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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NEVE ESTAVA SUJA / Georges Simenon
A NEVE ESTAVA SUJA / Georges Simenon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Não fosse um acontecimento fortuito, o ato de Frank Friedmaier naquela noite teria tido uma importância apenas relativa. Frank, evidentemente, não havia previsto que seu vizinho Gerhardt Holst passaria pela rua. Ora, o fato de Holst ter passado e tê-lo reconhecido mudava tudo. Mas isso também, e tudo o que iria se seguir, Frank aceitou.
É por isso que o que aconteceu naquela noite perto do muro do curtume foi bem diferente, para o presente e para o futuro, da perda de uma virgindade, por exemplo.
Foi o que Frank pensou de início, e essa comparação o divertia e ao mesmo tempo o envergonhava. Fred Kromer, seu amigo — é verdade que Kromer tinha vinte e dois anos —, havia matado mais um homem na semana anterior, justamente ao sair do bar do Timo, onde Frank se encontrava alguns minutos antes de se apoiar contra o muro do curtume.
Será que o morto de Kromer podia mesmo entrar na conta? Kromer se dirigia para a porta, abotoando sua peliça, ar importante, como sempre, um charuto grosso em seus lábios grossos. Ele reluzia. Kromer estava sempre reluzente. Tinha uma pele grossa, espessa como a de certas laranjas, e parecia suar.


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Alguém o havia comparado com um touro jovem que não consegue se satisfazer. Em todo caso, é em algo sexual que seu rosto espesso e brilhante, seus olhos úmidos,
seus lábios inchados faziam pensar.
Um sujeito magro, baixinho, um pouco pálido e febril como há tantos, principalmente de noite, tinha se postado bestamente em seu caminho — ninguém acreditaria, vendo-o,
que tinha dinheiro bastante para vir beber no bar do Timo — e havia lhe passado uma descompostura, agarrando-o pela gola de pele.
O que Kromer teria lhe vendido, com que não estava satisfeito?
Kromer havia passado por ele, muito digno, fumando seu charuto. O outro, o mal alimentado, talvez porque estivesse com uma mulher que pretendia impressionar, o seguira
pela calçada, onde começara a berrar.
As pessoas, na rua de Timo, não se espantam muito com as gritarias. As patrulhas aparecem por lá o mais raramente possível. Mas se uma viatura desses senhores houvesse
passado por perto, teriam sido obrigados a conferir.
— Vá dormir! — dissera Kromer ao gnomo que tinha uma cabeça grande demais para o corpo e os cabelos de um ruivo ardente.
— Não sem antes você ouvir o que tenho a te dizer.
Se tivéssemos de ouvir tudo o que os outros têm a nos dizer, logo, logo enlouqueceríamos.
— Vá dormir!
Será que o ruivo tinha bebido demais? Ele tinha muito mais cara de quem se droga. Será que era Kromer que lhe fornecia a droga e que ela estava batizada demais?
Pouco importa.
Kromer, no meio da aleia negra entre os dois bancos de neve, tirou o charuto da boca com a mão esquerda. Golpeou com o punho direito, de uma só vez. E então, viram-se
duas pernas e dois braços no ar, literalmente, como uma marionete; depois viu-se a forma escura se incrustar no monte de neve que margeava a calçada. O mais curioso
é que havia ao lado da cabeça uma casca de laranja, o que sem dúvida não se encontraria em nenhum outro lugar da cidade, a não ser em frente ao bar do Timo.
Timo saiu, sem casaco, sem boné, do jeito que estava no bar. Apalpou a marionete e espichou um pouco o lábio inferior.
— Teve o que mereceu — grunhiu. — Em menos de uma hora estará durinho.
Será que Kromer matou mesmo o ruivinho com um soco? É o que ele espalha. O cara é que não vai contradizê-lo, porque, a conselho de Timo, que nunca perde seu tempo,
foram jogá-lo a duzentos metros dali, na velha doca onde os esgotos são despejados e impedem a água de congelar.
Kromer pode, portanto, afirmar ter matado o sujeito. Mesmo que Timo tenha alguma coisa a ver, mesmo que a marionete, que tiveram de jogar mais uma vez para o ar,
por cima de uma mureta de tijolo, não estivesse totalmente morta.
A prova de que Kromer não computa esse fato como algo sério é que ele continua a contar a história da mulher estrangulada. Só que isso não ocorreu na cidade nem
num lugar que os outros conhecem. Não se tem provas. Desse jeito, qualquer um pode se gabar de qualquer coisa.
— Ela tinha peitos grandes, quase não tinha nariz, e olhos claros — diz ele.
Quanto a isso, não variou. Mas toda vez acrescenta detalhes.
— Foi num celeiro.
Bom. Mas o que Kromer, que nunca foi soldado e que detesta o campo, fazia num celeiro?
— Fizemos amor na palha, e o tempo todo umas palhinhas me fizeram cócegas, me deixando de mau humor...
Kromer conta essa história fumando seu charuto e olhando fixo à sua frente, ar ausente, como por modéstia. Tem mais um detalhe sobre o qual ele não varia. É uma
frase da mulher.
— Espero que você esteja me fazendo um filho.
Ele sustenta que foi essa frase que desencadeou tudo, que a ideia de ter um filho com aquela mulher burra e suja, que ele amassava como se fosse massa, lhe pareceu
grotesca, inaceitável.
— Totalmente i-na-cei-tá-vel.
E que ela se tornava cada vez mais meiga e mais grudenta.
E que ele conseguia, sem precisar fechar os olhos, ver uma cabeça monstruosa, loura e pálida, sem fisionomia, que seria a do filho dele com aquela mulher.
Será que é porque Kromer tem cabelos castanhos e é duro como uma árvore?
— Aquilo me deixou enojado — concluiu deixando cair a cinza do charuto.
É um espertalhão. Conhece os gestos a fazer. Tem tiques que o tornam interessante.
— Achei mais seguro estrangular a dona. Era a primeira vez. Querem saber? É muito fácil. E nada perturbador.
Não é só Kromer. Quem, no bar do Timo, não matou pelo menos uma pessoa? Na guerra ou de outro modo. Ou por delação, o que é mais fácil. Nem é preciso assinar o nome.
Timo, que não se gaba disso, deve ter matado uma enorme quantidade, senão os ocupantes alemães não deixariam seu bar aberto a noite toda sem vir ver o que acontecia
por lá. Embora as venezianas estejam sempre fechadas, embora tenha de se passar pela aleia e se mostrar através da porta, eles não são tão ingênuos assim para não
saber.
Então? Para Frank, a defloração, a verdadeira, outrora, não teve muita importância. Porque ele estava num meio favorável. Para outros, é toda uma história, que,
anos depois, ainda contam acrescentando floreios, como Kromer no caso da moça estrangulada no celeiro.
Que Frank aos dezenove anos tenha matado seu primeiro homem, não passa de uma defloração só um pouco mais perturbadora que a primeira. E, como no caso da primeira,
não foi premeditada. Aconteceu por acontecer. Parece que chega um momento em que é ao mesmo tempo indispensável e natural tomar uma decisão que, na realidade, já
está tomada há muito tempo.
Ninguém o forçou. Não riram dele. Aliás, os imbecis é que se deixam impressionar pelos amigos.
Faz semanas, meses talvez, ele disse consigo mesmo, por sentir em si uma espécie de inferioridade:
— Preciso experimentar...
Não numa briga. Não é do seu caráter. Em seu espírito, para que entre na conta, é indispensável ser consumado a frio.
A ocasião se apresentou há pouco. Será que é porque ele estava à espera que se tornou ocasião?
Estavam no bar do Timo, à mesa deles, perto do balcão. Kromer estava junto, com sua peliça que ele não tira das costas nem nos lugares mais aquecidos. E seu charuto,
claro. E sua pele reluzente. E seus olhos grandes que têm de fato algo de bovino. Kromer deve acreditar que tem uma essência diferente da do resto do mundo porque
não se dá ao trabalho de arrumar as notas graúdas numa carteira, enfiando-as em vez disso, aos maços, todas amarrotadas, nos bolsos.
Com Kromer havia um cara que Frank não conhece, um sujeito de outro meio, que foi logo se apresentando:
— Pode me chamar de Berg.
Deve ter pelo menos quarenta anos. É frio, secreto. É da pesada. A prova é que Kromer se mostra quase humilde perto dele.
Contou-lhe a história da moça estrangulada, sem insistir, como quem diz que não era nada, que não era mais que uma brincadeira, um incidente.
— Olha, Frank, a faca que meu amigo acaba de me dar.
E a faca, como uma joia que se valoriza ao sair de uma rica caixa, adquiria mais prestígio ao ser extraída da peliça quente e ser exibida na toalha xadrez da mesa.
— Sinta o gume.
— Claro.
— Consegue ler a marca?
Era uma faca fabricada na Suécia, uma faca de mola, de linhas tão puras, tão “viva”, que você tinha a impressão de que a lâmina devia ter sua inteligência própria
e procurar sozinha seu caminho pelas carnes.
Por que Frank tinha dito, envergonhado do tom infantil que adotava sem querer:
— Me empresta.
— Para quê?
— Para nada.
— Estes brinquedinhos não nasceram para não fazer nada.
O outro personagem sorria, com um sorriso um tanto protetor, como se ouvisse as fanfarronadas de dois garotos.
— Me empresta.
Não para não fazer nada, claro. Mas ainda não sabia. Foi nesse instante que viu, na mesa do canto, sob o lustre com cúpula de seda roxa, o suboficial gordo, já vermelho
— violeta, por causa da luz —, tirar o cinturão e colocá-lo entre os copos.
Todos eles conheciam o suboficial. Era quase um mascote, uma espécie de animal familiar que você se acostuma a ver em seu lugar. Era o único, entre os ocupantes,
a vir regularmente ao bar do Timo sem se esconder, sem tomar precauções, sem recomendar discrição.
Devia ter um nome. Aqui o chamavam de Eunuco. Porque era gordo, tão gordo que sua carne estufava seu uniforme, fazia pneus na cintura e debaixo dos braços. Fazia
pensar numa matrona que se despe e cujo corpete marcou as carnes moles. Tinha outros pneus na nuca e debaixo do queixo, e em seu crânio esvoaçavam cabelos irregulares,
incolores, sedosos.
Sempre sentava no mesmo canto, invariavelmente com duas mulheres, quaisquer que fossem, desde que fossem magras e de cabelos escuros. Diziam que ele as preferia
peludas.
Quando os fregueses que entravam se sobressaltavam ao ver sua farda — a da Polícia de Ocupação —, Timo mal baixava a voz para dizer:
— Não tenham medo. Ele não é perigoso.
Será que o Eunuco ouvia? Será que entendia? Pedia jarras e mais jarras de bebida. Uma mulher no colo, outra a seu lado no banco, ele lhes contava histórias baixinho,
no ouvido, e ria. Bebia, contava, ria e as fazia beber, as mãos enfiadas nas saias delas.
Devia ter família em algum lugar do seu país. Nouchi, que tinha brincado com a carteira dele, dizia que estava repleta de fotos de crianças de todas as idades. Ele
chamava as mulheres por nomes que não eram os delas. Isso o divertia. Pagava o jantar delas. Adorava vê-las comer, pratos caros que só se encontram no bar do Timo
e em alguns estabelecimentos de acesso ainda mais difícil, reservados na verdade aos oficiais superiores.
Quase as obrigava a comer. Comia com elas. Bolinava as meninas na frente de todo mundo. Olhava para seus dedos molhados e ria. Depois, regularmente, chegava uma
hora em que desafivelava o cinturão e o depositava na mesa.
Nesse cinturão havia um coldre com um revólver.
Em si, tudo aquilo era desimportante, o suboficial, o Eunuco, era um gordo depravado de quem só falavam fazendo piada. Inclusive Lotte, a mãe de Frank.
Ela também o conhecia. Todo o bairro o conhecia, porque, para ir à cidade, onde devia ficar sua repartição, ele atravessava duas vezes por dia a rua do bonde e descia
até a ponte velha.
Não morava no quartel. Hospedava-se na pensão da sra. Mohr, viúva de um arquiteto, duas casas acima da rua do bonde.
Era um vizinho. Era visto a horas fixas, sempre rosado e bem-arrumado, apesar de suas noitadas no bar do Timo. Tinha um sorriso bem dele, que parecia maroto a alguns,
mas que talvez não passasse de um sorriso de bebê.
Virava-se para as meninas que passavam, fazia gracinhas para elas, às vezes lhes dava balas, que tirava dos bolsos.
— Aposto que um desses dias ele sobe — dissera Lotte, a mãe de Frank.
O ofício dela também era proibido. Claro, tinha o direito de ter um salão de manicure no bairro do velho porto, ainda que, com toda certeza, não passaria pela cabeça
de ninguém subir três andares, num prédio repleto de inquilinos, para cuidar das unhas.
Sabia-se, não só na rua, mas, por assim dizer, na cidade toda, que havia uns quartos nos fundos.
O Eunuco, que pertencia à polícia dos ocupantes, também devia saber.
— Você vai ver que ele sobe!
Só de avistar um homem pela janela do terceiro andar, Lotte era capaz de dizer se ele acabaria subindo ou não. Podia até prever o tempo que levaria para se decidir,
e raramente se enganava.
O Eunuco tinha de fato vindo, um domingo de manhã — por causa do seu horário de repartição —, todo sem jeito, todo bobo. Frank não estava, o que lamentou, por causa
da claraboia no alto da parede, que lhe permitia espiar dentro da alcova subindo na mesa da cozinha.
Tinham contado a ele. Naquele dia, só estava presente a Steffi, uma varapau de pele descorada, capaz unicamente de se deitar abrindo as pernas e olhando para o teto.
O suboficial ficara decepcionado, sem dúvida porque com Steffi não havia o que fazer se você não fosse direto ao assunto. Ela não era nem mesmo sensível o bastante
para ouvir convenientemente as histórias que lhe contavam.
— Você não passa de um buraco, minha filha — Lotte vivia lhe dizendo.
O Eunuco deve ter imaginado que as coisas aconteceriam de outro modo. Será que ele era mesmo impotente? Em todo caso, nunca havia saído do bar do Timo com uma mulher.
Será que ele se satisfazia sozinho quando as bolinava, sem que ninguém percebesse? Era possível. Tudo é possível com os homens, Frank sabia disso desde que tinha
feito sua formação, em pé na mesa da cozinha, espiando pela claraboia.
Não era natural que, já que precisaria matar alguém um dia ou outro, lhe viesse a ideia de se experimentar com o Eunuco?
Primeiro, ele tinha de usar a faca que lhe puseram nas mãos e que era mesmo uma bela arma. Dava vontade de experimentá-la, sem querer, de sentir o efeito que ela
produzia ao penetrar nas carnes e se enfiar entre os ossos.
Existe um truque que tinham lhe explicado: girar ligeiramente a mão, como a uma chave na fechadura, uma vez que a lâmina estava entre as costelas.
O cinturão estava em cima da mesa, com o revólver pesado e liso em seu coldre. O que não se pode fazer com um revólver! E que tipo de homem a gente se torna automaticamente!
Enfim, havia aquele sujeito de quarenta anos, o tal de Berg, um colega de Kromer, logo uma pessoa segura, uma pessoa muito bacana, sem dúvida, a quem deviam ter
falado dele como sendo um garoto.
— Me empreste só por uma hora, para eu estreá-la. Aposto que volto com um revólver!
Naquele momento, aquilo não tinha nada de mais. Frank conhecia o lugar onde ficar emboscado. Na Rue Verte, que o Eunuco pegaria fatalmente para sair da doca e chegar
à rua do bonde, havia uma velha construção, que ainda chamavam de curtume, apesar de não se curtir mais nada ali há uns quinze anos. Na verdade, Frank nunca vira
o curtume em atividade; afirmavam que na época em que o Exército utilizou o edifício, chegou a ter seiscentos operários.
Não eram mais que grandes paredes nuas, de tijolo escuro, com janelas altas como as de igreja, que começavam a seis metros do solo e cujos vidros estavam todos quebrados.
Um beco escuro, de apenas um metro de largura, separava o curtume do resto da rua.
O primeiro bico de gás aceso — a cidade era cheia de bicos de gás torcidos ou quebrados — ficava longe, na parada do bonde.
Era muito simples, portanto, nem chegava a ser emocionante. Ele estava ali, no beco, costas coladas na parede de tijolo do curtume e, fora os apitos aflitos dos
trens do outro lado do rio, não havia mais que silêncio ao seu redor. Nem uma luz nas janelas. Todo mundo dormia.
Ele enxergava, entre as duas paredes, um fragmento de rua, e era a rua tal como ele a conhecia desde sempre durante os meses de inverno: nas calçadas, a neve formava
dois bancos acinzentados, um do lado das casas, o outro do lado da via; entre ambos, uma estreita trilha enegrecida, que as pessoas mantinham aberta com areia, sal
ou cinzas. Diante de cada porta, essa trilha era cortada por outra trilha que conduzia à via da rua, onde as marcas das rodas eram mais ou menos profundas dependendo
do lugar.
Muito simples.
Matar o Eunuco...
Fardados eram mortos todas as semanas, e organizações patrióticas eram acossadas, reféns, conselheiros, gente importante era fuzilada e levada para Deus sabe onde.
Em todo caso, não se ouvia mais falar deles.
Para Frank, tratava-se de matar seu primeiro homem e estrear a faca sueca de Kromer.
Nada mais que isso.
A única coisa que o afligia era estar com as pernas metidas até os joelhos na neve endurecida — porque ninguém pensara em tirar a neve do beco — e sentir os dedos
da mão direita enrijecer pouco a pouco; mas ele havia decidido ficar sem as luvas.
Não se abalou ao ouvir passos. Sabia, aliás, que não era seu suboficial. Este, com suas botas pesadas, teria feito a neve ranger mais.
Estava intrigado e só. Os passos eram largos demais para ser de mulher. A hora do toque de recolher passara fazia tempo. Gente como ele, como Kromer, como os fregueses
do Timo, não se preocupavam com isso, por uma porção de razões; já os moradores do bairro não tinham o hábito de passear de noite.
O homem se aproximava do beco e, antes mesmo de avistá-lo, Frank já havia entendido, ou antes, adivinhado, e ter adivinhado lhe proporcionava certa satisfação.
De fato, uma luzinha amarelada vacilava na neve. Era a de uma lanterna elétrica que o homem balançava caminhando.
Aquele passo largo, quase silencioso, aquele passo ao mesmo tempo mole e espantosamente rápido, evocava automaticamente, para Frank, a silhueta do seu vizinho, Gerhardt
Holst. O encontro se tornava de todo natural. Holst morava no mesmo prédio de Lotte, no mesmo andar. A porta do seu apartamento ficava bem em frente à deles. Ele
era motorneiro de bonde, e seu horário de trabalho mudava a cada semana; às vezes saía de manhã cedinho, antes de o dia raiar; outras vezes, descia a escada no meio
da tarde, invariavelmente com sua marmita de lata debaixo do braço.
Era grandão. Seu passo era silencioso porque usava botas que ele mesmo tinha feito, com feltro e trapos. É normal que um homem que passa horas na plataforma de um
bonde procure manter os pés aquecidos, e no entanto Frank, sem nenhuma razão séria, não podia ver aquelas botas informes, de um cinzento de papel mata-borrão — elas
pareciam ter a consistência desse papel —, sem ter uma espécie de mal-estar.
O homem todo era da mesma cor cinza, como se da mesma matéria. Parecia não olhar para ninguém, não se interessar por nada, a não ser pela marmita que levava debaixo
do braço e que continha sua refeição.
E no entanto Frank desviava a cabeça para evitar seu olhar, ou, outras vezes, de propósito olhava Holst nos olhos com um ar agressivo.
Holst ia passar. E depois?
Era mais do que provável que seguiria reto seu caminho, empurrando diante de si, na neve e na trilha enegrecida, o círculo luminoso de sua lanterna. Frank não tinha
nenhum motivo para fazer barulho. Colado à parede, estava praticamente invisível.
Então por que tossiu bem no instante em que o homem ia chegar na esquina do beco? Não estava resfriado. Não tinha a garganta seca. Quase não fumara aquela noite.
No fundo, tossiu para chamar a atenção. E nem era por desafio! Que interesse teria ele em desafiar um pobre coitado que conduz bondes?
Holst não era um verdadeiro motorneiro de bonde, está bem. Era evidente que vinha de outro ambiente, que sua filha e ele haviam levado outra existência. De gente
assim as ruas estão cheias, bem como as filas na porta das padarias. Ninguém presta atenção neles. Eles é que têm vergonha de não se sentir iguais aos outros e adquirem
um ar humilde.
Apesar disso Frank tossiu, intencionalmente.
Seria por causa de Sissy, a filha de Holst? Não teria o menor sentido. Não está apaixonado por Sissy. Aquela garota de dezesseis anos não o cativa. Ao contrário,
ele é que a cativa.
Não acontece de ela abrir a porta de casa quando o escuta subir a escada assobiando? Não corre para a janela quando ele sai e ele não vê a cortina se mexer?
Se quisesse, ele a teria quando bem entendesse. Talvez com um pouco de paciência e tato, o que não é difícil.
O mais espantoso é que Sissy sabe sem dúvida nenhuma quem ele é, qual o ofício da mãe dele. Todo o prédio os despreza. Raras são as pessoas que os cumprimentam!
Holst também não o cumprimenta, mas ele não cumprimenta ninguém. Não por orgulho. É antes por humildade, ou porque as pessoas não lhe interessam, porque vive com
a filha num pequeno círculo de que não sente a necessidade de sair. Tem gente assim!
Ele nem chega a ser misterioso.
Quem sabe não foi só por criancice que Frank tossiu? Era fácil demais, bobo demais.
Holst não ficou com medo. Seu passo não diminuiu. Não pensou que era dele que podiam estar à espera no beco. Isso também é bem curioso, porque afinal um homem não
se gruda sem razão contra uma parede, no meio da noite, num frio de vinte graus abaixo de zero!
Na hora de passar em frente ao beco, mal muda a direção da sua lanterna, só um instante, o suficiente para iluminar a cara de Frank.
Este não se deu ao trabalho de erguer a gola do capote, de desviar a cabeça. Ficou totalmente descoberto, com aquele ar pensativo e decidido que sempre tem, mesmo
quando só pensa em coisas fúteis.
Holst o viu e o reconheceu. Não tem mais de cem metros a percorrer para chegar ao prédio. Vai tirar a chave do bolso, porque, devido ao seu trabalho noturno, é o
único dos inquilinos que possui uma chave.
Amanhã ficará sabendo pelo jornal — ou simplesmente na fila, à porta de qualquer comércio — que o suboficial foi morto na esquina do beco.
Logo, ficará sabendo.
O que resolverá fazer? Os ocupantes anunciarão um prêmio, como é de costume, quando se trata de um dos deles, ainda por cima graduado. Holst e sua filha são pobres,
não devem comer carne mais de uma vez a cada quinze dias, e quase sempre são retalhos que ele ferve com nabo. Pelo cheiro que escapa das portas, dá para saber o
que as pessoas de cada apartamento comem.
O que Holst fará?
Com certeza não está contente de que uma atividade como a de Lotte ocorra bem em frente à sua casa, em que Sissy passa seus dias.
Não é uma oportunidade para se livrar deles?
E no entanto Frank tossiu e não pensa um só instante em renunciar a seu projeto. Ao contrário! Por alguns segundos, faz uma espécie de prece para que o suboficial
vire a esquina antes de Holst ter tempo de entrar no prédio.
Holst o ouviria, o veria. Quem sabe não esperaria um instante, chave na mão, e assim assistiria à coisa?
Não acontece assim. Que pena! Frank estava todo excitado com aquela ideia. Já lhe parece que há um vínculo secreto entre ele e aquele homem que está subindo a escada
na escuridão do prédio.
Não é por causa de Holst que vai matar o Eunuco, claro, pois já estava decidido antes.
Só que, naquele momento, seu gesto não tinha o menor sentido. Era quase uma brincadeira, uma criancice. Como é mesmo que dizia? Uma defloração.
Agora é outra coisa que ele deseja, que ele aceita, com pleno conhecimento de causa.
Tem Holst, Sissy e ele; e o suboficial passa para o segundo plano, Kromer e seu amigo Berg perdem importância.
Tem Holst e ele.
E era como se ele acabasse de optar por Holst, como se o tempo todo soubesse que ele chegaria bem na hora, e não teria feito isso para mais ninguém, só mesmo para
o motorneiro do bonde.
Meia hora mais tarde, batia na porta do bar do Timo, a pequena porta no fundo da viela, do modo combinado. O próprio Timo abriu. Não havia quase mais ninguém, e
uma das garotas que bebia há pouco com o Eunuco vomitava na pia da cozinha.
— Kromer já foi?
— Já. Ele me disse para te avisar. Tinha um compromisso na cidade alta.
A faca, bem limpa, estava no bolso de Frank. Timo não dava atenção a ele e continuava lavando copos.
— Quer tomar alguma coisa?
Quase respondeu que sim. Mas preferia se provar que não estava abalado, que não precisava de álcool. E olhem que precisou repetir duas vezes, por causa da banha
que cobria as costas do suboficial. O revólver inchava seu outro bolso.
Mostrá-lo a Timo? Não tinha perigo. Timo se calaria. Mas era fácil demais também. Era o que todo mundo teria feito.
— Boa noite.
— Vai dormir na casa da sua mãe?
Às vezes dormia aqui e ali, às vezes na casinha nos fundos do bar, onde as meninas comiam, às vezes na casa de Kromer, que tinha um bom quarto e um sofá, às vezes
na casa de outros, variava. Mas tinha sempre uma cama de dobrar para ele na cozinha de Lotte.
— Vou pra casa...
Era perigoso, por causa do corpo que continuava atravessado na calçada. Era mais perigoso ainda desviar pela rua principal — chegando à ponte —, porque, por aquelas
bandas, corria o risco de topar com uma patrulha.
O vulto escuro ainda estava na calçada, uma parte na trilha negra, uma parte no monte de neve, e Frank passou por cima dele. Foi o único momento em que teve medo.
Não só de ouvir passos às suas costas, mas de ver o Eunuco se levantar, por exemplo.
Tocou a campainha e esperou um bom tempo até o zelador abrir a porta apertando um botão na cabeceira da cama. Subiu depressa os primeiros degraus, diminuiu o passo
e, por fim, no momento de passar pela porta de Holst, sob a qual filtrava a luz, pôs-se a assobiar, para saberem que era ele.
Não entrou no quarto da mãe, que tinha sono pesado. Despiu-se na cozinha, onde havia acendido o lampião. Deitou-se. Recendia a caldo de carne e alho-poró, e o cheiro
era tão forte que o impedia de dormir.
Levantou-se, entreabriu a porta dos fundos e deu de ombros.
Era Bertha que ocupava a cama aquela noite. Seu corpo gordo e sem graça estava quentinho. Empurrou as costas dela, ela resmungou, estendeu um braço, que ele precisou
dobrar para caber na cama.
Um pouco depois, quase a possuiu, porque não conseguia dormir, depois pensou em Sissy, que com certeza era virgem.
Será que seu pai lhe diria o que Frank fizera aquela noite?
2
Quando Bertha se levantou, ele acordou um pouco, mas abriu os olhos o bastante para ver grandes cristais de gelo nos vidros da janela.
Descalça, a gorda foi acender a luz da cozinha, deixou a porta entreaberta, de sorte que o quarto era iluminado apenas por um reflexo. E no fundo do cômodo, ele
ouvia Bertha pôr a meia, a roupa de baixo, vestir o penhoar, sair enfim e fechar a porta. O próximo barulho seria, ao lado, o do atiçador raspando a grelha.
Sua mãe sabia domá-las. Sempre tomava o cuidado de fazer pelo menos uma ficar em casa durante a noite. Não por causa da clientela, porque, a partir das oito da noite,
quando a porta de baixo era fechada, não subia mais ninguém. Mas Lotte precisava de companhia. Precisava principalmente ser servida.
— Já morri bastante de fome quando era moça e boba. Agora mereço ter sossego. Chegou a minha vez.
Era sempre a mais bronca, a mais pobre que ela mandava ficar, pretextando que morava longe demais, que ali tinha fogo ou que havia preparado um bom jantar.
Para todas, tinha o mesmo penhoar de felpa roxa que quase sempre se arrastava no chão. Elas tinham invariavelmente entre dezesseis e dezoito anos. Mais velhas, Lotte
não queria. E salvo raras exceções, nunca ficava com elas por mais de um mês.
Os clientes gostam de mudanças. Era inútil dizer isso de antemão às meninas. Elas achavam que ali estavam em casa, principalmente as do campo, e eram quase sempre
estas que ficavam a noite toda.
Lotte devia fazer como Frank, que dormia com um olho só, consciente da hora, do lugar em que se encontrava, dos barulhos do apartamento e dos barulhos da rua. Era
assim que ele esperava maquinalmente o barulho do primeiro bonde, que se ouvia de longe, no vazio gelado das ruas e cuja grande lanterna amarela ele acreditava ver.
Logo depois, veio o bater dos dois baldes de carvão. Era o mais duro de manhã para a moça de plantão. Uma delas, que no entanto era uma moça forte, de carnes rígidas,
tinha até ido embora por causa dessa tarefa. Tinham que descer, com dois baldes de ferro, os três andares e mais o andar do porão, depois subir de volta com os dois
baldes cheios.
Todo mundo, no prédio, levantava cedo; era como um prédio de fantasmas porque, devido às restrições e cortes de luz, as pessoas só usavam lâmpadas elétricas bem
fracas. Além disso, não tinham fogo; mal ousavam usar um soprinho de gás para esquentar seu café.
Toda vez que uma saía com os baldes de carvão, Frank aguçava os ouvidos, e Lotte na certa fazia o mesmo em sua cama.
Cada inquilino tinha sua cave, trancada a cadeado. Mas quem mais, senão eles, possuía carvão e lenha?
Quando a moça subia com os baldes, os braços esticados, o rosto congestionado, algumas portas quase sempre se abriam à sua passagem. Olhares duros se fixavam nela,
nos baldes. Mulheres faziam comentários em voz alta. Uma vez, um inquilino do segundo andar — fora fuzilado depois, mas não por isso — havia virado os dois baldes,
grunhindo:
— Sua puta!
Todos, de alto a baixo da caserna — porque o edifício parecia uma caserna —, estavam enrolados em seus capotes, com dois ou três coletes, a maioria de luvas. E havia
as crianças que tinham de ir à escola.
Bertha descera. Bertha não tinha medo. Era uma das raras, talvez por ser forte e calma, que aguentou a parada por mais de seis semanas. Mas para o amor ela não prestava.
Às vezes soltava um rugido tão esquisito que cortava o ímpeto do homem.
“Uma vaca!”, pensava Frank.
Do mesmo modo que no caso de Kromer pensava: “Um touro jovem!”.
Deviam ter juntado os dois. Bertha acendia o fogo nas estufas, inclusive no quarto, deixando de novo a porta da cozinha entreaberta. Havia quatro estufas no apartamento,
mais que em todo o resto do edifício, quatro só para eles. Quem sabe um dia as pessoas não viriam aproveitar um pouco do aquecimento, grudando-se na parede do corredor?
Será que Sissy Holst tinha calefação?
Ele sabia como era; conhecia a pequena chama azul saindo do fogareiro a gás, só entre as sete e as oito da manhã.
As pessoas aqueciam os dedos na chaleira. Algumas punham os pés ou as barrigas sobre o fogareiro. E todos se vestiam com trapos, com tudo o que tinham para empilhar
no corpo, qualquer coisa em cima de qualquer coisa.
Sissy?
Por que tinha pensado em Sissy?
No prédio em frente, mais pobre que o deles, porque mais velho e já decrépito, os moradores haviam colado papel de embrulho nos vidros, para fazer obstáculo ao frio,
deixando apenas pequenos buracos no papel para a luz entrar e para olhar para fora.
Será que viam o Eunuco? Será que tinham descoberto o corpo?
A descoberta aconteceria sem escarcéu. Nunca faziam escarcéu. Muita gente já havia saído para o trabalho, as mulheres saíam para guardar lugar nas filas.
Salvo uma improvável patrulha — quase nunca passa uma na Rue Verte, que não leva praticamente a lugar nenhum —, os primeiros, os madrugadores, tinham percebido o
vulto escuro na neve e tinham rumado com pressa para a parada do bonde.
Os outros, agora que clareara, deviam distinguir a cor do uniforme. Ficavam com mais pressa ainda de se afastar.
A descoberta viria de um dos zeladores. Eles são uma espécie de funcionários públicos. Não podem dizer que não viram nada. Têm um telefone à disposição, no corredor
de seu prédio.
Vinha da cozinha um cheiro de gravetos ardendo. Depois foram as avalanches de cinzas das outras estufas e, por fim, a música do moedor de café.
Coitada da grandalhona da Bertha! Pouco antes, de pé, descalça no capacho, ela esfregava seu corpo para tirar as dobras desenhadas na pele pelos lençóis. Não vestira
a calça. Transpirava. Devia falar sozinha. Dois meses antes, àquela hora, dava de comer às galinhas e na certa falava com elas numa linguagem que elas entendiam.
O bonde, sempre ele, sua parada brusca na esquina onde cuspia areia nos trilhos para frear. As pessoas estavam acostumadas, no entanto ficavam como que na expectativa,
esperando que tornasse a rodar com seu barulho de ferragem.
Qual dos zeladores teve medo o bastante para telefonar às autoridades? Todos os zeladores têm medo. É seu ofício. Dá até para imaginá-lo gesticulando diante de dois
ou três veículos lotados de ocupantes alemães.
Houve uma época em que teriam cercado o quarteirão e revistado as moradias uma a uma. Já estava distante. Os reféns também. Parecia que os homens se tornaram filósofos
de um lado e outro da barreira. Mas ainda existe uma barreira?
Vamos fingir que sim.
Um gordo depravado morreu. Que importância pode ter para eles? Devem ter se dado conta de quanto ele valia. O desaparecimento do revólver os preocupará mais, porque
quem o pegou poderia ter a ideia de utilizá-lo contra eles.
Definitivamente, eles também têm medo. Todo mundo tem medo.
Dois carros, três carros passam e tornam a passar. Outro vai de prédio em prédio.
Pura embromação. Não vai acontecer nada.
A não ser, claro, que Holst resolva falar. Mas Holst não falará. Frank confia nele.
Pronto! Tem uma explicação. Talvez não seja o termo exato, mas dá uma ideia do que ele pensou confusamente na véspera: confiou nele.
Holst deve estar dormindo. Não. A esta hora, está de pé, vai descer, porque, quando não está de serviço, é ele que vai fazer compras.
Para certas mercadorias, na casa de Lotte, eles também fazem compras: quer dizer, mandam uma das meninas. Para outras, não. Há produtos que justificam se dar a esse
trabalho, até no caso deles.
Todas as portas internas estão abertas. A estufa da cozinha irradia calor para todos os aposentos, tanto que, se preciso, só ela bastaria; depois o cheiro do café
de verdade se espalha.
Do outro lado da cozinha, o que dá para o patamar, logo à esquerda da escada, fica o salão de manicure, onde há uma estufa acesa o tempo todo.
E cada estufa, cada fogo, tem seu cheiro próprio, sua vida própria. Sua maneira de respirar, seus barulhos mais ou menos incongruentes. A da sala recende a linóleo,
evoca o aposento de móveis encerados, de piano de armário, com bordados e trabalhos de crochê nas mesinhas de apoio e no braço das poltronas.
— Os mais depravados — reclama Lotte — são os burgueses. E os burgueses gostam de fazer suas nojeiras numa atmosfera que lembra a casa deles.
É por isso que as duas mesinhas de apoio da manicure são minúsculas, por assim dizer invisíveis. Lotte, porém, ensina as meninas a tocar piano com um dedo só.
— Como a filha deles, entende?
O quarto, o quarto grande, como ele o chama, no qual Lotte dorme neste momento, é todo coberto de tapetes, de forros de tecido nas paredes, de trabalhos de agulha.
É também Lotte que afirma:
— Se eu pudesse pôr o retrato do pai, da mãe, da mulher e dos filhos deles, ficaria milionária!
Será que eles levaram afinal o Eunuco? É provável. As idas e vindas dos carros cessaram.
Gerhardt Holst, com seu nariz comprido roxo de frio, sua sacola na mão, deve estar imóvel e digno em alguma fila do bairro. Tem uns que aceitam isso, tem outros
que não. Frank não aceitou. Por nada neste mundo ficaria numa fila.
— Outros ficam... — disse-lhe uma vez sua mãe, que o achava pretensioso demais.
Alguém imagina o Kromer numa fila? E Timo? E fulano ou beltrano?
Será que Lotte tem carvão? Seu primeiro assunto daqui a pouco, ao se levantar, não será falar de cozinha?
— Na minha casa se come! — ela respondeu uma vez à moça que nunca tinha se prostituído e que lhe perguntava quanto ganharia na casa.
E é verdade. Come-se. Não se come: se farta. Se farta da manhã à noite. Sempre tem de comer na mesa da cozinha, e dava para alimentar uma família inteira com os
restos.
Tornou-se uma espécie de jogo procurar os pratos mais difíceis de se fazer; os que contêm mais gordura ou ingredientes impossíveis de encontrar. É um esporte.
— Toicinho? Vá falar com Kopotzki de minha parte. Diga que levarei açúcar para ele.
E se acrescentássemos champignon?
— Pegue o bonde e pare no Blang. Diga a ele que...
Cada refeição é uma aposta. Uma aposta e um desafio, porque toda casa recebe eflúvios de cozinha que passam pelas fechaduras, por baixo das portas. Por pouco não
se deixam elas abertas. Enquanto isso, os Holst se contentam com um osso com nabo.
Por que será que ele sempre mete os Holst na história? Levanta-se. Está cheio de ficar deitado. Entra na cozinha esfregando os olhos turvos. São onze horas. Chegou
uma menina que ele não conhece, uma novata, ar comportado, aspecto correto, que ainda não tirou o chapéu e usa uma blusa branca de senhorita.
— Pegue açúcar à vontade — diz Lotte a ela, que está sentada, de penhoar, cotovelos na mesa, e que toma seu café com leite aos golinhos.
É sempre assim que acontece. É preciso domesticá-las. De início, elas não ousam. Olham para os torrões de açúcar como se fossem objetos preciosos. Mesma coisa no
caso do leite, de tudo. E, após certo tempo, têm de ser postas no olho da rua porque esvaziam os armários. É verdade que seriam postas mesmo sem isso.
São comportadas. Juntam os joelhos ao sentar. A maioria veste um tailleurzinho, como Sissy, saia escura e blusa clara.
— Se elas pudessem não mudar!
É disso que os fregueses gostam.
Não o desleixo matinal, por exemplo. Mas sabe lá? Estão todos ali, em família, sem se lavar, pele lustrosa, tomando café, comendo o que querem, fumando um cigarro,
fazendo hora.
— Pode passar minha calça? — Frank pergunta para a mãe.
E, como a tomada fica na sala, Lotte instala aí uma tábua entre duas poltronas.
O Eunuco?
Uns vizinhos, com certeza, ficaram com medo por causa dele, todos os que viram o corpo na neve aquela manhã e que, por isso, não sentirão a consciência tranquila
o resto do dia.
Já Frank só se preocupou com o revólver. Por volta das nove, levantou-se um instante com a ideia de ir pegá-lo no bolso do seu sobretudo e escondê-lo em algum lugar.
Mas esconder onde? Esconder de quem?
Bertha é mole demais, apática demais, para revelar o que quer que seja, a não ser por besteira. A outra, a garota do tailleur cujo nome ele ainda não sabe, se calará
porque é uma novata, porque está na casa deles, porque tem fome.
Quanto à sua mãe, não se mete nisso. Ele é o chefe. Por mais que ela faça, por mais que às vezes se revolte, ela sabe que não tem nada a dizer e que sempre acabará
fazendo o que Frank quiser.
Ele não é grande. É até pequeno. Chegou inclusive — mas isso faz tempo — a usar salto alto, quase um salto feminino, para aumentar a estatura. Também não é gordo,
mas carnudo, ombros quadrados.
Sua pele é clara, como a de Lotte; seus cabelos, louros; seus olhos, de um azul acinzentado.
Por que então, se nem tem dezenove anos, as mulheres têm medo dele? Em determinados momentos, o tomariam por uma criança! Seria provavelmente capaz de ser meigo,
se quisesse. Não se dá ao trabalho.
E o que mais espanta, à sua idade, é sua calma. Quando era pequeno e mal andava, de cabeça grande e cacheada, já diziam que parecia um homenzinho. Não se agita.
Não gesticula. Raramente o veem correndo, raramente se zanga, e é mais raro ainda elevar a voz.
Uma das meninas, com quem ele ia com frequência encontrar em sua cama, abraçava sua cabeça e lhe perguntava por que estava sempre triste.
Ela se recusava a acreditar, quando ele respondia num tom seco, se soltando:
— Não estou triste. Nunca fui triste em toda a minha vida.
Talvez fosse verdade. Ele não era triste, mas não sentia a necessidade de rir nem de gracejar. Estava sempre calmo, e sem dúvida era isso que desconcertava as pessoas.
Assim, agora mesmo, pensando em Holst, está perfeitamente calmo. Não sente a menor inquietação. Está apenas um pouco intrigado.
Aqui, se bebe café com açúcar e creme de verdade, se passa manteiga no pão e geleia ou mel. É quase como pão branco, em todo o bairro, só se pode encontrar no bar
do Timo.
O que eles comem, em frente? O que come Gerhardt Holst? O que come sua filha Sissy?
— Você quase não comeu — observa Lotte, que se entupiu como sempre.
Ela passou tanta fome, outrora, na época em que os outros comiam, que sempre teme que ele não coma o bastante e que seria capaz de cevá-lo como a um ganso.
Não tem ânimo para se vestir. Aliás, àquela hora, não há o que fazer na rua. Mata o tempo. Fica olhando Lotte passar sua calça com cuidado e tirar algumas manchas
com a ponta de suas unhas laqueadas. Depois acompanha a novata com os olhos. Fica vendo-a arrumar na mesinha os apetrechos de manicure que ela não sabe usar.
Na nuca ainda magra dela, de pele finíssima que a faz pensar numa galinha, há fios de cabelos soltos que ela às vezes tenta arrumar com um gesto maquinal.
Sissy faz a mesma coisa, com frequência, quando desce ou sobe a escada.
Esta, como Lotte já lhe ensinou, o chama de sr. Frank. Ele pergunta o nome dela, por polidez.
— Minna.
Sua saia é bem cortada, o tecido quase não está gasto e ela parece limpinha. Será que já fez amor? É provável, senão não teria vindo para a casa de Lotte. Mas ela
ainda não deve tê-lo feito por dinheiro, com qualquer um.
Daqui a pouco, quando vier um cliente, Frank subirá na mesa da cozinha. Tem certeza, de antemão, de que, quando estiver só de combinação, ela se virará para a parede
e ficará um bom tempo mexendo nas alças antes de se despir.
Sissy está exatamente do outro lado do patamar. Quando você desemboca da escada larga, tem uma porta à direita, outra à esquerda, antes de chegar ao corredor para
o qual dão outras portas. Alguns inquilinos ocupam um apartamento inteiro, outros apenas um quarto, e há mais três andares acima da cabeça deles. Ouve-se o tempo
inteiro gente subindo, descendo. As mulheres trazem sacolas, embrulhos, e quanto mais o tempo passa, mais dificuldade têm de subir; há uma que, apesar de não ter
mais de trinta anos, outro dia desmaiou nos degraus.
Nunca entrou no apartamento de Holst. Conhece alguns interiores, porque às vezes os inquilinos deixam a porta aberta; mulheres lavam roupa no corredor, embora seja
proibido pelo proprietário.
Em toda parte, reina durante o dia uma luz crua, que se diria gelada, porque as janelas são altas e largas, a caixa da escada e os corredores, pintados de branco,
e a neve lá fora reverbera em todo o prédio.
— A senhorita nunca aprendeu piano? — Lotte pergunta à novata.
— Toco um pouco, senhora.
— Então toque alguma coisa!
Naquela noite, Lotte passará a tratá-la por senhorita, mas sempre começa tratando assim.
Lotte é de um louro arruivado, sem um fio de cabelo branco; seu rosto permaneceu jovem. Se não comesse tanto, se não se deixasse engordar, seria muito bonita, mas
não dá a mínima para a sua linha, dir-se-ia ao contrário que se sente feliz em engordar; deve deixar de propósito o penhoar se entreabrir sobre seus seios fortes,
suaves, que tremem a cada movimento.
— Sua calça está passada. Vai sair?
— Não sei ainda.
Às vezes ele bem que dormiria o dia inteiro. Não é possível, porque elas têm de arrumar os quartos e, não raro, mal dá meio-dia e já se ouve um cliente tocar. Ele
não encontra os amigos antes das cinco. Todo mundo que ele conhece só começa realmente a viver no fim do dia, de modo que, por horas a fio, ele zanza à toa.
Muitas vezes, de robe, sem ter se penteado nem lavado, fica na cozinha, os pés na porta do forno, os pés no forno, lendo qualquer livro e, se lhe dá na telha, sobe
na mesa quando ouve vozes no quarto.
Hoje, sem se dar conta, gira em torno da novata que toca piano, e que não toca mal. Na realidade, não é ela que ocupa seus pensamentos. Eles voltam sempre para Holst,
para Sissy, e isso o irrita. Não gosta que uma ideia o atormente como uma mosca em hora de tempestade.
— A campainha, Frank.
O piano quase encobriu o barulho. Lotte guarda a tábua de passar, o ferro, assegura-se de que está tudo em ordem, diz a Minna:
— Continue.
Depois entreabre a porta, reconhece a visita, murmura sem entusiasmo:
— Ah, é o senhor, sr. Hamling. Entre. Deixe-nos, srta. Minna.
E, segurando o penhoar com a mão, avança uma cadeira para a visita.
— Sente-se. Seria melhor tirar as galochas...
— Não vou ficar muito tempo.
Minna juntou-se a Frank na cozinha. Ao lado, Bertha faz a ca­ma. A novata está nervosa, inquieta.
— É um cliente? — indaga.
— É o inspetor-chefe de polícia.
Ela fica mais apavorada ainda, enquanto Frank permanece calmo, um pouco desdenhoso.
— Não tenha medo. É amigo da minha mãe.
É quase verdade. Ele conheceu Lotte outrora, quando era mocinha. Será que tem alguma coisa entre eles? É possível. Em todo caso, agora é um cinquentão, parrudo,
sem gorduras. Não deve ser casado. Se for, nunca fala da mulher e não usa aliança.
Todo mundo no bairro tem medo dele, menos Lotte.
— Pode vir, Frank.
— Bom dia, inspetor.
— Bom dia, rapaz.
— Frank, você devia servir um copinho ao sr. Hamling. Eu também tomaria um.
As visitas do inspetor-chefe sempre transcorrem do mesmo jeito. Ele parece, ao entrar, ser um vizinho, um amigo, que vem dar bom-dia. Aceita a cadeira que lhe empurram,
o copinho que lhe oferecem. Fuma seu charuto, desabotoa o grosso sobretudo preto, solta um pequeno suspiro de satisfação, de alguém encantado por se aquecer, por
ter um instante de descanso numa atmosfera amena e simpática.
Sempre parece que vai dizer alguma coisa, fazer uma pergunta. Nos primeiros tempos, Lotte estava persuadida de que ele tentava se informar sobre o que acontecia
na casa dela.
Embora tenham se conhecido faz tempo, perderam-se de vista durante anos, e olhem que ele é inspetor-chefe de polícia.
— Muito bom — declara, depositando seu copo numa mesinha de apoio.
— É o melhor que se pode encontrar hoje em dia.
Depois vem o silêncio, e o silêncio não incomoda nem um pouco Kurt Hamling. Vai ver que ele o faz de propósito, porque sabe que isso desorienta os outros, principalmente
Lotte, que só se cala quando está de boca cheia.
Olha tranquilamente para o piano aberto, com um ar cândido, para as duas mesinhas com os apetrechos de manicure. Entreviu Minna, quando ela foi da sala para a cozinha,
deve ter compreendido que era uma novata. Do patamar ouvira o piano.
