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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NOITE DO LEOPARDO - P.2 / Wilbur Smith
A NOITE DO LEOPARDO - P.2 / Wilbur Smith

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

TIMON Nbebi manipulava o rádio como se fosse um sonar em busca de um canal de águas rasas.

Os bloqueios e grupos emboscados da Terceira Brigada faziam relatórios pela rede VHF aos quartéis-generais de suas áreas, dando as posições como parte do procedimento rotineiro, e Timon os assinalava no mapa.

Por duas vezes, evitaram bloqueios enveredando por estradas laterais e trilhas de gado, avançando cautelosamente pela floresta de acácias. Seguindo por esses caminhos alcançaram pequenas aldeias, meros pousos de gado, e lar de duas ou três famílias matabele. A Terceira Brigada os havia precedido, e a presença dos urubus e abutres denunciava a carnificina; banqueteavam-se nos corpos queimados que jaziam nas cinzas das cabanas incendiadas.

 

 

 

 

Continuaram na direção oeste, sempre que os caminhos permitiam. Em cada subida com uma visão mais geral, Timon estacionava e escondia o carro, enquanto Craig incumbia-se de verificar o que havia à frente. Em todas as direções, podia ver as colunas de fumaça das aldeias incendiadas. Seguiam ainda em direção oeste e o terreno mudou abruptamente quando atingiram os limites do deserto de Kalahari. Havia cada vez menos marcos na paisagem. A terra foi se transformando em uma planície monótona e cinzenta, ardendo infindavelmente sob o sol alto e implacável. As poucas árvores existentes eram raquíticas e seus ramos tortos assemelhavam-se a membros aleijados. Era um território hostil que daria sustento apenas às mais rudimentares necessidades humanas. Era apenas o começo do grande deserto, mas mesmo assim prosseguiram.

O Sol começou a declinar e haviam percorrido só uns sessenta quilômetros desde o amanhecer. Craig calculou pelo mapa que restavam, pelo menos, outros quarenta quilômetros até a fronteira, e estavam os três exaustos com a tensão contínua e com o calor que a carroceria metálica emanava.

No meio da tarde, pararam novamente por alguns minutos. Craig fez chá, Sally-Anne afastou-se para trás de um arbusto, longe dos olhos deles, e agachou-se, enquanto Timon ocupava-se do rádio.

Não há mais aldeias à frente - disse Timon, ao ressintonizar o aparelho. - Acho que estamos a salvo, mas nunca estive tão longe assim. Não sei o que esperar.

- Trabalhei por aqui com Tungata quando estávamos no Departamento de Caça, em 1972. Seguimos um bando de leões matadores de gado por duzentos quilômetros além da fronteira. É uma região ruim; não há água à superfície, é cheia de depósitos de sal e... - Interrompeu-se quando Timon fez-lhe um sinal urgente para que se calasse.

Conseguira pegar outra voz no rádio, mais autoritária e mais cortante que as do pelotão que estivera escutando. Exigia prioridade para usar a faixa em um comunicado urgente, e Timon Nbebi endireitou-se, visivelmente assustado.

- O que é? - Craig não pôde conter a apreensão, mas Timon fez um gesto pedindo silêncio e ficou escutando a longa e sincopada transmissão em shona. Quando o rádio silenciou, levantou os olhos.

- Uma patrulha achou os três homens que abandonamos hoje de manhã. Essa transmissão era um alerta para todas as unidades. O general Fungabera deu prioridade total à nossa captura. Dois aviões de reconhecimento foram desviados para esta área. Logo vão nos sobrevoar. O general calculou nossa posição corretamente; deu ordens às unidades punitivas para vir nesta direção. Deduziu que estamos tentando alcançar a fronteira sul em Plumtree e a estrada de ferro. Deu ordens para que dois pelotões se apressem a descer do posto principal de lá para nos bloquear. - Fez uma pausa, tirou os óculos e limpou-os na borda da gravata de seda. Sem óculos, parecia tão míope quanto uma coruja à luz do dia. - O general deu o código "leopardo" a todas as unidades... - Fez outra pausa e explicou quase em tom de desculpas: - O código significa uma ordem para matar à queima-roupa, o que temo que sejam más notícias.

Craig agarrou o mapa e o desenrolou sobre o capô, e Sally-Anne voltou e parou junto a ele.

- Estamos aqui - ele disse, e Timon concordou. - Este é o único caminho daqui por diante, e dobra em direção norte, mais ou menos a nor-noroeste - murmurou Craig para si mesmo. - A patrulha de Plumtree tem que vir por ela para nos achar e os grupos punitivos têm que seguir atrás deles.

- Desta vez não vão passar por nós. Estarão vigilantes - afirmou Timon.

O rádio tornou a dar sinal de vida e Timon correu até lá. Sua expressão ficou ainda mais lúgubre enquanto escutava.

- A unidade punitiva em nossa retaguarda descobriu o rastro do Land-Rover. Não estão muito longe e estão vindo rápido nesta direção - disse. - Entraram em contato com a patrulha da estrada à nossa frente. Estamos encurralados e não sei o que fazer, sr. Mellow. Estarão aqui em pouco tempo. - E olhou com um ar suplicante para Craig.

- Muito bem. - Craig assumiu o controle com naturalidade. - Vamos para a fronteira através do campo.

- Mas o senhor disse que é território ruim - começou a dizer Timon.

- Ative a tração das quatro rodas e vamos em frente - cortou Craig. - Vou no teto do carro para guiá-lo. Sally-Anne, passe para o banco da frente.

Do teto, com o AK 47 pendurado no ombro, Craig mirou com o compasso manual do estojo de mapas, fez um cálculo aproximado da deflexão magnética e avisou Timon.

- É isso. Vire para a direita e mantenha essa direção.

Tinha feito um alinhamento com o clarão ofuscante de um pequeno depósito salino a uns poucos quilômetros adiante e a superfície parecia firme e possivelmente fácil. O Land-Rover acelerou, mergulhando nas moitas baixas e espinhentas, desviando-se apenas diante de um galho mais resistente ou uma árvore, e Craig fazia as correções após cada desvio.

Rodavam quase a cinqüenta quilômetros por hora e tudo parecia limpo até o horizonte. Craig estava certo de que os caminhões pesados e carregados não conseguiriam alcançá-los; a fronteira ficava a menos de uma hora de distância e a noite aproximava-se rapidamente. A xícara de chá o havia reanimado e começou a sentir-se otimista.

Vamos, seus canalhas, tentem nos pegar! - Desafiou o inimigo invisível, soltando uma risada. Esquecera como a adrenalina se espalhava rápido no sangue quando o perigo estava próximo. Lembrou-se de que em certa época adorava aquela sensação.

Virou-se para olhar atrás e viu-os imediatamente: um pequeno redemoinho de poeira; essa nuvem avançava com deliberação e estava exatamente onde esperava vê-la, a leste, vindo rapidamente pela estrada que acabavam de abandonar.

- Estou vendo uma patrulha - gritou, inclinando-se pela janela aberta. - Estão a uns dez quilômetros atrás de nós.

Tornou a olhá-la e fez uma careta com a própria nuvem de poeira que estavam fazendo, e que os seguia como uma cauda suspensa no ar por alguns minutos. Não podiam deixar de vê-la, e a estava observando quando deveria estar vigiando o terreno à frente. O buraco de tamanduá era invisível para quem estava ao volante por causa do capim desbotado do deserto. Caíram nele a cinqüenta por hora e o carro parou bruscamente.

Craig foi atirado do teto para cima do capô, rolando no solo, raspando os cotovelos, joelhos e um lado do rosto. Ficou estendido por um momento, tonto e dolorido. Conseguiu sentar-se e cuspiu sangue misturado com areia, certificando-se de que os dentes estavam firmes. Ralara os cotovelos e o jeans estava ensopado com o sangue que vertia dos joelhos. Experimentou a correia da perna artificial, que estava bem segura, e esforçou-se para levantar.

O Land-Rover tombara de frente, para o lado esquerdo, com a carroceria afundada no buraco. Foi mancando até ele, amaldiçoando a própria falta de atenção, e abriu com força a porta. O vidro se estilhaçara onde a cabeça de Sally-Anne tinha batido e ela estava desacordada.

- Oh, meu Deus! - exclamou, levantando-a gentilmente. Tinha um enorme galo na testa, mas, ao tocar-lhe o rosto, os olhos se abriram e o fixaram.

- Machucou-se muito?

- Você está sangrando - ela enrolou as palavras.

- São só arranhões - tranqüilizou-a, apertando-lhe o braço, e olhou para Timon, que batera com a boca no volante, cortando o lábio superior e quebrando um dos incisivos. Estava sangrando bastante, mas enxugava-se com um lenço de seda.

- Engrene marcha à ré - ordenou-lhe Craig, que puxou Sally- Anne para fora, aliviando o peso do carro. Ela deu uns passos vacilantes e precisou sentar pois ainda estava tonta e confusa com a pancada na cabeça.

O motor engasgou ao ser ligado, enquanto Craig, impaciente, vigiava a coluna de poeira por trás deles. Já não estava distante e aproximava-se rapidamente; o motor pegou e tornou a engasgar quando Timon pisou fundo demais no acelerador. Soltou o pé bruscamente e as quatro rodas giraram em falso.

- Vá com calma, homem, senão pode quebrá-lo - advertiu Craig.

Timon tentou novamente com mais calma; as rodas tornaram a girar em falso, provocando uma nuvem de pó e o carro oscilou loucamente, ainda preso.

- Pare! - Craig bateu no ombro de Timon para obrigá-lo a obedecer. As rodas apoiadas na terra solta estavam cavando o túmulo do Land-Rover. Deitou-se no chão e espiou embaixo do chassi. A roda dianteira esquerda tombara no buraco e rodava solta no ar, enquanto o peso do carro repousava todo sobre a suspensão dianteira.

- Traga uma pá - disse Craig.

- Nós as deixamos com os soldados antes de fugirmos - lembrou-lhe Timon, e Craig começou a escavar a terra com as mãos.

- Ache alguma coisa para cavar! - disse e continuou freneticamente o trabalho.

Timon procurou na mala do carro e trouxe-lhe o macaco e uma panga de lâmina larga. Craig começou a cavar a borda do buraco, gemendo e arquejando, e o suor ardia-lhe nos arranhões do rosto quando o rádio funcionou de repente. Timon foi traduzindo o que falavam:

- Acharam o local em que saímos da estrada - traduziu Timon.

- Meu Deus! - Craig gemeu com esforço -, isso foi a menos de quatro quilômetros daqui.

- Posso ajudá-lo? - Timon ciciava por causa da falha nos dentes.

Craig não se deu ao trabalho de responder. Só havia lugar para um de cada vez embaixo do carro. A terra esfarelava-se e o Land-Rover afundou mais alguns centímetros, fazendo com que a roda esquerda tocasse o fundo do buraco. Voltou a atenção, então, para a borda aguçada, escavando-a para fazer uma rampa que não a bloqueasse.

Sally-Anne, pegue a direção - falou aos arrancos, por entre as pazadas com a panga. - Timon e eu vamos tentar suspender a frente do carro. - Arrastou-se para fora, perdendo um segundo ao olhar para trás. A poeira era claramente visível ao nível do solo. Vamos, Timon.

Ficaram ombro a ombro na frente do radiador e dobraram os joelhos para segurar o pára-choque com firmeza. Sally-Anne sentou-se ao volante; o calombo na cabeça parecia um grande carrapato agarrado à pele pálida. Olhou para Craig com uma expressão de desespero.

- Vamos lá! - gritou Craig e ambos suspenderam o pára-choque com toda força, endireitando os joelhos. Sentiu a frente levantar-se uns poucos centímetros acima da suspensão e acenou para Sally-Anne que embreou, fazendo o motor roncar; o carro recuou bruscamente, ficando bloqueado à beira do buraco.

- Descansar! - ordenou Craig, e apoiaram-se arquejantes no capô.

Viu que a poeira da perseguição estava tão próxima que esperava ver surgir os caminhões por trás dela enquanto olhava.

- Agora, vamos balançá-lo - disse a Timon. - Vamos lá! Um, dois, três!

Enquanto Sally-Anne ligava o motor, jogaram todo o peso no pára-choque em ritmo rápido e regular.

- Um, dois, três! - arquejou Craig, e o carro começou a subir e balançar violentamente contra a borda.

- Continue!

A poeira esvoaçava em torno deles e a voz no rádio deu um grito exultante como um cachorro que conduz a matilha quando farejou a pista da caça. Tinham sido descobertos.

- Não desista!

Craig descobriu reservas de forças que desconhecia. Cerrou os dentes, com a respiração sibilante na garganta, o rosto intumescido e vermelho e a visão borrada e cheia de pontos luminosos. Arquejava ainda, os músculos das costas pareciam romper-se e a coluna, esmagar-se. De repente a roda presa ultrapassou a borda e o carro deu marcha à ré, livre.

Apanhado de surpresa, Craig caiu de joelhos e achou que não teria forças para levantar-se.

- Craig! Depressa! - gritou Sally-Anne. - Entre no carro!

Com enorme esforço, levantou-se e cambaleou até o Land-Rover já em movimento, alçando-se para o capô, e Sally-Anne acelerou; por alguns instantes, Craig agarrou-se, tentando recuperar as forças, rastejando depois até o teto e olhando para trás.

Havia um único caminhão atrás deles, um Toyota de cinco toneladas, pintado na familiar cor de areia. Na claridade tremeluzente e enganosa produzida pelo calor, parecia um monstro surgido das profundezas da terra que flutuava em sua direção e limpou o suor que escorria sobre os olhos. A que distância estava? Era difícil calcular a nível do solo e através da miragem.

A visão clareou e viu que o objeto negro por cima da cabine era uma metralhadora pesada com um atirador a postos. Àquela distância, parecia uma Goryunov Stankovy, uma arma terrível.

- Jesus! - exclamou, como se só naquele instante tomasse conhecimento da marcha alterada do Land-Rover, que vibrava e sacudia-se brutalmente, com um ruído agudo de metal contra metal na parte esquerda onde batera; a velocidade estava cada vez menor.

Craig inclinou-se e berrou pela janela:

- Aumente a velocidade!

- O carro está todo estourado na frente. - Sally-Anne inclinou a cabeça pela janela. - Se formos mais depressa, vai cair aos pedaços.

Craig tornou a olhar para trás. O caminhão aproximava-se, não rápida, mas inexoravelmente. Viu o atirador do teto mudar ligeiramente a posição da arma.

- Dê tudo, Sally-Anne! - berrou. - Vamos arriscar. Eles têm uma metralhadora pesada e estamos quase dentro do alcance de tiro.

O Land-Rover roncou, avançando com um ranger de metais e a vibração fez com que os dentes de Craig batessem. Olhou novamente para trás; estavam mantendo distância, mas viu quando o caminhão estremeceu com o disparo da arma pesada.

Craig notou que ainda não se ouvia o som dos disparos; abruptamente levantou-se uma cortina de poeira perto do flanco esquerdo do carro, com dois metros de altura, e que parecia diáfana e inocente. O som dos disparos repercutiu, terrível, logo após.

Vire à esquerda! - gritou Craig. Sabia que a tática para manterem-se vivos e inteiros era seguir na direção dos disparos; o atirador estaria corrigindo a mira para o lado oposto e a poeira ajudava a ocultar o alvo.

A saraivada seguinte caiu à direita, e distanciada.

Vire à direita! - berrou Craig.

Atire neles! - Sally-Anne botara a cabeça de fora da janela novamente; estava obviamente recuperando-se da pancada na cabeça e começando a ficar combativa.

- Eu dou as ordens - ele disse. - E você dirige.

Os disparos que se seguiram caíram longe, a uns trinta metros.

- Vire à esquerda!

O ziguezaguear estava confundindo a pontaria do soldado e a poeira obscurecia a mira, mas estava custando-lhes terreno. O caminhão aproximava-se novamente.

O depósito de sal estava logo adiante, centenas de quilômetros quadrados brilhando como prata sob o Sol. Craig franziu os olhos com a claridade e avistou as veredas por onde uma pequena manada de zebras passara na superfície lisa. Os cascos haviam quebrado a camada de sal, deixando à mostra por baixo a lama amarelada que atolaria qualquer veículo que tentasse aquela travessia enganadoramente convidativa.

- Vire o volante e passe rente à borda direita do depósito. À esquerda! Mais! Mais! Assim, mantenha - gritou.

Havia uma estreita faixa da salina que se estendia até eles e talvez pudesse tentar os perseguidores a cortar caminho por ali. Olhou através da poeira e praguejou:

- Merda!

O motorista do caminhão era esperto demais para tentar atravessar. Estava logo atrás deles e uma rajada de metralhadora caiu-lhes em torno. Três balas acertaram a carroceria, deixando crateras de metal brilhante onde a tinta de camuflagem descascara.

- Vocês estão bem?

- Estamos! - respondeu Sally-Anne, mas o tom de voz já não era de bravata. - Craig, não consigo mais acelerar. Estou com o pé no fundo e a velocidade está diminuindo. Alguma coisa está acontecendo!

Craig sentiu o cheiro de metal incandescente na frente danificada.

- Timon, passe-me um fuzil!

Ainda estavam fora do alcance da AK 47, mas a rajada que disparou o fez sentir-se menos desamparado. Passaram com o motor falhando pela ponta da salina, em meio ao cheiro acre do metal incandescido, e Craig olhou para a frente enquanto recarregava o fuzil.

Quanto faltaria para a fronteira? Uns vinte quilômetros, talvez? Mas uma unidade punitiva da Terceira Brigada com ordens de cumprir o código "leopardo" se deteria diante de uma fronteira internacional? Há muito, os israelenses e sul-africanos haviam criado o precedente de "perseguição em luta" dentro de território neutro. Sabia que seriam perseguidos até a morte.

O Land-Rover seguia aos arrancos, com a suspensão danificada, e, pela primeira vez, Craiz sentiu que não iam conseguir; a idéia o enfureceu, fez uma série de disparos curtos e o Toyota oscilou violentamente e parou numa nuvem de pó.

- Eu o peguei! - berrou, triunfante.

- Viva! - berrou Sally-Anne.

- Bravos, sr. Mellow, ótimo trabalho!

O caminhão era uma grande massa imóvel enquanto as ondas de pó iam sumindo.

- Engulam isso, desgraçados! - berrou Craig. - Enfiem esse caminhão no traseiro, seus porcos! E esvaziou o fuzil na direção do veículo parado.

Homens corriam à volta do caminhão, como formigas em torno da carcaça de um besouro, e o Land-Rover afastou-se lentamente, aos trancos.

- Ah, não! - gemeu Craig.

A silhueta do caminhão alterou-se ao retomar a perseguição.

- Aí vêm eles de novo!

Talvez houvesse acertado o motorista, mas o estrago feito não fora permanente. Conseguira detê-los por menos de dois minutos e, agora, corria mais rápido do que antes. Como para sublinhar isso, outra rajada da metralhadora pesada atingiu-os.

Alguém gritou na cabine, um grito agudo e feminino. Craig ficou paralisado de medo.

Timon foi atingido. - Era a voz de Sally-Anne, e o coração de Craig disparou de alívio.

Está muito ferido?

Acho que sim. Está sangrando muito.

Não podemos parar. Vá em frente.

Craig olhava desesperadamente para diante e tudo o que via era um enorme vazio. Até os arbustos espinhentos haviam desaparecido. Tudo era achatado e sem relevo, e o reflexo das salinas brancas tornava o céu de um leitoso pálido; não havia definição clara entre terra e céu, nada que detivesse a atenção.

Craig abaixou o olhar e berrou:

- Pare! - E, para reforçar a ordem, bateu com os pés no teto do carro com toda força, fazendo Sally-Anne reagir instantaneamente e frear. O Land-Rover estacou.

A causa da urgência de Craig era um montinho de pêlos amarelos, menor que uma bola de futebol, aparentemente inócua. De repente, saltou com longas pernas traseiras, desproporcionais a seu corpo, e que se assemelhavam às de um canguru. Desapareceu abruptamente num buraco escavado na terra.

- Um rato-canguru! - gritou Craig. - Uma colônia enorme deles, bem em frente.

- Ratos-cangurus?! - Sally-Anne inclinou-se na janela, à espera de instruções.

Tinham tido sorte. O Paradipus ctenodactylus é um animal de hábitos noturnos e ver um deles fora da toca à luz do dia era um acontecimento excepcional. Ao observar atentamente, Craig percebeu a extensão da colônia. Havia dezenas de milhares de buracos, cujas entradas pareciam montículos inofensivos de terra solta, mas sabia que o terreno arenoso por baixo estava todo cortado por túneis e que a área toda estava solapada.

Aquele solo não suportaria o peso de um homem a cavalo, quanto mais o de um caminhão. Com o motor desligado, Craig podia ouvir claramente o estrépito atrás deles e uma rajada de metralhadora passou tão perto que teve de abaixar-se rápido para não ser atingido.

- Vira para a esquerda! Volte para a salina! - gritou.

Viraram, passando à frente do caminhão que se aproximava com a metralhadora disparando, e os gemidos de Timon chegavam aos ouvidos de Craig, que resolveu ignorá-los.

- Não há como passar! - disse Sally-Anne. Os buracos espalhavam-se por toda parte.

- Vá em frente - respondeu Craig. O caminhão dera meia-volta para cortar-lhes o caminho e aproximava-se rapidamente.

- Lá! - apontou Craig, aliviado. Como deduzira, a colônia terminava próximo à borda das salinas, evitando a lama em seu subsolo. Havia uma estreita passagem e Craig guiou Sally-Anne por ela. Rodaram quinhentos metros e ultrapassaram o solo perigoso; agora tinham terra firme pela frente. Sally-Anne acelerou ao máximo e conseguiram afastar-se dos perseguidores.

- Não! Não! - gritou Craig. - Vire à direita, tudo à direita! - Ela pareceu hesitar, e ele continuou: - Faça o que eu digo, que diabo! - De repente, percebeu qual era a intenção de Craig; virou o volante, resoluta, dirigindo de volta e cruzando na frente do caminhão, que seguiu-os, afastando-se dos depósitos salinos pela passagem de terra firme em direção ao labirinto subterrâneo de buracos. Estava tão próximo que podiam ver as. cabeças dos soldados na parte traseira descoberta, a cor de uma boina vermelha e o brilho do distintivo prateado, ouvir os gritos raivosos e sedentos de sangue e um fuzil AK 47 brandido em triunfo.

A metralhadora escavou a terra a uns três metros na frente do Land-Rover que mergulhou na nuvem de pó levantada pela rajada.

Craig mirou o AK 47, tentando desviar a atenção do chofer do solo à frente do caminhão.

- Deus, faça com que aconteça - suplicou, enquanto recarregava o fuzil. Suas preces foram ouvidas. O caminhão entrou a toda velocidade no terreno esburacado.

Era como um elefante caindo em uma armadilha funda. A terra cedeu e engoliu-o. Ao cair o caminhão tombou de lado, atirando fora os homens armados que estavam na traseira. Havia corpos espalhados à volta, e alguns já começavam a levantar-se enquanto outros jaziam onde tinham sido jogados.

- É isso aí - gritou Craig. - Vão precisar de um guindaste para sair dessa.

- Craig - gritou ela de volta. - Timon está mal. Não podemos fazer alguma coisa?

- Pare um instante.

Craig pulou do teto do carro, entrou no banco traseiro e Sally- Anne arrancou.

Timon estava esparramado no assento, com a cabeça atirada para trás e apoiada à janela. Perdera os óculos, estava com a respiração entrecortada e as costas do paletó do uniforme eram uma massa sangrenta. Craig ajudou-o a estender-se no banco e abriu o casaco.

Ficou horrorizado com o que viu. A bala devia ter entrado pela carroceria e ficara deformada pelo impacto, como uma dum-dum. Abrira um buraco do tamanho de uma xícara nas costas de Timon e não saíra. Ainda estava lá.

Havia uma caixa de primeiros socorros no painel do carro. Craig tirou duas ataduras, arrancou as embalagens e as colocou sobre a ferida. Atrapalhado pelos trancos violentos, amarrou-as bem apertadas.

- Como está ele? - perguntou Sally-Anne, tirando os olhos do caminho por um instante.

- Vai ficar bom - disse, para confortar Timon, mas balançou a cabeça em uma negativa silenciosa.

Timon era um homem morto. Seria questão de uma ou duas horas. Ninguém poderia sobreviver a um ferimento daqueles.

- Não posso respirar - sussurrou Timon, esforçando-se para sorver ar.

Craig tivera esperanças de que estivesse inconsciente, mas os olhos estavam fixos em seu rosto. Craig abriu um pouco a janela para dar-lhe mais ar.

- Meus óculos. Não consigo enxergar.

Craig achou-os no assoalho e o colocou em seu rosto.

- Obrigado, sr. Mellow. - E inacreditavelmente, Timon sorriu. - Não me parece que consiga sair dessa, afinal.

Craig ficou surpreso com a intensidade da pena que sentia dele. Agarrou com firmeza o ombro de Timon, esperando que a força física pudesse confortá-lo um pouco.

- O caminhão? - perguntou Timon.

- Conseguimos acertá-lo.

- Ótimo, senhor.

Enquanto falava, o carro foi tomado pelo cheiro de borracha e gasolina queimadas.

- Pegamos fogo! - gritou Sally-Anne, e Craig virou-se para olhar.

A frente do Land-Rover estava em chamas; o metal incandescido do pára-lama dianteiro incendiara a borracha do pneu, e o fogo imediatamente alastrou-se; apesar de o motor continuar funcionando, o carro imobilizou-se, e a embreagem pegou fogo, provocando mais fumaça por baixo do chassi.

- Desligue-o! - ordenou Craig, e abriu a porta, tirando o extintor do lugar.

Esguichou uma nuvem branca de pó na frente incendiada, apagando as chamas no mesmo instante; abriu em seguida o capô, queimando os dedos no metal quente. Esguichou no motor também para evitar que o fogo ressurgisse, e olhou-o.

- Bem - disse em tom fatalístico. - Este aqui não vai mais a lugar nenhum!

O silêncio em torno deles, depois do barulho dos motores e dos tiros, era esmagador. Os estalidos do metal que se resfriava soavam alto. Craig foi até a traseira do carro e olhou para trás. O caminhão estava fora de vista, atrás deles, em meio ao halo produzido pelo calor. O silêncio zumbia em seus ouvidos e a solidão do deserto o assaltou como uma força física, parecendo diminuir-lhe o ritmo dos movimentos e do raciocínio.

A boca estava ressequida pela ressaca de adrenalina.

- A água! - Foi rapidamente ver o tanque de reserva sob o banco, abriu a tampa e checou quanto tinham.

- Pelo menos uns vinte e cinco litros.

Havia um cantil de alumínio dependurado ao lado do fuzil AK 47, deixado por um dos soldados que haviam cavado as covas. Craig encheu-o e levou-o para Timon, que bebeu, agradecido, engolindo avidamente a água e engasgando com a pressa. Recostou-se em seguida, arquejante. Craig passou o cantil a Sally-Anne e, depois, bebeu também. Timon parecia um pouco melhor e Craig verificou as ataduras. A hemorragia estava provisoriamente estancada.

- A primeira regra de sobrevivência no deserto - lembrou-se Craig - é ficar junto ao carro.

Mas isso não se aplicava ao caso. O veículo atrairia os perseguidores e Timon falara em aviões de reconhecimento. Naquele descampado, veriam o Land-Rover a quilômetros de distância. E havia ainda a segunda patrulha vinda do posto fronteiriço de Plum-tree. Estariam lá em pouco tempo.

Não podiam ficar. Tinham que continuar. Olhou para Timon e ambos compreenderam isso.

- Vão ter de me deixar aqui - sussurrou Timon.

Craig não podia continuar a encará-lo ou responder-lhe. Em vez disso subiu novamente para o teto do carro para olhar para trás.

As marcas dos pneus apareciam claramente na terra macia, já sombreada pelo Sol mais baixo no céu. Seguiu-as com o olhar até o horizonte e estremeceu de repente.

Algo movia-se quase dentro do campo de visão. Por alguns instantes, teve esperanças de que fosse uma ilusão. Então, tornou a aparecer, agora como uma lagarta sinuosa flutuando em um lago de miragem, mudou de forma mais uma vez, tornou a ancorar-se em terra e virou uma fileira de homens armados vindo atrás dos rastros. Os homens da Terceira Brigada não haviam abandonado a caçada. Estavam a pé, trotando ritmadamente através da planície. Craig trabalhara com tropas negras de choque antes e sabia que podiam manter aquele ritmo por um dia e uma noite.

Pulou do teto e achou os binóculos de Timon no porta-luvas.

- Há uma patrulha a pé nos seguindo - disse a eles.

- Quantos? - perguntou Timon.

Do teto do carro, focalizou os binóculos.

- São oito... tiveram baixas quando o caminhão virou.

Olhou para o Sol, que estava ficando avermelhado e quase afundando-se no solo meio nevoento. Ainda faltavam duas horas para o crepúsculo, calculou.

- Se me mudarem de posição, posso dar cobertura de fogo para escaparem - disse Timon. E, como Craig hesitasse, concluiu: - Não perca tempo discutindo, sr. Mellow.

- Sally-Anne, encha o cantil - ordenou Craig. - Pegue o chocolate e os tabletes de proteína das rações de emergência. E também o mapa, o compasso e os binóculos.

Observou os pontos de onde disparariam contra o carro. Não se podia tirar partido daquele terreno achatado. O único ponto defensivo era o próprio Land-Rover. Tirou a tampa do depósito de gasolina e deixou escorrer o restante do combustível no solo arenoso, para evitar que um tiro de sorte incendiasse o carro, e Timon com ele. Fez uma trincheira rudimentar em torno das rodas traseiras com os pneus sobressalentes e a caixa de ferramentas para proteger o flanco de Timon quando o cercassem.

Ajudou-o a sair do banco e colocou-o de barriga para baixo atrás dos pneus traseiros. A hemorragia recomeçou, ensopando as ataduras, e Timon estava cinzento e suando, com gotinhas perolando-lhe o lábio superior. Craig colocou-lhe entre as mãos um AK 47 e uma almofada para apoiar-se e fazer pontaria. Deixou a seu lado a caixa de munições, com quinhentas balas.

- Vou durar até escurecer - prometeu Timon em voz rouca. - Mas deixem-me uma granada.

Todos sabiam por quê. Timon não queria ser capturado vivo. Ao final, seguraria a granada contra o peito e a deixaria explodir.

Craig pegou as cinco granadas restantes e colocou-as em uma das mochilas, e sobre elas a bolsa com os papéis e manuscritos. Tirou da caixa de ferramentas um rolo de arame fino e um par de cortadores; da caixa de munição, seis pentes de balas para o AK 47. Dividiu o conteúdo da caixa de primeiros socorros, deixando duas ataduras, um pacote de analgésicos e uma seringa com morfina para Timon, e enfiou o resto na mochila.

Olhou o interior do carro. Haveria mais alguma coisa de que precisassem? Havia no chão um plástico enrolado com desenhos de camuflagem e socou-o na mochila, levantando-a. Era tudo o que podia carregar. Olhou para Sally-Anne, que já estava com o cantil dependurado no ombro e carregava a outra mochila. Enrolara a pasta de fotografias dando um jeito para que coubesse lá dentro. Estava muito pálida e o calombo na cabeça havia inchado mais ainda.

- Tudo certo? - perguntou Craig.

- Tudo bem.

- Adeus, capitão - disse Craig, ajoelhando-se a seu lado.

- Adeus, sr. Mellow.

Craig pegou-lhe a mão e olhou-o nos olhos. Não viu nenhum medo neles e pensou mais uma vez na serenidade de espírito com que os africanos aceitavam a morte. Já vira isso muitas vezes antes.

- Obrigado, Timon, por tudo - disse.

- Hamba gashle - disse Timon, gentilmente. - Vão em paz.

- Shala gashle - respondeu Craig à maneira tradicional. - Fique em paz.

Levantou-se e foi a vez de Sally-Anne ajoelhar-se.

- Você é um bom homem, Timon, e muito corajoso.

Timon abriu o coldre e tirou a pistola, uma cópia chinesa da Tokarev tipo 51, estendendo-a para ela. Não disse nada, e ela a pegou depois de um instante.

- Obrigada, Timon. - Sabia que, assim como a granada que Timon segurava, serviria para um fim mais fácil caso fossem capturados. Sally-Anne meteu-a no cinto do jeans, debruçou-se impulsivamente e o beijou.

Obrigada - disse, novamente; levantou rapidamente e virou-se de costas.

Craig ia à frente, em passo acelerado. Olhava para trás de tanto em tanto, mantendo o carro diretamente entre eles e a patrulha que se aproximava. Se suspeitassem que dois deles haviam abandonado o carro, deixariam simplesmente a metade dos homens para atacá-lo e viriam em sua pista com o restante da força.

Trinta e cinco minutos mais tarde, ouviram os primeiros disparos de arma automática e Craig parou para ouvir. O Land-Rover era apenas um pequeno ponto escuro à distância e o crepúsculo caía rápido. A primeira rajada foi respondida por uma tempestade de tiros, com muitas armas disparando simultaneamente.

- É um bom soldado - disse Craig. - Claro que garantiria aquele primeiro tiro. Aposto que já não são mais oito.

Viu com surpresa lágrimas escorrerem pelo rosto dela, transformando a poeira em uma lama marrom e suja.

- Não é a morte que importa - disse Craig em voz calma -, mas a maneira como se morre.

- Vê se me poupa dessa merda literária, "cara"! Não é você quem está morrendo - respondeu furiosa, mas logo acrescentou em tom contrito: - Sinto muito, querido. Minha cabeça está doendo e eu gostava muito dele.

O som dos disparos tornava-se cada vez mais fraco à medida que iam se distanciando, até transformar-se em um leve murmúrio como passos na mata ressequida por trás deles.

- Craig! - gritou Sally-Anne, e ele voltou-se. Caíra a uns vinte passos e o mal-estar era visível. Assim que ele parou, deixou cair a cabeça entre os joelhos.

- Vou me recuperar logo. É só a minha cabeça.

Craig abriu um pacote de analgésicos e a fez engolir dois comprimidos com um gole de água do cantil. O calombo na testa o assustava e abraçou-a bem apertado.

- Ah, isso é bom. - Ela deixou o corpo repousar em seus braços.

No silêncio do crepúsculo do deserto, ouviram o ruído distante de uma explosão abafada e Sally-Anne enrijeceu-se.

- O que foi isso?

- Granada de mão - ele respondeu, e olhou para o relógio. -, Está morto, mas nos deu uma vantagem de cinqüenta e cinco minutos. Que Deus o abençoe, Timon, e que sua alma repouse em paz.

- Não devemos desperdiçar esta chance - ela disse com determinação, e conseguiu ficar de pé. - Pobre Timon... - concluiu, e recomeçaram a caminhada.

Levariam uns poucos minutos para descobrir que havia apenas um homem defendendo o Land-Rover. Descobririam os rastros rapidamente e os seguiriam. Craig ficou imaginando quantos Timon teria conseguido acertar e quantos teriam sobrado.

- Vamos descobrir isso logo - disse para si mesmo, e a noite desceu sobre eles com rapidez.

Era lua nova já há três dias. A única luz disponível era a das estrelas. Órion estava alto no firmamento de um lado e o Cruzeiro brilhava no outro. No ar seco do deserto, seu brilho era maravilhoso e a Via Láctea enchia os céus como a fosforescência de um vagalume esmagado entre os dedos de uma criança. O céu era magnífico, mas, ao olhar para trás, Craig viu que a luminosidade era suficiente para iluminar as pegadas.

- Vamos descansar! - disse a Sally-Anne, e ela estendeu-se no solo. Com a baioneta da AK 47, ele cortou um ramo de uma moita e prendeu-a com arame na parte de trás do cinto.

- Vá na frente - disse-lhe, economizando energias com poucas palavras.

Ela tomou a frente, já não mais em passo acelerado, e ele arrastava o ramo no chão por trás. Varria a terra com ele para certificar-se de que as pegadas haviam sumido.

Depois de uns dois quilômetros, o peso do galho arrastando-se como uma âncora do cinto começou a cansá-lo, mas tentou reagir. Na hora seguinte, Sally-Anne pediu três vezes água antes que ele a deixasse tomar. Nunca beber logo no início da sede era uma das regras de sobrevivência. Se a pessoa fizesse isso, tornava-se insaciável, mas ela estava ferida e com dores na cabeça, e não teve coragem de negar-lhe outra vez. Ele mesmo não tomou nenhum. O dia seguinte, se sobrevivessem até lá, seria um inferno de sede, e tirou-lhe o cantil para afastar a tentação.

Um pouco antes da meia-noite, tirou o galho do cinto; o peso morto era demais para ele, e, se os shona ainda estivessem em sua pista, não teria muito mais serventia. Em vez disso, tirou a mochila de Sally-Anne e colocou-a no ombro.

- Eu posso agüentar - ela protestou, apesar de estar caminhando meio trôpega. Não se queixara uma única vez, se bem que estivesse tão lívida quanto as salinas que atravessavam.

Tentou dizer-lhe algo que a consolasse um pouco.

Devemos ter cruzado a fronteira há horas atrás.

Isso significa que estamos a salvo? - sussurrou.

Ele ficou quieto, sem conseguir dar uma mentira como resposta. Ela estremeceu.

O vento noturno era cortante através das roupas leves. Ele desdobrou o pedaço de náilon e o colocou em seus ombros, fazendo-a apoiar-se nele.

Cerca de dois quilômetros adiante, chegaram ao final das salinas e viu que ela não poderia mais continuar aquela noite. Havia um rebordo de cerca de quarenta centímetros e após ele recomeçava o terreno firme.

- Vamos parar aqui. - Ela jogou-se ao chão e ele a cobriu com o náilon.

- Posso tomar um gole dágua?

- Não. Só amanhã de manhã.

O cantil estava leve, com menos da metade de seu conteúdo.

Cortou alguns galhos para protegerem-se do vento, tirou os tênis dela, massageando-lhe os pés e os examinando pelo tato.

- Ah, como está ardendo. - O calcanhar esquerdo de Sally- Anne estava em carne viva e ele levou-o até a boca para lamber a ferida, economizando água. Colocou mercurocromo, um band-aid, trocou as meias de pé e calçou-lhe novamente os sapatos.

- Você é tão bom - murmurou -, e tão quente.

- Eu amo você. Durma agora.

Ela suspirou, encolhendo-se, e ele pensou que estivesse adormecida até ouvi-la dizer, suavemente:

- Craig, sinto tanto por causa de King's Lynn.

E, finalmente, adormeceu, respirando ritmadamente contra seu peito. Ele esgueirou-se de debaixo do náilon e a deixou sem perturbá-la. Foi sentar-se na parte mais baixa da saliência com o AK 47 entre os joelhos, vigiando a planície, esperando que viessem.

Enquanto montava guarda, pensou sobre o que Sally-Anne dissera, sobre King's Lynn. Pensou nos rebanhos de grandes animais castanho-avermelhados e na casa da colina, nos homens e mulheres que tinham vivido lá e lá criado suas famílias. E lembrou-se dos sonhos que arquitetara, da família que sonhara ter ao lado de sua mulher.

Minha mulher. Foi até onde ela estava estendida e ajoelhou-se para ouvir-lhe a respiração, lembrando-se dela nua em cima da mesa sob o cruel escrutínio de muitos olhos.

Voltou à borda do depósito salino e pensou em Tungata Zebiwe, lembrando-se das risadas e da camaradagem que haviam repartido, e viu novamente o sinal secreto que lhe fizera quando o estavam levando do tribunal. "Estamos quites, o escore está empatado", e balançou a cabeça.

Pensou no fato de que um dia fora milionário, e também nos milhões que devia agora. De um homem de peso, fora reduzido por um único golpe a algo pior que um mendigo. Nem ao menos o manuscrito dentro da sacola lhe pertencia mais. Seria confiscado; os credores o tomariam. Nada mais possuía, nada, exceto aquela mulher e seu ódio.

Então a imagem do general Fungabera surgiu-lhe na imaginação - macio como chocolate quente, bonito como um pecado mortal, tão poderoso e mau como Lúcifer... A raiva cresceu dentro dele até parecer consumi-lo.

Atravessou a longa noite em vigília, odiando com toda força de seu ser. A cada hora que passava, ia até onde dormia Sally-Anne e ajoelhava-se a seu lado. Uma vez, ajeitou novamente a coberta de náilon, outra, tocou delicadamente o calombo na testa e ela gemeu no sono, voltando então à vigília.

Uma vez, viu formas escuras na planície e o estômago contraiu-se, mas, ao olhá-las com o binóculo de Timon, viu que eram gemsbock, as enormes gazelas do deserto, do tamanho de cavalos, com os focinhos em feitio de diamante claramente delineados à luz das estrelas. Cruzaram silenciosamente por ele e fundiram-se na escuridão.

Órion caçou pelos céus e desapareceu com o primeiro brilho da aurora. Era tempo de prosseguirem, mas ele deixou-se ficar quieto, relutando em acordar Sally-Anne para a realidade dos terrores e provações que o dia traria, e dando-lhe ainda alguns minutos de esquecimento.

Foi quando os avistou, e sentiu-se invadir pelo peso esmagador do desespero. Estavam longe na planície, uma mancha negra grande demais para ser um animal do deserto e que movia-se em sua direção. O ramo que arrastara para apagar o rastro devia ter funcionado, já que os atrasara tanto. Mas, quando o abandonara, deviam ter retomado rapidamente a pista.

Porém o desespero cedeu. Se tinham que enfrentá-los, pensou, era melhor que fosse agora; era um lugar tão bom como qualquer outro para morrer. Os shona tinham que cruzar o descampado e havia a pequena vantagem dada pela borda da salina e a cobertura das moitas esparsas, mas pouco tempo para usá-las.

Arrastou-se de volta até onde deixara a mochila para não ser visto em silhueta contra o céu que clareava. Pôs as cinco granadas dentro da camisa, agarrou o rolo de arame e os cortadores, apressando-se em voltar para a borda.

Examinou a patrulha que avançava. Estavam em fila indiana devido ao descampado, mas achou que se espalhariam logo que chegassem à borda, adotando a tática de avançar em formação de ponta de flecha, que lhes daria cobertura superposta e evitaria que fossem apanhados em uma emboscada.

Craig começou a colocar as granadas de estilhaços baseado nessa hipótese. Foi espalhando-as no alto da borda já que a pequena elevação dispersaria mais os fragmentos de cada explosão.

Com o arame, amarrou granada por granada ao tronco de uma moita ou arbusto, mantendo uma distância de vinte passos umas das outras, correu um fio em torno de cada pino, e levou-os, um de cada vez, de volta para onde Sally-Anne dormia, prendendo-os na mochila.

Estava agora de joelhos, porque a luz aumentava rapidamente e a patrulha estaria, sem dúvida, cada vez mais próxima. Arranjou o quinto e último fio e, daquela vez, voltou rastejando. Os fios espalhavam-se em forma de leque desde a barreira de mato cortado. Verificou a munição do fuzil e colocou os pentes à mão.

Já era hora de acordá-la. Beijou-a na boca com doçura, e ela franziu o nariz, resmungando; abriu os olhos verdes onde primeiro espelhou-se o amor e, depois, a aflição, ao lembrar-se da situação em que estavam. Começou a sentar-se, mas ele a fez deitar novamente.

- Eles estão aqui - avisou-a. - Vou resistir.

Ela concordou, silenciosa.

- Você está com a pistola de Timon?

Tornou a fazer que sim, apalpando o cinto do jeans.

- Sabe usá-la?

- Sim.

- Guarde uma bala para o fim.

Ela o olhou de olhos arregalados.

- Prometa que não vai hesitar.

- Prometo - sussurrou.

Craig levantou a cabeça lentamente. A patrulha estava a quatrocentos metros, e, como previra, já estavam em formação de ponta de flecha.

Ao destacarem-se da mancha amorfa que formavam na pouca claridade, pôde contá-los. Cinco! E seu ânimo tornou a ficar muito abalado. Timon não se saíra tão bem quanto imaginara. Pegara apenas três dos perseguidores. Mesmo com a vantagem da surpresa e estando escondido, eram demais para ele.

- Mantenha o rosto abaixado - sussurrou. - Pode refletir luz como um espelho. - Obedientemente, ela o escondeu entre os braços. Craig levantou a camisa para cobrir a boca e o nariz e ficou vigiando-os.

Oh, meu Deus, pensou. Olhe como se movem! Estão andando a noite toda e ainda estão inteiros e alertas como linces. À frente, vinha um shona alto que movia-se como um caniço ao vento. Carregava o AK 47 apoiado no quadril direito e estava inteiramente concentrado. Por um momento, a luz do amanhecer brilhou-lhe nos olhos que refulgiram, como o clarão de um tiro a distância, no negror do rosto. Craig percebeu que era o líder.

Os dois homens que o flanqueavam eram figuras sombrias, atarracadas e ameaçadoras; subservientes, no entanto, ao homem que os guiava. Reagiam como marionetes aos sinais que o shona fazia. Avançaram, silenciosamente, até a borda e Craig arrumou os arames por entre os dedos da mão esquerda.

A cinqüenta passos do desnível, o shona fez um gesto e a fileira imobilizou-se. Examinou a borda e a vegetação por trás. Deu cinco passos à frente, caminhando macio, e tornou a parar. Inspecionou tudo mais uma vez e virou bruscamente a cabeça. Vira algo, e Craig susteve a respiração durante alguns segundos.

Recomeçou a andar e fez um gesto para os homens, primeiro esticando o indicador, depois, cerrando o punho; a formação deslocou se para a posição da ponta de flecha invertida: o shona adotara a formação tradicional de combate das tribos Nguni, os "chifres de touro" que o rei Chaka empregara com efeitos tão terríveis, e avançavam para investir contra a posição de Craig.

Sentiu-se aliviado com a intuição que tivera em colocar as granadas tão espalhadas. Os dois homens no flanco iriam passar quase em cima das mais afastadas. Selecionou dois arames na mão, observando o avanço deles. Gostaria que fosse o shona alto, o homem perigoso, mas ele mantinha-se imóvel. Estava ainda fora de alcance, observando e dirigindo o movimento.

O homem à direita atingiu a borda e subiu desajeitadamente nela, mas o da esquerda estava ainda a dez passos atrás.

- Juntos - sussurrou Craig. - Tenho que pegá-los juntos.

O homem na borda devia ter quase roçado a granada escondida com o joelho, quando Craig deixou-o ultrapassá-la. O da esquerda chegou finalmente à borda; tinha uma atadura suja de sangue na cabeça, sem dúvida trabalho de Timon. A granada devia estar à altura do umbigo e Craig puxou com toda força os dois arames, ouvindo em seguida o estalido metálico dos pinos arrancados.

A três segundos da explosão, os shona reagiram com reflexos treinados. O homem da borda desapareceu de vista, mas Craig calculou que estava próximo demais à granada para sobreviver. Os outros três também atiraram-se ao chão, disparando ao caírem, rolando para o lado, e tornando a disparar, varrendo o topo da borda.

Só o soldado à esquerda, o homem ferido, talvez mais lento por causa disso, ficou em pé naqueles segundos fatais. A granada explodiu como um flash; foi atingido pela fragmentação do shrapnel, e jogado ao ar pelo impacto na barriga. À direita, a outra explodiu com um estrondo breve e Craig ouviu o ruído seco dos fragmentos penetrando na carne.

Dois desgraçados a menos, pensou, e tentou alvejar o líder, mas o homem conseguiu esquivar-se. O primeiro disparo arrancara o sal branco do solo a centímetros dele, o segundo desviou-se um pouco para a esquerda, e o shona atirou de volta, continuando a rolar.

Um dos soldados ficou de pé e saiu correndo, fazendo disparos contra a borda; Craig virou-se e acertou-o em cheio com uma rajada da virilha ao peito. O soldado deixou cair o fuzil, rodopiou, caiu de joelhos e depois de rosto no chão, como um muçulmano em oração.

O shona alto levantou-se e correu, gritando uma ordem, enquanto o outro soldado o seguia a vinte passos de distância. Craig mirou exultante. Não havia como errar. O AK 47 deu um coice e acionou um cartucho vazio, enquanto o shona continuava, incólume.

Craig não conseguiu recarregar tão rápido como em outros tempos; perdeu preciosos segundos antes de poder apertar o gatilho de novo e o homem atirou-se por trás do desnível, fazendo com que a rajada passasse inofensiva.

Craig soltou um palavrão e virou-se para o último soldado que estava a apenas cinco passos da segurança da borda, disparando à queima-roupa. Não tivera tempo para mirá-lo, mas uma única e afortunada bala atingiu-o na boca, jogando-o para trás com o impacto. A boina voou para o ar, brilhando como um lindo pássaro na luz do amanhecer, e o soldado tombou.

Quatro dos cinco inimigos mortos nos primeiros minutos era muito mais do que podia esperar, mas o último, e mais perigoso, estava vivo, por trás da borda. Devia ter assinalado a direção dos tiros, sabia onde Craig estava.

- Fique debaixo da coberta - ordenou a Sally-Anne, e puxou os arames das outras três granadas. As explosões foram quase simultâneas, um barulho trovejante como o da bateria de um navio de guerra, e Craig movimentou-se por entre a poeira e as chamas.

Correu uns trinta passos para a frente e à direita, jogou-se ao chão e ficou esperando, de bruços, cobrindo o local onde o shona desaparecera, mas lançando rápidas olhadelas para os lados.

A luz estava mais forte e aumentava rapidamente; viu quando o shona moveu-se e subiu ao desnível. Apenas uma breve silhueta contra a brancura do depósito de sal, rápido como uma serpente e onde Craig não o esperava. Devia ter se arrastado por sobre a borda e estava bem à esquerda.

Craig fez pontaria, mas não disparou; aquela chance não era bastante segura para que traísse a nova posição, e o shona desapareceu nas moitas baixas a uns cinqüenta passos. Arrastou-se para interceptá-lo, lento como uma lagarta, sem fazer ruído ou levantar poeira, ouvindo e olhando com toda a concentração. Escoaram-se longos segundos até que conseguiu avançar um pouco mais, sabia que o shona estava rastejando para onde deixara Sally-Anne.

Foi quando a ouviu gritar. O som foi como um esmeril em seus nervos e viu-os levantarem-se por trás de uma moita próxima: Sally-Anne lutava e arranhava como um gato selvagem e o homem a segurava pelos cabelos, ajoelhada, mas com firmeza, usando-a como escudo.

Craig partiu para cima deles. Não era uma decisão consciente; quando percebeu, estava de pé, correndo e balançando o AK 47 como um porrete. O shona soltou Sally-Anne, que caiu para trás. Desviou-se do fuzil e atingiu Craig nas costelas com o ombro ao levantar-se. O fuzil voou longe, e engalfinhou-se com ele, tentando desesperadamente recuperar o fôlego. O shona, vendo que uma arma seria inútil no corpo-a-corpo, deixou cair seu rifle e usou os braços.

Craig soube no mesmo instante que o homem era forte demais para ele. Era de enorme envergadura e fora treinado para ter a dureza da rocha. Passou o braço longo pelo pescoço de Craig que, ao invés de resistir, atirou o próprio peso em direção ao oponente, surpreendendo-o e fazendo-os perder o equilíbrio. Ao caírem, deu-lhe um pontapé com a perna mecânica, mas não o acertou.

O shona girou, acertando-lhe um golpe que Craig assimilou bem, e engalfinharam-se, peito a peito, rolando pelo chão, esmagando a vegetação áspera e rasteira, e arquejando. O shona arreganhava a boca como um lobo, tentando morder-lhe o rosto com os dentes brancos e quadrados. Se conseguisse, lhe arrancaria o nariz ou um pedaço da bochecha. Já vira isso acontecer em brigas de cervejaria.

Em vez de recuar a cabeça, bateu-lhe com a testa na boca. Um dos incisivos do negro partiu-se junto à gengiva, enchendo a boca de sangue. Craig recuou para bater de novo, mas o shona desvencilhou-se e conseguiu tirar a faca da cintura. Craig agarrou-o desesperadamente pelo pulso, mal conseguindo evitar o golpe.

Continuaram a engalfinhar-se, e em dado momento o shona conseguiu ficar por cima, com a faca apontada para sua garganta. Craig segurou-lhe o braço com as duas mãos, mas não conseguia detê-lo. A arma aproximava-se mais e mais, e o shona prendeu uma perna entre as de Craig, imobilizando-o.

A faca continuava a descer e, por trás, o rosto do shona, inchado pelas contusões, pingava sangue da boca na cara de Craig, e os olhos esbugalhavam-se, raiados de minúsculas veias.

Craig usou de todas as forças; a faca deteve-se por um instante e tornou a descer, tocando-lhe a garganta. Foi como a picada de uma seringa hipodérmica ao furar a pele. Com uma sensação de horror, sentiu os músculos do shona contraírem-se para a investida final que faria a lâmina de aço atravessar-lhe a laringe e sabia que nada mais podia fazer.

Miraculosamente, a cabeça do shona mudou de forma, distorcendo-se como uma máscara de borracha que desabasse, os miolos jorraram como uma fonte da têmpora e o ruído de um tiro soou nos tímpanos de Craig. As forças abandonaram o corpo do shona, que rolou para o lado e caiu ao solo.

Sentou-se e viu Sally-Anne com a pistola Tokarev nas mãos, o cano ainda estava apontado para cima depois do coice da arma. Devia tê-la encostado à têmpora do shona antes de dispará-la.

- Eu o matei. - Respirava com dificuldade e os olhos estavam cheios de horror.

- Graças a Deus! - arquejou Craig, enxugando com a camisa o talho no pescoço.

- Nunca matei nada antes - sussurrou. - Nem mesmo um coelho ou um peixe... nada.

Deixou cair a pistola e ficou esfregando as mãos, olhando para o corpo do shona. Craig arrastou-se até ela e tomou-a nos braços. Estava tremendo violentamente.

- Tire-me daqui - suplicou. - Por favor, Craig. Estou sentindo o cheiro do sangue, tire-me daqui.

- Sim, sim. - Ajudou-a a levantar-se e começou a enrolar a coberta e fechar as mochilas.

- Por aqui. - Carregando as duas mochilas e o fuzil, levou-a dali em direção oeste.

Haviam caminhado quase três horas e parado para o primeiro gole de água antes que Craig percebesse o terrível esquecimento. As garrafas d'água! Na pressa e no pânico, esquecera de recolher a água dos shona mortos.

Olhou para trás, ansioso. Mesmo que deixasse Sally-Anne ali e voltasse, levaria quatro horas, e as patrulhas da Terceira Brigada estariam certamente a caminho. Sopesou o cantil e verificou que sobrava apenas um quarto, o que mal bastaria para aquele dia, mesmo que parassem para esperar pela noite e a queda de temperatura. Não seria suficiente se continuassem e tinham que fazer isso.

A decisão foi tomada por ele ao ouvir de repente o som de um monomotor vindo do norte. Olhou com amargura o pálido céu do deserto, sentindo-se desamparado como um coelho diante de um avião de reconhecimento - disse, e ficou ouvindo o ruído do motor que decresceu por momentos e tornou a ficar mais forte.

Estão fazendo uma busca em grade.

Enquanto falava, viu o avião aproximar-se. Estava mais perto do que pensava, e voando muito baixo. Forçou Sally-Anne a deitar-se, e colocou a coberta sobre ela, olhando para trás. Era um monomotor e se aproximava rapidamente. Mudou ligeiramente de curso, vindo direto para cima deles. Atirou-se ao lado de Sally-Anne e escondeu-se também debaixo da coberta camuflada.

O motor soou mais forte. O piloto os vira. Craig levantou uma ponta da coberta e espiou.

- É um Piper Lance - disse Sally-Anne baixinho.

Tinha as insígnias da Força Aérea de Zimbábue e, incongruentemente, o piloto era um branco, mas a seu lado havia um negro com a temível boina vermelha e o distintivo prateado. Ambos olharam para baixo com expressão neutra enquanto o Piper fazia uma curva fechada, com uma asa apontando para baixo como uma faca, diretamente para onde estavam. O oficial negro segurava um microfone. As asas do Piper nivelaram-se ao sair da curva, e dirigiu-se para a mesma direção de onde viera. O ruído foi decrescendo e desapareceu no silêncio do deserto.

Craig levantou Sally-Anne.

- Você pode continuar?

Ela fez sinal que sim, afastando a mecha de cabelos da testa suada. Os lábios estavam rachados e, no inferior, havia uma gotícula de sangue como um pequeno rubi.

- Já devemos estar em Botsuana e a estrada da fronteira não pode estar longe. Se pudermos achar uma patrulha de polícia...

A ESTRADA tinha uma única pista, com duas mãos em direção norte e sul, e contornava volta e meia um depósito salino de terreno pouco firme. Era patrulhada regularmente pela polícia de Botsuana para vigiar a caça furtiva e a prevenção de entradas ilegais.

Craig e Sally-Anne chegaram até ela no meio da tarde. Craig já abandonara o fuzil e a munição e reduzira as mochilas ao estritamente essencial. Chegara a pensar por um momento em enterrar o manuscrito para recuperá-lo mais tarde, já que pesava uns três quilos, mas Sally-Anne conseguiu dissuadi-lo.

O cantil estava vazio. Haviam tomado o último gole quente pouco antes de meio-dia. Caminhavam pouco mais de um quilômetro e meio por hora. Craig já não suava mais. Sentia a língua começando a inchar e a garganta cerrada enquanto o calor absorvia toda a sua umidade.

Chegaram à estrada, mas o olhar de Craig estava cravado no horizonte difuso à frente e todo o seu ser concentrado em colocar um pé adiante do outro. Atravessaram-na sem vê-la e continuaram pelo deserto. Não eram os primeiros a deixar para trás a chance de socorro e seguir para a morte pela sede e pelo Sol. Cambalearam por mais duas horas até que Craig parou.

- Já devíamos ter chegado à estrada - sussurrou, e verificou o compasso. - Deve estar errado! O Norte não é para lá. - Estava confuso e em dúvida. - Esta droga deve estar estragada. Estamos muito ao Sul - decidiu, e começou o primeiro círculo desnorteado que fazem as pessoas perdidas e totalmente desorientadas, o cemitério em espiral que precede a morte no deserto.

Uma hora antes do pôr-do-sol, Craig tropeçou em uma trepadeira seca e marrom que crescia no solo cinzento. Tinha um único fruto verde do tamanho de uma laranja. Ajoelhou-se e colheu-a com a mesma reverência que teria para com o diamante Cullinan. Resmungando por entre os lábios rachados que sangravam, cortou-o cuidadosamente com a baioneta. Era morno como um fruto do Sol.

- Melão dos gemsbock, das gazelas do deserto - explicou a Sally-Anne que o olhava com olhos mortiços, sentada, sem compreender.

Usou a ponta da baioneta para esmagar a polpa branca e encostou a metade do fruto nos lábios de Sally-Anne que esforçou-se para engolir o sumo claro, fechando os olhos em êxtase quando espalhou-se sobre a língua inchada.

Com grande cuidado, Craig espremeu um pouco do suco e fê-la beber. Sua garganta doía e contraía-se com o aroma do líquido. Ela parecia reviver diante de seus olhos, e só quando a última gota passou-lhe pelos lábios, compreendeu de repente o que ele fizera.

- E você? - sussurrou.

Ele pegou a casca endurecida e chupou-a.

Desculpe. - Estava muito perturbada pelo próprio egoísmo, mas ele balançou a cabeça.

Refresca logo. A noite não vai demorar.

Ajudou-a a levantar-se e continuaram aos tropeções.

O tempo inverteu-se na mente de Craig. Olhou para o crepúsculo e pensou que fosse a aurora.

Errado. - Jogou o compasso que foi cair por perto. - Errado. caminho errado. - Virou-se e conduziu-a de volta.

Sua cabeça povoou-se de formas e sombras, algumas terrificantes e sem rosto. Reconhecia algumas delas. Ashe Levy passou, cavalgando uma enorme hiena, brandindo o novo manuscrito, com o brilho dos óculos de aro de ouro cegando-o à luz do crepúsculo.

- Não posso fazer uma edição de bolso - tripudiava. - Ninguém o quer, meu rapaz, você está acabado. Craig, o homem de um livro só.

Foi quando reparou que não era o manuscrito, e sim a carta de vinhos do Four Seasons.

