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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NOITE DE SÃO BARTOLOMEU - P.2 / J. W. Rochester
A NOITE DE SÃO BARTOLOMEU - P.2 / J. W. Rochester

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

 

O ATENTADO

Na sexta-feira, 22 de agosto, quando Coligny estava voltando para casa e calmamente passando em frente a São Germano, houve um disparo de uma janela. A bala arrancou o dedo indicador da mão direita do Almirante; um segundo tiro lhe atravessou a mão. Alguns senhores da comitiva de Coligny acorreram em sua direção, mas o Almirante, sem qualquer inquietação indicou a janela de onde tinham vindo os tiros dizendo:

— Previnam o Rei.

Conduziram o ferido ao pequeno e sombrio hotel, onde ele morava. No mesmo momento saíram em busca de Ambrósio Pare, que não largou mais o Almirante até a morte deste.

A notícia sobre o atentando se espalhou com assombrosa rapidez pela cidade. Os protestantes de toda parte acorreram ao chefe de seu partido. Entre eles se encontravam também Armando e Raul. Foram os primeiros a saber do atentado, pois o hotel deles era perto da residência do Almirante.

Quando os dois entraram, Coligny estava pálido e abalado, recostado na poltrona. Pare tinha acabado de lhe amputar o dedo ferido e se ocupava da outra mão. Alguns amigos que seguravam o doente choravam amargamente, mas o Almirante nem sequer piscava, cumprimentando com leve sorriso os dois irmãos. Ele disse:

— Isso ainda é uma graça de Deus!

— Sim, Almirante. Agradecemos a Ele. Ele é o Salvador, respondeu Armando, profundamente emocionado.

Todavia a evidente tranqüilidade do Almirante não se repartia entre os rostos dos que o rodeavam. Os cavalheiros reunidos, fervendo de ódio e sanha decidiram sobre quem a culpa do atentado recairia. Uns acusavam abertamente Catarina e o Duque d'Anjou, outros acusavam Henrique de Guise. Um deles afirmava que tinha encontrado Cheplin se dirigindo à casa de Guise e indo com uma pessoa mascarada lembrando o Príncipe de Lorena e Maurevert. Ambos iam para São Germano, de onde foi feito o disparo.

— Verdade, eu não tenho inimigos, exceto os Guise, mas não afirmo que o ataque tenha sido conduzido por eles, observou Coligny.

— Eles, e ninguém mais, cometeram este ato infame! Eu, agora mesmo, ficarei na chefia de alguns destacamentos de confiança e prenderei estes miseráveis no próprio hotel, comunicou um impetuoso jovem.

Algumas cabeças quentes imediatamente se uniram à dele, mas Coligny severamente os proibiu de qualquer violência.

Foi nesse momento que chegaram os marechais Damville, Cossc e também Teligny[1], então, neles se concentrou o interesse geral.

— Sua Majestade tem conhecimento do que aconteceu? perguntou Coligny inclinando a cabeça, cumprimentando os que tinham chegado e procurando se informar sobre a saúde do Rei[2].

— Como! Eu mesmo estava com o Rei quando chegou esta fatal notícia, exclamou Teligny. Nesse momento nós jogávamos com o Rei e Guise[3]. Sua Majestade ficou terrivelmente emocionado, em pé, parado como se estivesse petrificado. Depois, rapidamente, voltou a si e deu ordens que o Marechal informará ao Senhor. Foi ordenado que todos os católicos que moram aqui perto devem sair.

Mesmo os nossos não podem se reunir ao redor do Senhor ou protegê-lo de qualquer novo atentado.

— Para que tudo isso? A palavra e a proteção do nosso querido Rei são melhores do que mil boas lâminas, disse Coligny; apenas eu ficaria muito contente e feliz em ver Sua Majestade.

Damville e Teligny no mesmo instante se ofereceram para transmitir a Carlos IX o desejo do ferido.

Entre os protestantes a agitação estava aumentando e a cada instante chegavam pessoas armadas. Logo o pequeno hotel e todas as ruas vizinhas estavam cheias. Na multidão se comentava em tom alto sobre os culpados do delito, espalhando-se maldições e ameaças. Propunham-se tomar diversas medidas. Queriam levar o Almirante de Paris, ou dar ao Rei queixa de Guise, a quem acusavam desse crime[4].

Prometeu dar um exemplo severo[5]. Por fim ele ordenou que lhe mostrassem a roupa do Almirante e durante muito tempo examinou a manga ensopada de sangue.

Coligny agradeceu emocionado ao Rei, recebendo com frieza e cortesia comedida as condolências de Catarina e de seu querido filho. Após a conversa política durante a qual o Almirante expressou as queixas e acusações e deu alguns conselhos, ele pediu ao Rei para se abaixar e sussurrou algo em seu ouvido:

— Não se esqueça, Senhor, minhas advertências. Se o Senhor valoriza a vida, tenha cuidado!

Diante destas palavras seu olhar cortante se dirigiu à Rainha e ao Duque d'Anjou, com uma expressão que significava que era impossível de se enganar.

O Rei empalideceu e, tremendo, endireitou-se.

— Eu não esquecerei suas palavras. Repito, meu pai, seu ferimento para mim representa desgosto e ofensa. Mas eu me vingarei de tal forma que se lembrarão para sempre.

Terminado este terrível juramento, ele levantou a mão, sendo que seus olhos brilhavam de raiva, voltando-se para o rosto pintado e feminino do irmão.

Nesse momento a Rainha-Mãe colocou a mão no ombro do Rei e calmamente disse:

— Já está na hora de irmos, Carlos; meu filho está muito irritado e está inquietando o Almirante. Não se deve forçar um doente falar tanto.

O Rei ficou triste, pensativo e se retirou. O Duque d'Anjou ficou ainda mais alguns minutos para conversar amigavelmente com o Almirante e informou-o que ordenara à guarda-real ficar ao redor de sua casa, dando proteção. Certamente ele se absteve de acrescentar que havia designado como chefe da guarda um inimigo mortal do

Almirante...

Madrugada e dia seguinte, 23 de agosto, passaram em febril agitação. Rumores alarmantes circulavam pela cidade; uns contavam que os protestantes queriam degolar Henrique de Guise, outros acreditavam que o Duque de Montmorancy[6] tinha saído com o séquito de Paris, buscando reforço e voltaria com grande destacamento de

cavaleiros e huguenotes e atacaria matando católicos. Com isto os habitantes e as Irmandades aos poucos se armavam, esperando apenas o sinal para se atirar sobre os protestantes. Mas faltava ainda o mais importante - o consentimento do Rei.

Eram cerca de oito horas da noite. Na pequena sala de estar contígua ao dormitório, Carlos IX estava sentado à mesa[7], sorumbático e pensativo. Diante dele a mesa de xadrez com as peças derrubadas; o Rei girava nervosamente o cabo do punhal ou acariciava uma grande faca de caçador que estava em seus joelhos. Atrás da cadeira real, caladas, estavam algumas pessoas da corte. Foi aí que o pajem soergueu o reposteiro e Catarina de Médicis entrou no quarto. Um véu ainda mais negro destacava ainda mais a palidez de seu rosto. Um áspero e ao mesmo tempo indeciso olhar dela percorreu o quarto. Indo em direção ao Rei, ela lhe disse em voz baixa:

— Preciso falar com o Senhor, Carlos.

— Vão embora, senhores; se precisar, chamarei, disse o Rei com gesto ríspido, liberando os cortesãos. Depois, voltando-se em direção à Rainha, acrescentou de modo rude, diga o que de importante a senhora tem para me dizer?

— O Senhor precisa agir bem rapidamente, meu filho, destruir os huguenotes, antes mesmo que eles o liquidem.

— Não me faltam inimigos, além dos huguenotes! Conheço príncipes católicos que matam desprezando as minhas ordens. Mas eu lhes ensinarei a respeitar a minha vontade! disse Carlos de forma violenta.

— O Senhor, Majestade, está se referindo a Guise? Disse a Rainha, sendo que seu olhar perturbado evitava o olhar do filho. Mas há algumas horas eles humildemente nos declararam que estão abatidos com a calúnia e a desgraça; imploram-lhe que os deixe partir...

— Mas como? Eu lhes respondi que podem partir, que eu saberei encontrá-los, se isto for necessário para a justiça.

— Senhor! Senhor! Não se deixe levar e não persiga os Príncipes Católicos e a Santa Religião. Os huguenotes audaciosamente desprezam o Senhor e estão convocando esforços, levantando cidades. Se o Senhor não agir, os católicos mesmo começarão a agir e encontrarão um chefe. O Senhor, Carlos, ficará sozinho e não encontrará um só lugar na França para onde fugir.

O Rei saltou da cadeira e deu algumas voltas pelo cômodo. Depois, passando em frente à Catarina, perguntou ironicamente, com raiva:

— Oh! Que conselho traiçoeiro! A mulher cristã exige mortes e massacres de inocentes! A senhora acredita que apenas isso é necessário para o meu bem?

A Rainha corou e nos seus olhos havia um brilho odioso.

— Oh! Eu reconheço nessas palavras a influência maldita do huguenote que o está envenenando com boatos e desviando o Rei das pessoas mais próximas. Que mulher infeliz eu sou! Por que eu não voltei para Florença e morri calmamente lá, não chegando até este dia fatal?

Subitamente ela se endireitou e acrescentou com raiva:

— Este inferno de desconfiança ele infundiu no Senhor ontem, quando lhe falou no ouvido. Diga, Carlos, o que lhe falou? Eu quero saber.

O Rei se voltou, não falando sequer uma palavra, mas Catarina prosseguia insistindo, ora com súplica, ora com indignação, para que ele lhe dissesse o que o Almirante tinha lhe falado ao ouvido.

Não considerando a irritação e a forte agitação, o Rei se recusava a falar, mas de repente ele exclamou:

— O que ele disse? Trate de saber, se for possível. Ele disse que todo poder passou para as mãos da senhora e que ficarei muito mal.

Dando-lhe as costas ele saiu para seu aposento, batendo a porta com força.

Pálida, com os lábios tremendo, Catarina se apoiou na mesa, franziu as sobrancelhas e se pôs a pensar.

É preciso acabar com isso, não desperdiçando tempo - eliminar Coligny, senão ele me matará e também ao Duque d'Anjou[8].

Abrindo a porta silenciosamente, ela perguntou ao pajem se Gondi[9] estava e ordenou que o chamassem imediatamente.

Passados dez minutos entrou no quarto um italiano velho. E começou entre eles uma conversa a meia-voz. Ela disse:

— Saiam imediatamente. Gondi, de que maneira poderia persuadir o Rei? É indispensável conseguir agora mesmo as ordens dele, assim como eu devo mandar a última ordem a Guise e Mareei[10] .

Todo minuto é precioso. Abalado e aflito, com os nervos tensos, o Rei andava pelo dormitório como um leão na jaula. O aspecto de seu antigo e pálido preceptor, com expressão de medo no rosto, provocou em Carlos uma desagradável impressão. Ele sentia que a luta ainda não estava terminada e se largou numa poltrona.

Lembrando o movimento das cobras, o italiano se aproximou dele, curvou-se no encosto da poltrona, com voz baixa mas convincente, pôs-se a persuadir o Rei de que lhe era imprescindível agir, não perdendo tempo, pois os huguenotes estavam em tal desespero que não apenas acusavam Guise, a Rainha e o Duque d'Anjou, como também acreditavam no consentimento dele, o Rei, e tinham decidido nessa noite pegar as armas. Gondi via que para Sua Majestade havia um grande perigo; era ameaçado pelos protestantes e pelos católicos de Guise. Em todo caso sua situação era muito perigosa. A família do Rei era acusada (e não completamente sem fundamento), assim como a Rainha e o Duque d'Anjou, de ter feito o atentado e de querer se vingar do Almirante pela sua ofensa pessoal.

O Rei empalideceu tragicamente. Quando Gondi acrescentou que o povo tinha se armado e era preciso lhe dar qualquer vítima, ele passou a mão pela testa úmida e exclamou:

— E, a propósito, eu proibi a quem quer que seja pegar em armas.

O medo o tinha contagiado. O medo do italiano, seu tremor visível e a figura irritante causavam efeito na natureza exaltada e impressionável de Carlos. Ele, pelo visto, enfraqueceu e não fez nenhuma objeção quando Gondi começou a lhe recordar os memoráveis massacres semelhantes à Noite Siciliana[11] (62) e a desenhar toda a grandeza política do ato que exigiam dele.

Catarina silenciosamente soergueu o reposteiro e perpassou em direção à poltrona real, na qual estava sentado o Rei, com os olhos fechados. Em seu rosto desfigurado se lia claramente uma trágica luta.

— Carlos! murmurou a Rainha, inclinando-se em sua direção - seja homem! Não destrua a si e à França com a fraqueza criminosa; o Senhor deve dar esta satisfação a seus súditos católicos.

Carlos estremeceu e se endireitou:

— Todos meus súditos possuem o mesmo direito da minha proteção, disse com voz rouca. Os huguenotes reuniram-se aqui acreditando na minha palavra real e nos tratados, e eu devo dar o sinal para o assassinato de Coligny, para o massacre de milhares de inocentes!... Quantas vidas eu devo carregar em minha consciência? Devo manchar minhas mãos de sangue e sacrificar meu nome na maldição de seus descendentes? Não! Isto é demasiado!

— Acalme-se, Carlos! Não se esqueça de que você condenou os cães heréticos e nosso Santo Pai, o Papa, enviou ao Senhor a permissão para tudo fazer pela grandeza de nossa religião[12]. O assunto atual da justiça do Rei, a qual oscilava entre o terrível crime e a pressão já se exercendo sobre ele. Indeciso e vacilante, mergulhado numa tristeza mortal, olhava para o crucifixo.

De repente Catarina colocou a mão em seu ombro e murmurou:

— Em que está hesitando? Deus está lhe dizendo através dos lábios de Seu Servo e está mostrando o caminho para o bem da Santa Igreja e glória de Cristo. O tempo urge e estão esperando a decisão do Senhor. Cada minuto perdido pode arruinar a sorte desse grandioso assunto. Amanhã mesmo, quando amanhecer, o momento exato já terá passado.

O Rei se levantou e tirando a mão da Rainha de seu ombro, vacilando, encostou-se na parede. O rosto pálido se cobriu de manchas vermelhas e os olhos se injetaram de sangue. Assim, ele prorrompeu numa estridente risada e estendendo a mão ao crucifixo, exclamou com voz rouca:

— Vós estais calado, Cristo, portanto estais concordando; assim, então, todo esse sangue será derramado em vosso nome.

Ele foi para seu aposento e disse, dirigindo-se a Gondi e à Rainha que o seguiam:

— Eu me rendo. Mande a ordem de matar Coligny e os huguenotes.

Vacilando como um bêbado, esgotado, deixou-se cair na poltrona e gritou:

— Vinho! Dêem-me de beber!

Passado um minuto, o pajem lhe deu uma taça; com a mão tremendo febrilmente, esvaziou-a de uma vez. Depois ordenou seguidamente que a enchesse.

Catarina e o Conselheiro saíram desapercebidamente do quarto.

 

CARTA COMPROMETEDORA

Desde o atentado contra Coligny, Diana vivia nervosa e preocupada. Tudo o que se falava no Louvre era pouco animador para os huguenotes. As conversas no hotel de Montfort também não eram nada tranqüilizadoras. O perigo que poderia ocorrer a seu noivo num conflito sangrento afligia o coração meigo da moça; ela desejava imensamente deixar Paris, onde se sentia como num vulcão. Movida pela preocupação, Diana se dirigiu na manhã de 23 de agosto à casa do Duque de Nevers para saber as novidades do dia.

Quando subia as escadas encontrou o Duque de Guise descendo os degraus apressadamente, com a mão no bolso. Seguramente levava algo muito precioso. O Duque, distraído, se inclinou à jovem, cumprimentando-a. Para Diana pareceu que algo o comprometia. Realmente, alguns degraus acima ela viu uma carta caída no tapete. A moça a apanhou para devolvê-la ao Duque, mas este já havia sumido. O pedaço de papel estava amassado como um velho pergaminho e ela não lhe atribuiu nenhum significado.

Colocando-o no bolso, intencionou devolvê-lo à Duquesa de Nevers[13]. Todavia esta estava cautelosa, preocupada e taciturna como nunca antes estivera.

Achando que poderia mudar a sempre alegre e sorridente Condessa, Diana esqueceu completamente o bilhete.

Já que a Duquesa se queixava de uma forte dor de cabeça, Diana apenas a cumprimentou e foi ao encontro de Clemência.

Esta, também, estava triste e preocupada. Aproximadamente às seis horas Armando e Raul voltaram da casa do Almirante e falaram da visita que o Rei fizera ao ferido.

Os dois estavam satisfeitos e contentes. Disseram estar o Rei deveras indignado, que havia prometido mostrar pulso firme no caso do atentado e seu relacionamento com Coligny era esplêndido.

Finalizando afirmou que podiam ficar tranqüilos. Estas palavras convenceram Diana e logo ela e Raul, numa conversa carinhosa, esqueceram tudo o que não se referisse aos dois. Depois o rapaz acompanhou a noiva ao próprio Louvre e retornou para casa.

Quando a Rainha foi se deitar, Diana se retirou aos seus aposentos pedindo a Gabriela que lhe tirasse a roupa e preparasse seu cabelo para dormir. Feito isto, se deitou. No entanto, como não queria dormir ainda, começou a conversar com a camareira que arrumava as coisas.

— Onde quer que coloque esta carta, mademoiselle? perguntou Gabriela, tirando do bolso o bilhete perdido por Guise.

— Dê-me e aproxime a luz, disse a moça.

Ela olhou o endereço: a carta era destinada ao Duque. Tomada de curiosidade, Diana abriu o bilhete e leu o seguinte:

"Caro Duque!

Apesar do meu forte desejo não foi possível vê-lo hoje.

Quero lembrá-lo de sua promessa: aproveitar-se desta noite para me livrar do meu importuno marido.

Agradeço antecipadamente, amável e grandioso Henrique, pela liberdade que haverá de me proporcionar.

Esta será uma verdadeira dádiva real, daquelas que somente você sabe dar".

Assustada, Diana fixou seu olhar demoradamente na assinatura de "Marion". Era o nome da esposa infiel do Visconde de Beauchamp, e conhecida amante do Duque de Guise.

Mas seria possível que ela planejasse o assassinato do marido e que o Duque a ajudaria nesse plano terrível?! Repentinamente, profunda tristeza tomou o coração da moça. O que significava essa estranha frase "aproveitar-se da noite de hoje"! Acaso algo se preparava contra os protestantes?

Mil sons de alarme começaram a ecoar em sua mente. Não estando em condições de adormecer, levantou, ajoelhou-se e começou a orar ardentemente.

Entrando silenciosamente, Gabriela interrompeu a oração de Diana. Esta perguntou:

— Estou aqui. De que você precisa?

— Senhorita, o Sr. René, perfumista da Rainha Mãe está agora à porta e me deu este pacote. Disse que isto é a pomada encomendada pela senhora e ficaria feliz se experimentasse agora mesmo sua qualidade.

— Hora estranha escolheu ele... notou Diana, tomando maquinalmente o pacote nas mãos.

— Sim, Senhorita, é uma hora da manhã[14]. Contudo hoje ninguém consegue dormir no Louvre. Lodri, como sabe, é da mesma aldeia minha, me disse que pelo visto algo está sendo preparado. Com o Rei de Navarra se reuniram trinta ou quarenta senhores discutindo ardentemente.

Diana, mal ouvindo esta fala, impaciente, tomou o embrulho e abriu a lata de faiança[15]. Com a pomada havia um fino papel de pergaminho. A moça o tomou e, completamente apavorada, leu o seguinte:

"Diga a seu noivo para fugir ou se esconder. Faça isso sem perder um só minuto, ou será tarde. Nesta madrugada todos os huguenotes serão assassinados. Destrua o bilhete". Diana se sentiu petrificada.

Tremendo de pavor, ordenou a Gabriela vesti-la o mais rapidamente possível. Enquanto a camareira lidava com a saia e a abotoava, Diana pensava em como agir. A tão altas horas não era nada fácil sair do Louvre, e arriscar-se a ir sozinha pelas ruas era quase um perigo de morte. Apesar disso, não hesitou um segundo. No momento, o mais importante era sair do Louvre. Para avisar Raul e os parentes, ela arranjaria um jeito de entrar no hotel Montfort.

Quando Diana se aprontou, tomou a camareira pela mão e se livrou do bilhete. Pediu a Gabriela não abrir a porta a ninguém além dela, e se lançou à procura do Sr. de Nancy, capitão da guarda, sempre amável com ela e grande admirador de sua beleza. Diana contava com ele para escapar do Louvre. Conseguiu achar o Sr. de Nancy sem dificuldades. Ela se aproximou dele ofegante e trêmula dos pés à cabeça - qualquer atraso numa ocasião em que os minutos eram contados agravavam seu desespero.

Ao ver a jovem vestida sem cuidados, despenteada e pálida como um defunto, lançando-se desesperadamente em sua direção, o oficial se assustou. Seu espanto aumentou ainda mais quando Diana, com lágrimas nos olhos, lhe implorou tirá-la do Louvre.

— O que tem na cabeça, senhorita? Onde vai sozinha de madrugada? Uma mulher não pode se arriscar a sair a uma hora dessas...

Diana nada respondeu, apenas ergueu as mãos juntas em súplica. No seu olhar brilhava tamanha súplica, desespero e angústia que o valente capitão ficou comovido.

Ele lembrou que o noivo dela era huguenote e não teve dúvida de que a moça estava ciente do que se preparava. Como numa guerra civil o derramamento de sangue desperta asco, sentiu compaixão e pena da moça e resolveu ajudá-la a salvar seu noivo de boa família.

Pelas profundas convicções do Sr. de Nancy, houve muita bondade nesse ato.

— Vamos, disse ele decidido. Eu autorizarei a saída e para sua segurança ordenarei a um soldado acompanhá-la até o hotel Montfort, onde, penso, deseja se dirigir.

— Obrigada! Que Deus o pague pela sua bondade! disse Diana, apertando fortemente a mão do valente capitão.

Dez minutos depois, Diana, coberta com uma capa preta, saía à rua acompanhada de um velho soldado, armado dos pés à cabeça.

As ruas estavam vazias e silenciosas, as casas hermeticamente fechadas.

Diana chegou ao hotel Montfort sem encontrar uma única alma viva. O hotel estava fechado e envolto na escuridão. Era evidente que todos estavam dormindo. Aflita, impaciente, Diana começou a pensar em como entrar na casa. É claro que ela podia bater à porta principal acordando o porteiro , mas achou ser perigoso; melhor fazê-lo em silêncio e discretamente.

De repente ela lembrou da portinhola do jardim e da janela da casa do jardineiro dando para a travessa. Passado um minuto o soldado bateu com força na persiana.

Logo uma voz assustada perguntou o que queriam.

— Sou eu, Jacob, Diana de Mailor. Deixe-me entrar. Fique com este soldado. Espere-me, disse ela assim que se abriu a cancela.

Passando como um relâmpago pelo porteiro, ela voou ao jardim.

 

A MORTE DO ALMIRANTE

De outro lado o Conde de Saurmont impacientemente esperava o morticínio que deveria lhe proporcionar a oportunidade de se livrar do detestável oponente.

O atentado a Coligny deu a entender se aproximarem a um derramamento de sangue. Notando uma atmosfera propícia para a realização de seus objetivos, o Conde engajou-se numa febril militância contra os adversários. Encontrou-se com Mareei, antigo chefe dos comerciantes e se certificou de os cidadãos estarem armados. Além disso, por onde o Conde passava, estimulava o fanatismo religioso e o ódio aos huguenotes. No sábado à noite Briand deu o último giro e pôde constatar que todos esperavam apenas um sinal para se lançar sobre os protestantes e para, nos diversos bairros, os grupos dos partidários de Guise se levantarem. Depois se dirigiu ao hotel do Duque, cujo pátio estava repleto de soldados, cada qual levando no braço uma faixa branca como sinal de identificação.

No salão inferior reuniam-se os oficiais e os senhores comandantes dos bandos, entre os quais se encontrava d'Armi, cujo olhar brilhava de cobiça, como se não houvesse dúvida de que o massacre seria acompanhado de pilhagem. No salão se bebia muito, porém sem barulho, já que qualquer ruído e tumulto estavam proibidos até a hora marcada.

Briand conversou um pouco com o Barão e foi ao encontro do Duque. Na companhia deste o Conde encontrou Angoulême, o Duque de Nevers e o alemão Besme, homem suspeito, rude e desconfiado, muito ligado a Henrique de Guise, que gostava bastante dele e o influenciava muito.

Os três estavam inquietos e preocupados. À meia voz conversavam com alguns senhores de sua comitiva. O discurso de Saurmont dizendo que a cidade estava em grande expectativa e sedenta para agir, em honra de Deus, alegrou um pouco Guise e seus amigos. Não obstante, a ordem esperada que viria do Louvre os irritava e preocupava.

Por fim, depois das 11 horas chegou o mensageiro do Duque d'Anjou, trazendo a ordem de agir, uma vez que o Rei concordara.

Henrique de Guise se animou e os demais suspiraram de alívio, já que poucos contavam com o consentimento de Carlos IX.

Acompanhando Angoulême havia numerosa comitiva, da qual faziam parte Saurmont, Besme e o antigo capitão de Coligny - Sorlabon, convertido ao catolicismo e desejoso de assassinar seu ex-chefe, para provar sua fidelidade. Henrique Guise saiu ao pátio e montou na sela. Briand também subiu ao cavalo. O portão do hotel se abriu rangendo. Em primeiro lugar saiu Guise com uma comitiva e um forte destacamento de cavaleiros e, atrás destes, soldados vinham em formação. Com o grito de "Morte aos Huguenotes"! se dirigiram a vários locais da cidade.

O Duque d'Anjou encarregou Saurmont de verificar pessoalmente o assassinato do Almirante. Por isso, apesar de sua impaciência em ir rapidamente aos Montfort para se livrar do detestável oponente, o Conde devia seguir o Duque, que, a trote rápido, conduziu seu destacamento à residência de Coligny. Logo a ruela ficou repleta de soldados. O guarda do Rei, instalado ao lado da casa do Duque de Guise, se juntou a ele. O capitão da guarda, Cossé, inimigo declarado de Coligny, em nome do Rei bateu à porta.

Um dos protestantes, o que abriu a porta, foi no mesmo momento surrado até a morte. Alguns soldados de Navarra tentaram defender a entrada, mas rapidamente foram dominados. Besme arrebentou a porta do quarto de Coligny. O Almirante, com ares de importância, calmamente se dirigiu na direção deles e os assassinos, por um minuto, recuaram. À frente estava Besme que completamente embriagado perguntou rudemente:

— Não é você o Almirante?

— Rapaz, você levanta a mão a um velho ferido, respondeu tranqüilamente Coligny.

Este desprezo gélido caiu sobre o cruel alemão como um golpe de chicote. Dizendo impropérios, lançou-se sobre o Almirante e lhe cravou no ventre o punhal que tinha em mãos. Coligny caiu. Contudo o orgulho despertou no agonizante, indignação por ver a morte chegando não pela ponta de ume espada.

— Oh! Preferia fosse um homem, mas é você um desgraçado! gritou ele inclinando-se ao solo[16].

Fora de si de ódio, Besme golpeou-lhe o rosto, a cabeça, sendo seu exemplo seguido por outros.

Do pátio chegava um ruído de batalha, o tilintar das armas e o rouco gemido dos agonizantes.

— Então, que tal, Besme? Terminou? gritou com impaciência Henrique Guise.

— Feito, Senhor!

Aumâle não queria acreditar enquanto não constatasse com os próprios olhos.

Passado um minuto Besme e Sorlabon apareceram na janela. Ergueram o corpo inerte de Coligny e o atiraram no pátio; devido à pouca perícia do assassino ou porque no Almirante surgisse um raio de vida e resistência, o corpo dele ainda ficou pendurado na janela por um minuto, caindo depois ao solo.

Guise e Aumâle desceram do cavalo e se inclinaram sobre o cadáver, contudo o rosto estava coberto de sangue e desfigurado, tornando o reconhecimento difícil.

— Não obstante é preciso ter certeza, murmurou Aumâle.

Tirando seu lenço, limpou o rosto do Almirante.

— Diabo o carregue! É ele! gritou dando um pontapé no corpo — Cachorro! resmungou Guise, enquanto pisava o rosto do Almirante.

Após isso, virou-se e montou no cavalo. Nesse instante um jovem palaciano abriu caminho entre a multidão e em voz alta disse:

— Ordem do Rei!

A seguir, colocando-se diante do Duque, prosseguiu:

— Pare, Senhor! Vossa Majestade, o Rei e sua Mãe mandam dizer que os proíbem de fazer algo contra o Sr. Almirante. Ordenam que voltem ao seu hotel.

O Duque de Guise deu um sorriso cruel e zombeteiro.

— Diga a Vossa Majestade que estou desesperado e a ordem chegou tarde demais. Já está feito: o Almirante foi morto. Petrucci! Continuou se dirigindo a um dos cavaleiros de sua comitiva - corte a cabeça deste maldito huguenote e a leve ao Louvre como prova do que ocorreu.

Com a destreza de um profissional, o bravo italiano tirou a cabeça do defunto, embrulhou-a num pedaço de tecido, subiu à sela e deixou o pátio.

Enquanto os soldados acossavam com disparos algumas pessoas que escapavam do hotel de Coligny, tentando se salvar pelo telhado, Briand saiu do pátio com um pequeno grupo de soldados. Queria chegar logo no hotel de Montfort, no entanto sua paciência novamente foi colocada à prova. As ruas mudaram de aspecto. A multidão saía em massa de casa e toda essa corrente humana procurava entrar na casa de Coligny para saciar seu ódio e brutalidade, sobre os restos daquele que tanto temiam.

Enquanto o Conde e seu grupo vagarosamente abriam caminho através da multidão, o ar foi cortado pelos sinos da catedral de São Germano. O som penetrante e vibrante fez o Conde tremer involuntariamente.

Ao ser dado o sinal, a violência prorrompeu na cidade. De todos os lados se ouviam disparos, gritos de horror e exclamações de ódio. Embriagados pelo sangue e ávidos de saquear, os soldados de Briand começaram a se dispersar rapidamente. O Conde compreendeu que para manter os soldados unidos não havia disciplina, e, fora de si, tanta raiva sentia, seguiu ao hotel Montfort quase sozinho.

Assim que viu o hotel, percebeu os moradores já terem sido alertados. Atrás dos contra ventos das janelas, cintilavam as luzes e se ouviam gritos e altercações.

— Pare, boa gente! Abram o portão! Esta casa pertence ao Conde de Montfort. Façam um favor a Deus e seu trabalho será recompensado! gritou o Conde para alguns cidadãos e artesãos que, com bandeirolas brancas e armados de lanças, corriam enraivecidos gritando: "Morte aos huguenotes!!!"

A multidão parou e, sob o comando de Briand, tentou arrebentar o portão. Por dentro, contudo, os moradores o seguravam com todas as forças.

De repente se abriram duas janelas no segundo andar e delas começou a cair uma verdadeira chuva de disparos certeiros sobre os assediantes. Acordados pelo ruído, os habitantes das vizinhanças saíram à rua e, na entrada de casa, ou mesmo na janela, eram atingidos pelos disparos, caindo mortos em todos os cantos.

— Socorro! Socorro! gritava Saurmont, cujo chapéu havia sido perfurado por uma bala. Ajudem aos bons católicos que estão fazendo justiça em nome de Deus e do Rei.

Com gritos e impropérios contra os huguenotes que ainda se defendiam valentemente, a multidão duplicou a força, porém debalde: o portão maciço suportava todas as tentativas. Subitamente os assediantes receberam um reforço inesperado, vindo de um pequeno grupo de soldados e aventureiros. Para sua grande alegria, Briand viu no comando dos soldados o Sr. d'Armi.

— Pare! Ajudem-nos a acertar as contas com estes malditos huguenotes que, além de se atreverem a resistir, ainda matam os verdadeiros servidores do Rei! gritou Saurmont, irado.

D'Armi, que mal o reconhecia, ordenou aos soldados ajudá-los. Sob o comando das forças unidas destes possessos, a porta maciça tremeu e logo depois se partiu.

No patamar da escada, barrando a passagem para a sala, havia um bando de empregados armados, pálidos e seminus, por haverem acabado de despertar. Uma voz forte, a dar ordens na sala, fez Briand saltar - era Raul. Depois de desembainhar a espada furiosamente, o Conde já se lançava à frente, quando se deteve no lugar em que estava. Aos seus ouvidos chegou uma voz feminina, pronunciando repetidamente:

— Fujamos, Raul! Unamo-nos a Armando e Clemência! Estes bandidos são superiores a nós.

A voz era de Diana. De que maneira ela veio parar ali?

Agindo rapidamente, Briand sacou do bolso uma máscara e cobriu o rosto. Abrindo caminho por entre os defensores da entrada se esforçava por chegar à sala onde algumas mulheres seminuas e confusas corriam de seus perseguidores.

No fundo do quarto viu Raul de Montfort empunhando uma espada que Diana tentava arrebatar. Os cabelos dourados da moça soltaram-se na confusão. A capa preta, pendurada em um dos ombros, foi arrastada para o chão. Agarrava-se ao noivo que, com o braço livre, a segurava pela cintura.

Ao ver os dois abraçados, a ira e o ciúme quase interromperam a respiração de Briand. Blasfemando, se lançou ao casal de apaixonados e atacou Raul.

Desenrolou-se uma luta desesperada. Mas Diana atrapalhava muito, tanto o ataque quanto a defesa. Atirou-se ao pescoço de Raul e instintivamente defendeu seu corpo com o peito do amado...

O perigo de ferir a jovem paralisou os oponentes. Montfort em vão tentava se livrar dela, quando, de súbito, entrou na sala um homem gritando com desprezo:

— Vejam esse desprezível huguenote! Defende-se com uma mulher!

Surpreso, Briand ergueu os olhos e reconheceu Henrique que todo coberto de sangue se preparava para ajudá-lo. Ao ouvir as palavras provocantes e ofensivas do cigano, Raul enrubesceu de raiva. Recobrando a força, livrou-se de Diana e se lançou ao encontro de Saurmont.

A moça se debatia, porém Henrique a segurava firme e, apesar de todo esforço dela para se soltar, não deixou que se metesse entre os dois.

Diana se debatia nas mãos de Henrique como uma louca. Notando que d'Armi aparecera na entrada do quarto, ela gritou com voz dorida:

— Papai, salve Raul! Ainda que todos morram, que ao menos ele viva!

— Diana! Minha cara criança! gritou o Barão correndo ao encontro da filha.

Vendo que ela não parava de gritar "Salve-o!", o Barão fez um movimento, como se desejasse socorrer Raul. Contudo, nesse mesmo instante, a espada de Saurmont atravessou o peito de Montfort que esticou o braço e caiu murmurando: "Diana!" Após isso, não se moveu mais.

Um grito desesperado, que abalou até os nervos de aço de Briand, escapou dos lábios de Diana. Levando as duas mãos à cabeça, com olhar vítreo e dilatado, por um instante ficou petrificada, vindo a perder os sentidos logo em seguida. d'Armi a segurou. Chamando a filha pelos nomes os mais carinhosos, o triste e indiferente Barão carregou-a nos braços. Henrique e alguns soldados o seguiram.

Estando a sós, Saurmont ajoelhou-se ao lado do cadáver de Raul e a primeira coisa que fez foi tirar dos dedos dele o anel de noivado. A seguir desabotoou-lhe a roupa e retirou um medalhão com o porta-retrato de Diana e lhe cortou uma mecha de cabelos manchados de sangue. Guardou tudo isto, chutou raivosamente o cadáver e saiu do quarto.

Ruídos terríveis, berros e gemidos invadiam toda casa. Mulheres e empregados corriam desnorteados. Matando quem aparecesse em seu caminho, Saurmont se preparava para deixar esse lugar de desespero quando um tilintar de armas, palavrões e o ruído de lutas chamaram sua atenção. Aproximando-se cuidadosamente de uma janela aberta, viu à luz de um archote Armando de Montforte alguns guerreiros que, desesperadamente, se defendiam de uma multidão de cidadãos, soldados e aventureiros componentes da divisão de d'Armi.

Sem se deter para pensar, Briand pulou no peitoril da janela e dali para fora.

— Desgraçados! Bloquearam uma saída secreta por onde estão carregando seus tesouros! bramia um gordo, todo coberto de sangue sacudindo a velha cerca.

Essa saída era constituída de um pequeno pátio interno, ao fundo do qual Saurmont viu um homem carregando nos braços uma mulher desmaiada. Pelos longos cabelos soltos e negros o Conde deduziu se tratar de Clemência de Montfort. Quase no mesmo segundo o homem desapareceu nas sombras. Briand se voltou para o Conde Armando. Este, pálido e decidido, se defendia com valentia, apertando contra si seu filho pequeno que, emudecido de medo, se agarrava à roupa dele. Os atacantes eram em número muito superior para que essa batalha continuasse por muito mais tempo. Um a um caíam os defensores de Montfort. Por fim, o braço cansado de Armando já não aparava os golpes com presteza. Aproveitando-se disso, um dos aventureiros enterrou a espada no pescoço dele. Armando caiu vertendo sangue. O golpe da espada derrubou a criança. Depois disso, os assassinos, com gritos de vitória, deixaram o hotel e saíram à procura de novas vítimas.

Aquele que carregava a infeliz Clemência era Antônio Gilberto, fiel médico dos Montfort. Estava por acaso em casa de Raul quando Diana trouxe, infelizmente muito tarde, as notícias sobre o que estava se preparando.

Voltando ao Louvre, onde havia ido acompanhar a noiva, o jovem Conde, sentindo uma leve dor de cabeça, mandou chamar Antônio. Este veio e lhe ministrou gotas calmantes.

A noite estava maravilhosa, os jovens sentaram junto à janela e começaram a discutir questões políticas palpitantes e a construir planos para o futuro. Os dois homens se distraíram a tal ponto que se esqueceram do tempo.

— Que Deus me perdoe! Parece-me que logo vai amanhecer! exclamou Raul rindo. Deite-se, Antônio, e amanhã durma até tarde.

Ambos se levantaram. Antônio se preparava para fechar a janela, quando perceberam sair da alameda uma sombra que rapidamente atravessou o espaço de areia e em dois pulos ganhou o terraço contíguo ao quarto de Raul.

Em um minuto se ouviu forte batida à porta e uma voz bem conhecida, porém entrecortada pela inquietação gritou:

— Abra! Abra depressa! É assunto de vida ou morte!

Raul deu um salto e abriu a porta. Na soleira estava Diana, pálida como um defunto. Suas pernas se negavam a obedecer e ela teria caído se o Conde não a tivesse amparado.

— Meu Deus! Diana! Você aqui a tal hora? O que aconteceu? perguntou ele muitíssimo agitado.

— Acontece que esta madrugada serão mortos todos os protestantes, respondeu ela, mal se ouvindo a sua voz. Por isso fuja você, seu irmão e Clemência enquanto é tempo.

Isso se refere a sua vida!

— Mas quem lhe contou isso, Diana? Pode ser que seja mentira, disse Raul, com ligeira incredulidade. O Rei simpatiza muito conosco. Hoje mesmo, na casa de Coligny, ele prometeu punir severamente aqueles que realizaram o atentado. Quem, depois disso, ousaria promover um morticínio?

— Meu querido não perca tempo com conjecturas vazias, suplicou ela, confirmando inteiramente as palavras da carta de Marion perdida pelo Duque. Finalmente a estranha agitação reinante no Louvre anunciava algo incomum.

— Não há dúvida de que não planejariam assassinar se não esperassem um massacre. Sendo assim, corra, corra, amparado por todos santos!

O Conde empalideceu.

— Não duvido mais; irei agora mesmo acordar Armando e sua esposa. Porém fugir para onde? Reunir uma escolta e deixar a cidade exigiria tempo demais e aqui onde se esconder?

— Senhor, eu o esconderei, disse se aproximando com rapidez Antônio Gilberto. Naturalmente não será possível deixar a cidade, mas, se conseguirmos chegar ao Sena e encontrar na margem uma embarcação, então todos estarão a salvo. Lá vive meu antigo patrão Gilles. Ele possui uma boa e retirada casinha e é conhecido como bom católico. Provavelmente, na casa dele, ninguém nos molestará.

— Mas vai se arriscar a nos receber?...

— Conheço Gilles e falo em seu nome. Só que se apressem, Senhor, rápido!

Sem responder uma palavra, Raul se lançou ao aposento do irmão.

Assim que ele saiu, Diana, esgotada, sentou-se e prorrompeu em pranto histérico.

— Não chore, senhorita! Com a ajuda de Deus nós os salvaremos, disse Antônio em tom consolador. Agora venha comigo para cima, temos de correr pelos degraus escuros e, através do pátio interno, chegar à travessa. De lá o Sena fica um pouco mais longe do que a partir da margem do Louvre, em compensação é mais seguro.

As palavras de Antônio acalmaram Diana e a convenceram. A moça se levantou e os dois se dirigiram ao primeiro andar. Cada minuto lhes parecia uma eternidade. Do quarto saíram assustados Armando e Raul. Clemência envolvida numa capa saiu atrás deles com a criança que era apressadamente vestida pelo caminho.

Trocando rapidamente algumas palavras, eles se ocuparam dos últimos preparativos para a fuga. Armando começou apanhando um pouco de ouro e outros objetos preciosos, tomando somente aquilo que lhe caía em mãos. Enquanto isso, o cavalariço do Conde acordou os empregados e mandou que se armassem e fechassem as janelas e todas as entradas.

Os fugitivos se preparavam para sair pela escada, quando o ar foi cortado pelo terrível som dos sinos. Todos pararam imediatamente. Ninguém sabia, contudo compreenderam instintivamente que naquela hora da madrugada o badalar era um sinal...

— É o sinal! Agora é tarde para fugir! gritou Diana se apertando, apavorada, contra Raul.

Ninguém a contestou. Todos, inclusive Antônio, estavam petrificados. Logo após se ouviam ao longe disparos, depois, já nas proximidades, gritos, berros e, por fim, debaixo das próprias janelas do hotel, corriam alguns homens urrando: "Morte aos huguenotes"!

— Vamos sair! disse o Conde Armando, o primeiro a voltar a si. Enquanto nós percorremos o caminho até a travessa, as pessoas se defendem e cobrem nossa retirada.

— Sim... vá... disse Raul. Eu ficarei para comandar a nossa gente. A casa é forte e nós, em formação, conseguiremos deter o assédio. Quando vocês já estiverem a salvo, correrei pelo jardim.

Gritos e urros na rua, e também fortes golpes na porta principal interromperam o Conde.

— Salve-se! Vá, Clemência! Fuja com a criança e Diana!... Antônio as acompanhará... Só que coloquem uma máscara. Também ficarei com Raul. Nós somos homens e será menos arriscado se sairmos mais tarde.

— Eu fico com Raul! Sou católica e não tenho nada a temer! Disse Diana.

Tomada por uma tremedeira nervosa, Clemência se apoiou na mesa.

— Também não irei sem você: vamos viver juntos ou então morrer juntos, disse ela baixinho, mas decidida.

— Deus! Toda essa conversa apenas nos está levando à perdição, gritou nesse minuto Antônio.

Tomando a Condessa pela mão, apesar da oposição desta, ele se dirigiu à porta.

— Senhor! Leve a criança até a travessa e eu os conduzirei, se não quer ficar aqui, acrescentou ele.

Sem mais objeções Armando tomou a criança pela mão e seguiu Antônio.

Os golpes e o barulho estavam cada vez mais fortes e as portas começaram a estalar. Os gritos loucos das camareiras, disparos, gemidos dos feridos, aumentavam ainda mais a agitação. Os fugitivos nem notaram que Raul e Diana não os seguiam.

Quando eles saíram ao grande pátio o portão caiu sob o assédio e, gritando, a multidão aramada de lanças, alabardas, machados e armas de fogo, invadiu o pátio, obstruindo a passagem.

Armando sacou a espada e, com ajuda de alguns criados, conseguiu abrir caminho. Apertando a criança contra si, o Conde tentava manter uma distância razoável dos possessos que se lançavam sobre ele.

Para felicidade de Clemência, que ia como uma louca, e não parava de repetir "Solte-me, Antônio, eles não nos seguem!" , ela desmaiou. Aliviado pelo fato de a Condessa cessar a resistência, Antônio Gilberto dobrou os passos e seguiu pelo corredor que conduzia à travessa.

Bastante ofegante, levou sua "carga" até o Sena, deserto nesse lugar. Um pequeno barco, com o qual contava, estava onde previra. Antônio colocou a Condessa no fundo do barco e pegou os remos. Em vinte minutos chegava à casa de Gilles. A redondeza estava vazia e silenciosa, somente ao longe se ouviam disparos misturados aos gritos do povo.

A família do cirurgião estava acordada. O velho recebeu Antônio de braços abertos, e a mulher dele passou imediatamente a cuidar da Condessa de Montfort que ainda não havia recobrado os sentidos.

Depois de Gilles tomar conhecimento do que acontecia na cidade, disse preocupado:

— Vá, meu filho e traga os outros. Estes senhores e sua gente são hóspedes bem-vindos à minha casa onde, certamente, não serão procurados. Grande Deus! Acrescentou ele se persignando - sou bom católico, mas a matança de tantos inocentes me deixa triste e me revolta. O Rei age em nome do Pai eterno e o Senhor não aprova o derramamento de sangue. Não gostaria de estar no seu lugar.

Sem perder um minuto, Antônio voltou ao hotel Montfort acompanhado por dois filhos do cirurgião. Os jovens se colocaram à disposição dele para guardar o barco e, se fosse preciso, para carregar feridos.

Quando os jovens entraram no pátio, se convenceram, no mesmo instante, de que os assassinos já haviam deixado o campo de suas façanhas e se encontravam em outras bandas. O lugar estava em silêncio, mas por todos os cantos havia cadáveres. Antônio ergueu o archote e, com o coração palpitando, caminhou à frente, iluminando os corpos imóveis. De repente, se assustou e se deteve. Numa poça de sangue estavam estendidos o corpo do Conde Armando e seu filho.

— A luz, Goche! disse ele, com voz dolorida. Ajoelhando-se ao lado do corpo, Antônio os examinou cuidadosamente. O Conde Armando estava morto, mas a criança ainda respirava. A mão trêmula de Antônio colocou uma atadura no peito ferido do menino e o cobriu com a sua capa. Depois, tomando o pequeno, entregou-o a seu companheiro.

— Coloque-o no barco, Goche, e diga para Jacques acomodá-lo como se fosse uma taça de cristal. Volte. Pode ser que ainda precise de sua ajuda.

Mas... espere! Lá, junto daquele soldado há dois cidadãos com faixas brancas nos braços. Sem dúvida, este é o sinal característico.

Também temos de levar esta identificação, senão seremos mortos.

Goche colocou a criança no chão e ajudou. seu amigo a tirar os cachecóis brancos de dois mortos e a enrolá-los no braço. A seguir disse:

— Escute, Antônio! Aquele sujeito ali à esquerda não está morto, ele geme..

— Que continue gemendo. Não posso perder tempo com ele, respondeu seriamente o jovem cirurgião, sem sequer olhar para o ferido.

Lançou-se a procura de Raul. Há ocasiões na vida em que um ser humano é incapaz de se impressionar ou sentir horror. A indiferença o estimula a agir quase instintivamente, e somente um golpe profundo no coração o traz de volta à realidade.

Antônio se encontrava exatamente nesse estado. Dominado por uma idéia, indiferente e quase tranqüilamente, andava pelas escadas e quartos pilhados, quando, algumas horas atrás, eram tão luxuosos e tranqüilos.

Sem o menor temor, Antônio virou e revirou os cadáveres que lhe eram tão conhecidos, procurando encontrar seu caro senhor. Começava a ter esperança de que o Conde havia conseguido fugir com Diana para o Louvre, quando, na soleira do grande quarto, viu estendido no chão Raul. Pesaroso, Antônio se ajoelhou e examinou o corpo do Conde. O peito fora varado pela espada, os membros estavam frios e ele parecia morto. Angustiado, o cirurgião soltou as roupas e aproximou seu ouvido do coração.

Subitamente se sobressaltou e seus olhos saltaram faíscas de alegria, pois se podia ouvir um leve bater do coração.

A esperança irracional jamais abandona o coração de um homem, descortinando-lhe a possibilidade que deseja. Antônio não duvidou nem por um instante, que poderia salvar o Conde. Só era preciso levá-lo o mais rápido possível a um lugar seguro.