O que será que ele pensa? Não dá para saber. Conversou-se sobre isso diversas vezes.
Ele está fatalmente a par da atividade de Lotte. Uma vez, veio à tarde — a única, por sinal —, quando havia um cliente no quarto. Na sala, ouviam-se ruídos que não
podiam enganar ninguém.
A pretexto de dar uma olhada no seu ensopado, Lotte fora, pela cozinha, dizer ao homem que não saísse antes de ela avisar.
Dessa vez, excepcionalmente, Hamling ficou duas horas, sem razão, sem desculpa, sempre com ar de fazer uma visita de cortesia.
Será que conhece Minna? Será que ela tem pais que alertaram a polícia?
Lotte é toda sorrisos. Frank, ao contrário, encara-o duramente, sem procurar esconder sua falta de simpatia. Hamling tem traços duros, corpo duro; é um homem de
pedra, o que torna mais marcante o contraste com seus olhinhos borbulhantes de ironia. Sempre parece estar zombando de você.
— Aqueles senhores tiveram trabalho na rua de vocês, hoje.
Frank não moveu um músculo. Sua mãe mal consegue evitar fitá-lo, como se sentisse que seu filho tinha alguma coisa a ver.
— Um suboficial foi morto perto do curtume, a cem metros daqui. Passou a noite na neve. Saía do bar do Timo.
Tudo isso é dito sem mais intenções. Pega de novo seu copo, que aquece na mão e em que molha os lábios lentamente.
— Não ouvi nada — diz Lotte.
— Não atiraram. Usaram uma faca. Já prenderam um.
Por que será que Frank pensa imediatamente:
“Holst!”
Que idiotice. Tanto mais idiota porque não é do motorneiro que se trata.
— Deve conhecê-lo, Frank, é um rapaz da sua idade que mora com a mãe no prédio. No primeiro andar, no fundo do corredor à esquerda. Um violinista.
— Vez ou outra cruzei com um rapaz carregando uma caixa de violino.
— Esqueci o nome dele. Diz que não saiu de casa esta noite, e sua mãe, claro, diz a mesma coisa. Também afirma que nunca pôs os pés no bar do Timo. Isso não nos
diz respeito. Aqueles senhores é que cuidam da investigação. Ouvi somente dizer que o violino servia de pretexto, que a caixa preta que ele sempre carrega debaixo
do braço na maioria das vezes continha documentos. Parece que pertencia a um grupo terrorista.
Por que Frank se perturbaria? Acende outro cigarro.
— Parecia tuberculoso — diz.
É verdade. Havia encontrado várias vezes na escada um rapaz alto, magricela, sempre de preto, com um sobretudo leve demais e uma caixa de violino debaixo do braço.
Estava sempre pálido, com placas vermelhas sob os olhos, boca excessivamente vermelha, e às vezes parava nos degraus para tossir até se extenuar.
Hamling disse terrorista, como os ocupantes. Outros empregam a palavra patriota. Isso não significa nada. Principalmente em se tratando de um funcionário público.
É difícil adivinhar o que ele pensa.
Será que Kurt Hamling os despreza, a ele e a sua mãe? Não por causa das meninas, isso não o interessa. Mas por causa do resto, do carvão, das suas relações com um
monte de gente, por causa dos oficiais que frequentam a casa?
Supondo-se que Hamling queira fazer alguma coisa contra Lotte, o que aconteceria? Lotte iria ver personagens que ela conhece na polícia militar, ou Frank falaria
com Kromer, que tem muitos contatos.
No fim das contas, aqueles senhores chamariam o inspetor-chefe e ordenariam que sossegasse.
É por isso, no fundo, que Lotte não tem mais medo. Será que Hamling sabe disso?
Ele senta na casa dela, se aquece com seu fogo, aceita beber do seu álcool.
E Holst?
De certos inquilinos, sabe-se exatamente o que pensam. A maioria detesta e despreza Frank e a mãe. Alguns lábios se franzem de raiva quando passam.
Uns simplesmente porque Lotte tem carvão e come. Estes, talvez, fariam como ela se pudessem. Outros, principalmente as mulheres de certa idade ou pais de família,
por causa da sua profissão.
Há porém alguns cujo caso é diferente. Frank sabe, sente isso. E são justamente os que menos manifestam seus sentimentos. Estes nem olham para eles, fingindo, como
por pudor, ignorar sua presença.
Será assim no caso de Holst? Será que ele pertence, como o rapaz do violino, a uma rede?
É improvável. Frank pensou que sim durante certo tempo, por causa de sua calma, de sua aparente serenidade. E também porque não é um motorneiro de verdade, supõe-se
que seja um intelectual. Quem sabe não era um professor e foi demitido por suas opiniões? Ou então abandonou voluntariamente seu cargo para não ensinar contra as
suas convicções?
Fora das suas horas de trabalho, não sai, a não ser para ficar nas filas. Ninguém vem visitá-los.
Será que já sabe que o violinista foi preso? Vai acabar sabendo. O zelador, que está a par, contará para todos os inquilinos, fora Lotte e seu filho.
E Hamling fica ali sem dizer mais nada, sonhador, fumando seu charuto e soltando a fumaça a pequenas baforadas.
Mesmo que ele saiba ou desconfie de alguma coisa, que importância pode ter para Frank? Hamling não ousará falar.
O que conta é Gerhardt Holst, que deve ter voltado das compras e que está trancado com Sissy no apartamento em frente.
Alguns legumes, nabos, talvez um pedacinho de toucinho rançoso, como os que distribuem de vez em quando?
Não veem ninguém, não falam com ninguém. Sobre o que será que os dois conversam?
E Sissy espreita Frank, levanta a cortina para vê-lo se afastar na rua, entreabre a porta quando ouve o assobio dele na escada.
Hamling suspira e se levanta.
— Mais um copinho?
— Obrigado. Preciso ir.
Um cheiro gostoso vem da cozinha, ele o aspira maquinalmente ao sair, e o cheiro gostoso o acompanha no corredor, penetra talvez na casa dos Holst por baixo da porta.
— Velho babaca! — diz Frank tranquilamente.
3
Frank só havia entrado para não esperar na rua, mas não gostava daqueles lugares. Você descia três degraus, e o chão era de lajota, como numa igreja; havia vigas
antigas no teto, forros de madeira nas paredes, um balcão todo esculpido e mesas pesadas.
Conhecia de vista e de nome o dono, sr. Kamp, e o sr. Kamp devia conhecê-lo também. Era um homenzinho miúdo e calvo, calmo e educado, sempre de pantufas. Deve ter
sido gorducho, mas sua barriga começava a amolecer; suas calças se tornavam largas demais. Nesses estabelecimentos, que observam os regulamentos ou que, com os fregueses
eventuais, fingem observá-los, mal se encontra uma cerveja ordinária para tomar.
Você sente que incomoda. No café do Kamp você sempre vê quatro ou cinco habitués, uns velhos do bairro, que fumam compridos cachimbos de porcelana ou de espuma do
mar e que se calam quando você entra. O tempo todo que você fica ali, eles se calam, pacientemente, e fumam seu cachimbo olhando para você.
Frank tem sapatos novos de solado grosso de couro verdadeiro. Seu sobretudo é quente, e qualquer um daqueles velhotes viveria um mês, família incluída, com o que
pagou por suas luvas de pele forrada.
Ele espreita a chegada de Holst pelos vidrinhos da janela. Foi por causa de Holst que saiu, porque sente vontade de olhá-lo nos olhos. Como o motorneiro voltou para
casa à meia-noite, na véspera, e que era segunda-feira, vai sair por volta das duas e meia para estar na garagem dos bondes às três.
De que estariam falando os velhos quando entrou? Pouco lhe importa. Um deles é sapateiro e tem uma lojinha um pouco adiante na rua, mas, dada a falta de matérias-primas,
quase não trabalha mais. Deve ficar vesgo com os sapatos de Frank e avaliá-los, indignar-se porque o rapaz não se dá ao trabalho de protegê-los com galochas.
Na realidade, há lugares a que se pode ir e lugares em que é melhor não botar os pés. No bar do Timo, está em casa. Aqui não. Aqui, o que eles dirão quando sair?
Holst também deve ser um ex-gordo que emagreceu. É como uma raça à parte, que você reconhece à primeira vista. Hamling, por exemplo, é volumoso, mas você sente que
é duro. Holst, muito maior, com ombros que devem ter sido largos, agora só tem linhas moles. E não é apenas sua roupa que está gasta e frouxa. Também sua pele se
tornou larga demais, deve formar dobras. Aliás, forma no seu rosto.
Desde o início dos acontecimentos — e ele mal tinha quinze anos nessa época —, Frank sentiu desprezo pela miséria e pelos que se entregam a ela. É antes uma espécie
de revolta, de nojo. Inclusive no caso das meninas que vêm para a casa de sua mãe, magras e brancas demais, e que logo se atiram na comida! Algumas choram de emoção,
enchem o prato, depois são incapazes de comer.
A rua do bonde é branca e preta, e nela a neve está mais suja que em outras. Até onde se enxerga, os trilhos, negros e luzidios, salientam a perspectiva, formando
curvas quando as duas linhas se encontram. O céu está baixo, claro demais, com aquela luminosidade mais triste que a de um céu cinzento. Esse branco, lívido e translúcido,
tem algo de ameaçador, de definitivo, de eterno; as cores se tornam duras e más, o marrom e o amarelo sujo das casas, por exemplo, o vermelho-escuro do bonde, que
parece flutuar e querer subir na calçada. E em frente ao café do Kamp se estende a feiosa fila na porta do tripeiro, as mulheres de xale, as menininhas de pernas
finas que fazem suas solas de madeira estalar no chão para se aquecer.
— Quanto?
Paga. O preço é ridículo. É quase vergonhoso desabotoar o sobretudo por tão pouco! Nesses cafés, os preços são ridiculamente baixos. É verdade que correspondem ao
que lhe servem.
Holst está na beira da calçada, todo cinzento, com seu sobretudo comprido e informe, seu boné com tapa-orelhas e as tais botas apertadas no tornozelo com um cordão.
Em outros tempos, outros países, as pessoas parariam para observá-lo, vestido assim, na certa com jornais por baixo da roupa para se aquecer e aquela marmita de
lata debaixo do braço. Que será que leva para comer? Frank aproxima-se dele, como se também esperasse pelo bonde. Vai e vem; dez vezes passa em frente de Holst e
fita-o em plena cara, lançando baforadas de cigarro. Será que se jogasse a guimba o pai de Sissy a cataria? Talvez não diante dele, por respeito humano, se bem que
na cidade as pessoas o façam, pessoas que não são nem mendigos nem operários.
Nunca viu Holst fumar. Será que fumava, antes?
Frank, despeitado, se sente como se fosse um cachorrinho irritado que tenta em vão chamar a atenção para si. Gira em torno da longa silhueta cinzenta, e o outro,
imóvel, não parece perceber sua presença.
No entanto, naquela noite, Holst o viu no beco. Está a par da morte do suboficial. Sabe também, com toda certeza — porque o zelador chamou os inquilinos um a um
ao seu alojamento —, que prenderam o violinista do primeiro andar.
E então? Por que ele não se manifesta? Não faltava muito para Frank lhe dirigir a palavra, por desafio. Quem sabe acabaria por fazê-lo, dizendo qualquer coisa, se
o bonde vermelho-escuro não houvesse chegado, com seu estrépito costumeiro.
Frank não pegará o bonde. Não tem o que fazer na cidade àquela hora. Queria simplesmente ver Holst e ele o viu mais do que bastante. Holst, que se instalou na plataforma
dianteira, se vira e se inclina no momento de partida, não para olhar para ele, Frank, mas para a sua casa, a sua janela, onde se adivinha o claro de um rosto na
abertura das cortinas.
O pai e a filha se dizem adeus assim. O bonde partiu, a moça ficou à janela, porque Frank está na rua. E Frank, de repente, toma uma decisão. Evita erguer a cabeça,
entra no prédio, sobe os três andares sem se apressar e, com um aperto no peito, bate na porta em frente à porta de Lotte.
Não preparou nada, não sabe o que vai dizer. Apenas decidiu encostar o pé no batente para impedir que a porta fosse fechada, mas não o é. Sissy olha surpresa para
ele, e ele está quase tão surpreso quanto ela por se encontrar ali. Sorri. Não é comum ele sorrir. Ao contrário, tem o costume de franzir as sobrancelhas, de olhar
duramente para a frente, mesmo quando está sozinho, ou exibir um ar tão indiferente que as pessoas ficam geladas.
— E no entanto — diz Lotte —, quando você sorri, ninguém consegue te recusar nada. Você conservou o sorriso que tinha aos dois anos.
Não sorri de propósito. Sorri porque está incomodado. Não vê direito Sissy, que está contra a luz, mas numa mesa, perto da janela, percebe uns pratinhos, pincéis,
potes de tinta.
Entra sem dizer nada, não pode agir de outro jeito. Diz, sem mais pensar em pedir desculpas ou explicar sua visita:
— Você pinta?
— Faço decoração em louça. Tenho que ajudar meu pai.
Havia visto esse tipo de pratinhos, de xícaras, de cinzeiros, de castiçais pretensamente artísticos em certas lojas do centro. São principalmente os ocupantes que
os compram, como suvenir. Pintam-se flores neles, ou uma camponesa com seu traje tradicional, ou a flecha da catedral.
Por que ela olha para ele o tempo todo? Se não olhasse, as coisas lhe seriam mais fáceis. Ela o devora com os olhos, tão ingenuamente que incomoda. Aquilo lhe traz
à memória a menina daquela manhã, Minna, a novata, que talvez esteja ocupada a esta hora, que não parou de examiná-lo com uma espécie de respeito idiota.
— Trabalha muito?
Ela responde:
— Os dias são compridos.
E ele:
— Não sai nunca?
— Às vezes.
— Costuma ir ao cinema?
Por que ficou vermelha? Ele aproveita imediatamente.
— Gostaria de ir de vez em quando ao cinema com você.
No entanto, não é ela que mais o interessa, ele se dá conta agora. Olha ao redor, fareja, exatamente como Hamling quando vem vê-los. O apartamento é muito menor
que o de Lotte. Entra-se logo na cozinha, onde tem uma cama de armar dobrada, encostada na parede. Na certa é o pai que dorme na cama de armar, seus pés devem ficar
para fora. Uma porta aberta deixa ver o quarto de Sissy — prova disso é que ela fica confusa quando o vê olhar para lá.
Há uma claraboia, como na casa deles, mas foi tapada com um papelão, porque dá para os vizinhos.
Permaneceram de pé. Ela não ousa convidá-lo a se sentar. Para causar boa impressão, ele oferece sua cigarreira.
— Não, obrigada. Não fumo.
— Porque não gosta?
Há um cachimbo em cima da mesa, uma lata de ferro com guimbas. Será que Sissy imagina que ele não entendeu?
— Experimente um. São bem suaves.
— Eu sei.
Ela reconheceu a marca estrangeira. Aquele cigarro representa mais do que dinheiro, e todo mundo sabe quanto custa.
Ela tem um sobressalto, porque acabam de bater na porta. Frank pensou a mesma coisa. Será que Holst, por um motivo ou outro, talvez por ter visto o rapaz na parada
do bonde, voltou?
— Desculpe, srta. Holst...
É um velho, que Frank já tinha visto nos corredores, um vizinho, justamente para o qual dá a claraboia. Mal dissimula, olha para Frank como para a imundice que um
gato teria largado no chão; em contrapartida, mostra-se muito amável, muito paterno com Sissy.
— Vim lhe perguntar se não teria um fósforo.
— Claro que sim, sr. Wimmer.
Mas ele não se vai. Fica ali, as mãos acima da estufa, em que há um resto de fogo. Diz, indiferente:
— Não vai demorar muito para ter neve de novo.
— É provável.
— Tem gente que não se incomoda com o frio.
Essa era dirigida a Frank, mas Sissy se põe ao lado deste, piscando-lhe o olho.
O sr. Wimmer tem uns sessenta e cinco anos, e seu rosto é coberto de pelos brancos e abundantes.
— Na certa vai nevar antes do fim da semana — repete ele, esperando que Frank saia.
Então este se enche de audácia.
— Com licença, sr. Wimmer...
Pouco antes não sabia o nome dele, e o velhote o fita com um espanto escandalizado.
— A srta. Holst e eu estávamos de saída.
O sr. Wimmer olha para a mocinha, crente que ela vai desmentir.
— É verdade — diz ela, pegando o casaco no cabide. — Temos de fazer umas compras.
Foi um dos melhores momentos deles. Quase rebentaram de rir, os dois. Não eram mais que duas crianças pregando uma boa peça — e de fato o sr. Wimmer, apesar de estar
sem gravata e sem o botão de cobre do colarinho sobre o gogó, parece um professor primário aposentado.
Sissy baixou a chave de regulagem da estufa. Deu meia-volta para ir buscar suas luvas. O velho não se mexia. Parecia até que, em sinal de protesto, ia se deixar
trancar no apartamento. Viu-os descer a escada, não é possível que não tenha sentido tudo o que havia de juventude nos passos dos dois.
— Eu me pergunto se vai contar ao meu pai.
— Não vai contar.
— Sei que papai não gosta dele, mas...
— As pessoas nunca dizem nada.
Ele declara isso com segurança, porque é verdade, porque sabe por experiência própria. Será que Holst foi denunciá-lo? Tem vontade de falar a respeito com Sissy,
lhe mostrar o revólver que sempre carrega no bolso. Ele arrisca a vida, portando aquela arma, e ela nem desconfia. Sissy pergunta ao chegarem à rua:
— O que vamos fazer?
Houve um momento verdadeiramente extraordinário, algo de inesperado: foi quando ele respondeu ao velho e ela pegou o casaco, quando passaram diante do homenzinho
triste como um purgativo e puseram-se a descer a escada da mesma maneira como se tivessem começado a dançar.
Por pouco, naquele instante, ela teria lhe dado o braço com a maior naturalidade. Mas ei-los na rua, e tudo acabou. Será que Sissy se dá conta? Não sabem para onde
se dirigir. Ainda bem que Frank falou de cinema. Ele diz, com demasiada seriedade:
— Está passando um bom filme no Lido.
É do outro lado das pontes. Não quer pegar o bonde com ela. Não por causa do pai, mas porque não saberia como se comportar. Têm de passar pela velha doca. Nas pontes,
o vento os impede de falar, e ele não ousa pegar sua companheira pelo braço, embora ela se mantenha instintivamente colada a ele.
— Não vamos nunca ao cinema.
— Por quê?
Arrepende-se da pergunta. É caro demais, evidentemente. E evocar o dinheiro o incomoda, de repente. Por exemplo, gostaria de convidá-la para tomar um lanche numa
confeitaria. Ainda tem algumas em que, quando se é conhecido, pode-se pedir tudo o que se desejar. Ele conhece inclusive dois lugares em que se dança, e com certeza
Sissy ficaria feliz em ir dançar.
Ela nunca deve ter dançado. É jovem demais. Antes dos acontecimentos, não passava de uma garotinha. Nunca tomou licores nem aperitivos.
Ele é que está incomodado. Na cidade alta, empurra Sissy para o saguão do Lido, onde as lâmpadas elétricas já estão acesas, produzindo uma luz nebulosa.
— Camarote, dois.
E a palavra o choca. Porque vem com frequência. Seus amigos fazem a mesma coisa. Quando estão com garotas, vão de camarote, é sabido. Os camarotes são escuros, com
divisórias altas o bastante para fazer praticamente tudo o que quiser. Foi assim que várias vezes arranjou mulheres para Lotte.
— Você trabalha?
— A fábrica fechou semana passada.
— Você gostaria de ganhar dinheiro?
Sissy o segue como todas as outras, emocionada por entrar no cinema bem aquecido, ser levada a um camarote por uma lanterninha de uniforme, com um gorro vermelho
na cabeça trazendo a palavra “Lido” em letras douradas.
É isso que vai deixá-lo com o humor sombrio: ela é como as outras! Ela se comporta exatamente como as outras. No escuro, ela se vira para ele e lhe sorri, porque
está feliz de estar ali, porque lhe é grata, e ela não diz nada, mal estremece quando ele estende o braço sobre o encosto da poltrona. Daqui a pouco, esse braço
estará envolvendo os ombros dela. Tem ombros magros. Espera ele beijá-la, ele sabe disso, e a beija como que a contragosto. Ela não sabe beijar. Mantém a boca entreaberta,
e é um beijo molhado, um pouco ácido. Ao mesmo tempo, segura a mão dele na dela e aperta-a com força, depois a mantém na mão, como um bem conquistado.
São todas iguais! Ela acredita nele. Ela o silenciou quando ele cochichou no seu ouvido, porque tenta entender o filme, cujo início não viram, e a certos momentos
seus dedos se crispam com o que acontece na tela.
— Sissy...
— Sim.
— Olhe.
— O quê?
— Na minha mão.
É o revólver, que brilha fracamente no claro-escuro. Ela se arrepia, olha em volta.
— Cuidado!
Aquilo a impressionou, mas ela não está tão espantada assim.
— Está carregado?
— Acho que sim.
— Já usou?
Ele hesita. É sincero.
— Ainda não.
Imediatamente depois, ele aproveita para pôr a mão no joelho dela e levantar insensivelmente seu vestido.
Ela não resiste, como as outras. Então ele é tomado por uma cólera surda, contra ela, contra ele mesmo, contra Holst. É, contra Holst também, e teria dificuldade
de explicar por quê.
— Frank...
Foi ela que pronunciou seu nome. Ela o sabia então. Repete-o de propósito, no momento em que tenta repelir sua mão.
Agora, para ele, a emoção acabou. Está furioso, isso sim. Imagens dançam, cabeças enormes aparecem e desaparecem na tela, branco e preto, vozes, música. O que ele
quer saber, o que ele saberá, não importa o que ela faça, é se ela é virgem, porque ainda lhe resta isso a que se agarrar.
Isso o obriga a beijá-la e, cada vez que a beija, ela se entrega, amolece; ele ganha terreno na coxa nua onde uma mão repele fracamente a sua, que segue o rastro
de uma liga.
Ele saberá. Porque, se ela nem mesmo for virgem, Holst é que perderá tudo, que se tornará um ser grotesco. Frank também. Que ideia foi essa de se meter com aqueles
dois?
A pele deve ser branquinha, como a de Minna. Uma pele de galinha, como disse Lotte. Coxas de galinha. Será que Minna, a esta hora, está nua no quarto diante de um
senhor que ela não conhece?
É quente. Ele avança. Ela não tem forças para se enrijecer o tempo todo e, quando perde terreno, seus dedos apertam suavemente os de Frank, como uma prece.
Ela cola a boca em seu ouvido para balbuciar:
— Frank...
E, pela maneira de pronunciar essa palavra, que ele não precisou lhe ensinar, ela se confessa vencida.
Na melhor das hipóteses, ele teria dito oito dias, e já chegava lá; já não era mais que uma questão de centímetros, a carne era mais lisa, mais quente, toda úmida.
Ela era virgem, e ele parou de supetão. Mas não tinha dó. Não estava emocionado.
Como as outras?
Ele se dava conta de que não era ela que o interessava, mas seu pai, e era ridículo pensar em Holst, quando estava com a mão onde estava.
— Você me machucou.
Ele disse educadamente:
— Desculpe.
E de repente voltava a ficar correto, enquanto, no escuro, o rosto de Sissy devia exprimir decepção. Se ela tivesse podido enxergá-lo, teria sido pior. Quando ele
era correto, se tornava terrível, tão calmo, tão frio, tão ausente que ninguém sabia mais como lidar com ele e que até a própria Lotte o temia.
— Fique bravo, caramba! — Lotte lhe dizia, exasperada. — Grite, bata, faça alguma coisa, qualquer coisa!
Azar de Sissy. Ela não lhe interessava mais. Várias vezes, nos últimos tempos, pensando nela, ele havia evocado os casais que vão pela rua, quadris contra quadris,
os beijos quentes e intermináveis pelos cantos. Ele acreditara sinceramente que podia ser exaltante. Um detalhe, entre outros, sempre o seduzira: o vapor que sai
dos lábios de dois seres, à luz de um lampião de rua, quando se aproximam para um beijo.
Misturar os vapores!
— E se a gente fosse comer alguma coisa?
Agora, não tem como não ir com ele. Aliás, ficaria bem feliz de comer uns doces.
— Vamos ao Taste.
— Dizem que é cheio de oficiais.
— E daí?
Ela tinha de se acostumar à ideia de que ele não era um rapazola qualquer, uma espécie de primo a quem você faz chegar um correio elegante. Ele nem a deixou ver
o fim do filme. Ele a arrastava. E quando passavam pelas vitrines iluminadas, via que ela espiava disfarçadamente com uma curiosidade já considerável.
— É caro — ela arriscou mais uma vez.
— E daí?
— Não estou vestida para entrar aí.
Com isso também ele estava acostumado: aqueles casacos curtos demais, apertados demais, em que fazem uma gola de pele com o casaco da mãe ou da avó. Sissy ia encontrar
gente como ela no Taste. Ele poderia ter lhe respondido que é sempre assim que elas entram ali pela primeira vez.
— Frank...
É uma das raras portas ainda envoltas na luz do neon, de um azul bem suave. Há um tapete grosso no corredor apenas iluminado, mas, aqui, falta de luz não é sinal
de pobreza; é, ao contrário, para parecer rico, e o porteiro de libré está tão bem vestido quanto um general.
— Entre...
Sobem ao primeiro andar. Uma barra de cobre brilha entre cada degrau, e os apliques elétricos imitam velas. Entre cortinados misteriosos, uma moça estende a mão
para ajudar Sissy a desfazer-se do seu casaco.
E Sissy pergunta, resignada:
— É para tirar?
Como as outras! Frank está em casa. Sorri para a moça do vestiá­rio, estende-lhe seu sobretudo, para em frente a um espelho para passar um pente nos cabelos.
Com seu vestidinho de tricô preto, Sissy parece uma orfãzinha quando ele abre um dos cortinados, descobrindo uma sala quente e perfumada onde vibra uma música suave
e onde a tez das mulheres rivaliza em brilho com os galões dos uniformes.
A certa altura, ela teve vontade de chorar, ele percebeu perfeitamente.
E daí?
Kromer chegou tarde no bar do Timo, às dez e meia, quando fazia mais de uma hora que Frank o esperava. Kromer bebeu, dá para ver logo pela pele esticada demais,
pelos olhos brilhantes, pela brutalidade dos seus gestos. Quase derrubou a cadeira ao sentar. Seu charuto é cheiroso. É um charuto melhor ainda do que os que costuma
fumar, e olhem que ele sempre escolhe o que de melhor se pode encontrar.
— Acabo de jantar com o general que comanda esta praça — anuncia a meia-voz.
Depois se cala, para dar tempo de apreciar todo o alcance das suas palavras.
— Trouxe sua faca.
— Obrigado.
Pega a arma sem olhar e enfia no bolso. Está preocupado demais consigo mesmo para pensar em Frank, mas, lembrando-se do que eles se disseram na véspera, pergunta
por polidez:
— Usou?
Quando Frank voltou do bar do Timo à noite, depois do cometido, era para mostrar a Kromer o revólver que acabava de conquistar. Mostrou-o a Sissy. Tem muita gente
a quem o mostraria, no entanto, sem saber direito por que, responde:
— Não tive oportunidade.
— Talvez seja melhor assim. Escute, sabe onde posso encontrar relógios?
Fale do que falar, Kromer sempre parece tratar de negócios consideráveis e misteriosos. É como em suas relações, as pessoas com quem janta, com quem bebe um vinho.
Raramente pronuncia nomes. Cochicha:
— Alguém de alto nível... Ouviu? Altíssimo...
— Que tipo de relógio? — indaga Frank.
— Relógios antigos, tanto quanto possível. Precisaria de uma porção. Relógios aos montes. Não está entendendo, não é?
Frank também bebe muito, todo mundo bebe. Primeiro, pela simples razão de que passam a maior parte do tempo em lugares como o do Timo. Depois também porque as bebidas
de qualidade são raras, difíceis de encontrar, extremamente caras.
Diferente da maioria das pessoas, Frank não fica com a pele brilhante, não fala alto, não gesticula. Ao contrário, sua tez fica mais pálida, mais fosca, seus traços
ficam agudos, seus lábios tão finos que não são mais que um traço em seu rosto. Seus olhos se tornam pequeninos, com uma chama dura e fria, como se ele se pusesse
a odiar o gênero humano.
Vai ver que é isso mesmo que acontece.
Ele não gosta de Kromer. Kromer também não gosta dele. Kromer, que assume facilmente ares cordiais e de bom moço, não gosta de ninguém, mas afaga com muito gosto
as pessoas que o admiram; sempre tem uma porção de coisas nos bolsos, charutos extraordinários, isqueiros, gravatas, lenços de seda que te oferece negligentemente,
na hora em que você menos espera.
— Tome isto!
Frank confiaria mais em Timo do que nele. Aliás, percebeu que Timo tinha tanta confiança em Kromer quanto ele.
Ele trafica, evidentemente. Há tráficos de que você sabe, que ele conta em detalhes, porque precisa de você, e então ele te dá um bom quinhão dos ganhos. Frequenta
muito os ocupantes. É mais uma coisa que dá lucro.
Até onde ele vai, exatamente? Até onde seria capaz de ir, se preciso, caso seu interesse estivesse em jogo?
Decididamente, Frank não lhe falará do revólver. Prefere tratar dos relógios, porque essa palavra despertou certas lembranças nele.
— Trata-se justamente do cara de que acabo de falar, o general. Sabe o que ele fazia há apenas dez anos? Trabalhava como operário numa fábrica de lâmpadas. Tem quarenta
anos e é general. Tomamos a dois duas garrafas de champanhe. Ele logo me falou dos seus relógios. Ele coleciona. É louco por eles. Disse que tem várias centenas.
— Numa cidade como a sua, ele me disse, onde viviam tantos burgueses, altos funcionários e rentistas, deve haver uma grande quantidade de relógios antigos. Você
sabe o que quero dizer: relógios de prata ou de ouro com uma ou várias tampas. Alguns soam a hora. Existem com pequenos personagens que se movem...
Enquanto Kromer fala, Frank revê os relógios do velho Vilmos, revê o velho Vilmos, em sua saleta sempre na penumbra, com apenas uns raios de sol passando entre as
lâminas das persianas, dando corda nos relógios, um a um, pondo-os no ouvido, fazendo-os tocar, acionando minúsculos autômatos.
— Cobraríamos quanto quiséssemos — suspira Kromer. — Dada a posição dele, entende... É a mania dele. Baba com relógios. Leu em algum lugar que o rei do Egito possui
a mais linda coleção de relógios do mundo, e ele pagaria alto para seu país declarar guerra ao Egito.
— Meio a meio? — indaga Frank friamente.
— Sabe onde encontrar relógios?
— Meio a meio?
— Por acaso algum dia tentei te passar a perna?
— Não. Mas eu precisaria de um carro.
— Isso é mais difícil. Podia pedir um ao general, mas me pergunto se seria conveniente.
— Não... Um carro civil. Só por duas ou três horas.
Kromer não insiste em obter detalhes. No fundo, ele é muito mais prudente do que deseja parecer. Como Frank lhe propõe conseguir os relógios, prefere não saber de
onde vêm, nem como pretende obtê-los.
No entanto, fica intrigado. O que mais o intriga é o próprio Frank; é sua maneira de tomar uma decisão, com toda calma.
— Por que não pega um carro qualquer parado no meio-fio?
É o mais simples, claro, e à noite, para os trinta quilômetros que tem de percorrer ao todo, não corre grande risco. Mas Frank não quer confessar que não sabe dirigir.
— Me arranje um carro, com alguém seguro, que tenho quase certeza de conseguir os relógios.
— O que você fez hoje?
— Fui ao cinema.
— Com uma garota?
— Sempre a mesma coisa.
— Traçou ela?
Kromer é um depravado. Dá em cima das garotas, principalmente das pobres, porque é mais fácil, e escolhe as bem mocinhas. Adora falar delas, suas narinas se dilatam,
seus lábios engrossam, emprega as palavras mais cruas, busca os detalhes mais íntimos.
— Eu a conheço?
— Não.
— Vai me apresentar?
— Pode ser. Ela é virgem.
Kromer se agita na cadeira e molha a ponta do charuto.
— Está a fim dela?
— Não.
— Então, passe para mim.
— Vou ver.
— É jovem?
— Dezesseis anos. Mora com o pai. Pense no carro.
— Amanhã te dou a resposta. Venha ao Léonard por volta das cinco.
É outro bar que eles frequentam na cidade alta, mas, por causa da localização, é obrigado a fechar às dez da noite.
— Conte o que vocês dois fizeram no cinema... Timo! Uma garrafa de vinho, meu velho. Conte...
— Sempre a mesma coisa. A meia, a liga, depois...
— O que ela disse?
— Nada.
Vai voltar para casa. É bem provável que sua mãe tenha mandado Minna ficar em casa. Ela não gosta de deixar as meninas irem embora logo nos primeiros dias, porque
algumas não voltam.
Irá ficar com ela e, no fim das contas, será exatamente como se fosse Sissy. No escuro, não perceberá a diferença.
4
Caminha, de mãos nos bolsos, a gola do sobretudo levantada, um pouco de vapor escapando da boca, na rua mais iluminada da cidade, onde no entanto há grandes intervalos
de sombra. O encontro é daqui a meia hora.
É quinta-feira. Foi na terça que Kromer falou dos relógios. Na quarta, quando Frank o encontrou no bar do Léonard, Kromer lhe perguntou:
— Continua decidido?
Para certas pessoas de outra idade, deve causar um efeito estranho vê-los, jovens como são, conversar com tamanha gravidade. Deus sabe porém como decidem coisas
sérias! Frank se vê num espelho do café, calmo e louro, sobretudo bem cortado.
— Arranjou o carro?
— Em cinco minutos te apresento o motorista. Está esperando em frente.
Um bar mais vulgar, mais barulhento, onde no entanto ainda se encontram bebidas decentes. Um homem se levanta, tem uns vinte e três, vinte e quatro anos, bem seco,
com um jeito de estudante, apesar do casaco de couro.
— É ele — diz Kromer designando Frank.
Depois a este:
— Carl Adler. Pode confiar nele. É um ás.
Beberam alguma coisa, porque sempre se bebe alguma coisa.
— E o outro? — indagou Frank em voz baixa.
— Ah, sim. É o que vai...
Hesita. Não gosta de falar às claras, e tem certas palavras que a gente prefere não dizer, que muitos apagam do seu vocabulário.
— Vai precisar fazer trabalho “duro”?
— É pouco provável.
Kromer, que conhece todo mundo, olha ao seu redor, escolhe um rosto através da fumaça, desaparece um instante na calçada arrastando alguém. Quando volta, um cara
o acompanha, com um rosto rudemente desenhado de filho do povo. Frank não ouviu o nome dele.
— Que horas você acha que termina? Ele tem que chegar na casa da mãe antes das dez. Mais tarde que isso, o zelador se recusa a abrir a porta, e sua mãe, que está
doente, costuma precisar dele durante a noite.
Frank quase renunciou ao projeto, não por causa desse segundo rapaz, mas pelo primeiro, Adler, que não abriu a boca enquanto eles ficaram a sós esperando. Não tem
certeza, porém juraria que o encontrou com o violinista do primeiro andar. Onde, não sabe. Pode ser uma simples associação de ideias. Mas ela basta para incomodá-lo.
— Que horas o encontro?
— O mais depressa possível.
— Amanhã? A que horas?
— Oito da noite. Aqui.
— Aqui não — intervém Adler. — Meu carro vai estar na rua de trás, bem em frente à peixaria. É só entrar nele.
Quando se viram a sós, Frank por via das dúvidas perguntou a Kromer:
— Eles são de confiança?
— Já te apresentei alguém que não fosse?
— O que esse Adler faz?
Um gesto vago.
— Não se preocupe.
Curioso. Você desconfia e confia ao mesmo tempo. Isso talvez se deva a que cada um controla mais ou menos o outro e a que todo mundo, procurando direito, tem alguma
coisa a se censurar. Resumindo, se você não trai, é por medo de ser traído.
— E a menina, pensou no caso?
Frank não respondeu. Não lhe disse que naquele dia, quarta-feira — foi ao cinema com ela na terça —, tornou a ver Sissy. Não por muito tempo. Nem logo depois de
acompanhar com os olhos, pela janela, Holst sair de casa em direção à parada do bonde.
Esperou até as quatro. Acabou dando de ombros e disse a si mesmo:
— Veremos!
Bateu na porta, como se de passagem. Não tinha a intenção de entrar, por causa do velho imbecil emboscado atrás da sua claraboia. Disse apenas:
— Te espero lá embaixo. Você desce?
Não precisou esperar muito. Ela veio. Correu para vencer os últimos metros de calçada, com um olhar maquinal para as janelas do prédio, depois, maquinalmente também,
sem dúvida, pendurou a mão no braço dele.
— O sr. Wimmer não disse nada a meu pai — foi logo anunciando.
— Eu sabia.
— Hoje não posso ficar muito tempo.
Elas nunca podem ficar muito tempo, no segundo dia.
Mal começava a escurecer. Levou-a ao beco. Ela é que ofereceu seus lábios, que indagou:
— Pensou em mim, Frank?
Ele não a bolinou. Apenas enfiou a mão um instante na sua blusa porque na véspera, no Lido, não pensou em seus seios e não sabe como eles são. Essa ideia lhe veio
à noite, na cama de Minna, que quase não tem peito.
Terá sido por isso, por curiosidade, que bateu na porta de Sissy e pediu que descesse?
Hoje ele a viu na mesma hora; e hoje foi ele que anunciou:
— Só estou livre por alguns minutos.
Ela não ousou perguntar nada, apesar da vontade. Sussurrou com um muxoxo:
— Você me acha feia, Frank?
Como as outras, sempre, e ele teria bastante dificuldade para dizer se acha uma garota feia ou não.
Pouco importa! Não promete nada a Kromer, mas não diz não. Veremos. Minna diz que está apaixonada por ele, que, agora que ela o conhece, tem vergonha do que é obrigada
a fazer com os fregueses. Não teve sorte com o primeiro. Mais complicação! Frank tratou de acalmá-la. Ainda por cima, ela teme por ele. Viu o revólver, e isso a
apavora.
Hoje ele teve de prometer que a acordaria ao voltar, a qualquer hora que fosse.
— Aliás, não vou dormir — ela afirmou.
Ela já tem o cheiro das mulheres da casa. Deve ser pelos cuidados que Lotte as faz ter e pelo sabão que lhes fornece. A transformação é rápida, em todo caso. E a
manhã toda ela passeou pelo apartamento numa camisola preta rendada.
Ele prometeu a si mesmo ir ao encontro com Adler e o outro sem ver novamente Kromer, mas fraqueja na última hora. Não tanto por causa de Kromer, mas porque precisa
se agarrar a algo estável, conhecido. A multidão, na rua, sempre lhe mete um pouco de medo. Vê-se, à luz das vitrines ou dos bicos de gás, passarem fisionomias pálidas,
de traços vincados, e alguns olhos têm uma expressão ausente ou feroz. A maioria deles é secreta. Os mais terríveis são os olhos mortos, e se encontra cada vez mais
gente que tem olhos assim.
Como Holst? Não é exatamente a mesma coisa. Os olhos de Holst não contêm ódio, não são vazios; no entanto, sente-se que não há nenhum contato possível com eles,
e é humilhante.
Empurra a porta do café Léonard. Kromer está lá, acompanhado de um homem que não se parece com eles, nem com um nem com outro, Ressl, redator-chefe do vespertino,
sempre acompanhado por um guarda-costas de nariz quebrado.
— Conhece Peter Ressl?
— De nome, como todo mundo.
— Meu amigo Frank.
— Muito prazer.
Estende uma mão comprida e ossuda, muito branca. Aliás, talvez as mãos de Carl Adler, o chofer desta noite, é que tenham deixado Frank cismado, porque se parecem
com estas.
A família Ressl é uma das mais antigas da cidade, e seu pai era do Conselho de Estado. Já antes da guerra estavam arruinados, mas foi na mansão deles que o Estado-Maior
se instalou; não passa um mês sem que faça algum trabalho para esses senhores.
Contam que o conselheiro Ressl, que se vê passar pela rua como uma sombra, nunca dirigiu a palavra a eles, que qualquer outro no lugar dele já teria sido enforcado
ou fuzilado.
Peter, que é advogado e que outrora trabalhou com cinema, aceitou sem hesitação o cargo de redator-chefe do vespertino. É provavelmente a única pessoa em todo o
país que, por motivos misteriosos, obteve a autorização de cruzar as fronteiras. Assim, foi a Roma, a Paris, a Londres. O terno escuro que ele usa esta noite vem
de Londres, e ele fuma ostensivamente cigarros ingleses.
É um homem jovem, nervoso, doentio. Dizem que se droga. Outros afirmam que é pederasta.
— Eu achava — diz Kromer, todo prosa por ser visto com ele, mas um pouco inquieto com a presença de Frank àquela hora — que você tinha um encontro importante. O
que vai beber?
— Entrei só para te apertar a mão de passagem.
— Beba alguma coisa. Barman!
Alguns minutos depois, quando Frank já estava de saída, Kromer tira do bolso um objeto que passará discretamente para a mão do seu amigo.
— Nunca se sabe...
É uma garrafa achatada, que contém álcool.
— Boa sorte. Não se esqueça da garota.
Por assim dizer, não se falaram. O carro é, na realidade, uma caminhonete. Carl Adler espera no assento, pé no acelerador.
— E o outro? — Frank se inquieta.
— Atrás.
De fato, ele viu no escuro da caminhonete o disco avermelhado de um cigarro.
— Aonde vamos?
— Atravesse toda a cidade.
É possível reconhecer de passagem fragmentos de paisagens familiares. Passam até em frente ao cinema Lido e, por um instante, Frank pensa em Sissy, que está ocupada,
à luz de um abajur, pintando flores enquanto espera seu pai voltar.
O cara de trás vem do populacho, Frank tinha percebido na véspera. Tem mãos largas com a pele profundamente incrustada de preto, um rosto que, bem limpo, se pareceria
bastante com o de Kromer, porém mais aberto, mais franco. Não está nem um pouco mexido. Embora não saiba o que vão fazer, não pergunta nada.
Carl Adler também não. Só que ele tem uma maneira desagradável de olhar para a frente. Apresenta assim a Frank um perfil voluntariamente indiferente, com uma expressão
desdenhosa, em todo caso superior.
— E agora?
— À esquerda.
Como nenhum carro circula sem um salvo-conduto de seus ocupantes, os quais se mostram muito inflexíveis, Adler deve trabalhar com eles. Tem muita gente que faz jogo
duplo. Fuzilaram um que era visto todos os dias em companhia de oficiais superiores, e era tão conhecido que as crianças cuspiam na calçada quando passava. Afirma-se
agora que era um herói.
— De novo à esquerda no próximo cruzamento.
Frank fuma e passa cigarros ao colega de trás, que deve estar sentado no pneu sobressalente. Carl Adler declarou que não fumava. Azar o dele.
— Quando avistar uma torre de transmissão, pegue à direita e suba a encosta.
Já se aproximam do vilarejo, e Frank poderia chegar lá de olhos fechados. Diria com prazer “seu” vilarejo, se tivesse o que quer que fosse dele em algum lugar deste
mundo. Ali é que foi criado, que Lotte, quando o teve, dezenove anos atrás, o deixou com uma mãe de criação.
A subida é íngreme, com o que chamam de casas de baixo, quase todas pequenos sítios. Depois a estrada, ampliando-se, forma uma espécie de largo de pedras redondas
nas quais os automóveis trepidam. A igreja fica atrás do lago, que na realidade não passa de uma grande poça, com o cemitério onde o coveiro — será que ainda é o
velho Pruster? — encontra água na lâmina da sua enxada a menos de um metro de profundidade.
— Eu não enterro eles. Eu afogo! — diz quando toma umas.
Os faróis iluminam uma casa cor-de-rosa tendo em seu frontão uns anjos pintados, de tamanho real. Todo o vilarejo é pintado como um brinquedo. Há casas rosa, verdes,
azuis e amarelas. Quase todas têm um pequeno nicho com uma virgem de porcelana, e tem uma festa anual em que as velas são acesas diante de todas essas estatuetas.
Frank não está abalado. Quando Kromer falou dos relógios, decidiu que aquilo não lhe causaria nenhum efeito.
Ao contrário, é uma boa ocasião! Não deve nada àquela gente nem a ninguém. É fácil demais dar balas a um guri e falar com ele numa vozinha ridícula.
Viveu aqui até os dez anos de idade, e sua mãe vinha vê-lo quase todo domingo, especialmente no verão — ele se lembra dos seus chapéus de palha branca. Não havia
mulher mais bonita no mundo. A mãe de criação, a cada visita dela, cruzava as mãos vermelhas na barriga e se embevecia.
Lotte nem sempre vinha sozinha. Quatro ou cinco ocasiões havia um homem com ela — diferente cada vez, ar reservado, que ela fitava com temor, a quem dizia com uma
falsa alegria:
— Olhe o meu Frank!
Deve ter dado errado todas as vezes, por uma razão ou por outra. Quando ela o pôs no internato, na cidade, Frank já havia entendido e suplicava a ela que não viesse
mais ao locutório, apesar de ela estar sempre de mãos cheias.
— Mas por quê?
— Por nada.
— Seus coleguinhas disseram alguma coisa?
— Não.
Ela queria fazer dele um médico ou um advogado. Era sua ideia fixa.
Ainda bem que a guerra chegou, fechando as escolas por vários meses. Quando tornaram a abri-las, ele estava com mais de quinze anos.
— Não vou voltar para o internato — declarou.
— Por que, Frank?
— Porque sim!
Nunca pôde saber se ele fazia sua mãe se lembrar de alguém, mas ainda garotinho notou que, quando fazia certa cara, sua mãe não insistia, parecia assustada, fazia
o que ele queria.
Sua cara “fechada”, como ela diz.
Depois, a vida se complicou tanto para todo mundo que Lotte não se preocupou mais com a sua instrução. As pessoas se acostumaram a dizer:
— Mais tarde, quando tudo acabar.
E tudo demora. E ele é um homem. Não faz tanto tempo que, numa discussão durante a qual ele era o mais calmo, disparou friamente para Lotte, os olhos bem apertados:
— Sua puta!
Agora ele ordena com igual tranquilidade a Adler:
— Pare!
Um pouco antes da praça. Tem uma rua à direita, em que o carro não será notado. Aliás, não há ninguém do lado de fora. São raras as janelas em que se vê alguma luz,
porque a gente do vilarejo mantêm as venezianas bem fechadas; mal se percebe um sinal de vida. As janelas da escola também estão às escuras; as cinco janelas de
que quebrou tantos vidros com sua bola.
— Vamos? — diz ao cara de trás.
E este, vulgar e cordial:
— Me chame de Stan.
E acrescenta, batendo nos bolsos vazios:
— Seu amigo me disse para não trazer nada. É isso mesmo?
Frank está com seu revólver, o que basta. Adler os esperará no carro.
— Tem certeza? — indaga buscando seu olhar.
E Adler, condescendente, como que enojado:
— Estou aqui para isso!
A neve range mais que na cidade. Veem-se jardins atrás das casas, pinheiros, cercas vivas eriçadas de gelo. A casa de Vilmos fica à direita, na praça, um pouco recuada.
Não aparece nenhuma luz, mas os cômodos em que ele fica são de fundos.
— Deixe comigo.
— Está bem.
— Pode ser que tenhamos de assustá-los.
— Normal.
— Talvez será preciso dar um sacolejão neles.
— É mesmo?
Faz anos que não voltava ali, mas é impossível que seus pés não pisem em suas pegadas de antigamente. O relojoeiro Vilmos, seus relógios e seu célebre jardim, talvez
seja o que resta de mais vivo de sua infância.
Antes mesmo de chegar à porta, tem a impressão de reconhecer o cheiro da casa, uma casa que sempre foi de velhos, porque o relojoeiro e sua irmã nunca tiveram idade.
Frank tira do bolso um lenço escuro, que amarra no rosto, abaixo dos olhos. Stan já ia protestar.