- Vamos experimentar o Corton Charlemagne? - torturava-o. - Ou um Clicquot magnum?

- Só os bruxos cavalgam hienas - gritou Craig, sem que lhe saísse um som da garganta. - Sempre soube que era um deles...

Ashe soltou uma risada maliciosa, esporeou a hiena atirando para o ar o manuscrito, e saiu galopando. As folhas brancas flutuaram para o solo como plumas e, quando ajoelhou-se para catá-las, transformaram-se em punhados de terra. Não conseguiu levantar-se e Sally-Anne ajoelhou-se a seu lado, abraçando-o, enquanto a noite descia.

Ao acordar de manhã, não conseguiu despertá-la. Sally-Anne roncava de boca aberta.

De joelhos, abriu um buraco para fazer uma improvisada destilaria solar. O trabalho era lento, apesar do solo macio e friável. Laboriosamente, ainda colheu um punhado da vegetação esparsa. Não parecia haver qualquer vestígio de umidade nas plantas fibrosas quando as picou bem miúdo com a baioneta e colocou no fundo do buraco.

Cortou a parte de cima do cantil de alumínio e colocou-o bem no centro do buraco. Precisou fazer um grande esforço de concentração para executar aquelas tarefas simples. Cobriu tudo com plástico e prendeu as bordas com terra. Colocou cuidadosamente uma bala no centro da cobertura, diretamente acima da cúpula de alumínio.

Arrastou-se para junto de Sally-Anne e sentou-se, protegendo-lhe o rosto do Sol.

- Tudo vai dar certo - disse-lhe. - Vamos encontrar logo a estrada. Estamos perto...

Não percebeu que não lhe saía qualquer som da garganta e que ela não seria capaz, de qualquer maneira, de ouvi-lo.

- Aquele merdinha do Ashe é um mentiroso. Você vai ver, vou terminar o livro. Vou pagar o que devo. Vamos vendê-lo para o cinema... Vou comprar King's Lynn. Tudo vai ficar bem. Não se preocupe, querida.

Esperou até o Sol ficar bem alto, contendo a impaciência, e, ao meio-dia, abriu a destilaria improvisada. O Sol batendo no plástico subira a temperatura dentro do buraco quase ao ponto de ebulição. A evaporação das plantas picadas condensara-se no lado de dentro do plástico e escorrera pela bala e, de lá, para a cuia de alumínio.

Conseguira uns duzentos e cinqüenta gramas. Tomou-a entre as mãos, tremendo tão violentamente que quase a derramou. Tomou um pequeno gole e ficou com a água na boca. Estava quente, mas tinha um gosto delicioso e teve de usar de toda a força de vontade para não engoli-la.

Inclinou-se e colocou a boca sobre os lábios escurecidos e sangrentos de Sally-Anne, injetando o líquido gentilmente entre eles.

- Beba, minha querida. Beba. - Descobriu que estava rindo estupidamente enquanto a via engolir com esforço.

Passou o precioso fluido da própria boca, umas poucas gotas de cada vez, para a dela, que engolia cada vez mais facilmente. Guardou o último gole para si e deixou-o escorregar pela garganta. Subiu-lhe à cabeça como bebida alcoólica e ficou sentado, com um sorriso estúpido nos lábios inchados, enegrecidos e rachados, com os arranhões do rosto cobertos de crostas e os olhos injetados cheios de secreção ressequida.

Refez a destilaria improvisada e deitou-se ao lado de Sally-Anne. Protegeu-lhe o rosto com um pedaço rasgado da camisa e sussurrou:

- Tudo bem. Vamos encontrar socorro logo. Não se preocupe, meu amor...

Mas sabia que era o último dia. Não podia mais mantê-la viva por outro. Seria o Sol ou os homens da Terceira Brigada, mas amanhã estariam mortos.

Ao PÔR-DO-SOL, conseguiu outra meia cuia de água destilada e, depois de beberem, caíram num sono pesado e letárgico nos braços um do outro.

Algo acordou Craig, e por um momento pensou que era o vento na vegetação. Sentou-se com dificuldade e tentou prestar atenção, sem saber se ainda estava com alucinações ou se realmente ouvira aquele ruído. Viu que já estava amanhecendo, e o horizonte era uma nítida linha negra abaixo da cortina de veludo do céu.

Abruptamente, o som ficou mais nítido e o reconheceu: o ruído inconfundível de um motor de quatro cilindros de um Land-Rover. A Terceira Brigada não abandonara a caçada. Continuavam incansáveis, como hienas com o cheiro de sangue nas narinas.

Viu os faróis do outro lado do deserto, pálidos raios que oscilavam enquanto os carros corriam pelo terreno irregular. Tentou pegar o AK 47, mas não o achou. Ashe Levy devia tê-lo roubado e carregado com ele no lombo da hiena, pensou com amargor.

- Nunca confiei naquele filho da mãe.

Olhou desesperançado para as luzes que se aproximavam, onde se via dançar uma figurinha, um homúnculo amarelo. Puck, pensou, fadas. Nunca acreditei nelas. Não diga isso... quando se fala isso, morre uma delas. Não gosto de matar fadas. Eu acredito nelas. Sua mente misturava fantasia com instantes de lucidez.

De repente, reconheceu o homenzinho seminu; era um bosquímano, um pigmeu do deserto. Um rastreador que a Terceira Brigada estava usando para caçá-los. Só um bosquímano teria podido seguir-lhes o rastro a noite toda, olhando a pista à luz dos faróis.

As luzes os iluminaram como um holofote de teatro, e Craig levantou a mão para proteger os olhos. A luz era tão brilhante que os machucava. Na outra, estava com a baioneta escondida nas costas.

- Pego um deles - disse para si mesmo. - Um deles vai comigo.

O Land-Rover parou a pequena distância. O rastreador pigmeu estava parado perto, tagarelando em sua estranha língua. Craig ouviu a porta do carro abrir-se por trás das luzes cegantes e um homem veio em direção a eles. Reconheceu-o instantaneamente: o general Peter Fungabera. Parecia um gigante enquanto avançava para onde estava estendido.

- Obrigado, meu Deus - rezou Craig -, obrigado por tê-lo trazido até aqui antes que eu morresse - e agarrou firme a baioneta. Reuniu as últimas forças, e o general Fungabera curvou-se. Agora, na garganta, pensou e fez um grande esforço. Mas nada aconteceu. Os braços já não respondiam ao comando. Estava liquidado, não havia mais nada a fazer.

- Devo informá-lo de que está preso por ter entrado ilegalmente na República de Botsuana, senhor - disse o general Fungabera, que mudara de voz. Falava em tom gentil, profundo e atencioso, num inglês de sotaque carregado.

Viu que estava usando um uniforme de sargento da polícia de Botsuana. Ele não me engana, pensou, o canalha é cheio de truques.

- O senhor tem sorte - continuou o homem, ajoelhando-se ao seu lado. - Nós descobrimos o ponto em que cruzaram a estrada. - Segurava um cantil que lhe estendeu. - Estamos seguindo-os desde as três horas de ontem.

A água doce e fresca escorreu-lhe pelo queixo. Deixou cair a baioneta e agarrou o cantil com as duas mãos. Queria engolir tudo de uma vez só, queria afogar-se nela. Era tão maravilhoso que os olhos encheram-se de lágrimas.

E, através delas, viu o escudo da polícia de Botsuana na porta aberta do Land-Rover.

- Quem? - Olhava para Peter Fungabera, mas nunca vira aquele rosto antes. Era uma cara larga e de nariz achatado, com uma expressão preocupada, como a de um buldogue amigável.

- Quem? - tornou a perguntar em voz rouca.

- Por favor, não fale, temos que levar o senhor e a moça para o hospital de Francistown rapidamente. Muita gente morre no deserto. Tiveram muita sorte.

- Não é o general Fungabera - sussurrou. - Quem é você?

- Polícia de Botsuana, patrulha de fronteira. Sargento Simon Mafekeng, às suas ordens, senhor.

Quando menino, antes da grande guerra patriótica, o coronel Nikolai Bukharin acompanhava o pai nas caçadas de lobos, perseguindo as alcateias que aterrorizavam a remota aldeia em que viviam nos altos Urais durante os longos e duros meses de inverno. Naquelas expedições nas vastas e desoladas florestas de taiga haviam alimentado nele uma profunda paixão pela caça. Gostava da solidão de lugares selvagens e da alegria primitiva de confrontar todos os sentidos contra um animal perigoso. Visão, audição, tato e o extraordinário sentido do caçador nato que lhe permitia antecipar os desvios e evasões da presa - tudo isso o coronel ainda possuía, apesar de ter sessenta e dois anos. Junto a uma memória para fatos e rostos quase computadorizada, haviam-lhe permitido ser excelente em seu trabalho e o elevara à posição de chefe de seu departamento no Sétimo Comissariado onde caçava o mais perigoso dos animais - o homem.

Quando caçava javalis e ursos nas grandes propriedades reservadas à recreação dos altos oficiais da GRU e da KGB, causava espanto nos companheiros e guarda-caças por troçar dos tiros dados em esconderijos preparados e por ir a pé sozinho para a mata mais densa. A sensação de grande perigo físico satisfazia alguma necessidade profunda nele.

Quando a missão em que se achava atualmente empenhado passara ao seu escritório na sede central da praça Dzerzhinsky, reconhecera-lhe imediatamente a importância e assumira-a pessoalmente. Com muito cuidado, aquele primeiro potencial foi sendo gradualmente realizado, e quando chegara a hora de encontrar-se face a face com o elemento em questão, e no terreno onde manobrariam, escolhera o disfarce que mais lhe agradava.

Os russos, especialmente os de alta hierarquia, eram objetos de suspeitas hostis na nova República do Zimbábue. Durante a chimurenga, a guerra de independência, a Rússia escolhera o partidário errado e dera apoio a Joshua Nkomo do ZIPRA - a facção matabele revolucionária. No que dizia respeito ao governo de Harare, os russos eram os novos inimigos colonialistas, enquanto a China e a Coréia do Norte eram os verdadeiros amigos da revolução.

Por essas razões, o coronel Bukharin entrara em Zimbábue com um passaporte finlandês e um nome falso. Falava essa língua fluentemente, assim como cinco outras, inclusive inglês. Precisava de um disfarce para que pudesse deixar a cidade de Harare, onde cada movimento seu era vigiado, e ir para uma região selvagem e despovoada onde pudesse encontrar-se com a pessoa que era o centro dessa operação sem receio de vigilância.

Apesar de que muitas repúblicas africanas, sob pressão do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, houvessem proibido a caça de grandes animais, o Zimbábue ainda concedia licenças para que caçadores profissionais operassem seus sofisticados safáris nas "áreas de controle de caça", já que captavam moeda estrangeira em quantidade para a abalada economia do país.

O coronel divertia-se em posar como um próspero comerciante de madeira de Helsinki e satisfazer seu amor às caçadas daquela maneira decadente reservada quase exclusivamente aos aristocratas financeiros do sistema capitalista.

Naturalmente, a verba reservada para essa operação não poderia custear tal extravagância. Mas o general Peter Fungabera, o motivo da operação, era um homem rico e ambicioso. Não criara qualquer dificuldade quando Bukharin sugerira que usassem um safári para encobrir o encontro e nem que lhe fosse dada a honra de ser o anfitrião, mesmo que isso lhe custasse mil dólares por dia.

Parado no meio da pequena clareira naquele momento, o coronel olhava para o homem em questão. Havia ferido deliberadamente com um tiro o búfalo que caçavam. Era um excelente atirador com pistola, fuzil e espingarda, e a distância fora de cerca de vinte e cinco metros. Se quisesse, poderia ter acertado bem no centro do olho escuro e brilhante do animal, mas preferira atirar da barriga, a um palmo dos pulmões para não lhe tirar o fôlego, e não afetar os quartos traseiros, tornando mais lento o ataque.

Era um exemplar maravilhoso, com enormes chifres negros. Era um troféu que poucos poderiam igualar e, como fora o primeiro a sangrá-lo, seria seu, não importava quem desse o tiro de misericórdia. Sorriu para Peter Fungabera enquanto servia vodca na tampa de prata de um frasco de bolso.

- Na Zdorovye! - brindou-o, e engoliu a bebida sem pestanejar, tornando a encher a tampinha e oferecendo-a a ele.

Peter vestia um uniforme impecavelmente passado, com o nome preso ao peito e um lenço de seda cáqui ao pescoço, mas estava de cabeça descoberta para que a insígnia não brilhasse à luz do Sol e alertasse a presa.

Aceitou a vodca e olhou para o russo, tão alto quanto ele, mas ainda mais esbelto, e ereto como um homem trinta anos mais jovem, olhos eram de um azul particularmente pálido e cruel. O rosto, cortado de cicatrizes de guerra e lutas, parecia uma paisagem lunar em miniatura. O crânio estava raspado e os vestígios de cabelo que o cobriam eram prateados e luziam ao sol como fibras de vidro.

Peter Fungabera gostava daquele homem. Gostava da aura de poder que emanava dele como se vestisse um manto de imperador, da crueldade inata que irradiava quase como um africano e que compreendia perfeitamente. Gostava de sua tortuosidade, das camadas superpostas de mentiras, verdades e meias verdades que acabavam por ficar indistintas. Sentia-se excitado pela sensação de perigo emanada dele que era quase como um odor. Somos da mesma raça, pensou, ao levantar a tampa de prata e devolver o brinde, tomando a bebida forte de um só gole, respirando cuidadosamente para não demonstrar qualquer dificuldade.

- Bebe como um homem de verdade - admitiu Nikolai Bukharin. - Vamos ver se também sabe caçar como um.

Peter adivinhara corretamente: tanto a vodca como o búfalo eram testes. Encolheu os ombros para demonstrar indiferença, e o russo fez sinal ao caçador profissional que estava a distância respeitosa para que se aproximasse.

Era um branco nascido no Zimbábue, já perto dos quarenta anos, vestido adequadamente para a função com um colete cáqui atravessado sobre o peito por cartucheiras e um chapéu de abas largas. Usava uma barba curta e encaracolada e tinha no rosto uma expressão infeliz, como convinha a um homem que estava prestes a seguir a pista de um búfalo ferido dentro da espessa mata ribeirinha.

- O general Fungabera vai usar o .458 - disse o coronel, e o caçador concordou com ar lúgubre. Como aquele desgraçado conseguira errar um tiro daqueles? Até aquele momento atirara como um campeão. Jesus, aquelas moitas pareciam realmente traiçoeiras. O caçador conteve um estremecimento e estalou os dedos para o carregador de armas número dois para trazer o outro fuzil pesado.

- Espere aqui com os carregadores - disse o russo em tom seco.

- Mas, senhor, não posso deixá-los continuar sozinhos. Perderia a minha licença. Não é possível! - protestou o caçador.

- Já basta - disse o coronel Bukharin.

- Mas, o senhor não compreende...

- Eu já disse, basta! - O russo nunca levantava a voz, mas aqueles olhos pálidos silenciaram o homem mais moço. Descobriu que tinha mais medo dele do que de perder a licença de caça ou do búfalo ferido. Calou-se e foi embora grato.

O russo pegou o .458 da mão do carregador, abriu-o para verificar se estava carregado com balas de ponta macia e estendeu-o a Fungabera, que o segurou, com um ligeiro sorriso, sopesou-o e estendeu-a de volta ao empregado. O coronel levantou uma sobrancelha e sorriu também, um sorriso de zombaria temperado de desdém.

Peter falou autoritariamente com o carregador em shona:

- Eh, he, mambo.

O homem correu e pegou outra arma com os companheiros, trazendo-a de volta e batendo as mãos discretamente para demonstrar respeito.

Peter sopesou a nova arma nas mãos. Era uma lança assegai curta. O cabo era de madeira recoberta com fios de cobre e a lâmina tinha uns sessenta centímetros de comprimento por uns dez de largura. Peter passou-a cuidadosamente nos pêlos da mão para experimentar-lhe o corte e, deliberadamente, tirou a jaqueta, as calças e botas.

Vestido apenas com um short verde-oliva, e segurando a assegai, disse:

- Esta é a maneira africana, coronel. - O russo já não sorria mais. - Mas não espero que um homem de sua idade cace da mesma maneira - desculpou-se cortesmente. - Pode usar o fuzil, se quiser.

O russo concordou, aceitando a troca. Perdera daquela vez, mas queria ver como aquele mujique preto se sairia da fanfarronada, e olhou os rastros. As marcas das patas eram enormes e as gotas de sangue estavam tingidas pelas fezes amareladas dos intestinos rompidos.

- Vou liderar a pista - disse -, e você vigia a aparição dele.

Saíram caminhando em passo descansado, com o russo cinco passos à frente, curvado atentamente sobre os rastros. Peter Fungabera seguia atrás, com a assegai à altura das coxas, espiando de um lado para outro, vigiando as moitas com um olhar treinado e rítmico, não esperando ver o animal todo, mas apenas pequenos sinais, como o brilho do focinho úmido ou a ponta de um chifre.

A vinte passos de distância, penetraram nos arbustos. A vegetação verde-escura parecia uma estufa e a umidade era pesada. O ar cheirava a folhas decompostas que abafavam o ruído dos passos. O silêncio era opressivo e o raspar de um galho espinhento nas botas do russo soou alto. O suor ensopava-lhe a camisa nas costas e brilhava como gotas de orvalho no pescoço. Peter podia ouvir a respiração profunda e difícil do russo; sabia instintivamente que não era medo o que sentia, mas a excitação saturante do caçador.

Peter Fungabera não compartilhava dela. Havia nele uma frieza que substituía a excitação. Fora treinado para isso durante a chimurenga, a guerra de independência. Aquela caçada com a as segai era necessária apenas para impressionar o russo, e com os sentimentos anestesiados pela frieza Fungabera preparava-se. Sentia os músculos retesados e a tensão dos nervos crescer até transformar-se numa flecha pronta a disparar.

Mantendo apenas uma atenção ligeira na mata, que ficava no caminho dos rastros, concentrava-se nos flancos. O animal que caçavam era o mais astuto entre as presas perigosas africanas, exceto, talvez, o leopardo. Mas tinha a força bruta de cem deles. O leão rugia antes de atacar, o elefante só podia ser detido com balas de grosso calibre no peito, mas o búfalo do Cabo avançava em silêncio e havia uma única coisa capaz de deter-lhe o ataque: a morte.

Uma grande mosca azul pousou nos lábios de Fungabera e penetrou-lhe em uma narina, mas estava tão concentrado que não a sentiu ou afugentou.

O russo parou, observando a mudança nos rastros. A marca dos cascos e a poça de sangue sujo de fezes indicavam que o búfalo parara ali, depois da fuga desordenada. Peter Fungabera podia imaginá-lo, parado, maciço e negro, farejando os caçadores, a dor do ferimento espalhando-se nos intestinos e as fezes escorrendo incontrolavelmente. Ficara imóvel, escutando as vozes, e o ódio e a raiva tinham começado a ferver. Ali começava a fúria assassina, com a cabeça abaixada, continuara, sustentado apenas pela raiva.

O russo olhou para trás, para Peter, e não precisaram trocar palavra. Continuaram avançando juntos.

O animal comportava-se instintivamente: tudo o que fizera fora feito vezes sem conta pelos antepassados. À primeira fuga desordenada depois do ferimento seguiu-se a parada para escutar e espiar, a recuperação das forças e a marcha mais pausada, virando-se contra a leve brisa para farejar os caçadores, e a grande cabeça espiando de lado a lado ao começar a busca do ponto de ataque, tudo parte de um padrão ancestral.

O animal atravessou uma clareira estreita, meteu a cabeça pela vegetação lustrosa e verde no lado mais afastado, deixando-a suja de sangue, e continuou ainda por cinqüenta metros, começando em seguida a fazer um círculo de volta. Movia-se com extrema cautela, dando um passo de cada vez por entre as trepadeiras e ramos, até voltar à clareira.

Parou na borda mais afastada da clareira, com o corpo oculto pela vegetação densa, e uma terrificante imobilidade apossou-se dele. Deixou as moscas se banquetearem na ferida aberta sem estremecer ou balançar a cauda. Não moveu as orelhas grandes e arredondadas, mas forçou-as a ficar na escuta. Nem os olhos piscavam enquanto espiava a trilha sangrenta à espera dos caçadores.

O russo penetrou com cautela na clareira, olhando para os ramos sujos de sangue na parte mais afastada e onde se percebia a passagem de um corpo maciço pela floresta que ficava por trás. Começou a avançar com cuidado, seguido por Fungabera, que movia-se como um dançarino, o corpo reluzente de suor e os músculos rijos do peito e dos braços ondulando ao menor movimento.

Viu o olho do búfalo, que rebrilhou como uma moeda nova na luz, e imobilizou-se. Estalou os dedos e o russo ficou imóvel também. Fungabera, sem muita certeza do que via, olhou para o local exato de onde viera o brilho - a uns trinta metros à esquerda, se o animal tivesse dado a volta à clareira.

Piscou os olhos e a imagem ficou subitamente nítida. Não via apenas um olho, mas a curva de um chifre tão imóvel que poderia parecer um galho, e as marcas da bossa na testa; tornou a fixar os olhos - era como uma visão do inferno.

O búfalo atacou. A floresta abriu-se diante de sua fúria, ramos partiram-se, as folhas estremeceram como que atingidas por um furacão e irrompeu na clareira. Vinha meio de lado, uma manobra falsa mas característica, que já enganara muitos caçadores até a súbita arrancada para a frente.

Parecia impossível que um animal tão grande pudesse mover-se com aquela velocidade. Era corpulento e alto, com as costas cheias de lama seca do banhado e de cicatrizes causadas por espinhos e garras de leões.

a saliva da mandíbula aberta e lágrimas escorriam das faces cabeludas. Um homem não conseguiria rodear-lhe o pescoço com os braços ou medir a largura dos chifres com eles estendidos. Das dobras de pele da garganta pendiam pencas de carrapatos como cachos de uva e o cheiro bovino e rançoso empestava a floresta quente.

Avançou, majestoso em sua fúria assassina, e Peter Fungabera foi lhe ao encontro. Passou pelo russo precisamente quando o coronel levantava o fuzil, colocando-se à frente e forçando-o a levantar o cano da arma para cima. Peter movia-se como um espectro da floresta escura, cruzando com o animal no ângulo oposto ao ataque lateral, desequilibrando-o; o búfalo tentou chifrá-lo como faz um lutador de boxe tentando golpear quando se afasta, sem coordenação ou visão; Peter esquivou-se apenas com a parte superior do corpo, deixando que a ponta do chifre quase lhe raspasse as costelas e tornando a esquivar-se quando o animal levantou a cabeça.

Naquele instante, o búfalo ficou desprotegido do queixo ao pescoço e Fungabera colocou toda a força do corpo e o impulso da corrida na lâmina da assegai, que penetrou nele, com um ruído de sucção, engolida pela carne viva; os dedos cerrados em torno do cabo mergulharam atrás da lâmina na ferida, e o sangue jorrou, ensopando-o até os ombros. Soltou a arma e girou rapidamente, afastando-se, enquanto o búfalo corcoveava com a longa lâmina enterrada no peito. Tentou segui-lo, mas parou de súbito, com as patas dianteiras paralisadas, fixando o homem nu com os olhos que estavam ficando mortiços.

Peter Fungabera levantou os dois braços graciosamente diante dele.

- Ah, tu que fazes a terra tremer! - disse em shona. - Ah, tu, trovão dos céus!

O animal deu dois passos vacilantes e algo rompeu-se dentro dele. O sangue jorrou pelas narinas escancaradas, abriu a bocarra e mugiu; brotou-lhe uma hemorragia da garganta numa cascata espumosa e brilhante, encharcando-lhe o peito. Cambaleou, lutando para equilibrar-se.

- Morre, ó filho dos deuses negros! - desafiou-o. - Sente o aÇo de um futuro rei, e morre!

O animal desabou, fazendo voar a terra em torno com o impacto.

Peter Fungabera foi até a enorme cabeça onde o olhar se apagava, ajoelhou-se e, juntando as mãos, recolheu o sangue quente escorria da boca escancarada, bebendo-o como se fosse vinho. O sangue escorria-lhe dos braços e pingava do queixo, e Peter riu um som que fez gelar o sangue nas veias até do frio russo.

- Bebi de teu sangue vivo, ó grande búfalo. Agora, a tua força é minha! - gritou, enquanto o animal estrebuchava no espasmo final da morte.

PETER FUNGABERA tomara um banho de chuveiro e trocara as roupas, vestindo um uniforme de gala, com calças negras debruadas por finas listas laterais de seda vermelha. A jaqueta curta era no mesmo tom vermelho com lapelas de seda negra. A camisa branca estava engomada e usava uma gravata-borboleta e uma dupla fileira de condecorações em miniatura.

Os empregados do acampamento haviam arrumado uma mesa sob os galhos frondosos de uma árvore mhoba-hoba, na borda da campina aberta e gramada, longe do acampamento principal. Haviam colocado nela uma garrafa de uísque Chivas Regai, outra de vodca, um balde de gelo e dois copos de cristal.

O coronel Nikolai Bukharin sentava-se em frente a ele. Vestia uma longa e frouxa camisa de algodão por fora das calças cossacas, com um cinturão por cima, e calçava botas de pelica macia. Inclinou-se para encher os copos e passou um a Peter.

Daquela vez, não houve nenhum exibicionismo. Beberam devagar, contemplando o céu africano ficar todo lilás e dourado. O silêncio em que estavam era o acordo mudo de dois homens que haviam arriscado a vida juntos e se julgado valorosos, um companheiro com quem se podia morrer ou um adversário para se lutar até a morte.

Por fim, o coronel colocou o copo em cima da mesa.

- E então, meu amigo, diga-me o que deseja.

- Quero esta terra - disse Peter com simplicidade.

- Toda ela? - perguntou o coronel.

- Toda ela.

- Não apenas o Zimbábue?

- Não apenas o Zimbábue.

- E nós vamos ajudá-lo a fazer isso?

- Sim.

- E em troca?

- Minha amizade.

Sua amizade até a morte? - sugeriu, sarcástico, o coronel.

Ou só até obter o que deseja e encontrar novos amigos?

Peter sorriu. Falavam a mesma linguagem, compreendiam-se bem. Que sinais palpáveis desta eterna amizade nos daria? - insistiu o russo.

Um pobre e pequeno país como este - respondeu Peter, dando de ombros -, apenas alguns minerais estratégicos: níquel, cromo, titânio, berilo e alguns quilos de ouro.

Serão úteis - concordou sobriamente o russo.

E então, quando me tornar Monomatapa de Zimbábue, meus olhos vão ficar inquietos, naturalmente. ..

- Naturalmente. - O russo observou-lhe os olhos. Não gostava de negros, esse preconceito racista era comum na Rússia; não gostava nem da cor nem do cheiro deles, mas aquele!

- Posso voltá-los para o Sul - disse Fungabera com suavidade, e o coronel Bukharin escondeu a satisfação por trás da expressão melancólica. Aquele era diferente!

- Na direção para onde seus olhos sempre se dirigiram - continuou Peter e o russo poderia ter rido alto.

- E o que verá ao Sul, camarada general?

- Um povo escravizado e pronto para a emancipação.

- E que mais?

- Verei o ouro de Witwatersrand e os campos do Estado Livre, os diamantes de Kimberley, o urânio, a platina, a prata, o cobre, em resumo, um dos maiores tesouros desta terra.

- Sim? - perguntou o russo com prazer. Este é ligeiro, tem a coragem e o cérebro necessários, pensou.

- Verei uma base que dividirá o mundo ocidental, uma base que controle tanto o Atlântico Sul quanto os oceanos índicos, que ficará nas rotas de petróleo entre o golfo Pérsico e a Europa, entre o golfo e as Américas.

O russo levantou a mão.

- Aonde o levarão estas idéias?

- Será meu dever fazer com que esta terra ao Sul seja elevada ao seu verdadeiro lugar na comunidade das nações, com a tutela e a proteção dos maiores campeões pela liberdade, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

O russo concordou, ainda o olhando nos olhos. Sim, esse homem negro enxergava o objetivo por trás de tudo. O Sul era o grande prêmio, mas, para consegui-lo, precisavam estrangulá-lo. Já tinham Moçambique a Leste, a Oeste, Angola era deles e logo a Namíbia seria também. Precisavam apenas do Norte para isolá-lo. E o Norte era o Zimbábue, como o dedo do estrangulador na traquéia, e aquele homem poderia entregá-lo a eles.

O coronel inclinou-se para a frente na cadeira de lona e começou eficientemente a tratar de negócios.

- Oportunidade?

- Caos econômico, guerra intertribal e a queda do governo central. - Peter Fungabera contou-os nos dedos.

- O atual governo o está ajudando muito criando a própria falência econômica - observou o russo -, e você está fazendo um esplêndido trabalho alimentando os ódios tribais.

- Obrigado, camarada.

- Entretanto, os camponeses têm que passar um pouco de fome antes que fiquem maleáveis...

- Estou fazendo pressão no Parlamento para a nacionalização dos ranchos e fazendas de propriedade dos brancos. Sem os fazendeiros brancos, posso lhe prometer uma boa crise - sorriu Fungabera.

- Ouvi dizer que já começou. Parabéns pela aquisição de sua propriedade, King's Lynn. É esse o nome?

- É um homem bem-informado, coronel.

- Dou-me a bastante trabalho para garantir isso. Mas, quando chegar o momento de assumir a direção do Estado, que espécie de homem o povo seguirá?

- Um homem forte - respondeu Peter sem hesitação. - Um cuja implacabilidade tenha sido demonstrada.

- Como a sua, durante o chimurenga, e mais recentemente em Matabeleland.

- Um homem de carisma e presença, e bem conhecido do povo.

- As mulheres cantam louvores em sua honra nas ruas de Harare, não há um único dia em que não apareça na televisão ou que seu nome não esteja nas primeiras páginas dos jornais.

- Um homem que pode contar com a força.

A Terceira Brigada - concordou o russo -, e a bênção da URSS. Contudo - e fez uma pausa significativa -, existem duas festões, camarada general.

- Sim?

A primeira é uma questão desagradável e mercenária para colocada entre homens como nós: dinheiro. Meus superiores tão ficando inquietos. Nossas despesas começaram a exceder consideravelmente os carregamentos de marfim e produtos animais que os mandou... - Levantou a mão novamente para impedir uma interrupção. Era a mão de um velho, cheia de manchas senis e de veias. - Sei que devíamos fazer estas coisas apenas por amor à liberdade e que dinheiro é uma obscenidade capitalista, mas nada é perfeito neste mundo. Em resumo, camarada general, está chegando ao limite do crédito que lhe foi concedido por Moscou.

- Compreendo - concordou Fungabera. - Qual é a segunda questão?

- A tribo matabele. São um povo combativo e difícil. Sei que foi obrigado a fomentar a inimizade, causar dissensão e atritos e lançar sobre o governo atual a desaprovação das potências ocidentais com sua campanha em Matabeleland. Mas o que acontece depois? Como vai controlá-los ao assumir o poder?

- Minha resposta às duas questões é um único nome - respondeu Fungabera.

- E qual é ele?

- Tungata Zebiwe.

- Ah, sim! Tungata Zebiwe. O líder matabele. Você mandou prendê-lo e agora presumo que já tenha sido liquidado.

- Estou mantendo-o em grande segredo e segurança em um dos meus centros de reabilitação perto daqui.

- Explique-se melhor.

- Primeiro, o dinheiro.

- Pelo que sabemos, Zebiwe não é um homem rico - objetou o russo.

- Tem o segredo de uma fortuna que pode facilmente exceder duzentos milhões de dólares americanos.

O russo levantou a sobrancelha em uma expressão de descrença que Peter estava começando a conhecer bem e que o irritava.

- Diamantes - disse.

- A mãe Rússia é um dos maiores produtores do mundo.

O russo fez um gesto depreciativo.

- Não são diamantes industriais ou malformações negras, mas gemas de primeira, pedras grandes, enormes, algumas das mais belas já mineradas no mundo.

- Se for verdade... - O russo ficou pensativo.

- É verdade! Mas não vou continuar a explicação. Não ainda.

- Muito bem. Pelo menos, posso prometer algo aos sangues-sugas do nosso Departamento de Tesouro. E a segunda questão: os matabele. Não pode estar planejando exterminá-los, homens, mulheres e crianças...

Peter Fungabera negou, pesaroso.

- Não, apesar de que esta talvez fosse a melhor solução. A América e a Grã-Bretanha não consentiriam. Não, minha resposta é novamente Tungata Zebiwe. Quando me apoderar do país, ele reaparecerá. Voltará de entre os mortos. A tribo matabele vai ficar louca de alegria e alívio. Vão segui-lo, adorá-lo e eu o farei meu vice-presidente.

- Ele o odeia. Você o destruiu. Se libertá-lo, vai se vingar.

- Não. - Balançou a cabeça. - Vou mandá-lo para vocês. Para suas clínicas especiais para casos difíceis. As Instituições onde um homem mentalmente doente pode ser tratado com drogas e outras técnicas para torná-lo racional e razoável novamente.

Daquela vez, o russo começou a rir e serviu-se de outra vodca, sacudindo-se com a risada. Quando olhou para Peter, havia pela primeira vez respeito nos olhos pálidos.

- À sua saúde, Monomatapa de Zimbábue, que possa reinar mil anos!

Colocou o copo sobre a mesa e virou-se para contemplar a grande pradaria até o distante lençol d'água. Uma manada de zebras aproximara-se para beber e estava nervosa e inquieta, pois os leões costumavam ficar de tocaia à beira d'água. Finalmente, entraram até os joelhos em fileira e começaram a matar a sede em uníssono. Formavam uma frisa superposta de cabeças idênticas como uma infinidade de imagens no espelho até que o sentinela resfolegou, alarmado, e a imagem na água explodiu em formas a todo galope.

- O tratamento de que fala é drástico. - O coronel Bukharin ficou observando a manada de zebras desaparecer na floresta.

Alguns pacientes não sobrevivem a ele. E os que conseguem... - procurou a palavra adequada - ficam alterados.

- Suas mentes são destruídas - disse-lhe Peter.

- Para encurtar, sim - concordou o coronel.

- Preciso do corpo dele, e não de seu cérebro. Preciso de uma marionete, não de um ser humano.

- Podemos providenciar isso. Quando vai enviá-lo para nós?

- Primeiro, os diamantes - retrucou Peter.

- Claro, primeiro os diamantes. Quanto tempo vai levar?

- Não muito - Peter encolheu os ombros.

- Quando estiver preparado para isso, mando-lhe um médico com as medicações adequadas. Podemos tirá-lo do país pela mesma rota do marfim: Air Zimbabué até Dar-es-Salaam e um dos nossos cargueiros de lá a Odessa.

- De acordo.

- Disse que está preso perto daqui? Gostaria de vê-lo.

- Será prudente?

- Por favor, faça-me a vontade! - Vindo do coronel Bukharin era mais uma ordem do que um pedido.

Tungata Zebiwe estava em plena luz crua do meio-dia com o rosto voltado para uma parede caiada de branco que refletia brutalmente os raios do Sol. Estava lá desde antes do amanhecer, quando ainda havia geada no capim crestado da extremidade do campo.

Estava completamente nu, assim como os dois homens que o ladeavam. Estavam tão magros que viam-se todas as costelas em relevo e as vértebras das colunas pareciam contas de rosário nas costas. Tungata tinha os olhos entrecerrados para evitar o reflexo da luz no muro, mas concentrava-se em uma marca na parede para combater o efeito da vertigem que já derrubara mais de uma vez os homens a seu lado. Só as chicotadas dos guardas os forçara a ficarem novamente de pé. Ainda oscilavam e cambaleavam.

- Coragem, meus irmãos - sussurrou Tungata em sindebele. - Não deixem que esses cães shona os vejam derrotados.

Estava determinado a não fraquejar e olhava a marca do muro, feita por uma bala e pintada por cima. Tornavam a caiá-lo depois de cada execução, eram meticulosos a esse respeito.

- Amanzi - disse em voz rouca o homem à direita - Água!

- Não pense nisso - ordenou-lhe Tungata. - Não fale nisso ou vai enlouquecer.

O calor emanava da parede em ondas palpáveis.

- Estou cego - disse o outro homem. - Não vejo mais nada. - A claridade fulgurante cauterizara-lhe os olhos como fazia a neve.

- Não há nada para ver, exceto as caras nojentas destes macacos shona - disse-lhe Tungata. - Agradeça por sua cegueira, amigo.

De repente, por trás deles, ouviram-se ordens bruscas gritadas em shona e o ruído de soldados marchando através da esplanada.

- Estão chegando - sussurrou o matabele cego, e Tungata Zebiwe sentiu-se invadir por uma enorme tristeza.

Sim, finalmente estavam vindo, e dessa vez, para ele.

Diariamente durante as longas semanas de prisão, ouvira a marcha do pelotão de execução atravessando o campo ao meio-dia. Chegara sua vez. Não temia a morte, mas sentia-se triste com ela porque fora incapaz de minorar o terrível sofrimento de seu povo, porque nunca mais veria sua mulher e porque nunca lhe daria o filho que almejara. Triste porque a vida que tanto lhe prometera acabaria antes de dar frutos, e lembrou-se de repente de um dia, há muitos anos atrás, quando contemplara ao lado do avô as plantações de milho ceifadas por uma breve e furiosa tempestade.

- Todo aquele trabalho para nada! - murmurara o avô, e Tungata repetiu-lhe as palavras enquanto mãos rudes o viravam e arrastavam até os postes de madeira colocados diante do muro.

Amarraram-no lá e abriu os olhos. O alívio do clarão cegante era anulado pelo pelotão de execução que o encarava.

Trouxeram os dois outros matabele; o cego caiu de joelhos, cheio de terror, e seus intestinos esvaziaram-se involuntariamente. Os guardas riram e soltaram exclamações de nojo.

- Levante-se! - ordenou-lhe Tungata, duramente. - Morra de pé como um verdadeiro filho de Mashobane!

O homem conseguiu levantar-se com grande esforço.

- Caminhe até o poste - ordenou Tungata. - Fica mais para a sua esquerda.

O homem foi tateando e o encontrou, sendo amarrado lá.

Havia oito homens no pelotão de fuzilamento e o comandante era um capitão da Terceira Brigada. Inspecionou lentamente os executores, examinando os fuzis um a um. Fazia pequenas brincadeiras em shona que Tungata não conseguia entender e os homens soltavam risadas como se tivessem tomado álcool ou drogas. Já tinham feito essa espécie de trabalho antes e gostavam dele. Conhecera muitos assim durante a guerra - o sangue e a violência tinham-se tornado um vício.

O capitão voltou ao comando e puxou do bolso um papel datilografado já bastante surrado, e leu-o, tropeçando nas palavras, pronunciando-as mal como um garoto de escola em um inglês incompreensível.

- Foram condenados como inimigos do Estado e do povo, e declarados incorrigíveis. Sua sentença de morte foi aprovada pelo vice-presidente da República do Zimbabué.

Tungata Zebiwe levantou o queixo e começou a cantar. A voz alteou-se, profunda e bela, dominando a voz fraca do capitão shona.

As Toupeiras estão embaixo da terra, listão mortas?, perguntaram as filhas de Mashobane.

Cantava a antiga canção guerreira dos matabele e, ao final do primeiro verso, rosnou para os dois homens a seu lado:

- Cantem! Deixem que os chacais shona ouçam o leão matabele rugir.

E cantaram juntos:

Como a negra serpente embaixo de uma pedra, Nos alimentamos da morte com uma presa prateada.

Diante deles, o capitão deu uma ordem, e, como um só homem, o esquadrão avançou com o pé direito e levantou os fuzis. Tungata continuou a cantar, encarou-os em desafio e os homens ao lado, estimulados por sua coragem, começaram a cantar com entusiasmo. A uma segunda ordem, fizeram pontaria, mirando os três matabele nus.

Naquele momento, ouviu-se o som de outras vozes que se juntavam ao cântico de guerra, vindas das cabanas do outro lado do terreno. Centenas de prisioneiros cantavam com eles, repartindo o instante da morte e dando-lhes força e consolação.

O capitão shona levantou a mão direita e, nos últimos momentos de vida, a tristeza de Tungata desapareceu, dando lugar a um orgulho avassalador.

São homens de verdade, pensou, com ou sem mim, resistirão ao tirano.

O capitão abaixou a mão num gesto brusco e gritou o comando:

- Fogo!

Os disparos foram simultâneos. O pelotão oscilou com o coice forte dos fuzis. O fragor fez com que Tungata se encolhesse.

Ouviu o ruído terrível de balas penetrando em carne humana, e viu pelo canto dos olhos o safanão que levaram os dois homens como que atingidos pelos golpes de um martelo invisível para depois tombarem. Pararam abruptamente de cantar, no entanto, a canção ainda lhe brotava dos lábios e ele mantinha-se ereto.

Os soldados abaixaram as armas, rindo e cutucando-se como se tudo fosse uma grande piada. Nas cabanas, a canção de guerra fora trocada por lamentos de morte.

Virou a cabeça e encarou os homens ao lado. Haviam repartido a descarga e os torsos estavam crivados de balas. As moscas já esvoaçavam sobre as feridas.

De repente, os joelhos de Tungata afrouxaram e sentiu que o esfíncter se descontraía. Lutou com o corpo, odiando a própria fraqueza, e gradualmente conseguiu controlar-se.

O capitão veio até ele e disse-lhe em inglês:

- Boa piada, hein? Uma piada e tanto! - E sorriu, satisfeito. Voltou-se em seguida e gritou: - Tragam água, rápido!

Um dos homens trouxe uma vasilha de água clara e o capitão a pegou. Tungata podia sentir o cheiro dela. Diziam que os pigmeus bosquímanos podem senti-la a muitos quilómetros, mas até aquele instante, nunca acreditara nisso. Tinha o cheiro doce de um melão recém-cortado e sentiu um espasmo na garganta, sem conseguir tirar os olhos da vasilha.

O capitão levantou-a com as duas mãos, tomou um gole, e gargarejou alto. Em seguida cuspiu, sorrindo para Tungata. Lenta e deliberadamente, entornou a água no chão a seus pés. Cada gota era como um pedacinho de gelo e as células de seu corpo as desejavam com loucura. O capitão virou a vasilha de cabeça para baixo, deixando as últimas gotas caírem.

- Essa foi da "pesada", rapaz! - repetiu, e virou-se para gritar uma ordem aos soldados que partiram, deixando Tungata a sós com os mortos e as moscas.

Vieram buscá-lo ao pôr-do-sol. Ao cortarem as cordas dos pulsos, gemeu sem querer com a torrente de sangue fresco começando a circular nas mãos inchadas e caiu de joelhos. Já não podia se suster nas pernas e tiveram que carregá-lo até a cabana.

A peça era desnuda, exceto pela bacia que servia para colher os excrementos e duas vasilhas no centro do assoalho de terra batida. Uma delas continha um pouco d'água e a outra, um bolinho de milho ressequido e esbranquiçado, salgado demais, e que o faria pagar no dia seguinte com uma sede abrasadora, mas tinha que comer alguma coisa.

Bebeu metade da água, guardando o resto para a manhã seguinte, e estendeu-se no solo nu. O telhado de zinco reverberava o calor acumulado durante o dia, mas ainda tremeria de frio durante a madrugada. O corpo todo doía e a cabeça latejava por causa do sol e da claridade ofuscante que suportara até fazê-lo crer que rebentaria como um fruto amadurecido demais.

Fora, na obscuridade por trás da cerca, os bandos de hienas disputavam o banquete que tinham lhe oferecido. Os gritos e grunhidos eram uma balbúrdia alucinada de avidez, pontuada pelo barulho dos ossos esmagados pelas fortes mandíbulas.

Apesar disso, Tungata dormia, e acordou com o som de um tropel e ordens gritadas ao amanhecer. Tomou rapidamente o gole d'água que restava e agachou-se na bacia. O corpo quase lhe pregara uma peça no dia anterior e não ia deixar que isso acontecesse de novo.

A porta foi aberta bruscamente.

- Para fora, cão matabele! Fora deste canil fedorento! Levaram-no de volta ao muro, onde já havia outros três matabele nus. Notou, sem qualquer relevância, que haviam tornado a caiar o muro. Eram muito conscienciosos a esse respeito. Ficou com o rosto a meio metro da superfície imaculadamente branca e preparou-se para a jornada que o aguardava.

Executaram os três prisioneiros ao meio-dia e, dessa vez, Tungata não conseguiu liderá-los no canto. Apesar de tentar, a garganta ficou cerrada. À tarde, a visão fragmentava-se em momentos de escuridão e relâmpagos de luz cegante, mas, toda vez que as pernas cediam e caía para a frente, a dor que sentia para ficar ereto o fazia reviver.

A sede era inominável. Os momentos de escuridão começaram a ficar mais profundos e a durar mais tempo e a dor já não conseguia revivê-lo completamente. Em um desses momentos, ouviu uma voz.

- Meu caro amigo, isto é terrivelmente desagradável para mim.

A voz de Peter Fungabera dissipou a escuridão e deu-lhe novas forças. Lutou para ficar ereto, levantou o rosto e esforçou-se para clarear a visão. Ao vê-lo, o ódio o recompôs, dando-lhe nova vida.

Fungabera estava de uniforme de campanha e boina, com o bastão debaixo do braço. Ao lado, estava um velho branco, alto e magro, que nunca vira antes. Tinha o crânio recém-raspado, uma pele cheia de cicatrizes e os olhos, de um azul pálido e estranho, que achou repulsivos e enregelantes como os de uma cobra.

- Lamento que não esteja vendo o camarada ministro Zebiwe em seus melhores dias - disse Peter ao branco. - Perdeu muito peso, mas não aqui... - E com a ponta do bastão levantou o grande e escuro órgão genital de Tungata. - Já viu alguma coisa assim antes? - perguntou, balançando-o.

Amarrado ao poste, Tungata não podia reagir. Era a última das degradações, aquela manipulação arrogante e o exame de suas partes íntimas.

- O bastante para três homens comuns - avaliou Peter com admiração fingida, e Tungata e olhou com ódio, sem dizer palavra.

O russo fez um gesto impaciente e Peter concordou:

- Está com a razão. Estamos perdendo tempo.

Olhou o relógio e voltou-se para o capitão, que estava perto, aguardando junto com o pelotão.

- Leve o prisioneiro para o forte.

Os aposentos de Fungabera na casamata do rochedo central eram espartanos, mas o chão sujo fora recentemente varrido e respingado com água. O russo e ele sentavam-se na mesa de cavalete que servia de escrivaninha e do outro lado havia um banco de madeira.

Os guardas levaram Tungata para lá, mas ele desvencilhou-se e sentou-se sem ajuda, ereto e olhando silenciosamente para os dois homens. Peter disse algo em shona para o capitão e trouxeram um cobertor barato que foi colocado nos ombros de Tungata. Deu outra ordem, e o capitão trouxe uma bandeja com uma garrafa de vodca, uma de uísque, dois copos, um balde de gelo e uma jarra d'água.

Tungata não olhou para a água. Teve de usar de todo o autocontrole, mas continuou a olhar para Peter Fungabera.

- Bem, isso é muito mais civilizado - disse Peter. - O camarada ministro Zebiwe não fala shona, apenas o primitivo dialeto matabele, por isso usaremos a língua comum a todos nós: o inglês.

Serviu a vodca e o uísque, e quando o gelo tilintou nos copos Tungata crispou-se, mas continuou a olhá-lo.

- Isto é um sumário - explicou Peter. - Nosso convidado é um estudioso da história africana. - E indicou o russo. - Leu e lembra-se de tudo o que jamais foi escrito sobre esta terra. Enquanto que você, meu caro Tungata, descende da casa dos Kumalo, os velhos chefes ladrões dos matabele, que durante cem anos guerrearam e aterrorizaram os verdadeiros donos da terra, o povo mashona. Portanto, ambos já devem conhecer algo sobre o que vou relatar.. Se isso acontecer, peço sua indulgência. - Tomou um gole de uísque e nenhum dos outros dois moveu-se ou falou. - É necessário voltar cento e cinquenta anos atrás - disse Peter -, quando um jovem comandante do rei zulu Chaka, e favorito dele, não lhe entregou os despojos de guerra. O nome dele era Mzilikazi, filho de Mashobane, da subtribo zulu dos kumalo e tornou-se o primeiro matabele, De passagem, é interessante notar que abrira um precedente para a tribo que ia fundar. Em primeiro lugar, era um mestre da rapina e da pilhagem, um matador famoso, Era, também, um ladrão, já que não entregou a Chaka sua parte dos despojos. E Mzilizaki era um covarde, porque, quando o rei ordenou que enfrentasse sua punição, fugiu. - Peter sorriu para Tungata. - Assassino, ladrão e covarde. Este era Mzilikazi, o pai dos matabele, e esta descrição é adequada a todos os membros da tribo até hoje. Assassino! Ladrão! Covarde! - repetiu os insultos com gosto e Tungata observava-o com olhos brilhantes.

- Então, este modelo de virtudes viris, levando com ele seu regimento de guerreiros zulu renegados, fugiu para o Norte. Atacou as tribos mais fracas pelo caminho, levando seus rebanhos e mulheres. Esta foi a umfecane, a grande matança. Dizem que um milhão de pessoas indefesas morreu pelas lanças assegai dos matabele. E Mzilikazi certamente deixou atrás de si uma terra devastada, de crânios escorchados e aldeias queimadas. Abriu caminho com o fogo da destruição através do continente até encontrar, vindo do Sudoeste, um inimigo mais sanguinário e mais cheio de cobiça do que ele, o homem branco, os boers. Mataram os guerreiros gabolas de Mzili kazi como cães raivosos e ele, o covarde, fugiu de novo, e de novo para o Norte.

Peter interrompeu a narrativa para mexer nos cubos de gelo do copo que emitiram um tilintar suave. Tungata piscou, mas não desviou o olhar de Fungabera.

- O audaz Mzilikazi atravessou o rio Limpopo e descobriu uma terra agradável com boas pastagens e águas claras, habitada por um povo pacífico de pastores, descendentes de uma raça que construíra grandes cidades de pedra, um povo bonito a quem Mzilikazi chamou com desprezo de "comedores de coisas imundas" e a quem se referia como o "seu gado". Tratava-os assim, matando-os por esporte ou fazendo filhos nas mulheres para dar escravos aos seus guerreiros indolentes. As jovens de Mashona, quando ficavam núbeis, eram usadas para o prazer e serviam de matrizes para prover mais guerreiros aos impis, aos batalhões assassinos. Mas já sabem disso.

- Os fatos em geral, sim - concordou o velho branco. - Mas não sua interpretação deles, o que prova que a História é uma mera propaganda escrita pelos vencedores.

- Nunca tinha ouvido esta colocação antes - riu Peter, - E no entanto, é verdadeira. Agora, nós, os shona, somos os derradeiros vencedores, portanto, é nosso direito reescrevê-la.

- Continue - disse o branco. - Estou achando muito instrutivo.

- Muito bem. Em 1868, como os brancos costumam medir o tempo, Mzilikazi, esse grande e gordo assassino debochado e doente, morreu. É divertido lembrar que seus seguidores mantiveram seu corpo durante cinquenta e seis dias em pleno calor de Matabeleland antes de enterrá-lo, o que fez com que fedesse tanto na morte como fedia em vida, outro tocante costume matabele. - Esperou pelo protesto de Tungata, que não veio.

- Foi sucedido por um de seus filhos, Lobengula, "O que é rápido como o vento", tão gordo, sanguinário e dissimulado como o pai. Mas, quase à mesma época em que assumiu a chefia dos matabele, foram plantadas duas sementes que logo cresceriam, transformando-se em robustas trepadeiras que iriam sufocar e, finalmente, provocar a queda do touro gordo de Kumalo...

Fez uma pausa dramática, como um consumado contador de histórias, e ergueu um dedo.

- Primeiro, bem ao Sul de seus domínios devastados, os brancos acharam, num rochedo desolado no campo, um pequeno seixo cintilante; segundo, um jovem branco de saúde precária tomou um navio em uma ilha cinzenta bem ao Norte, à procura de um bom clima para os pulmões fracos. O rochedo foi logo escavado pelas formigas brancas e tornou-se um buraco de quase dois quilómetros de comprimento por cento e vinte metros de profundidade. Os brancos o chamaram de Kimberley em homenagem ao secretário do Exterior britânico que fechara os olhos ao roubo praticado contra as tribos locais. O jovem branco chamava-se Cecil John Rhodes e provou ser ainda mais dissimulado, esperto e sem princípios do que qualquer rei matabele. Simplesmente, liquidou com os outros brancos que tinham descoberto o rochedo de pedras brilhantes. Intimidou, subornou, roubou e bajulou até ficar dono de tudo, e tornou-se o homem mais rico do mundo. Entretanto, a extração dessas pedras exigia um enorme esforço físico feito por dezenas de milhares de homens. E sempre que há trabalho duro a ser feito na África, onde o branco vai buscá-lo?

Peter riu e deixou a pergunta sem resposta.

- Cecil Rhodes oferecia comida simples, uma arma barata e umas poucas moedas por três anos da vida de um negro que, ignorante e ingénuo, aceitava esse salário e fazia do patrão mais que um bilionário. Entre os negros que vieram para Kimberley estavam os jovens amadoda matabele mandados por Lobengula. Já disse que ele era um ladrão? As ordens que deu era para roubarem as pedras brilhantes e as trazerem para ele. Dezenas de milhares fizeram a longa jornada para o Sul até as escavações de diamantes e os trouxeram de volta. Os que pegavam eram os maiores e mais brilhantes, os que apareciam mais claramente na lavagem e no processamento. Quantos foram? Um único matabele apanhado pela polícia branca tinha engolido 348 quilates, valendo na época três mil libras; digamos, umas trezentas mil, atualmente. Outro, dera um corte na coxa e colocara na própria carne um único diamante de 200 quilates. - Peter deu de ombros. - Quem pode dizer qual seria seu valor atual? Talvez dois milhões de libras.

O branco, que estivera distante e até desinteressado durante a primeira parte do relato, estava naquele momento atento e olhando fixamente para Fungabera.

- Esses foram uns dos poucos capturados pela polícia, mas houve milhares e milhares deles que nunca foram apanhados. Lembrem-se, nos primeiros tempos das escavações, quase não havia controle sobre os trabalhadores negros que iam e vinham como queriam. Alguns ficavam uma semana e desapareciam, outros trabalhavam os três anos completos do contrato antes de partir, mas as pedras brilhantes iam também: nos cabelos, nas solas das botas novas, nas bocas, estômagos, enfiadas nos ânus ou nas vaginas das mulheres. Milhares e milhares de quilates.

Tomou mais um gole de uísque antes de prosseguir:

- Claro que não poderia durar. Rhodes introduziu o sistema de acampamentos fechados onde os trabalhadores ficavam confinados e cercados de arame farpado pelos três anos de contrato. Antes de partir, eram despidos e colocados de quarentena por dez dias, durante os quais as cabeças e as partes genitais eram raspadas e os corpos minuciosamente examinados por médicos brancos, os orifícios cuidadosamente revistados assim como as cicatrizes recentes que, se achassem necessário, eram reabertas a bisturi. Davam-lhes doses maciças de óleo de rícino e colocavam telas com malhas finas nas latrinas para que os dejetos pudessem ser lavados e processados como se fossem a mais fina das terras. Mas os matabele eram ladrões engenhosos e ainda assim achavam meios para sair com os diamantes dos acampamentos. O rio fora reduzido a um filete, que mesmo assim ia para o Norte, para Lobengula.

- Existe alguma cifra relativa a esses diamantes? - perguntou o russo.

- Só podemos fazer uma estimativa. Houve um matabele chamado Bazo, o "Machado", que saiu de Kimberley com um cinturão carregado de diamantes. Você já ouviu falar em Bazo, filho de Gandang, caro Tungata. Era o seu trisavô. Tornou-se um conhecido induna, um conselheiro tribal matabele, e matou centenas de mashona indefesos durante suas depredações. Diz a lenda que o cinturão que colocou diante de Lobengula pesava o equivalente a dez ovos de avestruz. Como um único destes ovos tem a capacidade de vinte e quatro dos de galinha, e mesmo descontando os exageros dessa lenda, chegamos à quantia de cinco milhões de libras esterlinas na atual moeda inflacionária. Outra fonte diz que Lobengula tinha cinco potes cheios de diamantes de primeira grandeza, o que significa cinco galões ou vinte litros de diamantes, o bastante para abalar o monopólio da organização central de vendas da De Beers. E outra história ainda fala do khomsibile tribal que Lobengula costumava organizar para os conselheiros tribais. Khomsibile é uma palavra sindebele que significa uma exposição ou uma exibição - explicou Peter ao branco, e continuou: - Na privacidade da grande cabana, o rei ficava nu e as esposas untavam-lhe o corpo inchado com gordura de boi. Em seguida, grudavam os diamantes nela, até que o corpo todo ficasse coberto por um mosaico de pedras preciosas, uma escultura viva recoberta por um milhão de libras em diamantes. Tomou fôlego e continuou:

- Essa é, senhores, a resposta à pergunta. Lobengula, provavelmente, teve mais diamantes do que jamais foi estocado em um único lugar ao mesmo tempo, a não ser nos cofres da organização central de vendas da De Beers em Londres. Enquanto isso, Rhodes, o homem mais rico do mundo, estava em Kimberley, obcecado pela ideia de um império, contemplando a região norte e sonhando. Tal era a força dessa obsessão que começou a se referir ao "meu Norte". Por fim, o tomou como fizera com as escavações de diamantes de Kimberley, pouco a pouco. Enviou representantes para negociar com Lobengula uma concessão para a exploração dos minerais em seu território, que incluía a terra dos mashona. Obteve da rainha branca da Inglaterra a aprovação para formar uma Companhia Real de CartasPatentes e mandou, em seguida, um exército particular de homens duros e implacáveis para ocupar essas concessões. Lobengula não esperara por nada semelhante. Alguns homens cavando uns poucos buracos sim, mas não um exército de aventureiros brutais. Primeiro, protestou em vão. Os brancos o pressionaram cada vez mais até forçá-lo a cometer um erro fatal de julgamento. Lobengula, achando que estava com a vida ameaçada, convocou seus guerreiros para uma demonstração de força.

Sorriu para Tungata, antes de prosseguir.

- Esta era a provocação que Rhodes e seus asseclas esperavam. Caíram em cima de Lobengula numa campanha selvagem e desapiedada. Metralharam seus famosos impis e destruíram a nação matabele. Foram, então, até o kraal, a aldeia cercada de Lobengula em GuBulawayo, mas aquele ladrão covarde já fugira para o Norte, levando as esposas, os rebanhos, os guerreiros sobreviventes e os diamantes. Uma pequena força de brancos o perseguiu em parte do caminho e acabou caindo numa emboscada matabele da qual não escapou ninguém. Mais homens brancos o teriam perseguido, mas as chuvas chegaram e transformaram os campos em um lodaçal e os rios em torrentes. E assim, Lobengula escapou com o tesouro. Vagou no rumo norte sem ter para onde ir, até que a vontade de continuar o abandonou. Em um lugar selvagem e solitário, chamou o meio-irmão Gandang e confiou-lhe o encargo da nação; covarde até o fim, ordenou ao seu feiticeiro que preparasse um veneno e o tomou. Gandang colocou o corpo em uma gruta e, em torno, todas as suas possessões: as lanças assegai, as plumas e peles distintivas de seu cargo, a esteira onde dormia e a banqueta cerimonial, armas de fogo, facas, os barris de cerveja onde guardava os diamantes. O cadáver foi envolto em uma pele de leopardo e colocado sentado, tendo aos pés os cinco barris de vinte litros com os diamantes e a entrada da caverna foi cuidadosamente selada e camuflada. Gandang liderou a nação matabele de volta para tornarem-se os escravos de Rhodes e de sua Companhia Real de Cartas-Patentes.

- Em que época isso ocorreu? - atalhou novamente o russo.

- Na estação das chuvas de 1894. Não há tanto tempo assim, apenas noventa anos atrás. E muito perto de onde estamos. Provavelmente num raio de quarenta quilómetros. Lobengula viajou diretamente para o Norte saindo de GuBulawayo e quase chegara ao rio Zambeze antes de perder a esperança e suicidar-se. Você gostaria de saber se algum homem vivo sabe a localização exata do tesouro? - dirigiu-se ao branco. - A resposta é sim! - Fungabera interrompeu-se de novo e exclamou: - Ora, perdoe-me, caro Tungata, não lhe ofereci nada para beber. - Pediu outro copo, encheu-o de água e gelo e levou-o até ele com as próprias mãos.

