Capítulo 16
Famosas últimas palavras, pensou Lucius. Vou cuidar de mim mesmo. Ave, até que vale. Fio, você é um idiota. Em que havia se metido seu físico grego? Ele observou a garota.
—Estou preocupado por Fio, mas também por ti. Pode voltar para casa sem problemas?
—Bem, - disse a garota, - não quero te dizer nada que não queira ouvir, mas perto daqui há um lugar onde posso passar a noite. É uma loja que tenho que abrir pela manhã, então... — Ela mostrou um molho de chaves em seu cinturão. - Está só a alguns passos.
Ele assentiu.
—Bem. Afastarei Castor e Pólux. Não acredito que a tenham visto a cara, então não poderão contar nada a minha irmã. Mas espere até que nos tenhamos perdido de vista, e logo proteja.
Ela correu de volta a rua. Ao sair de entre as bancas pôde ouvir o criado conversando com... Já tinha esquecido seus nomes.
—Eu não gosto dele. - Dizia Castor ou Pólux. - Se lhe acontecer algo, a ama...
—O que? — Perguntou o criado. - Acham que é um bebê que necessita de panos? Ela é uma donzela de dama. Sua ama quer transar! Transar! Enviou-lhes mensagem para ir quando seu marido não está em casa. — Ele sorriu ante o próprio humor soez.
—Há dinheiro para você, se sabe nos dizer quem é a dama. – Disse um de dos malditos escravos.
Lucius se deteve na escuridão.
—Quanto dinheiro? — Perguntou o criado, interessado.
—Muito. - Foi à resposta.
—Quero ver antes.
—Você não sabe nada. — Havia um estudado desprezo no comentário.
O criado não mordeu a isca e voltou a rir.
Lucius saiu do beco, pondo fim à conversa.
—Se movam. – Disse a Castor e Pólux. - Eu gostaria de chegar em casa este ano. —Os escravos vadiaram. - Se Movam! — Ele gritou. - E levantem essas tochas. Quero ver meu caminho sem ter que pisar nos pés de vocês.
O criado ficou para trás. Lucius se encontrou sozinho, pensando furiosamente. O pior de tudo era que os libertos, maser cidadãos romanos, possuiam poucos direitos e havia uma dúzia de lugares onde Fio podia ter sido levado, incluindo o terrível Tullianum, o cárcere e lugar de execuções de Roma. Ele sentiu crescer sua raiva enquanto caminhava, lutando com a frustração que tinha sentido perante Antonio semanas atrás. A sensação de que, de alguma forma, era impotente para tomar as rédeas de sua própria vida.
Aquilo queria dizer que não gostaria que ninguém lhe traçasse o futuro. Nem sua própria família, nem César ou Antonio. Limitava-se a dar voltas sem rumo porque não sabia o que queria. De algum jeito, o ferimento o havia mudado. Não podia dizer o que era que havia provocado as mudanças em atitude e crenças que estava experimentando. Em outros tempos, o destino de alguém de tipo tão baixo como Fio não lhe teria preocupado absolutamente. Mas agora...
Sabia que Fio era um amigo. Aproximara-se do homem. Não sabia quando nem como tinha acontecido. Nas noites em que Fio lia filosofia e ele jazia entre ardores e calafrios de febre, com os olhos cravados no teto, observando as sombras criadas pelo vacilante abajur de Fio, pensando em sua própria morte. Lutando para prestar atenção nos arrevesados argumentos de algum grego morto há muito tempo atrás, que tentava demonstrar a imortalidade da alma e sem acreditar uma palavra, mas sabendo, muito mais perto de comprovar a validez das propostas do que estava o filósofo quando redigiu o texto...
Sentia o que havia através das reconfortantes ilusões das que se rodeava muita gente para manter a raia a escuridão da mente. Uma escuridão muito mais profunda que a da simples noite. Um vazio no qual o espírito não dúvida que os deuses são só bonitas imagens criadas por artistas e nós os humanos não somos a não ser uma espécie melhorada de animal a que poderes distantes e talvez cegos permitam um pequeno passeio sob o sol. E logo, nada.
Quanto a Fio, venderia alegremente todo o Senado para recuperar seu amigo.
Porque era Fio, independentemente de sua classe, um amigo. E fossem quais fossem os mistérios do universo, ninguém conseguia mais que alguns poucos, ao longo de sua vida.
Voltou para trás até encontrar com o criado.
—Quer um pouco de dinheiro?
—Um idioma que todos entendem. Sim. O que quer que eu faça?
—Quando chegar a minha casa vou desfazer-me desses dois.
—Boa idéia. Vendem-se barato.
—Sabia que estava no beco.
O criado soltou um risinho.
—Quanto?
—Cem áureos.
—Assassinato! Quem?
—É um homem que sabe distinguir o essencial das coisas. Quando chegar a minha casa, eu entrarei com esses dois. Dê uma volta até encontrar um estábulo. Deixarei-te passar e selaremos dois cavalos. Sabe um pouco de cavalos?
—Cavalguei para César. - Grunhiu o criado.
—Um cavaleiro aliado. Bem, como se chama? — Ele soava mais germano, que da Gália. Lucius assobiou entredentes brandamente para não alertar seus escravos. - Me diga como posso chamá-lo.
—Orelha cortada .
— Orelha cortada ? — Perguntou Lucius. Pelo que tinha visto, as orelhas do homem estavam em perfeito estado.
—Sim! Cortar orelhas e pendurar de pescoço. Todos me chamavam Orelha cortada no exército. Cortei muitas e pendurei no pescoço. Sem problemas. Orelha cortada .
—Muito bem. Orelha cortada . Bonito nome.
Orelha cortada sorriu.
—Não bonito, mas você não paga cem moedas de ouro como bonito. Quer bonito? Procure mulheres. Quer problema arrumado? Procura Orelha cortada .
—É livre?
—Claro. Ambórux diz Orelha cortada , leva o romano para a sua casa e o proteja. Trabalho para Ambórux, mas o pagamento é ruim. Você paga melhor. Por ti, matarei.
—Não esta noite, espero. Mas se quando perguntar a alguém e não der a resposta que quero, pode matar.
Orelha cortada grunhiu como resposta. Haviam chegado à porta da casa de Lucius. O porteiro abriu e Castor entrou primeiro na casa, e Pólux o seguiu. Ou talvez fosse ao reverso, Lucius seguia sem estar seguro.
Tentaram lhe seguir até sua casa, mas Lucius explicou que não tinha precisado de ajuda para se despir em vinte e dois anos e eles não gostariam de fazer o trabalho impróprio para homens. Então eles foram para seus aposentos.
Lucius teve uma breve visão do que estavam acostumados a fazer aqueles escravos para entreter sua irmã. As imagens não eram luxuriosas, mas repulsivas. Decidiu que escolheria seus próprios serventes pessoais no futuro.
Antes de ir para sua casa, ela passou pela de Fio. A porta estava entreaberta e a casa não só estava vazia, mas também nua por completo. Mesmo o jergón tinha desaparecido. Lucius saiu, apoiando as costas na parede e fechou os olhos enquanto crispava os punhos. Sentiu-se impotente, furioso e doente, tudo de uma vez.
Então entrou em sua casa. Sua espada estava em um canto. Ele a desembainhou, esperando que não estivesse oxidada nem embotada. Não, seguia tão afiada como o dia em que a usou pela última vez.
Recordava que estava de ressaca naquele dia. Não havia muito que fazer em uma guarnição. Ele e alguns outros oficiais se retiraram tarde. Outros se foram putear por aí, mas ele não os acompanhara. Tinha um forte impulso sexual, mas a última rameira com a qual havia estado cheirava de tal forma ao abrir suas pernas a quinze ou vinte clientes antes que para ele, que quando completou o ato, quase desprovido de prazer. Lucius se deu conta de que aquele mau cheiro era sua forma de vingança contra os homens que a usavam e logo a desprezavam. Olhou para seus frios e escuros olhos, parecidos com os de um gato selvagm que se alimentavam dos refugos deixados pelos soldados fora da paliçada. Mas seu olhar era pior que os dos gatos, porque eles, pelo menos eram indiferentes, enquanto que um frio ódio brilhava nos olhos da rameira, lhe desejando uma eternidade de sofrimento que não bastaria para compensá-la por um só momento de toda sua vida. Lucius tinha saído aos tropeços da casa e vomitado no ato.
Nunca havia voltado a visitar nenhuma outra. Não estava seguro de quão isolada teria sido sua experiência, mas muitos outros jovens pareciam sentir o mesmo. Então bebiam e conversavam e logo bebiam mais, e se levantavam como ele, com a boca pastosa, uma terrível dor de cabeça e o estômago revolto. Para não mencionar amaldiçoando a perspectiva de forragear pelas granjas dos desafortunados aldeãos sobre cujos pescoços tinha baixado a bota do conquistador.
Mas aquela noite estava contente, pois havia limpado a espada e... Mas não podia ter feito, porque aquele homem havia aparecido à suas costas, quase lhe matando. Então alguém devia ter chegado, limpado a lâmina do sangue e engordurado a espada. Para que essa noite ele pudesse matar alguém com ela.
Rebuscou entre a pilha de trastes militares no chão até encontrar um manto escuro com capuz. Tirou a toga decorada com a franja púrpura senatorial, jogou-a a um canto com um chute e foi em busca de Orelha cortada.
Era mais perigosa do que haviam pensado. Os dois homens tinham escrito na cara. Seu comandante jazia morto no chão. O mercenário que sujeitava Mir afastou-se rapidamente. Eram seis ao chegar. Agora só restavam dois e não estavam muito seguros de como tinha acontecido.
Carregaram contra Dryas. Ela retrocedeu, tentando separá-los, pelo menos, fazer com que se atrapalhassem mutuamente. Mas eram dois esgrimistas experientes e era só questão de tempo que acabassem com ela.
O primeiro golpeou com força. Dryas aparou o golpe, desviando a lâmina e deixando que o próprio peso do soldado lhe fizesse passar ao lado. De repente uma labareda de dor em seu braço e soube que um deles tinha conseguido feri-la.
A onda de adrenalina que a tinha sustentado a princípio estava desvanecendo e a dor era cada vez maior. Aparou outro golpe, mas a segunda espada tocou sua carne, e ela se encontrou retrocedendo cada vez mais depressa ante seus dois adversários. Outro golpe e outro. Ela começava a tropeçar, mas até restaram um oudois truques.
Deixou-se cair sobre um joelho e golpeou para cima o mais próximo dos mercenários, por baixo da couraça. O soldado saltou para trás como ela havia previsto, chocand-se com seu companheiro. Por um instante se chocaram mutuamente, mas Dryas não pôde aproveitar a confusão. Escorregou nesse preciso momento e teve que se sustentar com a mão livre para não cair.
Ao mesmo tempo, Mir se equilibrou sobre um dos soldados, encarapitando em suas costas e com os braços em torno de seu pescoço. O homem se retorceu, gritando de raiva e golpeando os braços do ancião com a borda de seu escudo.
Dryas conseguiu evitar uma perigosa estocada, abrindo um bom corte no braço direito de seu inimigo, mas pagou um preço por isso. O soldado conseguiu golpeá-la com seu escudo.
Em circunstâncias normais, ela tria se movido com o golpe, saltando ilesa. Mas estava com as costelas rotas e o metal do escudo a acertou no local. A dor foi cega e Dryas cambaleou.
Uma corrente surgiu de alguma parte, enroscando-se em torno do pescoço do soldado. Um momento depois, o punho de Maeniel se estrelou contra sua cabeça.
O soldado restante havia conseguido se liberar da presa de Mir quando viu o enorme indivíduo em ajuda a Dryas. Deixou cair sua arma e fugiu.
Ninguém o perseguiu. Maeniel e outros foram ao estábulo e se ajoelharam junto à garota. Ao lobo parecia morta, mas ao fixar o olhar ele notou que ainda respirava. Estava com uma mão sobre a terrível ferida e a outra no chão de terra.
A garota suspirou.
—Diga a Dryas que meu espírito é livre. – Ela disse com um sorriso. E não houve nada mais.
A ninguém ocorreu voltar a acorrentá-lo. De fato, ele teve que ajudar os outros dois a sair da casa. Dois corpos jaziam na entrada. Maeniel olhou com respeito para uma pálida e cambaleante, Dryas. Ele afastou os cadáveres com um chute e logo recolheu Dryas para levá-la sem cerimônias para a cama.
Mir começou a preparar o fogo.
—Têm que lhes secar os pés ou congelarão – Ele disse. Deteve-se por um momento antes de avivar as chamas. - Sabe? Nunca a vi sorrir antes. Mas você sim, certo?
Maeniel fez uma pausa, o resplendor das chamas estava sobre sua pele.
—Não. Tampouco me havia sorrido. Salvou-me a vida. O soldado que entrou no estábulo teria me matado, mas ela ficou no meio.
—Esteve contente em fazê-lo - Disse Mir.
—Ninguém deseja morrer.
—Às vezes sim. - Insistiu o ancião, removendo as brasas. Logo se levantou para aproximar de um arca em um canto. Tirou um manto de seda negra com folhas outonais bordadas em vermelho, marrom, verde e amarelo e debruado de pele marrom tão escura que era quase negra. Ele o entregou a Maeniel. - Leve isto e cubra-a. Esta noite faremos a pira para ela. Esta seda chegou de muito longe, mas os bordados foram feitos por sua mãe e suas irmãs, e a pele foi contribuída por parentes do norte. É tudo o que resta da nobreza e a beleza que trouxeram para as montanhas há muito tempo. Que esteja com ele quando se reunir com eles.
—Não! - Disse Dryas. - Temos que sair daqui. Vieram em busca de algo e não conseguiram. Podem estar seguros de que o que escapou dirá a seus companheiros no acampamento romano e atacarão novamente.
Maeniel se voltou e a olhou com expressão insondável.
Dryas sentiu o frio metal do colar sobre sua pele.
—Não. – Disse Maeniel. - Não o farão. A nevada desta noite era só a vanguarda da que cairá hoje. Eu sei. Senti-a antes de dormir e sigo sentindo a tormenta. Meus ouvidos estão estalando. Não sei por que, mas sempre o fazem antes de uma tempestade de neve. Não! Logo não haverá nada que se mova na montanha nem na guarnição e nós tampouco o faremos.
Mir tirou alguns objetos grossos do arca e levou até Dryas. Logo começou a esquentar água para lhe lavar os ferimentos.
Maeniel levou o manto ao estábulo. Elevou o corpo da moça e o colocou sobre a seda, envolvendo-a cuidadosamente. Logo a deixou sobre duas das mantas de lã sobre as quais havia dormindo e a cobriu com outras duas. Fez uma pausa. O rosto da garota não estava coberto pelas mantas e ainda era visível Através do fino tecido. A seda suavizava suas facções ocultando as cicatrizes e por um momento, Maeniel viu a mulher que teria sido se os assassinos que acabaram com sua família não tivessem invadido seu lar.
Não atribuía o que tinha levado a jovem à loucura e nem ao medo. Ela tinha dado sua vida por ele, para lhe salvar. Misturava-a em sua mente como os numerosos filhotinhos aos que tinha cuidado e alimentado. Sim, ele pensou, por ti me sentarei junto a suas fogueiras.
Maeniel não temia à morte; nenhum lobo a temia. Nem os cães a temem, então aquela saída sempre estaria aberta para ele. Mas o que mantém vivas todas as criaturas, incluindo lobos e humanos é a sempre mutante natureza da experiência. Não temia morrer, mas odiaria deixar de estar vivo. E para seguir vivendo, teria que se unir a criaturas estranhas para ele, aprender seus costumes e suas regras. Mas ela tinha desejado que ele recebesse aquele dom.
Voltou a olhar seu rosto, formoso, calado e sereno. Aceitaria, e tentaria se converter em um deles. Mas aquilo era duro e deixava seu coração fundo na dor. Recordava ter se compadecido de Imona, presa na cabana durante a noite enquanto ele e os seus, impulsionados pelo apetite, a amizade e inclusive o amor, corriam em liberdade sob a lua e as estrelas. Seguros no conhecimento de que, ao nascer, tinham recebido todos quanto necessitariam para sobreviver, pois do contrário o grande juiz de toda vida, a necessidade, não lhes teria permitido tomar seu primeiro fôlego.
Mas aquelas incompletas criaturas, tão dependentes umas das outras para a satisfação de todas e cada uma de suas necessidades, nasciam a um milhar de torturas: medo da enfermidade, da fome, da desaprovação de seus iguais, necessidade de roupa contra o frio e de amparo contra os instintos predadores de sua própria espécie... Cada dia era uma luta e a noite, entravam em uma caverna de medo, em que cada dia e cada hora olhavam a morte, sabendo que algum dia ela lhes chegaria ou sairia de suas mãos.
Maeniel pegou a tocha e começou a cortar as madeiras armazenadas no espaço entre o telhado e a parede. O céu, que estivera espaçoso ao amanhecer, já estava nublando e começavam a cair pequenos flocos.
Mir entrou logo. Levava uma chaleira com cereal cozido, um pouco de pão fresco e umas tiras de carne da noite anterior. Deu-o todo a Maeniel e foi até a jovem, ficando ante ela. Então ele viu pela primeira vez, o mercenário ao que Maeniel havia matado. O homem jazia feito um farrapo sobre o chão. A maior parte de seu crânio e seu cérebro estavam pulverizada pela parede. Mir, que havia sido um guerreiro em sua juventude, respirou forte.
Maeniel comeu o pão e olhou os cereais que tinha na outra mão.
—Use a colher - Disse Mir.
Maeniel seguia confuso. Mir se aproximou, pegou a colher e lhe mostrou como pegar o cereal. Maeniel provou, mostrando uma careta.
—Não vale à pena - Disse.
—Come-o — Insistiu Mir. - Te esquentará. — Logo, ele voltou para fundo do estábulo e ficou olhando pela porta. A nevada era cada vez mais intensa, com flocos maiores. Ouviu a colher arranhando o fundo da chaleira. - Me pergunto quem seriam. –Ele comentou, jogando outro olhar ao cadáver do chão.
Maeniel recomeçou sua tarefa com os tocos de madeira.
—Romanos. – Ele aventurou. O suor não demorou a aflorar em sua pele, e as gotas se congelavam sobre seu rosto. Aquilo era uma nova experiência para ele. Os canídeos não transpiravam.
—Não. - Disse Mir. - Nem as armas nem as armaduras são as corretas. Estes homens não vinham do acampamento do vale. Não, acredito que vieram por causa de Dryas. Antes que o matasse, seu líder disse que queria levá-la para Roma ilesa.
Maeniel deixou de partir as toras.
—O que é Roma, e por que ia querer levá-la para lá?
—Porque Dryas é incomum. É o que chamam de Amazona, uma mulher que luta.
—Ela luta bem – Disse Maeniel enquanto empilhava a lenha. - E também outras coisas, — ele acrescentou ominosamente.
—As mulheres como ela são incomuns, inclusive entre nós. De certo modo, pode ser que fosse uma pena que prescindíssemos delas há alguns séculos. Eram boas para assuntos mais importantes que ganhar ou perder algumas batalhas. Uma mulher como ela lidou com Mario e outra poderia ter lidado com César. Estava certa a respeito de você. Eu queria te matar e ela se negou. Dryas e minha esposa acreditavam que era possível te ensinar a ser...
—Humano. — Completou Maeniel. - Bom, sua admirável Dryas conseguiu que alguma forma... Não sei o que fez, mas já não posso chamar o lobo. Não me deixou opção: espero que seja um bom professor, velho, porque tenho muitas coisas a aprender.
Mir contemplou o cadáver do soldado.
—Entre elas, aprender a controlar essa tua força.
—Fiz-lhe o que ele pretendia me fazer. Ele a matou e não pode haver desculpa para isso. Teria bastado afastá-la, mas ela tentou me dar uma arma, então ele a matou.
—Não tem desculpas. - Disse Mir. - Muitos soldados são assim, ou talvez ser soldados é o que lhes faz dessa forma. Recorrem à força quando outros métodos poderiam resolver o problema de forma mais simples. Fossem quais fossem suas maldades, ele pagou por elas.
—Não o bastante! —Maeniel havia tornado a partir lenhos com furiosa energia. - Quantos necessita?
—Com o que já fez, há mais que suficiente. Venha para dentro. Temos que preparar algum calçado para você. A temperatura está baixando e seus pés congelarão. Devemos nos preparar para fugir assim que o tempo melhorar. Embora não acredito que esses homens fossem romanos, não poderiam operar aqui sem a permissão da guarnição do vale. E quando puderem viajar novamente, não resta dúvida que virão aqui em busca de Dryas. Temos que ir. Os três.
—Ao povo do outro lado do Anel? — Perguntou Maeniel.
—O que é o que sabe de Cynewolf e sua fortaleza?
—O suficiente! – Respondeu Maeniel. Logo enterrou a tocha a umas polegadas no toco de carvalho no qual estava acostumado a sentar Dryas.
Mir considerou que provavelmente seu protegido havia feito todas as perguntas necessárias. Ou pelo menos todas as que queria respondidas. Falar sobre Imona podia ser desafortunado e imprudente e Mir não era nenhuma das duas coisas. Assim recolheu os utensílios da comida e guiou Maeniel para casa.
Lucius abriu a porta do estábulo para Orelha cortada e selaram dois cavalos
—Vamos agora? — Ele perguntou.
—Não. Primeiro faremos umas perguntas e eu te pagarei. Vamos! – Disse Lucius. Orelha cortada o seguiu.
O dinheiro estava em um cofre unido por uma cadeia a uma barra de ferro disposta no salão, perto do átrio. A fechadura se abriu quando Lucius usou sua chave. Ele se perguntou se sua irmã saberia que ele a possuía. Nunca a usava. Seu pai havia lhe dado em seu décimo oitavo aniversário, antes que partisse para cumprir seu serviço militar, mas ele nunca se aventurou a abrir a caixa.
Sempre lhe tinham dado o que para ele era dinheiro mais que suficiente. Seu cavalo, sua armadura e suas roupas eram pagos com recursos familiares e dois velhos criados da família o acompanhavam. A terceira criada, Alia, tinha sido recrutada pelos criados libertos de seu pai, porque eram basicamente preguiçosos e um tanto conscientes de sua posição: lavar roupa, esvaziar urinols e varrer chãos estava por abaixo deles. Quanto À cozinha, depois de uma semana de comer seus desastres culinários, Lucius tinha se rendido, pagando a Alia um extra para cozinhar
Aquilo deixava livres as duas velhas aporrinhações, para se preocupar com sua saúde seu moral, seus gastos, seus costumes com a bebida, com a comida... E assim sucessivamente. Depois de agüentar durante dois meses, conseguiu enviá-los de volta a Roma com ordens para o contador de seu pai aposentar os dois.
A partir de então, se arrumou com Alia. Uma vida inteira seguindo Às legiões tinha feito dela uma mulher compulsivamente pulcra e parcimoniosa. Dado que não havia nada em que gastar o dinheiro salvo mulheres. Lucius era muito escrupuloso. Bebia, mas não era um viciado, o jogo o deixava indiferente, sua atribuição era mais que suficiente para ele.
Em resumo, nunca tinha se preocupado com dinheiro antes, mas tinha visto seu pai guardando-o.
Mediu a caixa aberta.
—Sim. —Uma corrente de couro. Seu pai tinha sido sempre muito ordenado. Havia bolsas de couro, em filas e colunas de dez, com uma moeda em cada um. Dez filas de dez: cem áureos. Desatou a correia e o ouro brilhou mesmo na escassa luz.
—Ouro. - Disse Orelha cortada.
Lucius o entregou. A soma despareceu em algum lugar da roupa do homem.
—Mato agora?
—Só quando eu lhe ordenar.
—Bem!
Lucius pareceu notar entusiasmo na voz de Orelha cortada.
Houve um ruído de correntes e o velho porteiro saiu de seu dormitório junto à porta. Elevou o olhar e viu dois homens inclinados sobre a caixa. Se baixou, paralisado pelo medo e então Orelha cortada moveu seu abajur, iluminando o rosto de Lucius.
—Amo Lucius!
—Sim. Onde dorme Firminius?
O velho escravo assinalou com mão trêmula para um corredo, à direita dos aposentos de Fulvia.
Lucius assentiu.
—Volte a dormir.
Ele e Orelha cortada caminharam juntos pelo corredor até chegar a uma porta. Para surpresa de Lucius, uma luz saía sob ela e era possível ouvir vozes no interior.
—Quem era ela? — Era a voz do Firminius e soava exasperado. A resposta ficou amortecida pela porta, mas o tom era inequivocamente de desculpa.
—Castor e Pólux apresentando seu relatório, não há dúvida – Disse Lucius em voz baixa.
—Assim que os chama, não é? — Replicou Orelha cortada. – Eu lhe disse, que eles se vendem barato. Chamo ou chuto?
—Chute.
Orelha cortada abriu a porta com um chute.
A estadia estava relativamente iluminada e era mais feminina que qualquer casa de mulher em que Lucius estivesse estado. Havia uma clarabóia no teto com painéis de cristal. No momento, tudo o que mostrava eram estrelas.
A cama que ocupava o centro da casa era a peça principal. Madeira de limoeiro curvada em ambos os extremos e polida até brilhar, um triplo colchão de plumas e numerosas almofadas. Largas colgaduras de gaze desciam do teto até o estrado sobre o qual se encontrava a cama.
Duas enormes rosas douradas serviam como abajures, uma de cada lado da cama. As bases continham azeite e as mechas subiam por entre as pétalas que serviam como refletores para as chamas. Era enjoativo. Toda a casa era enjoativa. As paredes estavam pintadas para simular colgaduras de veludo cor branca, amarelo e ameixa, sustentadas por cisnes e cupidos.
Firminius lançou um breve grito quando a porta se abriu. Suas mãos se agitaram como pombas enquanto ele piscava em direção a Lucius.
Lucius entrou seguido por Orelha cortada . Assinalou À porta.
—Saiam. – Ele ordenou a Castor e Pólux. - Quero falar em particular com o secretário de minha irmã.
—Oh, não. Não se atrevam a me deixar sozinho com esse... Bêbado e com o horrível bárbaro que ele trouxe. Em que ralo encontraste esse monstro? Não só está mal vestido, como também é impressionantemente peludo...
—Firminius, – Disse Lucius, - eu gostaria de manter esta conversa dentro dos leitos civilizados, mas você está pondo a prova minha paciência. Vocês dois, saiam!
—Não, não o ouça. – Disse Firminius, segurando o braço de Castor. - Lucius, se não sair agora mesmo, farei que estes dois amigos meus joguem você e a seu peludo amigo para fora. Tenho uma constituição muito delicada e não trabalho bem se perturbarem meu sono. Não, por favor... Por favor, levem-nos daqui. A ama Fulvia ficará muito agradecida se varrerem este lixo para o pátio.
—Os dois são gladiadores treinados. – Disse Lucius a Orelha cortada
O homem sorriu.
Os dois supostos gladiadores avançaram.
Lucius levou a mão à espada.
Orelha cortada desembainhou a dele e Lucius pôde entender por que ele rira. Em um movimento muito rápido para ser seguido com o olhar, o criado estrelou sua espada contra a têmpora de Castor. O escravo ficou em pé por um momento, com aspecto aturdido, logo revirou os olhos e seus joelhos se dobraram. Caiu ao chão como um fardo e ficou muito quieto.
Orelha cortada riu novamente e apontou para Pólux sua espada.
—A ele, bonito descanso. A ti, o pescoço. Vamos.
Firminius gritou e Pólux fugiu rapidamente.
Lucius fechou a porta com um chute.
—Bloqueie-a.
Orelha cortada obedeceu, bloqueando a porta com uma arca de roupa.
Lucius se encontrou na ridícula situação de perseguir Firminius ao redor da cama, mas Orelha cortada pôs fim ao assunto passando uma rasteira em Firminius e sujeitando-o logo com o grande pé sobre o peito dele, quando tentou lse evantar.
Firminius gritou novamente e Orelha cortada resolveu o problema lhe dando uma boa bofetada. A cabeça de Firminius ricocheteou sobre o piso de mármore e seus olhos adquiriram uma qualidade nebulosa.
—Ouça, Firminius. Se voltar a gritar...
—Será uma orelha, — completou o galo.
—Muito bem – Disse Lucius com admiração. - Sim, Firminius. Este amigo meu se chama Orelha cortada. Sabe por quê?
Firminius sacudiu a cabeça, com os olhos muito abertos e tomados pelo pânico.
—Porque gosta das colecioná-las como lembranças. Ele trespassa-as em uma corrente e as pendura do pescoço. Vai começar uma nova coleção e se você gritar, ele contribuirá com uma das tuas... Ou pode ser com as duas.