Passa a ele outro lenço, igualzinho, pois pensou em tudo.
Ainda se lembra dos biscoitos da srta. Vilmos, biscoitos que só comeu na casa dela, sem graça, grossos, com desenhos de açúcar rosa ou azul. Ela os guardava numa
caixinha na qual se viam, em cores, as aventuras de Robinson Crusoé.
E ela tinha a mania de o chamar:
— Querubim...
Vilmos deve ter pelo menos oitenta anos, sua irmã uns setenta e cinco. Não tem uma ideia exata, porque quando se é pequeno se aprecia de outra maneira a idade das
pessoas. Para ele, os dois sempre foram velhos, e Vilmos é o primeiro ser no mundo que lhe revelou que a gente pode tirar os dentes da boca de uma vez só, porque
ele usava dentadura.
São avarentos. O irmão e a irmã são tão avarentos um quanto o outro.
— Toco a campainha? — indaga Stan, impressionado por estar de pé numa praça deserta iluminada pela lua.
O próprio Frank toca, surpreso ao ver a cordinha da sineta tão baixa, quando antes tinha de ficar na ponta dos pés. Empunha o revólver com a direita. Seu pé está
pronto para impedir que fechem a porta, como na casa de Sissy, ao se apresentar pela primeira vez. Passos vêm de longe, como na igreja. Isso também é uma lembrança.
O corredor, longo e largo, com paredes escuras, portas misteriosas como de sacristia, tem piso de lajotas cinzentas, e sempre há duas ou três soltas.
— Quem é?
É a voz da srta. Vilmos, que não tem medo de nada.
— Da parte do pároco — responde.
Ele a ouve tirar a corrente, avança o pé, o revólver encostado na barriga. Diz a Stan, que parece de repente todo desajeitado:
— Entre!
Depois à velha:
— Onde está Vilmos?
Meu Deus, como ela é pequena! E que cabelos brancos! Ela junta as mãos, balbucia com uma voz quebrada:
— Mas, meu bom senhor, o senhor sabe que ele morreu faz um ano.
— Me dê os relógios.
Reconhece o corredor, o papel de parede escuro que imita o couro de Córdoba e cujos filetes dourados ainda são visíveis. O ateliê fica à esquerda, com a bancada
sobre a qual Vilmos se debruçava, com uma lupa rodeada de preto no olho.
— Cadê os relógios?
E acrescenta, mais nervoso:
— A coleção...
Depois, com o revólver apontado:
— É melhor a senhora ser rápida.
Será que não ia dar certo? Não previu que Vilmos podia ter morrido. Com ele, teria sido fácil. O relojoeiro era tão medroso que teria dado os relógios logo.
A velhota não era feita do mesmo estofo. Ela viu o revólver, mas parece que procura uma saída, que não está decidida a se render, que lutará até o fim, até sua última
chance.
Então uma voz se eleva, a de Stan, em quem Frank nem pensava mais, e que diz rolando os erres:
— A gente bem que poderia ajudar a senhora a recuperar a memória.
Deve estar acostumado. Kromer não escolheu um principiante. Terá sido de propósito, por não confiar o bastante em Frank?
A velha está colada na parede. Uma mecha amarela e pobre cai sobre seu rosto. Está de braços abertos, as mãos espalmadas no falso couro de Córdoba.
Repete quase maquinalmente:
— Os relógios...
Não bebeu muito e, no entanto, as coisas se desenrolam como quando se está bêbado. Tudo é desfocado, confuso, apenas certos detalhes sobressaem com uma nitidez exagerada:
a mecha de um branco amarelado, as mãos espalmadas na parede, as grossas veias azuladas daquelas mãos de velhota...
Ele, que é sempre tão calmo, teve de se virar com um movimento demasiado brusco para combinar com Stan o que fazer, e o lenço se soltou. Antes que pudesse pegá-lo,
desviar o rosto, ela o reconheceu e exclamou:
— Frank!
Acrescenta logo em seguida, tolamente:
— O Frankzinho!
Ele repete, com a voz dura:
— Os relógios!
— Sei que você vai acabar achando. Você sempre conseguiu ter o que queria. Mas não me maltrate. Vou te dizer... Meu Deus! Frank! É o Frankzinho!
Ela se tranquilizou e, ao mesmo tempo, tem mais medo que antes. Perdeu a imobilidade. Parece que seu espírito volta a funcionar. Sai trotando para o fundo do corredor,
para a cozinha, onde avista a poltrona de vime com um gordo gato amarelo enrolado na almofada vermelha.
Dir-se-ia que ela fala sozinha, ou recita orações, ao mesmo tempo que agita seus membros ossudos em suas roupas largas demais.
Estará querendo ganhar tempo? De vez em quando ela observa Stan disfarçadamente, sem dúvida se perguntando se não seria mais fácil fazer este ter pena dela.
— O que você vai fazer com isso? Quando penso que meu pobre irmão ficava tão feliz em mostrá-los para você, que ele os fazia soar um a um no seu ouvido e que sempre
te dava balas... Olhe, a caixa ainda está em cima da lareira, mas está vazia. Não se encontram mais balas. Não se encontra mais nada. Melhor seria morrer.
Ela chora. A seu modo, mas chora, e é possível que também seja uma artimanha.
— Os relógios!
— Ele os mudou tanto de lugar, com todos estes acontecimentos... Morreu um ano atrás e você nem sabia! As pessoas não sabem mais nada. Se ele estivesse aqui, tenho
certeza...
De que ela tem certeza? É absurdo. Está na hora de acabar com isto. Adler deve estar impaciente e seria capaz de ir embora sem eles.
— Onde estão os relógios?
Ela ainda encontra uma forma de mexer numa lenha da lareira, e é de propósito, ele sente, que lhe dá as costas para dizer, com raiva:
— Debaixo da lajota.
— Que lajota?
— Você sabe muito bem! A que está rachada. A terceira...
Stan ficou na cozinha, vigiando a velha, enquanto Frank procurava uma ferramenta para soltar a lajota do corredor. Ela lhe ofereceu um café. Frank a ouviu vagamente
dizer a Stan:
— Ele vinha nos visitar quase todo dia, e eu sempre tinha uns biscoitinhos para ele naquela lata.
Depois acrescentou em voz mais baixa, como se não falasse com um homem cuja parte inferior do rosto estava oculta por um lenço:
— Meu Deus, Senhor, como é possível que ele tenha virado ladrão? E está armado! Será que o revólver está carregado?
Frank encontrou os relógios, com seus estojos, abrigados por vários pedaços de pano. Chama com uma voz cortante:
— Stan!
É só ir embora. Acabou. Tolamente, a velha balbucia:
— Acha que ele vai aceitar um café?
— Stan!
Ela não desgruda deles, segue-os pelo corredor.
— Não consigo acreditar, Senhor! Eu que...
É só eles saírem, voltarem para o carro que os espera a duzentos metros. Mesmo que ela fosse capaz de gritar alto o bastante para alertar os vizinhos, não teria
importância, porque nenhum carro do vilarejo tem gasolina, e o telefone não funciona de noite.
Entreabriu a porta, viu a praça banhada pelo luar, sem um sinal de vida. Disse ao companheiro:
— Vai...
E o outro sabe o que isso significa. A velha viu Frank com o rosto descoberto. Ela o conhece. Há casos em que se pode contar com a proteção dos ocupantes. Outras
vezes, eles te abandonam, é de se perguntar por que, e a polícia trata de aproveitar. Por mais que você os conheça cada dia melhor, continuam sempre um pouco misteriosos
em seu comportamento.
Em resumo, não se pode confiar em ninguém.
Stan dá alguns passos ali fora, estendendo o saco que carrega na mão com os relógios. Ouve-se a neve endurecida ranger.
A porta se fecha às suas costas. Frank deve ter ouvido um estampido abafado. Depois a porta torna a se abrir, ele vê um retângulo de luz amarelada que vai se estreitando
antes de desaparecer completamente.
Passos alcançam os seus. Uma mão, na sombra, pega o saco.
Então, pouco antes de chegar ao carro, aproveitando que estão só os dois, Stan diz:
— Uma velhota!
Sua voz não tem eco, e no carro, depois de estender seu maço de cigarros atrás, sem se virar, Frank acende o seu e ordena secamente:
— Pra cidade!
Tem um mau momento a passar, mas sente que não vai ser longo. Só no carro é que aquilo o acometeu. Até então, dominara seus nervos.
Eles fraquejam de repente. Um nada. Os outros nem perceberão. É por dentro, uma espécie de tremor, de espasmo. É obrigado a fazer um esforço para impedir seus dedos
de tremerem, e como que uma bolha de ar tenta escapar do seu peito.
Abaixa o vidro. O ar gelado na sua testa lhe faz bem. Respira avidamente.
A simples vista das luzes, ao se aproximarem da cidade, começa a acalmá-lo. Não tocou na garrafinha de bebida que Kromer enfiou em seu bolso.
Quase acabou. É puramente físico. Sentiu mais ou menos a mesma coisa do que com o suboficial, só que menos forte.
Está contente. Precisava passar por aquilo de uma vez por todas e, agora, passou. O caso do Eunuco não contava. Não tinha qualquer significado. Era, por assim dizer,
pura técnica.
É curioso, agora parece que acaba de consumar um ato cuja necessidade pressentia havia muito tempo.
— Onde o deixo?
Será que Adler desconfia do que aconteceu? Não deve ter ouvido o disparo. Não fez perguntas. Só empurrou o saco, que o atrapalhava para dirigir e que está entre
os pés de ambos.
Frank está a ponto de responder:
— Em casa.
Mas a desconfiança prevalece.
— No bar do Timo. Não pare muito perto.
Pensa mais e decide não ir de imediato para o bar. Não vale a pena pôr os relógios de uma vez nas mãos de Kromer. Na casa dos fundos, onde se alojam as meninas,
seu butim estará mais seguro.
Antes de chegar à cidade, enfia o braço no saco, apalpa os estojos, pois reconhece alguns, pega um e enfia no bolso.
Sente-se bem. Está louco para se encontrar com Kromer. Está louco para beber alguma coisa.
O carro mal para, continua sem ele. Segue a aleia, entra na casa de uma das garotas, que não está, mas que encontrará no bar do Timo. Enfia o saco debaixo da cama,
depois de guardar nele o revólver, que não teve tempo de limpar.
O instante é quase solene. Reconhece as luzes, os rostos, os cheiros de vinho e de álcool, Timo, que, do balcão, lhe faz um aceno.
Caminha lentamente, pequeno, atarracado em seu sobretudo, a fisionomia bem relaxada, uma leve chama nos olhos. Kromer não está sozinho. Nunca está sozinho. Frank
conhece os dois que o acompanham e não tem vontade de falar já com eles.
Inclina-se para Kromer.
— Pode vir um instante comigo?
Vão para os fundos, para o banheiro e sem uma palavra Frank põe o estojo na mão do companheiro. Não se enganou, apesar da escuridão do carro. É o grande estojo azul
que contém um relógio com mostrador de porcelana trazendo um pastor e uma pastora cinzelados.
— Só um?
— Tenho uns cinquenta, mas antes você tem de falar com ele, para a gente saber em que terreno está pisando.
Será que deixou algum vestígio? No carro, ao voltarem, Adler evitou se virar para ele, e os ombros dos dois não se tocaram uma só vez.
Kromer também está diferente, incomodado. Não ousa fazer perguntas e seu olhar foge, só volta a Frank ligeiramente, às escondidas.
Das outras vezes, quando tratavam de um negócio, era ele o chefe, ele fazia Frank sentir isso nitidamente.
Ora, ele não discute. Tem pressa de voltar para a sala. Diz, dócil:
— Vou tentar vê-lo amanhã.
Depois, ao sentar à sua mesa:
— Quer tomar alguma coisa?
Aliás, Frank esqueceu-se de devolver a ele a garrafa de destilado que não foi usada e devolve-a, encarando-o.
Será que Kromer entendeu?
Depois vai se deitar com Minna e faz amor com ela tão furiosamente que a moça fica assustada.
Ela também entendeu. Todos entendem!
5
Passou o dia inteiro na cozinha, pés no forno, sem fazer a barba, sem se lavar, lendo uma edição popular de Zola. Será que sua mãe desconfia de alguma coisa?
Normalmente, desde o meio-dia ela começa a cobrar que vá se lavar, porque só tem um banheiro e precisa dele à tarde para os fregueses e para as meninas.
Ora, ela não disse nada. Na certa ouviu o barulho que Minna e ele fizeram aquela noite, e Minna está com uma cara decomposta, o olhar ansioso; passa o tempo, ou
à janela, como se esperasse ver a polícia aparecer, ou olhando nos olhos dele, decepcionada por ele não se preocupar com o resfriado que ela acredita ter contraído.
Quanto a Frank, se entope de aspirina, pinga gotas no nariz e imerge de volta na leitura, com um ar embirrado.
Sissy deve tê-lo esperado. Várias vezes, principalmente depois que Holst saiu, consultou o despertador que fica acima do fogão, mas não se mexeu. Houve idas e vindas,
como sempre, na casa, vozes atrás das portas, barulhos que conhece bem. Nem uma vez ele teve a curiosidade de subir na mesa para olhar através da claraboia. Minna,
nua, mão no baixo-ventre, olhos esgazeados, veio buscar uma chaleira de água quente sem conseguir atrair a atenção dele.
Mas ele acabou se vestindo, depois que a noite caiu. Passou pela porta dos Holst. Seria capaz de jurar que o batente tremeu, que Sissy estava atrás, pronta para
abrir, mas continuou seu caminho tranquilamente, fumando um cigarro que tinha gosto de mentol.
Kromer só chegou ao bar do Léonard depois das sete. Procurava ocultar sua excitação.
— Falei com o general.
Frank não se alterava.
Kromer citou uma cifra alta.
— Metade para mim, metade para você, e me encarrego dos dois caras.
Kromer tenta se comportar como antes com ele, fazendo-se de importante e ocupadíssimo.
— Quero sessenta por cento — decide Frank.
— Tudo bem.
O outro pensa que o acabará enrolando, já que Frank não falará com o general e não saberá quanto este pagou.
— Aliás, não: cinquenta, como tínhamos combinado. Só que exijo um salvo-conduto.
Kromer não tem um. Se Frank disse isso foi sem dúvida porque é a coisa mais difícil de arranjar. Esses documentos a gente apenas entrevê. Um homem como Ressl deve
ter um, que aliás evita mostrar. Na ordem hierárquica, existem salvos-condutos para os carros, depois os que permitem circular a noite inteira e enfim os que autorizam
o portador a penetrar em certas zonas.
O salvo-conduto, com fotografia e impressões digitais, assinaturas do comandante das Forças Armadas e do chefe da Polícia Política, ordena que todas as autoridades
deixem o portador livre para “cumprir sua missão”.
Em outras palavras, ninguém tem mais o direito de revistar você. As patrulhas, ao verem esse documento, batem continência, pedem desculpas por via das dúvidas, vagamente
temerosas.
O mais surpreendente é que Frank nunca havia pensado nisso antes do encontro com Kromer. A ideia lhe veio de repente, quando discutiam a porcentagem e ele se perguntava
o que poderia reclamar de exorbitante.
E o estranho é que Kromer, após um momento de estupor, não caiu na gargalhada, não protestou.
— Posso falar com ele.
— Bom, o seu general é quem decide: ou isso ou nada. Se quer mesmo os relógios, saberá o que tem de fazer.
Vai ter o salvo-conduto, está persuadido.
— E a garota?
— Nenhuma novidade. Vai bem.
— Ainda não tocou nela?
— Não.
— Deixa ela pra mim?
— Pode ser.
— É magra demais? É limpa?
Por que será que Frank tem agora quase certeza de que a história da garota estrangulada no celeiro é pura invenção? Para ele, tanto faz. Despreza Kromer. E é divertido
pensar que um homem como Kromer vai se desdobrar para lhe arranjar um salvo-conduto que não ousaria pedir para si próprio.
— Me diga uma coisa, quem é esse Carl Adler?
— O motorista do carro? Acho que é engenheiro da telefônica.
— O que ele faz?
— Trabalha com eles, localizando estações clandestinas. É um sujeito de confiança.
— Ah, é?
E Kromer volta sempre à sua ideia fixa.
— Por que você nunca a traz?
— Quem?
— A garota.
— Já te disse que ela mora com o pai.
— E isso impede alguma coisa?
— Vou ver. Quem sabe dou um jeito.
As pessoas devem imaginar que ele é durão. Até sua mãe tem medo dele. Ele pode de repente se pôr a sonhar, como agora, olhando para uma mancha verde com verdadeira
ternura. Não é nada. É o fundo de um painel decorativo, no bar do Léonard. Representa um prado e cada talo da relva é diferente, as margaridas tinham todas as suas
pétalas.
— Em que está pensando?
— Não estou pensando.
É uma pergunta que sua mãe de criação lhe fazia e, também, sua mãe, sempre que ia vê-lo aos domingos.
— Em que está pensando, meu Frankzinho querido?
— Em nada.
Ele respondia irritado porque não gostava de ser chamado de “meu Frankzinho querido”.
— Escute! Se eu te conseguir o salvo-conduto...
— Vai conseguir.
— Bom. Suponhamos. A gente poderia fazer umas coisas interessantes, hein?
— Pode ser.
Essa noite fica sabendo que sua mãe entendeu. Voltou cedo para casa, porque está mesmo com um início de resfriado e sempre teve medo de doença. Elas estavam no primeiro
ambiente, que chamam de sala de visitas. Estava a gorda Bertha, remendando suas meias, Minna, com uma bolsa de água quente na barriga, e Lotte, que lia o jornal.
Todas as três estavam imóveis, tão imóveis, tão silenciosas, como uma pintura na casa adormecida, que causava surpresa vê-las abrir a boca.
— Já?
O jornal deve ter noticiado o que aconteceu com a srta. Vilmos. Não se faz mais estardalhaço como antes, porque há atentados desse tipo todos os dias. Mas, ainda
que só houvesse três linhas na última página, Lotte não as deixaria passar; nunca deixava passar uma informação sobre gente que ela conheceu.
Deve ter entendido uma parte da verdade, adivinhado o resto. Até o barulho que fez naquela noite com Minna certamente lhe veio à memória e, para ela, que conhece
tão bem os homens, esses detalhes têm um sentido preciso.
— Jantou?
— Sim.
— Não quer um café?
— Obrigado.
Tem medo dele. Gira em torno dele com temor e, no fundo, de forma menos flagrante, menos confessa, se é possível dizer, sempre foi assim.
— Está fungando.
— Peguei um resfriado.
— Por que não toma um grogue e deixa a gente te pôr umas ventosas?
O grogue ele aceita, mas as ventosas não. Sente horror por aquelas bolsas de vidro que sua mãe tem mania de colar nas costas das pensionistas à menor tosse e que
deixam manchas redondas e rosadas ou marrons na pele delas.
— Bertha!
— Eu vou — Minna se apressa, com uma careta de dor ao levantar.
Está quente e calmo, a fumaça de Frank se amontoa em volta do abajur, o fogo ronca; quatro estufas roncam no apartamento, enquanto uma neve fina recomeça a cair
do céu e desaparece lentamente no negro além das vidraças.
— Não quer comer nada mesmo? Tem salaminho de fígado.
No fundo, as palavras não significam nada. Servem apenas para estabelecer contato. Ele compreende que Lotte necessita ouvir sua voz, como se quisesse conferir se
tinha mudado.
Por causa da velha Vilmos!
Fuma seu cigarro, sentado bem no fundo de uma poltrona de veludo grená, as pernas estendidas para a estufa. O que há de mais curioso é que ele sente na casa da mãe
como que um sentimento de culpa. Será que se ela houvesse reconhecido seus passos a tempo teria dado sumiço no jornal? Terá sido de propósito que ele subiu a escada
pé ante pé, pulando degraus?
A verdade é que não pensava em Lotte, mas em Sissy, que ele temia ver caso entreabrisse a porta dos Holst.
A essa hora, está sozinha com seus pratinhos. Será que ela vai para cama enquanto espera o pai? Será que continua acordada, sozinha, até meia-noite?
Teve medo, confessa a si mesmo, de ver a porta se abrir, de ser obrigado a entrar, de se ver cara a cara com ela na cozinha mal iluminada, talvez com os restos de
uma refeição em cima da mesa.
De noite ela deve abrir a cama de armar. E tem a porta do quarto, que fica aberta para o calor penetrar.
É enfadonho demais. É triste demais, feio demais.
— Por que não tira os sapatos? Bertha!
É Bertha que vai tirá-los. Sissy também os tiraria, não hesitaria em se pôr de joelhos.
— Está com uma cara cansada.
— É o resfriado.
— Precisa ter uma boa noite de sono.
Ele continua a entender. É como se traduzisse automaticamente uma língua estrangeira. Lotte o aconselha a dormir sozinho, a não fazer amor hoje. Tem uma coisa que
ela não sabe, que ela ainda não sabe, que ele mesmo apenas pressente: é que ele não tem desejo nem de Minna, nem de Bertha, nem mesmo de Sissy. Um pouco mais tarde,
ela supervisiona a arrumação da sua cama.
— Vai estar no quentinho assim?
— Vou.
Ele não vai deitar naquela cama. Naquela noite iria para qualquer cama, até mesmo a de uma velha, porque precisa de alguém perto dele.
É de se acreditar que Minna, que não tinha nenhuma experiência quando chegou e que ainda tem o interior das coxas em forma de arco, como as menininhas, aprendeu
tudo em três dias. Ela estende seu braço para ele apoiar a cabeça. Ela toma o cuidado de não falar. Ela o afaga suavemente, à maneira das mães de criação.
A mãe dele sabe. Disso não há mais a menor dúvida. Prova é que o jornal desapareceu esta manhã. Há um pequeno fato que ele nota e que ela com certeza se recusaria
a admitir. Na hora de beijá-lo, como todas as manhãs, ela esboçou sem querer um leve movimento de recuo. De imediato, ela se recriminou e por isso mostrou-se excessivamente
carinhosa.
Vai conseguir o salvo-conduto, está convencido. Para outros, isso seria um sucesso extraordinário, a meta que você mal ousa sonhar atingir, porque ela o coloca na
mesma posição que, do outro lado, o chefe de rede da Resistência.
Ele poderia ter sido chefe de rede.
Tentou se engajar, no início, quando ainda se combatia com tanques e canhões, e mandaram-no de volta para a escola.
Por um bom tempo rondou um inquilino do quinto andar, um solteiro de uns quarenta anos, espessos bigodes castanhos, que tinha um ar misterioso e que, aliás, foi
o primeiro fuzilado.
Será que o violinista já foi fuzilado ou deportado? Será que está sendo torturado?
Provavelmente nunca se saberá, e a mãe dele vai ficar cada dia mais arrasada, como se viu tantas outras ficarem; continuará por certo tempo a ficar nas filas, a
bater na portinhola dos guichês, a ser mandada embora em toda parte, depois pararão de vê-la, não pensarão mais nela e, um belo dia, o zelador resolverá chamar um
chaveiro.
Vão encontrá-la no quarto, seca, morta há oito ou dez dias.
Não há piedade. De ninguém. Dele tampouco. Ele não reclama nenhuma piedade, não aceita nenhuma, e é isso que o deixa irritado com Lotte, que o cobre de olhares ao
mesmo tempo ansiosos e enternecidos.
O que lhe interessaria é falar com Holst, de uma vez por todas, demoradamente, a sós. Faz tempo que esse desejo o atazana, mesmo quando ainda não tinha consciência
dele.
Por que Holst? Não sabe. Talvez nunca venha a saber. Ele se recusa a pensar que é porque não teve pai.
Sissy é uma estúpida. Esta manhã, debaixo da porta da sala de visitas, havia um envelope em nome de Frank, que Bertha descobriu ao fazer a faxina. No envelope, uma
folha de papel, com um ponto de interrogação a lápis e uma assinatura: Sissy.
Porque ele não lhe deu sinal de vida na véspera! Ela chora. Imagina que sua vida acabou. Só por causa disso, dessa insistência, decide não vê-la, se for o caso ir
sozinho ao cinema, enquanto espera o encontro com Kromer.
No entanto ela é mais obstinada ainda do que ele pensava. Mal chega à escada — e tomou cuidado para não fazer barulho —, ela sai de casaco e chapéu, prontinha, o
que indica que esperou assim vestida atrás da porta, talvez horas a fio.
Não há jeito, tem de esperá-la na calçada, onde fiapos de neve vêm se derreter em seus lábios.
— Não quer mais me ver?
— Claro que sim.
— Faz dois dias que você foge de mim.
— Não fujo de ninguém. Estive muito ocupado.
— Frank!
Será que ela também pensou na velha Vilmos? Será inteligente o bastante para ter feito uma ligação com a notícia do jornal?
— Por que não confia em mim? — ela ralha.
— Confio sim.
— Você não me conta nada do que faz.
— Porque não é assunto de mulher.
— Tenho medo, Frank.
— De quê?
— Medo por você.
— É da sua conta?
— Você não entende?
— Sim.
A noite começa a cair. Continua a nevar fino. É como nas tempestades de verão: quando dura muito, a gente acaba aguardando com angústia uma boa queda de neve espessa
que purgará o céu e permitirá rever o sol, nem que por alguns instantes.
— Venha.
Eles se “agarram”, se dão os braços. Isso sempre agrada às garotas.
— Seu pai não te disse nada?
— Por quê?
— Ele não desconfia de nada?
— Se desconfiasse, seria terrível.
— Você acha?
O ceticismo de Frank a revolta.
— Frank!
— É um homem como outro qualquer, não? Ele também faz amor, não?
— Cale a boca.
— Sua mãe morreu?
Ela hesita, se perturba.
— Não.
— São divorciados?
— Ela foi embora.
— Com quem?
— Com um dentista. Não vamos falar disso, Frank.
Deixaram o curtume para trás. Chegaram à velha doca que fora, outrora, um porto, antes de construírem a barragem. Quase não tem mais água, e os barcos velhos que
foram abandonados ali, sabe Deus por que, terminam de apodrecer, alguns com o ventre exposto.
Por onde eles caminham é, no verão, um talude coberto de relva, onde vêm brincar as crianças do bairro.
— Era bonito o dentista?
— Não sei. Eu era pequena demais.
— Seu pai tentou revê-la?
— Não sei, Frank. Não fale sobre o papai.
— Por quê?
— Porque sim!
— O que ele fazia antes?
— Escrevia livros e artigos para revistas.
— Livros de quê?
— Era crítico de arte.
— Ia aos museus?
— Ele conhece todos os museus do mundo.
— E você?
— Alguns.
— Paris?
— Sim.
— Roma?
— Sim. E Londres, Berlim, Amsterdam, Berna...
— Vocês ficavam em bons hotéis?
— Sim. Por que me pergunta tudo isso?
— O que vocês fazem quando estão juntos?
— Onde?
— Na sua casa, quando seu pai acaba de conduzir o bonde.
— Ele lê.
— E você?
— Ele lê em voz alta. Explica.
— Lê o quê?
— Livros de todos os tipos. Versos, muitas vezes.
— Isso te distrai?
Ela gostaria que falassem de outra coisa! Sente que ele fica tenso, que a detesta. Não adianta ela pesar mais no braço dele e cruzar seus dedos nus com os dele,
Frank finge não entender.
— Venha! — ele decide enfim.
— Aonde quer me levar?
— Aqui pertinho. No bar do Timo. Você vai ver.
Ainda não está na hora. Não tem música. As pessoas que lá se encontram são habitués que traficam com Timo ou entre si. Não há mulheres. E as cores das paredes, das
cúpulas das luminárias, parecem mais cruas. Tem-se um pouco a impressão de entrar num teatro em pleno dia, durante uma recepção.
— Frank...
— Sente-se.
— Preferia que você me levasse ao cinema.
Por causa do escuro, hein! Só que ele não está nem um pouco a fim do escuro. Nem do gosto ácido da saliva dela. Nem de passear a mão ao longo da sua liga.
— Não fica com tédio por não ver ninguém?
Ela leva um instante até compreender que ainda se trata do pai.
— Não. Por que ficaria?
— Não sei. Vocês eram ricos?
— Acho que sim. Por muito tempo tive uma professora.
— Dá dinheiro conduzir bondes?
Ela procura a mão dele sob a mesa, suplica:
— Frank!
Ele chama, sem se preocupar com ela:
— Timo! Venha cá. Queríamos comer alguma coisa boa. Primeiro, aperitivos. Depois, costeletas com batatas fritas. Comece nos mandando uma garrafa de vinho da Hungria,
você sabe qual.
Inclina-se para ela. Vai de novo falar do pai. O telefone toca. Timo, enxugando as mãos no avental branco, atende, olhando para Frank.
— Sim... sim... Arranjo para o senhor... Não, não muito caro, mas não vai ser de graça... Quem?... Não o vi hoje... Por exemplo, seu amigo Frank está aqui...
Tapa o fone com a mão, diz a Frank:
— É Kromer. Quer falar com ele?
Frank se levanta, pega o aparelho.
— É você?... Conseguiu?... Bom... Sim... Te entrego hoje à noite... Onde você está agora?... Em casa?... Está vestido?... Sozinho?... Seria bom você dar um pulo
agora no bar do nosso amigo Timo... Não posso explicar... Como?... É mais ou menos isso... Não, hoje não! Você vai ter que se contentar em olhar... de longe... Não,
não! Se fizer besteira, vai tudo por água abaixo...
Quando volta para a mesa, Sissy pergunta:
— Quem é?
— Um amigo.
— Vai vir?
— Não, não.
— Achei que você estava pedindo para ele vir.
— Não agora... esta noite...
— Escute, Frank...
— De novo?
— Quero ir embora.
— Por quê?
Trazem grossas costeletas com fritas numa travessa de prata. Deve fazer meses, provavelmente anos, que ela não come batata frita. Com maior razão ainda, costeletas
à milanesa cujo osso vem ornado com papel-alumínio.
— Não estou com fome.
— Azar o seu.
Ela não ousa dizer que está com medo, mas ele sente que está.
— O que é aqui?
— Um restaurante. Bar. Boate. Tudo o que quiser. Onde todo mundo se sente em casa. É o bar do Timo.
— Você costuma vir aqui?
— Todos os dias.
Ela se esforça para mastigar a carne, desanima, põe o garfo no prato e suspira, como de cansaço:
— Eu te amo, Frank.
— É uma catástrofe?
— Por que essa pergunta?
— Porque você diz isso com um ar trágico, como se fosse uma catástrofe.
Ela repete, olhando ao longe:
— Eu te amo.
E ele tem vontade de responder:
— Eu não.
Depois não pensa mais no assunto, porque Kromer entra, com sua peliça, seu charutão, seu ar de ser, aqui como em qualquer outro lugar, o personagem principal. Sem
que parecesse reconhecer Frank, se dirige ao bar, se iça suspirando a um dos bancos altos.
— Quem é? — pergunta Sissy.
— É da sua conta?
Por que ela tem instintivamente medo de Kromer? Este olha para eles, olha para ela, principalmente para ela, através da fumaça do charuto e, quando ela abaixa a
cabeça em direção ao prato, aproveita e pisca o olho para Frank.
Maquinalmente, ela se pôs a comer, talvez para não fazer má figura, para não encontrar o olhar de Kromer, e come tão seriamente que não deixa nada, só os ossos.
Come até a gordura. Limpa o prato com o pão.
— Que idade tem seu pai?
— Quarenta e cinco. Por quê?
— Eu daria sessenta.
Ele adivinha a lágrima que sobe ao olho dela, que ela se esforça para conter. Adivinha sua cólera que luta contra outro sentimento, sua vontade de largá-lo ali,
de sair sozinha, de cabeça erguida. Será que conseguiria encontrar a saída?
Kromer, excitadíssimo, dirige a Frank olhares cada vez mais eloquentes.
Então Frank faz que “sim” com a cabeça.
Negócio fechado.
Azar!
— Tem bolinho de café.
— Estou satisfeita.
— Traga dois bolinhos, Timo.
Naquele momento, Holst conduz seu bonde, fazendo avançar à sua frente, como se ela estivesse posta na sua barriga, uma grande lanterna que faz poças amarelas na
neve cortada pelos dois traços negros e brilhantes dos trilhos. Sua pequena marmita de lata deve estar junto das manivelas. Talvez dê uma mordida no pão com manteiga
de vez em quando e mastigue lentamente, os pés nas botas de feltro presas em torno das pernas por uns barbantes.
— Coma.
— Você acha mesmo que me ama?
— Você ousa me fazer essa pergunta?
— Se eu te pedisse para ir embora comigo, você iria?
Ela olha direto nos olhos dele. Estão na casa dela, para onde ele a levou. Ela não tirou o casaco, o chapéu. O velho deve começar a apurar os ouvidos junto da claraboia.
Na certa vai aparecer. Não têm muito tempo pela frente.
— Você gostaria de ir embora, Frank?
Ele faz que “não” com a cabeça.
— E se eu te pedisse para ir para a cama comigo?
Empregou de propósito uma expressão chocante.
Ela continua a olhar firme para a cara dele. Dir-se-ia que deseja ardentemente que ele visse bem no fundo dos seus olhos claros.
— Você quer? — ela articula.
— Hoje não.
— Quando você quiser.
— Por que você me ama?
— Não sei.
Houve uma hesitação na sua voz, e seu olhar está menos firme. O que ela quase respondeu? Teve outras palavras na ponta da língua.
Ele queria saber, e no entanto não ousa insistir. Tem um pouco de medo do que ela poderia dizer. Talvez se engane. Apostaria — é besteira, porque nada lhe permite
pensar assim —, apostaria que ela esteve a ponto de confessar:
— Porque você é infeliz.
E não é verdade. Ele não permite que ela, que ninguém pense uma coisa dessas. Aliás, por que ela se preocupa com ele?
O vizinho se movimentou. Ouve-se sua respiração atrás da porta. Hesita em bater. Bate.
— Desculpe, srta. Sissy. Sou eu de novo...
Ela não pôde evitar o sorriso. Frank saiu resmungando um vago boa-noite. Não vai para casa. Desce a escada de quatro em quatro e se dirige para o bar do Timo.
— Esta noite? — indaga Kromer, que está com água na boca.
Frank olha duramente para ele, solta seco:
— Não.
— O que foi que houve?
— Nada.
— Mudou de ideia?
— Não.
Pede uma bebida, mas não tem vontade de beber.
— Quando?
— Antes de domingo à noite, em todo caso, porque segunda o pai dela trabalha de manhã e estará em casa no fim da tarde.
— Falou com ela?
— Ela não precisa saber.
— Não entendo.
Kromer se assusta um pouco.
— Você quer...?
— Não, não... Tenho uma ideia. Explico na hora certa.
Seus olhos estão diminutos. Tem dor de cabeça. Sua pele está úmida, e de vez em quando se arrepia nervosamente, como quando fica gripado.
— Conseguiu o salvo-conduto?
— Você vai ter que ir buscá-lo amanhã de manhã comigo na repartição.
Chega! Ocupam-se dos relógios.
Que necessidade ele tem de, pouco antes da meia-noite, zanzar pela rua para ver Holst entrar em casa?
Mas não vai dormir na casa de Lotte, a quem não avisa, e se contenta com o sofá de Kromer.
SEGUNDA PARTE
O pai de Sissy
1
Minna está doente. Deitaram-na no catre normalmente reservado a Frank e transportam-na de um quarto a outro, conforme as horas, porque é uma casa em que não há lugar
para gente doente. Também não podem deixá-la voltar para a casa dos pais no estado em que está, nem chamar um médico.
— Foi Otto outra vez! — diz Lotte ao filho.
O sobrenome verdadeiro dele é Schonberg. Seu nome de batismo não é Otto. Quase todos os fregueses têm um apelido especial, principalmente os que são muito conhecidos,
como Schonberg. Ele é avô. Milhares de famílias dependem dele e o cumprimentam temerosamente na rua.
— Toda vez ele promete que vai tomar cuidado e, na vez seguinte, faz tudo de novo.
Tem Minna, com sua bolsa de água quente de borracha vermelha, Minna, que mandam de cômodo em cômodo e que passa boa parte do tempo na cozinha, cara envergonhada,
como se fosse sua culpa.
Depois tem a história do salvo-conduto, que ocasionou idas e vindas, porque, no último momento, foi necessária uma grande quantidade de papéis, cinco fotografias
em vez das três que Frank havia levado.
— Por que você se chama Friedmaier, que é o nome da sua mãe? Devia ter o nome do seu pai.
O funcionário ruivo, de pele grossa como uma casca de laranja, achou aquilo suspeito. Ele também tem medo das consequências. Kromer precisou telefonar ante os olhos
confusos do funcionário, da própria sala deste, para o general.
Frank acabou obtendo seu documento, mas levou horas. Continua parecendo gripado, no entanto não está com febre. Lotte o espia o tempo todo disfarçadamente. Ela se
pergunta que bicho o mordeu, para estar tão agitado.
— É melhor você descansar, ficar um dia ou dois de cama.
Foi outra vez ele que, para o sábado, o dia mais importante na casa de Lotte, teve de arranjar uma substituta para Minna. Sabe onde ir. Conhece várias.
Tudo isso requer tempo. Está sempre atarefado e, no entanto, parecia que aqueles dois dias não queriam terminar.
Sempre a neve suja, os montes de neve que parecem podres, com traços negros, incrustações de detritos. A poeira branca que às vezes se descola da casca do céu, em
pequenos pacotes, como o gesso de um teto, não consegue cobrir aquela imundice.
Foi de novo ao cinema com Sissy. Nesse momento, tudo já estava bem decidido, acertado, entre Kromer e ele, mas, claro, Sissy não sabia de nada.
Foi nesse dia também que perguntou à mãe:
— Vai sair domingo?
— Provavelmente. Por quê?
Ela sai todos os domingos. Vai ao cinema, ela também, depois vai comer uns docinhos e ouvir música.
— Acha que Bertha vai para a casa dos pais?
A casa deles fica fechada aos domingos. Bertha na certa vai ver os pais, que moram no campo e acreditam que ela trabalha numa casa de família.
Só Minna vai estar no apartamento. Não tem jeito.
No cinema — era sexta-feira —, logo depois que sentaram, Sissy perguntou com um ar de menininha suplicando:
— Posso fazer o que tenho vontade?
Ela mudou um pouco a cadeira de lugar, afastou os braços de Frank, tirou o chapéu, depois aconchegou a cabeça no ombro dele.
Parecia que ia ronronar, a tal ponto que seu primeiro suspiro exprimiu uma satisfação ingênua.
— Você está se sentindo mal? Isso não te incomoda?
Ele não disse nada. Talvez ela tenha fechado os olhos o tempo todo e foi ele, dessa vez, que viu o filme.
Não tocou nela naquela tarde. Beijá-la o incomodava. Foi ela que colou os lábios nos dele, bruscamente, uma só vez, no instante que se aproximavam de casa e, no
instante de se despedir, disse-lhe bem depressa, depois de tomar coragem:
— Obrigada, Frank.
É tarde demais. Tudo de certo modo começou. Sábado, a polícia militar resolveu ir revistar o apartamento do violinista e da sua mãe. Frank tinha saído quando eles
chegaram. Ao voltar, sente, ainda de fora, algo de anormal no aspecto do prédio, não sabia precisar o quê. Na entrada, um civil se mantém ao lado do zelador, que
procura parecer natural.
Quando Frank chega ao patamar do primeiro andar — tinha saí­do a fim de ligar para Kromer —, encontra vários homens fardados, três ou quatro, que impedem as donas
de casa de subir para seus apartamentos, ao mesmo tempo que impedem os inquilinos de sair.
Todo mundo está calado. É lúgubre. Entreveem-se outras fardas no corredor — será que o trouxeram para assistir à revista? —, a porta do violinista está aberta, ouvem-se
barulhos como se quebrassem os móveis, às vezes a voz suplicante de uma senhora idosa à beira das lágrimas.
Frank, calmamente, sacou seu salvo-conduto que ainda não havia utilizado; e todo mundo o viu, todo mundo sabe o que ele significa; os soldados se afastaram para
deixá-lo passar; o silêncio, atrás dele, se tornou ainda mais pesado.
Fez de propósito. Ah, na véspera trouxe para Minna um robe. Não o comprou numa loja, porque faz tempo que as lojas não têm mais robes de cetim acolchoado. Aliás,
ele não teria se dado ao trabalho de empurrar uma porta para comprá-lo.
Já tinha nos bolsos todo o dinheiro que ainda está neles e que não sabe onde pôr — sua parte dos relógios, notas altas o bastante para alimentar uma família comum,
e mesmo duas ou três famílias, anos a fio. Num canto do bar do Timo, alguém desembalava a mercadoria, como acontece com frequência, e Frank acabou comprando o robe.
Tinha um pouco a impressão de ter comprado para Sissy. Não exatamente, pois tudo já estava decidido, até os detalhes práticos. Ele o daria a Minna, claro, mas sem
que isso o impedisse de pensar em Sissy. Lotte vai ficar uma fera. Vai dizer que parece que estão pedindo desculpas a Minna pelo acidente que teve com aquele brutamontes
do Otto.
É a primeira vez que compra uma coisa para uma mulher, uma coisa pessoal, e pode parecer maluco, mas Sissy está em segundo plano.
Houve isso tudo. Houve a substituta do sábado — esta já havia vindo outra vez e tem um temperamento ruim. O que mais aconteceu?
Nada... Sempre aquela gripe que não passa, não se declara, aquela dor de cabeça persistente, aquele mal-estar por todo o corpo, vago demais para merecer o nome de
doença. O céu branco como um lençol, mais branco e mais puro que a neve, que parece ter endurecido, do qual só cai um pouco de poeira gelada.
Tentou ler, domingo de manhã, depois colou o rosto nos vidros cobertos de uma camada de gelo e ficou olhando para a rua vazia tanto tempo, tão imóvel, que Lotte,
cada vez mais preocupada com ele, resmungou:
— É melhor tomar banho enquanto tem água quente. Bertha espera a vez dela. Se ela entrar antes de você, só vai te sobrar água morna.
Lotte, que pretendia instalar Minna o dia todo na cama do quartinho, já que os quartos não são utilizados aos domingos, ficou surpresa ao ouvir seu filho decidir
secamente:
— Não. Ela vai dormir no quarto grande.
Lotte pressente alguma coisa. Sabe que ele vai receber alguém. Deve adivinhar que se trata de Sissy. Era justamente por isso que reservara o quarto grande, pensando
agradá-lo. Não entende mais nada.
— Você é que sabe. Vai ficar em casa?
— Não sei. Em todo caso, prefiro que você não volte muito cedo.
Minna fica bobamente grata a ele pelo robe, que ela faz questão de usar na cama aquele dia. Acredita numa atenção da parte dele. Só por causa disso, antes de tomar
banho, ele agarra Bertha, que, como todas as manhãs, só tem o penhoar em seu corpo gordo de bebê, derruba-a no chão ao pé da cama e faz amor com ela.
Não dura nem três minutos. Parece que está furioso, que se vinga. Não roça o rosto da garota com o seu. Suas cabeças não se tocam. Quando acaba, ele a deixa sem
dizer uma palavra.
Esse tempo todo, um cheiro bom de cozinha paira em todos os cômodos. Todo mundo acabou se lavando, se vestindo. Comem. Lotte está vestida quase igual a quando ia
vê-lo no campo, e quase não envelheceu. Frank desconfia vagamente que, se ela montou seu negócio de manicure, se renunciou a receber ela mesma os clientes, foi por
causa dele.
É um erro dela se preocupar com isso.
Bertha, que precisa tomar dois bondes, é a primeira a sair. Depois Lotte se empoa, se olha no espelho, faz um pouco de hora, sem razão, sempre inquieta.
— Acho que vou jantar na cidade.
— Eu prefiro.
Ela o beija uma vez em cada face, e uma segunda vez na primeira, do que ele tem horror, porque lhe faz lembrar a mãe de criação. É a mania de alguma delas. Conta
maquinalmente a meia-voz:
— ... dois... três!
Ela saiu e também espera o bonde na esquina. Ele sabe que Minna, incomodada por passar o dia todo na cama grande — de noite, é a cama de Lotte — não consegue se
interessar pelo romance de Zola que ele lhe emprestou.
Ela espera, sem ousar muito acreditar, que ele vá vê-la, conversar com ela. Ela também o avistou pela janela em companhia de Sissy. Também o ouviu bater na porta
de Holst.
Ela não se permitiria ter ciúme, em todo caso não se permitiria demonstrá-lo. Ela não ignora o fato de que não era virgem, que veio por conta própria para a casa
de Lotte, que não tem nada a esperar.
No entanto, passada uma hora, ensaia um pequeno estratagema. Começa a respirar forte, depois geme, deixa o livro cair no carpete.
— O que foi? — ele vem perguntar.
— Está doendo.
Ele pega a bolsa e vai enchê-la de água quente na cozinha, coloca-a novamente na barriga de Minna e, para deixar claro que não tem a menor vontade de conversar,
põe o livro em cima do cobertor.
Ela não ousa chamá-lo de volta. Não o ouve se mexer. Pergunta-se o que ele estará fazendo. Não está lendo, porque, como todas as portas estão abertas, ela o ouviria
virar as páginas. Não bebe. Não dorme. De vez em quando, acontece de ele apenas ir até a janela e lá ficar um bom tempo.
Ela teme por ele e não tem a menor dúvida de que isso é a melhor maneira de colocá-lo contra ela. Ele é grande o bastante para saber o que faz. O que ele faz é o
que quer. E faz friamente. Às vezes, naquela tarde, ele vai se olhar furtivamente no espelho para se assegurar de que sua fisionomia esteja perfeitamente calma.
Não foi ele que, no beco, atraiu a atenção de Holst, quando não era necessário e quando, sem isso, seu ato não teria tido nenhuma testemunha?
E com a velha Vilmos, por acaso lançou mão de artimanhas, por acaso trapaceou?
Ele não aceita nenhuma piedade de ninguém. Nada que possa se parecer com compaixão. Não admite que possa ter a covardia de, alguma vez, sentir dó de si mesmo.
Isso elas nunca entenderão, nem Lotte, nem Minna, nem Sissy. Daqui a pouco, no caso de Sissy, isso estará fora de questão.
Em que ela terá pensado, com a cabeça em seu ombro, o tempo todo do filme?
Às vezes ela levantava um pouco a cabeça e perguntava:
— Não estou te cansando?
Seu braço estava adormecido, mas nada o teria feito lhe confessar isso.
Kromer também não vai entender. Já não entende. No fundo, está ansioso, embora não queira admitir. Ansioso com tudo e com nada. É Frank que o perturba. Quando pôs
o salvo-conduto no bolso, mal saíram da polícia militar, Kromer perguntou:
— O que você vai fazer com ele?
Frank se concedeu o maldoso prazer de responder:
— Nada.
Kromer não acredita. Procurou adivinhar suas intenções, seus planos. Não está muito mais confiante no que concerne a Sissy.
— Você não a tocou mesmo?
— O bastante para me assegurar de que é virgem.
— Não está a fim?
E Kromer finge rir, solta uma piscadela:
— Você é jovem demais!
Está tão incomodado que Frank passa boa parte da tarde se perguntando se ele virá. Kromer está excitadíssimo. Deve ter pensado em Sissy a noite inteira virando na
cama. Mas é do tipo de ficar com medo na última hora e ir se embriagar no bar do Léonard ou em algum outro, em vez de comparecer ao encontro.
— Por que não disse a verdade a ela?
— Porque ela não teria topado.
— Acha que está apaixonada por você? É isso que quer dizer?
— Pode ser.
— E quando ela perceber?
— Suponho que será tarde demais.
No fundo todos têm um pouco de medo dele, porque está indo até as últimas consequências.
— E se o pai dela aparecer?
— Ele não pode largar o bonde no meio da rua.
E os bondes funcionam domingo.
— E se algum vizinho?...
Frank prefere não lhe falar do sr. Wimmer, que sabe muita coisa e que, de fato, poderia muito bem cismar de intervir.
— Domingo os vizinhos saem — respondeu com segurança. — Se for preciso, meu salvo-conduto os calará.
É verdade, de um modo geral. Mas já houve imbecis que se deixavam ir para o xilindró por muito menos, pelo prazer de xingar diante dos amigos uns soldados que passavam.