Tungata segurou-o e bebeu, controladamente, um gole de cada vez.

- Onde é que eu estava? - Fungabera voltou a sentar-se.

- Estava nos falando da caverna. - O homem branco de olhos pálidos não pôde resistir.

- Ah, sim, naturalmente. Bem, parece que, antes de morrer, encarregou o meio-irmão, Gandang, da guarda dos diamantes. Dizem que falou: "Dia virá em que meu povo vai precisar deles. Você, seu filho e os filhos de seus filhos guardarão o tesouro até que esse dia chegue". E assim, o segredo foi transmitido na família Kumalo, a chamada família real matabele. Quando o filho escolhido atingia a puberdade, era levado numa peregrinação pelo pai ou avô.

Tungata estava tão enfraquecido, que sentia-se febril. A água gelada no estômago vazio pareceu drogá-lo e a mente começou a flutuar, confundindo realidade e fantasia, e a lembrança da própria peregrinação ao túmulo de Lobengula era tão nítida que a revivia ao escutar Fungabera.

Fora durante o primeiro ano em que cursara o preparatório na Universidade de Rodésia. Tinha ido passar as férias com o avô, Gideon Kumalo, diretor-assistente da Escola da Missão Khami, perto da cidade de Bulawayo.

- Tenho um presente formidável para você - falou-lhe o velho, sorrindo por trás das lentes espessas dos óculos. Restava-lhe ainda um pouco de visão, se bem que nos anos seguintes a perderia completamente. - Vamos fazer uma jornada juntos, Vundla. - Era o apelido carinhoso que lhe dera o velho, a lebre, o esperto animalzinho de que tanto gostavam os africanos. Os escravos levaram para a América sua lenda sob a forma do "Brer Rabbit".

Tomaram um ônibus em direção norte, mudando de condução uma meia dúzia de vezes em vendas isoladas ou cruzamentos remotos, esperando às vezes quarenta e oito horas numa parada, quando havia atraso, o que, no entanto, não os incomodava. Transformaram aquilo em um piquenique, sentados ao pé de uma fogueira à noite, conversando.

Que histórias maravilhosas o velho avô Gideon sabia contar. Fábulas, lendas, histórias tribais, e eram essas as que mais o fascinavam. Podia ouvi-lo repeti-las cinquenta vezes sem se cansar: o êxodo de Mzilikazi de Zululand, o umfecane, a guerra contra os hoers e a travessia do rio Limpopo. Sabia de cor os nomes dos gloriosos batalhões impis e dos homens que os haviam comandado, as campanhas em que se engajaram e as honras de batalha conquistadas.

E lembrava-se especialmente da história das "Toupeiras que escavam sob a montanha", o batalhão fundado e comandado pelo trisavô, Bazo, o "Machado". Aprendeu as canções guerreiras em louvor a esses animais, e sonhava com um mundo perfeito em que os comandaria um dia, com a faixa cerimonial de couro de toupeira na testa e os adornos de penas.

E assim, o velho de barbas brancas e vista fraca e o adolescente viajaram por cinco dias tranquilos e cheios de companheirismo, até que, a pedido do velho, o ônibus desconjuntado os deixou em uma trilha poeirenta e suja da floresta.

- Guarde bem este lugar, Vundla - disse Gideon. - Aqui está o riacho com a queda d'água e a rocha em forma de leão adormecido. Este é o ponto de partida.

Continuaram em direção norte por uma sucessão de marcos que o velho recitava em forma de poema. Tungata descobriu que ainda o podia recitar sem hesitação:

O começo é o leão adormecido, siga seu olhar até o lugar onde cruzam os elefantes...

Foram mais três dias de viagem com o passo lento de Gideon até chegarem à colina íngreme que Tungata o ajudara a escalar, carregando-o nos piores trechos, e onde, no alto, finalmente estavam diante do túmulo de Lobengula.

Tungata lembrava-se de ter ajoelhado, chupando o sangue do corte que fizera no pulso e cuspindo-o nas pedras que bloqueavam a entrada, repetindo o terrível juramento de segredo. Naturalmente, nem o velho nem o juramento mencionavam diamantes ou tesouro. Tungata jurara apenas guardar o segredo do túmulo, passando-o ao filho escolhido até o dia em que "Os filhos de Mashobane gritem por socorro e as pedras se abram para libertar o espírito de Lobengula que avançará como o fogo - o fogo de Lobengula!"

Depois da cerimónia, o velho deitara-se à sombra da figueira que crescia ao lado da entrada e, exausto pela longa jornada, dormira até anoitecer. Tungata ficara acordado, examinando a tumba e a área ao redor, e descobriu sinais que o levaram a uma conclusão que não gostaria de contar ao avô, nem naquele momento, nem na volta para casa. Não quisera alarmar ou perturbar Gideon, amava-o muito e queria protegê-lo.

A voz de Fungabera interrompeu subitamente a divagação, obrigando-o a voltar à realidade.

- De fato, temos o privilégio de ter entre nós a presença, neste momento, de um membro ilustre do clã Kumalo, atual guardião do túmulo do velho larápio, o honrado camarada ministro Tungata Zebiwe.

Os olhos pálidos e cruéis voltaram-se para ele e Tungata ficou ereto; tentou falar e verificou que a pequena quantidade de água que ingerira aplacara-lhe a garganta. A voz saiu profunda, compassada e apenas ligeiramente rouca.

- Está enganado, Fungabera. - Transformou o nome em um insulto, mas o sorriso de Peter continuou inalterado. - Nada sei sobre esta tolice que inventou, e mesmo que soubesse... - Tungata não terminou a frase.

- Vai descobrir que minha paciência é infinita - prometeu Peter. - Os diamantes estão aqui há noventa anos e mais algumas semanas não vão fazer diferença. Trouxe um médico para supervisionar seu tratamento. Vamos ver quanto pode aguentar antes que sua coragem matabele fraqueje. Por outro lado, pode acabar com todo este desagradável episódio. Pode levar-nos ao local do túmulo de Lobengula e, logo que o fizer, farei com que tome um avião para o país que escolher... - Peter fez uma pausa antes de acrescentar - e com você irá a jovem que tão galantemente o defendeu no tribunal, Sarah Nyoni.

Naquele momento, houve um breve lampejo de emoção na máscara desdenhosa de Tungata.

- Ah, sim. Nós a temos em lugar seguro.

- Sua mentira é transparente. Se a tivesse nas mãos, já a teria usado.

Tungata forçou-se a acreditar que Sarah o obedecera. Compreendera perfeitamente o sinal que lhe fizera no tribunal enquanto o levavam. "Fuja! Esconda-se! Você está em perigo!", ordenara-lhe e ela concordara. Tinha de acreditar que estava a salvo.

- É o que vamos ver - prometeu Fungabera.

- Não que tenha alguma importância. - Tungata tinha de protegê-la, agora que estava claro que os shona a caçavam. - Não passa de uma mulher, façam o que quiserem com ela. Isso nada significa para mim.

- Capitão! - Fungabera levantou a voz, e o comandante logo acorreu. - Levem o prisioneiro de volta à cela. O médico vai conduzir e supervisionar o tratamento a ser dado. Compreendeu?

Quando ficaram a sós, o coronel Bukharin disse em voz calma:

- Não vai ser fácil. É um homem de grande força física e algo mais além disso. Alguns homens simplesmente não se deixam dobrar, nem mesmo pela mais extrema coerção.

- Pode levar algum tempo, mas no final...

- Não tenho tanta certeza assim - disse Bukharin, lentamente. - Conseguiu realmente capturar esta mulher que mencionou, esta tal Sarah Nyoni?

- Ainda não. - E Peter hesitou. - Ela desapareceu, mas é apenas questão de tempo. Não pode esconder-se para sempre.

- Tempo - repetiu o coronel. - É, há um tempo para tudo, mas o seu está se esgotando. Isso tem de ser feito logo ou não haverá mais chances.

- É uma questão de dias, e não de semanas - prometeu Peter, mas a voz falseou-lhe e Bukharin, o consumado caçador de homens, percebeu.

- Este Zebiwe é um homem duro. Não acho que teríamos sucesso com o tratamento em nossa clínica. E não gosto desta história de tesouro de diamantes. Soa como história em quadrinhos para garotos. E também não gosto de que tenha deixado escapar esta mulher matabele. Tudo isso está começando a me deprimir.

- Está sendo excessivamente pessimista. Vai dar tudo certo. Preciso apenas de um pouco de tempo para prová-lo.

- Já sabe que não posso continuar aqui por muito tempo, tenho que regressar a Moscou. E o que devo dizer-lhes é que está caçando um tesouro? - Bukharin levantou as mãos para o céu. - Vão achar que estou ficando caduco.

- Tudo o que peço é um mês - disse Fungabera. - Preciso de mais um mês.

- Estamos no dia dez. Tem até o fim do mês para nos entregar o homem e o dinheiro.

- Isso é pressionar demais - protestou Peter.

- Estarei de volta no dia primeiro. Se até lá não puder entregar a mercadoria, vou recomendar a meus superiores que cancelem o projeto.

A cobra tinha quase dois metros de comprimento e estava enroscada a um canto da gaiola. As escamas eram de um púrpura e dourado suaves, como cores outonais aprisionadas em desenhos geométricos sobre um fundo negro.

Mas todas essas cores e formas não desviavam a atenção da horrível cabeça, do tamanho de uma cabaça venenosa, em forma de um ás de espadas, achatada e que ia estreitando-se na goela. Tinha olhinhos brilhantes como contas de azeviche e a língua bifurcada movia-se ligeira para fora e para dentro.

- Não há mérito nenhum nisso para mim - disse Peter Fungabera. - O doutor aqui é o único responsável por este pequeno divertimento. - Sorriu para o médico. - Já não nos falamos há muitos dias e, francamente, seu tempo esgotou-se, e o meu, também. Ou concorda em falar hoje ou já não fará mais diferença. A partir de amanhã, será dispensável, camarada Zebiwe.

Tungata foi amarrado a uma sólida cadeira de teca rodesiana. A gaiola estava sobre a mesa em frente a ele.

- Já trabalhou para o Departamento de Caça - continuou Fungabera. - Portanto, é capaz de reconhecer esta cobra como uma Bi tis gabonica, a víbora do Gabão. É uma das serpentes mais venenosas da África e seu veneno só perde para o da mamba. Mas a picada é muito mais dolorosa do que a de qualquer outra. Dizem que a dor enlouquece antes que se morra.

Tocou a gaiola com a ponta do bastão e a serpente atacou. O corpo enroscado impulsionou a cabeça num movimento líquido e a metade do enorme animal projetou-se no espaço; a goela escancarou-se, mostrando a garganta amarelada e as longas presas recurvas, brilhando como porcelana branca, ao bater no arame com tamanha força que fez a mesa estremecer. Até Fungabera pulou para trás sem querer, para sorrir, em seguida, desculpando-se:

- Não suporto cobras - explicou. - Dão-me arrepios. E o senhor, camarada ministro?

- Seja o que for que estiver planejando, é um blefe - respondeu Tungata. A voz estava mais fraca do que antes. Desde o último encontro, passara muitos dias no muro ao sol. O corpo encolhera a ponto de parecer pequeno demais para a cabeça e a pele estava seca e descamada. - Não pode se dar ao luxo de deixar que esta coisa me pique. Acho que mandou remover as bolsas de veneno.

- Doutor - disse Fungabera ao médico sentado na extremidade da mesa, que levantou-se imediatamente e saiu da sala.

- Tivemos muita sorte em encontrar este espécime do Gabão - continuou em tom de conversa Fungabera. - São bastante raros, como sabe.

O médico voltou, usando grossas luvas até os cotovelos e carregando um rato-do-mato do tamanho de um gatinho, guinchando e esperneando. Abriu, desajeitado, a porta da gaiola, atirou o rato dentro e fechou-a imediatamente. O animalzinho correu em volta, cheirando a tela de arame até deparar com a cobra. Deu um pulo e fugiu para o canto oposto, encolhendo-se lá.

A serpente começou a desenroscar-se, com as escamas reluzindo com uma beleza irreal enquanto deslizava silenciosamente sobre o chão recoberto de areia em direção ao rato encurralado, que estava mudo. O nariz já não fungava e ficou observando hipnotizado a morte repulsiva que se aproximava.

A menos de um metro, a serpente parou, arqueando o pescoço em S, e atacou rápida como um raio.

O rato foi atirado contra a tela e imediatamente a serpente recuou, tornando a enroscar-se. Minúsculas gotas de sangue apareceram na pelagem avermelhada do animalzinho que começou a estrebuchar. As patas sacudiam-se sem coordenação e, abruptamente, deu um guincho agudo de intolerável agonia e entrou na convulsão final da morte.

O médico tirou a carcaça da gaiola com uma pinça de madeira e levou-a embora da sala.

- Naturalmente - disse Fungabera -, sua massa é muito maior que a dele. Com você, levaria muito mais tempo.

O médico voltou e, com ele, o capitão e dois soldados.

- Como já disse, o doutor desenhou este aparelho. Acho que fez um ótimo trabalho, se considerarmos o pouco material disponível e o tempo escasso.

Levantaram a cadeira de Tungata e colocaram-na mais próxima à gaiola. Um dos soldados carregava uma gaiola menor, em feitio de um grande capacete de esgrima, que colocou na cabeça de Tungata, fechando-a bem ajustada ao pescoço. Dela, saía um tubo de arame que parecia uma tromba deformada de elefante.

Os dois soldados postaram-se por trás da cadeira e o forçaram para a frente até que o tubo aberto ficasse à altura da portinhola da gaiola maior, e o médico shona o prendeu rapidamente a ela.

- Quando a porta da gaiola for levantada, você e a serpente vão dividir o mesmo espaço. - Tungata olhou pelo tubo até a portinhola na extremidade. - Mas podemos parar com isso quando quiser.

- Seu pai era uma hiena comedora de coisas imundas - respondeu Tungata em voz calma.

- Vamos fazer a serpente passar para a sua gaiola aplicando calor na outra extremidade. Eu o aconselho a ser sensato, camarada. Leve-nos ao túmulo de Lobengula.

- O túmulo do rei é sagrado... - Tungata calou-se, compreendendo que estava mais fraco do que imaginara deixando escapar isso. Até ali, negara teimosamente a existência do túmulo.

- Ótimo - disse Fungabera, satisfeito. - Pelo menos concordamos em que existe um túmulo. Agora, concorde em nos levar lá e tudo isso estará terminado. Um vôo seguro para outro país, para você e a mulher.

- Cuspo em você, Fungabera, e na prostituta que foi sua mãe.

- Abram a gaiola - ordenou Fungabera.

A portinhola rangeu ao ser suspensa e Tungata olhou pelo tubo como se fosse o cano de uma arma. A serpente estava enrolada na extremidade mais distante da gaiola, olhando-o com os olhinhos lustrosos e negros.

- Ainda há tempo, camarada.

Tungata já não confiava na própria voz. Armou-se de toda coragem e fixou os olhos nela, tentando dominá-la.

- Continuem - disse Peter, e um dos soldados colocou um pequeno braseiro sobre a mesa. Tungata sentia o calor até mesmo de onde estava sentado. Lentamente, o soldado foi aproximando o braseiro da extremidade da gaiola e a serpente silvou e desenroscou-se. Para escapar ao calor, começou a deslizar em direção à abertura do tubo.

- Vamos, camarada - incitou-o Peter. - Diga que nos leva lá. Só tem mais alguns segundos. Ainda posso fechar a portinhola.

Tungata sentiu o suor brotar da testa e escorrer-lhe pelas costas. Queria amaldiçoar Fungabera, desejar-lhe uma morte tão horrível quanto essa, mas as batidas do coração chegavam a ensurdecê-lo.

A serpente hesitou à entrada do tubo, relutante.

- Ainda há tempo - sussurrou Peter. - Você não merece uma morte tão horrível. Vamos, diga que vai nos levar lá!

Tungata não imaginara como era enorme a serpente. Os olhos estavam a cinquenta centímetros dos dele e tornou a soltar um silvo agudo e penetrante. O soldado empurrou o braseiro, encostando-o à tela e a serpente enfiou a cabeça pelo tubo, enquanto as escamas da barriga raspavam o arame.

- Ainda não é tarde demais. - Fungabera abriu o coldre e tirou a pistola, encostando-a a milímetros da cabeça da serpente. - É só dizer e estouro a cabeça dela.

- Vá para o seu fedorento inferno shona - sussurrou Tungata.

Sentia o cheiro do animal, agora, não um odor penetrante, mas um cheiro adocicado e meio podre que o nauseou. Teve uma ânsia de vómito, tentou engoli-lo e começou a lutar com as correias que o prendiam. A gaiola balançou com o esforço, mas os dois soldados seguraram-no e a grande serpente, alarmada, tornou a sibilar e arqueou-se para atacar.

Tungata parou de lutar e fez um esforço para ficar imóvel. Podia sentir o suor que lhe inundava o corpo escorrer para o assoalho.

Pouco a pouco, a serpente abaixou o pescoço e arrastou-se em direção a seu rosto. Estava a quinze centímetros de seus olhos e Tungata permanecia imóvel como uma estátua, cheio de horror. Estava tão perto que já não a via claramente. Era uma mancha que enchia todo o campo de visão. - E a serpente estendeu a língua bifurcada, explorando-lhe o rosto com lambidas rápidas e leves.

Cada nervo em seu corpo parecia prestes a explodir e estava tão cheio de adrenalina que sentia-se sufocar. Agarrava-se à consciência com todas as forças, senão mergulharia na mais completa escuridão.

A víbora prosseguiu lentamente. Podia sentir o toque gelado e escorregadio no rosto e em torno do pescoço e compreendeu, horrorizado, que o enorme réptil enroscava-se em torno de sua cabeça, envolvendo-o e cobrindo-lhe a boca e o nariz. Não ousava gritar ou mover-se.

- Ela gosta de você. - A voz de Fungabera soava excitada. - Está se ajeitando aí dentro.

Tungata virou os olhos e viu-o, meio indistinto, através da tela de arame.

- Não podemos aceitar uma coisa dessas - disse Peter, malignamente; viu que estendia a mão para o braseiro e pela primeira vez notou um espeto entre as brasas. Quando Peter o retirou, a ponta estava rubra.

- Esta é a chance final. Quando encostar isso na criatura, ela vai enlouquecer. - E esperou por uma resposta. - Mas é claro, não pode falar. Se concorda, pisque os olhos.

Tungata encarou-o fixamente através da tela, tentando transmitir todo o ódio que sentia.

- Bem, nós tentamos - disse Peter Fungabera. - Agora, a culpa é só sua.

Enfiou a ponta do espeto incandescente pelo arame e tocou a serpente. Houve um chiar de carne queimada e o animal enfureceu-se.

Tungata sentiu os anéis que lhe envolviam a cabeça contraírem-se e incharem e o grande corpo entrou em convulsões desordenadas dentro daquele espaço confinado. A gaiola batia para todos os lados e Tungata perdeu o controle, soltando um berro ao ser vencido pelo terror.

A cabeça da serpente agigantou-se, com a boca escancarada e amarela abrindo-se como um abismo, e o mordeu com toda a força no rosto, abaixo do olho, com tal ímpeto, que os dentes cerraram-se e mordeu a própria língua. Sentiu a boca encher-se de sangue e as longas presas recurvas enterrarem-se na carne como anzóis, injetando a toxina mortal. Tungata, então, mergulhou em uma escuridão misericordiosa.

- Você o matou, seu idiota! - A voz de Fungabera estava aguda e cheia de pânico.

- Não, não. - O médico trabalhava rapidamente com a ajuda dos soldados. Arrancou o capacete da cabeça de Tungata e um deles atirou a cobra contra a parede, esmagando-lhe a cabeça com o cabo do fuzil AK 47. - É apenas um desmaio. Estava muito enfraquecido por causa do muro.

Carregaram-no até a cama de campanha, deitando-o com cuidados exagerados e o médico verificou-lhe o pulso rapidamente.

- Ele está bem. - Encheu uma seringa e injetou-a na veia do braço. - Dei-lhe um estimulante; ah, está vendo? - Seu alívio era evidente. - Veja! Está voltando a si.

Limpou as profundas perfurações do rosto de onde começara a escorrer linfa.

- Há sempre o risco de uma infecção com estas mordidas - explicou, ansioso. - Vou dar-lhe uma injeção de antibiótico.

Tungata gemeu, murmurou algo, e começou a debater-se fracamente. Os soldados o contiveram até que recuperasse a consciência e o ajudaram a sentar-se. Os olhos focaram-se com dificuldade em Fungabera e sua confusão era evidente.

- Bem-vindo de volta à terra dos vivos, camarada. - A voz de Peter estava outra vez macia e bem modulada. - É um dos poucos privilegiados que tiveram uma visão do além.

O médico ainda ocupava-se dele, mas os olhos de Tungata não se desviaram de Peter Fungabera.

- Não está compreendendo - disse -, e ninguém pode culpá- lo por isso. Sabe, na verdade o doutor removeu as bolsas de veneno, como você sugeriu. - Tungata balançou a cabeça, incapaz de falar.

- Ah! O rato, claro. Isso foi uma ideia bastante inteligente. Enquanto estava fora da sala, deu-lhe uma pequena injeção. Já a tinha testado com outros roedores para conseguir o prazo adequado. Estava certo, caro Tungata, ainda não estamos prontos para deixá-lo partir. E, naturalmente, podemos cometer um erro de cálculo. Poderia haver ainda um resto de veneno nas presas... - Peter encolheu os ombros. - É tão delicado... dessa vez, de outra... quem sabe? Quanto tempo acha que pode aguentar, camarada, antes que sua mente naufrague?

- Tanto quanto você, juro - sussurrou Tungata.

- Ora, nada de promessas apressadas - ralhou Peter com ar afável. - O próximo divertimento que estou programando é com os meus bichinhos. Já os ouviu durante as noites, não é? Acho que não posso controlá-los, o que será interessante. Poderia perder facilmente um braço ou um pé... basta uma dentada daquelas mandíbulas. - Brincou com o bastão entre os dedos. - A escolha é sua e basta uma palavra para acabar com tudo isso. - E levantou a mão.

- Não, por favor, não se esforce. Não é preciso responder agora. Vamos deixá-lo mais alguns dias no muro e então...

Tungata perdera a noção de tempo. Não conseguia lembrar-se quantos dias ficara no muro, quantos homens vira serem executados, quantas noites ficara deitado escutando as hienas.

Era difícil pensar além da próxima tigela de água. O médico calculara com exatidão a quantidade necessária para mantê-lo vivo. A sede era um tormento infindável, até mesmo quando dormia, porque seus pesadelos estavam povoados de água. Lagos e torrentes que não conseguia atingir, chuva que caía à sua volta sem tocá-lo e uma sede intolerável.

Somando-se a isso, perseguia-o a ameaça de Fungabera de atirá-lo às hienas e isso tornava-se mais forte a cada adiamento. Água e hienas, isso ameaçava levá-lo à fronteira da loucura. Sabia que não aguentaria muito mais tempo, e ficava imaginando confusamente como conseguira suportar tanto tempo. Tinha de lembrar-se que o túmulo de Lobengula era tudo o que o mantinha vivo. Enquanto guardasse segredo, não podiam matá-lo. Não tinha a menor ilusão de que Fungabera manteria a promessa de deixá-lo partir em segurança, depois de levá-lo até lá.

Tinha que ficar vivo. Ainda havia alguma esperança por menor que fosse de libertação. Sabia que, com sua morte, seu povo estaria ainda mais à mercê da tirania. O seu dever era manter-se vivo para eles; apesar de que a morte fosse naquele momento uma bênção e uma libertação, não podia morrer. Precisava continuar vivo.

Aguardava na escuridão gelada que antecedia o amanhecer, fraco demais para levantar-se. Naquele dia, teriam que carregá-lo até o muro ou para o que quer que estivessem lhe preparando, e odiava isso. Odiava mostrar tal fraqueza diante deles.

Logo chegariam. Pegou a vasilha de água e teve um duro choque ao lembrar-se de que não conseguira controlar-se na noite anterior: estava vazia. Agachou-se, lambendo-a como um cachorro, na esperança de que houvesse ainda algumas gotas, mas estava completamente seca.

A porta abriu-se de repente. O dia começava e Tungata tentou levantar-se. Com grande esforço, ficou de joelhos. Um guarda entrou e colocou algo no umbral, retirando-se sem dizer palavra. A porta foi novamente fechada e Tungata ficou sozinho.

Estava estupefato; isso nunca acontecera antes. Arrastou-se na escuridão, esperando, mas nada aconteceu. Ouviu os outros prisioneiros sendo levados e, depois, tudo ficou silencioso.

A luz começou a ficar mais forte e examinou cautelosamente o objeto deixado pelos guardas. Era um balde de plástico rebrilhando à luz da aurora.

Água. Um balde cheio de água. Arrastou-se até lá, sem ousar ter alguma esperança. Já o haviam enganado uma vez antes, colocando na vasilha sal e alúmen e tomara um gole antes de perceber o que haviam feito. A sede que se seguiu deixou-o delirante e trémulo como se estivesse com uma crise de malária.

Colocou um dedo no líquido e provou-o: era água limpa e cristalina. Soltou um gemido e encheu a vasilha com o líquido precioso, bebendo com uma terrível ansiedade, esperando que a qualquer momento a porta se abrisse e um guarda desse um pontapé no balde.

Bebeu até o estômago dilatar-se e.sentir pontadas de cólicas. Descansou por alguns minutos, sentindo a água fluir nos tecidos desidratados recarregando-os de energia. Recomeçou a beber mais pausadamente. Três horas mais tarde, urinou copiosamente pela primeira vez em muito tempo.

Quando foram finalmente buscá-lo, ao meio-dia, pôde levantar-se sem ajuda e amaldiçoá-los com gosto e fluência.

Levaram-no para o muro e sentiu-se quase alegre. Com a barriga cheia de água, sabia que poderia resistir-lhes para sempre. O terror do pelotão de fuzilamento desaparecera. Ficara lá tempo demais e vezes demais. Chegava a achá-lo bem-vindo, como parte de uma rotina que conhecia. Chegara ao ponto onde só temia o desconhecido.

Já na metade do pátio, viu que algo estava diferente. Haviam construído uma nova estrutura diante do muro, um abrigo contra o sol com teto de palha, sob o qual haviam colocado uma mesa com dois lugares para o almoço.

Sentado lá estava a figura familiar de Fungabera. Não o via há dias e a coragem que lhe voltara fraquejou. Sentiu as pernas amolecerem e cambaleou. O que haviam planejado para aquele dia? Se ao menos soubesse, poderia enfrentá-lo. A incerteza era a única tortura intolerável.

Fungabera estava almoçando e nem olhou-o ao cruzarem por lá. Comia à maneira africana, com os dedos, partindo pedaços do bolo seco de milho e enchendo-os com pedacinhos de legumes e de peixe kapenta salgado do lago Kariba. O cheiro da comida deixou Tungata com a boca cheia d'água, mas continuou arrastando-se até o muro.

Viu, apertando os olhos contra a claridade, que havia uma única vítima naquele dia. Só quando o amarraram ao poste, percebeu, com surpresa, que era uma mulher.

Era uma jovem mulher completamente nua. A pele tinha um brilho macio e aveludado como o do âmbar polido à luz do Sol e seu corpo era gracioso, com seios simétricos firmes e os bicos rijos, da cor de amoras maduras. As pernas eram longas e esbeltas e os pés pequenos e delicados. Amarrada como estava, não podia cobrir a nudez. Tungata percebeu a vergonha que sentia por estar com o sexo exposto, e evitou olhá-lo levantando os olhos para o rosto. O desespero invadiu-o.

Estava tudo acabado. Os guardas soltaram-lhe os braços e foi cambaleando até a jovem presa ao poste. Apesar de estar com os olhos arregalados e cheios de terror, as primeiras palavras que disse foram para ele:

- Meu senhor, o que fizeram com você?

- Sarah. - Queria aproximar-se e tocá-la, mas não o faria diante deles. - Como a encontraram? - Sentia-se muito velho e frágil. Tudo estava terminado.

- Fiz o que me ordenou - disse em tom de desculpas. - Fui para as colinas, mas mandaram-me uma mensagem. Uma das crianças na escola estava morrendo de disenteria e sem médico. Não pude deixar de ir.

- Claro que era mentira - ele disse com secura.

- Era mentira - admitiu. - Os soldados shona estavam esperando por mim. Perdoe-me, meu senhor.

- Já não tem mais importância.

- Não por minha causa, senhor - suplicou. - Não faça nada por mim. Sou uma filha de Mashobane. Aguento qualquer coisa que esses animais shona façam comigo.

Ele balançou a cabeça com tristeza e finalmente segurou-lhe a mão, tocando-lhe os lábios com dedos trémulos. Ela os beijou e Tungata deixou-os cair, indo em direção ao abrigo de palha sem que os soldados fizessem qualquer esforço para detê-lo.

Fungabera olhou-o e fez sinal para que se sentasse na cadeira vazia. Tungata sentou-se de ombros recurvos.

- Em primeiro lugar, a mulher deve ser desamarrada e vestida. Peter deu a ordem. Os soldados a cobriram e foram levando-a para um dos alojamentos.

- Meu senhor... - Ela tentou soltar-se dos soldados e olhou-o, desesperada.

- Ela não deve ser maltratada em hipótese alguma.

- Não foi - disse Peter -, e nem será, a não ser que você torne isso necessário.

Empurrou-lhe um prato com bolo de milho e Tungata ignorou-o.

- Deve ser levada para fora do país e entregue a um representante da Cruz Vermelha em Francistown.

- Há um pequeno avião à espera na Missão Tuti. Coma, camarada, precisamos de você forte e saudável.

- Quando ela estiver a salvo, falará comigo pelo rádio ou telefone, e me transmitirá uma palavra-código que vou combinar com ela antes de partir.

- Concordo. - E serviu chá quente a Tungata.

- Quero falar com ela a sós para combinarmos o código.

- Naturalmente que vai falar com ela, mas no meio deste pátio. Meus homens vão manter uma distância de trinta metros, mas apontarão as metralhadoras para vocês o tempo todo. Concedo-lhe cinco minutos a sós com a mulher.

- Eu falhei - disse Sarah. - Tungata havia esquecido como era bonita. Todo o corpo doía-lhe de saudades.

- Não - disse-lhe. - Era inevitável. Você não tem culpa. Foi pelo dever que saiu do esconderijo.

- Senhor, o que posso fazer?

- Escute - falou rapidamente. - Alguns de meus homens de confiança escaparam dessa escória da Terceira Brigada. Deve procurá-los. Acredito que estejam em Botsuana. - Deu-lhe os nomes e endereços e ela os repetiu. - Diga-lhes... - Sarah decorou tudo e tornou a repetir com exatidão.

Pelo canto dos olhos, Tungata viu que os guardas começavam a aproximar-se. Os cinco minutos estavam esgotados.

- Quando estiver a salvo, vão permitir que fale pelo rádio comigo, para que eu saiba que está tudo bem, e vai me dizer: "Seu belo pássaro voou alto e rápido". Repita.

- Oh, meu senhor - ela soluçou.

- Repita!

Ela obedeceu e, depois, atirou-se em seus braços, os dois trocaram um longo abraço.

- Será que algum dia vou vê-lo de novo?

- Não. Deve me esquecer.

- Nunca! - ela gritou. - Nem que morra bem velha, nunca, meu senhor.

Os guardas os separaram e um Land-Rover surgiu no pátio. Os soldados a fizeram entrar e a última coisa que Tungata viu foi o rosto na janela traseira, olhando-o. O lindo e amado rosto de Sarah.

No terceiro dia, vieram buscá-lo na cela e o levaram até o posto de comando de Fungabera no rochedo central.

- A mulher está pronta para falar com você. Vão falar em inglês e a conversa será gravada. - Peter mostrou-lhe o gravador ao lado do aparelho. - Se tentar passar-lhe alguma mensagem em sindebele, será traduzida mais tarde.

- O código que combinamos é em sindebele - disse Tungata. - Ela vai ter de repeti-lo.

- Muito bem. Isso é aceitável, mas nada mais. - Olhou com olhos críticos para Tungata. - Estou contente em vê-lo tão bem disposto novamente, camarada, um pouco de boa comida e descanso fazem milagres.

Tungata vestia roupas caqui desbotadas, mas limpas. Ainda estava muito magro e abatido, mas a pele perdera o aspecto ressequido e os olhos estavam claros e brilhantes. O inchaço da mordida de serpente estava bem melhor e a casca que a recobria, de bom aspecto.

Fungabera fez sinal ao capitão que passou o microfone a Tungata e apertou o botão de gravar.

- Aqui é Tungata Zebiwe.

- Meu senhor, é Sarah. - A voz estava distorcida pela estática, mas a teria reconhecido não importava onde, e a nostalgia encheulhe o peito.

- Você está bem?

- Estou em Francistown e a Cruz Vermelha está cuidando de mim.

- Tem uma mensagem para mim?

- "Seu belo pássaro voou alto e rápido". - E acrescentou: - Encontrei outras pessoas aqui. Não perca a esperança.

- Ótimo. Quero que você...

Peter Fungabera inclinou-se e tirou-lhe o microfone.

- Desculpe, camarada, mas quem paga a chamada sou eu. - Ergueu o microfone e apertou o botão. - Fim da transmissão. - E atirou-o casualmente ao capitão. - Providencie para que um dos matabele de nossa confiança traduza a fita, e traga-me imediatamente uma cópia. - Virou-se em seguida para Tungata. - Suas férias acabaram, camarada, você e eu agora temos que trabalhar. Vamos?

Por quanto tempo poderia ir adiando a descoberta do túmulo de Lobengula? Porque cada hora que ganhasse seria valiosa, uma outra hora de vida, de esperança.

- Já fazem quase vinte anos que meu avô me levou para vê-lo. Minha memória não está muito clara.

- Sua memória está tão clara quanto o Sol lá em cima - disse Peter. - Você é famoso por sua habilidade em lembrar-se de lugares, rostos e nomes, camarada. Não esqueça que já o vi falar na Assembleia sem notas para consultar. Além disso, terá um helicóptero para levá-lo diretamente até lá.

- Isso não vai funcionar. Fui a pé da primeira vez, e tenho que voltar da mesma maneira. Não reconheceria as marcas do caminho pelo ar.

Voltaram pelas mesmas estradas sujas que Tungata e o velho Gideon haviam percorrido tantos anos antes de ônibus, e realmente não conseguia achar o local do início da trilha, a queda d'água pedregosa, a ponte no rio e o rochedo em forma de leão adormecido. Levaram três dias à procura e Fungabera estava cada vez mais irritado e descrente, antes de pararem novamente na minúscula aldeia e na venda que eram o último ponto de referência de que conseguia lembrar.

- Ah!, a estrada velha. Sim, a ponte que tinha lá foi arrastada pelo rio há muitos anos e nunca mais foi usada. Agora, a nova estrada passa por outros lugares...

Acharam afinal a trilha coberta de mato e quatro horas depois chegaram ao leito seco do rio. A velha ponte desmoronara em pedaços de concreto já cobertos de lianas, mas a parede de pedra, rio acima, era exatamente como Tungata lembrava-se e sentiu uma pontada de saudade. De repente, o velho Gideon parecia muito próximo, tanto que olhou em torno e fez um pequeno sinal com a mão direita para apaziguar os espíritos ancestrais, sussurrando:

- Perdoe-me, Baba, por trair o juramento.

A presença que sentira parecia-lhe extremamente benigna e indulgente, como se o velho estivesse lá.

- A trilha fica por aqui. - E deixaram o Land-Rover na ponte desmoronada, continuando a pé.

Tungata ia à frente com dois soldados armados. Começou a caminhar em passos pausados, irritantes para Fungabera, que os seguia. Durante a caminhada, Tungata deixou a imaginação voar. Sentia-se parte do êxodo do povo matabele um século antes, uma encarnação de Gandang, seu trisavô, fiel e leal até o fim. Sentiu novamente o desespero de um povo derrotado e o terror da perseguição dos brancos que poderiam aparecer de um momento para outro na floresta, com suas metralhadoras em tripé. Parecia-lhe ouvir o lamento das mulheres e criancinhas e os mugidos do rebanho ao tombarem naquela terra dura e amarga.

Quando morreu o último dos bois da carreta real, Gandang ordenara aos guerreiros de seu famoso regimento Inyati que a puxassem em lugar deles. Imaginava o rei, obeso, doente e condenado, sentado na carreta oscilante, olhando fixamente para o norte ameaçador, um homem apanhado no redemoinho da história e do destino, e esmagado por ele.

E agora a traição final, pensou Tungata, amargo. Estou levando os animais shona para perturbar-lhe o descanso mais uma vez.

Tomou deliberadamente por três vezes o caminho errado, levando Peter Fungabera ao limite da paciência. Na terceira, ordenou queamarrassem Tungata e açoitou-o com um chicote de couro de rinoceronte, o terrível kibobo que os traficantes de escravos árabes haviam introduzido na África, espancando-o até escorrer sangue na terra arenosa.

Foi a vergonha e a humilhação mais do que a dor que levaram-no de volta e fizeram-no procurar os marcos de novo. Chegaram finalmente à colina, que apareceu de repente à frente deles, exatamente como se lembrava da primeira visita.

Haviam seguido por uma garganta estreita de rochas negras e polidas pelas torrentes por milénios. As profundezas estavam cobertas por poças de água estagnada e esverdeada onde nadavam grandes lambaris na superfície lodosa e no ar aquecido flutuavam lindas borboletas escarlates e azuis.

Contornaram uma curva da garganta, escalando rochas do tamanho de elefantes, os rochedos laterais abriram-se e a floresta recuou. Diante deles, como um vasto monumento, mais imponente que as pirâmides faraónicas, levantava-se no ar a colina de Lobengula.

O declive era acentuado e manchado de liquens em tons amarelo, ocre e negro. Havia ninhos de abutre nos últimos ressaltos e os adultos voavam graciosamente sobre o abismo, batendo as asas nas correntes quentes ao girarem em espirais.

- Aí está - murmurou Tungata -, Thabas Nkosi, a colina do rei.

A trilha natural até o topo seguia uma falha calcária na rocha. Era íngreme, assustadora, e os soldados, carregados de mochilas e armas, olhavam nervosamente para a borda e colavam-se à parede, mas Fungabera e Tungata escalavam com agilidade até os piores trechos, deixando a escolta muito para trás.

Podia empurrá-lo pela borda, pensou Tungata, se o pegasse desprevenido. Olhou para trás e Fungabera estava a dez passos mais abaixo, com uma pistola Tokarev na mão e um sorriso venenoso nos lábios.

- Não - avisou, e ambos continuaram sem mais palavras. Tungata deixou de lado a ideia de vingança temporariamente e continuou a subida. Viraram a um canto do rochedo e chegaram ao topo, quinhentos metros acima da garganta escura.

Um pouco separados, ficaram contemplando ao sol claro o grande e profundo vale do Zambeze. Quase fora do alcance de visão, as águas do lago artificial de Kariba brilhavam docemente através da névoa quente e enfumaçada causada pelos primeiros incêndios da estação seca. Os soldados chegaram visivelmente aliviados ao fim da trilha e Fungabera olhou interrogativamente para Tungata.

- Estamos prontos, vamos prosseguir, camarada.

- Não há para onde prosseguir - respondeu-lhe.

Na crista, a formação rochosa erodira e fragmentara-se. As raízes das árvores haviam achado abrigo nas rachaduras e fendas e entrelaçavam-se, os caules eram espessos e deformados pelo calor extremo e pela seca.

Tungata conduziu-os através das rochas partidas e da floresta torturada até a entrada de uma ravina, onde crescia uma velha Ficus natalensis, a figueira estranguladora, com os ramos carnudos e amarelos cobertos de frutos amargos. Ao se aproximarem, um bando de papagaios, que se banqueteavam com os figos silvestres, saíram em revoada. Na base da figueira, a pedra era segmentada e as raízes haviam forçado as fendas.

Tungata ficou parado diante do rochedo e Fungabera, contendo uma exclamação de impaciência, viu que seus lábios moviam-se silenciosamente como que em oração. Começou a examinar o lado da rocha com mais cuidado e notou com crescente júbilo que as rachaduras eram uniformes demais para serem naturais.

- Venham cá! - gritou aos soldados, e apontou-lhes um dos blocos na parede, que começaram a escavar, usando as baionetas e as mãos nuas.

Em quinze minutos de trabalho suado, haviam-no removido e puderam ver claramente que aquela superfície era uma parede de alvenaria e, através da abertura deixada pelo bloco, viram uma outra atrás daquela.

- Tragam o prisioneiro - ordenou Peter. - Vai trabalhar junto com vocês.

Quando começou a escurecer, haviam feito uma abertura suficiente apenas para que dois homens trabalhassem ombro a ombro na parede externa. Nem bem haviam começado a atacar a interna, Tungata viu que confirmava-se o que suspeitara na primeira visita ao túmulo tantos anos antes; os sinais que observara e escondera do avô Gideon estavam ainda mais evidentes na parede interna, e o ajudavam a salvar sua consciência e diminuir o desgosto pela quebra do juramento.

Relutantemente, Fungabera ordenou que parassem com o trabalho durante a noite. As mãos de Tungata estavam em carne viva e perdera uma unha. Foi algemado a um dos homens da Terceira Brigada para passar a noite, mas nem isso o impediu de cair em um sono pesado e sem sonhos. Fungabera teve de dar pontapés nos dois para acordá-los na manhã seguinte.

Ainda estava escuro e comeram a parca ração de bolo seco de milho e chá em silêncio. Mal a haviam engolido, Fungabera deu ordens para que voltassem à parede.

As mãos machucadas de Tungata estavam enrijecidas e sem coordenação. Fungabera ficou por trás dele na abertura e, quando vacilou, chicoteou-o com o kibobo à altura das costelas, na região sensível das axilas, fazendo-o gemer como um animal ferido e retirar um pesado bloco da parede.

O Sol iluminava o topo da colina e os raios dourados batiam na superfície da rocha. Tungata e um dos soldados shona improvisaram uma alavanca com um galho seco e retiraram mais uma pedra; quando a moveram, ouviu-se um ruído surdo e rascante e o resto da parede interna desabou, fazendo-os pular para trás e tossir com a nuvem de poeira levantada. Depois, espiaram pela abertura.

O ar da caverna era malcheiroso, abafado, e a escuridão por trás, ameaçadora.

- Você primeiro - disse Fungabera, e Tungata hesitou. Estava dominado por um temor supersticioso. Era um homem educado e sofisticado, mas, no fundo, um africano. Os espíritos de sua tribo e os ancestrais guardavam aquele lugar. Olhou para Fungabera, pois sabia que estava sentindo o mesmo medo sobrenatural, apesar de empunhar a lanterna que reservara para aquele momento.

- Ande logo! - ordenou, mas o tom imperioso não disfarçava a inquietação que sentia e Tungata, para envergonhá-lo, passou com cautela por cima das pedras caídas para dentro da caverna.

Ficou parado alguns momentos para se acostumar à penumbra e distinguir o interior. O solo parecia bastante nivelado e gasto, mas tinha um declive acentuado. Aquela caverna fora obviamente o refúgio de animais e o lar de homens primitivos dezenas de milhares de anos antes de se tornar o túmulo de um rei.

Fungabera, atrás dele, iluminava com a lanterna as paredes cobertas pelos desenhos dos pigmeus que haviam vivido lá e o teto enegrecido pelas antigas fogueiras. Os animais selvagens estavam ali, maravilhosamente caricaturados em cores brilhantes. Junto a eles, os artistas pigmeus haviam também representado o próprio povo; armados de arco e flecha, perseguiam as manadas pela parede rochosa. Cafungas com nádegas salientes e ereções gigantescas para celebrar a fertilidade.

Fungabera percorreu com a lanterna toda aquela esplêndida galeria e virou o facho de luz para a parte mais afastada da caverna que se estreitava numa passagem curva, envolta na escuridão e nas sombras misteriosas abaixo deles.

- Adiante! - ordenou, e Tungata foi descendo cautelosamente o solo em declive.

Chegaram à passagem estreita e tiveram que se abaixar para passar pelo teto. Tungata continuou mais uns cinquenta passos antes de parar de repente.

Vieram dar numa grande caverna de teto abobadado com vinte metros de altura e chão regular atulhado de rochas soltas. Fungabera examinou-a com a lanterna e viram que na parede mais afastada havia um ressalto a meia altura cheio de objetos.

Tungata ficou intrigado por alguns momentos, mas em seguida reconheceu a roda de uma carreta de modelo antigo, usada há cem anos, maior que os bois que a faziam girar, e a estrutura e o corpo central. A carreta fora desmembrada e carregada até a caverna.

A carreta de Lobengula - sussurrou.

Sua possessão mais querida, a que os guerreiros puxaram com as próprias forças quando os bois morreram...

Fungabera cutucou-o com a pistola Tokarev e começaram a abrir caminho por entre as pedras.

Lá estavam molhos de armas amarrados como feixes de trigo, velhos Lee-Enfields, parte do pagamento que Cecil Rhodes fizera a Lobengula pelas concessões; armas e cem soberanos de ouro todo mês fora o preço de uma terra e seu povo vendidos e condenados à escravidão, pensou Tungata com amargor. Havia mais objetos empilhados sobre a saliência, sacos de sal de couro, ferramentas e facas, contas, adornos, chifres de rapé e lanças assegai de lâminas largas.

Fungabera soltou uma exclamação de impaciência.

- Depressa, precisamos achar o corpo. Os diamantes estão junto dele.

Ossos rebrilharam à luz da lanterna, uma pilha deles embaixo da saliência. Uma caveira sorridente com o crânio ainda com vestígios da lanugem do cabelo.

- É ele! - gritou triunfante Fungabera. - É o velho demónio - e ajoelhou-se ao lado do esqueleto.

Tungata continuou imóvel. Depois do choque inicial, viu que era o de um homem velho e pequeno, quase do tamanho de uma criança e sem dentes na frente. Lobengula tinha sido um homem grande com dentes excelentes. Todos os que o tinham conhecido falavam do seu sorriso. Aquele esqueleto ainda tinha vestígios da estranha parafernália de um feiticeiro: contas, conchas e ossos, chifres cheios de remédio e um cinto de crânios de répteis em torno da cintura. Até Peter reconheceu o erro e levantou-se de um pulo.

- Não é ele! - gritou, ansioso. - Devem ter sacrificado o feiticeiro e o colocado para montar guarda. - Procurava insano pela caverna. - Onde está? - perguntou. - Você deve saber. Devem ter-lhe contado.

Tungata ficou silencioso. Por cima do esqueleto, a saliência projetava-se como um grande púlpito. As possessões do rei estavam arrumadas lá, em posição proeminente, e o sacrifício humano jazia por baixo dela. Era a posição lógica e natural para se colocar o corpo do rei. Fungabera percebeu isso também e virou lentamente o facho de luz para lá.

O púlpito rochoso estava vazio.

- Não está aqui - sussurrou Peter com voz tensa e desapontada. - O corpo de Lobengula desapareceu!

Os sinais que Tungata percebera na parede externa e o local onde o reboco fora recolocado com menos cuidado o haviam levado à conclusão correta. O túmulo do velho rei fora obviamente roubado havia muitos anos, o corpo levado embora e a tumba relacrada para esconder os vestígios da violação.

Fungabera escalou apressado o púlpito de pedra e começou a procurar de joelhos freneticamente. De pé, impassível, Tungata ficou admirado como a cobiça podia transformar até um homem tão impressionante e perigoso quanto Peter Fungabera, que sussurrava coisas incoerentes enquanto se esfalfava revistando os detritos poeirentos.

- Olhe! Olhe só para isso! - e levantou um pequeno objeto escuro, enquanto Tungata se aproximava. À luz da lanterna, reconheceu um fragmento de cerâmica decorado com o tradicional desenho de losangos usados nos barris de cerveja matabele.

- Um pote de cerveja. - Peter revirou-o na mão. - Um dos barris de diamantes quebrado! - Deixou-o cair e escavou a sujeira, provocando uma nuvem de pó ondulante no facho de luz.

- Olhe! - Achara outra coisa, algo menor, que segurava entre os dedos, do tamanho de uma pequena noz e assestou nela o foco da lanterna que reverberou com todas as cores do arco-íris. Raios de luz colorida refletiram-se no rosto de Peter Fungabera, como o Sol na água.

- Um diamante - disse com respeito religioso, virando-o lentamente entre os dedos e fazendo-o soltar faíscas luminosas.

Tungata pôde perceber que era uma pedra bruta, sem lapidação, mas o cristal formava facetas tão simétricas e perfeitas que refletiam até o fraco foco luminoso.

- Que beleza! - murmurou Peter, olhando-o ainda mais de perto.

Era um perfeito octaedro natural e a cor, mesmo na luz artificial, era de um branco imaculado como a neve em um riacho de montanha.

- Linda - repetiu Fungabera, e gradualmente o rosto foi perdendo a expressão sonhadora e glutona. - Um só - sussurrou. - Uma única pedra perdida na pressa quando deveria haver aqui cinco barris de cerveja transbordando de diamantes.

Os olhos desviaram-se do diamante para Tungata. A luz da lanterna com o foco para baixo fazia sombras estranhas no rosto, dando-lhe um ar demoníaco.

- Você sabia - acusou-o. - Percebi o tempo todo que estava ocultando alguma coisa. Sabia que os diamantes tinham sido levados, e para onde.

Tungata sacudiu a cabeça, negando, mas Fungabera estava começando a se enfurecer. O rosto contorceu-se e a boca remexia-se, espumando saliva.

- Você sabia! - E atirou-se da saliência com a fúria de um leopardo ferido. - Vai me dizer! - berrou. - Vai acabar me dizendo! - Bateu no rosto de Tungata com o cano da Tokarev. - Diga! Onde estão? Onde estão os diamantes?

O cano de aço atingiu a maçã do rosto de Tungata, cortando-a e fazendo-o cair de joelhos. Fungabera procurou controlar-se e acalmar a fúria, apoiado na pedra.

- Não - disse para si mesmo. - Isso é fácil demais. Você vai sofrer... - Cruzou os braços no peito bem apertados para não atacar novamente Tungata. - Você vai acabar me contando, vai me suplicar para me levar até os diamantes. Vai me suplicar para matá-lo...

- Crianças brincando de jogos perigosos - disse Morgan Oxford. - É o que vocês são! Meu Deus, vocês nos meteram nessa latrina, até o pescoço.

Morgan Oxford voara de Harare assim que ouvira a notícia de que a patrulha aduaneira de Botsuana os havia recolhido no deserto.

- Tanto o embaixador americano como os britânicos receberam notas de Mugabe. Os ingleses estão pulando e espumando de raiva também. Não sabem de nada a respeito, Craig, e você é cidadão britânico. Acho que gostariam de prendê-lo na Torre de Londres e cortar-lhe a cabeça.

Morgan estava parado de pé à cabeceira de Sally-Anne, no hospital. Recusara a cadeira que lhe haviam oferecido.

- E quanto a você, senhorita, o embaixador me pediu que lhe dissesse que gostaria de ver você a bordo do próximo avião para os Estados Unidos.

- Ele não pode me dar ordens. - Sally-Anne interrompeu o fluxo de recriminações. - Isto não é a União Soviética e sou uma cidadã livre.

- Mas não por muito tempo. Ah, não; não se Mugabe botar as mãos em vocês! Assassinato, insurreição armada e mais outras coisinhas...

- Tudo isso é uma farsa!

- Você e seu namorado deixaram um monte de cadáveres frescos para trás como uma pilha de latas de cerveja vazias em um piquenique. Mugabe já está tomando providências junto ao governo de Botsuana...

- Somos refugiados políticos - interrompeu-o Sally-Anne, furiosa.

- Sally-Anne - disse Craig em tom pacificador. - Você não pode se excitar desta maneira.

- Excitar? - gritou ela. - Fomos roubados, espancados, ameaçados com um pelotão de fuzilamento, e eu quase fui estuprada, e o representante oficial do governo americano, do país do qual sou uma cidadã, tem a audácia de nos chamar de criminosos.

- Não estou chamando vocês de nada - negou Morgan taxativamente. - Estou apenas avisando-a para tratar de dar o fora da África e voltar correndo para a casa da mamãe.

- Ele nos chama de criminosos e ainda tem o topete de vir para o meu lado com essa de porco chauvinista...

- Espere aí, Sally-Anne. - E Morgan fez um gesto com a mão. - Vamos começar tudo de novo. Vocês estão numa grande encrenca... e nós também. Temos de dar um jeito nisso.

- Será que agora vai se resolver a sentar? - Craig empurroulhe uma cadeira e Morgan sentou-se, acendendo um cigarro.

- De qualquer maneira, como vão vocês? - perguntou.

- Pensei que nunca iria perguntar, querido - retrucou Sally- Anne raivosamente.

- Ela teve uma séria desidratação. Chegaram a suspeitar de uma paralisia renal, mas ministraram-lhe soro e líquidos por três dias e, quanto a esse problema, está bem. Ficaram preocupados com a pancada na cabeça, mas as radiografias foram negativas, graças a Deus. Foi apenas uma pequena concussão e prometeram que sairá daqui amanhã.

- Então, ela já pode viajar?

- Bem que achei seu interesse tocante demais...

- Escute, Sally-Anne, isto é a África. Se o Zimbabué conseguir agarrar você, não haverá nada que se possa fazer para ajudá-la. É para seu próprio bem. Tem que sair daqui. O embaixador...

- O embaixador que vá se foder - Sally-Anne completou com satisfação -, e vá se foder você também, Morgan Oxford.

- Não posso me comprometer por Sua Excelência. - Morgan riu pela primeira vez. - Mas quanto a mim, quando é que podemos começar? - E até Sally-Anne riu também.

Craig aproveitou a trégua.

- Morgan, pode confiar em mim para fazê-la agir com juízo. Imediatamente, Sally-Anne reagiu e já estava pronta a duelar com outro porco chauvinista, mas Craig franziu as sobrancelhas, sacudindo a cabeça e ela calou-se, relutante. Morgan, então, virou-se para ele.

- E quanto a você, Craig? Como é que eles descobriram que estava trabalhando para a CIA?

- Eu estava? - Craig parecia perplexo. - Se estava, ninguém me disse.

- Quem diabos você acha que Henry Pickering é, afinal? Papai Noel?

- Henry é o vice-presidente do Banco Mundial!

- Crianças - repetiu Morgan -, crianças metidas em jogos perigosos. - E controlou-se. - Bem, de qualquer forma, está tudo acabado. Seu contrato terminou, e se possível, ontem.

- Mandei a Henry um relatório completo há três dias.

- É! - Morgan concordou com ar resignado. - Sobre o fato de Peter Fungabera ser o candidato de Moscou. Peter é um shona e os russos nunca chegariam nem perto dele. Só para fazê-lo tirar isso da cabeça, o general Fungabera odeia os russos há muito tempo e temos com ele ótimas relações, muito boas mesmo. E isso nos basta.

- Pelo amor de Deus, Morgan. Ele está fazendo jogo duplo. Eu ouvi isso de seu próprio ajudante, o capitão Timon Nbebi!

- Que está convenientemente morto - lembrou-lhe Morgan. - Se isso o fizer sentir-se melhor, colocamos o relatório no computador... mas o arquivamos em uma área da memória destinada a textos sem nenhuma credibilidade. Henry Pickering lhe manda os melhores agradecimentos.

- Morgan, você viu minhas fotografias das aldeias incendiadas, da devastação feita pela Terceira Brigada... - interveio Sally- Anne.

- Como diz o ditado, é preciso quebrar os ovos para fazer uma omelete - interrompeu Morgan. - Naturalmente, não gostamos de toda essa violência, mas Peter Fungabera é anti-sovíético e os matabele, pró-Rússia. Temos que apoiar os regimes anticomunistas, mesmo se não gostamos de alguns de seus métodos: há mulheres e crianças sofrendo em El Salvador. Mas isso significa que devemos parar com a ajuda ao país? Precisamos recuar de qualquer situação em que nosso pessoal não esteja cumprindo à risca a Convenção de Genebra? Cresça, Sally-Anne, a realidade é essa.

A pequena enfermaria ficou silenciosa, exceto pelos estalidos no teto de zinco expandido pelo calor. No gramado ressequido que se via da janela, doentes passeavam metidos em roupões cor-de-rosa com as iniciais do Departamento de Saúde de Botsuana.

- Isso é tudo o que tinha para dizer? - perguntou Sally-Anne.

- E não é o bastante? - Morgan apagou o cigarro e levantou-se. - Ainda há mais uma coisa, Craig. Henry Pickering me pediu que lhe dissesse que o Banco Territorial de Zimbabué repudiou a garantia de seu empréstimo, sob a alegação de que você foi oficialmente declarado um inimigo do povo. E também que irão procurá-lo para a reposição do capital e dos juros. Isso faz sentido para você?

- Desgraçadamente, sim - respondeu Craig, cabisbaixo.

- Disse que vai tentar chegar a um acordo com você quando for a Nova York, mas, nesse meio tempo, foi forçado a congelar todas as suas contas bancárias e mandar aos editores uma ordem de não-pagamento para os seus direitos autorais daqui por diante.

- Era o que eu previa.

- Sinto muito, Craig. Parece um bocado duro. - Morgan estendeu-lhe a mão. - Gostei de seu livro, e também de você. Sinto que tudo acabe assim.

Craig foi acompanhá-lo até o Ford verde com chapa diplomática.

- Será que pode me fazer um último favor?

- Se puder - respondeu Morgan, desconfiado.

- Pode providenciar que seja entregue uma remessa ao meu editor em Nova York? - E acrescentou ao ver que as suspeitas continuavam: - São apenas as últimas páginas de meu novo manuscrito, dou-lhe minha palavra.

- Está bem - disse Morgan, ainda duvidando. - Vou providenciar para que ele as receba.

Craig tirou a sacola do Land-Rover estacionado no pátio do hospital.

- Cuide bem dela - pediu. - É minha própria carne e sangue e minha única esperança de salvação.

Ficou olhando o Ford afastar-se e voltou ao hospital.

- O que era tudo aquilo sobre empréstimos e bancos? - perguntou Sally-Anne quando o viu.

- Significa que quando pedi você em casamento era um milionário. - Craig sentou-se na beira da cama. - E agora não passo de um falido sem posses e que deve dois milhões de dólares.

, - Você tem o novo livro. Ashe Levy diz que será um sucesso.

- Querida, se escrever um best-seller a cada ano pelo resto de minha vida, só conseguiria me manter em dia com os juros sobre minha dívida com Henry Pickering e seus bancos.

Ela olhou-o fixamente.

- O que estou tentando dizer é que... meu pedido está sujeito a uma revisão, você tem todo direito de mudar de ideia. Não tem de se casar comigo.

- Craig, tranque a porta e abaixe as persianas.

- Você deve estar brincando! Não aqui e agora! Deve ser provavelmente um grave crime neste país, coabitação ilegítima ou algo assim.

- Escute, mocinho, quando se está sendo procurada por assassinato e insurreição armada, uma pequena transgressão da lei com o futuro marido, mesmo que ele não passe de um pobre necessitado, pesa muito pouco na consciência.

No dia seguinte, Craig foi buscar Sally-Anne que vestia os mesmos jeans, camisa e ténis com que dera entrada no hospital.

- A irmã mandou lavá-los e remendá-los - parou abruptamente quando viu o Land-Rover. - O que é isso? Pensei que estávamos "quebrados".

- O computador ainda não recebeu as boas notícias e o meu cartão de crédito ainda está valendo.

- Isso é legal?

- Quando se deve cinco milhões de dólares, minha senhora, mais uns poucos dólares não irão pesar na consciência. - Sorriu e ligou o motor. - A agência de aluguel que se preocupe.

- Você está aceitando as coisas muito bem, Craig. - E sentou-se mais junto a ele.

- Estamos vivos, e isso é motivo para grandes comemorações. Quanto ao dinheiro... bem, acho que não nasci para milionário. Passei a vida inteira com medo de perder dinheiro, o que me tirava toda a energia. Agora que o perdi, pode parecer estranho, mas me sinto livre outra vez.

