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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NOITE DA RAPOSA / Jack Higgins
A NOITE DA RAPOSA / Jack Higgins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Não é todos os dias que um homem é enterrado quarenta anos após a sua morte.
Mas também nunca existiu nada de vulgar na vida de Harry Martineau.
Importante espião britânico, desapareceu durante a II Guerra Mundial e só Sarah Drayton sabe porquê.
Apaixonou-se por ele na missão mais perigosa da sua carreira. E só agora é que pode contar a espantosa verdade ...
A história começa em Abril de 1944.
Um americano ferido, conhecendo detalhadamente os planos do Dia D, está em perigo de cair nas mãos dos nazis.
Com a vitória dos Aliados em jogo, ele tem de ser encontrado.
Disfarçado de oficial das SS, Martineau é em breve envolvido num jogo mortal de bluff e contra-bluff, tendo como adversário nada menos que o marechal-de-campo Rommel, a Raposa do Deserto!

 


 


Capítulo Um

Os Romanos acreditavam que as almas dos defuntos ficavam perto das suas campas. Era fácil de acreditar numa fria manhã de Março em que o céu estava tão escuro como se fosse quase noite.

Fiquei de pé na arcada de granito e observei o cemitério. A placa dizia lGREJA PAROQUIAL DE ST. BRELADE, e O loCal estava apinhado de lápides e campas. Aqui e ali, erguia-se uma cruz de granito. Ao fundo, via-se um anjo alado; olhei para ele e nesse momento um trovão ressoou no horizonte e a chuva varreu a baía.

Abri o guarda-chuva e aventurei-me para fora do arco. Ainda no domingo anterior, em Boston, eu nunca ouvira falar nas ilhas britânicas do Canal, ao largo da costa francesa, ou na ilha de Jersey. Agora era quinta-feira e cá estava eu, depois de viajar através de meio mundo, à procura da resposta final para algo que me ocupara três anos de vida.

Enquanto caminhava por entre as lápides em direcção à velha igreja de granito, parando para olhar para a baía, ouvi vozes.

Voltei-me e vi dois homens com bonés de feltro acocorados sob um cipreste junto à parede do fundo. Levantaram-se e afastaram-se, e reparei que levavam pás. Fui até à parede e lá estava uma campa acabada de abrir, coberta com uma lona impermeável.

Acho que nunca me senti tão excitado. Era como se ela tivesse estado à minha espera.

Voltei-me e fui por entre as lápides até à entrada da igreja, abri a porta e entrei. Esperava encontrar um local de escuridão e tristeza, mas as luzes estavam acesas e era verdadeiramente belo; o tecto em abóbada era invulgar por ser de granito, e não existiam quaisquer vestígios de vigas de madeira. Caminhei em direcção ao altar e fiquei de pé por um momento, olhando em redor, consciente da tranquilidade. Ouviu-se o som de uma porta a abrir e depois a fechar. Um homem aproximou-se.

Tinha o cabelo branco e os olhos de um azul muito pálido.

Envergava uma sotaina preta e trazia uma gabardina no braço. A sua voz era seca e tinha um ligeiro toque irlandês.

- Posso ajudá-lo? O meu nome é Cullen. Cónego Donald Cullen.

Apertei-lhe a mão. Correspondeu com uma mão surpreendentemente firme.

- Alan Stacey.

- americano?

- Sou - disse eu. - a minha primeira visita a Jersey. Até

há alguns dias atrás, nem sequer sabia que este sítio existia.

Como a maioria dos Americanos, só ouvira falar em New Jersey.

Sorriu e dirigimo-nos para a porta.

- Escolheu uma má altura do ano para a sua primeira visita.

Jersey pode ser um dos locais mais desejáveis à face da Terra, mas em Março geralmente não.

- Não tive muito por onde escolher - disse eu. - Vim porque vai ser enterrada uma pessoa aqui hoje. Harry Martineau.

Começara a vestir a gabardina e þarou surpreendido.

- verdade. s duas da tarde. E da família?

- Não exactamente, embora às vezes me sinta como se fosse.

Sou professor assistente de Filosofia em Harvard. Nos últimos três anos tenho estado a trabalhar numa biografia de Martineau.

- Estou a ver. - Abriu a porta e saímos para o adro.

- Sabe alguma coisa sobre ele? - perguntei.

- Muito pouco, para além da forma extraordinária como morreu.

- E as circunstâncias ainda mais extraordinárias dos seus últimos ritos - disse eu. - Afinal, cónego, não são muitas as vezes que se enterra um homem quarenta anos após a sua morte.

O euNo,þ,ow do cónego Cullen ficava do outro lado da baía de St. Brelade, próximo do Hotel Horizonte, onde eu estava A Noite da Raposa 257

hospedado. Era pequeno e despretensioso, mas a sala de estar era surpreendentemente grande, confortável e desarrumada. Duas paredes estavam cobertas de livros. As janelas de correr davam para um terraço, para um pequeno jardim e para a baía por trás.

O

vento levantava a água do mar em ondas de crista branca e a chuva batia nas janelas.

O meu anfitrião veio da cozinha e p“s um tabuleiro numa pequena mesa junto à lareira. Serviu-me uma chávena de chá enquanto me sentava. O silêncio pesava entre nós. Ergueu a sua chávena e bebeu devagar, à espera.

- Tem uma casa muito confortável - disse eu.

- Pois é - disse. - Sinto-me muito bem aqui. Sozinho, claro. A grande fraqueza de todos os seres humanos, professor Stacey, é a de todos nós precisarmos de alguém. - Pousou a chávena. - Passei três anos em Jersey quando era rapaz e acabei por gostar muito disto. Quando me reformei, pareceu-me uma escolha óbvia.

Tirou um cachimbo e começou a enchê-lo de uma velha bolsa de couro.

- Então - disse ele energicamente. - Fale-me de Martineau.

- Sabe alguma coisa sobre ele?

- Nunca tinha ouvido falar no homem até há alguns dias atrás, quando a minha boa amiga, a Dr." Drayton, me veio ver e me disse que o corpo vinha de barco de Londres para ser enterrado aqui.

- Sabe como é que ele morreu? - perguntei.

- Num desastre de avião em 1945. Em Janeiro de 1945, mais exactamente. Durante a II Guerra Mundial, a RAF possuía uma esquadrilha chamada Enemy Aircraft Flight, que testava os aviões capturados aos Alemães para analisar a sua actuação. Harry Martineau trabalhava para o Ministério da Guerra. Foi dado como desaparecido quando viajava como observador para a RAF num Arado 96, um avião de treino alemão. Sempre se pensou que tivesse caído no mar, mas há duas semanas foi encontrado durante umas escavações num terreno para construção num pântano de Essex.

- E Martineau e o piloto ainda estavam lá dentro?

- O que restava deles. Por alguma razão, as autoridades foram muito discretas em relação ao assunto. A notícia só me chegou no fim da semana passada. Apanhei o primeiro avião que consegui. - Acenou com a cabeça. - Diz que tem estado a trabalhar numa biografia dele. Porque é que ele é tão especial?

Como lhe disse, eu nunca tinha sequer ouvido o nome dele antes.

- Nem o público em geral - disse eu. - Mas nos anos 30

era considerado uma das cabeças mais brilhantes e inovadoras no seu campo, que era a filosofia moral.

- Um estudo interessante - disse o cónego.

- Para um homem fascinante. Nasceu em Boston. O pai dedicava-se à construção naval. Rico, mas não exageradamente.

A mãe, embora tenha nascido em Nova Iorque, era de ascendência alemã. - Levantei-me e fui até à janela. Olhei lá para fora, absorto em pensamentos. - Martineau frequentou Harvard, fez o doutoramento em Heidelberga e foi bolseiro de Rhodes em Oxford. Mais tarde, foi nomeado membro do Trinity College e tornou-se professor Croxley de Filosofia Moral com trinta e oito anos.

- Um feito notável - disse Cullen.

Voltei-me.

- Mas o estranho é que era o género de homem que punha tudo em questão. Virava todo o seu campo de actividade do avesso.

Depois, começou a guerra e o resto é silêncio.

- Silêncio?

- Oh, deixou Oxford. Isso sabemos. Trabalhou para o Governo, tal como lhe disse. Muitos académicos fizeram isso. Mas a tragédia é que ele parece ter parado completamente com o trabalho académico após Setembro de 1939. Não existem mais escritos e o livro que estava a escrever ficou por acabar.

O relógio na cornija da lareira deu as doze horas. Cullen levantou-se, dirigiu-se ao armário e serviu dois núhiskies.


Trouxe-os e estendeu-me um copo.

- E então, professor, quanto ao resto?

- O resto?

- Supõe-se que os padres são almas ingénuas que nada sabem sobre a realidade da vida - disse ele. - Um disparate, claro está. Depois de cinquenta e dois anos de padre, aprende-se a perceber quando alguém não nos está a dizer tudo. - Chegou um fósforo ao cachimbo e deu uma fumaça. - O que se aplica a si, meu caro amigo, a não ser que eu esteja muito enganado.

Respirei fundo.

- Quando o encontraram, estava com o uniforme da Luftwaffe.

Tanto ele como o piloto.

- Como é que sabe isso?

- Tenho um amigo que trabalha para a CIA na nossa embaixada em Londres. E descobriu outra coisa. O relatório que diz que o avião Arado pertencia à RAF também é suspeito.

- Porquê?

- Porque eles tinham sempre as insígnias circulares da RAF

e este ainda tinha as da Luftwaffe.

O velhote franziu o sobrolho.

- E você não conseguiu obter mais informações de fontes oficiais?

- Nenhumas. Por ridículo que pareça, Martineau e o seu voo ainda estão cobertos por uma classificação de segurança do tempo da guerra. A única coisa que consegui descobrir foi que Martineau foi condecorado com a Distinguished Service Order em 1944. Mas nenhuma informação sobre o que fez para a merecer.

- Encolhi os ombros. - Nada faz sentido. Martineau e Jersey, por exemplo. Tanto quanto sei, ele nunca cá esteve. - Engoli o resto do rsþhiskv. - Martineau não tem parentes vivos e nunca casou, por isso diga-me lá quem é essa Dr.þ Drayton? Deve ter muita influência junto do Ministério da Defesa para ter conseguido que lhe entregassem o corpo.

- Tem toda a razão - disse Cullen. Ergueu o copo para me fazer um brinde.

þþEr.% SoU a Ressurreiçþão e a Vida: quem crê em Mim, ainda que esteja mor-to, iþiverá.þþ

O sotaque de Cullen parecia mais irlandês ao erguer a voz contra a chuva pesada. Tinha um capote escuro por cima do paramento e um dos homens da agência funerária, de pé ao seu lado, segurava um guarda-chuva.

Havia apenas uma pessoa de luto, Sarah Drayton, de pé do outro lado da campa aberta. Aparentava quarenta e oito ou cinquenta anos, embora, como descobri mais tarde, tivesse sessenta; era baixa e ainda tinha boa figura e estava de fato e chapéu pretos. O cabelo era curto, cinzento-platinado. Não era nada bonita no sentido convencional, a boca grande demais e os olhos cor de avelã sobre umas maçãs do rosto largas. Mas era uma cara com bastante carácter e havia nela uma extraordinária tranquilidade.

Mantive-me afastado sob o abrigo das árvores; estava encharcado apesar do guarda-chuva. Cullen concluiu o serviço e depois aproximou-se dela e disse-lhe qualquer coisa. Ela deu-lhe um beijo, ele voltou-se e dirigiu-se à igreja, seguido pelos homens da agência.

Ela ficou junto à sepultura por uns momentos e os dois coveiros aguardaram respeitosamente a uns metros de distância.

Ignorou-me quando avancei na sua direcção.

- Dr.á Drayton? - disse eu. - Desculpe vir incomodá-la.

O meu nome é Alan Stacey. Pode dispensar-me alguns minutos?

A sua voz era calma e tinha um tom agradável. Sem olhar para mim, disse:

- Sei perfeitamente quem é, professor Stacey. Tenho estado à espera que apareça a todo o momento nestes últimos três anos.

- Voltou-se e sorriu, e de repente pareceu encantadora e com cerca de vinte anos de idade. - Temos mesmo que sair desta chuva antes que nos faça mal. Acho que é melhor vir comigo para tomar uma bebida.

A cnsA não era a mais de cinco minutos dali. Era vitoriana e erguia-se no meio de um hectare de jardim bem cuidado rodeado de faias, por entre as quais se podia ver a baía lá em baixo.

Enquanto subíamos os degraus, a porta foi logo aberta por um homem sombrio de cabelo grisalho, vestindo um casaco de alpaca preta.

- Ah, Vito - disse a Dr.á Drayton enquanto ele lhe pegava no casaco. - Este senhor é o professor Stacey.

- Professor. - Inclinou-se ligeiramente.

- Tomamos café mais tarde - disse ela. - Eu trato das bebidas.

- Com certeza, contessa .. - Voltou-se e deixou-nos.

- Contessa? - perguntei. þ

- Oh, não dê ouvidos a Vito. - Fugiu à minha pergunta delicada mas firmemente. - um snob terrível. Venha por aqui.

Abriu uma grande porta dupla de mogno e conduziu-me a uma grande biblioteca. As paredes estavam cobertas de livros e as portas de vidrinhos davam para o jardim. Havia uma lareira estilo Adam e um piano majestoso cujo tampo estava apinhado de fotografias, a maioria delas em molduras de prata.

- Whiskey está bem para si? - perguntou ela.

- àptimo.

Esteve junto ao tabuleiro das bebidas e deu-me um copo.

- Sei da sua existência desde que começou o trabalho sobre Harry.

- Quem é que lhe falou em mim?

- Oh, amigos - disse ela. - Dos velhos tempos. O género de pessoas que conseguem saber as coisas.

- A senhora deve ter influências - disse eu. - Ninguém no Ministério da Defesa parece querer responder a nenhuma das minhas perguntas e, no entanto, entregaram-lhe o corpo a si.

Sentou-se num maple de orelhas ao pé da lareira e cruzou as pernas magras.

- Já ouviu falar no EOE, professor?

- Claro - disse eu. - Executivo de Operações Especiais.

Montado pelos Serviços Secretos Britânicos em 1940 por instruções de Churchill para coordenar a Resistência na Europa.

Sarah Drayton tirou um cigarro de uma caixa de prata e acendeu-o.


- Trabalhei para eles.

Fiquei espantado.

- Mas ainda era uma criança.

- Dezanove anos - disse ela. - Em 1944.

- E Martineau?

- Olhe para o piano - disse ela. - A fotografia da ponta.

Dirigi-me para o piano e peguei na fotografia. A cara dela saltou da moldura, surpreendentemente inalterada, excepto num aspecto. O cabelo era incrivelmente louro e era ondulado.

Envergava um daqueles casacões do período da guerra, com grandes ombros e justos na cintura.

O homem a seu lado era de estatura mediana e envergava um casaco militar de cabedal, as mãos enterradas nos bolsos. A cara estava ensombrada por um chapéu escuro de abas viradas para baixo. Os olhos eram escuros, sem expressão, e o sorriso possuía uma espécie de encanto implacável. Parecia bastante perigoso.

Sarah Drayton levantou-se e aproximou-se.

- Aí não se assemelha muito ao professor Croxley de Filosofia Moral de Oxford, pois não?

- Onde é que foi tirada?

- Em Jersey. Não muito longe daqui. Em Maio de 1944.

- Mas já estou em Jersey há tempo suficiente para saber que nessa altura estava ocupada pelos Alemães - disse eu.

- Sem dúvida.

- E Martineau estava aqui? Consigò."

Dirigiu-se a uma secretária georgiana, abriu uma gaveta e tirou várias fotografias antigas. Passou-me uma.

- Esta não a tenho em cima do piano por razões óbvias.

Estava vestida de modo semelhante ao da outra fotografia e Martineau envergava o mesmo casaco de cabedal impermeável.

A única diferença era o uniforme SS por baixo, a insígnia prateada com a caveira no boné.

- Standanenf_hrer Max Vogel - disse ela. - Quer dizer, coronel. Ficava muito bem, não ficava?

- Santo Deus - disse eu. - Que significa istò."

Não respondeu, passou-me simplesmente outra fotografia. Um grupo de oficiais alemães. Em frente deles, de pé, estavam dois homens sozinhos. Um era Martineau com um uniforme das SS, mas foi o outro que me tirou a respiração. O marechal-de-campo Erwin Rommel. A Raposa do Deserto em pessoa.

- Esta também foi tirada aqui?

- Sim. - Tornou a p“r a fotografia na gaveta e pegou no meu copo. - Parece-me que está a precisar de outra bebida.

- Sim, também me parece. Vou obter uma explicação?

- Porque não? - disse ela, e voltou-se ao ouvir a chuva bater nas janelas francesas. - Não vejo nada melhor para fazer numa tarde como esta, e você?

LONDRES, 1944

Capítulo Dois

TUDo começou com um telefonema recebido pelo brigadeiro Dougal Munro no seu apartamento de Londres, a dez minutos do quartel-general do EOE, em Baker Street. Enquanto chefe da Secção D do EOE, Munro possuía dois telefones junto à cama, um dos quais estava ligado directamente ao seu escritório. Foi esse que o acordou às quatro da manhã do dia 28 de Abril de 1944.

Ouviu com uma expressão grave e depois declarou suavemente:

- Vou já para aí.

Passados cinco minutos, já ele se apressava ao longo da rua deserta. Tinha sessenta e cinco anos e era um homem atarracado com ar vigoroso, cabelo branco e a cara redonda realçada por óculos de aros metálicos. Vestia uma velha gabardina Burberryþ e levava um chapéu-de-chuva.

Entrou num edifício no princípio da Baker Street, cumprimentou com a cabeça a sentinela e dirigiu-se directamente ao gabinete.

O capitão Jack carter, o oficial de turno da noite, estava sentado por trás da sua secretária.

- Há chá, Jack'?

- O termo está na casa dos mapas, sir.

Munro tirou a tampa ao termo, encheu uma chávena e bebeu.

- Oh, sabe mal, mas pelo menos está quente. Bem, vamos lá

a isto.

carter levantou-se e dirigiu-se a um mapa do Sudoeste da Inglaterra que estava sobre a mesa, mostrando Devon, a Cornualha e o canal da Mancha.

- Exercício Tigre, sir- - disse ele. - Recorda-se dos detalhes?

- Treino de desembarques para a invasão.

- Sim. Aqui na baía de Lyme, em Devon, existe um sítio chamado Slapton Sands. Possui semelhanças suficientes com a praia que designámos por Utah no desembarque da Normandia para ser preciosa para os treinos. Como sabe, a maioria dos jovens americanos que vão tomar parte não possuem experiência de combate. O comboio da noite de ontem era composto por oito lanchas de desembarque de Plymouth e Brixton. Sob escolta naval, claro.

Houve uma pausa. Munro disse:

- Conte-me o pior.

- Foram atacados no mar por barcos E alemães. Duas foram ao fundo. Outras foram atingidas e ficaram danificadas.

Desapareceram cerca de duzentos marinheiros e quatrocentos soldados.

- Está a tentar dizer-me que na noite passada perdemos seiscentos homens? E ainda nem sequer começámos a invasão da Europa?

- Receio bem que sim.

Munro passeou impacientemente pela sala e parou junto à

janela.

- Havia alguns bigots entre os oficiais desaparecidos?

- Três, sir.

- Santo Deus, eu avisei -os. Avisei-os disto - disse Munro.

- Nenhum bigot deveria tomar parte em missões arriscadas.

Bigot era uma designação dos Serviços Secretos superior à de þþaltamente secretoþþ. Os bigots sabiam o que os outros não sabiam - os detalhes da invasão da Europa pelos Aliados.

- Eisenhower foi informado?

- Ele está aqui na cidade, sir, em Hayes Lodge. Quer encontrar-se consigo ao pequeno-almoço. s oito horas.

Munro abanou a cabeça.

- Não seria uma ironia se a maior invasão da História tivesse de ser cancelada por causa de um homem com todas as informações ter caído em mãos erradas?

- Não me parece provável que qualquer dos desaparecidos tivesse sido apanhado pelos Alemães, sir. Julgo que os barcos E

atacaram e depois desapareceram rapidamente. O típico ataque e fuga. Muita escuridão e confusão de ambos os lados. E o tempo não está muito bom. Com as correntes como estão, a maioria dos corpos deve dar à costa.

- Rezo para que tenha razão, Jack - disse Dougal Munro fervorosamente.

MAS NESSE preciso momento, o coronel Hugh Kelso estava mais assustado do que alguma vez estivera na vida; encontrava-se encharcado, com frio e dores terríveis. Estava enrolado no fundo de uma jangada salva-vidas a cerca de uma milha da costa de Devon, com uma corrente contrária a levá-lo rapidamente em direcção a Start Point, na ponta mais a sul da baía de Lyme. Do outro lado estavam as águas abertas do canal da Mancha.

Kelso tinha quarenta e dois anos, casado e com duas filhas.

Engenheiro civil, fora incorporado no corpo de engenharia em 1942. A sua experiência de problemas de engenharia relacionados com desembarques em praias de várias ilhas do Pacífico Sul granjeou-lhe uma transferência para Inglaterra para trabalhar nos preparativos da invasão da Normandia. Seis semanas antes, protegido pela escuridão, Kelso visitara a praia da Normandia designada em código por Utah para verificar a aptidão do terreno para veículos. Parecera por isso sensato tê-lo a bordo quando o LST 31

partiu de Plymouth para tomar parte no Exercício Tigre.

Como todos no barco, Kelso fora apanhado completamente de surpresa pelo ataque. Tinham visto alguns foguetes luminosos que supuseram ser de escoltas britânicas. Foram então atingidos pelo primeiro torpedo, e a noite transformou-se num verdadeiro inferno de óleo a arder e homens a gritar. A força da explosão atirara Kelso para o mar. O colete de salvação manteve-o à superfície, mas perdera os sentidos, e quando os recuperou, deu consigo a ser arrastado pela água gélida.

As chamas estavam a cerca de cem metros de distância e com o reflexo da luz reparou numa cara manchada de óleo.

- Está tudo bem, sir. Aguente -se. Está ali uma jangada de salvamento.

A jangada surgiu das trevas - redonda, gorda, cor de laranja, e concebida para levar dez homens. No topo tinha uma cobertura para proteger os ocupantes do vento e da chuva. A entrada estava aberta.

- Vou p“-lo lá dentro, sir. Depois, vou buscar mais alguns.

Vamos.

Kelso sentia-se fraco, mas o seu amigo desconhecido era forte.

Empurrou-o com força, lançando-o de cabeça para dentro do barco. E nessa altura Kelso sentiu a dor na perna direita, a maior dor que alguma vez tivera. Gritou e desmaiou.

Quando voltou a si, estava dormente e com frio. Não havia sinais do seu amigo desconhecido. Espreitou pela abertura. Os salpicos de água batiam-lhe na cara. Não havia luz em lado nenhum. Olhou para o mostrador luminoso do seu relógio à prova de água. Eram quase cinco da manhã. Depois, lembrou-se de que estas jangadas tinham um estojo de emergência. Quando se voltou para o procurar, a dor na perna recomeçou. Cerrou os dentes e as suas mãos encontraram a caixa e abriram a tampa.

Lá dentro havia uma lanterna à prova de água. Acendeu-a.

Estava sozinho, como imaginara, na cavidade cor de laranja, com a água balançando em seu redor. A perna direita das calças estava rasgada por baixo do joelho e, quando p“s a mão cuidadosamente lá dentro, sentiu as extremidades salientes de um osso partido.

Também havia uma pistola Very dentro da caixa e por momentos segurou-a. Parecia óbvio disparar um foguete luminoso, mas depois conteve-se. E se as unidades navais alemãs que os tinham atacado ainda estivessem na área? Ele era, no fim de contas, um bigot. Dentro de semanas, uma armada de quinhentos navios navegaria através das águas estreitas do canal da Mancha, e Kelso sabia a data e o local. Não, era melhor aguardar o amanhecer.

A perna doía-lhe agora imenso. Vasculhou a caixa e encontrou o estojo médico com as provisões de morfina. Deu uma injecção na perna e, após um momento de hesitação, deu outra.

Depois, encontrou o balde e começou penosamente a deitar água fora através da abertura. Meu Deus, mas estava tão cansado.

Morfina demais talvez, mas ao menos a dor amainara. Encostou-se e adormeceu subitamente.

EtsENHowER estava sentado à janela da biblioteca de Hayes Lodge, tomando um pequeno-almoço de ovos escalfados, torradas e café, quando um ajudante-de-campo anunciou Dougal Munro.

- Deixe-nos, capitão - disse o general, e o ajudante retirou-se.

- Já comeu, brigadeiro'?

- Há anos que não tomo o pequeno-almoço, general - disse Munro.

Por um momento, a cara de Eisenhower iluminou-se com aquele famoso sorriso.

- O que prova que não é um velho militar. Prefere chá, não prefere? Tem aí em cima do aparador. Sirva-se e depois conte-me o que sabe deste desagradável incidente.

Munro serviu-se de chá, sentou-se no banco da janela e fez-lhe um breve resumo dos acontecimentos da noite.

- Mas as escoltas navais deveriam ter sido capazes de evitar que uma coisa dessas acontecesse - disse o general.

Munro encolheu os ombros.

- Os Alemães saíram obviamente de Cherburgo com os silenciadores ligados e o radar desligado. Ao aproximarem-se, dispararam foguetes luminosos, por isso as pessoas do comboio presumiram que fossem nossos.

- Raios, nunca se presume nada neste jogo. Estou farto de dizer isso às pessoas. - Eisenhower levantou-se e foi para junto da lareira. - Os corpos estão a dar à costa às centenas, segundo me dizem.

- Receio que seja verdade.

- escusado dizer, brigadeiro, que tudo isto deve permanecer em segredo. Se se soubesse, tão próximo da invasão, poderia ter um péssimo efeito sobre o moral.

- Concordo. - Munro hesitou e depois disse cuidadosamente: Há a questão dos bigots, general. Ao todo estavam lá

três. Dois dos corpos foram já recuperados. O terceiro - Munro tirou um dossier da pasta e estendeu-lho - ainda não apareceu.

Eisenhower pegou no dossier e leu-o rapidamente.

- Coronel Hugh Kelso. - A sua cara ficou sombria. - Conheço Kelso pessoalmente. Verificou uma praia na Normandia algumas semanas atrás. - O general americano suspirou. - Sabe quando e onde vamos. As implicações são inacreditáveis.

- Temos homens nas praias à procura dele, general. Penso que o corpo pode perfeitamente aparecer como os outros.

Eisenhower disse secamente:

- Alguns dos corpos nunca serão trazidos pela maré. Sei isso e você também, e se Kelso for um deles, nunca poderemos ter a certeza de que não foi apanhado pelo inimigo. - Foi até à janela. A chuva precipitava-se contra o vidro. - Mas que dia. --disse taciturnamente.

Hþ'rþER estava fora de si, andando para a frente e para trás na

sala de mapas no Covil do Lobo, o seu quartel-general subterrâneo, no coração das florestas do Leste da Prússia.

- Estes assassinos não se cansam de tentar. - Virou-se para Rattenhuber, o comandante da guarda SS residente. - E você, Oberfhrer? Quanto a si, que jurou proteger a minha segurança?

- Meu F_hrer - gaguejou Rattenhuber. - Que posso eu dizer?

- Nada! - gritou Hitler tempestivamente, voltando-se para os outros oficiais presentes na sala. - Não dizem nada que me sirva de alguma coisa ... nenhum de vocês.

No silêncio do choque, foi Heinrich Himmler, Reichsf_hrer das SS, quem falou.

- Que houve negligência é um facto, meu F_hrer, mas certamente no malogro deste atentado infame contra a sua vida vemos mais uma prova da certeza do destino do meu F_hrer. Mais uma prova da inevitável vitória alemã sob a sua condução inspirada.

Os olhos de Hitler brilharam.

- Como sempre, Reichsf_hrer, você vê. o único que vê. --Voltou-se para os outros. - Saiam, todos. Quero falar com o Reichsfhrer a sós.

Saíram sem um murmúrio, enquanto Hitler, de pé, olhava para a secretária dos mapas com as mãos firmemente cerradas por trás das costas.

- Há uma conspiração, não é verdade? - disse ele. - Uma conspiração generalizada para me destruir?

- Não é tanto uma conspiração generalizada, é mais uma conspiração de generais.

Hitler voltou-se abruptamente.

- Tem a certeza?

- Oh, sim. Mas provas ... isso já é outra coisa.

Hitler assentiu.

- Esse capitão Koenig, o traidor que tentou trazer uma bomba-relógio para os meus aposentos hoje de manhã, era um ajudante-de-campo do general Olbricht. Olbricht é um daqueles de quem suspeita?

Himmler disse que sim com a cabeça.

- E os outros?

- Os generais Stieff, Wagner, Von Hase, Lindemann. E vários outros; estão todos a ser vigiados atentamente.

Hitler permaneceu admiravelmente calmo.

- Traidores, todos eles. Serão todos enforcados quando chegar a altura certa. Mas não há patentes mais altas? Parece que pelo menos os nossos marechais-de-campo são leais.

- Quem me dera poder confirmar isso, mas existe um que é

suspeito. Não lho dizer seria faltar aos meus deveres.

- Então diga-me.

- Rommel.

Hitler fez um sorriso terrível que era quase de triunfo.

- Então a Raposa do Deserto pretende entrar num jogo.

- Tenho quase a certeza disso.

- O herói do povo - disse Hitler. - Temos de lidar com ele com cuidado, não acha?

- Ou ser mais matreiros que ele, meu F_hrer - disse Himmler docemente.

- Ser mais matreiros. Ser mais matreiros que a Raposa do Deserto. - Hitler sorriu, encantado. - Sim, a ideia agrada-me, Reichsf_hrer. Agrada-me mesmo muito.

HuþH Kelso dormiu até ao meio-dia e quando acordou sentia-se muito doente. Voltou-se na jangada que estava a balançar violentamente e puxou o fecho de correr da saída. A alma caiu-lhe aos pés. Não havia nada a não ser mar. O céu estava escuro, pesado, e não havia vestígios de terra em lado nenhum. Estava algures no meio do canal da Mancha; isso era óbvio. Se navegasse em linha recta, atingiria a costa da França, possivelmente a península de Cherburgo. Abaixo dela, no golfo de St.-Malo, situavam-se as ilhas do Canal. Não sabia muito sobre elas, excepto que eram britânicas e presentemente estavam ocupadas pelo inimigo.

Tirou para fora a pistola Very e disparou um foguete luminoso cor de laranja de SOS. Era raro haver tráfego naval alemão no Canal durante o dia. Geralmente, ficavam-se por terra, por trás dos seus campos minados. Disparou outro foguete e então a água começou a entrar em cascata pela abertura e ele correu apressadamente o fecho. A perna estava-lhe a arder outra vez.

Pegou

noutra ampola de morfina e injectou-se. Passado pouco tempo, deitou a cabeça sobre as mãos e adormeceu.

Lá fora, o mar encrespava-se à medida que a tarde passava.

s cinco horas, o vento soprava para sudoeste, afastando-o da costa francesa e da península de Cherburgo, e por volta das seis horas estava a dez milhas a leste da ilha de Guemsey.

Kelso não sabia nenhuma destas coisas. Acordou cerca das sete horas com febre alta, lavou a cara com um pouco de água e depois caiu numa espécie de coma.

CoNto comandante do Grupo B do Exército, o marechal-de-campo Erwin Rommel era responsável pela defesa do Muro do Atlântico, e a sua única tarefa de momento consistia em derrotar qualquer tentativa aliada para desembarcar no Norte de França.

Desde que assumira o comando em Janeiro, reforçara enormemente as defesas costeiras, percorrendo ele próprio as praias, impondo a sua presença enérgica a todos, desde os comandantes das divisões até ao soldado mais raso.

O seu quartel-general parecia estar sempre em acção, e ele tinha o desagradável hábito de aparecer inesperadamente no seu Mercedes preto acompanhado apenas pelo motorista e pelo seu ajudante-de-campo de confiança, o major Konrad Hofer, dos dias do Afrika Corps.

Na altura em que Hugh Kelso passava à deriva pela costa leste de Guernsey, Rommel sentava-se para jantar com os oficiais do 21." Regimento de Pára-Quedistas num palácio em Campeaux, a umas dez milhas de St.-L“, na Normandia.

A razão principal para estar naquela área era bastante válida.

O Alto Comando estava convencido de que a invasão dos Aliados, quando se desse, teria lugar próximo de Pas de Calais, a sul da Bélgica. Rommel discordava e frisara bem que, se fosse Eisenhower, apontaria para a Normandia. Nada disto aumentou a sua popularidade em Berlim, mas Rommel já não se importava com isso. A guerra estava perdida. A única coisa que ainda não era certa era o tempo que ia demorar.

O que o trazia à segunda razão para estar na Normandia.

Encontrava-se envolvido num jogo perigoso e era necessário estar permanentemente em movimento. Desde que tomara o comando do Grupo B do Exército, renovara velhas amizades com o general Von St_lpnagel, governador militar da França, e com o general Alexander von Falkenhausen. Ambos estavam envolvidos, assim como o coronel Klaus von Stauffenberg, na conspiração para assassinar Hitler e salvar a Alemanha do desastre.

Não fora preciso muito tempo para fazer com que Rommel concordasse com o ponto de vista deles. Todos eles tinham conhecimento dos planos da tentativa de assassínio dessa manhã no Covil do Lobo. Rommel já mandara Konrad Hofer para o quartel-general do general Olbricht, em Berlim, para aguardar o desenlace, mas até ao momento não houvera notícias.

Naquele momento, o coronel Halder, comandante do 21.='

Regimento de Pára-Quedistas, ergueu-se para fazer um brinde.

- Meus senhores ... Ao marechal-de-campo Erwin Rommel, a Raposa do Deserto, que nos honra esta noite com a sua presença.

Esvaziaram os copos e depois aplaudiram Rommel ruidosamente, o qual ficou muito sensibilizado. Depois, Halder disse: - Os homens prepararam um pequeno shoH em sua honra, marechal-de-campo. Esperamos que queira assistir.

- Mas com certeza. Fico encantado.

Abriu-se uma porta no fundo da sala e Konrad Hofer entrou.

Parecia cansado e estava muito necessitado de se barbear.

- Ah, Konrad, cá está você - disse Rommel enquanto o homem se aproximava dele. - Venha tomar uma taça de champanhe.

Está com ar de quem precisa. O voo foi bom?

- Péssimo. - Hofer engoliu o champanhe, agradecido.

- Meu caro rapaz, tome um duche e vamos ver se lhe podem fazer uma sanduíche. - Rommel voltou-se para o coronel Halder.

- Pode adiar o show por meia hora'?

- Não há qualquer problema, marechal-de-campo.

- óptimo. Vemo-nos mais logo, então. - Rommel saiu seguido por Hofer.


Mal a porta do quarto se fechou. Hofer voltou-se agitado.

- Foi uma confusão terrível. Tudo o que aquele palerma do Koenig conseguiu foi fazer-se explodir fora do portão principal.

- Isso foi uma tremenda falta de cuidado da parte dele. --disse Rommel secamente. - Agora acalme-se, Konrad, e vá tomar o seu duche.

Hofer desapareceu para a casa de banho. Enquanto esperava, Rommel endireitou o uniforme, examinando-se ao espelho. Tinha cinquenta e três anos, era entroncado e corpulento, as feições eram duras e havia um poder qualquer em si, uma força quase eléctrica. O uniforme era bastante simples, e as únicas condecorações eram a Pour le Mérite - a famosa Blue Max - e a Cruz dos Cavaleiros com Folhas de Carvalho, Espadas e Diamantes, ambas ao pescoço. Uma vez tendo estas, era difícil precisar de mais alguma.

Hofer apareceu pouco depois de roupão, enxugando o cabelo numa toalha.

- Olbricht e os outros estão furiosos e eu não posso censurá-los. A Gestapo e as SS podem descobrir tudo a qualquer momento.

- E como é que estava Von Stauffenberg? - perguntou Rommel.

- Tão determinado como sempre. Sugeriu que se encontrasse com os generais Von St_lpnagel e Falkenhausen nos próximos dias.

- Vou ver o que posso fazer.

- Não sei se será boa ideia. Se Himmler tem suspeitas sobre si, pode já o ter sob vigilância.

- Oh, eu arranjo uma maneira qualquer - disse Rommel. -- Agora, despache-se. Os homens prepararam um pequeno show para mim e não os quero desapontar.

O sHow foi apresentado num pequeno palco no hall principal do palácio. Rommel, Hofer e os oficiais do regimento sentaram-se à frente; os homens ficaram de pé atrás deles.