Firminius assentiu.
—Agora vou fazer algumas pergunta e será melhor que me dê as respostas corretas, porque se não... Bem, eu coleciono olhos. - Disse, Lucius tirando sua adaga. - Os coloco em pequenas garrafas de cristal, conservo-os em vinho e os guardo sob a cama. Necessito de dois mais para completar a dezena e os teus podem servir. Agora, onde está Fio?
Lucius observou como as diferentes expressões passavam vertiginosamente pelo rosto do Firminius. Medo, não dele, mas provavelmente de Fulvia. Ira, porque certamente quereria ver Fio sofrer. Raiva, pela humilhante posição. Negação, porque estava seguro de que Lucius não lhe faria nada. O melhor seria demonstrar que não era assim. Lucius provou a ponta de sua adaga na bochecha de Firminius, fazendo com que aparecesse uma linha de sangue.
—Não... — Pediu Firminius.
Lucius riscou outra linha, dessa vez mais profundamente,
—Nãoooo... —Implorou Firminius.
—O silêncio não é uma resposta plausível, Firminius. - Grunhiu Lucius, colocando a ponta de sua adaga sobre a pupila esquerda de sua vítima.
Firminius veio abaixo e sua resposta desanimou mais a Lucius que o fato de ele soltá-la.
—Nada do que faça pode ajudá-lo. – Disse ele ressentidamente. - Já não mais.
Orelha cortada pegou Firminius pelas costas de sua camisola e jogou-o sobre a cama. Logo lhe deu alguns tapinhas em seu rosto enquanto perguntava a Lucius:
—Quer que eu faça já?
—Posso te dar uns minutos. Quanto tempo acha que demoraria?
Com um grito, Firminius escapou pelo outro lado da cama, se escondendo.
—Não te parece pouco masculino? — Perguntou Lucius.
—Não! É o mesmo que as mulheres, mas com o buraco mais fechado. Bom! Divertido!
Firminius gritou novamente, com toda a força de seus pulmões.
—Ao que parece, ele não acha tão divertido. – Disse Lucius.
Orelha cortada riu novamente.
Alguém golpeava a porta do dormitório, gritando. Os gritos de Firminius tinham despertado toda a casa.
—Má sorte. – Disse Lucius. - Teremos que ir agora, não que façam algo. Esta é minha casa e como o homem mais velho da família Basilia, eu mando aqui. Está claro, Firminius?
Os golpes na porta se interromperam.
—Amo Lucius? — Perguntou uma voz vacilante.
—Sim. – Responde uele. - Não me incomodem agora. Estou falando com Firminius!
Soou um gemido atrás da cama.
Orelha cortada afastou a arca da porta e o outro secretário de Fulvia apareceu. Era um liberto do pai de Lucius, seu mordomo. O homem cravou em Lucius um olhar de desaprovação.
—Meu senhor, eu não teria acreditado capaz de perturbar a paz desta casa a estas horas.
—Peço-te desculpas por ter te despertado, Aristo. – Respondeu Lucius. Logo, ele assinalou ao gêmeo que seguia dormindo no chão. - Não quero ver estes dois nunca mais.
—Bem. — Replicou Aristo. - Quer que sejam vendidos?
—Não. Parece que são leais a minha irmã e não a mim. Que passem a formar parte de seu serviço. Prepare uma câmara para Fio perto da minha.
O rosto de Aristo se manteve imutável.
—Sua irmã disse que ele não voltaria.
—Estava equivocada. – Disse Lucius. - Este é Orelha cortada, um galo. Veio da Gália e também necessitará de uma casa, porque se une ao serviço da casa desde este momento.
Lucius partiu, com o galo seguindo seus passos. Levaram os cavalos para a rua.
—Sozinho? —perguntou Orelha cortada.
—Sim – Respondeu Lucius, e se afastaram cavalgando na noite.
O lobo tinha pensado que viver entre os humanos seria difícil e talvez doloroso. Mas não era assim na fortaleza ded Cynewolf. Bem, era desagradável de vez em quando e com freqüência intrigante.
A insistência de Blaze em que se banhasse no gélido rio todas as manhãs era ambas as coisas. Lobos não se banhavam. Para que o fariam? Sua pelagem de lobo era impermeável, com o denso pelo sempre limpo e renovado. O pelo de fora caía no verão e voltava a crescer no outono. A língua dos lobos estava adaptada à limpeza.
Aquela estúpida compulsão de lavar a pele com água podia ser compreensível, mas no inverno e em água fria? Pelo que a ele concernia, aquele louco ritual não devia contar com sua presença e a colérica insistência de Blaze era igualmente estranha.
Quando a persuasão se revelou inútil com Maeniel, Blaze recorreu às ameaças. Mas tampouco deram resultado. Blaze provou com um látego, mas Maeniel o tirou no segundo golpe, deixando inequivocamente claro que não lhe agradava o tratamento.
Blaze se sentou em sua revolta, chupando o dedo que Maeniel havia torcido muito na refrega e o amaldiçoando, não em um, mas em três idiomas distintos.
Dryas e Mir chegaram atraídos pela animação.
Mir ficou do lado de Blaze, mas Dryas abriu as negociações, explicando a Maeniel por que era bom que se banhasse nas frias águas do rio. Teria que romper o gelo para chegar à água.
—Não acredito em nenhuma palavra. - Disse. Então descobriu, quando Blaze e Mir o atacaram verbalmente, que os humanos eram muito sensíveis em respeita as acusações que faltam à verdade, embora soubesse pelo que tinha visto, que eram culpados daquilo a grande parte do tempo.
Mas Dryas resolveu o assunto descendo até o rio, encontrando um lugar resguardado, tirando a roupa e mergulhando. Lavou-se brevemente e recolheu sua roupa em seguida.
Maeniel a seguiu, chegando à conclusão privada e pessoal, que os humanos gostavam de fazer coisas desagradáveis a si mesmos, com o propósito de demonstrar coisas impensáveis.
Ele disse a Dryas enquanto subiam pelo pendente, de volta a Oppidum. Tendo-a nua junto à margem do rio, ele tentou convencê-la outra vez a fugir com ele.
Dryas se negou. Ele não tinha esperado outra coisa, mas pensava que valia a pena tentar, de toda forma. Por desgraça, agora ela era uma mulher feita de neve para ele.
Eles se sentaram juntos sobre o toco junto à porta.
—Por favor, tenta se congraçar um pouco com Blaze. - Disse ela. - Ele sabe muitas coisas e pode te ensinar. Não posso te levar comigo à Roma agora. Nenhum dos dois sabe o suficiente. Tem que aprender a montar, a se vestir, a usar o dinheiro...
—Ainda quer que eu vá a Roma e mate a esse César? O que foi o que ele te fez?
—Matou meu filho. - Explicou ela.
—Como? — Perguntou Maeniel. - Quer que te ajude, mas essa viagem pode me custar à vida. Me dê suas razões.
—Já amanheceu. - Disse Dryas.
E era uma manhã fria. O rio não estava encerrado no gelo, mas as árvores das bordas estavam nuas e a geada cobria os restos de vegetação sobreviventes. Além das montanhas, o sol começava a iluminar as cúpulas. Embora uma estriada massa cinza dominasse o céu, havia espaço espaçoso para que o sol derramasse sua luz dourada sobre a desolada paisagem invernal.
—Parece uma obscenidade que saia o sol em um mundo no qual meu filho já não vive. - Disse Dryas. - Durante todo este tempo, tenho sentido a crueldade de sua perda.
—Os lobos não sentem assim. – Respondeu Maeniel. - Paga um preço muito alto por seus poderes. Quanto faz disso?
—Tal como contam o tempo os humanos, dez anos.
—Mais do que vivem muitos lobos. Se a dor também se estender tanto, e a alegria?
—Não sei o que dizer – Responde uela. - Não recordo nenhuma. Suponho que tive alguma há muito tempo atrás, quando ele vivia, mas não posso formar uma imagem em minha mente. É estranho, a princípio ele era um dever para mim. Só aprendi a lhe amar quando o levei ao peito. E quando cresceu se converteu em meu deleite. Mas como meu filho, ele estava destinado a ser candidato a majestade entre meu povo. Seu cabelo era vermelho, e quando sorria era capaz de me fundir o coração. —Algo quase parecido a um sorriso apareceu no rosto de Dryas, mas desvaneceu com a mesma rapidez. - Meu coração me reprovava delegar tal carga sobre alguém tão jovem, mas ele devia ser ensinado a governar desde o começo. E antes que sua mão tocasse meu seio, antes que seus lábios mamassem, ele devia tocar o aço. Sei que me levantei depois de dar a luz entre minhas mulheres e que, com o sangue correndo por minhas pernas, andei com ele nos braços até a parede onde se penduravam as armas. Coloquei suas mãos sobre o pomo de uma espada e levei seus lábios até o frio aço. Assim ele foi consagrado ao seu povo, ainda molhado com os fluidos de meu ventre. Mas cresceu feliz. Peralta como só podem ser as crianças ruivas, com formosos e faiscantes olhos verdes e um sorriso arrebatador. Eu tinha que ser severa e tentava ser. Talvez com muita freqüência... Houve algumas palavras duras, uma ou duas ocasiões nas quais ele foi para a cama sem jantar... Oh, mas eu o amava. Minhas mulheres o mimavam e lhe davam tudo o que pedia. E eu pensava, bem ainda o penso, que aconteceria o mesmo quando fosse um homem. Não é um bom traço em um rei, mas... Isso já não importa... Tentei não ser muito suscetível ao seu encanto. Ele devia aprender disciplina, disse-me. Então aprendeu rapidamente que não podia se dirigir a sua mãe... Pelo menos a maioria das vezes. Não tinha problemas com seus estudos. Possuía aptidões para muitas coisas. Mas deve se ensinar a todas as crianças a compartilhar, a não cevar com os fracos, e a respeitar a propriedade alheia. Ele aprendeu bem e quando cresceu, senti-me orgulhosa, mas triste ao ver quão popular era entre os de sua idade. Orgulhosa porque estava se convertendo em um líder entre os homens, mas triste porque cada passo que uma criança se afasta de sua mãe, puxa o amor que ela tem enraizado no coração. Mas eles devem ir. Assim são as coisas. Quando uma irmã minha que vivia entre os brigantios me pediu que o deixasse ficar um ano com ela, aceitei. Cavalguei até lá com ele e foi uma longa viajem. Mas ela e o cacique com o quem havia se casadp nos atenderam por todo o alto. Vi muitas coisas que eram só rumores nas montanhas.
Bebi vinho pela primeira vez, vi carros de guerra e arreios de ferro para os cavalos. Ouvi os bardos cantando longos e complicados contos de ricos reis e rainhas, sua coragem e ferocidade na guerra, sua vaidade e sua crueldade. Meu povo vive entre as nuvens, entre a chuva. Sempre faz frio ali. Nosso gado pasta na alta vegetação da montanha. Celebramos quatro assembléias ao ano. Nessas assembléias, os reis, rainhas e oradores da lei resolvem todas as disputas, ajustam matrimônios, compram, vendem e comercializam. Todos podem falar nas assembléias, homens, mulheres, pobres, ricos, sábios, néscios, livres e escravos. E se tiverem um desacordo com alguém, devemos solucioná-lo e fazer com que se cumpra nosso julgamento. Cantamos bonitas canções, mas são velhas. Sobre como nossos navios sulcaram pela primeira vez as frias águas do norte e navegaram além dos pilares do céu, levantando espuma no mar azul tal e como o fazem as aves marinhas de asas brancas. Cantamos a canção das estrelas e suas mudanças; escrevemos o conto do verão com suas flores e seus frutos, e a luta invernal pela pesca no frio mar cinza. As luzes do céu que adequadamente lidas, assinalam o caminho para os mais remotos limites da terra.
Nossos tecidos são também muito formosos, mas como acontecem com as canções, os motivos são muito velhos, tanto que chegamos a esquecer seu significado. Mas suas brilhantes cores ardem sobre as paredes marrons e o céu cinza. E neles podemos traçar os limites de nossas terras e por seis vezes mil anos, a linhagem de nossos reis e rainhas. Todos têm um significado: o pente, o peixe, o pássaro, o lobo e o dragão, todos tecidos com mais tinta que o arco íris. Cada tribo tem um. Cada família, cada homem ou mulher tem o seu próprio, que vive e morre com eles sem que ninguém mais o leve. Estão pendurados em meu salão, o meus entre os deles. Nunca voltarei. Nunca voltarei para ver a tapeçaria de meu filho com os acontecimentos que viveu. E tampouco verei o que representa minha vida. Outra mão o completará, cortará os fios e costurará a borda. Tão somente posso esperar que seja a de um amigo. Terminei a tapeçaria de meu filho antes de ir, e fechei sua borda. Que os que possam vê-lo leiam o que diz. Eu não sou capaz de descrevê-lo.
Dryas guardou silêncio.
O lobo contemplou o rio. O sol o convertia em um resplandecente atalho veteado de ouro. A geada sobre a vegetação e as árvores parecia à coroa enjoiada de uma princesa. Então a luz do sol desvaneceu como a ilusão da beleza e o rio se tornou cinza como uma espada polida entre o gélido resplendor de uma terra metálica e o céu.
—Deixou-lhe com seus amigos. - Disse.
—Sim, e então chegou César. Recebemos tardias notícias de problemas nas terras baixas e cavalgamos até lá imediatamente. Embora minha gente lutasse entre si de vez em quando, possuíamos muitos amigos, aliados e parentes de sangue entre as tribos sobre as quais cevava César. Como já lhe disse, somos bem versados na guerra, mas aquilo não era guerra. Era... Extermínio. Granjas com a colheita por recolher ficaram convertidas em cinzas e os camponeses em cadáveres deixados para os lobos. As vacas foram degoladas nos pastos e as ovelhas nos campos. Os cães e gatos foram espancados, pisoteados ou chutados até a morte. Onde o trigo pode arder, eles atearam fogo, e até as hortas foram arrasadas sob o sol de outono.
Oh, sim. Às vezes contra atacávamos. Pegaram algumas coisas... Ouro e prata, por exemplo, e meninos e garotas que não fossem nem muito jovens ou muito velhos para não entorpecer sua retirada. Mas todo o resto foi destruído ou assassinado. Ainda albergava esperanças quando chegamos ao lugar onde vivia minha irmã. Não havia crianças entre os mortos. Depois de nos assegurar, montamos novamente, sabendo que deviam ter enviado longe as crianças, tentando ocultá-los nos bosques. E haviam feito. Nós a encontramos a poucas milhas dali, à vista das árvores.
Dryas voltou a ficar calada por um momento.
—Sabe que o que chamamos amor pode ser pervertido em uma insuportável baixeza? — Ela perguntou por fim. - Um horror tão completo que a mente se separa dele para olhar ofegante o abismo da morte, encontrando uma espécie de esperança na contemplação de um nada eterno. Uma espécie de consolo no interminável sono sem sonhos ou medo de despertar alguma vez.
Por um momento, Maeniel não a compreendeu. Logo afastou sua mente daquela sinistra adivinhação.
—Os lobos não fazem essas coisas. Nem pensam assim. Não posso imaginar.
—As crianças estavam protegidas. - Explicou Dryas. - Os guardas lutaram, mas não eram rivais para os legionários. Antes que acabassem com eles, conseguiram matar alguns das crianças, os mais afortunados. Meu filho não estava entre eles.
—Conseguiram pegar os soldados que fizeram?
- Disseram-me que sim. Eu era um comandante eficaz, provada na batalha em minha juventude, mas o último que lembro é contemplar o rosto morto de meu filho. Logo, minhas lembranças são as de alguém que caminha na escuridão, sob um céu veteado de raios e vê o mundo ao seu redor por breves instantes, quando as nuvens são iluminadas de dentro pela fúria da tormenta. Alcançamo-los no plano. Preocupavam-nos as longas lanças que usavam. Sabem usá-las para incapacitar Aos infantes com muita rapidez. A haste fica cravada no escudo, torcendo ou rompendo de forma que o guerreiro já não pode usá-lo e deve tirá-lo e lutar sem ele. Um terço de minhas forças eram mulheres. Entre nós, muitas são peritas honderas e podem derrubar um pássaro no vôo. De fato, muitas tinham que fazê-lo. Quando os homens partiram para pescar os grandes peixes do oceano sem fundo ou estavam em longas viagens de comércio onde o sol de inverno não brilha e os deuses batalham no céu, ondeando seus tecidos de brilhantes cores sobre o fundo das incontáveis estrelas.
O projétil de chumbo usado por minhas mulheres era letal, e quando os romanos carregavam contra nós, abríamos nossa formação para deixar espaço às honderas. Se fossem poucos, matávamos em pequenos grupos aqui e acolá. Se fossem muitos, escondíamo-nos entre a vegetação ou nas sombras dos arvoredos. Quando chegaram ao rio restavam poucos. Tentaram vadeá-lo de noite, antes que saísse a lua, mas nós estávamos esperando na escuridão. Os chefes convocaram um conselho e acudimos. Eu falei a favor de queimar os navios de César, lhe apanhar em nosso território, e matá-lo. Mas estavam assustados, e pensaram que o melhor seria desfazer-se daquela praga. Então César pôde ir e chamar de vitória aquela matança.
Agora tenho a esperança de lhe seguir e matá-lo. Eu gostaria que me ajudasse, pois tenho o dinheiro, mas não sei se tenho a habilidade. E, se falhar, nós dois morreremos. A verdade é que não tenho nenhum plano. —Ela explicou trôpegamente.
—Nem nós o temos ao caçar. Os humanos fazem planos, seguem regras, brincam com a lógica da mesma forma em que um cão brinca com um pau ou um filhote com um pedaço de pele, mas nós não. Não vejo como poderia planejar uma aventura assim. Primeiro, ir à Roma, averiguar coisas desse homem e logo ver se há alguma possibilidade. Mas para matar cervos, tem que saber onde. Então me convém aprender o que esse Blaze possa me ensinar.
—Então, você virá?
—Poderia ser. Além disso, estive ouvindo as pessoas daí de cima. Falam muito, sobretudo as mulheres. Parece que gostam de se encontrar comigo. Não posso ir nenhum lugar sem me chocar com uma ou duas delas, e sempre as mesmas.
Dryas o olhou de cima abaixo. Ele possuía os músculos de um atleta. Não é que fosse barbeado, mas não lhe crescia a barba. Era mais moreno que pálido, mas sua tez tinha um tom avermelhado sob o bronzeado que lhe dava um ar de resplandecente saúde. Seu cabelo era da cor da velha madeira polida, com cachos. Não, as mulheres não deixariam de olhar para ele.
—Seja como for, as pessoas daqui falam muito de Roma. —Continuou Maeniel. – E, acredito que vê-la seria interessante. Mas se César for tão belicoso como diz, pode ser que alguém o mate antes de nós chegarmos, e então todas nossas moléstias não terão servido para nada.
O guarda ruivo que Maeniel havia esmurrado na cabeça durante a tentativa de resgate de Imona estava novamente na porta. Passaram a seu lado ao entrar e o lobo soube que ele lhe tinha reconhecido. Mas o olhar de ódio nos olhos do guarda o intrigava. Sim, havia lhe golpeado com força, roubado sua roupa e lhe deixado na rua. Mas por que tanta fúria pelo que havia feito? Por que todo aquele ódio?
Maeniel estava intrigado, mas não teve muito tempo para meditar a respeito, pois devia enfrentar seus dois zangados professores e ouvir suas “bênções”, para logo se sentar enquanto os dois anciões discutiam sobre o tipo de instrução que ele devia receber. Encontrou um pequeno jarro de hidromel e ouviu uma mensagem sussurrada pela admiradora que o havia dado. Ela queria um encontro no estábulo quando tivesse escurecido, com o objetivo de mútua “satisfação”. Estava antecipando um longo período de ociosidade enquanto Mir e Blaze resolviam suas diferenças, quando Dryas caiu sobre ele e arrastou-o a uma exaustiva tarde de instrução com espadas de madeira.
Não demorou em se dar conta de que o pior problema no sucessivo seria ela e não Mir ou Blaze. Dryas era uma infatigável perfeccionista de imensa resistência e grande habilidade. Ela conseguiu lhe cansar tanto que, quando foi ao encontro a noite no estábulo, não teve forças para o que pensava fazer. Mas um breve descanso, duas ou três taças de hidromel o repuseram o bastante, não para uma, mas para três ou quatro atividades sugeridas. Uma das mesmas o deixou tão ardido que ele se alegrou em se banhar no rio ao amanhecer.
Dryas notou sua expressão de relaxada satisfação. Sentiu-se tentada em lhe golpear na garganta com sua espada de madeira para lhe ensinar uma lição, mas o colar se moveu de forma estranha sobre seu próprio pescoço, como lhe recordando sua posição a respeito a ele.
Depois de um mês de prática, Dryas não pensaria. Ele já era muito bom. Sua coordenação era tão perfeita como ela nunca havia visto antes. Correndo, tinha a resistência de um cavalo e a velocidade de um lobo. Sua visão a pouca luz era melhor que a de qualquer humano, mas seu ouvido era uma maravilha.
Um dia, enquanto praticava fora da muralha, ele lhe disse distraídamente que Mir se aproximava para lhe buscar porque ele chegaria com atraso para sua lição de latim. Dryas lhe perguntou como sabia, e ele respondeu que podia ouvi-lo andar e estava familiarizado com seu passo. Mir apareceu na porta pouco depois.
O rio acabou congelando por completo e Maeniel já não teve que se banhar em água gelada. Como não havia muita neve, ele e Dryas podiam praticar muito.
A caçadora se esforçava muito, consciente de que estava criando um dos lutadores mais perigoso de todos os tempos. Não só o ensinou a dirigir a espada, mas também os usos de um escudo em combate e como um homem hábil podia empregá-lo, embora tivesse o braço inutilizado pela espada, para derrubar um oponente. Maeniel aprendeu a usar a funda... Algo que Dryas tinha acreditado que exigia uma vida inteira praticando. Ele era mortífero com a funda, mesmo contra alvos como paus e frutas secas, mas teve que agüentar algumas brincadeiras por sua objeção em disparar contra nada que não fora de comer.
Uma tarde fria e escura e cinza, Maeniel, Dryas e meia dúzia de crianças foram caçar nos pântanos. Aproximava-se um festim e não havia nada especial para servir à mesa. Levaram redes com a esperança de apanhar algumas aves aquáticas.
Mas as redes não foram necessárias, pois Maeniel derrubou dezessete gansos, quase todos com impactos na cabeça, em pouco mais de uma hora. As brincadeiras terminaram e o banquete foi um êxito.
Apesar disso, onde mais se distinguia Maeniel era no salto do salmão do herói... Talvez porque, no fundo de seu coração, sentia-se novamente como um lobo ao praticá-lo. Consistia em uma forma de combate sem armas, quase esquecido por completo na Britania e a Galia. Mas antes havia servido bem ao povo de Dryas, pois permitia um por cento dos adultos em qualquer comunidade fazer frente a um ataque ou incursão, embora não tivessem tempo de pegar suas armas.
O corpo de um lobo... Garra e presa, velocidade e peso. As armas de Maeniel eram sua inteligência e sua agilidade, que lhe permitiam se distinguir no combate sem armas. A espada, a adaga, a flecha, o dardo, a funda... Tudo ficava para trás.
—Nunca idolatre uma arma. - Disse Dryas. - Se alguém a romper em sua mão, deve estar preparado para pegar outra. E, acima de tudo, deve aprender ser perigoso com suas mãos nuas.
E aconteceu quando o guarda ruivo, cujo nome era Actus, o atacou com uma faca. Maeniel estava desarmado.
Capítulo 17
Àquela hora, a rua estava vazia de tudo o que não fossem carros. Lucius e Orelha cortada abriram caminho entre eles sem dificuldade, ouvindo ocasionais maldições quando se aproximavam muito de um veículo com uma carga pesada ou quando obrigavam algum carreteiro a frear a suas mulas em uma esquina ao bloquear seu passo por alguns momentos.
Por fim, eles deteram seus cavalos ante as portas de uma grande vila rodeada por um muro perto do Foro. As portas eram de madeira com reforços de ferro. Havia um sino com um badalo, para golpeá-lo a em um oco Àa direita da porta. Lucius o fez soar com força.
Em resposta só houve silêncio.
Lucius golpeou a porta com o punho.
Alguém o amaldiçoou do interior
—Me deixem ebtrar. Tenho que ver César ou a dama Calpurnia.
Uma fileira de maldições enviou-o a um lugar pouco honorável entre os mortos.
—Néscio! Você está bêbado ou louco, para pedir que te admita na casa do primeiro cidadão a esta hora da noite? Vá para casa.
Lucius elevou o badalo, golpeando o sino três vezes com todas suas forças.
—Deixa isso, monte de merda de cão. Vai despertar todos os vizinhos.
—Então, me deixem entrar!
Lucius ouviu o ruído dos ferrolhos ao serem abertos e as correntes se soltando. Dois legionários abriram a porta. Usavam armadura completa, incluindo os elmos e as capas de cor vermelha.
Um deles aproximou uma tocha do rosto de Lucius, enquanto o outro permanecia atrás, com o pilum em uma mão e a outra no pomo de sua espada.
Lucius piscou, elevando uma mão para proteger o rosto, mas não retrocedeu.
—Entrem. - Disse o centurião com a tocha. - Mas deixe aqui suas armas.
Lucius se despojou da espada e da adaga, enquanto Orelha cortada se desprendia de uma incrível quantidade de objetos cortantes. Uma espada grega de um só fio, estupenda para apunhalar; uma espada larga germana que usava nas costas; o típico gladio das legiões; não menos de três adagas de distintos tamanhos; uma funda com projéteis de chumbo; e em caso de que todo o resto falhasse, um cestus, a luva reforçada com ferro do pugilista romano.
Mesmo o centurião de aspecto duro ficou impressionado.
Outros três soldados se uniram aos dois primeiros para escoltar Lucius, passando junto a um antigo solarium com mais de uma dúzia de máscaras mortuárias, o lago de um átrio mais antigo inclusive que o da vila Basilia, até um peristilo rodeado por uma colunata.
Tudo era impresionantemente magnífico, irradiando não mera riqueza, mas também nobreza e vidas inteiras de distinto serviço à cidade e suas mais antigas instituições.
Uma mulher saiu à luz. Usava uma túnica de seda verde que descia em longas dobras até o chão, sustentada por botões nos braços e nos ombros. Era muito bela e por um momento, Lucius se perguntou quem seria. Quando se aproximou do soldado da tocha, ele compreendeu que, embora bela, não era uma moça. A voluptuosa figura, só sugerida pelas curvas sob a suave seda, era um pouco engrossada pelo tempo e o cabelo cor castanho que emoldurava seu rosto em forma de coração estava rajado de fios cinza.
Quando ela falou, sua voz soou grave. Suas palavras e gestos eram corteses e Lucius sentiu que aquela dama não saberia como ser áspera, cortante, arruda ou sequer altiva. Nem tampouco seria capaz, por mais que se esforçasse, de choramingar ou se queixar. Seria cortês e considerada, e procuraria não se mostrar nunca ofensiva ou escandalosa, sequer em seu leito de morte. Lucius compreendeu de uma vez por todas o significado da palavra patrício.
—Meu marido dorme neste momento. Está muito cansado e não quero lhe incomodar. Tem algum assunto importante a discutir com ele? E, se for assim, está seguro de que não há nada que eu possa fazer para te ajudar?
Lucius tirou o chapéu caindo sobre um joelho.
—Minha senhora Calpurnia, - ele disse—, um membro de meu serviço doméstico foi denunciado como inimigo de seu marido. A Corte Pretoriana o prendeu por ordem de Marco Antonio. É um liberto meu, um físico grego chamado Fio. Acredito que o conhece. Estou seguro de que houve um engano em alguma parte. Fio nunca foi inimigo de ninguém e menos ainda de seu marido. Estou seguro de que não pode ter se comprometido sequer marginalmente em nenhuma conspiração.
Calpurnia se aproximou de Lucius e estendeu a mão para pegar a dele, indicando-lhe que devia se levantar. Ele obedeceu.
—Sim, conheço Fio e não, não posso acreditar que queria fazer mal a alguém, mas isto não poderia esperar até a manhã?
—Minha senhora... — Lucius respirou fundor, tentando de alguma forma expressar a urgência da situação a uma mulher cuja vida a isolara de tal forma das cruéis realidades, as quais acreditava, que Fio estava enfrentando naquele momento.
—O que tenta dizer é que depois de uma noite de interrogatório brutal e intensivo nas mãos do Antonio e esses bons pretorianos, nem a própria mãe de Fio seria capaz de lhe reconhecer.
