de rum na mão. As duas garrafas de vinho chileno de Concha y Toro tinham sido liquidadas antes da chegada das sobremesas e por isso pediram doses duplas de rum de sete anos para limpar as papilas e acompanhar o café, runs duplos que se transformaram em quádruplos quando os amigos acenderam os puros de capa delicadíssima, oferecidos pelo ex-polícia transformado em gastrónomo, que no fim da noite depositou a sua volumosa humanidade entre eles e Tinguaro, para beberem juntos um copo de Fra Angélico previamente congelado. A conta de setecentos e oitenta pesos não surpreendeu Conde que, depois de pagar cem pesos a Tinguaro, encerrava agradavelmente o que tinha acabado por ser um dos dias mais rentáveis da sua vida com uma perda de trezentos e oitenta pesos e a tranquilizadora convicção de que talvez pudesse passar pelo buraco de uma agulha, pois nunca seria rico...
Remexendo-se na cama, incapaz de ler, Conde só conseguiu adormecer por volta das quatro da madrugada e, durante aquelas horas de incomodidade, arrotos e calor, a imagem recentemente revelada daquela Violeta del Rio, de quem também o gordo Contreras nunca ouvira falar, voltou repetidamente à sua retina, com uma tenacidade quase irritante. Talvez o seu persistente instinto policial também tivesse perdido o sono com a comezaina e o tivesse obrigado a reparar em algumas incongruências naquela descoberta. A primeira e mais provocadora era a estranha decisão, sem motivos conhecidos, pelo menos para o redactor da Vanidades, tomada por aquela «belíssima e delicada» mulher, «no auge da sua carreira», de abandonar o palco e, segundo todas as evidências, esfumar-se de uma forma tão radical, ao ponto de, ao que parecia, nunca mais se ter voltado a saber dela. Teria abandonado a ilha, como tantos milhares de cubanos naquela época? A Conde parecia-lhe ser a possibilidade mais plausível, embora não descartasse a hipótese de Violeta ter continuado a viver em Cuba, sob o seu verdadeiro nome - Lucía, Lourdes, Teresa, porque ninguém pode chamar-se realmente Violeta del Rio —, garantindo assim privacidade, longe do lamê, dos microfones e dos holofotes. Não, não era descabido acreditar nisso, porque naqueles anos de tantas mudanças na vida do país e das pessoas que o povoavam tiveram lugar infinitas transmutações políticas, morais, religiosas, profissionais, económicas e até desportivas: o seu avô Rufino sofreu como um condenado a proibição das lutas de galos e o próprio pai de Conde esteve até à sua morte sem voltar a ver um jogo de baseball, pois não concebia nem aceitava que tivesse deixado de existir o clube azul de Almendares, do qual tinha sido fanático raivoso todos os minutos dos primeiros trinta e cinco anos da sua vida... Mas nenhum artista deixa de o ser de um dia para o outro, assim, de chofre — tal como um polícia também não deixa de o ser de todo, apesar dos anos longe do ofício, e isso Mário Conde sabia-o muito bem. Talvez por isso o intrigasse a presença daquele recorte, escondido dentro de um livro de cozinha que ninguém abrira durante muitos anos, como o confirmava não só o seu estado de conservação, mas o facto historicamente provado de o seu conteúdo se ter tornado inútil num país com racionamento alimentar há quase meio século. Civet de lebre com ameixas secas?, Oeufs en gelée au foie-gras? Costeletas de vitela Foyot?... Não me lixem...! Fazendo conjecturas, Conde pensou que o livro devia ter pertencido à mulher do tal Alcides Montes de Oca, embora, conforme recordava, a mulher tivesse morrido por volta de 1956, justamente quando o livro de receitas foi editado. Se, como garantia Amalia Ferrero, o seu irmão Dionisio deixou de viver com elas aquando do triunfo da Revolução, era pouco provável que ele tivesse colocado ali o recorte publicado em 1960. No seu inventário possível restavam cinco pessoas: o defunto Alcides Montes de Oca e os seus filhos adolescentes, a velhota e já desmemoriada mãe Ferrero e a própria Amalia. Que relação podia ter algum deles com uma cantora de cabaré de Havana dos anos cinquenta? Conde não fazia ideia, mas algum vínculo deve ter existido entre uma daquelas pessoas e a evaporada cantora de boleros, a mulher sedutora a quem tinham baptizado de Dama da Noite e que, nalgum recanto extraviado da memória de Conde, palpitava como uma presença difusa, quase extinta, mas ainda capaz de projectar um reflexo inquietante.
Já passava das três da manhã quando Conde sentiu umas arranhadelas autoritárias na porta da cozinha. Sabia que era inútil pretender desinteressar-se delas, pois a persistência era a característica mais notável do arranhador, e levantou-se para abrir a porta.
— Bolas, Basura(8), isto são horas de chegares a casa?
A beira da provecta idade de catorze anos, Basura conservava intactas as suas inclinações de cão vadio e todas as noites saía para percorrer o bairro à procura de ar puro, pulgas peregrinas e cadelas no cio. Desde que Conde o trouxe para sua casa, numa noite ciclónica de 1989, aquele maltês apócrifo e arruaceiro estabeleceu as regras da sua liberdade inegociável e Conde aceitou-as, agradado com o temperamento do animal que agora, avisado pelo olfacto, ladrou duas vezes reclamando a sua comida.
— Está bem, está bem, vou servir-te o prato.
Conde foi à varanda e voltou com a taça de metal. Abriu o saco
*8. Basura: lixo. (N. da T.)
repleto de sobras trazidas do paladar e despejou uma parte do seu conteúdo na taça.
— Mas vais comer lá para fora... — avisou-o Conde, levando a comida para a varanda. — E amanhã conversamos, porque isto não pode continuar assim...
Basura ladrou outras duas vezes e abanou, como uma bandarilha, a sua cauda desfiada, exigindo pressa ao homem.
De volta à cama, Mário Conde fumou um cigarro. Com os olhos escuros de Violeta del Rio no fundo das suas retinas, deslizando a sua memória pelas ondas profundas do seu cabelo e pela lisura da sua pele, acolheu finalmente o sono benéfico. Contrariamente ao que tinha previsto, dormiu cinco horas de um estirão e ao acordar sentiu-se defraudado, porque não conseguiu lembrar-se de ter sonhado com a bela mulher envergando um vestido de lamê.
Que raio faço eu aqui?... De pé na porta da igreja, Conde respirou com excessiva fruição o ar húmido que circulava pela nave central do modesto edifício de alvenaria e telha onde tinha entrado pela primeira vez — fazia cálculos, nos últimos tempos, acumulando cifras crescentes — há quarenta e sete anos para receber o sacramento do baptismo. Ao fundo, o altar-mor, talvez discreto de mais, ofereceu-lhe novamente a imagem aprazível do arcanjo Rafael, com o seu rosto rosado e limpo de ser celestial, imune às marcas do mundo. As fileiras de bancos escuros, desertos àquela hora da manhã, contrastavam com o bulício da rua que Conde percorrera, repleta de uma humanidade colorida de vendedores de churros e de bolos, de transeuntes apressados e de matadores do tempo, de bêbados matinais vociferantes, aquartelados no bar da esquina, e de velhotes resignados que aguardavam a abertura demorada da cafetaria onde consolariam os seus estômagos devastados.
Nos últimos dez, doze anos, Conde tinha começado a visitar a igreja do bairro com uma frequência suspeita. Embora nunca mais tivesse tornado a assistir à missa e nem sequer pensasse na possibilidade de se ajoelhar junto do confessionário, o impulso de se sentar por uns minutos no templo deserto, disposto a abrir as comportas da sua mente, recompensava-o com uma sensação de sossego que ele insistia em considerar alheia a qualquer misticismo ou necessidade espiritual ultraterrena. Isenta da sua função essencial, que Conde não utilizava — nunca rezava nem pedia nada, pois esquecera todas as orações e não tinha sequer a quem dirigi-las —, a igreja tinha começado a funcionar para ele como uma espécie de refúgio onde o tempo e a vida perdiam o ritmo feroz da sobrevivência quotidiana. No entanto, a sua consciência avisava-o de que, apesar da sua descrença em questões do Além, existia um sentimento difuso, ainda impreciso para si próprio, que, sem ainda fazer mossa no seu ateísmo essencial, tinha começado a penetrá-lo e a atraí-lo para aquele mundo com um magnetismo obstinado. Conde começara a suspeitar que a mistura dos anos com os desenganos que lhe transbordavam do coração acabariam talvez por atirá-lo, ou na realidade por devolvê-lo, ao redil dos que se consolam com uma fé. Mas a simples ideia de que aquela possibilidade se concretizasse incomodava-o: para o fundamentalismo de Conde pelas fidelidades, os conversos podiam ser tão desprezíveis como os renegados e os traidores, mas ser um reconvertido roçava quase a abominação.
Naquela manhã, Conde sentia-se expectante, porque não entrava na igreja à procura de uma paz passageira, mas de uma resposta improvável, sem a mais pequena relação com os mistérios da transcendência e sim com os do seu próprio passado, no mais terreno dos mundos possíveis. Por isso, em vez de se sentar anonimamente num dos bancos, atravessou o corredor central do templo e dirigiu-se à sacristia, onde encontrou, tal como esperava, a figura ainda firme do octogenário padre Mendoza, com a Bíblia aberta no Livro do Apocalipse, quem sabe se em busca de uma passagem para o seu próximo sermão.
— Bom-dia, padre — disse, entrando no recinto.
— Já? — perguntou o velhote sem levantar o olhar.
— Ainda não.
— Não demores muito — avisou o pároco.
— Em que ficamos? O tempo do Senhor é infinito ou não?
— O do Senhor sim, o teu não. E o meu também não — disse, olhando finalmente para Conde, com um sorriso nos lábios.
— Porque te interessa tanto converter-me? — perguntou Conde.
— Porque estás a pedi-lo aos gritos. Empenhas-te em não acreditar e és daqueles que não pode viver sem crer. Só tens de te atrever a dar o passo.
Conde teve de sorrir. Seria verdade tudo aquilo ou tratar-se-ia de um raciocínio sibilino daquele padre cheio de artimanhas?
— Não estou preparado para voltar a acreditar em certas palavras. Além disso, vais exigir-me coisas que não posso nem quero fazer.
— Por exemplo?
— Digo-tas quando me confessares — respondeu Conde, esgueirando-se, e, para voltar à terra, estendeu um cigarro ao sacerdote, enquanto colocava o seu nos lábios. Com a sua caixa de fósforos acendeu os dois cigarros e os homens ficaram envoltos pelo fumo. — Vim ver-te porque quero saber uma coisa e se calhar tu podes ajudar-me... Desde quando conheces a minha família?
— Desde que cheguei a esta paróquia, há cinquenta e oito anos. Tu nem pensavas nascer... O teu avô Rufino, que era mais ateu que tu, foi o meu primeiro amigo neste bairro.
Conde assentiu e voltou a duvidar das intenções que o tinham conduzido ao padre Mendoza. O padre, experiente naquelas inco-modidades, ajudou-o a dar o passo.
— Vamos lá ver, o que queres saber?
Conde olhou-o nos olhos e assimilou a confiança que lhe oferecia o olhar do velhote que em tempos lhe colocara na boca a hóstia de farinha que, segundo ele, era o próprio corpo de Cristo.
— Alguma vez ouviste falar de uma mulher chamada Violeta del Rio?
O padre levantou a cabeça, talvez espantado com aquelas palavras inesperadas. Deu duas passas no cigarro antes de o apagar no cinzeiro e devolveu a Conde o olhar.
— Não — disse com firmeza. — Porquê?
— Ontem deparei com esse nome e, não sei porquê, não me é estranho. Tenho a sensação de que alguma coisa adormecida, de repente, acordou. Mas não consigo determinar onde nem porquê...
— Quem é essa pessoa? — quis saber o padre.
Conde explicou-lhe, tentando encontrar naquela história sem pés nem cabeça a razão pela qual Violeta del Rio lhe parecia misteriosa e remotamente conhecida.
— Que idade tinhas tu em 1958? — perguntou-lhe o padre, olhando fixamente para ele.
— Três anos — respondeu Conde. — Porquê?
O velhote reflectiu alguns segundos. Parecia avaliar os seus pensamentos e as palavras que devia pronunciar ou calar.
— Por essa época o teu pai apaixonou-se por uma cantora.
— O meu pai? — reagiu Conde, pois as palavras do padre chocavam contra a imagem rígida e de amante da vida familiar que conservava do pai. — Por Violeta del Rio?
— Não sei como se chamava, nunca soube, de modo que pode ter sido essa ou outra qualquer... Pelo que sei, foi uma paixão platónica. Mas paixão, ao fim e ao cabo. Ouviu-a cantar e ficou aparvalhado. Creio que a coisa não passou daí. Creio... Ela vivia num mundo e o teu pai noutro, ele não podia alcançá-la e parece que o aceitou desde o princípio. A tua mãe nunca soube. Mais, eu julgava que ninguém tinha ficado a saber, além do teu pai e de mim...
— E por que razão esse nome não me parece estranho?
— Ele nunca te falou dela?
— Acho que não, não sei. O meu pai nunca me falou das coisas dele, tu conhecia-lo. Não, daí não pode ser.
Conde tratou de compor a imagem monolítica do pai, com quem nunca conseguiu estabelecer as pontes de comunicação que teve com a mãe ou com o avô, Rufino, o Conde. Amaram-se, Conde tinha a certeza, mas nenhum dos dois foi alguma vez capaz de expressar verbalmente aquele afecto, e o mutismo cobriu quase todos os pormenores das suas vidas. Além disso, imaginá-lo em bares e cabarés à caça de uma bela cantora não encaixava nos estereótipos que aquele homem lhe legara.
— Pois tem de ter sido ele... Se calhar contou-te um dia essa história e tu esqueceste-a. Um homem apaixonado é capaz de qualquer disparate.
— Isso já eu sei. Mas ele não.
— Porque tens tanta certeza? Era um homem como outro qualquer.
— É que falávamos muito pouco.
— E o teu avô Rufino? Não lhe terá contado a ele?
— Também não.
— Se calhar sim, se calhar contou ao velho Rufino e tu ouviste-o e...
— Mas como era essa mulher para conseguir que o meu pai se apaixonasse por ela?
— Não faço ideia — sorriu o padre —, ele só me contou que a cantora, Violeta ou como quer que se chame, se lhe metera na cabeça de uma maneira terrível. O teu pai veio ver-me porque dizia que ia enlouquecer. Aqui mesmo contou-me tudo... Coitado.
Conde acabou por sorrir. A imagem do seu pai apaixonado por uma cantora de boleros parecia-lhe irreal, mas tão humana que o reconfortou.
— De modo que o meu pai se apaixonou por uma cantora e babava-se por ela. E nunca ninguém soube...
— Eu soube-o — rectificou o padre.
— Tu és diferente — esclareceu Conde.
— E sou diferente porquê?
— Porque és diferente. Caso contrário o meu pai não te teria dito o que se passava.
— Isso é verdade.
— E porque nunca lhe perguntaste o nome dessa mulher?
— Isso não era importante. Nem para mim, nem para ele. Foi como que uma rajada de desejo: apareceu e transtornou-lhe a vida. O que interessa um nome? Eu limitei-me a avisá-lo de que tivesse cuidado, de que há passos irreversíveis — afirmou o padre, pondo-se de pé com um gemido. — Bom, vou preparar-me para a missa. Ficas? Olha que ainda não chegou o menino do coro...
— Eu ficaria muito bem de menino do coro... Continua à espera, mas bem sentado... Sabes que mais? Se descubro que o meu pai se apaixonou precisamente por Violeta del Rio vou começar a acreditar em milagres.
Não conseguiu evitar: vendo aqueles rostos recordou-se do júbilo madrugador de Basura diante do banquete de restos; recordou-se das noites mais duras dos tempos da Crise, quando a desolação da sua própria despensa o obrigou a tostar pão velho e a beber água açucarada; recordou-se mesmo do velhote que dias antes lhe tinha pedido dois pesos, um peso, qualquer coisa, para comprar alguma comida. Os rostos agora felizes, embora ainda marcados, com que o receberam Amalia e Dionisio Ferrero confirmaram a Conde que na tarde anterior os irmãos tinham chegado ao mercado antes da hora do fecho e que, tal como ele próprio, se tinham regalado com um banquete excepcional que, por falta de treino gástrico, talvez lhes tivesse também dificultado o sono, mas sem que esse contratempo menor tivesse sido capaz de diminuir a satisfação de se sentirem repletos de comida, a salvo das pontadas manhosas da fome. Era mesmo possível que, naquela manhã, tivessem tido um pequeno-almoço com leite, devolvendo-lhes às papilas aquela satisfação cremosa, e se calhar até se tinham dado ao luxo de barrar o pão com manteiga e bebido um café verdadeiro e denso, como aquele que agora ofereciam aos compradores, um café talvez demasiado doce, segundo diagnosticava o paladar especialista em cafés do antigo polícia, mas sem dúvida real, diferente do pó bastardo, de grãos ignóbeis, que se vendia em quotas mínimas através da rigorosa caderneta de racionamento.
Ao chegar, Conde apresentara-lhes o seu sócio, e Yoyi, o Pombo, ansioso pela proximidade do tesouro, acelerou as formalidades protocolares e pediu para entrar na biblioteca, como se esta se tratasse de um armazém de martelos ou de um contentor de tesouras.
Amalia desculpara-se, pois tinha de lavar e alimentar a mãe, ir ao mercado — ainda lhe sobraria dinheiro? — e fazer milhares de coisas lá em casa, mas Dionisio permaneceu com eles na biblioteca, como se a mosca da desconfiança o tivesse picado. Por sugestão de Conde, os compradores iniciaram a cata pelas estantes situadas no sector direito do aposento, o menos povoado, pois as prateleiras tinham sido cortadas para dar espaço à vidraça com gradeamento de ferro forjado que dava para o jardim tornado horta de sobrevivência. Tal como Conde determinara, começaram a formar três grupos na superfície do generoso escritório: o dos livros que nunca deveriam ser postos no mercado, o dos que interessavam menos ou definitivamente não interessavam a ninguém e o dos livros destinados à venda imediata. No primeiro grupo, Conde foi colocando edições cubanas do século XIX, de enorme cotação à primeira vista, e vários livros europeus e norte-americanos, entre os quais uma edição original do Cândido de Voltaire, que o pôs a suar de emoção, e, sobretudo, as requintadas e inestimáveis impressões originais da Brevísima relación de La destrucción de Las índias, de frei Bartolomé de Las Casas, datada de 1552, e a de La Florida del Inça: Historia del adelantado Hernando de Soto, Gobernador y Capitán General del Reyno de La Florida y de otros eroicos caballeros espanoles e Índios, feita em Lisboa em 1605. Mas os livros que mais alvoroçaram Conde foram os primores inacreditáveis da bibliografia crioula, alguma da qual ele via e tocava pela primeira vez, como os quatro volumes da Colección de papeies científicos, históricos, políticos y de otros ramos sobre La islã de Cuba, de José António Saco, impresso em Paris em 1858; Los três primeros historiadores de La Islã de Cuba: Arrate-Valdés-Urrutia, estampado em três tomos, em Havana, em 1876 e 1877; os Anales de La Islã de Cuba, de Félix Erenchun, impresso em Havana, em 1858, em cinco sólidos tomos; Agrimensura aplicada al sistema de medidas de La Islã de Cuba, de dom Desiderio Herrera, também impresso em Havana, em 1835; a raríssima edição da Historia de La Islã de Cuba y en especial de La Habana, de dom António José Valdés, um dos primeiros livros feitos na ilha, em 1813; e, como se carregasse lingotes de ouro, transferiu os treze tomos da Historia Física, Política y Natural de La Islã de Cuba do controverso Ramón de La Sagra, editados em Paris entre 1842 e 1861, e que, estando completos tal como parecia, deviam ostentar duzentas e oitenta e uma ilustrações, entre as quais cento e cinquenta e oito coloridas ao natural, pelo que o seu preço poderia ultrapassar os dez mil dólares mesmo no mercado menos exigente.
Mas a montanha que crescia, como que empurrada por forças vulcânicas interiores, era a dos livros que podiam ser postos à venda, o que, além de acalmar a ansiedade de Yoyi causada pela quantidade de volumes considerados invendáveis por Conde, conferiram um brilho metálico às pupilas do jovem, transformado nesses momentos num gavião em voo de rapina.
Enquanto examinavam os livros, surpreendendo-se com as datas e locais de impressão, acariciando as lombadas de pele rugosa ou de pasta de papel histórica, detendo-se por vezes a admirar as suas estampas gravadas sobre metal ou ilustradas à mão, Conde sentia como voltava a sua pungente premonição do dia anterior, avisando-o de que ainda não tinha entrado no caminho de assombros que, com toda a certeza, o esperava nalgum canto daquele aposento. No entanto, não conseguia evitar a certeza incómoda de estar a introduzir o caos num universo de papel que, por mais de quarenta anos, tinha conseguido navegar a salvo das iras do tempo e da História graças a uma simples promessa ferreamente mantida.
Quando outro lote dos livros mais cobiçados lhe passou pelas mãos — tinha carregado como se fosse um bebé delicado os volumes já frágeis e profusamente ilustrados do Paseo pintoresco por La Islã de Cuba, impressos em 1841 e 1842 —, tentou convencer-se de que aqueles tesouros podiam ser o preâmbulo de outros encontros surpreendentes, e pensou se a sua premonição não estaria relacionada com a possibilidade tangível de atingir o apogeu sonhado por todos os especialistas do seu ofício: encontrar o inimaginável. Haveria entre aqueles volumes algum anterior à Tarifa general de precios de medicinas, o mirrado folheto impresso em Havana por Carlos Habre em 1723 e considerado o primogénito da tipografia cubana? Poderiam encontrar-se ali, adormecidos mas à espreita, os pergaminhos originais capazes de demonstrar a escandalosa autenticidade dos escritos gaélicos do mítico Ossian? E as placas de ouro gravadas com hieróglifos do livro dos Mórmones, nunca vistas por ninguém desde que Joseph Smith as encontrou e as traduziu — com a indispensável ajuda divina —, para que depois um anjo carregasse com elas, levando-as de volta para o Céu, de acordo com todos os testemunhos? Ou o nunca descrito nem confrontado original do Espejo de paciência, que supostamente marcava em 1608 o nascimento da poesia de temas cubanos e cujo aparecimento acabaria de uma vez por todas com o debate sobre um pérfido embuste ou a autenticidade de um poema épico povoado de sátiros, faunos, silvanos, napeias e náiades puras, cristalinas e brincalhonas, felizes da vida entre bosques e riachos cubanos, apesar do eterno calor da ilha?
A fadiga emocional de Conde impôs-se ao brio mercantilista de Yoyi e, às três da tarde, deram por terminado o dia de trabalho, depois de contabilizarem duzentos e dezoito livros vendáveis, alguns dos quais poderiam atingir preços tentadores, quase todos impressos em Cuba, no México e em Espanha entre finais do século XIX e a primeira metade do século XX.
— Aqueles voltam para o armário — disse Conde, dirigindo-se a Dionisio e apontando para os volumes mais valiosos. — E nós ficamos com estes. O que acha?
— Por mim não há problemas. E o que fazemos com os que você diz que não se devem vender? — perguntou o homem, observando a montanha dos livros fabulosos que Conde ia devolvendo a um canto da estante escaldante.
— Isso é você quem decide... Lógico seria tentar vendê-los à Biblioteca Nacional. Todos eles têm valor patrimonial. A Biblioteca não paga bem, mas...
— Mas pá, eu acho que... — Pombo não pôde evitar uma reacção, rapidamente interrompida pelo seu sócio.
— Acerca disso não há discussão, Yoyi — e dirigindo-se a Dionisio Ferrero, Conde acrescentou: — Mas já lhe disse, quem decide é você. Qualquer um desses livros vale mais de quinhentos dólares, outros mais de mil e alguns vários milhares — e observou a palidez doentia que subia pelo rosto de Dionisio. Para evitar que ele tivesse um enfarte, acrescentou: — Se você quiser, agora quando acabarmos, fale directamente com ele — e apontou para Yoyi. — Mas eu não entro nessa parte do negócio. A minha única condição é que, se não conseguir um acordo com a Biblioteca Nacional ou com algum museu, o faça com Yoyi. É quem melhor irá pagar-lhe, garanto-lhe.
Dionisio Ferrero, agitado com as cifras, tossiu, suou, pensou, tremeu, hesitou e olhou para Yoyi, que recebeu aquele olhar com os braços do coração abertos e um sorriso compreensivo no seu rosto de anjo.
— A verdade é que eu sabia que podiam valer bastante, mas nunca imaginei que fosse tanto. Claro, se me tivesse cheirado, há muito tempo... — Dionisio sorriu feliz diante da perspectiva vislumbrada de um futuro melhor. — E quanto me dão pelos que separaram?
— Temos de fazer contas — entrou Pombo, veloz. — Deixa-nos sozinhos alguns minutos para nos pormos de acordo?
— Claro, claro... Assim aproveito e faço café. Água fria? Quando Dionisio saiu, Conde olhou para o seu colega e recebeu o olhar assassino que esperava e merecia.
— Um dia mato-te, juro. Como diabo se pode ser tão estúpido? E ainda por cima dizes-lhe que há livros que valem mais de mil dólares...
— Eu calculei muito por baixo, Yoyi. Em quanto avalias os treze tomos do La Sagra? E as primeiras edições do Las Casas e do Inça Garcilaso? Sabes quanto oferecem em Miami pelo Paseo pintoresco...?
— Aguenta os cavalos, pá. Nem que vivesses em Miami ou todos os dias houvesse compradores a pagar mais de mil dólares por um livro desses.
— Esse é um problema teu.
— Pois deveria ser teu também. Vê bem, com dois ou três desses livrinhos podes passar um ano a beber whisky e não essa mistela arrebenta-fígados que compras ao Blakamán e ao Vikingo.
— Para nos embebedarmos qualquer coisa serve... Anda, façamos as contas...
A avaliação dos livros prolongou-se por uma meia hora, durante a qual beberam café duas vezes e, por insistência de Conde, concordaram num valor que lhes pareceu satisfatório para todos. Quando Conde ocupou novamente o sofá, Yoyi, o Pombo, preferiu colocar-se junto de uma das janelas de vidros coloridos, tal como o pugilista que no canto neutro aguarda o final definitivo da contagem ou o sinal de regresso ao combate. Os irmãos Ferrero instalaram-se nas poltronas e a Conde pareceu-lhe patético o nervosismo evidente dos seus gestos. Pensou que a fome e os princípios, a miséria e a dignidade, as penúrias e o orgulho são pares difíceis de harmonizar.
— Vamos lá ver — disse. — Hoje escolhemos duzentos e dezoito livros... Alguns conseguem vender-se muito bem, outros com muito trabalho para conseguir um bom preço. Alguns podem vender-se por doze, quinze dólares, embora não seja fácil, e outros, com sorte, por dois ou três... Calculando uns trinta por cento, aqui o meu colega e eu decidimos propor-lhes um preço global: três dólares por livro.
Amalia e Dionisio entreolharam-se. Esperavam mais? Tinham-se tornado gulosos? Yoyi, o Pombo, reparou no receio dos irmãos e, armado de uma calculadora, avançou para o grupo.
— Vamos ver... Duzentos e dezoito livros, a três verdes cada um... são seiscentos e cinquenta e quatro dólares... Ou seja, seis cinco cinco, para arredondar. A vinte e seis pesos o dólar... — fez uma pausa teatral que, sabia-o bem, derrubaria qualquer receio e, para enfatizar, fingiu que ele próprio se assombrava. — Bolas! Dezassete mil pesos! Aviso-vos, nenhum comprador lhes dará esta soma, porque vender livros se tornou difícil ultimamente... E digo-vos
mais: com o que está ali dentro podem terminar todos os vossos problemas...
Conde sabia que as pernas, os estômagos e os cérebros desnutridos de Amalia e Dionisio Ferrero deviam estremecer com aqueles valores, tal como os seus estremeceram quando se imaginou, nessa mesma tarde, feliz proprietário de uns dez, doze mil pesos, que bem distribuídos podiam garantir-lhe meio ano de vida... Apesar de só terem examinado uma sétima ou oitava parte da biblioteca e de a sua premonição continuar ainda intacta, avisando-o de que alguma coisa extraordinária, ainda inacessível, aconteceria naquele aposento. Acabaria realmente esta história enriquecendo Conde, graças ao achado de algum incunábulo a cujo magnetismo — em termos monetários — nem sequer a sua ética conseguiria resistir?
— Como preferem o dinheiro, em pesos ou em dólares? — tratou de concluir Pombo e, como sempre, os irmãos consultaram-se visualmente e Conde descobriu naqueles olhares um verme oculto até esse instante: o da ambição.
— Quatro dólares por livro — atirou Dionisio, recuperando a voz de comando que deve ter utilizado nos seus tempos gloriosos de militar nos campos de batalha.
Yoyi sorriu e olhou para Conde, como se dissesse: «Vês? São uns cabrões e não uns desgraçados. São uns artistas...»
— Metade em pesos cubanos e metade em dólares — acrescentou Dionisio, já senhor da situação. — É uma oferta justa e não há discussão...
— Okay — disse Yoyi sem se atrever a contradizê-lo, mas tornando evidente a sua insatisfação. — São vinte e dois mil e seiscentos e setenta pesos. Pago-vos dez mil agora e o restante amanhã, juntamente com os dólares.
E estendeu uma mão para Conde, para receber o maço dos três mil que lhe entregara no dia anterior e juntá-lo ao dinheiro que tinha tirado da bolsa que usava à cintura. Separou dois maços e entregou-os a Dionisio, dando-lhe com as notas uma leve pancada na mão aberta.
— Cinco mil em cada maço. Conte-as, por favor. Estou a dever-lhe mil e trezentos pesos e quatrocentos e trinta e seis dólares — esclareceu ao antigo militar, cuja segurança tinha voltado a esfumar-se apenas recebida a ofensiva das notas.
Enquanto Dionisio, ensimesmado, contava o dinheiro, Amalia não sabia onde pousar os seus olhos aquosos, que resvalavam constantemente para o dinheiro manipulado pelo irmão, que se dedicava a fazer montinhos de cem, e depois de mil, na mesa de centro. Sem conseguir conter-se, a mulher levou um dos dedos à boca e começou a morder a pele que rodeava a unha, lacerada para lá do rebordo do dedo, e no seu rosto aflorou uma sombra de dolorosa satisfação autofágica.
— A propósito, Amalia — Conde, engasgado com a pergunta, decidiu aproveitar o momento de êxtase da mulher —, você sabe quem é Violeta del Rio?
A Conde pareceu autêntica a expressão de estranheza e incompreensão com que Amalia, que de má vontade abandonou a sua actividade canibal, o observou.
— Não sei... Porquê?
— E você, Dionisio?
Dionisio mal levantou os olhos do dinheiro, mas interrompeu a contagem.
— Nunca ouvi falar dela — e recomeçou a sua tarefa.
Conde falou-lhes sucintamente da descoberta do recorte e dirigiu-se a Amalia.
— E a sua mãe? Poderia saber alguma coisa?
— Já lhe disse que está senil...
— Mas às vezes os velhos recordam coisas do passado. Pode perguntar-lhe?
— Não... não faz sentido fazê-lo — reafirmou Amalia, como se lhe magoasse admiti-lo, e acrescentou: — Desculpem, vou à casa de banho.
A mulher atravessou as colunatas de mármore e Dionisio, desinteressado de tudo o que não fosse contar notas, concentrou-se ainda mais no seu trabalho.
— E por que razão essa mulher te interessa, Conde? — quis saber Yoyi, com um sorriso irónico nos lábios.
— Não sei... não sei — mentiu Conde, incapaz de confessar a sua descoberta dessa manhã, acrescentando: — Entre os vendedores de livros, quem sabe mais sobre discos antigos?
— Pancho Carmona. Lembra-te de que antes vendia discos.
— Hoje quero vê-lo.
— É o que eu digo — disse Pombo abanando a cabeça —, estás completamente chanfrado, juro-te, pá.
— Correcto — interrompeu-os a voz de Dionisio.
— Podemos levar todos os livros, não é verdade? — perguntou Conde, receando que a sua cara de homem decente pudesse ter perdido qualidades de um dia para o outro.
— Sim — disse Dionisio, após uma hesitação. — Não há problema.
— Pois então, vamos andando. Vou buscar umas caixas. Tenho o meu carro lá fora — anunciou Yoyi e saiu.
Amalia regressou do interior da casa e voltou a ocupar o seu lugar, ao lado do seu feliz irmão.
— Bom... — começou Dionisio. — Amanhã trazem-nos o dinheiro que falta, não é verdade?
— Claro que sim — garantiu Conde. — Não se preocupe. É preciso continuar a tirar livros... A propósito, Dionisio, e desculpe-me a curiosidade: porque saiu da corporação onde trabalhou depois de o terem desmobilizado do exército?
Dionisio olhou para Conde, admirado com a pergunta, e depois para a irmã, que tinha posto aquela história nas mãos do livreiro.
— Porque ali se passavam coisas que não me agradavam. E eu também sou um homem decente. E um revolucionário, não se esqueça disso.
As primeiras horas da manhã e as últimas da tarde costumavam ser as mais produtivas para os vendedores de livros usados acantonados na plaza de Armas, à sombra dos ficos-chorões, da estátua do Pai da Pátria e dos adustos palácios onde se empunhavam as rédeas de um poder colonial que considerou a ilha uma das jóias mais preciosas da coroa imperial. As hordas de turistas estrangeiros, ansiosos uns, aborrecidos outros, pela obrigação de mergulharem num programado banho de História, abriam ou fechavam habitualmente o seu périplo pela cidade antiga justamente nas imediações daquela que foi noutro tempo a sua praça principal. Apesar de os vendedores de livros os receberem sempre como clientes potenciais, embora demasiado volúveis, a experiência demonstrara-lhes que só com alguma dificuldade e muita verborreia persuasiva era possível impingir-lhes algum livro, geralmente pouco significativo em valor histórico ou bibliográfico: aquela turba de funcionários públicos, pequenos comerciantes, reformados com poupanças, velhos militantes já sem militância mas decididos a ver com os seus próprios olhos o último reduto do socialismo mais real, somados aos noctívagos das mais diversas espécies, convencidos pelos seus habilidosos agentes de viagens de que Cuba era um paraíso barato, tendiam a ser adeptos de outras paixões mais elementares — sensuais, climáticas e às vezes até ideológicas —, diferentes da bibliofilia.
Na realidade, o mostruário de livros expostos na histórica praça era apenas composto pelas sobras passíveis de exibição do verdadeiro banquete. Porque a venda pública dos livros valiosos, aqueles que podiam encontrar sem vacilações a rota dos leilões onde ostentariam na capa cifras de três ou quatro dígitos, estava proibida e eles nunca chegavam às modestas bancas de venda. Aquelas delicatessen, regra geral, estavam predestinadas a compradores mais ou menos estabelecidos: alguns diplomatas bibliófilos, correspondentes de imprensa e negociantes estrangeiros radicados em Cuba, com dólares suficientes para comprar jóias de papel; alguns cubanos enriquecidos por vias legais, semilegais ou totalmente ilegais, decididos a investir em valores seguros; além de alguns amateurs que visitavam a ilha com alguma frequência e tinham estabelecido já as suas preferências quando aos rótulos da literatura, do tabaco e das mulheres. No entanto, os verdadeiros destinatários das raridades bibliográficas invisíveis eram vários comerciantes profissionais de livros valiosos, especialmente espanhóis e mexicanos, mais alguns cubanos radicados em Miami e Nova Iorque, fornecedores de leilões ou donos de livrarias publicitadas mesmo na Internet. Estes especialistas tinham descoberto, no princípio dos anos noventa, o filão havanês, desvendado nos anos mais duros da Crise, e inicialmente chegavam dispostos a comprar o que voluntariamente lhes pudessem oferecer os seus desesperados colegas cubanos. Mais tarde, estabelecidas as ligações precisas e comprovada a profundidade da mina, mudaram de estilo e, em cada viagem, começaram a aparecer com uma lista de guloseimas exóticas já solicitadas por clientes decididos a possuir um título específico, de um autor com nome e apelidos, numa edição determinada. Este comércio subterrâneo era, indiscutivelmente, o mais produtivo e, simultaneamente, o mais perigoso, pois acabou por chegar ao conhecimento das autoridades cubanas como alguns vendedores de livros, em conivência com funcionários das bibliotecas, tinham levado do país verdadeiros tesouros do fundo bibliográfico cubano e universal e, até, manuscritos definitivamente irrecuperáveis. Mas erradicar aquele sangramento continuado era quase impossível porque, algumas vezes, a fonte de fornecimento era o bibliotecário que ganha duzentos e cinquenta pesos por mês e que dificilmente consegue resistir a uma oferta de duzentos dólares — o seu salário de vinte meses — para tirar alguns papéis ou um volume solicitado por algum comprador enfaticamente interessado. Aquele saque surdo tinha obrigado as bibliotecas cubanas a fechar os seus livros mais valiosos a sete chaves, embora ninguém tivesse conseguido impedir o gotejar de uma torneira sem conserto, graças à qual alguns encontravam uma solução transitória para as suas calamidades materiais.
Pancho Carmona gozava da fama de ser o mais solicitado fornecedor de jóias bibliográficas. No seu cartão de visita anunciava-se pomposamente como especialista em livros raros e valiosos, embora o seu negócio tivesse tentáculos em ramos afins como as artes plásticas, os móveis de estilo, as jóias da Tiffany's e as mais diversas antiguidades. Três vezes por semana, Pancho montava o seu mostruário de requintes permitidos na plaza de Armas, e os outros três dias na sala da sua casa, na calle Amargura, onde tinha organizado uma espécie de livraria a que só tinham acesso clientes de confiança ou muito bem recomendados, que num mês eram convidados a sentar-se em móveis Luís XVI, noutro em cadeiras do Segundo Império e no seguinte em fofos sofás estilo Liberty, sempre à sombra de algum clássico da pintura ou da arte gráfica cubana, iluminados por renovados candeeiros art-nouveau e rodeados de vidros de Murano ou cristais da Boémia, dispostos a empreender uma viagem ultramarina. Mas todos os colegas do negócio sabiam que em nenhum dos dois sítios era possível ver os livros mais candentes, embora ninguém soubesse com certeza onde ficava o nicho secreto de Carmona, cujos verdadeiros contactos iam vê-lo directamente, assim que chegavam de Madrid, Barcelona, Roma, Miami ou Nova Iorque.
Pancho, que durante vinte e cinco anos viveu do seu salário de desenhador industrial, especializou-se no comércio de livros quando este começou a ser cada vez mais rentável, e o da venda de discos, a que naquele momento se dedicava, deixou de o ser, justamente com a chegada de uma Crise que, para ele, acabou por se revelar uma colheita abundante. Ao contrário dos outros livreiros, Carmona teve, desde o princípio, a intuição de que o verdadeiro filão não estava no discreto exercício de comprar livros usados a dois pesos e vendê-los a dez. O que se impunha, pensou, era saltar para o vazio dos investimentos a sério. Por isso, acabado de se iniciar no negócio, atreveu-se a pedir um empréstimo, depois de ter vendido o televisor, o frigorífico e o ar condicionado, todos soviéticos — obtidos graças à sua antiga situação de operário exemplar —, para acumular os fundos exigidos e adquirir raridades bibliográficas escondidas durante anos e desenterradas pelas ciladas da fome, pagando bons preços para eliminar dúvidas dos magros proprietários e rivalidades de competidores. Em poucos meses, Pancho acumulou várias dezenas de volumes de sonho, aos quais pôs preços de venda altos mas justos e, com a maior das paciências, à beira da inanição, sentou-se à espera da faísca geradora do incêndio. O céu abriu-se para ele quando, já à beira do desespero, um comprador chegado de Madrid lhe pôs nas mãos doze mil dólares de 1994 por um pequeno lote que incluía uma Historia general y natural de Las índias, de Fernández de Oviedo, madrilena e de 1851; a Islã de Cuba pintoresca, de Andueza, madrilena também, mas de 1841; o Essai Politique sur L'Îlle de Cuba, do barão de Humboldt, nos dois tomos parisienses de 1826; o clássico Tipos y costumbres de La islã de Cuba, ilustrado por Víctor Patricio de Landaluze, na sua edição havanesa de 1891; a extraordinária impressão cubana de Las comedias de Don Pedro Calderón de La Barca, editadas em Havana em 1839 e ilustradas por Alejandro Moreau e Federico Mialhe; e os seis tomos preciosos e sempre perseguidos de La historia de las famílias cubanas, escrita por Javier de Santa Cruz y Mallén, conde de Jaruco y de Santa Cruz del Mopox, na sua sólida edição de 1940-1943.
A partir daí, o já potentado Carmona especializou-se na compra e venda de livros e objectos capazes de atingir preços respeitáveis em leilões europeus e norte-americanos. A sua casa iam vê-lo, quase diariamente, os possuidores desesperados de relíquias familiares que tinham sobrevivido a terramotos anteriores e que ansiavam, no mínimo, ouvir cifras razoáveis oferecidas pelos seus livros, móveis e peças decorativas, e, seguindo a vereda já desbravada, os mais sérios compradores aportados à ilha, em busca das raparigas em flor que só Carmona, com toda a certeza, era capaz de lhes oferecer.
Os anos passados nas catacumbas do negócio tinham transformado Pancho Carmona num manual vivo, a que recorriam os colegas para orientações a respeito de preços, possibilidades de existência e prováveis fontes de fornecimento ou de compra. Como verdadeiro especialista, o livreiro só dava consultas nos três dias da semana em que trabalhava na plaza de Armas e — para os companheiros de ofício — cobrava um preço fixo e módico: um café na esplanada do restaurante La Mina, num dos lados da plaza de Armas.
— Um café e duas cervejas — pediu Yoyi, o Pombo, quando ocuparam a mesa mais próxima da entrada. Daí Pancho mantinha sob vigilância a sua banca, ao cuidado do sobrinho encarregado de montá-la e de, no fim do dia, levar os livros de volta para a casa da calle Amargura.
— O café é para mim, Lento — avisou Pancho ao empregado, para evitar o contratempo de uma infusão aguada. — Andas desaparecido, Conde — disse depois, acendendo o cigarro que começava sempre a fumar antes de beber o café.
— O negócio está a cair a pique. Já é difícil encontrar o que te agrada...
— Sim, está a ficar feio. Cada vez há menos onde ir buscar. Tutto è finito — admitiu o homem, mas Pombo, eufórico, interrompeu as lamentações.
— Pois, olha, Conde encontrou uma mina de ouro.
— Sim? — limitou-se a perguntar Pancho, vacinado contra aquelas exaltações.
— O que achas de uma primeira edição do Cândido de Voltaire? — atirou Pombo. — E uma do padre Las Casas de 1552, ou uma Florida del Inça de 1605, e a Historia de La Islã de Cuba, de Valdés? E o que me dizes aos treze tomos da Historia de Ramón de La Sagra, novinhos, com todas as suas ilustrações...?
Os olhos de Pancho Carmona foram ganhando brilho a cada promessa e não conseguiu evitar a exclamação.
— Bolas! Quando me dão a lista do que têm?
— Tudo o que Pombo te mencionou não está à venda — interveio Conde. — Mas temos outras coisas que te podem interessar...
— Dentro de uma semana — rectificou Pombo, marimbando-se para o olhar assassino do seu sócio. — Quando te digo que é uma mina...
— Vejam se lhes aparece aí um exemplarzito de El libro de los ingenios com todas as suas ilustrações e a edição das poesias de Heredia de 1832. Tenho um comprador louco por eles e o homem é dos que paga sem protestar... Consigo-vos o negócio por dez por cento.
— E quanto pode valer o de Heredia? — quis saber Conde.
— Essa edição, que é a mais completa e que Heredia tipografou pessoalmente, anda agora acima dos mil dólares, aqui em Cuba. Lá fora... três mil ou mais. E se estiver autografada... Bom, onde diacho encontraram essa biblioteca?
Pombo sorriu, olhou para Conde e depois para Pancho.
— Tu achas-me com cara de quê, Panchón? O outro também sorriu.
— Está bem. Entre tubarões...
— O único problema é que este aqui não se quer meter nesse trinta e um — disse Yoyi, apontando para Conde.
— Nunca quis — esclareceu Conde, deitando no copo a cerveja gelada.
— Vá lá, Pancho, diz-lhe alguma coisa que o convença — pediu Pombo e o livreiro sorriu.
— Para o convencer ou para o matar de um enfarte?... Aqui vai: vocês sabem o que arranjei um dia destes? — baixou a voz. — Os dois tomos da primeira edição de 1851 e 1856 das Memórias sobre La historia natural de La islã de Cuba, de Felipe Poey... com o ex libris de Julián del Casal.
— Não me lixes, pá! — espantou-se Yoyi. — Por quanto?
— Duas mil verdosas, para não discutir muito... — e sorriu, levando o café aos lábios.
— E de onde saiu isso? — quis saber Conde.
Pancho abanou a cabeça diante da ingenuidade da pergunta.
— Está bem, está bem... Segredo de guerra.
— De qualquer forma, tragam-me uma lista. Com certeza que faremos negócio.
— E tu o que fazes com todo esse dinheiro, Pancho? — perguntou Yoyi, intrigado, sem esconder a sua admiração.
— Isso não se diz, menino. Mas sonho. Sonho em ter uma livraria a sério, com muitos livros, muito iluminada, com uma cafetaria ao fundo, e eu ali sentado, como um paxá, assim, com o meu café, o meu cigarrinho, recomendando livros... Enquanto espero que esse sonho se realize, vendo na sala da minha casa e nessa banca de madeira que ali está.
— Quando eu for grande quero ser como tu, Panchón, juro-te — disse Pombo, e Conde sabia que nesse momento não jurava em vão.
— Bom, não digam mais merda — interrompeu Conde. — Pancho, ando atrás de um single que se chama Vete de mi. Creio que é um 78...
Pancho Carmona necessitou de alguns segundos apenas para mover o rato do seu computador mental.
— É um 45, de uma tal Violeta del Rio. Foi gravado pela casa Gema, creio que em 1958 ou princípios de 1959. Tinha num dos lados Vete de mi, dos irmãos Expósito, e, no outro, Me recordarás, de Frank Domínguez. Uma vez tive um e deu-me um trabalhão vendê-lo.
Ao ouvir a descrição do disco, que finalmente ganhava corporalidade real, Conde sentiu um júbilo inesperado, como se Pancho Carmona desse um novo fôlego à sua estranha curiosidade.
— E não o ouviste? — quis saber.
— Não, não me deu para ouvi-lo...
— E a quem o vendeste?
— Neste momento não me lembro...
— Claro que te lembras, pensa um pouco...
— Lento, outro café — antecipou-se Yoyi. — Vê lá bem, que é para Pancho. E mais duas cervejas...
Pancho acendeu um novo cigarro.
— O que foi feito dessa cantora? — Ansioso, Conde levou um cigarro aos lábios.
— Não faço a mínima. Eu nunca tinha ouvido falar dela... O disco caiu-me nas mãos há coisa de uns quinze anos... Deixa ver — e Pancho Carmona fechou os olhos, segundo ele, para ver: talvez lesse as listas de compra e venda que tinha gravadas no cérebro. Por fim ergueu as pálpebras. — Sim, sim, vendi-o num lote àquele pitosga que escreve sobre música...
— Rafael Giro?
— Esse mesmo...
— E que mais sabes acerca dessa cantora, Pancho?
— Népias. Ou achas que tenho de saber tudo?
— Por dois cafés a um dólar podias saber mais, não achas? — disse Conde, dando uma palmada no ombro do oráculo da calle Amargura, o homem que sonhava ser proprietário de uma deslumbrante livraria onde também se vendesse o melhor café de Havana.
Aquele Chevrolet fabricado em 1956, modelo Bei Air, de quatro portas e sem arco central, era considerado pelos especialistas um dos carros mais «machos» que rodavam pelas ruas devastadas de Havana. Conduzi-lo, deslizar com suavidade a alavanca horizontal das velocidades e ouvir a conjugação harmoniosa da sua velocidade e potência, senti-lo a deslizar pesadamente, com segurança, orgulhoso, receber o ar que entrava pelas janelas amplas como sorrisos felizes, constituía para Yoyi, o Pombo, a sensação mais próxima do clímax erótico que conhecia.
Quando Yoyi o comprou, dois anos antes, já aquele Bei Air 56 era um carro atractivo, graças ao seu porte de uma distinção clássica e aos seus cromados intactos de máquina guardada sempre em garagem coberta. Mas quando passou a ser propriedade do recém-licenciado engenheiro, graças aos sete mil dólares ganhos numa simples transacção comercial de uma pintura de Goya que mudou de mãos e voou com rumo desconhecido, o seu tio, o mais famoso mecânico especializado naquela marca de automóveis — a ponto de ser conhecido em Havana como Paço Chevrolet —, investiu a sua bem cotada sabedoria na decisão de transformar o veículo do sobrinho numa relíquia rolante. Para isso arranjou-lhe o motor, tentando concentrar a sua potência, e equipou-o com peças autênticas, às quais acrescentou filtros, carburadores e sensores capazes de multiplicar a sua qualidade mecânica e a sua famosa eficiência de maquinaria perfeita, feita para a eternidade. Depois, a carroçaria foi lixada até à chapa, para dar um brilho deslumbrante à superfície da máquina quando a pintaram com uma tinta especial de brilho metálico recomendada pela Ferrari, numa combinação de azul-celeste para o capot, mala, guarda-lamas e portas, e de branco reluzente, utilizado apenas para o tejadilho e para duas cunhas laterais. Engalanado, por fim, com faróis de halogéneo trazidos de Miami e pneus Firestone de banda branca vindos do México, o Chevrolet Bei Air 1956 ficou talvez mais esplendoroso que o dos dias remotos em que saíra da fábrica de automóveis de Detroit, sem que os seus fabricantes pudessem imaginar que, cinquenta anos mais tarde, continuaria a ser o modelo de automóvel mais bonito, equilibrado e elegante que rolou sobre a Terra.
O Bei Air avançava pela avenida do Malecón e Conde, instalado no longo assento forrado a napa bege, imitação de pele de porco, dividiu o seu interesse entre a música de Marc Anthony — emitida pelo leitor de CD escondido no porta-luvas e projectada através do sistema de quadrifonia áudio que Pombo tinha incorporado, sem sacrificar o rádio Motorola original, mantido no seu sítio privilegiado no tablier do carro — e a observação do mar aprazível, dourado pelo último sol da tarde de estio, aquele mar tropical e magnético sempre empenhado em fazê-lo evocar o seu sonho já moribundo de ter uma pequena casa de madeira, numa praia à beira-mar, onde dedicaria as manhãs da sua imaginação a escrever algum dos romances que ainda planeava, as tardes a pescar e a deambular pela areia e as noites a desfrutar da companhia e do calor húmido de uma mulher, com cheiro a algas, a brisa marinha e a flores de eflúvios nocturnos.
— Yoyi — ouviu-se a dizer, quase como numa explosão alheia à sua vontade —, há alguma coisa que gostasses muito de ter e nunca tenhas conseguido?
Pombo sorriu sem nunca tirar os olhos da avenida.
— Que conversa é essa, pá? Uma data de coisas, juro-te.
— Ahã, mas dessa data de coisas não há nenhuma especial? O rapaz abanou a cabeça, negando o que só ele sabia.
— Antes de comprar este carro dava a vida para ter um Bei Air. Agora que o tenho já não sei... creio que... Sim, claro, gostava de ter assistido alguma vez a um concerto dos Queen. Com Freddy Mercury, evidentemente...
— Muito bem — admitiu Conde, que esperava uma resposta menos espiritual.
Aquele sonho frustrado de Pombo falava de uma sensibilidade perdida ou atrofiada na luta pela subsistência e remetia para um estado de pureza anterior à transformação do rapaz num predador com seis garras em cada pata.
— E agora que penso nisso — continuou Pombo depois de um silêncio —, também teria gostado de saber dançar bem. Juro-te. Adoro música mas sou péssimo a dançar.
— Tal como eu — admitiu Conde e tomou impulso. — E já pensaste alguma vez no que esperas da vida?
Yoyi olhou-o por instantes.
— Não me metas em apertos, pá. Tu sabes que aqui é preciso viver o dia-a-dia e não pensar de mais. Esse é um dos teus problemas, pensas mais do que a conta... Mesmo agora, porque te picou tão forte essa mosca de querer saber onde se meteu a tal Violeta del Rio?
Conde deu uma olhadela de despedida ao mar, antes de iniciar a descida pela rampa do túnel que passava sob o rio.
— Deve ser porque sou obsessivo compulsivo...
— E além disso, além disso? — quis saber Yoyi.
— Ainda não sei — confessou Conde. — Pode ser simples curiosidade, um resquício de quando fui polícia ou alguma coisa que ainda não compreendo... Sabes que mais? As histórias e as personagens dos anos cinquenta são o meu Bei Air. É como um fascínio em viver essa época tão estranha através das lembranças de outras pessoas... Mas o que mais me espicaça nessa história é o facto de me parecer demasiado estranho essa mulher, na sua época mais famosa, retirar-se e desaparecer, e agora ninguém se lembrar dela, não é verdade?... E tu, porque quiseste trazer-me a casa de Rafael Giro?
— Também não sei... Para te acompanhar, acho. Tu és a personagem mais louca e mais tonta que conheço, mas gosto de andar contigo. Sabes, pá, tu és o único tipo fixe com quem me relaciono neste e em todos os meus negócios. És como um cabrão de um marciano. Como se não fosses real, digamos.
— E isso é um elogio? —quis saber Conde.
— Mais ou menos... Tu sabes, vivemos numa selva. Desde que saímos da casca estamos rodeados de abutres, de gente decidida a lixar-nos, a arrancar-nos dinheiro, a gamar-nos a miúda, a denunciar-nos e a ver-nos tramados para poderem ganhar pontos e subirem um pouco... Há um monte de gente que vai aguentando, para não complicar a vida, e a maior parte o que quer é pôr-se a andar, pôr água de permeio, nem que seja para Madagáscar. E os outros que se amanhem... Sem esperar muito da vida.
— Isso não se assemelha ao que dizem os jornais — espicaçou-o Conde, para o ver saltar, mas Yoyi era ágil de mais.
— Que jornais? Uma vez comprei um, para limpar o rabo, e fiquei com ele sujo, juro-te...
— Ouviste falar alguma vez do homem novo?
— Isso o que é? Onde o vendem?
Por alturas da avenida 51 e da calle 64, Pombo virou à direita e procurou o número que Pancho Carmona lhes tinha indicado.
— É aí que vive o pitosga. Olha, está na entrada — disse, encostando o carro ao passeio. — Não batas com a porta, pá, isto é um carro a sério e não uma lata de carne russa com rodas...
Assim que Conde largou a porta do carro, viu-a fechar-se suavemente, atraída pelo seu próprio peso. Atravessou o pequeno jardim e cumprimentou Rafael Giro. Disse-lhe que eram amigos de Pancho Carmona e despertou-lhe o orgulho ao comentar que tinha lido o seu livro sobre o mambo e que o achara excelente.
— E ao que vêm? Vender-me um livro? — perguntou Rafael, sem interromper o movimento da sua cadeira de baloiço. Os olhos dele pareciam duas lâmpadas redondas e potentes atrás das grossas lentes concêntricas dos seus óculos de armação plástica tosca, lamentável imitação de tartaruga.
— Não, não... Pancho disse-nos que há cerca de quinze anos lhe vendeu um disco de Violeta del Rio, aquela cantora de boleros...
— A Dama da Noite — disse Rafael, justamente quando Pombo se juntava ao grupo.
— Conhece-a? — atreveu-se a perguntar o rapaz, deixando-se cair numa das cadeiras, apesar de não ter sido convidado a sentar-se.
— Claro que a conheço. Ou tu achas que eu sou como esses musicólogos, bom, dizem-se musicólogos, que falam de música sem a ouvirem e sem terem escrito a merda de um livro em toda a sua vida de merda...? Vamos lá ver, senta-te — disse finalmente, dirigindo-se a Conde, e este ocupou outra das cadeiras.
— É que já perguntámos a várias pessoas...
— Sim, quase ninguém se lembra dela. Só gravou um disco e, como trabalhava em clubes e cabarés... Imaginem que nessa época, em Havana, havia mais de sessenta clubes e cabarés com dois e até três espectáculos por noite. Sem contar com os restaurantes e com os bares, onde havia trios, pianistas e até pequenos conjuntos...
— Incrível — disse Pombo, sinceramente admirado.
— Imaginam quantos artistas tinha de haver para manter este ritmo? Havana era uma loucura, acho que era a cidade com mais vida em todo o mundo. Qual Paris e Nova Iorque! Frio a mais... Vida nocturna era a daqui! É verdade que havia putas, havia droga e havia máfia, mas as pessoas divertiam-se e a noite começava às seis da tarde e nunca mais acabava. Consegues imaginar que, numa noite, se podia tomar uma cerveja às oito ouvindo as Anacaonas nos Aires Libres del Prado, jantar às nove ouvindo a música e as canções de Bola de Nieve, sentar-se depois no Saint John a ouvir Elena Burke, mais tarde ir a um cabaré dançar ao som de Benny More, de Aragón, de Casino de Playa, de Sonora Matancera, descansar um pouco e passar um bom bocado com os boleros de Olga Guillot, Vicentico Valdés, Nico Membiela... ou ir ouvir os rapazes do feeling, o rouco José António Méndez, César Portillo e, para fechar a noite, às duas da manhã, dar uma escapadela até à praia de Marianao para ver o espectáculo de Chori tocando os seus timbales, e uma pessoa ali, na maior, sentada entre Marlon Brando e Cab Calloway, ao lado de Errol Flynn e de Josephine Baker. E depois, se ainda houvesse fôlego, descer até à Gruta, ali em La Rampa, para amanhecer no meio de uma sessão de jazz de Cachão com Tatá Guines, Barreto, Bebo Valdés, o Negro Vivar, Frank Emilio e todos aqueles loucos que são os melhores músicos que Cuba viu nascer? Eram aos milhares, a música estava na atmosfera, podia cortar-se à faca, era preciso afastá-la para poder passar... E Violeta del Rio era uma delas...
— Era uma como outra qualquer? — atreveu-se a perguntar Conde, à beira da decepção.
— Ela não era Elena Burke nem Olguita Guillot, mas tinha a sua voz. E o seu estilo. E o seu corpo. Eu nunca a vi, mas Rogelito, que tocava timbales, disse-me um dia que era uma das mulheres mais impressionantes de Havana. Parava o trânsito.
— E o que foi feito dela, Rafael?
— Um dia disse que não cantava mais e desapareceu.
— Desapareceu?
— É uma maneira de dizer. Nunca mais voltou a cantar e pronto... Desapareceu, tal como muitas outras cantoras de boleros que tiveram o seu dia de glória e muitos anos de esquecimento...
— E não se sabe porquê?
— Ouvi algumas coisas... Que perdeu a voz. Ela tinha uma voz fraca, não era um jorro como Célia Cruz ou Ornara Portuondo, embora se soubesse defender muito bem com o que tinha. Mas a verdade é que nunca me preocupei em saber onde se tinha metido... Quem me falou dela uma vez foi Katy Barqué. Contou-me que tiveram uma briga.
— Uma briga? — Conde sorriu. — Não estou a ver uma mulher tão... tão espiritual como Katy Barqué envolvida numa briga.
— Katy Barqué é um demónio, não acreditem nisso de ser assim meiguinha por cantar canções de amor... Mas a briga foi apenas de palavras. Não gostavam uma da outra, porque tinham estilos parecidos. Embora a verdade é que havia várias que cantavam mais ou menos da mesma forma, com muito feeling, muito dramáticas, parecendo ter desdém por tudo. Era um estilo muito anos cinquenta, não ouviram o disco que editaram de Freddy? Depois, nos anos sessenta, La Lupe transformou esse estilo noutra coisa, numa coisa dolorosa, o desdém tornou-se desprezo, o dramático passou a trágico. La Lupe é outra época... Mas quando Violeta começou a cantar, Katy Barqué era a mais conhecida no seu estilo e parece ter sentido que a outra lhe fazia concorrência... Daí a briga.
— Mas não havia espaço para todas? — interessou-se Yoyi.
— Em baixo, na base da pirâmide, cabe toda a gente. Em cima, no topo, a coisa é diferente. Aquelas cantoras de boleros foram todas mulheres muito especiais, com personalidade, como que talhadas para a música que cantavam. O bolero não é uma coisa qualquer, claro que não, para cantá-lo é preciso assumi-lo, mais que senti-lo. O bolero não é uma realidade, mas um desejo de realidade, ao qual se chega através de uma aparência de realidade, percebem? Não interessa... Essa é a filosofia do bolero, digo isto num livro...
E aquela foi a época de ouro, porque se cruzaram os clássicos que se compunham desde 1920 e 1930 com os rapazes do feeling, que liam poesia francesa e sabiam o que era a atonalidade. E desse encontro saíram esses boleros que ainda hoje parece que falam das coisas da vida... Da vida real. Embora seja tudo mentira: puro teatro, como já o disse La Lupe.
— E o disco de Violeta? — perguntou Conde, agarrando-se à derradeira saliência do precipício.
— Tenho-o aí... mas o meu gira-discos está estragado. E neste país de merda não há agulhas para os gira-discos. Estou à espera que um amigo me traga uma de Espanha, porque... Sabem quantos LP e discos de 78 e de 45 rotações tenho ali dentro?
Rafael deixou a sua pergunta envolta num silêncio tão compacto que Conde se viu obrigado a fazer a indagação exigida.
— Não, quantos?
— Doze mil, seiscentos e vinte e dois. O que me dizem?
— Incrível — admitiu Pombo.
— Custaram-me uma fortuna e agora, com a história dos compactos, já ninguém os quer. A toda a hora me aparece gente com caixotes de discos para me oferecer.
— E o que podemos fazer para ouvir o de Violeta? — a pergunta de Conde tinha uma súplica implícita.
Rafael tirou os óculos para os limpar na fralda da camisa e Conde admirou-se por ele quase não ter olhos. As órbitas eram dois buracos redondos, como balázios, profundos e escurecidos pela auréola das olheiras que enegreciam a sua pele de mulato. Quando devolveu os óculos à cara, o homem recuperou as pupilas de coruja insone e Conde sentiu-se aliviado.
— Eu não empresto nem os meus discos, nem os meus livros, nem os meus recortes de imprensa. Como devem calcular, lixaram-me milhares de vezes...
O cérebro de Conde começou a trabalhar à procura de uma solução. Voltar ali com um gira-discos? Trazer uma agulha para a aparelhagem de Rafael?... Ou deixar uma prenda?
— Proponho-lhe um acordo... Ali, na mala do carro, temos sete caixas de livros que não se encontram em toda a parte. Dou-lhe o que você escolher pelo disco de Violeta.
Os olhos irreais de Rafael ganharam um brilho especial, quase malvado.
— São bons livros?
— Estou a dizer-lhe que são especiais. Veja-os e escolha o que quiser. Vá.
Conde levantou-se e estendeu a mão na direcção de Pombo, exigindo as chaves do carro. Apercebeu-se da inconformidade no rosto do jovem, pois aquele capricho podia custar-lhes, literalmente, muito caro e, como dizia Yoyi, com a comida dos seus filhos não se podia brincar — embora não tivesse filhos nem intenções de os ter. Rafael, impelido pela proposta, pusera-se de pé e dirigiram-se para a rua.
Pombo abriu a mala e accionou o interruptor que iluminava o interior da mala. Como todos os que padecem de bibliofilia, o musicólogo deixou patente a ansiedade que lhe provocou a visão dos caixotes de livros repletos até à borda. Voltando-se para Conde, certificou-se:
— O que eu quiser?
— Ahã...
Um por um, o musicólogo foi examinando os livros, erguendo-os à altura do rosto, a poucos centímetros dos óculos, como se precisasse mais de cheirá-los que de vê-los. Alguns dos volumes foram examinados com especial minúcia e premiados com exclamações esporádicas: «Que maravilha!», «Olha para isto, pelo amor de Deus!», ou com a mais pedante «Este já o tenho». Por fim, com todos os exemplares espalhados pela mala do carro, Rafael dividiu os seus desejos entre a edição original de 1925 de La crisis de La alta cultura en Cuba, de Jorge Manach, e a também primeira edição, mas de 1935, de Historia universal de La infâmia. Borges ou Manach? Tentava resolver o conflito e, com pena, estendeu a mão direita e depositou num dos caixotes vazios o ensaio de Manach, dando umas palmadinhas no recém-adquirido clássico borgeano.
— Bom — disse, acariciando a lombada do livro, ao que parecia mais frustrado pela impossibilidade de ter tudo que satisfeito por se ter transformado em dono de uma raridade perseguida em meio mundo —, vamos lá buscar esse disco.
28 de Outubro
Meu querido:
Hoje amanheceu a chover. É uma chuva mansa mas persistente, como se o céu a chorasse e, na sua dor, não tivesse intenções de parar. Deve ser porque Deus sabe que faz hoje trinta e nove dias que não te vejo e nem sequer sei de ti. E com certeza o próprio Deus não consegue explicar a si mesmo como consegui continuar viva. Tu acreditarias? Eu nunca pensei que uma coisa assim fosse possível, mas aprendi com os anos que muitas vezes somos mais fortes do que julgamos e que uma capacidade desconhecida, as vezes muito escondida, nos permite resistir aos golpes mais duros, obrigando-nos a seguir em frente.
Diz-me, como te sentes? Oxalá as enxaquecas que tanto te atormentaram nos últimos meses tenham ficado cá e as novas preocupações te mantenham distraído, o que seria uma vantagem, embora também um risco: a vantagem de sentir menos o passar do tempo e o risco de aceitar o alívio da resignação e do esquecimento...
O ciclone que parecia vir na nossa direcção desviou-se, felizmente, e passou ao largo, sem que as suas rajadas nos tocassem, embora nos tenha deixado esta chuva. Eu agradeci a Virgem que assim acontecesse, pois bem sabes quanto receio os furacões (deve ser herança do meu pai, coitado, só de ouvir a palavra ciclone já tremia). E, devo dizê-lo, o vendaval que se está a viver no país já chega e sobra. Aqui todos os dias acontece alguma coisa, sai uma nova lei ou é abolida outra, alguém fala durante horas diante de uma câmara de televisão enquanto outro se vai embora em silêncio (muitos dos teus velhos amigos, dos teus colegas de universidade), ou alguém renuncia a ser o que foi (alguns eram também teus amigos), se envolve na bandeira e jura que foi sempre um patriota (embora nunca tenha feito nada para o demonstrar) e, publicamente, saúda a liberdade e a dignidade nacional que finalmente nos foi dada, como agora se diz. Estamos a viver uma história demasiado turbulenta. Tudo cai e erguem-se novos mitos; rolam algumas cabeças e as coisas são novamente baptizadas. Como em qualquer revolução. Sem necessidade de sair de casa, sinto-me uma testemunha distante, creio que consigo ver melhor tudo o que acontece lá fora e, pela primeira vez, receio que a situação se torne realmente trágica e, sobretudo, irreversível. Será o fim definitivo do nosso mundo?
Se a tivesses podido ler, terias reparado como na minha carta anterior não te quis falar de coisas muito tristes. Mas penso tanto, eu sozinha, que preciso desta confissão capaz de me esvaziar a alma e para a qual só tu podes servir de confessor. Porque continuo a acreditar que tudo o que aconteceu antes da tua saída deve ter sido o golpe de um destino que quiseste forçar e que se revoltou, como uma maldição, para te recordar a existência de alianças sagradas. Já sei, pela tua cabeça passaram ideias horríveis e a maior parte delas culpa-me a mim pelo sucedido. Mas, conhecendo-me como me conheces, não conseguirás encontrar na tua mente (se fores justo), e muito menos na realidade, a mais pequena justificação que te convença de que fui culpada do que quer que seja. Simplesmente a vida tentou rectificar um rumo desviado e devolver as coisas ao seu sítio original, de onde nunca deviam ter saído. Já sei que a tua dor e a tua raiva durarão muito tempo, mas quando o esquecimento começar a apagar esses sentimentos compreenderás que tenho razão e verás como foste injusto em considerar-me culpada de uma coisa que, sabes bem, sou incapaz de ter, sequer, pensado: provocar a morte de outra pessoa é um acto que nunca poderia cometer, apesar dos vexames e da dor que sofri e por maior que tenha sido a dor provocada pela existência dessa pessoa e pela sua presença indesejada.
Sabes que, por ti, pelo teu amor, aceitei um papel triste e o adiamento dos meus desejos e direitos quando te lançaste na mais absurda aventura da tua vida. Amá-la a ela era matar-me a mim. Tu sabias mas não te detiveste. Muitas vezes manda o coração quando devia ser o cérebro a impor a prudência (como se eu não soubesse) e nada se pode fazer contra esse mandato, embora haja ocasiões em que é preciso passar por cima dos sentimentos para poder chegar a verdade, que é a justiça.
3 de Novembro
Meu querido:
Aqui estou, novamente.
