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Series & Trilogias Literarias
Heath Boscastle faria qualquer coisa por Russell, seu amigo e camarada, o homem que salvou sua vida na batalha.
Mas o que lhe pede é justamente a mais difícil tarefa que pode imaginar: cuidar de Julia, noiva de Russell, e protegê-la das ameaças de seus inimigos enquanto ele está fora da Inglaterra.
Heath recorda muito bem como conheceu Julia, anos atrás, quando recebeu desta um tiro acidental durante uma caçada.
As feridas de bala já estão cicatrizadas, mas não o desejo ardente do encontro furtivo que tiveram nessa mesma noite.
Um desejo que teve que reprimir durante os longos anos nos quais ela decidiu sair de sua vida e partir para uma terra longínqua. Agora, Heath se debate entre uma paixão que nunca morreu e a fidelidade a seu amigo. Mas Julia tem seus próprios planos neste jogo de homens...
FOI UM ENCONTRO FUGAZ...
Julia era pouco mais que uma menina quando perdeu a cabeça por Heath. Talvez tenha se deixado seduzir pelas estranhas circunstâncias em que se conheceram, talvez pela fama de conquistador que precedia o jovem e atraente Boscastle. Mas logo tomou sua decisão, casou-se com outro homem e fez todo o possível para manter-se longe daquele amor ardente e da ameaça de escândalo. Na Índia, a moça se convertera em uma mulher decidida e forte. Quando seu marido morreu, tornou-se novamente dona de seu destino. O coronel Russell parecia um bom partido para voltar a entrar na sociedade britânica, mas a aparição de Heath fazia reviver um fogo que nunca se apagou completamente... e ela está disposta a avivá-lo.
... MAS SUA LEMBRANÇA CONTINUA ARDENDO EM SEU INTERIOR
Durante seus anos no exército, Heath Boscastle esteve com muitas mulheres, mas nenhuma pôde apagar de sua memória aquela noite com Julia, depois do acidente na caçada em que se conheceram. Tampouco esqueceu a promessa que fez a ela de não revelar a ninguém seu breve encontro amoroso. Uma promessa que lhe impede de rejeitar o pedido de seu amigo Russell, por muito que lhe torture reencontrar-se com ela depois de tanto tempo. Tem ante si a tarefa de defender a mulher que mais deseja no mundo dos planos de um perigoso assassino, mas o mais difícil será manter suas próprias mãos afastadas de seu corpo...
Um
Mayfair, 1814
Até essa noite, o tenente coronel lorde Heath Boscastle tinha vivido sob a prazerosa ilusão de que era senhor de seu destino. E não era que tivesse escapado totalmente da má sorte, não; pelo contrário, tinha enfrentado e superado mais que sua justa cota de adversidades. Estava convencido de que já merecia certa paz. Afinal, tinha sobrevivido à guerra, à tortura, à espionagem, a duas irmãs temperamentais e a uma
família que desafiava constantemente as regras da sociedade.
Talvez pudesse atribuir a todas essas experiências que tivesse conseguido dissimular o assombro que lhe causou o que acabava de lhe pedir seu amigo o coronel sir Russell Althorne.
Um homem menos experiente que Heath em ocultar suas emoções poderia ter se traído. Mas não o delatou a menor emoção. O mais provável era que estivesse em um leve estado de comoção. Mais ou menos havia imaginado que Althorne lhe exigiria voltar para o serviço militar, vale dizer como soldado, não como acompanhante de uma dama.
Não havia esperado essa lembrança de uma aventura sexual do passado, por inesquecível que tivesse sido essa aventura.
- E bem, fará ou não? - Perguntou-lhe Russell pela segunda vez. -
Quero partir de Londres com este assunto resolvido.
Fará o favor de cuidar de Julia em meu lugar enquanto eu estiver ausente?
- Poderia ter dito isso com mais tempo.
- Estava em Hampshire.
- Poderia ter escrito.
- O que? Para que tivesse tempo de negar?
- Você e seu maldito coração, não é? - Disse Heath, movendo de lado a lado a cabeça.
Estavam em pé na galeria que dava ao salão de baile, a um lado do primeiro andar da magnífica escada da mansão de Mayfair. Para qualquer um que os observasse do muito iluminado salão de baile de baixo pareceriam dois convidados aborrecidos que se afastaram da buliçosa multidão para fumar seus charutos em paz.
Tinham fortalecido sua amizade quando eram oficiais novatos e inexperientes da cavalaria em Portugal, onde as emboscadas, as batalhas, o trabalho de reunir informação e as patrulhas na gélida escuridão davam respostas a sua sede de aventuras. Desgraçadamente,
Heath foi capturado em uma dessas ações e foi o coronel sir Russell Althorne, seu superior, quem o resgatou, perdendo um olho ao fazê-lo pelo que foi aclamado como herói.
Heath olhou através da nuvem de fumaça à multidão que formava redemoinhos além das colunas que sustentavam a galeria.
Distraidamente pensou se a mulher de quem estavam falando estaria nessa festa. Reconheceriam-se? O que conversariam? O encontro seria tremendamente incômodo, levando em conta sua curta, mais memorável aventurazinha.
- Não posso - disse - Faz muitos anos que não vejo Julia. Não sabia que seu marido tinha morrido nem de que ela tinha voltado para a Inglaterra.
Como tampouco sabia que Russell, caçador e com feituras de herói, tinha se comprometido em matrimônio com ela. Althorne sempre foi um homem ambicioso e competitivo, já na época da universidade.
Aparentemente estava resolvido a deixar sua marca no mundo.
Era alguns centímetros mais baixo que ele, mais largo e robusto, de cabelo castanho acobreado, olhos castanhos e feições angulosas.
O seu atrativo era simples; o que lhe faltava em refinamento compensava com resolução.
- Tive que convencê-la para que aceitasse minha proposta - disse Russell então, em um tom que expressava muita perplexidade. - Pode acreditar que Julia seria capaz de me rejeitar?
- No que estaria pensando? - murmurou Heath.
- Não estava pensando, obviamente.
Russell sorriu a uma das agraciadas jovenzinhas debutantes.
Confusa, a garota ruborizou, tropeçou e se chocou com seu par de dança.
Russell riu.
Heath exalou um suspiro.
- Está em perigo? - perguntou.
- Não sei. A tia de Julia está convencida de que vigiam sua casa.
Eu duvido. Lady Dalrymple tem fama de ser um pouco tonta. De qualquer forma acredito que não é prudente subestimar Auclair. Este homem se bate em duelos mortais por simples diversão. Parece que seu desejo de vingança é algo pessoal.
- Como sabe?
Russell apertou a mandíbula.
- No submundo comentou que deseja me matar.
- A guerra terminou.
- Ao que parece Auclair não saciou sua sede de violência. A última vez que o viram esteve em Tortoni e em outros cafés em busca de uma boa briga. Sua conduta não é algo que possa entender uma mente racional.
Heath ficou em silêncio. Os dois sabiam muito bem que Armand Auclair era uma ameaça para eles, pois desejava vingar-se. Ex-espião francês, Auclair não só tinha torturado a ele, mas também a muitíssimos outros soldados ingleses, e tinha evitado que o capturassem em Portugal. Nem ele nem Russell nuca tinham visto seu rosto; durante os interrogatórios Auclair usava uma máscara de verdugo. Russell sabia muito bem sobre as horríveis torturas que Auclair infligia aos homens que aprisionava; a maioria tinha morrido.
Mas teria uma ideia Russell do que tinha significado para ele a mulher com quem pensava casar-se? Pelo que aconteceu nesse mês de agosto há tantos anos?
Era evidente que não. O mais certo era que Julia não tinha contado. Se o tivesse feito, por nada do mundo estaria tendo lugar essa conversa.
***
Seu encontro com Julia Hepworth foi uma apaixonada e muito
breve aventura amorosa secreta. Não existia ninguém no mundo que soubesse que a tinha desejado desde o dia em que atirou em seu ombro, há vários anos; que ela era a única mulher a quem desejava não ter perdido. Tinha vacilado em reconhecer isso inclusive para si mesmo.
Somente com o passar dos anos compreendeu que nunca encontrou outra que a substituísse.
A ferida física não permaneceu, mas ele nunca voltou a sentir-se como antes; a outra ferida estava onde não se via.
Recordava com todos os detalhes esses momentos, quando ele saiu em silêncio detrás de um montão de pedras para fazer uma brincadeira com Russell saltando por cima e Julia atirou nele de seu cavalo.
À bala lhe roçou o ombro.
Já o primeiro olhar que lhe lançou lhe perfurou o coração; de quando em quando essa ferida sangrava um pouco, embora tivesse aprendido a viver com a dor. Não pôde deixar de sorrir levemente ao recordar esse primeiro encontro.
- Está muito ferido? - Perguntou ela, saltando do cavalo para examiná-lo - Diga-me, por favor, que não o matei.
Ele não se moveu, submerso em muitas sensações contraditórias: a lacerante dor no ombro; a vergonha de ser atingido por uma mulher; o perturbador calor das mãos dela ao lhe abrir com toda naturalidade a jaqueta de montar para lhe examinar o peito. O toque de seu cabelo acobreado escuro em seu ventre lhe inflamou os sentidos.
Como podia desejar uma mulher que quase o matou, desafiava toda razão. Mas, condenação, ela o excitava.
Estreitou os olhos, considerando a situação.
- Ouça, diga algo - disse ela, aterrada.
Ela era alta, de corpo voluptuoso, formosos seios e figura fina e flexível; francamente imponente. Era a mulher mais atraente que tinha
conhecido em sua vida, e desejou deitar-se com ela ali mesmo. Ali, entre as pedras, como um bárbaro.
- Muito bem - disse entre dentes, reprimindo todos seus instintos bárbaros - Matou-me. Estou morto. Fica feliz com isso?
- Não tem por que ser tão grosseiro.
- Não? Perdoe-me se me é difícil demonstrar minhas boas maneiras estando deitado de costas com uma ferida de bala.
- Não sei por que é tão horrendo. Foi um acidente. Assustei-me. De verdade pensei que poderia tê-lo matado.
- Aproxime-se - grunhiu ele. - Atirou em mim. Que demônio se apoderou de você? Atirou em mim.
- Bom, não é de estranhar - disse ela, já em tom indignado. - O que pretendia ao saltar em cima de mim vindo de trás dessas pedras?
- Confundi-a com um conhecido.
- Bom, eu pensei que era a raposa raivosa que ontem à noite atacou ao gado.
- Acaso tenho aspecto de raposa raivosa? - Perguntou ele, mal-humorado.
Sentiu-se desconcertado com o brilho pícaro que viu em seus olhos cinza e o atraiu também. Não sabia o que era pior, que ela o tivesse ferido ou que ele a desejasse apesar disso. Essa não era uma reação normal de alguém que tinha recebido um tiro. Sentou-se bruscamente quando lhe puxou para trás a camisa para lhe examinar a ferida.
- Não parece tão grave como temi.
- Para você é fácil dizer isso.
- Sinto muito.
Ele virou a cabeça e sentiu na face o contato de seu forte queixo.
- É um ombro formoso - disse ela em voz muito baixa - no que a ombros se refere.
Ele sorriu a seu pesar.
- Sim?
- Claro que não sou uma perita.
Ele olhou para sua boca: vermelha, úmida, convidativa. Tinha ouvido um dos jovens do grupo comentar que Julia tinha alguma coisa de diabólica; mas soou como elogio do que como crítica. Apostaria que o homem que disse isso não tinha recebido jamais um tiro dela nem logo sofrido o delicioso padecimento de tê-la virtualmente engatinhando em cima dele para lhe tirar a camisa. Ou talvez sim. Por tudo o que ele sabia, ela tinha deixado algumas vítimas a sua passagem.
- Temos que contar a alguém? - Perguntou ela, olhando-o suplicante nos olhos.
- Isso depende.
Decidiu que iria beijá-la. Qualquer jovenzinha que sabia disparar e quase o despiu dessa maneira merecia que a beijassem. Se não mais.
Bom Deus, que atraente era, pensou, desfrutando do quente contato de seu ventre ao lado de seu corpo.
Ela desceu a mão pelo peitilho da camisa, lhe roçando o peito com as pontas dos dedos enluvados. A excitação lhe inundou a virilha.
- Depende do que? - Murmurou ela
Jogou atrás a cabeça para olhá-lo desconfiada, e esse olhar disse a ele que não era o primeiro homem que a encontrava atraente. Embora supusesse que fosse o primeiro homem em quem tinha atirado.
- De quanto o sente.
Ela curvou os lábios cheios em um sorriso.
- Todos me advertiram que é um patife, Heath Boscastle.
- Lástima que ninguém me advertiu sobre você.
- Que sou temerária e impulsiva?
- Não. Que é tentadora e...
Uma sombra caiu como um pano mortuário sobre essa veemente conversa, molhando o ar, apagando as chamas invisíveis que saltavam
entre eles. Já tinha passado a oportunidade de beijá-la. De repente ele sentiu a intensa dor no ombro, e fez uma careta. Julia se levantou de um salto, pisando em uma mão. Poderia ter soltado uma fileira de maldições. Condenada mulher descuidada.
- Acredito que vai viver - Declarou ela, em tom impessoal, agachando-se para arrumar sua camisa sobre os ombros.
- Que diabos aconteceu? - Perguntou a sombra.
- Atirei nele - Respondeu ela, com o aspecto de não lamentar nem a metade do que deveria.
- O que?
A sombra parecia horrorizada. Heath percebeu que era Russell, a última pessoa que teria desejado que aparecesse como testemunha de sua humilhação.
- Disparou em meu melhor amigo? - Disse então Russell. -
Responda-me imediatamente, Boscastle, o que fez para que a senhorita Hepworth tivesse um motivo para atirar em você?
Depois disso ele voltou sozinho à casa de seu anfitrião; não estava com ânimo para os sarcásticos comentários de Russell. Decidiu que conversaria com Julia durante a festa quando estivesse sozinha.
Não teve necessidade.
***
Várias horas depois ela o encontrou sozinho na biblioteca. Outros convidados tinham saído para caçar e estariam de volta na última hora da tarde, ao anoitecer. Só ficaram em casa ele e as crianças.
Ao ver quem entrava para interrompê-lo, ele deixou de lado o livro.
Já tinha desvanecido a indignação; mas a atração por ela não.
- Não veio atirar em mim outra vez, não é? - Perguntou-lhe, em tom mais severo do que pretendia.
O ombro estava perfeitamente bem e sabia que tinha sido um acidente.
Ela se virou surpresa e dilatou os olhos ao vê-lo, e suas faces adquiriram um tom rosa intenso, fazendo um forte contraste com sua pele branquíssima. O cabelo lhe caía desordenado sobre os ombros, e seu traje de montar estava um pouco enrugado. Dava a impressão de ter entrado para esconder-se de alguém.
- Não estou armada - Disse, levantando as mãos, em sinal de rendição - Reviste-me se quiser.
Ele sorriu. Nem sequer pôde simular que estava zangado, ante essa maneira que tinha ela de desconcertá-lo.
- Acho que vou revistá-la.
- Como quiser, simplesmente não...
Soaram passos fora da porta e se ouviram vozes de crianças conversando em voz baixa.
- Entrou na biblioteca?
- Foi se esconder no armário. Vamos, soldados, atrás dela!
Julia se virou e passou a chave na porta. Quando se voltou, já tinha lhe rodeado a cintura, atraindo-a lentamente para ele. Essa era uma oportunidade que não deixaria passar. Ela lhe devia. Abaixou a cabeça e lhe roçou o contorno da face com os lábios; tinha a pele suave como nata. Desejou saboreá-la.
Ela entreabriu os lábios, brandos, cheios, convidativos.
- Não me delate - sussurrou, lhe roçando o braço com seus seios cheios - porque se o fizer terei que passar toda a tarde lendo para os primos.
- Os primos Boscastle?
Estava observando seu rosto, resistindo muito levemente a deixar-se levar por ele para o sofá.
- Sim.
- Tem minha compaixão - murmurou ele sentando-se e sentando-a a seu lado - Poderia ler para mim se quiser.
- Não deveríamos - murmurou ela, afundando o rosto em seu pescoço - De verdade, não deveria estar sozinha com você assim.
- Sei. - O suave peso de seu corpo, o aroma de seu cabelo, estava deixando-o louco. - Vamos fugir.
- Descarado - disse ela, se afastando e mordendo o lábio, com seus olhos cinza sonhadores - Como se pudesse.
- Estou louco por você - disse ele, contemplando-a com as pálpebras estreitas.
- Vai partir para a guerra! - Exclamou ela, rindo escandalizada.
- E se morrer e não voltar algum dia? - Perguntou ele, atraindo-a novamente para ele.
Seus olhos cinza brilharam de travessura e de uma saudável dose de dúvida. Inclusive nesse momento tinha os pés firmemente plantados no chão. Sensata e sexy. Ele jamais encontrou uma combinação assim antes.
- E o que? - Brincou ela.
Ele introduziu a mão sob sua jaqueta de montar, deslizando-a por debaixo de um de seus firmes seios. Ela tinha alguma coisa a que não se podia resistir; algo que equilibrava sua natureza séria. Não sabia se ele a estava seduzindo ou ela estava seduzindo a ele. Não recordava ter iniciado com tanta facilidade esse tipo de intimidade com nenhuma outra mulher. Desde o momento em que a viu pela primeira vez compreendeu que ela era diferente.
- Tem a pele cálida e suave.
Ela fez uma inspiração brusca.
- Ninguém me tocou jamais aí.
Beijou-lhe e mordiscou um lado do pescoço. Não acreditaria nunca que essa não era sua maneira habitual de comportar-se, nem que de todos seus irmãos ele fosse o mais comedido.
- Nunca ninguém me tentou assim.
- Se você o diz.
- Acha que mentiria?
- Acredito que é um patife perigoso e...
Ele lhe beijou a tentadora boca, pressionando-a e afundando-a no sofá. Teria matado a qualquer um que os interrompesse. Desejava-a toda para ele.
Uma coisa levou a outra e outra. Os dois eram jovens, impulsivos e apaixonados. Nesse tempo ele já conhecia as maneiras de excitar uma mulher, mas nesse encontro não houve nada rotineiro nem planejado.
Passou quase uma hora beijando-a, lhe devorando a boca, inteirando-se dos pequenos detalhes que a agradavam. Conversavam, entre carícia e carícia. Pouco a pouco, lentamente, com suas carícias e mimos foi introduzindo-a nos segredos da sensualidade; embora ela fosse uma inocente nos assuntos sexuais, era tão inteligente que ele não podia prever suas reações; nem sequer podia prever as reações dele. A única coisa que sabia era que jamais em sua vida havia se sentido assim.
Perdeu a noção do tempo. O resto do mundo desapareceu de sua consciência, todo ele concentrado nessa mulher. Recordava que rodaram pelo chão, a jaqueta dela jogada sobre uma mesa de cartas, com os seios nus sobre a blusa desabotoada.
Pendia-lhe a camisa aberta até a cintura. Estava ofegando de desejo, já pensando na forma de mantê-la afastada de seus amigos todo o resto da festa. Ela tratou de afastá-lo lhe empurrando o peito com as palmas das mãos quando ele se inclinou sobre ela, mantendo-a cativa entre suas coxas. Ansiava a relação sexual; estava duro de excitação, desesperado por encontrar alívio. Ouviu-a gemer suavemente quando friccionou contra ela seu membro ereto; sentia o calor de seu corpo, seus estremecimentos de impotente excitação, a incitação de sua suave pele. Levantou-lhe a saia, desesperado por ter mais dela. O futuro não existia. Devia tê-la, mesmo que soubesse que era muito cedo para isso.
Brandamente lhe afastou com os dedos os cachos púbicos molhados. Ela ficou imóvel ante essa invasão, e logo a penetração de seu dedo.
- O que está fazendo? - Sussurrou, com a voz entrecortada, insegura.
- Dói?
Ela negou com a cabeça, apertando os músculos interiores e respirando com entrecortados fôlegos de prazer. Ele se deleitava nesse jogo com ela, acariciando-a, lhe beijando a boca e os seios. Tinha os dedos molhados com sua essência. Nunca antes, e nunca depois desse dia, tinha experimentado uma excitação tão intensa e desesperada.
Ela reagia a tudo o que ele fazia, com seu corpo maduro para suas carícias.
- E se alguém notar que não estamos? - Perguntou ela, com os olhos fixos em seu rosto.
- Estava fazendo uma boa ação - Disse ele, afundando mais os dedos e deslizando os lábios por seu pescoço, seus sentidos cheios com o festim de sua pele branca e suave como nata.
- Uma boa ação? - Riu ela.
Ele sorriu de orelha a orelha.
- Sim. Estava lendo ao homem a quem feriu a bala.
Olhou seus ombros, o peito e o ventre nus.
- Não tem nada mal.
- Além do buraco no ombro.
Nesta apaixonada tarde não pensou muito em outros aspectos de sua vida; ia partir à guerra e sabia que era possível que não voltasse.
Considerando toda a temeridade com que se comportaram, foi um milagre que não a desonrasse totalmente. Se tivesse atuado conforme seus instintos animais, a teria convencido com mimos que se deitasse com ele. Mas os dois recuperaram a prudência a tempo. Ele não
desejava lhe fazer mal.
Ajudou a arrumar a roupa, consciente do longo tempo que estiveram afastados do grupo.
- Esta noite a buscarei no jantar.
Permitiu que lhe desse um último beijo junto à porta. Continuaram abraçados um momento, seus corpos ardendo, excitados até o extremo da dor.
- Não.
- Por que não?
- Por favor, não conte a ninguém.
Ele suspirou com o rosto em seu pescoço, inspirando profundamente seu aroma. Desejava que ela continuasse com ele, não queria abrir a porta.
- Jamais.
- Promete?
Pegou seu forte queixo com uma mão.
- Prometo, mas desejo voltar a vê-la. Tenho que voltar a vê-la.
Mas não voltou a vê-la. Nessa noite ela não apareceu para jantar, dizendo que pegou um resfriado. Ele pensou na possibilidade de conversar com o pai dela, fazer uma confissão e pedir-lhe a mão em matrimônio.
Mas ela o tinha feito prometer que não diria a ninguém.
Portanto não foi falar com seu pai.
Mas às vezes pensava no que teria acontecido se o tivesse feito.
***
Até essa noite ele tinha suposto que nunca voltaria a vê-la. Tinha passado anos desde que os dois prometeram evitar-se mutuamente.
Depois ela partiu e se casou com outro homem, e o deixou sozinho curando o ombro ferido e seus sentimentos magoados. O mais provável era que ela tivesse feito todo o possível para esquecer o ocorrido.
- O problema - disse Russell, irritado, rompendo o silêncio - é que Julia acredita que é capaz de cuidar de si mesma. Sempre acreditou.
- Talvez seja capaz.
- Não contra um homem que assassina a sangue frio.
Dizendo isso, Russell puxou a borda da seda negra que lhe cobria o olho. Heath não sabia discernir se isso era um gesto nervoso ou um aviso nada sutil do que tinha sacrificado para salvar um amigo: ele.
- Atirou em um homem na Índia - continuou Russell - sabia?
Não, Heath não sabia. Tinha-a acreditado perdida para sempre.
Nunca quis inteirar-se dos detalhes de sua vida de casada em outro país. Não era bom perdedor no amor.
Tinha tentado convencer-se de que não lhe importava.
- A um cipayo? - perguntou.
- Não, em um soldado inglês bêbado que estava acossando uma de suas criadas. Atirou nele justo no traseiro.
Heath riu.
- Não, não sabia.
Embora não o surpreendesse.
- Graças a Deus isso não é de conhecimento público - disse Russell, com sentimento. - Não é o tipo de coisa da qual deve alardear uma jovem decente.
- Pensa mal dela por isso?
- Não, claro que não - Replicou Russell, sorrindo como um menino.
- Mas não é preciso que o mundo civilizado saiba que estou maluco por uma condenada amazona, não é verdade? Que este seja nosso pequeno segredo.
Heath arqueou uma sobrancelha. Russell estava apaixonado. Ela fazia isso a um homem.
- Não direi a nenhuma alma.
- Isso eu sei também. - Então o sorriso de Russell se tornou
insultante - Atirou no seu ombro uma vez, não é? - Começou a rir. - Bom Deus, quase tinha esquecido. Foi muito engraçado. Você caído no barro, branco como um fantasma, e Julia certa de que o tinha matado. A princípio pensei que havia algo mais entre vocês. Estava verde de ciúmes. Parecia que ela estava estendida em cima de você.
Heath ficou em silêncio um momento; tinha a imagem viva na mente. Barro, dor, sangue, Julia inclinada sobre ele com esses limpos olhos cinza e seu exuberante e tentador corpo.
- Lembro-me que riu como louco quando entendeu o que tinha acontecido.
- Acredito que esse foi o dia em que decidi me casar com ela, se alguma vez me casasse.
Heath olhou para o salão de baile com a expressão imutável.
Divisou uma mulher que estava tentando esconder-se atrás de uma das colunas de suporte da galeria.
Não via seu rosto, mas algo que viu lhe captou o interesse. Que diabos estava fazendo? Brincando de esconder-se?
- Conquistou você e a metade dos homens presentes na festa aquele dia.
Russell apoiou um cotovelo no corrimão. A luz das velas do imenso lustre de lágrimas de vidro lhe iluminava a metade do rosto; a sombra fazia imprecisos os contornos da outra metade. Em parte um herói, em parte um descarado, pensou Heath. Era um ser humano com defeitos, ele sabia, sabia que talvez não fosse melhor no fundo do coração.
Russell não teve a infância fácil que teve ele; mais ou menos saiu de um nada para conseguir seus êxitos, e era um soldado condenadamente bom.
- À exceção de você - disse Russell. - Entre você e Julia se criou uma tremenda aversão, não é? Suponho que é natural. São totalmente opostos.
- Não sinto aversão, não tenho aversão por Julia.
- Vamos, está claro que sim. Jamais vi um homem e uma mulher chegar a extremos tão divertidos para evitarem-se mutuamente. Julia me obrigou a trocar meu lugar pelo dela na mesa essa noite, e no final não se apresentou. No dia seguinte partiu e a perdi. Ao menos até que seu marido teve a consideração de morrer em uma revolta.
Heath moveu a cabeça de lado a lado. O tempo tinha tratado bem Russell, lhe esculpindo ângulos masculinos no rosto para substituir o agradável atrativo infantil de sua juventude. Claro que a seda no olho favorecia sua fama de um heroísmo que desafiava à morte. Mas em seu coração, continuava sendo o mesmo bastardo tosco e simpático de sempre.
Mas uma vez lhe salvou a vida. E provavelmente voltaria a fazê-lo sem pensar duas vezes. Era um homem valente, apesar de todos seus defeitos.
Inclinou distraidamente a cabeça saudando um amigo que ia passando sob o balcão. Deveria saber que chegaria o dia em que Russell se aproveitaria de sua posição e de sua amizade. Mas nem em seus mais loucos sonhos teria imaginado que o favor teria a ver com Julia Hepworth.
Assombrava-o descobrir que seus sentimentos por ela continuavam em carne viva, tão agridoces, tão ambivalentes como então. Tinha acreditado que sua lembrança estava enterrada debaixo de muitos outros problemas de seu passado que era melhor não remover. Não lhe agradava particularmente que lhe recordassem o que perdeu.
- Se ela e eu nos damos tão mal - disse - bom, maior razão para não passarmos tempo em mútua companhia.
Esperou a resposta contemplando os graciosos e ágeis movimentos dos casais que estavam dançando uma valsa abaixo. Sentia o intenso olhar de Russell, avaliando-o, pensando, sopesando, dando
nova forma a sua estratégia. Era evidente que não albergava nenhuma suspeita do ocorrido entre ele e Julia naquela vez, tantos anos atrás.
Era possível que seu amor próprio não lhe permitisse imaginar que a mulher com quem pensava casar-se poderia ter se envolvido com um de seus amigos.
- Deve-me isso, Boscastle - disse Russell ao fim, com voz tranquila, intencional. - Estou cobrando um favor. Só quero que faça isto durante um mês.
Escureceram os olhos azuis de Heath. Um mês com Julia? Não tinha sido capaz de confiar em si mesmo com ela umas poucas horas.
- Tinha pensado ir a Paris.
- Acaso o estado maior de Wellington o convidou a ajudá-lo no papel de embaixador?
Heath quase riu. Russell era muito previsível em suas ambições.
- Teme perder uma oportunidade?
- Esta é uma oportunidade. Ajude-me a pegar Auclair e te garanto que o recompensarei.
- Por ser a babá de sua noiva? Dão medalhas por isso? O que devo fazer impedir que Julia atire em alguém? Fala sério?
Russell sorriu friamente.
- É um homem de palavra?
Um homem de palavra. Era, e sempre foi. Esse era seu único código infalível em um mundo de guerra e caos, a estrela polar que seguia quando começava a desviar-se de seu caminho. E a ironia era que justamente essa sua única virtude, ou defeito, lhe impedia de explicar por que tinha que se negar.
Explicar a verdade significaria descumprir a palavra dada a Julia.
Danificaria a opinião que tinha Russell dela; era concebível que pusesse um trágico fim a seu compromisso.
E ele ficaria como um canalha, um descarado, um sedutor de
jovenzinhas que beijava e depois contava. Preferia amputar o pé esquerdo; com certeza isso seria menos doloroso.
Balançou a cabeça, resignado. Carregava o peso de sua honra.
Isso deveria humilhá-lo por acreditar-se tão condenadamente reto.
Russell começou a rir.
- Por um instante pensei que se negaria. Por que não desce para falar com ela? Faça-se amigo.
- Contou a ela? - Perguntou surpreso com a arrogância do homem.
- Sim. Tente ocultar um segredo de Julia.
- Como reagiu?
- Parece-me que não acreditou de tudo que meu...
Captaram um movimento sigiloso na escada e os dois se viraram para olhar. Um empregado jovem de libré escura levantou os olhos e se aproximou dando-se ares de importância.
- Chegou isto para o senhor, sir Russell. O conde ordenou que o entregasse.
Russell abriu a carta selada e a leu.
- Auclair acaba de sair para a França - disse, soltando uma maldição em voz baixa. - Não tenho tempo para te convencer, Boscastle.
Tem que me fazer esse favor. Parece que estarei em Paris antes que você.
- Para causar problemas a Wellington?
Russell o olhou sério.
- Lembra como ela é não é verdade?
-Lembro-me - respondeu ele entre dentes.
Não só se lembrava da aparência de Julia, também se lembrava do feiticeiro timbre de sua voz, sua risada, a textura de sua pele. Lembrava-se dos reflexos dourados em seu cabelo avermelhado. E a sensação de seu cabelo sobre seu peito nu como a rede de uma sereia, sedutora e sensual.
Tinha a impressão de que se sentia atraído por ela desde, bom, desde sempre. Desde antes que seus encontros sexuais lhe deixassem vazio e insatisfeito. Ela não era a primeira nem a última mulher que tinha seduzido. Mas foi a única que lhe deixou a marca mais profunda em sua memória. A única que o deixou faminto, desejoso de ter mais dela, curioso por saber o que poderia ter sido.
Ninguém no mundo sabia isso, logicamente, nem sequer Julia. Não tinha falado de seus sentimentos nem sequer com seus irmãos.
Guardava para si seus assuntos e desejos pessoais. Preferia levar seus segredos à tumba, e não afogar as magoas embebedando-se no clube ou chorar sobre o ombro perfumado de alguma prostituta.
Franziu suas grossas sobrancelhas negras.
- Quando parte?
- Dentro de umas horas. Auclair não vai escapar.
Capítulo Dois
Julia estava escondida atrás de uma das colunas do salão de baile observando os dois homens que estavam na galeria. Era impossível decifrar sua conversa.
A essa distância não via seus rostos, mas a Heath Boscastle teria reconhecido em qualquer parte. O bonito demônio continuava atraindo a atenção. De fato, várias jovenzinhas debutantes tinham dado todo um espetáculo passando uma e outra vez de um lado a outro justo por baixo de onde estava ele.
Seu noivo também atraía a atenção. Franziu o cenho quando duas jovenzinhas pararam diante dela rindo.
- Acha que nos viram? - sussurrou uma.
Sua amiga olhou para a galeria.
- Boscastle está olhando fixamente.
- E sir Russell?
- Soube que se comprometeu em matrimônio, mas também está
olhando.
- Vamos olhar. São como deuses.
Julia pigarreou. As duas jovens se sobressaltaram, avançaram um passo e chocaram entre elas.
- Senhoritas - lhes disse, com bastante frieza - não lhes disseram que não só é má educação mais também imperdoável olhar fixamente, embora sejam aos deuses?
Depois que as garotas se afastaram, devidamente envergonhadas, ela, hipócrita que era, continuou olhando os dois atraentes homens que continuavam na galeria. Não era possível que houvessem conversado sobre ela todo esse tempo. Pareciam muito tranquilos, o que significava que Heath não tinha revelado seu segredo a Russell.
Heath olhou diretamente para o lugar onde estava ela. Escondeu-se atrás da coluna. Se Russell chegasse a descobrir o que aconteceu entre ela e Heath anos atrás, sentiria-se compreensivelmente consternado. O fato de que manteve segredo a faria parecer duplamente culpada.
Tinha bom motivo para sentir-se culpada. Pelo amor de Deus, depois de atirar em um homem, virtualmente o tinha convidado a desonrá-la, e tudo em um mesmo e inesquecível dia.
Ainda lhe gelava o sangue quando recordava Heath estendido entre as pedras, silencioso e imóvel. Qual não foi seu alívio quando ao saltar ao chão comprovou que continuava vivo. E muito vivo, por certo.
Seus olhos azuis a perfuravam como uma chama, desconfiados, furiosos, e desconcertantemente masculinos.
Ela teve a clara impressão de que a estava despindo com esses olhos, apesar dela poder tê-lo feito voar ao reino do além-túmulo.
- Atirou em mim.
- Bom, não é de estranhar. - Estava aterrada; ele tinha um corpo magnífico, e provavelmente a ferida causada por ela lhe deixaria uma
feia cicatriz nesse musculoso ombro. Seu pai voltaria a esconder a arma.
- O que pretendia ao saltar em cima de mim vindo de trás dessas pedras?
- Confundi-a com um conhecido.
- Bom, eu pensei que era a raposa raivosa que ontem à noite atacou o gado.
- Acaso tenho aspecto de raposa raivosa? - Perguntou ele, ofendido.
Não, pensou ela, mordendo a ponta da língua. Mais parecia um lobo magro e faminto que a qualquer momento saltaria sobre ela e a comeria. Inclusive ferido dava a impressão de ter uma força perigosa.
Era atraente e sensual. Tinham-lhe advertido que deveria tomar cuidado com ele, logicamente. Todas as jovens debutantes desejavam caçar um Boscastle. Bom, ela acabava de atirar em um. Valeria algo isso?
E então, para piorar as coisas, começou a lhe tirar a camisa. Seu alívio ao ver que a ferida era superficial deu lugar a uma pontada de prazerosa surpresa ao descobrir que era tão magnífico como imaginou.
- A ferida não parece grave como temi.
- Para você é fácil dizer isso.
Ela já começava a sentir-se melhor. Não era uma verdadeira ferida.
- Sinto muito.
E isso foi o começo. Um incidente humilhante que levou ao encontro sensual mais mágico que tinha experimentado em toda sua vida.
O erotismo de seus beijos, a pecaminosa emoção de estar presa sob esse duro corpo masculino, seguia atormentando-a como um sonho sensual. Jamais tinha imaginado, nem antes nem depois, que ela pudesse ser capaz de reagir assim a um homem.
E, logicamente, não conseguia imaginar o que diria quando se encontrasse cara a cara com ele essa noite.
Mas estava a ponto de descobrir.
Às vezes, quando analisava como tinha resultado sua vida, desejava que ele houvesse contado. Talvez ela não tivesse ido à Índia.
Talvez seu pai teria obrigado a casar-se com Heath, lhes aconselhando que se arrumassem o melhor possível. Não teria atirado no traseiro desse soldado; de todos seus pecados, esse era o que mais escandalizava à alta sociedade.
Alarmada, viu que Russell já não estava na galeria; que repentinamente Heath estava no outro extremo do salão. Bastou um único olhar a seu perfil, seu nariz aquilino, seu forte queixo com covinha, para que o coração pulsasse mais rápido. Apoiou-se na parede, observando-o com ressentida fascinação. Não poderia ter engordado, ou ter perdido alguns dentes? Talvez tivessem caído alguns dentes. De onde estava não lhe via bem o rosto. Mas o recordava. Recordava seus lábios firmes e sensuais com a pequena cicatriz branca, seu sedutor sorriso, os beijos vertiginosos que lhe deram.
Jamais tinha conhecido um homem que possuísse a letal elegância de Heath Boscastle, nem sequer um que se aproximasse. Um homem que uma vez a seduziu quando os dois eram tão jovens ainda que não soubessem se comportar. Ou foi ao contrário? Foi ela quem tentou torpemente seduzi-lo? A maluca Senhorita Hepworth, chamavam-na suas amigas nesse tempo. Provavelmente já tinham outro apelido: a Escandalosa Lady Whitby.
Teve muitíssimo tempo para refletir sobre o ocorrido entre ela e Heath. Anos, em realidade, de reflexão e pesar. Sendo mais velha, às vezes seu verdadeiro pesar era que não levaram até o final esse apaixonado encontro. Nem sempre tinha pensado assim. Foi necessária uma solitária vida em seu casamento para compreender o que desejava, o que poderia ter tido; que não havia um único caminho para a satisfação e contentamento.
Mas naquele dia em que se separaram, ela só sentiu um espantoso terror e um alívio culpado de que tivessem parado antes que alguém os surpreendesse.
E o desejo de que ele cumprisse a promessa e não contasse nunca.
Heath se aproximava.
Vinha caminhando para a coluna com a mesma indolente elegância que naquela vez a fizera estremecer, lhe tirava o fôlego, inclusive nesse momento. Era alto, tinha os ombros mais largos do que ela recordava, talvez estivesse um pouco mais magro, mas continua perigosamente atraente, com esse traje de noite de fraque e calça negra. Mais velho, mais experiente, mais cauteloso talvez, tão esquivo ao coração feminino como sempre. Fez-se um nó na garganta contemplando-o. Acreditou que nunca mais voltaria a vê-lo. A ansiedade que lhe produziam seus sentimentos não resolvidos a faziam desejar não ter que vê-lo. Doía-lhe imaginar o que poderia ter sido. E, entretanto não podia deixar de reconhecer a expectativa que sentia aumentar dentro dela. Um patife inteligente, bonito e irresistível. Que tolice supor que ele se conservaria tão intacto como estava em sua lembrança.
Seis anos, pensou assombrada por ter passado tanto tempo. Ela tinha se casado e enviuvado na Índia. Tinha visto um lado da vida do qual a alta sociedade só podia ler nos jornais e horrorizar-se.
O que teria ouvido Heath a respeito dela?
Sabia que ele a via, e sabia muito bem quem era. Seu passo era tranquilo, mas resoluto.
Recordaria o que fizeram naquele dia na biblioteca?
Preparou-se para olhar seu rosto aniquiladoramente belo, suas bem cinzeladas feições, seu queixo duro. Brilhavam-lhe os olhos azuis escuros com moderada diversão, respondendo a suas duas perguntas tácitas. Parou quando ela avançou um passo e ficou em seu caminho.
Sabia tudo sobre ela.
E recordava muito bem o que fizeram naquela vez.
Além disso, não tinha perdido nenhum só de seus brancos dentes.
Pior ainda, ela não podia deixar de olhá-lo, de embeber-se com tudo. Os vivos detalhes de sua aparência. Qualquer um diria que jamais em sua vida havia visto um homem bonito.
Claro que havia algo mais que isso. Compartilhavam um segredo.
- Julia - disse ele, com aquela voz profunda, culta, que fez aflorar outra onda de lembranças esquecidas, atormentando seus famintos sentidos. - Continua se escondendo, não é? Espero que não esteja armada esta noite. Deveria revistá-la?
Ela o olhou fingindo perplexidade.
- Perdão, eu o conheço? Apresentaram-nos formalmente?
Pegou-lhe a mão e a fez avançar.
- Muito divertido, levando em consideração que quase me matou com um tiro na primeira vez que a vi.
- Não deveria se esconder atrás daquelas pedras. Achei que era uma raposa. - Bom, depois de recuperar a voz se converteu em uma charlatã; a calidez que via em seus olhos fazia muito fácil lhe falar - Ah, Heath, perdoou-me? Deixei-lhe uma cicatriz?
- Sim e sim. Na realidade adquiri várias outras cicatrizes desde que a conheci, mas a sua é a única relacionada com uma lembrança prazerosa.
Ela ficou em silêncio. Notava o forte que lhe pulsava o coração, via outros convidados olhando-os, via que o tempo só tinha intensificado seu magnetismo. Surpreendeu-se quando Russell lhe disse que Heath não se casou, mas claro, era muito jovem e podia permitir-se esperar, podia escolher a gosto entre toda a população feminina da Inglaterra. Um homem com a aparência de Heath Boscastle não tinha necessidade de procurar uma companheira.
Novamente estava olhando-o. E ele estava sorrindo, embora não com uma expressão de superioridade ou presunção que ela pudesse detectar. Como era um perfeito cavalheiro, não se lançou a fazer jactanciosas evocações daquele pecaminoso encontro do passado.
Esse reencontro estava muito carregado emocionalmente, muito mais do que imaginara, e o tinha imaginado infinitas vezes. Era o mesmo patife encantador que se lembrava.
A guerra tinha mudado muitíssimos de seus conhecidos, e ele foi feito prisioneiro, tinha sobrevivido a muitíssimas coisas.
Ele limpou a garganta.
Ela desviou os olhos.
- Gostaria de beber algo? - perguntou-lhe ele, levando-a para o final do corredor.
- Beber?
Ai, se conseguisse deixar de se lembrar como parecia meio nu, como a mão com que a levava de modo tão cavalheiresco lhe tinha explorado as partes mais secretas de seu corpo. Parecia muito sereno.
Certamente divertia-o recordar o que fizeram daquela vez.
- Sim - disse ele alegremente. - Uma bebida, sabe? Essa substância líquida que se bebe de vez em quando.
- Uma bebida - Repetiu ela.
- Quer que lhe traga uma bebida, Julia? - Passou-lhe a mão livre diante dos olhos - Julia?
Sua voz era cálida, um pouco brincalhona, tão sedutora como a recordava e tanto tinha tentado esquecer. Sempre teve um senso de humor malicioso, irônico, e ela tinha que esforçar-se ao máximo para simular que não a afetavam todas as palavras que dizia, todos seus gestos, levando-a ao passado. Sua atração era muito potente. Desviou o olhar, temerosa de delatar-se, embora temendo que ele fosse tão inteligente que não se deixasse enganar. Que humilhante que ainda
recordasse todas suas palavras.
- Só bebi uma taça de vinho, Heath.
- Sim, bom, foi toda à cabeça.
- Claro que não.
- Ah, pois sim, se não, não estaria me beijando assim.
- Importa-se?
- Não, é claro que não, mas acredito que lhe importará amanhã.
- Não me importará. Nunca faço nada que lamento depois. Bom, até agora.
Então foi quando ele introduziu seus longos dedos em seu cabelo e a deitou no sofá, com sua avassaladora sensualidade, excitando-lhe os sentidos com o calor de seus firmes lábios no pescoço. Outros convidados tinham saído de caça e os dois ficaram na biblioteca três horas, sem poder abrir a porta, ou ao menos simulando que a fechadura estava estragada. Três fatídicas horas. Sua vida nunca voltou a ser a que era antes disso, e o furtivo prazer desse encontro tinha eclipsado tudo, até esse momento. A ansiedade que sentia em seu interior se ficou maus persistente, agridoce, insatisfeita. Nele havia algo que inspirava confiança e penetrava suas defesas. Entretanto, tinha cumprido a promessa que lhe fez.
Obrigou-se a voltar à atenção ao presente. Já não segurava sua mão, mas ela tinha sentido até os joelhos o calor de seus fortes dedos.
Por toda ela passou um agradável calor de evocador conhecimento.
Olhou-o nos olhos, curiosos e perspicazes, e suspirou. Era muito, muito fácil mergulhar nesses olhos e esquecer-se de tudo, como descobriu aquela vez. Os convidados os rodeavam por toda parte, olhando-os, reconhecendo-os. Estava claro que os inteirados de sempre já sabiam de seu compromisso com Russell, e Heath era um Boscastle, um muito bom partido, embora esquivo, uma conquista a que aspiravam as jovenzinhas casadouras, a qualquer preço.
Começou a rir.
- Sim, quer uma bebida, algo que não seja vinho.
Nas profundezas desses olhos azuis escuro brilhou uma chama, e seu sorriso travesso se tornou irresistível:
- Ah, sim. Disseram-me que sobe à cabeça.
Capítulo Três
Heath caminhava ao lado dela imerso em seus pensamentos, tratando de avaliar sua situação. Não conseguia acreditar. Talvez isso fosse o preço que devia pagar por ser um homem tão reservado. A não ser em caso de absoluta necessidade, a maior parte do tempo se desentendia da alta sociedade, de seus caprichos e escândalos.
Nessa noite aceitou o convite para o baile do conde de Odham somente porque Russell insistiu para que fosse, e fazia muitíssimo tempo que não via Russell.
Deveria ter suspeitado que este tivesse um motivo ulterior.
Foi preparado para a ordem de voltar ao serviço. Londres já começava a atordoá-lo de aborrecimento. Estava a um período sem amante, procurando algo que não conseguia identificar. Talvez uma distração de seus demônios interiores, de seus pensamentos. Nada o satisfazia nesses últimos tempos. Não queria ficar sozinho e entretanto se impacientava com seu pequeno círculo de amizades.
A última mulher no mundo que teria esperado ver essa noite era Julia Hepworth, ou melhor dizendo lady Whitby, como se chamava desde seu matrimônio. Olhou-a dissimuladamente, avaliando-a. O vestido verde hortelã claro envolvia suas deliciosas curvas como gaze. O verde não era uma cor apropriada para levar luto em Londres, não é? Ou talvez ela seguisse um costume de outro país para o luto? Agradava-lhe muitíssimo voltar a vê-la. Quanto tempo fazia que morreu seu marido?
Não tinha perdido seu engenho nem seu atrativo nesses anos.
Nem sua capacidade para provocá-lo. Por que demônios iria se
casar com Russell? Que união mais inverossímil. Desequilibrariam-se mutuamente, ficaram loucos.
Decidiu que não se vestia de verde por luto, nem sequer por meio luto. Pensou se ela teria amado a seu finado marido. Também pensou como conseguiria ele "cuidar dela" enquanto Russell fazia-se de herói.
Como iria simular que não esteve quase a ponto de desflorá-la aquela vez anos atrás? Por muito indiferentes que parecessem os dois, não tinha nenhum sentido simular que o ocorrido no passado não ocorreu.
-Aonde foi Russell?
O som de sua voz o trouxe bruscamente para seu problema do momento. Ah, perguntou-lhe por Russell. O brincalhão que organizou esse desconcertante assunto, o homem a quem serviria de substituto interino a contra gosto. Franziu o cenho e observou surpreso, e um pouco aliviado, que já quase tinham chegado à sala de descanso.
Não estar sozinho com ela durante um momento poderia lhe dar tempo para pensar em uma solução.
Observou-a dissimuladamente quando ela passou pela porta. Era Julia, embora muito diferente da última vez que a viu. Mais segura de si mesma, todos os aspectos discordantes de sua personalidade fundidos em um conjunto mais intenso, mais interessante. Não podia ler seus pensamentos, adivinhar o que pensava ela da situação em que se encontravam. O que pensava dele. Mostrava-se segura de si mesma.
Seus olhos já não o olhavam com aquela desconcertante inocência, mas conhecedores, e com um olhar fixo que o desafiava. Uma donzela convertida em fera. Notava uma mudança em sua percepção, uma espécie de desorientação. Não havia nenhuma outra mulher com quem compará-la; não lhe ocorria nenhuma. Suas relações passadas foram descomplicadas, claras, francas, sem disfarces. Pelo contrário o que compartilharam naquela vez era algo escuro, não definido, um desejo que ficou pendente como uma pergunta sem resposta.
Conhecia-a e não a conhecia. Bom, supunha, esperava, que ele também tivesse mudado para melhor. De maneira nenhuma podiam ser as mesmas pessoas que se exploraram, beijando-se e abraçando-se com inconsciente desenvoltura em uma biblioteca há muito tempo.
Tinham transcorridos anos. O que lhes tinha dado a experiência? O
tempo teria satisfeito as expectativas dela, ou as teria apagado?
Ela levantou os olhos para ele. Bebeu um gole de limonada e ele recordou repentinamente o sabor de seus beijos, a madura doçura de seus lábios, a avidez sensual que ela excitou nele. Ela riu na primeira vez que a beijou. Tinham rido como tolos, de algo e de nada. O eco dessa lembrança, dessa doce e cega inocência que já tinham perdido os dois, chegou até o fundo da alma, comovendo-o. Depois nunca voltou a rir assim. De todo modo, não poderiam voltar jamais há esse tempo.
- Está olhando minha boca - sussurrou ela, pegando-o despreparado.
- Ah. - Tirou um lenço branco muito engomado do bolso de seu colete - Tem limonada nos lábios.
Ela pegou o lenço, com expressão duvidosa, embora lhe seguisse o jogo.
- Aonde foi Russell? - perguntou outra vez, olhando ao redor.
- Teve que partir por um assunto urgente.
Ela limpou a boca. Não tinha nenhuma só gota de limonada nos lábios, e os dois sabiam. Arqueou as sobrancelhas.
- Outra vez?
- Parece que sim. - Pegou-lhe o cotovelo para afastá-la dos convidados que rodeavam a mesa - Enviam-no a missões com muita frequência?
- Sim. E...
- Pediu-me que cuidasse...
- De mim - terminou ela, fazendo uma careta, com os olhos
escurecidos por desaprovação. Isso é ridículo, Heath.
Ou seja esse assunto não tinha sido ideia dela.
- Não sei. Auclair é um monstro.
Ela deixou o copo no aparador.
- Não posso acreditar. Por que Auclair persiste em seu empenho?
Não sofreram já o bastante você e Russell em Portugal?
- Auclair não é um homem racional - disse ele em voz baixa.
- Que outra pessoa faça um sacrifício para variar.
- Continuamos vivos, Julia. Outros perderam muito mais.
Ela o olhou sem pestanejar, lhe recordando sem palavras que ela também tinha feito seus sacrifícios.
- Como está sua família, Heath?
Ele ficou em silêncio um momento, admirando essa perita mudança de assunto.
- Muito bem, obrigado. Grayson se casou recentemente.
- Eu soube. Quem teria pensado? O libertino original acorrentado por toda vida.
- É o que acontece com os melhores - disse ele, rindo ao pensar no passado de seu irmão mais velho. - E aos piores também, ao que parece.
- Você é o seguinte, não é verdade?
- Não, se puder evitá-lo.
Ela levantou os olhos para seu rosto.
- Sempre pensei que já estaria casado e teria pelo menos uns cinco filhos.
Isso não poderia estar mais longe da verdade, pensou ele. Nunca havia nem aproximado sequer à ideia de matrimônio. E não porque tivesse algo contra o matrimônio.
Amaria a Russell? Sim, com certeza que sim; metade das damas de Londres desmaiavam quando sir Russell Althorne fazia uma de suas
espetaculares aparições em uma festa. Quanto tempo estava comprometida com ele? E quando começou o romance? Achava-os muito incompatíveis, Julia o espírito livre, e Russell, tão tremendamente desejoso de impressionar o mundo. Bom, dizia-se que os opostos se complementam.
Na realidade era arrogância de sua parte, pura vaidade masculina, julgá-la com tanta rapidez. Por que dava por sentado que a conhecia apoiando-se em um inesquecível encontro do passado? O fato de que sua lembrança tivesse vivido com ele ao longo dos anos não significava que ela sentisse o mesmo por ele. Era possível que tivesse chegado a considerá-lo o patife que quase a desonra. O que para ele foi um momento muito importante de sua vida, para ela poderia ter sido só uma experiência humilhante.
- Não tem por que fazer o que te pediu - disse ela por cima do ombro, saindo diante dele ao corredor em direção ao salão de baile.
- Não - disse ele, mansamente - Poderia ser um verdadeiro canalha e deixar de lado todo sentido de honra. Russell arriscou sua vida para me resgatar.
- Honra - disse ela em tom brusco - O que é por certo?
- Não aprova o sentido de honra, Julia?
- Não aprovo que os homens morram por ele.
Afastou-se dele entrando entre um grupo de convidados que a saudaram com sorrisos cautelosos. Honra, pensou ele parando, ficando imóvel, indignado, sem saber como reagir. Aparentemente ela desprezava o conceito de honra. Teria isso algo a ver com o fato de seu marido ter morrido de uma morte brutal sendo oficial na Índia?
A guerra tinha deixado mais de uma mulher amargurada, magoada, desiludida.
Samuel Breckland, amigo da família, e seu próprio irmão, Brandon, também tinham perdido a vida muito jovens mantendo-se fiéis ao
conceito de honra.
Sentiu desejos de lhe dar uma boa sacudida. Tinha tocado um nervo a flor da pele, e a consequência era uma indignação bastante irracional. Não se desmoronaria o mundo sem o sentido de honra?
Quem era ela para zombar da única coisa que ele valorizava acima de tudo? Quem era ela para fazê-lo pôr em julgamento o homem em que se converteu? E por que, pelo amor de Deus, permitia que um comentário feito a ligeira o desequilibrasse dessa maneira? Grayson, seu irmão, tinha se manifestado com essa mesma opinião muitas vezes. Mas ditas por Julia, essas palavras adquiriam um significado mais profundo.
Inesperadamente ela se virou para ele, e o olhou com expressão aborrecida, ou talvez sobressaltada, ao vê-lo tão perto. O mais provável era que se sentisse tão incômoda como se sentia ele. Tentando mesclar-se com outros convidados, ela sussurrou em direção a ele:
- Vá, Heath. Continue seguindo como uma galinha poedeira a seus pintinhos.
Uma galinha poedeira. Heath Boscastle. Jamais ninguém tinha empregado essas palavras para referir-se a ele. Quase riu. Bom Deus, se o vissem seus irmãos nesse momento.
Se ela soubesse como se sentia realmente ele. Na realidade, tomara "ele" soubesse.
- Heath - murmurou uma jovenzinha atrás dele. - Disse Heath?
- Heath Boscastle?
- Está aqui?
- Onde está?
- Não o vi. Raramente vem a estas festas.
- Soube que foi ao casamento de seu irmão.
- Convidaram-no? Acha que... Acha que está pensado em casar-se?
Ouviu seu nome repetido, sussurrado, murmurado, por um
grupinho de jovenzinhas agressivas que acabavam de descobrir sua presença na festa. Isso podia agradecer a Julia. Detestava ser o centro da atenção. Isso ia contra sua natureza reservada, sigilosa, de sua capacidade para fundir-se com as sombras e observar ao resto do mundo. Era provável que essas garotas não conseguissem formar nem um só pensamento inteligente entre todas elas.
Discretamente abriu caminho entre todos os corpos femininos que começavam a aglomerar-se a seu redor como cálidas e perfumadas mariposas. Estava em grave perigo de ser abafado por uma manada de jovenzinhas debutantes agitando seus leques.
Conseguiu escapar com a cabeça encurvada, sem olhar nem a um lado nem ao outro, deixando atrás um coro de suspiros de desilusão.
Quando por fim se viu livre do assédio que tinha desencadeado Julia, levantou os olhos e conseguiu ver sua figura envolta em seda saindo por uma porta do outro extremo do salão.
Para lhe alcançar teria que empregar todas suas habilidades de oficial de cavalaria. Mas a conversa entre eles não tinha acabado. Não iria se deixar despedir assim, como um jovenzinho inexperiente, tivesse acontecido o que tivesse acontecido no passado. Ou trouxesse o que trouxesse o futuro.
Capítulo Quatro
Julia respirou fundo várias vezes e continuou avançando pelo corredor iluminado por candelabros encostados às paredes, rompendo o silêncio com o frufru de seu vestido de seda. Caminhava com passos largos e precisos. Qualquer dia, seria capaz de deixar atrás à maioria dos homens de sua idade.
Heath Boscastle era outra história totalmente diferente.
Sempre foi. Ela deveria saber que seus instintos só se o aguçaram com o tempo. Bom, também os dela também. Já não era a tola menina virgem de dezenove anos que bebeu uma taça de vinho e se deitou
sobre um sofá da biblioteca com o homem mais atraente do mundo e se entregou a suas carícias com desavergonhada desenvoltura.
Franziu os lábios, desprezando-se. Céus, não. Era uma viúva de vinte e seis anos capaz de afastar-se resolvida e tranquilamente do homem mais atraente do mundo porque isso era o correto.
Ou não?
Tinha advertido a Russell que ordenar a Heath que a protegesse era uma ideia horrorosa, um insulto, um convite a problemas. Que ela não necessitava um protetor, ao menos não um que a conhecia melhor do que ela reconheceria jamais; bom, esse último não disse.
O problema foi que Russell, com sua bem intencionada arrogância masculina, assegurou-lhe que só ele sabia o que convinha a ela. Ele sabia em quem podia confiar, com quem podia contar, a quem podia manipular com sua habilidade maquiavélica. Bom, para ser justa, não disse que podia manipular Heath, mas a implicação estava muito clara.
Sua intenção era deixá-la segura com o homem mais competente que conhecia o único, assegurou, que confiava acima de todos outros.
E ela não teve mais remédio que permanecer sentada no sofá, imersa em silencioso abatimento enquanto seu célebre noivo a exortava de modo paternal, até que ela conseguiu colocar de soslaio um protesto:
- Heath Boscastle não. Procure outro, um húsar, um guarda-florestal, um agente de Bow Street, um... um boxeador aposentado, ou inclusive um sentenciado reformado.
Ele foi sentar-se a seu lado e a olhou fixamente, com seu único olho, sério, severo.
- Julia, querida. Confie em mim. Sou homem. Sei o que é melhor.
Era um homem, sim, como não. Inclusive podia saber que era o melhor, mas não sabia, e jamais saberia, o que ocorreu entre ela e Heath anos atrás na Cornualha.
Sobre um sofá muito parecido a esse em que estavam sentados,
por certo.
E no chão.
Então ficou a contemplar os desenhos do tapete turco, transpassada pela lembrança de Heath Boscastle meio nu em cima dela, suas peritas mãos, sua boca sensual, lhe deixando no corpo sua inesquecível marca. Tinha o corpo de um deus jovem e os poderes de sedução não ficavam atrás.
Inclusive nesse momento, recordando, lhe cortava o fôlego ao pensar nele.
Essa foi a experiência sexual mais estremecedora que tinha conhecido em sua vida, incluídos esses seis anos passados, nos quais entravam algo mais de três anos de matrimônio. Um extraordinário convite ao prazer, um descobrimento pasmoso, um despertar em carne viva A...
- E, estou de acordo em que realmente é o melhor. É um assassino desalmado, Julia, um...
- Heath Boscastle? - perguntou ela, pestanejando confusa, morta de culpa pelo que estava pensando.
Então Russell lhe lançou um olhar irado, conseguindo com seu único olho lhe transmitir seu imenso desagrado.
- Não, não Boscastle. Preste atenção. Refiro-me ao homem que quero levar a justiça. O espião francês que jurou me matar, Julia, Armand Auclair.
- Ah, ele - disse ela, envergonhada. - Mas por quê? Quer dizer, por que não deixar que outro seja um herói para variar?
Já sabia a resposta. Russell estava a ponto de receber um viscondado por sua valentia como oficial da cavalaria, pelos riscos que tinha sofrido protegendo os soldados de sua brigada, alguns dos quais foram francamente temerários, na opinião dela. Mas ele tinha captado a atenção do grande Wellington e, segundo os rumores, sir Russell
Althorne tinha diante de si um futuro político dourado. Ela sabia o muito que significava isso para ele, e merecia os aplausos.
Achava-o idôneo para uma carreira pública. Do que estava menos segura era de sua habilidade como anfitriã na alta sociedade. Faltava-lhe prática. Sobreviveria a uma monção com mais serenidade que à alta sociedade de Londres. Talvez se tivesse levado sua vida de casada em Calcutá em lugar dum chalé em um remoto distrito rural, estaria melhor preparada para a vida social.
Casara-se com sir Adam Whitby só um mês depois de conhecê-lo em uma corrida de cavalos. Seu pai se mostrou favorável ao matrimônio, talvez porque fosse seu dever e seus outros pretendentes partiram para a guerra. Adam era doce, atento, e estava tão louco por Julia que ela compreendeu que era um homem que nunca lhe faria mal intencionalmente, e assim foi até sua morte. Descuidava-a, talvez, mas não de propósito.
Como muitos outros jovens ingleses foi pego pelo sonho de servir a seu país na Índia e fazer uma fortuna aí. Assegurou a ela que isso ocorria sempre. E posto que Julia tinha uma alma muito aventureira, aceitou segui-lo, mesmo que necessitassem de uma permissão especial do exército para se casarem.
Na Índia a solidão se fazia insuportável, e não demorou para compreender o muito que sentia falta da chuvosa e verde Inglaterra e de seu pai. Tinha um cozinheiro francês e muitíssima liberdade, mas passava pouquíssimo tempo com Adam, somente algum ou outro momento de tanto em tanto, quando ele podia escapulir de seu trabalho.
Estavam a pouco mais de três anos casados quando o mataram. E
nesse momento estava começando sua vida de novo e descobrindo quão difícil era.
Não era tão simples recuperar sua anterior posição na alta sociedade. A maioria de suas amigas se casaram e estavam criando
filhos. Se não tivesse sido pela ajuda de Russell, ainda teria dificuldades para orientar-se. Ele a ajudou a cuidar de seu pai, o visconde Márgate, quando estava morrendo. Russell foi extraordinariamente amável e paciente, e se ocupou de todos os detalhes do funeral e dos assuntos legais. E ele desejava formar sua própria família, já que cresceu órfão e era filho único. Era todo um homem feito por si mesmo.
Na realidade, não sabia como teria confrontado a morte de seu pai sem Russell. Nesse tempo tinha a mente nublada; só agora começava a limpá-la e havia se sentido muito desconcertada, pela perda de seu marido e, depois, ao retornar para casa, ver morrer seu pai sem poder fazer nada, impotente.
E sim, a verdade seja dita, aceitou a proposta de Russell sem pensar bem, sem refletir. Estava segura de que seu coração se comprometeria mais uma vez assim que estivesse instalada em sua nova situação. Ele era um personagem enormemente atraente.
Parou no meio do corredor para comprovar em que lugar da casa estava. Era uma da manhã segundo os ponteiros de relógio de bronze do alto relógio que acabava de deixar atrás. Tinha um encontro; já estava atrasada. Tinha que apressar-se, antes que Boscastle descobrisse que tinha saído do salão de baile, se é que não o tinha descoberto já. Não seria prudente subestimá-lo. Ou subestimar o efeito que tinha nela. Por maravilhoso que tivesse sido voltá-lo a ver, estava convencida de que isso não era bom para nenhum dos dois. Chateava-a descobrir que não tinha superado de todo aquele encontro do passado.
Ou que o tempo não tinha diminuído essa enorme atração por ele. E, entretanto...
Não confiava em si mesma estando a sós com ele. Que horrível descobrir isso aos vinte e seis anos.
Tirou seu leque de marfim da bolsa, abriu-o e o olhou na penumbra.
Dentro havia um mapa da planta da casa.
Um X marcava o escritório particular do anfitrião do baile, o conde de Odham. Aparentemente, a sala estava à volta da esquina, à esquerda, a quarta porta.
Encontrou seu destino sem dificuldade; mas a porta estava fechada com chave. Encostou a orelha na madeira e ouviu o inconfundível ruído de papéis. Franzindo o cenho, desaprovadora, levantou a mão para golpear suavemente.
Uma vez. Duas vezes.
Depois da terceira vez, disse em um impaciente sussurro:
- Pelo amor de Deus, Hermia, abra esta porta antes que me surpreendam.
Abriu-se a porta. O rosto branco e alongado de sua tia, coroado por seus cachos loiros prateados, enrugou-se zangada ao vê-la.
- Por que não abriu a porta?
- Não deu o golpe secreto.
- Bom Deus - exclamou Julia, olhando as cartas e envelopes abertos espalhados pelo chão. - Esta sala parece um desastre. Espero que tenha encontrado o que procurava.
Hermia endireitou o vaso com penas de pavão que tinha derrubado.
- Não. O malandro guardou muito bem seus papéis secretos.
- Bom, arrume isto.
- E por que teria que arrumar?
- De verdade quer que o conde descubra que é uma demolidora de moradas?
- Importa-me uma figa a opinião que tem de mim.
Julia se ajoelhou e começou a reunir as cartas espalhadas em um ordenado monte.
- Ajude-me, por favor.
- Ah, muito bem. Não, essas vão na gaveta de baixo da direita da
escrivaninha. Essas com a fita vermelha vão aqui nesta caixa.
Julia passou engatinhando por debaixo da escrivaninha seguindo sua tia.
- Viu estas? - perguntou, olhando uma pasta de couro cheia de cartas velhas.
Hermia franziu o cenho.
- Não. Essa pasta deve ter caído da gaveta. Pode ler algum desses papéis que há dentro?
- Mal vejo nesta escuridão - suspirou Julia. - Parecem cartas de negócios. Vamos olhar, não é?
- Está acabando nosso tempo. Disse a Odham que me encontraria com ele à uma e meia.
- E será capaz de olhá-lo na cara depois de ter farejado em seus papéis pessoais? - perguntou-lhe Julia, chateada, retrocedendo engatinhando pelo tapete.
- Muito boa pergunta - disse uma voz varonil e brincalhona. - Talvez gostaria de praticar sua resposta comigo antes que a acompanhe para ver o conde.
Julia se apressou a levantar, com os olhos escurecidos pela emoção.
Ele a seguiu; deveria ter adivinhado. Ele nunca foi igual a ninguém que tivesse conhecido; era um homem que sempre ia alguns passos adiante dos outros. Gostava de analisar a natureza humana. Sua discreta fachada ocultava uma perigosa percepção, a qual era, curiosamente, uma das coisas que mais gostava nele. Uma de muitas coisas.
- Boscastle! - exclamou Hermia atrás dela. - O que faz aqui, por Zeus?
- Eu deveria perg...
- Vigia-me - interrompeu Julia, impaciente.
- Vi... o que? - perguntou Hermia, desconcertada.
- Vai me proteger na ausência de Russell, que foi procurar esse francês. Não é a ideia mais horrível que ouviu em sua vida?
Lady Dalrymple olhou para Heath com franca admiração.
- Acredito que foi um golpe de gênio. Ter um Boscastle de guarda-costas pessoal. Esplêndido. Não tinha ideia de que estava disponível para contratá-lo, porque o teria contratado eu mesma.
- Não estava - disse Heath, negando com a cabeça com visível desgosto - Nem estou. Bom, ao menos não por dinheiro.
Hermia arqueou as sobrancelhas quase tocando as do cabelo em sua testa.
- Por que, então?
- Porque Russell tem medo de que esse vilão que tenta matá-lo decida enviar alguém para me fazer mal enquanto ele o busca -
respondeu Julia secamente - Teme que me raptem para me fazer de refém, se consegue imaginar por que alguém se incomodaria em fazer uma coisa assim.
- Tem que compreender que deseja protegê-la - disse Hermia.
Heath se virou para a porta.
- Vem alguém. Um homem, pelo som dos passos. Sugiro que terminemos depois esta fascinante conversa.
Hermia pegou o braço de Julia.
- Deve ser Aldric. Esconda-me.
Julia olhou exasperada para a volumosa figura de sua tia, de estrutura óssea larga. O vestido de seda vermelha com seus babados de tafetá não colaboravam para reduzir sua enorme ossatura, nem lhe permitiam fundir-se com os móveis.
- Onde sugere que a esconda?
- Atrás da escrivaninha. Todos deveríamos nos esconder aí para economizar uma explicação.
- Eu não me vou esconder - disse Heath, cruzando os braços-. Não fiz nada de errado e me nego a...
Hermia pegou a manga de seu fraque ao mesmo tempo em que dava um forte empurrão em Julia para a escrivaninha.
- Depois explicaremos tudo, Boscastle. É essencial que Aldric não nos descubra. - Olhou-o nos olhos - É um homem do mundo e o protetor escolhido para Julia. Duvido que o escandalize qualquer um dos corriqueiros escândalos da sociedade. Verá, Aldric me chantageia.
- O conde a chant...?
Os três se lançaram de cabeça atrás da escrivaninha no instante em que girava a maçaneta e se abria lentamente a porta. Heath se encontrou ajoelhado e agachado entre os ombros nus de Julia e o amplo busto de Hermia. Não havia lugar nem para mover um dedo. Se alguma vez se achou em uma situação mais ridícula, não recordava.
Julia levantou a cabeça e o olhou, e se encontraram seus olhos. A ela lhe levantaram as comissuras da boca cheia e vermelha, como se estivesse a ponto de começar a rir.
Naquela tarde que passou com ela riu muitíssimo, de insignificâncias e também de coisas importantes, como a de ter atirado nele por engano. De repente, inexplicavelmente, sentiu vontade de rir também, apesar de continuar sentindo-se atraído por ela depois de todos esses anos acreditando que não voltaria a vê-la nunca mais, apesar do fato dela se casar com seu rival e ter o joelho enterrado em suas costas.
Era tentador rir desse capricho da vida.
Mas enfocou a atenção no par de pés com sapatos de couro que se arrastavam pela sala. O conde de Odham não era o que poderia chamar-se jovem, em seus sessenta e tantos anos, mas quando estavam no clube tinha notado que tinha uma mente ágil e viva.
Era muito esperto para fixar-se na carta que acabava de pisar.
- Vá - disse Odham em voz baixa, agachando-se para recolhê-la -
Alguém esteve revistando meu escritório. Isso não tem nada de simpático; muito pouco amistoso, na realidade.
Ajoelhou-se e seus olhos ficaram virtualmente ao nível dos do trio de convidados escondidos atrás da escrivaninha. Mas devido a algum milagre, não os viu. Se tivesse se aproximado um palmo mais, com certeza os teria visto.
Heath franziu o cenho. Não tinha ideia de que explicação daria se o surpreendessem bisbilhotando no escritório particular de seu anfitrião, quando nem sequer o entendia ele. Não tinha nenhuma desculpa que explicasse sua conduta. Demônios, se nem sequer sabia por que estava escondido.
- Incompetente, incompetente - resmungou o conde. E então limpou a garganta e acrescentou em voz alta: - É uma sorte que não esconda aqui meus papéis pessoais.
Passados uns instantes, saiu do escritório, cantarolando suavemente, e fechou a porta.
Hermia saiu engatinhando detrás da escrivaninha, levantou-se e alisou a saia e a blusa.
- Bom, esta foi uma experiência revigorante.
Heath se levantou e a olhou com expressão sombria.
- Revigorante não é uma palavra que eu empregaria para qualificar um delito.
- Não foi um delito - disse Julia, saltando em defesa de sua tia, e alisando o vestido - Odham nos entregou um convite pessoalmente.
- Certamente não para que revistassem o escritório - grunhiu Heath, desdenhoso.
- Fique aqui um momento enquanto eu vou comprovar se há mouros na costa - disse Hermia, sem alterar-se por seu desdém - Já fez um pouco de espionagem, Boscastle, com certeza entende o que quero dizer.
- Na realidade, não. Tampouco, acredito, desejo ver-me envolvido.
- Eu tampouco - murmurou Julia por cima de seu ombro - Não exatamente, mas é minha tia e não quero vê-la ofendida.
Ele se virou, consciente de que ela estava atrás dele, e lhe observou atentamente o rosto na penumbra. Sempre o tinham atraído os contrastes de sua viva coloração, seu cabelo vermelho fogo, seus profundos e expressivos olhos cinza, e a suave textura de sua pele. Mas debaixo dessa sutil beleza havia algo mais que atraía a um homem.
Havia substância, inteligência, simpatia. Pensou se Russell saberia realmente no que iria se colocar, ou a sorte que tinha.
- Suponho que não faz este tipo de coisas com frequência.
- Acredite ou não, esta é nossa primeira tentativa de invasão de moradia.
Sorrindo, ele tirou do bolso de seu colete a planta que tinha caído dela no corredor.
- Ah, sim acredito. Espero que seja a última.
Os cheios lábios dela se curvaram em um leve sorriso.
- Uma vez é mais que suficiente para certas experiências, não é?
Sobre tudo para aquelas da variedade pecaminosa.
Não havia maneira de não entender a que se referia. Acelerou-lhe o pulso.
- Não sei, Julia. Para alguns, o sabor da tentação simplesmente abre o apetite.
- Que sorte para mim então que não seja boa comedora.
- Talvez estivesse sentada ante pratos que não gostava - disse ele tranquilamente.
Ela arqueou uma sobrancelha.
- Talvez prefira comer sozinha.
Ele esboçou seu sorriso indolente. Não recordava a última vez que teve que competir em engenho com uma mulher sem saber se ganharia.
A provocação o excitava.
- Venham, vocês dois - sussurrou Hermia - Este não é o momento para reatar velhas amizades.
Ele moveu a cabeça, aturdido, olhando para Hermia, que enquanto isso entreabria a porta, voltou a aparecer e saiu ao corredor. Ele nem sequer sabia o que acabavam de fazer nem como tinha acabado envolvido na conspiração.
- Do que se trata tudo isto? - perguntou voltando-se para a Julia-.
Suponho que não esperará que acredite que o inofensivo Aldric está chantageando a sua tia.
Ela encolheu os ombros, como pedindo desculpas.
- É verdade.
- Isso deveria resolver-se da maneira correta, quer dizer, recorrendo às autoridades, não entrando furtivamente para revistar o escritório de um homem.
- Isto não é um verdadeiro problema do tipo judicial - disse Julia com a maior naturalidade - é um assunto pessoal. Aldric ameaçou Hermia de publicar suas cartas de amor do passado se ela não fizer o que lhe pede.
- Isso... - interrompeu-se, curioso a seu pesar. Para um homem que raramente assistia a festas, parecia estar compensando o tempo perdido
- Como chegaram a seu poder as cartas de sua tia, por certo?
Julia meneou a cabeça.
- As cartas ela escreveu para Aldric.
- Sério? - perguntou ele, reprimindo um sorriso.
- Pois sim. Verá, Aldric e Hermia tiveram um tórrido romance há muitos anos, e ela cometeu a estupidez de referir-se a certos detalhes de sua aventura em suas cartas.
Olhou-o francamente nos olhos, como lhe advertindo que não trouxesse a luz certos detalhes do passado deles. Ele fez uma cara de
insípida amabilidade.
- E Aldric ameaça publicar suas cartas se não lhe pagar uma soma exorbitante? - perguntou, tratando de dar a sua voz um tom de adequada repugnância.
- Não - disse ela, dando a volta por seu lado - Não exatamente.
Ameaçou-a trazer a luz esse romance se ela não aceitar casar-se com ele.
Heath não pôde reprimir o sorriso que pugnava por formar-se em seus lábios. Essa não era a explicação que tinha esperado, mas tinha mais lógica que uma imagem de Aldric como cruel chantagista. Um conde idoso obcecado até o extremo de chantagear, apaixonado por uma roliça viúva que aparentemente foi uma sedutora em sua juventude.
Esfregou a ponte do nariz para ocultar outro sorriso. Talvez as indiscrições juvenis abundassem na família de Julia. Na dele, abundavam sem lugar a dúvidas. Não era absolutamente surpreendente que ela e ele, em um encontro a sós, tivessem formado uma combinação explosiva; era um defeito hereditário.
- Bom, bom, caramba - disse - quem teria pensado? Aldric e sua tia?