A mão firme do cirurgião vedou ligeiramente o ferimento com um lenço, e o prendeu com um cachecol. Após enrolar Raul com uma capa, levou-o nos ombros.

Cambaleando, devido ao peso do corpo imóvel, Antônio saiu na travessa esperando que Goche já estivesse esperando, no entanto, ele não se encontrava no local combinado.

A margem estava cheia de gente sedenta de sangue e louca para saquear; com maus olhos e malícia examinaram Antônio e sua estranha carga. Para piorar a situação, o barco também não vinha e Antônio começou a pensar que ele e o Conde não escapariam dali, quando a multidão armada até os dentes, o cercou e uma voz falou em tom de desprezo:

— Ei, bom homem, o que leva aí? Será que não é nenhum huguenote que lhe inspirou piedade?

— Que o diabo leve sua língua! disse com ar ofendido Antônio. Eu sou lá burro para carregar tamanha porcaria! Estou levando um bom católico, ferido por um huguenote canalha, que lhe jogou um vaso de flores na cabeça. Os malditos ainda ousaram se defender!

Todos deram risada, não obstante continuassem a cercar Antônio, Alguém quis ver o ferido, uma vez que a mão deste apresentava uma brancura suspeita. Só Deus sabe como terminaria o episódio se, nesse minuto, Goche não se aproximasse.

— Ei! Deixe esse sujeito! Ele diz a verdade! gritou um velho soldado. Conheço o jovem que veio ajudá-lo. É o filho do cirurgião Gilles, um bom católico. Garanto que ninguém da família dele estenderá a mão para salvar um maldito huguenote.

Alcançando finalmente o barco, Antônio suspirou aliviado. Enquanto seus companheiros contavam como haviam sido atacados por um bando de saqueadores hostis que queriam tirar a criança de Goche, obrigando-os a se afastar um pouco mais, o jovem cirurgião lavou o rosto das duas vítimas e umedeceu os dois curativos, aliviando os feridos.

Por fim chegaram à casa de Gilles. Com a ajuda do velho, os feridos foram levados a um quarto e colocados nas camas. Agora os dois médicos podiam examiná-los de maneira mais adequada.

O menino ainda tinha chance de sobreviver, mas quanto a Raul, Antônio, como cirurgião, não se podia enganar: restavam-lhe apenas algumas horas de vida.

Com o coração oprimido, o servo fiel se sentou à cabeceira do leito e se pôs a meditar. Pensamentos súbitos o dominaram completamente.

— Beber! balbuciou o ferido.

Antônio se inclinou e, depois de lhe dar uma bebida fresca, disse baixinho:

— O senhor quer ver Diana?

O rosto pálido de Raul imediatamente readquiriu vida, de seus olhos apagados saíram faíscas de alegria.

— Não se preocupe! Irei agora mesmo ao Louvre e, aconteça o que acontecer, trarei Diana, disse energicamente Antônio.

Quando ele se preparava para deixar o quarto, a porta foi aberta com força e, afobadamente, entrou a Condessa de Montfort. Sem sequer perguntar sobre a sorte do marido, a infeliz mulher se atirou ao filho. Caindo de joelhos, enlaçou as mãos dele e, desesperada, se pôs a escutar a respiração difícil e frouxa do menino.

Lágrimas escorreram dos olhos de Antônio e ele imediatamente deixou o quarto. O coração do médico estava cheio de indignação e ódio pelos culpados do terrível massacre de tantos inocentes.

 

A DESPEDIDA

Com a pistola em uma mão e a espada na outra, Antônio forçou passagem pela multidão de assassinos e vítimas até a residência do Rei, no palácio.

Sob a opaca luz da aurora, as poças de sangue, os cadáveres e os feridos estirados no solo tornavam a visão das ruas ainda mais terrível.

Defronte ao Louvre se aglomeravam muitas pessoas. Antônio ouviu dois soldados contarem alegremente que o próprio Rei atirou de sua janela[17] em dois huguenotes malditos, sacramentando dessa forma a liquidação dos inimigos da Igreja Católica[18] huguenotes que haviam se mudado para o palácio há alguns dias atrás, a convite do Rei; e até os guarda-costas do Rei de Navarra e do Príncipe de Conde tinham sido mortos.

— Oh! O Rei é traiçoeiro, cavalheiro sem honra: assassina seus hóspedes depois de haver dividido com eles o pão e os ter abrigado sob seu teto! Que seja amaldiçoado pelos séculos! Tomara que todo sangue, que todas as vidas que pereceram clamem a Deus por vingança e caiam sobre ele! disse Antônio contendo com dificuldade as lágrimas de ódio e dor.

Não foi com menos dificuldade que ele conseguiu se orientar e achar, por fim, o aposento de Diana. Bateu várias vezes na porta sem ser atendido e começava a se desesperar quando, atrás da porta, ouviu passos e uma voz assustada perguntar:

— Quem é?

— Sou eu, Antônio Gilberto. Abra já, Gabriela!

O ferrolho foi imediatamente aberto, mas assim que o jovem cirurgião entrou, a camareira cuidadosamente fechou a porta, apesar de suas mãos tremerem muito e estarem quase sem controle.

— A Srta. Diana está em casa? Preciso vê-la com urgência! disse Antônio.

— Está. O Sr. Barão a trouxe desmaiada, mas agora voltou a si. Está no vestiário. Oh, Sr. Gilberto, o próprio Deus o trouxe! Temos um ferido. Ela se inclinou e acrescentou a meia-voz: "No Louvre mataram tanto quanto nas ruas..."

— Não tenho tempo de cuidar dele, minha cara Gabriela, no entanto verei o que posso fazer. Terei de ser breve.

O vestiário era um quarto grande onde havia guarda-roupas e cômodas. No chão se encontrava um rapaz estendido sobre um leito improvisado. Ao seu lado havia um vaso com água e um maço de ataduras. Na cabeceira, sentada sobre uma mesinha e com o rosto entre as mãos estava Diana, desesperada e angustiada.

Antônio parou indeciso. Deveria ele dizer que Raul ainda estava vivo, para depois fazê-la passar novamente pela sensação da perda? Por outro lado - teria ele o direito de privar o agonizante de sua última alegria - ver a criatura que mais amou no mundo e que esperava, contando cada segundo? Não! Isso não poderia fazer.

Tendo decidido agir, rapidamente se dirigiu à moça e, tocando levemente seu braço, disse:

— Senhorita! O Conde Raul deseja vê-la antes de morrer. Estará em condições de se manter tranqüila e de se controlar, para ir comigo?

Diana se endireitou no mesmo instante. De tudo o que havia dito o médico, ela compreendera apenas que Raul estava vivo.

— Ele vive! Oh claro! Leve-me até ele. Mas rápido, rápido! repetiu ela, correndo pelo quarto e pegando uma capa que se encontrava na mesa ao lado.

— Senhorita! repetiu Antônio, tomado por profunda preocupação ao vê-la tão insensatamente alegre. Senhorita! O ferimento do Conde é mortal... suas horas estão contadas.

— Não importa! Está vivo e neste minuto isso é que é importante. Vamos depressa! disse Diana impaciente.

— Nesse caso procure vestir uma capa mais simples. Seria melhor que vestisse uma de sua camareira. Uma mulher de sua posição não pode andar a pé pelas ruas a esta hora.

— Gabriela, dê-me uma de suas capas!

— Já que o Sr. Antônio está aqui não poderia ele examinar o ferido? indagou a camareira vertendo lágrimas.

— É verdade, Antônio. Enquanto eu me troco, examine o pobre René de Beauchamp. Também o acertaram, apesar de ser católico.

Deveras surpreso, sem entender como o Visconde tinha vindo parar ali, Antônio se aproximou do leito improvisado e examinou o doente. René recebera uma punhalada no peito, causando profundo e perigoso ferimento. Além da gravidade da ferida, havia perdido muito sangue e estava esgotado. Antônio, rapidamente, fez um curativo e deu a Gabriela as instruções indispensáveis de como cuidar do ferido até que ele retornasse. Depois partiu com Diana, movido de pressa e impaciência.

O dia já começava e eles, sem qualquer empecilho, saíram do Louvre. Mas, o caminho até a casa de Gilles estava repleto de perigos. Grupos de bandoleiros perambulavam ainda por toda cidade, e disparos continuavam a ser ouvidos. Precavendo-se de serem atingidos num tiroteio, Antônio escolheu as ruas mais vazias e de aspecto menos repugnante, pois as vias cheias de gente também estavam repletas de cadáveres; aliás, Diana não prestava atenção em nada e corria tanto, que o jovem cirurgião teve de refreá-la, para que não chamasse a atenção.

Quando finalmente chegaram à casa de Gilles, este comunicou não haver ocorrido mudança no estado do ferido.

A pedido da Condessa, Jacques e Gilles tinham ido ao Hotel Montfort para buscar o corpo do Conde Armando que haviam escondido na adega.

Antônio pediu à Diana que esperasse enquanto ele preparava o doente. Raul cochilava, mas quando o médico se aproximou, abriu os olhos no mesmo instante e murmurou:

— E Diana?

Antes que Antônio pudesse responder, a moça se lançou à cabeceira da cama e ajoelhada disse:

— Eu estou aqui, Raul!

No rosto do agonizante surgiu uma intraduzível expressão de alegria e amor.

— Diana! disse ele segurando levemente a mão dela. Como agradecer a Deus por ele nos ter proporcionado a oportunidade de estarmos juntos num momento tão importante!

Depois de notar que Diana se sufocava em soluços, ele acrescentou:

— Esforce-se em se tranqüilizar, minha querida, e com humildade cristã, supere aquilo que Deus nos manda.

Diana não respondeu e continuou chorando, apoiando a cabeça nos braços do Conde.

— Onde está meu irmão? perguntou o rapaz, um minuto depois. Compreendo, ele me preveniu - disse ao ver Antônio, abaixando a cabeça em silêncio. E Clemência, e o

filho?

Ao ouvir a pergunta, a Condessa, sem tirar os olhos do leito do menino, levantou e se aproximou do Conde imediatamente:

— Estou aqui, Raul, perto de você; é o que sobrou do valoroso nome Montfort; Luciano está ainda vivo, mas não sei se sobreviverá...

— Sim, sim! Deus será piedoso e o conservará para você, disse o Conde, olhando carinhosamente para o pálido e belo rosto da Condessa, agora com o semblante cheio de ódio.

— Hoje comecei a duvidar da misericórdia celestial; não poderia eu duvidar também de Sua justiça? Respondeu ela em tom grave e pausado. A partir de hoje só terei uma oração: vingança. Aos nobres, ao maldito Rei e a todos aqueles que imaginaram esse terrível morticínio. Que conheçam de perto as palavras "olho por olho, dente por dente". Assim como as vítimas de hoje, que eles sejam mortos covardemente pelos punhais dos assassinos! Quanto mais a Condessa se inflamava, mais seus olhos brilhavam. Em sua roupa branca, manchada de sangue, ela lembrava um dos espíritos destruidores descritos no Apocalipse.

— Oh! Não é preciso esperar a Justiça de Deus! Eu mesmo, diante de todo Louvre apunhalarei o detestável Rei que zomba dos sentimentos humanos! gritou Diana, com ardor.

— Silêncio, pelo amor de Deus, minha cara! As paredes também têm ouvidos. Clemência está certa em acreditar naquilo em que disse. Ele se vingará por nós!

Tomado por súbita fraqueza, o Conde se calou e cerrou os olhos. As duas mulheres amedrontadas se inclinaram sobre ele. Um gemido do filho fez com que a Condessa se afastasse e Diana ficou sozinha com Raul, seguindo desesperada as mudanças na face do amado.

Decorreram algumas horas de terrível suplício moral; Raul agonizava e sofria muitíssimo. Diana se agarrava a este resto de vida, corno um afogado se agarra a uma palha. Parecia que a moça se imantara ao que lhe restara do noivo, impedindo a alma dele de cortar os últimos laços que o ligavam a ela. Não conseguia morrer e ao mesmo tempo não podia viver.

Pálido, com a voz alterada, Antônio Gilberto andava triste entre as duas mulheres, cuja felicidade e futuro foram destruídos em uma noite. Quando trocou a compressa, o Conde lhe tomou a mão e, fixando nele o olhar cheio de sofrimento e reprovação sussurrou:

— Antônio! Estou sofrendo demais. Se não pode me salvar, então me deixe morrer... se é um verdadeiro amigo...

Lágrimas caíam dos olhos de Antônio, triste e calado; apertou as mãos de Raul aos seus lábios. A seguir foi à caixa de remédios, preparou um forte narcótico e o deu ao doente. O Conde bebeu sedento e, quase momentaneamente, seu rosto deformado adquiriu a habitual expressão de serenidade.

— Oh! Como eu me sinto bem! Agradeço, meu bom Antônio, e você, minha amada, beije-me pela última vez...

Tomada pelo desejo impulsivo, que nunca abandona o coração humano, Diana abraçou o noivo e uniu seus lábios aos dele. Não notou que o belo rosto de Raul adquiriu a palidez da morte e seu olhar se tornou vítreo.

— Ore a Deus, Senhorita, e com a humildade de uma verdadeira cristã, incline-se ante a vontade do Senhor: o Conde Raul uniu-se ao irmão nos céus.

Só então ela percebeu que apertava conta si um corpo sem vida. Por um minuto ficou imóvel, com o olhar desnorteado e os lábios semi-abertos. Depois, calada, desmaiou nos braços de Antônio.

Saindo do Hotel Montfort, Briand se uniu à divisão de d'Armi que se encontrava então sem guia, desde que o Barão levara a filha ao Louvre. Saurmont trabalhava escrupulosamente matando todos os que caíssem em suas mãos e quem ele julgasse ser huguenote. Toda sua crueldade era despertada ao som dos tiros e do tilintar das armas. O cheiro e a cor do sangue o embriagavam. Sentia-se bem em meio a essa tempestade, entre os berros de fúria e os gritos de pavor das mulheres que eram atiradas das janelas, e os estalidos das portas e vidraças sendo arrebentadas.

Pouco a pouco o cansaço passou a dominar o Conde, que por fim deixou seus companheiros de chacina. Além disso, se tornara muito difícil o movimento pelas ruas, pois se via obrigado a caminhar lentamente entre os feridos, ou a escorregar pelas poças de sangue.

A luz do dia, por não esconder nada do que se ocultava nas trevas, revelou um retrato da cidade ainda mais horrível. Viam-se por todos os cantos restos de cadáveres deformados à faca, já que o fanatismo selvagem buscou até mesmo nos ventres maternos os inimigos da religião.

Depois de se cansar de matar e andar de um lado para outro com fome, Briand resolveu voltar para casa. Só antes desejando ver o oponente assassinado e se certificando de ele estar realmente morto. Assim, seguiu para o hotel Montfort.

A visão da casa, antes tão luxuosa e tranqüila causava uma impressão desapontadora. As portas estavam destruídas e as janelas arrebentadas. Cadáveres com os crânios partidos ou com o peito perfurado se espalhavam pelos degraus. A sala onde há poucas horas havia travado luta com seu rival fora o palco da batalha mais cruel.

Os móveis estavam destruídos, os cortinados rasgados e arrancados, e pelo chão se espalhavam pedaços de estátuas e de valiosos vasos.

Aqui e ali havia dúzias de corpos, mas Briand estava interessado somente em Raul.

Surpreso e inquieto, Saurmont percorreu toda casa que apresentava sinais evidentes de pilhagem. Os cômodos e armários estavam vazios £ as gavetas reviradas. Perto do guarda louça havia garrafas quebradas, pedaços de pratos e cacos de louça. Nos dormitórios reinava o mesmo caos: roupas masculinas e femininas, travesseiros e cobertores estavam manchados de sangue e em montes se esparramavam pelo chão. Em algumas camas jaziam cadáveres, bem como na ruela que, em vão, poderia ter sido uma via de fuga.

Por não encontrar o corpo de Raul, em lugar nenhum, o preocupado Conde saiu ao pátio, onde havia uma grande quantidade de mortos; porém, nem Armando, nem o filho se encontravam. Sumiram!

— Estranho! Quem pôde apanhar tão rápido três cadáveres? Eu sei, com certeza, que o irmão mais velho caiu aqui, resmungou Briand, inclinando-se para apanhar um objeto manchado de sangue.

Era uma touca de veludo com uma pena branca, enfeitada com um valioso "agrafe" de esmeraldas e brilhantes. Depois de pensar um minuto, o Conde pegou a jóia e a colocou no bolso.

— É pena que tão precioso objeto caia nas mãos de um qualquer, acrescentou ele.

Pensativo e sem vontade, o Conde voltou para casa onde surpreendeu d'Armi cochilando tranqüilamente no divã de seu gabinete.

À frente do Barão, na mesa, havia algumas jóias de ouro e objetos de grande valor. O Barão, intencionalmente, empenhou-se em fazer fortuna naquela noite. Pela impressão ditosa e o sorriso na sua cara inchada e suja de sangue, podia se ver facilmente não apresentar ele o mínimo remorso.

Briand o sacudiu com força. Queria saber o que tinha acontecido com Diana; mas nada era capaz de interromper o sono do Barão João. Às perguntas do Conde, d'Armi somente respondeu monossílabos incompreensíveis e novamente, como uma massa imóvel, caiu no divã. Cansado de tentar despertá-lo, Briand o deixou em paz.

O Conde se lavou, trocou de roupa e após comer também foi se deitar.

Saurmont, às oito horas, depois da noite de descanso, sentia muita fome. Desta vez conseguiu levantar o Barão. Depois do jantar, d'Armi lhe contou que levou Diana ao Louvre e ordenou a Gabriela não deixá-la ir a lugar nenhum, enquanto não voltasse a calma e a ordem. A seguir prometeu a Briand visitar a moça na manhã seguinte.

Durante o resto da noite a conversa girou em torno das façanhas da madrugada.

Nessa manhã imediata, um acontecimento inesperado mudou o humor dos dois e de todos os parisienses. Corria o boato de que o Cemitério dos Inocentes tinha amanhecido florido[19]. Apesar do tempo maravilhoso, isto era raro para um 25 de agosto. Tomados pela curiosidade, Saurmont e d'Armi também se dirigiram para lá.

O cemitério era tomado por grande multidão que aumentava a cada minuto. Uma árvore milagrosa na qual, realmente, se distinguiam flores desabrochando, estava cercada de soldados não permitindo a aproximação de ninguém. Apesar disso, a exaltação da massa crescia, como a maré alta. O milagre era evidente. Mas seria isto uma confirmação da alegria celestial?! Soavam os sinos.

O badalar agiu sobre a massa no mesmo instante. O potente som de cobre, a atmosfera tensa, enlouqueceram as massas. Ouviam-se os cânticos de súplica e as exclamações histéricas das mulheres que, em êxtase, glorificavam o milagre e incitavam os homens a assumir a guerra santa e exterminar de uma vez por todas os malditos huguenotes.

Em resposta à incitação, surgiram ameaças, gritos de ódio e berros. O povo começou a se deixar levar pela exaltação. Toda cidade foi tomada pela vontade de matar.

Teve início um morticínio ainda mais cruel e sangrento que o da véspera. Desta vez, porém, ocorria à plena luz do dia e se apresentava como um espetáculo sem precedentes, pois se desenrolava diante dos olhos do Rei e com o consentimento das mais importantes personalidades da nobreza. Saurmont e d'Armi também não resistiram ao fervor geral. Matavam por matar. Não obstante, pouco a pouco, começaram a pensar com calma e compreenderam ser uma ótima oportunidade para acertar todas as contas pessoais e se livrar das pessoas importunas. Mesmo que nesse tumulto morressem católicos, quem poderia provar que isso fora feito de propósito?

D'Armi tinha credores, Saurmont também; este odiava alguns que perseguiram seu pai sem clemência e o despojaram das terras hipotecadas. O Conde decidiu se vingar pelo pai. Briand e o Barão se separaram, sem dizer um ao outro os seus planos.

D'Armi se dirigiu à casa de seu principal credor que tinha a infelicidade de ser protestante. Contudo, chegando lá, o Barão viu que haviam se antecipado e que, seguramente, outros devedores já tinham se livrado do velho, tido como muito rico.

Na entrada da casa estavam estendidos os corpos da mulher e de sua filha mais velha. Alguns meninos vadios de expressão feroz se divertiam em carregar por uma corda uma criança de peito que gemia enfraquecidamente. Os pequenos canibais lhe gritavam:

— Pare de rosnar! Você chegará a tempo de cair no rio, junto com seu pai e seus irmãos. Ouça como eles gritam e o chamam...

E, realmente, ao longe se ouviam vozes de crianças e uma voz masculina dizendo para não se agarrarem a ele.

Apesar de sua crueldade, João d'Armi por um instante ficou paralisado pela triste cena. Lembrou ele também ser pai. Blasfemando, o Barão se virou, colocou na bainha a espada manchada de sangue e se dirigiu ao Louvre.

Briand retornou tarde ao seu hotel. Estava muitíssimo satisfeito por haver saciado finalmente seu ódio que há tantos anos levava atravessado na garganta. Em sua residência encontrou d'Armi andando de um lado para outro no quarto, preocupado.

— O que há, Barão? Por que esta preocupação? Acaso trabalhou mal hoje pela glória de Deus e em honra da milagrosa árvore do Cemitério dos Inocentes? indagou alegre Briand.

O Barão parou e após ter arrancado a gola que o sufocava, disse alto, com ar amargurado:

— O que há comigo? Arrependo-me muitíssimo de haver ajudado a matar o pobre Raul de Montfort. Essa história toda me custará a vida de Diana. O coração da pobre criança está destroçado. É triste olhar para ela; encontra-se irreconhecível. E, além disso, esgota suas últimas forças cuidando de um ferido.

— Quem? perguntou surpreso Briand.

— O jovem Beauchamp. Está gravemente ferido e ela o instalou em seus aposentos.

— Diga-me, por favor, como é que ele foi ferido justamente no quarto da senhorita de Mailor? perguntou Saurmont, ao mesmo tempo em que ficava vermelho de raiva.

— Ele não foi ferido no quarto dela. Conforme as palavras de Gabriela, se passou da seguinte forma, respondeu um pouco mais tranqüilo d'Armi: Levei Diana desmaiada ao Louvre. Sua camareira, depois de gastar todas as essências de que dispunha, sem resultado, resolveu recorrer a outra dama de honra e lhe pedir algo adequado à ocasião. Quando estava prestes a ir, ouviu o ruído de um corpo caindo próximo à entrada. Vacilando entre o medo e a curiosidade, ela entreabriu a porta e viu um moço estendido no chão. Ela o teria deixado ali, se não tivesse reconhecido René de Beauchamp pela corrente que sempre leva consigo. Imediatamente a moça arrastou o Visconde para o quarto e trancou a porta. Voltando a si, Diana resolveu escondê-lo. De que maneira René veio parar no Louvre, eu ainda não consegui saber.

— Não há nada demais nisso. O principal é arranjar uma forma de tirá-lo dos aposentos de Diana, comentou Saurmont, enchendo um copo de vinho e convidando d'Armi a fazer o mesmo.

O resto do dia foi ocupado por assuntos políticos e revoltas que estouravam em toda Paris. Uns continuavam o morticínio, outros faziam peregrinação ao Cemitério dos Inocentes e ao Montfaucon onde na forca[20] balançava uma massa repugnante, escura e sem forma. Confirmou-se tratar do corpo de Coligny. Aliás o Rei foi o primeiro a visitar o local. Com toda corte ele se dirigiu ao Montfaucon para ver os restos deformados do homem que ele nomeava por "meu pai".

Apesar de haver muito para se ocupar e fazer, Saurmont não podia esquecer nem por um minuto que Beauchamp se encontrava com Diana. Imaginava todos os planos possíveis para eliminá-lo ou, ao menos, tirá-lo dali. Matar o jovem no Louvre era difícil, por isso Briand resolveu avisar o Duque d'Anjou que René se encontrava no quarto da dama de honra e lhe pedir ajuda para liquidá-lo.

A ocasião oportuna apareceu oito dias após o primeiro levante. Briand jogava com d'Anjou e sentiu que o jovem Duque estava bem humorado e se mostrava muito simpático para com ele. Briand lhe manifestou que não seria mal arrancar do refúgio um sujeito que, visivelmente, se inclinava aos protestantes. Ficara sabendo que René passara a noite em casa de um huguenote. Por ser um herege secreto ou próximo de se tornar, ele merecia a morte. Acrescentou que a senhorita de Mailor se deixando levar por seu bom coração estava somente se comprometendo em vão.

Os olhos negros do Duque maliciosamente se fixaram no Conde. Alisando a própria barba, respondeu, depois de um longo silêncio:

— Deixe disso, Conde! Não se pode proibir uma dama de ter compaixão. Minha irmã Margot também cuida em seus aposentos de um palaciano[21] chamado Tejan, rapaz confirmadamente huguenote. O Rei cala.

A grandiosidade dele anda cansada destas coisas e não seria sensato lembrá-lo do caso. Hoje pela manhã um grande número de corvos pousou no pavilhão do Louvre e faziam tal barulho que todos saíram para ver [22]. As damas ficaram assustadas e o Rei muito preocupado.

Controlando a ira que sentia por dentro, Briand se inclinou e falou em tom baixo que tocou no assunto somente por fidelidade ao Rei e ao catolicismo.

Depois de jantar, a conversa tomou outro rumo. De repente um pajem entrou correndo no quarto e comunicou que o Rei exigia a presença do irmão, o mais rápido possível.

Visivelmente preocupado, o Duque se levantou no mesmo instante. Os demais também foram tomados de preocupação ao ouvirem gritos e berros. A impressão era de que partiam da cidade.

A julgar pelo barulho, se podia deduzir que havia um novo massacre ou um levante do povo.

Uma hora depois o Duque retornou. Pálido e nervoso contou que, quando o Rei se deitou e ainda se encontrava desperto, começaram a se ouvir gritos de pessoas sendo executadas. Imediatamente todos os empregados foram despertados. Pensando que na cidade ocorria novo morticínio, o Rei, rapidamente, enviou o Sr. de Nancy à frente da tropa, com ordens de reprimir severamente qualquer novo massacre. Porém o capitão voltou e disse que a cidade estava calma, sendo que os ruídos e gritos surgiam do próprio ar[23].

Briand voltou para casa fortemente impressionado. Lembrou como suas vítimas haviam aparecido perto da "Cruz Negra". Uma sensação indescritível, doentia, se apossou dele, quando pensava que dentre as pessoas assassinadas sempre haveria alguma que poderia aparecer.

No dia seguinte à noite Briand se dirigiu ao Louvre. Havia uma reunião com o Rei. Desta vez Carlos IX não se apressou em ir dormir e prolongou a recepção. Fosse o motivo disto a lembrança dos terríveis sons da noite anterior ou simplesmente medo da escuridão e silêncio de seu dormitório.

Sua Majestade estava pálido e carrancudo como de hábito e iniciara uma nova partida de xadrez com o Rei de Navarra. A noite era maravilhosa, quente e perfumada.

Alguns dos cortesãos se sentaram ao lado de uma janela aberta e conversavam a meia-voz; outros se colocavam ao lado dos dois reis e acompanhavam o jogo. Entre estes últimos se encontrava Briand.

Sendo apaixonado pelo xadrez, o Conde, sem mergulhar nas peripécias da partida, se enfadava por dentro, pela negligência com que Carlos IX conduzia o jogo. De repente um barulho terrível vindo do lado de fora cortou o ar. Ouviam-se claramente o som das armas, os gritos de desespero e medo, o lamento dos agonizantes e os berros selvagens dos assassinos. Numa palavra única: os terríveis sons da noite de 24 de agosto.

Todos ficaram como que paralisados. Este eco do morticínio, reiteradamente na mesma hora, surgido do desconhecido, golpeava a consciência dos carrascos e causava nos presentes a sensação de opressão. Estes começaram a suar frio; nenhum deles deixou de empalidecer ouvindo as vozes de vingança de suas vítimas que se erguiam a Deus do fundo de suas covas.

Carlos IX tremendo, pulou da poltrona e se apoiou na mesa. Estava branco como um papel. O tique nervoso a que estava submetido lhe desfigurou o rosto. Os cabelos e a barba se arrepiaram de pavor. A figura do Rei era horrível e repugnante, aumentando o medo que assaltava a todos.

Nos minutos seguintes reinou um silêncio sepulcral na sala.

O Rei foi o primeiro a violá-lo. Enxugando o suor frio que escorria da testa, ele caiu na poltrona e disse com a voz alterada:

— De Nancy! Vá e realize mais uma vez um inquérito rigoroso sobre a procedência destes gritos. Passe a mesma ordem às Guarnições de Paris. "Pâques-Dieu"— ele deu um murro na mesa - se encontrarem os culpados desta mistificação, ordeno que os esquartejem na Praça Greve. Henrique, vamos prosseguir nosso jogo.

O Rei de Navarra se inclinou sobre o tabuleiro, mas sua mão tremia tanto que derrubou as peças. Só o olhar zombeteiro de Carlos IX o obrigou, ainda que com dificuldade, a se dominar.

Começaram a jogar em silêncio. A partida já se estendia por muito tempo, quando de súbito o Rei gritou e se jogou para trás. Seus lábios estavam semi-abertos e os olhos arregalados se fixavam em algo que a princípio ninguém havia notado. Briand também se aproximou curioso. Uma exclamação de pavor se congelara nos lábios ao ver uma gota de sangue gotejar da mesa e manchar os dedos do Rei. Minutos depois o gotejamento cessou, para logo em seguida recomeçar mais intenso. Por fim parou, desfazendo-se em vapor que por sua vez se espraiou no ar. Carlos IX se levantou e, com a cabeça zonza e os passos cambaleantes, se dirigiu a seus aposentos. Duas "levrettes[24]" o seguiram com o pelo eriçado e o rabo entre as pernas.

Todos os que não eram obrigados a ficar no Louvre a serviço saíram rapidamente, tomados de pavor, medo do sobrenatural. Estes senhores não temiam nem a Deus nem ao diabo; desprezavam o perigo, mas tremiam diante de misteriosas vozes invisíveis, mais do que um padre falando sobre almas perdidas.

Briand foi o que mais ficou impressionado. Durante os dias seguintes, recolheu-se ao seu hotel e não recebeu ninguém além de d'Armi que lhe trazia notícias de Diana.

Assim ficou sabendo que Raul e Armando de Montfort realmente haviam morrido e que a Condessa e o filho tinham se salvado.

O Barão estava triste e lamentava muito não haver salvado Raul, já que Diana lhe havia comunicado que decidira tomar o hábito do convento. A noticia tirou Briand de seu torpor mental. Com a determinação inata que possuía, convenceu d'Armi a usar a autoridade paterna para impedir tamanha insensatez.

A partir desse dia Briand recebia informes diários do que se passava com Diana.

D'Armi lhe contou que a Condessa de Montfort deixara Paris levando consigo os corpos do marido e do cunhado e que Diana adoecera de desespero, depois de se despedir de Clemência e dos restos mortais do noivo.

Certa vez o Barão chegou com ar tão alegre e satisfeito,, que Briand, curioso, perguntou que alegria o havia deixado assim.

— Sinto-me feliz porque hoje consegui convencer Diana a desistir da idéia de se tornar freira. Ela me jurou. Em troca prometi levá-la ao convento em que estudou.

Ela quer passar o tempo de luto lá, sozinha e rezando. Quando a trouxer de volta, espero que sua tristeza já tenha passado e ela esteja preparada para uma nova vida.

D'Armi deu um tapinha no ombro de Briand e este não pôde conter o riso.

— E quanto ao pequeno Visconde?

— Ah... isso é uma longa história... estou esquecendo de contar, disse o Barão. Imagine, hoje quando eu estava nos aposentos de Diana, para minha grande surpresa, apareceu para vê-la o Marquês de Marillac...

— "Pâques-Dieu!", como diz Vossa Majestade. Será que ele está querendo retomar o noivado? perguntou Briand enrubescendo.

— Que idéia! Diana o chamou para levar René recuperado. A cena era das mais frias e cerimoniosas. Só com relação ao Visconde existe algum segredo. Não acredito ser o ferimento de René casual. Parece quererem assassiná-lo, mesmo sendo católico, para agradar sua esposa. Minha filha deu ao Marquês uma carta cuja assinatura provavelmente é de mulher.

— Sem dúvida, a carta é da bela Marion; ela fará um reproche ao Duque de Guise por cumprir tão mal a tarefa de fazê-la viúva, notou sorrindo o Conde.

— Todavia, onde Diana conseguiu este documento comprometedor? disse em tom desconfiado d'Armi.

— O senhor pode ajudá-la nesse caso pérfido. Aliás não há, nada de mais nisso. Diga-me, Sr. João, quando pensa deixar Paris?

— Dentro de três semanas, penso. Diana já fez o pedido de dispensa. Uns negócios ainda me prendem aqui. E o que pensa fazer, Briand?

— Vou acompanhá-lo. Não há nada mais me segurando aqui, respondeu rindo o Conde.

Após encher dois copos, acrescentou:

— Bebamos ao futuro, pela realização de meus desejos e pela saúde da futura Condessa de Saurmont.

Resolvemos transcrever de Louis Batiffol, "Lê Siècle de Ia Renaissance", págs. 240 e 241, "A Morte de Carlos IX". ...Pouco a pouco Carlos IX declinava. Desde as lúgubres Noites de Matança e Saque, ele estava irreconhecível; abatido por uma melancolia que ninguém podia distrair, ele parecia uma sombra triste e tímida. Os embaixadores estrangeiros (...) observavam que ele tinha sempre a cabeça baixa, não ousando mais olhar as pessoas no rosto, fechando os olhos. Às vezes, quando alguém lhe falava, ele erguia as pálpebras com esforço e após uma rápida olhadela inquieta, as abaixava. Um retrato desse tempo, da Escola de Clouet, há pouco ainda no Castelo d'Azay-Rideau, o representa com o rosto pálido e fatigado, o olhar desvairado, a mão diáfana tremente, imagem surpreendente do homem atormentado de remorsos, diante do pensamento que a idéia fixa, obsedante, volta perpetuamente.

Ele escarrava sangue; os médicos tinham julgado como sofrimento do pulmão. Dia a dia ele se enfraquecia, se curvando, emagrecendo, a febre o queimando muito. Na primavera de 1574, já era apenas um esqueleto que se arrastava. Em maio ele se acalmou, em vista da fraqueza extrema; não mais deveria se levantar. Na noite de 29 para 30 teve uma crise, ao curso da qual se acreditava ele morresse. Ele dizia, com acento de angústia: "Quanto sangue!... Quanto sangue!... meu Deus! me perdoe! ...Eu já não sei onde estou!... Estou perdido!", ele estava inundado de suor.

Sua ama de leite o velava, enxugando seu rosto com um lenço. No dia 30, pela manhã, chamou o Duque d'Alençon e o Rei de Navarra e lhes disse que, após ele, a regência pertenceria à Rainha-Mãe, sendo necessário obedecê-la: recomendou ao "Bearnês" sua filhinha e depois comungou. Foi-lhe dada a extrema-unção.

No dia 31, na presença de Catarina de Medícis, que nunca o deixava, procurando lhe dizer algumas palavras sobre os negócios de Estado, ele a fez compreender que "todas as coisas humanas não mais o interessavam". Estertorava. Às 4 horas da tarde expirou; a única palavra pronunciada foi "Mamãe!" Tinha 24 anos.

 

O RAPTO

Animada agitação havia tomado Angers, sempre tão pacata e bucólica. Há alguns dias os habitantes da cidade vivam mais na rua do que em casa. O orgulho das pessoas era ver as visitas ilustres acolhidas pela cidade por detrás de suas muralhas[25]. O Sr. Francisco d'Alençon recebera o título de Duque d'Anjou e visitava sua cidade[26].

Haviam se passado quatro anos desde a funesta noite de S. Bartolomeu, acarretando importantes acontecimentos políticos e grandes mudanças. O Rei Carlos IX havia morrido de uma estranha e desconhecida doença, como se comentava - de veneno. Seu irmão, Henrique III, o sucedeu. O partido protestante, ao invés de se enfraquecer após o massacre, tornou-se ainda mais forte e o Rei se viu obrigado a legalizar esse culto. Também cedeu fortalezas em seis províncias[27] e foi obrigado a reconhecer ter sido a noite de S. Bartolomeu arquitetada contra a vontade do Rei.

Nesse dia em que continuamos nossa história havia um baile no castelo de Angers. O Duque patrocinou uma festa à aristocracia local em agradecimento à atenção dispensada.

Encontramos muitos de nossos antigos conhecidos chegando de liteira, carruagem e até, discretamente, a pé vindos para essa festa.

Em primeiro lugar aqui estava o Conde de Saurmont, pálido e frio como sempre; somente seu olhar ganancioso revelava sua vontade. Não tirou os olhos da entrada do palácio e examinava todos os convidados chegando.

O Conde mudou seu traje, manifestando o desejo evidente de agradar com a aparência. Sua roupa era de cor cinza-claro e brilhantes valiosos eram exibidos em volta de seu pescoço e no cabo de seu punhal. Ao ver René de Beauchamp e Marillac entrando, Briand franziu as sobrancelhas. Encontrar o antigo noivo e o amigo de infância de Diana sempre lhe era desagradável, contudo, a chegada de d'Armi acompanhado da filha e da esposa, o fez esquecer os dois jovens. Ele se apressou em ir saudar as damas.

Com o passar dos anos, Lourença havia ficado ainda mais gorda. Agora ela se apresentava como uma massa disforme. Seus pequenos olhos negros quase desapareciam na enorme face flácida. Apesar disso sua pretensão de ser bonita não havia absolutamente diminuído. Diana estava mais formosa do que nunca. Trajava um vestido branco simples, mas de uma elegância incomum. Caminhava ao lado da madrasta, sorrindo, mas sua expressão transmitia tristeza profunda e seus grandes olhos azuis observavam os presentes com indiferença e apatia.

Enquanto Saurmont, René e outros convidados cumprimentavam d'Armi e as damas, conversavam, a esperarem o Duque.

Vamos abrir um parênteses e contaremos todo o acontecido durante este intervalo de tempo.

D'Armi levou a filha ao convento onde fora criada. Na atmosfera calma e tranqüila do retiro, sob a influência espiritual da Madre Odila, do padre Gabriel e das boas irmãs, o forte desespero da moça, pouco a pouco, se transformou numa tristeza profunda e introspectiva. Sua postura frente ao mundo e às pessoas era de hostilidade e desconfiança. Pensava com amargura no minuto em que havia deixado o convento, esse lar de paz, para se mudar para casa do pai. Por isso se sentiu aliviada quando, uns dias antes do Barão vir buscá-la, recebeu uma carta de Clemência convidando-a para passar alguns meses no Castelo de Montfort.

Seu filho, escrevia a Condessa, definhava aos poucos, e ela se sentia infeliz e sozinha. Pedia insistentemente à amiga vir visitá-la.

A princípio o Barão João se mostrou descontente com o convite e ordenou à filha voltar para casa, mas, já Madre Odila consentiu no desejo da moça e ele também acabou cedendo.

Diana se deteve em casa de Clemência muito mais do que havia previsto. O pequeno Luciano morreu lentamente de uma doença incurável no peito, e, Diana não queria deixar a infeliz mãe num momento tão difícil, quando perdera a sua última esperança. Morrendo o pequeno, todos avaliavam que a mãe enlouqueceria. Mas uma perigosa doença, quase a levando ao túmulo, a mergulhou numa providencial apatia, salvando-a da insanidade.

Quando finalmente Clemência se restabeleceu, comunicou à Diana ter resolvido tomar o hábito.

— Dentro de mim e ao meu redor tudo morreu, disse a jovem; o mundo me inspira pavor. Este castelo vazio, carregado de recordações desagradáveis só faz minha angústia aumentar dia a dia. Talvez sob o amparo do convento encontre eu a paz na alma.

Sua decisão foi irrevogável; nem súplicas, nem apelos da família pretendendo casá-la com um primo herdeiro dos Montfort a demoveram. A chegada do novo senhor apenas fez a Condessa abreviar a partida.

Triste e calada, Diana retornou à casa paterna. Ela não deixara o luto e continuava a levar uma vida de convento. Seu relacionamento com a madrasta era frio e, do Conde de Saurmont, freqüentador do castelo, fugia sempre que possível.

Nos olhos tristes de Briand ela via a paixão não haver ainda se apagado e sentia seu pai e Lourença quererem muito vê-la casada com este homem rico e conceituado.

Alguns meses antes do dia da retomada de nossa narrativa, Diana com alguma alegria, soube Clemência ser agora Mãe Maria, vindo dar a bênção do grande convento às noivas de origem nobre, moradoras perto de Angers. Ao saber da chegada da amiga, visitou-a algumas vezes. Não menos satisfação lhe deu a chegada de René de Beauchamp, a quem não via desde sua partida de Paris com Marillac.

Durante esses anos, o belo Visconde teve uma vida agitada e confusa. Tão breve se recuperou, seu primeiro cuidado foi romper com Marion. A carta traiçoeira provava as intenções de matá-lo. Isto ajudou René a dobrar a Viscondessa, terminando ela em cair na própria armadilha. Ficando livre, Beauchamp se lançou a uma vida agitada de aventuras, além de tomar parte ativa em todas as intrigas da época.

A morte de um primo lhe deixou grande herança, obrigando-o a vir a Angers. Ele se apressou em visitar sua amiga no convento, sem saber se ela havia voltado ao castelo d'Armi. O encontro com Diana causou estranha e inexplicável sensação ao Visconde. A moça o encantou. A beleza meiga e original subjugou seus sentimentos. A inteligência aguda e brilhante, juntamente com sua bondade inata, atraíram o rapaz.

Por outro lado, surgia em sua alma um sentimento muito próximo ao ódio, principalmente com relação às três semanas passadas como ferido, nos aposentos dela. O desespero dela, a tristeza sem fim e o amor profundo que Raul lhe inspirava - tudo isso irritava René, como se fosse ofensa pessoal, por ele não poder confortar a moça na perda de Raul. Quando Raul estava vivo, odiou esse maldito huguenote, e agora a morte dele barrava seu caminho à felicidade! Toda vez que seu olhar pousava nos olhos tristes e lacrimosos de Diana, essa irritação era despertada. Mas, quanto mais se asserenava, mais seu pensamento perdia esta aflição. "Para que se desesperar? É preciso apenas se separar de Marion. Acaso o tempo, esse grande curador, não havia sido melhor companheiro enquanto Raul existia, perigando sua sede de felicidade? É só preciso esperar com paciência."

E o rapaz levou seu plano adiante, dada a paciência incomum ser uma de suas melhores qualidades, quando as coisas corriam em direção' ao objetivo almejado. Além disso, tinha a excepcional qualidade de preencher o tempo de maneira agradável, enquanto esperava. A mistura das qualidades más e boas do Visconde, mal ensinadas pelos acontecimentos que o abalaram, fizeram dele um egoísta orgulhoso, muito garboso de sua bela aparência, sua riqueza e de seus sucessos mundanos. Não admitia a idéia de estar agindo mal e conservava uma animosidade invencível a qualquer um, em sua opinião, que o ofendesse ou humilhasse.

Durante sua estadia no palácio, o Visconde experimentou todos vícios e venenos da sociedade depravada da época. Chegando à saciedade, ele concluiu ser o comportamento desregrado nocivo e ser hora de ter vida feliz e tranqüila. Para isso Diana estava em seus planos. René decidiu lhe fazer a proposta, tão cedo a visse e se certificasse encontrá-la calma. Havia se colocado como amigo de infância e possuía os direitos de um irmão; aliás Diana nem pensava em negar isso. Ela gostava dele e tinha plena confiança no amigo de jogos de infância, sabia ele. Entre os jovens havia o melhor relacionamento e René, caladamente, se divertia com os ciúmes e a raiva de Saurmont.

Com a chegada do Duque d'Anjou, o Visconde deixou um pouco Diana. Encontrou vários amigos na comitiva do Duque e, irrefletidamente, se deixou levar por eles à vida de aventuras.

Mas, vendo Diana no baile, adquiriu um pouco de lucidez. Ficou perto dela e, conversando alegremente, lhe mostrou um lado desconhecido dela.

A chegada do Duque interrompeu as conversas.

Saudando os hóspedes e se dirigindo com frases gentis a este ou àquele, o Duque d'Anjou calmamente percorreu todo salão. Deteve-se junto à família d'Armi e seu olhar surpreso se fixou na figura grosseira de Lourença, pois esta, depois de perder a noção do que era respeito, com sensatez, fez uma reverência tão exagerada que quase caiu de joelhos aos pés do Príncipe.

Contendo com muito esforço o riso, Francisco virou-se para outro lado. Nesse exato minuto seu olhar se deteve em Diana, visivelmente embaraçada devido à cena ridícula da madrasta, cumprimentando-o confusa. Os olhos do Duque se inflamaram de admiração. Inclinando-se amavelmente à jovem, encetou com ela uma animada conversa. Ao saber seu nome, se admirou por não tê-la notado na co de Carlos IX. Durante todo o resto do baile nitidamente distinguiu Diana entre os demais, despertando terríveis ciúmes em René e Briand. Pela primeira vez os dois rivais experimentavam o mesmo sentimento. Nenhum deles confiava no Duque, o qual era conhecido por todos pela volúpia e ousadia cínica no relacionamento com as mulheres.

A suspeita dos jovens aumentou quando, dois dias depois o Duque, voltando da caça, parou no castelo d'Armi e pediu algo para se refrescar. Cheia de orgulho, Lourença se colocou ela própria à disposição. Mas o Duque só tinha olhos para Diana, que o recebeu com a amabilidade tão fria quanto permitiam as circunstâncias e a posição do hóspede.

O Duque não era o tipo de pessoa paciente. Foi tomado por um terrível capricho por Diana, e a qualquer preço queria possuí-la. Vendo a inacessibilidade da moça, resolveu empregar a força. Com este objetivo passou a se aproximar de Lourença. Já a primeira vista ele percebeu ser essa inteligência má exatamente a arma necessária.

Alguns dias depois, Diana lia sozinha em seu quarto, d'Armi de manhã cedo fora para Angers e Lourença havia comunicado não estar se sentindo bem por isso ia ficar na cama.

O ruído de passos e o estalar de ramos secos fizeram a moça erguer a cabeça. Pode-se imaginar o pavor sentido por ela quando um homem entrou em seu quarto pela janela.

Gritando alto, ela se lançou à porta, mas o desconhecido a alcançou e a apanhou pelo braço. Ainda gritando, começou a lutar, porém mais três raptores adentraram o aposento. Quando Gabriela chegou, alertada pelo alarido, a porta estava trancada.

Em um instante os quatro levaram Diana enrolada numa capa e correram pelo jardim para uma abertura na parede.

Do outro lado os cavalos os esperavam. Um deles levou Diana consigo na sela e depois, a trote rápido, se dirigiram a Angers.

Quando ela voltou a si, estava deitada numa cama larga, de colunas, num grande quarto arqueado, iluminado por duas velas de cera encontradas sobre a mesa. Seu primeiro movimento foi saltar da cama e correr à porta, no entanto estava trancada. Quando a moça se convenceu ser prisioneira nesse lugar desconhecido, foi tomada pelo pavor.

Vertendo lágrimas, ela se atirou à mesa.

Ninguém veio vê-la. Pouco a pouco voltou a ter calma e a refletir sobre sua condição. Ela tinha a certeza de ter sido o Duque o responsável, pois não haveria outra pessoa com uma casa assim tão grande e confortável. Procurou aflita o estilete que sempre levava consigo para se precaver de Briand. Ao encontrá-lo, suspirou aliviada.

— Em último caso poderei me matar... murmurou, escondendo a arma cuidadosamente.

Mal acabara de ajeitar o vestido, a porta foi aberta e entrou o Duque[28]. Estava muito bem vestido e sua cara rosada indicava vir ele de um farto jantar. Ao correr na direção de Diana, esta recuou até a janela; ele caiu de joelhos e, esforçando-se por abraçá-la, disse:

— Eu a amo, Diana! Seus cabelos dourados me tiraram a razão. Concorde em ser minha!

Vendo a repugnante figura de Francisco tão próxima a si, sentiu tamanha aversão que quase se esqueceu ser ele quem era. O sangue lhe subiu à cabeça; vermelha de raiva empurrou com força o Duque e gritou com voz pungente:

— É uma vergonha para o senhor, Majestade, se utilizar de tanta violência contra uma mulher indefesa! Coloque-me em liberdade agora mesmo! Não sou uma escrava para ser tratada assim! Não quero seu amor e se não me soltar me matarei ou o matarei!!