- Está feliz por ter perdido tudo o que tinha? - Virou-se para olhá-lo. - Até mesmo para você, soa muito louco!

- Não estou feliz. O que realmente lamento é ter perdido King's Lynn e o Águas do Zambeze. Poderíamos ter feito algo maravilhoso deles. Lamento muito por isso... e também por Tungata Zebiwe.

- Sim. Nós o destruímos. - Ambos ficaram sérios. - Se ao menos pudéssemos fazer alguma coisa por ele.

- Não podemos fazer nada. - Craig balançou a cabeça. - Apesar do que Timon disse, não podemos ter certeza de que esteja vivo e, mesmo se estiver, não temos a menor ideia de onde ou como achá-lo.

Cruzaram a linha da estrada de ferro em direção à rua principal de Francistown.

- "A Jóia do Norte" - disse Craig. - População: duas mil pessoas; ocupação principal: consumo de bebidas alcoólicas; razão para a existência: incerta. - Parou diante do único hotel. - Como pode ver, o total da população, no momento, acha-se no bar.

Mas a jovem recepcionista era bonita e eficiente.

- Sr. Mellow, há uma senhora à sua espera - disse, assim que Craig entrou no vestíbulo.

Craig não a reconheceu senão quando Sally-Anne voou ao seu encontro.

- Sarah! - gritou. - Como chegou aqui? Como nos achou?

O quarto tinha duas camas com um toucador no meio, uma imitação gasta de tapete persa no chão de cimento vermelho e uma única cadeira. As duas moças sentaram-se na cama com as pernas dobradas.

- Disseram-me na Cruz Vermelha que tinham sido encontrados no deserto e trazidos para cá pela polícia, senhorita Jay.

- Por favor, me chame de Sally-Anne, Sarah. Sarah sorriu afetuosamente.

- Não estava segura de que quisessem me ver depois daquele julgamento. Mas meus amigos me contaram como foram tratados pelos soldados de Fungabera e achei que compreenderam como eu tinha razão, que Tungata Zebiwe não é um criminoso e precisa de amigos agora. - Voltou-se para Craig. - Era seu amigo de verdade, senhor Mellow. Falou-me muito a seu respeito. Temia o que pudesse lhe acontecer quando ouviu dizer que voltara ao Zimbabué e que desejava recuperar as terras de sua família em Matabeleland. Sabia que isso provocaria problemas terríveis e que seria apanhado por eles. Disse que o senhor era muito vulnerável para suportar os tempos duros que estavam chegando. Chamava-o de Pupho, o sonhador gentil, mas também me contou que era teimoso e obstinado. Queria evitar que fosse magoado outra vez. Disse-me: "Da última vez, ele perdeu uma perna... e desta, pode perder a vida. Para ser seu amigo, preciso tornar-me seu inimigo. Preciso fazê-lo sair de Zimbabué".

Craig lembrou-se do encontro tempestuoso com Tungata, quando fora pedir-lhe ajuda para comprar King's Lynn. Então, tudo não passara de uma farsa? Mesmo assim, ainda achava duro de acreditar. Os sentimentos dele haviam parecido tão reais, e a fúria, tão convincente.

- Sinto muito, senhor Mellow. Estou dizendo coisas muito rudes para o senhor, mas repito apenas o que Tungata me disse. Era seu amigo, e ainda é.

- Na verdade, já não tem importância o que achava de mim - murmurou Craig. - Sam está provavelmente morto a essas alturas.

- Não! - Pela primeira vez, Sarah levantou a voz em tom veemente e quase zangado. - Não diga uma coisa destas! Está vivo. Eu o vi e falei com ele. Eles nunca vão conseguir matar um homem como ele!

A cadeira estalou quando Craig inclinou-se, ansioso.

- Você o viu? Quando?

- Há duas semanas.

- Onde? Onde está ele?

- No acampamento de Tuti.

- Sam está vivo! - Craig mudou ao dizer isso. Os ombros curvados ficaram eretos, ergueu a cabeça e os olhos estavam mais brilhantes e alertas. Não olhava para ela e sim para a parede, tentando dominar a torrente de emoções e ideias que o assaltavam, sem perceber que Sarah chorava.

Foi Sally-Anne quem colocou-lhe o braço nos ombros, enquanto Sarah soluçava.

- Oh, meu senhor Tungata, que coisas horríveis fizeram com ele. Quase o mataram de fome e de pancada. Está que é pele e ossos e coberto de cicatrizes, como um vira-lata de aldeia. Caminha como um velho, e só os olhos ainda são orgulhosos.

Sally-Anne abraçava-a sem nada dizer. Craig levantou-se de um pulo e começou a andar de um lado para o outro. O quarto era tão pequeno que o cruzava em quatro passadas. Sally-Anne procurou nos bolsos e achou um lenço de papel.

- Quando fica pronto o Cessna? - perguntou Craig, continuando a andar de um lado para o outro, fazendo um estalido com a perna mecânica cada vez que se virava.

- Está pronto desde a semana passada. Já lhe disse, não é? - Sally-Anne respondeu distraída, ocupando-se de Sarah.

- Quantos passageiros pode transportar?

- O Cessna? Já o pilotei com seis adultos a bordo, mas foi um aperto. Tem permissão para... - E calou-se abruptamente. Olhouo, e para Sara em seguida, com um ar espantado. - Pelo amor de Deus, Craig, ficou louco?

- Qual a autonomia de vôo completamente carregado? - Craig ignorou a pergunta.

- Mil e duzentas milhas náuticas, com o manípulo de gasolina em autonomia máxima de vôo... mas você não pode estar falando sério.

- Bem... - Craig pensava em voz alta. - Posso arranjar lugar para um par de tambores no Land-Rover. Você pode aterrissar e reabastecer em um campo bem na fronteira; conheço um local perto de Panga Matenga, a quinhentos quilómetros ao norte daqui. É o ponto mais próximo de entrada...

- Craig, sabe o que farão conosco se nos apanharem? - A voz de Sally-Anne estava rouca com o choque.

Sarah estava com o lenço de papel no nariz, mas os olhos mudavam de um para o outro, acompanhando o diálogo.

- Armas - murmurou Craig. - Precisamos de armas. Morgan Oxford? Não, que droga, ele nos riscou da sua lista.

- Fuzis? - A voz de Sarah soava abafada pelo lenço e pelos soluços.

- Fuzis e granadas - concordou Craig. - E explosivos, se fosse possível.

- Posso conseguir fuzis. Alguns de nosso povo conseguiram escapar e estão aqui em Botsuana. Esconderam armas na floresta, durante a guerra.

- Que tipo de armas? - perguntou Craig.

- Daquele tipo que chamam de "bananas" e granadas de mão.

- Fuzis AK 47 - rejubilou-se Craig. - Sarah, você é ótima.

- Só nós dois? - Sally-Anne empalidecera ao compreender que ele realmente pretendia levar a ideia avante. - Nós dois contra toda a Terceira Brigada? É nisso que está pensando?

- Não, eu vou com vocês. - Sarah tirou o lenço do nariz. - Seremos três.

- Três, que ótimo! - disse Sally-Anne. - Três, que maravilha!

Craig virou-se para ela e continuou como se não a tivesse escutado:

- Passo um, vamos desenhar um mapa do campo de Tuti e anotar cada detalhe de que lembramos. - Recomeçou a andar de um lado para o outro. - Dois, nos encontramos com os amigos de Sarah para ver que ajuda podem nos dar. Três, Sally-Anne vai no vôo comercial até Joanesburgo e traz o Cessna de volta. Quanto tempo levaria?

- Posso voltar em três dias. - A palidez estava desaparecendo do rosto de Sally-Anne. - Isso, caso eu resolva ir!

- Ótimo! - Craig esfregou as mãos de satisfação. - Podemos começar logo com o mapa.

Craig pediu que mandassem sanduíches e uma garrafa de vinho para o quarto e trabalharam até as duas da manhã, quando Sarah partiu com a promessa de voltar no café da manhã. Craig dobrou o mapa e ambos deitaram-se em um dos leitos estreitos, cansados demais, porém, para conseguir dormir.

- Sam estava tentando me proteger - maravilhou-se Craig. - Estava fazendo aquilo por mim todo o tempo.

- Fale-me sobre ele - pediu Sally-Anne, reclinada em seu peito e ficou ouvindo-o falar do amigo. Quando ele concluiu a narrativa, perguntou com doçura:

- Então, isso é absolutamente sério?

- Seriíssimo, mas será que quer realmente me acompanhar?

- É uma loucura - respondeu -, uma completa tolice, mas vamos em frente.

A fumaça negra e fuliginosa dos sinais feitos com trapos encharcados de combustível e incendiados que Craig colocara subia em duas colunas paralelas no claro céu do deserto. Ele e Sarah estavam em cima do capô do Land-Rover, olhando para o Sul, na terra seca e selvagem do nordeste de Botsuana. A fronteira do Zimbabué ficava a trinta quilómetros a leste, uma planície árida e achatada, recoberta aqui e ali com árvores espinhentas e esparsas, manchada pela lepra esbranquiçada dos depósitos salinos.

A atmosfera produzia uma miragem rebrilhante e enganadora e as árvores na borda mais afastada da salina pareciam sobrenadar e mudar de forma como amebas no microscópio. Um demónio rodopiante de poeira surgiu na superfície branca, girando e balançando-se sinuosamente como uma bailarina de dança do ventre, subindo a sessenta metros no ar quente até desaparecer tão subitamente como surgira.

Continuavam a ouvir o som intermitente do motor do Cessna, até que se tornou contínuo.

- Lá! - Sarah apontou para um pontinho minúsculo no horizonte.

Craig deu mais uma olhada ansiosa pelo campo de pouso improvisado. Acendera os sinais assim que tinham ouvido o primeiro ruído do motor. Marcara com cuidado o terreno sólido na beira do depósito, pois a cinquenta metros adiante o solo era traiçoeiramente liso.

Ficou olhando o aparelho aproximar-se. Sally-Anne sobrevoava as árvores baobás, alinhando-se com a faixa demarcada. Passou uma primeira vez por cima, para examiná-la, deu a volta e aterríssou suavemente, taxiando em direção do Land-Rover.

- Meu Deus, me pareceu que você nunca mais chegaria. - Craig abraçou-a quando pulou da carlinga.

- Foram só três dias - protestou.

- Foi uma eternidade - disse Craig, beijando-a.

Foram abraçados até o Land-Rover. Depois que Sally-Anne cumprimentou Sarah, Craig apresentou-a aos dois matabele que estavam acocorados na sombra do carro, e que se levantaram cortesmente para saudá-la.

- Este é o Jonas e este é o Aaron. Eles nos forneceram as armas e estão nos ajudando em tudo o que podem.

Eram dois jovens reservados e sérios com olhos envelhecidos pelas coisas horríveis que haviam presenciado, mas tinham boa vontade e eram treinados.

Bombearam a gasolina dos tambores na traseira do Land-Rover diretamente para os tanques nas asas do Cessna, enquanto Craig retirava os assentos da parte de trás da cabine para reduzir o peso e dar espaço para a carga.

Começaram, então, o carregamento. Sally-Anne pesava cada coisa na balança de mola que comprara especialmente para isso e tomava nota. A munição era a parte mais pesada. Tinham oito mil pentes de balas 7.62 mm Ps. Craig passara-as da embalagem para sacos plásticos, economizando peso e espaço. Tinham estado enterrados por vários anos e muitos estavam enferrujados e inutilizados, mas exceto esses Craig examinara e testara alguns de cada caixote sem uma única falha.

A maioria dos fuzis também estava enferrujada e trabalhara noites a fio, à luz de um lampião, desarmando-os e limpando-os até conseguir vinte e cinco armas em bom estado. Tinham também cinco pistolas Tokarev e duas caixas de granadas de fragmentação que pareciam em melhores condições do que os fuzis. Craig experimentara uma de cada caixa, atirando-as num buraco de tamanduá com resultados satisfatórios. Restavam quarenta e oito das cinquenta, embalou-as em cinco sacos de lona comprados numa mercearia em Francistown.

Comprara também o resto do equipamento em Francistown. Cortadores de fiação e arame, cordas de náilon, facões panga que Jonas e Aaron haviam afiado, lanternas e baterias extras, cantis e mais uma dúzia de coisas que poderiam ser úteis. Sara fora nomeada a assistente médica e organizara uma caixa de primeiros socorros comprados na farmácia de Francistown. As rações alimentares eram espartanas: carne vegetal desidratada em pacotes de cinco quilos, a alimentação mais nutritiva em relação ao pouco peso que apresentava e alguns pacotes de sal.

- Certo, isto é tudo - Sally-Anne encerrou o carregamento. - Mais umas gramas e não conseguiremos sair do chão. O resto terá de esperar pela segunda viagem.

Ao escurecer, sentaram-se em torno da fogueira do acampamento e deliciaram-se com os bifes e as frutas frescas que trouxeram de Joanesburgo.

- Comam à vontade, meus filhos - encorajou-os. - Pode levar muito tempo antes que se coma assim outra vez.

Mais tarde, Craig e Sally-Anne levaram os cobertores para longe da fogueira e dos olhos dos outros, deitaram-se nus na noite morna do deserto e fizeram amor, sob o crescente prateado da lua, ambos dolorosamente conscientes de que poderia ser a última vez.

Quando tomaram café ainda estava escuro; a lua já se fora, mas ainda não surgira o alvorecer. Deixaram Jonas e Aaron tomando conta do Land-Rover e para ajudar com o reabastecimento e a recarga na segunda viagem, e Sally-Anne taxiou até o fim da pista quando já estava claro o suficiente para distinguir os marcos.

Mesmo no frescor da noite, o Cessna superlotado levou um tempo infindável para decolar e ascender lentamente aos primeiros raios do Sol.

- À fronteira do Zimbabué - murmurou Sally-Anne. - Ainda não posso acreditar que estamos fazendo isso.

Craig estava sentado ao lado, sobre os sacos de munição, e Sarah parecia um felino enrodilhada daquela maneira em cima da carga.

Sally-Anne inclinou o avião ligeiramente para examinar o mapa do solo. Escolhera um percurso que atravessava a estrada de ferro a uns vinte quilómetros ao sul da cidade de mineração de Wankie, e depois cruzava a estrada principal vários quilómetros adiante, evitando qualquer habitação humana. O terreno abaixo mudava rapidamente, o deserto desaparecia aos poucos e cedia lugar a áreas de floresta e clareiras cobertas de capim. Havia nuvens ao norte e o resto do céu estava limpo. Craig franziu os olhos com a claridade do Sol raiando.

- Lá está a estrada de ferro.

Sally-Anne fechou o manípulo e começou a descer rapidamente. A quinze metros do topo das árvores, passaram rugindo sobre os trilhos desertos e minutos mais tarde cruzaram a estrada principal, Viram um caminhão arrastando-se pela faixa de asfalto, e cruzaram rapidamente por trás dele ficando visíveis apenas por poucos segundos, mas Sally-Ane fez uma careta.

- Espero que não tenham dado maior importância a nós. Há um bocado de aviões pequenos cruzando por aqui. - Olhou para o relógio. - Devemos chegar em quarenta minutos.

- Está bem - disse Craig. - Vamos revisar tudo mais uma vez. Você deixa Sarah e eu e se afasta o mais rápido possível de volta à salina. Recarrega, reabastece e, daqui a dois dias, volta para cá. Se você vir um sinal de fumaça, pode aterrissar. Se não houver sinal, volta para a salina, dá um intervalo de dois dias e faz a última viagem. Se não houver novamente o sinal combinado, volta e não faz nenhuma outra tentativa.

- Craig, não diga uma coisa dessas. Por favor, querido, volte" para mim - disse Sally-Anne, segurando-lhe a mão.

Ficaram de mãos dadas pelo resto da viagem, exceto pelos poucos momentos em que precisou das duas para usar os controles.

- Lá está!

O rio Chizarira parecia uma serpente verde-escura atravessando a vasta planície e via-lhe o brilho da água através das árvores.

- O Águas do Zambeze está logo adiante.

Mantiveram-se afastados dos acampamentos que haviam construído com tanto carinho, mas ambos olharam melancolicamente para as colinas adormecidas que pontilhavam o horizonte.

Sally-Anne desceu cada vez mais e fez um giro amplo, mantendo as colinas entre eles e as construções do Águas do Zambeze.

- Ainda estão aí! - As carcaças dos rinocerontes tinham sido devoradas pelos predadores e secadas pelo Sol.

Sally-Anne verificou os instrumentos e dirigiu-se para a estreita pastagem ao longo da entrada da garganta onde já aterrissara antes.

- Rezem para que os tamanduás e os javalis não tenham andado por aqui - murmurou e o Cessna sobrecarregado avançou com o aviso de perda de velocidade piscando intermitente.

Sally-Anne inclinou o avião por sobre o topo das árvores e tocou o solo com uma forte pancada. O Cessna pulou e escoiceou sobre o terreno irregular, mas o freio de segurança e a grama espessa fizeram-no parar rapidamente.

- Graças a Deus! - Sally-Anne suspirou aliviada. Descarregaram com pressa febril, empilhando tudo e cobrindo com redes de náilon verde usadas para proteger do Sol mudas recém-cortadas que Craig descobrira em Francistown. Sally-Anne e Craig trocaram olhares desolados.

- Oh, Deus, eu odeio isso! - ela exclamou.

- Eu também... Vá logo! Vá depressa, por favor. Trocaram um beijo e ela correu de volta à cabine. Taxiou até o fim da clareira e voltou a toda velocidade seguindo a própria trilha. O avião aliviado da carga subiu rapidamente, e a última visão que teve dela foi o rosto pálido na janela virando-se para ele e desaparecendo entre as árvores.

Craig esperou até que o último ruído do motor sumisse e o silêncio da floresta os envolvesse. Pegou o fuzil e a mochila e jogouos sobre os ombros. Olhou para Sarah que estava de jeans e ténis azuis. Carregava o saco de comida e os cantis, com uma Tokarev enfiada no cinto.

- Pronta?

Ela assentiu e começou a caminhar atrás dele em passo acelerado. Chegaram ao rochedo no início da tarde e, do alto, Craig olhou para os alojamentos do Águas do Zambeze à beira do rio.

Essa era a parte perigosa, mas acendeu a fogueira de sinalização e, junto com Sarah, preparou uma emboscada na trilha de acesso, caso a fumaça trouxesse visitantes indesejáveis.

Sarah e ele esconderam-se e nenhum dos dois moveu-se ou falou por três horas. Só os olhos mantinham-se ocupados, vigiando os declives por trás e acima da floresta.

E, mesmo assim, foram apanhados desprevenidos. A voz era um sussurro áspero em sindebele, perto, muito perto.

- Ah! Kuphela. Então, trouxe o meu dinheiro. - O rosto do camarada Sentinela, cheio de cicatrizes, os espiava. Estava a cerca de dez passos sem que tivessem percebido. - Pensei que tivesse nos esquecido.

- Não há dinheiro para vocês, mas um trabalho duro e perigoso.

Havia três homens com ele, magros e com fisionomias lupinas. Apagaram a fogueira de sinalização e espalharam-se pela floresta em formação defensiva para cobrir a marcha.

- Temos que continuar - explicou o camarada Sentinela.

- Aqui estamos a descoberto e os shona nos acuam como cães de caça. Desde que nos vimos pela última vez, perdi muitos homens. O camarada Dólar foi capturado.

- Sim. - Craig lembrava-se dele, espancado e enlameado, testemunhando contra ele naquela noite terrível em King's Lynn.

Marcharam por duas horas em direção norte pelo terreno irregular ao longo das escarpas do grande rio. O caminho era aberto para eles e vigiado pelos batedores que sempre estavam invisíveis na floresta à frente. Só os sinais que faziam imitando os pássaros os guiavam e faziam com que se sentissem seguros.

Chegaram afinal ao acampamento da guerrilha. Havia mulheres junto aos pequenos braseiros sem fumaça e uma delas correu para abraçar Sarah assim que a viu.

- É a filha mais moça de minha tia - explicou Sarah em sindebele, que tanto ela quanto Craig falavam exclusivamente agora.

O acampamento era um local pouco confortável e tristonho, uma série de cavernas primitivas na margem em declive acentuado de um rio seco e ocultas por galhos de árvores, com aspecto de coisa temporária. Não havia qualquer conforto e todo o equipamento podia ser preparado em minutos para ser levado embora. As mulheres tinham as mesmas fisionomias sérias dos homens.

- Nunca permanecemos no mesmo lugar - explicou Sentinela. - Os kanka conseguem ver-nos do ar se fazemos isso. Mesmo que não se use o mesmo caminho, nossos pés logo deixam trilhas e é por esses sinais que procuram. Vamos ter que sair daqui logo.

As mulheres trouxeram-lhes comida e Craig viu como estava esfomeado e cansado, mas, antes de comer, deu-lhes as caixas de cigarros que trouxera. Viu aqueles homens amargurados sorrirem pela primeira vez enquanto passavam de mão em mão um único cigarro.

- Quantos homens tem o seu grupo?

- Vinte e seis. - O camarada Sentinela deu uma tragada e passou o cigarro adiante. - Mas há outro grupo próximo daqui.

Vinte e seis eram suficientes, refletiu Craig. Se pudessem explorar o elemento surpresa, seria o bastante.

Comeram com as mãos do pote comunal e Sentinela consentiu que fumassem mais um cigarro.

- Bem, Kuphela, disse que tinha um trabalho para nós.

- O camarada ministro Tungata Zebiwe foi aprisionado pelos shona.

- É uma coisa terrível, uma punhalada no coração do povo matabele; mas, mesmo aqui na floresta, já sabemos disso há muitos meses. Veio até cá para nos contar uma coisa que todo mundo já sabe?

- Eles o estão mantendo vivo em Tuti.

- Tuti! Nossa! - O camarada Sentinela soltou uma exclamação e todos falaram ao mesmo tempo.

- Como sabe disso?

- Ouvimos dizer que foi morto. - Isso é conversa de comadres.

Craig olhou para Sarah, sentada afastada com as mulheres.

- Sarah! - E ela aproximou-se.

- Conhecem esta mulher?

- É prima de minha mulher - disse um dos guerrilheiros.

- E a professora da missão - anuiu o camarada Sentinela.

- E uma de nós - concluiu um outro.

- Conte-lhes - ordenou-lhe Craig.

Escutaram silenciosos e atentos enquanto Sarah relatava o último encontro com Tungata, com olhos rebrilhantes à luz do braseiro e, quando acabou, ficaram em silêncio. Sarah levantou-se sem nada dizer e foi para junto das outras mulheres, enquanto o camarada Sentinela virava-se para um dos homens.

- Fale! - convidou-o.

Havia escolhido o mais moço deles para dar opinião em primeiro lugar. Os outros falariam por ordem de idade, de acordo com o antigo costume do conselho tribal e levaria tempo. Craig preparou-se pacientemente: era o ritmo da África.

Depois da meia-noite, Sentinela fez um resumo por eles.

- Conhecemos esta mulher, que é de confiança, e acreditamos no que nos contou. O camarada Tungata é nosso pai. Seu sangue é o sangue dos reis e os shona fedorentos o mantêm prisioneiro. Todos concordamos com isso. - E fez uma pausa. - Alguns estão dispostos a tentar livrá-lo dos shona estupradores de crianças e outros dizem que somos muito poucos, que só temos um fuzil para cada dois homens e cinco balas para cada fuzil. Portanto, estamos divididos. - E olhou para Craig. - O que tem a dizer, Kuphela?

- Trouxe para vocês oito mil pentes de munição, vinte e cinco fuzis e cinquenta granadas. O camarada Tungata é meu amigo e meu irmão. Se houver apenas mulheres e covardes aqui, e ninguém que me acompanhe, irei sozinho com esta mulher de coração valente como o de um guerreiro e acharei homens em outro lugar.

O rosto de Sentinela refletiu a afronta, repuxado pela cicatriz, e a resposta que deu era de reprovação.

- Que não se fale mais em mulheres e covardes, Kuphela. Que não se diga mais nada. Vamos a Tuti fazer o que é preciso. É o que tenho a dizer.

Acenderam o fogo de sinalização assim que ouviram o motor do Cessna e o extinguiram assim que Sally-Anne piscou as luzes de aterrissagem. Os guerrilheiros de Sentinela tinham cortado o capim da clareira com as facas panga e nivelado com ele os buracos e trechos irregulares e a aterrissagem foi tranquila e segura.

Descarregaram o resto da munição e das armas em silêncio disciplinado, mas não podiam esconder os sorrisos de satisfação ao fazê-lo, já que eram as ferramentas de seu trabalho. A carga desapareceu rapidamente na floresta, e em quinze minutos Craig e Sally-Anne ficaram sozinhos sob a asa do Cessna.

- Sabe para que rezei? - perguntou Sally-Anne. - Para que não conseguisse achar o bando e, se os encontrasse, para que se recusassem a acompanhá-lo, e que fosse forçado a desistir e voltar comigo.

- Você não é muito boa com orações, não é?

- Não sei. Vou adquirir um bocado de prática nesses próximos dias.

- Cinco dias - corrigiu-a Craig. - Você vai voltar na terça de manhã.

- Sim - concordou ela. - Vou decolar ainda escuro e sobrevoar o campo de pouso de Tuti ao amanhecer às 05h22.

- Mas não aterrisse antes que eu faça um sinal de que estamos controlando a pista. E, pelo amor de Deus, não fique com pouco combustível para voltar à salina. Se não aparecermos, não se demore esperando.

- Tenho autonomia para três horas, o que significa que vocês têm até as 8h30 para chegar lá.

- Se não chegarmos até essa hora, não vamos conseguir. Já está na hora de ir, meu amor.

- Eu sei - disse-lhe Sally-Anne, e não se moveu.

- Eu tenho que ir.

- Não sei como vou sobreviver pelos próximos dias, sentada lá no deserto, sem saber de nada, vivendo só de meus medos e imaginação.

Ele a abraçou e viu que ela estava trémula.

- Tenho tanto medo por você - ela sussurrou.

- Vejo você na terça de manhã, sem falta.

- Sem falta! - concordou e a voz ficou trémula. - Volte para mim, Craig. Não quero viver sem você. Promete que volta?

- Prometo - ele disse, beijando-a.

- Bom, estou me sentindo bem melhor. - Sorriu-lhe com o ar atrevido de sempre, mas os cantos da boca tremiam.

Subiu na cabine e ligou o motor.

- Eu te amo. - Os lábios formaram as palavras que o barulho impedia-o de ouvir e virou o Cessna, tomando a pista sem olhar para trás.

Eram apenas cem quilómetros no mapa, e do avião não parecera terreno duro. Mas no solo era diferente.

Estavam cruzando o âmago da região, e a linha divisória entre a terra e as águas caía da direita para a esquerda, em direção às escarpas do Zambeze. Eram forçados a seguir o ziguezague das colinas e os vales intermediários e nunca atravessavam terreno nivelado.

Os guerrilheiros haviam escondido as mulheres em um lugar seguro e só relutantemente consentiram que Sarah os acompanhasse, mas ela carregava a porção que lhe cabia de carga e seguia o passo acelerado imprimido pelo camarada Sentinela.

As colinas de minério de ferro absorviam o calor do Sol e o irradiavam de volta, enquanto esforçavam-se através delas. As descidas eram tão duras como as subidas, com a pesada carga forçando ao máximo os corpos. As velhas trilhas de elefantes que estavam seguindo eram cobertas de seixos arredondados trazidos pelas chuvas, o que tornava cada passo um perigo.

Um dos guerrilheiros caiu e o tornozelo inchou tanto que não conseguiram recolocar-lhe a bota. Dividiram sua carga entre eles e o deixaram sozinho, tentando voltar para onde estavam as mulheres.

As minúsculas abelhas mopani os atormentavam durante o dia, enxameando-lhes a boca, o nariz e os olhos na busca persistente por umidade, e de noite os mosquitos dos lençóis d'água estagnada os atacavam. Em um trecho do caminho, passaram à beira do cinturão de moscas tsé-tsé e os insetos, silenciosos e imperceptíveis, vieram somar-se aos outros tormentos, pousando tão suavemente que a vítima só os percebia ao sentir como que uma agulha incandescente enterrando-se na carne macia por trás da orelha ou na axila.

O perigo de sofrerem um ataque era permanente. A cada poucos quilómetros, a vanguarda ou a retaguarda dava sinal de alerta e atiravam-se rapidamente à procura de abrigo, com o dedo no gatilho até que fosse dado de homem a homem o aviso de que tudo estava bem.

O percurso era lento e estafante - dois dias inteiros de marcha desde o amanhecer gelado, durante o dia ressequido e ardente até a escuridão de novo, para alcançar a aldeia do pai de Sarah, Vusamanzi, um feiticeiro da tribo matabele. Como todos os outros curandeiros, vivia isolado e cercado apenas pelas esposas, família e pessoas mais chegadas. Por maior que fosse o respeito por eles, o comum dos mortais evitava os praticantes de magia negra; vinham até eles apenas para previsões de futuro e tratamentos, davam-lhes a cabra ou outro animal pedido como pagamento e apressavam-se em partir, aliviados.

A aldeia ficava a alguns quilómetros ao norte da Missão Tuti e possuía uma próspera comunidade no topo de uma colina, com muitas esposas, cabras, galinhas e plantações de milho pertencentes a Vusamanzi.

Os guerrilheiros acamparam na floresta atrás do morro e mandaram Sarah certificar-se de que tudo estava bem e avisar os aldeões de sua presença. Sarah retornou uma hora depois, e Craig e Sentinela voltaram junto com ela.

Vusamanzi ganhara aquele nome, "Levantador de águas", por sua reputada habilidade em controlar o Zambeze e seus afluentes. Quando muito jovem, provocara uma grande enchente para destruir a aldeia de um chefete que não lhe pagara e, desde então, vários outros que o desagradaram tinham se afogado misteriosamente em vaus ou poços. Dizia-se que, por invocação de Vusamanzi, a superfície calma de um lençol d'água subia de repente em uma onda sibilante quando a vítima aproximava-se para beber água, tomar banho ou atravessá-lo, e era tragada. Nenhum ser vivo havia na verdade testemunhado o terrível fenómeno, mas, de qualquer forma, Vusamanzi não tinha muito trabalho em cobrar dos pacientes e clientes.

Seus cabelos eram como uma touca de algodão branco e usava uma barbicha, branca também, em feitio de espada, à moda dos zulu. Sarah devia ser uma filha já de sua velhice, mas era dele que herdara a bela aparência de porte altivo. Estava vestido com simplicidade, apenas um pano preso aos quadris, o corpo era ereto e magro, e a voz, ao saudar Craig cortesmente, profunda e firme.

Sarah obviamente o venerava, pois tirou o pote de cerveja de uma das esposas mais jovens, ajoelhando-se para oferecê-lo. Por sua vez, vía-se também que tinha um lugar especial no coração do velho, que lhe sorriu afetuosamente, quando ela sentou-se a seus pés, e começou a acariciar-lhe a cabeça enquanto escutava atentamente o que Craig dizia. Mandou-a, em seguida, ajudar as mulheres a preparar comida e cerveja e levá-las para os guerrilheiros escondidos no vale, antes de dirigir-se a Craig.

- O homem a quem chama de Tungata Zebiwe, "O que procura a justiça", tinha ao nascer o nome de Samson Kumalo. É descendente em linha direta de Mzilikazi, o primeiro rei e pai de nosso povo. É a ele que se referem as profecias dos antigos. Na noite em que foi feito prisioneiro pelos soldados shona, eu o havia chamado para conversarmos sobre suas responsabilidades e queria transmitir-lhe os segredos dos reis. Se ainda está vivo, como diz minha filha, é dever de todo matabele fazer tudo o que esteja em seu poder para dar-lhe a liberdade. O futuro de nosso povo está em suas mãos. Como posso ajudá-lo? É só me dizer.

- Já nos ajudou com alimento - agradeceu-lhe Craig. - Agora, precisamos de informações.

- Pergunte, Kuphela. Direi tudo o que souber.

- A estrada entre a Missão Tuti e o acampamento dos soldados passa perto daqui, não é?

- Atrás dessas colinas - acentuou o velho.

- Sarah me contou que os caminhões passam por essa estrada toda semana no mesmo dia, levando comida para os soldados e prisioneiros no acampamento.

- É verdade. Toda semana, ao entardecer de segunda-feira, os caminhões passam por aqui carregados de milho e outras coisas e voltam vazios na manhã seguinte.

- Quantos caminhões?

- Dois ou, raramente, três.

- Quantos soldados os guardam?

- Dois na frente, ao lado do chofer, e mais três ou quatro na traseira. Um fica no telhado com uma arma grande que dispara depressa. - Uma metralhadora pesada, pensou Craig. - Os soldados são muito vigilantes e alertas e os caminhões passam depressa.

- Passaram na última segunda? - perguntou Craig.

- Como sempre. - Vusamanzi alisou os cabelos brancos. Tinha de acreditar que essa rotina continuaria, ir em frente com a operação, e jogar tudo nela, decidiu Craig.

- A que distância daqui fica a missão? - perguntou.

- Daqui até lá. - O feiticeiro fez um gesto abarcando um trecho do céu que correspondia a umas quatro horas de percurso do Sol. Transformados na velocidade de um homem a pé, corresponderia aproximadamente a uns vinte e quatro quilómetros.

- E daqui até o acampamento? - continuou Craig.

- A mesma distância.

- Ótimo. - Craig abriu o mapa e verificou que estavam equidistantes entre os dois pontos, o que lhe dava um cálculo bastante acurado. Começou a calcular tempos e distâncias, escrevendo-os na borda do mapa.

- Temos de esperar um dia. - Craig levantou finalmente os olhos. - Os homens podem descansar e preparar-se.

- Minhas mulheres lhes darão comida - concordou Vusamanzi.

- Na segunda-feira vou precisar que algumas pessoas daqui me ajudem.

- Só há mulheres aqui - objetou o velho.

- Preciso exatamente delas; de mulheres jovens e bonitas.

Na manhã seguinte, Craig e Sentinela, levando junto um batedor, foram fazer um reconhecimento no trecho da estrada que ficava logo por trás das colinas baixas. Era um caminho maltraçado onde os caminhões haviam aberto sulcos profundos, mas a Terceira Brigada cortara a vegetação de ambos os lados para diminuir o risco de emboscadas.

Um pouco antes do meio-dia, chegaram ao local em que Fungabera parara na primeira viagem que haviam feito a Tuti, o cruzamento onde a ponte de madeira atravessava por sobre o rio verde e onde haviam comido espigas de milho assadas.

Craig lembrava-se perfeitamento do local. Os acessos à ponte, primeiro descendo a encosta do vale e depois sobre a passagem de terra estreita, deviam obrigar o comboio de suprimentos a diminuir e trocar a marcha. Era o lugar perfeito para uma emboscada, e Craig mandou o batedor de volta à aldeia de Vusamanzi para trazer o resto da força. Enquanto esperavam, Craig e Sentinela revisaram os planos e os adaptaram ao terreno local.

O ataque principal seria desfechado na ponte, mas se falhasse tinham que ter um plano alternativo para evitar que o comboio conseguisse furá-lo. Quando os guerrilheiros retornaram, Craig mandou o camarada Sentinela com cinco homens para além da ponte lá, fora do alcance de visão, cortaram uma grande árvore mhoba-hoba e com ela fizeram um bloqueio na estrada. Sentinela ficaria no comando ali, enquanto Craig coordenaria o ataque na ponte.

- Quais destes homens falam shona? - perguntou Craig.

- Este aqui fala sem qualquer sotaque e este não tão bem.

- Mantenha-os fora de qualquer combate. Não podemos nos arriscar a perdê-los - ordenou. - Precisamos deles no acampamento.

- Vou tomar conta deles - concordou Sentinela.

- Agora, as mulheres.

Sarah escolhera três de suas meio-irmãs da aldeia, cujas idades variavam entre dezesseis e dezoito anos.

Eram as mais bonitas dentre as inúmeras filhas do velho feiticeiro e, quando Craig explicou-lhes o que deviam fazer, riram sem parar, cobrindo as bocas com as mãos e fazendo todos os trejeitos de recato e pudor juvenis. Mas estavam, obviamente, adorando a aventura, nada de tão excitante lhes havia acontecido antes.

- Será que estão compreendendo? - perguntou Craig a Sarah. - É muito perigoso e devem fazer exatamente o que eu mandar.

- Vou estar junto a elas - sossegou-o Sarah. - O tempo todo, inclusive, e especialmente hoje à noite. - Essa última observação era para as moças, pois percebera claramente os olhares mútuos trocados entre as irmãs e os jovens guerrilheiros. Fê-las entrar, rindo ainda, no abrigo primitivo de galhos espinhentos que as obrigara a fazer e acomodou-se à entrada.

- Os espinhos são suficientes para afastar um leão devorador de homens, Kuphela - disse a Craig -, mas não sei como funcionarão com um garanhão de espada levantada e uma donzela disposta a abaixá-la. Acho que não vou conseguir dormir muito esta noite.

E Craig também passou a noite sem dormir. Teve pesadelos outra vez, os sonhos terríveis que quase o haviam enlouquecido durante a longa convalescença do campo minado a da perda da perna. Estava preso neles e incapaz de recobrar a consciência até que Sarah o sacudiu para acordá-lo. Tremia tanto que os dentes batiam e o suor escorria, ensopando-lhe a camisa. Sarah compreendia. Compassiva,sentou-se a seu lado e segurou-lhe a mão até que os tremores cessassem, e conversaram a noite inteira, falando baixo para não acordar os outros. Falaram de Tungata e Sally-Anne, o que desejavam da vida e as chances de obtê-lo.

- Quando me casar com o camarada ministro, poderei falar por todas as mulheres matabele. Sempre foram tratadas como escravas pelos homens. Mesmo hoje em dia, eu, que sou uma enfermeira treinada e uma professora, tenho de comer junto à fogueira das mulheres. E depois, haverá outra campanha a fazer, a luta para conquistar o lugar a que têm direito as mulheres de minha tribo e ver seu verdadeiro valor ser reconhecido.

Craig descobriu que o afeto que sentia por Sarah estava começando a se igualar ao respeito. Percebeu que era uma mulher à altura de um homem como Tungata Zebiwe. Enquanto conversavam, conseguiu dominar o medo que tinha do dia seguinte e a noite passou tão depressa que ficou surpreso ao olhar as horas.

- Quatro horas - sussurrou. - Já é tempo de nos mexermos. Obrigado, Sarah, não sou um homem corajoso e preciso de sua ajuda.

Ela levantou-se e olhou-o por um instante.

- Está sendo injusto com você mesmo. Acho que é um homem muito corajoso.

O sol estava alto e Craig instalara-se entre dois penedos, quase na divisa das extremidades da ponte, na margem do rio. Empunhava o AK 47, cobrindo toda a área. Calculara a distância que era de cento e dez metros de uma extremidade a outra. Daquela distância, sabia que suas chances de acertar o alvo com precisão eram limitadas.

Meu Deus, tomara que não seja necessário abrir fogo, pensou, e correu o lugar demarcado com um olhar inquieto. Havia quatro guerrilheiros sob a ponte, nus da cintura para cima. Apesar de estarem com os fuzis apoiados nas pilastras e ao alcance das mãos, estavam armados com arcos de um metro e meio de altura, que serviam para caçar elefantes. Craig tivera dúvidas sobre essas armas até que vira uma demonstração. Eram de madeira resistente e elástica, enroladas com tiras de couro cru de kudu que secavam e encolhiam no próprio arco até o tornarem duro como aço. As cordas eram em tendão trançado, quase tão resistente como náilon e, mesmo com toda a força, Craig não conseguira esticá-lo em toda a extensão. A tração exigia um esforço de mais de cinquenta quilos, o que exigia dedos calejados e músculos bem desenvolvidos.

As flechas eram de aço liso, extremamente afiado na ponta e um dos guerrilheiros, à distância de trinta passos, cravara-a no tronco fibroso e espesso de uma baobá, obrigando-os a usar um machado para que saísse. Era capaz de atravessar um ser humano adulto ou perfurar o peito de um elefante.

Além dos quatro guerrilheiros sob a ponte, outros dez homens estavam ajoelhados na água, perto da margem, apenas com as cabeças aparecendo, protegidos pelo declive abrupto e pelos juncos.

O ruído dos motores dos caminhões que se aproximavam mudou, haviam trocado a marcha na ladeira antes do topo. Craig examinara-a pessoalmente à procura de algum indício da presença deles, sentindo voltar o velho treinamento na polícia rodesiana: vegetação amassada, brilho de metal, pegadas nas areias brancas das margens ou à beira da estrada, e nada encontrara.

- Temos de começar agora - disse Sarah. - Ela e as irmãs estavam agachadas por trás da rocha a seu lado. Estava certa, era tarde demais para mudar de planos, para fazer outros arranjos. Eram prisioneiros do esquema.

- Já - disse, e levantou, tirando os jeans. Foi rapidamente imitada pelas irmãs que despiram os panos enrolados nos quadris.

As quatro ficaram nuas, exceto pelas tangas, de contas minúsculas formando franjas, amarradas na cintura, que caíam sobre os púbis, mas que ao andarem revelavam mais do que encobriam. As nádegas roliças estavam desnudas e tentadoras, destacando-se das cinturas finas.

- Riam! Brinquem bastante - disse Craig.

Não sentiam a menor vergonha da nudez. Nas áreas rurais, aquele era ainda o traje quotidiano das moças solteiras matabele. Até Sarah o usara antes de ir para a cidade estudar.

Jogaram água umas nas outras, as peles lustrosas e escuras brilhavam e as risadas eram excitadas e meio arquejantes, o que atrairia a atenção de qualquer homem, mas Craig constatou que os guerrilheiros não se deixaram afetar. Nem ao menos haviam virado a cabeça para olhar. Eram profissionais e toda a sua atenção estava voltada para a perigosa tarefa a desempenhar.

O caminhão líder surgiu no alto da ladeira. Era uma Toyota de, cinco toneladas, semelhante ao que os perseguira pela fronteira da Botsuana, pintado na cor de areia. Havia um soldado atrás da metralhadora montada na traseira. Um segundo caminhão, muito carregado, vinha logo atrás.

- Que não haja um terceiro. Que sejam apenas dois - suplicou Craig. Colocou o AK 47 ao ombro para mirar, com o cano camuflado por capim seco e o rosto esfregado com a lama escura do rio.

Havia apenas dois subindo pela passagem. Sarah e as irmãs, com as águas esverdeadas até os joelhos, começaram a acenar para eles. O caminhão à frente diminuiu a marcha e as moças balançaram os quadris, soltaram risadas provocantes e agitaram os seios molhados e lustrosos.

Havia dois homens na cabine e um deles era um oficial subalterno; Craig podia ver o distintivo da boina e as divisas brilhantes nos ombros mesmo através do pára-brisa empoeirado. Falou com o chofer e, com um ranger de freios, o caminhão da frente parou à entrada da ponte, forçando o segundo a parar também.

O jovem oficial abriu a porta e ficou no estribo, enquanto os soldados e o artilheiro amontoavam-se na traseira sorrindo e gritando comentários irreverentes. As moças, seguindo o exemplo de Sarah, mergulharam pudicamente para encobrir a parte inferior do corpo e respondiam aos gracejos. Alguns soldados do segundo caminhão, para não ficarem atrás, saltaram para juntar-se à diversão.

Uma das moças mais velhas fez um gesto obsceno e malicioso com o polegar e o indicador, provocando um coro deleitado de risadas masculinas. O jovem oficial respondeu com um gesto ainda mais específico e o resto dos soldados deixou os caminhões, amontoando-se em torno dele. Apenas os dois artilheiros continuavam nos postos.

Craig lançou um olhar para a parte inferior da ponte onde, deitados de bruços, os arqueiros preparavam-se para disparar na margem mais afastada, ocultos atrás da estrutura de madeira.

No rio, Sarah levantou-se, soltando a diminuta franja de contas, e balançou-a provocantemente. Começou a caminhar em direção aos homens na margem, com a água flutuando em torno dos quadris, e as risadas cessaram. Caminhava lentamente e a correnteza exagerava o ondular das cadeiras. Era esbelta, bonita, e o Sol emprestava-lhe um brilho quase sobrenatural à pele. Até Craig podia sentir o humor irreverente dos soldados transformar-se em desejo.

Sarah parou logo abaixo deles, e levantou os seios com as mãos, apontando-lhes os bicos. Todos ficaram concentrados nela, naquele instante, completamente deslumbrados.

Por trás deles, os quatro arqueiros haviam rastejado sob a passagem e não estavam a mais de dez passos ao lado do caminhão da frente quando ajoelharam-se todos juntos e fizeram pontaria. Os arcos retesaram-se, os músculos saltaram ao mirarem as flechas e, um a um, dispararam.

Não se ouviu um único som, nem mesmo o mais ligeiro sibilar, mas um dos artilheiros caiu lentamente sobre a borda do caminhão, com os braços e a cabeça dependurados para fora, enquanto o outro arqueou-se para trás estupefato e tentou agarrar a flecha enterrada nas costas. Foi atingido por outra, teve uma convulsão de agonia e tombou.

Os arqueiros mudaram de alvo e as flechas silenciosas voaram em direção à margem onde estavam os soldados. Um homem gritou. No mesmo instante, os guerrilheiros escondidos na margem subiram correndo por entre os juncos, assim que os soldados viraram-se para enfrentar as flechas. Os guerrilheiros nus os atacaram pelas costas e daquela vez Craig ouviu os ruídos dos longos facões panga sendo brandidos. Um facão, penetrando pela boina vermelha, dividiu ao meio o crânio do oficial até o queixo.

Sarah virou-se e correu de volta, juntando-se às outras moças. Fugiram tropeçando nos bancos de areia submersos.

Houve um único disparo e logo todos os soldados estavam estirados ao longo da margem, mas os guerrilheiros ainda os atacavam, balançando os facões e retalhando-os.

- Sarah - gritou Craig quando ela chegou à margem -, leve as moças de volta à floresta! - Sarah agarrou as roupas e foi levando as irmãs à sua frente.

Empunhando o fuzil, Craig atravessou a ponte. Os guerrilheiros já estavam despindo e pilhando os mortos. Trabalhavam com a agilidade da longa prática, primeiro os relógios e depois o conteúdo dos bolsos e cartucheiras.

- Alguém foi ferido? - perguntou Craig. Aquele único tiro o preocupara, mas não havia baixas. Deu-lhes dois minutos para terminarem com os cadáveres e mandou em seguida uma patrulha até o alto para prevenir qualquer surpresa, voltando a ocupar-se dos shona mortos.

- Enterrem-nos! - Já haviam preparado um túmulo coletivo na véspera e arrastaram para lá os corpos nus.

Havia sangue no lado do caminhão onde tombara o artilheiro.

- Lavem-no! - Um dos guerrilheiros trouxe um cantil. - E lavem também aqueles uniformes. - Estariam secos em uma hora.

Sarah voltou antes do enterro, já completamente vestida.

- Mandei as meninas de volta à aldeia pois conhecem bem o caminho. Vão ficar a salvo.

- Saiu-se muito bem - Craig disse, e subiu à cabine do primeiro caminhão que ainda estava com as chaves no contato.

O grupo que havia feito o enterro voltou e Craig chamou os líderes. O guerrilheiro designado para dirigir o segundo caminhão ligou o motor e os outros embarcaram. Os caminhões cruzaram a ponte e foram gemendo ladeira acima. Toda a operação levara menos de trinta e cinco minutos. Chegaram ao tronco derrubado e o camarada Sentinela guiou-os para a trilha fora da estrada. Craig estacionou na mata espessa e imediatamente um grupo de guerrilheiros cobriu os veículos com galhos cortados e outro começou a descarregá-los e a desobstruir a estrada.

Havia duzentos sacos de farinha de milho, sabão, caixas de carne enlatada, cobertores, remédios, cigarros, munição, açúcar, sal - um verdadeiro tesouro para os guerrilheiros. Levaram tudo embora e Craig sabia que seria escondido, e recuperado mais tarde quando fosse propício. Havia uma dúzia de sacos com os pertences pessoais dos soldados mortos, um estoque precioso de uniformes da Terceira Brigada e até duas das famosas boinas vermelhas. Enquanto os guerrilheiros os vestiam, Craig verificou a hora: era um pouco mais de cinco.

Notara quando estivera lá que o operador de rádio do campo Tuti ligava o gerador e fazia o relatório de rotina às sete horas toda noite. Verificou o rádio do caminhão que era de cinco amperes, mais que suficiente para atingir o campo, mas não o bastante para contatar o quartel-general em Harare, o que era muito bom.

Chamou o camarada Sentinela e Sarah à cabine para verificarem juntos as anotações. Sally-Anne estaria sobre a pista de Tuti às 5h20 da manhã seguinte e ficaria por lá até as 8h30. Craig calculava umas três horas de viagem desde o acampamento até a pista da missão, o que incluía falhas ou pequenos atrasos. Deveriam, em princípio, sair de lá às 2h30 da madrugada e no máximo, até as 5, o que significava que tinham de chegar aos portões do campo à meia-noite ou em torno disso. Duas horas e meia para tomar a posição, reabastecer os caminhões, libertar os prisioneiros, localizar Tungata e iniciar o retorno.

- Muito bem - disse Craig -, quero que cada grupo repita sua tarefa. Sarah, você, primeiro...

- Levo os dois comigo com os cortadores e vamos direto para o alojamento Um. - Designara dois homens para acompanhá-la pois Tungata podia estar fraco demais para caminhar sem ajuda. O alojamento Um ficava um pouco afastado dos outros, na parte de trás, e era obviamente usado como a cela de segurança máxima. Sarah vira Tungata sair de lá para o encontro no pátio de manobras. - Quando o encontrarmos, vamos trazê-lo de volta ao ponto de encontro no portão principal. Se puder caminhar sem ajuda, meus dois homens vão ajudar a abrir as outras celas e libertar os prisioneiros.

- Ótimo. - Estava perfeitamente instruída.

- Agora, o segundo grupo.

- Cinco homens para a torre de guarda do perímetro... - E o camarada Sentinela repetiu as instruções.

- E tudo. - E Craig levantou-se. - Mas tudo depende de uma coisa que já repeti umas cem vezes, e que torno a dizer. Precisamos chegar ao rádio antes que comecem a transmitir. Temos cinco minutos desde o instante em que dispararmos o primeiro tiro, dois minutos para que o operador perceba o que está acontecendo, dois minutos para ligar o gerador elétrico e pô-lo em funcionamento, e outro minuto para comunicar-se com o quartel-general em Harare e avisá-los. Se isso acontecer, estamos liquidados. - Verificou o relógio. - Sete e cinco, vamos fazer a chamada agora. Onde está o homem que fala shona?

Craig instruiu-o cuidadosamente sobre o que devia dizer e ficou aliviado ao ver que era inteligente.

- Digo a eles que o comboio está atrasado pois um dos caminhões quebrou, mas pode ser consertado. Que vamos chegar muito mais tarde hoje à noite - repetiu.

- Exatamente.

- Se começarem a fazer perguntas, devo responder: "Mensagem não entendida. Sua transmissão ruim e pouco clara". Torno a repetir, "Chegando atrasados", e desligo.

Craig ficou ouvindo ansiosamente a mensagem transmitida pelo guerrilheiro, ouvindo os sons incompreensíveis do operador do campo Tuti, mas foi incapaz de detectar qualquer suspeita ou alarme na voz distorcida pela transmissão.

O guerrilheiro desligou e entregou o microfone de volta a Craig.

- Ele disse "entendido" e que nos esperam à noite.

- Ótimo. Agora, podemos descansar e comer um pouco.

Mas Craig não conseguiu comer. O estômago, com a tensão da noite que os esperava e a reação à terrível violência na ponte, incomodava-o. Aqueles panga brandidos com ódio haviam infligido mutilações horrendas. Muitas vezes, durante a longa guerra civil, testemunhara as piores formas de morte, mas não se acostumara a isso e sempre o deixavam nauseado.

O luar está claro demais, pensou, ao espiar por sobre a cobertura de lona do caminhão. Faltavam quatro dias para a lua cheia, mas a claridade era tanta que lançava sombras nítidas na terra. O caminhão pulava e sacolejava sobre os trilhos ruins e a poeira cerrava-lhe a garganta.

Não ousara viajar na cabine, nem mesmo com o rosto enegrecido. Alguém de visão mais aguda o teria distinguido facilmente. O camarada Sentinela viajava ao lado do motorista, vestido com o uniforme completo do oficial subalterno, de boina e divisas. Ao lado dele estava o homem que falava shona, com a outra boina. As metralhadoras pesadas estavam carregadas e prontas, manobradas por dois homens escolhidos, e outros oito, vestidos nos uniformes pilhados, viajavam a descoberto, enquanto o resto estava agachado junto a Craig, sob o toldo de lona.

- Até aqui, tudo bem - murmurou Sarah.

- Até agora - concordou Craig -, mas prefiro maus começos e fins felizes...

Ouviram três batidas vindas da cabine. Era o sinal do camarada Sentinela para avisar que o campo estava à vista.

- Bem, de qualquer maneira, lá vamos nós. - Craig virou-se para espiar pelo buraco que fizera na lona.

Avistou as torres de vigia, parecendo torres de petróleo contra o céu luminoso e a cintilação ocasional do arame farpado. Mas subitamente os holofotes em torno do campo acenderam-se com um brilho cegante. Todo o acampamento parecia iluminado pela luz do dia.

- O gerador - gemeu Craig. - Meu Deus, acenderam os holofotes para nos dar boas-vindas.

Era o primeiro erro. Planejara tudo para a escuridão, com os faróis dos caminhões cegando e confundindo os guardas, e só naquele momento via como era óbvio e lógico que iluminassem o acampamento para certificar-se da chegada do comboio e facilitar a descarga.

Não havia mais remédio, teriam que agir no clarão das luzes e Craig estava impotente e imobilizado, sem nem ao menos poder comunicar-se com Sentinela na cabine. Reprovando-se amargamente por não ter previsto aquela possibilidade ficou de olho grudado no buraco da lona.

Os guardas não haviam aberto os portões e havia uma metralhadora protegida por sacos de areia ao lado da casa da guarda e o cano virava-se lentamente para mantê-los em mira enquanto se aproximavam. A guarda estava sendo trocada, com quatro soldados e um suboficial entrando em forma do lado externo da casa da guarda.

O sargento saiu e postou-se em frente ao caminhão, levantando o braço. Ao pará-los, foi até a janela e fez uma pergunta em shona ao guerrilheiro que respondeu-lhe com fluência, mas imediatamente o tom de voz do sargento alterou-se: a resposta fora obviamente incorreta. Sua voz alteou-se, estridente e autoritária. Craig não podia vê-lo, mas viu a guarda reagir. Começaram a tirar os fuzis dos ombros e a espalhar-se para cercar o caminhão; a armadilha falhara antes de começar.

Craig bateu na perna do guerrilheiro uniformizado em pé a seu lado. Era um sinal combinado e o homem tirou o pino da granada que segurava, atirando-a bem alto. A granada descreveu uma curva que terminou com precisão no local da metralhadora.

No mesmo instante, Craig disse baixinho aos homens a seu lado:

- Matem-nos.

Enfiaram os canos dos AK 47 pelas fendas da carroceria e a distância do alvo era de dez passos. A rajada atingiu os guardas desprevenidos antes que engatilhassem as armas. O sargento correu de volta à casa da guarda, mas o camarada Sentinela inclinou-se na janela com a pistola Tokarev e atingiu-o duas vezes nas costas.

Enquanto o sargento estatelava-se no chão, a granada explodiu por trás dos sacos de areia e a metralhadora pesada girou inútilmente enquanto o artilheiro escondido voava em pedaços.

- Vá em frente! - Craig enfiou a cabeça pela fenda e berrou com o motorista através da janela aberta. - Derrube o portão!

O poderoso motor do Toyota rugiu e o caminhão arrancou, dando uma pancada violenta no portão que o fez oscilar e quase parar por um momento e, em seguida, estrondou pelo acampamento, arrastando um feixe de arame farpado e pedaços de madeira.

Craig subiu até o teto onde estava o artilheiro.

- Mire para a esquerda... - Dirigiu o fogo para as barracas de adobe e palha ao lado do portão. O artilheiro disparou uma longa rajada bem no meio dos soldados seminus que saíam de lá correndo.

- Agora, a torre de vigia à direita.

Estavam sendo alvejados pelos dois guardas da torre e os disparos sibilavam em torno deles como chicotadas. O artilheiro girou a arma e o pente de munição era engolido pela máquina que cuspia uma esteira de cápsulas vazias pelo ejetor. Voaram lascas de madeira e vidro da torre até os dois guardas serem atingidos e jogados para trás.

- Alojamento Um bem à frente - Craig preveniu Sarah com um grito. Ela e os dois homens estavam agachados na traseira e, quando o Toyota diminuiu a marcha, saltaram correndo. Sarah levava os cortadores e os dois guerrilheiros corriam à frente em ziguezague, disparando.

Craig desceu para o estribo do caminhão e agarrou-se na cabine.

- Dirija para a colina - gritou ao motorista. - Temos que capturar o rádio!

O rochedo fortificado ficava diretamente em frente, mas tinham que cruzar o grande pátio de manobras iluminado, com o muro caiado na extremidade, até chegar ao fortim.

Craig olhou para trás: Sarah e os homens haviam alcançado o alojamento e cortavam o arame com os cortadores e, enquanto olhava, conseguiram abri-lo e desapareceram dentro da construção.

Procurou pelo segundo caminhão, que rugia em torno do campo, do lado de fora da cerca, atacando cada torre que ultrapassava com a metralhadora pesada. Já haviam destruído quatro delas e faltavam apenas duas. A explosão de granadas chamou-lhe a atenção para as barracas contíguas ao alojamento principal de prisioneiros. Um grupo de guerrilheiros havia saltado do segundo caminhão para atacá-las. Pôde vê-los agachados debaixo das janelas, atirando granadas para dentro e, quando explodiam, avançavam como mariposas para a luz, em direção ao principal alojamento de prisioneiros.

Haviam assumido o controle de todo o campo em poucos minutos, destruído as torres, devastado a casa de guarda e os dois grupos de barracas; era tudo deles. Teve um sentimento de triunfo até olhar em direção ao rochedo. Tudo menos o fortim, e, ao pensar nisso, uma linha brilhante estendeu-se em direção deles vinda dos sacos de areia ao alto, a princípio, lenta, mas acelerando vertiginosamente ao aproximar-se até a poeira voar em volta, o assobio dos ricochetes envolvê-los e os tiros penetrarem ruidosamente na carroceria do caminhão.

O caminhão oscilou com o impacto e Craig berrou ao chofer enquanto agarrava-se desesperadamente ao espelho retrovisor:

- Continue, temos que capturar o rádio!

O motorista lutava com a direção e o Toyota voltou-se novamente para a colina no instante exato em que foi atingido pela segunda rajada de metralhadora. O pára-brisa explodiu em mil fragmentos cristalinos e o chofer, com o peito dilacerado, caiu contra a porta, soltando o acelerador e diminuindo a marcha.

Craig escancarou a porta e o corpo caiu para fora, enquanto tomava o seu lugar e enterrava o pé no acelerador, fazendo o caminhão avançar outra vez.

Ao lado, Sentinela atirava com o AK 47 pelo pára-brisa despedaçado e, na traseira, a metralhadora pesada respondia aos disparos vindos do rochedo. As rajadas pareciam misturar-se sobre a terra nua do pátio e foi então que viu algo.

De uma das aberturas na parede de sacos de areia no sopé da colina, uma mancha negra do tamanho de um abacaxi voou até eles deixando uma minúscula cauda de fogo. Reconheceu instantaneamente o que era, mas não teve tempo sequer de gritar quando foram atingidos por um foguete RPG-7.

Atingiu o caminhão embaixo, na frente, e foi o que os salvou: a explosão mais forte foi absorvida pelo bloco sólido do motor, mas, mesmo assim, arrancou-o e barrou o veículo como uma parede de aço. O Toyota capotou, cuspindo Craig pela porta aberta.

Ficou de joelhos e a metralhadora girou, despejando uma chuva de balas e de lama endurecida sobre ele que tornou a cair.