- Minha tia se sente humilhada com a possibilidade de que essa vergonhosa parte de seu passado se exponha à curiosidade pública.
- Sim, imagino. Hermia e Odham devem ter sido duas boas peças em seu tempo.
Julia lhe lançou outro rápido olhar de advertência, para lhe recordar que ela também desejava que o passado continuasse bem enterrado e secreto. Não tinha por que preocupar-se. Ele não tinha a menor intenção de referir-se a esse encontro. E justamente por isso, qual não seria sua surpresa quando ela disse, de repente:
- Só para esclarecer coisas, digo-lhe que não esqueci o que ocorreu aquela vez que estivemos sós na biblioteca.
Ele fez uma inspiração profunda e simulou estar olhando atentamente o globo terrestre sobre o pé de bronze no lugar. Aonde levava isso? Esclarecer coisas, certamente.
Por acaso, essa elucidação só criava espirais de fumaça. Como já tinha saído o tema dessa aventura do passado, era necessário falar mais.
- Eu tampouco.
- Talvez devêssemos examinar a fechadura -disse ela, olhando-o com expressão significativa - vá que nos encontremos presos em um aposento.
Ele a olhou, com um sorriso sombrio.
- Talvez.
Ficaram em silêncio. Ele deixou que se prolongasse. Há tempos tinha compreendido, quando fazia seu trabalho para o serviço de inteligência, que se descobrem mais coisas a respeito de uma pessoa durante um silêncio que durante um diálogo. O que descobriria a respeito dela? Observou-a dissimuladamente. Nunca tinha conseguido saber o que sentia ela por ele então. Talvez naquele dia ele tivesse cometido um engano irremediável e ela não podia perdoá-lo. Era possível que a tivesse afugentado.
Ela estava tão fria e tranquila como um floco de neve em fevereiro.
O silêncio não parecia intimidá-la absolutamente. Bom, tinha levado uma vida bastante infeliz também; atirou em um patrício inglês para defender uma criada indiana sua; as velhas normas não vinham ao caso nesse país, ou talvez ela simplesmente não se dava ao trabalho de segui-las.
Ela passou por seu lado e começou a caminhar para a porta, para ir comprovar se podia abri-la. Sua segurança e resolução ativaram rodos a seus sentidos adormecidos, atraindo-o para um perigo ante o qual não se encontrou nunca em sua vida.
Era Julia Hepworth, de acordo, mas não a Julia que recordava com
carinho em suas vigorosas fantasias sexuais. Talvez fosse mais, uma tentação multiplicada por dez.
O coração lhe deu um salto, forte, perigoso. Como podia ser isso?
Uma parte dele suspirava pela temerária garota de sua juventude, a garota que ria da vida e comprometera sua inocência com ele. Pelo menos com ela pôde tomar a iniciativa.
- Soube que morreu seu pai - disse, procurando equilíbrio no seguro, o rotineiro. - Sinto muito, Julia.
Ela o olhou por cima do ombro, com expressão meio agradecida, meio observadora.
- Teria encantado a ele que o visitasse. Muitos de seus amigos não tiveram o trabalho. Ao final começou a lhe vagar a mente, mas quando recuperava a prudência estava tão agudo como sempre. Uma visita sua lhe teria feito muitíssimo bem.
- Tomara o tivesse sabido.
E o dizia a sério. O pai dela era um homem corpulento, bondoso, cuja paixão pela vida era contagiosa; generoso até o excesso, um cavalheiro. Grande parte de seu caráter o tinha transmitido a sua única filha.
- Eu também perdi meu pai - disse, passado um momento.
- Russell me disse - ela falou, movendo a cabeça compassiva -
Suponho que é um consolo para você ter todos seus irmãos e irmãs.
- São uma distração. Mas... você estava muito unida a seu pai..
Ela sorriu, pegando-o despreparado. A maturidade tinha um efeito que favorecia seu rosto, ressaltando sua forte estrutura óssea, sua boca bem larga, seu firme queixo, dando proporção a suas feições. Atraente; uma mulher de caráter.
- Agradava-lhe - disse ela. - Nunca soube quanto até o mês que morreu.
Ele não teve tempo para lhe perguntar o que queria dizer.
Vozes no corredor interromperam esse inoportuno momento de intimidade entre eles. Afastaram-se, os dois de frente para a porta, arrumando-se para parecer que eram dois convidados que por separado tinham procurado um lugar para tomar um descanso.
Ela saiu e ele ficou na porta observando-a desaparecer no toucador. Não sabia que desculpa daria, mas de uma coisa estava certo: não iria passar um mês protegendo Julia para outro homem.
***
Julia entrou no quarto e toucador de senhoras totalmente aborrecida consigo mesma. Todos esses anos enganando-se a si mesma, acreditando que tinha mudado, que tinha ficado mais forte, que tinha aprendido com seus enganos. Quantos sermões e conversas imaginárias havia sustentado consigo mesma diante do espelho; quantas vezes tinha planejado seu engenhoso restabelecimento na sociedade, a fria distância que poria entre eles.
Tudo saiu voando pela janela no instante em que olhou os inesquecíveis olhos azuis de Heath Boscastle. Igualmente voltou a ser uma menina de cabeça oca e não uma viúva que já tinha superado há muito seu primeiro rubor. Era incrível, vergonhoso, que ele pudesse arrasar todas suas defesas e perturbá-la tão absolutamente. A única diferença até então e agora era que já sabia ocultar seus sentimentos.
Mas seguia sentindo-os. O não tinha a culpa de sua reação a sua atração.
Friccionou os pontos nos pulsos com uma esponja encharcada em água de flor-de-laranjeira, com a esperança de que a fresca fragrância acalmasse o torvelinho de seus pensamentos. Não contribuía em nada para serená-la que ele estivesse tão encantador como sempre ou tivesse falado de seu pai com autêntica amabilidade. “Nem que o grande pesar de seu pai moribundo tivesse sido que ela não se casou com um Boscastle”.
- Maldição - exclamou, arrojando a esponja na bacia de louça -
Malditos todos os homens.
- Suponho que nem todos os homens - disse uma voz feminina atrás dela, uma voz que gotejava risada.
Julia se virou lentamente e viu uma mulher miúda, que teria um pouco mais de trinta anos, reclinada em um sofá estofado em veludo. A mulher ficou em pé com a lânguida complacência de uma imperatriz.
Julia tinha seu nome na ponta da língua; conhecia-a.
- Você é...
- Audrey Watson - disse a mulher, com um simpático sorriso. -
Lembra-se de mim?
- É claro. Conhecemo-nos em Hyde Park faz anos.
Obrigou-se a sorrir, recordando que estava em Londres e aí valiam as regras que ela quase tinha esquecido. Quando a conheceu, Audrey acabava de converter-se na amante de um famoso pintor de retratos.
Aparentemente, pelo que tinha lido nos jornais, esse romance só foi o começo de uma próspera carreira como cortesã. A alta sociedade de Londres adorava Audrey. Oferecia festas escandalosas e vendia seus favores sexuais por onerosas somas de dinheiro.
Uma cortesã. Santo céu. Que começo mais auspicioso para sua reentrada na alta sociedade.
Audrey sorriu como se lhe tivesse lido os pensamentos.
- Ouviu as intrigas que contam sobre mim, naturalmente. Não se preocupe. Todas são verdadeiras.
Julia pestanejou. Imediatamente compreendeu por que essa mulher caía tão bem na sociedade. Gotejava senso de humor e diversão.
- Bom nesse caso felicitações. Deu-se melhor que eu com o sexo oposto.
Audrey a olhou preocupada.
- Agora é lady Whitby, não é? Julia Hepworth, a garota que gosta
de armas.
- Culpada do que me acusa.
Audrey começou a rir encantada.
- É tão notória como eu, e as duas criamos fama utilizando os homens.
- A similitude acaba aí, acredito - disse Julia com fingida solenidade
- Veja, eu me tornei infame por atirar em homens e você.... você...
- Por lhes permitir que atirem em mim - terminou Audrey, sorrindo sarcástica - Embora tenha deixado com feridas uns quantos de meus amantes, se isso a faz sentir-se melhor.
Julia suspirou, recordando por que foi se esconder nesse quarto.
- Tomara meus assuntos fossem tão simples.
Audrey se aproximou, fazendo um significativo gesto para a criada que estava arrumando capas e xales ao mesmo tempo em que escutava avidamente a conversa, e lhe perguntou em um sussurro:
- Eu te vi afastando-se sigilosa há uns minutos para ir a um encontro amoroso com Heath Boscastle?
Julia a olhou boquiaberta. Felizmente tinha esquecido que a alta sociedade tinha olhos e ouvidos em todos os cantos.
- Não foi um encontro amoroso.
Audrey sorriu como se soubesse que foi.
- Nos círculos femininos se diz que simplesmente estar em presença de um Boscastle é ter um encontro amoroso, Julia. Os sentidos da mulher ficam confusos.
- Sim, é verdade - disse ela sem pensar.
- São os melhores malandros do mundo - acrescentou Audrey entusiasmada. - Adoro-os, a todos e a cada um.
Por um estranho motivo, essa declaração de Audrey não a fez sentir-se melhor. Saber que outras mulheres achavam irresistível a Heath não dava uma vantagem extra a ela. Na realidade, só aumentava
sua ímpia atração, e a fazia compreender quão difícil resultaria esse acordo entre eles. Heath Boscastle, seu guarda-costas, Por Deus. Ele não parecia sentir-se mais feliz que ela com a situação, e não podia deixar de compreendê-lo. Isso era uma horrível imposição em sua vida.
E ela já o tinha envolvido nesse estúpido assunto de sua tia com o conde.
Audrey dilatou os olhos com horrorizados de entusiasmo:
- Não me diga que Boscastle lhe pediu para ser sua amante.
- Não, claro que não - suspirou Julia.
Audrey abafou uma exclamação
- Sua esposa? Desmaiarei de inveja.
- Está claro que não ouviu a notícia - disse Julia secamente, percebendo quão deteriorada estava nas artes sociais por falta de prática-. Estou comprometida com sir Russell Althorne.
- Com Althorne? - exclamou Audrey, esquecendo-se de falar em voz baixa, deixando assim clara sua decepção – Ah!
A jovem criada levantou os olhos e olhou para Julia assombrada, e a submeteu a um exame mais detalhado. Nisso se abriu a porta e entraram três jovenzinhas debutantes conversando.
Audrey retrocedeu agilmente para lhes deixar espaço; recuperando a serenidade, sorriu para Julia, como pedindo desculpas, mas seu seguinte comentário deixou mais claro ainda o que pensava:
- Bom, nesse caso, estou de acordo com o que expressou antes.
Julia não sabia o que fazer. Esse era o momento perfeito para escapar. Não queria revelar algo que fosse lamentar depois a respeito de sua anterior relação com Heath. Nem da atual tampouco, por certo. Mas Audrey lhe tinha picado engenhosamente a curiosidade, e descobriu que tinha que tomar o primeiro pedaço da maçã, sem lhe importar o que fizesse a serpente depois. Estava claro que a mulher tinha aversão por Russell.
- O que expressei antes? - perguntou em voz baixa - O que quer dizer?
Audrey balançou a cabeça.
- Malditos todos os homens. Isso foi o que disse quando entrou aqui, não?
Sim, isso foi o que disse, mas já tinham entrado outras três mulheres no pequeno quarto. Não era o momento nem o lugar para continuar a conversa, e provavelmente não faria nenhum bem a sua reputação ser vista procurando o conselho de uma conhecida cortesã.
Audrey conheceria algum segredo de Russell? Teria algum motivo para desaprová-lo? Era possível que houvesse lhe virado as costas em público. Ou talvez simplesmente estava tão louca pelos Boscastle que a todos outros homens achava pouca coisa comparados com eles.
Isso deveria ser, disse a si mesma.
Os homens Boscastle, como bem sabia por experiência, eram uns demônios fascinantes que jogavam nas sombras os mortais inferiores.
Capítulo Cinco
Julia passou a meia hora seguinte sentada em um canto do salão de baile com sua tia, respondendo pacientemente a suas perguntas a respeito de sua vida na Índia.
Como conseguiu sobreviver afastada tanto tempo da civilização?
Continuaria tendo pesadelos? Todos seus criados fumavam em narguilés e a consideravam uma infiel?
O conde de Odham tinha tentado várias vezes levar Hermia à pista de baile, mas ela se negava e o repreendia por comportar-se como um velho tolo presunçoso. Julia suspeitava que sua tia desfrutava com todas essas atenções, e que continuava tendo sentimentos profundos por ele, mesmo que não lhe perdoasse sua infidelidade. Não a julgava; em seu lugar, ela teria feito o mesmo.
- Sabia que esta noite está aqui a notória cortesã Audrey Watson? -
perguntou-lhe Hermia tampando a boca com o leque.
Julia contemplou o salão para não olhá-la nos olhos.
- Sim. Falei com ela há um momento.
Hermia desceu o leque, horrorizada.
- Falou com ela?
- Sim, é uma mulher encantadora.
- O que disse? - perguntou sua tia, interessada.
- Disse...
Interrompeu-se, exasperada. Era impossível concentrar-se em uma conversa normal. Heath não tinha deixado de vigiá-la toda a noite nem sequer tentava dissimular.
Quando saiu do quarto toucador, aí estava ele, esperando-a pacientemente, acrescentando combustível com sua presença à suspeita de Audrey de que havia algo entre eles. Insistiu em acompanhá-la de volta ao salão e desde esse momento não tinha deixado de observá-la.
Quando passado um momento conseguiu sair sigilosa ao jardim para escapar do ar viciado e perfumado, descobriu que ele, graças a algum instinto sobrenatural, tinha se adiantado e estava esperando no terraço fumando tranquilamente um charuto.
- Que estranho encontra-lo aqui - disse, com o coração na garganta
- Outra vez.
- Quer caminhar? - perguntou ele, ocultando o perito patife atrás de sua fachada de cavalheiro ao estender o braço.
Ela ignorou esse gesto. Teve que reconhecer para si mesma que se tivesse que escolher um guarda-costas, não poderia encontrar um melhor que ele.
- Sim, eu quero caminhar, obrigada. Mais sozinha, se não se importar. Na Índia me acostumei a caminhar sozinha.
Ele olhou para os atalhos na sombra do jardim.
- Não posso permitir - disse, negando com a cabeça como que pedindo desculpas.
- Não pode permitir...
- Disciplina militar e essas coisas. - Atravessou o terraço até onde estava ela e deixou o charuto em um vaso de barro com samambaias. -
Neste momento, só cumpro ordens.
Ela cruzou os braços sobre a cintura, sentindo-se desequilibrada, com dificuldade para respirar.
- Isto não vai acontecer.
- Concordo com você - disse ele, sorrindo pesaroso.
- Sim?
Ele avançou até um círculo de luar, e a olhou em seus surpresos olhos. Sombras prateadas marcavam os ângulos de seu atraente rosto.
- Quando morreu seu marido?
- Faz quatorze meses.
Ele não disse nada. Ela quase viu seu inteligente cérebro calculando o passar do tempo. Quatro meses de navegação de volta a Inglaterra. Outro mês para visitar seus familiares. Russell a tinha ajudado a passar por tudo quando estava tão aflita que não era capaz de pensar direito; estava a esperando em Dover e tinha preparado aposentos na estalagem, para que repousasse um pouco antes de correr ao lado de seu pai. Ocupou-se de todos os detalhes. Virtualmente a levou nos braços, tão mal estava ela. Já começava a sentir-se com os pés na terra, mais capaz de pensar sozinha. Às vezes, lamentava ter aceitado a proposta de Russell sem ter tomado um tempo para recuperar o fôlego.
Mas não desejava ficar sozinha novamente e ele tinha demonstrado ser um verdadeiro amigo, digno de confiança, que seria um bom pai. Os dois desejavam ter filhos. Seu único temor era que talvez não se conhecessem tão bem como deveriam.
De repente se sentiu nervosa pelo reservado silêncio de Heath. Ele
só atuava em interesse dela. Não era culpa dele que o coração lhe retumbasse assim em sua presença.
- Quer caminhar? - perguntou-lhe.
Ele olhou para o jardim.
- Pensando bem, não. Acredito que estamos mais seguros dentro.
Mais seguros? Do que? Pôs-se a caminhar a seu lado, deixando no ar a pergunta não feita. Quis dizer ele que se sentia inseguro em sua companhia? Se sentia algo por ela, ocultava-o muito bem, por certo. E
isso deveria aliviá-la.
- De verdade acredita que Russell está em perigo? - perguntou.
- Ele acredita - respondeu ele. Voltou-se para olhá-la, e seus sagazes olhos azuis a perfuraram até o coração. - Auclair é capaz de tudo. Sei isso por experiência própria. O que não sabia era que tinha voltado à atividade. Tinha a esperança de que não voltaríamos saber dele.
Ela teve que reconhecer que caminhar ao lado desse homem sólido de ombros largos lhe produzia uma prazerosa sensação. Ele podia lhe minar a serenidade, ela podia não confiar em si mesma se estava sozinha com ele, mas ninguém podia duvidar de sua capacidade para protegê-la. Tampouco podia discutir a afirmação de Audrey Watson de que a companhia de um Boscastle perturbava os sentidos. E como iria esquecer que esse determinado Boscastle tinha um talento absoluto para a sedução? Guardava no fundo de seu coração essa pecaminosa lembrança.
Olhando atrás para o jardim, disse em voz baixa:
- Seu charuto... continua lançando fumaça no vaso de barro.
Ele sorriu de orelha a orelha.
- Deixe que fumegue.
- Mas onde há fumaça...
- Normalmente há um Boscastle perto.
***
Deixe que fumegue, certamente.
Ela foi quem se sentiu como se fosse consumir-se ardendo lentamente quando um minuto depois voltaram a entrar no abarrotado salão de baile, e se achou sufocada e presa no calor das velas e com falta de ar. Tal como tinha suposto, vários convidados os olharam, alguns simplesmente curiosos e outros francamente surpresos.
Ao que parecia, Heath nem notou, ou talvez simplesmente não lhe importasse. Na realidade, pensou, ele atraía muito mais atenção que Russell, que se sentia em seu elemento atraindo o interesse do público.
Manteve a cabeça muito erguida e se obrigou a manter um leve sorriso nos lábios. Se não tivesse sido por Heath poderia ter ficado fora uma hora. Russell não acreditava nela quando lhe assegurava que tinha perdido seus dotes sociais. Ou talvez ela já não tivesse a tolerância para essas tolices.
Tinha feito frente a assuntos mais importantes da vida.
Heath parou para conversar com um casal de idade, e colocou a mão no braço dela, para lhe impedir que voltasse a afastar-se. Até aí chegavam retalhos da conversa entre umas senhoras exageradamente elegantes que estavam agrupadas uns palmos mais à frente.
- ... e nem sequer tem a decência de levar meio luto.
- Bom, o que se pode esperar de uma viúva que atirou em um homem em... em.... nem sequer posso dizer a palavra.
Heath olhou para elas e interrompeu sua conversa com o casal para declarar:
- No traseiro, Disparou no traseiro do bastardo. Não sei se foi na nádega esquerda ou na direita ou no meio. Isso terá que perguntar a ela.
- Eu, jamais! - exclamou a mulher.
- Talvez devesse - replicou ele, com um diabólico sorriso - Isso poderia lhe fazer um mundo de bem. Poderia inclusive refreá-la de
repetir intrigas nas festas.
Inclinou-se ante o casal para despedir-se, e eles lhe sorriram aprovadores. Em seguida pegou Julia pelo braço e a levou energicamente até o centro do salão, sob o resplendor do imenso lustre de cristal; onde todos pudessem vê-los; o muito querido malandro e a infame viúva que atirou no traseiro de um soldado inglês.
- Obrigada - disse ela, sarcástica, em meio a alegre música da contradança que chegava do estrado da orquestra - Isso deve fazer um bem incomensurável a minha reputação.
A resposta dele foi apagada por um repentino aumento do som de violinos e violoncelos, mas lhe pareceu que o impertinente patife lhe perguntava: "Bom, foi na esquerda ou na direita?”.
E ela respondeu no momento em que tocavam seus ombros.
- Em nenhuma das duas. Atirei no meio. Deixei-lhe uma terceira covinha para que se lembre de mim.
***
Julia se sentia tão rígida e desajeitada na pista de baile como um quebra-nozes
de
madeira.
Os
demais
casais
os
olhavam
dissimuladamente, talvez comparando a graça natural de Heath com seus torpes e vacilantes movimentos. Talvez esperando que ela tirasse uma pistola e começasse a atirar nas velas do lustre apagando-as uma a uma. Detestava pensar na opinião que tinham as pessoas dela, Detestava pensar que algo que ela dissesse ou fizesse exporia à vergonha a Russell, que tinha trabalhado tão arduamente para ganhar sua fama. Ela era um perigo para ele, e temia que já fosse muito tarde para mudar.
Esquivocou-se com um giro; Heath passou o braço pelo dela e a guiou firmemente até que recuperou o passo, e a levou por entre os casais de bailarinos formados em duas fileiras como se isso pudesse fazê-lo dormindo. Dançar com ele a deixava nervosa. Sua masculinidade
a distraía tanto que lhe custava concentrar-se no que fazia e, queria reconhecer ou não, sentia-se torpe, nada elegante, seu talento oxidado para o decoro por anos de negligência.
Mas pouco a pouco foi relaxando e pôde segui-lo e deixar-se guiar.
Sua tranquilidade a tranquilizava. Percebia que ele estava resolvido a fazê-la sentir-se cômoda, a sua sutil maneira.
Sempre tinha sido muito observador. Advertia cada engano que ela cometia, e sim, deveria levar meio luto. Russell também opinava isso, mas ela não conseguia submeter-se a seguir a tradição. Tinha perdido seu pai e seu marido, e não era sua intenção desonrar a nenhum dos dois não se vestindo de negro. Seu pai sempre detestou a roupa de luto, assegurando que as viúvas de todo o mundo pareciam corvos. E ela se negava a submeter-se à etiqueta por respeito a pessoas que não conhecia. E a verdade era que mal conhecia sir Adam Whitby quando se casou com ele. E não o conhecia muito melhor quando morreu, mas teria sido uma boa esposa se lhe tivesse dado a oportunidade. Era partidária do compromisso.
Com seu jovem marido só se viam umas poucas vezes ao ano na Índia. Adam vivia viajando de um a outro dos postos de avanço, e ela lia e desenhava para encher suas solitárias horas. Sentia-se culpada por não sentir sua falta. Nem sequer teve um filho que a consolasse e o recordasse. O que tinha era a considerável fortuna de seu pai; dele tinha herdado também, além de sua fortuna, sua segurança em si mesma, sua fé nela e sua paixão pela vida. Isso a levaria adiante.
- Vai para o lado contrário outra vez - lhe sussurrou Heath, divertido, fazendo-a virar para o outro lado.
- Queria escapar.
Sorriu-lhe peralta,
- De mim? Querida, como é possível isso?
- Incrível, não é verdade?
- Sem precedentes. E eu que achava que a estava levando com minhas melhores maneiras.
Os passos da dança os juntaram um momento, tocaram-se seus corpos, acendeu-se o calor, olharam-se nos olhos e Julia perdeu a capacidade de pensar, de mover-se, de respirar, Formigaram-lhe os seios rodeados pelo corpete e desceu um estremecimento de crua sensação pela coluna. Os olhos dele se escureceram ao compreender isso; conhecia a sedução por dentro e por fora. Então a dança voltou a separá-los.
Ela fez uma inspiração profunda.
E tinha acreditado que a Índia era um lugar perigoso? Sentiu um inesperado desejo de sair correndo do salão para esconder-se. Russell a tinha convencido de que seria capaz de reintegrar-se à alta sociedade e sobreviver, mas suspeitava que estava equivocado. Em todo caso, ele já dava ominosos sinais de que seria um marido perpetuamente ausente.
Já começava a pensar se estaria destinada a passar sozinha o resto de sua vida enquanto ele estava longe demonstrando seu valor. Ele sempre se havia sentido inferior em meio a alta sociedade, consciente de sua humilde origem. Era inseguro e arrogante ao mesmo tempo. Tão cheio de defeitos e humano.
Mas também era um dos poucos homens do mundo civilizado que desejava casar-se com uma viúva escandalosa. E se conheciam desde há muitos anos.
Quase tanto tempo quanto conhecia o demônio de olhos azuis que girava ao redor dela na pista de baile.
Terminou a contradança.
Fez outra inspiração, aliviada, e viu Audrey Watson sorrindo-lhe do outro lado da pista. O olhar de Audrey passou para Heath e comia-o com os olhos. Não era a única convidada que o olhava com melancólico desejo. Aparente e compreensivelmente, ele tinha criado um grupo de
admiradoras na alta sociedade.
Era muito fácil culpar a ele pelo que ocorreu entre eles aquela vez.
Inclusive nesse momento não saberia dizer se foi ela quem instigou esse primeiro beijo ou foi ele. Então pensou como reagiria se aparecesse a oportunidade de reviver aquela memorável tarde. Demonstraria ele, e demonstraria ela, que era mais prudente?
Jamais saberia. A oportunidade de recuperar esse tempo já tinha passado.
Ele a acompanhou até o lugar onde estava sua tia. Ela tomou a decisão. Isso não podia continuar. Russell fez mal em pedir a Heath que cuidasse dela, fez mal em colocá-lo em uma situação violenta, incômoda. Nisso atuava a mão do tentador. Era impossível ressuscitar o passado.
- Liberto-o de sua obrigação - lhe disse em voz baixa.
Ele a olhou com o rosto impassível.
- Ouviu-me? - perguntou-lhe então, com a voz rouca pela emoção -
Não podemos fazer isto. É... traz muitos lembranças, ao menos para mim.
Ele assentiu, com seus olhos azuis brilhantes, com perigosas chamas.
- Compreendo. E estou de acordo.
E embora a estivesse observando o resto do baile e a acompanhasse a sua casa, não voltou a lhe dizer nada mais, além de umas poucas palavras.
Capítulo Seis
Depois de deixar em casa Julia e sua tia, Heath pegou um carro de aluguel para ir à casa londrina que Russell alugou.
Ao ver que ninguém atendia a seu suave golpe na porta, tomou a liberdade de entrar na casa.
Supunha que Russell já estaria deitado dormindo-se preparando
para sair pela manhã para Dover. Os dois observavam a disciplina militar até esse dia. Se não fosse um assunto urgente, não o incomodaria.
Ficou um momento imóvel no pequeno vestíbulo, olhando a escada, pensando qual seria a melhor maneira de proceder.
Desgostava-o tirá-lo da cama, mas, por outro lado, não podia deixar acreditar que Julia tinha um protetor nele quando em realidade não o tinha. Russell teria que procurar outro acerto, outra solução. Ele estava muito disposto a arriscar sua vida por seu país; arriscar seu coração era outra coisa muito diferente. Não via sentido fingir para si mesmo que não continuava sentindo-se atraído por ela. Para que colocar a tentação em seu caminho? Já tinha sofrido muitas torturas em sua vida.
Viu a luz no patamar, procedente de um aposento do primeiro andar. O resto da casa estava totalmente às escuras, e envolto no silêncio.
Lentamente caminhou para a escada, com os sentidos alertas, sério pelos pensamentos que foram passando por sua cabeça.
Achava estranho que tivessem deixado a porta da rua descuidadamente sem chave.
Também era estranho que não houvesse nenhum empregado vigiando no vestíbulo, quando supostamente a Russell o buscava um assassino. Teria partido já?
Ouviu o som apagado de uma risada, procedente de um quarto acima, uma voz feminina desconhecida.
Baixou-lhe um formigamento pelas costas, como ante um mau presságio.
Cautelosamente começou a subir a estreita escada.
Então ouviu a rude voz de Russell, respondendo algo ao que disse rindo a mulher. Não conseguiu entender as palavras, mas o tom indicava que esse não era um diálogo hostil. Pensou se não deveria ir embora.
Repentinamente a ideia da Julia desprotegida foi mais forte que a boa
educação e avançou.
Ao final do corredor encontrou uma porta aberta. Ficou imóvel um momento, sem poder acreditar no que via. Uma esbelta mulher estava dançando pelo tapete, com os dois sapatos em uma mão e com a outra tentando recolher com uma presilha os cachos loiros que lhe caíam sobre os seios nus.
- Lady Harrington - disse em voz baixa, sorrindo levemente - Que prazer voltar a vê-la. Toda inteira.
Tranquilamente olhou seu rosto desconfiado e desceu o olhar por seu avermelhado corpo nu. Ela deixou cair os sapatos no chão e pegou seu vestido pastel da cama revolta para cobrir sua nudez. Na realidade não tinha porque haver se incomodado; não lhe interessava nada.
Abafando uma exclamação de horror, ela saiu correndo, passou ao lado dele e desapareceu na escada em um impreciso revoo de pele rosa.
Ele não fez nada para impedir que partisse. A porta do quarto continuava aberta. Abriu-a mais e então viu Russell junto a sua escrivaninha, com o torso nu, um maço de papéis em uma mão e uma pistola na outra.
- Maldição, Lucy - disse Russell, aborrecido. - Disse-lhe que tenho que dormir. O que esqueceu agora?
- Talvez sua virtude? - disse Heath, entrando e apoiando um ombro na parede. - Suas promessas de matrimônio?
Russell virou a cabeça e os papéis caíram sobre a escrivaninha espalhando-se.
- Que diabos acontece, Boscastle?
- Perdoe-me - disse Heath em tom monótono, olhando os revoltos lençóis no chão. - Não tinha ideia de que estava com visita. Vim dizer que não posso fazer o que me pediu. Não posso cuidar de Julia.
- Isto não é o que parece - disse Russell, em um tom de estar
desesperado, envergonhado.
Heath lhe olhou tentando averiguar o que acontecia. Não gostava nada disso.
- O que parece?
- Estou partindo. Um homem tem certas necessidades, e Julia é muito... reservada na arte do amor. Não o dirá, não é?
- Para que iria dizer?
E quando foi que Julia se tornou reservada? Reservada não era uma palavra para qualificar Julia que se retorcia de prazer debaixo dele sobre um tapete da biblioteca, a mulher que o deixou ofegante de desejo, de um desejo que nunca tinha satisfeito.
- Esta é a primeira vez...
- Feche o bico, Russell.
- Ouça, não há nenhuma necessidade de ser grosseiro. Você não é exatamente um monge, não é?
- Vista a camisa.
Russell alargou despreocupadamente a mão e pegou a camisa de linho branco que pendia da cadeira.
- E o que faz aqui, por certo? Ordenei-lhe que vigiasse minha noiva.
- Para poder ter o campo livre para seus jogos? Não acho justo.
Russell começou a abotoar a camisa, sério.
- Como diabos entrou em minha casa?
- A porta estava sem chave. Bastante descuido, para um homem a quem supostamente procura um assassino.
Russell o olhou sem confiança.
- Meu mordomo não o deteve?
Heath se endireitou, afastando-se da parede, compreendendo que não o tinham enganado seus instintos. Tanto ele como Russell só empregavam criados que tivessem sido soldados bem formados e que
tivessem demonstrado sua valentia no campo de batalha.
- Não vi nem sinais dele.
- Então aconteceu algo - disse Russell caminhando para a porta, com expressão sombria, alarmado. - Nunca antes me falhou.
Três minutos depois acharam o mordomo e os dois lacaios atados e amordaçados na despensa. O assaltante usava uma máscara e nenhum deles lhe ouviu a voz nem soube descrevê-lo, pois os pegou despreparados.
- Poderia ter sido Auclair? - sugeriu Heath quando estavam revistando o resto da casa.
- De maneira nenhuma - negou Russell. - É evidente que contratou um ladrão para que me amedrontasse.
- Por quê?
- É o inimigo e não é nenhum segredo que tenho a intenção de pegá-lo e matá-lo. Não deveria ter de explicar-lhe isso. - Passou um dedo pela borda do parche no olho, e continuou com a voz rouca de emoção - Por isso exatamente preciso de você. Você conhece Londres, conhece Julia, ao menos o suficiente para vigiá-la.
- Sim, mas...
- Vi o que lhe fez Auclair em Portugal. Encontrei-o meio morto, um louco de atar, torturado mais do que pode suportar um ser humano, Como pode ter esquecido a quantos de nossos homens matou? Ou que desfrutava da crueldade?
- Não o esqueci - disse Heath secamente - vamos procurar o homem que entrou aqui ou não?
Russell colocou os braços em seu casaco.
- Eu me encarregarei disso, Quero que vá à casa de Julia. E fique lá. Por favor, Heath.
- Bom Deus.
- Não me faça perguntas. Vá logo.
Heath saiu da rua Saint James inquieto, de ânimo sombrio, pensando como diabos deveria levar a situação. Claro que o que Russell lhe pedia era lógico; era um pedido justificado, e talvez ele o teria feito de todos os modos se lhe tivesse dado tempo para tomar suas decisões.
Mas tudo voltava para Julia, que o tinha despedido umas horas atrás, Não por crueldade, mas movida por um senso comum que ele não podia deixar de admirar.
Ela tinha compreendido o perigo que existia entre eles, a atração.
Tinha amadurecido, qualidade que ele achava muito atraente.
Ficou vários minutos fora da casa de Julia, para que lhe apaziguassem
os
sentimentos,
lhe
esfriassem
as
emoções,
sossegassem, apagadas como as cinzas de um fogo abrasador. Tinha sido muito agradável voltar a vê-la essa noite, mas não sabia se desejava repetir a experiência. Não gostava nada desse desafio a seu autodomínio, chateava-o não saber como reagiria a ela.
Ela sempre o fazia sentir.... bom, o fazia sentir intensamente.
Inclusive não tinha decidido se esse era um estado desejável. Seu instinto de amparo batalhava com o ímpio desejo que ela havia tornado a despertar nele, Uma mulher sexualmente atraente, que poderia converter-se em uma amiga de confiança. Existiria algo mais perigoso no mundo? Desconcertava-o compreender, na sua idade, que nem sempre podia prever a seguinte curva no caminho. Bom, acaso não era isso o que fazia interessante a vida?
Lady Dalrymple já estava deitada e dormindo quando bateu na porta da casa de Berkeley Square. A princípio o velho mordomo que lhe abriu a porta se negou a deixá-lo entrar. Mudou de opinião quando lhe explicou a situação; que era necessário proteger lady Whitby do homem que entrou na casa de sir Russell e golpeou seus criados.
- Eu digo que não temos que confiar nos franceses, milorde - disse, seguindo-o pelo vestíbulo. - Deveríamos tornar prisioneiro todo esse
país.
- Esplêndida ideia - respondeu Heath. - Estranho que isso não tenha ocorrido a ninguém.
- Não confio nada nesse Napoleão - acrescentou o mordomo, colocando sua mão cheia de manchas no bengaleiro para firmar-se. - Eu acredito que deveríamos...
Heath virou sobre seus calcanhares e retrocedeu uns passos.
- Onde está lady Whitby?
O mordomo pestanejou.
- Em cima em seu quarto, milorde, lendo. Gosta de ler até tarde da noite. Mas não acreditará que algo.... que alguém... - engoliu em seco. -
Sir Russell queria que postássemos um lacaio fora de seu quarto, mas lady Whitby se negou rotundamente. Disse que isso lhe produziria pesadelos. Disse que...
- Era exagerar as coisas - terminou Heath em voz baixa-. Deus me ampare, para isto me formaram?
Subiu correndo a escada e se dirigiu para o quarto em cuja porta se via a luz de velas. Estava sem chave, descuido pelo qual teria que repreendê-la. Julia estava atravessada na cama, de barriga para baixo, com o rosto metido em um livro que pelo visto era muito interessante.
O primeiro que lhe passou pela mente foi que estava viva, claramente ilesa, ignorante de que tinha um visitante, ignorante do ataque aos criados de Russell.
O seguinte que lhe chamou a atenção e lhe reteve, a atenção, foi a potente sensualidade de seu corpo, a elevação de seu bem formado traseiro sob a camisola, suas fortes pernas nuas até as coxas, os tornozelos cruzados. Nessa despreocupada posição, poderia fazer cair de joelhos a muitos homens. Ficou imóvel, paralisado, tratando de dominar a onda de desejo sexual em uma batalha silenciosa embora brutal. Não conseguia entender de todo sua reação; sua fascinação por
uma mulher que pertencia a seu amigo. Onde estava sua sensatez?
Seu cabelo tinha reflexos mais claros do que os que recordava; seus braços e ombros tinham uma cor dourada que a favorecia, mas claro, tinha passado anos na Índia, Não se surpreenderia o mínimo se descobrisse que ela tinha desafiado as convenções não evitando o sol como faria uma decorosa inglesa. Sendo Julia, não se horrorizaria se ela se banhasse todo dia nua em um rio cujas bordas estavam infestadas de tigres que comiam homens. Ele poderia tomar um pedaço dela, unir-se a ela nessa cama e dar rédea solta a seus instintos masculinos. Percorreu-o um estremecimento de pura tentação.
O coração lhe pulsava forte, acelerado, tanto pelo alívio de encontrá-la sã e salva como por seu atrativo sexual que fazia ferver o sangue. Resultava-lhe facilíssimo imaginar-se lhe tirando essa simples camisola; imaginar-se deslizando a mão por suas curvas, acomodando seu forte corpo debaixo do dele e terminando o que começaram naquela vez há tantos anos. Reservada? Assim a definia Russell? Não era reservada a mulher que gemia com a respiração entrecortada com seus beijos ilícitos, que lhe permitiu essas intimidades, correspondendo-lhe.
Sentia tensa a virilha e endurecido o membro; recordava muito bem como o tinha tentado. Não acreditaria nele se lhe confessasse o que tinha sentido por ela. Ele mesmo não acreditava, nem sabia o que fazer com isso.
A imagem desse encontro do passado se dissolveu quando repentinamente ela rodou e ficou de lado. A tentação continuou, embora se transladasse a uma curva de sua mente para atormentá-lo depois.
Seu longo cabelo avermelhado lhe caiu ao redor dos ombros; seus olhos cinza sob as pálpebras entreabertas eram dois brilhantes e perigosos pontos de emoção. Ele pestanejou e enfocou a atenção.
Ela tinha uma pistola na mão, apontada com implacável precisão a seu peito. Fez uma inspiração profunda. Que Julia voltasse a atirar nele
não era a parte da história que desejava repetir. Deitar-se com ela e rir sim. Uma ferida de bala não.
- Sou eu - disse, porque foi o primeiro que lhe ocorreu; Julia tinha fama de atirar em homens, e se dizia que na terceira vez conseguia. -
Pelo amor de Deus, Julia, sou eu.
Ela abaixou a mão e olhou para a porta.
- O que aconteceu? Veio Russell com você? Por que entrou assim aqui?
- Seu noivo está bem. Esta noite atacaram seu mordomo e seus lacaios quando ele estava em seu quarto preparando sua bagagem.
Deveria haver dito "preparando-se para partir". Não diria. Não queria ser o mensageiro de más notícias, se não ela o matasse aí mesmo. Não tinha a menor intenção de envolver-se mais nisso do que fosse necessário. Ou ao menos isso disse a si mesmo.
Ela desceu a camisola, cobrindo as pernas nuas, algo tarde para que servisse de alivio a ele. Já havia visto suficiente de seu delicioso corpo para ficar acordado o resto da noite, para ressuscitar todos seus demônios e desejos latentes.
- Então por que veio?
Ele a olhou sério. Bom Deus, tinha-lhe dado um bom susto com essa pistola. Merecia a reputação que tinha.
- Russell me enviou para me ocupar de que estivesse segura.
- Acha que estou em perigo?
Sustentou lhe o olhar. Não iria insultar sua inteligência com uma mentira. Tampouco queria lhe explicar o cruel e demente que era Armand.
- Não sei.
- Talvez devesse partir de Londres.
- Talvez. Nem sempre há segurança em uma multidão.
Ela desceu da cama e ficou em pé. Parecia mais jovem com o
cabelo solto; indefesa, embora com essa pistola na mão, não, e em realidade isso o alegrava. Enquanto não a apontasse para ele.
- Obrigada - disse ela, e em seus olhos reapareceu essa conhecida expressão de travessura, e seu rosto tinha recuperado a cor - Que guarda-costas mais competente é, Boscastle.
Ele sentiu uma opressão no peito, uma sensação de... o que? De apreensão? De afeto? Ou de simples e pura atração sexual, esse tipo de atração sexual que faz cair reinos, acaba com profissões e faz vítimas a idiotas? Nem em mil anos teria se acreditado vulnerável a essa armadilha. Que idiota mais arrogante tinha sido.
- Obrigada pelo que?
Ela sorriu, e a ele lhe intensificou a sensação. Não sabia o que fazer para combatê-la; nem sequer sabia o que era.
- Por vir em meu resgate - disse ela, e o olhou sorrindo sarcástica: -
Ah, sim, resgatada de ler. Como lhe poderei pagar isso?
- Pensarei em algo. Deixe-me ver essa pistola.
Ela a estendeu.
- Pegue. Tome cuidado. Está carregada.
Ele pegou a pistola e arregalou os olhos, surpreso.
- Onde a conseguiu? É uma pistola de duelo Manton, com chave de pederneira.
- Deu-me meu marido.
Ele a olhou admirado.
- Seu marido?
- Ausentava-se muitíssimo.
- Esta é uma arma muito bela, Julia.
- Sei.
Olhou para seu rosto. Sentiu uma comoção ao perceber o quão perto que estavam. Ela tinha cruzado a distância, ou ele? Não soube dizer. Era quase como se estivessem magnetizados, atraídos um ao
outro contra a vontade e o bom senso. Via-lhe o diminuto lunar na garganta, e mais abaixo, a elevação de seus redondos seios.
Uma mulher em toda sua plenitude. Uma mulher que pertencia a outro. Sentiu arder o sangue, como em rebelião por esse aviso. Por que tinha que ser tão condenadamente sedutora?
- Escute, Julia, eu...
Ela se aproximou mais e o surpreendeu lhe beijando a face. Ele não se moveu, não moveu nem um só músculo, mas todos seus sentidos, todos seus vasos sanguíneos, todas suas partes, reagiram ao delicioso calor de seus lábios. Não demonstrou; não fez nada que revelasse as ânsias que sentia de agarrá-la em seus braços e lhe ensinar uma ou duas coisas sobre atormentar. Pasmava-o a crua potência de seu desejo por ela; que tivessem passado anos e ela ainda pudesse lhe penetrar as defesas sem sequer tentá-lo. Tinha se metido sob a pele. E se tinha acreditado recuperado, Deus o amparasse; tinha acreditado superada sua obsessão por ela.
- Querido Heath - murmurou ela, afastando-se. - É muito honrado para seu bem, temo.
A honra era o último em que teria pensado. Ela não tinha ideia das coisas que se viu obrigado a fazer desde aquela vez em que se conheceram. Tinha matado homens; afastara-se de mulheres que choravam e suplicavam que ficasse.
Podia sair imediatamente dessa casa e ir dizer a Russell que fosse para o inferno. Provavelmente isso seria o fim de sua carreira, mesmo que nesses últimos tempos não tinha tido nenhuma atividade. Sentiria falta do perigo, o entusiasmo, a excitação, a distração da vida comum.
Em todo caso, tinha dinheiro mais que suficiente.
Talvez devesse buscar uma esposa e engendrar um ou dois herdeiros. Tinha outra opção, na realidade. Não tinha por que torturar-se.
Podia contratar a outro homem para que ocupasse seu lugar. Olhou-a
fixamente, tratando de ler seus pensamentos. Que Deus o amparasse se ela voltasse a tocá-lo.
- Que expressão mais amedrontadora tem no rosto - disse ela, mordendo o lábio inferior e olhando-o - Deixe de pensar o que for que está pensando.
Ele fez uma brusca inspiração, e novamente ela invadiu todos seus sentidos. O aroma de seu cabelo, o convidativo calor de seu corpo, o toque de sua camisola de musselina no dorso de suas mãos. Tinha o beijado no rosto. Que descaramento! Depois de tudo o que fizeram aquela vez, ela achava que um casto beijo na face iria acalmá-lo? Era virtualmente um insulto, um convite A.... não sabia do que. Estava zangado e excitado ao mesmo tempo, uma perigosa combinação.
- Dou-lhe medo? - perguntou, sorrindo a contra gosto.
- Não seja tolo. Detesto reconhecer, mas acho muito atraente sua expressão cavilosa. - Foi sentar-se ante seu toucador, dando-lhe as costas, e pegou uma escova. - Mas claro, já me conhece. Parece que me atraem os problemas, não?
- Eu sou um problema, Julia?
Ela apertou com mais força o cabo da escova, e esse foi o único indício de que sua pergunta a tinha perturbado. Girou a cabeça e o olhou por cima do ombro. Parecia uma deusa com o cabelo solto.
- Poderia sê-lo, com certeza. Foi uma vez pelo que me lembro.
- Sobreviveu - sorriu ele.
- Você também.
Ele apoiou o quadril no poste da cama, contemplando o suave deslizamento da escova por seu cabelo. Sentiu o intenso desejo de arrebatar-lhe para fazer ele essa tarefa.
- Como sabe?
Ela parou o movimento da mão. Pareceu surpresa, como se nunca tivesse considerado a possibilidade de que o tivesse ferido.
- O que quer dizer?
Ele a olhou nos olhos, perfurando-lhe com seu olhar.
- Como sabe o que eu sentia por você? Se sobrevivi ou não?
Sustentou lhe o olhar, e ele viu refletida em seus olhos a mesma confusão que sentia ele.
- Não diz a sério, não é verdade? - disse então ela em voz muito baixa.
De repente ele desejou não ter dito nada. Era muito impróprio dele revelar seus pensamentos mais profundos. E o que podia ganhar com isso? Ficou em silêncio, contemplando seu escultural corpo, observando como seu longo corto se enroscava sob seus seios.
- Responda-me - disse ela, abaixando a escova.
- Não me deu a oportunidade de...
Interrompeu-se. Desejava e não desejava dizer-lhe. Não tinha nenhum sentido dizer-lhe. Melhor deixar adormecidos os desejos do passado.
- Terminar de me seduzir? - perguntou ela, com seus olhos cinza algo tristes.
- Não sei. - Olhou-a francamente - Talvez.
Ela se virou na banqueta, Não era nenhuma covarde. Olhou-o nos olhos sem pestanejar.
- Então escapamos os dois.
- Sim?
Ela entreabriu os lábios. Ele desceu o olhar e viu que tinha afrouxado a pressão da mão sobre a escova e tinha a respiração agitada. Nesse instante compreendeu a intensidade com que a desejava para ele, reconheceu-o em seu coração, aceitou a verdade com toda sua terrível e castigadora sinceridade. Ela pertencia a outro, mas deveria ser dele.
- Fala da sedução como se fosse um objetivo em si mesmo - disse.
- Mas pode ser muito mais. Compreendo que tenha desconfiado de meus motivos; os homens seduzem a mulheres todos os dias e as abandonam. De todo modo, se a tivesse feito minha nessa tarde, duvido que isso tivesse sido um final para nós.
Subiu-lhe a cor às faces e respirou profundamente em um esforço de ocultar sua confusão.
- Poderia ter sido um começo - disse ele, sorrindo tristemente.
***
Quando desceu, Heath estava satisfeito por ter cumprido seu dever, mesmo que tivesse sido as custa de sua dignidade. Não tinha sido sua intenção fazer uma confissão; esta não contribuía para melhorar a situação, Mas pelo menos ela parecia estar segura essa noite. Recordaria aos criados que deviam estar vigilantes se por acaso houvesse intrusos, tomar precauções especiais, e depois passearia alguns minutos diante da casa. E trataria de achar uma maneira de sair desse ridículo problema.
Estava claro que não podia confiar em si mesmo para estar a sós em um aposento. Ou a seduziria. Ou ela lhe colocaria uma bala. Fosse um ou o outro, os dois acabariam no chão.
Payton, o mordomo de cabelo prateado de Julia, estava esperando-o ao pé da escada.
- Tudo está bem, milorde? - perguntou-lhe, com a voz embargada pela ansiedade.
Heath o olhou sério.
- Parece que tudo está bem.
Se não levasse em conta o estado mental, que lhe seria muito complicado e vergonhoso explicar ao mordomo.
- Esteve muito tempo acima no quarto de sua senhoria. Achei que...
Heath limpou a garganta.
- Não há nada no que acreditar. Simplesmente não entre em seu
quarto sem se anunciar. É muito provável que atire em você.
Payton se permitiu esboçar um sorriso travesso.
- Ah, todo o pessoal conhece muito bem o talento de lady Whitby com armas de fogo, milorde, o asseguro.
- Talento, não é? - disse Heath, calçando as luvas. - Essa é uma maneira educada de expressar. Bom, deixando de lado o talento, recordar-lhe-ei o que disse sir Russell antes: deve extremar as medidas de vigilância para proteger esta casa. É necessário vigiar o jardim e a rua dia e noite.
O mordomo o seguiu até a porta.
- Estou preparado, milorde. Levo minha arma.
- Muito bem. Não atire em mim quando voltar dentro de uns minutos, vou sair para tomar ar fresco.
- Não, claro que não, mas... - Payton se adiantou para lhe abrir a porta. - Ah, parece que seu acompanhante já partiu.
Imediatamente Heath saiu e olhou para um e outro lado da rua deserta.
- Meu acompanhante?
- O homem que o seguiu até aqui em um carro negro, milorde.
Estive a ponto de convidá-lo a entrar, mas então pensei que talvez o senhor o tivesse ordenado vigiar a casa. - Fez-lhe uma vênia, com ar de cumplicidade, satisfeito consigo mesmo - Por segurança. Eu sabia que esta era uma operação secreta.
- Por segurança.
Apertando a mandíbula, Heath se virou e andou até a porta, resignado. Então um homem esteve observando a casa. Um que trabalhava para Russell? Muito possível, mas, aonde se foi esse misterioso indivíduo e por que Russell não o avisou?
- Suponho que não saberia me descrever esse homem, Payton, nem sua carruagem.
- Céus, milorde. Não quis ser mal educado olhando-o. Mas sim lancei um bom olhar ao carro. Era pequeno, e negro, acredito. Ou azul escuro. Pensando bem, igualmente poderia ser marrom.
- Seus poderes de observação são extraordinários.
- Obrigado, milorde. Vamos voltar a entrar na casa?
Heath tirou as luvas, pensando em Julia, em seu quarto.
- Receio muito que sim.
Capítulo Sete
Julia e sua tia estavam escutando a conversa entre Heath e Payton do outro lado da porta do salão do andar de baixo, decorado com muito bom gosto em tons creme e dourado claro. Despertada pelo ruído do interior da casa, Hermia foi ao quarto de Julia para investigar. Uma vez que Julia lhe explicou o que ocorreu aos criados de Russell, Hermia declarou que se sentia muito agitada e não poderia voltar para a cama.
Juntas desceram ao salão para beber um chá de camomila para acalmar-se.
- O que faz Boscastle? - perguntou Hermia em um sussurro.
- Parte.
- Parte?
- Sim. - Julia apareceu pela fresta da porta apenas entreaberta -
Não. Vem de volta.
- Aqui?
- Aqui. Santo céu, Hermia, vem direto a este salão. Vamos nos afastar da porta. Rápido.
Afastaram-se justo um instante antes que se abrisse a porta de par em par.
Julia não dava crédito a seus olhos. Heath entrou em longas passadas, em linha reta, e passou pelo lado delas sem sequer olhá-las.
Estava certa de que as tinha visto, muito juntas, de penhoar, no centro do salão.
Então ele tirou a jaqueta e a deixou sobre o espaldar do sofá estofado em damasco. Tirou os sapatos e as meias e os colocou bem ordenados debaixo da mesa de cartas.
Julia e Hermia se olharam surpresas. Nenhuma das duas disse uma palavra.
Julia entreabriu os lábios. Que demônios se propunha? Com certeza sabia que elas estavam ali. Ao que parecia não o preocupava absolutamente ter público.
Ele desatou a gravata de seda branca e a deixou bem dobrada na mesinha lateral, junto a um dos livros de Julia. Em seguida se deitou no sofá, cruzou seus musculosos braços sob a nuca e esticou as pernas.
Em nenhum momento dirigiu a vista para elas, que estavam olhando-o boquiabertas uns metros mais à frente. Parecia, por sorte, que tinha terminado de despir-se. Julia não entendia nada. Ainda não se recuperou da conversa que tiveram fazia um momento. Não se atrevia a pensar no que quis dizer ele. Teria sido o truque de um homem preparado para atrai-la a sua cama? Não, Heath não necessitava de nenhum truque. Por que lhe disse isso? Com isso piorava as coisas para ela, lhe reavivando o conhecido desejo.
Deu um passo para ele.
Ele estava absorto na contemplação de deuses e deusas pulando no afresco de cima do lar.
- Heath. - limpou a garganta. Vê-lo deitado nesse sofá com toda sua
senhorial
elegância
fazia
passar
pela
cabeça
imagens
perturbadoramente eróticas. Dava toda a impressão de estar instalado para passar a noite; em seu salão - Sei que isto não pode... que não pode ser que esteja fazendo o que parece estar fazendo.
Concedeu-lhe um olhar caviloso. Seus olhos azuis sob as pálpebras entreabertas a perfuravam como uma adaga com a ponta encharcada em um embriagador afrodisíaco.
Esse olhar era o mais sensual e perturbador que tinha visto em um homem. Não era de estranhar que ela tivesse sucumbido a ele aquela vez. Seu olhar era capaz de derreter o coração de uma mulher a vinte passos. Sentiu uma inoportuna pontada de desejo no fundo das entranhas. Ele iria dormir em seu sofá com o fim de assegurar-se de que ninguém fizesse mal a ela. Comovia-a esse valor e preocupação por ela.
Tentava-a. Ele iria passar aí a noite.
E tinha tirado a gravata e os sapatos diante dela e de sua tia. Que mais faria?
- Necessita algo, Julia? - perguntou ele, em tom resignado, e algo ressentido também.
Ela se plantou diante dele, já recuperada sua presença de espírito.
Ele ocupava todo o comprimento do sofá; uma vez se reclinou sobre ela também. Sentiu arder o rosto ao recordar o forte, o pecaminoso que sentiu esse elegante corpo esmagando-a no chão. Teve anos para analisar essa sensação. Talvez nenhuma mulher esquecesse nunca sua primeira experiência. Tinha perdido a conta das vezes que tinha recordado secretamente o prazer sensual daquela tarde.
As investidas de seus quadris, a sensação de sua boca na dela.
Seu corpo tinha sua própria memória.
- O que pretende fazer? - perguntou-lhe em voz baixa.
Ele fechou os olhos, para despedi-la.
- É evidente que vou passar aqui à noite. Importa-se deixar a porta aberta?
- Neste salão? - conteve o fôlego - Em minha casa?
- Quero ter uma vista clara da rua.
- Isto é desnecessário, Heath - exclamou ela, soltando o fôlego em um sopro - Tenho empregados que podem patrulhar a casa.
- Também os tinha Russell.
Tia Hermia se aproximou da janela, fechando o penhoar com as
mãos.
- Não sei de você, Julia, mas me faz sentir melhor ter um homem forte e robusto na casa.
Julia observou Heath pela extremidade do olho. Talvez fosse muito para sua paz mental ter aí esse homem tão robusto. Era uma tentação.
E deveria comportar-se de maneira normal? Como ter um magnífico malandro dormindo em seu salão fosse algo normal?
Retrocedeu e se chocou com a mesa para o chá.
- O que pensarão nossos vizinhos?
- Parecerá melhor a eles se uma das duas for encontrada morta pela manhã - disse Hermia, com muito sentimento - Eu dormirei melhor esta noite sabendo que Boscastle está à mão.
- Bom, pois, eu não - resmungou Julia - Deveria estar protegendo a Russell, não a mim.
Heath abriu os olhos e olhou para a janela, aparentemente não comovido por seu aborrecimento.
- Um homem estava em um carro estacionado na esquina pouco antes que eu chegasse. Tem algum admirador secreto, Julia?
- Não, nenhum - afirmou Hermia - É um milagre que Russell vá se casar com ela depois do dano que fez a sua reputação atirando nesse soldado.
- Russell tem alguém vigiando a casa? - perguntou ele a Julia.
Ela franziu o cenho, ao perceber que ele considerava real o perigo para ela. Ele a atordoava tanto que tinha esquecido seu verdadeiro motivo para estar aí.
Envergonhou-a ter desejado sacudi-lo até deixá-lo inconsciente.
- Não. Sugeriu uma ou duas vezes, mas raramente saio sozinha.
Ter um guarda não me pareceu necessário.
- Quer um roupão, Boscastle? - perguntou Hermia, tão solícita como uma anfitriã em um baile de sociedade - Uma taça de conhaque?
- Não bebe - disse Julia, e quase mordeu a língua por ter revelado que recordava esse detalhe - Ao menos antes não bebia.
Retrocedendo para a porta, captou o insolente brilho de seus olhos.
Pouco a pouco ia se delatando, revelando o importante que ele tinha sido para ela, Viu sua sensual boca curvada em um sorriso.
- Tampouco bebo agora - disse ele, aparentemente muito satisfeito.
- Tem uma memória excelente, Julia. Sinto-me muito adulado, de verdade.
***
Sim que tinha uma memória excelente, pensou ela uns minutos depois, quando voltava para a cama. Isso era grande parte de seu problema. Recordava muito bem o que Heath Boscastle fazia a sua serenidade. Eram muitas as coisas ocorridas entre eles para simular que sua amizade era normal. Cada vez que se encontrassem seria uma prova de tentação, um choque entre o que foram e o que eram agora. E
o que desejavam ou esperavam ser. Se os dois fossem homens, talvez se encetariam em uma acalorada ronda de murros para acalmar seus sentimentos. Mas sendo homem e mulher, não tinham essa opção tão simples.
Quando desceu na manhã seguinte estava convencida de que ele já teria partido. Afinal ninguém a tinha ameaçado francamente, e durante o dia deveria estar bastante segura em casa. Não lhe faltava bom senso; não tinha a menor intenção de sair sem um acompanhante. Seu próprio instinto de conservação estava intacto. Esse instinto soou como uma campainha de alarme um momento depois.
Heath estava sentado na sala de café da manhã, impecável, bem barbeado e com roupa limpa, lendo o diário. Levantou brevemente os olhos, com uma grossa sobrancelha negra arqueada.
Só a olhou uns segundos, mas o calor de seu olhar aumentou sua temperatura como se acabasse de entrar em um forno. Ficou imóvel
vários segundos, paralisada, como magnetizada por sua presença. Não era de estranhar que as mães aconselhassem a suas preciosas filhas debutantes que protegessem sua virtude contra a apaixonada prole Boscastle.
De todo modo, ela tinha conseguido viver seis anos sem esse determinado Boscastle. Ele também tinha vivido sem ela. Teria que ser capaz de dirigi-lo durante um mês.
Embora dirigir seus sentimentos secretos poderia lhe expor outra provocação. No instante em que lhe sorriu sentiu uma prazerosa sensação na boca do estômago.
Tinha caído uma mecha em sua testa; dominou o impulso de ir pô-
la para trás. Mostrava-se cansado, mas de bom ânimo, apesar de ter passado a noite em um sofá, o que deveria ser bastante incômodo, certamente.
Era um homem bom esse Heath Boscastle, por muito que ela alegasse que não o necessitava. Estava aí somente porque achava que isso era o correto. Ela tinha se deixado levado impetuosamente com ele aquela vez. O que pensaria dela agora? Dava medo perguntar-lhe. Era muito possível que achasse indecorosa sua conduta daquela vez, comparada com a das damas sofisticadas que o desejavam agora. Era de supor que ele levava suas aventuras com muito mais discrição que a que demonstraram ter ele e ela então. Repentinamente se perguntou quem seria sua amante atual, uma mulher a quem sem dúvida chatearia ter que emprestá-lo a ela.
- Já tomou café da manhã? - perguntou-lhe, pondo freio a seus revoltosos pensamentos.
- Sim, obrigado.
Sentou-se à mesa e alisou uma ruga da toalha de linho. Claro que seis anos de matrimônio, não a tinham deixado desprovida de certos recursos. Já não era uma garota ingênua. A sua maneira, tinha tanta
experiência como Heath no amor. Bom, talvez não tão variada, mas sim era capaz de comportar-se de maneira correta.
Não é que sim?
E por que lhe ocorria pensar nisso?
Iria se casar com Russell, o valente e bonito herói do momento em Londres.
Ele lhe tinha sido leal ao longo dos anos, e muitas vezes brincava dizendo que ele era seu último vínculo com a civilização. Talvez o fosse.
Jamais tinha sido civilizada de todo, nem sequer quando vivia na Inglaterra. Sua mãe morreu quando ela tinha três anos. Seu pai a levava para caçar antes que aprendesse a andar, e tinha passado a maior parte de sua infância e juventude a seu lado, em companhia de guarda-florestal e homens amantes da caça.
Tinha a impressão de que Russell a amava. Às vezes duvidava de ser realmente apta para a vida social que ele desejava. Sempre tinha ido atrás, discretamente, e as poucas vezes que se escreveram quando ela estava casada, suplicava-lhe que voltasse para a Inglaterra. Às vezes pensava que o que o atraía nela era o desafio do inalcançável, e que ele não percebia. Apagaria-se essa atração uma vez que ela fosse sua esposa? Certos homens desfrutam mais da perseguição que da conquista.
- Sabe de Russell? - perguntou.
Heath abaixou o jornal.
- Partiu. Deixou dito que dois de seus contatos conseguiram seguir o atacante até um pub de Saint Giles. Era um rufião do cais moles que estava gabando-se publicamente de ter entrado na casa de Russell.
Assegurou que um estrangeiro lhe encarregou a tarefa e lhe pagou muito bem,
Julia franziu o cenho.
- Um estrangeiro. E Russell continua acreditando que Auclair está
na França?
- Parece que estava mais convencido que nunca. Suspeita que o ataque foi um estratagema para enganá-lo. Em todo caso, já partiu.
Ela pegou o bule de prata entre as mãos. Continuava quente, mas era uma momentânea distração desses intensos olhos azuis que a observavam.
- E o homem que ontem à noite estava em um carro?
- Fosse quem fosse não voltou.
- Talvez fosse uma coincidência - murmurou ela, abaixando os olhos; não podia concentrar-se quando ele a estava olhando.
Ele se levantou, foi situar atrás de sua cadeira e se inclinou por cima do espaldar.
- Talvez não fosse - disse, com a voz perturbadoramente rouca -
Ou talvez tenha um admirador secreto.
Ela levantou a cabeça, sentindo formigar as terminações nervosas por sua proximidade. O calor de seu maxilar quadrado tão perto de seu queixo a deixou sem ar.
Não era possível que ela o afetasse tanto como ele a afetava. Ele teve seis anos para submeter seus impulsos, para aprender a moderar-se, a ocultar suas reações. Bom, ela também. Por que, então, lhe acelerava assim o coração? Por que se sentia como se ele estivesse no comando desse momento? Poderia ter que ver com a onda de calor que a percorria inteira, estremecendo-a por dentro.
- Um admirador secreto? - disse, tentando parecer divertida, e com a voz enganosamente firme. - Em Londres? Uma viúva que atirou em um homem no traseiro por estar acossando a sua criada? Não sabia que a alta sociedade tinha posto na moda às mulheres violentas.
- Possui beleza, engenho e certa riqueza, Julia - respondeu ele tranquilamente. - Eu diria que um admirador secreto é uma possibilidade.
Inundou-a um prazer inesperado. Para armar-se de coragem verteu
chá em sua taça, e a surpreendeu que não lhe tremesse a mão.
- Então, preferiria que meus admiradores viessem a minha porta, não que espreitassem dentro de carruagens estacionadas.
- Ah, mas vai casar-se com Russell, e é possível que não ache engraçado que venham homens a sua porta. Ontem à noite foi a um baile. Observou se alguém a olhava muito?
- Sim, você - respondeu ela, séria. - Estava me olhando cada vez que eu o olhava.
-Isso foi diferente - disse ele, sarcástico.
Roçou-lhe a face com o queixo, e ela temeu deixar cair a xícara.
- As pessoas olham-na, isso está claro - murmurou.
Os agudos latidos de cães pequenos interromperam a conversa.
Heath se endireitou e se afastou de sua cadeira, e de repente Julia descobriu que podia respirar.
- Ah - disse ele - aí vem sua tia com sua matilha de ferozes cães.
- E eles me protegerão - disse ela, bebendo um pouco de chá. -
Agora poderia ir para sua casa, Heath, e ao lhe dizer isto não é minha intenção ser ingrata. Hermia e eu temos planos para o dia. Vá descansar, por favor.
Ele cruzou os braços e sorriu.
- Aonde vão?
- O que quer dizer? O conde de Odham vai acompanhar-nos a uma refeição campestre.
Ele se virou para a porta quando esta se abriu e apareceu Hermia, vestida com um vestido de cetim azul pavão e um turbante com penas.
- O conde pode acompanhar sua tia, mas eu a acompanharei, Julia, a não ser que ache indesejável minha companhia - disse, com uma voz profunda a que nenhuma mulher poderia resistir.
Ela titubeou, ignorando todas as advertências que passavam velozes por sua mente. Não faria nenhum dano, não? Russell queria que
ela fizesse amigos, que se sentisse cômoda nas reuniões sociais. Viria bem a prática.
- É possível que a festa seja uma agradável distração - disse, a seu pesar.
Brilharam os olhos de humor malicioso.
- Talvez descubra seu admirador secreto.
- Descobrirá que não existe - disse ela, rindo pesarosa.
***
Heath estava comodamente instalado no salão passando as páginas de um livro sobre sânscrito antigo quando sentiu o conde chegar para acompanhar a sua amada Hermia à festa. Levantou a cortina da janela para olhar a abarrotada rua, tal como tinha feito durante toda a noite. Não viu nada suspeito no buliçoso e normal desfile de carruagens de aluguel e particulares, vendedores ambulantes e comerciantes fazendo suas visitas de negócio rotineiras. Não era difícil passar despercebido na agitação das ruas de Londres, cometer um delito e desaparecer no submundo de becos, guaridas e bairros pobres densamente povoados.
Ele era desconfiado por natureza. Sua paciência e perspicácia eram parte do motivo de que em Portugal seus superiores o tivessem escolhido para unir-se aos corpos seletos de guias ou de oficiais do serviço de inteligência britânico, que igualmente serviam como correios, transportadores nas batalhas ou como agentes duplos se surgisse a necessidade.
Desgraçadamente, foi capturado bastante no começo de sua carreira, quando era oficial de cavalaria, e então foi torturado por um soldado francês chamado Armand Auclair.
Essa experiência lhe deixou cicatrizes no corpo e na alma, mas também lhe fortaleceu o caráter. Tinha sobrevivido ao inferno. Já eram muito poucas as coisas que o assustavam.
Até esse dia desfrutava resolvendo enigmas, quebra-cabeças e mistérios, e endireitando as coisas. Tinha uma verdadeira paixão pela criptografia. Decifrar códigos secretos lhe dava uma sensação de estabilidade que aparentemente necessitava nesse mundo que considerava desordenado. Os assuntos humanos, logicamente, eram um desafio definitivo. Eram imprevisíveis por sua própria natureza, era praticamente impossível encontrar tom nem som. Ainda lhe faltava decifrar a satisfação o mistério das emoções.
Por exemplo, o ataque aos empregados de Russell nessa noite passada. Via nele um elemento pessoal que lhe inspirava curiosidade.
Ao que parecia Auclair estava se satisfazendo em um jogo. Desejava inspirar medo e prolongar sua vingança. Por quê? Em Paris fazia carreira como duelista. Napoleão estava no exílio. Por que Auclair se incomodava em perseguir Russell?
Abriu-se a porta atrás dele.
Entrou o conde de Odham, com seu rosto redondo tão sombrio como uma nuvem de tormenta, e seu denso cabelo branco revolto.
- Este condenado tráfego de Londres vai ser minha morte -
declarou. - Está pronta essa mulher?
Heath desviou o olhar da janela, interrompendo suas reflexões.
Odham era tão ágil e vivo como qualquer dândi, e se vestia como dândi também, com uma brilhante jaqueta dourada, colete branco bordado, meias de algodão e reluzentes botas com borlas que pareciam engolir suas pernas.
- Se por "essa mulher" refere a lady Dalrymple, acredito que está pronta e esperando no jardim com os cães. Se refere-se a Julia, não.
Não está pronta.
Odham emitiu um grunhido embora pareceu tranquilizar-se pelo tom de sua voz.
- Olá, Boscastle. Suponho que as duas lhe disseram que sou um
vilão.
- Simplesmente me esclareça uma coisa, Odham, é certo que chantageia a lady Dalrymple?
Odham se deixou cair no sofá como uma pedra.
- Não vou negar. Sim.
Heath balançou a cabeça, desconfiado.
- E reconhece?
-Por que não?
- Porque é algo repugnante e ilegal.
- O amor deveria ser ilegal - disse Odham, entrelaçando as mãos sobre seu ventre.
Heath arqueou as sobrancelhas.
- O amor? Por favor me explique como vão de mãos dadas o amor e a chantagem. Com certeza perdi esse conceito em minha educação.
Me parece algo primitivo.
- Se não amasse a maldita mulher, não a chantagearia para que se casasse comigo, não é verdade?
- Não vejo a lógica nisso.
- Quem disse algo sobre lógica? Bom Deus, não sou um monstro, Boscastle, sou simplesmente um homem, um homem que está absoluta e perdidamente apaixonado pela mulher mais cruel e mais desejável de toda a Inglaterra, se não do mundo.
Heath se acomodou em sua poltrona. Isso demonstrava sua teoria, que os assuntos humanos não seguem nenhum curso previsível absolutamente.
- Estamos falando de lady Dalrymple?
- De quem, se não? - perguntou Odham, jogando bruscamente para trás a cabeça e golpeando a borda do espaldar do sofá. - Alguma vez perdeu a cabeça por uma mulher? Não, você não. Tem fama por seu autodomínio. Na realidade, agora que penso, suas aventuras nunca
aparecem nos jornais. É uma anomalia na linhagem Boscastle, não?
- Que minha vida pessoal não seja de conhecimento público não significa que não a tenha.
- Não era minha intenção ofendê-lo. Tomara tivesse tido sua moderação em minha juventude. Talvez não teria perdido Hermia se tivesse sido discreto. Essa mulher é uma deusa e o manancial no altar de seus encantos.
Heath reprimiu um sorriso. Hermia quase dobrava a Odham em altura, volume e peso.
- Soube que lady Dalrymple não deseja casar-se com o senhor.
- Pois sim que o deseja. Está louca por mim.
- Dissimula-o muito bem, certamente.
- É teimosa como uma mula.
- É uma mula ou uma deusa? Decida.
Odham esfregou o rosto, aborrecido.
- Farei o que for para conquistá-la. O que for, entendeu?
Heath franziu o cenho.
- Acredito que sim.
- Então esta acordado, defenderá minha causa?
Do corredor chegaram os sons de conhecidas vozes femininas.
Heath se inclinou para o conde.
- Não acordamos nada. Acredito que não devo me envolver neste assunto.
- Os homens têm que apoiar-se.
Heath negou com a cabeça.
- Não, tratando-se de chantagear mulheres mais velhas para casar-se, não. Sentiria-me ridículo e cruel.
Odham se levantou de um salto.
- Sem ela estou perdido. Seguirei-a até meu último fôlego em meu leito de morte.
- Acalme-se, Odham. As damas estão do outro lado da porta. Se quer conquistar Hermia, recomendo-lhe que procure uma maneira mais apropriada de fazê-lo.
Capítulo Oito
A refeição campestre começou quando já eram duas da tarde, em um pequeno povoado dos subúrbios da cidade. Heath tinha imaginado que seria uma refeição discreta, que seria fácil não perder de vista Julia e talvez chegar a um acordo com ela sobre alguma estratégia para levar essa situação. Mas resultou que a refeição estava lotada, havia no mínimo trezentos convidados. O mestre de cerimônias ficou afônico antes de terminar a lista de anúncios dos convidados.
Julia, Hermia e Odham estavam olhando uma partida de cricket e logo jogaram boliche na grama. Heath fez um esforço para participar, mas estava mais interessado em observar Julia, e não no que se poderia chamar linha do dever. Estava extraordinariamente atraente com seu vestido amarelo claro que fazia ressaltar o lustroso cabelo avermelhado e a pele branca belamente dourada pelo sol. Quando terminaram a partida, lady Beacon, que era sobrinha de Odham, tirou seus cinco macacos, os quais, demonstrando ter muito engenho, escaparam de suas jaulas de vime e ficaram a jogar alegremente, fazendo estragos nas longas mesas. Isto foi uma diversão não programada e o acontecimento mais destacado da refeição.
Várias senhoras gritaram com fingido terror. Entre Heath e Julia resgataram três dos macacos, mas uma macaca sentiu um afeto especial por Heath e se negou a soltá-lo quando sua ama lhe estendeu os gordinhos braços brancos.
- É uma macaca muito seletiva - disse lady Beacon, encantada -
olhe que escolheu ao homem mais atraente de Londres.
Julia riu quando a macaca escondeu a cara dentro da jaqueta dele.
- Acredito que é você quem tem uma admiradora secreta.
Sorriu-lhe e suavemente tentou tirar de cima o animal.
- Isto é vergonhoso.
- Não me diga que é a primeira vez que tem problema para tirar de cima uma mulher.
- Em geral cheiram muitíssimo melhor - disse ele, enrugando o nariz. - E não recordo a nenhuma com tanto pêlo no corpo.
Ela introduziu as mãos dentro de sua jaqueta para ajudá-lo.
- Venha, garota travessa, que está estragando a camisa de sua senhoria.
De repente a macaca se aborreceu com o jogo, subiu até o ombro de Heath e saltou para um grupo de cavalheiros despreparados. Sons de risadas surpreendidas encheram o ar. Heath se esticou e alisou a jaqueta de manhã cinza, enquanto Julia olhava a cena.
- Garota volúvel - comentou ela - Já achou outro homem para substitui-lo.
- Foi por algo que eu disse?
- Não acredito. Parece que seu novo amigo tem uma bolsa com amêndoas açucaradas no bolso.
- Tomara fosse assim fácil agradar às mulheres que conheci.
- Quer dizer que seu encanto não basta?
- Pois não.
Puseram-se a caminhar para o jardim, abrindo caminho entre os convidados que estavam dançando na grama. Este dia estava quente e a música era um agradável acompanhamento à conversa.
Passado um curto silêncio, Julia o olhou com curiosidade.
- Quais são, por certo?
Ele olhou para trás e explorou o terreno com o olhar, e logo olhou para ela.
- Quais são o quem?
- Suas mulheres. - Tropeçou em um sulco do caminho e se chocou
com ele - A mulher. Pelo amor de Deus, sabe muito bem o que lhe pergunto.
Ele sorriu irônico. Sabia, mas era divertido obrigá-la a explicar.
- Sim, sei.
- Então por que não me diz logo?
Pegou-lhe o braço para firmá-la antes que desse outro mau passo.
- Dizer-lhe o que?
- O nome da dama que cativou seu esquivo coração.
Ele parou em seco e se virou para olhá-la. Sua pele branca dourada resplandecia à luz do sol. A banda estava tocando uma valsa mais à frente. Observou-a atentamente, assombrado. Típico de Julia ir ao ponto. Mas claro, não tinha caracterizado sua relação por uma inesperada intimidade desde o começo? Com que facilidade voltavam a cair na passada relação. Não sabia como mudar isso.
- Quem disse que estou apaixonado?
- Não está?
- Estou?
Ela suspirou, derrotada.
- Faça-me o favor de me trazer uma taça de champanha? É
evidente que não vou obter uma resposta clara de você.
- Boa ideia - disse ele, contente com a oportunidade de fazê-la pensar. Ele mesmo estranhava que não se tinha se apaixonado nunca. -
Se demorar muito, talvez seja porque fugi com a macaca.