Ontem saí de casa pela primeira vez desde que partiste e essa saída deu-me forças para retomar esta carta que interrompi há alguns dias, tolhida por uma dor que me arrancou lágrimas e me fez tremer as mãos.
Imaginas onde fui? Espero que sim, pois fi-lo por ti. Era Dia de Finados e, como costumávamos fazer, visitei a campa dos teus pais e dos teus avós no cemitério e levei-lhes as flores que gostavas de colocar no seu jazigo. Foi uma experiência estranha, pois foi a primeira vez que o fiz sem ti. Foi ainda mais difícil porque o teu filho me acompanhou. Eu tinha muito medo de ir sozinha, de sair para um mundo que sinto cada vez mais hostil e, já no cemitério, o pobre rapaz não percebeu por que razão a mãe chorava como se estivesse a assistir ao enterro de um ente muito querido, acabado de falecer. Feliz dele que não sabe e, por não saber, não sofre, limitando-se a pensar que estou a enlouquecer porque choro sobre a campa de pessoas mortas há tantos anos.
Esta saída serviu-me para comprovar até que ponto este país mudou em alguns meses. Do táxi que nos levou pude ver as ruas e, sobretudo, as pessoas. Parecem exultantes e felizes com o que se passa e vivem normalmente, sem recear os perigos cada vez mais iminentes que escurecem o firmamento. Apercebi-me, nos seus rostos e nos seus olhares, de um júbilo que esteve escondido anos de mais e, sobretudo, pareceu-me descobrir que tinham esperanças e gozavam de uma nova dignidade. Até quando durará este estado de graça colectivo?... Devo confessar-te, meu amor, que senti inveja deles, por terem continuado ou redescoberto as suas vidas (o teu filho, com o seu entusiasmo fanático, diz que nasceram) e desfrutarem dos minutos em que estarão na Terra como uma fruição que eu só teria podido sentir se tu estivesses ao meu lado, aqui ou aí. Vendo-os, tive a certeza de que desta vez aconteceu alguma coisa muito grande e de que já nada voltará a ser igual. Compreendi de repente que pessoas como tu e como eu fazem parte de uma época terminada. Somos cadáveres desse passado e, talvez por isso, tenha sido no cemitério que mais mudanças vi. Não podes imaginar quantas campas, onde anteriormente e no dia de hoje se reuniam as pessoas mais próximas da família, estavam hoje solitárias, sem flores, sem o consolo de uma mão amiga na lousa fria. Tive nessa altura a percepção real do que está a acontecer num país onde os vivos vão para longe, à procura da sua felicidade, ou se agarram ao seu e parecem ditosos, enquanto os mortos ficam abandonados na solidão mais ingrata.
Não gostaria de te entristecer nem que te sentisses culpado ao receberes notícias como esta. A tua cabeça deve ter milhares de
preocupações e, para todos, o melhor é deixar os mortos no seu canto e na sua merecida paz. Todos os mortos. E que a vida continue, para aqueles que ainda a têm.
Meu amor, dá muitos beijos às crianças e recorda-lhes o muito que as amo. E tu, por favor, nunca te esqueças de quem mais te amou, sempre,
A tua Pequena
Sentiu como lhe suavam as mãos quando, com dois dedos e a maior delicadeza, levantou o braço do gira-discos e o puxou para trás para que o prato recebesse o aviso electrónico e começasse a rodar. Desceu-o lentamente, tentando encontrar, apesar de um leve tremor, o primeiro sulco do pequeno acetato. Conde esfregou as mãos nas pernas das calças e fechou os olhos, disposto àquela viagem pelo passado.
Yoyi, o Pombo, picado pela curiosidade, levara-o a casa de Carlos, o Magricela, onde Conde sabia que existia um velho gira-discos RCA Victor, modelo de mala, talvez ainda disposto a funcionar. Naquele pequeno aparelho, ao qual um dia conseguiram adaptar um amplificador de som alemão e democrático em substituição do original, Conde e os seus amigos tinham ouvido centenas de vezes umas placas plásticas sobre as quais, através de processos misteriosos, os técnicos cubanos conseguiram gravar a música de Paul Anka, dos Beatles e dos The Mamas and the Papas — Conde, em linha recta na direcção dos cinquenta, ainda se arrepiava ouvindo Dedicated to One I Love —, naqueles anos mais que remotos durante os quais só através desses recursos quase medievais era possível ouvir na ilha os grupos que faziam furor no restante planeta capitalista e decadente, onde produziam e difundiam a sua música diversionista, imprópria para os ouvidos de um jovem revolucionário, de acordo com a sábia e marxista decisão do aparelho ideológico estatal que a desterrou da rádio e a fez evaporar-se da televisão. Só alguns privilegiados, filhos de papás e mamãs não precisamente cantores, mas com cargos governamentais que lhes permitiam colocar de vez em quando um pé no México, Canadá ou Espanha, tiveram acesso aos discos originais que, pelo uso e abuso excessivo, muitas vezes chegaram a perder os sulcos magnetizados.
Como bruxos diante de um engenho maravilhoso, em tardes e noites quentes e inesquecíveis, Conde, Carlos, Andrés, Coelho e Candito, todos deserdados do privilégio de possuir uma única gota de sangue dirigente nas suas veias plebeias, tinham-se conformado com aquelas placas sem brilho e, reunidos em volta desse mesmo gira-discos, deixaram-se impregnar por aqueles sons cálidos e por aquelas palavras inatingíveis à sua compreensão, mas que lhes sabiam tocar certas fibras sensíveis, alheias à compreensão literal e mesmo ao mais pequeno assomo ideológico. Alguns anos mais tarde, quando Carlos pôde adquirir um pequeno gravador de cassetes, os amigos deram um passo superior para o desfrute da música. Com cópias não menos manuseadas que as placas anteriores, gravadas nas corrosivas cassetes Orwo — também democráticas e alemãs — entraram no mundo de Blood, Sweat and Tears, de Chicago e, sobretudo, de Credence Clearwater Revival e transformaram Proud Mary e a voz compacta de Tom Fogerty num dos ícones da amizade sanguínea que tinham cimentado desde esses dias de um passado férreo, tão infestado de limitações e de escassez material como de lemas de cumprimento obrigatório, de emulações socialistas e de comícios de reconfirmação política. Um tempo passado que, no entanto, ainda costumava parecer-lhes quase perfeito, talvez pela obstinação romântica em conservá-lo intacto, como que hibernando na bruma favorável dos melhores anos das suas vidas.
Conde e Yoyi tinham desembarcado em casa de Carlos com umas pizzas compradas no caminho e com duas garrafas de rum para limparem a garganta e o cérebro. Enquanto Josefina melhorava as pretensas pizzas acrescentando-lhes rodelas de cebola, mais molho de tomate e lascas de pimento verde picante pedidas pelo filho, Conde teve de mergulhar no armário da varanda até conseguir desenterrar o gira-discos, receando que este fosse já incapaz de reproduzir qualquer som. Depois de o sacudir por dentro e por fora, dedicou-se a limpar a agulha do aparelho com o seu lenço embebido no rum de alta octanagem acabado de comprar, ligando-o finalmente à corrente, para ver se, pelo menos, girava.
A primeira garrafa aberta já ia a um terço quando Conde começou a descer o braço do gira-discos e pousou a agulha no sítio, para que o amplificador catarroso emitisse alguns gemidos ameaçadores. Depois, tal como os grossos pingos que antecipam o pesado aguaceiro estival, chegaram-lhes aos ouvidos os acordes de um piano, só um piano, quase violento, sem floreados nem adornos supérfluos, ao qual se incorporaram as batidas ritmadas do bongó, o som profundo do contrabaixo e, finalmente, aquela voz mais declamada que cantada, carregada de uma densidade quase varonil e portadora de uma súplica, primeiro, e depois de um magoado e simultaneamente exigente despeito, capaz de provocar a sensação de que não era preciso ver a mulher para saber que existia alguma coisa diferente naquela voz grossa, quente, decidida a falar ao ouvido, mais que a cantar...
Tú, que llenas todo de alegria y juventud
y ves fantasmas en Ia noche de trasluz
y oyes el canto perfumado del azul.
Vete de mi...
No te detengas a mirar
las ramas muertas del rosal
que se marchitan sin dar flor,
mira el paisaje del amor
que es la razón para
sonar... y amar...
Yo, que ya he luchado contra toda la maldad,
tengo las manos tan deshechas de apretar
que ni te puedo sujetar.
Vete de mi...
Seré en tu vida lo mejor
de la neblina del ayer
Cuando me llegues a olvidar,
como es mejor el verso aquel
que no podemos recordar...
Si, ya... vete de mi.(9)
*9. Tu, que enches tudo de alegria e juventude / e vês fantasmas na noite translúcida / e ouves o canto perfumado do azul. / Afasta-te de mim...
Não te detenhas a olhar / os ramos mortos da roseira / que murcham sem dar flor, / vê a paisagem do amor / que é a razão para / sonhar... e amar...
Eu, que já lutei contra toda a maldade, / tenho as mãos tão desfeitas de apertar / que nem consigo agarrar-te. / Afasta-te de mim...
Serei na tua vida o melhor / da neblina do passado / quando acabares por me esquecer. / já que é melhor aquele verso / que não conseguimos recordar... / Sim, agora... afasta- B -te de mim. (N. da T.)
Quando Conde abriu os olhos e levantou a agulha encalhada na zona virgem do acetato, teve a certeza justificada de que dois dias antes, ao atravessar o umbral da biblioteca dos poderosos Montes de Oca, a premonição que o surpreendeu talvez não estivesse a empurrá-lo na direcção da descoberta de algum livro fabuloso, como chegara a pensar, mas sim a marcar-lhe o caminho que o confrontasse com aquela voz adormecida no passado, uma voz que esperava justamente por ele. Seria aquilo possível? Sem pensar, sem olhar para Magricela ou para Pombo, também silenciosos e comovidos, Conde voltou a colocar o braço no primeiro sulco do disco e deixou-se agarrar pela melodia e pela voz, como o amante vencedor das surpresas do primeiro contacto, lançado agora na busca das essências mais ocultas do adversário. Tentou compreender o drama desenhado por uma voz dirigida a um tu que podia ser qualquer um, ele próprio, se calhar o seu próprio pai, enfeitiçado talvez por aquela mesma mulher, uma voz que conseguia projectar um sentimento demasiado semelhante a uma dor real e que, no fim da primeira estrofe, adoptava um tom de súplica ao rogar: «Vete de mi». Mas depois a voz ordenava: «No te detengas a mirar», exigindo uma distância de ressonâncias bíblicas que conseguia adquirir toda a sua conotação numa terceira estrofe onde se tornava lenta, cansada, ainda mais sussurrante, para explicar a sua recusa em continuar aquela luta de morte. Com um novo fôlego irrompia o acto final, onde a voz prefigurava um futuro indesejado embora possível, no qual a sua proprietária ficaria perdida na densa neblina do passado. E concluía com uma ordem definitiva, com um desgarrado «Vete de mi» derradeiro, disposto mesmo a silenciar a música que, só quando se apagava a última vibração da voz, regressava quente, pesada, em direcção ao presumível silêncio total... mas que antes de lá chegar abria um breve espaço para impor novamente, como vontade última e sem apelo: «Si, ya... vete de mi», como uma solicitação tão visceral que convencia Conde de que naquela forma de cantar havia muito mais do que um jogo de espelhos com a realidade: seria pura e verdadeira realidade?
— Que raio é isto? — perguntou, agora em voz alta, pousando o braço do gira-discos no suporte enquanto o acetato, já mudo, continuava a girar como uma espiral hipnótica. Para recuperar a compostura ergueu o copo com rum pela metade e engoliu-o de uma vez. Lentamente, sentiu como se reencontrava com a sua anatomia e com o seu lugar, esbatidos pela comoção que lhe provocaram a música e a voz de uma mulher esfumada da memória e perdida no tempo.
— E tu dizes que essa mulher desapareceu? — foi a pergunta de Carlos, o Magricela que, com os seus braços e mãos cansados de apertar, tentava instalar-se melhor na sua cadeira de rodas.
— Parece... Não voltou a cantar — confirmou Conde. — Nem sequer sei se está viva ou morta...
— Juro-te, tem uma voz, assim... — Yoyi procurava em vão um qualificativo escorregadio, capaz de enquadrar aquele estranho prodígio.
— Não se parece com ninguém, não senhor — concluiu Magricela, distribuindo os restos da primeira garrafa. — Põe o lado B, selvagem.
— Não — atirou Conde sem pensar, batendo no pequeno acetato. — Não. Deixa-me digerir isto.
Conde tornou a ler a ficha técnica do disco, iluminada pelos reflexos da gema amarela que destacava o selo discográfico e, finalmente, devolveu-o ao sobrescrito rústico de papel de embrulho preparado por Rafael Giro. Pensou se seria apropriado contar aos seus amigos que agora tinha a certeza de que o seu pai tinha estado apaixonado justamente por essa cantora, talvez sem nunca sequer lhe ter falado. Mas concluiu não ter direito de fazer semelhante confissão e por isso deixou escapar, quase sem pensar, um desejo que o corroía por dentro e por fora:
— Estou lixado. Tenho de saber quem era essa mulher e o que lhe aconteceu.
Agora Mário Conde podia recordar, sem que o atacasse a mistura abrasiva de nostalgia e remorso, os doze anos que trabalhou como polícia. Conseguir o benefício da distância foi um processo paulatino, por vezes até doloroso, tal como a cura de uma dependência. Só o fluir do tempo tinha conseguido operar o milagre de afastar do seu espírito o lastro que o trabalho policial, inevitavelmente sujo, tinha enredado nos recantos da alma. Ele, pela sua natureza de nostálgico empedernido ou, como costumava defini-lo Carlos, o Magricela, por ser um cabrão saudosista, alegrou-se duplamente com a chegada daquele distanciamento que acabou por lhe permitir ver sem contornos nítidos, como num estado de letargia, a sua época de polícia investigador. Por isso, quando alguma circunstância o obrigava a recordar-se de si próprio como o representante da ordem que fora durante doze anos, sentia uma estranheza de si próprio capaz de o levar a ver aquele Mário Conde como alguém alheio e, por instantes, até desconhecido, instalado durante demasiado tempo entre os supostamente fortes e poderosos, quando o seu carácter o inclinava para a militância no clube dos inconformados.
No entanto, como sabia estar demasiado preso à sua memória, Mário Conde tinha de reconhecer que a demolição daquele fragmento da sua vida tinha sido apenas uma estratégia de sobrevivência à qual se aferrou quando decidiu dar um novo sentido — ou seria velho? — à sua vida. Talvez o que mais o tenha ajudado a conjurar o passado, naquele processo de negação, tenha sido a sua convicção de que nunca fora injusto e, sobretudo, a segurança de nunca ter agido de forma prepotente, como tantos dos seus colegas fizeram e continuariam a fazer. A sua alergia à violência ou ao uso da força, a sua repulsa pela propensão policial de vergar consciências e dignidades, mantiveram-no sempre a salvo daqueles excessos habituais do ofício e, pelo caminho, afastaram-no de efeitos secundários nocivos como a corrupção, que manchou as vidas de vários dos seus colegas, destruiu muitas ilusões de Conde e fê-lo compreender mais claramente as fraquezas insuperáveis da alma humana — mesmo das almas que diziam ter do seu lado o peso do poder e a responsabilidade da justiça.
Como acabou por nunca saber com certeza porque se tornara polícia — era muito novo, precisava de um emprego, ainda transportava consigo uma credulidade sem brechas —, durante muito tempo arvorou como bandeira que o terá levado a ser investigador policial a razão pura e simples de a sua alma juvenil não suportar a visão de filhos da puta fazerem coisas e não pagarem por elas. Talvez por isso tenha apreciado, e apreciado muito, pôr a nu tipos supostamente inatacáveis, fazendo-os cair do seu pedestal e obrigando-os a pagar pelos seus crimes, pela sua soberba, pelo abuso dos poderes que se atribuíram e graças aos quais podiam esmagar vidas e destinos. Praticando estas demolições Conde tinha-se sentido imune, quase fortalecido, diante dos olhares de ódio que tantas vezes lhe tinham dirigido aquelas personagens, antes poderosas,] agora vencidas.
Felizmente para Conde, esse tipo de reflexões, convenientemente escondidas na sua consciência, só se atreviam a vir à tona em circunstâncias muito específicas como as daquela manhã quando, com um rum madrugador nas mãos, se sentia arrebatado pela necessidade primária de descobrir uma verdade, enquanto o seu cérebro tratava de pôr em movimento velhos mecanismos oxidados, talvez ainda funcionais.
— Vamos lá ver, que merda te dói agora?
A voz nas suas costas não o surpreendeu. Fora ele quem a convocara, tal como a um fantasma flutuante na neblina do seu próprio passado e sentiu que aquelas vibrações conhecidas lhe despertavam uma alegria extrema, revivida em cada encontro. Por isso, sem se
voltar, deslocou o copo sobre a madeira polida do balcão até o colocar diante da banqueta vizinha e perguntou:
— Diz-me a verdade, meu amigo, uma pessoa pode ser maricas por uns tempos e depois deixar de o ser?
— Nem sonhes. A mariquice não tem retrocesso. Se alguma vez engoliste espadas, isso já ninguém o conserta... E um tipo que já foi polícia nem que se mate deixa de o ser.
— Já calculava — disse, voltando-se finalmente para observar a figura eternamente esquelética, de olhos irremediavelmente estrábicos e sorriso incrivelmente pueril do capitão Manuel Palácios, seu antigo companheiro de investigações. — De modo que nem que me mate...?
Manolo esperou que Conde descesse do seu banco para se abraçarem. Depois ergueu o copo com rum pela metade e bebeu um gole demolidor.
— Aaaahhh... À tua.
— Como te corre a vida, Manolo?
Quando Conde deixou a polícia, o então jovem Manuel Palácios era apenas um sargento novato que só por insistência de Conde trabalhava à paisana. Agora, já premiado com o posto de capitão investigador, Manolo nunca se separava daquela farda que tanto gostava de ostentar, uma farda à qual, certamente, dedicaria todos os anos possíveis da sua vida.
— Muito trabalho, uma loucura. Nem imaginas como estão as coisas. Aquilo antes era uma brincadeira de crianças, agora é a doer. Os roubos com uso da força estão na ordem do dia, a droga está por todo o lado, os assaltos são uma praga, a corrupção cresce mais que erva daninha, não acaba por mais que se arranque... E nem te falo do proxenetismo e da pornografia.
— Eu adoro a pornografia... . .« — A pornografia infantil, Conde!
— Ouve, é que há umas miúdas de catorze anos...
— Vai para o caraças, não há maneira de mudares.
— E tu?
Manolo sorriu e pousou uma mão sobre a que o Conde pousara no balcão.
— Tento não mudar... De modo que me podes oferecer um cigarro.
— Queres um rum? — perguntou-lhe Conde, aproximando dele o maço e o isqueiro.
— Não, não, com o gole que dei já me chega.
— Diabo! — disse Conde, chamando o empregado. — Outro para mim... O que é que se passa, Manolo? Será verdade que vem aí o fim do mundo? Porque será que as pessoas são cada vez mais lixadas, eh?
Manolo suspirou e expeliu o fumo do cigarro.
— É o que pergunto a mim próprio a toda a hora. Não sei, deve ser por haver demasiadas pessoas que não querem passar por mais trabalhos na vida e procuram a maneira mais fácil. Há muitas, demasiadas, que cresceram vendo meio mundo a roubar, a falsificar, a esbanjar e tudo isso já lhes parece natural, fazendo-o também como se não fizessem nada de mal. Mas o pior é a violência. Não respeitam nada e quando querem alguma coisa conseguem-na de qualquer maneira...
Conde provou a sua nova bebida.
— Tenho um sócio no negócio dos livros. A teoria dele é que há muita gente que já não acredita em nada e por isso as coisas estão assim. Lembras-te de quando virámos Havana do avesso porque no Pre de La Víbora havia três rapazes que de vez em quando fumavam um charro de marijuana?
— Tempos felizes, Conde... digo-te eu. Agora andam no crack, na cocaína, no Parkisonil com rum e anfetaminas, quando podem. Caso contrário, qualquer pastilha para os nervos com álcool e até anestesia para animais, vê lá tu... antes inalavam gasolina, tinta, verniz, cola industrial... Mas sabes qual é a última? Incendeiam CD e cheiram-nos. E vão para o céu mas, pelo caminho, deixam um saco de neurónios... Mas não penses que é meia dúzia... Se passares pelo hospital psiquiátrico vais ver quantos estão amarrados a um pau como o índio Hatuey(1). Olha, cada vez que há um baile público ou uma luta de cães, ou quando estão aborrecidos, metem o que encontram e depois ficam que se matam entre si. Mas matam-se a sério... E vão buscar dinheiro a qualquer lado, mas
*1. índio haitiano que, fugido dos espanhóis, chegou a Cuba e liderou a luta da população nativa contra os castelhanos. Feito prisioneiro, foi condenado a morrer na fogueira, amarrado, obviamente, a um pau. (N. da T.)
quase sempre o arranjam roubando, prostituindo-se ou vendendo drogas aos outros. Ou decidem entrar numa casa e roubar qualquer coisa, deixando de caminho dois ou três mortos. A Sangue Frio, era assim que se chamava o livro que me ofereceste uma vez? Bom, acabei de ver um caso como esse a semana passada. Cinco mortos numa casa, torturados, mutilados... tudo isso para levarem dois mil pesos e um televisor.
— Os jornais não falam dessas coisas... E alguém se interroga porque é que isso acontece? — quis saber Conde, alarmado com o panorama descrito pelo seu antigo colega e congratulando-se por estar longe daquela realidade tétrica em expansão.
— Não sei, mas alguém devia fazê-lo. Eu sou polícia, Conde, apenas um polícia. Eu limpo a merda, não reparto a comida...
— Estamos perdidos, Manolo. Interessante seria saber quando se partiu a proveta, como diz o Yoyi, e começou tudo a descambar, não achas?
— Bom, meu caro, deixa lá a filosofia que eu estou cheio de pressa. Diz-me, precisas de quê?
— O meu assunto é menos dramático mas, se calhar, mais difícil... Preciso de localizar uma pessoa que se perdeu há quarenta e três anos.
— Perdeu-se, desapareceu, como é?
— Esfumou-se e ninguém se lembra dela. Não sei se está viva ou morta, embora pudesse ter agora, não sei, sessenta e picos...
— Dá-me o nome que eu procuro nos arquivos.
— Esse é o primeiro imbróglio: era uma cantora e só sei o seu nome artístico. Porque ninguém se chama na realidade Violeta Del Rio.
-Violeta Del Rio?
— Ouviste falar dela?
— Nada de nada...
Manolo estendeu o braço, agarrou no copo de Conde e bebeu um golinho.
— Queres rum ou não?
Manolo abanou a cabeça numa negativa e comentou:
— Dá-me uma oportunidade, porque pode ser que apareça através da alcunha... Estás à procura dela porquê?
— Não sei — admitiu Conde. — Acho que ainda não sei. Mas quero encontrá-la. Se calhar assim descubro por que razão queria procurá-la.
Rogelito bem podia ser o último dos dinossauros, uma espécie de fóssil poupado à extinção natural dos seus congéneres e chegado ao século XXI vindo de uma era geológica relembrada apenas nos velhos livros recolhidos por Conde e por algumas memórias obstinadas em recordar um passado nebuloso e satanizado. A sua lenda tinha início no ano de 1921, terminada a cada vez mais histórica Primeira Guerra Mundial quando, com dezassete anos, ingressou na orquestra de danzón(2) do grande Tatá Alfonso e começou a tecer a sua mitologia de excepcional tocador de timbales ao serviço de todas as orquestras e jazz bands notáveis que percorreram a volumosa crónica musical cubana durante sessenta anos, aquelas que o solicitavam pelo que sempre fora: o melhor.
Dizia-se de Rogelito que, lá pelo ano de 1920, tinha tido a sorte de ser discípulo do genial Manengue, aquele tocador de timbales alcoólico e extravagante que, procurando sonoridades inexistentes no seu primitivo instrumento, o enriqueceu, incorporando-lhe o percutir metálico do chocalho e a passagem rítmica da cajita japonesa(3) que fizeram da paila, com aqueles sons tórridos e cortantes, o instrumento básico de percussão do danzón.
Apesar daquela história épica, Conde não se espantou ao verificar que o eterno Rogelito vivia numa daquelas «passagens» estreitas e escuras do bairro de Buenavista, num minúsculo apartamento de paredes descascadas a destilar humidade, sem vista para a rua, embutido entre outros dois minúsculos apartamentos, condenados também a olhar para o tapume que os separava da passagem vizinha, igualmente húmida e escura. Como quase todos os músicos da sua época, pelas mãos de Rogelito deve ter passado dinheiro suficiente para, no mínimo, ter comprado, alugado, construído uma casa luminosa e ventilada, mas, tal como a maior parte deles, Rogelito
*2. Dança e género musical cubano popular desde a segunda metade do século XIX. (N. da T.)
vestiu-se, bebeu, fumou, comeu e fornicou — não se podia queixar, no fim de contas, disse Conde para consigo — com cada moeda ganha, enquanto se refugiava, sem complexos de culpa, num daqueles apartamentos asmáticos onde fora surpreendido pela velhice e pelo esquecimento. Viveria numa dessas arruinadas casas comunais a outrora rutilante Violeta Del Rio?
Depois de pedir alguns minutos a Conde, a bisneta encarregada de tratar de Rogelito — uma mulata clara de uns trinta e tal anos sólidos e fogosos, dona de uns mamilos decididos a perfurar o tecido leve da blusa e de umas nádegas abruptas sobre as quais um homem podia sentar-se — trouxe o velhote até à poltrona, almofadada com coxins adicionais, que se assemelhava ao trono de um patriarca empobrecido. Rogelito tinha saído do quarto apoiado no braço da bisneta, avançando com passinhos deslizantes, já incapaz de levantar umas pernas que terão dançado, com certeza, nos melhores salões de Havana, e Conde teve a sensação de estar diante de uma vela na agonia de queimar a porção derradeira do seu pavio. Excepto pelas orelhas irredutíveis, pertencentes em tempos a um homem de estatura mediana, e dos dentes postiços, empenhados em impor-lhe uma alegria grotesca e permanente, todo o velhote parecia prestes a esfumar-se, a transformar-se em pó devidos aos efeitos da química implacável do tempo.
Instalado na sua poltrona com os olhos muito abertos, tentando captar o benefício da claridade, Rogelito era a imagem de um borracho saído prematuramente de um ovo gigantesco, e Conde pensou que a velhice exagerada podia ser o pior dos castigos com que o homem se depara.
— Porque queria ver-me, jovem?
— Primeiro para o cumprimentar, mestre — disse Conde, pois achou pouco delicado entrar directamente no assunto da sua visita.
— Que estranho. Já ninguém se lembra de mim.
— Muitos livros falam de si. E há discos antigos...
— Isso não dá de comer.
— É verdade — admitiu Conde, recebendo o perfume do café a ser preparado numa cozinha de onde também saía o cheiro a pobreza do querosene calcinado. — Há quanto tempo deixou de tocar, mestre?
— Uf... há uns quinze anos. Primeiro aconteceu-me uma coisa estranha: deixei de conseguir ler música, mas era capaz de tocar qualquer peça se já a tivesse tocado alguma vez. Se me dissesses: Rogelito, vamos incluir, não sei, El bombín de Barreto, ou Almen-dra, eu punha-me a pensar e não me lembrava de nada... Mas se me punha diante do timbale e o piano ou o baixo davam os primeiros acordes, eu agarrava nas baquetas e começava a tocar, quase sem saber o que fazia, mas sem trocar um compasso. Já não pensava com a cabeça mas com as mãos. Só que depois perdi a destreza — e mostrou a Conde umas mãos gigantescas, desproporcionadas relativamente ao resto do físico: — estas filhas da puta deixaram de responder.
A bisneta saiu daquela pequena cozinha opressiva com uma chávena para Conde e um jarrinho de plástico para o velhote. O pretenso café cheirava a chícharos esturricados, e Conde esperou que arrefecesse o suficiente para engolir a bebida ingrata de uma só vez, vendo como Rogelito, auxiliado pela bisneta, levantava o recipiente com as duas mãos e bebia a infusão aos golinhos. Conde acendeu um cigarro, desviou o olhar do espectáculo deprimente e pousou-o na evidência eréctil de uns mamilos escuros como o desejo mais obscuro, encalhado numa mulher certamente farta de cuidar de um velhote, com a magra esperança de herdar aquelas quatro paredes húmidas e, portanto, com certeza disposta a oferecer a si própria duas horas de prazer sem pensar muito. Nervoso, como costumava ficar em circunstâncias como estas, Conde recuperou a imagem do borracho prematuro, com dentes de cavalo e orelhas de elefante, e atirou-se ao seu objectivo.
— Rogelito, alguém me disse que você conheceu Violeta Del Rio...
Um dia, no café Vista Alegre, estávamos a beber uns copos antes de irmos para o Sans Souci, onde tínhamos um espectáculo às onze da noite. Isso foi no ano... porra, há dois mil anos, imagine, quando se podia beber um café com leite em qualquer esquina deste país. O caso é que Barbarito Diez, que era nessa altura o cantor da orquestra, apostou comigo: como ele não bebia álcool e comia bem, não andava com putas e ia-se deitar quando acabava de trabalhar, e eu era exactamente o contrário, apostámos para ver quanto tempo durava um negro bem comportado como ele, e um negro louco como eu, e a testemunha foi Isaac Oviedo. Isaac era da minha idade, Barbarito um pouco mais miúdo, cinco ou seis anos mais novo, mas eu ofereci-lhe a vantagem e, veja lá, enterrei o pobre Barbarito e o pobre Isaac, que morreram ambos velhíssimos, e do Vista Alegre não restam nem os alicerces nem a lembrança... Mas eu continuo aqui, não sei porquê nem para quê... Mais de sessenta anos a tocar em qualquer orquestra que aparecesse, emborcando em todos os bares de Havana, fodendo até de manhã nos sete dias da semana, imagina quantas pessoas do meio conheci? Havana era, desde os anos vinte, a cidade da música, da farra a qualquer hora, da bebida em todas as esquinas, e isso dava trabalho a muita gente, não só a músicos como eu, que passei sete anos no conservatório e toquei também na Filarmónica de Havana, mas a qualquer um que quisesse fazer pela vida através da música e tivesse tomates para persistir... Depois, os anos trinta e quarenta foram a época das salas de baile, dos clubes sociais e dos primeiros cabarés grandes com casino, o Tropicana, o Sans Souci, o Montmartre, o Nacional, o Parisién, e dos pequenos cabarés de praia, onde o meu amigo Chori era o rei. Mas nos anos cinquenta aquilo multiplicou-se por dez, porque se abriram mais hotéis, todos com cabarés, e começaram a ficar na moda os night-clubs, havia não sei quantos em El Vedado, em Miramar, em Marianao, e aí não cabiam orquestras grandes, apenas um piano ou uma guitarra e uma voz. Foi o tempo do pessoal do feeling e das cantoras de boleros sentimentais, como eu as chamava. Eram mulheres especiais, cantavam com vontade de cantar e deixavam a pele no palco, viviam as letras das canções e o que faziam era emoção pura, emoção pura. Uma delas foi Violeta Del Rio...
Lembro-me de ter visto Violeta, não sei, três ou quatro vezes, claro, eu não tinha tempo de ir ver outros músicos. Uma vez vi-a no cabaré Las Vegas, e outra, a que melhor recordo, no La Zorra y el Cuervo, onde havia uma pista assim, pequenina, e nesse dia ela não estava a actuar, quer dizer, ela não actuava ali mas estava a cantar porque tinha muita vontade de cantar e Frank Emílio estava ao piano porque tinha muita vontade de tocar e como tinham ambos tanta vontade, o que fizeram nessa noite foi de molde a que uma pessoa nunca mais se esquecesse, nem que vivesse mil anos. Já te disse que Violeta era uma mulher de se lhe tirar o chapéu? Bom, tinha dezoito ou dezanove anos e nessa idade até a Madre Teresa de Calcutá era boa. Era uma morena assim queimadinha, não mulata, de cabelo muito preto, ondulado, e uma boca grande, linda, cheia, com os dentes direitinhos embora um pouco salientes, com muita graciosidade. Mas o melhor eram os olhos: um par de olhos negros que nos deixavam petrificados quando se fixavam em nós, revistando-nos por dentro e por fora como um aparelho de raios X. Era uma dessas mulheres que nos põem melosos só de olharmos para elas... Ela, disseram-me, a toda a hora fazia isso de se pôr a cantar por cantar, gostava de cantar, sempre boleros, bem suaves, e cantava-os com um ar de desprezo, assim meio agressiva, como se estivesse a contar coisas da sua própria vida. Tinha um timbre um pouco rouco, de mulher mais velha que tivesse bebido muito álcool na vida, e nunca subia muito, mais que cantá-los, quase que declamava os boleros e quando desatava a cantar as pessoas calavam-se, esqueciam-se das bebidas porque era como uma feiticeira que hipnotizava toda a gente, homens e mulheres, chulos e putas, bêbados e drogados, porque fazia daqueles boleros um drama e não uma canção qualquer, já te disse, como se fossem coisas da sua própria vida e as contasse ali, diante de toda a gente.
Naquela noite fiquei pasmado, esqueci-me até de Vivi Verdura, uma putona grande, com cerca de seis pés, que se agarrara a mim e me roubava as bebidas. E durante aquela hora, hora e picos, duas horas, sei lá, durante todo o tempo que Violeta esteve a cantar, foi como andar longe do mundo, ou muito perto, tão perto como estar metido dentro daquela mulher, sem nunca mais querer sair dali..-Do caraças!... Nesse dia um fotógrafo que andava sempre pelos clubes e pelos cabarés, porque se dedicava a tirar fotografias dos artistas para os jornais e revistas, disse-me: Rogelito, o milagre de Violeta não é cantar melhor, é saber seduzir. Santas palavras! Essa era a verdade. Tanto era verdade que, ouvindo uma coisa aqui e outra ali, fiquei a saber que um tipo muito rico, daqueles ricos a sério que não frequentavam os clubes, se tinha apaixonado por ela, e casar-se e tudo, embora fosse mais velho que ela cerca de trinta anos. Até constou que foi aquele grande senhor que pagou a gravação de um disco destinado a lançá-la depois no grande mercado e a metê-la na televisão, permitindo-lhe fazer mais tarde um longplay com dez ou doze canções...
Mas Violeta não precisava de nenhum empurrão, porque era realmente boa, digo-vos eu, e por isso foi fazendo nome com aquelas actuações. Como acontece sempre neste país de merda, depressa destapou a panela da inveja. As outras cantoras começaram a ficar picadas e algumas diziam que sem aquele grande senhor ela não conseguiria cantar nem no quintal de casa, coisas assim. A que mais irritada ficou foi Katy Barqué. Katy estava no seu melhor momento, mas foi sempre uma víbora sacana, não queria concorrência e sabia que nesse estilo de cantar boleros, com dureza, com desprezo, Violeta podia levá-la pela frente, porque aquilo lhe saía de uma forma mais natural e porque, como mulher, era muito mais bem feita que Katy. Segundo soube, aquela pega acabou numa briga, como era de esperar. Um dia Katy fez um escândalo e disse-lhe uma série de coisas aos gritos, mas Violeta nem lhe respondeu, limitou-se a rir e disse-lhe que se a inveja pusesse o cabelo louro, Katy não precisava de fazer descolorações todas as semanas...
Fervilhavam os falatórios sobre a briga entre Katy e Violeta e sobre o mistério do tipo rico decidido a casar-se com a rapariga, quando esse mesmo fotógrafo dos cabarés, chamavam-no Salutaris porque se parecia com aquele tipo que fazia o anúncio dos refrescos Salutaris, comentou comigo uma noite: Olha, Rogelito, Violeta não canta mais. Ele próprio não sabia bem porquê, e isso apesar de saber a vida e os podres de toda a gente, mas a bisbilhotice era que se ia casar com o tipo rico, e o tipo rico, depois de até ter pago para que ela fizesse um disco, queria agora que ela deixasse o clube e o cabaré, que não aparecesse na televisão e se transformasse numa senhora a sério. Eu acreditei no que Salutaris me disse, porque essa mesma história tinha acontecido milhares de vezes e o caso de Violeta não era estranho. Ela era, com certeza, uma rapariguinha pobre, embora parecesse na verdade fina e educada, que ganhava a vida cantando, mas se de repente podia viver como uma princesa, pois que fosse para o diabo o canio, a melodia, e até o Parisién e as más noites que acabam com uma pessoa. Bom, com algumas... Para ser franco, aquilo surpreendeu-me um pouco, porque mais que ganhar uns pesos, eu diria que Violeta vivia para cantar. Tanto sentimento, tanta vontade de cantar a qualquer hora da noite, com pagamento ou sem ele, tornavam-na diferente de Katy Barqué e de todas as outras, e por isso achava estranho que ela aceitasse aquela imposição de deixar de cantar, embora às vezes as mulheres — os homens também, com os diabos — se apaixonem e façam o que têm de fazer e sobretudo o que não devem fazer. Mesmo assim, aquilo cheirou-me a esturro, a pescao(4) como dizia Vicentico Valdés... Bom, o caso é que Violeta desapareceu do meio, como tanta gente nessa época, incluindo Salutaris, que foi para o Norte e nunca mais soube dele... Isso foi a última coisa que ouvi dizer acerca dela, deve ter sido no início de 1960, porque nesse ano eu fui trabalhar para a Colômbia e estive por lá quase três anos, e até hoje, vê lá bem, nunca mais ouvi falar dela...
Sim, claro, para além do fotógrafo, que me lembre agora, vamos lá ver... Bom, já te disse que Katy Barqué a conheceu. E era amiga de Flor de Lótus, aquela loura que dançava quase nua no Shanghai e depois montou a sua própria casa de putas. Sei que elas eram amigas porque naquele dia no La Zorra y el Cuervo sentaram-se ambas à mesma mesa e estiveram a falar durante muito tempo. Outro que devia conhecê-la, porque esse conhecia toda a gente, é Silvano Quintero, o jornalista do El Mundo que escrevia sobre os artistas. Mas nunca soube quem era o ricaço. Não era coisa que me importasse... Embora fosse, com certeza, de uma família bem endinheirada e, se assim era, voou daqui para fora, se calhar com Violeta, de certezinha. Se na verdade o homem tinha, não sei, cinquenta anos nessa altura... se estivesse vivo teria a minha idade e como eu restam poucos, julgo que nenhum... porra. Uma vez li, disso nunca me esqueci, que a maior desgraça de um homem é sobreviver a todos os seus amigos. Não sei se quem o escreveu passou por isso, mas eu digo-lhe que é verdade... Todos os dias, quando abro os olhos às cinco da manhã e descubro que continuo aqui, faço a mim próprio a mesma pergunta: até quando vais continuar
*4. Pescao (pescado): peixe. (N. da T.)
a chatear, Rogelito? É que estou convencido há muito tempo de que a única coisa que me falta fazer é morrer.
Naquela tarde, assim que voltou para casa, Conde consultou a lista telefónica para descobrir, alvoroçado, que o jornalista Silvano Quintero ainda era vivo e morava em Havana e, depois de lhe telefonar, combinaram encontrar-se no dia seguinte no apartamento dele, na calle Rayo. A que horas? A qualquer hora, dissera-lhe Quintero, eu nunca saio daqui. Mais complicado, no entanto, foi combinar um encontro com Katy Barqué, até Conde lhe mentir descaradamente e lhe falar de um filme que um produtor seu amigo estava a planear fazer, no qual, quase com certeza, seriam utilizadas algumas das suas canções e, como ela devia saber, isso pagava-se muito bem...
Como que por exigência de uma necessidade inadiável, Conde abriu o velho gira-discos de mala que tinha trazido na noite anterior da casa de Carlos e voltou a ouvir três, quatro vezes, Vete de mi, sentindo como o penetrava, rasgando-lhe a pele, a voz romba de Violeta Del Rio, deformada pela agulha embotada que deslizava sobre o acetato, e compreendeu as razões da inveja das outras cantoras de boleros das noites havanesas dos anos cinquenta, particularmente a de Katy Barqué, que nunca tinha conseguido cantar assim.
Comovido a extremos alarmantes, cada vez mais persuadido de que aquela voz o alterava dessa forma porque tocava nalguma fibra sensível da sua memória, Conde decidiu dar a volta ao disco e explorar o território ignoto da outra face da lua. Aquele lado do disco de 45 rotações prometia emoções fortes, pois nele estava gravado Me recordarás, a canção de Frank Domínguez que, pelo que já conhecia, devia ajustar-se como um vestido de lamê ao estilo agressivo e despótico de Violeta Del Rio.
Enquanto o disco se estabilizava após as rotações iniciais e lançava uns lamentos crepitantes no seu caminho em direcção aos sulcos gravados, Conde fechou os olhos e conteve a respiração para deixar que os seus ouvidos imperassem sobre os restantes sentidos. Tal como em Vete de mi, o piano fez o preâmbulo melódico e preparou o terreno para a chegada da voz, igualmente quente e gutural, com uma inflexão de altivez capaz de multiplicar a sua condição de vencedora que negava oferecer a graça do perdão:
Me recordarás
cuando en la tarde muera el sol.
Tú me llamarás
en las horas secretas
de tu sensibilidad.
Te arrepentirás
de lo cruel que tú fuiste con mi amor,
te lamentarás,
pêro será muy tarde
para volver.
Te perseguirán
los recuerdos divinos del ayer,
te atormentará
tu conciencia infeliz...
Me recordarás
dondequiera que escuches mi canción,
porque al fin fui yo
quien te ensenó todo... todo...
Lo que sabes del amor.(5)
Conde levantou o braço do gira-discos e baixou a tampa. Alguma coisa definitivamente doentia lhe acontecia com aquela voz, decidida a agitá-lo ao ponto irracional de lhe provocar um inconfundível ardor hormonal. Será possível estar a apaixonar-me por uma voz? perguntou a si próprio. Por um fantasma de mulher? continuou, receando que aquela possibilidade pudesse ser o primeiro escalão na espiral da loucura. Recusando a solução masturbatória à qual recorria com enorme frequência apesar da sua idade já imprópria,
*5. Recordar-me-ás / quando à tarde o sol cair. / Chamar-me-ás / nas horas secretas / da tua sensibilidade. / Arrepender-te-ás / por teres sido cruel com o meu amor, / lamentar-te-ás, / mas será muito tarde / para voltares atrás. / Perseguir-te-ão / as lembranças divinas do passado, / atormentar-te-á / a tua consciência infeliz...
Recordar-me-ás / onde quer que oiças a minha canção, / porque afinal fui eu / quem tudo te ensinou... tudo... / o que sabes do amor. (N. da T.)
Conde optou por meter-se debaixo do jorro do duche, confiante na capacidade da água para o limpar de obsessões e de calores adolescentes.
Com a cabeça mais fresca pôde reflectir acerca do que sabia até esse momento e esperou que os encontros planeados para o dia seguinte com a perseverante Katy Barqué e com o jornalista Silvano Quintero pudessem esclarecer-lhe a dúvida que mais o martirizava: qual o destino de Violeta Del Rio depois de se afastar dos palcos? Antes de mais, tentaria saber se o amante rico da cantora tinha sido o senhor Alcides Montes de Oca, derradeiro dono e abastecedor da deslumbrante biblioteca que o pusera a suar há dois dias. A existência do recorte de jornal nas entranhas de um livro de cozinha teria assim um verdadeiro sentido e começaria a explicar a possível relação entre aquelas pessoas provenientes de planetas distantes. No entanto, uma peça crucial não conseguia encaixar-se na engrenagem que Conde ia montando, pois Alcides Montes de Oca parecia ter saído de Cuba sozinho com os filhos, e Amalia Ferrero garantia nunca ter ouvido o nome da cantora de boleros. Conde compreendeu que talvez tivesse cometido um erro, talvez Amalia nunca tivesse conhecido Violeta Del Rio mas uma mulher com outro nome, já afastada do mundo musical, e censurou a si próprio a estupidez de não ter levado consigo a fotografia da cantora. Mas a possibilidade de que o amante até agora sem rosto não tivesse sido Montes de Oca, mas outro qualquer, continuava latente. Seria possível que, depois de deixar o mundo do espectáculo, Violeta se tivesse casado, parido três vezes e vivido durante mais de quarenta anos à sombra enganadora da estabilidade caseira, entre a cozinha e o tanque de uma casinha de Luyanó ou de Hialeah? Seria hoje uma senhora gorda, de carnes flácidas e nádegas gretadas, envenenada pela amargura de ter deixado de ser o que mais amava na vida? Aquela imagem devastadora dissolveu os últimos fervores de Conde, embora uma frágil certeza da sua incontrolável imaginação o tenha avisado de que isso podia ser um desvario. Não, não era possível, Violeta sempre fora a mulher excitante da fotografia, a cantora ímpar que gravou o disco e fora-o para todo o sempre. Pensava aquilo porquê? Não sabia, mas tinha a certeza de que assim fora.
Depois de se barbear, pôs o seu melhor perfume. Nesse momento esperava que a noite acabasse por ser tão prometedora como precisava. Depois de se certificar de que o irredutível Basura não andava pelos arredores, deitou-lhe mais algumas sobras no prato. Finalmente dirigiu-se para a rua e, pondo em prática a sua nova situação de homem endinheirado, fez parar um carro de aluguer, oferecendo trinta pesos caso se desviasse da sua rota para o levar a Santos Suárez.
Diante da casa de Tâmara, Conde lançou uma súplica ao deus da fortuna pois, dos lugares conhecidos e possíveis, aquele era o sítio onde podia encontrar um alívio mais satisfatório para as suas obsessivas exigências sexuais, adiadas por vários dias. Com um cigarro nos lábios, entrincheirado atrás do ramo de luminosos girassóis comprados no caminho, atravessou o jardim e cumprimentou, como era hábito, as esculturas de betão que decoravam a mansão, com aquelas formas a meio caminho entre o humano e o animal, entre Picasso e Lam.
Tâmara abriu a porta. Os seus olhos límpidos de sempre, como duas amêndoas húmidas, fizeram o registo visual do recém-chegado e detiveram-se no ramo de flores. O seu olfacto foi o que primeiro reagiu.
— Cheiras a puta. E não é das flores — garantiu, sorrindo.
— Cada qual cheira ao que pode...
— E a que se deve este milagre? Há uns cinco dias, não, uma semana...
— Estive a trabalhar esforçadamente para me tornar rico. -E?
— Estou rico. Pelo menos durante esta semana. E tenho à minha frente um futuro promissor como homem de negócios. Tâmara, é preciso mudar com os tempos. Tu sabes, já não é pecado ser um homem de negócios... Muito pelo contrário. Lembras-te daquele poema de Guillén que dizia «tenho pena dos burgueses» e blá, blá, blá...?
— Claro que me lembro... Mas, o que se faz quando se é rico?
— A primeira coisa é não andar de autocarro. Depois, oferecer flores — estendeu o ramo a Tâmara — e, para concluir o dia, imaginar que se é Gatsby e fazer uma refeição espectacular com os amigos, mas primeiro ir buscar a namorada e pedir-lhe que o acompanhe.
— Sim? E quem é o amor impossível de Gatsby?
Ela recebeu as flores. Ele tratou de sorrir e atirou para a rua a beata do seu cigarro. Armou-se de cautela. Falhar o próximo tiro podia ser fatal.
— O mesmo de sempre, não é? Aquela rapariga que conheceu no Pre de La Víbora em 1972 e...
Ela sorriu, com uma pequena mas inconfundível dose de doçura, e Conde soube que tinha ganho a partida.
— Olha que tens muita lata, Mário Conde. Obrigada pelas flores... anda, entra, ia agora mesmo fazer café. Mas, que perfume é esse que puseste...?
Conde seguiu-a até à cozinha, deleitando-se com o ritmo da carne de primeira que viu bambolear-se debaixo do vestido de trazer por casa, imaginando tudo o que podia obter daquele corpo explorado tantas vezes ao longo de tantos anos. A passagem de Tâmara pelo perigoso desfiladeiro dos quarenta era harmoniosa e amável, embora ela soubesse ajudar com exercícios para as pernas, abdominais, caminhadas e cremes destinados a tonificar os músculos e a dar brilho à pele, e Conde agradecia-lhe essa preocupação feminina da qual, periodicamente, era beneficiário directo.
— Fala-me nisso de seres rico, vamos lá ver — disse ela, colocando a cafeteira ao lume.
— Encontrei uma mina de livros e estou a ganhar dinheiro. Tão simples como isso. Por isso pedi à velha José que nos preparasse para hoje uma refeição de sonho, custasse o que custasse... Mas às vezes temos mais que um tipo de fome...
— E vens tomar aqui o aperitivo? — Ela voltou-se para ver se o café já subia.
Aquela tensão deixava sempre Conde devastado, de modo que optou pelo silêncio e pelo ataque frontal, embora tenha, na realidade, iniciado o assédio pela retaguarda montanhosa: aproximou-se de Tâmara e, esmagando a pélvis contra as nádegas da mulher, começou a beijá-la no pescoço, deslizando-lhe as mãos pelo estômago na direcção dos seios, soltos sob o tecido leve, e encontrou-os menos compactos que há quinze anos, quando finalmente conseguiu acariciá-los pela primeira vez, mas sentiu-os ainda firmes. Conde sentiu como alguma coisa entre as suas pernas se dispunha a flutuar, cautelosa mas corajosamente. Respirou, guloso, o cheiro a pele limpa e feminina, sem se aperceber de que as suas mãos, olfacto e língua percorriam uma mulher enquanto o seu cérebro alterado procurava às cegas uma outra, extraviada na neblina do passado.
15 de Novembro
Meu querido:
Diz-me a verdade: não tens saudades minhas? Não pensas que desperdiçar o meu amor e viver longe de mim e do que sempre te dei é injusto, até contigo próprio? Nunca sonhas, num qualquer momento do dia, que as minhas mãos acariciam o teu cabelo depois de colocar a tua frente o prato que te alimentará e dará satisfação? E na tua cama, não seria melhor ter o meu calor que dormir com a solidão e com a ausência? Eu, sem te consultar (pela primeira vez em tantos anos), atrevi-me a tomar uma decisão: mudei-me para o teu quarto e ocupei o lado da cama de casal que, sinto, me é devido. Todas as noites antes de me deitar, dobro a colcha, sacudo o lençol, como gostavas que fizesse, e dou umas pancadinhas na tua almofada até ficar mais fofa, procurando a forma mais adequada às tuas leituras nocturnas. Acendo o candeeiro da tua mesa-de-cabeceira e pouso junto dele o copo de água com umas gotas de limão e mel, como o que bebias para aliviar a tua tosse nocturna. Que livro gostarias que trouxesse da biblioteca para leres enquanto não concilias o sono e afastas as preocupações da vida? (Lembro-me de que o último que me pediste foi El negrero, de Novas Calvo... Quantas vezes o leste? O que encontravas nesse livro para que voltasses a lê-lo repetidamente?) Então dispo-me, olhando para essa metade da cama onde te vejo, estendido, a espera, usurpo alguma das muitas camisas de noite da tua mulher que decidiste conservar e sinto, ao contacto com a seda carinhosa, como a minha pele se transforma na de uma senhora dona dessa meia cama, na qual vai receber à noite a pressão de uns braços fortes, de um cheiro masculino a colónia e a tabaco, o roçar de umas faces acabadas de barbear e de um bigode que me arrepiará a pele do pescoço. Agito-me, todo o meu corpo sua, abrasado por uma febre e uma fadiga que só têm um remédio, que tu bem conheces pois muitas vezes mo proporcionaste, o remédio que agora tenho de procurar a sós.. Na minha idade, meu Deus...
Às vezes passo a noite em claro. E penso: o que posso fazer para te convencer da minha inocência? Penso tanto nas minhas esgotantes noites de insónia que às vezes receio a armadilha da loucura, sinto-a a rondar-me, ameaçando ser ela a ocupar a metade vazia da cama, para me desposar e me arrastar para o seu mundo tenebroso.
Nessas noites sem sossego analisei todas as possibilidades ao meu alcance para explicar o sucedido e descobrir a razão da tragédia que nos condenou a esta separação ingrata. A única coisa que me ocorre é que as mulheres têm demasiados mistérios, somos demasiado desconhecidas até para nós próprias e, portanto, capazes de actos inimagináveis. Quem além de mim poderia beneficiar de um acto tão irreversível como essa morte? Tenho a certeza de que essa pergunta te ecoa no pensamento, mas daqui te juro: a verdade é que nem eu própria o sei. Só ela devia conhecer os motivos que a levaram a acabar como acabou com a sua própria vida ou as razões que terá dado a alguém, interessado não só em fazê-la desaparecer, mas capaz também de executar esse acto atroz. Pensa assim e sê sincero: até que ponto a conhecias e a essas outras vidas anteriores e exteriores (tenho a certeza de que as tinha) que nem imaginas se existiam ou não? A simplicidade dos homens, mesmo quando se julgam tão fortes, torna-os cristalinos, previsíveis, mas as mulheres... Quem conhece os recantos infinitos da sua alma, aquilo que podem chegar a fazer para se salvarem ou perderem, para se vingarem ou humilharem, para se esconderem ou revelarem de acordo com as suas conveniências? Pensas realmente que ela era essa menina cândida que te deixou louco de amor?
Ontem a tua filha obrigou-me a ter uma conversa sobre o que está a acontecer-me e o que pode acontecer futuramente. Ouvindo-a tive a certeza mais crua da minha solidão. Ela, a par da nossa verdade, sente-se indignada pela forma como te comportaste e, com horror, julguei descobrir como esse conhecimento se transformou num ódio surdo contra ti. Só o facto de escrever este pensamento me aterra, mas não há outra forma de o expressar. Ela, tal como os outros lá fora, fala agora do passado como de um tempo infame, de servidão, de humilhação, e incita-me a refazer a minha vida, ainda sou jovem, capaz de o fazer, diz-me, e repete-me que o mundo mudou e que há lugar para todos. Eu pedi-lhe algum tempo para me habituar a essa ideia, para pensar em mim própria sem te ter por perto, e poder tomar uma decisão.
Se pudesses ler estas cartas seria tudo mais fácil. Sentir-te do outro lado destas palavras seria a minha salvação, ouvir as tuas opiniões, como sempre fiz, serviria para me nortear nesta vida perdida que hoje levo. Ai, meu amor, se pudéssemos conversar...
O aniversário da tua filha Anita é dentro de alguns dias. Desejo-lhe daqui toda a felicidade do mundo, ao teu lado, e que aproveite esse privilégio que os teus outros filhos (esses irmãos que ela desconhece, porque tu os repudiaste) nunca tiveram e, ao que parece, nunca terão.
Para ti vão sempre os beijos da...
Tua Pequena
— Bolas, José, isso cheira bem! Vamos lá ver, conta-me, conta-me...
Conde estendeu o copo na direcção de Carlos e esperou que o amigo servisse a dose de rum até à borda. Bebeu o gole devastador que lhe reclamava o seu espírito derreado pelos efeitos pós-orgásmicos, e dedicou a sua atenção a Josefina. Em volta da mesa, como se esperassem pela leitura de um misterioso testamento destinado a mudar as suas vidas, Tâmara, Candito, o Ruivo(6), Coelho, Yoyi, o Pombo, e Carlos, o Magricela, imitaram Conde e mantiveram-se em silêncio sem se atreverem, durante alguns minutos, a lançar o anzol aos petiscos distribuídos pela mesa, semeada de espécies exóticas e até consideradas por eles em perigo de extinção, quando não definitivamente desaparecidas dos seus mapas gastronómicos individuais e colectivos: azeitonas recheadas, pedacinhos de queijo manchego, lascas de presunto serrano, rodelas de chouriço galego, amendoim e outros frutos secos, foie-gras, rodelinhas de salpicão, bolachinhas e espargos com maionese...
— Bom, como o livro que me ofereceste tem tantas receitas, abri-o assim, de qualquer maneira, e sem grandes complicações escolhi um prato leve para começar e um muito pesado para fechar.
— Acho bem — disse Conde e os restantes concordaram, como personagens treinadas para aquele vaudeville da mais absoluta
*6. Ruivo: alcunha do mulato Candito, devido à cor acobreada do seu cabelo encarapinhado (ver livros anteriores de Leonardo Padura). (N. da T.)
e inverosímil fantasia, por uma vez convertida em realidade mastigável. — Também não é preciso exagerar...
— Vamos começar com um gigote de Camagúey... — anunciou Josefina.
— E que diacho é isso, velha? — quis saber Magricela.
— Não sejas bruto, Carlos — interveio Coelho. — Vem do francês gigot, e é um guisado de carne picada refogada em manteiga.
— E como sabes tu isso, Coelho? — interveio Candito.
— Culto como sou... Embora nunca tenha comido nada parecido...
— Bom, parem de chatear — calou-os Conde. — Continua, José.
— É um prato típico de Camagiiey e a receita é da dona Olga Núñez de Argiielles...
Conde levantou um dedo na direcção de Coelho, exigindo-lhe silêncio. A ânsia de Coelho em querer ficar a par de qualquer história podia disparar, truncando o prazer gastronómico para o qual tinha convidado os seus amigos, depois de nessa mesma manhã ter entregue a Josefina um maço de notas destinadas a criar o jantar fabuloso que a sua imaginação lhe ditasse. Depois de tantos anos comendo o que naturalmente aparecia — claramente insuficiente — e sonhando com banquetes requintados, teria finalmente uma merecida vingança sobre a realidade objectiva, agora que Conde dizia ser rico e podia aceder — sempre na companhia da sua velha tropa, pois não imaginava outra forma de gozar da riqueza — a certos prazeres cujas portas só se abrem com a chave esquiva do dinheiro ou do poder.
— Os ingredientes para quatro pessoas são: uma galinha bem gorda, três cebolas, três pimentos, dois raminhos de salsa, meia libra de amêndoas, um copo de vinho seco e pão. Como somos oito, multipliquei tudo isso por dois.
— Correcto, correcto — admitiu Carlos. — Quando Manolo chegar seremos oito...
— A receita explica que a galinha se corta aos bocados, se coloca numa caçarola com as cebolas, os pimentos, a salsa e se refoga um pouco. Deita-se água suficiente para cobrir a galinha, junta-se sal a gosto e cozinha-se até ficar macia. Depois de fria, desossa-se e passa-se pela picadora. Esmaga-se uma cebola grande num almofariz, outro raminho de salsa e junta-se ao guisado com o caldo, rectificando os temperos. As amêndoas mergulham-se em água durante um quarto de hora para a pele sair facilmente. Depois picam-se e põem-se num paninho para fazer uma pasta, juntam-se ao caldo e leva-se tudo ao lume, mexendo sempre para não talhar. Depois de ferver durante algum tempo, deita-se vinho seco e deixa-se ferver novamente — explicou, fazendo uma pausa bastante dramática. — Serve-se com pedacinhos de pão frito.
O aplauso emocionado saiu do fundo dos corações e dos estômagos, assombrados com aquele prodígio que a arte de Josefina e o dinheiro de Conde tornavam possível.
— Pois soa muito bem — admitiu Yoyi, o Pombo.
— Você fica calado, menino — recriminou-o Conde, metendo duas azeitonas na boca. — Você tem apenas vinte e sete anos de racionamento, de modo que respeitinho com os veteranos aqui presentes que carregam quarenta anos de experiência ininterrupta...
— Mais de quarenta. Cada um com dois barcos de chícharos na barriga — evocou Candito, mastigando o queijo.
— Não digas palavrões, Ruivo. Safa... chícharos? — recriminou-o Coelho, indeciso entre o presunto serrano e ofoie-gras.
— E para segundo prato, velha? — quis saber Carlos, tentando fazer com que a audiência não se dispersasse na acção diversionária do petiscanço ou no lamento de racionamentos multiplicados nos anos anteriores da Crise, aqueles tempos árduos que, mais de uma vez, os obrigaram a enganar a fome com mistelas como picadinho de casca de banana e bifes de casca de laranja.
— Para segundo prato escolhi o peru recheado à Rosa Maria. Já sei que o segundo prato não devia ser carne da mesma espécie, mas gostei da receita da Rosa Maria e...
— Quem é essa? — perguntou Coelho, sem conseguir conter-se.
— Rosa Maria Barata de Barata.
— Ah... — limitou-se a dizer, vigiado de perto por Conde.
— E esse perum, como se cozinha? — quis saber Candito.
— Perum não, Ruivo, peru — corrigiu-o Conde. — Olha que os ricos comem peru, não perum...
— Primeiro que tudo — explicou Josefina — é preciso um peru de dez libras...
— Isso tem boa pinta — comentou Manolo, metendo a cabeça na sala de jantar e cumprimentando com a mão a assistência.
— Senta-te e cala-te. Por chegares tarde ainda ficas de fora — censurou-o Conde.
— E como se prepara, José? — interveio Tâmara, curiosa, apreciando o circo alimentar para que tinha sido convidada.
— Diz a receita da senhora Barata de Barata... !?
— A mim está a sair-me cara — comentou Conde.
— Diz que se lava o peru com água e sabão, passando-o bem por água.
— O peru vivo? — perguntou Magricela. — E se ele não gostar de tomar banho?
— Estou lixado... —protestou Coelho.
— Corta-se-lhe a cabeça uns quatro dedos acima do peito...
— Ainda bem — respirou Carlos.
— Limpa-se a parte posterior, como habitualmente...
— Bolas, Magricela, tinhas razão — disse Conde e ergueu a mão para chocar no ar com a do amigo. — O perum não gostava de tomar banho e a velha teve de limpar-lhe o rabo...
— Continuo? — quis saber Josefina, sem conseguir esconder um sorriso. — Bom, diz Rosa Maria que se limpa o peru e depois se desossa, com cuidado, para não furar a pele. Depois deixa-se repousar numa marinada de xerez seco e limão, a que se acrescenta rodelas de cebola, pimenta branca moída, sal e um pouco de raspa de noz-moscada. Antes de ser cozinhado, recheia-se e cose-se.
— Isto está a ficar bom — comentou Manolo.
— O que leva o recheio, José? — perguntou Tâmara de novo.
— Cinco libras de carne de porco, duas libras e meia de presunto, seis ou oito bolachas de água e sal moídas...
— Deitaste-lhe bolachas? — perguntou Carlos um pouco desiludido.
— Seis ovos crus, um oitavo de libra de manteiga, uma colher-zinha e meia de sal e um quarto de noz-moscada, uma maçã, pepino doce, quatro ameixas secas sem caroço, um quarto de libra de amêndoas torradas e uma latinha de trufas...
— Meu Deus, trufas, a mim proíbem-mas... — disse Conde sem conseguir conter-se. — Eu passaria a vida a comer trufas brancas de Alba...
— O que são trufas? — quis saber Yoyi, o Pombo, espantado com os gostos requintados de Conde.
— São uns bichinhos assim pequeninos, com penas e uns peli-nhos na cabeça... Sei lá o que são! — disse Conde. — Nunca na merda da minha vida vi uma trufa, nem viva nem morta.
— Juntam-se todos os ingredientes, recheia-se o peru, põe-se num tabuleiro e tempera-se com dentes de alho esmagados, limão e manteiga. Vai ao forno a trezentos e cinquenta graus durante duas horas, até dourar e secar completamente — Josefina respirou: — Pode servir-se no seu próprio molho ou com doce de morango, damasco ou maçã.
— Aí a Barata meteu a pata — interveio Carlos. — No meu não me deites esse doce de merda por cima...
— Ouve, que modos são esses? — lamentou-se Conde, acrescentando imediatamente: — No meu também não lhe deites isso, José. Dá-me com molho...
— Dá aproximadamente para vinte pessoas — concluiu Josefina e recebeu um novo aplauso do auditório, de onde saíram gritos de «Chegou a abundância!», «Nascemos para vencer e não para sermos vencidos», «Industriales(7), campeão!» e «Viva Josefina».
— E tudo isso já está pronto? — perguntou Conde.
— Já. Candito tratou de arranjar todos os ingredientes, Coelho e Carlos foram os ajudantes de cozinha...
Houve mais aplausos e vivas, mas Carlos tratou de se impor ao júbilo geral erguendo as mãos. Quando se fez silêncio, Magricela olhou muito sério para a mãe.
— Velha... esqueceste-te de dizer o resto.
— Ah, claro — lembrou-se a velhota —, fiz uma panela de arroz congrí(8), um cacho de bananas maduras fritas, uma salada de tomate, alface, abacate e pepino... E para a sobremesa resolvi não complicar muito: gelado de chocolate com coco ralado e cobertura de nozes...
— Tudo isto é verdade? — perguntou Manolo, histórica, racional, policialmente impossibilitado de sair da sua estupefacção.
*7. Equipa de baseball de Havana. Em Cuba, o desporto-rei é o baseball e não o futebol. (N. daT.)
— E eu trouxe uma caixa de vinho tinto de Rioja — anunciou Yoyi — e mais quatro garrafas de champanhe...
— O mundo vai acabar. É o Armagedão — comentou Candito.
— Tiveste de passar o dia a trabalhar, José — condoeu-se Tâmara.
— Estávamos há uma semana a arroz com feijão — recordou Carlos —, e não comíamos carne desde a última novena de frango, que foi há... foi no século passado, velha? De modo que um pouco de exercício lhe calhou bem.
— Quanto custou tudo isto? — quis saber Manolo e Conde respingou:
— Não confesses, José. Agora vamos comer, com os diabos. Nós, os ricos, não nos preocupamos com essas ninharias de centavo a mais ou a menos.
— E quanto tempo te vai durar a riqueza, Conde? — quis saber Candito.
— A este ritmo... — calculou Conde —, comendo em paladares, apanhando táxis, comprando flores, fazendo banquetes para um grupo de cabrões mortos de fome... Depois de amanhã volto à pobreza. Mas valeu a pena ser rico por três dias, não é verdade?
— Claro que sim, porra — corroborou Carlos. — Assim, se calhar, aguentamos com mais firmeza e coragem outros quarenta anos de bloqueio imperialista e caderneta de racionamento...
Quando abriu os olhos, Mário Conde teve a sensação incómoda de que o seu corpo era um saco de batatas atirado de qualquer maneira para cima da cama. A experiência acumulada — aquilo que Coelho, mais filosófico e com memória suficiente para recordar enunciados dos manuais de marxismo, chamava «a praxis como critério da verdade» — tornava a demonstrar-lhe, aleivosamente, que, depois de uma noite de desfaçatez alimentar e excesso alcoólico, aguardava-o um amanhecer cada vez mais tempestuoso.
— E tu, o que fazes aqui? — perguntou, quando tentou procurar a segunda almofada e esta se mexeu. — Quem te convidou a dormir nesta cama?
Por resposta, Basura ergueu uma pata, exigindo uma mão que lhe coçasse a barriga ainda repleta da quantidade de restos obsequiados pelo dono.
Em manhãs como esta Conde sentia, de uma forma avassaladora, que estava a aproximar-se a velocidades ciclónicas da cifra terrível do meio século de residência na Terra. Nessa subida — que na realidade era mais uma das suas descidas, talvez a mais definitiva —, teve de aprender a conviver com o seu organismo, adquirindo consciência das suas válvulas, eixos, dobradiças e tubos de escape, de uma forma nunca apercebida antes dos quarenta e cinco. Na sua época juvenil, depois de uma noite de muitos copos, tinha de suportar quando muito uma dor de cabeça, alguma rebelião do estômago que se solucionava expulsando merda — no seu caso, geralmente, muita merda — e uma dor no filho da puta do joelho devido à pancada que dava sempre na beira afiada da cama, que costumava insultar após cada embate. Mas era tudo passageiro e curável com um duche, duas duralginas(1) e um antidiarreico. Agora não, agora tinha descoberto, por exemplo, que tinha um coração onde, além de sentimentos e cicatrizes de guerra, albergava um mecanismo destinado a fazer correr o sangue e que, em certas madrugadas pós-orgíacas aquela bomba podia acelerar-se até se tornar notória no peito; tinha aprendido que possuía rins e que estes podiam doer na madrugada traiçoeira; e sabia, tristemente, que uma noite de muito álcool exigia todo um dia — desta vez pensou que precisaria de dois — de recuperação física e moral, porque o seu corpo se recusava já a assimilar em poucas horas as doses de um recebidas, vingando-se das formas mais matreiras e variadas...
Mas a noite anterior podia ser gravada com letras douradas nos anais das suas experiências memoráveis, pois nem sequer a notícia trazida por Manolo de que nos arquivos policiais não existia qualquer rasto de alguém chamado ou apelidado Violeta Del Rio foi capaz de nublar a alegria de Conde ao observar as costelas nuas de peru, as garrafas de rum, cerveja, vinho e champanhe alegremente esvaziadas do seu conteúdo, e ao verificar o regozijo patente com que tinha obsequiado os seus amigos, em especial Carlos, o Magricela.
Com duas duralginas no estômago, um cigarro nos lábios uma chávena de café duplo nas mãos, foi até à varanda de casa e lembrou-se de que, ao chegar de madrugada, Basura estava à sua espera, como se soubesse que também participaria do banquete.