Um jovem cabo apareceu, fez uma vénia, sentou-se a um enorme piano e tocou uma selecção de música ligeira. Ouviram-se aplausos delicados. Depois, as cortinas afastaram-se para revelar o coro do regimento cantando vigorosamente. Ouviram-se aplausos vindos do fundo do hall e todos se lhes juntaram, incluindo os oficiais. A cortina desceu numa tempestade de palmas e houve uma pausa.

- Brilhante - disse Rommel. - Há mais?

- Sim, Sr. Marechal-de-Campo. Algo muito especial.

Ouviu-se o som forte e ritmado de um tambor. A cortina subiu, revelando uma luz difusa. Enquanto o coro começava a cantar a canção do Afrika Corps de um lado do palco, Rommel avançou. Era ele, indubitavelmente. O boné com os óculos de protecção do deserto, o velho casacão de cabedal, uma mão enluvada segurando o bastão de marechal-de-campo, a outra pousada arrogantemente na anca. A voz, quando falou, era perfeita ao dizer algumas linhas do seu famoso discurso no campo de batalha antes de E1 Alamein.

þþSei que não vos ofereci grande coisa. Areia, calor e escorpiões, mas partilhámo-los juntos. Mais um empurrão e é o Cairo, e se falharmos ... Bem, pelo menos tentámos - juntos.þþ O silêncio no hall era total quando o coronel Halder olhou ansiosamente para Rommel.

- Meu marechal-de-campo, espero que não tenha ficado ofendido.

- Ofendido? Acho que ele é espantoso - disse Rommel, pondo-se em pé de um salto. - Bravo! - gritou, e atrás dele a audiência juntou-se ao coro na canção do Afrika Corps, aplaudindo ruidosamente.

No Quando de vestir improvisado ao lado da cozinha, o cabo Erich Berger afundou-se numa cadeira e olhou-se ao esp elho. O

coração batia-lhe apressadamente e estava a suar. Era uma tensão terrível para qualquer actor representar em frente do homem cuja figura estava a interpretar. E que homem este. O soldado mais popular da Alemanha.

þþNada mal, Heiniþþ, disse ele docemente. þþMazel Tov.þþ Tirou da gaveta uma garrafa de schnapps, desrolhou-a e bebeu.

Uma frase yiddish nos lábios de um cabo alemão poderia parecer estranho a quem estivesse a ouvir. O segredo é que ele não era nem por sombras Erich Berger, mas sim Heini Baum, actor judeu que actuava num cabaré de Berlim.

A sua história era surpreendentemente simples. Actuara em cabarés por toda a Europa. Nunca casara e persistira em viver em Berlim, mesmo quando os nazis subiram ao poder, porque os seus pais, já idosos, sempre tinham lá vivido e não acreditavam que algo de terrível pudesse acontecer.

Mas depois veio a fatídica noite de 1940 em que tinha chegado ao fim da sua rua, depois do cabaré, a tempo de ver a Gestapo levar os seus pais de casa. Voltara-se e fugira a correr, parando apenas para arrancar do casaco a estrela de David. Mas não tinha sítio para onde ir, pois os seus documentos anunciavam ao mundo que era judeu. Então, apanhara um comboio para Kiel, com a ideia absurda de que talvez pudesse embarcar de lá para algum lado - qualquer lado. Chegara logo após um dos primeiros raides devastadores da RAF sobre a cidade e vagueara através do caos e das chamas à procura de abrigo. Ao agachar-se numa cave, encontrara o corpo de um homem, Erich Berger, como descobriu ao examinar o bilhete de identidade.

E mais uma coisa. No bolso de Berger estavam os seus papéis de recrutamento, chamando-o para se apresentar ao serviço militar na semana seguinte.

Haveria melhor esconderijo para um judeu que tinha medo de ser judeu do que o Exército Alemão? Claro que com quarenta e quatro anos era dez anos mais velho do que Berger, mas não se daria pela diferença. E trocar as fotografias dos bilhetes de identidade era simples.

Fora integrado nas tropas pára-quedistas. Desde então, estivera em todo o lado - Creta, Estalinegrado, Norte de frica - um simpático herói brilhante na sua camisa da Luftwaffe e calças largas de pára-quedista, e obtivera a Cruz de Ferro para o provar.

Bebeu mais um gole da sua garrafa de schnapps e brindou silenciosamente à sua sorte.

ALGUMAS horas mais tarde, no seu quarto, Rommel inclinou-se sobre a lareira e atiçou o fogo com a bota.

- Então os outros gostariam que eu falasse com Von St_lpnagel e Falkenhausen?

- Sim, meu marechal - disse Hofer. - Mas, como salientou, o sigilo seria essencial.

- E a oportunidade - disse Rommel. - Sigilo e oportunidade. O relógio sobre a lareira deu duas badaladas e ele riu-se. - Duas da manhã. A melhor altura para ideias loucas.

- Que é que está a querer dizer, meu marechal?

- muito simples, na verdade. Que tal se combinássemos um encontro na próxima semana com Von Stlpnagel e Falkenhausen enquanto eu estivesse supostamente noutro sítio? Em Jersey, por exemplo?

- Nas ilhas do Canal? - Hofer parecia intrigado.

- O próprio F_hrer sugeriu, ainda não há dois meses, que eu inspeccionasse as fortificações em Jersey. - Voltou-se e sorriu.

- O F_hrer tem razão. Como comandante das defesas do Muro do Atlântico, devo sem dúvida inspeccionar uma tão importante parte dele.

Hofer acenou com a cabeça em concordância.

- Compreendo, meu marechal, mas como é que pode estar em dois locais ao mesmo tempo? Encontrar-se com Falkenhausen e St_lpnagel em França e simultaneamente inspeccionar as fortificações em Jersey?

- Hoje, ao princípio da noite, viu-me em dois locais - disse Rommel calmamente -, na audiência e no palco ao mesmo tempo.

- Santo Deus - murmurou Hofer. - Está a falar a sério?

- Porque não? O Berger, quando subiu ao palco, até a mim me enganou.

- Mas ele será suficientemente inteligente para isso? Quero dizer, ser marechal-de-campo é bastante diferente de ser cabo.

- A mim parece-me suficientemente inteligente - disse Rommel.

- Um soldado corajoso, para além disso. Cruz de Ferro de Primeira Classe. E não se pode esquecer de que o teria a si ao lado a todo o momento. - De repente, Rommel pareceu impaciente.

- Onde é que está o seu entusiasmo, Konrad? Vejamos, hoje é sábado. Que tal aterrar em Jersey na próxima sexta-feira?

Só por trinta e seis horas mais ou menos. Podem regressar a França no domingo o mais tardar.

- Muito bem, meu marechal. Aviso as autoridades das ilhas do Canal que chegará na próxima sexta-feira.

- Não avisa, não - disse Rommel. - Vamos fazer as coisas de uma forma mais inteligente. Quem é o comandante-chefe?

- O major -general conde Von Schmettow. O seu quartel-general é em Guernsey.

- E quem é o comandante militar em Jersey?

- Vou ver. - Hofer tirou um dossier da pasta e percorreu com os olhos uma lista. - Sim, aqui está. O coronel Heine.

- Bem - disse Rommel. - Eis o que vamos fazer. Envie uma mensagem ao general Von Schmettow ordenando-lhe que faça uma reunião em Guernsey no próximo sábado para analisar as implicações para as ilhas da ameaçada invasão da França durante o Verão. Quero-os lá a todos: o comandante militar Heine e quem quer que esteja encarregado dos contingentes da Marinha e da Luftwaffe nas ilhas.


- O que deixará apenas os oficiais subalternos no comando.

- Exactamente. Vou de avião na sexta-feira, no Storrh, ou melhor, vai você e o Berger. Só vão saber da vossa chegada quando pedirem licença à torre para aterrar no campo de aviação.

- E que irá pensar Von Schmettow?

- Que foi uma operação deliberada para que eu possa fazer uma inspecção surpresa da situação militar na ilha.

- Realmente, é uma ideia bastante inteligente - disse Hofer.

-Também acho. - Rommel começou a desabotoar o dólman.

- Entretanto, encontro-me com Falkenhausen e St_lpnagel num sítio sossegado. - Bocejou. - Oh, e fale com o coronel Halder amanhã. Diga-lhe que fiquei muito impressionado com o cabo Berger e quero pedi-lo emprestado por uns tempos. Não me parece que levante qualquer objecção.

NEssA noite, Dougal Munro dormiu numa pequena cama de campanha ao canto do seu gabinete em Baker Street. Eram cerca das três horas da manhã quando Jack Carter o abanou suavemente para o acordar. Munro abriu os olhos instantaneamente e sentou-se.

- Que é?

- As últimas listas de Slapton, sir. Pediu para as ver. Ainda há mais de cem corpos desaparecidos.

- E não há sinais de Kelso?

- Receio que não, sir. Mas a Marinha assegurou ao general Montgomery que os barcos alemães não podiam ter recolhido sobreviventes. Estavam longe demais.

- Um dos problemas da vida, Jack, é que no momento em que alguém nos diz que algo é impossível, aparece logo outra pessoa que nos prova que não é. Peça um carro para as oito horas.

Vamos até Slapton Sands ver com os nossos próprios olhos.

s sEts horas nessa mesma manhã, Kelso acordou com muito frio. Os pés e as mãos estavam dormentes, mas no entanto a cara ardia-lhe e a testa suava.

Correu o fecho e espreitou lá para fora, para a luz cinzenta do

amanhecer. Estava envolto por um denso nevoeiro marítimo e algures, ao longe, ouviu uma buzina de nevoeiro.

Depois, ouviu as ondas quebrando-se numa costa invisível e avistou uns rochedos com bases de cimento para canhões no topo. sua volta só havia espuma branca que deixava ver as rochas através de si. E então ouviu uma voz, alta e clara, e o nevoeiro afastou-se, revelando uma pequena praia. Um homem com um chapéu de lã, um casaco de marinheiro e botas de borracha corria ao longo da praia.

A jangada de salvamento balançou de lado na rebentação, ergueu-se no ar e bateu contra as rochas, atirando Kelso para a água. Tentou levantar-se, mas gritou quando sentiu a perna direita dobrar-se sob o peso, mas já o homem estava com água pelos joelhos, segurando-o. Foi só nesse momento que Kelso percebeu que era uma mulher.

- Pronto, já o agarrei. Segure-se.


Não sabia ao certo o que se passara a seguir e recuperara os sentidos ao abrigo de umas rochas. A mulher estava a tentar arrastar a jangada para terra. Quando procurava sentar-se, ela aproximou-se.

Kelso, enquanto ela se ajoelhava, perguntou-lhe:

- Onde é que eu estou, França?

- Não - disse ela. - Jersey.

- inglesa então?

- Espero que sim. O meu nome é Helen de Ville. Onde é que o seu avião caiu?

- Não caiu. Sou um oficial do Exército Americano. Coronel Hugh Kelso.

- Oficial do Exército? De onde é que veio então?

- Inglaterra. Sou sobrevivente de um barco que foi atingido por torpedos na baía de Lyme. - Gemeu repentinamente de dor.

Ela abriu-lhe a perna das calças rasgadas, olhou e franziu o sobrolho.

- Isto está péssimo. Tem de ir para o hospital.

Ele agarrou-se à parte da frente do casaco dela.

- Não, alemães não.

Ela empurrou-o suavemente para trás.

- Fique aí quieto. Vou ter de o deixar por um bocadinho.

Vamos precisar de uma. carroça.

- Está bem - disse ele. - Mas nada de alemães. Tem de me prometer.

Debruçou-se sobre ele com uma expressão decidida e disse:

- Os Jerries não o vão apanhar, prometo-lhe. Agora, espere por mim.

Voltou-se e afastou-se rapidamente. Estava ali naquela praia coberta de nevoeiro, tentando ordenar as ideias, e então a perna começou a doer-lhe outra vez. Alguns segundos depois, mergulhou na escuridão.

Capítulo Três

HELEN de Ville tomou um atalho para trepar a encosta íngreme pelo meio dos pinheiros. Após quatro anos de ocupação inimiga e racionamento de comida, estava forte e rija. Dizia frequentemente a brincar que a ocupação lhe devolvera a figura dos seus dezoito anos, um bónus caído do céu aos quarenta e dois anos.

Abrandou à entrada do arvoredo e olhou para a casa. De Ville Place era uma casa muito antiga, construída em granito de Jersey, desgastada pelos anos. De cada lado da entrada viam-se filas de portas envidraçadas e um muro de granito separava a casa de um pátio num dos lados.

Parou, pois estava um velho Morris Sedan estacionado no pátio, um dos que haviam sido requisitados pelo inimigo. Já desde há dois anos que tinha oficiais da Marinha Alemã aquartelados em casa. Iam e vinham, claro, por vezes ficando apenas uma noite ou duas.

Começara a atravessar a relva quando a porta da frente se abriu e um deles saiu. Vestia uma camisola de lã branca, um velho casaco de marinheiro e botas de borracha e levava um saco grosso numa das mãos. A cara sob o boné da Marinha manchado de sal era bem disposta e inadvertidamente atraente. O boné tinha uma borla branca, geralmente símbolo da afectação aos comandos alemães de barcos U, mas também o tenente Guido Orsini era ele próprio uma lei, era um italiano ligado à Marinha Alemã, apanhado no lugar errado na altura errada, quando o Governo Italiano capitulara. Helen de Ville sentia há muito uma afeição considerável por ele.

- Bom dia, Guido.

- Helen, cara mia. - Atirou-lhe um beijo. - Como sempre sou o último.

- Para onde é a ida hoje?

- Normandia. Granville, para ser mais exacto. Vai ser divertido com este nevoeiro. Posso dar-lhe uma boleia para St. Helier?

- Não, obrigada. Estou à procura de Sean.

- Vi-o nem há dez minutos a ir em direcção à casa dele. Até

amanhã. Tenho de ir. Ciao, cara.

Logo que ouviu o Morris afastar-se, atravessou o pátio, passou por um portão e correu ao longo do carreiro, pelo meio das árvores, até ao anexo de Sean Gallagher. Já o conseguia avistar, com umas velhas calças de bombazina e botas de montar, com as mangas da camisa de xadrez arregaçadas sobre os braços musculados, a rachar lenha.

- Sean! - gritou ela e tropeçou, quase caindo.

Ele baixou o machado e voltou-se na sua direcção, tirando da frente dos olhos um caracol de cabelo castanho-avermelhado.

Sean Gallagher tinha cinquenta e dois anos e era, enquanto cidadão irlandês, neutro nesta guerra. Nascera em Dublin, mas a sua mãe, que era de Jersey, morrera no parto e o rapaz cresceu passando os longos verões em Jersey com os avós e o resto do ano em Dublin com o pai. A ambição de Sean era ser escritor.

Mas as exigências da vida fizeram-no soldado, pois ao acabar a faculdade rebentara a I Guerra Mundial.

Alistara-se nos Fuzileiros Irlandeses e em 1918 tinha já uns vinte e seis anos muito batidos. Um major condecorado por valentia em Somme. Continuou a sua carreira militar na Irlanda e aos trinta anos foi feito general no decurso da guerra civil do país. Depois, farto de matanças, partira para viajar pelo Mundo, instalando-se por fim em Jersey em 1930. Ralph de Ville fora um amigo de infância e Sean amara Helen, mulher de Ralph, desesperadamente e sem esperança, desde o momento em que se tinham conhecido. A casa de Sean, bem no meio do campo, fora requisitada pelos Alemães em 1940. Helen, com Ralph fora de casa no Exército Britânico, necessitava de um braço forte, e Sean mudara-se para o anexo dentro da propriedade. Ainda amava Helen e sempre sem esperança.

A VELHA carroça já vira melhores dias e o cavalo estava consideravelmente mais elegante do que devia, mas mesmo assim avançaram pelo carreiro que ia dar à praia.

- Se descobrem que estás a ajudar este homem - disse Sean gravemente -, não será só uma sentença de prisão. Pode significar um pelotão de fuzilamento.

- Então e tu? - perguntou Helen.

- Eu sou neutro, não te esqueças. - Sorriu com manha, os olhos cinzentos repletos de humor. - Têm de me tratar com luvas de seda.

Gallagher conduziu o cavalo para a praia coberta de nevoeiro.

Hugh Kelso estava deitado com a cara na areia, inconsciente.

Gallagher voltou-o delicadamente e examinou a perna. Assobiou baixinho.

- Este rapaz precisa de um cirurgião. Vou p“-lo em cima da carroça. Apanha todos os bocados de madeira que puderes e despacha-te.

Helen correu ao longo da praia e Gallagher ergueu Kelso, colocou-o em cima da carroça e tapou-o com umas sacas de pano.

Virou-se quando Helen voltou com a madeira nos braços.

- Esconde-o com isso enquanto eu trato da jangada de salvamento

- disse ele.

Esta continuava aos trambolhões nos baixios. Gallagher entrou na água, retirou o estojo de emergência e depois tirou uma faca de ponta e mola e começou a cortar a jangada. medida que o ar saía, foi-a enrolando e levou-a, atirando-a depois para o fundo da carroça.

- Vou parar ao pé do picadeiro e atiramos a jangada para dentro do poço. Vamos embora.

Começaram a subir o carreiro, Helen sentada no varal da carroça e Sean conduzindo o cavalo.

- Levamo-lo para onde? - perguntou ela. - Neste momento, não está ninguém em De Ville Place. E dei folga a Mrs. Vilbert. Temos a câmara.

Durante a Guerra Civil Inglesa, Charles de Ville, nessa altura senhor do domínio, mandara construir um quarto secreto no telhado de De Ville Place, quarto que ao longo do tempo se tornou conhecido na família como a câmara. Salvara a vida de De Ville quando fora procurado por traição durante o governo de Cromwell.

- Não, é muito complicado para já - disse Sean. - Ele precisa de ajuda e depressa. Levamo-lo primeiro para o meu anexo. Agora, espera enquanto atiro esta jangada para dentro do poço.

Puxou-a cá para fora e desapareceu por entre as árvores. Helen ficou sentada, consciente da sua respiração irregular no silêncio do bosque. Por trás dela, sob os sacos e a madeira, Hugh Kelso gemia e agitava-se.

EM SLAprON Sands, pouco antes do meio-dia, a maré mudou e deram à costa mais alguns corpos. Dougal Munro e Carter aguardavam no sopé de uma duna, enquanto os soldados percorriam a praia, aventurando-se ocasionalmente a entrar na água para puxar mais um corpo para terra.

Um jovem oficial americano aproximou-se e fez continência.

- Trinta e três desde o amanhecer, sir. Não há sinais do coronel Kelso. - Hesitou. - O meu brigadeiro deseja ver as disposições para o enterro?

- Não, obrigado - disse Munro. - Acho que posso passar sem isso.

O oficial fez continência e afastou-se. Munro virou-se para Carter.

- Vamos, Jack. Não há nada que possamos fazer aqui. Tenho um mau pressentimento acerca disto. Um pressentimento muito mau. Vamos voltar para Londres.

- ENtÇo, Berger, compreende o que lhe estou a dizer? --perguntou Konrad Hofer.

Heini Baum estava rigidamente em sentido no gabinete de Campeaux que fora emprestado ao marechal-de-campo e ao seu ajudante. Rommel estava de pé junto à janela, olhando para o jardim.

- Não tenho a certeza, Herr Major. Penso que sim. -- respondeu Baum.

Rommel virou-se.

- Não seja estúpido, Berger. Você é um homem inteligente e corajoso. - Tocou na Cruz de Ferro com a ponta do seu bastão. - Sou um homem directo, por isso ouça com atenção.

Na noite passada, você fez uma magnífica encarnação da minha pessoa. Muito profissional.

- Obrigado.

- Agora, peço-lhe uma segunda actuação. Na sexta-feira, irá

de avião para Jersey para passar o fim-de-semana, acompanhado pelo major Hofer. Acha que os pode enganar durante tanto tempo, Berger? Gostava de o fazer?

Baum sorriu.

- Na verdade, penso que sim, meu marechal.

Rommel voltou-se para Hofer.

- Vê? Sensato e inteligente, tal como lhe disse. Agora, trate dos preparativos, Konrad, e vamo-nos embora daqui.

O ANEXO da propriedade De Ville era da mesma espécie de granito que a casa. Tinha uma grande sala de estar com tecto de madeira e uma mesa de jantar com seis cadeiras no vão de uma janela. A cozinha era do outro lado do hall. Lá em cima, tinha um quarto de dormir grande, um quarto de arrumações e uma casa de banho.

Gallagher deitou Kelso no sofá da sala. O americano ainda estava inconsciente, e Gallagher encontrou a sua carteira e abriu-a. Lá dentro estava o cartão de segurança, algumas fotografias de uma mulher e duas raparigas novas - obviamente a sua família - e duas cartas pessoais. Kelso abriu os olhos e viu a carteira nas mãos de Gallagher.

- Quem é você? - Agarrou a carteira debilmente. - Dê-ma cá.

Helen veio da cozinha e sentou-se no sofá. P“s-lhe a mão na testa.

- Está tudo bem. Esteja sossegado. Está a arder em febre.

Lembra-se de mim, Helen de Ville?

Acenou com a cabeça devagar.

- A senhora da praia.

- Este é um amigo, o general Sean Gallagher. Recorda-se onde está?

- Jersey. - Sorriu. - Ainda não estou completamente louco.

- Pronto, então ouça-me - disse Sean. - A sua perna está

muito mal. Precisa de um hospital e de um bom cirurgião.

Kelso abanou a cabeça.

- Não é possível. Como já disse a esta senhora há bocado, nada de alemães. Seria melhor matarem-me do que deixá-los porem-me as mãos em cima.

- Porquê? - perguntou Sean Gallagher. - Qual é a sua unidade?

- Engenharia, engenheiros de assalto.

Gallagher percebeu tudo.

- Tem alguma coisa a ver com a invasão?

Kelso ficou extremamente agitado. Helen acalmou-o, empurrando-o suavemente para trás.

- Está tudo bem, prometo-lhe.

- George Hamilton vem? - perguntou-lhe então Gallagher.

- Não estava quando telefonei. Deixei recado à governanta que tinhas feito um golpe na perna e precisavas de um ponto ou dois.

- Quem é Hamilton? - perguntou Kelso.

- Um médico - disse Helen. - E um bom amigo.

Kelso tremia por causa da febre alta.

- Têm de falar com as pessoas da vossa resistência. Digam-lhes para avisarem os Serviços Secretos em Londres de que estou aqui. Eles têm de tentar tirar-me daqui.

- Mas em Jersey não há nenhum movimento da Resistência

- disse Helen. - Nada que se pareça com a Resistência Francesa, se é a isso que se refere.

Kelso olhou-a, estupefacto, e Gallagher disse:

- Esta ilha tem aproximadamente dezasseis quilómetros por oito. Cerca de quarenta e cinco mil civis. A população de uma cidade mercantil de tamanho razoável, e é tudo. Quanto tempo julga que um movimento de resistência duraria? Sem montanhas para onde fugir, sem esconderijos.

- Então, e a França? - perguntou Kelso, desesperado. --Granville, St.-Malo? São apenas a algumas horas daqui por mar.

Lá deve haver uma unidade local da Resistência Francesa.

Houve uma pausa; depois, Helen voltou-se para Gallagher.

- Savary podia falar com as pessoas indicadas em Granville.

Ele tem contactos.

- Pois é.

- E Guido disse -me há pouco que vão partir para Granville hoje à tarde. - Olhou para o relógio. - Só vão ter a maré ao meio-dia. Podias levar a carrinha. Estão aí aquelas batatas para levar para St. Helier para o depósito de abastecimento e para o mercado.

- Está bem - disse Gallagher. - Mas é arriscar muito.

- Sean, não temos outra alternativa - disse Helen simplesmente.

GALLAGHER f01 pela pequena e pitoresca vila de St. Aubin e seguiu a curva da baía em direcção a St. Helier, que se via à distância.

Tinham o velho Ford apenas como especial favor, porque as terras dos De Ville forneciam colheitas para as forças alemãs.

A

quantidade da ração de gasolina significava que a carrinha só

podia ser utilizada duas ou três vezes por semana, mesmo quando Gallagher þþesticavaþþ a gasolina, adquirindo um pouco de combustível no mercado negro.

Olhou para o relógio. Faltava pouco para as onze horas. Havia muito tempo para falar com Savary antes de o SS Victor Hugo largar para Granville, por isso virou à esquerda para Gloucester Street e dirigiu-se ao mercado.

Não havia muita gente em St. Helier devido ao mau tempo.

Por cima da entrada da Câmara Municipal pendia a bandeira nazi, preta e escarlate com a cruz suástica, vacilante no ar húmido.

Estacionou do lado de fora do velho mercado vitoriano, tirou da carrinha duas sacas de batatas e dirigiu-se directamente para uma bancada ao fundo. Um homem grande e bem disposto estava a arrumar nabos metodicamente em filas sob uma placa que dizia D. CHEVALIER.

- Então hoje são nabos? - perguntou Gallagher quando chegou.

- Fazem-lhe bem, general - disse Chevalier.

- Ai sim? Mrs. Vilbert no outro dia deu-me doce de nabo.

- Gallagher teve um arrepio. - Ainda lhe sinto o gosto. Aqui estão duas sacas de batatas para si.

Os olhos de Chevalier iluminaram-se.

- Sabia que não me ia deixar ficar mal, general. Vamos p“-las lá atrás.

Gallagher arrastou-as para trás da bancada e Chevalier abriu um armário e tirou um velho saco de serapilheira.

- Quatro cacetes de pão branco.

- Santo Deus - disse Gallagher. - Quem é que você matou para arranjar isso?

Chevalier riu-se.

- Cem gramas de chá da China e uma perna de porco. Está

bem?

- agradável fazer negócio consigo - disse Gallagher. -- Até

para a semana.

A paragem seguinte foi no depósito de abastecimento militar em Wesley Street, onde um sargento robusto chamado Klinger estava sentado num escritório envidraçado comendo uma sanduíche.

Acenou e desceu os degraus.

- Herr General - disse ele bem-humorado.

- Hans, você trata-se bem - disse Gallagher num alemão excelente, tocando-lhe no amplo est“mago.

Klinger sorriu.

- Um homem tem de ir vivendo. Tem alguma coisa?

- Duas sacas de batatas para a lista oficial e outra para si se

estiver interessado.

- E em troca?

- Gasolina.

O alemão assentiu.

- Uma lata de cinco galões.

- Duas latas de cinco galões - disse Gallagher.

- O senhor é tão modesto. - Klinger voltou-se para uma fila de latas de gasolina do Exército Britânico, pegou em duas e trouxe-as para a carrinha. - E se eu o denunciasse?

- Prisão para mim e umas férias para si - disse Gallagher.

- Dizem que a frente russa é muito agradável nesta época do ano.

- Um homem prático como semp re. - Klinger arrastou as três sacas de batatas para fora da carrinha.

Era tudo uma questão de sobrevivência, pensou Gallagher enquanto se afastava. Era uma ilha antiga e, com o seu sangue de Jersey, Gallagher era ferozmente orgulhoso desse facto. Ao longo dos séculos, a ilha aguentara muitas coisas. Quando passou junto do quartel-general da Marinha Alemã, olhou para a bandeira nazi e disse calmamente: þþE nós ainda aqui estaremos muito depois de vocês, seus porcos, se terem ido embora.þþ GALLAGHER estacionou a carrinha na ponte de Pergen e caminhou ao longo do Albert Pier. Olhou em redor do porto. Como sempre, estava fervilhante de actividade. Havia embarcações de vários tipos, desde lanchas do Reno a grandes draga-minas.

Muitos navios de carga, entre eles o SS Victor Hugo, estavam atracados no cais de embarque.

Construído em 1920, já tinha, sem sombra de dúvida, conhecido melhores dias. A sua única chaminé fora perfurada em vários sítios por balas de canhão dos Beaufighters da RAF

durante um ataque ocorrido há duas semanas. Robert Savary era o comandante, com uma tripulação de dez franceses. As defesas antiaéreas consistiam em duas metralhadoras e uma peça Bofor-s, accionadas por sete alemães comandados por Guido Orsini.

Gallagher caminhou ao longo do cais em direcção à tenda que servia de café. Não estava muito cheia. Robert Savary, um homem grande de barba, casaco de marinheiro e boné de feltro, estava sentado sozinho.

- Robert, como é que vão as coisas? - perguntou Gallagher, sentando-se.

- pouco frequente vê-lo por aqui, mon général. O que significa que quer qualquer coisa.

- Ah, seu velho camponês perspicaz. - Gallagher passou um envelope por baixo da mesa. - Pronto, já o tem? Ponha-o no bolso e não faça perguntas. Quando chegar a Granville, vá a um café dentro das muralhas chamado Chez Sophie. Conhece a Sophie Cresson e o marido, Gerard?

Savary já começara a ficar pálido.

- Sim, claro que conheço. - Tentou passar o envelope de novo por baixo da mesa.

- Então sabe que eles não só matam os Boches como também gostam de fazer um exemplo dos colaboradores. Por isso, se fosse a si, agia sensatamente. Leve a carta, entregue-a a Sophie e dê-lhe saudades minhas. Tenho a certeza de que ela me vai enviar uma mensagem.

- Que o Diabo o carregue - murmurou Savary, colocando a carta no bolso.

- Já o fez há muito tempo. Não se preocupe. Não tem nada a temer. Guido Orsini é bom rapaz.

- O conde? - Savary encolheu os ombros. - Detesto aristocratas.

- Este não é fascista e provavelmente liga menos ao Hitler do que você. Bem, sabe o meu número de telefone do anexo.

Telefone-me logo que voltar.

O DR. GEottGE Hamilton era um homem alto, anguloso, com um velho fato de tweed Harris que parecia ser um número acima do seu. Fora em tempos um conhecido médico e farmacologista de Londres, mas retirara-se para uma casa de campo em Jersey.

Com o rebentar da guerra, muitas pessoas tinham deixado a ilha, algumas delas médicos, o que explicava o facto de estar agora a trabalhar como médico de clínica geral aos setenta anos.

Afastou da testa uma onda de cabelo branco e ficou de pé

olhando para Kelso, deitado no sofá.

- Devia estar no hospital. Preciso de raios X para ter a certeza, mas diria que tem pelo menos duas fracturas da tíbia.

Três possivelmente.

- Hospital, não - disse Kelso debilmente.

Hamilton fez sinal a Helen e a Gallagher e eles seguiram-no até à cozinha.

- Não há fractura exposta, por isso talvez seja possível endireitar a perna e engessá-la.

- Consegue fazê-lo? - perguntou Helen.

- Podia tentar, mas preciso de condições adequadas. Nem sequer me passaria pela cabeça avançar sem raios X. - Hesitou.

- Existe uma possibilidade. Há uma pequena casa de saúde em St. Lawrence dirigida por Irmãs da Misericórdia católicas. Têm um aparelho de raios X e uma sala de operações decente. A irmã Maria Teresa, encarregada da casa de saúde, é minha amiga. Eu podia telefonar-lhe.

- Os Alemães utilizam-na? - perguntou Helen.

- De vez em quando. Geralmente, raparigas com problemas pré-natais, que é uma maneira delicada de dizer que vão lá para abortar. As freiras, como podem imaginar, não gostam nada disso, mas não podem fazer nada contra.

Gallagher disse:

- Está a arriscar-se muito ao ajudar-nos, George.

- Eu diria que estamos todos - disse Hamilton secamente.

- de importância vital que o coronel Kelso permaneça fora do alcance das mãos do inimigo - começou Helen.

Hamilton abanou a cabeça.

- Não quero saber, Helen, e também não quero que as freiras sejam envolvidas. Para elas, o nosso amigo é simplesmente um homem daqui que sofreu um acidente. Era uma grande ajuda se tivéssemos um bilhete de identidade para ele, para o que der e vier.

Gallagher dirigiu-se a uma secretária de pinho num canto da cozinha, abriu a gaveta de cima e retirou vários cartões de identidade em branco, assinados e selados com a águia nazi.

- Santo Deus, onde é que os arranjou? - Hamilton estava estupefacto.

- Conheço um irlandês que trabalha no bar de um hotel da cidade e tem uma namorada alemã. Recepcionista no Feldkommandantur. No ano passado, fiz-lhe um grande favor e ele em troca deu-me isto. Vou preencher os dados de Kelso e dar-lhe-emos um bom nome de Jersey. Que tal Le Marquand? - Pegou numa caneta e sentou-se. - Henry Ralph Le Marquand. Residência?

- Olhou para Helen.

- Quinta De Ville Place - disse ela.

- Está bom. Vou p“r como profissão pescador. Podemos dizer que sofreu um acidente de barco. E mais uma coisa, George.

- Que é? - perguntou Hamilton enquanto levantava o auscultador do telefone.

- Vou consigo. Vamos levá-lo na carrinha. Não discuta.

Lembra-se do que disse Benjamin Franklin quando da assinatura da Declaração de Independência Americana? þþDevemos manter-nos unidos, senão somos de certeza enforcados separadamente!þþ - Sorriu de esguelha e saiu.

HAnþtIt.ToN estava de pé na sala de operações examinando as radiografias.

- Três fracturas - disse a irmã Maria Teresa. - Devia estar no hospital, mas não preciso de lhe dizer isso a si.

- Irmã - disse Hamilton -, se ele for para St. Helier, os nossos amigos alemães vão querer saber o que lhe aconteceu. E

Le Marquand estava a pescar ilegalmente quando teve o acidente.

Gallagher interrompeu.

- O que lhe poderia valer três meses de prisão.

- Compreendo. - Abanou a cabeça. - Gostava de ter uma cama para oferecer, mas está tudo cheio.

- Alguns alemães?

- Duas das namoradas deles - disse ela calmamente. - O

costume. Um dos médicos do Exército tratou disso ontem. O

major Speer.

- Já trabalhei com ele - disse Hamilton. - Já tenho visto pior. De qualquer maneira, irmã, se não se importar de me assistir, vamos começar.

A irmã ajudou-o a vestir uma bata e ele foi desinfectar-se no lavatório do canto.

- Uma anestesia de curta duração apenas. Clorofórmio na almofada é suficiente. - Dirigiu-se à mesa de operações e olhou para Kelso. - Tudo bem?

Kelso cerrou os dentes e acenou com a cabeça. Hamilton disse para Gallagher:

- melhor esperar lá fora.

Gallagher voltou-se para sair e nesse momento a porta abriu-se e entrou um oficial alemão.

- Ah, cá está a senhora, irmã - disse ele em francês, depois sorriu e mudou para inglês. - Dr. Hamilton, mas que surpresa.

- Major Speer - replicou Hamilton, levantando as mãos enluvadas.

Speer era um homem alto e atraente, com uma cara bem disposta e um pouco rechonchuda.

- Alguma coisa interessante, doutor?

- Fracturas da tíbia. Um empregado aqui do general Gallagher.

- Já ouvi falar em si, general. um prazer conhecê-lo. --Speer deslocou-se para examinar as radiografias. - Nada bom.

Mesmo nada bom. Fractura cominutiva da tíbia em três sítios.

- Bem sei que a norma seria hospitalização e tracção. -- disse Hamilton. - Mas não há nenhuma cama disponível.

- Oh, julgo que é perfeitamente aceitável endireitar os ossos e depois engessar. - Speer sorriu com um grande charme e despiu o casaco. - Mas, Herr Doctor, a cirurgia não é a sua especialidade. Seria um grande prazer para mim tratar-lhe deste pequeno problema. - Estava já a tirar uma bata de um cabide na parede.

- Se insiste - disse Hamilton calmamente. - Não há

dúvida de que isto é mais da sua área do que da minha.

Do canto, Gallagher observava a cena, fascinado.

SAVARY não estava muito satisfeito com a vida ao caminhar pelas ruas empedradas da cidade muralhada de Granville. A viagem de Jersey até ali, com o nevoeiro, fora terrível e estava visivelmente infeliz com a situação em que Gallagher o colocara.

Chegou a um largo sossegado e entrou devagar e relutantemente no Chez Sophie.

Gerard Cresson tocava piano sentado na sua cadeira de rodas.

Era um homem pequeno com uma cara pálida e viva. Fracturara a coluna num acidente dois anos antes da guerra e nunca mais voltaria a andar.

Havia uma dúzia de fregueses espalhados pelo bar. Sophie encontrava-se sentada num banco alto por trás do balcão de mármore a ler o jornal. Estava perto dos quarenta anos, tinha o cabelo puxado para o alto da cabeça, olhos pretos e a cara macilenta como a de uma cigana, a boca pintada de vermelho-berrante. Com o marido, controlava o movimento da resistência local há já três anos. Eram uma equipa de êxito.