Quase sempre, gente do tipo do sr. Wimmer.
Wimmer ainda não disse nada a Holst. Será que para evitar preo­cupá-lo, por se achar esperto o suficiente para ele próprio vigiar Sissy? Ou por que está persuadido
de que ela é ajuizada o bastante para não fazer besteiras? Os velhos são assim. Inclusive os que fazem filhos antes do casamento. Depois esquecem.
Minna suspira de novo. A noite caiu. Ele vai amavelmente acen­der o abajur para ela, fechar as cortinas, encher pela última vez a bolsa de água quente.
Não teria preferido que ela não estivesse em casa, que não houvesse testemunhas? E daí? Não é desejável, ao contrário, que alguém saiba, alguém que não dirá nada?
— Ela vai vir?
Não responde. Se escolheu o quarto dos fundos, é primeiro porque tem uma porta que dá direto para o corredor. É também porque da cozinha pode-se ter acesso a ela.
— Ela vai vir, Frank?
Que falta de apuro! Diante da sua mãe, ela o chama de sr. Frank. Irrita-o ela se mostrar mais familiar quando estão a sós, e ele responde nervosamente:
— Não é da sua conta.
Ela faz cara de pedir desculpa, depois, quase em seguida, não pode se impedir de indagar:
— É a primeira vez?
Não, isso não! Nada de enternecimentos, por favor! Ele tem horror dessa piedade das meninas que ainda não passaram pelo que elas já passaram. Será que vai lhe recomendar
que não maltrate Sissy?
Felizmente Kromer tocou a campainha. Veio apesar dos pesares. Até está dez minutos adiantado, o que é chato, porque Frank não tem a menor vontade de conversar. Kromer
acaba de sair do banho; sua pele, rosada demais, esticada demais, recende a puta.
— Está sozinho?
— Não.
— Sua mãe?
— Não.
E bem alto, de propósito:
— Aqui ao lado tem uma moça que teve o ventre machucado por um depravado.
Por pouco Kromer batia em retirada, mas Frank tomou o cuidado de fechar a porta quando ele entrou.
— Entre. Não tenha medo. Tire a peliça.
Percebe com desprezo que Kromer não fuma seu charuto costumeiro, mas está chupando uma bala de alcaçuz para tirar o cheiro.
— Bebe alguma coisa?
Tem medo de beber, por recear que a bebida possa tirar-lhe o vigor.
— Venha até a cozinha. É lá que você vai esperá-la. Em nossa casa, a cozinha é um sacrário.
Frank graceja como alguém que bebeu, e no entanto o copo que ele choca com o de Kromer é o primeiro do dia. Felizmente, seu companheiro não sabe disso. Ficaria apavorado.
— Bom. Vai ser como te falei.
— E se ela acender a luz?
— Você já viu uma garota acender a luz nessas ocasiões?
— E se ela falar comigo e eu não responder?
Frank afirma:
— Ela não vai falar.
Os dez minutos são intermináveis. Acompanha a passagem deles no despertador, acima da estufa.
— Preste bem atenção no caminho que vai ter de percorrer no escuro. Venha comigo. A cama fica aqui, logo imediatamente à direita, assim que você atravessar a porta.
— Certo.
Frank precisa tomar mais um copo, senão ele é que vai falhar. Ora, não pode falhar de jeito nenhum. Frank montou tudo como um movimento de relojoaria, com a minúcia
de uma criança.
São coisas que não se explicam, que é inútil tentar fazer alguém entender: aquilo tem inapelavelmente de acontecer; só depois ele ficará sossegado.
— Viu direitinho?
— Sim.
— À direita, logo depois da porta.
— Sim.
— Vou apagar a luz.
— E você? Vai ficar onde?
— Aqui.
— Jura que não irá embora?
E dizer que, dez dias antes, ele considerava Kromer um homem mais velho, mais firme que ele, um homem no pleno sentido da palavra, enquanto se considerava uma criança!
— Quanta história você está fazendo! — fala desdenhoso, para forçar o outro a se decidir mais firmemente.
— Que nada, meu velho. É por você. Não conheço a casa. Quero evitar...
— Silêncio!
Ela veio. Como um camundongo. E Frank, nesse momento, estava com as antenas tão ligadas que ouviu Minna se levantar, descalça, sem fazer barulho, para ir, em seu
belo robe, escutar à porta. Portanto Minna ouviu, da sua cama, a porta dos Holst abrir e fechar. O que a impeliu a ir ver foi, sem dúvida, que não ouviu em seguida
os passos na escada, como de costume.
Quem sabe? Tudo é possível. Será que Minna viu outra porta que não estava totalmente fechada, que estremecia, a do velho Wimmer? Frank tem certeza de que o velho
Wimmer está à espreita.
Mas Minna não sabe. Pensando bem, Frank está persuadido de que ela não sabe, porque teria temido por ele e vindo avisá-lo.
Sissy percorreu o corredor mal aflorando o assoalho áspero. Bateu, melhor dizendo, arranhou a porta do quartinho.
Ele havia apagado as luzes. Se houvessem falado alto, Kromer poderia tê-los ouvido da cozinha.
Ela disse:
— Eu vim.
Ele a sentiu tensa em seus braços.
— Você me pediu para vir, Frank.
— Sim.
Ele fechou a porta atrás dela, mas havia a da cozinha, que ela não podia ver no escuro e que permanecia entreaberta.
— Ainda quer?
Eles não enxergavam nada, salvo um vago reflexo do bico de gás do canto, entre as cortinas da janela.
— Quero.
Não precisou despi-la. Apenas começou, e ela continua sozinha, sem uma palavra, junto da cama.
Talvez ela o despreze sem ser capaz de deixar de amá-lo. Ele não sabe. Não quer saber. Kromer os ouve. Ele diz, e acha idiotas as palavras que mal articula:
— Amanhã, seria tarde demais. Seu pai trabalha no turno da manhã.
Ela deve estar quase nua, está nua. Ele sente o mole das roupas e da lingerie a seus pés. Ela espera. O mais difícil está por fazer: deitá-la na cama.
Ela tateia no escuro à procura da mão dele. Murmura, é a primeira vez que pronuncia o nome dele naquele tom; ainda bem que Kromer está do outro lado da porta:
— Frank!
Então ele, bem depressa, bem baixinho:
— Volto já...
Roçou Kromer quando se cruzaram. Quase teve de empurrá-lo quarto adentro. Fechou imediatamente a porta, com uma pressa que teria dificuldade de explicar. Fica ali,
de pé, imóvel.
Não há mais cidade, não há mais Lotte, não há mais Minna, mais ninguém, mais bondes na esquina, mais cinema, mais universo. Não há mais nada, salvo um vazio que
sobe, uma angústia que faz o suor jorrar em suas têmporas e que o obriga a levar a mão ao lado esquerdo do peito.
Alguém o toca, ele está a ponto de gritar; se refreia com todas as suas forças. Sabe que é Minna, que deixou entreaberta a porta do quarto grande, de onde vem um
pouco de luz.
Será que ela pode vê-lo? Será que ela o viu, no momento em que entrou, antes de despertá-lo do torpor tocando-o, como se toca num sonâmbulo?
Ele se cala. Tem raiva dela, terá uma raiva mortal dela por não ter dito qualquer frase idiota, como elas sabem tão bem dizer.
Mas não! Ela fica a seu lado, tão tensa, tão branca quanto ele, no halo que não permite distinguir os traços, e só muito depois é que ele se dá conta de que ela
pousou a mão em seu pulso.
Era como se ela lhe tomasse a pulsação. Será que ele parece doen­te? Ele não lhe permite que o trate como um doente, que continue a olhar para ele, não lhe permite
que veja o que ninguém tem o direito de ver.
— Frank!
Gritaram seu nome. Sissy gritou. Foi Sissy que gritou seu nome, o dele; é Sissy que corre, descalça, que sacode a porta do corredor, Sissy que pede socorro ou tenta
fugir.
Talvez porque a outra, de que Frank não gosta, que despreza, que não passa de uma mundana, menos que nada, talvez porque Minna continue a segurar seu pulso bestamente,
ele não se mexe.
Agora se faz um barulhão no quarto, como quando a polícia militar revistava o apartamento do violinista. São dois, indo e vindo, descalços, se perseguindo, se debatendo,
e ouve-se a voz de Kromer que procura não entrar em pânico:
— Ponha pelo menos uma roupa! — ele suplica. — Pelo amor de Deus! Juro que não vou mais tocá-la.
— A chave!
Vai se lembrar disso mais tarde. Agora não pensa, não se mexe. Vai até o fim. Jurou ir até o fim.
Kromer, apesar dos pesares, teve a presença de espírito de pegar a chave. É verdade que, no quartinho, tem luz. Vê-se uma fina faixa de um rosa luminoso por baixo
da porta. Será que foi Sissy que acendeu? Será que ela encontrou por acaso o pequeno interruptor pendurado na cabeceira da cama?
O que estão fazendo? Eles se agitam. Parecia uma batalha, com choques surdos, inexplicáveis. Kromer repete como um disco arranhado:
— Não sem antes você pôr uma roupa.
Ela não fala mais de Frank. Pronunciou seu nome uma só vez; ela o berrou com toda a sua força.
Se algum vizinho estiver em casa, deve estar ouvindo. Quem pensa isso é Minna. Frank continua sem se mexer. Só tem uma pergunta que gostaria de fazer, que faria
de qualquer modo, de joelhos se preciso, a tal ponto que ela se tornou essencial:
— Será que Kromer...?
Alguma coisa se quebra nele.
Ela saiu. A porta bateu. Ouviram-se passos no corredor. Minna soltou seu pulso e se precipitou no quarto, porque ela pensa em tudo, inclusive entreabrir a porta
que dá para o patamar.
Kromer não aparece logo. Tal como Frank o conhece, deve estar ansioso por se arrumar. Abre por fim a porta.
— Bom, meu velho, por essa não te perdoo!
Frank fica impassível.
— O que há com você?
— Nada.
— Se você tivesse me avisado que havia um interruptor na cabeceira da cama, eu teria dado um jeito.
Frank continua e continuará impassível.
— Tomei cuidado para não responder a ela. Sentia a mão dela tateando no escuro, mas não imaginava que ia acender a luz.
Frank não fez a pergunta. Seus olhos estão amiudados, seu olhar, duro, tão duro que Kromer tem um pouco de medo, que se pergunta por um instante se não foi pego
numa armadilha.
Aquilo não era sensato. Não tinha pé nem cabeça.
— Em todo caso, você pode se gabar...
Minna volta e gira o interruptor, inundando-os com uma luz branca que os faz piscar.
— Ela desceu como uma louca. Não entrou em casa. Um vizinho, o sr. Wimmer, tentou pará-la ao passar. Aposto que ela nem o viu.
Bom! Está feito!
Kromer pode ir embora. Está com medo. Não pensa em ir embora. Está furioso.
— Quando a gente se vê?
— Não sei.
— Vai ao bar do Timo esta noite?
— Pode ser.
Ela foi embora e o sr. Wimmer tentou detê-la. Desceu a escada correndo.
— Escute, Frankzinho, parece que você...
Kromer faz uma pausa, felizmente. Ele não é mais o Frankzinho de ninguém. Nunca foi. Eles é que imaginaram isso.
Agora já estava pago seu ingresso no mundo dos homens.
Ele indaga com um olhar ausente de quem não ouviu:
— O quê?
— O que está querendo dizer?
— Nada. Estou perguntando: o quê?
— Eu te perguntava se a gente se veria esta noite no bar do Timo.
— E eu te respondo: o quê?
Não aguenta mais. A sensação, do lado esquerdo do peito, se torna verdadeiramente intolerável, como se fosse morrer.
— Então, meu velho...
— É, vá mesmo!
Sentar-se logo, deitar-se logo. O outro que vá embora! Que vá contar ao Timo e a seus amigos tudo o que quiser!
Frank fez o que queria. Atravessou o rubicão. Olhou do outro lado.
Não viu o que queria ver.
Não tem importância!
Que ele vá embora! Puta merda, que ele vá embora!
— Está esperando o quê?
— Mas...
Minna, que entrou no quarto, que não deveria ter se permitido fazer isso, que é incapaz de entender essas coisas, volta com uma meia preta em cada mão.
Ela foi embora sem meias, os pés nus nos sapatos.
Kromer também não entende. Se os dois continuarem ali, ele vai enlouquecer, rolar no chão, morder qualquer coisa.
— Caiam fora, pelo amor de Deus! Caiam fora!
Será que ninguém percebeu que ele está do lado de lá e que não tem mais nada a ver com eles?
2
No jardim da sra. Porse, sua mãe de criação, só havia uma árvore, uma grande tília. Uma vez, quando a noite começava a cair e um céu baixo parecia pesar sobre a
terra e absorver tudo pouco a pouco, como um nevoeiro, o cachorro desandou a latir, e eles descobriram um gato desconhecido preso na árvore.
Era inverno. O tambor de água da chuva, embaixo da calha, estava congelado. Dos fundos da casa viam-se as janelas do vilarejo se iluminarem uma depois da outra.
O gato estava escondido no primeiro galho, a quatro ou cinco metros do chão, e olhava fixamente para baixo. Era branco e preto e não pertencia a ninguém; a sra.
Porse, a mãe de criação, conhecia todos os gatos.
Quando o cachorro latiu, ela tinha acabado de encher com água quente a bacia posta no chão da cozinha, para o banho de Frank. Na verdade, não era uma bacia, mas
a metade de um barril que haviam serrado. Os vidros estavam embaçados. Ouvia-se no jardim a voz do sr. Porse, que era o cantoneiro do lugar, dizer com a convicção
que tinha para tudo, principalmente quando tinha bebido um pouco, o que era de regra:
— Vou abatê-lo com a carabina.
Frank percebeu a palavra carabina. A carabina estava pendurada na parede branca acima da lareira. Já quase despido, Frank enfiou a calça e o casaco.
— Primeiro tente pegá-lo. Pode ser que não esteja muito ferido.
O dia ainda estava bastante claro para se distinguir o vermelho nas partes brancas do pelo, e o gato tinha um olho que saltava da órbita.
Frank não saberia dizer exatamente como tudo tinha acontecido. Logo havia cinco, dez pessoas, olhando para o alto, sem contar as crianças, depois chegou alguém com
uma lanterna.
Tentaram atrair o gato pondo no chão, bem em evidência, um pires de leite quente. Naturalmente, primeiro tomaram o cuidado de prender o cachorro na sua casinha.
Todos haviam recuado e evitavam movimentos bruscos. Mas o gato não se mexia. De vez em quando, miava queixoso.
— Viu, ele está chamando.
— Pode estar chamando, mas não a gente.
Prova disso é que, quando quiseram pegá-lo subindo numa cadeira, ele pulou para o galho de cima.
Aquilo demorou pelo menos uma hora. Vizinhos se aproximavam, e era pela voz que os reconheciam. Um rapaz trepou na árvore e, cada vez que esticava o braço, o gato
subia mais alto, de modo que, no fim, não se via mais que uma bola escura.
— À esquerda, Helmut. Na ponta do galho grosso.
O mais espantoso é que, mal paravam a caçada, mais o animal ferido miava. Dava para jurar que estava indignado por o abandonarem.
Foram então buscar umas escadas. Todos se metiam, excitadíssimos; o cantoneiro falava sem parar em ir buscar a carabina, e mandavam ele calar a boca.
Não pegaram o gato preto e branco. Tiveram de voltar todos para casa. Deixaram leite e patê de carne para ele.
— Como soube subir, saberá descer.
No dia seguinte, o gato continuava na tília, quase no topo, e miou o dia inteiro. Tentaram de novo pegá-lo. Não deixavam Frank ver por causa do olho que saía da
cara. A própria sra. Porse quase passou mal.
Frank nunca soube do fim da história. Afirmaram no terceiro dia que o gato tinha ido embora. Será verdade? Disseram isso para poupar sua sensibilidade?
É quase o que aconteceu, só que, dessa vez, não se trata de um gato, mas de Sissy.
Frank acabou entrando no quarto dos fundos, sozinho, quase solene, fechando cuidadosamente as portas, mais ou menos como se entrasse numa câmara mortuária.
Sem querer olhar para os lençóis, pôs o cobertor no lugar e já ia se deitando na cama, quando percebeu um objeto na mesa de cabeceira.
Pouco antes, tivera na mão as meias de Sissy, meias de lã preta com pés finamente remendados, como ensinam as moças a fazer nos conventos.
Não foi por curiosidade que ele pegou a bolsa na mesa de cabeceira. Queria apenas tocá-la. Podia fazê-lo, pois estava sozinho. E foi então que lhe ocorreu uma ideia.
Lembrou-se de Lotte, que quase sempre tocava a campainha ao voltar para casa e se desculpava, dizendo:
— Deixei outra vez a chave na minha bolsa velha.
Sissy também tem uma chave, a do apartamento em frente. E onde teria posto essa chave, senão em sua bolsa? Não se lembrou dela quando fugiu. Naquele momento, não
pensava em voltar para casa. Ela nem viu o sr. Wimmer, que tentava detê-la ao passar.
De modo que a chave estava ali, na bolsa, com um lenço e alguns cartões de alimentação, algumas notas, moedas e um lápis.
— Aonde o senhor vai, sr. Frank?
Ainda não eram seis horas. Ele viu nitidamente os ponteiros pretos do despertador, na cozinha. Minna não tinha tornado a se deitar, estava sentada ao lado da estufa.
Voltava a chamá-lo de sr. Frank e o seguia com um olhar medroso.
Ele não se dava conta de que levava uma bolsinha preta, de lona encerada, que estava com a cabeça descoberta, sem sobretudo, e que abriria a porta assim vestido.
— Ponha pelo menos seu casaco, se vai sair.
Uma pessoa doente não sente mais sua doença quando precisa cuidar de outra mais doente ainda. Minna não sentia mais seu ventre. Se não soubesse que ele não permitiria,
teria acompanhado Frank.
— O senhor vai voltar logo, não é? O senhor não está bem.
A porta em frente estava fechada, sem a fina faixa de luz cor-de-rosa embaixo. Frank descia a escada, decidido. Parecia saber onde encontrá-la.
Embaixo da Rue Verte tem uma rua à direita, a do bar do Timo, com a velha doca atrás. Por essa rua, alcança-se a rua da ponte, e já se está quase no centro da cidade;
tem luzes, lojas, transeuntes.
Ao contrário, virando à esquerda, como virou uma vez com Sissy, só se vê os fundos das casas, terrenos baldios. Certas partes da doca são aterradas, outras não.
Começaram a construir uma escola normal, e a guerra havia impedido sua conclusão; não passa de uma imensa carcaça, sem telhado, com vigas de ferro, paredes inacabadas.
Duas fileiras de árvores, ainda pequenas e magras, protegidas com grades, desenham o que deverá ser um dia um bulevar; mas está entrecortado de barrancos, e o terreno
termina a pique num areal.
A noite havia caído. Para toda essa porção de universo havia um só bico de gás que parecia terem esquecido ali, enquanto, do outro lado da água, as luzes formavam
uma guirlanda quase contínua em frente às casas e os bondes passavam.
Ele sabia que a encontraria, mas queria evitar assustá-la. Não tinha a intenção de falar com ela. Só de lhe devolver a chave. Porque Holst não voltaria antes da
meia-noite, porque ela não podia ficar ao relento, pés nus nos sapatos, as pernas nuas, sem dinheiro.
Passou rente a alguém, um homem, quase na esquina, e teve certeza de que era o sr. Wimmer. Fez um movimento de recuo, teve medo, porque se o homem tivesse metido
na cabeça lhe dar uma surra, teria sido obrigado a deixá-lo dar.
O sr. Wimmer também devia está à procura de Sissy. Será que não a seguiu por um instante e perdeu sua pista nos terrenos baldios?
Por um segundo, os dois quase se esbarraram. Naquele lugar havia um pouco de claridade. Não se via a lua, mas ela estava detrás das nuvens e permitia distinguir
o contorno dos objetos.
Terá o sr. Wimmer visto a bolsa que Frank continua levando na mão? Terá pensado na chave? Terá entendido o que o rapaz acabava de fazer?
Em todo caso, ele o deixou passar. Frank caminha em todos os sentidos, bem depressa, tropeçando nos montes de neve endurecida; depois para bruscamente e olha ao
redor.
Tem vontade de gritar o nome de Sissy, mas seria sem dúvida o melhor meio para que ela não viesse, para que se enfiasse cada vez mais na escuridão dos terrenos baldios
ou que, como o gato preto e branco do vilarejo, se escondesse num buraco.
De vez em quando, ouve alguma coisa se mexer, e sai disparado, não encontra nada, depois ouve passos numa outra direção e percebe que é o sr. Wimmer, que segue um
percurso paralelo ao dele.
Várias vezes seus pés quebraram placas de gelo duríssimo e suas pernas desapareceram até os joelhos.
Ela está ali. Ele a viu. Ele reconheceu sua silhueta e não ousou se precipitar até ela, nem falar, nem gritar; apenas lhe estendeu a bolsa, como mostravam o pratinho
de leite para o gato.
Ela já se afastou. Desapareceu numa mancha de sombra e, somente então, ele arrisca, com uma voz de que se envergonha, naquele deserto de silêncio:
— A chave!
Ele a entrevê de novo, enquanto ela atravessa uma mancha branca, e ele corre, tropeça, repete:
— A chave!
Não quer pronunciar o nome dela, para não amedrontá-la. Devia ter entregado a bolsa ao sr. Wimmer, que talvez teria conseguido alcançá-la. Não pensou nisso. O sr.
Wimmer também não. O velho vizinho tem mesmo mais chance do que ele? Frank não o enxerga mais, não o ouve mais. Não é para a idade dele chafurdar naquele terreno
coalhado de armadilhas! Ela não está longe, a cem metros no máximo. Mas o rapaz que trepou na árvore do jardim da sra. Porse teve várias vezes a mão a alguns centímetros
do gato. Todo mundo pensava que o gato ia se deixar pegar. Talvez hesitasse entre o que escolher, depois, na última hora, pulava para um galho mais alto.
O rio está gelado, mas o esgoto, que impede o gelo de se formar num amplo raio, não está longe.
Tenta mais uma vez, duas vezes. Tem vontade de chorar de desânimo.
Aquilo se torna uma ideia fixa: a chave. Aquela bolsinha de lona encerada, gasta, com um lenço, cartões de alimentação, um pouco de dinheiro e uma chave.
Então, como não está longe dela, como ela deve enxergá-lo, escolhe o local mais claro para se imobilizar, fica ali, bem ereto, segurando a bolsa com o braço esticado,
e repete com toda a sua voz, sem se preocupar com o ridículo:
— A chave!
Agita a bolsa. Queria estar certo de que ela o visse e entendesse. Da maneira mais ostensiva possível, ele a deixa na neve, bem em evidência, repetindo:
— A chave! Vou deixar aqui...
É melhor ele ir embora, por ela. Enquanto rondar por aquelas paragens, ficará desconfiada. Chafurda, arrasado. Arranca-se literalmente do terreno baldio, se força
a voltar entre os trilhos, naquela trilha negra entre os bancos de neve que constitui a calçada da sua rua.
Não vai ao bar do Timo, que fica a dois passos. Passa em frente à viela escura do curtume sem se dar conta. Quando entra no prédio, o zelador o observa por trás
da cortina e, sem dúvida, já está sabendo. Naquela noite, amanhã, o prédio inteiro saberá. Sobe a escada. Não há luz na casa do sr. Wimmer, que portanto não voltou.
Aquilo tudo começa a formar um caos cinzento, incoerente, monótono. As horas vão se somar às horas. São com certeza as mais longas que já viveu. A ponto de, às vezes,
ter vontade de gritar olhando para o despertador, cujos ponteiros se encontram no mesmo lugar.
Do conjunto dessas horas, no entanto, não restará nada, apenas alguns fiapos, alguns resíduos que emergem como que de um monte de cinzas na lareira.
Sua mãe que entra e cujo perfume logo toma conta do aposento. Só o fita por um segundo. É para Minna que se volta em seguida; e Minna faz sinal para ir ter com ela
no quarto grande. Será que elas acham que ele não as ouve cochichar? Minna que conte tudo! Aliás, ela não espera sua licença. Deve se crer obrigada a fazê-lo, pelo
bem dele. A partir de agora, elas vão tratar de protegê-lo!
Para ele, tanto faz.
— Queria que você comesse, Frank, só um pouquinho.
Lotte conta com que ele diga não. E, no entanto, comeu. Ele não sabe mais o quê, mas comeu. Sua mãe foi arrumar a cama no quarto dos fundos. Minna não vai se deitar.
Assume um ar inocente. Está sentada numa das poltronas da sala de visitas, o mais perto possível da porta, e espreita.
Será de Holst que elas têm medo? Da polícia? Do velho Wimmer?
Ele sorri desdenhosamente.
— Pode ir se deitar, Frank. Seu quarto está pronto. A não ser que, para esta noite, prefira o quarto grande.
Não se deitou. Seria incapaz de dizer o que fez, em que pensou. Em certos momentos — e é a única coisa de que se lembra —, os objetos adquiriam vida diante dos seus
olhos, como quando ele era pequeno: por exemplo, um cinzeiro de cobre, cujos reflexos se tornavam olhares, um banquinho estofado posto diante da estufa, em cima
do qual sua mãe tem o costume de pôr os pés quando resolve costurar.
Aquelas horas lhe davam a impressão de não passarem nunca, e passaram apesar de tudo. Deram-lhe de beber algo com limão e um destilado. Trocaram suas meias e ele
deixou lhe porem as pantufas. Elas falaram de Bertha, que só devia voltar no dia seguinte de manhã e que provavelmente trará uma carne de porco e salsichas.
O sr. Wimmer voltou, sozinho, em torno das oito. Outros inquilinos voltaram, em todos os andares, e o zelador deve tê-los posto a par um a um.
Será que Sissy tinha morrido?
O cantoneiro repetia o tempo todo que era melhor dar cabo do gato com um bom tiro de carabina. No prédio certamente tem gente que pensa a mesma coisa no caso de
Sissy; outros que, se ousassem, abateriam Frank de muito bom grado.
Para ele, isso também tanto fazia.
— Por que não vai se deitar?
E, como as duas sabem o que ele espera, Lotte acrescenta:
— Nós ouviremos. Prometo te acordar se houver novidade.
Terá ele soltado uma gargalhada? Em todo caso, teve vontade.
Aquilo tem de terminar de uma maneira ou de outra, e, para o gato, durou pelo menos dois dias. Será que o bicho preto e branco voltou de novo para a aventura, com
seu olho fora da órbita?
É mais provável que o cantoneiro tenha acabado usando a carabina, quando Frank estava na escola, e que preferiram mentir a ele.
Vêm os longos minutos que precedem a meia-noite, mais longos ainda do que os que precederam as cinco da tarde. Estes já estão tão longe que pertencem a outro mundo.
As duas mulheres são as primeiras a estremecer quando ouvem passos na escada, mas fingem continuar, uma seu trabalho, a outra a leitura do romance de Zola, que ela
sem dúvida teria dificuldade para entender.
A porta do térreo bateu. É ele. Só pode ser ele, e vão detê-lo ao passar; o zelador deve estar à sua espera para lhe anunciar a notícia. Como é que se ouvem imediatamente
passos na escada? Tudo ainda está confuso. Até o primeiro andar, o barulho é apenas perceptível. A partir do segundo, Frank reconhece o som abafado das botas de
feltro nos degraus, ao mesmo tempo que a cadência de outro passo.
Ele não respira mais. Minna quase se levantou para entreabrir a porta e espiar, mas, com um sinal, Lotte mandou que não se mexesse. São três a ouvir. O outro passo
é um passo de mulher; distingue-se o bater dos saltos altos, depois ouve-se a chave girar na fechadura. E a voz de Holst, que pronuncia simplesmente, com doçura:
— Entre!
Só muito mais tarde Frank saberá que ela esperava o pai na esquina do beco, onde ele próprio, certa noite, estivera colado à parede. Saberá também que ela esteve
a ponto de deixá-lo passar, que Holst não era mais visível do canto em que estava escondida, quando, já sem forças, gritou:
— Pai!
Entraram em casa. A porta se fechou.
— Vá se deitar agora, Frank. Seja sensato.
Ele adivinha. A mãe tem medo de que Holst, quando a filha estiver deitada, venha bater na porta deles. Preferia recebê-lo ela mesma. Se ela ousasse — mas o olhar
excessivamente imóvel de Frank a impressiona —, aconselharia o filho a ir passar uns dias no campo ou na casa de um amigo.
Deus no entanto sabe como as coisas passam com simplicidade! O velho Wimmer não saíra da sua toca. Tampouco deve estar deitado. Por sua claraboia, escuta tudo.
Será que Holst foi se deitar naquela noite? Por um bom tempo havia barulho no seu apartamento. Deve lhes restar um pouco de lenha ou de carvão, porque ele acendeu
o fogo; atiçou o lume e pôs água para ferver.
A luz não se apagou. Frank entreabriu a porta duas vezes, a primeira a uma e meia da manhã, a segunda pouco depois das três, e sempre se via o risco rosado debaixo
da porta em frente.
Também não dormiu. Ficou na sala de visitas, onde as mulheres quiseram porque quiseram arrumar seu catre. Tentaram derrubá-lo com grogues, mas não conseguiram. Bebeu
tudo o que elas lhe deram e permaneceu lúcido. Nunca esteve tão lúcido em sua vida! Isso quase o assusta, como se tivesse algo de sobrenatural.
Elas se despiram. Sua mãe cuidou de Minna. Ele ouviu toda a conversa técnica delas, em que tratavam de órgãos femininos, e pronunciaram de novo o nome de Otto.
Devem ter pensado que ele dormia. Lotte ficou surpresa, quando apagou a luz, ao ouvir a voz nítida do filho que dizia categoricamente:
— Não.
— Como você quiser. Em todo caso, tente descansar.
Foi por volta das cinco que Holst abriu sua porta e foi bater na do sr. Wimmer. Foi obrigado a bater várias vezes. Conversaram em voz baixa, no corredor, depois
certamente o sr. Wimmer foi se vestir. Por sua vez, veio bater na porta de Holst, e este abriu-a de imediato.
Holst saiu. Frank compreendeu facilmente. Foi buscar um médico. Ainda não é a hora em que se tem direito de circular nas ruas, mas ele nem quer saber. Podia ter
tentado ligar do térreo. Frank teria agido como ele. Não é fácil fazer um médico vir, principalmente quando chamado por telefone.
Vai ter de ir longe. Não há mais médicos no bairro, salvo um velho barbudo quase sempre bêbado em quem ninguém confia e que só tem a clientela da assistência social.
Holst tem de atravessar as pontes. Acaba encontrando um, porque às seis, um carro para na rua. E se fosse uma ambulância? E se fossem levá-la para outro lugar? Frank
corre para a janela, tenta enxergar, não distingue nada além de dois faróis.
Dois homens sobem a escada. Se fossem levar Sissy, os enfermeiros subiriam com a maca.
Apaga a luz para que Holst não saiba que está acordado, talvez por pudor, porque pareceria provocação. Não se trata de medo, em todo caso. Ele não tem medo de Holst.
Ao contrário, não fará nada para evitá-lo.
O doutor ficou um bom tempo e tornaram a alimentar a estufa, atiçaram o fogo, devem ter posto mais água para ferver. Será que Sissy tinha ido pegar a bolsa onde
ele tinha posto? Será que ela entendeu sua maquinação? Se não, seu pai vai ter de fazer trâmites sem fim para conseguir novos cartões de alimentação.
O doutor ficou mais ou menos meia hora. O sr. Wimmer deveria ter ido embora. Mas ficou. Continua lá. Só às sete e dez volta para o seu apartamento.
Foi o que aconteceu naquelas horas. Frank dormiu depois. Dormiu tão profundamente que não percebeu que transportavam seu catre para a cozinha, junto da estufa, e
lhe punham um saco de água quente nos pés.
A cozinha não dá diretamente para a rua. Só recebe a luz do dia pela claraboia. No entanto, quando ele abre os olhos sabe na mesma hora que alguma coisa mudou. A
estufa ronca ao alcance da sua mão. É obrigado a se levantar para enxergar o despertador que marca onze horas. Reconhece, no quarto ao lado, a voz de Bertha, seu
sotaque caipira.
— É melhor você ficar deitado, Frank! — diz Lotte, acudindo rápido. ­— Não quisemos te acordar para te pôr numa cama de verdade, mas com certeza você está com febre.
Não está, ele sabe. Seria fácil demais estar doente! Podem lhe pôr todos os termômetros que quiserem na boca ou no traseiro.
A neve cai, espessa, silenciosa, tão espessa que mal se avistam as janelas do prédio em frente, e até na cozinha a qualidade do ar mudou.
— Por que nunca quer que a gente cuide de você?
Ele nem responde.
— Venha comigo, Frank.
Como ele se levantou e vestiu o robe, ela o leva para a sala, onde o tapete está metade enrolado — estavam fazendo a faxina — e fecha todas as portas.
— Não quero te passar um sermão. Você sabe que nunca fiz isso. Só te peço para me ouvir. Acredite, Frank, é melhor não sair na rua hoje, nem por alguns dias, talvez.
Mandei Bertha fazer compras. Por pouco não a serviam.
Ele não ouve e ela entende o olhar que ele lança em direção ao apartamento dos Holst. Ela se apressa a dizer, para tranquilizá-lo:
— Com certeza não é nada grave.
Será que ela acha que ele está apaixonado ou que tem remorsos?
— O médico passou esta manhã. Mandou trazer balões de oxigênio. Ela pegou friagem. O pai dela...
O que ela espera para continuar?
— O pai dela...? ...
— Não a deixa um instante. Os inquilinos fizeram uma vaquinha para comprar um pouco de carvão para eles.
Já eles têm duas toneladas no porão, mas ninguém vai querer desse carvão.
— Quando ela se restabelecer, as pessoas não pensarão mais no assunto. Mesmo que seja uma pneumonia, como dizem, nunca dura mais de três semanas. Escute, Frank.
Escute seriamente, uma vez na vida. Sou sua mãe.
— Não diga!
— Esta tarde, melhor ainda, esta noite, como você tem um documento de que preferiu não me falar mas que todo mundo viu...
O salvo-conduto! Isso também a impressiona. Lotte arranja garotas apenas adolescentes para os oficiais da Ocupação, mas fica chocada porque seu filho tem o célebre
documento! E já que ele tem um, que aproveite!
— Seria melhor você sumir por alguns dias e não se mostrar no bairro. Você já fez isso várias vezes. Tem amigos. Tem dinheiro. Se precisar, eu te dou.
Por que ela diz isso, se Minna deve ter lhe falado do grosso maço de notas que ele tem no bolso? Na certa ela até deu uma olhada enquanto ele dormia. Isso também
a assusta. Tem demais. Só dá para conseguir tanto dinheiro de uma vez por meios perigosos.
— Se preferir, eu arranjo para você um quarto sossegado. Tem um à minha disposição na casa de uma amiga com quem saí ontem e que gostaria muito de te receber. Eu
irei te ver, cuidar de você. Você precisa descansar.
— Não!
Ele não sairá de casa. No fundo, ele sabe o que sua mãe tem na cabeça. Ele foi longe demais. Ela está em pânico, essa é a verdade. Enquanto ela fazia seu pequeno
tráfico de garotas, mesmo sendo com os oficiais, as pessoas a desprezavam, mas não ousavam dizer nada. Contentavam-se em mantê-la afastada, virar a cabeça quando
ela subia a escada, guardar longa distância se ela entrasse na fila.
Agora está mais sério. Há um elemento sentimental a excitar os inquilinos: há uma mocinha doente, que talvez morra e que, ainda por cima, é pobre.
Lotte está com medo e pronto.
E Lotte, que se mostra tão amável com um Otto, com oficiais que mandaram fuzilar ou torturar dezenas de pessoas, tem raiva de ele ter conseguido esse salvo-conduto
com o qual ela nunca ousou sonhar.
Se pelo menos ele não houvesse mostrado o documento a ninguém!
O prédio todo está contra eles. A vítima está à porta deles, bem à porta deles. Ainda por cima, a emoção foi despertada, na véspera, pela batida na casa do violinista.
Já andam dizendo que deram coronhadas na mãe do rapaz para fazê-la ficar quieta.
Embora não os envolvam no caso, os espíritos estão superagitados. O prédio se lembrará por muito tempo de que Frank, sozinho, um garoto, atravessou a barreira da
polícia tranquilamente — havia donas de casa cujos filhos estavam a sós, sem calefação, e que eram impedidas de passar —, mostrando seu salvo-conduto.
Lotte também tem medo de Holst.
— Eu te suplico, me escute, Frank.
— Não.
Azar o dela e das meninas. Ele vai ficar. Não fugirá ao cair da noite, como o pressionam a fazer. Não irá buscar refúgio na casa de um Kromer ou de uma amiga da
mãe.
— Você só faz o que te dá na telha.
— Sim.
E mais que nunca. Doravante, só fará o que lhe der na telha, sem dar bola para ninguém, e Lotte perceberá, os outros também.
— Em todo caso, vá se vestir. Pode vir alguém.
Não é um cliente que toca a campainha um pouco mais tarde, quase ao meio-dia. É o inspetor-chefe Kurt Hamling, sempre frio e polido, sempre com ar de fazer uma visita
de vizinho. Frank está debaixo do chuveiro quando ele entra, mas, como sempre pela manhã, as portas estão abertas e se ouve tudo o que se diz.
Entre outras coisas, a frase tradicional de sua mãe:
— Não vai tirar as galochas?
Hoje não seria um luxo. Neva para valer, e logo, logo vai haver uma poça de lama no tapete, ao pé da poltrona em que o policial sentou.
— Obrigado. Só estou de passagem.
— Um copinho?
Ele nunca diz sim, mas aceita tacitamente. Constata:
— Melhorou o tempo. Daqui a um dia ou dois o céu estará claro.
Não se pode saber de que céu ele fala, mas Frank não tem medo dele, enfia o roupão de banho, aparece de propósito na sala.
— Ora, ora! Não esperava encontrar seu filho Frank aqui.
— Por quê? — ele pergunta, agressivo.
— Me disseram que o senhor estava no campo.
— Eu?
— As pessoas falam muito, o senhor sabe... e somos obrigados a ouvi-las, porque é nosso ofício. Felizmente, fazemos ouvidos de mercador, senão acabaríamos prendendo
todo mundo.
— Que pena!
— O que é pena?
— Que faça ouvidos de mercador.
— Por quê?
— Porque gostaria de ser preso. Principalmente pelo senhor!
Lotte protesta:
— Frank, você sabe muito bem que não podem te prender!
É de se acreditar que ela está com medo mesmo, porque acrescenta, com um olhar desafiador ao inspetor-chefe:
— Com os documentos que você tem!
— Por isso mesmo — Frank insiste.
— O que está querendo dizer?
— Exatamente o que eu disse.
Serve uma bebida, brinda com Kurt Hamling. Dir-se-ia que os dois pensam diante da porta da frente.
— À sua, senhor inspetor.
— À sua, rapaz.
Por que ele insiste naquela ideia?
— Achei mesmo que o senhor estava no campo.
— Nunca tive a intenção de ir.
— Que pena. Sua mãe é uma boa mulher, no fundo.
— O senhor acha?
— Sei o que estou dizendo. Sua mãe é uma mulher de fibra, e o senhor cometeria um equívoco se duvidasse.
Frank zomba:
— Duvido de tantas coisas, sabe?
Pobre Lotte, que faz inutilmente sinal para que se cale! Sente-se perdida. Eles parecem se engalfinhar por cima da sua cabeça e, embora continue sem entender, ela
tem intuição suficiente para se dar conta de que aquilo tem tudo de uma declaração de guerra.
— Qual a sua idade, meu filho?
— Embora não seja seu filho, responderei que tenho dezoito anos, em breve dezenove. Me permita fazer eu uma pergunta. O senhor é inspetor-chefe, se não me engano?
— É meu título oficial.
— Desde quando?
— Fui nomeado há seis anos.
— Há quanto tempo pertence à polícia?
— Vinte e oito anos em junho próximo.
— Poderia ser seu filho, como está vendo. Eu lhe devo respeito. Vinte e oito anos na mesma profissão é bastante tempo, sr. Hamling.
Lotte ia abrindo a boca para mandar o filho se calar, porque estava ultrapassando os limites e o caldo ia entornar. No entanto, Frank enche os copos, amavelmente,
oferece um ao inspetor.
— À sua!
— À sua!
— A seus vinte e oito anos de bons e leais serviços.
Eles foram terrivelmente longe. É difícil continuar por muito tempo nesse tom, no entanto é mais difícil ainda voltar atrás.
— Prosit!
— Prosit!
Kurt Hamling é que bate em retirada.
— Querida Lotte, preciso ir, porque deve ter um monte de gente me esperando no distrito. Cuide bem desse rapaz.
Ele vai embora, as costas robustas, os ombros largos, as galochas largas desenhando pegadas molhadas em cada degrau da escada.
Não se dá conta de que acaba de prestar a Frank o maior serviço que poderia lhe prestar: faz alguns minutos que Frank não pensa mais no gato!
3
Foi na quinta-feira que ocorreu a cena com Bertha. Era quase meio-dia e Frank ainda estava dormindo, porque havia voltado cerca das quatro da manhã. Era a terceira
vez desde domingo. E o fato de ficar deitado até tão tarde, o que desorganizava o trabalho da casa, talvez tenha sido, em parte, a origem da briga. Não pensou em
se informar posteriormente se foi mesmo.
Tinha bebido muito. Metera na cabeça ciceronear pelas casas noturnas dois casais que ele não conhecia e cujas bebidas pagava, tirando do bolso o gordo maço de notas.
Ao serem parados por uma patrulha, quando cantavam na rua, mostrou seu salvo-conduto e ela os deixou passar.
Havia uma menina nova na casa, que não tinham ido buscar, que se apresentara sozinha com uma segurança tranquila. Seu nome era Anny.
— Já trabalhou? — Lotte lhe perguntara examinando-a da cabeça aos pés.
— A senhora quer saber se já fiz amor? Quanto a isso, pode ficar sossegada. Mais do que fiz.
E quando Lotte lhe perguntou sobre a família, ela respondeu:
— O que a senhora prefere que eu diga? Que sou filha de oficial superior ou de alto funcionário? Em todo caso, se possuo uma família em algum lugar, ela não virá
incomodá-la, isso eu garanto.
Em comparação com as outras, com todas as outras que tiveram, ela parecia um puro-sangue. No entanto, era miudinha, magrela e carnuda ao mesmo tempo, de cabelos
castanhos, com uma pele dourada sem o menor defeito. Fazia pensar num trabalho de ourivesaria. Não tinha dezoito anos e já era uma peste.
Quando viu que as outras lavavam a louça, por exemplo, foi sentar na sala e se pôs a ler uma das revistas que havia trazido. Fez a mesma coisa à noite e, no dia
seguinte, declarou a Lotte:
— Imagino que a senhora conta com que eu sirva de empregada, além do mais, não é?
Minna recomeçava a trabalhar, embora ainda sentisse dores. Mas era quase sempre a novata que os fregueses escolhiam. Era curioso, aliás. Frank tinha subido na mesa,
intrigado. Ela mantinha uma dignidade surpreendente. Eles é que pareciam se aviltar, se mostrar sob um aspecto ridículo ou odioso. Frank adivinhava as palavras que
ela pronunciava, sem sorrir, como sem humor, com uma indiferença de grande estilo.
— Quer que eu me vire do outro lado? Mais para cima? Mais para baixo? Pronto. E agora?
Enquanto eles a trabalhavam, ela olhava para o teto com seus lindos olhos de animal livre. Foi assim que seu olhar encontrou o de Frank, que ela devia enxergar vagamente
através do vidro. Ele ficou um bom tempo se perguntando se ela o vira mesmo, porque ela não teve um só tremor, não denotou nenhuma surpresa; pensando em outra coisa,
ela continuava esperando o homem se aliviar.
— É a patroa que te encarrega de vigiar? — perguntou pouco mais tarde.
— Não.
— Você é pervertido?
— Também não.
Ela deu de ombros. Por causa dela, Minna e Bertha dormiam na mesma cama, e Frank se reapossara do seu catre na cozinha. Terça-feira à noite, foi ver Anny, e ela
lhe declarou:
— Se é pra fazer o que está pensando, trate de se apressar. Imagino que é minha obrigação, sendo você o filho da patroa. Mas não conte passar a noite na minha cama.
Tenho horror de dormir com outra pessoa.
Minna havia tentado ficar amiga dela, mas ela passava o tempo todo lendo. Bertha, por sua vez, estava cada vez mais reduzida a seu papel de criada e evitava dirigir
a palavra à novata, com a maior má vontade em servi-la, porque Anny se fazia servir como se fosse óbvio que deveria ser assim. Bertha teve até de ajudá-la a lavar
e secar o cabelo.
Frank estava dormindo quando a briga começou. Como todas as manhãs, tinham empurrado sua cama — com ele nela — para o quarto dos fundos. Muito mais tarde, ouviu
uma gritaria e reconheceu o sotaque de Bertha, que ele nunca havia visto furiosa. As palavras que ela articulava também não faziam parte do seu vocabulário habitual,
que era tímido, bem-educado.
— Estou cheia desta casa, não fico aqui nem um dia mais. Com as poucas-vergonhas que acontecem aqui, aliás, isso não vai durar muito, e prefiro estar longe quando
acontecer uma coisa feia.
— Bertha — ordenava Lotte com uma voz aguda —, faça-me o favor de parar, está ouvindo?
— A senhora pode aproveitar para berrar mais alto ainda. Mas não lhe aconselho. Já tem muitas pessoas no prédio de olho na senhora e que, se pudessem, acabariam
com você.
— Bertha, estou mandando...
— Pode mandar! Pode mandar! Ontem mesmo, no mercado, um menino deste tamanhinho cuspiu na minha cara, e não foi por minha causa, mas da senhora. Eu me pergunto o
que me segura para não lhe passar adiante a cusparada!
Será que ela fez isso? Provavelmente não. Era dessas moças que acumulam um tempão seus rancores e, quando os botava para fora, saíam numa torrente espessa. Ela não
vira Frank entrar na cozinha atrás dela, descalço, de pijama. Por isso ficou aparvalhada ao receber de repente, quando falava de cusparadas e olhava para Lotte,
uma bofetada, uma bofetada que vinha de um lugar onde ela acreditava não haver ninguém.
Quando reconheceu Frank, cerrou as mandíbulas.
— É você, é você, seu pirralho? Faça isso de novo, pra você ver...
Lotte não teve tempo de se interpor, e duas novas bofetadas estalaram tão claras quanto o circo instaurado. Com o que Bertha, o rosto purpúreo, se atirou sobre ele,
agarrou-o como pôde, enquanto ele tentava mantê-la distante.
— Bertha! Frank!
Minna tinha se refugiado na sala, enquanto Anny, que fumava um cigarro na ponta de uma comprida piteira de marfim, havia se encostado no batente da porta e assistia
à briga.
— Um pirralhinho, sim, é o que você é! Um crapulazinho que acha que pode tudo porque a mãe é dona de um bordel! E se permite fazer nojeiras que deixariam a última
das putas envergonhada! Me largue! Me largue, ou grito com todas as minhas forças até os vizinhos acudirem! Não é com seu revólver nem com seus documentos que vai
se livrar deles quando te pegarem!
— Frank!
Ele a soltou. Seu rosto arranhado sangrava um pouco.
— Espere eles te imprensarem num canto, o que não vai demorar... Não vão ter para sempre soldados estrangeiros no país pra te proteger, você e os da sua laia.
— Venha acertar suas contas, Bertha.
— Vou quando eu resolver, senhora. Vocês estarão bem arranjados amanhã de manhã, quando não houver ninguém para preparar o café e esvaziar os penicos! E dizer que
ainda por cima eu tinha de trazer carne de porco da casa dos meus pais!
— Venha, Bertha!
Ela se virou pela última vez para Frank, os olhos brilhantes, e cuspiu a modo de despedida:
— Covarde! Seu covardezinho nojento!
E no entanto ela era a mais meiga, quando ele se deitava com ela, de uma ternura um tanto maternal.