— Basura, não te habitues. Quando a festa acabar, voltamos ao mesmo de sempre...
Vendo como o animal bocejava, enquanto com a pata traseira tentava livrar-se de uma pulga particularmente incomodativa, Conde sentiu uma certa inveja do cão que, apesar da sua idade, parecia disposto a recomeçar a vida todas as manhãs. Pensou então que não podia adiar mais a sua decisão de começar a fazer exercício e de reduzir a sua quota diária de cigarros até ao limite de um maço por
*1. Analgésico e antipirético muito utilizado em Cuba. (N. da T.)
dia, mas esqueceu-se imediatamente daquelas metas eternamente proteladas porque calculou que, se fizesse um esforço, ainda podia tentar falar com Katy Barqué antes de comparecer ao encontro combinado com o jornalista Silvano Quintero. Nesse momento teve de reconhecer para consigo próprio que o impulso fundamental capaz de o levar a tamanho sacrifício sobre-humano era uma curiosidade doentia que lhe exigia, com uma veemência desproporcionada, saber mais acerca de Violeta Del Rio, como se disso dependesse a sua vida.
— Eu sempre disse: para cantar boleros é preciso ter duas coisas, mas as duas bem grandes e no sítio: um coração deste tamanho a meio do peito e com muito sentimento e uns ovários descomunais, forrados de aço. A voz é o menos, é o menos... É que eu, além de ter esta voz que Deus me deu e me conserva como se tivesse quinze aninhos, sempre tive mais coração e mais ovários que todas aquelas cantoras juntas, começando por Violeta Del Rio.
Conde examinou o rosto mumificado da cantora. Katy Barqué andava à beira dos oitenta e talvez fosse possível admitir que estava bem conservada para a idade. Mas ao esforço para parecer vinte anos mais nova, que incluía cirurgias com o objectivo de proporcionar uma lisura artificial à cara, acrescentavam-se várias camadas de cremes, pinceladas de cores vivificantes, umas pestanas como leques, uns lábios cheios de silicone e um lenço preso como uma âncora a meio da testa, obstinado em esticar-lhe até ao crânio as rugas mais rebeldes da sua pele vencida.
— O bolero é sentimento, puro sentimento e muito dramatismo. Fala sempre das tragédias da alma e fá-lo com uma linguagem que vai da poesia à realidade. Por isso tanto se pode cantar a um céu tisú(2) como dizer tu tens uma forma um pouco estranha de amar(3), ou gritar deixa-me, já não há calor entre as tuas pernas... O mais importante é dizer tudo isso com alma, torná-lo credível, ou não?... Como eu, que sou uma vedette, faço, e por isso fiz cinema,
*2. Tisú: tecido de seda com fios de ouro e prata. Do bolero La gloria eres tú. (N. da T )
3 «... tú tienes una forma de querer un poco extrana», do bolero Seguiré sin ti. (N. da T.)
teatro musical, zarzuela, inúmeros espectáculos... Está a par disso, esse produtor de cinema?
A dissertação era acompanhada por movimentos de mãos, olhares pretensamente intensos e o apoio melódico às frases retiradas de velhos boleros, como se estivesse no palco mais exigente.
— Os europeus e os Americanos são muito frios, por isso não sabem o que é um bom bolero e ultimamente chupam esses discos cheios de versões feitas por rapazinhos bonitos, umas versões que dão vontade de cagar. De cagar a sério. O bolero é das Caraíbas, I por isso nasceu em Cuba, aclimatou-se no México, em Porto Rico, na Colômbia. É a poesia de amor dos trópicos, um pouco pirosa às vezes, porque somos pirosos, não há nada a fazer, embora sempre dizendo verdades. Oiçam isto que escreveu Arsenio Rodríguez e digam-me o que acham:
Después que uno vive
veinte desenganos
qué importa uno más,
después que conozcas
La acción de la vida
no debes llorar.
Hay que darse cuenta
que todo ès mentira,
que nada ès verdad.
Hay que vivir el momento feliz,
hay que gozar lo que puedas gozar,(4)
(Movimento da cabeça, legitimando a enorme verdade da afirmação de Arsenio. Olhar intenso com que devorava a juventude exultante de Yoyi.)
porque sacando la cuenta en total la vida es un sueño
*4. Depois de vivermos / vinte desenganos / que importa mais um, / depois de conhecermos / a batalha da vida / não devemos chorar. / Temos de saber / que tudo é mentira, / que nada é verdade. / Temos de viver o momento feliz, / temos de gozar o que pudermos ; gozar, (N. da T.)
y todo se va.
La realidad ès nacer y morir,(5)
(Nova afirmação, mais categórica. Novo olhar para Yoyi, mais sugestivo.)
por qué llenarnos de tanta ansiedad, todo no ès más que un eterno sufrir, el mundo está hecho... sin felicidad.(6)
— Bolas, reparem como me arrepio... Isto foi escrito pelo pobre Arsenio, sabem quando? Quando os melhores médicos de Nova Iorque lhe disseram que a sua cegueira não tinha cura e ele soube que ia ficar cego para sempre...
Conde olhou para Yoyi e, como por acordo prévio, ambos assentiram. A veterana conservava mais malícia que voz, mas vê-la cantar, com aquela máscara facial, envolta num quimono cheio de caracteres chineses ou japoneses, tentando parecer comovida pelo que o texto dizia, acabava por ser, visual e auditivamente, patético, mesmo para o bolero memorável de Arsenio.
— Onde é que eu ia...? Naquela época a concorrência era enorme, era preciso ser realmente boa para ganhar algum espaço. Não podíamos imitar ninguém, tínhamos de procurar os melhores compositores, fazer com que aqueles que faziam os arranjos trabalhassem para o nosso estilo, ter, além disso, a sorte de arranjar um bom show e de passar depois para a televisão, que aqui já era a cores quando em Espanha só havia um televisor em Madrid e outro em Barcelona... Eu consegui isso tudo à força de pulmões e de talento, por isso fui a melhor, isso toda a gente sabe. Não leram a última entrevista que saiu na Bohemia?
Nesse instante Conde teve a revelação exacta das razões pelas quais, desde sempre, sentira um repúdio inabalável por Katy Barqué. Não se devia, como julgou até esse momento, à tessitura quase
*5. porque contas feitas, no fim, / a vida é um sonho / e tudo se perde. / A realidade é nascer e morrer, (N. da T.)
masculina da sua voz, aos textos ridiculamente agressivos, por vezes ordinários, que muitas vezes ela própria compunha no seu papel de mulher-suficiente-capaz-de-desprezar-os-homens, nem sequer às versões oportunistas de hinos revolucionários e às loas políticas que tinha incluído em diversas etapas da sua carreira, ou às máscaras fáceis com que subia ao palco — e não apenas ao palco, como verificava agora. Na realidade, o seu repúdio era mais visceral e devia-se à ausência patente, por parte da cantora, do sentido do limite histórico e à sua obstinação em aferrar-se, contra ventos, marés, lógica, tempo e sentido do grotesco, a uma proeminência que já não tinha cabimento e que, de há vinte anos a esta parte, a tinha transformado numa caricatura cantante de si mesma, numa espécie de espectáculo circense. Katy Barqué, tal como outras pessoas que Conde conhecia, nunca desceria do cavalo, seria necessário tirá-la da montada ou resignar-se a vê-la morrer, calamitosamente, com as rédeas na mão, sem deixar herdeiros e desempenhando o pior dos papéis no teatro da vida: o do ridículo.
— De repente apareceu essa Violeta, disposta a tirar o que era meu. Tinha juventude, tinha corpo, creio que até tinha coração, mas faltavam-lhe ovários... e um professor que lhe ensinasse a cantar. Coitada, às vezes parecia que se ia afogar... Mas essa matreira era uma sabida! Pescou um amante, ele estava louco por ela e deu-lhe um empurrão suficiente para a pôr nas nuvens. Imaginem, um improviso como ela armada em estrela no segundo show do Parisién, quando por esse cabaré passavam aqueles que decidiam quem prestava e quem não prestava em Havana, em Cuba...
Desde que chegaram ao bem iluminado penthouse daquela torre da calle Línea, Conde e Pombo receberam o impacto visual de terem penetrado numa espécie de museu do kitsch do bolero. Um retrato a óleo, obviamente amador, de uma Katy Barqué nos seus dias de plenitude física, ocupava a parede mais cobiçada de uma sala atulhada de porcelanas, cerâmicas e cristais — o cumule do mau gosto era uma flor de metal, em vias de oxidação, com uma chapinha que dizia: Prémio da Popularidade, recebido como reconhecimento pelos seus mais de cinquenta anos de carreira.
— Além disso, era fresca. Uma descarada, acima de tudo. Uma vez soube que andava a dizer coisas a meu respeito e pu-la no seu lugar: agarrei-a e até lhe disse de que mal ia morrer. Porque está certo uma pessoa defender-se como pode, mas empoleirar-se na cabeça dos outros para sobressair? Não, isso não. Aqui havia boas cantoras, Célia Cruz, Olguita Guillot, Elena Burke, uma série delas, mas cada uma fazia o seu caminho e ninguém se metia no terreno das outras. Era como uma lei não escrita. Mas essa fedelha não havia maneira de perceber e lixava-nos a todas. Sabe o que significa passar metade da noite a cantar gratuitamente num clube? Isso, desculpem-me a expressão, é uma sacanice e dava cabo do negócio. .. Não é verdade?
Yoyi, o Pombo, concordou. A sua ética mercantil coincidia com a opinião de Barqué. Mas Conde pensou um pouco nas reflexões da vedette e lembrou-se de que nalgumas entrevistas que ouvira nunca a mulher mencionou nenhuma das grandes cantoras de boleros, aquelas realmente grandes, aquelas que podiam tornar evidente que a ascensão da Barqué tinha muito a ver com autopromoção e oportunismo de todo o tipo, incluindo sexual e político.
— Nunca soube quem era o homem que estava por detrás dela. Falou-se muito disso em Havana, mas o tipo não dava a cara. Devia ser um ricaço cheio de preconceitos que não se queria mostrar com uma cantora de cabarés que, a propósito, mesmo com cabelo bonito e tudo, a mim ninguém me lixa, tinha também a sua pinta de negra.
A ausência de um nome revelador, no entanto, corroborou a teoria de Conde de que o amante misterioso não podia ser outro senão Alcides Montes de Oca. E, com a convicção, chegou-lhe também a suspeita de que alguma razão oculta motivava o escamotear de uma identidade que, tinha a certeza, Katy Barqué devia conhecer, envolvida como esteve numa guerra particular com Violeta Del Rio.
— Depois dessa discussão não tornei a vê-la, felizmente... Passados uns cinco ou seis meses, não sei, ela anunciou que deixava de cantar e desapareceu do meio. E eu, feliz como um passarinho: uma a menos, outra que não resistia ao rigor da concorrência, às noites sem dormir, à luta para conseguir bons contratos para espectáculos e gravações. Se ia casar-se com o ricaço podia esquecer-se de tudo isso e aproveitar a sorte, ao contrário de mim, que sempre fui uma artista, entregue dia e noite à minha arte. Ela não passou de uma atiradiça com sorte... Mais tarde, já quase nem me lembrava da sua existência, soube que se tinha suicidado. Assim mesmo: ela própria se matou... a propósito, onde diabo ouviram falar dela?
A notícia de um suicídio, caída sem aviso prévio, provocou um assombro evidente em Yoyi e agitou a estrutura física e espiritual de Conde. A certeza de que Violeta Del Rio era apenas um recorte de jornal e uma voz ouvida toscamente graças a um velho disco de 45 rotações matava de uma vez as expectativas de Mário Conde, alimentadas durante os dois dias em que sonhou com a possibilidade de encontrar a misteriosa e sedutora mulher de cuja imagem e forma de cantar se enchera com avidez de adolescente. Uma onda de frustração suplantou o homem que, de chofre, se sentiu como que perdido nos trágicos versos finais de um bolero, dispostos a decapitar as ilusões criadas ao longo de uma ardente canção de amor.
— Onde raio vive esse velho, pá? — quis saber Yoyi quando Conde, decepcionado e atordoado, lhe disse que saísse da calle Zanja e entrasse por Rayo, à procura da casa de Silvano Quintero.
Apesar de alguns retoques recentes, o velho Bairro Chinês de Havana continuava a ser o lugar sórdido e opressivo onde se apinharam durante décadas os asiáticos que chegavam à ilha com a esperança vã de uma vida melhor e até o sonho, rapidamente desfeito, de acumular riquezas. Embora nos últimos anos as antigas e cada vez mais obsoletas sociedades chinesas tivessem adiado a sua previsível morte natural, transformando-se em restaurantes — de pratos gordurosos e a preços cada vez menos módicos — que deram vida e movimento ao bairro, a geografia da zona continuava a exibir quase descaradamente uma deterioração furiosa e ao que parece imparável, que emergia dos buracos da rua, a transbordar de águas fétidas, e subia pelos caixotes de lixo repletos de desperdícios até atingir a verticalidade das paredes, muitas vezes corroendo-as e derrubando-as. Aquelas velhas construções do início do século XX, muitas delas transformadas em cortiços onde se amontoavam várias famílias, tinham esquecido há muitos anos o possível encanto que alguma vez puderam ter tido e, na sua decadência irreversível, ofereciam uma visão de pobreza maciça. Negros, brancos, chineses e mestiços de todos os sangues e crenças conviviam ali com uma miséria que não distinguia tonalidades epidérmicas e procedências geográficas, igualando-os a todos, empurrando-os para uma luta pela sobrevivência que os tornava agressivos e cínicos, como seres já alheios a qualquer esperança.
— Continua por ali mais dois quarteirões — explicou-lhe Conde e calculou que para Pombo não devia ser agradável passear o seu cintilante Bei Air com pneus de banda branca entre as crateras da rua e os olhares cortantes que os perseguiam.
— Outro dia disseram na televisão que o pior da crise já tinha passado... — Yoyi falava, examinando com a vista os buracos da rua. — Quem disse isso nunca passou por aqui. Isto está cada vez pior...
— Sempre foi um bairro lixado — recordou Conde.
— Mas nunca como agora. Com a confusão dos restaurantes e dos turistas corruptos que aparecem por aqui isto ficou ao rubro. Para piorar as coisas, agora também se trafica droga. E não é propriamente ópio... Diz-me, o que faço?
— Continua, é na outra esquina... Yoyi, tu já experimentaste drogas?
— E isso vem a propósito de quê, pá? — Volveu o outro, com alguma desconfiança.
— Lembra-te de que já não sou polícia. Nada, para saber...
— Uma ou outra pastilha com rum, uns cigarrinhos de mari-juana numa festa. Mas não passo disso, juro-te. Olha para este corpanzil, tenho de tratá-lo bem...
— E o que pensas se te disser que nunca experimentei nenhuma droga dessas?
— Penso o mesmo de sempre, pá. Tu e os teus amigos são marcianos. A vocês meteram-vos de cabeça numa proveta... E o que saiu? O homem novo de que me falaste noutro dia? O que acontece é que encheram a proveta de álcool e vocês chuparam-no imediatamente...
— Por que razão há tanta gente agarrada? É assim tão fácil arranjar droga?
— Nem penses. Aqui não há dinheiro e onde não há dinheiro não há tráfico. Dez, vinte turistas, vamos supor cem, dispostos a comprar um pouco de droga? Mais cem fedelhos com dólares suficientes para comprar uma dose? Isso não dá para montar um negócio...
— E vão buscá-la onde? Porque droga há...
— São pacotes que aparecem a flutuar no mar e que alguém se dedica a pescar. Aí começa o negócio: quem os tira do mar não investe nada e vende barato àquele que o coloca em Havana. É lucro desde o início, não há grandes investimentos, por isso o negócio cresce. Mas depois da limpeza que a polícia fez tornou-se mais difícil, embora haja sempre algum louco que arrisca e vende o que aparece. O pior é que agora está mais cara e mais adulterada, os vendedores ganham mais e os viciados metem-se em problemas maiores para arranjar o dinheiro...
— Quando nós tínhamos, não sei, quinze, vinte anos, nunca tínhamos visto um cigarro de marijuana nem de longe. Tive de me tornar polícia para saber a que cheirava... E agora, olha...
O rapaz sorriu.
— Acredito...
— Pára, é aqui.
— Conde, se já sabes que a mulher se suicidou há uma batelada de anos... o que queres averiguar agora?
— Não sei — tornou a admitir. — O que me falta saber, não
achas?
Yoyi encostou o carro à frente do prédio. Era uma daquelas construções típicas do bairro, com o aspecto deteriorado que Conde esperava. No prédio contíguo, já em derrocada, um enxame de pessoas dedicava-se a gamar mosaicos centenários, a resgatar barras de aço oxidadas e azulejos pré-históricos, dispostos a reciclá-los com o objectivo de remendar as suas próprias casas, enquanto outros esgaravatavam entre os escombros procurando alguma coisa inesperada que certamente nunca encontrariam. Na rua, várias pessoas, como que condenadas a trabalhos forçados, arrastavam depósitos de cinquenta e cinco galões cheios de água, colocados sobre engenhocas rolantes construídas com velhos rolamentos, e os dois únicos verdadeiros chineses que Conde conseguiu ver — tão velhos que podiam ser milenários — ofereciam, sentados nos degraus de uma entrada, as latinhas de pomada chinesa que Conde tanto consumia para as suas dores de cabeça. Através de algumas janelas abertas para a rua, pequenos balcões anunciavam pizzas de queijos apócrifos, doces de farinha roubada nalguma padaria, café misturado até com unhas de gato e croquetes de vísceras desprezíveis. Em cada esquina conversavam vários homens, como se fossem proprietários do tempo. Conde calculou que naqueles cem metros de rua devia haver mais de sessenta pessoas inventando uma qualquer maneira de ganhar a vida ou de a ver passar da forma menos traumática possível. A sensação de degradação que pairava no ar alarmou o espírito do antigo polícia, que sentiu na pele um estremecimento muito semelhante ao medo: aquele ambiente era definitivamente explosivo, alheio à cidade efusiva onde ele tinha vivido tantos anos. Demasiadas pessoas sem nada que fazer ou perder. Demasiadas pessoas sem sonhos nem esperanças. Demasiado lume sob uma panela tapada, que mais cedo ou mais tarde explodiria devido à pressão acumulada.
Enquanto Pombo combinava com dois negros de aspecto carcerário o preço por tomarem conta do carro, Conde atravessou a rua, evitando um charco onde flutuava uma ratazana inchada, e comprou aos chineses quatro latinhas de pomada, a dez pesos cada uma. Daí observou o ambiente que o circundava e que lhe fez lembrar certas imagens de cidades africanas vistas na televisão. É o regresso às origens, pensou, preparando-se para surpresas maiores.
Conde e Yoyi entraram no prédio e subiram as escadas. Um cheiro a humidade concentrada e a urina fermentada envolveu-os e, apesar da sua fraqueza, Conde não se atreveu a tocar no corrimão nojento, embora também se tenha afastado da parede, onde flutuavam dezenas de fios eléctricos desfiados, em risco constante de provocar um curto-circuito. No primeiro andar, a escada conduziu-os a um corredor estreito para onde davam várias portas, quase todas abertas. Conde debruçou-se no varandim metálico e observou o pátio interior, onde várias pessoas dividiam o espaço em volta de uma mesa de dominó, imunes, ao que parece, à fetidez do ambiente, multiplicada pela contribuição de um chiqueiro onde dormiam dois porcos e de um galinheiro onde várias galinhas famélicas debicavam o chão. Perto dos homens, nos ângulos da mesa, Conde viu garrafas de cerveja e pratos com restos de comida.
— Pelos vistos aqui ninguém trabalha — disse Conde, quase para consigo.
— Toda a gente vive de biscates — recordou-lhe Yoyi. — Estes estão a jogar dominó a dinheiro, claro. Mas há um que aluga o espaço; outro vende cervejas; outro faz alguma coisa para comer; outro ainda vende cigarros; outro cria cães de luta; outro faz do quarto casa de passe; outro vigia a polícia...
— E como é que entrámos aqui e eles nem se mexeram?
— Os negros que me ficaram a tomar conta do carro, pá... esses são os Cérberos e deram-nos o salvo-conduto... Aqui o dinheiro move-se entre eles e desta forma vão escapando. À noite alguns deles mudam de ofício e dedicam-se a roubar casas, a propor putas aos turistas e, claro, a vender a droga que tu sabes...
— Que raio é isto? O inferno?
— Sim... mas o lá de cima. O primeiro círculo, por assim dizer. Porque se pode descer mais... juro-te. Há muito tempo que não vais ao Prado à noite? Dá uma volta por lá e vais ver o que é confusão a sério, ali, exibindo-se na maior... Agora os teus antigos colegas andam com pastores-alemães.
Conde, sem olhar para o interior dos quartos diante dos quais passava, chegou à porta com o número sete, fechada, por incrível que pareça, e bateu.
Silvano Quintero acabou por ser muito menos velho do que Conde esperava. Andava pelos setenta anos e a sua magreza extrema — talvez genética — podia favorecê-lo, mas o tom violáceo da pele denunciava-o como militante do clube dos alcoólicos empedernidos. Silvano precisava de barbear-se, de um corte de cabelo, pedia mesmo aos gritos um bom banho. Quando os convidou a entrar, Conde reparou na mão direita do homem: era como uma garra semicerrada, rígida, com um afundamento visível na pele lisa da parte superior. O quartinho revelou aos recém-chegados o mesmo estado lamentável exibido pelo seu inquilino. Através do umbral sem porta da pequena casa de banho saía uma fetidez concentrada e o apartamento dava sinais de não ter sido limpo desde alguma data longínqua do século anterior. Com o seu olhar treinado Conde descobriu, sob a mesa de madeira coberta de zinco onde estava pousado um fogareiro de querosene, um exército de garrafas vazias, bebidas certamente em honra do fígado endurecido daquele homem.
Silvano ofereceu-lhes as duas cadeiras desconjuntadas e ele instalou-se na borda da cama onde estava estendido um lençol de um cinzento de aço. Sem poder evitá-lo, Conde pensou em si próprio e na sua inclinação pela bebida e alarmou-se ao compreender que talvez estivesse diante de um filme de antecipação científica, dotado da intenção perversa de mostrar-lhe o seu próprio futuro. — E então? — perguntou Silvano.
Conde tirou o seu maço de cigarros e estendeu um ao homem, que o aceitou com a mão esquerda. Colocou-o entre dois dedos da mão direita, contraída como se fosse um cinzeiro, dedicando a outra à procura, no bolso da camisa, de uma boquilha onde encaixou o cigarro, efectuando toda esta manipulação com a mão esquerda.
— Ontem expliquei-lhe... o meu amigo e eu dedicamo-nos a comprar e vender livros e discos antigos...
— E isso dá para viver? — admirou-se Silvano, fumando da sua boquilha com certo estilo, ligeiro e démodé.
— Às vezes sim, às vezes não... Numa compra, encontrámos um disco de uma tal Violeta Del Rio e alguém nos disse que você com certeza a conhecera.
— Quem disse isso? — perguntou o homem, fungando com o mesmo estilo refinado que utilizava para fumar.
— Rogelito, o tocador de timbales.
— Esse ainda está vivo? — perguntou, quase sem entoação.
— Vai fazer cem anos — garantiu Conde. — Conforme diz, não sabe como morrer.
Silvano fumou um pouco mais, como se reflectisse nas suas possibilidades, que Conde imediatamente reduziu a duas: falar ou calar-se. A partir daí a história podia complicar-se. Conde tirou do sobrescrito a página da Vanidades dedicada ao adeus de Violeta Del Rio. O velho jornalista agarrou-a com a mão esquerda e apoiou a folha na direita entorpecida.
— Estou feito ao bife — murmurou, dobrou a folha e devolveu-a a Conde, que já se interrogava sobre a origem da exclamação. — Por que razão a procuram? Não sabem que morreu em 1960?
Conde fez um gesto afirmativo.
— Queremos saber mais acerca dela. Por curiosidade.
— A curiosidade matou o gato — sentenciou o outro. — É uma longa história. E não gosto de a contar...
— É que ninguém sabe nada acerca de Violeta, nem sequer que se suicidou e... — Conde pôs uma dose dupla de súplica na voz.
— Porque diz que se suicidou? Que eu saiba, isso nunca ficou esclarecido...
Conde semicerrou os olhos, tentando assimilar as palavras do velho.
— O que quer dizer?
— Pelo que sei, não ficou claro se se suicidou ou se a suicidaram. Conde tratou de acomodar o traseiro antes de continuar.
— Está a dizer-me que podem tê-la matado?
— Acho que falo em espanhol.
— E como sabe disso?
— Foi o que ouvi. Houve dúvidas, a sua morte nunca foi esclarecida... Mas vamos lá ver — Silvano mudou de tom de voz —, o que ganho eu em contar-lhes alguma coisa?
Conde pensou que não tinha percebido a pergunta, mas teve a certeza de ter ouvido bem quando Yoyi, como uma flecha, pôs um preço à conversa.
— Uma garrafa e dois maços de cigarros. Dê-me essa bolsinha... O assombro de Conde não tinha limites. Devia ser a primeira
vez na sua vida que alguém lhe cobrava por uma conversa e era Pombo quem lhe resolvia a questão, apontando para uma bolsa de palha amarrada com uma corda, com certeza utilizada por Silvano para fazer subir e descer encomendas do pátio central.
— Está bem — aceitou o homem e entregou a bolsa a Yoyi, depois de ter posto lá dentro uma garrafa vazia.
— Quanto é, velho? — quis saber Yoyi.
— A vinte e cinco o litro e os maços de cigarros a oito pesos... O jovem saiu e Conde olhou para Silvano, que desviou o olhar para a sua mão direita mutilada. O homem soprou o cigarro, expulsando-o da boquilha, e Conde corroborou a sua convicção de que cada vez percebia menos, porque os códigos e linguagens em uso lhe eram desconhecidos. E pensou novamente que Yoyi tinha razão: parecia um cabrão de um marciano saído de uma proveta.
Aos vinte e cinco anos eu tinha tudo: inteligência, uma família bem colocada, embora não fôssemos ricos, um trabalho num dos melhores jornais deste país, brio para subir, nenhum vício lamentável... Por isso creio que podia ter tido outra vida, e ainda penso que a teria tido se Violeta não se tivesse cruzado no meu caminho. Ou eu no caminho de Violeta... Quando a conheci, ela também tinha alguma coisa de seu: aquele corpo que parecia feito à mão, aquela cara que lhe dava um enorme poder sobre os homens, aquela voz um pouco rouca, que convencia desde a primeira vez, e esporas suficientes para lutar em qualquer vala para onde a vida a atirasse. Lembro-me da primeira vez que a vi, no cabaré Las Vegas, numa daquelas noites loucas de Havana de finais dos anos cinquenta, depois do assalto ao Palácio, quando Batista viu que as coisas eram a sério, a polícia se tornou sanguinária e passou a ser verdadeiramente perigoso andar por aí. Mas eu era um boémio, um irresponsável, saía e deitava-me tarde, como se meter-me na cama fosse um pecado. Uma pessoa punha-se a vadiar, bebendo um copo aqui, outro ali, com a rede preparada, não fosse cair um bom peixe que justificasse as horas de copos, cigarros e vadiagem.
Vi-a e ouvi-a pela primeira vez numa dessas noites em que nos obstinamos em não ir dormir, assim, por gosto, e que de repente se transformou numa noite mágica, porque desde que ouvi aquela voz na escuridão do cabaré fiquei como que apalermado, convencido passados dois minutos de que ouvi-la cantar era uma experiência e, o que é mais lixado, sabendo imediatamente que era uma experiência doentia, porque aquela voz se nos metia por baixo da pele e nos provocava um arrepio de febre como se alguma coisa no nosso íntimo se tivesse agitado. Claro, nessa noite ela cantou várias coisas, mas o que me tocou a sério foi Vete de mi, esse era o seu hino de combate e cantava-o sempre como se a sua vida dependesse disso... Mas a doença complicou-se alguns dias mais tarde, quando comecei a dar-me conta de uma coisa: o que me entrara naquela noite recusava-se a sair. Quase sem me aperceber comecei a seguir-lhe o rasto, a tentar tornar-me seu amigo para ver se podia passar a outras coisas, porque a voz dela se me incrustara na cabeça, e também a cara, o cabelo, o corpo daquela estuporada mulher... Eu não era um miúdo, tinha vinte e cinco anos, tinha percorrido muito caminho, sobretudo desde que escrevia para a secção de espectáculos do El Mundo, e como todas aquelas cantoras, dançarinas, coristas queriam ver-se em letra de imprensa, publicando qualquer coisinha a uma, ou limitando-me a prometer o mesmo à maior parte delas, comi algumas das mulheres mais saborosas de Havana, quando as mulheres eram saborosas a sério, com bons rabos e muito peito... Já repararam que as mulheres agora nem mamas têm e até ficam contentes por passar fome porque assim o rabo não lhes engorda?... Pois comi muitíssimas, sobretudo cantoras, eram a minha fraqueza. Katy Barqué, por exemplo... que acabou por ser mais cobertura que recheio, para dizer a verdade. Foi assim que comecei a deitar milho a Violeta, mas não de uma forma ordinária, dei-me conta imediatamente de que ela não era dessas desesperadas por sair nos jornais, por isso ataquei com cuidado, com elegância, ou pelo menos isso julgava eu, enquanto a seguia por Havana inteira, duas ou três noites por semana, convidando-a para uma bebida, pedindo-lhe uma canção... E quando consegui reagir, já estava apaixonado como um louco, ou melhor, como um imbecil, que é a única maneira de nos apaixonarmos.
No início de 1958 ela deixou de cantar em cabarés de segunda. Foi quando a contrataram para o Parisién, e eu escrevi acerca do seu espectáculo, baptizando-a com aquele epíteto de Dama da Noite, que colou, pois o que Violeta cantava só tinha sentido se fosse ouvido à noite, quanto mais tarde, melhor. Tinha escrito duas ou três vezes acerca dela, coisas pequenas, mas decidi lançar uma ofensiva e fiz uma reportagem de meia página que me custou o ódio de muitas cantoras, anunciando a sua actuação no segundo show do Parisién. Nesse tempo já tínhamos confiança, tornáramo-nos mais ou menos amigos, muitas noites ficávamos sozinhos no balcão, bebendo um copo, mas Violeta nunca me deu hipóteses e isso foi o pior, porque eu fiquei obcecado, fiquei cada vez com mais vontade de me rebolar com ela e cheguei a pensar ter alguma relação séria se ela mo permitisse, embora Violeta fosse uma rapariga, bom, uma mulher com muitos alçapões e passagens secretas, e eu nunca tivesse chegado a saber com certeza quem era nem como era... Ela sabia guardar as suas coisas. O seu nome, por exemplo. Uma vez confessou-me que o seu verdadeiro nome era Catalina, em casa chamavam-na Lina, mas não me disse o apelido, e a única razão que encontrava para explicar a mim próprio aquele mistério era que a história de que tinha chegado do campo era treta e a verdade era que talvez tivesse um apelido demasiado sonante em Cuba e por isso quisesse escondê-lo. Porque ser de uma família bem e cantar em cabarés dirigidos por mafiosos eram coisas que não ligavam. Mas acabei por me convencer de que ela cantava por ser o que mais gostava de fazer no mundo e não por pretender ser uma simples profissional. Talvez por isso não me desse muito troco nem me pedisse para aparecer no jornal, como as outras cantoras. Era como se tudo isso fosse supérfluo se tivesse um bocadinho de estrado onde cantar e umas quantas pessoas dispostas a ouvi-la... Pois, era bem estranha a Violeta... O que não me entrava na cabeça era que aquela mulher, misturada com os passarões nocturnos de Havana, não tivesse uma vida alegre como as outras, não se lhe conhecesse nenhum namorado, nenhum amante, embora já se começasse a falar de um homem rico que andava com ela ou atrás dela. Mas esse mistério era parte do seu encanto, do seu poder de sedução... Eu, no meu desespero, para me consolar, cheguei a pensar se o problema de Violeta não seria gostar de mulheres — Katy Barqué dizia-o, com aquela língua viperina que teve sempre — e por isso não me ligava a mim nem à horda de tipos que tinha atrás dela convidando-a todas as noites. E como ela era muito amiga de mulheres estranhas, meteu-se-me essa ideia na cabeça. Uma dessas amigas, aquela de quem parecia ser mais chegada, era Flor de Lótus, a loura que se tornou famosa dançando em pêlo no teatro Shanghai e depois montou a sua casa de putas... Flor de Lótus aparecia a toda a hora no cabaré onde Violeta estivesse a cantar, e via-se que adorava ouvi-la e que as duas gostavam de falar das suas coisas, porque se sentavam muitas vezes, no fim do espectáculo, e conversavam muito tempo, bebendo um copo — Violeta pedia sempre high-ball de Bacardi com ginger ale —, sem permitirem que outras pessoas participassem nas suas conversas, como se tivessem um segredo... embora nunca tenha visto nada que me confirmasse que entre elas houvesse alguma ligação sexual. E tudo isso foi tornando Violeta mais enigmática e mais apetecível.
Mas um verdadeiro jornalista é como um cão de caça, e vocês sabem o que faz um cão quando anda atrás de uma cadela no cio. Pois foi o que eu fiz. Comecei a colar-me, a segui-la mesmo de dia, até encontrar uma razão para tanto mistério. Violeta vivia num apartamento na esquina da calle Tercera com a 26, numa das melhores zonas de Miramar. Em comparação com os palácios da Quinta Avenida era um lugar modesto, mas a verdade é que não era nada mau e ela tinha um carrinho inglês muito chique, um daqueles Morris que pareciam um pote, mas virado ao contrário. Eu comecei por averiguar em nome de quem estava o carro e o apartamento, avançando sempre com algumas notas e o meu cartão do El Mundo, e apareceu-me como dono legal um tal Louis Mallet, com residência em Nova Orleães. Primeiro pensei se o tal Mallet não seria o pai ou o amante, quem sabe se até o marido de Violeta, e isso explicaria ter posto a casa e o carro em seu nome. Como vivia em Nova Orleães, com certeza viria a Cuba de vez em quando se fosse o amante ou o marido, ou teria ido e nunca mais vindo se fosse o pai... Mas eu achava estranho que uma pessoa do meio de Violeta tivesse um amante, ou um marido, capaz de a pôr com casa e carro, e que ela lhe fosse tão fiel. Por isso a suspeita de que ela gostava de mulheres continuava de pé, sobretudo quando vi que em duas ou três noites, depois de estar um bocado à conversa com Flor de Lótus, foram juntas para o apartamento de Miramar e aí dormiram. Além disso, quando comecei a vigiá-la também durante o dia, vi chegar e entrar em casa de Violeta — soube-o porque numa dessas vezes ela foi até à varanda — uma mulher de uns quarenta anos, ainda com bom aspecto, que passava horas ali, sabe Deus a fazer o quê, porque não parecia ser criada ou cozinheira... Mantive essa perseguição durante várias semanas até que um dia compreendi que me tinham estado a passar erva por baixo do nariz e, como eu fechava os olhos para espirrar, não via o que devia ver. Havia um homem que parecia viver num dos apartamentos, mas que poucas vezes estava lá. O homem tinha uns cinquenta anos, vestia sempre roupa elegante, conduzia um Chrysler novo do modelo mais caro e, embora passasse por casa apenas dez minutos, estacionava sempre o Chrysler na garagem do prédio. Achei sempre muito estranho o tipo passar dois ou três dias sem aparecer por ali, mas não me cheirou a nada até que um dia vi Violeta a tirar um vaso com uma planta da varanda do apartamento do homem elegante que conduzia o Chrysler. E percebi que ele devia ser o amante de Violeta que, por alguma razão, tomava as suas precauções e fingia viver no mesmo prédio, no apartamento justamente por baixo do de Violeta. Averiguar o nome deste senhor foi mais fácil e comecei a descobrir explicações para muitas coisas: Alcides Montes de Oca tinha negócios bem grandes em Cuba, pertencia a uma família antiga, gente da sociedade, do mais bem possível, como se dizia, neto do general Serafín Montes de Oca, filho do senador Tomás Montes de Oca. Como se não bastasse, fora casado com uma Méndez-Figueredo, que era o mesmo que dizer com um monte de dinheiro. Então julguei saber finalmente qual o mistério de Violeta e antes tivesse seguido o meu primeiro impulso de sair dali e de me esquecer daquela história sabendo o que já sabia e convencido de que aquele jogo das Grandes Ligas não era para um amador como eu.
Mas quando as coisas têm de acontecer, acontecem. Uns três dias depois desta descoberta, já estava de novo a vigiar a casa de Violeta, como um imbecil, e vi Alcides Montes de Oca chegar no seu Chrysler, mas desta vez conduzido por um motorista, um negro enorme, com ar de pugilista. Passados cerca de dez minutos quem apareceu foi Flor de Lótus com um senhor de uns cinquenta anos e, passado um bocado, chegou outro homem, também num carro com motorista, e a este, sim, reconheci-o. Embora muita gente em Havana não conseguisse identificá-lo, porque nunca se deixava fotografar e quase não saía nos jornais, eu sabia que aquele tipo era Meyer Lansky, o sócio de Lucky Luciano, que se tornara dono do jogo e do negócio das putas em Havana e tinha metido muito dinheiro na construção de hotéis novos com o consentimento de Batista que, evidentemente, ficava com uma boa fatia daqueles investimentos. Para qualquer um, mais ainda para um jornalista, aquela associação de uma cantora de cabaré, um cubano rico e respeitável, uma dona de uma casa de putas e um judeu mafioso armado em homem de negócios era uma mistura estranha de mais, e eu fiquei com água na boca tentando averiguar o que se estava a cozinhar ali, pois havia uma embrulhada demasiado grande para ser só coisa de sexo, por mais complicada que pudesse ser. Violeta com Flor de Lótus? Violeta e Flor de Lótus com Lansky? Todos juntos? O que quer que se quisesse imaginar era, de qualquer forma, coisa entre homens e mulheres acerca da qual ninguém se ia interessar muito, além de que nenhum jornal publicaria uma história desse tipo, pois o poder de Lansky e de Montes de Oca juntos era um poder enorme. O meu segundo erro foi achar que talvez Violeta fosse uma vítima em todo aquele negócio estranho, se calhar até podia ser verdade que era uma pobre rapariguinha do campo, envolvida numa história turva devido à sua vontade de cantar. Nessa noite voltei para minha casa, dormi algumas horas e de manhã meti no carro algumas coisas para aguentar uma vigilância de vários dias. As nove da manhã estava diante do prédio da esquina da Tercera com a 26, com os olhos postos nos apartamentos do segundo e do terceiro andar. Mesmo agora não sei que raios pensava conseguir com toda aquela perseguição, se o fazia por estar apaixonado por Violeta, por curiosidade, ou se era apenas por despeito por o rico e o mafioso terem o que eu não podia atingir. Violeta regressou sozinha nessa noite, às duas da manhã, guardou o carro e foi-se deitar. No dia seguinte saiu por volta das seis da tarde e voltou novamente às duas, também sozinha. O mesmo se passou durante os dois dias seguintes. Há já quatro dias que estava no carro, urinando e cagando quando podia, comendo as porcarias que tinha levado, dormindo aos bochechos, quando decidi que estava apenas a perder tempo e que o melhor era ir-me embora e esquecer-me do que tinha visto. Mas como na altura não raciocinava muito bem, cometi a maior estupidez da minha vida. Saí do carro, dirigi-me para as garagens do prédio disposto a urinar ali mesmo como acto final de vingança, e nesse momento ouvi a voz de Violeta. Estava a cantar a sua canção Vete de mi... Têm de acreditar em mim: foi uma coisa que me dominou sem que eu pudesse impedi-lo e que me levou a entrar no prédio, a subir as escadas até ao terceiro andar e a começar a ponta-pear a porta através da qual continuava a sair aquela voz do inferno, como que decidida a enlouquecer-me...
Quando recuperei os sentidos estava dentro do meu carro, fedia a urina, a merda e sentia uma dor insuportável em todo o braço direito. Fiz Um esforço e consegui levantar a mão. Ao vê-la, compreendi a causa da dor: o buraco na palma era tão grande que podia ver através dele e não sei se pela impressão se pela dor, voltei a desmaiar. Estive ali não sei quanto tempo. Era um descampado, sem vestígios de gente até onde a vista alcançava. Conforme pude, ajudando-me com os dentes, amarrei um lenço na mão e arranquei no carro. Dei milhares de voltas até encontrar um homem a cavalo que me disse como sair dali. Finalmente encontrei uma estradinha, num sítio entre Bauta e San António. Com muito esforço consegui conduzir mais um bocado até chegar à auto-estrada, onde saí do carro, para que alguém me trouxesse até Havana, pois sentia-me a desfalecer.
No hospital foi um alvoroço tremendo, pensavam que eu era um revolucionário a quem explodira uma bomba na mão. Nem queriam atender-me, mas gritei que era jornalista e que me tinham assaltado, não sabia quem, até que, finalmente, me levaram para a sala de operações. Quando acordei estava no quarto um tenente da polícia que me fez milhares de perguntas. Eu repeti-lhe a história do assalto, sem dar mais pormenores, e embora ele não parecesse muito convencido, acabou por me deixar em paz. O médico que me tinha operado veio ver-me e explicou-me que o mais estranho era terem dado dois tiros na mão, não um mas dois, com um revólver de grande calibre, possivelmente um 45, por isso a ferida era tão grande. Eles tinham feito o possível, mas entre ossos e tendões destruídos não podiam fazer mais e com certeza perderia a mobilidade da mão. Os polícias interrogaram-me outra vez, se calhar dispostos a procurar quem me tinha assaltado. Eu contei-lhes quase toda a verdade, pois disse-lhes que me tinham dado uma pancada na cabeça e que só tinha recuperado os sentidos quando estava no descampado com a mão rebentada... Com um aviso como aquele, quem se atreveria a dizer outra coisa?
Quando saí do hospital, despedi-me do jornal. Eu era outra pessoa, tinha medo até de sair à rua, não queria meter-me em nada que pudesse levar-me até Violeta Del Rio e ainda menos que me tornasse suspeito para a polícia, que continuava sem acreditar em mim, e naquela época a polícia não se punha com demasiadas considerações, deixavam uma pessoa em qualquer esquina com a boca cheia de formigas. Tranquei-me em casa e a verdade é que não voltei a saber de Violeta até ter lido esse artigo onde ela anunciava a sua decisão de deixar de cantar, precisamente depois de ter gravado o seu primeiro disco... Não pude evitar ir a uma loja de música e comprar o single. Quando o ouvi comecei a chorar, por mim e por ela, pela minha mão aleijada e pela sua voz perdida, pela vida que podíamos ter tido e que, por culpa minha, ou por culpa da voz de Violeta, morrera devido a dois disparos que alguém tinha ordenado que me dessem na mão direita...
Não voltei a saber dela até, pouco tempo depois, tomar conhecimento da sua morte. Constou que se tinha suicidado com cianeto, embora um jornalista me tenha contado que a polícia tinha muitas dúvidas e que estavam ainda a investigar. Mas a verdade é que Violeta estava morta. O resto que importância tinha? O pouco que restava do meu mundo veio abaixo porque, com aquela notícia, tive a Sensação de que nas minhas mãos, nestas mãos, pode ter estado a Salvação daquela rapariga... Porque eu soube desde o princípio que o suicídio era uma patranha. As coisas eram claríssimas: se a mim me tinham arrancado meia mão só por ter batido a uma porta, o que lhe poderiam ter feito a ela por saber o que certamente sabia?
1 de Dezembro
Meu querido:
Hoje começa o último mês deste ano maldito e eu, iludida, liberto a minha mente e ponho-me a sonhar que dentro de trinta e um dias amanhecerá um novo ano capaz de trazer-nos uma vida verdadeiramente nova e melhor, a vida que tivemos de adiar por tanto tempo: de amor, paz, tranquilidade familiar, esquecidos de tudo o que nos rodeia. Acaso não a merecemos? Não a mereço?
Se alguém conhece a minha vida, essa pessoa és tu. Bem o sabes, atirei tudo para a fogueira do esquecimento e da negação para me aproximar de ti, para te pertencer: fechei os olhos e ouvidos a outros amores possíveis; renunciei à convivência com os meus pobres e simplicíssimos pais (envergonhava-me a sua simplicidade e pobreza) para sentir que ascendia a tua altura; anulei o meu futuro individual, rejeitando estudos ou um trabalho que me podia ter sustentado só para ficar sempre à tua sombra, nessa humidade onde sentia que podia crescer e florescer como mulher. Sabes também com quanto zelo guardei os teus segredos mais secretos, partilhei os teus planos mais arriscados e sempre obtiveste o mesmo apoio. E sem nunca te pedir nada em troca, além da oportunidade de demonstrar a mulher que podia ser como senhora do teu amor.
O que obtive em troca? Esquecimento, silêncio, distância... Os anos vividos contigo roubaram-me as forças que antes tive e o que se passa é que hoje sou incapaz de recomeçar outra vida, pois não imagino nem quero viver a minha sem ti, que foste o meu criador. Pensei muito em como orientar o meu futuro e no fim fico sempre com a mesma resposta: continuarei a espera, tal como uma freira de clausura aguarda, com a chegada da morte, a graça definitiva do seu Senhor.
Do que mais sinto falta nestes dias é do ambiente de festa que antes costumava respirar-se nesta casa. Assim que o mês mudava começava o júbilo, a preparação dos jantares, o reabastecimento das despensas, a compra de presentes, a espera das visitas a quem congratulávamos e desejávamos sorte e prosperidade. Hoje tudo isso desapareceu, pelo menos nesta casa. E na tua nova casa? Os teus filhos encarregam-se de fazer a árvore de Natal e o presépio? Continuas a escolher tu próprio os torrões espanhóis e os vinhos franceses que alegrarão a mesa da véspera de Natal? O que se sente a tanta distância? O que se pensa quando, sendo um homem como tu, se é surpreendido na situação de exilado, vivendo longe, sendo apenas mais um? Pena por ti e ódio pelos que te obrigaram a partir e a afastar-te do que era teu?
É inacreditável como tudo se alterou, quantas coisas se perderam. A política e uma morte absurda acabaram com essa felicidade, incompleta para mim, mas felicidade ao fim e ao cabo, que desfrutava com a tua proximidade. Hoje vejo como a vida e o que aconteceu te deram razão, meu amor, e antes tivéssemos tido o tempo e os meios necessários para ter mudado esta história com a simples morte de alguém que, esse sim, merecia morrer, pois se algum culpado vejo em tudo isto é esse imbecil engalanado, embriagado de ambição, que não soube ir-se embora quando devia e que tantas vezes desejámos ver longe, de preferência no inferno, lugar devido pelos seus crimes e pecados.
Mas a história ultrapassou-nos. Hoje nada resta desse passado. Quando muito algumas lembranças felizes, lamentavelmente manchadas pelas tuas suspeitas acerca da minha culpabilidade. Meu Deus, como poderei demonstrar-te a minha inocência? Penso permanentemente no que aconteceu, procuro na minha mente qualquer indício capaz de te libertar dessa dúvida que te atormenta e no fim julgo apenas que um motivo muito oculto deve ter levado essa maldita mulher a tomar a decisão fatal que, sem essa chave perdida, não conseguimos compreender. Ou será que, realmente, ela tinha outra vida que tu desconhecias? Isto, já o sei, sempre te parecerá um sacrilégio, mas tenho de o pensar se quiser chegar alguma vez a verdade redentora. Alguém, nessa outra vida, poderia estar interessado na sua morte? Alguém, vendo-a feliz, dona do mundo, quis fazê-la pagar tão radicalmente essa felicidade e essa posse que não deviam pertencer-lhe?... É uma loucura, mas pensar e procurar é a única coisa que me resta, mais ainda em dias assim, quando tanta gente quer celebrar a sua festa e eu apenas posso deixar que as horas se arrastem para ver se um novo ano, desta vez a sério, me traz uma nova vida, sem mortos que se interponham. E ao teu lado, meu amor.
Amando-te sempre...
A tua Pequena
Nos seus anos de existência, Mário Conde treinara-se no exercício de conviver com as mais diversas idealizações e demonizações do passado, entre reescritas convenientes, fabulações e silêncios intransponíveis, perpetrados às vezes com esmero dramático ou das formas mais prepotentes. Naquela coexistência tinha aprendido que, mesmo a contragosto, cada pessoa, cada geração, cada país, todo o mundo, tem de arrastar consigo, como grilhetas de uma condenação, esse passado que lhe pertence inevitavelmente, mesmo com o alarde de possíveis cosméticos ou com fealdades realçadas por conveniência. Mas a experiência também lhe ensinara, lenta e até dolorosamente, que as verdades do passado se podem enterrar nos baús mais herméticos atirando depois a chave ao mar, sem por isso se ter a garantia de ficar a salvo das suas dentadas desesperadas, pois nem os esquecimentos mais rígidos, aqueles decretados com mais rancor, são capazes de enclausurar de uma forma definitiva os gritos da memória, cujo único alimento é, evidentemente, o passado. A história macabra de Silvano Quintero arrebatara-lhe os últimos vestígios da ressaca alcoólica, exauridos por uma narração capaz de fender os alicerces sugestivos sobre os quais se fora erigindo a efígie romântica de Violeta Del Rio, envolta nos sonhos de Conde pelo colorido cenário musical das equívocas noites havanesas dos anos cinquenta, tão cheias de brilho e de alegria como de morte e de pavor. Com todos os seus alarmes disparados, sentiu como se lhe renovava a necessidade de caça, à procura da peça esquiva das verdades recônditas sobre a existência daquela mulher desaparecida das memórias.
Enquanto Yoyi, o Pombo, silenciado pela história ouvida, guiava o seu deslumbrante Chevrolet Bei Air rumo à casa dos Ferrero, uma torrente de perguntas sem respostas começou a atormentar Conde, que teve finalmente a certeza de que o pressentimento sentido uns dias antes não tinha sido mais que outro dos jogos sujos do seu destino, sempre obstinado em atirá-lo aos poços sem fundo da incerteza. No fim de contas, Silvano tinha razão. Se por se atrever a bater à porta da cantora lhe tinham arrancado metade da mão aos tiros, que lhe teriam feito se chegasse a ficar a par de alguma coisa, essa alguma coisa certamente terrível que agora manchava a imagem imprecisa do senhor Alcides Montes de Oca e a sorte da cantora de boleros Violeta Del Rio, metidos nalgum negócio obscuro com o cappo Meyer Lansky e com a nebulosa personagem chamada Louis Mallet? O que teriam podido fazer à cantora se a dada altura se tivesse transformado em alguém potencialmente perigoso só por saber o que nunca devia ter sabido? Alguém como Violeta Del Rio pôde ser tão cruel consigo própria ou sentir-se tão encurralada para se suicidar ingerindo cianeto?
Conde recebeu uma lufada de satisfação quando viu que os irmãos Ferrero os recebiam com os seus melhores sorrisos, como os verdadeiros enviados do Eldorado em que os livreiros se tinham transformado. As suas figuras começavam a reagir visivelmente à injecção proteica recebida graças aos livros vendidos, e até os olhos tristes e aquosos de Amalia tinham recuperado brilhos que julgaríamos enterrados. Um pormenor insignificante mas significativo revelou a Conde até que ponto eram bem-vindos: sobre a descascada mesa de centro tinham colocado um pequeno cinzeiro de vidro, do modelo mais simples e barato, mas firmemente disposto a cumprir a sua incumbência.
Amalia atravessou as colunas de mármore prometendo regressar dentro de um minuto com o café, e os homens instalaram-se nas desconjuntadas poltronas da sala.
— Vejam bem o que são os acasos da vida — disse Dionisio, quase sorridente. — Hoje de manhã apareceu um homem a perguntar se tínhamos livros para vender...
Conde e Yoyi chocaram o aço dos seus olhares.
— E? — limitou-se a perguntar Conde.
— Disse-lhe que sim, mas que já tínhamos compradores, claro...
— Como é que esse homem chegou até aqui?
— Tal como você, não? — respondeu Dionisio, convencido da legitimidade do seu raciocínio, embora imediatamente a seguir tenha parecido compreender as intenções de Conde. — Ou vocês acham que sabia...?
— Nós não dissemos a ninguém de onde vinham os livros — esclareceu Pombo.
— E o homem foi-se embora sem deixar quaisquer dados?
— Bom, sim, nem sequer me disse como se chamava, que estranho, não é? Mas pediu-me para dar uma vista de olhos na biblioteca. Como não lhe ia vender nada, deixei-o entrar.
— Como era esse homem, Dionisio?
— Negro, alto, de uns trinta ou trinta e cinco anos. Parecia ter conhecimentos sobre livros porque se admirou com alguns. Sabem, tem o aspecto dessas pessoas que fazem sermões nas igrejas adventistas, pela forma de falar, de pessoa educada. Ah, e coxeava um pouco.
Conde e Yoyi avaliaram as possibilidades.
— Será algum dos compradores de Pancho Carmona? — perguntou o jovem.
— Poderia ser — admitiu Conde, observando o regresso triunfal de Amalia, trazendo uma bandeja com três chávenas, uma das quais tinha perdido a asa. — Pancho é capaz de nos ter mandado seguir. De que pé coxeava o homem, Dionisio?
Dionisio escolheu a chávena mutilada e observou-a, pensativo.
— Não se lembra? — insistiu Conde e o homem reagiu.
— Da direita — disse, parecendo convencido e levando a chávena à boca.
Conde provou o café e sentiu-se exultante, porque sabia a café verdadeiro, café de café, e dispôs-se a inaugurar o cinzeiro.
— Bom... começamos? — propôs Dionisio com uma pressa sorridente.
— Sim, vamos para a biblioteca — concordou Conde, embora permanecesse na cadeira —, mas antes quero perguntar-lhes uma coisa, e desculpem-me que seja tão insistente... A sério que nunca ouviram falar da tal Violeta Del Rio? Parece que se chamava Catalina, chamavam-na Lina, mas isso não é uma certeza...
Os irmãos entreolharam-se, como se procurassem respostas possíveis em cada um deles. O interesse persistente do comprador parecia surpreendê-los, mas a negativa de ambos foi simples e rotunda: não.
— Essa mulher, além de cantar boleros — continuou Conde, tratando de alargar as margens da informação, de despertar algum recanto adormecido da memória dos seus anfitriões —, parece que teve alguma relação com Alcides Montes de Oca. Relação amorosa, quero dizer. Certo é que se conheciam e deve ser por isso que apareceu este recorte entre um dos livros...
Conde mostrou-lhes a página da revista Vanidades. Amalia precisou apenas de alguns instantes para revalidar a sua negativa, mas Dionisio observou-a por uns segundos dilatados antes de admitir que nem assim a identificava.
— E vocês acham que se a vossa mãe vir a fotografia...? — Conde receou roçar a impertinência com a sua proposta, mas atreveu-se, aproveitando-se da sua proeminência económica naquela casa. — Se ela era a pessoa de confiança de Alcides Montes de Oca...
— Já lhes disse que a mãe não pode... — murmurava Amalia, quando Dionisio a interrompeu.
— Olhe, Conde, o problema é que a Amalia diz as coisas sempre pela metade, com... eufemismos?... é isso, com eufemismos, porque lhe custa dizê-lo, mas a mãe está completamente louca há quarenta anos. E quando digo louca, é irremediavelmente louca...
— Bom, então não há nada a fazer... — lamentou-se Conde. — Vamos lá aos livros.
Amalia desculpou-se, voltava às suas tarefas — iria outra vez ao mercado? — e os homens entraram na biblioteca.
— Que livros esteve a ver o comprador? — quis saber Conde.
— Começou por ver estes, aqueles que vocês dizem serem muito valiosos. Depois agachou-se aí, nessa estante, na parte de baixo — apontou Dionisio. Yoyi dirigiu-se para a zona da biblioteca indicada pelo homem, curiosamente no lado esquerdo que eles ainda não tinham examinado, e de imediato exigiu a presença do colega.
— Vem cá, Conde, vem cá... Olha para isto...
O dedo indicador de Pombo percorria as lombadas de vários livros e Conde pôs-se de cócoras para ver melhor.
— Minha mãe! Não, não pode ser...
A exclamação e as negativas do antigo polícia alarmaram Dionisio Ferrero, que se aproximou da estante de onde Conde, abertas já as portas de vidro, extraía dois enormes volumes, ambos forrados de couro.
— O que é isso? — quis saber Dionisio.
— Como é possível que esse homem soubesse...? Dirigiu-se directamente para estes livros...? Não entendo, pá, juro-te — admitiu Yoyi. — Isto não pode ser verdade...
Sentindo como o coração se lhe acelerava, Conde abriu o primeiro dos livros e depois de ler o lema que aconselhava «Labore et Constantia», deixou desfilar diante dos olhos as gravuras, coloridas à mão, que reproduziam com tanta precisão as figuras de alguns peixes que dava a impressão de que tinham sido fotografados, acabados de tirar dos mares tropicais, húmidos ainda. Mas a ansiedade espicaçava-o e pôs-se imediatamente a folhear o outro volume, um álbum pesado de uns quarenta e cinco por trinta centímetros, e diante das pupilas deslumbradas dos compradores sucederam-se as litografias de um porto com vários veleiros atracados, um vale semeado de cana-de-açúcar, uma paisagem campestre captada em todos os seus pormenores e várias vistas de engenhos açucareiros em plena faina. Conde acariciou com a maior delicadeza a pesada cartolina sobre a qual estava gravada a imagem idílica e orgulhosa do engenho La Flor de Cuba, e fechou o volume, levantando-se e apoiando-se desajeitadamente nas traves da estante, com os dois livros contra o peito, como se quisesse protegê-los dos perigos infinitos do mundo.
— Estes são duas jóias. Não têm preço. Não têm comparação — conseguiu dizer, sentindo a língua presa, pensando que adjectivos podia atribuir àquelas maravilhas inestimáveis da impressão cubana. — A este toda a gente chama «O livro dos peixes», mas o seu verdadeiro título é — abriu a capa e leu o frontispício — Descripción de diferentes piezas de historia natural Las más del ramo marítimo representadas en 75 lâminas. É o primeiro livro importante impresso em Cuba... foi feito em 1787... E este outro, está a ver, chama-se Los ingenios, a impressão é de 1857, deve ter vinte e oito gravuras de Eduardo Laplante e é um dos mais belos livros feitos no mundo. Nem é preciso dizer que são os dois livros mais valiosos que se imprimiram em Cuba.
— O que significa valioso? — Os nervos denunciavam Dionisio, cuja voz marcial se quebrou ao fazer a pergunta.
— Significa que podem valer uma fortuna... — a emoção de Conde não diminuía, a secura da boca aumentava, como se tivesse sido possuído por uma febre fulminante. — Se não lhes faltar nenhuma gravura, creio que a própria Biblioteca Nacional seria capaz de cavar até encontrar dinheiro para os comprar... Estamos a falar de mais de dez mil dólares por cada um, de mais, de mais...
Dionisio Ferrero empalideceu.
— Isso não é possível — afirmou, convencido de que Conde entrara em desvario.
— Nunca os tinha tido nas mãos. — Conde tinha-se esquecido de Dionisio e, sem os afastar do peito, acariciava a pele dos livros. — Se Cristóbal os pudesse ver...
— Cristóbal? — Dionisio parecia cada vez mais alterado, definitivamente incapaz de compreender o acontecimento inesperado que sucedia diante dele. — Quem é Cristóbal?
— Mas como diabo esse negro coxo filho de uma puta que o pariu se dirigiu directamente para estes livros? — Perguntou Yoyi, alterado, quase gritando um assombro cada vez mais carregado de maus pressentimentos.
— Demasiada coincidência — admitiu Conde, levando finalmente os livros para a estante que haviam escolhido para colocar os exemplares a que tinham atribuído a categoria de invendáveis. — Demasiada coincidência — repetiu e acariciou novamente as grossas lombadas dos dois volumes, num gesto de amorosa despedida, tratando de sacudir as sensações que o martirizavam. — Bom, Yoyi, vamos trabalhar, não se dê o caso de esse homem nos ganhar a fraternal emulação socialista, não achas?
Até se ter transformado num predador profissional de livros, decidido a alimentar-se deles também fisicamente, Mário Conde tivera uma relação respeitosa, quase mística, com as bibliotecas. Embora no bairro demasiado esquentado e brigão onde tinha nascido não existisse naquele tempo uma única biblioteca particular com mais de vinte volumes, a sorte quis que na sua própria casa houvesse uma dúzia de livros — todos da sua mãe, porque o seu pai, tal como o seu avô Rufino, o Conde, nunca parou para abrir um livro em toda a sua vida —, chegados até ali pelas vias mais diversas, e acomodados, com orgulhosa proeminência, como se alguém suspeitasse que aqueles objectos tinham algum valor, numa extremidade da prateleira do aparador, junto da fotografia do casamento dos seus pais, de um relógio de porcelana vienense e de uma pequena floreira art-nouveau. Ao longo da sua adolescência, Conde foi lendo distraidamente aqueles livros — dois volumes de colecções das Selecções do Reader's Digest, o lacrimoso e para ele detestável Coração-, de Edmundo de Amicis, uma das aventuras de Sandokan e, sobretudo, Huckleberry Finn, numa edição barata que se estava a desfazer — e sentiu como despertava nele um tímido fervor por aquele acto, tão extraordinário para um membro da sua família e para um habitante do seu bairro, muito pouco dados, regra geral, a inclinações tão passivas. Mesmo quando Conde preferia gastar os seus dias em jogos de baseball, a fazer travessuras pelas ruas e a roubar mangas, a sua curiosidade inata fê-lo dar o primeiro passo firme em direcção à bibliofilia quando, depois de ler em êxtase emocional O Conde de Monte Cristo, quis saber o destino final de Edmundo e Mercedes e saiu à caça do segundo acto daquela aventura fabulosa, encontrando um Dumas decepcionante, quase cruel, que no romance A Mão do Finado destruía a felicidade pela qual tanto tinham lutado o generoso Dantés e a sua amada Mercedes. Dois anos mais tarde, já matriculado no pré-universitário, a curiosidade viera novamente em sua ajuda, embora nessa ocasião de uma forma definitiva. Depois de ler, como leitura obrigatória para as aulas, uma adaptação ridícula da Ilíada, Conde tinha ido à bem fornecida biblioteca do velho instituto de La Víbora à procura de uma edição completa do poema homérico e, já intrigado pelo destino daqueles guerreiros, procurou algumas respostas na Odisseia. De uma forma natural, quase de pára-quedas, penetrou num beco sem saída quando quis saber o destino dos restantes heróis gregos e Cristóbal, o velho bibliotecário a quem faltava uma perna, o incentivou a ler a Eneida, primeiro, e outras sagas dos heróis aqueus, depois.
A relação com Cristóbal, o Coxo, como era conhecido por todos no Pre, foi um dos encontros decisivos na vida de Mário Conde, que não só se tornou leitor voraz e obediente, daqueles capazes de terminar qualquer livro iniciado — pôde superar Os Miseráveis e até A Montanha Mágica —, como começou a amar os livros e as bibliotecas da mesma maneira que os crentes adoram os seus templos: como sítios sagrados, onde não é admitida a profanação com risco da condenação eterna.
Além de lhe fornecer livros e de o orientar nas leituras, Cristóbal foi o primeiro a descobrir que o rapaz tinha uma sensibilidade latente e animou-o a tentar a sorte com a escrita. Mário Conde, desde sempre possuidor de um sólido conhecimento das suas muitas limitações e de um enorme receio do ridículo, pôs essa ideia de parte, mas não pôde evitar que uma semente ficasse escondida em qualquer lugar da sua consciência, preparada para germinar. Enquanto isso, aprofundou a sua relação com os livros e, graças ao velho bibliotecário, familiarizou-se com a valiosa bibliografia cubana do século XIX e da primeira metade do século XX e começou a valorizar os livros não só pelo seu conteúdo, mas pelo seu aspecto, muitas vezes pouco cuidado, a sua idade e origem.
Um dos objectivos mais firmes de Cristóbal foi aproximar o jovem de uma parte da literatura cubana que ia ficando oculta pelas novas tendências estéticas e políticas. Por isso fê-lo ler os autores malditos ou amaldiçoados, inomináveis naquela década árida dos anos setenta, escritores de quem Conde só ouviria falar publicamente muitos anos depois. Para abrir a porta daquele mundo excluído, Cristóbal tinha escolhido Lino Novas Calvo e Carlos Montenegro, com os quais calculara — acertadamente — que o jovem poderia estabelecer uma comunicação rápida, graças às suas histórias de negreiros, biltres e presidiários. Mais tarde vieram Labrador Ruiz, Lydia Cabrera e Enrique Serpa, para depois o lançar aos mundos cáusticos de Virgílio Pinera, naquele tempo condenado ao silêncio mais esmagador que a morte surpreenderia. De todos aqueles escritores lidos aos dezasseis, dezassete anos, Conde colheu um olhar complexo do seu passado, do passado de todos os habitantes da ilha, e intuiu que o mundo podia ser de cores muito diversas e que as verdades podiam ser mais complexas do que oficialmente pareciam.
Mário Conde, que na sua selvática juventude tinha cometido os mais diversos desatinos — roubar comida nos acampamentos de cana-de-açúcar para onde eram enviados durante os vários meses da safra, beneficiar dos exames divulgados pela própria direcção do Pre e que lhes garantiam classificações altas, fazer batota nos pagamentos na geladaria próxima do instituto, surripiar livros da livraria La Polilla —, nunca se atreveu a levar com intuitos pessoais um só livro da biblioteca do Pre, apesar de Cristóbal ter estabelecido a impensável excepção de o deixar entrar no depósito de livros para que farejasse à sua vontade e escolhesse as suas leituras. A convicção de que o mundo podia ser um campo de batalha mas que uma biblioteca era um terreno colectivo de neutralidade inviolável, enraizou-se no seu espírito como um dos proveitos mais benéficos da sua vida, uma noção com a qual, chegada a Crise, teria de negociar para sobreviver, como tantos outros tiveram de fazer com as suas lembranças e até com a sua dignidade.
Apesar dos anos investidos no ofício da compra e venda, Conde sentia sempre um certo mal-estar quando desempenhava o papel de predador de bibliotecas e, por princípio, decidiu não comprar nenhum livro carimbado, que revelasse a sua origem de objecto público. Mas em todo o tempo dedicado àqueles assuntos mercantis, nunca experimentara uma sensação de acto profanador tão evidente como o que estava a provocar-lhe a biblioteca dos Montes de Oca. Talvez o facto de saber que, por mais de quatro décadas de furacão revolucionário, aquele tesouro se tinha mantido indemne — justamente até à sua chegada àquele local —, como oferenda de uma promessa imutável, contribuísse para a existência daquela sensação incómoda. Saber que três gerações de uma família cubana tinham dedicado dinheiro e esforços à aquisição maravilhosa daqueles cinco mil volumes, vindos de meio mundo para ocupar um lugar naquelas estantes imunes à humidade e ao pó, revelava-se-lhe um acto de amor que ele agora destruía sem piedade. O mais doloroso, no entanto, era a certeza de que a profanação vinha de mãe dada com o caos e o caos muitas vezes pode levar ao desmoronamento dos sistemas mais sólidos. Com a sua presença não estava a cumprir-se justamente essa equação? Alguma coisa sagrada estava a ser alterada pelas suas mãos e interesses económicos e Conde pressentia que a sua acção provocaria uma reacção, ainda inimaginável mas cuja efectivação devia esperar de um momento para outro.
Foi numa daquelas tardes preguiçosas em que o jovem Conde se refugiara com um livro no canto mais isolado e fresco da biblioteca do Pre de La Víbora, que Cristóbal, o Coxo, apoiado nas suas muletas, o interrompeu com o pretexto de partilhar um cigarro com o seu discípulo. Mário Conde nunca esqueceria, durante o resto da sua vida, de como a conversa, inicialmente irrelevante, de repente mudara de tom quando Cristóbal começou a falar-lhe do futuro incerto daquela biblioteca. A data da sua reforma já tinha sido largamente ultrapassada e, a dada altura, uma altura cada vez mais próxima, teria de se ir embora com as suas muletas e com o seu amor pelos livros, para outro lado, talvez para a tumba. A grande preocupação do velhote era o destino que seria dado a alguns livros que ele tinha conservado e defendido durante quase trinta anos, livros que, tinha a certeza, ninguém cuidaria e amaria como ele.
— Cada um dos livros que estão ali atrás — e apontou para o depósito ao fundo — tem a sua alma, tem a sua vida, tem parte da alma e da vida dos rapazes que, tal como tu, passaram por esta biblioteca e os leram durante estes trinta anos... Classifiquei cada um deles, coloquei-os no lugar, limpei-os, cosi-os e colei-os cada vez que foi necessário... Condesito, eu vi muitas loucuras nos meus anos de vida. O que lhes vai acontecer? Tu terminas este ano e vais-te embora daqui. Eu reformo-me ou morro, mas também saio. Os livros vão ficar entregues à sua sorte. Espero que o próximo ou próxima bibliotecária os ame como eu. Seria uma desgraça se não o fizesse. Cada livro, qualquer um, é insubstituível, cada um tem uma palavra, uma frase, uma ideia que espera pelo seu leitor. — Cristóbal apagou o cigarro, pôs-se de pé, apoiando-se à mesa e colocando uma das muletas debaixo do braço. — Vou lanchar qualquer coisa. Cuida da biblioteca... Antes que eu regresse, vai lá atrás e escolhe os livros que te fizerem falta ou de que mais gostes. Leva-os, salva-os, mas cuida deles.