- Ah, Robert, há quanto tempo. Como vai isso?

- Podia ir pior, podia ir melhor.

Enquanto ela lhe servia um conhaque, fez a carta deslizar sobre o balcão.

- Que é isto? - perguntou ela.

- O seu amigo Gallagher agora usa-me como carteiro. Não sei o que é que está aí dentro, mas ele está à espera de uma resposta. Largamos amanhã ao meio-dia. Venho cá depois. --Engoliu o conhaque e saiu.

Sophie deu a volta ao balcão e gritou para um dos fregueses:

- Eh, Marcel, toma conta do bar por mim.

O marido parou de tocar.

- Que é que ele queria?

- Vamos lá para trás descobrir.

Ela afastou a cadeira de rodas do piano, voltou-a e empurrou-o até à sala de estar, por detrás do bar.

Gerard Cresson leu a carta de Gallagher sentado junto à mesa e depois empurrou-a para Sophie com uma expressão grave.

Ela leu-a rapidamente.

- Desta vez, o nosso amigo general está metido numa grande embrulhada. Talvez os Ingleses nos peçam para tentarmos tirar este yank de Jersey.

- Seria difícil mesmo nas melhores condições - disse Gerard.

- Impossível no estado em que ele está. Leva-me ao armazém. Preciso de enviar uma mensagem por rádio para Londres.

O MAJOR Speer afastou-se do lavatório, limpando as mãos à

toalha, e atravessou a sala até à mesa de operações. Olhou para Kelso, inconsciente.

- Um excelente trabalho - disse George Hamilton.

- Sim, devo dizer que eu próprio estou bastante satisfeito. --Speer pegou no casaco. - Estou certo de que consegue tratar do resto. Depois diga-me como é que ele está a recuperar, Herr Doctor. - Voltou-se e saiu.

Hamilton ficou de pé a olhar para Kelso, que gemeu um pouco enquanto começava a recuperar a consciência e disse docemente: - Janet, amo-te.

A pronúncia americana era inconfundível. A irmã Maria Teresa olhou perscrutadoramente para Hamilton e depois para Gallagher.


- Parece estar a vir a si - disse Hamilton de modo pouco convincente.

- Assim parece - disse ela. - Porque é que o doutor e o general Gallagher não vão para o meu gabinete? Uma das freiras leva-vos café. A irmã Bernadette e eu pomos o gesso.

- muito simpático da sua parte, irmã.

Os dois homens saíram e seguiram pelo corredor até ao gabinete ao fundo. Hamilton sentou-se por trás da secretária e Gallagher deu-lhe um cigarro e sentou-se no banco da janela.

- O momento em que Speer entrou por aquela porta ficará

gravado na minha memória para sempre - disse o irlandês. -- Pensa que Kelso vai ficar bem?

- Não vejo porque não. Devemos poder levá-lo dentro de uma hora mais ou menos. Só teremos de o vigiar atentamente nos próximos dias.

- A irmã Maria Teresa já sabe que as coisas não são o que parecem.

- Pois é, e sinto-me mal por isso - disse Hamilton. -- Como se a tivesse usado. Ela não dirá nada, claro. Seria contra todos os princípios que lhe são queridos.

PAssAvn já das dez da noite e Dougal Munro estava ainda a trabalhar no seu gabinete quando a porta se abriu e Jack Carter entrou com uma expressão pesarosa. Colocou um relatório sobre a secretária do brigadeiro.

- Prepare-se, sir. Chegou agora mesmo uma mensagem do nosso contacto da Resistência em Granville, Normandia.

Munro começou a ler e sentou-se muito direito.

- Não acredito.

- Eu avisei-o, sir.

- Não podia ser pior. Não existe movimento da Resistência em Jersey. Ninguém com quem contar. Quer dizer, esta mulher De Ville e esse Gallagher quanto tempo irão aguentar a situação, especialmente estando ele doente?

- O senhor encontrará uma solução, sir, encontra sempre. --disse Carter.

- Obrigado pelo voto de confiança. - Múnro levantou-se e pegou no casaco. - Agora é melhor telefonar para Hayes Lodge para me arranjar um encontro imediato com o general Eisenhower.

HELEN de Ville aguardara ansiosamente o regresso da carrinha e, quando ela chegou ao pátio ao lado de De Ville Place, correu lá para fora. Assim que Gallagher e Hamilton saíram da carrinha, gritou: - Ele está bem?

- Ainda está drogado, mas a peroa está bem - disse Gallagher.

- Não está cá ninguém. Ou estão no mar ou no Clube dos Oficiais, por isso vamos levá-lo lá para cima.

Gallagher e Hamilton tiraram Kelso da carrinha e levaram-no pela porta da frente, atravessaram o grande hall de painéis e subiram as escadas. Helen abriu a porta do quarto de dormir principal e entraram. De um dos lados da cama de dossel havia uma estante embutida apinhada de livros desde o chão até ao tecto. Os seus dedos tocaram uma mola escondida e uma parte da estante afastou-se para trás, revelando umaþ escadas. Com Helen à frente, Gallagher e Hamilton subiram com dificuldade, mas conseguiram chegar até à câmara sob o telhado, onde havia uma cama e uma única janela.

Puseram Kelso na cama e Helen disse-lhe:

- A única entrada é pelo meu quarto, por isso estará sempre seguro.

- Só quero dormir - disse Kelso com uma expressão tensa.

Helen fez sinal com a cabeça a Gallagher e ao médico e os dois homens saíram. Hamilton disse:

- Tenho de me ir embora. Amanhã volto cá.

Gallagher apertou-lhe a mão.

- George, você é um homem e peras.

- Faz parte da minha profissão. - Hamilton sorriu. - Até

amanhã.

Gallagher foi para a cozinha. Estava a p“r a chaleira ao lume quando Helen entrou.

- Como está Kelso? - perguntou ele.

- Já está a dormir profundamente. Que é que fazemos agora?

- Não podemos fazer nada até Savary voltar de Granville com alguma mensagem. Por isso, senta-te e bebe uma chávena de chá.

Ela abanou a cabeça.

- Temos de escolher entre chá de amora e chá de beterraba, e hoje não consigo enfrentar nem um nem outro.

- Oh, senhora de pouca fé. - Gallagher fez aparecer o pacote de chá da China que Chevalier lhe dera nessa manhã no mercado.

Ela começou a rir e p“s-lhe os braços em redor do pescoço.

- Sean Gallagher, que seria de mim sem ti?

EIsENHowER estava de uniforme completo, pois encontrava-se num jantar com o primeiro-ministro quando recebeu a mensagem de Munro. Andava para trás e para a frente na biblioteca de Hayes Lodge.

- Não há hipótese nenhuma de pormos lá alguém?

Munro aclarou a voz.

- Se se refere a uma unidade de comandos, penso que não, sir. a costa mais bem defendida da Europa.

- Por amor de Deus, Munro, tudo pode depender disto. A invasão inteira. Meses de planeamento.

Jack Carter, de pé, respeitosamente calado junto à lareira, tossiu.

- Há uma hipótese, meu general.

- Qual é, capitão? - perguntou Eisenhower.

- O melhor local para esconder uma árvore é um bosque.

Parece-me que as pessoas que têm mais liberdade para ir e vir são os próprios alemães. Quero dizer, tem de ser colocado pessoal novo a toda a hora.

Eisenhower virou-se imediatamente para Munro.

- Ele tem razão. Tem alguém capaz de executar este género de trabalho?

Munro fez que sim com a cabeça.

-- Talvez, sir. uma arte rara. Não é só uma questão de falar fluentemente alemão, mas também de pensar como um alemão.

Eisenhower disse:

- Dou-lhe uma semana, brigadeiro. Uma semana, e depois espero que tenha este assunto resolvido.


- Tem a minha palavra, sir.

Munro saiu energicamente e Carter seguiu-o.

- Contacte Cresson em Granville pelo rádio e diga-lhe para enviar uma mensagem a Gallagher dizendo que estará lá alguém na quinta-feira. Foi uma sugestão espantosa a que você fez, Jack - disse Munro, animado.

- Obrigado, sir. preciso um homem muito especial.

- Só há um homem para este trabalho. Sabe isso tão bem como eu. Só há um homem capaz de representar o papel de nazi na perfeição. E é suficientemente duro para enfiar uma bala em Kelso se suceder o pior: Harry Martineau.

- Devo recordar-lhe, sir, que foi feita ao coronel Martineau a promessa de que os seus serviços não tornariam a ser requisitados. A saúde impede-o.

- Disparates, Jack. Harry nunca consegue resistir a um desafio.

Encontre-o. E mais uma coisa. Examine as fichas do EOE.

Veja se temos alguém com raízes em Jersey.

Capítulo Quatro

NA MANHÇ a seguir ao encontro de Dougal Munro com Eisenhower, Harry Martineau passeava ao longo da costa em Dorset, atirando de vez em quando uma pedra para as ondas.

Tinha quarenta e quatro anos, estatura média e ombros largos sob o velho blusão de pára-quedista. A cara era pálida, daquele tipo de pele que parece nunca ficar bronzeada, e os olhos tão escuros que era impossível dizer qual a sua verdadeira cor. A boca exibia sempre um sorriso irónico - o olhar de um homem que achava a vida mais decepcionante do que imaginara.

Já saíra do hospital há três meses. A dor no peito deixara de existir, excepto quando cometia exageros. Mas as insónias eram terríveis. Raramente conseguia dormir à noite. Muitos anos de acção, com o perigo sempre a espreitar.

Já não tinha utilidade para Munro; os médicos tinham deixado isso bem claro. Podia ter regressado a Oxford, mas isso não seria uma resposta. E tentar reunir as partes do livro que começara em 1939 também não. Por isso, retirara-se tão completamente quanto possível. A casa sobre os penhascos, livros para ler, espaço para se encontrar.

- Então está em Dorset, não é? - disse Munro. - A fazer o quê?

- Nada de especial, pelo que consegui descobrir. - Carter hesitou. - Mas, sir, ele levou duas balas no pulmão esquerdo durante aquele assunto em Lyons.

- Nada de baladas tristes, Jack. Tenho mais em que pensar.

Já sabe das minhas ideias sobre a forma de o pormos em Jersey.

Que é que acha?

- Excelente, sir. Penso que é bastante seguro, pelo menos por alguns dias.

- E é tudo o que precisamos. Bom, que é que tem mais para mim?

- Pelo que depreendi do seu plano inicial, sir, pretende alguém para ir com ele e estabelecer as suas credenciais. Alguém que conheça a ilha e as pessoas e aí por diante?

- Exacto.

- Bem, temos Sarah Anne Drayton, sir, dezanove anos.


Nascida em Jersey. Saiu da ilha mesmo antes da guerra para ir para a Malásia, onde o pai plantava borracha. Era viúvo, ao que parece. Mandou-a para casa em Londres um mês antes da queda de Singapura.

- Isso significa que não vai a Jersey desde quando?

Munro olhou para a ficha que Carter lhe deu.

- Desde 1938. Seis anos. àptimo. muito tempo e nessa idade muda-se muito, por isso, com sorte, ninguém a vai reconhecer. Onde é que a encontrou, Jack?

- Foi indicada ao EOE há dois anos especialmente porque fala fluentemente francês com pronúncia bretã. Claro que foi recusada naquela altura devido à idade.

- Onde é que ela está agora?

- enfermeira estagiária aqui em Londres, no Cromwell Hospital.

- Excelente. - Munro levantou-se. - Vamos lá visitá-la.

POR VOLTA das oito horas dessa noite de domingo, o serviço de urgências do Hospital Cromwell estava a rebentar pelas costuras.

Sarah Drayton deveria ter terminado o turno às seis horas. Já

trabalhara catorze horas sem um intervalo. Mas continuava, ajudando a tratar os feridos espalhados pelos corredores, tentando ignorar o estrondo das bombas que caíam à distância, o som dos carros de bombeiros.

Era uma rapariga baixa, viva, com o cabelo escuro puxado para cima sob a touca, a cara era muito determinada, e tinha uns olhos sérios cor de avelã. Depois de ajudar a colocar sob o efeito de sedativos uma jovem rapariga em estado de choque que sangrava abundantemente dos ferimentos causados por estilhaços de granada, a enfermeira-chefe disse: - Pronto, vá-se embora, Drayton. Daqui a pouco cai no chão de cansaço. Não discuta.

Sarah, cansada, foi pelo corredor, apercebendo-se de que as bombas caíam agora a sul da cidade.

A recepcionista da noite estava a þ falar com dois homens.

- Vem aí a enfermeira Drayton.

Jack Carter disse:

- Miss Drayton, este é o brigadeiro Munro e eu sou o capitão Jack Carter.

- Em que lhes posso ser útil? - A voz era baixa e muito agradável. Munro ficou muito impressionado com ela.

Carter disse:

- Lembra-se de uma entrevista a que foi há dois anos?

Relacionada com os Serviços Secretos?

- Com o EOE? - Parecia surpreendida. - Fui recusada.

- Pois bem, se nos pudesse dispensar uns minutos, gostaríamos de falar consigo. - Levou-a para um banco encostado à parede e ele e Munro sentaram-se um de cada lado.

- Nasceu em Jersey, Miss Drayton? - perguntou Carter.

- Nasci.

Ele tirou o bloco de apontamentos e abriu-o.

- Conhece por acaso uma Mrs. Helen de Ville?

- Conheço. E prima da minha mãe, embora para mim sempre tenha sido a tia Helen.

- E Sean Gallagher?


- O general? Conheço-o desde criança.

- Quando os viu pela última vez'? - perguntou Munro.

- Em 1938. Quando a minha mãe morreu, o meu pai aceitou um emprego na Malásia e eu fui ter com ele. - Franziu o sobrolho na direcção de Munro. - Mas de que é que se trata?

- muito simples, na verdade - disse Dougal Munro. -- Gostava de lhe oferecer um trabalho relacionado com o EOE.

Queria que fosse a Jersey.

Ela olhou-o, estupefacta.

- Um tipo estranho, o Harry Martineau - disse Munro. -- Nunca conheci ninguém como ele.

- Pelo que me diz, eu também não - disse Sarah.

O carro que os conduzia no dia seguinte para a costa inglesa era um enorme Austin, com uma divisória de vidro a separá-los do condutor. Munro e Carter iam atrás, lado a lado, e Sarah Drayton estava sentada no banco móvel em frente deles. Envergava um fato de tweed, sapatos pretos e uma blusa creme com uma gravata fina preta ao pescoço. Estava muito atraente. Tinha um ar extremamente jovem.

- Fez anos na semana passada - disse-lhe Carter.

Ela interessou-se imediatamente.

- Quantos anos tem ele?

- Quarenta e quatro.

- E, como se costuma dizer, um bebé do século - disse Munro. - Nasceu no dia 7 de Abril de 1900.

- Carneiro - disse ela.

Munro sorriu.

- verdade. Antes dos nossos tempos ditos iluminados, a astrologia era uma ciência. Sabia? Os antigos egípcios, por exemplo, escolhiam sempre os generais entre os Leões.

- Eu sou Leão - disse ela. - Nasci a 27 de Julho.

- Então, espera-a uma vida complicada. uma espécie de hobby para mim. Veja o Harry, por exemplo. Muito dotado.

Professor em Oxford aos trinta e oito anos. Depois, veja no que se tornou a meio da vida.

- Como é que explica isso? - perguntou ela.

- Bem, o Carneiro é um signo de guerreiros, mas geralmente as pessoas nascidas na mesma altura que Harry são uma coisa por fora e outra por dentro. O signo ascendente é Gémeos, percebe?

Por um lado, é o Harry Martineau, professor, filósofo, cheio de doce raciocínio, mas, por outro, a faceta escondida ... Encolheu os ombros. - Frio e impiedoso.

Carter disse:

- Só para o caso de estar a ficar com uma má impressão de Harry Martineau, quero dizer-lhe duas coisas, Sarah. Embora a mãe tivesse nascido nos Estados Unidos, era de ascendência alemã e Harry em criança passou muito tempo com os avós em Dresden. O av“, professor de Cirurgia, era um socialista activo.

Morreu ao cair da varanda do seu apartamento. Um acidente terrível.

- Ajudado por dois assassinos da Gestapo - acrescentou Munro.

- E depois havia uma rapariga judia chamada Rosa Bernstein.

Harry conheceu-a e apaixonou-se quando ela frequentou Oxford em 1933. Os pais de Harry tinham morrido. O pai deixara-o numa situação económica confortável e, como era filho único, não tinha família próxima.

- Mas ele e Rosa nunca chegaram a casar?

- Não. Ela era militante do movimento clandestino. Andava de um lado para o outro, de Inglaterra para a Alemanha, como correio. Em Maio de 1938, foi apanhada e levada para o quartel-general da Gestapo. Foi interrogada com extrema brutalidade e executada.

Fez-se um grande silêncio. Sarah parecia absorta olhando para longe através da janela.

- Então, Harry Martineau não gosta especialmente dos Alemães?

- disse por fim.

- Não gosta dos nazis. O que é diferente.

Olhou pela janela novamente, com o pensamento cheio desse homem que nunca vira.

- Há uma coisa que não lhe perguntámos - disse Carter. --Espero que não se importe que lhe faça uma pergunta pessoal, mas existe alguém na sua vida neste momento? Alguém que sinta a sua falta?

- Um homem? Santo Deus, não! Nunca trabalho menos que doze horas no Cromwell. isso só me deixa o tempo suficiente para tomar um banho e comer qualquer coisa antes de cair na cama. - Abanou a cabeça. - Ninguém sentirá a minha falta.

Sou toda vossa, meus senhores.

HARRY' Martineau acordou naquela manhã com uma dor de cabeça maçadora. Só havia uma solução para isso. Vestiu um fato de treino velho, agarrou numa toalha e correu em direcção ao mar.

Despiu-se e correu pelos baixios, mergulhando nas ondas. O

céu estava cinzento-escuro e havia chuva no vento. No entanto, de repente, viveu um daqueles momentos especiais. Céu e mar pareciam tornar-se um só. Nada tinha importância. Nem o passado nem o futuro. Só o momento presente. Quando se virou de costas sobre a água, começou a chover.

Uma voz gritou:

- Está a divertir-se, Harry'?

Martineau virou-se para terra e viu Munro, de pé com um velho casaco de tweed e um chapéu maltratado, segurando um guarda-chuva aberto.

- Oh, não! - disse ele. - Não pode ser. Dougal?

- O mesmo de sempre, Harry. Venha para casa. Quero apresentar-lhe uma pessoa.

Munro voltou-se e atravessou a praia de volta à casa.

Martineau ficou a boiar durante uns momentos a pensar naquilo.

Dougal Munro não estava apenas a fazer uma visita social, isso de certeza, não vinha de propósito de Londres para o visitar. A excitação inundou-o e saiu da água. Enxugou-se vigorosamente com a toalha, vestiu o velho fato de treino e correu pela praia e pelo caminho da falésia. Quando chegou a casa, Jack Carter estava em pé na varanda.

- O quê, você também, Jack? - Martineau sorriu e apertou a mão do outro homem. - Aquele velho diabólico quer que eu volte a trabalhar`?


- Sim, uma coisa desse género. - Carter hesitou, depois disse: - Pessoalmente, Harry, acho que você já fez o suficiente.

- Essa palavra não existe no meu vocabulário, Jack. --Martineau passou por ele e entrou.

Munro estava sentado junto à lareira, lendo um bloco de notas que encontrara sobre a mesa:

- Ainda escreve má poesia?

- Sempre escrevi. - Martineau tirou-lhe o bloco, arrancou a folha de cima, amarrotou-a e atirou-a para a lareira. Foi então que deu pela presença de Sarah Drayton, à porta da cozinha.

- Estou a fazer chá. Espero que não se importe, coronel Martineau. Sou Sarah Drayton. - Não estendeu a mão com medo que tremesse demais. Tinha o est“mago oco com a excitação e a garganta seca. Coup de foudre, chamam-lhe os Franceses. O

ribombar do trovão. A melhor espécie de amor. Instantâneo e irreversível.

Ao princípio, ele correspondeu com a cara iluminada por um sorriso. Depois, o sorriso desvaneceu-se e dirigiu-se a Munro com cólera na voz: - Santo Deus, Dougal. Então agora usa rapariguinhas de liceu?

As aventuras de Hugh Kelso não levaram muito tempo a contar. Quando Munro acabou de o fazer, acrescentou:

- No mês passado, em Paris, abatemos um homem chamado Braun. Jack tem os dados. Penso que os vai achar interessantes.

- Que é que ele era, Gestapo? - perguntou Martineau.

- Não, SD. - Carter voltou-se para Sarah Drayton, sentada do outro lado da lareira. - o departamento dos Serviços Secretos das SS que depende directamente do próprio Himmler.

- Conte lá a história de Braun - disse Martineau.

- Bem, segundo os documentos dele, era membro da equipa pessoal de Himmler. - Passou um papel a Martineau. - Parece que Braun tinha poderes para fazer as suas próprias investigações onde muito bem quisesse. Leia essa carta.

Martineau olhou para ela. O cabeçalho estava impresso a negro.

DER REICHSF HRER - SS

Berlim, 9 de Novembro de 1943

SS - Sturmbannfhrer Erwin Braun actua sob as minhas ordens pessoais em assunto da maior importância para o Reich. Todo o pessoal, militar e civil, o deve ajudar de todas as formas que ele julgar adequadas.

H. Himmler

Um documento notável. O que era ainda mais espantoso era que estava rubricado em baixo pelo próprio Adolf Hitler.

- Tinha obviamente bastante influência - disse Martineau secamente, devolvendo a carta a Carter.

- Bem, agora está morto, mas a nossa gente em Paris extraiu-lhe algumas informações úteis.

- Não duvido - disse Martineau, e acendeu um cigarro.

- Himmler tem cerca de uma dúzia destes enviados especiais flutuando por toda a Europa. Tudo altamente secreto. Ninguém sabe quem são. Fiz com que o departamento de falsificações lhe preparasse um conjunto completo de documentos, incluindo um bilhete de identidade dos SD e uma cópia dessa carta. Em nome de Max Vogel. Pensámos dar-lhe uma patentezinha, Standartenf_hrer. - Munro voltou-se para Sarah. - Coronel para si.

- Estou a ver - disse Martineau. - Chego a Jersey e prego um susto de morte a toda a gente.

- Tem de admitir que dá um óptimo nazi, Harry.

- E Sarah? - perguntou Martineau. - Qual é o papel dela no meio disto tudo?

- Você precisa de alguém para lhe estabelecer o contacto com Mrs. De Ville e o tal Gallagher. Sarah é parente dela e conhece o outro. Outra coisa, esteve em Jersey pela última vez há seis anos, tinha então treze. Helen de Ville e Gallagher talvez ainda a reconheçam, mas passará por uma estranha junto das outras pessoas, especialmente quando tivermos acabado de a transformar.

- E que é que isso quer dizer?

- Bem, existe um grande movimento de senhoras da noite entre França e Jersey.

- Não está a sugerir que ela faça de pega francesa?

- A maioria dos oficiais superiores em França tem amigas francesas. Porque havia você de ser diferente? Sarah fala um francês excelente com pronúncia bretã, porque a avó era da Bretanha. Quando a nossa gente em Berkley Hall a deixar pronta ... tiver mudado a cor do cabelo, vestido as roupas adequadas.

- E þ quando é que é suposto irmos?

- Depois de amanhã. Serão lançados do ar perto de Granville, na Normandia. Depois, serve-se da sua autoridade para fazer a travessia até Jersey num dos barcos da noite. Uma vez lá, tem até domingo para tirar Hugh Kelso daquela ilha.

- E se for impossível tirá-lo de lá?

- consigo. Apoiarei tudo o que decidir fazer.

- Percebo. Torno a desempenhar o papel de carrasco para si?

- Martineau voltou-se para Sarah. - Que é que pensa de tudo isto?

Estava zangado, com os olhos muito escuros. No entanto, Sarah permaneceu calma.

- Oh, não sei - disse ela. - Parece bastante excitante.

Ele abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas mudou de ideias, e em vez disso virou-se e arranjou um whiskey. Ergueu o copo e fez um brinde.

- Lá vamos nós, então. Próxima paragem, Berkley Hall.

O campo de tiro de Berkley Hall era na cave da vasta casa senhorial, agora utilizada como local de treino em tempo de guerra. O armeiro era um sargento da Guarda Irlandesa chamado Kelly, que ultrapassara há muito a idade da reforma e que estava de volta ao trabalho unicamente devido à guerra. O local estava bem iluminado na zona dos alvos, onde se encontravam réplicas de alemães em posição de ataque encostadas a sacos de areia.

Kelly e Sarah Drayton eram as únicas pessoas na linha de fogo.

Tinham-lhes dado roupas de combate para vestir - calções e camisa de sarja azul. Ela prendera o cabelo em cima dentro do boné de pala, deixando o pescoço nu. Facto que, por qualquer razão, lhe dava um ar muito vulnerável.

Kelly tinha várias armas expostas sobre a mesa.

- Já disparou alguma vez uma pistola, miss?

- Já - disse ela. - Na Malásia. O meu pai era plantador de borracha. Costumava estar fora durante muito tempo, por isso fez com que eu aprendesse a utilizar um revólver.

- Isso é bom. Obviamente, em circunstâncias mais normais teria um treino completo de armas como parte do seu curso, mas neste caso não há tempo para isso. O que eu vou fazer é familiarizá-la com algumas armas básicas que é provável que encontre. Depois, pode disparar umas balas.

- E stá bem. - disse ela.

Deram uma vista de olhos pelas metralhadoras semiautomáticas e depois pelas armas manuais. Quando Sarah experimentou uma Smith & Wesson, com o braço esticado, só conseguiu atingir o alvo uma vez em seis tiros.

- Tenho a impressão de que por esta altura já estava morta, miss.

Enquanto ele recarregava a arma, ela perguntou:

- O coronel Martineau é bom atirador?

- Sem dúvida, miss. Penso que nunca conheci ninguém melhor. Agora experimente assim. - P“s-se de cócoras, com os pés afastados, segurando na arma com as duas mãos. - Está a perceber?

- Acho que sim. - Imitou-o e desta vez saiu-se melhor, atingindo o alvo no ombro.

- àptimo - disse Kelly.

- Não se tivermos em conta que ela provavelmente fez pontaria ao coração. - Martineau entrara silenciosamente por trás deles. Vestia uma camisola escura de gola alta e calças pretas de bombazina. - Já que vou ter de tomar conta desta criança, importa-se que eu experimente?

- Com todo o gosto, sir.

Martineau pegou numa pistola de cima da mesa. Disse a Sarah:

- Walther PPK, semiautomática. Sete balas na câmara na extremidade mais grossa, assim. Puxa-se o gatilho e já está. Não é muito grande, mas dá cabo de tudo. Agora, venha para a zona dos alvos. - Ficaram a dez metros dos alvos. - Nunca deve estar mais longe do que isto. Levante simplesmente o braço e aponte. Mantenha os dois olhos abertos e dispare muito depressa.

Atingiu o alvo seis vezes.

- Oh, caramba - disse ela muito excitada. - Não foi nada mau, pois não?

Enquanto regressavam à linha de fogo, ele disse:

- Não, mas seria capaz de o fazer a sério?

- Só hei-de saber isso quando chegar a altura, não é? Bom, e você? O brigadeiro disseme que é impiedoso. verdade?

Havia outra Walther em cima da mesa com um cilindro redondo atarraxado no fim do cano.

- Isto é o que se chama um silenciador Carswell - disse-lhe Martineau, ignorando a pergunta. - Especialmente concebido para ser utilizado por agentes do EOE.

Levantou o braço. Parecia não estar a fazer pontaria. Disparou duas vezes, desfazendo o coração do alvo. Pousou a arma: - Dougal quer-nos na biblioteca daqui a meia hora.

Encontramo-nos lá. - Saiu.


Fez-se um silêncio embaraçoso. Sarah disse para Kelly:

- Ele parecia zangado.

- O coronel de vez em quando fica assim. Penso que por vezes não gosta daquilo que vê nele próprio. Em Novembro passado, matou o chefe da Gestapo em Lyons. O coronel Martineau levou dois tiros no pulmão esquerdo antes de conseguir escapar. Ficou diferente desde aí.

- Diferente como?

- Não sei, miss. - Kelly franziu o sobrolho. - Olhe, não se ponha com ideias patetas acerca dele. Sei muito bem como é que as raparigas novas são às vezes. Lembre-se de que ele tem mais vinte e cinco anos que você.

- Está a querer dizer que é velho demais? - disse Sarah. --Isso não é o mesmo que dizer que não se pode amar uma pessoa porque é católica ou judia ou americana ou qualquer outra coisa?

Qual é a diferença?

- Este tipo de conversa é inteligente demais para mim. -- Kelly abriu uma gaveta e tirou um embrulho de pano que desfez.

- Um pequeno presente para si, miss. - Era uma pequena pistola preta, automática e muito leve. - Belga. Só de calibre vinte e cinco, mas vai-lhe ser útil se for preciso. - Parecia embaraçado.

Ela levantou-se e deu-lhe um beijo na cara.

- Você é maravilhoso.

- Não pode fazer isso, miss, como oficial. contra o regulamento.

- Mas eu não sou um oficial, sargento.

- Eu acho que é, miss. Provavelmente, é uma das coisas que o brigadeiro lhe quer dizer. Se fosse a si, agora ia para a biblioteca.

MuNRo, Carter e Martineau já estavam a tomar chá na biblioteca de Berkley Hall quando Sarah entrou.

- Ah, cá está você - disse Munro. - Junte-se a nós.

Enquanto Carter lhe servia o chá, Sarah disse:

- O sargento Kelly disse qualquer coisa sobre eu agora ser oficial. Que é que ele queria dizer?

- Sim, bem, preferimos que as nossas mulheres operadoras tenham uma patente de comissão. Teoricamente, é suposto que isso a ajude se cair nas mãos do inimigo - disse-lhe Munro. -De qualquer modo, você é agora uma oficial de voo da Força Aérea Auxiliar Feminina. Bom, vamos olhar para o mapa.

Foram para uma mesa onde estavam abertos vários mapas de grande escala formando uma manta de retalhos, que incluía o Sul de Inglaterra, as ilhas do Canal, a Normandia e ãþ Bretanha.

- O voo não demorará mais do que hora e meia - explicou Munro. Apontou um sítio na costa da Normandia. - Vão aterrar não muito longe de Granville e a resistência local estará alerta para tomar conta de vocês.

- E depois? - perguntou Sarah.

- Nessa noite, saem de Granville de barco para Jersey. A maioria dos comboios de navios alemães desloca-se durante a noite. - Voltou-se para Martineau. - Claro que a questão da passagem é um assunto que lhe diz respeito no seu papel de Standartenfhrer Max Vogel. Mas duvido de que alguém se recuse a fazer seja o que for depois de ver as suas credenciais. --Martineau concordou com a cabeça. - No que diz respeito às suas relações com Mrs. De Ville e o general Gallagher, bem, terá Sarah para interceder por si. - Munro pegou no telefone a seu lado: - Mande entrar Mrs. Moon. - Pousou o auscultador e disse a Sarah: - Temos muita sorte em termos Mrs. Moon.

Pedimo-la emprestada aos Estúdios Denham. Não há nada que ela não saiba sobre maquilhagem, vestidos, etc.

Hilda Moon chegou pouco depois. Era uma mulher grande, com o cabelo pintado de ruivo, pronúncia cockney e que usava bâton a mais.

- Sim. - Abanou a cabeça, andando em redor de Sarah. -- Muito bonita. Claro que tenho de fazer qualquer coisa a este cabelo.

- Acha que. sim? - perguntou Sarah, alarmada.

- As raparigas que ganham a vida agradando aos homens, como é suposto você fazer neste papel, querida, têm de tirar o maior partido possível daquilo que têm. Confie em mim. Sei o que é melhor para si. - Pegou-lhe no braço e conduziu-a para fora da biblioteca.

Quando a porta se fechou, Martineau disse:

- Provavelmente, quando a virmos nem a vamos reconhecer.

- Pois não. - Munro sorriu. - Mas é essa a ideia.

ERA AINDA cedo quando o telefone tocou no anexo de Sean Gallagher. Estava na cozinha a trabalhar nas contas da quinta e atendeu-o instantaneamente. Uma voz conhecida disse: - Fala Savary. Trata-se do assunto do pacote de que falámos.

- Sim.

- O meu contacto em Granville falou com a sede. Parece que alguém vem ter consigo na quinta-feira.

- Tem a certeza?

- Absoluta.

Ouviu o telefone desligar-se do outro lado. Gallagher ficou um instante sentado a pensar e depois vestiu o seu velho blusão de bombazina e dirigiu-se a De Ville Place.

MRs. MooN falava ininterruptamente enquanto se ocupava de Sarah:

- Já estive em todo o lado, em todos os estúdios. Faço toda a maquilhagem de Miss Margaret Lockwood e de Mr. James Mason. Esse, sim, é um cavalheiro.

Quando Sarah saiu do secador, não podia acreditar no que via.

O seu cabelo escuro estava louro-dourado e frisado colado à cara.

Depois, Mrs. Moon começou com a maquilhagem.

- Muito rouge, querida. Um bocadinho demais, percebe, e imenso bâton. Agora, que acha?

Sarah ficou sentada a olhar para o espelho. Era a cara de uma estranha.

- Vamos experimentar um dos vestidos. Claro que a roupa interior e todos os objectos pessoais serão de origem francesa, mas por agora só precisa do vestido para ver o efeito.

Era de cetim preto, muito justo e bastante curto. Mrs. Moon ajudou Sarah a vesti-lo e puxou-lhe o fecho nas costas.

Sarah calçou uns sapatos de salto alto e olhou para o espelho.

Riu-se.

- Pareço uma pega das piores.


- essa a ideia, querida. Agora vá ter com o brigadeiro.

Munro e carter ainda estavam sentados na biblioteca, a falar em voz baixa, quando ela entrou.

Foi carter quem levantou os olhos primeiro.

- Santo Deus! - disse ele.

Munro foi muito mais positivo.

- Gosto. Imenso. Sim, vai ter sucesso no Clube de Oficiais Alemães em St. Helier.

A porta abriu-se e Martineau entrou. Ela voltou-se para olhar para ele, com as mãos nas ancas, numa provocação deliberada.

- Então?

- Então, o quê? - replicou ele.

Ela suspirou, exasperada.

- O senhor consegue ser um homem muito irritante, coronel Martineau. Há alguma vila aqui peno que tenha um pub?

- Há.

- Leva-me lá para tomar uma bebida?

- Assim?

- Quer dizer que não estou suficientemente bonita?

- Na verdade, você transcende todos os esforços de Mrs.

Moon. Por muito que tentasse, nunca conseguiria ser uma pega, miúda. Encontramo-nos na entrada daqui a cinco minutos.--Virou-se e saiu.

O sAR estava cheio, mas conseguiram encontrar dois lugares no canto junto à lareira e pediram as bebidas.

- Bem, que é que acha disto até agora? - perguntou ele.

- diferente das enfermarias do Cromwell.

- Noutras circunstâncias, você teria um treino de seis semanas

- disse ele. - Nas Highlands Escocesas para enrijecer.

Cursos de combate corpo-a-corpo, etc.

- Isso parece muito duro.

- Qualquer um pode aprender - disse ele. - Só a inteligência é que conta neste jogo. Bem, vamos a alguns factos.

Vamo-nos deixar de brincar com vestidos de cetim preto e cabelos pintados. Sabe quais são as técnicas que a Gestapo emprega para desmoralizar os agentes femininos que caem nas mãos deles? - Parou e depois acrescentou: - Tive uma namorada em Berlim. Era judia.

- Eu sei. carter contou-me.

- Contou-lhe como a torturaram e assassinaram nas caves da Gestapo? - Martineau abanou a cabeça. - Ele não sabe tudo.

não sabe que o chefe da Gestapo em Lyons, que eu matei em Novembro passado, era o homem responsável pela morte de Rosa em Berlim em 1938.

- Agora percebo - disse ela docemente. - O sargento Kelly disse que você estava diferente e tinha razão. Odiou esse chefe da Gestapo durante anos, e quando finalmente conseguiu vingar-se, descobriu que isso não tinha qualquer significado.

Ele riu friamente.

- O que aprendi de certeza foi que ir lá e lutar contra a Gestapo não é como nesses filmes que fazem em Hollywood.

Existem quarenta milhões de pessoas em França. Sabe quantas se calcula que sejam membros activos da Resistência?


- Não.

- Duas mil, Sarah. Dois míseros milhares. - Estava revoltado.

- Não sei porque é que nos esforçamos.