É provável que Bertha não diga nada. Lotte está preocupada. Deveria pensar que já tinha passado por piores. Cenas como aquela rebentaram em sua casa vinte vezes
sem trazer consequências. Quando Bertha desceu com sua trouxa, procurou ouvir para saber se ia conversar com algum inquilino ou com o zelador. Era pouco provável,
porque Bertha era tão malvista quanto eles. Não foi nela que o garoto cuspiu? Seria nela também que descontariam mais facilmente. Eles a veem esperar um bonde, na
esquina, talvez já estivesse lamentando ter feito o que fez.
Lotte lamentava mais ainda. Embora não entusiasmasse os homens, mesmo assim Bertha acabava por satisfazê-los, e a vantagem é que ela cuidava razoavelmente da casa.
Minna vai cuidar, mas ela não é forte e ainda está com o ventre doído. Quanto a Anny, o máximo que se pode esperar dela é que faça a sua cama de manhã. E tem as
compras, as filas em que elas se acham fatalmente em contato com as pessoas do bairro, às vezes com inquilinos do prédio.
— Você não devia ter batido nela... Bom, agora está feito!
Ela observa a tez pálida, as olheiras do filho. Frank nunca bebeu tanto. Nunca saiu tanto sem dizer aonde vai, o olhar duro, sempre com o revólver carregado no bolso.
— Acha prudente sair assim por aí?
Ele não se dá ao trabalho de responder nem mesmo de dar de ombros. Adquiriu um novo costume que logo se torna um cacoete: olha para as pessoas que falam com ele
com ar de não as ver e continua a agir como se não houvesse ouvido nada.
Nenhuma vez teve a oportunidade de encontrar Holst na escada, que ele sobe e desce cinco ou seis vezes por dia, com muito mais frequência do que normalmente. É provável
que Holst tenha pedido uma licença à companhia dos bondes para cuidar da filha. Frank pensava que ele tinha de sair, quando mais não fosse para comprar remédio,
comida. Mas eles se arranjaram de outra maneira. De manhã, o velho Wimmer bate na porta dos vizinhos e é ele que se encarrega das compras. Uma vez a porta tinha
ficado entreaberta, e Frank o avistou, com um avental de mulher, limpando a casa.
O médico vem uma vez por dia, por volta das duas. Frank dá um jeito de se colocar em seu caminho quando ele sai. É um homem bem moço, que mais parece um atleta.
Não aparenta preo­cupação. É verdade que não é a filha nem a mulher dele. Será que Holst também estava doente? Frank pensou nisso. Depois, quarta-feira, na hora
de pegar o bonde, virou-se maquinalmente para a janela e percebeu-o no vão da cortina. Seus olhares se cruzaram de longe, Frank está persuadido. Não podia acontecer
nada, é claro, e no entanto Frank ficou bastante mexido com esse contato. Os dois ficaram calmos e graves, sem ódio, havendo somente como que um grande vazio entre
eles.
Sua mãe se preocuparia mais ainda se soubesse que todo dia ele entra de propósito no pequeno café da parada do bonde, no qual se desce um degrau. Aquilo beira a
provocação, porque não tem nada o que fazer ali. Os habitués se calam assim que ele entra e se põem ostensivamente a olhar para o outro lado. O dono do café, o sr.
Kamp, quase sempre sentado com eles — costumam jogar baralho —, só se levanta para servi-lo muito a contragosto.
Segunda-feira, Frank pagou a conta com uma nota alta, que tirou do seu maço de dinheiro.
— Desculpe — disse o sr. Kamp, recusando-a —, não tenho trocado.
Frank deixou a nota no balcão e se contentou com dizer ao sair:
— Guarde o troco.
Seria capaz de jurar, na terça-feira, que os habitués o aguardavam, e sentiu como que um ligeiro arrepio. Isso acontece com ele, agora. Um belo dia, fatalmente acontecerá
alguma coisa, não dá para prever nem quando nem o quê. Pode muito bem suceder naquele café antiquado e tranquilo. Por que os fregueses olharam para o sr. Kamp com
um olhar cúmplice, com sorrisos apenas contidos?
O botequineiro o serviu, sem uma palavra, depois, quando Frank ia pagar, pegou um envelope posto em evidência na estante entre duas garrafas e lhe estendeu.
Pelo tato, Frank reconheceu que continha notas e moedas. É o troco da nota alta da véspera.
Agradeceu e saiu. Isso não o impede de voltar. Quase se estranhou com Timo. Eram duas da manhã. Tinha bebido muito. Via num canto, em companhia de uma mulher, um
homem cuja cara não lhe agradava. Frank, que estava no balcão, mostrou seu revólver a Timo dizendo:
— Quando aquele sujeito ali sair, apago ele!
Timo encarou-o duramente, sem sombra de amizade.
— Está doido, é?
— Não estou doido. Ele tem cara de babaca e vou dar um teco nele.
— Cuidado que eu é que te dou uma porrada na cara.
— O que você disse?
— Disse que não gosto da maneira como você vem agindo. Se isso te agrada, vá se divertir em outra freguesia, mas não no meu bar. Vou te avisando que, se você tocar
naquele sujeito, mando te pegarem imediatamente. Isso em primeiro lugar! E de hoje em diante, faça o favor de deixar seu brinquedinho em outro canto, senão não entra
mais aqui. Isso em segundo lugar! Agora, se posso te dar um conselho, beba um pouco menos. Beber demais te deixa metido a besta, e isso não é para a sua idade.
Para dizer a verdade, Timo foi se desculpar um pouco mais tarde. Dessa vez, procurou ser convincente.
— Peguei pesado agorinha há pouco, mas foi para o seu bem. Até seu amigo, o Kromer, acha que você está ficando perigoso. Não me interessa o que você faz. O que sei
é que, de uns tempos pra cá, você imagina que está com tudo. Acha que é inteligente mostrar esses maços de notas pra qualquer um? Você imagina que as pessoas não
sabem como se ganha tanto dinheiro?
Frank exibiu seu salvo-conduto. Timo não pareceu impressionado. No máximo, incomodado. Fez que ele o metesse de volta no bolso.
— Isso também é melhor não mostrar muito.
Timo voltou à carga pela terceira vez. Com ele as conversas se desenrolam em vários tempos, porque os fregueses o chamam sem parar de todos os cantos.
— Escute, rapaz. Sei que você vai dizer que é inveja minha, mas vou fazer o que tenho de fazer. Não estou dizendo que esses documentos não têm valor. Só que é preciso
saber utilizá-los. E tem coisas mais complicadas...
Não tinha vontade de se explicar.
— O quê, por exemplo?
— Pra que falar delas? A gente sempre acaba falando demais. Estou em bons termos com eles. Eles me deixam em paz. Uns me trazem mercadorias e se mostram corretos
nos negócios. Talvez porque eu veja muita coisa e de todo tipo, tem muitas que adivinho.
— Quais?
— Vou te citar um caso. Há um mês mais ou menos, estava sentado ali, na terceira mesa, um oficial superior, um coronel, um belo homem ainda jovem, de cara vermelha,
peito coberto de condecorações. Estava acompanhado por duas mulheres e não sei o que dizia a elas, eu estava ocupado noutro canto; em todo caso, eles riam alto.
A certa altura, ele tirou a carteira do bolso, provavelmente com a intenção de pagar. As mulheres agarraram a carteira e começaram a brincar com ela. Os três estavam
de porre. Elas passavam uma à outra papéis, fotos... Eu estava no bar. Foi então que vi um cara se levantar, um cara em que eu não tinha prestado atenção, um sujeito
qualquer, um civil, igual aos que a gente encontra o tempo todo na rua. Nem estava bem vestido. Aproximou-se da mesa e o coronel olhou para ele com um ar entediado,
ainda tentando sorrir. O outro lhe disse uma palavra, uma só, e o oficial se levantou como que impulsionado por uma mola e se pôs em posição de sentido. Tirou a
carteira da mão das mulheres. Pagou. Estava na cara que tinha baixado a crista. Largou as amiguinhas sem explicação e saiu com o civil.
— O que é que eu tenho com isso? — resmungou Frank.
— Parece que no dia seguinte foi visto na estação, indo para um destino desconhecido. Quero dizer o seguinte. Tem gente que parece poderosa e que talvez seja mesmo
em certo momento. Mas, lembre-se bem disso, nunca tanto quanto essa gente diz, porque, por mais poderosos que sejam, sempre tem um mais poderoso do que eles. E estes,
em geral, a gente não conhece.
“Você trabalha com um serviço em que todo mundo te aperta a mão, e você se acha em segurança. Só que, nesse mesmo momento, em outro serviço, que não tem nada a ver
com o primeiro, estão te fichando.
“Eles têm vários setores, se quiser saber o fundo do meu pensamento. E não é porque você está bem com um setor que pode se arriscar em outro.”
Frank se lembrou daquilo na manhã seguinte, e aquilo o atormentou ainda mais por estar de ressaca. Estava virando um costume. Toda manhã ele promete se cuidar, mas
logo recomeça, porque precisa tomar um gole para ficar em forma.
O que o impressiona é a relação que se estabeleceu no seu espírito entre a fala de Timo e uma frase que Lotte pronunciou e à qual, na hora, não deu atenção.
— A gente sente que o Natal está se aproximando — disse ela. — As caras começam a mudar.
Isso quer dizer que a clientela dela muda, pelo menos no que diz respeito aos ocupantes. Para ela, é sempre um período desagradável, porque a faz viver na inquietude.
A cada três meses, ou a cada seis meses — em geral coincide com as grandes festas do ano, mas provavelmente não passa de um acaso —, tem mudança de pessoal, tanto
civil quanto militar. Uns voltam para seu país e vêm outros, que ainda não têm os mesmos modos e cujo caráter você não conhece. Tem de recomeçar tudo. Cada vez que
um novato toca a campainha, Lotte se sente obrigada a encenar sua comédia de manicure e só se acalma quando o cliente diz o nome do colega que o enviou.
Sem saber direito por que, Frank não gostaria que seu general fosse embora. Ele o chama de seu general e não o conhece, nunca o viu. Kromer é quem o conhece. Sua
paixão pelos relógios tem algo de ingênuo e tranquilizador. Frank é como a mãe. Sente-se mais à vontade com as pessoas que têm uma paixão. Por exemplo, quando você
conhece as perversões de Otto, não pode mais ter medo dele. Aliás, é um cara de que Frank pode se servir um dia. Com certeza pagaria caro para evitar que revelassem
algumas de suas façanhas.
Voltou a sair o sol e faz frio alegremente. A última neve ainda não teve tempo de se sujar e, em certos bairros, os desempregados contratados pela prefeitura ainda
estão fazendo lindos montes dela ao longo das calçadas.
Tem a impressão de que Kromer o evita. É verdade que Frank também evita Kromer. Então por que está apreensivo? E por que dizer que está apreensivo, se está perfeitamente
calmo e se é ele, por livre e espontânea vontade, com pleno conhecimento de causa, que fez tudo para atrair o azar sobre si?
Ir ao bar do Kamp, por exemplo. Com toda certeza tem gente das redes e das ligas patrióticas entre os fregueses do boteco. Tem gente delas nas filas, pelas quais
passa sabendo muito bem que só suas roupas e seus sapatos já são uma provocação.
Cruzou duas vezes com Carl Adler, o motorista da caminhonete que o levou ao vilarejo na noite da srta. Vilmos. É curioso: duas vezes em quatro dias, por acaso, e
as duas vezes em lugares inesperados: a primeira na calçada em frente ao Lido; a outra, numa tabacaria da cidade alta.
Ora, nunca o havia encontrado antes. Ou melhor, como não o conhecia, pode ter topado com ele cem vezes sem perceber.
É assim que a gente imagina coisas!
Terá sido de propósito, por prudência, ou por uma espécie de probidade, que Adler fingiu não o reconhecer?
Isso tudo não tem importância. Se tivesse, se houvesse uma maquinação por trás disso, Frank ficaria encantado. Um detalhe porém lhe remói os miolos. Em frente ao
cinema, Adler não estava sozinho. Havia com ele um homem que mora justamente no prédio deles.
É alguém que ele apenas entreviu na escada. Sabe que mora no segundo andar, à esquerda, que tem mulher e uma filhinha. Deve ter entre vinte e oito e trinta anos.
É um rapaz magro, de saúde frágil, com cabelos bem louros e não muito compridos à guisa de barba. Não é um operário. Um escriturário? Pode ser. Aliás, não, porque
Frank percebe que não o encontra em horas fixas, mas a qualquer hora do dia, e também não tem aparência de caixeiro-viajante.
Na certa é um técnico, como Adler, e nesse caso é natural que se conheçam.
Nunca se sabe quem pertence a uma rede ou a uma liga da Resistência. Muitas vezes, são os seres aparentemente mais inofensivos, e o louro do segundo andar, com sua
mulher e sua filhinha, é o tipo do inquilino que passa despercebido.
Por que essa gente o executaria? Não lhes fez nenhum mal. Na realidade, eles liquidam principalmente os que os traem, e Frank não pode traí-los, pois não os conhece.
Que eles o desprezam, não há dúvida. Mas, tal como sua mãe, tem muito mais a temer a raiva dos vizinhos, que resulta da inveja, que não passa de uma história de
carvão, roupas quentes e abastecimento.
Aliás, é só do bairro que Lotte tem medo. Ela entende que, como não os incomodaram até agora, ele não será importunado por causa da srta. Vilmos. Até a atitude de
Kurt Hamling, as frasezinhas que ele soltou não supõem mais que um perigo local. Senão, não haveria razão para ela aconselhar Frank a passar uns dias no campo ou
na casa de algum amigo.
Não conseguiu encontrar Holst, como gostaria, mas eles se viram de longe. Holst, que deve reconhecer os passos de Frank, como Frank reconhece os dele, ouve-o entrar
e sair várias vezes por dia e poderia atacá-lo no patamar da escada.
Frank não tem medo. Não se trata de medo. É infinitamente mais sutil. É uma brincadeira que ele inventou, como, quando criança, inventava brincadeiras que só ele
entendia. Quase sempre eram de manhã, na cama, enquanto a sra. Porse preparava o café da manhã, e, de preferência, quando fazia sol. De olhos fechados, pensava,
por exemplo:
— Mosca!
Depois entreabria as pálpebras, olhando apenas para uma porção determinada da tapeçaria. Se houvesse uma mosca, ganhava.
Agora poderia dizer:
— Destino!
Porque ele queria que o destino cuidasse dele; havia feito de tudo para forçá-lo a tanto, continuava a desafiá-lo de manhã até de noite. Na véspera, dissera a Kromer,
negligentemente:
— Pergunte ao seu general o que, além dos relógios, lhe agradaria.
Não estava precisando de dinheiro. Mesmo levando a vida que levava, tinha para alguns meses. Não precisava de nada. Tinha comprado um sobretudo ainda mais chamativo
do que o outro, um sobretudo como não havia nem cinco na cidade, bege-claro, de pele de camelo verdadeira. Não era suficientemente grosso para aquela estação, usava-o
para se exibir. Do mesmo modo que sempre levava no bolso seu revólver, cujo peso o incomodava, e que, apesar de seu salvo-conduto, poderia lhe causar encrencas.
Não tinha vontade de virar mártir, nem simplesmente uma vítima. Mas quando passava, principalmente de noite, por seu bairro, fazia-lhe bem pensar que uma bala podia
partir de repente de um canto escuro.
Não ligavam para ele. Nem mesmo Holst parecia ligar para ele e, no entanto, Frank havia feito muito para chamar sua atenção.
Sissy devia odiá-lo. Qualquer um, no lugar de Frank, depois do que acontecera, teria se mudado dali.
O destino estava emboscado em algum lugar. Mas onde? Em vez de esperar que ele se manifestasse chegada a hora, Frank ia ao seu encontro, fuçava por toda parte em
sua busca. Enfim, gritava como ao segurar, braço estendido, a bolsa com a chave no terreno baldio:
— Estou aqui. O que está esperando?
Não tinha muitos inimigos e se empenhava em criá-los. Não foi por isso que esbofeteara Bertha? E agora, quando Minna se arriscava a mostrar-se carinhosa, ou simplesmente
amável, ele lhe respondia, para magoá-la:
— Tenho horror de barriga doente.
Trazia chocolates para Anny, e esta nem pensava em oferecer às outras, tampouco em agradecer. Gostava de olhar para ela. Ficaria horas olhando para o corpo dela,
mas não lhe satisfazia fazer amor com ela. Nem tinha vontade. A segunda vez que foram para a cama, ela havia suspirado, amuada:
— De novo?
Seu corpo era uma obra de arte, mas ela só tinha aquele corpo. E ele era como que sem vida, sem vibrações. Ela o punha onde quisessem, como quisessem, como quem
diz:
— Olhe para ele, acaricie-o, faça o que tem de fazer, mas faça logo!
Foi na quinta-feira que Bertha saiu. Na sexta à tarde, às três e meia, ele estava na rua quando avistou o inquilino do segundo andar parado em frente a uma vitrine.
Só depois é que se deu conta de que era uma vitrine de espartilhos. Havia passado pelo menos uma hora. Tinha ido com um vago companheiro, chamado Kropetzki, comer
uns doces no Taste. Ressl, o redator-chefe, estava lá. Ali ele se sente em casa. É o lugar refinado que lhe convém, e Frank raramente havia visto uma mulher tão
bem vestida e tão fina quanto a que o acompanhava.
Ressl lhe concedeu a honra de um aceno com a mão. Frank e seu amigo ficaram ouvindo a música, porque Taste era o único estabelecimento que, desde as cinco da tarde,
ainda oferecia música de câmara. Isso o fez pensar no violinista, porque havia um violinista comprido e magro.
Será que o fuzilaram? As pessoas sempre se apavoram, no entanto, na maioria das vezes, veem um belo dia voltar para casa os que eram dados por mortos. Alguns falam
então de tortura, mas é raro. Ou será que os outros, os que não dizem nada, se calam por prudência?
A ideia da tortura faz seu sangue parar nas veias, e no entanto, no fundo, a tortura não o assustaria. Será que aguentaria firme? Está persuadido que sim. É um pensamento
que lhe ocorre com frequência, que lhe é familiar. Antes mesmo de entrar nos costumes, pois, quando era pequeno, se divertia se machucando, por exemplo, enfiando
uma agulha na pele enquanto observava no espelho os tremores do seu rosto.
Não o torturarão. Não ousarão. Os outros também torturam, pelo menos é o que se afirma.
Por que o torturariam, se ele não tem nada a dizer?
Em alguns dias, vai ser Natal. Um falso Natal, mais uma vez. Só terá conhecido, salvo em criança, falsos Natais. Aconteceu-lhe vir à cidade, aos sete ou oito anos,
nessa época do ano, e as ruas eram mais iluminadas do que uma sala de baile; homens de peliça, mulheres de casaco de pele, se acotovelavam nas calçadas, e as vitrines
pareciam a ponto de desabar na rua, tão cheias estavam de mercadorias.
Vão pôr uma arvorezinha de Natal na sala, em casa de Lotte, como nos outros anos. É mais para os fregueses. Quem será que vai ficar? Minna na certa tem família.
Mesmo que não liguem para as suas no resto do ano, se lembram delas nas festas. Quanto a Anny, ignora-se de onde saiu. Quem sabe ela fica. É provável que ela se
contente com se empanturrar, depois mergulhar em suas revistas.
Até Kromer vai ver a sua, a uns trinta quilômetros, no Natal!
Sissy ainda estará de cama. Holst gastará seus últimos trocados, se lhe restam, ou venderá alguns livros a fim de enfeitar uma árvore para ela. Convidarão o velho
Wimmer, que encontrou sua vocação e que lhes serve de criado para todo o serviço.
— Em que está pensando? — indaga o amigo.
Tem um sobressalto.
— Eu?
— Não, o papa.
— Em nada. Desculpe.
— Parecia que você estava querendo estrangular os músicos.
Ah, é? Ele nem os via. Tinha esquecido deles.
— Escute, queria te pedir um favor, mas não ouso.
— Quanto?
— Não é o que está pensando. Não é para mim. É para a minha irmã. Faz tempo que ela precisa de uma operação. Me disseram que você estava cheio da grana.
— O que sua irmã tem?
E Frank pensa com ironia que ela no entanto não tinha passado pela casa de Lotte.
— É nos olhos. Se não for operada, vai ficar cega.
É um rapaz da sua idade, mas um moloide, um tímido, que nasceu para ser pisado. Ficou logo com lágrimas nos olhos.
— Quanto precisa?
— Não sei direito, mas acho que se você pudesse me emprestar...
Frank maneja o maço de notas como um prestidigitador. Aquilo se tornou um jogo.
— Se me agradecer, você ainda é mais babaca do que imagino.
— Frank, meu velho...
— Não entendeu? Vamos embora!
Será por acaso que o sujeito do segundo andar está somente um pouco mais longe, ainda plantado diante de uma vitrine, mas dessa vez uma vitrine de bonecas? Ele tem
uma filhinha. O Natal está chegando. Poderia responder que é normal ele olhar as vitrines.
E se Frank fosse lhe perguntar sem rodeios o que ele quer, meter-lhe, se preciso, o salvo-conduto ou o revólver nas fuças?
No fundo, o discurso de Timo teve efeito sobre ele. Vai em frente, se vira. O sujeito não o segue. Kropetzki é que não desgruda, e Frank tem a maior dificuldade
do mundo para se livrar dele.
Se o destino o espreita, não é para esta noite, já que ele pode jantar na cidade, encontrar Kromer — preocupado, como que distante —, beber em três casas noturnas
diferentes e conversar um tempão num bar com um desconhecido sem que nada aconteça.
Do bar do Timo à sua casa, passando pelo beco do curtume, também não acontece nada. Seria engraçado se a sorte escolhesse justo aquele lugar para emboscá-lo! São
ideias que a gente tem às três da manhã, quando já bebeu demais.
Tem luz no apartamento dos Holst. Talvez seja a hora das compressas, ou das gotas, ou sabe Deus de que tratamentos. Escuta à porta deles. Com certeza ouviram seus
passos. Holst sabe que ele está no patamar, e Frank para de propósito por um bom tempo, ouvido colado na porta.
Holst não abre, não se mexe.
Babaca!
Só lhe resta ir dormir e, se não estivesse tão cansado, faria amor com Anny, só para ela ficar furiosa. Quanto a Minna, ela o enoja. Está bestamente apaixonada.
Às vezes deve chorar pensando nele. Quem sabe reze. E tem vergonha do seu ventre!
Ele se deita sozinho. Resta um pequeno fogo aceso na estufa e ele fixa demoradamente os olhos no disco rosado pelo qual se introduz o atiçador.
Babaca!
Foi de manhã, quando estava mais uma vez de ressaca, que aconteceu. Buscou o destino em todos os cantos, e ele não estava em nenhum dos lugares em que ele o farejava.
Mais um acaso: não sobra mais nenhuma bebida na casa, os dois garrafões estão vazios, Lotte faz dias esquece de avisar que a reserva tinha se esgotado.
Tem de ir ao bar do Timo. Para esse tipo de coisa, é melhor ir vê-lo de manhã. Timo não gosta de vender, nem mesmo a preço alto. Declara que sempre sai perdendo,
que boas bebidas valem mais que más moedas.
Frank tem vontade de beber. Os cabelos de Lotte estão enrolados nos bobes. Ela pôs uma blusa clara bem largona para fazer a limpeza com Minna; já Anny nem se mexe
quando varrem junto das suas pernas. Ela está ali, impassível como uma deusa, mergulhada, não no sonho ou na contemplação, mas na leitura de uma revista, e deixa
cair no chão as cinzas do cigarro.
— Não compre muito de uma vez, Frank.
É curioso. Esteve a ponto de deixar o revólver no apartamento, não por causa do que Timo lhe disse, mas porque fazê-lo lhe pareceu um estratagema.
Ele não está a fim de estratagemas.
Encontrou o sr. Wimmer que subia com mantimentos numa sacola em que havia um repolho e nabos. O sr. Wimmer não se alterou, passando pertinho dele sem dizer nada.
Babaca!
Lembra-se que parou no patamar do segundo andar para acender o primeiro cigarro do dia — o gosto é ruim, como sempre que bebe demais na véspera — e que olhou maquinalmente
para o corredor da esquerda. Não viu nada. O corredor está vazio, com um carrinho de criança no fundo. Ouve-se um gemido de bebê.
Chega ao térreo, no corredor, vai passar pelo alojamento do zelador. Bem nesse instante a porta se abre.
Nunca pensou que poderia acontecer assim. Na verdade, nem percebe que acontece alguma coisa.
O zelador tem a cara, o boné de todos os dias. Ao lado dele, um senhor bem banal, que no entanto tem um vago ar de estrangeiro e que veste um sobretudo comprido
demais.
No momento em que Frank passa, o estrangeiro toca a beira do chapéu, como para agradecer o zelador, vai atrás de Frank, alcança-o quando ele chega ao meio da calçada.
— Faça o favor de me acompanhar.
Simplesmente. Mostrou um objeto na mão em concha, uma carteira protegida por um celofane, com uma foto e dois carimbos. Carteira de quê? Frank não sabe.
Diz, calmíssimo, um pouco rude:
— Está bem.
— Passe pra cá.
Nem tem tempo de se perguntar o que é para passar ao seu interlocutor. Este enfiou imediatamente a mão no bolso em que se encontrava o revólver, que escamoteia enfiando-o
no sobretudo.
Se alguém observasse os dois naquele instante — Frank não sabe se isso acontecia —, não deve ter entendido nada.
Não há nenhum carro no meio-fio. Caminham lado a lado para a parada do bonde. Esperam-no como qualquer um, sem sequer se olharem.
4
É o décimo oitavo dia. Ele aguenta firme. Aguentará firme. Descobriu que a questão era aguentar e que, graças a isso, levará a melhor sobre eles. Será que se trata
mesmo de levar a melhor? É outro problema, que resolverá no momento oportuno. Refletiu muito. Refletiu demais. Refletir também é perigoso. É preciso se impor uma
disciplina estrita. Quando pensa que levará a melhor sobre eles, significa simplesmente que se safará. E a expressão “se safar” não se limita ao lugar em que se
encontra.
É espantoso como, lá fora, as pessoas empregam palavras sem se preocupar com seu verdadeiro sentido. Por certo, ele não é muito instruído, mas há muita gente como
ele, eles são os mais numerosos, e agora se dá conta de que sempre se contentou com palavras aproximativas.
Essa questão do sentido das palavras lhe tomou dois dias. Quem sabe voltará de novo.
Em todo caso, está no décimo oitavo dia, e isso é uma certeza absoluta. Faz tudo para que essa certeza seja absoluta. Escolheu uma porção de parede quase nua. Faz
um risco toda manhã, com a unha do polegar. É mais difícil do que se pensa. Não riscar, mesmo que a unha esteja toda gasta. Mas fazer só um. Ter certeza de que fez.
A parede é revestida de gesso, o que facilita a operação. Mas não foi fácil encontrar um lugar limpo, por causa de todos os outros que o precederam.
Também não se deve, e esta é mais uma das suas descobertas, ser muito escrupuloso, se indagar isso ou aquilo, porque aqui tendemos a duvidar, e ele entendeu que
quem duvida está frito.
Ele resolverá o problema, sozinho, desde que observe suas disciplinas, que não se deixe levar pelos sonhos. Nos tornamos muito rigorosos sobre certas questões. Por
exemplo, a última manhã que passou fora, não sabia que dia era. Sabia sem saber. Não está certo. De modo que, se pode garantir que são dezoito dias aqui, não ousaria
apostar, um dia a mais um dia a menos, a data da sua chegada.
É assim que se vive.
É mais que provável que seja dia sete de janeiro. Oito, quem sabe? Quanto a antes, faltam pontos de referência indiscutíveis; quanto ao agora, responde por seus
riscos.
Se aguentar firme, se não se deixar abater, se concentrar o bastante — mas sem se concentrar demais —, não vai levar muito tempo para entender, e tudo estará acabado.
Aquilo o faz lembrar de um sonho que teve diversas vezes. Há vários, porém o mais evidente é o do roubo. Ele se eleva no espaço. Não ao ar livre, num jardim ou na
rua, mas sempre num quarto, sempre na presença de testemunhas que não sabem voar. Diz a elas, por exemplo:
— Vejam como é fácil.
Coloca as mãos espalmadas no vazio, faz força. A decolagem é lenta, penosa. Tem de empregar uma forte dose de vontade. Uma vez no ar, é só fazer movimentos ligeiros,
ora das mãos, ora dos pés. Sua cabeça roça o teto. Nunca entende por que os outros ficam tão maravilhados. Sorri para eles, condescendente.
— Não disse que era fácil? É só querer!
Pois bem, aqui é a mesma coisa e, se ele quiser com bastante intensidade, entenderá. Está em condições difíceis. Entendeu de cara que é preciso tomar cuidado com
a diferença.
Um pequeno exemplo: sua chegada... Eram suas últimas horas, seus últimos minutos lá fora. Ou antes. Ele emprega indiferentemente os dois termos. Deveria portanto
conservar desses momentos lembrança de uma precisão quase matemática. E tem. E guarda-a preciosamente. Mas à custa de esforços constantes. Todo dia, corre o risco
de alterar os detalhes, sente-se tentado a isso, se atém a pegar os acontecimentos um a um, a encadear cada imagem à seguinte.
Assim, não é verdade que Kamp tenha vindo à porta do seu estabelecimento nem que houve gargalhadas no pequeno café de habitués. Esteve a ponto de acrescentar esses
fatos. Quase acreditou neles. A verdade é que não viu ninguém, absolutamente ninguém antes de o bonde, que balançava como sempre, parar diante deles. Não se olharam
para saber se subiriam na frente ou atrás. É de se crer que o homem conhecia os costumes de Frank e que queria agradá-lo, porque subiram na frente.
Frank fumava um cigarro. O outro tinha mais ou menos um quarto de cigarro na boca. Poderia tê-lo jogado fora, ter vontade de sentar dentro do bonde. Ora, Frank,
salvo quando era pequeno e se o forçavam, nunca sentou dentro de um bonde. Isso o angustia, sem a menor razão.
O homem ficou na plataforma dianteira.
Aquele bonde, depois de atravessar todas as pontes, atravessa quase toda a cidade alta para terminar o percurso num bairro de moradias operárias, a dois passos do
campo. Ora, eles passaram perto dos escritórios militares, e o homem não desceu. Somente três ruas depois fez sinal a Frank, e foram esperar outro bonde sob um disco
amarelo.
O céu estava brilhante, tinha-se a impressão, naquela manhã, de que a cidade cintilava em todas as suas vidraças, em toda a sua neve, em todos os seus telhados brancos.
À espera do segundo bonde, ele deixou sua ponta de cigarro cair na neve. Normalmente, esta é dura, coberta por uma casca. O fumo deveria continuar a se consumir
por um bom tempo. Ora, o cigarro se apagou, como que chupado pela umidade da neve ao sol. Com menos rigor, ele diria que a guimba mergulhou na neve fazendo “pluf”.
É esse o gênero de detalhes a que está atento, porque são pontos de referência. Sem eles, a gente se deixa levar a pensar qualquer coisa e acreditar nela.
O segundo bonde que pegaram segue uma espécie de bulevar circular pelos bairros que não são mais totalmente a cidade sem ainda ser o subúrbio. Várias vezes, mulheres
com suas sacolas de compras subiram para um curto trajeto; Frank ajudou-as ocasionalmente, sem que o homem dissesse nada.
Por um instante, chegou a se perguntar se não era uma farsa. De Kromer? De Timo? Uma vingança do inspetor-chefe Kurt Hamling?
Teve razão em não deixar transparecer nada. Está contente consigo em geral, mesmo agora que teve tempo de passar um pente-fino nos mais ínfimos detalhes. Outros
sem dúvida teriam feito perguntas, ou teriam se indignado, ou teriam feito piadas grosseiras. Simples e dignamente, ele calcou sua atitude na do homem, que deve
ser um funcionário subalterno, um simples inspetor, sem instruções especiais a seu respeito.
Devem ter ordenado:
— Traga esse rapaz.
E acrescentado:
— Cuidado! Ele está armado.
Foi por traquejo que soube de saída em que bolso Frank enfiava seu revólver. O que mais leva Frank a se orgulhar da sua atitude é não ter se posto a fumar nervosamente
um cigarro depois do outro. Quando jogava fora um, se impunha mentalmente:
— O próximo só depois de duas paradas do bonde.
Desceram num bairro claro, um bairro novo, que a gente da cidade mal conhecia, onde os tijolos ainda são cor-de-rosa, a pintura fresca e, bem em frente à parada
do bonde, havia um conjunto de prédios espaçosos precedidos por um pátio com uma grade alta.
É uma escola. Mais provavelmente um colégio secundário. Tem uma guarita com uma sentinela à porta, mas o lugar nada tem de sinistro; bem em frente, Frank notou um
pequeno café do gênero do café do sr. Kamp, porém mais novo.
— Pode ser que tenhamos de esperar um pouco. Estamos adiantados.
Desde a frase que lhe dirigiu ao abordá-lo, são as primeiras palavras que o homem pronuncia. Disse-as com um ar preocupado, como se temesse estar em falta com ele.
Frank lembrou que, nos outros dias, não descia tão cedo e que, se desceu naquela manhã, foi só porque não havia mais nada a beber em casa.
Será que Lotte já sabe? E Holst? E Sissy? Está calmo. O tempo todo esteve calmo. Por mais que reflita mais tarde sobre suas atitudes, está satisfeito consigo. Não
tem nada de perturbador penetrar num pátio de escola, mesmo quando há uma guarita com sentinela na entrada.
Dirigiram-se à direita, subiram alguns degraus, o homem precedeu-o até uma porta envidraçada, que abriu para Frank passar à sua frente.
É difícil dizer o que aquela edificação era antes. Quem sabe o alojamento dos zeladores. Tem um banco, e o ambiente é dividido em dois por uma escrivaninha que parece
um balcão. As madeiras e os móveis são pintados de cinza-claro. O homem se dirigiu para uma peça contígua, onde pronunciou algumas palavras, e veio sentar ao lado
de Frank.
Não tem uma cara mais feliz que a deste. Ao contrário. É triste, escrupuloso. Cumpre com seu dever sem alegria, ou contra a sua consciência. Conserva entre os lábios
sua ponta de cigarro embebida de saliva, que começa a feder. Não protesta quando Frank apaga o cigarro no assoalho e acende outro.
É o que Frank chama de um “menos”, um cara como Kropetzki, nascido para levar palmadas. Deve haver personagens mais importantes na sala ao lado, cuja porta permanece
aberta, mas de que só se vê a parte de cima, por causa do balcão que obstrui a visão. Frank e seu companheiro chegaram num horário ocioso. Mal acende o cigarro,
ouve-se o barulho abafado de um soco na cara; não há gemidos em seguida, só a voz de quem esmurrou ou de outro que indaga:
— E aí?
Frank lamenta não enxergar, mas não ousa se levantar; espera as pancadas que se sucedem tendo como resultado, uma única vez, arrancar um fraco arquejo de quem as
leva.
— E aí, seu porco?
Frank continuou plácido. Tem certeza disso. Teve dezoito dias para pensar naquilo, com o que ficou mais sincero consigo mesmo.
O que aquilo despertou nele foi curiosidade. Primeiro se perguntou:
“Será verdade que mandam todo mundo ficar nu?”
Daqui a pouco, ao que tudo indica, será a sua vez. Por que ele se põe a pensar no ventre de Minna? Porque dizem que eles dão pontapés ou joelhadas nas partes íntimas.
Aquilo o faz empalidecer. No entanto, o cara na sala ao lado não cede. Nos momentos de silêncio, dá para adivinhar sua respiração meio assobiante.
— Continua insistindo que não foi você?
Uma porrada. Com um pouco de costume, a gente deve ser capaz de determinar, pelo barulho, a parte do corpo que é atingida.
Uma avalanche de porradas dessa vez. A seguir um gemido surdo. Depois mais nada.
Só algumas palavras pronunciadas em tom de censura numa língua estrangeira.
Será que isso tudo foi organizado unicamente pensando nele? Vai precisar saber. É difícil acreditar, claro. Ele não pensa mais como as pessoas lá de fora. Mas ainda
não pensa como seus vizinhos. Ele se esforça para permanecer lúcido, para encontrar um meio-termo em tudo. Está persuadido de que conseguirá. Eles não levarão a
melhor.
Principalmente porque talvez seja um teste. Ele não deveria falar daquele jeito com Lotte, nem com Kromer, nem mesmo com Timo. Evoluiu muito desde que não os viu
mais. Eles não. Continuam levando sua vidinha, continuam raciocinando da mesma maneira, de modo que não podem avançar.
Tem vontade de sorrir quando se lembra do que Timo lhe disse a respeito do salvo-conduto e dos setores.
Será que Frank está agora num setor, ou não?
Será que é um setor importante?
Se Timo passasse pela rua, percebesse o portão com a sentinela, não desconfiaria de nada. É preciso ver as coisas de dentro, e Frank está dentro. Admitirão que ele
está dentro?
Ele, por sua vez, admite que havia alguma verdade no discurso de Timo. Timo não tinha consciência disso, falava genericamente, como se fala lá fora. O salvo-conduto
existe. Se o criaram, é que tem sua importância. Se tem sua importância, não é menos importante ele não ser usado à toa.
Antigamente, para se tornar um simples maçom, como eram todos os funcionários públicos, tinha-se de passar por uma série de provas.
É isso que Timo não entendeu, foi nisso que nem ele, nem os outros, nem Frank não pensaram. Não é por causa dessa ideia que ele está calmo, senão ele se desprezaria,
mas todo dia ele passa certo tempo a considerá-la, faz correlações, aprofunda certos aspectos da questão.
Por que, na sala em que o introduziram, não aconteceu com ele o mesmo que com seu predecessor? Este, dois homens o carregaram embora, um pela cabeça, o outro pelos
pés, porque recebeu a parte que lhe cabia. Devem ter se apressado, espancado demais. O chefe não está contente. A palavra que ele pronunciou com uma voz sombria,
batendo na mesa com um corta-papel, devia significar:
— Próximo!
O acompanhante de Frank se levantou e enfiou o toco de cigarro no bolso do colete. Frank também se levantou, denotando naturalidade.
Estaria persuadido naquele momento de que minutos depois sairia livre e pegaria o bonde de volta?
Já não está tão certo assim. Há perguntas que se fez várias vezes, que se complicam cada dia mais. Algumas ele reserva para a manhã, outras para a tarde, para o
raiar ou para o pôr do sol, para antes ou depois da sopa. É mais uma disciplina a que se atém severamente.
— Venha!
Será que o homem disse venha? Provavelmente não. Não disse nada. Só fez sinal para Frank contornar o balcão, ou lhe mostrou o caminho indo na frente.
E então foi quase ridículo. O chefe perante o qual ele comparecia não tinha a menor cara de chefe, tinha tanta cara de chefe quanto o sr. Wimmer. Não estava fardado.
Estava vestido de cinza, com um casaco justo demais, um colarinho alto demais, uma gravata com o nó mal dado. Parecia todo espremido em seu traje.
Era um homenzinho de meia-idade, como os dos serviços em que se distribuem cartões de alimentação, bônus de carvão, uma coisa administrativa qualquer. Usava óculos
de lentes grossas como lupas e parecia esperar com certa impaciência a hora do almoço.
Está aí outra questão capital que se encontra na raiz do problema: Será que eles se enganaram?
Timo pareceu afirmar que eles são como todo mundo, que um dos serviços pode perfeitamente ignorar o que acontece no serviço ao lado. No abastecimento, tem gente
que recebe por engano dois cartões em vez de um, e outros que não conseguem substituir um cartão perdido.
É uma coisa séria, ele não pode se deixar seduzir por essa eventualidade, mas é preciso considerá-la tão cuidadosamente quanto as outras. Não pode também esquecer
de levar em conta que estava na hora do almoço, que o chefe estava com fome e que acabava de manifestar contrariedade ao ver o freguês anterior desmaiar.
No entanto, é impossível deduzir o que quer que seja de preciso de seu comportamento. Será que ele se dignou de olhar para Frank? Será que o conhecia? Será que tinha
um prontuário diante de si?
Enquanto Frank esperava na sala ao lado, sentado no banco cinzento, eles deviam ser cinco na sala, pois agora restavam três, o chefe sentado e os outros dois de
pé, um deles mais moço que Frank, vestido sem gosto.
Portanto, dois de pé e um sentado.
Frank foi logo estendendo sua carteira acima da escrivaninha. Ele a mantinha pronta há mais ou menos meia hora. Tinha apalpado a carteira no bolso ao longo de todo
o trajeto do bonde. Se Timo tivesse razão, o velho poderia ter dado de ombros ou soltado uma risada.
Ele pegou a carteira e, sem nem mesmo dar uma olhada, colocou-a perto dele, no alto de uma pilha de papéis. Enquanto isso, os outros dois funcionários revistavam
metodicamente seus bolsos, sem brutalidade.
Não lhe diziam nada. Não lhe perguntavam nada. O que o havia trazido permanecia no vão da porta, sem parecer vigiá-lo.
O velho senhor devia estar pensando em outra coisa, examinando um dossiê que não lhe dizia respeito e deixava, sem curiosidade, o conteúdo dos bolsos de Frank se
amontoar num canto do seu escritório, inclusive o maço de notas.
Terminada a revista, ele levantou a cabeça como para perguntar:
— Acabou?
O policial se lembrou de um detalhe e veio depositar o revólver em cima da mesa.
— Só isso?
Então, finalmente, com um leve suspiro, pegou um comprido formulário, uma folha de papel de formato especial, com palavras impressas e lacunas a preencher.
— Frank Friedmaier? — perguntou sem dar maior importância.
Inscreveu o nome em letra de imprensa, o que durou quase quinze minutos, porque, numa coluna especial, ele anotava, sem esquecer uma caixa de fósforos ou um toco
de lápis, todos os objetos provenientes dos bolsos de Frank.
Não o brutalizaram. Ninguém prestava atenção nele. Se tivesse se precipitado para a porta e saído correndo, é provável que só a sentinela teria atirado nele e errado
o tiro.
Será tão ridículo assim pensar num teste? Por que dariam um salvo-conduto a pessoas que não conhecem, quanto às quais não têm segurança?
Por que não bateram nele, como no outro? E será que bateram mesmo no outro? Não tem razão essas coisas acontecerem numa sala aberta com qualquer um.
Ele refletiu, em dezoito dias. Refletiu tremendamente. Não só sobre isso. Teve tempo de pensar no Natal, no Ano-Novo, em Minna, em Anny, em Bertha. Elas ficariam
surpresas, todas elas, inclusive Lotte, se soubessem tudo o que ele descobriu a respeito delas.
Ora, não é fácil pensar, por causa dos vizinhos. Porque aqui, como na Rue Verte, ele tem vizinhos. Perfeitamente, sr. Holst! Perfeitamente, sr. Wimmer! A diferença
é que ele não os vê, que por isso mesmo tem menos confiança ainda do que em qualquer outro lugar.
Eles tentaram enganá-lo desde o primeiro dia, mas ele desconfiou. Ele desconfia de tudo. Está se tornando o homem mais desconfiado da face da terra. Se sua mãe viesse
vê-lo, ele se perguntaria se não foram eles que a mandaram.
Os vizinhos batem nas paredes, nos canos d’água, nos radiadores da calefação. A calefação não funciona, mas os velhos radiadores subsistem.
Não se deve esquecer que não o puseram numa prisão de verdade, e sim numa escola, num colégio que, pelo que viu, devia ser muito elegante.
Seus vizinhos logo lhe mandaram mensagens. Por quê?
Ele não é tão atarantado a ponto de não perceber a disposição dos lugares e não deduzir que aqui ele é um privilegiado. São quantos à direita? Ao menos dez, conforme
pôde avaliar. Pelo sotaque, porque às vezes capta palavras quando passam pela passarela, são principalmente gente do povo e do campo.
Ao que tudo indica, o que os jornais chamam de sabotadores. Verdadeiros ou falsos? Ou falsos misturados a verdadeiros?
Não se deixará enganar.
Não bateram nele. Foram educados com ele. Revistaram-no, mas respeitando as formalidades. Tiraram tudo dele: cigarro, isqueiro, carteira, documentos. Tiraram também
sua gravata, seu cinto e os cordões dos sapatos. Enquanto isso, o velho senhor, ar ausente, continuava preenchendo o formulário e, quando acabou, estendeu-lhe a
folha, uma caneta, designou uma linha pontilhada lhe dizendo quase sem sotaque:
— Assine aqui.
Ele assinou. Não pensou. Assinou maquinalmente. Não sabe o que assinou. Fez mal? Não será, ao contrário, lhes dar prova de que não tem nada a se incriminar? Não
foi por medo de apanhar que assinou. Simplesmente compreendeu que era uma formalidade indispensável e que não adiantaria nada se rebelar.
Nisso também pensou muito e não lamenta nada. Se lamenta alguma coisa, é ter aberto a boca para dizer:
— Gostaria...
Não teve tempo de falar mais. O velho senhor fez um sinal com a mão e o conduziram por um segundo pátio, este pavimentado de tijolo, pelo que pôde julgar vendo as
aleias cavadas na neve. O que ia mesmo dizer? Gostaria de quê? De chamar um advogado? Claro que não. Não é tão ingênuo assim. Comunicar-se com a sua mãe? Revelar
o nome do general? Avisar Kromer, ou Timo, ou Ressl, que se lembrou dele no Taste e lhe fez um ligeiro aceno?
Foi ótimo não ter tido tempo de continuar sua frase. É preciso perder o costume de pronunciar palavras inúteis.
Ele ainda não sabia que tudo o que via tinha sua importância, teria cada dia um pouco menos de importância. Você pensa:
“Uma escola.”
E vem uma imagem completa.
Mas em certos casos os mais ínfimos detalhes se tornam um dia tão preciosos que a gente fica com raiva de não ter observado mais.
Um grande pátio interno, que deve ter lhe parecido ainda maior por estar, naquele momento, inundado de sol. Um prédio comprido, de dois andares, de tijolos novos,
e não deve haver escadas internas, porque, como num navio, veem-se do lado de fora escadas de ferro e corredores suspensos que se parecem com passarelas e dão acesso
a todas as salas de aula.
Quantas salas de aula há? Ele ignora. Teve uma impressão de imensidão. Do outro lado do pátio se ergue outra construção, o salão de festas ou o ginásio, iluminado
por janelas altas como as das igrejas; isso lembra um pouco o curtume. Há também o pátio coberto, que ele tem em parte diante dos seus olhos há dezoito dias, com
bancos de madeira escura, carteiras, todo o mobiliário escolar empilhado até o teto.
Por mais barras de ferro que ponham nas janelas, não é uma verdadeira prisão. Por assim dizer, nem se veem guardas. Mal percebeu, de passagem, dois soldados armados
de metralhadoras no pátio.
Só de noite fica um pouco mais impressionante, quando os projetores iluminam os arredores.
Como as janelas não têm venezianas, a luz o impede de dormir ou o acorda num sobressalto.
Em suma, se não se veem sentinelas, é que deve haver uma torre de vigia no telhado, de onde vem a luz dos projetores, com metralhadoras e bombas. A certas horas,
ouvem-se passos numa escada de ferro que não pode levar a nenhum outro lugar.
Em todo caso, de uma maneira ou de outra, seja qual for a razão, ele não é tratado como os outros presos. Não se enganou quando notou a polidez — fria, mas polidez
mesmo assim — do velho senhor de óculos.
À direita dele, portanto, são pelo menos dez, às vezes mais, não se pode saber, porque há mudanças o tempo todo. À esquerda, são três, talvez quatro, e um deles
é doente ou louco.
Não é uma cela, é uma sala de aula. Para que servia, nos tempos da escola? Para aulas que não reuniam muitos alunos, aulas da última série, é provável. Para uma
sala de aula é pequena, mas para uma cela é imensa, nem um pouco na escala de um homem sozinho. Sente-se incomodado com isso, não sabe onde se meter. Sua cama parece
minúscula. É uma cama de ferro, do velho exército, sem molas, com tábuas à guisa de somiê. Não lhe deram colchão. Tudo de que dispõe é de um cobertor cinzento e
áspero recendendo a desinfetante.