Encontrou um empregado que estava atendendo a um numeroso grupo de pessoas que formavam uma fila ao final das mesas. Agarrou uma taça da bandeja, com a esperança de escapar antes que alguém o abandonasse. Quis sua má sorte que quando se virou encontrou-se ante lady Harrington, que estava esperando-o atrás de uma sebe.
Não sabia o que lhe dizer. Que prazer vê-la com a roupa posta?
Está desfrutando da festa? Apostaria que não se comparava com sua
noite adúltera com Althorne? Tinha cara a mulher para lhe falar em público depois do que lhe tinha visto. Ou do que não tinha visto.
- Boa tarde, Lucy - disse, sorrindo jovialmente e sustentando no alto a taça de champanha - eu adoraria ficar para conversar com você, mas estou em uma missão. Por certo, foi encantador vê-la ontem à noite.
Toda você.
Ela se plantou ante ele e lhe disse com voz rouca, em tom urgente:
- Não se atreva a escapar, Boscastle.
- Lucy, com toda justiça, não desejo me colocar em seus assuntos privados. Parece que no momento só posso dedicar minha atenção a uma das mulheres de Russell.
E essa era a verdade. Não tinha claro se Julia o tinha indo ou vindo. Nem que direção preferia ele.
- Contou? - perguntou ela, em tom mais de medo que de ameaça.
Ele estreitou os olhos, observando-a. Estavam a plena vista de outros convidados, e embora não lhe importasse um rabanete o que pensassem dele, sabia que Julia estava olhando. A última coisa que desejava era despertar suspeitas ou feri-la, ou ferir o pobre marido de Lucy. Não permitisse Deus que o homem pensasse que ele tinha uma aventura com sua infiel mulher. Agradava-lhe o pobre diabo, e por princípios não tinha aventuras com mulheres casadas.
- Não tema - disse, com voz enfastiada - seu sórdido segredo está seguro comigo. Não direi nem a uma alma que ontem à noite esteve dando uma boa despedida a Russell.
Ela soltou o fôlego.
- Não foi a primeira vez, sabe?
Ele olhou para trás dela, com distraída atenção. Acabava de ver atrás de Julia um jovem de cabelo moreno, de aspecto algo impulsivo, que lhe era vagamente conhecido. Ela parecia ir afastando-se do homem, como se sua proximidade lhe produzisse inconsciente
desconforto. Ele continuava aproximando-se, abrindo caminho entre um grupo de pessoas.
- Ouviu o que disse, Boscastle? - perguntou Lucy, com voz gritante.
Ele a olhou irritado.
- Sim, disse que não foi a primeira vez. O que quer me dizer? -
Acrescentou impaciente. - Não sou um sacerdote, e esta é uma refeição campestre, não um confessionário.
- De tempos em tempos Russell e eu estivemos nos vendo durante anos. Disse que isto acabaria quando se casasse. Acredito... bom, me disseram que tem uma amante.
- Uma amante? Não se contradiz essas palavras?
-Vou romper com ele - disse ela, sorvendo pelo nariz, emocionada.
- Bom, bom para você - disse ele, erguendo a taça de champanha, em gesto de brinde.
Como foi que assim de repente se envolveu nas complicações sentimentais dos outros? Por norma evitava as confusões emocionais.
De certo modo se sentia mais seguro enfrentando uma baioneta no campo de batalha ou explorando o campo português em busca de espiões. Era um homem muito dono de si, discreto, e preferia reservar sua vida para si mesmo. Os enredos de outros não lhe interessavam.
Embora Julia lhe interessasse muito mais do que queria reconhecer, sentia-se insultado em nome dela por esse romance secreto de Russell com essa mulher. Por que um homem tinha encontros amorosos com uma idiota insípida como Lucy tendo uma mulher como Julia em seu futuro?
Repentinamente curioso, perguntou-lhe:
- Como sabe que tem uma amante, por certo? Pode me responder?
- Sei do que gosta - respondeu ela, em tom bastante azedo. -
Russell deseja uma esposa por um motivo e uma amante por outro.
E isso não explicava onde encaixava ela nos planos de Russell.
Dirigiu-lhe um misterioso sorriso:
- Julia esteve casada também. Suponho que poderia saber algumas coisas sobre agradar um homem.
Desvaneceu-se o sorriso de lady Harrington. Fazendo-lhe uma cordial inclinação de cabeça, Heath pôs-se a andar de volta para Julia, levando a taça de champanha como um troféu. Evidentemente, com seu comentário ao despedir-se deixou algo no que pensar Lucy. Por desgraça, também pôs a correr seus pensamentos por um caminho muito perigoso. Não sabia o que tomou conta dele, além de sentir um impulso irresistível de defendê-la. Acabava de fazê-la parecer uma espécie de concubina legendária. Isso era o que pensava secretamente dela?
Quando chegou a seu lado, lhe sorriu um pouco perturbada e lhe perguntou:
- Por que parou para falar com essa mulher?
Ele ficou em guarda. Tinha que tomar cuidado com o que diria, se não quisesse revelar algo. As mulheres têm uma aguda intuição nessas coisas.
- Conheço seu marido.
- Russell também a conhece. Sempre me pareceu que a Lucy se vão os olhos, se entende o que quero dizer.
Passou-lhe a taça de champanha, e ela bebeu um gole longo. Ele rogou que não lhe fizesse mais perguntas. Não lhe sairia bem mentir, e em particular, não desejava enganá-la, o que não significava que tivesse que lhe dizer tudo.
- Conhecem-se muito? - perguntou despreocupadamente, seguindo-a pelo isolado atalho para um banco de pedra oculto em um caramanchão formado por densa folhagem.
Ela se sentou no banco e observou atentamente os sapatos. Eram de brocado dourado, em estilo indiano, com as pontas curvadas para
cima, como os que usaria um gênio de um conto de fadas. Pareciam muito estranhos, mas encaixavam bem com o espírito aventureiro, amante da travessura, de Julia, e combinavam com seu vestido de festa de musselina amarelo manteiga.
- Acredito que a Lucy atraía Russell antes de casar-se - murmurou ela, pensativa. - Não sei se ele se fixaria.
Ele arqueou uma sobrancelha e tentou não prestar atenção ao lânguido movimento de sua coluna ao se esticar quando se agachou para tirar uma folha de um sapato.
Não lhe vinha à mente nenhuma outra mulher que se movesse com essa elegância e resolução, e isso não deveria excitá-lo, mas o excitou.
Deixou-o imaginando a desafiando a uma queda na cama. Uma concubina legendária?
- Eu diria - falou, embora não acreditasse - que todo esse tipo de tolices acabará uma vez que estejam casados.
- Sim - suspirou ela, e de repente pareceu bastante insegura.
Parecia uma mulher vulnerável, encantadoramente voluntariosa, que lhe acelerava o coração por todos os motivos incorretos. - Na realidade, não tenho certeza. Não acredito que a clamorosa fama de Russell favoreça uma vida fácil.
Ele franziu o cenho, consciente de que estavam pisando em terreno perigoso. Um pardal desceu pousando em um ramo alto a procura de um escaravelho entre as folhas.
- Por que diz isso?
- Russell se importa muito com sua imagem pública. Sem dúvida essa parte dele tem que desfrutar com a admiração das mulheres. A maioria dos homens desfrutam com isso.
- Nem todos.
Sinceramente, ele já estava cansado de que fossem atrás dele.
Desfrutava quando era mais jovem, mas agora queria outra coisa.
- Pelo amor de Deus, Heath, nenhum Boscastle trabalha atrás da santidade.
Isso ele não podia negar.
- Com a possível exceção de minha irmã Emma.
Ela riu.
- Talvez não encontrou o homem adequado.
- Quer dizer o inadequado.
Ela ficou séria.
- Sabe o que ouvi dizer uma de minhas empregadas, sem que ela se percebesse que eu estava ouvindo? Disse que Russell é um descarado e que só vai se casar comigo porque herdei uma fortuna.
- Isso é ridículo, Julia - disse ele, sério.
- Na realidade não é. Minha fortuna é grande.
- Bom, Russell a desejava antes que se convertesse em uma herdeira.
E ele também.
- Sim.
- Como morreu seu pai? - perguntou em voz baixa.
- Teve um derrame. - Olhou-o nos olhos - Direi um segredo. Ele tinha a esperança de que você pedisse minha mão em matrimônio.
Voltou a rir, empurrando algumas folhas com seus ridículos sapatos com as pontas curvadas e ele notou que em seu interior algo ficava negro e feroz.
O desejo de protegê-la, de lhe economizar sofrimento. Uma fortuna, disse. Seria verdade? O velho visconde não fazia ostentação de riqueza. De todo modo, ele achava que Russell a amava por si mesma, mesmo que a traísse pelas costas, o estúpido bastardo.
Não soube o que responder. Levando em consideração aquele encontro do passado, jamais teria imaginado que ela falaria dele com seu pai.
- Não tinha ideia. Nem sequer sabia que ele nos considerava dessa maneira.
- Nem eu, até recentemente. - Sorriu travessa - Só me disse isso antes de morrer. Não gostava de Russell, preferia a ti de todos os jovens que eu conhecia.
Ele permaneceu imperturbável.
- Sim?
- Não desaprovava meu compromisso - continuou ela, como se acabasse de ocorrer-lhe. - Mas uma vez pegou Russell roubando nas cartas, e isso mudou sua opinião a respeito dele.
Heath sorriu.
- Claro que isso nunca aconteceria a você - disse ela asperamente
- Você não roubaria nas cartas, não é?
- Não me pegariam.
- Mas roubaria? - insistiu ela, para gracejar, supôs ele.
Viraram-se para olhar-se ao mesmo tempo. Sem pensar, ele pôs a mão no ombro e a atraiu para ele. Não havia ninguém na proximidade, nenhuma testemunha de seu comportamento.
Que se lembrasse, essa só era a segunda vez que cedia a esse impulso básico. O resto de seus familiares se submetiam felizes todo o tempo.
Mas ele sempre se orgulhou de seu autodomínio e moderação.
Admiravam-no por isso. Era o único ao que acudiam seus irmãos em busca de conselho ou intervenção. O membro masculino judicioso da família Boscastle. O qual Russell escolheu como protetor de sua noiva.
O protetor se converteu em predador. Não pôde evitar.
Desceu a mão desde seu ombro nu até a cintura, atraindo-a. Ela cedeu, embora não sem uma resistência inicial, ou foi surpresa? Isso não importava muito. Colocou a outra mão sobre o joelho. Para firmar-se ele ou para segurá-la firme? Talvez para as duas coisas. Isso tampouco
importava. Sentiu passar seu calor corporal pelos tecidos de sua jaqueta e camisa, e este penetrou na sua pele, os ossos, onde ardiam suas lembranças dela. Seu tentador fogo abriu um caminho direto às bem guardadas regiões de seu coração. Uma vez já tinha entrado aí, recordava, mas tinha suposto que já estava cicatrizado esse lugar.
Ela molhou os lábios, sustentando seu olhar. A sensualidade de seus olhos lhe agitou todos os sentidos, até o fundo.
- Julia - murmurou.
- Adiante - disse ela em voz baixa. - Faça-o. Nós dois estamos mortos de curiosidade. Talvez nos sintamos melhor se pusermos fim de uma vez por todas.
Acelerou o coração dele; já sentia arder o desejo nas entranhas.
Calor, avidez. Um desejo que lhe roía os ossos. Pôs a mão em seu rosto e lhe acariciou o queixo e a maçã do rosto com o polegar.
- Fazer o que? - perguntou, com a voz rouca, intencional.
Sim, era um homem paciente. Entendeu o que ela queria dizer, mas desejava ouvi-la explicar com suas palavras.
Ela inclinou a cabeça e aproximou sua boca vermelha e cheia da dele.
- Isto - disse, lhe roçando o maxilar com sua respiração quente. -
Beije-me, e então saberemos.
- Desta vez não temos desculpas - disse ele, com a voz espessa. -
Pode se levantar e se afastar.
Mas rogou que não o fizesse. Desejava tanto beijá-la que o coração lhe golpeava o peito com violência.
Ela se aproximou mais e lhe rodeou o pescoço com a mão esquerda. Com a mão trêmula lhe acariciou o cabelo até que ele estremeceu.
- Você também - disse.
- Nós dois sabemos que não.
Já estava duro como pedra pela excitação.
- Sabemos? - sussurrou ela, seus olhos cinza pensativos.
Sabia o que desejava; colocou a mão em sua nuca, e ela entreabriu os lábios.
Sua boca era a mais doce, flexível e erótica que tinha saboreado em sua vida. Fruto proibido. Desejava devorá-la, encher-se dela, saboreá-la da cabeça aos pés. Era incrível que depois de tantos anos separados pudesse acender-se essa paixão entre eles mais ardente e mais perigosa que antes.
Que Deus o amparasse. Não estava beijando uma debutante inocente. Ela já tinha experiência, era uma mulher que tinha vivido, que sabia dar prazer a um homem e tomar seu prazer. Ele não tinha contado com isso, não tinha contado que seu talento para seduzir encontraria seu igual na mulher que tinha desejado e perdido.
Não era próprio dele subestimar o que devia enfrentar. Tinha suposto que o tempo apagaria sua atração por ela. Ele, que analisava todos os aspectos da conduta humana, que se regia por um esquema muito exato para fazer sua vida, não tinha levado em consideração que essa Julia madura seria mais que sua igual.
Tudo o que desejava secretamente em uma mulher em um mesmo pacote.
Um pacote com o letreiro "Proibido. Não abrir. Propriedade de outro".
Mas ele não tinha contado com isso; voltando a desejá-la assim.
Desta vez, sabendo muito bem o que eram, os riscos eram perigosamente altos. Os dois poderiam perder mais do que se podiam permitir. Ele se arriscava a renunciar a toda aspiração em sua carreira e perder o respeito do homem que lhe salvou a vida.
Julia se arriscava a perder o respeito e a posição que ainda tinha na alta sociedade.
Ela interrompeu o beijo, deixando perto a boca, com seu quente fôlego em seus lábios, lhe deixando o sabor do bom champanha para atormentá-lo. Doçura proibida. Sentiu sua mão no peito; sentiu o suave contato das pontas de seus dedos lhe explorando os músculos que albergava seu retumbante coração. Não se moveu, não a incitou nem a desalentou. Ela o tinha beijado com a tranquila habilidade de uma cortesã. Não pôde deixar de pensar que mais faria, que mais permitiria a ele, se estivessem sozinhos. O que poderia fazer na cama de um homem; na cama dele. Se beijava assim, que mais teria aprendido?
Introduziu a língua por entre seus lábios entreabertos, pressionando. Saboreou a doçura e umidade do interior de sua boca.
Saboreou o suspiro que emitiu ela e sentiu o estremecimento que percorreu seu flexível corpo. Aumentou possesivamente a pressão da mão em sua nuca. Aprofundou o beijo fechando a outra mão ao redor de sua cintura apertando-a contra ele. Sentiu a pressão da língua dela na dele, movendo-a em círculos com uma sensualidade que lhe contraiu todo o corpo.
Ela gemeu e apertou os redondos e brancos seios contra o peito de Heath. Ele colocou a mão em seu quadril por cima do vestido, apalpando sua tentadora brandura.
Acelerou-se o sangue nas veias, vibrando em uma potente onda de desejo. Isso não lhe bastava; necessitava mais. Mataria pela oportunidade de deitar-se com ela. O desejo de seis anos fervia com uma intensidade incontrolável.
- Julia - sussurrou, com a voz rouca, espessa. – Santo céu.
Tremeram seus lábios. Estreitou-a com mais força, enredando os dedos no cabelo que lhe tinha caído sobre o ombro. Introduziu o joelho entre suas coxas, desesperado por sentir mais dela. Subiu a mão da cintura até a elevação de um seio, e a colocou embaixo. Sentiu-a reter o fôlego. Com o polegar lhe acariciou o duro botão de seu mamilo. Uma
névoa escura lhe invadiu a cabeça. Tinha que parar antes que os visse alguém.
- Tem um pouco torcida a gravata - disse ela, olhando seu pescoço.
- Arrumo?
- Por favor.
Continua me tocando, pensou. Desceu os olhos até a branca pele de seus ombros banhados pelo sol. Viu vibrar um pulsar em sua garganta, o único sinal que conseguiu ver de seu efeito nela. O coração lhe retumbava como um maldito tambor de guerra.
- Você e Russell...?
- Não - respondeu ela imediatamente, olhando-o nos olhos - Não somos amantes.
Ele sorriu, com seu sorriso preguiçoso, pensando por que lhe agradava tanto essa resposta.
- Quer dizer, vão viver em Londres depois que se casem?
- Acredito que sim. Ao menos uma parte do ano. - Deu-lhe um último puxão à gravata - Vai dizer? - perguntou, cautelosa.
Ele forçou um sorriso.
- Dizer o que?
- Que o beijei.
Tinha as faces ruborizadas e a boca deliciosamente molhada.
- Eu a beijei primeiro.
- Sim, mas...
- Mas?
Ela exalou um suspiro.
- Eu não tinha por que lhe corresponder.
Ele negou com a cabeça.
- Eu não tinha por que tentá-lo.
Ela deu uns tapinhas no extremo da gravata e seu sobrecenho pensativo deu lugar a sua alegria natural. Ele nunca teve a impressão de
que ela fosse uma mulher que lamentasse o que acontecia. Nem os beijos furtivos. Como pôde ter esquecido sua deliciosa irreverência pela dignidade?
- Foi um beijo, Heath. Não o Tratado de Paris.
Ele a olhou com fingida seriedade e o sobrecenho franzido. Ainda tinha o corpo excitado, duro. O coração começava a recuperar sua velocidade normal.
- Beija com frequência a outros homens?
- Sempre que tenho a oportunidade.
- Satisfiz sua curiosidade?
Ela pegou a taça que tinha deixado de lado no banco e bebeu um gole.
Ele observou que não tinha muito firme a mão. Estupendo.
- Eu satisfiz a sua?
- Satisfeito não é uma palavra para qualificar meu estado atual, Julia.
- Eu tampouco estou satisfeita - confessou ela, voltando a pôr a mão na saia. Abaixou os olhos. - Me sinto muito desassossegada por dentro, e aborrecida comigo, se quer saber.
Ele virou a cabeça e lamentou ter que pôr fim a essa agradável conversa; lady Dalrymple e o conde vinham caminhando para eles, falando em voz alta, aparentemente em uma acalorada briga. Endireitou os ombros, pôs cara de circunstâncias e sussurrou:
- Bom, não me queixo. Além disso, Julia, não é preciso que lhe diga que não vou contar.
Capítulo Nove
Julia foi até a janela de seu quarto, tirando lentamente as presilhas do cabelo. Já era de noite e não se sentia cansada absolutamente. Tinha passado o dia mais maravilhoso que conseguia recordar, desde há muito tempo. Tinha bebido três taças de champanha na festa e logo dormiu na
carruagem quando voltavam para casa, tendo Heath sentado à frente.
Da janela ouvia o tamborilar da suave chuva sobre os rododendros do jardim. Ouvia também o clop clop das carruagens que passavam pela rua.
Tinha subido a seu quarto às dez; não se incomodou em acender uma vela. Heath voltou a negar-se a partir para sua casa. Quando subiu, ele estava folheando um livro, com a gravata solta e o braço esticado sobre o encosto do sofá. Teve que fazer um esforço para não ficar com ele.
Teria que encontrar uma maneira de liberá-lo de sua promessa.
Esse dia só demonstrava que não podiam confiar em si mesmos quando estavam sozinhos.
Durante toda a refeição viu como o olhavam as mulheres; olhares furtivos, desejosas; sorrisos coquetes, atrevidos, que o convidavam à seduzi-las. Sabia que ele via tudo isso. Mas só lhes sorria amavelmente e não parava para falar com elas. Russell, o personagem político, teria parado para falar com a metade delas. Há duas semanas, no teatro, fez-se amigo de todo o mundo, com a exceção dos empregados. Ela pensou que teria caído no chão de tanto simular amabilidade. Pelo visto, Heath não tinha esse trabalho.
Alguma dessas mulheres da festa lhe cativaria o coração? Com certeza isso ocorreria logo. O que fazia falta para cativá-las? Suspirou, ao imaginar Heath dispondo-se a seduzir uma debutante, uma bela herdeira. De repente pensou se seria um marido fiel. E o que pensaria dela depois desse beijo. Teria-lhe esclarecido algo ou o tinha deixado com mais perguntas sem resposta? Continuava sentindo-se fraca pela maravilhosa potência desse beijo. Débil e triste. Também se sentia um pouco envergonhada de si mesma, mas.... mas não podia deixar de pensar nele; no embriagador prazer de sentir sua mão em seu peito, em sua firme boca devorando a dela. Desejava que a acariciasse por toda
parte. Sentia vergonha, mas o desejava de todas as maneiras.
Um ruído procedente da nebulosa escuridão do jardim captou sua atenção. Era o gato, que arranhava a porta do abrigo, como fazia toda noite quando os jardineiros esqueciam-se de deixar guardadas com chave suas ferramentas ou quando acossavam os pequenos spaniels de Hermia.
Jogou a escova sobre a cama e foi puxar o cordão da campainha para chamar um empregado, mas não apareceu ninguém. Já era tarde, em todo caso, e seria mais rápido resolver o problema ela sozinha.
Quando ia descendo a escada se achou ante um problema muito mais amedrontador.
Acelerou-se o coração ao ver o homem alto e magro que apareceu repentinamente e lhe interceptou o passo. Estava um degrau mais abaixo, com a jaqueta desabotoada sobre a camisa branca e sua calça cinza. A penumbra acentuava o vivo azul de seus olhos, o poder de suas bem cinzeladas feições e as ruguinhas de suas magras faces ao redor da boca. Invadiu-a um inoportuno calor quando o olhou nos olhos; sentiu os seios pesados, sensíveis. Não recordava nenhuma vez em que um homem a tivesse excitado com um simples olhar.
É um homem muito perigoso, disse a si mesma, recordando os rumores de que ele tinha dado caça eficiente e implacavelmente a agentes estrangeiros depois que se recuperou de sua experiência em Portugal. Russell costumava alardear com bastante frequência sobre como resgatou Heath, como levou seu corpo torturado pelo campo em uma carreta com barris de vinho, como tiveram que pedir refúgio em um convento disfarçados de camponeses. Ela tinha ouvido histórias sobre Heath também. Quantas vidas teria salvado? Ele nunca alardeava seus atos heroicos.
- Passa algo? - perguntou-lhe ele, interrompendo seus pensamentos e devolvendo-a à realidade do momento.
- Sim. Uma crise da Coroa, Heath. Meu gato arranhando a porta do abrigo. Ao menos suponho que fosse o gato. Chame o guarda enquanto eu vou procurar o primeiro-ministro.
Ele curvou sua firme boca em um sorriso sardônico.
- E a infantaria?
Ela tentou passar a seu lado.
- Não percamos a cabeça.
Não o viu mover-se, mas repentinamente prendeu seu braço. Com uma sutil pressão tinha o pulso preso, segurando-a de forma que não podia escapar, mas suavemente protetor. O ar ficou preso na garganta.
- Espere - disse ele. - Está chovendo. Eu irei fechar essa porta.
Ela levantou os olhos.
- Um dos empregados...
- Enviei-os a todos à cama.
- Francamente, Heath, não pode continuar passando a noite em minha casa. De verdade, isso me faz sentir tremendamente culpada.
De um puxão ele a fez descer o degrau e a pôs a seu lado. Ela sentiu a comoção como uma chispa, e se deixou arrastar a essa agradável confusão. Em um abrir e fechar de olhos a envolveu a ardente excitação, a tentação. O ar que lhe roçava a pele parecia queimá-la.
- Só ficarei até que encontre um acerto mais conveniente - disse ele - De verdade a incomoda?
Ela tinha dificuldade para respirar. Seu corpo viril a atraía, como um ímã, irresistível. Não conseguiu retirar a mão da dele; estava desfrutando desse possessivo contato.
- Só me incomoda porque considero uma injusta imposição sobre seu tempo.
- É desagradável minha companhia? - perguntou ele, com seu olhar travesso, perigosamente sedutor.
- O que pensa você?
- Digo que façamos o que nos ordenou.
Ela riu em voz baixa.
- Como se algum dos dois tivesse feito isso alguma vez. O que vai pensar sua família disto? E meus empregados?
Esse último era uma má desculpa, e sem dúvida ele sabia. Ela nunca tinha levado uma vida ortodoxa. Escassamente tinha conseguido guardar as formas do convencionalismo, inclusive durante seu matrimônio, e o pessoal de sua casa estava a seu serviço desde seus primeiros dias na Índia.
O sorriso malicioso dele a pegou com a guarda baixa.
- Seus empregados lhe são leais e compreendem o perigo da missão de seu noivo. Além disso, estou ficando amigo de seu mordomo.
Ontem à noite jogamos cartas com a governanta.
- Não - disse ela, desgostosa. O que estava se passando em sua casa?
- Pois sim. Ganhei uma faca esculpida em prata e um avental irlandês de linho.
- Com os empregados - exclamou ela, não totalmente desaprovadora quanto queria. - E apostas. Minha tia vai se escandalizar.
A risada dele a fez estremecer.
- Na realidade, não. Ela nos levava a conta.
- Como pôde? Uma faca de prata. Um avental.
- Ganhei jogando limpo. - Aproximou-se mais e acrescentou em um tom de maliciosa cumplicidade - E isso impediu que sua tia se metesse em dificuldades. Tinha pensado em revistar o dormitório de Odham esta noite. Está convencida de que ele dorme com suas cartas de amor debaixo do travesseiro.
Julia engoliu em seco. Desejava incomodá-lo mesmo que fosse uma vez, como ele a incomodava; desejava vê-lo perder o controle.
Desejava... derreter-se em seus braços outra vez, saborear sua dura
força, ressuscitar a bela paixão que tinham conhecido. Como iria adivinhar que lhe atormentaria o coração todo o resto de sua vida?
Em defesa própria, mudou de assunto. Não devia considerá-lo dessa maneira.
- Falando de minha tia, espera-o uma surpresa, Boscastle, se continuar aqui pela manhã.
- Sim? Isso parece prometedor.
Ela abaixou o olhar e sem querer olhou sua boca firmemente modelada. Apostaria que não sorriria assim pela manhã quando encontrasse a casa tomada por uma turma de pintoras aficionadas.
- O clube de pintura de tia Hermia se reúne aqui todas as terças-feiras depois do café da manhã. As damas sempre andam em busca de bons modelos para sua coleção de deidades gregas.
E que modelo perfeito seria ele; irradiava masculinidade. A que mulher com aspirações artísticas não tentaria imortalizar esse rosto de beleza clássica e esse torso esculpido à perfeição? Um desenho ou pintura dele causaria sensação se as amigas de Hermia conseguissem convencê-lo. Sorriu ladina ao pensar nisso. Teria bem merecido por ser tão injustamente bonito.
- Um clube de pintura - murmurou ele, trocando o peso do outro pé e olhando-a nos olhos.
- Não é que sim? - murmurou ela, recordando as conversas e o perverso senso de humor das amigas de sua tia. Inocentes não eram.
- Pousou como Afrodite para essa digna turma? - perguntou ele, absolutamente ignorante do destino que o aguardava.
- Não. Uma vez posei como troiana.
Ele a submeteu a uma perita avaliação, percorrendo-a com o olhar.
Seu cabelo solto sobre as costas todo revolto; só há um instante lhe disse que seu vestido de musselina era fino. Nesse momento, por sua forma de olhá-la, como se a visse através do tecido, igualmente poderia
estar nua, toda exposta a sua observação. Sim,era um desavergonhado.
Perceberia nela o torvelinho emocional que lhe produzia cada vez que a olhava assim? Perceberia suas intensas ânsias que não poderia satisfazer jamais? Com certeza que sim. Era um malandro inteligente.
Desceu o braço ao lado. A pressão de sua mão no pulso lhe produziu um formigamento de calor até as pontas dos dedos.
- Vai você fechar essa porta ou vou eu?
Ele endireitou os ombros.
- Boscastle ao resgate.
- Tome cuidado.
- É perigoso o gato? Bom Deus, Julia, não trouxe com você um tigre da Índia, não é?
- Não, claro que não. Seria muito cruel tirar um animal selvagem de seu habitat natural.
Ele subiu a gola da jaqueta.
- Só era uma pergunta. Depois de tudo hoje me atacou uma macaca.
Ela franziu os lábios.
- Quis dizer tome cuidado pela chuva. Não vá tropeçar em um carrinho de mão ou em uma de minhas botas. E não faça mal ao gato. É
velho e indefeso, e se sente tão deslocado na Inglaterra como parece.
- Está certa de que foi o gato que fez o ruído que a perturbou?
Ela titubeou.
- Bom, não. Não absolutamente. Quer minha pistola?
- Não, obrigado. Acredito que deve tê-la você. Simplesmente não atire em mim da janela.
***
Heath esteve um bom momento quieto sob a ligeira chuva, orientando-se nas desconhecidas sombras verde cinzas. Uma forma grande e escura lhe roçou os tornozelos.
Viu o gato de Julia secando-se na barra de sua calça.
- Bem, bichano. Vamos pôr fim a esta tolice.
Levantou mais a gola para cobrir a nuca, pegou o gato nos braços e começou a correr pelo atalho empedrado. O abrigo estava ao final do jardim, escuro e fechado por uma enredada parede de castanheiras.
- Aqui está sua casa, moço, que bonito castelo felino é.
Aparentemente a gato não gostava do cativeiro nos braços.
Repentinamente lhe arranhou o pescoço, que estava descoberto, com suas afiadas unhas, inchou os músculos e saltou ao chão molhado.
- E chamou-o de velho e indefeso - resmungou Heath, pressionando o doloroso arranhão.
Voltou a agarrá-lo nos braços antes que escapasse e abriu a porta do abrigo com o pé.
Como era de prever, o interior estava úmido e cheirava a húmus e bulbos mofados. Ficou imóvel, sem entrar. A escuridão, o ângulo das sombras e o aroma de terra úmida lhe assaltaram os sentidos. Fizeram-no retroceder a um tempo que escassamente recordava e, entretanto não podia esquecer. Os dias das brutais torturas, a dor que parecia não ter fim.
Como saído de nenhuma parte, inundou-o um sufocante terror. Sua mente se debatia contra a escuridão; afloraram as desagradáveis lembranças. Uma mão dura em uma luva negra lhe agarrando o cabelo e colocando sua cabeça dentro de uma bacia com água suja com sabor a mofo, e segurando-lhe aí até que lhe chiavam os pulmões e um terror negro lhe envolvia o cérebro.
Então ar, por fim, ar bendito, e a voz letal do inimigo. Um francês encapuzado lhe aplicando um atiçador ao vermelho nas partes mais sensíveis de seu corpo. O pai de Armand Auclair tinha sido verdugo durante o Reinado de Terror, um homem de negra fama pela quantidade de aristocratas que assassinou na guilhotina. Seu filho tinha herdado sua
paixão pela crueldade.
O gato que tinha nos braços estava quieto, com os músculos tensos. Fazia anos que não recordava tão nitidamente os detalhes de suas torturas, com a esperança de que sarassem as feridas de sua mente.
Estavam cicatrizadas, talvez, mas tinha acreditado que algum dia se livraria de seus demônios. Nunca tinha contado a ninguém o que aconteceu. Jamais o diria.
Só a lembrança o fazia sentir-se louco, violado, mais animal que homem. Jamais se permitiria voltar a ser tão débil.
Ao ouvir passos fortes atrás, virou-se para olhar e viu uma robusta figura de cabelo prateado com um objeto levantado sobre a cabeça.
- Bom Deus, lady Dalrymple - exclamou. - Abaixe esse vaso de barro, antes que me faça uma ferida fatal ou danifique esses gerânios.
Hermia olhou por um lado do vaso de barro. O gato se soltou dos braços de Heath e desapareceu dentro do abrigo.
- Pelo amor de Deus, Boscastle - disse ela, descendo o vaso de barro - Quase lhe quebro a cabeça. O que faz aqui fora sob a chuva?
- Devo perguntar, a senhora também viu alguém caminhando sigilosamente pelo jardim?
- Sim, você. - Fez um gesto para a porta - Ouvi o golpe dessa porta e desci para investigar. Não pode confiar esta tarefa aos empregados.
São tremendamente leais a Julia, mas têm medo de suas próprias sombras. Entre nós, acredito que todos eles passaram muito tempo sob o sol indiano.
- O sol?
- Assa o cérebro, sabe?
- Não acredito que estar sob a chuva inglesa faça muito bem ao cérebro tampouco. Importaria de esperar um momento enquanto revisto o abrigo?
Ela olhou para o interior do abrigo alarmada.
- Não acredita que alguém esteve observando a casa do abrigo, não é verdade?
Ele tirou da manga molhada uma folha de gerânio molhada.
- Isso está por ver-se - disse.
Agachou a cabeça e entrou no abrigo e seu olhar desceu aos brilhantes olhos do gato em um canto. Já era menos intenso o aroma de mofo que tinha detectado antes, talvez esmagado pelos aromas mais agradáveis do musgo e madeira velha molhada. Fez uma conscienciosa revista e não achou rastros de um intruso recente. A chuva já teria apagado qualquer rastro de pegadas fora do abrigo. Levantou os olhos para uma janela pequena situada em cima da prateleira cheia de bulbos e ferramentas de jardim. Arrepiou sua pele ao perceber que desse lugar se via o dormitório de Julia.
Ao descer os olhos viu um objeto escuro sobre a prateleira, debaixo de uma pá pequena de jardim. Estendeu a mão e o pegou. Era uma luva negra de homem, muito desgastada, mais usual que parte do guarda-roupa de um cavalheiro elegante. Pareceu-lhe vagamente conhecida.
- E então? O que acontece?
Ele se voltou para olhar Hermia, que estava na porta, com o rosto preocupado em meio de um nimbo de apertados cachos dourado prateados.
- Não sei - disse ele, saindo. Passou-lhe a luva - Viu esta luva antes?
- Não posso dizer que a tenha visto. Caiu do intruso?
- Não, estava sobre a prateleira.
- Bom, até há uns meses alugava esta casa para um cavalheiro idoso.
Ele olhou o jardim. A chuva tinha amainado e através do véu cinza da névoa viu Julia em pé ante a janela olhando-os.
Se alguém esteve escondido no abrigo, teria uma vista perfeita de seu dormitório.
Ficou imóvel. Alguém a esteve observando ou tratando de discernir se Russell estava em seu quarto? Com certeza Auclair ou o agente que trabalhava para ele já saberia que Russell estava a caminho de Paris.
Ativaram-se todos seus instintos, advertindo-o que não baixasse a guarda. Nunca se deve subestimar o inimigo.
Hermia seguiu a direção de seu olhar e estremeceu.
- De verdade acha que minha sobrinha está em perigo? Reconheço que esperava que fossem exageros de Russell.
- Eu esperava o mesmo, lady Dalrymple. - Olhou atentamente a luva e apertou os lábios. De repente o alegrou estar aí. - No momento, talvez seja mais judicioso acreditar.
Julia tinha voltado para seu quarto, convencida de que tinha enviado Heath a uma missão estúpida. Claro que tinha sido o gato o que ela ouviu, não um intruso espreitando no jardim. E que diabos faziam ele e sua tia aí? Os dois estavam se milhando, pelo que via de cima. Apoiou a testa no vidro. No que tinha metido Russell a Heath? Ela se sentia muito egoísta tendo-o como guarda-costas. Em outras circunstâncias...
Bloqueou o pensamento antes que voltasse a acossá-la.
O verdadeiro perigo era para Russell em Paris, cidade não predisposta a receber bem os heróis ingleses, mesmo que tivessem instalado Wellington aí como embaixador.
Sentia-se muito mal ter enviado Heath à chuva depois que ele foi tão generoso com seu tempo. Pediria desculpas. E logo insistiria em que abandonasse seu papel de protetor pessoal. Pelo bem dos dois.
Abriu-se a porta atrás dela. Virou-se, sobressaltada, esquecida de seus pensamentos. Ele estava aí, com seu sedoso cabelo negro esmagado sobre seu bem modelado crânio. O peitilho da camisa branca lhe moldava a soberba musculatura de seu peito. Parecia um pouco
menos feliz, e não era de estranhar. Agitou a cabeça, desculpando-se.
- Está molhado. - Aproximou-se e passou a mão pelo peitilho da camisa. A umidade fazia emanar o aroma masculino de seu sabão de barbear, de amido, o agradável aroma almiscarado de sua pele -
Deveria...
- Não me toque assim - disse ele com a voz rouca. - Julia, por favor, sou só um homem.
- Como se alguém pudesse esquecer isso - respondeu ela sem pensar. - Perdoe-me por tê-lo enviado fora com este tempo.
Olharam-se. O fogo azul que viu em seus olhos lhe tirou o fôlego.
- Tente pensar - disse ele, com o rosto impassível - O que foi exatamente que viu ou ouviu no jardim?
- Ouvi bater uma porta e... - Viu o fio de sangue em sua garganta; voltou a levantar a mão, espantada - O que lhe aconteceu? Havia um intruso.
- Julia, não me distraia, por favor. - Em seus olhos brilhou humor -
Acredito que sobreviverei. Comparado com minhas feridas do passado...
- Deixe-me limpar isso.
- Não é nada.
- Não é nada - repetiu ela, preocupada - Está sangrando. Como aconteceu isso?
- "Velho e indefeso". Acredito que essas foram suas palavras -
disse ele, sorrindo divertido.
- Meu gato o arranhou?
- Pelo visto não lhe caí melhor do que caí a essa macaca esta tarde.
- Tire a jaqueta e a camisa imediatamente.
Ele desabotoou a camisa e afastou ambos os objetos, e os desceu pelos largos ombros, sorrindo-lhe.
- Algo mais enquanto estou nisso? As botas? As meias? A calça?
- Como pode brincar tendo uma ferida no pescoço?
- Porque me fez isso seu gato - disse ele em voz mais baixa - por isso, e só é um arranhão.
Ela o olhou séria.
- E quer que esse arranhão se infecte?
- Sinto muito. - Colocou a mão no bolso e tirou a puída luva negra -
Conhece isto?
Ela negou com a cabeça.
- Não. Nunca a vi em Russell. Não é minha logicamente. - Olhou-o nos olhos outra vez - Onde a achou?
- Na prateleira do abrigo. Hermia pensou que pode ter pertencido ao inquilino anterior.
- É possível, ou a um de seus antepassados. Vamos ver, por favor, deixe que limpe esse arranhão.
Resignado, ele se apoiou na penteadeira, e ela foi pegar uma toalha limpa de uma gaveta do móvel do lavabo. Manteve-se quieto enquanto lhe limpava o pequeno corte e colocava um líquido adstringente. Na realidade, nem sentia o arranhão. Não podia dizer o mesmo dela. Sentia cada um dos movimentos de seu corpo, e esse doce martírio estava se intensificando momento a momento. Deus o amparasse, iria se desonrar se não encontrasse alívio logo. Sua atração por ela já se fazia insuportável, era uma dor física além de emocional.
Tentou se desentender do suave toque de seus seios no braço. No princípio conseguiu, mas muito em breve seu corpo começou a rebelar-se. Ela estava tão perto que não podia sentir-se confortável. Tinha a calça molhada pela chuva e da pele dela emanava um cálido convite.
Endureceu o membro, e com certeza ela tinha que notá-lo, estava tão perto, virtualmente apoiada nele. Apertou os dentes, observando-a com os olhos entreabertos. Através do tecido da camisola se distinguiam os rosados círculos de seus mamilos. Ascendeu-lhe um perigoso fogo no
ventre, que foi se propagando por todas as partes de seu corpo masculino. Não lhe importava um rabanete o arranhão. Desejava essa mulher.
- Fique aquieto - resmungou ela.
- Estou quieto.
Ela se apoiou mais nele e de repente seu vibrante membro se moldou na suave redondeza do ventre dela. Reteve o fôlego ao notar a ligeira vacilação dela. Já deveria ter percebido que estava muito, muito excitado. Entretanto, continuaram assim, separados apenas por uma mínima distância, e ele não podia tê-la. E a necessitava. Santo céu, como a necessitava.
Ela fez uma inspiração entrecortada e ele a olhou. Tinha firmemente agarradas as mãos na beirada do toucador, a suas costas, mas mentalmente já lhe tinha tirado a camisola e estava beijando seus formosos seios, sugando os escuros mamilos até que ela não pudesse suportar. Soltou o fôlego lentamente, tentado, atormentado pela acolhedora flexibilidade de seu corpo, o aroma de seu cabelo, a doçura de seu fôlego na face.
A cama estava muito perto. Poderia a ter despido e suplicando piedade em uns segundos. Poderia pôr fim a seu sofrimento, penetrá-la e cavalgá-la o resto da noite para acalmar o desejo que tinha reprimido durante tanto tempo. Desejava pegar suas firmes nádegas, enterrar-se nela e continuar, continuar, até que ela mal pudesse caminhar. Jamais tinha necessitado aproveitar-se de seu atrativo com o sexo oposto. E
nesse momento era terrível a tentação de pôr a prova suas habilidades.
- O que está pensando? - perguntou-lhe ela inesperadamente.
Seu sorriso o delatou, revelando os secretos pensamentos em que tinha estado ocupado.
- Não é necessário que o diga - se apressou a dizer ela. - Esse é um sorriso que conheço muito bem. Acredito que não precisa explicar
nada.
- Que perspicaz.
- Tem razão - murmurou ela, como se não o tivesse ouvido. - Este arranhão é muito superficial, não vai matá-lo.
- Menos mal. Inclusive não fiz meu testamento.
Olhou seu rosto sombrio e zombeteiro e o coração lhe deu um salto, saltando um batimento. Tentou encontrar um equilíbrio.
- O que fazemos sozinhos em meu quarto? - perguntou, com voz vacilante. - Não havia ninguém no jardim, não é?
- Só sua tia - respondeu ele, lhe tirando a toalha e deixando-a de lado - Ao menos quando cheguei lá, não havia ninguém à vista.
- E que foi fazer ela lá?
- Esteve a ponto de me romper os miolos com um vaso de barro.
- Um vaso de barro... - Balançou a cabeça, consternada, embora não conseguisse de tudo reprimir a risada. - Que traumático. Primeiro meu gato e logo minha tia. Devo lhe pedir desculpas. Ser meu protetor está saindo muito caro.
Ela não tinha ideia. Dominar-se estava matando-o. Aproximou-se mais, lhe roçando os seios com seu peito nu.
- Esse sorriso que vejo em seu rosto não diz que sente compaixão por mim.
- Necessita compaixão? - perguntou ela, olhando-o divertida.
Mulher cruel.
- Nunca faz mal a compaixão nestas situações.
- É curioso - disse ela - sempre me pareceu que ser do tipo estoico, com muita resistência para o sofrimento.
- Como todos os outros.
Ela abaixou a mão, e o olhou curiosa.
- Comigo é diferente então?
Ele titubeou.
- Acredito que nós dois sabemos que sim.
Os olhos dela se escureceram.
- Não sei se deveria ter me dito isso.
- Eu tampouco. Entretanto, parece que é verdade.
Ela engoliu saliva, mas ele observou que não se afastou. Desejou que se afastasse. Em qualquer momento a pegaria em seus braços e lhe faria algo que a escandalizaria.
Algo indecente e criativamente sexual. Ela percebia isso também.
Talvez não soubesse o que, mas tinha que saber que ele a desejava.
Seu traiçoeiro corpo masculino o delatava muito bem, e sem dúvida ela tinha experiência suficiente para reconhecer os sinais da excitação sexual.
Então ela rompeu a tensão que estava crescendo entre eles, dizendo:
- Suponho que deveríamos estar preocupados com Russell. Acho muito estranho que Auclair o tenha atraído tão ostensivamente para Paris. E se fosse uma armadilha?
Ele estreitou os olhos. Que tática. Nada melhor que mencionar a outro homem para apagar o impulso sexual.
- Russell está preparado para isso. Acredito que está preparado para pôr fim ao jogo de uma vez por todas.
- Mas não a sua vida.
- Tem medo, Julia?
- É claro. Sei que os homens se acreditam invencíveis, como se achava meu marido.
Afastou-lhe uma mecha de cabelo do ombro, em gesto instintivo.
Novamente se via vulnerável, com todas suas emoções a flor de pele.
Disse a si mesmo que sua missão era defendê-la, e entretanto a crua necessidade que lhe corria pelas veias como vinho quente o fazia sentir-se mais um agressor que um protetor. Tinha o corpo tenso como um
punho.
Esse beijo da tarde o tinha embriagado, deixando-o ansioso por mais. O desejo se intensificava cada vez que a via. A esse passo estaria louco de atar ao final da semana.
Resolutamente colocou as mãos sobre os ombros.
- Vá para a cama.
- E você?
- Se ficar um momento mais...
- Não - disse ela, colocando um dedo sobre sua boca. - Não diga.
Se disser, eu também o desejarei, e que o céu nos ampare então.
Ele desceu lentamente as mãos por suas costas, rodeou-lhe os quadris e a apertou contra seu excitado corpo. Acreditou que ela resistiria. Mas ela se arqueou, como se ele fosse um ímã para ela.
Gemeu de desejo com o rosto na curva de seu pescoço aspirando o aroma de seu cabelo. Não havia nenhuma outra mulher como ela.
Isso soube sempre.
- Deus me ajude - sussurrou.
- Vá para sua casa, Heath - disse ela docemente. - Esta noite não vai me acontecer nada.
Capítulo Dez
Heath não foi para sua casa. Não por desafiar Julia nem para demonstrar nada. Ficou porque já começava a pensar que os temores de Russell sobre a segurança dela podiam estar justificados. Custasse o que custasse, não podia permitir que ela caísse nas mãos de Armand Auclair, o homem que lhe quebrou o corpo e desejava lhe quebrar a alma. Nessa noite voltou ao jardim varias vezes inúteis, mas não conseguiu achar nada que delatasse a presença de um intruso. O abrigo continuava igual.
A chuva tinha apagado todo rastro, inclusive os dele.
O resto da noite passou na biblioteca, onde decidiu instalar seu
quartel general até poder encontrar uma solução mais conveniente.
Haveria falatórios nos salões elegantes? Sem a menor duvida. Isso era algo digno de fofoca. Naturalmente, supor-se-ia que ele e Julia estavam vivendo
um
apaixonado
romance.
Isso
não
lhe
importava
particularmente. Russell não podia queixar-se; ele foi quem dispôs o cenário para esse drama.
Não seria um Boscastle se não tivesse provocado um bom número de escândalos em sua vida. Embora pudesse dizer em sua honra que nunca tinha provocado falatórios de proposito. Na realidade, sempre tinha procurado evitá-los. Julia havia dado que falar em sua juventude.
As pessoas falariam, certamente. Esse era o menor de seus problemas.
Sua principal preocupação não eram os frívolos rumores que circulavam pelos salões elegantes, mas sua capacidade para protegê-la sem seduzi-la ao mesmo tempo, problema que lhe pesava tanto na mente que talvez pudesse atribuir a isso que na manhã seguinte, quando entrou no salão depois de tomar o café da manhã, percebesse que tinha esquecido a ladina predição de Julia, de que essa manhã lhe traria uma surpresa.
O clube de pintura de lady Dalrymple. Mal abriu a porta e olhou, compreendeu que tinha cometido um grave engano ao subestimar a advertência de Julia. Quando aprenderia? Ela o surpreendia a cada momento.
O salão estava transformado em uma oficina de pintoras aficionadas. Tinham retirado para os lados o sofá, as poltronas de damasco e as delicadas mesinhas para o chá, tudo estava coberto por lençóis brancos, deixando assim espaço para um semicírculo de mesas de desenho, cavaletes e faladoras mulheres com aventais de musselina sentadas em cadeiras Chippendale.
Ficou paralisado na porta quando doze ou mais cabeças femininas se levantaram para ele. Julia levantou os olhos no canto onde estava
sentada com um bloco de papel de desenho em frente. Agitou o lápis para ele e declarou em voz alta:
- Ah, olhem, é lorde Boscastle. Com certeza veio posar para nosso Apolo. Vamos lhe dar uma calorosa boas vindas.
Ele virou sobre seus calcanhares para começar a correr, mas lady Dalrymple se levantou de um salto e conseguiu agarrá-lo pelas longas abas de sua jaqueta de manhã.
E se viu arrastado sem nenhuma cerimônia até o centro do salão, como um peixe.
- Não seja tímido, Boscastle.
- Tímido? Não sou tímido. Simplesmente não sou aficionado a me exibir.
Julia limpou a garganta.
- Não há nada vergonhoso no corpo humano quando se usa para finalidades artísticas.
- Isso sem mencionar a quantos órfãos vai vestir - disse uma senhora idosa de voz aguda, atrás de um enorme cavalete. - Se importaria de tirar a camisa? Por finalidades artísticas.
Heath pestanejou surpreso.
- Eu?
- Não é que não o tenha feito montões de vezes - disse uma das senhoritas Darlington, que estava sentada à direita.
- É de esperar que não ante um público tão numeroso - murmurou uma voz rouca e conhecida, proveniente do lugar do semicírculo onde estava Julia.
Ele gemeu para si mesmo. Essa voz áspera, mordaz, pertencia nada menos que à Jane, sua muito perspicaz cunhada, casada recentemente com seu irmão mais velho, Grayson.
A única coisa que lhe faltava, um membro de sua família ali, presenciando esse humilhante momento. As brincadeiras não acabariam
jamais.
Olhou-a sério, indignado.
- A primeira e última vez que posei para alguém foi em sua casa.
Não lembro como uma experiência agradável.
Jane sorriu travessa.
- Ah, mas só porque a governanta surpreendeu os dois, a você e a pintora, era a senhorita Summer, não? Em uma pose muito pouco artística.
- Isso não é verdade - respondeu ele, consciente de que Julia o estava olhando. - Me inclinou a toga e a senhorita Summers se ofereceu para endireitá-la.
- Meu querido cunhado - disse Jane, em um tom enganadoramente doce - pense em todas as obras de caridade que vai financiar posando para nós. Isto deveria ter-me ocorrido.
Ele a olhou sarcástico.
- Ficaria muito feliz em fazer uma doação, Jane. Na realidade, darei a ordem a meu secretário para que estenda um...
- Se pôde posar para Eloise Summers - interrompeu Julia, olhando-o por cima de seu bloco de papel - pode posar também para nós. Seja bom amigo, Heath.
- E depois faça a doação - acrescentou lady Dalrymple.
A isso seguiu uma verdadeira chuva torrencial de bate-papo entre as mulheres.
- Não posso acreditar que tenhamos um Boscastle entre nós.
- Viram-lhe os olhos? Terei que mesclar muitíssimas cores antes de começar a pintar.
- De verdade vai posar para nós? Como fazer justiça a esse corpo masculino, a esse rosto? Senhoras, meus lápis estão começando a ruborizar.
Heath aproveitou o momento para retroceder vários passos para a
porta.
- Sinto muito. Tinha esquecido totalmente que seu clube tinha uma reunião esta manhã. Perdoem a intrusão. Continuem, por favor. Sem mim.
- Intrusão? - chiou uma das pintoras, agitando seu pincel de cerda.
- Quer dizer que não vai ficar?
- Sim, vai ficar - disse lady Dalrymple, apressando-se a ir fechar-lhe o caminho. - Ontem à noite prometeu a Julia que posaria.
Heath franziu o cenho; seria possível atacar a uma mulher da idade de Hermia sem lhe fazer mal?
- Jamais prometi isso. Julia alterou algo que eu tenha dito?
Ela brincava com seus lápis-carvões.
- Vou desenhá-lo como um deus grego. Acho que deveria se sentir adulado.
Ele conseguiu escapulir-se por um lado de Hermia sem que o agarrasse.
- Que pose o mordomo.
- O mordomo já posou - disse uma dama idosa com as faces vermelhas com ruge. - Votamos por representá-lo como nosso Hermes.
Julia estava olhando seu bloco de papel com um evasivo sorriso.
- Porque tem os pés velozes.
Ele chegou à porta, retrocedendo. Atrás dele estava Payton, o mordomo de cabelo prateado, com uma bandeja de refrigérios, e movendo a cabeça compassivo.
- Vale mais que aceite, milorde - disse em voz baixa. – Perseguirãolhe sem piedade até que aceite. Asseguro. Uma graciosa rendição é mais simples de longe.
- Por favor, Heath - suplicou Julia com voz melosa.
Ele não confiava nada nessa voz. A fachada açucarada de Julia escondia o coração de Satã.
- Não vou posar - disse, endireitando os ombros. - Não voltem a me pedir isso. Não vim a esta casa para... para ser explorado. E não se fala mais.
***
- Importaria de subir as pernas da calça, querido? - perguntou a senhora Hemswell ao homem alto que estava em pé no centro do salão, com o rosto rígido em uma expressão depreciativa.
- Sim, importa-me - disparou Heath. - Já me sinto ridículo tal como estou. Como se fosse um peru de Natal examinado no mercado.
- Não se parece com nenhum peru de Natal que me tenham servido -murmurou Julia, mordiscando a extremidade de seu lápis.
- O mesmo digo - acrescentou Jane, sorrindo.
Uma das senhoritas Darlington levantou a cabeça.
- Recorda-me muitíssimo o garanhão muito caro que comprou meu tio em um leilão particular.
Heath puxou do chão o manto de seda branca que lhe tinham pendurado em um ombro.
- Apolo está farto. De fato, está a ponto de pedir a Zeus que arroje uns quantos raios.
- Por caridade, Boscastle - disse lady Dalrymple, olhando-o séria.
- Alguém teria que mostrar um pouco de caridade comigo -
resmungou ele.
- Eh, Boscastle - disse Julia, com o olho direito entrecerrado -
poderia flexionar esse ombro outra vez? Desviaram-me um pouco os traços.
- Nos dê uma vista de trás, querido - murmurou lady Dalrymple.
Heath arqueou bruscamente as sobrancelhas.
- Que lhes dê o que?
- Eu preciso ver certa fluidez, um pouco de movimento - disse Jane, contemplando seu desenho com olho crítico.
- Eu também - replicou Heath - o movimento de sair desta sala.
Julia piscou os olhos, encantada.
- Senhoras, acredito que devemos permitir que nossa deidade relaxe um pouco. Está ficando algo rígido.
- Estou mumificado - resmungou Heath, voltando-se para cobrir o ombro com a camisa; negou-se a tirá-la de tudo, apesar das súplicas. -
Terminou?
Lady Dalrymple abaixou seu lápis.
- De maneira nenhuma. É uma sorte tê-lo entre nós, Heath. O
retrato de Apolo é uma das peças mais importantes da coleção.
Heath desceu do improvisado estrado.
- Neste momento me sinto mais como Hades, se entendem o que quero dizer. Quero lançar um olhar a essas obras mestras.
Julia pôs seu bloco de papel apertado contra o peito.
- O meu não deve ver até que esteja terminado.
Ele deu a volta à cadeira e se inclinou por trás para olhar por cima de seu ombro.
- O justo é justo. Deve permitir que olhe. Uma olhada.
- Bom, só uma olhada - disse ela, levantando seu bloco de papel com um gesto triunfal.
Arregalaram seus olhos de espanto ao ver o desajeitado esboço.
- Céu santo. Estou...
- Apolo ao natural - disse ela alegremente. - Captei bem suas proporções? Tive que recorrer a minha imaginação para as partes cobertas.
Ele contemplou o desenho, horrorizado. Não tinha ideia de que o iriam reduzir ao mais básico.
- Eu diria que essas folhas de figueira teriam que ser maiores, que sirvam para cobrir todo o desenho.
- O que lhe parece, Jane? - perguntou Julia à marquesa, que
acabava de levantar-se para olhar o desenho. - Estão bem proporcionadas todas as partes de Heath?
- Estou casada com Grayson, Julia - respondeu Jane divertida. -
Não sou uma perita nos atributos de Heath.
- Mas são irmãos - insistiu Julia, observando o sombrio olhar dele. -
Teriam que ser semelhantes em... certas características.
Heath lhe sustentou o olhar.
- Guardo para mim minhas características, obrigado.
Julia lhe sorriu.
- Talvez a senhorita Summers poderia nos iluminar.
- Ciumenta, Julia? - perguntou-lhe ele em voz muito baixa.
Ela pensou um momento.
- Não, claro que não. Eloise não tem nenhum talento artístico.
Ele se espreguiçou , levantando os braços por cima da cabeça.
- Terei que ver esse desenho com mais detalhe para poder dar minha aprovação.
Ela mordeu o lábio e apoiou os braços cruzados sobre a mesa de desenho.
- Não está preparado. Ainda me falta acrescentar mais detalhes.
Isto é simplesmente um primeiro esboço.
- Ah, muito bem - disse ele, olhando-a fixamente. - Então se pode arrumar com umas quantas sugestões minhas. Como a de acrescentar roupa.
- Penso desenhar um carro em segundo plano - explicou ela, pensativa, tamborilando o queixo com o lápis. - Ainda não decidi se Apolo deve levar seu arco ou uma lira.
- Roupa deve levar - disse Heath firmemente. - E talvez uma máscara para ocultar sua identidade.
- Olhe o meu, lorde Boscastle - disse uma das senhoritas Darlington, agitando a mão diante de seu rosto. - O que lhe parece?
Ele olhou cortesmente o desenho, arrumando-se para não sorrir ante esses torpes traços de aficionada.
- Não recordo que Apolo andasse pelo Olimpo apontando às pessoas com uma flecha. E muito menos desse ângulo.
A jovem dama se inclinou para olhar seu desenho.
- Aah, isso não é uma flecha. É...
- Suponho que nenhum destes desenhos vai se expor ao público? -
Interrompeu ele, olhando para todas com um sorriso muito ameaçador.
Julia o olhou muito séria, com expressão de recriminação.
- Todas as obras de arte que cria o clube se leiloam para obras de caridade.
- Quer dizer que meu retrato nu vai pender no salão de alguém?
Lady Dalrymple o olhou sorrindo de orelha a orelha.
- Imagine, Boscastle. O duque de Wellington poderia olhá-lo de sua mesa da sala de jantar todas as noites.
- Que ideia mais arrepiante.
- Poderia se converter na celebridade de Londres - acrescentou Julia, ladina.
Ele se virou para olhá-la indignado.
- Na piada, quer dizer.
Ela se limitou a balançar a cabeça como se não tivesse ideia do que o incomodava.
E de repente deixou de importar. Ele não conseguia imaginar por que permitia que lhe acontecesse isso. Mas de uma coisa estava seguro: ela era a única pessoa do mundo capaz de pô-lo em uma situação assim impunemente. Nenhuma outra pessoa teria se atrevido, nem teria escapado impune.
***
Julia estava abaixada junto à lareira queimando umas cartas velhas quando soou um suave golpe na porta. Endireitou-se, com o atiçador na
mão. Acelerou-lhe o coração, embora não de medo. Já era bem passada a meia-noite e a casa estava imersa no habitual silêncio noturno.
Nenhum empregado bateria em sua porta a essa hora. Um certo malandro sim. O que poderia desejar? Negou-se a deixar vagar a imaginação. Fascinavam-na muitíssimo as possibilidades.
Apoiou a face na porta e sussurrou em tom severo:
- Quem é?
- Quem você acha? - Perguntou uma profunda voz masculina.
Ela fechou os olhos. O pulso estava acelerado.
- Se soubesse não perguntaria, não é verdade?
Quase imaginou seu sorriso.
- Não sei.
- O que quer a esta hora da noite? - Sussurrou, com a mão na chave para abrir.
- Abra a porta, Julia.
- Noto-o... veemente. Não sei se devo deixá-lo entrar.
- Abra a porta.
Ela apoiou o ombro esquerdo no batente da porta. Alargou-se seu sorriso.
- Por que teria que abri-la?
- Eu posso abri-la de fora se preferir.
- Então por que não a abriu?
- Porque sou condenadamente educado, por isso, e não queria assustá-la. Está vestida? - Acrescentou, abaixando a voz em uma oitava.
Ela olhou a fina camisola de seda marfim que trouxe da Índia.
- Não muito. Quer dizer, não para um baile. Estou...
Ouviu-se um clique, logo o som do fecho da fechadura ao abrir-se, e se encontrou olhando esses pecaminosos olhos azuis, sem poder respirar, e muda. Deveria saber que não devia tê-lo desafiado.
- Já está - disse ele. - Foi fácil, não?
- O que faz aqui?
- Venho em uma missão.
Dizendo isso passou pelo lado dela, olhando tudo com os olhos estreitos. Caminhando atrás dele, Julia sentiu descer pela coluna um calafrio de pressentimento.
Ele parecia perigoso, absorto, resoluto. Heath Boscastle, o espião consumado, o oficial treinado, o assassino profissional; em seu quarto; em uma missão. Invadiu-a uma espécie de enjoo, de delírio. O que acontecia? Ela tinha esperado algo totalmente diferente. Que vergonha, ter pensado que ele vinha seduzi-la quando só queria cumprir seu dever.
Endireitou-se, assaltada por uma perturbadora possibilidade.
Teria visto um intruso e suspeitava que estava escondido em seu quarto? Levantou um pouco mais o atiçador quando ele se ajoelhou para olhar debaixo da cama.
-O que faz? - Perguntou, alarmada.
- Tento encontrar um esconderijo.
- Um esconderijo? Aqui?
Reteve a respiração. A ideia de que alguém tivesse entrado em sua casa, em seu quarto, gelava seu sangue. Se um intruso tinha conseguido entrar, igualmente poderia ter se escondido aí, à espera, enquanto ela se despia para dormir. Talvez houvesse alguém no jardim observando-a. Talvez devesse ter levado mais a sério as advertências de Russell.
Com o coração lhe retumbando na garganta, continuou observando. Heath se levantou de um salto, com o rosto sério, mas não assustado. Na realidade, dava a impressão de que estava desfrutando.
- Não está aí debaixo - disse.
- Precisa de minha pistola? - Sussurrou ela, com a boca ressecada.
- Deveria ter uma.
Ele a olhou sério.
- Uma tesoura iria bem. Se não, posso fazê-lo com as mãos.
Ela abafou uma exclamação.
- Com as mãos? Isso é algo violento, não? - Afastou-se dele, retrocedendo, e estendendo a mão por trás para a porta. - Deixe que vá procurar ajuda.
De um salto ele estava a seu lado.
- Não - disse, com a maior naturalidade. - Não me faz falta nenhuma testemunha.
Ficou boquiaberta e totalmente desconcertada quando ele se dirigiu resolutamente para o roupeiro.
- Em meu armário? Entre meus vestidos?
Ele a olhou despreocupadamente por cima do ombro.
- Solte esse atiçador, antes que se queime.
Obediente, ela foi deixá-lo com supremo cuidado na lareira.
- De verdade quero que pegue minha pistola - disse em voz baixa.
- Está fechado com chave seu roupeiro?
- Não, não, mas não o abra...
- Está escondido aqui? - Perguntou ele, sorrindo satisfeito.
- Aí? -Tinha a pistola debaixo do travesseiro. - Uma pistola não seria uma maneira mais rápida de dirigir isto?
- Seria um pouco exagerado, não lhe parece?
- O que vai fazer se estiver aí? - Perguntou ela, inquieta.
- Quebrar a maldita coisa em mil pedaços.
- A coisa? - Encolheu-se quando ele abriu a porta do roupeiro, com uma indiferença tão absoluta por sua segurança, que era mais temeridade que valentia. - Quer dizer ele, não?
- Ele?
Colocou a cabeça na fileira de vestidos de manhã, capas, e trajes de noite pendurados sem nenhuma ordem especial.
Julia estendeu a mão por trás para tirar a pistola debaixo do
travesseiro.
- O espião que procura Russell para vingar-se. Não está aí, não é verdade?
Ele se virou para olhá-la, confuso.
- Não sei do que fala. Estou procurando o desenho que fez de mim hoje. Não vou permitir que o exponha ao público. Onde o escondeu?
Ela endireitou os ombros, surpresa e consternada. Com razão ele estava tão tranquilo.
- Quer dizer que entrou em meu quarto, que veio aqui a esta avançada hora da noite, procurar meu desenho?
Ele avançou para ela, com uma negra sobrancelha arqueada.
- O que achou que andava procurando? Quero esse desenho, Julia.
Ela se virou e se lançou para o travesseiro.
- Necessito minha pistola.
- Ah, não, não a necessita. - Rápido como um raio, ele se jogou na cama, esticou-se e cruzou os braços sob a cabeça. - Onde está o desenho?
- Está com Hermia.
Ele a olhou, relaxado, como se se sentisse absolutamente cômodo em sua cama.
- Hermia?
- Sim. Por que não vai revistar seu quarto?
Ele a obsequiou com um encantador sorriso e ficou preso o ar na garganta dela.
- Não acredito que entrar em seu quarto seja nem a metade de divertido que entrar no seu.
- Divertido? - exclamou ela indignada, tão furiosa consigo mesma como com ele. - Achei que tentava me proteger. Achei que estava a ponto de matar um homem.
- Não faria isso com tesoura - disse ele. O sorriso sumiu, substituído por uma perigosa intensidade. Seu ardente olhar desceu por seu corpo só coberto pela seda da camisola, e logo subiu lentamente até seu rosto. - Sempre está tão desejável quando vai se deitar?
- Só quando espero que entre um patife em meu quarto e se acomode nessa cama. - Passou o braço pelo poste da cama, como se isso a fosse proteger da tentação; ele voltava a fazer isso: seduzi-la com um só olhar. - Venha, se levante.
- Só queria ficar confortável.
- Muito confortável pelo que vejo.
E muito atraente para sentir-se confortável ela.
Virou-se para a direita, quando ele fez rodar seu musculoso corpo para descer da cama. Então lhe viu o rosto no espelho. Era inconfundível a expressão de desejo que lhe escureciam as feições, ao não saber-se observado.
Uma onda de surpresa e de feroz prazer a percorreu inteira, lhe eletrizando todas as terminações nervosas. Lentamente se virou para ele, com o olhar interrogante. O rosto dele estava tão desprovido de expressão que pensou se não teria imaginado o que viu no espelho; talvez tenha visto somente seu próprio reflexo de desejo secreto.
- Quero examinar esse desenho que fez de mim antes que o lance ao mundo - disse ele, mal-humorado.
Ela começou a rir, enquanto ele passava a seu lado em direção à janela.
- Seu corpo e minha arte pertencerão à posteridade, acredito.
Ele afastou as cortinas.
- Vamos, essa sim é uma ideia terrível.
Ela deixou de rir quando ficou a seu lado e olhou as escuras sombras do jardim. Ele estava muito sério. Tinha algo mais em seus pensamentos além do desenho.
- Não encontrou nada aí, não é verdade?
- Não. Esta manhã os atalhos estavam alagados de barro.
- Bom, talvez ontem à noite não tenha entrado ninguém aí.
- Não sei. - Soltou a cortina - Não tem sentido correr o risco - Virou-se, afastando-se da janela, começou a andar e de repente parou e se voltou para olhá-la. Acelerou-se o coração dela ante seu olhar. Estava claro que o preocupava algo.
- O que acontece? - perguntou, sustentando seu olhar.
Ele sorriu pesaroso.
- Sabe que durante anos pensei que se alguma vez voltasse a beijá-la ficaria curado?
- Curado?
- Sim, de meu desejo por você. Acredito que sempre lamentarei que não tenhamos sido amantes. Bom, chame de tolice de jovem, desejar o que não podia ter.
Ela desviou os olhos e um inoportuno sorriso se desenhou nos lábios.
- Amantes? - repetiu, tentando parecer surpresa, como se não tivesse pensado nessa possibilidade incontáveis vezes. Mas ao ouvi-lo reconhecer que sentia o mesmo, não sabia o que pensar. Reabrir essa porta era muito perigoso; estava na soleira da tentação. - Que trágico parece - disse em voz baixa.
- E não o sou?
- Não acredito nem por um instante. Isso é exatamente o que diria um malandro para atrair uma mulher a sua cama.
- Valia a pena tentar.
- É um desavergonhado - exclamou ela. - Acredito que está pior que quando o conheci.
- É muito possível. Tive vários anos de prática.
- Bom, eu também - replicou ela.
Embora ao que parecia isso não lhe tinha servido muito. Desejava-o com um desejo de mulher, não pelo impulso de uma menina. Se tivessem se tornado amantes, seguiriam juntos nesse momento? Esse pensamento a atormentava. Ele tinha ido à guerra.
Ele sorriu e se dirigiu à porta. Ela o olhou, consciente da dor e o desejo que ardiam no fundo dela. Lamentava, disse ele. Pesar.
Chamaria assim essa dor agridoce?
- Não deixe entrar nenhum outro malandro em seu quarto esta noite, Julia - disse ele por cima do ombro.
- Não acredito que haja alguma possibilidade disso.
Ele a olhou nos olhos, em seu olhar se refletia uma severa reprimenda, e a dor se instalou mais profundo ainda. O que tinha perdido?
- Tranque a porta de todo modo.
Capítulo Onze
Transcorreram três días calmos, sem incidentes. Não apareceu nenhum intruso no jardim de Julia. Não havia mais motivos para supor que ela estava em perigo iminente. Heath não teve nenhuma oportunidade de ser um heroi, a menos que levasse em consideração um pequeno drama que aconteceu ao final da semana, quando Julia e lady Dalrymple se encontraram em um revolta de rua. Tudo começou de uma maneira muito inocente.
Ele aceitou sem querer acompanhá-las, na última hora da tarde, a uma palestra em East End sobre a difícil situação dos soldados sem teto.
Deveria ter se negado.
A seu chofer deu a orden de voltar para buscá-los as três horas.
Deveria ter ouvido seus instintos e insistido que ficassem em casa.
Na parte de tras do salão de conferências se armou uma briga quando a conversa chegou a um fim prematuro e muito efusivo, uma verdadeira briga a gritos sobre os soldados aos quais se negava uma
pensão, a que logo foi ficando calorosa até converter-se em uma guerra de empurrões. Os asistentes cederam ao pânico e começaram a correr, dispersando-se em todas as direções.
- Vá direto para o carro - gritou Hermia, por cima da confusão de corpos empurrando-se e gritos - Heath, não perda de vista a Julia. Estas multidões costumam ficar violentas.
- Estou bem - soou a voz de Julia no meio do caos - Que cada um se cuide.
Heath conseguiu ver seu rosto, estava tranquila, se bem que compreensivelmente irritada pelos cotovelos e ombros que a esbarravam. Enquanto não a perdesse de vista, não se preocuparía muito. Como entraram nesta situação? Ele apoiava a reforma social, mas através do Parlamento, não com um debate público.
De repente abriu-se bruscamente a porta dupla de tras da sala e apareceu uma tropa de mendigos. Heath reconhecia o perigo quando o via. Entrou um forte vento frio, que balançou os candelabros das paredes e apagou as velas cujas chamas parpadeantes iluminavam a cena de terror. Buscando Julia, olhou por cima do caótico mar de assistentes, todos correndo precipitados.
Não a encontrou. Seu coração se acelerou.
- Julia! - gritou, vagamente consciente do tolo que soava e da cara de espanto de um casal anciões.
- Aqui! - gritou ela, agitando valentemente a mão em uma luva branca por cima das cabeças. - Parece que vamos avançando como uma só pessoa até a porta de trás. Cuide de embutida en un guante blanco por encima del mar de cabezas. - Cuida de Hermia...
Ele negou com a cabeça, frustrado.
- Hermia está...
Olhou para o lado e viu que a mulher mais velha também havia desaparecido de sua vista. Um desconhecido com óculos estaba no
lugar que ela estaba há um instante. Aonde tinha ido?
- Hermia, onde diabos está?
- Aqui.
Seguindo o som da voz apagada ele olhou para os pés. .
- Bom Deus - exclamou, agachando-se para ajudá-la. O que aconteceu? Alguém te empurrou?
- Caiu meu chapéu, Boscastle. Não precisa entrar em pânico.
- Pânico? - resmungou ele, levantando-a. - Diga isso as cem ou mais pessoas que empurram como uma manada de elefantes. Como pude me deixar convencer a vir neste lugar?
Ela se endireitou, com as faces acesas e o chapéu bem firme na mão.
- Onde está Julia?
- Saiu pela porta de trás, se tiver um pouco de sensatez. - Agarrou-a firmemente pelo braço. - Vamos nós reunir com ela, sim?
***
Julia se achava em um infernal e poeirento corredor atrás, ao qual tinha sido arrastada junto com um pequeno grupo de assustados assistentes da palestra.
- Perdão - disse, quando uma bota lhe esmagou o dedão do pé. -
Poderia deixar de pisar em meus pés?
- Perdão, senhora - respondeu a voz de um corpo invisível. - Não vejo por onde piso.
- Há uma porta que leva ao beco - gritou uma mulher que estava à frente da multidão. - Tem que subir três degraus.
- Não posso respirar - disse outro homem invisível, desesperado -
Sempre odiei a escuridão.
- Há outra saída - sussurrou uma refinada voz masculina no ouvido de Julia. - Agarre minha mão e a guiarei.
Ela vacilou. Tinha perdido de vista a Hermia, mas sabia que estava
com Heath e ele era muito capaz de cuidar dela. O dono da voz culta parecia ser jovem e cavalheiresco e não conseguiu discernir nenhum motivo para resgatá-la que não fosse simples cortesia.
- Não vejo nada - sussurrou.
Ele pegou seu pulso com uma mão com luva de couro.
- Não se preocupe. Encontraremos o caminho.
Ela olhou o negrume de absoluta escuridão.
- Como? Isto está tão negro como uma tumba.
- Quando era menino costumava explorar cavernas. Nunca tive medo da escuridão. Meu nome é Raphael, por certo. Barão Brentford.
***
Heath tinha um braço rodeando a grossa cintura de Hermia e o outro levantado para proteger-se e protegê-la da revoada de ovos podres e pedras que estavam arrojando os revoltosos na rua.
Esses não eram manifestantes, mas simples ladrões que desfrutavam da violência desencadeada e queriam aproveitar a oportunidade de roubar um ou dois moedeiros.
- Pensão para os soldados? - zombou um homem lançando uma couve mofada a sua cabeça - Eu darei uma pensão!
Conseguiu agachar-se, protegendo Hermia com seu corpo.
- Onde diabos está a carruagem? - resmungou, afastando-se da agitada multidão. - E onde diabos está Julia?
Hermia endireitou o capote de veludo vermelho e olhou por cima do ombro dele.
- Acha que poderia ter encontrado a carruagem antes de nós?
Com os lábios apertados pela preocupação, ele olhou a rua iluminada por lampiões de gás. Onde se teria metido? Por que não pediu ao cocheiro que ficasse aí?
Os verdadeiros manifestantes pela causa social já estavam misturados aos ladrões de carteira e rufiões da vadiagem. Até o
momento ninguém tinha ficado gravemente ferido ou lesado, mas o inquietava não saber onde ela estava. O humor das pessoas ia piorando momento a momento. Alguns revoltosos, armados com paus e mantimentos podres, agruparam-se para derrubar uma carruagem desocupada. O chofer do veículo se refugiou atrás de um poste de luz e só saiu quando pela esquina apareceu uma patrulha dos agentes de Bow Street. Os rufiões se dispersaram perdendo-se nas ruas e becos enquanto os agentes se aproximavam correndo pela rua, armados com seus porretes.
- Subam, rápido! - gritou uma voz conhecida no meio do caos.
Heath se virou justo no instante em que parava um elegante carro negro junto à calçada de frente.
- É Odham - disse Hermia, agitando para que avançasse para o carro. - Meu velho inimigo se faz útil por fim. Acha que poderia ter resgatado Julia?
- Duvido - respondeu ele, olhando para trás, angustiado. - Poderia ter escapado pela porta de trás da sala. Ou talvez meu chofer voltou antes e a achou.
- Isso espero - murmurou Hermia, estremecendo e olhando atrás, para a revoltada multidão.