Lucius viu César em pé à sombra da colunata, com aspecto mal-humorado e irritado.
—Me dê, por favor, uma boa razão pela que não deva te mandar à mesma cela no Tullianum, para que lhe faça companhia a Fio.
—Porque então estaria castigando dois homens inocentes em vez da um.
—E está disposto a dar sua palavra de que seu amigo é inocente de todas e cada uma das acusações que levaram a sua detenção?
—Estou, César.
—Até arriscando sua própria vida se resultar que está equivocado?
—Sim! Sim, César, estou.
— Está tão seguro assim, dele?
—Sim.
Calpurnia voltou às costas para Lucius, se aproximando de seu marido com elegância. Deteve-se seu lado, pousou uma das mãos sobre o ombro dele e lhe sussurrou no ouvido. Depois, sem olhar para Lucius, ela saiu por uma porta do alpendre. Uma donzela esperava com um abajur na mão para escoltá-la de volta a sua câmara.
Os olhos de Lucius a seguiram quase contra sua vontade. Quando Calpurnia partiu, ele voltou a olhar para César.
—Sim, é muito bela. – Disse-lhe César.
—Não é só isso. – Respondeu Lucius, achando como era habitual com o costume mudado, admirar à mulher sobre cuja mente fazia conjeturas toda a Roma. E o que era pior, diante de seu marido.
—Sim, está certo. — César se voltou para um dos soldados. - Traga minhas coisas de escrever.
O soldado voltou com uma caixa de couro que, ao abrir-se se desdobrava em uma pequena mesa. Agüentou-a em seu lugar enquanto César rabiscava rapidamente algumas linhas sobre uma folha de papel. Quando terminou de escrever, César dobrou a folha e a entregou a Lucius, que se inclinou, dispondo a sair.
—Não está interessado no que diz?
—Deveria estar?
—Não. – Disse César. - Só é uma ordem para que seu amigo fique livre sob sua custódia.
—Obrigado, mas me desculpará se parto em seguida. Assusta-me um pouco...
- O possa lhe ocorrer enquanto passa o tempo, — completou César e se voltou para falar com um dos soldados, que assentiu e partiu. Logo César precedeu Lucius e Orelha cortada até a porta, onde recuperaram suas armas.
À luz da tocha, César viu claramente o rosto do galo pela primeira vez.
—Orelha cortada ... Como estão as coisas com Ambórux?
Orelha cortada grunhiu para si.
—Comer, dormir, sacrifício aos deuses familiares. Comer, dormir, e sacrifício as deuses familiares. O mesmo todos os dias. Sem fim. Não divertido. Não briga. Todas as mulheres são velhas. Cama estreita dura e fria. Mau pagamento.
—E trocaste de patrão?
—sim.!
—O que pensa do novo?
O criado galo olhou Lucius dos pés a cabeça.
—Há mais nele do que se vê.
César assentiu: Lucius tinha pressa.
—Não se preocupe. Enviei um soldado na frente. Seu amigo não terá que se preocupar com mais tentativas de persuasão.
Lucius estava pegando a espada. Quando levantou os olhos, César já havia saido.
Um destacamento de cavalaria aguardava junto à porta. Escoltaram Lucius até a vila do Antonio, mas a uma porta de serviço, que mesmo àquelas horas era um ajuntamento de soldados. Lucius entrou a cavalo no pátio e desmontou.
Fio, sustentado por vários soldados era uma visão espantosa. Sua túnica estava coberta de manchas de sangue, velhas e frescas e também seu manto. Era óbvio que haviam lhe quebrado o nariz. Tinha um olho arroxeado e fechado e o outro purpúreo e aberto somente um pouco, com as pálpebras manchadas de sangue. Os lábios estavam partidos e inchados. Mas o pior de tudo era o espantosamente sugestivo aroma de carne queimada que flutuava em torno de seu corpo.
Lucius entregou a ordem de César ao centurião que estava ao comando.
—Me ajude! – Disse a Orelha cortada. Os dois sustentaram o grego, um em cada braço. - Pode cavalgar? — Ele perguntou.
—Sim. – Respondeu Fio. - Posso me arrastar, andar e até voar se quiser. Farei o que for preciso para sair daqui.
Lucius sentiu um indescritível alívio ao ver que, apesar de suas feridas era o velho Fio quem falava, seu amigo.
Mas Fio não teve que cavalgar. O soldado de César tinha alugado uma carruagem. Não era grande coisa, somente uma carreta de duas rodas puxada por uma mula arisca e com um assento de cada lado e outro na parte de atrás, com gastas almofadas de couro e uma lona encima para proteger os ocupantes. O vento, que começava a soprar à medida que a noite se fazia mais fria. Havia um condutor na carruagem.
Lucius se uniu a Fio no carro. Orelha cortada desdenhou o oferecimento com um grunhido, ficando a cavalo junto ao soldado atrás da carreta para empreender a viagem de volta para casa.
—O que ocorreu? — Perguntou Lucius.
—Não sei. Só sei que estavam me esperando perto da casa de Gordus. Pobre Márcia, tentou me defender e esteve a ponto de receber uma boa bofetada. Disse a ela que não se metesse, com toda a severidade que pude. Me deu medo de lhe pedir que te desse a notícia, no caso de também a prende-la.
—Provavelmente o teriam feito, mas não foi preciso que lhe dissesse nada. Ela sabia, e encontrou alguém quem enviar com a mensagem.
Fio assentiu, sem perguntar nomes.
—Seja como for, levaram-me ante Antonio. Por um momento me senti aliviado, mas ele me acusou de ser um mentiroso. Pedi, na realidade supliquei, me degradando de uma forma que me dói recordar, mas não tanto como o que passou depois. É obvio, que Antonio não prestou atenção. De fato, disse-me que não fizesse ridículo daquela forma porque não me serviria de nada. Logo se voltou para seus amigos. Não me disseram seus nomes nem eu os ouvi... E logo estava muito... Ocupado para perguntar por eles. Primeiro me ensinaram todos seus brinquedinhos. Aquilo não foi muito ruim, embora tendessem a me golpear enquanto me explicavam seus usos. Mas logo começaram a fazer demonstrações práticas comigo. Estaria em piores condições... – Ele baixou o olhar para suas mãos, intumescidas e machucadas, mas intactas. - Mas se descuidaram e eu pude me liberar. Você me entende, então só esperava poder lhes persuadir para que me matassem, porque não tinha idéia de que Márcia teria conseguido entrar em contato contigo, nem de se poderia fazer alguma coisa para me ajudar. —A voz de Fio estava ficando rouca à medida que falava.
Lucius afastou o olhar do rosto de seu amigo.
Dobraram uma esquina e o vento açoitou-os. Lucius baixou o capuz de Fio, o envolvendo bem com a capa.
—Sabe que o vento faz bem? – Disse Fio. - É como se embotasse todos os pontos que ainda doem. Bem, como estava contando, um enorme valentão, que provavelmente nem conhecia sua própria força, golpeou-me na cabeça, me deixando ausente dos acontecimentos durante o que acredito, um bom momento… Várias horas, de fato. Quando por fim despertei, minha mente não estava limpa. Como não sou um completo idiota, procurei dar a impressão de que estava mais aturdido do que estava na realidade. Então, Antonio já havia tornado e estava amaldiçoando seus ajudantes. Não caiu em meu pequeno engano, mas ordenou que me dessem um pouco de pão e vinho. Não acredito que fosse por amabilidade, mas simplesmente que estavam me preparando para mais interrogatórios... Mas ouvi chegar um mensageiro, e me deixaram sozinho. O que fez? Como conseguiu me tirar? Por certo, não acredito ter visto nunca nada mais formoso que você e quem é seu novo... Como devo lhe chamar? Mas estou falando muito. Não me ouça. Não posso pensar com claridade. É possível que não estivesse fingindo... O golpe na cabeça...
—Cale-se. - Disse Lucius, assinalando ao condutor do carro. - Conversaremos em casa.
Quando chegaram À vila, a lua de inverno já estava baixa, mas o pátio estava bem iluminado. Aristo lhes esperava em companhia de Alia. A mulher começou a cacarejar quando notou Fio, o ajudando a descer do carro e entrar na casa.
Lucius não se deu conta de que ela gostasse do médico, mas quando observou a casa de Fio, sua cama feita e suas coisas pulcramente dispostas, compreendeu que Alia sentia algo por ele.
Aristo levou água quente e roupa limpa para o grego e linho para suas ataduras. Alia, que tinha muita experiência nisso, limpou e enfaixou as feridas, incluindo algumas feias queimaduras.
Lucius perguntou onde estava sua irmã.
—Ela foi... – Disse Aristo. - À Galia. Voltou da visita a Cleopatra e me disse algo que indicava sua insatisfação com algum de seus agentes, queixando-se de que se quiser algo bem feito, terá que fazê-lo ela mesma. Logo acrescentou. Matou cinco deles. Enviei seis e ela matou cinco. Pode acreditar? Eu lhe perguntei, acreditar o que? Mas ela não respondeu, nem disse quando pensava voltar. Por certo, encontrei um criado, o porteiro. Está há anos acorrentado nessa guarita, desde que sua mãe morreu. Acredito que seu pai estava zangado com ele por ter sido um muito leal a sua mãe.
—Por lhe levar bebida, você quer dizer?
Aristo adotou uma expressão dolorida, similar a de um doente de constipação aguda, mas não disse nada.
—Estupendo. – Disse Lucius.
—É limpo, discreto e nada fofoqueiro. E estará agradecido de escapar do que foi uma longa clausura para ele. Fraco e Africano ocuparão seu lugar, pelo menos até que sua irmã volte para casa. Então poderá dispor deles como quer. Seu comportamento contigo foi uma falta muito séria, como o de Firminius. Você é o chefe desta casa, como maior descendente masculino pela linha direta. É cabeça de família. Todos os que vivem nesta casa, livres e escravos, mesmo sua irmã, estão sob sua guarda, sua autoridade. Eles o ameaçaram ante uma testemunha. Não atuei antes porque você não fez valer seus direitos, mas agora que iniciou, acredito que devo me pôr do lado da lei e apoiá-lo. Embora tenha que dizer que desaprovo sua indulgência com Fraco e Africano. Acredito que cometeram uma ofensa muito grave e que deveriam ficar acorrentados até a volta de sua irmã.
—Obrigado. – Disse Lucius com a apropriada gravidade.
—Agora, com sua permissão...
—Certamente.
Aristo se afastou com o nariz elevado, rodeado por seu habitual ar de educada desaprovação.
Alia terminou sua tarefa e saiu da casa de Fio. Orelha cortada lhe deu uma palmada no traseiro quando ela partia e ela lhe dirigiu um olhar de irritação como se disesse, quem é para tomar essas familiaridades comigo?
—Tenho ouro. - Disse Orelha cortada.
—Mmmh... – Respondeu ela, mas não havia censura em sua expressão.
Era um pouco velha para Lucius ou pelo menos ele nunca tinha pensado nela naquele contexto, mas seu corpo era firme, de quadris largos e grandes seios. Seu rosto não era bonito, com um nariz proeminente e queixo de tartaruga, mas parecia que Orelha cortada a achava de seu gosto.
Lucius entrou para ver Fio, mas se deteve ante a porta junto a Orelha cortada.
—Alia? — Ele perguntou.
—Algumas mulheres são problemas. Problemas com os homens, com o dinheiro, parindo como coelhas, com não trabalhar, com mau gênio e facas, com ciúmes sempre, com descuido de se deixar roubar, com vinho. Esta segura o pagamento, cala-se, não é problema. Sim, é boa.
Lucius assentiu.
Fio jazia em sua nova cama, mais macia que a que possuía antes. A parte superior de seu corpo estava enfaixada, e a inferior coberta por lençóis de linho e uma colcha. Havia um abajur, mas ele estava com as pupilas contraídas. Havia tomado ópio.
— Ela misturou ou foi você? — Perguntou Lucius.
—Eu. Não sou tão idiota para confiar isso a outra pessoa.
—Fui até César.
—Pelos trovões de Zeus... Você correu um risco terrível.
—Sim. O que quero saber é se menti a César ao jurar por minha vida que você não estava metido em nenhuma conspiração contra ele.
Fio ficou calado por um momento... Tanto tempo que Lucius pensou que ela havia adormecido.
—E?
—Não. – Disse Fio. - Não mentiu. Mas...
—Mas o que? —Lucius olhou ao seu redor para se assegurar de que a casa estivesse vazia. Estavam sozinhos, e além disso a porta estava fechada e a única janela era uma abertura no teto.
—Sei alguma coisa.
Lucius se conteve para não gemer fazendo um esforço de vontade.
—O que? — Ele perguntou entredentes.
Fio disse.
—E por que demônios não o disse a Antonio desde o começo?
—Porque é um rumor. As fontes das quais ouvi não são precisamente irrepreensíveis. Além disso, se houvesse dito, nosso ilustre conselheiro teria decidido que eu sabia mais coisas e ocultava. E seguido adiante com mi... Entrevista. Decidi que uma postura de completa inocência era a mais sagaz que podia adotar em tais circunstâncias.
—Cedo ou tarde teriam lhe tirado a verdade.
—A verdade não tem nada que ver com um homem submetido à tortura. Cedo ou tarde teriam inventado algo... Para que se detivessem. Agora sabe o mesmo que eu. Vá a César se quiser, mas me diga isso com tempo, para que eu possa preparar um veneno.
—Devo fazer. Dei-lhe minha palavra. – Respondeu Lucius miseravelmente.
—Estupendo! Tomei muito ópio para me preocupar. Você é um cidadão romano, e só o decapitarão.
—Ah, mãe dos deuses. – Disse Lucius, passando os dedos pela face. - Talvez me deixem se suicidar.
—Isso não é mais divertido que a decapitação, Régulo.
—Régulo era um homem de honra. Além disso, sendo quem sou, tenho uma vantagem ao lidar com César.
—A vantagem é de César. – Disse Fio. - Ele não é idiota e não estou seguro de que possa dizer o mesmo de seu violento amigo. Suspeito que chegará a casa com a cabeça ainda sobre os ombros e sem perigo de perdê-la em futuro imediato. Os que me preocupam são os conspiradores. Parece ter muitos e sua classe é tão alta que não ficarão nada bem que há passarinhos contando contos no ouvido de César. Ou, como lhe disse um veterano, vigie suas costas, meu senhor. Vigie suas costas.
Maeniel entrou no celeiro, na primeira hora da tarde. Não havia janelas e estava escuro. Ouviu Actus antes de vê-lo se aproximando pela esquerda, com a faca em posição, se preparado para cravar-lhe sob as costelas. Reagiu como Dryas havia ensinado, fazendo com que seu oponente soltasse a faca com um golpe de antebraço. Alegrou-se em ver que a técnica funcionava bem. De fato, alegrou tanto que não pensou em fazer outro movimento enquanto Actus tentava lhe golpear o rosto. Mas o golpe não o alterou. Ele se limitou a pegar o ruivo e lhe jogar contra a parede.
Actus pareceu aturdido por um instante. Logo se deixou cair até ficar sentado em chão e começou a gritar.
—O que acontece contigo agora? — Perguntou Maeniel.
Não obteve uma resposta coerente, mas já sabia que os humanos estavam loucos. Faziam as coisas mais peculiares nos momentos mais inoportunos. Pegou Actus pelo pescoço, como teria feito com um filhotinho em plena ira e o arrastou para fora do celeiro até o tronco cavado que servia como coxo para os cavalos. Deu-lhe um par de murros para romper a camada capa de gelo da superfície, e logo colocou a cabeça de Actus pelo buraco.
Actus emergiu balbuciando e mugindo e Maeniel voltou a lhe afundar a cabeça. Ele tornou a sair balbuciando, e Maeniel o afundou pela terceira vez. O rosto do Actus tinha adquirido um interessante matiz azulado, com lábios vermelhos e olhos fixos. A água gotejava de seu nariz e sua boca. Maeniel o olhou dúbio...
Dryas chegou correndo e o ajudou a levar a Actus de volta ao celeiro.
—Não o matei, certo? — Perguntou Maeniel ansiosamente.
Dryas apoiou Actus sobre uma bola de feno.
—Não. – Ela disse. - A cor está voltando em seu rosto. - Ao mover o pé, ela chutou algo que deslizou sobre o chão. - Uma faca! O que...
—Não me olhe! Eu não queria lhe fazer nada. Pelo menos, desta vez não. Ele continua furioso porque o golpeei na cabeça, roubei-lhe sua roupa e tentei Imona para que fugisse comigo. A menor ofensa os enfurece. Vocês são as criaturas mais rancorosas da terra. Mesmo um alce esqueceria em uma semana ou duas se eu lhe tivesse açoitado... Mas não um de vocês. Além disso, ele tentou jogar vinho em meus olhos. Falhou porque, como homem, meus olhos estão muito acima que quando... Por que estou explicando isto? Ele tentou me cravar uma faca nas costelas e eu o peguei. Teria eu conseguido cravar nele. De fato... — Maeniel estendeu a mão para a faca entre as sombras.
—Não! — Gritou Dryas, lhe afastando de Actus. - Não, não! Por favor, não! Agora ele está indefeso.
Maeniel sustentou a faca de Actus, uma coisa escura e de lâmina estreita com o punho de presa de javali.
—Eu sabia. – Ele disse com ferocidade e Dryas o olhou como olharia um cão grande e ruim que se soltou da corrente. Ele captou seu olhar e retrocedeu com expressão enojada. - Você me tem medo. — Maeniel assinalou Actus. - Mas é esse idiota quem deveria se preocupar. – Ele se voltou e cravou a faca no gonzo da porta. Logo a partiu justo sob cabo e saiu do celeiro.
Actus, que não havia chegado a ficar inconsciente, cambaleou. Gotejavam-lhe o nariz e os olhos.
Dryas o cheirou, recuando um pouco.
—Está bêbado.
Actus lhe cuspiu no rosto e disse várias coisas com voz grave, muitas delas em latim. Aquele idioma tinha um vocabulário sexual bastante rico, grande parte ofensiva e degradante. Depois voltou a soluçar e saiu para a rua.
Maeniel caminhou até a porta da paliçada. «Mulher da noite» era como recordava a rainha da loucura, a fêmea da procriação, a criação e, por fim, a destruição.
—Mulher da noite, odeio ser humano! — Ele gritou, mas a única resposta que obteve foi o vento invernal em seu rosto.
As nuvens se aproximavam do norte, com suas pequenas e afiadas laminas de temporal de neve. Chuva e neve. Lembrou ao lobo uma profunda saudade que acreditava ter deixado atrás.
Chegaria algum dia no qual poderia esquecer a agradável sensação da pelagem, não a pele, levando seu calor consigo? A forma em que suas garras se apoiavam no solo a gelado? A resistência que alguma vez se esgotava quando precisava correr? A velocidade outorgada por quatro patas em lugar da torpe luta com apenas duas?
A beleza do silêncio, quebrado só pelo murmúrio da água ou os sons como sinos da neve ao cair, o vento suspirando entre os abetos da montanha, o canto dos pássaros na primavera e verão enquanto corria junto ao rio ao amanhecer... Tudo isso oposto a incessante gíria, ao contínuo ataque de sons lançados por aquelas farfulhantes criaturas.
Deteve e respirou fundo. O vento invernal lhe queimou a garganta e os pulmões.
O focinho de um lobo é longo e esquenta o ar à medida que passa por ele. Como humano, Maeniel carecia daquela comodidade. Tinha saudades da liberdade além dos muros daquela cidade meio em ruínas. Ansiava atravessar o rio coberto de neve e se internar no bosque gelado da outra margem. Mas se tentasse sem chamar o lobo, provavelmente morreria. Não, estava encerrado ali. Encerrado como aqueles acovardados humanos, temendo o frio e a neve, assustados com a longa noite invernal.
Não. Estava preso ali, trabalhando como um escravo. A princípio não tinha sido consciente de sua posição. Fazia o que fosse necessário fazer. Mas não lhe custou muito tempo se dar conta de que as mesmas tarefas que o encomendavam tão freqüentemente só as realizavam as mulheres ou os homens mais desprezados da comunidade.
Separado da parte mais importante de si mesmo, solitários entre aquelas infelizes criaturas, gastaria sua vida como servente entre os restos de um povo derrotado. Não passava por cima a atmosfera de desespero que pesava sobre aquele último refúgio do qual antes havia sido um povo orgulhoso.
Podia sentir sua dor e seu desespero. A tragédia era tão evidente para ele como o frio levado pelo vento.
Mir o chamou de um lugar sob o beiral do grande salão principal. O ancião contemplava em silêncio a queda da neve.
Maeniel se aproximou e ficou ao seu lado. Para seu pesar, gostava de Mir. Uma das razões era que quando não tinha nada a dizer, não dizia nada. Blaze parecia incapaz de se calar e Dryas... Bom, Dryas era um mistério. Às vezes a odiava. Outras vezes a temia. Recordava o desejo que tinha sentido por ela, mas, como havia dito antes, agora era uma mulher de neve.
Mir coçou a ponta do nariz.
—Há um banquete esta noite. – Ele disse. - Cynewolf está tendo problemas com sua gente. Sabe algo sobre caçar?
Ele fitou o ancião, profundamente irritado, até que se deu conta de que ele brincava.
—Um pouco - Disse.
Uma hora mais tarde, Maeniel se encontrou sobre um cavalo, percorrendo a borda do rio com o vento no rosto. A sua discreta maneira, Mir era o mais eficiente dos três.
Blaze caía facilmente no esotérico. Por exemplo, como a questão, se movem as estrelas? Ele entreteve o lobo durante três horas, começando pelo que significava. A terra é plaina ou redonda? Qual é a partícula indivisível menor?
Dryas divagava com assuntos, como a um guerreiro é proibido beber hidromel quando já saiu à lua, mas descobre que para salvar a vida de um amigo deve beber hidromel depois da saída da lua, o que é pior? Beber o hidromel ou sacrificar a vida de um amigo à pena da lei?
O lobo considerava aquilo uma completa e absoluta tolice. Ele beberia hidromel depois da saída da lua, do sol ou de qualquer outra coisa para salvar um amigo. Mas aceitava que a situação pudesse ser um terrível dilema.
Mir só se preocupava em fazer com que se vestisse de forma adequada e lhe encontrar arreios razoavelmente tranqüilos. Alguns cavalos tendiam a se tornar pouco manejáveis quando percebiam seu aroma.
Maeniel usava uma túnica grossa, calças soltas e atravessadas e um manto de lã, botas cravejadas e boas meias.
Estudou o pântano e a margem do rio com olho perito. Os cervos eram a caça mais habitual perto do Oppidum. À medida que escurecia, deixavam seus refúgios nos pântanos e entravam nos campos abandonados para se alimentar com os restos dos grãos que encontrassem. Podiam encontrar maçãs silvestres, ervas e inclusive caramujos.
Sua sela era somente uma tripla camada de mantas. Estava com três dardos em um alforje de couro pendurado junto ao joelho. Mir lhe tinha dado as melhores de Dryas, com hastes de freso e pontas de aço. As laminas eram estreitas, mas afiadas com bordas dentadas para que não fosse fácil arrancá-las.
Para Dryas, era o mundo da bruxa, rainha do inverno. O marrom, o negro, o verde e o cinza eram suas cores. O semilobo corria através de um reino de desolação adornado por seus símbolos.
A madeira e o pântano eram negros, pois a umidade se filtrava nos troncos das árvores, tornando-os da cor do barro úmido, mas os galhos altos eram marrons, salvo pelos festões de muérdago verde pálido.
A vegetação morta era de outro tipo de marrom, uma cor mais rica e escura onde se misturava com as árvores, mas com um matiz prateado onde a água se encontrava com a terra e a geada cobria a vegetação morta. O céu era do cinza da névoa, manchando a água do pântano e do rio. Ali não se congelara. Fervia entre as rochas. Só estava quieta nas margens. Calomos lagos e o furioso rio pareciam um so, com o frio céu cinza.
O homem é o vencedor, ele pensou. O vencedor no antigo jogo da sobrevivência.
Quando perdeu vista o Oppidum, ele incitou o cavalo a passo, mantendo ao animal perto do pântano e longe do rio. Estava acostumado a ajudar ao cavalo a escolher uma rota sobre terra sólida, de forma que o animal pudesse se mover em silencio no escuro bosque. O vento seguia em seu rosto.
O Oppidum estava situado em uma colina. Nas cercanias, o pendente era tão pronunciado que, em algumas ocasiões, o lobo tinha problemas para manter seus arreios sobre chão firme. Mas a terra voltou a se nivelar. Houvera granjas ali, quando o povo era o centro de uma poderosa tribo. Embora ainda fossem trabalhadas, os granjeiros viviam no Oppidum, assustados em morar em sua terra.
Maeniel chegou à margem de uma grande propriedade, dividida em pastos e terra de lavoura. Cavalgou com mais cuidado. Havia rastros de cervos, com sua forma característica. Então ele viu formas pardas, um rebanho ide solteiros do inverno. Todos machos, com chifres que chegavam a seis pontas.
Fez com que seu cavalo se aproximasse do bosque, devagar. Seguia com o vento no rostora. O cavalo se moveu lentamente, levando-o cada vez mais perto dos cervos.
Quando julgou que estava o bastante perto, ele tirou uma das lanças e fez com que o cavalo saísse a galope. Os cervos haviam estado comendo perto do rio e procuraram um terreno mais alto.
Ele soltou o primeiro dardo como lhe tinha ensinado Dryas, falhando. Sentiu que o cavalo acelerava o galope.
Vários dos machos maiores e velhos desapareceram atrás de uma elevação do solo. Ele se deu conta de que tinha o segundo dardo na mão sem ser consciente de tê-lo pego.
Um jovem macho saltou diante dele, que lançou o dardo de forma automática.
Estava seguro de ter falhado, pois o cervo se elevou com a graça de um pássaro para saltar um sob muro de pedra. O dardo e o animal se encontraram na metade do salto. O cervo morreu imediatamente, caindo feito um farrapo junto ao muro.
O cavalo subia pela colina, com as coxas de Maeniel bem apertados e seu corpo inclinado sobre o pescoço do animal. Ele estava com outro dardo na mão e notou o rebanho formando um semicírculo, com os dois líderes a ponto de entrar no pântano. Os cervos dos extremos eram os alvos mais fáceis, mas se tratava de animais muito jovens, de um ano no máximo.
O cervo que estava mais perto das árvores se encontrava em sua plenitude, um grande macho de quatro chifres. Maeniel tomou sua decisão, não como lobo mas como homem. Sequer sentiu que a lança abandonava sua mão, mas um instante depois, ela estava cravada no ombro do maior dos machos, que desvaneceu entre a espessura.
Maeniel saltou do cavalo e começou a correr imediatamente. O rastro de sangue estava muito claro, com grandes gotas vermelho entre as árvores. Podia ouvir o animal adiante dele, abrindo caminho entre os matagais e o golpe de suas patas ao saltar a barreira da vegetação.
Ele cobriu o rosto com o manto para se proteger dos espinhos e sarças e seguiu o rastro, entrando no rastro do cervo.
Em um instante ele estava do outro lado, bem a tempo de ver o cervo saltando uma sarjeta que levava ao rio. Não apareceu ao outro lado, mas Maeniel não freou o passo até chegar à margem.
O cervo estava morto no fundo, com as patas estiradas, a língua lhe saindo da boca e os olhos fixos no vazio.
Maeniel viu que estava com a faca na mão. Nem se tinha dado conta de que a tirava. Ficou em pé por alguns momentos, ouvindo como o silêncio assentava ao seu redor.
Sim, ele pensou. —Sim. – Disse em voz alta. - Somos os reis dos assassinos. — Um lobo teria caçado um dos cervos mais lentos, procurando os animais velhos, feridos ou fracos do rebanho. Mas um homem não. Ele tinha escolhido a melhor peça porque tinha os meios e a habilidade para com ela, para ele e para os seus.
Então recordou que outros seriam os primeiros a escolher sua carne no banquete da noite. A parte do campeão seria para outros homens, não para ele. E a cevada que havia tomado no café da manhã lhe azedou no estômago.
Desceu pelo aterro, pegou o cervo pelas hastes e puxou-o até o alto, onde começou a destrinchá-lo. Antes de terminar, comeu o coração e o fígado, ainda quentes e fumegando no frio ar. Sabia bem. Deixou a carne sobre o galho mais baixo de uma árvore e foi à procura do outro animal.
Quando ambos os cervos estavam limpos e preparados, ele se sentiu mais quente e bem alimentado. Também haviacomido o coração e o fígado do segundo.