- Então porque é que o faz? Não é só por causa de Rosa ou do seu av“. - Ele virou-se ligeiramente e ela disse: - Oh, também sei o que se passou com ele.

Fez-se silêncio.

- Nunca falei sobre isso - começou Martineau. - Devia entrar em Harvard em 1917. Mas a América entrou na guerra.

Alistei-me por mero impulso e acabei nas trincheiras na Flandres.

- Abanou a cabeça. - Seja o que for que se entenda por inferno na Terra, as trincheiras eram exactamente isso.

- Deve ter sido horrível - disse ela.

- E, no entanto, eu deleitava-me. Consegue perceber? Vivia mais, sentia mais num dia do que num ano de vida normal. A vida tornou-se real, excitante. E eu precisava sempre de mais.

- Como uma droga?

- Exactamente. Foi disso que fugi mais tarde, quando voltei a Harvard e a Oxford e ao mundo seguro das salas de aula e dos livros.

- E agora a guerra surgiu outra vez.

- Sim, e Dougal Munro puxou-me de novo para o mundo real ... O resto, como dizem nos filmes, já você sabe.

Capítulo Cinco

No DIA seguinte, logo após o meio-dia, em Fermanville, na península de Cherburgo, Karl Hagan, o sargento de serviço no posto de comando da 15." Bateria de Anilharia de Costa, estava preguiçosamente encostado a uma coluna, ao sol pálido da tarde, quando viu um Mercedes preto a subir o caminho. Não havia escolta, por isso não era ninguém importante - e então reparou na flâmula esvoaçando no cap“. P“s-se na sala de operações num abrir e fechar de olhos e encontrou o capitão Reimann, comandante da bateria, estiraçado à secretária a ler um livro.

- Vem aí alguém, meu capitão. Parece ser oficial de alta patente. Talvez uma inspecção surpresa.

- Certo. Brade às armas. Ponha os homens na parada para o que der e vier.

Reimann abotoou o dólman e ajustou o boné num ângulo satisfatório. Quando saiu para o baluane, o Mercedes estacionou em baixo. O condutor saiu, seguido por um major do Exército com as listas do Estado-Maior nas calças. O homem que saiu a seguir era o marechal-de-campo Erwin Rommel, com um casaco de cabedal impermeável e óculos de protecção no alto do boné.

Reimann nunca estivera tão impressionado na sua vida. Enquanto se apressava pela escada abaixo, ouvia o pessoal da bateria a correr para o pátio para tomar posições.

Reimann dirigiu-se a Rommel e fez a continência.

- Meu marechal-de-campo. Dá-nos uma grande honra.

Rommel bateu com a ponta do seu bastão de marechal-de-campo no topo do boné.

- O seu nome?

- Reimann, meu marechal.

- Major Hofer, o meu ajudante-de-campo. - Rommel indicou o homem a seu lado.

Hofer disse:

- O marechal-de-campo vai inspeccionar tudo, incluindo as posições fortificadas de segunda linha. Por favor, conduza-nos.

Durante a hora que se seguiu, Rommel percorreu o cimo da falésia de posição fortificada em posição fortificada. Salas de rádio, casernas, paióis - nada escapou à sua atenção.

- Excelente, Reimann - disse ele ao jovem oficial de artilharia. - Uma organização de primeira classe. Vou assinar pessoalmente o relatório da sua unidade.

Reimann quase desmaiou de prazer. P“s a guarda de honra no baluane em sentido. Rommel bateu outra vez com o bastão no boné e entrou no Mercedes. Hofer juntou-se-lhe do outro lado e, à medida que se iam afastando, disse: - Acho que desempenhou muito bem o papel, Berger.

- Então, Herr Major - disse Heini Baum -, fico com o papel?

- Mais um teste, julgo eu. Talvez jantar .em alguma messe de oficiais. Depois, está pronto para Jersey.

QUANDo Sarah Drayton e Harry Martineau entraram na biblioteca de Berkley Hall na tarde da partida, Jack carter estava sentado com os mapas estendidos à sua frente.

- Ah, cá estão vocês - disse ele. - O brigadeiro Munro foi a Londres informar o general Eisenhower, mas volta hoje à noite para se despedir. Aqui estão os seus documentos, Sarah. Senhas de racionamento. Bilhete de identidade francês com fotografia.

- Entregou-lhe uma folha de papel. - São os dados pessoais.

O seu nome é Anne-Marie Latour. Mantivemos a idade e a data de nascimento. Nascida na Bretanha, claro, para justificar a pronúncia. Para local de nascimento, escolhemos Paimpol, na costa.

Julgo que conhece bem.

- Sim, a minha avó vivia lá.

- Mais uma coisa. A sua relação com o Standanenf_hrer Vogel tem de parecer sempre convincente. Compreende o que isso envolve?

- Partilhar o quarto? - Sorriu tranquilamente. - Não há

problema, capitão.

- Pronto. Então, leiam isto, os dois. Regulamentos, Sarah.

Era uma típica ordem de operações do EOE em linguagem directa que delineava a tarefa que os esperava. A operação tinha um nome de código: Homem de Jersey. No fim da ordem, dizia: þþAgora destrua.þþ Martineau acendeu um fósforo e queimou o papel, deixando-o cair no cinzeiro.

- Então, é isso - disse ele. - Vou fazer as malas. Até logo.

Na cama do seu quarto, o pessoal do guarda-roupa colocara um fato de três peças de tweed cinzento, sapatos, algumas camisas brancas e duas gravatas pretas. Havia também um casacão militar de cabedal preto macio.

O uniforme cinzento-esverdeado das SS estava pendurado atrás da porta. Verificou cuidadosamente se tinha as condecorações adequadas. Depois, experimentou-o. Estava tudo na perfeição.

Pegou

no boné, examinou a insígnia prateada com a caveira e depois colocou-o na cabeça, ligeiramente inclinado.

Por trás dele, Sarah disse:

- Parece-me que gosta de uniformes.

- Gosto das coisas como deve ser - disse ele. - importante, Sarah. Não se têm segundas oportunidades.

Havia uma espécie de perturbação na cara dela quando se aproximou e lhe agarrou no braço.

- Já não tenho a certeza se é você, Harry.

- Não sou; não com este uniforme. o Standartenf_hrer Max Vogel da SD. Temido tanto pelo seu próprio lado como pelos Franceses. Vai ver. Isto já não é uma brincadeira.

Ela teve um arrepio.

- Eu sei, Harry, eu sei.

HoRNLEY Field fora um aeroclube antes da guerra. Agora, era utilizado para voos clandestinos para o continente, principalmente de aviões Lysander e ocasionalmente de aviões Liberator.

O comandante era o chefe de esquadrilha Barnes, ex-piloto de caça.

Eram duas e meia da manhã, mas estava quente na tenda militar perto da pista de descolagem, onde um aquecedor trabalhava ruidosamente.

- Posso oferecer-lhe mais café? - perguntou Barnes a Sarah.

Ela voltou-se e sorriu.

- Não, obrigada.

Martineau estava de pé junto do aquecedor, com as mãos nos bolsos do seu casaco de cabedal impermeável. Vestia o fato de tweed e trazia um chapéu escuro de aba larga.

- Parece-me que têm de ir andando - disse Barnes. - As condições do outro lado são as ideais, se forem agora. Se esperarem, haverá luz a mais.

- Não consigo perceber o que terá acontecido ao brigadeiro

- disse Carter.

- Não interessa. - Martineau voltou-se para Sarah. - Está

pronta?

Ela disse que sim com a cabeça e calçou cuidadosamente as luvas de cabedal. Vestia um casacão preto justo na cintura, com os ombros largos, muito à moda Martineau pegou nas duas malas, saíram e dirigiram-se ao Lysander, onde o piloto, o tenente aviador Green, os aguardava.

- Algum problema? - perguntou Martineau.

- Nevoeiro na costa, mas só em farripas. - Green olhou para o relógio. - Estaremos lá às quatro e meia no máximo.

Sarah entrou primeiro no avião e p“s o cinto. Martineau passou as malas e depois apertou a mão a Carter.

- Vemo-nos em breve, Jack.

- Sabe o sinal para nos alertar - disse Carter. - O Cresson só tem que o enviar. Teremos um Lysander no mesmo campo às dez da noite do mesmo dia para os ir buscar.

Martineau subiu para o lado de Sarah e apertou o cinto. Não olhou para ela, mas pegou-lhe na mão quando Green subiu para o banco do piloto. O som dos motores perturbou a noite. Rolaram até ao fim da pista. Quando começaram a deslizar entre as linhas de luzes paralelas, aumentando gradualmente a velocidade, entrou um Austin pelo portão principal, abrandou para a inspecção da sentinela e depois avançou pela relva em direcção à tenda.

Quando Dougal Munro ia a sair, o Lysander levantou voo sobre as árvores no fim do campo e foi engolido pela escuridão.

- Raios! - disse ele. - Fui retido em Baker Street, Jack.

Surgiu uma coisa. Pensei que chegava a tempo.

- Eles não podiam esperar, sir - disse Barnes. - Podia dificultar as coisas do outro lado.

- Claro - disse Munro. Bames afastou-se e Munro acrescentou:

- A bola está no campo de Harry Martineau. Tudo depende dele.

- E de Sarah Drayton, sir. - disse Carter.

- Sim. Gostava daquela rapariga. - Subitamente, consciente de que falara no pretérito, Munro teve um arrepio, como se fosse um presságio.

NÇo houve qualquer percalço durante a viagem, e menos de duas horas depois o Lysander atravessava a península de Cherburgo. Green virou o avião ligeiramente para sul e falou pelo intercomunicador.

- Quinze minutos, por isso estejam prontos.

- Há alguma hipótese de encontrarmos uma patrulha nocturna? perguntou Martineau.

- pouco provável. Hoje, há um ataque aéreo dos Comandos Bombardeiros em várias cidades do Ruhr. Todos as patrulhas nocturnas em França devem ter feito os possíveis para lá estar a proteger a pátria.

- Olhem! - disse Sarah. - Estou a ver luzes.

- ali - disse Green. - Já aterrei aqui duas vezes. Entrada por saída. Conhece a manobra, capitão.

E então começaram a descer sobre as árvores em direcção ao prado. Quando pararam, Sophie Cresson avançou a correr, acenando.

Na mão tinha uma pistola Sten. Martineau abriu a porta, atirou as malas para o chão e saltou. Voltou-se para ajudar Sarah e atrás dela Green fechou a porta e trancou-a. O barulho do motor acentuou-se até atingir um ronco forte à medida que o Lysander atravessava o prado e levantava voo.

Sophie Cresson apanhou as três lanternas que utilizara como luzes de aterragem e disse:

- Vamos, vamo-nos embora daqui. Tragam as malas. - Seguiram-na até uma velha carrinha Renault e ela abriu a porta de trás. Lá atrás estavam vários barris com frangos mortos e alguns faisões.

- Há espaço à justa para se sentarem os dois por detrás dos barris. Não se preocupem, conheço todos os polícias da zona. Se me mandarem parar, só levam um frango e não chateiam.

- Certas coisas nunca mudam - disse Sarah.

- Eh, uma rapariga da Bretanha? - Sophie apontou a lanterna para Sarah e gemeu. - Meu Deus, agora mandam rapariguinhas.

- Encolheu os ombros. - Entrem e vamos embora daqui.

Sarah agachou-se atrás dos barris, com os joelhos tocando os de Martineau, enquanto Sophie arrancava. þþEntão, é istoþþ, pensou ela, þþa realidade. Acabaram-se as brincadeiras.þþ Abriu a carteira e apalpou a pistola que Kelly lhe dera. Seria capaz de a usar se fosse necessário? Só o tempo o diria. Encostou-se ao lado da carrinha, sentindo-se maravilhosamente, incrivelmente viva.

ERA MEIO-DIA quando Sarah acordou, bocejando e espreguiçando-se. O pequeno quarto sob o telhado estava modestamente mobilado, mas era confortável. Atirou os lençóis para trás e foi até à janela. A vista para o porto de Granville era realmente muito especial. A porta abriu-se por trás dela e Sophie entrou com uma caneca de café num tabuleiro.

- Então, está a pé.

- bom estar de volta. - Sarah pegou na caneca e sentou-se no banco da janela.

- Já cá esteve alguma vez? - perguntou Sophie.

- Muitas vezes. A minha mãe tinha uma costela de Jersey e outra bretã. A minha avó nasceu em Paimpol. Eu costumava vir de Jersey até cá quando era pequena. Havia um café no cais que tinha os melhores pãezinhos quentes do Mundo.

- Já não existe - disse Sophie. - A guerra mudou tudo.

Olhe lá para baixo.

O porto estava atulhado de lanchas do Reno e de alguns navios da Marinha Alemã.

- Vão mesmo partir para as ilhas hoje à noite? - perguntou Sarah.

- Vão. Alguns para Jersey, outros para Guernsey. Agora, vista-se e venha para baixo, vamos almoçar.

Enn GRAvAY, na que fora em tempos a casa do conde com o mesmo nome, Heini Baum estava sentado numa ponta da mesa na messe de oficiais do 41.ó Regimento de Granadeiros Panzer com um sorriso de agradecimento aos aplausos dos oficiais que brindavam à sua pessoa. Quando acabaram, o jovem coronel do regimento disse: - Se pudesse dizer umas palavras, meu marechal ... Teria muito significado para os meus oficiais.

Havia uma expressão preocupada nos olhos de Hofer quando Baum olhou para ele, mas ignorou-o e levantou-se, endireitando o uniforme.

- Meus senhores, o Fhrer destinou-nos uma tarefa simples.

Manter o inimigo longe das nossas praias. Sim, digo as nossas praias. A Europa, una e indivisa, é o nosso objectivo. Não há nenhuma possibilidade de derrota. O destino do F_hrer é de origem divina - Ergueu o copo. - Por isso, meus senhores, ao nosso amado F_hrer, Adolf Hitler.

- Adolf Hitler! - entoaram todos em coro.

Baum atirou o copo para a lareira e com um estremecimento de excitação todos o imitaram. Depois, aplaudiram outra vez e formaram duas filas, enquanto ele saía seguido por Hofer.

- Foi um bocado duro com os copos, julgo eu. - disse Hofer no regresso para Cressy, onde Rommel estabelecera o quartel-general provisório no velho castelo.

- Não achou bem? - disse Baum.

- Eu não disse isso. Na verdade, o discurso foi bastante bom.

Era exactamente o que eles queriam ouvir.

þþDoidosþþ, pensou Baum. þþSerei eu o único sobrevivente são?þþ

Entraram no pátio do castelo e subiram rapidamente as escadas que levavam à suite do segundo andar


Rommel trancara-se no seu estúdio e só saiu quando ouviu Hofer bater à porta.

- Que tal correu?

- Perfeito - disse Hofer. - Passou com distinção. O senhor devia ter ouvido o seu discurso.

- àptimo. - Rommel assentiu. - Está tudo em andamento nas ilhas do Canal? Falou com Von Schmettow em Guernsey?

- Pessoalmente, meu marechal.

- Bom - disse Rommel. - Mas ainda há o problema de você

e o Berger terem de atravessar uma área em que há uma supremacia da RAF. - Voltou-se para Baum - Que pensa disto, Berger?

- Acho que podia ser interessante se o Herr Major e eu caíssemos em chamas no mar. A Raposa do Deserto morreu. --Encolheu os ombros. - O que podia ter estranhas consequências, tem que admitir, meu marechal.

GERARD Cresson estava na sala sentado na sua cadeira de rodas e tornou a encher os copos com vinho tinto.

- Não, lamento imenso desiludi-la - disse a Sarah. - Mas em Jersey, tal como em França ou em qualquer outro país ocupado da Europa, o verdadeiro inimigo é o informador. Sem eles, a Gestapo não poderia actuar.

- Mas disseram-me que não há Gestapo em Jersey - disse Sarah.

- Oficialmente, têm lá montada uma Geheime Feldpolizei.

a Polícia Secreta e é controlada pela Abwer, os Serviços Secretos Militares. Faz tudo parte da política do domínio pela simpatia, uma operação de cosmética que se destina a deitar poeira para os olhos das pessoas. A sugestão é: como vocês são britânicos, não lhes impomos a Gestapo ...

- O que é um disparate - disse Sophie -, porque vários dos homens que trabalham para a GFP em Jersey são agentes da Gestapo.

- Atenção - acrescentou Gerard -, Jersey é uma operação de fantoches comparada com Lyons ou Paris, mas tenham cuidado com um capitão Muller, é o comandante, e o seu adjunto, o inspector Kleist.

- São das SS? - perguntou Martineau.

- Não sei. Provavelmente não são. Possivelmente foram emprestados pela Polícia de alguma grande cidade. Cheios de si mesmos, como a maior parte dos polícias.

- Então como é que avalia as nossas hipóteses de trazer Kelso de Jersey? - perguntou Martineau.

- Vai ser muito difícil. São muito rígidos com o tráfego civil. Num barco pequeno será impossível.

- E se ele não puder andar ... - Sophie encolheu os ombros expressivamente.

- Pensaremos em qualquer coisa - disse Martineau.

- Talvez uma bala na cabeça? - sugeriu Cresson.

Martineau abanou a cabeça.

- Ele tem direito a uma oportunidade. Se houver alguma maneira de o trazer cá para fora, trago-o. Bem, que é preciso fazer para reservar uma passagem para a ilha hoje à noite?

- Há um oficial na tenda verde do cais. ele quem concede os passes. No seu caso, não haverá dificuldade.

- àptimo - disse Martineau. - Parece ser tudo por agora.


Sophie pegou no copo.

- Não vos vou desejar boa sorte. Só quero dizer uma coisa.

- Que é?

P“s um braço em volta dos ombros de Sarah.

- Traga esta miúda inteira, porque se não o fizer e voltar a aparecer por estas bandas, eu própria lhe enfiarei uma bala.

Sorriu bem disposta e fez-lhe um brinde.

A NOITE começava a cair, e o porto de Granville era palco de uma actividade frenética à medida que o comboio de carga se preparava para partir. O imediato Hans Richter, da escolta do navio E, verificou a peça Bofors na popa do seu navio e depois fez uma pausa para observar os estivadores a trabalhar no Victor Hugo, que estava ancorado ao lado. Agora que os porões estavam atulhados, atiravam sacos de carvão e fardos de feno para o convés.

Richter via o comandante do Victor Hugo, Savary, na ponte falando com o oficial de armamento, o tenente italiano. Orsini estava tão elegante como de costume, com um lenço vermelho ao pescoço. Enquanto Richter o observava, Orsini desceu pela prancha de desembarque e avançou na direcção da tenda do comandante do porto. Então, Richter virou-se novamente para a peça e ouviu uma voz: - Imediato!

Richter olhou por cima da amurada. De pé, a alguns passos de distância, estava um oficial das SS com um casaco de cabedal preto por cima do uniforme; a caveira prateada brilhava ligeiramente na luz da noite. Quando Richter viu na gola as folhas de carvalho de coronel, o coração caiu-lhe aos pés. Bateu os calcanhares rapidamente.

- Standartenf_hrer. Em que posso ajudá-lo?

A rapariga ao lado do coronel era bonita, tinha uma boina preta, uma gabardina cintada e o cabelo muito louro. þþNova demais para um chato das SS como esteþþ, pensou Richter.

- O seu comandante é o Kapitanleutnant Dietrich, segundo creiò? - disse Martineau. - Ele está a bordo?

- Não, Standartenf_hrer. Está com o comandante do porto.

- Bom. Vou falar com ele. - Martineau apontou para as duas malas. - Trate de as p“r a bordo. Vamos consigo para Jersey.

Richter observou-os enquanto se afastavam e depois fez sinal com a cabeça a um jovem marinheiro que estivera a ouvir a conversa interessado.

- Ouviste o homem. Pega nas malas.

- Era SD - disse o marinheiro. - Reparou?

- Reparei - disse Richter. - Por acaso, reparei. Agora despacha-te.

ERIcH Dietrich, com apenas trinta anos de idade, nunca se sentia tão feliz como quando estava no mar e a comandar. Agora mesmo, inclinado sobre a mesa das cartas com o comandante do porto, o tenente Schroeder, e Guido Orsini, estava muitíssimo bem disposto.

Schroeder disse:

- Os Serviços Secretos esperam grandes raides hoje à noite no Ruhr, por isso as coisas devem estar calmas para nós no que se refere à RAF.

- Se acredita nisso, acredita seja no que for - disse Orsini.

- Você é um pessimista, Guido - disse Erich Dietrich. -- Se se tiver esperança em coisas boas, elas vêm-nos parar às mãos.

Nesse momento, a porta abriu-se. A cara de Schroeder empalideceu e Guido parou de sorrir. Dietrich voltou-se e viu Martineau de pé, com Sarah a seu lado.

-Kapitanleutnant Dietrich? O meu nome é Vogel. - Martineau tirou o seu bilhete de identidade SD e entregou-lho; depois, tirou a carta de Himmler do envelope. - Se não se importar, leia também isto.

Dietrich leu a carta, depois devolveu os documentos.

- As suas credenciais são, sem dúvida, as mais notáveis que vi até hoje, Standartenf_hrer - disse Dietrich. - Em que lhe posso ser útil?

- Preciso de uma passagem para mim e para Mademoiselle Latour para Jersey. Uma vez que é o comandante do comboio, naturalmente vou consigo. Já disse ao seu imediato para levar as nossas malas para bordo.

- Com todo o prazer, Standartenf_hrer - disse Dietrich calmamente. - Mas há um pequeno problema. O regulamento naval proíbe o transporte de civis num navio de guerra. Posso levá-lo a si, mas o mesmo não posso fazer a esta encantadora senhora.

Era difícil contrariá-lo, porque tinha razão. Martineau tentou lidar com a situação tal como um homem como Vogel teria feito arrogante, exigente.

- Que é que sugere?

- Talvez um dos outros navios do comboio. Aqui o tenente Orsini é o oficial de armamento do Victor Hugo. Podiam ir com ele.

Mas Vogel não teria permitido a si próprio a derrota total.

- Não - disse calmamente. - Seria bom eu ver o seu trabalho, Kapitanleutnant. Eu vou consigo. Mademoiselle Latour irá no Victor Hugo, se o tenente Orsini não levantar objecções.

- Claro que não - disse Guido, que quase não conseguira desviar os olhos da jovem. - um enorme prazer.

- Infelizmente, Mademoiselle Latour não fala alemão. --Martineau voltou-se para ela e falou em francês. - Temos de nos separar para a viagem de travessia, minha querida. uma questão de regulamentos. Levo a sua bagagem comigo, por isso não se preocupe com isso. Este jovem oficial olhará por si.

- Guido Orsini, ao seu serviço, signorina - disse ele galantemente, e fez continência. - Venha comigo e levo-a para bordo com segurança.

Ela virou-se para Martineau.

- Vemo-nos mais logo então, Max. Em Jersey. - Ele acenou com a cabeça tranquilamente.

Quando ia a sair, com Orsini a segurar a porta para ela passar, Dietrich disse:

- Uma rapariga encantadora.

- essa a minha opinião. - Martineau inclinou-se sobre a mesa das cartas. - Faremos uma viagem sem percalços? Parece que os vossos comboios são frequentemente atacados por combatentes nocturnos da RAF.


- realmente frequente, Standartenf_hrer - disse Dietrich.

- Mas a RAF hoje estará ocupada noutro sítio. - Pegou nas cartas. - Agora, se quiser vir comigo, vamos para bordo.

O comboio, onze navios ao todo, deixou Granville pouco depois das dez horas. Na ponte do Victor Hugo estava-se num mundo seguro e fechado, com a chuva e os salpicos batendo contra o vidro. Savary estava de pé ao lado do timoneiro. Sarah e Guido Orsini inclinaram-se sobre a mesa das cartas marítimas para ele lhes mostrar a rota do comboio.

Ela gostava de Orsini. Era bonito demais, como os Latinos são por vezes, mas também havia força nele.

- Venha para o salão - disse ele. - Vou-lhe buscar um café e, se quiser deitar-se, pode utilizar o meu camarote.

Savary voltou-se.

- Agora não, conde. Quero verificar a casa das máquinas.

Têm de ficar na ponte. - E saiu.

- Conde? - disse Sarah, levantando as sobrancelhas.

- Há muitos condes em Itália. Não se aflija com isso.

Ofereceu-lhe um cigarro e fumaram num silêncio de camaradagem, a olhar lá para fora, para a noite, e a ouvir o barulho dos motores em surdina.

- Pensava que a Itália tinha capitulado no ano passado. --disse ela.

- Oh, e capitulou, excepto para aqueles fascistas fanáticos que decidiram continuar a combater para os Alemães.

- Você é fascistà?

Ele olhou para aquela cara jovem e atraente.

- Para ser franco, não sou coisa nenhuma. Detesto política.

Lembra-me um senador em Roma que se supõe ter dito: þþNão digam à minha mãe que sou político. Ela pensa que toco piano num bordel.þþ Ela riu-se.

- Essa é. boa.

- A maioria dos meus antigos camaradas está agora a trabalhar com a Marinha Britânica e Americana. Eu, por outro lado, estava em missão especial com a Quinta Flotilha de Navios E, em Cherburgo. Quando a Itália se decidiu pela paz, não tive grandes hipóteses de escolha e não me estava a apetecer ir para um campo de prisioneiros. Claro que já não me permitem comandar um navio E. Suponho que pensam que eu ia direito a Inglaterra.

- E ia mesmo?

Savary voltou nesse momento, e o italiano disse:

- Claro. Agora vamos para baixo tomar o tal café.

O CAPITÇO Karl Muller, comandante da Polícia Secreta em Jersey, estava sentado no seu gabinete no Silvertide Hotel, em Havre des Pas, a examinar um grosso dossier. Era inteiramente dedicado a cartas anónimas, as informações que levavam a todos os êxitos que a unidade conseguia. Os crimes eram variados.

Tudo, desde a posse de um rádio ilegal até ao envolvimento no mercado negro. Era tudo caça pequena, claro. Nada que se parecesse com o quartel-general da Gestapo em Paris.

Infelizmente,

uma jovem francesa que ele estivera a interrogar morrera sem revelar nomes. Estivera envolvida no circuito principal da Resistência de Paris, e aos olhos dos seus superiores ele estragara tudo. Seguira-se este posto numa ilha atrás do sol-posto. Agora, tentava a todo o custo voltar à cena principal.

Levantou-se; tinha pouco menos de um metro e oitenta e o cabelo ainda era castanho-escuro, apesar do facto de ter já cinquenta anos. Espreguiçou-se, e quando se dirigia à janela para ver o tempo, o telefone tocou. Levantou o auscultador.

- Sim.

Não era uma chamada local, percebia-se por causa dos barulhos.

- Capitão Muller? Daqui fala Schroeder, comandante do porto de Granville ...

Dez minutos depois, bateram à porta. Os dois homens que entraram estavam, tal como Muller, vestidos à civil. Os GFP nunca usavam uniformes se o pudessem evitar. O que vinha à frente era largo e atarracado, tinha uma cara eslava e olhos cinzentos duros.

Era o inspector Willi Kleist, segundo-comandante de Muller, também da Gestapo. Conheciam-se há anos. O homem que estava com ele era muito mais novo, tinha cabelo louro, olhos azuis e uma boca pouco determinada. Era o sargento Ernst Greiser.

- Um acontecimento interessante - disse Muller. - Falei ao telefone com Schroeder, de Granville. Parece que um Standartenf_hrer se apresentou no cais com uma francesa e pediu passagem para Jersey. Viaja com um mandado especial do Reichsf_hrer Himmler. Segundo Schroeder, está rubricado pelo F_hrer.

- Meu Deus! - disse Greiser.

- Por isso, meus amigos, devemos estar prontos para ele.

Você estava para ir verificar os papéis dos passageiros quando o

comboio chegasse a St. Helier, não é verdade, Ernst? - perguntou a Greiser.

- Sim, meu capitão.

- O inspector Kleist e eu vamos consigo. Seja qual for a razão que o traz aqui, quero estar em cima do acontecimento. Até logo.

Os dois homens saíram. Muller foi até à janela e olhou para a escuridão lá fora, excitado como não estava há muitos meses.

PAssAvA pouco das onze da noite quando Helen de Ville levou o tabuleiro para o quarto pelas escadas de trás que saíam da cozinha. Nenhum dos oficiais as utilizava. Mantinham-se estritamente no seu lado da casa. De qualquer maneira, tinha cuidado.

Levava só uma chávena no tabuleiro. Tudo só para uma pessoa.

Se queria cear no quarto, ninguém tinha nada com isso.

Entrou no quarto, trancou a porta atrás de si, dirigiu-se à

estante, abriu a passagem secreta e entrou, fechando-a novamente antes de subir as estreitas escadas.

Kelso estava sentado na cama a ler à luz de um candeeiro a petróleo. A janela estava tapada por uma cortina grossa. Olhou para ela e sorriu.

- Que é que temos aqui?

- Nada de especial. Chá, mas pelo menos é do verdadeiro, e uma sanduíche de queijo. Hoje em dia, sou eu que faço o queijo, por isso o melhor que tem a fazer é gostar.


Sentou-se aos pés da cama enquanto ele comia e reparou na fotografia da mulher e das filhas na mesa-de-cabeceira. Pegou nela.

- Pensa muito nelas?

- Sempre. São tudo para mim, tudo o que sempre quis. Tão simples como isso. Depois, veio a guerra e estragou tudo.

- Pois é, a guerra tem o mau hábito de fazer isso.

- Ainda assim, não me posso queixar. Uma cama confortável, comida decente, e o candeeiro a petróleo gera uma atmosfera antiquada agradável.

- Cortam a electricidade às nove horas em ponto - disse-lhe ela. - Por isso é que tem este candeeiro.

- As coisas estão assim tão más?

- Estão. Na verdade, você tem sorte em ter esta chávena de chá. Em qualquer outro sítio da ilha seria de pastinaca ou folhas de amoras-silvestres. Não é das melhores experiências da vida.

- Sorriu e ajeitou-lhe as almofadas. - Agora vou para a cama.

- Amanhã é o grande dia - disse ele.

- Se acreditarmos na mensagem que Savary nos trouxe. -- Pegou no tabuleiro. - Tente dormir.

ORSINI cedera o camarote a Sarah. Era muito pequeno, quente e abafado e o barulho do motor a trabalhar por baixo provocou-lhe uma dor de cabeça. Deitou-se no beliche, fechou os olhos e tentou descontrair-se. De repente, o navio pareceu estremecer.

Uma ilusão, claro. Sentou-se e houve uma explosão.

Depois disso, tudo pareceu passar-se em câmara lenta. O navio estava completamente imóvel, e deu-se outra explosão violenta que fez as paredes tremerem. Ela gritou e tentou levantar-se, e nessa altura o chão inclinou-se e ela caiu contra a porta. A sua carteira foi atirada de cima do armário. Agarrou-a automaticamente e tentou abrir a porta do camarote, mas estava presa. Abanou o puxador desesperadamente e depois a porta abriu-se tão inesperadamente que foi atirada contra a parede oposta.

Orsini estava de pé à entrada, com uma expressão selvagem.

- Mexa-se! - ordenou. - Fomos atingidos duas vezes. Ataque de torpedos. Temos alguns minutos apenas. Esta banheira velha vai ao fundo como uma pedra.

Subiram pela escada do convés até ao salão deserto. Ele despiu o casaco de marinheiro e deu-lho.

- Vista isto. - Ela fez o que ele lhe mandou e meteu a carteira num dos grandes bolsos do casaco. Orsini enfiou-lhe rudemente os braços num colete de salvação e vestiu outro enquanto saía para o convés.

A cena era de uma confusão indescritível: a tripulação tentava lançar os barcos e, por cima deles, as metralhadoras disparavam para a noite. Em resposta, fogo cruzado que atingiu a ponte onde estava Savary. Ele gritou em pânico e saltou sobre a amurada, fazendo espalhar alguns fardos de feno no convés de carga por baixo.

Orsini puxou Sarah para baixo, para trás de umas sacas de carvão. Nesse mesmo instante, houve outra explosão que fez desintegrar uma parte do convés da popa, e as chamas ondularam na noite. O navio inclinou-se acentuadamente. Sarah caiu de costas e sentiu-se deslizar pelo convés escorregadio. Então, a amurada afundou-se e ela enfiou pela água.

O navio E avançou rapidamente, passados poucos segundos da primeira explosão, e Dietrich perscrutou a escuridão com os seus binóculos nocturnos. Martineau quase perdeu o equilíbrio com o repentino aumento de velocidade e agarrou-se com força.

- Que é?

- Não tenho a certeza - disse Dietrich. Então, as chamas brotaram da noite a cerca de meia milha e ele focou o Victor Hugo. Uma forma escura passou em frente da luz como uma sombra e depois outra. - Lanchas-torpedeiras britânicas.

Atingiram o Hugo.

Premiu o botão de alarme dos postos de combate e o som da sirene ergueu-se sobre o ronco dos motores. A tripulação dirigiu-se logo aos seus postos. As peças Bofors e o canhão do convés começaram a disparar.

Martineau só conseguia pensar em Sarah e agarrou Dietrich pela manga.

- Mas temos de ajudar as pessoas que estão naquele navio.

- Depois! - Dietrich afastou-o. - Isto é grave. Agora saia da frente.

SARAH batia desesperadamente os pés para se afastar o mais possível do navio. Havia combustível em chamas na água em redor da popa, e os homens nadavam com esforço para se afastarem à medida que o fogo avançava.

Ela movia-se com dificuldade por causa do colete de salvação, e o casaco de marinheiro estava muito volumoso, cheio de água.

Mas agora percebia porque é que Orsini lho dera, pois estava a sentir o frio a roer-lhe as pernas.

Havia destroços e fardos de feno a flutuar por todo o lado. Uma mão agarrou-lhe o colete de salvação por trás, ela voltou-se e viu Orsini. Puxou-a para um dos fardos e agarraram-se às cordas que o atavam.

- Quem são eles? - arfou ela.

- Lanchas-torpedeiras britânicas, MTBs.

Ouviram um ruído estrondoso e as balas de canhão agitaram a água, enquanto um MTB atirava sobre homens e destroços. Um projéctil luminoso atravessou a escuridão, descrevendo um grande arco. Pouco depois, um foguete luminoso iluminon a cena.

þþSanto Deusþþ, pensou 5arah, þþque situação. A minha própria gente a tentar matar-me.þþ Agarrou-se bem à corda e disse, ofegante: - Tinham de fazer aquilo? Metralhar homens que já estavam na água?

- A guerra, cara, é uma coisa horrível. Põe todos malucos.

Está a aguentar-se?

- Os meus braços estão cansados.

Passou uma escotilha perto deles, e Orsini nadou até lá e empurrou-a na direcção de Sarah.

- Vamos p“-la aqui em cima.

Foi uma luta, mas por fim ela conseguiu.

- E você?

- Eu fico bem, agarrado aqui. Não se preocupe. Já estive na água outras vezes. Sou um homem de sorte, por isso fique comigo.


Ela riu, tremendo.

- Não há nada como as ilhas do Canal para passar umas férias nesta época do ano. Perfeito para banhos de mar. - E

então apercebeu-se, horrorizada, de que falara em inglês.

Orsini olhou para ela e depois disse num inglês excelente:

- Desde o primeiro momento que percebi que havia em si

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qualquer coisa de diferente, cara. - Riu-se. - O que significa que também há qualquer coisa fora do vulgar sobre o bom do Standartenfhrer Vogel.

- Por favor - disse ela, desesperada.

- Não se preocupe, cara. Apaixonei-me por si no instante em que entrou pela porta daquela tenda do cais. Gosto de si e não gosto deles, sejam eles quem forem. Nós, os Italianos, somos um povo simples.

Tossiu, esfregando o óleo da cara, e ela pegou-lhe na mão.

- Salvou-me a vida, Guido.

Ouviu-se o som de um motor a baixa velocidade a aproximar-se.

Guido olhou por cima do ombro e viu uma traineira armada.

- Sim - disse ele -, agrada-me dizer que provavelmente salvei.

Momentos depois, a traineira agigantava-se ao lado deles com uma rede de um dos lados. Dois marinheiros alemães debruçaram-se, agarraram Sarah e puxaram-na para cima. Guido seguiu-a e caiu no convés ao lado dela.

Um jovem tenente desceu as escadas da ponte e avançou apressadamente.

- Guido, é você? - disse em alemão.

- Sem tirar nem p“r, Bruno - respondeu Guido na mesma língua.

- E a Fraulein está bem? Temos de a levar para o meu camarote.