Um ovo voou por cima de suas cabeças e se estrelou na calçada.
- Céus! - exclamou Odham no interior do carro. - Isto se converteu em um campo de batalha. Subam.
Abriu a porta do carro. Um empregado correu para tirar os degraus e ajudar Hermia a subir. Heath olhou o interior, com o rosto lúgubre de preocupação.
Estava resolvido a encontrá-la, e se tivesse acontecido algo, só poderia culpar a si mesmo.
- Viu Julia por aí, Odham?
O conde se inclinou para ele, sério.
- Nenhum sinal dela. Não me diga que a deixou sozinha nessa briga.
Heath tirou a cabeça para fora e retrocedeu.
- Leve Hermia para casa - disse em tom brusco.
- Não iremos a nenhuma parte enquanto não aparecer Julia - disse Hermia resolutamente.
Nisso, por trás de Heath se aproximou um agente de rosto tosco vestido com um casaco de lã.
- Este carro deve avançar. Que diabos, não é o senhor, lorde Boscastle?
Heath sorriu tristemente ao agente de Bow Street. Era um de seus informantes e um bom homem.
- Pois sim, e não me pergunte por que estou aqui. Simplesmente me ajude a achar... - deu a volta pelo lado do agente, aliviado. - Aí está.
Soltou o fôlego em uma longa expiração. Graças a Deus. Sentiu relaxar-se todo o corpo. E imediatamente voltou a esticar-se por outra preocupação.
Estreitou os olhos, pensando, ao ver um esbelto jovem de negro ao lado dela, com o braço protetoramente sobre seus ombros, seu corpo um escudo e uma arma contra a turbulenta multidão. Ela não se mostrava assustada nem aflita pela experiência.
- Está bem? - perguntou Hermia, impaciente, do carro.
Heath deu uma sacudida para tirar a perturbadora sensação que lhe enchia o coração. O que era isso? Medo por ela? Uma arrogante sensação de orgulho ferido porque tinha falhado como protetor?
Ciúmes? Ciúmes ao ver outro homem protegendo-a? Isso seria ridículo, se levasse em consideração que ela se casaria com seu amigo dentro de umas semanas. Entretanto essa desagradável emoção lhe roía as entranhas.
- Parece que está bem - se ouviu dizer. - Há um homem com ela.
- Um homem? Um desconhecido? Bom, pelo amor de Deus, deixe de franzir o cenho assim e vá resgatá-la.
Ele se obrigou a sorrir.
- Não sei se ela deseja que a resgatem.
Mas a resgataria, o agradecesse ou não. Não o tinha feito passar por um inferno para que outro homem lhe adiantasse no cumprimento do dever.
***
Julia se afastou de seu salvador, liberando discretamente os ombros de seu braço. Era um jovem simpático, embora bastante imperioso e cheio de si mesmo; e aparentemente achava que ela era tão frágil como uma figurinha de cristal. E esse era um sentimento precioso, embora errôneo. Já fazia tempo que tinha compreendido que em seu caráter não havia nenhum só traço de delicadeza cristalina. Era composta por um material mais resistente e durável, pedra calcária inglesa com uma grossa e dura veia de granito. Claro que poderia se quebrar, mas seria preciso um golpe muito forte. Tinha a impressão de que lhe tinham aberto umas quantas gretas profundas por dentro, onde não se viam. Mas não podia suportar mais golpes, isso sim. Inclusive a pedra calcária se desmorona com o tempo.
Suspirou aliviada quando viu Heath na calçada de frente. Incrível que esse homem a fizesse sentir-se em perigo e segura ao mesmo tempo. Que horroroso compreender que tinha chegado a esperar sua presença; que sua ausência a afetava.
Novamente se desprendeu do braço de seu salvador, que voltou a colocá-lo sobre os ombros enquanto ela procurava Heath e Hermia com os olhos.
Virou-se para olhá-lo brevemente nos olhos. Tinha cachos negros desordenados e uma boca sensual de romântico e de menino mimado esse galante barão que foi em sua ajuda e logo grudou nela como um
marisco.
- Agora tenho que ir - disse. - Muitíssimo obrigada por ter sido meu anjo da guarda.
Ele olhou para a rua. Heath acabava de parar uma carruagem e vinha caminhando com passos largos e resolutos.
- Seu marido? - perguntou ele, com o longo suspiro de um homem acostumado a perder no amor.
Heath, seu marido. Olhou para o homem de ombros largos que vinha a toda pressa atravessando a rua. Só a sugestão de lhe pertencer a banhou em uma onda de prazer culpado. Que par formariam. Podiam ter de casado se a guerra não o tivesse levado longe? Mas o que estava pensando? Ele só disse que lamentava que não tivessem sido amantes; nada mais.
- Céus, não. Não é meu marido.
- Seu noivo?
Ela riu, um pouco nervosa, afastando-se mais. As pessoas iam passando junto a eles em um e outro sentido. Outra carruagem com agentes parou junto à calçada.
- Não, não é meu noivo. Escute, vão nos prender dentro de uns minutos. Tem que escapar.
Ele arregalou os olhos castanhos bordeados por grossas pestanas, compreendendo.
- Seu protetor? Ah.
Julia apertou os lábios e não soube o que dizer. Como podia explicar sua relação com Heath a um desconhecido? Nem ela mesma a entendia, e o mais provável era que Heath tampouco.
- Bom, poderia chamá-lo meu protetor.
Ele assentiu, observando-a com renovado interesse, um interesse um tanto insultante.
- Está bem. Não tem por que envergonhar-se. Sou um homem de
mundo.
Julia engasgou com uma negativa indignada. Ele a achava uma mulher mundana, uma mulher de moral relaxada. Isso era justo o que lhe faltava.
- Não me cabe dúvida de que é, milorde, mas não me faz mundana
.
- Me chame Raphael, por favor.
- Muito bem.
Já estava muito nervosa, mais preocupada com a situação em que se achavam que por outra coisa. Dois policiais vinham para eles com seus grossos porretes. Mais ameaçadora ainda era a desaprovação que escurecia o rosto de Heath, caminhando para o barão. Isso a fez pensar; ele era famoso por ocultar seus sentimentos.
Nesse momento sua raiva era evidente, crua, elementar.
O barão deve ter notado também. Abaixou o braço e tentou desaparecer na multidão. De repente ela o viu ficar paralisado, olhando-a assustado.
- Boscastle - disse, em um tom nada satisfeito ao compreender. -
Está sob o amparo de Boscastle?
- Por assim dizer...
Olhou ao redor, com uma muito vaga consciência de que Brentford já tinha escapado. Passado um instante sentiu um empurrão e se chocou com um corpo masculino mais alto, mais duro, conhecido embora não conhecido. O braço de Heath lhe rodeou a cintura.
Percorreu-a um prazeroso calor quando seus olhos se encontraram com os dele. Por uma curva de sua mente passou a pergunta de por que reagia assim a ele. Russell tinha o mesmo efeito nela? Não, de maneira nenhuma. O encanto Boscastle era legendário.
- Procurei-a por toda parte - disse ele com um fio de aço na voz.
A preocupação de seus penetrantes olhos azuis se contradizia com
o aborrecimento de seu tom. Não tinha sido sua intenção preocupá-lo.
Santo céu, ela não tinha organizado essa revolta.
- Saí pela porta de trás com um homem.
- Já percebi - disse ele friamente. - Se apresentou?
- Isto barão ou Aquilo.
Ele não tinha retirado o braço de sua cintura. Esse contato era possessivo, pessoal, um tanto pecaminoso e muito, muito prazeroso.
Heath estreitou os olhos ao perceber.
- O barão Brentford - disse, depreciativo. - Sabia que o tinha visto antes. Esteve olhando-a na refeição campestre. É um conhecido descarado, Julia.
- Isso me pareceu. Concluo que não o agrada?
- Agradar-me? - Olhou para a rua por cima do ombro dela-. O podre bastardo beijou a minha irmã Chloe atrás de uma carruagem no parque.
Diante de testemunhas.
- Caramba. Que delito.
- Desterraram Chloe por sua participação. Brentford escapou por um cabelo com sua vida. Grayson queria sua cabeça.
- Segue aí. Sua cabeça, quero dizer.
Um dos policiais reconheceu Heath e se aproximou para lhe fazer uma amável advertência:
- Caminhe, por favor, milorde. Isto vai ficar feio, parece-me. Não nos convém que a dama presencie atos de violência.
- Obrigado - disse Heath, levando-a com ele. Quando deixaram atrás o agente, acrescentou: - Depois me encarregarei de Brentford.
-Não fez nada além de me ajudar a sair daí.
- Seu braço rodeava seus ombros.
Um diabólico impulso se apoderou dela quando corriam para o carro do conde.
- Seu braço me rodeia a cintura.
Ele a olhou, com seus olhos azuis acusadores e algo peralta, e lhe deu um inesperado salto o coração.
- Certo. - Balançou a cabeça, aparentemente recuperando seu normal bom humor - Parece-se bastante a ela, sabe?
Julia ficou em silêncio enquanto ele a ajudava a subir os degraus do carro. Viria em caminho uma confissão?
- A ela?
- A minha irmã. Têm um dom para buscar problemas.
- Nunca em toda minha vida procurei problemas, Boscastle - disse ela, sorrindo pesarosa, e acrescentou: - Nunca foi necessário. Os problemas sempre conseguem me encontrar.
***
Heath se reclinou no assento, apoiando a cabeça nas almofadas e ficou a contemplar a rua empedrada pela janela. Era de esperar que seu chofer não se encontrasse com nenhum revoltoso. Sabendo já que Julia estava a salvo podia se dar ao luxo de analisar com mais lógica a situação. Brentford, o furtivo bastardo, deu um jeito de escapulir quando viu que ele se aproximava. Estava claro que o reconheceu, mesmo que nunca tivessem sido apresentados. Pelo visto, era um maldito covarde além de descarado.
Não tinha por que surpreender-se.
Era o barão Brentford, o bonito dândi que esteve a ponto de lançar sua irmã mais nova pela ladeira da desonra social. Embora, em realidade, Chloe não necessitava de ninguém para que a ajudasse nisso; ela mesma tinha forjado o caminho com seus enganos. Só tinha faltado enviar convites impressos a todos os solteiros de Londres. Se não tivesse acabado felizmente casada com o visconde Stratfield, os irmãos Boscastle teriam feito Brentford pagar.
O conde de Odham golpeou o teto com sua bengala e o carro se pôs em marcha. Hermia, que estava sentada frente a ele, acomodou-se
no assento, com a respiração um pouco agitada.
- O que veio fazer aqui, por certo, Odham? - perguntou, fungando, em um gesto de relutante gratidão.
- Pensei que poderiam necessitar de ajuda - respondeu o conde, balançando a cabeça. - Era certo que essa palestra acabaria em um desastre. Disse-lhe isso.
- Tomara alguém me tivesse dito isso - disse Heath, cruzando os braços.
Jamais tinha se visto metido em algo assim. Provavelmente no jornal do dia seguinte diriam algo sobre a revolta.
- Não havia nenhuma necessidade de vir, Odham - disse Hermia, embora não com muita convicção. - Boscastle é nosso guarda-costas.
Protegeu-me como protegeria um cavalheiro armado a uma rainha.
- Olhe o ovo que tem na manga - disse Odham. - Não se protegeu disso.
Heath captou o fugaz sorriso que passou pelo rosto de Julia. O
irritante foi que ele se sentiu tentado a corresponder a seu sorriso. Talvez ela achasse divertido que ele tivesse estado desesperado por encontrá-
la. Limpou a garganta.
- Odham, me faça o favor de dizer a seu chofer que passe para deixar-me em minha casa uma vez que deixemos às damas sãs e salvas.
- Não pode ir para casa esta noite - exclamou Hermia. - Pensamos em ir ao teatro, não é, Odham?
- Certamente - respondeu o conde e franziu o cenho. - E essa é uma diversão muito melhor para duas damas de coração terno como estas. Não te parece, Boscastle?
Heath fez uma inspiração ao sentir a inesperada pressão de uns dedos enluvados sobre o joelho. Fascinado, desceu os olhos e viu a mão de Julia retirando-se para sua saia. Um inoportuno calor lhe inundou
todo o corpo, tão desconcertante como uma chama aplicada à pele nua; sem sequer saber como aconteceu, sentiu vibrar o membro ereto sob o tecido da calça. Subiu os olhos para os dela, esperando que não delatassem seu cru desejo, esperando poder ocultar dela, se não dele.
Ela entreabriu os lábios, vacilante, ao ver seu olhar fixo em seus olhos. Tinha que fazê-la saber o perigo a que se expunha tocando-o.
Não percebia sua atração?
- Pensei - disse ela - bom, estava pensando que...
- Sim?
Era evidente que ela tinha adivinhado o que estava pensando ele.
Afinal na outra noite tinha reconhecido ante ela que a desejava, e ela já tinha uma ideia bastante clara de como o afetou no passado. Não deveria tocá-lo, sem saber como reagiria ele. O terrível era que ele tampouco sabia. Ela franziu o cenho, como se de repente se pusesse em guarda. Bom, estupendo. Não era isso o que desejava ele?
- Não tem por que nos acompanhar esta noite, sabe? - disse então ela em voz baixa. - Estarei muito bem com Hermia e Odham.
Capítulo Doze
Heath não tinha a menor intenção de permitir que Julia assistisse ao teatro sem ele, embora no fundo de seu coração não sabia se isso tinha mais a ver com seus sentimentos pessoais que com a proteção em interesse deo Russell. Inquietava-o horrivelmente o muito que desfrutava em sua companhia. Mas tendo começado esse jogo, jogaria até o final.
Devia isso a ela, mesmo que não tivesse claras as regras que iriam seguir. Nenhum dos dois era inocente, mas talvez o conhecimento não fosse uma vantagem. Gostava do desafio, certo, mas um desafio a sua inteligência, a seu engenho, e talvez inclusive a sua vida. O jogo no amor, pelo contrário, entranhava um risco muito diferente, mais potente que a necessidade sexual, mais perigoso; a luxúria a podia dominar, pagar o preço e inclusive elevar a aposta.
Esteve um bom momento na agradável solidão e escuridão de seu escritório. Se fosse alguém que gostasse de beber, se embebedaria, daria rédea solta a seus demônios e se deleitaria nesse inferno o tempo que lhe durasse a bebedeira.
Mas dada a situação, teria que combater esses demônios, e equilibrar seu secreto desejo por Julia com séria sobriedade. Pelo menos em sua casa tinha a paz para preparar-se para a batalha, para fortalecer-se contra a tentação.
Aconteceu que essa paz lhe durou aproximadamente dez segundos mais. Um forte golpe na porta, seguido por ruidosas vozes masculinas, advertiram-lhe que acabavam de chegar seus irmãos, Grayson e Drake.
A paz, bom, teria que deixá-la para depois. Primeiro estava a família.
Os dois irmãos se apoderaram do salão, enchendo-o com sua energia masculina, alegres comentários e brincadeiras altas.
O mais velho, Grayson Boscastle, marquês de Sedgecroft, instalou-se comodamente no sofá de brocado branco com toda sua arrogante elegância. Loiro, musculoso e sociável, casou-se há pouco e tinha prometido reformar seus maus costumes.
O outro irmão, tenente lorde Drake Boscastle, mais novo que Heath, parecia-se mais a ele na aparência e temperamento; alto, magro, de cabelo negro curto e feições angulosas, também tinha em comum com ele o talento para a espionagem e uma natureza muito reservada.
Além disso, tinha adquirido uma afeição às aventuras e às mulheres perigosas.
Drake se parecia com ele e ao mesmo tempo era diferente, elemento desconhecido na família.
Os três tinham sedutores olhos azuis e um caráter apaixonado, combinação que os fazia irresistíveis ao sexo oposto. O mais novo dos
irmãos, Devon, que não estava presente, era um malandro por direito próprio.
- A que devo a duvidosa honra desta visita? - perguntou Heath, apoiando as costas no aparador.
A firme boca de Drake se curvou em um sorriso.
- Correm muitos rumores a respeito de você, querido irmão. As mulheres da família nos enviaram para investigar.
Tais mulheres eram Jane Boscastle, a formosa e vivaz esposa de Grayson, e as irmãs deles, Emma e Chloe. A esta última, seu recente casamento com o visconde Stratfield já lhe tinham cortado as asas, era de esperar.
Um gesto de afetuosa travessura iluminou o belo rosto de Grayson.
- Diz-se na rua que você, nosso discreto e mais reservado irmão, quase se misturou em uma revolta de rua.
Heath ficou em silêncio.
- E que esteve implicada uma mulher - acrescentou Drake.
- Não há sempre uma mulher? - sorriu Grayson.
- Nas melhores situações - suspirou Drake.
Heath se afastou do aparador.
- Não investigaram bem, idiotas inúteis, ou saberiam que eram duas as mulheres. - Fez uma pausa para esboçar um sorriso forçado - E
uma dela é nossa velha amiga Julia Hepworth.
Drake o olhou brevemente nos olhos, lhe indicando com seu olhar que sabia tudo e não o tinha traído. Os dois compartilhavam o gosto por levar em segredo seus assuntos pessoais.
- Nossa querida Julia - disse - formosa e ruiva, se me lembro bem.
Grayson desceu os braços.
- A mulher que atirou em você? Agora o leva a revoltas de rua?
- Bom, receio que o assunto é algo mais complicado. - Olhou novamente para Drake. - Como certo, acredito que deveria ir visitá-la,
Drake, e lhe fazer companhia uma ou duas horas, até que eu me encontre com ela esta noite.
Drake esticou os punhos das mangas de seu traje a medida.
- Feito. Nunca me nego a oportunidade de visitar uma mulher formosa, embora seja como substituto.
- Como eu - disse Heath, sarcástico.
- Feito? - disse Grayson, confuso. - E assim como assim? -
Iluminou-se seu rosto. - Nisto há algo mais, e Drake sabe. Quando vou aprender? Sempre estão metidos em intrigas vocês dois. Deus santo, não me diga que essa mulher que atirou em você é uma espiã.
Heath jogou atrás a cabeça e soltou uma gargalhada.
- Não exatamente. Faço de escolta de Julia a serviço de Althorne, que é um espião. Poderíamos ter perdido a guerra se mulheres como Julia e sua mulher tivessem trabalhado contra nós.
- Ah, por certo, isso me recorda - disse Grayson, sem fazer mais perguntas, mesmo que fosse possível que suspeitasse que havia algo mais nessa história - virá ao jantar de Jane esta noite?
- Poderia ficar para outra noite? Esta noite não posso; vou acompanhar Julia e a sua tia ao teatro. Com o conde de Odham.
- O desemparelhado Odham? - perguntou Grayson, desconfiado -
Continua esperneando esse velho libertino?
Heath assentiu, divertido.
- E me parece que poderíamos aprender uma ou duas coisas com ele.
Drake se levantou da poltrona.
- O que ou a quem vai investigar, por certo? - perguntou.
- O que sabemos do barão Brentford?
Drake franziu o cenho.
- Muito pouco, se for o mesmo homem que desonrou Chloe. Já é hora de lançarmos um olhar a seu passado.
***
Dois minutos depois, Drake Boscastle saiu da elegante casa de solteiro e pegou uma carruagem de aluguel para ir cumprir sua promessa, deixando sozinhos Heath e Grayson.
- O que fez Brentford agora? - perguntou Grayson, com a voz cheia de aborrecimento.
- Mostrou-se muito amistoso com Julia na sala de conferências, há um momento.
Grayson esticou as pernas.
- Tinha lançado o olho à Jane, antes de sua frustrada tentativa de seduzir Chloe. Jane, por sorte, estava saindo comigo e lhe ignorou. O
resto é história.
- Naturalmente - disse Heath, sorrindo.
- Assim, conte a seu irmão mais velho e mais sábio - continuou Grayson, juntando as mãos sobre seu plano ventre - o que é essa repentina dedicação a essa mulher que atirou em seu ombro? Solte-o.
- Refere-se a Julia?
- A não ser que outra mulher tenha atirado em você. Confesse, o que é ela para você?
Uma obsessão, uma necessidade, um desejo tão enraizado em seu passado e seu presente que não podia eliminá-la sem arrancar a essência do que ele era.
- Suponho que é um dever.
- Estranha maneira de expressar - disse Grayson, cético.
- Não, é, de verdade. Encarregaram-me de protegê-la.
- Explique.
E Heath explicou, agradecendo que Grayson o escutasse sem começar a rir nem fazer comentários sarcásticos; agradecido por formar parte do apaixonado clã Boscastle e poder confiar em sua lealdade coletiva, mesmo que tivesse passado a metade de sua vida tirando de
problemas a seus irmãos e defendendo a esse lastimoso conjunto.
Era ele o que estava em dificuldades nesse momento, e em um problema da pior classe; um assunto do coração, o tipo de perigoso enredo do qual até esse momento tinha conseguido escapar.
- Peço-lhe conselho, Grayson?
- Se me pedir, será uma primícia. Na realidade, sempre foi o contrário. Você, Heath, é o irmão ao que recorremos todos em busca de orientação e fria lógica.
- Acredito que nisto estou tão metido e encalacrado que não posso me aconselhar.
- Heath Boscastle, o espião consumado e sem coração, procurando o conselho de um dos principais libertinos reformado de Londres -
murmurou Grayson.
- Bom, quem melhor para pedir conselho? - endireitou-se e franziu o cenho ao perceber. - E diz que Julia está comprometida com esse desavergonhado bastardo?
Heath o olhou desconcertado. Supunha que a indiscrição sexual de Russell fosse um segredo bem guardado. Ele não tinha comentado com ninguém.
- Sir Russell Althorne? Grayson, estamos falando do mesmo homem?
Grayson soltou um grunhido depreciativo.
- Nunca lhe disse, e duvido que Althorne saiba, mas acontece que sou locador. Não quero que isto chegue a conhecimento público, isso sim. Cobrar aluguéis me faz parecer mercenário, embora esse dinheiro nunca chega a minhas mãos.
- E isso no que o faz um desavergonhado bastardo?
- Está procurando uma casa confortável perto do clube para instalar aí sua amante.
- Perto do clube?
- Bom, tem lógica. Passa pelo clube para beber uma taça de conhaque e logo entra em uma casa um pouco mais à frente em busca de um estímulo de outro tipo.
Oprimiu o peito de Heath com uma desagradável sensação que vagamente reconheceu como ressentimento. Deveria saber que a promessa de Russell de fidelidade futura a Julia era uma mentira.
Sentia-se traído, mas doía mais ainda a traição a Julia. Se Grayson sabia, só era questão de tempo que ela descobrisse o engano.
- Alegra-me ter posto fim a esse tipo de vida - acrescentou Grayson passado um momento. - Você nunca foi assim. Sempre admirei sua discrição. É um pouco mais difícil, mas no final vale a pena.
- Suponho que lady Harrington encomendou todos os tipos de móveis e adornos que existem sob o sol para decorar seu ninho de amor.
Grayson o olhou surpreso.
- Lady Harrington? O que tem a ver ela com isso?
- É a amante de Russell.
- Não, não é ela.
- É, sim. Surpreendi-os com as mãos na.... bom, já tinha passado, na realidade.
- Pode tê-los surpreendido juntos na escada cabeça abaixo, mas Lucy não é a mulher que Russell instalou em minha propriedade. Esta mulher é uma voluptuosa cantora de ópera, e é muito evidente que está grávida. Também tem uns seios incrivelmente grandes, e não é que eu me fixe nessas coisas.
- Uma cantora de ópera grávida? - disse Heath em tom cético, mesmo que estivesse farto de inventar desculpas a Russell - E não é possível que isso seja seu pagamento, sua maneira de lhe agradecer pelos serviços passados?
- Não há nada de passado nesse romance segundo o que me
contaram -disse Grayson, arqueando uma sobrancelha. - A cantora grávida explicou a meu agente que ela e Russell pensam dar muito bom uso a seu ninho quando ele voltar de Paris.
Outra amante, outra infidelidade, outra mentira, pensou Heath. E
agora chegaria um filho. Que confusão de natureza mais repugnante. Ele estava seguro de que Julia ignorava tudo. Teria atirado em Russell em seu desleal coração se soubesse. Ele sentia vontade de atirar nele.
- Por que não me disse isto antes? - perguntou, ficando mais sombrio.
- Pensei que estava acima das fofocas.
- Estou, mas...
- Mas não acima de Julia? - terminou Grayson, seus olhos brilhantes de diabólica compreensão - Bom Deus, isto é algo muito repentino.
Heath apertou a mandíbula. Ele não chamaria repentino seis anos, mas claro, Grayson não tinha maneira saber isso.
- Quero-a há um tempo - reconheceu depois de um longo silencio.
- Dê-me um momento para me recuperar da surpresa. Já está.
Venha. O que fazemos agora?
Heath se levantou da poltrona, inquieto, consciente de que só tinha uma ou duas horas para fazer averiguações a respeito de Brentford.
- O que acha que devo fazer?
Grayson esboçou um sorriso de sátiro.
- Sei exatamente o que deve fazer. Acontece que este é meu campo de conhecimentos técnicos.
- E?
- Seduza-a. É muito simples.
- Não há nada simples em minha relação com Julia.
- Haveria se a reduzisse ao mais básico - disse Grayson, e exalou um longo suspiro de prazer.
- Nos deu bons resultados a Jane e a mim. Seduzi a essa mulher até deixá-la sem sentido antes de me casar com ela. - Ficou em silêncio um momento. - Ela me seduziu de uma maneira muito mais sutil. Cada dia me convenço mais de que não poderia viver sem ela.
Essa alusão de Grayson a sua mulher e ao jogo de sedução em que se encetaram no período anterior a seu matrimônio fez Heath pensar. Grayson e Jane foram feitos um para o outro. Todo mundo sabia.
E, entretanto o caminho de seu verdadeiro amor foi muito retorcido.
- A deseja - disse Grayson, como uma afirmação de fato.
Heath foi pegar uma carta sem abrir que estava sobre a escrivaninha. Um sorrisinho brincava nas comissuras de sua boca.
- Ela o deseja - continuou Grayson. - Você a quer e ela o quer. Isso é uma tortura mútua.
- Isto...
- A que diabo espera? Leve-a para a cama. Faça-a sua.
- Há o assunto de seu noivo. É meu superior e amigo. Salvou-me a vida.
- O bastardo desavergonhado? - Grayson fez estalar seus longos e elegantes dedos - Cobrou-o enviando você ao perigo várias vezes e levando ele os aplausos. Além disso, um Boscastle não reconhece nenhum competidor. Não seja tão condenadamente decente ou ela irá escapar.
Heath virou a carta.
- Não tenho o menor desejo de lhe fazer mal.
- Mal? Santo céu. Arquitete uma estratégia infalível. A sedução é um jogo prazeroso, não uma guerra de morte.
- Um jogo prazeroso. Uma estratégia.
A ele nunca lhe teria ocorrido planejar um romance. Gostava bastante da ideia. Por que não aplicar sua inteligência a conquistar à mulher que desejava?
Grayson se espreguiçou.
- Sempre estarei disposto a ajudá-lo, Heath. Tendo saído do jogo do amor como um espírito livre, por assim dizer, pelo menos posso lhe contar meus segredos. E lhe desejo tanta felicidade como a que me concedeu .
***
O jogo do amor, pensou Heath. O jogo da sedução. Estranhava não ter considerado nunca o romance nem o galanteio dessa maneira tão incitante. Talvez se devesse a que nunca lhe tinha dado importância. E
não era em realidade o desafio mais sedutor de todos? Sucumbir, absorver-se em uma mulher só para resultar vencedor? Era evidente que Russell tinha a intenção de continuar traindo-a; nadar e guardar a roupa.
As regras tinham mudado antes que ele as assimilasse. Até onde levaria seu papel de protetor? Incluía defendê-la da infidelidade de Russell?
Não sabia bem a quem devia lealdade. A Russell? A Julia? A si mesmo? Ou esse exame de consciência não era outra coisa que um exercício de autoengano? Simplesmente procurava um pretexto para obter o que desejava?
Em suas anteriores aventuras românticas tinha sido tolamente arrogante, dando como certo às mulheres que o amavam, acreditando-se secretamente por cima da rede de enganos e desejos vãos que danificam a vida. Com compassiva diversão tinha observado seus irmãos tentar conquistar mulheres como uma manada de animais, como desavergonhados sedutores. Quantas vezes riu dos amigos presos nas garras do amor quando se lamentavam de suas penas no clube.
Ele tinha sido um lobo solitário, que preferia continuar sem ataduras enquanto não encontrasse a mulher que realmente desejava. O
matrimônio de Julia foi um obstáculo, e o momento era inoportuno. A guerra se interpôs entre eles, como também o impetuoso engano que cometeram em sua juventude. Depois Russell lhe obstruiu o caminho,
erigindo os espinhos da amizade e o dever. Só podia culpar a si mesmo e por ter perdido a oportunidade com ela. Mas não estava disposto a cometer o mesmo engano outra vez. Não voltaria a aprender a conformar-se perdendo-a.
Russell tinha quebrantado a regra mais básica, traindo-o, seu amigo, e a ela, sua noiva. Tinha mentido com toda tranquilidade aos dois, e estava claro que continuaria fazendo-o. Seria infiel a sua esposa ao mesmo tempo que subia ao topo do castelo e convertia à princesa traída em sua rainha. Esse comportamento podia ser comum na alta sociedade, mas não na família Boscastle. A sedução era um traço característico de sua família; a traição não.
- O herói de Londres - exclamou, arrojando desdenhoso a carta sem abrir sobre a escrivaninha. - O rei do castelo, não, mas bem o canalha do castelo.
Ouviu-se um ligeiro ruído de passos no vestíbulo e um movimento na porta. Uma imensa sombra caiu sobre o macio tapete oriental, escurecendo as plantas em um tom vermelho sangue.
- Vai ficar em casa esta noite, milorde? - entoou uma voz rouca e sonora, como uma badalada de funeral.
Heath se voltou para o imponente personagem que ocupava todo o vão da porta. Hamm tinha sido um soldado de sua brigada, um bom espadachim e um amigo leal que batalhou na cavalaria a seu lado.
Juntos tinham derrubado sua boa cota de dragões franceses no meio do gelo e névoa. Hamm tinha uma aparência feroz que continuava assustando as empregadas, com às quais gracejava e protegia a sua torpe maneira.
- Na realidade, Hamm, vou ao teatro.
O gigantesco empregado entrou na sala olhando dissimuladamente a seu amo de cima abaixo. Seu olhar parou no ovo que já secara e formava uma suja crosta em sua manga.
- Vai precisar trocar de roupa, milorde?
- Sim, e barbear-me. Suponho que sir Russell não enviou nenhuma mensagem de Dover?
- Não, milorde. No Departamento de Guerra prometeram que lhe avisariam se surgisse a necessidade.
Heath olhou nos olhos do patrício de Yorkshire de idade madura.
Foi ele, junto com Russell, quem o tirou do pequeno convento português onde acharam refúgio quando escapou de Auclair depois de ter sofrido as torturas que felizmente tinha esquecido; seu corpo levava as cicatrizes, mas sua mente tinha encontrado um agradável esquecimento.
Hamm tinha perdido seu pai e seus irmãos na guerra. Nunca falava deles, mas ele sabia que os chorava a sua calada maneira.
- Ainda é muito cedo - disse. - Suponho que tem coisas mais importantes que fazer que enviar cartas aqui.
Hamm assentiu, com uma expressão estranhamente reservada.
Passado um momento disse:
- Sir Russell é capaz de arrumar sozinho, milorde. Sempre o foi.
Capítulo Treze
Hermia entrou no quarto de Julia sem bater, resplandecente pelos brilhantes reflexos em seu vestido de crepe dourado escuro ao refletir a luz das velas.
- Santo céu, Julia, deixe esse bloco de papel de desenho. Inclusive não se vestiu e temos que partir dentro de uns minutos.
Julia nem sequer levantou os olhos; acentuou-se seu sobrecenho de aborrecimento ao olhar o desenho que tinha sobre os joelhos levantados.
- Mmm?
- É criminoso - disse Hermia, deixando cair seu volumoso traseiro na cama.
Julia exalou um suspiro.
- Que não estou adequadamente vestida ou que entrou sem bater?
- Nenhuma das duas coisas. Referia-me a Odham, a sua desavergonhada perseguição a uma mulher de minha idade.
Dizendo isso se inclinou para o lado a olhar em cima dos seus joelhos tentando ver o desenho.
Julia o tampou com as duas mãos.
- Eu o acho bastante doce.
- Doce. O velho descarado. O que está desenhando tão em segredo, Julia? Parece-me que é um homem nu?
- Um homem nu? Ah, vamos.
- Um Heath Boscastle nu?
- Francamente, Hermia... A única coisa que posso dizer é graças a Deus que se foi a sua casa por uma hora. Por fim posso recuperar o fôlego.
Hermia apertou os lábios ao ver Julia inclinar-se e com supremo cuidado e guardar o bloco de papel na arca, com dobradiças de latão, ao pé da cama.
- Poderia interpretar em vários sentidos essa afirmação - disse.
Julia decidiu que essa noite, quando voltasse, teria que procurar outro esconderijo para seu desenho. Não confiava nada na natureza bisbilhoteira de Hermia. Nem de sua curiosidade.
Desceu da cama e alisou as dobras do vestido de noite de reluzente seda branco marfim.
- Viu meu bracelete de safiras?
- Não mude de assunto, querida minha. Sinto-me mais segura com Heath aqui, Julia. Protegida.
- Pois, eu não. - Sacudiu o xale de cachemira com franjas até tirá-lo de debaixo do traseiro de Hermia. - Me sinto muito em perigo, se quer saber.
Hermia arqueou as sobrancelhas, desconfiada.
- Em perigo? Com Boscastle? Mataria a qualquer um que se aproximasse. A não ser que se refira a outro tipo de perigo.
- Condenação - resmungou Julia - onde está esse bracelete?
- Na mesa, aí, está bem a frente. Como a põe em perigo Heath, Julia?
Julia fechou o fecho do bracelete. Em silêncio, pegou da cama um par de luvas de pelica longas até o cotovelo, e começou colocar uma.
- Não é uma situação cômoda, para nenhum dos dois.
Os olhos verdes claros de Hermia brilharam de compreensão.
- Eu diria que ele se vê mais que cômodo com você.
Julia olhou a outra luva como se não recordasse como colocá-la.
- Eu acredito que Russell chantageou Heath para que me protegesse.
- Chantageou-o? Quer dizer que Heath tem um passado do qual lhe pode acusar?
- Não quero dizer isso. Simplesmente que Heath é muito honrado para seu próprio bem.
E Russell não sabia o que fazia ao pô-los juntos.
- Como pode ser um homem muito honrado?
Julia teve dificuldade para colocar os dedos na luva.
- Tomara você pudesse convencê-lo de que já não é necessário que continue aqui.
- Não farei nada disso - replicou Hermia. - Desfruto tendo-o aqui, Julia, e você também. Cheguei a considerá-lo nosso Apolo pessoal. Um pouco pelo lado diabólico, talvez, mas, que mulher poderia queixar-se?
Dizendo isso Hermia se levantou e foi esperá-la na porta.
Julia agitou a cabeça, aborrecida.
- Nosso Apolo pessoal.
- Não o acha insuportavelmente bonito?
Julia a fez sair ao corredor na frente dela.
- Não se trata disso.
Embora isso sim fosse grande parte de seu problema. Bonito, irresistível sexualmente, amável e cortês quando correspondia.
Chateava-a descobrir que na sua idade, depois de toda sua experiência, pudesse sentir tentação.
Hermia parou no alto da escada, com os seios trêmulos sob seu recarregado colar de pérolas.
- Um deus na mão vale por dois no Olimpo. Ficarei muitíssimo chateada se o despedir como seu protetor.
***
Julia acabava de chegar ao pé da escada quando viu um impressionante homem moreno contemplando as tapeçarias de uma parede do vestíbulo; ele virou sobre seus calcanhares ao ouvi-la. Ela parou, com a mão enluvada sobre a suave borda do corrimão de mogno, e correspondeu a seu olhar em silêncio.
Por toda ela passou um estremecimento de agradável surpresa, seguido quase imediatamente por uma pontada de desilusão. A primeira vista era muito fácil confundi-lo com Heath. Era bonito com o mesmo cabelo negro e abundante, por sua natural elegância e essa pasmosa virilidade que chamava tão poderosamente a atenção; os ombros fortes e o corpo enganosamente magro no qual lhe caía tão bem o traje de noite.
E seus olhos, esses olhos Boscastle azul escuro capaz de avaliar e devorar uma mulher com uma discreta avidez que lhe tirava o fôlego.
Sentiu-se escrutinada por um olhar perito, adulador e absolutamente insultante.
- Olá, Julia - disse ele, impressionando-a com sua voz cálida, varonil e agradavelmente desconcertante. - Sou Drake, o irmão de Heath. Lembra-se de mim?
- É claro. - Céus, como se fosse possível esquecê-lo - Quanto me
alegra vê-lo depois de tanto tempo. Parece... bem. - Não podia lhe dizer que parecia quase tão indecentemente atraente como seu irmão. - Bem.
Sim, muito bem.
Novamente ele percorreu com olhar apreciativo sua figura vestida de seda.
- A senhora também. Muito, muito bem.
Ela riu. Essa imensa sensualidade travessa que brincava em seus olhos tinha que tornar loucas às mulheres. Sim, se parecia com Heath, embora as feições de seu rosto eram um pouco mais duras, os ângulos mais largos, sua atração mais rude que refinada. Drake entrava decididamente na categoria de malandro perigoso mas muito, muito desejável. Não conseguia imaginar como seria criar-se nessa família de homens indômitos. Um só Boscastle bastava para mantê-la em estado de vigilância.
- Vai ser você meu carcereiro esta noite?
- Isso é evidente, não? - disse ele olhando-a nos olhos sorridente. -
Ah, e tinha a esperança de passar por seu acompanhante.
Ela exalou um suspiro. Seu instinto lhe dizia que podia confiar nele.
- Seu irmão não se separa de meu lado me jogando seu fôlego no pescoço como um dragão. Jamais baixa a guarda, juro. Tem olhos na nuca e vê através das portas.
- Esse é Heath - disse ele, rindo apreciativo. - A esfinge, o chamamos. Não existe ninguém em toda a Inglaterra que se compare com esse hábil e inteligente demônio.
- Já, isso sabia - disse ela, desviando os olhos, para não delatar sua culpa.
Sorriu-lhe como se já fossem aliados; tinham em comum a seu enigmático irmão.
- Sempre pode atirar nele outra vez se ficar insuportável.
- Nunca conseguirei esquecer isso.
Sorriu-lhe com ar de cumplicidade e lhe pegou o braço, dobrando sua forte mão sobre a dela.
- E para que quer esquecê-lo? - perguntou com franca aprovação. -
Eu em seu lugar sentiria orgulho. Todos desejamos atirar nele em uma ou outra ocasião.
Capítulo Quatorze
Heath entrou sigiloso no camarote e ficou atrás, sem ser visto, adaptando os olhos à penumbra. Da plateia subiam os aromas de cerveja derramada, laranjas meio comidas e a cera de velas, viciando o ar. Vários empregados andavam por toda parte, e lhe havia custado chegar aos camarotes de cima. Aparentemente, tinha calculado bem o momento de sua chegada; as cortinas de veludo verde se fechariam a qualquer momento.
A peça tinha terminado, a nova atriz irlandesa, senhorita O'Neill, tinha causado sensação, e o público a tinha aplaudido enlouquecido.
Pelo contrário nos camarotes vizinhos que conseguia ver continuavam
representando-se
dramas
mais
interessantes,
apresentações em voz baixa, paqueras por cima de leques, convites sussurrados à sedução.
Franziu o cenho ao olhar às pessoas ainda sentadas na primeira fila de assentos do camarote, que ainda não tinham detectado sua presença. O conde de Odham estava imerso em uma conversa com Hermia. A cabeça de Julia, esse maravilhoso cabelo castanho avermelhado preso em um coque frouxo, brilhava à luz das velas, mas seu curvilíneo corpo estava oculto por um homem que estava muito perto dela, quase inclinado por cima dela.
Quem podia ser esse? Pensou, endireitando-se.
Não era Drake, que estava sentado do outro lado dela, olhando por seu binóculo para o camarote da frente; a uma mulher bonita, bem podia supor. Bom, pelo menos não partiu de seu lado deixando-a sozinha com
esse admirador. Aproximou-se mais, sem poder identificar o rosto do homem. Nisso o homem virou a cabeça; lhe escureceram os olhos ao reconhecê-lo.
O acompanhante de Julia era o mesmo jovem de aspecto romântico e veemente que a resgatou durante a revolta na rua de umas horas atrás. O barão Brentford. O homem que beijou Chloe em público, desonrando-a.
Poderia ser uma coincidência?
Ele não era dado a enfurecer-se com facilidade; tampouco a precipitar-se em tirar conclusões. Não era algo extraordinário conhecer um aristocrata no teatro. Certamente em seu breve encontro com ele depois da palestra, Julia não lhe disse que estava comprometida em matrimônio com Russell.
Talvez lhe dissesse que essa noite estaria no teatro.
Esticou-se ao ver o repentino movimento. Em suas precipitadas averiguações sobre o passado de Brentford quando vinha de caminho ao teatro não obteve nenhuma informação útil. Brentford era um dândi comodista, um jogador, um inútil que estava esbanjando rapidamente sua herança. A linhagem de sua família era autêntica, embora não impressionante.
Viu subir o leque de Julia e descer sobre o pulso de Brentford. Fora uma coincidência ou não esse encontro, um golpe com o leque sobre a mão de um homem tinha um significado universal. Ou as atenções de Brentford se desviaram para onde não eram convidadas, ou Julia estava paquerando com ele. Fosse um ou o outro, ele se encarregaria de pôr fim.
- Boa noite a todos - disse, com forçada cordialidade, lançando um hostil olhar a Brentford e depois olhou para Julia.
Ela levantou os olhos e os arregalou surpresa. E acolhedora, observou ele; ela não se incomodou em dissimular o prazer que lhe
produzia sua chegada. A satisfação lhe suavizou um tanto a raiva. O
desejo que sentia por ela arrasou por um momento com todos seus demais pensamentos. Fez uma inspiração profunda; isso não estava bem. Não podia permitir-se perder de vista sua finalidade simplesmente porque ela o olhava de certa maneira.
Olhou para Drake e lhe disse:
- Tenha a amabilidade de acompanhar a todos à carruagem. O
amigo de Julia e eu vamos ficar um momento e conversar a sós.
Captando a situação, Odham assentiu e se inclinou para ajudar Hermia a levantar do assento. Drake estendeu a mão para Julia.
Quando passou junto a ele, ela o olhou com encantadora resignação e lhe disse em um sussurro:
- Só conversar. É bastante inofensivo.
- Sim? - disse Heath, sorrindo tenso.
Brentford endireitou os ombros como se acabasse de ouvir sua sentença de morte; seus patéticos olhos castanhos seguiram Julia quando saía do camarote.
- Voltarei a vê-la? - gritou-lhe, aparentemente sem perceber que isso era ultrapassar o limite.
Heath o interrompeu limpando a garganta.
- Agradeço sua cortesia com ela à saída do salão de conferências, Brentford, mas agora estou eu a cargo. A dama não está livre.
- Bom, sim, mas quis dizer se poderia voltar a vê-la.
- Está comprometida em matrimônio - disse Heath entre dentes.
Brentford o olhou horrorizado.
- Em matrimônio? Com você?
- Com meu amigo.
- Ah, graças a Deus - disse Brentford, fechando os olhos com tanto alívio que Heath quase sentiu compaixão por ele.
- É patético, Brentford. Deveria tê-lo enviado ao reino do além
túmulo por ter beijado minha irmã no parque nesse dia. Na realidade, se não tivesse suspeitado que Chloe era tão culpada como você do incidente, não estaria aqui esta noite.
Brentford levantou as mãos em defesa própria.
- Teria me casado com sua irmã se Sedgecroft tivesse deixado me aproximar da casa para lhe pedir a mão. Não me atrevi nem a pôr a cara em sua porta.
Heath lhe dirigiu um olhar frio, implacável. Caía-lhe mau Brentford, mas havia certa verdade no que dizia. De todo modo, era uma espécie de idiota lunático que se apaixonava por todas as mulheres bonitas que conhecia. Ele precisava que lhe abaixassem as fumaças. E era absolutamente necessário que se mantivesse afastado de Julia. Esse ponto deixaria muito claro.
- Em todo caso, já é tarde para que lhe proponha matrimônio.
Chloe está muito feliz casada com um homem que assassinaria a qualquer que a olhasse duas vezes.
Brentford assentiu, com expressão derrotada.
- Dominic Breckland. Sim, sei. Afortunado diabo.
- Perigoso diabo. Como é o noivo de Julia, sir Russell Althorne.
Conhece-o, suponho?
O barão se encolheu e retrocedeu como um escolar assustado.
- Sim. Todos são perigosos, não?
Heath olhou ao redor fazendo seus cálculos. Drake e Julia não teriam conseguido ainda abrir caminho até a rua em meio da multidão que enchia o vestíbulo. Repentinamente estava impaciente para estar com ela a sós. Sua conversa com Grayson lhe tinha servido para cristalizar o que sentia por ela. Vê-la com Brentford fez aflorar seus mais profundos instintos. Tinha toda a intenção de fazer algo, avançar uns passos.
Havendo se enfrentado com a crua verdade de seu desejo, não
haveria marcha atrás. Se não fizesse nada para conquistá-la, ela se casaria com Russell e a perderia para sempre. Durante anos tinha negado o que ela significava para ele. Já não continuaria negando sua necessidade por ela. Tampouco permitiria não tê-la. Nesse momento nada importava mais que mantê-la segura, a salvo. E para ele.
O barão passeou seu triste olhar pelo camarote desocupado.
- Acho que amanhã em minha aula particular de esgrima pedirei a meu instrutor que me atravesse o coração.
Heath balançou a cabeça. Já estava farto da lastimosa atitude de Brentford.
- Se não dominar seus impulsos amorosos com lady Whitby, não será preciso pedir que o matem. Eu o estarei esperando em sua porta, prometo-lhe.
***
Heath não entendia por que foi tão brando com Brentford; o maldito idiota merecia um bom susto de uma vez por todas; o idiota não percebia a sorte que tinha ao ter escapado da ira do clã Boscastle, não uma, mas duas vezes. Ele não se considerava impetuoso. Se tinha que enfrentar o barão seria em um campo à alvorada, não em um lugar público. Mas no momento a sedução o atraía mais que a batalha.
Abriu caminho entre a multidão de assistentes que abarrotavam o iluminado vestíbulo, escapando dos amigos que o chamavam ou detinham e das damas que o olhavam esperançosas ao reconhecê-lo.
Não tinha tempo para eles. Não lhe interessavam seus convites nem pensar em política ou em festas.
Um só objetivo ardia em sua mente; um desejo, um destino.
Divisou-a perto da porta, com Drake a um lado como guarda e Odham e Hermia do outro, como sentinelas. De repente Julia ergueu os olhos e sorriu ao vê-lo. Seus ombros semidesnudo resplandeciam à luz das velas. Estava tão formosa essa noite que não podia deixar de olhá-
la.
Devorou-o uma onda de fogo; a percepção da ardente chama branca dela o eletrizou, catapultando-o à ação. Fez-lhe um gesto convidando-o a aproximar-se, com seus olhos cinza quentes e sinceros, os de uma mulher que não tinha nenhum motivo para dedicar-se a jogos de paquera. Uma mulher a quem desejava tanto que o ardor do desejo parecia lhe queimar os ossos. Quanto mais a via, mais a desejava. Ou talvez estivesse em uma idade em que já não queria esperar que viesse o que desejava. Sentia ferver o sangue de espera e retumbar os sentidos de excitação. Saboreou a sensação e a deixou estender-se por todo ele.
Correspondeu-lhe o sorriso e deu a volta ao redor de um grupo de pessoas. De repente parou, paralisado por um calafrio de apreensão, de uma advertência, de uma percepção muito diferente a de sua incendiária atração por Julia.
Era a sensação de que o estavam observando; a inquietação lhe esticou os nervos. Olhou ao redor, escrutinando atentamente o mar de rostos inofensivos que o rodeavam.
Tentou discernir de onde provinha essa sensação. Mas nessa multidão de pessoas excessivamente perfumadas era impossível determinar quem o tinha escolhido para observá-lo dessa maneira.
Sentiu um suave contato no braço. Virou-se bruscamente.
- Quem...?
- O que se passa, Heath? - perguntou Julia, sorrindo estranhando. -
Seu rosto dá a impressão de que um fantasma acaba de passar por cima de sua tumba.
Ele voltou a olhar mais à frente, por cima do ombro dela, fechando protetoramente a mão na dela. Não viu nada que saísse do normal; não havia nenhuma sombra ameaçadora, nenhum motivo para ter reagido assim.
De todo modo, seu primeiro impulso era levá-la de volta a casa, pô-
la a salvo. Estaria em perigo? Do que? De quem? Não perdeu tempo em pensar que seu desejo de protegê-la de um perigo invisível poderia ser irracional; o impulso era muito forte, não podia ignorá-lo, pois, embora não fossem infalíveis, seus instintos raramente se equivocavam. Não podia correr nenhum risco tratando-se dela. Uma voz amistosa disse seu nome atrás dele. Ignorou.
Agarrando-lhe o braço a levou rapidamente fora do teatro, onde se encontraram com Odham e Hermia, que os estavam esperando na calçada. Julia se deixou levar sem lhe fazer nenhuma pergunta, mas quando a carruagem parou junto a eles, virou-se a olhá-lo e lhe disse em voz baixa, perplexa:
- Aonde vamos com tanta pressa? Suponho que há um motivo para sair com tanta precipitação.
Ele subiu a mão por seu braço até o cotovelo e dali a deslizou pelas costas, à altura da cintura. O perigo que percebeu se dissipou, o que lhe permitia concentrar a atenção em coisas mais prazerosas.
Abaixou um pouco a mão e colocou a palma aberta na firme elevação de seu traseiro. Ela soltou uma inspiração. Ele a aproximou mais dele.
Esteve um instante simplesmente desfrutando desse contato, do sensual atordoamento de sua atração. Julia tinha curvas voluptuosas, firmes e generosas; era uma mulher feita para excitar, para responder a qualquer fantasia. Excitava-o imaginá-la movendo-se debaixo ou em cima dele.
Nesses últimos anos tinha aprendido muitíssimo sobre dar prazer a uma mulher, e sobre o que dava prazer a ele.
Daria prazer a ela na cama, e ela lhe daria prazer também. Inspirou profundamente para aclamar os batimentos de seu coração. A fragrância de seu cabelo lhe atormentava os sentidos.
De repente ela se virou e subiu lentamente os olhos até ele. Seu olhar lhe disse que era consciente do atrevido contato de sua mão. Seu
fugaz sorriso não foi de repreensão, mas uma pergunta a respeito de suas intenções.
- Está me tocando - disse em voz baixa.
Ele pressionou mais a palma em seu traseiro.
- Sim.
Ela pareceu um pouco desconcertada, talvez se perguntando por que ele saiu de seu papel de incondicional protetor em público. Com as pontas dos dedos lhe acariciou o centro da coluna na curva da cintura.
Observou que ela não se movia para afastar-se. Estupendo, pensou, sorrindo.
Naturalmente, não podia lhe dizer que a traição de Russell o tinha feito mudar a estratégia. Não podia dizer nessa fase inicial do jogo. Não era necessário. Melhor deixá-la supor que seu malicioso sangue Boscastle estava começando a manifestar-se, a ferver a fogo lento. Sua intenção era conquistá-la limpa e honestamente, mas com uma liberal revisão das velhas regras. Protegê-la seria sua principal preocupação.
Sem esquecer isso, daria carta branca no campo de jogo. Suas diretrizes para seduzi-la eram fluídas e flexíveis, sujeitas a troca em qualquer momento.
Seria a conquista mais prazerosa que teria feito em toda sua vida, e justificava qualquer ardil que tivesse que empregar.
Hermia tossiu forte atrás deles. Reprimindo a risada, Heath tirou a contra gosto a mão. Tocar Julia estimulava todos os sentidos; poderia passar horas e horas acariciando seu formoso corpo.
- Encontra-se bem? - perguntou-lhe ela, com a voz rouca pela curiosidade. - Brigou com Brentford?
- Não deve voltar a incomodá-la. Acredito que deixei muito claro.
Depois que ela subiu à carruagem ele subiu e se sentou à frente, ao lado de Odham. Sentiu o corpo pesado ao observá-la na penumbra.
Só olhá-la, ouvir sua voz, excitava-o.
Julia olhou um botão da luva que tinha se soltado e o abotoou.
- Não há nenhuma necessidade de me rondar como uma babá nervosa. Dá a impressão de que sem que eu perceba vai me pôr sobre seus joelhos para me surrar.
Ele passou o dedo pela cicatriz de seu lábio superior.
- Não me tente.
Ela se moveu para a beirada do assento, afastando-se da tenaz vigilância de Hermia.
- Como se pudesse - sussurrou.
- Como se não merecesse isso.
- Pode ser que mereça - disse ela, com os olhos brilhantes.
- Seu marido a surrava? - perguntou-lhe, sorrindo desafiante.
- Não teria se atrevido.
- Não, claro, depois que lhe deu essa pistola.
- Tem que saber que nunca atirei nele.
- Sabia que sorte tinha? - brincou ele.
E o dizia em mais de um sentido.
- Acredito que foi bastante feliz - disse ela passado um longo silencio.
Talvez isso significasse que era ela quem dominava no matrimônio.
Amou muito a seu marido? Que tipo de homem era quem conquistou seu coração? Russell se pareceria com ele em algo?
Antes que pudesse lhe fazer outra pergunta, Drake fez sua inoportuna aparição e de um salto e assobiando colocou seu musculoso corpo dentro da carruagem. Tinha o cabelo negro coberto de gotas da ligeira chuva que tinha começado a cair.
- Boa noite a todos - disse, com sua natural simpatia. - Espero que não tenham esperado muito tempo. Encontrei um amigo. Vamos a um baile depois de deixar sua agradável companhia. Isso, se não necessitarem de meus serviços de escolta.
- Não, não precisaremos - disse Julia imediatamente com voz firme-, mas obrigado pelo oferecimento. Não necessito seus serviços, quer dizer, sua companhia, por agradável que seja. Isto já raia ao ridículo. A única pessoa que se aproximou há semanas é Brentford, e é um idiota inofensivo. Posso lidar com pessoas como ele.
Heath dirigiu um severo olhar a Drake.
- Pedi-lhe que cuidasse dela.
Drake sorriu, tranquilo, mas com clara intenção.
- Brentford não teria ultrapassado, asseguro-lhe. Eu tinha um olho nele.
- Não é um espião francês - comentou Odham.
- Nunca se sabe - disse Hermia balançando a cabeça - Parece, Drake, que isto significa que não esperemos voltar a vê-lo esta noite para jogar cartas e conversar.
Sorriu-lhe em atitude de pedir desculpas.
- É possível que não, senhora. Mas passei muito bem, gostei muito da peça.
- Vai se molhar - disse Heath, olhando pela janela. - Pegue meu casaco.
Quando terminou de tirar o casaco negro de lã grosa e o passou a seu irmão, a chuva já caía forte. Hermia levantou a cortina da janela para olhar ao jovem correndo na chuvosa noite fazendo um gesto de despedida com a mão.
- Gostou da peça - disse, divertida. - Não viu nenhuma cena por ficar paquerando sua amiguinha do camarote de frente.
Julia estremeceu e se enrolou no xale. A noite estava fria.
- Acredito que a tendência a paquerar vem de família - disse.
- Tem um físico maravilhoso - murmurou Hermia, passando seu perspicaz olhar para Heath. - Não poderia convencê-lo de que posasse para o clube de pintura este mês que vem? Ainda não encontramos
nosso Hades.
***
Durante todo o curto trajeto a casa, Julia sentia intensamente a presença de Heath. A maneira como a tocou na rua, e onde a tocou, tinha-lhe alvoroçado os sentidos e estava inundada em um doce mar de confusão. Quase lhe dava medo olhá-lo nos olhos. Ou explicar o que sentia.
Continuava chovendo quando os quatro passageiros desceram da carruagem e juntos entraram correndo na casa da cidade. Hermia insistiu em que os dois homens esperassem dentro até que acabasse a tormenta para partir a suas casas, o que no caso de Heath era um ponto duvidoso.
Ele lhes assegurou que não tinha a menor intenção de voltar para sua casa enquanto não tivesse tudo claro; e nada do que ela conseguiu dizer o fez mudar de decisão.
Estava tão sereno e impenetrável como sempre.
De qualquer modo, essa noite ela notava uma tensão nele que a intrigava, uma sensualidade que não podia deixar de observar. Tinha mudado inclusive em sua maneira de olhá-la. Esse era um Heath misterioso, desconhecido, que ela não tinha visto nunca; um homem cuja acuidade a atraía em lugar de induzi-la a afastar-se como deveria.
Atraía-a essa enigmática faceta de seu caráter. Atraía-a o ardente desejo que ele deixava manifestar-se em seus olhos.
Quando os quatro se reuniram no salão para conversar, serviu conhaque para Odham e para a Hermia; Heath se instalou em uma poltrona junto à janela a contemplar a rua açoitada pela chuva.
Os empregados ascenderam o fogo na lareira. Entretanto, a sala continuava fria e úmida.
Isso até quando Heath se voltou para observá-la, com o queixo apoiado em uma mão, com as pálpebras entreabertas e com um olhar
francamente sensual. Era inconfundível o significado de seu olhar, do fogo que ardia nesses reservados olhos azuis.
O poder de seu olhar lhe penetrou todo o corpo, excitou-a de tal maneira que não podia pensar em nenhuma outra coisa. Sentia seu olhar arrasando a barreira de sua roupa, seu compromisso com outro homem, sua relação do passado.
Sentindo fracas as pernas, serviu-se de uma taça de conhaque e foi sentar-se no sofá e bebê-la. Odham e Hermia estavam conversando sobre a sensacional atriz, a senhorita O’Neill, mas ela não conseguia lhes seguir na conversa. Tinha que fazer um enorme esforço só para parecer serena e sustentar a taça com as mãos firmes.
Como fumaça escura, o olhar de Heath se dilatava em sua percepção. Se não soubesse que não, teria jurado que nessa última hora seu protetor estava preparando-a para a sedução, e fazendo-o muito bem por certo. Com apenas umas quantas palavras e um contato a tinha reduzido a um estado de... Não queria reconhecer o que sentia por ele, nem sequer para si mesma. Se reconhecesse, desencadearia o desastre. Não seria capaz de agir como se ele não significasse nada para ela.
Desceu os olhos para suas mãos.
Tinha terminado de beber o conhaque sem saborear nenhuma só gota. O interrogante olhar de Heath desceu de seu rosto à taça e logo voltou para seus olhos.
- Subirei para me deitar - declarou, levantando-se e fingindo um enorme bocejo. - Que tenham doces sonhos. - Agachou-se para pegar suas luvas. Na realidade não estava nada cansada. Iria ler por um momento, despiria-se e... - Oh, desapareceu meu bracelete - exclamou. -
Acabo de perceber de que não o levo.
Heath se levantou e foi ficar a seu lado.
- Não o vi na carruagem. Talvez o perdeu em alguma parte no
teatro.
- É possível - disse ela séria. - Recorda tê-lo visto no teatro, Hermia?
Hermia negou com a cabeça.
- Agora que penso, não. Estava com ele quando saímos da casa.
- Irei comprová-lo pela manhã - disse Heath, caminhando atrás dela para a porta. - Permita que a acompanhe pela escada.
Ela sorriu, de costas a ele, com os nervos a flor da pele por sua proximidade.
- Acha que me espera algum perigo mortal entre a escada e meu dormitório?
Ele estreitou os olhos, lhe olhando o perfil.
- Nunca se sabe. Poderia haver algo mais agradável. Talvez inclusive poderíamos achar seu bracelete.
Acelerou-lhe o coração quando ele avançou, quase chocando com ela. Ficou quieta, sentindo o contato de seu corpo tocando-a, sentindo o contato de suas coxas através do tecido de seu vestido de noite. Se virasse, ficaria sufocada e apertada a ele. Não lhe tinha dado tempo nem para respirar.
- Que descarado é, Heath Boscastle - disse, fechando os olhos. - E
pensar que o mundo acredita que é uma pessoa honrada.
Roçou a base de seu coque com o queixo, em uma descarada carícia. Custou-lhe tirar a voz ante o inesperado prazer que a assaltou.
- Viu-o Hermia fazer isso? - conseguiu perguntar em voz baixa.
- Duvido - murmurou ele, sem sequer insinuar um tom de desculpa
- Vamos sair do vestíbulo, no caso de...
Ela se afastou. Estava tão imersa na conversa com ele que não tinha prestado atenção às outras duas pessoas que estavam no salão.
Então viu que Odham se levantara do sofá e estava caminhando para eles, deixando Hermia a meia frase.
- Eu me encarregarei de que Julia chegue sã e salva a seu quarto.
Boscastle - disse.
Heath se virou surpreso, e seu cavalheirismo impediu-o de discutir.
Julia teria rido a gritos pelo fracasso do que fosse que ele tinha pensado.
Olhou-o nos olhos; o olhar lhe disse que a interrupção de Odham só era uma pausa temporária. Mas do que?
Passado um momento, encontrou-se sozinha com Odham no vestíbulo.
Não sabia o que tinha motivado esse repentino ato de cavalheirismo do conde; isso não era uma característica da relação entre eles. Na realidade, ele parecia sentir-se incômodo, quase triste. O
aconteceu? Ao vê-lo tão sério compreendeu que algo estava errado.
Perturbada, olhou os nodosos dedos que se fechavam sobre sua mão.
- Se Hermia lhe ordenou novamente que saia de sua vida, eu me manterei imparcial - disse. - São piores que crianças. A não ser, claro, que recorra ao suborno...
Ele limpou a garganta.
- Sei o rancorosas que são as mulheres, Julia. Sei que não esquecem jamais um insulto.
- Do que vai isto, Odham? - perguntou em voz baixa. - Sabe que Hermia não aceita meus conselhos. Entregue-lhe essas cartas que lhe escreveu e acabemos de uma vez com as ameaças.
- Pobre Julia - disse ele, lhe apertando a mão como se quisesse lhe espremer a vida. - Isto não tem nada que ver com Hermia. Trata-se dos rumores a respeito de Russell que ouvi hoje no clube.
Ela conseguiu esboçar um sorriso, firme e artificial. Ouvia o rítmico tamborilar da chuva na rua, e os batimentos acelerados de seu coração.
- Rumores? Que rumores? Foi ferido?
- Nada dessa natureza. - A expressão contrariada de seu rosto era
quase compassiva. - As infidelidades são bastante comuns, e não sou ninguém para jogar pedras. Mas o assunto muda totalmente quando há filhos de no meio. Vai ter um filho com outra mulher. Bom, isso é o que se diz. Perdoe que seja tão franco.
Ela deveria sentir-se mais horrorizada, mais aflita, mais... mais algo. Mas o que sentia era um agradável atordoamento que ia penetrando nos ossos, escutando a violência extremamente calma da chuva e os sons mais calmantes ainda das vozes de Hermia e Heath ao outro lado da porta do salão. Ouviu a risada rouca de Heath, seus sedutores matizes. Tinha uma voz profunda, formosa. Como podia tê-lo esquecido? Como era possível que Russell tivesse sido tão amável e logo a traísse? Como pôde comprometer seu coração com ela quando outra mulher levava em seu ventre um filho dele?
- Hermia sabe? Heath sabe?
- Bom Deus, não - respondeu Odham. - Não disse nenhuma sílaba.
Mas é possível que as fofocas estejam equivocadas. Se deseja que o investigue, farei-o.
- Acredito que isso não será necessário. -Liberou suavemente a mão da dele - Agradeço sua sinceridade.
- Ainda não sabemos se há algo certo nisso.
Ela engoliu em seco; ele acreditava, sem dúvida, se não, não o teria dito.
- Tem razão. Não há nenhuma necessidade de precipitar-se a julgar.
Ele exalou um suspiro de alívio.
- Alegra-me tê-lo tirado de meu peito. Pelo menos estará preparada se for verdade. Encontra-se bem, Julia?
Ela olhou para a porta fechada, seu pensamento concentrado no fascinante homem moreno que estava do outro lado. Seu protetor. De repente desejou estar com ele.
- Estou muito bem, Odham, obrigada. É preciso coragem para fazer o que fez.
***
Julia deixou a escova na penteadeira e se virou na banqueta. As batidas na porta tinham sido suaves, mas insistentes; impossível desentender-se. Muito tentadoras, em realidade, se quisesse ser sincera consigo mesma. Não era a batida leve de Hermia, quando chegava a lembrar-se de bater. Só podia ser Heath. Estava preparada para voltar a vê-lo? Nesse momento se sentia vulnerável.
A semente que plantou Odham em sua mente já tinha começado a soltar raízes, umas horríveis raízes subterrâneas que estrangulavam sua confiança e chegava até o interior de seu coração. Já era doloroso que Russell a tivesse enganado com outra mulher. Mas Odham empregou a palavra "infidelidades".
E falou de um filho. Haveria um filho.
Voltou a soar a batida na porta. Deixou passar um momento, debatendo-se.
- Quem é?
- Heath. Encontra-se bem?
Ela se levantou para abrir a porta. A ideia de ter que defender-se de sua morena elegância e seu sorriso sardônico relegou a uma curva da mente suas outras preocupações.
Ele tinha tirado o fraque e se mostrava muito viril com seu colete de seda negra, camisa de linho branca e calça justa de veludo. Uma mulher vulnerável e um patife viril. Difícil imaginar uma combinação mais fatal.
- Por que não ia estar bem? - perguntou, lhe indicando que entrasse.
Ele passou por seu lado e olhou ao redor.
- Me ocorreu que deveria fazer uma boa inspeção em seu quarto antes que se deite. Depois de tudo estivemos fora boa parte da noite.
- Já revistei meu quarto - respondeu ela, observando-o.
- Bom, queria me assegurar de que as janelas estavam fechadas.
Está chovendo.
- Como se não chovesse dia sim dia não na Inglaterra.
- Ah, sim, mais agora é de noite.
Caminhou por todo o perímetro do aposento, fazendo todo um espetáculo de olhar debaixo de poltronas, cadeiras e móveis.
- Esqueceu o que ocorreu na outra noite que choveu?
Ele já estava na janela olhando com evidente concentração o descuidado jardim todo molhado. Abaixando os braços, Julia caminhou até a janela.
- Não entrou alguém nesse abrigo outra vez, não é verdade?
Ele negou com a cabeça e a olhou brevemente quando o ombro dela se chocou com o dele. Embora tivesse caído a temperatura, ou talvez devido a isso, sentia-se atraída para o conhecido calor de seu corpo. Que tentadora a ideia de apoiar-se e aconchegar-se em seu musculoso corpo e não ter que pensar.
- Julia - disse ele, olhando-a.
- Se veio aqui para procurar o desenho outra vez, escondi-o em outra parte da casa.
- Não quero o desenho. Bom, sim, mas não é a isso que vim.
Ela passou o dorso da mão pelo úmido vidro. Sua declaração lhe inspirava curiosidade, mas não podia lhe pedir que a explicasse, por muito que o desejasse. O seguro era mudar de assunto:
- Tomara tivesse visto a peça esta noite. Foi muito divertida.
- Olhe para mim.
A ordem que detectou em sua voz a impressionou, lhe acelerando o coração. Não se atrevia a olhá-lo. Com certeza se derreteria a seus pés como uma gota de chuva em uma pedra quente. Ou se elevaria como vapor.
- A senhorita O’Neill causou sensação.
- Acha que isso me interessa? - disse ele mansamente, virando-se para estreitá-la contra seu peito.
Ela apoiou o rosto em seu ombro e sentiu os batimentos de seu coração na face. Cheirava o delicioso aroma a ervas de seu sabão para barbear-se. Ele a rodeou com os braços. Ela se deu permissão para relaxar. Ele desceu a mão por seu braço deslizando-o pela curva do cotovelo e lhe endureceu o corpo. O dela se abrandou, em ansiosa rendição. Sua calada força era irresistível, pensou, admirada a seu pesar. Também foi o momento escolhido por ele.
Heath Boscastle. Tranquilo, moderado, indiferente, o demônio de seus sonhos. Ninguém era capaz de intimidá-lo. Eram águas calmas tão profundas que era impossível imaginar que uma mulher poderia afogar-se nelas. O inglês perfeito. O cavalheiro consumado.
O cavalheiro que tranquilamente lhe soltou o laço da fita que lhe fechava a camisola e o desceu até a cintura, e de repente a deixou sem fôlego beijando-a e fazendo-a retroceder com os seios nus para a cama.
Tudo aconteceu em uns segundos. Sentiu virar a cabeça; seus seios estavam apertados ao duro peito dele.
- Acredito que não é necessário perguntar o que lhe interessa -
murmurou com a boca na dele, desequilibrada, tentando respirar, recuperar a prudência - Não... sabe o que está fazendo?
Sorrindo ele a segurou rapidamente com um braço antes que caísse desabando sobre a colcha de seda azul.
- Sim eu sei. - Depositou-a espertamente na cama, e lhe acariciou um seio em sensual posse. Ela arqueou as costas, estremecendo. -
Agora sei muitas coisas.
Ela voltou a estremecer.
- Talvez não devesse lhe perguntar quais são essas coisas.
Não, desejava que as demonstrasse. Desejava senti-lo sem
limitações, experimentar a consequência do desejo sexual que via em seus olhos. Não queria pensar na traição de Russell; se fosse sincera consigo mesma, o que lhe disse Odham essa noite não lhe doía tanto como deveria. E sabia por que: já se sentia atraída por outro homem.
Heath percebeu sua vantagem. Devorou-lhe a boca com um beijo sensual, profundo, antes que ela pudesse lhe fazer perguntas. Embora nada que ela pudesse dizer mudaria sua resolução. Sua ardente reação a seu comportamento dava a permissão que necessitava. Tinha seu corpo seminu preso debaixo do dele; já sentia suas esbeltas e brancas mãos apoiadas em seu peito.
E não para empurrá-lo e afastá-lo, mas para explorar, para atormentá-lo, para descobrir do que gostava. E ele só podia deleitar-se em fazer saber, em lhe dar um vislumbre do muito que poderiam gozar um do outro. Com os anos tinha aprendido a refrear-se. Desejava que ela o desejasse com tanto desespero que não ficasse em sua mente nem um indício de dúvida de que seria dele. Mas o malandro que havia nele desejava atormentá-la fazendo-a provar o que sentia.
Ela se endireitou um pouco, apoiada nos cotovelos, para lhe morder suavemente o ombro. Depois lhe acariciou com a língua o ligeiro machucado que lhe deixou.
- Pensando bem - murmurou então - talvez deveria lhe perguntar.
Ele afundou o rosto no vale entre seus formosos seios.
- Me perguntar o que? - indagou, com a atenção mais enfocada em continuar o que tinham começado que em falar.
- O que vamos fazer em minha cama? - murmurou ela, lhe colocando a mão sobre o coração.
Ele segurou seus pulsos com uma mão e levantou-os por cima da cabeça.
- O que sugerir - disse, olhando-a com um travesso sorriso.
- Não sugiro nada - disse ela.
Mas sua ansiosa reação dizia a ele outra coisa.
Levantou-lhe o joelho esquerdo e pôs a perna em cima de seu quadril, separando as coxas para lhe explorar essa parte do corpo.
- Nesse caso - disse, percorrendo-a com o olhar, notando-se em todos os detalhes - terei que tomar a iniciativa.
Ela tentou libertar os pulsos. Ele segurou-os mais forte.
- Ouça, espera um momento.
- Acho que já esperei muito tempo.
- Não esperou! - exclamou ela, sem poder reprimir a risada - Heath, não deveria estar aqui.
Pressionou-lhe os quadris apertando a pélvis entre suas pernas.
Ela estava meio nua; ele continuava vestido.
- Ordenaram-me que seja seu guarda-costas. De acordo?
Ela estreitou os olhos, sorrindo levemente.
- Sim, mas...
- Bom, estou protegendo-a.
- Não está me protegendo - riu ela.
- Garanto-lhe que ninguém chegará a seu corpo estando eu em cima.
Ela abriu a boca para falar e esqueceu o que ia dizer, inundada pela emoção e a sensação. Sentia-se exposta, molhada de desejo, toda ela consciente só dele. Ele lhe exigia, e conseguia, toda sua atenção.
Ele lhe deixou sua marca naquela vez, anos atrás. Seu coração e seu corpo recordavam tudo muito bem e respondiam, desejando a plenitude. Desejava ser parte dele, introduzi-lo dentro dela. O prazer não acabado; o desejo fantasma. Ele mudou de posição e se apertou à fenda molhada entre suas pernas, marcando-a com sua dura ereção. Ela gemeu. Sentia-o excitado, o quão duro estava ele por ela, quanto a necessitava, e seus instintos a urgiam a lhe dar a satisfação.
Ansiosa se arqueou e se moveu apertando-se contra ele. Ele
pegou um mamilo com a boca e o sugou até que ela sentiu um a escuridão sobre seus olhos. Então lhe subiu a camisola, acariciou sua pele aí e logo introduziu uns dedos na molhada cavidade, em uma prazerosa invasão.
Esticou o corpo; ouviu-o inspirar profundamente. Pouco a pouco foi penetrando-a com os dedos; sedutoramente, retirava-os e repetia, até que ela estava estremecendo pela sensação, esquecendo como respirar.
E assim ele continuou atormentando-a, lhe segurando firmemente o agitado corpo com sua potente coxa.
- Não posso acreditar - conseguiu dizer, e uma exclamação de surpreso prazer lhe cortou a voz - Não posso acreditar que estejamos cometendo o mesmo engano.
- O único engano - sussurrou ele, introduzindo mais até o fundo os dedos - foi permitir que fugisse de mim há seis anos.
- Não sabia que...
- Depois disso esperei poder acariciá-la assim - disse ele em voz baixa.
Ela sentiu a ardência das lágrimas sob as pálpebras, enquanto ele voltava a beijá-la, com um beijo que tinha sabor de desejo muito tempo insatisfeito, as lealdades duvidosas, a conquista masculina. Quantas vezes tinha ansiado esse momento? Como pôde existir sem ele?
Estava comprometida em matrimônio com Russell; devia casar-se com ele.
Seu rosto passou flutuando como uma nuvem passageira por trás dos pensamentos que lhe ocupavam a cabeça. Tentou recordar como era beijá-lo, recordar o quão bom foi com ela quando seu pai estava doente. Traía a Russell? Com certeza que sim. Mas ninguém no mundo sabia beijar como Heath Boscastle. Sua boca era como uma tocha medieval capaz de incendiar um castelo inteiro, uma aldeia, o coração de uma mulher.
Beijos profundos, com alma, comovedores, que nublavam a mente e a faziam desejar a relação sexual ardente, desinibida.
Escapou-lhe um gritinho, ao sentir aumentar o prazer, como a força da crista de uma onda. Tentou refrear-se. Desejou aferrar-se ao último fiapo de autodomínio. Ele a levava mais longe e mais profundo do que jamais tinha sonhado que poderia ir. Agitou-se contra sua mão, molhando-o arrasada sua inibição pela enchente de prazer, de êxtase.
Pegou seu quadril quando remeteram as contrações, e lhe sorriu, com um sorriso conhecedor, como se ela não soubesse o que acabava de lhe demonstrar.
Com que facilidade a seduzia. E quantas vezes essa fantasia, ou alguma variação, tinha dominado sua consciência quando seu finado marido a visitava na cama antes de partir apressadamente para seu amado exército. Agora isso sabia ele também. Soltou uma respiração profunda notando que começava a acalmar-se o coração.