O cavalo, com o suor secando em seus flancos, esperava em campo aberto, onde havia sido uma granja.
Maeniel estava com as mãos sujas e foi ao rio lavá-las e limpar sua faca, além disso seria mais seguro deixar que a carne esfriasse antes de carregá-la sobre o cavalo. O animal era tranqüilo, mas não queria ter que passar um momento lhe falando para que se acalmasse. Os cavalos tendem a ser cabeçudos e pouco suscetíveis à persuasão racional. Enquanto trabalhava nos estábulos, Maeniel tinha chegado a falar um pouco de sua linguagem... Não muito, mas mais do que qualquer humano obteria. Como os humanos e os lobos, eles variavam muito quanto a inteligência e caráter, mas pareciam propensos a atravessar a linha da raiva ou do pânico irracionais bem mais rápido que os humanos ou os lobos cinzas. Provavelmente era uma vantagem, tendo em conta que sua sobrevivência dependia das reações automáticas as ameaças da natureza e aos predadores. Mas aquela sua tendência era um problema para que os humanos os escravizassem e esperavam um mínimo de contenção e inteligência inclusive de seus escravos, humanos ou não.
Perto do rio, ele encontrou um pequeno lago escavado em uma região baixa. Parecia ter tido comportas para quando o rio subisse e permanecer cheio quando o rio abaixasse.
Ao se aproximar da margem e descobriu que a terra ao seu redor estava mole. Ao se aproximar da água, afundou quase até os tornozelos.
A princípio o incomodou, mas logo despertou o lobo. Aquilo surpreendeu ao homem, porque tinha começado a acreditar que seu ego havia desaparecido para sempre.
Olhou-o com seus olhos amarelos de algum longínquo lugar de exílio.
Néscio! As palavras se formavam em seu cérebro A raiz do desgosto de seu irmão de pesadelo. Tanto entregaste a sua fácil cegueira ante o mundo que te rodeia, que não pode ouvir o aviso que o vento e a água gritam ao seu nariz e a seus olhos?
Sim, a terra estava removida nas margens do lago, por causa das pegadas de homens e cavalos. Maeniel guardou silêncio, como o lobo, sua mente vazia de todo o resto, tentando ler a informação que lhe chegava.
Homens, sim. Não, não só homens, soldados. Couro, aço, suor mas não medo. Uma mulher! Uma moça, indícios de perfume, de crua sexualidade, de ira. Uma fêmea dominante, como a mãe da alcatéia. Cavalos, montarias militares. Tinham parado ali para se aliviar, sim, inclusive a mulher, entre os salgueiros e cerejeiras junto à água. Logo haviam comido. Haviam cozinhado comida: carne, pão, queijo... E esperado alguém. A ausência de aromas de ira indicava que não estavam à caça ou atacando alguém.
O que, então? O que estavam fazendo? Ele começou a dar voltas muito devagar. Actus.
Actus, capas de aromas. Homem, roupa, suor, bebida. Actus tinha o aroma característico dos humanos bebiam muito vinho. Ira e enfermidade, aromas próprios deles. Ele e só ele deixava aquela assina no ar, no chão, sobre as folhas, as árvores, os ramos e os arbustos onde passava. Tão reconhecível como um rosto para um ser humano.
Maeniel já conhecia e entendia muito melhor os humanos, mas aquilo o intrigou. Não se sentia alarmado. Eles já haviam saído e não eram uma ameaça para ele nem para ninguém.
Encontrou um ponto onde lavar as mãos e limpar sua faca, em um buraco no gelo junto à borda. Esfregou a lâmina da faca com sebo de cervo antes de embainhá-lo novamente.
O céu estava escurecendo, mas a luz na margem das nuvens era brilhante e um pálido e murcho sol reluzia através delas, polvilhando a cor cinza e a parda paisagem invernal com sua luz dourada.
Maeniel pensou na beleza, tal como a percebiam os homens. Sim, os lobos também a conheciam. Um sentido de correção, o diálogo entre o espírito da vida e as almas de quem iam e vinham nas marés do tempo. Não importava o que lhe acontecesse, atuaria bem no mundo, fosse como lobo ou como homem e seria fiel a si mesmo em todo caso.
A luz dourada acabou por desvanecer e Maeniel voltou a subir pelo aterro, carregou a carne de cervo sobre o cavalo e retornou ao Oppidum.
Mir estava esperando na porta quando ele chegou, guiando o sobrecarregado cavalo. O ancião levou a animal ao estábulo e disse a Maeniel que fosse ajudar ao cozinheiro.
O grande salão estava sendo preparado para o banquete. Havia tochas ardendo nas paredes. Uma dúzia de peças de carne já estavam sobre o fogo no centro e os dois cervos se uniram a elas em poucos instantes. O macho de quatro chifres ganhou um estertor de admiração dos presentes, que começaram a brincar sobre quem reclamaria a parte do campeão de uma fera tão esplêndida.
Maeniel saiu do salão e foi visitar Mir. Mir, ele, Dryas e Blaze tinham seus alojamentos no mesmo lugar. Haviam ocupado um edifício meio em ruínas no extremo mais afastado do acampamento. Quando chegaram, a casa estava vazia e com o telhado quebrado, e a neve tinha entrado para cobrir um piso já quebrado pela chuva. Limparam tudo, cobriram as janelas com pergaminho encerado, repararam o telhado e se estabeleceram ali. Dryas e Mir dormiam em leitos encaixados em ocos da parede. Blaze tinha um jergon e Maeniel se estirava sobre uma mesa.
Haviam feito amizade com uma mulher, Evars, que era a encarregada de varrer o chão, lavar as roupas e lençóis e estende-las sobre a neve para expulsar os percevejos. Dryas era limpa e pulcra, ao estilo dos soldados, mas não doméstica. Evars podia cozinhar e normalmente o fazia, mesmo quando não era necessário, como naquela noite. Uma sopa fervia no caldeirão. Mir estava lendo, Blaze escrevendo e Dryas afiando os três dardos que Maeniel havia usado.
O lobo se serviu uma tigela da sopa quente e se sentou à mesa.
—Quero a parte do campeão esta noite. – Ele disse.
—Não seja idiota. – Disse Blaze, sem deixar de escrever.
Mir seguiu lendo.
—Como?
Dryas passou a pedra de afiar pela ponta do dardo.
—É tua se a quer. – Ela disse—, mas provavelmente terá que matar um ou dois homens para consegui-la.
Blaze e Mir levantaram o olhar, como dois pássaros em uma fonte que tivessem ouvido o mesmo ruído.
—Não é o bastante bom. – Disse sinceramente Blaze.
—Ou é? — Perguntou Mir.
—É – Respondeu Dryas. Logo ela se voltou para Maeniel. - Sim, ele é. É o melhor que vi e, certamente, o melhor que treinei. Se sente-se preparado para aceitar os desafios de outros fanfarrões, mantenha-se em seu lugar. Não posso te garantir que vá ganhar... Ninguém poderia assegurar. Mas acredito que é bastante provável.
—Você não é nobre. Seu sangue...
—Oh, cale-se. - Disse Dryas a Blaze. - O que é ser nobre? Ele é filho da que dá a loucura, que inspira profecia às mulheres e frenesi de batalha nos homens. Sua casa é a casa do lobo. Era sua líder e também será aqui entre os homens.
Dryas podia sentir o colar em seu pescoço, e não pôde se conter para não tocá-lo. Ele se arrastava como uma serpente sob sua blusa de linho. Maeniel elevou a cabeça e a fitou nos olhos.
—Não sou para ti - Disse ela. - Se voltasse, teria que dar um rei a meu povo e já não posso fazê-lo. Não sou apta para governar.
Mir meneou a cabeça.
—Lobo, um menino estende sua mão para o fogo e diz, é bonito, quero-o, sem entender a verdadeira natureza e o perigo daquilo que admira. Você é ainda como uma criança entre os homens. Suplico-te que olhe em seu coração antes de pegar algo só porque parece atraente ao seu olho inexperiente.
—Não me chamo Lobo, mas Maeniel – Respondeu ele. E voltou para Dryas. - Não havia dito.
—Não. Seu nome é teu e foi sua protetora quem o deu… Um nome e muito mais. Mas o conselho de Mir é bom. Meça-o e logo decida como deve atuar no banquete. Quando pegar uma flor, não pode saber se há ou não uma vespa entre as pétalas, ou uma víbora enroscada em uma coroa. Mas sendo certo tipo de criatura, provavelmente precisará averiguaro. Então boa sorte... Acredito que precisará.
Quando Dryas começava a lubrificar as pontas das lanças, Evars entrou para lhes anunciar o banquete.
Capítulo 18
Lucius organizou o serviço doméstico. O velho porteiro, Octus, parecia um excelente criado pessoal, pelo menos pelo no que a ele respeitava. Era tão calado como havia dito Aristo. Não importunava Lucius, que odiava que o incomodassem. Mantinha limpas suas roupas, fazia a cama, arrumava suas coisas e o deixava tranqüilo para se dedicar ao que quisesse, sem queixa ou comentários.
Lucius deixou passar um dia. Fio estava se recuperando bem e já estava em pé, caminhando e comendo tudo o que Alia lhe levava.
Orelha cortada se mudou para a casa, com suas coisas que trouxera de Ambórux. Consistiam principalmente em mais arma e roupa de lã. O galo era o bastante sofisticado para ter um banqueiro no Foro e Lucius suspeitava que seu dinheiro houvesse acabado ali, salvo a moeda Alia que havia ganhado.
Lucius disse a Octus que ia visitar César e precisava se vestir bem. tomou um banho e Octus lhe levou uma magnífica túnica de linho e seda cor marfim.
—Não é minha. – Disse Lucius saindo da banheira do tepidarium.
—Acredito que sim. Seu pai lhe comprou muitas coisas bonitas quando foste cumprir seu serviço militar. De alguma forma, umas quantas delas acabaram nas habitações de Firminius. Aristo as recuperou.
Era um objeto simples, mas muito bem cortado e tecido. Logo Octus lhe pôs a toga senatorial por cima.
Já era perto do meio-dia e Lucius não se sentia nada impaciente pela entrevista. Não pensava que pudesse acabar decapitado, mas confessar A César que se equivocara quanto à ignorância de Fio não era uma perspectiva agradável.
Quando chegou à casa do ditador, um soldado lhe franqueou o passo como da vez anterior e ele entrou no mesmo peristilo.
A residência era surpreendentemente modesta para um homem da riqueza e poder de César. Mas, ao passear ao redor do lago no centro do jardim, Lucius começou a compreender como um guerreiro cansado de tantas campanhas podia se sentir agradecido por voltar para um lugar tão tranqüilo.
Naquele resguardado jardim, as ervas de inverno, énulas de grandes flores amarelas, salvia com longas puas azuis floresciam por toda parte. Ainda havia rosas, de pétalas que estavam se tornando púrpuras com o tempo; grandes maços de romeiro resplandecendo junto a cada coluna do alpendre; e inclusive ma-me-queres amontoados em torno de um relógio de sol sob um agnocasto de flores azuis, que saíam como lanças da densa e aromática folhagem. Lírios e lótus egípcios floresciam no lago junto a uma vegetação aquática de tom azul que parecia ter sec estendido pelas margens dos lagos do peristilo. Uma estátua separava ambos os lagos. Era uma figura diminuta, de alguma espécie de mármore negro esverdeado. o princípio, Lucius a tomou por bronze, mas ao se aproximar mais viu que era pedra de uma cor estranha.
Já era velha. Devia ter sido feita quando Calpurnia era jovem, pois levava uma toga praetexta, a própria de uma garota solteira ainda por chegar à maturidade confirmou a Lucius que antes ela havia sido extraordinariamente bela. Calpurnia filha do Pison, esposa de César, nascida para viver e morrer entre ambos os homens
Recordou como a havia descrito Fio naquela mesma manhã:
—Sim. - Havia dito o grego. - Uma grande senhora e uma mulher muito doente.
—Não se trata de simples ciúmes de César, como dizem?
—Não. Estão equivocados. Ela compreende os deveres e cargas de estar casada com um dos grandes dragões políticos de sua cidade, e aceita. Foi criada para assumir suas obrigações para o marido, a família, a cidade e inclusive a de tipo social. Sua família está atormentada por um problema de natureza misteriosa e aterradora. Estudei na Alexandria com um especialista em trepanação. Sabe o que é isso?
—Abrir buracos no crânio.
Fio assentiu.
—Exatamente. Calpurnia teme essas enxaquecas por que... Acredita que às vezes levam consigo um conhecimento do futuro. Quem sabe? Pode ser que tenha razão. Predisse a morte de seu pai e a de sua irmã, mas o grande problema é que as dores de cabeça foram se tornando mais freqüentes nos últimos anos. Passaram de duas a três por ano, a uma a cada uma ou duas semanas. São terrivelmente dolorosss, mas breves, só meia hora. E posso torná-las mais curtos administrando uma mistura de ópio, matricaria e valeriana. Mas Calpurnia necessita da cirurgia e não quer submeter a ela. Acredito que é sua única esperança, mas ela teme que possa deixá-la transtornada ou que não sirva para nada, duas possibilidades muito reais. Às vezes, simplesmente não funciona. Um parente de sua mãe se submeteu Àa trepanação e esteve uma semana como morto. Então, para mortificação e desgosto de seus familiares, que já estavam repartindo suas propriedades, se recuperou por completo e sobreviveu até uma idade avançada. Não obstante, sua irmã ficou privada do ouvido e da fala, perdeu o uso do lado direito de seu corpo e morreu, como uma das irmãs menores de Calpurnia: depois de uma noite aparentemente tranqüila, foi encontrada morta por seus criados quando foram despertá-la pela manhã.
—Que misterioso. – Disse Lucius.
—Sim, muito, mas ao menos tem em mim alguém que leva sua dor e seu medo a sério e não o atribui a sua posse de um útero em vez de um rabo e testículos. Estou seguro, por minha experiência na Alexandria, de que sua enfermidade é real e bastante perigosa.
—Mas como?
—Os sintomas aumentando. Quando esta desordem é benigna e pode ser, a freqüência e duração se mantêm estáveis. Mas quando não é e a freqüência ou a gravidade aumenta rapidamente, o físico enfrenta a possibilidade da incapacitação ou inclusive a morte do paciente.
—Muito ruim para uma dama de sua classe, tampouco nada bom para o físico.
—Sim. – Disse Fio torvamente. - E não acha que não tenha pensado de vez em quando.
Mas ao olhar a estátua de Calpurnia, sua juventude congelada em pedra como uma imagem de beleza, graça e deleite, ele pode ver por que César tinha tido que tê-la, permanecendo tão fiel como podia ser um homem de seu tipo durante tantos anos.
Justo então apareceu um secretário para lhe dizer que César o veria naquele momento.
Lucius seguiu o secretário através de dois grandes salas de recepção ocupadas por alguns dos mais importantes, influentes, ricos e poderosos homens de Roma. Conhecia muitos deles da câmara do Senado e tentou evitar suas tiradas porque sabia o que estariam pensando. Por que esta flacucha nulidade do tipo baixo está sendo levada a presença do primeiro homem de Roma antes que nós? E ele também se perguntava.
César estava sentado em um escritório entre dois secretários, que despediu com um gesto quando entrou Lucius. Assinalou-lhe uma cadeira, e Lucius obedeceu.
—Enviou-me uma nota dizendo que queria ver-me.
—Sim, eu... — Titubeou Lucius. E limpou a garganta. - Não fui totalmente sincero... Não, eu justifico. Não é a palavra adequada, preciso é estarmelhor, muito, muito melhor... — Ele notou que sua mãos, suas axilas e sua testa estavam molhadas. - Eu... Fio, não... Eu e Fio... Quero dizer, os dois... Tivemos uma conversa depois de que ele foi... Torturado. Não, na realidade não quero dizer isso... Torturado. Naturalmente, você nunca faria...
—Oh, sim. Eu faria. – Disse César.
—É obvio, o... Aah... Faria-o.
—O que é o que sabe Fio? — César parecia de uma vez suspicaz e zangado.
Lucius começava a se sentir doente.
—Não sabe nenhuma condenada coisa, mas tinha ouvido rumores e já que empenhei minha palavra, pensei que devia...
—Tropeçar com sua própria língua a cada duas frases.
—Sim... Não... Sim...
—Basta! — Ordenou César elevando um dedo. - Respire fundo e me conte esse rumor, Régulo. — César adotou uma expressão divertida.
—Régulo? Fio me chamou assim. Provavelmente tinha razão. Está acostumado a tê-la. O rumor diz que uns cinqüenta senadores há... Que estão considerando a idéia de te matar.
César arqueou uma sobrancelha.
—Cinqüenta. Um bonito número redondo. Soa mais como um grupo faccioso, que como uma conspiração.
—Alguns dizem quarenta – Disse Lucius com gravidade. - E outros sessenta. Eu parti a diferença... À mentalidade mercantil de minha família, César.
—Algum nome?
—Alguns poucos. Quatro deles seguros, dois prováveis. Tilio Cimber, Bagaço, Brutus... — Lucio vacilou. - E Cicero.
—Naturalmente – Disse César. - Cicero me odeia.
—Casio. E o outro é um desconhecido e agora não recordo seu nome.
César elevou a mão.
—Não se incomode, mas obrigado. Sei que vir hoje aqui foi difícil para ti, mas ando ouvindo essas histórias desde que voltei para Roma.
Lucius soltou um suspiro de alívio.
—Então não é nada novo. Bem, então me alegro em ter vindo. Sinto-me muito melhor. Não dá crédito a essas histórias?
César meneou a cabeça.
—Não, não o faço. Sempre são muito vagos e os nomes mudam cada vez. Alguns dos que mencionaste hoje são íntimos meus e estão me esperando na hall para me ver. O que vou fazer? Ordenar meus soldados que levem um ou dois deles ao jardim e os decapitem com o pretexto de que estão tramando uma traição?
—Eles não o veriam como uma traição César, mas como uma forma de serviço ao estado.
César se afastou para trás em sua cadeira e começou a rir.
—Não é divertido! São perigosos.
A risada de César terminou em um sorriso irônico.
—Mas que não se atreveriam.
—É muito para mim. Eu não poderia propor nem aceitar uma aposta assim. Há muito em jogo.
—O que deveria fazer? Carregar os jogo de dados?
—Nos jogos aos que se dedica, os jogo de dados estão sempre carregados, mas eu me asseguraria de ter o melhor par. Não são somente perigosos para você, César. Vim para te dizer que não quero me ver comprometido em suas tramas e preso ao seu destino por nada.
—Uma atitude sensata. Muito bem, pode ir. Mas antes que vá, tenho que adverti-lo. Avalio a amizade de sua irmã e não ficaria bem nenhuma ingerência em seus assuntos e atividades pessoais. Então deixe que a pátria potestas e o chefes de familias fiquem nos códigos legais aos que pertencem.
Lucius sentiu que o cobria uma onda de raiva, tão poderosa que podia senti-la nos batimentos de seu coração e o intumescimento de sua pele. Certo, em parte era gerada pelo medo do tamanho do poder daquele homem, mas o resto se devia ao ultraje ante aquela afronta direta a sua dignidade.
Inclinou-se para diante em sua cadeira, com os dedos brancos sobre as guardas.
—César, Fulvia e eu nos compreendemos mutuamente. Ela fica em seu lado da casa e eu no meu. Ela dirige a maior parte do dinheiro da família, e não me importa enquanto tenha o que queira, e quando o quiser. Mas isso não lhe dá permissão para atacar meus amigos, me soar o nariz ou usar meu membro e meus testicuos para dar um herdeiro à família Basilia. E quanto A esse rato do Firminius, é uma víbora venenosa que tentou afundar as presas no calcanhar de meu amigo. Teve sorte que a lei estivesse do meu lado, porque do contrário teria feito outra coisa e ainda estaria tentando recolher suas tripas do solo de seu perfumado dormitório. Quanto a esses traidores do senado, está certo. Não descida me unir a nenhuma de suas conjurações, mas não porque tema o fracasso, mas porque quando eu cair, pretendo merecer. Merecer verdadeiramente.
César se afastou para trás.
—Todo um Régulo. Sinto-me como se tivesse prendido uma ovelha entre os chifres e resultasse ser um leão. — Ele soltou um desagradável risinho. - Talvez sua irmã tenha razão. Deveria te atribuir um legado e deixar que desafogasse seu temperamento ruim no campo de batalha. Encontrará mais apropriado para aliviar sua considerável tensão de estar ante um homem, com poderees de vida e morte sobre ti e seus duvidosos associados.
Lucius sentiu que sua pele esfriava, mas não estava disposto a ceder. Estava cansado de sofrer humilhações por parte de Antonio e aquele homem. De ser enviado ao Senado como espião. De que lhe dissessem com tão distraída crueldade que cedesse sua posição como cabeça da família. Para coroá-lo com um atentado contra a vida de Fio. Não! Basta, pensou.
—César, algum dia vai conseguir muitos inimigos.
—Sim, pode ser que já o tenha feito, mas não acredito que você seja um deles. Sabe que seu pai me recomendou sua irmã, mas não a ti?
—Não me surpreende muito, César. Não acredito que fosse feliz com minha mãe nem que se preocupasse muito pelo filho que tiveracom ela.
—Acredito que aí poderia se equivocar. O que ele disse de você que era tão inocente como um criança e tão transparente como um copo de cristal. Mas esqueceu mencionar que era tão teimoso como um touro furioso quando se zangava.
—Vindo dele, não eram cumprimentos.
—Não, provavelmente não, mas pense. Todos se equivocam em sua avaliação da candura e da honestidade. A verdade tem suas utilidades. Simplesmente, agora não é popular em Roma. Tem ambições políticas?
—Não.
—Bem, então poderia te oferecer um comando. Nada muito elevado, mas se servir entre meu pessoal, pode ascender rapidamente. Não encontro razões em meu coração para me preocupar com sua inimizade. Um homem que teria algo a temer de sempre te veria vir.
—Supõe-se que devo me sentir reconfortado por isso? Seus inimigos não devem durar muito. Fez com que Vercingetórix fosse estrangulado em seu triunfo e que outro galo, agora não recordo seu nome fosse açoitado até a morte. Falei com um centurião que esteve presente durante a execução.
—Os galos ficaram impressionados.
—E também o centurião e eu mesmo. Obrigado, mas não. Agradeço. Não tenho vontade de me pôr entre você e os partos. Nem agora nem nunca. E sinto o mesmo pelo Senado. Eu teria muito cuidado com esses notáveis, sobretudo os mais próximos a ti.
—Acredita que são perigosos?
—Sim.
—Pois bem. — Por um momento, o governante do mundo pareceu triste. - Eu não acredito. A Roma que destruiu Cartago e derrotou Aníbal desapareceu.
—Sim, estou de acordo, mas eles não sabem. Sua forma de pensar não acompanhou o passar do tempo. Acreditam que o Senado seria novamente o que foi, se os novos homens que o poluem fossem expulsos. E se você estivesse morto.
A máscara caiu. O pano de fundo se abriu e pela primeira vez, Lucius viu o homem em si. Ou pelo menos foi o que pensou mais tarde, quando estava sozinho e meditando sobre as palavras de César.
E por um instante compreendeu como alguns homens podiam ter considerado um favor que ele lhes permitisse se suicidar antes de enfrentar um castigo ideado por ele.
O rosto de César era como de pedra, tão imóvel que quando um músculo se agitou em uma bochecha, Lucius se encolheu como se ele o tivesse prendido. Sabia que se encontrava em um perigo mortal e que se o ditador o quisesse morto, estaria em questão de momentos.
A voz do ditador adotou um tom selvagem dirigido expressamente a ele.
—E acredita que pode ficar de lado? Como disse, ficar em seu lado da casa e sua irmã no dela? Bem, pois não pode. Queira ou não, você é um jogador nesta partida e deverá aceitar o resultado. — César se inclinou para diante, fitando Lucius nos olhos. - Sabe quando se converteu em jogador?
—Não.
—No dia que seu pai me enviou o dinheiro para equipar uma legião e pagar os homens durante um ano. E outra vez quando cruzei o Rubicon e sua irmã me deu o custo de outra legião adicional e seu pagamento por um ano. Ambos multiplicaram por sete esses investimentos... E sete é um cálculo precavido. O mais provável é que fosse por dez ou por quinze. O ouro dos galos fez baixarem um terço o preço do áureo. A flor de sua juventude foi leiloada em Roma ou encadeada em grupos para trabalhar nos campos das propriedades da família Basilia. Os galos morreram em suas minas, cultivaram seus vinhedos e derramaram um dourado riacho de azeite e trigo nas arcas de seu pai. Cavalos e um rio púrpura de vinho entraram em seus navios para ser vendidos com desconto a todos os bárbaros daqui à Ilha Branca. Então te presente: tanto minha amizade como meu respeito podem ser comprados, mas não saem baratos. E se quiser ambas as coisas e a liberdade de viver como quer, terá que se colocar no jogo, pegar os dados, fazer sua aposta e jogar! Estou de acordo que o que disse seu pai não foi cumprido, mas acredito que pôde se equivocar. Às vezes, quem é incapaz de enganar os outros são por sua vez muito difíceis de enganar e em seu caso pode que seja assim…
—Alongaste a mão.
—Sim, e não a estendo como sinal de amizade. Está assim desde que pronunciei meu primeiro discurso na Rostra, a mais anos dos que eu gosto de lembrar. Agora, vá! Tenho muitos outros assuntos a resolver hoje, e já passei bastante tempo contigo. Farei questão de acreditar que não foi tempo perdido. Volte quando estiver preparado para falar de negócios.
Lucius se levantou com a boca aberta e a cabeça dando voltas, e partiu.
Não se sentaram juntos no salão. Havia três filas de mesas redondas em torno do fogo e outra, elevada, em forma de meia lua. O chefe Cynewolf se sentava ali e como que não havia forma de evitar, Mir, Dryas e Blaze tiveram que fazer o mesmo, pois eram da fila mais alta. Mas Maeniel, que aparentemente carecia de classe, ficou sentado na terceira fila, perto da porta e exposto ao frio. Embora não reparasse na temperatura foi consciente da ofensa.
Sob a mesa de honra, os seguintes em classe se sentavam com seus servidores, entre os quais se achavam muitos dos artesãos e trabalhadores do povo e suas famílias, com exceção das crianças pequenas.
Maeniel se sentou no terceiro circulo interior, em companhia dos guerreiros de classes adscritas ao serviço da casa e suas mulheres. Evars estava ao seu lado. Apropriara-se do assento na noite seguinte ao primeiro encontro sexual, no qual Maeniel dissera que estava satisfeito com sua atuação. Ela era uma criada e geralmente os criados comiam sentados no chão, nos armazéns anexos à cozinha.
Evars havia sido comprada de uma tribo situada mais profundamente nas terras selvagens mais à frente do Anel, e falava galo, o sotaque da Gália, fortemente, bem mais gutural que ao qual Maeniel estava acostumado.
Cynewolf liberou seus escravos, não pela bondade de seu coração, depois de que os romanos incendiaram o povo pela primeira vez. Muitos tiveram que procurar outro trabalho porque simplesmente ele não podia dar de comer a todos. Quem tinha um lugar aonde ir, partiram. Outros, como Evars, que sequer podia dizer de onde procediam e nem recordavam os nomes de seus pais, ficaram. O Oppidum era seu lar, o único que havia conhecido.
Pelo que a ela concernia, Evars era a mulher de Maeniel. Chegara a ameaçar uma garota morena que também se dera conta de que ele era assombrosamente belo, amável, um amante perito e, embora não fosse rico era generoso com o que tinha. Ela usou uma comprida faca de um só fio, oculta sob a saia, que carregava em uma bainha feita com o membro de um touro, para convencer a garota de sua determinação. A morena captou a mensagem e ignorou Maeniel rapidamente. Estava claro que Evars sentia que sua ascensão se devia a sua relação com ele.
O salão estava quase belo aquela noite. Tinha tecidos pendurados do teto acima das mesas. As bandeiras estavam pintadas com as cores que marcavam as heranças das poderosas famílias que apoiavam Cynewolf, cada uma com seu próprio padrão e combinação de cores. Verdes, amarelos, todos os matizes da mais pálida luz do sol ao verdor do verão, vinho e vermelho sangue ondulavam e dançavam nas bandeiras, marcadas com os símbolos honrados por cada família. Serpentes, dragões, aves fantásticas, inclusive o urso e o lobo, destacavam-se sobre as escuras pranchas de carvalho que formavam o teto.
As tochas brilhavam nas paredes. Havia treze paredes, cada uma com uma tocha colocada em um suporte que se projetava acima das mesas. Pálidas peles de cervo cobriam os bancos e as mesas estavam adornadas com toalhas. Havia música e canções: os cantores passeavam pelo corredor.