- Mademoiselle Latour, Bruno, e não fala alemão. - disse-lhe Guido em francês. Sorriu para Sarah e ajudou-a a p“r-se em pé. - Agora, vamos levá-la lá para baixo.

Capítulo Seis

Enquanto Sarah enfiava a pesada camisola branca pela cabeça, bateram à porta do camarote de Bruno. Ele foi abrir e um jovem marinheiro anunciou em francês: - Estamos a entrar no porto de St. Helier.

Foi-se embora e ela dirigiu-se ao lavatório para fazer qualquer coisa ao cabelo. Os efeitos da água salgada tinham-no transformado numa desordem embaraçada.

O conteúdo da carteira que enfiara no bolso do casaco de Orsini antes de deixar o Victor Nugo tinha surpreendentemente conseguido sobreviver; o bilhete de identidade e os outros papéis tinham, naturalmente, ficado ensopados. Espalhara-os sobre os canos de água quente para secarem e depois voltou a colocá-los na carteira e tirou a pequena pistola de baixo da almofada.

Bateram outra vez à porta e Guido entrou.

- Como é que está? - perguntou ele em francês.

- àptima - disse ela. - Tirando o cabelo. Pareço um espantalho.

Ele trazia um casaco da Kriegsmarine.

- Vista isto. Lá fora está uma manhã húmida.

Na ponte, Sarah observou um cenário conhecido da sua infância. O porto de St. Helier, Elizabeth Castle à esquerda na baía, o Albert Pier, a disposição da própria vila. Igual, mas diferente. Havia fortificações militares por toda a parte, e o porto estava muito mais atulhado de embarcações do que quando ela o conhecera. Os estivadores começavam já a descarregar as lanchas e parecia haver soldados por todo o lado.

- Onde é que está o navio E? - perguntou ela a Guido, enquanto se debruçava sobre a amurada entre ele e o tenente Bruno Feldt.

- Provavelmente, a dar uma última vista de olhos em busca de sobreviventes - disse ele no momento em que se dirigiam de frente para o Albert Pier. - Não há sinais de Savary acrescentou.

- Pode ser que tenha sido recolhido por outros - disse Bruno Feldt. - Vejo que a GFP está pronta e à espera.

- GFP? - perguntou Sarah numa deliberada exibição de ignorância. - Que é isso?

- Geheime Feldpolizei - disse-lhe Guido. - O alto, o capitão Muller, é empréstimo da Gestapo. E o bandido ao lado dele também, aquele que parece uma parede de tijolo. Esse é o inspector Willi Kleist. O novo com cabelo louro é o sargento Emst Greiser.

Os três agentes da GFP subiram apressadamente a ponte de desembarque, e Muller foi o primeiro a chegar à ponte, seguido por Kleist.

- Herr Leutnant. - Muller fez um aceno de cabeça a Feldt.

-- Teve uma noite em grande, segundo ouvi dizer. - Voltou-se para Sarah e disse em francês: - Vinha no Hc<go, mademoiselle ...?

- Latour - disse Orsini. - Ficámos juntos na água.

Muller acenou com a cabeça.

- Perdeu os seus documentos`?

- Não - di.sse ela. - Tenho-os aqui. - Tirou a carteira do bolso e começou a abri-la. Muller estendeu a mão.

- A sua carteira, por favor, mademoiselle.

Fez-se uma pausa e Sarah entregou-lha.

- Com certeza.

Muller voltou-se para Bruno Feldt.

- Se não se importa, usaremos o seu camarote alguns minutos.

Guido apertou o braço de Sarah e sussurrou rapidamente: '

- Espero por si, cara, e se o coronel não chegar, pode vir para o meu aquartelamento em De Ville Place. A minha senhoria olhará por si.

Muller seguiu Sarah, enquanto ela o conduzia escada abaixo de volta ao camarote do tenente Feldt. Kleist encostou-se contra a porta aberta.

- Então, mademoiselle. - Muller sentou-se na cama, virou a carteira ao contrário e esvaziou-a. Os papéis caíram, o estojo de maquilhagem e a pistola também. Ele não fez comentários.

Abriu o bilhete de identidade francês, examinou-o e depois tornou a colocar tudo cuidadosamente dentro da carteira. Só então pegou na pistola. - Sabe que há uma penalização para o civil apanhado em posse de qualquer espécie de arma de fogo?

- Sei - disse Sarah.

- A pistola é sua, suponho?

- Claro. Foi presente de um amigo. Estava preocupado com a minha segurança. Vivemos tempos agitados, capitão.

- E que espécie de amigo a encorajaria a infringir a lei de forma tão flagrante?

Ouviram-se passos lá fora e uma voz fria disse em alemão:

- Talvez deva dirigir essa pergunta a mim.

Harry Martineau estava de pé à entrada. Apresentava uma figura soberbamente ameaçadora com o uniforme das SS e o impermeável de cabedal preto.

Karl Muller reconhecia o Diabo quando o encontrava cara a cara e p“s-se de pé num ápice.

- Standartenf_hrer.

- O senhor é?

- Capitão Karl Muller, comandante da Geheime Feldpolizei em Jersey. Este é o meu segundo-comandante, inspector Kleist.

- O meu nome é Vogel. - Martineau tirou o seu passe SD

e estendeu-lho. Muller examinou-o e devolveu-lho. Martineau mostrou o mandado de Himmler. - Leia isso.

Muller obedeceu, dobrou a carta e entregou-a.

- Em que posso servi-lo, Standartenf_hrer?

- Mademoiselle Latour viaja sob a minha protecção. - Martineau pegou na pistola e voltou a p“-la na carteira. - Deu-me a honra de escolher a minha amizade. Entre os seus compatriotas há alguns que não o aprovam. Prefiro que ela esteja em posição de se defender se surgir alguma situação infeliz.

- Com certeza, Standartenf_hrer.

- àptimo. Então façam o favor de me esperar no convés.

Muller nem sequer hesitou.

- Com certeza, Standartenf_hrer. - Fez sinal a Kleist e saíram.

Martineau fechou a porta. Sorriu repentinamente, mudando de Vogel para Harry.

- Está com um aspecto terrível. Sente-se bem?

- Sinto - disse ela. - Graças a Guido.

- Agora é Guido?

- Salvou-me a vida, Harry. Foi horrível. àleo a arder, homens a morrer. - Arrepiou-se. Depois, acrescentou: - Temos um problema. A dada altura, quando estávamos na água, falei com Guido em inglês.

- Santo Deus!

Ela ergueu uma mão na defensiva.

- Aquilo era uma grande confusão. De qualquer maneira, ele também fala bem inglês.

- Pare! - disse Martineau. - Isto está a ficar cada vez pior.

- Ele não é fascista, Harry. _ um aristocrata italiano que se está nas tintas para a política; está metido aqui porque teve o azar de se encontrar no sítio errado quando o Governo Italiano capitulou.

- Mas porque é que ele se deu a tanto trabalho por sua causa?

- Gosta de mim. Sabe como é que são os Latinos.

Sorriu maliciosamente e Martineau abanou a cabeça.

- Dezanove anos disseram-me. Mais parecem cento e dezanove.

- Outra coisa. Guido está aquartelado em casa da tia Helen em De Ville Place. Ia-me levar para lá se você não aparecesse.

- Perfeito - disse Martineau. - Quanto ao outro assunto, dizemos-lhe que a sua mãe era inglesa e que você não disse nada durante os anos da ocupação para que isso não lhe trouxesse problemas.

- Será que ele acredita?

- Não vejo porque não. Não vai ter problemas de roupa?

- Não. Tenho tudo o que preciso dentro da mala. Foi bom ela ter vindo consigo no barco E.

Subiram a escada do convés. Muller estava na ponte a falar com Feldt e Orsini.

Martineau falou com Orsini em francês.


- Anne-Marie disse-me que está aquartelado em circunstâncias muito agradáveis. Uma casa de campo chamada De Ville Place?

- verdade, coronel.

Martineau voltou-se para Muller.

- Parece que se adequaria exactamente às minhas necessidades.

Haverá alguma objecção?

Muller, ansioso por agradar, disse:

- De maneira nenhuma, Standartenfhrer. Tem sido por tradição destinada a oficiais da Kriegsmarine, mas a dona tem sete ou oito aposentos vagos.

- Levo-os lá agora, se quiser - ofereceu-se Ursini. - Tenho um carro estacionado ao fundo do pontão.

- Muito bem - disse Martineau. - Sugiro então que vamos andando.

Desceram a passagem de desembarque até ao pontão e um marinheiro da Kriegsmarine pegou nas duas malas e seguiu-os.

Orsini e Sarah iam à frente; Martineau seguia-os com Muller a seu lado.

- Naturalmente que, uma vez instalado, voltarei à vila para apresentar os meus cumprimentos ao comandante militar, coronel Heine. Vou precisar de um veículo. Um K_belnþaþen seria o melhor, para o caso de o querer usar em pisos acidentados. - O

K_belwaþen era um veículo do Exército Alemão equivalente ao jipe.

- Não há problema, Standartenf_hrer. Arranjo-lhe também um motorista.

- Não é necessário - disse Martineau. - Prefiro fazer as coisas sozinho. Não me vou perder na vossa pequena ilha, pode crer.

- Posso perguntar -lhe o motivo da sua visita, Standartenf_hrer?

- Estou aqui sob instruções especiais do próprio Reichsf_hrer Himmler, rubricadas pelo F_hrer. Viu as minhas ordens - disse-lhe Martineau. - Está a p“-las em dúvida?

- De modo algum.

- óptimo. - Tinham chegado ao Morris Sedan de Orsini e o marinheiro estava a encaixar as malas no porta-bagagem. -- Será informado dos meus movimentos quando e se necessário. Entretanto, mande-me entregar esse K_belwþagen.

Sarah já estava no assento de trás e Orsini ao volante.

Martineau entrou para o banco da frente. Enquanto o italiano conduzia, Martineau disse-lhe:

- Creio que há um mal-entendido que necessita de ser esclarecido. Anne-Marie tem pai bretão, mas mãe inglesa. Achou sensato manter silêncio quanto a isso para o caso de lhe causar problemas com as forças ocupantes.

- Pode contar com a minha discrição - disse Orsini. - A última coisa que desejo é causar qualquer embaraço a Mademoiselle Latour.

- àptimo - disse Martineau. - Tinha a certeza de que você

ia compreender.

DE VOLTA ao seu escritório no Silvertide Hotel, Muller sentou-se à secretária a pensar. Passado pouco tempo, carregou no intercomunicador.

- Peça ao inspector Kleist e ao sargento Greiser para virem aqui.

Foi à janela e olhou lá para fora. A maré, ainda a encher, cobria as rochas costeiras com espuma branca.

A porta abriu-se e os dois polícias entraram.

- Queria falar connosco, meu capitão? - perguntou Kleist.

- Sim, Willi. - Muller sentou-se e encostou-se para trás na cadeira. Dirigiu-se a Greiser: - Ernst, o seu irmão não trabalhava no quartel-general da Gestapo em Berlim?

- Trabalhava, meu capitão, mas agora está no quartel -general de Estugarda, encarregado dos registos criminais - disse Greiser.

- Ainda deve ter contactos em Berlim. Peça uma chamada para ele. Pergunte-lhe o que sabe sobre Vogel. Lembro-me de me dizerem, quando era um jovem detective, que, por mais fresco que um ovo pareça, se tiver cheiro, alguma coisa tem. E este cheira, Ernst. Gostava de saber mais sobre o Standartenf_hrer Vogel.

- Mando um telex? Era mais rápido.

- Quero um inquérito discreto, seu palerma - disse Muller, cansado. - E não um inquérito público.

- Mas devo lembrar-lhe, meu capitão, que as chamadas para a Alemanha são feitas via Cherburgo e Paris. Têm demorado entre quinze e dezasseis horas ultimamente, mesmo as mais urgentes.

- Então peça uma já, Ernst. - O jovem saiu e Muller disse a Kleist: - Trata de arranjar um K_belwagen. Manda entregá-lo em De Ville Place. Vamos mantê-lo feliz por enquanto.

NA COZINHA de De Ville Place, Helen estava a bater massa de bolo feita de farinha de batata; Gallagher entrou e ela levantou os olhos.

- àptimo. Podes arranjar-me o peixe - disse ela.

Estavam algumas solhas no balcão de mármore ao lado do lava-loiça. Gallagher tirou um canivete do bolso. Quando premiu uma ponta, apareceu uma lâmina de dois bicos muito afiada.

- Detesto essa coisa - disse Helen.

Quando começou a arranjar o peixe, Gallagher disse:

- Quando o meu av“ tinha doze anos, fez a primeira viagem numa escuna de Jersey para a Terra Nova para pescar bacalhau.

Este canivete foi um presente que o pai dele lhe deu. Deixou-mo em testamento. Facas, pistolas ... a forma como são usadas é que interessa, Helen.

Nisto, ouviu-se o barulho de um carro lá fora.

- Deve ser Guido - disse Helen.

Ouviram-se passos no corredor e Guido entrou com duas malas.

- A viagem foi boa? - perguntou Helen.

- Não, o Hugo foi torpedeado. Savary desapareceu. - Sarah entrou, seguida por Martineau. Orsini continuou: - Esta é Anne-Marie Latour. Vinha a bordo do Hugo, e este é o Standartenf_hrer Vogel.

Helen parecia espantada.

- Em que lhes posso ser útil?

- Dê-nos alojamento, Mrs. De Ville. - Martineau falou em inglês. - Estou em Jersey por alguns dias. Precisamos de aposentos.

- Impossível - disse-lhe Helen. - Este aquartelamento é só

para oficiais da Kriegsmarine.

- E a senhora está longe de ter a casa cheia. - disse Martineau. - Se tivesse a amabilidade de nos conduzir a um quarto adequado ...

Helen ficou furiosa como há muito tempo não estava - com a segurança gelada do homem, o uniforme SS e a pegazita imbecil que vinha com ele.

Guido, de repente, disse:

- Bem, vou tomar um banho e dormir um bocado. Até logo.

A porta fechou-se atrás dele. Helen, zangada, empurrou Gallagher para fora do caminho, depois lavou as mãos sujas de farinha de batata por baixo da torneira. Sabia que o oficial das SS continuava à porta.


Muito docemente, uma voz disse:

- Tia Helen, não me reconhece?

Helen ficou imóvel. Gallagher olhou por cima do ombro dela, estupefacto.

- Tio Sean? - E depois, quando Helen se virou: - Sou eu, tia Helen. Sou a Sarah.

Helen avançou e agarrou-a pelos ombros, perscrutando-lhe as feições. Com o reconhecimento, surgiram-lhe nos olhos lágrimas repentinas. Passou os dedos pelo cabelo da rapariga.

- Oh, minha querida Sarah, que é que te fizeram? - E

lançaram-se nos braços uma da outra.

GALLAGHER levou Martineau lá acima, à câmara, e apresentou-o a Hugh Kelso. Depois de conversarem um pouco, Kelso perguntou: - E agora? Pelos vistos, fizeram uma viagem e peras só para chegar a Jersey, daqui vamos para onde? - A voz era de impaciência.

Martineau disse:

- Acabei de chegar, meu amigo. Dê-me tempo para retomar o f“lego. Quando chegar a altura de partir, será o primeiro a saber.

- Isso inclui uma bala na cabeça, coronel? - perguntou Kelso. - Se for essa a decisão, chegamos a falar sobre ela ou executa-se simplesmente?

Martineau não se deu ao trabalho de responder. Limitou-se a ir lá para baixo e esperar por Gallagher no quarto principal.

Quando o irlandês desceu, fechou a passagem secreta e encolheu os ombros.

- Ele passou um mau bocado e aquela perna dá-lhe imensas dores.

- Todos nós sofremos de uma maneira ou de outra - disse Martineau.

Quando se preparava para sair, Gallagher p“s-lhe a mão no ombro.

- Terá ele razão? Quer dizer, acerca da bala na cabeça?

- Talvez - disse Martineau. - Temos de ver, não é?

Pouco depois, Sarah acabou de lavar o cabelo com o sabonete caseiro que Helen lhe dera. Mas ainda estava uma desgraça. Quando Helen entrou na casa de banho, disse: - Não adianta. Precisas de um cabeleireiro.

- Ainda existem coisas dessas?

- Oh, existem, se fores a St. Helier.

Tentou arranjar o cabelo da rapariga e Sarah perguntou:

- Como é que tem sido a sua vida por aqui?

- Não é má, quando nos portamos bem. A maior parte do tempo os Alemães são decentes, mas é pisar o risco e vê-se logo o que acontece. preciso fazer sempre o que eles nos dizem, percebes? - Acabou de a pentear. - Pronto, é o melhor que consigo fazer. - Ajudou Sarah a enfiar o vestido e puxou-lhe o fecho. - Tu e o Martineau? Qual é a situação? Ele podia ser teu pai.

- Meu pai é que ele não é de certeza. - Sarah sorriu enquanto calçava os sapatos. - provavelmente o homem mais irritante que conheci, mas é também o mais fascinante.

- E pensar que da última vez que te vi usavas totós! Bom, vamos beber um chazinho.

Na coz nha, Helen deitou duas colheres do seu precioso chá

da China no bule. enquanto Sarah e Martineau, sentados à mesa, fumavam e conversavam. Bateram à porta e, quando Helen a abriu, apareceu o inspector Kleist.

- Trouxemos o seu K_belwagen, Standartenf_hrer.

Martineau saiu para dar uma vista de olhos. A capota de lona estava puxada para trás e a carroçaria era camuflada.

- Parece satisfatório.

- Se pudermos ajudar em mais alguma coisa ...

- Não me parece.

- A propósito, o capitão Muller pediu-me para lhe dizer que o coronel Heine estará na Câmara Municipal hoje à tarde, se quiser lá ir vê-lo. Penso que parte para Guernsey de manhã para uma reunião com o general Von Schmettow.

- Obrigado, vou visitá-lo.

Ernst Greiser estava sentado ao volante de um Citro n preto.

Kleist entrou para o banco ao lado e arrancaram. Martineau voltou para dentro.

- Transporte já temos. Esta tarde vou à cidade falar com Heine, o comandante militar, e depois vou visitar Muller.

- melhor ires com ele para arranjares o cabelo - disse Helen a Sarah. Voltou-se para Martineau: - Há um bom cabeleireiro ao pé da câmara.

- àptimo - disse ele. - Mas primeiro apetece-me ir apanhar ar. Que tal se me fosse mostrar a propriedade, Sarah?

Depois de deixarem De Ville Place, Kleist e Greiser puseram-se a caminho, mas cerca de quatrocentos metros à frente o inspector tocou no braço do jovem.

- Meta por aquele atalho, Emst. Ali. Vamos dar um passeio pelo bosque.

- Por alguma razão especial?

- Só quero dar uma vista de olhos, mais nada.

O carreiro estava coberto de ervas. Greiser prosseguiu até não serem vistos da estrada. Saíram e deixaram ali o Citro n; seguiram por um caminho que atravessava o arvoredo da propriedade De Ville. Era calmo e muito agradável.

Então, apareceu inesperadamente uma rapariga com um cesto, vinda de trás do alto muro de granito no fim da propriedade. Era impossível ver-lhe a cara, mas o vestido de algodão estava suficientemente justo para revelar um corpo cheio e maduro. Ela não reparou neles e seguiu o caminho em direcção ao bosque.

Kleist disse:

- Bem, aquilo é interessante. - Voltou-se para Greiser e sorriu: - Acha que devemos investigar, sargento?

- Com certeza, Herr Inspector - disse o jovem ansiosamente, e ambos aceleraram o passo.

A rapariga era na realidade Mary, a filha da caseira de Helen, Cada soco que o alemão esboçava era habilidosamente evitado, enquanto Gallagher parecia conseguir atingi-lo onde queria.

Na encosta, a alguns metros de distância, Sarah e Martineau observavam, enquanto o irlandês fazia o inspector recuar pela relva.

E então, de repente, houve um momento desastroso, pois quando Gallagher avançava, o pé direito escorregou-lhe na relva e ele começou a cair. Kleist aproveitou a oportunidade, ergueu o joelho à altura da cara de Gallagher e deu-lhe um pontapé de lado quando ele ia a cair. Gallagher rolou com uma velocidade surpreendente e levantou-se sobre um joelho.

- Meu Deus, você nem pontapés consegue dar como deve ser.

Kleist correu para ele. Gallagher afastou-se para o lado, rasteirando o alemão, que entrou de cabeça pela parede do celeiro. Kleist deu um grito agudo, cambaleou e caiu.

Gallagher voltou-se e viu Greiser com a Mauser em punho, mas nesse momento ouviu-se um tiro e a terra revolveu-se aos pés de Greiser. Viraram-se ao mesmo tempo que Martineau entrava na pequena clareira com a Walther na mão.

- Guarde isso! - ordenou ele.

Greiser continuou de pé a olhar para ele com os olhos esbugalhados e foi Kleist que, levantando-se a custo, disse com voz rouca: - Faça o que ele diz, Ernst.

Greiser obedeceu e Martineau disse:

- Bom. Vocês são, evidentemente, uma desgraça para tudo aquilo que o Reich defende. Falarei sobre isto mais tarde com o vosso comandante. Agora vão-se embora.

Os dois homens afastaram-se rapidamente por entre as árvores.

Sarah aproximou-se de Gallagher, pegou num lenço e limpou-lhe o sangue da boca.

- Nunca tinha pensado nesta combinação mortífera - disse ela. - Sangue de Jersey misturado com sangue irlandês.

- Escolheu um bom dia para se revelar, graças a Deus. --Gallagher pestanejou, olhando para o sol através das árvores. -Vêm aí melhores dias. - Sorriu e virou-se para Martineau. --Por acaso não tem aí um cigarro? Parece que deixei os meus em casa.

MARtiNEAu e Sarah atravessaram St. Aubin em direcção a Bel Royal, passando por umas fortificações e posições de artilharia.

O céu estava muito azul, o sol brilhava e a temperatura era surpreendentemente quente. Sarah encostou-se para trás no Khe1wagen e fechou os olhos.

- Esta ilha tem um cheiro especial na Primavera. Não há

igual em parte nenhuma do Mundo. - Abriu os olhos. - Diga-me uma coisa. Porque é que tirou o uniforme?

Ele vestia o casaco militar impermeável, mas por baixo tinha um fato de tweed cinzento, uma camisa branca e gravata preta.

O chapéu também era preto e tinha as abas viradas para baixo.

- Tácticas - disse ele. - Não preciso de aparecer de uniforme se não quiser. Os oficiais SD, na maioria das vezes, andam à paisana. Dá ênfase ao seu poder. - Estacionou na berma da estrada e desligou o motor. - Vamos passear.

Ajudou-a a sair e dirigiram-se ao paredão. Lá em baixo, na areia, brincavam algumas crianças; as mães estavam sentadas encostadas ao paredão, com a cara voltada para o sol. Alguns soldados alemães nadavam no mar, com duas ou três raparigas no meio deles.

- Inesperadamente doméstico, não é? - disse Martineau.

Os soldados olharam para eles, atraídos pela rapariga, mas desviaram-se do olhar escuro de Martineau.

- - disse ela. - Não é nada como eu esperava.

- Se olhar com atenção, verá que a maioria dos soldados que estão na praia são rapazes. Vinte anos no máximo. difícil odiá-los. Quando alguém é nazi, sabe-se em que pé se está. Mas o comum alemão de vinte anos fardado - encolheu os ombros não passa de um jovem de vinte anos fardado.

Por momentos, nenhum deles falou. Depois, Sarah disse:

- Quando estiver t udo acabado, Harry, que vai ser de si? --Voltou-se para olhar para ele com uma expressão tensa e séria.

Ele olhou para o mar com os olhos muito escuros.

- Quando era novo, gostava muito das estações de comboio, especialmente à noite: o cheiro do vapor, o apito do comboio ao longe, as plataformas daqueles grandes palácios vitorianos desertos, à espera para irem a algum sítio, qualquer sítio.

Adorava e,

no entanto, também tinha uma sensação de terror intenso. Tinha qualquer coisa a ver com o entrar no comboio errado. - Voltou-se para ela. - E depois de o comboio partir, não se pode sair.

- A estação é sinistra à meia-noite - disse ela docemente.

- A esperança é letra morta.

Ele olhou-a fixamente.

- Onde é que ouviu isso?

- um dos seus maus poema s - disse ela. - Naquele dia em que o conheci, em sua casa, o brigadeiro estava a lê-lo.

Tirou-lho das mãos, amarrotou-o e deitou-o para a lareira.

- E você fixou -o? - Por instantes, pensou que ele ia zangar-se.

Em vez disso, sorriu. - Espere aí. - Deixou-a, dirigiu-se ao Kbelwagen e abriu a porta. Quando voltou, trazia uma pequena máquina fotográfica Kodak. - Helen deu-me isto. Como o rolo tem quatro anos, ela não garante os resultados.

Dirigiu-se a um soldado que estava perto deles. Houve uma breve troca de palavras; depois, Martineau deu-lhe a máquina e voltou para o lado de Sarah.

- Não se esqueça de sorrir.

Sarah deu-lhe o braço.

- Para que é isto?

- para te lembrares de mim.

Ela sentiu-se nervosa e agarrou-lhe o braço com mais força.

O soldado tirou a fotografia, devolveu a máquina com um sorriso tímido e afastou-se.

- Disseste-lhe quem eras? - perguntou ela.

- Claro que disse. - Pegou-lhe no braço. - Vamos indo.

Tenho coisas a fazer enquanto estiveres no cabeleireiro.

KARL MuLLER orgulhava-se da sua notável falta de emoção em todas as situações, do seu autocontrole. Considerava-o uma das suas principais qualidades e, no entanto, quando estava de pé junto à janela do seu escritório no Silvertide Hotel, ele quase o abandonou pela primeira vez.

- Vocês, o quê? - perguntou ele.

A cara de Kleist estava num estado terrível - à volta dos olhos a carne estava púrpura, e o nariz estava partido e inchado.


- Foi um mal-entendido, meu capitão.

Muller voltou-se para Greiser.

- E é essa a sua versão também? Mal-entendido?

- Nós só estávamos a interrogar a rapariga, meu capitão. Ela entrou em pânico. Depois, chegou Gallagher. Ele tirou as conclusões erradas da situação.

- Como o prova a tua cara, Willi - disse Muller. - E

Vogel esteve envolvido?

- Ele chegou num momento infeliz - disse Greiser. - E

também tirou as conclusões erradas.

Muller estava furioso.

- E cabe-me a mim safá-los quando ele aparecer aqui hoje à tarde. Vão-se embora, desapareçam da minha vista! - Voltou-se para a janela e bateu com a mão na parede.

Martineau estacionou perto da entrada da câmara, com a bandeira nazi esvoaçando e uma sentinela da Luftwaffe de espingarda nas escadas. Ele e Sarah foram pela York Street até encontrarem uma porta entre duas lojas. O letreiro indicava que o cabeleireiro era no andar de cima. Sarah disse: - Lembro-me deste sítio.

- Serás reconhecida?

- Penso que não. Tinha dez anos da última vez que aqui vim cortar o cabelo.

- Tenho de chegar a horas ao encontro com o coronel Heine

- disse Martineau. - Até logo.

Regressou à câmara e viu um polícia, com o tradicional uniforme britânico, a falar com a sentinela. Pararam de falar, observando-o enquanto se aproximava.

- Standartenfhrer Vogel, para o comandante.

A sentinela p“s-se imediatamente em sentido.

- O comandante chegou há vinte minutos, Standartenf_hrer.

Entre, por favor.

Martineau entrou para o hall e encontrou um sargento do Exército sentado a uma mesa ao fundo das escadas.

- O meu nome é Vogel. Julgo que o coronel Heine está à minha espera.

O sargento p“s-se de pé num salto, pegou no telefone e momentos mais tarde ouviu-se o som de umas botas nas escadas.

Martineau voltou-se e viu um jovem descer apressadamente, um major de infantaria que não tinha mais de trinta anos pelo aspecto. Parou brevemente para bater os calcanhares antes. de estender a mão.

- Major Felix Necker, Standartenf_hrer.

Já combatera; era. evidente pela cicatriz provocada por ferimento de estilhaços de granada, que ia até ao olho direito, e também pela Cruz de Guerra de l.á Classe e o distintivo de infantaria de assalto.

- um prazer conhecê-lo, Herr Major - disse Martineau cortesmente.

Subiram as escadas. Necker bateu a uma porta, abriu-a e desviou-se para deixar Martineau entrar primeiro. O oficial que se levantou e contornou a secretária para vir ter com ele era de um género que reconhecia imediatamente. De maneiras secas, pertencente ao antigo exército regular, não era de maneira nenhuma nazi. Um oficial e um cavalheiro.

- Standartenfhrer. um prazer conhecê-lo.

- Coronel Heine. - Martineau mostrou o seu bilhete de identidade SD.

Heine examinou-o e devolveu-o.

- Sente -se, por favor. Já conhece Felix Necker. O meu segundo-comandante. Em que posso servi-lo?

Martineau entregou-lhe a carta de Himmler. Heine leu-a devagar e passou-a a Necker.

- Posso saber o objectivo da sua visita?

- Nesta fase, não. - Martineau recebeu a carta das mãos de Necker. - Preciso apenas que me seja assegurada total cooperação, tal como é requerido.

- Isso está fora de dúvida. Informarei todos os comandantes de unidade da sua presença. - Heine hesitou. - Há uma coisa.

Vou para Guernsey de manhã. Uma conferência de fim-de-semana com o general Von Schmettow.

Martineau voltou-se para Necker.

- Fica você no comando?

- Exacto.

- Então, não vejo qualquer problema. - Levantou-se. - Foi um prazer conhecê-lo, Herr Coronel. Não se incomode a acompanhar-me, major.

A porta fechou-se atrás dele. O comportamento de Heine mudou completamente.

- Arrepio-me sempre quando estes SD aparecem. Que raio é

que ele quer, Felix?

- Só Deus sabe, Herr Coronel, mas as credenciais ...Necker encolheu os ombros. - Assinadas não só por Himmler, mas também pelo próprio Fhrer.

- Eu sei. - Heine levantou a mão à defesa. - Vigie-o e mantenha-o satisfeito a qualquer custo. A última coisa de que precisamos é de problemas com Himmler.

Martineau tinha tempo, por isso foi passear pela cidade.

Havia mais civis do que soldados. A maioria das pessoas parecia magra e as roupas eram usadas. Havia poucas crianças, porque estavam na escola. As que viu estavam em melhor forma do que ele esperava, mas a verdade é que as pessoas põem sempre as crianças em primeiro lugar.

Quando subiu para o cabeleireiro, Sarah ajustava o chapéu em frente ao espelho. O cabelo estava excelente. Ajudou-a a vestir o casaco e saíram.

A paragem seguinte foi no Silvertide Hotel, em Havres des Pas. Estacionou ao lado de vários veículos.

- Não me demoro.

Sarah sorriu.

- Não te preocupes. Vou passear no paredão. Costumava vir para aqui nadar quando era pequena.

Como queiras. Mas tenta não falar com ninguém.

Muller vira-o chegar pela janela do gabinete. Quando Martineau entrou, estava um jovem soldado à espera para o receber.

- Standartenf_hrer Vogel? Por aqui, por favor.

Martineau foi conduzido ao gabinete de Muller. O capitão estava de pé atrás da secretária.

- um grande prazer.

- Gostava de poder dizer o mesmo - disse Martineau. -- Falou com Kleist e Greiser?

- Sobre o mal-entendido ocorrido em De Ville Place? Sim, eles ...

- Mal-entendido? - disse Martineau friamente. - Mande-os chamar agora, por favor, capitão.

Afastou-se e ficou de pé junto à janela, de mãos atrás das costas, enquanto Muller chamava Kleist e Greiser pelo intercomunicador. Apareceram passados poucos segundos. Martineau não se deu ao incómodo de se virar, mas disse suavemente: - Inspector Kleist, segundo percebi, atribui os acontecimentos desta manhã a um mal-entendido?

- Bem, sim, Standartenfhrer.

- Mentiroso! - A voz de Martineau era baixa e perigosa. -- São ambos uns mentirosos. - Voltou-se de frente para Muller.

- Uma criança, capitão, com dezasseis anos apenas, a ser arrastada para um celeiro por este animal enquanto o outro observava e ria. Eu estava prestes a intervir quando o general Gallagher apareceu e deu ao rufião o merecido castigo.

- Estou a ver - disse Muller.

- E para piorar as coisas, fui obrigado a usar a minha própria pistola e disparar um tiro de aviso para impedir que este idiota matasse Gallagher pelas costas. - Depois, falou devagar para Greiser, como se se estivesse a dirigir a uma criança. - O homem é irlandês, o que significa que é neutro, e a política declarada pelo F_hrer é a manutenção das boas relações com a Irlanda. Não se mata pessoas dessas pelas costas. Percebeu?

- Sim, Standartenf_hrer.

Depois, voltou-se para Muller.

- As acções destes homens são uma afronta a todos os ideais defendidos pelo Reich e à honra alemã também.

Estava a divertir-se imenso, especialmente quando a cólera de Kleist transbordou.

- Não sou nenhuma criança para estar a ouvir este sermão.

- Kleist! - disse Martineau. - Como membro da Gestapo, fez um juramento ao nosso F_hrer de obediência até à morte.

Não é verdade?

- Sim - respondeu Kleist em voz baixa.

- Então, lembre-se de agora em diante de que está aqui para obedecer a ordens. E quando eu lhe faço uma pergunta, você responde þþJawohl, Standartenf_hrerþþ, está a perceber?

Houve uma pausa antes de Kleist dizer em voz baixa:

- Jawohl, Standartenf_hrer.

Martineau voltou-se para Muller.

- E ainda pergunta porque é que o Reichsf_hrer Himmler achou aconselhável mandar-me cá vir?

Saiu sem mais uma palavra, passou pela entrada e atravessou a rua, dirigindo-se ao K_belwagen. Sarah estava sentada no cap“.

- Como é que correu? - perguntou ela.

- Oh, penso que lhes incuti o temor a Deus de modo bastante satisfatório. Agora, podes levar-me a dar uma volta por esta tua ilha.

Rommel estava instalado numa villa bem no meio do campo, perto de Bayeux. Era utilizada como retiro de im-de-semana pelo general comandante da área, que a cedera imediatamente ao marechal-de-campo quando este expressara o desejo de um fim-de-semana calmo. Os Bernard, que tomavam conta da casa, eram extremamente discretos.

Baum e Hofer foram ter com o marechal-de-campo à sala.

- Bem, vamos recapitular - disse Rommel.

- Segundo as informações que obtive, as pessoas de Jersey partem para Guernsey cerca das dez horas da manhã - começou Hofer. - Berger e eu partimos daqui às nove. Vamos de carro até a uma pista de aterragem improvisada pela Luftwaffe que fica apenas a dez quilómetros de distância. Já lá está um piloto, Oberleutnant Sorsa, à espera, segundo as suas ordens, com um Fieseler Storch.

- Sorsa? Não é um nome finlandês? - perguntou Rommel.

- .

- Então que é que ele está a fazer na Luftwaffe? Porque é

que não está na frente oriental a abater russos com a sua gente?

- Sorsa é dos bons, um verdadeiro ás. Um dos melhores pilotos de caça. Hoje em dia, é mais útil a sobrevoar o Reich e a abater bombardeiros Lancaster.

- Os Finlandeses não gostam muito de nós - disse Rommel.

- Nunca confiei neles. - Acendeu um cigarro. - Mas continue.

- Sorsa só saberá o destino quando nós chegarmos ao avião.

Calculo que aterremos em Jersey cerca das onze horas. Dei ordens para que Berlim fosse avisada ao meio-dia de que o marechal foi para Jersey.

- E aqui que é que acontece?

- Os generais Stlpnagel e Falkenhausen chegam ao fim do dia. Passam cá a noite e partem no sábado. O casal aqui de casa, os Bernard, sabe que o marechal está aqui, mas não sabe que é suposto estar em Jersey.

Rommel voltou-se para Baum.

- E você, meu amigo, consegue desenvencilhar-se?

- Sim, meu marechal. Penso que sim - disse Baum.

- àptimo. - Rommel tirou uma garrafa de Dom Pérignon do balde de gelo que Monsieur Bernard trouxera pouco antes e abriu-a. Encheu três copos. - Então, meus amigos, à empresa de Jersey.

O JANTAR dessa noite em De Ville Place foi estranho. Martineau e Sarah juntaram-se a Guido Orsini e a vários oficiais alemães na sala de jantar principal. Havia uma vela acesa em cada lugar vazio, o que Sarah achou bastante macabro.

Mas os jovens oficiais eram cordiais e amáveis e ter-se-iam evidenciado ainda mais se não fosse a presença de Martineau.