Isso o enoja mais do que se recendesse a suor, pior até do que se estivesse impregnado de odores humanos. Esses relentos de produtos químicos lhe fazem pensar num
cadáver. Só se deve desinfetar cobertores quando serviram a alguém que morreu. E vários homens devem ter morrido naquele cômodo. Algumas inscrições foram apagadas
com cuidado. Ainda se veem corações com iniciais, como nas árvores, no campo, bandeiras que não dá mais para distinguir, porém o que mais resta são esses traços
que marcaram os dias, com um risco transversal para as semanas.
Foi difícil para ele encontrar um lugar virgem, à parte, para a sua contagem pessoal, e já está no seu terceiro risco transversal.
Não responde às mensagens. Resolveu não responder, nem mesmo tentar compreender. Durante o dia, um soldado anda de um lado para o outro na passarela e gruda de vez
em quando o rosto nas vidraças. De noite, eles se fiam nos projetores e quase não se ouve barulho de botas.
Como a noite cai cedo, logo principia uma tremenda barulheira; as paredes, os canos ressoam. Ele não entende nada. Bastaria apenas algum esforço e um pouco de paciência.
Deve parecer um alfabeto morse simplificado.
Ele se desinteressa daquilo de uma vez por todas. Está sozinho. Tanto melhor. Fizeram-lhe o favor de deixá-lo a sós, e isso deve ter um sentido. Tanto pior se significar
que seu caso é mais grave. Aliás, já tem experiência bastante para desconfiar.
Do quarto à direita, para onde levam sem cessar novos presos, fuzilam alguns, se não todo dia, em todo caso várias vezes por semana. É o quarto dos detidos comuns.
Chega a parecer que eles os escolhem ao acaso, como num viveiro.
Acontece pouco antes do dia raiar. Será que eles conseguem dormir? Muitas vezes, alguns gemem ou, no meio da noite, soltam um grito. Provavelmente, jovens.
Dois soldados chegam ao pátio, sempre dois, e seus passos
 ecoam na escada de ferro, depois na passarela. No início, Frank sempre se perguntava se era a sua vez. Agora, não se altera mais. Os passos param diante da sala
de aula ao lado. Será que entre os que estão encerrados nessa sala há quem tenha estudado nela?
Todo mundo então se põe a berrar um canto patriótico, depois passam, na noite que termina, os soldados precedidos por dois ou três sujeitos.
Se fazem de propósito, foi calculado com precisão. A hora é tão bem escolhida que nenhuma vez Frank pôde distinguir os traços de um rosto. Somente silhuetas. Homens
que andam, mãos nas costas, sem sobretudo, sem chapéu, apesar do frio. E, invariavelmente, a gola do casaco está levantada.
Na certa os levam para um derradeiro escritório, porque ainda passa algum tempo, e o dia se levanta no momento em que os passos cruzam o pátio. Acontece perto do
pátio coberto. Mais dois ou três metros, e Frank poderia ver tudo pela janela, mas só enxerga o alto do corpo do oficial que comanda o pelotão.
Pode voltar a dormir. Porque o deixam dormir. Ele ignora como acontece nas outras salas de aula. Não da mesma maneira, com certeza, porque sempre se ouve barulho
cedinho. Quanto a ele, deixam-no em paz até o momento em que lhe trazem sua refeição matinal, café sem açúcar, com um pedacinho de pão grudento.
Aquela vaca da Bertha ficaria contente! Mas ele se acostumou. Toma até a última gota. Come tudo. Não se deixará abater. Estabeleceu seus planos desde o primeiro
dia.
Não se permite pensar nesse ou naquele assunto até chegar a devida hora. Tem todo um quadro na cabeça. Às vezes é difícil se submeter ao horário. Os pensamentos
tendem a se confundir. Então, para se dar tempo de relaxar, fixa um ponto escuro na parede, bem alto, onde devia estar pendurado o crucifixo, na época da escola.
— Bertha é uma puta idiota, mas não é ela o problema.
Porém, como não é a hora dela, como não é a vez da Rue Verte, ele retoma seu raciocínio no ponto em que o havia abandonado na véspera.
Às vezes Sissy, Holst se interpõem. Sissy, por exemplo, vindo pegar a bolsa com a chave, quando na realidade ele não sabe se ela a pegou, nem mesmo se a viu. Não
tem importância, mas é proibido pela regra que ele editou. Quanto a Holst, ele se tornou por assim dizer seu inimigo número um. É ele que reaparece na maioria das
vezes, com suas botas de feltro cinza, seu sobretudo, sua marmita de lata, suas linhas moles, e o mais curioso é que Frank é incapaz de reconstituir seu rosto. Este
não é mais que uma mancha. Mais exatamente, uma expressão.
A expressão de quê? Se não tomar cuidado, se deixará pensar nisso minutos a fio, melhor dizendo, por muito tempo, porque não tem nada aqui para contar os minutos
— se fosse indispensável, teria de tirar o pulso para medir o tempo.
Como chamar o olhar que eles trocaram quando Holst estava à janela e Frank esperava o bonde?
Não tem nome.
Pois bem, a expressão de Holst também não tem nome. É um mistério, um enigma. E quando uma pessoa se encontra na situação de Frank, não tem o direito de se debruçar
sobre os enigmas, ainda que, na hora, isso pareça fazer bem.
Deve-se retomar as questões uma a uma, incansavelmente, esforçando-se para se manter frio, lúcido, não se deixar invadir por uma mentalidade de prisioneiro.
Havia isso.
Aconteceu aquilo.
Fulano, Beltrano e Sicrano podem ter agido de determinada maneira.
Sem descuidar de nada, nem dos detalhes, nem das pessoas.
Ele fica o dia inteiro com o sobretudo posto, a gola erguida, o chapéu na cabeça, e passa a maior parte do tempo sentado na beira da cama. Só esvaziam seu penico
uma vez por dia, e esse penico não tem tampa.
Por que é um outro preso que vem esvaziá-lo? Por que Frank não participa do passeio, e pelo menos três dos vizinhos da esquerda sim.
Não tem a menor vontade de ficar dando voltas no pátio. Não os vê. Ouve-os. Não tem vontade de nada. Não se queixa. Nunca procurou sensibilizar seus guardas, que
mudam quase todos os dias, e não geme, como outros devem fazer, na esperança de conseguir um cigarro, ou apenas dar uma tragada no do soldado.
Havia isso.
Havia Frank.
E havia isto e isto.
Os vizinhos da Rue Verte, Kromer, Timo, Bertha, Holst, Sissy, o sr. Kamp, o velho Wimmer, outros mais, inclusive o violinista, Carl Adler, o louro do segundo andar
e até Ressl, até Kropetzki. Não deve omitir ninguém, ele não tem nem papel nem lápis, mas mantém sua lista atualizada, incansavelmente, acrescentando à margem tudo
o que pode apresentar algum interesse, por mais ínfimo que seja.
Havia Frank...
Não é a cara de Holst, ou antes, a expressão de Holst que o desviará da tarefa que empreendeu.
Sissy está provavelmente curada.
Curada ou morta.
O que conta é a lista, é refletir, não esquecer nada, evitando contudo dar às coisas mais importância do que têm.
Havia Frank, filho de Lotte...
Aquilo lhe lembra a Bíblia, e ele sorri desdenhosamente porque parece um trocadilho. Não veio parar na prisão para fazer trocadilhos.
Aliás, não foi numa prisão que o puseram, mas numa escola, e isso deve ter um sentido.
5
Décimo nono dia.
Não o puseram numa prisão, mas numa escola.
Os dias se encadeiam. É uma ginástica. A gente se acostuma rápido. A coisa acaba se produzindo sozinha, as engrenagens continuam girando por conta própria, como
num relógio. Faz-se isto e aquilo. Fazem-se sempre os mesmos gestos, nas mesmas horas, e é só prestar um mínimo de atenção, o pensamento continua a rolar.
A escola não tem nada de vexatório em si, e se há setores conforme a expressão de Timo, Frank deve se encontrar num setor importante, já que nele se fuzila quase
todo dia. O que talvez fosse mais inquietante é se obstinarem a não dar bola para ele, ou fingirem isso.
Não o interrogaram e continuam sem interrogá-lo. Não o espionam. Se espionassem o que faz, perceberia. Deixam-no sozinho. Não se preocupam com sua roupa de baixo,
que ele usa há dezenove dias. Não pôde lavar direito seu corpo uma só vez, porque não lhe dão água suficiente. Não está zangado com eles por causa disso. Não sendo
uma espécie de desprezo para com ele, tudo bem. Não está barbeado. Outros, na sua idade, ainda não têm barba espessa, mas ele começou a se barbear bem mocinho, por
diversão. Antes, barbeava-se todo dia. Sua barba agora tem mais de um centímetro. No início, ela era dura, mas começa a ficar macia ao tato.
Existe uma prisão verdadeira na cidade, que eles tomaram, claro, e que deve estar cheia. Não é necessariamente lá que colocam os casos mais interessantes.
Nada prova que estejam zombando dele. Se os guardas nunca lhe dirigem a palavra, ele compreendeu que é porque não sabem a sua língua. Os presos que lhe trazem seu
cântaro de água e que esvaziam seu penico também evitam falar com ele. Esses circulam. Alguns estão barbeados, têm cabelos aparados, o que indica que há um barbeiro
na escola. Se não levam o barbeiro a ele, como acontece com os outros, por que significaria que esquecem dele? Não quer dizer, isso sim, que está incomunicável?
Houve alguém à raiz disso tudo, uma denúncia ou algo do gênero. Repassa os nomes, os feitos e gestos de cada um, estuda suas possibilidades. Sente-se sempre incomodado
quando vai ao penico, com aquela janela grande pela qual se pode ver tudo da passarela. No entanto não tem mais vergonha de não estar barbeado, nem da roupa de baixo
suja, das roupas de cima que estão todas amarrotadas por dormir com elas.
Os outros, às nove, desceram para passear. Deve ser de propósito, para que sintam frio, que os mandam descer tão cedo, ainda mais que alguns deles não possuem sobretudo.
Por que não esperar as onze ou o meio-dia, quando o sol teve tempo de tornar o ar mais ameno?
Isso não lhe diz respeito, já que ele não desce. Se descesse, não teria, um pouco mais tarde, o espetáculo da janela.
As engrenagens estão em movimento, o rolar dos pensamentos continua sem impedi-lo, desde as nove, de começar a esperar. Não se trata de nada, de menos que nada.
Se ele vivesse numa prisão de verdade, isso não existiria, porque nela evitam todo contato com o exterior, por mais remoto que seja. Aqui, ninguém deve ter pensado
nessa janela. Na realidade, é uma imprudência não ter tomado providências, porque essa janela poderia ter um papel importante.
Acima do salão de festas ou de ginástica, do outro lado do pátio, sente-se um vazio, talvez uma rua, talvez casas térreas, como a maioria dos imóveis do bairro,
cada qual habitada por uma família. Mais longe ainda, muito mais longe, se ergue contra o céu os fundos de um prédio de pelo menos três andares, quase inteiramente
escondido pelo salão de festas. Devido à forma do telhado, uma janela é visível, uma só, bem no alto, provavelmente no terceiro andar, o que supõe inquilinos muito
pobres.
Todas as manhãs, um pouco antes das nove e meia, uma mulher abre a janela, vestindo um penhoar — como Lotte —, um lenço claro envolvendo os cabelos e sacode acima
do vazio cobertas e tapetes.
De tão longe, não dá para distinguir seus traços. Pela nitidez de seus movimentos, por sua atividade, deduz que é jovem. Apesar da estação, ela deixa a janela aberta
por um bom tempo, enquanto vai e vem, cuida das coisas lá dentro, das panelas ou de um bebê; com certeza tem um bebê, porque quase sempre estende roupa numa corda
atravessada na janela, e é roupa pequenina.
Quem sabe? Pode ser que ela cante. Deve ser feliz. Ele a supõe feliz. Quando fecha a janela, ela fica de novo em casa, com os cheiros da limpeza que recobram seus
direitos.
Fica de mau humor naquele dia, o décimo nono, por virem incomodá-lo às nove e quinze, em todo caso antes de ela aparecer na janela. Desde que chegou, aguarda que
venham buscá-lo desse jeito. Pensa nisso ao longo dos dias. Ora, quando por fim acontece, pragueja porque o incomodaram quinze minutos antes.
É um civil, acompanhado por um soldado, que para diante da sua porta, na passarela. Tem bigodes castanhos. Lembra um bedel de colégio. Frank logo imagina que deveria
ser um dos dois que espancavam aquele sujeito enquanto ele próprio esperava na primeira sala, no dia da sua chegada. É um homem que deve espancar de encomenda, tranquilamente,
sem raiva, com zelo, como, num escritório, faria as somas.
Será por isso que fazem Frank descer? Nem o civil nem o soldado concedem um só olhar ao seu quarto. Não lhe dizem nada. Simplesmente fazem sinal de que saia. O civil
vai na frente e ele o segue, sem ter a ideia de olhar nas outras salas de aula como se havia prometido tanto. Tem mais. É a hora em que os presos passeiam no pátio
grande. Ele os vê, tanto quando vai pela passarela como quando desce a escada externa.
Esquece de observá-los. Só se lembrará de uma espécie de serpente comprida escura. Eles estão em fila indiana, a mais ou menos um metro um do outro, e isso forma
uma oval quase fechada, com algumas ondulações.
O que significará se baterem nele? Que se enganaram, que suspeitam de coisas que ele não cometeu — porque estão se lixando para a srta. Vilmos. É curioso, não pensa
mais no suboficial; aquilo lhe parece tão perdoável que se sente inocente.
Eles se dirigem — eles o dirigem — para o predinho onde o receberam no primeiro dia e sobe os mesmos degraus. Dessa vez, não o fazem esperar. Introduzem-no imediatamente
na sala do velho senhor, que está em seu lugar, e Frank, olhando em torno, percebe sua mãe.
Seu primeiro reflexo foi franzir o cenho e, antes de observá-la mais, de lhe dirigir a palavra, aguarda as instruções do funcionário. Este continua a se mostrar
igualmente indiferente. Escreve, numa letra apertada, e é Lotte que fala primeiro. Sua voz leva um tempo para encontrar o registro normal. É muito opaca, como quando
a gente fala no vazio de uma gruta.
— Bom, Frank, estes senhores me autorizaram a vir te ver e a trazer uns pertences. Não sabia onde você estava.
Ela pronunciou estas últimas palavras bem depressa. Devem ter lhe feito algumas recomendações. Na certa há assuntos que ela tem direito de abordar, outros que são
proibidos.
Por que parece tratá-la com desdém? No fundo, ele não está à vontade. Não se sente em segurança. Ela vem de outro lugar. Continua igualzinha. É terrível como continua
igual. Ele reconhece o cheiro do seu pó de arroz. Pôs ruge nos pômulos, como sempre que sai. Usa seu chapéu branco, com um meio véu que oculta um pouco seus olhos,
por coquetismo, por causa das suas rugas finas, das suas cascas de cebola, como ela diz ao falar das suas pálpebras. Levou pelo menos meia hora na frente do espelho
do quarto grande. Ele a vê puxar suas luvas de pelica, passar os dedos nos cabelos dos dois lados do chapéu.
— Não posso ficar muito, Frank.
Limitaram seu tempo de visita. Por que não diz isso francamente?
— Você parece bem. Se soubesse como estou feliz de te ver bem!
Isso significa:
— De te ver vivo.
Porque ela o acreditara morto.
— Quando te avisaram?
Ela responde em voz baixa, com um olhar furtivo no velho senhor:
— Ontem.
— Quem?
E ela, falsamente animada, sem lhe responder:
— Imagine que deixaram eu trazer umas coisinhas para você. Primeiro, roupa. Você finalmente vai poder se trocar.
Aquilo não lhe dá o prazer que se poderia imaginar. Um mês antes, teria posto esse prazer acima de tudo.
Ele a choca. Seu aspecto a choca. Ela olha para suas roupas amarfanhadas, para a gola do seu sobretudo levantada sobre uma camisa suja, sem gravata, para seus cabelos
não penteados, para sua barba de dezenove dias e seus sapatos arreganhados. Sente-se que ele lhe dá dó. Ele não necessita da piedade de ninguém, principalmente de
Lotte, que é nojenta, com sua maquiagem e seu chapéu branco.
Será que o velho senhor se interessaria por ela? Será que ela tentou? Claro que, por via das dúvidas, ela caprichou na roupa de baixo.
— Pus tudo numa mala. Estes senhores a entregarão a você.
Ela procura com os olhos a mala, que ele reconhece e que está encostada na parede.
— Trate de não se entregar...
Se entregar ao quê?
— Todo mundo foi muito amável. Vai tudo bem.
— O que é que vai bem?
Ele é duro, quase grosseiro. Fica com raiva de si mesmo por estar assim, mas não consegue agir de outro modo.
— Resolvi encerrar meu negócio.
Ela segura o lenço enrolado no oco da mão e sente-se a ponto de chorar.
— Foi Hamling que me aconselhou. Você errou ao não confiar nele. Ele fez tudo o que pôde.
— Minna continua com você?
— Ela não quer me deixar sozinha. Mandou lembranças para você. Se eu achasse outro lugar para morar, mudaríamos, mas é quase impossível encontrar um.
Dessa vez o olhar que Frank pousa nela se torna implacável, quase feroz.
— Vai sair do prédio?
— Sabe como as pessoas são. Agora que você não está mais lá, ficou pior que nunca.
Ele pergunta secamente:
— Sissy morreu?
— Claro que não, ora essa! Que ideia é essa?
Vê as horas no reloginho de ouro da sua pulseira. Para ela, o tempo ainda é importante. Sabe quantos minutos lhe restam.
— Ela sai?
— Ela não sai. Ela está... Olhe, Frank, não sei direito o que ela tem. Acho que está deprimida. Não se recupera facilmente.
— O que ela tem?
— Não sei. Não a vi pessoalmente. Ninguém a vê, a não ser o pai dela e o sr. Wimmer. Dizem que ela sofre de neurastenia.
— Holst voltou a trabalhar no bonde?
— Não. Trabalha em casa.
— O que ele faz?
— Também não sei. Deve fazer escriturações. O pouco que soube foi por Hamling.
— Ele os visita?
Antes, o inspetor-chefe só conhecia os Holst de nome.
— Foi várias vezes à casa deles.
— Por quê?
— Ora, Frank, como quer que eu responda? Você faz perguntas como se não conhecesse o prédio. Não vejo ninguém. Anny foi embora. Parece que ela é mantida por um...
(Não se deve ter o direito de falar dos ocupantes aqui.) Se Minna também tivesse me deixado, não sei que fim eu levaria.
— Viu algum amigo meu?
— Ninguém.
Está desconcertada, decepcionada. Deve ter vindo toda contente, como quando se vai visitar um doente no hospital, levando uvas ou laranjas, e ele nem leva em conta
suas boas intenções, parece até que está zangada com ele, que o responsabiliza por sua decepção.
Ele aponta para um embrulho na cadeira, perto da mãe, e indaga:
— O que é?
— Nada. Objetos que estavam na mala e que não tenho o direito de te entregar.
— Não quero que você se mude.
Ela suspira, impaciente. Será que ele não vê que ela não pode falar com ele como gostaria? Sim, ele sabe. Mas não dá bola. Os inquilinos tornam a vida de Lotte insuportável?
E daí? Ele proíbe que ela se mude e ponto final. É ela ou ele quem decide? O que é que conta, neste momento?
— Holst falou com você?
Por que ela faz uma cara incomodada ao responder?
— Diretamente, não.
— Pediu para Hamling te dizer alguma coisa?
— Não, Frank. Por que você se preocupa com isso? Não tem nada desse lado. Não precisa se inquietar. O momento passou. Se eu quiser voltar para te ver, não posso
exagerar da primeira vez. Gostaria de te dar um beijo, mas é melhor não. Poderiam achar que estou te passando um recado ou que você me cochicha alguma coisa.
Aliás, ele não tem a menor vontade de beijá-la. Devia fazer um bom tempo que ela estava ali quando ele desceu, porque tiveram tempo de revistar a mala antes de ele
chegar.
— Comporte-se. Cuide-se. E, principalmente, não fique preocupado.
— Não estou preocupado.
— Você está engraçado.
Ela também tem pressa de que aquilo acabe. Irá esperar o bonde em frente ao portão e chorará ao longo de todo o percurso.
— Até logo, Frank.
— Até logo, mãe.
— Cuide-se.
Claro! Claro! Como se tivesse a intenção de se deixar definhar!
O velho senhor ergue os olhos para encará-los, um de cada vez, depois indica a Frank a mala. Um civil conduz Lotte através do pátio, e ouvem-se seus passos se afastando,
seus saltos altos na neve endurecida. O velho senhor fala lentamente, escolhendo as palavras. Faz questão de empregar a expressão justa e se exprime da maneira mais
correta possível. Teve aulas e continua a se exercitar.
— O senhor deve ir se preparar.
Destaca as sílabas. Não parece mau. Apenas cioso de correção. Hesita em se lançar numa frase mais longa, repete-a mentalmente antes de se arriscar a fazê-lo.
— Se desejar fazer a barba, levam o senhor à barbearia.
Frank recusou. Cometeu um erro. Isso teria lhe permitido conhecer outra parte dos prédios. Não seria capaz de dizer a que sentimento obedeceu. Não está particularmente
a fim de ficar sujo, de encenar o preso barbudo. A verdade — ele levará dias para admitir — é que, quando lhe falaram da barba, pensou automaticamente nas botas
de feltro de Holst.
Não tem nada a ver. Ele gostaria, justamente, que não tivesse nada a ver. Prefere mudar o rumo de seus pensamentos.
E agora não lhe falta material para isso. Deixam-no carregar sua mala. Novamente um civil o precede, e o soldado o segue enquanto o conduzem de volta à sua sala
de aula; tem um pouco a ilusão de se dirigir para um quarto de hotel. Fecham sua porta e deixam-no sozinho.
Por que mandaram ele se preparar? Porque é uma ordem, sem sombra de dúvida. Chegou a hora. Vão levá-lo a algum lugar. Será que o farão levar a mala? Será que depois
voltará para cá? Devem ter tirado os jornais que embrulhavam os objetos; está tudo misturado. Tem sabonetes cor-de-rosa que lembram a pele de Bertha, um salaminho
defumado, um bom pedaço de toicinho, meio quilo de açúcar e barras de chocolate. Encontra também meia dúzia de camisas e pares de meias, assim como um suéter novo,
que sua mãe deve ter comprado. Tem até, no fundo, um par de luvas tricotadas, de lã bem grossa, como nunca usaria lá fora.
Ele se troca. Perdeu a mulher à janela. Pensa depressa demais. Isso não conta. Empurram-no, o que aumenta seu mau humor. Chega a sentir falta de sua solidão e de
seus pequenos hábitos. Quando voltar, se voltar, precisará passar tudo isso a limpo em sua cabeça. Dá uma mordida no chocolate, sem perceber que faz dezenove dias
que isso não acontecia, e o que sobra da visita de Lotte é um sentimento de decepção.
Não sabe de que outra maneira podia ter acontecido, mas está decepcionado. Não encontrou nenhum ponto de contato com ela. Ele lhe fazia perguntas e lhe pareceu,
ainda lhe parece, que o que ela respondia não tinha relação alguma com o que ele perguntava. No entanto, ela lhe deu notícias, tão rápida e diretamente quanto possível.
Não deve ter sido incomodada pelas autoridades, pois na véspera ainda não sabia onde ele estava. Os jornais não falaram dele, portanto. A polícia local não se ocupa
com ele. Deve ter sabido por Kurt Hamling.
Este continua a frequentar o prédio, mas atravessou o patamar mais ou menos como se atravessa um rio. Agora, vai à casa dos Holst. Fazer o quê? Holst não está mais
nos bondes. Há nisso uma razão bem simples. Sua profissão o obrigava, cada duas semanas, a voltar para casa no meio da noite, e durante sua ausência Sissy ficava
sozinha. Deve ter encontrado outro emprego, que só o ocupa durante o dia.
Não deixam mais Sissy a sós. Ele sabe muito bem como sua mãe e as pessoas como ela falam desses assuntos. Se ela pronunciou a palavra neurastenia, se pareceu embaraçada,
é que é mais sério.
Será que Sissy está louca?
Ele não tem medo das palavras. Obriga-se a pronunciar esta em voz alta:
— Louca!
Pronto. Com os dois homens, o pai e o sr. Wimmer, que se revezam ao lado dela, mais o inspetor-chefe que vem de vez em quando sentar numa cadeira, sem tirar o sobretudo
nem as galochas que deixam pegadas molhadas no chão.
Vão levar Frank a algum lugar. Senão, não teria sentido mandarem ele se preparar. Pois bem, está pronto bem antes. Não tem mais nada a fazer e não vale a pena pensar
durante essa espécie de entreato. O único resultado disso seria reduzir um pouco suas capacidades. Depois do chocolate, mordisca um pouco de salaminho. Sua mãe não
pensou que ele não dispõe de uma faca para cortá-lo. E não tem mais água para lavar o rosto. Recende a carne defumada.
Que venham logo! Que o levem! E, principalmente, que o tragam de volta o mais depressa possível e o deixem em paz!
O mesmo civil de há pouco. No fundo, fora os soldados, que mudam o tempo todo, não são muito numerosos. Todos têm um ar de família. Se Timo tiver razão, o setor
a que pertencem deve ser de nível bem elevado. Timo não lhe disse que o homem diante do qual o coronel desandou a tremer tinha uma cara de funcionário de baixo escalão?
Aqui, é o caso de todos eles. Não se vê um só que seja alegre ou elegante. Não dá para imaginá-los sentados à mesa diante de um bom jantar, nem acariciando mulheres.
Pela aparência, são homens feitos para alinhar números.
Como, sempre segundo Timo, a verdade é o contrário das aparências no que diz respeito a eles, devem ser tremendamente poderosos.
De novo a saleta. O velho senhor não está. Na certa foi almoçar. Frank encontra sua gravata e seus cadarços em cima do móvel. Dizem-lhe, com um sotaque ruim, designando
os objetos:
— Pode pegar.
Senta numa cadeira. Não está mais nem um pouco impressionado. Se essa gente compreendesse melhor sua língua, desandaria a lhes dizer qualquer coisa.
Dois deles esperam, chapéu na cabeça. Na hora de sair, um dos dois lhe oferece um cigarro, depois um fósforo.
— Obrigado.
Um carro estaciona no pátio, não um veículo de transporte de presos, nem um carro militar, mas um carro preto e brilhante como tinham “antes” os ricos que podiam
pagar um motorista. Ágil, sem fazer barulho, passa pelo portão e ruma para a cidade, seguindo os trilhos do bonde. Embora os vidros estejam fechados, o ar de dentro
tem um pouco o gosto do ar de fora. Vê-se gente nas calçadas, vitrines, um garoto que empurra meio tijolo com o pé saltitando numa perna só.
Não o mandaram carregar sua mala. Também não teve de assinar nenhum documento. Vai voltar. Tem a convicção de que vai voltar e rever a mulher estender a roupa de
bebê na janela. Falando nisso, se se virasse a tempo talvez tivesse reconhecido o prédio dela. Tem de se lembrar disso ao voltar.
O caminho é muito mais curto de carro do que de bonde. Já se aproximam do centro da cidade. Contornam um edifício importante onde fica a maioria das repartições
militares. É ali que o general deve ter o escritório dele. Há sentinelas em todas as portas, e barreiras que impedem os civis de passar pela calçada.
Não param diante da entrada monumental, mas de uma porta baixa, numa rua transversal, onde havia outrora um posto policial que mudara dali. Não precisa que ninguém
lhe faça sinal para descer. Já entendeu. Fica um instante de pé, imóvel, no meio da calçada, um breve instante. Vê gente do outro lado da rua. Não reconhece ninguém.
Ninguém o reconhece, nem olha para ele. Não se demora. Certamente não é permitido.
Entra, por iniciativa própria. Espera um segundo que o precedam num dédalo de corredores escuros e complicados, onde há inscrições misteriosas nas portas e onde
às vezes cruza com uma secretária carregando pastas debaixo do braço.
Não é aqui que vão torturá-lo. Não haveria tantas funcionárias de blusa clara. Elas não olham para ele quando passa. Não há nada de dramático. São escritórios, simplesmente,
uma enorme quantidade de escritórios em que se acumula o papelório e onde os oficiais e suboficiais fardados trabalham fumando charuto. Os sinais misteriosos, nas
portas, letras seguidas de números, indicam evidentemente os diferentes serviços.
É outro setor, Timo tem razão. Sente-se logo a diferença. Será um setor inferior ou superior? Ainda não é capaz de dizer. Aqui, por exemplo, ouvem-se vozes altas,
cochichos, risadas. Homens bem alimentados estufam o peito e afivelam o cinturão antes de sair; adivinham-se os seios das mulheres sob a blusa, o macio das suas
ancas sob a saia. Com certeza algumas fazem amor na quina das escrivaninhas.
O próprio Frank se comporta de maneira diferente. Olha ao redor como faria num lugar qualquer e sente-se um pouco incomodado por ter conservado a barba. Porta-se
quase como antes. Tentou se ver no vidro de uma porta e levou a mão à gravata.
Chegam. É quase no topo dos prédios. As salas têm teto mais baixo, as janelas são menores, os corredores, poeirentos. Introduzem-no numa primeira sala, onde não
há ninguém, onde só se veem arquivos verdes ao longo das paredes e uma mesa grande de madeira branca coberta de mata-borrões sujos.
Será que está enganado? Parece-lhe que seus dois companheiros não se sentem em casa, que assumiram uma expressão distante e humilde ao mesmo tempo, talvez com um
pequeno toque de ironia ou de desprezo. Interrogam-se com o olhar antes de um deles bater numa porta lateral. O homem desaparece, volta logo em seguida, seguido
por um oficial gordo de túnica desabotoada.
Da porta, o oficial examina Frank da cabeça aos pés, fumando seu charuto com um ar importante.
Parece satisfeito. Ao primeiro olhar, pareceu um pouco surpreso por ele ser tão moço.
— Venha aqui!
É ao mesmo tempo bonachão e ranzinza. Para fazê-lo entrar, põe a mão em seu ombro. Os dois civis não os acompanham na sala, cuja porta o oficial fecha. Num canto,
perto de outra porta, um oficial mais moço, de uma patente inferior, trabalha à luz de um abajur, porque aquela parte do cômodo é mal iluminada.
— Friedmaier, não é?
— É meu sobrenome.
O oficial dá uma olhada na folha datilografada que estava pronta.
— Frank Friedmaier. Muito bem. Sente-se.
Designa-lhe, do outro lado da sala, uma cadeira com assento de palha, empurra em sua direção uma caixinha de cigarros, um isqueiro. Deve ser um costume. Os cigarros
estão ali para os visitantes, porque ele fuma um charuto de tabaco extraordinariamente claro e perfumado.
Escarrapachou-se na sua poltrona, barriga para a frente. Tem cabelos rarefeitos, tez de comilão.
— Então, meu amigo, o que tem a nos dizer?
Embora tenha sotaque, domina a língua a fundo, conhece suas nuances, e sua familiaridade é deliberada.
— Sei lá — diz Frank.
— Haha! Sei lá.
E traduz para o outro oficial essa resposta que parece encantá-lo.
— Mas vai precisar saber, não é? Te deram bastante tempo para refletir.
— Refletir sobre o quê?
Dessa vez o oficial franze o rosto, levanta-se, vai até um móvel onde pega um dossiê, que consulta. Talvez não passe de uma encenação. Senta-se novamente, retoma
a pose, derruba com a unha do dedinho a cinza do charuto.
— Estou esperando.
— Meu maior desejo é responder às perguntas do senhor.
— Este é o ponto! A que perguntas, não é? Aposto que você não sabe.
— Não.
— Não sabe o que fez?
— Não sei o que me recriminam.
— Este é o ponto! Este é o ponto!
É um tique. Pronuncia a frase de maneira engraçada, a torto e a direito.
— Você gostaria de saber o que queremos saber, este é o ponto! Não é isso?
— É isso mesmo.
— Porque, talvez, você saiba de outras coisas?
— Não sei de nada.
— Nadica de nada! Você não sabe nadica de nada! Mas não foi no seu bolso que encontramos isto?
Por um instante, Frank esperou ver o revólver surgir da gaveta na qual o oficial meteu a mão. Empalideceu. Sente que têm os olhos fixos nele. Olha como que contra
a própria vontade para a mão do seu interlocutor e fica surpreso ao reconhecer o maço de notas que levava nos bolsos e exibia a torto e a direito.
— Este é o ponto! E isto não é nada, não é?
— É dinheiro.
— É dinheiro, sim. Muito dinheiro.
— Eu o ganhei.
— Você o ganhou, este é o ponto! Quando a gente ganha dinheiro, sempre tem alguém, ou um banco, que o entrega a você. É assim, não? Eu quero saber, simplesmente,
quem te entregou este dinheiro. É simples. É fácil. É só me dizer o nome. Este é o ponto!
Fez-se um silêncio súbito; depois, passado um bom momento, o oficial repete, mais insinuante, as bochechas meio rosadas:
— É só me dizer o nome...
— Não sei.
— Não sabe quem te entregou esta dinheirama?
— Recebi certamente de várias origens.
— Não é?
— Eu faço comércio.
— Não é?
— A gente recebe aqui e ali. Troca notas. Não registra...
Mas de repente o homem muda de tom, fecha a gaveta com um ruído seco, antes de dizer, categórico:
— Não!
Está com uma cara furiosa, ameaçadora. Por um instante, Frank acredita que é para vir esbofeteá-lo que contorna a mesa e se aproxima dele, toca-o de novo no ombro.
É para forçá-lo a se levantar, enquanto continua a falar como se consigo mesmo.
— É um dinheiro qualquer, não é? Que a gente recebe aqui e ali e enfia no bolso, sem se dar ao trabalho de conferir.
— Sim.
— Não.
Frank sente um nó na garganta. Não sabe onde seu interlocutor quer chegar. Sente uma ameaça imprecisa, um mistério. Pensou durante dezoito dias, quase dezenove,
loucamente... Tentou prever tudo, e nada acontece como deveria acontecer. De uma hora para a outra, acabam de transportá-lo para outro plano. A escola, o velho senhor
de óculos, representam de repente um mundo quase tranquilizador e, no entanto, está com o cigarro nos lábios, ouve na sala ao lado o tilintar de uma máquina de escrever,
mulheres passam pelo corredor.
— Olhe bem isto, Friedmaier, e me diga se continua sendo um dinheiro qualquer.
Pegou uma das notas na mesa. Leva Frank para a janela, com uma mão sempre em seu ombro, e segura a nota de forma a ser vista em transparência.
— Aproxime-se! Não tenha medo! Não deve ter medo.
Por que essas palavras parecem mais ameaçadoras do que o barulho das pancadas que ouviu no primeiro dia na sala do velho senhor?
— Olhe bem. No canto esquerdo. Uns furinhos. Seis furinhos. Este é o ponto! Os furinhos formam um desenho. E há furinhos como estes em todas as notas que estavam
no seu bolso e nas notas que você gastou.
Frank está sem voz, sem pensamento. É como se um buraco se abrisse diante dele no lugar mais imprevisto, como se a parede cessasse de existir em torno da janela,
deixando os dois homens à beira do vazio da rua.
— Não sei.
— Não sabe, não é?
— Não!
— E não sabe também o que significam estes furinhos? Este é o ponto! Você não sabe!
— Não!
É verdade. Nunca ouviu falar. Tem a impressão de que o simples fato de saber o sentido do que o oficial chama de furinhos seria uma imputação muito mais arrasadora
contra ele do que por qualquer outro crime. Quer que olhem em seus olhos, que leiam nele sua boa-fé, sua sinceridade absoluta.
— Juro que não sei.
— Mas eu sei.
— O que quer dizer?
— Eu sei. E é por isso que preciso saber onde você conseguiu estas notas.
— Eu lhe disse...
— Não!
— Garanto que...
— As notas foram roubadas.
— Não por mim.
— Não!
Como ele pode ser tão afirmativo? E eis que ele articula martelando as sílabas:
— Foram roubadas aqui.
Como Frank olha ao redor com terror, ele corrige:
— Foram roubadas aqui, neste prédio!
Frank teme desmaiar. Doravante compreenderá as palavras suor frio. Compreende outras coisas. Crê compreender tudo.
Os furinhos são feitos nas notas pelos ocupantes. Em que notas? As de que reserva?
Ninguém sabe, nunca nem desconfiou, e já é aterrorizante estar a par do segredo.
Não é a ele que acusam, cacete! Não é Kromer, também. Eles sabem muito bem que eles não passam de pequenos traficantes e que gente como eles não têm acesso a certos
cofres.
Será que já suspeitam do general? Será que detiveram Kromer? Será que o interrogaram? Terá ele falado?
A cabeça de Frank funcionou em vão dezoito dias e meio. Tudo era falso, estúpido. Ele se preocupava com gente sem importância, gente do seu nível, como se a sorte
fosse se valer de intermediações assim.
A sorte escolheu uma nota bancária, sem dúvida uma das que ele gastou, quem sabe no bar do Timo, ou no alfaiate que lhe vendeu seu sobretudo de pele de camelo. Ou,
quem sabe, uma das notas que deu a Kropetzki pelos olhos da irmã?
— Precisamos saber, não é? — diz o oficial sentando-se novamente.
E empurra de novo para Frank a caixa de cigarros.
— Este é o ponto, Friedmaier! Este é o caso!
TERCEIRA PARTE
A mulher à janela
1
Está deitado de bruços e dorme. Tem consciência de dormir. É uma coisa que aprendeu recentemente, com muitas outras. Antes, era só pela manhã, principalmente quando
o sol já nascera, que tinha consciência de dormir. E, como isso era mais forte ainda quando havia bebido na véspera, às vezes voltava tarde para casa depois de beber
além da conta só para saborear esse sono.
Mas não se tratava exatamente de um novo sono. Antes, não dormia de bruços. Será que todos os prisioneiros aprendem a dormir de bruços? Não sabe. Está pouco se lixando.
No entanto, utilizaria de bom grado o complicado sistema de correspondência deles, se tivesse a paciência e o gosto de estudá-lo, só para lhes aconselhar:
— Durmam de bruços!
Não é apenas deitar de bruços. É se colar, como um bicho, como um inseto, nas tábuas que constituem o somiê da cama. Por mais duro que seja, tem a impressão de que
vai deixar ali a marca do seu corpo, como quando a gente se deita na terra de um campo.
Está de bruços, e isso dói. Uma porção de ossinhos ou de músculos doem, não de uma vez, não todos ao mesmo tempo, mas conforme uma ordem que ele começa a conhecer
e que se tornou capaz de orquestrar como uma sinfonia. Tem as dores graves e escuras e as dores agudas, tão vivas que fazem enxergar em amarelo-claro. Algumas duram
apenas alguns segundos, mas sua intensidade as torna voluptuosas, e lamentamos quando se dissipam, enquanto outras formam o fundo, se misturam, se harmonizam tão
bem que, no fim, a gente seria incapaz de designar o ponto sensível.
Seu rosto está enfiado no casaco enrolado em bola, que lhe serve agora de travesseiro, seu casaco que era quase novo, que pena!, quando chegou. Ele cometeu a estupidez,
nos primeiros dias, de poupá-lo, tirando-o de noite, o que o impede de cheirar tão bem quanto podia.
De ele cheirar bem. De a terra cheirar bem, a coisa que vive, que sua. Ele enfia de propósito o nariz no lugar que cheira mais forte, debaixo dos braços. Ele gostaria
de feder, como dizem as pessoas lá fora, feder como a terra fede, porque as pessoas lá de fora acham que o homem fede, que a terra fede.
Sentir seu coração bater, senti-lo em toda parte, na têmpora, no punho, nos dedos do pé. Sentir o cheiro da sua respiração, o calor da sua respiração. E misturar
as imagens, maiores, mais verdadeiras do que o natural, coisas vistas, coisas ouvidas e vividas, outras também, que poderiam ter ocorrido, misturar tudo isso, de
olhos fechados, corpo inerte, espreitando porém certos passos na escada de ferro.
Tornou-se um ás desse jogo. Quem fala em jogo? É a vida. No colégio dizia-se:
— Ele é cobra em matemática.
Não ele, um colega de cabeça grande.
Frank, hoje, é cobra em vida. Sabe se colar nas tábuas, enfiar o rosto no casaco, fechar os olhos, afundar, soltar o lastro, descer e subir à vontade, ou quase.
Existem em algum lugar dias, horas, minutos. Não aqui, não para ele. Às vezes, quando quer contar mesmo, conta por “mergulhos”.
Parece uma idiotice. Ele não ficou idiota. Não perdeu o pé, está mais decidido do que nunca a não se deixar vencer. É que, ao contrário, ele progride. Para que,
por exemplo, se preocupar com as horas, tal como elas transcorrem lá fora, num lugar em que nada se rege por elas?
Se cortam um bolo em fatias e você é guloso, preocupe-se com as fatias. Mas e se cortam em tiras? E se cortam em cubos?
A gente tem de aprender tudo, a começar por dormir. E dizer que os homens imaginam que sabem dormir! Porque eles têm horas demais a consagrar ao sono, se assim lhes
aprouver. Alguns ousam se queixar de que são escravos do despertador, quando eles próprios é que o acertam na hora de deitar e que às vezes saem do seu meio-sono
para certificar-se de que o botão está mesmo puxado!
Fazer-se acordar por um despertador que você mesmo acertou! Fazer-se acordar por si mesmo, em suma! E, para eles, é uma escravidão!
Que eles aprendam então, primeiro, a dormir de bruços, a dormir, onde quer que seja, na terra, como os vermes, como os insetos. E, na falta de cheiro de terra, que
aprendam a se contentar com seu próprio cheiro.
Lotte vaporiza perfumes debaixo do braço e sem dúvida entre as coxas, ela obriga suas pensionistas a fazer o mesmo.
É inconcebível!
Dormir de bruços, dosar, espreitar, orquestrar suas dores musculares, passar a língua no buraco deixado pelos dois dentes que faltam e se dizer que, se tudo correr
bem, se o dia for feliz, verá a janela se abrir além dos pátios, bem lá longe, dormir assim, pensar assim, isso já nos aproxima da verdade. Ainda não é a verdade
inteira, ele não ignora. Mas reconforta saber que estamos no bom caminho.
Esse sinal, são dois da classe ao lado que saem para o recreio. Como dizer de outra maneira? Os passos deles são alegres. Não adianta, até os que vão ser fuzilados
amanhã têm passos alegres, talvez porque ainda não saibam disso!
Eles passam. Bom! A questão é saber se o velho senhor tem bastante trabalho ou não. O velho senhor tem muito mais importância do que qualquer outra pessoa no mundo.
Não deve ser casado. Se for, sua mulher ficou na terra dela, o que dá na mesma. Mesmo estando ocupado, é homem de erguer de repente a cabeça e ordenar:
— Tragam Frank Friedmaier.
Felizmente, é raro fazê-lo a esta hora. Felizmente, sobretudo, que ele não sabe, que ninguém sabe, e é essa uma das razões pelas quais Frank adquiriu o costume de
dormir de bruços. Se soubessem que ele está à espreita, se desconfiassem por um instante da alegria que isso lhe proporciona, não há dúvida de que mudariam os horários
da escola.
Já não é inverno. Desculpe! Estamos em pleno inverno, claro. Os maiores frios ainda não passaram, estão por vir. Vêm geralmente em fevereiro, ou em março, e quanto
mais tarde vêm, mais terríveis são. Chegam a durar até meados, às vezes até o fim de abril.
Vamos dizer que passamos a parte mais negra do túnel. Acontece este ano o que acontece de quando em quando no fim de janeiro, uma falsa primavera; lá fora, em todo
caso, chamam isso de falsa primavera. O ar e o céu são límpidos. A neve brilha sem derreter e, no entanto, não faz frio. A água é gelada todas as manhãs e faz um
sol tão lindo o dia todo que juraríamos que os pássaros vão fazer seus ninhos. Aliás, os pássaros devem se enganar com esse tempo, porque vemos que voam dois a dois
e se perseguem como para o amor.
A janela, ao longe, para lá da sala de ginástica ou salão de festas, permanece aberta mais tempo. Uma vez ele adivinhou, pelos movimentos da mulher, que ela estava
passando roupa. Outra vez, foi magnífico, inesperado. Ela sem dúvida aproveitava um dos dias mais amenos para fazer uma faxina em regra. A janela ficou aberta mais
de duas horas! Será que pôs o berço em outro cômodo ou cobriu bem o bebê adormecido? Bateu umas roupas, inclusive roupas masculinas. Ela as sacudia, as batia como
tapetes, e cada um dos seus gestos fazia a Frank um mal horrível ao mesmo tempo que um bem.
De longe, ela não é maior que uma boneca. Ele não a reconheceria na rua. Não tem importância, pois a ocasião nunca se apresentará. Não passa de uma boneca. Não dá
para distinguir suas feições. Mas é uma mulher, uma mulher que cuida de sua casa. Com que vigor ela cuida! Ele sente, adivinha isso.
É por causa dela que fica à espreita de manhã. Logicamente, a esta hora, ele deveria estar dormindo um sono pesado. No início, temia perdê-la. Ora, só a perdeu uma
vez, uma vez em que estava verdadeiramente exausto. Mas foi na época em que ainda não havia aprendido a orquestrar o sono.
Ela nem desconfia. Nunca desconfiará de nada. É uma mulher, uma mulher não rica, uma mulher pobre, a julgar pelo lugar em que vive. Tem um homem e um filho. O homem
deve ir cedo para o trabalho, porque Frank nunca o viu. Será que ela lhe prepara o almoço numa marmita de lata, como a que Holst levava no bonde? É possível. É provável.
Logo depois, ela se dedica ao trabalho, em sua casa, na casa deles. Às vezes deve cantar, rir com o bebê. Porque os bebês não apenas choram, como sua mãe de criação
tentou lhe fazer crer.
— Quando você chorava...
— No dia em que você chorava tanto...
— No domingo em que você foi tão insuportável...
Só uma vez ela disse:
— Quando você ria...
E a cama, a cama que recende aos dois. Ela não sabe. Se soubesse, não poria os lençóis e as cobertas na janela para arejar. Nem abriria a janela. Ainda bem para
ele que ela pertence a lá fora. Se estivesse no lugar dela, fecharia tudo, guardaria tudo, não deixaria escapar nada da vida deles.
Aquela manhã da grande limpeza lhe pareceu tão excepcional que ele hesitou em acreditar que a sorte ainda pudesse lhe reservar alegrias assim. Lá longe, ela festejava
a falsa primavera a seu modo, arejando, limpando, esfregando. Sacudiu tudo, revirou tu­do. Era linda!
Ele não a viu de perto, mas não tem importância: era linda!
Há um homem, em algum lugar da cidade, que sai de casa de manhã com a certeza de encontrar aquela mulher de noite, e a criança no berço, e a cama com o cheiro deles!
Pouco importa o que ele faz, o que ele pensa. Pouco importa que, de longe, a mulher à janela seja reduzida às proporções de um teatro de marionetes. Frank é que
vive mais intensamente a vida deles. Muito embora, deitado de bruços, ele só arrisque um olhar, porque, se eles percebessem o que o apaixona, mudariam seus horários.
Ele os conhece. Não era o Timo que pretendia conhecê-los? Timo só possuía farrapos de verdade, ou antes, verdades prontas para o consumo, como as que lemos nos jornais.
Quando era pequeno, sua mãe de criação, a sra. Porse, o irritava dizendo:
— Você brigou de novo com Hans porque...
E seu porque era sempre falso... Porque Hans era filho de um grande fazendeiro. Porque era rico... Porque era mais forte... Porque... Porque...
A vida toda ele viu as pessoas se enganarem com seus porquês. Lotte em primeiro lugar! Lotte que entendeu menos do que qualquer outro.
Não existe porque... É uma palavra para os imbecis. Para a gente lá de fora, em todo caso. Com os porquês, não haveria nada de espantoso se um dia lhe concedessem
uma medalha que não mereceu, ou se o condecorassem postumamente.
Por que o quê?
Por que não respondeu ao oficial que soprava em sua cara a fumaça do seu charuto, quando o interrogou, no quartel-general, lá em cima, no último andar? Não era mais
herói do que outro qualquer.