A pessoa mais importante pedia canções de elogio a tal pessoa ou família e uma atmosfera geral de alegria e celebração enchia o ar.
Junto a Maeniel, Evars parecia preao ao humor generalizado. Sorria, e mudava de um lugar a outro o hidromel previsto provavelmente para os homens.
Estranhamente, Maeniel foi se sentindo cada vez mais irritado à medida que progredia a velada. Recordou-se, tremendo, a reunião de fantasmas que precedeu à morte de Imona. Apesar das risadas e dos cantos, submergiu em uma atmosfera de antecipação. Ignorou o hidromel e bebeu somente um pouco de vinho rebaixado com água.
Um dos distintos convidados assinalou Actus, que estava sentado com os guerreiros da segunda mesa. Houve uma risada geral e Maeniel compreendeu que estavam falando dele. Não que soubessem a verdade. Alguém estava contando novamente como Actus colidira com um cão que, depois de se converter em homem, tinha-lhe acertado um murro na cara.
Actus avermelhou quando uma gargalhada percorreu a pequena mesa de honra. Mas Cynewolf não parecia divertido. Tampouco Dryas, Mir ou Blaze. Quanto a Actus, ele se limitou a olhar a resplandecente companhia de seu chefe.
Maeniel acrescentou mais água ao seu vinho. Descobriu que já não queria desafiar ninguém pela parte do campeão.
Os cozinheiros tinham começado a tirar os pedaços de carne das chamas. Deixavam-nos sobre uma mesa perto do fogo e passavam pratos aos comensais.
Os pedaços maiores, como pernis e costelas passaram acima das cabeças dos companheiros de Maeniel, até Cynewolf e seus convidados. O cacique os repartiu com generosidade.
Os companheiros de mesa de Maeniel receberam sobras, pedaços pequenos e molho, dando-se por satisfeitos molhando pão nos sucos da carne ou levar pequenos bocados aos lábios com as mãos. Maeniel relaxou e se uniu a eles.
O porco, marinado e depois cozido em pimenta, canela e vinho, estava delicioso foi seguido uma sopa, com mais pão. Pão com amêndoas, avelãs e pinhões dentro da massa.
Evars bebeu mais hidromel. Entre o calor do fogo e a forte bebida, sua pele tinha adquirido um bonito rubor e as mechas de cabelo loiro que tinham escapado caíam em graciosos cachos que emolduravam seu rosto.
Ela o beijou, evidenciando o sabor de hidromel e molho. Maeniel não mostrou objeção e pensou em se reunir a ela mais tarde no celeiro. Embora todo mundo estivesse a par de sua relação, ele não possuia um lugar privado onde levá-la, e começava a se sentir irritado por isso.
Estava pensando que teria que fazer algo para encontrar uma boa parcela de terra no ano seguinte e cultivá-la, quando viu a sombra perto do fogo.
Ele se separou de Evars por um momento e viu leão, com capa e capuz, em pé entre ele e as chamas, com a mãe da alcatéia junto ao seu joelho.
Um vasto silêncio pareceu cair em torno de Maeniel. Leão estava morto, e também a loba. Seus ossos jaziam sob a terra e a rocha na ladeira da montanha, coberta agora de neve. Leão não era mais que um monte de ossos enegrecido e roídos sob uma tília.
Maeniel olhou Leão nos olhos e soube que ele estava de verdade ali. Não uma sombra do que antes havia sido ou uma lembrança errante, mas uma presença consciente. Enquanto o olhava, Leão o saudou com demencial diversão. Oh, sim, ele estava ali e desfrutava de alguma piada secreta.
Ele não podia estar tão seguro sobre mãe da alcatéia. Parecia um pouco mais nebulosa e remota, como se tivesse chegado de ainda mais longe. Fitou-o um momento e logo elevou os olhos. Maeniel seguiu seu olhar até a mesa que Actus estivera sentado, mas o ruivo já não estava ali.
Quando Maeniel voltou a olhar para as chamas, Leão seguia ali, mas a loba havia desaparecido.
—Evars. – Ele sussurrou. - Vá! Agora mesmo! Se apresse!
—O que? — Perguntou ela um tanto enjoada. A bebida nublava seus olhos.
Ele pegou a mulher pelo braço e apertou os dedos. Ela se queixou, dando um puxão.
—Vá! Já! Agora mesmo! Vá!
Ela não obedeceu. O que fez foi esfregar o braço machucado pelos dedos de Maeniel.
—O que acontece? Está me fazendo mal.
Maeniel se levantou, puxando-a.
Todos os comensais riram e Maeniel pôde ouvir algumas piadas sobre a impaciência de certos homens, mas ele segurava Evars, cuja força não era rival para a dele e tirou-a para fora em um momento.
Ele podia contemplar todo o povo dos degraus do salão. Sua visão noturna era melhor que a de qualquer humano. De onde estava, pôde ver que as portas estavam abertas, e que sombrias silhuetas de homens armados avançavam pelas ruas.
Levantou Evars sem mais cerimônias, lançando-a por cima do muro. A criada aterrissou com um grito do outro lado e Maeniel se voltou a tempo de se esquivar um lançasso na paliçada. Arrebatou a lança de seu atacante, lhe rompendo o braço no processo. O homem gritou, procurando sua espada com a mão esquerda.
Maeniel lhe afastou o braço e tirou a arma de sua bainha. Apontou para o estômago do homem, mas a lâmina escorregou sobre sua couraça e atravessou a garganta.
Ele olhou ao seu redor e viu que não havia ninguém mais perto. Saiu correndo para o salão, notando brilhos de luz no céu. Uma dúzia de flechas chamejantes atravessou o ar, cravando nas paredes da morada de Cynewolf.
Maeniel sabia que estava gritando, mas não estava seguro do que dizia quando subiu os degraus da entrada. Atravessou a porta rolando e se deteve justo antes de cair no fogo.
De joelhos, com a espada ensangüentada em uma mão, ele contemplou os rostos que lhe rodeavam. Por um instante que pareceu durar mil anos, observaram-lhe inexpressivos, boquiabertos... E então os gritos começaram.
Não havia saída. O salão se encheu de fumaça em instantes. Seus ocupantes, movidos pelo pânico se pisoteavam e lutaram entre si para chegar até a porta, mas cada homem ou mulher que saía era eliminado sem piedade pelos atacantes no fora.
O telhado estava em chamas. As vigas estavam cobertas unicamente de palha. Uma terrível luz laranja, bem mais brilhante que a de uma tocha, iluminava tudo. Procedia das orgulhosas bandeiras penduradas das vigas. Elas estavam ardendo, caindo em pedaços de tecido em chamas sobre a massa humana abaixo.
A úmida camada de fora de palha resistiu ao fogo por poucos momentos, consumindo-se depois com um rugido que encontrou eco no gemido de desespero dos que estavam presos no edifício. O telhado inteiro parecia uma massa de radiantes brasas.
O lobo viu morrer o cacique. Uma das bandeiras caiu sobre seus ombros e sua roupa incendiou. Cynewolf saltou, correndo por entre as mesas até acabar como uma massa enegrecida que se retorcia no centro da estadia.
Dryas havia seguido Cynewolf, tentando ajudá-lo. Deteve-se junto a Maeniel e afastou o olhar dos restos do cacique. Estava com a espada na mão e uma gélida calma parecia rodeá-la.
O lobo viu as estrelas no céu, sua serena beleza em contraste com o indescritível caos que a rodeava. Pôde ouvir a voz de Dryas acima do alvoroço:
—Devemos passo. Não temos outra opção.
Maeniel arrancou uma seção da mesa de suas fixações no chão. Não viu Dryas tirando algo do pescoço e jogando-o no centro do fogo. Equilibrou a mesa em suas mãos e levou-a para a porta.
Dryas o seguiu. A mesa estrelou contra os postes da porta e, por um terrível momento, Maeniel temeu que os postes resistiriam. Então ele sentiu o peso da multidão à suas costas: com um estalo, os postes se partiram como galhos secos e todo um lado do edifício veio abaixo.
Na rua, os atacantes tentaram avançar para se aproximar de suas vítimas, mas atuavam com maior prudência. Um lado inteiro do telhado caiu ao chão, como o palheiro em chamas que era aterrissando entre os grupos. Por uns instantes, o fogo manteve a raia os atacantes, permitindo que a multidão empreendesse a fuga.
Embora as chamas já se elevassem entre eles, Maeniel notou que Dryas não corria. Então que ficou com ela. Os sobreviventes estavam tão desmoralizados que nenhum deles tentou lutar, embora provavelmente superassem em número os atacantes. Havia muitas mulheres entre eles e outros eram velhos como Blaze ou Mir. Fugiram para a noite por cima da paliçada, mas Dryas enfrentou seus inimigos, tentando dar tempo aos mais velhos e fracos para que escapassem.
Maeniel pensou que teria feito melhor se preocupando consigo mesma e viu que tinha razão quando um cavaleiro dos atacantes gritou:
—É ela! Não deixem que escape! Cem áureos ao homem que a pegar! Peguem-na!
Os soldados investiram contra Dryas, elevando seus mantos para proteger o rosto ao atravessar o muro de chamas. Dryas cortou a garganta do primeiro que entrou ao seu alcance e logo cravou a espada no olho do seguinte.
E Maeniel era novamente o lobo cinza. Raiva e selvagem deleite emanavam de seu coração. Lançou-se contra o terceiro atacante e rompeu a perna do quarto. Mas ele sabia que eram muitos e a rua muito larga. Não demorariam em ficar rodeados.
Dryas estava retrocedendo quando o lobo viu uma sombra abatendo-se sobre eles. Seu uivo de aviso chegou muito tarde.
O chamejante esqueleto do salão, com os madeiros em chamas destacando no céu, caiu sobre eles.
Maeniel voltou e correu, mas Dryas estava travada em combate com um de seus adversários e não podia liberar nem ser liberada. Não a tempo.
Os madeiros se desintegravam enquanto caíam. Um deles acertou Dryas na cabeça, despedindo cinzas e emoldurando seu rosto entre brasas. Seu adversário elevou o escudo para se proteger dos escombros. Logo recolheu a mulher e sua espada, a colocou sobre ombro e fugiu.
Lucius caminhava sem estar muito seguro sobre onde ia. Simplesmente caminhava. As ruas estavam lotadas e negócios de todo tipo se desenvolviam ao seu redor. No pavimento, os mercadores vendiam de tudo, desde sexo a reparações domésticas.
Em uma quadra de casas, uma garota se ofereceu por dois porcobre. Prometeu lhe se estender atrás de um templo próximo ou mesmo dentro do santuário, se ser visto fosse um problema para ele. Ele aceitou e pagou à moça, mas uma vez dentro do santuário se sentiu completamente incapaz de fazer alguma coisa.
Havia escurecido e a única luz entrava por duas aberturas no telhado sobre o altar. Não havia estátua, nem nome nas paredes de terracota e o altar propriamente dito era um bloco quadrado de mármore com um friso na base e na parte superior.
A garota se assustou ao ver que ele não podia fazer nada, mas Lucius lhe deu outra moeda de cobre, dizendo que queria ficar ali com seus pensamentos. Lucius ficou no fundo do templo, apoiado sobre a parede e escutando os distantes ruídos da rua.
Não chegou a nenhuma conclusão, mas pelo menos sua atormentada mente se tranqüilizou um pouco. Aproximou da laje do altar. No degrau mais próximo havia uma jarra de bronze, uma bandeja com umas quantas peças de fruta, uma terrina cheia de água e uma taça. A taça parecia também de bronze. Era uma simples peça de metal dourado com estrias na borda mais estreita na base.
Sem entender muito bem o porquê, ele elevou a jarra e se serviu seu conteúdo na taça. Logo bebeu.
O templo desvaneceu. Lucius sentiu que se encontrava em algum lugar perto da Via Apia. Altos ciprestes cresciam ali, dominando a estrada e margeando-a. Andava por um atalho coberto de mirto e musgo e bordeado por lírios. Nunca tinha visto flores como aquelas. Eram trompetistas de chamas, de cores vermelho e amarela. Espalhadas entre as mais vistosas havia emplastros marfim e inclusive brotos verdes. Andava sob a fria e úmida sombra dos ciprestes.
Diante dele, uma estrada de pedra cortava o caminho que estava percorrendo e ouviu hastes as suas costas. Apressou-se em se afastar para um lado do caminho, ficando em pé entre os lírios.
A presa chegou primeiro. Tratava-se de um gigantesco javali e Lucius se alegrou de que os caçadores estivessem quase o alcançando. Não gostaria que aquele animal parasse perto dele. A fera tinha a boca aberta, as mandíbulas cobertas de espuma e presas quase tão compridas como seu antebraço. Os feios olhos porcinos passaram sobre ele, brilhantes de raiva, e a fera se voltou para o apavorade Lucius. Ante um monstro como aquele, ele estava indefeso.
Mas os sabujos estavam já bem perto. Eram os sabujos maiores que Lucius tinha visto em sua vida, mas não havia dúvida de que eram sabujos, esbeltos, ligeiros, de corpo pequeno e curto, espessa pelagem marcada e docee clara voz.
Lucius abriu a boca ao ver os caçadores. Todos os cavalos eram brancos, brilhantes como se seus mantos fossem de madrepérola e as selvagens crinas e caudas recordaram às nuvens que vão se desfazendo em neblina. Cavalgaram para ele, que estava ligeiramente estendido. Lucius tentou se erguer, dando um involuntário repuxão em sua cicatriz.
Um raio de dor percorreu suas costas, lhe fazendo cair sobre um joelho. Levantou os olhos tentando ficar em pé. Ao mesmo tempo soube que estava condenado, pois o homem que cavalgava diretamente para ele lhe pisotearia. Mas não tinha contado com ela, que apareceu por atrás do líder. Seus arreios eram negros, em uma rica e brilhante escuridão como o céu noturno coalhado de estrelas. O peso do enorme animal fez deslocar o brilhante cavalo branco, afastando-lhe de Lucius. Ela passou a poucas polegadas dele e seu pé direito lhe roçou o ombro.
Ele contemplou boquiaberto como as duas magníficas criaturas alcançavam a estrada, um caminho reto feito de brilhantes e polidos blocos hexagonais de pedra. Ao chegar ali se elevaram no ar, flutuando como pássaros sobre a estrada.
Lucius se se voltou, saltando novamente à margem do caminho para ver melhor o que acontecia, mas tropeçou e se encontrou engatinhando sobre o chão do templo.
O lugar no qual estivera desapareceu. A taça e a jarra tinham desaparecido do altar, mas a terrina seguia perto de onde estivera antes. Ele descobriu atônito que estava olhando a superfície da água, mas era o rosto dela que lhe devolvia o olhar. Era o rosto da mulher que havia impedido que o pisoteassem.
Mas ao pensar durante alfuns instantes na questão, decidiu que não podia ser seu rosto. A mulher do corcel negro como a meia-noite tinha o rosto de uma deusa sem marca e nem defeitos. A mulher de cabelo escuro e rosto imóvel estava com as mechas do cabelo saindo de uma touca que ele não podia ver e embora sua face fosse tão perfeita como se fossem cinzeladas em mármore, mostrava uma contusão na bochecha direita e um pequeno machucado sob o olho esquerdo. A mulher fechou os olhos. Lucius se perguntou se estaria morta e sentiu uma repentina tristeza que o surpreendeu. Depois, por que devia se preocupar se uma mulher completamente desconhecida para ele deixava o mundo ou não? Estendeu a mão para ela, mas a terrina desapareceu ao tocar a água.
Lucius seajoelhou sobre o piso poeirento. Não havia altar, nem jarra, taça, terrina ou bandeja e a única luz chegava da porta, aparentemente longínqua, que dava para a rua.
Quando chegou a ela, compreendeu que havia se deslocado do fundo do templo. Descobriu horrorizado que a porta estava obstruída por uma grade de ferro. Seu terror o impulsionava tanto como qualquer outra coisa. Mas ao tocar a grade, notou com alívio que ela se abria. Desceu pelos degraus até a rua, sem voltar os olhos para trás até chegar ao Foro, que não estava muito longe.
Não podia ver o templo de onde estava. Quando colocou a mão entre as dobras de sua toga para comprovar sua bolsa e ver se se havia ficado sem dinheiro, deu-se conta também de que tinha uma ameixa na mão. Olhou-a surpreso, e logo se lembrou da bandeja com frutas no templo. Era uma formosa fruta e ele estava faminto. Sua casca era suave, com o tato sedoso da maturidade, e por um instante ele pensou em comer-lhe
Mas então lhe arrepiaram os cabelos da nuca ao se recordar de onde a tinha tirado. Era luminosa, diferente de qualquer fruta deste mundo. Azul com matizes violetas, de cor e fragrância deliciosas, levava em si a essência de todas as frutas. Ele guardou-a sob sua toga e examinou sua bolsa.
Sim, estava com o dinheiro... Uma boa soma, de fato. Viu que as bancas estavam ficando vazias ao seu redor e que o sol estava alto. Era a hora da sesta. Restava um pouco de gente e algumas tendas seguiam abertas.
Contemplou a Casa do Senado e os jardins públicos dominados pelo Teatro do Pompeu e o Templo de Vênus.
Andou ao longo da fileira de lojas e viu uma conhecida em um portal... Lucrecia. A jovem se voltou para ele, com expressão de reconhecimento e retrocedeu para as sombras de sua loja de comidas.
Ele encolheu os ombros e seguiu adiante, mas naquele momento uma mocinha morena lhe tocou o braço.
—Senhor! Belo senhor! Minha senhora quer lhes falar.
Lucius seguiu a garota até loja de comidas em que tinha visto Lucrecia. Era um lugar pequeno e muito limpo. Não havia clientes naquele momento, mas bancos e mesas que mostravam indícios de uso freqüente.
A garota, que não era mais que uma menina, conduziu Lucius através do local até um pequeno jardim de ervas com uma parreira, uma fonte e um relógio de sol. Havia uma mesa sob a árvore e ela o fez sentar em uma cadeira de palha antes de partir. Voltou em seguida com uma bandeja com azeitonas, queijo e vinho.
As azeitonas estavam aromatizadas com diversas especiarias e marinadas e o queijo era também de vários tipos. O vinho era do tipo elaborado nas montanhas perto da costa: branco, doce, fragrante como uma neblina de outono, carregado com aromas de fumaça, maçãs, castanhas e erva-doce.
O sol da tarde lhe esquentava o pescoço e a face. O céu era de uma brumosa cor azul.
Lucius relaxou e entreteve seu apetite com as azeitonas e o queijo. Ao cabo de um momento, a menina voltou com um guisado de frango e verduras e uma bandeja de pão cortado em seções com forma de bolo e aromatizado com queijo.
Ele usou os dedos para comer o guisado e molhou o pão nos restos do molho. Pensou que era uma das melhores e mais deliciosas comidas que tinha desfrutado em sua vida.
Quando a menina levou os pratos, Lucrecia apareceu com uma bandeja de pasteizinhos de mel.
—Como está Fio? — Ela perguntou.
—Sente-se. – Disse Lucius.
—Eu não...
—Não me importo. Sente-se.
Lucrecia se sentou sobre um pequeno banco, do outro lado da mesa.
—Fio não está de todo bem. Foi torturado e passou muito mal.
—Oh, não! — Sussurrou ela, cobrindo o rosto com as mãos.
—Não se preocupe. Provavelmente lhe salvou a vida.
Lucrecia deixou cair às mãos no regaço e olhou para o jardim, onde cresciam em abundância, pulcras filas de salvia, mirto, erva-doce, couve e hortelã.
—Venho da casa de César. – Disse Lucius. - Há alguém mais aqui?
—Não. – Respondeu Lucrecia, adotando por um momento expressão de suspeita. - por quê?
—A menina?
—Não está. Foi para casa com sua mãe. Pago-a alguns poucos cobres por semana para que me ajude a ter isto limpo. Não é meu. Sua proprietária é Myrtus, a tia de Felex. Ela me aluga a loja e eu lhe pago uma quantia todas as semanas. Se tudo for bem, a loja será minha dentro de dez anos. – Ela explicou, cruzando os dedos. Por que pergunta? — Ela insistiu.
—Para te contar o que me disse César.
Lucrecia se inclinou para diante, apoiando o queixo nos dedos.
—Faça-o, por favor.
Lucius lhe narrou sua conversa com o ditador
—Sei. - Disse ela com calma. - Então é assim que funciona. Cabeça de gado público, governo do povo. Escolhe o bando, põe sua moeda nas mãos de quem quer que ganhe e os vencedores ficam com tudo.
Assentindo, Lucius comeu um pasteizinho de mel e bebeu um pouco de vinho.
—O que pensa? Deveria pagar?
Os dois contemplaram o movimento do sol e a sombra no relógio indicou que tinha passado mais de uma hora desde a chegada de Lucius.
—Sabe como cheguei aqui? — Perguntou Lucrecia.
Lucius meneou a cabeça,
—Não.
—O latifundiário queria jogar meu pai de sua granja, e meu pai o desafiou. Sabe o que aconteceu?
—O latifundiário fez com que lhe dessem uma surra. Ou que o matassem?
—Uma surra, mas ele morreu por causa dela. Os homens de César chegaram. Meu irmão, que era alto e forte, partiu com as legiões. Disse que voltaria com dinheiro para pagar o latifundiário, mas não o fez. Minha mãe morreu naquele inverno e o latifundiário me vendeu para saldar as dívidas. —Lucrecia o fitou diretamente nos olhos. - Lucius, eu acredito que mesmo os deuses se compram e se vendem. Os sacrifícios, touros, carneiros, vacas e pombas comprados pelos ricos e poderosos afogam os deuses com seu sangue e sua carne e os cegam com fumaça e incenso até que esquecem que virtude é a justiça, se é que alguma vez souberam.
—Sim. – Disse Lucius. - E minha irmã é casta.
—Sei. Eu não posso dizer o mesmo. O primeiro lugar ao qual me venderam era um bordel. Ali fui vendida uma e outra vez, em ocasiões até quarenta vezes em uma noite, até que voltei minha face contra a parede e rechacei a comida e a água. O dono me vendeu com a esperança de recuperar seu investimento antes que eu morresse. Sim, Lucius, pague César. Pague-lhe e se considere afortunado em poder proteger as pessoas que ama. Eu só lamento não ter conseguido cuidar dos meus. Proteja-os de sua casta irmã e de seu pequeno rato Firminius. E proteja s si mesmo. É um bom homem, e só por isso já temo por ti.
Ao sair, Lucius viu que a hora da sesta já tinha passado e a rua estava novamente cheia de gente. Ele deteve-se na porta e obrigou Lucrecia a aceitar uma moeda.
—Pela comida. - Disse.
—Não, não. – Respondeu ela, tentando devolver-lhe
Lucius meneou a cabeça.
—Myrtus é uma grega muito prática e não aprovaria que desse comida de graça. — Logo partiu rapidamente.
Lucrecia colocou a moeda no bolso de seu vestido. Não a recordou até a noite, quando já tinha fechado e estava se preparando para deitar, trancando o cabelo à luz da vela. Ela tirou-a do bolso e viu que era um aúreo.
Capítulo 19
Dryas despertou na escuridão, com a cabeça atormentada por um lento e torpe batimento do coração. Estava amarrada de pés e mãos e em um carro. Não só em um carro, mas também em um que conhecia todos os buracos e saliências do caminho. Tentou abrir os olhos, mas suas pálpebras deram com um pano apertado sobre eles. Haviam lhe enfaixado os olhos. Sentiu náuseas.
Recordava ter jogado o colar ao fogo. Alegrava-se, inclusive naquela feia situação, de ter se liberado da carga de aprisionar uma criatura que havia chegado a admirar mais que qualquer outra coisa. Tinha visto Cynewolf morrer e estava enojada até o fundo de sua alma pela parte que tinha tido naquilo. Todo o assunto havia sido um desastre desde o começo. Sua vida havia terminado. Não poderia suportar a escravidão.
Ouviu vozes fora e o ruído de arreios de cavalo. Dois homens conversavam eum deles tinha uma voz como cascalho deslizando.
—Ela me pagou. – Disse Voz de Cascalho. - Boa coisa. Esta aí não vai durar. Se chegarmos a embarcá-la.
—Seria uma novidade em Roma.
—Não acredito que ela se deixe fazer isso. Nunca conseguirão levá-la até a arena. E tampouco acredito que seja isso o que tem em mente essa puta Basilia. O que lhe importa o povo? Não, esta está destinada a uso particular.
—Para ela?
—Sim! Não! Quem sabe? Ou para alguém com gosto pelo extraordinário. Ela nos custou: Miletus, Floresço, Escipión...
— Eles queriam voltar ricos para casa, como você.
—Tilio não voltará a andar e Achillas passará um mês urinando de barriga para baixo.
—Aquilo foi o cão.
—Cão! Meu traseiro, um cão! — Repôs Voz de Cascalho. - Não apareceu até que ela cruzou espadas conosco. Não... Além disso, é uma bruxa. Alguns legionários de César toparam com elas em Alvorada e dizem que são piores que os homens. Bem piores. Diz-se que os homens se deitam onde acreditam ser um lugar seguro para dormir e acordam com a garganta atalho. Essas zorras colocam facas dentro do sexo. Se entrar nelas, você sai trinchado como uma salsicha. Que fique com essa puta Basilia. Quando chegarmos a Messene, vou me mandar. Pegarei meu dinheiro e comprarei uma granja na Campania. —Voz de Cascalho soava aliviado. - Nem embarcarei com vocês. Provavelmente ela seja capaz de invocar uma tormenta e afundar o navio antes que cheguem a Ostia. Eu teria isso em conta, tratando-se de uma dessas bruxas.
Roma. Fulvia quer me levar para Roma. César está em Roma, pensou Dryas.
Os cavalos dos homens aceleraram o passo e ficaram adiante do carro, de forma que Dryas não pôde seguir ouvindo a conversa. Não obstante, pôde ouvir Fulvia falando com Voz de Cascalho. As respostas do homem soavam insolentes, mas Fulvia insistiu e por fim pareceram chegar a um acordo, pois o carro se deteve pouco depois. Dryas notou que subiam duas pessoas, uma mais leve que a outra. Fulvia e Voz de Cascalho, ela pensou.
Um instante depois, ela sentiu que mãos exploravam seu corpo. Mãos grandes.
—Desatarei-lhe os pés. – Disse Fulvia com doçura.
—Não desate nada! – Respondeu nervoso, Voz de Cascalho. Suas mãos se moveram sobre os seios e o estômago de Dryas. - Nada. – Ele repetiu.
Dryas tentou permanecer quieta e o homem a fez rolar sobre um flanco.
—Atrás. Aaah... Aqui está – Ele disse, lhe tirando uma faca que estava pendurada no pescoço.
—Agora as partes interessantes. - Comentou Fulvia.
—Não me interessa nada desta porca – Disse Voz de Cascalho. - Vi como ela matou três de meus homens. E se for preparada, minha senhora, deixará que eu lhe corte o pescoço agora mesmo e a enterre em um cruzamento do caminho, com uma estaca no coração e uma pedra bem pesada em cima, para que não possa se levantar e correr com seus amigos, os lobos. — Enquanto falava, ele mediu o ventre e as nádegas de Dryas. Logo procurou entre suas pernas. - Sim, aqui há outro, preso à coxa. Tem todo o equipamento necessário para...
O homem deixou de falar, pois havia levantado a túnica de Dryas e metido a mão sob suas meias para pegar a faca que ela levava oculta ali. Procurou pegá-la pelo pomo para soltá-lo, mas se descuidou, deixando que o fio como uma lâmina arranhasse o estômago de Dryas.
—Sinto muito. - Disse.
—Sente muito! — Gritou Fulvia. - Não a marque! Além disso, ante quem está se desculpando? Ela está inconsciente.
—Não, não está. – Disse Voz de Cascalho. - Está fingindo com a esperança de que nos acreditamos, mas notei como se encolhia um par de vezes. Sabe o que está acontecendo, mas não há nada que possa fazer a respeito. —Suas mãos desceram pela perna de Dryas enquanto falava. - E outra mais no tornozelo. – Ele acrescentou lhe tirando a arma. - Agora a deixarei contigo, minha senhora.
—Está seguro de que não quer receber algo por todo seu tempo e esforços? — Perguntou Fulvia. - Entre os três, poderiam baixar essas calças que usa e...
—Forçá-la... – Disse Voz de Cascalho.
—Por que não? —A voz de Fulvia soava rouca por...
Dryas não estava segura, mas fosse o que fosse o que Fulvia sentia tentava dissimular o melhor possível.