— Sim! Sim, sim! "Pâques-Dieu!" como dizia meu falecido irmão Carlos, a ira a torna ainda mais bela, Diana. Você tem de ser minha!...

— Nunca!... E melhor morrer que ser amante, mesmo sendo do filho da França, Diana replicou com ardor.

— E se casássemos legalmente? disse meio rindo, meio irritado Francisco. Escute, Diana, seja sensata e não empregue mal sua beleza; meus sentimentos me levam à loucura!...

Ame-me e lhe serei fiel até a morte! A felicidade não é suficiente para um amor mútuo? Tuche e Diane de Puate[29] acaso não foram generosos, amados e queridos por todos, sem qualquer formalidade vazia?

Falando isso, se aproximou da moça e tentou puxá-la a seu encontro, mas ela deu um salto para trás e, sacando o estilete, gritou:

— Não me toque!

Ao ver a arma, o Duque recuou e, depois de entreabrir a porta, falou:

— Acalme-se, maravilhosa criança! Neste exato minuto me retiro. As mulheres, como os gatos, não devem ser irritados demais, se não se deseja ser arranhado. Espero amanhã você estar com ânimo mais conciliador.

Ao ficar a sós, Diana a princípio suspirou aliviada, mas ao se lembrar de sua volta na manhã seguinte, começou a chorar. Pouco depois chegou uma mulher lhe servindo o jantar e se colocando à sua disposição. A moça temia tocar na comida e, sem ter confiança na mulher desconhecida, recusou tudo. Diana passou a madrugada no sofá, sem se trocar. Mas ninguém a perturbou. O dia seguinte foi tranqüilo.

O Duque chegou apenas à noite. Desta vez mudou completamente a maneira de se dirigir a ela. Com expressões apaixonadas, mas sem passar dos limites do respeito, disse a Diana não ter se ofendido absolutamente pela maneira como ela havia se dirigido a ele na noite anterior e, inspirado pelas virtudes e beleza da moça, pensando bem, decidira se casar com ela.

— Jamais, disse ele com ardor, encontrarei uma mulher melhor e mais digna. Mas o casamento deverá ser secreto, enquanto eu não preparar meu irmão, o Rei; não receberei indulto pelo ato de minha própria vontade. Maior prova de amor não poderei lhe dar, Diana, mas espero ser suficiente para por fim à sua desconfiança.

— Esta honra é imerecida e demasiado grande para eu poder recebê-la, senhor! Como pode a filha de um provinciano de Angers pretender se casar com o filho da França?! Um grandioso futuro o aguarda e o fará esquecer uma jovem tão insignificante como eu. Seja bondoso... generoso... me restitua a liberdade! Diana respondeu com lágrimas nos olhos.

O Duque de nada queria saber e disse ser preferível a morte a perdê-la. Insistiu em se casar e- afirmou que ela só deixaria o castelo de Angers sendo sua esposa.

Passaram-se quatro dias de tristeza mortal para ela, mas o Duque recolocava sua exigência e, com muita paixão, a convencia a concordar com o casamento. Ela não sabia mais o que fazer. Estava morrendo de fome, pois havia comido somente alguns ovos e bebera um pouco de água, por temer algum narcótico no vinho ou em alguma comida.

Na noite do quarto dia, ao sair o Duque, Diana estava tão desesperada, que começou a bater a cabeça na parede. Tinha imensa aversão a Francisco e a idéia de se casar com ele a apavorava.

Em pranto copioso caiu na cadeira. De súbito o ruído da porta se entreabrindo a tirou do torpor. Mas mal ergueu os olhos, ela se atirou com alegria ao homem que entrava.

— René! Caro René! Salve-me! gritava ela.

— Vim para isso! Preciso conversar com você a respeito de coisas importantes, respondeu o Visconde a beijando, como de costume, fraternalmente.

— Oh! Como me sinto aliviada! Você me encontrou!

— Isso não foi fácil! Ainda seu rapto é o assunto mais comentado de Angers e foi muito difícil chegar até aqui. Mas, quando o desejo é forte, sempre se alcança o objetivo. Que aparência doentia, Diana! Como você emagreceu!

— Realmente! Tenho medo de aceitar a comida e por isso estou morrendo de fome, disse ela recomeçando a chorar.

— Espere, Diana! Esse problema é fácil de se resolver, disse René, dirigindo-se rapidamente à porta. Passados quinze minutos ele voltou com vinho e doces.

— Coma sem nada temer e depois conversaremos, disse ele sorrindo.

Ao terminar o jantar improvisado, Diana havia recuperado a coragem e a tranqüilidade; contou a seu amigo como as coisas tinham se passado entre ela e o Duque.

— Então foi assim que aconteceu? Quanto ao famigerado casamento, posso lhe dizer: o Duque quer enganá-la esperando você se acalmar. O casamento está arranjado; as testemunhas serão um encarregado - d'Orilli e seus dois irmãos, homens da confiança dele. Todos esses detalhes tomei conhecimento através de um amigo integrante da comitiva do Duque. Então vim para salvá-la!

— Mas como? Perguntou Diana, ao mesmo tempo ficando pálida.

Só existe um meio* de se livrar do Duque: é casar-se comigo. A comédia infame perderá então qualquer sentido. Nem mesmo o Sr, d'Anjou se atreverá a empregar a força contra uma mulher do palácio. Diana, você deve fingir aceitar a proposta do Duque. Trate-o bem... Quando a desconfiança dele houver sido vencida, você, uma hora antes da cerimônia, se juntará a outro, refugiando-se em seu castelo.

— Mas, quem será esse outro desejoso de se casar comigo? murmurou desconcertada ouvindo-o.

O Visconde sorriu. Um olhar ardente e ao mesmo tempo malicioso se fixou nos olhos perturbados do moço.

— O outro serei eu Diana, caso aceite receber minha fidelidade. Seu amor e suas recordações pertencem a Raul de Montfort, sei disso. Meu coração também sofreu terrível decepção. Todavia nos conhecemos há tanto tempo e nosso amor é tão verdadeiro e profundo... Certamente nos assegurará uma serena felicidade. Nos momentos em que o amor não for suficiente, a amizade estará presente. Acredite em mim! Concorde em ser minha esposa e me conceda o direito de defender sua honra e seu futuro.

O discurso do Visconde fora preparado com muita astúcia. Respeitando a memória de Raul e não exigindo amor, ganhou a confiança e livrou-se da necessidade de confessar a paixão inspirada por sua beleza. Ela lhe seria reconhecida pelo generoso auxilio e, ao mesmo tempo, não estaria no direito de lhe exigir mais do que ele próprio lhe poderia dar. Tudo isso garantia a René uma dose de liberdade no caso de cair devido às fraquezas humanas ou de seu amor por Diana se apagar com o tempo.

A pobre Diana não suspeitava das segundas intenções e silêncios de René; ele estava demonstrando ser muito honesto e bom. Sua proposta se apresentou como sendo de tal grandiosidade e de amor ressado que ela foi tocada no mais fundo da alma.

— Meu bom René! Certamente aceito sua proposta! Depois de Raul, o único com quem poderia me casar seria você. Esteja certo de toda minha dedicação para poder provar minha gratidão e fazê-lo feliz o quanto possa! respondeu emocionada.

O Visconde a apertou tão ardentemente contra seu coração que quase esqueceu haver feito a posposta por amizade. No entanto Diana estava muito emocionada para perceber este detalhe. Após as primeiras palavras de desabafo, os jovens passaram a conversar amigavelmente e a combinar os detalhes do casamento e da fuga.

Os dias seguintes foram alegres. Confiando no seu futuro, Diana já começava a se divertir com a aventura. Fazia seu papel com muita perfeição diante do Duque, conseguindo enganá-lo, fazendo-o pensar estar ela seduzida pela idéia de ser a esposa do Duque d'Anjou. Ele a encheu de presentes e marcou o dia do casamento, para cuja realização aguardava apenas a chegada de seu encarregado d'Orilli, o qual havia viajado a negócios. O Duque não desconfiava das vindas de René após suas saídas. O rapaz passava pela guarda desta ala do castelo, porque o sargento encarregado da segurança havia trabalhado para o avô do Visconde e era muito fiel a René. O moço disse a Diana das intenções do Duque e lhe contou seus preparativos para a fuga.

O rapto de Diana provocou grande alvoroço em Angers. Logo as pessoas deduziram quem poderia ser o raptor - o Duque d'Anjou. Mas como o assunto se referia a uma família em particular, ninguém se atrevia a empreender uma contenda com personagem tão importante, em defesa de uma mulher cujos parentes haviam se omitido.

O Barão d'Armi adoeceu de desgosto e ficou acamado. Lourença se mostrava desesperada diante das pessoas, porém não se movia do castelo e quando a sós, considerava um triunfo ter d'Orilli contado com ela para a cumplicidade do rapto.

Em compensação Briand, ao saber do ocorrido, quase enlouqueceu. Tinha certeza da participação ativa de Lourença no sucedido. Sentia ódio dessa mulher, apesar da influência por ela exercida sobre ele. Sentia seu ódio aumentar ainda mais. O Conde, contudo, não era pessoa de ficar com braços cruzados; foi a Angers. Distribuiu dinheiro grosso; tomou conhecimento de tudo quanto se falava sobre o assunto; tendo subornado inclusive a mulher do sargento encarregado da questão, ficou sabendo através dela tanto do plano do Duque, quanto das intenções de René. Em sua mente engenhosa imediatamente delineou um plano que, se tivesse sucesso, lhe traria a plena realização de seus desejos. Mas, antes de agir, resolveu garantir a colaboração de d'Armi, que sabia não ser difícil conseguir.

Assim se dirigiu ao castelo d'Armi para expor ao Barão seu plano, como o havia elaborado.

— Se, como penso, Beauchamp parar no hotel, ele acordará só quando Diana já se tenha tornado oficialmente a Condessa de Saurmont, terminou Briand.

Após ouvir o plano, o Barão balançou a cabeça preocupado:

— E claro, meu caro Briand, ninguém lhe deseja mais êxito do que eu. A coisa mais querida para mim após Diana se livrar do covarde rapto do Duque é de se fazer mulher de um homem tão importante quanto você! Só temo nada poder deter René... Ele ama minha filha e naturalmente não pararia numa má pousada a caminho da igreja.

O Conde sorriu e deu uma gargalhada zombeteira.

— Sua resposta, Barão, mostra o quanto mal conhece Beauchamp. Não há no mundo uma pessoa mais esmerada, complacente e de raciocínio tão lento quanto René. Nem o amor, nem dúvidas o detêm se as coisas estão correndo rumo à satisfação de suas fantasias. A pousada "Rabo do Diabo" se encontra exatamente a meio caminho. Entusiasmado e cansado, René obrigatoriamente passará por ela para repousar e beber um copo de vinho. O resto caberá a mim. Eu lhe prepararei um chamariz bem tentador para ele cair nessa tentação no mesmo instante. O Visconde pensa que Diana sempre lhe pertencerá e ficará, espera ele, livre de aborrecimentos.

D'Armi se animou imediatamente com a conversa. Foi ao encontro de René e com lágrimas de amargura lhe implorou ajudá-lo a achar e salvar a filha. O Barão inclusive o chamava por ter sido amigo de infância de Diana. O moço não desconfiou da mudança do pai. Tranqüilizou-o quanto a Diana e lhe disse estar preparado. O Barão o abraçou calorosamente, agradecendo, e pediu para deixá-lo inteirado de como caminhavam as coisas, dado que gostaria de participar do casamento e parabenizá-lo.

Ao relatar sua conversa com René, o Barão arrancou sorrisos de satisfação de Briand. E naquele momento Saurmont começou a preparar a armadilha para livrar-se do rapaz. Primeiramente se dirigiu aos ciganos instalados em São Germano. No acampamento viu uma cigana de rara beleza - ótima presa para René! A seguir o Conde se entendeu com o pai e o irmão da cigana para que todos tirassem lucro do plano. Ficou combinado então que Topsi e os dois ciganos se dirigiriam no dia combinado a um hotel, cujo dono os ajudaria.

Tendo acertado isso, Briand tratou de arrumar o castelo de forma requintada, preparando-se para receber a nova proprietária. Tinha certeza em seu plano, por estar confiante no desleixo e volúpia do Visconde. Quanto a Diana naturalmente se resignaria com o destino, depois de ter se tornado Condessa de Saurmont, sabendo da fatalidade de seu noivo que a desprezara por uma simples cigana.

O dia marcado finalmente chegou, deixando Briand em aguda ansiedade. Atormentado pela intranqüilidade interior, ele deixou o castelo para passear pelo bosque. Quando decidiu voltar para casa, encontrando-se já próximo do castelo, viu, surpreso, alguém saindo dos arbustos e vindo em sua direção. Sentiu ódio e apreensão quando reconheceu Henrique, a quem não via desde a Noite de São Bartolomeu e julgava morto. O aparecimento do cigano em momento tão crítico foi tomado como um mau agouro.

Contudo, dominando-se, estendeu a mão cumprimentando e, sorrindo, perguntou:

— De onde você surgiu? Eu o procurei tanto... já o considerava morto!

— Oh! Foram tempos maravilhosos! Estive fazendo coisas tão boas que saí da França. Depois os fracassos começaram a me perseguir e retornei com alguns ciganos pensando que talvez sua generosidade pudesse me ajudar... Depois de ficar sabendo com Topsi de seus desejos para com Diana, achei poder ser útil e vim para oferecer meus préstimos...

— E com prazer os aceito, e agora mesmo lhe contarei tudo.

— Não é necessário, Sr. Briand. Antes de vir aqui tomei informações em Anjou e sei como andam as coisas, respondeu o cigano maliciosamente.

Briand tremeu de ódio, sendo tomado por um desejo insano de se livrar para sempre deste perigoso cúmplice. Nesse instante passavam pela beira de um precipício de cuja encosta rolavam seixos. Com a rapidez de um relâmpago o Conde aplicou um golpe fortíssimo na têmpora de Henrique, deixando-o atordoado na hora; aproveitando-se disso, empurrou o cigano para o precipício. Henrique cambaleou, perdeu o equilíbrio e caiu. Após perdê-lo de vista, o Conde esperou ainda alguns minutos para se certificar de não ouvir algo ou ver algum sinal de vida do cigano; no bosque, porém, o silêncio era completo.

— Certamente o canalha caiu na água. Irá acordar do desmaio só no outro mundo, murmurou o Conde. Sentia-se aliviado de um terrível peso e começou a cuidar dos últimos preparativos.

Mas Henrique não estava morto... Rolou precipício abaixo, sob os baques das pedras e tocos de árvores até o rio, onde seu corpo foi retido pelos ramos de densos arbustos. Na correnteza caíram somente lascas de rocha levando Briand ao erro.

Henrique ficou desmaiado por umas duas horas; tremendo de raiva, sentindo os membros doloridos, subiu a encosta e começou a arquitetar um plano de vingança. Sua primeira idéia foi não deixar Topsi participar, estragando a armadilha preparada; mas olhando o sol constatou ser tarde para ir ao hotel, mesmo tendo escondido seu cavalo na floresta. Naturalmente poderia contar a Diana quem eram Saurmont e Mailor - a mesma pessoa... Açoitando o cavalo, decidiu enviar a uma aldeiazinha que se encontrava no caminho de René um mensageiro com uma carta, prevenindo o Visconde da intriga de Saurmont.

Conhecedor de cada cabana e de cada abrigo num raio de cem léguas, o cigano logo encontrou um rapaz que por um escudo concordou em aguardar o Visconde e lhe entregar a carta traiçoeira. Isso resolvido, Henrique, a trote rápido, se dirigiu a Anjou.

Henrique conhecia a cela da moça e possuía um aliado no castelo. Mas, desta vez decidiu não pedir ajuda. Era uma noite escura, sem luar. Ninguém notou o cigano que se pôs numa canoa e se aproximou da janela do quarto de Diana; esta janela dava para um fosso cheio de água. Com a agilidade de um gato, subiu até a canhoneira e entrou no terraço.

Diana lia, completamente vestida para a fuga. Ao seu lado havia uma máscara e uma capa.

A janela alta e estreita não era defendida por grade. Sabendo não estar fechada, Henrique a abriu silenciosamente e, com certa dificuldade, entrou no quarto.

Vendo alguém saltar para dentro, ela se levantou rapidamente, mas ao ver o desconhecido, gritou de medo. Henrique a acalmou com algumas palavras de respeito e, sem perder tempo, começou a lhe contar o passado de Briand de Saurmont. Chegou inclusive a relatar o assassinato do Conde Guevara, quando debaixo da janela, se ouviu um assovio baixo.

Pálida de medo, Diana parecia não mais ouvir nada, mas o cigano viu um homem mascarado, com um chapéu largo caído até os olhos, fazendo impacientemente sinais com as mãos para eles. Ao tirar a luva, se via em seu dedo um anel de safira que René sempre levava.

— Corra, senhorita! Eis seu salvador. Mais tarde lhe contarei do terrível perigo do qual a livrei hoje, disse Henrique ajudando Diana a colocar a capa e a máscara.

O cigano não duvidava ser René o homem mascarado. Sabendo do aparecimento de Saurmont se dar dentro de uma hora e o Visconde, conforme o combinado, mais tarde, se René havia aparecido tão cedo, significava o aviso ter chegado a tempo. Em todo caso, o anel eliminava qualquer suspeita.

Por isso Henrique, sem vacilar, ergueu Diana e a colocou nas mãos do homem, pronto para recebê-la de pé no barco. Quando quis se unir a eles, descobriu ser bem mais difícil sair do quarto do que entrar nele.

Subitamente o homem do barco, mostrando muita pressa, deu-lhe um pesado saco de ouro e disse:

— Obrigado!

A seguir, sem esperar a resposta, tomou os remos e, em questão de segundos, o barco sumiu na escuridão. Quando, finalmente, o cigano conseguiu passar pela janela e chegar à outra margem, vencendo o fosso, tudo ao redor era silêncio.

Diana e seu raptor tinham desaparecido.

— Caramba! Agora, moleque, ninguém mais irá tirá-la de você. Puxa! Como o pequeno Visconde correu! Pensou consigo mesmo Henrique, rindo sozinho. Que pena eu não poder ver sua cara, Briand, quando encontrar o ninho vazio... No entanto é hora de cuidar das minhas equimoses. Espere só minha desforra!

Muito contente por ter alcançado seus objetivos, o cigano se dirigiu a uma pequena pousada ali nas redondezas.

 

O CASAMENTO

Saindo do barco, Diana viu seu pai esperando junto a uma liteira, acompanhado por numerosa escolta. Louca de alegria, se atirou a seus braços, e ele, emocionado, a beijou. Depois a conduziu à carruagem, e disse:

— Rápido! Rápido, minha filha, se você estima a vida de seu salvador.

Como num sonho, Diana permitiu a sentassem na carruagem. Dois senhores montaram nos cavalos e o pequeno cortejo rapidamente subiu o bosque circundante da cidade.

Quando a cortina da cabine foi aberta, a moça viu uma pobre igreja situada nos limites do povoado. Havia cabanas humildes, mal distintas na escuridão. Esses detalhes externos, contudo, deixaram de infundir temor na jovem, quando o noivo a tomou pela mão e a conduziu à igreja, onde se colocaram no altar.

Aliviada, deixou que a levassem à sacristia, onde logo foi assinado o documento. A seguir, aflita de curiosidade, voltou à igreja que era iluminada apenas por duas velas de cera, ardendo no altar. O velho padre, nitidamente nervoso, concluiu rapidamente o casamento dos jovens mascarados. Em quinze minutos o rito fora realizado. O marido acomodou Diana na carruagem e, conduzindo o cortejo nupcial, se pôs a caminho no mesmo minuto.

Diana não conhecia o castelo de Beauchamp. Admirada, viu com prazer seu novo lar ser uma enorme fortaleza, de espaços amplos e ameaçadoras fortificações, tendo um aspecto incomparavelmente mais imponente que as do castelo d'Armi. O vestíbulo e a escada principal estavam bem iluminados. Nos degraus, criados luxuosamente vestidos se colocavam em fileiras.

— Tire sua máscara agora, cochichou o Barão ao ouvido da filha, quando o marido lhe tomou a mão para conduzi-la pela escadaria.

A jovem esposa obedeceu mecanicamente. Na sua excitação não percebeu o esposo haver ficado com a máscara e os criados não levarem a flor branca e azul dos Beauchamp, mas sim, branca e verde. Todos estes detalhes lhe passavam desapercebidos, quando ela passou pela longa seqüência de aposentos luxuosamente mobiliados e entrou, por fim, num grande dormitório revestido de um tecido verde de flores de ouro. Ao fundo do quarto, destacando-se sobre um patamar havia uma grande cama adornada de brasões.

Fechando a porta, Diana tomou a mão do marido e nervosamente a apertou.

— Meu caro René! Disse ela emocionada. Permita-me uma vez mais agradecer sua grandiosa generosidade! Você ainda não sabe ter me salvado hoje de um duplo perigo. Graças a você me livrei de dois malditos. Toda minha vida me devotarei em provar minha fidelidade...

Ao não receber resposta, ela elevou os olhos e, admirada, olhou para o mascarado de traje azul de veludo, emoldurando a figura alta e delgada. Ele estava bastante nervoso e a sua mão tremia um pouco quando disse, tirando a máscara lentamente:

— Espero, Diana, não mude seu sentimento de gratidão para aquele que a salvou do Duque, mas não vai você tomar o nome do Visconde e sim daquele que somente lhe oferece amor e fidelidade.

Ao ouvir esta voz e ao ver o rosto pálido de Briand, Diana gritou de medo e pulou para trás, apoiando-se instintivamente na mesa. Mas essa sensação de fraqueza não se prolongou senão alguns segundos. Pálida, com o olhar vidrado, se atirou ao Conde e, segurando-o pelo braço gritava, devorando-o com os olhos.

— Você!... você é o homem com quem me casei?!

— Sim, Diana, sou eu... estamos definitivamente unidos. Pelo amor de Deus se acalme!

— Traidor, desonesto Barão de Mailor, dizia Diana em atos brados, com voz trêmula. Desgraçado!... casou-se na Espanha pensando ter matado sua esposa por lei... assassino de Raul!... sua voz se quebrou, porém seu rosto branco e seus olhos ardendo de asco assustavam...

Um impropério escapou dos lábios do Conde. Seu pressentimento não o havia enganado; de alguma maneira incompreensível o maldito Henrique se salvara e havia se vingado dele entregando-o. No entanto percebeu precisar naquele momento, mais do que nunca, de todo o seu sangue frio. Sufocando a fúria desencadeada dentro de si, respondeu com calma:

— É verdade, eu sou Mailor. Mas você não tem uma única prova e me disponho a corrigir meu delito lhe restituindo o nome e o título pertencentes a você por direito.

Diana riu.

— Você chama a armadilha covarde de hoje de "corrigir seu erro?" Está enganado, traidor repugnante, se pensa que serei conquistada com semelhante coação. Irei ao Rei, lhe contarei seus crimes e exigirei justiça! Não ficarei nem mais um minuto neste castelo!!

Fora de si, pálida, ela se lançou à porta gritando com voz irreconhecível:

— Pai! Pai! Venha cá!

Em dois saltos Briand a alcançou e a segurou pelos braços.

— Pare, Diana! Não se esqueça de que minha paciência também tem limite! disse ele em tom grave. Você é e será a Condessa de Saurmont. Você não irá ao Rei, mas ficará comigo, comportadamente, como minha mulher legítima. Esta é minha vontade e a ensinarei a respeitá-la. Vamos! Volte a si, seja sensata!

Ao som dessa voz irritada, metálica e diante de uma figura tão cruel e imperativa, Diana subitamente foi tomada por uma fraqueza, caindo desmaiada no tapete.

O Conde se pôs de joelhos e por um minuto a examinou com olhar carrancudo e demente. Uma terrível sensação de anarquia e paixão encheu seu peito. Depois de erguê-la rapidamente, cobriu de beijos a pequena boca pálida, pois naquele minuto não podia repeli-lo com ódio e desprezo.

— Finalmente você é minha! Nem o céu, nem o inferno poderão nos separar.

Briand assobiou alto e quase no mesmo instante se abriu uma porta lateral pela qual uma jovem camareira adentrou o quarto. Vendo sua nova senhora estendida no chão, a camareira soltou uma exclamação de espanto e surpresa.

— A Condessa se sentiu mal de cansaço; ajude-me, Nanon, traga-a de volta, ordenou Briand parando assim os gritos da empregada.

Esta se dirigiu ao vestiário trouxe as roupas de sua senhora. O Conde levantou a esposa e a sentou na poltrona, rodeando-a de almofadas. Com a ajuda da camareira, pegou um pesado manto de cetim, soltou os cabelos e a vestiu com uma larga roupa de seda branca. Os longos cabelos loiros de Diana se soltando, a rodearam como um brilhante vestido. Ao contemplá-la um fundo suspiro saiu do peito de Briand. Nunca a vira tão maravilhosa como nesse instante!

— Nanon — friccione as mãos da Condessa e dê-lhe sais para cheirar. Não a deixe nem por um segundo. Quando vier o vinho você a fará beber, disse enquanto se dirigia para a porta.

Com passos rápidos Saurmont se dirigiu à sala de visitas; achou ser conveniente conversar imediatamente com d'Armi contando-lhe o acontecido. Seria melhor ele próprio contar ao Barão seu passado, antes de Diana fazê-lo. Não encontrando d'Armi na sala de estar, Briand se dirigiu à sala de jantar onde viu o Barão sentado diante de uma mesa servida e saboreando, com os olhos, diversas iguarias. O tom alegre de sua voz indicava seu feliz estado de espírito. Obviamente não havia ouvido os gritos de Diana.

— Venha, Barão, preciso conversar com o senhor, disse o Conde, levando-o a um canto do salão.

— De que se trata? Sou todo ouvidos, perguntou o Barão vendo seu genro franzir as sobrancelhas.

— Quero lhe fazer uma pequena revelação, caro Barão. Espero sua condescendência para comigo, em memória de nossa larga amizade.

— Seja franco, caro Briand! Concordo com tudo antecipadamente, disse o Barão apertando fortemente a mão do Conde.

Um sorriso malicioso surgiu nos lábiosdo Conde.

— Há dezesseis anos sou seu genro, murmurou nos ouvidos de d'Armi, sou o falecido Barão de Mailor.

Se uma bomba houve caído aos pés do Barão, não o teria assustado tanto. De boca aberta e barba eriçada, ele pulou para trás:

— Como?? Hum!... Você — Mailor! O marido de Diana?! balbuciou ele; e ela sabe disso? Perguntou o Barão apavorado.

— Sem dúvida! Do contrário não lhe teria contado, não por falta de confiança, é claro, mas pelo desejo de poupá-la de desgostos, acrescentou Briand, pois precisava do Barão e faria de tudo para ganhar sua confiança.

— Infeliz! E se for descoberto ser você também o falso Conde de Saurmont? disse o outro.

— Acalme-se! Meu erro da mocidade foi tentar ser o Barão de Mailor, porém, logo ao receber a herança do tio espanhol, ele morreu. Com você fala, o verdadeiro e único Conde Eustáquio Briand de Saurmont, legalmente herdeiro e possuidor do nome e do título, disse rindo com gosto o Conde.

Briand ainda falava quando o Barão o puxou de encontro ao peito e quase o sufocou no abraço.

— Oh! Agora estou tranqüilo e contente. Tudo o que se refere ao maldito Mailor está sepultado, caro Briand! Mas me diga, como Diana recebeu esta notícia? acrescentou o Barão, segurando a mão de Briand amigavelmente. Lembre-se de que ela quase o reconheceu da primeira vez de sua vinda ao nosso castelo!... que memória fantástica!

Quem o entregou?

— Um vagabundo infeliz, meu devedor de muitos favores. Porém isso fica para depois; precisamos acalmar Diana com urgência. Ela está fora de si de tanta irritação.

Para isso conto com o senhor, Barão... espero por sua autoridade de pai ter mais sucesso do que minhas explicações.

D'Armi nervosamente alisou a barba.

— Oh! Oh! Temos uma tarefa nobre em nossas mãos! Se ao menos eu fosse o único a saber desta história... Diana é uma criança tonta... não compreende sua felicidade. Não dá valor à nobre generosidade de um cavalheiro, permitindo a ele corrigir moralmente o erro cometido e lhe restituir a posição e o título pertencentes a ela por direito. Eu, naturalmente, ainda mais o respeito pela luta árdua sustentada nesta situação. Seguirei os exemplos de bondade e generosidade até com os quais você se esforçou em corrigir seu erro de juventude, relacionando-se conosco com tamanha amizade e prestando à nossa família serviços tão importantes. Creia em mim, Briand, lamento profundamente a cegueira e teimosia de Diana e farei tudo o que estiver ao meu alcance para convencer esta birrenta, terminou d'Armi, apertando calorosamente a mão de Briand que respondeu do mesmo modo.

Nesse minuto, o panegírico do Barão lhe foi muito agradável.

Queria convencer a si próprio estar sendo generoso e, mais importante, convencer Diana disso.

— Eu lhe agradeço, Barão, por tão bem me ter compreendido. Mas, antes de conversarmos com Diana, vamos nos preparar um pouco. Vou dar a ela algo para beber.

Ele mesmo esquentou a taça de vinho, colocou na bandeja de prata o jantar, mandando a pajem levar tudo isso à esposa.

Depois o Conde se sentou à mesa servindo-se de um pedaço de carne de caça, mas não tinha fome. Apoiou o cotovelo na mesa e ficou observando d'Armi comer com verdadeira ânsia e beber uma taça após outra, ganhando coragem para a conversa com a filha.

A expressão do Barão era nervosa. Chupando a asa do faisão, ele, na realidade, estava entregue aos pensamentos, refletindo em sua posição desconfortável.

Astuto e hábil caloteiro, temia o olhar inocente da filha, a qual queria convencer a amar o homem que a saqueou, jogou-a indefesa e faminta à morte e, traiçoeiramente, matou seu noivo!... A voz serena da consciência sussurrava a d'Armi ter ele pela segunda vez se intrometido criminosamente na vida da filha, cujo futuro havia submetido à crueldade de seus interesses egoísticos.

Fosse como fosse, o Barão por todos os meios arrastou o minuto de explicações com a filha e Briand por duas vezes o lembrou do prometido. Por fim Saurmont teve de levar, quase a força, o Barão à porta do quarto onde Diana dormia.

Após liberar os dois criados, o Conde começou a andar impacientemente pelo aposento, à espera de que o Barão o chamasse.

Passou-se um quarto de hora. Briand esperava tenso. Aos seus ouvidos chegou o som abafado de uma voz irritada. Obviamente a conversa tinha sido das mais tumultuadas. De súbito, ouviu-se a voz aguda e cortante de Diana:

— Como, papai?! Você o perdoa!... Esse maldito assassino traiçoeiro!... se é assim, você é cúmplice e teve participação na asquerosa armadilha de hoje!... Não restam dúvidas de sua ajuda a assassinar René, para que ele não pudesse aparecer e me libertar de seu "honrado" amigo...

D'Armi respondeu algo incompreensível, mas Diana gritou:

— Mentira! Mentira! Fora! Saberei encontrar o Rei sem você para exigir justiça. Haverei de lhe contar tudo!

Passado um minuto a porta se abriu ruidosamente e por ela d'Armi saiu voando, como um relâmpago. Suas faces estavam vermelhas e seus cabelos despenteados.

— Nada!... não pude fazer nada! Ela não quer ouvir nenhuma razão... veja por si mesmo se pode fazer alguma coisa... disse ele suspirando.

Antes que Briand respondesse algo, o Barão o tomou pelo ombro, o empurrou para dentro do dormitório e fechou a porta.

Bastante irritado, Briand parou por um minuto e depois procurou os olhos de Diana. Absorta na oração, coberta com a capa dourada de seus cabelos soltos, a jovem parecia completamente alheia em sua terrível aflição.

Talvez ela nunca tivesse estado tão bela quanto nesse momento, revelando postura tão grandiosa em seu estado de desespero!

O coração de Briand batia com força; foi-lhe ao encontro e, inclinando-se diante dela, disse com voz trêmula:

— Diana! Perdoe-me... esqueça o passado! Quero corrigir todo o mal que lhe causei...

— Eu nunca o perdoarei! A noite terrível no bosque e a morte de Raul! gritou ela. Estamos separados por um abismo... paz e desculpas são impossíveis entre nós! Suma daqui! Você não tem sobre mim nenhum direito! Cínico! Não se importa com os sentimentos dos outros! Ainda não compreendeu o que me inspira, sendo diante de meus olhos amante de minha madrasta?! E agora meu pai, abandonando sua própria honra, traiçoeiramente me entrega a você! Oh! Como sou infeliz!! Ela prorrompeu em pranto e, tomada pelo desespero, levou as duas mãos à cabeça.

Briand ficou vermelho, com o sangue lhe subindo à cabeça.

— Criança idiota! Não me irrite! Você brinca com fogo, disse ele com a voz alterada. Hoje adquiri sobre você um direito sagrado!

— Traiçoeiro! Repugnante! Interrompeu-o com desprezo Diana.

— O amor não mede os meios. Já está feito. Meus direitos sobre você estão sacramentados pela igreja e assegurados por documentos. Perante as pessoas e Deus sou o seu marido. Não tolero estar me repelindo e me tratando como no primeiro encontro. Acate o inevitável!

Ele continuou e disse a Diana para se acostumar com ele mas, quando tentou beijá-la, foi repelido à força. Recuando alguns passos, ela gritou com o olhar de louca:

— Não me toque! Assassino repugnante! Você só me inspira medo e nojo.

Mais um passo e eu o sufocarei com minhas próprias mãos! Pensou ter encontrado uma vítima que não pode nem se defender?

O sangue subiu à cabeça de Briand. A fúria e a paixão o privaram de uns segundos de calma. Então tomou Diana rudemente pelo braço e berrou:

— Não me desafie, estúpida! Você tem de se curvar à minha vontade, do contrário, pregarei a certidão de casamento na cama e ordenarei às pessoas amarrarem a mulher que não me ouve, me repele e despreza meus direitos!

Diante do olhar demente e cruel de Briand, Diana fechou os olhos e gritando assustada, deu um pulo para trás.

— E então?... será sensata? Perguntou o Conde atraindo-a para si.

A moça se endireitou, empurrando-o e recuando alguns passos, falou com voz alterada:

— Nunca!

Furioso, Saurmont pegou o apito que usava para chamar os criados e assobiou diversas vezes. Logo se ouviram passos apressados, a porta se abriu e alguns criados e pajens pararam na soleira com tochas nas mãos.

— Venham aqui! gritou o Conde. Depois, voltando-se para Diana que petrificada olhava em silêncio para os empregados, ele perguntou baixando a voz:

— E então, linda caprichosa! Vai continuar teimando?

A moça nada respondeu, mas era fácil ver o crédito dado às ameaças do marido. Pálida, com o olhar imóvel, a boca semicerrada, ela desesperada, vagarosamente se aproximou dele.

— E então? Sim ou não? repetiu o Conde.

Os lábios dela se mexeram, mas ela não pronunciou uma única palavra. O Conde se considerava vitorioso e já olhava para trás, quase ordenando aos empregados que se fossem, quando, inesperadamente, sentiu um forte golpe nos quadris, quase perdendo seu equilíbrio. Aproveitando-se do instante em que o marido havia se virado, ela lhe tomou o punhal da cintura, cravando-o na altura das ancas, gritando com voz irreconhecível:

— Morra! Assassino de Raul!...

O Conde permaneceu imóvel por um minuto, depois conseguiu tirar o punhal do ferimento. O sangue escorria abundantemente sobre Diana e o chão, e Saurmont silenciosamente desceu à cama.

De início os empregados ficaram estáticos de medo, lançando-se logo em seguida ao socorro de seu senhor. O Conde abriu os olhos e com esforço, disse:

— Guardem a Condessa. Se ela sumir, vocês se arrependerão!...

 

A SEDUÇÃO DE RENÉ

Já há alguns dias no castelo de Beauchamp reinava extraordinária atividade. O jovem proprietário o preparava para receber a esposa, imaginando todo tipo de melhoramentos feitos em curto prazo.

Antes de tudo lhe parecia não ser correto estar com Diana nos grandes quartos de Marion, por isso ele pôs em ordem o quarto de dormir de sua mãe e arrumou todas as obras de arte e de luxo, que podia apressadamente arrumar.

No dia marcado do casamento, pela manhã, René examinou pela última vez o ninho luxuoso, para onde, à noite, ele iria levar a mulher amada.

Nessa vistoria o acompanhava Antônio Gilberto. Alegremente o Visconde mostrava pessoalmente os enfeites feitos para sua noiva.

Há quatro anos o jovem médico não se separava do Visconde ao qual se sentia sinceramente ligado; seu apego à única filha de sua senhora era sempre igual e a união de Diana e René o fazia completamente feliz.

Terminado o exame do quarto de sua futura esposa e convencido de que tudo estava elegante e confortável, o Visconde voltou ao quarto de dormir, sentou junto à janela aberta e ainda outra vez lançou um olhar curioso em direção ao quarto. Esta visão lhe trouxe um sorriso. Ele não sabia ser neste mesmo quarto o lugar onde se daria o drama mais trágico de sua vida. Felizmente ele desconhecia o futuro. Naquele momento René esperava coisa bem oposta.

Pouco a pouco ele caiu em profunda meditação. Diante dele passou rapidamente todo o passado: sua infância, o casamento com a traiçoeira Marion a quem tinha entregue o primeiro ímpeto de sua alma e ela pagou o amor dele com tormentos, traições e até tentativa de assassinato!... Tremendo nervosamente ele passou a mão pela testa.

Graças a Deus tudo isso tinha passado... Agora, com a imaculada e linda Diana começaria uma nova vida, tranqüila e cheia de felicidade.

Atormentado pela impaciência, o Visconde saiu uma hora antes do horário em que normalmente costumava sair. Antônio Gilberto e dois lacaios o acompanhavam; a liteira e a escolta estavam escondidos em sua casa em Angers.

O caminho era longo; aproximando-se de Angers René sentiu cansaço e sede, então, passando em frente a um hotel sentiu aroma apetitoso vindo de uma porta aberta.

Parou o cavalo e informou Antônio Gilberto ser preciso descansar um pouco e permitir aos cavalos tomar fôlego, pois nessa noite ainda teriam muito trabalho.

— "Monsieur"! O hotel "Rabo do Diabo" tem má fama e, dizem, sempre está cheio de pessoas suspeitas. Já estamos perto de Angers e lá o senhor poderá descansar uma hora... assinalou Antônio.

René, com curiosidade, olhou a placa que retratava um grosso rabo preto, terminando em tom vermelho fogo.

— Este rabo parece muito com um salsichão e está despertando meu apetite, disse ele rindo. Se lá existem pessoas suspeitas, perigosas para qualquer gente pobre ou viajante solitário, então quatro pessoas armadas vão mantê-los em um temor seguro, acrescentou saltando para o chão.

Ele se sentou à mesa, pediu uma garrafa de vinho e um pedaço de caça e começou a examinar o cômodo naquele momento quase vazio, pois apenas no canto oposto estavam sentadas atrás de suas canecas de cerveja duas pessoas mal vestidas. Perto deles, apoiada na mesa havia uma mulher magra que imediatamente chamou a atenção do Visconde — era uma criatura muito jovem, delicada, esbelta e tão meiga quanto feia, negros cabelos espessos, da cor do azeviche emolduravam o rosto de coloração de bronze; os olhos grandes e ardentes, a boca purpúrea com um sorriso provocante lhe davam uma beleza um tanto demoníaca. Ela estava vestida com uma saia raiada viva e um corpete de veludo; suas mãos bonitas estavam descobertas e os dedos bronzeados dedilhavam a mandolina[30] pendurada em seu pescoço.

— Ah! Que moça maravilhosa! Exclamou René involuntariamente, sempre admirador apaixonado da beleza.

O ouvido apurado da cigana percebeu a exclamação.

Ela enrubesceu e, aproximando-se do Visconde, perguntou com profunda reverência:

— O senhor permitiria eu lhe cantar uma canção?

— Naturalmente! Cante, encantadora criança, e dance também, se você é experiente nessa arte, respondeu o visconde com um sorriso.

A cigana rapidamente tirou a mandolina e, agarrando o tamborim, começou uma daquelas danças atraentes, cujo segredo ainda é conservado entre os nômades daquela raça.

René com olhar ardente a seguia. Tendo provado o vinho espanhol trazido pelo taberneiro, ele se admirou muito de que em tal lugar perdido existisse bebida tão boa.

Acabada a dança, a cigana se aproximou da mesa; sua face morena estava corada e seu colo ofegava muito. Os grandes olhos negros dela lançaram em direção do jovem

um verdadeiro olhar significativo. A moça era de fato sedutora. René, não escondendo absolutamente sua admiração, tirou duas moedas de ouro e as atirou no tamborim.

A cigana balançou a cabeça e, lançando as moedas na mesa, disse em tom carinhoso:

— Em lugar do ouro, admirável senhor, dê-me um gole de vinho da taça onde seus lábios tocaram e Topsi ficará feliz.

O rosto de René pouco a pouco ficou todo vermelho e seu atrevido olhar ardente como que aumentaram em direção ao rosto bonito da cigana.

— Ah! Seu nome é Topsi! Estou vendo não lhe faltar astúcia... venha para cá, sente-se ao meu lado e beba!

Rápida e graciosa como uma lagartixa, a moça deslizou em direção ao banco e agarrando-se ao jovem, bebeu de sua taça.

René abraçou-lhe a cintura fina e lhe beijou o ombro desnudo.

Com crescente descontentamento Antônio Gilberto observava esta cena. Diante dessa última "amabilidade", ele enrubesceu fortemente. Revoltava-o a idéia de que esses lábios que dentro de algumas horas iriam beijar a cândida Diana, eram profanados com o contato da vagabunda cigana. Mas... que fazer? Furioso, ele saiu do quarto e olhou para os cavalos. Nesse mesmo instante se convenceu de estarem eles completamente descansados, voltou ao hotel para informar ao Visconde tudo estar pronto.

Para sua grande surpresa, o banco estava vazio e René e Topsi tinham sumido.

Vendo seu espanto e impaciência, o taberneiro, maliciosamente lhe deu uma piscada.

— Tenha paciência, "monsieur", a bela jovem e o magnífico senhor estão lá em cima — e ele mostrou a escada. Eles sem dúvida logo voltarão.

Enraivecido, Antônio Gilberto estava indignado e andava pelo quarto.

Como o Visconde estivesse demorando, ele decidiu subir. Entrou num longo corredor onde havia quatro portas; três delas estavam abertas e a quarta estava fechada por dentro.

— "Mr." René! Já é hora de partir... os cavalos estão prontos! Conseguiremos chegar a tempo! Gritou Antônio batendo na porta.

Não conseguindo resposta, ele bateu mais forte e repetiu:

— Apresse-se, "Monsieur", ou chegaremos muito tarde!

Tudo estava silencioso.

Uma trágica intranqüilidade tomou conta do médico: já não teriam matado René? A cigana era suspeita e seus dois acompanhantes haviam sumido da taberna.

Arriscando provocar a fúria do Visconde, Antônio resolveu arrombar a porta. A agitação lhe dobrou as forças e a porta se despedaçou em mil pedaços.

A chama fumegante de uma vela iluminava o quarto. Na cama estava deitado, seminu, René. Mesmo ao primeiro olhar Antônio se convenceu de que a roupa, armas e objetos preciosos tinham desaparecido junto com a cigana. No primeiro instante ele pensou que René estivesse bêbado, dormindo. Inutilmente o sacudiu. Ele nem se moveu. De sua boca saia um aroma estranho, picante, convencendo o médico de que ao vinho tinha sido adicionado forte substância narcótica. Evidentemente havia sido montada uma armadilha ao Visconde, com o objetivo de atrapalhar seu casamento com a angelical Diana.

Um terrível desespero tomou conta do fiel servidor. Completamente abatido, ele sentou junto à cama. Mas logo seu caráter enérgico o levantou. Ele resolveu se dirigir pessoalmente à igreja e avisar d'Armi sobre o atraso inesperado e levá-lo com Diana ao castelo de Beauchamp onde ninguém procuraria a jovem e onde, na manhã seguinte, se poderia realizar o casamento.

Animado com a nova decisão, ele desceu e ordenou a um servo procurar os cavalos e a outro tomar conta do senhor. Depois, a toda carreira, correu para o lugar de encontro.

A Noite de São Bartolomeu

Quando seu cavalo, já espumando, parou em frente à igreja, ele viu estar ela fechada, mas na casa do sacerdote ainda cintilava uma luzinha. Não vacilando um minuto ele se dirigiu para aquele lado.

Depois de longa conversa ele foi admitido na casa do sacerdote.

Surpreso, quase aterrorizado, Antônio soube que um casamento secreto tinha sido realizado e que, assim como o noivo, a noiva não tinha tirado a máscara. O sacerdote não podia dizer nada sobre suas personalidades, mas acreditava serem aquelas pessoas de quem Gilberto falava.

Apiedado do infortúnio e intranqüilidade aparente do jovem médico, o respeitável ancião trouxe os livros religiosos e, não acreditando em seus próprios olhos, Antônio leu o registro do casamento realizado entre Eustáquio Braind, Conde de Saurmont e Diana, viúva do Barão de Mailor.

Em seu sombrio desespero Antônio pulou para a sela. Pelo visto tinha se levado a efeito uma astuta intriga e a confiante Diana fora enganada pela aparência... Briand e René tinham a mesma estatura e ela pensava estar se casando com Beauchamp.

Viajando através de Angers, o médico pegou no hotel de Beauchamp novas roupas para seu senhor e depois se dirigiu vagarosamente de volta ao hotel de má fama.

Quando ele chegou René ainda dormia, pálido como morto; ao redor dos olhos tinham se formado círculos escuros e um tremor nervoso percorria seu corpo.

Diante desta aparência Antônio deixou escapar uma surda surpresa:

— Ah... "Monsieur!" O que fez!... Diana se tornou vítima de uma intriga infernal! No atual minuto ela se tornou a Condessa de Saurmont... disse tristemente Antônio.

— Não diga! Como pode acontecer semelhante coisa? exclamou René com voz rouca, acordando.

Quando o médico lhe contou tudo quanto sabia, o Visconde segurou com as duas mãos a cabeça e algumas lágrimas de raiva e vergonha rolaram pelo rosto. Via agora o resultado de sua aventura amorosa; como um estúpido ele tinha caído numa rede armada e traiu sua noiva, tendo confiado a honra dela às mãos de abominável pessoa!...

Foi dominado por um ódio insensato em relação a Saurmont e decidiu nesse mesmo dia chamá-lo à luta até a morte.

Procurando não pensar nos excelentes planos de vingança, o Visconde voltou para seu castelo sombrio e pensativo.

Quando estavam se aproximando da Clareira "Cruz Negra", uma pessoa indo numa mula os encontrou.

— De onde o senhor está vindo tão cedo? perguntou o Visconde, reconhecendo o velho médico Lucca.

— Do castelo de Saurmont, Senhor. Lá aconteceu uma desgraça: ontem a noite o Conde se casou; passada uma hora de seu regresso ao castelo sua companheira o apunhalou...

— E ele morreu? exclamaram ao mesmo tempo René e Antônio.

— Não, embora estivesse por um fio para isso acontecer. Á esposa lhe cravou o punhal nos quadris, mas a lâmina escorregou para o lado. O ferimento é sério mas não mortal.

— E a Condessa? perguntou Antônio com a voz tremendo.

— Inicialmente eu pensava que ela perderia o juízo, tal era sua agitação. Dei então um narcótico forte; mais tarde veremos. Mas permita que eu me despeça, Sr. Visconde! Preciso visitar alguns doentes difíceis e à noite devo estar novamente no castelo de Saurmont.

René e seu médico, não trocando palavra alguma, voltaram ao castelo. O Visconde estava completamente abatido com a desgraça provocada por sua leviandade. Além disso a mistura feita para ele no vinho, com substâncias tão fortes quanto nocivas fazendo-o sentir-se mal, fê-lo de madrugada ter febre e delírio. Em muitas semanas seguintes René esteve próximo da morte. Se conseguiu sobreviver foi graças ao tratamento e sacrifício de Antônio Gilberto. Por fim, após a longa doença é que começou aos poucos a se restabelecer.

­­Graças ao tratamento do velho médico e de sua jovem e forte natureza, Diana logo se restabeleceu de seu estado doentio. Um sombrio desespero substituiu a excessiva agitação. Por horas ela esteve deitada calada, com os olhos fechados e durante vários dias nada comeu. Ela sabia estar prisioneira, sob vigilância severa. Saurmont estava vivo, mas ela nada perguntava sobre ele e nem sobre o pai que não via desde a noite fatal.