Espantado com aquela proposta, Conde viu Cristóbal sair, balançando o seu corpo sobre os apoios de madeira. Meia hora depois, quando o velhote regressou, continuava no mesmo sítio, só com o livro que tinha nas mãos.
— Porque não me deste atenção? — quis saber o bibliotecário.
- Não sei, Cristóbal, não consigo...
— Acabarás por lamentar...
Passados quinze anos, quando o tenente investigador Mário Conde entrou novamente no Pre de La Víbora, solicitado pelo assassinato de uma jovem professora de Química, uma das primeiras visitas que efectuou foi à anteriormente belíssima biblioteca onde Cristóbal o incitara a ler Virgílio, Sófocles, Eurípedes, Novas Calvo, Pifiera e Carpentier. Para sua tristeza eterna, o antigo estudante compreendeu que as previsões de Cristóbal, o Coxo, tinham sido ultrapassadas pela realidade. Poucos livros, maltratados e moribundos, colocados de qualquer maneira, cabeceavam entre os espaços vazios das estantes antes repletas, de onde tinham voado gregos e latinos, dramaturgos ingleses e poetas italianos, cronistas das índias, historiadores e romancistas cubanos. A depredação tinha sido sistemática, impiedosa e, ao que parece, ninguém pagara por aquela acção afrontosa. Conde pensou então que Cristóbal, o Coxo, na sua campa escura, deve ter sentido nos ossos as chicotadas de uma profanação aleivosa, capaz de destruir a melhor obra da sua pobre vida de bibliotecário mutilado, amante dos seus preciosos livros.
A colheita daquela tarde valeu o sacrifício de Yoyi e Conde terem prescindido do almoço, sobrepondo-se aos gritos de angústia dos seus estômagos, exigentes de mais trigo para triturar. Levados pelo receio de intrusões definitivamente indesejáveis, conseguiram que uma terça parte da biblioteca ficasse revista e foram duzentos e sessenta e três os livros de alta cotização que levaram imediatamente da casa dos Ferrero, que, além de receberem os quatrocentos e trinta e seis dólares e os mil e trezentos pesos que lhes deviam os compradores, estremeceram ao ouvir a soma de vinte e oito mil e quatrocentos pesos que agora lhes deviam, e da qual receberam seis mil que Yoyi trazia consigo. Enquanto isso, Conde e o seu sócio decidiram criar com os livros menos desejados em primeira instância um terceiro fundo, com volumes certamente vendáveis mas a preços modestos, um fundo avultado de emergência de quase quinhentos livros, destinados a uma segunda etapa da compra e venda. Ao mesmo tempo, na secção dos «invendáveis», além dos dois livros ilustrados que tanto agitaram a sensibilidade de Conde, foram colocados vários tomos, incluindo uma extraordinária edição mexicana de 1716 das poesias de soror Juana Inés de La Cruz; o sempre perseguido e cotadíssimo Islã de Cuba, ilustrado com trinta brilhantes gravuras de Federico Mialhe Grenier, impresso em Havana, em 1848; um exemplar de Aves de La Islã de Cuba, de Juan Lembelle, datado em Havana em 1850; a sempre procurada primeira edição, novaiorquina e de 1891, dos Versos sencillos, de Marti, valorizada pela assinatura do Apóstolo com dedicatória «ao compatriota e irmão Serafín Montes de Oca, o bom», e os dois tomos — dos quais Conde se afastou com uma mágoa particular — da raríssima e perseguida edição das Poesias del ciudadano José Maria Heredia, estampada em Toluca em 1832, a qual, apesar de ser apresentada como segunda edição corrigida e aumentada, era avaliada pelos entendidos como uma primeira edição do clássico cubano, porque superava imprecisões e acrescentava poemas importantes, excluídos da edição original nova-iorquina de 1825.
A satisfação provocada pelo negócio fabuloso acabado de concluir não pôde apagar, no entanto, a preocupação de Yoyi relativamente à presença alarmante naquela mina de livros de um comprador dotado de um perigoso radar capaz de o conduzir na direcção dos tesouros mais perseguidos da bibliografia cubana, nem silenciar a ressonância malévola da história de Silvano Quintero nos ouvidos de Mário Conde que, depois de concluir o acordo mercantil com Pombo — que o abarrotou com tantos milhares de pesos como nunca vira na vida — preferiu refugiar-se na solidão da sua casa, necessitado de tempo e de espaço para meditar.
Depois de tomar um duche, engoliu os dois pães com carne de porco comprados num dos quiosques do bairro — embora os tenha pago só depois de observar criticamente a parte proteica, pois não seria o primeiro a comer cão assado ou estufado, de gato comprado a preço de porco —, e pôs de parte a ideia de sair para ir comprar rum e até a de telefonar a Magricela para lhe contar os últimos acontecimentos, ou a Tâmara, para propor encontrar-se com ela e falar-lhe da descoberta das poesias de Heredia, de que a mulher tanto gostava. Os excessos do dia anterior, a fadiga de todo um dia de trabalho na rua, cheio, além disso, de emoções, e a urgência de se pôr em dia com as suas ideias, conspiraram para o predispor a gozar de uma noite exemplarmente sossegada. Armado de cigarros e de meia caneca de café, subiu até à açoteia da sua casa, seguido por Basura, e instalou-se sobre um bloco de cimento, com os pés no beiral. Apesar do calor do dia, a noite tinha chegado com uma brisa agradável, prenúncio da iminência de Outubro, e Conde sentiu-se bem consigo próprio ao ocupar aquele miradouro capaz de colocar aos seus pés o velho bairro dos Conde, a pátria das suas nostalgias e dos seus mortos. Ergueu os olhos na direcção da colina das pedreiras e, entre a folhagem dos álamos, jacareúbas e ficos-chorões, adivinhou, mais do que viu, o telhado de telhas inglesas do castelo em cuja construção tinha trabalhado, há quase cem anos, o seu avô Rufino, o Conde. Saber que o castelo continuava ali, poderoso e altaneiro, constituía sempre um alívio porque o fazia sentir que no mundo havia ainda coisas inalteráveis, capazes de navegar incólumes entre as turbulências do tempo e da História.
Basura, metido entre as suas pernas, exigiu-lhe com cabeçadas e dentadinhas uma dose de ternura e Conde coçou-o atrás das orelhas, onde o animal mais gostava. Ignorando o volume do carrapato que Basura devia ter apanhado numa das suas incursões pelas ruas, Conde deixou flutuar a sua mente, onde encalhou a imagem grotesca da mão aleijada de Silvano Quintero. Alguma coisa muito grave deve ter acontecido em redor da defunta Violeta Del Rio para que os seus presumíveis amigos tivessem decidido dar aquela lição ao jornalista curioso. A presença nos apartamentos da esquina da calle Tercera com a 26 de uma personagem como o cappo mafioso Meyer Lansky podia ser uma simples visita ocasional, mas a experiência sofrida por Silvano Quintero indicava que uma intriga mais obscura se forjava aí, um mistério que Conde, com o seu apego habitual aos preconceitos, se recusava a admitir que implicasse directamente Violeta, fosse qual fosse o seu segredo obscuro. Os sinais mais visíveis indicavam uma ligação entre Lansky e Alcides Montes de Oca que, segundo Amalia Ferrero, tinha aumentado a sua fortuna nessa época, apesar da limitação de não pertencer ao círculo dos favoritos do sanguinário Fulgencio Batista. Terá sido graças a essa conexão que dom Alcides realizou os seus negócios proveitosos? É possível, pois exceptuando a droga, tráfico do qual Lansky não se ocupava pessoalmente, aquele judeu mafioso tinha conseguido branquear todas as suas operações em Cuba graças à circunstância de o jogo ser legal na ilha e ao apoio interesseiro de Batista para a execução das suas especulações bancárias e imobiliárias. Aqueles negócios materializaram o sonho dourado do antigo bandido, transformado em respeitável homem de negócios e colocado no epicentro do grande projecto turístico cubano, concebido como uma Costa de Ouro entre Mariel e Varadero, espalhada por mais de duzentos quilómetros de um litoral de sonho, apenas a noventa milhas da Florida e a quarenta minutos de voo de Miami, uma linha azul ao longo da corrente quente do Golfo do México, agraciada com as melhores praias do mundo e particularmente dotada para a construção de hotéis, casinos, urbanizações de luxo, marinas, restaurantes e outras atracções inomináveis, capazes, sem dúvida, de gerar quantidades inconcebíveis de milhões de dólares em poucos anos. Se tudo aquilo se sustinha através da firme legalidade concedida pelo apoio do governo, Conde não conseguia encontrar razões para que tivessem arriscado um escândalo devido à mutilação de um desesperado jornalista do meio artístico que batia numa porta atrás da qual cantava uma mulher. Mas porquê utilizar um apartamento em nome de um tal Louis Mallet que ainda não tinha posto o nariz de fora? O facto de Alcides Montes de Oca ser membro da aristocracia crioula, viúvo de uma Méndez-Figueredo, podia explicar a cautela com que assumia a sua relação com Violeta Del Rio e muito mais a que poderia existir com a proxeneta Flor de Lótus. No entanto, as precauções que envolviam aquelas ligações eram quase excessivas caso se tratasse apenas de um assunto de amores mantidos em segredo, como comentara, e bem, Silvano Quintero. Todos os caminhos deste raciocínio empurravam Conde para um abismo obscuro, em cujo fundo deviam existir argumentos suficientemente sinuosos para serem os verdadeiros causadores de tanta reserva e violência e, talvez, do suicídio com cianeto da cantora de boleros.
Mas, diz-me, vamos lá ver, que raio tens tu a ver com esta história de há cinquenta anos? Que te interessa se se matou ou se a mataram, se nunca vais conseguir saber a verdade? Tudo isto te deixa obcecado devido à memória do teu pai? Com um novo cigarro nos lábios e decidido a esmagar contra o chão de tijolo que cobria o telhado o carrapato impertinente de Basura, Conde decidiu que tinha chegado o momento de reprimir a sua curiosidade, de se esquecer dos seus pressentimentos e de fechar o livro daquela história definitivamente alheia. Tinha de se conformar, pois era mais que suficiente a agradável descoberta da voz gravada de Violeta Del Rio, a revelação do amor impossível que atormentou o pai e, sobretudo, a possibilidade de desfrutar do seu mergulho na mais insólita biblioteca privada que algum cubano da sua época jamais pisou e graças à qual podia agora gozar de uma folga económica na companhia de Tâmara e dos seus velhos amigos. Insistir naquela exumação do passado, à procura do fantasma cada vez mais complicado de uma presumível suicida, produzia o sabor amargo de tentar fazer amor com um belo cadáver, quando tinha possibilidade de o fazer com uma mulher húmida e viva. A verdade era já inatingível, pensou, e devia continuar fechada no reduto onde a tinham encerrado, porque entre os nomes que podia considerar só existiam dois com possibilidades de o levarem a ela: a enlouquecida mãe Ferrero e a dançarina Flor de Lótus, caso se verificasse a condição indispensável de ainda estar viva, ao alcance das suas mãos e disposta, além disso, a contar o que sabia.
A simples decisão de pôr fim à sua curiosidade doentia revelou-lhe todo o cansaço acumulado em três dias de orgias alimentares, alcoólicas e bibliográficas, e o bocejo encheu-lhe de lágrimas os olhos calcinados de sono.
— Para o caraças com Violeta Del Rio — disse, espantando-se por ouvir a sua própria voz. Bocejou e acrescentou, acariciando a cabeça do cão: — Sócio, eu vou dormir. E tu?
Basura agitou a cauda, num sentido estritamente negativo, e Conde desceu até casa atrás dele. Já na cozinha, com a mão na porta, fez-lhe uma última pergunta:
— Ficas ou vais?
Basura rodou sobre si próprio, retrocedendo, e Conde compreendeu o seu desejo de tresnoitar, tal como Silvano Quintero antes de perder o caminho da sua vida e metade de uma mão.
— Que cão fui arranjar — admitiu, fazendo-lhe um gesto de despedida e fechando a porta. A caminho do quarto, atirou a roupa de qualquer maneira, carregou no botão de velocidade máxima da ventoinha e deixou-se cair na cama, sem pensar sequer na possibilidade de abrir um livro. Dez minutos depois dormia, abraçado a um sonho agradável no qual via uma mulher jovem e bonita sair de um mar dourado onde começava a mergulhar o sol, que extinguia no horizonte o seu incêndio de luz. Quando a mulher chegava ao seu lado, descobria que era Tâmara, mas ele identificava-a como Violeta, que lhe sussurrava, com a sua voz de cantora de boleros sentimentais, que nessa noite ficaria com ele, ali, em frente ao mar, vendo o dia morrer, com as suas dores e as suas glórias.
LADO B: ME RECORDARÁS
As pancadas retumbaram pela casa como um chamariz do passado. Mário Conde abriu os olhos com a estranha sensação de não saber em que sítio nem em que tempo estava, e surpreendeu-se ao verificar que não lhe doía a cabeça e que a manhã tinha apenas começado, conforme se empenhava em avisá-lo por vias mais evidentes o relógio luminoso onde palpitavam os números vermelhos: 6:47. Voltaram a bater na porta e o seu cérebro recuperou toda a lucidez. Magricela, pensou imediatamente, aconteceu alguma coisa a Magricela, como pensava sempre quando era surpreendido por telefonemas nocturnos ou visitas madrugadoras. Antes de se levantar gritou: «já vou» e, em cuecas, dirigiu-se para a porta, quase a derrubando quando viu à sua frente a figura de Manuel Palácios.
— Aconteceu alguma coisa a Magricela? — perguntou-lhe, com o coração a bater desenfreadamente.
— Não, calma, é outra coisa.
O alívio de saber que o amigo continuava vivo foi substituído de imediato pela indignação.
— E porque raios estás aqui a esta hora de merda?
— Quero falar contigo. Não vais fazer café? — perguntou Manolo, dando um passo para entrar.
— É bom que seja importante. Anda, entra.
Conde foi à casa de banho, urinou com a abundância e fetidez de todas as manhãs, lavou a boca e molhou o rosto. Arrastando os pés, entrou na cozinha e preparou a cafeteira, com o cigarro apagado nos lábios. Definitivamente, com ou sem ressaca, o amanhecer era o seu pior momento do dia, e ver-se obrigado a falar, o mais refinado dos castigos.
— Vim ver-te porque... — começou Manolo, mas Conde deteve-o com a mão.
— Depois de tomar café — exigiu-lhe, puxando para cima as cuecas, que teimavam em escorregar-lhe da sua magra cintura.
Conde abriu a porta da varanda e viu Basura aninhado no seu trapo. A barriga movia-se-lhe lentamente: respirava. Tossiu e cuspiu para o tanque de lavar. Regressou e apanhou os jeans desbotados, abandonados à sua sorte na noite anterior, e vestiu-os, encostado à parede, da qual se aproveitou, de caminho, para coçar as costas.
Estendeu um café a Manolo e, com a sua caneca grande, ocupou uma cadeira enquanto bebia aos sorvos o líquido capaz de impulsionar o processo de se reencontrar consigo próprio depois de cada despertar. Acendeu o cigarro e observou os olhos ligeiramente estrábicos do fardado capitão da polícia de investigações.
— Vim ver-te porque há problemas... Graves.
— O que aconteceu? — perguntou, mais por rotina que por curiosidade. Durante anos, Manolo tinha pedido os seus conselhos nas mais diversas investigações e Conde pensou se desta vez não se teria excedido, acordando-o àquelas horas impróprias.
— Dionisio Ferrero está morto. Assassinaram-no. O tiro atingiu-o no peito.
— O que estás a dizer? — perguntou Conde, já completamente acordado, convencido de não ter percebido bem.
— Amalia levantou-se às três, com vontade de ir à casa de banho, e estranhou ver a luz da sala acesa. Pensou que era o irmão e foi ver se este se sentia bem. Encontrou-o à porta da biblioteca com uma ferida no pescoço. Já estava morto.
A uma velocidade inesperada, o cérebro de Mário Conde tinha começado a processar o que ouvira. O polícia que fora revelou-se em cada célula do seu corpo, como um gene latente subitamente activado.
— Levaram livros?
— Ainda não sabemos. Por isso vim buscar-te. Foi preciso medicar a irmã, que está meio atordoada.
— Ontem deixámos-lhes muito dinheiro.
— Amalia diz que não falta nada, que ela o tinha debaixo do colchão.
— Deixa-me lavar-me um pouco e vestir-me — pediu Conde e, a caminho do quarto, recuperou os sapatos que tinha usado no dia anterior. Tirou uma camisa do armário e, ao deixá-la cair sobre os ombros, compreendeu finalmente a verdadeira razão da presença madrugadora do capitão Manuel Palácios na sua casa. Com uma lentidão pesada voltou à sala, onde Manolo fumava, concentrado nos seus pensamentos.
— Manolo... porque vieste buscar-me?
O investigador olhou para o seu antigo colega e os olhos dele vaguearam, mais extraviados que nunca. Desviou o olhar para o cigarro que se consumia entre os dedos e sussurrou:
— Até agora tu e Yoyi são os principais suspeitos. Nem gosto de pensar nisso, mas creio que percebes, não é verdade, Conde?
Os primeiros jorros de sangue bombeados pelo coração tinham-se projectado contra a folha direita da porta de espelhos, acrescentando manchas às já criadas pela fuga do mercúrio e desenhando na sua queda umas formas escorridas de pintura abstracta que, no seu deslizar, tinham ido engrossar o charco que continuou a nutrir-se das emanações finais do corpo já caído. Uma mancha quase negra tinha coagulado nos ladrilhos axadrezados, desenhando uma baía de boca estreita, com as suas margens abertas para o interior da biblioteca, como se procurasse aí uma profundidade acolhedora. O risco de cal reproduzia a posição final de Dionisio Ferrero e a primeira coisa a chamar a atenção de Conde foi este ter morrido com as mãos abertas. Ou alguém as teria aberto para arrancar alguma coisa de dentro delas?
Enquanto Manolo discutia num canto da sala com o médico-legista por este ter ordenado a retirada do cadáver sem sua autorização, Mário Conde, observado por um sargento que lhe fora apresentado como Atilio Estévanez, dedicou-se a examinar o ambiente. Ao que parece, Dionisio tinha sido apunhalado por alguém colocado atrás dele, ainda dentro da biblioteca. Sendo assim, deveria ter sido uma pessoa de quem Dionisio não esperava o ataque, caso contrário não se teria voltado tão tranquilamente, deixando desguarnecida a retaguarda, como se poderia verificar em qualquer manual de guerra. O agressor era, sem dúvida, uma pessoa conhecida e obviamente destra, porque o tinha ferido naquele lado do pescoço. Quem quer que fosse o assassino, estava disposto a matar o homem, pois se tivesse sido uma luta que se complicou, talvez o tivessem ferido primeiro nas costas, mas quem o matara tinha ido directamente à procura das artérias do pescoço, tentando liquidá-lo de um só golpe e, ao mesmo tempo, silenciá-lo, devido à hemorragia do seu próprio sangue. Para reforçar a teoria de um assassino conhecido de Dionisio havia o facto de nenhuma entrada da casa ter sido forçada e por isso, presumia o antigo polícia, o homem abrira a porta ao seu verdugo. A única razão possível, entre as consideradas por Conde, era que Dionisio, excitado pelas cifras ouvidas nos últimos dias, estivesse em negociações com alguém, nas costas da irmã, possivelmente com o misterioso comprador de livros aparecido no dia anterior, como que do nada, ou com outro qualquer, mesmo algum desconhecido de Amalia. A provável ausência de alguns livros poderia esclarecer o móbil do crime, embora implicasse o risco, para o assassino, de transformar os exemplares roubados numa pista fácil de seguir.
Manolo aproximou-se e Conde olhou-o nos olhos. Com um gesto, o capitão pediu ao sargento Estévanez que se afastasse.
— Isto é do caraças, agora os médicos-legistas mandam mais do que nós... São os cientistas... Vamos ver, antes de entrarmos lá dentro — indicou a biblioteca —, vou dizer-te duas ou três coisas para que possas pensar melhor...
— Duas ou três coisas? — perguntou Conde, com vontade de agarrar Manolo pelo colarinho do uniforme.
— Conde, eu sei que tu és incapaz... mas entende-me, bolas!
— Não te entendo.
— Tu achas que, se eu suspeitasse realmente de ti, estarias aqui comigo? Não me lixes, compadre... Mas lembra-te de que os de cima não te conhecem e para eles és um trânsfuga desde que saíste da polícia...
— Estou-me a cagar para os de cima e limpo-me com os de baixo... Mas está bem, está bem, vamos lá ver, diz-me...
— O assassino levou a arma consigo, embora o médico-legista diga que, pela forma da ferida, deve ter sido utilizada uma faca de cozinha normal e corrente, pontiaguda mas não muito afiada.
— Ahã.
— Mataram-no entre a meia-noite e as duas da manhã. A autópsia pode limitar mais o prazo. O assassino é destro...
— Isso já eu sei.
— Feriram-no por trás e, pelo ângulo de entrada da arma, sabe-se que o assassino é dez centímetros mais baixo que Dionisio.
Conde espremeu o cérebro e pareceu lembrar-se de que o comprador misterioso tinha sido descrito por Dionisio como um negro alto.
— O assassino é sensivelmente do meu tamanho — admitiu Conde.
— Uma coisa importante: limparam a maçaneta da porta. Até agora só há impressões digitais frescas de cinco pessoas...
— Dionisio, Amalia, Yoyi, o comprador que esteve aqui e eu...
— É possível. Essa marca de pisada no sangue foi feita por Amalia, quando se aproximou para ver se ele estava morto. Agora vão examinar as unhas de Dionisio, mas não acredito que tenha havido luta. E vamos verificar as tuas impressões, as do Yoyi e as dos dois irmãos, para ver se temos nos arquivos as da quinta pessoa.
— E que mais?
— Já te disse tudo... De cima pedem-me que resolva isto quanto antes. Dionisio era militar, esteve na clandestinidade contra Batista e os amigos vão começar a fazer barulho a qualquer momento.
— Mas não fizeram barulho quando ele estava a morrer de fome — recordou Conde. — Dionisio esteve dois ou três anos a trabalhar numa corporação e expulsaram-no de lá quando começou a ver coisas que não lhe agradavam. Isso foi durante a época mais lixada da Crise... E nunca mais ninguém se preocupou com ele.
— Vou averiguar o que se passou com essa história da corporação — condescendeu Manolo. — Bom, vamos rever os livros. Trata de ver se falta algum...
Manolo entregou a Conde umas luvas de nylon e, com cuidado Para não pisarem o sangue coagulado nem a silhueta desenhada, entraram na biblioteca. Conde parou a meio do aposento para ter uma primeira impressão do conjunto: para a esquerda, o sector das estantes que eles ainda não tinham visto; os livros considerados invendáveis por Conde e por Yoyi, amontoados de qualquer maneira nas estantes mais baixas da direita, ao pé da porta; os livros da reserva para uma segunda etapa de venda, colocados nas estantes que rodeavam a janela, também numa desordem apressada; e as três pilhas ascendentes, em equilíbrio precário nas estantes da frente, onde foram colocando os exemplares particularmente valiosos que Conde recusara pôr à venda. Sem pensar muito, dirigiu-se para os volumes mais cotizados, passou o dedo duas vezes pelas lombadas e concluiu que, se a sua memória não o atraiçoava, estavam todos ali, incluindo as edições cubanas mais valiosas, das quais se recordava perfeitamente.
Regressou ao centro do aposento, fechou os olhos, tentou limpar a mente de opiniões antecipadas. Tornou a olhar em redor e, excepto por uns estranhos espaços entre os livros das estantes inferiores da área ainda não examinada, não julgou ver qualquer alteração, mas lamentou não ter observado mais cuidadosamente o aposento na tarde anterior. Nesse momento Conde teve a sensação de que Dionisio ou Amalia, nalguma das suas conversas, lhe tinham dito alguma coisa decisiva acerca daquela biblioteca, uma revelação importante que agora pairava sobre a sua memória sem conseguir agarrá-la para lhe dar uma forma definitiva. Que diabo poderia ter sido?, perguntou a si mesmo, mas decidiu adiar o seu próprio interrogatório.
Exigindo um esforço ao seu cérebro, Conde aproximou-se do espaço ainda inexplorado por eles e tentou recordar-se se nalgum momento Yoyi ou Dionisio tinham tirado algum exemplar daquela estante. Com a lanterna que Manolo lhe emprestou, comprovou pelas alterações no pó que eram seis as marcas dos livros extraídos recentemente daquela zona e verificou que os restantes volumes concentrados naquele sector eram velhos tomos de leis, de tarifas alfandegárias, de regulamentos comerciais da época colonial, além de uma longa fila de revistas especializadas em temas comerciais, publicadas entre os anos trinta e cinquenta.
— Não posso jurar, mas destes não parece faltar nenhum —, disse a Manolo, indicando-lhe as jóias da biblioteca. — E há livros que valem alguns milhares de dólares...
— Alguns milhares, disseste? Por um livro velho? Quantos milhares?
— Este — apontou para a lombada escura do Libro de los inge-nios — pode vender-se aqui em Cuba por dez mil, doze mil...
— Doze mil dólares? — espantou-se Manolo.
— Pelo menos. Fora de Cuba vale o dobro.
— Porra! — exclamou o capitão, agitado dos pés à cabeça por aquele número. — Esse é mais ou menos o salário que ganharei em toda a minha vida... Por um livro assim matam qualquer um.
— E naquela parte nós não tínhamos tocado, mas ali faltam seis livros. Se os mais valiosos estão cá todos... não percebo. Teriam de ser livros muito especiais...
— E esses seis...?
— Vamos perguntar a Yoyi e a Amalia, mas eu não os tirei. Talvez Dionisio... Neste momento podem estar em qualquer parte da biblioteca ou podem tê-los levado.
— Mas, podiam ser mais valiosos que aqueles? — aventurou Manolo. — Se há livros de doze mil dólares...
— É possível, mas duvido. Os livros que estão nesse lado são sobre leis e comércio e não creio que haja algum muito importante. Mas duvido sobretudo porque, se fosse para roubar livros depois de assassinar um homem, alguém que conhecesse o negócio teria levado alguns dos que já tínhamos separado. Quem leva seis livros, leva dez. De modo que, se levou os seis que faltam ali, não o fez por serem especialmente caros, mas porque tinham algum valor muito particular para alguém, e isso podia ser apenas pelo que diziam e não por serem mais ou menos antigos ou pela sua raridade... A menos que não fossem livros, mas alguns manuscritos significativos por alguma razão — concluiu, pensando que a lógica se opunha, impertinente, à teoria de que no sector dos livros sobre leis e comércio estivessem peças merecedoras de um cofre: a finíssima e bastante bem cotada Tarifa general de precios de medicinas, considerado o primeiro texto impresso na ilha?
— Nesse caso que suposições fazes?
— Se calhar Dionisio, excitado como andava com o dinheiro que os livros lhes estavam a dar, tirou seis que lhe pareciam muito valiosos e pô-los noutro lado ou vendeu-os mesmo nas nossas costas e nas costas da irmã... Mas é uma suposição. Se fez uma coisa do género, o dinheiro tem de estar nalgum lado.
— Apesar do que tu dizes, não podemos pensar que esses seis livros fossem realmente muito valiosos e por isso o assassino se tenha conformado com eles, sabendo, além do mais, que vocês não faziam ideia de que livros se tratavam?
— Tudo pode acontecer. Queres que te diga uma coisa? — Em silêncio, Conde observou a biblioteca. — Quando entrei neste quarto, há quatro dias, tive o pressentimento de que aqui havia ou há alguma coisa muito especial. Depois comecei a ver estes livros e julguei que podia ser simplesmente isso, exemplares muito bem cotados. Até pensei nalgum manuscrito ou nalgum livro perdido que pudesse mudar muita coisa... Quando encontrei a fotografia da cantora de boleros, quis acreditar que era essa fotografia e a sua história perdida... Mas agora tenho a certeza de que não eram esses livros, nem um manuscrito raro nem a fotografia. Era alguma coisa que, se calhar, já cá não está.
— E que raio poderia ser?
— Se eu fosse adivinho... Além disso, Dionisio ou a irmã disseram-me uma coisa importante sobre esta biblioteca, mas não consigo lembrar-me de que diabo foi...
— Vou pedir àqueles cientistas de merda que tratem de precisar se terá sido ontem que esses livros saíram daí. Se calhar até se pode saber se os levaram antes ou depois de vocês terem cá estado a trabalhar.
— Acho bem.
Manolo estendeu a mão e aceitou as luvas que Conde acabara de tirar. Os olhos de ambos encontraram-se até Manolo ter desviado o olhar.
— Isso de haver aqui livros com tanto valor não é bom, Conde... Sabes, preciso que venhas comigo à Central. Por causa das impressões digitais e...
— Não te preocupes, Manolo. Só te peço uma coisa: que não sejas tu a interrogar-me... Agora mesmo, assim calminho como me vês, tenho vontade de te agarrar pelo pescoço e de dar-te cabo da vida. E tu sabes que, quando enlouqueço, sou bem capaz de o fazer.
Mário Conde voltou a cara, evitando o olhar implorante de Yoyi, o Pombo. Sentiu que as têmporas lhe latejavam diante da humilhação à qual era, profissional e eficientemente, submetido. A especialista em identificação foi colocando cada um dos seus dedos na almofada de tinta e levando-os depois, como peixes inertes, até ao papel quadriculado com dez espaços ávidos, onde foram ficando marcadas aquelas impressões pessoais, as marcas de um homem agora cadastrado, chamado Mário Conde, de alcunha «o Conde», nascido em... filho de... morador em... Nunca até esse instante preciso o antigo polícia tinha compreendido totalmente as proporções do vexame a que era submetido um ser humano quando passava por aquelas formalidades infamantes, só na aparência menos dolorosas, mas em última instância similares, às da rês prestes a receber uma chapinha na orelha. Agora, apesar da sua sabida inocência, tinha passado a ser mais um nome na lista útil das pessoas registadas nos arquivos policiais e, em cada investigação, aquelas marcas passariam pela memória fria de um computador, com a esperança maligna de que coincidissem com algumas impressões incriminatórias.
Decidido a devolver a cor natural aos dedos com um trapo nojento, Mário Conde teve a plena e atormentada consciência das centenas de vezes que colocara outros homens, culpados e inocentes, perante aquele mesmo processo degradante e sentiu uma vergonha retrospectiva mais daninha que a provocada pelo seu próprio vexame. Compreendeu de chofre, pois agora trazia-as agarradas à sua pele manchada, as razões dos olhares enviesados, carregados de ódio, dos homens submetidos por ele a semelhantes humilhações, e pensou que durante demasiados anos tinha exercido um ofício demolidor. Embora soubesse desde sempre que os polícias eram uma mcómoda necessidade social, encarregados umas vezes de servir e proteger — como dizia um certo lema, um dos mais eufemísticos que alguém poderia conceber — e muitas outras de reprimir e preservar os foros do poder — a sua missão mais real, embora ninguém o proclamasse dessa forma tão descarnada —, acabara de compreender da forma mais dramática por que razão os alistados naquele grémio são rejeitados em todo o lado e momento. Insistindo na limpeza dos dedos, Mário Conde farejou o horizonte da sua consciência, esperando ver a tábua de salvação, disposta a convencê-lo de que tinha sido, sempre, um polícia honesto, incapaz de utilizar a violência sobre outros homens, alheio à prepotência, com a certeza romântica de estar a fazer um trabalho empenhado em ajudar a melhorar minimamente o mundo. Mas a convicção recusava-se a vir em seu auxílio, deixando-o afundar-se na tormentosa evidência de que, ao fim e ao cabo, tinha sido polícia — talvez demasiado cerebral, quase brando —, e tinha feito parte daquela confraria opressora que agora lhe clarificava as suas últimas e mais
reais essências.
Sem forças para se opor, deixou-se levar pelo sargento Atilio Estévanez através dos corredores da Central de Investigações Criminais, em cujas paredes ecoavam ainda as histórias das suas soluções prodigiosas de casos intrincados, atribuídos sempre por um chefe mítico, traiçoeira e permanentemente suspenso pela direcção do Departamento de Assuntos Internos e que respondia pelo nome ainda impronunciável de António Rangel. É verdade que fora sempre justo? Quis acreditar que sim, para recuperar um pouco a sua devastada auto-estima, pois Conde sabia que se dirigiam para uma das salas de interrogatórios e que aí ia precisar dela em quantidades enormes.
Quando entrou naquele recinto opressivo, o sargento Estévanez indicou-lhe uma cadeira, atrás de uma mesinha de fórmica. Conde sentou-se, no lado oposto ao sítio que costumava ocupar quando era ele quem efectuava os interrogatórios, e olhou para o espelho situado diante dos seus olhos. Calculou que Manolo tivesse adiado a sua conversa com Yoyi para se instalar, se calhar junto de algum dos chefões, atrás daquele vidro que dividia o cubículo dos interrogados da sala de oficiais e testemunhas, marcando uma linha fronteiriça férrea entre os poderosos e os despojados de qualquer poder.
— Lamento muito — disse o sargento Estévanez, como se na realidade fosse possível —, mas temos... são algumas perguntas, mais rotina que outra coisa... O capitão Palácios pediu-me que lhe dissesse que é uma declaração, não um interrogatório... Você diz que ontem à noite esteve sozinho em sua casa. Alguém o viu, lhe telefonou...?
O sargento surpreendeu-se ao ver que, com as suas últimas palavras, Conde se punha de pé como que impelido por uma mola, fazendo cair a cadeira, e se dirigia já para o espelho, onde bateu duas vezes, violentamente, com a palma da mão.
— Manolo, vem para aqui.
Conde voltou para o seu lugar e, antes de lá chegar, a porta abriu-se e o seu antigo parceiro entrou.
— Não podiam conversar comigo noutro lado? Tinha de ser aqui, numa sala de interrogatórios, como se eu fosse um cabrão de um assassino? — A sua voz ouvia-se iracunda e cortante. — Isto é recolher uma declaração? Não me lixes...
— Compreende-me, Conde, isto agora é diferente de quando nós...
— Diferente o caralho, rapaz, o caralho. — A onda de indignação devolveu-lhe as forças perdidas, saltou por cima dos sentimentos de vexame e espalhou-se incontrolavelmente.
— Sai por um momento, Atilio — pediu Manolo a Estévanez, e acrescentou, olhando para o vidro: — Quero que nos deixem sozinhos e que desliguem a aparelhagem, entendido?
Manolo esperou alguns segundos e, como costumava fazer nos velhos tempos, instalou uma nádega na beira da mesa.
— Acalma-te, porra...
— Não quero acalmar-me. Passei demasiado tempo calmo e agora quero estar bem chateado.
Manolo suspirou, estalou a língua, abanou a cabeça numa negativa.
— Posso pedir-te perdão?
— Não — disse Conde, sem olhar para ele. — Nem penses.
— Era uma formalidade, Conde. Há coisas que temos de saber... Tu achas que eu poderia pensar que tu...? Não percebes que agora tenho chefes que nem na sua própria mãe acreditam?
— Foi a coisa mais humilhante por que passei na minha vida...
— Imagino.
— Não imaginas, não podes. E se imaginas, é pior, porque sabes o que me fizeste.
— Por isso te peço perdão, porra — lamentou-se Manolo.
— Lixaste-te comigo, deitaste tudo a perder...
— Bolas, Conde, não é para tanto. Não te armes agora em vítima... Vamos lá ver, isso quer dizer que não me vais ajudar? — havia uma súplica conhecida na voz do capitão.
— Não, nem penses nisso — disse Conde, protegendo-se na sua indignação e aproveitando a vantagem que conseguira. — Diz antes que te vou lixar... porque vou averiguar quem matou Dio-nisio Ferrero antes de o descobrires. E vou demonstrar a todos os idiotas como tu e como os teus chefes quem é melhor investigador.
Manolo sorriu com algum alívio. Conde armava-se, justamente como seria de esperar.
— Está bem, está bem. É isso que queres? Pois vamos ver quem o encontra primeiro... Mas aviso-te: vai ser um prazer esfregar-te na cara quem é o melhor. Porque, já que estamos a jogar a doer, vou recordar-te uma coisa: quando trabalhávamos juntos, com a história de que eras meu chefe e meu amigo, sempre me deste a merda e ficavas com os casos para ti. A mim punhas-me a rever arquivos, como um imbecil, porque achavas que eu não...
— Isso é mentira — protestou Conde.
— Isso é verdade e tu sabes bem disso. Mas agora vamos ver quem é quem à frente de uma investigação.
— Estás a falar a sério?
— O que achas? E aviso-te: eu sou polícia e vou fazer o meu trabalho, passando por cima de quem quer que seja. Não gosto que filhos da puta façam coisas e não paguem por isso... Lembras-te?... De modo que se o teu sócio Yoyi estiver metido nisto...
Conde acendeu um cigarro e observou Manolo. Recebeu, como um clarão, a sensação de que voltavam a trabalhar juntos, mas afastou imediatamente essa ideia.
— Mas tu ainda acreditas que Yoyi pode ter sido...?
— Ainda não acredito em nada. Mas quem matou Dionisio conhecia-o e essa biblioteca vale muito dinheiro.
— Continuas a pensar que foi para levar alguns livros?
— Não sei — admitiu Manolo. — Vou investigar. E vou descobrir antes de ti quem matou Dionisio Ferrero. Isso é uma certeza.
O sol do meio-dia parecia disposto a derreter o pavimento quando Yoyi, o Pombo, abandonou a Central de Investigações. Mário Conde atirou o cigarro e despediu-se da pedra onde esteve sentado mais de duas horas, à sombra dos ficos-chorões plantados na rua que passava por um dos lados do prédio.
— Vê lá tu a chatice que arranjámos, pá... Estes polícias são uns chatos, perguntam tudo. Até sobre o carro, sobre as correntes de ouro... E o teu amigo Manolo é o pior, quando morde não larga. Eu pensei que me iam deixar de molho, juro-te.
— É sempre assim. Não têm nada e estão à procura de qualquer coisa que lhes sirva — sentenciou Conde, enquanto ambos desciam a avenida. — Quando estão perdidos são mais perigosos. Se te soltaram é porque não têm nada.
— Têm alguma coisa — sussurrou Yoyi e Conde interrogou-o com o olhar. — Dionisio tinha no bolso das calças um papel com o meu número de telefone. Escrito por mim...
— Não percebo — sussurrou Conde.
— Eu dei-lhe o meu número de telefone, por via das dúvidas...
— Ias fazer negócio nas minhas costas?
— Não, Conde, juro-te... Era por via das dúvidas.
— Com que então, por via das dúvidas... Pois meteste a pata, Yoyi.
— Agora disseram-me que tinha de estar contactável.
— Não te preocupes com isso. A mim também.
— Quem pode ter sido, Conde?
— Até agora há quatro pessoas com muitas possibilidades... e tu e eu já somos dois. Amalia e o homem que esteve lá ontem são outros dois... Mas pode ter sido outra pessoa... De qualquer forma, foi alguém que Dionisio conhecia.
— Mas, por que diabo quereríamos matá-lo? Isso só nos complica o negócio... Dás-te conta, pá?
— Eles também se dão conta. Sabem que não precisávamos de matar Dionisio por causa de uns livros que podíamos comprar-lhe a três ou quatro dólares cada... Mas nós, polícias, sabemos que às vezes acontecem coisas estranhas. Por exemplo, um futuro assassino e um aspirante a cadáver põem-se de acordo para fazer negócios e …
— Não me lixes mais com isso. A única coisa que fiz foi dar-lhe o meu número de telefone... Mas percebo-te. Repara no que estás a dizer. Disseste: nós, polícias, sabemos...
— Disse isso?
Yoyi acenou com a cabeça.
— Se de polícia me restava alguma coisa, hoje mataram-no lá dentro.
— Eu acho que os chateia muito nós ganharmos num dia o que eles ganham num mês, e sem ter chefes nem reuniões do sindicato...
— Isso é verdade. Mas há polícias que gostam de fazer bem o seu trabalho. Manolo...
— E o que aconteceu com o negro coxo que lhes foi comprar livros?
— Vamos averiguar quem é — disse Conde. — Essa é a única pista que temos porque, ao que parece, tiraram seis livros da parte que ainda não tínhamos visto e, se calhar, foi isso que o assassino de Dionisio veio buscar... a chatice que me deixa obcecado é esse pressentimento que tenho desde que entrei na biblioteca dos Ferrero. É um pressentimento do caraças. Tenho-o cravado aqui — e apontou para o ponto exacto do peito onde a premonição continuava a arder-lhe. — Ali havia qualquer coisa estranha e, não sei porquê, continuo a pensar que tudo isto tem relação com Violeta Del Rio...
— E tu a dares-lhe, pá. Que raio pode haver entre a Violeta que se suicidou há quarenta anos e este morto de agora?
— Não sei, mas os pressentimentos são assim, às vezes não têm pés nem cabeça e, quando vamos ver, descobre-se a careca.
— Já te disse que estás louco, não é verdade, pá?
— Dizes-me três vezes, todos os dias — contabilizou Conde e indicou a Yoyi um quiosque de café. — Vais ajudar-me a descobrir quem matou Dionisio e a saber o que havia nessa biblioteca e que nós não vimos?
Yoyi pediu dois cafés e olhou fixamente para Conde, sem deixar de acariciar a protuberância óssea do peito.
— Vamos brincar aos polícias e ladrões?
— Não sejas imbecil, Yoyi. Às vezes és um relâmpago e noutras deixas-te dormir. Não percebes? Tu e eu estamos na rua por favor e um culpado faz sempre falta. Não percebes que esse papelinho com o teu número de telefone te coloca numa alhada?
— Mas se eu não fiz nada... Tenho de o jurar?
— Não jures nada e trata de te preparar para me ajudares. Tu vais investigar de onde saiu esse negro alto interessado em comprar livros e eu vou ver o Silvano. Não adoras fazer bons negócios? Pois o melhor negócio agora é aproveitar a vantagem que temos, porque sabemos coisas que eles não sabem. Vamos nós próprios investigar o que aconteceu ontem à noite em casa dos Ferrero. Porra, para o caraças, este café sabe a merda...
24 de Dezembro
Meu querido:
Que mais posso desejar-te, numa data, tão importante? Que hoje tenhas toda a felicidade do mundo e possas partilhá-la com os teus filhos, aí onde estás. Como gostaria (é o meu maior anseio) que essa felicidade a partilhasses comigo, com todos os teus filhos, livres de segredos já pesados de mais e com os olhos postos no futuro e não no passado.
As festas de Natal e Ano Novo tornam-me sempre mais vulnerável e desta vez senti-me mais frágil do que nunca. Alguma coisa estranha está a passar-se comigo, não sei se pela data, se pela acumulação de mágoas, porque à noite tenho até a sensação de ouvir vozes que me falam de culpas, de pecados, de traições, às vezes com uma nitidez tão grande que me obrigam a acender a luz de leitura e a olhar à minha volta, para encontrar sempre a mesma solidão.
Creio que tudo isto começou a desencadear-se com a visita que me fez, há pouco mais de uma semana, aquele polícia insistente, lembras-te? O encarregado de investigar o que aconteceu. O maldito veio ver-me para me dizer exactamente o mesmo que pensas tu: ele está convencido de que aconteceu alguma coisa que não consegue descobrir, mas atreve-se a jurar que ela não se suicidou, mesmo sem ter qualquer prova concreta que apoie a sua convicção. Depois de atirar com isso, explicou-me que na realidade tinha vindo para dizer que, por ordem dos seus superiores, o caso ia ser encerrado, ou seja, que a investigação não continuaria, apesar das suas dúvidas, no entanto, enquanto bebia o café que lhe preparei, perguntou-me muitíssimas coisas, quase as mesmas que nos perguntou de outras vezes, acerca das amizades dessa mulher, possíveis inimigos, dívidas do passado, dependência de drogas e, evidentemente, motivos possíveis para o suicídio. Eu contei-lhe novamente o que sei, com toda a minha sinceridade mas sem mencionar outras histórias que continuo a pensar não terem relação com a sua morte, sabes a que me refiro.
Mas as suspeitas desse homem, as tuas dúvidas e as vozes que falam de culpas estão a fazer estremecer as minhas convicções. Embora haja uma coisa totalmente clara para mim (a minha inocência e, nem épreciso dizê-lo, a tua), comecei a pensar sobre o que aconteceu nesses dias, procurando alguma área obscura, algum pormenor que tivesse escapado à rotina habitual, a tentar encontrar, se é que existe, o indício de que a sua morte foi provocada por uma pessoa disposta a precipitar esse desenlace.
Pensei, evidentemente, que alguém como ela, apesar do passado infeliz de criança órfã que te contou, da sua fábula de rapariga decente desesperada por cantar e triunfar, com certeza deixou para trás inimizades e ódios. Mais tarde, a transformação que trouxeste a vida dela pode ter despertado esses ressentimentos em alguém decidido a vingar-se por uma dita que, pensava, ela não merecia.
O mais terrível, por tudo o que nós sabemos, é como esse retrato insiste em desenhar o meu próprio rosto. Mas saber-me inocente só me ajuda a perder essa falsa imagem, sem que me sirva para encontrar outra, se é que existe. Alguma das suas amigas poderia ter sido a culpada? Talvez essa rameira que a visitava e até a acompanhava a comprazer-se com o teu dinheiro e se atrevia mesmo a fazer-se passar por uma senhora quando todos sabiam a que se dedicava quando vocês a conheceram... Mas porque o faria? Era ou não era amiga dela? A inveja pelo destino da tua amante seria suficiente para levá-la a preparar o caminho da sua morte? Oportunidades não lhe faltavam. Ela entrava e saía de casa dessa mulher quando queria, usava o apartamento mesmo para passar as tardes com o teu amigo Louis e tinha a confiança necessária para vagabundear por aí. Mas o motivo de agir só por inveja não me parece suficiente porque, em última análise, matando-a, teria matado a galinha dos ovos de ouro, uma vez que, quando essa mulher se transformasse em tua esposa, como tinhas decidido, a outra perdulária poderia viver A sombra de uma velha amizade graças à qual conseguiria obter sabe Deus quantas vantagens, além daquelas de que já desfrutava devi do a tua gratidão por ter sido a pessoa que te colocou no caminho dessa mulher.
28 de Dezembro
Meu querido:
As vozes perseguem-me, obcecada como estou por saber. Há alguns dias interrompi esta carta porque uma dor de cabeça pavorosa já me impedia de escrever. Hoje, mais calma, trato de terminá-la, mas só para te dizer que uma voz me acordou ontem à noite dizendo-me que a minha culpa é não saber o que devia saber e que o meu castigo será saber o que nunca teria querido ou devido saber. A que se referiria? Não sei, mas juro-te que, com ou sem essas vozes, com ou sem o teu consentimento, continuarei a procurar a minha única salvação: a verdade. Mesmo que seja a mais terrível das verdades.
Desejo que desfrutes de um lindo Fim de Ano. Vivemos doze meses infames, com desgraças de todo o tipo, rematadas com a tua distância há mais de três meses. Espero que estes dias de festas e jubileus sagrados dêem um pouco de paz à tua alma e possas ter uma pausa com felicidade. Eu, na minha solidão, continuo a consolar-me com a ideia de que rapidamente estaremos noutro ano que será um ano favorável para cada um de nós.
Desejo-te toda a felicidade do mundo, toda, toda, porque te ama...
A tua Pequena
Um dos privilégios que Mário Conde não se cansava de agradecer à vida era o de ter três ou quatro bons amigos. Os seus quase cinquenta anos gastos no mundo tinham-no ensinado, às vezes de uma forma perversa, que poucos estados são tão frágeis como o da amizade. Por isso protegia, como um fundamentalista, a sua sedimentada fraternidade com Carlos, o Magricela, com Candito e com Coelho, pois considerava-a um dos seus bens supremos. Há vários anos, a partida de Andrés para os Estados Unidos provocou nos amigos restantes um sentimento de mutilação, mas tivera, ao mesmo tempo, o efeito secundário benéfico de os aproximar mais, de solidificar as suas cumplicidades, de os tornar mais tolerantes uns com os outros e de os transformar em militantes empedernidos da amizade eterna.
A ameaça permanente resultante da deterioração física de Carlos fazia com que Conde se comportasse com uma avareza doentia na sua proximidade com o velho amigo, a quem dedicava todo o tempo possível, consciente de que fazia o melhor dos investimentos para o vazio de um futuro cujo prazo de chegada se tornava cada vez mais curto.
Apesar da insistência de Carlos, empenhado em que o amigo utilizasse algum tempo para a escrita das histórias que concebia e que, com frequência, prometia redigir, Conde sentia-se extremamente realizado quando gastava as tardes e noites em conversas preguiçosas, nas quais se lançavam pelos labirintos imprevisíveis da memória, numa perseguição obstinada de um estado de graça talvez imaginado, mas que eles insistiam em rastrear num passado de aparência amável, quando eram alimentados por sonhos, projectos e desejos há muito tempo triturados pela realidade. Nessas conversas repetitivas sem ânsias de descoberta, aqueles homens deixavam-se levar pela ilusão de que, um dia, tinham sido verdadeiramente felizes e enquanto falavam, bebiam, recordavam, ficavam a salvo do desespero e ressuscitavam os momentos mais gratos das suas pobres vidas.
Naquela noite, lamentando a ausência de Coelho, Conde dedicou-se a contar a Carlos e a Candito os últimos acontecimentos em que se vira envolvido e a reflexão cáustica sobre o ofício policial, que fizera enquanto era identificado. No fim confiou-lhes a decisão que tomara nessa tarde depois da conversa com Silvano Quintero: empreenderia a busca da outrora famosa Flor de Lótus, na realidade chamada Elsa Contreras, de cuja existência o jornalista tivera notícias difusas mas fiáveis há cerca de dez anos.
— De modo que, apesar de tudo, voltas a ser polícia mas sem seres polícia? — perguntou Carlos, sorrindo e servindo-se de uma dose de rum autêntico que agora podiam beber graças às possibilidades económicas de Conde:
— Ironias do destino, como diria um bom bolero. Embora tu o tenhas dito: sem ser polícia.
— Queres que te ajude a procurar essa mulher? — ofereceu-se Candito e Conde abanou a cabeça.
— Não, para já não. Se calhar depois vou precisar que me dês uma mão, mas prefiro começar sozinho. Não quero levantar poeira para não afugentar a caça.
— E achas a sério que aquela história tem ligação com esta? — quis saber Carlos.
— Não sei a ponta de um corno, Magricela. De qualquer maneira gostaria de saber o que aconteceu a Violeta Del Rio. Ontem prometi a mim mesmo esquecer-me dela, mas agora essa mulher não me vai sair daqui — e bateu na testa com a palma da mão — até saber por que raios se suicidou. Ou a assassinaram...
— Bateu-te com força — disse Candito e Conde moveu afirmativamente a cabeça, ponderando se teria chegado o momento de contar a estranha história da paixão platónica do seu pai. Mas optou por mantê-la enterrada.
— Desde que soube da existência dessa mulher, aconteceu-me uma coisa muito estranha. Foi como se alguma vez tivesse sabido coisas dela e depois as tivesse esquecido. Não sei onde fui buscar essa ideia, mas se conseguir saber o que lhe aconteceu, se calhar descubro a origem dessa sensação... Depois, quando ouvi o disco, Violeta complicou-me ainda mais a vida.
— Eu também teria gostado de a ver cantar. Agora ninguém canta assim, não é verdade? — comentou Carlos.
— Será por isso que passamos a vida a ouvir os mesmos cantores, há já vinte anos? — perguntou Candito.
— Vinte? — quis precisar Conde. — Trinta e... Bolas, somos uns velhos de merda.
— Lembras-te, Carlos, quando fecharam os clubes e os cabarés porque eram antros de perdição e resíduos do passado? — recordou Carlos.
— E para compensar, mandaram-nos cortar cana nas safras dos anos setenta. Com tanto açúcar íamos sair de uma vez do subdesenvolvimento — evocou Candito. — Estive a cortar cana todos os dias de Deus durante quatro meses.
— Às vezes ponho-me a pensar... Quantas coisas nos tiraram, nos proibiram, nos recusaram durante anos para acelerar o futuro e para que fôssemos melhores?
— Uma data delas — disse Carlos.
— E somos melhores? — quis saber Candito, o Ruivo.
— Somos diferentes: temos três patas ou só uma, não sei bem... O pior foi terem-nos tirado a possibilidade de viver ao mesmo ritmo que viviam as outras pessoas no mundo. Para nos protegerem...
— Sabem o que mais me lixa? — interrompeu-o Coelho, revelando os dentes à porta do quarto. — Terem-nos desbaratado o sonho de podermos ir a Paris com vinte anos, que é quando ir a Paris é bom... Agora podem meter Paris no cu e Bruxelas também, se ainda houver lugar.
— Que tal, Coelho? — cumprimentou-o Conde, estendendo-lhe a garrafa de rum, depois de se servir.
— Estivemos a viver durante todo o tempo, todos os dias, a responsabilidade de um momento histórico. Empenharam-se em obrigar-nos a ser melhores — disse Coelho, mas Conde negou abanando a cabeça, quase sem se poder conter.
— Então, por que razão há agora tantos jovens que querem ser rastafáris, roqueiros, rappers e até muçulmanos, que se vestem como se fossem palhaços, que se maltratam enchendo-se de argolas e tatuando-se até aos olhos? Por que razão há tantos a meter drogas duríssimas, tantos que se prostituem, que se tornam chulos, travestis e usam crucifixos e colares de santería sem acreditar nem na puta que os pariu? Por que razão há tantos cínicos que juram por uma coisa e acreditam noutra e tantos que só vivem a ver o que podem roubar para terem dinheiro sem trabalhar muito? Por que razão há tantos que querem sair daqui?
— Eu tenho um nome para isso — retomou a batuta o historiador do grupo: — cansaço histórico. De tanto viver aquilo que é excepcional, histórico, transcendente, as pessoas cansam-se e querem a normalidade. Como não a encontram, procuram-na pelo caminho da anormalidade. Querem parecer-se com outros e não com eles próprios, por isso são rastafáris, rappers ou o que quer que seja, e enchem-se de drogas até aqui... Não querem pertencer, não querem ser bons à força. Não querem, sobretudo, parecer-se connosco, que somos seus pais e uns fracassados de merda...
— Os que mais me lixam não são esses — reflectiu Conde. — Os que me põem doente são os que querem parecer perfeitos, confiáveis, mas que não passam de oportunistas de merda.
Coelho concordou e bebeu um gole porque qualquer coisa espinhosa e ácida se recusava a deslizar pela garganta.
— Já se puseram a pensar em que tipo de país nos calhou viver? Sim? Não? — Esperou uma resposta que não chegou e concluiu: — Pois deveriam fazê-lo. Este é um país condenado à desproporção. Foi o próprio Cristóvão Colombo quem começou a lixar tudo, quando disse aquilo de esta ser a terra mais bela e tudo o que lhe veio atrás. Tivemos então a sorte geográfica, histórica, de estar onde estivemos no momento em que estivemos, e a felicidade ou a desgraça de ser como somos, e já vêem, até houve uma época em que conseguíamos produzir mais riquezas do que as necessárias e nos julgámos ricos. Como se isso não bastasse, produzimos mais génios do que aqueles que devíamos por habitante e por metro quadrado e julgámo-nos melhores, mais inteligentes, mais fortes... Esta desproporção é também a nossa maior condenação: colocou-nos no meio da História. Lembrem-se de que Marti queria equilibrar o mundo a partir daqui, todo o mundo, o mundo inteiro, como se tivesse nas mãos a merda da alavanca que Arquimedes pedia. É em resultado disso que somos tão históricos e, além disso, não só nos julgamos os melhores, como às vezes até o somos. E aí estão as consequências... Sentido histórico e má memória, indolência e predestinação, grandeza e ligeireza, idealismo e pragmatismo, para equilibrar a carga com virtudes e defeitos, não é? Mas no fim de tudo chega o cansaço. O cansaço de sermos tão históricos e predestinados.
— Cansaço histórico — Conde aferiu a definição de Coelho, acabou o seu copo de rum e olhou para os amigos, exemplares agonizantes da síndrome do cansaço histórico adquirido: Magricela que já não era magricela, com a medula destroçada numa guerra, evidentemente histórica, da qual já ninguém falava; Coelho, desmazelado, com os dentes cada vez maiores a espreitarem da sua caveira evidente, ainda capaz de teorizar sobre a desproporção insular mas sem nunca ter escrito nenhum dos livros de História que sonhou escrever; Candito, o Ruivo, historicamente ancorado no buliçoso cortiço onde tinha nascido, passando fome desde que renunciara aos múltiplos negócios ilícitos e se empenhara em procurar respostas transcendentes numa crónica escrita há dois mil anos, onde se falava de um fim do mundo temperado com castigos terríveis para todos os que não entregassem a sua alma ao Salvador; e Andrés, o ausente presente Andrés. Como era possível que, para curar radicalmente as suas nostalgias, para apagar a sua própria história e ludibriar o seu esgotamento histórico tivesse decidido que o melhor era nunca mais voltar à ilha, nem sequer para ver um jogo de baseball no estádio de Havana, para uma sessão de copos, música e conversa com aqueles amigos que, apesar de mutilações, frustrações, crenças e descrenças, cansaços históricos e fomes físicas e intelectuais, nunca se recusavam a partilhar uma noite de evocações, com a consciência vaga mas latente de que, sem a preservação dessa fraternidade, talvez se tivessem esquecido de viver há muito tempo?
— A vida estava a passar-nos ao lado — disse Coelho — e para nos protegerem puseram-nos palas, como às mulas de carga. Só podíamos olhar para a frente e caminhar em direcção ao futuro luminoso que nos esperava no fim da história e, claro, não nos podíamos cansar no caminho. O único problema é que o futuro estava muito longe e o caminho era uma ladeira empinada cheia de sacrifícios, proibições, recusas, privações. Quanto mais avançávamos, mais a ladeira se tornava íngreme e mais longe ficava o futuro luminoso que, além disso, se foi apagando. Ao grande cabrão acabou-se-lhe a gasolina. Às vezes penso que nos ofuscaram com tanta luz que passámos ao lado do futuro sem o vermos... Agora que estamos a meio do círculo e estamos a ficar cegos, além de calvos e com cirrose, já não temos muito para ver nem muito que procurar.
Ouvindo Coelho, Conde sentiu como a boca se lhe alagava com o sabor agridoce de uma tristeza incomensurável.
— Sempre se pode procurar Deus — sentenciou Candito.
— Ninguém está a cuidar de nós, Ruivo. Estamos completa-mente sós — rebateu Conde.
— Tu não acreditas em milagres?
— Já não. Mas confio nas premonições. É por uma delas que estou decidido a saber o que aconteceu a Violeta Del Rio — concluiu Conde, em cujo espírito voltou a pairar, nesse instante, a sensação de que lhe faltava uma causa realmente plausível para aquela busca de ressonâncias absurdas, e por isso aventurou a primeira razão que lhe veio à boca. - Quero saber porque foi engolida pela história.
Sem se preocupar com os motivos porque o fazia — na realidade não lhe interessava sabê-lo —, levado talvez pela mistura do álcool com as essências persistentes de certos fantasmas e fascínios, Conde mandou parar o carro de aluguer no sentido contrário ao da sua casa e pediu ao motorista que o levasse à esquina da calle 23 com a L, ou a qualquer outra esquina capaz de juntar as mesmas cifras evocativas. Descobriu com agrado que, mesmo àquela hora final da noite, a intersecção onde palpitava o coração acelerado da cidade continuava a abarrotar de jovens difusos e de adultos caçadores de presas proibidas. Na entrada e nos arredores do cinema, e do outro lado da rua, perto do gradeamento destinado a proteger os jardins da geladaria, uma humidade insone deslizava sob o olhar sonolento de vários pares de polícias. Gays de todas as tendências e categorias, roqueiros sem palco nem música, ferozes caçadores e caçadoras de estrangeiros e de dólares, noctívagos aborrecidos com primeiras, segundas e até terceiras intenções pareciam ali ancorados, sem receio da proximidade do amanhecer, como se esperassem alguma coisa desconhecida mas capaz de os arrastar, rua abaixo, quem sabe se até ao mar, ou rua acima, quem sabe se até ao céu.
A nova vida surgida na cidade, depois do letargo profundo em que a afundara os anos mais obscuros da Crise, tinha um ritmo e uma densidade que o antigo polícia não conseguia agarrar. Rappers e rastafáris, prostitutas e toxicodependentes, novos-ricos e novos pobres redesenhavam uma geografia urbana, estratificada em função dos dólares possuídos e que começava a parecer-se com a normalidade, embora sempre o fizesse interrogar-se qual era a vida real, se aquela que ele conheceu na sua juventude ou a que agora presenciava, já num tempo de maturidade e de ilusões desterradas.
Sem intenções de procurar uma resposta satisfatória, Conde afastou-se do bulício nocturno e dirigiu-se para a ladeira de La Rampa, com os limites cronológicos da nostalgia situados para lá da sua memória pessoal, muito para além da sua mais remota recordação, e tratou de encontrar os rastos ainda visíveis de uma cidade rutilante e pervertida, de um planeta longínquo, conhecido de ouvido, ouvido em discos esquecidos, descoberto em leituras infindáveis, e que nas suas evocações sempre aparecia povoado de luzes, melodias, personagens, clubes e cabarés que, sabia-o agora, há quase cinquenta anos Violeta Del Rio deve ter frequentado, com as suas esperanças a todo o vapor, à procura do seu lugar no mundo.
Passou, sem se deter, à frente do revitalizado anúncio luminoso do La Zorra y el Cuervo, onde um dia aquela mulher cantou, vedado agora a quem não tivesse os cinco dólares norte-americanos capazes de abrir as suas portas e garantir uma cadeira; contemplou a entrada solidamente fechada do La Gruta, de onde já não saía nem o último eco dos acordes antiquados que outrora fizeram retumbar aquela gruta musical quando lá fora começava a despontar o sol; olhou sem especial emoção para as ruínas calcinadas do antigo Mont-martre, proletariamente rebaptizado Moscovo e profeticamente devorado por um incêndio alguns anos antes da desintegração do império; passou, como se fugisse, diante do portão desengraçado do cabaré Las Vegas, onde lhe chamou a atenção a presença de um homem, mais ou menos da sua idade, que olhava com particular nostalgia o sítio agora emparedado onde durante muitos anos se pôde beber o último café das madrugadas havanesas; atravessou, sem esperança, diante da torre coroada pelo Pico Blanco e não ouviu um único harpejo de guitarra; subiu até ao fechado Salón Rojo do Capri, com as portas presas por uma corrente e, finalmente, entrou nos jardins do Hotel Nacional, suportando o olhar áspero dos vigilantes, armados com walkie-talkies, que lhe perdoaram a vida deixando-o passar sem fazerem perguntas, embora visualmente o tenham acusado dos defeitos de ser cubano, de não ter dólares, de não pertencer ao ambiente. Parou alguns minutos diante do pórtico luxuoso e também dolarizado do Parisién, o cabaré onde algumas vezes actuaram o imortal Frank Sinatra — para que Luciano, Lansky e Trafficante o ouvissem — e uma jovem esquecida que dava pelo nome de Violeta Del Rio e que cantava pelo prazer supremo de cantar.
Diante da porta do cabaré, reservado ao prazer tropical de efémeros hóspedes estrangeiros, acompanhados pelas suas complacentes namoradas tarifadas e de produção nacional, Conde sentiu, pela primeira vez nos seus quase quarenta e oito anos de vida, que esta era uma transumância por uma cidade desconhecida, que não lhe pertencia e que o empurrava, excluindo-o. Aquele cabaré não era seu, nada no seu ambiente visível o tornava apelativo ou desejado. O ar da noite, a caminhada e aquela sensação de estranheza tinham-no libertado do feitiço etílico, mas uma lucidez incómoda apoderara-se do seu maltratado coração disposto a fazê-lo compreender que, excepto por alguma lembrança quase extinta, Violeta Del Rio e o seu mundo de luzes e sombras já não viviam naquela direcção, tinham partido sem deixar outra referência além dos resíduos físicos de palcos fechados, queimados ou inacessíveis, mesmo para a memória de alguém obstinado em opor-se ao esquecimento derradeiro. O fascínio de Conde por aquele mundo foi definitivamente ferido de morte e ele compreendeu que a única forma de o resgatar era dando a si próprio a satisfação onanista de descobrir as verdades finais de Violeta Del Rio e as razões do seu reaparecimento dentro de um livro de receitas impossíveis, encontrado numa biblioteca não menos impossível.
Com a alma dorida, Conde voltou à rua e observou a paisagem de edifícios anteriormente vaidosos da sua modernidade, vergados agora por uma velhice prematura. Contemplou, a um passo do asco, a jovenzinha sempre sorridente que, encostada a uma parede, se deixava cortejar por um velho de aspecto nórdico a quem chamava mi chino!(1) Ouviu a barulheira dos rapazes que, subindo a íngreme calle O, exteriorizavam aos gritos o seu júbilo possivelmente narcotizado e davam pontapés nos sacos de lixo que encontravam pelo caminho. Alarmou-se com a passagem veloz do Lada reluzente, com a música da sua aparelhagem no volume máximo, como que decidido a demonstrar uma alegria ostentosa, pré-fabricada. Desceu até à calle 23 e viu passar ao seu lado dois polícias armados com gigantescos pastores-alemães. Olhou em seu redor e teve a certeza nervosa de estar perdido, sem a mais pequena ideia do rumo que deveria tomar para sair do labirinto em que a sua cidade se tinha transformado e compreendeu que ele também era um fantasma do passado, um exemplar em perigo galopante de extinção colocado naquela noite de extravios perante a evidência
*1. Chino: chinês ou, mais genericamente, oriental. No entanto, mi chino é um epíteto amoroso, tal como mi negro, por exemplo. (N. da T.)
do fracasso genético, encarnado por ele próprio e pela sua brutal desorientação entre um mundo esbatido e outro em decomposição. Ao fim e ao cabo, pensou Mário Conde, Yoyi andava perto, mas não tinha razão: não é que ele fosse tão inconcebível a ponto de parecer uma mentira. Não, ele próprio era uma mentira porque, na essência, toda a sua vida não passara de uma obstinada mas falhada manipulação da realidade.
A Calzada de Monte e a mal baptizada calle Esperanza formam uma cunha invertida que, disposta a desgarrar as carnes urbanas mais flácidas, se abre na direcção das entranhas do que antes foi a velha vila amuralhada de Havana. Do vértice que Monte e Esperanza quase conseguem formar, nas imediações do antigo Mercado Único, até ao definhamento de ambas na populosa calle del Egido, sobre o mapa da cidade palpita um triângulo eternamente degradado em cujas entranhas se foi acumulando, ao longo dos séculos, uma parte do refugo humano, arquitectónico e histórico gerado pela capital prepotente, sempre em marcha para oeste, cada vez mais longe daquele reduto de proletários mal pagos, lúmpenes de todas as cores, putas, traficantes e emigrados de outras regiões do país e do mundo, desejosos de uma oportunidade na vida que quase nunca chegaria. A Calzada de Monte — com as suas lojas de libaneses, sírios e judeus polacos, vendedores de retalhos, roupa em segunda mão e bugigangas diversas — marcou, noutra época, a fronteira entre o mundo de esplendores da zona comercial de Havana — com os seus palácios, as suas lojas luxuosas, os seus parques e fontes, os seus teatros, salas de baile e hotéis — e aquele recanto ignóbil dos bairros contíguos de Atares e Jesus Maria, bairros de negros e brancos pobres, com as suas construções baratas e sem assomo de estilo, as suas ruas estreitas, a sua humanidade sempre amontoada, aviltada pela miséria e pela marginalização. Na memória dos havaneses, aquela zona da cidade, frequentemente invadida pelas emanações negras da central termoeléctrica de Tallapiedra, envenenada pelos escapes de gás butano e assediada pelos eflúvios dos meandros mais degradados da baía, era como um território cedido aos infiéis, sem esperanças nem intenções de ser reconquistado. Entre as suas ruas sinuosas, a História parecia ter passado sem se deter, enquanto, geração após geração, aí se atolavam a dor, o esquecimento, a raiva e um espírito de resistência quase sempre desafogado na ilicitude, no pecado, na violência, em busca de uma sobrevivência dura, procurada a todo o custo e por qualquer meio.
Nos seus anos de polícia, Mário Conde sofria intensamente quando alguma das investigações o levava àquele reduto havanês onde nunca ninguém sabia, vira ou ouvira nada, ao mesmo tempo que deixavam claramente estabelecida a sua aversão com os olhares de desprezo que lançavam aos representantes de uma ordem distante, para eles sempre repressiva. A violência como desafogo de frustrações crónicas era ali utilizada como moeda corrente, com a qual se pagava qualquer dívida ou agravo. Aquela era a lei vigente, desde tempos cada vez mais remotos, num território minado onde ser fraco constituía a pior das doenças.