—Não, minha senhora. A violação é um gosto adquirido, mas eu não o adquiri em todos os meus anos como soldado. À parte, pague-me para que lute por você, não para que a entretenha.
Dryas ouviu acelerar a respiração de Fulvia, mas a romana não disse nada mais. Os tábuas do carro rangeram quando Fulvia desceu do veículo, mas Dryas sabia que Voz de Cascalho devia estar ainda com ela, então que se armou de coragem.
A violação na guerra era um risco compartilhado por homens e mulheres. Naquele mundo, o abuso sexual era algo comum. Talvez um pouco mais freqüente sobre as mulheres, mas os homens, sobre tudo os jovens, também enfrentavam o uso de seus corpos contra sua vontade. Dryas ensinava a seus estudantes a esperar o pior e se preparar para atuar com dignidade e valor. Esperou ser capaz de se mostrar forte naquela terrível situação, mas francamente se sentia mais ofendida e irritada, que furiosa. Estava machucada e ferida em uma dúzia de lugares e agora Fulvia e aquele miserável pedaço de merda queriam aumentar suas misérias. Desejou um desagradável destino ao casal, se Voz de Cascalho seguisse a sugestão de Fulvia.
—Não, bruxa. Não vou me deitar contigo. – Disse Voz de Cascalho. Dryas ouviu o tinido de uma bolsa de moedas. - Já tenho o que quero. Oxalá teria feito no caso de te cortar a garganta. Você estaria melhor e ela também. — O homem saiu e a deixou sozinha.
O carro não voltou a se mover e os ruídos indicaram a Dryas que seus captores estavam se preparando para passar a noite ali. Perguntou quanto tempo teria passado desde sua captura. Provavelmente somente um dia, mas não havia forma de assegurar. Rodou sobre um flanco até ficar estendida sobre algo brando, como tecido sobre palha. Não estava muito incômoda.
Ao cabo de um momento, ela cheirou comida, mas ninguém lhe ofereceu nada. Não se surpreendeu e acabou por dormir.
Quando despertou novamente, pôde ouvir os sons da noite, do vento e da chamada de uma coruja perto. Fazia frio no carro, mas alguém, e ela estava disposta a apostar que não se tratava de Fulvia, a havia coberto com uma manta áspera e não muito limpa. Cheirava a esterco e suor de cavalo.
Estava com a cabeça mais limpa e sua enxaqueca havia desaparecido. Deveria estar agradecida pelos pequenos favores. Pelo menos a manta me abriga, ela pensou. Iniciou o processo de se estirar, tentando evitar que seus membros ficassem duros. Começou pelos pés e os tornozelos, logo as pernas, o torso e os braços. Estava pensando em tentar se voltar e em como fazê-lo sem afastar a manta, quando se deu conta de que não estava sozinha.
Garras soaram sobre a plataforma de madeira. Bem, ela havia jogado o colar no fogo. O lobo parecia ter feito entrar o frio ar da noite. Dryas podia cheirar a pelagem fria e algo mais. O frio tocou sua face e levantou o pano que ela tinha sobre os olhos.
E ela se encontrou fitando o lobo, cara a cara. Havia um pouco de neve sobre seu focinho e pequenos cristais de gelo em seu pelo.
O lobo emitiu um suave e baixo ganido e Dryas compreendeu que era uma pergunta. Seus próprios cães estavam acostumados a recebê-la com sons parecidos, quando despertava pela manhã. Fitavam-na nos olhos e se uniam a ela quando esvaziava sua bexiga junto ao riacho.
E ela se perguntou. Quem viveria agora em sua cabana. Quem alimentaria os cães e sairia com eles para caçar ao amanhecer? Estava razoavelmente segura de que nunca voltaria a ver seu lar nem suas amadas terras altas.
—Estou bem. – Ela sussurrou ao lobo, mas duas lágrimas se formaram nas extremidades de seus olhos e correram por sua fronte. Como estava estendida sobre um flanco, uma deslizou pela ponta de seu nariz, enquanto a outra baixava diretamente até cair sobre a palha.
O lobo soprou, lhe tocando a face com o focinho.
—Estou bem. - Insistiu ela. - Me levam a Roma. Não sei o que poderei fazer, se é que posso fazer algo... Mas não falemos disso agora. Vá! Seja livre, fique longe. Não quero vê-lo acorrentado ao carro de nossa louca espécie. Nem tentarei te converter em um meio para meus fins. Equivoquei-me ao fazê-lo. Seja livre sempre, pois de todas as coisas, a liberdade é a melhor, embora não é fácil de ganhar e deve ser escolhida por quem vá desfrutar dela. Como uma águia em um penhasco opta pela liberdade do vento, um lobo à espreita não leva o colar de ninguém. Vá com valor. Eu não tenho muitas possibilidades de... Êxito. Mas por poucas que sejam, devo assumir e não me preocupar com o preço. — Logo ela fechou os olhos.
Ela sentiu uma cascata de brilho e fogo frio e Maeniel apareceu de joelhos no carro ao seu lado.
—Acorrentaram-lhe as mãos às tábuas desta coisa. Se não fosse r isso, já teria te tirado daqui. Mas posso lhes seguir e ir matando um a um antes que saiamos das montanhas. Ajude-me.
—Não. – Respondeu ela, sem abrir os olhos.
Maeniel ouviu passos fora e se converteu em lobo antes de pensar sequer.
A sentinela entrou no carro e encontrou seus olhos.
Poucas horas depois, Maeniel corria pela ladeira de uma montanha, entre troncos de árvores tão velhas e altas que pareciam nuvens perfiladas ante um brilhante céu noturno. Nenhum tinha galhos por abaixo de cem pés. Havia nevado, mas a neve só tinha chegado ao solo em alguns lugars e parecia prata salpicada sobre o negro tapete das agulhas de pinheiro. As gigantescas árvores se elevavam como se fossem as colunas de um templo meio em ruínas e submerso sob o mar.
Correu entre eles, como a sombra um lobo contra a neve prata e branca e os negros montes de agulhas devolvendo a riqueza do sol a terra.
Converteu em homem e ficou olhando as árvores e as frias estrelas. Amaldiçoou primeiro Dryas e depois Imona. Duas mulheres entregues a missões incompreensíveis para um lobo e talvez também para a maioria dos homens. Mas agora entendia melhor Imona, por ter conhecido Dryas. Ela também estava disposta a entregar sua vida servindo ao seu povo. Imona não havia lhe tinha escutado e Dryas tampouco o faria.
Maeniel era uma criatura amável e solícita. Dryas lhe havia dito que partisse e fosse livre, mas ele sabia que já não haveria liberdade para ele. Simplesmente tinha deixado de ser um lobo, encontrando uma viagem que desejava. Aquela viagem, ou talvez paixão fosse uma palavra melhor, acossaria seu coração por muito tempo enquanto vivesse.
Nós, os lobos cinza e o pardo sabiamos desde há muito tempo atrás que nossos assuntos eram decididos por... Quem cria a vida. Dá-nos a existência, dá-nos leis, gravadas em nosso pensamento. Seguimos os padrões que conhecia nosso ancestral o lobo das cavernas. Sua lei era a dele e minha mente pode me apresentar lembranças da caça de monstros quando as geleiras cobriam a terra. Mas nos homens, o mundo vê algo novo: não são constrangidos por nenhuma lei. Não ficavam quando caçavam entre o gelo, quando era inverno em todo mundo, nem ficam agora. Sua existência é uma tortura e uma provocação, como foi à mulher para meu primeiro ancestral, quando ambos se aliaram há tanto tempo para sobreviver a noite.
Não podia imaginar no que se converteriam, mas aquela presa seguida através do tempo valia à pena, fosse qual fosse o resultado. Havia sido criado para cair mais baixo e também se elevar mais alto do que sua espécie podia imaginar. Era sangue de seu sangue e carne de sua carne.
Então se deu conta de que seus pés estavam congelando, seu nariz lhe gotejava e não faltava muito para o amanhecer. Tinha o dever de falar com Mir e Blaze, sobre Dryas. Não queria perguntar como havia chegado a assumir aquela obrigação concreta, mas sentia o empuxo da mesma, e o seguia como havia seguido antes a seus companheiros de alcatéia.
Vejamos o que acontesse agora, ele pensou. Transformou em lobo novamente, encontrando-se bem mais cômodo enquanto corria colina acima. Chegou ao Oppidum ao amanhecer e saltou a paliçada.
Encontrou Mir, Blaze e Evars na casa onde estivera vivendo. O cavalo de Dryas estava no celeiro. Ele saudou o cavalo, que respondeu distraídamente antes de enterrar novamente a cabeça no pesebre. Ele possuía uma túnica, um manto e sapatos em um canto. Vestiu-se e foi até a casa.
Mir levantou o olhar da mesa.
—Encontraste-a?
—Sim. – ele respondeu, sentando-se. Evars encheu uma terrina de papa de aveia e colocou diante dele. Ela não parara para caçar e estava faminto.
—E? — Insistiu o ancião.
—Não vai deixar que a ajude a escapar. – Ele explicou enquanto despachava a terrina. A aveia não era sua comida favorita, mas estava faminto e frio por causa de sua longa carreira durante noite e a papa estava quente.
—Por que não?
—Acredita que poderá matar esse César se encontrar uma forma de se aproximar dele. Vou atrás dela até Roma.
Evars rompeu a chorar.
—E a fazer com que o matem. – Ela gemeu.
—É difícil me matar. Você, Evars, tem que voltar com Mir. Este lugar é pior que onde ele vivia. É mais perigoso. Falando de viver, quantos restaram?
—Não muitos. – Disse Blaze. - E a maioria foi para a casa de amigos e parentes. Muitos dos convidados do banquete não viviam aqui, mas no bosque. Cynewolf devia ter abandonado suas terras no lado romano do bosque, e esquecer-se a perda. Agora está morto e muitos dos chefes menores sobreviventes encontrarão outros senhores a quem se unir. Tenho um convite para visitar certa pessoa em Fresia. Tinha esperanças de reconstruir algo aqui, alguma resistência a esses romanos, mas Cynewolf era um cano muito fraco. Perdeu o brio quando... — Ele não chegou a terminar.
—Quando levaram seu filho mais velho. – Disse Evars. - Está no pântano, com a nobre véneta...
—Cale-se, Evars! — Ordenou Blaze.
A mulher olhou ao seu redor, surpreendida.
—Eu disse algo errado?
—Como a chamaste? — Perguntou Maeniel, olhando para os dois velhos. - Uma mulher nobre dos vénetos?
—Sim, assim é. - Disse Mir.
—Não parece ter servido de muito, — comentou Maeniel.
—Não. — A mão que Mir usava para levar colheradas de papa à boca, tremeu. - Mas era tudo... A única que restava e eu tinha que tentar.
—Oh, sim, e agora tentará Dryas – Disse Maeniel. - Mas não vai sozinha. Unirei-me a ela e faremos o que for possível contra esses romanos.
—E eu? — Perguntou Evars.
—O que tem você? Se quiser, pode vir comigo. Se não...
—Eu não quero ir para Roma. – Ela lamentou.
—Falarei com o cavalo de Dryas. – Disse Maeniel. – Ele sente certa lealdade para com ela. Perguntarei-lhe se está disposto a me levar até a Messene. Além disso... . - Ele olhou sinistramente para Evars. - Tem mais sentido comum que qualquer um nesta mesa.
—Necessitará de dinheiro. - Disse Mir.
—Eu sei. Dryas tinha muito. Irei pegar um pouco. Ela me ensinou o esconderijo. - Disse Maeniel antes de ir.
—Vai falar com o cavalo. - Disse Mir, deixando a colher na terrina vazia. - Tenho que ver isso. — Ele seguiu Maeniel.
—Eu não quero ir para Roma. - Repetiu Evars teimosamente, com o lábio inferior se sobressaindo.
Blaze suspirou profundamente e continuou com sua papa.
—Eu não quero ir a Roma. - Voltou a dizer ela.
Blaze se fartou de ouvi-la.
—Se eu fosse você, calaria-me. Ele é um homem pouco cordato.
—Nem sequer é um homem. - Replicou Evars. - Eu o vi mudar de pele ontem à noite. E não pode me deixar de lado como se fosse um saco de nabos e... — Ela sdotou uma expressão de desconsolo antes de romper em choro. - Sim, acredito que pode.
Blaze tinha passado sua vida resolvendo disputas entre pessoais mais temperamentais e teimosas que aqueles dois. Tinha uma solução para ambos.
No celeiro, Maeniel se aproximou do cavalo. Não havia porta e o animal estava preso a uma argola na parede.
O cavalo moveu seu olho para ele.
Ele bufou.
O cavalo soprou.
Maeniel grunhiu como um cavalo.
O animal levantou o casco dianteiro direito e o baixou com um ruído surdo.
Maeniel se apoiou em um poste e emitiu o que a Mir pareceu alguns grunhidos mais.
O cavalo golpeou o chão com o casco.
—Messene. – Disse Maeniel.
O cavalo se voltou, lhe apresentando sua ampla garupa, olhou para trás e moveu um olho para Maeniel.
—E? — Inquiriu Mir.
—Ainda tem que pensa, mas provavelmente o fará. Depois o deixarei em liberdade. Ele pertencia a alguém perto da costa e está bastante seguro de que poderá encontrar o caminho de volta para casa.
—Ele te disse tudo isso? — Perguntou Mir com certo cepticismo.
—Não. Já havia me dito onde vivia, há algumas noitesa atrás. Estávamos passando o tempo e eu praticava sua linguagem. Não que tenhamos uma relação particularmente amistosa: normalmente engolimos um ao outro.
—Compreendo que isso pode afetar sua amizade.
—Sim. Muitos cavalos não falam conosco, mas quando conseguimos cercar conversa com algum, tendemos a evitar o antagonismo no futuro.
—Oh - Disse Mir.
—Sim, a amizade tem vantagens e benefícios para ambas as partes. Acredito que têm um aforismo que descreve essas situações: os amigos podem conseguir coisas para nós que não poderíamos alcançar por nós mesmo e viceversa. Como dizem vocês, eu coço tuas costas e você coça a minha.
—Ah! – Respondeu Mir. - Sim. Assim é.
—Nunca tinha ouvido ninguém gritar de forma tão horrível. – Disse Fulvia.
Voz de Cascalho e Fulvia estavam no carro, olhando para Dryas. Ela estava sentada, apoiada em um lado do veículo, com os olhos avermelhados pela fadiga e o desconforto.
- Ele disse que era o lobo maior que já tinha visto. – Disse Voz de Cascalho. - Mas dado que provavelmente não tenha visto muitos lobos, não acredito que tenhamos que acreditar que se trata de uma fera inusualmente grande. O que me inquieta é por que estava aqui? O que estava fazendo neste carro? — Ele observou Dryas. – Será que ela entende? — Ele perguntou.
—Sim. – Respondeu ela.
—Falava latim muito bom quando nos conhecemos. — Interveio Fulvia. - Acredito que nos entende à perfeição.
—Entendi-te então e também agora. - Disse Dryas.
—Por que o lobo estava aqui? — Perguntou Voz de Cascalho.
—É um amigo.
—O que? — Gritou Fulvia. – Você é uma insolente e os escravos insolentes...
—Não fará de mim uma escrava, Fulvia! Se quiser algo de mim, esta é a forma equivocada de me pedir.
Fulvia ficou branca de ira.
—Você... – Ela sussurrou com voz rouca. - Te farei açoitar até que suplique a morte... Até que sua pele se pendure em tiras vermelhas de...
—Minha senhora! – Disse Voz de Cascalho, assinalando com o polegar para uma clareira onde os soldados estavam preparando o café da manhã. Saltou do carro e Fulvia o seguiu.
O homem caminhou até o extremo do acampamento, logo se se voltou e falou com calma.
—Minha senhora, eu não tenho tocha a afiar. Separaremo-nos dentro de uns poucos dias e provavelmente não voltarei a vê-las. Mas conheço esses keltoi e meu povo não fez todas essas estátuas deles suicidando-se porque fosse gente amável e manejável, especialmente os nobres e os sacerdotes. Acredito que esta mulher é as duas coisas e se quer levá-la viva a Roma, e em Roma quer que ela atue na arena, será melhor que lhe mostre um pouco de respeito e lhe dê razões para cooperar. Além disso, não sei o que Luto viu no carro ontem à noite, mas se for a metade do tamanho que diz ele que era, eu não gostaria me inimizar com ninguém que tivesse amigos tão... Peculiares... E talvez desagradáveis.
Fulvia não respondeu, mas se afastou para observar o caminho que levava a costa.
—Tem razão. – Ela disse por fim. - E, maldita seja, quero essa mulher para exibi-la como lutadora. Um importante amigo meu está, digamos... Fascinado pela idéia de uma verdadeira Amazona. Em ver uma delas em carne e osso. Como posso dirigi-la?
Fulvia podia parecer doce e encantadora quando era necessário.
—Deixe-me a sós com ela durante um momento. Talvez, só talvez, eu consiga convence-la de que deve mostrar mais cooperativa.
Ele voltou para o carro e olhou para Dryas.
—Deve estar incômoda a estas alturas. Se quiser, posso te levar a um arroio próximo e se prometer não fugir, tirar suas correntes e te conseguir um pouco de comida.
Dryas abriu os olhos e assentiu.
—Sua palavra. - Insistiu ele.
—Sim.
Voz de Cascalho teve que ajudar Dryas a descer do carro, pois ela estava anquilosada pelo tempo que tinha passado presa. Levou-a até o arroio e afastou o olhar quando ela se foi para trás de uma árvore.
—Um amigo. – Ele disse.
—Sim.
—Não gostaria de explicar isso um pouco melhor?
—Não.
—Pensei nisso.
Dryas saiu de atrás da árvore, entrou na água e começou a lavar as mãos e o rosto.
Voz de Cascalho olhou colina acima, para os soldados que trabalhavam no acampamento. Fulvia não estava a vista e os homens não podiam ouvi-lo.
—É importante. Fulvia me pagou mil moedas em ouro para te trazer de volta. Não sou tolo, pois conheço seu povo e sei que já não estaria viva se não quisesse, então deve ter pensado um pouco. Esses romanos são uns bastardos. Deixe que Fulvia a suborne e a manipule um pouco. Eu lhe disse que conseguirei que você colabore. Faça o que eu digo e a ajudarei a chegar viva a costa. Depois, convém a você. Finge que quer dinheiro. Ouro. É o melhor com eles. E comigo estão certo, é o que quero. Mas não é seu caso. Como se chama, mulher escura?
—Dryas.
Ele assentiu.
—Aquila.
—Obrigado, Aquila.
—Boa sorte, Dryas.
Ao chegar A casa, Lucius foi ver Aristo.
—Quanto dinheiro eu tenho? — Perguntou.
—Muito.
—Bem! Suficiente para pagar uma legião?
—Sim e é fácil que até o triplo dessa quantidade.
—Envi e a César dinheiro suficiente para uma legião e para pagar os homens durante um ano.
—É isso o que ele deseja?
—Sim.
—E você conseguirá o que quer?
—Sim. Também quero uma terrina de madeira, mas posso consegui-la na cozinha.
—Pensei que poderia estar contemplando uma transação assim – Disse Aristo, - e preparei os documentos.
Ele entregou a Lucius várias folhas de papel. Ele leu meticulosamente e assinou todas.
—Sim, o sangue fala. Acredito que terá tanto êxito como teve seu avô.
—Meu avô?
—O autêntico fundador da fortuna da família Basilia. Eu era só um moço quando nos conhecemos. Ele comprou uma família que não podia seguir alimentando seus filhos. Eram os maus tempos de Mario e Sila. Muitos empobreceram por causa deles e entre eles meus pais.
—Que terrível! — Sussurrou Lucius.
—Não. - Replicou Aristo. - Resultou que seu infortúnio foi uma sorte para mim e com o tempo também para eles. Graças a sabedoria de seu avô, eles recuperaram tudo o que tinham perdido e muito mais, como eu e meus irmãos e irmãs. Sua família é uma das mais ricas dos cavalheiros de Roma.
Lucius engoliu saliva.
—Mas você te converteu em escravo.
—Moço, moço! — Suspirou ele. - Os homens aceitaram a escravidão para alcançar a posição que tenho e que teve meu pai antes que eu, administrador de uma família em ascensão, como era a tua então. Acredito que meu pai sentiu que seu avô podia estar ali para aproveitar de nosso desastre, e ter apoiado a Mario, mas quando ouvimos sua oferta... Ofereceu uma soma principesca, que permitiria minha mãe viver comodamente e minhas irmãs fazer excelentes matrimônios. É obvio, minha mãe teve que divorciar de meu pai. Uma pena. Aquilo foi muito duro para ela, que amava meu pai. Mas ficaram juntos no final.
—As coisas nem sempre saem tão bem, certo? Olhe o caso de Octus.
Aristo franziu o cenho.
—Não sabia que o conhecesse.
—Tive que rebuscar um tempo em minha memória. Não o relacionara ao mordomo de minha mãe, com o velho porteiro acorrentado na porta. Mas quando o vi melhor vestido e andando livremente pela casa, me recordei. Ele merecia muito melhor trato por parte desta família, por parte do filho de minha mãe.
Aristo parecia incômodo.
—Talvez, mas seu pai talvez tivesse suas próprias razões. Não sei o que dizer. Não me comunicava isso... Nem a mim e nem a ninguém. Só posso falar por mim. E minha família prosperou. Meu pai recuperou a liberdade ao morrer seu avô e eu a minha quando morreu seu pai. — O ancião se recostou em sua cadeira, pegou uma pequena faca da mesa e começoua afiar a ponta de sua pluma. - Não lhe contei isso para despertar sua simpatia, mas para te demonstrar que, nesta vida, as vezes não temos escolha.
Lucius assentiu.
—Manipularam-me.
—Muito provavelmente. Não posso provaro, é obvio e embora pudesse o que poderia fazer você a respeito?
—Nada. — Lucius baixou o olhar para seus dedos.
—Quem foi o instigador?
—Antonio, certamente. Digo-lhe isso porque acredito que é o verdadeiro descendente de seu avô e o bastante frio para poder usar a informação em seu próprio benefício e no de quem dita proteger. E, por certo, a idéia de sua irmã de cultivar vinhedos na Galia é provavelmente boa, assim se afaste de seu caminho.
Lucius sentiu que acabavam de lhe despedir. Aristo voltou a inclinar a pluma sobre os documentos na mesa.
—Dizem que são sessenta. – Ele comentou.
A pluma de Aristo se deteve e o administrador levantou a cabeça para fitar Lucius nos olhos.
—Dizem muitas coisas. O que opina sobre isso?
—É uma loucura! Uma loucura do pior tipo! Eu não gosto da política. Jogar dinheiro já é bastante ruim. Não estou disposto a apostar minha vida.
—Pode ser que não tenha outra opção – Disse Aristo com tranqüilidade.
—Sabe que César me disse o mesmo?
—E provavelmente tenha razão. Então, em seu lugar eu me prepararia. Por certo, agiu muito bem colocar Firminius em seu lugar. Não acredito que volte a ter problemas com ele, nem eu tampouco. Mas sua irmã é outra questão.
—Falando de minha irmã... —Lucius se deteve na porta. - Há uma casa de comidas perto da Cúria. Sua proprietária... Fez-me um... Serviço.
—Por favor, não me diga mais! — Interrompeu-lhe Aristo. Seus olhos estavam velados.
Sim, pensou Lucius. Não é um assunto seguro. Não nesta casa. Se Fulvia se inteirasse...
—Não se fixa muito nos papéis que assina, não é? - Perguntou Aristo mostrando-lhe um documento. A dívida de Lucrecia com Myrtus estava saldada por completo.
Lucius assentiu com um sorriso e devolveu o documento ao administrador, enquanto pensava no paradoxo de que, em um mundo onde poucos sabiam ler, a comunicação por escrito fosse mais segura que a falada. Se pronunciasse uma só palavra sobre o assunto, podia ser repetida em todas as casas de Roma antes do anoitecer, mas se a enterrava em uma pilha de poeirentas contas domésticas, ninguém saberia nunca. Ele sorriu novamente e saiu.
Capítulo 20
Ainda não havia amanhecido. Dryas contemplava a arena. Só ardiam umas poucas tochas lá fora e embora nunca tivesse visto uma arena, ela seencaixava com a descrição de Mir. Não era muito grande. Havia degraus de assentos, mas não mais de oito ou nove filas.
Uma caixa elevada dominava a superfície coberta da arena. Estava rodeada de puas de ferro dobradas para baixo, para permitir uma boa visão a quem se sentasse atrás delas, mas também para impedir que os participantes do espetáculo, fossem humanos ou animais, alcançassem os importantes espectadores.
—Sim. – Ela disse em voz baixa. Estava sozinha. Tinha sido levada para Roma na última hora da tarde e havia chegado ao Ludus quando já era de noite, ouvindo parte de uma acalorada discussão entre Fulvia e o homem que dirigia aquela escola de gladiadores, o lanista. Ou talvez não fosse uma discussão, só Fulvia se impondo. Ela gostava de se impor, como havia descoberto Dryas durante a viagem.
Aquila seguia junto. Fulvia havia lhe subornado para que ficasse com ela.
Tinham levado Dryas para uma cela do edifício, sem entrada de ar e nem luz. Uma caixa sem janelas atravessada por uma grade de ferro e durante a estação fria, como era o caso, uma porta de três pesados painéis de carvalho. Tijolos de terracota formavam uma plataforma elevada de um lado da casa. Sobre ela, Dryas viu roupa de cama.
Haviam lhe deixado um pequeno abajur de argila, mas não tinha azeite e a chama começava a vacilar. Dryas aproveitou o pouco tempo de luz para preparar a cama, e quase lamentou dispor do abajur quando viu que o colchão de palha tinha muitas manchas de sangue.
Havia uma pequena chaleira de barro com um trapo como única tampa em um canto da cela. Dryas se voltou para a cama e viu ainda mais mancha no outro lado. A manta era igual o colchão.
Fora, inclusive com a porta fechada, podia se ouvir o ruído da chuva e do vento e algum golpe ocasional quando se fechava uma porta. Devia ter alguma entrada de ar, porque de vez em quando Dryas podia sentir a sucção da tormenta e uma pequena lufada de ar cruzava sua cela.
A cela era tão diminuta que se ficasse no centro, com a mão tocando a parede do fundo, a porta ficaria a poucos sentimetros. Se estendesse os braços, podia tocar as paredes de cada lado.
Mesmos osanimais que lutavam contra os bestiarii desfrutavam de estábulos mais cômodos, mas provavelmente não havia por que se surpreender: também eram mais caros.
O abajur se apagou por fim, deixando Dryas na escuridão. Ela sentiu medo por um instante, logo pena e por fim desespero. As úmidas paredes de tijolo estavam impregnadas dos sentimentos dos criminosos e prisioneiros de guerra condenados a arena.
E o que haviam feito aqueles desventurados? Pensou Dryas. Alguns, poucos provavelmente mereceriam a morte, mas na maioria dos casos, de ter julgamento, o culpado teria pago sua falta com uma multa.
Certamente teriam cometido crimes modestos e de pouca importância. O roubo era o mais habitual e Dryas sabia que, quanto mais ricos se tornavam os ricos, mais temiam e odiavam quem tentasse lhes despojar mesmo uma fagulha de sua fortuna.
Quanto aos prisioneiros de guerra, recordava o que lhe havia dito Aquila.
—Esses bastardos romanos acreditam que os deuses os outorgaram o domínio sobre o mundo inteiro. E qualquer um que diga a eles, vocês não tem direito de me governar e nem controlar meu povo e minha terra, é um criminoso que merece a morte. O que se salva acaba como escravo. Eles têm direito a fazer o que quiserem contigo. E, me acredite, isso é o que querem dizer quando falam do “governo da lei”. Suas leis e seu governo.
Ele fora muito amargo. Dryas era consciente de que os romanos deviam deixar um rastro de ira e dor onde fossem. Para seus critérios, ela também era uma criminosa. Sua gente tinha descido das terras altas para ajudar os povos da costa contra César e sem dúvida o voltariam a fazer. Portanto, segundo o critério romano, um critério que aspiravam impor ao resto do mundo, Dryas merecia se converter em objeto de seu poder. Uma demonstração de domínio absoluto. Pois não há poder mais absoluto que o de fazer com que os homens lutem até a morte e matem por tua ordem.
Considerar tal usurpação do poder divino a luz do dia é uma coisa, e outra é jazer na escuridão e sentir a agonia, a derrota e a perda gotejando das paredes. E ouvir a chuva.