Mas, em compensação, de Gabriela ela soube de todos os detalhes da aventura de René. Uma bonita camareira recebia todas as novícias através de Antônio Gilberto, não deixando de informar sua senhora sobre toda a maldosa astúcia do Conde, que tinha tramado tal armadilha diabólica. A camareira procurava de todas as formas justificar o Visconde, mas tudo em vão, pois Diana, implacavelmente, condenava duramente o comportamento vil do jovem. Ela suspeitava até que René, ele próprio, tinha arranjado o encontro com a cigana para ter motivo de se embebedar e se livrar da obrigação, o que, segundo ela, Diana, acentuava a atitude leviana do Visconde. Gabriela tentava inutilmente convencê-la de ter sido quase envenenado, estar doente em vista de sua infeliz loucura e seu desespero ser ilimitado. Diana nada queria ouvir não permitindo desculpas. Por fim proibiu Gabriela pronunciar o nome do Visconde. O estado de alma da jovem mulher era terrível... o sentimento de solidão a atormentava muito. Não falando mais sobre René, até o pai era, em sua relação, um traidor. Ela tinha sido dada para Saurmont de corpo e alma. Nessas horas de desgosto, a lembrança de Raul despertava nela uma nova força... mas agora ela, por toda vida, estava ligada ao assassino de sua felicidade e de seu futuro!

Por três semanas a vida de Briand esteve em perigo ,e, depois ainda, dias se passaram para que voltasse a si, recobrando os sentidos. Sentia todo o corpo machucado e os órgãos sensíveis. Inutilmente ele tentava se explicar por que estava deitado na cama se sentindo tão fraco. De repente seu olhar pousou no Barão João, que estava sentado numa poltrona à cabeceira e visivelmente mergulhado em pensamentos desagradáveis. Então o Conde recobrou a memória e, sem dificuldade chegou até a mão de d'Armi. Este rapidamente se voltou e exclamou contente:

— Até que enfim o senhor está me olhando como pessoa sensata! Graças a Deus o delírio passou! Agora tudo irá bem. Fique calado. Está terminantemente proibido de falar, acrescentou, vendo que o Conde queria expressar algo.

Calma! Estarei às suas ordens até suas forças se restabelecerem.

— Uma palavra... onde está Diana? murmurou Briand.

O Barão enrugou as sobrancelhas.

— Acalme-se! Diana está no castelo e com saúde. Desde esse dia o Conde começou a melhorar. Em quinze dias se levantou. Havia retornado toda sua presença de espírito e sua energia natural. O Barão lhe contou que ao tempo de sua agitação provocada pela ferida, Diana tentava fugir, mas ele, como seu pai, impedia tal loucura. Seria realmente loucura Diana tentar fugir, mas então João tinha ordenado que a vigiassem, e, após alguns ataques de fúria, Diana caiu numa sombria apatia.

— Eu não a tenho visto desde a fatídica noite, continuava d'Armi. Isso provocaria, apenas cenas desagradáveis... Ela queria me forçar a lhe devolver a liberdade e o senhor está entendendo, meu querido amigo, que seria difícil lhe recusar isso... guardei a esposa para o senhor, o restante será trabalho seu!

Briand não respondeu, apenas lhe apertou a mão.

Nas longas horas quando a fraqueza o obrigava à inatividade, o Conde refletia sobre os recursos que tinha em mãos para fazer entrar em acordo a esposa, cujo ódio o ameaçava a cada momento com a morte. Afinal ele chegou à conclusão de que d'Armi deveria ajudá-lo a amansar Diana. Isso não seria agradável ao Barão, certamente, mas, por dinheiro, João concordaria com qualquer coisa.

Passados alguns dias surgiu uma oportunidade de se tocar no assunto.

— Penso que em breve estaremos nos separando, assinalou d'Armi, os olhos semicerrados, recostando-se para trás. Enquanto eu cuidava do senhor perdi muito tempo e abandonei meus negócios, sofrendo grandes prejuízos.

O Conde entendeu; em seu rosto surgiu uma expressão de arrogante desprezo.

— Deus me guarde, querido sogro, que por minha culpa tenha tido prejuízos... disse o Conde colocando um tom de brincadeira na voz. Compensarei o senhor a cada hora perdida, mas antes necessitarei de seu favor amigo. Escreva a carta que vou lhe ditar. A cada palavra lhe pagarei dois ducados.

— Ah! murmurou o Barão, como que mudando de expressão e assumindo uma alegria celestial. Dite, Sr. Briand...

O Conde trouxe um porta-jóias de ferro e o colocou na mesa. Quando ele o abriu d'Armi viu estar cheio de ducados, até a borda. Os olhos do Barão brilharam com cobiça selvagem.

— Quando tiver acabado de escrever a carta este porta-jóias será seu, acrescentou Saurmont colocando diante do Barão a folha de pergaminho e a pena.

D'Armi não vacilou. Escreveu:

"Minha querida filha Diana!

O terrível remorso me obrigou a ir embora para longe. O desespero e a vergonha não me permitiram vê-la. Os motivos de minha conduta indigna são bem mais importante do que você possa imaginar, minha adorada criança.

Não reprove seu pai criminoso. Estou passando momentos difíceis, procurando expiar meus erros.

O Conde não é completamente culpado como você pensa. Eu o levei a essa trama, concordei com seu casamento e, com meu título de pai, encobri essa desonestidade. Não tinha dinheiro e era preciso arrumá-lo e a pessoa que lhe revelou isso esqueceu de acrescentar minha carência, graças ao meu caráter irritadiço e impetuoso.

Cometi no passado um crime abominável e o Conde de Saurmont tem provas assinadas por minha mão desse crime cometido.

Se você insistir na vingança contra o Conde, e se forem revelados meus erros anteriores, então eu estarei perdido com ele, pois nossos destinos estão intimamente ligados — o desaparecimento de um levará fatalmente à ruína do outro.

Diana! Imploro de joelhos — tenha piedade de mim! Se levar a queixa ao Rei, tudo estará perdido. Mas tenho esperança em sua generosidade.

Como seu pai não é criminoso comum, você não gostará que sua cabeça caia sob o machado do carrasco e o velho nome d'Armi, também seu nome, seja para sempre difamado.

"O Conde tem pensado que, com os longos anos de sua vida irrepreensível, ele reparou o passado e está em tal desespero que a nada dá valor e poderá ser arrastado à ruína tanto quanto eu".

Tendo escrito tudo isto sem pausa, o Barão parou, e com ar preocupado coçou a cabeça:

— Com os diabos! Que coisas estúpidas e perigosas eu escrevi... isto é uma besteira... não sei se posso assinar...

— Se está vacilando, rasgue a carta, antes que ela caia nas mãos de sua filha, respondeu Briand, pegando calmamente o porta-jóias.

O Barão empalideceu.

— Mas que idéia é essa, querido Briand! Tenho coragem suficiente para transferir uma pequena mancha para meu honroso nome, se o assunto de que se está falando é para agradar um filho e amigo, disse ele, apressadamente assinando a carta e a passando ao Conde.

Esse, calado, aproximou dele o dinheiro prometido. D'Armi apoiou as duas mãos na caixa de jóias, como receoso de que lha tirassem.

— A propósito — eu esqueci de lhe dizer que recebi hoje uma carta muito importante e tenho de partir imediatamente.

— Vá, querido Barão! Eu sei que assuntos importantes exigem sua presença. Mas antes me permita agradecer por toda fidelidade de que me deu prova.

Eles se beijaram.

Acompanhando a visita, o Conde perguntou onde ele iria.

— Angers, respondeu d'Armi, saltando para a cela. Voltando a seu quarto, Briand segurou a preciosa carta e resmungou, zombando com desprezo:

— Que felicidade ter tal sogro conciliador! Espero eu não estar enganado, contando com a generosidade da minha excelente esposa...

Depois se apoiou à escrivaninha e cismou com aspecto preocupado. Antes de falar com Diana considerava indispensável se avistar com Lourença e acalmá-la, pois era perigoso irritar a megera.

Sempre a estranha influência o prendia a essa mulher... e, sem considerar a ira e a repugnância interior, ele constantemente voltava a Lourença...

Considerando tudo isso, ele resolveu se dirigir imediatamente ao castelo d'Armi. Já que o Barão estava em Angers, então nada atrapalharia a explicação que, previa ele, seria muito agitada. Decidiu ser severo com Lourença.

Não se sentindo agradado em ir a cavalo, ordenou aprontassem a liteira. Após algumas horas de cansativa viagem, chegou ao castelo d'Armi, berço de seus crimes passados e de seus atuais inimigos.

No antigo castelo havia poucos serviçais e ninguém avisou a proprietária de sua chegada.

O Conde se dirigiu diretamente ao quarto de Lourença. Repentinamente chegaram a seus ouvidos gritos e maldições horríveis. As vozes lhe eram bem conhecidas e ele logo compreendeu estar acontecendo entre o Barão e a esposa uma cena...

Briand murmurou maliciosamente, esquecendo estar ele na mesma situação:

— Ora, ora!... ele não se decidiu ir a Angers sem ter se avistado com sua cara metade!... A senhora Lourença sabe excelentemente manter a disciplina! Por Deus! acrescentou, abrindo de súbito a porta. Ele lhe dará o relatório sobre o acontecido... Vai me libertar de detalhes aborrecidos...

Vermelha como um pimentão, asquerosa e terrível em sua roupa suja e desarrumada, Lourença, enfurecida, sapateava e saltava no mesmo lugar, com tal força e ligeireza que era difícil imaginar em tal bola de carne. d'Armi estava com o rosto vermelho, cabelos despenteados, gola rasgada, mostrando claramente estar expiando cruelmente ali o favor recebido no castelo de Saurmont.

Diante da presença do Conde, o Barão soltou algumas exclamações incompreensíveis e, gesticulando muito, se retirou do quarto. Pareceu a Briand estar ele aliviado com o aparecimento de Saurmont.

Lourença, sacudindo suas pesadas bochechas se lançou em direção do Conde gritando:

— Traidor! ... Assassino desprezível!... Finalmente você apareceu!...

Briand, muito calmamente, trancou o ferrolho da porta; depois, dando-se conta da fúria, agitou o açoite de uma forma significativa no ar...

O Conde entendeu que desta vez deveria ser duro e corajoso; além disso, nos ataques de raiva da Baronesa, ele sempre perdia o poder.

— Ouça, Lourença! Não me irrite com seus gritos, disse interrompendo-a. Eu ainda estou muito nervoso para ouvi-los e posso facilmente perder o controle. É melhor conversar com calma... somos pessoas inteligentes e nosso amor mútuo não sofre nem um pouquinho por causa desse casamento. Você sabe muito bem que os vínculos legais nunca me limitaram. Graças à nossa calma e comum segurança, eu devia insistir nesse casamento. Aliás, ele acrescentou sorrindo, eu reparei em parte minha traição... eu por pouco não morri devido a um ferimento provocado em mim por esta admirável insensata.

Conhecendo seu amor eu apareci por aqui para recobrar as forças em sua presença. Será possível que você esteja pensando, querida Lourença, em que eu posso esquecê-la graças à mocinha ingrata? Diana não é mais do que um brinquedo, um simples passatempo...

À medida que ele falava, o rosto de Lourença se clareava. Ela cruzou suas mãos carnudas e lágrimas fingidas rolaram de seus olhos.

— Pessoa repugnante, ingrata! Posso eu acreditar em suas palavras?!

Ele gemeu.

— Sem dúvida! Que casamento pode perturbar nosso acordo amoroso?... Olhe! E ele tirou do bolso uma caixinha.

— Esta jóia era o meu presente de casamento para Diana. Depois do procedimento dela para comigo eu a considero indigna de minha atenção e lhe peço usar esta jóia escolhida com as melhores das intenções.

Tendo ele se esclarecido completamente, Lourença se lançou ao pescoço do Conde e o beijou ardentemente; sem levar em consideração a repugnância interna, Briand lhe retribuiu o beijo e, não modificando o aspecto sério, começou a observar como Lourença, com trejeitos diante do espelho provava seu presente.

Antes do almoço a Baronesa se lembrou subitamente de seu marido.

— É preciso chamar este velho imbecil... pessoa horrível! Ele está sempre tramando alguma coisa pelas minhas costas, mas eu tenho a fraqueza de amá-lo. João! João!

Gritou ela com sua voz estridente. Venha! Venha! Estou lhe pedindo!

Logo surgiu a cabeça despenteada do Barão à porta.

D'Armi olhou desconfiadamente para o quarto. Apenas quando Lourença lhe estendeu a mão e, com majestosa indulgência repetiu que o desculpava, o rosto arranhado de d'Armi se tornou claro e a paz amiga foi restabelecida.

Todo o resto do dia Lourença se caracterizou por uma bondade angelical. Ela chamava Briand de seu querido genro. Com relação a Diana, falava com pura bondade materna e servia o Barão cordialmente; ele, com aparente deleite devorava uma quantidade incrível de pratos. Sim — nenhuma nuvem perturbava a paz e o Conde voltou para casa bem tarde da noite.

No dia seguinte Briand, de manhã cedinho começou a se preparar para o importante e difícil encontro com Diana. Sabia que a jovem mulher estava bem de saúde, mas seu estado de espírito deveria ser terrível.

Vestiu um traje rico mas sóbrio, de veludo preto, o que ressaltava ainda mais sua palidez mortal.

Chamou o criado e o enviou à esposa para lhe comunicar que iria conversar com ela dentro em pouco, e lhe deu a carta do Barão para que entregasse a Diana. Quando lhe pareceu haver tido tempo para ela examinar o conteúdo da carta do pai, o Conde se dirigiu aos seus aposentos e entrou, quase ao mesmo tempo em que o criado saía.

O Conde ordenou primeiramente a todos os criados abandonar os cômodos vizinhos.

Diante da entrada do esposo, a jovem estava parada junto à janela e nem sequer se mexeu.

Briand se aproximou e se inclinou gentilmente. Ele se sentiu visivelmente abatido com a mudança ocorrida nela. Seu rostinho infantil comumente sorridente tinha agora uma sombra dura de decisão.

Ela não respondeu à saudação reverente de Saurmont. Seus olhos grandes e brilhantes se dirigiram a ele cheios de ódio; a voz lhe faltava, os lábios tremiam nervosamente e ela se esforçava dificilmente para vencer a agitação que a dominava, o que era bem visível. Por fim conseguiu se conter e pôs sua diáfana mão na carta do Barão pousada no peitoril da janela.

Com voz surda mas nítida, ela disse:

— Esta carta, Conde de Saurmont, me demonstra apenas ter eu um assunto a tratar não com uma, mas com duas desonestas pessoas, e, para infelicidade minha, uma delas é meu pai. Considerando sua idade e a denominação de "pai" que ele invoca, eu concordo em calar e não me dirigirei ao Rei com a exigência de justiça pelo delito doloroso perpetrado contra mim. Para meu silêncio coloco uma única condição: me restitua imediatamente a liberdade e me livre de ver sua odiosa pessoa.

Esgotada, ela se calou. Quanto a Briand, mal escondia sua desagradável decepção com o resultado da carta do Barão - ele havia esperado melhor reação da parte dela.

Mas, controlando-se rapidamente, disse friamente:

— Estou vendo, minha senhora, que seu ódio implacável não se satisfez com o ferimento grave que me ocasionou. A respeito da carta de seu pai, desconheço o conteúdo.

Se me permite lê-la, eu talvez compreenderei suas palavras.

Com olhar desconfiado e curioso Diana entregou ao Conde a carta.

Ele a leu com interesse fingido, refletindo em seu rosto difícil surpresa.

— A mim parece, minha senhora, disse ele devolvendo a carta, que seu pai procedeu muito imprudentemente colocando-se em suas mãos. Sim, tudo o que ele escreve é verdade. Ele é o mais culpado e sempre me instigava para o mal, movido pelo sentimento de odiosa cobiça.

Minha juventude pode lhe servir de desculpa. Ao tempo de nosso primeiro casamento eu tinha apenas vinte anos, mas o Barão era muito astuto e pobre...

Expressão de indescritível sofrimento desfigurava o rosto de Diana. Vendo que Briand deu um passo em sua direção, ela imediatamente recuou.

Fingindo nada ter notado, o Conde continuava:

— Não eu, mas seu pai lhe implora o silêncio. De mim mesmo não tenho a mínima intenção de incomodá-la, se você conseguir uma solução. Mas não aceite suas condições propostas. A senhora deveria entender que, para arriscar mais do que arrisquei, é preciso amar você até a maldição!... Não pode recusar tão facilmente o que foi adquirido por preço tão alto.

Não temo a morte e a vida tem pouco valor para mim. No momento estou cansado pois estive caçando uma lebre. Aborrecem-me as eternas explicações de seu pai me extorquindo dinheiro e sua madrasta me impondo ser amante dela... ambos me mantêm nas mãos devido ao infeliz segredo de meu passado criminoso... Uma bala sempre me livraria da justiça humana. Mas... não quero morrer antes de me vingar... Vou me ocupar para que descubram todos os casos duvidosos do nobre Barão d'Armi... ele, tendo trocado de roupa com um médico, estava dando veneno para minha esposa! É um covarde!... Vão julgá-lo e cairá no patíbulo pela mão do carrasco... bem o merece... Você quer ser livre, minha senhora, como se nosso ódio não permitisse nenhum compromisso... Bem! Eu mesmo a conduzirei ao Rei... faça sua queixa e me acuse! Obrigue-me a reparar com a morte minhas faltas cometidas contra você!

O Conde se calou. Estava pálido, seus lábios tremiam.

Com o olhar sombrio, apaixonado, ouvindo o som surdo e tremido da voz metálica de Saurmont, a terrível idéia de entregar o pai nas mãos do carrasco, provocaram em Diana uma horrível impressão. Ela fechou os olhos e, tremendo, se encostou na janela.

Briand, de coração palpitante e ansioso, a seguia. Tinha posto tudo em jogo... ter-se-ia ele enganado com a generosidade de sua esposa? Seu ódio sacrificaria a cabeça do pai?!

— Conde de Saurmont!... Eu vou me calar, murmurou Diana apertando ambas as mãos no peito estrangulado. Cortarei o cabelo para que tenha certeza de que nunca vou me ligar a nenhum homem. Apenas me permita ir embora...

Briand balançou negativamente a cabeça.

— Você não me entendeu, Diana, se considera a possibilidade de algum meio que a livre de mim! Perdê-la para mim é pior que a morte! Resolva: ou fica aqui como minha esposa ou a envio ao Louvre, ao Rei!

O rosto dela se cobriu de palidez mortal; em verdade em sua alma se passava amaríssima luta pela emoção demonstrada.

— Então?... então, minha senhora? Estou esperando suas ordens. Vamos ou ficaremos aqui resignados? Perguntou o Conde com a voz abafada pela emoção.

— Fico... murmurou ela, pálida como um papel. Ela não demonstrou a mínima resistência quando Briand a puxou para seus braços e a beijou ardentemente.

Diana suspirou profundamente e abaixou a cabeça lentamente no peito do Conde. Ele estremeceu. Somente agora ele notara que ela tinha desmaiado.

Levaram Diana para a cama e imediatamente foram enviados mensageiros para trazer médicos.

Todos eles, unanimemente, disseram ser a doença muito perigosa e previam um final mortal.

Briand ficou fora de si! No limiar de sua felicidade a morte iria lhe roubar o ser tão querido?!...

Tomando conhecimento de que o ilustre Ambrósio Pare se encontrava em Angers, o Conde conseguiu por enorme soma que ele viesse ver Diana.

Após algumas semanas de luta com a morte, a arte do ilustre médico conseguiu salvar Diana.

E, certo dia, de manhã, a jovem adormeceu profundamente. Pare a examinou atentamente, colocou a mão no ombro de Briand e disse seriamente:

— Senhor Conde! Sua companheira vai viver! Mas me permita lhe dizer algo: não tenho direito algum, nem vontade de saber quais inquietações morais conduziram a jovem para tal perigosa doença, mas devo preveni-lo de que o estado dela exige tranqüilidade completa e a mínima agitação lhe poderá ser fatal!... serão precisos longos meses para que a senhora de Saurmont recupere a saúde...

Suas palavras provocaram uma desagradável agitação em Briand, que, resignado, acatou todas as determinações do famoso médico.

Diana estava se recuperando com imensa lentidão. Ela tinha se tornado muito fraca e irritadiça.

Notando ser sua presença prejudicial à Condessa, Briand evitava visitá-la para não retardar a recuperação.

O Barão seu pai tentava vir visitar a filha no período do delírio e, uma vez, quando ela estava consciente, só o simples fato de vê-lo lhe provocou convulsões. Por isso o pai também se abstinha de visitá-la. Inicialmente ele ficou visivelmente amargurado, mas isso durou pouco e logo voltou a sua vida dissoluta.

Por esse tempo o Conde recebeu da Espanha notícias da morte de um primo de sua falecida esposa que tinha deixado grande herança à qual ele tinha intenção de disputar com outro parente. Seu confidente o aconselhou a ir pessoalmente acompanhar o andamento dos negócios. E o Conde decidiu seguir este conselho.

Os preparativos para a partida foram rapidamente feitos. Mesmo na véspera o Conde enviou um recado a Diana, informando-a de estar partindo por alguns meses e solicitando lhe permitisse conversar com ela.

Ela o recebeu no gabinete contíguo ao dormitório. Magra e pálida, ela estava deitada no divã, amparada pelos travesseiros.

O Conde se comportava com reserva e respeito. Informando-a sobre os negócios que o levavam àquela viagem, ele acrescentou com contida emoção:

— Estarei fora por quase um ano, Diana, e levo comigo uma triste convicção de que minha ausência vai ser para você o melhor remédio. Você será a real proprietária do castelo; seus caprichos e ordens serão para todos a lei. Peço apenas uma coisa a você: dê-me sua palavra de não tentar fugir, vai viver até minha volta no castelo e conservará a honra imaculada de meu nome. Isto me será suficiente — sua promessa; eu acredito em sua nobreza como em Deus.

Leve rubor apareceu no rosto da jovem, recobrando o ânimo. Pelo visto a partida do marido lhe tirou um imenso peso...!

Estendendo-lhe a mão que ele beijou, ela respondeu:

— Prometo-lhe que não deixarei o castelo de Saurmont e manterei minha honra, como até hoje o fiz.

Na manhã seguinte Briand partiu. Contando com a promessa de Diana, ele, não obstante, tomou todas as medidas para que se tornasse impossível seu seqüestro, pois não acreditava em René.

A liquidação da herança e o processo retiveram Saurmont mais de um ano na Espanha. Ele escrevia a Diana regularmente e, através de suas respostas, soube viver ela muito isoladamente, apenas visitando a Sra. Montfort de vez em quando no convento.

Finalmente todos os assuntos foram resolvidos.

Em sua volta, passando por Paris, Briand se apresentou ao Rei e, com a ajuda do Duque de Guise, recebeu nomeação na corte.

Depois partiu para Angers.

Ele pretendia trazer Diana a Paris para apresentá-la à Corte como sua esposa.

 

DIANA NA CORTE

Us longos meses de calma e solidão tiveram um efeito benéfico sobre a saúde de Diana. Sua beleza havia retornado, mas a alma continuava doente. Seus pressentimentos quanto ao futuro a deixavam triste e amargurada. Era por fim o dia da chegada de Saurmont e Diana deveria se entregar a ele como prometera. Pensando nisso começou a suar frio. A única consolação era a prece; diariamente pedia a Deus lhe concedesse forças suficientes para carregar sua cruz. Pouco depois da partida do Conde, René havia tentado encontrar-se com ela. Antônio Gilberto entregou à jovem uma carta do Visconde, mas Diana não o recebeu. Recusou com tanta firmeza qualquer tentativa de reconciliação, que Beauchamp irado, amargurado, partiu para Paris, levando Gilberto com ele. Desde então a moça não teve mais nenhuma notícia de seu amigo de infância.

Já haviam se passado quinze meses desde a partida de Briand e há mais de dois meses Diana não recebia nenhuma carta.

Certa noite se sentou na sacada para contemplar o pôr do sol e meditar, quando de repente passos rápidos a surpreenderam. Ao ver o marido, gritou apavorada. Tendo se aproximado com expressão alegre, Briand ficou pálido no mesmo instante, pois sabia perfeitamente qual era o motivo do susto. Sua presença continuava a inspirar medo e repulsa, todavia se armou, na medida do possível, com a indiferença necessária.

Depois de constatar de coração pesaroso o quão forte era esse medo, o Conde se aproximou expedito e beijou a mão trêmula da jovem esposa.

Sentando-se ao lado dela lhe contou sobre o resultado da viagem e sobre sua designação na corte e por isso teria de se mudar para Paris. Diana suspirou fundo e, silenciosamente, deixou a cabeça tombar para frente, demonstrando seu desalento.

Passado um mês o Conde e a Condessa de Saurmont chegaram a Paris e se instalaram no hotel de sua propriedade, decorado por Briand, com luxo digno de Rei.

Agora ele havia conseguido, depois de tanto esforço e de tantos crimes, o objetivo há muito sonhado e a mulher tão apaixonadamente desejada lhe pertencia... Mas não se sentia feliz. A forma como Diana se dirigia a ele era tal, que mais ainda aguçava e exasperava sua paixão, ao invés de serená-la.

Realmente a jovem se dirigia ao marido com toda frieza e indiferença. Nem numa única vez lhe sorria, não retribuindo seus beijos e nada lhe pedia ou perguntava.

Podiam passar uma hora inteira juntos, sem trocarem uma só palavra. Parecia para Diana que ele não existia. Por vezes, no desespero, Briand tinha a idéia de se lançar sobre a mulher e tirá-la à força dessa passividade ultrajante. Quando, fora de si, odiando-a, se aproximava dela com os punhos cerrados, sempre era detido pelo olhar severo, sedento de ódio da Condessa. Voltava então a seu lugar e, enclausurado em seus pensamentos, arquitetava planos de vingança, lê se inclinava a fazê-la sentir com crueldade ser ele o senhor, mas a incurável paixão destruía todas as suas intenções e ele, como um cachorro espancado, novamente voltava a implorar perdão.

Diana havia mudado muito de caráter e de coração. Desde o casamento imposto à força, seu ódio e repulsa pelo Conde tinham se agravado. Às vezes lhe parecia que o sacrifício de pertencer ao Conde superava suas forças. Quando pensava na traição vil, através da qual ele conseguiu possuí-la, quando lembrava de todo o mal causado por esse homem, algo a oprimia por dentro e tinha uma fortíssima vontade de ofendê-lo e lhe lançar em rosto todo o desprezo sentido por ela. Agora era mulher e sabia do poder de sua beleza, a qual usava constantemente para torturar Briand; divertia-se vendo o Conde irritado, mas sem forças para atingi-la e esta era sua vingança, genuinamente feminina, sobre seu perseguidor.

Não obstante os dois escondiam cuidadosamente do mundo sua triste vida familiar. Na sociedade consideravam o Conde amado, amoroso e marido um pouco ciumento. A Condessa, por sua vez, era tida como mulher amável e atenciosa, gostando de provocar o marido, mas tão virtuosa e fiel, que não havia dúvida de seu amor para com o marido.

A reserva era um traço inerente no caráter dos dois.

Diana foi apresentada no palácio onde sua beleza ímpar causou profunda impressão. A admiração geral era acima de tudo uma lisonja ao amor próprio de Briand, não poupando ele um vintém para as toaletes de Diana e ainda a cobrindo com as mais caras jóias.

Para a grande festa de aniversário da Duquesa de Nevers o Conde trouxe para Diana uma caríssima jóia de brilhantes e esmeraldas.

— Enfeite-se, Diana, e não se queixe de seu traje, disse ele sorrindo. Não se esqueça de que você ostenta o nome de Saurmont e me honra.

Diana estava em seu gabinete. Ainda não se encontrava vestida e, em silêncio, meditava como de costume. Sem dizer uma só palavra abriu a caixa de jóias e com olhar de conhecedora examinou as pedras caras. A seguir olhou para o marido com ar zombeteiro e de desafio:

— Vou me esforçar em satisfazê-lo, apesar da dificuldade que me causa a duplicidade de sua personalidade... Para ser digna do Barão de Mailor, devo estar à altura de sua condição, mas o Conde de Saurmont se parece a tal ponto com Mailor, que através de sua generosidade sempre aparece um pouquinho do assassino...

Como fazer para ser suficientemente digna e bonita para tal marido?

O rosto dele se descorou e, irritado, Briand lhe voltou as costas e saiu.

Diana estava contente: tinha conseguido irritá-lo e estaria livre de sua presença por algumas horas. Mas apesar disso apareceu na festa vestida com majestade e tão maravilhosa como num sonho.

O coração do Conde batia de orgulho e satisfação quando entrou no salão, levando-a pela mão e o olhar de todos, com surpresa não disfarçada, se centrou em sua esposa.

Com calor e cansada pelas danças, Diana foi ao quarto de toalete da Duquesa para ajeitar o penteado. Voltando ao salão, inesperadamente se deparou frente a frente com Beauchamp, com quem ainda não se tinha encontrado, desde que o Visconde partira de Paris. Em compensação ela ouvira muito falar de seus duelos e aventuras amorosas.

Por um minuto a moça ficou parada, pálida; todo o sangue fluiu para o coração ao ver o homem que a traiu, dando sua mão a Saurmont. René também empalideceu e, estático, olhou para ela. "Como está maravilhosa!" pensou ele.

— Diana! gritou ele, indo rapidamente ao seu encontro. Escute-me! Dê uma chance de me corrigir e receber seu perdão!

Ela recuou e o mediu com olhar de indescritível desprezo:

— Nada tenho a desculpá-lo, Sr. Visconde. Pelo contrário, você me fez um favor me livrando de sua pessoa. O lugar onde você se deteve e o motivo que lá o prendeu são suficientes para me mostrar seus valores morais. Tranqüilize-se! Casando-me com o Conde de Saurmont eu apenas saí ganhando com tal troca.

Não se dignando a dar a palavra ao seu interlocutor, que se via sem argumentos, Diana passou diante dele e estendeu a mão ao Conde Bussy d'Amboise[31] que a convidava para a próxima dança.

Surpreso e furioso, René os seguiu. Depois de parar junto à janela, o Visconde começou a observar a graciosa e elegante dança enquanto refletia no acontecido.

Procurava-a com os olhos e tentava lhe falar a sós. Apesar da frieza de gelo de Diana e do desprezo evidente com que o tratava, ele, com afinco e paciência, perseguia seu objetivo.

Passaram-se algumas semanas e a ocasião desejada não surgia... mas eis que apareceu a oportunidade num dia de caça com a presença do Rei, no bosque de São Germano.

Beauchamp não deixava de observar Diana e percebeu ter ela perdido o caminho dirigindo-se para a trilha que ia ter na mata densa... o Visconde a seguiu de longe, alcançando-a, por fim, numa clareira onde havia parado para seu cavalo descansar um pouco.

Nesse dia a jovem estava belíssima em seu traje de amazona de veludo azul. O ar puro fazia suas faces corarem levemente e os pequenos cachos louros caíam sob sua touca de penas, emoldurando o rosto como uma auréola dourada.

Ao ouvir o bater de cascos na trilha, Diana se virou. Reconhecendo René, franziu os cenhos e seus olhos azuis expressaram descontentamento. Ela já havia notado a perseguição insistente de René, mas sempre soube se esquivar da conversa a sós com o rapaz, que lhe inspirava somente desprezo e desconfiança. Desta vez fora surpreendida e compreendeu não se ver livre do Visconde com uma simples troca de palavras ásperas. A jovem se deu conta no mesmo instante de que não tinha como evitar a explicação dele, pois o rapaz desejava isso. Após fazer o cavalo dar meia-volta ela se deteve imóvel, encarando-o com ar frio e hostil.

Depois de se aproximar dela a dois passos, Beauchamp tirou o chapéu e respeitosamente se inclinou. Em seu rosto pálido também se podia notar claramente nervosismo e intranqüilidade interior. Mechas de seu cabelo negro se grudavam na testa úmida e seus grandes olhos fixavam Diana com expressão estranha e indecisa.

Os lábios apertados e a prega formada entre as sobrancelhas diziam de suas vacilações.

— Diana! disse ele com voz trêmula. Finalmente a surpreendendo a sós e, é claro, não deixarei escapar tal oportunidade.

— Peço não esqueça, Senhor, estar falando à Condessa de Saurmont, interrompeu-o em tom frio a moça. A familiaridade à qual o senhor se permite se perdeu no passado, nas recordações de infância e se apagou para sempre na noite m que o senhor se olvidou da amizade e da honra.

— Para mim você se tornou minha esposa, segundo as leis morais. Pela sua própria vontade se inclinou diante do altar em amor e fidelidade a mim, disse René depois de corar. Eu sou dignamente julgado — pequei — disso sei, mas há perdão para o meu comportamento. Quando um cavalheiro se põe a prosear numa pousada com uma dançarina e lhe joga uma moeda, não comete nenhuma infidelidade visto tal criatura não ser uma mulher e não poder ser considerada uma rival. Naturalmente nunca teria ultrapassado o limite dos simples gracejos se não houvessem colocado uma droga em meu vinho. O autor desse ato desonesto foi o Conde de Saurmont. Ele comprou o taberneiro e trouxe a cigana. O próprio estalajadeiro me pôs a par disso e eu o matei como a um cachorro, ainda que ele não fosse o principal culpado.

"Seja justa e indulgente, Diana! Esqueça, desculpe essa noite fatal! Voltemos a ser amigos! Nunca deixei de amá-la. Desde aquele momento a consciência me castiga e o arrependimento me envenena a cada dia. Sofro sabendo você ser infeliz. Não negue, Diana, acrescentou ele rapidamente, vendo-a balançar a cabeça em negativa. Você o detesta e quase o matou no mesmo dia em que se casou, apesar de aparecer com ele na sociedade e exibir suas pedras preciosas. Entre vocês só pode haver um acordo secreto. Eu a conheço muito bem — você não se deteria nem por uma hora no castelo de Saurmont se algo não a segurasse.

Ele se inclinou a Diana e continuou em voz baixa:

— Seu pai tomou parte na intriga nos arruinando. Tal fidelidade aos interesses do Conde deve ter seus motivos aos quais a prendem a Saurmont. Seja franca, Diana, diga a verdade e, talvez, eu possa libertá-la ou com o divórcio, ou ameaçando seu pai.

Ao ouvir as últimas palavras do Visconde, Diana ficou branca como um papel. Esquecendo o tom de frieza com que sempre se dirigia a René, ela respondeu amargurada:

— Não se esforce em desvendar o segredo que me obrigou a me tornar esposa de Saurmont, apesar de meu ódio, desespero e infelicidade. Naquela noite fatídica você poderia ter me salvo duplamente. Teria me livrado do inferno e do sofrimento sobre-humano aos quais fui condenada. Não posso lhe restituir minha amizade nem lhe confiar a verdade, pois não mais confio em você. Para que confiar num amor para o qual não está capacitado? Se realmente me amasse não teria se acomodado confortavelmente na pousada, mas ficaria esperando aflito junto ao fosso do castelo o momento de agir. Depois me vem com um arrependimento tardio... de quê? Para você essa intriga não custou como a mim, a paz, o futuro e todos os direitos à felicidade, não lhe custou um cativeiro cruel...

A voz dela se rompeu e ela cobriu o rosto com as mãos.

René se calou. Somente nesse minuto compreendeu o quanto era culpado pelo sofrimento dela.

— Diana, cara Diana! Perdoe-me! Balbuciou um minuto depois, tomando a mão dela.

A jovem rapidamente se endireitou e tirou a mão da dele. A expressão de seu rosto mudou completamente. O desespero e amargura mostrados há poucos minutos, deram lugar a um ar de crueldade zombeteira. De maneira estranha seu rosto corou, os grandes olhos brilhavam e na voz havia um sarcasmo estranho. Foi quando respondeu:

— Você está tanto assim sedento de meu perdão? Deseja que eu o perdoe... tomara Deus por minha causa perca o apetite e o sono! A julgar pelo fato de ter acabado de se enrubescer, pelo brilho de seus olhos, pelo passeio forçado até aqui, ainda hoje continua a suportar um pesado remorso... suas tão comentadas aventuras são conhecidas em todo o palácio e na cidade. Maravilhosa borboleta colhendo o suco de todas as flores. As lágrimas das mulheres enganadas e das moças seduzidas e abandonadas não o envelhecem prematuramente. Na verdade, para não ser reprimido pelo arrependimento, você sempre se reconforta com um novo adultério ou duelo. Continue! Continue, Visconde... sua vida de trabalho e amores casuais, traições e satisfações... tranqüilize-se quanto a me haver entregado criminosamente a Saurmont

— Eu poderia ter caído em mãos ainda piores. O Conde tem suas qualidades e apesar dos pesares, não duvido de seu amor.

René ficou completamente arrasado.

— Diana! Suas palavras são mais do que cruéis; são agudas como uma navalha. Isto eu não mereço!

Ela riu em voz alta.

— O que fazer? Agora tenho de voltar ao local da reunião. Está ouvindo a trombeta? Ao sentir minha falta, o Conde ficará preocupado e não quero colocar sua vida em perigo. Sr. Briand é terrivelmente ciumento...

Vermelho, e de olhar exaltado, René se colocou ao lado da Condessa e tomando-lhe a mão disse:

— Desejemos que ele tenha do que ter ciúme... Diana puxou energicamente sua mão e de forma provocante e escarnecendo dele o encarou:

— Visconde, Visconde! A vaidade é cega! Será você raposa tão esperta que considera a porta de todos os galinheiros estarem abertas a você? O fracasso lhe será proveitoso...

Sem aguardar resposta, Diana esporeou o cavalo; René a seguiu e eles, quase juntos, chegaram ao local de encontro onde se reunia numerosa comitiva de senhores e damas, entre os quais Saurmont também se encontrava.

Ele estava visivelmente preocupado, os cenhos franzidos. Ao ver Diana e René chegarem quase ao mesmo tempo, o Conde apertou o bigode e direcionou ao seu antigo adversário um olhar carrancudo e desconfiado.

Aproximou-se rapidamente da esposa para ajudá-la a descer do cavalo. Seu descontentamento momentâneo se transformou em alegria ao ver o inesperado carinho da Condessa que aceitou a ajuda do marido sorrindo e lhe estendeu a mão com graciosa familiaridade, contrastando de maneira agradável à sua habitual frieza.

— Diabólica! Agora vejo que não é mais a mesma menina — disse para si mesmo Beauchamp, seguindo com os olhos Diana e o esposo.

Mas... espere! Eu irei tirar a máscara de tranqüila indiferença que usa! Você é infeliz e odeia seu tirano. Preciso esperar apenas o minuto quando o ódio, a mágoa ou a fraqueza a joguem nos meus braços!

Apesar do desejo de Diana de conservar distância no relacionamento com René e de se dirigir a ele como a outro qualquer, a conversa no bosque quebrou o gelo. Além disso, o costume também afirma seus direitos. Graças a tudo isso e ao afinco do Visconde em não perder a oportunidade de encontrar a jovem, no relacionamento entre os dois reapareceu um pouco da antiga cordialidade. O mais forte aliado de René era ciúme de Saurmont que seria transformado em fúria com os cortejos do Visconde.

A partir do momento em que Diana percebia isto se mostrava amável para com o rapaz.

Quando Briand chegou ao ponto de indevidamente lhe dizer: "Eu a proíbo de conversar com esse tolo!", a jovem convidou René ao seu hotel, o que Saurmont, então, lhe negou insistentemente.

Em que pese a fúria desencadeada dentro de si, o Conde foi obrigado a consentir na amabilidade da dona da casa, já não tendo motivos sólidos para se relacionar mal com o amigo de infância da esposa, o qual fora tão sorrateiramente enganado por ele.

Mas, a partir do dia em que René atravessou a soleira de sua porta, Briand não conheceu mais sossego; delirava o tempo inteiro, certo de que ocorreria um rapto ou uma traição, e não perdia a Condessa de vista.

Sua inquietação e raiva atingiram o apogeu quando todo palácio começou a se preparar para acompanhar o Rei e a Rainha na romaria empreendida por Suas Altezas, com a finalidade de agradecer aos céus o nascimento da delfina[32].

Briand sabia por experiência própria que semelhantes viagens eram muito favoráveis a aventuras amorosas. A idéia de Diana tomar parte na peregrinação o punha nervosíssimo.

Ele, pelo seu cargo na corte, tinha obrigação de acompanhar o Rei. Tendo amadurecido suas idéias, o Conde arquitetou um plano para conservar sua honra e lhe devolver a tranqüilidade.

Há algumas léguas de Paris ele comprou uma casa de campo, cercada por amplo jardim, e a dotou de um novo pessoal de serviço. Depois, uma manhã, oito dias antes da peregrinação, convidou Diana a ir ver com ele uma pequena propriedade que tencionava comprar.

A Condessa, sem desconfiar de nada, aceitou o convite. O dia estava maravilhoso e o longo passeio a alegrou. O casal se dirigiu para lá acompanhado apenas de um empregado. Às portas da cidade o Conde se lembrou haver deixado de dar uma ordem muito importante ao administrador e mandou o empregado de volta para que o fizesse.

E assim chegaram sozinhos à casa de campo.

A disposição de tudo na casa e, principalmente, o grande jardim agradaram muito Diana. Mas pode-se imaginar a raiva e a perplexidade dela quando Briand lhe disse estar encantado e, sendo assim, ela não sairia dali até ele retornar da romaria.

— Suas bravatas contra mim e os insolentes cortejos do maldito Beauchamp me obrigam a escondê-la dele até minha volta. Aos nossos conhecidos direi que está doente e não pode sair do quarto, terminou seco o Conde.

Diana saiu do sério. Esse golpe a levou quase à loucura! Ela estava habituada à sociedade e se aborrecia terrivelmente na nova casa, entre empregados desconhecidos, nos quais não confiava. Estava privada até da fiel Gabriela. O Conde a conservava ciumentamente fechada e aparecia sempre de surpresa. Aliás, ele logo se acalmou ao se convencer ter Beauchamp perdido a pista de sua linda esposa.

Diana se achava tão furiosa que havia decidido apunhalar o marido pela segunda vez. Mas Briand, parece, lhe adivinhou os pensamentos, levando-a ao desespero com seu espírito gozador, porém sem maldade para com ela... Ele nunca esquecia de tirar seu punhal e o entregava a um criado antes de ir dormir.

Por fim ele partiu e Diana, possessa, ficou sozinha, imaginando mil planos para se vingar do marido.

A notícia da enfermidade de Diana a princípio aborreceu muito Beauchamp. No entanto a tristeza se transformou em ira, quando soube por Antônio Gilberto a jovem ter sumido do hotel e ninguém, nem mesmo Gabriela, saber o que lhe havia acontecido desde a manhã quando saíra com o marido. O choro da camareira levou o médico a reforçar suas suspeitas de ter Briand matado a esposa ou, na melhor das hipóteses, de mantê-la prisioneira em algum buraco. Se acontecesse alguma infelicidade a Diana, Gilberto teria falhado em sua promessa.

Considerando o ciúme do Conde, René considerou a vaga desconfiança, bem fundamentada aliás, e saiu imediatamente à sua procura.

Em que pese todas as preocupações de Briand, o Visconde logrou espioná-lo com tanta habilidade, que o seguiu até os limites da vila. O resto foi fácil. Com ajuda de dinheiro, logo René ficou sabendo tudo quanto queria e, além disso, conseguiu um aliado num velho jardineiro que lhe prometeu colaboração em caso de necessidade.

Para mascarar melhor suas intenções, Beauchamp espalhou entre seus empregados "uma notícia importantíssima" que o obrigava a ir para Anjou, onde passaria um mês.

Com essa desculpa, ele declinou de participar da romaria do Rei.

No dia seguinte à partida de Saurmont, ao cair da noite, René, mascarado e de capa preta, se dirigiu à vila. O jardineiro o recebeu e o acompanhou até a casa.

— Olhe, senhor, essa janela de onde sai a luz, disse ele, esse é o quarto.

— Muito bem, meu amigo! Mas como farei para chegar à janela, se está no segundo andar? observou René, colocando uma moeda de ouro na mão do jardineiro.

— Previ isto e preparei uma escada. Agora a colocarei na sombra da sacada, respondeu o jardineiro rindo, contente consigo mesmo. Mas quando sair de lá, senhor, tenha a bondade de arrastar a escada até a grama fofa. De lá já a terei pegado a tempo.

Sem perder tempo, o Visconde subiu à sacada e, curioso, espiou por dentro da janela, através das cortinas entreabertas. Viu um grande quarto no fundo do qual, num patamar, se encontrava uma grande cama de colunas. Junto à mesa servida, Diana mastigava distraidamente um pastel. Seu ar de apatia e a expressão carrancuda indicavam claramente seu estado de ânimo.

De súbito ela desistiu de um pedaço de bolo e, parece, mandou recolher a mesa ao que dois criados às suas costas obedeceram prestamente e depois sumiram no quarto vizinho.

Ao ficar sozinha, a jovem se levantou da mesa e passou a andar pelo quarto. Sua ansiedade era óbvia. Seu rosto estava corado, os olhos brilhavam e as pequenas mãos revolviam nervosamente uma rede branca de seda. Por fim se sentou na cadeira e cobriu o rosto com as mãos.

René concluiu ser esse o momento certo. Abriu a porta silenciosamente e com cuidado passou pelo quarto; lançando-se de joelhos junto ao espelho, abraçou a jovem que deu um grito de espanto e pulou para trás.

Reconhecendo René, disse sem vontade:

— René! Aqui! Como penetrou em minha masmorra?...

— O verdadeiro amor não conhece obstáculos... se o seu desprezível marido a houvesse escondido sob a terra, ainda assim eu a teria encontrado. Saiba, porém que o consegui com muitas dificuldades...

— Agradeço sua fidelidade, Visconde, disse Diana levantando e o afastando com um gesto decidido. Apesar disso peço que se retire. Se sua presença for notada estará me comprometendo, sem me trazer nenhum proveito.

Mas os braços do Visconde continuavam a abraçá-la pela cintura e ele disse com voz trêmula:

— Você não se envergonha, Diana, em ter memória tão má? Até nesta hora de solidão e humilhação, privada da sociedade, você não pode perdoar seu amigo de infância! Eu a amo de todo coração e meu único pensamento é corrigir o mal causado contra minha vontade!

A moça sentiu seu corpo inteiro tremer. Terrível sensação de completa solidão se apoderou dela, pois até seu próprio pai a tinha traído!... a necessidade inata de se prender à primeira criatura mais próxima, a lembrança do passado, a familiaridade... tudo isso foi despertado. A raiva e a aversão sumiram. Largando a cabeça sobre os ombros do Visconde, ela desatou em pranto convulsivo.

René não tentou lhe conter as lágrimas. Apertou-a contra si, como a uma criança doente e beijou suavemente seus cabelos sedosos, dizendo-lhe de quando em quando palavras carinhosas.

Por fim, após parar de chorar, Diana ergueu a cabeça e, afastando o Visconde, disse cansada:

— Deixe-me, René! Seu amor já não pode mudar meu destino! Hoje eu, sem ter segundas intenções, o perdôo do passado. Contudo, mesmo que quisesse, não tenho direito de corresponder ao seu sentimento. Apesar de tudo, pertenço a Saurmont, e estamos unidos por um juramento.

René enrubesceu. Tomando a mão de Diana, gritou com voz entrecortada:

— Como pode negociar com sua consciência e fechar a porta da felicidade? Compreenda — um homem que é desonesto ao ponto de prender a própria mulher com uma farsa, obrigando-a a pensar ter se casado com o noivo escolhido, não tem o mínimo direito de lhe exigir fidelidade!... Prove a esse monstro que se atreve a prendê-la que você me convidou! Se ele prendeu seu corpo, sua alma continua livre. Prove-lhe que ele não pode proibi-la de amar quem deseja! Há dívidas que não se pagam...

— Deixe-me, René! A dívida não termina com o tempo... balbuciou Diana bem baixinho.

— Mas sim a dívida da vingança! Você não pode ser tão orgulhosa que nunca tenha vindo à mente usar a terrível arma que tem nas mãos para golpear seu cruel inimigo?!

O ciúme é o único ponto fraco do Conde! E você vacila em golpeá-lo, vingando-se dele pelo suplício diário ao qual ele a submete, e pela hora em que ele quebrou sua obstinação!...