— Você tem que saber, Friedmaier.
Aquela história de notas com furinhos não lhe dizia respeito. Era só responder:
— Pergunte ao general.
Era tão banal! Um simples negócio de relógios. Como Frank não conhecia o general pessoalmente, teria sido obrigado a acrescentar:
— Entreguei os relógios a Kromer, e foi Kromer que me deu minha parte.
Não tem dó de Kromer. Tem menos vontade ainda de arriscar a vida por ele. Ao contrário. De uns tempos para cá, Kromer é um dos raros homens que gostaria de ver morto,
se não o único.
Então, o que aconteceu ao certo, lá em cima, no escritório?
O oficial estava diante dele, ainda bonzinho, com seu charuto de fumo claro, sua tez rosada. Frank nunca vira o general. Não tem nenhuma razão de se sacrificar por
ele. Não era mais simples dizer:
— Foi assim que as coisas aconteceram, e o senhor há de admitir que não tenho nada a ver com as notas.
Por que não agiu assim? Ninguém nunca saberá. Nem mesmo ele. Encontrou explicações dois dias, cinco dias, dez dias depois, todas diferentes, todas válidas.
A verdadeira, a única, talvez seja a de que ele não tinha vontade de ser solto, devolvido à vida de todo mundo.
Agora, ele sabe. Na realidade, o fato de falar ou de não falar não tinha importância, pelo menos no que dizia respeito ao resultado final. Não encontraria nada a
responder a alguém que explicasse sua atitude afirmando:
— Você sabia que ia acabar passando pelo que passou de qualquer jeito!
É claro. Não que ele soubesse, mas que devia passar por aquilo. Só que essa verdade ele só admitiu depois.
No fundo, resistiu por resistir. Quase fisicamente. Talvez, podemos especular que tenha querido, desse modo, responder à familiaridade insultante do oficial. Frank
replicou-lhe:
— Sinto muito.
— Sente muito pelo que fez, não é?
— Sinto muito, simplesmente.
— O que você sente muito?
— Sinto muito não ter nada a lhe dizer.
E ele sabia. Estava consciente de tudo, das torturas prováveis, da sua morte, de tudo. Parecia até fazer de propósito.
Não se lembra mais. A coisa permanece difusa. Tinha se empertigado, como um jovem galo, diante daquela potência extraordinária plantada à sua frente e se comportava
como um garoto que quer levar uns tapas.
— Você sente muito, não é, Friedmaier?
— Sim.
Olhava fixo nos olhos do oficial. Será que esperava vagamente o socorro do outro, que trabalhava às suas costas, à luz do abajur? Será que contava com as datilógrafas
que passavam pelos corredores? Será que ainda se dizia:
— Essas coisas com certeza não acontecem aqui.
Aguentou firme, em todo caso. Não queria sequer pestanejar. Repetia:
— Sinto muito!
— Sente muito mesmo? Diga exatamente o que você sente, Friedmaier. Reflita antes de responder.
Deu uma resposta besta, mas depois a emendou.
— Não sei.
— Sente não ter sabido a tempo que fazíamos furinhos nas notas, não é?
— Não sei.
— Sente ter mostrado esse dinheiro a todo mundo?
— Não sei.
— E agora, sente muito por saber demais. Este é o ponto! Você sente muito por saber demais, Friedmaier!
— Não...
— Daqui a pouco você vai sentir muito por não ter falado!
Tudo se passou numa espécie de nevoeiro. Nem um nem outro se preocupavam mais com o sentido das palavras. Eles as soltavam a esmo, como pedras que a gente cata sem
olhar para o chão.
— Agora você se lembra, aposto. Vai se lembrar.
— Não.
— Claro que sim. Tenho certeza de que você se lembra.
— Não.
— Claro que sim. Uma pilha assim de notas!
Ora ele parecia brincar, ora seu rosto adquiria uma expressão feroz.
— Você se lembra, Friedmaier.
— Não.
— Na sua idade, a gente sempre acaba se lembrando.
O charuto! Ele revê principalmente o charuto que se aproximava e se afastava do seu rosto, o outro rosto que se avermelhava, se cobria de manchas, depois, de supetão,
de uma certa imobilidade nas pupilas de um azul de faiança. Nunca vira, ainda mais de tão perto, pupilas como aquelas.
— Friedmaier, você é um crápula.
— Eu sei.
— Friedmaier, você vai falar.
— Não.
— Friedmaier...
É engraçado como os adultos continuam a fazer a vida toda o que fizeram na escola! O oficial comportou-se verdadeiramente como um maior na classe, se não como um
professor às voltas com um jovem endiabrado. Perdia as estribeiras. Bufava, quase suplicava:
— Friedmaier...
Frank havia decidido de uma vez por todas dizer não.
— Friedmaier...
Havia uma régua em cima da mesa, uma régua de cobre maciço.
O oficial pegou-a, repetiu, no limite do autocontrole:
— Meu caro Friedmaier, está na hora de você entender...
— Não.
Será que Frank queria levar uma reguada na cara? É possível. Foi o que aconteceu. Brutalmente. Na hora em que ele menos esperava, em que o outro talvez menos esperasse
também, embora já estivesse com a régua na mão.
— Friedmaier...
— Não.
Ele não é um mártir, nem um herói. Não é absolutamente nada. Compreendeu isso, talvez quatro, talvez cinco dias depois. O que teria acontecido se em vez de dizer
não tivesse dito sim?
Isso não teria mudado nada para os outros, provavelmente. Kromer está fugido, tem quase certeza. Quanto ao general, primeiro Frank está se lixando para ele. Depois,
não é o testemunho de um moleque como ele que pesará no destino de um general. Ele sairá de circulação, ou já saiu. Pouco importa!
O que conta, o que Frank descobriu depois, é que seu destino, o dele também, teria sido o mesmo, falando ou não, exceto a reguada na cara.
Agora ele sabe demais. Não mandam de volta para a rua garotos que sabem tanto quanto ele. Se anunciarem amanhã o suicídio do general, é bom ninguém sair gritando
por aí:
— Não é verdade!
Ao falar de oficiais, ninguém tem o direito de afirmar:
— São uns ladrões!
Na hora, lá em cima, ele não pensou. Disse “não”. Não tem certeza, atualmente, que foi porque queria sofrer. Havia com certeza a atração da tortura, o fato de saber
se resistiria ou não, como tinha se perguntado tantas vezes.
Lotte costuma dizer dele:
— Ele bota a casa de pernas para o ar quando tem o azar de se cortar ao fazer a barba.
Pouco importa Lotte. Não se trata dela. Nem de nada que a ela diga respeito. Só havia ele em jogo quando disse não. Só ele. Nem mesmo Holst. Menos ainda Sissy.
Que ninguém fale nunca da sua amizade por Kromer, nem da sua dívida para com o general. Foi por ele, Frank — nem mesmo Frank —, por ele pura e simplesmente que disse
não.
Para ver!
E o oficial gordo, na hora de perder seu sangue-frio, repetiu duas ou três vezes:
— Entende? Entende?
Frank devia estar com sua cara mais teimosa, a que tem o dom de deixar Lotte furibunda. Ele se vingava assim de muitas coisas — são contas que fará mais tarde; em
todo caso, ele levava conscientemente, quase cientificamente, o oficial a perder as estribeiras.
— Você vai ter que...
— Não.
— Vai ter, não é?
— Não.
E plaf! A régua na cara, em cheio na cara, de través. Frank sentiu-a vir. Até o último segundo, poderia ter dito sim, ou, a rigor, se abaixar. Não se mexeu, e ouviu-se
um estalo de osso.
Ele queria essa reguada. Tinha medo dela, mas a queria. Recebeu um choque em toda a ossatura, da cabeça aos pés. Fechou os olhos. Acreditou, esperou se enxergar
no chão, mas permaneceu de pé.
O que fez de mais difícil — e, no fundo, só houve isso de difícil — foi não levar a mão ao rosto. No entanto, tinha a impressão de que seu olho esquerdo havia saltado
da órbita. Como o gato da casa da sra. Porse! O gato da casa da sra. Porse o fez pensar em Sissy. Quando se infligiu a ela o que ele lhe infligiu, lá se tem o direito
de se lamentar por causa de um olho?
O sangue escorria por toda parte, no pescoço, no queixo, e ele não disse nada, não ergueu a mão para se apalpar, continuava a encarar o oficial, cabeça erguida.
Terá sido nesse momento que se deu conta de que, o que quer que lhe acontecesse dali em diante, ele estava perdido, mas que isso não tinha importância? Se sim, não
passou de uma breve impressão. A verdadeira descoberta foi em seu canto, deitado de bruços, que ele fez pacientemente.
Isso não muda nada.
Ele não havia acreditado que procediam a esse tipo de operação ali nos escritórios. Não se enganara muito. O oficial, depois de espancá-lo, pareceu confuso e disse
algumas palavras a seu colega de patente inferior, que trabalhava à luz do abajur. Sem dúvida algo como:
— Vire-se com ele.
Foi um erro que cometeu batendo com a régua de cobre. Frank agora sabe. Aquilo não deveria ter acontecido naquele pavilhão. Quem sabe o oficial não é punido, por
sua vez, e transferido.
Os setores, como diz Timo.
O oficial do abajur, um magrela alto, ainda moço, suspirou co­mo se não fosse a primeira vez que o outro se deixava levar a gestos do gênero, depois abriu uma porta
na qual havia penduradas uma pia de esmalte e uma toalha.
Alguns ossos foram quebrados, ou cartilagens, Frank tinha certeza. Não sabia quais. Quando abriu a boca, cuspiu dois dentes e vomitou um jorro de sangue.
— Fique calmo. Não é nada.
O segundo oficial se mostrava embaraçado.
— Quando sangra, não é nada — dizia procurando as palavras.
No entanto ele se sentia incomodado por aquele sangue que escorria no assoalho, enquanto seu chefe, pondo o quepe arrogantemente na cabeça, saía da sala. Parecia
dizer:
— Ele não vai mudar nunca!
O olho não tinha saltado da órbita, mas provocava esse efeito em Frank. Poderia ter desmaiado. Teria sido fácil. Era mais ou menos o que o oficial temia. Mas Frank
quis permanecer duro.
— Não há de ser nada. Um machucadinho. Você o irritou. Fez mal, fique sabendo.
Será que o magro era melhor que o outro? Seria uma comédia para fazê-lo falar, no fim das contas? O magrela era comprido, equino, lento e delicado em seus movimentos.
O que o consternava é que o sangue não parava de escorrer, que jorrava do nariz, da boca, da bochecha.
Por fim, exasperado, resignou-se a chamar os dois civis que esperavam ao lado. Estes se entreolharam, um deles desceu.
O resto foi resolvido em alguns movimentos. O homem que tinha descido reapareceu. Enrolaram no rosto de Frank uma espécie de echarpe grossa e escura. Os dois, cada
um segurando num braço, levaram-no até o pátio onde o carro, que haviam deixado do lado de fora, viera aguardá-los.
Estariam aqueles homens furiosos uns com os outros? Existe uma real rivalidade entre eles? O veículo arrancou. Frank estava bem, apenas com a sensação de que sua
cabeça se esvaziava lentamente. Não era uma sensação desagradável. Lembrava-se de que devia tentar avistar o prédio, de que só conhecia uma janela, mas no último
instante não teve forças para abrir os olhos.
Continuava sangrando. Era nojento. Havia sangue em toda parte. Mal teve tempo de perceber o velho senhor, que deu suas ordens em algumas palavras. O velho senhor
também não estava satisfeito.
Foi assim que Frank conheceu, embaixo da escada de ferro, a enfermaria que nunca havia notado. É uma sala de aula também, mas fizeram umas adaptações e instalaram
móveis laqueados, vários utensílios.
Era um médico o homem que tratou dele? Em todo caso olhou com desprezo para o ferimento, como o velho senhor de óculos. Desprezo não pela ferida, mas por quem a
fez. Parecia pensar:
“Ele de novo!”
E ele não era Frank. Era o oficial.
Trataram dele. Fizeram cair um terceiro dente que estava mole. Faltam-lhe agora três dentes, dois no meio da mandíbula, o outro lá atrás. Vez ou outra, quando sai
do pavilhão, ainda dá umas pontadas agradáveis.
Não o levaram mais ao escritório do oficial do charuto. Seria por causa da maneira como ele se comportou? Decerto que não. Ele se lembra das porradas que ouviu ali
mesmo, na manhã em que chegou.
São questões de tática. Em muitas coisas, no geral Timo tem razão. Timo não sabe tudo, mas tem uma ideia de conjunto bastante justa.
Aqui, o trataram. O fizeram descer várias vezes à enfermaria. É o mais penoso, porque acontece sempre na hora da janela aberta.
Será por isso que sarou tão rápido?
Refletiu. Na manhã seguinte em que voltou da cidade, de propósito não marcou o dia com um risco gravado no gesso da parede. Agiu do mesmo modo cinco ou seis dias
seguidos. Depois tentou apagar suas antigas marcações.
Elas o incomodam agora. São testemunhas de uma época que ficou para trás. Ele ainda não sabia, naquele tempo. Acreditava que a vida estava lá fora. Pensava no momento
em que voltaria a ela.
É curioso! Era no momento em que todo dia gravava minuciosamente um risco no gesso que se sentia desesperado.
Agora não mais. Aprendeu a dormir. Aprendeu a se colar de bruços nas tábuas da sua cama e a cheirar seu próprio cheiro nas mangas do seu casaco.
Aprendeu também, e principalmente, que é preciso aguentar o máximo de tempo possível e que isso só depende dele. Ele aguenta. Aguenta tão bem, está tão orgulhoso
disso que, se pudesse se comunicar com o exterior, escreveria um tratado sobre a maneira de aguentar.
É preciso, antes de mais nada, arrumar seu cantinho, se enfiar profundamente em seu canto. Será que isso significa alguma coisa para as pessoas que gravitam pelas
ruas?
Seu medo, pelo menos durante dez dias, foi ser chamado lá embaixo para ser posto em presença de Lotte. Ela lhe falou de outras visitas que esperava fazer. Não devem
ter lhe dado autorização, para não lhe mostrar Frank no estado em que estava. Será que esperam seu rosto voltar a ficar mais ou menos normal?
Prefere assim. Lotte veio, ou foi a um dos escritórios, ela dá um jeito, tem a prova disso, pois recebeu dois pacotes dela, contendo, como da primeira vez, salaminho,
toicinho, chocolate, sabão e roupas.
O que terá esperado encontrar, fora isso, nos pacotes para vasculhá-los como fez? Todas as noites, no quarto acima do ginásio, um estore é baixado, a luz se acende,
e não há mais que um retângulo dourado.
Será que um homem está lá, neste momento? Será que há mesmo um homem? Provavelmente há um, por causa da criança, mas pode perfeitamente ser que ele também esteja
preso, ou do outro lado da fronteira.
Se volta para casa, como será que, vindo de fora, ele faz para absorver de uma só vez o lar, o quarto, o calor sossegado, a mulher, o bebê em seu berço? E os cheiros
de cozinha e as pantufas que o esperam!
Apesar de tudo, Lotte tem que vir. Ele fará o necessário para isso. Se comportará bem por um tempo. Fingirá estar dando corda.
Ele os conhece agora. Acabam sabendo o que querem saber. Não os do prédio grande, na cidade, onde os oficiais fumam charuto e te oferecem um cigarro antes de bater
em você com uma régua de cobre como mulheres histéricas! Estes, Frank concorda em contá-los como zeros à esquerda.
Os verdadeiros são aqueles como o velho senhor de óculos.
Com ele é outro tipo de combate. Ao cabo de tudo, aconteça o que acontecer, quaisquer que sejam as peripécias da partida, será o fim para Frank. O velho senhor ganhará.
Não pode deixar de ganhar. A única coisa que se pode impedir é que ele ganhe depressa demais. Com muito esforço e domínio de si, tem como ganhar tempo.
Ele não bate. Também não manda bater em Frank. Frank está disposto, depois de duas semanas de experiência pessoal, a afirmar que, se bateram em alguém aqui, no dia
da sua chegada, é que esse alguém merecia.
Ele não bate e não é avarento com seu tempo. Não sabe o que é impaciência. Finge ignorar o general e as notas, a que nunca fez a menor alusão.
Será realmente outro setor? Existem entre os setores paredes estanques? Rivalidade, quem sabe, ou pior? Em todo caso, o velho senhor olhou para a cicatriz, continua
a olhar toda vez para ela com um olhar consternado.
Seu desprezo não se dirige a Frank, mas ao oficial do charuto de fumo claro. Não diz nada sobre ele, finge ignorar que ele existe. Nunca pronuncia uma palavra fora
do seu interrogatório, que, por mais desordenado que possa parecer, e por sinuoso que seja, segue um caminho terrivelmente direto.
Aqui, não lhe oferecem cigarros. Não o chamam de Friedmaier e não lhe dão tapinhas no ombro, não se dão ao trabalho de assumir ares cordiais. É um outro mundo. Frank,
no colégio, nunca entendeu nada de matemática, e a própria palavra sempre lhe pareceu misteriosa.
Pois bem, aqui se pratica a matemática. É um mundo sem limites, iluminado a luz fria, no qual não são os homens que se agitam, mas entidades, nomes, números, sinais,
que mudam de lugar e de valor todo dia.
A palavra matemática ainda não é exata. Como se chama o espaço em que os astros se movem?
Não encontra a palavra. Há momentos em que está tão cansado! Sem contar que essas precisões não têm mais importância. O que conta é a gente entender, ele se entender.
Kromer, por todo um tempo, foi um astro de primeira grandeza. O que Frank chama de “todo um tempo” é o tempo de dois interrogatórios, por exemplo. E estes não se
parecem em nada, nem em ritmo nem em duração, com o do tempo oficial.
Ora, hoje Kromer está quase esquecido, erra lá no alto entre as estrelas anônimas de onde o retiram de quando em quando — pescam-no — com um gesto indiferente, para
uma ou duas perguntas, antes de repeli-lo.
Tem a lógica de uns e a lógica dos outros. Tem a do oficial, que só pensava no dinheiro e provavelmente no general, e a do velho senhor que, você juraria, está pouco
se lixando para elas, se é que sabe algo a respeito.
Isso leva fatalmente ao mesmo ponto. Não se põe em liberdade um homem que sabe o que ele sabe.
Ou seja, para o oficial ele já está morto.
O oficial bateu na cara dele, e Frank não falou.
Morto!
Só que tem o velho senhor, que surge por sua vez, que funga, que decide:
— Não tão morto assim!
Porque, mesmo de um morto, ou de um três quartos de morto, ainda se pode tirar proveito. E o ofício do velho senhor é tirar proveito das pessoas.
Pouco importam o dinheiro e o general, contanto que haja alguma coisa.
E fatalmente há alguma coisa, pois Frank está ali.
Não fosse Frank, seria qualquer um, sempre haveria alguma coisa.
O que importa, para enfrentar o velho senhor, é dormir. Já ele, não dorme. Não necessita de sono. Se adormece, deve ser capaz de se acertar como a um despertador
e se encontrar todo dia igualmente disposto, igualmente frio, igualmente lúcido na hora que pôs.
É um peixe, um homem com sangue de peixe. Os peixes têm sangue frio. Com certeza ele não cheira o suor das suas axilas e não espia uma silhueta do tamanho de uma
boneca numa janela distante.
O velho vai ganhar. A partida já está lançada. Ele tem todos os trunfos em sua mão e, ainda por cima, pode se permitir trapacear. Para Frank, faz tempo que ganhar
está fora de cogitação.
Ele ainda gostaria de ganhar, se fosse possível?
Não é certo. É improvável. Durar é que conta, durar bastante, rever toda manhã a janela, a mulher que se debruça, as roupas que secam ao sol numa corda esticada
sobre o vazio.
O que importa é, cada dia, ganhar um novo dia.
É por isso que seria ridículo gravar no gesso da parede riscos que não têm mais sentido.
A questão é não ceder, não por princípio, não para salvar o que quer que seja, não por honra, mas porque um dia, quando ainda não sabia por quê, ele decidiu não
ceder.
Será que o velho senhor dorme com um olho aberto e o outro fechado, como ele?
Um olho de peixe, então, bem redondo, sem pálpebras, fixo, ao passo que Frank propositalmente, voluptuosamente enfia seu ventre na terra, como numa mulher.
2
Não tem raiva deles. É o ofício deles tentar, por todos os meios, reduzir sua resistência. Eles pensam pegá-lo com o sono. Dão um jeito de nunca deixá-lo dormir
muitas horas seguidas e não adivinharam — tem de evitar que adivinhem — que ele aprendeu a dormir; que foram eles, no fim das contas, que lhe ensinaram isso.
Como a janela em frente está fechada, sabe que não vão demorar a chamá-lo. Nunca o chamam na mesma hora dois dias seguidos. Mais um dos truques deles. Ficaria fácil
demais. No caso das sessões da tarde, e principalmente da noite, costuma haver diferenças de tempo consideráveis. No caso das da manhã, elas são mais limitadas.
Os presos do lado voltaram do passeio. Eles devem detestá-lo, considerá-lo um traidor. Não só ele não ouve suas mensagens e não as responde, como não as passa adiante.
Mais uma coisa que ele entendeu. As mensagens são transmitidas de sala a sala, de parede a parede, mesmo quando não são entendidas, porque têm a probabilidade de
chegar a alguém para o qual serão preciosas.
Não é culpa sua. Ele não tem tempo. Nem interesse. Aquilo lhe parece pueril. Aquela gente se preocupa com lá fora, com sua vida, infantilidades. Estão errados por
lhe querer mal. Ele tem consciên­cia de jogar uma partida muito mais importante que a deles, e essa partida ele tem de ganhar. Seria pavoroso sair sem tê-la ganhado
até o fim.
Ele dorme. Dorme logo que a janela se fecha. Mergulha o mais longe que pode no sono, para se recuperar. Ouve passos na classe contígua, lamentações na sala à esquerda,
onde alguém, sem dúvida um velho, ou um rapazola, passa seu tempo gemendo.
Como sempre, ou quase sempre, vão vir antes da sopa. Frank ainda tem um resto de toicinho, um pedaço de salaminho. Aliás, ele se pergunta por que lhe entregaram
esses dois pacotes, porque, sem eles, estaria mais debilitado.
Não está longe de atribuir ao velho senhor certa honestidade nos meios de que se vale, uma espécie de fair play. Será que, nele, não se trata do prazer da dificuldade?
Será que, pela idade de Frank, que ele deve considerar um garotinho, faz questão de lhe dar uma oportunidade suplementar, de modo a não se envergonhar com a sua
vitória?
Na hora da sopa, em todo caso, hoje eles aplicaram novamente a jogada. Pouco importa que dia é hoje, já que ele não conta mais por dias, nem por semanas. Tem outros
pontos de referência. Ele conta de acordo com o objeto principal dos interrogatórios, se é que se pode falar de objeto principal com um homem que embaralha tudo
a seu bel-prazer.
Foi um dia depois de Bertha, quatro depois da faxina no quarto da janela aberta. Isso basta.
Aliás, foi como ele esperava. Reconheceu uma espécie de ritmo, como o vaivém das marés. Um dia o chamam muito cedo; outro dia, muito tarde; certas vezes, alguns
instantes apenas antes da distribuição da sopa, quando já se ouve na escada o choque dos recipientes.
Não deveria tê-la tomado até a última gota, no começo. Ela não é boa. Não passa de água quente, com nabo, às vezes dois ou três feijões. Acontece, no entanto, ter
umas bolhas de gordura na superfície, como na água em que se lavou a louça, e então é possível ter a sorte de encontrar no fundo um pedacinho de carne acinzentada.
Isso não deveria interessar a ele, que dispõe de salaminho e toicinho. Mas ele gosta de sentar na beira da cama, com sua tigela entre os joelhos, sentir o calor
que lhe desce da goela ao estômago.
O velho senhor, que nunca é visto no pátio, menos ainda nas passarelas, deve ter adivinhado isso, porque sempre o faz descer antes da sopa.
Frank reconheceu os passos através do sono; dois passos: o de um homem de sapato social e o do soldado de botas. É para ele. Esses dois são invariavelmente para
ele. Chega a parecer que é o único preso a ser interrogado. Ele não perde nem um tantinho de sono. Espera que a porta se abra. Mesmo então, finge roncar, para ganhar
alguns segundos. Têm de cutucá-lo no ombro. Tornou-se um jogo, mas eles não devem ter percebido.
Praticamente não se lava mais, sempre para ganhar tempo. A totalidade do tempo de que dispõe é consagrada ao sono. E o que ele entende agora por sono é infinitamente
mais importante do que o sono de todo mundo. Senão, não valeria a pena raspar as mais ínfimas migalhas de tempo como ele raspa.
Não sorri para eles. Eles não se cumprimentam. Tudo acontece sem uma palavra, com uma morna indiferença. Tira o sobretudo para vestir o casaco. Lá embaixo faz muito
calor. É melhor arriscar passar frio na passarela ou na escada. Seu calor próprio não tem tempo de se dissipar num trajeto tão curto.
Ele não tem espelho, mas sente que suas pálpebras estão avermelhadas, como as dos que não dormem o bastante. Estão quentes, pinicam. Sua pele está esticada demais,
sensível demais.
Caminha atrás do civil, na frente do soldado, e enquanto isso continua a dormir. Ainda dorme ao entrar na pequena construção em que às vezes o deixam esperando um
tempão — uma hora? — na primeira sala, no banco, apesar de não haver ninguém com o velho senhor.
Continua a se desentorpecer. É uma questão de costume. Ouve barulhos, ocasionalmente vozes e, a intervalos regulares, o som do bonde na rua. Gritos de crianças também
chegam até ele, sem dúvida na hora da saída de uma escola das redondezas.
As crianças têm um mestre-escola. No colégio, os alunos têm professores, e sempre pelo menos um deles faz o papel do velho senhor. Para a maioria dos adultos, existe
o patrão, o chefe de serviço ou de oficina, o proprietário.
Cada um tem seu velho senhor. Frank entendeu que é assim, e é por isso que não sente raiva dele. Ao lado, viram páginas, folheiam papéis. Depois um civil aparece
na moldura da porta e lhe faz um sinal, como no médico ou no dentista, e ele se levanta.
Por que dois civis continuam na sala? Refletiu sobre isso. Encontrou várias soluções plausíveis, mas que não o satisfazem. Ora são os que o levaram à cidade no dia
da régua de cobre, ora reconhece o que veio detê-lo na Rue Verte, ora outros, mas não são numerosos: sete ou oito ao todo, se revezando. Não fazem nada. Não sentam
a uma mesa. Nunca participam do interrogatório, por pouco que seja, sem dúvida nunca ousariam fazê-lo. Permanecem de pé, com um ar indiferente.
Para impedi-lo de fugir ou estrangular o velho senhor? É possível. É a resposta que vem de imediato à mente. No entanto há soldados armados no pátio. Poderiam pôr
um de plantão em cada porta.
Pode ser também que não tenham confiança uns nos outros. Não rejeita a priori a ideia, aparentemente absurda, de que aqueles homens estão ali para observar suas
palavras. Quem sabe? Será que existe, entre eles, um que é mais poderoso do que ele? Será que o velho senhor não sabe qual é, será que na realidade treme ao pensar
nos relatórios sobre ele que são transmitidos a uma autoridade superior?
Aparentemente, não passam de assistentes. Fazem pensar nos coroinhas que ladeiam o padre durante as cerimônias. Não se sentam, não fumam.
O velho senhor, porém, fuma o tempo todo. É mais ou menos seu único lado humano. Fuma um cigarro atrás do outro. Em sua mesa há um cinzeiro pequeno demais, e irrita
Frank ver que ninguém tem a ideia de trocá-lo por um maior. É um cinzeiro verde, em forma de folha de parreira. Desde a parte da manhã, transborda de guimbas e cinzas.
Tem uma estufa na sala, um balde de carvão. A rigor, bastaria, de vez em quando, nem que uma ou duas vezes por dia, esvaziar o cinzeiro no balde de carvão.
Não fazem nada. Será porque ele não quer? As guimbas se acumulam, e são guimbas sujas. O velho senhor fuma sujamente, sem nunca tirar o cigarro da boca. Ele saliva,
deixa-o se apagar várias vezes, acende de novo, molha o papel, mastiga os fiapos de fumo.
As pontas de seus dedos são amarronzadas. Seus dentes também. E duas pequenas manchas, acima e abaixo dos lábios, assinalam o lugar do cigarro.
O mais inesperado, da parte de um homem como ele, é que ele mesmo enrola seus cigarros. Ele parece não dar a menor importância para a vida material. É de se perguntar
quando ele come, quando dorme, quando faz a barba. Frank não se lembra de tê-lo visto barbeado recentemente. No entanto, ele se dá ao trabalho, mesmo no meio de
um interrogatório, de tirar do bolso uma cigarreira. De um bolso do colete extrai a mortalha para enrolar.
É minucioso. A operação toma tempo, exasperante, porque durante todo esse tempo toda vida fica como que suspensa. Será um truque?
Naquela noite, quase de manhã, lá para o fim do interrogatório, ele lhe falou de Bertha. Como sempre, quando ele introduz no circuito um novo nome, o faz da maneira
mais inesperada. Não acrescentou o sobrenome dela. Alguém poderia imaginar que o velho senhor era um habitué da casa, ou um homem do gênero do inspetor-chefe Hamling,
para quem os negócios de Lotte não têm segredo.
— Por que Bertha o deixou?
Frank aprendeu a ganhar tempo. Não é só por isso que está aqui?
— Ela não me deixou. Deixou minha mãe.
— Dá na mesma.
— Não. Eu nunca me meti nos assuntos da minha mãe.
— Mas ia para a cama com Bertha.
Eles sabem tudo. Deus sabe quantas pessoas tiveram de interrogar para vir a saber tudo o que sabem! Deus sabe o que isso representa em horas, idas e vindas!
— O senhor se deitava com Bertha, não é?
— Aconteceu.
— Com frequência?
— Não sei o que o senhor entende por frequência.
— Uma, duas, três vezes por semana?
— Difícil dizer. Dependia.
— Gostava dela?
— Não.
— Mas se deitava com ela?
— De vez em quando.
— E conversava com ela?
— Não.
— Se deitava com ela e não conversava com ela?
Tem vezes que, quando lhe falam de temas como este, lhe dá vontade de responder com uma obscenidade. Como na escola. Mas ninguém diz obscenidades a seu professor.
Ao velho senhor tampouco. Ele não está brincando de se excitar.
— Digamos que eu dizia o mínimo de palavras.
— Isto é?
— Não sei.
— Não lhe acontecia falar o que tinha feito durante o dia?
— Não.
— Nem perguntar a ela o que ela tinha feito?
— Menos ainda.
— O senhor não lhe falava dos homens que se deitavam com ela?
— Não era ciumento.
Era esse o tom. Mas é preciso levar em conta que o velho senhor escolhe suas palavras com cuidado, as seleciona antes de pronunciá-las, o que leva tempo. Sua mesa
é uma monumental escrivaninha americana, de múltiplos escaninhos e gavetas. É cheia de papeizinhos que não parecem ser nada, que ele tira daqui e dali num momento
preciso, conforme as suas necessidades, e nos quais dá uma olhada.
Frank conhece esses papeizinhos. Aqui não tem escrivão. Ninguém registra as respostas. Os dois homens, que ficam sempre de pé perto das portas, não têm caneta nem
lápis. E espantaria muitíssimo a Frank que eles soubessem escrever.
O velho senhor é que escreve, sempre em papeizinhos, em pedaços de envelopes usados, ao pé de cartas ou circulares que recorta com cuidado. Tem uma escrita minuciosa,
de uma fineza incrível, que deve ser ilegível para qualquer outra pessoa.
Se existe, nesses escaninhos, um papelzinho sobre Bertha, isso significa que a gorda foi interrogada. Será que é assim que se deve interpretar? Às vezes, ao entrar,
Frank cheira, busca odores, vestígios de alguém que teriam chamado na sua ausência.
— Sua mãe recebia oficiais, funcionários.
— É possível.
— O senhor muitas vezes estava no apartamento durante as visitas.
— Deve ter acontecido.
— O senhor é jovem, curioso.
— Sou jovem, mas não sou curioso e, em todo caso, não sou um pervertido.
— O senhor tem amigos, relações. É muito interessante saber o que fazem e o que dizem os oficiais.
— Não para mim.
— Sua amiga Bertha...
— Não era minha amiga.
— Não é mais, já que ela os deixou, ao senhor e à sua mãe. Eu me pergunto por quê. Também me pergunto por que, naquele dia, ouviu-se uma gritaria em seu domicílio,
a ponto de deixar os inquilinos alarmados.
Que inquilinos? A quem interrogaram? Pensa no sr. Wimmer, mas não suspeita dele.
— É curioso que Bertha, que, segundo disse sua mãe, fazia um pouco parte da família, os tenha deixado bem nesse momento.
Será de propósito que dá a entender que Lotte foi interrogada? Frank não se abala. Já ouviu coisas piores.
— Bertha era muito preciosa para a sua mamãe. (Ele não sabe que Frank nunca chamou sua mãe assim, que ninguém chama Lotte de mamãe.) Não sei mais quem disse — finge
procurar entre seus papeizinhos — que ela era forte como um cavalo.
— Como uma égua.
— Como uma égua, sim. Vamos ter de falar novamente sobre isso.
De início Frank pensava que eram palavras a esmo, uma maneira de intimidá-lo. Não imaginava que seus feitos e gestos, aos olhos do velho senhor, tinham importância
bastante para que pusessem em movimento uma máquina tão complicada quanto a que devia estar em movimento.
O mais extraordinário é que, de seu ponto de vista, o velho senhor não está errado. Ele sabe onde vai. Sabe melhor do que Frank, que mal começa a descobrir subterrâneos
de que nunca tivera a menor ideia.
Nesta casa não se jogam palavras a esmo. Não se blefa. Se o velho senhor diz:
— Vamos ter de falar novamente sobre isso...
É que ele fará mais do que falar. Coitada da grandalhona da Bertha!
No entanto, ele não sente verdadeiramente pena dela, nem de ninguém. Ele acaba vendo certas pessoas com os olhos de peixe do velho senhor, como através dos vidros
de um aquário.
A prova de que ele não solta palavras a esmo, Frank teve acerca de Kromer. Foi bem no começo, quando ainda não havia entendido. Imaginava que, como com o oficial
da régua, bastava negar.
— Conhece um tal de Fred Kromer?
— Não.
— Nunca encontrou ninguém que se chamasse assim?
— Não me lembro.
— No entanto ele frequenta os mesmos lugares que o senhor, os mesmos restaurantes, os mesmos bares.
— É possível.
— Tem certeza de que nunca bebeu champanhe com ele no bar do Timo?
Dá-lhe nova chance.
— Tem gente com quem aconteceu de eu beber no bar do Timo, inclusive champanhe!
Imprudência. Na hora se dá conta disso, tarde demais. O velho senhor acumula letrinhas em seus papeluchos. Isso não parece sério para um homem da sua idade e da
sua posição. No entanto ele não perde um só desses pedacinhos de papel, não há um só que não apareça na hora certa.
— O senhor também não o conhece por seu prenome, Fred? Algumas pessoas, em certos lugares, são conhecidas apenas pelo prenome. Por exemplo, uma porção de gente que
via o senhor por assim dizer cotidianamente não sabe que o senhor se chama Friedmaier.
— Não é o mesmo caso.
— Só não é o mesmo caso para Kromer?
Tudo conta. Tudo tem sua importância. Tudo é registrado. Passa duas horas extenuantes negando suas relações com Kromer, sem razão, simplesmente porque está na sua
linha de conduta. Na manhã seguinte e nos dias seguintes não se fala mais no seu amigo. Acredita que o esqueceram. Depois, bem no meio de uma sessão noturna, quando
ele fica literalmente bambo, quando seus olhos ardem, quando o deixam propositalmente de pé, mostram-lhe uma foto de amador onde aparece ele em companhia de Kromer
e duas mulheres, em pleno verão, à beira de um rio. Haviam tirado o casaco. O tipo do passeio no campo. Kromer sente a necessidade de apertar com sua manzorra o
seio da loura que o acompanha.
— Não o conhece?
— Não me lembro do nome dele.
— Nem do nome das mulheres?
— Se tivesse de me lembrar do nome de todas as mulheres com que fui andar de barco...
— Uma delas, esta aqui, se chama Lili.
— Acredito no senhor.
— O pai dela é funcionário municipal.
— É possível.
— E seu companheiro é o Kromer.
— Ah!
Não se lembrava da foto, de que nunca teve uma prova nas mãos. Lembra-se porém que naquele dia estavam em cinco, três homens e duas mulheres, o que nunca dá certo.
Ainda bem que o terceiro estava ocupado com suas fotos! Era esse também que remava o barco. Se quisesse dizer o nome dele ao velho senhor, seria incapaz.
Aquilo prova a seriedade com que investigam. Sabe Deus onde conseguiram essa foto! Teriam revistado a casa de Kromer? Seria curioso Frank nunca ter visto a foto,
se ela estivesse lá. Em casa do outro colega? Em casa do fotógrafo que revelou o filme?
É justamente o que há de bom com o velho senhor, o que encoraja Frank, o que lhe dá esperança. O oficial sem dúvida teria mandado fuzilá-lo imediatamente, para se
livrar dele, para não complicar sua própria existência. Com este, tem tempo pela frente.
Para dizer a verdade, no fundo do seu pensamento, ele tem a convicção — não, é mais uma fé do que uma convicção — de que só depende dele. Como as pessoas que dormem
pouco, que aprenderam a dormir, ele pensa principalmente por imagens, por sensações.
Precisava voltar a seu sonho do voo, quando só tinha de espalmar as mãos, de apoiar no vazio com toda a sua força, com toda a sua vontade, para se elevar, lentamente
de início, depois com facilidade, até sua cabeça tocar o teto.
Não pode falar dele. Mesmo que Holst estivesse aqui em pessoa, não lhe confessaria sua esperança secreta. Ainda não. É exatamente como num sonho, e é maravilhoso
que ele tenha tido esse sonho várias vezes, porque agora ele o ajuda. Vai ver que é um sonho assim que ele está vivendo. Há momentos em que, de tanto sono, ele não
sabe mais. Depende dele, da sua vontade, também desta vez.
Se ele tiver energia, se continuar a possuir a fé, durará tanto quanto for preciso.
Não se trata de voltar para lá fora. Não se trata, para ele, de esperanças como devem acalentar as pessoas encerradas na sala de aula vizinha. Essas esperanças não
o interessam, ao contrário, o chocam.
Eles fazem o que podem. Não é culpa deles.
Para ele, há certo lapso de tempo a ganhar. Se lhe perguntassem a importância desse lapso de tempo, de por exemplo expressá-lo em dias, semanas, meses, seria incapaz
de responder. E se lhe perguntassem o que deve haver no fim?
Bom, é preferível discutir com o velho senhor. Há tempo para tudo. É um interrogatório de pé. Ele distingue os interrogatórios sentados dos interrogatórios de pé.
Um truque bem ingênuo, em suma. Sempre a fim de pô-lo num estado de menor resistência. Ele não lhes deixa ver que prefere estar de pé. Quando o mandam sentar, é
num banquinho sem encosto, e com o passar do tempo sua posição é mais cansativa ainda.
O velho senhor não se levanta, nunca sente a necessidade de dar alguns passos na sala para espichar as pernas. Nem uma vez, nem mesmo durante um interrogatório de
cinco horas, ele saiu para fazer as suas necessidades ou para beber um copo d’água. Ele não bebe nada. Não há nada a beber na sua escrivaninha. Ele se contenta com
fumar cigarros, e mesmo assim deixa regularmente cada um deles se apagar duas ou três vezes.
Lança mão de grande quantidade de truques. Por exemplo, o de deixar sempre o revólver de Frank em cima da escrivaninha, como se o tivessem esquecido ali, como se
fosse um objeto anônimo, sem importância. Serve-se dele como peso de papel. Desde o primeiro dia, desde a revista, nunca fez a menor alusão à arma. E no entanto
ela está ali, como uma ameaça.
É preciso raciocinar friamente. Não é só Frank que existe no seu setor. Apesar do tempo que o velho senhor consagra a este, e que é considerável, é de se supor que
um homem da sua importância tenha outros problemas para resolver, outros prisioneiros para interrogar. Será que o revólver fica ali enquanto interroga os outros?
Não haverá uma encenação para cada um? O revólver, em determinados momentos, não será substituído por esse ou aquele objeto, por um punhal, por um cheque, por uma
carta, por qualquer prova?
Como explicar que esse homem é uma bênção do céu? Outros não o compreenderiam e se poriam a odiá-lo. Sem ele, Frank não teria, sempre presente, a noção do tempo
que lhe resta. Sem ele, sem esses interrogatórios extenuantes, nunca teria imaginado essa lucidez que agora conhece e que se parece tão pouco com o que antes ele
chamava por esse nome.
É preciso manter-se alerta, evitar lhe dar demasiada linha de uma vez. Isso poderia fazer as coisas irem depressa demais e eles logo chegarem ao fim.
Elas não podem acabar já. Frank ainda tem coisas a esclarecer. É demorado. É ao mesmo tempo rápido e demorado.
Isso o impede de se importar com os homens que eles mandam buscar na sala de aula ao lado, ao raiar o dia, para fuzilá-los. O mais impressionante, em suma, é o momento
do dia que escolhem para isso, é que os presos, mal acordados, estão tontos, sem se lavar, sem se barbear, sem uma xícara de café no estômago, e que o frio os leva,
sem exceção, a levantar a gola do casaco. Por que não os deixam pôr o sobretudo? Mistério. Não é por causa do valor da peça. E o tecido, por mais espesso que seja,
não impede as balas de passar. Será que é justamente para ser mais sinistro?
Será que Frank levantaria a gola do seu casaco? É possível. Não pensa no assunto. Pensa raramente nisso. Aliás, tem a convicção de que não o fuzilarão no pátio,
perto do pátio coberto onde se amontoam os bancos escolares.
Aqueles são homens que foram julgados, que cometeram um crime, que é possível julgar, inscrever nos grandes livros da justiça. Trapaceando um pouco, se preciso.
Se devessem julgá-lo, é mais do que provável que seria mandado de volta para a sala do oficial da régua de cobre.
Quando tudo acabar, quando o velho senhor, em sua alma e em sua consciência, julgar que tirou dele tudo o que é possível, acabarão com ele sem cerimônia, ele ainda
não sabe onde, não conhece suficientemente bem o local; vão lhe dar um tiro nas costas, numa escada ou num corredor. Deve haver um porão que serve para isso.
Nesse momento, isso lhe será indiferente. Não tem medo. Seu único receio, seu pavor, é que isso aconteça depressa demais, antes da hora que ele decidir, antes de
ele terminar.
Será o primeiro, se eles quiserem, a dizer:
— Façam o que têm de fazer!
Se houvesse uma derradeira vontade a formular, um último desejo, ele lhes pediria para proceder à operação enquanto ele estiver deitado de bruços na cama.
Isso tudo não prova que o velho senhor é providencial? Ainda vai encontrar novidades. Todo dia ele descobre uma coisa nova. Tem de estar desperto em todas as frentes
ao mesmo tempo, de pensar tanto em Timo como nas pessoas que encontrou na confeitaria do Taste e nos inquilinos anônimos do prédio. Aquele velho demônio de óculos
embaralha tudo de propósito.
Qual o novo achado dele? Deu-se o tempo de limpar os óculos com um vasto lenço colorido, que fica sempre de fora do bolso da calça. Brincou como sempre com seus
pedacinhos de papel. Para alguém que o observasse pela janela e que não soubesse, pareceria quase uma loteria ou uma partida de víspora. Parece mesmo arriscar a
sorte. Depois enrola um cigarro, com a lentidão irritante do maníaco. Bota a língua para fora a fim de colar o papel, procura a caixa de fósforos.
Nunca acha sua caixa de fósforos, imersa no papelório. Não olha para Frank. Raramente o fita e, quando o faz, é com uma perfeita indiferença. Quem sabe se os outros
dois, os coroinhas, não estão ali justamente para espiar as reações de Frank e se, depois, não fazem seu relatório.
— O senhor conhece Anna Loeb?
Frank nem pestaneja. Faz tempo que não pestaneja mais. Reflete. É um nome que não conhece, mas a priori isso não significa nada. Mais exatamente, conhece o nome
Loeb como todo mundo, a cervejaria Loeb, cuja cerveja ele bebe desde que tem idade para beber. Esse nome é exibido em letras garrafais na empena das casas, nos luminosos
dos cafés, das mercearias, nos calendários e até nos vidros dos bondes.
— Conheço a cerveja.
— Estou lhe perguntando se conhece Anna Loeb.
— Não.
— No entanto ela foi uma das pensionistas da sua mãe.
Trata-se então de outra pessoa com esse sobrenome.
— O senhor talvez tenha razão. Não sei.
— Com certeza isto o ajudará a se lembrar.
Ele lhe estende uma foto que tira de uma gaveta. É um homem que tem sempre fotografias de reserva. Frank se contém para não exclamar:
— Anny!
É ela, mas uma Anny bem diferente da que conheceu, talvez por estar de traje social, um vestido de verão com um grande chapéu de palha na cabeça, sorridente, dando
o braço a alguém que o velho senhor esconde com o polegar.
— Conhece?
— Não tenho certeza.
— Ela morou no mesmo apartamento que o senhor, estes últimos tempos.
— É possível.
— Ela declarou que se deitou com o senhor.
— Também é possível.
— Quantas vezes?
— Não sei.
Será que Anny foi detida? Com eles, nunca se sabe. Têm interesse em sustentar a mentira para saber da verdade. Faz parte do ofício deles. Frank nunca se deixa enganar
totalmente pelos papeizinhos.
— Por que o senhor a levou para a casa da sua mãe?
— Eu?
— Sim.
— Eu não a levei para a casa da minha mãe!
— Então quem a levou?
— Não sei.
— Está insinuando que ela se apresentou por conta própria?
— Isso não teria nada de espantoso.
— Nesse caso, é de se supor que alguém lhe deu o endereço.
Ele ainda não entende, fareja uma cilada, não responde. Criam-se assim longos silêncios, que fazem esses interrogatórios durar uma eternidade.
— A atividade da sua mãe é uma atividade ilícita, sobre a qual não é preciso insistir.
Isso pode muito bem significar que Lotte também está presa.
— Por isso sua mãe tinha interesse em pôr um mínimo de pessoas a par. Se Anna Loeb se apresentou na casa dela, foi por saber que lá podia encontrar abrigo.
Essa palavra abrigo alertou Frank, que deve lutar ao mesmo tempo contra o sono e contra os pensamentos indefinidos que, à menor desatenção, se apossam dele e que
ele só rejeita a contragosto, porque na realidade são agora toda a sua vida. Repete como um sonâmbulo:
— Abrigo?
— O senhor supõe que ignora o passado de Anna Loeb?
— Eu nem sabia seu nome.
— Como ela fingia se chamar?
É o que ele chama de dar corda. É obrigado a fazê-lo.
— Anny.
— Quem a mandou para a casa de vocês?
— Ninguém.
— Sua mãe a aceitou sem nenhuma recomendação?
— Era uma moça bonita e fazia amor. Minha mãe não exige mais do que isso.
— Quantas vezes o senhor se deitou com ela?
— Não me lembro.
— O senhor estava apaixonado por ela?
— Não.
— Ela estava pelo senhor?
— Acho que não.
— Mas foram para a cama juntos.
Será ele uma espécie de puritano, ou de pervertido, para dar tanta importância a essas questões? Ou um impotente? Fez a mesma coisa no caso de Bertha.
— O que ela lhe disse?
— Nunca dizia nada.
— Como ela passava o tempo?
— Lendo revistas.
— Revistas que o senhor ia buscar para ela?
— Não.
— Como ela as arranjava? Saía?
— Não. Acho que ela nunca saiu.
— Por quê?
— Não sei. Só ficou uns dias.
— Ela se escondia?
— Não tive essa impressão.
— De onde vinham as revistas.
— Deve ter trazido quando veio.
— Quem punha as cartas dela no correio?
— Ninguém, acho.
— Ela nunca lhe pediu para postar uma carta?