Dryas dormiu e sonhou que de alguma forma havia ficado livre e voltava para seu lar, subindo pelas costas herbosas e que aquele desgraçado destino era somente um pesadelo a esquecer, enquanto corria com seus cães entre a urze, banhada pela púrpura, violeta, azul e o rosa pálido do amanhecer. Sua alma sentia tal amor por seu próprio mundo que era um deleite para seu coração. Despertou na escuridão, presa de um desespero tão profundo que soube que não podia ser dela. A alma perdida gemia como uma criança abandonado e ela a serenou com lembranças extraídos de sua memória, como os fragmentos de um pergaminho ou uma coleção de flutuantes folhas de outono; vermelho, amarelo, laranja e ouro flutuando na superfície de um lago tranqüilo. O espírito cessou em seus lamentos e dormiu. O mesmo ela fez.
Aquila despertou antes da primeira luz. Ainda estava escuro lá fora. Deu-lhe uma taça de posea, o azedo vinho dado a soldados e escravos. Dryas teria preferido uma de suas próprias infusões, mas não era muito ruim. Alguém, talvez uma mulher, tinha acrescentado ao vinho uma erva aromática, provavelmente hisopo em pequenas doses. Era um estimulante.
—Márcia, a esposa do lanista, diz que pode usar sua letrina. Está logo ao sair da cozinha. Também encontrará algo de comer. –Disse Aquila.
Dryas assentiu enquanto bebia o resto do vinho.
Aquila guiou Dryas escada abaixo. Sua cela estava no terceiro apiso. Do corredor, ela pôde ver que a arena era o bastante grande para albergar centenas de espectadores. Havia mais celas pelo corredor.
—É muito grande este lugar? — Ela perguntou.
—Cabem uns trezentos, mais ou menos. Mas bem menos. Ultimamente não houve oferendas e não há jogos previstos até a primavera, então duvido que haja mais de cem homens.
—Oferendas?
—Oferendas de gladiadores.
—Oferendas? Assim o chamam?
—É oferecido em memória de alguém que morreu.
—E agrada ao seu espírito?
—Não sei. – Disse Aquila. - Sou um bom grego e nunca demos muitas voltas em como nos sentimos a respeito da ultima vida. Se quiser minha opinião e é algo que duvido a estas horas da manhã, aos romanos não importa quantos escravos morram. Eles desfrutam do espetáculo. Quanto a César, o único que lhe preocupava em suas oferendas era impressionar todos em Roma com seus êxitos como conquistador e se desfazer de prisioneiros fossem muito bravos e rebeldes ou o bastantes sagazes para lhe desafiar. Os que se inclinaram sob o jugo se salvaram. O resto... Bom, se mata a maioria dos jovens de qualquer povo, não darão problemas aos coletores de impostos romanos durante muito tempo.
Eles se detiveram aos pés dos degraus e Aquila bateu na porta do que parecia uma pequena casa romana. Uma mulher a abriu.
—Aqui está. – Disse Aquila, dando um pequeno empurrão em Dryas.
A mulher estendeu a mão e arrastou Dryas até o que era claramente uma cozinha. Havia papa cozinhando em um canto e a fumaça do fogo saía por uma abertura perto do teto.
A mulher era bonita, embora estivesse um pouco consumida. Era uma latina de cabelo escuro e encaracolado, pele morena e generosa figura.
—Oh, não! – Disse ela a Aquila quando o mercenário entrou na cozinha atrás delas. - No que estava pensando a senhora Fulvia? Esperava uma vagabunda ou um fenômeno de feira, mas ela é uma dama.
—Cuidado, Márcia. Seu latim é muito bom. É melhor que o de muitos pedagogos, e também sabe ler e escrever.
—Por Juno e Matrona, não pode estar nesses buracos dali acima nos quais encerram criminosos e sei eu o que. — Márcia soava escandalizada. - Venha, querida. — Ele pegou Dryas pela mão e a levou para o outro lado de uma cortina e uma tela de madeira. A latrina tinha um assento, também de madeira. Havia perto uma cuba de bronze cheia de água e um pau com uma esponja no extremo pendurando da parede. Em uma mesa adoo outro lado havia uma bacia com água quente, de cuja superfície se elevava o vapor. Sobre o respaldo de uma cadeira havia outra esponja, uma túnica e sandálias.
Márcia pareceu embaraçada por um instante e assinalou a esponja da parede.
—Isto é...
—Entendo – Respondeu Dryas. - Vinagre?
—Oh, sim. Não tinha pensado nisso, mas funciona bem. Deixe suas roupas aqui e eu as lavarei. É sua espada? Aquila me disse que sim, mas não acreditava que uma mulher pudesse...
—Podem entre meu povo e também posso eu. Supõe-se que devo. Recebi-a de meu professor quando alcancei a idade apropriada.
As mãos do Márcia se agitaram.
—Eu sei.. Não, não sei. É uma dama. Aquila disse que foi de alta classe...
Dryas encolheu os ombros com um sorriso.
—Não acredito que isso tenha importância agora.
Márcia a deixou sozinha para que ela completasse seu asseio.
Enquanto usava a latrina, se lavava e se vestia, Dryas a ouviu falar com os outros dois.
—No que está pensando Fulvia? — Repetiu Márcia.
—Não sei. Por isso sigo aqui. – Respondeu Aquila. - Jurei que os deixaria em Messene, mas ela não é como pensava. Márcia, ela matou seis homens e Luto jura que viu um lobo visitando-a de noite.
—E como ela explicou?
- Disse que o lobo era um amigo.
Márcia não respondeu. Dryas terminou de se vestir e voltou para a cozinha. Márcia lhe deu uma terrina de trigo cozido com leite e um pouco de pão ácimo. Aquila saiu.
Dryas comeu rapidamente. Enquanto isso, Márcia seguiu cozinhando, mas sem perdê-la de vista pela extremidade do olho. Ela estava terminando de comer quando Aquila entrou novamente.
—É hora de ir. – Ele lhe disse. - Ela a quer ali para o amanhecer. Eu não posso ir contigo. Há uma liteira lá fora...
Márcia saiu um momento para voltar com um manto escuro, um palla.
—Tome ou se resfriará. – Ela continuou enquanto envolvia Dryas nele.
A liteira descansava sobre o chão, diante da porta. Ainda estava escuro. Dryas separou as cortinas e se sentou sobre as almofadas. Aquila acorrentou seu tornozelo a um dos postes que sustentavam as cortinas. O fez com expressão envergonhada.
—Me mandaram. – Ele explicou e fechou as cortinas.
Um homem de aspecto poderoso cavalgava junto à liteira.
—Está proibida. – Ele grunhiu quando Dryas tentou abrir a cortina. Mas ela conseguiu deixá-las um pouco abertas.
Tampouco via nada que pudesse lhe ajudar. Somente edifícios escuros e fechados, ruas estreitas e tochas acesas.
Havia um suave toque de luz no este quando chegaram à arena da vila Basilia. O homem soltou o grilhão de seu tornozelo e Dryas foi levada através de um túnel até a cela onde ficou contemplando o lento progresso do novo dia. A porta estava fechada.
Com a luz, Dryas viu uma jarra de barro e uma taça junto à parede da câmara. Sentou e serviu do líquido: posea novamente. Ela tremeu apesar do manto. Fazia tanto frio que ela decidiu beber um pouco daquela beberagem.
Sentia extranhamente relaxada. Sua mente estava tranqüila. Estava segura de que não demoraria em morrer. Haveria alguma maneira de levar César com ela? O lobo não havia dito se ia segui-la, mas ela pensou que era possível. Em tal caso, seria um útil aliado. Descansou as costas contra a parede e aguardou com absoluta calma.
Octus despertou Fio mais ou menos no momento da chegada de Dryas. O grego ficou em pé e começou a se vestir.
—Ela te quer lá. - Disse octus. Parecia cansado.
—O que aconteceu?
Octus se apoiou na parede estucada do dormitório de Fio.
—Foi uma má noite. Ela acabou de chegar e já começou a atirar coisas. Todas as donzelas estão chorando ou pelo menos todas as que não estão histéricas. Firminius se encerrou em seu dormitório. Nem Antie pode acalmá-la.
—Antie?
—Sim, sua donzela pessoal. Normalmente, ela e Firminius são os únicos a quem ela ouve quando tem um de seus acessos de raiva.
— Tentou despertar Aristo?
—Não estou tão louco. Acha que quero acabar acorrentado novamente junto à porta?
—Não acredito que isso chegasse a acontecer. Ele gosta de você.
Octus sorriu um pouco inseguro.
—Sim? Diz tão pouco em um sentido ou no outro... A verdade é que não estava seguro.
—Gosta, e muito. — Fio pôs a mão sobre o ombro do velho. - Não acredito que tenha nada a temer agora.
—Bom, em qualquer caso meu amo precisa dormir. Não acredito que fosse uma boa idéia. Ela quebrou um vaso de cristal na cabeça de Firminius e atirou um espelho de mão em Antie. Antie reagiu bem e pôde se abaixar, mas Firminius fugiu gritando. Estava descalço e cortou um pé com os cacos. Não acredito que seja um ferimento muito grave, mas deixou rastros de sangue no dormitório da Fulvia, no átrio e no corredor até sua casa. Mas acredito que não feriu ninguém mais, embora estivesse jurando vender todos os escravos esta manhã.
—Na realidade não pensa vender.
—Não, provavelmente não... Ou teria despertado Aristo ela mesma. Em qualquer caso, tem que preparar um novo gladiador para uma exibição privada em sua arena pessoal esta manhã.
—Muito bem. – Disse Fio. - E por que estava tão zangada?
Octus arqueou as sobrancelhas.
—Não sei. Entrou, viu Fraco e Africano de porteiros e mandou chamar Firminius. Antie e as demais garotas estavam despindo-a. Firminius entrou e fez sair às garotas, salvo Antie que ficou porque foi sua ama de leite e Fulvia confia nela. Em seguida Firminius saiu gritando, igual Antie, enquanto ela atirava as coisas.
—Devia ter me despertado para que lhe desse um sedativo.
—Deveria me pagar por protegê-lo. - Repôs Octus. - Uma das pessoas que ela amaldiçoava, além dele era você. Cuidado com o novo gladiador. Ela comprou-o na Galia e acredito que espera que você seja sua primeira morte. Seja como for, quer dá-lo a César em uma amostra de sua nova estrela. Então tem um javali esperando.
—O que é um gladiador ou um besharius? — Perguntou Fio. - Já sabe que há uma diferença: um luta com homens e outra com animais.
—Se de verdade há uma diferença eu não a diferencio, Fio. Todos os que já vi são grandes, perigosos, ameaçadores e desagradavelmente ágeis. E essa descrição não só serve para os homens, mas também para os animais com os quais lutam. Às vezes é difícil distinguir entre uns e outros. Acha que deveria despertá-lo?
—Sim. – Respondeu Fio. - Se César vier, o cabeça de família deve estar presente embora seja somente para manter as aparências. Nossa pequena senhora é muito cuidadosa com sua reputação.
Octus notou que sua face estava rígida pela aversão.
— Vou despertá-lo agora.
—Não se preocupe se...
O escravo meneou a cabeça.
—Não, ele nunca se zangou comigo, nem mostrou a menor impaciência.
Fio assentiu. Sabia o porquê. Lucius se sentia culpado em relação à Octus. A lealdade que o porteiro havia mostrado a sua mãe Silvia teria merecido melhor recompensa, mas Lucius estava cumprindo seu serviço militar na Galia quando sua mãe morreu, e não tinha pensado muito no destino de seus criados.
Enquanto Octus ia despertar Lucius, Fio foi ao armeiro para pegar roupa, malhas e lanças. O escravo que o atendeu não fez comentários.
O sol começava a nascer e o céu estava brilhante. Fio apoiou as lanças na parede, sujeitando a roupa e as malhas com o braço enquanto se atia melhor o manto. Fazia frio. Ouviu gritos e rugidos nas cercanias. Deviam estar torturando o javali para que a criatura oferecesse uma luta interessante. Estremeceu um pouco, recordando algumas das coisas que haviam lhe feito os homens de Antonio.
O javali estava entre os mais selvagens dos assassinos, então Fio reservou suas simpatias para o homem. Um tropeço perto de um animal assim podia lhe deixar retorcendo de agonia na arena.
Fio conhecia bem os gladiadores e os bestiarii, e não tinha medo. De fato, estavam entre os mais agradecidos de seus pacientes. Eram os sujeitos menos apreciados que tinha visto, tanto criminosos como prisioneiros de guerra. Os prisioneiros de guerra eram os que não consideravam que valesse a pena vendê-los como escravos e os criminosos procediam dos tipos mais empobrecidos da sociedade romana. Em sua maioria se mostravam extravagantemente agradecidos pela menor amabilidade. Os poucos que odiavam tudo o que se aproximasse deles não sobreviviam muito tempo.
E aquele novo gladiador tampouco, certamente. Parecia bastante pequeno, sentado em silêncio e contemplando a arena através da grade. A magra figura estava envolta em sombras. O grande guarda postado junto à porta a abriu para Fio. Ao ouvir o ruído do ferro, o ocupante do banco se voltou para ele e Fio se deu conta de que estava olhando para uma mulher.
Octus despertou Lucius e lhe disse que sua irmã havia voltado àquela noite.
—Lamento ter perdido sua chegada. – Ele disse.
—Sim. – Respondeu Octus enquanto se preparava para barbeá-lo.
—Oh, não. - Se queixou Lucius, voltando para seu quente leito.
—César virá. - Explicou o escravo.
Lucius saiu trôpegamente para o pátio, sentando-se em uma cadeira mais à frente do alpendre. A luz era boa e Octus o barbeou ali. Alia lhe levou sua toga e uma túnica de lã.
—O que vou fazer para ter que me vestir assim? — Perguntou Lucius.
—Assistir a uma oferenda com César, Cleopatra, Antonio e sua irmã. Ela trouxe um novo gladiador da Galia.
Lucius murmurou uma obscenidade entredentes. Logo, em voz ainda mais baixa, associou César e Antonio a ela, sugerendo o que podiam fazer um ao outro, por turnos.
Octus retrocedeu, com anavalha em mão.
—Meu senhor...
—Já sei, já sei. – Disse Lucius. - Não devo falar nem mover o rosto.
Octus recomeçou sua tarefa. Lucius observou com certo alarme que a mão de seu criado estava tremendo, mas em alguns momentos se encontrou barbeado, penteado e perfumado e pouco depois vestido com uma toga com a franja púrpura e as dobras corretamente dispostas. Quando Castor e Pólux o ajudavam, um objeto infernalmente difícil de usar, pois sempre escorregava e caía, mas Octus tinha talento para ajustá-la de tal forma que sequer o vento a movia.
Já bem vestido, Octus o conduziu ao átrio. Também o acompanhava Orelha cortada, lacônico como sempre.
—Devo haver luta - Disse o galo.
César e Antonio chegaram, o segundo amaldiçoando entredentes.
—Guarda-me rancor esse teu médico grego? — Ele perguntou ao ver Lucius. - Porque se tiver, tenho um remédio infalível para os escravos rancorosos.
—Fio não é um escravo. – Disse Lucius.
—Não. — Interveio Cessar. - É um cidadão romano, com tão direito a usar a toga como você, Marco Antonio e pode votar nas assembléias.
Antonio pareceu irritado.
—Não sabia que já tivesse feito isso.
—Assim é. – Respondeu César com um sorriso.
—Muito bem, então acredito que terei de pagá-lo. Mas o faça vir esteja onde estiver. Tenho a pior enxaqueca desde que Zeus tirou ateneu da cabeça. Sinto a língua como se tivesse passado vinte anos em um tonel de curtir. Os olhos me sobressaem como os de um caranguejo, pelo menos duas ou três polegadas. Juro sobre a tumba de meu pai. Se não for Fio, que alguém, quem seja, tenha piedade de mim. Tragam-me algo para beber.
Octus se inclinou ante Lucius.
—Fio está com o novo gladiador. – Ele lhe disse em voz baixa. - Mas, se quiser, sei onde guarda muitas de suas drogas. Posso trazer um pouco do que...
—Sim, sim. – Disse Antonio. - E se cometer um engano, traga algo que me mate em seguida. A morte é melhor que esta tortura. A luz do dia me queima. Queima-me, juro-lhes.
Cleopatra chegou com aspecto fresco e os olhos pintados. Soltou um risinho ao ver Antonio.
Fulvia fez sua entrada, mostrando um comportamento irreprochável. Beijou ostentosamente Lucius na face e abraçou César.
—Meu querido amigo, tem que ver o que trouxe para ti. – Ela disse. Logo trocou beijos com Cleopatra.
Octus voltou com uma taça. Entregou a Lucius com uma inclinação e saiu. Lucius olhou o conteúdo. Possuía o mesmo aspecto e aroma que a cura de Fio para a ressaca. Entregou a Antonio.
—Venham. – Disse Fulvia. - Vejam minha nova arena de adestramento.
Os olhos de Fio estavam cravados na mulher.
Ela se aproximou e o grego lhe deu as três lanças. A mulher as estudou com ar crítico. Todas eram de diferentes formas. Ela deixou uma de lado em seguida. Inclusive Fio podia ver que a ponta estava solta. A mulher colocou as outras duas sob a luz achando satisfatória uma delas.
—Está embotada. – Ela explicou sobre a outra, começando a afiá-la contra o banco de pedra. O metal não demorou em ficar afiado, e a mulher o provou cuidadosamente com o polegar. - Não te serviria para se barbear, mas está bastante bem. – Ela disse a Fio. - O que é, um homem ou um animal?
—Um javali, acredito.
—Estupendo, um javali. Ela não pede muito, certo? Três lanças, uma delas com a ponta solta e nada confiável. E as outras duas sem guarda de cruz.
—Guarda de cruz? — Repetiu Fio, sem entender .
—Sim. Um javali pode seguir avançando ao longo da lança e matar o homem que a segura ou mulher em meu caso - Disse ela. Seus lábios se torceram no que podia ser um pequeno sorriso. - Feche a boca ou algo se aninhará nela. Que mais tem aí, algum amparo?
Fio lhe deu o subligaculum e a malha.
A mulher elevou a malha para observá-la a luz. Era bastante bonita, de pequenos anéis de prata. O pescoço e a margem sob os seios estavam decorados com grandes e brilhantes pedras.
—Formosa. - Disse ela. - E não sustaria nem um aguilhão. Se o javali me derrubar, terei suas presas cravadas em mim antes que possa me dar conta. E o que é isto?
O subligaculum era de seda vermelha, ligeiramente mais complicada que uma tanga. Tinha um cinturão formado por grandes elos planos de ouro. A seda chegava até abaixo das nádegas, cobrindo-as bastante bem. Logo subia entre as pernas até o estômago, com fixações para prendê-las a corrente.
—Parece que gastaram um pouco de dinheiro nisto. - Comentou Dryas cinicamente.
—Vou atrás de te encontrar uma lança melhor – Disse Fio e correu para a porta, que encontrou fechada. O guarda havia saido. - Estamos presos – Ele disse voltando-se para Dryas com expressão de desânimo.
—Sim. – Respondeu ela com um sorriso. - Tente aparentar que não preferiria estar encerrado com uma leoa.
Fio balbuciou algo, mas não pôde recordar o que.
A mulher riu, examinando o restelo.
—Vem gente de fora?
Fio assentiu.
—São os espectadores? — Perguntou ela, assinalando a tribuna sobre a arena.
—Sim. – Respondeu Fio e pôde reconhecer Fulvia, Antonio, Lucius, Cleopatra, César e Orelha cortada.
Havia muita luz. A tribuna dos espectadores tinha um toldo, mas estava dobrado. O sol estava alto e os assentos da direita e a arena brilhavam sob a luz amarela.
—Volte-se - Disse ela.
Fio começou a retroceder muito devagar, com um olho fixo na mulher.
—A porta está fechada. – Ele disse. - Não posso sair. Oxalá pudesse...
—Bu! - Disse Dryas.
Fio retrocedeu com um salto de dois passos.
—Volte-se, quero me vestir. - Explicou ela lentamente.
—Oh, Oh, ooh! – Disse Fio, com um suspiro de alívio. Ele se voltou, com o rosto para a parede. Pôde ouvir ruídos Outros sons chegavam do outro lado da arena. Bufos, grunhidos, um golpe surdo... Logo o ruído de patas sobre o solo sob a arena e um forte golpe contra o restelo. Fio se voltou novamente.
O javali voltou para estelar suas presas contra a grade de ferro. Deuses imortais, aquela coisa era grande e cheirava a sangue, pois estiveram lhe provocando. Também fedia a urina de porco. O responsaável pelos cuidados dele tinha medo e passava muito tempo sem lhe limpar a jaula.
Enquanto Fio o olhava, o javali abriu sua enorme boca e mostrou os dentes, piores que as presas dos dois lados do focinho. Compridos, amarelados e cruéis. O animal soltou um furioso grunhido e golpeou o restelo outra vez. Tinha a pele negra, com cerdas no focinho, que logo seguiam pelo lombo.
Dryas o observou com calma, medindo um de seus flancos com uma lança. O animal investiu novamente, chiando e rugindo. Por um instante, Fio temeu que a grade cedesse.
Então ouviram uns gritos de acima e uma chuva de pequenos projéteis caiu sobre o javali para afastá-lo do restelo.
Fio estava horrorizado.
—Essa coisa... Essa coisa a matará - Disse. Logo se deu conta de que Dryas já estava vestida.
Ela sorriu-lhe, com um sorriso formoso e amável.
Livre da tosca túnica que usava antes, ela era formosa e a imagem de seu sorriso e seu corpo coberto pela curta cota de malha e a tanga ficou gravada para sempre na mente do médico. Pernas largas e esbeltas, que fariam parecer torpes à maioria das mulheres, musculosas na pantorrilha, estreitas no joelho e de coxas poderosas. Quadris estreitos, quase virginais e um estômago plano e musculoso sob a superfície da pele veludo. Seios altos e o bastante generosos para afastar o tecido de malha de seu abdômen. Braços belamente formados, proporcionados com o corpo como as pernas, fortes, mas não avultados... Como os cabos em uma polia.
O javali deu uma volta completa na arena e se voltou para a porta. O restelo começou a se elevar. Gritos do alto fizeram com que o animal voltasse para centro do círculo.
Dryas pegou uma lança em cada mão. O restelo subia cada vez mais rápido
—Não – Disse Fio. - Não!
—Mais vale que saia, – Ela disse com suavidade, - ou ele entrará e matará nós dois. — Como um relâmpago, ela se abaixou sob o restelo e ficou em frente o javali.
O animal carregou contra ela. Dryas estava sozinha, envolvida pelo silêncio. Correu por sua vez, com o javali investindo. Perdeu-o de vista por um momento, quando a luz do sol passou acima da parede leste da arena. Quando conseguiu vê-lo novamente, o animal já estava quase sobre ela. Sentiu que uma presa lhe arranhava a perna e cravou a lança que levava na mão direita no flanco do javali. O animal grunhiu, mas sequer reduziu sua velocidade. Voltou-se, mas Dryas o sujeitou a lança. O gesto o freou um pouco, lhe fazendo perder impulso. Então Dryas soltou a lança bruscamente, deixando que o animal a levasse arrastando.
O sol lhe dava nos olhos e Dryas passou a lança da mão esquerda para a direita. Na tribuna, Lucius seguia assimilando o fato de que contemplavam uma mulher. Quando ela e o javali ficaram ocultos por um instante sob uma nuvem de arena, com o animal tentando lhe cravar as presas, Lucius ficou em pé, com um grito formando em sua garganta.
—Tão logo... Que lástima. – Ele ouviu dizer César ao seu lado. - Esperava uma luta mais longa.
Então ele observou a lança cravada no corpo do javali enquanto a mulher se afastava para o lado.
Estavam quase sob a tribuna.
—Por Baco, uma mulher! — Bramou Antonio. – Aposto cem áureos pelo javali.
—Aceito! — Exclamou Lucius.
—Eu também! — Gritou César.
Daquela vez foi o javali que perdeu Fryas de vista por causa do sol. Mas a lança da mulher escorregou sobre suas costelas e caiu na arena, deixando-a desarmada.
O javali se deteve por um momento, seus flancos agitando-se pesadamente. O sangue emanava do ferimento que havia sofrido. A lança seguia cravada arrastando-se atrás dele e Dryas observou que a espuma que lhe cobria as mandíbulas era vermelha. Seu segundo ataque devia ter lhe acertado um pulmão, apesar de sua aparente falha.
Mas aquele assassino estava muito longe de ser exterminado. Investiu. Dryas voltou a se mover para a esquerda, mas ele a seguiu. Logo à direita. A criatura parecia antecipar todos os seus movimentos.
Dryas saltou como uma acróbata, caindo sobre as mãos atrás da cauda da fera, descreveu uma pirueta e caiu em pé no centro da arena.
O javali se se voltou com uma incrível agilidade, mais própria de um arminho ou uma doninha que de um porco e investiu novamente.
Na tribuna, Lucius ouviu que Antonio ofegava de admiração. César riu. Mas aquele javali era um adversário mortífero e Lucius sentiu medo pela mulher. Inclinou-se sobre o corrimão, com os punhos crispados em torno das puas de ferro.
Dryas recuperou sua lança e para horror de Lucius, esperou o animal de joelho em terra. Sabia o que estava fazendo a mulher. Ele havia matado uma cerda do mesmo modo, naquele longínquo dia em que lhe cravaram sua própria espada pelas costas.
—Não. — Ele sussurrou. - Não, não o faça. Feriste-o no pulmão. Dentro de pouco será incapaz de respirar e terá terminado. — Ele sabia tão bem como ela.
Dryas cravou a lança entre as costelas do javali, mas o animal seguiu avançando pela haste, com a boca aberta e as presas amareladas preparadas para lhe rasgar o ombro e o pescoço. Ela saltou para trás, mas tinha esquecido onde estava, e seu corpo se chocou contra a parede de pedra da arena.
A boca se fechou sobre seu tornozelo, mas Dryas já estava em movimento, com as mãos sobre o lombo da fera e os pés no ar, dando uma cambalhota. Seu pé sangrava quando caiu de flanco, apoiando-se sobre seu braço esquerdo.
O javali se voltou, com a boca aberta e as presas baixas.
Ele me teme, pensou Dryas. Isto é a morte. Sua mão escorregou sobre a arena e caiu de lado, fitando o javali nos olhos.
O animal deu um passo para ela. Dois passos. A lança havia lhe atravessado o corpo. Tossiu, gorgolejou e caiu com as patas dobradas enquanto Dryas se levantava.
Ela descobriu que estava tremendo dos pés a cabeça, mas o público da tribuna não podia notar.
O javali tossiu novamente enquanto Dryas se afastava, quando um brilhante jorro de sangue derramou sobre a arena, de sua boca aberta. Só então morreu definitivamente.
Dryas olhou a mão esquerda. Estava esfolada de um lado e saía sangue. Também tinha alguns cortes no tornozelo, feitos pelos dentes do animal. Nenhuma das feridas era grave.
Ouviu o restelo subindo atrás dela. As cadeias ressoaram com um estalo.
Antonio se recostou em seu assento.
—Bom combate. — Ele assinalou Dryas. - Mas não me diga que é uma mulher. Não pode ser. Não acredito, mesmo que me jurem todos os olhos de Roma.
Dryas olhou para os homens, com a cabeça ligeiramente arremessada para trás. Lucius descobriu que não gostava muito de sua forma de lhe olhar. Ela não havia sido tão direta com o javali. Logo, ela se voltou e caminhou até a abertura sob o restelo. Sob a brilhante luz da manhã, era como a boca de uma caverna.
Antes de entrar, ela se voltou, tirou a cota de malha e a deixou cair na arena. Depois fez o mesmo com a tanga, ficando nua diante deles.
Lucius sentiu que sua boca lhe secava, e voltou a se alegrar em estar com a toga, mas logo se deu conta de que não a usava. Havia tirado em algum momento durante a luta. Embora não importasse, pois nenhum dos outros homens prestava a menor atenção ao estado de sua alma.
Antonio fez um ruído que recordava os grunhidos do javali.
—Não acredito que haja dúvida de que estamos olhando para uma mulher – Disse César. - Não! Nenhuma dúvida.
Capítulo 21
Não tinha imaginado que houvesse tantos deles. Nunca tinha visto uma quantidade tão grande. Como se alimentavam? Como evitavam ficar loucos? A multidão era esmagante e Maeniel compreendeu por que seus sentidos estavam tão embotados. A cidade estava tão carregada de aromas que quase se encontrava à margem de perder a capacidade de pensar com coerência. Simplesmente não podia, sequer com um cérebro humano, processar toda aquela informação de uma vez.