Vestia o uniforme por respeito à formalidade da refeição, e o seu efeito sobre os outros fora decididamente deprimente.

Helen de Ville entrava e saía com os pratos. Sarah, maçada com a conversa formal, insistiu em ajudá-la a levantar a mesa e foi com ela para a cozinha, onde Sean Gallagher estava sentado a comer os restos.

- Aquilo lá dentro está terrível. Harry parece um espectro no banquete - disse ela.

Helen acabara de preparar um tabuleiro para Kelso.

- Vou só levar isto lá acima enquanto eles estão todos na sala de jantar.

Subiu as escadas das traseiras e abriu a porta para o quarto principal no mesmo momento em que Guido Orsini passava ao fundo do corredor. Viu-a, reparou, espantado, no tabuleiro e foi cuidadosamente pelo corredor. Hesitou e depois tentou abrir a porta que Helen acabara de fechar atrás de si. Pela primeira vez, esquecera-se de rodar a chave. Ele espreitou, viu a porta secreta aberta e aproximou-se em bicos dos pés. Ficou a ouvir por momentos e depois voltou-se e saiu, fechando a porta.

Sarah e Gallagher estavam a falar em voz baixa quando ele entrou na cozinha.

- Ah, cá está, mademoiselle. Agora fala -se de política lá

dentro. Posso levá-la a passear no terraço?

- Ele é de confiança? - perguntou Sarah a Gallagher.

- Não mais do que qualquer homem que eu conheça, especialmente peno de uma rapariga como você.

- Terei de correr o risco. Se o coronel Vogel vier à minha procura, diga-lhe que não me demoro - acrescentou ela formalmente, saindo com Guido.

Estava quarto crescente, o céu brilhava de estrelas e havia uma luminosidade em tudo. As palmeiras recortavam-se no céu.

Havia por toda a parte um cheiro a flores, molhadas pela chuva recente.

- Azáleas. - Ela inspirou profundamente. - São das minhas preferidas.

- Você é uma rapariga espantosa - disse ele em inglês. -- Não se importa que falemos em inglês, pois não? Não há ninguém nas redondezas.

- Está bem - disse ela com relutância. - Mas não durante muito tempo.

- Nunca tinha estado em Jersey?

Mentiu.

- Não. Fui criada pela minha avó em Paimpol, depois da morte da minha mãe.

- Compreendo. E era a sua mãe que era inglesa?

- Exactamente.

Respondia cuidadosamente ao interrogatório e sentou-se num muro baixo de granito, com a Lua por trás de si. Ele deu-lhe um cigarro.

- Fala francês com pronúncia bretã.

- E que é que há de estranho nisso? A minha avó era da Bretanha.

- E o seu inglês também é muito interessante. Muito alta burguesia.

- Acha que sim? Então sou uma rapariga com sorte. Levantou-se. - Agora, é melhor voltar, Guido. Max às vezes fica bastante ansioso quando estou muito tempo longe dele com outro homem.

- Com certeza. - Deu-lhe o braço e regressaram por entre as azáleas. - Gosto de si, Anne-Marie Latour. Gosto imenso de si. Quero que se lembre disso.


Martineau apareceu no terraço ao luar.

- Anne-Marie, está aí? - gritou ele em francês.

- Vou já! - respondeu ela, e tocou com a mão na cara do italiano. - Até amanhã, Guido. - E subiu os degraus do terraço.

MAIS TARDE, encontraram-se todos na sala de estar privada, nas traseiras da casa - Gallagher, Martineau, Helen e Sarah.

Gallagher deitou vinho em quatro copos, enquanto Helen abria um pouco a porta envidraçada. Ficou por momentos a respirar o ar perfumado e depois correu as pesadas cortinas.

- Então, que é que fazemos agora? - perguntou Sean Gallagher.

- Kelso, decididamente, ainda não pode andar - disse Helen de Ville.

- Pelo menos por enquanto está seguro lá em cima - disse Sarah.

- Não pode ficar ali sentado à espera que a guerra acabe. --salientou Martineau. - Precisamos de o levar para Granville.

Então Cresson poderá contactar com Londres pelo rádio e mandar vir um Lysander na noite que nós quisermos.

- Mas como é que o levamos para lá? Esse é que é o problema.

- Gallagher suspirou.

- Eles aqui têm o tráfego de barcos pequenos sob controle rígida Há postos de observação ao longo de toda a costa, como viram hoje.

- Então, qual é a solução? - perguntou Sarah. - Temos de fazer qualquer coisa e depressa.

Houve um movimento na janela, as cortinas abriram-se e Guido Orsini entrou na sala.

- Talvez eu possa ajudar - disse ele em inglês.

Capítulo Sete

QuANDo o telefone tocou no quartel-general, Felix Necker estava prestes a sair para ir montar a cavalo na praia de St. Aubin.

Levantou o auscultador e estampou-se-lhe na cara uma expressão de susto.

- Meu Deus! Qual é a hora prevista para a chegada?... Bom.

Tratem da guarda de honra. Vou para lá o mais depressa possível.

Atirou com o auscultador e depois tornou a pegar nele e marcou o número do quartel-general da GFP no Silvertide.

- Herr Major - disse Muller quando Necker apareceu em linha -, que posso fazer por si?

- Rommel é esperado no aeroporto daqui a quarenta e cinco minutos. Chega da Normandia num Storch com o seu ajudante-de-campo, um major Hofer.

- Mas porquê? - perguntou Muller. - Não percebo.

- Bem, eu percebo - disse-lhe Necker. - Faz tudo muito sentido. Primeiro, ordena a Heine e aos outros que se juntem ao general Von Schmettow em Guernsey para passarem o fim-de-semana, afastando-os convenientemente do caminho. Depois, aparece caído do céu e revolve o local. Eu sei como é que Rommel actua, Muller. Vai inspeccionar tudo.

- Pelo menos um mistério já foi solucionado - disse Muller.

- Qual?

- A razão por que Vogel está cá. Tudo faz sentido agora.


- Sim, suponho que tem razão - disse Necker. - De qualquer maneira, isso agora não interessa. Encontramo-nos no aeroporto.

Pousou o auscultador, hesitou e depois tornou a pegar nele e disse ao telefortista para lhe fazer a ligação para De Ville Place.

Helen atendeu o telefone.

- para si - disse a Martineau. Estavam na cozinha. - O

major Necker.

Martineau pegou no telefone.

- Fala Vogel.

- Bom dia - cumprimentou Necker. - Estou certo de que não é surpresa para si o facto de o marechal-de-campo Rommel chegar ao aeroporto dentro de meia hora.

Martineau, escondendo o seu espanto, respondeu:

- Compreendo.

- Naturalmente, deseja cumprimentá-lo. Vemo-nos no aeroporto.

Martineau pousou o auscultador lentamente, enquanto Sarah entrava vinda do jardim.

- Que é que se passa? - perguntou ela. - Estás com um aspecto horrível.

- Tenho razões para isso - disse ele. - Acho que o céu acabou de desabar em cima de mim.

NO SILVERTIDE, Muller vestia apressadamente o uniforme na casa de banho ao lado do escritório. Ouviu a porta de fora abrir-se e Kleist perguntar: - Meu capitão? Queria falar connosco?

- Sim, entrem - disse Muller, entrando no escritório a abotoar o dólman.

- Aconteceu alguma coisa? - perguntou Kleist. Estava com um aspecto desgraçado. O sangue pisado em redor dos olhos acentuara-se e o emplastro que, no hospital, lhe tinham colocado no nariz não melhorava nada.

- uma maneira de dizer. Acabei de saber que Rommel vem para cá no que parece ser uma inspecção surpresa. Tenho de ir para o aeroporto imediatamente. Você pode levar-me, Ernst. --disse a Greiser.

- E eu? - perguntou Kleist.

- Com uma cara dessas? Não te quero a menos de um quilómetro de Rommel. Tira dois dias de licença. Vamos embora, Ernst.

Depois de eles terem saído, Kleist foi ao armário onde o capitão guardava as bebidas, tirou uma garrafa de conhaque e serviu um copo bem aviado. Bebeu um grande gole e foi à casa de banho para se ver ao espelho. Estava com péssimo aspecto e a cara doía-lhe. A culpa era toda daquele irlandês. Serviu-se de mais conhaque e disse suavemente: - A minha vez há-de chegar, seu porco, e quando chegar ...

- Depois, brindou a si próprio no espelho e esvaziou o copo.

QuANDo o Citro n passava pelo porto, Ernst Greiser disse:

- A propósito, aquele inquérito acerca de Vogel. A noite passada fiz a chamada que tinha pedido para o meu irmão em Estugarda.


- Que disse ele?

- Nada. Está de férias. Volta hoje para o turno da noite. Falo com ele depois.

- Agora já não tem grande interesse - disse Muller. - Já

não há nada de muito misterioso sobre o amigo Vogel. Veio, obviamente, à frente do marechal-de-campo. - Olhou para o relógio. - Acelere. Só temos cerca de dez minutos.

KoNRAþ Hofer p“s a sua mão na de Baum por um momento num gesto de reconforto, enquanto o piloto, o Oberleutnant Sorsa, fazia rolar o avião em direcção ao grupo de oficiais que aguardava nervosamente na pista. Baum voltou-se para fazer um breve aceno de cabeça a Hofer e depois ajustou a pala do boné e as luvas. þþEstá na hora do espectáculo, Heiniþþ, disse ele para si próprio, þþpor isso, vamos lá entrar em cena.þþ Sorsa levantou a porta. Hofer saiu e voltou-se para ajudar Baum, que desabotoara o seu casacão de cabedal para deixar ver a Blue Max e a Cruz dos Cavale_os. Felix Necker avançou para o cumprimentar e fez-lhe uma saudação formal: - Marechal-de-campo. uma grande honra.

Baum tocou com indiferença no boné com o bastão de marechal-de-campo.

- Você é?

- Felix Necker, meu marechal. Estou temporariamente no comando. O coronel Heine foi a Guemsey para assistir a uma conferência durante o fim-de-semana.

- Sim, eu sei. Então, quem temos aqui?

Necker apresentou os oficiais, começando por Martineau:

- Standartenfhrer Vogel, talvez já conheça.

- Não - disse Martineau. - Nunca tinha tido o prazer de conhecer o marechal-de-campo.

A surpresa de Rommel com a presença do oficial SD foi evidente para todos. Continuou, cumprimentando Muller e os outros oficiais, e a seguir passou revista à guarda de honra. Depois, atravessou a relva em direcção a um hangar onde o pessoal de terra da Luftwaffe aguardava rigidamente em sentido. Todos o seguiram.

Por fim, voltou-se para Necker.

- Quero ver tudo. Compreende? Regresso amanhã, por isso preciso de um alojamento adequado para esta noite. No entanto, isso pode esperar até mais tarde.

- Os oficiais da messe da Luftwaffe prepararam um almoço leve, meu marechal. Seria uma grande honra se lhes fizesse companhia.

- Certamente, major, mas depois, trabalho. Tenho muito que ver.

A MESSE doS oficiais era lá em cima, no que fora um restaurante antes da guerra. Havia um buffet de salada, frango assado e presunto servido por jovens da Luftwaffe com casacos brancos.

Os oficiais ficavam avidamente suspensos de cada palavra do marechal-de-campo, conscientes da grandeza do momento.

A meio da refeição, Baum pediu desculpa e foi à casa de banho, seguido por Hofer. Examinou-se ao espelho e disse: - Que tal me estou a sair?


- Soberbamente. - Hofer estava hilariante. - Há alturas em que eu chego a pensar que é mesmo o homem que está a falar.

- Excelente. - Baum penteou o cabelo e ajustou os chumaços das bochechas que lhe tomavam a cara mais quadrada.

Aquilo era mais ódo que divertir-se. Uma coisa era certa: ele era bom. Pensava em Rommel, por isso tomava-se Rommel. Era esse o seu talento como actor.

- E o coronel das SS? - disse ele. - Não estava à espera.

- Vogel? - Hofer ficou sério por momentos. - Estive a falar com Necker sobre ele. Apareceu ontem na ilha, munido de um passe especial assinado por Himmler e pelo próprio F_hrer.

Até agora não deu quaisquer informações sobre o motivo por que cá está.

- Não sei - disse Baum. - Aqueles tipos fazem-me sempre sentir esquisito. Tem a certeza de que ele não tem nada a ver connosco?

- Como é que podia ter? O quartel-general do Corpo de Exércitos B só revelou as notícias de que estava em Jersey há uma hora. Não há motivo para pânico. Vamos voltar à luta.

NO JARDIM de De Ville Place, Sarah estava sentada no muro olhando para longe, para a baía, e Guido inclinou-se ao lado dela.

A entrada do italiano pelas cortinas na noite anterior fora dramática e abalara-os a todos. Mas a sua oferta de contribuir para os ajudar fizera sentido. Helen e Gallagher garantiram a Martineau que Orsini era de confiança e Sarah fizera o mesmo, mais fervorosamente do que todos.

Agora, o italiano falava-lhe em inglês.

- Sarah - disse ele, abanando a cabeça. - Quem lhe disse que você podia passar por uma pega francesa estava redondamente enganado. Percebi desde o princípio que havia qualquer coisa em si que não batia certo.

- E Harry? Suspeitou dele?

- Não. Esse preocupa-me. Representa Vogel bem demais.

- Eu sei. - Teve um arrepio. - Pergunto a mim mesma como é que ele se vai aguentar.

- Vai sair-se bem, acredite. Gosta dele, não gosta?

- Sim - disse ela. - Gosto. - Antes de poderem continuar a conversa, Helen e Gallagher atravessaram a relva e vieram ter com eles.

- Que estão vocês a conspirar? - perguntou Helen.

- Estávamos a pensar em Harry - disse-lhe Sarah.

- Ele sabe tomar conta de si próprio - disse Gallagher. -- Mais importante neste momento é a decisão sobre o que fazer a Kelso. Acho que o devíamos mudar da câmara para o meu anexo.

Guido concordou com a cabeça.

- Faz sentido. mais fácil levá-lo de lá para o porto. Já

combinei encontrar-me com Robert Savary. Depois de o Hugo ir ao fundo, ele foi recolhido por uma das embarcações de busca e salvação de St.-Malo e está previsto chegar de Granville hoje à tarde. Pelo que me contaram da participação dele neste caso, acho que talvez esteja disposto a passar Kelso para França.

- Pensa realmente que pode dar certo? - perguntou Sarah.

- Sean e eu podemos arranjar-lhe documentos falsos de marinheiro francês - disse-lhe Guido.


- Ligamos-lhe a cara. E dizemos que esteve na água depois do ataque ao comboio e que sofreu queimaduras - acrescentou Gallagher.

- Pensando bem, não temos realmente muitas alternativas. --disse Helen.

Sarah concordou.

- Suponho que não. Mas pode correr tudo tão mal.

- Pois bem, não vamos pensar nisso - disse Sean Gallagher.

- Mudamos Kelso hoje à noite. - Sorriu confiante e p“s um braço em volta de Sarah. - Vai dar certo. Acredita em mim.

Martineau juntou-se ao tropel de carros que deixavam a messe dos oficiais e tomavam a estrada que atravessava a paróquia de St. Peter. Rommel fascinava-o, tal como a ideia de estar tão próximo de um dos melhores soldados que a guerra produzira -- o comandante designado para esmagar os Aliados nas praias em que desembarcavam.

Rommel era efectivamente enérgico. Visitaram Meadow Bank, na paróquia de St. Lawrence, onde há dois anos engenheiros militares e trabalhadores estrangeiros escravizados trabalhavam em túneis destinados a ser paióis de armas. Depois, viram as posições fortificadas em Plemont e Les Landes. Tudo demorou o seu tempo. O marechal-de-campo parecia querer examinar cada toca de raposa, cada posição armada.

Na altura em que chegaram a St. Aubin, era noite e a maior parte do grupo começara a dispersar. Baum, examinando o mapa que Necker providenciara, reparou nas posições de artilharia no Mont de La Rocque e pediu para o levarem lá.

Martineau seguiu-o, ainda na cauda da fila de carros, subindo a colina do Mont até chegarem a um desvio estreito que ia dar ao cume, onde havia algumas casas de telhado plano.

- Um pelotão armado apenas - garantiu Necker a Baum enquanto este saía. - Agora não vivem aqui civis.

A casa da ponta chamava-se Septembertide. No jardim, uma entrada estreita dava acesso a uma série de hunkers e ninhos subterrâneos de metralhadoras, que se prolongavam pelo topo da colina sob os jardins.

As tropas ali estacionadas ficaram encantadas por terem a Raposa do Deserto tão perto, e ninguém ficou mais encantado do que o comandante, capitão Heider. Septembertide era o seu aquartelamento pessoal. Quando o marechal-de-campo mostrou interesse nele, Heider conduziu-o entusiasticamente até ao jardim. A vista sobre a baía era de cortar a respiração. O jardim era delimitado por um muro baixo de cimento, e o terreno descia quase a pique para a estrada lá em baixo.

Baum olhou para a casa. Havia um grande terraço em frente da sala de estar e uma varanda lá em cima a todo o comprimento da casa, ao nível dos quartos.

- Agradável. - Voltou-se para Heider. - Preciso de um sítio para dormir hoje à noite. Empresta-ma?

Heider estava fora de si.

- uma honra, meu marechal. Posso mudar-me para casa do meu segundo-comandante esta noite.

- Estou certo de que nos pode arranjar um cozinheiro decente entre os seus homens.

- Isso não constitui qualquer problema, meu marechal.

Baum voltou-se para Necker.

- Isto satisfaz-me plenamente. impenetrável deste lado e o capitão Heider e os seus rapazes guardam a parte da frente.

Que mais se pode pedir?

- Mas primeiro contamos que nos faça companhia ao jantar no Clube de Oficiais em Bagatelle - disse Necker timidamente.

- Fica para outra vez. Foi um dia longo e, francamente, anseio por uma noite curta. Venha ter comigo de manhã, digamos às nove, e poderemos inspeccionar o outro lado da ilha.

- s suas ordens, meu marechal.

Foram todos para a parte da frente da casa, onde se procedeu à debandada geral. Quando já todos se tinham ido embora, Baum perguntou a Hofer: - Fui bem?

- Soberbo - disse Hofer. - Você é um génio, Berger.

O JANTAR em De Ville Place já começara quando Martineau regressou. Espreitou pela janela e viu Sarah sentada à mesa com Guido e meia dúzia de outros oficiais da Marinha. Decidiu não entrar e, em vez disso, deu a volta, dirigiu-se para a porta das traseiras e entrou na cozinha. Helen estava a lavar a loiça e Gallagher a limpar.

- Como é que correu? - perguntou o irlandês.

- Bem. Não houve problemas, se é isso que quer saber.

Helen serviu-lhe uma chávena de chá e Gallagher disse:

- Durante a sua ausência, tomámos algumas decisões. --Contou-lhe que tinham resolvido levar Kelso para o anexo.

Quando acabou, Martineau concordou.

- Vamos é fazê-lo mais logo. Digamos, por volta das onze horas.

Foi lá para cima e estendeu-se na cama do quarto que, por causa do disfarce, partilhava com Sarah. Fumou um cigarro e olhou fixamente para o tecto. Estava surpreendentemente agitado, pensando em Rommel e na energia do homem. De repente, ocorreu-lhe: que alvo! Era um disparate, claro. Matava-se Rommel e a ilha ficaria completamente fechada numa hora. Sem sítio para onde se ir. Provavelmente, fariam reféns até o assassino se entregar. Mas, apesar de tudo, a ideia obcecava-o. Deixou-se estar ali estendido algum tempo a pensar nela, depois levantou-se, p“s o cinto com o coldre da PPK e meteu o silenciador Carswell no bolso.

Desceu para a cozinha e Helen olhou para ele surpreendida.

- Vai sair outra vez?

- Tenho coisas a fazer. - Voltou-se para Gallagher. - Diga a Sarah que não me demoro.

O irlandês franziu o sobrolho.

- Passa-se alguma coisa?

- Não, de maneira nenhuma - assegurou Martineau. - Até

logo.

MuLLER estava a trabalhar fora de horas no escritório do Silvertide quando bateram à porta e Greiser apareceu a espreitar.

- Está a trabalhar até tarde hoje, meu capitão?


- Estou a tentar p“r alguma papelada em ordem - disse Muller. Espreguiçou-se e bocejou.

- E você, que é que está aqui a fazer?

- Consegui finalmente contactar o meu irmão em Estugarda.

Falámos de Vogel.

- Que é que ele disse? - interessou-se Muller imediatamente.

- Bem, tem a certeza de que nunca o encontrou no quartel-general da Gestapo em Berlim. Mas salientou que é sabido que o Reichsfhrer utiliza homens-mistério como Vogel e lhes dá poderes especiais. Ninguém tem bem a certeza de quem são.

- Qual é exactamente o objectivo de todo o processo? --observou Muller.

- Em todo o caso, diz que essas pessoas actuam fora da Unidade SD na Chancelaria do Reich. Acontece que ele conhece bastante bem uma pessoa que trabalha lá. Uma auxiliar SS chamada Lotte Neumann.

- E vai falar com ela?

- Tem uma chamada para Berlim pedida para amanhã de manhã. Logo que possa, contacta-me. Pelo menos, vamos saber qual é a importância exacta de Vogel.

- Excelente - admitiu Muller. - Viu Kleist hoje à noite?

- Vi - admitiu Greiser com relutância. - Insistiu em ir para um bar numa ruela qualquer de St. Helier.

- Anda a beber?

Greiser hesitou.

- Sim, meu capitão, muito. Fiquei com ele um bocado, mas começou a ficar taciturno e colérico, como é costume. Disse-me para desandar.

Muller suspirou.

- Bem, é melhor ir deitar -se. Preciso de si de manhã. s nove horas em Septembertide.

KLEIs'r estava nesse momento a estacionar o seu Renault na extremidade da propriedade De Ville, perto do anexo de Gallagher.

Estava perigosamente bêbado e tinha meia garrafa de schnapps com ele. Bebeu um gole, saiu do carro e seguiu, cambaleante, pelo caminho que ia dar ao anexo.

Havia uma nesga de luz nas cortinas corridas de uma das janelas da sala. Deu um pontapé vigoroso na porta da frente. Não houve resposta. Deu outro pontapé e depois experimentou a maçaneta e a porta abriu-se. Espreitou para dentro da sala. Havia um candeeiro de petróleo sobre a mesa, cinzas na lareira, mas mais nenhum sinal de vida. Ficou de pé ao fundo das escadas.

- Gallagher, onde estás?

Não houve resposta. Pegou no candeeiro de petróleo e foi lá

acima ver com os próprios olhos, mas ambos os quartos estavam vazios. Desceu as escadas novamente, foi para a sala e p“s o candeeiro em cima da mesa. Apagou-o, deixando a sala mergulhada na escuridão, a não ser pelo brilho trémulo das cinzas na lareira.

Tirou uma Mauser do bolso direito e sentou-se numa cadeira com a pistola no colo, à espera do irlandês.

EM SEP'rEMBERTIDE, Baum e Hofer tinham saboreado uma refeição surpreendentemente boa, acompanhada de uma garrafa de Sancerre excelente. O luar proporcionava uma vista maravilhosa sobre a baía de St. Aubin e eles foram para o terraço acabar o vinho.

Passado pouco tempo, o cabo que preparara a refeição apareceu.

- Está tudo em ordem, Herr Major - disse a Hofer. -- Deixei café e leite preparado. preciso mais alguma coisa?

- Por hoje, não - disse Hofer. - Tomamos o pequeno-almoço às oito em ponto.

O cabo bateu os calcanhares e retirou-se.

- Meu caro Berger, mas que dia - disse Hofer. - O mais memorável da minha vida.

- E o segundo acto ainda está para começar. - Baum bocejou. Por falar em amanhã, eu já dormia.

- Se ainda não estiver a pé, acordo-o às sete. - disse Hofer.

Baum foi para dentro e subiu as escadas. Fechou a porta de fora da sua suite, atravessou a zona de vestir e entrou no quarto.

Estava modestamente mobilado e tinha uns pesados cortinados de veludo nas janelas. Quando os correu, encontrou uma porta de vidro. Abriu-a e saiu para a varanda.

A vista ainda era melhor daquela altura. O mar estava calmo, uma linha branca de espuma na praia, o céu luminoso, com as estrelas a brilhar ao luar. Uma noite de dar graças a Deus.

Ergueu o copo.

- L'chayim - disse em voz baixa. Depois, voltou-se e entrou no quarto, deixando a porta aberta.

MARTINEAU levara vinte minutos a subir por entre as árvores.

O

caminho era difícil. Ainda não fazia ideia do que pretendia.

Quando se ergueu para saltar o muro de cimento, cautelosamente, apercebeu-se de vozes. Ficou na sombra de uma palmeira e viu Hofer e Rommel no terraço ao luar.

- Meu caro Berger, mas que dia. O dia mais memorável da minha vida.

- E o segundo acto ainda está para começar.

Martineau continuou na sombra da palmeira, estupefacto com esta estranha troca de palavras. Não fazia sentido. Quando foram para dentro, avançou cuidadosamente pela relva e depois parou quando o marechal-de-campo apareceu na varanda, sozinho, a olhar para a baía.

Ergueu o copo.

- L'chayim - disse em voz baixa, voltou-se e entrou no quarto.

L'chayim queria dizer uà vidaþþ, o mais antigo brinde hebreu.

Era o suficiente. Martineau agarrou-se às grades do terraço e trepou.

HEINI Baum tirou do pescoço a Blue Max e a Cruz dos Cavaleiros e colocou-as em cima da mesa. Retirou os chumaços das bochechas e examinou a cara ao espelho.

- Nada mal, Heini. Nada mal, mesmo. Faço ideia do que diria o grande homem se soubesse que estava a ser imitado por um judeu.

Quando Baum começou a desabotoar o dólman, Martineau, que estivera do outro lado da cortina atarraxando o silenciador ao cano da sua Walther, entrou. Baum viu-o logo pelo espelho e estendeu o braço para a pistola Mauser, que estava em cima da cómoda.

- Eu não faria isso - disse Martineau. - Fizeram maravilhas com este novo silenciador. Agora, mãos na cabeça.

- Isto é alguma conspiração das SS para se verem livres de mim? - perguntou Baum, desempenhando o seu papel até ao fim. - Sei que o Reichsfhrer Himmler nunca gostou de mim, mas não pensava que fosse a este ponto.

Martineau sentou-se aos pés da cama, puxou de um pacote de cigarros e tirou um. Acendendo-o disse:

- Ouvi-o a conversar com Hofer no terraço. Ele chamou-lhe Berger.

- Você tem trabalhado muito.

- E estava lá fora agora mesmo quando você se p“s a falar sozinho. Por isso, vamos aos factos. Número um, você não é Rommel.

- Se assim o diz.

- Está bem - disse Martineau. - Vamos voltar ao princípio.

Se eu faço parte de uma conspiração SS para o matar por ordem de Himmler, não haveria grande interesse em fazê-lo se você não é Rommel. Claro que, se é ...

Levantou a PPK e Baum respirou fundo.

- Muito inteligente.

- Então não é Rommel?

- Pensava que nesta altura isso já era óbvio.

- Quem é você? Um actor?

- Sim. Transformado em soldado, transformado em actor outra vez

- Incrível - disse Martineau. - Enganou-me. Vi Rommel o ano passado em Paris e você é igual a ele. Ele sabe que você é judeu?

- Não. - Baum franziu o sobrolho. - Ouça, que tipo de SS

é você afinal?

- Não sou SS. - Martineau colocou a PPK na cama a seu lado. - Sou coronel do Exército Britânico.

- Não acredito - disse Baum, estupefacto.

- pena que não fale inglês. Podia provar-lho.

- Mas falo. - Baum começou a falar num inglês bastante bom. - Actuei no Circuito Moss Empire em Londres, Leeds e Manchester antes da guerra.

- E voltou para a Alemanha? Devia estar louco.

- Os meus pais. - Baum encolheu os ombros. - Como a maioria das pessoas mais velhas, não acreditavam que acontecesse.

Escondi-me no Exército usando a identidade de um homem morto num raide aéreo. O meu nome verdadeiro é Heini Baum.

- Harry Martineau.

Baum hesitou e depois apertou-lhe a mão.

- Qual o objectivo desta encenação? - perguntou Martineau.

- Rommel está a ter uma reunião discreta na Normandia com os generais Von Stlpnagel e Falkenhausen. Um assunto altamente ilegal, ao que parece. Aparentemente, querem livrar-se de Hitler e salvar alguma coisa da confusão enquanto ainda é possível.

- possível - disse Martineau. - Já tem havido atentados contra a vida de Hitler.

- Bem, agora já sabe tudo sobre mim. E você? Que faz aqui?


Martineau contou-lhe sumariamente o que se passava com Kelso, omitindo qualquer referência à ligação com a Operação Overlord.

- Desejo-vos sorte - disse Baum. - Ao que parece, vai ser difícil tentar fazê-lo sair de barco. Ao menos eu saio de avião amanhã à noite. Uma saída agradável e rápida.

Martineau viu então a saída perfeita para toda a situação.

Genial, simplesmente genial.

- Diga-me - disse ele. - Uma vez lá, volta para o seu regimento?

- Suponho que sim.

- O que significa que terá todas as hipóteses de lhe estoirarem os miolos nos próximos meses, porque a invasão vem aí e os pára-quedistas estarão no meio de tudo. Em vez disso, não gostava de ir para Inglaterra?

- Deve estar a gozar - disse Baum, estupefacto.

- Pense nisso. - Martineau levantou-se e p“s-se a .andar pelo quarto. - Qual é a maior vantagem de se ser o marechal-de-campo Erwin Rommel?

- Diga-me você.

- O facto de que toda a gente faz o que você lhe diz para fazer. Por exemplo, amanhã à noite vai para o aeroporto para regressar a França naquele pequeno Storch que o trouxe.

- E então?

- Há lá um JU-52 o avião-correio. Soube hoje de manhã

enquanto estava à espera que você aterrasse. Parte para França mais ou menos à mesma hora. Que pensa você que aconteceria se o marechal-de-campo Rommel chegasse mesmo à hora de levantar voo com um Standartenfhrer SS, um homem ferido numa maca e uma jovem francesa e requisitasse o avião? Que é que acha que lhe diriam?

Baum sorriu.

- Nada de especial, julgo eu.

- Uma vez no ar - disse Martineau -, o ponto mais próximo da costa inglesa não fica a mais de meia hora de voo nesse avião-correio.

- Meu Deus - disse Baum, embasbacado. - Está mesmo a falar a sério.

- Quer ir para Inglaterra ou não? - perguntou Martineau. --Decida-se.

Baum disse que sim com a cabeça.

- Então, está combinado. - Martineau desatarraxou o silenciador e p“s a PPK no coldre.

- E o meu ajudante, Hofer?

- Vou pensar numa solução qualquer. Amanhã também vou na sua volta pelo leste da ilha. Num momento adequado, quando Necker estiver presente, pergunte-me onde é que estou instalado.

Eu falo-lhe de De Ville Place. Você diz a Necker que lhe soa bem. Que gostava de almoçar lá. Insista. Acerto os últimos pormenores consigo nessa altura.

- O terceiro acto, reescrito tão em cima da hora, nem sequer nós dá tempo para ensaiar - disse Baum com um ar estranho.

Pouco passava da meia-noite quando Sean Gallagher e Guido levaram Hugh Kelso pela estreita escada até ao quarto de Helen.

As escadas das traseiras eram mais largas e mais fáceis de descer e, depois de Sarah dar o sinal de caminho livre, puseram-se na cozinha em poucos minutos. Sentaram Kelso e Helen fechou à chave a porta para as escadas.

- Até agora tudo bem - disse Gallagher. - Sente-se bem, coronel?

O americano parecia tenso, mas disse que sim com a cabeça.

- Sinto -me lindamente só por estar outra vez em movimento.

- àptimo. Vamos pelo caminho do bosque até minha casa.

Helen fez-lhe sinal para se calar.

- Parece-me que ouvi um carro.

Sarah apagou o candeeiro, foi até à janela, afastou as cortinas e viu um carro a entrar no pátio.

- o Harry - disse ela.

Helen tornou a acender o candeeiro. Sarah destrancou a porta das traseiras e Martineau entrou. A excitação era evidente na cara pálida ensombrada pelo boné SS.

- Que é? - perguntou Sarah. - Aconteceu alguma coisa?

- Julgo que se pode dizer que sim, mas isso pode esperar até

mais tarde. Prontos para partir?

- Prontíssimos.

- Vamos a isso então.

- Eu e Sarah vamos à frente para nos certificarmos de que está tudo em ordem - disse Helen enquanto tornava a apagar o candeeiro e abria a porta. Ela e Sarah atravessaram o pátio rapidamente. Gallagher e Guido fizeram uma cadeira com os braços e Kelso p“s os braços em volta do pescoço deles.

Martineau afastou-se para o lado para os deixar passar, fechou a porta atrás de si e começaram a avançar pelo pátio.

A LUz pálida do luar filtrava-se por entre as árvores e iluminava o caminho à frente delas. Sarah pegou no braço de Helen.

Por momentos, houve uma intimidade entre ambas que a fez experimentar a sensação de aconchego e segurança que conhecera depois da morte da mãe, seis anos antes. Nessa altura, Helen fora não só um braço forte como também uma lufada de vida para ela.

- Que é que vai acontecer depois? - perguntou Helen. -- Voltas para a enfermagem?

- Não é provável - disse-lhe Sarah. - A enfermagem foi sempre uma substituição. Era medicina que me interessava. Mas depois disto, quem sabe? Tudo isto tem sido como um sonho louco. Nunca conheci um homem como Harry, nunca senti tanta excitação.

Pararam à beira da clareira, com o anexo a alguns metros de distância banhado pelo luar.

- Loucura temporária, Sarah, tal como a guerra. Não é a vida real. E Harry Martineau também não. Ele não é para ti, Sarah.

Deus lhe valha, ele nem sequer é para ele próprio.

Na casa de Sean Gallagher, Kleist, sentado à janela, vira-as no

momento em que emergiram do bosque e foi a intimidade delas que lhe chamou de imediato a atenção. Levantou-se e abriu um bocadinho a porta. Foi então que percebeu que estavam a falar em inglês. Helen dizia: - Amar alguém é diferente de se estar apaixonada. A paixão é um estado de ardor que passa, acredita. Agora, vamos entrar.

Os outros devem estar a chegar. - P“s a mão na porta e ela moveu-se. - Parece estar aberta.

E então a porta abriu-se violentamente, uma mão agarrou-a pelo casaco e o cano da Mauser de Kleist encostou-se-lhe à cara.

- Para dentro, Frau De Ville - disse ele com aspereza -, e vamos discutir o facto curioso de esta pegazinha francesa não só falar excelentemente inglês como parecer também uma grande amiga sua.

Por instantes, Helen ficou petrificada, apenas consciente de um medo terrível. Kleist estendeu o braço e agarrou Sarah pelos cabelos.

- Presumo que estejam à espera de outros. Quem serão eles?

- Deu uns passos para trás com Helen e a puxar Sarah pelo cabelo. - Nada de estupidezes, senão puxo o gatilho. - Largou Sarah de repente. - Vá fechar as cortinas e acenda o candeeiro.

Vamos p“r tudo como deve ser. - Ela fez o que ele lhe disse.

- Bem, agora volte cá.

Os dedos enfiaram-se-lhe novamente pelos cabelos. A dor era horrível. Queria dar um grito de aviso, mas via a cabeça de Helen para trás com a Mauser sob o queixo. Kleist tresandava a bebida, tremia de excitação enquanto esperavam, ouvindo as vozes a aproximarem-se. Só no último momento, quando a porta se abriu e Gallagher e Guido entraram de costas com Kelso no meio deles, é que Kleist empurrou as mulheres.

- Cuidado! - gritou Sarah quando Martineau entrou atrás deles, mas o seu grito angustiado foi tardio.

KELso estava estendido no chão, e Helen, Sarah e os três homens encontravam-se virados para a parede com os braços abertos.

Kleist aliviou Martineau da sua PPK e enfiou-a no bolso.

- As SS hoje em dia devem fazer os recrutamentos em sítios muito estranhos. - Martineau não disse nada e Kleist aproximou-se de Guido Orsini, revistando-o com mãos de perito. -- Nunca gostei de si - disse com desdém. - O que os Italianos sabem fazer é dar-nos problemas. - Voltou-se para Gallagher e revistou-o rapidamente. Não encontrou nada e recuou. - Bem, seu porco, tenho estado à espera disto. - Deu um murro com a mão direita na base da coluna do irlandês. Gallagher gritou e caiu. Kleist deu-lhe um pontapé de lado e Helen gritou: - Pare com isso!