Guerrilheiros estonteados e feridos espalhavam-se em torno do Toyota e um dos homens estava preso e com parte do corpo esmagada pela carroceria, gritando como um animal preso em uma armadilha.

- Vamos - gritou Craig em sindebele. - Corram para o muro, o muro, corram para o muro.

Ficou em pé e começou a correr. O muro de execuções ficava na extremidade à direita, a uns sessenta metros de distância, e um punhado de homens o seguiu.

A metralhadora tornou a girar, perseguindo-os, e o disparo foi como uma chicotada que fez Craig cambalear, mas conseguiu equilibrar-se, quando o homem à sua frente caiu, com as duas pernas arrancadas. Ao ultrapassá-lo, ainda conseguiu atirar-lhe o fuzil que tinha nas mãos.

- Tome, Kuphela, já estou morto. Craig agarrou-o sem diminuir a corrida.

- Você é um homem de verdade - gritou ao guerrilheiro caído e continuou. À sua frente, Sentinela conseguiu alcançar o abrigo da parede, mas o artilheiro na colina tornou a mirar Craig, levantando cortinas de pó e pedaços de argila enquanto a esteira de balas o perseguia.

Craig atirou-se no canto da parede com os pés para a frente e os tiros passaram raspando. Continuou a rolar até atingir o muro e ficou com Sentinela e dois outros que haviam conseguido chegar lá. O restante ou estava morto no caminhão ou espalhado pelo terreno aberto.

- Temos de pegar aquela metralhadora - ofegou, e Sentinela sorriu ironicamente.

- Vá pegá-la, Kuphela... vamos ficar olhando com muito interesse.

Outro foguete RPG explodiu no muro, ensurdecendo-os e cobrindo-os com uma fina camada de poeira branca.

Craig tornou a rolar e verificou o AK 47. Estava com a carga completa e Sentinela passou-lhe outro pente da cartucheira que trazia no ombro; tinha também a pistola Tokarev na cintura e duas granadas nos bolsos.

Lançou outro olhar rápido pelo canto do muro e uma rajada abriu buracos em torno de sua cabeça, o que o fez rolar de volta. Eram apenas uns noventa metros até o sopé da colina mas pareciam noventa quilómetros. Estavam impotentes ali e o artilheiro dominava todo o pátio. Ninguém podia mover-se à luz dos holofotes sem provocar disparos imediatos ou um foguete do lançador RPG.

Craig procurou ansiosamente pelo segundo caminhão, mas o chofer devia ter estacionado sensatamente por trás de um dos edifícios assim que começara o disparo dos foguetes. Não havia sinal dos outros guerrilheiros, estavam todos escondidos, mas houvera muitas baixas.

- Não pode terminar assim... - Craig consumia-se de frustração e impotência. - Temos de acabar com aquela metralhadora!

A arma sem alvos silenciou, e, de súbito, nesse silêncio, Craig ouviu começar um canto, primeiro baixinho, de apenas algumas vozes, depois, engrossando e crescendo:

Por que choram, viúvas de Shangani.

Enquanto as armas de três pernas riem tão alto?

E o antigo cântico guerreiro explodiu no silêncio em centenas de gargantas.

Por que choram, filhos das Toupeiras,

Enquanto seus pais cumprem as ordens do rei?

E afluiu dos alojamentos de prisioneiros um exército heterogéneo de figuras nuas; alguns cambaleando de fraqueza; outros correndo, carregando pedras, tijolos e pedaços de pau, arrancados dos tetos da prisão. Uns poucos haviam agarrado as armas dos guardas mortos, mas todos cantavam com desafio selvagem ao atacarem a colina e o ninho de metralhadora.

- Oh, meu Deus! Vai ser um massacre - sussurrou Craig.

À frente da massa, brandindo um AK 47, vinha uma figura alta e esquelética, parecendo uma caricatura da própria morte, e o exército de famintos e galés convergiu para ele. Mesmo desfigurado como estava, Craig teria reconhecido Tungata Zebiwe em qualquer lugar.

- Sam, volte! - gritou, usando o nome com que conhecera o amigo, mas Tungata continuou impávido, e Sentinela disse calmamente:

- Eles vão atrair os disparos e essa será nossa última chance.

- Sim, esteja a postos - respondeu Craig. Sentinela estava? certo. Não deviam deixá-los morrer em vão e, enquanto falava, a metralhadora abriu fogo outra vez.

- Espere! - Craig agarrou Sentinela pelo braço. - Ele vai ter de trocar o pente daqui a pouco. - E enquanto esperavam, olhava a destruição terrível entre os prisioneiros libertados.

A torrente de tiros parecia derrubá-los como uma mangueira de incêndio, mas, quando tombava a fileira da frente, os homens corriam a preencher os claros, e Tungata Zebiwe continuava, mais à frente, disparando o AK 47 enquanto corria, e o artilheiro no alto da colina dirigiu a mira para ele, envolvendo-o em fumaça poeirenta, mas ainda miraculosamente intacto até que a arma silenciou abruptamente.

- Acabou o pente! - berrou Craig. - Vamos! Vamos! Correram a toda velocidade e o terreno aberto parecia alongar-se indefinidamente até os confins da terra.

Outro foguete passou sobre suas cabeças, mas a pontaria era alta, e o disparo, feito em pânico. Voou sobre o pátio e atingiu o tanque de reserva de combustível ao lado das barracas. O combustível explodiu e as chamas voaram a cinquenta metros no ar, e Craig sentiu o bafo ardente da detonação envolvê-lo, mas continuou correndo e atirando.

Por causa da perna, ia perdendo terreno para Sentinela e os outros guerrilheiros, mas, enquanto corria, fazia cálculos mentalmente. Um homem hábil precisaria de dez segundos para trocar os pentes e recarregar a metralhadora. Desde que haviam deixado o muro protetor, já haviam passado sete segundos, oito, nove, dez... agora! E ainda restavam vinte passos a percorrer.

O camarada Sentinela alcançou as fortificações de sacos de areia e pulou para dentro.

Foi quando uma pancada violenta atingiu Craig que foi atirado ao chão, enquanto as balas zuniam à sua volta. Rolou e levantou-se novamente, mas o atirador, ao vê-lo cair, desviara a metralhadora outra vez para os prisioneiros que atacavam.

Atingido, mas sem qualquer ferimento, Craig procurou levantar-se e, tanto quanto antes, compreendeu que fora baleado na perna artificial. Teve ímpetos de rir, era tudo tão ridículo e estava tão aterrorizado. Mas continuou correndo.

Só vão conseguir me fazer isso uma vez, pensou, e subitamente chegou ao sopé do rochedo. Saltou, segurou-se na borda de um saco de areia e alçou-se para dentro, caindo na plataforma de tiro estreita e deserta do outro lado.

- O rádio. - Fixou toda a vontade nele. - Preciso chegar lá. - Pulou para a trincheira de comunicação abaixo e correu até a passagem. Havia sons de luta e gritos, e quando chegou lá Sentinela estava se levantando ao lado do corpo do soldado da Terceira Brigada que operara o RPG.

- Vá atrás da metralhadora - ordenou-lhe Craig. - Vou até a sala de rádio.

Subiu pela passagem protegida com sacos de areia, passando pela cela onde estivera hospedado na primeira vez.

É a primeira à esquerda... rememorou, mergulhando na abertura; ao afastar a cortina de aniagem, ouviu o operador do rádio e fez uma pausa.

Tarde demais, pensou. O estômago contraiu-se em uma convulsão desesperada. O operador, vestido apenas em roupas de baixo, estava curvado sobre o rádio no banco colocado na parede oposta. Segurava o microfone com as duas mãos, gritando um aviso em inglês, repetindo-o pela terceira vez, e, como Craig hesitasse, a resposta soou alta e clara, também em inglês.

- Mensagem recebida - disse a voz do quartel-general em Harare. - Resistam! Vamos mandar reforços imediatamente...

Craig disparou uma longa rajada com o fuzil e esfacelou o rádio completamente. O operador desarmado deixou cair o microfone e encostou-se, apavorado, na parede de sacos de areia, olhando para Craig aterrorizado. Craig colocou-o na mira, mas não teve coragem de disparar.

De repente, uma descarga de tiros soou por trás dele, assustando-o, e, por um instante, o homem ficou colado à parede e escorregou para o chão.

- Você sempre teve coração mole, Pupho - disse uma voz de timbre profundo, e Craig virou-se para olhar a figura nua e esquelética que o sobrepujava em altura, o rosto cheio de cicatrizes e os olhos escuros e orgulhosos.

- Sam! - disse Craig, quase sem forças. - Meu Deus, como é bom ver você de novo.

O primeiro caminhão fora estraçalhado pelo RPG e os pneus traseiros do segundo, destruídos pelo fogo pesado da metralhadora. Ambos estavam com os tanques completamente vazios.

Craig explicou o mais rapidamente possível a Tungata os planos para abandonarem o país.

- O prazo final é às oito horas. Se não conseguirmos chegar à pista até lá, tudo o que nos resta será fugir a pé.

- São cerca de vinte quilómetros - ponderou Tungata. - Não há qualquer outro carro aqui. Fungabera levou o Land-Rover quando partiu há dois dias.

- Podemos tirar os pneus do caminhão destruído, mas e a gasolina? Sam, precisamos de combustível!

E olharam para as chamas do depósito que ainda se erguiam no céu escuro e as densas nuvens de fumaça negra do outro lado do pátio. À sua luz, jaziam os mortos ceifados pela metralhadora, mas não havia qualquer soldado sobrevivente. Tinham sido feitos em pedaços e espancados até se transformarem em uma massa sangrenta pelos prisioneiros. Craig ficou imaginando quantos seriam, e evitou a resposta, pois cada uma daquelas mortes era sua responsabilidade direta.

Tungata o observava. Vestia roupas apanhadas a esmo nos armários dos alojamentos, a maioria, pequena demais para sua enorme estrutura, e com o fedor da prisão que o envolvia como um manto.

- Você sempre ficou assim, depois de uma tarefa desagradável.

Lembro-me da matança dos elefantes excedentes; não conseguia comer durante dias - disse-lhe com suavidade.

Esquecera o quanto Tungata era perspicaz e como era capaz de perceber-lhe os remorsos.

- Vou trocar os pneus. Mas tem de achar combustível para nós, Sam. Precisa achar! - Virou-se e saiu capengando até o caminhão mais próximo para escapar das observações de Tungata.

O camarada Sentinela o esperava.

- Perdemos quatorze homens, Kuphela.

- Sinto muito - disse, e pensou que aquela era a coisa mais inadequada para dizer.

- Tinham que morrer um dia. - O guerrilheiro deu de ombros. - O que vamos fazer agora?

Havia chaves de roda nas caixas de ferramenta dos caminhões e homens suficientes para suspender a traseira e escorá-la com tocos de madeira enquanto trabalhavam. Craig supervisionou a operação e suspendeu a calça para retirar e examinar a perna mecânica. A bala de metralhadora entrara na coxa e saíra à altura da barriga da perna, deixando um buraco cheio de rebordos, mas o tornozelo articulado estava intacto. Martelou com cuidado as bordas ásperas do metal e prendeu-a com a correia novamente.

- Agora, trate de aguentar mais um pouco - disse com firmeza, dando um tapinha afetuoso na perna, e tirou a chave de Sentinela que já colocara dois parafusos na roda traseira do caminhão.

Uma hora mais tarde, Tungata foi até o local onde Craig e os homens estavam abaixando a carroceria sobre o eixo semidestruído da roda. Craig estava imundo de graxa e Sarah apressou-se em acompanhar Tungata, perto de quem parecia uma garotinha apesar do rifle que carregava.

- Nada de combustível - disse Tungata. - Revistamos todo o acampamento.

- Acho que temos uns quinze litros. - Craig levantou-se e limpou o suor do rosto com a manga da camisa, deixando-a suja de graxa. - Podemos rodar talvez uns trinta quilómetros se tivermos sorte. - Olhou para o relógio. - Três horas da manhã; como é que o tempo passou tão depressa? Sally-Anne vai chegar à pista dentro de pouco mais de duas horas. Não vamos conseguir...

- Craig, Sarah me contou o que fez, todos os riscos que correu, o planejamento, tudo... - disse Tungata em tom sóbrio.

- Não temos tempo para isso agora, Sam.

- Não - concordou. - Preciso falar com meu povo e depois podemos partir.

Os prisioneiros que haviam sobrevivido à matança no pátio reuniram-se em torno dele, quando Tungata subiu no capô do caminhão, de rostos levantados e iluminados pela luz dos holofotes.

- Preciso partir - disse-lhes Tungata, e eles resmungaram -, mas meu espírito fica com vocês até o dia de minha volta. E juro pelas barbas de meu pai e pelo leite que mamei no seio de minha mãe que voltarei.

- Baba! O senhor é o nosso pai! - gritaram.

- Os kanka shona vão chegar logo aqui. Devem ir para a floresta e levar todas as armas e comida que acharem e acompanhar estes homens. - Tungata apontou para o pequeno grupo de guerrilheiros em torno de Sentinela. - Eles os levarão a um lugar seguro, esperem lá até que eu volte com a força necessária para liderá-los e recuperarmos o que é de vocês. - Tungata abriu os braços numa bênção. - Vão em paz, meus amigos!

Todos se acercaram, alguns chorando como crianças. E em pequenos grupos foram afastando-se em direção ao portão e à escuridão da floresta.

O camarada Sentinela foi o último a partir. Veio até Craig e sorriu com o característico sorriso lupino e frio de dentes perfeitos.

- Apesar de ter estado na linha de frente da luta, você não matou um único shona, nem aqui nem na ponte. Por quê, Kuphela?

- Deixei a tarefa para você. É melhor do que eu nisso - respondeu Craig.

- É um homem estranho, escritor de livros... mas somos gratos a você. Se viver até lá, vou me gabar com meus netos sobre as coisas que fizemos juntos.

- Adeus, meu amigo - disse Craig, e estendeu-lhe a mão e saudaram-se com o duplo apertar de palmas e pulsos, de profunda significação. E o camarada Sentinela caminhou pela trilha até desaparecer na noite.

Craig foi o primeiro a falar.

- Sam, você ouviu o operador de rádio falando ao quartel-general. Sabe que Fungabera já mandou reforços. Será que há soldados daqui até Harare?

- Acho que não. - Tungata balançou a cabeça. - Alguns homens em Karoi, mas insuficientes para aguentar um ataque destes.

- Muito bem. Digamos que levou uma hora para reunir e enviar uma força. Vão levar mais cinco horas para chegar a Tuti... - Olhou para Tungata que concordou.

- Vão chegar à missão aproximadamente às seis, e Sally-Anne deve estar sobrevoando por lá às cinco. É um prazo muito apertado, especialmente se tivermos que percorrer os últimos quilómetros a pé. Vamos andando.

Enquanto os outros acomodavam-se no caminhão, Craig deu uma última olhada em torno do acampamento devastado. As chamas haviam se apagado, mas a fumaça ainda se evolava sobre os alojamentos desertos e o pátio onde se espalhavam os mortos. O quadro ainda estava iluminado pelos holofotes.

- As luzes... - disse alto Craig. Havia algo sobre as luzes que o preocupava. O gerador? Sim, era isso... algo sobre o gerador de que precisava lembrar-se.

- Mas é isso! - gritou, pulando do caminhão. - Sam, o gerador!

Ligou o motor e virou o caminhão. A sala de máquinas ficava por trás da colina e era parte do conjunto central protegido pelos sacos de areia e pela fortificação no terreno elevado. Craig estacionou perto dos degraus que desciam para a casa de força e os desceu correndo.

Era um gerador Lister de vinte e cinco quilowatts, um aparelho grande com um tanque de combustível preso à parede acima. Craig bateu no recipiente que soou agradavelmente cheio.

Maravilhosos!

- Está cheio! - exclamou Craig. - Enfim, quarenta galões.

A estrada ziguezagueava como uma serpente e o caminhão, com o tanque transbordante, era difícil de manejar nas curvas. Craig tinha de virar o volante com toda força. As subidas eram íngremes e a velocidade caía quando fazia as mudanças de marcha, mas, ao chegar aos declives, rodavam perigosamente rápido e o caminhão descarregado pulava e sacudia sem piedade nos sulcos profundos.

Na entrada da ponte, passou rente à beira sobre a queda d'água que desmoronou um pouco com o peso das duas rodas traseiras duplas antes de dar uma guinada e cruzar pesadamente sobre a estreita ponte de madeira.

- Que horas são? - perguntou, e Sarah olhou o relógio à luz do painel.

- Quatro e cinquenta e três.

Craig tirou por um momento os olhos do estreito túnel das luzes dos faróis e viu pela primeira vez a silhueta das árvores recortada contra o céu que começava a clarear. No alto da ladeira, saiu fora da pista e ligou o rádio. Procurou os canais com cuidado, tentando ouvir notícias dos deslocamentos militares, mas só pegou estática.

- Se estão em posição, estão se mantendo em silêncio. Desligou e voltou para o caminho, mais uma vez admirado com a rapidez do amanhecer africano. No vale abaixo, a paisagem emergia da noite fugitiva, a planície grande, escura e coberta de florestas, que levava do sopé das colinas até a estação da missão que se estendia a seus pés.

- Dezesseis quilómetros - disse Tungata.

- Mais meia hora - respondeu Craig, e dirigiu o Toyota a toda velocidade descendo as últimas colinas. Antes de chegarem à planície, já estava bastante claro para desligar os faróis. - Não há necessidade de chamar a atenção.

De repente, endireitou-se no assento, alarmado com a mudança no ruído do motor que estava cada vez mais áspero e forte.

- Oh meu Deus, isso não, não agora - sussurrou, e só depois percebeu que ouvia o ruído de outro motor, cada vez mais alto e mais próximo. Abaixou a janela e meteu a cabeça para fora, sentindo no rosto o vento forte e fresco.

O Cessna de Sally-Anne roncava atrás deles, a apenas quinze metros sobre a estrada, azul e prata cintilante nos primeiros raios de sol.

Craig soltou um berro de alegria e começou a abanar.

O Cessna nivelou-se a eles e o rosto amado de Sally-Anne olhou-o da cabine. Tinha um lenço cor-de-rosa amarrado na cabeça e as espessas sobrancelhas negras emolduravam-lhe os olhos. Estava sorridente e, ao reconhecer Craig, deu adeus e formou com os lábios as palavras "Vá em frente". E passou zunindo com o avião, em direção à pista.

Saíram a toda velocidade da floresta, correndo pelas plantações de milho que cercavam a pequena aldeia da missão. Os telhados de zinco da igreja e da escola cintilavam ao amanhecer. Uns poucos aldeões saíam das cabanas ao lado da estrada, bocejando e coçando-se, para vê-los passar.

Craig diminuiu a marcha, e Sarah gritou para eles pela janela:

- Soldados vindo nesta direção! Atenção! Avisem todo mundo! Vão todos para a floresta e escondam-se!

Craig não pensara nisso. A retaliação da Terceira Brigada na população local seria terrível. Acelerou através da aldeia e o campo de aterrissagem estava um quilómetro adiante, com a biruta meio esfarrapada ondulando ao vento. O Cessna descrevia círculos mais abaixo à frente. Craig viu Sally-Anne baixar o trem de aterrissagem e iniciar a volta circular para a aproximação final de pouso.

- Olhem! - exclamou Tungata, e outro avião surgiu à esquerda, voando baixo e veloz, um aparelho bimotor muito maior reconhecido imediatamente por Craig.

Era um velho Dakota de transporte, veterano da guerra do deserto na África do Norte e da guerra civil da Rodésia. Estava pintado com tinta cinzenta especial contra reflexos antimíssil e com as insígnias da Força Aérea de Zimbabué. A escotilha principal na popa junto à asa estava aberta e havia homens a postos na abertura, vestidos com uniformes e capacetes de pára-quedistas, com grandes pára-quedas às costas. Dois deles estavam na portinhola e havia outros aglomerando-se por trás.

- Pára-quedistas! - gritou Craig, e o Dakota deu um mergulho na direção deles e ultrapassou-os tão baixo que o deslocamento das hélices balançou as espigas de milho na plantação à frente. Quando o avião passou zunindo por eles, tanto Tungata quanto Craig reconheceram um dos homens na portinhola.

- Fungabera! - explodiu Tungata. - É ele!

E, ao mesmo tempo, abriu a porta do caminhão, subindo até a metralhadora no alto. Apesar do tamanho e da extrema fraqueza, foi tão rápido que conseguiu alcançá-la e girá-la a tempo de soltar uma descarga antes que o Dakota ficasse fora de alcance. As rajadas voaram por baixo da asa de bombordo, perto o suficiente para alarmar o piloto e obrigá-lo a subir.

- Estão ganhando altitude para poder saltar de pára-quedas! - gritou Craig.

Naturalmente, Fungabera reconhecera o Cessna azul e prata, e compreendera que seria o meio de fuga e que o caminhão estava indo ao seu encontro na pista. Os pára-quedistas chegariam mais rápidos do que se o Dakota pousasse. Ia fazê-los saltarem e tomar a pista antes que o Cessna levantasse vôo novamente. Trezentos metros de altura seria a altitude segura para o salto, mas eram soldados acostumados a fazer saltos perigosos. O Dakota nivelou a cento e cinquenta metros. Iam saltar ao longo do campo.

O Cessna estava tomando posição sobre a cerca na extremidade da pista e, quando Craig olhou para trás, Sally-Anne tocou o solo e taxiou em direção ao Toyota em disparada.

Sobre a pista, uma figura diminuta pulou do Dakota e a seda verde do pára-quedas abríu-se quase que de imediato e foi seguida em rápida sucessão por outras, enchendo os céus da floresta de cogumelos sinistros, oscilando docemente na brisa amena da manhã, mas caindo em direção à faixa esturricada e castanha do campo.

O Cessna atingiu o fim da pista e descreveu um ângulo abrupto de 180°. Só então Craig compreendeu que Sally-Anne tivera a visão necessária para enfrentar o risco e a urgência ao aterrissar com vento pela cauda. Fizera uma aproximação mais veloz da pista e pousara de modo a poder virar imediatamente com o vento fazendo uma decolagem com carga completa sob o ataque dos pára-quedistas.

Da cabine, Tungata disparava rajadas, mais para intimidar os soldados do que para conseguir atingi-los. Um homem caindo de pára-quedas era um alvo quase impossível.

Sally-Anne estava na portinhola aberta, gritando e abanando para eles, já com o motor a toda força, seguro pelos freios das rodas. Bateram na borda da pista e Craig girou o Toyota com um gemido dos freios, parando-o de maneira a proteger o avião e eles mesmos quando subissem a bordo.

- Saia - berrou para Sarah que pulou, e correu até o avião. Sally-Anne pegou-a pelo braço, ajudou-a a subir e cair no assento traseiro.

No caminhão, Tungata disparou uma última rajada com a metralhadora. Os primeiros três pára-quedistas já haviam chegado ao solo, as balas levantaram poeira à sua volta. Craig viu um deles cair sobre a mortalha de seda, pegou o AK 47, o saco de munição e gritou:

- Vamos, Sam. Vamos embora!

Correram até o Cessna e Tungata, fraco e doente, caiu nos degraus, e Craig teve que arrastá-lo pelos pés para dentro.

Sally-Anne soltara os freios antes que Tungata estivesse a bordo e Craig teve de correr ao lado do Cessna enquanto o avião ganhava velocidade. Tungata caiu ao lado de Sarah no banco traseiro e Craig pulou, conseguiu segurar-se e alçar-se para o banco da frente, ao lado de Sally-Anne, apesar de atrapalhado pelo AK e o saco de munições.

- Feche a porta! - berrou Sally-Anne, sem olhá-lo, com toda a atenção voltada para a pista. O cinto de segurança estava preso na porta e Craig lutou para soltá-lo enquanto ganhavam velocidade, conseguindo finalmente desembaraçá-lo, e fechou a porta. Quando olhou em frente, viu soldados correndo da extremidade do campo para interceptá-los.

A brilhante estrela de general no capacete não era necessária para identificar Fungabera. A postura e a graça felina da corrida eram características. Os homens espalhavam-se por trás dele e estavam quase diretamente à frente do Cessna, a apenas quatrocentos ou quinhentos passos.

Sally-Anne fez o Cessna levantar o nariz, saltar ligeiramente e sair do chão. Peter Fungabera e os pára-quedistas desapareceram enquanto o avião ascendia, mas o aparelho tinha de passar sobre eles a pouco mais de uns trinta metros.

- Ah, Deus! - disse Sally-Anne em tom quase normal. - É agora! - E, ao acabar de dizê-lo, o painel de instrumentos diante de Craig explodiu, cobrindo-o de fragmentos de vidro brilhantes como cristais de açúcar e o fluido hidráulico espirrou-lhe na camisa.

Uma rajada de metralhadora perfurou o chão da cabine e saiu pelo teto de metal fino provocando um redemoinho quando o ar foi sugado pelos buracos.

No banco traseiro, Sarah gritou e o aparelho estremeceu oscilando com a tempestade de balas de AK 47. Craig sentiu o assento pular com o impacto dos tiros no metal e orifícios irregulares apareceram na junção da asa a seu lado.

Sally-Anne empurrou o manche para a frente e o Cessna mergulhou em direção à pista novamente com todo o ímpeto, passando sob o turbilhão de rajadas, dando-lhes um momento de trégua. A terra ascendeu velozmente até eles e ela cortou o mergulho suicida do Cessna, nivelando-o; mas as rodas bateram na superfície e o aparelho saltou desgovernado para o ar. Craig viu dois soldados atirarem-se ao chão enquanto o avião avançava para cima deles.

O mergulho louco em direção ao solo aumentara a velocidade do aparelho e Sally-Anne pôde fazer com o Cessna uma curva em velocidade máxima, quase raspando uma das asas na terra. O rosto estava contorcido e os músculos saltados pelo esforço de manter o avião de nariz para cima e evitar que tocasse o solo. À frente e à esquerda da pista, a apenas cem metros da borda, havia uma árvore solitária com galhos grossos e esparramados, uma marula de quase trinta metros de altura.

Sally-Anne nivelou por instantes o avião, indo diretamente para ela; a ponta da asa quase roçou os galhos e manobrou o Cessna para o lado, colocando a árvore entre eles e os soldados na pista atrás.

Manteve-se quase a nível do solo, roçando o topo do milharal nos campos abertos, espiando pelo retrovisor ao alto para manter a marula exatamente atrás da cauda, anulando o campo de tiro dos soldados.

- Onde está o Dakota? - perguntou Craig, gritando para se fazer ouvir sobre o barulho do vento na cabine.

- Está se preparando para descer - respondeu Tungata. - Craig virou-se no assento e viu o grande aparelho sobrevoando baixo por sobre as árvores e dirigindo-se para a pista.

- Não consigo levantar o trem de aterrissagem. - Sally-Anne comprimia o botão mas as três luzinhas verdes de aviso ainda brilhavam no painel. - Está enguiçado, acho que houve uma avaria.

A floresta além dos campos aproximava-se velozmente. Quando Sally-Anne recuou o manche para fazer o Cessna subir, um conduto hidráulico rompeu-se no motor danificado pelos tiros e o fluido espirrou, viscoso, no pára-brisa.

- Não vejo nada! - gritou Sally-Anne e abriu a janela lateral, tomando o horizonte como referência sob a asa.

- Estamos sem instrumentos. Sem velocímetro, horizonte artificial, altímetro, o trem de aterrissagem...

- ...está provocando um excesso de resistência e vai diminuir nossa autonomia de vôo... nunca vamos conseguir chegar lá! - concluiu ele por Sally-Anne.

Ainda estavam subindo, mas gradualmente voltaram ao curso, usando o compasso flutuante do teto da cabine. Foi quando o motor engasgou e quase parou, para em seguida voltar a plena força.

Rapidamente, Sally-Anne ajustou os reguladores de força e altura.

- Isso parece falta de combustível. Devem ter atingido um dos condutores - disse e mudou o seletor do tanque de "estibordo" para "ambos", e olhou para Craig, sorrindo. - Ei, você aí, senti um bocado sua falta.

- Eu, também. - Estendeu a mão e tocou-a.

- Contagem de tempo - disse, outra vez uma profissional.

- Cinco horas e dezessete minutos - respondeu Craig, e olhou para baixo. A estrada serpenteante de Tuti virava-se em direção ao norte e cruzavam as primeiras colinas. A aldeia de Vusamanzi surgiria a uns poucos quilómetros além.

O motor tornou a falhar e a expressão no rosto de Sally-Anne era tensa.

- Tempo? - tornou a perguntar.

- Cinco horas e vinte e sete minutos - disse Craig.

- Já estamos fora do campo de visão da pista e também não podem mais nos ouvir.

- Fungabera não sabe para onde estamos indo.

- Eles têm um helicóptero nas cataratas de Victoria. - Tungata inclinou-se para dizer-lhes. - Se acharem que estamos indo para Botsuana, vão mandá-lo nos interceptar.

- Podemos ultrapassar um helicóptero - opinou Craig.

- Não com o trem de aterrissagem abaixado - contradisse Sally-Anne, e, sem qualquer aviso, o motor parou completamente.

Tudo ficou silencioso, ouvia-se apenas o assobio do vento nos buracos da fuselagem, a hélice girou ainda por alguns segundos, parando de repente, e apontando para o céu como a lâmina de um carrasco.

- Bem, nada mais importa agora. O motor parou e vamos descer - disse Sally-Anne baixinho. Começou rapidamente os preparativos para uma aterrissagem forçada enquanto o Cessna começava a mergulhar suavemente em direção ao solo irregular e coberto de vegetação abaixo deles. Puxou os flaps para diminuir a velocidade do ar.

- Todo mundo coloque os cintos - disse. - Os dos ombros, também.

Desligou os tanques de combustível e os controles principais para evitar um incêndio com o impacto.

- Consegue ver alguma clareira? - perguntou a Craig, espiando desanimada pelo pára-brisa despedaçado.

- Não. - A floresta era como um colchão escuro e verde.

- Vou tentar localizar duas árvores grandes e partir as asas entre elas, para cortar a velocidade mas, mesmo assim, vai ser uma pancada e tanto - disse, enquanto lutava com o painel da janela lateral.

- Posso rebentá-la para você - ofereceu-se Tungata.

- Ótimo - aceitou Sally-Anne. Com três socos, Tungata conseguiu parti-la. Sally-Anne colocou a cabeça para fora, apertando os olhos contra o vento.

A terra aproximava-se cada vez mais rápido e as colinas pareciam crescer acima deles quando Sally-Anne fez uma curva planando suavemente para dentro de um vale estreito. Estava sem velocímetro e ela tentava manter o nariz do avião levantado para cortar a velocidade da queda. Através das rachaduras do pára-brisa, Craig viu assomar uma nesga de árvores.

- Abrir portas! - ordenou Sally-Anne. - Mantenham os cintos amarrados até pararmos e depois saiam o mais rápido possível e corram como cachorros magros!

Suspendeu o nariz, mas o Cessna estalou, não obedeceu e tornou a cair como uma pedra. Felizmente, Sally-Anne fizera um cálculo milimétrico, pois, antes que tombasse na horizontal, o avião bateu nas árvores. As asas foram arrancadas e eles foram seguros e violentamente esfolados pelos cintos de segurança. Apesar do impacto ter freado a velocidade, a carcaça desmembrada do avião foi resvalando e batendo pela floresta. Foram atirados de um lado para outro, presos aos assentos, e a fuselagem esbarrou em outra árvore, parando finalmente.

- Fora! - berrou Sally-Anne. - Estou sentindo cheiro de gasolina! Para fora e corram!

As portas abertas tinham sido arrancadas dos gonzos e eles tiraram às pressas os cintos, pularam para o solo e correram.

Craig aproximou-se de Sally-Anne que corria com as longas tranças livres do lenço. Abraçou-a, guiando seus passos até a beira de uma ravina seca. Pularam para dentro e agacharam-se no fundo arenoso, agarrados um ao outro.

- Será que vai incendiar-se? - ofegou Sally-Anne.

- Espere um pouco. - Ambos prepararam-se para a explosão da gasolina vazada e dos tanques.

Nada aconteceu e o silêncio da floresta desceu sobre eles, que começaram a falar em cochichos temerosos.

- Você voa como um anjo - ele disse.

- Um anjo de asas quebradas. Esperaram mais um pouco.

- Por falar nisso, que diabo quis dizer com um cachorro magro? - ele sussurrou.

- Um galgo - e ela riu, com uma reação nervosa. Ele descobriu-se rindo também enquanto se abraçavam.

- Vamos dar uma olhada - ela disse. Ambos levantaram-se com cautela para espiar sobre a borda da ravina. A fuselagem estava esmagada e o revestimento metálico do Cessna, enrolado como papel de alumínio, mas não se incendiara. Pularam para fora da ravina e Craig começou a chamar:

- Sam! Sarah!

Os dois levantaram-se de onde haviam se refugiado, ao sopé de um rochoso no vale.

- Vocês estão bem?

Os quatro estavam abalados e machucados; Sarah estava com o nariz ensanguentado e tinha um arranhão no rosto, mas nenhum deles machucara-se seriamente.

- Que diabos vamos fazer agora? - perguntou Craig e ficaram os quatro entreolhando-se desamparados.

Tiraram tudo o que puderam do avião destruído: a caixa de ferramentas, o estojo de primeiros socorros, um cantil de alumínio com cinco litros de água, cobertores térmicos, tabletes de malte, uma pistola, o rifle AK 47 e munição, o estojo de mapas. Craig desaparafusou a bússola do teto da cabine. Trabalharam durante uma hora tentando esconder qualquer vestígio do desastre para não ser visto por algum avião de buscas. Tungata e Craig arrastaram os pedaços de asas quebradas para a ravina e os cobriram com mato seco. Não podiam mover a fuselagem e o motor, mas empilharam mais galhos e vegetação por cima.

Por duas vezes, enquanto trabalhavam, ouviram o som distante de um avião. O barulho forte dos motores era inconfundível.

- O Dakota - disse Sally-Anne.

- Estão à nossa procura.

- Não podem saber que estamos aqui embaixo - protestou Sally-Anne.

- Não, com certeza, mas devem saber que sofremos sérias avarias - opinou Craig. - Devem saber que há uma boa chance de que tenhamos caído. Vão mandar soldados de infantaria para examinar a área, e interrogar o pessoal das aldeias.

- Quanto mais cedo sairmos daqui...

- Em que direção?

- Posso fazer uma sugestão? - perguntou Sarah, que aderiu à discussão com um tom de deferência. - Precisamos de comida e de um guia. Acho que posso levá-los daqui até a aldeia de meu pai. Ele pode nos esconder enquanto resolvemos o que fazer.

Craig olhou para Tungata.

- Faz sentido... alguma objeção, Sam? Bem, então vamos lá. Antes de abandonarem o local do desastre, Craig levou Sally- Anne para um lado.

- Sente-se triste? Era um lindo avião.

- Não sou sentimental a respeito de máquinas. - Ela abanou a cabeça. - Foi um grande brinquedo, mas está todo arrebentado agora. Reservo meus sentimentos para coisas mais aconchegantes... Hora de partir, querido - disse e apertou-lhe a mão.

Craig levava o rifle, mantinha-se uns oitocentos metros na frente e marcava a trilha. Tungata, enfraquecido, vinha atrás com as duas moças.

Naquela noite, escavaram o leito de um rio seco para conseguir água e chuparam um tablete de malte, antes de se enrolarem nos cobertores térmicos. As moças fizeram as duas primeiras vigílias de sentinela, enquanto Tungata e Craig tiravam a sorte para ver quem faria as duas mais duras.

De manhã cedo, Craig chegou a uma trilha bastante usada, e quando Sarah chegou lá reconheceu-a imediatamente. Duas horas mais tarde, estavam no vale cultivado abaixo da colina da aldeia de Vusamanzi e, enquanto os outros escondiam-se no milharal, Sarah foi à procura do pai. Quando voltou uma hora mais tarde, o velho feiticeiro estava com ela.

Foi direto em direção a Tungata e ajoelhou-se sobre os joelhos inchados e artríticos, tomou um dos pés dele e colocou-o sobre a carapinha branca.

- Filho de reis, eu o saúdo. Rebento do grande Mzilikazi, ramo do poderoso Kumalo, sou seu escravo.

- Levante-se, velho. - Tungata o fez levantar-se e usou o termo respeitoso kehla, honrado velho.

- Perdoem-me por não oferecer-lhes nada - desculpou-se Vusamanzi. - Este lugar não é seguro, os soldados shona estão em toda parte. Preciso levá-los a um seguro para que possam descansar e refrescar-se. Sigam-me.

Começou a caminhar em passo acelerado, muito ágil sobre as velhas pernas magras, e tiveram que se esforçar para não perdê-lo de vista. Pelo relógio de Craig, caminharam por duas horas, sendo que a última por uma vegetação densa e espinhenta e um solo acidentado e rochoso. Não havia qualquer trilha definida e o calor na mata quente era enervante e opressivo.

- Não gosto deste lugar - disse Tungata a Craig, baixinho. - Não há pássaros e nenhuma espécie de animal, há uma atmosfera de maldade... não, maldade não, mas de mistério e ameaça.

Craig olhou em torno. As rochas pareciam restos de metal fundido e as árvores eram tortas e deformadas, pretas como carvão contra o céu, mas esbranquiçadas aos raios de sol. Os galhos estavam cheios de liquens dependurados, de um verde doentio. E Tungata tinha razão, não havia sons de pássaros ou ruídos de pequenos animais. De repente, Craig ficou gelado e estremeceu.

- Também está sentindo isso - disse Tungata e, ao falar, o velho desapareceu abruptamente, como que engolido pelas rochas negras. Craig apressou-se em andar mais depressa, controlando um arrepio de medo supersticioso. Chegou ao lugar onde Vusamanzi desaparecera e olhou em torno, mas não havia sinal do velho feiticeiro.

- Por aqui. Por trás da rocha - disse a voz de Vusamanzi em um eco sepulcral.

O rochedo dobrava sobre si mesmo, uma cavidade estreita e bem escondida, apenas grande o bastante para um homem esgueirar-se, a entrada de uma caverna. Craig fez a volta e parou, deixando a vista ajustar-se à pouca iluminação.

Vusamanzi pegara um lampião barato numa prateleira sobre sua cabeça e estava enchendo-o com parafina de uma garrafa que trouxera na sacola. Acendeu um fósforo e encostou-o ao pavio.

- Venham - convidou, deixando-os passar pela abertura.

- Estas colinas estão cheias de cavernas e passagens secretas. São formações dolomíticas - explicou Sarah.

A mais de cem metros adiante, a passagem abria-se em uma grande câmara. Uma luz suave e natural filtrava-se por uma abertura no teto alto e em cúpula acima de suas cabeças. Vusamanzi apagou o lampião e colocou-o numa prateleira ao lado de uma lareira feita de calcário por mãos humanas. A rocha acima da lareira estava enegrecida de fumaça e havia uma pilha de velhas cinzas no assoalho. Ao lado, estava estocada uma pilha de lenha bem-arrumada.

- Este é um lugar sagrado - disse-lhes Vusamanzi. - É aquique os aprendizes de feiticeiro vivem durante o treinamento. Foi aqui, quando era jovem, que servi a meu pai, e aprendi as antigas artes das profecias e da magia. - Fez um gesto para que se sentassem, e todos deixaram-se cair, gratos, no solo rochoso. - Estarão a salvo aqui. Os soldados não os descobrirão. Em uma semana ou um mês, quando se cansarem de procurar, será seguro partir. E teremos achado um homem para guiá-los.

- É um lugar estranho - sussurrou Sally-Anne, quando Craig traduziu para ela.

- Algumas de minhas mulheres estão nos seguindo, trazendo comida. Virão a cada dois dias enquanto estiverem aqui, com alimento e notícias.

Duas meio-irmãs de Sarah chegaram na caverna antes do escurecer. Levavam fardos pesados equilibrados na cabeça e começaram a preparar uma refeição imediatamente. As risadas, a alegre tagarelice, as chamas da lareira e o cheiro de comida cozinhando aliviaram um pouco a atmosfera opressiva.

- Você tem que comer com as mulheres - explicou Craig a Sally-Anne. - É o costume. O velho ficaria muito infeliz...

- Parecia um velho tão simpático e não passa de outro porco chauvinista - ela protestou.

Os três homens passavam o pote de cerveja entre si e comiam da tigela comum ao centro, e o velho conversava com Tungata entre os bocados mastigados.

- Os espíritos não deixaram que nos encontrássemos da primeira vez, Nkosi. Esperamos pelo senhor naquela noite, mas os shona o haviam levado. Foi um tempo de dor para nós, mas agora os espíritos abrandaram-se e o libertaram dos shona, propiciando afinal o nosso encontro. - Vusamanzi olhou para Craig. - Há coisas de grande importância que o senhor e eu precisamos discutir, assuntos tribais.

- O senhor diz que os espíritos propiciaram minha fuga dos shona - retrucou Tungata. - Pode ser que sim, mas, se assim for, então este homem branco foi o seu agente. Ele e sua mulher arriscaram a própria vida para me libertar.

- Mesmo assim, é um homem branco - disse o velho com delicadeza.

- Sua família vive aqui há cem anos, e ele é meu irmão - disse Tungata com simplicidade.

- O senhor confia nele, Nkosi? - persistiu o velho.

- Pode falar, velho - assegurou-lhe Tungata. - Somos todos amigos aqui.

O feiticeiro suspirou, calou-se e botou outro bocado de comida na boca.

- Como deseja o meu senhor - concordou enfim, acrescentando abruptamente: - O senhor é o guardião do túmulo do velho rei, não?

Os olhos de Tungata ficaram velados à luz do fogo.

- Sei que os filhos da casa de Kumalo, quando chegam à idade adulta, são levados à tumba do rei e juram guardá-lo.

- Pode ser - disse Tungata, relutante.

- Conhece a profecia? - perguntou o velho.

- Quando a tribo estiver em grande necessidade, o espírito do velho rei aparecerá para prestar-lhes socorro.

- O espírito de Lobengula virá como um fogo - corrigiu-o o velho.

- Sim - concordou Tungata -, o fogo de Lobengula.

- E há ainda muito, muito mais. Conhece o resto dela, filho de Kumalo?

- Recite-a, velho pai.

- Assim diz a profecia: "O filhote de leopardo primeiro quebrará um juramento, depois, suas cadeias. O filhote de leopardo primeiro voará como uma águia e, depois, nadará como um peixe. Quando essas coisas acontecerem, o fogo de Lobengula será libertado dos lugares escuros e virá socorrer e salvar seu povo".

Ficaram silenciosos, ponderando sobre a adivinhação.

- A pele de leopardo é uma prerrogativa da casa de Kumalo lembrou-lhes Vusamanzi. - Assim, o filhote de leopardo seria um descendente da casa real.

Tungata resmungou alguma coisa.

- Não sei se quebrou um juramento - acrescentou o velho -, mas quebrou as cadeias com as quais os shonas o aprisionavam.

- Êh, he! - Tungata assentiu, com o rosto fechado e impassível.

- Escapou de Tuti em um indeki, realmente voando como uma águia - apontou-lhe o velho, e de novo Tungata concordou, mas murmurou em inglês para Craig:

- A beleza dessas velhas profecias é que podem ser ajustadas a qualquer circunstância. Ganham um pouco e perdem um pouco a cada repetição, dependendo do humor e dos motivos do vidente.

- E voltou a falar em sindebele. - O senhor é sábio, velho, e muito versado em magia, mas explique-nos isso de nadar como um peixe. Devo preveni-lo de que não sei nadar e de que a única coisa que temo realmente é morrer afogado. Deve procurar outro peixe.

Vusamanzi limpou a gordura do queixo e pareceu satisfeito.

- Há algo mais que preciso lhe contar - continuou Tungata.

- Penetrei no túmulo de Lobengula e está vazio. O corpo de Lobengula desapareceu. A profecia foi esvaziada há muito, muito tempo.

O velho feiticeiro não pareceu nada consternado com as palavras de Tungata. Em vez disso, sentou-se sobre os calcanhares e abriu a tampa do chifre de rapé que tinha pendurado ao pescoço.

- Se penetrou no túmulo do rei, então quebrou o juramento de mantê-lo intacto - disse com um brilho malicioso nos olhos. - A quebra de juramento da profecia, seria isso? - Não esperou a resposta, colocou um pó vermelho na palma da mão e cheirou-o, espirrando em êxtase e com lágrimas escorrendo pelas bochechas enrugadas. - Se quebrou o juramento, Nkosi, estava além de seus poderes evitá-lo. Os espíritos de seus ancestrais o levaram a isso e não tem culpa. Mas deixe-me explicar-lhe o túmulo vazio. - Fez uma pausa e pareceu partir para outro assunto. - Já ouviram falar de um homem que viveu há muito tempo atrás, um homem chamado Taka-Taka? - Ambos concordaram.

- Taka-Taka era o bisavô pelo lado materno de Pupho - Tungata disse, apontando para Craig. - Foi um famoso soldado branco na época de Lobengula. Lutou contra os guerreiros impis do rei. Taka-Taka era o som que as metralhadoras faziam quando os guerreiros dos matabele lutavam contra ele.

- O velho Sir Ralph Ballantyne - concordou Craig. - Um dos braços direitos de Rhodes, e primeiro-ministro da Rodésia. - Voltou a falar sindebele. - Taka-Taka está enterrado nas Colinas Matopos, perto do túmulo de Lodzi, do próprio Cecil Rhodes.

- É esse mesmo. - Vusamanzi limpou o pó que aderira ao lábio superior e as lágrimas do rosto. - Taka-Taka, o soldado e o saqueador dos lugares sagrados da tribo. Foi ele que roubou os pássaros de pedra da cidade arruinada do grande Zimbabué. Foi ele também que veio até essas colinas para violar o túmulo de Lobengula e roubar as pedras de fogo que guardam o espírito do rei.

Tanto Craig quanto Tungata inclinaram-se para a frente, atentamente.

- Li o livro que o velho Taka-Taka escreveu contando sua vida... - Os diários manuscritos eram parte do tesouro pessoal de Craig que os deixara em King's Lynn quando Peter Fungabera o colocara para fora. - Li as próprias palavras dele e não fala em ter chegado ao túmulo de Lobengula. E que pedras de fogo são essas?

O velho levantou a mão, silenciando-o.

- Está indo rápido demais, Pupho - advertiu. - Deixe que o filho de Kumalo explique esses mistérios para nós. Ouviu falar das pedras de fogo, Tungata Zebiwe, que um dia se chamou Samson Kumalo?

- Ouvi algo a respeito - disse Tungata, cautelosamente. - Ouví dizer que havia um enorme tesouro em diamantes coletados pelos amadoda de Lobengula nas minas do branco Lodzi no sul...

Craig começou a interrompê-lo, mas Tungata o fez silenciar.

- Explico isso mais tarde - prometeu, e voltou-se para o velho feiticeiro.

- O que ouviu é verdade - assegurou-lhe Vusamanzi. - Existem cinco barris de cerveja cheios de pedras de fogo.

- E foram roubados por Taka-Taka? - antecipou-se Craig, Vusamanzi assumiu um ar severo.

- Devia ir para a fogueira das mulheres, Pupho, já que fala tanto quanto elas.

Craig parou de sorrir e ficou devidamente calado enquanto Vusamanzi arrumava a capa antes de continuar.

- Quando Lobengula foi posto na terra, e o túmulo selado pelo meio-irmão e leal induna, um homem chamado Gandang...

- Que era meu trisavô - murmurou Tungata.

- Que era seu trisavô - concordou o velho. - Gandang colocou todos os tesouros do rei com ele no túmulo e liderou a tribo matabele derrotada de volta. Foi fazer um acordo com Lodzi e esse Taka-Taka, e a tribo ficou em servidão do homem branco. Mas um homem ficou nestas colinas, um famoso feiticeiro chamado Insutcha, a flecha. Ficou para guardar a tumba do rei e construiu umaaldeia perto, tomando esposas e criando filhos. Insutcha, a flecha, era meu avô. - Ficaram bastante surpresos e Vusamanzi adotou uma expressão complacente. - Sim, estão vendo como os espíritos agem? Tudo planejado e predestinado: nós três nos ligamos por nossa história e nossos laços de sangue, Gandang, Taka-Taka e Insutcha. Os espíritos nos reuniram desta maneira maravilhosa.

- Sally-Anne está certa. Tudo isso é um bocado estranho - disse Craig. Vusamanzi fez cara feia com o uso de uma língua estrangeira.

- Esse Taka-Taka, como já disse, era um famoso aventureiro, com um nariz de hiena e o apetite de um abutre - Vusamanzi disse com gosto e olhou para Craig.

- Acertou-me direitinho - Craig sorriu secretamente, mas manteve uma expressão solene.

- Soube da lenda do tesouro e foi procurar entre os sobreviventes do batalhão impi de Gandang, os homens que haviam estado presentes na época da morte do rei, e encheu-lhes os ouvidos de palavras gentis e doces, oferecendo-lhes gado e moedas de ouro. Conseguiu achar um traidor, um cão que não merecia o nome de matabele. Não direi o nome desse lixo, mas cuspo em seu túmulo desonrado. - Vusamanzi acertou uma cusparada nas brasas do fogo. - Esse cão concordou em guiar Taka-Taka até lá, mas, antes que o fizesse, houve uma grande guerra entre os brancos, e Taka-Taka foi para o norte lutar contra o induna alemão chamado de HambaHamba, "o que marcha de cá para lá e nunca é apanhado".

- Von Lettow Vorbeck - traduziu Craig -, o comandante alemão na África Ocidental durante a guerra de 1914 a 1918. - E Tungata concordou.

- Quando a guerra terminou, Taka-Taka mandou chamar o traidor matabele e vieram para estas colinas com o cão dos cães liderando-os: quatro homens brancos além de Taka-Taka, à procura do túmulo. Procuraram por vinte e oito dias porque o traidor não se lembrava do local exato e a tumba estava habilmente disfarçada. Mas com o seu nariz de hiena, Taka-Taka a localizou afinal e abriu a tumba real, encontrando carroças e armas, mas o corpo do rei e os cinco barris de cerveja haviam desaparecido!

- Isso já vi e contei a vocês - disse Tungata. Era um anti-clímax. Fez um gesto resignado e Craig encolheu os ombros, mas Vusamanzi continuou resolutamente:

- Dizem que a raiva de Taka-Taka foi como as grandes tempestades de chuva, que rugiu como um leão devorador de homens e o rosto ficou primeiro vermelho, depois púrpura e, finalmente, negro. - Vusamanzi riu de satisfação. - E dizem que tirou o chapéu da cabeça e o atirou no chão, pegou a arma e quis atirar no guia matabele, mas os companheiros brancos o impediram. Então, amarrou o cão a uma árvore e espancou-o com um kibobo até as costelas aparecerem e tirou-lhe as moedas de ouro e o gado com que o subornara, tornou a espancá-lo e, finalmente, berrando como um elefante no cio, Taka-Taka foi-se e nunca mais voltou.

- É uma boa história - concordou Tungata. - Vou contá-la a meus filhos. - Espreguiçou-se e bocejou. - Está ficando tarde.

- A história ainda não acabou - disse Vusamanzi empertigado, e colocou a mão no ombro de Tungata para impedi-lo de levantar-se.

- Há mais ainda?

- Sem dúvida. Precisamos recuar um pouco, pois quando TakaTaka, junto com os companheiros e o cão traidor, veio a primeira vez até estas colinas, meu avô Insutcha ficou imediatamente desconfiado. E mandou três de suas mulheres mais bonitas e jovens para o acampamento com pequenos presentes de ovos e coalhada e ele respondeu às perguntas dizendo que viera até ali para caçar rinocerontes. - Vusamanzi fez uma pausa, olhou para Craig e acrescentou: - Taka-Taka também era um consumado mentiroso. Mas a mais bonita das esposas esperou pelo cão matabele traidor na hora do banho no rio e tocou debaixo d'água naquilo que se costuma dizer que, quanto mais duro fica, mais mole deixa a cabeça de um homem, e, quanto mais rápido sacode, mais depressa solta a língua. Com a mão da moça em sua espada, o traidor contou um monte de vantagens e promessas de gado e moedas de ouro, e a esposa correu de volta para meu avô na aldeia.

Vusamanzi conseguira de novo toda a atenção dos dois e estava visivelmente deleitado.

- Meu avô ficou muito consternado. Taka-Taka viera para violar e roubar o túmulo do rei. Insutcha jejuou e ficou em vigília, tirou a sorte com ossos, olhou a água do vaso de predições e finalmente chamou os quatro aprendizes de feiticeiro, um dos quais era meu pai. Na lua cheia, abriram o túmulo do rei e fizeram sacrifícios para aplacar seu espírito; com reverência, levaram o corpo embora e tornaram a lacrar a tumba. Levaram o rei para um lugar seguro e o depositaram lá, com os barris de cerveja cheios das pedras brilhantes; e meu pai contou-me que, na pressa, um dos potes virou e partiu-se e que haviam catado as pedras rapidamente e colocado num saco de pele de zebra, deixando os cacos do vaso no túmulo.

- Tanto os aprendizes quanto Taka-Taka não viram um dos diamantes - disse Tungata calmamente. - Encontramos os cacos e um único deles onde o haviam deixado.

- Agora pode ir dormir, Nkosi, se ainda está com vontade. - Vusamanzi deu a permissão com um brilho malicioso nos olhos. - O quê? Quer ouvir mais? Não há mais nada a dizer. A história terminou.

- Para onde levaram o corpo do rei? - perguntou Tungata. - Conhece o local, sábio e reverendo velho pai?

- É um prazer inesperado descobrir respeito e honraria pelos velhos nos jovens de hoje em dia, mas, respondendo à sua pergunta, filho de Kumalo: sei onde está o corpo do rei. O segredo me foi transmitido por meu pai.

- Pode levar-me até ele?

- Não lhe disse que este lugar em que estamos é sagrado? E o é por uma boa razão.

- Meu Deus!

- Aqui! - Tanto Craig quanto Tungata falaram ao mesmo tempo e Vusamanzi deu uma risada, batendo nos joelhos ossudos, muito satisfeito com a reação dos dois.

- Amanhã de manhã vou levá-los para ver o túmulo do rei - prometeu. - Mas agora minha garganta está seca de tanto falar. Passem o pote de cerveja para um velho.

quando craig acordou, a primeira luz matinal difundia-se pelo buraco no teto da caverna, leitosa e azulada pela fumaça da lareira onde as moças preparavam a refeição da manhã.

Enquanto comiam, e com a relutante permissão de Vusamanzi, Craig contou em inglês a história do segundo enterro de Lobengula a Sarah e a Sally-Anne, que ficaram fascinadas e imediatamente excitadas para acompanhar a expedição.

- É um lugar de acesso difícil - argumentou o velho -, e não é para os olhos de meras mulheres. - Mas Sarah sorriu-lhe docemente, afagou-lhe a cabeça e sussurrou-lhe ao ouvido e, finalmente, depois de mais uma reação severa, acabou cedendo.

Sob a orientação de Vusamanzi, os homens fizeram alguns preparativos simples para a expedição. Em um dos corredores da caverna, debaixo de uma pedra achatada, havia uma cavidade escondida, com outro lampião, dois machados nativos e três rolos de corda de náilon de boa qualidade dos quais visivelmente o velho orgulhava-se.

- Conseguimos estas belas cordas do exército de Smithy durante a guerra - gabou-se.

- Que grande derrota para a liberdade - murmurou Craig, e Sally-Anne fez-lhe sinal para que se calasse.

Tomaram por uma das passagens e Vusamanzi liderava-os, levando uma das lanternas, seguido por Tungata com um dos rolos de corda, as moças ao centro e Craig com outro rolo e a lanterna restante à traseira.

Vusamanzi continuou pela passagem que foi estreitando-se e ficando sinuosa. Ao bifurcar-se, não hesitou. Craig abriu o canivete e marcou a parede à direita, apressando-se em seguida para alcançá-los.

Os túneis e cavernas eram um labirinto. As infiltrações de água haviam minado o calcário das colinas e o perfurara como um queijo suíço. Em alguns lugares, desceram por declives cheios de cascalho e a certa altura subiram uma escada natural de calcário. Craig marcava cada curva do caminho. O ar era frio, úmido e cheirava a guano. Havia ocasionalmente um frémito de asas escuras por sobre as cabeças e o grito agudo de morcegos que ecoavam nas galerias.

Depois de vinte minutos, chegaram até uma queda quase vertical na parede de calcário liso e polido, tão profunda que a claridade da lanterna não chegava ao fundo. Guiados por Vusamanzi, amarraram um lado da corda de náilon a um pilar e, um de cada vez, desceram uns quinze metros até o próximo estágio. Era uma falha vertical na formação rochosa, onde dois corpos geológicos haviam-se afastado ligeiramente e formado uma fenda nas profundezas da terra. Era tão estreita que podiam tocar as duas paredes e, à luz do lampião, Craig distinguia os olhos brilhantes dos morcegos pendurados de cabeça para baixo.

Desenrolando a segunda corda atrás dele, Vusamanzi descia cautelosamente pelo traiçoeiro solo da fenda que alargava-se progressivamente e o teto ia desaparecendo acima deles. Lembrava a Craig a grande galeria no coração da pirâmide de Queops, uma fenda assustadora na rocha viva, inclinada a ponto de terem que se equilibrar a cada passo. Quase haviam atingido o limite da corda quando Vusamanzi parou e ficou imóvel sobre uma laje meio inclinada, iluminado pela lanterna e parecendo um Moisés negro que acabara de descer da montanha.

- O que é? - gritou Craig.

- Desça! - ordenou Tungata, e Craig ultrapassou o último declive, encontrando Vusamanzi e os outros inclinados sobre a laje, espiando pela borda a superfície parada de um lago subterrâneo.

- E agora? - perguntou Sally-Anne, com voz abafada e cheia de temor por aquele lugar profundo e secreto.

O lago inundara a fenda. Do outro lado da superfície, a uns quinze metros, o teto da laje mergulhava nela com a mesma inclinação do solo em que estavam.

Craig usou pela primeira vez a lanterna elétrica que haviam salvo do desastre do Cessna. Iluminou a água intocada por um longo período cujos sedimentos haviam-se assentado, deixando-a transparente como um riacho. Podiam ver o chão inclinado da galeria descendo para as profundezas. Craig desligou a lanterna para economizar as baterias.

- Bem, Sam, aí está a sua grande chance de nadar como um peixe... - disse e colocou-lhe a mão no ombro. A risada de Tungata foi breve e ambos olharam para Vusamanzi.

- E agora, reverendo pai?

- Quando Taka-Taka veio para essas colinas e meu avô e meu pai salvaram o cadáver do rei da conspurcação, tinha havido sete anos longos e terríveis de seca que fustigaram a terra. O nível da água nesta fenda era muito menor do que agora. Lá embaixo, há outra laje e foi nesse lugar que colocaram o corpo de Lobengula. Nos muitos anos que se passaram desde então, chuvas abundantes abençoaram a terra e a cada ano o nível tem subido. A primeira vez que estive aqui, trazido por meu pai, as águas estavam abaixo daquela rocha saliente.

Craig ligou por um instante a lanterna e o facho de luz incidiu na protuberância de calcário a uns dez metros abaixo da superfície. Mas mesmo então o túmulo do rei estava bem abaixo dela.

- Então, nunca viu a tumba com os próprios olhos? - interrogou-o Craig.

- Nunca - concordou Vusamanzi. - Mas meu pai a descreveu para mim.

Craig ajoelhou-se à beira do lago e colocou a mão na água. Era tão fria que estremeceu e a tirou depressa. Enxugou-a na camisa e, ao levantar os olhos, Tungata o observava com uma expressão especulativa.

- Ei, olhe aqui, meu querido irmão matabele - disse com veemência. - Sei perfeitamente o que significa este olhar e trate de esquecê-lo.

- Não sei nadar, Pupho meu amigo.

- Esqueça - avisou-o Craig.

- Podemos amarrar uma das cordas em você. Não correrá o menor perigo.

- Sabe o que pode fazer com suas malditas cordas.

- A lanterna é à prova d'água e pode acender abaixo da superfície - continuou Tungata com firmeza.

- Jesus! - disse Craig, amargamente. - Regra africana número um: quando tudo mais falhar, procure em volta um cara-pálida.

- Lembra-se que atravessou o rio Limpopo por causa de uma aposta ridícula, uma caixa de cerveja? - perguntou Tungata em voz macia.