Desde que tinha assumido o ofício de comprador de livros, Conde não voltara a entrar naquele recanto agreste da cidade onde, sabia-o de antemão, teria perdido o tempo — talvez, de caminho, a carteira, os sapatos e até outros bens corporais para ele sagrados — caso se atrevesse a deambular pelas suas ruas em alguma busca suspeita de algo ali tão exótico como um livro à venda. Por isso, embora desconfiasse de que os dias negros da Crise deviam ter sido assanhados naquele triângulo das Bermudas, não imaginava até que ponto se tinha impregnado a degradação gerada por duros anos de maiores carências, supostamente superados pelo país.
Conde abandonou o carro de aluguer no cruzamento agora triste e imundo de Cuatro Caminos — mítico noutra época, pois em cada uma das suas esquinas se erguia um restaurante que concorria em qualidade e preço com os seus equidistantes congéneres — e atravessou dois becos à procura da calle Esperanza. Compreendeu imediatamente a afirmação de Yoyi, o Pombo, de que os domínios do Bairro Chinês eram apenas os primeiros círculos do inferno citadino, pois um primeiro olhar revelou-lhe que estava a penetrar no núcleo de um mundo tenebroso, num buraco escuro que ali perdia o fundo e até as paredes. Respirando uma atmosfera de perigo latente, avançou por um labirinto de ruas intransitáveis como as de uma cidade pós-bélica, repleta de buracos e de escombros; de edifícios em equilíbrio precário, feridos por gretas incuráveis, apoiados em muletas de madeira já carcomidas pelo sol e pela chuva; de caixotes de lixo a transbordar como montanhas infectas, onde os homens ainda jovens remexiam à procura de qualquer milagre reciclável; de matilhas de cães vadios, invadidos pela sarna e sem capacidade estomacal para cagarem na rua; de ruidosos vendedores de abacates, vassouras, molas de roupa, pilhas para lanternas, retretes recicladas e lenha para cozinhar; e daquelas mulheres endurecidas, afiadas como facas, todas vestidas com bermudas de lycra cada vez mais justas, ideais para realçar as proporções dos seus glúteos e o calibre de um sexo exibido orgulhosamente. Uma sensação de estar a atravessar os limites do caos advertiu-o da presença de um mundo à beira de um Apocalipse dificilmente reversível.
Assim que transpôs as fronteiras do bairro, Conde compreendeu que impusera a si próprio uma missão praticamente impossível. Nenhum dos pretextos imaginados — apresentar-se como jornalista, como um parente afastado de alguém, como um funcionário de saúde pública à procura de um doente de sida, como alguém desesperado à procura de um quarto para alugar — lhe ia ser útil quando fizesse as primeiras perguntas e revelasse o verdadeiro objectivo do seu interesse. Por isso, a sua única alternativa para descobrir a pista ténue de Elsa Contreras, a dançarina Flor de Lótus, situada naquela zona pela memória de Silvano Quintero, era que nessa altura estivesse no bairro e não na cadeia — como era seu costume — o seu antigo informador Juan Serrano Ballester, de cognome Juan, o Africano.
Quando chegou diante do prédio do beco do Alambique onde Juan, o Africano, tinha nascido e onde vivera os poucos anos de liberdade gozados na sua desgraçada existência, Conde alegrou-se por não encontrar ninguém na entrada e imediatamente teve de se interrogar por que razão aquele homem passara a vida a praticar roubos, fraudes e assaltos se nunca tinha conseguido superar aquela circunstância essencial: o edifício era uma construção de três andares, de princípios do século XX, sem varandas, com uma face adusta que o fazia parecer um recinto carcerário. Onde alguma vez houve um portão com intenções de separar a rua do corredor e das escadas que davam para os andares superiores, agora restava apenas uma abertura desdentada e Conde calculou que, nos dias mais gelados da Crise, a madeira do marco e da porta devem ter sido consumidas por algum fogão de lenha desesperado. Rente ao chão flutuava um vapor de merda e urina de porco e pelos degraus descia um fio de água também fétida, certamente saída dos canos de esgoto repletos.
Juan vivia no terceiro andar daquele cortiço, num quarto dividido que conseguiu conservar depois de ceder o resto do já opressivo apartamento à guajira(1) guantanamera que lhe parira um par de gémeos. Como o quarto ficava na parte traseira do prédio, era preciso atravessar um corredor estreito, com portas de ambos os lados. Mas uma parte do corredor original, caída durante alguma era geológica remota, tinha sido substituída por duas tábuas sobre as quais, fazendo equilíbrio, se podia aceder aos quartos das traseiras. Enchendo o peito para evitar até a própria respiração durante a passagem através das tábuas, Conde abriu os braços, como um equilibrista, e lançou-se à aventura. No fim, diante da porta que o Africano acrescentara a dar para o corredor, Conde interrogou-se se realmente aquela sua obstinação em querer descobrir os pormenores do destino final de uma cantora perdida fazia algum sentido. A lógica novamente lhe disse que não, embora qualquer coisa indecifrável o obrigasse a continuar. Bateu à porta.
Quando Juan o reconheceu quase se sentiu desmaiar. Saíra da sua mais recente estada na prisão há dois meses, apenas, depois de cumprir uma pena de três anos por burla continuada. Por isso, descobrir aquele polícia em sua casa, saído de um recanto escuro do seu passado, não podia significar outra coisa além de uma desgraça certa.
— Não te assustes, porra, que já não sou polícia — apressou-se Conde a explicar, mas o outro negou, incrédulo, abanando aquela cabeça negríssima e afiada de escultura daomeana. — Juro-te, velho, há mais de dez anos que estou fora...
*1. Guajiro/a: tanto pode significar camponês, como alguém vindo da província para Havana; provinciano, parolo. Dependendo do contexto, pode ser um termo depreciativo ou carinhoso. (N. da T.)
- Juras pela tua mãe? — Desafiou-o o Africano, convencido de que ninguém é capaz de jurar em vão pela mãe, a menos que seja muito, muito obrigado a fazê-lo.
— Juro-te pela minha mãe — disse Conde, lembrando-se de Yoyi e dos seus juramentos. — Estou aqui porque preciso da tua ajuda. E desta vez não é favor por favor. Pago-te em dinheiro — acrescentou, tocando no bolso.
— Expulsaram-te da polícia?
— Não, saí porque quis.
O Africano semicerrou os olhos, processando a informação.
— Já sei, agora estás a trabalhar com estrangeiros e és gerente de uma dessas corporações, não é? Estás a conseguir muitas verdinhas?
— Não sou gerente de nada. Deixas-me entrar?
— Jura-me novamente que não és polícia. Vamos lá ver, jura-me pelos teus filhos, que os encontres mortos quando voltares se for mentira...
— Juro.
Conde tinha decidido que, na sua estranha situação, o melhor era contar a verdade ao Africano ou, pelo menos, a parte da verdade relacionada com a sua busca dos dias perdidos de Violeta Del Rio, por mais inacreditável que aquela tenacidade pudesse parecer a qualquer ouvido racional. Enquanto contava a história, tratou de imaginar como é que o seu antigo informador poderia ajudá-lo porque, mal iniciara a exposição dos seus interesses, o homem atalhara-o dizendo que sabia até o nome dos cães que vadiavam pelo bairro mas que não conhecia nenhuma Elsa Contreras e muito menos uma Flor de Lótus.
— Estás lixado. Não posso ajudar-te — concluiu Juan, com um sorriso de satisfação nos seus olhos avermelhados, sem dúvida contente ao imaginar que, não podendo ajudá-lo, Conde sairia rapidamente da sua casa pelo mesmo caminho pelo qual tinha chegado.
— Tenho de ter a certeza de que essa mulher não vive por aqui. Quero encontrar alguém que conheça realmente toda a gente do bairro. Ou será que não queres ganhar alguns pesos? Olha, podes apresentar-me como um primo da tua ex-mulher que veio passar uns dias contigo... sei lá, porque acabei de sair da choldra, o que achas?
O Africano riu-se, quase com estrépito.
— Mas tu estás louco? Ouve, Conde, aqui toda a gente saiu há um mês do estarim. Em qual deles vou dizer que tu estavas se ninguém te viu nessa prisão, em nenhuma?
Conde admitiu que não tinha sido uma boa ideia e o Africano propôs:
— Está bem, vamos dizer que tu és primo da parola, mas que vens de Matanzas... Dedicavas-te lá a matar vacas, a polícia anda atrás de ti e vieste para cá até as coisas arrefecerem. O que achas?
— Acho bem.
— Mas não podes ficar aqui. Além disso não cabes... — E, ao abrir os braços, ficou quase a tocar nas paredes daquele buraco de dois metros e meio por quatro.
— Posso ir-me embora à noite e voltar amanhã.
— E assim que encontrares essa mulher, desapareces...
— Desapareço — concordou Conde.
— Se for assim, está bem. Agora vamos a assuntos sérios: quanto me pagas pelo serviço?
— Mil pesos — disse Conde, certo de poder convencê-lo por aquele montante.
— Por mil pesos não arrisco a vida. — O Africano bocejou e acariciou uma das três cicatrizes visíveis que tinha no rosto, mais negras e brilhantes que o resto da sua pele. — Dois mil e tu pagas a comida e tudo o resto.
— Okay — aceitou Conde sem titubear.
— Bom, para começar a criar ambiente, vamos beber uns copos lá em baixo e depois vamos comer à tasca clandestina do Veneno. Esse tipo, sim, sabe tudo acerca do que se move por aqui. Eu encarrego-me de que fique um bocado sentado connosco e tu deves saber, com certeza, como fazer perguntas acerca dessa mulher sem que ele se dê conta de que o teu assunto é outro. Porque vou avisar-te de uma coisa: se cheirarem que estamos a endrominá-los, não dou nada pela nossa pele, nem pela tua nem pela minha...
— Não é caso para tanto — disse Conde e o Africano encolheu os ombros.
— Dá-me o dinheiro, preciso dele agora mesmo.
Conde olhou para o ex-presidiário e abanou a cabeça, recusando.
— Eu posso parecer louco ou imbecil, mas tanto não...
— Dá-me metade, anda — quase rogou o Africano. — Vamos lá ver, para perceberes: estou à rasca com algumas pessoas por aí. Fiz um negócio, saí-me mal e devo-lhes dinheiro. Se lhes passar alguma coisa para as mãos, acalmam um pouco. Caso contrário, não posso sair à rua... Essa gente não acredita em nada...
Conde reflectiu por instantes e compreendeu que não tinha grandes alternativas.
— Está bem, dou-te metade. O resto, só quando a mulher aparecer.
Quando saíram, o sol violento do meio-dia tinha dispersado a vagabundagem, mas a música ocupava agora o lugar das pessoas, enchendo o espaço, cruzando melodias, competindo em volume, disposta a atordoar quem se arriscasse a entrar naquele ambiente pesado de sones, boleros, merengues, baladas, mambos, guarachas, rocks duros e suaves, danzones, bachatas e rumbas. As casas cujas entradas davam para a rua, com as portas e janelas abertas, tentavam engolir um pouco de ar quente, enquanto homens e mulheres de todas as idades se baloiçavam em cadeiras, aproveitando a brisa artificial das ventoinhas e a música ensurdecedora, vendo passar, repletos de resignação, as horas mortas do início da tarde.
A dois quarteirões da casa do Africano entraram num cortiço, em cujo pátio interior vários homens bebiam cerveja, abraçados também pela música. Uma mulata de uns quarenta anos, com trancinhas presas por contas coloridas e metida numas calças de lycra que dificilmente conseguiam conter o volume excessivo das suas nádegas, parecia ser a dona do negócio e olhou directamente para o Africano quando o viu chegar com o desconhecido.
— Dá-me duas cervejas e não me chateies, que este é meu parceiro.
— Estou-me nas tintas que seja teu parceiro. Aqui não quero gente estranha... — gritou a mulata, desafiando Conde.
— África, vamos daqui para fora, ela que meta as cervejas no cu - reagiu Conde e deu meia-volta à procura da rua, quando uma voz atrás de si o deteve.
— Sócio, sócio, não te passes. — Conde voltou-se. Junto do Africano estava agora Michael Jordan ou, pelo menos, o seu sósia: era Um negro alto, maciço, com a cabeça rapada e metido num equipamento dos Chicago Bulls. — Esta mulher é uma tagarela de merda.
— Não percebo a razão de tanto mistério se todo o bairro sabe que aqui se vende cerveja — disse Conde, aceitando a garrafa gelada oferecida por Michael Jordan que, no entanto, reteve a que era destinada ao Africano.
— Dá-me a cerveja de uma vez — exigiu Juan, sorrindo.
— Já podes sair? — quis saber Michael Jordan.
— Vamos daqui para o Veneno. Estou a resolver as coisas.
— Alegro-me por ti, mano — disse-lhe Michael Jordan, sorrindo. — Se vivo já és feio, morto deves meter medo ao susto... — e voltou-se para Conde, exibindo uma dentadura branquíssima.
Três cervejas depois, Mário Conde tinha explicado como funcionava o negócio do roubo e sacrifício de vacas nas planícies de Matanzas cada vez mais empobrecidas e, em troca, ficou a saber os sítios do bairro onde se vendiam equipamentos de basquetebol e camisolas de futebolistas e de jogadores de baseball, leite em pó, óleo de cozinha e a localização do depósito de electrodomésticos mais bem abastecido da cidade, com fornecimentos directos dos vizinhos armazéns do porto. À quinta cerveja já tinha uma ideia bastante próxima em que lugares do bairro e a que horas se podia comprar marijuana ou pastilhas, ficou mesmo a saber que era possível comprar crack e coca e ficou a par das tarifas das putas locais: as chupa-chupa, especializadas na felação; as rameiras, mais baratas e menos recomendáveis; as todo-o-terreno, abertas a qualquer especialidade; e as jineteras(1) sem sorte, verdadeiros bombons que só se conseguiam caçar alta madrugada, às vezes por preços bastante razoáveis (embora sempre em dólares), se viessem desesperadas depois de terem perdido a noite na sua incursão pelos hotéis e locais turísticos da cidade... Uma vida simultaneamente lenta e agitada, com tempo para viver e tempo para lutar, desenrolava-se naquela espécie de gueto por cujas ruas, periodicamente, passavam dois polícias a pé ou num carro-patrulha, como que a recordar que as grades estavam abertas mas existiam.
— Vamos comer que estou morto — propôs o Africano. E voltaram a sair para o ruído e para o sol.
*2. Jinetera: prostituta que só elege estrangeiros como clientes, sendo paga em moeda estrangeira. (N. da T.)
Atravessaram ruas sujas, demasiado parecidas entre si, até entrarem pela abertura de um desconjuntado tapume de madeira e zinco que mal escondia as ruínas do que fora uma construção de três andares, já sem tecto nem sobrelojas, e da qual só tinha sobrevivido o esqueleto de colunas, entre as quais pendiam, seguros por postes e arames, pequenos telhados de zinco e de lona destinados a proteger uns volumes disformes e umas enormes caixas de cartão.
— Aí vivem os que não têm casa. A maior parte são orientais(3) acabados de chegar. Quase todos se dedicam a conduzir bicitaxis. Dormem em cima da bicicleta, cagam em sacos de papel que depois deitam no lixo e lavam-se quando podem — explicou o Africano.
— E deixam-nos viver aí? — Conde, ingénuo, tentou ver o assunto com lógica.
— Deitam-lhes abaixo os tectos a toda a hora e expulsam-nos, mas passada uma semana eles voltam. Eles ou outros... O importante é não morrer de fome...
Atravessaram as ruínas e o Africano empurrou uma porta de madeira e meteu a cabeça. Passados alguns instantes transpunha o umbral um mulato repleto de colares de ouro.
— Este é o meu compadre Veneno — disse Juan, voltando-se para Conde. — E este é o meu camarada Conde — explicou a Veneno, que olhou de forma crítica para o desconhecido e, sem pronunciar uma palavra, se afastou alguns passos em direcção às traseiras do edifício demolido. Conde não conseguiu ouvir a conversa entre os dois homens, mas pôde ver como Juan tirava do bolso o maço de notas que, pouco antes, ele próprio lhe dera e o colocava nas mãos de Veneno, que o aceitava sem grande júbilo.
Já sentados na tasca ao ar livre dirigida por Veneno, o Africano, disposto a cobrar pelo favor feito a Conde o último centavo possível, pediu os pratos mais caros que o restaurante clandestino oferecia: o enchilado(4) de lagosta e o bife de vaca panado. Já nas cervejas posteriores ao café, Juan convidou Veneno a sentar-se
*3. Oriental: oriundo da antiga província de Oriente. (N. da T.)
um pouco com eles e, casualmente, mencionou uma prima da mãe de Conde que, segundo o seu amigo, vivia no bairro.
— Elsa Contreras? — perguntou Veneno, bebendo um gole de cerveja. Veneno era um mulato claro, quase branco, decidido a ostentar a sua prosperidade através da exibição de vários elementos da sua dentadura encasquilhados em metal de dezoito quilates, três correntes com medalhas (em convivência com dois colares de contas coloridas), anéis de pedras, duas pulseiras e um Rolex da mesma pureza áurea que, em conjunto, deviam andar pelos dois quilos de ouro. Aquela carga metálica não podia ser fruto dos lucros astronómicos de uma tasca desconjuntada ao ar livre e Conde calculou que aquele era apenas o negócio ilícito mais visível de Veneno, embora se tenha desinteressado destas suposições, tenha acendido um cigarro e se tenha posto a beber a sua cerveja.
— Essa parente era uma personagem única. Lá em casa não se falava muito dela, porque foi puta e dançava nua no Shanghai...
— A tipa é mais velha que uma múmia, não? — insinuou Veneno.
— Deve ter uns oitenta, isto é, se não morreu...
— Para dizer a verdade não me soa a nada, mas se vais ficar uns dias no bairro, trato de averiguar.
— Óptimo. A ver se lhe faço uma visita... — disse Conde e ergueu uma mão na direcção do empregado, com três dedos erectos.
Nessa noite, enquanto se esfregava debaixo do duche, tentando arrancar da pele a sujidade, a infâmia e a sordidez entre as quais tinha perdido um dos dias mais estranhos da sua vida, Mário Conde voltou a interrogar-se como era possível que no coração de Havana existisse aquele universo pervertido onde viviam pessoas nascidas na mesma época que ele e na mesma cidade, mas que, ao mesmo tempo, lhe podiam ser tão desconhecidas, quase irreais na sua degradação acelerada. As experiências acumuladas em algumas horas uperavam as suas previsões mais pessimistas e perguntava agora a si próprio se teria fôlego suficiente para continuar aquela busca capaz de o levar à náusea.
Depois de comer e de beber várias cervejas na tasca de Veneno, o Africano exigira-lhe um segundo adiantamento de trezentos pesos, imprescindíveis, conforme disse, para continuar a investigação. Conde, preso na sua própria rede, separou duas notas de vinte e entregou ao seu guia espiritual e material os trezentos pesos que ainda trazia consigo.
— Mas deixa-me dizer-te uma coisa — olhou-o nos olhos, brandindo o dinheiro numa das mãos. — Embora eu não seja polícia, tenho muitos amigos polícias. E julgo que não te convém enganar-me. Ainda posso transformar-te a vida num inferno, percebeste?
— Porra, Conde, eu sou incapaz...
— Tenta ser incapaz — avisou-o, entregando-lhe as notas. — Lembra-te de que te encontro sempre.
Agitado pelas cervejas bebidas e pelo dinheiro recebido, Juan pediu-lhe que esperasse por ele numa esquina e entrou num cortiço ainda mais tétrico que o bar clandestino de Michael Jordan. Cinco minutos depois, com um sorriso de felicidade, o Africano regressou e propôs a Conde que o acompanhasse até à açoteia do prédio onde vivia, para lhe mostrar o bairro das alturas.
Entre os depósitos de água por tapar e uns estendais tristes, cheios de roupa remendada, Conde aproximou-se do beirado e conseguiu ter uma vista privilegiada de um sector do bairro, em plena animação de fim de tarde. Calculou que diante dele, atrás de várias moles de cimento escuro, um pouco para lá das torres enegrecidas da central termoeléctrica, ficava o mar, tão próximo e simultaneamente tão alheio àquele sítio. Perdido nos seus cálculos geográficos e filosóficos, regressou à realidade puxado pelo cheiro adocicado a erva queimada e, ao voltar-se, deparou com Juan, o Africano, encostado num dos depósitos, engolindo o fumo de um cigarro raquítico de marijuana.
— Agora é que vou ver se tu não és, realmente, polícia. Anda, dá uma passa — desafiou-o Juan, estendendo-lhe o cigarro enrolado.
— Estou-me nas tintas para o que pensas. Não vou fumar.
— E se fizer batota mandas-me a polícia atrás?
— Já a tens atrás, desde que nasceste. Quem se lixa se for visto contigo sou eu...
— Tu nunca fumaste? — perguntou-lhe o Africano, que parecia feliz, mostrando-lhe o charro, e até sorriu um pouco mais ao ver como Conde negava com a cabeça. — Eu fumo desde os treze anos.
E sempre que posso fumo aqui, sozinho, para aproveitar bem a ganzá... Olha, este é o meu mealheiro. É aqui que escondo as minhas coisas desde miúdo — disse, mostrando a Conde como guardava outros dois cigarros embrulhados num saquinho de nylon, que fez descer por um respiradouro sanitário cuja boca dava justamente para o lado de um dos depósitos de água.
— De quem te estavas a esconder? — quis saber Conde, deixando-se cair contra o outro depósito.
O Africano deu uma passa profunda no cigarro.
— Devo cinco mil pesos. É que eu sou um azarado, sabes? A má sorte persegue-me. Meti-me num negócio, consegui um adiantamento e ferrei-me...
— Cinco mil pesos de adiantamento? — perguntou Conde. — Isso era para drogas ou para matar alguém... Não?
— Não queiras saber tanto — e tornou a fumar, quase queimando os dedos.
— O negócio era com o Veneno? Juan sorriu e abanou a cabeça.
— Não, o Veneno era o intermediário. O negócio era com outros tipos. Não são do bairro. Tipos duros a sério, que não sujam as mãos por meia dúzia de pesos. Mexem em tanto dinheiro que até te borras.
— Tu conhece-los?
— Negativo. Não se andam a mostrar por dá cá aquela palha. São pessoas, olha, com caco — e bateu numa das fontes, em sinal de inteligência. — São uns brancos que estão cheios, mas cheios dele e que só fazem negócios grandes.
— Isso soa a máfia, não?
— O que é que achas? — Juan deu a última passa e largou a beata minúscula.
— Tinhas de matar alguém, Juan? — perguntou novamente Conde, com receio de ouvir uma resposta afirmativa.
— Já te disse para não seres tão curioso. Acabou-se o interrogatório... Deixa-me gozar a pedra um bocado, anda.
Conde levantou-se e procurou um ângulo melhor para ver a calle Esperanza. Descobriu, numa açoteia vizinha, um casinhoto talvez construído para pombal, atrás do qual alguns rapazes de uns quinze anos revezavam furiosamente uns binóculos, sem deixarem de se masturbar, vendo alguma cena que Conde também teria gostado de observar.
Já escurecia quando o Africano, alegre e desinibido, lhe propôs darem uma volta, para ver o que aparecia, e Conde, sem imaginar a que se lançava, aceitou o convite. Subiram pela Esperanza em direcção aos confins do bairro e, num dos becos transversais cujo nome estava tapado por toneladas de sarro histórico, o companheiro sugeriu que esperasse um pouco, segundo ele para observar o ambiente. Várias pessoas tinham cumprimentado o Africano, duas delas pararam para conversar um bocadinho e foram-se embora convencidos de que Conde era um matador experimentado de gado, primo da parola, ex-mulher do Africano, e amigo de Veneno e de Michael Jordan. Pouco depois das oito, o Africano comprou um maço de cigarros a um vendedor de rua e ofereceu um a Conde. — Destes já fumas, não é verdade? É para veres como eu partilho o meu dinheiro — disse, sorridente. E acrescentou: — Convido-te a comer umas putas.
Conde, surpreendido com a proposta, não soube o que responder. Ao longo da sua existência, vivida com integridade entre as quatro paredes da ilha, tinha participado das mais diversas aventuras físicas e morais, algumas dentro, outras fora da polícia, às vezes ébrio e, ocasionalmente, na mais pavorosa sobriedade. Mas até esse momento nunca o tinham convidado a fazer sexo pago e surpreendeu-o sentir uma incerteza malévola percorrer-lhe o corpo, chegando a pensar se, no fim de contas, não gostaria de experimentar uma vez na vida.
— Se realmente te queres meter no meio e não queres que ninguém suspeite, tens de ir em frente, até ao fundo — tinha dito Juan, quando dava o primeiro passo.
— Não, deixa — conseguiu protestar com voz fraca.
— Deixa ver — desafiou-o o Africano —, não me digas... Acho-te um pouco delicadinho. Não fumas uma ganzá e também não comes uma gaja... Não és maricas, hã, rapaz?
A meio do quarteirão ficava o «deitadouro», conforme o definiu o seu antigo informador. Um casal idoso, dono de uma casa de três quartos, alugava-os à hora aos casais sem lugar onde fazer amor e às putas do bairro que levavam para lá os seus clientes. A estratégia para conseguir uma puta, segundo o Africano, era ficar nas imediações do «deitadouro» e esperar que as renascidas mulheres do ofício os vissem. Conde, invadido por um tremor frio no estômago, encostara-se à parede, expectante, virgem daquela experiência. Acendeu um cigarro com a beata do anterior e olhou para um lado e para outro da rua, por onde deambulavam várias pessoas. Dez minutos depois apareceram as duas mulheres. Uma era mulata, pintada de louro, a outra branca, muito magra, com o cabelo de um vermelho brilhante e Conde calculou, com alguma dificuldade, que andariam ambas pelos vinte anos, embora umas vezes parecessem mais velhas e outras quase umas adolescentes. O Africano escolheu imediatamente a branca e, mostrando-lhe o seu sorriso de dentes cariados e amarelos perguntou, por pura rotina, quanto lhe cobrava por um serviço completo.
— Cem pesos — disse ela e Juan pôs uma cara de cliente assombrado. — Achas caro? Olha, negro, são vinte por uma punheta, quarenta por uma mamada, sessenta e metes-mo sem beijar, oitenta com beijo e, por cem, tens direito a enrabar-me... E tudo isso sem contar que és feio como um macaco e vais foder uma branca com a ratinha rosadinha...
— Posso tocar para ver como está essa ratinha?
— Cinco pesos — avisou a rapariga, parando com mestria o avanço da mão simiesca do homem.
Conde começou a sentir os primeiros sintomas de asfixia enquanto ouvia os termos do acordo entre o Africano e a todo-o-terreno e deu consigo às portas de um desmaio quando a mulata, mostrando um sorriso que deixava ver dois dentes de ouro na comissura da sua boca enorme, lhe sussurrou:
— E tu, amorzinho, não queres uma limpeza geral?
Conde esforçara-se ao máximo por sorrir, convencido de que seria incapaz de ir para a cama com aquela mulher, ou mesmo de beijá-la, e olhou para o Africano, que gozava com a situação. Nessa altura compreendeu que toda a sua liberalidade moral era apenas uma brincadeira de crianças naquele mundo alucinante, onde o sexo adquiria outros valores e usos e se transformava numa forma de vida, num meio de desafogar as misérias e tensões.
— Não se discute mais — disse Juan. — Vamos lá p'ra dentro.
Conde sentiu como aquela situação, tão trivial para o Africano e para as raparigas, o obrigava a tomar umas das decisões mais aflitivas da sua vida: ou desatava a correr, procurando uma saída do bairro e uma salvação para a sua abalada ética, ou seguia os impulsos da sua curiosidade doentia e participava, até onde o seu estômago lhe permitisse, daquele acto puramente comercial. Negando-se a pensar mais, quase disposto a lançar-se ao fosso da degradação, avançou em direcção à sala daquela casa onde Juan, já acariciando as nádegas pequenas mas firmes da rapariga branca, fechava o negócio com um velhote de aspecto respeitável e pagava o preço combinado, sem prestar muita atenção às condições do aluguer: nada de drogas, de pancadas ou gritos; a casa vendia rum e cerveja; pagava-se antecipadamente; o preço era por hora...
Sem olhar para os donos da casa, novamente concentrados no ecrã do televisor como se as suas vidas dependessem das informações do noticiário, Conde atravessou o corredor numa espécie de hipnose, entrando atrás da mulata no primeiro quarto e só teve um sobressalto salvador que o despertou quando viu que o Africano e a outra rapariga entravam atrás dele.
— Mas que...?
— Só tinham um livre — disse o Africano que, depois de beber um primeiro gole de rum directamente da garrafa, começou a beijar desaforadamente a sua acompanhante.
Durante o resto da sua vida e por mais que o tentasse, Mário Conde seria incapaz de se lembrar como era aquele quarto ou o que nele havia, além da cama e do lavatório preso à parede. No entanto, nunca conseguiria esquecer o gesto preciso com que a sua mulata de aluguer, uma vez lá dentro, deixou cair sobre a cama um pacote de preservativos para, de imediato, levantar a sua curtíssima blusa e colocá-lo perante a evidência de dois seios de mamilos negros, que lhe apontavam para o peito como para um condenado a morrer por fuzilamento.
A rapariga, experiente na sua arte, tinha reparado na cara de medo que Conde devia ter e, movendo a língua lascivamente, aproximou-se dele envolvendo-o com o seu hálito adocicado:
— Não gostas das minhas maminhas, lindo? Não vais chupá-las um bocadinho para eu ficar molhada?
Conde soube nesse instante que tinha chegado ao limite da sua curiosidade e, se avançasse mais um passo, o que lhe restava de vida não lhe chegaria para se arrepender. Por isso deitou mão à única saída digna que encontrou ao seu alcance.
— Eu não entro nisto. Com eles aqui não continuo — e voltou-se, apontando para o Africano e para a rapariga branca, deparando com eles já completamente nus, sem qualquer inibição pela presença dos outros, queimando etapas a uma velocidade espantosa. E sem querer vê-lo, viu-o: o pénis endurecido de Juan, o Africano, era como uma morcela descomunal sulcada de veias, coroada por uma cabeça arroxeada já a babar-se, sob a qual pendiam dois colhões taurinos onde se enroscavam uns pêlos negros. Pelo seu espírito novamente racional, passou velozmente a preocupação espacial de saber se a rapariga, quase sem peitos e com as costelas à flor da pele, seria capaz de albergar nas suas entranhas aquele troço de carne firme que, com verdadeira satisfação, tinha começado a lamber por cima e por baixo, quando não o tinha completamente metido na boca. Uma sensação de vazio instalou-se-lhe entre as pernas e ele soube, definitivamente, que a sua sorte estava lançada.
— Mas o que tens, lindinho? — alarmou-se a mulata, receosa de perder o dinheiro colocado ao alcance do seu sexo.
— Não entro nisto — repetiu Conde, agarrado às palavras da
sua salvação.
Conde permaneceu com a cabeça debaixo do duche frio, tentando limpar do seu cérebro aquela visão perfurante: a pica do Africano como um garrote, as costelas da rapariga branca, os mamilos da mulata e a sua língua de réptil, aquela voz falsamente apaixonada e, sobretudo, o acto de ver-se a si próprio abrir a porta e a dar um passo para trás, o primeiro da sua retirada ruidosa em direcção às ruas sujas onde, finalmente, conseguira recuperar a sua extraviada capacidade de respirar.
Cobrindo-se com a toalha, abalado pela evidência de que a sua própria nudez lhe era incómoda, Conde saiu da casa de banho. Sem ter plena consciência da razão pela qual o fazia, foi buscar o gira-discos a um canto da sala. Pousou-o sobre a mesa do televisor ínútil, colocou no prato o disco de Violeta del Rio e pô-lo a girar, accionando o braço mecânico. Cuidadosamente, pousou a agulha no primeiro sulco e recuou até ao sofá como se precisasse dessa distância. Com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça entre as mãos, envolto numa sensação de vertigem, tentou concentrar-se e esvaziar o seu espírito dos lastros fétidos da experiência para onde se deixara arrastar e empenhou-se em ouvir apenas a voz de Violeta del Rio, suplicando, reclamando, ordenando: «Vete de mi», até sentir a melodia alterar-lhe a pele, os cabelos, as unhas, e conseguir perceber que resgatava a urgência de conhecer o verdadeiro destino daquela mulher, cujo fantasma parecia ter voltado para desfazer um silêncio fabricado, em equilíbrio precário durante demasiado tempo. Como um possesso, Conde compreendeu que o espírito latente de uma mulher reduzida à sua voz, a uma voz apenas, estava a tornar-se sangue do seu sangue, carne da sua carne, transformando-o, sem que ele conseguisse evitá-lo, num prolongamento vivente da defunta, como se Violeta del Rio palpitasse ainda nas pulsações que lhe percutiam nas fontes e na inesperada convicção de que aquela voz estava a chamá-lo para lhe revelar mais de uma verdade.
— Mas, como é possível, porra? Não pode ser — disse para consigo e correu até ao velho roupeiro do quarto onde guardava as velharias e as lembranças das suas vidas anteriores. Pelo caminho perdeu a toalha e, completamente nu, abriu o móvel de par em par. De joelhos, tirou a gaveta de madeira que ocupava a parte inferior esquerda do roupeiro, provocando uma avalancha de volumes que tratou de empurrar de qualquer maneira.
Dentro da caixa estavam as coisas do pai que ele decidira conservar mas que, desde a morte já remota do seu progenitor, nunca mais tornara a olhar. Uma velha luva de baseball de um modelo pré-histórico, dois álbuns de fotografias, um sobrescrito com diplomas de mérito laboral, um par de sapatos pretos e brancos de bico, uma agenda carcomida com números de telefone, duas caixas com lâminas Gillette oxidadas, o boné de condutor de autocarro com a sua chapa de identificação foram saindo do gavetão até Conde ver aquilo que o recanto da memória destinado às suas mais turvas recordações lhe tinha estado a enviar. A capa original estava desbotada pela humidade e pelos anos, mas era inconfundível: meteu a mão e tirou o pequeno disco, iluminado pela circunferência amarela onde brilhava o selo da editora. Conde acariciou a placa Postiça e descobriu que a superfície estava ondulada, transformando-a num objecto imprestável. Conseguiu finalmente lembrar-se que o pai sentado na sala desta mesma casa, envolto por uma penumbra que o seu olhar infantil achava misteriosa, entregue à audição desse disco, deglutindo, se calhar, sensações semelhantes às que, passados quarenta anos, ainda conseguiam alarmar o seu filho. A recuperação daquela imagem de um homem dramaticamente só que ouve cantar uma mulher numa aparelhagem eléctrica pareceu-lhe que, de alguma forma e por fim, explicava a sua empatia visceral por uma voz que tinha ouvido pela primeira vez há tanto tempo e que se tinha mantido estagnada na sua mente, adormecida mas não morta. Até que ponto o seu pai amara aquela mulher que ouvia na escuridão? Porque tinha conservado para sempre aquele disco, imprestável talvez há já muito tempo? O que teria dito ao filho naquela noite perdida no passado? E por que razão ele, tão bom a recordar, se tinha esquecido daquele episódio peculiar que devia ter-se mantido a boiar nas suas lembranças? Mário Conde acariciou novamente a superfície plástica, ondulada como um mar nocturno, e pensou que o pai tinha sido mais um dos homens que sucumbiram à capacidade de sedução de Violeta del Rio e que, tal como Silvano Quintero, certamente chorou ao receber a notícia da sua morte e ao compreender que dela já só restava o testemunho da sua voz estampado nos sulcos daquele pequeno disco. Ou será que a sua memória e a imagem até então impoluta do seu próprio pai estariam a estender-lhe outra armadilha, ocultando-lhe verdades que podiam ser terríveis?
8 de Janeiro
Meu querido:
Tinha decidido esperar vários dias antes de voltar a escrever-te, deixando que se desvanecesse o espírito natalício que passou ao meu lado sem me olhar, mas os acontecimentos dos últimos dias perturbaram-me, porque arrancaram as poucas esperanças que ainda me restavam. O que irá acontecer agora com as nossas vidas? Será possível alguma vez o teu regresso? O que acontecerá a este país? Embora tenha tentado fechar os ouvidos aos ruídos da rua, a decisão de cortar relações anunciada pelos Estados Unidos veio encher-me de novos temores, pois parecem ter-se fechado as portas dos regressos, e o teu, com que tanto sonhaste, torna-se praticamente impossível.
Por isso estas cartas são, agora mais do que nunca, o meu único consolo, e receber uma resposta seria a minha maior recompensa. Não imaginas o que daria para saber se nos dias de Natal e de Ano Novo te lembraste de mim ao menos um segundo. Daria a minha vida para saber se recordaste que durante anos de amor e de prosperidade estivemos juntos (embora às vezes tão aparentemente distantes) enquanto as badaladas do relógio se aproximavam do segundo sinal do ano e engolíamos uvas, como mandava a tradição. Pode-se saber alguma vez se para ti foi melhor este fim de um ano de dispersões e rancores que todos aqueles em que, mesmo em obrigado silêncio, partilhávamos a esperança da felicidade?
O que não consigo compreender é como é possível que nem sequer me tenhas enviado um desses postais com neve ou com a estrela de Belém brilhando na cartolina, com desejos já impressos e um espaço reservado para algumas palavras pessoais. O meu castigo será eterno? Suponho que sim, pois tenho de assumir com mágoa que o teu ressentimento é muito maior que um desgosto passageiro, uma suspeita, dessas que se podem desvanecer com outras ideias e pensamentos de alívio... O teu ressentimento é condenação e a minha única salvação é convencer-te da minha inocência, com provas irrefutáveis. Por isso decidi sair a procura dessas provas. Vencerei o medo terrível que hoje me provoca andar por um mundo estranho, que já não me pertence nem compreendo e que se torna, de dia para dia, mais radical e perigoso. Vou vencer os ecos das vozes que me perseguem todas as noites e sacrificar a paz da minha solidão para procurar o bem maior do teu perdão.
Hoje, quando me decidi a escrever-te e a começar a minha busca, senti que recuperava um estado de espírito diferente, uma energia que julgava perdida e dediquei quase todo o dia a limpar a tua biblioteca. Nestes meses, é a primeira vez que volto a entrar neste local sagrado da memória familiar, uma vez que me é doloroso de mais pelo muito que me recorda as épocas felizes das nossas vidas e de toda a família. Voltei a ver novamente os livros que o teu avô comprou na sua juventude, com esse apetite que nunca o fazia hesitar entre um livro ou um par de sapatos; os adquiridos pelo teu pai nos seus dias de trabalho no escritório, na universidade, na sua época de empenho político; e, sobretudo, os que tu, possuído por essa paixão familiar, ias comprando em cada canto da cidade e que foste acumulando como verdadeiros tesouros, os livros que tanta inveja despertavam naqueles que tiveram o privilégio de os poder contemplar. Vi a tua colecção particular de livros sobre leis, de regulamentos aduaneiros, as tuas revistas de comércio e, não te posso negar, senti que se me partia o coração ao pensar que talvez nunca mais voltes a acariciar as suas capas de couro, as suas folhas ásperas, a ler as suas letras para ti tão plenas de sentido. Por isso, ao terminar A limpeza recordei a tua filha que, aconteça o que acontecer, morra quem morrer, tudo o que existe neste local é absoluta e eternamente sagrado: dali não pode sair uma única folha, nem sequer um exemplar pode ser mudado de sítio, para que no dia do teu regresso — porque, apesar de tudo, sei que voltarás — possas dirigir-te com os olhos fechados até à estante que quiseres e tirar, como costumavas fazer, o livro procurado. Ordenei que uma vez por mês, durante algumas horas e sempre num dia quente e sem ameaça de chuva, se abram as portas dos armários para que os livros respirem e se fortaleçam, como costumavas dizer. De seis em seis meses, só com pano e espanador, limpar-se-ão as lombadas e os cortes superiores dos livros, sem os tirar do lugar, para evitar qualquer desarrumação na tua ordem pessoal. Mas com estas decisões quis sobretudo evitar que, se alguma coisa me acontecesse, nenhuma mão, nem sequer as dos teus filhos, possa entrar nos segredos mais ocultos da tua vida e da minha que, a partir de hoje, ficarão entre as páginas destes livros, esperando por ti.
Meu querido, despeço-me por algum tempo. Não voltarei a escrever-te até receber notícias tuas ou até ter a verdade nas minhas mãos. E não me interessa que essa verdade, como me disseram as vozes que me perseguem, possa ser o meu pior castigo. Porque não suporto que me desprezes e me culpes por um pecado não cometido. Mas nunca duvides que te continuará a amar da mesma forma, até mais, e a esperar o teu regresso com mais anseio...
A tua Pequena
23 de Janeiro
Meu querido:
Há alguns dias jurei a mim própria não voltar a escrever-te, pelo menos até ter notícias tuas ou poder dizer-te o que ambos temos de saber. Estava tão magoada com o teu silêncio e cega devido a minha própria situação e aquelas malditas vozes que me falam de noite com intenção de enlouquecer-me, que me esqueci desta data tão significativa: felicidades, meu amor!
Assim que me lembrei do dia do teu aniversário decidi que, mesmo sem ti, tinha de o festejar. É triste porque seria como uma festa sem anfitrião mas da qual eu teria o privilégio de ser a convidada principal, a única, na verdade, pois os teus filhos andam cada Vez mais ocupados e distantes, metidos na voragem de mudanças que se sucedem todos os dias. Nessa altura cometi um erro, outro erro. Levada pela felicidade que sentia nesse momento, fui a biblioteca e procurei, lembras-te?, aquele livro de receitas de que tanto gostavas e de onde tantas vezes escolheste os pratos que me propunhas para as refeições cá em casa. Folheando-o rapidamente, recordei o teu gosto pela língua de vaca com xerez, pelo bacalao al pil pil, segundo a receita basca de Juanito Saizarbitoria, aqueles camarões a crioula que me saíam tão bem, ou o peru recheado a Rosa Maria que nos últimos anos escolheste como prato principal para os jantares de Natal (prescindindo, evidentemente, desses doces de frutas que te pareciam uma aberração americana...). Qual não foi a minha surpresa ao folhear algumas páginas do livro a procura da receita do teu prato preferido (rins com vinho tinto) e encontrar aí uma fotografia da defunta, com a notícia que, por ti, tinha deixado de cantar. Consegues imaginar como me senti? Não, não consegues. Consegues imaginar até que ponto a odiei, até que ponto me alegrei com a morte dela? Sim, com certeza que consegues porque, pelo teu silêncio, sei que cada vez mais pensas que fui eu quem provocou essa morte, mesmo quando sabes bem que seria incapaz de fazer uma coisa dessas.
Nesse instante a festa terminou. A minha celebração solitária desfez-se e reforcei a minha convicção de que a minha vida só voltará a fazer sentido se conseguir descobrir a verdade que tu exiges para me libertar dessas acusações infundadas. E descobrirei essa verdade, porque te amo sempre.
A tua Pequena
O cheiro da terra acabada de regar, o perfume matinal das flores, o céu azul sem a mácula de uma nuvem e o canto de um tordo-imitador na folhagem de um abacateiro carregado de frutos pareceram a Conde componentes extraordinários da vida, presentes da Natureza sem os quais não era possível viver. E se formos obrigados a passar pelo mundo despojados da possibilidade de apreciar esses simples prodígios? Se despertarmos em cada amanhecer assediados pela fealdade e pela sordidez mais compactas, presos num pântano que nos arrasta para o roubo, para a violência, para a invenção do dia-a-dia e das formas mais diversas da prostituição física e moral.
O tordo-imitador trina da mesma forma para todos, a mesma melodia, nos mesmos tons ? Mário Conde olhou para as mãos aparentemente limpas e voltou a erguer os olhos na direcção do pátio, convencido de que, apesar das carências e frustrações sofridas durante anos, ainda podia considerar-se uma pessoa afortunada, porque nem ele nem os seus amores mais próximos se tinham visto obrigados a cruzar as fronteiras derradeiras do aviltamento para poderem sobreviver.
O aroma do café chegou-lhe ao nariz e, adiantando-se à bebida deliciosa, levou um cigarro aos lábios, preparando-se para executar a fusão daquelas duas sensações maravilhosas e tão menosprezadas pela propaganda médica. Mas as mágoas e as dúvidas ancoradas no seu cérebro quase não lhe permitiram sorrir quando Pombo, de bandeja na mão, lhe entregou a chávena de porcelana com guarnições douradas.
— Diz-me, como correu? — perguntou ao jovem, depois de beber a infusão e de acender o cigarro.
— Como sempre, comecei por Pancho Carmona. A propósito, aproveitei e vendi-lhe quinze livros a um preço melhor do que pensávamos. Agora mesmo acerto contas contigo — prometeu Pombo e contou-lhe o resultado das suas investigações, que resultaram num saldo negativo mas revelador: ninguém no negócio dos livros antigos conhecia esse negro alto, coxo do pé direito e com ar de pregador cristão, aparecido inoportunamente em casa dos Ferrero.
— Nesse homem há coisas que não podem mudar — pensou Conde em voz alta: — é negro e alto. Mas um defeito no andar pode-se fingir, tal como se pode falar de uma maneira determinada.
— Juro-te que não me tinha ocorrido, pá — teve de admitir Yoyi.
— Estás a ver que não és tão brilhante como pensas... E outra coisa que não se pode mudar é perceber ou não de livros. E se o homem foi direito a seis livros específicos é porque conhece...
— Como o musicólogo pitosga... Sabes o que me disse o Pancho? Que o livro escolhido por Rafael Giro, a primeira edição daquele livro de Borges dedicado a uma tal Victoria Ocampo, estava a ser vendido por vinte mil dólares numa livraria de Boston... Ou seja, o exemplar que trocou contigo por esse disco de merda vale um dinheirão... Já vês, tu também não és tão brilhante como pensas, pá.
— Eu sempre disse que era um imbecil, com diploma e várias pós-graduações. E ontem tirei o mestrado. Hoje vou atrás do doutoramento.
— Porquê? O que te aconteceu?
Com um novo cigarro nos lábios e uma segunda chávena de café na mão, Conde fez ao seu sócio um resumo do seu passeio entre as trevas, tendo o cuidado de não revelar fugas no mínimo suspeitas e a confirmação dos amores turvos que tinham agitado o seu pai.
— E tu não sabias que esse bairro era assim? — perguntou Pombo, sorrindo, depois de o ouvir. — Pois limitaste-te a arranhar a casca. Por baixo há mais. Juro-te.
— Imagino... Sabes, tenho a impressão de que esta cidade está a mudar depressa de mais e que eu lhe perdi o pulso. Um dia destes tenho de ir para a rua com a merda de um mapa... Bom, agora vou até à Central de Polícia. Quero saber se adiantaram alguma coisa. Calhava bem saber se as impressões digitais do negro mistérios são de alguém registado e se já se sabe quem é. E vou ver se me querem ajudar a encontrar alguma coisa sobre a Flor de Lótus. Tenho de ver como convenço o Manolo a dar-me essa informação...
— E eu o que faço? — quis saber Yoyi, acariciando a proa do seu esterno.
— Eu telefono-te e digo-te se consegui averiguar alguma coisa sobre o negro. Se não, voltas a fazer o mesmo que ontem mas, sabendo que, se calhar, o negro alto não é coxo nem fala como um pregador.
— Mas, pá, outra vez? — protestou o jovem.
— Isto é assim, Yoyi.
— Sim, mas já nos lixou o suficiente não podermos tirar mais livros da casa dos Ferrero para, além disso, perdermos dois dias nessa chuchadeira. Time is money, remember, e eu tenho de me dedicar aos meus negócios.
— Mas remember também que temos um morto às costas.. E tu sabes que a polícia não gosta de gente como tu, que fazem dinheiro sem que eles o consigam evitar. Pendurar-te esse morto seria para eles uma delícia...
— Um morto que eu não matei. É evidente, pá! Estou limpo, e encontrar quem o despachou é problema deles, não meu. A eles pagam-lhes para isso e eu ganho a vida batalhando na rua. Mas se a ti te deu para armares em detective e andares por aí à procura de uma velha puta e de uma cantora de boleros, isso é contigo. Eu desapareço dessa história, juro-te.
Conde observou novamente o pátio, as flores, tentou ouvir o canto do tordo-imitador e procurou entre aquelas pinceladas idílicas uma alternativa irrebatível.
— Não te dás conta, Yoyi? Quanto mais rapidamente descobrirmos quem matou Dionisio Ferrero, mais rapidamente poderemos levar os livros que ainda lá estão... E vou propor-te um acordo. Vamos lá ver, se já se perderam seis livros, se calhar valiosos, é indiferente saírem outros cinco, seis ou sete... Vamos comprar os seis que tu quiseres...
— Os que eu quiser? — A expressão do rosto de Yoyi alterou-se.
— Os que tu quiseres — disse Conde.
— Pode ser o Libro de los ingenios ou a Bíblia de Gutenberg, se aparecer aí?
— Os que tu quiseres — confirmou Conde.
— Não te aflijas, eu vou encontrar esse negro. Olha, olha, juro-te, pá — e beijou a cruz formada pelos seus dedos.
Elsa Contreras Villafana, conhecida por Flor de Lótus, de alcunha a Loura, tinha deixado de ser interessante para a polícia em 1965 quando, revolucionariamente regenerada da prática da putaria, se transformara em chefe de turno de um atelier de costura em El Cerro e declarara como domicílio a casa assinalada com o número 195 da calle Apodaca, em Habana Vieja. A sua ficha policial, recuperada pelas novas autoridades criadas em 1959, tinha a sua primeira anotação em 1948, quando fora identificada por exercer a prostituição em zonas não autorizadas para esse efeito. Mais tarde, e até 1954, Elsa Contreras Villafana, já conhecida como Flor de Lótus entre os assíduos do teatro Shanghai, fora detida outras duas vezes por desacato público, uma por agressão com arma branca e outra por posse de drogas — marijuana — , e cumprira uma pena menor numa prisão de mulheres em Havana. No entanto, desde 1954 a mulher parecia ter tido uma vida decente, pois não se encontravam novos factos delituosos na sua biografia policial. O seu reaparecimento dá-se em 1962, quando voltou a ser detida por exercício da prostituição e de proxenetismo num bar do porto de Nuevitas, em Camagúey, devido a um escândalo provocado pela estranha agressão de um homem, uma espécie de chulo local, que arrancou à dentada parte de um seio a uma das prostitutas regidas por ela. Devido àquele acidente, Elsa foi confinada a um centro de reeducação onde esteve oito meses, no fim dos quais começou a trabalhar como costureira num atelier onde chegaria a ocupar, um ano mais tarde, a chefia de turno.
— Aqui há alguma coisa estranha — comentou Conde, e o sargento Atilio Estévanez, que por ordem do capitão Palácios se tinha dedicado a controlar as pesquisas de Conde, olhou para ele intrigado. Para convencer o seu antigo companheiro, relutante em abrir-lhe as portas dos arquivos policiais — tu já não és polícia, insistira Manolo; tu sabes que os chefes não gostam disso —, Conde tinha recorrido às suas mais refinadas artes de persuasão e à evidência de que saber alguma coisa sobre Elsa Contreras não afectaria, de maneira alguma, a investigação oficial de um homicídio. De má vontade, repetindo não lhe agradar o que fazia, Manolo concordara, com a condição de o sargento Estévanez supervisionar a pesquisa.
Os dados encontrados confirmaram a Mário Conde que o silêncio policial iniciado em 1954 indicava que, por essa altura, Flor de Lótus devia ter dado o salto qualitativo capaz de a imunizar do acosso — pelo menos visível — ao qual só eram submetidas as desprotegidas prostitutas de rua, exploradas por chulos e por polícias. Mas aquela ascensão, cobiçada pelas centenas de putas que pululavam pelas ruas de Havana nos anos cinquenta, deve ter exigido um impulso especial, mais ainda se — segundo Silvano Quintero — o negócio que pouco depois a mulher dirigiria era de meretrizes exclusivas e não um prostíbulo qualquer dos bairros de Pajarito e Colón. E aquele tipo de negócio na Cuba desse tempo costumava ter um rosto visível, o da famosa proxeneta conhecida como Marina, responsável por umas vinte casas de putas, e um dono escondido nas trevas da sua nova respeitabilidade: o judeu Meyer Lansky.
Levado por uma premonição, Conde pediu ao sargento a ficha de Alcides Montes de Oca mas não ficou muito surpreendido ao receber uma resposta negativa: não aparecia ninguém com esse nome nos registos policiais comuns. Pensou se seria proveitoso rever o dossier Lansky mas convenceu-se da inutilidade do esforço, uma vez que o judeu não aparecia em Cuba como dono legal de muitos negócios, à frente dos quais colocava os seus acólitos cubanos ou fugitivos recém-importados dos Estados Unidos, onde já não eram bem-vistos.
Por telefone, pediram ao Departamento de Registo de Direcções os nomes dos moradores da casa da calle Apodaca 195 e a resposta foi contundente: o prédio tinha vindo abaixo durante um temporal, em 1971, e os seus ocupantes transferidos para um albergue transitório. Mas entre os lesados pelo desmoronamento não havia ninguém chamado Elsa Contreras Villafana. Estévanez, espicaçado pela curiosidade, telefonou para a direcção de identificação da Repartição Central do Bilhete de Identidade e Registo da População e pediu informações sobre a mulher. Aí constava como direcção permanente a da calle Apodaca 195, apartamento 6, segundo os dados obtidos em 1972.
Conde sorriu ao ver o olhar atónito do sargento Estévanez, incapaz de explicar a si próprio como era possível que Elsa Contreras tivesse conseguido perpetrar aquele engano tão grosseiro. Onde se teria metido aquela mulher? Como teria conseguido enganar a polícia e os Registos de Direcções e de Consumidores, que trabalhavam em constante comunicação no tocante a falecimentos, mudanças de domicílio e qualquer movimento físico dos onze milhões de cubanos residentes na ilha, facilmente controlados através da cama onde dormiam e da comida que recebiam? Mas Conde colocou o mistério na sua dimensão mais inquietante: porque o fizera?
— A primeira coisa a fazer é averiguar se está morta — disse Conde. — Tens algum polícia disponível para verificar os registos dos cemitérios?
— De todos os cemitérios? — assustou-se o sargento.
— Pelo menos dos de Havana. Dois polícias resolvem isso num dia.
— Deixa-me ver o que consigo fazer — anuiu Estévanez —, mas continuo sem perceber a relação entre uma coisa e outra.
— Eu também, mas nalgum lado pode haver uma ligação com alguém que se chamava Catalina e que se identificava como Violeta del Rio, e é essa pessoa que realmente me interessa... E o que averiguaram acerca do negro misterioso? — quis saber então Conde e Estévanez abanou a cabeça numa negativa.
— Acerca disso não posso falar...
— Ouve, não é caso para tanto. Quero saber apenas se já têm uma identificação.
O sargento resmungou, mas sem grande convicção.
— As impressões digitais que apareceram na biblioteca não constam dos ficheiros.
— E o que diz a autópsia de Dionisio Ferrero?
— Mataram-no por volta da uma da madrugada. Não há outros sinais de violência, nada nas unhas, de modo que o apanharam desprevenido e o mataram de um só golpe.
— E os livros que faltavam na última estante?
— Levaram-nos no mesmo dia em que mataram Dionisio. Outra coisa que sabemos é que Amalia não encontra a faca que Dionisio usava para trabalhar no quintal. Pensamos que essa pode ser a arma do crime...
— Muitos mistérios juntos — sussurrou Conde. — Isto é como uma encenação.
— É o que diz o capitão Palácios. Ele pensa que tudo isso foi preparado por alguém que sabe muito bem como confundir os investigadores.
Conde sorriu, calculando o que poderia passar pela cabeça de Manolo.
— Quando vires o teu capitão, recorda-lhe da minha parte que o mais escondido está sempre visível. E que não seja tão imbecil. Se me esconde coisas, com certeza que vai ter mais dificuldades em resolver esta porcaria.
Conde não se espantou quando, cansado de bater na porta, se convenceu de que Juan, o Africano, se tinha esfumado do quartinho da calle del Alambique com um lucro líquido de mil e trezentos pesos e um sorriso velhaco de satisfação nos seus dentes cariados. Os riscos implícitos na circunstância de que, mais cedo ou mais tarde, se saberia quem era realmente aquele pretenso primo da sua ex-mulher, convenceram certamente o Africano de que o melhor era arrancar ao antigo polícia algum dinheiro — doce vingança —, e aplacar com ele os seus credores, para depois desaparecer do bairro ou esconder-se nas profundezas das suas catacumbas.
Para avaliar as alternativas que tinha, Conde atravessou novamente o estrado trémulo e procurou a claridade e o ar menos fétido da açoteia. A ausência do Africano colocava-o numa situação delicada pois o mais provável era que o seu velho confidente, antes de se volatilizar, tivesse confessado nas instâncias adequadas ter agido obrigado pela pressão policial. Se tivesse feito uma coisa do género, Conde estaria agora completamente desprotegido e no perigo físico indubitável que representava ter-se transformado num cara-páli-da em pleno território apache, com todas as conotações que uma intrusão como essa costumava implicar. Encostado a um dos depósitos de água, o mesmo a que o Africano se encostara na tarde anterior para fumar o cigarro de marijuana, Conde concluiu que a lógica mais racional o avisava de que o melhor era sair do bairro imediatamente. Nem no posto de cerveja de Michael Jordan nem na tasca clandestina de Veneno seria bem recebido e agora parecia-lhe evidente que o passeio pelo bairro e as paragens em várias das suas esquinas podiam ter feito parte de uma estratégia do Africano para o mostrar a todos aqueles que deveriam registá-lo nos seus arquivos mentais, de uma forma mais subtil mas nem por isso menos eficiente do que o registo policial a que o submeteram os seus antigos colegas. A ser verdadeira a sua especulação, por aquele lado fechara-se-lhe qualquer caminho que o conduzisse ao paradeiro da volátil Flor de Lótus, e nesse momento não existiam no seu horizonte formas possíveis de abrir uma brecha. A sua desejada investigação por conta própria parecia ter terminado com uma burla grosseira.
— É preciso ser estúpido...
Com um cigarro nos lábios, Conde sorriu, troçando de si próprio e da sua enorme ingenuidade, que incluía o pagamento de cervejas e de um almoço de lagosta e carne de vaca. Ergueu os olhos para o céu sem nuvens e sentiu-se oprimido pela luz impávida do meio-dia. Tinha ficado de mãos vazias, desprovido de expectativas, o que tornava mais pesada a carga de mistérios que o acossavam. Tossiu, pigarreou e cuspiu para a sua direita. Deu duas passas na beata do cigarro, deixando-a cair no respiradouro sanitário aberto ao seu lado. Só nessa altura se lembrou de que aquele era o esconderijo do Africano. De joelhos, fazendo o possível para não se queimar com a beata ainda acesa, meteu o braço dentro do tubo de ferro fundido e, numa curva, os seus dedos tocaram numa superfície lisa, que o seu tacto reconheceu ser um pedaço de nylon. Fazendo uma pinça com os dedos, tirou um pequeno sobrescrito transparente em cujo interior estava um cigarro mal enrolado e um pedacinho de papel onde uma letra redonda e insegura, alérgica aos acentos e às vírgulas, tinha escrito: «Agora chama-se Carmen e vive no cortiço da Factoría 58. Larga o que me deves e ficamos em paz. Mano tu não sabes o que perdeste eu comi a mulata pelos dois. Tem cuidado».
Quase comovido com a lição de ética do Africano que o fazia recuperar a fé no ser humano, Conde aproximou o isqueiro do papel. A brecha abrira-se novamente e uma sensação de alegria voltou-lhe ao corpo. Quase sem pensar, colocou dentro do sobrescrito os setecentos pesos restantes como pagamento pela informação obtida. Fechou-o e, quando ia colocá-lo no seu esconderijo, pensou que não era casual a presença daquele cigarro de marijuana. Parecia ser uma deferência ou um convite do Africano, decidido a encurtar distâncias entre um ex-polícia e um ex-presidiário. Com a curiosidade espicaçada, Conde tirou o cigarro e devolveu o saquinho ao lugar. Olhou novamente em redor e comprovou a sua total solidão. Atrever-se-ia? Recordou então a experiência asfixiante no «deitadouro» e disse para consigo que, ao que parece, alguma coisa estava a desmoronar-se nos seus padrões mais sólidos se fora capaz de entrar num quarto com uma puta real e tarifada. E agora o convite expedito a experimentar por uma vez os efeitos da marijuana continuava a pulsar, como uma tentação. Que diabo se passa comigo? Pensou se o melhor não seria levar o cigarro com ele e decidir o que fazer na intimidade da sua casa, embora o tenha dissuadido o risco de andar pelas ruas daquele bairro com droga em cima, justamente numa altura em que estava sujeito a uma investigação por homicídio. Quando ia meter a mão no respiradouro para deixar a ganzá no seu lugar, recordou-se da conversa com Yoyi acerca da sua absoluta virgindade narcótica. Com a mão ainda hesitante, atreveu-se a levar a chama do isqueiro à ponta do cigarro colocado nos lábios e inalou, mantendo nos pulmões o fumo doce e leve da mítica folha de cânhamo Índico. Foi nesse instante que uma força superior aos seus desejos lhe ecoou no cérebro e, para não lhe dar outras opções, o obrigou a esmagar o cigarro no tijolo da açoteia até transformá-lo em parte da argila calcinada levantada pela fricção exagerada do seu sapato. Uma sensação de alívio subiu-lhe pelo corpo e, sem dar tempo a si próprio para pensar, levantou-se, decidido a atravessar o bairro à procura das respostas que só podiam ser dadas por uma prostituta regenerada, escondida do seu passado. Quando saiu do prédio, demorou quase um minuto a localizar a calle Factoría até concluir que devia ficar a vários quarteirões de distância em direcção à esquerda. Tal como nos seus tempos de polícia, começou a preparar-se mentalmente para o que poderia ser uma entrevista difícil. Avançava pelo passeio, com a cabeça em ebulição, quase sem ouvir as músicas que se sucediam e mudavam de casa em casa, sem olhos para a actividade febril do bairro.
Despojado de capacidade de reacção, Mário Conde só soube que alguma coisa se estava a passar quando já lhe tinham dado o empurrão destinado a projectá-lo através do portão aberto de um cortiço. Os seus pés, tolhidos pela violência do empurrão, tropeçaram como cordas impotentes e, executando um voo picado que lhe pareceu infinito, Conde conseguiu filtrar através da retina os cabos eléctricos pendentes junto à escada, os sacos de plástico repletos de lixo, a jante retorcida de uma bicicleta e pôde mesmo ver como o chão sujo, de cimento vivo, se aproximava inexoravelmente do seu rosto, ao mesmo tempo que o seu olfacto recebia a acidez insultan-te de um cheiro a urinas secas, justamente antes de sentir como lhe arrancavam a cabeça e lhe apagavam a luz.
Sentia fogo na garganta, como se tivesse engolido um punhado de areia a ferver. Morria por um pouco de água: o seu reino, até o seu rabo dava por um gole de água... Um instinto recôndito fê-lo levar a mão ao bolso e esgaravatar no tecido até os seus dedos apalparem a superfície metálica da caixinha. Pensou: um oásis, estou salvo. Tentando economizar movimentos para não provocar mais dores, conseguiu abrir o boião minúsculo e, com a ponta do dedo, untou a testa com a pomada chinesa. Surpreendeu-o constatar que a cabeça continuava no mesmo sítio de sempre, talvez um pouco descentrada, embora lhe fosse óbvio que aquele vulto alterado não era a mesma cabeça que tivera até essa tarde. Pareceu-lhe que tinha crescido, transbordando a sua estrutura óssea e que, no seu desmedido volume actual, estava prestes a explodir. Com a ponta da unha colocou um bocadinho de pomada na língua e o ardor do bálsamo asiático reconfortou-o e fê-lo recordar, vaga mas inequivocamente, que nalgum sítio e momento imprecisos mas próximos tivera uma conversa com um homem pálido e lento, que surgira da mais densa escuridão, vestido com uma ridícula túnica cor de laranja que esteve prestes a provocar-lhe uma gargalhada. Porque lhe pareciam tão reais as imagens daquele delírio? Ou seria a memória de uma vivência real? Recordou que o homem, talvez demasiado alto para ser verdadeiro, se tinha aproximado, espalhando à volta da sua silhueta um denso halo luminoso — seria o próprio Deus?, pensara naquele momento —, e de imediato, sem sequer se apresentar, tinha começado a falar-lhe, com uma voz gutural e pausada, das nobres verdades e do sofrimento. Embora não conseguisse determinar de onde o conhecia, ao vê-lo de perto e ao ouvi-lo dissertar sobre aqueles assuntos, convencera-se de que já sabia quem era, com toda a certeza, chegou a achá-lo mesmo familiar e esforçou-se por seguir o seu raciocínio sobre a dor como elemento intrínseco da existência humana, desde o nascimento até à morte, conforme tinha dito o homem alto, luminoso e cor de laranja, a dor que nos acompanha mesmo para além da morte, pois a vida é apenas um ciclo que se renova em cada reencarnação. Reencarnação? Nesse caso, estou morto?, tinha perguntado Conde, julgando que essa condição explicava melhor a presença do iluminado — eu conheço este cabrão —, mas o homem tinha negado com a cabeça, enquanto o avisava: Trocas tudo, enganas-te sempre, enganas-te de mais... E és teimoso, queres encontrar uma explicação para cada coisa, esse é o teu problema, e não és capaz de compreender que a Natureza não pode ser compreendida por nenhum sistema de definição único ou invariável, disse, dando início a uma pausa prolongada. O mundo, Conde, é tal como é, independentemente de qualquer pensamento específico que se tenha acerca dele. E tu estás cheio de pensamentos terrivelmente específicos, até queres mudar o mundo com esses pensamentos e esqueces-te que és o único que a tua mente pode mudar. Liberta-te de preconceitos e medita, medita... E de onde te conheço, de onde me conheces tu para me falares dos meus pensamentos e preconceitos?, lembrou-se Conde de ter perguntado, pois sentia que aquelas palavras começavam a parecer-lhe cada vez mais conhecidas ao serem ditas em voz alta por aquele espectro que parecia estar a meio caminho entre este mundo e o outro. O sofrimento é o resultado do desejo de possuir. O espírito e os sentimentos frustram o seu funcionamento quando se apegam aos preconceitos da experiência. Não dês mais voltas ao assunto: medita e ascende, medita e liberta-te. No fim vais compreender que nada é casual: tudo o que aconteceu estava a querer acontecer... As palavras recuperaram todo o seu sentido na mente de Conde e provocaram-lhe um estremecimento cerebral: «aquilo estava a querer acontecer.» Não, não pode ser, dissera ao iluminado, a sério que és tu? Não posso acreditar... Vês o que te dizia? — censurara-o o seu pálido interlocutor. — Só te atreves a acreditar no que pensas que deves acreditar e não abres a tua mente... Mas não me digas que és tu?, tinha insistido Conde, possuído pelo júbilo, sem ouvir as censuras do seu interlocutor: aquilo, claro, estava a querer acontecer e durante muitos anos da sua vida Conde desejara-o, mesmo sabendo que era impossível aquilo acontecer: o homem lento e pálido era um dos seus deuses incorruptíveis, isso mesmo, um ser iluminado, quase um mukta, aquele que conhece Deus — ou pelo menos alguém que se aproximara muitíssimo dele, por via da perfeição —, e tê-lo ali, ao seu lado, ouvi-lo, era um privilégio incomensurável. Sempre quis tanto falar contigo, conseguiu dizer-lhe com a voz embargada pela emoção, mas não para falar da morte e do sofrimento, nem sequer da reencarnação que, na verdade, não me interessa um corno, com a merda de uma vida já tenho o suficiente, de modo que não aspiro a outra. Eu queria falar contigo de coisas mais difíceis, ou mais intangíveis, como tu dizes... Diz-me, por favor, o que se faz para escrever histórias realmente despojadas e comoventes? Qual é o segredo? Por que razão Seymour se suicida na noite da sua lua-de-mel? E Buddy, o que se passou com Buddy Glass desde que se mudou para aquela cabana fora de Nova Iorque? E Esmé, alguma vez chegou a ser feliz? Recebeu a história que o soldado lhe escreveu? Mas diz-me, diz-me também, é verdade que não deixaste de escrever durante todos estes anos?... O homem iluminado, agredido pela avalancha de perguntas, pareceu sentir-se incómodo dentro da sua túnica alaranjada, fez umas caretas ostensivas com a boca e abanou a cabeça negando alguma coisa recôndita, embora, sem conseguir evitá-lo, tenha sorrido ligeiramente, quando Conde atacou de novo: Não posso acreditar que seja verdade não teres voltado a escrever. Sabes que isso é um crime? É bom que medites, que te ilumines — ficas muito bem com essa luz que te sai de dentro, para dizer a verdade —, que te afastes do mundo, porra, velho, mas não podias deixar de escrever, não podias. Não aceito que, para meditares, tenhas deixado de escrever, logo tu. É mais que um crime, este... Como te chamo? Chama-me J. D.(1), cedeu o interrogado. Ah, J. D., J. D., repetiu Conde, satisfeito por ter acumulado as leituras e meditações necessárias para merecer aquela demonstração de confiança de poder chamá-lo J. D., e continuou: Sim, é um crime, J. D., porque te ficaram muitas coisas por escrever e a nós por ler. Como sabes?, interessara-se nesse ponto o iluminado, e Conde sentiu que nesse momento começava a recuperar muitas das suas dores latentes, ao mesmo tempo que a luz proveniente de J. D. se ia diluindo na escuridão, a sua palidez se acentuava e a sua túnica se desvanecia. Mas Conde tinha conseguido gritar: Sei, porque quando te leio fico com vontade de continuar a ler-te. Ler-te mata-me... Sabes outra coisa? Sim, tu sabes: o que mais me agrada, quando fico completamente esgotado depois de ler um livro, é esse desejo de ser amigo do autor e poder telefonar-lhe a qualquer altura. A ti ter-te-ia telefonado muitas vezes. É tão simples como isto, estás a ver?... J. D. concordou e no seu rosto exangue reflectiu-se o orgulho invencível de que alguém conseguisse citar de cor alguma das suas personagens. Mas sacudiu o vislumbre terreno de vaidade e olhou com piedade para o perguntão: Nunca queiras conhecer um escritor se gostaste do seu livro, Chandler dixit. E tinha razão, os escritores são uma raça estranha. É melhor lê-los que conhecê-los, isso de certeza, e moveu a sua túnica cor de laranja antes de se esfumar na noite havanesa, mas Conde tinha julgado ouvir, ou pelo menos julgava recordar, a voz do iluminado, cada vez mais etérea, dizer-lhe, antes do seu desvanecimento total: Tenho de deixar coisas para fazer nas minhas outras vidas... Além disso, já há demasiados
*1. J. D. Salinger: escritor americano, idolatrado por Mário Conde (ver romances anteriores de Leonardo Padura) devido às suas histórias «despojadas e comoventes». (N. da T.)
livros escritos. Mas lembra-te do que Buda nos ensinou: só há um tempo essencial para acordar; e esse tempo é agora. De modo que acaba de acordar, cabrão... A escuridão tinha voltado como se obedecesse a um mandato e Conde, totalmente consciente, teve uma percepção dolorosa do seu corpo e da sede que o queimava. Apressou-se a saborear um pouco mais de pomada chinesa, pensando se essa seria a fórmula mágica para fazer J. D. regressar, mas J. D. não regressou e ele sentiu-se desolado, mais que dorido, porque J. D. não fora capaz de lhe dar um simples número de telefone para onde telefonar quando voltasse a ler, pela centésima vez, alguma das suas histórias, sempre despojadas e comoventes.