- Esta noite no teatro me dei conta de que havia algo diferente em você -murmurou, lhe rodeando o pescoço com o braço; introduziu os dedos por seu cabelo e viu que ele fechava os olhos. - E depois quando me tocou dessa maneira na rua e em sua forma de me olhar. O que tomou conta de você?
- Talvez tenha recuperado a sensatez.
Ele mudou de posição atraindo-a para ele e abriu os olhos. Durante um perigoso momento ela se moveu com ele, apertando-se a ele, sem perceber o que fazia, além de seus sentimentos por ele serem avassaladores, complicados, tão potentes que não podia dominá-los. A camisola tinha se enrolado nos quadris, deixando-a totalmente exposta a ele. Por cima da calça sentia sua dura e potente ereção, lhe produzindo por dentro um desejo mais intenso, uma excitação nas molhadas dobras de seu sexo. Que ele estivesse totalmente vestido fazia mais erótica ainda a posição em que estavam.
- Pobre patife - disse, olhando-o nos olhos - não teve sua liberação.
- Ficaria surpresa ao saber quanto autodomínio aprendi a exercer em seis anos.
- Nada em você me surpreenderia - disse ela em um sussurro.
Se ele não tivesse força de vontade para parar nesse mesmo instante, ela não tinha ideia do que poderia ter acontecido. O mais provável era que ela tivesse conseguido reunir um pouco de autodomínio antes que seguissem mais adiante. Mas foi como se os dois compreendessem ao mesmo tempo que deviam parar.
Quanto a Heath, nele pesou mais o que era melhor para ela que a satisfação de seu desejo físico. Seu corpo a desejava com uma necessidade tão corrosiva que certamente o teria horas acordado, mas decidiu que já tinha avançado bastante por uma noite. Se apressasse muito corria o risco de perdê-la. Isso não era um simples jogo de sedução. Seu jogo era conquistar seu coração, seu amor.
Afastou-se dela e se sentou, olhando-a uma última vez, pesaroso, assim deitada na cama, com seus seios e seus mamilos rosa escuro avermelhados por seus beijos, sua boca úmida e convidativa. No final seria sua, mas antes de jogar sua mão se asseguraria de ter todas as probabilidades de ganhar. Faria com que reconhecesse que o desejava.
E o desejava, isso estava claro. Ele viu o desejo nu em seus olhos cinza antes que se instalassem neles a confusão e a preocupação. Ela se sentou e, tardiamente, cobriu-se com a camisola. Riu a contra gosto:
- Sim, me preocupa.
Os dois viraram a cabeça ao mesmo tempo ao ouvir uma porta fechar abaixo. Do vestíbulo chegaram até eles os sons de vozes elevadas.
Julia pôs o penhoar e esticou a colcha, e Heath já estava em pé quando soou a batida na porta.
Ela enrugou o nariz.
- É provável que Odham e Hermia tenham tido outra briga.
- Eu acredito que não - disse ele.
E tinha razão.
Hermia apareceu na porta com o rosto muito pálido, de um branco não natural. Não fez nenhum comentário com respeito a Heath estar no dormitório de Julia, sozinhos.
Heath pensou que na realidade nem sequer percebeu.
- Desçam, os dois - disse, fazendo um gesto para a escada, aflita. -
Apunhalaram Drake na rua. Odham já saiu para procurar meu médico.
***
Julia observou atentamente o atraente jovem que estava meio reclinado no sofá, com uma expressão de tolerante resignação.
Empalideceu quando ele mudou de posição e viu o pano ensanguentado que segurava com bastante despreocupação sobre seu pulso esquerdo.
Novamente pensou que fácil era confundi-lo com Heath.
Tinha o mesmo perfil de nariz aquilino e o cabelo negro suavemente encaracolado; e com esse casaco... Usava o casaco de Heath.
- Parece com você - disse a Heath, que já estava falando com seu irmão e não a ouviu.
- Quem? - ouviu-o lhe perguntar, em tom tranquilo, mas com a voz um pouco trêmula. - Onde? E por quê?
Drake encolheu os ombros, segurando a taça de conhaque que lhe passava Odham.
- Um rufião, estrangeiro por sua aparência. Devon o seguiu para os bairros pobres.
Heath endureceu o olhar ao lhe examinar a ferida no pulso. Não era grave, mas quem podia saber qual foi a intenção do assaltante?
- Como foi que acabaram juntos você e Devon?
Drake titubeou um momento.
- Ao que parece nós dois íamos à casa da mesma dama. Um jantar íntimo.
Heath sorriu, divertido.
- Não é muito seletiva para seus convites a dama, não é?
Drake arqueou uma sobrancelha.
- Incomoda-me essa observação. E deixe de armar tanto alvoroço.
É só uma espetada. Feriu-me a mão. Voltei aqui só porque me sentia culpado por ter partido como o fiz. Foi grosseiro.
Heath endireitou as costas.
- Suponho que vai viver, e, sim, foi grosseiro, mas o perdoo.
Roubou-lhe dinheiro o atacante?
- Não. Acredito que o surpreendi. Ao menos pareceu surpreso quando me virei para enfrentá-lo. - Olhou para a mão - Com certeza se surpreenderá mais quando perceber que perdeu dois dentes dianteiros.
Entrou o médico, um escocês de barba bem recortada que declarou que estava a ponto de assistir a um jantar em uma das casas mais à frente e que sorte foi que estivesse disponível, não?
A isso seguiu um frenesi de atividade durante a qual Julia só conseguiu ouvir pedaços da conversa entre os irmãos.
- Seguiu-o desde o teatro? - perguntou Heath.
- Não sei. Não estava muito atento. Passamos em Grosvenor Square para que Devon trocasse roupa. Poderia nos ter seguido daí.
- Era francês?
- Não. Um contratado da vadiagem. Alemão ou holandês, diria eu.
- Por que o deixaram escapar? - perguntou Heath, e logo exalou um suspiro - Não me diga. Foi pela mulher outra vez. Espero que valha.
- Não valia - disse Drake rotundamente, fazendo um gesto de dor pois o médico tinha começado a explorá-lo e lhe apertar a ferida - Tinha outro homem lá, e nem sequer nos fez entrar. Um muito novo, assegurou.
Heath se levantou e se afastou para deixar mais espaço ao médico, e se virou para Julia. Pegou-lhe a mão.
- Olhe-o, Heath.
- Já o olhei. Acredito que viverá, mas é possível que não aprenda.
- Não é isso o que quis dizer - disse ela em voz mais baixa. - Olhe bem para Drake.
- Sim?
Ela captou sua atenção e se sentiu frustrada ao ver que seu rosto revelava tão pouco do que pensava.
- Parece exatamente igual a você com esse casaco. Não acha que seu atacante se equivocou de irmão?
Ele sorriu e se voltou para a porta.
- Provavelmente não. Fique para lhe fazer companhia um momento, por favor, mas não seja muito amistosa. Parece comigo em mais de um aspecto. Não demorarei muito. Quero dar uma olhada na casa.
- Para que?
- Simplesmente por segurança, Julia.
Heath percorreu os quartos dos empregados, revisou a adega de vinho e a copa e depois saiu para o jardim pela porta da cozinha.
Continuava chovendo, não tão forte e o pequeno jardim retangular era um atoleiro de barro. O gato de Julia aproveitou e entrou correndo para procurar o calor da casa.
Dirigiu-se ao abrigo. Quando tomou o atalho ladeado por rododendros ouviu abrir uma porta na parte de trás da casa. Rogou que Hermia não o houvesse seguido novamente.
Na realidade não esperava encontrar nada estranho no abrigo, mas nunca era demais ser consciencioso.
Abriu a porta e passou o olhar pelo quarto úmido e em penumbra.
Vasos de barro, um carrinho de mão, o aroma de húmus e madeira
úmida. Nenhum fantasma do passado.
O que tinha esperado encontrar? Pensou que deveria sentir alívio dessa vaga inquietação.
Até esse momento não tinha percebido o muito que desejava enfrentar seus medos, dissipar as sombras que continuavam acossando-o. Desejava estar no lugar de Russell, procurando Auclair. Talvez enfrentar seu torturador daria certa paz.
Ouviu passos vacilantes no atalho coberto de folhas que levava ao abrigo. Retrocedeu da soleira da porta, esperando não encontrar novamente com Hermia e seu vaso de barro. Quando virou a cabeça conseguiu ver Payton, o mordomo de Julia, escondendo-se atrás de umas das árvores. O velho empregado desejava ser útil, sem dúvida.
Sorrindo se virou para fechar a porta do abrigo. Não o chamou; não tinha nenhum sentido assustá-lo.
- Alto aí!
Deu meia volta, certo que Payton o reconheceria, que gaguejaria alguma desculpa, esperando algo, mas não o forte golpe na cabeça e a escuridão que se seguiu.
Capítulo Quinze
O murmúrio de vozes devolveu o conhecimento a Heath. Com dificuldade abriu os olhos e olhou atentamente à mulher que estava inclinada sobre ele.
Seu formoso rosto oval estava pálido de preocupação; seus olhos cinza lhe recordaram a névoa inglesa. E lhe doía tremendamente a cabeça.
Sentou-se, envergonhado por encontrar-se quase abafado debaixo de capas de mantas, um lençol de seda perfumado e uma colcha de seda rosa, que foi colocada ao redor dos ombros. Do pé da cama, como uma gárgula, estava lhe sorrindo seu irmão Drake, com a mão esquerda enfaixada.
Julia se inclinou mais, para arrumar o travesseiro, e seu cabelo caiu sobre o peito.
- Voltou a atirar em mim? - perguntou-lhe. - O que faço aqui nesta cama?
- Não brinque, Heath. Quase morri quando o vi. Mas ninguém atirou em você.
Ele grunhiu, olhou-se e viu que tinham tirado sua camisa.
- Alguém me despiu. Espero que tenha sido você.
Julia abafou uma exclamação e olhou para Drake, sobressaltada.
Este encolheu os ombros, com os olhos brilhantes segurando a risada e se levantou da banqueta.
- Deixarei vocês a sós um momento. Tenho que dizer a Grayson que o paciente viverá.
Heath soltou uma maldição em voz baixa, apalpando o ombro e os braços.
- O que aconteceu, Julia? Estava no jardim, vi Payton e...
- Payton golpeou-o com uma pá - disse ela, mordendo os lábios. -
Acreditou que fosse outro intruso. Ao que parece, você lhe recomendou que ficasse em guarda.
- Maldição.
- Pensou que fazia algo útil, que cumpria seu dever. Tomara houvesse dito aos empregados que iria sair ao jardim, Heath. Payton sente-se mal.
Heath friccionou a nuca.
- Ele se sente mal? Por que estou na cama?
- Caiu para trás e bateu forte a cabeça na parede. Tem um bom galo na parte de trás do crânio.
Ele levantou o braço para apalpar o galo, olhando-a contrariado.
- Este não é seu quarto. Onde estou?
Aplicou-lhe um pano com água fria na cabeça.
- Na cama de Hermia.
- A cama de Hermia? Era necessário isso?
Os olhos de Julia faiscaram de simpatia.
- Foi ideia de Drake, na realidade. O quarto dela estava mais perto.
Imagino que agora vá cair sobre minha cabeça a desaprovação de toda a família Boscastle. Os dois feridos na mesma noite.
- Não acha que o ataque a Drake foi uma coincidência?
- Não - disse ela, negando lentamente com a cabeça. - Se parece muito a você com esse casaco.
- Não sei se compartilho de sua suspeita.
- Bom, em todo caso - disse ela, dando uma última batidinha no travesseiro - terei que proteger meu guarda-costas, não?
- Só contra sua tia e seu mordomo.
Pensativo, Heath apoiou as costas na cabeceira. Julia deu voltas ao pano nas mãos e logo se esticou para arrumar a roupa de cama, que tinha caído dos ombros, deixando descoberto seu peito nu. Heath não percebeu que acontecia. De repente a ouviu fazer uma inspiração entrecortada, olhou-a e viu compaixão em seus olhos.
- Seu peito - murmurou ela. - Oh, Heath, vi quando Drake e eu lhe tiramos a camisa.
- Deveria lhe ter avisado.
Ela negou com a cabeça, contendo as lágrimas.
- Não é em mim que penso. Só no que deve ter sofrido.
- Isso está no passado, Julia.
Ela se limitou a assentir. Ele era um homem muito orgulhoso; não desejava sua compaixão. No peito tinha cicatrizes terríveis, orifícios como crateras púrpura com a pele enrugada, que pareciam ser queimaduras cicatrizadas. Afundou suavemente a gema do indicador em cada uma. Queimaduras infligidas intencionalmente por alguém.
Sentiu-se doente. Teve sorte de ter sobrevivido. Queimaduras.
- Foi torturado em Portugal - comentou Russell quando lhe explicou que queria que Heath cuidasse dela. - Não é algo que precise ouvir uma dama. Está curado. Todos passamos pelo inferno, e não há nenhum motivo para falar disso. Sobreviveu.
Não acrescentou nenhum outro detalhe. Tudo muito natural, o dever de um soldado e tudo isso. A dor deve ter sido insuportável.
Heath franziu o cenho, consciente do que ela estava o olhando.
- Julia - disse, um pouco irritado. - Não desejo que me mime como um inválido. Por favor, saia do quarto para poder me vestir.
- Sim, é claro - murmurou ela.
Quando se virou na cadeira para levantar-se, segurou sua mão.
- Acha-me ingrato?
Oprimiu-se o coração dela ao sentir o calor de sua mão na dela e ver seu musculoso corpo meio nu na cama. Era um homem para fazer sonhar. Mas as cicatrizes de seu peito lhe recordavam quão vulnerável pode ser inclusive o homem mais forte. Seu marido, Adam, morreu antes dos trinta anos, seguro de que era invencível.
Tentou esmagar uma onda de ansiedade, de medo por Heath e por Russell. Os dois tentavam protegê-la, mas quem os protegia?
- Pelo menos desta vez não atirou em mim - disse ele, fazendo um débil esforço para sorrir.
- Graças ao céu.
- Receberia um tiro seu outra vez - disse ele, abaixando a voz em uma oitava - se isso fosse outra oportunidade para mudar o que aconteceu depois.
Ela sentiu passar uma corrente de calor por todo o corpo quando lhe apertou mais a mão.
- Tomara... bom, já não podemos mudar, depois de um longo silencio.
- Lembro-me tudo, Julia.
- Isto...
- Você também se lembra. Por que me deixou? - Olhou bem para seu rosto, com os olhos escurecidos pela emoção, sem reservas. - Por que fugiu e logo se casou, depois que tínhamos nos encontrado?
Ela o olhou atônita. Não podia acreditar no que acabava de ouvir.
- Eu o deixei? - Negou com a cabeça, desconcertada. - Eu não o deixei. Você me deixou.
- Disse que não era para lhe falar nunca mais. Pensei que estava envergonhada...
- Estava.
- Pensei que necessitava um tempo para compreender o que significávamos um para o outro.
Ela continuou negando com a cabeça. Nenhuma só vez em todos esses anos tinha considerado o que aconteceu entre eles sob o ponto de vista dele. Era um patife conhecido.
- Supus que pensaria que eu era uma frívola descarada, muito atrevida, e...
- Pensei que era maravilhosa. Não podia acreditar em minha sorte, nem em minha má sorte posterior. Não podia acreditar que tivesse conhecido alguém como você justo quando ia partir para a guerra.
- Pensava que eu era maravilhosa?
- Sim. - Olhou-a feio. - E você me disse para partir porque se não, estragaria sua vida. Chamou-me de demônio de olhos azuis.
- Depois de todo este tempo - murmurou ela assombrada - lembra-se de minhas palavras exatas.
Ela também se lembrava. Tinha revivido essas horas com muita frequência; e derramado muitíssimas lágrimas.
- Lembro que me disse que não queria ver-me nunca mais.
- Sim, mas... - Colocou a mão livre no coração - não disse a sério.
- O demônio de olhos azuis não sabia isso.
- Não estava disposta a me converter em uma das mulheres de Heath Boscastle - respondeu ela, na defensiva.
Isso pareceu pegá-lo de surpresa.
- Que diabos disse? Que mulheres?
- Todas as garotas que estavam na festa nessa casa desejavam que se fixasse nelas.
Ele franziu mais o cenho.
- Isso não significa que eu desejasse a alguma delas.
Julia contemplou seu belo rosto, sentindo-se totalmente desequilibrada pelo que ele acabava de confessar. Essa era a primeira vez que lhe permitia falar em sua defesa. Sabia que dizia a verdade, já não tinha nenhum motivo para mentir. Ela o tinha considerado cruel.
- Mas Russell me disse que em todos esses anos nunca falou de mim, nunca lhe perguntou como eu estava nem para onde tinha ido.
Um rubor de raiva lhe tingiu as magníficas maçãs do rosto.
- Pelo amor de Deus, Julia, é claro que nunca falei de você com ele.
Prometi que guardaria em segredo o que aconteceu entre nós.
Sabia que se começasse a falar de você, ele adivinharia o que sentia.
- O que sentia - repetiu ela, aturdida. - Como poderia alguém adivinhar? Posso perdoá-lo, Heath porque não acredito que minta. E, depois de todo este tempo, não tem nenhuma necessidade de mentir.
Mas... é tão difícil de entender como esses hieróglifos egípcios que você tanto gosta de estudar.
Fez-lhe um gesto de advertência, ao ver abrir a porta atrás dela.
Então entraram Drake e o médico de Hermia, pondo fim a essa reveladora conversa. Ela precisava pensar. Tinha passado muitíssimo tempo. Não chegava muito tarde essa confissão dele, para que se importasse?
- Tudo vai bem? - Perguntou Drake, olhando de um para o outro,
como se percebesse a estranha tensão entre eles. - Heath? Precisa de algo para a dor?
- Que dor? - Resmungou Heath, no momento em que ela se levantava.
Então Julia sorriu. Não pôde evitar. Sim, estava muito desconcertada por essa conversa, mas no fundo sentia revoar uma frágil sensação de felicidade. Talvez inclusive de esperança.
"Eu não a deixei. Você me deixou” Isso havia dito? Seria possível que um errôneo conceito de virtude por parte dos dois tivesse frustrado todas as possibilidades que poderiam ter tido de ser felizes juntos?
Voltou a olhar seu sério rosto masculino, e seu potente e duro corpo deitado de modo tão incongruente na cama de sua tia.
- Voltarei para ver como está quando já se sentir você mesmo -
disse, observando como ele olhava para Drake e o médico com um cenho franzido. - Faça o que lhe disserem, Heath.
***
Naturalmente, Heath não ficou na cama. Ordenou a Drake e ao médico que saíssem do quarto. Tinha trabalho a fazer. E achava degradante, francamente degradante, indigno de um ex-oficial de cavalaria, ter sido derrubado por um mordomo excessivamente nervoso.
Que importava que a senhora de dito mordomo tivesse derrubado uma vez o dito oficial.
Na realidade, pensou, jogando para trás a feminina roupa de cama, nunca tinha se recuperado de todo de seu primeiro encontro com Julia.
Em certo modo, ela não só atirou em seu ombro aquela vez; igualmente poderia ter atirado em seu coração.
Passou os olhos pelos quarto procurando sua camisa. Bom, agora Julia tinha visto suas cicatrizes no peito, as que tendiam a fascinar ou assustar às mulheres.
Pelo visto ela não entrava em nenhuma das duas categorias.
Supôs que ela compreendeu que as cicatrizes eram obra de Auclair. E
se não o tinha compreendido, ele não a ilustraria a respeito.
Vestiu a camisa, viu as manchas de barro e limpou. Alguém tinha deixado seu colete e sua jaqueta sobre uma cadeira. Vestiu ambos e olhou sério seu reflexo no espelho de corpo inteiro. Sim, um homem com colete e jaqueta e sem camisa se vê bastante desastroso.
- Não sou o Dândi Brummel - disse a sua imagem no espelho. - E
posto que estou conversando sozinho, acredito que posso ter uma lesão cerebral.
Pelo menos a imagem não lhe respondeu. Talvez isso significasse que conservava certa quantidade de prudência.
Provavelmente tudo se devia a uma comoção.
Julia acreditava que ele a tinha deixado. Todos esses anos tentando esconder seu orgulho ferido, seu desejo, a vontade de procurar uma mulher para substitui-la. Isso não tinha feito conscientemente, claro.
Mas a todas as mulheres que cortejava, a todas que levava para sua cama, as colocava a luz do alegre espirito de Julia, e achava-as defeituosas. Que irônico que só se reuniram para compreender seus verdadeiros sentimentos quando ela já estava comprometida com um de seus mais velhos amigos.
- Demônios - disse em voz alta. - Inferno e condenação.
Naquela tarde, tantos anos atrás, fez algo mais que iniciar uma sedução; entregou a ela uma valiosa parte de si mesmo. Nesse tempo não era nem muito tão precavido e moderado como era agora as se sentiu loucamente atraído por Julia desde o instante em que a conheceu.
Teria a cortejado e tentado conquistá-la depois desse encontro sexual.
Mas claro, ela não voltou a lhe falar nunca mais, e o teria assassinado se ele tivesse ido falar com seu pai para lhe pedir a mão.
Claro que o matrimônio era a última coisa que lhe passava pela mente nesse tempo. De todo modo, doeu-lhe que não lhe permitisse ter
voz nem voto no assunto. Ela não tinha boa opinião sobre ele ou achava que ele não tinha boa opinião sobre ela. Supunha que ele era outro malandro em uma longa linhagem de malandros. E isso não era falso, mas não significava que ele não pudesse mudar nunca.
E então, antes que ele tivesse arquitetado uma maneira adequada para conquistá-la, ou compreendido o muito que desejava fazê-lo, ela embarcou para a Índia para casar-se com outro homem, sem saber o muito que significava para ele porque na realidade ele soube isso quando já era muito tarde.
Entender isso mudava tudo e não mudava nada. Ele continuava obrigado pela honra a protegê-la. Ela continuava comprometida oficialmente com Russell, situação temporária que ele remediaria, mas a realidade era que a faísca entre eles não se apagara nunca; tinha continuado acesa suave e perigosamente durante anos. Ele era da opinião de soprá-la para avivar o fogo; os dois arderiam em chamas antes que ela voltasse a afastar-se dele.
Agora que por fim via esse passado do ponto de vista de Julia, o acontecido depois adquiria sentido. Ela supôs que seu "pecado" a tornou vulgar aos olhos dele; envergonhara-a sua apaixonada resposta a sua sedução, no caso desse ser o tipo de coisas que ele fazia todos os dias.
E não era assim. Nem então, nem depois nem nunca. No encontro com ela simplesmente se sentira avassalado, dominado pela paixão, e saboreava cada momento em sua memória.
Mas não costumava seduzir jovenzinhas nesse tipo de festas.
O engano que cometeu foi acreditar que ela tinha uma mentalidade bastante liberal para desentender do estreito critério da alta sociedade com suas críticas e censuras.
Mas nem sequer um livre pensador pode escapar de certas convenções sociais.
Até esse momento.
Ela tinha suposto que ele, tendo a seduzido uma vez e sendo um Boscastle, era um malandro sem remédio. Muito bem, talvez fosse o momento de começar a agir como se o fosse. Se para conquistá-la era necessário ser um malandro, pois, era capaz de realizar o papel.
Na realidade, a única coisa que tinha de fazer era seguir seus impulsos instintivos.
E talvez vestir uma camisa.
***
No dia seguinte Heath parecia estar recuperado para ir com Julia dar um passeio em carruagem por Hyde Park. Assegurou-lhe que não lhe doía a cabeça.
Ela cedeu, mas não acreditou nele. Observou-o preocupada enquanto ele colocava a jaqueta no vestíbulo.
Ela inclusive insistiu em levar as rédeas da carruagem. Ante sua surpresa, ele não se opôs. Então ela supôs que sentia mais mal-estar do que o que queria reconhecer, ou talvez desejava manter-se em guarda, vigilante. Fosse qual fosse seu motivo, era evidente que não estava de ânimo conversador.
Claro que depois da noite passada, aos dois convinha pensar bem antes de revelar mais segredos. Dizendo-lhe a verdade, ela tinha se colocado na situação mais vulnerável que era possível imaginar. Por não dizer nada de sua desinibida reação a ele em seu quarto. Tinha acumulado seis anos de desejo insatisfeito. Comportou-se com muita falta de vergonha, quase aturdida pelo urgente desejo, embora aparentemente ele não desaprovasse isso.
Estava certa de que podia confiar que ele guardaria o segredo, tal como tinha feito nesses seis anos passados. Mas não preferiria que ele lutasse por ela?
Pela primeira vez compreendia que o que sempre desejou e esperou secretamente foi que lhe oferecesse um compromisso
apaixonado. A verdade se fez evidente quando foram pelo caminho circular do parque ao quente ar da tarde. A voz profunda dele só lhe reafirmou seu pesar.
- Compreendo que me odiasse depois do que aconteceu aquela vez - disse, como se também tivesse estado pensando muitíssimo no assunto. - Você era muito jovem. Nós dois o éramos, e eu não pude resistir. Isso não é nenhuma desculpa. Aproveitei-me de você.
Passou a mão por seu brilhante cabelo negro e encolheu os ombros, como pedindo desculpas. Ela puxou ligeiramente as rédeas, e não o olhou. Esses sensuais olhos Boscastle sempre a deixavam em desvantagem.
- Nunca o odiei.
- Graças a Deus. Merecia isso.
Ela esteve tentada a rir.
- Que par mais escandaloso somos - disse. Os dois eram igualmente culpados ou igualmente inocentes, dependendo de como olhasse a situação. - Na realidade, só tenho um motivo, só há uma coisa que não posso lhe perdoar jamais.
Sentiu-o virar-se ligeiramente para ela. Seu corpo a roçou como um ferro quente, sólido e forte, mas capaz de deixar uma dolorosa marca.
Um verdadeiro guerreiro sob uma aparência enganosamente indolente.
Sentiu uma revoada de emoção na boca do estômago.
- O que? - perguntou ele - O que é?
Ela olhou para dois jovens que passaram cavalgando junto a eles.
- O que é o que?
- Responda, Julia
Ela diminuiu a marcha da carruagem, temerosa de onde os iria levar essa conversa. Sim, era bom esclarecer coisas, mas, como ficaria depois?
Ele estendeu a mão por cima de seu colo para lhe tirar as rédeas.
Seus olhos escrutinaram seu rosto e nesse momento ela sentiu um estremecimento de compaixão por tantos inimigos que ele tinha enfrentado durante a guerra. Debaixo essa refinada beleza havia uma veia desumana, implacável. Sentia seu olhar como se fosse uma faca enterrando-se na alma.
- Ontem à noite nós dois confessamos coisas perturbadoras que deveríamos ter dito antes - disse ele. - Não tem nenhum sentido continuar com essa estupidez. Já temos idade para aceitar a verdade.
Ela mordeu o lábio inferior.
- Eu esperava que fossemos civilizado e esquecêssemos essa conversa. Foi muito dolorosa.
Ele não voltou atrás. Eram desumanos esses Boscastle quando se tratava de conseguir o que queriam.
- O que não me perdoou? - perguntou.
De verdade ela tinha esperado que ele tivesse piedade, fosse cortês e simulasse que não tinha exposto seu coração? Não. Desejava que ele soubesse. A verdade esteve apodrecendo dentro dela muitos anos. Pois, valia mais deixar que ele a tirasse, embora logo ela sangrasse até morrer. O mais seguro era que ele estivesse acostumado a isso. Os Boscastle de antigamente eram pessoas sanguinária nas batalhas.
Ele parou a carruagem no centro da pista circular. Estavam dificultando o tráfego do restante. Vários cavaleiros os olharam com curiosidade ao passar. Ela não estava acostumada a toda essa atenção.
Ele sim. Não havia um homem em sua família que não tivesse atraído a atenção desde que eram crianças.
- Muito bem, Sua Real Arrogância - disse. - Vou lhe dizer. E depois não vai querer voltar a conversar nunca mais.
Ele arqueou uma sobrancelha.
- Duvido.
Ela tirou uma luva.
- De verdade quer saber?
Ele aproximou o corpo ao dela.
- Julia, não vamos nos mover daqui enquanto eu não souber.
E dizia a sério. Não lhe custava nada imaginar os dois sentados na carruagem vendo passar as estações, e os empregados Boscastle lhes levando as refeições, carvão para os braseiros e mantas para o frio, e o pudim de ameixas para o Natal.
- Ah, pois, muito bem. - Sentiu oprimida e dolorida a garganta - Não lhe perdei que não tenha lutado por mim. Que não me tenha pedido que me casasse com você depois do que fizemos.
Relampejou a ira nos olhos azuis.
- Que não lutasse por você? - disse, com a voz rouca de incredulidade - Quem havia para lutar? Você?
- Sim!
Ele franziu os lábios.
- Disse que não queria voltar a me ver nunca mais em sua vida.
Disse que era um demônio, um libertino, um descarado, um... Fez-me jurar que a deixaria em paz. - Balançou a cabeça, sem confiança. - Me fez jurar sobre a tumba de minha mãe que fingiria que não tinha acontecido nada entre nós e que se alguma vez voltávamos a nos encontrar agiríamos como se fôssemos educados desconhecidos, me fez jurar que...
- Não disse a sério - interrompeu ela em voz baixa - Desejava que você me cortejasse, mas pensei que se lhe dissesse isso você me acreditaria uma leviana. Pensei...
- Não disse a sério - disse ele, começando a rir.
- Pois sim, muito a sério.
- Não poderia me ter dito isto um pouco antes? Digamos, cinco anos atrás ou algo assim? Quando poderia ter mudado algo?
Ela se afastou. Queria dizer que agora não mudava nada? E se não, por que estiveram juntos em seu quarto nessa noite passada?
- Não deveria ter dito isso.
- E teria se casado comigo, se eu tivesse ido ver seu pai e pedido sua mão?
- Não sei - respondeu ela, exalando um efusivo suspiro. - Sim, teria me casado com você. Sim, com certeza. Teria fugido para a China com você se tivesse me pedido isso.
Ele voltou a balançar a cabeça de lado a lado, absolutamente desconcertado.
- Mesmo que eu já tivesse pedido que voltássemos a nos ver e você se negou?
- Isso só o fiz porque supus que me pedia porque estava sendo um cavalheiro.
Soltando o fôlego, ele puxou as rédeas que tinha tirado dela. Sob sua perita direção, os cavalos avançaram pelo caminho. Julia o observava pela extremidade do olho. Estava claro que a nenhum dos dois era fácil falar sobre o passado.
- Julia - disse ele, depois de um momento, em voz baixa. - Após isso tive suficientes experiências com mulheres para entender sua lógica. Ou sua falta de lógica.
Ela respirou fundo para serenar-se.
- Agora deve me achar não só uma leviana, mas também uma idiota. Uma idiota imoral e com uma língua solta. Uma...
- Por que se casou? - perguntou-lhe ele.
Recordou como se sentiu furioso, como estava a ponto de embarcar rumo à Índia quando soube que ela iria se casar. Estava a meio caminho para o cais, como um louco, quando percebeu que quando chegasse lá ela estaria casada e já teria consumado seu matrimônio. Que tinha proibido que voltasse a conversar com ela.
- Casei-me porque ele me pediu e você não.
- Pedi para fugir comigo - disse ele, sombriamente.
- Pensei que não dizia a sério - respondeu ela tranquilamente. -
Disse a sério?
- Provavelmente.
Ela arqueou as sobrancelhas.
- Provavelmente? Isso não é nada concreto, não?
- Pensei que voltaria dentro de um ano - disse ele, olhando-a sério.
- Essa era nossa intenção - disse ela, olhando-o séria também. - Eu achei que pensava ir lutar na Índia com seu irmão Brandon.
- Essa era minha intenção, mas... - escureceu-lhe o rosto como se estivesse na borda de uma violenta explosão de fúria - mas Russell me convenceu de que fosse para Portugal com ele.
- Russell?
Relampejaram-lhe os olhos.
- Convenceu-me de que seríamos heróis, ele e eu.
- Foram heróis - disse ela, com uma voz fraca. - Ele tinha razão.
- Ele manipulou nossas brilhantes carreiras militares - disse ele entre dentes.
- É muito bom para manipular.
Ele estreitou os olhos.
- Um absoluto professor. Por isso ganhou todas essas medalhas.
Julia olhou ao redor. Os cavalos estavam nervosos, como se percebessem a forte mudança de humor do cocheiro. Com razão Heath controlava tanto suas emoções. Dava medo só ver acender-se seu mau gênio. Uma pessoa sensata não desejaria estar perto dele quando explodisse.
O que deveria fazer? Acalmá-lo?
- Na realidade, os dois o são - disse, sorrindo alegremente.
Ele a olhou sério.
- Nós dois somos o que? Professores da manipulação? Pode ser que sim, pode ser que não, mas parece que eu não manipulei muito bem minha vida. Em todo caso, o que pretende me dizer?
- Quero dizer que os dois têm, ou tiveram ou terão brilhantes carreiras militares.
Ele soltou um grunhido.
- Talvez ele adivinhasse o que eu sentia por você.
Ela o olhou boquiaberta.
- De verdade acredita nisso?
Ele refreou os cavalos.
- Não, claro que não - disse, com a voz rouca de fúria. - Mas me sinto melhor jogando a culpa em outro.
E soltou uma maldição.
Ocorreu a Júlia lhe perguntar o que sentia por ela agora, e então, mas claro, esse não era o tipo de pergunta que pode fazer uma mulher comprometida com seu amigo. E não no meio de Hyde Park, logicamente. Além disso, ele continuava resmungando maldições, e parecia muito furioso, muito alterado, muito... belo. Nunca tinha visto Heath tão alterado desde a primeira vez que estiveram juntos. Era uma tentação provocá-lo.
Limpou a garganta.
- Bom, o que pensa?
Ele a olhou brevemente, com a expressão inescrutável. Já tinha deixado de amaldiçoar. Não iria estalar em um ataque de ira depois de tudo.
- Não sei o que pensar. O que pensa você?
Ela pensava que ele ocultava muito bem seus sentimentos.
- Penso... - horrorizou-se ao olhar o arenoso caminho. - Penso que vamos bater nesta carruagem.
***
Não bateram. No último momento Heath desviou a carruagem para perto, evitando habilmente a colisão com uma muito cara carruagem negra. O jovem cocheiro, vestido de negro, saltou da boleia, aparentemente para desculpar-se.
- Correção - disse Heath, com voz dura. - Ele esteve a ponto de se chocar conosco.
- É Brentford - disse Julia.
Ele arqueou as sobrancelhas.
- Parece surpresa.
Brentford se aproximou com seus grandes passos até eles, com sua capa negra agitada pela brisa. Mostrava-se cansado, com olheiras, o que ressaltava seus olhos escuros aquosos.
- Ouça, não era minha intenção assustá-los.
- Então por que o fez? - perguntou Heath, impaciente. - Este é um parque, Brentford, não uma pista de corridas. O que queria demonstrar?
- Bom, na realidade, queria... - Olhou para trás e pareceu perplexo -
Queria aparecer ante um amigo, meu instrutor de esgrima. Ele queria cronometrar meu avanço, mas não está. Partiu.
Heath exalou um suspiro.
- Não seria melhor que fosse reunir-se com ele, então?
Brentford ruborizou ao olhar furtivamente para Julia, desanimado.
- Boa ideia. Isso se conseguir encontrá-lo.
Girou sobre seus calcanhares e começou a andar em sentido contrário.
- Em sua carruagem, Brentford - lhe gritou Heath. - Não me diga que vai deixar essa maldita carruagem no meio do caminho.
- Pobre Brentford - murmurou Julia, balançando a cabeça penalizada. - O deixa tão nervoso que não sabe se vai ou vem.
Ele a olhou, rindo a contra gosto.
- Decididamente vai. Não tem por que se compadecer dele, Julia.
Não pôde ser uma casualidade que quase se chocasse conosco.
Ao ouvir suas vozes, Brentford se virou e ao retroceder se chocou com seu cavalo.
Heath voltou a suspirar.
- Talvez sim. Que idiota, conduzir assim. Alguém poderia ter morrido.
- Isso é um pouco exagerado, não lhe parece? - disse ela, divertida.
- Pois não. Eu poderia tê-lo matado aí mesmo.
- Por conduzir assim?
- Não - disse ele passado um momento - Por olhar para você.
Olhou-a nos olhos e lhe sustentou o olhar, com um feiticeiro e extasiado sorriso brincando nos lábios. Julia sentiu uma onda de calor líquido por todo seu corpo.
- Por me olhar?
- É meu trabalho, não?
- Bom...
- Bom o que? Quer que lute por você ou não? Parece-me que este é um momento tão bom como qualquer outro para começar, levando em consideração que já perdemos seis anos.
Julia não pôde evitar; começou a rir como uma louca. Que maravilhoso ser sincera com esse homem.
Passado um momento, quando Heath, sorridente, conduzia o carro em meio às portas, ela viu as inchadas nuvens que estavam se reunindo no céu em uma ominosa massa. Olhou para trás, pensando que Brentford ficaria preso sob um aguaceiro. Mas quando virou a cabeça para voltar a acomodar-se no assento, lhe apagou a risada.
Sentiu descer um calafrio pela coluna. Acabava de ver um homem, que estava do outro lado da cerca, tirar o chapéu olhando-a, em um gesto impertinente, zombeteiro, como se estivesse observando o tempo todo furtivamente o encontro deles com Brentford. O homem estava
sozinho, com uma bengala sob o braço. E antes que lhe visse o rosto se virou e se apressou a misturar-se com os pedestres que iam saindo depressa do parque para escapar da iminente chuva.
- O que acontece? - perguntou-lhe Heath. - Brentford se chocou com alguém?
- Não, foi...
O cotovelo dele roçou com o dela e se esqueceu do homem que tinha estava observando-os
- Brentford não poderá ficar a resguardo da chuva - murmurou.
- Estupendo - disse ele, adiantando-se habilmente a uma carruagem de quatro portas que ia muito lenta. - Isso espero.
Capítulo Dezesseis
Nesse mesmo dia, Heath convidou Julia para jantar na mansão de seu irmão Grayson em Park Lane. Seu impulso natural foi aceitar, embora depois dessa franca conversa no parque não sabia como deviam agir um com o outro. Ficou claro que nenhum dos dois tinha a intenção de falar com tanta franqueza. Em grande parte ela agradecia a oportunidade que se apresentou para trazer a luz seus sentimentos, mas sabia que a sinceridade nem sempre era útil. Muitas vezes a sinceridade criava mais problemas que os que resolvia.
Teria escandalizado a ele? Não, com certeza não, embora tivesse obtido dele uma reação inesperada.
Não podia deixar de pensar em quão diferente teria sido tudo se nesse tempo ela tivesse tido a coragem que tinha agora. Não teria fugido dele.
Aceitou o convite para o jantar. Hermia aceitou a contra gosto ir à ópera com Odham, e ela não estava nada segura de poder confiar em si mesma se ficasse sozinha com Heath em casa essa noite. Não, nada segura, e muito menos tão logo depois dessa emotiva sessão de revelações. Ocorreu-lhe que Grayson e sua mulher poderiam ajudar a
mitigar a tensão entre Heath e ela.
Não demorou para comprovar que estava horrorosamente equivocada. Qual um par de demônios, os irmãos Boscastle aparentemente se apoiavam mutuamente tanto na enfermidade como no pecado. Aconteceu que Grayson estava mais que entusiasmado por reacender as faíscas entre ela e Heath.
A mansão do marquês de Sedgecroft a fez pensar em um palácio em pequena escala. Elegantes afrescos gregos com orla dourada adornavam as paredes, e enormes espelhos intensificavam a sensação de luz e espaço. Os empregados apareciam como por arte de magia, fosse para pegar sua estola de seda verde ou para lhe retirar a cadeira.
Esses mesmos empregados desapareciam como fumaça no instante em que não os necessitava. Dizer que o ambiente gotejava riqueza e comodidade era dizer pouco.
Os delicados sapatos de noite se afundavam nos macios tapetes persas que cobriam o brilhante chão de carvalho escuro quando a conduziram à sala de jantar e a sentaram ante uma imensa mesa de mogno entre Heath e seu irmão o marquês, homem muito sociável que trazia à mente a imagem de um leão dourado. Realmente se cheirava a conspiração na casa. Ela se sentia como um peão em um tabuleiro de xadrez. Mas essa não era uma sensação de todo desagradável. Menos ainda quando os cavilosos olhos azuis de Heath se encontravam com os dela com frequência e lhe sustentavam o olhar. Estar na presença de dois Boscastle dominantes a fazia sentir-se protegida e... possuída. Uma simples mortal não poderia combater isso. Uma mulher prudente não se atreveria a tentá-lo.
O jantar transcorreu de maneira impecável. Chegado o momento das sobremesas, Heath e Grayson se levantaram e se desculparam para ir um momento conversar em privado no escritório do marquês.
Jane, a marquesa de cabelo mel, sorriu-lhe afetuosa do outro lado
da mesa. Esteve curiosamente calada durante o jantar, observando seus convidados.
- Só tenho um conselho para você, querida minha. Tome cuidado.
Julia olhou com fingido medo o pedaço de bolo de queijo que tinha no prato.
- Veneno?
- Mais perigoso ainda - disse Jane, e acrescentou diminuindo a voz, com os olhos brilhantes à luz do candelabro de prata: - Sedução.
Julia deixou o garfo na mesa.
- Sedução?
- No clássico estilo Boscastle. - Suspirando pesarosa, e encostou-se à cadeira. - Isso é a única coisa que tenho permissão para dizer, havendo me casado com um destes diabos. E tendo concebido um -
acrescentou, entrelaçando os dedos sobre o abdômen em gesto protetor.
- Mas... que tome cuidado?
- Ou desfrute. O que for seu desejo. Heath é um homem imensamente atraente, e você esteve casada. Acredito que sabe como levar isto.
- Sedução? -repetiu Julia, como se estivesse surpresa, embora tivesse visto todos os sinais. Mas à vista de sua família? O que podia significar isso - Tem certeza?
- Acredite, Julia, de uma que foi seduzida.
- Bom, o que tenho que fazer, então?
- Saboreie. Desfrute. É algo delicioso.
Julia começou a rir.
- O que faço se ele tentar me seduzir?
O delicado rosto de Jane resplandeceu de travessura.
- Acabo de lhe dizer. Saboreie. Desfrute.
***
Grayson serviu uma boa medida de conhaque em sua taça e se
acomodou no sofá esticando suas longas pernas.
- Dar-lhe-ei outro conselho, já que isto parece ir muito a sério. Não avance muito rápido com ela. Tome seu tempo.
- Seis anos não é o que eu chamaria fazer uma corrida - disse Heath, sorrindo irônico.
- Bom, esperou todo esse tempo - disse Grayson, fazendo virar o líquido âmbar na taça. - Faça-a desejá-lo. Faça-a arder.
Heath se sentou na beira da poltrona.
- Compreenda. Eu vou arder ao mesmo tempo.
Grayson soltou uma risada rouca, maliciosa.
- É claro. Por isso vai agir com supremo cuidado. Convém-lhe acender a paixão momento a momento, beijo a beijo, carícia a carícia.
Que aqueça a fogo lento. Qualquer idiota pode explodir em chamas. -
ficou sério. - Acredito que já sabe tudo isto.
Heath negou com a cabeça.
- Nunca antes tinha me importado tanto.
- Bom Deus - exclamou Grayson. - É fatal, não?
- Como disse?
- Tem vários dos sintomas. Acredite, eu sou uma vítima.
Heath tirou um charuto do bolso de seu colete.
- Fala sem nenhuma lógica.
- O amor não tem lógica - grunhiu Grayson.
- Amor? - disse Heath, abaixando o charuto para olhar a seu sorridente irmão. - Sintomas?
- Os Seis Sintomas Mortais de um Homem Apaixonado.
Incapacidade para pensar com lucidez?
- Bom, sim tenho a cabeça muito confusa - disse Heath, sorrindo a seu pesar. - Julia é todo um desafio.
- Está sorrindo.
- Sim?
- Normalmente está sério. E o segundo sintoma é uma alarmante propensão a sorrir nos momentos mais estranhos.
- Este é um momento estranho? - replicou Heath.
Grayson estreitou os olhos.
- Sintoma três: Pensamento constante no objeto de desejo.
- Pelo amor de Deus, Grayson.
- É ou não é o objeto de seu desejo? E pensa ou não pensa nela constantemente?
Heath jogou para trás a cabeça. Sua negativa em responder foi muito reveladora.
- Quatro: Absolutamente nenhum interesse em outros membros do sexo oposto.
Heath manteve absolutamente silêncio.
- Cinco: Uma surpreendente boa vontade para o mundo em geral.
Heath endireitou a cabeça.
- Isso me deixa fora. Odeio ao mundo em geral.
- E sexto - concluiu Grayson, em voz mais baixa - excitação sexual perpétua.
- Terminou?
- Não, só começava a me entusiasmar com um de meus temas favoritos.
- Você adora isto, não é?
- Faça-a cair de joelhos - continuou Grayson, esboçando um rebuscado sorriso. - Em sentido figurado, quero dizer, ou no sentido físico, se você gostar disso. Descobriu já sobre seu infiel Russell?
- Não.
- Não quer uma ajudinha nesse sentido?
- Não. De maneira nenhuma. Não quero que sofra, e não desejo conquistá-la por falta de adversário.
- Não tem uma eternidade. Quando voltará Russell?
- Não soube nada. Nenhuma palavra. É muito em breve, em todo caso.
Grayson ficou em silêncio um momento.
- Há alguma possibilidade de ter morrido?
Heath se levantou da poltrona.
- Não vejo nenhuma. Provavelmente está ganhando astutamente a boa vontade de Wellington, e imagino que por outro lado há uma ou duas parisienses bonitas.
- Então ao diabo com ele. Grayson levantou a taça em fingido brinde. - Não esqueça meu conselho. Faça-a arder.
***
Julia percebeu o instante em que Heath voltou para sala de jantar; um delicioso formigamento lhe percorreu toda a pele. Estava conversando com Jane sobre o desejo de ambas de visitar Louvre para admirar seus tesouros de arte roubados quando ele e Grayson se reuniram de novo com elas. Imediatamente Julia sentiu o olhar de Heath.
Desceu os olhos, simulando que não percebeu, enquanto o coração lhe subia de um salto a alojar-se na garganta, retumbante.
Sedução. Isso foi o que lhe disse Jane, lhe assegurando que ela passou pela experiência. Seria possível? Levantou os olhos para corresponder a seu olhar e sentiu vibrar uma corrente de emoção por toda ela. Ele se sentou em sua cadeira com uma elegância tão natural que ela exalou um forte suspiro, que o incitou a sorrir, com esse sorrisinho secreto de sua boca sensual que lhe voltou a acelerar o pulso.
Grayson ocupou seu posto na mesa.
- Temos que convidar Heath e Julia a Kent, Jane, na próxima semana, para nossa pequena reunião familiar.
Jane desceu o guardanapo que levou a boca.
- Nossa o que? Ah, sim, me esqueci santo ao céu.
- Não se desculpe por ser esquecida, meu amor - disse Grayson,
olhando-a com um terno sorriso. - Isso acontece com frequência às futuras mamães.
- Sim? - perguntou Jane, dilatando os olhos - Não tinha ideia de que estivesse tão versado no tema. Nos ilustre mais.
Heath olhou para Julia e lhe sorriu. Correspondeu-lhe ao sorriso e se relaxou, apesar de sua convicção de que os dois irmãos estavam tramando algo que tinha a ver com ela.
Grayson se ajeitou em sua cadeira, imperturbável.
- Bom, minha mãe teve seis.
- E boas peças éramos - disse Heath, olhando para seu irmão divertido. - Julia e nós adoraríamos ir. Você gosta do campo, não é, Julia?
Ela olhou para Jane, quem encolheu levemente os ombros e negou com a cabeça, lhe indicando que isso escapava a sua influência.
- Sim, mas Hermia...
- Na realidade foi Hermia quem sugeriu - disse Heath com a voz sedosa e uma atitude muito solícita. - Hermia pensou que estivesse muito esgotada e nervosa depois do incidente do jardim.
- E a revolta de rua - acrescentou Grayson. - Que experiência mais horrorosa deve ter sido isso. Espantoso, ficar preso em meio de uma multidão de revoltosos.
Julia conseguiu esboçar um sorriso com os lábios tensos, sentindo-se arrastada e afundando na conspiração dos irmãos.
- Sim, foi absolutamente terrível. Lançaram um ovo em Heath.
Ainda tenho pesadelos, gema por toda parte, em sua manga, em sua mão.
- Sim? - disse Grayson, pestanejando. - Os ovos voadores podem ser muito perigosos, sobre tudo se estiverem podres.
- Ah, pois sim, foi quase tão aterrador como quando, na Índia, me encurralou um tigre no jardim ao cair à noite - exclamou Julia. - Quase,
mas não igual.
- Hermia está preocupada com você - disse Heath com olhar sombrio.
- Que bons são todos, ao se preocuparem tanto comigo - disse ela.
- Me sinto tão delicada que não sei se conseguirei chegar à porta sem ajuda.
A isso seguiu um longo silencio. Heath continuou sentado com sua serenidade de Esfinge enquanto Grayson dobrava seu guardanapo lhe dando a forma de um barco.
- Heath - disse Grayson ao fim - mostrou a Julia a nova galeria italiana? - olhou para Julia sorrindo. - Jane a desenhou de modo que fosse uma réplica da que há em sua casa.
- Não - disse Heath, animando-se.
- Que esplêndida ideia - exclamou Grayson - sabendo quanto lhe interessa a arte. - Esfregou as mãos encantado, como se não tivesse sido ele quem fez a sugestão. - Sabe o caminho, não é verdade?
Capítulo Dezessete
Era realmente um cenário disposto com extraordinária habilidade para uma sedução clássica, pensou Julia, irônica, contemplando, melancólica, a bem iluminada galeria.
No canto havia um sofá macio e convidativo, e sobre uma mesa baixa da China com pernas em garras de leão, um vaso com formosos e abundantes linhos. O afresco pintado no teto de gesso representava querubins com elmos. Nos painéis da parede se erguiam estátuas de mármore de deuses da antiga Roma de tamanho natural.
Parou ante uma virginal vestal derramando água de uma ânfora e a admirou por forma ostentosa.
Mostrava-se inquieta, com os nervos em ponta, mas não tinha medo, e nem sequer se sentia ofendida. Talvez estivesse um pouco desconcertada pelo que lhe havia dito Jane.
Sentia mais curiosidade que qualquer outra coisa. A tentação parecia condensar-se no ar. Estava a sós com Heath em uma sala desenhada para favorecer a intimidade.
Onde estava sua força de vontade quando a necessitava? E quais eram exatamente as intenções dele?
De qualquer modo, estava tão fascinada que seria impossível resistir e impedir algo se ele desse o primeiro passo. De seu pai tinha herdado algo de seu gosto pelo jogo, de sua paixão pela vida. Ensinou-lhe com exemplo que é necessário arriscar-se de quando em quando.
Alarmava-a quão intensa tinha continuado sua atração secreta por Heath ao longo desses anos. Teria se reforçado e aprofundado sozinha, sem intervenção dela? O coração lhe deu um salto de pena ao pensar no que poderia ter perdido, e no que perderia. Ele era um homem único, mas o tinha perdido. A quem podia culpar se não a ela mesma, pelas decisões que tinha tomado? Existiria a possibilidade de criar entre eles um futuro apoiando-se no ocorrido no passado?
Ele se aproximou por trás e lhe evaporou a ansiedade, substituída por um torvelinho de emoção mais agradável e intensa. O calor que emanava de seu sólido corpo lhe fez descer um estremecimento dos ombros às pontas dos dedos. Ele roçou a nuca com seu duro queixo.
Seu moreno e irresistível Boscastle. Desejou deitar-se em seus braços e simplesmente render-se a seu encanto.
- O que lhe parece meu irmão? - perguntou ele, em voz baixa, divertido. - Muito sutil, não é verdade?
- É encantador.
- Um patife encantador.
Ela se virou bruscamente, pensando se seria possível agarrá-lo com a guarda baixa. Mas ele se manteve firme e a deixou mudar de posição sem aproximar-se nenhuma polegada para segurá-la ou ajudá-
la. Então o olhou e sentiu a força latente de seu corpo tão perto do dela.
Ele apertou as comissuras da boca em um leve sorriso.
Ela era consciente de que estava muito perto dele, mas seria capaz de ficar horas derrubando-se em sua viril presença. Era tão encantadoramente masculino que a fascinava.
- Os dois são uns patifes, diria eu - murmurou, passado um momento.
- Eu? - exclamou ele levando uma mão ao peito. - Com o cavalheiro que sou?
- Um cavalheiro patife então. Você é mais sutil, portanto muito mais perigoso para o coração feminino.
- Julga-me injustamente - disse ele rindo.
- Não estou em posição para julgá-lo de maneira nenhuma.
- Talvez devesse - disse ele, arqueando as sobrancelhas.
Ela ficou em silêncio, sem saber o que dizer. Sabia que ele queria leva-la a algo, mas a que, não conseguia imaginar. A algo inegavelmente convidativo.
- O que quer dizer?
- Quero dizer que prefiro que me julguem injustamente a que me ignorem.
Voltou a rir.
- Como se alguém pudesse ignorar um Boscastle.
Ele sorriu irônico em resposta a esse comentário e lhe pegou suavemente o cotovelo.
- Vamos sentar. Jane está tocando piano no salão, com a esperança de ter um filho de natureza afável. Escute.
- Acha que isso resultará? - perguntou ela, deixando-se levar pela sala.
À tentação.
Ele a levou para o sofá estofado em cetim castanho rosáceo que estava em um canto na sombra. Por baixo chegavam as notas do piano,
uma comovedora melodia inglesa, e a música tinha um efeito calmante e mágico nela, lhe adormecendo os sentidos.
Quando estavam perto do sofá, ele parou para deslizar o indicador pela curva de uma maçã de seu rosto. Ela segurou o fôlego, paralisada, e ele continuou a carícia até as elevações de seus seios. Formigaram de expectativa os mamilos. Acumulou calor nos lugares ocultos de seu corpo.
- Acho que me fez uma pergunta - disse ele, aproximando sua boca a dela - mas, por minha vida, não recordo o que foi.
- Foi...
Cortou-se a voz, apenas consciente da tortura dos firmes lábios dele lhe roçando a comissura da boca, logo depois sua língua brincando com a dela, induzindo à submissão. Seus beijos seriam capazes de seduzir às estátuas que havia atrás.
- Foi? - perguntou ele, peralta.
- Não me lembro.
E não se lembrava, Deus a amparasse. No único que era capaz de pensar era ele.
- Talvez tenha outras coisas na mente.
Ela decidiu que morreria se ele não deixasse de brincar e a beijasse de uma vez. Entretanto todos seus instintos lhe advertiam que o precário equilíbrio entre eles tinha mudado. A favor de quem? Isso dependia de como desejava que terminasse sua relação com ele. Ou não terminasse.
Abrandou-lhe o corpo e se apoiou nele, atraída por seu poder masculino. O resplendor das velas em candelabros de ferro forjado dava um quente tom rosa à galeria.
No resplendor do sonho de luz e a comovedora música de fundo que estava tocando Jane lhe baixavam as defesas.
- Há outra coisa que parece que nós dois esquecemos - disse
passado um momento de hesitação.
Ele voltou a lhe roçar os lábios com essa boca tão bem cinzelada, excitante, convidativa.
- E isso o que é?
- Estou comprometida. Com Russell.
Ele a olhou nos olhos, com um olhar ardente, absolutamente sensual.
- Mmm. Isso não tem por que ser um problema.
Deu-lhe um salto o coração.
- Não?
- Bom, não está aqui, não é verdade?
- Não estará ausente eternamente.
- Eu me encarregarei dele.
- Se... encarregará dele? - meio gaguejou ela; esse era outro lado de Heath que nunca tinha visto. Ele a ia levando pouco a pouco para o sofá. - Se encarregará dele? – repetiu - Não querer dizer que lutaria ou faria alguma outra coisa tão pouco civilizada, não é verdade?
Pelo rosto dele passou a insinuação de um sorriso possessivo, e a olhou de cima abaixo.
- Bom, se chegar a isso... Não se considera uma mulher digna de que se lute por você?
Ela sentiu o braço macio do sofá nas panturrilhas e curvas. Sentiu as pernas fracas. As sensações lhe formaram um nó no estômago.
- Isto não é próprio de você, Heath.
- Sim, é. - Acariciou lhe a curva do quadril com a palma e um estremecimento de desejo a percorreu toda. - É mais próprio de mim do que ninguém sabe.
Deslizou a mão pelas costas para agarrá-la mais firme. Desceu o olhar para sua boca e parou aí tanto tempo que os lábios dela se abriram, convidando-o.
Ele aceitou o convite, com os olhos escurecidos e abaixou a cabeça. Beijou-a antes que ela pudesse recuperar o fôlego. Inclinou a boca sobre a dela e aprofundou o beijo, até que ela não conseguiu continuar em pé. Foi para trás o corpo, firmando no braço dele, e ele a desceu até o assento. Uma onda de excitação nublou seus sentidos.
Ele gemeu, lhe devorando a boca.
- Ooh, Julia.
Já não estava travesso nem brincalhão; de seu duro corpo masculino emanava calor. Esse era um beijo de amante, carregado de fogo, de avidez sexual; uma declaração de sua intenção de possui-la.
Apoiou as costas na curva de seu braço, com seus olhos fixos nos dele.
O sorriso que passou pelo rosto dele prometia sedução, oferecia confiança e intimidade.
- Aqui estamos - disse ele, e sua voz lhe fez descer outro estremecimento de prazer pelas costas.
- Por fim - murmurou, com a respiração retida.
Sentia certo estar com ele, por muito tempo que lhe tivesse levado achar o caminho de volta de onde começaram. Sentia-o correto de uma maneira que nunca sentiu com seu finado marido, nem com Russell.
Ele alargou o sorriso, devorando-a com seu olhar.
- Desta vez não vou deixá-la escapar.
- Isso espero - disse ela, com uma voz fraca.
Pressionando-a com o joelho ele entrou e afundou mais no sofá.
Ouvindo o frufru da seda de seu vestido, ela se afundou no assento, bem disposta, com o corpo receptivo ao que fosse que ele exigisse. Seus ossos se liquidificaram; estava ansiosa para que ele a acariciasse.
- Entendemo-nos? - perguntou ele, com a voz rouca. - Não voltarei a permitir que se afaste de mim, diga o que diga ou faça o que faça Russell.
- Entendo. Não sei se ele irá querer.
- Isso não importa. Deixa que eu me encarregue dele.
- Estamos destinados a reviver nossos enganos?
Escureceram-se mais seus maliciosos olhos.
- É minha intenção remediá-los.
- Acho muito interessante este remédio - murmurou ela.
- Ah, sim?
Ela fez uma inspiração. Sentia-se como se estivesse sonhando.
Jamais esperou ter essa oportunidade com ele. Era muito. Sua própria sensualidade a avassalava.
Ele se inclinou sobre ela, com os olhos ardentes, e lhe deixou uma fileira de beijos pela clavícula baixando até as elevações de seus seios.
Movendo em círculo a língua lambeu os mamilos por cima do fino tecido do vestido. Ela sentiu correr fogo pela pele.
Ele subiu a mão livre por seu joelho, lhe acariciando o corpo por cima do fino vestido como se quisesse esculpi-lo.
Cada curva, cada elevação, cada fenda conheceu sua excitante carícia, e ela o permitiu, sem fazer nenhum segredo de seu prazer.
Explorou-a, inflamou-a de desejo com o desumano erotismo de um professor. E nem sequer tinha lhe tirado a roupa. Curiosa, imaginou o que poderia lhe fazer na cama; o que poderiam fazer-se mutuamente.
Desejava dar prazer a ele também.
- Agora está aqui comigo, Julia - murmurou ele. - Se Russell não queria arriscar-se a perdê-la não deveria me ter enviado para protegê-la em lugar dele.
Faça-a arder. Faça-a arder.
Heath afastou da mente essas estimulantes palavras, mas não a estratégia. O conselho de Grayson parecia funcionar ao contrário. Era ele quem estava ardendo até o fundo de seu ser. Mas era um homem paciente; um homem que obtinha o que desejava.
O que desejava estava tentadoramente posicionada debaixo dele,
com os olhos nublados de desejo. Sorrindo levantou a mão, pegou-lhe a borda do decote e lhe deu um ligeiro puxão. Ela estremeceu quando o ar fresco da galeria lhe roçou os seios nus. Via-se deliciosamente calma, os seios brancos como leite fora do vestido, os mamilos rosados e sedutores. Sentiu vibrar seu membro duro dentro da calça.
- Heath - disse ela, retendo o fôlego - faz um pouco de frio aqui.
Ele desceu a cabeça e pegou um inchado mamilo introduzindo-o no calor úmido de sua boca. Inundou-o um feroz desejo, que percorreu vibrante por suas veias.
- Assim está melhor? - sussurrou.
Continuou lhe sugando o mamilo até que ela fechou os olhos suspirando de prazer. Com toda a suavidade que lhe permitia seu doloroso desejo pegou o outro mamilo rosa escuro entre os afiados dentes e lhe acariciou a ponta com a língua.
Julia gemeu e afundou o rosto em seu braço. Então ele subiu lentamente a mão por sua perna por debaixo do vestido até lhe acariciar o interior da coxa.
- Aqui não sente frio, não é? - murmurou. - Vejamos o que posso fazer para solucionar o problema.
- O problema é você, demônio - sussurrou ela. - Estou tremendo toda por sua causa.
-Bom, aqui a sinto muito quente, querida, e muito molhada.
- Enganou a todos - disse ela, mordendo o lábio. - É mau.
Ele riu, afastou-lhe as pernas com a mão e lhe explorou com os dedos a fenda do sexo.
- Seria menos mau se lhe pedisse educadamente?
- Não, certamente não.
- Por favor, Julia, por favor, deixa-me fazer o que desejei fazer durante anos?
- Pedi-lo assim faz você parecer mais mau ainda, como sabe muito
bem.
- Sabe o que dizemos sempre os Boscastle?
Mudou de posição, introduzindo o joelho entre suas pernas e lhe separando mais as coxas, deixando-a em uma postura indecente. Tinha a saia levantada até os quadris.
- Não, e talvez não devesse dizer - murmurou ela com a voz afogada; tinha o coração na garganta.
- Há um tempo para ser prudente e um tempo para ser temerário. -
Roçou-lhe as partes inferiores dos seios com a mandíbula suave, raspada. - Por desgraça minha família costuma escolher sempre ser o último.
- E todos pensavam que você era diferente.
- O que pensa você?
- Não estou pensando. Esse é o problema. - estremeceu, gemendo e arqueando-se para ele. - O que vai fazer?
Acariciou-lhe as dobras do sexo e sussurrou com sua sedutora voz sobre seus seios:
- Farei tudo o que me permitir. Tudo.
E o faria. Não conseguia imaginar um homem vivendo com Julia sem pegar todo o prazer de sua natureza apaixonada. De repente lhe ocorreu a ideia de se a paixão dela não seria algo que só ele podia provocar. Esse pensamento lhe produziu uma imensa satisfação, mesmo porque seu corpo ansiava a liberação. Desejava ser ele o único capaz de deixá-la louca de desejo. Fazia isso com ele. Sua experiência dava a ele uma pequena vantagem. A não ser que... quanta experiência teria ela?
Pressionou-a mais sobre o sofá macio. Como a desejava, como a necessitava, como se deleitava em descontrolá-la. Podia ser uma mulher forte, mas nesse acampo ele a dominaria. Segurou-lhe o brando corpo com o seu mais duro. Com a boca recolheu os gemidos guturais que ela não podia reprimir. Introduziu outro dedo em seu molhado canal,
apertando a mandíbula para controlar o desejo dele.
Seduziria-a passo a passo, embora depois ele mal pudesse caminhar. Sentia-se perigosamente perto de cair em um abismo. Tinha conhecido alguma vez esse desejo tão devorador? Sentia virar a cabeça com a cega chama vermelha de seu desejo.
- Heath - murmurou ela, lhe agarrando o antebraço. - Estamos na casa de seu irmão. Não deveríamos parar?
- Ainda não.
Ia aumentando vertiginosamente o desejo e o prazer. Estava presa por uma força que lhe exigia render-se inteira. Percebia a necessidade dele, via-a em seu rosto tenso o cru desejo enquanto a levava a um orgasmo que quase lhe parou o coração. Estremecendo até o fundo de seu ser, acreditou que não se recuperaria nunca.
Arqueou as costas quando a avassalaram as violentas contrações de prazer. Segurou as dobras de seu fraque negro, enterrando os dedos e aferrando-se com tanta força que seus dedos ficaram brancos. Durante esse momento foi tão só o que pôde fazer, enquanto se esforçava para respirar.
Recuperou a consciência pouco a pouco, e com ela chegou a vergonha, e o pesar de que tivessem perdido tanto tempo, e um desejo mais profundo, um despertar de emoções reprimidas. Vacilou em voltar a olhá-lo. Tendo sido uma total esposa, sabia que ele não tinha aliviado sua necessidade. Lentamente recuperou o autodomínio e a razão.
Mesmo assim, desejava mais dele; desejava lhe proporcionar um prazer similar, inteirar-se do que lhe produzia satisfação. Quase chorou pela dor da separação quando ele se afastou e ficou sem o calor de seu duro corpo. Não, isso não tinha sido suficiente. Nem para ele nem para ela.
Tinha lhe derrubado todas as defesas. Olhou em seus olhos escurecidos e sentiu uma pontada de prazer proibido. Não viu
brincadeira nem travessura em seu rosto; só viu uma sensualidade nua, que a fez estremecer, e uma promessa de que esse não era o final.
- O que vai acontecer agora? - disse, pensando em voz alta, sentindo a mão dele fechar-se sobre a dela.
- Não acontecerá nada, tudo está bem, Julia. Eu darei um jeito no que for que se apresente.
- Tenho a impressão de que será mais difícil do que o faz parecer.
Russell não tomaria bem sua rejeição, mesmo que a tivesse traído.
Mas ela já não podia casar-se com ele. Desejava Heath. Ofereceria-lhe ele um futuro? Uma relação temporária? Uma posição como esposa ou como amante? Desejava ser ambas as coisas. Deveria ter sido dele desde o começo.
Submeteu-se quando subiu e arrumou espertamente a blusa de seda clara. Engenhoso demônio. Que homem mais malandro e maravilhoso, tão cheio de segredos e poder sexual. Olhou-o dissimuladamente e lhe acelerou o coração ao ver a escura paixão em seus olhos.
Como podia parecer tão sereno, tão elegante e aniquiladoramente atraente quando ela acabava de romper-se em mil pedaços? Bom, isso era injusto.
- Parou a música – exclamou. - Aonde se foram Jane e Grayson?
Ele curvou a boca em outro sorriso, essa boca tão sensualmente modelada. Os ângulos marcados de seu rosto, os musculosos planos e contornos de seu corpo, tinham a clássica beleza das estátuas masculinas da galeria. Adorava sua calada força, seu humor. Achava belo e puro estar com ele assim. Russell consideraria sob essa perspectiva suas aventuras amorosas? Haveria lhe dito que iria ter um filho com outra mulher?
- Eu não me preocuparia com Jane e meu irmão - disse ele. - Esta é sua casa, e embora seja monstruosamente grande, não vão se perder
nela.
- Mas poderiam vir aqui.
- Não virão - tranquilizou-a ele.
- Não serei capaz de voltar a olhar seu irmão nos olhos.
Ele a pôs em pé.
- Acha que a Grayson é desconhecida a sedução? Sou seu protetor, Julia. Não a teria acariciado assim se não estivesse preparado para estar a seu lado depois.
O que for que signifique isso, pensou ela febrilmente, seguindo-o fora da galeria, para a escada. Dava-lhe um pouco de medo pensar. Mas ele não era um homem que faria falsas promessas. Nem falsas ameaças. Ao que parecia, sua família o apoiava. Grayson e Jane a abraçaram com inconfundível carinho essa noite. Sentia-se cômoda com seu irmão Drake.
Olhou por cima do ombro a iluminada galeria. No etéreo resplendor rosa-oro dava a impressão de que seus olhos tinham aumentado. Sorriu pesarosa. Se tivesse passado outro minuto mais com Heath nesse sofá, a pobre estatua teria tido bom motivo para soltar a ânfora e deixá-la cair no chão.
Capítulo Dezoito
Mais ou menos uma hora depois, Julia estava sentada ante sua escrivaninha tentando ignorar a ligeira batida na porta. Esteve trabalhando um pouco em seu desenho secreto de Heath. Bom, em todo caso esteve admirando. O último que precisava era que Hermia a encontrasse contemplando extasiada o desenho de um homem nu.
E não de qualquer homem nu. Sabia que não tinha lhe feito justiça artística com seu trabalho de simples aficionada. Tinha visto seu formoso peito com cicatrizes, e suas fortes e potentes costas; tinha apalpado esses músculos e tendões com suas mãos. As outras partes de seu corpo masculino continuavam sendo um delicioso mistério.
Um mistério que desejava desvelar. Depois dessa noite sua curiosidade despertou irrevogavelmente. Ainda sentia as sensações, como marca impressa, nos lugares onde ele se apoiou nela, a força possessiva de seu corpo apertado ao dele. Tinha os lábios um pouco machucados e rosados por seus beijos e seus seios continuavam inchados por suas mordidas de amor.
Sorrindo pegou uma folha de papel limpa e começou a desenhar uma caricatura de seu Apolo pessoal, e nisso estava. Ninguém, ninguém veria jamais esse desenho; seria muito peralta e tremendamente malicioso. Algum dia, se tudo fosse bem, poderia mostrá-lo a Heath.
Levantou-se de um salto pôs o xale em cima do desenho ao sentir que se abria a porta. Hermia, envolta em um xale de tule púrpura a olhou séria de preocupação.
- Só queria comprovar que tudo estava bem. Entrou muito sigilosa.
Foi bem o jantar com Sedgecroft?
Muito bem, pensou Julia, mas simplesmente disse:
- Foi estupendo. O melhor. A comida era divina. A marquesa é formosa, encantadora e muito divertida.
- Muito divertida - repetiu Hermia, com os olhos pensativos. - Bom, muito bem então.
- Muito bem, sim.
Hermia avançou outro passo, algo vacilante. Julia se apressou a arrumar e alisar o xale, para que o desenho não saísse de debaixo.
Hermia se horrorizaria se visse o que acabava de desenhar.
- Estava no salão com Odham?
- O velho descarado. Não parou de tentar me beijar diante dos empregados. Imagine? Por certo, madame Tournier perguntou se estaria disponível ao final desta semana.
Julia olhou atentamente o tapete, recordando a boca de Heath quando a estava beijando, a pequena cicatriz em seu lábio superior e o
peso e dureza de seu membro masculino.
Nessa noite sonharia com ele, com certeza. Sonharia que ele a beijava? Podia sonhar muitíssimo mais.
- Estará? - perguntou Hermia, algo impaciente.
- Estarei o que?
- Disponível para a modista? A prova de seu vestido de noiva, Julia.
Recorda que vai se casar quando voltar Russell?
Julia a olhou sentindo-se culpada. Como pôr fim amavelmente ao compromisso era a última coisa que tinha na mente, embora claro, teria que fazê-lo. Em sua mente sobressaíam os prazerosos beijos de Heath.
Ocorreu-lhe que essa noite os dois tinham cruzado uma perigosa linha e deveria sentir-se mais arrependida.
- Sim recordo, mas...
- Está pensando melhor? - disse Hermia exalando um longo suspiro
- Já supunha. Estava aflita pela morte de seu marido e de seu pai quando aceitou a proposta de Russell.
- Ah - disse Julia, apoiando-se na escrivaninha ao notar que o xale começava a deslizar. - Não sei o que quer dizer, mudemos de assunto, sim? Não vi Odham quando cheguei aqui, o que deve significar que outra vez a esteve chateando com uma proposta.
- Não significa nada disso - disse Hermia, aborrecida. - Significa...
O desenho caiu no chão.
Hermia agachou para recolhê-lo e parou o braço a meio caminho ante o horrorizado grito que lançou Julia.
- Não, não tem importância, não o toque. Vai fazer mal às costas.
- Não tenho nada mal nas costas.
- Bom, não tem sentido correr o risco, não é verdade? - disse Julia, agarrando o papel antes que Hermia conseguisse lançar um bom olhar ao desenho em lápis-carvão.
E então ficou tudo à vista, em negro e matizes de cinza escuros e
claros; os detalhes do corpo de Heath em sua gloriosa e exagerada beleza. Bom, pelo menos os detalhes que ela meio recordava e meio imaginava; certas partes totalmente desproporcionadas. Pecaminosas.
Uma visão para tirar toda a sensatez de uma mulher.
Chegou a pensar que Hermia desmaiaria. Essa era sua tia, pelo amor de Deus, e ela virtualmente tinha reconhecido que estava apaixonada por Heath. Embora isso não a desculpasse de desenhar travessas imagens dele.
Pelo rosto de Hermia passaram uma miríade de emoções, nenhuma das quais, por sorte, pôde expressar com palavras. Finalmente limpou a garganta.
- Acredito que deveria guardar com mais cuidado esse desenho, Julia - disse, apertando os lábios - Conseguirá uma fortuna em nosso leilão.
***
Heath ficou vários minutos imóvel na escadaria de pedra da casa de Julia depois de deixá-la no interior. Era uma maravilha que não se evaporasse como fumaça sob a ligeira garoa que estava caindo sobre ele. Não desejava pôr fim a essa noite. Custou-lhe romper o feitiço que tinha caído sobre ele nessas horas passadas, permitir que algo ameaçasse o vínculo de atração sexual que os unia.
Quando estavam ao pé da escada tinha inventado mil desculpas para segui-la ao primeiro andar. Tinha bem assegurada a janela?
Fechava bem a chave de sua porta? Não lhe custou nada entrar em seu quarto, repreendeu-a. Queria que revistasse seu roupeiro se por acaso houvesse algum intruso?
- Acredito que não há nenhuma necessidade - responderia ela.
Seus olhos cinza claro faiscavam de diversão enquanto ouvia suas advertências. Sentiu-se como um progenitor protegendo sua filha. Mas não havia nada paternal na paixão que os acorrentava. Como um animal
mítico, rugia por liberar-se.
Faça-a arder.
Ele estava virtualmente arrojando fogo, carbonizando tudo o que havia à vista.
O autodomínio era seu forte, não? Ou alguma vez antes tinha entendido o significado da tentação?
Olhou o pequeno carro que o esperava na rua deserta. Queria ir para sua casa procurar uma troca de roupa limpa e uns poucos livros para a noite que o aguardava.
Demoraria pouco, nesse tempo não podia acontecer nada a ela.
Por desgraça, não estaria fora o tempo suficiente para que lhe acalmasse a paixão por ela. Sua mente voltava uma e outra vez ao que fizeram no sofá. Torturava-se com a lembrança de sua reação a ele, ao excitado e convidativo que estava seu corpo. Ela era como fogo líquido em suas mãos, mais quente que nenhuma mulher que conheceu.
Conhecia-a desde há anos, e desejava conhecê-la melhor, por dentro e por fora, de todas as maneiras imagináveis.
Saiu à calçada apressadamente e se voltou para olhar com desejo a casa. O que faria se Russell voltasse antes que tivesse conquistado totalmente Julia? Lugubremente pensou que tanto ele como Grayson tinham esquecido incluir esse importante detalhe no plano.
Claro que Grayson lhe recomendaria não ter o menor escrúpulo em fazer o que fosse necessário para conseguir seu objetivo. E tratando-se da Julia, com certeza entraria no jogo o lado mais escuro de sua alma.
Ela era sua. Russell a tinha traído. Uma lástima, mas não se brinca com os assuntos do coração. Depois dessa noite, não tinha nenhuma dúvida de que a teria para ele.