- Estava bêbado naquele dia e hoje estou sóbrio. - Olhou para Sally-Anne em busca de apoio e ficou desapontado.

- Você também!

- Há crocodilos no Limpopo e por aqui não há nenhum - ela argumentou.

Craig começou a desabotoar lentamente a camisa, e Tungata sorriu, começando a preparar a corda. Todos observavam com interesse enquanto desamarrava a perna mecânica e a pousava cuidadosamente no chão. Ficou de roupa de baixo à beira do lago enquanto Tungata passava-lhe a corda pela cintura.

- Pupho - disse Tungata calmamente. - Vai precisar de roupas secas depois. Por que vai molhar estas? - disse, apontando para a roupa íntima.

- Por causa de Sarah - Craig explicou e olhou-a de soslaio.

- É uma matabele. A nudez não a ofende.

- Deixe que fique com seus segredos - sorriu Sarah -, apesar de eu não ter nenhum para ele. - Ela sorria ao terminar a frase e Craig lembrou-se de sua nudez debaixo da ponte.

Sentou-se na borda da rocha e tirou a cueca, atirando-a por cima das outras roupas. Nenhuma das duas desviou o olhar; deslizou para a água gelada e foi nadando lentamente até o meio do lago.

- Contem o tempo - disse-lhes. - Puxem a corda duas vezes a cada sessenta segundos para me fazer sinal e, quando completar três minutos, puxem-me para cima de qualquer maneira, certo?

- Certo - anuiu Tungata, que estava com a corda enrolada entre os pés, pronto para soltá-la aos poucos.

Craig começou a boiar e a inspirar e expirar profundamente, procurando livrar-se do dióxido de carbono. Era um recurso perigoso, e um mergulhador inexperiente poderia desmaiar por falta de oxigénio antes que o gás carbónico fosse totalmente eliminado. Encheu bem os pulmões e mergulhou na água fria e clara.

Sem o uso de óculos de mergulho, a visão ficava distorcida mas manteve o foco da lanterna dirigido para a elevação calcária abaixo e nadou rapidamente, com a pressão estalando nos ouvidos.

Atingiu-a e tomou impulso na pedra. Descia com mais facilidade agora que a pressão da água comprimira o ar dos pulmões, reduzindo a flutuação. O solo íngreme da piscina natural passava-lhe diante dos olhos numa visão distorcida; rolou para o lado, examinando as paredes à procura de uma entrada.

Sentiu então um puxão duplo em torno da cintura; já se passara um minuto e viu então a entrada da tumba abaixo dele. Era uma abertura quase circular na parede à esquerda da galeria principal que lhe lembrou a órbita vazia de um crânio.

Mergulhou e estendeu a mão, agarrando-se à soleira de pedra da abertura grande o bastante para deixar passar um homem curvado. Examinou as paredes polidas pela correnteza e recobertas por uma camada de limo. Percebeu que era um poço de drenagem vindo da superfície, escavado na rocha pela infiltração das chuvas durante milénios.

De repente, teve medo. Havia algo de assustador e proibitivo naquela entrada escura. Olhou para a superfície onde viu o reflexo da luz do lampião de Vusamanzi; essa visão e a água gelada sugaram-lhe a coragem. Teve ímpetos de voltar à superfície e sentiu o primeiro hausto involuntário dos pulmões. Estava ficando sem oxigénio.

Algo deu-lhe um puxão na cintura e, por um momento, ficou à beira do pânico antes de perceber que era o sinal. Dois minutos haviam se passado.

Forçou-se a continuar. A passagem fazia um ângulo suave para cima, nadou alguns metros iluminando-a, mas a água estava ficando escura e densa com a sedimentação que se levantava do solo.

De repente, constatou que a passagem estava interrompida pela superfície áspera. Os pulmões estavam começando a ressentir-se do esforço, os ouvidos zumbiam, e estava meio cego pelos sedimentos que giravam em torno e por um início de vertigem, mas forçou-se a examinar o fim do túnel de alto a baixo.

Percebeu logo que se tratava de uma parede de alvenaria, cuidadosamente feita para bloqueá-lo, e sentiu um desânimo total. Os velhos feiticeiros haviam selado mais uma vez o túmulo de Lobengula e, nos breves segundos que lhe restavam, sentiu que haviam feito um trabalho perfeito.

Tocou com os dedos algo metálico ao pé da parede, pegou-o e nadou de volta pela passagem, com a falta de ar aumentando. Chegou à galeria principal ainda com o objeto na mão.

Acima dele, o reflexo da luz brilhava e procurou nadar para lá. Estava com os sentidos completamente embotados; pontos de luz e escuridão alternavam-se diante de seus olhos enquanto o cérebro ficava cada vez mais sem oxigénio; sentiu os primeiros sinais de letargia nos pés e mãos que pareciam pesar como chumbo.

A corda em torno de sua cintura esticou-se com um puxão e sentiu-se içado. Três minutos; Tungata o levava de volta. A luz no alto girava loucamente e ele redemoinhava na ponta da corda até que não aguentou mais e tentou respirar, fazendo com que a água gelada lhe penetrasse nos pulmões.

Chegou à superfície e Tungata, enfiado na água até a cintura, segurava a corda com as duas mãos. No momento em que emergiu, ele o agarrou e arrastou para a margem.

As moças estavam preparadas para segurá-lo pelos pulsos e ajudaram-no a subir na laje. Craig caiu, tossindo, vomitando água e tremendo violentamente de frio.

Sally-Anne colocou-o de bruços e pressionou-lhe as costas com as duas mãos. Água e vómito esguicharam-lhe da garganta, mas a respiração foi se normalizando e, por fim, sentou-se esfregando a boca. Sally-Anne tirara a blusa e o esfregava vigorosamente. À luz do lampião, sua pele estava azulada e tremia convulsivamente.

- Como se sente? - perguntou Sarah.

- Maravilhoso - ofegou. - Nada como um bom mergulho.

- Ele está bem - assegurou-lhes Tungata. - Quando começa a rosnar é sinal de que tudo está bem.

Craig colocou as mãos sobre o lampião para aquecê-las gradualmente e o tremor cessou. Sarah sussurrou algo para Tungata, olhando com um sorriso malicioso para o corpo nu de Craig.

- É isso aí! - disse Tungata, imitando o sotaque de um negro norte-americano e rindo muito. - E tem mais, não tem nenhum balanço também.

Craig agarrou a cueca e Sally-Anne apressou-se lealmente em defendê-lo.

- Não o estão vendo em seus melhores momentos e aquela água congelaria qualquer um.

As mãos de Craig estavam manchadas de ferrugem e ele lembrou-se do objeto que encontrara na parede do túmulo, e deixara atirado à beira da laje.

- Um elo de uma corrente de carreta - disse, ao pegá-lo. - De uma carreta de boi.

Vusamanzi, que estivera acocorado silenciosamente a um lado, quase fora do círculo de luz da lanterna, falou naquele momento:

- Essa corrente era da carreta do rei. Meu avô a usou para baixar o corpo pelo poço.

- Então, encontrou o túmulo? - perguntou Tungata. Para todos, aquele pedaço insignificante de metal era a prova que transformava fantasia em realidade.

- Acho que sim, mas nunca saberemos ao certo - Craig concluiu, começando a afivelar a perna novamente.

Todos o observavam e esperavam. Teve outro acesso de tosse e, depois que a respiração voltou ao normal, prosseguiu:

- Há uma passagem como a descrita por Vusamanzi. Está a uns quatro metros e meio abaixo daquela elevação virada para a esquerda, uma abertura redonda que sobe verticalmente. Cerca de seis metros da entrada, esse poço foi bloqueado com alvenaria, grandes blocos de calcário muito bem ajustados. Não há maneira de se saber quanto têm de espessura, mas uma coisa é certa, seria um trabalho duro abri-la. Tive apenas alguns segundos para avaliá-los, mas garanto que, sem um equipamento de mergulho, ninguém vai passar além daquele muro.

Sally-Anne começou a dar de ombros, mas arrependeu-se e olhouo de maneira desafiadora.

- Não podemos desistir, Craig querido, não podemos simplesmente ir embora e nunca ficar sabendo a verdade. Acho que remoeria isso pelo resto da vida. Um mistério desses! Nunca mais poderia ser feliz, nunca.

- Estou aceitando sugestões. Alguém tem um equipamento de mergulho metido no bolso? Que tal pagarmos um bode a Vusamanzi para que faça a água se abrir, como Moisés no Mar Vermelho? - Craig disse sarcasticamente.

- Não seja petulante - disse Sally-Anne.

- Vamos pessoal, botem a inteligência e a criatividade para funcionar! Como é? Nenhuma sugestão? Então vamos voltar para onde haja uma fogueira e um pouco de calor. - Atirou dentro d'água o pedaço de metal enferrujado. - Durma em paz, Lobengula, "O que avança como o vento", fique com suas pedras de fogo e shala gashle, fique em paz!

A subida até o labirinto de passagens e grutas interligadas foi uma procissão silenciosa e desanimada. Craig tornou a assinalar cada volta e encruzilhada à medida que passavam.

Já de volta à caverna principal, levaram apenas uns poucos minutos para avivar as brasas do fogão e ferver um cantil de água.

O chá forte e açucarado fez desaparecer os últimos vestígios da tremedeira de Craig e os reanimou.

- Preciso voltar à aldeia - disse Vusamanzi. - Se os soldados shona não me encontrarem ao chegar, ficarão desconfiados, e vão começar a maltratar e torturar minhas mulheres. Preciso estar lá para protegê-las, se bem que até eles têm medo de minha magia.

- Pegou a sacola, o manto e o bastão enfeitado. - Precisam ficar na caverna o tempo todo. Sair daqui é arriscar-se a ser descoberto pelos soldados. Vocês têm comida, água, lenha, cobertores e parafina para os lampiões, não há necessidade de sair. Minhas mulheres virão depois de amanhã com mais comida e notícias sobre os shona.

- Ajoelhou-se diante de Tungata. - Fique em paz, grande príncipe de Kumalo. Meu coração me diz que é o filhote de leopardo da profecia e que achará um meio de libertar o espírito de Lobengula.

- Talvez volte aqui um dia com as máquinas especiais que são necessárias para alcançar o lugar de repouso do rei.

- Talvez - concordou Vusamanzi. - Farei sacrifícios e vou consultar os espíritos, talvez eles me concedam a graça de descobrir o caminho. - À saída da caverna, parou e despediu-se: - Voltarei quando for seguro. Fiquem em paz, meus filhos. - E partiu.

- Algo me diz que vai ser uma temporada longa e difícil e este não é exatamente o lugar ideal para passá-la - disse Craig.

Eram pessoas ativas e inquietas, e o confinamento começou a incomodá-los quase que imediatamente. Dividiram de comum acordo a caverna, uma área para todos em torno da lareira e uma privativa nas extremidades para cada casal. A água que minava da rocha recolhida em um pote de barro era suficiente para todas as necessidades, inclusive as ablussões e havia em uma das passagens um poço que fazia as vezes de latrina natural. Mas não havia nada para ler e nenhum material para se escrever. Craig ressentia-se muito disso. Para amenizar o tédio, Sarah começou a ensinar sindebele a Sally-Anne, cujo progresso foi tão rápido que logo pôde acompanhar uma conversa simples e responder com fluência razoável.

Tungata recuperou-se rapidamente durante aqueles dias de inatividade forçada. Engordou, os ferimentos sararam e recuperou a vitalidade. Era ele muitas vezes quem liderava as longas conversas ao pé do fogo e o irreprimível senso de humor dos velhos tempos, tão nitidamente lembrado por Craig, começou a superar os estados de ânimo sombrios que o assaltavam.

Quando Sally-Anne fez uma observação de menosprezo sobre a África do Sul e o regime de apartheid, Tungata a contradisse com uma fingida severidade.

- Não, não, Pêndula... - dera-lhe o apelido matabele de Pêndula, "aquela que sempre retruca". - Em vez de condená-los, nós, africanos negros, devíamos dar graças a Deus por eles! Porque são capazes de unir cem tribos num único brado. Tudo o que precisamos é levantar e gritar, "O apartheid racista dos boers!" Todos param de lutar entre si e, por um instante, somos irmãos.

Sally-Anne bateu palmas.

- Adoraria ouvir você fazer um discurso na próxima reunião da Organização Pela Unidade Africana!

Tungata riu; estavam ficando muito amigos.

- Outra coisa pela qual devemos ser gratos... - e continuou.

- Fale mais um pouco - ela o incitava.

- Aquelas tribos lá do sul são as mais agressivas da África - obedecia Tungata -, zulus, shosas e tswanas. Já temos uma parada dura com os shona; imagine se aquela gente resolvesse se virar contra nós também. Não, de agora em diante, minha divisa será "Beije um afrikander todo dia!"

- Não lhe dê corda - suplicava Sarah. - Um dia desses ainda vai falar assim diante de pessoas que o levarão a sério.

Em outras ocasiões, Tungata recaía em estados de depressão.

- É como a Irlanda do Norte ou a Palestina, apenas cem vezes maior e mais complexa. Este conflito entre nós e os shona é um microcosmo de todo o problema africano.

- Vê alguma solução? - perguntava Sally-Anne.

- Apenas soluções radicais e difíceis - dizia-lhe. - Veja, as potências europeias, na corrida que fizeram no século dezenove pela posse da África, dividiram o continente sem levar em consideração as divisões tribais, e é um preceito arraigado da Organização Pela Unidade Africana que essas divisões são sacrossantas. Uma solução possível seria derrubar este artigo e repartir o continente pelos limites tribais, mas depois da terrível experiência da índia e do Paquistão nenhum ser racional poderia apoiar este ponto de vista. A única outra solução me parece ser uma forma de governo federal baseada grosso modo no sistema americano, com o Estado dividido em províncias tribais com autonomia em seus próprios assuntos.

As conversas expandiam-se pelo tempo, e, para diverti-las e instruí-las, tanto Craig quanto Tungata contavam a história daquela terra entre os rios Limpopo e Zambeze, e cada um concentrava-se no papel desempenhado pelas respectivas nações e famílias em sua descoberta e ocupação e sobre o conflito que as dividira.

Por duas vezes em dias sucessivos a conversa ao pé do fogo fora interrompida por sons vindos do mundo exterior. O som sibilante de um helicóptero cortando os ares os fez ficarem silenciosos olhando para o teto de pedra sobre eles até que desapareceu. E continuaram falando sobre as chances de escaparem às forças que os perseguiam e os caçavam tão implacavelmente.

A cada dois dias, as mulheres vinham da aldeia de Vusamanzi, andando na escuridão que antecedia o amanhecer, para escapar à vigilância feita do alto, com comida e novidades.

Os soldados da Terceira Brigada haviam chegado à vila, cercando-a primeiro, e, depois, atacando-a e pilhando as cabanas. Haviam espancado uma das moças, molestado e berrado ameaças ao velho, mas Vusamanzi tinha-os enfrentado com dignidade e, por fim, sua formidável reputação de feiticeiro os protegera. Haviam partido sem roubar muita coisa de valor, sem queimar uma só cabana ou matar mais do que algumas galinhas, mas prometeram voltar.

Entretanto, uma caçada maciça estava sendo feita por toda a área. A pé ou de helicóptero, os shona esquadrinhavam a floresta e as colinas durante o dia e centenas de fugitivos do campo haviam sido recapturados. As moças os haviam visto sendo transportados em caminhões pesados, nus e acorrentados.

Pelo que sabia Vusamanzi, ainda não haviam descoberto os destroços do avião, mas ainda corriam grande perigo, e Vusamanzi lhes ordenara que insistissem com eles para permanecer na caverna. Iria vê-los pessoalmente quando achasse seguro.

As novidades deprimiram a todos e foi preciso os melhores esforços de Craig com histórias e palhaçadas para melhorar o humor geral. Distraía-lhes a atenção para o assunto favorito, o túmulo de Lobengula e a enorme fortuna que gostavam de acreditar que continha. Já tinham discutido em detalhes o equipamento necessário para que um time de mergulhadores abrisse a tumba e chegasse à área onde os despojos se encontravam. Sally-Anne perguntou a Tungata:

- Diga-nos, Sam, se houver um tesouro, se pudermos ter acesso a ele, e se ficarmos ricos como esperamos, como o usaria?

- Acho que deveria ser tratado como propriedade do povo matabele. Teria de ser colocado em um fundo e usado em seu benefício, primeiro, para serem melhor tratados politicamente. Para os pragmáticos, um negociador com esse tipo de barganha nas mãos chamaria mais facilmente a atenção do Foreign Office e do Departamento de Estado americano. Pode influenciá-los a fazer pressão. O governo de Harare teria que levá-los a sério e opções até agora fechadas a nós se tornariam acessíveis.

- Em seguida, financiaria todo tipo de programas sociais, educação, saúde, a defesa dos direitos femininos - disse Sarah, deixando por um momento a timidez de lado.

- Seria usado para a aquisição de terras, aumentando as áreas tribais já existentes e para a concessão de crédito aos camponeses na aquisição de tratores e maquinaria, e ainda programas para a melhoria da qualidade do gado - acrescentou Craig.

- Craig, não há nenhuma chance de se chegar à câmara funerária? - perguntou Sally-Anne. - Não daria para tentar outro mergulho?

- Minha querida, explicarei pela centésima vez que eu só poderia provavelmente mover uma única rocha a cada mergulho, e vinte delas me matariam.

- Oh, Deus, é tão frustrante! - Sally-Anne levantou-se e começou a andar de um lado para o outro. - Sinto-me tão impotente. Se não fizermos alguma coisa, vou enlouquecer. Estou sufocando, preciso de um pouco de oxigénio. Será que não podemos ir lá fora por alguns instantes? - E reagindo na mesma hora: - Sei que não está certo. Perdoem-me, sou uma tola. - Olhou para o relógio. - Meu Deus, perdi a noção das horas, sabem que já é mais de meia-noite?

Craig e Sally-Anne estavam deitados sobre o colchão de capim cortado e couro curtido, enlaçados e murmurando para não incomodar o outro casal na extremidade oposta da caverna.

- Sinto tanta vergonha quando penso no papel que tive na prisão de Tungata. É um homem maravilhoso, querido, às vezes sinto-me humilde quando o ouço.

- Acho que poderá transformar-se num grande homem público - concordou Craig.

- Voltar para cá e libertá-lo poderá ser a coisa mais importante que faremos na vida.

- Se escaparmos desta - acrescentou Craig.

- Deve haver alguma justiça neste mundo louco.

- É um pensamento bonito.

- Dê-me um beijo de boa-noite, Craig.

Adorava ouvir o som delicado de sua respiração ao dormir e sentir o relaxamento total de seu corpo, com leves movimentos de aconchego em seus braços, mas naquela noite não conseguia dormir.

Sentia que havia algo em seu subconsciente, algo como uma rebarba, e, quanto mais tempo ficava acordado, maior ficava sua irritação. Conseguiu chegar à conclusão de que fora algo que alguémdissera aquela noite, mas, toda vez que começava a aflorar à consciência, esforçava-se demais e tornava a sumir. Por fim, recorreu ao velho truque de esvaziar a mente, imaginando uma cesta de papel, e, à medida que cada pensamento espontâneo surgia, rasgava-o, amassava-o e jogava-o na cesta.

- Meu Deus! - disse em voz alta, e sentou-se. Sally-Anne acordou bruscamente e sentou-se também, tirando os cabelos do rosto e resmungando sonolenta.

- O que foi? - perguntou Tungata do outro lado.

- Oxigénio! - gritou Craig. Sally-Anne dissera "estou sufocando, preciso de um pouco de oxigénio".

- Não estou entendendo - resmungou Sally-Anne, meio adormecida.

- Querida! Acorde, vamos. - Sacudiu-a com delicadeza. - Oxigénio! O Cessna está equipado para voar a altitudes elevadas, não está?

- Deus do céu! Por que não pensamos nisso antes?

- Tem coletes salva-vidas?

- Sim. Quando fui fotografar os flamingos no lago Tanganica, fui obrigada a instalá-los. Estão sob os assentos.

- E o sistema de oxigénio é de circuito reciclado?

- Sim.

- Pupho! - Tungata acendera o lampião e foi até o canto deles, com Sarah atrás, nua e andando com passos vacilantes como um cachorrinho sonolento. - O que está acontecendo?

- Sam, meu rapaz - Craig sorriu -, você e eu vamos dar uma volta.

- Agora?

- Agora, enquanto ainda está escuro.

havia luar suficiente para iluminar o caminho até a aldeia de Vusamanzi e evitaram passar pela colina para não alarmar o velho. Um cão latiu, mas conseguiram achar a trilha e apressaram-se em segui-la.

A manhã os surpreendeu ainda na estrada.

Foram forçados a se esconder por duas vezes. Na primeira, quando quase toparam de frente com uma patrulha de pára-quedistas shona em uniformes camuflados. Tungata, que ia à frente, avisou Craig com o sinal silencioso de extremo perigo. Esconderam-se numa moita espessa de capim de elefante ao lado do caminho e ficaram observando-os passar silenciosamente. Depois que se foram, Craig descobriu que estava com o coração disparado e as mãos trémulas.

- Estou ficando velho demais para isso - sussurrou.

- Eu também - concordou Tungata.

Da segunda vez, foram alertados pelo ruído ensurdecedor de um helicóptero e atiraram-se na ravina ao lado da trilha. A desajeitada máquina sobrevoou como uma libélula a crista mais afastada do vale, com um atirador postado na portinhola da fuselagem e os capacetes de um esquadrão de assalto amontoados por trás como cogumelos verdes e venenosos. O helicóptero sobrevoou-os rapidamente e não voltou.

Passaram adiante do lugar onde haviam cruzado a trilha da primeira vez e tiveram que voltar um quilómetro para trás; já era entardecer quando se aproximaram do local do desastre.

Foram acercando-se com cautela, descrevendo círculos em torno da área, procurando vestígios de rastros e verificando com paciência infinita se os destroços não haviam sido descobertos e demarcados. Finalmente, ao chegarem junto deles, descobriram que estavam exatamente como os haviam deixado.

Tungata subiu de volta à encosta do vale e ficou de guarda com o AK 47, enquanto Craig começou a separar o equipamento que procuravam. As quatro jaquetas infláveis estavam sob os assentos, como dissera Sally-Anne. Eram de excelente qualidade, de náilon especial, com cartuchos de dióxido de carbono para enchê-los de ar e uma válvula de segurança para não deixá-lo escapar. Presos às almofadas do peito havia apitos e pequenas lanternas alimentadas por baterías de grande duração. Sob o assento do piloto encontrou, bendizendo o fabricante, um estojo de conserto das jaquetas, com tesoura, raspadeira e dois tubos de epóxi.

Os tubos de oxigénio estavam presos a uma prateleira por trás do tabique traseiro do compartimento de passageiros. Havia três deles, cada um com capacidade para dois litros. Tubos de plástico flexíveis conduziam o oxigénio através do painel até os assentos e tinham na extremidade máscaras faciais contendo duas válvulas, embutidas. Inspirava-se oxigénio puro e expirava-se uma mistura de oxigénio não-aproveitado, vapor de água e dióxido de carbono que passava pela válvula de escape para dois depósitos abaixo do assoalho. Um deles continha sílica gelatinosa que removia o vapor d'água e o segundo, cal de soda para retirar o dióxido de carbono, enquanto o oxigénio purificado era reciclado de volta às máscaras. Quando a pressão do oxigénio na aparelhagem caía para o nível da atmosfera ambiente, era automaticamente suprido pelos três tubos de aço. Os canos flexíveis estavam embutidos em peças de alumínio de primeira qualidade, em forma de T ou recurvas, todas com o mesmo tipo de encaixe de baionetas.

Trabalhando com o cuidado que o tempo curto permitia, Craig retirou a aparelhagem e transformou a lona resistente dos assentos em sacolas, onde a colocou, fazendo duas pesadas trouxas.

Já estava escuro quando assobiou para que Tungata descesse do ponto de vigia e cada qual jogou uma trouxa sobre os ombros, iniciando o retorno.

Ao chegarem à trilha, passaram quase meia hora apagando os rastos e ocultando qualquer traço do desvio.

- Acha que vai funcionar à luz do dia? - Craig perguntou, em dúvida. - Não podemos deixar que achem os destroços.

- É o melhor que podemos fazer.

Retomaram a trilha, forçando a marcha e, apesar da carga incómoda e pesada, conseguiram reduzir em uma hora a volta, chegando a caverna logo depois do amanhecer.

Sally-Anne não disse uma palavra quando Craig entrou na caverna. Levantou-se de onde estava sentada, perto do fogo, e foi abraçá-lo. Sarah fez a tradicional reverência a Tungata e trouxe-lhe cerveja, deixando-o matar a sede antes de importuná-lo com saudações. Só depois de ele haver bebido, ajoelhou-se à sua frente, bateu as mãos com suavidade e sussurrou em sindebele:

- Eu o saúdo, meu senhor, mas mal o vejo, pois meus olhos estão cheios de lágrimas de alegria!

o sargento shona estivera patrulhando a pé por trinta e três horas sem descanso. Na manhã anterior, a patrulha tivera uma breve escaramuça com um pequeno bando de fugitivos que caçavam, uma troca de tiros que durara alguns minutos, até que os guerrilheiros matabele haviam escapado e se dividido em quatro grupos. O sargento fora em perseguição a um dos grupos com cinco homens, seguira-o até o escurecer e o perdera na borda rochosa do vale do Zambeze. Estava trazendo a patrulha de volta para novos suprimentos e novas ordens.

Apesar da longa patrulha e da luta e perseguição encarniçada, ainda estava alerta e vigilante. O caminhar era elástico, a cabeça virava-se atentamente de um lado para outro enquanto percorria a trilha e o branco dos olhos sob a aba do chapéu de combate estava límpido e brilhante.

De repente, fez o sinal para que os soldados se espalhassem e, enquanto mudava o AK 47 do quadril direito para o esquerdo, cobriu aquele flanco atirando-se ao chão; ouviu os homens espalharem-se, abrigados, dando-lhe cobertura. Ficaram escondidos no capim de elefante ao lado da trilha, enquanto o sargento examinava o pequeno sinal que o alertara, um punhado de capim esmagado e cuidadosamente levantado numa tentativa de disfarce, mas que tornara a baixar. Era o tipo de vestígio que um homem deixaria ao abandonar o caminho e preparar uma emboscada.

Ficou imóvel por dois minutos e, como não houve qualquer disparo hostil, levantou-se e avançou dez passos, jogando-se ao chão novamente, rolando por duas vezes para não se tornar um alvo para o inimigo, e esperou mais dois minutos.

Não houve qualquer reação, e avançou, cauteloso, até o capim esmagado. Era um rasto humano: um pequeno grupo deixara a trilha ou alguém juntara-se a ele e o haviam disfarçado. Só se tomava esse tipo de precaução quando se esperava ser perseguido. O sargento assobiou chamando o rastreador e mostrou-lhe a pista. O homem saiu da trilha e comunicou-lhe dali a minutos:

- Dois homens usando botas. Um deles manca um pouco da perna esquerda. Foram em direção ao vale. - Tocou em uma das pegadas num trecho arenoso. Formigas-leão haviam construído um diminuto formigueiro oco à beira dos rastos o que o possibilitou saber a hora aproximada em que passaram pelo local. - Há seis ou oito horas durante a noite, mas não podemos segui-los, a pista já foi coberta por outros.

- Se não podemos saber para onde estão indo, vamos descobrir de onde vieram - disse o sargento. - Vamos seguir a pista " de volta!

Três horas mais tarde, chegavam aos destroços do Cessna.

Craig dormiu por algumas horas e, depois, à luz do lampião, começou a modificar o equipamento de oxigénio para uso subaquático. A parte mais importante para fabricar o improvisado aparelho submarino era uma bolsa e para isso utilizou uma das jaquetas infláveis. Introduziu nela o oxigénio do tubo de aço através da única válvula de escape da máscara, fazendo a conexão com um pedaço de tubo flexível, explicando-lhes enquanto trabalhava:

- A uma profundidade de doze metros debaixo d'água, a pressão é superior a duas atmosferas; acho que devem lembrar-se das aulas de física do colégio: nove metros e noventa de água são iguais a uma atmosfera, e mais a pressão de ar acima dela fazem duas, está certo?

A interessada audiência concordou.

- Muito bem! Para que eu possa respirar à vontade, o oxigénio tem que entrar em meus pulmões com a mesma pressão da água em torno, o oxigénio na bolsa estará sob a mesma pressão ambiente em que estou.

- Meu pai sempre dizia, o que conta é a cabeça! - aplaudiu Sally-Anne.

- Os produtos químicos desses dois depósitos removem o vapor d'água e o dióxido de carbono do ar que expiro e o oxigénio purificado volta à bolsa por este tubo e torno a respirá-lo.

Estava lacrando as novas ligações com o epóxi do estojo de reparos.

- À medida que for usando o oxigénio da bolsa, mantenho-a cheia com oxigénio fresco do tubo metálico preso nas costas. Assim... - Bateu na tampa do tubo, deixando escapar o gás com ruído sibilante.

- Naturalmente, há alguns problemas... - Começou a alterar a forma da máscara facial para torná-la impermeável.

- E quais são?

- A flutuação - respondeu. - A medida que for gastando o oxigénio da bolsa, vou tornar-me mais pesado e o tubo de metal vai me puxar para baixo como uma pedra. Quando reencher a bolsa, a tendência será a de disparar para cima como um balão.

- E como vai evitar isso?

- Vou usar pedras para aumentar meu peso e descer até a entrada do túmulo e, quando chegar lá, vou ter de me amarrar com uma corda.

Craig estava fazendo uma espécie de mochila com os dois depósitos e o tubo de oxigénio, posicionando-o cuidadosamente para que pudesse bater na válvula por cima do ombro.

- Mas a falta de peso não é o problema maior - disse.

- Ainda há mais? - perguntou Sally-Anne.

- Tantos problemas quanto quiser - Craig sorriu. - Sabiam que oxigénio puro respirado por um período dilatado de tempo a mais de duas atmosferas, isto é, a mais de doze metros de profundidade, torna-se um gás mortal, tão letal quanto o monóxido de carbono da descarga de um automóvel?

- E o que pode fazer a respeito disso?

- Não muita coisa - admitiu Craig. - Exceto limitar a duração de cada mergulho e controlar minhas reações com muito cuidado enquanto estiver trabalhando na parede do túmulo.

- Não pode calcular de quanto tempo dispõe antes que comece a se envenenar...

Craig interrompeu-a.

- Não, a fórmula seria complicada demais, com muitas variáveis a calcular, desde a massa corporal à exata profundidade da água. E há um efeito cumulativo do envenenamento. A cada mergulho, o risco aumenta.

- Oh, meu Deus, querido! - Sally-Anne ficou olhando-o.

- Vou fazer mergulhos curtos e vamos combinar uma série de sinais - acalmou-a Craig. - Vocês farão sinal com uma corda a cada minuto que passar, e se eu não responder, ou a resposta não for imediata e nítida, vocês me içarão de volta. O envenenamento é insidioso mas gradual, afetará a minha reação ao sinal antes que perca completamente os sentidos. Isso nos dá uma certa margem.

Colocou o volumoso equipamento cuidadosamente no chão, perto do fogo, para que o calor acelerasse a secagem do epóxi.

- Assim que as juntas secarem, podemos testá-lo e, em seguida, partiremos para a operação.

- Quanto tempo?

- É um epóxi de vinte e quatro horas.

- Tanto assim?

- O descanso vai aumentar minha resistência ao envenenamento de oxigénio.

A floresta era cerrada demais para que o helicóptero aterrissasse. Ficou planando sobre as copas das árvores, enquanto o engenheiro de vôo descia o general Peter Fungabera por uma abertura na vegetação verde e emaranhada.

Peter girava lentamente na ponta do fino cabo de aço e o movimento das hélices fazia tremular o uniforme de combate. A dois metros do solo saltou, caindo com a precisão de um gato. Respondeu à continência do sargento shona que o aguardava, saiu rapidamente da área de acesso e ficou olhando a descida do próximo homem do helicóptero.

O coronel Bukharin também estava de capacete de salto e uniforme de combate. O rosto cheio de cicatrizes era aparentemente imune ao sol tropical, exangue e quase tão pálido quanto os olhos glaciais. Recusou a ajuda do sargento ao levantar-se e subiu para o vale. Peter Fungabera seguiu-o e nenhum dos dois disse palavra até chegarem aos destroços do Cessna.

- Não há qualquer dúvida? - perguntou Bukharin.

- É esse o número de registro, ZS-KYA. Lembre-se de que já voei neste avião - respondeu Fungabera, ao ajoelhar-se para examinar a parte de baixo da fuselagem. - Se precisa de mais provas é só olhar estas - tocou os buracos no metal. - São tiros de metralhadora disparados diretamente de baixo.

- Não há corpos?

- Não. - Fungabera levantou-se e inclinou-se sobre a cabine. - Nem sangue ou qualquer outro indício de que alguém tenha se ferido. E os destroços foram saqueados.

- Isso poderia ter sido feito por nativos locais.

- Talvez - concordou Peter. - Mas acho que não. Os rastreadores examinaram as pistas e as conclusões a que chegaram são as seguintes: depois do desastre há doze dias atrás, quatro pessoas abandonaram o local, duas mulheres e dois homens, um dos quais manco de uma perna. Nas últimas trinta e seis horas, dois homens voltaram aqui. Estão seguros de que se trata dos mesmos, as marcas das botas conferem e um deles tem o mesmo problema na perna esquerda.

Bukharin assentiu.

- Na segunda visita, tiraram da carcaça um bocado de equipamento, deixaram o local carregando fardos pesados e voltaram para a trilha que cruza a cabeceira do vale a seis milhas daqui. Lá, a pista foi desfeita por outras marcas.

- Compreendo. - Bukharin o observava. - Agora, diga-me quais são suas outras conclusões.

- São dois negros e dois brancos. Eu os vi com meus próprios olhos na pista de Tuli. O homem negro é sem dúvida o ministro Tungata Zebiwe; eu o reconheci.

- Não será uma fantasia? Ele é sua última esperança para o cumprimento de nosso acordo.

- Eu o reconheceria em qualquer circunstância.

- Mesmo de um avião?

- Mesmo assim.

- Continue - convidou-o Bukharin.

- O outro negro, não consegui reconhecer e nem tive uma visão bastante clara dos brancos, mas o piloto estava quase certo de que um deles era uma mulher americana chamada Jay. Apesar do fato de o avião pertencer ao World Wildlife Trust, uma organização para a proteção da vida silvestre, era ela quem o usava. O outro branco é provavelmente seu amante, um escritor inglês de romances sensacionalistas que tem uma perna artificial, o que explica as pegadas irregulares. Esses últimos três não têm nenhuma importância e são perfeitamente dispensáveis. Zebiwe é o único que importa e agora sabemos que ainda está vivo.

- Sabemos também que escapou de suas mãos, meu caro general - apontou-lhe Bukharin.

- Não creio que ficará assim por muito tempo. - Fungabera voltou-se para o sargento que esperava atentamente atrás dele. - Agiu muito bem até agora.

- Mambo - Acredito que este cão matabele e seus amigos brancos estejam escondidos e sendo alimentados pelo pessoal local.

- Mambol.

- Qual é a aldeia mais próxima?

- A aldeia de Vusamanzi, que fica entre este vale e o próximo.

- Trate de cercá-la. E que ninguém escape, nem mesmo uma cabra ou uma criança.

- Mambo.

- Quando tiver assegurado a posse da aldeia, irei supervisionar o interrogatório.

Craig e Tungata desceram por três vezes até a lagoa de Lobengula ao sopé da imponente galeria, transportando o improvisado aparelho de mergulho, os tubos extras de oxigénio, as lâmpadas subaquáticas que Craig fizera com as baterias retiradas dos coletes salva-vidas, lenha e cobertores de pele para aquecê-lo depois de cada mergulho e provisões para evitar a necessidade de voltar à caverna em busca de comida.

Depois de uma discussão, ficou assentado que as moças se revezariam para cuidar das cavernas superiores, à espera de mensageiros da aldeia de Vusamanzi e para descer e avisar os outros caso alguma patrulha shona descobrisse a entrada das grutas.

Antes de testar o equipamento de mergulho, Craig e Tungata fizeram um exame cuidadoso do caminho até a lagoa, escolhendo posições de defesa, caso tivessem que defender a parte mais interna do sistema de cavernas. Apesar de não o mencionarem, ambos sabiam que não havia um caminho de fuga das profundezas da montanha e que qualquer defesa terminaria nas águas geladas do lago.

Tungata deu a única demonstração externa disso ao colocar, à vista dos outros, quatro balas de 7,62 mm da pistola Tokarev, embrulhadas em um pedaço de pele de cabra, numa fenda da parede calcária ao lado do lago. As moças o observaram com uma fascinação nauseada e, apesar de Craig fingir ocupar-se com o equipamento, todos compreenderam. Era a segurança final contra a tortura e a mutilação lenta, uma bala para cada um.

- Certo! - A voz de Craig soou alta demais no silêncio da galeria. - Vou verificar com que eficiência esta geringonça vai me afogar.

Tungata levantou o equipamento e Craig ajoelhou-se, metendo a cabeça pela abertura do colete salva-vidas. Sally-Anne e Sarah ajeitaram o tubo e os depósitos nas costas e os amarraram com tiras de lona cortadas dos forros dos assentos do avião. Craig verificou os nós pois, se houvesse falhas, teria que desfazer-se deles rapidamente.

Finalmente, pulou na água gelada que lhe provocou arrepios enquanto ajustava a máscara sobre a boca e o nariz e enchia a bolsa sobre o peito pela metade com oxigénio. Fez um sinal de que estava tudo bem aos três, e mergulhou.

Como antecipara, a flutuação foi o primeiro problema. A bolsa fê-lo girar e ficar de barriga para cima como um peixe morto e o impulso da única perna era insuficiente para a correção. Nadou de volta à laje e começou a tarefa enfadonha de experimentar pedras de pesos diferentes que se ajustassem à posição correta na água. Por fim, descobriu que a única maneira era agarrar-se a uma particularmente pesada e deixar-se ir ao fundo de cabeça para baixo, mas assim que a soltou foi irresistivelmente impelido para o alto.

- Pelo menos, as juntas são à prova d'água - disse-lhe, ao emergir novamente. - E estou recebendo oxigénio. Há bastante água entrando pelas beiradas da máscara mas posso me livrar dela da maneira habitual. - E demonstrou o truque de segurar a máscara no alto e forçar o líquido acumulado pela parte de baixo com uma forte expiração.

- Quando vai atacar a parede?

- Acho que não fará a menor diferença se for agora; vou tentar fazer o melhor que posso, de qualquer maneira não sei se vou conseguir removê-la - admitiu com relutância.

- Precisam compreender que quero ser como um pai para vocês - disse Peter Fungabera, sorrindo gentilmente. - Considero-os como meus filhos.

- Essa tagarelice shona é tão incompreensível para mim quanto a gritaria dos babuínos - respondeu Vusamanzi em tom cortês e Fungabera fez um gesto irritado ao voltar-se para o sargento.

- Onde está o tradutor?

- Deve chegar logo, mambo.

Batendo com o bastão na coxa, Fungabera inspecionou lentamente a fileira irregular de pessoas que os soldados haviam trazido dos campos de milho e arrancado das cabanas. Com exceção do velho, eram todas mulheres e crianças. Algumas eram tão velhas quanto o feiticeiro, de carapinhas brancas e seios murchos dependurados quase até a cintura, outras, ainda em idade de procriar, traziam bebés gordos suspensos às costas e as crianças, nuas e ajoelhadas, tinham muco nas narinas e moscas passeavam sem serem molestadas pelos lábios e olhos, enquanto encaravam Fungabera com uma expressão insondável. Havia mulheres jovens de seios rijos e pele lustrosa, meninas impúberes e meninos não-circuncidados. Fungabera sorriu-lhes com doçura, mas continuavam a fixá-lo impassíveis.

- Meus cachorrinhos matabele, ainda vou ouvi-los soltar uns ganidos antes que o dia acabe - prometeu com voz mansa indo até o fim da fila e afastou-se lentamente em direção ao russo que esperava à sombra de uma cabana.

- Não vai conseguir arrancar nada do velho. - Bukharin tirou a piteira de ébano da boca e tossiu ligeiramente. - É um fanático, além da fronteira da dor e do sofrimento. Olhe bem em seus olhos.

- Concordo, estes sangoma praticam a auto-hipnose, deve ser inteiramente insensível à dor. - Fungabera arregaçou impaciente a manga do uniforme para olhar o relógio. - Onde se meteu esse tradutor?

Passou-se mais uma hora até que o prisioneiro matabele do campo de reabilitação fosse trazido pela estrada do vale. Caiu de joelhos diante de Fungabera balbuciando e levantando as mãos algemadas.

- Levante-se! - E disse ao sargento: - Tire as algemas e traga o velho aqui.

Vusamanzi foi conduzido ao centro da aldeia.

- Diga-lhe que sou um pai para ele - ordenou Fungabera.

- Mambo, ele respondeu que seu pai era um homem, e não uma hiena.

- Diga-lhe que, se bem que respeite a ele e seu povo, estou muito contrariado.

- Mambo, ele respondeu que, se tornou Vossa Senhoria infeliz, então está satisfeito.

- Diga-lhe que mentiu para meus homens.

- Mambo, ele espera ter outra oportunidade igual a essa.

- Diga-lhe que sei que está protegendo e alimentando quatro inimigos do Estado.

- Mambo, ele afirma que Vossa Senhoria está demente. Não há inimigos do Estado escondidos aqui.

- Muito bem. Agora, fale com esta gente. Repita que quero saber onde os traidores estão escondidos. Diga-lhes que, se me levarem até eles, ninguém será molestado nesta aldeia.

O tradutor postou-se diante da silenciosa fileira de mulheres e crianças, e fez um longo e apaixonado apelo, mas, ao acabar, continuaram a encará-lo silenciosos. Um dos bebés começou a berrar e a mãe deu-lhe o seio para mamar. Fez-se silêncio novamente.

- Sargento! - Fungabera deu ordens secas e as mãos de Vusamanzi foram amarradas. Um dos soldados fez um nó de carrasco com uma corda de náilon e passou-a por um dos postes que sustentavam um depósito de milho. Colocaram-no ali e passaram a corda em seu pescoço.

- Diga à gente dele que, quando alguém concordar em nos levar aonde estão os traidores, a punição será imediatamente suspensa.

O tradutor elevou o tom de voz, mas, antes que terminasse, Vusamanzi interrompeu-o com voz firme.

- Maldito seja qualquer um que diga alguma coisa a este porco shona. Ordeno que fiquem calados, não importa o que acontecer. Voltarei do meu túmulo para assombrar qualquer um que ouse me desobedecer. Eu, Vusamanzi, senhor das águas, vos ordeno!

- Comece! - ordenou Fungabera, e o sargento começou a içar a corda; o nó estreitou-se em torno do pescoço do velho que gradualmente foi forçado a ficar na ponta dos pés.

- Chega! - gritou Fungabera, e os soldados prenderam a extremidade da corda.

- Que se apresentem para falar.

O tradutor andou ao longo da fila de mulheres, incitando-as e finalmente suplicando, mas Vusamanzi lançou um olhar feroz às mulheres, incapaz de falar, mas ainda exercendo seu domínio sobre elas.

- Quebrem um de seus pés - ordenou Fungabera, e o sargento aproximou-se do velho, desfechando-lhe golpes sucessivos com a coronha do fuzil e esmagou-lhe o pé esquerdo. Ao ouvirem os velhos ossos partirem-se como gravetos secos, as mulheres começaram a gemer e a ulular.

- Falem! - ordenou Fungabera.

Vusamanzi sustinha-se sobre uma única perna, com o pescoço retorcido pela corda. O pé esmagado começou a inchar e ficou monstruoso, com o triplo do tamanho.

- Falem! - ordenou Fungabera pela segunda vez, e os lamentos das mulheres abafaram-lhe a voz.

- Quebre o outro! - Fez um sinal ao sargento.

Quando a coronha esmagou o pé direito, Vusamanzi ficou dependurado na corda e o sargento recuou, rindo com as contorções do velho que tentava desesperadamente aliviar a pressão no pescoço apoiando-se nos pés mutilados.

As mulheres gritavam agora e o choro das crianças veio engrossar o coro angustiado. Uma das mulheres, a esposa mais velha, saiu da fileira e correu com os magros braços estendidos para o homem que fora seu marido por cinquenta anos.

- Deixem-na! - gritou Fungabera aos guardas que queriam detê-la e eles se afastaram.

A velha e frágil mulher correu até ele e tentou suspendê-lo, gritando-lhe palavras de amor e de compaixão, mas não tinha forças para suportar nem mesmo o peso do corpo emaciado de Vusamanzi. Conseguiu apenas aliviar por momentos a pressão na laringe, prolongando com isso a agonia do estrangulamento. A boca do velho estava escancarada, numa tentativa de respirar, e seus lábios estavam cobertos de uma espuma esbranquiçada. Soltava sons ásperos e cavernosos e os esforços da velha eram inúteis e ridículos.

- Ouçam o galo matabele cantar e a galinha velha cacarejar! - Peter Fungabera disse, e os soldados riram, deleitados.

Levou bastante tempo, mas quando afinal Vusamanzi ficou imóvel e silencioso, dependurado na forca, a mulher caiu a seus pés, oscilando ritmicamente ao começar o lamento do luto.

Fungabera aproximou-se do russo e Bukharin acendeu outro cigarro murmurando:

- Primário... e ineficaz.

- Não havia qualquer chance com aquele velho tolo. Tínhamos que tirá-lo do caminho e criar o clima. - Peter enxugou a testa e o queixo com a echarpe. - Foi eficaz, general, olhe só a expressão das mulheres.

Arrumou a echarpe novamente no pescoço e andou naquela direção.

- Pergunte-lhes onde estão escondidos os inimigos do Estado. - Mas, quando o tradutor começou a falar, a velha levantou-se de um pulo e correu até elas.

- Viram o seu senhor morrer sem falar! - berrou. - Ouviram seu comando e sabem que ele voltará para castigá-las!

Fungabera segurou o bastão e aparentemente sem esforço enfioulhe a ponta debaixo das costelas. A velha gritou e caiu. O baço, inchado pela malária, rompera-se com a pancada.

- Livrem-se dela - ordenou Peter, e um dos soldados a arrastou pelos tornozelos para trás das cabanas.

- Pergunte-lhes onde estão escondidos os inimigos do Estado.

Peter tornou a caminhar ao longo da fileira, examinando os rostos, avaliando o grau de terror que via em cada par de olhos. Demorou-se a escolher, decidindo-se enfim pela mãe mais jovem, pouco mais que uma criança, com um bebé amarrado às costas por uma tira azul estampada.

Ficou parado diante dela, olhando-a de alto a baixo e, quando achou que era o momento adequado, agarrou-lhe o pulso, levando-a gentilmente até o centro da aldeia onde ainda ardiam os restos da fogueira.

Chutou os restos fumegantes e, ainda segurando a moça, esperou que as chamas brotassem outra vez. Torceu-lhe o braço, forçando-a a ficar de joelhos e as outras mulheres foram silenciando aos poucos enquanto olhavam hipnotizadas.

Peter Fungabera desapertou a tira azul e tirou a criança das costas da moça. Era um menino, um bebé gorducho com pele cor de mel silvestre, a barriguinha cheia de leite materno e braceletes de gordura nos pulsos e tornozelos. Peter atirou-o para o alto e aparou-o pelas pernas. A criança gritou assustada, dependurada de cabeça para baixo.

- Onde estão escondidos os inimigos do Estado?

O rosto do bebé estava inchando e congestionando-se com a pressão do sangue.

- Ela diz que não sabe.

Fungabera colocou a criança por cima das chamas da fogueira.

- Onde estão escondidos os inimigos do Estado?

Cada vez que repetia a pergunta, baixava-a mais alguns centímetros em direção às chamas.

- Ela diz que não sabe.

Subitamente, Peter enfiou-o no coração da fogueira e a criança urrou com um som completamente diferente. Levantou-a depois de um segundo e balançou-a em frente dos olhos da mãe. As chamas haviam chamuscado totalmente as pestanas e os cachinhos enrolados da cabeça.

- Diga-lhe que vou assar bem devagar este porquinho e obrigá- la a comê-lo.

A moça tentou arrancar-lhe a criança, mas ele a manteve fora de alcance. A mãe começou a gritar uma única frase, repetindo-a sem parar e as outras mulheres suspiraram e cobriram os rostos.

- Ela disse que vai levá-lo até eles.

Fungabera atirou-lhe a criança e caminhou até onde estava o russo, que cumprimentou-o com a cabeça em sinal de admiração.

A doze metros de profundidade, Craig estava diante da parede da tumba. Amarrara a corda da cintura numa rocha e examinava a alvenaria à fraca luz amarelada da lanterna de um dos coletes salva-vidas à procura de um ponto mais vulnerável. Usando as mãos para compensar a visão distorcida pela água, descobriu que não havia qualquer fenda ou abertura, mas que a parte de baixo era feita de blocos de calcário bem maiores. Provavelmente o velho feiticeiro e os ajudantes haviam utilizado todas as pedras maiores e, à medida que o trabalho avançava, tiveram que usar material menor, que mesmo assim era mais volumoso que o tamanho de uma cabeça.

Craig segurou uma das pedras menores e tentou deslocá-la. Com a pele amolecida pela água, cortou-se na beirada áspera, e um pouco de sangue toldou a água mas o frio o anestesiara e nada sentiu.

Quase que imediatamente a mancha de sangue foi substituída por uma mais escura, quando a sujeira e os detritos há tanto tempo sedimentados foram agitados por seus esforços. Em segundos, ficou cego e desligou a lâmpada para poupar a bateria. Partículas de sujeira irritaram-lhe os olhos e fechou-os com força, trabalhando apenas com o tato.

Havia graus de escuridão, mas aquela era total. Parecia ter peso físico e o esmagava, aumentando a sensação de ter acima dele dezenas de metros de água e de rochas sólidas. O oxigénio que aspirava pela boca tinha um desagradável gosto químico e, de vez em quando, uma golfada de água entrava na máscara precariamente vedada, engasgando-o e obrigando-o a esforçar-se para não tossir, o que poderia deslocá-la.

O frio parecia uma doença terminal, afetando-lhe o julgamento e as reações, tornando cada vez mais difícil ficar de sobreaviso contra o envenenamento, e o intervalo entre cada sinal da corda vindo da superfície parecia uma eternidade. Mas continuava a trabalhar na parede com obstinação, começando a odiar os ancestrais de Vusamanzi pelo empenho com que a tinham feito.

Finalmente, ao acabar o turno de meia hora, conseguira deslocar uma pilha de pedras no alto da parede e fazer um buraco de uns noventa centímetros, largo o bastante para acomodar a parte superior do corpo e o volumoso equipamento de oxigénio, mas ainda não tinha ideia sobre a espessura do muro.

Livrou-se da rocha que deslocara fazendo-a rolar pelo declive que levava às profundezas da grande galeria. E com enorme alívio desamarrou a corda e começou a longa ascensão de volta à superfície.

Tungata ajudou-o a subir na laje, já que estava fraco como uma criança e o equipamento pesava muito. Tirou-lhe a máscara enquanto Sarah servia-lhe uma caneca de chá bem quente e açucarado.

- Onde está Sally-Anne? - perguntou.

- Pêndula está de guarda na caverna de cima - respondeu Tungata.

Craig colocou as duas mãos em torno da caneca e chegou mais perto do foguinho fumarento, tremendo de frio.

- Comecei a fazer um pequeno buraco no alto do muro e consegui aumentá-lo cerca de noventa centímetros, mas não dá para calcular a espessura ou quantos mergulhos vão ser necessários para abri-lo. - Tomou um pouco do chá. - Esquecemos de um detalhe: vou precisar de alguma coisa para carregar a mercadoria, se a achar. - Craig cruzou os dedos e Sarah também esconjurou o azar. - Os barris de cerveja devem estar quebradiços, o velho Insutsha quebrou um deles, e são incómodos de carregar. Vamos ter de usar as sacolas que fiz das lonas dos assentos. Quando Sarah for substituir Sally-Anne, deve pedir para que os traga cá para baixo.

À medida que o frio foi desaparecendo com o calor do fogo e do chá ingerido, começou a dor de cabeça. Craig sabia que era o efeito do oxigénio de alta pressão, o primeiro sintoma de envenenamento, uma forte enxaqueca que esmagava-lhe o cérebro, quase fazendo-o gemer em voz alta. Procurou três comprimidos no estojo de primeiros socorros e os engoliu com o resto do chá quente.

Ficou sentado, encolhido, esperando que fizessem efeito. Temia tanto voltar à parede que sentia o estômago embrulhado e a vontade fraquejar. Descobriu-se procurando uma desculpa para adiar o próximo mergulho, qualquer coisa para evitar o frio terrível e a pressão sufocante das águas escuras sobre sua cabeça.

Tungata o observava silenciosamente junto ao fogo e Craig tirou a pele dos ombros, estendeu a caneca à Sarah, levantando-se. A dor de cabeça diminuíra e transformara-se em um latejar entre os olhos.

- Vamos - disse, e Tungata apertou-lhe o braço antes de colocar o equipamento.

Craig encolheu-se ao novo contato com a água gelada, mas forçou-se a mergulhar e a pedra levou-o rapidamente ao fundo. Em sua imaginação, a entrada do túmulo já não mais parecia a órbita vazia de um crânio, e sim a bocarra desdentada de alguma criatura horrível da mitologia africana, pronta a devorá-lo.

Entrou, nadou para cima pelo poço inclinado e ancorou-se diante do buraco irregular que cavara na parede. Os detritos haviam sedimentado e, à claridade da lâmpada, as sombras e as formas das pedras avultavam-se sobre ele, o que o fez lutar contra outro ataque de claustrofobia, lembrando-se das nuvens de sujeira que o haviam cegado. Estendeu as mãos machucadas e tocou a superfície áspera e brutal das pedras. Conseguiu soltar um pedaço de calcário e um pequeno deslizamento em torno provocou um redemoinho de sedimentos que o fez desligar a lâmpada e trabalhar na mesma escuridão fria de antes.

Os sinais da corda na cintura eram o único contato com a realidade e o tempo, mas de alguma maneira ajudavam-no a controlar o crescente terror do frio e da escuridão. Em vinte minutos, a dor de cabeça estava vencendo os comprimidos. Era como o martelar nas têmporas de um prego rombudo cuja extremidade penetrasse por trás dos olhos.

Não vou aguentar mais dez minutos aqui, pensou. Vou subir agora. Começou a afastar-se da parede, mas conseguiu controlar-se. Cinco minutos, prometeu-se, apenas mais cinco minutos.

Forçou a parte superior do corpo pela abertura e o cilindro de oxigénio bateu na rocha, ressoando como um sino. Agarrou as bordas de uma pedra triangular que resistia aos seus esforços, enfiando os dedos doloridos por uma frincha apoiando-se nos lados do buraco, começou a pressioná-la, aumentando a força gradativamente e sentindo todos os músculos doerem.

Algo moveu-se e ouviu o ruído rascante de pedra contra pedra. Tornou a empurrar e a fenda fechou-se sobre seus dedos, fazendo-o gritar de dor. Mas a dor deu-lhe novas energias. Atirou-se contra a pedra que rolou, soltando-lhe os dedos. Houve um estrondo e um reboar de blocos rochosos caindo, desmoronando.

Ficou imóvel dentro da cavidade, segurando os dedos machucados e gemendo baixinho, meio afogado pela água que entrara na máscara ao gritar.

Vou subir, decidiu, já chega. Começou a lutar para sair da cavidade e estendeu a mão para apoiar-se e dar um impulso para trás mas nada encontrou: tateava no vazio. Ficou imóvel, com água chocalhando dentro da máscara, tentando tomar uma decisão. De alguma maneira, sabia que, se voltasse naquele momento à superfície, não seria mais capaz de mergulhar.

Mais uma vez, tateou à frente, e avançou, fazendo outra tentativa. A corda amarrada o deteve e desmanchou o nó, avançando mais um pouco. O equipamento às costas prendeu-se ao teto de pedra, deu um meio giro e conseguiu soltar-se. Ainda não conseguira tocar nada em frente. Atravessara a parede e um súbito terror supersticioso o invadiu.

Recuou e o equipamento tornou a prender-se no teto, daquela vez ficou totalmente entalado. Começou a lutar para soltar-se, com a respiração acelerada além do ritmo das válvulas e não conseguiu oxigénio suficiente para respirar; o coração disparou e a pulsação nos ouvidos o deixou completamente surdo.

Não conseguiu recuar e, apoiando o coto de perna contra uma rocha, impulsionou o corpo; numa súbita arremetida deslizou pela abertura da tumba para o espaço além.

Tentou agarrar-se desesperadamente e a mão esbarrou na superfície lisa do poço, mas, livre da corda que o ancorara, a bolsa cheia de ar o impelia irresistivelmente para cima. Estendeu os braços para evitar bater com a cabeça no teto do poço e tentar agarrar-se em algo. A rocha era escorregadia como sabão e, à medida que ascendia, a bolsa expandia-se com a perda de pressão e acelerava ainda mais a subida; apenas a corda de sinalização na cintura diminuía um pouco a velocidade. Enquanto lutava para se estabilizar, o oxigénio excessivo começou a vazar pelas bordas da máscara e por fim entrou em pânico total. Foi arrastado por um redemoinho numa escuridão terrificante e total.

Explodiu de repente à superfície e ficou boiando de costas, balançando como uma rolha. Arrancou a máscara do rosto e aspirou profundamente. Era ar puro, com um leve cheiro de fezes. Ficou boiando e respirando, cheio de gratidão.

A corda na cintura deu vários puxões rápidos, seis em seguida. Era o código de Tungata para "Você está bem?" A subida descontrolada devia ter desenrolado a corda violentamente entre os pés de Tungata e o alarmado. Craig devolveu o sinal para tranquilizá-lo e tentou ligar a lâmpada.

O brilho fraco da luz era ofuscante, estivera muito tempo na escuridão. Os olhos estavam irritados pelas águas lamacentas e ficou piscando e olhando em volta.

A passagem descrevia um ângulo cada vez mais acentuado a partir do muro de alvenaria, até tornar-se um poço vertical. Os velhos feiticeiros tinham escavado nichos nas paredes e construído uma escada rústica de madeira para fazer a escalada. Os postes eram presos com cordas feitas de casca de árvore que se entrelaçavam pelo poço acima, mas a luz da lanterna era fraca demais para iluminar o topo: a escada desaparecia na penumbra.

Craig nadou de costas até lá e segurou-se na escada primitiva, tentando ordenar os pensamentos e deduzir sua posição. Percebeu que ao retornar à superfície devia ter subido uns doze metros depois de atravessar a parede e descrito uma trajetória em U. A primeira perna do "U", descendo a grande galeria, depois o fundo através do túnel até a parede, e a segunda, subindo o poço de volta à superfície da água.

Testou a escada que, apesar de estalar e ceder um pouco, suportou bem o peso. Teria que deixar o equipamento flutuando no poço para subir a estrutura meio desconjuntada, mas precisava refazer-se primeiro e recuperar o controle. A dor de cabeça era quase insuportável e apertou as têmporas com as mãos.

Naquele momento, a corda na cintura esticou-se e deu três puxões, tornando a repeti-los depois de um pequeno intervalo: era o sinal de urgência, de perigo mortal. Algo estava gravemente errado e Tungata fazia um pedido de socorro.

Craig enfiou a máscara e assinalou a volta. A corda distendeu-se e foi rapidamente içado à superfície.

Haviam permitido à jovem mãe matabele ficar com o filhinho preso às costas, mas estava sendo vigiada pelo sargento grandalhão da Terceira Brigada.

Peter Fungabera ficara tentado a usar o helicóptero para apressar a perseguição e recapturar os fugitivos, mas acabou optando por continuar a pé e silenciosamente. Conhecia a têmpera dos homens que perseguia. O ruído de um helicóptero os alertaria e lhes daria uma chance de escapar novamente para a floresta. Pelas mesmas razões cautelosas, usou um pequeno grupo de vanguarda mais facilmente manobrável; vinte homens escolhidos, e instruiu cada um pessoalmente.