Ele falava e uma palidez mortal surgia no rosto da moça; os traços do rosto se modificando expressavam os mais diversos sentimentos. A idéia de se manchar com o adultério lhe era extremamente repugnante, porém, por outro lado, todo amargor, todo ódio acumulado em sua alma começou a extravasar... Como um relâmpago lhe veio à mente todos os sofrimentos suportados desde o momento em que, colocada fora de si devido às ameaças de Briand, ela tentou matá-lo. Sob a pressão destas duras recordações, o sentimento de virtude e dever enfraqueceu, vencido e abatido pela fortíssima vontade de vingança, de pagar ferida com ferida.

Com o coração palpitando, o Visconde acompanhou a luta de sentimentos contraditórios sendo manifestados nas expressões desfiguradas. Os olhos dela ora ardiam, ora se apagavam. Mas, de repente, Diana o abraçou pelo pescoço e disse em soluços:

— Você tem razão. Provarei a ele não ser uma escrava! Eu o amo e me entregarei a você!

René venceu.

Já despontava o sol quando o Visconde resolveu por fim se despedir de sua maravilhosa amada.

A jovem o acompanhou até a sacada.

Ela estava pálida como um papel e apertava os lábios.

— Até logo, minha querida! Até amanhã! disse o Visconde, apertando-a pela última vez num forte abraço. Mas por que um rosto tão preocupado nesta noite divina na qual o amor eterno venceu? acrescentou ele em tom carinhoso.

Diana elevou os olhos encarando-o de frente, com um brilho triste e amargo.

— Sim! Será sua verdade! respondeu ela baixinho. Porém algum pressentimento me diz ter agido mal, minha vingança é vil, é uma faca de dois gumes. Na verdade, movendo o sentimento de maldade que você soube habilmente despertar, eu golpeei Briand no fundo do coração; mas em compensação também caí diante de meus próprios olhos. Eu me cobri com uma mácula permanente, entreguei-me a um homem que já me traiu uma vez, sem o menor pesar... Cuide-se, René, se me trair pela segunda vez! Daí você se sairá mal! Sem me lastimar eu o entregarei nas mãos vingativas do Conde e, sem pestanejar, verei seu sangue correr.

Um tremor desagradável percorreu o corpo de René.

O olhar da jovem se fez cruel, e no tom de sua voz ecoava uma ameaça velada. Contudo a irreflexão e a vaidade inatas do Visconde atenuaram no mesmo instante essa desagradável impressão. Ele beijou Diana ardentemente e balbuciou com voz um tanto de gracejo, outro tanto sem vontade:

— Ai! Minha querida! Suas palavras são más e fora de propósito — meu amor vai durar enquanto eu viver! Além disso, minha meiga e pequena Diana é incapaz de uma decisão tão cruel! Você não mata nem uma mosca e vai se obrigar a derramar sangue de um ser humano! Queria ver isso!... acrescentou ele rindo.

 

A FEITIÇARIA

A partir desse encontro os amantes passaram a se ver quase diariamente. René estava perdidamente apaixonado e a perspectiva de retorno de Saurmont o punha desesperado.

Por isso procurou algum meio de se livrar habilmente do Conde, se possível, para sempre. Esse sujeito desprezível, o Conde, tinha uma intuição tão apurada, que se tivesse a menor suspeita seria capaz de levar a esposa ao castelo de São Germano, onde os amantes não poderiam continuar se encontrando.

Depois de pensar bem, arquitetou um plano que convinha e satisfaria tanto sua paixão, quanto o seu antigo ódio.

O Visconde, apesar de seu ar despreocupado, era rancoroso e não havia esquecido a armadilha de Saurmont para com os ciganos. René achou ser boa idéia um troco bem dado, pagando-o com a mesma moeda.

Sem querer seduzi-lo com uma dançarina, achou conveniente explorar a paixão do Conde pelo jogo e a irritação dele frente às derrotas.

Assim, conversou com um gascão[33], aventureiro sem consciência, jogador e duelista profissional. Beauchamp lhe prometeu uma grande quantia se conseguisse, sob um pretexto qualquer, puxar uma briga com Saurmont e matá-lo. O gascão achou isso naturalíssimo e, muito agradecido, recebeu de René um traje elegante e um excelente cavalo, e partiu no mesmo dia calculando encontrar o Conde em um hotel no caminho real.

O aventureiro cumpriu sua palavra. Travou conhecimento com o Conde e depois provocou uma discussão à qual se seguiu um duelo. Briand, todavia, esgrimou tão bem que o "Bretteur"[34] não conseguiu matá-lo, ferindo-o perigosamente.

O Conde foi reconduzido a Paris em estado lastimável. Conforme voltou a si chamou Diana, que cuidava dele, se bem que não com muito agrado. Em todo caso ele, ao menos, não desconfiou de nada.

A febre de Briand e as longas horas passadas inconscientes deram a ela tempo suficiente para encontrar-se com o amante.

A fiel Gabriela era uma das encarregadas dos contatos, mas a intriga se desenrolava com tanta sutileza e segredo, que nem a jovem teve a mínima suspeita.

Pouco a pouco Diana superou seu peso de consciência. Ela experimentava por René um sentimento completamente novo e parecia que a paixão havia atingido seu apogeu.

Os dois discutiam freqüentemente a possibilidade de ela se separar de Saurmont. Essa idéia encantava Diana, mas, conhecendo seu marido, atormentava-se com o perigo de que ele pudesse encontrar um meio de segurá-la.

René, com paciência, tentava convencê-la de que a boa vontade e a força obrigariam o Conde a liberá-la.

Certa vez ele, muito contente, contou a Diana que um de seus amigos lhe falou de um mago, fazedor de verdadeiros milagres.

— Ele é pouco conhecido, não faz do seu conhecimento um ofício e recebe os visitantes somente por recomendação de meu amigo Nevel que conseguiu lhe prestar um serviço, contou René entusiasmado. Consegui de Nevel um bilhete nos permitindo entrar no laboratório do velho Said-Jano. Ele sabe que eu irei com uma dama, mas pensa ser a Sra. de Breil, a qual cortejo insistentemente para afastar qualquer suspeita. Como a bela Joana é alta, elegante e loira como você, nem mesmo o acaso poderá nos entregar.

— Mas este sábio e desconhecido poderá nos ajudar realmente? perguntou Diana, com leve desconfiança.

— Ele lê o futuro como em um livro aberto e sabe todos segredos da magia. Aliás, você mesma se convencerá disso. Hoje à noite iremos à casa do velho Said. Aproximadamente à meia noite eu a estarei esperando na travessa. Agora fique com isso - entregou a ela um pequeno frasco - é um forte narcótico. Coloque algumas gotas na bebida de seu monstro e ele irá dormir até de manhã, como uma marmota... Não tema, isto não é veneno. O sono apenas restabelecerá as forças de seu querido maridinho, completou rindo o Visconde.

Em uma das travessas escuras e estreitas havia uma velha casa de construção maciça.

As paredes espessas, a forte porta chapeada com ferro, a ausência de cantos agudos como em uma cantoneira, a janela - todos estes detalhes mostravam ter essa pequena fortaleza servido de residência a um senhor feudal. A antiga casa agora parecia abandonada; estava em silêncio absoluto e das janelas não escapava um só raio de luz, contrastando com as mansões dos nobres, de onde, em claro desrespeito à ordem de apagar os lampiões, se viam as luzes dos banquetes acesas até o raiar do sol.

O relógio da catedral marcou meia noite. Mal cessaram os sons dos passos rítmicos dos guardas noturnos, um cavalheiro e uma dama mascarados, ambos vestindo capa negra, saíram de uma travessa.

Após se aproximarem da velha casa, pararam. O homem desceu do cavalo e, com o punho da espada, bateu compassadamente à porta três vezes. Pouco depois o postigo se abriu e um velho barbudo perguntou em tom descontente o que queriam a uma hora dessas.

Sem nada responder, o homem lhe deu um bilhete lacrado. O velhinho o tomou e fechou o postigo. Minutos depois ouvia-se o ranger do ferrolho se movendo. A porta foi aberta e o mesmo velhinho apareceu com uma lanterna nas mãos.

— Entre, senhor, disse ele. No final do corredor encontrará uma escada. No segundo andar batam em uma porta à direita. Cuidarei de seus cavalos.

O homem respondeu apenas acenando a cabeça. Oferecendo a mão a sua dama, entrou na casa.

A porta se fechou atrás deles.

Uma tocha fumegante iluminava o longo corredor e a estreita escada em caracol; uma outra lâmpada se encontrava junto à porta revestida de ferro.

Depois de bater à porta os dois visitantes entraram em uma grande sala de teto abobadado. Uma lâmina de ferro dependurada no teto iluminava fracamente o quarto sobre a mesa, coberta com um pano de veludo negro velas de cera ardiam em candelabros de cobre. A luz delas caía diretamente sobre a face bronzeada do velho que com uma expressão estranha, encarava o rosto da dama e de seu companheiro os quais se detiveram, irresoluta— Seja bem-vindo, Visconde, bem como a bondosa Condessa de Saurmont! Tirem, sem nada temer as máscaras e me digam o que desejam do velho Jânio disse o sábio, levantando-se e indicando amigavelmente aos visitantes se sentarem.

O casal se surpreendeu ao ouvir seus nomes.

— Queria lhe pedir, sábio Said, nos revele o futuro que para o senhor não é segredo, respondeu o Visconde tirando a máscara.

A dama nem se moveu. Seu olhar mostrava muita descrença e vagava analisando a figura alta e magra do mago; o rosto peculiar de Jano parecia ainda mais misterioso debaixo do turbante branco.

— Os nomes poderiam ser facilmente adivinhados, senhor mago. Preciso de uma prova mais convincente de seu conhecimento, disse ela com voz rouca.

Said sorriu.

— Aproxime-se, Diana, e me permita lhe dizer no ouvido o que a convencerá.

Mal pronunciou algumas palavras e a jovem pulando automaticamente para trás, caindo na cadeira. Não dispensando a ela mais atenção, o mago se dirigiu a René.

— Deseja vos revele o futuro, Monsieur? Antes de responder peço sua mão.

Tomou a mão esquerda de René e apertou a sua palma da mão direita contra a palma do Visconde. Em um minuto Said empalideceu, seus olhos se dilataram. Sob o estranho olhar vítreo apontado para si, o Visconde começou a se sentir mal. Mas esta sensação desagradável logo desapareceu.

— O futuro, senhor, somente acontece como eco do passado, disse o mago, largando a mão de René. Não o passado referente a esta vida atual, mas aquele constituído pela série de existências pelas quais passa qualquer criatura no seu lento caminho à perfeição.

— Como?! Nós já vivemos algumas vezes e eu já vivi antes nesta terra?... Isso é possível? Por que não me lembro? disse em tom alto, profundamente interessado René.

— Todos os estudiosos das ciências antigas, pessoas para as quais o invisível não guarda segredos, confirmam a lei das existências sucessivas. No que tange ao esquecimento do passado, esta é uma das condições indispensáveis para o progresso individual, podendo ser travado por recordações nem sempre agradáveis. Os antigos estudiosos sabiam se libertar da matéria carnal pesada. Tendo a visão espiritual ampliada, eles viam o passado das pessoas, aproximando-se delas. Eu recebi uma pequena parte deste maravilhoso conhecimento e, graças a isso, vejo o senhor e esta bondosa dama se encontrarem mais de uma vez em vidas passadas.

— Diana! Ouviu? Não é a primeira vez que nos amamos, gritou o Conde, voltando-se para a moça.

Ela, pálida e emocionada, estava completamente absorta em seus pensamentos.

— Sim, ouvi! Mas, nesse caso, gostaria de saber mais. Diga-me, Mago, onde e em que condição nós vivemos? O amor e a amizade sempre nos uniu?

Um sorriso misterioso surgiu nos lábios do egípcio. Durante alguns segundos suas pupilas brilhantes cresceram apontando fixas para o rosto de Diana. Levou a mão à testa e respondeu:

— Amor e ódio, crime e boas ações, eis no que consiste a vida humana. Vocês experimentaram tudo isso.

— O que nos conta? Entre mim e Diana sempre houve somente amor! Se for possível, vivamos juntos novamente - gostaria fosse assim. Se o seu conhecimento permitir que nos unamos, sábio hierofante, nos séculos vindouros, onde quer que nos encontremos, ricos ou pobres, poderosos ou miseráveis, estejamos sempre unidos! Jure, Diana, ser sempre fiel e me amar, assim como eu também juro! disse René segurando fortemente a mão de Diana.

— Claro que concordarei, se for do consentimento de Deus, tartamudeou ela.

— Por que haveria Deus de não consentir? Será uma simpática piada para a senhorita de Saurmont, devido a sua perseverança; não é a primeira vez que se acha ao lado de seu adorador. Bem... e então, sábio, o senhor pode e quer realizar nosso desejo?

— Tentarei. A propósito, tal tentativa foi feita há alguns séculos atrás por dois estudiosos e fracassaram. Vejamos o que acontecerá hoje.

— Teremos êxito, sábio! Mas além de nos unir o senhor não poderia nos dizer algo a respeito de nossa vida presente? perguntou o Visconde.

— Tentarei fazer tanto uma coisa como outra. Tenham a bondade, "monsieur", e a generosa senhora de me dar uma gota de seu sangue, uma mecha de cabelos e unhas da mão direita.

— Eis, sábio! Corte, tire e faça tudo quanto precisa, gritou René, estendendo ao sábio sua mão e a mão de Diana, a qual ele continuava segurando.

O mago trouxe uma lanceta, duas cubas de cristal, um pedaço de cera, um tripé e uma caixa contendo frascos pequenos, cheios de grama seca. Depois de colocar, tudo sobre a mesa, ele fez os cortes nos jovens e colheu separadamente o sangue de cada um. A seguir, havendo cortado os cabelos e as unhas, ele lhes pediu sentar e ficar em silêncio.

O sábio sentou e começou a fazer figuras de cera. Enquanto o mago se achava concentrado nessa tarefa, René examinava o quarto. Logo se convenceu não se parecer nem um pouco com o laboratório de um alquimista, que certa ocasião teve a oportunidade de conhecer. As paredes do quarto eram revestidas por uma substância escura.

Em uma das paredes estava pendurado um escrito em hieróglifos, com o desenho da esfinge abaixo do qual se via um disco alado. As elegantes cadeiras estavam dispostas em ordem. Somente algumas caixas de madeira com emblemas misteriosos e estantes com velhos papiros e pergaminhos indicavam se tratar da casa de um estudioso.

Quando o olhar do moço se voltou novamente para o mago, viu, surpreso, as figuras já estarem prontas, e, graças a alguns pedaços de material, tinham o aspecto de homem e mulher, respectivamente.

Ao lado delas Said colocou um pequeno altar com uma cruz, duas pias batismais e dois pequenos ataúdes.

Após fazer tudo isso queimou as unhas e cabelos apanhados do casal, e colocou parte das cinzas na cabeça das figuras. Depois perfurou o "coração" do "homem" e em seguida o da "mulher", vertendo, nos orifícios formados, as gotas de sangue.

Os jovens tudo observavam em silêncio e curiosos, ainda que fortemente impressionados. Mas quando Diana viu Said batizar as figuras, dando-lhes os nomes de Diana e René, proferindo palavras sagradas de casamento, e por fim entoando uma antiga canção, acompanhada por hino de renovação espiritual, tudo isso misturado com palavras desconhecidas, e cânticos compassados, ela foi tomada pelo pavor.

— Pare! Pare! Vamos embora! Isto é um sacrilégio! disse exaltada, com voz entrecortada, tentando levar o Visconde.

Este, com um gesto brusco e rápido, fê-la sentar-se de novo:

— Sente e não atrapalhe com exclamações tontas as operações mágicas, retrucou irritado René.

O estudioso, pelo visto, não prestou atenção ao caso. O olhar dele deslizava para Diana, como se estivesse se entretendo. Tudo isso se passou com a rapidez de um relâmpago. Retomando mais uma vez a concentração, colocou as figuras uma de frente para outra e apagou as velas. Agora só a chama trêmula de uma lâmpada suspensa iluminava o quarto. Um arrepio de medo correu pelo corpo dos jovens quando Said, com novo vigor, recomeçou sua estranha canção e passou a lidar no tripé de ervas. Ele derramou uma certa espécie de líquido de um frasco e acendeu o fogo. Antes disso verteu num recipiente um pouco de vinho antigo, colocando também cinza dos cabelos e unhas. Despejou o sangue das duas taças.

Esta mistura foi mantida no tripé, enquanto não entrava em ebulição. Ao mesmo tempo, a medida que a erva ardia, chamas de diversas cores espalhavam pelo quarto um odor ácido e cáustico. Continuando, Said colocou o recipiente na mesa, atrás das figuras, e elevou as mãos sobre estas. Dentro de um minuto as figuras humanizadas, tremeram, depois começaram a se mover, aproximando-se. Primeiro se levantaram e depois se apartaram uma da outra. Nesse momento Said colocou a mistura fumegante, em partes iguais, em duas taças e as entregou ao Visconde e à Diana, dizendo laconicamente:

— Bebam!

René não vacilou; tomou todo o conteúdo imediatamente. Pálida e abalada pelas cenas que a faziam tremer, Diana titubeou:

— Esta bebida me é repugnante! Eu prefiro obrigar Briand a bebê-la, comentou ironicamente.

René se irritou:

— Vamos, diga! Você já não tem medo de perdê-lo? Beba por si mesma! gritou ele, apertando com força a taça de encontro aos lábios dela.

Mal o líquido tocou sua boca, Diana, assustada, pulou para trás. A violência do Visconde a tinha ofendido. Repentinamente surgiu em sua mente a imagem de Raul. Porque ao invés de estabelecer laços eternos com René não os ter com a criatura mais amada deste mundo? Se realmente fosse viver de novo nesta terra, então poderia se encontrar com Raul.

Com um gesto brusco e enérgico, atirou a taça ao chão, quebrando-a em vários pedaços.

— Não quero que nos unam laços inquebrantáveis! Deixemos o futuro livre. Quem sabe? Poderá vir o dia em que eu seja um peso para você, disse ela, olhando-o duramente.

René, enfurecido, queria responder, mas Said colocou a mão no ombro dele e disse apontando para a mesa:

— Acalme-se! O destino rompe pela segunda vez fetiches poderosos que poderiam uni-los... agora veja...

Derrotado, René viu as figuras se separarem e cada uma delas se dirigir a um ataúde, dentro dos quais sofreram estranhas transformações. A imagem da mulher se cobriu com um longo véu negro e do seu peito gotejaram gotas vermelhas, manchando o caminho pelo qual ela passou. Depois a figura desceu à sepultura.

O homem se movia mais devagar e o "sangue" vertia abundantemente de seu peito. Deitando-se na sepultura, seu véu se cobriu de sangue.

— Vocês se unirão e depois se separarão, já que não estão deitados juntos na sepultura, disse Said. A senhora involuntariamente comete crimes contra as leis de sua igreja. No final da vida será atirada à sombra. As gotas vermelhas significam os anos que lhe sobram por viver nesta terra. O senhor viverá mais e terá uma morte violenta.

Fez-se profundo silêncio.

Deprimidos e entibiados, René e Diana olhavam para a mesa. As más predições do mago caíram sobre eles como chumbo.

O Visconde foi o primeiro a voltar a si. Em breves e cordiais palavras agradeceu ao mago e lhe pediu para ficar com o porta-moedas colocado em cima da mesa. Depois saiu com Diana - sempre calada.

Somente quando montaram a cavalo, os jovens voltaram a conversar, discutindo sobre o que viram e ouviram. René estava furioso por Diana ter quebrado a taça. Ele a culpou pela futura separação dos dois e até pela morte violenta prevista pelo mago. Ela contestou que a maldade que poderia ocorrer a eles, por culpa dela, era uma questão discutível, já que o pecado voluntário e o crime contra a Igreja, dos quais falou Said, haviam sido cometidos por culpa dele.

A discussão se exacerbou, as palavras mordazes corriam soltas e os jovens retornaram completamente brigados.

Discussões entre amantes não costumam ser longas: René e Diana se reconciliaram, mas no relacionamento entre eles ficou certa dissonância. Além do mais, o restabelecimento de Briand os obrigava a serem mais comedidos. E eles passaram a se encontrar com menos freqüência.

O Conde de nada desconfiava. Via Beauchamp muito poucas vezes e este se apresentava como amante da Condessa de Breil. Além disso o Visconde tomava participação ativa nas intrigas políticas que dilaceravam a França.

Briand também tomava parte nessa luta. Partidário fanático da Liga, militava abertamente no partido de Guise. Sua inteligência apurada, sangue frio e determinação prestaram mais de um serviço ao "Balafré[35]" porém, ao mesmo tempo, fizeram-no odiado pelos partidários do Rei e do Duque d'Anjou.

Beauchamp, por sua vez, era partidário do Duque d'Anjou. Estava intimamente ligado a Bussy d'Amboise e repartia com o famoso duelista uma série de aventuras. Dessa forma ele foi envolvido em uma intriga terrível de Bussy, com dois amantes da Rainha Margot. Henrique III interveio a tempo e impediu o encontro. Contudo, ambos os lados, desde então, alimentavam o ódio e a exasperação, esperando apenas o momento propício para a vingança[36].

Um ódio forte, porém discreto, também existia entre os partidários de Guise e do Duque d'Anjou. Tanto uns como outros gostariam que seu líder carregasse a coroa da França. Francisco (o irmão de Henrique III) fundamentou sua pretensão criticando o requinte afeminado de seu irmão, o qual considerava incapaz de reinar. Quanto ao que se refere a Henrique de Guise, suas pretensões não tinham limites (é comprovado pela História que toda família recebia dinheiro de Felipe II, Rei da Espanha, para que defendessem o catolicismo na França). Não teve receio de ir a Roma com um advogado, gozador de má fama em Paris, levando um memorando no qual expunha ser descendente de Carlos Magno. Guise deveria ocupar o trono usurpado pelos Capetos[37]. Eles tinham se apartado de Deus, eram loucos, doentes ou depravados. A mensagem principal das linhas de Guise, segundo o próprio, era um apelo para pôr fim à expansão do protestantismo, bem como a proposta de o Duque d'Anjou assumir, da mesma forma que Don Carlos[38] e reinar depois de submeter França à Roma.

Pode-se ver até que limites chegou o partido nessa triste época. A queda da autoridade real dava plena liberdade à violência pessoal da agressiva aristocracia e do povo acostumado à carnificina. Todos, do mais destacado nobre ao mais humilde empregado, tomavam posição por um partido. A violência e a agressividade eram ações corriqueiras.

Nessa época René, necessitado de dinheiro, escreveu ao seu administrador lhe pedindo mandasse o mais rápido possível os impostos arrecadados nas propriedades. Ao mandar esta ordem, com urgência, enviou juntamente a Marillac uma carta na qual contava as novidades do palácio e da cidade. Também falou sobre os encontros com Diana, rindo sem clemência de Briand e não poupando detalhes que provavam claramente a culpa da moça.

"Não posso olhar para Saurmont sem rir. Cego, como todos os maridos, ele nem desconfia que fera maravilhosa cacei em suas terras!" Escreveu terminando a carta: "Pobre cornudo, fonte interminável de piadas para mim e Bussy ".

Se o Visconde previsse as conseqüências de sua tagarelice imprudente, ele, naturalmente teria se contido em escrever e se gabar ante seu cunhado de suas vitórias amorosas. Todavia não lhe ocorreu que a carta enviada por emissário especial pudesse cair em mãos outras. Aconteceu da seguinte forma: a distância de um dia de viagem de Paris, o mensageiro se encontrou em um hotel com pessoas do palácio entre as quais havia empregados do Duque de Queluz, amante da Rainha[39] e inimigo de René e de Bussy. Reconheceram o empregado do Visconde e, sob um motivo qualquer, arrastaram-no a uma discussão, e pouco depois o mensageiro de Beauchamp caía desmaiado sob uma saraivada de golpes. Os vencedores não deixaram de revistá-lo, tiraram o dinheiro que levava consigo para a viagem e a carta foi apanhada pelo empregado de Queluz. Ao chegar a Paris o criado a entregou a seu senhor, lembrando-o que vinha do mensageiro de Beauchamp. Evidentemente Queluz não se acanhou em ler a carta do inimigo. E se surpreendeu. Nunca, nem por um instante, havia duvidado da bondosa Diana, cuja altiva discrição no relacionamento com seus numerosos admiradores era comentada nas conversas. Saboreando a incrível descoberta, notou o caso lhe dar uma arma que com um só golpe poderia liquidar com dois eficientes partidários dos inimigos do Rei. Naturalmente era suficiente comunicar a Saurmont sobre a infidelidade da esposa para provocar um duelo de morte entre o irritadiço partidário da Liga e o amigo de Bussy. Se nesse embate tombasse um ou outro, até mesmo ambos, então Guise e d'Anjou perderiam servos fieis e dedicados. Como resultado de todos estes pensamentos, Queluz resolveu entregar a carta ao Rei o qual também se entreteve com seu conteúdo.

Nessa mesma noite o Rei mandou um empregado ao Hotel de Saurmont com a ordem de que ele se apresentasse na manhã seguinte em audiência perante sua majestade.

Briand estranhou um pouco tanta urgência, mas julgou se tratar, na realidade, de o Rei querer lhe dar alguma tarefa especial.

Na hora marcada apareceu no Louvre. Não teve de esperar muito, já que um empregado que o atendeu logo o conduziu ao aposento do Rei.

Henrique jogava bilboquê com alguns senhores da corte. Ao ver Saurmont, o bobo correu para a cabeça do cervo pendurada na parede e começou a contar quantos ramos tinha o chifre do animal - seis ou dez. O Rei não deu a mínima atenção ao barulho provocado pelo bobo. Muito atencioso, recebeu Briand e conversou com ele sobre assuntos diversos. A seguir, adquirindo um ar grave, disse direcionando ao Conde um olhar escrutador:

— Estou muito admirado Conde, que até agora não tenha ouvido nada sobre uma explicação, via espadas, entre o senhor e o senhor Beauchamp, o qual tem lançado em suas costas piadas sarcásticas.

Sob este inesperado ataque, Briand empalideceu, mas, contendo-se respondeu inclinando-se respeitosamente:

— Sire! Desconheço completamente o que Vossa Majestade deseja dizer. Mas os senhores tenham a bondade de me transmitir os rumores que circulam a meu respeito, relatando com franqueza estes comentários imprudentes.

— Não se aflija, caro Conde, disse o Rei em tom conciliador, dando-lhe um papel. Lerá esta carta, escrita pelo Sr. Beauchamp, caída casualmente em outras mãos.

O Conde, nervoso, tomou a carta. À medida que lia, as linhas funestas provavam ser Diana traidora; em seu rosto avultava uma palidez mortal. Sentiu o mundo girar ao seu redor. Por um instante todos pensaram que ele ia cair. Fez-se silêncio absoluto.

Briand sentiu instintivamente o olhar dos presentes centrado nele e ser sua vergonha e emoção alegria para seus inimigos. Com esforço sobre-humano abafou a tempestade estourando dentro de si. Dando um passo na direção do Rei, disse com voz alterada:

— Sire! Acredite - o impertinente logo deixará de profanar nossa terra. Rogo a Vossa Majestade ceder-me esta carta por algumas horas. Quero mostrá-la a minha esposa.

— Leve! Leve, caro Conde! Esteja certo que este acontecimento me entristece muito, principalmente por você!... O benevolente, Henrique III estendeu a mão para ser beijada.

O próprio Briand não sabia como havia saído do Louvre. Tinha a impressão de ser seguido por todos os demônios do inferno...

Só quando subiu à sela, sua visão se clareou, mergulhando numa imensa sede de vingança.

A primavera estava mais florida do que nunca. Diana desta vez havia se mudado para a vila, por vontade própria, indo morar na casa muito agradável cercada de jardins.

No correr das horas, a caminho da vila, o Conde teve tempo suficiente para refletir na situação. Tudo dentro dele o oprimia, fazendo-o tremer, pois nos risos de todo o palácio, havia o título de marido traído. E se dizer que esta mulher possuía o direito de traí-lo e nenhuma lei moral prescrevia a ela fidelidade ao esposo!

Mas isto ninguém sabia... agora o escândalo era público!

— Ah!... você me pagará por estes momentos infernais! murmurava ele, apertando com força o cabo do punhal e esporeando o animal, que relinchou e acelerou a marcha.

Mal desceu do animal, correu ao quarto da Condessa. Aproximando-se da porta se deteve por um minuto para reunir forças e adquirir aparência tranqüila. Por fim ele silenciosamente levantou o reposteiro e entrou no quarto de paredes esculpidas e de escura mobília forrada de veludo. Num penhoar de seda estava preguiçosamente semi-deitada num sofá grande e sonhava, brincando distraída com uma gatinho em seu colo. O coração de Briand se apertou de ódio ao pensar em Beauchamp ter-lhe possuído o corpo tão belo e sedutor. Ela estava maravilhosa. Qual a melhor vingança para fazê-la pagar pela vergonha acabrunhante? Matá-la? Não! Isso significaria golpear a si próprio!... como iria depois viver sem ela?!

Essa mulher orgulhosa devia ser humilhada. Jogar-lhe-ia no rosto a traição com seu amante e se regozijaria com sua derrota, quando ela soubesse, ela, a orgulhosa Diana, ser objeto de escárnio de toda corte! Isto sim, a machucaria no fundo do coração!

Ao ouvir os passos do marido, Diana levantou a cabeça. Vendo seu rosto pálido e carrancudo, notando o esforço visível que ele fazia para falar, violou seu habitual silêncio e, surpresa, perguntou:

— Meu Deus! O que aconteceu? Você está com um aspecto terrível, Briand!

— Aconteceu, senhora, eu ouvir coisas terríveis sobre as supostas virtudes da Condessa de Saurmont... vim para exigir que você me preste contas de seu comportamento, respondeu ele, esforçando-se em manter a calma.

Por um momento Diana enrubesceu.

— O que! disse, levantando e desafiando o marido com olhar hostil. Mesmo sendo verdade o que falam, quem teria o direito de exigir de mim satisfações? Eu não casei com você por vontade própria. Acaso quatro anos atrás entreguei meu amor e fidelidade a Briand de Saurmont? Não, acreditava estar dedicando tais virtudes a René Beauchamp.

Não foi a você, Conde de Saurmont, traiçoeiro, acostumado a enganar a igreja com nomes falsos, desonrado, que arrancou de mim o "sim" com uma armadilha inaudita, sim, pois de outra forma jamais o teria... não é por sentimento de fidelidade que me tornei sua esposa, mas sim para salvar do cadafalso um ser desprezível como você!

A medida que ela falava, toda mágoa, todo ódio armazenado em sua alma ardiam e, como uma corrente de lava, fluíam para fora; seus olhos luziam e os lábios tremiam.

Dando um passo na direção do marido, bem diante dele disse em tom baixo e entrecortado:

— Sim, Sr. de Saurmont! Eu o traí com satisfação! A situação me fez fraca, mas encontrei um meio de envergonhá-lo. Sua expressão abatida e desanimada provam o êxito de minha vingança. Desgraçado!... pensa que esta criatura infeliz, espoliada e fiel, teve o destino pisoteado, e ainda por cima vive trancafiada... será que pensa nunca ter procurado se vingar de você?! Sim, de forma indigna, mas, talvez, todos os meios sejam bons para perfurar essa "cuirasse" de crimes, invulnerável ao ódio e ao desprezo. O ponto fraco dessa "cuirasse" foi seu crime brutal... consegui envergonhá-lo? Estou contente!

Depois ela emudeceu, ofegante de ódio; surpreso e ao mesmo tempo impressionado, pois nunca Diana estivera tão bela quanto nesse momento de explosão, Briand a olhava procurando uma objeção nessa declaração sem precedentes - ela o havia traído só para envergonhá-lo!

— Está bem! Está bem, senhora! Disse por fim. Seu cálculo é espetacular! Somente devo dizer que seu juramento de fidelidade não constrangeu nem um pouco o Sr. Beauchamp a empregar todos os seus esforços para espalhar por aí sua genial vingança.

Ele lhe estendeu a carta e ela quase a arrancou de suas mãos. À medida que lia, uma expressão indescritível parecia se solidificar em seu rosto lívido como mármore.

Em seguida a carta se lhe escapou das mãos trêmulas e caiu no chão. Por um minuto a moça ficou imóvel, de olhos arregalados. Depois passou a mão na testa e direcionou ao marido um estranho esgar de ódio.

— Recebi exatamente aquilo que merecia... minha vingança foi baixa e indigna de uma mulher, mas não tinha outra arma para lutar contra inimigo tão desprezível... não lamento o que fiz e o faria de novo, só para lhe provar não lhe pertencerem meu corpo e minha alma tal como você alardeia, acrescentou ela com voz alterada.

Briand nada acrescentou; ela tirou do corpete um bilhete e lhe entregou. Ele o abriu maquinalmente e muito surpreso leu:

"Venha hoje à noite. Meu marido não estará".

— Que significa isto? Que devo fazer com este bilhete? perguntou irresolutamente o Conde.

— Você o envia a seu destino e faça ao Sr. Beauchamp uma recepção decente quando ele aparecer... respondeu Diana exaltada.

O Conde se sobressaltou e, inclinando-se, rapidamente examinou o olhar de Diana - tinha um aspecto metálico; nele se lia claramente a resolução firme da condenação inclemente ao traidor. Sem prestar atenção ao marido, Diana se aproximou da janela e deixou cair o corpo na poltrona. Briand a observava quase com curiosidade. Em seu rosto estático e pálido, como se fora uma máscara de cera, não se via o menor sofrimento ou amargor. Apenas o tremer dos lábios indicava sua comoção interior.

Ele compreendeu ser essa mulher de orgulho invulnerável e a sua intenção de humilhá-la, de lhe lançar em rosto sua vergonha não havia atingido seu objetivo.

— Agradeço, Diana, por você afinal de contas me ter dado o direito de matá-lo e me ter aliviado desse incômodo, disse ele, após um minuto de silêncio.

— Não seja por isso, Briand, depois do que fez Beauchamp deve morrer.

É bom que esta tarefa lhe caiba, assim não há necessidade de contratar um matador. Aliás, reconheço não estar lhe fazendo um favor, acrescentou ela com ironia venenosa. Não é a primeira vez que você prefere uma armadilha à uma luta honesta... O Sr. Beauchamp esgrima excelentemente, tão bem quanto Raul Montfort que você assassinou à traição.

Briand tremeu de ódio. Entendeu a intenção de Diana acusando-o, valendo-se do bilhete para poder evitar o duelo honesto. Irritadíssimo, virou as costas e saiu do quarto.

Apesar disso, a raiva não impediu o Conde de tomar todos cuidados para entregar corretamente o bilhete a René e lhe preparar uma morte certa.

Depois do almoço Briand anunciou que ia a Paris e partiu. Ao cair da noite voltou à vila, passou pela passagem secreta do jardim e se instalou no pequeno quartinho onde Diana costumava receber o amante. Após esconder atrás dos cortinados dois homens armados, o Conde colocou na janela uma vela acesa - era o sinal de estar Diana sozinha, esperando-o.

A própria Condessa explicou estes detalhes no bilhete, pois assim o Conde ficaria sabendo como proceder.

Ela passou o dia inteiro em seu quarto, sem sair para o almoço.

O Conde esperava impaciente ao extremo, pois duas horas já se haviam escoado em absoluto silêncio. Briand já começava temer ter seu plano malogrado, quando um ruído debaixo da janela, um assobio baixo, anunciou a chegada do visitante.

— Ah... ele vai subir... pensou o Conde.

E realmente, um pouco depois, na ameia da janela apareceu a cabeça de Beauchamp. Após escalar o peitoril, ele, ligeiro, saltou para dentro do quarto. No mesmo instante um dos homens armados se colocou na frente da janela aberta, cortando o caminho de retirada. O segundo se postou junto à porta e, por fim, o próprio Briand saiu de junto da parede onde se escondia.

— Pare, Visconde! gritou ele. Opa! Pelo visto você conhece bem este caminho!... sem um pingo de vergonha tem a audácia de vir à minha casa entrando pela janela!

Este caminho é um tanto perigoso para um cavalheiro tão conhecedor!

— Vejo que para me recepcionar, colocou aqui todos estes criados, prudente Conde de Saurmont... respondeu René, pálido por se ver cair numa armadilha.

— Claro que preferia ter encontrado a Condessa... isto é compreensível! Todavia ela adoeceu ao ler sua carta a Marillac, na qual você, com tanta graça, se gaba da caçada em minhas terras. Ela mesma me encarregou de lhe dar esta recepção e ainda lhe assestar um bom golpe de punhal para parar sua língua comprida. A pouca honra que a dama conserva a fazia confiar em sua discrição.

René sentiu-se morrer! No entanto não foi em vão que durante dois anos tinha sido amigo inseparável de Bussy d'Amboise. O Visconde aproveitou as lições e imitou a presença de espírito do famoso esgrimista. Com um salto se colocou junto à parede e com um forte empurrão de pernas deslocou um sofá, o tomando como defesa. Um dos criados quis impedi-lo, mas com um golpe de espada René lhe cortou o braço.

— Canalha! Tem medo de um duelo limpo! Você pensou que eu me permitiria morrer sem me defender? gritou René, aparando o golpe de Briand.

Começou uma luta escarniçada, contudo eram três contra um, e, após duelo desesperado, René caiu atravessado por alguns golpes.

— Ele morreu, Monsieur, disse um dos empregados, inclinando-se sobre o corpo imóvel, estendido sobre o tapete.

— Nesse caso jogue-o pela janela! Que saia pelo mesmo caminho de onde veio, respondeu o Conde, limpando a lâmina da espada.

Como um dos empregados estivesse gravemente ferido no ombro, o próprio Briand o ajudou a erguer o corpo e atirá-lo. Muito feliz, o Conde se dirigiu a seu quarto, lavou o rosto e as mãos manchadas de sangue e trocou de roupa. Daí foi ao encontro de Diana. Não a tendo encontrado no dormitório, o Conde levantou o reposteiro que fechava a entrada para a sala de orações e viu a jovem desmaiada no chão.

Ah!... ela põe muita esperança em suas forças! murmurou ele zombeteiramente.

Após chamar a camareira e lhe ordenar ajeitar a Condessa na cama, ele, muito satisfeito, voltou a pensar em seu feito. Não havia nenhum remorso a lhe pesar na consciência e a lhe perturbar o sono. O que podia significar o assassinato de um rival para um matador cruel da Noite de São Bartolomeu?

No dia seguinte o Conde levantou cedo com a intenção de se dirigir ao Rei, mas antes disso queria se livrar do cadáver de René. Por um minuto pensou em obrigar Diana a fazer amor com o amante morto e desfigurado, mas quase imediatamente desistiu da idéia e mandou colocar o corpo em um buraco qualquer, enquanto não o levassem ao hotel do Visconde.

— Isso já está feito, senhor. Provavelmente o Sr. Visconde estava acompanhado de algum homem de confiança que o esperava a cavalo. Ao raiar do sol ele apareceu aqui e, sabendo do duelo, pediu para lhe entregar o corpo para levá-lo.

— Ótimo, Cláudio, acabe com todas as marcas da batalha e nem mais uma palavra sobre isso!

Chegando ao Louvre, o Conde mandou anunciá-lo ao Rei, pedindo a Sua Majestade uma audiência por motivo particular importantíssimo.

Henrique III ainda não tinha levantado, mas apesar disso o recebeu no mesmo instante. Briand se aproximou de seu leito. Cumprimentando respeitosamente o Rei, colocou na roupa de cetim a carta de Beauchamp manchada de sangue.

O Rei se surpreendeu com o papel.

— "Pâques Dieu!" como dizia meu caro irmão, o falecido Carlos IX. Isto se parece a uma mancha de sangue! Andou tomando alguma atitude impensada, Conde? Seria muito lastimável! Meu irmão, o Duque d'Anjou pode exigir satisfações pela morte de um dos seus melhores amigos e fiel servidor... a propósito - onde está o caro Beauchamp?

O senhor o viu?

Briand se inclinou a Henrique e respondeu a meia-voz:

— Nesse minuto Beauchamp está contando o conteúdo de sua carta picante ao seu anjo da guarda e ao próprio Deus...

— Certo! Certo! Disse satisfeito o Rei, estendendo-lhe a mão para ser beijada. Se tem algum assunto a tratar com meu irmão Francisco e se não deseja tirar uma férias, para restabelecer a saúde, eu o libero antecipadamente.

— Sire! Desejo a Vossa Majestade não se zangar por causa de um crime legítimo. Irei imediatamente ao encontro de "Monsieur".

O encontro com o Duque d'Anjou foi cheio de amargor, sem que isso tocasse Briand.

Voltou para casa deveras contente consigo mesmo. Pelo caminho resolveu ser melhor sair de Paris o quanto antes. O escândalo havia sido muito grande para Diana poder aparecer agora no palácio. Além disso ela se queixava da falta de saúde e não saía do quarto. Por isso o Conde concluiu ser o melhor meio de sustar todos os comentários afastar-se, deixando assim de estimular o assunto e ordenou preparassem a partida.

Pode-se imaginar o ódio e a perplexidade do Conde quando três dias depois soube que Beauchamp não havia morrido. O rapaz ainda vivia, apesar de se encontrar em estado grave. Fora de si de raiva, ele interrogou os empregados, mas ninguém sabia de nada - todos afirmavam o Visconde estar morto e seu cadáver ter sido levado por um criado.

Mas na realidade não ocorreu assim. Depois de receber cinco ferimentos, sendo dois quase mortais, René perdeu os sentidos e, inconsciente, não sentiu sua queda mortal.

Os arbustos e a grama amorteceram o tombo. Certamente haveria morrido de hemorragia se houvesse ficado sem socorro até o amanhecer. O destino, contudo, lhe enviou um salvador. O velho jardineiro se interessava pelo moço, claro que em vantagem própria, visto as visitas noturnas lhe proporcionarem um bom rendimento. Casualmente viu o Conde, o qual pensou que se encontrava em Paris; mas ele estava se escondendo no jardim.

Um mau pressentimento lhe veio ao coração. Ia espreitar o Visconde para avisá-lo, mas o perdeu de vista na escuridão e só o percebeu quando já subia à janela.

O velhinho se escondeu nas sombras das árvores e passou a esperar. Assim pôde ver quando jogaram o corpo do jovem pela janela.

Aflito, aguardou todos irem embora, e depois penetrou no jardim para examinar o corpo. A princípio considerou o Visconde morto, mas depois percebeu o coração ainda batendo. Então carregou René para sua casa. Tendo sido soldado na mocidade e possuindo alguns conhecimentos de cirurgia, ele fez curativos nos ferimentos e depois entrou na mansão. Sua filha servia Diana, por isso pode entrar no vestiário e avisar Gabriela. Esta já sabia do acontecido e, com lágrimas, lamentava a triste sorte de sua cara senhora e do amigo de infância dela.

Ao saber que René ainda respirava, recobrou a esperança e o ânimo. Deu o endereço do hotel de Beauchamp e pediu que alguém fosse em busca de Antônio Gilberto. Para não se perder tempo, deveria ir no cavalo do Visconde.

Passada uma hora, chegou o médico. Depois de examinar o ferido resolveu levá-lo imediatamente ao hotel. Para eliminar qualquer suspeita René foi colocado novamente no mesmo lugar em que havia caído e depois, com o consentimento dos empregados, o transferiram ao hotel de Beauchamp. Lá, em segurança, foi prestada toda ajuda possível ao ferido.

 

A FUGA

Passados alguns meses Saurmont e a esposa voltaram ao Castelo de São Germano. Diana procurava se isolar o mais que podia. Estava doente e insistia em não deixar o quarto.

Os cônjuges pouco se viam desde a noite fatídica e se separaram por tácita concordância. Briand não se esforçava em refazer as pazes; a lembrança da traição de Diana ainda doía muito; além disso ele dava tempo a ela de repousar e se acalmar.

Para se distrair da vida triste e monótona do castelo, o Conde ia sempre a Angers, onde passava semanas se divertindo com d'Armi.

Este evitava aparecer em São Germano e experimentava indescritível angústia ante a possibilidade de se encontrar com a filha, mas sentia prazer na companhia do genro, divertindo-se tanto na capital como na província. Briand raramente aparecia no castelo d'Armi e suas relações com Lourença estavam limitadas apenas ao dinheiro, já que a Baronesa estava muito ocupada com um novo favorito, esquecendo-se de todo resto.

Um polonês chamado Stanislav Domskii era o novo amante. Chegou ao castelo e implorou hospedagem por alguns dias para descansar da viagem; quando lhe perguntaram o que o havia trazido a Angers, respondeu que queria visitar uma parente que se casara com um importante senhor de Angers, o qual acompanhara Henrique III em visita oficial, quando este foi Rei polonês. Domskii havia sido surpreendido por inúmeros dissabores: veio a saber que sua parenta havia morrido e o marido agora se encontrava em Paris, e, além disso, havia sido roubado. Domskii resolveu procurar o cavalheiro na capital e se apresentar ao Rei. Teve a felicidade de ter estado próximo a Henrique quando este esteve como Rei da Polônia.

Briand ouviu esta história com ceticismo. Conhecia a senhora parente do tal Stanislav e sabia que nunca fora casada; seu exame atento ao polonês convenceu-o ser aquele malicioso è hábil trapaceiro.

Mas, desde o dia em que ficara livre do amor de Lourença, o Conde se abstinha de qualquer referência negativa sobre o estrangeiro.

A Sra. d'Armi estava completamente seduzida pelo rapaz elegante, amável e obsequioso que a tratava com verdadeira adoração. Ela convenceu Domskii ser o castelo d'Armi a segunda pátria dele e lhe propôs ficar o quanto quisesse. Arrumava-se para vê-lo e se relacionava com ele como se fosse com um filho querido. Em suas conversas intermináveis, ela falava de seu precário estado de saúde, das grandes dificuldades enfrentadas na administração das propriedades e do seu cansaço. Seu tema preferido era o descuido, e leviandades imperdoáveis de João; se a ele fosse dada liberdade, teria hipotecado o castelo com todos os seus moradores.

Tocado até as lágrimas, Domskii cobriu de beijos a mão de Lourença; por ela, jurou ele, estava preparado a recusar todas as honras que o aguardavam na corte; ele iria livrá-la do pesado trabalho sobre-humano chamando a si tal encargo.

Ao saber que Domskii havia se tornado administrador e encarregado dos negócios, o Barão João ficou furioso e brigou iradamente com sua mulher:

— Conceder tanto poder a um aventureiro qualquer, ladrão, miserável... resmungou d'Armi, dizendo em seguida uma série de palavrões sobre o polonês. Logicamente Lourença não ficou impassível e logo a altercação chegou às vias de fato. Agredido, coberto de golpes e com o rosto arranhado, o Barão correu dos bramidos selvagens de sua esposa.

A partir deste dia d'Armi procurou aparecer o menos possível em seu castelo, entretendo-se com Briand ou com os vizinhos. Ele colocava seu genro a par de tudo o que ocorria num raio de vinte léguas.

Através dele Briand soube do restabelecimento completo de René e de estar ele no castelo de Beauchamp. Este fato despertou nele novo interesse pela mulher e o fez observá-la. Ao ver Diana muito abatida, chamou o médico.

— E então, Sr. Lucca? O que me diz a respeito de minha esposa? perguntou o Conde após o médico tê-la examinado.

O Dr. Lucca sorriu.

— O senhor está de parabéns! Com a ajuda de Deus em breve nascerá seu herdeiro. Quanto à saúde da Condessa, é plenamente satisfatória, sem descuidar da gravidez, é claro.

Ele se calou ao notar que Saurmont havia ficado branco como mármore naquele instante. Quando o Conde o liberou com um gesto rude, o doutor apressou a saída.

Ao ficar sozinho, Briand deu um soco na mesa passou a andar de um lado para outro do quarto, como um leão na jaula. Dar seu nome e sua herança a um filho bastardo de Beauchamp... nunca! Assim que viesse ao mundo iria sufocar o infeliz herdeiro com as próprias mãos. Vergonha da sua honra, com a qual seria obrigado a suportar a vingança diabólica de Diana! A idéia de que agora havia chegado sua vez de desforra o inquietava um pouco.

— Ah! Linda Diana! Você vai ajustar as contas sozinha, disse ele. Agora me pagará por aquela hora em que me desprezou, valendo-se de seu direito de me trair... meu nome me pertence e um bebê bastardo jamais haverá detê-lo!

Ele a encontrou, como sempre nos últimos meses, deitada no divã, vestindo um belo penhoar de seda.

Diana lia. Com a habitual frieza respondia com acenos de cabeça às indagações do marido e voltava à leitura.

- Ouça-me, senhorita! disse Briand após um minuto de silêncio. Preciso lhe falar acerca de assunto importantíssimo, referente tanto ao passado quanto ao futuro.