Quando se aproximava de seu carro viu levantar-se ligeiramente a cortina da janela. Olhou interrogante ao bem treinado cocheiro que estava sentado na boleia com a cabeça coberta por um capuz para
proteger-se da chuva. O cocheiro lhe fez um leve gesto com a cabeça para indicar que tudo estava bem.
Subiu a carruagem.
- Boa noite, Boscastle - o saudou uma voz rude. - Estupendo tempo se a pessoa for ave aquática, não?
Heath relaxou e desceu a guarda. Fazia muitíssimo tempo que não via o coronel Hartwell; desde quando ele era um novato explorador do serviço de inteligência que patrulhava incógnito na cavalaria e espremia os miolos decifrando os códigos do inimigo. Hartwell era um convidado frequente à mesa onde Wellington planejava a guerra. Dizia-se que continuava pertencendo ao Departamento de Defesa, embora em qualidade de que, ele não sabia.
Hartwell parecia grandemente mais velho, com os cabelos prateados, e o olhar de seus olhos castanhos escuros continuava intenso e penetrante.
- Vejo-o muito melhor que da última vez que o vi - disse Hartwell, depois de um longo silencio.
Referia-se ao estado em que o encontraram, esmurrado e meio morto, quando Russell e seus homens levaram a cabo o heroico assédio ao quartel general de Auclair.
Sentou-se no assento de frente.
- Sinto-me melhor, obrigado. Vamos a alguma parte esta noite?
- Apenas a sua casa. Pensei que poderíamos ter um pequeno bate-papo para nos pôr ao dia.
Um bate-papo. Oprimiu o peito de Heath. Uma conversa normal a teriam no clube jogando cartas ou bebendo conhaque. Esfregou o lábio superior, pensativo.
- Morreu Russell?
- Não, mas o condenado idiota está a meio caminho da Bretanha seguindo uma pista falsa.
Heath olhou pela janela para a casa, que já estava desaparecendo atrás de uma cortina de chuva. Teria se deitado já Julia? Fecharia a porta com chave e posto o espaldar de uma cadeira sob o trinco como insistiu? Estaria se despindo, recordando o que tinham feito?
- Auclair não está na França - continuou Hartwell. - Não esteve nunca.
Heath voltou a cabeça para ele. Sentiu subir o pânico à garganta.
Tinha deixado sozinha Julia.
- Está aqui - disse. - Auclair está aqui?
- Sim.
- Ou seja, tudo foi um ardil!
A intuição feminina de Julia tinha sido escandalosamente correta.
Russell estava tão impaciente para voltar a fazer-se de herói que fez justo o que Auclair pretendia conseguir. Dominou o impulso de fazer parar a carruagem e voltar correndo à casa. Pulsava-lhe forte o coração, em contraponto com o estalo continuado das rodas da carruagem sobre os paralelepípedos molhados.
- O que quer? - perguntou.
- Não sabemos. - Hartwell o olhou preocupado. - Sim, sabemos que Fouché esteve em comunicação com Napoleão em Elba. Não parece que haja alguma conexão. Parece que nestes últimos tempos Auclair esteve agindo por sua conta.
- Mas Auclair esteve em Londres. Disseram-me que recorreu aos duelos para ganhá-la vida.
- Pelo visto gosta de matar. Temos vários homens buscando-o.
Heath assentiu.
- E necessitam meus serviços?
- Neste momento pode nos ser muito útil te conservando vivo. O
pessoal de Napoleão teve tempo de sobra para idear novos códigos, e poderíamos necessitar sua habilidade com a criptografia se surgissem
problemas no futuro.
- Códigos? E Auclair?
- Aconselho-o fazer o que for que tenha que fazer para se proteger no caso de que se encontre com ele antes que o capturemos. Mas, pelo amor de Deus, tome cuidado.
A carruagem parou diante da casa de solteiro de Heath em Saint James.
- Entra?
- Não. Minha mulher se angustia muito quando estou fora até tarde da noite. Seu cocheiro pode me deixar, se não se importar.
***
Enviou Hamm para lhe preparar uma troca de roupa limpa e foi direto a seu escritório às escuras para pegar alguns livros. Quando entrou lhe formigaram as terminações nervosas da nuca, lhe arrepiando.
Esteve vários segundos diante da lareira sem acender, de costas, escutando monótono tic tac do relógio esmaltado. O quadro da parede com uma cena de caça estava ligeirissimamente inclinado. Sua coleção de livros sobre egiptologia não estava na ordem em que os tinha na prateleira. Isso podia ser um traço distintivo de sua natureza, mas ele se fixava nesses detalhes, e estes lhe diziam que alguém esteve aí furtivamente. Isso não tinha feito nenhum de seus bem treinados empregados, que sabiam o que podiam mover ou não mover sem permissão.
A visita tinha sido feita por um intruso. Talvez não tivesse notado essas sutis diferenças se Hartwell não o tivesse posto de sobreaviso.
Girou lentamente a cabeça olhando os contornos dos móveis, a escrivaninha, os armários, iluminados apenas pela lua. Quem fosse que esteve aí, já não estava. Qual era seu objetivo?
Tirou a pequena chave de latão que levava no salto da bota e abriu o compartimento secreto de sua escrivaninha. Tudo estava normal, não
tinham tirado nenhum documento.
Embora, logicamente, não havia aí nenhum assunto secreto da Coroa por escrito; jamais escrevia os nomes de agentes nem de contatos conhecidos no passado, dos quais muitos continuavam trabalhando em outros países.
Essas informações, junto com suas habilidades para decifrar códigos, tinha-as muito bem guardadas em sua memória.
Desceu lentamente os olhos, atraída sua atenção por um brilho no chão.
Era o brilho de pedras preciosas: o bracelete de safiras em ouro de Julia. Agachou-se para pegá-lo. O bracelete estava na palma de uma luva negra tipo manopla. Para ser exatos, par da que achou no abrigo do jardim dela. Agarrou-a, tentando dominar a fúria e repugnância que o invadiu ao passar por sua mente uma negra possibilidade. Conhecia a identidade do intruso?
Recordava que Armand Auclair torturava seus cativos com a cabeça e o rosto cobertos por um capuz e com as luvas que usava seu pai para executar os aristocratas franceses enviados à guilhotina.
Poderia Auclair ter deixado suas luvas aí e no abrigo de Julia a modo de cartão de visita? O bracelete significava que ela estava em iminente perigo? Mas, por quê? Com que fim chegava Auclair a tais extremos?
Hartwell tinha razão. Enganaram Russell para que partisse e deixasse o campo livre a Auclair.
Uma gigantesca sombra encheu o vão da porta. Heath expulsou o ar contido por entre os dentes.
- Tenho prontas suas coisas, milorde - disse Hamm.
- Há mudança de planos, Hamm.
O rosto de grossas feições ficou visível à luz da lua.
- Não vai voltar para a casa de lady Whitby?
Heath endireitou, com o bracelete de Julia na mão.
- Ah, sim, voltarei. Mas iremos os dois. Tenho um trabalho para você.
Hamm endireitou os largos ombros, na expectativa.
- Um verdadeiro trabalho, milorde? Um trabalho que entranhe ação e não ir em pé na parte traseira de uma carruagem como um macaco amestrado?
Heath conseguiu esboçar um sorriso, sem a menor alegria. Só sentia uma urgente necessidade de voltar ao lado de Julia, de protegê-la do homem que fazia de matar uma arte. Ninguém a ameaçaria enquanto ele tivesse fôlego em seu corpo.
- Venha comigo à carruagem, Hamm. Explicarei no caminho.
Depois pode procurar suas coisas e informar ao pessoal sobre o acontecido.
Capítulo Dezenove
Quando chegou à casa, não encontrou Julia em seu quarto. Tinha passado a toda pressa junto ao empregado que lhe abriu a porta, que já estava acostumado às raridades deste amigo de Julia. Sim, estava dando pé a um escândalo maiúsculo na alta sociedade com sua conduta. Bom, pois, que falem; ele tinha coisas mais importantes do que ocupar-se.
Tampouco a encontrou no salão.
A intuição o levou a pequena cozinha, situada na parte detrás da casa. No fogão brilhavam as brasas do carvão. Viu Julia na porta, fazendo sair o gato para que passasse fora a noite. Foi tal o alívio que sentiu ao vê-la que esteve um momento sem dizer uma palavra, simplesmente olhando-a. Ela tinha soltado o cabelo para deitar-se, e a tênue luz do fogão formava reflexos vinho nos cabelos.
Ela se virou, com a mão no pescoço.
- Céu santo, Heath, o que aconteceu?
Ele avançou para ela. Não iria aterrá-la lhe dizendo a verdade. Esta
esperaria até a manhã; então teria que dizer-lhe tudo, para que ela compreendesse que não podia baixar a guarda outra vez. No momento lhe bastava saber que estava sã e salva e que podia voltar a abraçá-la, tê-la a seu lado.
Ela olhou as brilhantes pedras que ele tinha na mão.
- Ah, achou meu bracelete, homem esperto. Onde caiu?
- No tapete.
Não explicou em que tapete. Isso também o diria pela manhã.
- E veio aqui só para me entregá-lo.
Estava irresistível à nebulosa luz da lua que entrava pela porta do jardim, seu sorriso acolhedor, convidativo, seu cabelo avermelhado ligeiramente perfumado.
Tinha aberto o penhoar e se viam as elevações dos rosados seios sobre o decote de renda de seda da camisola. Secou sua boca. Seus sentidos continuavam dominados pelo contato dela, por suas ânsias de lhe fazer amor.
- O gato comeu sua língua, Heath? - brincou ela. - Está horrorosamente calado.
Ele a pegou em seus braços. Ela não resistiu, mas se aconchegou contra seu calor. Ele fechou a porta com o pé e correu o fecho.
- Não volte a ficar aqui sozinha na escuridão.
- O que aconteceu?
- Se estivesse em meu poder, a fecharia com chave, isolada do resto do mundo, e a teria aí a salvo para sempre.
Ela se afastou um pouco para olhá-lo. Um escuro desejo, muito pouco prático, mas não de todo sem atrativo.
O corpo dele endureceu.
- Não?
- Não.
Apertou-se contra ela, esmagando-a contra a maciça porta de
carvalho e jogou os braços em seu pescoço.
- Perdoe-me, Julia - disse.
- O que? - perguntou ela, exalando um sonhador suspiro.
Ele engoliu em seco.
- Não ter lutado por você.
Ela desceu os olhos.
- Ah. Não deveria ter lhe contado isso.
- Alegra-me sabê-lo.
- Acredito que já sabe muito de mim.
- Desejo saber mais.
- Isso acho muito perverso. Diga-me uma coisa. Você planejou o que aconteceu esta noite na casa de seu irmão?
- Por que lhe ocorre isso? - perguntou ele em tom inocente, movendo-se e esfregando-se contra ela.
- Planejou - disse ela rindo.
- E daí se o fiz?
Sentiu-a estremecer, vacilante.
- Diria que terei que tomar cuidado com você no futuro, quer dizer, tomar cuidado para resistir.
- Não a vejo com vontade de tomar cuidado agora. - Olhou-a no rosto. - Na realidade, acredito que com um pouquinho de esforço poderia deixá-la totalmente descuidada.
Ela molhou o lábio inferior.
- Muito seguro de si mesmo, não é?
- Em certas coisas, sim.
Com a mão livre lhe segurou o rosto e passou a língua pelo cheio lábio inferior. Tinha sabor de infusão de hortelã. Sob o leve penhoar de algodão lavanda usava uma camisola de algodão. Moldou seu corpo a suas curvas sem espartilho. Um terrível desejo percorreu suas veias quando ela reagiu arqueando as costas. Teve que recordar que estavam
na cozinha às escuras. Desejava enterrar-se em sua sedosa e molhada cavidade e possui-la até que não ficasse nenhuma dúvida de que lhe pertencia; de que era dele. Sempre deveria ter sido dele. Seguia ardendo de excitação por ter estado com ela umas horas antes. Pela forma como ela reagiu, podia imaginar quão incrível seria cavalgá-la, passar dias e noites na cama com ela.
Desceu a mão por seu ombro, continuou pelo flanco e colocou a palma em seu traseiro. Estava descobrindo que inclusive nele corria o fiel sangue Boscastle.
Se é que alguma vez esperou escapar de sua herança?
Pensava seduzi-la até o ponto de uma deliciosa rendição. Via uma vantagem em conquistá-la depois de todos esses anos; já tinha bastante experiência para valorizá-la.
Ela respirava agitadamente. Com o passar dos dias ia aumentando sua sensibilidade a ele. Então lhe acariciou a nuca com as pontas dos dedos.
- Significa isso que esta noite voltou porque sou desejável e não porque tem algum horrível dever a cumprir?
- É a mulher mais desejável...
Afastou-se e lhe deu as costas ao sentir suaves e rápidos passos nos ladrilhos.
- Quem está aí? - sussurrou Hermia do outro lado da mesa que a afastava deles. - Mostre-se, quem quer que seja.
Julia exalou um pesaroso suspiro.
- Somos nós, tia Hermia. Só estávamos... mmm, fazendo o gato sair.
- Ah. - Hermia olhou para Heath - E vai fazer Boscastle sair também? Ou vai passar a noite?
Julia sorriu para Heath.
- Vai ficar, Boscastle?
- Sim, vai ficar - respondeu ele, sorrindo. - Vou ficar, Hermia, e, com sua permissão, senhoras, trouxe reforço. Um de meus empregados.
Balançou a cabeça ao recordar que Hamm estava esperando diligentemente fora na carruagem, vigilante se por acaso aparecesse alguma visita indesejada.
- Um hóspede? - disse Hermia, arqueando as sobrancelhas - Bom, depois de amanhã teremos o clube de pintura aqui outra vez. Aos dois poderia lhe convir descansar um pouco.
- O clube de pintura? - disse Heath, aborrecido.
Julia começou a rir.
- Talvez seu acompanhante pudesse posar para nós também.
Heath se afastou dela com pesar. Estava claro que o aguardava uma noite aborrecida, com Hamm por companhia. Mas pelo menos sabia que ela estaria segura. No momento era isso o que importava.
No dia seguinte Julia acabava de começar a tomar seu café da manhã quando entrou Heath na pequena sala de manhã. Ela levantou os olhos e lhe sorriu. Essa noite percebeu que lhe pesava algo na mente, e confirmou a suspeita enquanto tomavam juntos o café com torradas.
- Assim Auclair está em Londres - disse em voz baixa quando ele terminou de lhe explicar o que tinha descoberto na noite anterior. - Que terrível pensar que esteve na Inglaterra sem que ninguém soubesse.
Ele passou o indicador pelo lábio.
- Sua intuição era correta.
- E Russell não sabe? - perguntou ela, preocupada.
Mesmo que já não desejasse casar-se com ele, tampouco desejava que ele perdesse a vida.
- É possível que já saiba.
- Ou seja, que voltará - disse ela passado um momento.
Ele a olhou à clara luz da manhã e ela sentiu chegar até os ossos o calor de seu olhar. Heath era um desses homens capazes de perseguir e
derrubar vilãos, dormir com a roupa posta e despertar na manhã seguinte tão enérgico e sereno como sempre.
- Não se afastará de mim - disse ele.
- Como está sua cabeça?
Ele desceu a mão.
- Minha cabeça está muito bem. Entende o significado do que acabo de lhe dizer?
Ela assentiu lentamente. Ao olhar seus olhos nesse momento, muito preocupados, mas insondáveis, igualmente poderia ter sonhado com o que fizeram nessa noite passada.
- Acredito que sim - disse. - O que sim entendo muito claro é que não se pode subestimar o perigo.
- Estupendo - disse ele, com a voz áspera.
Ela sabia que havia diferentes tipos de perigo. O perigo de se expor a Auclair; o perigo de um romance entre eles, as repercussões emocionais.
Na realidade, Heath era o único homem que tinha feito um verdadeiro esforço para seduzi-la, e era bom para isso; muito bom. Seu finado marido não necessitava nem entendia a arte da sedução. Ela era uma jovem voluntariosa e sem experiência que se casou por impulso e teve que aprender a viver com a opção que tinha feito. Adam descuidava dela, mas não era cruel, de maneira nenhuma. Sua paixão era sua carreira e ao final lhe entregou sua vida.
Russell não se incomodou em seduzi-la. Em ir atrás sim: a emoção da caça. Mas ela não se sentia especialmente desejada por si mesma; a herança que lhe deixou seu pai sim era um fator atraente; e talvez sua experiência com a paixão. Russell tinha sido amável com ela; sabia que pelo menos sentia afeto por ela, mas estava claro que com sua amante vivia uma paixão diferente. Nunca a tinha feito sentir-se tão atraente como se sentia agora. Talvez nem sequer percebesse que não eram
compatíveis. Ela desejava mais do matrimônio que o que ele oferecia.
- Perigo - disse, levantando-se para lhe encher a xícara. - Deveria estar acostumada ao perigo, tendo vivido na Índia.
Inclinou-se por cima de seu ombro. Sua face cheirava a sabão de barbear. De repente sentiu um intenso desejo de voltar a acariciá-lo, de sentir seu corpo apertado ao dela.
A veemência com que ele falou a surpreendeu:
- Nunca conheceu o tipo de perigo que representa Auclair, garanto-lhe.
- Receio por você, Heath. Até que vi as cicatrizes que tem no peito, não compreendia o tipo de monstro que é.
Ele a observou enquanto ela voltava para sua cadeira.
- Pedi ajuda a Drake e a Devon. E tenho outro homem esperando fora para que vigie nessas ocasiões em que deva estar separado de você.
- Outro homem? - disse ela, fazendo um mau gesto.
- Meu empregado. Passou a noite aqui comigo.
Ela foi à janela e abafou uma exclamação ao afastar a grossa cortina de brocado e ver o maciço e imponente homem que estava fora.
- Não vejo nenhum empregado, Heath, Vejo um gigante com as mãos grandes como presuntos, me olhando sério da escadaria.
Ele bebeu um pouco de café.
- Esse é Hamm.
- Onde o achou? Em um circo russo?
- Não é má hipótese. Conheci-o na Prússia, na academia. Na realidade é de Yorkshire. Trabalhou comigo em Portugal. - Deixou a xícara no pires, sorrindo irônico - A princípio lhe dava trabalho como mordomo.
- E logo o degradou?
- Bom, foi uma decisão tomada entre os dois. A governanta disse
que o estrangularia com suas próprias mãos se quebrasse outra bandeja.
Julia soltou a cortina.
- Parece-me que vai reduzir minha vida social.
- É claro que sim - disse ele apoiando o braço no espaldar de sua cadeira. - Disso se trata.
Ela se afastou da janela.
- Não sei o que dizer. Tem um aspecto amedrontador.
- Espere para conhecê-lo.
Antes que ela pusesse alguma objeção, Heath se levantou e saiu para chamar o empregado. Hamm fez uma rígida inclinação quando Heath o fez entrar para apresentá-lo a Julia.
- É muito útil - sussurrou Heath a Julia perto do ouvido.
- Muito enorme - sussurrou ela.
Hamm esteve muito quieto um momento, em posição de sentido, e depois disse:
- Encarrego-me do fogo, milady? Vejo que as chamas estão baixas.
- Sim - conseguiu dizer Julia e então viu a imponente figura da mulher que acabava de abrir a porta.
Hermia ficou imóvel, com seu amplo peito agitado.
- Santo céu! Quem é?
- Hamm - disse Julia, franzindo os lábios, divertida. Bom, estaria bem protegida.
- Não a comida - disse Hermia, dando a volta pela borda do tapete.
- Ele.
- É Hamm - disse Heath da janela. - Ele é Hamm.
- Quem? - perguntou Hermia, com um olho no impressionante empregado que estava junto à lareira.
Julia franziu o cenho.
- Hamm. Seu nome é Hamm. É um soldado convertido em
empregado e Heath vai deixá-lo aqui na casa, para nos proteger.
Hermia examinou Hamm em silêncio, pensativa.
Julia limpou a garganta.
- É impressionante, não é verdade?
Hermia deu um salto.
- O que disse, querida?
Heath apoiou as costas na janela e sorriu pelo olhar de exasperação que lhe dirigiu Julia.
- Não acha horrenda a ideia de afastar Hamm de seus outros deveres, tia Hermia?
Hermia negou com a cabeça.
- Hamm, quero dizer bem... Um empregado bem treinado é um verdadeiro tesouro, e tem uma figura impressionante. Que amável foi Boscastle. Sentirei-me muito bem protegida entre os dois.
Julia voltou para a mesa e se sentou, resignada. Não tinha nada contra a presença de Hamm; nunca era de mais ter um homem capaz à mão. Mas temia que Heath tivesse decidido fazer uma busca pessoal de Auclair. O mal que Russell tentava enfrentar estava em Londres, e seria Heath o que correria maior perigo. Seria ele quem enfrentaria o homem que quase o matou. Só nesse momento começava a compreender o muito que havia em jogo.
Então Heath se afastou da janela.
- Senhoras, estarei fora umas poucas horas atendendo uns assuntos. Hamm não se separará de seu lado. Não é, Hamm?
Hamm soltou o atiçador, que caiu na lareira com um forte ruído.
- Nem um segundo só, milorde.
***
Alojou-se o coração de Júlia na garganta quando viu Heath sair discretamente da casa. Em um agridoce momento de sinceridade percebeu que não havia se sentido com tanta ansiedade quando Russell
se despediu dela para ir para a França. Teve que recorrer a toda sua força de vontade para não sair correndo atrás dele.
Aonde iria? Teria amigos que o ajudassem? Guardou-se e controlou suas emoções. Deveria estar preocupada pelo que ocorreria quando voltasse Russell.
Seu noivo; o traidor que a enganava. O herói do momento. Não conseguia imaginar-se a seu lado fazendo as promessas de matrimônio.
A imagem era imprecisa, turva, dissolvia-se imediatamente. Achava-a mau, incorreta. Pelo contrário, achava correta sua imagem deitada nua nos braços de Heath. Não conseguia decidir-se a lhe perguntar se sabia sobre a infidelidade de Russell. Mas esta não lhe importava. Heath era o único homem que tinha desejado dessa maneira em toda sua vida.
O engano de Russell simplesmente lhe deu o motivo para esclarecer-se e enfrentar a verdade.
Estremecendo de forma virtualmente imperceptível, estendeu a mão para o centro da mesa.
- Café, Hermia?
Hermia assentiu ao mesmo tempo que se sentava à mesa sussurrando:
- Não deveria nos servir nosso empregado? Embora parecesse que tem as mãos um pouquinho torpes.
- Mãos torpes? - sussurrou Julia, contendo a risada. - Parece capaz de arrancar pela raiz todas as árvores de um bosque com o dedo mindinho. Suponho que poderíamos tentar escondê-lo. Tem alguma coluna enorme por aí perto?
As duas se viraram para olhar o gigantesco empregado. Julia sussurrou com a boca atrás da xícara:
- Acredito que não existe nenhuma arca, e nem sequer um armário, bastante grande para ocultá-lo.
- Podemos pô-lo em outra sala?
Julia encolheu os ombros.
- Heath lhe ordenou que me seguisse a todas as partes.
- Bom Deus.
Julia esperou até que Hamm se virasse e se postou junto à lareira e então caminhou direito e rápido para a porta. Antes que girasse a maçaneta, Hamm se endireitou e se jogou para lhe abrir a porta.
- Vamos sair? - perguntou, com sua doce e retumbante voz. - Faço trazer a carruagem?
Julia olhou para Hermia resignada.
- Vamos sair hoje?
Hermia assentiu.
- Chegou-lhe um convite de Audrey Watson para que a visite em sua casa; gostaria de tomar chá com você. Eu quero comprar outro turbante para usar na reunião do clube amanhã.
Compras. Com Hermia e Hamm. Um convite para tomar o chá com uma cortesã. Não se atrevia nem a pensar em como reagiria Russell se a visse, embora, na verdade, não lhe importava muito. Ele merecia estar comprometido com uma viúva escandalosa. Talvez merecesse algo pior ainda.
- Que tragam a carruagem à porta dentro de vinte minutos - disse, decidida. De repente sentia curiosidade por descobrir para que lhe tinha mandado um convite Audrey Watson. - Tenho que fazer uma visita antes de ir às compras.
Capítulo Vinte
Julia ordenou a seu cocheiro que os levasse a residência de dois andares de Audrey Watson em Bruton Street, perto de Berkeley Square.
Hamm e Hermia a acompanharam até uma sala de espera, e ali lhes pediu que a esperassem enquanto ela ia falar em privado com a célebre cortesã. Nunca esteve na casa de Audrey, mas tinha ouvido histórias sobre as escandalosas festas que oferecia ali. Embora não a
conhecesse bem, instintivamente lhe era simpática. Mas a que a havia convidado nesse dia?
Quando anunciaram Julia, Audrey estava atendendo a um jovem cossaco, usando um vestido de tule malva claro. Deu um suave empurrão para a porta em seu contrariado amante e lhe ordenou que fosse dar um passeio enquanto ela saudava sua visita.
Julia estava na porta, contemplando a quantidade de baús e bolsas de viagem que cobriam o chão. Um gordinho canicho branco disparou do sofá. O cossaco saiu, passando por seu lado com seu chapéu na mão.
- Julia, veio - disse Audrey, abrindo os braços. - Não sabia se viria.
Julia esperou até que saiu o bonito rapaz e fechou a porta, deixando-as sozinhas. Rezava o rumor que várias viúvas admiravam Audrey e tinham aceitado seu convite para converterem-se em damas do prazer. Converter-se em amante de um homem rico era uma posição apetecível para muitas jovens que se achavam sem recursos. Audrey era uma conhecida anfitriã, popular ex-atriz e patrocinadora das artes.
Ou de artistas.
Além disso, Audrey conhecia mais segredos da sociedade londrina que ninguém que ela conhecesse. Recebia em sua casa poetas e políticos. Treinava às amantes de homens poderosos.
- Ouvi um rumor muito delicioso - disse Audrey, colocando um dedo nos lábios vermelho cereja. - Dizem que vai se leiloar um desenho absolutamente pecaminoso de Heath
Boscastle ao natural, para obras de caridade. Eu superarei as ofertas de todos, pela possibilidade de exibi-lo em minha sala de recepção.
Julia foi sentar se a seu lado, rogando que suas faces não estivessem tão vermelhas como as sentia. Com que rapidez corriam os rumores.
- Tenho a impressão de que esse misterioso desenho não vai se
exibir jamais em público.
- Estou destroçada - disse Audrey, pondo a mão no coração.
- Se é que existe esse desenho que se murmura - acrescentou Julia.
Audrey a submeteu a um ardiloso olhar.
- Viu-o por acaso?
- Audrey, francamente.
- Coleciono homens nus, sabe?
- Sim? - disse Julia, olhando ao redor, divertida - Onde os guardas?
Não tem frio?
Audrey riu.
- "Quadros" de homens nus. Ai, Julia, minha travessa herdeira, tem que vir comigo a Paris.
- A Paris?
Dizendo isso Julia desviou o olhar para a quantidade de baús que cobriam o chão. Paris era a cidade onde tinham ido muitos aristocratas para celebrar a paz, e para desfrutar de outros prazeres que lhes tinham negado durante a guerra. Moda, alta cozinha, mulheres formosas.
Suspirou. Sem dúvida Russell tinha aproveitado para desfrutar de todos os prazeres que oferecia Paris enquanto Heath a protegia.
- Viajará sozinha? -perguntou.
- Não. Levo meu cossaco para que me faça companhia. Meu atual amante está na Câmara dos Lordes. É idoso, bom, é virtualmente uma antiguidade, e não se dá bem em viajar.
- Subiu o canicho a sua saia. - Julia, sei que deve estar se perguntando por que a convidei a vir.
- Pois sim.
Audrey a olhou francamente.
- São muito poucas as mulheres que falam comigo em público, Julia. Os homens sim se aproximam para conversar, mas as damas da
sociedade, embora sintam curiosidade por minha profissão, são mais cautelosas a respeito de minha companhia.
- Eu já passei da idade de me preocupar sobre o que pensem de mim os membros da aristocracia.
Em especial quando a maior parte do que pensavam era verdade.
Audrey acariciou ao canicho sem deixar de olhá-la.
- Seu noivo lhe é infiel, Julia. Instalou sua amante em uma casa.
Ela espera seu filho para a primavera. Russell lhe compra joias e nas festas confessa que a adora.
Julia balançou a cabeça. Assim era isso. Audrey tinha boa intenção. Repentinamente agradeceu que Odham a tivesse preparado para isso.
- Agradeço sua sinceridade, Audrey, mas já sabia.
- E vai perdoá-lo? - perguntou Audrey, curiosa.
- Não, claro que não.
Porque no fundo de seu coração também sabia que ele não a amaria jamais como desejava ser amada. Russell tinha suas boas qualidades, sim. A maioria das mulheres o consideravam um bom partido, e certamente ele pensava que ter uma amante era perfeitamente aceitável em um homem de sua posição. Mas ela se enganara ao aceitar casar-se com ele por muitos motivos que não eram os que devia considerar, e já tinha idade não só para saber o que queria mas também para mudar sua decisão.
Passado um momento de silêncio, Audrey acrescentou:
- Russell a instalou em uma casa em Half Moon Street, com o irmão dele, para que esteja segura.
- Muito considerado, não?
- Esse homem pensa principalmente em si mesmo - disse Audrey, indignada. - Quer que diga a meu cossaco que se encarregue dele por você?
- Isso é tentador - respondeu Julia - mas preciso pensar antes.
- Não consideraria a possibilidade de trabalhar para mim, não é?
- Isso não é tão tentador.
- Sobre tudo sendo Heath Boscastle seu protetor.
- Essa é uma situação temporária, Audrey.
- Talvez.
- O que quer dizer?
- Vi-o seguindo-a no salão de baile essa noite, Julia. Em minha opinião profissional, seus instintos não eram de todo protetores.
Julia sorriu ao pensar nisso. O engano de Russell lhe tinha feito fácil seguir os ditados de seu coração, obrigando-a a esclarecer-se em relação ao que realmente desejava.
Jamais seria feliz sendo a esposa de um homem com aspirações políticas. Por outro lado, seria muito feliz casada com um patife.
- Leve - disse Audrey em um tom tão veemente que Julia e o canicho darem um salto.
Julia a olhou surpresa.
- Que o leve aonde?
- Se tiver que me perguntar isso, talvez necessite minha perícia profissional.
-Não, obrigada, Audrey. Arrumar-me-ei sozinha nesta "viagem". -
Se levantou, com as mãos segurando sua bolsa - Foi muito amável.
- Esse seu desenho seria um formoso pagamento - disse Audrey levantando-se em um revoo de tule malva para beijá-la na face. - Os homens Boscastle são formosos, todos e cada um, mas talvez Heath seja o mais interessante. Suspeito que seria difícil de resistir no quarto.
- Com certeza que sim - respondeu Julia.
É claro, ela já sabia isso.
- Está totalmente certa de que não quer levar uns poucos segredos com você? Poderia utilizá-los com Russell, embora só seja para lhe dar
uma lição. Deixa o bastardo desesperado por você. Que maravilhosa vingança.
Julia vacilou, mais tentada do que desejava delatar, e não para aplicar esses ensinamentos com Russell, mas com Heath. Ele era um homem muito, muito sexual.
- Isso não é o tipo de coisas que se possa ensinar, não é verdade?
- Vamos, Julia, para uma viúva escandalosa, precisa ampliar sua educação. Sente-se.
***
Julia não voltaria jamais a considerar as relações sexuais como as tinha considerado até esse momento. Essas instruções de Audrey eram simples, mas ao mesmo tempo impressionantemente explícitas. Ela já tinha uma base ampla de conhecimentos, mas... mas jamais lhe tinha ocorrido que dar prazer a um homem fosse uma habilidade que se adquirisse, mais ou menos como aprender a bordar ou a falar em francês.
- Eu diria que uma mulher poderia estar em melhor posição fazendo só o que lhe dá naturalmente.
A adorável risada rouca de Audrey encheu a sala.
- Mas à natureza sempre vai bem com uma ajudinha. Afinal, não se planta sementes de pepino em um campo de morangos.
Julia olhou atentamente o livro que lhe tinha mostrado Audrey.
- Interessantes posturas. De repente me sinto um pouco acalorada.
- Não podemos cobrir todos os atos prazerosos em um só dia -
disse Audrey.
- Acredito que meu coração não suportaria.
- Tem um conhecimento bruto do que gosta um homem - disse Audrey, pensativa. - Seus instintos são sua maior vantagem na cama.
- Não sei se alguém estaria de acordo com você fora desta sala.
- Boscastle sim - disse Audrey, sorrindo.
Julia sentiu subir o rubor às faces.
- Isso está por ver-se - disse.
- Isso está por demonstrar-se. Simplesmente pense que eu lhe passei a tocha da paixão, Julia.
Quando saiu da casa de Bruton Street, com a cabeça a transbordando de imagens sexuais, Julia cumpriu a promessa de ir às compras com Hermia. Visitaram um perfumista em South Audley Street, uma livraria e depois uma chapelaria em Stafford Street.
Hermia provou todos os chapéus que havia na loja.
- Que lhe parece este? - perguntou-lhe do espelho, pela centésima vez, ou isso pareceu a Julia.
- É bonito esse chapéu - respondeu, distraída.
- Não estou com nenhum chapéu - rugiu Hermia. - Sabia que não estava prestando atenção. Do que falou com a senhora Watson que está tão distraída?
Julia simulou estar olhando com grande atenção um par de luvas verdes que estavam no mostrador.
- De sementes de pepino.
- De sementes?
- Sim.
Como, por exemplo, o de plantá-las em um terreno ao qual não pertenciam. O que, aparentemente, era o que tinha feito seu infiel ex-noivo.
Um filho. Um filho mudava tudo. Significava família, obrigação, uma relação duradoura, não só uma sexual. Uma parte do pepino de Russell, bom, sua semente em todo caso, pertencia para sempre a outra mulher.
Desejava muitíssima felicidade aos três. Sem ela.
Audrey sabia, e Russell falava tranquilamente de seu romance nas festas. E Heath? O que sabia a inescrutável e sedutora Esfinge? Não deveria tê-la advertido? Ou esteve esperando que ela descobrisse
sozinha?
Deixou as luvas no mostrador e seguiu Hermia fora da loja.
A mulher, amante de Russell, vivia em Londres, o que significava que ele a visitava depois que ia vê-la. Se Odham descobriu sobre esse arranjo em seu clube, era lógico supor que Heath também sabia. Com razão o ardiloso demônio não tinha nenhum escrúpulo em seduzi-la.
- Grande canalha corrupto, Russell - exclamou, sobressaltando a Hamm, que quase se chocou com um pedestre ao ouvir sua irada voz -
Não é você, Hamm - disse, desculpando-se com um sorriso. - Tomei-lhe carinho.
E mais ainda a seu amo.
***
Uma rajada de vento açoitou a rua. Caiu o cabelo enredado no rosto de Julia. Ao levantar a mão para arrumá-lo caiu no chão o livro que tinha comprado para Heath, que levava sob o braço.
- Ah, porretes.
- Permita-me por favor.
Ela assentiu agradecida quando um homem alto, envolvido em uma capa escura, com cartola negra e uma bengala com punho dourado sob o braço, agachou-se para recolher o livro. Antes que pudesse agradecer-lhe ele pôs-se a andar e se perdeu de vista em meio da multidão que ia passando pela calçada.
- Tudo bem? - perguntou Hamm, com o rosto atrás do monte de compras da Hermia.
- Sim - respondeu ela, olhando a procissão de carruagens que abarrotavam a rua. - Me caiu um livro e um homem muito cortês me resgatou.
Ao voltar-se achou fechado o caminho por um peito duro e musculoso. Um forte braço lhe rodeou a cintura. O protetor abraço lhe fez descer uma conhecida e vibrante emoção pela coluna. Heath.
Acabava de passar quase uma hora estudando os rudimentos da arte de dar prazer a um homem. Com certeza que tinha rosto de culpado. De repente pensou no que pensaria ele se soubesse.
- Não sabe que não deve falar com desconhecidos? - disse-lhe ele, com um sorriso tenso. - Venha comigo. Minha carruagem está mais perto que a sua.
- E minha tia?
- Hamm cuidará dela.
- Sim, mas...
Pegou-lhe o cotovelo e através da capa ela sentiu seu corpo, sua força. Seus olhos estavam mais negros que azuis; reflexo do céu ou de seu humor? Sorriu-lhe, trazendo a lembrança o perto que tinham estado de fazer amor na noite passada. Ele a tinha feito vibrar como tocando um instrumento, despertando todos os sentidos.
Algum dia faria o mesmo a ele.
Só a ideia lhe acelerou o coração de espera. Curvou seus lábios em um sorriso. Ele aumentou a pressão da mão em seu braço, como se tivesse lido seu pensamento. Sem acrescentar outra palavra, conduziu-a para sua carruagem que estava esperando. Durante todo o trajeto a casa, sentada frente a ele, percebeu a controlada tensão nele. Teria descoberto algo a respeito de Auclair? Como sempre, estava impecável, sua jaqueta azul perfeita, sua camisa de linho branquíssima, suas botas limpa e brilhantes.
Quando finalmente chegaram à casa, lhe perguntou:
- Foi agradável a saída?
Ela o observou enquanto ele olhava a um e outro lado da rua antes de lhe permitir descer da carruagem.
- Bom - disse, quase em um fôlego - foi uma distração.
- E como estava Audrey Watson? - perguntou-lhe ele quando foram chegando à porta principal.
O mordomo os deixou a sós no vestíbulo. O livro que lhe tinha comprado caiu no chão.
- Seguiu-me?
- Só até Bruton Street.
- Mas por quê?
- Queria ver se alguém a seguia.
- E?
- Ninguém a seguiu até a casa. - Sustentou lhe o olhar sem pestanejar - Reconheço que essa visita me surpreendeu um pouco.
Ela mordeu a ponta da língua. Deixava-a nervosa que ele soubesse onde tinha estado; adulava-a que ele teve o trabalho de segui-la para protegê-la, mas, santo céu, se soubesse o que tinham falado ela e Audrey. Os segredos para excitar e dar prazer a um homem; concretamente a esse homem, com detalhes pecaminosos e francamente gráficos. Os conselhos de Audrey ressoaram em seu cérebro:
"O órgão masculino tem que ser reverenciado, Julia."
"Reverenciado? sim?"
"Olhe estes desenhos."
"Caramba. Espero que não estejam desenhados a escala. Isso me parece mais um canhão que um..."
"Julia, esteve anos casada. Suponho que olhou atentamente o corpo de seu marido."
"Bom, sim, mas talvez tivesse prestado mais atenção se fosse deste tamanho."
- Julia? - disse Heath, olhando-a estranhando. - Tem a mente em outra parte. O que está pensando?
- O que estou pensando?
Ele cruzou os braços.
- Confesso que eu não sei o que pensar.
- É um alívio, não?
- O que é um alívio?
- Que ninguém me seguisse. Além de você. Esse era o importante dever sobre o qual falou?
- Audrey Watson é uma perita cortesã, como também uma amiga da família. No aspecto profissional, fez-se famosa por repartir conhecimentos sexuais a mulheres desejosas de melhorar suas habilidades no dormitório.
Julia apoiou as costas no móvel bengaleiro do vestíbulo, e da bandeja de prata caiu uma chuva de cartões no chão.
- Sim? Bom, imagine. Quer dizer, quem o teria suposto?
- Toda a população inglesa, diria eu.
- Não esqueça que estive longe.
Ele estreitou os olhos.
- Certos conhecimentos são universais.
- Sim?
- Os conhecimentos que reparte Audrey o são, sem dúvida.
- Parece que sabe muito sobre ela.
- Foi você quem foi a sua casa. E ficou um longo tempo.
- E você alguma vez a visitou?
Vozes apagadas, as de Hermia e Hamm, da escadaria, vieram resgatar Julia. O mais certo era que teria soltado tudo se ele tivesse continuado interrogando-a.
- Uma pausa temporária - disse ele, divertido.
Ela olhou para a porta, esfregando as mãos.
- Fez-se tarde. Vamos tomar chá.
Pegou as extremidades do xale e a atraiu lentamente para ele.
- Simplesmente recorde que eu sempre estou aqui se necessitar conselho no futuro, Julia.
- Conselho? -disse ela com uma vozinha débil.
- Do ponto de vista masculino.
- Sobre...?
Viu a franca provocação que lhe enviava o demônio e a diabinha que era ela no fundo ansiou descobrir.
- Fazer amor - disse ele, como se ela não soubesse.
Hermia entrou no vestíbulo seguida por Hamm com um monte de caixas nos braços.
- Bom, chegamos, todos.
Heath lhe soltou os extremos do xale; de repente Julia sentiu dificuldade para respirar, não conseguia fazer entrar ar nos pulmões; no único que podia pensar era em lhe fazer as coisas que tinha aprendido nesse dia. Ele a olhou nos olhos e seu incendiário olhar lhe transpassou as defesas lhe acendendo uma faísca de reação no fundo das entranhas.
- Julia? - disse ele em voz baixa e sedutora em um tom de curiosidade - No que andou hoje?
- Isto... - abaixou os olhos e se iluminou o rosto. - Ah, comprei-lhe um livro.
Capítulo Vinte e um
Passadas umas horas, ao anoitecer, Heath estava sentado em uma poltrona em um canto do salão de Julia com o livro de hieróglifos, que ela lhe comprou nas mãos. Hermia e Odham estavam jogando cartas junto à lareira e Julia estava com eles fazendo de pacificadora em suas discussões.
Os demônios gêmeos do desejo e da premonição de perigo o tinham com os nervos à flor da pele; eram muitas as incertezas que se abatiam no ar para baixar a guarda. Dedicou-se a olhar a escura rua pela janela para evitar olhar para Julia, para impedir que a despisse com os olhos. A boca ressecava cada vez que a olhava.
O ardor da reação e as carícias dela na noite anterior, sua calma
sensualidade, tinham-no feito um nó. Apertou fortemente o livro sem abrir. Desejava-a tanto, tanto, era tal seu desespero por achar alívio sexual, que poderia ter saído correndo a uivar na escuridão da noite.
Sua estratégia para seduzi-la bem poderia acabar matando-o. Jamais se tinha imposto tanta disciplina para dominar seus desejos. Tudo nela o excitava, desafiava o conquistador que havia nele.
- Quer jogar, Boscastle? - perguntou-lhe Odham. - Hermia está roubando outra vez.
- Não - respondeu.
O que desejava era jogar com Julia, tê-la nua debaixo dele e esvaziar-se em sua molhada vagina. Desejava lhe fazer amor até que ela estivesse tão fraca que nem sequer pudesse caminhar.
A necessidade que sentia dela, sexual e intensamente emocional, tinha-lhe complicado a trajetória. Se voltasse a perdê-la não acharia jamais a outra como ela.
Não existia nenhuma outra mulher como ela. Os dois se complementavam; ela, com sua alegria de viver, alegrava-o e iluminava sua atitude mais sombria para a vida.
Ela era a única mulher que conhecia ser capaz de acendê-lo com um sorriso, com um olhar. Seu voluptuoso corpo sempre o tinha atraído, sua risada o acalmava.
Intrigava-o sua relação com uma perita cortesã. Tinha que saber o que foi fazer lá. Ela ficou muito nervosa, coisa estranha nela, quando lhe perguntou. Teria algo a ver com o que ocorreu entre eles na galeria na noite passada? Julia pedindo conselhos a Audrey sobre as artes sexuais? Ele lhe ensinaria tudo o que desejava saber, satisfaria todos seus desejos. Ele seria o melhor instrutor do mundo.
- Heath?
Retesou-se todo o corpo ao sentir o toque de sua mão no braço. As carícias dela na noite anterior tinham sido uma promessa sensual que
lhe fizeram em migalhas o pouco autodomínio que restava. Quando levasse a cabo seu plano, lhe suplicaria que a possuísse se não fosse ele quem suplicasse primeiro. Nesse mesmo instante cairia de joelhos ante ela para lhe suplicar.
- Você gostou do livro que lhe comprei?
Ele levantou os olhos e a percorreu lentamente com seu olhar, com uma sensualidade que a fez segurar o fôlego.
- Ainda não o olhei. Tenho a cabeça em outras coisas.
- Acho que não devo lhe perguntar quais são essas coisas - disse ela em voz baixa.
- Acredito que já sabe - respondeu ele, com seu sorriso preguiçoso.
O não dissimulado desejo que viu em seu olhar a avassalou, atordoando-a; havia se sentido observada por ele durante todo o serão, como se ela estivesse nua diante dele. Sentia-se cada vez mais atraída por ele; seu vínculo com ele ia ficando mais potente hora a hora. Não via as horas de que voltasse Russell para romper oficialmente o compromisso; seria honrada e sincera com ele mesmo que ele lhe tivesse negado esse mesmo respeito.
Russell não sabia nada a respeito de seu encontro com Heath no passado. Ou sim? Começava a duvidar. Ele estava naquela festa caçada na casa da Cornualha. Só foi depois disso que começou a ir atrás. Teria adivinhado o ocorrido entre Heath e ela? Ou a teria desejado simplesmente porque sentia inveja de Heath e desejava ganhar?
Os pensamentos sobre Russell se desvaneceram, expulsos de sua mente pelo homem pecaminosamente irresistível que estava sentado ante ela. Nessa noite Heath parecia perigoso, mais tenso do que jamais o tinha visto. Embora estivesse sentado despreocupadamente no canto, ela sabia que estava atento a todos os sons que interrompiam o silêncio da noite: o ruído de uma carruagem ao passar pela rua; o barulho das chaves da governanta na parte de trás da casa.
De todos os movimentos que fazia ela.
Ele tamborilou com os dedos na capa do livro.
- Obrigado pelo presente. Poderei dar uma olhada quando estivermos no campo, acredito que devemos aceitar o oferecimento de Grayson.
- O campo?
Notou que Hermia e Odham levantavam suas cabeças para olhá-
los com curiosidade. O campo; terreno Boscastle. Nenhum lugar ao qual fugir além dos braços de Heath.
Serões a sós com ele que convidariam a atividades íntimas. Largas tardes sozinhos na biblioteca com a porta fechada. Seria uma oportunidade para saber mais a respeito dele, para conhecê-lo melhor, para baixar um pouco a guarda. Talvez Heath tivesse a oportunidade de relaxar. Seria um passo importante e significativo para os dois.
- Quer me pôr sob custódia na prisão, não é?
Ele emitiu uma rouca risada.
- Por sua segurança, para te proteger.
- Pensei que pelo menos conversaríamos sobre isso.
Ele encolheu os ombros.
- Acabamos de conversar.
- Tenho voz e voto no assunto? - brincou ela sorrindo.
- Ao que parece, não.
- Demônio arrogante - resmungou ela. - Sei o que pode fazer com seu livro.
Brilharam-lhe os olhos de malicia e de algo mais que lhe acelerou o coração.
- Em Kent teremos muitíssimo tempo para ler - disse, embora seu olhar indicasse que tinha pensado em atividades muito menos intelectuais. - Talvez devesse ir fazer sua bagagem.
- Mas é que... esta semana tenho que fazer provas de vários
vestidos novos. - E um deles era o de casamento; embora claro, não haveria nenhum casamento.
Ele inclinou a cabeça e lhe sorriu. Sua imagem à luz das velas lhe inspirou o repentino desejo de desenhá-lo; de despi-lo e deslizar as mãos por seu maravilhoso corpo.
- O guarda-roupa terá que esperar.
- Muito bem. Você explicará a sua família quando me apresentar à mesa vestida com farrapos.
Ele apoiou a cabeça no espaldar da poltrona, todo um quadro de sensual elegância.
- Com muito prazer. Enquanto isso poderia convir-lhe colocar em um baú todos esses farrapos para sua estadia em Kent.
- Suponho que terei que comunicá-lo a algumas amizades...
- Não, Nem pensar nisso.
- Isto é um sequestro, Heath?
- Poderia ser se não estiver pronta para partir pela manhã.
Ela reprimiu um sorriso. Gostava dessa maneira dele de tomar decisões: o comando, e sem dúvida tinha razão. Estariam mais seguros na propriedade de campo de Grayson, e ela estava mais preocupada com o Heath que por ela. Além disso, não serviria de nada discutir com ele, até no caso dela não estar de acordo. Ele já tinha decidido e antes poderia tentar mover à Esfinge com um carrinho de mão que tentar fazê-
lo mudar de opinião.
O pior era que não sabia se desejava fazê-lo mudar de opinião.
Uma das coisas que lhe disse Audrey esse dia foi que em toda mulher há um pouco de cortesã. Suspeitava que estava a ponto de demonstrar que essa teoria era certa.
***
Mal as damas se retiraram a seus dormitórios, Heath deixou Hamm de sentinela e foi direito à casa de Audrey em Bruton Street. Ela estava
atendendo a um grupo de amigos: vários políticos, um pintor e duas bonitas atrizes jovens, que aparentemente eram cortesãs em formação.
Audrey tinha sido atriz e com frequência dizia que a atuação teatral tinha um papel proeminente no prazer.
As duas jovens o observaram atentamente como se ele fosse uma refeição de quatro pratos para devorar durante uma fome. Audrey se apressou a ir em seu resgate e o fez passar a sua saleta de estar particular. Em seu cabelo brilhavam os diamantes de suas presilhas e ao pescoço levava uma gargantilha de pedras preciosas.
Rangeu a saia de seu vestido de tafetá cobre quando se sentou no sofá.
Heath se aproximou da porta de vidro do balcão e olhou despreocupadamente a rua. Não o tinham seguido.
- Boscastle, esta sim que é uma agradável surpresa. Sua visita se deve assuntos de trabalho ou de prazer?
Ele foi sentar se a seu lado sorrindo.
- A nenhuma das duas coisas.
- Que mais pode haver além disso?
- Quero saber por que Júlia veio vê-la hoje.
Ela arregalou os olhos.
- Jamais o digo.
Ele se acomodou no sofá.
- Ficarei sentado aqui olhando-a até que me diga.
Ela passou os dedos pela gargantilha descendo lentamente o olhar desde seus largos ombros para baixo.
- Isso não tem nada de ameaçador. Vai torturar me?
- Não tenho tempo.
- Que lástima - suspirou ela.
- Audrey, tenho que saber - disse ele docemente.
Ela pareceu intrigada.
- Por quê?
- A que veio Julia vê-la?
- Pergunte a ela.
- Pergunto isso a você.
Ela começou a ficar nervosa ante seu fixo olhar.
- Meus lábios estão selados.
Pegou-lhe a mão e lhe beijou os dedos, um a um.
- Audrey, minha formosa tentadora, quanto tempo faz que é uma boa amiga de minha família?
Estremecendo de prazer, ela fechou os olhos.
- Muito tempo, demônio. Vamos, condenação. Se lhe disser, promete que Julia não descobrirá?
- Tem minha palavra de cavalheiro.
- E a de malandro?
Ele começou a rir.
- Essa também.
***
Pela manhã do dia seguinte Julia tinha preparado sua bagagem para uma estadia indefinida no campo. Sabia que era dar um passo irrevogável aceitar ir com Heath à propriedade de Grayson no campo.
Hermia lhe assegurava que isso era o sensato, e ela agradecia contar com o apoio de sua tia, apesar de tudo que a gracejava.
De todo modo, o bom senso tinha menos a ver com sua decisão que com o irracional poder de suas emoções. Só escutava os ditados de seu coração. Desejava ter feito isso fazia muito tempo.
Já preparada, fechou a porta de seu quarto e desceu a toda pressa à sala de música, onde tinha escondido os desenhos que tinha feito de Heath. Levaria com ela. Não permitisse Deus que algum dos empregados ou empregadas os encontrasse. Passaria fatal defendendo essa obra de arte.
- O que faz, Julia? - perguntou Hermia da porta. - A carruagem de Boscastle chegará a qualquer momento.
Julia continuou olhando o espaço vazio atrás da harpa irlandesa que herdou de seu avô. Os desenhos tinham desaparecido. Isso era impossível; ninguém usava jamais essa sala. Era o melhor lugar da casa para esconder algo.
- Uí, não - murmurou, voltando-se para sua tia. - Não esteve aqui nestes últimos dias, não é verdade?
- Até este momento, não - respondeu Hermia. - Há tanta desordem nesta sala que mal se pode mover. Isso sim, ontem pela manhã tomei a liberdade de pôr duas crianças limpadoras de chaminés a limpar o lixo.
- Não! - exclamou Julia.
- Sim, acabo de lhe dizer isso Bom Deus, Julia, havia muito lixo aqui, muitos papéis velhos. Não quereria provocar um incêndio, não é?
- O que fizeram com meus papéis?
Hermia negou com a cabeça.
- Atiraram-nos ao lixo, imagino. Não havia nada de valor, não é verdade?
- Isso depende - disse Julia, tentando não ficar aterrorizada. -
Tomara tivesse me perguntado antes, Hermia.
Capítulo Vinte e dois
A propriedade campestre do marquês de Sedgecroft estava situada ao pé de verdes colinas cobertas de bosques nos subúrbios de uma aldeia de Kent de casas com vigas de madeira. Construída no século dezesseis, a formosa casa mudou ao longo dos anos para adaptar-se às necessidades sociais de seus proprietários.
Os atuais proprietários gostavam de oferecer festas em casa e organizar caçadas; o sociável marquês e a sua mulher adoravam convidar bons amigos a desfrutar com eles do aprazível entorno da mansão senhorial.
Mas Grayson e Jane ainda não estavam ali. Enviaram-lhes uma mensagem dizendo que tinham decidido desviar-se para a costa para fazer uma curta visita a uns primos de Jane. Heath e Julia tinham a propriedade virtualmente para eles sozinhos, se não contassem com Hermia, Hamm e os eficientes criados de Sedgecroft. A enorme mansão, e a distribuição dos quartos, davam-lhes muitíssimas oportunidades para ficarem sozinhos.
Na noite de sua chegada fizeram pouco mais que tomar um jantar ligeiro e muito cedo subiram aos quartos que lhes tinham atribuído para desfazer suas bagagens e deitar-se.
Um empregado conduziu Julia por uma escada de caracol de pedra e depois até o final de um longo corredor, onde se acharam ante uma maciça porta de carvalho com o portal em arco.
- Um quarto na torre! - exclamou Julia, voltando-se para olhar o homem alto que os tinha seguido - O que significa isto?
Heath sorriu de orelha a orelha.
- É para seu amparo.
- Amparo? Sinto-me como se tivessem me tornado prisioneira.
- Que tolice mais absoluta - disse ele. Fez um ligeiro gesto ao empregado: - Obrigado, Collins. Pela manhã pode deixar os tradicionais pão e água fora da porta.
- Muito divertido - resmungou Julia.
Abriu a porta, fazendo chiar as dobradiças, e ficou à vista um quarto surpreendentemente acolhedor, agradavelmente iluminado por velas em candelabros, e mobiliado com uma penteadeira dourada, cômoda, escrivaninha e uma cama. Um convidativo fogo ardia na lareira de mármore com nervuras rosadas.
- Oh, é lindo. É a prisão mais formosa que vi.
Ele sorriu, irônico.
- Aqui traziam suas princesas os homens da família.
Ela contemplou admirada uma aquarela que pendia em cima do aparador da lareira; representava um pastor e uma pastora em um prado; de repente percebeu o que estava fazendo o bucólico casal debaixo de uma árvore. Era impossível olhar o quadro sem pensar em relações sexuais desinibidas, em prazeres terrenos.
- Acredito que não preciso perguntar por que traziam aqui às mulheres -disse, virando-se lentamente.
E se achou ante ele, que a estava olhando de cima abaixo com inequívoca sensualidade. Sem pensar - levou a mão ao fecho de sua capa de lã cinza; de repente achava muito caloroso o aposento. Quando aprenderia que a família Boscastle jamais fazia algo pela metade? Isso devia ser o que quis dizer Jane quando lhe advertiu que tomasse cuidado.
Ele a fez virar suavemente e lhe colocou as mãos sobre os ombros.
- Por que tão nervosa, Julia? - perguntou-lhe em tom travesso, sua voz cheia de magnética segurança masculina.
Apertou o corpo ao dela e a dura parede de seu peito a convidou a apoiar as costas nele.
- Nervosa? Pareço-lhe nervosa?
O que estava era fraca, decididamente enjoada.
Virou-se para olhá-lo e viu brilhar em seus olhos as chamas da lareira. Se atrevesse a olhá-lo mais atentamente nos olhos talvez veria o diabo também, ou no mínimo o reflexo do desejo dela. Sentiu calor nos seios e o fôlego ficou preso na garganta. O calor a percorreu inteira em agitadas ondas.
- Julia - disse ele, arqueando uma escura sobrancelha acusadora.
Aí. Conseguiu ver satã em seu olhar quando levantou as mãos para o fecho de sua capa e acrescentou:
- Só apenas eu.
- Exatamente.
Com um rápido movimento dos dedos lhe desabotoou a gola da capa.
- Faz calor aqui, não é verdade? - disse, olhando-a no fundo dos olhos.
- Para assar-se.
- Talvez leve muita roupa.
- Sou muito capaz de me despir sozinha. Isso na realidade é algo que tenho feito desde que tinha três anos.
- Sempre vai bem uma ajuda.
- Acredito que me arrumarei.
Ele desceu a mão por suas costas roçando-lhe em uma sutil carícia.
- Ocorre que sou muito hábil com as mãos.
- Esteve em dúvida isso alguma vez?
Ela observou cair a capa sobre o macio tapete. Não poderia jurar, mas teve a impressão de que o desenho do tapete representava outra voluptuosa cena para excitar os sentidos. Embora certamente o típico homem Boscastle não necessitava nenhuma ajuda nesse terreno.
Tampouco ela. Estava se afogando de desejo e necessidade, tão perdidamente apaixonada por ele que já não podia conter-se. Tendo esperado tanto tempo a felicidade, desejava saborear cada momento dela. Momentos que se prolongariam meses e logo anos se conseguisse o que queria.
- Onde vai dormir Hermia? - perguntou.
Escapou-lhe uma suave exclamação ao sentir fechar-se seus braços ao redor dos ombros. Brilharam de travessura os olhos.
- Segura na outra ala.
- A outra ala!
- Hamm vai ocupar a aposento contiguo ao dela. Não se pode esperar que eu proteja as duas ao mesmo tempo.
Ela desceu os olhos para o tapete, tentando desviar a mente do desejo que corria vibrando por suas veias.
- Aparentemente o desenho representava uma orgia dionisíaca.
- Interessante o tapete - comentou. - Hedonista, mas interessante.
Levantou-lhe o queixo com o dorso de um dedo. Uma onda de expectativa a percorreu toda ao ver seu sedutor olhar sob as pálpebras.
- Nossos quartos estão comunicados.
Ela olhou para a porta da parede a que ele dava as costas.
- Quer dizer pelo corredor?
Ele lhe roçou o lábio inferior com o polegar. O sensual contato quase a fez cair de joelhos; tremeram-lhe as pernas e teve que engolir uma exclamação.
- O pequeno quarto de vestir comunica nossos aposentos - disse ele, em voz baixa, como um caçador tranquilizando a sua presa. - Estou a um passo se me necessitar.
- Não vejo fechadura. Deve estar em sua porta.
Ele balançou de lado a lado sua morena cabeça. Continuou sorrindo-lhe sem piedade, a mensagem clara e sedutora.
- Não há fechaduras. Só há nas portas que dão ao corredor.
Ela ficou imóvel onde estava quando ele se virou e começou a andar para a porta do quarto de vestir.
- Não se sente mais segura sabendo que eu estou no quarto contiguo?
- Poderia, se houvesse grades de ferro entre nós - respondeu ela, carrancuda.
Outro sorriso formou nele ruguinhas em suas largas maçãs do rosto. Ela viu sua irresistível imagem no espelho de corpo inteiro quando lhe disse:
- Isso se deve porque não confia em mim ou não confia em você, Julia?
***
Julia já tinha se despido e deitado, mas não conseguia dormir.
Sentia-se como a princesa do conto que passou toda a noite agitada e nervosa porque havia uma ervilha debaixo do colchão. O quarto estava desenhado para sentir-se a gosto e cômoda, para deixar fora o resto do mundo e permitir que uma mulher se concentrasse em uma só coisa.
- Sedução - disse em voz alta, sentando-se na cálida penumbra da cama.
O livro que estava tentando ler caiu sobre o tapete. Jogou atrás as mantas perfumadas com lavanda e se agachou a recolhê-lo. Quando se endireitou havia um homem meio reclinado na cama a seu lado. Um homem de aspecto muito perigoso com uma folgada camisa de linho branco e calça negra que lhe rodeavam a formosa musculatura.
Abriu a boca para gritar.
Ele a silenciou com um beijo.
- Senhor misericordioso - murmurou ela quando pôde falar, deitando-se sobre a perfumada roupa de cama, presa sob o sensual peso de seu corpo.
Ele se acomodou sobre ela.
- Não é preciso que me agradeça - disse com a voz rouca. - Estou aqui para protegê-la.
Por cima do ombro dele, ela olhou os confusos contornos das sombras do quarto.
- Do que?
- Ouvi um ruído.
- Deve ter os ouvidos de um lobo, Heath Boscastle; e seus instintos. Caiu o livro faz um momento.
- Pensei que poderia ter entrado um intruso e devia investigar.
- Há um intruso.
Ele estreitou os olhos com fingida preocupação.
- Pode me descrever?
- Muito bem. É pecaminosamente bonito, pecaminosamente ardiloso e... e totalmente relaxado. A maioria dos intrusos o são.
Ele se levantou e desceu o olhar por ela como uma chama.
- Acredito que deveria ficar, se por acaso voltar - disse, deslizando a mão por seu braço, atraindo-a para ele. - A não ser, claro, que deseje que vá.
Ela fechou os olhos, estremecida.
- Não - murmurou.
- Isso me pareceu.
- O que pensa?
- Esperei-a muitíssimo tempo - sussurrou ele. - Aviso que depois desta noite não voltará a escapar.
Deu-lhe um salto o coração.
- Não o desejaria.
Continuaria com ele acontecesse o que acontecesse, inclusive se Russell armasse um escândalo pela ruptura do compromisso. Seria de Heath até o final.
Já tinha se colocado de joelhos para lhe desabotoar a camisa e descê-la rapidamente pelos ombros até sua estreita cintura. Entre ávidos e apaixonados beijos lhe desatou o laço da camisola e a tirou pela cabeça. Ela esfregou os inchados seios contra seu duro peito com cicatrizes. Conseguiria sará-lo com seu amor; faria-o esquecer tudo o que tinha sofrido.
Ele investiu com a pélvis, separando as coxas para lhe firmar o corpo já tenro e flexível em sua entrega a ele.
Ela desejava entregar-se a ele de todas as maneiras possíveis.
Seu coração sempre lhe tinha pertencido. Por fim lhe pertenceria seu corpo também. Que maravilhoso amar tão livremente.
- Ooh, Julia - murmurou ele.
Sentia a intensidade de sua emoção em sua reação a ele. Notava-a algo frenética, docemente disposta. Interrompeu o beijo na boca e desceu os lábios por seu pescoço até os seios e lhe pegou um escuro mamilo. Ela se arqueou, estremecida, e se apertou mais a ele; desejava isso tanto como ele, mas não lhe bastava. Queria que ela compreendesse totalmente que casar-se com outro homem seria um engano; que era a ele a quem necessitava, que isso tinha sido seu destino todo o tempo. Resistiu lhe dizer da deslealdade de Russell, mas sentia a tentação de dizer-lhe que ele jamais a trairia; não conseguia imaginar como um homem podia desejar lhe ser infiel, mas a perda de Russell era ganho para ele.
Deslizou possessivamente as mãos por seu corpo nu, pegou-lhe as nádegas e a apertou a ele, para que sentisse quão duro estava por ela, o desesperado desejo que lhe provocava. Ela estremeceu e afundou o rosto em seu ombro.
- Desejo... - murmurou com a voz afogada.
Deslizou o polegar pela elevação do traseiro. Nenhuma mulher o tinha excitado jamais dessa maneira.
- Sei o que deseja.
- Então, não acha que já é hora de que me faça deixar de desejar?
-murmurou ela, com a boca junto ao duro contorno de seu maxilar.
Ele desceu a outra mão por seu quadril e a introduziu entre suas cálidas pernas.
- Depois não me vai abandonar.
- Vou a...
- Não foi uma pergunta. - Desceu o corpo até a cama e a segurou firmemente com o peso de suas musculosas coxas. - Foi uma afirmação.
E eu não a abandonarei tampouco. Desta vez não há nada que possa me afastar de você.
Ela se arqueou apertando-se contra ele. Ele a olhou sorrindo. Iria
demonstrar que era sua prisioneira da maneira mais erótica. Quando acabasse ela estaria feliz de ser sua escrava na cama, tal como ele estava escravizado por ela.
- Desejo-a - disse.
Ela o olhou nos olhos.
- Eu o desejei desde o instante mesmo em que nos conhecemos.
- Deveríamos ter estado juntos, Julia. Como nos equivocamos tanto?
- Agora estamos juntos.
Continuaram olhando-se nos olhos enquanto lhe explorava o corpo com as mãos, enquanto lhe acariciava os músculos estriados do abdômen. Ele se afastou e levantou-se para tirar a calça; tinha o membro tão levantado e duro que não podia ocultá-lo. O desejo corria furioso por suas veias até instalar-se na medula dos ossos.
Teve que recorrer a toda sua força de vontade para recordar que desejava lhe demonstrar seu amor e seu desejo, de fazer de cada movimento com ela algo que ela recordasse; de compensar os anos que estiveram separados. Aquela primeira vez que estiveram juntos foi muito impaciente, precipitado. Já tinha aprendido muitíssimo mais sobre o prazer, pelo que realmente importava na vida.
- Vou lhe dar o que deseja, Julia.
- Desejo você - disse ela sem vacilar.
- E...
- A você - disse ela descendo as mãos e lhe agarrando o membro entre os dedos.
Retesou a virilha dele com o excitante contato, e passou o desejo ardente como fogo por todo seu corpo. Gemeu, aprovador, quando ela o acariciou, lhe demonstrando que no jogo do desejo não era uma competidora que se pudesse subestimar. Lamentando os anos que tinham perdido, ele estremeceu com o prazer do momento, com o amor
que se permitia, por fim, sentir.
Ela era o que desejava, o que necessitava, do que sentia falta em sua vida. Ela se endireitou um pouco apoiada nos cotovelos, para pegar o membro com a boca, e ele a contemplou em seu feroz desejo, deleitando-se no sedutor calor de seus lábios, na sucção insuportavelmente doce. Aumentou a tensão em sua virilha. Teve que fazer um esforço para conservar a prudência, o autodomínio. Se lhe sugasse aí com mais força, ejacularia como um escolar, e era muitíssimo o quanto desejava impressioná-la.
Apertando os dentes para controlar-se, pegou-a pelos ombros, introduzindo um joelho entre suas coxas. Ela se deixou cair na cama, com as pernas abertas, convidando-o.
Ele desceu a cabeça e a beijou na boca; sentiu seus braços lhe rodeando fortemente os ombros, e lhe contraíram os músculos em reação a essa carícia. Posicionou-se entre suas coxas e investiu, penetrando-a. O úmido calor o acolheu, fechando-se ao redor de seu vibrante membro lhe produzindo uma sensação de prazer indescritível.
Fechou os olhos e se deixou levar pelo instinto, unindo-se a ela no ditoso prazer.
Capítulo Vinte e três
- Tenho que confessar uma coisa - disse ela.
Estavam abraçados na cama; nenhum dos dois estava disposto a dormir, a renunciar a um só momento do tempo que restava da noite.
Ele ficou em silêncio, ainda distraído por seus pensamentos.
Jamais em sua vida teve uma relação sexual como essa; seu corpo continuava estremecido pela potência do orgasmo. E a desejava outra vez. Ah, vamos, ela o embebedava. O que disse? Que desejava confessar algo? Pressentiu que ia dizer lhe que tinha ido ver Audrey para lhe pedir conselhos sobre como seduzi-lo. Bom, não era seu dever lhe desinflar sua ilusão de segredo, sobre tudo se seu objetivo foi atrai-lo a
sua cama. Não iria estragar a noite mais prazerosa de sua vida reconhecendo que foi investigá-la, nem que tinha descoberto seu segredo.
Rendendo-se, dobrou despreocupadamente um braço sob a cabeça. Com o outro a atraiu mais para seu corpo nu.
- Confesse, querida. Estou com ânimo de perdoar.
Embora não houvesse nada para perdoar. A sensualidade de Julia essa noite era o sonho secreto de todo homem. Mas a maioria das mulheres desfrutavam com a sensação de algo misterioso. Sorriu indulgente quando ela se afastou dele. Na penumbra que os rodeava a notou um pouco envergonhada. Francamente, desejava ser o receptor de qualquer conhecimento sexual que ela tivesse recebido. Estava preparado de antemão para lhe fazer amor.
Ela se endireitou um pouco, olhando as cortinas. Deslizou-lhe os dedos pela coluna até a fenda entre suas brancas nádegas.
- Solte. Não pode ser tão horroroso.
- Ah, poderia - se apressou a dizer ela.
Ele se sentou lentamente. O lençol lhe caiu até a cintura. O tom rouco de sua voz lhe advertiu que tinha que confessar algo mais que seu estudo das artes sexuais.
O que poderia ser? Era algo mais sério, com certeza. Sinos do inferno,
Teria descoberto a infidelidade de Russell?
Sentiu compaixão por ela, porque detestava vê-la magoada por causa de outro homem. Ardia de ciúmes ante a só ideia de que ela pudesse estar pensando em Russell quando acabavam de fazer amor.
- O que é Julia? -perguntou, com mais frieza do que queria. Jamais em sua vida havia sentido essa emoção de modo tão intenso.
Ela estremeceu ligeiramente.
- Talvez lhe devesse dizer isso pela manhã.
- Dirá agora.
- Para que estragar uma noite perfeita?
Ele olhou sério seu sedutor corpo nas sombras.
- Não me considera digno de confiança?
- Não se trata disso.
Pôs uma mão em seu ombro e a virou para ele. Seus olhos escuros e expressivos lhe produziram uma nova onda de desejo. Jamais em toda sua vida se havia sentido tão satisfeito e ao mesmo tempo tão ávido de mais.
- O que é, então? Russell?
- Russell?
- Russell. Meu ex-amigo. Seu ex-noivo.
Ela o olhou séria.
- Que demônios tem a ver Russell com isso?
- Isso é o que tento descobrir - disse ele, impaciente.
Ela voltou a apoiar a cabeça no travesseiro.
- Promete- ter piedade? Recordará que não fiz isto de propósito para chateá-lo?
Repentinamente alarmado, ele se inclinou sobre ela.
- O que fez?
- Não o fiz de propósito.
Ele a olhou, esperando, dizendo a si mesma que ela era incapaz de cometer um ato imperdoável.
Ela subiu o lençol até os ombros.
- Lembra do desenho que fiz de você? Esse que fiz para uma obra de caridade?
Ele se endireitou.
- Não me diga que o vendeu.
Ela o olhou ofendida.
- Não, como iria vendê-lo. Esse era meu desenho secreto, não o
que fiz para o clube. Acha que eu compartilharia com o mundo minha visão de ti? Ao menos essa visão?
- Não - disse ele, exalando um longo suspiro de alívio. - Não. Mas por um momento me deu a impre...
- Perdi-o - disse ela, cobrindo o rosto com o lençol.
- Perdeu? Quer dizer em sua casa? Extraviou-se? Não recorda onde o escondeu? - Puxou o lençol lhe deixando o rosto descoberto, e ela o olhou com os olhos suplicantes. - Diga-me que se extraviou em algum lugar de sua casa.
Ela engoliu saliva.
- Tomara pudesse. Mas não. Desapareceu. Tia Hermia fez limpar a sala de música por dois limpadores de chaminé que achou na rua. É
possível que não tenhamos com o que nos preocupar. Quem desejaria sua imagem nua, além de mim e de outras mil inglesas?
- Nu? - perguntou ele, fracamente, desejando ter entendido mal. -
Não terminou de desenhar minha roupa? Ou um lençol? Ou mais folhas de figueira?
- Bom, estava pensando se deveria ocultar seu corpo com a carruagem quando o desenho desapareceu. O mais provável é que o tenham atirado ao lixo, não acha?
- Dá medo pensar, Julia. Estou francamente paralisado ante as possibilidades de que meu corpo nu ande circulando pelas ruas de Londres.
Na realidade era uma situação condenadamente embaraçosa, mas não tanto para danificar a intimidade entre eles. Pela manhã se ocuparia do desenho desaparecido, mas as horas que restavam até então pertenciam a Julia.
***
Ela o despertou de noite explorando os atributos masculinos com as mãos. No mesmo instante em que despertou sentiu-se excitado por
seu contato.
- Já me perdoou? - murmurou ela, com seu corpo macio e quente pelo sono.
Ele rodou e a prendeu entre suas fortes e musculosas coxas.
-A credito que deveria ganhar o perdão, não lhe parece?
- Tentarei - sorriu ela.
Ele segurou o fôlego quando ela o empurrou deixando-o de costas.
Já se aproximava a aurora e na propriedade reinava o mais absoluto silêncio. Retesaram-se os músculos do ventre quando sentiu o sedutor toque de sua boca no membro. Ela moveu os lábios ao redor da ponta de seu pênis em uma ligeira e incitante fricção. Ele introduziu os dedos em seu cabelo, com o coração cada vez mais acelerado, a tensão insuportável, uma doce tortura.
- Perdoa-me? - perguntou ela, com sua voz de tentadora.
Ele se sentiu como se fosse explodir. A ágil língua dela lhe lambia em círculos o inchado pênis em uma hábil tortura, lhe acendendo as terminações nervosas.
- Um pouco - conseguiu dizer apenas, em um rouco gemido.
Ela continuou torturando-o, pondo a prova até os últimos limites de seu autodomínio. Permitiu-lhe prolongar seu prazer até que chegou o momento em que ou lhe devolvia o favor ou se descontrolava totalmente.
Endireitou-se e em um só movimento a fez rodar até deixá-la debaixo dele lhe segurando os pulsos em cima da cabeça com uma mão.
Ela ficou quieta, ofegando em espera, enquanto lhe deixava uma esteira de beijos dos seios até o ventre. Insistiu para que ela abrisse as pernas. Ela gemeu quando afundou o rosto entre suas pernas para saboreá-la. Sentiu-a mover-se inquieta e pela cabeça lhe passou vago o pensamento de se teria conhecido esse prazer antes.
- Relaxe, Julia.
- Mas é que não...
Deslizou a língua pelas dobras da vulva em longas e suaves lambidas. Ela ficou em silêncio, com os músculos das coxas trêmulos, agitando e retorcendo a parte inferior do corpo. Colocou um braço sobre o ventre para mantê-la quieta. Ela se arqueou emitindo um rouco gemido gutural. Podia ter estado casada, podia ter estado comprometida com outro homem, mas quando acabasse a noite só pertenceria a ele. Seu corpo não recordaria a outro amo.
Ela tentou tomar fôlego.
- Acho isso muito relaxante.
- Vamos, é o céu. Quer que pare?
- Morrerei se parar.
Ele a penetrou o mais que pôde com a língua, e seu aroma o deixou louco. Agarrou-lhe a pequena protuberância entre os dentes e a mordiscou suavemente até que lhe tremeu todo o corpo e virou o rosto afundando-o no travesseiro. Continuou atormentando-a, lhe produzindo todas as sensações possíveis, despertando todos os sentidos ocultos até que ela se retorceu. Retumbava lhe o coração, mas continuou, levando-a ao orgasmo com a boca.