Estendido na erva, invadido pelas dores que a sua maltratada anatomia lhe remetia, Mário Conde deu consigo incapaz de precisar de quanto tempo tinha necessitado para se decidir e se atrever, finalmente, a abrir os olhos pois, apesar da sua vontade, só uma das suas pálpebras abriu o pano, apenas o necessário para se tornar evidente que a noite caíra e que estava sozinho. Fechou o olho útil e, com a mão, apalpou o outro, descobrindo um promontório húmido e latente, elevado desde a sobrancelha até à bochecha. Será que me arrancaram o olho?, pensou, esquecendo-se por momentos da sua conversa com o iluminado porque a sede e a dor o fulminavam, e sentiu um desejo enorme de chorar com o olho sobrevivente. Impondo-se às pontadas que lhe vinham das costas, de um joelho, do abdómen, da cara, da nuca e, sobretudo, do interior da cabeça, conseguiu sentar-se e, com as mãos apoiadas no chão, aguentar o embate da indisposição, lamentavelmente não alcoólica. No meio da escuridão descobriu que estava num cortiço ermo e, após alguns minutos, avistou a uns duzentos metros uma rua mal iluminada por onde, de vez em quando, passava um automóvel. Pensou se gatinhar seria a melhor forma de chegar à rua, mas teve medo de cortar as mãos com os vidros, certamente numerosos, existentes no meio da erva. Acumulou energias para se pôr de joelhos e, segurando a cabeça mortificada entre as mãos, fez um esforço supremo e conseguiu pôr-se de pé, cambaleando como numa das suas melhores bebedeiras. Só nesse momento teve consciência de que estava descalço e, quando tocou no peito, verificou que também não tinha camisa. E o olho, será que lhe tinham arrancado mesmo o olho?
Doze quedas mais tarde, abrasado pela sede cada vez mais ardente que lhe subia pela garganta e com uma nova dor cortante na planta do pé esquerdo, os despojos de Mário Conde conseguiram finalmente chegar à avenida e ele soube que estava nas imediações da silenciosa e oxidada central termoeléctrica, que projectava as suas tétricas sombras geométricas sobre o descampado. Pensou que a sua melhor alternativa seria atravessar a rua na direcção do posto de gasolina para, daí, tentar localizar Yoyi ou Manolo. Mas duvidou das suas forças. Antes de tentar aquela travessia arriscada, tinha de recuperar um pouco as energias e, sem pensar, deixou-se cair de joelhos na erva, sem poder evitar a queda imediata do seu corpo na direcção do passeio. É possível que, enquanto caía, já tivesse perdido a consciência, porque não sentiu dor quando a cara encontrou a superfície de betão.
Devolveu-o ao sofrimento a mão que insistia em limpar-lhe a sobrancelha e a bochecha inflamadas. As pontadas eram tão intensas que Conde atirou uma palmada.
— Quieto, Bobby, quieto — disse uma voz. — Deram-te para comer e para levar... Deixa-me limpar-te um pouco, agora vão tirar-te radiografias até das orelhas.
Conde compreendeu que a voz não era a do seu amigo iluminado. Calculando que estaria num sítio tão urbano e horrível como um hospital, perguntou:
— Arrancaram-me o olho?
— Não, está aí. Todo lixado, mas no lugar.
— Quem és tu?
— O enfermeiro. O médico deu-te um analgésico e agora vamos coser-te.
— Com uma agulha? — horrorizou-se Conde.
— Claro, mas como tens tantos buracos vamos usar a máquina de costura... Vamos lá, desmaia novamente, vou começar pela sobrancelha...
— Espera, espera... Deixa-me chorar um pouco primeiro...
— Está bem, mas chora depressa.
— Olha, a propósito, não viste por aqui um tipo muito grande vestido com uma túnica cor de laranja?
— Sim, esteve aqui mas partiu para o Carnaval. Vamos, desmaia que vou já para aí.
Cinco minutos ou cinco horas mais tarde, Conde moveu as pálpebras e desconfiou que agora sim, estava definitivamente morto, equivocadamente morto, pois alguém tinha passado por alto todos os seus pecados e ele estava a subir ao Céu, onde uma voz celestial avisava:
— Já aí vem, já aí vem.
Quando conseguiu descolar o olho útil, viu, da posição horizontal em que estava, os rostos de Tâmara, de Candito, de Coelho e de Yoyi mas o seu cérebro embotado foi capaz de discernir que a voz ouvida não pertencia a nenhum daqueles arcanjos. Nessa altura deixou cair a cabeça para o lado e, à altura da sua cara, encontrou a de Carlos, o Magricela, inclinado na cadeira de rodas.
— Do caralho, mano, moeram-te com ganas.
— Não me lixes, Magricela, se nem sequer me deixaram zarolho...
Mário Conde recusou fazer uma denúncia formal. Pareceu-lhe ridículo, definitivamente efeminado, pôr-se a contar a um polícia que uns tipos maus, que nem sequer tinha visto, o tinham transformado num saco de batatas por se ter metido onde não era chamado. Além disso quem, além de si próprio e da sua ingenuidade e estupidez, podia acusar por aquela sova? Os nomes inverosímeis de Veneno e de Michael Jordan eram os únicos que lhe ocorria considerar como possíveis organizadores da agressão, mas a falta de provas e a certeza de que ambos se teriam protegido com bons álibis advertiam-no da inutilidade da tentativa. Para cúmulo, no mais profundo do seu espancado ser sentia uma certa gratidão: no fim de contas, só lhe tinham dito que não era bem-vindo ao bairro, despedindo-se dele da forma habitual naqueles lares.
O médico insistiu em retê-lo mais um dia no hospital, para ficar sob observação, mas ao saber que não tinha fracturas, mas hematomas, inflamações e duas feridas já suturadas na sobrancelha esquerda e atrás da orelha direita, Conde suplicou que o deixassem sair, sob juramento — convenientemente falseado pelos dedos cruzados — de se submeter às injecções dos antibióticos indicados. Depois, tirando proveito da sua situação, fingiu opor resistência à proposta de Tâmara de alojá-lo por alguns dias, para que iria ela incomodar-se, disse, não é muito grave. Mas à primeira insistência da mulher, pôs cara de obediente resignação e acedeu.
Quando finalmente se pôde ver ao espelho, Conde deparou com um aprendiz de monstro que lhe parecia relativamente conhecido. Embora o inchaço da sobrancelha e da bochecha tivesse cedido, graças aos anti-inflamatórios e aos sacos de gelo, e já conseguisse entreabrir a pálpebra, o globo ocular estava totalmente avermelhado e a visão tinha de atravessar uma película opaca, decidida a alterar a sua perspectiva do mundo, pintando-o de cor-de-rosa.
Depois de engolir duas pastilhas, de suportar na nádega a intrusão pontiaguda da injecção e de começar a reconciliar-se com o mundo ao beber o café que Tâmara acabara de fazer, Conde deixou-se escorregar na banheira de água morna e permaneceu reclinado até a água ter arrefecido. Aquela paz, aquela limpeza, aquela sensação de segurança e de se saber o centro das atenções da mulher que, por mais tempo e com maior insistência, amava, fizeram-no sentir um bem-estar reparador e levaram-no a pensar se toda a sua vida não deveria decorrer dessa forma. Mas havia sempre um escolho decidido a desviá-lo do caminho dessa paz tão desejada, como se o seu destino fosse viver entre a margem e o próprio vórtice da incerteza.
Dispostos a aproveitar a situação, os amigos tinham transformado a sua convalescença numa festa e, às dez da manhã, desembarcaram em casa de Tâmara. Candito e Coelho tinham feito turnos para empurrar a cadeira de rodas de Magricela através de quinze quarteirões e quando Yoyi se lhes juntou recriminou-os por não o terem chamado, porque ele os teria trazido a todos no seu Chevrolet, ouvindo pelo caminho aquela selecção de sucessos de Credence Clearwater Revival, obséquio de aniversário de Conde.
Refugiados sob a folhagem da acácia rubra ainda florida, rainha do quintal da casa de Tâmara, bebendo só limonada fria num gesto de solidariedade militante com o amigo machucado, Conde falou-lhes das razões possíveis de ter sido expulso do velho bairro de Atares de uma forma tão contundente e, omitindo a tentação narcótica e o seu encontro com o pálido J. D., confirmou-lhes a sua decisão de lá voltar no dia seguinte, à procura daquela mulher esquiva cuja direcção já sabia.
— E tu achas que te bateram para que não falasses com ela? — perguntou Candito que, apesar dos seus mais de dez anos de asséptica vida cristã, conservava a sabedoria de rua dos seus tempos de guerrilheiro urbano dedicado aos mais variados negócios.
— Não, não creio — reflectiu Conde. — Eles nem devem saber que o Africano me deixou a pista. Tiraram-me do bairro para que não lhes lixasse os negócios. Ali cozinham-se muitas coisas grandes e há uns tipos de fora que mexem em muito dinheiro. Com certeza pensaram que sou polícia.
— Tu achas que se atrevem com a polícia? — duvidou Carlos.
— Lá em baixo, pá — interveio Yoyi, indicando com um dedo as profundezas do subsolo —, já não acreditam em nada nem em ninguém. E esses tipos que não são do bairro funcionam como uma máfia... Mas não, não te bateram por seres polícia, isso é sempre perigoso. Bateram-te por seres metediço.
— O problema é que preciso de falar rapidamente com essa mulher. O mundo é tal como é, independentemente de qualquer pensamento específico que se tenha acerca dele. De acordo com o que esta mulher me diga, saberei se estou a procurar pelo caminho errado ou não. Meditei muito e sinto que posso ser iluminado.
— Tens febre? — perguntou Carlos, alarmado com aquela forma de falar de Conde.
— E porque te há-de ela contar coisas que se calhar não quer contar? — A lógica impiedosa de Coelho fez descer os desejos de Conde ao nível da realidade.
— Porque, se for verdade aquilo que penso — disse Conde —, Flor de Lótus viveu mais de quarenta anos com medo. E isso é tempo de mais para o que quer que seja, não?
— Sim, é verdade. Mas se até o nome mudou... — Coelho manteve a sua dúvida.
— E quando dizes tu que vais lá? — Carlos, o Magricela, instalou-se melhor na sua cadeira de rodas.
— Amanhã — disse Conde.
— Mas tu estás louco! — protestou Carlos.
— Amanhã — confirmou Conde e a força da afirmação despertou-lhe dores adormecidas.
— Eu vou contigo — disse Candito — e isso não se discute.
— Eu também vou, c'um caraças — atirou Coelho.
— Quantas pistolas alugo? — perguntou Yoyi. entusiasmado. — Ultimamente baixaram de preço...
— Não, temos de ir limpos — disse Conde.
— Mas duas barras de ferro podem vir a calhar — concluiu Candito, acrescentando: — Que Jesus meu Senhor e Salvador me perdoe.
O Chevrolet Bei Air ficou sob observação remunerada de um vigilante, diante do Parque de La Fraternidad, e Conde, ainda com um ligeiro coxear, um olho avermelhado e a ferida da sobrancelha coberta com um penso, conduziu a sua tropa na direcção da Calzada de Monte, à procura do bairro de Atares. Candito e Pombo, vestidos com camisas largas, escondiam na cintura as barras de aço que utilizariam em sua defesa se fosse necessário, enquanto Coelho, com a voz momentaneamente trémula, insistia em contar a história daquele bairro, eternamente marginal e famoso pela fúria dos seus habitantes, onde sempre fora perigoso penetrar com o pé errado.
Quando chegaram diante da entrada do cortiço da calle Factoría, número 58, Conde pediu aos amigos que esperassem por ele no passeio e evitassem qualquer problema. Lamentou que diante deles corresse, rua abaixo, um rio de detritos vindos dos esgotos, capaz de impregnar o ambiente com a sua fetidez. Fez um esforço para ultrapassar o seu coxear e transpôs o umbral que dava acesso a um pátio interior, aberto como uma pequena praceta, onde duas mulheres se dedicavam a branquear a roupa em tanques de cimento. Conde olhou à sua volta à procura de indícios perigosos, mas calculou que àquela hora da manhã devia haver uma trégua necessária após uma noite de azáfama intensa. Tentando fazer um sorriso, dirigiu-se para os tanques onde as mulheres, suspensa a faina face à aproximação do intruso, se voltaram, dispostas a enfrentá-lo, embora Conde julgasse que o seu aspecto podia despertar curiosidade mas não uma sensação de perigo. Cumprimentou-as, ampliando o sorriso, e perguntou-lhes em que quarto vivia uma senhora já de idade, chamada Carmen. As mulheres entreolharam-se com um receio instintivo.
— Aqui não vive nenhuma Carmen — respondeu a mais velha, uma preta com braços como presuntos moles.
— Claro que vive — insistiu Conde e sentiu o cérebro iluminar-se. — O meu amigo Veneno arranjou-me a direcção.
As mulheres voltaram a consultar-se visualmente, mas permaneceram em silêncio. Conde acrescentou:
— Eu não sou polícia e só quero falar com ela sobre uma familiar minha que desapareceu há muito tempo.
— Lá atrás, no último — disse a preta mais gorda, tornando patente quanto lhe desagradava o simples facto de dar uma informação a um desconhecido.
Conde fez um gesto de agradecimento e dirigiu-se para o fundo daquele prédio arruinado, contornando uns suportes de madeira ainda capazes de suster, mais por milagre que por eficiência física, o corredor do segundo andar, e meteu a cabeça pela porta aberta do último quarto. Era um aposento de uns quatro metros por seis, totalmente atestado de objectos sombrios e arruinados, entre os quais sobressaía uma caminha estreita, um frigorífico dos anos cinquenta com a tinta a cair e sobressaltos asmáticos, e um altar com várias imagens de gesso, além de um cadeirão de madeira onde dormitava uma velhinha, magra, com a pele enrugada e quase calva.
Delicadamente, bateu na porta e a velhota abriu os olhos e ergueu-os, embora se tenha mantido imóvel.
— Carmen? — perguntou, inclinando-se para ela, mas sem passar da porta.
— Quem és tu ?
Conde espantou-se com a pergunta, pois não tinha uma resposta convincente para ela: um vendedor de livros que encontrou uma fotografia e ouviu um disco...?
— É um pouco complicado de explicar. Posso entrar?
A velhota inspeccionou-o com os olhos e acabou por assentir, abanando a cabeça. Quando entrou, ela indicou-lhe com o queixo um banquinho de madeira. Conde reparou que Carmen economizava os movimentos e, pela posição difícil do seu braço esquerdo, pousado no regaço, deduziu que fora vítima de algum tipo de paralisia. Com mágoa, o homem verificou até que ponto a vida e o tempo Podiam coordenar a sua crueldade para devastar um ser humano. Aquele espantalho teria sido um dia uma mulher bonita, cheia de vitalidade, depravada e apaixonada, capaz de se tornar famosa entre os homens de Havana pela sua nudez dançarina em cima de um palco? Ou tratar-se-ia apenas, pensou quase a tremer, de uma pista falsa urdida pelo Africano e por algum dos seus amigalhaços, que o tinham lançado à procura de uma pobre velha, na realidade chamada Carmen, mas sem qualquer relação com Elsa Contreras, conhecida por Flor de Lótus?
Conde instalou-se no banco e inclinou-se para a mulher.
— A senhora desculpe-me, se calhar estou enganado... A pessoa que procuro chamava-se Elsa Contreras... e muita gente a conhecia como Flor de Lótus.
— E porque a procuras? Conde decidiu atirar-se de cabeça.
— Porque me disseram que era a melhor amiga de uma cantora. Violeta del Rio.
— E tu quem és? — quis saber novamente a velhota, sem revelar qualquer alteração facial, e Conde compreendeu que a sua única alternativa era contar-lhe a verdade.
Enquanto resumia quem era e porque procurava Elsa Contreras, Conde foi percebendo o absurdo daquela história, com cujos pormenores tentava erguer um edifício impossível, sem alicerces nem colunas, prestes a vir abaixo devido ao seu próprio peso morto. Mas mesmo assim, apenas com a omissão do assassinato de Dionisio Ferrero, largou toda a informação, incluindo a paixão silenciosa do seu pai, sem saber ainda se a velhota era a pessoa que procurava e sem ter a mais pequena esperança de, mesmo sendo Elsa Contreras, conseguir despertar o seu interesse e de arrancar-lhe os ferrolhos capazes de fazer ajustar as peças desconexas daquele romance inacreditável perdido no passado. A primeira luz de esperança iluminou Conde quando relatou a sova de que tinha sido vítima, pois conseguiu entrever um sinal de vida na velhota: os seus lábios gretados desenharam um sorriso.
— Tu és louco, rapaz — disse a velhota quando achou que o homem tinha terminado o seu relato. — Sim, é preciso estar louco para se meter neste bairro de merda...
— Nesse caso você é... ?
— O que foi que me contaste acerca do teu pai?
— Parece que uma vez viu Violeta, se calhar ouviu-a cantar, e apaixonou-se por ela. À noite ouvia o seu disco, sozinho, na escuridão. Julgo que chegou a mencionar o nome dela...
— As coisas da Violeta — disse. E lentamente a velhota ergueu o braço direito para apontar na direcção de uma cómoda desconjuntada. — Na primeira gaveta. Uma caixa de cartão.
Conde obedeceu e, sob um monte de pastilhas plastificadas, frascos, ampolas de injecções e tubos de pomadas, viu a caixa de cartão, de uns vinte centímetros por trinta.
— Tira-a e vê o que tem lá dentro — ordenou ela. Conde tirou a caixa, pousou-a na cómoda e levantou a tampa. Uma cartolina branca ocupava todo o espaço. Ao tirar a cartolina, Conde descobriu que era uma folha de papel de fotografia, dobrada ao meio. Sem olhar para a velhota, alisou a enorme fotografia e ficou diante de uma mulher com os seus vinte anos, muito loura, firme, sorridente, bonita, que se protegia da nudez total com umas coroas brilhantes, como flores de lótus, presas no púbis e nos mamilos de uns seios prodigiosos.
— Estás a ver Elsa Contreras quando era Flor de Lótus em Havana — disse, acrescentando: — Olha para aqui: agora estás a ver uma velha meio morta que se chama Carmen Argúelles.
16 de Fevereiro
Meu querido:
Desde a minha carta anterior quase não fiz progressos na procura de uma verdade tão necessária para mim e, no entanto, fui encontrando outras verdades inesperadas que hoje me atormentam. Há vários dias fui ver o infeliz jornalista bisbilhoteiro a quem os teus amigos quase arrancaram a mão. Encontrei-o transformado num farrapo humano, alcoolizado, com um medo permanente do qual só se liberta quando se enche de aguardente. O homem recusou-se a contar-me o que quer que fosse mas, graças a ele, consegui localizar aquela cantora de boleros que uma vez teve uma discussão com essa mulher. Conversámos muito tempo sobre o que aconteceu e, apesar de ser uma mulherzinha desse ambiente de cantoras e cabarés, quase poderia jurar que foi sincera. Para ela, conforme me jurou desde o início, o problema com a defunta tinha terminado no próprio dia da discussão, porque soube que naquela guerra estava destinada a perder quando ficou a par dos poderes que estavam por trás da sua inimiga. Mas garantiu-me ter-se sentido redimida com a meia dúzia de coisas que conseguiu dizer àquela hipócrita que desempenhava o papel de jovenzinha inocente. Depois manteve-se longe dessa mulher e quase não teve notícias dela até se ter inteirado da sua morte, várias semanas depois do sucedido, quando regressou de umas actuações que fez no México. Falámos durante muito tempo e, quando se sentiu com confiança, contou-me de uma forma quase casual uma coisa que ainda me nego a acreditar e que só tu poderias negar ou confirmar: segundo ela, a verdadeira razão que a fez afastar-se para sempre dessa mulher foi o facto de, alguns dias depois da discussão, teres ido a casa dela com esse motorista negro que contrataste nos últimos tempos, e de a teres avisado que se mantivesse longe dela e que não voltasse a falar-lhe pelo resto da sua vida se quisesse continuar a cantar e a comer. Nessa altura saiu do quarto um amigo dela (foi essa a sua denominação) que, ao ouvir as tuas ameaças, quis protestar. Mas o motorista negro, sem dizer uma palavra, puxou de uma pistola espetando-a entre as sobrancelhas e, quase imediatamente e com a mesma pistola, bateu-lhe na boca rebentando-lhe os lábios contra os dentes. Então, de acordo com ela, tu disseste que felizmente tinham vindo em paz, mas que podiam imaginar como viriam da próxima vez se decidissem decretar-lhes guerra ou se andassem a comentar por aí que tu tinhas ido visitá-los... Assim que terminou de contar esta história terrível, a cantora começou a chorar e eu, sabes o que lhe disse? Disse-lhe que isso era mentira e saí.
A verdade, no entanto, é que aquela mulher me pareceu tão sincera que me atrevo a perguntar-te agora: aconteceu uma coisa desse tipo? Desmente-a, por favor, e diz-me além disso que o desaparecimento daquele pobre motorista que usaste para esconder o nosso segredo não foi resultado de um acto cujo desenlace nem quero imaginar. Diz-me, também lhe declaraste guerra quando ele teve a infeliz ideia de querer arrancar-te dinheiro com ameaças de chantagem?
Tenho de assumir que muitas vezes se paga um preço altíssimo por querer saber a verdade. Procurando uma, ainda esquiva, rocei noutra que teria sido melhor não conhecer e que me revelou até que ponto tentei lutar contra a corrente onde colocaste a tua vida desde que conheceste e enlouqueceste por essa mulher da minha desgraça...
22 de Fevereiro
Meu querido:
Andava tão compungida com a história da cantora que me senti na necessidade de falar com a tua filha sobre este episódio e sobre todas as coisas em que ando a pensar nos últimos meses. Há várias semanas que ela e eu quase não conversamos, para além dos comentários sobre assuntos quotidianos, pois entre a minha obsessão e o meu estado de espírito cada dia mais abatido, e as responsabilidades que ela aceitou no seu trabalho, há mesmo dias em que, no melhor dos casos, nos vemos enquanto tomamos o café da manhã ou quando ela engole duas sanduíches à noite.
Para minha surpresa, a tua filha ouviu a história quase com alegria. Disse-me não ter ficado surpreendida, uma vez que de um homem como tu não se podia esperar outra atitude, pois sempre foste um egoísta que só pensava em si e que utilizaste aqueles que te rodearam consoante as tuas conveniências: os teus pais pelo seu apelido e prestígio, a tua mulher pelo seu dinheiro, a mim pela minha fidelidade... No entanto, a ela e ao irmão tratavas como estranhos, apesar de serem sangue do teu sangue, tão teus filhos como os outros, que também utilizaste para obter o favor dos teus sogros, o seu dinheiro e influências. E disse, como se estivesse disposta a enlouquecer-me, completamente alterada, que se interrogava há muito tempo, e agora esta história confirmava-o, se não terias sido tu próprio a eliminar ou mandar eliminar essa mulher por alguma coisa que te tenha exigido e que não te tenha agradado ou simplesmente por já não te convir a sua presença e sobrar na tua nova vida, quando com certeza sabia demasiadas coisas que preferias enterrar juntamente com o seu corpo... A tua filha só se calou quando lho exigi com uma bofetada... Mas já tinha largado o seu veneno.
Se antes desconfiei que ela poderia sentir algum rancor por ti, hoje estou convencida do muito que te odeia pela forma como lhe negaste tudo o que lhe pertencia. Para mim foi muito doloroso verificar esta verdade terrível e sinto-me culpada pela fraqueza de lhe ter contado a sua verdadeira origem, mas bem sabes que o fiz para que se sentisse orgulhosa e segura embora, já vês, só tenha conseguido criar nela um ressentimento capaz de a alegrar por possuir o que ela considera ser outra prova da tua verdadeira natureza e, com
essa prova, a certeza de que foste tu quem pode ter ordenado o silêncio derradeiro dessa mulher.
Sabes o que é mais doloroso, o que é verdadeiramente cruel nesta revelação atroz? Ter compreendido, embora sempre te tenha amado e me tenha atrevido a violar todas as convenções dando-te mesmo dois filhos, que eu também tinha medo de ti e talvez por isso nunca tenha tido a determinação necessária para me revoltar contra o papel e o destino que me impuseste, enquanto troçavas de todas as promessas feitas durante anos... E mesmo agora, se me atrevo a escrever tudo isto, é porque sei que esta carta nunca te chegará às mãos. Na realidade, nunca me atreveria a enviá-la por duas razões que já conheces: por medo e por amor. Creio que mais por amor. Por um amor que será sempre capaz de perdoar tudo.
A tua Pequena
Assim como me vê, feita um farrapo humano, vivendo neste cortiço de merda, ainda continuo a pensar que a vida sempre foi generosa comigo. Muito generosa. Deu-me as suas chicotadas, como a toda a gente, algumas bem duras, mas permitiu-me ver e gozar o que os outros nem conseguem sonhar mesmo que vivam dois séculos sem dormir uma só noite.
Olha, quando fiz treze anos, descobri uma coisa que seria a minha salvação: eu tinha um poder especial e disse para comigo: vou usar este dom da Natureza para sobreviver. Anda, olha novamente para essa fotografia, olha bem... Estás a senti-lo? O meu poder estava na cara, no cabelo, nos peitos duros que já pareciam duas maçãs quando fiz doze anos e, sobretudo, aqui em baixo, entre as pernas, onde tinha um tesouro enterrado. Justamente quando tinha treze anos, o meu pai morreu, caiu de um edifício onde estava a limpar as janelas e, como não pertencia a nenhum sindicato nem tínhamos dinheiro para contratar advogados, não nos pagaram nem um peso de indemnização. Nem os custos do enterro. A minha mãe, a minha irmã mais nova e eu vivíamos num cortiço a três quarteirões daqui, na calle índio, e ficámos sem nada, estávamos quase a morrer de fome, de fome a sério, de não comer nada, e essa fome obrigou-me a deixar de ser uma menina, assim, de um dia para o outro. Quando saía à rua os homens olhavam para mim, alguns até me diziam coisas, e nesse momento pensei: se Deus me deu este corpo, o maior pecado é deixá-lo morrer, deixar morrer a minha mãe e a minha irmã... Comecei por deitar-me com o galego, dono do quarto onde vivíamos, para que não nos pusesse na rua, e depois foi a vez do carniceiro, do merceeiro e do padeiro. E, como a coisa funcionava, continuei com os donos da loja de tecidos e da sapataria. A verdade é que nunca olhei para aquilo ou o senti como sendo sujo ou imoral, mas como uma forma muito prática, e além disso agradável, de ganhar a vida, de não morrer de fome, porque quando o fazia sentia-me bem, gostava de fazer gozar os homens e adorava que os homens me fizessem gozar a mim. Assim, sem grandes complicações, sentimentos de culpa ou o raio que o parta, porque já o disse um sábio, e o tipo parecia saber alguma coisa a este respeito: o melhor de ser puta é que trabalhamos deitadas e, no pior dos casos, se não ganhamos muito, pelo menos cai-nos alguma coisa quente no estômago...
Aos quinze anos eu sabia tudo sobre os homens, sobre o que precisavam e tinha de lhes dar para os suavizar, sobre o que gostavam e às vezes não se atreviam a pedir, e o mais importante: tinha aprendido a maneira de os fazer acreditar que fodiam melhor do que os outros e até de os fazer sentir-se felizes quando me davam dinheiro e coisas só por uma queca... Por isso disse para comigo que já podia sacar mais que comida e roupa, que podia tornar-me profissional e até ganhar bastante dinheiro se encontrasse o caminho para chegar aos que pagam sem protestar por uma boa noite na cama. Sem qualquer modéstia posso dizer: o menos importante era ter um corpo de cortar a respiração; o que realmente importava era ser mais inteligente que a maior parte das putas, tinha essa inteligência natural dos animais selvagens e descobrira que há duas coisas muito perigosas neste ofício: uma é apaixonar-se por um cabrão disposto a chular o que ganhámos com o suor do nosso rosto e a outra é não ter consciência dos nossos limites, porque temos de saber que, por mais cuidados que tenhamos, aos trinta já estamos na decadência e o que não tivermos nessa idade nunca o vamos conseguir. Como quase tudo na vida. Por isso comecei a procurar uma maneira de não ser uma puta qualquer e lembrei-me de ir visitar os empresários do Shanghai, dizendo-lhes que queria dançar nos seus shows. O Shanghai tinha má fama, de teatro devasso, como diziam as pessoas, mas o mais importante é que todas as noites lá iam tipos com dinheiro, gente da sociedade, alguns só para chatear, outros porque gostavam de se excitar vendo as raparigas em pêlo, e eu sabia que ali podia pescar algum peixe graúdo e trabalhei para isso. Quando os do teatro me viram dançar em pêlo compreenderam imediatamente, eu era uma jóia, e por alguns pesos arranjaram-me uma certidão de nascimento em nome de Elsa Contreras, onde dizia que tinha vinte e um anos, quando não tinha mais que dezassete.
Passados quinze dias comecei a dançar e os homens enlouqueceram, iam ao teatro para me verem, e foi assim que conheci Louis Mallet, um francês quarentão que era o representante em Nova Orleães de uma importante companhia de navegação, a Panamá Pacific, e que tinha também um negócio de importação de madeira em Cuba, a partir das Honduras e da Guatemala, em sociedade com um cubano chamado Alcides Montes de Oca. E a minha vida mudou, tal como o meu nome tinha mudado. Louis começou a sair comigo e, passado um mês, já me tinha alugado um apartamento perto da universidade para podermos ter um sítio agradável onde estar juntos. Louis era um homem bom, amável, diria mesmo carinhoso, e nem sequer me proibiu que continuasse a dançar no Shanghai. Ele dizia-me: és uma artista, e como ele estava três ou quatro meses em Cuba e os restantes em Nova Orleães ou na Guatemala, eu aproveitava o tempo e fazia os meus trabalhos extra, mas só com gente que me podia pagar bem. Assim comecei a juntar um dinheirinho, a vestir-me com roupas caras, a usar bons perfumes, e os meus clientes subiram de categoria.
Mas foi em 1955 que a minha vida mudou a sério e pude deixar o teatro e todo o resto. Nesse tempo Louis estava em Havana e disse-me que pedisse uma semana livre no Shanghai porque íamos a Varadero. Queria descansar e apresentar-me uns amigos que me iam propor um negócio bastante vantajoso. Quando chegámos a Varadero hospedámo-nos num hotel magnífico, em frente ao mar, num edifício de madeira que parecia ter saído de um filme americano. Durante o dia banhámo-nos na praia, como dois namorados, e passeámos num descapotável. A noite fomos a um jantar num casarão nas margens do canal, perto da zona onde mais tarde construíram o hotel Kawama. Aí estavam Alcides Montes de Oca, o sócio de Louis, que eu já vira algumas vezes, e um homem muito elegante, que falava baixinho e tinha cara de palhaço, embora quase nunca se risse, que acabou por revelar ser Meyer Lansky. À hora do jantar chegou outro homem, Joe Stasi, chamava-se. Foi um jantar bastante aborrecido, porque Louis, Alcides, Stasi e Lansky falaram durante todo o tempo em importar coisas, e como Lansky só bebia dois copinhos de Pernod e odiava os bêbados, mal nos serviram uns copos de vinho. Mais tarde, quando nos serviram o conhaque e o café na varanda, diante do canal, Alcides Montes de Oca disse-me, finalmente, para que me queriam. Eles estavam a tentar atrair milhões de turistas americanos a Cuba e a esses turistas não podiam faltar quatro coisas: bons hotéis com todas as comodidades, muitos casinos, facilidade na aquisição de drogas de qualidade e a possibilidade de terem à sua disposição mulheres jovens, saudáveis, elegantes e depravadas. Se eu aceitasse, o meu negócio seria trabalhar com essas mulheres: eles estavam a planear umas viagens especiais a Havana para gente com muito dinheiro, tipos famosos, políticos, artistas, jornalistas, iam todos ser convidados por eles para que se sentissem no paraíso e depois dissessem bem das suas férias em Havana. Para essa gente eu devia criar uma espécie de agência capaz de satisfazer qualquer pedido com raparigas especiais. Não podiam ser putas cheias de maus hábitos, grosseiras, bastante usadas. Tinha de escolher o melhor, seria um serviço de qualidade pois essas mulheres, além de irem para a cama com esses homens, teriam de acompanhá-los enquanto estivessem em Havana. Para isso tinham de saber comportar-se num restaurante, num cabaré, num casino e até num teatro. As mulheres receberiam um salário fixo, um bom salário, tivessem pouco ou muito trabalho, para evitar que andassem a vadiar por aí. Se eu aceitasse, um homem de Stasi encarregar-se-ia de montar toda a estrutura do negócio: ele seria uma espécie de administrador-contabilista, trabalharia além disso em contacto com os hotéis e com os casinos, e eu procuraria as mulheres e trataria de as preparar, juntamente com uma professora de etiqueta que as ensinaria a comportar-se e a vestir-se. Depois eu trabalharia directamente com as raparigas, seria uma espécie de manager, com uma participação de três por cento do que esses ricos e famosos perdessem nos casinos, o que podia ser bastante... Para começar, nos três ou quatro meses que ia precisar para pôr a agência a funcionar, receberia um salário de quinhentos pesos. Quinhentos pesos! Você sabe o que eram quinhentos pesos nessa época? Uma fortuna.
Sem demorar um minuto a pensar, deixei de dançar no Shanghai e comecei a trabalhar nas minhas novas funções. No início de 1956 a agência, como lhe chamava Bruno Arpaia, o homem de Stasi que trabalhava comigo, já estava pronta. Tínhamos dezasseis mulheres e eu recrutara quase todas fora dos bairros de putas. Procurava nos cabarés e clubes de Havana e fazíamos investidas, como as denominávamos, no interior e nas grandes cidades, Cienfuegos, Camagúey, Matanzas, escolhíamos raparigas que servissem para o nosso negócio e ensinávamo-las a comer, a vestir-se, a falar baixinho e eu explicava-lhes também como se devia tratar um homem e como deixar-se tratar por ele...
No fim desse ano a agência funcionava tão bem que tivemos de procurar mais mulheres. Numa dessas investidas, num pequeno cabaré de Cienfuegos, encontrei uma rapariga que cantava ali três ou quatro noites por semana e que, além de ser uma das mulheres mais bonitas que tinha visto na minha vida, possuía uma voz especial, eu dizia que era uma voz de mulher porque não conseguia qualificá-la de outra maneira. A única coisa feia na rapariga era o vestido pobretão que usava e, sobretudo, o nome, Catalina Basterrechea, embora, para melhorá-lo um pouco, as pessoas a tratassem por Lina, Lina dos Belos Olhos.
Quando a conheci um pouco, apercebi-me de que Lina era como a Gata Borralheira: a vida dela era cantar e passava o tempo a sonhar com o aparecimento de alguém que lhe desse uma oportunidade para calçar os sapatinhos de cristal, demonstrar o seu talento e, se estivesse no seu caminho, tornar-se famosa. A mesma história de sempre. Só que para ela, pôr-se a cantar tinha uma componente de prazer, era como se fosse uma necessidade quase mais importante que a de comer. Por isso, embora Lina não fosse puta nem tivesse vocação para o ser, podia estar disposta a fazer o que fosse necessário para atingir a sua meta. Ao princípio eu estava encantada por poder recrutá-la para o meu negócio porque, assim que a vi, pensei que tinha encontrado um diamante na lama, assim que a polisse um pouco ela poderia ser a estrela da agência, mas quando conversei um pouco com ela, vi naquela rapariga alguma coisa diferente, alguma coisa que me comoveu, e a verdade é que eu nunca fui daquelas que se comovem com histórias de pais mortos, de tias filhas da puta e de primos que violam aos dez anos, como ela me contou. Não... Por isso expliquei muito claramente a que me dedicava e ainda não sei bem porque lhe fiz uma oferta tão especial: se quisesse, podia vir comigo para Havana e aí, de alguma maneira, ajudar-me-ia no negócio, sem ter de trabalhar como puta e eu, com os meus contactos, procuraria uma pessoa que pudesse dar-lhe uma mão para encontrar um sítio onde cantar. E, evidentemente, ela encheu uma malinha baratucha e veio comigo, sem se despedir sequer da filha da puta da tia que lhe fizera a vida impossível... Sempre pensei que o destino se empenhou em fazer com que Lina e eu nos encontrássemos, que a sua história me tocasse no pedacinho de coração que me restava, que ouvi-la cantar fosse sempre um prazer. Ou não sei que diabo foi, mas desde o princípio Lina e eu tornámo-nos amigas e, se alguma vez me passou pela cabeça propor-lhe trabalhar no negócio como as restantes raparigas se ela fracassasse nessa história das cantigas, passados poucos dias esqueci aquela ideia e decidi protegê-la, ajudá-la em tudo o que pudesse. Teria sido uma espécie de sentimento maternal? Como se me visse a mim própria e quisesse dar a mim mesma outra oportunidade? Vá-se lá saber... mas foi assim.
Um mês ou um mês e meio depois de Lina ter chegado a Havana, Louis regressou de Nova Orleães e disse-me que tínhamos de ir novamente a Varadero para nos encontrarmos aí com Lansky, Alcides e dois empresários americanos, donos de uma companhia construtora que se ia encarregar de construir alguns hotéis, ali mesmo em Varadero. Não sei porque convenci Louis de que seria bom levar Lina, mas lembrei-me de que ela podia cantar um pouco para os seus amigos, tornando o jantar menos aborrecido... Foi assim que se conheceram Alcides Montes de Oca e Lina dos Belos Olhos. Ele tinha quase cinquenta e ela menos de vinte mas, nessa noite, quando a conversa de negócios terminou e Lina começou a cantar, Alcides, assim que a viu e ouviu, apaixonou-se como um louco pela rapariga.
Alcides Montes de Oca era uma personagem com as suas coisas estranhas, devo dizer-lhe. Vinha de uma família da sociedade, era muito rico, mais ainda desde que herdara a fortuna da mulher, que tinha morrido há pouco tempo. Gostava muito de falar de política, tinha muito orgulho em ser neto de um general do Exército Libertador e sentia um ódio de morte por Batista. Segundo dizia, Batista era o pior que tinha acontecido a este país e por essa época tenho a certeza de que até simpatizava com os rebeldes, porque muitos deles tinham sido do Partido Ortodoxo, a que Alcides pertencia quando Batista deu o golpe de estado e suspendeu as eleições que os ortodoxos iam ganhar. Ele era, além disso, um homem muito culto, lia muito, e Louis dizia-me que em casa dele havia montes de livros. Mas ao mesmo tempo não deixava de ser, nem por um minuto, um homem de negócios, tinha faro para isso e embora não aparecesse como dono de quase nada, porque não precisava, tinha acções em todas as grandes companhias de Cuba e, por vias dos negócios, dava-se lindamente com Lansky, sem que essa relação aparecesse nos jornais, porque toda a gente sabia que o judeu tinha sido traficante lá no Norte, embora aqui só tivesse negócios legais e se portasse, bom, já lhe disse, como um cavalheiro.
Foi assim que Alcides e Lina se envolveram num amor que os mantinha aparvalhados e, para agradar à rapariga, ele conseguiu-lhe um lugar para cantar no segundo show do Las Vegas. Passado pouco tempo, mudou-a da minha casa para um apartamento em Miramar num prédio acabadinho de construir. O único problema a complicar aquele romance eram as aspirações políticas e a situação social de dom Alcides: tinha enviuvado há pouco tempo e não podia formalizar uma relação com uma provinciana pobre, que ultrapassava, além disso, em trinta anos... Se tivesse sido agora! Mas naquele tempo um escândalo assim podia prejudicar bastante a carreira de Alcides e por isso decidiram esconder-se, embora ele mantivesse Lina, lhe satisfizesse todos os caprichos, pagasse o apartamento e até lhe tivesse oferecido um carro, embora, para evitar comentários, Louis aparecesse como proprietário legal de tudo.
A pessoa que se ocupava dos gastos e das necessidades de Lina era a secretária pessoal de Alcides, chamada Nemesia More, uma mulher terrível. Ela tratava de toda a papelada comercial e até política de Alcides, além de ser assim uma espécie de governanta da sua casa, mas com mais poder, pois quando Alcides enviuvou Nemesia passou a ser a senhora da casa. Ela andava pelos quarenta, ainda com boa figura, era muito séria e tinha um dom: era sempre capaz de adivinhar o pensamento de Alcides e de o satisfazer antes de ele abrir a boca, e por isso Alcides dizia, meio a sério meio a brincar, que a mulher mais importante da sua vida era Nemesia More: sem ela não conseguiria viver.
Enquanto isso, Lina tinha começado a cantar e o dono do Las Vegas pusera a Alcides apenas uma condição para a contratar: mudar-lhe o nome. Imagina tu um apresentador a anunciar: «E agora, damas e cavalheiros, a ímpar Catalina Basterrrrrechea!»... Foi o próprio Alcides que, depois de pensar um pouco, disse: «Violeta del Rio», como se já tivesse aquele nome na cabeça. E assim morreu Catalina Basterrechea, Lina dos Belos Olhos, e nasceu a cantora de boleros Violeta del Rio, que imediatamente começou a ficar famosa e a cantar nos melhores locais, até chegar ao show do Parisién, quando em Havana já a conheciam como a Dama da Noite e havia não sei quantos tipos atrás dela, para a ouvirem cantar e, claro, para tentarem comê-la, porque a parolinha tinha-se transformado numa mulher espectacular, vestida com roupas trazidas de Nova Iorque, penteada nos melhores cabeleireiros de Havana, perfumada com essências francesas... Foi por essa mulher que o teu pai se apaixonou? Pobre, como deve ter sofrido...
Pelo que sei, Lina via pelos olhos de Alcides e a única coisa que recusou fazer para o agradar foi aceitar as aulas de um professor de canto que ele tinha insistido em contratar-lhe. Ela queria cantar como lhe saísse da alma e, se lhe ensinassem, dizia, iam estragar esse desejo natural que tinha desde menina e que a salvara da loucura. E eu creio que tinha razão. Ela não precisava de escola mas de um microfone. No palco transformava-se num fenómeno como eu nunca tinha visto ou ouvido — e já tinha visto e ouvido bastante nesta vida que vale por três —, de uma magia envolvente. Ainda hoje, depois de tantos anos, fecho os olhos e consigo vê-la com o microfone na mão, o cabelo (que lhe caía como um manto sobre aqueles belos olhos) lançado para trás, molhando os lábios com a ponta da língua, e oiço-a cantar aquelas canções que lhe saíam da alma... Pobre miúda...
Violeta foi uma mulher feliz, a mais feliz do mundo enquanto durou aquele sonho. Isto soa a novela da rádio, mas foi assim. E continuou a ser feliz quando, em 1959, tudo mudou de repente e para todos: para Lansky e para Alcides, para Louis e para mim, para as raparigas da agência. Porque o país mudou... Os rebeldes ganharam a guerra e Batista saiu de Cuba, coisa que toda a gente já desejava. Embora no início só se falasse de Revolução, alguns já mencionavam a palavra comunismo e o primeiro a compreender o que podia estar para vir foi Lansky. Por isso começou imediatamente a pôr a salvo os seus bens. Louis também pensou que o melhor era pôr o mar de permeio e convenceu Alcides a tirar de Cuba o que pudesse, esquecendo-se da política pois o seu momento tinha passado. Ao princípio Alcides recusou, mas passados alguns meses, com grande mágoa, apercebeu-se de que Louis e Lansky tinham razão. Apesar disso, quando decidiu partir, fê-lo pensando que regressaria dentro de poucos meses ou, quando muito, alguns anos. Depressa voltaria ao mesmo de sempre e por isso só ia levar o dinheiro que já tinha levantado e o mais importante para ele: os filhos e a mulher, Violeta del Rio.
Não me surpreendeu muito o facto de Violeta aceitar a proposta de Alcides de deixar de cantar e de ir viver com ele para os Estados Unidos. Se calhar foi convencida pela promessa de Alcides de que lá, onde ninguém os conhecia, poderiam casar-se e viver normalmente. Ou convenceu-a saber que mais para a frente poderia tentar voltar novamente às suas canções ou pensar que, naquele momento, o mais importante na sua vida era manter a relação que tinha com um homem que a idolatrava e por quem ela se tinha apaixonado. Seja como for, no fim de 1959 Violeta anunciou a sua retirada do mundo do espectáculo e Alcides começou a preparar a saída de Cuba tentando salvar o possível, embora tenha perdido montes de dinheiro quando começaram a intervir nas centrais açucareiras e a nacionalizar negócios americanos onde ele tinha acções. Durante esses meses, Violeta e eu tivemos tempo para nos vermos com bastante frequência. Lansky tinha voltado a Cuba pela última vez em Março ou Abril de 1959, fechou os seus negócios e regressou aos Estados Unidos. Claro, um dos negócios que morreu foi a agência de raparigas e, de repente, vi-me sem trabalho, com muito tempo disponível e bastante dinheiro no banco. Louis, por outro lado, prometeu-me que continuaria a vir a Cuba sempre que pudesse mas evidentemente não podia levar-me com ele. Em Nova Orleães tinha a mulher e os filhos, a sua outra vida, e nessa outra vida eu não encaixava. De qualquer forma nada daquilo me incomodou muito. Algumas das raparigas estavam dispostas a continuar a trabalhar comigo e eu dizia para mim própria: por muita revolução que haja aqui, se algum negócio continuar aberto, esse será o das putas. De modo que, enquanto isso acontecia ou não acontecia, tinha tempo de sobra para decidir o que fazer. Olhe, às vezes uma pessoa comporta-se como uma estúpida, por mais experiência de vida que tenha...
A pobre Violeta, sim, estava desesperada para sair. Depois do anúncio da sua retirada já não tinha nada para fazer aqui, queria antes afastar-se de tudo, mas Alcides demorava a saída, esperando que acontecesse alguma coisa para não ser obrigado a deixar o país e a perder tanto. Passaram-se seis ou sete meses e tudo se acelerou quando o governo anunciou que os negócios americanos em Cuba iam ser nacionalizados... No dia seguinte Violeta falou-me da viagem, iam-se embora o mais tardar dentro de um mês, e agora era a sério, porque no domingo seguinte Alcides pretendia dar o passo definitivo: ia levá-la lá a casa para apresentá-la formalmente aos filhos, que já eram adolescentes, e dar-lhes a notícia da sua decisão de casar-se com ela.
Nunca me passou pela cabeça que naquela tarde estava a falar pela última vez com a minha amiga Catalina Basterrechea, Lina dos Belos Olhos... Para além das intrigas políticas, de que ela não compreendia grande coisa, no seu horizonte não havia nuvens, pelo contrário, tudo era luz e promessas de felicidade. Que merda, não é?... Perguntei a mim própria milhares de vezes porque não mandaram tudo para as urtigas e saíram de Cuba dois, três meses antes, apaixonados e felizes, para viver o melhor das suas vidas...
Eu soube o que lhe acontecera na segunda-feira seguinte, quando fui ao apartamento de Violeta para saber como tinha corrido aquilo que, entre nós, chamávamos a sua entrada triunfal no grande mundo dos Montes de Oca. Quando cheguei achei estranho ver tanto movimento e quem encontrei ali foi Nemesia More, a secretária de Alcides. Ela recebeu-me como se eu fosse uma estranha e pediu-me que saísse imediatamente. Mas quem diabo é você?... Esta casa é da minha amiga, comecei a dizer-lhe, e a grande besta largou a bomba de uma vez: A sua amiga está morta e você já não é bem-vinda a esta casa... Naquele momento fiquei paralisada e só consegui perguntar o que tinha acontecido. Suicidou-se, disse-me a mulher, e avisou-me: Não telefone para o senhor Alcides. Ele está muito afectado e o melhor é deixá-lo em paz.
Como Alcides Montes de Oca ainda era Alcides Montes de Oca em Cuba e tinha conseguido que a vida privada de Lina ficasse fora do alcance do público, fez-se apenas referência ao seu suicídio em alguns jornais e não se tocou mais no assunto. Eu estava desesperada para saber alguma coisa, mas as pessoas que podiam informar-me engoliram a língua e só graças a um rapaz que vivia perto da minha casa e entrara na polícia consegui averiguar um pouco mais: Lina suicidara-se com cianeto. Mas porquê? Matar-se porquê quando era tão feliz? Seria por ter deixado de cantar? Não podia ser, pois, embora possa ter sido duro, ela fê-lo por vontade própria. Por ter de sair de Cuba? Também não, porque ela queria ir, ia com o seu homem e com uma promessa de casamento... A única possibilidade é que entre ela e Alcides tivesse acontecido alguma coisa muito grave, mas não conseguia imaginar o que podia ser, se ele já estava disposto a assumi-la publicamente como sua nova mulher.
Desesperada, comecei a vigiar Alcides. Precisava de falar com ele, de saber o que ele sabia, de ficar a par da razão pela qual Lina se atrevera a fazer uma coisa tão horrível. Tinha-lhe telefonado várias vezes e nunca o chamaram ao telefone, tinha-lhe mandado recados por alguns amigos e não me respondeu, até que comecei a vigiá-lo e um dia vi-o sair de casa, no seu Chrysler conduzido pelo motorista, e segui-o no meu carro. Fui atrás dele até Habana Vieja, vi-o entrar nos escritórios da Western Union e dirigi-me para lá. Quando me viu ao seu lado não se admirou, mas manteve-se sério. Por momentos pensei: este homem vai chorar. Ele acabou de entregar algumas mensagens, recebeu outras e saímos. Quando chegámos ao carro e abriu a porta, disse-me:
— Lina partiu-me o coração. Se eu estava disposto a dar-lhe tudo, porque fez isto?
Sem se voltar ou olhar para mim, entrou no carro, que dobrou a esquina e desapareceu. Essa foi a última vez que vi Alcides Montes de Oca e a última em que tentei saber por que razão aquela rapariga que todos julgávamos feliz tinha acabado com a vida, como se estivesse a viver um desses boleros que tanto gostava de cantar.
Arrebatado por um impulso selvagem, Conde esteve quase a lançar as perguntas que se foram acumulando na garganta enquanto penetrava na tragédia de amores frustrados contada pela velhota. Mas ao ver como as lágrimas se amontoavam nas profundas estrias faciais de Carmen Argúelles, absteve-se, com a contenção que se sente diante da dor da morte, e decidiu adiar a sua curiosidade. Embora a confissão da mulher começasse a completar-lhe uma história à qual continuavam a faltar alguns bocados equilibrantes, no fim alguma coisa conseguia manter-se de pé com o esclarecimento definitivo de um primeiro mistério: efectivamente, Violeta del Rio tinha morrido há mais de quarenta anos, como ele já sabia, mas fizera-o sob o seu nome real de Catalina Basterrechea e essa circunstância, apoiada pelas últimas centelhas de poder de dom Alcides Montes de Oca, explicava o esquecimento total em que tinha caído o seu outro eu, a cantora Violeta del Rio, cuja vida tinha sido encerrada alguns meses antes.
Com a promessa de regressar dentro de alguns dias, Mário Conde despediu-se da velhota, que agora lhe parecia ainda mais minúscula e frágil, como se ter regressado ao passado a tivesse gasto fisicamente. Já no umbral, parou e voltou para trás. Meteu a mão no bolso e tirou algumas notas: eram cento e quarenta pesos, tudo o que trazia consigo. Delicadamente, colocou-as no regaço da velhota. — Não é muito, Carmen. São pesos de agora, não de antes, mas ainda servem para alguma coisa — disse e, sem conseguir evitá-lo, acariciou o cabelo fraco e escasso da mulher.
Na calle Factoría, a sua equipa de guarda-costas parecia uma tropa derrotada pelo tédio e pela fetidez. Sentados nos degraus de uma entrada, tinham à sua volta um cemitério de pacotes de amendoins, várias latas de sumos e até dois jornais abandonados, resíduos das estratégias com que tinham tentado resistir ao assédio da fome e da espera.
— Porra, pá, como fala essa velha — protestou Yoyi, e Conde calculou que avaliava o tempo investido em termos económicos. — Imagino que já sabes tudo, não é?
— O que te disse ela, Conde, o que te disse? — insistiu Coelho e Conde prometeu contar-lhes, mas antes tinha de arrancar um espinho doloroso.
- Estão dispostos a entrar no bairro comigo? — perguntou,
olhando para os amigos.
— Vamos lá ver, Conde, o que é que tu queres? — indagou Candito, com o tom de voz de quem conhece as respostas possíveis.
— Nada, atravessar o bairro para lhes demonstrar que não me rendo. Yoyi, tu pensas como Juan que os tipos que mandam neste bairro são mafiosos? Bom, agora vão ver que deviam ter-me matado para me tirarem daqui. Vamos?
— A que se deve esta fanfarronada, Conde? — Coelho sorria, nervoso, com toda a sua dentadura em exposição. — Tu nunca foste nada fanfarrão.
— Pois a mim agrada-me essa ideia, juro-te. A ver se algum se engana e quer que lhe dê um ensaio — comentou Yoyi, tocando no lado onde levava a barra de ferro. — Olha que atrever-se a tocar neste tipo que é meu sangue...
— Deixa-te de asneiras, Yoyi. A verdade é que quero ir porque tenho um pressentimento...
— Outro? — troçou Coelho, apressando o passo para não perder o resto do grupo.
Conde, com a sua sobrancelha esquerda coberta com um penso, um olho roxo e o ligeiro coxear abriu a marcha em direcção à calle Esperanza. Na esquina seguinte, um grupo de jovens com má pinta, brancos e negros, viram avançar a estranha comitiva. O seu aguçado instinto de sobrevivência avisou-os da proximidade do perigo e, como insectos velozes, dispersaram-se, para alívio dos invasores.
Diante do cortiço onde julgava ter sido espancado, Conde deteve os amigos. Olhou para o interior do edifício e para um e outro lado da rua, tirando depois um cigarro que acendeu como se dissesse: aqui estou. Mas pela rua só passaram dois polícias fardados, alguns ciclistas, um esforçado condutor de triciclo dedicado ao transporte de pessoas e, pelo passeio, duas mulheres muito compostas, uma das quais Conde identificou como sendo a mulata da sua frustrada aventura prostibular.
— Vamos beber uma cerveja — propôs sem pensar, virando as costas à mulher que passou ao largo, ao que parece sem o reconhecer sob o seu novo aspecto.
— Conde, não te passes — avisou Coelho.
— Estamos bem, pá, que os tipos deste bairro são uma cambada de frouxos... — disse Yoyi em voz alta e Candito sorriu.
— Nem penses nisso, miúdo — disse Ruivo. — Nascer e viver aqui é uma escola pela qual tu nunca passaste. Estás a ver como tudo é feio, malcheiroso e sujo? Pois o coração desta gente fica assim e fazem coisas feias, malcheirosas e sujas como se fossem a coisa mais natural do mundo. Deus é o único que pode mudá-los... Mas vamos, Conde está-nos a ficar um tipo duro.
Conde procurou orientar-se e apontou para o quarteirão seguinte como sendo o do bar clandestino de Michael Jordan. Ao andar, sentiu que em dois dias alguma coisa tinha mudado nesse bairro, sem conseguir identificar de onde provinha aquela sensação, mais etérea que física. Quando espreitou pelo cortiço, disposto a entrar, descobriu que as transformações eram mais drásticas do que tinha imaginado: o pátio interior, onde três dias antes bebiam vários homens, atordoados pela música, estava agora completa-mente deserto como se ali nunca tivesse existido um bar clandestino apinhado, dirigido por um sósia de Michael Jordan. Conde duvidou do seu sentido de orientação, talvez se tivesse enganado, e procurou com os olhos o prédio do Africano para se certificar de que este era o local onde tinham bebido as cervejas.
— Levantaram o bar — disse, propondo imediatamente: — Vamos à tasca do Veneno.
Retrocederam dois quarteirões e viraram à esquerda à procura da tasca e, no trajecto, Conde decifrou finalmente uma das mutações sofridas pelo bairro: na rua estava tanta gente como sempre, mas só nalgumas casas se ouvia música, ao contrário das outras vezes, quando teve de avançar através de uma cortina sonora compacta. Tal como na sua anterior visita à tasca de Veneno, Conde atravessou o buraco do tapume que separava o edifício em ruínas da rua e, seguido pelos amigos, avançou junto dos precários tectos de lona e zinco sob os quais se refugiavam os párias recém-chegados. Continuou à procura do pátio onde estavam as mesas do restaurante improvisado e, atrás do portão, deparou com o mesmo panorama de desolação que vira no cortiço onde se situava o bar clandestino.
— Houve aqui algum problema grande, Conde — foi a sentença de Candito, o Ruivo, ao ver o espanto do amigo.
— Ficaram com medo depois da surra que deram ao Conde. Se calhar julgaram que o tinham matado — aventurou Pombo.
— Claro, e como pensavam que era polícia... — concluiu Coelho.
— Não, eles sabiam que eu não era polícia e por isso me bateram. A única hipótese é terem pensado que realmente me tinham matado — foi a suposição de Conde.
— Não pensaram nada... Se tivessem querido limpar-te o sebo, tê-lo-iam feito e pronto. — Candito olhou para as portas fechadas das casas que davam para o pátio. — Aqui passa-se alguma coisa estranha. É melhor irmo-nos embora.
— Sim, Ruivo tem razão. Vamo-nos embora daqui. Olhem para o céu, parece que vai chover...
— Eu queria passar pela casa de um tipo que conheço — disse Conde.
— Deixa isso para outro dia — exigiu Candito. — Vamo-nos embora daqui.
— E, no fim de contas, o que te disse a mulher, Conde? — Coelho, aliviado com a ideia de saírem do bairro, tinha recuperado a sua curiosidade intrínseca.
— Violeta del Rio chamava-se Catalina Basterrechea, tinha uns olhos lindos e o que mais amava no mundo era cantar canções de amor — disse Conde, lançando-se na história.
— E quando você era polícia, diga lá, não havia computadores?
— Claro que havia. Um, assim grandote... Chamávamo-lo Felicia(1). Ouve, eu pareço velho, mas o que estou é maltratado.
— E não trabalhava com ele?
— Não, achei-os sempre intragáveis. A verdade é que sou um pouco tanso para isso.
— Mas é tão fácil.
— Eu não digo que seja fácil ou difícil. Não gosto muito deles e sou tanso para isso... Quantos computadores têm agora na Central?
— Dois... mas um está estragado.
*1. Nos países americanos de língua espanhola o substantivo é feminino (La computadora), daí o nome. (N. da T.)
— E é com certeza mais bruto que eu. Queres apostar como não encontramos nada?
O sargento Estévanez sorriu e abanou a cabeça: aquele tipo devia ser um chato. Não lhe passava pela cabeça a imagem de um investigador incapaz — por ser tanso — de procurar uma informação básica num computador, estando convencido, antes de o fazer, de que não a encontrariam.
— Como é o nome... ?
— Catalina Basterrechea — repetiu Conde e concordou com Flor de Lótus na apreciação sonora: com aquele nome, ninguém podia pisar um palco para cantar um bolero.
A procura foi mais árdua do que imaginava o sargento e Conde sentiu-se satisfeito quando, após diversas tentativas, o presunçoso polícia cibernético se viu obrigado a utilizar o telefone para perguntar a um especialista a localização de determinados arquivos do passado.
Estévanez deu novas indicações à máquina, incapaz de responder às suas perguntas, e Conde foi até ao corredor, através de cujas janelas viu que lá fora tinha começado a cair um aguaceiro impiedoso. Dirigiu-se a toda a velocidade para uma das casas de banho e, enquanto urinava, reparou que tinha adiado as suas necessidades por tempo de mais e suspirou aliviado ao sentir que descarregava com a mesma intensidade que as nuvens estivais. Nesse instante foi surpreendido por uma voz.
— Dizem que nas casas de banho se fizeram grandes amizades. Ou se consertaram algumas velhas...
Conde não se voltou, dedicado a sacudir conscienciosamente o pénis, manipulando-o como se fosse de um calibre superior ao que na realidade tinha.
— Mas não to vou apresentar — disse, guardando o membro. O capitão Palácios preferiu utilizar uma das retretes em vez
dos urinóis onde Conde se tinha aliviado. Ao terminar, voltou-se e; espantou-se ao ver o rosto arroxeado do seu antigo colega.
— Mas que raio te aconteceu?
— Por pouco não me mataram, mas bicho ruim nunca morre. E se morre, reencarna, como me disse um amigo que sabe destas coisas. Este é o risco de andar por aí a investigar sem ser polícia.
— Pois bateram-te com vontade... E averiguaste alguma coisa? — perguntou o capitão.
— Algumas coisas sobre o dono original da biblioteca e sobre a rapariga que cantava boleros. Há gente que tem dúvidas de que se tenha suicidado... Mas não te preocupes, não apareceu nada relacionado com Dionisio. E tu?
— Quase não tive tempo para nada. Isto cada dia é pior. Mas não conseguimos encontrar o bendito negro alto e coxo que esteve em casa dos Ferrero no dia anterior à morte de Dionisio. Os do negócio de livros velhos não o conhecem...
— Isso eu já sabia — disse Conde. — E estou desconfiado de que Dionisio e a irmã nos confundiram com isso do negro alto e, depois do que aconteceu, Amalia não sabe como sair dessa mentira.
— Tu achas? — Manolo olhou para Conde, interessado naquela suposição. — Porque fariam isso?
— Na casa dos Ferrero, especificamente na biblioteca, está a resposta para o que aconteceu aí. Um destes dias, Dionisio ou a irmã disseram-me alguma coisa acerca dessa biblioteca que me parece ser a chave de tudo.
— E ainda não te lembras do que te disseram?
— Não me lembro de quem foi nem do que me disse, mas é alguma coisa que me anda às voltas na cabeça... e não sei como nem porquê, mas essa coisa tem também alguma relação com a cantora de boleros.
— Vais continuar com isso...? Olha, Conde, para mim é tudo mais simples: Dionisio recusou fazer negócio com alguns desses livros, a pessoa que estava com ele aborreceu-se, certamente discutiram e foi nessa altura que essa pessoa se descontrolou e o matou. Quando viu o que tinha feito, levou esses seis livros porque, digas o que disseres, deviam ser os mais valiosos que lá estavam...
— Parece-me muito bonito — disse Conde —, e o melhor é que nem Yoyi nem eu entramos nessa história. Não precisávamos de matar ninguém nem de roubar livros que Dionisio podia vender-nos por qualquer preço...
— E se Yoyi quis fazer negócio sem contar contigo? Havia livros que tu não querias vender porque eram muito raros... Referiste-me manuscritos que podiam valer muitíssimo... E quem entrou lá em casa era conhecido de Dionisio. Repara que até conseguiu encontrar a sua faca.
Conde observou o olhar vago de Manolo, que o fitava com a desconfiança do possuidor de uma carta invencível.
— Yoyi pode ser qualquer coisa, mas não é um assassino.
— Porque tens tanta certeza? Yoyi é um negociante e o dinheiro enlouquece-o...
— Yoyi é meu amigo — concluiu Conde e Manolo sorriu. Ele sabia o que aquela condição significava na ética do antigo tenente. — Esquece-te dele e procura por outro lado.
— Estou a procurar por toda a parte, mas acontece comigo o mesmo que com os imanes: damos-lhe a volta e, quando o largamos, eles rodam sozinhos e tornam a unir-se... e unem-se sempre pelo mesmo lado...
— Se fizesses caso do que te digo como fazias antigamente... Diz-me, já sabes por que razão Dionisio saiu da corporação onde esteve a trabalhar depois de ter sido desmobilizado do exército?
— Mais ou menos, porque ninguém fala abertamente. Parece que Dionisio era bastante rigoroso e viu coisas que não lhe agradavam nessa corporação. Podes imaginar quais. Parece que começou a chatear e fizeram-lhe a vida impossível. Ele próprio teve de sair.
— Imaginava uma coisa desse tipo. O homem era um fundamentalista e isso por pouco não o levou a morrer de fome.
— Conde, Conde! — o chamamento do sargento Estévanez interrompeu a análise de Conde. — Ah, capitão, não sabia...
— O que aconteceu? — quis saber Manolo.
— Descobri uma coisa estranha: o caso dessa mulher não está aberto mas também não está fechado...
— Isto está a ficar bom. Mas é melhor sairmos da casa de banho — propôs Conde —, não vá alguém desconfiar que ando a enrabar alguns polícias...
A chuva da tarde tinha apagado o ambiente cinzento que envolveu a cidade desde o meio-dia, libertando-a de uma carga opressiva que parecia disposta a afundá-la até aos seus desolados alicerces. O céu acabado de lavar tinha recuperado a sua alegria estival e uma brisa fresca filtrava-se por entre as árvores sussurrantes e pintadas com a luz impressionista do crepúsculo iminente.
O homem, musculoso e corpulento apesar da idade, baloiçava-se suavemente na cadeira de madeira. Tinha os olhos perdidos no jardim e, com intervalos de vinte e cinco a trinta segundos, levava o charuto aos lábios e o rosto ficava momentaneamente escondido pela nuvem de um fumo preguiçoso que, consciente da sua densidade perfumada, começava a ascender da sua boca em direcção ao paraíso, onde se perpetua o espírito dos havanos bem feitos e mais bem fumados.
Da janela do carro, Conde observou-o e sentiu a invasão inconfundível da nostalgia. Vê-lo fumar na solidão aprazível da entrada, descontraído, parecendo satisfeito, era um espectáculo que nunca sonhou ter oportunidade de gozar. Nos dez anos de trabalho sob as ordens daquele homem, rijo e com capacidade de liderança, o então tenente investigador Mário Conde tinha visto crescer um afecto particular, mistura delicada de diferenças e afinidades, pelo homem do charuto que, sem grandes benevolências, o tornara depositário da sua avultada experiência policial, dos segredos da sua ética incorruptível e do mais esquivo benefício da sua confiança e da sua infatigável amizade. Por isso, quando uma equipa dos Assuntos Internos, revestida de poderes policiais e políticos ilimitados, determinou que as capacidades daquele homem tinham diminuído e decidiu desmobilizá-lo da polícia através de uma reforma antecipada, Conde atirara-se para o vazio atrás dele num acto de flagrante solidariedade e entregara a sua demissão, arriscando-se com a sua atitude a ser considerado suspeito de algum dos actos de corrupção, indolência e prevaricação que tinha custado o posto e até penas de cadeia a vários investigadores e, por simples responsabilidade hierárquica, puseram um ponto final ao mandato do, até à data impoluto, major António Rangel.