Diana fechou o livro e respondeu em tom seco:

— Diga, estou ouvindo.

— O doutor acaba de me congratular. Você sabe o que significa para mim, nessa situação, o nascimento de um bebê? Alguns meses atrás você me disse: "vinguei-me de você e estou contente". Que assim seja! Sujou o nome de Saurmont, esquecendo que me pertence e posso não concordar em dar este nome a uma criança de origem vergonhosa. Assim vim para dizer que o filho bastardo de Beauchamp nunca terá meu nome, tão desprezado por você. Não ficará uma única noite sob meu teto, compreendeu?

Ao ouvir as primeiras palavras do Conde, Diana ficou vermelha de raiva, e logo depois branca como um papel. Aflita, encarou o marido com um brilho febril nos olhos.

— Inconsciente, desalmado! Ousa fazer isso depois de todo o passado? Não tem o direito de negar o nome à criança! gritou ela.

— Desculpe, senhorita, tenho direito e o utilizarei. O bebê haverá de sumir assim que venha ao mundo.

Diana cambaleou e levou as duas mãos .à cabeça. Briand lembrou da condição dela e, pensando que fosse cair, fez um rápido movimento para segurá-la mas a moça pulou para trás, como se houvesse encostado em uma serpente.

— Não me toque, carrasco de minha vida e de minha felicidade! Sua vontade será feita! Saia e me livre de sua presença desagradável! gritou ela com voz entrecortada.

Erguendo os braços ao crucifixo acrescentou:

— Clamo a Deus que é testemunha de minha vida arrasada, Ele haverá de fazer justiça!

— Ouça... começou Briand.

A jovem, porém, tomada por uma ataque de raiva, tirou da gaveta um punhal, daqueles que eram carregados, pelas mulheres da nobreza e gritou, lançando-se ao marido:

— Saia, desgraçado, ou hoje terminarei aquilo que outrora não consegui.

Vendo que estava fora de si, Briand saiu, julgando ser naquele momento impossível qualquer explicação. A vingança não o contentou como desejava. Sem saber por que, não se sentia satisfeito condigo mesmo e com o resto do mundo.

Caía a noite quando retornou ao castelo. O Conde se surpreendeu quando lhe comunicaram haver chegado uma carta do convento onde Clemência era abadessa, mas não pôde ser entregue pois a Condessa havia ordenado que em hipótese nenhuma, fosse qual fosse o motivo, deviam incomodá-la. Tomou a carta e se dirigiu ao quarto da esposa, onde nada se ouvia.

— Diana! chamou algumas vezes sem contudo receber resposta. - Senhor! Será que se suicidou?! murmurou o Conde, acendendo rapidamente uma vela de cera.

Quando constatou que ela não se encontrava no quarto e que havia trocado de roupa, pois o penhoar estava sobre a mesa, o pressentimento do Conde se transformou em certeza. Com voz alterada chamou Gabriela e Manon, todavia estas de nada sabiam. A porta do banheiro estava trancada e não tinham entrado no aposento. Temiam incomodá-la, uma vez que haviam sido proibidas de procurá-la. Desesperado, Briand mandou revistar todo castelo e o jardim, no entanto as buscas foram infrutíferas.

Muito mal humorado, o Conde se trancou no dormitório. Acusava-se com amargura pela sua rudeza e por não haver previsto a fuga. Onde ela poderia estar? Que conseqüências poderia acarretar esta fuga para uma mulher doente e delicada, perdida em algum lugar lá fora, nessa noite fria e cinzenta de setembro?

Na manhã imediata foi feita uma busca ainda mais acurada. Revistaram toda a redondeza, procuraram em Angers e até no convento, mas sem resultado. Ninguém viu Diana.

A moça desapareceu.

É difícil descrever o estado de espírito de Briand nesses dias pesarosos, quando, com os nervos extenuados de cansaço, voltava ao seu castelo, que agora estava vazio para ele. Nem por um minuto encontrou sossego. Cada ruído, cada ranger de porta lhe chamavam atenção. A consciência do Conde estava atormentada. Depois foi dominado pela raiva de si próprio, e se perguntava: por que se lastimar por uma mulher que sempre o desprezara e odiara? Porém, ao mesmo tempo, estava preso a ela. a imagem daquele rosto encantador que o acalmava. Precisava saber que ela estava com ele, em seu poder. Se estivesse viva a encontraria.

Cerca de dez dias depois dos acontecimentos descritos, por um sombrio caminho que conduzia ao castelo de Marillac se movia um discreto grupo composto por três mulas

e duas pessoas. Dois animais estavam sobrecarregados de bagagem e o terceiro levava uma mulher coberta por luxuosa capa. Um camonês era o guia.

A viajante era jovem e ainda bela, porém eram visíveis no rosto as marcas de uma vida desregrada. Não era fácil reconhecer a atraente e brilhante Viscondessa de Beauchamp, sobretudo nesse momento, quando estava imersa em maus pensamentos e com tristeza olhava para o caminho. Apesar disso, era ela.

Com o coração angustiado se dirigia ao irmão para lhe rogar abrigo e proteção.

Uma desgraça havia ocorrido à bela Marion. Seu último amante, o Senhor de Novel, a mandou embora após saber que ela dividia sua benevolência entre ele e um gascão palaciano. Este era sustentado por Marion com os meios de Novel, dotando-o de roupas, armas e até cavalos. A separação se deu com escândalo e Marion não encontrou outro adorador para lhe satisfazer os gastos.

Sem saber o que fazer, vendeu parte de suas jóias e foi para Angers. Sabia que Aimé era rude com mulheres de seu gênero, mas, sendo a única irmã, pensou, não teria coragem de abandoná-la.

O Marquês havia retornado da caçada matinal e tinha acabado de tomar o café da manhã quando lhe anunciaram a chegada da irmã. Enrubesceu, mas antes que pudesse responder algo, Marion entrou rapidamente. Após estender a bela mão ao irmão, disse em tom suplicante:

— Perdoe-me, Aimé! Abrigue-me! Com o espírito infeliz e arrasado, regresso ao meu único parente...

O Marquês deu um passo para trás e franziu os cenhos.

— Não retorna um pouco tarde, senhora, à respeitável casa que a viu nascer? Para uma "courtisane[40]" sem pudor, que envergonhou nosso antigo nome, não há lugar sob este teto.

— Aimé! Guardar rancor de sua única irmã! Se você me expulsar, vou morrer pelo caminho de fome e frio! murmurou Marion pálida.

— Não tenho irmã. Para mim ela morreu no dia em que, por um bilhete covarde, pedia ao amante para matar o marido. Saia, senhora! Detesto mulheres de sua espécie e não tenho a menor pena. Ande, ande! E se utilize novamente do ofício que lhe deu de comer até agora, respondeu o Marquês em tom de rude caçoada, apontando-lhe a porta.

A Viscondessa se retirou a passos cambaleantes, montou na mula e deixou o castelo. Em um ponto do bosque onde o caminho bifurcava, sentou-se sob um carvalho e começou a chorar. Não sabia o que fazer. Suas reservas estavam no fim e além de umas poucas roupas, nada mais possuía. Poderia subsistir ainda algumas semanas com este triste resto de riqueza?

De repente lembrou seu marido René que se restabelecia do ferimento e havia retornado ao castelo em Anjou. Ele seria caridoso para com ela? Pode ser que ele, doente e fraco, a perdoasse, lhe desse refúgio e um lugar de enfermeira...

Animada pela esperança, subiu na montaria rapidamente e adentrou o bosque. No entanto, antes de encontrar o marido, resolveu visitar o guarda da floresta cuja esposa era sua irmã de leite. Ali ela descansaria e ficaria sabendo tudo o que desejava.

Segundo havia previsto, a boa Madalena recebeu com os braços abertos sua irmã de leite e antiga senhora. A bondosa mulher acreditou em tudo o que Marion lhe disse.

Lamentou a imerecida sorte da Viscondessa e não duvidou de que, assim que se esclarecesse o mal entendido que o fez se separar da esposa, René a receberia de volta.

Só que Madalena de nada sabia do que acontecia no castelo.

Não obstante, o irmão caçula de seu esposo viria visitá-los e, como ele trabalhava junto a René, como ajudante de roupeiro, poderia colocá-los a par das novidades.

Quando seu cunhado chegou, Madalena o apresentou à visita. Embaraçado com a altiva empáfia de Marion, o moço titubeando um pouco, contou que no castelo havia uma hóspede que era escondida de todos. A hóspede era a Condessa de Saurmont. Quinze dias atrás o Marquês de Marillac a apanhou desmaiada na estrada e a trouxe ao castelo enrolada em sua capa. A moça foi colocada no quarto em que há alguns anos atrás havia sido arrumado para o casamento que não se realizou. Antônio Gilberto cuidava dela, já que - diziam - estava gravemente enferma. René proibiu com ênfase a todos do castelo que falassem a quem quer que fosse sobre a presença de Diana, cujo marido a procurava por todo país como um louco.

Após receber estas inesperadas notícias, Marion franziu a testa. Sabia do relacionamento amoroso entre René e Diana e do escândalo terminado com a tentativa de assassinato do indiscreto amante, caso comentado por toda cidade. Uma vez que a Condessa se encontrava com seu amante, Marion não tinha a menor chance de ser recebida e de novo a rua a esperava.

A Viscondessa chorou a noite toda, sem conseguir dormir. Mas, de súbito, um plano surgiu em seu cérebro inventivo. Saurmont procurava a mulher por todo lugar. É claro que seria agradecido àquele que lhe indicasse onde ela se encontrava; e, quem sabe, talvez o marido abandonado se consolasse com um novo amor, o qual já havia pensado antes em lhe ofertar.

Resolveu tentar. Vestiu um traje de amazona e dissimulou sob o rouge as pequenas insuficiências de sua beleza, marcas da vida tumultuada. Assim preparada, dirigiu-se ao castelo de Saurmont. Chegou irritada por ser obrigada a utilizar uma modesta mula, ao invés de um soberbo cavalo, mas era preciso se resignar.

Retornando da busca inútil, Briand, emburrado e preocupado andava pelo quarto quando lhe comunicaram que uma certa dama desejava conversar urgentemente sobre importante assunto. Surpreso, o Conde mandou que a recebessem. Maior foi sua surpresa quando viu a Sra. Beauchamp. Esta, após se inclinar em reverência, pediu uma audiência a sós, pois queria dar uma importante informação.

Briand a conduziu ao seu gabinete. Dizendo com cortesia que se sentasse, perguntou o que a havia trazido. O Conde era perscrutador ao extremo para não adivinhar quais eram as lamentáveis circunstâncias que traziam a Viscondessa a Angers. Contudo, esqueceu suas razões e irreverências, quando soube estar Diana escondida no castelo de Beauchamp.

Ao pensar que sua esposa se encontrava em poder do amante, o Conde se enfureceu, transformando sua paixão em ódio. Na hora teve ganas de ir ao castelo de Beauchamp e apunhalar os dois. Mas, pouco depois, começou a raciocinar. Era arriscado atravessar a soleira do homem que ele havia tentado matar e que podia facilmente empregar a força para se vingar. Arriscar a vida por uma traidora mal agradecida era uma insanidade. Encontraria outra maneira de ajustar contas.

O Conde passou a mão no queixo e se endireitou. Nesse minuto seu olhar se fixou em Marion.

Esta, discretamente e em silêncio, o observava com terna simpatia. Imediatamente o Conde teve a idéia de se separar e se consolar com esta mulher provocante, se possível com muita propaganda. Marillac e René ficariam irritadíssimos por serem envergonhados publicamente por uma parente tão próxima. Reprimindo sua raiva, ele agradeceu amavelmente e, de maneira gentil, lhe fez várias perguntas. Condenando profundamente a crueldade do Marquês, o Conde propôs a Marion se hospedar no castelo pelo tempo que quisesse. Ela, com gratidão, aceitou o convite, chorando amargurada seu infeliz destino. E nessa mesma noite se instalou no castelo de Saurmont, no quarto de Diana.

Nem é preciso dizer que os corações ofendidos das duas vítimas da infidelidade conjugal logo se uniram. Marion triunfante se fez abertamente a dona da casa, deleitando-se com o luxo e a ordem e aparecendo com o Conde por onde fosse.

Quando a notícia dessa união chegou a Marillac, este ficou furibundo. Ainda que o Marquês houvesse renegado a irmã, o relacionamento dela na própria província o desgostava muitíssimo. Maus pensamentos começaram a surgir na mente do cruel Marquês.

O entusiasmo de Briand não durou muito; a idéia de que Diana estivesse com Beauchamp o torturava, envenenando qualquer alegria sua. Cada vez com mais freqüência tratava mal Marion, pensando em rever a esposa.

O Barão d'Armi passava quase todo o tempo com o Conde, mas nem pensava em ir atrás da filha. Certa vez contou a Saurmont que havia visto seu antigo criado, Henrique.

Pelo visto se encontrava em má situação, já que ele e seu acompanhante estavam em farrapos, autênticos mendigos.

Esta notícia eletrizou o Conde. Henrique era exatamente o que precisava. Para se conciliar com ele e ter certeza de sua colaboração, era necessário apenas dinheiro.

No dia imediato Briand se dirigiu a Angers. Em uma pensão mantida por ciganos e gente suspeita, veio a saber que Henrique estava usando pseudônimo de Vampiro. Comandava a tribo que naquele momento estava acampada no bosque do Visconde de Beauchamp.

O acerto foi muito difícil no início, porém, como o Conde não regateava, rapidamente chegaram a um acordo. O cigano prometeu raptar Diana antes de quinze dias. Passados dez dias, Henrique radiante comunicou que o mais difícil fora feito; conseguiu travar conhecimento com alguns servidores do castelo e ficou sabendo qual era o quarto de Diana. Agora faltava apenas fazer o plano do rapto e os últimos preparativos. O cigano considerava a captura coisa fácil, visto que o quarto da moça ficava na lateral e dava para o fosso.

Na noite do rapto, Briand não conseguiu pegar no sono. Logo cedo ele dispensou Marion e sentou junto à janela, esperando angustiado o sinal que deveria anunciar o sucesso de seu ousado plano.

Horas se passaram e o sinal tão impacientemente aguardado não foi ouvido. Tudo era silêncio. Despontava a aurora, quando Briand quebrado pelo cansaço e nervosismo, se estirou na cama para descansar um pouco. Mas o Conde não pôde fechar os olhos. Os mais diversos pensamentos lhe vinham à cabeça. Por que Henrique não havia voltado?

Ele próprio disse que avisaria rapidamente se ocorresse algum contratempo.

Não estando em condições de superar sua impaciência, ordenou preparar o cavalo e a toda brida correu para o acampamento cigano - talvez lá soubesse algo.

Chegando à clareira, onde ainda no dia anterior haviam cabanas e tendas armadas, o Conde viu que o acampamento se preparava para partir. As fogueiras estavam sendo apagadas, os furgões carregados e atrelados, e as pessoas em silêncio iam e vinham ao redor dos carros esperando algo com visível intranqüilidade.

— Nem os líderes, nem os outros integrantes da expedição retornaram do castelo Beauchamp. Não temos nenhuma notícia deles, respondeu com má vontade um dos chefes.

O Conde desceu do cavalo e sentou num tronco de árvore depois de resolver esperar. Mais de uma hora se passou em silêncio. De repente alguém apareceu correndo na clareira - estava muitíssimo cansado, ofegante, as pernas cambaleantes e o rosto com péssima expressão. Caminhou vacilante na direção do carro e caiu. Pessoas se reuniram em torno do recém chegado e molharam seu peito e a cabeça com água fria. Em poucos minutos voltou a si e levantou.

— Corram! Corram! gritou ele com voz rouca e olhar desnorteado. Vampiro e os outros foram capturados... sou o único que conseguiu fugir...

Como se fosse atingido por um forte golpe, Briand começou a oscilar e ficou pálido, tendo que se apoiar na árvore. Se Henrique havia sido preso, então para ele estava tudo acabado. Que desgraça! Sendo um ladrão tão hábil como deixou que o apanhassem? Precisava saber detalhes. Com sua habitual obstinação se aproximou do velho cigano e disse, colocando na mão dele valiosas moedas:

— Quero saber desse homem os pormenores da captura de Vampiro e seus companheiros.

— Diga, Djalil! Conte rapidamente tudo o que você sabe, ordenou o velho cigano.

— Aconteceu assim: no início tudo corria bem. Vampiro e Gara entraram pela janela e nós já os ouvíamos retornando. Logo Gara deu o sinal. De repente se ouviu um tiro, depois outro. Vimos Gara sair pela janela e começar a descer pela corda, quando de súbito esta se rompeu - ou foi cortada - e Gara caiu no fosso. Dois dos nossos correram para ajudá-lo, mas todo o castelo estava de pé. Tínhamos de fugir. Depois de apanhar Gara e outros dois, atiraram em nós, e Geraldo e Tonia tombaram feridos. Sozinho, cheguei à floresta e subi em uma árvore. Fiquei lá até que a situação se acalmasse; queria saber o que aconteceu com Vampiro e os nossos, e se haveria uma forma de libertá-los. Assim, antes do raiar do sol desci e me infiltrei entre as pessoas. Fiz um sinal e a pequena Suzana, amiga de Gara veio até mim.

Com lágrimas nos olhos me contou que Gara, ao cair quebrou a mão e a perna. Todos haviam sido capturados, uns menos, outros mais feridos, com gravidade. Estando de serviço no quarto vizinho ao da moça, o médico surpreendeu Henrique no momento em que se preparava para descer com ela através da janela. Depois, contou a pequena, ele foi levado ao sacerdote que casualmente se encontrava no castelo. Na presença do padre, do Sr. Beauchamp e do Sr. Marillac, Vampiro fez um longo e substancial relato. O que disse? Ele não sabia mas ouviu que logo ao amanhecer o próprio Marquês iria à Promotoria Real em Angers entregar os prisioneiros.

O cigano silenciou, mas Briand já sabia o bastante. Sem perder um minuto, subiu no cavalo e a toda velocidade regressou ao castelo. Seu coração palpitava com profunda ansiedade. Mil pensamentos contraditórios lhe passavam pela mente, e logo começou a suar frio. Desta vez Nêmesis o acertou. O crime do passado, que havia sido tão bem escondido, agora reaparecia para se vingar por Diana e lhe dar a inexorável sentença da Lei. Um furor desesperado tomou o orgulhoso senhor ao pensar que o esperavam a vergonha e a degradação. O sentido inato de auto-conservação despertou seu ardor obstinado para procurar uma forma de se salvar. A própria dimensão do perigo elevou a capacidade de raciocínio do Conde. Subitamente, em meio ao caos, surgiu uma idéia de salvação; o plano era ousado em demasia, no entanto, o que fazer? Ele podia arriscar, jogar as cartas uma vez que não tinha nada a perder pois a morte o aguardava. Apesar de tudo, a esperança de se livrar deu a Saurmont um pouco de calma e ânimo. Além duma ligeira palidez, nada indicava seu nervosismo quando, tranqüilo e altivo, desceu do cavalo.

Trancando-se em seu quarto, ele rapidamente preparou todo o indispensável para a realização do seu perigoso plano. Colocou no porta-jóias o ouro e algumas pedras preciosas muito valiosas e os escondeu no armário secreto. Feito isso, de um outro esconderijo ele carregou um grande cofre com sacos de ouro, num valor aproximado de cinqüenta mil escudos. Por fim. tirou do armário e colocou no bolso dois pequenos frascos, um com rolha dourada, outro prateada. Terminando esses preparativos, o Conde foi ao quarto de d'Armi.

O Barão havia acabado de levantar e fazia o desjejum com gosto. Ao olhar para Briand imediatamente compreendeu que alguma coisa muito importante havia acontecido.

Quando soube da infelicidade que ocorrera, o garfo e a faca caíram de suas mãos.

— Meu Deus!... irão matá-lo, Briand! murmurou ele tremendo.

— Ainda não, se me ajudar e for fiel! respondeu o Conde em tom sério. Agora me ouça, já que não podemos perder tempo. Considero desnecessário dizer que o recompensarei generosamente. Se não quero ser decapitado, devo morrer e morrerei, só que aparentemente. Tenho uma substância narcótica - tirou do bolso um dos frascos - que por quarenta e oito horas me dará o aspecto de um homem morto. Algumas gotas vertidas no vinho farão com que todos pensem estar eu morto. Quando o Procurador Geral chegar e encontrar um cadáver, a acusação não encontrará réu, e o antigo nome de Saurmont continuará imaculado, visto não se poder processar um morto. Assim você poderá me enterrar com todas as honras no jazigo de minha família. Debaixo da almofada, dentro do caixão, você irá colocar o porta-jóias de madeira preta com incrustações que se encontra no armário secreto em meu gabinete. Seu apego e pesar serão tão grandes que você deixará meu corpo somente quando fecharem meu ataúde a chave. À noite você virá abrir o caixão em segredo e trará consigo uma batina de monge e uma barba grisalha postiça. Depois de me trocar, fugirei diretamente para o sul, até uma aldeia nos Pirineus, onde vive um pobre e necessitado representante do nome de Saurmont. Ele é descendente do irmão caçula de meu avô.

As circunstâncias do destino que são complicadas para serem narradas agora, obrigaram-no a se instalar nesse país; a este homem doente e tolo me dirigirei; por uma soma conveniente comprarei seu nome e documentos. Sem desconfiar da herança que está perdendo ele trocará com prazer seus documentos em utilidade por uma discreta abastança. Então voltarei como Eustáquio Felipe Saurmont e exigirei meu direito à herança de meu falecido primo Briand, afastando todas as pretensões de Diana e seu filho, em vista do escandaloso adultério da Condes,1 Deu para compreender?

— Claro, claro, meu caro Briand! Você é simplesmente genial! Cumprirei fielmente as instruções, disse em voz alta e com satisfação d'Armi.

— Não poupe esforços. Deixando o túmulo eu lhe darei uma boa soma. Quando regressar para exigir a herança, meu notário apresentará testamento determinando aos herdeiros do Conde Briand que dêem ao Barão d'Armi cinqüenta mil escudos. Como vê é de seu interesse que eu me salve. E agora até a vista! O tempo voa!

Voltando a seu quarto, o Conde verteu no copo de vinho a quantidade necessária de narcótico, que o fez estremecer ao tomá-lo. A seguir, no que sobrou colocou veneno e escondeu os dois frascos no armário secreto.

Uma hora depois um criado entrou no gabinete do Conde e viu seu senhor estendido, frio e imóvel no chão.

Todo castelo ficou em completa polvorosa. d'Armi chegou correndo. Nenhuma das tentativas para fazer o Conde voltar a si deu resultado e o deram como morto. O Barão, mostrando o mais profundo desespero, parecia desnorteado. d'Armi molhou um pedaço de pão no copo que estava ao lado do cadáver e o deu a um dos cachorros de Briand; em poucos minutos o animal levantou nervoso e começou a girar pouco depois caindo morto. Ao ver isso o Barão passou a discutir se seu genro havia cometido suicídio ou se havia sido assassinado.

Outra pessoa no castelo tinha sentido muito a morte de Briand - era Marion - O luxo e a boa vida que ela considerava garantidos por muitos anos inesperadamente acabaram.

Além disso os herdeiros do Conde poderiam exigir dela a entrega das jóias das quais ela dispunha, como se fossem suas.

Assim que essa ameaça veio à mente da Viscondessa, enxugou as lágrimas, foi ao seu quarto e rapidamente começou a se preparar para fugir. Roupas caras às quais juntou os melhores vestidos do guarda-roupa de Diana e valiosíssimas jóias com o brasão de Saurmont foram colocados na bagagem. Também levou dois excelentes cavalos - um para si e outro para seu criado. Ela já descia as escadas para partir quando, no pátio do castelo, adentrou numerosa cavalaria.

— À frente do grupo de soldados vinha o Marquês de Marillac e o preboste[41] (91) de Angers.

Ao ver o irmão, Marion parou como se fosse paralisada. Nesse instante o Marquês pulou no chão e, admirado, viu os animais carregados que se punham a caminho; notou a irmã e seu rosto ficou vermelho, contraindo-se de pudor.

— Ah!... criatura desprezível! Você fugindo daqui... vou mandá-la para o inferno! Juro por Deus que você não espalhará mais tanta vergonha! Morra, desonra de nosso nome!...

Antes que alguém pudesse adivinhar sua intenção, o Marquês se atirou sobre a Viscondessa e cravou o punhal no peito dela.

Marion deu um grito horrível e caiu banhada em sangue. Rolou por uns momentos pela laje de pedra, estendeu um braço e depois ficou imóvel.

— Senhor! O que fez, "monsieur"?! gritou assustado o preboste.

— Somente aquilo a que tinha direito e que era meu dever, respondeu com arrogância Aimé. Como chefe da Casa dos Marillac e guardião de sua honra, julguei e condenei um membro indigno, que manchou dois nomes ilustres. Para tranqüilizar sua consciência de juiz, eu lhe provarei que esta mulher tentou assassinar o esposo. Só a alma grandiosa de meu cunhado a livrou da Praça de Greve.

O preboste nada respondeu; a justiça selvagem daquela época habituou as pessoas aos desenlaces sangrentos. O poder do chefe de família nos problemas de honra era indiscutível. Aliás, o fim trágico de Marion foi esquecido quando o magistrado soube da morte de Briand. O veneno encontrado confirmou a suspeita de que durante a volta matinal o Conde ficara sabendo da captura de Henrique. Ao compreender que para ele havia chegado a hora da justiça, o próprio Saurmont colocou um ponto final em sua vida criminosa.

— Sr. preboste! Será que vai levar adiante um processo contra um morto? perguntou pálido e desanimado d'Armi. Culpado ou não, ele mesmo se julgou. O cigano, conhecido bandido, e sua mulher grávida foram seus acusadores. Será que não existe possibilidade de livrar da humilhação um nome tão digno e que por tanto tempo serviu ao bem de nossa província?

O preboste olhou indeciso para o Marquês que com olhar carrancudo e pensativo examinava o corpo de Briand estendido sobre um banco.

— Desta vez concordo com o Sr. Barão, respondeu ele. A justiça foi feita e o criminoso se encontra diante do Juiz dos Juízes. Apareci aqui para presenciar a captura de um miserável que infelizmente ostenta um antigo nome, que impecavelmente leva tanta gente. Acho que devemos ir e deixar o Barão d'Armi enterrar seu genro.

Após breve entendimento, o preboste colocou o sinete nos armários e no caixão do falecido e retornou à cidade.

D'Armi assumiu a responsabilidade pela direção dos negócios e conservação do patrimônio de Briand, até que aparecesse algum herdeiro.

Na manhã seguinte, rapidamente e sem qualquer pompa, foi realizado o enterro do Conde. Seu ataúde foi colocado no jazigo da família.

Algum tempo depois, cuja duração não podemos determinar, Briand despertou. No primeiro minuto não adivinhou que lugar escuro e de ar pesado era aquele onde estava.

Maquinalmente levantou a mão e encontrou um obstáculo. Depois quis levantar mas não conseguiu. Repentinamente lembrou estar em um caixão. Começou a suar frio. Se d'Armi tivesse esquecido suas instruções, se tivesse despertado muito antes da hora de ser solto, ou, se o Barão, por um motivo qualquer resolvesse se livrar dele... morreria!...

Ao pensar nisso sentiu que o ar lhe faltou. Reuniu todas as forças das quais eram capazes seus membros desesperados e, com a ajuda dos braços e do ombro, tentou erguer a tampa do caixão. Para grande alívio a tampa cedeu a seu esforço.

O ar fresco e úmido do jazigo lhe veio ao rosto. Com cuidado para não derrubar a tampa e fazer barulho, o Conde saiu do ataúde e desceu pelos degraus de pedra do cadafalso. Percebeu que o jazigo não estava completamente escuro como pensara inicialmente. A lâmpada que ainda ardia diante do crucifixo do altar de pedra iluminava tanto que podia examinar o local ao redor.

Deu alguns passos cambaleantes e sentiu terrível fraqueza - suas pernas fraquejaram. Tremendo muito de frio, soltou o corpo nos degraus do altar. Sentiu o coração oprimido. Nessa casa de mortos ele era o único vivo. Por todos os lados, nos cantos mais escondidos e fundos, via somente as tumbas de seus antepassados; sob suntuosos enfeites, mármores e lápides de bronze, silenciosamente dormiam o sono profundo. Sozinho, tremia na sua elegante roupa que não era capaz de abrigá-lo do frio penetrante daquela noite de outubro.

Briand com esforço levantou e começou a andar para se aquecer, mas devido à fraqueza caiu de joelhos, amparado pela abóbada.

— Como d'Armi está demorando! pensou ele impaciente, enquanto seu olhar confuso e irresoluto se dirigia ao escuro espaço desse lugar tenebroso onde tinha de permanecer.

Maus pensamentos o assediaram. Com uma clareza que o torturava, lembrou passo a passo a situação que o forçou a recorrer a tal meio para escapar à justiça dos homens.

Agora estava morto, riscado do mundo dos vivos e, voluntariamente, havia aberto mão de todos os direitos pertencentes a Briand de Saurmont! Havia deixado a riqueza, os conhecidos e até a esposa... A recordação de Diana o queimou como um fogo em brasa! Sua morte a fez livre e, é claro, a uma mulher bonita e atraente não faltariam pretendentes... um suspiro saiu do fundo de seu peito e ele, com as duas mãos, segurou a cabeça. Sentia como se fosse morrer sufocado de ciúmes. Era a segunda vez que o destino fatídico o obrigava a conceder a liberdade da viuvez à mulher que tão apaixonadamente queria.

Nesse momento um forte estalo fez o Conde levantar. Seu olhar amedrontado sondou as trevas - que barulho era esse? Algum antepassado seu havia se levantado para julgar seu descendente indigno, um assassino?...

Todos os representantes do nome da família deixaram lembrança sem nódoa; e ele? Nunca havia sentido tão amargamente seu passado criminoso!

— Estou doente... minha imaginação está sob o efeito da fome e do cansaço, pensou ele passando a mão na testa e tentando reprimir o assédio de suas estranhas sensações.

Parecia que uma bruma sufocante, aguda, sulfurosa, lhe tirava a respiração, enquanto que um frio gelado estremecia cada fibra de seu corpo. De repente diante de seus olhos aterrorizados, do fundo do jazigo surgiu uma trêmula luz verde. Ampliando-se pouco a pouco iluminou com nitidez uma alta figura e as armas cintilantes de um cavaleiro agrilhoado numa armadura. A viseira levantada permitia ver o nobre e sério rosto e sua barba grisalha. O Conde o reconheceu no mesmo instante; era o cavaleiro do quadro original que estava no salão dos antepassados, retrato do primeiro Conde de Saurmont.

Atrás dele, iluminados pela luz verde, em carne e osso, caminhava um cortejo composto de pessoas vestidas em ricos trajes. Eram roupas características de cada período do reinado francês, iniciando com o reino de Ludovico, o Iluminado e terminando com o de Henrique II. Eram todos conhecidos do Conde pela galeria de retratos, representantes da família em épocas passadas. Briand ficou petrificado e permaneceu em pé, imóvel. Não conseguia tirar os olhos destes estranhos e impressionantes personagens.

Então, de súbito, em seus ouvidos, como um trovão distante, ecoou a voz do velho cavaleiro:

— Assassino! Impostor! Indignamente ostentas um nome irrepreensível, legado pelos antepassados! As mãos do fantasma se estenderam até a corrente de ouro pendente no pescoço de Briand.

Esta corrente havia sido usada por cada membro da família e era uma herança de alto valor, conferida por Ludovico, o Iluminado.

— Devolve a corrente! Não és digno de carregá-la, prosseguiu com voz estridente o fantasma.

Briand sentiu forte abalo; depois sentiu no rosto o contato das luvas de ferro geladas e uma forte dor na cabeça. Tudo ao seu redor tremia, assobiava e parecia estar prestes a ruir sob grande força. A cabeça do Conde começou a girar e ele, aturdido, desmaiou sobre as lajes de pedra.

Fortes dores e uma voz falando alto acordaram Saurmont. Abriu os olhos e viu d'Armi segurando na mão um lampião, cuja luz incidia diretamente em seu rosto.

O Barão o sacudiu energicamente, gritando e dizendo impropérios como um pagão.

— "Sacrebleu"! Finalmente você voltou a si! Disse ele soltando o braço de Briand. Por mil trovões e demônios! Com quem esteve se esfolando, meu caro amigo? Não com os antepassados, espero eu? Ou você caiu? Está todo ensangüentado e sua corrente quebrada... que significa isso?

Briand levantou com dificuldade. A forte dor na cabeça e os pedaços da corrente espalhados pelo chão o fizeram lembrar a estranha e apavorante visão. Ele estremeceu e fechou os olhos.

— Ora! Não desmaie de novo! Tome este lenço úmido e limpe seu rosto manchado de sangue.

— O que há no meu rosto? perguntou preocupado o Conde.

— Hum... agora, depois que você limpou, vejo que não há ferimento algum, mas o nariz está quebrado. Também na bochecha há uma mancha bem evidente como se houvesse sido carimbada por dedos bem grandes. Ha! Ha! Ha! rindo, o Barão interrompeu a si mesmo. Espero que Lourença não tenha estado aqui! Briand, com estas marcas no rosto você não poderá viajar. Um homem da Igreja com estas marcas irá despertar a desconfiança das pessoas.

— O que farei se não posso aparecer em lugar nenhum? murmurou Briand.

— Não precisa ficar desesperado por causa disso. Venha comigo. Vou escondê-lo até essa mancha sumir. Agora coloque a máscara, a capa e vamos nos pôr a caminho. Atrás do muro há dois cavalos. A noite está escura e o seu pessoal celebra com um jantar a memória do falecido, assim podemos sair sem qualquer problema.

Angustiado, com o coração deprimido, Briand desceu do jazigo. Em silêncio passaram pelo jardim e por uma portinhola escondida saíram no matagal onde se encontravam os cavalos.

Passadas duas horas, Briand, sem que ninguém percebesse, entrou no quarto da Sra. d'Armi, vindo por uma escada secreta. Ela o recebeu amavelmente, procurando confortá-lo.

Mais tarde, depois do jantar, instalaram o Conde no antigo quarto de Diana.

Com o corpo e a alma extenuados Briand adormeceu num pesado e febril sono.

 

PRISIONEIRO ANSIOSO

De péssimo humor e tomado pelo rancor, ira e impaciência, Briand vivia cativo no castelo d'Armi.

A princípio não conseguiu remover a estranha e forte marca no rosto com nenhum tipo de tratamento. A imobilidade a qual estava condenado e o ciúme que o torturava - quando pensava em Diana - pioravam seu estado de saúde. Debalde atormentou o Barão exigindo que fosse ao castelo de Beauchamp se encontrar com a filha. D'Armi, no entanto, se negou teimosamente. Além disso o Barão torceu o pé enquanto caçava e procurava não sair de casa.

Briand, porém, era insistente e conhecia a maneira de quebrar a teimosia do Barão. Uma gorda quantia sempre acabava com qualquer peso de consciência.

Nessa manhã maravilhosa, reclamando e amaldiçoando, d'Armi foi ao castelo de Beauchamp.

Quando o Barão voltou, seu aspecto abatido e triste imediatamente fez o Conde compreender que ele vinha trazendo notícias desagradáveis. Mas Briand ficou paralisado quando d'Armi lhe contou sua visita. Após uma solene comunicação de que ele era o pai da Condessa de Saurmont, conduziram-no à sala do andar inferior e o deixaram sozinho. Depois de muito esperar, apareceu por fim um criado que comunicou, em nome do Visconde, ser impossível permitir que visse sua esposa, já que a Condessa ainda não havia se recuperado do parto. Além disso, René pediu a d'Armi não mais retornar, pois a Viscondessa não desejava vê-lo. Através do criado ficou sabendo que Diana teve um filho, batizado com o nome do Visconde.

A notícia de que Diana se casara golpeou Briand como um raio e lhe despertou tamanho acesso de desespero e ódio, que seu organismo debilitado não pode resistir à comoção. O Conde adoeceu gravemente e durante seis semanas sua vida esteve por um fio. Ao final o corpo moço e forte venceu a doença e gradativamente começou a se restabelecer. Passaram-se alguns meses e as forças do Conde retornaram, mas enquanto isso ele não tinha podido partir. D'Armi e a esposa movidos pelo ávido desejo de possuir o porta-jóias cheio de pedras preciosas que Briand havia escondido, tentavam por todos os meios achá-lo. Não obstante era extremamente importante o Conde aparecer na qualidade de herdeiro, já que à propriedade vieram dois parentes distantes e conseguiram, através do juiz, apresentar seus direitos à rica herança.

Briand compreendeu a urgência de sua partida, mas o desejo incontrolável de ver Diana o levou ao castelo. Esforçou-se um bom tempo para achar um meio de chegar até a jovem que vivia sozinha e pouco saía de casa.

Morando em casa de d'Armi, sob os cuidados do Barão, ele, por algumas vezes rodeou o castelo de Beauchamp na esperança de encontrar Diana, mas sem obter sucesso.

Depois de muito refletir arquitetou um plano que tinha oportunidade de ser bem sucedido. Com o auxílio do Barão João, o Conde conseguiu roupa de um mercador ambulante e uma cesta cheia de tecidos de seda e peças de valor.

Assim disfarçado de tal forma que não poderiam reconhecê-lo, curvado sob o peso da cesta e apoiado numa bengala, Briand se dirigiu certa manhã ao castelo de Beauchamp.

A primavera iniciava, no entanto o tempo ainda era frio e chuvoso. As estradas estavam alagadas e o ar era úmido. A humilhante e estafante caminhada obrigou o nobre cavalheiro a tremer de raiva e cansaço. Suando muito devido ao esforço, chegou finalmente à entrada do castelo, onde alguns homens armados o levaram ao pátio. A estes soldados também se juntaram os pajens e os criados. Todos examinavam as mercadorias, e, após terem comprado algumas quinquilharias deixaram o comerciante.

Furioso e desanimado, Briand se preparava para partir, quando de repente os criados respeitosamente deram passagem a um homem alto que se aproximou com um chicote na mão e assobiou uma música de caçador. Era René. O coração do Conde bateu forte quando o Visconde parou e perguntou:

— Quem é este homem? O que tem no cesto?

— "Monsieur", é um judeu errante. Ele vende maravilhosos tecidos de seda e objetos de valor.

René pensou por um minuto passando a mão no bigode. A seguir, preparando-se para entrar no vestíbulo, trazendo notícias desagradáveis. Mas Briand ficou paralisado quando d’Armi lhe contou sua visita.

Após uma solene comunicação de que ele era o pai da Condessa de Saurmont, conduziram-no à sala do andar inferior e o deixaram sozinho. Depois de muito esperar, apareceu por fim um criado que comunicou, em nome do Visconde, ser impossível permitir que visse sua esposa, já que a Condessa ainda não havia se recuperado do parto. Além disso, René pediu a d’Armi não mais retornar, pois a Viscondessa não desejava vê-lo. Através do criado ficou sabendo que Diana teve um filho, batizado com o nome do Visconde.

A notícia de que Diana se casara golpeou Briand como um raio e lhe despertou tamanho acesso de desespero e ódio, que seu organismo debilitado não pode resistir à comoção. O Conde adoeceu gravemente e durante seis semanas sua vida esteve por um fio. Ao final o corpo moço e forte venceu a doença e gradativamente começou a se restabelecer. Passaram-se alguns meses e as forças do Conde retornaram, mas enquanto isso ele não tinha podido partir. D’Armi e a esposa movidos pelo ávido desejo de possuir o porta-jóias cheio de pedras preciosas que Briand havia escondido, tentavam por todos os meios achá-lo. Não obstante era extremamente importante o Conde aparecer na qualidade de herdeiro, já que à propriedade vieram dois parentes distantes e conseguiram, através do juiz, apresentar seus direitos à rica herança.

Briand compreendeu a urgência de sua partida, mas o desejo incontrolável de ver Diana o levou ao castelo. Esforçou-se um bom tempo para achar um meio de chegar até a jovem que vivia sozinha e pouco saía de casa.

Morando em casa de d’Armi, sob os cuidados do Barão, ele, por algumas vezes rodeou o castelo de Beauchamp na esperança de encontrar Diana, mas sem obter sucesso.

Depois de muito refletir arquitetou um plano que tinha oportunidade de ser bem sucedido. Com o auxílio do Barão João, o Conde conseguiu roupa de um mercador ambulante e uma cesta cheia de tecidos de seda e peças de valor.

Assim disfarçado de tal forma que não poderiam reconhecê-lo, curvado sob o peso da cesta e apoiado numa bengala, Briand se dirigiu certa manhã ao castelo de Beauchamp.

A primavera iniciava, no entanto o tempo ainda era frio e chuvoso. As estradas estavam alagadas e o ar era úmido. A humilhante e estafante caminhada obrigou o nobre cavalheiro a tremer de raiva e cansaço. Suando muito devido ao esforço, chegou finalmente à entrada do castelo, onde alguns homens armados o levaram ao pátio. A estes soldados também se juntaram os pajens e os criados. Todos examinavam as mercadorias, e, após terem comprado algumas quinquilharias deixaram o comerciante.

Furioso e desanimado, Briand se preparava para partir, quando de repente os criados respeitosamente deram passagem a um homem alto que se aproximou com um chicote na mão e assobiou uma música de caçador. Era René. O coração do Conde bateu forte quando o Visconde parou e perguntou:

— Quem é este homem? O que tem no cesto?

— ”Monsieur”, é um judeu errante. Ele vende maravilhosos tecidos de seda e objetos de valor.

René pensou por um minuto passando a mão no bigode. A seguir, preparando-se para entrar no vestíbulo, disse:

— Loran! Conduza-o ao aposento da Viscondessa. Quero sugerir a ela que compre alguma coisa.

O coração de Briand batia como nunca. Dentro de alguns minutos ele poderia ver Diana pessoalmente sentiria se ela era feliz e como se tratavam ela e seu novo marido.

Seguindo o criado, subiu as escadas, passou por vários quartos e corredores e se deteve, por fim, diante de uma porta. Atrás desta se ouvia a voz do Visconde.

— Chega! Não seja preguiçosa e veja as mercadorias. Isso a distrairá.

Passado um minuto Briand entrou no grande e ricamente mobiliado quarto. Ao fundo, numa elevação, estava a cama. Junto à lareira, sentada em um divã, se encontrava Diana, trajando um vestido de veludo lilás.

O Visconde se sentou ao lado da esposa. Abraçou-a pela cintura e lhe dirigiu o olhar do mais carinhoso e atento esposo. Briand parou de chofre; sentiu tamanha dor no coração que por pouco não levou a mão ao peito; por uns instantes esqueceu completamente seu papel. Superando a dor com esforço sobre-humano, ficou de joelhos e começou a desamarrar os artigos da cesta. Espalhou maquinalmente os tecidos de seda e começou a mostrar as pedras. Seus pensamentos estavam longe.

O Visconde examinou tudo de boa vontade, comentando com Diana que permanecia indiferente sobre o valor e o preço das mercadorias. Alguns objetos graciosos foram colocados de lado, mas, quando a moça disse que gostava de uma peça e um enfeite de turquesa, René fez que não percebeu. Diana não insistiu e os adornos não foram comprados.

Quando o dinheiro foi pago e Briand reuniu as mercadorias, René ordenou que o conduzissem ao quarto de criados e lhe dessem de comer. O Conde se inclinou e agradeceu.

Ao sair do quarto disse não estar com fome e a passos rápidos se dirigiu à saída. Já se aproximava da porta quando um cavalheiro o alcançou correndo e lhe pediu para entrar no gabinete mais próximo e aguardar. Apesar da ira, Briand devia acatar se queria representar seu papel até o fim. Mas qual não foi sua surpresa quando o Visconde veio e comprou o tecido e a peça indicados por Diana. Na verdade ele queria lhe fazer uma surpresa, pensou o Conde. Mas no mesmo instante sua suposição foi desfeita, pois Beauchamp embrulhou a compra, e, enquanto o falso comerciante arrumava sua trouxa, chamou um jovem cavaleiro a quem ordenou que levasse imediatamente este pacote ao hotel Silari, em Angers. Briand se sobressaltou. A reputação de Helena era bem conhecida para se deduzir que o presente era destinado exatamente a ela. A própria escolha dos enfeites foi uma afronta a Diana. Que significava isso?

Com a cabeça zonza, fervendo de ciúmes e desespero, dilacerado por mil sentimentos contraditórios, Saurmont deixou o castelo. Tinha sido suficiente um pouco para se convencer de que Diana não era feliz. Tal expressão de sofrimento e amargura ele não tinha visto nela, nem mesmo na pior época de sua vida conjugal... o presente enviado à Sra. Silari lançou uma luz sobre a vida íntima do casal e explicava a tristeza da moça. Mas como foi que a orgulhosa mulher concordou num casamento tão apressado? Como ela superava a humilhação ocasionada pela infidelidade do marido? E ele, Briand, estava morto! Ele não podia exigir o que lhe pertencia, arrancar sua esposa de uma companhia indigna!

Em essência, não tinha direito algum sobre ela!... Oh! Como ele se acusou naquele momento pela sua maldade e até mesmo sua crueldade!

Se houvesse sido bom e tivesse aceitado o filho de Diana, continuaria sendo o senhor da situação - o Conde Saurmont! E não um fugitivo sem nome, que só o túmulo pôde salvar da forca...

Ocupado com seus pensamentos e mergulhado na tempestade de suas emoções, o Conde não prestou atenção ao caminho e adentrou o bosque.

Escondeu sua carga e continuou mata adentro, instintivamente, só voltando a si quando se percebeu dentro de um fosso, com água até a cintura. Com grande dificuldade saiu desse desagradável banho. Contudo estava perdido e durante a noite não conseguiu se orientar.

Somente ao nascer do sol, tremendo de frio, voltou ao castelo d’Armi e logo foi dormir.

Apesar da forte comoção, Briand logo se recuperou. Ele mesmo tinha pressa em ir embora e resolveu se pôr a caminho, assim que voltasse com d’Armi do passeio secreto a São Germano.

O Conde pretendia entrar no castelo por uma entrada subterrânea, sua conhecida, e pegar no armário secreto alguns papéis que haviam sido largados às pressas e lhe eram indispensáveis.

No castelo Beauchamp a vida seguia seu curso, sem trazer mudanças. René ia perdendo o pudor; suas ausências se prolongavam e ele, cada vez menos, encobria com sua delicadeza fingida a rudeza deslavada no tratamento da esposa. A própria Diana o evitava, já que ele se tornara repugnante para ela. Suas melhores horas eram quando sonhava com o passado e via a imagem de Raul. Este sim, verdadeiro cavalheiro, tanto de alma quanto de origem, passou por sua vida como uma cativante e efêmera cena...

Certa vez, no fim de maio, uns dois meses após a visita do comerciante errante, Diana se encontrava sob forte influência das recordações do passado. Recebera pela manhã uma carta da Sra. de Montfort a qual dizia ser seu estado precário. A antiga doença havia minado sua saúde e, repentinamente, tinha se agravado. Ela pedia a Diana que a visitasse, acrescentando, se possível, vir dentro de uma semana, dado que teria a felicidade de ver seu antigo confessor, o pai de Gabriela, que se havia tornado bispo em Angers. Percorrendo sua diocese, ele visitaria a Abadia de Santa Úrsula e descansaria ali por dois dias.

Diana resolveu ir e comunicar a viagem ao marido nessa mesma noite. O Visconde se encontrava por acaso no castelo. Ao amanhecer saiu, mas logo depois regressou.

Após o café da manhã ele se deitou e ainda ressonava, próximo mesmo da hora do jantar.

Diana estava triste com a doença de Clemência. Queria se aconselhar com Antônio e lhe pedir fosse com ela à Abadia. Com esta idéia a moça foi à biblioteca, onde o médico costumava trabalhar nas horas livres. A biblioteca ocupava grande cômodo, com numerosa coleção de manuscritos e diversos livros reunidos pelo bisavô de René. O velho gostava de estudar e se interessava pelas ciências ocultas. Antônio Gilberto, amante como a maioria de seus contemporâneos destes assuntos, tratava de classificar e colocar em ordem a coleção.

O cirurgião não estava lá. Decidida a esperá-lo, Diana entrou na antecâmara da janela, que formava uma espécie de gabinete, e desceu a pesada cortina. Ela vinha ali com freqüência, pois dali se via panorama maravilhoso. Podia se ver toda a colina e a jovem se agradava em sonhar ali. Nesse dia ela também contemplava prazerosa o pôr do sol. À medida que o crepúsculo vespertino crescia, ela mergulhava mais e mais em seus sonhos e, por fim, estava tão compenetrada neles, que não ouviu quando Antônio chegou, acendeu a luz e se sentou à mesa. A voz bem conhecida de René a trouxe de volta.