Sem lhe dar tempo para se recuperar posicionou-se entre suas coxas. Ela tinha os olhos fechados, o corpo molhado de suor, excitado e bem disposto quando afundou o membro em sua vagina. Ela estremeceu de prazer com a invasão; rodeou-lhe os quadris com as pernas e as apertou. Sua sensualidade desafiou seu autodomínio e lhe inflamou os sentidos.
- Heath.
Isso era uma súplica, embora não soubesse e queria que parasse ou que a penetrasse com mais força. Já não podia parar. Só podia pensar na ansiada liberação que lhe daria. Levantou-lhe as pernas e as passou por cima de seus ombros, movendo em círculo os quadris em sensual desenvoltura. Investiu mais forte, mais rápido, com mais ardor,
mais e mais excitado. Continuou penetrando-a mais e mais fundo, até que sentiu as contrações do orgasmo ao redor do pênis, e saíram voando todos seus pensamentos, substituídos pela mais pura sensação.
Arqueou as costas ao sentir alagado de prazer todo o corpo, e lhe estremeceu até a alma de satisfação enquanto ejaculava. Quando remeteu a última contração dela e os estremecimentos dele, só pôde olhá-la maravilhado e lhe acariciar a face. Olhou-a nos olhos.
- Santo céu.
Ela suspirou.
Rodou para um lado e a pegou em seus braços.
- Acredito que nunca me saciarei de você.
- Sinto retumbar seu coração, Heath - murmurou ela.
- Isso é o que me faz. -Aumentou a pressão de seus braços ao redor dela, para protegê-la. - Foi assim apaixonada por seu marido?
Ela voltou a suspirar.
- Não. Nunca.
- E com Russell? -perguntou.
Essa pergunta esteve queimando uma curva da mente. Se lhe desse a oportunidade apagaria as lembranças de todos os homens que tinha conhecido.
- Não. Com Russell nunca fui apaixonada.
- Não me diga que ele nunca tentou - disse ele, sem poder acreditar que algum homem pudesse resistir a sua natural sensualidade.
- Não disse isso.
- O bastardo - disse ele, em tom ameaçador.
Ela riu e jogou atrás a cabeça, inclinando-a para lhe olhar de perfil.
Ele não a olhou. Temia não ser capaz de ocultar o rancor que sentia por Russell, o possessivo e protetor que ela o fazia sentir-se. Seu prazer pela união física. Teve muitíssimo tempo para aprender a valorizá-la, para compreender o muito que ela significava para ele.
- Heath? - disse ela docemente.
Ele a olhou, já apaziguadas suas emoções. Detectou uma nota de ansiedade em sua voz. Desejou não ter quebrado o momento trazendo à luz seu ciúme.
- O que? - perguntou, observando seus preocupados olhos.
- Sei como funciona a mente masculina, Heath.
- E sim, sabe fazer funcionar o corpo masculino.
Ela sorriu.
- A senhora Watson o fez parecer muito acadêmico. Parece-me que abrirá uma escola algum dia e terá muito êxito.
Ele sorriu de orelha a orelha.
- Simplesmente não se ofereça de voluntária para fazer o papel de diretora.
Ela o olhou nos olhos, com expressão travessa.
- Suponho que todo homem deseja ser o primeiro amante de uma mulher - disse docemente. - Tomara você tivesse sido o meu.
Ele desceu a cabeça para lhe beijar a macia e tentadora boca.
- Minha querida Julia, está muito equivocada.
Ela se acomodou em seus braços e dobrou uma perna sobre sua panturrilha para aproximá-lo mais.
- Sim?
- Sim - apertou seu endurecido corpo ao dela, modelando-o a suas atraentes curvas. - O desejo de todo homem é ser o último. E isso serei para ti.
***
Uma hora depois Heath despertou, no silêncio anterior às primeiras luzes da alvorada. Sorrindo, cobriu-lhe os ombros nus com a colcha, e depois ficou imóvel durante um longo momento. Sentia um contentamento que não tinha conhecido nunca antes, por estar na cama ao lado de Julia, escutando-a respirar.
Aí no campo, na casa de seu irmão, era-lhe perigosamente fácil tirar da cabeça o perigo que representava Auclair e a perspectiva de explicar a situação a Russell; sentia como coisas longínquas. Pelo contrário a Julia era-lhe impossível ignorar. E quanto a compensar o tempo perdido, ela estaria dolorida depois do que lhe tinha feito durante a noite.
Desceu silenciosamente da cama e foi acrescentar carvão ao fogo, para que quando ela despertasse o quarto estivesse quente. Teria lhe encantado ficar na cama e a ter abrigada ele. Mas mesmo um malandro Boscastle tinha que ater-se a um mínimo de decência em um ambiente social. Não iria nada bem que tia Hermia descobrisse que se deitava com sua sobrinha quando seu dever era protegê-la.
Passou a seu quarto, lavou-se, barbeou-se e colocou roupa limpa.
Quando ouviu o movimento de empregados pela casa, sentou-se ante sua escrivaninha para escrever uma carta para Londres. Não tinha esquecido o maldito desenho desaparecido de Julia. Seria melhor encontrá-lo antes que lhe ocasionasse problemas.
***
Julia ouviu quando ele despertou e desceu silenciosamente da cama. As relações sexuais dessa noite a tinham deixado tão deliciosamente esgotada que não o chamou.
Sentia-se segura nessa casa, em seus braços, e se estivesse em seu poder manteria o resto do mundo a distância para sempre. Seria capaz de simular indefinidamente que era sua princesa na torre.
Mas tinha a desagradável impressão de que Russell não tomaria garbosamente a ruptura do compromisso, mesmo que lhe tivesse sido infiel. E ela disse que desejava que Heath lutasse por ela? Bom, certamente não o disse em um sentido literal; nem ele nem Russell tinham por que lutar por ela para demonstrar sua valentia ou sua virilidade. Como lidaria com Russell? Como o faria Heath? Ele não havia
dito. Era um homem que pensava muito bem as coisas e não era propenso a agir com precipitação.
No momento só cabia esperar e desejar que conseguisse romper o compromisso com Russell com toda a finura e cortesia que ele permitisse. Juntos ela e Heath eram bastante fortes para aguentar e fazer frente ao que fosse que se apresentasse. Essa era a vantagem da experiência, supunha. Pelo menos contava com a incondicional aprovação de sua tia e, felizmente, a família de Heath a aceitava com sua famosa simpatia. O espaldar dessas pessoas que amava a ajudaria a passar por tudo. Seria a mútua lealdade ante as provas da vida o que dava sua força e resistência aos Boscastle? Essa era uma qualidade que ela admirava, uma qualidade que esperava que herdassem os filhos que lhe desse Heath.
Capítulo Vinte e quatro
A carta de seu irmão Heath chegou a lorde Drake Boscastle em um momento do mais inoportuno.
Acabava de acomodar-se no sofá de uma sala de estar de Audrey para passar uma tarde de hábil sedução. Tinham-no convidado com o pretexto de um recital de poemas. Duvidava muito que ao sair da casa levasse um pouco de literatura na cabeça.
Não era provável que a jovem atriz que tinha em seus braços fosse capaz de recitar Jack e Jill nesses momentos. A insistência de Audrey aceitou que uma de suas alunas novatas praticasse com ele suas habilidades profissionais.
- Acredito que, decididamente, tem vocação para isto - murmurou com os lábios em sua cálida boca vermelha.
Jogou um braço ao pescoço e com a outra mão começou a lhe soltar a gravata.
- De verdade acredita? - disse.
- Bom, suponho que deveríamos...
Levantou os olhos aborrecido ao sentir que se abria a porta atrás dela e viu que Audrey fazia entrar um empregado jovem. Estava pensando em quebrar a cabeça do moço por interrompê-lo, quando reconheceu a carruagem de sua família. Brandamente levantou a jovem que tinha sentada nas coxas e a depositou no sofá.
- Sinto muito, Boscastle, mas ele insistiu em que era importante -
disse Audrey, com um sorriso ladino que indicava que não sentia absolutamente e que tinha toda a intenção de inteirar-se do que era tão importante.
O empregado lhe entregou a carta, examinando de passagem à confusa atriz que dissimuladamente tentava arrumar o vestido e o cabelo ao mesmo tempo.
Drake rompeu o selo, desdobrou o papel e ao ler a mensagem lhe escureceu o rosto.
Preciso vê-lo para te encarregar uma missão muito importante.
Está em jogo o bom nome da família.
Heath
- Inferno e condenação - resmungou, guardando o papel no bolso do colete. - Com certeza sabe escolher o momento.
Audrey o olhou preocupada. Sempre havia sentido um carinho especial por essa família.
- Algum problema, Drake? - perguntou, arqueando as sobrancelhas.
- O que seria um Boscastle sem problemas? - respondeu ele, sorrindo pesaroso.
Ela o seguiu até a porta, com os olhos penalizados. O empregado Boscastle já tinha pego o chapéu, a capa negra e as luvas de Drake.
- Devo supor que dado o recente matrimônio de Grayson e o interesse de Heath por Julia, você e seu irmão mais novo são os únicos Boscastle que temos disponíveis para a sedução? - perguntou a Drake,
que se afastava.
Ele se virou e lhe lançou um beijo da porta.
- Ao menos na família imediata.
***
Ao entardecer do dia seguinte Heath e Drake estavam reunidos no salão oval da casa de campo de Grayson. Heath estava junto à janela enquanto Drake passeava, agitado depois da apressada cavalgada de Londres.
- Agradeço-lhe que tenha vindo sem perda de tempo - disse, dirigindo-se ao aparador para lhe servir uma taça de conhaque.
- Quase quebro o pescoço para chegar logo - respondeu Drake. -
Se trata de Auclair? Ou é Brentford outra vez? Sabia que deveria tê-lo deixado inconsciente a golpes.
- Auclair não fez outra jogada.
- Suponho que seria muito esperar que tenha desaparecido para sempre.
- Provavelmente - disse Heath, lhe passando a taça com um sorriso tenso. - Isto é um assunto embaraçoso, chato.
- Chato? Deixei uma morena pronta, meio desmaiada no sofá de Audrey. Eu diria que foi atroz, não chato.
- Com certeza esperará você.
Afogando um bocejo, Drake se sentou em uma poltrona com tachas de bronze.
- Se necessitar que me desfaça de um corpo, diga. Hamm pode me ajudar. Acabemos de uma vez.
Heath ficou silêncio ao ouvir risadas femininas no corredor.
- Não é um corpo. Bom, em realidade, sim. Meu corpo, ou melhor dizendo um desenho não autorizado de meu corpo nu. Desapareceu um desenho de mim que Julia fez.
Drake engasgou com o gole de conhaque que acabava de beber.
Um sorriso diabólico se estendeu por seu rosto. Suas feições eram similares às de Heath, mas de ângulos mais marcados, de contornos mais duros.
- Seu cor.... você, nu?
- Se começar a rir haverá um corpo morto de que será necessário desfazer-se - disse Heath friamente.
- O que aconteceu?
- Hermia pagou a dois limpadores de chaminés que achou na rua para limpar a lotada sala de música. Julia tinha escondido aí o desenho.
Por segurança.
- Me traga terra - exclamou Drake, pondo para trás as abas da jaqueta - Um par de limpadores de chaminés poderiam ter levado o maldito desenho a qualquer parte.
- Exatamente.
- Talvez achou caminho para o Louvre. Teremos que enviar Wellington a reclamá-lo.
- Minhas aspirações com respeito a meu valor artístico são ligeiramente mais humildes - disse Heath. - Pessoalmente me horroriza imaginar minha imagem nua desfilando pelos becos de Saint Giles. Sei que não foi culpa de Julia, mas é embaraçoso.
- Deveria valer uma fortuna no mercado negro - disse Drake. -
Pense em todas as mulheres que matariam por possui-lo. Como é?
- Como eu nu, suponho.
- Que demônio se apoderou de Julia para fazer uma coisa assim?
- Isso terá que perguntar a ela, não?
Drake ficou em silêncio um momento.
- Não se preocupe, já sei. A pergunta é, sabe Russell?
Heath virou a cabeça, distraído pelo som da porta ao abrir-se atrás deles. Entraram Hermia e Julia, sua travessa pintora em pessoa, preparada para o jantar, com um vestido de musselina lilás. Endireitou-
se e a olhou de cima abaixo, com os olhos escurecidos, apreciativos.
- Ai, Deus - exclamou ela, escondendo-se atrás de Hermia - Uma reunião familiar, e acredito que sei o motivo.
Hermia olhou francamente para Drake.
- Já o encontrou?
Ele se levantou cortesmente para lhe responder:
- Não, mas estou a ponto de começar a busca. Poderia alguma das duas me descrever esse desenho?
Julia retorceu as franjas de seu xale entre os dedos.
- Na realidade, prefiro não descrevê-lo.
- Sou eu, representado como o deus Apolo - disse Heath, exasperado. - Não teria por que ser difícil reconhecê-lo.
- Bom - murmurou Julia - além do pequeno detalhe de que o desenhei como uma caricatura.
- Caricatura? - repetiu ele, sem entender.
Julia se virou para a lareira. Jamais, nem em mil anos, teria imaginado que seu desenho iria parar em mãos de qualquer um. Não era de estranhar que na alta sociedade a chamassem a Escandalosa Lady Whitby. Que impressão mais horrenda causaria isso à família de Heath; e pensar que o fez só para divertir-se.
- Verá, exagerei e distorci algumas partes de sua anatomia. Fiz uma dessas caricaturas que são tão populares nos jornais.
- Valha-me Deus, não me diga, esse desenho? - exclamou Hermia.
Que espantosa ideia, pensou Heath, ser imortalizado nu em caricatura.
- Encontre esse maldito desenho - disse sombriamente a Drake. -
Encontre-o, ou as consequências serão horrorosas.
***
Drake jantou rapidamente acompanhado por Heath e Julia e depois subiu imediatamente para deitar-se afim de poder partir na primeira hora
da manhã para iniciar essa divertida busca.
Nessa noite, quando estava sentada com Heath junto à lareira de seu dormitório, Julia trouxe à baila a situação.
- Esse desenho começou a lhe causar vergonha e nem sequer o viu. Sinto muito.
Ele sorriu a seu pesar; era incapaz de zangar-se com ela. Agora que compreendia o muito que a necessitava em sua vida, não estava disposto a brigar com ela por isso, e muito menos havendo outros problemas mais graves que deviam enfrentar.
- Disse isso. Com certeza sobreviverei, Julia. Não perca o sono por isso.
Embora talvez ele perdesse. Santo céu, que vergonha tão sem precedentes. Já se via entrando em seu clube e encontrando o desenho pendurado na parede. Seus amigos se derrubariam pelo chão rindo às gargalhadas. Até o dia de sua morte o chamariam o Apolo Nu. Jamais conseguiria apagar isso.
- Ainda não o viu - disse Julia, e seu tom indicava que não lhe seria tão fácil perdoar se o tivesse visto. - Talvez os limpadores o queimaram.
- Para a cama, Julia - disse ele, levantando-se e lhe estendendo a mão.
Quando ela se levantou, pegou-a em seus braços.
Beijou-a apaixonadamente até que sentiu as carícias de suas mãos na nuca, e se relaxou, lhe correspondendo ao beijo, e logo sentiu sua quente respiração no pescoço. Imediatamente levantou o membro duro como aço e a conhecida excitação lhe inundou todo o corpo.
- Como vivi sem ti todos estes anos? - perguntou, fechando os olhos e esfregando-se contra ela.
- Não volte a viver sem mim nunca mais - sussurrou ela.
Já tinham entrado no mundo secreto de seu romance. Despiu-a lentamente e se ajoelhou para lhe tirar as ligas e as meias cor carne.
Colocou-lhe as palmas no interior das coxas e empurrou para separá-
las.
- Creio...
Ela se pegou a seus ombros, com o cabelo brilhante como chamas escuras à luz do fogo da lareira.
- Homem relaxado - disse com a voz entrecortada.
- Mulher depravada.
- Só com você.
- Terei que ser muito bom para me assegurar disso. -Colocou as mãos em suas brancas nádegas e lhe mordiscou o ninho de fragrantes cachos escuros. - Ou muito mau. O que prefere?
- Acredito...
Interrompeu-se com um gemido e teria caído no chão se não tivesse firmado os joelhos fracos com suas fortes mãos.
- Acredito que prefere quando sou mau - murmurou lhe sustentando o corpo trêmulo e submisso.
Levantou-se rapidamente para agarrá-la em seus braços. Ela começou a despi-lo, lhe beijando cada parte do corpo que ia ficando descoberto até que ficou nu com o membro totalmente ereto. Fez ele retroceder até deixá-lo estendido na cama e pegou o aveludado pênis entre as mãos. Agora que se permitia a expressão de seus sentimentos por ele não podia parar, não podia deixar de acariciá-lo. Nunca voltaria a negar o que ele significava para ela. Ele a entendia tão bem e se antecipava a seus estados de ânimo, a suas necessidades.
- Até onde pode ser mau? -perguntou, abaixando a cabeça para lhe beijar a ponta do pênis.
Ele arqueou os quadris e lhe rodeou a parte inferior do corpo com as pernas, deixando-a aprisionada.
- Sou um Boscastle. Não há limites.
Para demonstrar isso, pegou-a pela cintura e a levantou até deixá-
la sentada sobre seu vibrante membro e a penetrou descendo seu corpo.
Gemeu de prazer ao enterrar-se em seu molhado canal.
- Que prazer, não é verdade?
Ela jogou atrás a cabeça e arqueou as costas, em um movimento de pura reação sexual. Ele reteve o fôlego e subiu as mãos por seu ventre até seus seios cheios e avermelhados, beliscando e esfregando os escuros mamilos entre os dedos. Ela gemeu de prazer, com os lábios entreabertos.
Ele investiu mais forte, inflamado pela apaixonada reação dela, lhe apertando os quadris com suas musculosas coxas. Estava totalmente no comando, deleitando-se no contato de suas tenras nádegas sobre sua pélvis, na acolhedora e sedosa umidade de seu interior.
- Sinto-a incrivelmente fabulosa - murmurou, arqueando os quadris e investindo.
- Eu o sinto incrivelmente grande.
- Pobrezinha - disse ele, voltando a investir.
- Não foi uma queixa.
Ele rodou com ela, seus corpos conectados, até deixá-la de costas e ela o rodeou com as pernas apertando-o mais, acolhendo cada investida. Jamais tinha amado a uma mulher assim, com todo seu coração, com toda sua alma, com todo seu ser físico. Jamais tinha experimentado essa embriagadora combinação de intensidade emocional e necessidade sexual. Houve outras mulheres em sua vida, mas nenhuma como ela, nenhuma que lhe roubasse o coração. Em algum lugar no fundo de seu ser esteve esperando-a, mesmo que lhe desse medo reconhecê-lo, temeroso de não ter nunca outra oportunidade com ela.
- Quero para mim.
- Sou sua - murmurou ela, com as mãos apoiadas em seus braços.
Ele rodou os quadris em um lento e ondulante ritmo.
- Não voltarei a perdê-la. Deveria a tê-la tomado assim há anos.
Ela se arqueou apertando-se a ele.
- Não acredite que não sonhei com isso - disse, contraindo os músculos interiores ao redor de seu membro.
Ele gemeu de prazer e sentiu os estremecimentos do corpo dela, à beira do orgasmo. Adorava descontrolá-la. Penetrou-a mais ao fundo, até a base do pênis, submerso em uma névoa negra de desejo e prazer.
O coração martelava no peito com a fúria elementar de sua união e de suas emoções.
Estava formosa em sua excitação, em sua vulnerabilidade, em sua confiança nele, enquanto se retorcia descontrolada pelo orgasmo debaixo dele. Refreou-se um momento mais para observá-la inundada em seu prazer, e então seu próprio orgasmo o avassalou, arrastando-o a um mundo de sensações, esvaziando-o e enchendo-o ao mesmo tempo.
Tinha o peito molhado e o coração lhe pulsava menos acelerado, mas sentia vibrar o sangue por todo seu corpo abraçando-a fortemente.
Sua mulher. Aspirou seu aroma, saboreando seu calor.
- Amo-o, Heath Boscastle - murmurou ela, com a boca junto a seu pescoço.
Ele sentiu oprimida a garganta. Por ela tinha esperado. Por ela lutaria e sacrificaria sua honra se fosse necessário. Seu tempo juntos era precioso mas não ilícito; Russell seria louco se a cedesse sem dar briga.
- Patife - disse ela, lhe sacudindo o ombro. - Acabo de te dizer que o amo, e você me responde com silêncio?
Ele emitiu uma risada rouca, malandra.
- Simplesmente lembre-se que você disse isso, Julia, e desta vez não sou um jovem de quem pode fugir. Não renunciarei a você por nada.
Amo-a com todo meu ser, mesmo que acabe nos desonrando aos dois.
- Não esperaria menos de um patife Boscastle - disse ela docemente.
Capítulo Vinte e cinco
No dia seguinte pela manhã, Emma Boscastle, a viúva do visconde Lyons, estava dando sua aula de etiqueta no salão da casa de seu irmão mais novo, Devon, em Londres. Ofendia suas sensibilidades ter que dar conselhos sobre decoro e comportamento correto no quartel geral de um conhecido libertino. Bom, pelo menos a casa do dito libertino estava na parte elegante da cidade, em Curzon Street, e por casualidade ela o adorava, apesar de seus defeitos. Ai, se conseguisse convencê-los a ele e Drake de assentarem cabeça e comportarem-se. Graças ao céu Grayson e Chloe já estavam casados e Heath levava com discrição sua vida privada. Sempre tinha agradecido poder contar com Heath que empregava o senso comum em seus assuntos pessoais.
Deu algumas palmadas para chamar à ordem a suas revoltosas alunas. Em toda sua vida não tinha visto jamais um grupo tão desordeiro, a não ser que contasse os membros de sua família. Na realidade, duas de suas alunas mais difíceis eram primas Boscastle, o que explicava que empregassem tão mal sua energia.
- Basta de falatório e risinhos, senhoritas. Não somos uma manada de gansos. - Ficou nas pontas dos pés para ver o que tinha causado tanto rebuliço entre as alunas, as que só há um momento estavam a ponto de ficar adormecidas. - O que estão olhando com tanto interesse?
- Só é um impresso, lady Lyons.
- De uma deidade grega.
- Ah - suspirou Emma. - Posso ter ilusões de que isso signifique uma avaliação da antiguidade?
- Não me parece coisa de antiguidade - disse uma das garotas.
- Bom Deus, olhem o tamanho de sua flecha!
Charlotte Boscastle emitiu uma risada.
- Isso não é uma...
O brilho que viu nos olhos azuis da garota fez soar campainhas de
alarme no cérebro da Emma.
- Dê-me isso imediatamente -lhe ordenou.
Charlotte a olhou com a maior inocência.
- Mas se só é um desenho de Apolo.
- É um panfleto! - exclamou Emma, horrorizada. - Uma dessas grosseiras caricaturas que profanam as ruas e salões de nosso país. E, ai, Meu deus, é de um homem nu!
- Não é qualquer homem, lady Lyons - disse timidamente uma garota com óculos. - É seu irmão.
- Ai, Deus - exclamou Emma, olhando desconfiada o papel que tinha na mão. - Céus! Ai, céus. Meus sais, por favor. Uma cadeira. Um sofá para desmaiar. É Heath.
Charlotte empurrou uma banqueta até deixá-la sob o corpo cambaleante de Emma.
- Sente-se. Respire profundamente.
O panfleto saiu voando e caiu no chão. A garota com óculos se agachou para recolhê-lo.
- Sempre tinha desejado saber como é. Não é ele um dos homens mais respeitáveis da família, lady Lyons?
Charlotte olhou o desenho por cima do ombro da garota e balançou a cabeça, assombrada.
- Já não. Já não.
***
Duas horas depois, lorde Devon Boscastle fez sua entrada em seu clube de Saint James Street que frequentava e se dirigiu para o grupo de jovens que estavam reunidos ao redor de uma das janelas salientes. O
ar de perversa agitação que detectou entre eles o atraiu como um ímã.
- A que frivolidade vamos apostar hoje? - perguntou, em tom enfastiado.
- Viu isto? -perguntou-lhe um de seus amigos, sem confiança,
apoiado no espaldar de uma cadeira.
- Vi o que?
- O panfleto que anda circulando por toda a cidade - respondeu outro, que estava no centro do grupo.
Devon tentou de desentender-se de uma vaga sensação premonitória. Em sua família existia o dito: "Onde há fumaça, normalmente há um Boscastle perto". E este podia continuar com: "E
onde há fumaça e escândalo, seguro que há um membro da família justo no epicentro".
- Não é muito cedo para leituras pesadas?
- É seu irmão, pardiez.
Deve ser Drake, foi o primeiro que pensou Devon. Grayson, o marquês, estava casado e virtualmente já morto no que a escândalos se referia. Seu irmão mais novo, Brandon, já tinha desaparecido para sempre. Ele não se colocou em problemas durante, bom, deviam ser quase três semanas. E Heath, sigiloso demônio que era, sempre agia com tanta discrição que jamais o pegavam.
- O que fez agora? - perguntou, aproximando-se tranquilamente à borda do semicírculo.
- Eu diria o que lhe fizeram. Este é Heath, não é verdade?
Alguém lhe pôs o panfleto sob o nariz, e arregalou os olhos, surpreso. Pois sim, era Heath, representado como o tinham visto muito poucos membros da alta sociedade.
Em pé, com as pernas abertas, diante de uma reluzente carruagem antiga, como veio ao mundo, com um enorme...
- Isso é uma flecha? - perguntou, engolindo a risada - Quem diabos faria isso?
- A Escandalosa Lady Whitby. Olhe, inclusive o assinou com seu nome; suponho que jamais imaginou que iria cair em mãos de alguém que o faria público. Que maneira de afundar os poderosos. E uma
mulher, além disso. Grande o ataque de apoplexia que vai ter Russell quando vir Heath assim, não é?
Devon contemplou a caricatura sorrindo divertido.
- Suponho que Heath poderia ficar um pouco histérico.
***
No dia seguinte, o Morning Chronicle informava que lorde Heath Boscastle fugira para Gretna Green com lady Whitby, a infame viúva que atirou em um soldado britânico na Índia. Não vinha nenhuma alusão àquela vez que atirou em Heath, mas o articulista assegurava que estava esperando um filho dele.
Em uma coluna do Time se afirmava que o escandaloso casal tinha fugido para a França. O colunista declarava também que os pintores de retrato mais populares entre os aristocratas tinham observado uma repentina demanda entre seus clientes de que os pintassem como deidades gregas.
Sir Russell Althorne leu os dois artigos em sério silêncio no dormitório de sua amante. Fazia mais ou menos uma hora que tinha chegado de volta a Londres.
Escassamente tinha recuperado a fala quando sua amante, a que estava grávida, mostrou-lhe o panfleto em que aparecia Heath como o desenhou Julia.
Desceu da cama quase sufocado de fúria. Ao esgotamento causado por sua frustrante missão na França se somava a indignação pelo que achava a sua volta.
- Como puderam? - exclamou, agitando o panfleto. - Meu amigo honrado. O amigo pelo qual sacrifiquei um olho. A mulher a que resgatei da desonra e escândalo...
- Isto significa que não terá sua fortuna? - perguntou sua amante abaixando o prato de bolos.
- Como diabos vou saber o que significa? - gritou ele. - Significa
que me deixou como um idiota.
Ela tirou umas migalhas do peito.
- Acho um bom desenho dele, francamente.
- Nu! Percebi-me nisso. - Olhou para o panfleto - É muito difícil não...
- Mantenha-se afastada do escândalo, disse-lhe. E o que têm feito?
- Provocar um escândalo?
- Essa engenhosa mente sua alguma vez para, não é, querida?
Sorriu zombeteira e cruzou os tornozelos inchados sobre a banqueta.
- Suponho que este não é bom momento para lhe dizer que viram Julia visitando Audrey Watson.
- Audrey Watson? - perguntou ele com a voz desfalecida - A que foi lá?
- Não tenho ideia. Eu, pessoalmente, considerei várias vezes a possibilidade de trabalhar para Audrey.
- Julia... visitando uma cortesã?
Ela se inclinou para ele.
- Os homens Boscastle tendem a fazer aflorar a falta de vergonha nas mulheres. Ao menos isso me disseram.
- Supõe-se que Heath Boscastle é um cavalheiro.
- O gosto pelos prazeres lhes vem de família - comentou ela.
Observou séria seus agitados movimentos para colocar a calça e a camisa. Depois ele passou por cima de seus pés cruzados em busca de suas botas.
- Achei que ela não lhe importava o mínimo.
Ele não respondeu.
Ela desceu as pernas e dissimuladamente empurrou uma das botas com o pé até deixá-la oculta por sua poltrona.
- Por que me faria isto? - resmungou ele. - Será que não lhe
importa o mínimo a opinião da sociedade?
Ela colocou o prato sobre seu abdômen e o olhou furiosa, como uma gata descontente.
- Suponho que não vai vê-la, não é?, No primeiro dia que está aqui de volta.
Ele colocou sobre o ombro sua casaca azul militar e começou a meter as abas da camisa sob o cinto da calça.
- Estou comprometido com a maldita mulher. Acha que vou suportar ser um bobo por causa de sua escandalosa conduta?
- Não pode sair correndo atrás dela... meio vestido - disse ela, deixando o prato no chão.
- Por que não? Acabo de voltar de uma busca inútil por toda a França. Um assassino anda solto. Minha noiva publicou um desenho de meu amigo de confiança nu, e com sua assinatura. Acha que vou tolerar isso? Parece-lhe que posso?
Ela pegou a bota que tinha escondido e saiu correndo ao corredor atrás dele.
- Heath Boscastle o matará se o enfrentar.
Ele se virou para ela como um louco, e segurou o panfleto entre os dentes para pegar as botas.
- Não se eu o matar antes.
***
- Tudo é perfeito - disse Julia nesse mesmo dia à tarde, rodeada pelos musculosos braços de Heath, e com a cabeça apoiada em seu ombro.
Não havia se sentido tão mimada e protegida desde que era menina e vivia com seu pai. Tomara pudesse lhe dizer como se sentia feliz.
Tinham saído a caminhar pelo bosque e de repente começou a chover. Heath a rodeou com sua capa de lã negra e ficaram parados
beijando-se sob a aquosa folhagem de um grupo de carvalhos. Os relâmpagos cruzavam o céu cor lavanda escurecido. Londres parecia pertencer a outra vida, esquecidos os frívolos escândalos e as congestionadas ruas.
Heath lhe deixou uma esteira de beijos no pescoço e continuou para baixo por cima da roupa até os mamilos. Ela fechou os olhos, presa entre a áspera casca de uma árvore e seu quente e duro corpo.
- Será perfeito quando a tiver de volta na casa - disse ele, descendo lentamente a mão por suas costas.
Abriu-me a capa e desabotoou o vestido? - murmurou ela rindo.
- Alguma objeção? - perguntou ele, colocando as mãos em suas nádegas.
- Mmm...
Reprimiu um estremecimento ao sentir o ar úmido nos seios nus e logo o agradável calor de sua boca. Apoiou-se em seus braços e a capa lhe deslizou pelo ombro ao mesmo tempo que as chamas da paixão a envolviam da cabeça aos pés. Por que achava tão natural comportar-se assim com ele? Sempre tinha sido assim. Haveria algo mais belo que a paixão e o amor combinados? Talvez quando chegasse um filho como consequência disso.
- Está muito brincalhona - sussurrou ele. - Não quero que ninguém mais a veja assim.
- Aplainamos o campo de jogo? - perguntou ela, lhe agarrando o cinto da calça e começando a lhe soltar os botões.
Roçou-lhe com os dentes o escuro mamilo de um seio.
- Tenho uma ideia melhor.
Repentinamente a levantou nos braços e começou a correr, as gotas de chuva lhe molhando o cabelo e descendo pelas ruguinhas de seu anguloso rosto. Ela se aferrou a seu potente corpo.
- Esta não é a direção da casa, patife - disse, aspirando o viril
aroma almiscarado de sua pele.
- Não? Note você.
- Não pode levar uma mulher ao bosque, por muito Boscastle que seja.
- Justamente por isso posso. Levo-o no sangue.
- Aonde me leva?
- Aqui.
Abaixou-a até deixá-la com os pés no chão diante de uma cortina de hera que ocultava a boca de uma caverna baixa de pedra calcária.
Afastou a cortina de trepadeiras e tirou a capa para estendê-la no chão do interior coberto de folhagem. Ela contemplou o escuro e misterioso interior enquanto ele o inspecionava rapidamente, talvez para assegurar-se de que estavam a sós. Atrás dele, na penumbra, via-se uma arca com dobradiças de latão com a tampa meio aberta, a transbordar de espadas de madeira quebradas, taças de prata deslustradas, um diadema de bijuteria e um bom sortimento de tesouros infantis. A um lado, no chão de terra, havia uma caveira, rindo deles.
Ele estendeu o braço diante dela.
- Bem-vinda à guarida Boscastle, cativa. Agora, de joelhos.
Ela avançou fazendo-o retroceder vários passos.
- E se não me ajoelho?
- Bom, nos velhos tempos a teria decapitado.
Ela deixou cair sua capa cinza no chão e segurou a blusa sobre os seios. Brilharam seus olhos. Ela deu a volta ao redor dele, brincalhona, como uma orgulhosa rainha pagã a que capturou um camponês.
- E agora? O que pensa me fazer?
Ele ergueu o queixo, enquanto ela passava ao redor, roçando-o.
- Pensei que poderia fazê-la suplicar.
- Que me perdoe a vida?
Pressionou-lhe as curvas com uma perna fazendo-a cair com ele
no chão, beijando-a na boca. Enredando o cabelo entre seus dedos, com as coxas lhe levantou o corpo até deixá-la em cima dele. Continuou beijando-a enquanto a chuva tamborilava sobre a cortina de hera e logo a fez rodar suavemente até deixá-la de costas, debaixo dele. Fora poderia ter nevando, e não lhe teria importado.
- Concluo que jogou a isto antes, Boscastle.
Sorrindo, ele a contemplou, com as pálpebras estreitas, lhe enviando uma mensagem erótica que era impossível não entender.
- Não de adulto.
- Como ganho a liberdade?
- Não à sua vontade.
***
Poderiam ter sido as únicas duas pessoas que existiam no mundo, Através da cortina de trepadeiras Julia via o brilho dos raios e relâmpagos. Ouvia o rugido dos trovões na distância e o poético bater da chuva na folhagem das árvores; e as promessas, eróticas e emotivas, que lhe sussurrava Heath ao ouvido.
Se nunca lhe tivesse revelado sua ternura e vulnerabilidade, poderia ter tido a possibilidade de resistir. Poderia ter conseguido combater seus sentimentos para seguir o caminho que tinha escolhido.
Não teria se arriscado a sofrer outra vez, a cometer o mesmo doloroso engano.
Durante todos esses anos foi acumulando acusações contra ele em sua imaginação. Apoiando-se na hipótese de que ele não sentia nada por ela, guardava-lhe rancor.
E lhe chateava mais ainda essa parte temerária ou atordoada de sua natureza que a fazia desejá-lo apesar de tudo.
O verdadeiro Heath Boscastle, com toda sua enigmática reserva, era muito mais perigoso para seu coração que a falsa imagem que fizera dele como um libertino sem sentimentos; sua infalível percepção era
uma arma contra a qual ela não tinha nenhuma defesa.
Era um lobo solitário, apaixonado e leal. E depois daquele encontro do passado não a tinha abandonado como ela chegou a acreditar. E não se casou tampouco.
Por quê? Agradava-lhe pensar que não se casou porque a esperava.
Olhou-o e respirou fundo ao ver em seus olhos a promessa de prazeres desavergonhados. Ele passou as mãos por debaixo de suas nádegas, moldando-a a seu corpo duro e excitado; não tinha se dado ao trabalho de despi-la nem de despir-se. Estremeceu de prazer, desfrutando de seu contato, tão absorta nele que já tinha passado um bom tempo de ditosa contemplação quando percebeu que tinha a saia levantada até a cintura, toda enrugada. Quando ele a penetrou lentamente com seu grosso e duro membro sentiu no peito o contato dos botões semiesféricos de sua jaqueta, o frio do metal sobre sua ardente pele, junto com a pasmosa sensação da pressão dele no interior da vagina.
- Está muito molhadinha - murmurou ele com a voz rouca - Eu gosto disso.
Beijou-lhe a têmpora e foi descendo os lábios pela maçã do rosto e a face até o ombro. Com cada investida chegava mais ao fundo, até que ela emitiu um suave grito. Custava-lhe respirar ao sentir essa fricção que a alongava e enchia, com a maravilhosa e pecaminosa sensação da invasão sexual.
- Ouvi um gemido suplicando misericórdia, Julia?
Ela desceu as mãos por suas costas apalpando seus ondulantes músculos. Gostava desse homem polegada a polegada, sua paixão, sua natureza perspicaz.
- É indecente.
Ele retirou o membro e investiu com força, lhe agarrando os quadris
para mantê-la quieta.
- Isso me disseram.
Ela estremeceu. Ele abafou com sua firme boca o grito instintivo que lhe escapou, e emitiu um gemido gutural. Sua inexorável sexualidade a desarmava de tudo.
Considerando o passado de ambos, não era tão terrivelmente escandaloso que lhe estivesse fazendo amor dessa maneira em uma caverna, nem que lhe tivesse dado fôlego.
Deleitava-a apalpar seu potente e duro corpo, seus ondulantes músculos e tendões enquanto a penetrava uma e outra vez.
- Quantas outras mulheres trouxe para esta caverna?
- Não sei.
Ela estreitou os olhos.
- Nenhuma - emendou ele, rindo de sua reação. - É minha primeira cativa.
Beijou-a na boca, profundo, imitando com a língua os movimentos de baixo, indo até o fundo, possuindo-a, retirando-se com sensual autodomínio. Ela fechou os olhos, sentindo derretidos os músculos, como se tivessem liquidificado. Começou-lhe um tremor no profundo do ventre.
Estava
descontrolando-se,
rendendo-se,
erguendo-se
vertiginosamente.
- Só você - disse ele.
Dizendo isso apertou a mandíbula e investiu com força. Ela se aferrou a suas costas e conseguiu sussurrar justo antes que a avassalasse a tormenta do orgasmo:
- Desde que seja a última.
Capítulo Vinte e seis
Julia não se fixou na pistola com incrustações de marfim que levava Heath até que o viu guardar sob o cinto da calça. Baixou-lhe um calafrio pelas costas ao pensar que tinham feito o amor tendo uma
pistola carregada a um lado no chão; ao pensar que à margem do que sentiam um pelo outro, ele poderia ter que enfrentar um homem que desfrutava matando e infligindo dor. Viu desaparecer de sua vista a arma.
Olhou-o nos olhos e estremeceu.
- Alegra-me não ter visto isso antes.
- Eu também. - Ajudou-a a abotoar a blusa do vestido de algodão verde salvia. - Não teria gostado que se distraísse - acrescentou, sorrindo. - De todo modo, enquanto não encontrem Auclair, não iria nada mal levar sempre com você sua pistola para estar protegida.
Ela saiu detrás dele à chuva, enrolando a cabeleira em um coque na nuca e firmando-a com presilhas. Essa tranquila atitude de aceitação dele havia a feito voltar bruscamente à realidade, à realidade de que ele considerava sua vida em perigo, tanto que achava que um simples passeio pelo bosque podia não ser seguro.
Ou talvez a pistola representasse uma parte de seu passado, de sua profissão, que sempre levaria com ele. Recordou as cicatrizes que tinha no peito. Tinham-no torturado e, felizmente, tinha sobrevivido. Mas não tinha esquecido essa terrível experiência. Embora a guardasse para si, certamente continuava atormentando-o a lembrança dessa crueldade.
Jamais baixaria a guarda.
E o homem que o torturou estava na Inglaterra. Com que fim? Com que fim pôs uma isca para Russell afim de que o fosse buscar a França?
Por que queria dar caça a um oficial que lhe escapou? Saberia Heath o verdadeiro motivo? Saberia Russell? Ou simplesmente Armand Auclair estava louco, obcecado por matar? Agia sem tom nem som ou seus atos tinham um motivo?
Cobriu a cabeça com o capuz da capa.
- Talvez devêssemos esperar dentro da caverna até que amaine a tormenta.
- Não - disse ele. - Quero-a segura dentro da casa. - Girou a cabeça e olhou nostálgico para a caverna , já oculta outra vez pelo matagal de plantas trepadeiras. - Este só era um de nossos lugares favoritos quando éramos crianças.
- Parece que a reputação de sua família é bem merecida.
Ele lhe pegou a mão e a olhou com os olhos brilhantes de travessura.
- Para uma cativa é bastante impertinente. O que, corremos para a casa?
Ela assentiu. Alegrava-a muitíssimo que ele tivesse começado a lhe contar partes de sua vida. Fascinava-a o lugar que ele ocupava em sua família, o respeito que lhe manifestavam seus irmãos. Era um homem sem igual. Cada dia que passava o valorizava mais.
Já estavam absolutamente ensopados quando passaram correndo pelas ornamentadas portas da propriedade. Meia hora depois, quando irromperam no vestíbulo de entrada, encontraram Hermia, que estava ali com o rosto branco pela aflição e preocupação. Atrás dela estavam vários empregados, todos com capas e botas grossas.
- Ah, chegaram, por fim! -exclamou, retorcendo as mãos. - Estava a ponto de enviar Hamm com um grupo de homens para buscá-los.
Julia sentiu subir um rubor de vergonha culpada. Pôs para trás o capuz, e não se atreveu a olhar para Heath, para não se delatar. Quando estava com ele perdia totalmente a noção do tempo.
- Só saímos para dar um passeio.
Hermia olhou significativamente os botões metálicos da jaqueta de Heath, que estavam mal alinhados. Isso era culpa dela, pensou Julia; Abotoou-lhe a jaqueta.
- Esteve fora quase três horas, Julia - disse Hermia, então, com o sobrecenho muito franzido.
Julia fez um dissimulado gesto a Heath para que abotoasse bem a
jaqueta.
- Bom, tivemos que esperar que passasse o pior da tormenta.
- Em uma caverna - acrescentou Heath. - Nossa caverna de Aladim.
- É como uma caverna do tesouro - disse Julia, assentindo.
Hermia submeteu os dois a um frio olhar.
- Acredito que os dois são bastante desavergonhados e desconsiderados. Além disso, suspeito que estão equivocados.
Heath se voltou a olhá-la com expressão cética embora receosa.
Como não era nada desajeitado, justamente o contrário, já tinha arrumado a jaqueta.
- Equivocados? - perguntou, abaixando as sobrancelhas.
- Sim, equivocados - disse Hermia, em tom ofendido. - A tormenta acaba de começar. Prevejo que o pior está ainda por vir.
***
Deixou de chover a última hora da tarde. Julia, Heath e Hermia desfrutaram de um aprazível jantar com frango frio, queijo e bolo de maçã, e depois passaram ao salão particular da família. Hermia se desculpou para ir trocar se, em atitude ainda ofendida, mas cortês.
Heath e Julia se instalaram diante da lareira. Como se fossem o quadro mesmo de felicidade doméstica pensou ele pesaroso. Estava sentado em uma poltrona com espaldar de travessas de madeira, de perfil a ela, com o livro que lhe deu de presente no colo.
- Ainda está um pouco aborrecida conosco - disse Julia quando se apagaram os passos de Hermia.
- Acredito que lhe demos um bom susto.
- Não podia lhe explicar o que estivemos fazendo - suspirou ela.
Ele sorriu de orelha a orelha, mostrando seus brilhantes dentes brancos e bonitos.
- Não, claro que não. Mas sua preocupação não é injustificada.
Fomos bastante imprudentes.
Ela fez uma careta.
- Imprudentes? Fez-me cativa. Em uma caverna.
- Bom, tenho certa obrigação pela tradição familiar. Tem a sorte de não ter perdido a cabeça.
- Mas perdi meu coração. É seu.
Ele se virou lentamente para olhá-la.
- Sim?
- Acaso pode duvidar? - perguntou-lhe ela, lhe observando o rosto.
- Não sente nada por Russell?
- Acho que nunca senti por ele algo mais que gratidão e amizade.
Talvez... talvez aceitei sua proposta porque tinha medo de ficar sozinha.
- Olhou para o fogo da lareira. - Desde quando sabe sobre ele?
- Sei o que? - perguntou ele, com o rosto imutável.
- Que me traía.
Ele se inclinou para ela e lhe perguntou com voz rouca:
- Quanto tempo faz que você sabe?
- Menos tempo que você, evidentemente.
Resistiu a olhá-lo quando lhe virou o rosto para o dele.
Conhecendo-o como conhecia agora, compreendia que ele teve que passar mal combatendo com sua consciência.
Nunca faria mal a ninguém intencionalmente. Talvez pensou que a protegeria guardando o segredo de Russell. Mas teria sido muito pior se ela não descobrisse a verdade.
- Por que não me disse? Como pôde me deixar continuar sendo tão tola?
- Nunca foi tola, Julia - se apressou a dizer ele. - Ele é o idiota por enganá-la.
- Mas você sabia.
- Não queria ser escolhido por ser a única alternativa.
Ah, então era isso? Seu orgulhoso e honrado protetor a desejava segundo suas cláusulas, por seu próprio mérito.
- Iria contar alguma vez? - perguntou-lhe docemente.
- Não, a menos que fosse absolutamente necessário. Essa era uma carta que não desejava jogar. A única coisa que sabia de certo é que não voltaria a permitir que se afastasse de mim. Ele me salvou a vida; sempre lhe deverei isso. -Moveu a cabeça, olhando-a fixamente nos olhos - Mas não teria tolerado que a arrebatasse de mim.
Na realidade, espero impaciente o momento de lhe comunicar que é minha.
- Me dá medo, só porque acredito que não vai reagir bem. - Franziu o cenho - Vai ter um filho com outra mulher. Suponho que isso também sabe.
- Você poderia estar grávida de meu filho neste momento - disse ele, sorrindo para rebater o cenho dela.
Só a ideia lhe fez passar um estremecimento de desejo por todo corpo. Um filho dele. Desejou que fosse verdade. Não tinha compreendido há um momento que um filho seria a expressão perfeita de seu amor mútuo? Por ela, que Russell tivesse todos os aplausos e amantes que desejasse. Ela só desejava uma vida aprazível com Heath.
Bom, talvez não fosse tão aprazível. Sem dúvida o desagradável problema de seu desenho perdido começava com mau pé seu romance.
- Jamais escaparei do escândalo - disse, rindo.
- Não. Entrando nesta família por matrimônio, claro que não.
Acredito que temos um dom especial para o escândalo.
- Parece que não posso evitar - disse ela, pesarosa.
Abriu-se a porta. Depois de lhes dirigir um frio olhar, Hermia se dirigiu ao sofá, com um maço de cartas na mão. Eles se afastaram como crianças a quem surpreenderam comportando-se mau.
- Continuem - disse Hermia, depois de um significativo silêncio. -
Não permita o céu que eu seja um obstáculo entre vocês.
Julia lhe sorriu afetuosa.
- Ainda está zangada conosco por ter estado fora tanto tempo, tia Hermia?
Hermia suspirou e se suavizou a expressão do rosto.
- Estou me recuperando, mas acredito.... bom, jamais pensei que diria isto, mas ver os dois juntos me faz ver a dolorosa realidade de que sinto falta de Odham.
- Sente falta de Odham? - disseram Julia e Heath ao uníssono.
- Bom, só um pouquinho - replicou Hermia - Não me devolveu minhas cartas e enquanto não o fizer não o perdoarei.
- Mas vai perdoar? - perguntou Heath, curioso.
- Poderia. Ainda não decidi. - Desviou os olhos, visivelmente sobressaltada por essa revelação. - Deixem de me olhar. Em especial você, Boscastle. Esses olhos azuis seus têm uma maneira horrenda de perturbar a uma mulher.
- A pura verdade - disse Julia em voz baixa.
- Leia seu livro, Boscastle - acrescentou Hermia. - Julia, desprenda-se desse patife e venha aqui me decifrar estas cartas. Minha vista já não é a que era.
Julia se levantou obedientemente, sussurrando a Heath:
- Seja um bom menino por uma vez e faça o que lhe diz.
Ele sorriu e abaixou a vista ao livro, mas a preocupação não lhe permitia concentrar-se. Esses furtivos momentos de prazer não continuariam indefinidamente. Não se sentiria realmente satisfeito enquanto não tivesse enfrentado Russell lhe dizendo a verdade. Tinha a esperança de que conseguissem chegar a um acordo para achar Auclair e fossem capazes de tratar essa situação pessoal de uma maneira mutuamente satisfatória. Se Russell não se mostrasse disposto a perdoar, então ele poderia olhar para o futuro com a consciência
tranquila.
E para um futuro com Julia, com filhos e familiares com os quais compartilhar suas vidas.
Seu olhar parou no perfil dela, que estava com a cabeça inclinada sobre uma das cartas de Hermia. Uma mecha avermelhada escura lhe tinha caído sobre um peito.
Exuberante, voluptuosa, deliciosa, assim era como descreveria à mulher em que se converteu. O par, a companheira perfeita para ter a seu lado ao longo dos anos.
Apaixonada. Sentiu um intenso desejo de voltar a lhe fazer amor aí mesmo, nesse momento, e o divertiu sua impaciência.
Essa tarde na caverna... bom, jamais teve uma relação sexual tão desinibida, e tudo tinha saído como foi pedido. Impecável. Desde o instante em que a conheceu sentiu-se confortável, a vontade, com ela. E
sabia que quando, e se, alguma vez fosse capaz de revelar seus pensamentos mais profundos, seria a Julia, e que ela o entenderia.
Ela levantou a vista e o olhou, com um sorriso sedutor e travesso.
Esse sorriso lhe esquentou perigosamente o sangue.
Era de esperar que continuasse sorrindo depois de conversar com Russell. Tinha a impressão de que o enfrentamento entre ele e Russell acabaria mau. E que quando se casasse com ela, a quantidade de falatórios seria infinita, tal como predissera ela. Era curioso que ele sempre houvesse se sentido acima desse tipo de coisas.
Bom, nesse momento estava no centro desses focos. Mas tinha experimentado coisas piores.
De certo modo, a situação só fazia ressaltar quão potente era o sangue Boscastle. Para um homem honrado, estava se comportando com muita falta de vergonha, o que indicava que não se livrou de sua herança; só demonstrava que tinha recebido essa herança. Mas Julia tinha descoberto sua debilidade; forjou um lugar em seu coração antes
que a guerra o endurecesse, enchendo o de mais perguntas que respostas. Ela equilibrava o lado sombrio de seu interior que não tinha conseguido combater.
Ela sabia sobre a traição de Russell. Ele não o teria dito jamais.
Teria levado o segredo até sua tumba para não lhe causar sofrimento nem humilhação. Mas, por outro lado, aliviava-o que ela soubesse. Esse descobrimento teria influenciado em sua decisão de deitar-se com ele?
Na de lhe entregar o coração? Achava que não.
De todo modo, isso não tinha nenhuma importância. De certa maneira estranha, Russell os tinha reunido. Deviam-lhe isso. Claro que Russell não consideraria dessa maneira a situação. Era um homem que vivia para impressionar os outros, um homem de mundo, apegado às aparências. Sentiria-se indignado que alguém o desafiasse ou rejeitasse.
Sentiria-se ofendido, ofendido, e não estaria disposto a reconhecer que se enganou com Julia. Mas ele não daria marcha atrás, isso nem pensar.
Desceu o olhar sorrindo, escutando a voz de Julia lendo uma das cartas a sua tia.
O que lhe disse essa tarde quando estavam caminhando pelo bosque?
Ele estava tão obcecado por ela, tão excitado fisicamente e tão submerso, que na realidade não a escutou.
Mas nesse momento recordou. Seu evocador aroma, o convite de seu quente corpo apertado ao dele quando os estava banhando a chuva.
"Tudo é perfeito".
Fechou os dedos ao redor do livro que tinha sem abrir sobre as coxas.
Ela voltou a levantar a vista e o olhou com uma sobrancelha arqueada.
Sorriu-lhe, com seu sorriso indolente, observando que ela pegava o
lábio inferior entre os dentes. Se estivesse em seu poder deter o tempo para conservar esse momento, faria-o sem vacilação.
Hermia limpou a garganta. Julia voltou a atenção à carta. E
pareceu tão sobressaltada e nervosa que ele riu. Estava claro que já nenhum dos dois era capaz de ocultar seus sentimentos. Já não podiam enganar a ninguém, nem sequer a eles mesmos.
O escândalo que provocaria seu amor estremeceria à alta sociedade. E então ele passaria as rédeas da libertinagem a Drake ou a Devon. Julia era mais que suficiente para satisfazê-lo.
"Tudo é perfeito".
Seus prazerosos pensamentos foram interrompidos por um ruído, o forte ruído que fazia alguém golpeando as portas da propriedade.
Julia ainda não tinha ouvido nada. Mas de repente levantou a vista e o olhou, interrogante e preocupada, e desceu a carta que estava lendo em voz alta.
Ele se levantou e se dirigiu à janela. Os cães, a manada de cães lobos de Grayson começaram a disparar e uivar. Viu Hamm e a outros três criados correndo para as portas.
Afastou-se da janela e se dirigiu à porta do salão.
- Leve Hermia com você até a torre - ordenou a Julia, com voz tranquila, mais firme.
Hermia se levantou, preocupada, e pegou a mão de Julia.
- O que acontece, Heath?
- Farei Hamm subir para que as acompanhe. Simplesmente como precaução. Não se preocupem. Muitas vezes chegam amigos de Grayson a qualquer hora do dia ou da noite.
Abriu a porta para fazê-las sair ao vestíbulo. O livro que pensava começar a ler tinha caído no chão.
- Provavelmente não é nada - disse. - Simplesmente poderia ser Drake ou Devon, que chegou bêbado e pede que lhe abram as portas.
Julia passou o braço pela cintura de Hermia.
- É um pouco tarde para andar pelos caminhos, não?
- Não pode ser Auclair, não é verdade? - disse Hermia em um sussurro.
Julia negou com a cabeça.
- Duvido muito que um espião francês golpeie as portas pedindo para entrar. De todo modo, seja quem for, parece muito insistente.
Heath ficou observando-as até que desapareceram de sua vista no alto da escada de pedra. Sentia terrivelmente tensos os músculos dos ombros. Embora só fosse um hóspede o que chegava, significava uma ameaça para seu precioso tempo na intimidade com Julia. No momento em que se virava para sair ouviu a voz de Hermia acima:
- Não acha que possa ser Russell, não é? Saberá já? Uí, Julia, espero que esses dois não se matem lutando por você.
***
Aconteceu que o inesperado visitante a essa hora tão tardia da noite não era nem um espião nem um indignado Russell. Era o conde de Odham, que vinha com as faces acesas pelo cansaço, e trazia revoltas suas brancas mechas de cabelo pela viagem. Para acalmar a agitação se sentou para beber uma taça de conhaque no salão, acompanhado por Heath, Julia e Hermia, que o contemplavam com uma mescla de alívio e curiosidade.
- O que significa isto, Odham? - perguntou-lhe Hermia, em tom aborrecido, ao que parecia totalmente esquecida de que não fazia muito tempo tinha confessado que sentia falta dele.
Ele exalou um suspiro. Hermia estava sentada com as costas muito rígida em uma poltrona frente a ele. Heath e Julia se sentaram no sofá a fazer o papel de observadores imparciais.
- Vim me render, Hermia - declarou Odham, reclinando-se no espaldar, como desmoronado.
Hermia franziu o cenho, com os olhos obscurecidos pelo alarme.
- Se render?
- Sim. Ganhou.
- O que ganhei exatamente? -perguntou ela passado um momento.
- Sua liberdade. Suas velhas cartas. - Colocou a mão por entre as dobras de sua capa cinza escuro forrada em pele e tirou uma bolsa de veludo vermelho; aí estavam guardadas cuidadosamente as cartas. -
Tremeu-lhe a mão ao lhe passar sua oferenda de paz - Já está. Agora parto. Não se preocupe de que viagem de noite. Meu cocheiro pode me enterrar em um fosso se morrer. Não fica nada pelo qual viver se a perco.
Hermia arqueou as sobrancelhas.
- Deixa de dizer tolices, idiota fanfarrão.
Heath tossiu, forte.
- Acredito que talvez seja Julia e eu os que devemos partir.
Odham olhou para Heath agradecido, como um velho libertino olha a um membro mais jovem de sua seita particular. Piscou seus olhos castanho escuro em um gesto de gratidão.
Julia começou a rir quando Heath a levantou do sofá e a levou a toda pressa até o vestíbulo.
- Aonde vamos, se posso perguntar?
- Já verá.
Sua forte mão se apoderou da dela, puxando-a. Com o coração acelerado caminhou junto a ele ao longo de uma galeria com retratos de ambos os lados que ainda não tinha visto. A enorme casa tinha muitíssimos aposentos.
- Outro esconderijo Boscastle?
- Mulher esperta, como adivinhou?
Fez ela entrar em uma sala escura e poeirenta em que fracos raios de lua iluminavam espadas e armas antigas penduradas em uma das
paredes revestidas por madeira de carvalho. Chocou-se com uma armadura com elmo e manoplas góticos e, afogando um grito, retrocedeu e se chocou com Heath.
- Uma sala de armas?
Ele fechou e passou a porta à chave, olhando-a com os olhos brilhantes.
- Outro excelente acerto. Quando crianças era proibido brincar aqui.
- Por que tínhamos que deixar a sós a Hermia e Odham? A conversa estava ficando interessante.
- Pareceu-me que se mereciam essa intimidade. Tal como merecemos a nossa.
Ela se virou e ficou olhando atentamente uma enorme bola com puas atada a um luzeiro da manhã, uma cruel arma medieval.
- É interessante a coleção de armas que têm aqui. Vai desafiar a um duelo?
Ele sorriu.
- Não me atreveria. Poderia ganhar.
Ela levantou a vista para o sortimento de molas de suspensão e tochas de guerra que pendiam em cima do suporte da enorme lareira de pedra. Olhou-o e viu que ele desabotoava a jaqueta e tinha o quadril apoiado na porta, observando-a.
- Duvido muito disso - disse.
- Nunca a subestimaria, Julia.
Ela o olhou sarcástica.
- Está claro que você é o jogador mais forte neste jogo.
Ele se afastou da porta. Muito bonito, de quadris estreitos, era a encarnação da tentação, até em sua forma de caminhar, com esse imponente domínio do corpo de um oficial de cavalaria.
- A quantas cativas trouxe aqui? - perguntou, tentando conservar o
equilíbrio, sem consegui-lo.
- A nenhuma, na realidade.
Ela sentiu discorrer um ligeiro estremecimento por toda a pele quando seus firmes lábios acharam um ponto sensível em seu ombro.
Ele a mordiscou aí meigamente.
Agitou-se a respiração dela. Existiria uma muito pequena parte de seu corpo capaz de resistir à sedução desse homem?
- Verá - continuou ele em voz baixa, subindo lentamente a mão por seu flanco até colocá-la em seu peito - nunca tive que subjugar uma mulher para seduzi-la.
- Isso não duvido.
- Poderíamos experimentar as correntes se quiser.
- Em mim ou em você? -perguntou ela em um sussurro, com a boca repentinamente ressecada.
- Primeiro as damas.
Com a outra mão lhe levantou a saia e foi subindo por sua coxa nua até deixá-la apoiada no abdômen, no úmido calor de seu sexo. Ela notou como ia molhando essa parte, todo seu corpo ansioso, vibrante, e lhe cederam as pernas. A espera lhe acelerou todos os pontos ocultos do pulso.
Abafando uma exclamação, afastou a cabeça e se olhou.
- Demônio, voltou a me desabotoar o vestido.
Ele a deitou sobre o tapete e fechou os braços ao redor de seu firme e branco traseiro.
- Se formos lutar um duelo, bem poderíamos fazê-lo nus.
Ela olhou o sortimento de paus e espadas que pendiam na parede em cima de sua cabeça.
- Não me diga que me trouxe aqui para me mostrar seu sabre de oficial de cavalaria.
- Meu sabre não está na parede.
- Não?
- Mas se quer examiná-lo, isso se poderia arrumar.
Olhou para seu rosto. Ele viu que lhe pulsava uma veia na garganta; acariciou-a com o indicador.
- Não é perigoso isso? - murmurou ela. - Ouvi dizer que um sabre é a mais eficaz das espadas.
- Isso é muito certo. Brandindo-o da maneira correta, o impacto de um sabre pode ser muito eficaz.
A ela lhe escapou um suspiro, e um ardente tremor lhe subiu dos joelhos ao ventre.
- Como usa seu sabre? - perguntou em voz baixa.
- Principalmente para estocadas.
- Para... estocadas?
- Sim. - moveu-se sobre ela, esfregando-se, e aproximou a boca a dela - Verá, meu sabre é curvo.
- E que vantagem tem isso?
- Permite ao espadachim penetrar mais a fundo o corpo do competidor.
- Fascinante.
- Interessam-lhe as armas, lady Whitby? - perguntou ele, descendo a boca por seu pescoço até os seios.
Ela pensou que iria desmaiar sob seu duro e potente corpo. Seu calor viril a derretia, fundia-a a ele. Era feita para pertencer a esse homem.
- Ultimamente me veio uma verdadeira paixão por elas - murmurou.
- Que alentador - disse ele, ao mesmo tempo que seus pecaminosos lábios se estiravam e sugavam um rosado mamilo. - Talvez devesse lhe fazer uma demonstração de minha habilidade.
- Aqui?
- Pois claro - disse ele, tirando a jaqueta com a mão direita. Afinal
esta é uma sala de armas.
Sabia que não podiam ficar muito tempo mais aí, porque voltariam a sentir sua falta. Mas ela estava tão irresistivelmente vulnerável e deliciosamente sedutora deitada debaixo dele. Podia evitar se lhe alvoroçava os sentidos sem sequer tentar?
- Não lhe faz falta nenhuma arma para me derrotar - disse, mansamente - Contra você estou totalmente desarmado.
Julia exalou um suspiro de pesar.
- Será melhor que nos levantemos e arrumemos a roupa. Morreria se alguém nos surpreendesse assim.
- Você terá que se levantar primeiro - disse ele, rodando para um lado.
Ela se endireitou e se levantou com supremo cuidado, e subiu as mangas, cobrindo os ombros. Tirou uma teia do cabelo. Quando estava abotoando a jaqueta, chegou até eles o ruído das rodas de uma carruagem sobre as conchas trituradas do caminho de entrada.
- Oh - exclamou Julia, penalizada. - Odham e minha tia voltaram a brigar. Ele parte. Esperava que se reconciliassem.
- Esse ruído não é da carruagem de Odham - disse ele, olhando para a porta. - Me parece que são Grayson e Jane que vêm chegando.
Prepare-se para um grandioso espetáculo.
Capítulo Vinte e sete
A aprazível propriedade rural mudou no instante mesmo em que chegou o marquês de Sedgecroft. Uma longa fileira de veículos cobria o longo caminho de entrada, e os empregados iam e vinham, descendo e subindo a escadaria, atarefados ajudando à marquesa grávida e descarregando a imensa quantidade de baús que traziam em carretas de Londres. A vitalidade de Sedgecroft impregnava o ar como se do céu tivesse caído pó de estrelas.
Os cães da família já tinham iniciado um coro de alegres latidos; as
brilhantes luzes das lanternas iluminavam a imensa e ondulante extensão de grama bem recortada.
Julia conseguiu sair da sala de armas bem a tempo para apresentar uma fachada respeitável. Embora claro, Sedgecroft, com todo seu histórico de sedução, não ia se deixar enganar nem por um instante.
Conhecia muito bem a aparência de uma mulher bem amada.
Heath ficou na sala de armas, para que ela saísse furtivamente sozinha. De certo modo o decepcionava a chegada de Grayson; com sua forte personalidade, seu irmão era um homem que tendia a impor-se no tempo das pessoas. Por outro lado, sabia muito bem que com sua presença aumentaria o amparo de Julia. Grayson podia ser um demônio muito sociável e travesso, mas não era nenhum idiota, e era um bom lutador além disso. Seria outro olho vigilante.
Pela janela observou toda a cerimônia de boas-vindas dos empregados a seu senhor, com muitíssimo alvoroço e alegria. Grayson adorava dar um espetáculo. Era mais apto que seus irmãos para representar seu papel na vida. O patriarca Boscastle. O libertino convertido em respeitável.
Ele preferia muito permanecer em segundo plano, entre bastidores, e representar seu papel em privado. Bom, agora seria quase impossível, não de tudo, ter privacidade na casa. Mas via uma diabólica vantagem em ter Julia no dormitório da torre. Simplesmente teria que visitá-la em segredo, e o segredo só acrescentava uma porção de condimento à panela.
Afastou-se da janela balançando a cabeça resignado. Se tivesse que deixar Julia para tentar procurar Auclair, quem melhor guardião que Grayson? Ela estaria protegida, contaria com a amizade de sua vivaz cunhada, Jane, e se entreteria com ela. Quando se dirigia à porta parou para olhar a bela coleção de espadas montadas na parede.
Uma antiga de gladiador romano; um estoque espanhol; uma
espada de duas mãos com guarnição imersão de um guerreiro highlander.
Quando menino adorava essa sala. Admirava os senhores guerreiros que haviam brandido essas magníficas armas.
Sempre se imaginava que algum dia seria grande e lutaria em duelos, mas a guerra acabou com esse apetite infantil por derramar sangue. Por sua mente passou a ideia se acaso ele e Auclair, teriam os mesmos sonhos quando eram crianças.
E então, em um instante, como se estivesse decodificando um texto cifrado, começou a fazer conexões que não lhe tinham ocorrido antes. Sim, tinha explorado a possibilidade de que Brentford estivesse associado com Auclair, mas o homem tinha toda a aparência de ser inocente, embora tolo.
Estendeu a mão até o punho do sabre de cavalaria francesa e desceu os dedos pela fria folha.
Por que não lhe tinha ocorrido a possibilidade de que Brentford fosse sem saber um peão no jogo de Auclair? Talvez o impulsivo jovem não adivinhasse jamais que o estavam utilizando a modo de vingança.
Mas, sem que soubessem nenhum dos dois, Brentford lhe revelou uma pista na conversa que tiveram aquela noite no teatro. Ouviu ressoar as palavras de Brentford na cabeça, com sua voz pesarosa e ridiculamente trágica: "Acho que amanhã em minha aula particular de esgrima pedirei a meu instrutor que me atravesse o coração".
E depois no parque, Brentford voltou a fazer alusão a seu instrutor, a quem queria impressionar levando a toda velocidade sua carruagem.
Seu instrutor.
Sem dúvida esse era Auclair, membro seleto do Corpo de Guardas franceses, um espadachim que vivia para provocar duelos, que se beneficiava da morte de outros.
Quanto tempo estaria escondido em Londres, fazendo-se passar
por professor de esgrima?
E onde estaria nesse momento?
Olhou o sabre e retirou a mão.
Auclair não estava empregado no salão de esgrima de Ângelo.
Dava aulas particulares aos jovens ricos da alta sociedade, um grupo famoso por suas indiscrições com a língua. Poderia ter se informado facilmente de seus movimentos e dos de Russell.
Era necessário encontrá-lo e eliminá-lo antes que fizesse sua seguinte jogada.
A pergunta era: estaria segura Julia se a deixasse para ir fazer esse trabalho?
***
Tinha muitíssimas coisas na cabeça que o manteria insone toda a noite, estava pensando Heath. O assunto mais urgente era eliminar toda ameaça de perigo para Julia e depois achar Auclair. Tinha que reconhecer que seguia escapando uma parte do código: a motivação de Auclair.
Por que Auclair não se conformou continuando em Paris? Teria se metido em problemas com as autoridades francesas? Certo que ele lhe tinha escapado e talvez o tinha feito parecer inepto e negligente ante seus superiores. Mas se todos os soldados fossem atrás de seus inimigos homólogos depois da guerra, o mundo não conheceria jamais a paz. Segundo o Departamento de Defesa e a informação que lhe deu Hartwell, Auclair não foi expulso depois do ocorrido em Portugal. Em informe que leu antes se dizia que Auclair se ergueu mais ainda na estimativa de Napoleão antes de deixar o exército.
Pela primeira vez desejou encontrar-se com Russell para esclarecer e entender o assunto. Os dois poderiam unir-se e arquitetar juntos uma estratégia para achar Auclair.
- Heath? É você quem está escondido aí?
Em sua linha de visão apareceu a elegante figura de sua cunhada Jane. Estava sozinha ao pé da escada, coberta com uma capa de viagem orlada com pele de lince, com uma mão no corrimão.
Sorriu-lhe.
- Como está nossa marquesa grávida?
- Levando a semente do diabo, se puder julgar pelas estranhas ânsias de comer que se apoderam de mim. - Olhou preocupada o rosto iluminado pelas tochas - Ai, Deus, vejo por sua expressão que ainda não soube.
Desvaneceu-se seu sorriso.
- Soube o que?
Pôs-lhe uma mão no braço.
- Não é preciso que lhe diga que seja valente. Tendo nascido na família Boscastle, por necessidade te endureceste ao escândalo.
- De que fala, Jane?
Ela engoliu a saliva.
- Não me cabe dúvida de que Julia não teve nenhuma intenção de fazer mal. Tem que haver uma explicação.
Ele estreitou os olhos.
- Explicação do que?
- O escândalo passará ao esquecimento finalmente - disse ela, evasiva - Acredita na palavra de uma que sabe.
- Que escândalo?
Ela se virou e subiu vários degraus, roçando-os com a borda de sua capa.
-Considera-o arte, Heath - lhe disse por cima do ombro.
Estava sorrindo? Detectou risada em sua voz?
- O que devo considerar arte, Jane?
Ela desapareceu de sua vista. Mal conseguiu ouvir o comentário de despedida:
- Considera-o... um elogio.
***
Só tinham passado uns minutos quando descobriu o significado dos evasivos comentários de Jane. Grayson o fez chamar o salão dourado formal, onde o estava esperando.
Esse salão se reservava para quando tinha convidados importantes; para ocasiões especiais; para sermões de seu pai e para anúncios de compromissos; e de mortes.
Não se chamava salão formal sem um bom motivo.
O marquês estava em pé, de costas à lareira, com suas enlameadas botas de viagem. Qualquer outro homem teria se sentido intimidado por sua postura, mas ele conhecia muito bem a Grayson.
Passou a vista pelo salão, avaliando a situação. Odham e Hermia estavam sentados muito rígidos no sofá, e Julia estava entre eles como entre dois suportes de livros.
Tentou captar seu olhar. Ela evitava claramente olhá-lo. Muito mau sinal. Será que Hermia ou Grayson tinham adivinhado o que estiveram fazendo os dois na sala de armas?
Ela levantou inesperadamente a vista e seus olhos cinzas se encontraram com os dele. Ele lhe sorriu, mas ela abaixou os olhos.
Estava "envergonhada". Alargou o sorriso; jamais teria imaginado isso nela depois de tudo o que se fizeram mutuamente.
O sonoro timbre da voz de Grayson o desviou da atenção dela; seu irmão estava gritando. Isso não era nada estranho, mas... virou-se a olhá-lo, desconcertado e divertido.
- Está gritando comigo , Gray?
Grayson lhe dirigiu um sombrio e serio olhar.
- Acaso vê outro de meus escandalosos irmãos aqui?
Heath endireitou os ombros, com o rosto tenso. O sorriso se congelou nos lábios rígidos.
Grayson adiantou a mão que tinha à costas e agitou um papel.
Heath não entendeu imediatamente o que era. Poderia ter prestado mais atenção se não o tivessem distraído Julia, Hermia e Odham, que foram caminhando sigilosos para a porta. Para escapar.
- Acontece algo, Grayson? - perguntou em voz baixa.
Grayson avançou para ele.
- Achava que você era o irmão responsável.
- Sou - respondeu Heath. Acaso não era?
- Ah, sim? - grunhiu Grayson - Achava que era o irmão de quem não tinha que me preocupar de que causasse um escândalo.
Heath balançou a cabeça.
- O que escreveu sobre mim agora? Não posso me defender enquanto não ver.
- Defender-se? Que defesa há contra isto?
Passou-lhe o papel. Heath esteve um momento sem reconhecer o que era. Uma caricatura. Uma dessas caricaturas lascivas, às vezes engenhosas, muitas vezes cruéis.
Uma sátira da alta sociedade que circulava pelas ruas de Londres.
Era um desenho impresso de um homem nu, com sua anatomia distorcida. Moveu-o para a luz. Então viu sua própria imagem, e ficou mudo de assombro pela primeira vez em sua vida.
- Não é você esse? - disse Grayso.
Heath arqueou uma sobrancelha.
- Nunca me vi assim, mas sou eu.
Exagerado. Bastante adulador se quisesse fazer uma caricatura para o consumo do público. Assim era como o via Julia?
- Como pôde permitir que acontecesse isto?
Heath levantou a vista. Com razão Julia e Hermia tinham escapado.
- Fiz isso para uma obra de caridade.
- De caridade?
Heath moveu o panfleto de um lado a outro. Olhasse como o olhasse, as proporções eram exageradas.
- É para a coleção de deuses gregos.
- Aceitou posar nu para um desenho que se imprimiria e sairia ao público, para uma obra de caridade? - perguntou Grayson, soltando uma risada grosseira - Não teria sido mais fácil fazer uma doação?
- Quantos exemplares se imprimiu? - perguntou Heath tranquilamente.
- Não tenho ideia. Em geral estes malditos panfletos virtualmente cobrem as ruas de Londres. É impossível contar todos os exemplares.
- Compreendo.
- Tomara compreendesse eu - disse Grayson se deixando cair pesadamente no sofá. - O que devo fazer? Você foi o modelo de conduta exemplar para a família. Você foi o irmão a quem ordenei a Drake e Devon que imitassem. Não sigam meu exemplo, disse-lhes. Não pequem a minha imagem e semelhança. Aspirem ser como Heath.
Pequem em segredo. Tem alguma defesa para isto?
Ao perceber que seu irmão não respondia nada, Grayson levantou a cabeça e olhou.
- Heath?
Não havia ninguém no salão.
Estava exortando aos quatro cães lobos que estavam sentados ao redor da lareira, batendo no tapete com suas caudas, olhando-o com amistosa espera. Adoravam o marquês.
- E meus pais pensavam que eu era o pior - murmurou.
***
Heath entrou no dormitório de Julia sem anunciar-se. Ela estava sentada em sua poltrona com um livro nas mãos, a cabeça encurvada, simulando que lia. Ele limpou a garganta. Ela passou uma página.
Avançou até ela e lhe pôs o panfleto na saia.
- Assim é como me vê?
Ela empalideceu e levantou lentamente a vista para olhar o panfleto.
- Minha ideia foi fazer uma brincadeira - disse em um sussurro -
Jamais foi minha intenção que se fizesse público.
- Público? - disse ele, ficando atrás da poltrona. - Isso é pouco. É
provável que já tenham brotado asas e voado até o Continente.
Ela inclinou a cabeça para olhá-lo.
- Sinto muito, Heath.
- Como vou ficar ante o Departamento de Defesa? - perguntou ele, com suas fortes mãos apoiadas nos ombros dela.
Ela engoliu em seco e se atreveu a sorrir.
- Exposto?
- Muito exposto. -Inclinou a cabeça até sua face, fazendo estalar a língua-. Minhas proporções anatômicas são enormes. No que estava pensando, lady Whitby, criatura malvada?
Ela fez uma inspiração profunda. Ele estava abaixando as mãos por seus ombros.
- Poderia ter sido pior. Grayson disse que ofereciam uma fortuna pelo original.
Tirou-lhe o livro.
- Acredito que teremos que buscar outra afeição para substituir a de desenhar.
- Acredito que poderia ter razão.
- Como vamos explicar isto a Russell? - perguntou ele, lhe beijando o ponto sensível debaixo da orelha.
Ela fechou os olhos.
- Receio muito que se explique sozinho.