— O chefe de agora é melhor que o Velho? — acabou por perguntar Conde voltando-se para Manolo, sentado atrás do volante.
— Nunca há-de haver outro como ele. Sobretudo para ti.
— Isso é verdade — disse Conde, abrindo a porta do carro e dispondo-se a ter outro encontro com o passado.
Quando os viu aproximar-se, Rangel pôs-se de pé. Com os seus setenta anos, conservava o peito volumoso, o ventre liso e os braços robustos que sempre cultivou e exibiu com orgulho.
— Não posso acreditar — disse e sorriu, com o charuto entre os lábios.
Conde comprovou como a velhice e a distância das funções de comando tinham alterado as atitudes de Rangel, quando se aproximou deles disposto ao abraço. Teria amolecido o homem de ferro?
— Cheira bem esse charuto. Onde o arranjaste? — quis saber Conde.
— Quando a minha mulher trouxer o café, ofereço-te um... Tenho aí duas caixas de León Jimenes acabadas de chegar de Santo Domingo. Já sabes, o meu amigo Fredy Ginebra. E mandou-me um rum Brugal que está...
— A isso chama-se ter bons amigos — admitiu Conde. — E o que me contas das tuas filhas?
Um relâmpago de alegria passou pelos olhos do antigo chefe.
— Estão a planear vir de férias no fim do ano. A que se casou com o austríaco continua a viver em Viena, dando aulas de espanhol. A que foi para Barcelona trabalha numa companhia de seguros... estão bem as duas. Mas estou sempre preocupado com elas e com os meus netos...
— Já te passou a birra? — quis saber Conde. Ainda se lembrava do desgosto do major, quando ainda era major, por as filhas quererem sair de Cuba e organizarem as suas vidas noutras latitudes.
— Acho que sim. Agora dedico-me a fazer contas ao tempo que passo sem as ver... E sabes o melhor? A minha mulher e eu vivemos do dinheiro que elas nos mandam a toda a hora. A reforma não dá nem para começar. Imaginas isso, eu a viver dos dólares que as minhas filhas me mandam?
— As tuas filhas sempre foram boas pequenas — disse Conde, sem saber como sair daquele terreno minado. — Eu ter-me-ia casado com qualquer uma das duas...
António Rangel olhou para ele com uma estranha intensidade, capaz ainda de fazer tremer Conde.
— Se calhar não teria sido má ideia. Teria de te aguentar como genro, não teria os dólares que me salvam a vida, mas tu terias amarrado alguma delas a este país de merda... Mudamos de assunto?
— Claro — concordou Conde. — Viste o que te trouxe? — e apontou para Manolo.
— De modo que já és capitão — disse Rangel, referindo-se aos galões de Manolo e tentando abandonar o fosso da sua tristeza.
— Mas saiu-me um pouco cabrão — interveio Conde.
— Não ligue, major, este está sempre a chatear — protestou Manolo.
— Não te preocupes, nunca liguei. Mas não me chames major... E a ti, o que te aconteceu? — perguntou, apontando para a cara de Conde. — Foste atropelado por um comboio?
— Mais ou menos.
— Fica-te bem esse penso na sobrancelha. Há quantos dias não te barbeias?
— Nem te vou responder. Já não és meu chefe...
— Isso é verdade. E pode saber-se que raio fazem vocês aqui? Enquanto bebiam o café servido pela mulher do antigo chefe e
Conde acendia um León Jimenes pálido e sem veias, Manolo contou a Rangel a versão policial da morte de Dionisio Ferrero e as razões pelas quais Mário Conde estava implicado na investigação, sem mencionar que o antigo polícia figurava ainda na tórrida lista de suspeitos.
— Mas Conde anda à procura por outro lado — concluiu o capitão.
— E cada vez estou mais convencido de que aconteceu alguma coisa estranha há quarenta e três anos — atirou Conde.
— Quarenta e três anos? — entusiasmou-se Rangel, de forma policial, fumando o seu charuto.
— Lembras-te de me teres falado algumas vezes de um tenente chamado Aragón?
— Sim, claro, foi o meu primeiro chefe. Era um tipo especial.
— Pois o tenente Aragón deixou um caso aberto há quarenta e três anos...
— O da mulher que se suicidou com cianeto? — perguntou
Rangel, assombrado.
— E como sabes que é esse caso? — o assombro de Conde superou o do seu antigo chefe.
— Porque, segundo Aragón, foi o único que não conseguiu solucionar na sua vida. Depois de vários meses de averiguações, o chefe dele mandou-o concluir a investigação. Havia muitas evidências
que apontavam para o suicídio, mas Aragón teimava que alguma coisa estranha teria acontecido e queria continuar a trabalhar...
— É que realmente aconteceu alguma coisa estranha — confirmou Conde.
— Espera, diz-me como foi, para ver se percebo.
— Aragón acatou a ordem e arquivou a investigação, mas teve a previsão de não fechar o caso — disse Conde. — Por isso tivemos mais trabalho para encontrar esse ficheiro, porque o julgávamos encerrado. Agora estão à procura dos restantes papéis e do relatório da autópsia mas o resumo que temos diz que a mulher morreu por ingestão de uma dose mortal de cianeto, embora tivesse também no estômago vestígios de antibióticos... E Aragón achava que alguém disposto a suicidar-se não se preocupa em tomar um antibiótico para curar uma inflamação da garganta meia hora antes de o fazer. Ele apostava no assassinato, mas não tinha como o provar e faltou-lhe tempo para investigar... Pelo que sei, eu também acho possível terem matado essa mulher, talvez por coisas muito graves que soubesse. Imagina que o amante e Meyer Lansky eram unha e carne... Por isso viemos ver-te. Preciso que te ponhas a pensar, deves lembrar-te de alguma coisa que Aragón te tenha dito sobre este caso...
O ex-major da polícia pousou o charuto no cinzeiro e olhou para o jardim. Conde sabia que a memória de Rangel armazenava uma quantidade prodigiosa de informações e que agora os seus neurónios tinham de esgaravatar na lembrança das conversas mantidas durante anos com aquele polícia pré-histórico, cuja infalibilidade costumava sempre referir.
— A mulher era jovem e muito bonita. Era cantora... — disse Rangel, devolvendo o olhar a Conde. — E Aragón não encontrou motivos para o suicídio, mas para o assassinato também não. Os mais suspeitos não tinham motivos que os pudessem incriminar e em casa dela havia impressões digitais de várias pessoas, embora todas tivessem álibis sólidos... A defunta tinha tudo preparado para sair do país, até o passaporte já visado, e ia com o homem que era seu amante há vários anos. O sócio de Lansky?
— Ahã, esse mesmo. Vais bem — animou-o Conde.
— Aragón contou-me que se surpreenderam bastante com duas coisas: aquela rapariga não parecia ter amigas e o amante saiu de Cuba três semanas depois do suicídio. Também lhe pareceu estranho que antes de se suicidar pusesse no gira-discos o seu próprio disco... Espera, espera, estou a lembrar-me, o mais suspeito foi ter diluído o cianeto num xarope para a tosse... Segundo ele, se ia matar-se, engolia o veneno e pronto. Para quê diluí-lo num remédio?
— Mataram-na, há muito tempo que tenho a certeza disso — afirmou Conde, com uma entoação vitoriosa.
— Aragón estava convencido de que, se tivesse tido mais tempo, teria encontrado outras pistas, mas estamos a falar de 1959, não, já estávamos em 1960, quando começaram as sabotagens e havia muito poucos polícias de investigação com capacidade para se ocuparem de todos os casos. Por isso lhe ordenaram que se esquecesse da cantora e se metesse noutras investigações. Além disso, não havia familiares nem ninguém que exigisse um esclarecimento definitivo do que podia ter acontecido e ele já não tinha suspeitos... Mas o que não percebo é porque queres relacionar essa morte com a do homem dos livros.
Conde sorriu, fumando o seu charuto.
— Agora, porque sei que a assassinaram. No início foi por um pressentimento...
— Não posso acreditar, Conde. Ainda continuas a chatear com essa história dos pressentimentos?
— O que é que queres que faça, Velho, se na verdade tenho um pressentimento? O amante dessa mulher era o dono da biblioteca que os Ferrero herdaram.
— E esse homem... ?
— Morreu em 1961 — interveio Manolo, para demonstrar o desvario de Conde. — Um acidente de automóvel, nos Estados Unidos.
— Nesse caso...? — quis saber Rangel.
— Nesse caso... — imitou-o Conde. — Nada, vou continuar a investigar porque penso o mesmo que Aragón: Violeta del Rio não se suicidou e tenho a certeza de que Dionisio Ferrero foi morto por alguém relacionado com este mistério. O que acham? Se não tivessem matado Dionisio, nunca mais ninguém se teria interessado por Violeta del Rio.
Rangel e Manolo entreolharam-se. Teriam gostado de dizer alguma piada, mas a experiência exigia-lhes cautela. As premonições de Conde costumavam ter ligações surpreendentes com a realidade. Observando o seu charuto, o velho Rangel acabou por sorrir.
— Conde, há mais de dez anos que não te faço esta pergunta... e não gostaria de morrer sem que me respondesses a sério. Por que carga de água um tipo como tu se tornou polícia?
Conde aspirou o seu puro, com um ligeiro sorriso trocista, nascido da sua memória mais afectiva.
— Realmente, realmente, não o soube durante muitos anos — disse, já sem sorrir. — Embora às vezes gostasse do que fazia, quase nunca me sentia bem como polícia. Depois pensei que tinha sido tudo por culpa dos filhos da puta que fazem coisas e muitas vezes não pagam por elas... Mas ultimamente, quando vejo como vai o mundo, creio que um dia sonhei poder consertá-lo um pouco para que não fosse um lugar tão lixado, e engoli a história de poder fazê-lo como polícia. Foi um sonho romântico, não é verdade? Agora sei que estive a remar contra a corrente, mas não me arrependo desse facto, embora não voltasse a fazê-lo. Nem morto voltaria a ser polícia. Nem com um chefe como tu. Se antes era um agnóstico, agora sou um descrente... Velho, já não acredito nem nas quatro nobres verdades de que fala um amigo meu... Quando muito na amizade, na memória e nalguns livros. Parece um pouco cínico, mas é a verdade. O que vejo todos os dias não me agrada e seria muito violento para mim vivê-lo como polícia. Vendendo livros velhos sinto-me mais livre, sem poder sobre os outros e, sobretudo, mais conforme comigo próprio. E nos meus quase quarenta e oito anos aprendi que isso é importante de mais. Quando posso aprecio os meus pequenos prazeres, o mais longe possível de tudo o que cheire a poder e a julgar-me com direito de pensar pelos outros, e sem ter de cumprir ordens que às vezes não gostaria de cumprir. Estás a ver? Agora percebo mais claramente porque não quero ser polícia e a razão pela qual o fui durante dez anos.
Saiu da cama com a sensação de ter tido outro encontro com o seu amigo J. D., mas desta vez sem se lembrar do tema do diálogo: nada, com certeza a meditação e a reencarnação, ao cabrão deu-lhe para aquilo e não quer escrever, pensou, enquanto dedicava toda a delicadeza que as suas dores lhe permitiam à tentativa de se levantar sem acordar Tâmara. Já de pé, voltou-se e observou por alguns segundos o sono da mulher, a boca ligeiramente aberta, a camisa de noite enrugada, deixando a descoberto umas coxas ainda firmes na sua subida em direcção à irrupção prometedora das nádegas. Conde inclinou-se sobre ela, inspirou até encher os pulmões do cheiro a lençol quente e saliva doce, a cabelo revolto e a vapores femininos emanados daquele corpo quase inerte e surpreendeu-o a convicção de que já tinha atravessado todas as fronteiras da auto-preservação porque amava sem recato aquela mulher que sentia como própria e com quem tinha chegado a trocar os segredos mais íntimos: o chapinhar quase inaudível da língua de Tâmara no poço da boca e o ronronar quase lastimoso que costumava emitir nos instantes em que passava da vigília ao sono e, já no segundo exacto da queda definitiva na inconsciência, a sacudidela ríspida que lhe agitava o corpo, sempre capaz de alarmar Conde. Ela, por seu lado, conhecia e sofria o seu ressonar nocturno de fumador com uma fossa nasal entupida devido a uma bolada remota recebida no rosto, a ansiedade que o perseguia mesmo no fundo dos seus sonhos e que, segundo ela, o levava a adoptar posições insólitas como a de dormir de barriga para baixo apoiado nos cotovelos e com a testa contra a almofada, como se cumprisse uma penitência muçulmana. A quota de segredos partilhados durante anos de embates incluía o conhecimento de fobias e temores, de admirações e rancores, e a posse necessária das chaves para a activação mais subtil e eficaz dos seus estímulos sexuais. Conde recordou-se de como ela gostava que ele lhe lambesse o clitóris com um movimento incisivo da língua, deixando que a saliva escorresse em direcção às aberturas da vagina e do ânus, ao mesmo tempo que as palmas das suas mãos esfregavam os mamilos excitados, e ele sentia por fim a tensão profunda do ventre da mulher, a alteração da sua respiração, advertência do transbordo em cascata do orgasmo silencioso. Sentindo como se lhe encolhia o escroto e uma gota lasciva lhe percorria a uretra, o homem desfrutou da lembrança das artes aplicadas por Tâmara para o fazer gozar o mais possível, que incluíam o lamber dos seus mamilos, a carícia do esfíncter anal, a revisão linguística do pénis e dos testículos e, já penetrada, a abertura das suas pernas para que ele, de joelhos, desfrutasse do espectáculo rosado das suas carnosidades húmidas de saliva e de secreções próprias e visse como o seu membro honorífico, com movimentos perfurantes, explorava o interior quente de um corpo entregue de par em par ao prazer, ao amor e à força de um homem.
Endurecido pela evocação, Conde pensou se os anos não os teriam transformado já em algo mais que dois amantes: eram uma mistura estável de conhecimentos e tolerâncias que, a dada altura, teriam de aceitar como proporção definitiva, mas que ambos tratavam de retardar, quais guardiães egoístas dos últimos resíduos de uma liberdade reduzida ao gozo das suas solidões periódicas, solidões agradáveis de mais por poderem ter fim com um breve trajecto entre um bairro e outro de Havana, onde os esperava sempre a sensação redentora de segurança, solidariedade e pertença com a qual podiam premiar-se um ao outro.
Quando entrou na casa de banho, excluída a ideia de masturbação a que parecia destinado, Conde parou diante do espelho e disse para consigo que parecia uma múmia mal embrulhada há tempo suficiente e, com um puxão, arrancou as ligaduras colocadas na sobrancelha e na parte posterior da orelha. Observar a costura de três
pontos na sua pele arroxeada provocou-lhe um ligeiro mal-estar e desviou o olhar, horrorizado com as suas próprias cicatrizes.
Depois de beber o café e de fumar o primeiro cigarro da manhã, avaliou as perspectivas do dia, decidindo que tentaria falar com Amalia Ferrero, terminados já os rituais funerários de Dionisio, e concluindo que era também imprescindível fazer uma nova visita a Elsa Contreras, a anteriormente famosa Flor de Lótus, refugiada agora sob o nome e a pele aterradoramente real da devastada Carmen Argúelles.
Tâmara surgiu quando ele já acendia o segundo cigarro, depois de ter bebido outra chávena de café.
— Como te sentes? — perguntou-lhe, levantando-lhe o queixo para ver melhor o estado da ferida.
— Uma merda, mas pronto para o combate — disse ele. — O café ainda está quente.
Ela foi buscar a cafeteira e Conde, com o apetite matinal que as suas reflexões lhe tinham provocado, observou o movimento das nádegas generosas sob o tecido finíssimo da camisa de noite. Sem conseguir conter-se, pousou o cigarro, aproximou-se da mulher e, depois de beijá-la no pescoço, colocou as mãos nas nádegas dela, abrindo-as como páginas de um livro precioso.
— Acordaste carinhoso? — perguntou ela, sorrindo.
— Ver-te a ti torna-me carinhoso — respondeu, comprimindo-a contra a mesinha.
— Deixas-me beber o café? — pediu ela.
— Se depois me deixares fazer outras coisas...
— Tu estás doente.
— Mas não estou contagioso. E há três dias que durmo contigo como se fôssemos irmãozinhos. E já não posso mais. Por tua causa estive quase a esgalhar uma pívia em jejum...
— Mário, tenho de ir trabalhar.
— Eu pago-te o dia.
— Como se fosse uma puta?
Conde recebeu o clarão da lembrança. Viu a língua lasciva da mulata mercenária, os seus mamilos erectos e até ouviu a voz dela, pretensamente erótica. Sentiu nitidamente o encolhimento progressivo das suas partes íntimas, como um animal fugidio que se refugia na sua toca.
— Sim, vai trabalhar — disse ele, recuperando o cigarro, fumegante e quase consumido.
— O que te aconteceu? — quis saber ela, alarmada com a reacção do homem.
— Nada, nada, estou preocupado — sussurrou, saindo e encaminhando-se para o telefone. Mas regressou à cozinha e, como se se confessasse pela primeira vez na vida, perguntou à mulher: — Nunca pensaste a sério se deveríamos casar-nos? — e, perante o assombro que a pergunta provocou no rosto de Tâmara, acrescentou: — Era a brincar, não te preocupes... — e saiu.
Tâmara, ainda espantada com a pergunta, ficou estática, quase sem acreditar no que tinha ouvido e, com o telefone na mão, Conde sorriu ao ouvi-la dizer:
— Será das pancadas que levou na cabeça?
Yoyi, o Pombo, carregou com insistência na buzina do seu Chevrolet e Conde, meditativo, despediu-se das figuras de betão da casa de Tâmara.
— O que queres arrancar à irmã do morto? — perguntou o jovem, depois de apertar a mão de Conde e de accionar a alavanca das velocidades.
— Gostaria de arrancar-lhe a verdade, mas conformo-me com uma pista...
— E à velha de Atares?
— Vou tentar que complete a sua história. Houve coisas que não me disse. E não posso acreditar que tenha sido por medo. Já se passaram demasiados anos...
— E vamos nós os dois, sozinhos, ao bairro? Não vim preparado. Ando com os colares e as pulseiras...
— Não te preocupes, não acredito que se arrisquem novamente. Ali aconteceu qualquer coisa e eu gostaria de saber o quê. De qualquer forma levamos as barras de ferro...
Já diante de Amalia Ferrero, Conde apercebeu-se de que esta voltara a ser a mulher gasta e transparente que conhecera alguns dias antes. A mágoa parecia ter consumido o remédio alimentar proporcionado pelos livros e agora os seus olhos tristes quase não se viam devido ao pestanejar incontrolável, e os dedos estavam vermelhos,
à beira do sangramento, com certeza por terem sido submetidos a uma intensa mastigação nervosa.
— A polícia proibiu-me de vender mais livros até concluírem a investigação — disse, sem preâmbulos, ao ver os recém-chegados.
— Viemos por outra coisa. Podemos conversar um pouco?
Amalia voltou a pestanejar, atacada por um impulso incontrolável, e fê-los entrar para a sala. Conde observou as portas de espelho da biblioteca, fechadas, e procurou em vão o cinzeiro de vidro. Que raios lhe dissera um dos irmãos sobre aquela biblioteca? Qual dos dois teria sido? Tentou esgaravatar na memória, mas a resposta possível recusou-se a sair.
— Amalia, lamento incomodá-la, mas precisamos da sua ajuda. O homem que veio comprar livros continua sem aparecer, embora tivéssemos ficado a par de outras coisas e talvez...
— Que outras coisas? — os olhos intermitentes da mulher recuperaram uma centelha de vida.
— A cantora de que lhe falei, Violeta del Rio, chamava-se Catalina Basterrechea. Era a amante de Alcides Montes de Oca.
— Estou a saber agora... Não fazia ideia... — negou, enfática.
— É estranho que não o soubesse. Ela ia sair de Cuba juntamente com Alcides. E se vocês tivessem decidido ir, teriam partido juntos.
— Mas não o sabia... Eu não queria ir...
Conde achou que tinha chegado o momento de pressionar.
— A sua mãe sabia. Sabia de tudo... Foi ela que se ocupou das formalidades do enterro dessa mulher, quando ela se suicidou.
— A mãe fazia o que o senhor Alcides lhe pedia. Já lhe disse, era a sua secretária de confiança. Mas eu não sabia...
— É que sempre houve dúvidas sobre se Catalina Basterrechea se suicidou ou se a assassinaram.
Ao pronunciar a última palavra, Conde soube que tinha tocado numa corda dolorosa. Uma reacção física quase imperceptível fez estremecer a mulher, deixando-a na expectativa. Conde hesitou, embora o seu instinto lhe indicasse que devia enterrar o bisturi em busca dos tecidos doentes.
— Continua a parecer-me estranho que você, vivendo nesta casa, tão próxima da sua mãe e de Alcides, não tivesse ficado a par dessa tragédia. Que idade tinha em 1960?
— Não sei — titubeou Amalia. Pestanejou com insistência e ergueu uma mão para levar um dedo à boca, mas conteve-se. — Vinte anos. Mas os tempos eram outros, eu era uma miúda.
— Segundo percebi, já tinha começado a trabalhar, tornou-se federada, miliciana, aceitou cargos no banco, no sindicato...
— Tudo isso é verdade, mas não sei nada acerca de nenhuma Catalina nem do que o senhor Alcides fazia com a sua vida. E o que a minha mãe soube já não existe, a loucura levou... Satisfeito?... Porque não se vão embora e me deixam em paz? Sinto-me muito mal, sabe? — a voz suplicava, o desmoronamento era previsível. — Dionisio era meu irmão, compreendem isso? Quase a única pessoa que me restava no mundo... Os meus sobrinhos partiram. A minha mãe está a morrer. Hoje, amanhã... E essa bendita biblioteca de merda...
O raio fendeu as trevas mentais de Conde e iluminou a lembrança. Amalia tinha dito alguma coisa muito pessoal sobre a biblioteca que podia ser uma brecha para a verdade.
— Qual é o seu problema com a biblioteca, Amalia? Há alguns dias disse-me uma coisa do tipo de a biblioteca a repelir e você a, repelir também. Porquê?
Amalia olhou para os homens e moveu as pestanas com insistência. A voz saiu-lhe como um sussurro esgotado.
— Vão deixar-me em paz?
Conde aceitou o fim da conversa com um movimento da cabeça, mais convencido agora de que, naquela casa, particularmente na apetecível biblioteca dos Montes de Oca, se escondiam segredos inconfessáveis que talvez Amalia julgasse devorados pela memória perdida da mãe e pela passagem, às vezes redentora, do tempo.
Yoyi insistiu em presenciar o diálogo com Elsa Contreras, ou seria com Carmen Argúelles?, e Conde achou que ele tinha esse direito. Ao fim e ao cabo, a polícia continuava a considerá-lo suspeito por um assassinato do presente que o antigo investigador se obstinava em elucidar a partir do passado.
— Como tu gostas de coisas bonitas e caras, aviso-te desde já: não vais ver nada agradável — disse Conde e entraram no bairro.
— Não me lixes, pá, até parece que ver uma velha feia é alguma coisa do outro mundo... Sabes uma coisa? Eu estou a pensar o mesmo que tu. Quem matou Dionisio não o fez para roubar. E estou a pensar, sou muito mauzinho, que Amalia sabe alguma coisa, juro-te.
Conde sorriu, quando viraram para a calle Factoría.
— Não é preciso jurares... Agora vou pedir-te um favor: deixa que seja eu a falar com a velhota. Independentemente do que te vier à cabeça, não metas a colher, está bem?
— Gostas de te armar em chefe?
— Às vezes sim, pá — disse Conde, quando entraram no pátio do cortiço e verificaram que o local parecia ter recuperado o seu ritmo habitual. Ao fundo, as mesmas duas mulheres do dia anterior dedicavam-se a lavar grandes montes de roupa e Conde calculou que ganhavam a vida com aquele trabalho. De algumas portas abertas escoava-se a música escolhida por cada um, contrapondo-se, repelindo-se, numa concorrência capaz de estoirar os tímpanos não habituados. Num degrau, três homens pareciam render homenagem à garrafa de rum colocada no chão asqueroso enquanto, debaixo das escadas, um rapaz se dedicava a lavar um porco com a água contida num barril de petróleo. Na varanda do andar superior, atrás de um estendal cheio de lençóis remendados e de toalhas quase transparentes, uma negra semelhante a um pergaminho, vestida de branco e com os seus colares ao pescoço, fumava um grosso charuto. Junto dela, uma mulata jovem, com os caracóis do cabelo abertos como a cauda de um pavão, esfregava os olhos inchados pelo sono de que acabara de sair, coçando-se depois com prazer debaixo dos seios. Todos os olhares, incluindo o do porco, seguiram os passos dos forasteiros que, sem cumprimentar ninguém, se dirigiram para o fundo do cortiço.
Carmen Argúelles ocupava o mesmo cadeirão, na mesma posição do dia anterior, mas estava agora acompanhada e Conde calculou que se tratasse da sobrinha que, segundo a velhota, vivia com ela. Era uma mulher gorda, de aspecto bastante vulgar, com peitos de balão e uns cinquenta anos macerados, ocupada em colocar pequenos pacotes num saco pousado na cama.
Conde cumprimentou, desculpou-se pela interrupção, apresentou o seu acompanhante e perguntou a Carmen se podiam conversar mais um pouco.
— Ontem já te contei tudo.
— O que é que querem? — interveio por fim a gorda.
— É a minha sobrinha Matilde — confirmou Carmen e dirigiu-se à mulher: — Não te preocupes, vai que se faz tarde... — e tornou a olhar para as visitas. — Ela vende torrões de amendoim e esta é a melhor hora...
Conde manteve-se em silêncio, esperando a reacção de Matilde, e olhou para Yoyi, exigindo-lhe obediência.
— Está bem — acabou por dizer Matilde, colocando os últimos pacotes no saco, pendurando-o no ombro e deixando no ar uma advertência: — Já venho.
Quando a mulher saiu, Conde e Yoyi entraram no quarto e viram como Carmen sorria.
— Eu não falei a Matilde acerca do dinheiro que ontem me deixaste. Se lhe digo, desaparece. Já sabes, nunca chega...
— Esse dinheirinho é para si — disse Conde, legitimando a acção de Carmen e deixando entrever a possibilidade de hoje haver mais algum dinheirinho no fim da conversa.
— Que mais queres saber? — perguntou a velhota e Conde felicitou-se pelo resultado da sua afirmação. — Ontem contei-te tudo:..
— Há duas ou três coisas... Você conhecia os filhos de Nemesia, a secretária de Alcides?
— Tinha dois, um rapaz e uma rapariga, mas nunca os vi. Viviam em casa de Alcides e, claro, a mim nunca me convidaram para lá ir.
— Como era a relação de Alcides e Nemesia?
— Ontem já lho disse... Ela tratava da papelada e da casa, sobretudo desde que ele enviuvou. Era uma mulher culta, muito inteligente, e um pouco dura com toda a gente, menos com Alcides, evidentemente...
— E nada mais? — insistiu Conde.
— O que sabes tu acerca disso? — admirou-se Carmen.
— Nada — admitiu Conde. — Não sei nada...
Por momentos a velhota pareceu hesitar, mas só por momentos.
— Lina contou-me. O filho de Nemesia era de Alcides. Eles eram muito novos quando isso aconteceu. A família decidiu que o melhor era casar Nemesia More com o motorista de Alcides, para que este desse o apelido ao rapaz. Depois nasceu a rapariga e Alcides jurava que não era dele, embora Lina não tenha acreditado. Segundo ela, era o retrato do pai. E ao motorista pagavam cem pesos por mês além do salário para o manter calado. O mais estranho é que um belo dia o motorista desapareceu, como se a terra o tivesse engolido, e nunca mais se ouviu falar dele...
Conde pesou as palavras de Carmen e olhou para Yoyi.
— O que se supõe que tenha acontecido?
— Supor como? Não sei, mas é estranho, não é?
— As pessoas não desaparecem assim, sobretudo quando têm um trabalho pelo qual recebem o dobro... Lansky? — atirou Conde, num rasgo de inspiração.
— Lansky o quê?
— Desde quando Lansky e Alcides eram amigos?
— Desde que Lansky começou a vir a Cuba, em mil novecentos e trinta e tal. Mas começaram a fazer os seus negócios mais tarde, no tempo da guerra.
— Que negócios?
— A família de Alcides tinha influência e ele conhecia toda a gente. E Lansky tinha dinheiro para investir. Parece que foi isso. Durante a guerra mundial, Alcides fez uma fortuna importando manteiga dos Estados Unidos. Lansky usou as suas ligações aí para que Alcides tivesse o monopólio desse negócio... Luciano ajudou-os. Nessa altura, tinha o controlo do porto de Nova Iorque. Alcides pagou o favor a Lansky, apresentando-o às pessoas que mandavam aqui. Os políticos...
— E que negócios tinham em 1958, quando se reuniam no apartamento de Lina? Porque se com Batista Alcides já não tinha tanta influência como antes e Lansky não era muito querido nos Estados Unidos...
— Sobre isso já não sei nada...
— Você sabe... Já passaram cinquenta anos, Carmen. Estão todos mortos, não podem fazer-lhe nada. Mas tenho a certeza de que era alguma coisa bem complicada... Por acharem que estava a investigar isso, deram cabo da mão de um homem.
— O jornalista?
— Esse mesmo. Qual era o negócio?
— A sério que não sei, mas eles estavam a tramar alguma coisa.
— Além dos hotéis e do jogo?
— Claro, além disso.
— Drogas?
A velhota abanou a cabeça numa negativa veemente.
— Carmen — disse Conde, lançando a sua última carta —, talvez por essa história tenham matado a sua amiga Violeta... Aquilo do suicídio foi uma encenação, embora ninguém a tenha engolido. Nem sequer a polícia... Você também não engoliu. Mas Violeta era sua amiga e você ficou calada...
A velhota baixou os olhos até ao seu braço morto. Doer-lhe-ia o braço ou a consciência?, perguntou Conde para consigo. Quando ergueu os olhos, alguma coisa tinha mudado na sua expressão.
— Não, Alcides não o teria permitido. Ele era um grande filho da puta, mas estava apaixonado por Violeta. Não, ninguém a matou por coisas que soubesse...
— Tem a certeza de que Alcides não estava implicado no tráfico de drogas?
— Alcides não se teria metido nisso das drogas, tenho a certeza, e Lansky, que era o chefe de tudo o que a máfia fazia aqui, recebia comissões, mas não participava pessoalmente. A droga era o negócio de Santo Trafficante, o filho. Lansky estava decidido a ser um homem de negócios, queria viver sem ter a polícia atrás, como acontecia com o seu amigo Luciano que acabou por ir parar à cadeia, foi expulso dos Estados Unidos e que teve de ir para a Sicília, onde a sua vida não valia um cêntimo. O judeu protegia a sua imagem em Cuba como o que tinha de mais sagrado e afastou-se de qualquer coisa que pudesse afectá-lo. Afastou-se pelo menos directamente, percebe...? Além disso, com os projectos de construção de hotéis e casinos que dariam milhões e milhões, todos limpinhos, não podia arriscar-se em negócios sujos. Mas permitia que os outros os fizessem e sempre lhe ia pingando uma comissão...
— Nesse caso, que podiam tramar com tanto mistério aqueles dois? Se os negócios eram legais...
— Aí não posso ajudar-te mas, não sei porquê, se calhar tinha alguma coisa a ver com a política.
Conde olhou novamente para Yoyi, como se procurasse um ponto de apoio. Aquela possibilidade fugia de todos os esquemas montados até esse instante, mas iluminava o vazio existente naquela história.
— Sim, se calhar... por isso andavam com tanto segredo. Mas, o que poderia ser?
— Eles falavam muito de Batista, sempre mal. Achavam que ele ia lixar tudo. Alcides tinha-lhe um ódio de morte e Lansky dizia que ele era um tubarão, que não parava de chupar dinheiro, mas o país estava a fugir-lhe das mãos e ele ia lixar-lhes o grande negócio.
— Claro, e Batista lixou-o — pensou Conde em voz alta, embora se sentisse perdido num mar de teorias e possibilidades.
— Obstinou-se em ganhar a guerra e perdeu-a — comentou Yoyi, incapaz de suportar por mais tempo o mutismo obrigatório. — Lansky e Alcides tiveram de se ir embora e perderam uma fortuna. .. No fim de contas, Batista era um estorvo para eles.
Conde olhou para Yoyi e, embora se esquecesse disso com demasiada frequência, lembrou-se de que o rapaz era uma raposa da rua mas também passara pela universidade e alguma coisa devia ter aprendido.
— Outra coisa, Carmen — disse Conde, mais suavemente. — Por que razão mudou de nome e desapareceu para o registo de direcções?
A velhota olhou para Conde e depois para Yoyi. Sorriu com picardia.
— Há coisas que é melhor esconder... Sabes que eu conheci o teu pai?
Conde, admirado com a saída de Carmen, tentou evitar o precipício previsível.
— Não estamos a falar do meu pai — tentou dissuadi-la.
— Não te preocupes, não é nada terrível... O teu pai ia vezes sem conta ouvir Violeta cantar e começava a emborcar até cair da cadeira. Vi por duas vezes como o levavam do clube de rastos. O teu pai era um cobarde, nunca teve coragem de se aproximar de Violeta. Eu falei com ele duas ou três vezes, tinha pena. Pobre infeliz, estava apaixonado como um doido... Andou às voltas atrás de Violeta até alguém lhe dizer que, se quisesse continuar a andar com as duas pernas, era melhor não aparecer mais onde ela estivesse a cantar. Não voltei a vê-lo desde esse dia.
Conde sentiu que cada palavra da velhota lhe lacerava a pele. Mas decidiu que esse não era o momento de se deixar vencer por descobertas que o superavam.
— Sinto muito pelo meu pai... Mas não me disse porque se escondeu e mudou de nome...
A velhota voltou a olhar para o braço morto.
— Louis Mallet nunca mais voltou a Cuba. Eu não me decidia a partir, nem em 1960, nem em 1961... e, quando dei por mim, estava aqui trancada. O dinheiro desapareceu a voar, tive de voltar a trabalhar, mas já tinha mais de trinta e cinco anos e o que fiz foi montar um bordel em Nuevitas, quando ainda se podia. Tudo isso se acabou rapidamente e meteram-me numa espécie de escola, para me regenerar. Até me ensinaram a costurar. Mas tinha a ficha de puta pregada nas costas e quando tive uma oportunidade de acabar com isso, fi-lo. Comecei a usar o meu verdadeiro nome, deixei Carmen, a costureira, aqui em Atares e Elsa Contreras, prostituindo-se por mais alguns anos, com a fama de ter sido Flor de Lótus no Shanghai de Havana. Mas ser puta aos quarenta anos é do caraças. Temos de ir para a cama com qualquer um, sem cobrar muito porque, além disso, a concorrência ficou pelas nuvens: como as mulheres já eram livres e soberanas, iguais aos homens, abriam as pernas só para ver o leite correr, as rapariguinhas começavam a foder como desaforadas aos catorze anos e ninguém pensava duas vezes antes de ir para a cama com quem quer que fosse só para se divertir um bocado, no fim de contas, já o disse, éramos todos iguais e podíamos gozar da mesma forma, não é? No meio dessa loucura eu conheci um homem... um bom homem... e decidi enterrar para sempre Elsa Contreras e guardar Flor de Lótus nessa gaveta... A propósito, o rapaz não viu a fotografia — disse, como se estivesse a referir-se a outra pessoa, certamente morta. — Olha, mostra-a e deixa-me o dinheirinho de hoje debaixo da caixa, para Matilde não o ver quando chegar... Aquela gorda de merda come tudo...
Conde sorriu, foi buscar a fotografia e entregou-a a Yoyi. Tirou algumas notas do bolso, disposto a colocá-las na gaveta, mas de repente pareceu mudar de ideias.
— E que mais?
A velhota não parecia compreender a pergunta. Yoyi, que deixou de olhar para a fotografia, também não.
— Como que mais? — perguntou Elsa.
— Falta um pedaço da verdade que você conhece. Mas é um pedaço importante. E já lhe disse, isto passou-se há mais de quarenta anos. E são demasiados anos para se ter medo...
Carmen viu Yoyi devolver a fotografia à caixa e entregá-la a Conde que, antes de a receber, guardou no bolso as notas da recompensa prevista.
— Na última vez que o vi, quando Alcides ia entrar no carro diante da Western Union — disse a velhota com voz apagada —, ele disse-me que Violeta lhe tinha partido o coração.
— Isso já o sei — recordou Conde. — O que não entendo é porque disse isso. Se Alcides não teve nada a ver com a morte dela, devia saber melhor que ninguém que Violeta não se tinha suicidado. Ele tinha de desconfiar que a mataram. Por que razão se foi embora de Cuba e deixou tudo assim? Não, esse homem disse-lhe outra coisa...
A velhota voltou a olhar para o braço. Sem erguer os olhos começou a falar:
— O que me disse Alcides é que não metesse o nariz onde não devia. Nesse momento ele não podia arriscar o futuro dos filhos e por isso partia, mas pensava voltar assim que fosse possível, porque tinha de consertar aqui certas coisas. E o motorista dele, o negro Ortelio, ia ocupar-se de alguns dos seus negócios e um deles era que ninguém remexesse na morte de Lina ou nas suas reuniões secretas com Lansky. Tudo, tal como Lina, tinha de ficar morto e sepultado até ele voltar e desenterrá-lo. Para meu próprio bem, disse-me, devia esquecer-me de tudo, especialmente de comentar aquela conversa com a polícia... E disse-o de uma forma que ainda me apavora. Por isso fechei a boca e não averiguei mais. Aquele homem não era dos que pediam qualquer coisa por gosto e depois se esqueciam. Não, nunca foi desses...
4 de Março
Meu querido:
As vozes que me perseguem obrigaram-me a fazer o que a minha consciência se recusava a executar. Elas mandaram-me seguir em frente, a procura da verdade definitiva, já não para te demonstrar a minha inocência, na qual talvez nunca creias, mas para confirmar a tua, posta em dúvida pela tua própria filha, e encontrar por fim a paz de saber que não cometeste esse acto tão atroz contra alguém que dizias amar. Mas a verdade é que receio, cada vez com mais força, que encontrar essa verdade seja muito mais terrível que viver esta condenação de esquecimento e abandono, muitíssimo mais doloroso que a incerteza de hoje.
Durante dias tentei descobrir o paradeiro daquela mulherzinha que dançava nua e que foi tão amiga dessa mulher, esperando que talvez ela me pudesse dar alguma informação capaz de orientar-me. Mas o meu esforço foi em vão. Os lugares que uma pessoa do seu ofício podia frequentar foram fechados pelo governo, como parte da sua campanha de liquidação do passado. Não consegui encontrá-la no apartamento que lhe pagava o teu amigo nem numa direcção de Habana Vieja onde uma vez me disse que morava a sua irmã mais nova.
Por isso enchi-me de coragem e procurei o tenente que investigou a morte dessa mulher. Mas, desta vez, fui eu quem fez as perguntas. O homem aceitou receber-me no seu gabinete, por uma meia hora, porque diz estar cheio de trabalho devido às conspirações e sabotagens que se sucedem por toda a parte, numa reacção previsível aos decretos revolucionários. Mesmo assim foi amável e ouviu as minhas razões para querer saber mais alguma coisa acerca do destino final dessa mulher. Ele revelou-me que, no princípio, também tinha pensado na possibilidade de tu estares por trás da morte dela. Eles conhecem-te bem e sabem da tua amizade com certas pessoas que ele só quis qualificar como perigosas. Sabem também que, nos teus dias de estudante universitário, fizeste parte dos piquetes políticos mais violentos e desde essa época demonstraste ser um homem capaz de tudo. Mas, justamente pela tua maneira de ser, a forma como ela morreu parecia incongruente com a tua personalidade e depressa se convenceu, observando a tua reacção diante do sucedido, de que não tinhas relação directa com a morte dela e por isso te deixou sair do país. De quem suspeitava então?, perguntei-lhe. E ele respondeu-me categoricamente que se realmente ela não se tinha suicidado, como ele julgava, a sua morte devia ter sido preparada e executada por uma mulher, explicando-me que a ausência de violência e a oportunidade oferecida pelo frasco de xarope eram pormenores bastante femininos e o orientavam naquela direcção. A sua primeira suspeita foi a bailarina, devido aos seus antecedentes, mas algumas conversas com ela fizeram-no pô-la de parte. Confessou-me que mais de uma vez tinha pensado (Vês? Como tu.) se não teria sido eu a culpada de tudo, até por ser a única pessoa com acesso reconhecido ao apartamento e porque, ao dar-se conta da nossa relação (como conseguiu descobri-la esse homem?), lhe parecia ser quem mais motivos acumulava para desejar a morte dela. No entanto, ao ver as consequências que o facto me tinha trazido, pareceu-lhe evidente que eu as teria calculado e por isso decidiu descartar-me como suspeita, sem me eliminar completamente. E então?, perguntei-lhe. Então fiquei de mãos vazias, disse-me, e mau grado seu teve de aceitar a exigência dos seus superiores de preterir o caso e decretar o suicídio como causa provável da morte, embora continuasse convencido de que tinha sido um assassinato e de que o executor, ou melhor, a executora do crime, era uma pessoa com algum motivo terrível, para ele desconhecido, mas suficiente para desejar e atrever-se a concretizar a sua necessidade de vingança.
Como poderás imaginar, esta conversa acalmou-me e alterou-me, tudo ao mesmo tempo. Ter quase a certeza de que és tão inocente como eu trouxe-me uma paz que funciona como um bálsamo para o meu cérebro atormentado (o pobre não deixa de ouvir vozes, mesmo em pleno dia) e justifica porque pensaste com tanta veemência (tal como o fez o polícia) na minha possível culpabilidade. Mas, postas de parte como culpados a bailarina, tu e eu, quem sobra? É tão terrível a ideia que agora me anda a rondar a cabeça, tão pavorosa a suspeita, que prefiro fechar os olhos e os ouvidos, calar a minha boca, pois dar forma a esse pensamento far-me-ia enlouquecer, definitivamente... Além disso, que provas tenho? Nenhuma. Um pouco de ódio, uma dose de frustração, uma porção de ressentimento não podem ser ingredientes capazes de transformar alguém sempre doce e gentil, diria até dócil, num assassino, obstinado em reverter o destino e capaz de sacrificar uma pessoa com quem nunca trocou uma palavra na vida. Não pensas como eu? Diz-me que também não acreditas, que não pode ser, que estou louca ou sou uma desnaturada por pensar uma coisa tão brutal e desatinada, diz-me, por favor.
Ama-te sempre, ama-te mais, precisa tanto de ti nestes momentos terríveis...
A tua Pequena
Mário Conde decidiu, sumária e unilateralmente, que a sua convalescença e a sua relação com os antibióticos tinham terminado e pediu a Yoyi que parasse diante de uma loja com o objectivo de requisitar o necessário para a comemoração imprescindível do acontecimento histórico. Os acontecimentos dos últimos dias, empenhados em desordenar uma rotina a que já quase se habituara, tinham-lhe alterado os nervos e posto o cérebro a funcionar a uma velocidade vertiginosa. E, para acalmar nervos e neurónios vertiginosos, Conde não conhecia um remédio melhor do que uma sessão profunda de copos e conversa.
As seis garrafas de rum, pousadas na mesa de ferro e vidro, eram um desafio. Carlos, o Magricela, que há muitos anos deixara de ser magro, olhava para elas, guloso, como se fossem jóias de valor incalculável. Conde, constatando a felicidade que palpitava nos olhos do amigo, voltou a interrogar-se se estaria a agir correctamente, facilitando-lhe os meios para um suicídio gradual. Mas vendo-o provar o primeiro gole, com tanta fruição física e mental, concluiu novamente que ajudá-lo a sair daquele corpo devastado dentro do qual Carlos não queria viver era a prova mais difícil a que tinha de se submeter a sua definição de amizade e da própria vida, mas era ao mesmo tempo um acto supremo de amor, de cujo desenlace previsível ele seria o principal perdedor. Quando Magricela já cá não estivesse, para onde iria Conde com as suas palavras, com a sua sede de rum, música e nostalgia?
— Só temos um problema, Conde — Carlos aproximou a cadeira do sítio onde o amigo, meditativo, o vira beber o primeiro gole. — Quando o dinheiro se te acabar, vamos ter o bico mal habituado. Este rum é bom de mais.
— Isso é verdade, selvagem, embora não seja muito grave — disse Conde. — Ao mau acostumamo-nos sempre. Nós sabemos muito disso, não é verdade?... Mas não te preocupes, Deus há-de prover, disse-me Candito, e ele nunca me falhou.
— Bem, pelo menos por agora está a fazê-lo...
— E Coelho e Candito? — quis saber Pombo, já de copo cheio na mão.
— Devem estar a chegar — informou Carlos, bebendo meio copo de uma vez.
A tarde tinha caído subitamente, como costumava acontecer naqueles finais de Verão das Caraíbas, mas o calor quase não tinha diminuído. No entanto, no quintal de Carlos, sob as árvores e as orquídeas ainda húmidas, a temperatura era suportável.
— Já que estamos a comemorar vamos ouvir música, não é verdade, Conde? — entusiasmou-se Magricela, apontando para o gravador e para a pilha de cassetes colocadas sob a janela.
— E o que ouvimos ?
— Os Beatles?
— Chicago?
— Fórmula V?
— Los Pasos?
— Credence? — perguntou Coelho, acabado de chegar, para pôr fim à representação cíclica em que Carlos e Conde costumavam mergulhar, orgulhosos e satisfeitos de possuírem algumas coisas invariáveis, totalmente próprias, que ninguém, nem sequer o tempo, os golpes, as frustrações, as recusas e as ausências, tinham sido capazes de arrebatar. E a morte? Estou-me a cagar na puta da morte, disse Conde para consigo, apontando para Carlos com o indicador:
— Ahã, Credence... — acrescentando de imediato, como que desgostoso: — Mas não me digam que Tom Fogerty canta como um negro...
— Claro, claro, canta como Deus... É o que eu digo — interveio Yoyi, sorrindo, cansado de seguir com a cabeça o vaivém da bola em que os outros tinham mergulhado. — Vocês são inacreditáveis, parecem inventados, juro pela minha mãe... Quantas vezes já disseram a mesma coisa?
— E como vai a tua investigação, Conde? — quis saber Coelho, já armado com o seu copo de rum e sem prestar grande atenção às preocupações do jovem.
— Complicada, porque tenho a sensação de que a verdade está aqui, diante dos meus olhos, e não consigo vê-la.
— E agora, como é que é? — perguntou Carlos.
— Estou convencido de que a morte de Dionisio tem alguma relação com a de Violeta del Rio, que não se suicidou. Mas as únicas pessoas que podem relacionar essas duas mortes são Amalia Ferrero e a mãe... A mãe está louca há quarenta anos e Amalia jura não saber nada.
— E tu acreditas? — interveio Yoyi.
— Não... E esse é o meu problema. Ela está desde o princípio a esconder alguma coisa, talvez o tenha feito para proteger Dionisio... Ou a mãe? Ou a memória de Alcides Montes de Oca?... No fim de contas, parece que Alcides era pai dela... Mas o que faço para que me conte essa história?
Carlos, Yoyi e Coelho entreolharam-se e chegaram à mesma conclusão. Yoyi assumiu o papel de porta-voz:
— Atira-lhe a polícia, c'um raio. Que a interroguem como nos interrogaram a nós, que a registem e a maltratem um pouco como só eles sabem fazer: sente-se aqui!, não fale agora!, baixe as mãos!, quem faz as perguntas somos nós!, é melhor colaborar!, olhe-me nos olhos!... Tão subtis. Tu também eras assim, Conde?
O outro optou por não responder.
— Manolo já falou com ela e não tirou nada a limpo. Mas diz que é um exagero da minha parte dizer que a história de Violeta tem relação com a de Dionisio. Embora o tenha posto a pensar.
— E essa história de Lansky e Alcides Montes de Oca? O que achas disso, pá? — Yoyi encheu o copo de gelo e serviu-se de outra dose de rum.
— Essa é outra parte da história. Se calhar nunca saberemos o que tramavam em conjunto, mas tenho uma ideia...
— Qual? Vamos lá ver — entusiasmou-se Coelho.
— Eles queriam afastar Batista. O negócio ia a pique e Alcides Montes de Oca não conseguia engolir isso... Achava que Batista era uma desgraça para este país. Se calhar estavam a planear matá-lo...
— Isso soa bem — admitiu Coelho. — Se liquidassem o mulato tinham possibilidades de manobra e de não perder o que estavam a montar aqui.
— Mas alguma coisa aconteceu para não o terem feito, se era isso que pensavam fazer — divagou Conde.
— Acabou-se-lhes o tempo — disse Coelho. — A guerra acabou depressa de mais e não havia remédio.
— Pode ser — admitiu Conde.
— E o negro misterioso? — foi Yoyi quem interveio agora. — Porque continua sem aparecer alguém que se enquadre na descrição dessa personagem?
Conde serviu-se de outra dose. Olhou para o fundo do copo como se aí, sob as camadas de rum, estivesse o oráculo das respostas e o seu espírito recebeu um clarão iluminador.
— Mas como não me lembrei disso antes? Bolas...
— De quê? — indagou Carlos.
— Esse negro não existe. Nunca existiu. Foi um bluff para nos arrancarem mais dinheiro. Porra...
— Mas, e as impressões digitais? — a lógica de Coelho fez o seu aparecimento.
— São de qualquer um. De alguém que vende cebolas pela rua, do cobrador da electricidade... De alguém que, por qualquer razão, entrou na biblioteca...
— Espera, espera, Conde — Carlos tentou manter algum bom senso na conversa. — Essas impressões digitais estavam aí para confundir a polícia ou por puro acaso?
— Por puro acaso, claro. Alguém entrou ali por qualquer motivo, menos para comprar livros. Ninguém no negócio pode ter sabido que aquela era a biblioteca onde Yoyi e eu estávamos a trabalhar, porque não o dissemos a ninguém.
— E os livros que faltam, pá? — continuou Yoyi.
— Não falta nenhum livro. Tiraram esses seis do lugar e puseram-nos noutro lado.
— Mas quem os tirou e não os levou? Só podem ter sido Dionisio ou Amalia.
— Então quem diabo matou esse Dionisio? — As suposições de Conde não pareciam convencer Coelho.
— Matou-o alguém que não tinha qualquer relação com o negócio dos livros. Mataram Dionisio por outra coisa, por alguma coisa que, fosse o que fosse, estava na biblioteca.
— E dizes tu que não era um livro? — interveio Carlos.
— É o que me parece — disse Conde e levantou a palma da mão à altura dos olhos. — Sim, tenho tudo aqui e não consigo ver.
— Isso acontece às vezes — disse Candito, cumprimentando os amigos com um gesto da mão.
— Então, Ruivo? É hoje que vais beber um copo?
— Não, hoje também não.
— Tens o cristão de guarda? — Conde sorriu, mas compreendeu imediatamente que a piada fora de mau gosto.
— Sim, porque venho de um velório. — Candito reclinou-se numa cadeira de ferro, parecendo cansado.
— Quem morreu? — quis saber Carlos.
— O irmão de um membro da minha igreja. Tu conhecia-lo, Conde... Chamava-se Juan Serrano mas era conhecido como Juan, o Africano.
Conde pousou o copo no chão e olhou para o amigo.
— O que estás a dizer, Candito?
— Encontraram-no ontem. Estava morto há dois dias, numa cisterna abandonada no pátio da central termoeléctrica de Tallapiedra.
A mágoa era um peso morto ancorado atrás dos olhos, uma mancha escura de que não conseguia desfazer-se, embora tivesse a sensação de que, se metesse a mão dentro do crânio, poderia agarrá-la e arrancá-la dali, para seu alívio imediato. Apesar de se ter provido de uma dose dupla de duralginas e de ter gasto todo o conteúdo de uma caixinha de pomada chinesa, Conde desconfiava que a enxaqueca não o abandonaria e decidiu assumi-la como um homem.
Quando meteu pela calle Esperanza em busca do coração doente do velho bairro de Atares, ainda era capaz de explicar a si próprio porque o fazia e o que procurava. Enquanto caminhava pelos passeios destruídos, contornando escombros e lixo petrificado, pensou que a circunstância de nascer, viver e morrer naquele sítio era uma das piores lotarias que podia sair a um ser humano. Tal como a que nos faz nascer no Burundi, em Bombaim ou numa favela brasileira, em vez de vermos a luz no Luxemburgo ou em Bruxelas, onde nunca acontece nada e tudo costuma ser limpo, ordenado e pontual. Ou em qualquer outro sítio agradável, mas longe daquele bairro onde a violência e a frustração histórica se bebia com o leite, crescendo entre a fealdade mais insultuosa e a degradação moral quotidiana, entre o caos e os acordes das trompetas ferozes do Apocalipse, dispostas a atrofiar para sempre as capacidades de discernimento ético de uma pessoa, transformando-a num ser primário, apto apenas a lutar e a matar pela sobrevivência.
Os cheiros insultuosos, a paisagem de prédios devastados, os rios urbanos de detritos humanos, as grades cada vez mais sólidas atrás das quais se entrincheiravam os moradores, a resposta agressiva como expressão de necessidades acumuladas durante séculos e gerações, transformavam os amaldiçoados pelo destino em condenados sem causa nem julgamento, amontoados naquele local, obrigados a purgar a sua fatalidade com o peso de uma vida de aflições e anos de estadias carcerárias, uma vida de merda que podia acabar com a dor fria das navalhas obstinadas em perfurar o coração de uma pessoa que, como nota final de tanta desgraça, recebia por tumba o fundo pútrido de uma cisterna abandonada.
Conde penetrou no bairro, acariciando com paixão a barra de aço envolta num saco de nylon, dominado pelo desejo irracional de encontrar alguém em quem descarregar o seu ódio, e pôde verificar que, definitivamente, tinha passado a comoção do primeiro momento, aquele silêncio contranatura que dois dias antes reinava naquelas ruas sem que ele tivesse sido capaz de compreender a razão. Porque a vida — se assim podia chamar-se — tinha recuperado novamente a sua normalidade miserável naquele círculo infernal. No fim de contas, tratava-se apenas de mais um morto. A música voltava a apoderar-se do ambiente, em concorrência com os gritos dos vendedores; as pessoas agrupavam-se nas esquinas, indolentes, com os mesmos olhares turvos de sempre; as mulheres obstinavam-se em exibir o volume das suas carnes; os bicitaxistas, vindos da parte oriental do país à procura da oportunidade da sua vida, suavam a sua frustração miserável, contrariando, ao pedalar, os seus estômagos mal apetrechados e as suas costas mortificadas. A prostração e a desesperança recuperavam um trono momentaneamente cedido à dor e ao medo.
Que códigos teria violado o Africano para que tivesse sido decretada a sua morte? Uma simples dívida de mil, dois mil, três mil pesos bastava para que se decidisse o destino de um homem? Eram essas as leis de uma máfia emergente, disposta a impor respeito através de castigos exemplares aos transgressores e avisos dolorosos aos bisbilhoteiros? Conde recordou que, quase cinquenta anos antes, outra máfia tinha castigado de forma infame a curiosidade de um jornalista que se metera onde não devia, e que ele próprio, há quatro dias apenas, podia considerar-se um felizardo por ter escapado só com uma sova e algumas cicatrizes. Mas o pobre Africano...
Quando chegou à calle del Alambique, com uma disposição física capaz de o surpreender, Mário Conde subiu até ao terceiro andar do desconjuntado edifício e atravessou, pela primeira vez sem qualquer receio, as tábuas estendidas sobre o vazio. Passou diante da porta da que fora a casa do Africano, vedada agora com uma fita policial, e procurou o acesso à açoteia.
A luz ofuscante do sol das dez da manhã resplandecia nos ladrilhos desbotados e gretados do telhado e Conde ajoelhou-se diante do respiradouro sanitário e meteu o braço para lá do cotovelo. Com os dedos em pinça puxou o saquinho de nylon que ele próprio tinha devolvido ao seu esconderijo com setecentos pesos. Pousou o saco na açoteia e meteu novamente o braço, mergulhando-o até a dor o ter ferido na axila, sentindo na ponta dos dedos uma superfície sintética que se recusava a deixar-se agarrar. Quase deitado no chão, empurrou o braço um pouco mais, atraindo com os dedos a superfície resvaladiça, fazendo-a rodar em direcção à palma da mão que, finalmente, conseguiu fechar-se sobre uma superfície redonda dura e familiar.
Sem se importar muito com a fricção dolorosa que sentiu na pele do cotovelo e dos nós dos dedos, tirou o braço e a mão, onde vinha presa a bola de baseball envolta em várias camadas de celofane. Sentado sobre os ladrilhos, retirou os envoltórios e observou aquela esfera caprichosa que, num terreno de jogo, podia comandar os desejos e necessidades de tantas pessoas. A do Africano era uma bola corrente, bastante usada, a avaliar pela porosidade da pele, pelo desgaste das costuras, pelas manchas de terra que, no entanto, ainda deixavam ver os traços negros de uma assinatura estampada no forro de couro. Com um dedo molhado de saliva, Conde limpou delicadamente essa zona e conseguiu ler um nome escrito numa letra tosca e minúscula: Ricardo Lazo. Recordou aquele catcher da equipa Industriales, morto há muitíssimos anos num acidente mas que, nos seus dias de glória, se destacara pela sua elegância a receber lançamentos e, sobretudo, a capturar os foulflys. Apesar do tempo e da morte, pensou, acariciando a bola, Ricardo Lazo ainda era importante para a memória de alguém e tentou imaginar o que poderia significar aquela bola na vida do homem agora morto, para que este tivesse decidido escondê-la como o maior dos seus tesouros. Como a teria obtido? Que façanhas lhe evocaria aquela circunferência capaz de se adaptar perfeitamente aos dedos de um homem, aquele volume feito à medida dos sonhos? As suas perguntas já não teriam resposta, pelo menos enquanto Conde estivesse na terra e o Africano no inferno. Mas aí se encontrariam algum dia, no tempo da eternidade, e Conde, depois de lhe pedir perdão e de dizer o muito que lamentava não lhe ter dado os três ou quatro mil pesos em que tinham tabelado a sua vida, perguntar-lhe-ia tudo o que se relacionava com aquela pobre e gasta bola que um dia desfrutou da realização incomensurável de um encontro retumbante com um taco de madeira.
A vista enevoou-se e Mário Conde compreendeu que estava a chorar. Um sentimento de frustração, raiva e impotência estava a arrancar-lhe as lágrimas que nem sequer os golpes e a dor física tinham feito brotar. Chorava pelo Africano e chorava por si próprio, pelos seus erros e culpas, pela velha bola de baseball e pelos desconhecidos que um dia tinham jogado com ela e que, com certeza, partilharam com o defunto ex-presidiário a dor do dia-a-dia de uma existência miserável entre as quatro paredes do bairro e que agora pretendiam escapar daquela enorme prisão através dos caminhos da violência. Chorava pela morte de tantos sonhos, esperanças e responsabilidades históricas. Com as costas da mão, violentamente, limpou os olhos, recuperou as tiras de celofane e voltou a deitar-se no chão da açoteia, para devolver a bola ao seu lugar. Pensou que esta deveria permanecer ali até que se desse a derrocada iminente do edifício, talvez a de toda a cidade, fendida e apodrecida. Quis imaginar se nesse dia infernal haveria alguém, quem sabe se um dos filhos de Juan, o Africano, que conseguisse descobri-la enterrada na montanha de escombros em que se transformaria tudo aquilo sobre o qual se encontrava, já de pé, um homem culpado, por omissão e por participação, por indolência e por teimosia, chamado Mário Conde.
Atordoado pela dor de cabeça, meteu no bolso o saquinho com o dinheiro e dirigiu-se para o limite da açoteia. Observou o panorama do bairro, com os seus estendais de roupa gasta, os casinhotos arruinados dos pombais e chiqueiros, as desconjuntadas antenas de televisão, os telhados de zinco improvisados sob os quais dormiam os bicitaxistas vindos da região oriental e, na rua, o movimento de pessoas mergulhadas na procura de um caminho que melhorasse um destino marcado por aquela geografia deteriorada.
O grito, saído das suas entranhas, brotou como um vómito incontrolável e percorreu as açoteias feridas de morte, as paredes fendidas, as escadas precárias, as portas órfãs de tinta mas repletas de trancas e fechaduras, as ruas malcheirosas, ecoando, saltando, expandindo-se pela atmosfera, sem que ninguém pudesse agarrá-lo, até chegar aos confins do bairro e do medo, e continuar livre, mais além, mais além, quem sabe se sobre o mar, para navegar teimosamente até onde se perdem as dores e as lembranças.
— Filhos da puta — gritou, com a voz quebrada, até perder a respiração, e repisou: — Filhos da puta, eu estou aqui — quase sem fôlego, com o horizonte novamente enevoado pelas lágrimas e a cabeça prestes a explodir em mil pedaços com as guinadas da dor.
Abriu os olhos lentamente, quase com precaução, e verificou que se tinha livrado da dor. A quem podia agradecer o milagre? A Deus, que parecia existir cada vez menos, a Buda, o Iluminado, ou ao inventor terrestre das duralginas? A escuridão, já dona do aposento, confirmou-lhe a chegada da noite e calculou que a dose de analgésicos consumidos o tinham apagado por duas ou três horas.
Ouviu agora as pancadas na porta e compreendeu que uma primeira chamada tinha sido a causadora do seu acordar. Da cama gritou: «Já vou!», antes de se levantar.
Pela primeira vez em muitos dias, a presença de Manolo foi bem recebida pela sensibilidade maltratada de Conde, que quase sorriu ao ver o rosto fatigado do polícia.
— Disseram-me que querias ver-me — disse o capitão Manuel Palácios e Conde assentiu.
— Anda, vamos fazer café.
— Tu estavas a dormir a estas horas? — perguntou, com um resquício de inveja.
— Tinha a cabeça a estalar — explicou Conde, depois de colocar o pó no coador e fechar a cafeteira. — Hoje foi um dia estranho. Que dia é hoje?
— Quinta-feira, porquê? — quis saber Manolo, instalado numa das cadeiras da cozinha, com os braços em cima da mesa, e Conde encolheu os ombros, retirando importância ao dia da semana. — Já não estás chateado comigo?
— Estou lixado com o mundo. Cada dia me convenço mais de que é um sítio de merda... Mas como hoje é quinta-feira, creio que, a ti, te vou perdoar.
— Antes assim. — Abanou a cabeça sem expressar qualquer emoção e acrescentou: — Estou um caco, porra... Vamos lá ver, o que querias?
— Diz-me o que sabem sobre a morte de Dionisio.
— A mesma coisa, estamos atolados. E tu?
— Tenho uma ideia, mas temos de trabalhá-la entre ambos.
— Vamos lá ver — disse Manolo sem grande interesse.
— Espera, o café está a sair.
Mário Conde colocou a dose mínima de açúcar com a qual conseguia adoçar o café e serviu duas chávenas. Bebeu o seu, de pé, soprando insistentemente, e depois acendeu um cigarro.
— Está bom, hã?
— Conde, estás assim, não sei, mortiço... O que se passa?
— Tudo... Bom, onde estávamos? Tenho a certeza de que a irmã de Dionisio sabe coisas que não quer contar. Nessa biblioteca houve ou há alguma coisa que é a explicação do que lá se passou.
— Continuas com isso?... Vamos lá ver, o que queres fazer?
— Revistar a biblioteca a fundo e obrigar Amalia a deixar-nos falar com a mãe, para ver se realmente está tão louca como ela diz. E quero que a interrogues outra vez, mas apertando-a o mais que puderes.
— Conde, é uma mulher, tem mais de sessenta anos. Não é uma delinquente. Tu sabes que é militante do Partido?
— Começas suavemente e depois vais vendo se é preciso apertar as porcas. Tu sabes fazê-lo. Agrada-te fazê-lo.
Manolo deslocou a sua chávena vazia sobre a superfície da mesa, hesitante, ao que parece, em satisfazer ou não o seu antigo chefe. Na época em que eram parceiros, Manolo obedecia quase cegamente às ordens de Conde e os resultados costumavam ser satisfatórios.
— Não sei, para dizer a verdade...
— Olha, há uma coisa de que tenho praticamente a certeza: o negro alto é um fantasma, não existe — e explicou a Manolo a sua teoria.
— Mas se fizeram isso entre os dois para arrancar mais dinheiro — reflectiu Manolo — não vejo a relação com a morte de Dionisio.
— Se as impressões digitais sem dono forem, não sei, do electricista, e as outras são minhas, de Yoyi e de Amalia, e se não fui eu nem Yoyi quem matou Dionisio, quem nos resta?
— Não me lixes, Conde — saltou Manolo.
— Claro, pode ter sido alguém que lá esteve e não tocou em nada.
— Estás a meter-me o diabo no corpo. — Manolo agitou-se, nervoso, e recuperou a chávena vazia, olhando para o seu interior.
— Eu tenho-o cá dentro há muito tempo. Amalia é a peça-chave em toda esta história. Amalia e a biblioteca — disse Conde e foi buscar a cafeteira para servir outros dois cafés.
— Pode ser que tenhas razão — admitiu Manolo.
— O que se sabe do tal Juan Serrano Ballester que apareceu morto em Tallapiedra?
Manolo, surpreendido com a mudança súbita de conversa, deteve a chávena no ar.
— Tu conhecia-lo ?
— Foi meu informador há anos.
— Não me digas... Nada, ainda não se sabe nada. Deram-lhe oito punhaladas.
— O que se passa nesse bairro, Manolo? Tu sabias que a droga e a putaria se vêem lá por toda a parte?
— Toda a gente sabe. E de dois em dois ou de três em três meses fazemos uma limpeza geral e apanhamos dez putas, cinco chulos, três vendedores de crack e de marijuana e não sei quantos negociantes de tudo o que possas e não possas imaginar.
— E passados dois meses está tudo igual. Uns entram na cadeia, outros saem; uns fecham o negócio, outros abrem. É um nunca mais acabar.
— E porque achas que isso acontece?
Manolo acabou, finalmente, o seu café e tirou um cigarro do maço de Conde, expelindo o fumo para o tecto.
— Não sabem ou não podem viver de outra maneira. É como uma doença incurável: tem alívio, mas continua ali, sem desaparecer.
— Sabes que estão organizados? Que funcionam como uma máfia e que os verdadeiros cappos não são do bairro? São pessoas que movimentam muito dinheiro e têm poder para mandar afastar alguém do jogo.
— Sim, e sei que isso é muito perigoso. Pode ser o princípio de uma situação terrível.
— Estamos lixados, velho.
— E agora até há mais polícias... Mas nem assim.
— Essa doença, como tu lhe chamas, não se cura com polícias... Pobre Juan.
Manolo olhou para Conde e sorriu, levemente.
— Há alguma coisa que não me queres dizer.
— Nem te vou dizer — afirmou o outro, regressando à sua cadeira.
— Tu não terás nada a ver com o que aconteceu a esse homem? Agora que penso nisso, mataram o tipo muito perto do local onde tu apareceste desmaiado...
— Vais acusar-me de o ter matado a ele também?
— Não, porque o mataram no dia em que tu saíste do hospital. Mas agora tenho a certeza de que tens alguma relação com tudo isso...
— Bom, diz-me, o que fazemos com Amalia?
Manolo levantou-se e pousou uma mão no ombro de Conde.
— Tu és lixado, Conde. Pedes-me que confie em ti e não confias em mim. Mas vou fazer caso do que me disseste. Vamos revistar a biblioteca e interrogar a mulher... Mas amanhã. Hoje nem consigo pensar. Estou metido em três casos ao mesmo tempo e preciso de descansar. Tal como tu. Estás com uma cara de merda tal que qualquer pessoa diria ter sido hoje que te coseram à pancada.
13 de Março
Meu querido:
Nestes dias lembrei-me muito do teu pai. Consigo vê-lo sentado nesta biblioteca de onde agora te escrevo, com a secretária cheia de papéis, mas sempre disposto a conversar alguns minutos comigo, enquanto bebia o café acabado de fazer que eu, pessoalmente, me encarregava de trazer. Na minha memória permanece a sua imagem como a do homem mais bondoso e amável que conheci. Em duas, três, não sei, várias ocasiões, falou-me de como gostava de motivar os seus alunos da universidade e de como os fazia ler Édipo Rei, pois achava que Sófocles, cinco séculos antes da nossa era, tinha conseguido o milagre de escrever uma obra sobre aquilo que ele considerava ser a investigação criminal perfeita: a que termina por acusar o próprio investigador por um assassinato que nunca pensou ter cometido.