Kleist sorriu-lhe.

- Ainda nem sequer comecei. - Deu uma biqueirada a Gallagher com a bota. - Levanta-te e põe as mãos na cabeça.

Gallagher continuou no chão por momentos e Kleist espicaçou-o com a ponta do pé.

- Vá, vamos, mexe-te, seu monte de esterco irlandês.

Gallagher levantou-se com um meio sorriso.

- Metade irlandês - disse ele - e metade de Jersey, tal como já lhe disse.

Kleist deu-lhe uma estalada na cara com as costas da mão.

- Já te disse para pores as mãos na cabeça.

- Como quiser.

A navalha estava pronta na mão esquerda de Gallagher, habilidosamente espalmada. O braço rodopiou e ouviu-se um clique quando premiu o botão; a lâmina brilhou à luz do candeeiro e atingiu Kleist por baixo do queixo. Kleist disparou a Mauser contra a parede e depois caiu para trás contra a mesa. Tentou levantar-se, mas cambaleou e caiu imóvel.

- Oh, meu Deus! - disse Helen, e virou-se de costas.

Martineau baixou-se e tirou a sua Walther do bolso do morto.

Olhou para Gallagher.

- Onde é que aprendeu esse truque?

- uma herança do meu velho av“ - disse Gallagher.

Martineau e Guido puseram Kelso no sofá, enquanto Gallagher guardava a navalha.

- Acha que isto era uma visita oficial?

- Julgo que não. - Martineau pegou na garrafa vazia de schnapps. - Ele tinha estado a beber e queria vingança. Veio cá à sua procura e, quando não o encontrou, esperou.

- E agora? - perguntou Kelso. - Se Kleist não aparece para trabalhar amanhã, Muller vira a ilha do avesso.

- Não há razão para entrarmos em pânico. - Martineau pegou numa manta e tapou o corpo. - Há sempre uma saída.

Primeiro, procuramos o carro dele. Tem de estar estacionado aqui perto. - Fez sinal a Guido e a Gallagher e saiu à frente deles. Em dez minutos encontraram o Renault.

- E agora que é que fazemos? - perguntou Guido.

- Devolvemos-lho - disse Martineau com ar decidido. -- Estava bêbado e despistou-se com o carro. Tão simples como isso. - Voltou-se para Gallagher. - Sugere algum sítio adequado?

Não muito longe, mas o suficiente para não haver nenhuma espécie de ligação com De Ville Place.

- Sim - disse Gallagher. - Julgo que sei o sítio ideal.

- àptimo. Vou a casa buscar o K_belwagen. Vocês levam o Renault para o anexo e põem Kleist na mala.

Voltou-se e afastou-se rapidamente por entre as árvores.

QunNDo Martineau chegou ao anexo no K_belwagen, já tinham colocado o corpo de Kleist na mala do Renault e Gallagher estava pronto. Guido concordara em ficar no anexo com Kelso, Helen e Sarah.

- Quanto tempo vamos levar para chegar ao tal sítio? --perguntou Martineau a Gallagher.

- A esta hora da madrugada, cerca de quinze ou vinte minutos.

- Será provável encontrarmos alguém?

- Há apenas ocasionalmente a patrulha da Polícia Militar.

São grandes as hipóteses de lá chegarmos sem ver vivalma.

- Então vamos embora. Eu vou atrás de si.

Gallagher tinha razão. A viagem ao longo da Route Orange em direcção a Corbi re Point não teve incidentes. Finalmente, Gallagher virou para um caminho estreito. Parou o Renault e saiu.

- A estrada tem uma curva à beira dos penhascos a cerca de duzentos metros daqui. Foi sempre um perigo. Não tem muro de protecção.

- Está bem - disse Martineau. - Deixamos o K_belwagen aqui.

Pegou numa lata de gasolina e ficou de pé no estribo do Renault, enquanto Gallagher conduzia pela estrada, aos solavancos, por entre altas sebes. Foram dar à beira dos penhascos, onde um atalho estreito, à esquerda, descia para as rochas e para a espuma do mar lá em baixo.

- Isto serve - disse Martineau, batendo no tejadilho.

Gallagher travou, saiu e dirigiu-se à mala, deixando o motor a trabalhar. Arrastaram Kleist para fora, levaram-no para a frente e puseram-no atrás do volante.

- Está bem assim? - perguntou Gallagher em voz baixa.

- Só u m minuto. - Martineau abriu a lata e deitou gasolina sobre o banco da frente e as roupas do morto. - Pronto, largue-o.

Gallagher baixou o travão de mão, deixou o motor em ponto morto e virou o volante. Começou a empurrar e o Renault saiu do caminho, atravessando a relva.

- Cuidado! - gritou Martineau, acendendo um fósforo que atirou pela janela aberta.

Por momentos, pensou que o fósforo se apagara, e nessa altura, enquanto o Renault balançava à beira do precipício, brotaram chamas cor de laranja e amarelas. Eles viraram-se e voltaram pelo atalho. Por trás deles, ouviu-se um embate estrondoso seguido de uma breve explosão.

Quando chegaram ao K_belwagen, Martineau disse:

- Você deite-se lá atrás, para o que der e vier.

Era sorte demais para durar, claro, e passados cinco minutos, quando Martineau virou para a Route du Sud, viu duas motas da Polícia Militar estacionadas na berma. Um dos polícias avançou com a mão erguida. Martineau abrandou imediatamente.

- Polícia Militar - sussurrou para Gallagher. - Não se levante. - Abriu a porta e saiu. - Há algum problema?

Ao verem o uniforme, os dois homens puseram-se imediatamente em sentido. Um deles tinha na mão esquerda um cigarro aceso.

- Ah, estou a perceber. O que se pode chamar uma pausa para o cigarro - disse Martineau.

- Standartenf_hrer, que posso dizer? - disse o homem.

- Pessoalmente, acho sempre melhor não dizer nada. Então, que é que queriam?

- Nada, Standartenf_hrer. Só que não é frequente vermos um veículo a esta hora da madrugada neste sector.

- E estavam a cumprir o vosso dever muitíssimo bem. --Martineau apresentou os seus documentos. - O meu cartão SD.

Vá lá, homem, despache-se!

O polícia quase nem olhou para o cartão e tinha as mãos a tremer quando o devolveu.

- Está tudo em ordem.

- Bom. Agora podem voltar ao vosso dever - Martineau voltou a entrar no carro. - Quanto aos cigarros, sejam mais discretos.

Afastou-se. Gallagher disse calmamente:

- Como é que consegue soar como um nazi tão convincente?

- Prática, Sean, é o que é preciso. Muita prática.

Quando regressaram ao anexo, Sarah abriu a porta instantaneamente.

- Está tudo bem?

- Perfeito - disse-lhe Gallagher, entrando atrás de Martineau.

- Pusemos o carro à beira de um penhasco e fizemos com que ardesse.

- Isso era necessário? - Helen arrepiou-se.


- Queremos que ele seja encontrado - disse Martineau. -- Por outro lado, não o queremos em muito bom estado, porque depois haveria a ferida da navalha para explicar.

Kelso disse:

- Então não tiveram nenhum problema?

- volta, uma patrulha mandou-nos parar - replicou Gallagher.

- Eu estava bem escondido e Harry fez o seu papel de nazi. Não houve problema.

- Então, agora só falta Guido entrar em contacto com Savary de manhã - disse Sarah.

- Não. Houve uma mudança de planos bastante significativa

- disse Martineau calmamente, em pé junto à lareira. - Se se sentarem, conto-vos.

Capítulo Oito

s NovE horas dessa mesma manhã de sábado, o cortejo do marechal-de-campo deixou Septembertide e dirigiu-se a St. Helier.

A

primeira paragem foi Elizabeth Castle. A maré estava baixa.

Estacionaram os carros em frente do Grand Hotel e subiram para um veículo militar blindado, que seguiu o traçado de um caminho que atravessava a praia.

- Quando a maré está cheia, o caminho fica debaixo de água, meu marechal - explicou Necker.

Baum estava no seu elemento, deveras excitado com o rumo que os acontecimentos tinham tomado. Via Martineau sentado na outra ponta do veículo a falar com dois jovens oficiais e, por momentos, pensou se não teria sonhado os acontecimentos da noite anterior.

O blindado subiu o caminho até ao portão do velho castelo, entrou e parou. Saíram todos e Necker disse: - Os Ingleses fortificaram este local para afastar os Franceses no tempo de Napoleão.

- Agora, nós fortificámo-lo ainda mais para afastar os Ingleses

- disse Baum. - Aí está o que se chama ironia.

Enquanto Baum percorria a estrada que ia dar ao fosso e à

entrada para o pátio interior, Martineau aproximou-se e caminhou a seu lado.

- Por uma questão de curiosidade, meu marechal, Sir Walter Raleigh foi governador aqui nas ilhas no tempo da rainha Isabel Tudor.

- Sim?- disse Baum. - Um homem extraordinário. Soldado, marinheiro, cientista, poeta, historiador.

Continuou a andar com Martineau a seu lado, conversando animadamente. Hofer seguia-os ansiosamente com Necker. Uma hora mais tarde, após uma inspecção minuciosa de todo o armamento e posições fortificadas que Baum conseguiu encontrar, foram levados de regresso aos carros pela praia.

Nos PENHAscOS perto de La Moye Point, um grupo de engenheiros militares segurava uma corda para ajudar o cabo, na outra ponta, a subir a encosta íngreme. Chegou cá acima e desprendeu-se. O

sargento responsável pela operação deu-lhe um cigarro.

- Não estás com muito bom aspecto.


- O meu sargento também não estaria. O condutor lá em baixo está terrivelmente queimado.

- Tem documentos?

- Desapareceram, assim como a maior parte da roupa. O

carro é um Renault e tenho a matrícula.

O sargento tomou nota.

- Agora, a Polícia pode tratar do assunto. - Voltou-se para os outros homens. - Pronto, todos para a base.

MoN'r Orgueil, em Gorey, na costa leste de Jersey, é

provavelmente um dos castelos mais espectaculares da Europa. Baum estava de pé no posto de observação que fora construído no ponto mais alto do castelo e observava a costa francesa com uns binóculos. Estava, nesse momento, ligeiramente afastado dos outros.

Hofer foi para o lado dele.

- Vogel parece estar a dar-lhe muita atenção - disse suavemente.

- Queria falar e eu deixei-o - disse Baum, continuando com os binóculos nos olhos. - Estou a fazê-lo feliz, major. Tento fazê-los felizes a todos. Não é isso que quer?

- Claro, está a sair-se lindamente. Mas tenha cuidado, é só

isso.

Necker juntou-se a eles e Baum disse:

- fantástico, este sítio. Agora, gostaria de ver algo diferente. O outro lado da vida da ilha. Vogel disse-me que está instalado numa casa senhorial chamada De Ville Place. Conhece?

- Conheço, meu marechal. A proprietária, Mrs. Helen de Ville, é uma mulher encantadora.

- E a casa é maravilhosa, segundo Vogel. Vamos lá almoçar.

Tenho a certeza de que Mrs. De Ville não levantará objecções, especialmente se você providenciar comida e vinho. - Olhou para o céu azul sem nuvens. - Belo dia para um piquenique!

Minutos depois, quando o cortejo de oficiais transpunha a entrada principal em direcção ao local onde os carros aguardavam, apareceu um motociclista da Polícia Militar e entregou uma mensagem a Muller. Martineau, ali perto, ouviu tudo.

- O grande palerma - disse Muller baixinho, e amarrotou o papel na mão. Dirigiu-se a Necker, disse-lhe qualquer coisa e entrou no Citro n. O carro afastou-se rapidamente e Martineau foi ter com Necker.

- Muller parecia agitado.

- Sim - disse Necker. - Parece que um dos homens dele morreu num acidente de automóvel.

- Que pouca sorte. - Martineau ofereceu-lhe um cigarro. --Permita-me que o felicite pela maneira como tem tratado de tudo em tão pouco tempo.

- Fazemos o que podemos. Não é todos os dias que o marechal-de-campo Rommel nos vem visitar.

O SARGENTO da messe e os seus homens, que tinham ido para De Ville Place vindos do Clube de Oficiais em Bagatelle, levaram um grande abastecimento de comida e de vinho. Tomaram conta da casa, trouxeram mesas e cadeiras lá de dentro e cobriram-as com toalhas de linho brancas, trabalhando rapidamente.


Helen vasculhou o guarda-roupa e encontrou um vestido de Verão de organdi verde-claro que datava de dias mais felizes.

Quando o estava a enfiar pela cabeça, bateram à porta e Sarah entrou.

- Está-se a preparar para fazer de anfitriã?

- Não tenho muita escolha, pois não? - disse Helen. Penteou o cabelo para trás e prendeu-o com travessas de marfim.

Sarah disse:

- Está muito bonita.

- E tu também. - Sarah vestia um casaco escuro e trazia um pequeno chapéu preto, com o cabelo puxado para cima.

- Fazemos o melhor que podemos. Vou ficar contente quando tudo acabar.

- Já não falta muito, querida. - Helen p“s os braços em volta de Sarah e abraçou-a, depois voltou-se e foi até à janela.

- Pois, era o que eu pensava. Estão cá. - Olhou em volta e sorriu. - Não te esqueças de que no meio de todos aqueles oficiais tu e eu somos formalmente cordiais. Francês apenas.

- Não me esqueço.

- Bom. Para a batalha, então.

Tuþo aquilo foi obviamente um enorme sucesso. Depois do almoço, Guido Orsini pediu licença para tirar fotografias, ao que o marechal-de-campo acedeu benevolentemente, posando com os oficiais presentes e com Martineau a seu lado.

Necker, na sua quarta taça de champanhe, estava de pé junto à mesa das bebidas com Hofer e Martineau.

- Julgo que o marechal-de-campo se está a divertir.

Hofer concordou.

- Sem dúvida. O sítio é maravilhoso e a anfitriã é realmente encantadora.

- Relutante, no entanto - comentou Martineau com acidez.

- Mas é bem-educada demais para o mostrar. As classes altas inglesas são sempre a mesma coisa.

- Talvez seja compreensível - disse Necker friamente. -- O

marido dela, afinal, é major do Exército Britânico.

- E por isso inimigo do Reich, mas também não preciso de lhe lembrar isso. - Martineau pegou numa taça de champanhe e afastou-se.

Sarah estava rodeada pelos oficiais da Marinha e Guido tirava uma fotografia. Ela acenou.

- Por favor, Max - disse em francês -, temos de tirar uma fotografia juntos.

Ele sorriu e p“s a taça de lado.

- Porque não?

Os outros afastaram-se e ele e Sarah ficaram juntos ao sol.

Guido sorriu.

- Assim está óptimo.

- Bom. - Martineau recuperou o seu champanhe. - E agora preciso de falar com o marechal-de-campo. Toma conta de Anne-Marie, tenente? - disse ele a Guido, afastando-se.

Então, reparou que Muller vinha a chegar. O polícia olhou em redor, viu Martineau e atravessou a relva em direcção a ele.

- Posso falar-lhe em particular, Standartenfhrer?

- Com certeza. - disse Martineau, e afastaram-se dos outros em direcção às árvores. - Em que lhe posso ser útil?


- Q meu adjunto, Kleist, morreu ontem à noite. Uma coisa horrível. O carro caiu do penhasco em La Moye Point.

- Azar - disse Martineau. - Tinha bebido?

- Talvez - respondeu Muller cautelosamente. - O problema é que não conseguimos descobrir uma razão válida para ele lá estar. um local bastante remoto.

- E que é que isso tem a ver comigo?

- Fizemos uma investigação de rotina junto das patrulhas da Polícia Militar daquele sector para o caso de terem visto o carro dele. Não tinham mas recebemos um relatório onde se diz que o senhor foi mandado parar na Route du Sud cerca das duas da manhã.

- Correcto - disse Martineau calmamente. - Mas que tem isso a ver com o assunto em questão?

- Para chegar à área do infeliz acidente de Kleist seria necessário percorrer a Route du Sud. Pergunto-me o que estaria lá a fazer àquela hora.

- muito simples - disse Martineau. - Estava a tratar dos meus assuntos sob ordens directas do Reichsf_hrer, como sabe.

Quando voltar para Berlim, ele está à espera de um relatório sobre o que encontrei aqui em Jersey. Lamento dizer que não será favorável.

Muller franziu o sobrolho.

- Talvez queira explicar, Standartenf_hrer.

- A segurança, por exemplo - disse Martineau. - Ou a falta dela. Deixei De Ville Place à meia-noite, atravessei o vale de St. Peter até à vila e depois até Gr ve de Lecq. Pouco depois da uma da manhã, cheguei à baía de St. Ouen seguindo um atalho perto de Les Landes. E uma área de defesa, não é assim?

- Sim, Standartenf_hrer.

- Depois, segui ao longo da baía até ao farol de Corbi re e fui então mandado parar na Route du Sud por dois polícias militares que estavam a fumar um cigarro à beira da estrada. Está a perceber, não está, Muller? - A sua expressão era dura e perigosa. - Andei pela ilha toda nas primeiras horas da madrugada, perto de algumas das nossas instalações mais sensíveis, e apenas fui mandado parar uma vez. Acha isto satisfatório?

- Não, Standartenf_hrer.

- Então, sugiro que tome providências. - Martineau pousou o copo numa mesa próxima. - E agora penso que já fiz o marechal-de-campo esperar o suficiente.

Quando se afastou, Greiser aproximou-se de Muller.

- Que é que aconteceu, meu capitão?

- Nada de especial. Disse que estava a fazer uma ronda de inspecção. Bate certo - disse Muller, -, mas detesto coincidências. Quando trouxerem para cima o corpo do pobre Kleist, mande imediatamente fazer uma autópsia. Se ele estava encharcado em schnapps quando morreu, pelo menos sabemos em que pé estamos.

- Eu trato disso, meu capitão. - Greiser afastou-se rapidamente.

BAulvt estava de pé a conversar com Helen e alguns oficiais.


Voltou-se quando Martineau se aproximou.

- Ah, aqui está você, Vogel. Estou em dívida consigo por me ter sugerido que visitasse um local tão encantador.

- Foi um prazer, meu marechal.

- Venha, conversamos um bocadinho e você pode contar-me como é que vão as coisas em Berlim ultimamente. - Pegou na mão de Helen e beijou-a. - Dá-nos licença, Frau De Ville?

- Com certeza, Sr. Marechal.

Martineau e Baum afastaram-se pela relva.

- Bem. Isto vai ser assim - disse Martineau. - O avião-correio parte às oito. Eles estão à espera que você saia no Storch mais ou menos à mesma hora. Apareço em Septembertide às sete para o ir buscar. Levo Sarah comigo. E o Kelso também, com o uniforme da Kriegsmarine e completamente ligado.

- E Hofer?

- Não se preocupe com ele. Tenho uma seringa e um sedativo forte, oferta do médico que está a tratar Kelso. Uma boa dose daquilo e fica fora de acção durante horas. Trancamo-lo no quarto.

- Mas como é que explico a ausência dele no aeroporto?

- Já lá vamos. Necker estará lá com o seu pessoal para se despedir amavelmente. nessa altura que você anuncia que tenciona ir no avião-correio. Diga que o médico militar responsável pelo hospital intercedeu por este marinheiro, severamente ferido no ataque ao comboio e urgentemente necessitado de um tratamento especial no continente. Como vai utilizar o avião maior, dá boleia a Sarah e a mim.

- E Hofer?

- Diga a Necker que Hofer vai depois no Storch, sozinho.

- E acha que isso vai resultar?

- Acho - disse Martineau. - Porque ninguém diz não a Erwin Rommel.

Baum suspirou.

- Nunca voltarei a ter um papel tão bom como este.

NunþtA maca na sala de autópsias do hospital, o cadáver de Willi Kleist tinha um aspecto constrangedor. O major Speer aguardava de pé, enquanto dois cabos enfermeiros que o assistiam cortavam cuidadosamente as roupas queimadas. Greiser observava com um horror fascinado.

Então, Speer fez deslizar um bisturi desde a garganta até à

barriga e Greiser não aguentou. Retirou-se para a casa de banho.

Quando recuperou, foi até à entrada principal para telefonar a Muller da secretária do porteiro.

- Fala Greiser, meu capitão.

- Como é que vão as coisas? - perguntou Muller.

- Bem, não será uma das melhores experiências da minha vida. Estou à espera das conclusões do major Speer. Estão a fazer análises de laboratório.

- Já agora espere pelos resultados. A propósito, aconteceu uma coisa interessante. O seu irmão telefonou. Falou com a tal mulher Neumann, de Berlim. A que trabalha no escritório do Reichsfhrer.

- E?

- Nunca ouviu falar em Vogel. Fez umas averiguações discretas.


Claro que, como salientou o seu irmão, estes enviados especiais de Himmler são homens-mistério para toda a gente.

- Sim, mas em princípio alguém como Lotte Neumann teria pelo menos ouvido falar dele. Que é que vai fazer?

- Vou pensar nisso. Logo que Speer tiver os resultados, telefone-me e eu apareço aí para ver o que ele tem para dizer.

FAL'rAvn pouco para as cinco horas quando o cortejo de carros regressou a Septembertide. Baum e Hofer saíram e Necker juntou-se-lhes com um ou dois oficiais. Martineau ficou de pé atrás do grupo e esperou.

- Um dia memorável, major - disse Baum. - Estou sinceramente agradecido.

- Estou satisfeito por ter corrido tudo tão bem, meu marechal.

Necker fez continência e voltou a entrar no carro. Enquanto os oficiais dispersavam, Baum e Hofer dirigiram-se para a porta da frente e Martineau avançou.

- Posso dar-lhe uma palavra, meu marechal?

Hofer ficou imediatamente apreensivo, mas Baum disse animadamente:

- Com certeza, Standartenf_hrer, entre.

Baum entrou, seguido por Hofer e Martineau. Foram para a sala de estar, onde Baum despiu o casaco de cabedal, tirou o boné e abriu a porta de vidro para o terraço. - Um conhaque, Standartenf_hrer?

- Vinha a calhar.

Baum fez sinal a Hofer, que serviu as bebidas.

- Mas que vista extraordinária - disse Baum, olhando para a baía de St. Aubin. Ergueu o copo. - Aos soldados de todo o Mundo, que carregam sempre o fardo da estupidez do homem. --Despejou o copo, sorriu e disse em inglês: - Bem, Harry, vamos lá começar.

Hofer parecia confuso, e Ivlartineau tirou a Walther do bolso do seu impermeável.

- Seria estúpido obrigar-me a matá-lo. Ninguém ouviria nada com este silenciador. - Retirou a pistola de Hofer do coldre. --Sente-se.

- Quem é você? - perguntou Hofer.

- Bem, de certeza que não sou o Standartenf_hrer Max Vogel, tal como aqui o Heini não é a Raposa do Deserto.

- Heini? - Hofer parecia ainda mais intrigado.

- Sou eu - disse Baum. - Heini Baum. Erich Berger foi morto num raide aéreo em Kiel. Tirei-lhe os documentos e fui para os pára-quedistas. Que melhor sítio podia haver para um judeu se esconder?

- Meu Deus! - disse Hofer com voz rouca.

- Pois é, achei que você ia gostar disto. Um judeu a fazer-se passar pelo maior herói da guerra da Alemanha. Uma grande ironia.

Hofer voltou-se para Martineau.

- E quem é você?

- O meu nome é Martineau. Tenente-coronel Harry Martineau.

Trabalho para o EOE. Tenho a certeza de que já ouviu falar de nós.

- Sim, de facto já ouvi. Então, que é que pretendem fazer?

- perguntou ele.


- O marechal-de-campo Rommel parte hoje à noite no avião-correio, e não no Storch, o que significa que posso partir com ele, assim como uns amigos meus. Destino: Inglaterra.

- A rapariga? - Hofer conseguiu esboçar um sorriso. -- Gostei dela. Então ela também não é o que parece.

- Mais uma coisa - disse Martineau. - Graças a Heini, sei onde Rommel esteve este fim-de-semana e o que tem andado a tramar. O assassínio de Hitler convinha muito à causa dos Aliados. Por isso, quando chegar a Inglaterra e contar isto à minha gente, vai ficar tudo muito calado. Não queremos tornar as coisas difíceis demais para o marechal-de-campo Rommel, se me está a perceber.

- E como é que o marechal-de-campo vai explicar ao F_hrer o que aconteceu aqui?

- simples. Já houve mais de uma conspiração contra a vida de Rommel da Resistência Francesa e dos agentes aliados. Utilizar Berger para o imitar de vez em quando era sensato, e o que aconteceu aqui em Jersey prova-o. Se ele tivesse vindo em pessoa, eu tinha-o morto. O facto de Berger ter escolhido mudar de lado é lamentável para Rommel, mas não é culpa dele. --Martineau levantou-se. - Agora, vamos lá para cima.

Hofer fez o que lhe mandavam, e eles seguiram-no até ao pequeno quarto que ocupava.

- Tencionam matar-me?

- Claro que não. Preciso de si para contar tudo a Rommel, não é? - respondeu Martineau. - Ponha o braço à mostra, não arme confusão e tudo correrá bem.

Mais uma vez, Hofer fez o que lhe mandavam. Sentiu uma dor aguda no braço direito e quase instantaneamente mergulhou na escuridão. Baum esvaziou o conteúdo da seringa antes de a retirar, enquanto Martineau segurava no major, e depois deitaram-no na cama.

Desceram para a entrada. Quando abriu a porta da frente, Martineau disse:

- Volto às sete horas.

Baum acenou com a cabeça.

- Até logo, então, Standartenfhrer. - Voltou-se, dirigiu-se outra vez à sala e encontrou o cabo cozinheiro à espera dele.

- s suas ordens, meu marechal.

- Qualquer coisa simples - disse Baum. - Ovos mexidos, talvez, só para mim. O major Hofer está a descansar um pouco antes de partirmos.

Pouco depois, Gallagher e Martineau vestiam a Kelso um uniforme da Kriegsmarine, que Sean conseguira adquirir no depósito de abastecimento militar em troca de alguns bens de mercado negro.

Gallagher cortou a perna direita das calças para o gesso poder entrar.

- Que tal? - perguntou.

- Não está mal. - Kelso hesitou e depois disse, embaraçado: Há muita gente a correr riscos por minha causa.

- Oh, estou a perceber - disse Martineau. - Quer dizer que você se atirou deliberadamente por cima da amurada do LST na baía de Lyme?

- Não, claro que não.

- Então, pare de se atormentar - disse Martineau, e gritou para Sarah: - Podes entrar.

Ela entrou, vinda da cozinha, com dois grandes rolos de ligaduras e adesivo cinírgico. Depois foi tratar da cara e da cabeça de Kelso até deixar apenas visível um olho e a boca.

- Muito profïissional - disse Gallagher, risonho.

Martineau olhou para o relógio. Eram quase seis horas.

- Nós vamos para casa agora. Sean, olhe por ele. Volto com o K_belwagen daqui a uma hora.

Ele e Sarah saíram e Gallagher foi ao hall e voltou com um par de muletas.

- Um presente para si. - Encostou-as à mesa. - Veja como se dá com elas.

Kelso levantou-se numa perna, enfiou uma muleta por baixo do braço e depois pegou na outra. Deu um passo hesitante e em seguida avançou com uma confiança crescente até ao outro lado do quarto.

- Brilhante! - disse-lhe Gallagher. - Um autêntico pirata da perna de pau. Agora, experimente outra vez.

- TENt a certeza? - perguntou Muller.

- Oh, sim, absoluta - disse Speer. - Algum objecto cortante entrou þelo céu da boca e penetrou no cérebro.

- E provável que esse tipo de ferimento seja explicado pelo género de acidente que ele sofreu?

- Não - disse Speer. - Fosse o que fosse que fez isto, era tão afiado como um bisturi. A carne da cara e do pescoço está muito queimada, por isso não posso dar uma certeza, mas, se quer a minha opinião, foi apunhalado por baixo do queixo. Faz algum sentido?

- Sim - disse Muller. - Penso que faz. Muito obrigado. -- Fez sinal a Greiser. - Vamos.

Quando Muller abriu a porta, Speer disse:

- Só mais uma coisa.

- Que é?

- Você tinha razão. Ele. tinha bebido muito. Pelos testes, diria que bebeu cerca de uma garrafa, garrafa e meia, de uma bebida alcoólica.

Nos degraus do lado de fora da entrada principal do hospital, Greiser perguntou:

- Que é que pensa, meu capitão?

- Que outra palavrinha com o Standartenf_hrer Vogel seria indicada, portanto, Emst, vamos a isso.

NA COZINHA em De Ville Place, Sarah, Helen e Martineau estavam sentados à volta da mesa. A porta abriu-se e Guido entrou com uma garrafa.

- Champanhe momo - disse ele. - o que se pode arranjar.

- Tem a certeza de que a casa está vazia? - perguntou Sarah.

- Oh, sim. Estão todos no comboio da noite para Granville.

O quartel-general da Kriegsmarine ainda não me deu outro posto.

Puxou a rolha e deitou champanhe nas quatro taças que Helen trouxera. Ela ergueu a sua.

- A que é que vamos brindar?

- A dias melhores - disse Sarah.

- E à vida, à liberdade e à busca de felicidade - acrescentou Guido. - Não esquecendo o amor.

- Você não se esquecia de certeza. - Sarah riu-se e voltou-se para Martineau. - E tu, Harry, que é que desejas?

- Só consigo pensar num dia de cada vez. - Acabou o champanhe. - Agora, vou buscar Kelso. Prepara-te para partir, Sarah.

Conduziu o Kbelwagen em direcção ao anexo. Ao mesmo tempo, a cerca de duzentos metros à direita, o Citro n transportando Muller e Greiser virava, entrando no pátio de De Ville Place.

No QunR'ro, Sarah p“s o chapéu e o casaco. Ouviu um carro lá fora, espreitou pela janela e viu Muller sair do Citro n. Ia haver sarilho; sentiu isso instantaneamente. Abriu a carteira.

A

pequena automática belga ainda lá estava. Levantou a saia e prendeu a pistola no cimo da meia de vidro, depois ajustou o casaco e saiu do quarto.

Muller estava no hall a falar com Helen. Greiser estava junto à porta da frente e Guido na porta da cozinha. Quando Sarah descia as escadas, Muller levantou os olhos.

- Ah, cá está, mademoiselle - disse Helen em francês. -- O

capitão Muller estava à procura do Standartenf_hrer. Sabe onde ele está?

- Não faço ideia. Há algum problema?

- Talvez. Não faz ideia a que horas volta?

- Não - disse Sarah.

- Muito bem. Se o Standartenf_hrer não está disponível, terei de me contentar consigo. - Muller voltou-se para Greiser. --Leve-a para o carro.

- Mas protesto ... - começou a dizer Sarah.

Greiser sorriu, segurando-lhe pelo braço dolorosamente.

- Proteste o que quiser, minha querida. Eu até gosto - disse ele, empurrando-a para fora da porta.

Muller voltou-se para Helen, que tentava permanecer calma.

- Talvez queira ter a amabilidade de dizer ao Standartenf_hrer Vogel quando ele regressar que, se desejar ver Mademoiselle Latour, terá de vir ao meu escritório no Silvertide Hotel.Voltou-se e saiu.

KELso estava a sair-se bem com as muletas. Foi até ao K_belwagen sozinho.

- Muito bem, meu rapaz - disse Gallagher, ajudando-o a sentar no banco de trás.

Quando Martineau se sentou por trás do volante, Guido emergiu das árvores a correr. Encostou-se ao carro, ofegante.

- Pelo amor de Deus, que é que se passa, homem? -- perguntou Gallagher.

- O Muller e o Greiser apareceram lá. Iam à sua procura, Harry. Levaram Sarah. Muller diz que, se a quer ver, tem de ir ao Silvertide. Que é que vamos fazer?

- Entre! - ordenou Martineau, e arrancou mal o italiano e Gallagher entraram.

No pátio de De Ville Place, Helen aguardava-os ansiosamente nas escadas. Dirigiu-se rapidamente ao K_belwagen mal Martineau parou e Gallagher e Guido saíram.

- Que é que vamos fazer, Harry? - perguntou ela.

- Vou levar Kelso para o Septembertide e vamos buscar Baum.

Se o pior acontecer, Baum e Kelso podem partir juntos. Baum sabe o que tem a fazer.

- Mas não podemos deixar Sarah - protestou Kelso.

- Eu não - disse Martineau -, mas você pode. Foi você

quem nos trouxe aqui em primeiro lugar. A razão de tudo isto.

Helen apertou-lhe o braço.

- Harry!

- Não se preocupe. Hei-de pensar numa saída qualquer. Agora vamos.

O K_belwagen afastou-se e o som do motor desvaneceu-se.

Gallagher voltou-se para Guido.

- Vá buscar o Morris e vamos até ao Silvertide Hotel.

- Em que é que está a pensar? - perguntou Guido.

- Nunca consegui ficar sentado à espera.

Martineau entrou no pátio de Septembertide e ajudou Kelso a sair do K_belwagen. Balançando entre as muletas, o americano seguiu Martineau até à porta da frente, que foi aberta por um cabo. Quando entraram, Baum apareceu vindo da sala.

- Ah, Vogel! E este é o homem de quem me falou? - Voltou-se para o cabo. - Quando precisar de si, chamo-o.

Baum afastou-se, e quando Kelso passava por ele para entrar na sala, Martineau disse calmamente:

- Houve uma alteração nos planos. Muller foi à minha procura a De Ville Place. Eu não estava lá, mas Sarah estava.

Levaram-na para o Silvertide.

- Não me diga mais nada - replicou Baum. - Você vai socorrê-la?

- Mais ou menos. - Martineau olhou para o relógio. Passava pouco das sete. - Você e Kelso mantêm o horário. Levá-lo daqui é o mais importante. - Depois, saiu rapidamente e o roncar do K_belwagen foi-se extinguindo.

Baum deitou conhaque num copo. Bebeu lentamente.

- Eu devia saber que sob aquele cinismo todo ele era o tipo de homem que volta atrás por causa da rapariga. - Enfiou o seu casaco de cabedal impermeável e as luvas, arranjou o ângulo do boné e pegou no bastão.

- Que é que vamos fazer? - perguntou Kelso.

- Martineau disse-me que a maior vantagem de ser o marechal-de-campo Erwin Rommel é que toda a gente faria o que eu dissesse para fazerem. Vamos ver agora se ele tinha razão. Fique aqui.

Atravessou o pátio até à entrada, e os homens encostados ao lado do veículo blindado puseram-se em sentido de um salto.

- Um de vocês vá chamar o capitão Heider.

Um segundo depois, Heider surgiu.

- Meu marechal?

- Contacte o aeroporto. Uma mensagem para o major Necker.

Vou chegar um pouco mais atrasado do que pensava. Diga-lhe também que parto para França não no meu Storch, mas no avião-correio. Espero que esteja pronto para partir quando eu chegar e gostava de ir com o meu piloto pessoal.

- Muito bem, meu marechal.

- Excelente. Preciso de todos os seus homens totalmente armados e prontos para partir dentro de cinco minutos. Está lá dentro um marinheiro ferido. Mande dois homens ajudá-lo a entrar no veículo blindado.

- Mas, meu marechal, não percebo - disse Heider.

- Vai perceber, Heider - disse-lhe o marechal-de-campo.

- Vai perceber.

SARAH estava sentada numa cadeira em frente à secretária de Muller, com as mãos no colo e os joelhos unidos. Tinham-na obrigado a despir o casaco e Greiser revistava o forro, enquanto Muller vasculhava a bolsa.

- Então é de Paimpol? - disse ele.

- Exacto.

- Mas que roupas tão sofisticadas para uma rapariga bretã de uma vila de pescadores.

- Oh, mas esta tem laureado por aí, não é verdade? - Greiser passou-lhe os dedos para baixo e para cima no pescoço, fazendo-a arrepiar-se.

Muller disse:

- Onde é que você e o Standartenf_hrer Vogel se conheceram?

- Paris - disse ela.

- Mas não há nenhum visto para Paris entre os seus documentos.

O est“mago contraiu-se-lhe de medo; e a garganta estava seca.

- Tinha um. Caducou. - þþOh, meu Deus, Harryþþ, pensou ela, þþvai-te embora. Por favor, vai-te embora.þþ E nessa altura a porta abriu-se e Martineau entrou.

Os seus olhos ficaram rasos de lágrimas quando Greiser se afastou e Harry p“s meigamente o braço em volta dela.

A emoção que sentiu foi tão avassaladora que a fez cometer a maior das estupidezes.

- Oh, Harry - disse ela em inglês. - Porque é que não partiste?