— Ah! Você está aí, Antônio? Eu o procurava. Quero falar com você.

Diana não se moveu do lugar. Depois de sonhos tão belos dos quais despertava, não tinha a mínima vontade de falar com o marido.

— Estou ao seu dispor, ”monsieur”.

— O problema é o seguinte, respondeu o Visconde afastando a cadeira. Parto amanhã devido a um negócio muito importante e ficarei ausente três ou quatro semanas. Por isso gostaria que você cuidasse do corte dos carvalhos no bosque enquanto eu estiver fora. Ademais lhe confio Diana e a criança. Ficaria tranqüilo, eu sei, se você estivesse tomando conta deles.

Antônio empalideceu.

— Sr. René! O senhor vai fazer novamente uma longa viagem e deixar a Viscondessa sozinha?

— Aos diabos! Não posso deixar os negócios para me entreter com a Viscondessa! gritou René batendo com o punho na mesa. O Conde Silari me ofereceu uma grande extensão de terra que está a venda por preço irrisório devido a morte do proprietário, seu parente.

Antes de comprar esta propriedade tenho de vê-la, e, se o negócio se realizar, terei de fazer todos os trâmites. Será que devo perder o negócio para bancar a enfermeira aqui? Esta pasmaceira não está em meus planos!

O Visconde falou alto e firme, mas seu olhar irado evitou encarar o médico.

— Sr. René! O senhor sempre me tratou bem e com sinceridade me chama de amigo. Em nome desta amizade e benevolência me desculpe pelo que lhe direi, disse com receio o facultativo. O senhor se porta mal com Diana. De boa vontade se casou e ela tem o direito ao seu amor e aos seus cuidados. Fique com sua maravilhosa e virtuosa esposa, ao invés de abandoná-la e condená-la a uma eterna solidão. Muitos falam, Sr. René, sobre suas relações amorosas com a nora do Conde Silari e de suas aventuras com este senhor depravado, o qual não é respeitado por um único homem probo.

O Visconde enrubesceu, levantou rápido e começou a andar pelo quarto. Depois, parando diante do médico, disse com voz alterada.

— Peço que se abstenha de reprovar meus amigos, julgamento para o qual não é competente. No que se refere a mim, perdôo suas ousadas palavras. Até mais, admito que seja verdade e que me comporto mal. Mas por outro lado serei franco e você me compreenderá. Casei-me com Diana não por amor, longe disso. Pensei que a honra determinava que eu limpasse o nome dela, comprometida por minha culpa, e legitimasse nosso filho. Porém logo vi que casando havia cometido um erro colossal! Em minha vida esse sacrifício superava minhas forças.

Respiro nesta atmosfera de virtude e de fria reserva junto a esta mulher idiota, incompetente até nas verdadeiras delícias do amor. Ela não se interessa por mim, não me agrada e até já não mais é bonita... E este fantasma pálido e magro ainda tem a pretensão de me tratar com desprezo, querendo que eu banque o marido amoroso! Pode ser que Raul de Montfort fosse tão imbecil quanto ela e visse beatitude na solidão sem fim. Tenho outro temperamento. Devo respirar em outra atmosfera e conviver na sociedade com mulheres inteligentes e atraentes. Não tenha dúvida que escondo de Diana tudo o que lhe estou dizendo. Não quero que ela perceba o quanto me é difícil este sacrifício, mas não posso sair por aí com ela. O que pensarão de mim? Que tenho mau gosto? O que dirão sobre a minha escolha quando virem essa tonta ao ”meu” lado? Justamente eu que enlouqueço as mulheres mais lindas, arrematou ele rindo.

Seguiu-se um silêncio de morte. Gilberto foi derrotado pelo cinismo crasso e cruel de seu senhor. Que poderia responder a este homem desonrado que ofendia e insultava a mulher só para se livrar de qualquer obrigação para com ela, um homem covarde, vingando-se de uma criatura indefesa por não mais suportar seu estranho ”sacrifício”.

E tudo isso porque ela não era pervertida para satisfazer seus gostos.

Antônio não disse uma única palavra, mas talvez a incorruptível voz da consciência tenha sussurrado a René o que dele pensava o médico, dado René se virar e sair.

Já na porta se voltou novamente.

— Diga a minha esposa que irei jantar com ela e lhe peça me esperar. Quero passear um pouco.

Com estas palavras ele assobiou chamando seus cachorros.

Quando não mais se ouvia o som de seus passos, o cirurgião levou as duas mãos à cabeça e exclamou:

— Senhor! Como fui tão cego todos estes anos? disse ele abandonando a biblioteca rapidamente.

Assim que Antônio saiu, Diana deixou seu refugio e sem que ninguém percebesse foi a seu quarto. Ela havia escutado tudo em sua apurada audição. Não se moveu ao ouvir o julgamento impiedoso e injusto daquele que devia ser seu amigo e defensor. Arrasada, sentou-se junto à lareira onde o fogo ardia. Com as espessas paredes úmidas sempre fazia frio. Ela olhava fixamente para as chamas e, apertando com força os lábios, meditava. Quanto mais mergulhava em seus pensamento, mais seus traços finos e infantis adquiriam uma expressão de severa resolução. Gabriela observava intranqüilamente a sofrida e revoltada expressão de sua senhora. Imaginou que o vestido pesado e o corpete apertado a incomodavam e começou a trocá-la. Diana fez sinal que concordava e permitiu que a camareira lhe colocasse um vestido branco de seda e soltasse seus cabelos bonitos. Este vestido extraordinariamente luxuoso era do seu antigo guarda-roupa; Briand, apesar de sua sovinice, nunca colocou obstáculo em que ela tivesse verdadeiramente tudo bonito e de valor. Gabriela trouxe este vestido com outras coisas do castelo de Saurmont e gostava de vesti-lo em sua patroa.

Diana tornou a ocupar seu lugar diante da lareira e, indiferente, via como dois pajens colocavam na mesa frutas, carne fria e vinho, quando no quarto entrou René.

A perspectiva de deixar o castelo por algumas semanas lhe haviam dado um ótimo estado de humor, e ele resolveu ser bondoso e gentil para com a esposa durante essa noite, dedicando-se a ela.

Se ele fosse observador, teria notado o estranho olhar com que ela o olhava bem como o tremor que percorria o corpo da moça, quando ele lhe beijou a mão. Aliás ele entendeu esta comoção bem de outra maneira; julgou que a Viscondessa o adorava e somente devido ao orgulho e ciúme se dirigia a ele com desprezo e reserva, que tanto o irritavam.

Ele havia colocado em sua mente a idéia de fazer curvar Diana e rebaixá-la, obrigando-a a implorar seu amor; ela não devia julgá-lo mas sim adorá-lo e, com gratidão, receber qualquer demonstração de seu carinho. Mas, se tais maneiras davam resultado com mulheres desregradas e sensuais, bajuladas pelo Visconde e perseguidas pela sua paixão, com Diana elas não tinham sucesso. Nela havia orgulho suficiente para não implorar amor de quem quer que fosse, ainda mais para alguém que, dentro de seu senso de retidão e pureza de alma, não mais podia respeitar.

Sob o peso de tais sentimentos, sumiu dela qualquer fraqueza íntima. Ela respondeu inclinando levemente a cabeça à chegada do marido. Com exceção da proverbial polidez e do brilho febril dos olhos, nada indicava a tensão emocional suportada.

Ele comeu com grande apetite observando a esposa de soslaio. No rico traje de quarto, coberta com uma capa e com seus cabelos dourados soltos, ela parecia a ele encantadora. Quando seus olhares se encontraram, René baixou o seu - os grandes olhos azuis da jovem tinham um matiz metálico surgindo sempre em minutos de tensão.

Esses olhos claros e cintilantes pareciam penetrar a couraça de hipocrisia que mascarava o Visconde e chegava ao fundo de sua alma.

Quando se levantaram da mesa, René sentou no divã e chamou Diana para se pôr ao seu lado de joelhos. Ela não objetou e seus longos cílios se abaixaram escondendo o ódio e o desprezo, enquanto ele cobria de beijos seus lábios, olhos e cabelos. Diana devia esconder seus sentimentos para não ter de dar qualquer explicação. Desejava que ele fosse embora e lhe desse a oportunidade de deixar o castelo para sempre. Não mais seria um estorvo para ele e nunca mais o encontraria em seu caminho.

— Por que você está tão triste e apática, minha querida? Perguntou ele carinhoso.

— Estou cansada e a cabeça me dói muito, respondeu Diana, afastando-se um pouco.

René fechou o rosto e começou a morder o bigode. Apesar da cortesia o gesto da moça levantou no mesmo instante uma barreira invisível entre eles, intransponível, sempre fazendo o Visconde sentir que quanto mais possuísse o corpo de Diana menos teria a alma dela.

No dia seguinte o Visconde saiu após o café da manhã. Mal o pequeno grupo de cavaleiros transpôs o portão, a Viscondessa chamou Gabriela, ordenando que lhe arrumasse a mala com o indispensável para viajar e se preparasse para ir com ela.

Colocando em ordem as jóias que pertenciam a René, ela vestiu luto e mandou chamar Antônio Gilberto. Em curtas e amigáveis palavras, comunicou ao jovem médico estar deixando o castelo. Encarregava-o de todas as chaves e pedia olhasse o nenê.

— A senhora partirá sem o nené, Viscondessa? Quando volta? perguntou o cirurgião preocupado.

— Nunca, Antônio! respondeu Diana secamente. A você, meu irmão de leite e amigo, eu direi a verdade e pedirei dizer ao Visconde que ontem eu estava na biblioteca quando ele se confessou. Sentada na antecâmara da janela, eu ouvi tudo. Ele mesmo compreenderá que depois do que foi dito, não tenho mais lugar nesta casa. Retiro-me para o convento e não levarei nada pertencente a Beauchamp. Mande preparar meu cavalo e a mula para Gabriela. O velho Germano me acompanhará e tomará conta da bagagem.

Dentro de uma hora tudo deverá estar preparado. Não chore, acrescentou ela, vendo as lágrimas rolarem pela face de Antônio.

Ela o puxou para si e o beijou como na infância.

— Você não sabe como me alivia sua afeição profunda e sincera. Quando eu pressentir a morte próxima, o chamarei e você irá cuidar de mim. Espero seja breve, já que sinto aquilo previsto por você; parece como sinal de um fim próximo.

Quando Antônio saiu fortemente impressionado, Diana foi ao quarto da criança, pediu à ama de leite se retirar e se sentando ao lado do berço, olhou o nenê tranqüilamente dormindo. Ele era o retrato do pai. Um súbito sentimento agora cheio de mágoa tomou conta de seu coração. Ela se separava do filho para sempre, experimentando tristeza e angústia e, ao mesmo tempo lhe parecia que uma mãe deveria se sentir de outra maneira.

— Por que não o amo como queria? murmurou ela inclinando-se sobre o nenê, ao mesmo tempo que lágrimas amargas escorriam em seu rosto. Talvez porque você é a recordação da felicidade, lembrança daquele momento em que todos os sentimentos estavam entregues ao homem amado. Seu nascimento é a indestrutível corrente de amor recíproco. E você, pobrezinho, é o fruto de uma vingança indigna. Seu pai ao invés de amor, encheu minha alma de amargura. Será um mau pai, eu o sinto, assim como foi um mau marido. Não obstante não posso me humilhar e ficar, mesmo sendo para defendê-lo...

Diana ergueu o nenê e convulsivamente o apertou contra o peito.

— Jesus Salvador! Santa Virgem Maria! Mande-lhe a morte quando for envenenado pelo sangue que corre em suas veias.

De repente os braços dela afrouxaram. Soltou o pequeno no berço separando-o de seu peito.

Diana sentiu uma dor fortíssima. O coração parecia se apertar com as batidas pesadas e irregulares, quase cessando. Um estranho tremor abalava cada fibra de seu ser. Ah! É a morte que chega, balbuciou ela, respirando com dificuldade. Tirou do bolso um medalhão com corrente de ouro no qual prendeu um cacho de seus cabelos e o colocou no pescoço do nenê.

— Até a vista! Balbuciou com voz trêmula. Quando eu morrer o chamarei. Com todas minhas forças eu o levarei para minha tumba, para que de nós não reste o menor sinal, que envenenaria o ar deste castelo.

Uma hora depois Diana deixou o castelo. Com a cabeça coberta e de coração pesaroso, ela se pôs a caminho do Convento de Santa Úrsula.

Ao cair da noite ela havia chegado a uma pousada, situada em meio de um bosque fechado nas terras de Saurmont. O velho Germano sugeriu pernoitassem ali, mas Diana estava tão apressada e a noite tão quente e agradável que decidiu continuar até que os cavalos tivessem de descansar. O quarto enfumaçado da pousada também não tinha agradado Diana.

Depois de ver diante da porta, sob um carvalho, um banco e uma mesa simples, ela mandou que o pão e o leite fossem servidos ali.

Terminara sua simples janta quando dois cavaleiros se aproximaram da pousada e a dois passos dela desceram do cavalo; um deles era velho, ligeiramente curvado e tinha uma longa, barba grisalha. Para Diana um desconhecido completo. Mas... reconheceu apavorada ser o outro o Barão d’Armi. A jovem ficou tão desconcertada com o encontro que por instantes perdeu qualquer presença de espírito. Ainda assim, para se esconder n sombra do carvalho ela levantou do lugar. Apesar do crepúsculo era fácil ver seu rosto pálido sob o capuz escuro.

O grito de espanto chamou a atenção dos dois cavaleiros e o velho deu um pulo e se pôs ao lado da Viscondessa. Segurando-a pelo braço ele gritou com voz trêmula:

— Diana! Finalmente a revejo!

Ao som desta voz metálica bem conhecida a moça se sobressaltou. Um olhar foi suficiente para ela reconhecer os olhos do Conde. Sem acreditar no que via, ela gritou:

— Você?!... Você está vivo?? Monstro! E eu me casei com outro.

Antes mesmo que Briand, assustado pelo arrebatamento imprudente dela pudesse dizer alguma coisa, d’Armi correu e, sem cerimônia, tomou a filha em seus braços.

O contato tirou Diana do estupor. As mãos que tapavam o rosto se soltaram. Rapidamente deu um salto para trás e encarou o pai com olhar brilhante.

D’Armi empalideceu e recuou.

— Essa deve ser a vontade de Deus para eu encontrar meu desonesto e mau pai... disse Diana rispidamente. Para você não há nada sagrado neste mundo. A única criatura que você devia amar, você lesou e traiu. Sua filha sempre foi para você artigo de vergonhoso comércio! Você me vendeu ao amante de sua mulher, a um homem que me condenou a morrer de fome. Para me obrigar a silenciar e me entregar a esse ladrão e assassino, você confessou, claro - por dinheiro! - todos os seus delitos e me fez suportar uma injustiça inaudita, para salvar a cabeça da forca. Agora estão juntos novamente. Você foi o cúmplice dos crimes graças aos quais eu cometi um sacrilégio...

Por um minuto ela parou e, ofegante, apertou a mão contra o peito. Depois recomeçou, cada vez mais e mais inflamada:

— Você me privou de todos os direitos e me perseguiu como um animal!... Sempre fui brinquedo em suas mãos e vocês mataram minha alma e meu corpo. Que Lei Divina ou Humana lhes deu o direito de proceder assim? Será por vocês me terem roubado a paz, a honra e por terem assassinado o homem que eu amava? Por Deus ter colocado em suas mãos uma criatura indefesa? Por todos esses crimes eu o amaldiçôo!... Diante do trono do Senhor eu repetirei estas acusações e mais uma vez o amaldiçoarei!!...

A voz de Diana cessou.

O gordo d’Armi, farto de tanto comer e beber, mudou a expressão do rosto diversas vezes durante a fala de Diana. No início uma palidez de defunto, depois enrubesceu.

Sufocava... Nunca ninguém o havia tocado tão fundo, mas nesse instante algo diferente lhe aconteceu.

— Diana... murmurou com voz alterada.

Mas nesse minuto começou a cambalear e caiu no chão acometido de um ataque apoplético.

A jovem tremia, nervosa, mas não fez o mínimo movimento para ajudar o pai. Por um minuto olhou, sombria, para o corpo estendido no chão, depois se virou saindo apressada.

Sem a perder de vista, Briand, frouxamente, fez um gesto para detê-la.

— Não me toque ou chamarei as pessoas e direi onde se encontra o falecido Conde de Saurmont! disse Diana, fixando em Briand o olhar cheio de ódio.

O Conde deu um passo para trás e a jovem voltou para a pousada correndo.

Alguns minutos depois Diana sentou em seu cavalo e sem ao menos olhar para Briand e d’Armi, pôs-se a galope. O abatido Conde chamou o taberneiro.

O Barão foi assistido e logo abriu os olhos. Mas metade de seu corpo estava paralisada e ele foi levado em uma maça ao Castelo d’Armi.

Lourença, visivelmente contrariada, recebeu o triste cortejo e disse ser esse o castigo merecido, vindo em conseqüência da vida desregrada. Mas os efeitos, no entanto, sempre caíam nos ombros dos inocentes. Como sempre ela terminou recaindo na sua habitual dissimulação.

Depois de instalar o Barão, disse que cuidaria do seu querido João, já que ela entendia mais de medicina do que o velho e louco Dr. Lucas.

Mas sua assistência ao Barão se limitava a intermináveis discursos sobre conhecimentos de medicina e tratamentos milagrosos.

Enquanto isso d’Armi ficava abandonado e freqüentemente faminto. Se Briand não o tivesse cuidado e visitado amiúde, o Barão poderia ter morrido de fome e sede.

O Conde não o deixou; não pôde abandonar seu antigo companheiro de crimes, com quem se ligava fortemente e cujo fim próximo muito o entristecia.

Certa vez Lourença vestiu o marido a contragosto. Ele ficou furioso e aos gritos exigia vinho e guloseimas.

A Baronesa se sentiu ofendida com tais pretensões. Deu no doente alguns bofetões e gritou:

— Desgraçado! Perdulário que me leva à ruína!... tirar de mim para lhe dar pratos refinados? Dê dinheiro você mesmo, se quiser encher sua pança... Maldito! Eu o alimento com carinho e você ainda ousa me ofender!...

Dando as costas ao doente deitado na cama, ela saiu triunfante.

Depois desta cena, a condição do Barão piorou imediatamente. Quando Briand o vestiu no dia seguinte notou, preocupado, estar o rosto emagrecido com uma tonalidade ferrosa, os olhos se apagando e a inquietação da febre não lhe dando paz nem por um minuto.

O Conde sentou junto ao leito e com o coração oprimido observou a terrível agonia de seu cúmplice.

Ao cair da noite d’Armi começou a delirar. Pensava estar vendo a filha. Ora com palavras carinhosas, ora com ameaças, exigia que ela retirasse as maldições. Em seguida foi assediado pelas visões da Noite de São Bartolomeu. Sua mão saudável agarrou o braço do Conde e, com expressão de louco estampada no rosto, ora gritava, ora murmurava:

— Vê? La... Ia ele se defender! Ele caiu e está derramando seu sangue sobre mim! Deus de Misericórdia! O Rei me agarrou! O Rei e aquele outro querem me matar!... Para trás, ”monsieur”, não me toque!... Briand me salve!

As palavras do Barão davam com nitidez de detalhes em seu delírio e traziam à mente de Saurmont as cenas sangrentas da noite de 23 de agosto. A triste situação aumentou ainda mais sua má impressão sobre o doente. No grande quarto mal iluminado pela lâmpada de cabeceira, o doente segurou seu braço fortemente, parecendo querer levar Briand junto com ele ao tribunal de Deus.

Tudo isto agia duramente sobre Saurmont. E sua imaginação despertada também começou a ressuscitar cenas terríveis. Debalde o Conde enxugava o suor que escorria pelo seu rosto; ele fechava os olhos mas os quadros terríveis e assustadores não desapareciam...

Dentro da escuridão do quarto havia a nítida impressão de uma multidão de criaturas ensangüentadas, deformadas e esfarrapadas se debatendo, dando gritos de desespero... e eles se lançaram sobre d’Armi e sumiram!...

O Conde pensou ver Carlos IX entre os vingadores das trevas. Submerso em sangue, ele se debatia em vão entre o intransponível círculo de suas vítimas!

Saurmont também foi cercado pela massa repugnante que pairava sobre ele e o cobria de recriminações, maldizendo-o. Apavorado, com os cabelos em pé, esquecendo o doente, soltou a mão que o agarrava e saiu voando do quarto. Só parou de correr em frente ao quarto do polonês.

Nesse momento seu aspecto era assustador. Tremendo de pavor, ele queria ver um rosto humano, mas Donskii não estava no aposento. Cambaleando, o Conde deu alguns passos na direção da poltrona, mas não conseguiu chegar até lá - as vertigens o fizeram desmaiar.

Era dia quando voltou a si. No primeiro instante não conseguiu compreender como tinha chegado ao quarto de Domskii, mas logo lembrou das visões da noite anterior.

Agora, sob a luz do sol lhe parecia ridículo ele ter debandado do quarto do doente.

O polonês ainda não tinha voltado. A cama permanecia feita e a lâmpada da cabeceira ainda ardia.

Briand levantou, bebeu um copo de vinho para se refazer e saiu do quarto.

No castelo ainda todos dormiam. Passando diante do aposento de Lourença ele viu a porta aberta e, supondo ela já haver levantado, entrou para falar sobre d’Armi.

Não havia ninguém no quarto e o silêncio era quase total, violado apenas pelo ruído que chegava dos aposentos vizinhos. O Conde levantou o reposteiro e, com repulsa e zombaria olhou o quadro: no meio de toda aquela confusão estava a mesa com os restos da ceia farta da noite anterior. Talheres e pratos, roupas e rolhas jogadas das garrafas se misturavam pelos móveis e pelo chão. Na cama de colunas Domskii dormia e ao lado dele Lourença ressonava em traje matinal, não muito discreto a uma Baronesa... Um misto de comiseração tristonha e ódio tomou o coração do Conde - por que não acabar com essa criatura repugnante, esse gênio do mal que o tinha levado a tantos delitos com conselhos pérfidos, fazendo-o cruel para com Diana? Cheio de repulsa e amargura saiu dali e se dirigiu ao quarto do Barão. Tinha a consciência pesada por haver deixado um doente tão grave assim sozinho... Nervoso, se aproximou do leito e imediatamente se convenceu de tudo estar terminado... O Barão estava estendido, rosto escurecido sobre os travesseiros amarrotados e rasgados pelas mordidas... A velha manta estava em farrapos. Os olhos vítreos do cadáver ainda expressavam imenso pavor. Seus últimos momentos deviam ter sido terríveis!...

O moribundo, sem consciência, foi possivelmente assediado pela sede e o copo que seu braço enfraquecido não pode levar aos lábios estava no chão com o conteúdo esparramado.

Arrasado, com o coração palpitante, Saurmont deixou aquele quarto.

— O Barão se foi... disse laconicamente, desanimado, ao empregado que encontrou no corredor. Depois, sem responder às tímidas perguntas do servidor, entrou no seu quarto e largou o corpo extenuado sobre a poltrona.

— Morto! D’Armi está morto... balbuciou maquinalmente. Sim, seu companheiro de tantos anos estava morto. Havia terminado sua vida suja e depravada. Honra, consciência, amor paterno... TUDO este homem havia trocado por ouro... mas o leito de morte tinha sido alcançado por Nêmesis! Morreu abandonado, sozinho com sua consciência pesada, enquanto a esposa, a depravada que por tantos anos se cobria com seu nome, se entregava a orgias... É... é assim que a justiça traz a derrota, por fim, ao culpado, obrigando-o cruelmente a pagar nos momentos derradeiros todos os delitos e os crimes impunes.

Passaram-se horas.

O Conde, semi-deitado na poltrona, estava mergulhado em seus tristes pensamentos tumultuados, quando o barulho da porta se abrindo fê-lo sobressaltar-se.

Ergueu a cabeça e viu Lourença.

Seu aspecto era tão cômico que ele teria rido se não estivesse tão mal de espírito. Ela vestia uma camisa e uma velha saia, um gorrinho preto com um longo véu, igual ao que Diana trazia nos dias de luto por Raul, destacando-se em sua cabeça. Seus velhos sapatos vermelhos e gastos nunca haviam sido limpos!

— Carlos! gritou com voz chorosa, erguendo as mãos; ela assim o chamava desde sua morte oficial. João morreu e você fica aí sentado, enquanto eu vigio, falou ela com acento de maldade. Oh! Que horas terríveis suportei!... Pobre João! Ele me ofendeu e traiu muito, mas eu tudo esqueci e perdoei na hora da agonia. Estou arrasada por não ter dormido a noite inteira!... Os últimos minutos do Barão foram tristonhos, porém ele, com lágrimas nos olhos, me agradeceu... Somente nos derradeiros momentos se convenceu - quando todos o deixaram - de ser eu sua abnegada esposa, e não tê-lo deixado.

Ela se pôs a chorar, avaliando que a vida inteira havia cumprido seus deveres, sem ver o quanto pesados eram.

Briand emudeceu, paralisado pelo descaramento e cinismo da Baronesa. Mas no momento não tinha a mínima vontade de discutir com aquela criatura repugnante. Interrompendo sua arenga a respeito de suas supostas virtudes, perguntou rispidamente:

— No que posso ser útil? Ela sentou e suspirou.

— É preciso sepultar João e isso sai caro.

— Sem dúvida! Mas uma viúva tão devotada naturalmente não poupará recursos para o enterro digno do marido, respondeu ele secamente, dando a entender que não a compreendia.

Ela suspirou de novo.

— Sim, sim! ”Nós”, e ela ressaltou bem esta última palavra, não pouparemos nada para ele, não é verdade? O pobre João gostava muito do luxo. Ele me desfalcou e lesou para alegrar a si próprio.

Vendo que o Conde nada respondia, ela prosseguiu com voz afetada:

— Veja, caro Carlos! Eu vim pedir que desse a soma necessária para o enterro de João. Você deve fazer isso por ele, já que o traiu toda a vida. Quando eu saí por um minuto de manhã, você, segundo dizem, veio visitar o falecido. Não há dúvida de que ele findou enquanto você estava lá. João não tinha o aspecto de um homem acometido por morte violenta. Você mesmo sabe como as pessoas são más, Ela podem vir a difamá-lo, a você, um pobre desconhecido que estava de passagem por aqui... Pode imaginar o que aconteceria se ao preboste ocorresse a idéia de conhecê-lo mais de perto? Sendo assim, meu querido, dê o dinheiro! É preciso se prevenir dos amores excessivos e fechar a boca dos tagarelas. Isto é necessário para sua própria tranqüilidade, meu caro. Confie em mim, pois olho por você como uma mãe olha por seu filhinho.

Briand era todo nojo e ódio. Compreendeu a ameaça de entregá-lo ao preboste e naquele instante não restava outra alternativa senão concordar.

— Está bem... receberá o que quer para o enterro. Dentro de algumas horas lhe trarei a quantia. Agora saia e me deixe em paz! disse ele secamente.

Lourença não fez qualquer observação e saiu mandando um beijo a ele.

Briand havia escondido seu porta-jóias debaixo do banco de musgo, próximo à ”célebre” brecha onde viu pela primeira vez René aparecer para visitar Diana.

Acautelando-se constantemente de um ataque qualquer ele não quis guardá-lo em casa. Além disso dividiu uma grande quantidade de ouro em diversas partes e espalhou em muitos ocos de árvores. Ao cair da noite se dirigiu em segredo a um desses lugares pegou o ouro e, com muito cuidado, retornou. Assim que chegou foi ter com Lourença e a encontrou escolhendo tecido negro para fazer o luto.

Após ter entregado a ela uma boa soma, Briand lhe comunicou deixar o castelo na noite seguinte.

Lourença não fez objeção e nem falou que ele permanecesse.

No dia seguinte ela mesma o ajudou a arrumar a bagagem e à noite foi levar o jantar em seu quarto.

— A última vez, antes da separação, disse ela com lágrimas nos olhos.

Após o jantar Briand se sentiu cansado, as pernas pesadas e um sono invencível.

— Durma um pouco e adquira forças antes da longa viagem, observou Lourença com um doce sorriso. Eu o acordo a uma hora da madrugada, quando todos já estiverem dormindo, acrescentou ela.

O Conde achou o conselho sensato; além disso estava certo de que, após quatro horas de sono, despertaria por si mesmo. Por isso despediu Lourença e foi dormir.

Quando abriu os olhos sentiu o corpo pesado. A cabeça doía e ele tentava em vão colocar as idéias no lugar para poder explicar como se encontrava em um quarto desconhecido.

Ele se achava em um cômodo escuro, pobremente mobiliado; a janela era uma grade de ferro; estava sentado na poltrona a dois passos da mesa junto à parede, na qual havia uma caneca e alguns pedaços de pão.

Furioso e assustado, Briand quis se levantar mas no mesmo instante caiu na poltrona. Suas pernas estavam fracas e pesadas como chumbo, não agüentando seu peso. Logo compreendeu ter perdido a capacidade de dominá-las. Um medo muito grande o invadiu. Não havia dúvidas de Lourença querer roubá-lo! Na última refeição ela teria misturado um narcótico e algum veneno no que ele ingerira.

Fraco e oficialmente morto para o mundo, se encontrava ali à mercê dela...

Enquanto estava imobilizado na poltrona com toda certeza os dois estariam procurando seus valores.

Louco de raiva e desespero, Briand começou a gritar e a chamar, mas em vão pois o silêncio era absoluto.

Um dia e uma noite se passaram.

A fome e a sede o incomodavam, mas ninguém aparecia. Durante essas horas infernais, lembrou o tempo inteiro da pequena Diana, quando ele a abandonou sozinha no bosque - ela teria sofrido o mesmo que ele agora.

Afinal no dia seguinte pela manhã, a porta foi aberta e Stanislav entrou com uma carta nas mãos. Lançou um olhar zombeteiro ao Conde, mas, temendo se aproximar da mão que ele possivelmente teria saudável, lhe jogou a carta, cujo conteúdo em nada o tranqüilizava: com seu habitual descaramento a Baronesa contava que apesar das buscas afanosas, eles não haviam conseguido encontrar os valores de Saurmont. Por isso lhe propunha que, se quisesse se livrar do martírio, entregasse de boa vontade as riquezas escondidas. Ao final acrescentava agir assim para castigá-lo por ter se casado com Diana, uma vez que, apesar de seu amor apaixonado por Domskii, detestava traidores.

O Conde conhecia muito bem Lourença para saber que, após ter empregado tal violência e feito estas ameaças, ela acabaria com a vida dele, tão logo colocasse as mãos no ouro e nas jóias. Se ele ainda estava vivo, era só porque ela nada havia encontrado.

Respirando pesadamente ele fechou a carta.

Uma coisa Lourença não poderia lhe tomar - era sua vontade férrea. Ele decidiu imediatamente ser melhor suportar o que desse e viesse, do que revelar o segredo.

Então comunicou a Domskii que se negava a colaborar e preferiria morrer que dar o ouro a tamanho canalha.

O polonês saiu.

A dupla pérfida havia resolvido quebrar o Conde pela fome, pois durante três dias ninguém apareceu para vê-lo.

É difícil descrever o quanto sofreu o infeliz. Somente o desejo de desforra o sustentava.

No terceiro dia, depois das doze horas, Briand, totalmente exausto pela fome, adormeceu em sono febril. Teve um estranho sonho: D’Armi lhe dizia - ”Procure na chaminé; lá há vinho e comida escondida!”

Sua cabeça estava vazia e seu estado era como de um embriagado devido às privações. Mas o sonho era tão claro e tão vivo que seus olhos se cravaram na grande lareira.

Como um náufrago se agarrando a uma palha, ele resolveu conferir a visão do sonho. Conseguiu sair da poltrona, se arrastar com as mãos e os joelhos. A distância era enorme para ele e, extenuado, alcançou o objetivo.

Descansou um pouco e começou a revirar os tocos queimados de mobília velha e outros trastes que quase completamente barravam a entrada da grande lareira, dentro da qual podiam ser acomodados folgadamente três ou quatro homens. Por fim conseguiu entrar e começou a busca com mãos trêmulas. Ele sabia que o Barão sempre ocultava uma provisão para épocas desfavoráveis, quando Lourença o condenava ao jejum, mas ignorava totalmente onde era o esconderijo. Naquela época não lhe veio à mente que ele mesmo experimentaria esse tipo de provação.

Pode-se imaginar a alegria do Conde quando suas mãos apalparam as garrafas... tirou uma garrafa coberta de pó e fungo, sacou logo a rolha e começou a beber.

Era um excelente vinho antigo que o fortificou. Então, já tranqüilo, começou a revistar melhor seu tesouro. Encontrou cerca de vinte garrafas, jarras, taças de madeira, carne defumada, frios, potes de geléia e frutas secas. Saciou sua fome e sede. Depois, de alma e corpo aliviados, voltou ao seu lugar.

— Bom d’Armi! pensou ele, sentando-se com dificuldade. Até morto você aparece para me ajudar, na verdade, para que eu possa me vingar por nós dois. Espere um pouco mais, meu velho amigo! Lourença pagará por mim e por você.

Somente no quarto dia a porta se abriu e a própria Lourença entrou.

— Olá, caro Conde! disse ela em tom trocista. Espero ter o jejum aclarado sua memória e tenha se lembrado onde se encontra a caixa de jóias! Preciso dela!

— Nunca esqueci... só que prefiro morrer de fome a entregá-la a uma criatura desprezível, responsável por minhas infelicidades.

Ao ouvir esta resposta fria e resoluta, a expressão de doçura e bondade maternal desapareceram do rosto da Baronesa, transformando-se em crueldade selvagem.

— Ah! gritou ela encarando o Conde com um olhar de serpente, vejo que ainda está muito gordo e a fome somente o irritou. Esperemos até que se acalme. Agora vai ficar mais faminto, pois somente voltarei dentro de três dias.

Zombeteiramente colocou perto do Conde um copo de água e um pedaço de pão. Saiu desejando a Briand bom apetite.

Alguns dias depois Lourença voltou e ficou muito surpresa com o silêncio e a teimosia de Briand. Falou com ele longamente tentando persuadi-lo e por fim o ameaçando, possessa de raiva, mesmo o agredindo.

Ele permaneceu inabalável, sem nada dizer.

Ela, então, decidiu deixá-lo sem comer por mais uns dias, mas Saurmont tinha agora sua própria provisão. O velho vinho vinha diminuindo pouco a pouco sua paralisia das pernas. Isso fortaleceu ainda mais sua firmeza.

Ele temia o perigo que corria quando sua reserva acabasse; seu sofrimento seria muito maior e...

Certa vez, passadas duas semanas desde seu encarceramento, o Conde entrou na lareira para conferir o que havia sobrado. Quando revolvia o fundo da lareira, sentiu repentinamente uma corrente de ar frio vindo de uma fenda entre dois grandes blocos na parede posterior. Intrigado, seguiu atentamente a fenda e bem em cima encontrou um grande pino que provavelmente podia servir a um dispositivo. Ansioso, apertou o pino e, no mesmo instante, uma das pedras se deslocou e abriu passagem para um estreito corredor. Briand entrou nele sem vacilar; alguns minutos depois viu uma luz e deduziu que o corredor ia ter na parte oposta à fachada do castelo.

Contentíssimo, retornou para sua escuridão.

A partir desse dia passou a cuidar de sua saúde com esmero; algumas vezes durante o dia friccionava as pernas, esforçando-se em andar para desentorpecê-las. Logo, para sua grande alegria, verificou a volta de sua saúde.

Mas quando Stanislav e Lourença apareciam, sentava-se em silêncio e imóvel na poltrona, fingindo-se de muito fraco.

Imaginando que o fim do Conde estava próximo, os dois perversos estavam desesperados; dirigiam-se a Briand com mais rudeza para obrigá-lo a revelar seu segredo antes de morrer. Às vezes, caindo em sua dissimulada amabilidade, Lourença chorava e implorava ao Conde que não a privasse do valioso porta-jóias com tanta teimosia.

Certa noite, quando a pérfida dupla saiu com a ameaça de mais três dias de fome, Saurmont resolveu fugir. Entre a montanha de objetos e ferros amontoados no canto do quarto, ele encontrou um velho punhal e o afiou em uma pedra. Colocou sua arma na cintura, se cobriu com velha capa e saiu rapidamente, tendo o cuidado de fechar atrás de si a pedra que dava passagem para o corredor secreto.

Sem perda de tempo Briand se lançou ao banco de musgo e abriu a terra com o punhal. Logo sentiu debaixo dos dedos as incrustações de pedras preciosas do porta-jóias.

Respirou fundo após tê-lo arrancado da terra; agora estava certo de sua vingança; deixaria a cova aberta para que Lourença visse onde se encontrava o tesouro.

Saiu do jardim através da brecha e, correndo, se dirigiu ao bosque. O ar puro da noite o refrescou e revigorou.

Pelo caminho entrou a refletir na sua condição - sim, estava livre e tinha riqueza, mas estava longe de se sentir salvo. Sua roupa gasta era suspeita; se alguém o visse com o porta-jóias, na certa o tomaria por ladrão. Era de fato uma situação crítica, mas onde arranjar outra roupa?

Deveras desanimado Briand chegou ao raiar do sol à borda do bosque. A madrugada dificultava a orientação, mas graças ao luar e ao conhecimento que tinha do caminho, prosseguiu andando adiante com cuidado. Viu um jovem padre debaixo de uma árvore, dormindo profundamente com a cabeça apoiada num espesso saco de linho.

Pulou de alegria - este encontro era para ele uma verdadeira felicidade. Sem vacilar, num minuto o Conde se aproximou do rapaz sorrateiramente e o sufocou, sem lhe dar tempo de acordar. Depois arrastou o corpo até o matagal, onde, após despi-lo, o ocultou sob folhas secas.

Tudo isto terminado, disfarçou-se de padre. No bolso da batina achou um pergaminho assinado pelo abade, pelo qual ficou sabendo ter o padre o nome de Irmão Félix, pertencente à Ordem de São Bernardo. Agora sim, estava a salvo. O porta-jóias foi acomodado no saco de esmolas, onde ninguém suspeitaria de sua presença. Podia viajar sem temer até retomar a condição de cavaleiro, na primeira oportunidade que surgisse, dirigindo-se rapidamente aos Pirineus.

 

A VINGANÇA DE BRIAND

Como se tivesse saído de um pesadelo, com o coração vazio e a cabeça pesada, Diana chegou ao convento.

Sob a influência da calorosa acolhida dada por Clemência, seu pesar e inflexibilidade desapareceram e as lágrimas copiosas aliviaram sua! alma doente. Chorando contou pouco a pouco a sua amiga os acontecimentos, sua decisão de nunca mais ver René e a terrível descoberta de estar Saurmont vivo.

— É claro que, estando Saurmont vivo, meu segundo casamento não tem valor... concluiu ela. Mas, para prová-lo, devo denunciar o Conde e pôr a descoberto toda essa trama vergonhosa, todo esse escândalo, ela acrescentou em tom de desespero.

— Esqueça tudo isso e se retire do mundo, observou a Sra. Montfort após breve silêncio. Em minha opinião os laços estão mesmo terminados; fique no convento. Aqui, sob o manto do Salvador você estará a salvo, tanto de René quanto de Saurmont. Além disso, quem aqui fica logo morre e isso é uma grande felicidade para aqueles cuja vida, como as nossas, estão particularmente marcada pelos fardos, acrescentou ela com leve sorriso.

— Você me aconselha a tomar o hábito e eu mesma já pensei em fazê-lo. Vivendo perto de você ainda poderei encontrar um pouco de felicidade, murmurou Diana, olhando com tristeza o pálido rosto de sua amiga, com sinais anunciadores de morte próxima.

Clemência não era nem sombra da soberba e brilhante mulher de outrora.

— Não precisa cuidar de mim por muito tempo. Mas veja o que lhe proponho. Quando meu lugar de abadessa vagar, você será minha substituta. Graças aos meus contatos e à ajuda do bispo, isto será fácil de conseguir. Hoje à noite mesmo conversarei com monsenhor Gabriel.

Na manhã seguinte, após uma longa conversa com o bispo e depois da confissão, Diana vestiu a roupa preta.

A boa Gabriela, com lágrimas nos olhos, comunicou que também ela iria tomar o hábito para não se separar de sua senhora e, como antes, continuar servindo-a.

Durante as seis semanas seguintes a Sra. de Montfort teve sua fraqueza acentuada.

Dois dias antes de seu fim chegou um decreto real destinando como sua sucessora a Sra. Beauchamp. O documento havia sido trazido pela Duquesa de Nevers, a qual desejava ver Clemência pela última vez. A amiga e protetora de Diana, a Duquesa, exprimiu seu desejo de participar da cerimônia de ingresso no convento.

Uma noite, antes da admissão de Diana, René chegou ao castelo de Beauchamp. Esteve ausente por dois meses, viajando por Tupeni com Helena e o Conde Silari.

Durante esse tempo se divertiram à vontade.

A palidez do Visconde, seu aspecto cansado e as olheiras mostravam a que excessos se entregou durante a viagem.

Antônio o recebeu. Ele também estava pálido e abatido, mas devido à tristeza e à preocupação.

Ao saber da decisão de Diana de se tornar freira, o fiel criado tinha se posto em desespero. Tal saída ele considerava insensata. Antônio nunca deixou de ter esperança de os jovens ainda se unirem, ao menos que entre eles fosse levantada uma barreira intransponível. E essa barreira surgiu - o convento.

Antônio queria que o Visconde tomasse conhecimento da decisão. Daí, quem sabe?... talvez o perigo de perdê-la o despertasse e ele empregasse todo seu potencial em trazê-la de volta. Mas, para sua infelicidade, Antônio não conseguiu encontrá-lo em parte nenhuma. O Visconde partiu sem dizer aonde ia, nem deu notícias durante esse tempo todo.

Em Angers o médico apenas ficou sabendo da partida com o Conde Silari e a nora. Mas para onde foram e quando voltariam, ninguém sabia.

Após cumprimentar seu senhor, Antônio o seguiu em silêncio até o quarto do menino, o primeiro lugar ao qual Beauchamp se dirigiu. Beijou o filho carinhosamente e perguntou ao médico:

— Diana está bem? Se não a incomodo, gostaria de vê-la, acrescentou ele sem prestar atenção à estranha expressão da ama de leite.

— A Viscondessa não se encontra no castelo. Peço-lhe, ”Monsieur”, me acompanhar para lhe transmitir o recado deixado por ela, respondeu Antônio, tomando uma vela e o conduzindo ao dormitório cuja porta estava cuidadosamente trancada.

— O que significa todo esse segredo? Diga sem rodeios onde está minha esposa. E quando voltará? perguntou René, franzindo as sobrancelhas e sentando-se impaciente na poltrona.

— A Viscondessa não voltará mais. Ela está no convento Sta. Úrsula e amanhã receberá o hábito, respondeu em voz baixa Antônio com lágrimas nos olhos.

René deu um pulo, ficou vermelho e tomou Antônio pelo braço:

— Você enlouqueceu?... Diana no convento! Freira!?... Que significa isso?

— ”Monsieur” René! Uma hora após sua partida a Viscondessa mandou me chamar. Comunicou sua partida e pediu para lhe dizer que se encontrava na biblioteca durante nossa última conversa. Com certeza o senhor compreenderá que, depois de ouvir tudo aquilo, já não havia mais lugar para ela neste castelo.

— Você deveria detê-la! gritou René empalidecendo.

— Com que direito? Naturalmente eu o teria avisado do que ocorria, se houvesse deixado indicação de seu paradeiro. Agora é muito tarde! Oh, Sr. René! O que o senhor fez! gritou Antônio desfazendo-se em pranto. Depois, tapando o rosto com as mãos, saiu do quarto, agora tão vazio e silencioso.

Tudo ali a René falava de Diana. Ali a cama falava do casamento. Como se ela estivesse presente lhe surgia a imagem de seu rostinho envolto nos cabelos louros sobre o travesseiro. Num canto se encontrava o espelho, diante do qual adorava ficar. Lá estava o frasco dela, o bordado e vários objetos seus. Ela havia deixado tudo, incluindo o próprio filho!

Ele tinha se livrado completamente da esposa incômoda...

A ela se ligou devido a uma fantasia pecadora, vê-la o irritava e conscientemente a traía.

Agora nenhuma obrigação, nem imaginária, iria mais envergonhá-lo. Ele podia se entregar livremente à vida desregrada, divertir-se com amigos e se dedicar a Helena de Silari, a quem deu preferência aberta, em detrimento de Diana.

Por que não se alegrava nem um pouco por estar livre? Por que uma tristeza profunda o oprimia e as lágrimas lhe sufocavam a garganta ao pensar que nunca mais veria essa amiga, sempre paciente, delicada e reservada? Seus grandes olhos azuis não mais lançariam aquele olhar profundo e perscrutador... Ele não amava Diana. Como uma sombra passageira ela havia passado por aquelas paredes e, entretanto, o ódio e o desespero se debatiam nele nesse instante.

René se levantou quase sem forças e lágrimas amargas brotaram de seus olhos. O Visconde porém possuía um caráter demasiadamente leviano e orgulhoso para se entregar ao desespero e recriminações próprias. Logo o sentimento de ira superou todos os demais. Diana o tinha largado sem se lastimar e nem ao menos tentou tocar seu coração.

Teve o desejo de vê-la novamente para agredi-la. Apesar de tudo queria colocá-la a seus pés, submissa e amável, essa mulher orgulhosa e teimosa, que preferia a solidão do convento a ele.

Totalmente corrompido pelas mulheres sem pudor que sempre o rodeavam, René acreditava piamente ser irresistível. Ao constatar que Diana não estava cega pela beleza dele, mas sim via e condenava sua nulidade de caráter, se sentia indignado. Tremendo de emoção se pôs a andar de um lado para outro no quarto. Mil planos passaram em sua mente agitada.

”Tenho de evitar esta ridícula admissão ao convento! Farei com que meus direitos sejam respeitados! Eles estão acima de tudo! Furioso dizia René. Provarei que ela não pode ousar proceder assim. Preciso apenas chegar a tempo e esse maldito convento fica longe...”

Saiu correndo do dormitório e se dirigiu ao aposento de Antônio Gilberto que, admirado, lhe abriu a porta.

— Vista-se rapidamente, enquanto mando preparar os cavalos. Iremos ao convento de Sta. Úrsula, gritou René.

— Deus! O que deseja fazer, ”Monsieur”?

— Impedir uma loucura! Tenho direitos sobre essa mulher, pelos diabos! Eu lhe mostrarei! Eu a trarei de volta. Ela deve me amar. Vai me pagar por esta hora! Ensiná-la-ei como deixar o lar sem a autorização do marido...

Antônio balançou a cabeça:

— Vai ser tarde para evitar. Quando conseguirmos chegar tudo estará terminado, e, mesmo que assim não seja, qualquer escândalo será inútil, pois o bispo de Angers se encontra lá. Ele saberá defender a alma que se entrega a Deus.

— Sem discussão! Irei e lá verei o que fazer, replicou René batendo o pé.

Uma hora depois o Visconde deixava o castelo na companhia de Antônio Gilberto e dois criados.

Era aproximadamente uma hora da tarde quando chegaram ao convento, imponente edifício se erguendo sobre uma colina na floresta.

Tanto os cavaleiros quanto os cavalos estavam cansadíssimos; cobertos de suor e pó subiram a colina quase passo a passo.

Uma multidão compacta ocupava o pátio. Pelas portas abertas se ouvia o som dos órgãos e das cativantes canções religiosas.

Pálido e nervoso René desceu do cavalo e, junto com Antônio, entrou na longa galeria que unia a igreja ao interior do convento.

Nesse momento a multidão abrira alas, empurrando para frente o Visconde que, a contra-gosto, veio parar na primeira fileira.

Seus grandes olhos se fixaram no cortejo que saía da ’igreja.

Inicialmente apareceram senhores e damas entre as quais se encontrava a Duquesa de Nevers; depois vinha o bispo em vestimenta sacerdotal, rodeado por todo o clero e, por fim, uma nova abadessa à frente dos demais.

O olhar de pavor do Visconde se fixou na figura alta e delgada e reconheceu Diana. E também de repente Diana viu Beauchamp; por um minuto ela se deteve e o encarou com muito ódio. A seguir continuou caminhando. René contudo nem percebeu o cortejo que passara a sua frente, sua cabeça começou a girar e ele teria caído se alguns senhores a seu lado não o tivessem segurado.