Embora a instâncias suas tenha lido várias vezes essa tragédia, esqueci por muitos anos aquelas conversas e ao mesmo tempo deixei de ouvir por muitos meses as vozes do demónio (sim, agora já o sei, é um demónio) que vive no meu cérebro, quando me tentava e, simultaneamente, me avisava dos perigos de saber uma verdade que poderia voltar-se contra mim. Talvez o meu erro tenha sido acreditar, apesar de todos os meus desejos, que as vozes se referiam a ti e até tornei a pensar que, de alguma forma incompreensível pelas minhas averiguações, tu tinhas sido o culpado do que aconteceu e que essa era a verdade terrível que poderia descobrir se continuasse a esgaravatar. Mas o que sei hoje, por um acaso total, é motivo para sentir que tenho não só de arrancar os olhos mas de rasgar o ventre de onde saiu a semente de toda esta tragédia real que, nas suas horríveis proporções, se me revelou, por fim, sem qualquer dúvida. E agora aprendi, e de que maneira, que a sorte de Édipo é a de todos os humanos com pecados pendentes.
O comentário, sem segundas intenções, feito pelo nosso velho veterinário (veio examinar a velhinha Linda, a tua terrier preferida, doente como eu de melancolia desde que partiste) sobre o desaparecimento de duas pastilhas de cianeto do pacote que trouxe há alguns meses para combater a invasão de ratazanas no quintal e no jardim de casa, nunca teria significado para ninguém outra coisa além de um extravio casual, devido possivelmente a uma má contagem do veterinário, e não teria passado de um comentário curioso, sem qualquer ligação com a morte de uma pessoa que, para quase toda a gente — o nosso veterinário incluído — não tinha a mais pequena relação contigo. Mas o destino, obstinado e cruel, encarregou-se de colocar precisamente nas minhas mãos essa notícia capaz de dar sentido a todas as minhas suspeitas e atirou-me contra a verdade que tanto me empenhei em descobrir, sem imaginar que com ela estava a matar-me a mim própria, porque compreendi de chofre que só eu fora culpada pelo sucedido por ter fornecido, bem sei, os argumentos necessários a este crime.
Procurei no meu cérebro algum sopro de justificação e creio tê-lo encontrado no motivo que empurrou esta tragédia até ao seu desenlace fatal: e só posso culpar o amor, foi tudo culpa do amor. A nossa pobre menina sempre te amou em silêncio, sempre esperou a recompensa de ter um pai e por esse amor se revoltou e se recusou a perder o que essa mulher nos ia roubar, a ela, a mim, e até a ti... Mas nem essa convicção me pode salvar da condenação eterna que significa saber que sou a criadora de uma pessoa capaz de recorrer ao crime mais premeditado para salvar os seus direitos e a sua necessidade de amor, sem imaginar que, com a sua acção, estava a matar esse amor e esses direitos, definitivamente...
Meu querido: é tanta a dor acumulada dentro de mim que me revejo sem forças para continuar a escrever estas cartas sem sentido. Nunca as receberás, primeiro porque não desejas recebê-las, e depois porque seria incapaz de enviá-las, mais ainda sabendo o que agora sei, pois prefiro que continues a culpar-me a mim e nunca saibas esta verdade pavorosa. De qualquer forma, para meu eterno castigo, vou conservá-las como testemunho dos meus pecados, das minhas mágoas e também do meu amor. Um amor a partir de hoje impossível, mas que sempre será teu.
Adeus, meu querido. Desta vez para sempre.
A tua Pequena
A fita policial caiu ao chão, como uma serpente decapitada. Quando empurrou as portas envidraçadas e aspirou o aroma suave do papel velho, Mário Conde recordou a comoção sentida dez dias antes, justamente no instante em que pôs o pé naquela biblioteca de sonho. Só dez dias? Desde essa altura tinham acontecido tantas coisas na sua vida e na vida — e até na morte — das pessoas relacionadas com aquele sítio, que chegou a pensar se a sua presença não tinha sido como a daqueles príncipes dotados do poder de desfazer um feitiço paralisante decretado para a eternidade. Pelo menos aquela biblioteca, fóssil deslumbrante do empenho de três gerações de bibliófilos com dinheiro suficiente para coleccionar os seus caprichos, tinha sido profanada pelas suas intenções mercantilistas e, como chicotada derradeira, vingativa e agónica, tinha ceifado a vida equivocada de um homem que talvez nunca tenha sabido quem era na realidade.
Talvez o mais imperdoável pecado de ligeireza cometido por Mário Conde tenha sido pensar que, graças àqueles livros, acumulados ao longo de um século e conservados depois com um zelo doentio durante outros quarenta anos, podia alterar a sua sempre precária situação económica e, pelo menos enquanto os livros o permitissem, repartir riqueza e alegria entre os seus próximos, tão necessitados como ele destes dois benefícios ferozmente racionados. Por isso tudo o que aconteceu lhe parecia agora a obra de uma predestinação superior aos seus pecados, ao seu karma e aos seus enganos: era a resposta de uma sina à espreita entre os volumes silenciosos, que tinha voltado à vida para exigir uma justiça demasiado tempo adiada. A descoberta, obviamente predestinada, do recorte onde se anunciava a retirada inesperada de Violeta del Rio acabara por ser apenas a ponta do icebergue ali ancorado. Os fragmentos da verdade que Conde tinha conseguido trazer à tona a partir daquela notícia esquecida foram desenhando e temperando uma tragédia extraviada na neblina do passado, um drama cuja motivação mais recôndita tinha sido a causadora de, pelo menos, duas mortes.
Conde olhou à sua volta e tentou recuperar a insistente premonição que o surpreendera à sua chegada à biblioteca dos Montes de Oca. Mas a premonição recusou-se a aparecer. Examinou o caos criado pela sua presença em todo o sector central e direito do aposento, em contraste com os volumes ainda organizados que dormiam nas estantes da esquerda. Delicadamente, passou os dedos pelas lombadas dos exemplares mais valiosos e sentiu o estremecimento de gratidão daqueles livros por não os ter transformado em carne para o mercado, apesar dos valores alarmantes que a sua beleza, antiguidade e raridade prometiam, e o contacto com os livros acabou de o convencer de que naquele sítio continuava a estar o número mágico capaz de completar a equação da verdade.
Olhou para as estantes ordenadas e soube, nesse momento, que tudo teria sido uma questão de tempo. Os seis livros ausentes não tinham sido subtraídos pela sua qualidade ou valor, mas apenas pela sua localização. Neles, ou entre eles, sobre ou sob eles, escondera-se a verdade e, com essa convicção, chegou-lhe a maré da frustração: quem tinha tirado os livros levara consigo a verdade, seguramente toda a verdade. Mas tinha de se certificar.
Utilizando o banco de madeira que dias antes Dionisio Ferrero lhes fornecera, começou a revistar as estantes superiores. Para começar, tirou um grupo de livros — Enrique Serpa, Carlos Montenegro, Alejo Carpentier, Labrador Ruiz — e estudou os seus cortes, procurando uma possível alteração na sua grossura. Depois olhou entre cada um dos volumes e, persuadido de que não havia nada entre eles, regressou ao banco e, um por um, foi examinando os exemplares restantes, transferindo-os depois para o espaço anteriormente ocupado pelos livros que acabava de tirar.
Quando estava prestes a terminar a estante superior, dedicada aos autores cubanos, a voz de Manolo requisitou-o.
— Vem, ela diz que já está pronta.
Ao chegar à casa dos Ferrero, Manolo tinha exigido que Amalia lhes permitisse uma nova revista à biblioteca e que lhes deixasse falar com a mãe. Curiosamente, desta vez Amalia não protestara nem repetira o aviso de a sua mãe estar louca. Depois de pestanejar com insistência, pediu-lhes alguns minutos para a preparar.
Agora, atrás dos passos de Amalia, Manolo e Conde atravessaram o pórtico das marmóreas colunas toscanas e entraram num aposento desolado, com grandes vidraças, onde Conde calculou que devia ficar a ampla sala de jantar da residência porque, de imediato, atravessaram a vasta e deteriorada cozinha, com as suas paredes cobertas por atraentes azulejos portugueses. Depois disso, a casa era dividida em duas por um corredor ladeado de portas que davam acesso aos quartos e às casas de banho, também de proporções descomunais. Na terceira porta à direita Amalia parou e, com a resignação de uma mulher já sem forças, incapaz de opor mais resistência ao acto da violação, empurrou a folha de madeira e vidro gravado com arabescos modernistas.
Decidido a solucionar aquele enigma adiado, Conde deu um passo em direcção ao interior do quarto e esteve prestes a dar um grito. Sobre a cama imperial de madeira escura, com colunas sólidas e trabalhadas de onde pendia um dossel desfeito, estava o cadáver vivo, completamente despido, de alguém que um dia tinha sido um ser humano. Impondo-se aos seus desejos de desatar a correr, Conde fez uma provisão de forças e observou o esqueleto que jazia sobre o colchão desprovido de lençóis. Só o ligeiríssimo movimento do ar no diafragma afundado permitia saber que ali restava alguma vida, mas o crânio, definitivamente cadavérico, afundado na almofada, parecia desprendido do resto do corpo, de onde se tinha evaporado qualquer fibra muscular, como que devorada por algum necrófago voraz. Os braços e as pernas inertes pareciam galhos secos, quebradiços e, horrorizado, Conde viu a abertura arroxeada e tumefacta do sexo, macerada pela acidez da urina, e a pele pendente, com dobras sucessivas sobre si própria, de um monte de Vénus um dia povoado. A morte tocava todas as portas de acesso daquele dejecto humano e até no ar se respirava o aroma amargo da sua presença.
— Não vão perguntar-lhe nada? — Conde sentiu na voz de Amalia mais que simples indignação. Havia ódio, um ódio visceral, uma fúria penetrante, capaz de reacções imprevisíveis, mas ficou-lhe grato pela increpação por ser a forma mais digna de afastar o olhar daquele espectáculo atroz.
— Porque fez isto? — conseguiu perguntar, fugindo para o corredor.
— Vocês pediram-no. Aí a têm... Não era isso que queriam? Não lhes bastava o que eu lhes dizia? Não queriam esta exibição? Vamos, interrogue-a, vamos...
Conde sentiu que Manolo lhe tocava nos ombros, pedindo-lhe espaço para sair daquele quarto viciado pela morte.
— Amalia, creio que agora sim, temos de falar — disse o capitão da polícia e Conde tentou recuperar a respiração perdida.
— De que mais podemos falar? — A mulher parecia disposta a conservar a sua agressividade e Conde pensou que era preferível, pois o ódio tornava-a mais vulnerável.
— De muitas coisas. Vamos para a sala.
A caravana voltou para trás, agora com Conde como guia. Queria afastar-se quanto antes do quadro goyesco que ele próprio forçara e, ao regressarem à sala, disse a Manolo que voltava para os livros.
— Mas o que querem encontrar? — a voz de Amalia continuava a ser grave e afiada e Conde teve a impressão de que pertencia a outra mulher. — Quando me vão deixar em paz? Quando nos vão deixar morrer tranquilas ?
— Quando soubermos quem matou o seu irmão — respondeu Manolo. — Ou não está interessada em que o saibamos?
— Procurando não sei o quê nessa biblioteca de merda e vendo a minha mãe morrer, não sei como vão descobrir. Não sei, não sei...
— Pois eu sim — disse Conde, cada vez mais convencido das suas suspeitas e, voltando-se para o capitão Manuel Palácios: — Deixa a conversa com ela para mais tarde. Chama uma ambulância e alguém que vigie Amalia. Depois ajuda-me na biblioteca.
Manolo preferiu obedecer a Conde, embora de má vontade. A sua habilidade para os interrogatórios tinha despertado e agora só queria pôr-se a falar com Amalia. Por isso, depois de pedir ajuda médica e reforços policiais, já no interior da biblioteca, censurou Conde pela sua decisão.
— Não te preocupes. Se aparecer alguma coisa vai ser tão definitiva que não vais ter muito trabalho com ela... Fica tu com a estante de baixo. Vê entre os livros, examina-os um por um, estamos à procura de qualquer coisa...
Conde empoleirou-se no banco de madeira e reiniciou a tarefa interrompida. Foi deslocando os volumes, observando os seus cantos e, algumas vezes, sacudindo-os pelas capas. Terminada a estante superior, dedicou-se à seguinte, de onde transferiu alguns exemplares para o espaço ganho na prateleira já inspeccionada. Sem capacidade para se aperceber da qualidade dos livros que lhe passavam diante dos olhos, avançou pelo segundo nível sentindo que as mãos lhe suavam com uma abundância doentia, mas tratou de controlar a sua ansiedade e obrigou-se a ser mais exaustivo na procura, ao mesmo tempo que avisava Manolo:
— Procura bem. Estamos perto — e voltou à sua tarefa, convencido de que a sua premonição extraviada tinha regressado, confirmando-lhe que a sua origem continuava ali, ainda latente...
». — Perto de quê, Conde?
— Daquilo que procuramos. De alguma coisa que rejeitava Amalia...
— E não fazes ideia do que possa ser?
— Para dizer a verdade, não.
— Pode ser uma carta manuscrita?
— Pode ser — respondeu Conde, concentrado na sua busca.
— E tem de ter assinatura?
— Ah, Manolo, eu sei lá... Uma carta... O meu pressentimento, ai, porra — sussurrou, ferido por uma dor intensa no mamilo esquerdo.
19 de Março
Meu queridíssimo e único amor:
Há seis dias, tolhida pela dor, disse-te que não voltaria a escrever-te e que me despedia de ti para sempre, sem saber o que fazia. Meu Deus! O castigo que nesse momento estava a pagar por aquele acto de orgulho que me levou, há vários anos, a revelar a tua filha a sua verdadeira origem, confirmara-me que, se na realidade tinha havido um culpado pela morte dessa mulher que tanto amaste, esse culpado era eu. E era-o porque, julgando abrir as portas do amor, desbravei o caminho ao ódio e a ambição de alguém que não tinha culpa de ser quem era e de não possuir o que, sendo quem era, começou a achar, instigada por mim, que lhe correspondia por direito natural. Porque fui eu, e mais ninguém senão eu, quem colocou nas suas mãos o móbil do crime, como ela me gritou há uns dias quando lhe revelei a minha descoberta.
Mas ontem, quando recebi a mais terrível das notícias, caiu sobre a minha alma, como uma montanha, a certeza devastadora de que a tua morte também pesará eternamente na minha alma. Conhecendo-te como te conheço, sei que foste em busca desse desenlace e que as razões que te conduziram a isso foram o amor que ainda sentias por essa pobre mulher e a frustração por não poderes regressar e distribuir os castigos que te aliviariam dessa dor.
Descobri, tarde de mais, que eras um homem muito mais fraco do que sempre imaginei ou quis imaginar. Essa capacidade de sentir amor e de sofrer por uma mulher surpreendeu-me pela sua profundidade e revelou-me que mesmo alguém como tu pode ficar indefeso (como eu sempre estive) diante do feitiço de uma verdadeira paixão. E talvez tenha sido esse ardor, herdado pela tua filha, que a levou ao extremo de optar por um crime para obter o que lhe estava a ser arrebatado.
Agora não sei o que acontecerá com a minha vida. A esperança, enfraquecida mas nunca perdida, de poder recuperar-te algum dia esfumou-se e com ela desapareceu a possibilidade de fazer com que soubesses que as tuas suspeitas sobre a minha culpabilidade directa foram sempre infundadas. Mas a dor incurável de saber que morreste sem deixar de pensar que fui eu quem matou essa mulher, tenho de acrescentar agora a de saber que na realidade fui a culpada por tudo o que aconteceu, e isso é já um castigo demasiado grande para mim. Como se ainda fossem poucas estas condenações pelos meus desvarios, soma a que arrasto comigo quando vejo a tua filha, a nossa filha, e reconheço nela a executante directa destas desgraças. .. E de mais, é insuportável para o meu coração, pois sei que sendo ela a pessoa que mais amei no mundo, depois de ti, nunca poderei perdoar-lhe e vê-la-ei desde hoje como a assassina dessa mulher e, perdoa-lhe Senhor!, do seu próprio pai.
Meu amor, estas descobertas terríveis fizeram-me ver a fragilidade dos mundos que pareciam mais bem alicerçados, quase indestrutíveis. A tua vida, a minha, a família que criaste desmoronaram-se, devoradas do interior por uma praga insaciável, tal como se começa a deteriorar a saúde desta casa, com a tinta que se dilui com a chuva e com os jardins invadidos pelas ervas daninhas.
As vozes infernais que me ecoam no cérebro tornaram-se mais agressivas e, já o sei, acabarão por me tirar a razão. O demónio que me fala, que me persegue todo o dia, revelou por fim as suas verdadeiras intenções, pois foi ele próprio quem me levou a avançar na direcção do abismo onde vou caindo... Por isso, antes de chegar ao fundo de onde nunca sairei, quis escrever-te, certa de que receberás, onde quer que estejas, esta última carta na qual não me atrevo sequer a pedir-te perdão (não o quero, rebolarei na minha culpa, antecipando-me ao fogo do inferno), mas na qual também devo repetir-te que o meu grande pecado foi amar-te de mais e esperar alguma coisa em troca desse amor e pedir-te, por favor, que perdoes a tua filha: não a culpes por um pecado que é meu.
Tenho a certeza de que Deus te acolherá no Seu seio. Um homem capaz de amar tanto merece o perdão dos seus pecados. Adeus, meu amor. Ama-te mais, agora e para sempre...
A tua Pequena
Depois de anos a engolir a humilhação, como se fosse o alimento natural das nossas vidas, quando por fim parecia que a sorte ou a justiça ficavam do nosso lado para que pudéssemos desfrutar do que nos pertencia por direito natural e de fidelidade, apareceu aquela mulher. Saiu nem sei de onde, veio disposta a levar tudo e, quando me dei conta do que ia acontecer, já estava a acontecer, irremediavelmente. Mas eu não conseguia resignar-me e por isso fiz o que tinha de fazer, porque não ia permitir que ela nem ninguém nos tirasse o que nos pertencia, aquilo pelo qual tinha esperado todos os dias da minha vida, armada de carradas de paciência, a um canto desta casa maldita, onde nasci com sangue de Montes de Oca e nunca consegui chegar a ser uma Montes de Oca... Por isso, ainda hoje, apesar de tudo o que se passou, não sinto nem um átomo de remorsos e digo-o com plena consciência, porque não, não estou louca. Se hoje estivesse na mesma situação, voltaria a fazer o mesmo.
Desde que tive uso da razão a minha mãe ensinou-me a grande verdade da minha vida: eu não era filha de um motorista quase analfabeto, o meu sobrenome não era Ferrero, e a minha vida deveria ser, e um dia seria, outra, porque eu era filha do senhor Alcides Montes de Oca, neta do doutor Tomás Montes de Oca e bisneta do general Serafín Montes de Oca, um herói deste país que abandonou casa e fortuna para lutar nas duas guerras de independência, saindo delas sem um olho, com um braço inutilizado e dezoito cicatrizes de bala e sabre no corpo. E vir desse tronco dava-me o direito de desfrutar dos privilégios que um dia, a mãe jurava-o, eu desfrutaria. Mas, enquanto isso, tinha de guardar silêncio, o silêncio seria a minha divisa e o meu orgulho alimentar-se-ia na sombra. Aquele era um segredo que só nós as duas partilhávamos, que nem sequer podia saber o meu irmão Dionisio, também filho do senhor Alcides, porque lhe faltava a minha paciência e tinha uma personalidade rebelde, como o bisavô general, e uma maneira de ser que era preferível não misturar com aquele segredo.
Graças a essa origem, embora não pudesse viver com todos os luxos e deferências que me eram devidas, tive as minhas oportunidades na vida. Estudei numa boa escola privada, tive roupas e comida de menina rica e, em 1957, matriculei-me na universidade para estudar ciências comerciais. Mas na realidade tudo isso eram apenas migalhas e desde criança tive de me apresentar como sendo órfã de pai, como uma obra de caridade da minha própria família.
Felizmente para nós, aquele motorista, Virgilio Ferrero, tinha desaparecido das nossas vidas quando eu tinha uns sete anos e a mãe achava que isso tinha sido o que de melhor nos acontecera. Dionisio sofreu muito com aquela ausência, ele amava-o como se ele fosse seu pai, pois nunca conheceu outro, mas, com o tempo, passou a considerá-lo um canalha por nos ter abandonado, sem dúvida atrás de outra mulher. Eu nunca soube o que aconteceu àquele homem mas, pensando nisso, depois convenci-me de que não deve ter sido nada de bom, porque uma vez a mãe falou-me dele como de um mal-agradecido, que mordera a mão de quem lhe dava de comer... e o senhor Alcides não era um homem capaz de aceitar dentadas dos seus cães.
Quando a mulher do senhor Alcides morreu, em 1956, a mãe e eu abraçámo-nos de alegria. É difícil imaginar como a morte de uma pessoa pode ser tão bem-vinda, mas para nós era a queda do único obstáculo face à possibilidade de chegarmos a ter o que nos era devido. Desde esse dia, a mãe esperou que acontecesse o que devia acontecer: após vinte anos de relações secretas, o senhor Alcides casar-se-ia com a sua Pequena, como ele chamava sempre a minha mãe. Durante todo aquele tempo, além de ser sua amante, era ela também quem tratava de todos os pormenores da vida comercial e política do senhor Alcides e era mais que a sua mão direita, era as suas duas mãos e muitas vezes os seus olhos e ouvidos. Além disso, ele sempre mantivera viva a esperança da mãe, porque nem sequer depois do casamento deixara de visitar o seu quarto. Até que apareceu essa mulher.
Ao princípio a mãe ficou furiosa, mas depressa tentou convencer-se de que aquilo seria uma paixão passageira de um homem com quase cinquenta anos por uma rapariguinha da minha idade, ou seja, que podia facilmente ser sua filha. As mulheres daquele tempo tinham, não sei, outra paciência, e a mãe dizia que, se tinha esperado na sombra tantos anos, não ia enlouquecer por causa de uma coisa sem futuro que com certeza desapareceria tal como apareceu. Na realidade a mãe sofria muito, aquilo era um insulto, pior, um vexame, embora não pudesse fazer outra coisa além de esperar, porque na verdade não podia exigir nada ao senhor Alcides. Legalmente, Dionisio e eu éramos filhos do tal Virgilio Ferrero e ela era apenas uma empregada da casa, a de maior confiança, mas uma empregada. E no fundo, no fundo de tudo, havia o medo: ela sabia que aquele homem tão educado era capaz de fazer qualquer coisa para conseguir o que se propunha e que não era aconselhável atravessar-se no seu caminho... Tal como Virgilio Ferrero se atravessou.
Por essa época a mãe começou a adoecer dos nervos. Não dormia bem, tomava pastilhas, andava com problemas no estômago, ela, que sempre fora tão forte e saudável. E começou, sobretudo, a perder a alegria. Se antes tinha sido uma mulher à espera, segura das suas possibilidades, transformara-se agora numa mulher desesperada, com ciúmes, inveja, com mágoa ao ver como lhe fugia das mãos o homem que sempre tinha amado, o sonho da sua vida.
E aquela mulher, a cantora, imagino-a a viver feliz da vida com a sorte grande que lhe tinha saído... Foi em 1958 que a vi pela primeira vez. Eu disse à minha mãe que uma amiga minha ia festejar a sua festa de noivado num cabaré e que precisava de dinheiro para lhe comprar uma oferta no dia da festa. Combinei com essa amiga e convidei-os, a ela e ao namorado, a irmos os três ao cabaré Parisién. Foi a primeira e a única vez na minha vida que entrei num sítio assim. Ainda me lembro como se tivesse sido ontem daquele luxo, das luzes coloridas, das mulheres e dos homens elegantes, do casino com as roletas, das mesas de dados e de cartas, dos empregados de fato preto com lapelas brilhantes, muito penteados, pareciam artistas de cinema... Vimos o primeiro espectáculo, com a orquestra de Roberto Faz e umas bailarinas, depois veio a orquestra do cabaré e no fim, por volta da uma, ou mais tarde, essa mulher veio finalmente cantar. A Dama da Noite, chamaram-na...
Nesse mesmo instante compreendi por que razão o senhor Alcides se tinha apaixonado por ela. Qualquer homem podia apaixonar-se por ela só de a ver, com a sua cara de anjo, aquele vestido brilhante e colado ao corpo que fazia com que parecesse uma escultura grega e, sobretudo, com aquela voz, forte, directa, quase não precisava da música para nos entrar no ouvido, nos obrigar a ouvi-la e a querer continuar a ouvi-la. Por isso a odiei ainda mais: porque era bonita como eu nunca seria, porque as pessoas a adoravam. Nessa noite soube que, se não acontecesse nada de muito grave, a mãe e eu nunca teríamos a nossa oportunidade, pois aquela mulher era invencível...
O senhor Alcides, para manter as aparências e, sobretudo, para não se indispor com os sogros, que tinham todo o dinheiro do mundo, manteve os seus amores em segredo, mas obrigou a minha mãe a ficar ao serviço daquela mulher, como se a cantora fosse já a senhora Montes de Oca. Ela vivia num apartamento em Miramar, comprado pelo senhor Alcides e, pelo menos uma vez por semana, a mãe tinha de passar por lá, verificar se ela tinha tudo o que precisava e até assinar-lhe alguns cheques para os seus gastos em roupa, perfumes, o que lhe apetecesse. Mais que um vexame, aquela obrigação era um castigo, mas o senhor Alcides, apaixonado como estava, foi incapaz de compreender a dor que infligia à pessoa que mais o amou na vida.
A mãe esperava, rezava para que acontecesse qualquer coisa e alguma coisa aconteceu, para acabar de complicar tudo: os rebeldes ganharam a guerra, Batista fugiu e triunfou a Revolução. Ao princípio nós recebemos aquele triunfo como uma bênção, porque durante vários anos tínhamos vivido numa preocupação permanente pela vida de Dionisio que, sendo ainda um rapaz quando entrou na universidade, se juntara à oposição à ditadura e mais tarde à luta clandestina aqui em Havana, que foi mais perigosa e sangrenta que a própria guerra nas montanhas. Lembro-me de como a mãe e eu passámos cada dia desses anos com receio de receber a notícia de que Dionisio tinha aparecido torturado e morto nalguma esquina. Aquando do assalto ao Palácio, em 1957, estivemos quase a enlouquecer porque Dionisio não apareceu durante três dias e pensámos que devia ser um dos mortos de que se falava na rua mas a que nenhum jornal se referia. Mas agora Dionisio estava a salvo e isso alegrou-nos e alegrou-nos também saber que tinha terminado o horror desses anos. Até o senhor Alcides festejou a vitória dos rebeldes mas, sobretudo, a queda do tirano, que tinha feito todo o possível por arruiná-lo, recusando-lhe qualquer participação nos bons negócios que o governo ia repartindo entre os seus acólitos, embora o senhor Alcides, na verdade, tivesse um poder que escapava aos desígnios de Batista, porque mantinha relações de negócios e de grande amizade com um grupo de homens que nas coisas importantes mandavam tanto ou mais que Batista, porque eram aqueles que o apoiavam economicamente, às vezes mais que os próprios Americanos.
Lembro-me de ter visto nesta casa e, por duas vezes, Meyer Lansky. Era um homem feio e nunca se ria. A mãe contou-me que Lansky e o senhor Alcides estavam a trabalhar num grande negócio de hotéis e casinos, um projecto que, dentro de alguns anos, os tornaria multimilíonários... O grande problema de Lansky e do senhor Alcides era precisarem de Batista no poder para serem os principais donos desse negócio. Mas Batista, com a sua incapacidade política, estava prestes a deitar tudo pela borda porque cada vez se tornava mais claro que estava condenado a perder a guerra, já que quase ninguém queria lutar por ele. Foi nessa altura que eles começaram a planear uma maneira de o afastarem, para evitar que fossem os rebeldes a consegui-lo. O problema é que só tinham uma forma de o fazer: matando o tirano. Não sei os pormenores, a mãe também não os soube e, se os soube, nunca mos quis contar, mas naquele complô estavam envolvidos outros homens importantes, além de Lansky e do senhor Alcides. O objectivo era contratar um profissional, um homem que viria de fora para executar essa missão. Seria um especialista que não devia fazer perguntas e que não estivesse vinculado a nenhuma das famílias da máfia, porque a reacção imediata dos partidários de Batista seria imprevisível, eram umas bestas e o senhor Alcides, Lansky e os outros sócios não podiam aparecer como os responsáveis por aquela acção, pelo menos num primeiro momento.
Um erro de cálculo deitou aquele plano por terra: os Americanos não deram a Batista todo o apoio que ele pedia; os Ingleses não lhe venderam mais aviões; o exército, sem vontade de lutar por um ditador, desmoronou-se e a guerra terminou antes do que se pensava. O senhor Alcides alegrou-se bastante, porque pensou que qualquer coisa era preferível a viver com Batista no poder, mas desta vez o mais astuto dos Montes de Oca enganou-se porque a primeira coisa a que o governo revolucionário se opôs foi aos negócios do jogo e da prostituição, e o projecto de Lansky e do senhor Alcides esvaziou-se em poucos meses, ou melhor, em poucas semanas.
Lansky compreendeu imediatamente que o seu momento tinha passado e um belo dia partiu e nunca mais voltou. O senhor Alcides não. Ele não suportava a ideia de partir, este era o país dos Montes de Oca. Estava confiante de que, pela via legal, se podiam salvar as coisas, toda a gente sabia que o turismo era a única opção viável deste país, que sem os negócios das companhias americanas a ilha podia paralisar e ele esperava que, quando passasse a tempestade, tudo voltasse a funcionar como antes. Ao fim e ao cabo, qualquer governo precisa de dinheiro e os investimentos previstos por eles eram a melhor fonte de financiamento. Por isso esperou todo o ano de 1959 sem se decidir a abandonar Cuba, embora, prevendo já o que podia acontecer, começasse a levantar dinheiro e a depositá-lo em bancos americanos, nas contas que tinha fora do país.
Além da tranquilidade que representou para nós saber Dionisio seguro, já metido de cabeça na Revolução, aquelas mudanças foram uma luz de esperança. A mãe pensava que o senhor Alcides tinha de reorientar a sua vida e que, no seu horizonte, uma personagem como essa mulher estava agora a mais. Mas, mais uma vez, a mãe calculou mal a importância daquela relação... Passavam-se os meses, em casa vivia-se em tensão, como se ainda houvesse guerra, e quando o senhor Alcides viu que as coisas eram mais sérias do que ele imaginava e se falava da nacionalização das companhias americanas, decidiu não esperar mais, começou a fechar os negócios que ainda sobreviviam e preparou a sua saída antes que fosse tarde de mais. E tomou a decisão que matou todas as nossas esperanças e tornou inúteis tantos anos de silêncio e de espera: casar-se-ia com aquela mulher, levá-la-ia com ele, embora, se quiséssemos, disse-o assim à minha frente, sentado nesta mesma sala, se nós as duas quiséssemos — porque já não contava com Dionisio — podíamos ir com ele. E embora não o tenha dito, ficava claro que indo desta maneira a mãe continuaria a ser a sua secretária e eu a pobre filha do motorista Virgílio Ferrero, acolhida por caridade e por hábito à sombra dos Montes de Oca, embora deixássemos de estar no país dos Montes de Oca.
Aquilo era o que de mais humilhante me tinha acontecido na vida, mais até que não usar o meu apelido. E para a mãe era o fim de todas as suas esperanças. Por isso pediu um tempo ao senhor Alcides, com o pretexto de não lhe agradar a ideia de deixar Dionisio para trás, mas incapaz de gritar-lhe a verdade... Aquela mulher, por outro lado, encantada por ter pescado finalmente um velho rico, disposto até a casar-se com ela, deixou de cantar e começou a preparar também a sua saída de Cuba.
Tudo isto aconteceu no início de 1960. Eu tinha decidido que, nestas condições, não ia a lado nenhum e estava disposta a aproveitar as oportunidades que, finalmente, a vida me dava sem que o facto de ser ou não uma Montes de Oca importasse. De modo que comecei a trabalhar no banco e vivi como uma festa todo o processo das nacionalizações, da reforma agrária e da reforma urbana, sobretudo a mudança da moeda, que deixava tantos ricos na ruína e obrigava outros tantos a saírem de Cuba. O meu ódio, a minha frustração, a minha marginalização transformaram-se em fervor e senti que me fortalecia enquanto me transformava em verdugo de todos os Montes de Oca e dos que tinham sido como eles, homens capazes de definir a vida e até de mudar os nomes das pessoas.
Mas a pobre mãe definhava a olhos vistos e vê-la assim era o que de mais doloroso me podia acontecer, mais doloroso ainda que a perda dos meus sonhos de sempre. No entanto, eu ainda tinha confiança. Ela, com certeza, faria alguma coisa, era o seu direito, a sua vida, os seus anos de lealdade e sacrifício, era o seu amor... Mas ela, tão forte e tão disposta a quase tudo, tinha-se tornado incapaz de forçar uma solução e por isso eu tomei a decisão de ajudá-la.
Um dia, quando os Montes de Oca e essa mulher tinham tudo pronto para se irem embora, decidi bater onde mais lhes doesse. Como a mãe tinha uma chave do apartamento de Miramar, eu fiz uma cópia. Desde esse dia comecei a espreitar uma oportunidade e, numa tarde em que o senhor Alcides tinha de ir buscá-la não sei para que formalidades, fui até Miramar e entrei no apartamento. A primeira coisa que me surpreendeu foi verificar como vivia bem. Em comparação com esta casa, aquele era um apartamento modesto, mas estava mobilado com todo o luxo. Para mim foi um soco no estômago entrar no quarto e deparar com uma cama de casal de estilo, maior que as camas normais, onde certamente rebolariam, ela e o senhor Alcides, vendo-se a si próprios fornicar como animais num espelho que pendia do tecto. Em várias caixinhas tinha jóias finas, deviam valer uma fortuna. E a roupa? Armários cheios de roupa cara, sapatos das melhores marcas, até casacos de pele que nunca teria podido usar em Cuba... Tudo isto comprado com o dinheiro que pertencia à mãe, a Dionisio e a mim, eu, que nunca tinha usado uma roupa como aquela e que não tive outra jóia além de um colarzinho de ouro e um anel, oferta do senhor Alcides pelos meus quinze anos.
A minha opção para afastar essa mulher era o veneno. Dois meses antes tinha-se descoberto uma praga de ratazanas no quintal e no jardim. Como em casa tinha de fazer algumas das coisas mais desagradáveis, fui eu que tive de chamar o veterinário e de o acompanhar na preparação da matança, fornecendo-lhe o que necessitasse.
Conversando com ele soube que ia preparar umas pequenas bolas de comida que misturaria com pastilhas de cianeto. O veterinário mexia no veneno com umas luvas de borracha e com o nariz coberto por um lenço. Sem que eu lhe perguntasse, começou a falar-me das características do cianeto, explicou-me como actuava no organismo dos animais e até me disse que, para um ser humano, a dose mortal eram duas daquelas pastilhas, de 150 miligramas cada... E como se já tivesse alguma ideia no meu subconsciente, quando lhe trouxe a farinha que me pediu para juntá-la às pastilhas trituradas, consegui roubar duas cápsulas e guardei-as.
Tudo estava a meu favor naquele dia e não tive de esforçar a cabeça pensando em como fazê-la engolir o cianeto. Aquela mulher estava a tomar alguns medicamentos, porque na mesa da cozinha estava um frasco de antibióticos e um frasquinho de xarope para a tosse. Isso livrava-me também do risco de colocar o veneno num líquido que pudesse ser bebido pelo senhor Alcides.
Depois fui até à sala do apartamento e tirei da capa o disco que vira ao entrar. Era o que o senhor Alcides tinha pago para que lho gravassem. Coloquei-o no gira-discos e pu-lo a funcionar. Quando ouvi a voz dela, senti as pernas a tremer. Ela cantava uma canção, chamava-se Vete de mi, e de repente tive a sensação de que se dirigia a mim. Por isso, sem mais delongas, tomei as precauções que tinha aprendido com o veterinário, triturei as cápsulas e diluí-as no xarope. Depois limpei tudo e saí de casa.
No dia seguinte, a empregada encarregada de limpar o apartamento dessa mulher telefonou para a minha mãe dando-lhe a notícia: encontrara-a morta, no chão da casa de banho. A teoria de que tinha sido um suicídio era a mais lógica, porque não havia violência nem nada roubado. Mas o polícia encarregado da investigação, embora sem encontrar pistas seguras, tinha muitas dúvidas, quase apostava na possibilidade de um assassinato, embora a falta de provas e de suspeitos lhe fosse fechando o caminho para a verdade que ele pressentia. As impressões digitais que encontraram no apartamento eram das pessoas que lá iam habitualmente e ele não podia garantir que alguma delas tivesse relação com a morte dessa mulher.
Alguns dias depois do enterro, o senhor Alcides acelerou as formalidades para a sua saída de Cuba, embora a sua atitude para com a minha mãe não tivesse mudado. Antes, piorou. Ele estava convencido de que aquela mulher não se tinha suicidado e talvez suspeitasse que a mãe pudesse ser a culpada pela sua morte, mas parecia-lhe com certeza uma decisão tão imprópria de alguém como ela que não se atreveu a mencioná-la, embora também nunca mais tenha voltado a pedir à minha mãe que partíssemos com ele, justamente quando mais precisava dela... Desta forma chegou a data da sua partida e eu fiquei com a certeza do meu enorme erro: o senhor Alcides continuava apaixonado pela morta e nunca mais voltaria a ter a relação anterior com a mãe. De qualquer maneira, pediu-lhe que ficasse cá em casa. Ele regressaria dentro de alguns meses, um ano quando muito, pois a tensão que começava a existir com os Estados Unidos tinha de ter alguma solução e quase toda a gente julgava saber qual seria. Foi nessa altura que encarregou a mãe de cuidar das coisas dele, sobretudo dos jarrões de Sèvres e da biblioteca. A mãe jurou-lhe que, quando ele voltasse, as porcelanas e os livros estariam no lugar. E ela também.
Foi aquela atitude canina da minha mãe que me descontrolou por completo. Eu desbravava-lhe o caminho e ela continuava sem lutar, nem por ela, nem por mim. Aceitava tudo, sem exigir nada, pobre infeliz. Então decidi jogar a última cartada. Se a mãe não tinha possibilidades, talvez eu as tivesse. Escrevi uma carta ao senhor Alcides, onde lhe contava tudo o que a minha mãe me tinha confessado acerca da relação entre eles, da minha origem e da de Dionisio, das suspeitas sobre o desaparecimento de Virgílio Ferrero, e dizia-lhe que a mãe me tinha confessado ter ela própria preparado o xarope, com as duas pastilhas de cianeto, para se desfazer dessa mulher. Terminava garantindo-lhe que tentara impedi-la porque, para mim, a sua felicidade era tão valiosa como a minha, ao fim e ao cabo era meu pai e sempre o amara como tal. Depois coloquei a carta entre as roupas que o senhor Alcides tinha posto na mala e preparei-me para esperar a minha recompensa.
O senhor Alcides partiu e nunca mais voltámos a ter notícias dele: nem uma carta, nem um telefonema. A mãe, desesperada com aquele silêncio, piorou dos nervos. Já não era a mulher que fora e agora tinha crises de depressão, fechava-se dias inteiros sem falar comigo, às vezes nem queria comer, ouvia vozes à noite e até começou a escrever cartas ao senhor Alcides. Eram longas cartas que escrevia às vezes durante vários dias e que depois colocava num sobrescrito de correio aéreo, para começar outra carta, sem imaginar que, com tantas explicações, o que fazia era afundar-se mais no pântano para o qual eu a tinha empurrado. Ela agora mal saía de casa, mas como eu estava fora quase todo o dia, a trabalhar no banco, calculei que tinha encontrado uma forma de alguém levar as cartas para o correio, talvez o próprio carteiro, pois ela esperava por ele todas as manhãs na esperança de receber alguma correspondência do senhor Alcides.
Aquilo durou vários meses. E eu esperei, pacientemente, pensando que a minha carta tinha cumprido a sua função, pois a minha mãe não recebia resposta às que enviava. Por isso a sentia cada vez mais tensa, mais obcecada com a morte daquela mulher e com o perdão do senhor Alcides... até tudo se desmoronar definitivamente. A notícia da morte do senhor Alcides no acidente de viação, quando conduzia bêbado na estrada dos Cayos no Sul da Florida, foi o tiro de misericórdia. A primeira pista de que algo muito estranho se passara foi, evidentemente, o senhor Alcides estar bêbado, porque ele nunca bebia mais que dois copos de vinho à refeição ou uma cerveja nalguma festa. A outra foi estar a conduzir, quando todos nós sabíamos que ele não gostava de o fazer e por isso sempre tivera motorista. O que fazia sozinho, a conduzir bêbado nessa estrada dos Cayos? Aquilo tinha toda a aparência de uma morte desejada, de um suicídio, e a mãe soube-o desde o primeiro instante. E, por isso, dois ou três dias depois de receber a notícia disse-me que sabia tudo sobre a morte daquela mulher e acusou-me de ser a culpada de todas as desgraças que aconteceram...
Uma noite, cerca de uma semana depois, Dionisio telefonou-me para o banco. Tinha vindo, por puro acaso, visitar a mãe e encontrou-a a agonizar no quarto. Tinha cortado os pulsos. A coagulação impediu que sangrasse até morrer, mas perdera muito sangue e a sua vida estava em perigo. Quando cheguei ao hospital, os médicos garantiram-me que se salvaria, embora estivesse num estado de choque profundo. Nesse momento eu desejei que morresse, que terminassem de vez os seus sofrimentos e, sobretudo, que não voltasse a olhar para mim com aqueles olhos acusadores. Mas a mãe recuperou, embora tenha ficado como que numa letargia... Desde esse dia não voltou a falar. É inacreditável, esteve em silêncio durante três ou quatro anos, altura em que perdeu definitivamente a razão. Começou a viver de novo a sua vida anterior e deu-lhe para dizer coisas sem sentido, sobre a correspondência do senhor Alcides, sobre a escola das crianças, sobre a doença da defunta mulher do senhor, sobre a limpeza dos livros para que ele não se aborrecesse quando fosse trabalhar para a biblioteca...
Esta é a história. É a minha história... Aquelas cartas que a mãe escreveu deviam ter continuado sem destinatário, para sempre, como ela própria determinou. Mas o pobre Dionisio deitou tudo a perder. Alvoroçado com o dinheiro que estávamos a ganhar com a venda dos livros, trouxe cá a casa um colega do exército, também desmobilizado, que, segundo ele, sabia muito de livros e tinha relações com alguns estrangeiros. Dionisio queria mostrar-lhe os livros que este senhor dizia serem os mais valiosos, para perguntar se conhecia alguém a quem pudessem interessar. Depois lembrou-se de inventar aquela história do negro alto que andava a comprar livros, para vos forçar a subir os preços e para ter um pretexto se o amigo lhe encontrasse algum comprador. O que acabou por complicar tudo foi ter decidido revistar a biblioteca, à procura de exemplares em que vocês não tivessem mexido e que parecessem mais valiosos, e ter encontrado quatro daquelas malditas cartas. Ele leu-as, sobretudo a que deve ter sido a última e, quando acabou de o fazer, foi buscar-me ao meu quarto, chamou-me assassina e acusou-me de ter provocado a loucura da mãe devido à minha ambição e aos meus delírios de grandeza por julgar-me uma Montes de Oca. Eu disse-lhe que tudo aquilo era mentira, onde é que o fora buscar, e ele mostrou-me as cartas. Lê, porra, disse-me, atirando-mas à cara. Quando as li, senti que todo o mundo que eu tentara suster através do esquecimento e do sacrifício de cuidar da minha mãe durante quarenta anos, sem me casar, sem ter filhos, sem viver a minha própria vida, vinha abaixo com aquelas cartas escritas por uma mulher à beira da loucura, que se culpava pelo sucedido pelo facto de ter partilhado comigo aquela história de frustração, sem imaginar, a pobre, que fora eu própria quem determinara o epílogo da sua condenação e quem empurrara o senhor Alcides para o precipício.
Matar o meu irmão foi fácil. Eu não podia passar o que me resta de vida sentindo aquelas acusações no olhar de Dionisio e com a ameaça que me fez de contar tudo à polícia. A morte da minha mãe é já uma questão de dias, de horas talvez, mas a de Dionisio podia demorar, a sua ameaça de denunciar-me podia ser um ímpeto momentâneo mas podia transformar-se também em realidade, ele era capaz de o fazer e o pior é que eu não tinha forças para resistir nem ao seu ódio nem ao medo de ser acusada e condenada por ter cumprido o meu dever, primeiro de salvar a minha mãe, depois de me salvar a mim e de receber alguma coisa do que era meu... Não pensei mais, matei-o com a sua própria faca e depois revistei a biblioteca onde encontrei mais cinco cartas que destruí. Enterrei a faca no quintal, telefonei para a polícia e sentei-me a esperar pela morte da mãe para poder preparar a minha.
O que nunca me ocorreu foi que a mãe tivesse escrito uma carta ao senhor Alcides já depois da sua morte... Por isso, quando as procurei, encontrei entre os livros outras cinco cartas, todas elas escritas entre a data da partida do senhor Alcides e a que a mãe escreveu e fechou dois dias antes da sua morte. Quem iria imaginar que ela tivesse escrito uma carta a um morto e que, além disso, a tivesse guardado noutra fila de livros? Pobre louca infeliz...
Bom, agora podem fazer comigo o que quiserem, qualquer coisa, é-me indiferente. Porque vão fuzilar-me, não é verdade?
O que será agora de ti? Onde raio irás parar? Mário Conde acariciou o livro e observou com angústia os restos ainda apetecíveis da biblioteca e, como poucas vezes na sua vida, sentiu na alma o peso sólido da sua pobreza. Em criança, com os seus primeiros amigos do bairro — quase todos dispersados pela vida, pelo exílio e, nos últimos tempos, até pela morte —, Conde costumava sentar-se debaixo dos tamarindos do alpendre do seu avô Rufino a brincar ao jogo de ser rico e de dar-se ao luxo de comprar os bens mais cobiçados: uma espingarda de pressão de ar, uma luva de jogador de baseball, uma bicicleta da marca Niãgara para os mais sonhadores. Mas a escassez de realidades entre as quais optar que sempre os acompanhou e a impossibilidade de possuir muitas das riquezas imaginadas acabaram por criar neles um sentido frugal das suas necessidades e prazeres, que alguns deles, com o passar do tempo, chegaram a transformar numa espécie de ascetismo vital, enquanto outros trataram de remediar pondo o mar de permeio, à procura do mundo das abundâncias sonhadas. Conde nunca se esqueceria do dia em que, aos catorze anos, se despediu do seu querido amigo Miguelito Nariz Chato. Na noite anterior à partida para Miami, depois de receber as duas velhas bolas de baseball que lhe eram devidas na repartição de bens efectuada pelo amigo, recordaram a tarde fabulosa em que Miguelito tinha encontrado a solução perfeita para investir a sua imaginária fortuna: se tivesse dinheiro, muito dinheiro, tinha dito o rapaz, comprava uma varinha mágica. Agora, de pé no centro da biblioteca que teria desejado levar consigo, Mário Conde pensou se a melhor solução para a sua ambição livresca não teria sido a posse daquela varinha mágica de Miguelito Nariz Chato, um simples pedacinho de madeira extraída de certos bosques da Escócia, mas dotado do poder de transferir para a sua casa, com um simples rodar do pulso, todos e cada um daqueles livros, com a sua carga de sabedoria e beleza, compêndio e soma de duzentos anos de literatura e do pensamento do país despropositado onde tivera a sorte de nascer e a obstinação de permanecer, apesar dos pesares.
Com o sabor daquela frustração colado à boca, Conde tratou de recordar a ordem exacta, com aspirações de perpetuidade, existente naquele local durante quarenta e três anos, mas a evocação recusou-se a tomar forma no seu espírito. As estantes remexidas, as montanhas de livros classificados segundo o seu valor comercial, as ausências já visíveis dos exemplares levados para o mercado e a desorganização recente provocada pela sua persistente premonição, tinham alterado uma estrutura que parecia perfeita quando, na realidade, escondia nas suas entranhas segredos dolorosos, dispostos a provocar alterações ainda maiores do que aquelas que ali se constatavam à primeira vista. Conde interrogou-se se ainda haveria alguma coisa extraordinária por descobrir naquele aposento. Para ter a certeza, consultou o termómetro da sua premonição e este respondeu-lhe que não: ali só restavam livros, extraordinários, insubstituíveis, inquietantes, livros belíssimos que valiam fortunas e livros que enriqueciam com a sua leitura, muitos livros que desejaria levar consigo... mas apenas livros, sem mais mistérios ou revelações.
Passou diante das estantes e pegou em vários dos volumes que mais teria gostado de possuir, mas depressa abandonou um inventário que ameaçava tornar-se interminável. Uma varinha mágica.
Essa era a solução. Para todos... Pobre Amalia, pobre Nemesia More, pobre Catalina Basterrechea, pobre Dionisio Ferrero, pobre Alcides Montes de Oca, pobre Juan, o Africano, pobre Silvano Quintero: mortos, loucos, mutilados. Com a mesma varinha mágica talvez Conde pudesse remediar o destino trágico no qual se tinham visto envolvidos e de repente os pudesse arrancar daquela história para lhes dar uma outra vida. Mas os seus activos de vendedor e comprador de livros velhos não chegavam para adquirir esse engenho salvador e teve de se conformar com a ideia de que, apesar das teorias de Rafael Giro, a verdade é que, às vezes, a vida pode parecer-se demasiado com um bolero e a única saída elegante é entregá-la, com as suas dores e alegrias, a uma voz capaz de aliviá-la da sua fatalidade essencial: uma voz quente como a de Violeta del Rio.
— Quem é que agora vai fazer a colheita? Quem diabo se vai encher com aqueles livros, pá? Anda, diz-me...
Conde soprou mais duas vezes antes de provar o café. Gostava de bebê-lo assim, acabado de fazer, mas baixando-lhe a temperatura até o sentir temperado no paladar, disposto a entregar a plenitude do seu sabor amargo.
— Que pena, não é verdade? Amalia não tem herdeiros. Os filhos de Dionisio saíram de Cuba há dez anos, durante o êxodo dos balseros(1). Vão, com certeza, confiscar os livros e levá-los para a Biblioteca Nacional.
— Todos? Todos? — A incredulidade de Yoyi, o Pombo, parecia a subida de um papagaio de papel, disposto a romper amarras.
— Todos — confirmou Conde quase a sorrir, já com o cigarro fumegante nos lábios, mas matizando a sua afirmação: — Oxalá.
Carlos, o Magricela, olhou-o da sua cadeira de rodas.
— Se não me engano, selvagem, no fim de contas ficas contente. Esses livros iam enlouquecer-te, não é?
*1. Balsero: nome pelo qual são conhecidos os cubanos que, deitando mão a qualquer objecto flutuante, tentam alcançar a costa da Florida. A crise ou o êxodo dos balseros foi a saída de cerca de 30 000 cubanos em 1994, quando Fidel abriu as fronteiras àqueles que quisessem emigrar, em consequência das manifestações populares conhecidas como Maleconazo. (N. da T.)
— Os livros e outras coisas: de repente descobri que me agrada isso de ter muito dinheiro; uma noite meteu-se-me no corpo o fantasma de Violeta del Rio; quando me moeram à pancada falei com Salinger. Depois, averiguando outras coisas, descobri que o meu pai era daqueles que se podiam embebedar e chorar quando se apaixonavam mas que era, sobretudo, um cobarde... e ultimamente quis ser mágico e roubar esses livros. É preferível levarem-nos para onde quer que seja, quanto antes...
— Estão loucos, estão todos loucos — protestou Yoyi. — São anormais, juro, anormais irremediáveis.
— E o que vai acontecer à mulher? — Candito limpou o suor da testa. — Que Deus lhe perdoe...
— Não sei bem... A mãe foi levada para o hospital. Estava completamente desidratada e parece que não tem salvação. Há cinco dias que Amalia a mantinha amarrada sem água nem comida...
— Que velha dura, porra! — exclamou Carlos. — Eu fico um dia sem comer e morro de fome.
— Mas essa mulher está mesmo louca, não é verdade? — perguntou Coelho, inclinando-se para Conde.
— Eu julgo que sim e esse é o problema — disse Conde. — Deve estar louca mas não parece louca. Não fala como uma louca e faz as coisas tendo consciência das suas consequências. Matou o irmão sem pensar muito e agora queria matar a mãe para depois se matar ela própria. Não, não pode estar boa da cabeça.
— Filha da puta é o que é — declarou Yoyi. — E aqueles pobres livros...
Conde abanou a cabeça, admitindo que era o seu sócio quem realmente não tinha remédio e tentou encher os pulmões com a calma da tarde. A confissão de Amalia Ferrero, ou Montes de Oca, como sempre quisera chamar-se, arrastara-o como uma torrente até à beira de uma depressão e por isso tinha preferido não misturar o seu estado de espírito com álcool. Apesar dos seus esforços, não conseguia libertar-se do sentimento de culpa que o atormentava desde essa manhã, ao reconhecer-se responsável por ter revelado com a sua presença toda aquela história lamentável. Mordido pela dor própria e pela alheia, conipreendeu que tudo o que vivera nesses dias fora um aviso macabro da sua incapacidade para remediar a vida de outras pessoas e, sobretudo, a sua própria vida.
— O que disse Manolo quando viu que o teu pressentimento era verdadeiro e lhe entregaste a solução do caso de bandeja? — Carlos estava satisfeito por fazer a pergunta que, na sua própria formulação, exaltava a inteligência do amigo.
— Pediu-me novamente desculpa. Não tinha outro remédio. Embora desta vez tivesse preferido estar enganado, sabes?
— Terias preferido o quê? — Yoyi sorriu. — Ouve, Conde, se não tivesse sido a Amalia, esse morto ia continuar a perseguir-nos, a ti e amim...
— Não foi isso que quis dizer. Mas teria preferido que Amalia não tivesse feito nada do que fez. Não passou de uma infeliz toda a sua vida.
— Sim, nesta história é essa a chatice — disse Coelho com preocupação. — Quem é o mau? O tal Alcides porque se apaixonou? Violeta, porque se interpôs sem saber no caminho de Amalia e da mãe? A mãe dos Ferrero por dizer à filha quem era o pai? Amalia por julgar-se com direito a ser uma Montes de Oca, por querer salvar o amor da mãe ou por querer ter o que lhe pertencia? Dionisio por ser um intransigente em tudo o que lhe parecesse incorrecto e por se ter posto a revistar os livros... ?
— É verdade — admitiu Carlos. — Uma história sem maus é mais complicada.
— O mau sou eu — disse Yoyi então —, o mau não, o estúpido, porque depois da primeira visita que fizemos juntos, Dionisio telefonou-me para casa...
— Telefonou-te? — Conde sentiu a curiosidade despertar.
— Sim — continuou Pombo —, depois de lhe ter dado o meu número, telefonou-me para me propor a venda dos livros que tu não querias comprar... Por isso trazia no bolso o papelinho com o número.
— E o que aconteceu?
— Disse-lhe que íamos esperar, porque nessa biblioteca eu não podia fazer nada nas tuas costas... Que ia tentar convencer-te, mas que tu eras o rei dos imbecis e se dissesses não, era não.
— Tu fizeste isso? — Conde olhava para ele sem esconder o seu assombro.
— Juro-te. Quer dizer, juro a sério.
— Tu também és um pouco estranho, Yoyi, não achas?
— Os caminhos do Senhor são insondáveis — disse Candito.
— Qual senhor nem meio senhor, Candito... Vocês é que me estão a pegar isto. Anormal é o que sou. Sabes quantos milhares podia ter feito de uma assentada? E agora levam esses livros e vais ver: nem metade deles chega às bibliotecas.
— Achas? — Coelho agitou-se, incomodado. O seu amor pelos livros, especialmente pelos de História, podia atingir níveis de total irracionalidade.
— Quase sempre se esfumam alguns pelo caminho — admitiu Conde. — Já aconteceu com outras bibliotecas...
— Isto não está bem, não senhor — disse Candito. — Olhem, se eu não fosse cristão e não me importasse de cometer um pecado e, claro, se eu fosse vocês — apontou para Conde e para Yoyi —, se calhar metia-me lá em casa e despachava, pelo menos, uns dois sacos de livros. No fim de contas, vocês iam comprá-los.
O olhar de Yoyi perfurou os olhos de Conde. A mente do rapaz devia estar a girar a velocidades supersónicas, manipulando cifras, vendo resultados.
— Nem penses, Yoyi — avisou-o Conde.
— Ouve, Conde, eu acho que Ruivo tem razão — interveio Carlos. — Para ser aspirante a santo, este cabrão pensa ainda de uma maneira...
— E Manolo deve-te um favor — considerou Coelho. — E favor com favor se paga... Eu faria isso se fosse a ti e, de caminho, convidaria alguns amigos... como nós, a escolher alguns livros.
— Já disse que nem pensem nisso, porra. Não me vão convencer — garantiu Conde, pondo-se de pé e voltando as costas aos amigos. Deu alguns passos até ao fundo do quintal, acendeu outro cigarro e deu um pontapé no cadáver de uma garrafa de rum.
Yoyi preparava-se para falar, disposto a fornecer mais alguns argumentos, mas Carlos fez um gesto com a mão pedindo-lhe que deixasse Conde em paz, que ele tratava disso.
— Deixem o selvagem em paz, cavalheiros — disse em voz alta. — No fim de contas, uns livros de merda aí...
— Que livros de merda, Magricela! — protestou Conde, dando meia-volta. — É a melhor biblioteca que já vi ou verei na merda da minha vida.
— Bah, Conde, não é para tanto — continuou Carlos, sorrindo para os outros. Os seus mecanismos de persuasão, oleados pelo uso frequente com que os utilizava para convencer Conde, estavam em marcha.
Abriu o livro com a mesma fruição com que podia ter separado as pernas de uma mulher conquistada por amor, disposto a extasiar-se com a apropriação dos seus cheiros secretos e das suas cores mais profundas. Fechou os olhos e inspirou: o papel, ligeiramente escurecido pelos anos, exalava um vapor de antiguidade orgulhosa. Embriagado com aquele aroma, começou a folhear umas gravuras ainda capazes de exibir as suas cores originais e deleitou-se com as imagens de grandes engenhos em plena faina e campos de cana que pareciam paradisíacos e que, como qualquer realidade devidamente projectada e manipulada, escondiam o inferno quotidiano de alguns homens, considerados menos que homens, trazidos de muito longe para deixarem o seu suor, sangue e vida entre as canas malditas que contribuíram para aumentar a riqueza e a desproporção nacional a que se referira Coelho. Talvez cento e cinquenta anos antes, um homem chamado Serafín Montes de Oca tivesse pensado uma coisa semelhante ao pegar naquele volume e, depois de se deleitar com as gravuras e de acariciar as suas capas de couro, tivesse fechado o livro disposto a juntar-se a uma guerra que pretendia mudar a realidade ali gravada.
Delicadamente, Conde deixou numa das estantes do seu armário o cobiçado exemplar que enlouquecia os perseguidores de jóias bibliográficas, colocando-o entre a capa gasta dos contos do seu amigo J. D. Salinger e a contracapa tosca dos tomos das poesias de Heredia, colocados ali minutos antes, e sentiu o nítido regresso da inveja. Poderia alguma vez executar os mesmos passos com um livro escrito por ele próprio, onde contasse algumas daquelas histórias iniciadas e abandonadas, enterradas e exumadas, desejavelmente despojadas e comoventes que há anos se propunha escrever? Como fora capaz de exigir a J. D. que continuasse a escrever se ele próprio não se atrevia a lançar-se naquela aventura sempre adiada? O que aconteceria com o seu passado e com a sua memória se não os pusesse, preto no branco, a salvo do tempo e do esquecimento?
Afastou-se do armário dos livros como se fugisse de uma acusação e entrou na cozinha para preparar a cafeteira. Abriu à noite a porta do quintal e encontrou a figura alegre de Basura, a dar à cauda e com os olhos brilhantes.
— Que tal, rafeiro? — cumprimentou-o e aceitou nas suas pernas as patas do animal, carente de afagos. — E como está a tua fome? Ainda há aqui qualquer coisa. Mas deixa-me avisar-te — Conde abriu o frigorífico e tirou a última porção de sobras destinadas ao cão —, não te habitues, voltámos agora mesmo a ser pobres, de modo que guarda energias para o que vem aí, que não se sabe até quando vai durar...
Conde deu uns passos entre os saltos e os latidos de Basura, colocou a comida no prato metálico e ficou a vê-lo comer.
Voltou à cozinha chamado pelo aroma do café. Pegou no açucareiro e adoçou a infusão, servindo-se depois da chávena exagerada que o seu corpo pedia. Sentou-se à mesa e, através da janela, observou o céu limpo e estrelado do epílogo do Verão. Aquele vazio escuro, estendido até ao infinito, talvez quisesse dizer-lhe alguma coisa relacionada com a sua própria vida, embora Conde rejeitasse ouvi-lo. Já tivera a sua quota-parte de dores físicas e da alma com as experiências alucinantes vividas nos últimos dias e necessitava do esquecimento como de um bálsamo reconfortante. Mas o seu olhar traiu-o, de uma forma flagrante, e regressou, como que magnetizado, ao vazio impávido do céu, obstinado em envolvê-lo. Nessa altura deu duas passas no cigarro e esmagou a beata.
— Sou obrigado a pensar? A rebolar na merda que tenho na cabeça? — perguntou à escuridão e levantou-se. — Então vamos fazê-lo como deve ser: à bruta e sem luvas...
Dirigiu-se para a sala e abriu o velho gira-discos de Carlos. No prato estava o single de Violeta del Rio, que não quisera ouvir durante vários dias. Acordou o aparelho, lentamente o disco começou a girar e Conde levantou o braço e colocou-o sobre ele. Apagou todas as luzes e deixou-se cair no sofá, tal como o seu pai fizera há mais de quarenta anos.
A introdução do piano empurrou-o para trás, mas tentou manter-se firme, à espera do golpe: recebeu no peito o ataque da voz viva de Violeta del Rio e sentiu-se estremecer.
Tú, que llenas todo de alegria y juventud
y ves fantasmas en la noche de trasluz y oyes el canto perfumado del azul. Vete de mi...
Mário Conde compreendeu que aquela ordem categórica talvez tivesse sido sempre dirigida a si, esperando por si. Talvez o seu pai tenha pressentido que alguma coisa assim aconteceria um dia — a propensão para os pressentimentos é hereditária? — e, enfrentando todas as angústias que aquela voz lhe despertava, tivesse guardado para o filho uma cópia do disco, sabendo que chegaria uma altura em que teria de o ouvir e de sentir, ele também, a emoção de confrontar-se com aquela voz de mulher. Incontestável, no entanto, era Catalina Basterrechea, a jovem Lina dos Belos Olhos, ter estado a pedir a Conde, insistentemente, que se afastasse e deixasse os mortos, os desaparecidos e os vencidos entaipados atrás da neblina do passado, onde deviam descansar em paz. Mas ele obstinara-se em saber e, no fim, tinha apenas conseguido levantar um lodo pútrido, sob o qual só havia mais e mais podridão e peçonha. Aquela voz tivera parte da culpa, tentou defender-se, aquela voz empurrara-o sem piedade como se, ao mesmo tempo que lhe exigia distância, lhe fizesse também a pequena reivindicação de não se perder total e irreversivelmente no esquecimento. Porque a voz era o testamento mais contundente de Violeta del Rio, aquela rapariga que esteve prestes a saltar por cima do destino que trazia escrito na testa. Mas Violeta tinha cometido o mais terrível pecado de infidelidade quando se atreveu a sacrificar o que sempre desejara ser e fazer na vida, para atingir uma hipotética felicidade que talvez nunca lhe tivesse sido devida. Talvez esta traição a si própria fosse o que a levou à morte. Se tivesse recusado o sacrifício do seu maior prazer e tivesse decidido continuar a cantar, vezes e vezes, aquelas canções de amores frustrados, teria enganado a morte? Ninguém conseguiria sabê-lo, nunca ninguém conseguiu sabê-lo, mas a possibilidade de superar os desígnios da fortuna conseguia sempre alarmar Conde. Agora estava convencido de que só a fidelidade a si própria podia ter protegido Violeta del Rio, só cantar e continuar cantando a podia ter salvo de um ódio que assolou a vida de tantas pessoas.
Quando a canção terminou, virou o disco, disposto a completar a descida e deixou de ter dúvidas: aquelas duas canções tinham sido gravadas para ele.
Me recordarás
cuando en la tarde muera el sol...
As pancadas na porta arrancaram-no daquele diálogo com a morte e com o destino. Pressentiu que a vida o exigia de volta. Abriu e encontrou o sorriso de Tâmara.
— Até quando vais ouvir essa mulher? — perguntou ela, e a maneira de qualificar Violeta del Rio fê-lo estremecer. Morta há quarenta anos, «essa» mulher ainda era capaz de provocar ressentimentos.
— Até agora, já acabei — disse e deixou-a entrar, enquanto se dirigia para o gira-discos e o desligava. O prato girou, gastando os seus últimos impulsos, e parou. Conde, obedecendo por fim à ordem que não tinha sabido ouvir a tempo, quebrou o pequeno disco em dois, em quatro, em oito pedaços e atirou-os para dentro do gira-discos, baixando depois a tampa e cerrando os fechos.
— Porque o fizeste? — espantou-se Tâmara.
— Já o devia ter feito antes. Mas sabes que sou lento em quase tudo.
— Bom, isso nem sempre é um defeito.
— Tens razão. Anda, fiz café.
Serviu Tâmara e encheu uma chávena para ele. Ocuparam as cadeiras e olharam-se por cima da mesa.
— O que fazes aqui?
— Carlos telefonou-me. Disse-me que estavas meio deprimido e a fazer coisas que nem ele próprio imaginava que te atrevesses a fazer. E é verdade, acabo de ver uma.
— Não fiz nada terrível. Parti um disco antigo e enterrei alguns mortos... E antes disso, a única coisa que fiz foi roubar sete livros, um para cada um dos interessados.
— Estás louco, Mário. Se te apanham...
— Não sei se Marti o terá dito ou não, mas deve ter dito: roubar livros não é roubar. E parece que ele era como tu, tinha sempre razão. Mais que um roubo foi um presente a mim próprio...
— Vamos lá ver, presenteaste, como dizes, livros a Yoyi, Can-dito, Coelho, Carlos, presenteaste-te a ti próprio com um... Sobram dois.
— Há um para Andrés. Como está longe, escolhemos para ele o Álbum pintoresco de La islã de Cuba, com as ilustrações de Bernardo May. Há um ano, num leilão, venderam um por doze mil dólares. Se ele quiser pode vendê-lo, embora saiba que isso nem lhe passará pela cabeça... E o outro é para ti.
Conde pousou o cigarro fumegante no cinzeiro e dirigiu-se à estante, de onde tirou os dois tomos escuros da edição das poesias de Heredia, exemplares que, talvez num dia já remoto, tivessem estado nas mãos do pobre poeta desterrado.
— Este é o teu — disse a Tâmara.
— Que honra! Que livro é?
— Ouve e diz-me o que achas — abriu um dos volumes ao acaso, calculando que qualquer acaso seria convincente, e leu, satisfeito pela sorte de ter pousado os olhos justamente naquela estrofe:
«Mas, i qué en ti busca mi anhelante vista / Con inútil afán? ,;Por qué no miro / Alrededor de tu caverna inmensa / Las palmas ;ay! Las palmas deliciosas, / Que en las llanuras de mi ardente pátria / Nacen del sol a la sonrisa, y crecen / Y al soplo de las brisas del Oceano, / Bajo un cielo purísimo se mecen?»...(2)
— Heredia. «Niágara» — disse ela, com a voz embargada pela emoção.
— Edição de Toluca, 1832. A mais valiosa, aquela que Heredia tipografou com a ajuda da mulher, a melhor... Para ti.
— Isto é uma loucura... — tentou protestar, mas ao ver os olhos do homem compreendeu que cometia um crime se resistisse àquele acto de amor. — Obrigada — disse, agarrando nos livros e levantando-se, para beijá-lo nos lábios.
— Não esperava tanto em troca — disse ele, acariciando-lhe os cabelos e olhando-a nos olhos. — Não me deixes nunca, por favor.
*2. «Mas, o que em ti busca o meu ansioso olhar / Com inútil afã? Porque não vejo / em redor da tua caverna imensa / As palmeiras, ai! As palmeiras deliciosas, /Que nas planícies da minha ardente pátria / Nascem ao sorriso do sol, e crescem / E ao sopro das brisas do Oceano, / Sob um céu puríssimo se agitam?» (N. da T.)
E Mário Conde sentiu como se lhe soltavam as amarras e o abandonava a força capaz de o manter de pé. Pensou: vou chorar, porra. Soube que estava a chorar quando Tâmara lhe acariciou o rosto e sentiu a humidade escorregadia por onde deslizavam os dedos dessa mulher, da sua mulher.
— Estou aqui — disse ela. — Estarei sempre aqui. Esse é o meu prémio e o meu castigo...
Ele olhou-a, agradecido pela sua presença e pela sua existência e, quando ergueu os olhos na direcção da janela, viu uma lua redonda, capaz de quebrar a escuridão e de iluminar um céu agora resplandecente, onde talvez Violeta del Rio estivesse a cantar para Deus, até à consumação dos séculos, um bolero impossível com um final feliz.
Leonardo Padura
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