- Então isso me economiza o problema, não é verdade?
- Acredito que só lhe causei problemas - murmurou ela, estremecendo.
Ele afundou o rosto em seu pescoço.
- Parece-me que tomei gosto a isso, Julia. Não tem nenhuma necessidade de se desculpar.
Capítulo Vinte e oito
Na manhã seguinte Heath se reuniu a sós com Grayson depois de um tranquilo e abundante café da manhã. Velhos amigos já tinham começado a visitar o muito popular marquês, que seguia a tradição familiar de oferecer festas e reuniões muito bem. Os convites a suas festas eram muito cobiçados pelos aristocratas dos arredores. Heath sempre tinha preferido festas ou reuniões mais íntimas, com menos pessoas.
De qualquer modo, Grayson era um aliado incondicional em todo momento. Não se deixava zombar por ninguém, era um homem de palavra e lhe interessava conseguir sua ajuda no assunto de Auclair antes que a vida de campo o distraísse, para não dizer a marquesa grávida. Grayson tinha ante ele a bandeja a transbordar com os prazeres da vida.
- Só posso concluir que Auclair tem um rancor pessoal - disse Grayson depois de estar um longo momento pensativo - Ou seja por quê? Não lhe ocorre nenhum motivo?
Heath negou com a cabeça.
- Além de escapar dele, não. Mas algo é possível. Quem sabe o que esqueci? Não é muito o que lembro dessa horrível experiência.
- Graças a Deus - disse Grayson com muito sentimento - Como vi as feridas em seu corpo, não me cabe dúvida de que o esquecimento é uma bênção.
- Eu gostaria de saber o motivo. Eu gostaria de entender - disse Heath com a voz rouca pela emoção - Talvez se o entendesse, acharia a
maneira de pará-lo.
- Tem algo que ele deseja? - perguntou Grayson inclinando-se para ele - Pode ser que desejasse a Julia? Disse que deixou seu bracelete nessa luva para zombar de você.
O olhar de Heath se endureceu ao pensar nisso. Até esse momento não quis reconhecer que essa mesma suspeita lhe tinha passado pela cabeça.
- Por quê? Não lhe fez nada. E não acredito que seu marido lhe fizesse algo tampouco. Whitby passou sua curta vida militar na Índia.
Não era um espião.
Grayson se reclinou na poltrona, olhando para a parede, pensativo.
- Auclair deseja intimidá-lo. Deve odiá-lo muitíssimo para correr tantos riscos para fazê-lo. Não vejo sentido. Se fosse um assassinato político, Althorne seria uma melhor opção.
Heath se levantou. Achava cada vez mais frustrante lutar contra um inimigo tão letal sem sequer lhe ter visto o rosto nunca, além de nos desenhos que lhe mostrou o coronel Hartwell quando terminou a guerra.
- Necessito que acabe isto.
- Enquanto isso, estaremos encantados de ter a Julia conosco indefinidamente - disse Grayson.
E o dizia a sério. Sua generosidade e sentido da justiça eram dois de seus traços encantadores que desculpavam muitíssimo sua reputação de libertino no passado.
- Espero não ter que aceitar esse oferecimento. Russell e eu poderíamos nos ver obrigados a trabalhar juntos.
Grayson o olhou preocupado.
- Acredito que todos nos sentiremos muito aliviados quando tiver se libertado de Auclair. Parece-me que seus demônios não vão se deixar enterrar enquanto esse homem não tenha morrido.
Do fundo do jardim chegaram risadas femininas. Julia e Jane
estavam jogando cricket com Odham enquanto Hermia contava os pontos. Grayson se levantou e caminhou com Heath para a porta.
- Aconteça o que acontecer, a família está com você.
- Sim.
- Por certo - disse Grayson, lhe pondo uma mão no ombro - Vejo que meu conselho deu resultado.
- Sim?
- Sim, mas esse desenho, Heath. Caramba, caramba. Julia esteve ardendo por sua conta, ao que parece.
- Não posso fazer nenhum comentário a isso. Jamais.
- Não tem porque - replicou Grayson - O desenho de Julia fala muitíssimo, sozinho.
Heath se limitou a sorrir.
- Sim, me produziu uma comoção vê-lo exposto assim - continuou Grayson - e eu que achava que tinha visto tudo.
Heath esboçou um sorriso, divertido.
- O mundo viu mais de mim do que jamais teria sonhado possível.
- É uma mulher francamente travessa, malandra - murmurou Grayson.
- Oh!, sim?
Grayson arqueou uma sobrancelha.
- Quer outro conselho?
- Faltaria mais.
- Case-se com ela quanto antes. Uma mulher como essa não se apresenta todos os dias.
***
Ao entardecer desse dia, durante o jantar, Grayson anunciou que tinha convidado a uma companhia de atores ambulantes a fazer uma representação na propriedade nesse fim de semana. Era uma tradição anual, um presente para a família e os empregados.
Uma companhia ou outra tinha atuado no velho celeiro de madeira ripada situado em uma borda da propriedade desde que Heath tinha memória. Às vezes os atores chegavam na metade do verão e outras vezes chegavam em Kent para o Natal. Mas nunca passava um ano sem uma representação.
À família Boscastle gostava de desfrutar tanto de uma boa risada como de um bom pranto. Heath pensou que a Julia iria bem uma distração. Também gostava da ideia de que ela participasse de um rito da família. Sem pensar duas vezes, já tinha começado a inclui-la em seu futuro. Na realidade, não conseguia imaginar sua vida sem ela. Pela primeira vez desde anos esperava com impaciência o dia seguinte. Ria com mais frequência. Desejava fazê-la feliz.
Quando lhe disse que era possível que estivesse grávida dele só foi meio em brincadeira; ela tinha boas possibilidades de conceber antes que partissem. Assombrava-o quão atraente achava a possibilidade de iniciar uma família com ela.
Teria que levá-la a toda pressa ao altar. O que sentia por ela era tão avassalador que não podia ocultá-lo. Ele, que se orgulhava de seu talento para fazer as coisas em segredo, já não tinha o trabalho de dissimular ou enganar. Já nesse dia, e talvez no anterior, tinham-no surpreendido muito perto dela mais vezes das que nenhum dos dois podia contar. Toda a gente da casa, desde Hermia às empregadas, tinham que saber que Heath Boscastle estava apaixonado, desesperado por passar embora fosse uns furtivos momentos a sós com a viúva comprometida que o desenhou nu.
Sua conduta ia contra tudo o que professava acreditar. Mas deveria saber que quando lhe entregou seu coração, o seu não seria um galanteio doce mas uma dança sexual que implicava riscos e perigos.
Um Boscastle apaixonado tendia a ser imprevisível, talvez devido a sua família ele fazia tudo com paixão.
Seus familiares o entendiam, não o julgariam nem criticariam, mas sim lhe ofereceriam seu apoio. Contava com isso. Quando estavam crescendo, ele e seus irmãos podiam ter quase assassinado, mas Deus amparasse à pessoa alheia à família que ameaçasse a um deles.
Explicar a situação a Russell seria muito mais difícil. A diferença de Julia, que confessava que temia o momento, ele o aceitava como uma tarefa inevitável.
Não tinha a menor intenção de negar sua relação com ela.
Desejava-a, e anunciaria ao mundo inteiro seu compromisso com ela.
Só cabia esperar que Russell deixasse de lado seus sentimentos pessoais o tempo suficiente para poder capturar Auclair juntos.
Passeou o olhar pela mesa, observando os rostos risonhos, o quente ambiente de carinho, o zelo pela vida.
Que cheia estava a casa já, e nem sequer estava reunida toda a família. Faltavam suas irmãs; Emma estava ocupada em Londres, com suas damas em formação e Chloe estava segura e satisfeita com seu marido Dominic, depois de lhe ter ajudado a vencer seu cruel inimigo.
Drake e Devon chegariam qualquer dia, se um duelo ou uma jovem bonita não retivesse os descarados. Era sua intenção aproveitar seus talentos para localizar Auclair.
***
No dia seguinte, que era quinta-feira, chegou Drake. Com o cabelo e a roupa revoltos pelo vento, moreno e vital, chegou como uma rajada de energia perigosa à propriedade.
Sua presença produziu uma onda de entusiasmo e expectativa em toda a casa. Menos de uma hora depois de sua chegada, apareceram damas da vizinhança com suas mães, de visita, e simularam surpresa ao saber que ele acabava de chegar.
As empregadas adoraram em especial os dois irmãos mais novos, os quais não regulavam escandalosos elogios ou gorjetas em dinheiro às
leais mulheres. Inclusive os empregados faziam ostentação de um orgulho paternalista por seus "valentes jovens senhores", e não toleravam que na aldeia se dissesse nenhuma só palavra não receosa contra eles, embora o céu sabia, todo mundo sabia, que essas crianças tinham cometido pecados aos montes para atrair críticas.
O primeiro que fez Drake, quando conseguiu achar-se a sós com Heath no escritório, foi tirar de sua bolsa uns cem panfletos em que aparecia sua caricatura.
- Há premio por estes em Londres. Tenho todos meus amigos e empregados recolhendo-os. Julia poderia nos ter avisado que iria ficar exposto ao olhar público, Apolo.
Heath balançou a cabeça, aborrecido.
- Condenação. Suponho que este é meu fim na sociedade educada.
Drake começou a rir.
- Mas que deslumbrante estreia na sociedade não educada. Audrey ofereceu uma recompensa pelo original.
- Com certeza.
Drake ficou sério.
- Receio que não caiu bem para Russell.
Heath jogou ao fogo o montão de panfletos e se virou lentamente.
- Está de volta? Deve tê-lo seguido pisando-lhe os calcanhares.
- Pois não.
- Com certeza já sabe sobre Julia e eu. Que estamos juntos.
- Ah, isso sim sabe - se apressou a dizer Drake.
Escureceram-se os olhos de Heath de incredulidade.
- E não veio aqui nos enfrentar? Isso não se parece com o Russell que lembro.
Drake pegou um atiçador e moveu os panfletos que se estavam queimando.
- Prepare-se. Não demorará muito a chegar.
- A que se deve o atraso? - disse Heath, sério - Ficou enredado nos braços de sua amante?
-Eu não o chamaria atraso - disse Drake, sorrindo com picardia -
Na realidade foi mais um desvio. Quando não conseguiu achá-lo em Londres foi a minha casa enfurecido. Disse-lhe que suspeitava que você e Julia poderiam ter fugido.
- Fugido?
- Bom, na realidade não disse exatamente essa palavra.
Simplesmente lhe dei a entender que a família possui uma casa ancestral em Roxbury. E qualquer idiota e sua mãe sabem que Gretna Green está no caminho.
Heath contemplou as chamas que ardiam baixas, sorrindo admirado pela mente sinuosa de seu irmão.
- Não vai agradecer? - perguntou Drake - Tem tempo para fazer planos ou inclusive para fugir com Julia. O que lhe parece melhor.
- Acredito que não sou do tipo de fugir, mas obrigado.
- Sempre a seu serviço - disse Drake, deixando o atiçador na lareira.
- Acredito que disse a sério.
Drake se endireitou.
- É claro. Não é para lhe estragar o humor, mas, soube algo de Auclair?
- Não. Acredito que é perigoso subestimá-lo. Tomara soubesse o que pretende fazer e por que.
- Isso me parece absolutamente claro. Dois espiões em lados opostos. Você ganhou. Não lhe perdoou o insulto.
- Há mais - disse Heath - Sei que há mais, mas não sei o que.
- Devon chegará logo - disse Drake passado um momento, olhando-o fixamente. - Desta vez não estará só, seja o que for que tenha
que enfrentar.
Capítulo Vinte e nove
Ao entardecer da sexta-feira os atores ambulantes representaram a comédia de Goldsmith She Stoops to Conquer. Seguindo a tradição familiar se convidou a assistir os empregados, que se instalaram comodamente na parte de trás, todos impacientes para participar desse acontecimento anual.
Heath não conseguiu concentrar-se na peça. A atuação era horrorosa com quase todos os diálogos mau ditos e fora de tempo.
Mas todos os outros riam, inclusive Julia. Era um entretenimento estúpido, um alívio à tensão, e o mau da atuação oferecia a maior parte da diversão, se não toda.
O desfrute de Heath provinha totalmente de estar sentado ao lado de Julia, tocando seus ombros no abarrotado celeiro iluminado por velas, sentados sobre feixes de feno.
Estava bastante escuro no lugar onde estavam sentados, pelo que podia acariciá-la e lhe roubar beijos. Assim era como desejava que fosse sua vida com ela.
Passou-lhe o braço pela cintura e com o polegar lhe acariciou a curva do quadril.
- Eu adoro ouvi-la rir, Julia.
- Como poderia não rir ? - respondeu ela em um sussurro. - A atuação é espantosamente má. Uma das atrizes ficou doente no último momento, e é um homem que faz o papel da senhora Hardeastle.
Parece-me que... esqueceu de barbear-se.
Divertido, Heath olhou para o cenário, mas estava muito mais interessado na mulher que tinha a seu lado. Estava muito formosa essa noite com seu leve vestido de seda prateada, com o xale caído lhe deixando descoberto os ombros. Adorava o flexível contorno de suas costas, a forma como seus delicados músculos desciam para seu firme
traseiro branco. Recordou a última vez que fizeram amor e seu corpo reagiu com uma explosão de desejo que poderia ter incendiado o celeiro.
Ainda era cedo quando terminou a representação da obra. Hermia e Julia foram de braços dados caminhando para a casa, comentando a atuação, mortas de risada. Jane e Odham foram admirando o jardim iluminado pelas estrelas. Os cães iam atrás trotando, lhes pisando os calcanhares.
Mais atrás vinham Drake e Devon, e Heath atrás deles. Daí se viam os carroções dos atores estacionados na borda da propriedade. Muitos dos atores ficaram no celeiro desmontando o cenário. Esse era o único lugar da terra onde deveria sentir-se cômodo e baixar a guarda.
- Hermia e eu vamos voltar para levar refrescos aos atores - disse Julia, olhando-o por cima do ombro.
- Eu as observarei da janela - respondeu ele.
Grayson se virou para olhá-lo sorridente.
- Seriamente acha que poderia achar-se ante um perigo mortal entre aqui e o celeiro?
Drake emitiu uma curta risada.
- Nunca se sabe. Poderia lhe saltar uma rã da fonte.
- Ou poderia afundar-se em um atoleiro de barro e não saber-se nunca mais dela - acrescentou Grayson.
- As roseiras podem ser assassinas nesta época do ano -
acrescentou Drake.
- Idiotas podres - resmungou Heath.
Mais quando chegou à casa também estava rindo.
Heath acendeu um charuto e aproximou uma poltrona à janela da biblioteca. Tinha prometido a Julia que leria o livro sobre hieróglifos egípcios que lhe dera de presente. Tinha tido a intenção de começar a lê-lo no mínimo umas dez vezes. Grayson e Drake tinham ido com o Hamm ao salão de jogo.
Ele declinou o convite para acompanhá-los.
Abriu o livro, voltou uma página e olhou atentamente um desenho de inscrições não decifradas, símbolos que se achava continham os mistérios dos séculos. Eruditos e linguistas tinham tentado decodificar esses antigos textos. Esse era um estudo que o fascinava, mas sua mente se desviou para outros assuntos.
"Cuide que esteja segura."
"E a mantenha afastada do escândalo."
Franziu o cenho, sua morena cabeça envolta em uma nuvem de fragrante fumaça. Era irônico que recordasse com tanta clareza as palavras de despedida de Russell.
Justo quando estavam a ponto de enfrentar-se cara a cara.
Bom, Julia estava segura.
Mas livre de escândalo?
Balançou a cabeça. Viu-a pela janela. Ia caminhando com Hermia pela grama a brilhante luz da lua. Julia era um pequeno escândalo em si mesma. Ele não a quereria de nenhuma outra maneira.
Já estavam chegando ao celeiro. Conseguiu ver um último vislumbre de seu vestido prateado e desapareceu na escuridão.
Voltou a abrir o livro.
Caiu um papel dobrado.
Depois de lê-lo três vezes, levantou-se. Toda a cor lhe tinha abandonado o rosto.
Hoje lhe lancei meu primeiro bom olhar na livraria. É formosa, mais ou menos da mesma idade que teria minha irmã se não a tivesse matado.
Chorará por ela, Boscastle?
Ou é, como eu, incapaz de sofrer essa loucura sentimental chamada amor?
Armand
Heath ficou olhando o livro, com o rosto branco como um papel, ao compreender. O desconhecido que recolheu o livro quando caiu de Julia fora da loja deveria ter sido Auclair. Colocou a mensagem dentro antes de entregar-lhe.
Por uns poucos segundos ele não conseguiu vê-lo. Ele teria o reconhecido tendo visto só um desenho?
O jardim de Julia, o teatro, a rua pública. Onde apareceria na próxima vez? Auclair não manifestava nenhum temor. E o que era essa tolice de que ele matara a sua irmã?
Jamais tinha matado uma mulher. Deus santo, a teria matado? Não conseguia recordar nada importante depois dessas torturas.
O que tinha feito?
O que faria Auclair?
Ao afastar-se da janela sentiu subir o sangue à cabeça. Julia lhe tinha dado a resposta. Se tivesse prestado mais atenção poderia ter percebido a verdade.
"Uma das atrizes ficou doente no último momento, e é um homem o que faz o papel da senhora Hardeastle. Parece-me que... esqueceu de barbear-se".
***
Hermia parou para reequilibrar no braço a pesada cesta que levava com carnes frias, queijos e pão. Tinha o rosto ruborizado e parecia ter dificuldade para respirar.
Julia parou também, para lhe dar tempo para descansar.
- Sabia que deveríamos ter pedido a Hamm que nos ajudasse. Ou a um dos outros empregados. Sente-se bem, tia Hermia?
Hermia a olhou zangada. Já estavam quase na porta do celeiro de madeira; embora o interior estivesse silencioso, seguiam acesas as lanternas, e o cenário não estava desmontado de todo.
- Sou muito capaz de levar uma cesta, Julia - disse, reatando a
marcha.
Julia sorriu.
- Então me faça o favor de me dizer por que tem o rosto tão vermelho? Por que tem dificuldade para respirar?
Hermia suspirou, com a expressão um pouco sobressaltada.
- Odham, por isso. O idiota me beijou quando ia saindo da casa. Ai, Deus. Os atores não estão no celeiro.
Julia olhou para o pequeno bosque.
- Devem ter se retirado a seus carroções.
- Queria conhecer o ator que fez o papel do senhor Hardeastle -
murmurou Hermia, com o rosto penalizado. - Recordou a meu finado marido.
- A mim a senhora Hardeastle recordou meu finado marido - disse Julia, com uma risada pesarosa.
- Odham voltou a me pedir que me casasse com ele - disse Hermia, mordiscando um pedaço de queijo que pegou da cesta - Desta vez estou considerando seriamente a possibilidade de aceitá-lo. Sei que parece tolo, mas ao ver a peça esta noite tive a estranha sensação de que meu querido Gerald me dizia que fosse feliz.
Julia olhou para o celeiro.
- Então leve sua cesta ao senhor Hardeastle e diga a Odham que aceita. Ah, olhe. Um dos atores está no celeiro. Pedirei que nos ajude.
- Eu irei à frente.
- Não demore muito, tia Hermia - brincou Julia - Odham sentirá sua falta.
***
Quando Julia entrou no celeiro só havia uma lanterna acesa.
Aproximou-se da mesa de cavaletes que tinham usado como acessório do cenário e deixou em cima a pesada cesta com bolos de fruta, uma peça inteira de queijo e garrafas de vinho.
Sobre o tosco soalho de madeira que serviu de cenário só estava um ator solitário encetado em um combate a espada com um adversário imaginário. Julia supôs que poderia estar praticando para sua próxima atuação. Grayson havia dito que Romeu e Julieta fazia parte do repertório da companhia.
Ele moveu a espada em um elegante arco fazendo ondear espetacularmente sua capa negra. Julia pressentiu que ele sabia que ela estava aí. Estava fazendo demonstração de sua arte, coisa não excepcional em um ator. Deu um passo para o cenário.
- Eu gostei da representação - disse.
Ele se inclinou em uma teatral reverencia e desceu de um salto.
- Todo o prazer foi meu.
Observou-lhe o rosto, de traços grossos, atraente de certa maneira não refinada. Seus olhos eram duros, e brilhavam negros como carvões a tênue luz.
- Você é a senhora Hardeastle - disse, surpresa. - Não o tinha reconhecido sem o vestido.
Ele se inclinou em outra reverência, com a espada apoiada no coração.
- E a senhora é Julia Hepworth Whitby - disse com voz suave, com um ligeiro acento francês - A mulher desejada por Boscastle e por Althorne. Que amável foi ao me proporcionar uma vingança tão cômoda.
Ela não compreendeu essas palavras imediatamente. Levou-lhe um momento entender o que queria dizer. E então o reconheceu; era o desconhecido com a cartola que viu na rua, e com um estremecimento de terror percebeu que estava sozinha com o oficial francês que torturou Heath com tanta crueldade que ainda levava as cicatrizes no peito. Não parecia possível; ali, onde se sentia segura e protegida.
Ali, onde ele podia fazer mal a tantas pessoas inocentes.
- Auclair - disse, sem mover-se, sentindo retumbar o coração na
garganta.
Pareceu-lhe que esse sobrenome profanava o ar. Esse era o monstro que desfrutava vendo sofrer outros.
Ele passou a espada para sua outra mão como se não pesasse nada. Ela viu as marcas de queimaduras, as cicatrizes avermelhadas em seus dedos. Encolheu-se ante o sorriso que lhe dirigiu.
Onde estava Heath? Quanto tempo estava fora da casa? Só uns minutos, certamente. Não o tempo suficiente para que ele sentisse sua falta. E Hermia... ai, Deus, por favor, que sua tia não se visse envolvida nisto.
Auclair deve ter visto o olhar desesperado que dirigiu para a porta.
Avançou para ela até que se viu obrigada a retroceder e ficou apoiada no soalho que formava o cenário. Atendeu-a uma sensação de frio, de incredulidade. Não devia lhe deixar ver o medo que sentia.
- Virá aqui, com certeza, no instante em que perceba que você não está -disse ele, cruzando a distância que os afastava.
Ela sentiu a afiada ponta da espada no peito através da fina seda do vestido. O celeiro estava insuportavelmente quente antes. Nesse momento o ar a gelava como um sorvete. A boca tinha sabor de giz, ressecada de medo. Nos olhos escuros de Auclair não se refletia nenhuma expressão; além de crueldade, estavam vazios.
- Por que vai fazer isto? - perguntou-lhe, engolindo a saliva para passar o sabor amargo da boca.
- Não disse?
- Não.
- Matou a minha irmã - disse Auclair, sério - Ela estava alojada no convento onde se refugiaram Althorne e Boscastle depois de escapar de mim. Exigiram alojamento e as monjas o deram. Seu amante lhe atirou no coração a plena luz do dia. Quando a encontrei estava morta.
***
Heath estava correndo tão veloz que quase puxou ao chão a Jane e a sua empregada em uma curva do atalho para o celeiro.
- Bom Deus, Heath - exclamou ela, quando lhe pegou os ombros para firmá-la - Vai correndo atrás de Julia ou fugindo dela?
Seu sorriso travesso se desvaneceu quando lhe viu o rosto. Estava pálido, assustado, e a expressão de seus olhos era desesperada.
- Auclair é um dos atores que atuou aqui esta noite - lhe disse ele -
Procure Grayson e Drake. Pelo amor de Deus, apresse-se.
***
Julia ouviu ressoar fracamente sua voz nas vigas do celeiro. Via um fino raio de lua cair em ângulo da pequena janela do mezanino até a parte não iluminada do cenário.
Era como se estivesse vendo outra representação. Sentia-se indiferente, aturdida, apenas consciente do que dizia ou fazia. Fechou os dedos ao redor da pistola que levava escondida nas quentes dobras de sua capa. Seu marido a deu quatro meses antes que o matassem. A advertência de Heath nesse dia no bosque, e certo instinto nessa tarde, impulsionaram-na a levá-la com ela. Em sua mente ressoavam as palavras de seu finado marido. Será que Adam estava tentando ajudá-
la?
"Não a leve a vista, Julia, mas este é um mundo selvagem. É
possível que eu não esteja sempre perto de você para a defender".
Sentiu uma onda de pena por ele, uma pena que não quis reconhecer desde que partiu da Índia. Essa era uma das poucas vezes que se permitiu lamentar a morte de Adam desde que voltou para a Inglaterra. Quando ele morreu se sentiu furiosa, desconcertada, sem saber o que seria dela. Voltar para a Inglaterra, a seu pai moribundo, foi um consolo, sim, mas também uma lembrança de pesares profundos.
Achava que tinha perdido Heath, o único homem que tinha amado em segredo. Acabava de perder seu marido, tão jovem, e o tinha amado,
embora não com a mesma aterradora paixão que sentia por Heath.
Voltaria a entrar na alta sociedade, que jamais a tinha aprovado, com uma fama de escandalosa, e riqueza.
Era Julia Hepworth Whitby, e se lançou em corpo e alma às alegrias e tribulações que teria que enfrentar, as que fossem. Não morreria sem lutar por sua vida.
- Minha irmã só tinha dezenove anos - disse Auclair, levantando a espada - A deixei nesse convento para protegê-la. Seu amante a assassinou e eu...
Ela levantou a pistola, com o dedo no gatilho, pronta para disparar.
Capítulo Trinta
Tinha fechado os olhos por reflexo ao dispor-se a apertar o gatilho.
Quando os abriu, viu Auclair caído sobre a palha, diante dela. Enrugados babados do peitilho de sua camisa de linho estavam empapados de sangue. Felizmente, não lhe via o rosto. A espada tinha caído aos pés dela.
Puxou a saia para desprendê-la da espada. O eco do disparo a tinha deixado surda um momento. Olhou mais à frente do corpo inerte de Auclair e viu Hermia, que estava imóvel, rígida, no centro do celeiro. Não tinha ideia de quanto tempo estava aí sua tia. Na realidade, nem sequer recordava o instante em que disparou a pistola. Agachou-se para deixá-
la no chão atrás dela.
Caiu das mãos de Hermia a cesta vazia.
- Julia - disse, com a voz trêmula, e o rosto cinza - Acredito...
acredito que vou desmaiar. De verdade, tem que... tem que dominar esse hábito de atirar em homens.
Julia conseguiu passar pelo lado do cadáver de Auclair enquanto Hermia desabava. Por sorte seu volumoso corpo aterrissou em um fofo montão de palha.
- Tia Hermia! - exclamou, ajoelhando-se a seu lado – A senhora me
ouve?
Os olhos de Hermia lhe escrutinaram o rosto.
- Ouvir o que? Desmaiei?
Julia lhe esfregou os pulsos entre as palmas.
- Acho que não.
- Por que não? - perguntou Hermia em um sussurro.
- Bom, teve os olhos abertos todo o tempo e não parou que falar.
O aterrado olhar de Hermia desviou para o corpo imóvel que estava a só uns palmos mais à frente.
- Está morto?
Julia pegou o lábio inferior entre os dentes. Estava tremendo, e sentia calor e frio alternadamente, como se de repente tivesse adoecido.
- Acredito que sim.
- Tomara pudesse desmaiar - disse Hermia, tentando sentar-se.
- Sim, eu também - disse Julia; o coração lhe pulsava com força, mas saltando os pulsos. - Esta é a primeira vez que mato de verdade a um homem.
- Você não o matou.
Julia se endireitou e ficou em pé, ainda trêmula. Tinha ouvido a voz profunda e tranquilizadora de Heath perto da escada ao mezanino que tinha à esquerda. Levou-lhe uns segundos para perceber sua conhecida figura.
Os pensamentos passaram velozes por sua mente: "Ainda leva o traje de noite; tem uma pistola em cada mão; esta é a primeira vez que o vejo ligeiramente despenteado, e..."
- Tem palha na calça - disse, pensando se não teria ficado louca pela comoção.
Acabava de matar um homem, não? Conseguiu armar-se de coragem e olhou com mais atenção para Auclair. Estava imóvel, de uma maneira não natural.
Antes que conseguisse fazer um movimento, Heath estava diante dela, abraçando-a fortemente, como se não quisesse soltá-la nunca. Ela agradeceu sua cálida força e sua sujeição; não sabia quanto tempo conseguiria controlar suas emoções; nunca em sua vida se pôs a prova sua coragem. Por sua mente passou o pensamento de que seu pai se sentiria muito orgulhoso dela. E só então pôde reconhecer o aterrada que havia se sentido e agradecer o instinto de conservação que a salvou.
- Está morto, não é verdade? - disse, olhando para o homem por cima do ombro dele.
Ele a fez virar até deixá-la olhando no sentido oposto, para que não visse o cadáver.
- Sim, está morto, mas não o matou você. Matei-o eu.
Ela o olhou surpresa. Tinham desaparecido as pistolas que tinha nas mãos só fazia um momento; até tinha palha na roupa. Desejou chorar.
- Quanto tempo esteve aí? - perguntou, com a voz áspera, pois tinha ressecada a garganta.
- Cheguei pouco depois de você. Vim assim que compreendi o que ocorria.
- Você atirou nele do mezanino? - perguntou ela, assombrada.
- Subi por fora para entrar pela janela. Tive a impressão de que me tinha ouvido; pareceu-me que em um momento me olhava. - Tremia-lhe a voz - Aterrava-me o que poderia ocorrer se errasse o tiro.
Ela sentiu aumentar a força de seus braços, para protegê-la. Sem soltá-la, ele olhou para o mezanino e fez um leve gesto de assentimento.
Pela extremidade do olho ela viu Drake saltar ao chão com a agilidade de um gato. Imediatamente este se aproximou do cadáver de Auclair e o cobriu com sua jaqueta, com o rosto duro e indiferente.
Abriu-se a porta e ressoaram vozes no celeiro; eram as vozes
preocupadas da família Boscastle e dos empregados que haviam trazido para ajudar.
Grayson e Odham levantaram suavemente a Hermia do chão e a tiraram ao ar fresco da noite, enquanto Drake e Hamm retiravam o cadáver de Auclair deixando-o fora da vista.
E Heath não a tinha soltado. Ela mal podia acreditar que tudo tivesse ocorrido tão rápido, e que tivesse acabado; Heath tinha derrotado ao homem que tentava matá-lo.
Tinha tal confusão na cabeça que quase não recordava a aparência de Auclair. Desejava esquecer.
- Ouviu o que disse? - perguntou docemente a Heath.
Ele estava olhando para o cenário, com expressão remota, como se estivesse em outra parte; ela temeu que sua voz não lhe tivesse chegado.
Então ele a olhou nos olhos e se suavizaram os duros ângulos de seu rosto.
- Ouvi tudo, mas não recordo o que ocorreu no convento no dia que me resgataram. Não recordo nada do que ocorreu antes do momento em que Hamm e Russell me levavam quase arrastando por um caminho coberto de gelo. Íamos vestidos de camponeses; eles me disfarçaram, para escapar.
- Não há nenhum motivo para acreditar nele, em todo caso - disse ela, penalizada por ele.
Ele negou com a cabeça.
- Para que iria mentir?
Seus olhos se escureceram por um desconcerto que não se incomodou em ocultar. E ela o tinha acreditado frio e indiferente? Era incrível que durante todos esses anos ela tivesse tido a imagem dele como um homem sem sentimentos e reservado.
O homem que a tinha abraçada, que tinha matado para protegê-la,
tinha sentimentos muito mais profundos dos que ninguém poderia supor.
E pressentiu que lhe teria dito muito mais se nesse mesmo instante não se abria a porta com tanta força.
Uma suave rajada de ar noturno agitou e dispersou a palha pelo chão. Grayson tinha voltado para o celeiro. Avançou para onde estavam eles como um rei indignado porque quase perdeu seu príncipe e sua princesa favoritos.
Recolheu a pistola que ela tinha deixado no chão. Seus olhos azuis brilharam de aprovação.
- Está bem, Heath?
- Sim. Ficarei.
- Esse foi um disparo fabuloso, Julia - disse Grayson, passado um momento - embora... - interrompeu-se; estava examinando a pistola, sério, perplexo - É uma sorte que tenha melhorado sua habilidade com armas de fogo desde que atirou em meu irmão.
Heath lhe dirigiu um olhar significativo.
- Ela não matou Auclair. Matei-o eu.
- Aah - disse Grayson, assentindo ao compreender, e abaixou a pistola - Bom, isso explica tudo; desta pistola não saiu nenhuma bala.
Que experiência mais terrível.
- Levo isso para seu quarto - disse Heath firmemente.
Antes que ela percebesse, ele já havia voltado para a porta e ia afastando-se com ela de seu irmão, quem os seguiu só passados uns segundos.
- Muito boa ideia - disse Grayson - Leve-a direto à cama.
Heath olhou para Julia de esguelha e sorriu algo pesaroso.
- Toda uma inspiração, verdade? Grayson, talvez devesse ir ocupar se de sua mulher. Dei-lhe um susto de morte quando vinha para cá.
Minhas desculpas se a perturbei.
- Jane estava mais preocupada com Julia e você - respondeu
Grayson. Olhou para o celeiro, movendo a cabeça, e acrescentou com a voz rouca pela emoção: - Em minha propriedade. Deus santo, pensar que eu convidei esse assassino a minha casa.
***
Nessa noite Julia dormiu aos poucos. Quando despertava e se achava nua nos braços de Heath, tinha a sensação de que tinha sonhado com a morte de Auclair. Todo o ocorrido no celeiro foi tão rápido, tão inesperado, e depois Heath lhe fez amor com tanta paixão e desinibição, que os acontecimentos anteriores dessa noite não lhe pareciam reais.
Era verdade que Auclair a cravou com a ponta de uma espada?
- Foi tudo um pesadelo? - perguntou, quando sentiu seu forte corpo em cima dela.
Concentrou a atenção no sorriso malandro que viu passar por seu rosto na penumbra. Tentou sentar-se, mas lhe desceu a cabeça ao travesseiro sem o menor esforço e se apoderou de sua boca.
- Foi muito real - disse, e a beijou profundo, profundo. - E já acabou. Minha valente adorada.
Seu tom rouco e sensual lhe fez passar uma corrente de prazerosa espera por todo o organismo. Sua voz soava mais perigosamente sexual que alguma vez. Poderia ser que ao ter derrotado seu inimigo era capaz de dar rédea solta a suas paixões mais intensas?
Se fosse assim, ela estava em mais dificuldades do que teria esperado. Um problema da variedade mais pecaminosa. Claro que o problema tinha uma só solução: submeter-se, participar e gozar.
Jogou os braços ao pescoço.
- É um competidor formidável, Boscastle. Alegra-me tê-lo como amigo.
- Somos mais que amigos - disse ele, lhe separando as coxas com o joelho para realçar esse ponto.
Antes que acabasse a noite lhe demonstrou várias vezes a verdade dessa afirmação. Ela nunca o tinha visto tão desinibido, tão absolutamente erótico; não sabia se sobreviveria a esse misterioso lado de hedonismo desenfreado de seu amado. Estava mais que disposta a tentar. Ele fazia aflorar a paixão que tanto tinha reprimido.
Ele a penetrou com uma potente investida.
A ternura de seus olhos era tão aniquiladora como sua selvagem sexualidade. Entregou-se a ele de corpo, alma e coração. Ele a possuiu avidamente, exigindo mais, e ela respondia.
Arqueava-se,
apertando-se
a
seus
estreitos
quadris,
correspondendo às desenfreadas e violentas investidas de seu corpo com seus próprios movimentos sedutores.
Ele a atormentava; ela atormentava a ele.
Ele se retirava de todo e logo a penetrava muito lentamente para atormentá-la. Ela apertava os músculos interiores, encerrando-o em sua úmida cavidade como uma luva, e logo os relaxava, justo quando ele estava chegando ao topo. Era um jogo para procurar-se mutuamente o máximo prazer.
Heath era um professor nisso. Apresentava-lhe uma dura competição.
Os dois levariam a vitória ao final, mas o prazer provinha de jogar, não de seguir as normas.
Ele estava estremecido de prazer, com todos os músculos tensos quando ela se entregou ao orgasmo; não pôde resistir. Olhando-a com os olhos escurecidos pelo mais puro e desatado desejo, ele a tinha amassado e amassado até que ela não pôde conter-se nem um só instante mais.
No momento que a viu chegar ao orgasmo, ele se apoderou de sua boca com um beijo ávido, ardente. Julia se rendeu, entregando-se a seus impulsos com desenvoltura.
Aferrou-se a seus ombros quando se sentiu dividida em migalhas debaixo dele, em fragmentos de insuportável prazer. Ele gemeu, embainhado nela.
Não havia nada que fazer além de seguir os instintos, levassem-nos onde os levassem. Saboreou o desenfreado poder dele, as sensações
que
a
inundavam,
as
inevitáveis
contrações
e
estremecimentos que discorriam por toda ela.
Só há umas horas tinham enfrentado um assassino. Ter sobrevivido, ter visto Heath triunfar sobre seu inimigo, fazia ainda mais doce esse momento. Ele estava ansioso nessa relação sexual desenfreada, violenta, sem refinamentos. Talvez a necessitasse para esquecer. Ela a deu.
Acariciou-lhe as tensas nádegas com as pontas dos dedos, apertando-o mais a ela. Ele a tinha despojado de tudo o que não fosse sensação pura. Gemeu suavemente com a boca na dele. Enterrou as unhas nas costas quando ele emitiu um rouco grunhido e ejaculou dentro dela como em uma explosão. Tinha-a abraçada com tanta força que sentiu retumbar seu coração e notou a lenta relaxação de seus músculos. Acariciou lhe o rosto com as pontas dos dedos.
O aroma produzido pelo ato sexual perfumava a roupa de cama e seus corpos molhados e entrelaçados.
Dentro de uma hora mais ou menos começaria outro dia. O dia interromperia essa intimidade, se é que não a punha em perigo. Sabia que Russell exigiria uma explicação, que a merecia. Também sabia que Heath não se sentiria em paz consigo mesmo enquanto não soubesse a verdade a respeito desse dia no convento; as palavras de Auclair o tinham afetado profundamente. Teria matado ele à irmã de Auclair? Teria estado consciente, no comando de seus atos? Fosse como fosse, fizesse o que tivesse feito, ela estaria a seu lado, apoiando-o. Era um homem bom.
Seus pensamentos se desviaram para pensar em como os consideraria a alta sociedade; os falatórios que se desencadeariam como uma tormenta. Talvez não voltasse nunca para Londres.
- Depois disto nunca nos convidarão a nenhuma parte - murmurou, sem se importar, mas desejando saber se lhe importava.
Passou-lhe um braço pela cintura.
- Um espião morto não faz um escândalo. Além disso, ninguém dirá nada, dos que estiveram aqui ontem à noite.
Ela ficou em silêncio e fechou os olhos. Os homens têm um dom para reduzir tudo aos aspectos mais básicos, pensou. Em especial os homens Boscastle, os que pareciam acreditar que fosse o que fosse o que decidissem seria lei. Ou que estavam acima das leis, em particular as sociais.
- Acredito que esquece Russell - disse, vacilante - O insignificante obstáculo no caminho de nosso amor ilícito. E ao dizer insignificante obstáculo refiro-me a um obstáculo do tamanho de uma montanha pequena.
Ele grunhiu, com um som grosseiro que a fez rir.
- Eu me encarregarei de Russell, como lhe disse. Não o esqueci nem um só instante. - Atraiu para ele seu corpo relaxado, satisfeito - Mas lhe recomendo que você o esqueça. Na realidade, em qualidade de seu futuro marido, exijo-lhe isso. Minha família a respaldará, diga o que disser ou faça o que fizer qualquer um. A verdade, importam-me um rabanete os outros.
- Talvez eu devesse falar primeiro com ele - disse ela docemente.
- Não me parece conveniente.
- Não me vai fazer nenhum dano.
- Isso sei.
Beijou-lhe o pescoço.
- Heath, é o justo.
***
Tal como predissera Heath, no dia seguinte a família Boscastle se congregou ao redor de Julia como se fosse uma parente da realeza, a ponto de ser sitiada por um exército de camponeses. O que, com sua típica arrogância, o clã achava secretamente que eram todos os que não estavam de seu lado.
A família se reuniu a tomar um civilizado café da manhã de chá, café, ovos, bacon, pão-doces, torradas e geleia. Ouvindo-os brincar e fazer planos para a semana, Julia chegou a duvidar de que Heath tivesse matado realmente a um homem essa noite passada. Mas não demorou para compreender que essa alegria e bom ânimo eram uma cordial celebração do triunfo. Compartilhavam tudo, o bom e o mau.
Inclusive Hermia e Odham riam e lançavam olhares secretos. Mas claro, estavam apaixonados, e por fim tinham superado todos os obstáculos para aceitar o que sentiam.
Talvez isso fizesse a diferença. A família Boscastle sentia paixão pela vida, e se queriam mutuamente, às vezes com choques de emoções e vontades que eram bastante dolorosas.
Os Boscastle eram extremados em tudo. A palavra "tibieza" não existia em seu mundo, e ela se sentia bem-vinda, acolhida, aceita, como uma parte desse apaixonado caos.
O diabo mais jovem, Devon Boscastle, apareceu essa manhã, encantando a todos, e logo desapareceu para ir tomar café reunido com seus irmãos. Julia não sabia como soube Devon da morte de Auclair, mas pelo sorriso que ele dirigiu a Heath, captou que já haviam dito e desejava participar da celebração.
Também chegaram mensagens anunciando a chegada das irmãs, Emma e Chloe, esta última com seu marido, Dominic Breckland, visconde de Stratfield. O marquês teria a casa cheia, ou uma festa em casa muito concorrida, e seu bom ânimo e alegria por ter a todos em
casa eram contagiosos.
Julia se achou seduzida pelo encanto coletivo dos Boscastle, tanto que poderia ter jurado que tinha ocorrido o impossível; esqueceu-se totalmente da feia complicação que devia enfrentar: romper seu compromisso com Russell.
Ele chegou uma hora depois do café da manhã, quando a família se dispersara para ir vestir roupa apropriada para uma partida de cricket no campo de grama.
Julia tinha ficado na sala de café da manhã bebendo uma última xícara de chá, para desfrutar do calor do sol que entrava pelas janelas e ter um momento de silêncio e quietude a sós, para saborear e refletir.
O sol pareceu desaparecer quando um empregado fez Russell entrar na sala. Ela deixou a xícara no pires e se levantou lentamente. Ele tinha o rosto mais magro, com olheiras mas continuava apresentando uma fina imagem com sua calça marrom escuro e sua jaqueta de montar de duplos botões. Como sempre, o parche negro no olho lhe dava um aspecto galhardo. Era um homem conhecido por seu passado, mas seu coração não reagiu absolutamente a ele. Jamais poderiam ser felizes juntos. Desejava e esperava que ele aceitasse isso.
- Russell.
- Ah, que bem. Ainda me reconhece.
Estava claro que ele não faria fácil essa conversa. No fundo ela já sabia isso, mas de repente desejou ter aceitado a promessa de Heath de se ocupar do assunto.
- Não sei o que dizer - disse.
A voz dele a golpeou como um chicote:
- Arrisquei minha vida para salvar Heath faz uns anos, e haveria feito o mesmo para proteger a você. Deixei-a com ele porque confiava nos dois. Como pôde me fazer isto? Não lhe importa o que dirão as pessoas?
Ela meio se voltou para olhar pela janela. Heath estava no pátio junto à fonte de mármore, com as costas e seus largos ombros para ela.
Seu cabelo brilhava negro azulado à luz do sol. Estava sozinho. Parecia muito sozinho. Ansiou ir acompanhá-lo, tirar-lhe a expressão sombria do rosto.
O que lhe confessou uma vez? Que se achava destinado a estar só? Isso não era verdade. Ela passaria por cima das chamas do inferno para estar a seu lado.
Ouviu Russell mover-se detrás dela, falando em tom imperioso, urgente. Não gostava de perder. De um tapa ele pôs a um lado um telescópio de bronze.
- Ouviu-me, caramba?
Na realidade não o tinha ouvido. Heath tinha se virado, distraindo-a. Observou-lhe o perfil aquilino iluminado pelo sol. Estar aí com outro homem lhe aumentava o desejo de estar com ele. Que menino mais desavergonhado foi essa noite. Sentia dolorido todo o corpo, como uma mulher bem seduzida, bem amada. Decidiu fazer uma visita furtiva à Audrey para receber mais lições. Aparentemente Heath valorizava seus conhecimentos.
- Disse algo, Russell?
- Sei que se fizeram amantes. Não o negue.
Agitou um papel diante de seu rosto, lhe bloqueando a vista do patife que adorava. Santo céu, era o panfleto com a caricatura satírica de Heath Boscastle nu diante de uma chamejante carruagem antiga. O
maldito desenho se negava a morrer.
- Poderia apostar - continuou Russell mais acalorado ainda - que riu a minhas custas por isso. Pode explicar?
Arrebatou-lhe o panfleto.
- Não.
- Mas é sua obra?
Ela contemplou o desenho, o magnífico corpo de Heath, todo músculos e tendões bem cinzelados.
- Ele é obra de Deus - disse, suspirando admirativa - É magnífico, não é?
Saltou um músculo no maxilar de Russell.
- Magnífico? Reconhece, então que você fez esse asqueroso desenho?
Ela esboçou um sorriso vago, misterioso, mas não lhe respondeu.
Sua atenção voltou a concentrar-se em Heath. Ele começou a andar para a casa, movendo os estreitos quadris com essa agilidade e elegância de cavaleiro que a fazia reter o fôlego. Conhecia muito bem o que ele sabia fazer com esses quadris. Desejou que o fizesse nesse mesmo momento. Eram tantos os anos que tinha perdido de seu amor que a chateava desperdiçar esse tempo em romper corretamente seu compromisso.
- Olhe para mim Julia - ordenou ele com seu amedrontador tom de soldado.
Ela o olhou. Era um homem atraente, um homem ambicioso, não de tudo mau. Ou não muito ruim. Estava claro que a atraíam os homens diabólicos. Mas Russell não era seu demônio; jamais o tinha sido. Por sorte se salvou de casar-se com ele.
Ele arqueou uma sobrancelha, aparentemente satisfeito por ter chegado a ela.
- Assim está melhor. Agora tenho sua atenção. - Agarrou-lhe o queixo em sua mão calosa - Os Boscastle são uma família sedutora. Sei que esse patife a tentou. Sei o difícil que é resistir a eles. Quando estava crescendo desejava mais que nenhuma outra coisa fazer parte de seu mundo.
Ela engoliu em seco , sentindo compaixão por ele a seu pesar.
Russell foi criado por uma tia negligente, que não lhe deu carinho, pois
seus pais morreram quando ele era bebê. Levando em consideração suas circunstâncias, tinha-lhe ido bem, lavrou-se uma boa vida. A implacável ambição e o árduo trabalho o tinham levado longe. Mas ele nunca se conformaria com o que tinha conseguido. Nunca teria suficiente riqueza, aplausos e mulheres, que satisfizessem sua natureza inquieta. Ela tinha aceitado casar-se com ele por motivos errôneos: porque se sentia sozinha, porque lhe estava agradecida por sua ajuda e apoio. Nesse tempo não sabia, nem sequer o sonhava, que Heath a estava esperando.
- Foi minha primeiro - disse ele então, com uma nota de desespero na voz.
- Não - disse Heath, entrando na sala. Em seu rosto não havia traços de compaixão nem de perdão. - Primeiro foi minha. - Apoiou as costas na porta e cruzou os braços - E você a traiu. Só você tem a culpa.
Pediu-me que a protegesse, e a protegi. De você.
Russell olhou para ela, desdenhoso.
- Assim foi como a seduziu para levá-la a sua cama?
- Não seja tão idiota para ofender assim, Russell - disse ela, indignada - Tem uma amante. A julgar pelo estado em que se encontra, dedicou-lhe muito mais atenção que a mim.
Ele encolheu os ombros, desconcertado.
- Todo homem de minha posição tem uma amante. Boscastle correu para lhe dizer isso suponho?
- Não, mas tomara me houvesse dito isso.
Russell lhe pôs as mãos nos ombros, ao que parecia decidindo que deveria provar com outra tática.
- Sou eu o ofendido. O homem ofendido.
Heath avançou para ele, com a mandíbula apertada.
- Tire as mãos de cima, Russell.
Russell obedeceu imediatamente, com o que Julia respirou
aliviada. Ante o aspecto que tinha Heath nesse momento, com expressão dura e inflexível, sem dúvida era prudente obedecer.
- Não posso me permitir o escândalo de um duelo - disse Russell friamente - Provavelmente já estou desonrado. Auclair me levou a uma busca inútil quando aparentemente esteve em Londres todo o tempo.
Minha noiva e meu amigo me desonraram...
- Nos deixe sós, por favor - disse Heath a Julia.
Ela olhou para Russell, mas ele não a olhou nos olhos. Estava claro que ainda não sabia que Auclair estava morto, que tinha perdido sua oportunidade dourada para mais aclamações. Saber que Heath lhe tinha tirado isso também não melhoraria o humor.
- Não sei o que lhe dizer, Russell - falou.
Ele riu sem humor.
- Necessitarei tempo para refletir sobre isto.
Uma sensação de alívio a avassalou.
- Acabou-se. Espero que saiba aceitar como o aceitei eu.
***
Heath se apressou a fechar a porta uma vez que Julia saiu. Tinha-lhes dado todo o tempo que necessitavam para romper o compromisso.
Não queria que ela estivesse perto desse homem nenhuma só vez mais.
Supunha que Russell tentaria manipulá-la, se é que não fez certa chantagem emocional para lhe forçar a mão. Mais que qualquer outra coisa, Russell tinha sofrido um duro golpe em seu colossal orgulho.
Recuperaria-se, mas não com Julia a seu lado; não a merecia. Não lhe daria a oportunidade de fazer as pazes com ela.
- Auclair morreu - disse, sem preâmbulos - Eu o matei.
Russell o olhou atônito.
- O que?
- Veio aqui - disse Heath, e o olhou um momento em silêncio, pensativo - Parece que era a mim a quem mais desejava castigar.
Esticou-se a boca de Russell em um desagradável gesto depreciativo.
- Você o matou? Ou seja, inclusive isso me arrebatou? É todo um herói.
- Sabia que desejava me matar?
- Escapou a sua vigilância e ele estava louco. Não se pode achar um motivo nos irracionais. Não havia nenhuma lógica em sua loucura.
- Ah, é assim simples?
Russell se virou para a janela.
- Como diabos vou saber eu o que se propunha o bastardo? Era um louco. Esqueceu o que lhe fez? - Virou-se para olhá-lo, desafiando-o com o olhar - Eu não o esqueci. Estava meio morto quando te encontrei.
Estava virtualmente louco.
- Ao que parece esqueci algo mais que isso - disse Heath, balançando a cabeça - Auclair assegurou que eu matei a sua irmã.
Os ombros de Russell se retesaram, esticando o tecido de sua jaqueta de montar. Assentiu, sem olhá-lo.
- Não vi nenhum motivo para lhe recordar isso. Atuou em defesa própria, e não sabia o que fazia. Ela era francesa, depois de tudo, e simulou que ia ajudá-lo. Também tinha uma pistola. Matou-a antes que o matasse ela. Ou ao menos isso pareceu.
Heath tentou formar uma imagem do que tinha ocorrido. Recordava o corredor coberto, com colunas em arco; recordava ter lavado o rosto ensanguentado em um poço de água gelada; recordava-se correndo, tropeçando; recordava como sentia fracos os músculos. Recordava quando Hamm o pôs em pé e o firmou, e depois os intermináveis saltos sobre a carreta que estralava por um caminho cheio de sulcos e gelo.
Mas matando a uma jovem? Isso não conseguia nem concebê-lo.
- Que importância tem isso agora, por certo? - disse Russell, em tom objetivo, tranquilo - Era a guerra. Não havia nada que fazer. O
problema agora é como solucionar o escândalo que você e Julia armaram.
- Teve a oportunidade de ganhá-la para você - disse Heath, olhando-o com descaramento - Jogou e perdeu.
- Isso parece - disse Russell aridamente - Uma mulher se pode substituir, mas o dano a minha carreira é irreparável. Auclair tinha que ser meu. Voltei para meu país com as mãos vazias e ainda por cima me fazendo de idiota.
- Talvez não - disse Heath, e guardou silêncio um momento - Tenho uma sugestão, um trato entre cavalheiros, se lhe parece. Não me interessa a glória nem a honra por ter pego Auclair, mas quero a Julia.
Russell o olhou fixamente, com a boca curvada em um amargo sorriso.
- Auclair por Julia? Propõe-me uma troca?
- Ainda ninguém sabe de sua morte fora desta propriedade. Dentro de uma hora se informará às autoridades.
Russell não respondeu, mas Heath viu que tinha tomado a decisão.
Dessa maneira Russell salvaria sua imagem, dando a impressão de que tinha sacrificado sua vida pessoal por seu país.
Ele se encarregaria de proteger Julia do escândalo. As fofocas sobre seu romance começariam a se dissipar no dia em que se casassem. Os membros da alta sociedade os aceitariam. Que eles lhes devolvessem o favor estava por ver-se.
Russell se agachou para recolher o panfleto que tinha deixado cair sobre o tapete.
- Viu isto?
Heath olhou o papel e reprimiu um sorriso; depois levantou a vista e olhou a Russell francamente.
- Sim.
Russell balançou a cabeça.
- Não me diga que posou para este desenho.
- Pois, na verdade, sim, posei. - limpou a garganta - Foi para uma obra de caridade.
***
Heath chamou Drake para que discutisse com Russell os detalhes da entrega do cadáver de Auclair às autoridades. Ele não queria envolver-se. Preferia procurar Julia. Já estavam livres, os dois; ele se sentia livre de uma escuridão em que tinha vivido tanto tempo que já tinha se convertido em parte dele. Há um tempo para a prudência e um tempo para o desmando. Um tempo para a guerra, e um tempo para o amor.
Subiu correndo a escada e tomou o corredor que levava a seu quarto. Frente à porta estava Hamm, montando guarda, tal como lhe tinha ordenado; tinha uma expressão sombria em seu rosto fino e marcado de varíolas.
- Espera-me lady Whitby? - perguntou-lhe.
- Sim, milorde, mas... poderia falar com o senhor a sós antes que entre para visitá-la?
- Passa-se algo?
- Tenho que fazer uma confissão.
- Se caiu outra bandeja, não se incomode em dizê-lo.
- Dei minha palavra de que não diria nunca. Sir Russell era meu superior, como o era o senhor. Fez-me jurar que guardaria o segredo.
Heath olhou para a porta do quarto de Julia.
- Isto parece mais sério que uma bandeja quebrada. Continue, Hamm, por favor.
Uma expressão de aflição escureceu o rude semblante do homem.
- Deixou-o em pé ali junto ao cadáver da mulher para que os outros homens o vissem e pensassem que o senhor a tinha matado. Perdoe-me. Não era minha intenção ouvir a conversa entre o senhor e seus
irmãos ontem à noite.
- Sabia sobre a irmã de Auclair?
- Lembro-me de ter visto essa jovem no convento. Nesse tempo não sabia quem era. Não acredito que sir Russell o tenha acusado nunca francamente de havê-la matado. Simplesmente não o rebateu quando pensaram que o senhor tinha feito. Ninguém falou nunca disso até agora.
Heath engoliu em seco, sentindo aliviar-se sua alma de outro peso.
- Quer dizer que Russell a matou?
- Eu não o vi fazê-lo. Só posso supor que ele reagiu em defesa própria e depois lhe deu vergonha reconhecer. O senhor chocou com ele quando soou o disparo. Milorde o senhor estava tão mal, em tão má forma, que eu poderia tê-lo convencido de que eu era o rei.
- Já passou, Hamm, já passou. Deste-me mais consolo do que imagina. Obrigado.
- Advertiram-me que nunca falasse sobre isso.
- Não se voltará a falar.
Capítulo Trinta e um
Na manhã do dia seguinte, Julia encontrou Heath no final do corredor da ala da torre. Parecia tão extraordinariamente bonito e descansado com fraque e calça cinza que um observador inocente não teria adivinhado jamais que tinham feito amor em todas as posturas possíveis ao longo dessa noite.
Na realidade, só fazia uma hora que se separaram.
- Está excepcionalmente formosa esta manhã - disse ele, lhe agarrando o braço, como se não acabasse de vê-la nua na banheira e logo a ajudado abotoar a blusa.
Ela alisou a saia de seu vestido de manhã de algodão creme.
- Sinto-me excepcionalmente aturdida pela atividade noturna.
- Sugiro que comecemos a nos fortalecer. Esperam-na anos dessa
atividade.
Começaram a descer a longa escada de braços dados.
- Novamente, não foi uma queixa.
Ele curvou os lábios em um sorriso.
- Um elogio, então?
- Envergonha-me reconhecer que sim - disse ela em voz baixa, olhando para frente.
- A paixão não é algo do que deve envergonhar-se, Julia, e menos quando é entre marido e mulher.
- Ainda não estamos casados.
- Estaremos muito em breve.
- Nada nos impedirá desta vez, não é verdade? - disse ela, parando ao pé da escada.
- Não. Por que acha que tinha Hamm vigiando seu quarto?
Atraiu-a suavemente para seus braços e a beijou, com os olhos brilhantes de amor.
Ela soltou um suspiro de satisfação.
- Há mais pessoas na casa.
- Não vejo ninguém.
- Eu as ouço.
Ele levantou a cabeça.
Chegavam sons de vozes provenientes do salão oval. Julia não sabia identificar nenhuma nem que disso dependesse sua vida; os beijos de Heath a distraíam muito.
Passou-lhe as mãos pela nuca e o atraiu mais para ela. Sempre acreditou que ele fosse valente e honrado, mas essa noite tinha visto sua alma. Sua beleza não estava apenas na superfície.
- Temos que parar isto - murmurou, rindo.
- Por quê? - disse ele descendo as mãos por seus flancos; notou que ainda tinha a pele quente pelo banho. - Quer voltar para cima?
- Acabamos de descer.
- Ninguém nos viu - disse ele, já subido no primeiro degrau e puxando-a para que subisse.
- Julia! Heath! - gritou uma retumbante voz masculina da porta do final do vestíbulo. - Pensamos que ficariam na cama todo o dia.
Heath soltou um suspiro e Julia retirou a mão de seu pescoço.
- Bom dia, Gray. E obrigado por sua sutileza.
- Bom dia? Já é passado o meio-dia - replicou Grayson. -
Estávamos a ponto de nos sentar para almoçar. Acompanham-nos ou têm outros planos?
- Bom - disse Heath - sim, temos planos. Planos de casamento.
Grayson começou a rir.
- Não me surpreende absolutamente, e me alegra muito. Permitam-me que seja o primeiro em lhes dar minha bênção?
***
Heath desejava casar-se o antes possível, dentro de duas semanas, se isso desse tempo para dispor de tudo. Julia estava de acordo. Tinham esperado anos para estar juntos.
Desta vez não se arriscaria a que nada atrapalhasse sua felicidade.
Sua futura cunhada Jane não cabia em si de felicidade, e prometeu ajudar da maneira que pudesse.
Hermia expressou sua preocupação de que duas semanas poderia ser pouco tempo para preparar tudo bem. Mas esta objeção foi descartada graças ao comentário de Emma, viscondessa Lyons, a irmã de Heath: "É tempo mais que suficiente para que estes dois provoquem outro escândalo. Minhas alunas continuam falando dessa caricatura".
De qualquer modo, Julia e Heath estavam de acordo em que o casamento tinha que ser uma discreta cerimônia no campo. Bom, todo o discreta que pudesse ser tendo uma mansão transbordando de familiares Boscastle: irmãos, irmãs, parentes políticos, tios, tias e um
exército
de
revoltosos
primos,
que
demonstravam
que
era
absolutamente impossível diluir a paixão que corria por seu sangue. E
para que iria querer tentar isso alguém?
O casamento foi celebrado em um sábado pela tarde na pequena capela da propriedade do marquês de Sedgecroft no campo.
Heath, já vestido e barbeado, foi apareceu à janela da galeria de cima, onde o estava esperando seu irmão mais velho. Lançou um olhar às carruagens que formavam fileira no caminho de entrada e lhe perguntou, irônico, se tinha esquecido de convidar alguma pessoa de toda a Inglaterra.
- Achei que detestasse casamentos - acrescentou, quando Grayson se reuniu junto à janela.
- Detesto. Mas este não é meu casamento. É você quem tem de enfrentar ao pelotão de execução. Eu já cumpri meu dever, obrigado. E
vivi para contá-lo.
- Santo Deus - exclamou Heath ao reconhecer a mulher miúda com um vestido de cetim de viva cor verde que estava agitando a mão para eles de uma carruagem que estava chegando.
- Essa é Audrey Watson. Convidou uma cortesã para meu casamento?
- Eu não. Julia a convidou.
- E você permitiu?
- Bom, não é meu casamento.
- Ainda não há sinais de Drake?
- Ah, sim. Enviou uma mensagem dizendo que se atrasaria um pouco. Um duelo o reteve.
Heath sorriu.
- E Devon?
- Levou duas damas para dar um passeio pelo bosque. Suspeito que elas tinham ouvido falar de uma infame caverna. Recorda-a?
- Com vivos detalhes.
Grayson riu.
- A lenda continua viva.
- Hesito em perguntar... Onde está nossa querida e ditatorial Emma?
- Dando conselhos não solicitados aos ignorantes dos usos sociais
-respondeu Grayson em voz baixa. - Por isso estou escondido aqui.
- Eu não posso me esconder - disse Heath, tirando as mãos dos bolsos. - Tenho que assistir um casamento.
Desceram a escada. Abaixo o estava esperando Emma, mulher de fina estrutura óssea, com cabelos cor de damasco e ouro, olhos azuis e um coração de guerreiro.
- Ah, apareceu. Compreendo que tenha se escondido, depois de publicar esse panfleto para que o vissem todos os homens, mulheres e crianças do país.
- Alegra-me vê-la, Emma - disse Heath, arrumando a gravata.
- Eu não me alegrei tanto de vê-lo desenhado dessa maneira em um papel impresso - murmurou ela, levantando as mãos para arrumar as dobras da gravata. - Felicitações, patife - acrescentou, sorrindo indulgente. - Estou feliz por você, e me sinto horrorosamente orgulhosa.
O marquês tinha ordenado que decorassem os jardins além do interior da casa para a recepção que seguiria ao casamento. O tempo estava temperado embora não muito quente, pela ligeira brisa que soprava. A orquestra particular de Sedgecroft estava tocando em uma discreta clareira rodeada por samambaias; em todos os atalhos estavam apostados empregados com galões dourados para oferecer bolos e champanha. Do imaculado estábulo saíram os puros sangues adornados com rosetas de seda branca para desfilar pela propriedade.
A cerimônia transcorreu sem nenhum incidente nem imperfeição. A noiva usava um conjunto de saia de seda branco nata e blusa de rendas
de Bruxelas da mesma cor sobre um corpete interior branco pérola.
Luvas longas de pelica branca e sapatos de cetim branco completavam o traje. Seu véu de noiva estava preso por uma grinalda com botões de rosas entrelaçados com folhas de hera. Não levava pistola, como informou depois um diário.
O noivo vestia um fraque azul escuro de dupla abotoadura sobre camisa de cambraia branca e colete bordado também branco e calça negra justas. Estava tão absolutamente bonito que Julia teve que recorrer a toda sua força de vontade para manter quietas as mãos.
Devon estava sentado no meio de um grupo de damas que riam de cada palavra que ele dizia. O marquês de Sedgecroft estava ao lado do noivo, como padrinho; sua mulher, Jane, estava sentada ao lado de uma de suas tias no primeiro banco do lado oeste da capela. Junto a elas estavam sentados Hermia e Odham, sem conversar; brigaram durante o café da manhã, mas concordaram apresentar-se juntos em público, por Julia.
Lorde Drake Boscastle entrou na capela mais ou menos um minuto antes que começasse a cerimônia, acompanhado por uma voluptuosa jovem a que ninguém reconheceu. O visconde Stratfield apareceu com sua formosa esposa de cabelo azeviche, Chloe, e ela estava junto à noiva como dama de honra enquanto ele observava a cerimônia de um banco, embora em nenhum momento desviou o olhar dela. Emma também estava perto da noiva, como dama de honra, pois amavelmente insistiu em que dado que Jane estava esperando ao herdeiro da família não seria apropriado que fosse dama de honra.
Audrey Watson moveu a cabeça, melancólica e aprovadora, quando Heath pegou meigamente Julia em seus braços para beijá-la.
- Patife - murmurou. - Outro Boscastle que partiu meu coração. -
Passou o olhar pela abarrotada capela e lhe iluminou o rosto ao ver os dois irmãos mais novos presentes, cumprindo devidamente sua
obrigação. - Ah, bom. Sempre há esperança, não é verdade, Drake?
- Isso depende a que se refere, Audrey, se ao altar ou a uma aventura.
- Que libertino é, Drake Boscastle - exclamou a jovem que o acompanhava. - Não é capaz de se comportar nem sequer em uma cerimônia de casamento?
Ele olhou para Heath e esboçou um sorriso malandro:
- Não é meu casamento, graças a Deus.
Elevaram-se murmúrios de felicitações em toda a capela quando o padre declarou marido e mulher ao casal. Julia sentiu fechar-se a forte mão de Heath ao redor da dela, enquanto os assistentes se levantavam para aclamá-los.
- Agora não pode escapar - disse ele em voz baixa, lhe afastando o véu da face.
Ela o olhou nos olhos.
- Isso vale para você também.
- Já não se libertará nunca de mim. Está feito, querida.
Ela segurou o fôlego. Custava acreditar que ele era por fim seu; que ela era a esposa de Heath Boscastle.
Já estavam rodeados por convidados que quase se chocavam com eles. Manteve sua mãos firmemente presa, inclusive enquanto beijava devidamente suas irmãs, tias e primas. Naturalmente seus irmãos tentaram passar entre eles beijando-a na face.
- É minha - disse Heath, educadamente, afastando-a. - Busquem as suas.
- Não vai soltar alguma vez sua mão? - brincou sua prima Charlotte Boscastle.
- Não - disse ele, arrancando-a dos braços de Devon.
A refeição se celebrou no salão de banquetes formal. O baile que seguiu continuou até a noite no salão de baile com céu em cúpula, ao
ritmo da música que tocava um quarteto na galeria de cima.
Julia nunca ouviu tantas risadas em toda sua vida, e seu som lhe aquecia o coração. Sua infância e adolescência tinham sido muito solitárias.
Heath contemplou a celebração do alto da escada, com a cabeça de Julia apoiada em seu ombro; tinha levado-a durante uma valsa.
- Com quanto tempo contamos antes que percebam que partimos?
-perguntou ela.
- Dias. Devon fez todos brindar com exceção do jardineiro.
- Pelo menos deveríamos ter lhes dado boa noite.
- Acredite. Sou um perito em me fundir com a paisagem. Não sentirão nossa falta.
Fiel a sua palavra, sete minutos depois já estavam fechados com chave no quarto da torre. Na lareira ardia um fogo baixo. Sobre a mesa havia duas garrafas de champanha e uma bandeja com finas fatias de presunto, pão e diminutos bolos franceses.
Heath se despiu, tirando a camisa e a calça, enquanto Julia estava sentada na cama bebendo champanha; observava-o com crescente desejo, admirando os musculosos contornos de seu corpo, essa elegância masculina natural que nunca deixava de lhe alvoroçar os sentidos. Champanha e seu marido; a combinação lhe subiu à cabeça.
- Simpático casamento não é? - comentou, engolindo a saliva quando ele avançou para ela.
- Isso pensei.
- Nós dois demos uma amostra de nosso melhor comportamento.
- Até agora.
Ajoelhou-se diante dela e lhe tirou os sapatos e as meias rosa, de passagem lhe separando as pernas. Ela desceu a vista para olhar a expressão sardônica e um desejo desatado lhe acelerou a respiração.
- Vamos voltar para nossos costumes de antes?
Ele subiu à cama para lhe desatar os laços do espartilho francês fechado nas costas.
- Naturalmente. Está muito desejável esta noite, lady Boscastle.
- Olhe quem fala.
Tirou-lhe o espartilho, liberando os seios, deitou-a de costas e se inclinou sobre seu curvilíneo corpo.
- Ouvi excitantes rumores a respeito de você.
Ela fechou os olhos enquanto ele subia a mão por seu quadril até lhe apertar um seio.
- Todos são verdadeiros, por desgraça. Não posso negá-los.
Rodando ele se colocou em cima dela e lhe cobriu a boca com a dele.
- Negá-los? Esperava que os demonstrasse.
Pôs as mãos no peito e seguiu com as pontas dos dedos os contornos de seus músculos.
- Isso é o que tinha pensado? - perguntou-lhe, com a boca em seus lábios.
- Seria fabuloso para começar. Mas, por favor, me permita.
- Permitir-lhe...?
Pegou-lhe os pulsos em uma mão, subjugando-a da maneira mais erótica. Ela tentou se soltar provando sua força; ele aumentou a pressão e desceu a outra mão por seu quadril até introduzi-la na quente fenda do ventre. Só lhe roçou aí com as pontas dos dedos, em sedutora promessa. Ela se abriu para ele, com o corpo vibrante, exigindo mais, lhe suplicando em silêncio que lhe fizesse o pior.
- Por favor - murmurou.
- Minha amantíssima esposa, acaba de começar nossa noite de núpcias. Não quero precipitá-la.
- Nossa noite de núpcias - murmurou ela. - Me parece que faz muitíssimo tempo que sonhava com isto.
- De verdade, Julia? Então acredito que tínhamos o mesmo sonho.
Ela riu de prazer.
- O que pensariam as pessoas se ouvissem Heath Boscastle confessar, o professor consumado do autodomínio, que sonhava casar-se com a mulher que atirou nele?
- Confesso que não me importa o que pensa alguém de fora desta casa.
Ela o olhou sorrindo-lhe meigamente.
- E não se importa por Russell ter ficado com sua glória?
Ele soltou um longo suspiro.
- Glória. Não há nenhuma glória em matar, só paz, talvez, por saber que Auclair já não pode voltar a nos ameaçar. Que Russell seja um herói o tempo que lhe dure.
Deus sabe que eu não desejo os aplausos.
- Russell nunca foi meu herói - disse ela, sorrindo-lhe.
- Não?
- Sempre foi você. Talvez devesse lhe ter dito o que sentia por você.
Ele negou com a cabeça.
- Deveria ter contado.
- Posso lhe dizer o que sinto agora?
Sorriu-lhe peralta.
- Sei exatamente o que sente.
- Então...
- Nossa noite de núpcias é uma experiência que quero que desfrutemos plenamente os dois.
Cumpriu sua palavra.
Acariciou-a, levando o prazer a todos os lugares secretos de seu corpo. Excitou-a até o ponto de ficar tremendo, desesperada, desequilibrada de necessidade. Entregou-se a ele, aceitando cada
carícia até que lhe pareceu que estalaria em pedacinhos se não lhe desse alívio. Ele a acariciava por toda parte, mas não onde mais o necessitava.
Negava-se a se apressar; ela já estava molhada de ânsia por dentro.
- Doce - sussurrou ele, lhe agarrando um mamilo entre os dentes. -
Malandro - acrescentou, levantando as pernas e passando-as por cima de seus potentes ombros. - Minha deliciosa, Julia. Obrigado por aceitar a se casar comigo.
Agarrou-lhe firmemente as nádegas com a mão livre e investiu, penetrando-a até a base do pênis. Ela ficou imóvel um instante; bastava-lhe simplesmente senti-lo.
Então seu corpo o acolheu com uma paixão igual a dele. Ele flexionou o corpo ao afundar-se nela novamente e ela arqueou os quadris apertando-se a ele e gemendo de prazer.
Heath lhe soltou as mãos e lhe oprimiu o coração de emoção ao sentir suas carícias. Acariciou-lhe as cicatrizes do peito e logo passou as mãos a suas costas, lhe apalpando os músculos e deslizando as pontas dos dedos por suas nádegas, exigindo com seus movimentos que a penetrasse mais forte, mais profundo.
Ele contemplou seu rosto, submerso no amor e paixão que via em seus olhos. Jamais tinha olhado alguém nem amado a outro ser humano como a amava a ela. Tinha-lhe liberado o coração para poder entregá-lo tal como foi sua intenção em outro tempo.
Voltou a lhe pegar as mãos e entrelaçou os dedos com os dela.
Desejava estar unido com ela de todas as maneiras possíveis. Jogando atrás a cabeça, investiu com força; ela respondeu com sensual desenvoltura, lhe apertando o membro com os músculos interiores.
Quando o ardor da paixão, o desejo e o prazer corriam por seu sangue quase queimando-o, perdeu o autodomínio. Continuavam com as mãos
entrelaçadas quando chegou a liberação do orgasmo, e o coração lhe retumbou tão forte que mal podia respirar.
- Que formosa é - disse, fechando os olhos, avassalado por sua própria liberação. - Minha mulher - acrescentou com a voz rouca, espessa. - Meu amor.
Depois que ele ejaculou, ela continuou debaixo dele, enredada nos lençóis, com o rosto apoiado em seu ombro. Continuaram abraçados vários minutos, satisfeitos, saciados, sem nenhum desejo de interromper esse momento. Ela se sentia querida e protegida, avassalada pela gratidão ter se encontrado novamente.
Quando ele falou, foi como se tivesse lido o pensamento.
- Nunca achei que alguma vez pudesse me sentir tão feliz como me sinto agora.
Beijou-lhe a cabeça e passou os dedos por entre seu abundante cabelo avermelhado que lhe caía pelas costas.
- Eu tampouco.
Ele levantou levemente a cabeça.
- Escute. Ouve isso?
Ela abriu os olhos e começou a rir.
- É a orquestra de seu irmão; estão tocando fora da torre.
- Deveria estrangulá-lo - disse ele, sorrindo.
- Não em nossa noite de núpcias, por favor.
- Bom argumento. Farei pela manhã.
***
Umas horas depois, esse mesmo irmão enviou um empregado com outra bandeja com comida e bebida, com a ordem de deixá-la discretamente fora da porta da torre.
Heath não se moveu. Pôs um robe e estava junto à lareira desenhando a sua mulher nua com apaixonada concentração.
Julia olhou para a porta.
- Não deveríamos pelo menos agradecer a todos nossos convidados?
- Isso também pode esperar até a manhã. Grayson os convidará a ficar. Coloque a perna direita sobre a cama, querida. Incline-se um pouquinho. Levante o cabelo.
- É um patife incorrigível, Heath Boscastle. Esta é uma postura vergonhosa.
- Não de onde estou eu.
- Posso lhe perguntar por que o faz?
- Para lhe devolver o favor, meu amor. Está mal que um homem desenhe a sua mulher?
Ela deixou cair o cabelo às costas.
- Não vai publicar?
- Não me insulte. É um presente de casamento.
Ela o olhou séria por cima do ombro.
- Não quero particularmente um desenho de meu traseiro de presente. Pérolas, sim. Diamantes, talvez. Mas um desenho... de mim despida...
Ele moveu o cavalete em que estava desenhando e contemplou seu desenho com os olhos estreitos.
- Muito bonito. O que disse? Ah, o presente. É só para desfrutá-lo eu. Um presente para mim, se quiser.
- Não quero - replicou ela, endireitando as costas. - Quer dizer, não quero posar.
Ele se aproximou por trás e lhe passou os braços pela cintura.
- Eu posei para você.
Ela se virou entre seus braços, sem fazer o menor esforço de afastar-se.
- E observe o problema que causou.
- Meu desejo - disse ele em voz baixa - é que possamos nos causar mutuamente problemas todo o resto de nossa vida.
- Acredito que pode contar com isso - sussurrou ela.
Jillian Hunter
O melhor da literatura para todos os gostos e idades