— Não.
— Nem para transmitir um recado?
— Não.
É fácil porque é verdade.
— Ela se deitava com os clientes?
— Fatalmente.
— Com quem?
— Não sei. Nem sempre eu estava em casa.
— Mas quando estava?
— Não me interessava por isso.
— O senhor não tinha ciúme?
— Nem um pouco.
— Mas ela é bonita.
— Estou acostumado.
— Havia clientes que só vinham por causa dela?
— Isso o senhor deve perguntar à minha mãe.
— Perguntamos.
— E o que ela respondeu?
Forçam-no assim, quase todo dia, a reviver um pouco a vida de casa. Ele fala disso com um distanciamento que surpreende visivelmente o velho senhor, tanto mais que
o sente sincero.
— Ninguém nunca telefonou para ela?
— No prédio só tem um telefone funcionando, o do zelador.
— Eu sei.
Então o que ele quer descobrir?
— Já viu este homem?
— Não.
— E este?
— Não.
— Este?
— Não.
Gente que ele não conhece. Por que o velho senhor se empenha em esconder uma parte das fotos, em só deixar ver o rosto, impedindo-o de distinguir as roupas?
Porque são oficiais, ora essa! Oficiais superiores, quem sabe?
— O senhor sabia que Anna Loeb era procurada?
— Nunca ouvi falar disso.
— Ignorava que o pai dela foi fuzilado?
Na verdade, faz pelo menos um ano que o cervejeiro Loeb fora fuzilado, porque descobriram todo um arsenal clandestino nas cubas da sua cervejaria.
— Não sabia que ele era pai dela. Nunca soube o sobrenome dela.
— E no entanto foi na casa de vocês que ela veio se refugiar.
De fato, é extraordinário. Ele se deitou duas ou três vezes com a filha do cervejeiro Loeb, que era um dos homens mais ricos e mais destacados da cidade, e não sabia
disso! Todo dia, graças ao velho senhor, ele descobre novos subterrâneos.
— Ela deixou vocês?
— Não lembro mais. Acho que ainda estava em casa quando me prenderam.
— Não tem certeza?
O que ele deve responder? O que eles sabem? Nunca simpatizou com Anny, que tinha um ar tão desdenhoso — nem mesmo isso, tão ausente, o que é pior — quando fazia
amor com ela. Agora isso tudo não vale nada. Ela estará presa? Será que procederam a uma detenção em massa desde que está preso?
— Não. Eu tinha bebido muito na véspera.
— No bar do Timo?
— Pode ser. E em outros lugares.
— Com Kromer?
Esse velho danado não se esquece de nada.
— Com uma porção de gente.
— Antes de se abrigar em sua casa, Anna Loeb foi, sucessivamente, amante de vários oficiais que escolhia a dedo.
— Ah!
— Mais pelo cargo que ocupavam do que pelo físico ou pelo dinheiro.
Ele não responde. Não lhe perguntaram nada.
— Ela estava a serviço de uma potência estrangeira e foi procurar abrigo na sua casa.
— Não é difícil para uma mulher que não seja muito malfeita de corpo ser admitida num bordel.
— O senhor admite que era um bordel?
— Chame como o senhor quiser. Havia mulheres que faziam amor com os clientes.
— Inclusive oficiais?
— Pode ser. Eu não ficava montando guarda na porta.
— Nem na claraboia?
Ele sabe tudo! Adivinha tudo! Deve ter visitado o apartamento com uma atenção especial.
— O senhor sabia o nome deles?
— Não.
Será que, por acaso, o setor do velho senhor trabalhava contra o outro setor, aquele onde recebeu uma reguada na cara? A palavra oficial volta com uma frequência
que o intriga.
— O senhor os reconheceria?
— Não.
— Às vezes eles ficavam bastante tempo, não é?
— O tempo de fazer aquilo para o que estavam lá.
— Eles falavam?
— Eu não ficava no quarto.
— Eles falavam — afirma o velho senhor. — Os homens sempre falam.
Até parece que ele tem a experiência da Lotte! Ele sabe aonde vai, com sua paciência e sua minúcia. Enxerga longe. Tem o tempo todo à sua disposição. Pega a ponta
do fio, delicadamente, e desenrola a meada.
A hora da sopa passou. Frank encontrará o líquido gelado na sua tigela, como quase todo dia.
— Quando as mulheres fazem os homens falar, é para repetir a alguém o que eles disseram.
Frank dá de ombros.
— Anna Loeb fazia amor com o senhor, mas o senhor afirma que ela não lhe dizia nada. Ela não saía e, no entanto, enviava mensagens.
A cabeça dele roda. Precisa aguentar até o fim, até a cama, até as tábuas nas quais por fim se colará, os olhos fechados, os ouvidos zumbindo, escutando o sangue
circular em suas artérias, sentindo seu corpo viver, pensando enfim em outra coisa que não todas essas bobagens que lhe permitem durar, pensando numa janela, em
quatro paredes, num quarto com uma cama, num forno — não ousa acrescentar o berço —, num homem que sai de casa de manhã sabendo que voltará, numa mulher que fica
e que sabe que não está só, que nunca estará só, no sol que se levanta e se põe sempre nos mesmos lugares, numa marmita de lata que um homem leva debaixo do braço
como um tesouro, numas botas de feltro cinzento, num gerânio que floresce, em coisas tão simples que ninguém as conhece, ou que desprezam, que chegam a se queixar
delas quando as possuem.
Seu tempo está tão contado!
3
Esta noite passou por uma das sessões mais extenuantes. Devem tê-lo acordado no meio da noite e ainda estava no escritório quando ouviram uma salva, depois um disparo
isolado, mais fraco, como sempre. Olhou para as janelas e percebeu que madrugava.
Foi uma das raras vezes que quase se irritou. Tinha a nítida impressão de que faziam o interrogatório durar por durar, que lhe faziam perguntas aleatórias. Falaram,
entre outros, de Ressl, o redator-chefe. Frank respondeu que não o conhecia, que só falara com ele uma vez.
— Quem o apresentou?
Sempre Kromer. Seria muito mais simples e menos cansativo metê-lo logo de uma vez no atoleiro, tanto mais que, pelo que Frank pôde julgar, ele teve o cuidado de
se esconder fora do alcance deles.
Falou-lhe de pessoas que ele não conhece. Mostrou-lhe fotos. Ou é para cansá-lo, exasperá-lo, ou imaginam que ele sabe muito mais do que realmente sabe.
O ar, quando saiu do escritório, recendia a alvorada, com o gosto das fumaças do bairro. Terá visto a janela aberta? Não sabe mais. Viu-a, mas seria incapaz de afirmar,
diante do velho senhor por exemplo, e em resposta a perguntas precisas, se foi em sonho ou não. Deve no entanto ter abertos os olhos. Está convencido que sim.
Não sabe mais, definitivamente. E não é que já o tiram da cama? Vai andando, com o civil à frente, o soldado atrás, enquadrado pelo ruído dos dois pares de sapatos.
Ainda dorme. Tem tempo. De costume, fazem-no esperar no banco pintado de cinza. Dessa vez, não o fazem esperar, atravessam a sala sem se deter e entram logo no escritório.
E nesse escritório estão Lotte e Minna.
Será que olha para elas com um ar descontente? Não se dá conta. Vê sua mãe sobressaltar-se, abrir a boca como para dar um grito, se conter, balbuciar, tendo na voz
uma piedade que ele não entende mais:
— Frank!
Ela sente a necessidade de assoar o nariz num dos lenços rendados que tem mania de perfumar violentamente. Minna, por sua vez, não se mexeu, não disse nada, ele
a vê toda ereta, toda pálida, com lágrimas escorrendo nas faces.
Ele não se lembrava mais: são seus dentes faltando, é sua barba e também, provavelmente, suas pálpebras avermelhadas, seu casaco que não tem mais forma alguma. Não
se deu ao trabalho de mudar de camisa.
Aquilo mexe com elas, evidentemente. Com ele não. Ele é quase tão glacial quanto o velho senhor. Ao primeiro olhar, reparou que sua mãe estava vestida de cinza e
branco. É uma velha mania que se manifesta toda vez que quer bancar a mulher distinta. Ela se vestia mais ou menos assim quando ia vê-lo no colégio — o verdadeiro
— e, já naquele momento, embora a moda ainda não houvesse voltado, trajava violeta-claro.
Tem um cheiro gostoso de asseio. Tem cheiro de pó de arroz. Portanto, vem de casa. Se estivesse presa, não teria a possibilidade de fazer uma toalete tão esmerada.
Por que terá trazido Minna? A vê-las, dir-se-ia que eram a mamãe e a priminha vindo visitar o rapaz. Minna faz de fato a prima, com seu tailleur azul-marinho, sua
blusa branca, e quase não está maquiada. Emagreceu.
Busca com os olhos a mala, o embrulho que trouxeram. Não há nada disso na sala e ele crê entender; o embaraço de Lotte prova que tem razão. Ela não sabe por onde
começar. É para o velho senhor que olha, bem mais que para o filho, será que com a intenção de fazer este entender que não veio por livre e espontânea vontade?
— Fizeram a bondade de nos permitir te ver, Frank. Então, perguntei se podia trazer Minna, que sempre fala de você, e este senhor nos deu sua amável autorização.
Não é verdade. É uma ideia do velho senhor, Frank seria capaz de jurar. Faz quinze dias que ele se interessou por Bertha, oito dias que falou de Anny. Desta vez,
com seu ar de se atrasar no caminho, chegou a Minna. Não precisa se apressar, pois ele o tem nas mãos. Minna, incomodada, vira a cabeça.
É um craque, há que reconhecer. Porque Frank não acredita no acaso. O velho senhor acabou entendendo que se, entre todas as moças que desfilaram pela casa, havia
uma pela qual Frank podia ter um sentimento um pouco diferente, essa moça era Minna.
Na realidade Frank não a ama. Foi duro com ela de propósito. Não se lembra mais exatamente o que lhe fez. Fez muitas coisas lá fora, que suprimiu da sua memória.
Apesar disso, conserva em relação a Minna certa humildade. Tem consciência de ter se portado muito mal com ela.
Os três estão de pé. É um pouco ridículo. O velho senhor é o primeiro a se dar conta, manda trazerem umas cadeiras para Lotte e sua acompanhante. Com a mão, autoriza
Frank a usar o banquinho dos interrogatórios sentados.
Depois retoma seu ar absorto. A vê-lo, você juraria que o que acontece não lhe diz respeito. Folheia dossiês, encontra e classifica papeizinhos.
— Preciso falar com você, Frank. Não tenha medo.
Por que ela acrescenta estas últimas palavras? De que ele teria medo?
— Pensei muito nessas seis semanas.
Seis semanas, já? Ou somente? A palavra o impressiona. Gostaria de olhar para ela com menos severidade, mas não consegue. Por sua vez, ela não ousa levantar os olhos
para ele com medo de explodir em soluços. Será que ele é assim tão apavorante de se ver? Porque lhe faltam dois dentes na frente da boca e não se cuida mais?
— Tenho certeza, Frank, de que se você fez algo de errado, mesmo se muito grave, é que você se deixou levar por más influências. Você é moço demais. Eu te conheço.
Cometi o erro de te deixar acompanhar amigos mais velhos que você.
Ela mente mal. Ora, normalmente Lotte sabe mentir. Falando de seus clientes, dos homens em geral, ela se gaba facilmente de manipulá-los como bem entende. Será que
ela mente mal de propósito, para lhe confirmar que só veio aqui por ordens expressas?
Não há carro no pátio. Elas devem ter vindo de bonde.
— Pessoas sérias me aconselharam, Frank.
— Quem?
— Por exemplo, o sr. Hamling.
Se ela pronuncia este nome é que tem o direito de fazê-lo.
— Sei que você não gosta muito dele, e você faz mal. Mais tarde entenderá. É um velho amigo, talvez meu único amigo. Ele me conheceu quando eu era garota e, se eu
não tivesse sido tão boba...
As pupilas de Frank se estreitaram. Uma ideia brotou, uma que ele nunca tivera. Se o inspetor-chefe vem vê-los com tanta frequência, tão familiarmente apesar da
posição mais do que dúbia de Lotte, se ele parece vagamente tomá-la sob sua proteção e se arroga o direito de falar com Frank do jeito que às vezes falou, não será
porque tinha uma boa razão para isso?
Está tão tenso quanto antes. Por um instante, retomou sua fisionomia dos piores dias da Rue Verte, e Lotte, que talvez ia lhe fazendo uma confidência, bate em retirada.
Prefere assim. Se Kurt Hamling por acaso for seu pai, não quer saber de jeito nenhum.
— Ele sempre se interessou por nós, por você...
Frank corta:
— Bom!
— Ele te conhece melhor do que você imagina. Também está persuadido que você se deixou levar por más influências, mas que você se recusará a confessar isso. Como
ele diz muito bem, é uma falsa questão de honra, Frank.
— Não tenho honra.
— Estes senhores são pacientes com você, eu sei.
Ah! O que isso significa?
— Eles deixaram você receber pacotes. Deixaram eu vir hoje com Minna, que se preocupa tanto com você.
— Ela está doente?
— Quem?
— Minna.
Por que ele corta o fio das ideias de Lotte? Agora ela não sabe mais o que responder, tenta interrogar o velho senhor com o olhar.
— Claro que não, ela não está doente. De onde tirou essa ideia? Semana passada mesmo eu a fiz passar por um exame. Um jovem médico, que não entende nada de medicina,
queria operá-la, mas não é preciso, o outro disse. Ela já está melhor.
Ele pressente algo misterioso, sufocante. Diz em todo caso:
— Bom, agora ela tem tempo para descansar.
Sua mãe hesita. Por quê? Depois, como o velho senhor não parece querer protestar, ela arrisca:
— Voltamos a abrir a casa.
— Com mulheres?
— Há duas, novatas, além de Minna.
— Achava que seu amigo Hamling tinha te aconselhado a fechar.
— Naquela época, sim. Ainda não sabia que mal Anny podia ter feito.
Ele entendeu. Entende de estalo por que elas estão aqui. Entende tudo. O velho senhor não deixa passar nenhuma chance.
— Te pediram para continuar?
— Me explicaram que era melhor, de todos os pontos de vista.
Em outras palavras, o apartamento da Rue Verte se tornou uma espécie de ratoeira. Quem, por conta desses senhores, espia pela claraboia e procura ouvir as conversas?
É por isso que Lotte está tão incomodada...
— Resumindo — diz ele desdenhoso, mas sem ironia —, vai tudo bem em casa.
— Muito bem.
— Sissy está melhor?
— Creio que sim.
— Você não a viu?
— Tenho tanto trabalho, você sabe. Não sei se...
O que eles ainda podem se dizer? Mundos os separam, um vazio infinito. Até aquele lenço perfumado, que adquire tanta importância naquela sala que Lotte percebe e
o enfia na bolsa.
— Escute, Frank...
— Sim.
— Você é jovem...
— Você já me disse isso.
— Sei melhor do que você que você não é mau rapaz. Não olhe pra mim desse jeito. Entenda que sempre pensei em você, que tudo o que fiz, desde que você nasceu, eu
fiz por você e que, agora, daria o resto da minha vida pra você ser feliz.
Não tem culpa de se distrair sem querer. Mal percebe o sentido das frases. Olha para a bolsa de Minna. É exatamente a mesma que Sissy tinha em preto, só que em vermelho,
a tal bolsa com a chave que ele brandia estendendo o braço no terreno baldio e que acabou pondo em cima de um monte de neve. Nunca soube se ela tinha ido pegá-la.
— Disse a eles que você conhecia Kromer, porque é verdade. Era seu amigo, e não quero mais que você negue. Ninguém me tira da cabeça que foi ele que te desencaminhou,
e foi esperto o bastante para cair fora te deixando na mão.
Será isso, afinal de contas, que ela veio lhe dizer: que Kromer está em segurança? Está perto demais da estufa. Sente calor. Pela janela — é a primeira vez que está
sentado ali —, avista o portão, a guarita, a sentinela e um trecho de rua. Não lhe produz nenhum efeito rever a rua, rever os bondes que passam.
— É indispensável você dizer a eles toda a verdade, tudo o que você sabe, eles levarão isso em conta. Tenho certeza. Tenho confiança.
Nunca o velho senhor pareceu tão distante.
— Amanhã talvez eu tenha o direito de vir deixar um pacote. O que você gostaria que eu pusesse nele?
Tem vergonha por ela, por ele, por todos eles. Está cansado. Tem vontade de responder:
— Merda!
Teria respondido assim, antes. De lá para cá, aprendeu a paciên­cia. Ou então é fraqueza. Balbuciou com indiferença:
— O que você quiser.
— Não é justo você pagar pelos outros, entende? Eu também, sem querer, fiz muito mal, hoje me dou conta.
E paga por isso, aceitando que seu bordel se transforme numa arapuca de depravados! O mais incrível é que aquilo teria parecido perfeitamente natural para Frank,
quatro ou cinco meses atrás. Aliás, ele não se indigna. Pensa em outra coisa. O tempo todo daquela conversa, pensou em outra coisa, sem se dar conta de que seu olhar
não saía da bolsa de Minna.
— Diga francamente a eles o que você sabe. Não tente bancar o esperto com eles. Vai sair daqui, você vai ver. Cuidarei de você e...
Ele não ouve mais. Tudo está muito longe. É verdade que tem sempre sono, que a certas horas do dia, principalmente de manhã, sente vertigens. É o cansaço.
Ela se levanta. Tem um cheiro gostoso. É toda clara, toda fru-frus, com uma pele envolvendo o pescoço.
— Me prometa, Frank. Prometa à sua mãe... Minna, diga a ele você também...
Minna, que não ousa olhar para ele, tem dificuldade para articular:
— Sou tão infeliz, Frank!
E Lotte emenda:
— Você ainda não disse o que quer que eu traga.
Então, ele pronuncia a palavra. Foi o primeiro a ficar estupefato. Parecia-lhe que aquilo viria muito mais tarde, bem no fim. Sente-se cansado demais, de repente.
Fala sem ter pensado, sem ter a impressão de haver tomado uma decisão.
Diz, mal movendo os lábios, consciente do que essas palavras significam para ele, mas só para ele:
— Eu podia ver Holst?
Acontece nesse momento uma coisa assombrosa. Não é sua mãe que responde. Aliás, ela não deve entender, ela deve estar desnorteada. Já Minna sufocou uma espécie de
gemido que podia passar por um soluço. Minna está muito mais a par do caso do que Lotte.
Mas foi o velho senhor que ergueu a cabeça, que olhou para ele, que pergunta:
— É de Gerhardt Holst que se trata?
— Sim.
— Curioso...
Revira seus papeizinhos, acaba pescando um, que examina com atenção e, durante todo esse tempo, Frank para de respirar.
— Ele fez, justamente, um pedido de visita.
— De visita a mim?
— Sim.
Não vai pular de alegria, sair dando pinotes na frente deles! O que não impede que seu rosto se transfigure. Agora é ele que, como Minna, está com os olhos cheios
de lágrimas. E no entanto ainda não ousa acreditar. Seria bom demais. Significaria que não se engana. Significaria...
— Ele pediu para me ver?
— Espere... Não.
Fica petrificado. Definitivamente, o velho senhor deve ser um sádico.
— Não é exatamente isso. Um certo Gerhardt Holst fez um pedido de visita às autoridades superiores. Falou bem alto. Mas não é para ele.
Depressa, meu Deus! E Lotte que escuta aquilo como se escutasse o rádio!
— É para a filha dele.
Não! Não! Não! Ele não pode chorar. Tem de fazer qualquer coisa, menos chorar. Senão, corre o risco de pôr tudo por água abaixo. Não é verdade! Não é possível! O
velho senhor vai pegar outro papelzinho e descobrir que se enganou.
— Está vendo, Frank — diz Lotte com uma voz emocionada, bea­tamente emocionada, como se seu rádio acabasse de tocar um disco sentimental —, está vendo que todo mundo
confia em você. Eu bem te dizia que você tem de sair daqui e que, para isso, trate de ouvir estes senhores.
Imbecil! Idiota! Ele não é capaz sequer de ficar com raiva dela, e é preferível que ela nunca meça o vazio que há entre eles.
É ainda Lotte que pergunta, com uma cara de devota dirigindo-se a um monsenhor:
— O senhor lhe concedeu a permissão?
— Ainda não. Esse pedido acaba de me ser transmitido por outro serviço. Não tive tempo de estudá-lo.
— Acho que o senhor daria a ele uma enorme alegria! É a nossa vizinha de andar. Faz anos que eles se conhecem.
Não é verdade. Ela que se cale! Ou melhor, o que importa o que ela diz! Mesmo que agora tudo vá por água abaixo, mesmo que ela não venha, mesmo assim haveria o fato
de que Holst formulou o pedido.
Eles se entenderam, Frank tinha razão. Que Holst venha, dará na mesma, não exatamente, mas terá o mesmo sentido.
Que eles acabem logo com isso, Senhor! Que lhe façam o obséquio de não o interrogar mais esta manhã, de deixá-lo voltar para o seu canto. Vejam só! Ele pensa no
“seu canto”, simplesmente. Atirar-se na cama, com aquela verdade ainda quentinha a apertar contra si e que ele tem de impedir que se evapore.
— É uma moça ótima, uma moça valorosa, o senhor pode crer.
Como ficar com raiva de alguém tão bobo, mesmo sendo sua mãe? E a outra com seu falso ar de priminha, que aproveita de eles estarem em pé para se aproximar dele,
para tocá-lo sem ninguém perceber!
— Eu achava — intervém o velho senhor — que o senhor havia pedido antes para ver Gerhardt Holst.
— Ele ou ela.
— O senhor não tem preferência?
Tomara que não esteja dando uma mancada!
— Não.
Bastou uma olhada através dos óculos para indicar a um dos coroinhas de bigode que estava na hora de levá-lo de volta. Não sabe mais como saiu da sala. Sua mãe e
Minna ficaram. O que Lotte vai contar sobre Sissy?
Chega ao seu quarto quase ao mesmo tempo que sua tigela ainda quente e se contenta com apertá-la entre os joelhos, sem comer, só para se impregnar de calor. A janela
está fechada lá fora, além do ginásio. Não tem importância. Agora, a rigor, pode prescindir dela. Sente um aperto na garganta. Gostaria de falar. Gostaria de falar
com Holst, como se Holst estivesse ali.
Antes de tudo, tem uma pergunta essencial a lhe fazer.
— Como o senhor entendeu?
Parece impossível. É maravilhoso que uma coisa assim seja possível. Frank fez tudo para que não entendessem. Aliás, nem ele mesmo entendia. Ele se contentava com
rodar em torno de Holst e, em certos momentos, se forçava a crer que o detestava ou que o desprezava; ria da marmita de lata e das botas mal ajustadas.
Quando aconteceu?
Foi na noite em que Holst, voltando da garagem dos bondes, encontrou-o colado à parede do curtume, com a faca aberta na mão?
Precisa parar. É forte demais. Precisa ficar calmo, ficar sentado na beira da cama, controladamente. Nem vai se deitar, porque então seria pior. Não pode, afinal,
se pôr a berrar olhando para a janela!
Não vai enlouquecer. Não é hora. Vai recuperar pouco a pouco o sangue-frio. Se aquilo aconteceu, quer dizer que está quase no fim.
Ele sempre entendera. É uma dessas certezas que a gente não tenta explicar. De qualquer modo, não teria mais forças para aguentar muito tempo.
Holst entendeu!
E Sissy?
Será que ela também sempre soube que aconteceria assim? Frank soube. Holst soube. É terrível dizer. Parece uma blasfêmia. Mas é a verdade.
Holst devia ter vindo matá-lo domingo, durante a noite, ou na manhã seguinte, e não o fez.
Aquilo tinha de acontecer assim. Frank não podia fazer outra coisa. Ainda não sabia por que, mas sentia.
Se não teve medo da tortura, do oficial da régua ou do velho senhor e seus assistentes, é que ninguém nunca poderá fazê-lo sofrer como ele se fez sofrer, a si mesmo,
quando empurrou Kromer para o quarto.
Será que o velho senhor vai dizer que sim?
É absolutamente necessário lhe proporcionar uma esperança, para que ele imagine que aquilo vai servir para alguma coisa. Frank tem pressa de que o venham buscar.
Não prometerá nada, porque seria desastrado, mas dará a entender que será muito mais falante depois. Que venham logo buscá-lo.
Ele dará corda. Vai dar corda desde hoje, um bom pedaço. A respeito do que quiserem. De Kromer, por exemplo, pois isso não tem mais importância, agora que ele está
a salvo.
No fundo, às vezes ele se pergunta o que preferiria: falar com Holst ou com Sissy. A Sissy, na realidade, não tem nada a dizer. Precisa apenas olhar para ela. E
que ela olhe para ele.
— Diga, sr. Holst...
“Como o senhor descobriu, sr. Holst, que o homem, quem quer que seja...”
Faltam-lhe as palavras, nenhuma exprime o que ele gostaria de dizer.
— A gente pode conduzir um bonde, não é?, ou qualquer coisa. Pode usar botas que fazem as crianças se virarem na rua para olhar e os jovenzinhos encolherem os ombros.
A gente pode... A gente pode... Entendo o que o senhor vai dizer... Não é isso que conta... Basta realizar o que se tem de realizar, porque tudo é de igual importância...
Mas eu, sr. Holst, eu, como poderia?
Não é possível que Holst tenha solicitado uma permissão de visita para Sissy. Frank começa a amolecer, a se interrogar, a duvidar. Será uma maquinação do velho senhor?
Então, então, se assim fosse, com que ódio Frank o perseguiria até os quintos dos infernos!
Nem que Holst, que evita qualquer contato com os ocupantes, que deve ter sofrido por causa deles, tenha se dirigido, como disse o velho senhor, a uma autoridade
bem alta! Para tanto, foi obrigado a passar por intermediários, a se comprometer, a se humilhar diante das pessoas!
Não vêm buscá-lo. Demora. Não é capaz de dormir. Não quer dormir. Gostaria de acabar logo com esse assunto.
Está deitado, mas sem querer. Não sabe mais se pôs no chão a tigela de sopa. Se a derrubar, vai cheirar mal a noite toda. Aconteceu uma vez. Tem vontade de chorar.
Não vai dizer a Holst que chorou. A ninguém. Ninguém o vê. Estende um braço, como se houvesse alguém junto dele, como se ainda fosse possível que um dia alguém ficasse
junto dele.
Poderia ter sido assim, mas seria preciso que tudo tivesse sido diferente!
Não aceita que seu pai seja o inspetor-chefe Kurt Hamling.
Por que pensa nisso?
Não pensa em nada. Chora como um bebê. Está com sono. Sua mãe de criação, nesses casos, lhe enfiava uma mamadeira na boca, e ele fungava duas ou três vezes, punha-se
a mamar e se acalmava.
Já não vai ser tão demorado. E não é o tempo que importa. Que idade tem a mulher da janela? Vinte e dois anos? Vinte e cinco? Onde ela estará daqui a dez anos, daqui
a cinco? Será que seu companheiro terá morrido? Será que já está morto? Será que ela mesma tem no corpo o germe de uma doença que a levará embora?
O que Holst lhe dirá? Como ele se comportará?
Sissy ficará calada, ele sabe. Ou dirá simplesmente:
— Frank!
O velho senhor estará presente. Não tem importância. Está com calor. Estará com febre? Contanto que não fique doente bem neste momento! O velho senhor usa óculos,
está vestido de preto da cabeça aos pés. Por quê, se de costume traja cinza? Frank é católico. Teve amigos protestantes e chegou a assistir aos ofícios deles. Viu
pastores.
É preciso tomar cuidado porque a escrivaninha americana muda de forma, se torna uma espécie de altar. Lotte é ridícula por se vestir como se veste. É assim toda
vez que acha necessário ter um ar distinto. Ela abusa então do cinza e do branco. Ele se lembra vagamente da foto de uma rainha que se vestia desse jeito, porém
de maneira mais incerta, mais vaporosa ainda. Mas era uma rainha. Lotte toca um bordel, e também é vaporosa. Quanto à coitada da Minna, parece ter acabado de sair
de um convento. É a prima Minna.
Por que ela chora? Lotte deixa cair seu lenço enrolado, e é Holst que se abaixa para pegá-lo, para devolvê-lo estendendo seu braço comprido. Ele não diz nada, porque
não é o momento de falar. O velho senhor lê seus papeizinhos e corre o risco de se embrulhar. É uma petição complicadíssima e de primeiríssima importância.
Sissy olha Frank nos olhos, com tanta intensidade que as pupilas dele ficam doloridas.
Não há mais revólver, e sim uma chave. É uma chave que vão lhes entregar em vez de alianças. A ideia não é boba. Nunca tinha ouvido dizer que se fazia isso, mas
é uma boa ideia. A quem vão entregá-la? Evidentemente é a chave de um quarto, com uma janela, um estore. Já está escuro. Vão ter de abaixar o estore e acender a
luz.
Ele olha. Seus olhos estão abertos. Acabam de acender a lâmpada da sua sala de aula. O civil está de pé junto da sua cama, o soldado espera à porta.
— Já vou — ele balbucia. — Garanto que já vou...
Não se mexe. É obrigado a fazer um violento esforço. Suas pernas estão duras, suas costas doem. O homem espera. O pátio está um breu. O projetor o varre como um
farol à beira-mar. Frank nunca viu o mar. Nunca verá. Só o conhece pelo cinema, e sempre há faróis.
Foi ao cinema com Sissy duas vezes. Duas vezes!
— Já vou...
Enfia de novo o casaco. Tem a impressão de esquecer alguma coisa. Ah, sim, tem de se mostrar muito amável com o velho senhor, para encorajá-lo.
A saleta. A estufa ronca. Está muito mais quente. Vai ver que também é de propósito. Deixam-no de pé, é uma sessão de pé, quando, hoje, não sabe por que, sentar
seria um alívio.
— E se o senhor me falasse um pouco de Kromer?
Esse aí não deixa passar nada! Entende que é o bom momento!
— Está bem.
Teria preferido falar do revólver, que percebe em cima da escrivaninha. Teria acabado assim com essa ameaça que lhe reservam para o fim.
— Por que ele lhe deu o dinheiro?
— Porque arranjei umas mercadorias para ele.
— Que tipo de mercadorias?
— Relógios.
— Ele negociava relógios?
Tem vontade de suplicar:
— O senhor vai conceder a autorização?
O tempo todo do interrogatório engolirá a saliva para não fazer essa pergunta.
— Alguém tinha lhe encomendado uns relógios.
— Quem?
— Acho que um oficial.
— Acha?
— Ele me disse.
— Que oficial?
— Não sei o nome. Um oficial superior que coleciona relógios.
— Onde o senhor o encontrou?
— Nunca o vi.
— Como ele o pagou?
— Ele pagou a Kromer, que me deu a minha parte.
— Que parte?
— A metade.
— Onde o senhor comprou os relógios?
— Não comprei.
— Roubou?
— Peguei.
— Onde?
— Em casa de um relojoeiro que eu conhecia e que morreu.
— Foi o senhor que o matou?
— Não. Ele morreu um ano atrás.
Aquilo está indo rápido, rápido demais. Normalmente, já seria o suficiente para três ou quatro sessões, mas é tomado por uma vertigem. Dir-se-ia que é ele, agora,
que precipita o movimento, para chegar mais depressa ao fim.
— Quem detinha os relógios?
O velho senhor consulta um dos seus pedacinhos de papel. Eles sabem. Frank juraria que eles sabem disso tudo desde o início. Então qual a necessidade de encenar
toda essa comédia? O que mais querem saber? O que esperam? Porque, afinal de contas, é muito mais o tempo deles que o seu que eles perdem.
— Estavam escondidos na casa da irmã dele. Fui lá. Peguei os relógios e fui embora.
— Só isso?
Ele solta, amuado, como um garotinho pego com a boca na botija:
— Dei meia-volta e retornei à casa para matá-la.
— Por quê?
— Porque ela tinha me reconhecido.
— Com quem o senhor estava?
— Estava sozinho.
— Onde isso aconteceu?
— No campo.
— Longe da cidade?
— A uns dez quilômetros.
— O senhor foi a pé?
— Sim.
— Não!
— Tem razão: não.
— Como foi até lá?
— De bicicleta.
— O senhor não tem bicicleta.
— Me emprestaram uma.
— Quem?
— Aluguei.
— Onde?
— Não sei mais. Numa oficina da cidade alta.
— O senhor reconheceria a oficina se o levassem à cidade alta?
— Não sei.
— E se lhe mostrássemos a caminhonete que usou, o senhor a reconheceria?
Também sabem disso. É deprimente.
— O senhor vai vê-la amanhã, no pátio.
Ele não responde. Está com sede. Sua camisa está ensopada debaixo do braço, e suas têmporas começam a latejar.
— Como o senhor conheceu Carl Adler?
— Não o conheço.
— E no entanto ele dirigia a caminhonete.
— Estava escuro.
— O que sabe dele?
— Nada.
— O senhor não deve ignorar que ele trabalhava com rádio, não é?
— Não sabia.
— Havia um transmissor na caminhonete.
— Não vi. Estava escuro. Não olhei para trás.
— Quem estava atrás.
— Não sei.
— Havia alguém?
— Sim.
— Devem tê-lo apresentado ao senhor. Quem?
— Kromer.
— Onde?
— Num bar, em frente ao cinema.
— Com quem ele estava?
— Sozinho.
— Com que nome ele lhe apresentou seus parceiros?
— Nenhum nome.
— Reconheceria o que estava atrás?
— Não creio.
— Descreva-o.
— Era gordo, de bigode.
Ele mente. É sempre tempo ganho.
— Continue.
— Usava um macacão de mecânico.
— No bar?
— Sim.
Esse, eles não devem conhecer, dá para sentir. Frank portanto não arrisca nada.
— Espere. Acho que tinha uma cicatriz.
— Onde?
Pensa na régua de cobre. Improvisa:
— De través numa das faces... À esquerda... É.
— O senhor mente, não é?
— Não.
— Seria uma pena se mentisse, porque me impediria a priori de conceder a autorização que me foi pedida.
— Juro que não o conheço.
— A cicatriz?
— Não sei.
— A descrição?
— Também não sei. Sem dúvida eu o reconheceria se o visse, mas sou incapaz de descrevê-lo.
— O bar?
— É verdade.
— Carl Adler?
— Eu me pergunto por que gravei o nome dele. Tornei a vê-lo duas vezes, na rua. Ele não me reconheceu. Ou fingiu não me reconhecer.
— O transmissor?
— Não me falaram dele.
Será que vai ter a autorização? Escruta com angústia o rosto do velho senhor, que deve sentir um prazer secreto em ostentar uma cara mais fechada do que nunca. Enrola
um cigarro. Depois fala lenta, suavemente:
— Carl Adler foi fuzilado ontem por outro serviço. Ele não falou. Precisamos encontrar seus cúmplices.
Então, de repente, Frank fica rubro. Será que vão lhe propor um trato como o que Lotte aceitou?
Ele não sabe de nada, é verdade. Eles devem acabar se convencendo. Mas poderia saber.
Respira com dificuldade. Não sabe mais para onde olhar. Sente vergonha, mais uma vez. O que ele fará se lhe formularem brutalmente a pergunta, se lhe puserem o trato
nas mãos? O que Holst faria?
Fecha os olhos, fica rígido. Estava bom demais para ser verdade. Já não pode contar com a autorização. Sem dúvida, nunca sairá. Não chora. Não era num momento assim
que ele se poria a chorar.
Espera. O velho senhor deve brincar com seus papeizinhos. Por que fica calado? Só se ouve o roncar da estufa. O tempo passa. Depois Frank se arrisca a abrir os olhos
e vê o acólito, de pé a seu lado, esperando para levá-lo de volta.
O soldado já está na porta.
Acabou. Quem sabe até daqui a pouco, quem sabe até amanhã.
Eles não se cumprimentam. Aqui ninguém nunca se cumprimenta. Deve ser um dos costumes da casa, e isso dá uma impressão de vazio.
Faz muito frio do lado de fora, muito mais frio do que nos dias precedentes. O céu está claro como uma lâmina, as cumeeiras dos telhados parecem mais agudas que
de costume.
Amanhã de manhã haverá cristais de gelo nos vidros.
4
Engraçado. Passou a maior parte da vida — ó, quão maior! — odiando o destino, com um ódio quase pessoal, a ponto de procurá-lo nos cantos, a fim de desafiá-lo, se
engalfinhar com ele.
E eis que de repente, quando não pensa mais no assunto, o destino lhe dá um presente.
Não é possível falar de outro modo. Pode-se pensar, é claro, que o velho senhor, apesar do seu sangue de peixe, tenha tido um momento de fraqueza, de enternecimento.
Ele pode também ter cometido um erro de técnica, mas isso não é muito plausível, porque, até aqui, nunca tinha se enganado. Mais provavelmente, isso se produziu
em outro lugar, em outro setor, o setor bem alto, a que Holst se dirigiu e onde alguém, que não sabe nada do caso, apôs na petição uma rubrica que significa sim.
Holst está lá embaixo! Holst está na saleta, perto da estufa, e ao lado dele, um pouco recuada, Sissy.
Os dois estão lá!
Frank não foi avisado de nada. Vieram buscá-lo como para um interrogatório. Faz uns cinco dias que sua mãe e Minna vieram, houve doze ou quinze interrogatórios,
sua corda estava quase acabando e ele se sentia tão fraco que teve momentos de ausência.
Holst está ali, e Frank parou seco, olhando para ele. Viu Sissy, mas continuou olhando para Holst, e seus pés não conseguiam mais se mover, seu corpo não se mexia
mais. O que há de maravilhoso nisso é que Holst nem pensa em abrir a boca.
Para dizer o quê?
Como se ele entendesse a pergunta que o olhar de Frank contém, como se respondesse a ela, empurra levemente Sissy para a frente.
O velho senhor com certeza está ali, atrás da sua mesa sinistra. Os acólitos também estão a postos, com toda certeza. Há a estufa, a janela, o pátio, a sentinela
junto da guarita.
Na verdade, não há absolutamente nada. Há Sissy, num casaco preto que a faz parecer magérrima, com uma boina preta sobre seus cabelos louros que escapolem. Ela o
fita. Ela não tem vontade de chorar, como Lotte. Não se apieda, como Minna. Será que nem mesmo nota os dois dentes faltantes, nem sua barba, nem sua roupa amarrotada?
Ela não vai até ele. Eles não ousam, nem um nem outro. Será que o fariam, se ousassem? Não é garantido.
Ela entreabre a boca. Vai falar. Diz primeiro, como ele tanto previu:
— Frank...
Ela faz questão de pronunciar outras palavras e ele tem medo.
— Vim pra te dizer...
Ele murmura, incomodado:
— Eu sei.
Achou que ela ia dizer, teve medo de que ela dissesse:
— ... que não te odeio.
Ou:
— ... que te perdoo.
Mas não são estas sílabas que ela articula. Ela continua a fitá-lo. Não é possível que dois seres tenham se olhado um dia com tamanha intensidade. Ela fala simplesmente.
— Vim para te dizer que eu te amo.
Ela está com sua bolsa, sua bolsinha preta na mão. As coisas acontecem quase como num sonho, salvo que o velho senhor, que acaba de enrolar meticulosamente um cigarro,
bota a língua para fora a fim de colar o papel.
Frank não responde. Não tem nada a responder. Não tem o direito de responder nada. Tem de olhar logo para ela. Também tem de olhar para Holst. Não está com as botas
de feltro, que usava para conduzir o bonde. Calça sapatos como todo mundo. Está vestido de cinza. Traz o chapéu na mão.
Frank não se mexe, não ousa se mexer. Sente que seus lábios se movimentam, mas não é para falar. Talvez seja nervoso, não sabe. Então Holst avança, sem ligar para
o velho senhor nem para os coroinhas de bigode, e põe-lhe a mão no ombro, exatamente como Frank sempre pensou que um pai faria.
Será que Holst acha que lhe deve uma explicação? Temerá que Frank não tenha entendido direito? Conservará Frank alguma dúvida?
Sua mão faz uma leve pressão no ombro e ele recita, parece mesmo recitar, com uma voz ao mesmo tempo grave e neutra que lembra certas cerimônias da semana santa:
— Eu tinha um filho, um rapaz um pouco mais velho do que você. Ele ambicionava ser um grande médico. Era apaixonado pela medicina, e nada mais tinha importância
para ele. Quando fiquei sem dinheiro, ele resolveu continuar seus estudos, custasse o que custasse.
“Um dia, uns produtos caros, mercúrio, platina, desapareceram do laboratório de física. Depois começaram a se queixar, na Universidade, de pequenos furtos. Enfim,
um estudante que entrou às carreiras no vestiário encontrou meu filho furtando uma carteira.
“Ele tinha vinte e um anos. Quando o levavam para a sala dor reitor, ele se atirou por uma janela do segundo andar...”
A pressão dos dedos se acentuou.
Frank gostaria de dizer alguma coisa. Tem principalmente uma coisa que gostaria de lhe dizer, mas que não significa nada, que talvez fosse mal interpretada: ele
gostaria de ter sido o filho de Holst, gostaria de ser o filho de Holst. Ficaria tão feliz — e isso o aliviaria de tamanho peso — de pronunciar a palavra:
“Pai!”
Sissy tem esse direito. Sissy não tira os olhos dele. Ele não poderia dizer, como a Minna, se ela emagreceu ou empalideceu. Isso não conta. Ela veio. Foi ela que
quis vir, e Holst a aceitou, a pegou pela mão e a trouxe para junto de Frank.
— É isso — ele concluiu. — O ofício de homem não é fácil.
Dir-se-ia que ele sorriu fracamente ao articular essas palavras, como se desculpando.
— Sissy fala o dia inteiro de você com o sr. Wimmer. Consegui trabalho num escritório, mas acabo cedo.
Vira-se para a janela, para que eles possam se olhar, só eles dois.
Não tem alianças. Não tem chave. Também não tem reza, mas as palavras de Holst fazem as vezes desta.
Sissy está ali. Holst está ali.
Eles não podem ficar muito, porque Frank talvez não conseguiria suportar. É o que ele tem. É o que ele terá. É toda a sua parte. Não há nada antes e não existe depois.
São suas núpcias, as dele! É sua lua de mel, é sua vida que ele tem de viver de uma só vez, concentrada, junto do velho senhor que remexe seus papeizinhos.
Eles não terão janela que se abre, roupa a pôr para secar, berço.
Se houvesse tudo isso, talvez não haveria nada, salvo um Frank obstinando-se contra o destino. Não é a duração que conta. É que assim seja.
— Sissy...
Não sabe se murmurou seu nome ou se pensou. Seus lábios se moveram, mas ele não pôde impedi-los de se mover. Suas mãos também se mexem, se estendem sem cessar para
a frente, num movimento que ele sempre detém a tempo. As de Sissy fazem a mesma coisa. Sissy achou uma forma de se conter cravando os dedos na bolsa.
Para ela também, para Holst, não pode ser muito demorado.
— Procuraremos voltar — diz Holst.
Frank sorri, sempre olhando para Sissy, assente, bem sabendo que não é verdade, como Holst sabe, como Sissy sem dúvida sabe.
— Voltarão sim.
É tudo. Seus olhos não aguentam mais. Tem medo de desmaiar. Não come nada desde a véspera. Acaba de passar uma semana quase sem dormir.
Holst vai até sua filha para lhe dar o braço. É ele quem diz:
— Coragem, Frank.
Sissy não fala mais. Deixa-se levar, a cabeça sempre virada para ele, os olhos fixos nele numa expressão que ele nunca vira em olhos humanos.
Eles não se tocaram, nem mesmo com os dedos. Não era necessário...
Eles se foram. Ainda os vê pela janela, no branco do pátio, e o rosto de Sissy continua virado para ele.
Depressa! Ele vai gritar! É forte demais! Depressa!
Não se aguenta mais no lugar, caminha em direção ao velho senhor, abre a boca. Vai gesticular, falar com veemência, mas nenhum som sai da sua garganta e ele fica
paralisado.
Ela veio, ela está ali, ela está nele. Ela é dele. Holst os abençoou.
Por que aberração ou por que generosidade inaudita do destino, depois de um presente daqueles, como dá a tão poucos, o destino lhe concede outro? Em vez de interrogá-lo,
como deveria acontecer, pelo que tudo levava a crer, o velho senhor se levanta, vai pôr seu chapéu e sua peliça, o que acontece pela primeira vez, e levam Frank
de volta para o seu quarto.
Ele tinha de passar em claro sua noite de núpcias, e não a interromperam.
É melhor que não sinta mais seu cansaço, que esteja calmo ao se levantar, tão senhor de si. Espera-os. Olha para a janela, lá longe, mas pouco importa que venham
buscá-lo antes de ela se abrir.
Sissy está nele.
Segue o civil, precede o soldado. Fazem-no esperar, e isso não o incomoda. É a última vez. Sem dúvida há um novo reflexo em seu rosto porque o velho senhor, ao erguer
a cabeça, fica um instante surpreso, depois o observa com uma curiosidade inquieta.
— Sente-se.
— Não.
Não vai ser um interrogatório no banquinho, assim decidiu.
— Antes de mais nada, peço licença ao senhor para fazer uma declaração importante.
Falará pausadamente. Isso dará mais peso às suas palavras.
— Roubei os relógios e matei a srta. Vilmos, irmã do relojoeiro do meu vilarejo. Já tinha matado um dos oficiais de vocês, na esquina do beco do curtume, para pegar
seu revólver, porque tinha vontade de ter um revólver. Cometi ações muito mais vergonhosas; cometi o maior crime do mundo, mas esse não lhe diz respeito. Não sou
um exaltado, nem um agitador, nem um patriota. Sou um crápula. Desde que o senhor me interroga, eu me empenhei em ganhar tempo, porque era indispensável ganhá-lo.
Agora acabou.
Não toma fôlego. Dava para crer que ele tenta adotar a voz glacial do velho senhor, mas, por momentos, é mais com a voz de Holst que a dele se assemelha.
— De tudo o que o senhor quer saber, não sei nada. Isso eu lhe garanto. Se soubesse alguma coisa, não lhe diria nada. De hoje em diante, o senhor pode me interrogar
tão demoradamente quanto quiser, não responderei mais uma palavra. O senhor tem a possibilidade de me torturar. Não temo a tortura. O senhor tem a possibilidade
de me prometer a vida. Não a quero. Desejo morrer o mais cedo possível, da maneira que lhe aprouver.
“Não me queira mal, se lhe falo assim. Pessoalmente, não tenho nada contra o senhor. O senhor faz seu ofício. Já eu, decidi me calar e estas são as últimas palavras
que lhe dirijo.”
Espancaram-no. Fizeram-no descer três ou quatro vezes para espancá-lo. A última vez, puseram-no pelado no escritório. Os homens de bigode procedem a seu trabalho sem febre, como que sem maldade. Sem dúvida cumprindo ordens, deram-lhe joelhadas nas partes genitais, e ele enrubesceu porque por um instante pensou em Kromer e
Sissy.
Para comer, só lhe dão sopa. O resto, pegaram.
Não vai demorar muito. Se não se apressarem, o desenlace pode vir sozinho.
Ainda espera que o levem ao porão. No fundo, é a velha mania de reclamar um tratamento diferente do dos outros.
Há sempre, acima do ginásio, a janela que poderia ser a dela, a mulher que poderia ser Sissy.
Por fim eles se decidem, numa manhã em que recomeçou a nevar. Dir-se-ia que estão adiantados, porque o céu está escuro e baixo. Primeiro foram à sala de aula ao
lado. Não pensou que seria assim. Depois, deixando os três homens que escolheram esperando na passarela, abriram a sua porta com um empurrão brusco.
Está pronto. Não é para vestir o sobretudo. Ele sabe. Se apressa. Não quer fazer os outros três esperarem, eles estão com frio. Na semiescuridão procura distinguir
as feições deles, e é a primeira vez que manifesta curiosidade em relação aos da outra sala.
Fazem-nos seguir em fila indiana ao longo da galeria.
Ah! Ele levantou a gola do casaco, como os outros!
Esqueceu de olhar para a janela, esquece de pensar. É verdade que vai ter todo o tempo depois.

 

 

                                                                  Georges Simenon

 

 

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