Muller sorriu e pegou na Mauser, que estava em cima da secretária.

- Então também fala inglês, mademoiselle. Este assunto está

cada vez mais intrigante. Acho que é melhor aliviar o Standartenf_hrer da sua Walther, Ernst.

Greiser fez o que lhe mandaram e Martineau recuou, dizendo:

- Que é que pensa que está a fazer, Muller? Existe uma razão perfeitamente válida para Mademoiselle Latour falar inglês.

A mãe era inglesa. Os dados estão no dossier do quartel-general SD em Paris.

- Tem resposta para tudo - disse Muller. - E se eu lhe disser que a autópsia indicou que Willi Kleist foi assassinado, sendo a hora da morte entre a meia-noite e as duas da manhã?

Não preciso de lhe lembrar que foi mandado parar na Route du Sud às duas horas, a pouco mais de um quilómetro do local onde o corpo foi descoberto. Que me diz a isto?

- Só posso pensar que tem andado a trabalhar demais, Muller.

Quando o Reichsf_hrer souber os factos, ele ..


Pela primeira vez, Muller perdeu a cabeça. þ

- Já chega. Está na altura de sabermos a verdade sobre si, Standartenf_hrer. Odeio violência. No entanto, aqui o Greiser é diferente. Há uma coisa estranha em Greiser. Não gosta de mulheres. Ele teria mesmo imenso prazer em extrair a verdade de Mademoiselle Latour em particular, mas duvido de que ela seja da mesma opinião.

- Oh, não sei. - Greiser p“s um braço em volta de Sarah e enfiou uma mão por dentro do vestido. - Acho que ela era capaz de gostar.

A mão esquerda de Sarah arranhou-lhe a cara, fazendo sangue.

Agora só sentia raiva, uma raiva maior do que alguma vez sentira. Quando Greiser cambaleou para trás, Muller distraiu-se momentaneamente. Sarah viu a sua oportunidade. P“s a mão por dentro da saia e tirou a pequena automática da meia. Levantou o braço e disparou à queima-roupa, atingindo Muller na fonte. A Mauser caiu da mão inerte para a secretária; ele oscilou para trás e caiu no chão. Greiser tentou tirar a arma do bolso, mas era tarde demais. Martineau pegara na Mauser.

GALLAGHER e Guido estavam sentados no Morris do outro lado da estrada, em frente ao Silvertide, quando ouviram o barulho de carros. Voltaram-se e viram uma coluna militar a aproximar-se. frente vinha um K_belwagen com a capota para baixo e o marechal Erwin Rommel em pé, no banco do passageiro, para toda a gente ver. O K_belwagen parou, Rommel saiu e os soldados avançaram a correr em obediência às ordens gritadas de Heider.

- Certo, sigam-me! - gritou Baum, e entrou a marchar pela porta do Silvertide. Avançou para o escritório de Muller, com Heider e uma dúzia de homens armados atrás de si, e espreitou por cima da secretária para o corpo de Muller.

- Meu marechal, esta mulher assassinou o capitão Muller. --gaguejou Greiser.

Baum ignorou-o e disse a Heider:

- Ponha este homem numa cela.

- Sim, meu marechal - Heider fez sinal e três dos seus homens agarraram Greiser, que protestava energicamente. Heider seguiu-os.

- Para os vossos veículos - gritou Baum aos outros, e segurou o casaco a Sarah para ela o vestir. - Vamos.

GALLAGHER e Guido viram-nos sair do hotel e entrar no K_belwagen, Martineau e Sarah atrás, Baum de pé, à frente. Acenou e o K_belwagen partiu com a coluna inteira atrás.

- E agora? - perguntou Guido.

- Você não tem mesmo poesia nenhuma dentro de si? -- perguntou Gallagher. - Vamos atrás deles, claro. Não ia perder o último acto por nada deste mundo.

EM SEprEMBERTIDE, na cama do pequeno quarto, Konrad Hofer gemia e mexia-se agitado. Abriu os olhos; tinha a boca seca e olhou para o tecto, tentando perceber onde estava. Era como acordar de um sonho mau - sabia que fora algo de terrível, mas já se esquecera. Depois, lembrou-se. Tentou sentar-se e rolou da cama para o chão.

Levantou-se com a cabeça a andar à roda e agarrou a maçaneta da porta. Ela recusou-se a mexer, por isso voltou-se e foi a cambalear até à janela. Debateu-se com o fecho e depois desistiu e atirou o cotovelo contra o vidro.

O som do vidro a partir-se fez dois soldados virem a correr ao pátio. Olharam para cima.

- Aqui! - gritou Hofer. - Tirem-me daqui! Estou trancado!

Sentou-se na cama, com a cabeça entre as mãos, e tentou respirar fundo enquanto ouvia o barulho de botas a subir as escadas e a percorrer o corredor. Viu a maçaneta rodar.

- Não há chave, Herr Hofer - gritou um deles.

- Então arrombe a porta, seu idiota! - replicou ele.

Pouco depois, a porta escancarou-se e os dois homens ficaram de pé a olhar para ele.

- Chamem o capitão Heider - disse Hofer.

- Saiu, Herr Major.

- Saiu? - Hofer ainda tinha dificuldade em pensar claramente.

- Foi com o marechal-de-campo, Herr Major. Foi a unidade inteira com eles. Só cá estamos nós os dois.

Os efeitos da droga faziam Hofer sentir-se como se estivesse debaixo de água. Abanou a cabeça com força.

- Sabe guiar?

- Claro. Para onde é que o Herr Major deseja ir?

- Para o aeroporto - disse Hofer. - E não há tempo a perder, por isso ajudem-me a descer as escadas e vamo-nos embora.

Capítulo Nove

NO AEROPORTO, a guarda de honra da Luftwaffe aguardava pacientemente enquanto a noite caía. O JU-52 esperava o seu ilustre passageiro a cerca de cinquenta metros do edifício do terminal.

Necker andava para trás e para a frente, intrigado com o que se estaria a passar. Primeiro, aquela mensagem inesperada de Heider acerca do avião-correio e agora isto. Oito e vinte e ainda não havia sinais de Rommel.

Ouviu-se o súbito roncar de motores. Voltou-se a tempo de testemunhar a extraordinária visão da coluna armada a dobrar a esquina do edifício principal do aeroporto, com o marechal-de-campo em pé no K_belwagen com as mãos cruzadas sobre o pára-brisas.

A coluna dirigiu-se directamente ao Junkers. Necker viu o marechal-de-campo acenar a Sorsa, que olhava pela janela lateral do cockpit. O motor central do avião começou a trabalhar e Rommel berrava ordens. Saltavam soldados dos camiões empunhando espingardas, e um marinheiro com ligaduras foi levado por dois soldados do veículo blindado para o Junke>-s.

Tudo acontecera em poucos segundos. Quando Necker avançou, o marechal-de-campo foi ao seu encontro. Por trás dele, Necker viu Vogel e a rapariga francesa saírem do K_belwagen e subirem a pequena escada do avião.

Baum estava a divertir-se. Sorriu e p“s uma mão no ombro de Necker.

- As minhas sinceras desculpas pelo atraso, Necker, mas tive coisas a fazer. O jovem Heider foi amável em me ajudar com os seus homens. Um oficial prometedor.

Necker estava estupefacto.

- Mas, meu marechal ... - Gritava por causa do roncar dos motores. Baum ignorou-o.

- O médico militar responsável pelo hospital falou-me deste jovem marinheiro, ferido num ataque a um comboio numa noite destas, que precisa muito de tratamento na unidade de queimaduras de Rennes. Perguntou-me se o podia levar. No estado em que está, nunca o conseguiríamos instalar no Storch. por isso que preciso do avião-correio.

- E o Standartenfhrer Vogel?

- Estava para regressar amanhã, por isso posso dar uma boleia, a ele e à rapariga. Temos de partir agora. Mais uma vez, os meus agradecimentos. Entrarei em contacto com o general Von Schmettow para expressar a minha inteira satisfação quanto ao modo como as coisas correm em Jersey.

Fez continência e voltou-se para entrar no avião.

Necker gritou:

- Mas, meu marechal, e o major Hofer?

- Parte mais tarde no Storch, como combinado. O piloto do avião-correio pode levá-lo.

Baum subiu para o avião e um homem da tripulação puxou a escada para cima e fechou a porta. O Junkers rolou para a ponta leste da pista e virou. O ruído dos três motores intensificou-se à medida que o avião rolava cada vez mais depressa, tornando-se apenas uma silhueta na escuridão que se acentuava, e depois levantou, sobrevoando a baía de St. Ouen.

GUIDO parara o Morris na estrada do aeroporto. De pé, ao lado dele, Gallagher viu o Junkers elevar-se no céu da noite.

Guido disse suavemente:

- Meu Deus, conseguiram mesmo.

Gallagher acenou com a cabeça:

- Agora, podemos ir para casa e preparar as nossas histórias como deve ser para quando começar o interrogatório.

- Não vai haver problema - disse Guido - se nos mantivermos unidos. Eu afinal sou um verdadeiro herói de guerra, o que é sempre uma ajuda.

- isso que eu admiro em si, Guido. A sua modéstia. --Gallagher riu-se. - Agora, vamos embora. Helen deve estar preocupada.

NO AEROPORTO, Necker estava de pé a falar com o capitão Adler, o oficial controlador de serviço da Luftwaffe, quando um Kbelwagen transportando Hofer e os dois soldados dobrou a esquina do edifício principal e parou.

Necker sabia reconhecer o perigo quando estava perante ele.

- Hofer? Que é?

Hofer estava a ser ajudado a sair do veículo.

- Já partiram?

- Há menos de cinco minutos. O marechal-de-campo foi no avião-correio. Disse que você iria depois no Storch.


- Não! - exclamou Hofer. - Não era o marechal-de-campo.

O est“mago de Necker contraiu-se.

- Que é que está a dizer?

- O homem que você pensava ser o marechal-de-campo Rommel é um duplo, um traidor chamado Berger, que se passou para o lado do inimigo. Você também vai ficar contente por saber que o Standartenf_hrer Vogel é um agente do Executivo de Operações Especiais Britânico.

Necker estava completamente embasbacado.

- Não compreendo.

- muito simples - disse-lhe Hofer. - Vão para Inglaterra.

- Voltou-se para Adler. - Vá para o rádio. Arranje uma esquadrilha de caças. Não há tempo a perder.

O JUNxEtrS era um animal de trabalho e não fora feito para ser confortável. O seu interior encontrava-se atulhado de sacas de correio, e Kelso estava sentado no chão encostado a elas, com as pernas estendidas. Sarah ia sentada num banco de um dos lados do avião, Baum e Martineau no outro.

Um dos tripulantes saiu do cockpit para ir ter com eles.

- Chamo-me Braun, meu marechal. Sargento observador. O

Oberleutnant Sorsa consideraria uma honra se fosse lá à frente.

- São só vocês os dois? - inquiriu Martineau.

- o que é necessário nestas viagens de correio, Standartenf_hrer. - Voltou-se para Baum. - Quer que lhe arranje alguma coisa ...? Temos um termo de café e ...

- Não, obrigado. Diga ao Oberleutnant Sorsa que aceitarei a oferta dele daqui a pouco - disse Baum.

- Com certeza, meu marechal. - O observador voltou para o cockpit.

Baum voltou-se para Martineau e sorriu.

- Cinco minutos?

- Acho que sim. - Martineau foi sentar-se ao lado de Sarah.

- Sentes -te bem?

- Queres dizer se estou atormentada porque acabei de matar um homem? - A sua expressão era muito calma. - Só tenho pena que tivesse sido Muller em vez de Greiser. Greiser era um animal. Muller era só um polícia no lado errado.

- Do nosso ponto de vista.

- Não, Harry - disse ela. - Seja qual for o ponto de vista, nós temos razão e os nazis não. Estão errados para a Alemanha e para toda a gente. tão simples como isso.

- Ainda bem para si - disse Kelso.

- Eu sei - disse Martineau. - maravilhoso ser novo. -- Deu uma palmada no joelho de Baum. - Está pronto?

- Penso que sim.

Martineau deu a sua Walther a Sarah.

- Postos de acção. Vais precisar disto para tratar do observador. Cá vamos nós.

Abriu a porta da cabina e ele e Baum comprimiram-se no cockpit atrás do piloto e do observador. O Oberleutnant Sorsa voltou-se.

- Está tudo a correr como deseja, meu marechal?

- Pode considerar-se que sim - disse-lhe Baum.

- Se houver alguma coisa que possamos fazer por si ...

- De facto há. Pode virar esta coisa e seguir quarenta milhas para oeste, até estarmos completamente fora do tráfego das ilhas do Canal.

- Mas não compreendo.

Baum tirou a Mauser do coldre e encostou-a à nuca de Sorsa.

- Talvez isto o ajude.

- Depois, quando eu lhe disser, vira para norte - disse Martineau -, em direcção a Inglaterra.

- Inglaterra? - disse o observador, horrorizado.

- Sim - disse Martineau. - Agora mude a rota para oeste.

Sorsa fez o que lhe mandaram e o Junkers abriu caminho através da escuridão. Martineau inclinou-se sobre o observador.

- Bem, agora quanto ao rádio. Mostre-me o procedimento da selecção de frequências.

Braun obedeceu.

- Bom. Agora vá sentar-se na cabina e não faça nenhuma estupidez. A senhora tem uma arma.

O rapaz passou por ele e Martineau sentou-se no lugar do co-piloto e começou a transmitir na frequência reservada pelo EOE

para casos de emergência.

NA sALn de controle do Aeroporto de Jersey, Hofer e Necker aguardavam ansiosamente, enquanto Adler falava pelo rádio. Pouco depois, Adler voltou-se para os dois oficiais.

- Todos os caças na área da Bretanha levantaram há uma hora.

Esperam-se grandes bombardeamentos sobre o Ruhr.

- Deve haver alguma coisa que possamos fazer - disse Hofer.

Adler fez-lhe sinal para se calar, à escuta, e depois pousou o

microfone, sorridente.

- Há. Um caça JU-88. O motor de bombordo precisava de revisão e não ficou pronto a tempo de partir com o resto da esquadrilha. Acabou de descolar de Cherburgo.

- Mas conseguirá apanhá-los? - perguntou Necker.

- Herr Major - disse Adler -, aquele velho caixote em que eles vão só consegue dar cento e oitenta milhas. O JU-88 com o novo motor a jacto dá mais de quatrocentas.

Necker voltou-se triunfalmente para Hofer.

- Vão ter de voltar, senão ele fá-los ir pelos ares.

Mas Hofer estivera a pensar nisso. Se o avião-correio voltasse, só significaria uma coisa. Martineau e os outros eram levados para Berlim para serem interrogados. Isso não podia acontecer.

Berger sabia da ligação de Rommel à conspiração dos generais contra o F_hrer e Martineau também. Talvez até tivesse contado à rapariga. Hofer respirou fundo.

- Não, não podemos correr o risco de eles escaparem. Envie uma ordem para o piloto do caça o abater. Não podem chegar a Inglaterra.

- s suas ordens, Hen Major. - Adler pegou rapidamente no microfone.

Martineau deixou Heini Baum no cockpit para manter Sorsa debaixo de olho e foi juntar-se aos outros.

- Tudo a correr bem? - perguntou-lhe Kelso.

- Não podia estar melhor. Entrei em contacto com a nossa gente em Inglaterra. Vão providenciar uma escolta da RAF até à aterragem.

Sorriu e pegou na mão de Sarah. Ela nunca o vira tão excitado.

Subitamente, parecia muito mais novo.

- Sentes -te bem?

- àptima, Hany. àptima.

- Amanhã à noite, jantar no Ritz - disse ele.

- luz da vela?

- Nem que tenha que levar as minhas. - Voltou-se para Braun, o observador. - Disse qualquer coisa acerca de um café, não disse?

Braun ia levantar-se, mas o avião balançou violentamente ao mesmo tempo que um grande estrondo enchia a noite. Depois, o avião desceu como uma pedra. Braun perdeu o equilíbrio e Sarah gritou: - Harry, que é isto?

O avião retomou a estabilidade e Martineau espreitou por uma das janelas laterais. A cem metros de distância a bombordo, voando em paralelo, viu um Junkers-88.

- Temos sarilho - disse ele. - Um caça da Luftwaffe. --Voltou-se, abrindo a porta para o cockpit.

Sorsa olhou por cima do ombro, pálido e com uma expressão sombria sob a luz do cockpit.

- Fomos atingidos. Que faço agora? - perguntou. - Aquela coisa pode fazer-nos ir pelos rãs.

Martineau, de repente, percebeu tudo. Algo correra mal e de certeza que Hofer estava envolvido; se assim fosse, a última coisa que ele desejava era tê-los nas mãos da Gestapo para destruir Erwin Rommel.

Nesse momento, o estrondo encheu outra vez a noite e o avião-correio estremeceu quando uma bala atingiu a fuselagem.

Sorsa empurrou para a frente a manche, descendo num mergulho abrupto até à camada de nuvens lá em baixo. O caça roncava por cima deles, passando como uma nuvem negra.

Martineau voltou a encaixar-se na cabina. A fuselagem do avião apresentava vários buracos e duas janelas estavam estilhaçadas. O observador jazia de costas com o uniforme ensopado em sangue.

Sarah olhou para cima, surpreendentemente calma.

- Está morto, Hany.

Não havia nada a dizer. Martineau voltou ao cockpit, equilibrando-se à medida que o avião continuava a sua descida a pique.

Tornaram a estremecer com a turbulência quando o JU-88 passou por cima deles.

- Seu porco! - disse Sorsa, agora enfurecido. - Vais ver.

Baum, que estava de cócoras no chão do cockpit, olhou para Hany com um sorriso amarelo.

- finlandês, o Sorsa. Na realidade, não gostam muito de nós, alemães.

O avião-correio irrompeu das nuvens a três mil pés e continuou a descer.

- Que é que está a fazer? - gritou Martineau ao piloto.

- E um truque que tenho na manga. Ele é muito rápido e eu sou muito lento e isso levanta-lhe dificuldades. - Sorsa olhou novamente por cima do ombro e sorriu ferozmente. - Vamos ver se ele vale alguma coisa.

Estavam a oitocentos pés quando o JU-88 voltou a aparecer na cauda do avião depressa demais, tendo de virar para bombordo para evitar a colisão.

Sorsa levou o avião-correio até aos quinhentos pés e endireitou-o.

- Pronto, seu filho da mãe, vamos tramar-te - disse ele, com as mãos firmes como uma rocha.

E quando aconteceu, acabou em segundos. O JU-88 voltou a aparecer e Sorsa começou a subir. O piloto do JU-88 inclinou o avião lateralmente para evitar o que parecia uma colisão inevitável, mas àquela altura e velocidade não tinha para onde se dirigir senão a direito para as ondas em baixo.

- Perdeste, meu amigo - disse Sorsa baixinho, e voltou a colocar a manche na posição. - Bem, vamos voltar lá para cima.

Martineau voltou a olhar para a cabina.

- Vocês os dois estão bem?

- Lindamente. Acabou? - perguntou Sarah.

- Pode considerar-se que sim. - Voltou para o cockpit quando Sorsa estabilizou o aparelho a seis mil pés. Enfiou-se no lugar do co-piloto e rodou o botão do rádio. Tudo parecia estar operacional.

- Vou dizer-lhes o que aconteceu - disse Martineau, e começou a transmitir na frequência de emergência do EOE.

- Santo Deus! - gemeu Heini Baum. - Mas que último acto!

Sorsa disse animadamente:

- Digam-me, a comida é boa nos campos de prisioneiros de guerra britânicos?

Martineau sorriu.

- Oh, vai ver que lhe vamos arranjar condições muito especiais, meu amigo. - Depois, ao estabelecer contacto com o quartel-general do EOE, começou a falar para o microfone.

Nn snLA de controle do Aeroporto de Jersey, Adler estava sentado ao lado do rádio com uma expressão incrédula. Tirou os auscultadores.

- Que é que se passa, por amor de Deus? - perguntou Necker.

- Era o controle de Cherburgo. Perderam o JU-88.

- Que é que quer dizer com perderam?

- Tinham contacto rádio com o piloto. Ele atacara várias vezes. Depois, de repente, perderam o contacto e ele desapareceu do radar. Pensam que foi parar à água.

- E o avião-correio? - perguntou Hofer baixinho.

- Ainda está no radar, dirigindo-se para a costa inglesa. Não há hipótese nenhuma de o impedirmos.

Fez-se silêncio.

- Que é que acontece agora? - perguntou Necker daí a pouco. - Que vai acontecer quando Berlim souber disto?

- Só Deus sabe, meu amigo - balbuciou Hofer, pesaroso. -- Más perspectivas para todos nós.

CERcA de quinze minutos depois de Sorsa ter mudado de rumo pela segunda vez, Baum, ainda de cócoras no cockpit, apontou subitamente para a esquerda.


- Vejam aquilo ali.

Martineau voltou-se e viu à luz do luar um Spitfire colocar-se a bombordo do avião. Quando olhou para estibordo, apareceu outro. Pegou nos auscultadores do co-piloto.

Uma voz ríspida disse em inglês:

- Martineau, está a ouvir-me?

- Aqui, Martineau.

- Está agora a vinte milhas da ilha de Wight. Vamos virar para terra e descer para três mil pés. Eu vou à frente e o meu colega vai atrás. Levamo-los até Hornley Field.

- Com muito gosto. - Martineau traduziu a informação a Sorsa e recostou-se.

- Está tudo bem? - perguntou Baum.

- Lindamente. Vão levar-nos até lá. Só faltam mais ou menos quinze minutos e pronto.

Baum estava excitado.

- Eu nem acredito. Sinto-me realmente como se estivesse a libertar-me de qualquer coisa.

- Eu sei - disse Martineau.

- Saberá? Não sei. Estive em Estalinegrado, já lhe contei?

O maior desastre da história do Exército Alemão. Trezentos mil pelo cano abaixo. Tive sorte. No dia antes de a pista fechar, fui ferido e levado num velho JU-52 igualzinho a este. Noventa e um mil foram feitos prisioneiros, vinte e quatro generais. Porquê eles e não eu?

- Passei anos a tentar descobrir a resposta para perguntas como essa - disse-lhe Martineau. - No fim, percebi que não há resposta. Nenhuma lógica e muito pouca razão.

Ouviu a voz soar nos auscultadores a dar instruções.

Transmitiu-as a Sorsa. Pouco depois, a voz soou novamente.

- Hornley Field, mesmo em frente. Aterrem.

As luzes da pista viam-se bem e Sorsa reduziu a potência e baixou os flaps das asas para uma aterragem perfeita. Os Spitfires afastaram-se e subiram para a escuridão.

Depois de o Junkers aterrar, Sorsa rolou em direcção à torre de controle e o avião parou.

Baum levantou-se e riu-se, excitado.

- Conseguimos!

Martineau juntou-se a Sarah, que sorria. Ela pegou-lhe na mão e segurou-a com força. Kelso ria-se de alívio. A sensação de libertação era fantástica. Baum abriu a porta e ele e Martineau espreitaram lá para fora.

Uma voz gritou de um megafone.

- Fiquem onde estão.

Homens da RAF, de azul, em linha, avançaram cada um com uma espingarda.

Baum saltou para a pista. A voz disse novamente:

- Fiquem onde estão!

Baum sorriu para Harry, fazendo-lhe continência.

- Não vem comigo, Standartenfhrer? - E então voltou-se e encaminhou-se para a fila de homens com o bastão de marechal-de-campo erguido na mão direita. - Baixem as armas, seus idiotas - gritou em inglês. - Somos todos amigos.

Houve um único tiro. Ele rodopiou, deu alguns passos para trás na direcção do Junkers e depois caiu de joelhos e rolou pelo chão.

Harry saltou do avião e avançou a correr, agitando os braços.

- Já chega, seus idiotas! - gritou. - Sou eu, Martineau.

Quando caiu de joelhos ao lado de Baum, ouviu vagamente o chefe de esquadrilha a dizer aos seus homens para se afastarem.

Heini ergueu a mão e agarrou Martineau pela frente do uniforme.

- Tinha razão, Harry - disse com voz rouca. - Não há

lógica nem razão para coisa nenhuma. Diga kaddish por mim.

Prometa-me.

- Prometo - disse Martineau. - Não fale, Heini. Vamos arranjar um médico.

Sarah baixou-se ao seu lado. O corpo de Baum pareceu estremecer, a mão enfraqueceu sobre o casaco de Martineau e ele imobilizou-se. Martineau levantou-se lentamente e viu Dougal Munro e Jack Carter ali ao pé.

- Um acidente, Harry - disse Munro. - Um dos rapazes entrou em pânico.

- s vezes, chego a pensar quem será o verdadeiro inimigo

- disse Martineau. - Se ainda estiver interessado, encontra o seu coronel americano no avião.

Passou por eles, atravessou a fila de homens e caminhou sem destino em direcção aos edifícios do velho Aeroclube. Sentou-se nos degraus do clube e acendeu um cigarro, subitamente gelado.

Daí a pouco, apercebeu-se da presença de Sarah, sentada a pouca distância.

- Que é que ele queria dizer com kaddish por ele?

- E uma espécie de oração fúnebre. Uma coisa judia. Geralmente, são os parentes que a dizem, mas ele não os tinha. Agora, o teu treino está completo. Não há honra, não há glória, apenas Heini Baum, ali, deitado de costas - disse ele.

P“s-se em pé e ela também. Alguém trouxera uma maca e estavam a levar Baum. Kelso atravessava a pista com as suas muletas, com Munro e Carter um de cada lado.

- Cheguei a dizer-te que te saíste muito bem? - perguntou Martineau a Sarah.

- Não.

- Portaste-te muito bem. Tão bem que Dougal irá provavelmente tentar usar-te outra vez. Não deixes. Volta para o hospital.

- Penso que nunca se deve regressar a coisa nenhuma. Começaram a andar em direcção aos carros que os aguardavam. -E tu?

- Não faço a mais pequena ideia.

Ela deu-lhe o braço e apertou-o com força e, à medida que as luzes da pista se iam apagando, atravessaram juntos a escuridão.

JERSEY,l985

Capítulo Dez

HAVIA SILÒNCIO na biblioteca e Sarah Drayton estava de pé, a olhar lá para fora pela janela. A porta abriu-se e o criado entrou com um tabuleiro que colocou numa mesa baixa junto à lareira.

- Café, contessa.


- Obrigada, Vito. Eu trato disso.

Ele saiu e ela sentou-se e pegou na cafeteira.

- E que é que aconteceu depois? - perguntei eu.

- Bem, Konrad Hofer partiu no Storch na manhã seguinte para informar Rommel do sucedido.

- E como é que Rommel se defendeu?

- Tal qual como Harry sugerira. Foi falar pessoalmente com Hitler. Disse-lhe que fontes dos Serviços Secretos o tinham avisado da possibilidade de atentados contra a sua vida e que fora por isso que utilizara Berger para se fazer passar por ele. Se tivesse ido a Jersey, Harry tê-lo-ia assassinado. Berger foi considerado um traidor que abandonara o barco quando estava a ir ao fundo.

- Tenho a certeza de que Rommel não p“s as coisas ao F_hrer exactamente dessa maneira.

- Provavelmente não. O que fez com certeza a sua história parecer tão verosímil aos olhos do F_hrer foi o próprio Harry.

- Não estou a perceber.

- Harry arriscara-se muito ao dizer a Hofer quem era. A Gestapo andava atrás dele há muito tempo. Lembre-se de que, por pouco, não o tinham conseguido apanhar depois daquela operação em Lyons.

- Por isso acreditaram em Rommel?

- Oh, não me parece que Himmler tenha ficado muito contente com a história, mas o F_hrer parecia suficientemente satisfeito.

Puseram uma pedra sobre o assunto. Não o queriam ver na primeira página dos jornais. O mesmo se aplicou à nossa gente.

Com o Dia D a aproximar-se, Eisenhower ficou encantado por ter Kelso de volta inteiro, e os nossos Serviços Secretos não quiseram tornar público o caso Baum, porque isso levantaria dificuldades a Rommel e aos outros generais que conspiravam contra Hitler.

- E quase conseguiram - disse eu.

- Sim, o atentado bombista em Julho desse ano. Hitler foi ferido, mas sobreviveu. Von Stauffenberg e outros conspiradores foram executados.

- E Rommel?

- Três dias antes do atentado contra Hitler, o carro de Rommel foi metralhado por aviões aliados. Ele ficou gravemente ferido.

Embora estivesse envolvido na conspiração, isso deixou-o de fora num sentido prático.

- Mas desmascararam-no?

- Sim. Alguém deu com a língua nos dentes sob tortura da Gestapo. Mas Hitler não queria o escândalo de ter o maior herói de guerra alemão no banco dos réus. Deram-lhe a possibilidade de se suicidar.

- E Hugh Kelso?

- Não era suposto ele regressar ao activo, por causa daquela perna, mas precisaram da sua perícia de engenheiro para as travessias do Reno em Março de 1945. Foi morto quando supervisionava os trabalhos na ponte danificada de Remagen. Uma armadilha.

Levantei-me, fui até à janela e olhei para a chuva lá fora, pensando em tudo aquilo.

- Espantoso - disse eu. - E o mais extraordinário é que toda a história nunca veio a lume.

- Houve uma razão para isso - disse ela. - Depois de Jersey ter sido libertada a 9 de Maio de 1945, os tempos foram difíceis, com acusações e contra-acusações sobre aqueles que supostamente tinham colaborado com o inimigo. Foi nomeada uma comissão governamental para fazer a investigação e ao relatório que elaborou foi dada uma classificação de segurança especial de cem anos. Não pode ser lido até ao ano 2045.

Fui novamente sentar-me.

- E que é que aconteceu a Helen de Ville, a Gallagher e a Guido?

- Não foram alvo de qualquer suspeita. Guido foi feito prisioneiro no fim da guerra, mas Dougal Munro tratou da sua libertação quase logo a seguir. O marido de Helen, Ralph, voltou em más condições. Fora ferido na campanha do deserto. Nunca chegou propriamente a recuperar; morreu três anos depois da guerra.

- Ela chegou a casar com Gallagher?

- Não. Parece disparatado, mas acho que foi porque se conheciam há tempo demais. Ela morreu há dez anos. Ele logo a seguir, numa questão de meses. Tinha oitenta e três anos e ainda era um grande homem.

Estivera a adiar a pergunta mais importante.

- E você e Martineau? Que é que aconteceu?

- Condecoraram-me com uma MBE, Military Division. A causa da condecoração não foi especificada, naturalmente. E

Martineau recebeu a Distinguished Service Order. Mas a sua saúde deteriorou-se. O ferimento no peito da operação de Lyons deu-lhe sempre problemas, embora trabalhasse no quartel-general do EOE por uns tempos. Aconteceu muita coisa depois do Dia D.

Vivemos juntos. Tínhamos um apartamento perto do escritório.

- Foram felizes?

- Oh, sim. - Acenou com a cabeça. - Mas eu sabia que não podia durar. Ele precisava de mais, percebe?

- Acção?

- Exactamente, precisava dela como de uma droga. Em Janeiro de 1945, certos generais alemães entraram em contacto com os Serviços Secretos Britânicos com o objectivo de acelerar o fim da guerra. Dougal Munro engendrou um esquema no qual um avião de treinos Arado ao serviço do Enemy Aircraft Flight seria levado para a Alemanha por um piloto voluntário com Harry como passageiro. O avião tinha as insígnias alemãs e ambos vestiam uniformes da Luftwaffe.

- E não chegaram lá?

- Oh, chegaram. Aterraram do outro lado do Reno, onde Harry se encontrou com as pessoas envolvidas e regressou. Fora emitida uma ordem ao comando táctico do caça avisando-os do seu regresso num avião alemão. Segundo parece, a mensagem não foi enviada para uma determinada esquadrilha e o Arado foi atacado por um Spitfire próximo de Margate. A visibilidade era muito má nesse dia e presumiu-se que o Arado caíra no mar.

Agora, sabemos na realidade o que aconteceu.

Fez-se silêncio. Ela pegou numa acha do cesto e p“-la na lareira.

- E você? - perguntei. - Como é que reagiu?

- Bem. Obtive uma autorização do Governo para frequentar a Escola de Medicina. Depois de acabar o curso, fui para o Cromwell Hospital durante um ano como médica interna. De certo modo, parecia adequado. Para mim, era onde tudo tinha começado.

Guido visitava Londres regularmente depois da guerra. Durante todos os anos que estive na Escola de Medicina, pediu-me para casar com ele. Eu disse sempre que não.

- E ele mesmo assim voltava e tomava a tentar?

- Nos intervalos dos seus outros casamentos. Três ao todo.

Cedi, por fim, deixando bem claro que continuaria a trabalhar como médica. Uma coisa que ele omitira fora a riqueza da família Orsini. A propriedade deles era fora de Florença. Fui sócia de uma clínica de campo lá durante anos.

- Então é mesmo condessa?

- Receio bem que sim. Condessa Sarah Orsini. Guido morreu num desastre de automóvel há três anos. Consegue imaginar um homem de sessenta e quatro anos ainda a pilotar Ferraris?

- Pelo que me contou dele, acho que se adequa.

- Quando ele morreu, decidi voltar para Jersey. Esta ilha tem esse género de efeito. Atrai de volta as pessoas, por vezes passados muitos anos. Como médica, aqui é mais fácil usar o meu nome de solteira. As pessoas achariam o outro bastante intimidante.

- Você e Guido foram felizes?

- Eu gostava muito de Guido. Dei-lhe uma filha e depois um filho, o actual conde, que me telefona de Itália duas vezes por semana, implorando-me que regresse a Florença.

- Estou a ver.

Ela levantou-se.

- Guido compreendia aquilo que chamava o fantasma da minha máquina. O facto de a recordação de Harry não me abandonar. Como a tia Helen me disse, há uma diferença entre estar apaixonado e amar.

- Ela também lhe disse que Martineau não era o homem indicado para si.

- E tinha razão nisso. O que quer que fosse que se transformara no espírito de Harry era demais para eu poder curar. -- Abriu outra vez a gaveta da secretária, tirou um pedaço de papel amarelado e desdobrou-o. - Este é o poema que ele deitou fora naquele primeiro dia na sua casa em Dorset. Aquele que eu recuperei.

- Posso ver?

Ela passou-mo e li-o rapidamente.

A estação é sinistra à meia-noite.

A esperança é letra morta. tempo de mudar de comboio para algo melhor.

Não há comboio local agora

há muito que arrancou.

Não há maneira de voltar pra trás

para onde tudo começou.

Sentia-me inexplicavelmente entristecido ao devolver-lhe o poema.

- Ele dizia que era um poema péssimo - disse ela. - Mas diz tudo.

Não havia muito a responder. Olhei para o relógio.


- Já lhe tomei tempo demais. melhor ir andando para o hotel.

- Levo-o lá.

- Não é preciso - protestei. - Não é longe.

- Não faz mal. Quero levar umas flores para a sepultura.

AtNDn chovia muito quando descemos a colina e estacionámos à entrada da Igreja de St. Brelade. Sarah Drayton saiu e abriu o guarda-chuva e eu entreguei-lhe as flores.

- Quero mostrar-lhe uma coisa - disse ela. - Por aqui. --Dirigiu-se à minha frente para a parte mais antiga do cemitério e por fim parou em frente de uma lápide de granito coberta de musgo. - Que é que pensa disto?

Dizia: þþAqui jazem os restos mortais do capitão Henry Martineau, membro do S.ó Regimento de Infantaria de Bengala, falecido a 7 de Julho de 1859.þþ - Só a descobri no ano passado, por acaso. Pus uma daquelas agências que se encarregam de descobrir antepassados a tratar do assunto. O capitão Martineau, av“ de Harry, veio para esta ilha quando passou à reserva. Segundo parece, morreu aos quarenta anos devido aos efeitos de um ferimento antigo. Depois, a mulher e os filhos emigraram para a América.

- Que extraordinário.

- Quando aqui viemos, Harry disse-me que tinha a sensação estranha de estar em casa.

Chegámos ao local em que Harry Martineau fora enterrado ao princípio da tarde e ficámos de pé a olhar para o monte de terra fresca. Sarah pousou as flores em cima e endireitou-se. O que disse a seguir espantou-me.

- Raios te partam, Hatry Martineau - disse baixinho. -- Fizeste mal a ti mesmo, mas a mim também.

Não havia resposta para aquilo, nunca haveria, e subitamente senti-me como um intruso. Voltei-me e afastei-me, deixando-a ali à chuva naquele cemitério antigo, sozinha com o passado.

 

 

                                                                  Jack Higgins

 

 

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