- Precisamos capturar esse matabele vivo. Mesmo que tenham de sacrificar a própria vida por isso, quero ele vivo!

Comunicariam pelo rádio ao helicóptero logo que houvessem feito um contato seguro e mais trezentos homens seriam mandados para cercar a área.

A pequena força agiu com rapidez. A jovem foi arrastada pelo sargento, e, chorando de vergonha pela traição, mostrou-lhe as curvas e encruzilhadas quase imperceptíveis da trilha.

- Os aldeões se encarregaram de alimentá-los e supri-los - murmurou Fungabera ao russo. - Esta vereda tem sido regularmente usada.

- Bom lugar para uma emboscada. - Bukharin examinou os barrancos do vale que davam para o caminho. - Podem ter alguns dos fugitivos com eles.

- Uma emboscada significa um contato e estou rezando por isso - disse Peter em voz baixa. E mais uma vez o russo sentiu-se satisfeito com a escolha que fizera. Tudo o que seria necessário agora era uma pequena mudança no destino da guerra e os patrões de Moscou teriam um bastião na África Central.

Uma vez que o conseguissem, esse Fungabera teria que ser cuidadosamente vigiado. Não era apenas mais um gorila manipulado por cordéis. Tinha aspectos de personalidade ainda pouco conhecidos e era sua tarefa fazer essa exploração, o que requeria sutileza e tato. A ideia desse trabalho agradava-lhe, sentiria nisso tanto prazer quanto o que sentia naquela caçada.

Caminhou agilmente pela trilha, atrás de Fungabera, sem qualquer dificuldade. Sentia-se extremamente alerta, quase eufórico pela antecipação da caçada humana.

Só ele sabia que a expedição não se limitava apenas à captura do matabele; havia uma outra presa, tão difícil quanto valiosa. Olhou o homem que marchava à sua frente, deleitado com seu passo elástico, o porte ereto e o suor que molhava-lhe o uniforme camuflado; sim, pensou, aquele odor que emanava de Fungabera era o odor animal da própria África, e sorriu. Que troféus para coroar sua longa e brilhante carreira: os matabele, os shona e toda aquela terra.

Os pensamentos não prejudicavam os sentidos de Bukharin. Estava consciente de que o vale estreitava-se à medida que desciam, e os barrancos tornavam-se mais íngremes, com uma vegetação peculiar e deformada. Tocou no ombro de Peter para chamar-lhe a atenção sobre a formação geológica em torno, uma irrupção dolomita em região rochosa, quando a mulher matabele começou inesperadamente a gritar. Os berros ecoavam nos rochedos e repetiam-se pela floresta, quebrando o silêncio quente e parado daquele vale fantasmagórico. Apesar de ininteligíveis, eram um aviso.

Fungabera correu até ela, tapando-lhe a boca; em seguida, passou-lhe o outro braço pelo pescoço, quebrando-o com um estalido e os gritos cessaram tão rapidamente como haviam começado.

Deixando cair o corpo sem vida, Peter virou-se, fazendo sinais urgentes aos soldados que reagiram atirando-se de imediato para fora da trilha e descrevendo um círculo para cercarem a área.

Ao assumirem a posição, Fungabera olhou para o russo e fez-lhe um sinal; Bukharin movimentou-se silenciosamente até ele, e continuaram a avançar juntos de armas em punho.

A trilha quase indistinta levou-os ao sopé do rochedo e desapareceu diante de uma fenda estreita e vertical na pedra. Fungabera e Bukharin jogaram-se ao chão de cada lado da abertura.

- A toca da raposa matabele - exultou baixinho Fungabera.

- Consegui agarrá-lo!

- Os shona estão aqui! - O grito veio da entrada da caverna, abafado pela vegetação e pela dobra na pedra. - Os shona vão agarrá-los! Fujam! Os shona... - E a voz feminina foi bruscamente cortada.

Sarah levantou-se de um salto de perto do fogo, derrubando o caldeirão de ferro, e correu agarrando a lanterna de passagem, disparando pelo labirinto das cavernas.

Do alto da íngreme escadaria natural na grande galeria, gritou avisando:

- Os shona estão aqui, meu senhor! Conseguiram nos descobrir! - E o eco ampliava o terror e a urgência das palavras.

- Vou até aí! - berrou Tungata, disparando em direção à luz da lanterna. Galgou a escadaria de pedra e abraçou-a.

- Onde estão?

- Na entrada... Ouvi a voz de uma mulher nos avisando, aterrorizada, e depois não ouvi mais nada. Acho que a mataram.

- Desça até o lago, e ajude Pêndula a trazer Pupho de volta à superfície.

- Meu senhor, estamos perdidos, não é?

- Vamos resistir - ele respondeu. - E pode ser que consigamos escapar. Depressa, Pupho lhe dirá o que fazer.

Carregando o AK 47, Tungata desapareceu pela passagem que conduzia à caverna superior. Sarah desceu aos tropeções, caindo de joelhos nos últimos metros.

- Pêndula! - gritou, desesperada pelo conforto de uma voz humana.

- Sarah, aqui, venha me ajudar.

Chegando à laje no fundo da galeria, viu Sally-Anne que estava dentro do lago com água pela cintura, puxando a corda.

- Ajude-me, está presa em alguma coisa!

Sarah pulou dentro d'água e agarrou a corda também.

- Os shona nos acharam.

- Nós escutamos você.

- O que vamos fazer, Pêndula?

- Primeiro, vamos tirar Craig daí. Ele vai pensar em alguma coisa.

A corda cedeu de repente quando Craig, doze metros abaixo, conseguiu esgueirar-se pela estreita abertura da parede, e as duas começaram a içá-lo com toda força.

A superfície começou a borbulhar e viram Craig subindo na água transparente, transformado pela máscara em um grotesco animal marinho. Ao emergir, arrancou-a, tossindo e aspirando o ar puro.

- O que está acontecendo? - disse, meio sufocado, ao nadar em direção à borda.

- Os shona estão aqui - disseram as duas ao mesmo tempo em inglês e sindebele.

- Ah, meu Deus! - Craig tombou exausto na laje.

- O que vamos fazer, Craig? - Ambas o olhavam desamparadas enquanto o frio e a dor de cabeça pareciam paralisá-lo.

De repente, o ar reverberou com sons estridentes, metálicos e furiosos.

- Tiros! - sussurrou Craig, tapando os ouvidos para protegê-los. - Encontraram Sam.

- Por quanto tempo será que pode detê-los?

- Depende; se usarem granadas ou gás... - Não chegou a concluir a frase. Levantou-se, tremendo convulsivamente e olhou-as. Ambas pareceram compreender seu desespero e desviaram o olhar.

- Onde está a pistola? - perguntou Sarah medrosamente, olhando de esguelha para a pele de cabra enfiada na fenda de pedra.

- Não - retrucou bruscamente Craig. - Isso não. - Andou até ela e segurou-a pelo braço, o que o ajudou a recompor-se.

- Já usou um aqualung? - perguntou a Sally-Anne que balançou a cabeça em negativa.

- Bem, já é hora de começar...

- Não posso fazer isso! - disse Sally-Anne, olhando apavorada para a água.

- Pode fazer qualquer coisa que tiver de fazer - disse Craig asperamente. - Escutem, descobri outra galeria no poço que vai dar na superfície. Vai levar só três ou quatro minutos...

- Não - Sally-Anne fugiu de perto dele.

- Primeiro levo você e depois volto para pegar Sarah - ele disse sem dar-lhe ouvidos.

- Prefiro morrer aqui mesmo, Pupho - sussurrou a moça negra.

- Então, vai satisfazer o seu desejo.

Craig já estava trocando o tubo de oxigénio, atarraxando um dos cilindros novos, e voltou-se para Sally-Anne.

- Coloque os braços à minha volta e respire lenta e regularmente. Segure cada respiração o mais que puder e expire com cuidado. A abertura na parede é estreita, mas você é menor do que eu, pode passar por lá mais facilmente. - Levantou o aparelho de oxigénio e colocou-o em seus ombros. - Vou passar primeiro e puxar você por ela. Assim que a atravessarmos, basta subir direto. Mas nesse momento lembre-se de expirar quando o oxigénio dos pulmões começar a expandir-se, senão vai subir como um balão de gás. Vamos.

- Craig, estou com medo.

- Nunca pensei que ouviria você dizer uma coisa dessas. Com água até a cintura, colocou-lhe a máscara no rosto.

- Não lute com ela - disse. - Fique de olhos fechados e relaxe. Eu vou levando você. E, pelo amor de Deus, não se debata, não comece a se debater.

Ela assentiu, emudecida pela máscara, e ouviram novamente o estrondo ensurdecedor de disparos vindos de cima.

- Estão mais perto - murmurou Craig. - Sam começou a recuar. - E chamou Sarah até a borda do lago. - Dê-me a minha perna! - Sarah a estendeu e ele prendeu-a na cintura. - Enquanto não volto, trate de colocar toda a comida que puder nos sacos de lona. As lâmpadas e baterias, também. Venho pegar você dentro de dez minutos.

Começou a inspirar e expirar, segurando uma pedra. Fez um sinal a Sally-Anne que postou-se por trás dele, abraçando-o pelas axilas.

- Respire bem fundo e finja-se de morta - ordenou, enchendo os pulmões pela última vez, então mergulhou em direção à entrada da tumba.

A meio caminho, ouviu o estalido da válvula da máscara e sentiu o peito de Sally-Anne contrair-se e dilatar-se ao respirar e ficou tenso, temendo que tossisse, mas nada aconteceu.

Chegaram à abertura e ele deixou cair a pedra, conduzindo-a até a parede. Retirou gentilmente os braços que o envolviam, tentando fazer movimentos lentos e calmos. Entrou pela abertura segurando-a pelas mãos e, sem o aparelho de oxigénio para atrapalhá-lo, deslizou facilmente por ela.

Ouviu-a respirar novamente e aplaudiu-a mentalmente.

Por um instante, o aparelho empacou na passagem, mas conseguiu desengatá-lo e a trouxe até ele. Tinham conseguido, havia feito com que ela atravessasse.

Rápido para cima, pensou. Estavam acelerando e a pressão zumbia-lhes nos ouvidos. Cutucou-lhe as costelas e ouviu as borbulhas quando ela expeliu oxigénio dos pulmões.

Garota inteligente, pensou, e apertou-lhe a mão.

A subida parecia tão longa que começou a temer que houvesse errado e enveredado por uma falsa passagem quando finalmente chegaram à superfície.

Ofegante, apressou-se em ligar a lâmpada.

- Você não é só boa, é simplesmente sensacional!

Foi levando-a até a escada e começou a retirar-lhe o equipamento.

- Suba a escada e fique fora d'água. Tome, prenda minha perna no poste. Volto o mais rápido possível.

Não havia tempo a perder com a difícil tarefa de colocar a aparelhagem e nem tinha um contrapeso para mergulhar; resolveu esvaziar a bolsa de oxigénio do colete, colocando os pesados tubos debaixo dos braços. Não poderia utilizar o oxigénio e teria que tornar a mergulhar só com o que conseguisse reter com a respiração. Segurou-se em um dos degraus enquanto enchia os pulmões de ar, e mergulhou.

Ao chegar à parede, enfiou-se de costas pela abertura, rebocando o aparelho e, com a bolsa meio murcha, atravessou-a rapidamente. Na entrada da grande galeria, pressionou a tampa do cilindro tornando a inflar a bolsa que o levou rapidamente à superfície.

Sarah estava parada à beira da laje, mas havia arrumado os sacos de lona.

- Vamos! - ofegou Craig.

- Pupho, não posso.

- Trate de botar esse traseiro dentro d'água - ordenou-lhe asperamente.

- Tome as sacolas, eu vou ficar.

Craig agarrou-a pelos tornozelos e puxou-a para dentro d'água.

- Sabe o que os shona vão fazer com você? - Enfiou-lhe a máscara com rudeza no rosto e ouviram novos disparos de metralhadora que ricochetearam pelas paredes mais altas da galeria.

Craig pressionou-lhe a máscara no rosto.

- Respire! - ordenou, e ela sugou ar pela máscara. - Vê só como é fácil? - Ela concordou com um aceno. - Segure a máscara com as duas mãos. Respire devagar e com regularidade. Vou rebocar você, não se mexa! - Ela tornou a assentir. Craig amarrou as sacolas na cintura, pegou uma pedra como contrapeso e inspirou profundamente.

Acima deles, ouviu-se o disparo de um lança-granadas, algo rolou pela galeria abaixo e a caverna iluminou-se toda com um clarão azulado e fosforescente.

Com a pedra segura embaixo de um braço e Sarah do outro, Craig tornou a mergulhar. A meio caminho, sentiu-a tentar respirar e percebeu que estavam em apuros. Inspirou água e começou a engasgar-se e a arquejar dentro da máscara. Arqueou o corpo e começou a debater-se e a lutar. Conseguiu segurá-la com dificuldade; para sua surpresa era muito forte e o corpo esbelto e musculoso retorcia-se em seus braços.

Chegaram à abertura do poço e, quando Craig soltou a pedra, a situação alterou-se drasticamente. Sarah girava acima dele e meteulhe o cotovelo no rosto com toda força. A pancada o tonteou e fez com que fraquejasse por momentos. Ela soltou-se e começou a subir, girando e dando pontapés.

Estendeu o braço e conseguiu agarrar-lhe o tornozelo, segurando se com a outra mão na saliência da abertura. Puxou-a e viu, à luz da lanterna, que arrancara a máscara do rosto, fazendo-a serpentear loucamente na extremidade do tubo flexível.

Arrastou-a à força até a parede, e ela começou a arranhá-lo e a lhe dar pontapés no baixo ventre, obrigando-o a levantar o joelho para proteger-se. Conseguiu girá-la e, segurando-a por trás, arrastoua até o buraco, enquanto ela lutava com a força que lhe emprestavam o pânico e o terror. Conseguiu enfiá-la até a metade pela parede antes que o tubo enganchasse em uma fenda de pedra, retendo-os.

Enquanto lutava para soltá-lo, Sarah começou a fraquejar e os movimentos tornaram-se espasmódicos e descoordenados. Estava se afogando.

Craig agarrou o tubo com as duas mãos, e escorando-se na rocha puxou-o com toda a força, fazendo com que se rompesse e se soltasse da bolsa de oxigénio. O gás escapou pelo rasgão, provocando um estrépito de bolhas prateadas, mas Sarah estava livre.

Puxou-a para fora do buraco e começou a subir, lutando com o peso do equipamento vazio e das sacolas presas à cintura.

Os esforços de Craig para dominar Sarah haviam minado suas reservas de oxigénio. Sentia os pulmões em fogo e espasmos violentos no peito, mas, mesmo assim, continuou a nadar. Sarah jazia imóvel em seus braços e sentiu que, apesar dos seus esforços, já não se deslocavam mais, estavam afogando-se lentamente. A necessidade premente de respirar foi diminuindo e tudo perdeu qualquer sentido. Era muito melhor relaxar e deixar que acontecesse. Lentamente, começou a sentir uma dor meio vaga. Através da indiferença que o invadira, mal a percebia, e foi só ao emergir de repente que percebeu que alguém o puxava pelos cabelos.

Mesmo meio afogado, compreendeu que Sally-Anne devia ter visto o brilho da lanterna sob a água e percebera a gravidade da situação. Mergulhara e o agarrara pelos cabelos, arrastando-o para a superfície.

Enquanto lutava para respirar, viu também que ainda estava agarrado ao braço de Sarah que flutuava de rosto para baixo na superfície.

- Ajude-me! - disse, engasgado com a própria respiração. - Tire-a daqui!

Conseguiram retirar a aparelhagem danificada e levaram-na, inconsciente, para o primeiro degrau na escada, onde Sally-Anne a colocou no colo de rosto virado para baixo, inerte.

Craig enfiou-lhe o dedo na boca para assegurar-se de que a língua não estava presa e pressionou-o na garganta para fazê-la vomitar.

Sarah expeliu água e começou a esboçar pequenos movimentos convulsivos.

Dentro d'água, a seu lado, Craig limpou-lhe o vómito e começou uma respiração boca a boca, forçando-lhe ar nos pulmões, enquanto Sally-Anne a amparava o melhor que podia no degrau desconjuntado.

- Está respirando novamente.

Craig parou o boca a boca, sentindo-se nauseado, tonto e fraco com o quase afogamento.

- O equipamento está danificado - sussurrou. Tentou pegá- lo, mas havia afundado. - Sam! Preciso ir buscar Sam.

Desamarrou desajeitadamente as sacolas de comida da cintura e pendurou-as junto com a perna na escada. Agarrou-se a ela, respirando o mais profundamente que podia enquanto Sarah tossia e arquejava, mas já tentava sentar-se. Sally-Anne levantou-a e amparoua no colo como uma criança.

- Craig, querido, trate de voltar são e salvo - suplicou-lhe.

- Pode contar com isso - respondeu, permitindo-se mais uma meia dúzia de inspirações antes de mergulhar e sentir a água gelada fechar-se sobre ele.

A parte submersa da grande galeria estava iluminada por clarões; e, à medida que foi ascendendo, a intensidade da luz aumentava até tornar-se de um azul intenso, como o das lâmpadas de alta voltagem.

Ao emergir na superfície do lago, viu que a parte superior da galeria estava tomada por nuvens de fumaça. Tentou respirar e imediatamente uma dor penetrante invadiu-lhe a garganta e o peito, seus olhos começaram a arder e lacrimejar, deixando-o quase cego. Era gás lacrimogênio. Os shona estavam enchendo a caverna com ele.

Viu Tungata dentro d'água, agachado por trás de uma rocha. Rasgara um pedaço da camisa, e o amarrara, molhado, em torno da boca e do nariz, mas os olhos estavam vermelhos e escorrendo água.

- A caverna está cheia de soldados - disse a Craig com a voz abafada pelo pano molhado, e calou-se quando uma voz fantasmagórica distorcida por um megafone ecoou pela galeria falando em inglês.

- Se render-se imediatamente, nada lhe acontecerá.

Como para sublinhar essa intimação, ouviu-se o estalo de um lança-granadas e outra bomba de gás voou para a galeria, quicando no chão de calcário como uma bola de futebol e expelindo gás.

- Já conseguiram descer a escada, não pude impedi-los. - Tungata saiu de trás da rocha e fez um breve disparo para o alto. As balas sibilaram e o AK 47 silenciou de repente.

- O último pente - rosnou, deixando cair a arma dentro d'água e procurando a pistola na cintura.

- Vamos sair daqui, Sam - arquejou Craig. - Há uma passagem no fundo do lago.

- Não sei nadar. - Tungata carregava a pistola.

- Consegui fazer Sarah atravessar. - Craig tentava respirar por entre as nuvens escaldantes de gás. - Vou fazê-lo atravessar também. - Tungata olhou-o. - Confie em mim, Sam.

- Sarah está bem?

- Está perfeitamente bem. Tungata hesitou, lutando com o medo da água.

- Não pode ser capturado - disse Craig. - Deve isso a Sarah e a seu povo.

Talvez houvesse descoberto o único argumento que o demoveria. Tungata colocou a pistola de volta no cinto.

- Diga-me o que devo fazer - disse.

Era impossível respirar na caverna tomada pelos gases.

- Tente prender o máximo de ar que puder. Retenha-o e faça força para não respirar de novo. - Craig arquejou. O gás parecia arrebentar-lhe os pulmões e sentiu a fria e mortal letargia começar a circular pelas veias. Seria uma longa e dolorosa jornada de regresso.

- Aqui! - Tungata o puxou para baixo. - O ar aqui ainda está puro! - Havia um bolsão de ar limpo sob a saliência da rocha e Craig aspirou-o avidamente.

- Segure-se bem! - Colocou as mãos de Tungata seguras à sua cintura, por dentro do cinto de lona, tomou mais um hausto e mergulharam juntos, descendo rapidamente.

Ao chegarem à abertura, não tinham a volumosa aparelhagem de oxigénio para atrapalhá-los e Craig foi levando Tungata através dela com as forças que ainda lhe restavam. Mas estava enfraquecendo drasticamente e tornando-se lento, mais uma vez perdendo a ânsia de respirar, um sintoma da falta de oxigénio.

Haviam atravessado a parede mas não conseguia mais pensar o que devia fazer a seguir. Estava confuso e desorientado e o cérebro pregava-lhe truques. Descobriu que ria baixinho, deixando escapar por entre os lábios preciosas bolhas de ar. O clarão da lâmpada tornou-se uma maravilhosa esmeralda verde que se fragmentou em prismas do arco-íris. Era lindo, e ficou olhando embriagado, começando a resvalar para o nada, como se tivesse ingerido uma dose de pentatol.

Para cima!, pensou, meio grogue. Tenho que subir! E começou a bater a perna lentamente.

Sentiu, então, um empuxo poderoso na cintura. Tungata batia as pernas vigorosamente, levando-os para a superfície. A última coisa que pensou foi: "Se morrer é isso, então é melhor do que a publicidade que fazem a respeito", e desmaiou.

Acordou com dor e tentou regressar ao confortável ventre obscuro da morte, mas mãos o esfregavam e o comprimiam, e a madeira áspera da escada machucava-lhe a carne. Sentiu os pulmões em fogo e os olhos pareciam boiar em ácido. Todos os nervos do corpo despertaram e cada músculo começou a doer.

Ouviu, então, uma voz que dizia, e que desejava que se calasse:

- Craig! Craig, querido, acorde! - E as pancadas doloridas no rosto que não queria sentir.

- Está voltando a si!

Eram como ratos afogados no fundo de um poço, meio submersos e agarrados à escada desconjuntada, tremendo de frio.

As duas moças estavam no degrau inferior, e Craig amarrado a um poste por uma tira de lona passada pelos braços, enquanto Tungata, ao lado dele, segurava-lhe a cabeça.

Craig olhou com esforço para os rostos ansiosos e sorriu fracamente para Tungata.

- Sam, você disse que não sabia nadar... bem, me enganou direitinho!

- Não podemos ficar aqui. - Os dentes de Sally-Anne batiam de frio.

- Só há um caminho... - E todos olharam para cima, para o poço sombrio ao alto.

A cabeça de Craig mal se sustinha, mas empurrou a mão de Tungata e esforçou-se para examinar as condições da escada de madeira.

Fora construída sessenta anos antes e as cordas de casca de árvore usadas pelos velhos feiticeiros estavam podres e dependuradas como barbantes. Toda a estrutura parecia ter tombado para o lado, a menos que o primitivo construtor não soubesse colocá-la a prumo.

- Será que aguenta com nosso peso? - Sarah perguntou o que todos queriam saber.

Craig ainda tinha dificuldade em pensar e via tudo através de um véu de náusea e fadiga.

- Um de cada vez - engrolou -, primeiro os mais leves, você, Sally-Anne, e depois Sarah... - Estendeu a mão e pegou a perna artificial. - Levem a corda com vocês. Quando chegarem lá em cima, icem as sacolas e as lâmpadas.

Obedientemente, Sally-Anne colocou a corda enrolada no ombro e começou a subir pela escada.

Subia ágil e rapidamente, mas a madeira estalava e balançava. À medida que ia progredindo, a lâmpada clareava as sombras acima no poço. Continuou avançando até que via-se apenas a luz da lanterna a assinalar sua posição e, em seguida, desapareceu abruptamente.

- Sally-Anne!

- Tudo bem! - A voz ecoou pelo poço. - Há uma plataforma aqui.

- De que tamanho?

- Grande bastante para nós todos. Vou jogar a corda. Depois de atirá-la, Tungata amarrou as sacolas na extremidade.

- Pode puxar. - E a carga subiu aos arrancos, balançando na ponta da corda.

- Certo, pode mandar Sarah subir. - A moça fez a escalada, desaparecendo na escuridão, e logo ouviram os sussurros das duas lá no alto. - Tudo bem, agora, mais um!

- Suba, Sam!

- Você é menos pesado do que eu - Tungata protestou.

- Ora, pelo amor de Deus, vá logo!

A estrutura de madeira balançava com o peso de Tungata e um dos degraus soltou-se.

- Cuidado!

Craig mergulhou rapidamente e a prancha caiu com toda força na superfície da água. Tornou a içar-se para fora e, sentado no degrau inferior, começou a atarraxar a perna.

- Assim é outra coisa. - Deu-lhe pancadinhas afetuosas e experimentou-a dando alguns pontapés.

- Vou subir - gritou.

Ainda não chegara à metade quando sentiu a estrutura mover-se, atirando-o violentamente para cima.

Um dos postes quebrou, e o som ecoou como um tiro; todo o madeirame tombou para um lado. Craig agarrou-se ao balaústre no momento exato em que três ou quatro degraus abaixo dele partiam-se e caíam ruidosamente na água. Ficou com as pernas penduradas no espaço vazio e, cada vez que tentava alçar-se, a estrutura afundava perigosamente.

- Pupho!

- Estou em apuros. Não posso me mover ou toda esta geringonça vem abaixo.

- Espere! - Depois de alguns segundos de silêncio, ouviu novamente a voz de Tungata. - Vou jogar a corda. Fiz um laço na ponta.

A corda caiu a quase dois metros de distância.

- Vá um pouco mais para a esquerda, Sam. O laço balançou em sua direção.

- Mais um pouco! Isso, agora abaixe-a mais!

- Segure firme!

Craig esticou o braço e conseguiu enfiá-lo no laço.

- Vou me segurar só nela!

Soltou o outro braço e passou-o pela corda. Estava fraco demais para tentar subir.

- Puxe-me para cima!

Começou a ser lentamente guindado e, mesmo naquela situação perigosa, admirou a força de Tungata, capaz daquela proeza com um homem adulto. Sem ele, nunca conseguiria.

Viu o brilho da lanterna refletido no poço aumentar gradativamente e a cabeça de Sally-Anne espiando pela borda da plataforma.

- Falta pouco agora. Aguente firme!

Chegou ao nível da saliência e lá estava Tungata apoiado ao fundo, na parede de pedra, com a corda passada pela cintura e pelos ombros, os músculos do pescoço saltados e a boca aberta e ofegando com o esforço. Apoiou o cotovelo e com um novo esforço de Tungata conseguiu dar um impulso e cair de barriga na borda.

Só depois de algum tempo conseguiu sentar-se e olhar onde estava. Os quatro amontoavam-se, tremendo de frio e ensopados, em uma saliência de pedra calcária onde mal cabiam.

Acima deles, o poço continuava vertical, perdendo-se na escuridão, com paredes lisas e impossíveis de serem escaladas. A estrutura de madeira só chegava até ali e, no silêncio, Craig podia ouvir o ruído de água gotejando em algum lugar no alto, na escuridão, e os guinchos dos morcegos alvoroçados com as vozes e os movimentos. Sally-Anne levantou a lâmpada o mais alto que pôde mas não distinguiam o final do poço.

Craig tornou a examinar a plataforma. Tinha cerca de dois metros e meio de largura e viu na parede mais afastada uma abertura para o que parecia um túnel secundário, muito menor e mais estreito que o poço principal e que se abria horizontalmente na rocha.

- Isso parece a única saída - sussurrou Sally-Anne. - É para lá que foram os velhos feiticeiros.

Ninguém respondeu. Estavam todos exaustos e gelados até os ossos.

- Devíamos continuar! - insistiu Sally-Anne, e Craig conseguiu levantar-se.

- Vamos deixar as sacolas e a corda aqui. - A voz estava ainda rouca por causa do gás lacrimogênio e tossia muito. - Podemos voltar quando precisarmos.

Não confiava ainda nas próprias pernas. Sentia-se fraco e com vertigens, e o abismo escuro do poço estava bem perto; foi engatinhando até a abertura.

- Dê-me a lâmpada. - Sally-Anne alçou-a e ele arrastou-se para dentro do buraco.

O túnel aumentou um pouco depois de cerca de quinze metros, permitindo-lhe ficar agachado e amparar-se na parede, avançando mais rápido. Os outros o seguiam. Avançaram por mais trinta metros e Craig abaixou-se para cruzar o último vão natural de pedra e finalmente ficar em pé, olhando em torno com um assombro crescente. Os outros, à medida que emergiam do túnel, o empurraram sem que sequer os percebesse.

Ficaram todos juntos e imóveis, como se tirassem conforto e coragem uns dos outros e viravam lentamente as cabeças, olhando para todos os lados.

- Meu Deus, que beleza - sussurrou Sally-Anne, tirando a lanterna de Craig e levantando-a bem alto.

Tinham penetrado em uma caverna de luzes, uma caverna de cristal. Durante milénios, a água infiltrada pelo grande teto abobadado formara depósitos de cálcio, criando esculturas maravilhosas. As paredes estavam cobertas por arabescos semelhantes a antigas rendas venezianas, tão delicados que a lanterna brilhava através deles como se fossem de porcelana preciosa. Havia cornijas e pilares monolíticos do teto ao chão, maravilhas suspensas, com todas as cores do arco-íris, que pareciam asas de anjos em pleno vôo. Enormes estalactites de pontas afiadas suspendiam-se ameaçadoramente como brunidas espadas de Dâmocles ou caninos brancos de tubarões devoradores de homens. Outras pareciam gigantescos candelabros ou tubos de órgãos celestiais, e do chão erguiam-se estalagmites em fileiras serreadas, pelotões e esquadrões de formas fantásticas, monges encapuçados em hábitos de madrepérola, lobos e corcundas, heróis de armadura resplandecente, bailarinas e duendes, graciosos e grotescos, mas todos ardendo em milhões de diminutas cintilações à luz da lanterna.

Avançaram pela caverna passo a passo hesitantes, procurando caminho por entre as fileiras de altas estalagmites e tropeçando nas pontas afiadas de calcário desprendidas do teto que coalhavam o solo como antigas pontas de flechas.

Craig tornou a parar e os outros amontoaram-se em torno, formando um grupo compacto.

O centro da caverna estava limpo. Haviam retirado os detritos caídos e mãos humanas haviam construído no calcário reluzente uma plataforma quadrada; um palco ou altar pagão. Em cima, com as pernas cruzadas sobre o peito, envolvido na pele mosqueada e dourada de um leopardo, estava o corpo de um homem.

- Lobengula. - Tungata caiu de joelhos.

As mãos do rei estavam trançadas sobre os joelhos, mumificadas, negras e ressequidas. As unhas haviam continuado a crescer depois da morte, longas e recurvas como as de um animal predatório. Deviam ter-lhe colocado na cabeça um grande adorno de plumas e peles, que tombara a seu lado. As plumas de garça ainda estavam azuis e perfeitas, como se tivessem sido arrancadas na véspera.

Talvez intencionalmente ou mais provavelmente por coincidência, o corpo fora colocado diretamente abaixo de uma das infiltrações do teto. No instante em que o contemplavam, outra gota caiu delicadamente sobre a testa do velho rei, escorrendo-lhe pelo rosto como uma lágrima. Milhões e milhões de gotas deviam ter caído sobre ele, e cada uma delas depositara cálcio luminoso na cabeça mumificada.

Lobengula estava se transformando em pedra e o crânio já estava coberto por um elmo translúcido, como o gotejar de uma vela, escorrendo para as órbitas e formando um depósito perolado, demarcando os lábios ressequidos e a linha do queixo. Os dentes perfeitos do rei sorriam para eles na máscara de pedra.

O efeito era fantasmagórico e aterrador. Sarah gemeu, cheia de temor supersticioso, e agarrou-se a Sally-Anne que a segurou, tão apavorada quanto Sarah. Craig examinou com a lanterna aquela cabeça terrível e foi lentamente abaixando o foco de luz.

No altar de pedra diante de Lobengula havia cinco objetos escuros: quatro barris de cerveja com losangos ornamentais desenhados, as partes superiores fechadas com membranas de bexiga de cabra, e o quinto era um saco de pele de feto de zebra costurado com couro.

- Sam, você... - E a voz de Craig falhou. Pigarreou e completou: - Você é seu descendente. É o único que deve tocar em qualquer coisa aqui.

Tungata ainda estava ajoelhado e não respondeu. Olhava fixamente para o crânio do velho rei e os lábios moviam-se numa oração silenciosa. Estaria rezando ao Deus cristão, pensou Craig, ou aos espíritos de seus ancestrais?

Os dentes de Sally-Anne batiam espasmodicamente e era o único som que se ouvia na caverna. Craig abraçou as duas moças que se aconchegaram a ele, tremendo de frio e de medo.

Tungata levantou-se lentamente e dirigiu-se ao altar.

- Eu o saúdo, grande Lobengula - disse em voz alta. - Eu, Samsom Kumalo, de seu totem e sangue, saúdo-o através dos tempos! - Usava novamente o nome tribal, reclamando sua linhagem enquanto prosseguia em voz firme: - Se sou o filhote de leopardo da profecia, peço sua bênção, ó rei. Mas, se não o for, castigue minha mão sacrílega ao tocar os tesouros da casa de Mashobane.

E estendeu a mão direita lentamente, tocando um dos barris.

Craig descobriu que estava com a respiração suspensa, à espera não sabia de quê, talvez de uma voz vinda da garganta do rei há tanto tempo morto ou que uma das enormes estalactites se espatifasse no solo ou ainda que um raio os dizimasse.

O silêncio prolongou-se e Tungata colocou a outra mão sobre o pote e levantou-o lentamente fazendo um gesto de saudação ao corpo do rei.

Ouvíu-se um forte estalido e a argila partiu-se, desprendendo o fundo do recipiente, de onde jorrou uma torrente luminosa que fez empalidecer o revestimento cristalino da grande caverna. Diamantes cascatearam sobre o altar, empilhando-se em pirâmide e luzindo como um braseiro à luz da lanterna.

- NÃO posso acreditar que sejam diamantes - sussurrou Sally- Anne. - Parecem seixos, bonitos e reluzentes, mas apenas seixos.

Haviam esvaziado o conteúdo dos quatro barris, do saco de pele de zebra na sacola de lona, deixando os vasilhas vazias aos pés do rei, e retirando-se da presença de Lobengula até a outra extremidade da caverna de cristal, mais próxima à abertura.

- Bem, em primeiro lugar a lenda não estava certa. Estes barris não tinham quase cinco litros, e sim pouco mais de meio cada.

- Mesmo assim, dois litros e meio de diamantes são melhores do que uma chifrada de rinoceronte no olho - aparteou Tungata.

Haviam recolhido vários postes da parte superior da estrutura de madeira e acendido uma pequena fogueira na caverna. Estavam sentados em círculo em torno do fogo e as roupas molhadas fumegavam com o calor das chamas.

- Se forem diamantes. - Sally-Anne ainda estava cética.

- São diamantes - declarou Craig enfaticamente -, todos eles. Vejam isto!

Escolheu uma das pedras, um cristal com uma borda pontiaguda em uma das facetas, e passou-o sobre a lente espessa da lanterna, produzindo um ruído desagradável e abrindo um profundo arranhão no vidro.

- Eis aí a prova! É um diamante!

- Mas é tão grande! - Sarah pegou o menor que pôde encontrar. - Mesmo o menor deles é maior do que a articulação do meu dedo.

- Os antigos garimpeiros matabele pegavam apenas os que fossem grandes o bastante para aparecer logo na primeira lavagem - explicou Craig. - E lembrem-se de que perderão sessenta por cento ou mais de massa ao serem cortados e lapidados. Esse aí vai acabar provavelmente do tamanho de uma ervilha.

- Têm coloridos tão diferentes - murmurou Tungata.

Alguns eram de um verde-limão translúcido, outros como âmbar escuro ou cor de conhaque, de tonalidades variadas, outros, brancos como a neve, com facetas geladas que refletiam as chamas da pequena fogueira fumarenta.

- Olhem só esse aqui.

A pedra que Sally-Anne segurava era azul-purpurino, a mesma cor da torrente do Moçambique ao refletir o sol tropical do meio-dia.

- E esse? - Tinha o tom vermelho brilhante do sangue.

- E mais esse! - De um verde límpido e impossivelmente belo, mutável a cada faiscar da luz.

Sally-Anne começou a arrumar uma fileira no chão da caverna.

- Tão bonitos - disse. Estava graduando-os pela cor, amarelos, dourados e ambarinos em uma fila, rosados e vermelhos em outra.

- O diamante pode ter qualquer uma das cores primárias. Parece sentir prazer em imitar o colorido de outras gemas. John Mandeville, o viajante do século quatorze, descreveu isso. - Craig estendeu as mãos para o fogo. - E pode cristalizar-se em qualquer forma geométrica, desde um quadrado perfeito até um octaedro ou um dodecaedro.

- Credo, meu camarada - troçou Sally-Anne. - O que vem a ser um octaedro?

- Duas pirâmides com uma base comum e lados triangulares.

- Puxa! E um dodecaedro? - desafiou-o.

- São dois losangos ou rombos com facetas comuns.

- Como é que sabe tanto a respeito?

- Escrevi um livro, lembra-se? - Craig sorriu. - E metade dele era sobre Rhodes, Kimberley e diamantes.

- Já chega - disse ela, dando-se por vencida.

- Não, não chega, ainda posso continuar. O diamante é o mais perfeito refletor de luz que existe. Só o cromato de chumbo tem refração maior e o crisólito, uma maior dispersão. Mas essas qualidades combinadas no diamante são únicas.

- Chega - ordenou Sally-Anne, mas continuava com uma expressão interessada e ele prosseguiu.

- Seu brilho não esmorece, apesar do fato de os antigos não saberem lapidá-lo para revelar todo seu esplendor. Por esse motivo, os romanos valorizavam mais as pérolas e até os primeiros artesãos hindus limitaram-se a raspar as facetas naturais do Kohinoor. Teriam ficado desolados se soubessem que os lapidadores modernos reduziram-lhe o tamanho de setecentos quilates para cento e seis.

- Que tamanho tem setecentos quilates? - quis saber Sarah. Craig escolheu uma das pedras arrumadas por Sally-Anne, do tamanho de uma bola de golfe.

- Esse tem provavelmente uns trezentos. Pode transformar-se em um brilhante perfeito, um de primeira água, com mais de cem quilates. Os homens vão batizá-lo, como fizeram com o Grão Mogol, o Orloff ou o Shah e criar lendas sobre ele.

- O Fogo de Lobengula - arriscou Sarah.

- Ótimo! - Craig acrescentou. - Um bom nome. O Fogo de Lobengula!

- E quanto valem? - perguntou Tungata. - Qual o valor deste monte de pedrinhas bonitas?

- Só Deus sabe. - E Craig encolheu os ombros. - Algumas não têm valor... - E pegou uma grande pedra amorfa de um cinzento escuro, onde viam-se jacas e imperfeições óbvias a olho nu e linhas fraturadas que a atravessavam como lâminas finas e prateadas. - Este aqui só tem utilidade industrial, será usado em ferramentas e em perfuradoras de petróleo, mas algumas das outras... a única resposta seria: valem o que pagaria um homem rico. Seria impossível vendê-las todas de uma só vez, o mercado não poderia absorvê-las. Cada pedra vai requerer um comprador especial e envolver uma complicada transação financeira.

- Quanto valem, Pupho? - insistiu Tundaga. - Qual seria o valor mínimo ou máximo?

- Realmente, não sei. Não poderia sequer dar um palpite. - Craig pegou outra pedra cujas facetas imperfeitas escondiam o verdadeiro fogo de suas entranhas. - Técnicos altamente qualificados vão ter que trabalhá-la durante semanas, talvez até meses, avaliando o corte e descobrindo as jacas. Vão abrir uma espécie de janela na pedra para poderem examinar microscopicamente o interior. E, então, depois de tomarem uma decisão de como "fazer" a pedra, um mestre cortador com nervos de aço vai fendê-la pelo corte com um instrumento parecido com o cutelo de um açougueiro. Uma martelada em falso e a pedra pode explodir em fragmentos sem nenhum valor. Dizem que o cortador do brilhante Cullinan desmaiou de alívio quando acertou um golpe preciso e o diamante fendeu-se perfeitamente. - Craig brincou com o grande diamante pensativamente.

- Se esta pedra se "fizer" perfeitamente, e se o colorido for grau D, poderá valer, digamos, um milhão de dólares.

- Um milhão! Por uma pedra! - exclamou Sarah.

- Talvez mais. Talvez, muito mais.

- Se uma pedra vale isso - e Sally-Anne encheu as mãos com um punhado delas, deixando-as escorrer lentamente por entre os dedos -, quanto valeria este lote?

- Um mínimo de cem milhões e um máximo de quinhentos - respondeu Craig em voz calma e aquelas cifras astronómicas pareceram deprimi-los ao invés de deixá-los eufóricos.

Sally-Anne deixou cair as últimas pedras como se lhe queimassem os dedos e cruzou os braços sobre o peito, estremecendo. O cabelo molhado pendia grudado em torno do rosto e o fogo acentuava-lhe as olheiras. Estavam exaustos e sujos.

- Estamos aqui sentados - disse Tungata - com uma enorme fortuna nas mãos e eu desistiria de tudo isso em troca de um raio de sol e um instante de liberdade.

- Pupho - pediu Sarah -, conte-nos mais histórias.

- Sim - insistiu Sally-Anne. - É a sua profissão. Conte histórias sobre diamantes. Ajude-nos a esquecer. Conte mais uma história.

- Está bem - concordou Craig, e, enquanto Tungata botava mais lenha no fogo, refletiu por alguns instantes. - Sabiam que a palavra Kohinoor significa "Montanha de Luz" e que Baber, o Conquistador, achava que valia a metade da despesa diária de todo o mundo conhecido? Podem achar que fosse única, mas era apenas uma das grandes jóias que havia em Delhi. Essa cidade ultrapassava a Roma imperial e a orgulhosa Babilónia em tesouros. E essas outras jóias tinham nomes maravilhosos também: Mar de Luz, Coroa da Lua, Grão Mogol - Craig vasculhou a memória atrás de histórias que os fizessem esquecer aquela situação desesperadora de enterrados vivos nas profundezas da terra.

Contou-lhes a história do criado fiel a quem De Sancy confiara o grande diamante Sancy que mandava de presente a Henrique de Navarra, enriquecendo, assim, as jóias da coroa francesa.

- Alguns ladrões souberam dessa jornada e emboscaram o pobre homem na floresta. Cortaram-no em pedaços e examinaram as roupas e o cadáver. Não encontrando nada, enterraram-no apressadamente e fugiram. Anos mais tarde, Monsieur de Sancy achou o túmulo na floresta e ordenou que exumassem o corpo. O lendário diamante foi achado em seu estômago.

- Que horror - disse Sally-Anne, estremecendo.

- Talvez - concordou Craig. - Mas todo grande diamante tem uma história sanguinária. Imperadores, rajás e sultões conspiraram e guerrearam por eles, outros seres humanos torturaram, cegaram olhos com ferros em brasa, derramaram óleo fervente em outras criaturas, mulheres usaram veneno ou prostituíram-se, palácios foram saqueados e templos profanados. Cada uma dessas pedras parece ter deixado um rastro de sangue e selvageria. E, no entanto, nenhuma dessas terríveis desgraças e acontecimentos parece ter desencorajado o apetite por elas. Quando Shah Shuja defrontou-se com Runjeet Singh, "O Leão do Punjab", reduzido a um mero esqueleto pela fome e com as mulheres e a família mutiladas pelas torturas que o forçaram finalmente a entregar o Grão Mogol, o homem que fora um dia o seu melhor amigo, rejubilando-se com a grande pedra entre as mãos, perguntou-lhe: "Díga-me, Shah Shuja, que preço ela vale?" E mesmo então, Shah Shuja, alquebrado e vencido, sabendo-se à beira de uma morte ignóbil, respondeu: "O preço da tortura. Porque o Grão Mogol sempre foi o talismã dos grandes triunfadores".

Tungata resmungou ao final da história e tocou no tesouro empilhado ao pé da fogueira com um dedo.

- Gostaria que uma delas nos trouxesse só um pouco dessa boa fortuna.

Craig esgotara o repertório, estava completamente rouco de tanto falar, sofrendo os efeitos do frio e do gás lacrimogênio e a nenhum dos outros ocorria dizer qualquer coisa que os animasse um pouco. Comeram em silêncio os bolos de milho pouco apetitosos sapecados pelo fogo e deitaram-se o mais perto possível da fogueira. Craig ficou silencioso, vendo os outros dormirem, mas apesar da fadiga o cérebro rodava-lhe em círculos, impedindo-o de descansar.

A única saída da caverna era pelo lago subterrâneo até a grande galeria, mas por quanto tempo os soldados shona montariam guarda lá? E quanto tempo resistiriam ali? Havia comida para um ou dois dias, e a água infiltrada pelo teto da caverna era suficiente, mas as baterias das duas lanternas estavam falhando, já com a luz amarelada e difusa; a madeira da escada poderia ainda alimentar a fogueira por alguns dias e depois teriam de enfrentar o frio e a escuridão. E quanto tempo levariam para enlouquecer? Quanto tempo teriam antes de tentar a volta terrível, nadando pelo poço para cair nas mãos dos soldados?

Os pensamentos de Craig foram bruscamente interrompidos. A rocha onde estava estendido tremeu violentamente.

Das sombras do teto da caverna, uma das grandes estalactites, vinte toneladas de calcário cintilante, partiu-se como um fruto maduro e espatifou-se no solo a dez passos de onde estavam, enchendo a caverna de detritos e poeira. Sarah acordou aos gritos, aterrorizada, e Tungata debatia-se aos berros, arrancado de um sono profundo.

O tremor durou ainda alguns segundos e a quietude e o silêncio total daquelas profundezas caiu sobre eles novamente que se entreolharam assustados no clarão da fogueira em brasas.

- Que diabos foi isso? - perguntou Sally-Anne, e Craig relutou em responder, olhando para Tungata.

- Os shona... - disse Tungata num tom gentil. - Acho que dinamitaram a grande galeria. Encerraram-nos aqui dentro.

- Oh, meu Deus! - Sally-Anne cobriu a boca um gesto lento.

- Estamos enterrados vivos - disse Sarah, expressando o pensamento de todos.

O poço tinha cinquenta metros de comprimento até a água. Tungata sondou-o com a corda de náilon antes que Craig iniciasse a descida. A distância era grande o bastante para matar ou ferir seriamente alguém que escorregasse e caísse no abismo.

Prenderam uma extremidade da corda em um dos postes colocado horizontalmente por dentro da abertura do túnel que dava para a gruta de cristal e Craig deslizou pela corda até o fundo do poço, mergulhando na água, o que bastou para confirmar o pior: o túnel que levara à grande galeria estava bloqueado por grandes pedaços de pedra. Não conseguiu chegar sequer à parede construída pelos feiticeiros. Rochas haviam rolado do teto, tornando-o perigosamente instável. Ao tocá-lo, provocou uma nova avalanche.

Saiu do túnel e fugiu a toda pressa para a superfície. Agarrou-se à estrutura de madeira, arquejando com a ideia de haver quase ficado preso lá dentro.

- Pupho, você está bem?

- Estou ótimo - gritou Craig. - Mas você estava certo. O túnel foi dinamitado. Não há mais saída!

Quando subiu pela corda de volta à plataforma, esperavam-no com expressões sombrias e tensas à luz da fogueira.

- O que vamos fazer? - perguntou Sally-Anne.

- A primeira coisa a fazer é explorar cuidadosamente a caverna. - Craig ainda estava ofegante com o mergulho e a subida. - Cada recanto, cada abertura e túnel. Vamos trabalhar dois a dois. Sam e Sarah, comecem pela esquerda e usem a lanterna com cuidado, tratem de economizar a bateria.

Três horas mais tarde, pelo relógio de Craig, reencontraram-se junto ao fogo. As lanternas estavam quase sem força e as baterias a ponto de esgotar-se.

- Encontramos um túnel por trás do altar - disse Craig. - Parecia realmente uma saída durante algum tempo mas terminou em um beco sem saída. E vocês? Conseguiram alguma coisa? - Limpava um esfolado no joelho de Sally-Anne que escorregara no solo traiçoeiro.

- Nada - admitiu Tungata. - Encontramos umas duas passagens que pareciam prometedoras mas que acabaram dando em nada.

- O que vamos fazer agora?

- Vamos tratar de comer um pouco e descansar. Temos que tentar dormir. Precisamos conservar as forças. - Craig sabia que era apenas um artifício, mas surpreendentemente caiu em um sono profundo.

Ao despertar, Sally-Anne estava aninhada perto dele e tossia com um som cavo e encatarrado. O frio e a umidade estavam afetando a todos, mas Craig sentia-se bastante revigorado pelo sono. Apesar de ainda estar com a garganta e o peito doloridos, sentia-se melhor e mais animado. Encostou-se na parede rochosa, com cuidado para não molestar Sally-Anne. Tungata roncava do outro lado da fogueira e, ao mudar de posição, silenciou.

O único som que se ouvia na caverna era o gotejar da água pelas infiltrações do teto e, logo a seguir, distinguiu vagamente um outro, algo como um sussurro tão baixo que talvez não passasse da reverberação do silêncio em seus ouvidos, e concentrou-se nele. O ruído o incomodava e tentava descobrir o que seria.

- Claro! São morcegos! - disse em voz alta.

Lembrou-se de havê-los ouvido mais nitidamente quando chegara pela primeira vez à plataforma. Estendeu-se novamente no assoalho e ficou pensativo durante algum tempo, até que retirou com delicadeza a cabeça de Sally-Anne do ombro e levantou-se.

Pegou uma das lanternas e voltou pelo túnel até o poço. Ligou-a apenas uma ou duas vezes para economizar as baterias e encostou-se na rocha, ouvindo com a maior atenção.

Havia longos períodos de silêncio, interrompidos apenas pelo gotejar da água até que subitamente ouviu guinchos ecoarem pela chaminé do poço e depois silenciarem.

Ligou a lanterna para ver o relógio: eram cinco horas. Não estava certo se da manhã ou da tarde, mas, se os morcegos estavam reunidos lá no alto, ainda devia ser dia no mundo lá fora. Sentou-se e esperou uma hora, verificando volta e meia o relógio, quando houve uma nova explosão distante de guinchos, não mais sons ocasionais, e sonolentos, mas um coro excitado de milhares de pequenos roedores despertando para a caçada noturna.

O coro foi logo diminuindo e Craig tornou a olhar o relógio: seis e trinta e cinco. Podia imaginar em algum lugar acima a horda em revoada saindo pela abertura de uma caverna para o céu crepuscular, como fumaça escapando de uma chaminé.

Moveu-se cautelosamente até a beira da plataforma, segurou-se na parede lateral e inclinou-se com cuidado sobre o abismo. Levantou a cabeça para espiar a parte superior do poço, estendendo a lanterna o máximo possível.

O poço era semicircular, com cerca de três metros até a parede oposta. Desistiu de sondar a escuridão acima e concentrou-se na rocha do outro lado, usando prodigamente as baterias.

Era lisa como vidro, desbastada pela água que a abrira. Não havia um nicho, uma saliência, exceto... E esticou mais o pescoço. Havia uma mancha mais escura diretamente oposta a ele e bem acima do nível de sua cabeça. Seria uma simples estratificação ou uma fenda? Não podia ter certeza à luz esmaecida da lanterna. Podia até ser um truque das sombras.

- Pupho - disse Tungata inesperadamente às suas costas. - O que está acontecendo?

- Acho que esse é o único caminho aberto para a superfície. - Craig desligou a lanterna para poupá-la.

- Por esta chaminé acima? - A voz de Tungata soou incrédula na escuridão. - Ninguém conseguiria subir por aí.

- Os morcegos estão aninhados em algum lugar lá no alto.

- Eles têm asas - lembrou-lhe Tungata, e depois de uma pausa perguntou: - Que altura terá?

- Não sei, mas acho que há uma fenda ou saliência no outro lado. Ligue a outra lanterna que está mais forte.

E ambos inclinaram-se para espiar.

- O que você acha?

- Acho que realmente há algo lá.

- Se pudesse passar para o outro lado! - Craig desligou novamente a luz.

- Como?

- Não sei, deixe-me pensar.

Sentaram-se apoiados na parede, ombro a ombro. Depois de algum tempo, Tungata murmurou:

- Craig, se conseguirmos escapar daqui, os diamantes... Você tem direito a uma porcentagem...

- Cale-se, Sam. Estou pensando. - E depois de longo tempo: - Sam, aquele poste mais comprido da escada... acha que com ele chegaríamos ao outro lado?

Fizeram outra fogueira na plataforma e o poço íluminou-se com uma luz trémula e incerta. Craig desceu pela corda mais uma vez até os restos da escada de madeira e examinou cada poste da estrutura. A maioria fora cortada em tamanhos menores, provavelmente para facilitar o transporte através dos túneis e passagens, mas as estruturas laterais eram feitas em peças mais compridas. A maior delas tinha a largura de um braço, mas a casca era da cor pálida peculiar à árvore que os africanos chamavam de "presa de elefante", e os ingleses, de pau-ferro, uma das madeiras mais resistentes daquela região do continente.

Examinando-a e medindo-a com os braços, calculou que tivesse quase seis metros de comprimento. Amarrou a ponta da corda na extremidade superior do tronco, gritando a Tungata o que estava fazendo, e usou o canivete para cortar a corda de casca de árvore que o prendia. Houve um momento terrificante quando o poste soltou-se e ficou dependurado na corda, balançando como um pêndulo e toda a estrutura, sem o apoio principal, começou a partir-se e a deslizar para o poço.

Craig escalou de volta e atirou-se, aliviado, na plataforma; ao recuperar o fôlego, o poste ainda balançava na ponta da corda mas o resto da escada caíra dentro d'água.

- Esta foi a parte fácil - avisou-os Craig com o rosto sério. Tungata e ele fizeram o esforço maior para içá-lo, enquanto as moças enrolavam e manobravam a corda. Puxaram-na centímetro a centímetro até a ponta atingir o nível da plataforma. Prenderam-na, e Craig ficou de bruços, usando a outra extremidade da corda para laçar a ponta de baixo. Conseguiram prendê-la de ambos os lados e começaram a esforçar-se para içá-lo e colocá-lo em posição horizontal.

Depois de uma hora de muitos esforços, tinham conseguido colocar uma extremidade contra a parede oposta e enfiado a outra pelo túnel atrás deles.

- Temos que levantar mais a outra extremidade - explicou Craig enquanto descansavam -, e tentar enfiá-la naquela fenda da parede, se é que é mesmo uma fenda.

Tentaram por duas vezes e quase perderam o controle do poste que teria rolado para o fundo do poço, mas conseguiram manobrar a corda a tempo e recomeçaram a árdua tarefa.

Já era mais de meia-noite quando conseguiram finalmente tocar a parede oposta à altura da mancha escura apenas visível ao clarão da lâmpada.

- Mais uns centímetros para a direita - gemeu Craig, e moveram com cuidado o poste que, com um ligeiro ruído, encaixou-se na fenda, fazendo com que Craig e Tungata caíssem de joelhos e se abraçassem.

Sarah colocou mais madeira no fogo e examinaram o trabalho na claridade. Tinham feito uma ponte bastante sólida sobre o poço que se elevava da plataforma em ângulo acentuado até a outra parede.

- Alguém vai ter de atravessar isso. - A voz de Sally-Anne soou trémula e insegura.

- E o que vai acontecer do outro lado? - perguntou Sarah.

- Vamos descobrir quando chegarmos lá •- prometeu-lhes Craig.

- Eu vou - disse Tungata em voz calma.

- Alguma vez já escalou? - Tungata negou com a cabeça. - Bem, isso resolve o problema - disse-lhe Craig com firmeza. - Vamos descansar por duas horas e tentar dormir um pouco.

Mas ninguém conseguiu dormir e Craig os fez levantar antes das duas horas. Ensinou a Tungata a posicionar-se firmemente como homem de apoio, sentado e com os pés bem plantados e a corda passada pela cintura e por sobre as costas e o ombro.

- Não me dê muita corda e também não a retenha muito - explicou Craig. - Se cair, dou um grito de aviso. Enrole a corda assim e aguente firme, certo?

Pendurou uma das lanternas no ombro com uma tira de lona, e fez as duas moças sentarem-se sobre o poste; começou a atravessar segurando-se com as mãos e os pés dependurados, e a corda, lentamente solta por Tungata.

Viu logo que o ângulo de ascensão era excessivo e montou no poste, com os tornozelos cruzados, dando impulso com as pernas. Saiu rapidamente do círculo de luz da fogueira, e a escuridão abaixo era hipnotizante, mas procurou não olhá-la. O poste flexionava-se ao peso de cada movimento e ouvia a extremidade raspando-se na rocha, até finalmente tocar com os dedos o calcário frio da parede.

Apalpou, ansioso, à procura da fenda e sentiu-se melhor ao verificar-lhe a forma. Era uma rachadura vertical, com uma abertura de dez centímetros, apenas suficiente para acomodar a extremidade do poste e que se estreitava rapidamente para dentro.

- É mesmo uma fenda! - avisou-os. - Vou fazer uma tentativa.

- Tenha cuidado, Craig.

Meu Deus, que frase mais fora de contexto, pensou.

Arrastou-se mais um pouco até poder estender com folga o braço esquerdo e enfiou a mão na rachadura com os dedos fechados o mais fundo que pôde, até sentir o pulso bem firme. Abriu os dedos e viu que tinham um bom apoio onde poderia jogar o peso do corpo.

Sentou-se no poste, levantou um joelho até o peito e apertou a manivela do tornozelo artificial, deixando-o rígido.

Respirou fundo e disse baixinho:

- Está bem, vamos em frente.

Estendeu a outra mão, enfiando-a na fenda e repetindo a mesma manobra. Usou a força dos dois braços para ficar de joelhos, equilibrando-se no poste.

Relaxou a mão direita, enfiada abaixo da outra, e retirou-a facilmente da fenda, levantando-a e tornando a enfiá-la mais no alto, o que lhe permitiu ficar de pé, de frente para a parede.

Estendeu o pé artificial, introduzindo-o na rachadura até o calcanhar e, ao distender a perna, a parte da frente ficou firmemente segura entre os lados da pedra e conseguiu sair de cima do poste.

- Bons e velhos dedos de metal - murmurou. A perna e o pé naturais não o teriam suportado sem botas especiais de alpinismo.

Distendeu os braços novamente, tornando a firmar um de cada vez na rachadura, e suspendeu-se só com a força dos braços. Assim que aliviou o peso da perna, tirou o pé lá de dentro e, levantando o joelho, tornou a enfiá-la quarenta centímetros acima. Foi avançando para o alto, suspenso alternadamente pelos braços e pela perna mecânica e a corda ia deslizando atrás dele.

Estava na mais completa escuridão e só tinha o tato para guiá-lo; o abismo negro parecia querer sugar-lhe os calcanhares quando se afastava um pouco da parede. Contava cada passo dado para cima,, calculando-os em quarenta centímetros. Já escalara cerca de doze metros quando a fenda começou a alargar-se, obrigando-o a enfiar as mãos mais fundo para conseguir um apoio firme, o que tornou os passos menores e forçava-lhe mais as mãos e a perna.

As juntas dos dedos estavam esfoladas pela pedra e cada esforço sucessivo tornava-se mais penoso; o exercício deixava-lhe os músculos da coxa e da virilha em fogo.

Não ia aguentar muito tempo: tinha que descansar. Descobriu-se fazendo força contra a parede e tocando o calcário gelado com a testa. Reclinar-se contra a parede é a morte, era a primeira lei do alpinista, uma atitude de derrota e desespero. Craig sabia disso, mas não podia evitá-la.

Tomou consciência de que estava soluçando. Retirou um dos punhos da fenda, flexionando os dedos para restabelecer a circulação e levando-os à boca para lamber as feridas. Trocou de mão, gemendo quando o sangue começou a circular na extremidade dormente.

- Pupho, por que parou? - A corda parara e estavam ansiosos.

- Craig, não desista, querido. Não desista. - Sally-Anne intuíra seu desespero mas havia algo em sua voz que lhe deu novas forças.

Afastou-se gradualmente da parede, reequilibrando-se, colocando o peso do corpo na perna e recomeçou a esticar as mãos, uma de cada vez, para cima, esquerda e direita; segurar firme, esticar a perna, firmá-la e de novo toda aquela tortura: mais três metros, mais seis metros, contava na escuridão.

Levantar a mão direita... e... nada. Apenas espaço vazio.

Tateou freneticamente à procura da fenda, e nada, até que esbarrou lateralmente em pedra; a rachadura ampliara-se em um nicho em forma de V, grande o bastante para abrigar um homem.