O Visconde acordou em uma cela destinada a visitantes do mosteiro, com Gilberto e alguns conhecidos seus cercando-o de cuidados. Os nervos extenuados do Visconde não foram capazes de suportar a tensão: ora chorava, ora caía em desespero, exigindo com insistência uma entrevista com Diana.

— Basta, Beauchamp! Fique calmo e se recomponha! disse-lhe um velho senhor, parente do Visconde, com firmeza e serenamente. Se gosta tanto de sua esposa não deveria tê-la deixado sozinha por vários meses. Tentarei conseguir com Mãe Clemência uma entrevista. Você, porém, terá de se esforçar em reunir suas energias para se portar dignamente.

Diana, agora Mãe Clemência, recebeu o bom velho sem qualquer empecilho. Ela já se havia instalado em seu novo recinto de onde a Duquesa e o bispo tinham acabado de sair.

A jovem recebeu amavelmente o senhor e gentilmente perguntou o que desejava.

— Venho com um pedido, na qualidade de enviado. O Sr. Beauchamp lhe pede, o mais breve possível, uma entrevista.

— Para que? Perguntou a moça surpreendida. Ele está livre... o que mais quer? Na verdade não temos nada a dizer um ao outro...

— Generosa dama! Em sua nova posição é louvável perdoar as ofensas. Quem poderá ter mais direito à indulgência do que seu ex-marido? notou o velho senhor.

Diana meneou a cabeça:

— Não, Conde! Não me tornei irmã de caridade para isso, para dizer palavras hipócritas de perdão. Não empregarei com o homem que me levou a tomar o hábito palavras evangélicas! Apesar de tudo, respeitando sua solicitação, receberei o Visconde, se é que ele tem coragem de aparecer diante da mulher que tanto ofendeu! Comunique-lhe, ”monsieur”, que hoje, após as orações do fim da tarde o estarei esperando aqui. Mas ao cair da noite ele deve deixar este lugar. Se está doente, nestes arredores não há falta de pousadas e castelos. Não poderá permanecer no convento. Aqui seria apertado para ele...

— Agradeço Mãe Clemência, por ter considerado meu pedido. Pedirei a Deus Ele cure as feridas de sua alma e derrame sobre a senhora a paz e a tranqüilidade, respondeu o velho senhor respeitosamente.

Quando o Visconde soube que lhe davam um prazo para deixar o convento, ficou com o orgulho ferido. No primeiro momento queria sair imediatamente, mas o desejo irresistível de ver Diana e lhe falar pela última vez o prendeu. O próprio René não sabia o que queria lhe falar e o que desejava, mas a tristeza, a angústia e a consciência pesada o levavam a proceder assim’.

Coração batendo fortemente, dilacerado em mil sentimentos contraditórios, René apareceu no aposento da abadessa na hora marcada. Uma irmã o conduziu à sala de recepção, pequeno cômodo arqueado, mobiliado com austero luxo.

Junto à janela gótica de vitrais coloridos, Diana estava sentada em uma poltrona entalhada. Ao entrar o Visconde, ela lhe dirigiu um olhar frio. Trajando larga roupa negra e usando o longo véu, ela ainda parecia mais alta.

— Diana! Diana - por que fez isso? Por que me deixou e a nosso filho? Apesar de tudo eu a amo, disse René se aproximando rapidamente dela.

A voz do Visconde se entrecortou. A mágoa e a raiva lutavam nele. Mas a última venceu:

— Não se rompem laços sagrados e se foge do lar, do matrimônio, deixando todas suas obrigações. Como ousou fazer isso? Responda!

Com olhar flamejante ele se aproximou dela e a tomou pelo braço. Diana, no entanto, com um gesto brusco repeliu o Visconde. Em seus olhos cintilavam faíscas de ódio.

— Não esqueça, senhor Beauchamp, com quem está falando!... Mas como você veio aqui para esclarecer nossas contas, ouça minha resposta - por que eu fiz isso? Porque ouvi sua grosseira conversa com Antônio Gilberto! No mesmo momento morreu qualquer sentimento por você! Será que pensou ser eu cega e indiferente, não compreendendo que estava sozinha em nossa casa, onde vegetava esquecida, abandonada e desprezada? Queixou-se que o casamento comigo o obrigava a enorme sacrifício... mas você me perguntou uma vez sequer se eu queria seu sacrifício e se o aceitava?... Agora eu, por minha vez, lhe pergunto? Com que direito fez isso? Homem sem honra! Zombou de um compromisso sagrado e das obrigações que lhe cabiam; vingou-se de uma mulher inocente por ela não bajular sua vaidade e não poder rivalizar em cinismo com suas cortesãs... eu fui doente, tola e a tal ponto má companheira, que lhe era vergonhoso aparecer onde quer que fosse comigo, respirando a atmosfera de virtude que me cercava. O que é isso? Eu o livrei de mim mesma! Depois de avaliar o quão baixo era o seu caráter, sua vaidade mesquinha, seu egoísmo cruel, sem coração, eu o deixei e preferi a cela do mosteiro. Agora vá embora! Está livre para procurar a mulher que lhe seja mais afim, que saiba apreciar melhor do que eu sua beleza e seus vícios.

À medida que Diana falava foi enrubescendo; seus olhos brilhavam. Nesse instante toda a encantadora beleza da moça voltou. Em sua voz soava uma cruel satisfação ter a possibilidade de finalmente jogar em rosto todo o desprezo sentido pelo marido, aquele que a magoou profundamente.

René recuou como se houvesse levado uma bofetada. Nunca havia ouvido antes um julgamento a tal ponto inclemente de suas atitudes. A voz incorruptível da consciência, subitamente despertada, lhe murmurou: ela está certa! Nada você pode contestar a ela!

— Tem razão, Diana, sou culpado, balbuciou o Visconde, mas você também me trata sem a menor piedade e misericórdia!

— Que Deus nos julgue quando nos apresentarmos diante d’Ele.

Com desespero na voz, o Visconde, tocado no fundo da alma, gritou:

— Perdoe-me!

Diana olhou por um minuto seu rosto pálido e aflito. Depois, respirando fundamente, disse em tom baixo e secamente:

— No dia de hoje fui riscada do mundo dos vivos. Entre nós está tudo terminado. Mas crie juízo e abandone a vida desregrada; viva para seu filho e livre a jovem alma dele do seu pernicioso exemplo. Diga adeus para sempre à vida que leva...

Diana se retirou fazendo um sinal de adeus com a mão.

O Visconde, como um embriagado, sem se despedir de ninguém foi apressadamente ao pátio, montou a cavalo e, na companhia de Antônio, deixou o convento.

Seu coração estava a ponto de estourar e algumas lágrimas caíram sobre a crina do animal. Tinha adquirido a tão almejada liberdade mas ela não o contentava... o castelo ao qual se dirigia em silêncio e onde ninguém o esperava mais lhe parecia agora vazio e sombrio.

Briand, sem enfrentar maiores dificuldades, atingiu os objetivos de sua viagem; teve de gastar apenas alguns dias de procura para encontrar seu primo, cuja localização não conhecia muito bem.

Este pobre rebento da família, entregue ao alcoolismo, ficou muito surpreso com a proposta do desconhecido, de comprar por uma sólida quantia seus documentos de família, para ele de nenhum valor. De início, devido a uma ponta de orgulho, recusou, mas ao ver o ouro mostrado por Briand, ficou subjugado. Sem desconfiar estar abrindo mão de enorme herança, o pobre concordou, preferindo a discreta quantia aos documentos empoeirados.

A transação foi concluída. Após o festim, no qual o pobre primo bebeu até cair, Briand, satisfeito, voltou correndo a Paris com os valiosos papéis. Por uma feliz coincidência havia apenas um ano de diferença entre ele e o homem agora representado por ele.

Por isso, quando apareceu perante as autoridades, estas se surpreenderam somente com o tipo físico comum a todos os daquela família. Este Saurmont, o novo pretendente, com exceção dos cabelos ruivos e o sotaque espanhol, era um retrato vivo do falecido Conde. Não houve suspeitas. Todos acreditaram na história inventada a respeito de seu passado e de como soube da morte do primo. E, uma vez que seus documentos não foram contestados, o então Eustáquio Felipe de Saurmont foi considerado como o herdeiro por direito do defunto Conde Briand.

Após acertar todos os negócios, Briand, de acordo com a etiqueta, se apresentou ao Rei.

Tão cego quanto sua comitiva, Henrique III também não desconfiou de nada. Ele amavelmente estendeu a mão ao novo Conde para que a beijasse, deu-lhe os parabéns pela esplêndida herança recebida e acrescentou:

— Fico muito contente em saber que o antigo e glorioso nome de Saurmont não se tenha extinguido. No que se refere a seu primo, que tão cedo abandonou o mundo, chegaram até nós detalhes desagradáveis de sua vida íntima. Mas, não julguemos os mortos...

Briand se inclinou até o chão, respondendo ter ele esperanças de que o nome manchado e violado por seu primo, não o seria por ele, o mais fiel e humilde súdito de sua Majestade!

O encontro com os Duques d’Anjou e de Guise fez com que Briand soubesse a opinião deles sobre o falecido Conde: um grande canalha, tão grande que todos ficaram felizes por se verem livres dele... o que incutiu em Saurmont estranhas idéias e não melhorou em nada a sua opinião sobre o palácio e os palacianos. Por isso se apressou em terminar os negócios em Paris e ir a Anjou.

Dois anos e três meses se haviam passado desde sua fuga do Castelo d’Armi.

Entrou em São Germano triunfante e readquiriu a posse de suas propriedades.

Após se instalar no castelo, Briand imediatamente começou a tomar informações sobre as pessoas que lhe interessavam.

A notícia de que Diana havia tomado o hábito o deixou contente - assim ela não pertenceria a ninguém... Beauchamp estava ausente há alguns meses e Antônio Gilberto cuidava de seu filho.

Quanto a Lourença, ficou sabendo do golpe sofrido; Domskii fugiu levando consigo uma grande soma e todas as jóias da Baronesa que, desesperada, quase se suicidara.

Então Briand achou haver chegado a hora de se vingar. Todos os seus inimigos e cúmplices estavam mortos; restava apenas Lourença que, sozinha, poderia explorá-lo e arruiná-lo de vez. A Baronesa tinha de morrer, sendo morta pelas suas próprias mãos. Até aquela data o Conde sempre sentira seu orgulho ferido por ela.

Certa noite pediu lhe preparassem o cavalo e, bem armado, se dirigiu sozinho ao castelo d’Armi. Muitas recordações o assediaram. Seu terrível passado se erguia... viu-se novamente aos vinte anos, indo pela primeira vez por este caminho, sob um nome falso. O Barão Mailor estava morto, o Conde Briand de Saurmont também e ele novamente seguia este caminho com um nome falso! Mas não queria temer mais e acabar sendo descoberto... a última hora da megera havia soado...

Perto da brecha ele desceu do cavalo. O muro, mais arruinado que antes, lhe permitiu passar sem dificuldade e logo avistou o velho e grande castelo sombriamente delineado no azul escuro do céu. Toda sua fachada estava às escuras. Só de uma grande janela partia fraca e trêmula luz.

Era noite de lua cheia. A pálida luz do luar era refletida nos vidros da janelas góticas e dava à paisagem um aspecto triste e tétrico. Por todo canto se sentia o abandono e a negligência. As raízes haviam invadido os caminhos, as estátuas estavam quebradas e derrubadas, o lago parecia um pântano e a velha moradia senhorial estava em silêncio, parecendo desabitada.

Um sentimento desconhecido, de profunda tristeza, tomou conta de Briand. Enquanto ele subia pela escada até o terraço na calada da noite, ecoava o som de suas esporas e um estremecimento lhe percorreu o corpo. Neste mesmo terraço havia visto pela primeira vez René e Diana...

Afugentando lembranças inoportunas, bateu na porta fechada. O ferrolho não estava trancado e logo a porta cedeu ao seu esforço.

A lua iluminava o quarto vazio. Sem vacilar Briand tomou o bem conhecido caminho para o quarto de Lourença. A luz na janela lhe havia mostrado aonde ela se achava.

Ao redor era tudo silêncio e ele não encontrou uma única criatura viva.

A porta estava entreaberta, Briand a abriu e parou na soleira de onde começou a examinar o quarto. Por todo lado reinava a desordem inacreditável que sempre cercava Lourença. Sobre a mesa restos do jantar grosseiro. Ela mesma, suja e despenteada, dormia na cama roncando alto de boca aberta.

O Conde sentiu uma enorme repulsa e a ficou olhando hipnotizado. Como havia sido tão louco para ao longo de tantos anos permitir a essa criatura repugnante dominá-lo e, por ela, chegar a fazer Diana sofrer? Deveria ter matado a megera na primeira vez em que ela pronunciou o nome Mailor para o explorar e fazê-lo matar.

Ele fechou a porta e escondeu a chave no bolso. A seguir, depois de se certificar de que Lourença não tinha arma alguma a mão, sacou o punhal e se aproximou da cama.

Por um minuto olhou para ela, pensando em que morte lhe dar a fim de que ela sofresse mais.

Há tempos havia resolvido envenená-la, agora, porém, lhe surgiu a idéia de também queimá-la viva. Desta forma a faria sentir a morte duplamente e o fogo liquidaria o corpo repugnante que naquele momento lhe castigava a visão.

Dando um passo para trás, bateu com força o pé no chão e gritou:

— Acorde, Baronesa!

Lourença deu um pulo, esfregou os olhos e, assustada, o viu.

— O diabo a carregue! Como dorme tranqüila se esquecendo do amigo que condenou a morrer de fome? disse ele. Vim para rever uma mulher tão gentil como você.

Uma expressão de alegria imediatamente surgiu no rosto obeso de Lourença.

— Briand! gritou ela, pulando ao chão e se preparando para se lhe lançar ao pescoço.

O Conde a empurrou com força e ela de novo caiu na cama.

— Você se engana, Baronesa d’Armi! disse ele sério. Não vim para lhe abrir novamente a mina de ouro. Não! Vim para castigá-la e me vingar de todos os ultrajes com os quais me cobriu.

Pensa que deixarei que me domine por saber Briand de Saurmont estar vivo? Como é cega... Você não sai daqui viva!

Pelo olhar dele Lourença viu que seu poder sobre Briand havia acabado. Ajoelhou-se e, aos brados, lhe pediu inutilmente perdão. Ele conhecia muito bem essa víbora... Sabia que se ele queria viver, ela teria de morrer!

Empurrou-a com a perna com tal força que as esporas cortaram o rosto dela; tirou do bolso um pequeno pacote e colocou seu conteúdo num copo.

— Este é um excelente veneno italiano, disse ele em tom de zombaria. Aliás não se aflija se por causa dele suas pernas ficarem paralisadas. Não sofrerá por muito tempo, já que vou por fogo em todos estes trapos para aquecer seus últimos minutos. A propósito, entregue-me todas suas economias e tudo o que você conseguiu salvar de Domskii... esse dinheiro será usado na construção de um grandioso mausoléu para você, ficando ao lado de seu marido, o Barão.

Enlouquecida de pavor, Lourença rolava pelo chão, mas, decididamente, se recusava a responder.

— O diabo a carregue! Que tonta! Disse Briand dando uma risada com maldade. Vejo, Baronesa que serei obrigado a desenrolar sua língua, empregando os mesmos métodos que me ensinou! Sempre foi uma mulher engenhosa e não vou prender sua companhia... é uma pena eu não poder deixá-la viver, mas sua lembrança sempre me será cara!

Ao falar isso sacou do cinto o chicote e começou a golpear as costas da megera.

Ela gritou e logo revelou onde escondia as jóias e o dinheiro.

— Tinha que começar assim. Agora, minha cara Lourença, seja boazinha e beba este copo de vinho.

Com o copo na mão, o Conde se aproximou da Baronesa.

O medo a tornou ainda mais repugnante. Terrivelmente pálida, manchada de sangue, olhos saltados, as mãos com as quais procurava se defender pareciam garras.

Com um pulo o Conde se pôs ao lado de Lourença, derrubou-a e colocou o joelho sobre o peito dela. Depois, segurando o copo em uma das mãos, com a outra a agarrou pela nuca e puxou para trás a cabeça. Ela se debatia furiosamente. Briand porém a segurava com firmeza e, gole a gole, a obrigou a beber o líquido mortal.

Quando o conteúdo já tinha sido engolido, ele a deixou. Furiosa e apavorada, Lourença quis se lançar sobre Briand, mas ele sacou seu afiado punhal.

Então ela, espumando pela boca, recuou e começou a rolar na cama.

Briand, contudo, deu um forte golpe e a obrigou a ir para o chão. De pé, entre ela e a cama, o Conde acendeu a tocha e tranqüilamente esperou o veneno agir.

Pouco a pouco o rosto de Lourença foi se alterando e ela passou a se contorcer, gritando como um animal ferido. Mas ainda não era a agonia...

Quando esse ataque passou, ela se acalmou e permaneceu estendida, imóvel. A seguir lançou a seu algoz um olhar viperino.

Briand resolveu aproveitar o momento. Ateou fogo a m monte de trapos e papéis velhos amontoados ao lado da cama.

Ela queria se levantar mas o veneno impedia que movimentasse as pernas e assim, ela, dando um gemido lúgubre, caiu de joelhos.

Briand saiu, andando de costas e ficou no quarto ao lado, observando a expressão de desespero de Lourença, diante do suplício da vingança dupla.

Logo as chamas e a fumaça tomaram todo o quarto.

A desprezível mulher rolava pelo chão como uma possessa, sufocada pela fumaça. Por fim o fogo chegou a sua roupa e aos seus cabelos que inflamaram.

Agora tudo estava acabado.

Trancando a pesada porta, o Conde abandonou o castelo.

Cinco minutos depois Briand subia para a cela e corria a toda brida para São Germano.

Justiça fora feita e estava livre para sempre. Nenhuma alma viva sabia do seu segredo!

Alguns dias depois Briand ficou sabendo que Lourença realmente havia morrido e seu cadáver carbonizado tinha sido encontrado entre os escombros.

O fogo havia destruído apenas um telhado do casarão, já que as espessas paredes evitaram que se espalhasse.

O incêndio foi atribuído por todos ao conhecido relaxamento de Lourença.

Finalmente livre de todos os seus inimigos, Saurmont poderia viver feliz, se não o perseguisse e lhe tirasse a tranqüilidade a lembrança de Diana. Nem o tempo, nem o ódio que ela sentia por ele acabaram com a paixão incurável.

Nas longas noites de inverno, quando se sentava sozinho diante da lareira, mergulhado na contemplação de suas miniaturas, lamentava-se amargamente por haver ele mesmo expulsado Diana de casa.

Para se distrair visitava os castelos vizinhos, participando de caçadas e tomava parte em jogos...

Assim correu sua vida, por fora brilhante e invejável, mas por dentro vazia e triste.

A Nêmesis celestial aparentemente não o derrotou como a seus cúmplices, mas ficou junto a sua cabeceira o incomodando em seus deleites, já que ele não conseguia esquecer seus crimes.

Numa escura e chuvosa noite de novembro René de Beauchamp, soturno e pensativo, estava sentado em seu aposento diante da lareira, ora olhando o fogo, ora seguindo preocupado seu filho de quatro anos, que brincava no tapete com o velho cão de caça. A chama avermelhada iluminava o rosto do Visconde, agora bem mudado e emagrecido.

As olheiras e a palidez doentia haviam tirado sua cor saudável de antes. Toda sua figura assinalava tédio e cansaço; rugas prematuras surgiam em sua testa. Os três anos e meio últimos o haviam envelhecido dez anos.

Após seu último encontro com Diana, René, a princípio se trancou em seu castelo. A reclusão e o arrependimento, contudo, não duraram muito.

Convencido de que tal vida não levava a nada e o acabaria deixando louco, se mudou para Paris.

Lá o Visconde irrefletidamente se atirou loucamente a aventuras amorosas e intrigas políticas. Nenhuma das duas entretanto lhe dava satisfação.

Sua saúde não suportou tal vida, cheia de excessos e abusos. Doente, desanimado e cansado de tudo, o Visconde retornou depois de alguns meses para descansar no castelo de Beauchamp.

O encontro com o filho, quase esquecido durante estes anos de aventuras, causou uma estranha reação na mente de René. Ele se sentia preso a essa criança desprezada por tanto tempo.

Em algumas semanas amadureceu a decisão de ficar definitivamente no castelo de Beauchamp e de se encarregar da educação de seu herdeiro.

A propósito, o pequeno René justificava todo o amor e o orgulho sentido por seu pai. Era um menino encantador, esperto e muito inteligente. Fisicamente se parecia muito com o pai. De Diana herdara os espessos cabelos dourados que lhe caíam em cachos e o olhar claro e profundo, que em momentos de emoção se tornava penetrante e cruel.

Alguns dias antes, sem motivo aparente o menino adoeceu, deixando o Visconde muito preocupado. O menino sempre teve a saúde delicada, mas nunca alguém pensou ter ele um acesso tão forte como agora.

Em meio às brincadeiras mais animadas o pequeno subitamente empalidecia e um tremor percorria todo seu corpo. Ele caía em estado de torpor, desfalecendo, do qual voltava fraco e extenuado. Se o pai lhe perguntava alguma coisa ele respondia não sentir nenhuma dor e achava que tinha estado dormindo.

Para infelicidade do Visconde, Antônio Gilberto se encontrava, então naquela ocasião, ausente; havia ido visitar um velho parente acamado.

Enviado um mensageiro à sua busca, este não regressou nem mandou notícias.

René, cada vez mais preocupado, acabou por fim chamando o Dr. Lucca, mas o velho médico confessou honestamente não conhecer a doença do pequeno Visconde e em apenas alguns dias o pequeno piorou.

O grave suspiro do menino tirou René de seus pensamentos e o pai logo percebeu estar sozinho para acudi-lo no acesso que se aproximava.

O belo rostinho da criança ficou imensamente branco, seus olhos semicerrados tinham um brilho vítreo, e seu corpinho se debatia em convulsões. O cão que se encontrava na sala levantou as patas dianteiras, ficou de pelos eriçados e se escondeu num canto de onde começou a uivar e gemer assustado.

O Visconde foi tomado por um vago temor, enquanto um arrepio lhe percorria do ombro aos braços.

Reprimindo esse mal estar René correu a seu filho e o tomou nos braços. A cabecinha da criança pendeu e ele parou de respirar. Desesperado, o Visconde levou o filho para cama e empregou tudo o quanto de outras vezes tinha dado bom efeito.

Seu esforço foi válido. O menino voltou a si, abriu os olhos mas seu olhar era sem vida; permanecia estendido e imóvel.

O pai o colocou em uma cama menor e ele mesmo se sentou a sua cabeceira. Já em pânico e impaciente, mandou um mensageiro a cavalo buscar o Dr. Lucca; apesar da impotência do médico, admitida pelo próprio, René o esperava angustiado - se não podia curar o menino, que ao menos tentasse aliviá-lo.

Recostado na poltrona, o Visconde seguia temeroso cada movimento do filho. A sibilante e descontínua respiração era o único ruído a soar na sala.

René se sentia mal; os membros pesavam como chumbo, sentia arrepios e tremores, e uma sensação vaga e indefinida de medo pairava em seu coração. Aflito por ficar sozinho, ele deixou a ama seca vigiando o menino.

Um estranho ruído acompanhado de pequenos estalos nas paredes e nos móveis chamaram sua atenção; então se levantou e lançou ao derredor um olhar suspeitoso e intranqüilo.

Seus olhos se concentraram em um ponto luminoso que pouco a pouco foi aumentando. Subitamente da escuridão saiu um ofuscante feixe de luz a iluminar urna mulher alta e magra, vestida de branco. A mulher se aproximou dele. Completamente apavorado, René reconheceu Diana. Dela partia suave e alva luz que iluminava seu belo rosto, os cabelos dourados e sua roupa. Ela pairava sobre o chão e logo em seguida uma luminosidade aclarou a caminha do menino.

Passando diante do Visconde sem nem ao menos olhar para ele, Diana, ou sua sombra, deslizou sobre a criança e lhe tomou a mão.

Paralisado, René a tudo assistia em silêncio. Nunca havia visto mulher tão bela como naquele instante estava Diana. O olhar dela fixo e cintilante olhando o menino fez seus cabelos ficarem de pé. E apesar disso ele não pôde deixar de olhar o impressionante espectro. E agora os dois, um alvo par, ora como um raio, ora como uma tocha, pouco a pouco se erguia do leito. Depois ocorreu estranha metamorfose: pontos luminosos se concentraram formando uma nuvem que se distendeu e tomou a forma do menino.

Ele sorridente, radiante mesmo, estendeu a mãozinha e então Diana o pegou nos braços e se voltou. Por um instante os dois pairaram diante de René e, ao que pareceu, olhando para ele.

E então subiram, se apagaram e sumiram no ar...

O Visconde soltou um grito e, fechando os olhos, se abateu na poltrona.

O ruído de passos, vozes inquietas e a luz o trouxeram de volta.

— Como ”monsieur” se sente? perguntou Lucca segurando um frasco que mantinha junto ao nariz do Visconde.

— Eu?!... eu me sinto muito bem. Mas como está o menino? pediu René, passando a mão sobre a testa fria e úmida.

O médico se persignou.

— A inocente alma do pequeno Visconde retornou a sua morada celeste. Coragem, ”Monsieur”, e se incline perante a vontade do Senhor do Universo! respondeu em tom baixo o médico, olhando com compaixão o rosto desalentado do jovem.

Não descreveremos o estado de espírito do Visconde, mergulhado em profunda apatia. Não se ocupou de mais nada após ter terminado os preparativos do sepultamento.

Depois do almoço chegou Antônio Gilberto, indo diretamente ao encontro do Visconde; este se reanimou em vê-lo e perguntou de modo irritado:

— Onde se meteu durante tantos dias, apesar de minhas ordens? O menino morreu em sua ausência! Talvez seus conhecimentos o tivessem salvado... disse rispidamente.

— Não me considero culpado, ”Monsieur”, pois acabo de vir de outro leito de morte; ela, que sozinha definhou no convento de Sta. Úrsula tinha mais direitos aos meus cuidados, respondeu seriamente Antônio.

— Oh! Diana morreu?! Agora não duvido ela tenha vindo buscar a criança!... exclamou René muito pálido.

— A Senhora morreu devido a doença cardíaca com a qual muito sofria. Na verdade eu ouvia que antes de morrer ela freqüentemente pronunciava o nome de René... mas quem pode dizer a quem ela se referia?

— É claro que ao filho... respondeu com amargura o Visconde. Quando aconteceu que uma mulher, mesmo no seu leito de morte tenha perdoado ao homem que a traiu!?...

Nesse mesmo dia René passou a noite na sala onde se velava o corpo da criança. Pondo-se de joelhos ao lado dele, o Visconde com olhos úmidos contemplou o rostinho doce e beijou a mãozinha fria. Um triste sentimento de vazio, de solidão, lhe oprimia o peito.

Como num pesadelo lhe passou pela mente as cenas de sua tumultuada vida. Que lhe tinha dado a vida? O que restou? NADA - nem satisfação, nem felicidade. Ofuscado pelos escândalos, vinhos e jogos, abandonou o lar e desprezou a pura felicidade familiar. Agora a visão do pequeno caixão lhe dizia na consciência: Você haverá de mudar para a Casa Eterna onde reina a Justiça Inexorável...

O pequeno ataúde foi colocado no jazigo da família, seguindo todo o ritual para a ocasião.

Mas... para o Visconde e Antônio o castelo parecia uma tumba sombria de ambiente difícil de suportar!...

— Vou partir, Antônio. Não posso mais viver aqui e me esforçarei em achar atividade para esquecer, disse René quebrando o longo silêncio que havia entre os dois.

— Também decidi abandonar o castelo,”Monsieur”.

— Nesse caso, venha comigo. Vou ingressar no partido do Duque de Guise. Se os partidários da Liga vão continuar a falar ao invés de agir, oferecerei meus serviços ao Duque de Parma.

— Não, ”Monsieur”, não o seguirei. Resolvi ingressar no mosteiro, respondeu o jovem médico em tom sombrio. Estou farto da vida e das pessoas. Todos os que eu amava já morreram... Não estou em condições de servi-los; irei orar por eles. Ao senhor o mundo e o barulho dos deleites, a mim a paz e o silêncio entre os monges.

 

 

[1] Teligny era o genro de Colign /. Henrique Damville e Arthur de Cossé, entre outros nomes de projeção, formaram um "Partido Magnífico" (a união dos protestantes e dos católicos ansiosos de ver cessada a luta que trazia tanta destruição e morte à França), mas a "São Bartolomeu" arruinou, por um tempo, suas esperanças; no entanto, Francisco d'Alençon, o último filho de Catarina, aceitou estar à frente deste "Terceiro Partido". Foi em casa de Michel d'Hopital que teve início "A Liga", isto é, o Terceiro Partido. NR.

[2] Nessa época Carlos IX já estava tísico. NR.

[3] Carlos IX jogava bola quando lhe vieram anunciar o atentado. A emoção era considerável no Louvre. Aliás, a situação na França era tão tensa que o próprio Coligny sempre repetia: ou a guerra civil ou a guerra com os estrangeiros. "Lê Siècle de Ia Renaissance" de Louis Batiffol, págs. 229 e 230. NR

[4] Antigo professor do Duque de Guise, Canon de Villemur tinha uma casa por onde passava todos os dias Coligny, para ir à igreja. A servente de Canon escondera Maurevel em seu quarto durante a noite e, de manhã, quando Coligny dobrava a esquina, ressoou o tiro, por detrás da cortina cobrindo a janela. Maurevel jogou a arma numa mesa e saltou em cima dum cavalo guardado para ele no jardim. Aconteceu que não tinha matado o Almirante; a bala se alojou no braço do grande homem (a História registra o braço esquerdo e o dedo indicador da mão direita). Diversas pessoas de sua comitiva se lançaram para dentro da casa, porém só encontraram a arma fumegante. Levaram Coligny para casa e o Rei de Navarra foi para lá imediatamente. Em todas as partes, em salas e antesalas, os huguenotes estavam excitados, horrorizados, unanimemente acusando os Guise e o Duque d'Anjou. A indignação deles crescia à medida que falavam; alguns até queriam assaltar o Louvre e matar o jovem Guise. Outros os detiveram, afim de que não acontecesse infelicidade maior aos protestantes. "Os Huguenotes", pág. 125. Em "H. de F.", pág. 375 lê-se: ...quando Coligny saía do Louvre. A pág. 376 (rodapé) cita que uma arma de fogo daquele tempo atingia no máximo uma distância de 160 metros. No "Lê Siècle de La Renaissance", pág. 229, diz que a bala se alojou no cotovelo e subitamente, no auge desses raciocínios, souberam que o Rei viria visitar o ferido. Esta notícia provocou a mais favorável impressão nos huguenotes. Mas quando surgiu o cortejo real, esse bom sentimento mudou radicalmente em uma hostilidade pouco discreta. Isso aconteceu porque atrás de Carlos IX estava a liteira da Rainha-Mãe. Perto, a cavalo, o Duque d'Anjou. Fez-se um silêncio sinistro. Com a mão no cabo do punhal os protestantes cochichavam entre si, todavia, tão alto que as frases irreverentes e hostis chegavam até aos ouvidos de Catarina e do Duque.Coligny estava não menos desagradavelmente derrotado, em ver atrás de Carlos IX a Rainha, vestida em seu eterno véu fúnebre, o astuto e adocicado rosto do Duque d'Anjou e de Gondi, o sagaz conselheiro deles Mesmo o Rei tratou bem o ferido. Em calorosas expressões demonstrou seu desgosto em face do atentado e que Ambrósio Pare teve que trinchar seu braço para tirá-la, logicamente sem anestesia... A inimizade entre o Duque de Guise e Coligny é registrada pela História. Os Guise acreditavam que Francisco de Guise (o pai deste Duque) tinha sido assassinado a mando de Coligny, em 1568. Os Guise pertencem a um ramo mais moço da Casa de Lorena. Os dois braços, Guise e Lorena, foram unidos em 1473. Este Duque de Guise, nesse ano de 1572, tinha apenas 22 anos. Em 22.12.1588 morreu assassinado a mando de Henrique in. Conta a História que ele chegou a ser prevenido mas achou que não ousariam. Henrique III mandou uma guarda de 45 homens que o esfaquearam. Então Henrique o puxou pelo pé, dizendo: Ele é maior morto do que vivo. ("H. de F.", pág. 382). Henrique III também morreu assassinado, em 1.8.1589, e Catarina de Médicis faleceu em 5.1.1589, portanto poucos dias após o Duque de Guise. NR

[5] Gaspar de Coligny era ao mesmo tempo um cortesão, um eremita, um lutador e um beato. Não queria que todo o Continente Sul-Americano pertencesse à Espanha. Era herói de muitas batalhas e estava no auge de sua carreira. No mês de maio de 72, tudo parecia ganho para ele. Elizabeth da Inglaterra, tendo rompido com Felipe II da Espanha (a protestante contra o católico), concluiu um Tratado Defensivo. Coligny lutou com Guilherme I de Nassau, da Holanda, e contra Felipe II. Carlos IX, então com 22 anos, tinha olhos e ouvidos voltados para o Almirante Coligny e, se a Espanha conseguisse subjugar os Países Baixos, não haveria liberdade para o resto da Europa, pois o Rei Espanhol queria toda a Europa católica! Carlos falava com ele até altas horas da noite e se entusiasmava muito com seus planos. O Rei mandou pagar do Tesouro 200.000 libras ao Almirante para reembolsá-lo de seus prejuízos durante a guerra civil e lhe deu, por ano, a receita de seu irmão, o Cardeal de Châtillon, recentemente falecido no exílio, a qual tinha sido confiscada como propriedade de rebelde. "Os Huguenotes", pág. 121 e "H. de F.", pág. 342. NR

[6] (1534-1614) era o Governador da Ilha de França, e não obedeceu à ordem de matança na Noite de São Bartolomeu, a primeira. "Os Huguenotes", pág. 130. NR

[7] Catarina ocupava o apartamento exatamente abaixo do apartamento de seu filho-Rei. NT 

[8] o temor de Catarina fazia sentido, pois Henrique de Navarra tinha foros de nobreza o suficiente para ser Rei, usurpando o lugar de seus filhos. O Duque de Guise também, como descendente de Carlos Magno. NR

[9] Gondi era o secretário italiano de Catarina, foi encarregado de persuadir Carlos IX a fazer a matança."Os Hug.",pág.l25. NR

[10] a História diz: Mareei e Charron, prefeito dos comerciantes, sendo que Mareei era precedente no cargo. "Os Huguenotes", pág. 126. NR

[11] de fato, houve, em tempos precedentes, alguns massacres com muitas mortes. Assim o de Vatrsy (17.2.62), por ter sido dado o consentimento aos protestantes de fazerem seu culto, durante o dia, fora do recinto das cidades fechadas. Felipe II da Espanha não gostou... NR

[12] Após a morte de Francisco I, quando Henrique II subiu ao trono, por um Tratado de Roma, o Rei francês tinha o direito de preencher os lugares eclesiásticos a seu bel prazer. Era o meio será unido com a virtude e de maneira alguma olharão para ela como para um crime. Carlos deu um salto.

— Ah! Eu certamente não duvido nem um pouco da imparcialidade do Santo Pai, mas eu queria ter certa garantia de que a permissão papal me seguirá ao trono crepuscular e o sangue derramado não cairá sobre mim. No livro santo está escrito: tendo levantado a espada, pela espada morrerá. Não esperando resposta, ele saiu para o oratório e se ajoelhou diante de uma enorme cruz negra de madeira. Com os joelhos trêmulos ele olhava o rosto suave e sofredor de Cristo, e procurava no Salvador do Mundo a resposta à terrível dúvida dilaceradora de sua alma. O rosto pálido do Rei, com o olhar desconcertado e o suor abundante a lhe cobrir a testa, mostrava claramente a luta terrível que se passava nele, entre os princípios de bondade, compaixão e grandeza real e os poderosos argumentos da política e desejos do partido.

— Misericordioso redentor! Inspirai-me! Dai-me o sinal da vossa vontade, balbuciou Carlos, batendo em seu peito e levantando as mãos em oração fervorosa.

Mas os céus se calaram. Nesse minuto atroz, quando se decidia o destino de milhares de criaturas, nenhuma voz do espaço se ouviu a favor dos condenados para iluminar a sombriaalma do econômico e fácil de recompensar os soldados e políticos que prestavam serviços à Coroa. Isso reduzia o número de seminaristas, mas os guerreiros substituíam seus soldos pelas opulentas rendas das abadias, onde se vivia suntuosamente. Todos queriam entrar nessa abundância, e até as concubinas nomeavam e demitiam bispos. NR

[13] só a título de curiosidade, no "H. de F.", pág. 377 consta: O Rei de Navarra e seu cunhado, o Duque d'Alençon, quiseram se apoderar do trono. A Rainha de Navarra (Margot) e a Duquesa de Nevers tinham como amantes Aníbal Coconasso e Bonifácio La Molle, dois conjurados envolvidos nessa trama, cuja história é bem contada em "A Rainha Margot" de A. Dumas. Estes dois homens pagaram com a decapitação em 30.4.1574. Os príncipes e marechais estavam sob estado de prisão, quando a morte de Carlos IX (30.5.1574) suspendeu a pendência. As duas mulheres mandaram levar, à noite, os restos dos condenados para enterrá-los na Capela de São Martin, em Montmartre, mandando embalsamar suas cabeças, que tiveram as bocas cheias de jóias e embrulhadas em panos. Stendhal perpetuou esta trágica história em "Lê Rouge et lê Noir". NR

[14] o sino da igreja de São Germano tocou à uma e meia. "Lê Siècle de Ia Renaissance", pág 234. NR

[15] faiança — louça de barro esmaltado. NR

[16] "Lê Siècle de Ia Renaissance" de Louis Batiffol, pág. 234, descreve os últimos momentos de Coligny: Estariam os protestantes prevenidos? Então decidiram avançar o sinal. (...) Guise, que estava pronto, montou a cavalo acompanhado do filho bastardo d'Angoulême e mais 300 soldados, ganhou rapidamente a casa da Rua Betisy, a qual eles cercaram. Coligny, deitado, era guardado por Ambrosia Pare, o ministro protestante Merlim e seu criado Nicolau. O ruído da rua, de tropas chegando, somado ao toque do sino, o acordou. Ouviu-se no térreo da casa golpes violentos; davam ordem de abrir em nome do Rei. A porta foi aberta. No tumulto dos soldados penetrando no pátio, Coligny compreendeu. Levantou-se, vestiu o chambre e pediu a Merlim para orar. Cornaton entrou precipitadamente, gritando: "Estão forçando a porta, estamos perdidos!" A última hora era chegada. Coligny disse com calma: "Há longo tempo estou esperando para morrer; salvem-se. Recomendo minha alma à misericórdia de Deus!" Pela escada subiram passos pesados e precipitados. Soldados irromperam, tendo à frente um certo Besme, alemão de origem. Tradução da Revisora.

[17] Segundo Brantôme, memoralista dessa época, Carlos IX, armado de um longo arquebuz, teria atirado de uma janela do Louvre sobre os protestantes que fugiam para o outro lado do rio. Já ao tempo da Revolução Francesa essa janela não mais existia. "H. de F.", pág. 376. NR

[18] O Rei da Espanha, Felipe II, mandou rezar um "Te Deum" pela morte de Coligny. O espanhol ficou muito contente com Espantado, sem acreditar no que chegava a seus ouvidos, o jovem se esforçava para se aproximar do lugar de onde vinham os gritos: "Viva o Rei!", "Viva a religião!" Gritando também "Viva o Rei", Antônio alcançou a primeira fila, de onde viu Carlos IX em uma janela aberta. O Rei segurava com firmeza uma arma de fogo e dava gargalhadas. Um infeliz huguenote, mortalmente ferido pela arma do Rei, se contorcia nos seus últimos momentos de vida. A impressão era de que esta caça a seres humanos divertia muitíssimo ao soberano. Seu rosto estava corado e radiante. Um pajem se aproximou e lhe entregou outra arma; ele a tomou, fez pontaria, e atirou novamente. Apertando os punhos e fervendo de raiva e indignação, Antônio se virou. — Deus! O Senhor é justo! Permitirá no Céu, assim como na terra, fiquem impunes aqueles que empregaram tão mal o poder, humilhando e desprezando seres humanos? disse para si mesmo, acelerando o passo ao Louvre.

Com grande dificuldade e após uma longa conversa, o jovem conseguiu entrar no palácio real, com a desculpa de entregar uma importante carta ao Sr. de Nevers. No palácio reinava barulho e confusão, e ninguém sabia exatamente onde se encontrava o Capitão da Guarda. Logo Antônio foi abandonado pelo rapaz que tinha sido encarregado de acompanhá-lo. Horrorizado, Antônio ficou sabendo, por intermédio de seu guia, que no próprio Louvre haviam matado tanto quanto nas ruas todos os o segundo bom soldado protestante que morria, sendo o primeiro o Príncipe de Conde (1530-1569), morto na Batalha de Jarnac. NR

[19] ...um espinheiro que floria na primavera, e que, como de costume, perdera seus odoríficos atavios no mês de junho, reflorira durante a noite... "A Rainha Margot" de Alexandre Dumas, pág. 119. NR

[20] na "H. de F.", pág. 376, diz a Corte ter pedido fosse Coligny enforcado em efígie no Cadafalso de Montfaucon, mas a populaça ali suspendeu seus pés, já que ele estava decapitado; e a própria Corte foi se divertir com esse horrível espetáculo. NR

[21] Margot, cujo casamento é relatado neste livro, de fato alojou em seus aposentos reais um ferido. "A Rainha Margot" de Alexandre Dumas, págs. 87-88. NR 

[22] Carlos IX vê sem cessar em sua imaginação imagens de corpos massacrados. A angústia do remorso o toma alguns dias após a tragédia, quando uma multidão de corvos vem pousar na bandeira do Louvre. Seu ruído o faz sair para os ver, e as damas, assim como o Rei, se amedrontam. "Marguerite de Navarre" de Jacques Castelnau, pág. 103. NR

[23] ...na mesma noite, o Rei, duas Jioras após haver se deitado, sai da cama e faz os outros levantarem, e manda buscar seu cunhado, entre outros, para ouvir no ar um grande fragor e vozes berrando, gemendo e até ululando, em tudo semelhante ao que se ouviu nas noites de massacre. Estes sons foram tão distintos que o Rei, acreditando numa nova desordem, chamou os guardas para percorrerem a cidade e impedir o morticínio. Mas, tendo sabido que a cidade estava em paz e apenas "o ar estava agitado", ele, o Rei, também ficou perplexo, pois o clamor durou sete dias, sempre à mesma hora. (idem obra nota 70) NR 

[24] "levrettes" — galgas. NR 

[25] Uma comitiva numerosa e requintada o acompanhava. A presença deste pequeno, brilhante e refinado pedaço da corte, ao meio da estupidez provinciana, causou enorme efeito. Os citadinos não se cansavam de fazer belos passeios a cavalo, de caçar e de outros diversos eventos possíveis deproporcionar aos visitantes, pela nobreza de Angers.

[26] Segundo "H. de F.", pág. 378, em 1576, quando o Duque d'Alençon se tomou Duque d'Anjou, recebeu Anjou, Tourraine e Berry. NR 

[27] Conde e Navarra, mesmo sendo protestantes, também receberam governos, (idem nota 74) NR

[28] Em "Lê Siècle de Ia Renaissance", pág. 247, há um esboço do Duque d'Alençon (agora Duque d'Anjou), Francisco, último filho de Catarina de Médicis, o raptor de Diana: ...pequeno, rechonchudo, muito moreno com cabelos pretos encaracolados. Às vezes amável e jovial; de outras, turbulento, atrapalhado e agitado. Tinha ciúme da preferência da mãe por Henrique in, seu irmão-Rei. NR

[29] Muito difícil se ter certeza do que se traía. O segundo nome soa como Diane de Poitiers. Esta viúva conseguiu conquistar o pai deste Duque d'Anjou, o então Rei Henrique II, marido de Catarina, sendo sua amante até a morte deste. Quanto ao Tuche, imaginamos ser um nome carinhoso, pelo qual Diane de Poitiers chamava o Rei, seu amante. NR

[30] Instrumento musical de cordas; variação do bandolim. Dic. Aurélio. NR 

[31] O comandante do Castelo de Angers, Bussy d'Amboíse, se tornou tristemente célebre por suas iniqüidades, até o dia em que Carlos de Chambes, Conde de Monsoreau, tendo contra ele uma afronta particular, o assassinou no Castelo de La M. M. Que mudança ocorreu com sua alegre e meiga colega de infância, para ela responder assim ao seu humilde pedido de perdão e lhe dizer abertamente o quão ele era desprezível, preferindo Saurmont? E, no entanto, dizia a verdade; a forte paixão do Conde teria conquistado o volúvel coração da moça? Haviam lhe dito que, pelo visto, o casal vivia em harmonia. Diana se vestia com todo esmero e conseqüentemente queria agradar o esposo. Todos estes pensamentos surgiam como um relâmpago na mente de René. Rancor e ciúme tomaram o coração do Visconde, tendo ele um terrível desejo de vingança pela ofensa recebida. — Perigosa e sedutora! Mas custe o que custar me pertencerá, ainda que para isso eu me veja obrigado a esperar dez anos e a fazer um caminho até você no meio das rochas! disse ele para si mesmo, seguindo Diana com olhar de hostilidade e ao mesmo tempo de admiração. A partir desse dia o Visconde a seguia em toda parte. Em qualquer situação propícia ele lhe caía diante dos Coutacière, em agosto de 1579. Era um ótimo espadachim, crendo-se até mesmo ter ele muita sorte para ser tão bom assim. "H. de F.", pág. 380. Em "Marguerite de Navarre", consta ser ele um dos favoritos "mignons" de Henrique in. Na Noite de São Bartolomeu ele, aproveitando-se da situação, matou seu primo Antônio de Clermont, com o qual tinha um litígio. Viciado, não crente em Deus, ávido de querelas, desprovido de escrúpulos e de senso moral, cruel, a ninguém temia. Brigava com todos a propósito de nada. NR

[32] Na pág. 206 de "H. de F." há uma árvore genealógica dos "Valois" e ali diz que Henrique in, o Rei, nesta parte do livro, não teve herdeiros. Dado o fato de este livro de Rochester não ter tido, até agora, nenhum engano, nem de nomes, nem de datas, estranhamos o fato. Se houve uma delfina que durou apenas alguns dias ou meses, seria difícil pesquisar. NR 

[33]Natural da Gasconha (França); fanfarrão, briguento. NR

[34] Espadachim. NR 

[35] "Balafré" — a cicatriz. O Duque de Guise teve esse apelido por ter recebido uma cutilada no rosto, em 1575. "Lê Siècle de Ia Renaissance", pág. 247. NR

[36] Em "H. de F.", pág. 380, sob o título de "Prodigalidades e Desordens — Os Mignons", consta: Saint-Mégrin, o Duque de Joyeuse, o Marques d'Ó, o Duque d'Epernon, Livarot, Queluz, são os mais conhecidos cortesãos, cujos dois últimos eram os mais queridos de Henrique in, pereceram em um duelo célebre, contra os "mignons" do Duque de Guise, em 27.04.1578, às 5 horas da manhã, atrás do parque de Courcelles. Queluz, Maugiron e Livarot se bateram contra Carlos de Balzac, Riberac e Schomberg. Somente Balzac e Livarot escaparam. Menos de dois meses depois, SaintMegrin, que gozava da intimidade da Duquesa de Guise, foi assaltado e assassinado, numa tarde em que saía do Louvre. NR 

[37] antiga dinastia de reis franceses. NR 

[38] filho do Rei espanhol, Felipe II, e de sua primeira esposa, Maria de Portugal, nascido em 1545. Vítima de um acidente que lhe afetou a razão, esteve encarcerado no próprio palácio real, onde morreu, em 1568. Dic. Aurélio. Há notícias de qne teria sido assassinado por seu próprio pai. NR

[39] Louise de Lorraine, a Rainha, casada com Henrique in, não tem qualquer citação escandalosa a seu respeito, mesmo sendo esposa de um homem dificílimo como teria sido seu marido... No "H. de F.", pág. 378 diz: "Ele (H. in) foi indigno da afeição tocante e devotada desta princesa afável, simples, benfeitora e piedosa, da qual ele nunca fez caso algum". NR

[40] cortesã, mulher de vida livre, porém de nível mais alto. NR

[41] designação comum a diversos antigos funcionários reais e senhoriais. Dic. Aurélio. NR

 

                                                                                J. W. Rochester  

 

                      

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