- Obrigado, meu Deus, obrigado, obrigado... - Craig alçou-se para lá, acomodando os quadris e os ombros e cruzando sobre o peito as mãos feridas.

- Craig! - ressoou o grito de Tungata no poço.

- Estou bem - respondeu. - Descobri um nicho e estou descansando um pouco.

Sabia que não poderia esperar muito ou as mãos ficariam enrijecidas e inúteis e continuou a flexioná-las enquanto descansava.

- Vou continuar a subida! - gritou.

Continuou a escalar, com as palmas das mãos apoiadas nas laterais da abertura e de frente para a escuridão total do poço.

A abertura surgiu e tornou-se uma chaminé grande e profunda, onde já não alcançava mais as paredes com os braços estendidos. Teve de virar-se de lado, apoiar os ombros em uma superfície e apoiando-se com os pés, deslizando e alçando-se com as palmas coladas à pedra poucos centímetros de cada vez. Prosseguiu rapidamente até que a chaminé terminou de repente, tornando-se uma fenda tão estreita que não conseguia meter a mão por ela.

Apalpou o topo da chaminé o mais alto que pôde e não havia qualquer irregularidade ou protuberância no calcário liso acima.

- Fim da linha! - sussurrou e, de repente, cada músculo do corpo começou a contrair-se de dor, deixando-o esmagado e derrotado. Não tinha mais forças para o longo e perigoso regresso chaminé abaixo e nem aguentaria manter-se onde estava.

Ouviu de repente o grito agudo de um morcego, tão perto e claro que quase afrouxou os músculos com o susto. Conseguiu controlarse e, apesar de as pernas quase cederem, deslocou-se até a extremidade da chaminé. O morcego tornou a gritar e foi respondido por centenas de outros. Devia estar amanhecendo e os animais voltavam ao abrigo em algum lugar lá em cima.

Conseguiu firmar-se e deixar uma das mãos livre. Agarrou a lanterna dependurada ao pescoço, arrastou-se o mais que pôde para a beira da chaminé, e esticou a cabeça na quina aguda que se abria para o poço.

Ligou a lanterna e houve imediatamente uma reação alarmada dos morcegos, guinchos e bater de asas; a quase um metro acima, fora de alcance, havia uma abertura na parede de pedra de onde reverberavam os sons. Tentou alcançá-la, mas os dedos ficavam a centímetros da beirada.

Durante a tentativa, a luz da lanterna apagou; viu ainda os filamentos avermelhados na minúscula ampola de vidro que logo desapareceram e a escuridão tornou a engoli-lo, fazendo-o abrigar-se na chaminé.

Atirou com raiva a lanterna que foi descendo barulhentamente pelo poço e caiu na água com um ruído distante.

- Craig!

- Deixei cair a lanterna.

Ouviu a raiva e a amargura da própria voz, mas fez mais uma tentativa para alcançar a abertura. As unhas arranhavam inutilmente, a pedra e desistiu, começando a descer de volta para o nicho.

- Craig, o que está acontecendo?

- Não dá - respondeu. - Não há saída. Estamos acabados, a não ser... - e interrompeu-se.

- A não ser o quê?

- A não ser que uma das moças suba para me ajudar. Fez-se silêncio na escuridão abaixo dele.

- Vou subir - disse Tungata.

- Não. Você é pesado demais. Não vou aguentar seu peso. Fez-se novo silêncio e então Sally-Anne disse:

- Diga-me o que tenho de fazer.

- Amarre-se na extremidade da corda.

- Certo.

- Depois, atravesse o poste que eu seguro você.

Espiando para baixo, podia ver sua silhueta ao clarão da fogueira enquanto atravessava a ponte. Segurou a corda cuidadosamente, preparando-se para uma possível queda.

- Consegui.

- Está vendo a fenda?

- Sim.

- Vou começar a subi-la e tem que me ajudar apoiando os pés pela fenda.

- Está bem.

- Comece!

Sentiu todo o peso dela na corda que começou a cortar-lhe o ombro.

- Dê um impulso para cima! - ordenou e, ao sentir a carga diminuir, puxou mais a corda.

- Mais impulso! - Ela subiu mais alguns centímetros.

- Mais uma vez! - Parecia não ter fim, até que Sally-Anne gritou de repente e sentiu a corda deslizar violentamente pelo ombro, deixando-o com as palmas das mãos em carne viva, mas conseguiu finalmente freá-la, o que quase o arrancou do nicho.

Sally-Anne ainda gritava, balançando na extremidade da corda como um pêndulo.

- Cale a boca! - berrou. - Trate de se controlar!

Parou de gritar e as oscilações foram diminuindo gradualmente.

- Meu pé soltou-se da parede. - A voz era quase um soluço.

- Pode achar a rachadura de novo?

- Sim.

- Está bem, diga-me quando estiver pronta.

- Pronta.

- Dê um impulso!

Achou que aquilo nunca acabaria até sentir-lhe a mão agarrando-o pela perna.

- Você conseguiu - sussurrou. - Que mulher maravilhosa. Abriu espaço para ela no nicho, mostrou-lhe como ancorar-se com firmeza e abraçou-a longamente.

- Não posso continuar - foram as primeiras palavras que ela disse.

- Essa foi a pior parte, o resto é fácil. - Não iria contar-lhe ainda sobre a abertura. - Ouça os morcegos - procurou animá-la. - A superfície deve estar muito próxima. Pense no primeiro raio de Sol, na primeira golfada de ar fresco.

- Estou pronta para continuar - disse depois de algum tempo, e ele a guiou pela chaminé.

Quando atingiram o topo, Sally-Anne falou desesperada:

- Craig! Craig! Está fechada. É um beco sem saída.

Podia senti-la à beira do pânico, tremendo e tentando reprimir os soluços.

- Pare com isso - disse com voz dura. - É só mais um esforço. Só mais um, eu prometo.

Esperou que se aquietasse e continuou:

- Há uma abertura na parede logo acima de você, dobrando a quina da chaminé. São apenas uns trinta centímetros e pouco...

- Não vou conseguir alcançar.

- Vai, sim! Vou fazer uma ponte com meu corpo. Você sobe em cima de meu estômago e vai alcançá-la facilmente. Está me ouvindo, Sally-Anne?

- Não. - A voz estava quase inaudível. - Não posso fazer isso.

- Pois então nenhum de nós vai conseguir chegar a lugar nenhum - disse em tom áspero. - Ou você consegue ou vamos apodrecer aqui. Está me ouvindo?

Aproximou-se dela até tocar-lhe as nádegas com a barriga e, reunindo forças, colocou os dois pés numa parede, amparando-se na outra com os ombros, formando uma ponte humana por baixo dela.

- Solte-se devagar - sussurrou -, e sente-se em meu estômago.

- Craig, sou muito pesada.

- Diabos, trate de fazer o que digo!

Sentiu-a apoiar-se nele; os músculos pareciam que iam rebentar e os olhos encheram-se de pontos faiscantes.

- Agora levante-se - conseguiu dizer.

Ela ajoelhou-se primeiro, e as articulações dos joelhos pareciam pregos enterrando-se na carne. - Rápido! Fique de pé! - gemeu. Ficou de pé, meio vacilante, sobre seu corpo.

- Estenda os braços o mais que puder!

- Craig, há um buraco aqui!

- Será que consegue entrar por ele?

Não houve resposta. Ela mudou de posição, fazendo-o gritar de dor com o esforço.

Deu um impulso e o peso desapareceu. Ouviu-a tatear com os pés e o ruído da corda deslizando para o alto atrás dela, como uma cauda de macaco.

- Craig, é uma plataforma... uma caverna.

- Ache alguma coisa para amarrar a corda.

Um minuto, mais outro... já não aguentava mais, as pernas estavam dormentes, os ombros...

- Consegui! Está bem firme.

Puxou cautelosamente até sentir a corda retesada e segura. Amarrou-a na cintura e soltou os pés. Balançou-se para fora da chaminé, dependurado no poço aberto.

Começou a içar-se lentamente até ultrapassar a abertura de pedra e tombou no solo rochoso. Abraçaram-se em silêncio, incapazes de dizer palavra.

- O que está acontecendo aí em cima? - perguntou Tungata, incapaz de controlar-se mais.

- Encontramos outra saída - respondeu Craig. - E deve ter uma abertura para a superfície. Está cheia de morcegos.

- O que precisamos fazer?

- Vou atirar a corda para vocês, com um laço na ponta. Sarah vai subir primeiro. Tem que atravessar o poste e prender-se no laço. Nós dois conseguimos suspendê-la. - Era uma mensagem muito longa para ser gritada. - Compreenderam?

- Sim, ela vai fazer isso.

Craig fez um laço na extremidade da corda e arrastou-se até o ponto onde Sally-Anne a amarrara, e começou a tatear. Era uma saliência rochosa, a uns três metros e meio de abertura, e o nó estava bem seguro. Arrastou-se de volta e jogou a corda pela janela na rocha, deitando-se de barriga para baixo e espiando a escuridão cheia de ecos. O brilho do fogo cintilava à distância como uma fornalha ténue e vermelha. Podia ouvir os dois cochichando.

- Por que estão demorando? - perguntou.

Viu então a forma escura, apenas visível ao clarão da fogueira, movendo-se pela ponte. Era grande demais para ser uma única pessoa e compreendeu que Tungata e Sarah cruzavam juntos o poste. Tungata a conduzia lentamente à sua frente, encorajando-a.

Por um momento, sumiram logo abaixo da janela.

- Pupho, mova a corda mais para a esquerda.

Craig obedeceu e sentiu o puxão quando Tungata a segurou.

- Tudo bem, passei a corda em Sarah.

- Explique-lhe que precisa caminhar pela rocha à medida que a formos puxando.

Sally-Anne sentou-se diretamente atrás de Craig e segurou a corda passada pelo ombro dele que apoiara os pés na parede lateral.

- Dê um impulso - ordenou a Sarah, que pegou o ritmo rapidamente. Apesar de pequena e esbelta, foi uma longa subida e as mãos de Craig estavam em carne viva. Foram cinco minutos de trabalho duro antes que a içassem para dentro da caverna e ficaram os três descansando durante algum tempo.

- Certo, Sam. Estamos prontos para você. - E Craig tornou a jogar a corda.

Eram três agora, um sentado atrás do outro, mas Tungata era grande e pesado. Podia ouvir as moças gemendo com o esforço.

- Sam, pode agarrar-se um pouco na chaminé e nos dar um descanso? - arquejou Craig.

Sentiu a corda aliviar-se do peso e os três ficaram atirados por alguns instantes, recuperando as forças.

- Está bem, vamos recomeçar.

Tungata parecia ainda mais pesado, mas finalmente surgiu pela abertura e cambaleou no solo pedregoso; ninguém conseguiu falar durante algum tempo.

Craig foi o primeiro a recuperar a voz:

- Merda! Esquecemos os diamantes! Deixamos os malditos diamantes!

Ouviu-se um clique e o clarão da lanterna trazida por Tungata iluminou-se. Ficaram piscando, meio cegos, e Tungata deu uma risada rouca.

- Por que acham que estava tão pesado?

Levantou a sacola de lona do colo e deu-lhe umas pancadinhas. Os diamantes soaram como um esquilo devorando nozes.

- Que herói! - Craig respirou aliviado. - Mas desligue a lanterna, essa bateria só vai durar mais alguns minutos.

Usaram a luz com moderação. Da primeira vez, viram que a abertura dava para uma caverna baixa e tão ampla que não conseguiam ver as paredes laterais. O teto estava coalhado de morcegos, com os olhos parecendo miríades de pontinhos luminosos nos rostos horrendos, todos dependurados de cabeça para baixo.

O assoalho da caverna estava coberto de detritos. As fezes malcheirosas recobriam toda irregularidade, tornando o solo macio, e abafando os passos ao avançarem em grupo, de mãos dadas para não se perderem no escuro.

Tungata ia à frente, acendendo volta e meia a lanterna para olhar o chão e orientar-se. Craig ia na retaguarda com a corda enrolada e enfiada no ombro. O solo começou a subir gradualmente e o teto ficava mais próximo.

- Esperem - disse Sally-Anne. - Não acendam a luz de novo.

- O que há?

- Ali adiante, perto da subida. Será a minha imaginação? Craig olhou à frente para o local de onde emergia um fraco halo, uma réstia de luz na escuridão da caverna.

- Luz - sussurrou. - Há luz lá na frente.

Começaram a correr, esbarrando-se na escuridão, empurrando-se e rindo ao começarem a distinguir as próprias formas, até que as risadas transformaram-se numa louca euforia. A luz tornara-se dourada e escalavam as fezes macias tentando alcançá-la.

O teto foi diminuindo de altura até obrigá-los a ficar de joelhos e, depois, de rastos no chão; a luz era uma fina fresta horizontal que os cegava com a claridade brilhante. Escalavam com as mãos, enterrando os dedos e provocando nuvens de pó nas fezes secas, que os cobriu por inteiro, mas continuavam a subir, tossindo, engasgando-se e gritando histericamente.

Craig viu que Sarah chorava desabaladamente, com as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. Tungata soltava grandes gargalhadas e Craig apressou-se para segurar-lhe os tornozelos antes que alcançasse a abertura estreita da caverna.

- Espere, Sam. Tenha cuidado.

Tungata começou a dar pontapés, querendo soltar-se, mas Craig o agarrou firme.

- São os shona! Há shonas lá fora!

Aquele nome os silenciou e os fez parar. Ficaram junto à abertura e toda a euforia evaporou-se.

- Craig e eu vamos sair para examinar o terreno. - Tungata passou-lhe uma pedra. - É a única arma que tenho. Vocês duas fiquem aqui até nós as chamarmos.

Craig passou uma grossa camada de fezes no rosto para escurecê-lo, tirou a corda dos ombros e arrastou-se atrás de Tungata. Estava contente em deixá-lo assumir a iniciativa. Na caverna, fora o líder, mas lá fora era o mundo de Tungata. Na floresta, ele era o leopardo.

Arrastaram-se até a entrada, uma fenda baixa e horizontal, com pouco mais de meio metro de altura, escondida pela grama dourada de elefante que crescia bem na abertura. Ficava de frente para o nascer do Sol, pois o sentiam arder no rosto. Ficaram imóveis durante algum tempo, deixando os olhos acostumarem-se a toda aquela claridade depois de tanto tempo na escuridão.

Em seguida, Tungata começou a arrastar-se sinuosamente como uma cobra, mal mexendo o capim alto que atravessava.

Craig contou até cinquenta e seguiu-o. Foi dar à beira de uma colina, cheia de pedras calcárias que serviam de proteção, e onde crescia uma vegetação rasteira e ressequida e capim de elefante.

Estavam logo abaixo da crista, e o declive abaixo deles, muito íngreme, dava para o vale cheio de florestas. O Sol já estava alto e Craig deliciava-se ao seu calor.

Tungata estava a seu lado e fez para Craig o sinal "Cubra meu flanco esquerdo".

Craig mexeu-se cuidadosamente, arrastando-se pelos cotovelos, assumindo a posição.

"Examine tudo!" Tungata fez-lhe o sinal e ficaram por dez minutos examinando o terreno abaixo, acima e dos lados, cobrindo cada centímetro, cada moita, rocha e pedaço do campo.

"Tudo limpo", sinalizou Craig, e Tungata começou a rastejar em direção à dobra da colina, com Craig atrás, dando-lhe cobertura.

Um pássaro trombeta, branco e preto com um enorme bico amarelo e recurvo, voou até eles. Tinha um vôo caracteristicamente errático e pousou numa moita pequena logo adiante, abaixo de Tungata, soltando quase em seguida um grito agudo de alarme e alçou vôo.

"Perigo!" Tungata fez o sinal de urgência e ambos ficaram imóveis.

Craig olhava para a massa de rocha e vegetação de onde o pássaro fugira, tentando descobrir a causa.

Algo moveu-se ligeiramente e tão perto, que ouviu o ruído de um fósforo sendo riscado. Uma golfada de fumaça evolou-se de lá e sentiu o aroma de tabaco. Distinguiu em seguida a forma de um capacete de aço coberto por uma rede camuflada, que se moveu enquanto o homem dava outra tragada.

Distinguia-o nitidamente agora. O homem, de uniforme camuflado, estava deitado ao lado de uma metralhadora leve, armada sobre um tripé e disfarçada com vegetação.

"Quantos?", sinalizou Tungata e Craig viu o outro, recostado perto de uma pequena árvore espinhenta. As sombras dos galhos sobre a cabeça mesclavam-se com as listras tigradas do uniforme. Era um homem grandalhão, de cabeça descoberta e divisas de sargento, com uma metralhadora Uzi ao lado.

Craig preparava-se para sinalizar "Dois", quando o fumante estendeu o maço de cigarros e um terceiro homem, deitado à sombra, que pegou-o, tirando um e atirando-o em seguida a um quarto, que se mostrou pela primeira vez.

"Quatro!", sinalizou Craig.

Era um ninho de metralhadora, situado na dobra da colina para cobrir os declives abaixo. Peter Fungabera previra a existência de outras saídas da caverna principal. As colinas deviam estar cheias de emboscadas semelhantes. Fora por pura sorte que haviam saído acima daquele posto. O artilheiro apontava a arma para baixo e os companheiros aproveitavam para relaxar daqueles dias aborrecidos de uma vigília infrutífera.

"Assuma posição de ataque", sinalizou Tungata.

"Objeção." Craig levantou o polegar. "Quatro?"

"Vá", assinalou Tungata, e reforçou a ordem com o punho fechado: "É imperativo!"

Craig sentiu a descarga de adrenalina e a boca seca, e agarrou a pedra com a mão direita.

Estavam tão próximos que pôde ver a ponta umedecida do cigarro quando o atirador o tirou da boca. O ninho estava cheio de detritos: pontas de cigarro, embalagens vazias, latas de comida e as armas estavam descuidadamente postas de lado. O homem deitado de costas cobrira os olhos com o braço e o cigarro pendia-lhe dos lábios. O sargento cortava um pedaço de madeira com a baioneta. O terceiro desabotoara o uniforme e procurava com minúcia algum inseto no peito cabeludo. Só o homem da metralhadora estava atento.

Tungata colocou-se em posição ao lado de Craig.

"Pronto?" Levantou a mão e olhou-o.

"Afirmativo", Craig respondeu-lhe.

Baixou a mão num gesto brusco para iniciar a ação.

Craig atirou-se pela beira, atingindo o homem da baioneta na cabeça e viu que batera com muita violência. Sentiu os ossos partirem-se dentro do crânio.

O sargento tombou sem um som e Craig ouviu no mesmo instante um som quando Tungata atacou o artilheiro, mas nem olhou para trás. Agarrou a metralhadora Uzi e apontou-a.

O soldado que procurava insetos levantou os olhos e ficou de queixo caído quando Craig enfiou-lhe o cano no rosto, dominando-o e obrigando-o a ficar em silêncio.

Tungata pegara a baioneta do sargento e inclinava-se sobre o soldado deitado, atirando-lhe bruscamente com um joelho no peito, forçando-lhe o ar dos pulmões e pressionando a ponta da arma contra a pele macia atrás do ouvido. Ainda de costas, o rosto do homem inchou e contorcia-se com o esforço que fazia para respirar.

- Se alguém gritar - sussurrou Tungata -, corto-lhe os testículos e os enfio garganta abaixo.

Tudo levara menos de cinco segundos.

Tungata ajoelhou-se junto ao sargento, tentando tomar-lhe a pulsação no pescoço. Depois de alguns minutos, balançou a cabeça e começou a despir-lhe o uniforme. Enfiou-se nele com dificuldade: era muito pequeno para seu tamanho. - Pegue o uniforme do atirador - ordenou, enquanto pegava com Craig a Uzi e mantinha os outros doís sob sua mira.

O pescoço do homem estava quebrado. Tungata dera-lhe um golpe brusco na garganta e a tira do capacete pressionara-o sob o queixo.

O uniforme fedia a gordura rançosa e cigarro, mas coube bem em Craig. O capacete era grande demais, mas ajudava a disfarçar o cabelo comprido e liso.

Tungata encarou os prisioneiros.

- Arrastem os corpos destes cães shona com vocês.

Craig e Tungata vigiavam enquanto os soldados arrastavam pelos pés os dois cadáveres despidos até a entrada da caverna e os atiravam pelo buraco escuro.

As moças ficaram chocadas e silenciosas.

- Tirem a roupa! - ordenou Tungata. Quando estavam só de cuecas, ordenou a Craig: - Amarre-os!

Craig fez-lhes sinal para deitarem de barriga para baixo e amarrou-os pelos pulsos e tornozelos, deixando-os completamente impotentes. Tírou-lhes as meias, enfiando-as nas bocas e amordaçando-os.

Enquanto trabalhava, Tungata ajudava as moças a vestirem os uniformes, grandes demais, mas que conseguiram ajeitar, enrolando as mangas e as pernas e prendendo-os na cintura.

- Escureça o rosto, Pêndula - ordenou Tungata. - E também as mãos, e cubra o cabelo. - Tirou uma boina do bolso do uniforme que usava e atirou-a para ela. - Vamos. - Segurou a sacola de diamantes e começou a escalar o declive, de volta ao ninho de metralhadora. Agarrou um saco de campanha, esvazíou-o e guardou nele a sacola. Amarrou-o com cuidado e colocou-o às costas.

Craig examinava os outros equipamentos. Dera duas granadas a Tungata e metera duas nos bolsos. Descobriu uma pistola Tokarev que entregou a Sarah e deu a Uzi para Sally-Anne. Ficou com um AK 47 e cinco pentes extras. Tungata ficou com a outra Uzi. Craig pegou também um cantil de água e abriu um pacote de chocolate, que mastigaram às pressas enquanto se preparavam para partir e cujo sabor encheu-lhe a boca de água.

- Vou na frente - disse Tungata de boca cheia. - Vamos tentar descer até o vale, protegendo-nos entre as árvores.

Mantiveram-se na dobra da colina, descendo o barranco. Jogaram com a sorte, torcendo para que o outro declive aberto à direita estivesse sem vigilância.

Estavam chegando logo acima das copas das árvores quando ouviram o helicóptero que vinha em direção ao vale. Estava ainda além da curva da colina, mas aproximava-se rapidamente.

- Atirem-se no chão! - ordenou Craig, e empurrou Sally- Anne. Ficaram estendidos, cobrindo os rostos, mas o ruído das hélices alterou-se para um ponto logo atrás do barranco rochoso.

- Está aterrissando - disse Sally-Anne, e o motor calou-se. Levantou a cabeça para espiar. - Escutem! Cortou o motor!

No silêncio que se seguiu, ouviram vozes gritando ordens.

- Pupho, venha até aqui - ordenou Tungata. - E vocês duas, esperem.

Arrastaram-se até a curva da colina e levantaram as cabeças para espiar sobre a crista.

A meio quilómetro abaixo, no vale, numa pequena clareira à beira da floresta, havia uma barraca de lona armada na extremidade mais distante. O helicóptero estava no centro da clareira e o piloto descia da cabine. Havia soldados com o uniforme da Terceira Brigada sob as árvores perto da barraca onde sentavam-se três ou quatro homens.

- Quartel-general avançado - murmurou Craig.

- Este é o vale por onde entramos, a caverna principal está bem abaixo de nós.

- É isso mesmo. - Craig não reconhecera o terreno daquela posição.

- Parece que estão se preparando para partir. - Tungata apontou para a mata. Uma patrulha de soldados em uniformes camuflados descia para o vale em fila indiana.

- Provavelmente esperaram umas vinte e quatro horas depois de dinamitarem a grande galeria e devem achar que estamos mortos e enterrados.

- Quantos são? - perguntou Tungata.

- Estou vendo uns vinte, pelo menos. - E Craig apertou os olhos. - Sem contar com os da barraca. Deve haver outros pelas colinas, naturalmente.

Tungata afastou-se da beira e fez sinal a Sally-Anne que se arrastou até lá.

- Que tipo de helicóptero é aquele?

- É um Super Frelon - respondeu sem hesitação.

- Sabe voar nisso?

- Posso fazer qualquer coisa voar.

- Pelo amor de Deus, Sally-Anne, pare de contar vantagem - disse Craig, irritado. - Já voou num desses?

- Não, mas tenho quinhentas horas de vôo em helicópteros.

- Quanto tempo levaria para levantar vôo quando já estivesse dentro da cabine?

Ela hesitou.

- Uns dois ou três minutos.

- Tempo demais. - Craig balançou a cabeça.

- E se conseguíssemos afastar os guardas da clareira enquanto Pêndula liga o motor? - perguntou Tungata.

- Pode ser que dê certo - concordou Craig.

- Então é isso. - Tungata levantou-se rapidamente. - Vou subir até a cabeceira do vale e você leva as moças pelo barranco até a clareira. Entendeu?

Craig fez que sim.

- Daqui a quarenta e cinco minutos - e checou o relógio de pulso -, exatamente às nove e trinta, vou começar a atirar granadas e a disparar com AK 47. Isso deve atrair a maioria dos shona para fora da clareira. Assim que começar o tiroteio, vocês correm até o helicóptero. Quando ouvi-lo levantar vôo, vou correr até aquele barranco aberto.

- Vamos. - Craig passou-lhe o fuzil e os pentes de reserva. - Fico com a Uzi e uma granada.

- Leve os diamantes, também. - Tungata passou-lhe o saco e Craig pendurou-o ao ombro.

- Até mais tarde. - Deu uma palmada de despedida no ombro de Tungata.

Craig guiou as duas moças colina abaixo, por entre a vegetação e as pedras. Foi um alívio alcançar as árvores e descobrir uma ravina que acompanhava a borda da clareira. Desciam com cautela e Craig espiava pela beira a cada cem metros.

- Já chegamos o mais perto possível do helicóptero - sussurrou, e as moças deitaram-se no solo. Craig livrou-se do pesado saco e deu uma outra olhadela sobre a borda.

O helicóptero estava a uns cento e cinquenta passos, com o piloto agachado ao lado. O Super Frelon era uma máquina pesada, e estava pintado de verde. Craig tornou a estender-se junto a Sally-Anne.

- Qual a autonomia de vôo? - perguntou em um sussurro.

- Não estou bem certa - sussurrou de volta Sally-Anne. - Com os tanques cheios, creio que uns mil quilómetros.

- Reze para que os tanques estejam cheios. - Craig olhou para o relógio. - Faltam dez minutos. - Tirou do bolso outro tablete de chocolate e deu-o às duas.

O suor de Sally-Anne deixara marcas claras no rosto e Craig esfregou-o com terra.

- Dois minutos - verificou Craig, e olhou sobre a borda. O piloto levantou-se, espreguiçando-se, e subiu para a cabine.

- Algo está acontecendo - murmurou Craig.

O helicóptero ocultava parte da barraca do outro lado da clareira, mas pôde perceber que havia atividades por lá também.

Um pequeno grupo deixou a tenda. Os guardas agitavam-se e batiam continência e de repente as hélices do helicóptero começaram a girar, e o motor principal do aparelho foi ligado.

Um par de oficiais afastou-se do grupo em frente à barraca e começou a dirigir-se à clareira, direto para o helicóptero.

- Estamos em apuros - Craig disse sombrio. - Estão indo embora. - E estremeceu de repente. - Aquele é Peter Fungabera!

Fungabera estava com a boina vermelha de distintivo prateado, uma fileira de condecorações no peito, o bastão debaixo do braço e um lenço ao pescoço. Estava tão enfronhado numa discussão com um homem branco alto e velho que Craig nunca vira antes.

O branco usava uma simples jaqueta caqui de safari. A cabeça estava descoberta e completamente raspada, e a pele tinha uma tonalidade pálida desagradável. Carregava uma pasta de couro preta presa ao pulso por uma corrente e ouvia as palavras veementes de Fungabera enquanto encaminhavam-se para o helicóptero.

A meio caminho, pararam e discutiram animadamente. O branco gesticulava com veemência e estava tão perto que Craig viu-lhe os olhos gélidos que mais pareciam os de uma estátua. A pele estava coberta por antigas cicatrizes mas era a figura dominante entre os dois. Suas maneiras eram bruscas e quase desdenhosas como se Fungabera não lhe merecesse atenção. Esse, por sua vez, parecia o sobrevivente de uma catástrofe, confuso e com voz plangente. Não era absolutamente o homem que Craig conhecera.

O branco fez um gesto final e recomeçou a andar em direção ao aparelho.

Naquele momento, ouviu-se a explosão de uma granada e os dois homens na clareira voltaram-se para olhar em direção ao vale. Ouviu-se a seguir o disparo de um AK 47 vindo da mesma direção e ordens começaram a ser gritadas em torno da barraca. Os soldados correram até a borda da clareira, em direção ao vale.

Houve outros disparos de arma automática e a atenção de todos se concentrava naquela direção. Craig suspendeu apressadamente o saco.

- Vamos! Vocês sabem o que fazer! - Os três subiram pela ravina e foram para a clareira.

- Não se apressem - preveniu-as Craig, baixinho. Mantiveram-se agrupados movendo-se com rapidez e determinação, dirigindo-se para onde estavam Fungabera e o companheiro.

Craig tirou a granada do bolso, arrancando o pino com os dentes, e segurou-a com a mão esquerda. Levava a Uzi na direita, carregada e apontada. Estavam apenas a cinco passos quando Fungabera os avistou e a expressão atónita no rosto, ao reconhecer Craig, era quase cómica.

- Posso cortá-lo em dois a esta distância - preveniu-o, mirando a Uzi em sua barriga. - Esta granada está preparada. Basta deixá-la cair e vamos todos para o inferno. - Teve que gritar para ser escutado por causa do ruído do helicóptero.

O homem branco virou-se para encará-lo e os pálidos olhos gelados tinham uma expressão de selvageria.

- Tratem do piloto - ordenou Craig às duas que correram em direção à cabine. - E agora, vocês dois caminhem até o helicóptero.

Craig seguia-os três passos atrás. Antes de alcançarem o aparelho, o piloto apareceu com as mãos levantadas, e Sarah apontava-lhe a pistola Tokarev.

- Saia! - ordenou Craig, com evidente alívio, e o piloto pulou no chão.

- Diga-lhes que o general Fungabera é um refém e que qualquer tentativa de ataque vai colocar sua vida em risco. Compreendeu?

- Sim - disse o piloto.

- Vá até a barraca, e lentamente. Não corra e não grite.

O piloto afastou-se, aliviado, mas, assim que se viu fora de alcance, desatou a correr.

- Subam! - E Craig fez um gesto com a Uzi, mas Fungabera olhou-o ameaçadoramente. - Não faça isso - Craig deu um passo atrás. Fungabera tinha o ar desesperado de quem não tinha mais nada a perder.

- Mexa-se! E suba esta escada! - Fungabera atacou-o de repente, correndo direto para o cano da Uzi, mas Craig estava preparado: levantou-a e desferiu-lhe um golpe na cabeça que o jogou de joelhos.

Ao vê-lo caído, girou a Uzi, mirando o homem branco.

- Ajude-o a subir a escada - ordenou e, apesar de atrapalhado pela pasta negra acorrentada ao pulso, a ameaça da arma era persuasiva o bastante para fazer com que o homem branco se curvasse sobre Fungabera e o ajudasse a levantar-se. Ainda tonto pela pancada, Fungabera cambaleava resmungando.

- Não tem mais importância, está tudo acabado.

- Cale-se, seu tolo - sibilou o branco.

- Faça-o entrar no helicóptero. - Craig enfiou o cano da Uzi nas costas do branco e os dois começaram a subir as escadas.

- Aponte a arma para eles, Sarah - disse Craig, e olhou para trás. O piloto estava quase chegando à borda da clareira. - Tratem de se apressar - e o branco empurrou Fungabera pela porta adentro, subindo rapidamente, com a pasta ainda acorrentada ao pulso.

Craig pulou para dentro da cabine.

- Lá para trás - ordenou aos prisioneiros. - E amarrem os cintos! - Disse a Sarah, em seguida: - Diga a Pêndula para ir em frente.

O helicóptero levantou vôo pairando acima da clareira e Craig atirou a granada pela porta aberta, que explodiu na floresta abaixo. Esperava aumentar a confusão que reinava por lá.

Postou-se por trás de Fungabera, com a Uzi em seu pescoço, e tirou-lhe com a mão livre a pistola Tokarev do coldre. Meteu-a no bolso, e foi tratar das correias de segurança da porta. Ordenou a Sarah que mantivesse a arma apontada para os prisioneiros e inclinou-se para espiar.

Viu Tungata, que já estava fora do abrigo das árvores, logo abaixo do declive rochoso, brandindo o AK 47.

- Espere! Vou descer para apanhá-lo - berrou Sally-Anne pelo microfone acima da cabeça de Craig.

O grande helicóptero desceu em direção a Tungata, e Sally-Anne estabilizou-o e ficou pairando.

A ventania das hélices fustigava o capim em torno dele. Atirou o AK 47 fora e olhou para Craig. O aparelho desceu mais uns poucos metros, Craig inclinou-se e estendeu-lhe o braço. Tungata agarrou-o e foi içado para bordo.

- Vamos embora! - berrou ao microfone. E o avanço foi tão rápido que os joelhos de Craig dobraram-se.

A um pouco mais de mil pés, Sally-Anne estabilizou o aparelho e tomou rumo oeste.

Tungata virou-se para olhar as figuras jogadas nos bancos e lançou um olhar feroz a Fungabera que se encolheu, arrasado.

- Onde os achou, Pupho? - perguntou em voz rouca.

- São um presentinho para você, Sam. - Craig entregou-lhe a Uzi. - Está carregada e pronta para disparar. Pode tomar conta dessas duas belezinhas?

- Será um enorme prazer. - E Tungata apontou-a para os dois homens.

- Vou verificar como Pêndula está se saindo. - Já começara a dar as costas quando percebeu um movimento furtivo do homem branco e virou-se rapidamente. O prisioneiro, aproveitando a dis-tração, conseguira abrir o cadeado de aço no pulso e estava tentando atirar a pasta pela porta aberta.

Numa ação reflexa, Craig atirou-se para o lado, como um jogador de basquete interceptando uma jogada, e conseguiu derrubá-la no assoalho, impedindo que voasse porta afora.

- Isso deve conter coisas muito interessantes - observou calmamente ao levantar-se. - Vigie-o bem, Sam, é cheio de truques.

Levando a pasta, Craig foi até a frente do aparelho, sentou-se na cadeira do co-piloto, ao lado de Sally-Anne, e prendeu o saco de diamantes firmemente ao lado do assento.

- Então, sabe mesmo fazer essa coisa voar, hein?

Ela sorriu-lhe, com os dentes muito brancos contrastando com a pele suja.

- Estou voltando para o depósito salino onde deixamos o Land-Rover.

- Bem pensado... Como está o combustível?

- Temos um tanque cheio e três quartos do outro, é mais do que o suficiente.

Craig colocou a pasta no colo e verificou a fechadura que era de segredo.

- Quanto falta para a fronteira? - perguntou.

- Estamos fazendo cento e setenta nós, faltam menos de duas horas... melhor do que ir a pé, não?

- Pode crer! - Craig devolveu-lhe o sorriso.

Arrancou a fechadura com o canivete e abriu a pasta. Na parte de cima, continha duas camisas limpas, algumas meias, uma garrafa de vodca pela metade, uma carteira ordinária com quatro passaportes, um finlandês, um sueco, um alemão oriental e outro russo, e passagem aéreas da Aeroflot, a companhia soviética.

- Que cavalheiro viajado! - exclamou Craig, destapando a vodca e tomando um gole. - Brrr! É autêntica! - Passou a garrafa a Sally-Anne e levantou as camisas. Embaixo delas havia três pastas, com títulos em alfabeto cirílico, usado pelos russos, e os selos da foice e do martelo.

- Mas é russo, meu Deus! O homem é um bolchevique! Abriu a primeira, e seu interesse cresceu.

- Está datilografada em inglês! - Leu a primeira página e ficou cada vez mais absorvido na papelada. Nem mesmo levantou a cabeça quando Sally-Anne perguntou;

- O que diz aí?

Examinou a primeira pasta e, depois, as outras duas. Vinte e cinco minutos mais tarde, olhou com uma expressão atónita e distante pelo vidro.

- Mal posso acreditar. - E balançou a cabeça. - Estavam tão seguros de si mesmos que os datilografaram em inglês para uso de Peter Fungabera. Não houve nenhuma tentativa de mascarar-se. Nem se deram ao trabalho de usar nomes em código.

- Do que se trata? - Sally-Anne olhou-o.

- É de estontear. - Tomou mais um gole da vodca e levantou-se. - Sam tem que tomar conhecimento disso!

Voltou à parte de trás e dirigiu-se apressadamente para Tungata.

Sarah e ele estavam sentados à frente dos dois reféns. Tungata usara os cintos de segurança de reserva para amarrá-los pelos tornozelos e pulsos. Peter Fungabera parecia um pouco recuperado e ele e Tungata trocavam olhares ferozes, discutindo com a acrimônia e a exaltação de inimigos mortais.

- Pare com isso! - Craig jogou-se na cadeira vizinha a Tungata. - Dê-me essa Uzi. - E agora, leia isso aqui! - Colocou a pasta no colo de Tungata.

- Prazer em conhecê-lo, coronel Bukharin - disse Craig em tom amável. - Deve estar satisfeito em não estar passando o inverno em Moscou, suponho? - Apontou-lhe a Uzi diretamente para a barriga.

- Sou um membro do corpo diplomático da União Sovié...

- Sim, coronel, li seu cartão de visitas. Por outro lado, sou um fugitivo desesperado capaz de lhe infligir sérios danos se não se calar. - Dirigiu-se, então, a Fungabera. - Espero que esteja cuidando bem de King's Lynn, sem se esquecer de limpar os pés antes de entrar e tudo mais.

- Escapou uma vez, sr. Mellow - disse Fungabera com voz macia. - Não costumo cometer o mesmo erro duas vezes.

Apesar da arma nas mãos e do fato de que Fungabera estava atado como um bode a ser oferecido em sacrifício, sentiu um arrepio de medo e não conseguiu sustentar aquele olhar cheio de ódio, voltando-se para Tungata que examinava rapidamente as três pastas e, à medida que lia, sua expressão passava do espanto para o ultraje.

- Sabe o que é isso, Pupho?

- São planos para um golpe de Estado e uma revolução, escritos em inglês, obviamente para Peter Fungabera.

- Está tudo planejado... tudo. Olhe isso - as listas de pessoas a serem executadas... dão todos os nomes... e os que vão colaborar. Já têm inclusive os comunicados a serem feitos pelo rádio e pela televisão no dia do golpe!

- Dê uma olhada na página vinte e cinco - sugeriu Craig.

Tungata procurou-a.

- É a meu respeito... - leu em voz alta. - "Deve ser mandado para uma clínica psiquiátrica na Europa para uma lavagem cerebral, e transformado num traidor sem vontade própria para liderar o povo matabele em escravidão perpétua..."

- Sim, Sam, você era a peça principal de toda a operação. Quando escapou de Fungabera na caverna, e ele dinamitou a grande galeria, teve que admitir a derrota. Olhe só para ele.

Mas Tungata não estava mais escutando. Atirou a pasta de volta a Craig e inclinou-se, fixando Fungabera com olhos injetados e cheios de ódio.

- Você ia vender esta terra e condenar o povo a uma nova escravidão nas mãos de um imperialismo perto do qual o regime de Smith parece benigno e altruístico em comparação? Condenaria sua própria tribo, a minha e as outras... que loucura... - A raiva estava deixando Tungata incoerente. - Um cão raivoso, enlouquecido pelo poder.

Soltou um rugido de angústia, ódio e ultraje. De repente atirou-se em cima de Fungabera e agarrou-o pelas cordas que o prendiam, desprendendo o cinto de segurança e arrancando o gigantesco shona da cadeira. Com a força de um búfalo ferido, carregou-o até a porta aberta da fuselagem.

- Cão danado! - vociferou e, antes que Craig pudesse fazer algo, empurrara Fungabera para fora, deixando-o pendurado no ar.

Craig jogou a Uzi para Sarah e correu até lá. Tungata caíra de joelhos, devido ao peso; agarrava-se com uma das mãos no batente e, com a outra, ainda sustinha Fungabera pela corda passada no peito.

Fungabera balançava no espaço, impotente, com as mãos amarradas e os olhos fixos nos de Tungata. A setecentos metros abaixo, jaziam as bravias colinas africanas, com as cristas rochosas a descoberto.

- Espere, Sam! - Craig berrou, tentando fazer-se ouvir acima do ruído ensurdecedor do motor.

- Morra, traidor assassino... - berrou Tungata.

Craig nunca vira antes um terror tão profundo como o estampado nos olhos negros de Fungabera. A boca estava aberta e o vento soprava-lhe saliva pelo rosto, mas não lhe saía um som da garganta.

- Espere, Sam, não o mate - gritou Craig. - É o único que pode inocentá-lo e a nós também. Se o matar, nunca mais poderá viver no Zimbabué...

Tungata virou a cabeça para olhá-lo.

- A única chance de provarmos nossa inocência?

O brilho vermelho do ódio começou a desaparecer dos olhos, mas os músculos ainda estavam saltados com o esforço de manter Fungabera pendurado no forte deslocamento de ar.

- Ajude-me! - disse com voz rouca, e Craig pegou um cinto de segurança, prendendo-o na cintura, deitou-se ao chão, passou os tornozelos pela base de um assento e estendeu a mão para agarrar a corda de náilon. Com o esforço combinado, conseguiram trazer Fungabera de volta ao helicóptero, de pernas tão bambas que não conseguia ficar de pé.

Tungata atirou-o de volta para a cabine fazendo-o bater com a cabeça na parte de trás, onde caiu, agarrado aos joelhos em posição fetal, esmagado pela derrota e pela capitulação, gemendo baixinho e cobrindo o rosto.

Craig voltou à cabine do piloto meio cambaleante e deixou-se cair no assento lateral.

- Que diabos está acontecendo? - perguntou Sally-Anne.

- Nada de mais. Apenas consegui impedir que Sam matasse Fungabera.

- E por que se deu ao trabalho de fazer isso? - Sally-Anne levantou a voz. - Adoraria botar as mãos naquele porco.

- Querida, será que consegue uma ligação pelo rádio para a embaixada americana em Harare?

Ela refletiu por instantes.

- Não desse aparelho.

- Dê-lhes o registro do Cessna, aposto que ainda não anunciaram o desaparecimento.

- Vou ter de fazer um contato com Joanesburgo, é a única estação com potência bastante para isso.

- Não me interessa como... Dê um jeito de entrar em contato com Morgan Oxford.

O rádio de Joanesburgo respondeu prontamente ao chamado de Sally-Anne e aceitou sem problemas o sinal de chamada.

- Qual é sua posição, Kilo Yankee Alpha?

- Botsuana do Norte - Sally-Anne antecipou em uma hora o tempo de vôo. - Em rota de Francistown para Maun.

- Qual é o número com que deseja falar em Harare?

- Chamada pessoal para o adido cultural Morgan Oxford, na Embaixada dos Estados Unidos. Desculpe, mas não sei o número.

- Aguarde um momento. - E, em menos de um minuto, Morgan Oxford respondeu pelo microfone cheio de estática.

- Aqui é Oxford. Quem está falando?

Sally-Anne passou o microfone para Craig que apertou o botão de transmissão.

- Morgan, é Craig, Craig Mellow.

- Mas que merda! - A voz de Morgan ficou estridente. - Onde diabos você anda? Isso aqui virou um inferno. Onde está Sally-Anne?

- Morgan, ouça. O que vou dizer é da maior importância. Que tal interrogar um legítimo coronel da inteligência russa, e examinar os planos de agressão russa para a desestabilização do sul do continente africano?

Por muitos segundos, ouvia-se apenas o ruído da estática até que Morgan disse:

- Aguarde dez segundos!

A espera pareceu muito maior até ouvirem novamente a voz.

- Não diga mais nada, dê-me apenas um ponto de encontro.

- Anote as coordenadas... - Craig transmitiu-lhe as anotações escritas por Sally-Anne. - Há um campo de pouso de emergência lá. Vou fazer um sinal com fogueiras. Em quanto tempo pode chegar?

- Espere um pouco! - Daquela vez foi mais rápido. - Amanhã ao amanhecer.

- Entendido. Estaremos à espera. Câmbio e desligo. Tudo arrumado - disse a Sally-Anne, entregando-lhe o microfone.

- Vamos cruzar a fronteira em quarenta e três minutos - ela respondeu. - Essa lama toda fica muito bem em você. Estou começando a achar até que é um melhoramento.

- E você, belezinha, merecia ser capa da Vogue! Ela tirou o cabelo do rosto e mostrou-lhe a língua.

Atravessaram a fronteira do Zimbabué com a Botsuana do Norte e dezessete minutos depois avistaram o Land-Rover alugado exatamente no mesmo lugar onde o haviam deixado à beira do grande depósito salino.

- Meu Deus, os amigos de Sarah ainda estão lá... isso é que é fidelidade. - Craig avistara as duas figuras minúsculas ao lado do carro. - É melhor avisá-los senão vão pensar que é um aparelho do governo e começar a atirar.

Sarah falou através do megafone especial do helicóptero aos dois matabele para tranquilizá-los, e Craig viu-os baixar os fuzis enquanto o Super Frelon aterrissava. Viu também os sorrisos beatíficos dos dois jovens.

Jonas matara um gamo de manhã e foram banqueteados com caça assada e bolos de milho à noite. Mais tarde, tiraram a sorte para os turnos de vigia aos prisioneiros.

O amanhecer era ainda impreciso quando ouviram o ronco de um avião que se aproximava, e Craig foi até o depósito no Land-Rover para acender os sinais. Um enorme avião cargueiro Lockheed surgiu, vindo do Sul, com o emblema da Força Aérea Americana, e Sally-Anne reconheceu-o.

- É o aparelho da NASA sediado em Joanesburgo para o programa de transporte.

- Estão realmente nos levando a sério - murmurou Craig, enquanto o avião aterrissava.

- Observe como tem uma capacidade incrível para aterrissar e levantar vôo em um espaço pequeno - disse-lhe Sally-Anne.

O gigantesco aparelho percorreu apenas a mesma distância que havia sido necessária ao Cessna. O nariz do avião abriu-se como um bico de pelicano e cinco homens desceram a rampa, liderados por Morgan Oxford.

- Parecem cinco sardinhas saindo da lata - gracejou Craig, enquanto se encaminhavam para eles. Vestiam todos ternos tropicais, camisas sociais brancas, gravatas e tinham um físico atlético.

- Sally-Anne, Craig - cumprimentou Morgan Oxford, trocando rápidos apertos de mão, e virando-se para saudar Tungata. - Claro que o conheço, senhor ministro, esses são meus colegas. - Não os apresentou e foi direto ao assunto. - São essas as pessoas?

Os dois jovens matabele, com armas na mão, trouxeram os prisioneiros.

- Deus do céu! - exclamou Morgan Oxford. - É o general Fungabera... Craig, ficou louco?

- Leia isto - e Craig estendeu-lhe a pasta. - E, depois, faça algum comentário.

- Esperem aqui, por favor.

Jonas e Aaron conduziram os dois prisioneiros em direção ao avião e os americanos se aproximaram para recebê-los.

Peter Fungabera ainda estava com os pulsos amarrados. Parecia ter encolhido de estatura e já não era mais uma figura impressionante e afável. O manto da derrota pesava-lhe sobre os ombros. A pele estava acinzentada e não levantou os olhos para Tungata Zebiwe.

Foi Tungata quem o agarrou pelo queixo, obrigando-o a levantar a cabeça para encará-lo. Fitou-lhe os olhos por longo tempo e empurrou-o com desprezo, fazendo-o cambalear e teria caído se um dos americanos não o segurasse.

- No fundo de quase todo tirano e fanfarrão, existe um covarde - disse Tungata com voz grave. - Fez bem ao me impedir de matá-lo, Pupho, uma queda de avião é boa demais para um tipo como esse. Vai enfrentar agora um destino mais justo. Levem-no para longe de meus olhos, ele me dá náuseas.

Peter Fungabera e o russo foram levados para dentro do avião, e Craig e os outros ficaram à espera. Foi uma longa demora. Sentaram-se à sombra do Land-Rover e mal conversaram, ficando silenciosos vez por outra quando ouviam a estática do rádio no Lockheed.

- Estão falando com Washington via satélite - arriscou Craig. Já eram mais de dez horas quando Morgan e um dos colegas desceram a rampa.

- Este é o coronel Smith - disse-lhes, e o tom era suficiente para esclarecê-los de que não deviam levar o nome a sério. - Examinamos todos os itens e concluímos, pelo menos por enquanto, que são genuínos.

- É muita generosidade de sua parte - ironizou Craig.

- Ministro Tungata Zebiwe, ficaríamos muito gratos se nos cedesse um pouco de seu precioso tempo. Há pessoas em Washington que estão ansiosas para conversar com o senhor. Asseguro-lhe que será para nosso benefício mútuo.

- Gostaria que essa senhora me acompanhasse - respondeu Tungata, indicando Sarah.

- Sim, naturalmente. - Morgan voltou-se para Craig e Sally- Anne. - No caso de vocês, não é um convite, é uma ordem... virão conosco também.

- E o que vai acontecer com o helicóptero e o Land-Rover? - perguntou Craig.

- Não se preocupe com eles. Serão devolvidos aos legítimos donos.

Três semanas mais tarde, no edifício das Nações Unidas, foi entregue uma série de documentos ao chefe da delegação do Zimbabué, contendo trechos extraídos das pastas e transcrições do interrogatório do general Fungabera por pessoas não-nomeadas. Os documentos foram imediatamente enviados a Harare e, como resultado direto, o governo de Zimbabué fez um pedido urgente para a repatriação do general. Dois inspetores da Divisão Especial da polícia de Zimbabué voaram até Nova York para escoltá-lo de volta.

Quando o vôo da Pam Am aterrissou em Harare, o general Fungabera desceu a escada da primeira classe algemado a um dos policiais. Havia uma caminhonete fechada aguardando na pista e nenhuma cobertura pela imprensa.

Foi levado diretamente para a prisão central de Harare, onde morreu dezesseis dias mais tarde em uma das celas de interrogatório. Quando o corpo foi discretamente retirado pela porta traseira, o rosto estava irreconhecível.

Naquele mesmo dia, pouco depois da meia-noite, uma Mercedes preta ministerial saiu da estrada a toda velocidade, num trecho deserto fora da cidade e explodiu em chamas. Dentro, havia um único passageiro. O corpo carbonizado do general Fungabera foi identificado pela ficha dentária e, cinco dias mais tarde, enterrado com honras de Estado no cemitério dos patriotas da revolta Chimurenga, "Terra dos Heróis", nas colinas que circundavam Harare.

Às dez horas da manhã do Dia de Natal, o coronel Bukharin foi deixado por uma escolta da polícia militar americana na casa de guarda da fronteira de Berlim Oriental e cruzou a pé as poucas centenas de metros que o separavam do outro lado.

Usava um sobretudo militar americano por cima das roupas de safari e uma boina de marinheiro cobrindo a cabeça raspada.

A meio caminho, cruzou com um homem de meia-idade metido em um terno barato que vinha da direção oposta. Parecia ter sido um homem corpulento, pois a pele do rosto pendia-lhe em pregas e tinha o tom acinzentado de um longo cativeiro.

Entreolharam-se sem curiosidade.

Uma vida por outra, pensou Bukharin, e sentiu-se subitamente muito cansado. Caminhava finalmente com o andar de um velho sobre o asfalto gelado.

Havia um sedan preto à sua espera além da fronteira, com dois homens sentados no banco traseiro, e um deles saltou quando Bukharin aproximou-se. Vestia uma comprida capa de chuva e um chapéu de abas largas no estilo favorito da KGB.

- Bukharin? - perguntou em tom neutro, mas o olhar era frio e perscrutador.

Diante do aceno de Bukharin, saudou-o com um cumprimento seco de cabeça, fazendo-o sentar no banco de trás, e entrou em seguida batendo a porta. O interior do carro estava muito quente e recendia a alho, a vodca consumida na véspera e a meias sujas.

O carro deu partida e Bukharin recostou-se, fechando os olhos. Ia ser ruim, pensou, talvez pior do que imaginara.

Henry Pickering era o anfitrião do almoço no salão particular do Banco Mundial que dava para o Central Park.

Sarah e Sally-Anne não se viam há cinco meses e trocaram abraços afetuosos, retirando-se para um canto do salão, onde tentaram contar-se as novidades o mais rápido possível, ignorando o resto dos presentes.

Tungata e Craig comportaram-se de maneira mais moderada.

- Sinto-me tão culpado, Pupho... Cinco meses. É muito tempo.

- Sei como esteve ocupado - desculpou-o Craig. - E eu também andei numa roda-viva. A última vez que o vi foi em Washington...

- Quase um mês de conversações com o Departamento de Estado Americano, e, depois, aqui em Nova York, com o embaixador de Zimbabué e o Banco Mundial. Há tanta coisa para contar que nem sei por onde começo.

- Muito bem, então - sugeriu Henry Pickering -, conte-lhe primeiro sobre a dispensa que conseguiu do governo de Zimbabué.

- É um bom começo - concordou Tungata. - Antes de mais nada, minha acusação e sentença por caça e tráfico ilegais foram anuladas...

- Mas Sam, isso era o mínimo que podiam fazer...

- Isso é só o começo. - Tungata sorriu e pegou-o pelo braço. - A confissão que Fungabera obrigou-o a assinar foi anulada também por ter sido obtida sob coação. A ordem que o declarava inimigo do Estado e do povo foi revogada, e a venda das ações da Rholands a Peter Fungabera, declarada nula. King's Lynn e Águas do Zambeze revertem para você.

Craig olhava-o, emudecido, enquanto continuava:

- O primeiro-ministro aceitou o fato de que todo e qualquer ato de violência que cometemos foi em defesa própria, desde a morte dos soldados da Terceira Brigada que o perseguiam na fronteira da Botsuana ao roubo do helicóptero Super Frelon, concedendo-nos um perdão irrestrito...

Craig limitou-se a abanar a cabeça.

- A Terceira Brigada retirou-se de Matabeleland, foi desativada e integrada no exército regular, acabaram com a matança de meu povo e permitiram que observadores independentes fossem para as áreas tribais matabele para "controlar a paz".

- São as melhores notícias possíveis, Sam.

- Ainda há mais... muito mais. - retrucou Tungata. - Devolveram minha cidadania e passaporte de Zimbabué. Posso voltar para casa, com a promessa de que não haverá restrições às minhas atividades políticas. O governo aceita levar em consideração um referendo para instituir uma forma de autonomia federal para o povo matabele, em troca do quê deverei usar toda minha influência para convencer os dissidentes em armas a abandonar a selva e entregar as armas numa anistia geral.

- E tudo pelo que você tem trabalhado... Parabéns, Sam, de todo coração.

- Mas só consegui com "sua ajuda. - Tungata virou-se para Henry Pickering. - Posso contar-lhe sobre o Fogo de Lobengula?

- Espere - disse Henry Pickering. - Vamos começar o almoço primeiro. O salão de jantar era apainelado em carvalho claro, uma moldura perfeita para as cinco telas a óleo de Remington sobre o velho Oeste que decoravam três das paredes. A quarta era uma enorme janela envidraçada, dando para a cidade e para o Central Park, com as cortinas abertas.

À cabeceira, Henry sorriu para Craig.

- Achei melhor passar de todos os limites - e mostrou-lhe o rótulo do vinho.

- Puxa! Um 61!

- Bem, não é todo dia que se tem o prazer de receber o atual autor best-seller número um...

- É mesmo, não é maravilhoso? - interviu Sally-Anne. - Craig foi o primeiro da lista do New York Times logo na primeira semana de lançamento!

- E sobre o negócio com a televisão? - perguntou Tungata. - Ainda não está assinado - objetou Craig.

- Mas a informação que tenho é de que logo o será - disse Henry, enquanto enchia as taças. - Senhoras e senhores, um brinde: ao último livro de Craig Mellow e que fique por muito tempo no topo!

Beberam, alegres e festivos, e Craig protestou, com o copo intocado:

- Ei! Façam um brinde do qual eu possa participar também.

- Eis aí, então! - Henry levantou novamente o copo. - Ao Fogo de Lobengula! Agora, pode contar-lhe.

- Se essas duas senhoras pararem de tagarelar por um momento...

- Isso não é justo! - protestou Sally-Anne. - Nunca tagarelamos, só conversamos a sério.

Tungata sorriu-lhe ao continuar:

- Como sabem, Henry providenciou para que os diamantes de Lobengula ficassem em lugar seguro e fossem avaliados. O pessoal da Harry Winston's os examinou e chegou a uma estimativa...

- Quanto? - exclamou Sally-Anne.

- Como sabem, o mercado de diamantes está em séria depressão no momento... pedras que eram vendidas por setenta mil dólares há dois anos atrás estão cotadas apenas em vinte mil...

- Vamos, Sam, não nos mate de curiosidade!

- Está bem, a Winston's avaliou a coleção em seiscentos milhões de dólares.

Todos começaram a falar ao mesmo tempo e Tungata levou algum tempo para recuperar a audiência.

- Como concordamos desde o início, os diamantes serão colocados num fundo e vou pedir a Craig que seja um dos curadores.

- Aceito.

- Entretanto, quatorze deles já foram vendidos. Autorizei a transação e a venda rendeu cinco milhões de dólares. Toda essa quantia foi entregue ao Banco Mundial em pagamento total do empréstimo feito por Craig. - Tungata tirou um envelope do bolso e estendeu-o. - Aqui está o recibo, Pupho, sua parte no Fogo de Lobengula. Está completamente livre de qualquer dívida. King's Lynn e Águas do Zambeze são seus.

Craig girava, atónito, o envelope entre os dedos, olhando para Tungata, que inclinou-se para ele, de fisionomia séria.

- Em compensação, há uma coisa que gostaria de lhe pedir.

- Qualquer coisa - respondeu Craig.

- Prometa que vai voltar para a África. Precisamos de homens como você para afastar essa nova era sombria que ameaça a terra que amamos.

Craig estendeu a mão sobre a mesa e pegou a de Sally-Anne.

- Diga-lhe você, querida.

- Sim, Sam, vamos voltar para casa, para junto de vocês.

Sally-Anne e Craig subiam as colinas de King's Lynn no velho Land-Rover. O crespúsculo transformara as pastagens em um manto dourado e as árvores ao alto teciam uma renda delicada contra o azul sereno do céu africano de verão.

Os empregados de King's Lynn os aguardavam à sombra dos jacarandás, no gramado. Quando Craig abraçou Shadrach, a manga vazia do velho batia-lhe sobre o peito magro.

- Não se preocupe, Nkosi, posso trabalhar muito melhor com um braço só do que esses garotinhos com os dois.

- Vou lhe propor uma troca - sugeriu Craig em voz alta, para que todos ouvissem. - Empresto-lhe um braço se me emprestar uma perna. - Shadrach riu até lhe escorrerem lágrimas dos olhos e a nova e mais recente esposa teve que levá-lo embora.

Joseph esperava-os na grande varanda, longe das pessoas comuns, resplandecente em uma kanza branca como neve e o grande chapéu de cozinheiro na cabeça.

- Eu a saúdo, Nkosikazi - disse a Sally-Anne com solenidade quando a viu subir os degraus, mas não podia ocultar o brilho de satisfação nos olhos.

- Eu também o saúdo, Joseph. E gostaria de lhe dizer que decidi convidar duzentas pessoas para o casamento - respondeu-lhe em sindebele fluente, fazendo com que Joseph botasse as mãos na boca de espanto; era a primeira vez que o via perder a pose.

- Nossa! - exclamou, e virou-se para os subordinados. - Temos agora uma grande senhora em Kingi Lingi que entende toda essa tagarelice de vocês - disse com severidade. - Portanto, ai daquele que mentir, enganar ou roubar!

Craig e Sally-Anne ficaram de mãos dadas na varanda, assistindo ao povo de King's Lynn entoar o cântico de boas-vindas ao viajante depois de uma longa e perigosa jornada e, ao terminar, ele lhe disse:

- Seja bem-vinda, minha querida.

Enquanto as mulheres dançavam e cantavam com os filhos amarrados às costas, com as cabecinhas negras saltitando ritmadamente, e os homens soltavam gritos de alegria, Craig beijou-a na boca.

 

 

                                                                  Wilbur Smith

 

 

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