Viajava em uma liteira e os doze homens que suportavam seu peso exalavam um mau cheiro de medo e das secreções do esforço físico que molhavam suas axilas e suas virilhas.
O medo se devia ao fato de serem feras de carga humanas e um condutor os seguia com um comprido látego enroscado na mão. A liteira pertencia a Ambórux. Quando algum dos escravos fraquejava ou era incapaz de manter o passo, o látego estalava. Maeniel tinha notado que os homens tinham lonças manhas vermelhas em distintos lugares de seu corpo. Agora compreendia por que.
O liteira estava lhe aguardando em Ostia quando ele desceu do navio. Não fazia idéia de como Blaze havia enviado uma mensagem a Ambórux, mas havia vários guardas do galo e uma liteira lhe esperando no porto. Maeniel carregou quatro sacos de ouro e subiu atrás, perguntando-se o que moveria aquilo. Já sabia. Os homens que trotavam sob ele estavam muito incômodos e ele se sentia igual.
O ruído era ensurdecedor. Os gritos dos camelôs se misturavam com os dos clientes discutindo com os lojistas cujos estabelecimentos se alinhavam ao longo da rua. O barulho, o constante ruído da conversa humana, pisadas, os carrinhos de mão, os golpes dos martelos e o raspar dos yeseros quando passavam junto a uma obra em construção... Os onipresentes aromas que chegavam das lojas de comidas, os botequins, os açougues, os postos de salsichas, os de vinho, os fornos de pão... Tudo isso acima dos sedimentos, da urina, a água estancada, o lixo, a putrefação e outros maus cheiros, quase até o ponto de embotar seus sentidos.
Crack. Crack. Crack. Os homens sob ele começaram a trotar ao entrar no Foro. Ele não havia pensado que pudessem se mover mais rápido, mas o látego os animava. Os guardas afastaram a multidão ao passar pela Rostra.
A liteira voltou para um pátio rodeado de estrados. Havia homens sentados neles, custodiados por enormes gladiadores com mastins. Cães loberos, ele observou com certo alarme.
Os portadores baixaram o liteira.
—Brandamente! — Rugiu o condutor e o látego estalou novamente. Maeniel não sentiu a menor sacudida quando a liteira tocou o chão.
Saiu do liteira ante o estrado de maior tamanho. As portas reforçadas com ferro estavam abertas e o proprietário estava sentado junto a um braseiro. Era um grego calvo e de aspecto ascético chamado Dofanes. Blaze e Ambórux o haviam recomendado.
Maeniel pegou os quatro sacos de ouro e colocou sobre a mesa ante o banqueiro Dois assistentes se apressaram a contar as moedas. Quando viram que tinha de vários tipos, além do áureo romano, começaram a separar e tiraram balanças para pesar as menos conhecidas.
Maeniel rebuscou em sua bolsa e entregou ao condutor da liteira duas moedas de prata para que comprasse algo para refrescar seus homens e a ele mesmo. Insistiu em que incluisse os portadores, que apesar do ar frio pareciam sedentos e exaustos. Tratava-se de uma soma esplêndida para homens que estavam acostumados a ver somente moedas de cobre no melhor dos casos.
Dois dos guardas foram enviados a comprar, e não demoraram a voltar, com pães com salsicha, cebola e pinhões. Quatro jarras de vinho; volatería, incluindo frango, becada e pombinho. Fumegantes salsichas envoltas em papel e uma panela de guisado de carne de porco em molho de cebolas, nabos e cenouras.
Todos se sentaram ali onde estavam e caíram sobre a comida, enquanto Maeniel, que tinha sido advertido pelo Blaze e Mir, mantinha um olho sobre o ouro, assegurando de que as contas fossem corretas.
Maeniel permaneceu ali em pé, vestido com túnica e toga. Não tinha direito a se vestir assim, por que não era cidadão romano, mas fim afinal, de que nacionalidade eram os homens lobo? Podia ser tão romano como qualquer outro.
Os escravos, que estiveram lhe amaldiçoando em silencio desde Ostia, começaram não exatamente a benzê-lo, mas se mostraram mais dispostos a acreditar que ele era um homem mais amável do que indicava a experiência.
Quando o dinheiro ficou contado e pesado afinal, Maeniel descobriu que era um homem rico, mesmo para os critérios romanos. Não obstante, em vez de ir para a vila de Ambórux, foi levado a se alojar em casa do Manilius e Felex. Negou-e a voltar para o liteira e fez o trajeto a pé o resto do caminho. Seus guardas se sentiram envergonhados, exasperados e finalmente furiosos, pois queria investigá-lo.
Ele se deteve ante o posto de um vendedor de salsichas e provou uma de cada variedade. Logo entrou em um botequim onde o taberneiro e uma mulher transvam em cima de uma das mesas. O homem tinha a túnica recolhida acima da cintura, igual à mulher, mas os guardas se advertiram escandalizados que ela usava a estola de uma respeitável mulher casada. Já estavam se preparando para tirar Maeniel dali quando o taberneiro se afastou da mulher, pegou uma panela de sopa e arrojou seu conteúdo sobre os recém chegados.
Maeniel conseguiu não se transformar em lobo. Conteve a mudança enquanto se abaixava sob uma mesa. Os guardas fugiram em todas as direções e também a mulher. Parte da sopa havia cansado perigosamente perto dela, e tinha uma grande quantidade de gordura, provocando feias queimaduras sobre a pele.
A mulher chegou à porta e se voltou, gritando maldições ao seusamante. Os guardas saíram de seus refúgios. Muitos haviam imitado Maeniel metendo sob as mesas, alguém havia se encarapitado a uma viga e outros dois tinham saído à rua.
Então Maeniel se encontrou defendendo o desventurado taberneiro dos guardas, que queriam afogá-lo em uma panela de água fervendo, ou pelo menos fazer com que ele desse um mergulho de cabeça nela. A mulher somou seu voto ao dos soldados, ainda zangada pelo incidente com a sopa. Equilibrou sobre seu amante com unhas e dentes, por falta de outras armas.
Os vizinhos se reuniram para desfrutar do espetáculo e Maeniel se fixou em um homem alto colocndo ordem entre os congregados. Seria o marido? A multidão acabou por se dissolver. Era óbvio que se tratava de um homem conhecido e temido na vizinhança.
De algum jeito, o homemzarrão estava convencido de que Maeniel havia insultado sua esposa e o taberneiro estava defendendo sua honra. Ele usava uma espada.
Tanto Maeniel como os guardas optaram pela melhor parte da coragem e correram, seguidos pelos portadores.
Quando se reagruparam a várias ruas de distância, Maeniel pediu explicações aos guardas. Eles as deram, junto com um considerável catálogo de obscenidades, algumas das quais não eram facilmente traduzíveis para o latim e Maeniel estava profundamente interessado. Ele estava a par da natureza privada do ato do amor, incluindo o fato de que os humanos não gostavam de ser interrompido, mas se encontrava nas trevas pelo que respeitava ao ultraje criado pelo respeitável vestido da mulher em uma situação não tão respeitável. Por fim ficou devidamente esclarecido e ele prometeu ser mais circunspeto em suas explorações.
Maeniel manteve sua promessa, desviando só o necessário para comprar pão com uma deliciosa camada de mel para todo o grupo. Continuaram seu caminho mastigando e bebendo.
Ele se deteve para comprar um incomum chapéu. Era elaborado para manter o sol a raia e a forma de uma grande couve, com as folhas presas com uma corda no centro. Quem o usava podia desatar as folhas que fossem necessárias para se resguardar do sol no rosto, pescoço e orelhas.
Seus guardas o acharam bastante ridículo para gargalharem e mesmo os oprimidos portadores mostraram alguns sorrisos.
Acalmaram-se imediatamente quando Maeniel esteve a ponto de provocar um tumulto no Foro ao arrojar prata a umas crianças que estavam dançando ao som de uma flauta.
A partir daquele momento ele foi urgido a caminhar mais depressa, até que o grupo chegou à casa de Manilius e Felex no Palatino.
Um formoso jovem vestido como uma mulher os convidou a entrar. Tinha o cabelo castanho avermelhado e usava um vestido de seda verde, perfume e maquiagem.
—Bonito vestido. - Lhe disse Maeniel.
—Sim, o verde é minha cor favorita. - Ronronou o porteiro, aparando o elaborado toque com cachos de cabelo e um diadema.
Ele conduziu Maeniel a um peristilo cheio de pessoas, umas oito mulheres e mais ou menos dez homens em diversos estados de nudez, todos passeando entre as flores e plantas do jardim.
Rosas novas, lírios, samambaias, salvia branca e malva; acantos de esplêndidas flores azuis que elevavam seus complexos espinhos. Havia violetas por toda parte, florescendo em baixos vasos de barro, de cores púrpuras, brancas, amarelas, e as fragrantes, tímidas e simples azuis.
As pessoas mostravam maior colorido, se isso fosse possível. Ali onde se pousava os olhos, se fazia sobre jóias: ametistas vermelhas, azuis e laranjas, ônix negro, hematites e um arco íris de pérolas rosa, brancas, azuis, pardas e resplandecientemente negras. Os vestidos eram de todas as cores e tecidos, como a seda, linho, lã, algodão... Vermelho, verde, laranja, azul, amarelo, marrom ou inclusive negro: todas as combinações possíveis. E, além disso, todas os rostos estavam maquiados e o ar estava carregado de perfume.
Maeniel ouviu os risinhos afogadas, os pigarros e as tosses de seus homens. Alguns chegaram a se engasgar ao tentar controlar sua diversão com muito ímpeto.
As damas e cavalheiros do jardim não se importaram em ocultar seus sentimentos. Vários assinalaram o chapéu em forma de couve e riram como histéricos.
Manilius e Felex olharam para o alto.
—Oh querido, — gemeu Felex. - No que nos colocou Ambórux esta vez?
Por um momento, Maeniel teve a experiência de estar entre dois grupos de pessoas sorrindo, cada um do outro e já de passagem, dele mesmo. Não estava seguro de que gostase da situação, mas era uma criatura paciente. Então que se tirou o chapéu e se inclinou ante Felex e Manilius com um sorriso.
Manilius apertou as palmas das mãos, como se estivesse rezando.
—Oh...
Felex parecia assombrado.
—Ah...
As mulheres se levantaram de suas cadeiras e se aproximaram de Maeniel.
—Oh! – Disse uma vestida com uma túnica de cor laranja. - Não é...
—Simplesmente adorável. - Completou outra que usava uma estola com umas seis capas de gaze verde.
Maeniel começou a beijar mãos, um costume que adorava.
Lucius se afastou da arena sem se dar conta de onde estava
—Caledonia. - Murmurou Orelha cortada.
—CA... O que?
—Ela é da tribo dos Caledônios. - Explicou o galo, com uma rígida cara de desaprovação. - Deveria estar morta.
—Estou de acordo: não poderia matar aquele javali com duas lanças leves, mas matou. - Replicou Lucius, ainda impressionado.
—Não! Deveria estar morta antes de permitir... Tal uso. Mulher caçadora sagrada. Não, não é latim. Sacerdotisa caçadora, rainha caçadora, valquiria, cavalga na tormenta. Pontas dos dedos - Disse Orelha cortada levantando a mão. - Os dedos caem sobre ti, você morto. Posto primeiro na luta, nu. Sacrificado ao poder da batalha pela vitória. Caledônios. — Ele não disse nada mais, pelo menos não em latim e se afastou murmurando.
Lucius simpatizava com ele. Sentia mais ou menos o mesmo, mas sem dúvida por razões completamente diferentes.
Sua imaginação seguia lhe mostrando uma imagem da mulher em pé ante o restelo. Sua mente seguia aumentando o nível de detalhe do que tinha visto. Não, não era possível que a tivesse cuidadoso tão bem. Estou há muito tempo sem uma mulher. Deveria ter feito algo a respeito há semanas. Necessito de um pouco da lassidão que proporciona o sexo.
Já era meio amanhã e o dia seria ser quente. Lucius evitou qualquer lugar onde pudesse encontrar com os outros. Queria se liberar da visão que o atormentava, mas não o conseguia: seus pensamentos seguiam centrados na imagem da mulher. Orgulhosa, mas vulnerável, só ante a escuridão sobre a branca arena à sombra das paredes.
Estava tão sumido em seus pensamentos que não se deu conta de onde estava, até que tropeçou com um ladrilho levantado por uma raiz em um pátio em desuso. Olhou ao seu redor, consciente pela primeira vez de onde o havia levado seus passos.
Era a parte mais antiga da vila, mas não tinha sido remodelada como o peristilo perto do átrio. Lucius tinha vivido ali com seus pais até os dezesseis anos, quando as mudanças na sociedade romana obrigaram seu pai a gastar dinheiro na modernização da casa, para convertê-la em uma residência adequada para a rica e importante família Basilia.
Junto à entrada estavam as salas de recepção, onde seu pai e Aristo recebiam seus sócios, empregados e partidários. Clientes, lhes chamava em Roma, credores, libertos e escravos, todos eles dedicados a seus diversos negócios.
Sua mãe tinha uma série de aposentos perto dali, onde cultivava assiduamente suas conexões aristocráticas com a família Julia, aparentada com César, como meio para os fins de seu marido. Dedicava as tardes a beber discretamente. Desde criança, Lucius nunca tinha entendido o que significava o forte aroma de transpiração alcoólica que sempre rodeava sua mãe na hora do jantar, mas notava certa infelicidade entre ela e seu pai. Apesar de tudo, ambos eram amáveis com ele e mesmo com as constantes maldades de Fulvia, tinha sido feliz.
Agora o jardim estava descuidado e os velhos canteiros de flores invadidos pela má vegetação. Mas os canteiros seguiam verdes, como os altos ciprestes. O lago estava cheio de plantas aquáticas e flores brancas, e a carpa que recordava de sua infância seguia vivendo ali.
Pensou que ela também devia seguir ali.
Sim, estava entre os ciprestes e as roseiras mortas no extremo do lago junto à casa de sua adolescência: Vênus entrando no banheiro. As pernas estavam esverdeadas pela umidade, uma delas colocada para sempre na água. Não era uma obra prima, mas um produto manufaturado por alguma das mais comerciais cidades helênicas fundadas pelos sucessores de Alexandre. Uma imitação tosca das estátuas clássicas pela qual a Grécia era famosa.
O rosto era feio, com um queixo muito grande e baixo, mas o escultor havia acertado com o corpo. Em seus imaginativos treze anos, o rosto não tinha sido a parte dela que mais interessava a Lucius.
Havia sido um solitário, então. E o sigo sendo agora, ele pensou enquanto atravessava os matagais e ciprestes para chegar até ela.
Não era muito grande, um pouco menor que o tamanho natural. Recordava que em sua infância tinha que levantar o olhar para ela, mas agora ele era maior. Passou-lhe um braço pela esbelta cintura e apoiou a face sobre o frio cabelo de mármore. Pensou novamente na mulher da arena e recordou onde tinha visto seu rosto antes. No templo deserto, refletido na superfície da água.
Uma carpa grande e velha se elevou até a superfície para pegar A uma mosca e desvaneceu novamente entre as plantas. Havia libélulas dançando entre os papiros que haviam crescido a margem do lago. Uma rã verde, muito pequena saltou sobre o pé da estátua, que estava dentro da água. Maravilha das maravilhasm uma serpente da mesma cor e com linhas negras percorrendo seu corpo, deteve-se para observar a rã com felinos olhos de âmbar, as pupilas como ranhuras sob a brilhante luz do sol. Logo entrou na água, desaparecendo nas lamacentas profundezas.
Lucius viu o rosto dela fitando-o da água. Os olhos fechados, o esbelto corpo, os brancos seios coroados de rosa, o suave triângulo de pelos escuros em seu púbis, densos e sedosos como os de um gato...
A mão que tinha em torno da cintura da estátua mediu até notar a textura de um úmido pêssego amadurecido. Não queria saber o que estava tocando sua mão, talvez uma mancha de musgo. O sol que brilhava acima de seu ombro, refletindo na água, rompeu de repente quando a rã que estava sobre o pé da estátua saltou o dourado disco. O prazer deu um salto em seu corpo, lhe puxando quase dolorosamente das virilhas e logo saiu disparado como uma flecha à luz, o ar e o silêncio, deixando Lucius ensopado de suor e com uma sensação de debilidade. Sua solitária deusa do desejo o sustentava em pé, impedindo que caísse de joelhos em oração, súplica ou desespero.
Fulvia estava encantada. Derramou exclamações de admiração sobre Dryas, lhe oferecendo dinheiro, jóias, escravos pessoais próprios, uma vila no Baiae, tudo o que pudesse imaginar.
Dryas se sentia enojada e deprimida. Não acreditava em nenhuma das promessas de Fulvia e sentia que sua situação era se desesperadora. Tinha ouvido o bastante para saber que César havia estado entre o público da manhã. Nem souberta quem deles ele era. Como matá-lo se sequer podia reconhecê-lo? Não estava segura de como averiguar o que necessitava para completar sua missão.
Só pediu um banho e um pouco de comida. Esperava que Fulvia partisse com sua conversa e sua satisfação, e assim aconteceu.
Dryas aceitou o banho de vapor da sauna; seu povo também era aficionado naquilo, mas ficou surpresa ante o luxo do tepidarium. Por que um povo com acesso a tais comodidades e belezas se entregava a um comportamento tão ávido de emoções como o que tinha visto aquela mesma manhã? E por que tentava impor a outros povos como tinha feito com os galos? Que perda de tempo.
As donzelas de Fulvia lhe aplicaram azeite perfumado. O perfume lhe ardeu nos cortes do tornozelo, que se abriram e começaram a sangrar, igual que aos da mão. A visão do sangue provocou uma exagerada reação, pelo menos ela considerou assim, entre as mulheres. Começaram a revoar Ao seu redor, gritando de forma pouco digna. Seus gritos incomodavam Dryas, mas ela era muito educada para dizer. Afinal era uma convidada, embora involuntária. Entre as tribos cuja tradição de hospitalidade se remontava tempos imemoriais, o hóspede tinha o dever de se mostrar cortês com seu anfitrião, o dever de acessar a todo pedido razoável. Não desafogou sua irritação sobre as inocentes donzelas, mas prometeu cooperar com o físico quando a acudisse.
As mulheres a envolveram em uma solta musselina e foram em busca de Fio.
O grego se encontrou com Lucius no átrio.
—Aonde a levaram? — Perguntou Lucius. Tinha um aspecto turvo e infeliz.
—A nenhum lugar, está nos banheiros. Antie me mandou chamar. Parece que o javali lhe fez uma ferida no tornozelo. Fulvia disse suas donzelas que tratassem essa mulher como cristal e elas estão aterrorizadas. Antie me chamou para que olhe o que certamente não será mais que alguns arranhões. Vi a mulher quando terminou a luta. Esta noite, todas as línguas de Roma falarão dela. César e Cleopatra tiveram que pedir emprestado um dormitório antes que ele pudesse partir ao Senado. Esse truque que fez a mulher depois do combate arruinou a compostura de todos os homens presentes. – Ele disse com um risinho. - Até Antonio esqueceu sua ressaca.
Lucius emitiu um gemido.
—Não! Não! Não dê um passo mais. Não se mova. Não faça nada até que eu volte. — Ele deu uns amalucados passos de dança. - Necessito... Necessito... Não sei o que necessito... Um disfarce de algum tipo. Posso ser seu ajudante? Um ajudante de banho? O que posso ser?
—Oh, não! Você também, não!
—Sim, sim, sim! – Respondeu Lucius sem deixar de dançar.
—Octus! — Chamou Fio.
O escravo apareceu.
—Traga uma túnica: velha, gasta, com remendos e buracos. Há algo assim por aqui?
Octus assentiu, voltando imediatamente com um objeto. - Não é muito bonita, mas servirá.
- Obrigado – Disse Fio, oferecendo-a a Lucius.
—Agora, vamos até ela. – Disse Lucius confidencialmente enquanto trocava a túnica em um vestuário dos banhos.
Fio assentiu.
—Sim. Às vezes, quando olhamos de perto algo que tínhamos admirado à distância, descobrimos que não cumpre com nossas expectativas. Os defeitos ocultos pela distância parecem mais brilhantes e o que nos impressionou ao vê-lo de longe nos repele quando nos aproximamos e tentamos abraçá-lo.
—Ah, bem! – Disse Lucius. - Vamos lá. Quero ver como ela é na realidade.
—Acredito que já lhe disse.
—Não, não disse. Ou pode ser que o tenha feito enquanto eu tirava isto, mas agora...
—Guardea silêncio, pois você é um criado – Disse Fio, e abriu a porta.
A luz diurna que se filtrava pela clarabóia não era aduladora para nenhuma mulher, mas a Dryas não afetava. De fato, aos olhos de Lucius parecia um espírito da terra cativo.
As donzelas haviam lavado, perfumado e penteado o cabelo em torno de uma estranha coroa de cobre com pontas agudas. De perto, Lucius pôde ver quão branca era sua pele, quase como o mais fino mármore. Mas não fria como o mármore, mas com toques de rosa, como o da rosa do Pistum, com seu dom duplo da primavera. Recordava os longos canos entrelaçados na vila campestre da família. Agora, com o ar fresco e a brilhante luz do sol, estariam começando a florescer. As longas e cruéis vinhas estariam carregadas de flores e casulos, e o ar estaria impregnado de sua fragrância.
A mulher estava sentada em uma cadeira, uma daquelas coisas que tanto gostavam os gregos, com respaldo curvo e pernas esbeltas. A cadeira e a musselina não ocultavam nenhum dos segredos de seu corpo, mas davam certa suavidade a sua silhueta. Criavam a sedutora sensação de que ao estender a mão para despi-la, seria possível encontrar o prazer que o olho encontra em uma paisagem que já é bela sob a neblina da manhã, mas resulta ainda mais formosa a luz do sol.
Era simplesmente uma mulher, sem artifícios, sem adornos, despretensioso, sequer desejo. Mulher como era. Como tinha sido criada pelos deuses, nascida tanto para saciar a luxúria, como para despertá-la. Tão pronta para embalar um filho no seio ou a um homem em busca do ardente deleite tocado com o mistério da criação entre suas coxas, e para compartilhar seu deleite em união com ele, somando seu fogo ao dela.
Fio fechou a porta atrás dele e ela os olhou.
Sim, já havia pensado antes. Seus olhos eram azuis. Azuis como a ameixa que havia pegado no templo, azuis como o lapislázuli gentil até convertê-lo em uma gema, azuis como o mar Egeu no verão, azuis e emoldurados por escuros cílios.
E, o que era pior, havia lhe visto. Não tinha um filtro entre si mesmo e outros. Lucius sim. Não havia visto Lucrecia como um ser humano, mas como uma simples escrava doméstica, até que sua amante morreu.
Mas aquela mulher não tinha nenhum e Lucius viu que seus olhos o seguiam enquanto ele e Fio se aproximavam da cadeira. Notou um repuxão na cicatriz de suas costas. Estava descalço, pois tirou as sandálias ao vestir a andrajosa túnica e a cicatriz o incomodava mais quando não usava sequer o leve calçado dos legionários.
A mulher se fixou na claudicação, na roupa velha e a cabeça encurvada. Lucius estava um pouco assustado de que ela o reconhecesse, embora estivesse sentado a esquerda de Antonio e César. Esperava que ela não tivesse lhe visto bem.
Era consciente de que todos os indícios diziam, criado e não particularmente importante, mas apesar de tudo a mulher estudou sua roupa, sua claudicação e seu ar submisso.
Chegaram junto à cadeira. Lucius se ajoelhou e levantou a perna da mulher pelo calcanhar e a pantorrilha, sustentando-a de modo que Fio pudesse ver as lacerações deixadas pelos dentes do javali.
Ela colocou uma mão sobre seu ombro. Lucius levantou o olhar e encontrou com seus olhos. Houve algo como a descarga de um raio e por um momento, os dois estavam sozinhos.
Sim, ela o viu e ele se viu si mesmo através de seus olhos. Viu um criado, um jovem coxo vestido como um trabalhador. Jovem, mas sem muitas esperanças de chegar a uma vida melhor. E não obstante, lutava o melhor que podia com os poucos dons que lhe haviam sido concedidos: juventude, encerrado em uma casa onde nunca se permitiria que crescesse e florescesse em uma virilidade segura, generosa e bem dotada; um espírito humano, nascido para o amor e a esperança, perdido a tudo de bom que podia fazer por si mesmo e aos outros. Nascido unicamente para ser preso à escuridão e destruído por completo.
Lucius sentiu a tristeza da mulher e estranhamente, sua sede de justiça e soube com absoluta certeza que ela era dele. Havia sido no passado e que ele a tinha amado em todo o tempo e voltaria a amá-la. Na vida ou na morte, não a cederia a ninguém. Não. Nem a César, nem a Roma e sequer aos deuses imortais.
Fio estava esfregando um ungüento sobre o tornozelo e assegurando a Antie e as demais mulheres que os arranhões não eram nada do que devessem se preocupar. Lucius voltou a baixar o pé até o chão e ela levantou a mão de seu ombro e afastou o olhar.
Lucius sabia que se levantara e síra da casa, mas não recordava ter feito. Nem recordava o caminho que tinha tomado para voltar para jardim abandonado onde estava sua imagem da feminilidade. Caminhou entre os ciprestes e o lago coberto de vegetaçãos, mas de alguma forma fecundo e benido pela mãe de toda vida, que se inclinava sobre ele. Soube que ela tinha transmutado seu desejo da pedra à carne, enviando-o a ela e a ela, ver os olhos.
O lobo também se banhou, um rito que compreendia que era importante entre aqueles romanos. Também deixou que as donzelas de Felex o vestissem. Eram tão hábeis com a roupa de um homem como com a de uma mulher e Maeniel entrou no átrio ao crepúsculo com todo o aspecto de um romano. Então perguntou a Felex, por que se alojava ali e não em casa de Ambórux.
—Oh, querido, isso não funcionaria jamais. Um laço entre o Archidruida da Galia e Ambórux, respeitado senador e cidadão, pode ser útil em casa, mas nunca serviria de nada em Roma. Então somos seus delegados, por assim dizer. Ele não poderia ignorar um pedido de lá, pois seria uma imprudência, mesmo com a Galia sob a bota romana. Esses druidas seguem tendo muito prestígio entre as pessoas e embora esteja seguro de que são pessoas encantadoras, não são muito bem vistos pelos romanos.
—Mmh... Sei. – Disse Maeniel. E assim era. Ele enxergava mais do que Felex queria.
—Não quero parecer ofensivo, mas esta noite temos um pequeno jantar, ao qual convidamos alguns outros senadores conhecidos nossos. Está acostumado a etiqueta romana?
—Recosto-me me apoiando sobre o braço esquerdo e uso os três primeiros dedos da mão direita para pegar a comida. Não babo, não solto flatos ou arroto, não escarro, cuspo ou me coço. Não me embebedo nem começo brigas, não discuto sobre religião ou política, nem fale grosseirias quando há mulheres presentes... E, por certo, tampouco assedio a criadagem que nos servem. Elogio a comida, mesmo que não esteja boa e não monopolizo o melhor prato, mas o compartilho com outros. E, - Maeniel respiroi antes de continuar, - me lavo antes e depois.
Felex o olhou, piscando.
—Sim. Bem... Sim, acredito que isso o cobre tudo.
—Estupendo. – Disse Maeniel.
—Não mencione Ambórux na mesma frase que os druidas. Na realidade, talvez o melhor é que não fale de um ou outro.
—Não é preciso comentar. - Prometeu Maeniel.
Poucos momentos depois entrou um modelo de retidão romana: Marco Junho Brutus, seguido por um aborrecido Antonio.
—Os filhos de César – Disse Felex, dando uma cotovelada nas costelas de Maeniel.
—Não são um pouco velhos?
—Bem, querido, já sabe... Não são seus verdadeiros filhos, mas Brutus é herdeiro de César e Antonio, herdeiro forçado. - Explicou Manilius.
—Hum... – Disse Maeniel. E sentiu mais contente ao começar o jantar.
Antonio e Brutus estavam jogados um frente ao outro e olhavam-se como lobos preparados para resolver uma disputa sobre sua posição na alcatéia. Maeniel havia presenciado e participado de muitos daqueles acontecimentos e o surpreendeu ver que Felex e Manilius optavam por fingir que não acontecia nada. Já havia notado que os humanos não eram uniformemente sinceros consigo mesmos nem com os outros, mas aquilo era um assombroso grau de auto-engano.
A casa era de estilo decididamente grego, como também havia notade Lucius e a mesa do jantar não era menos.
O jantar começou com uma esplêndida salada de polvo misturado com verduras amargas, tudo regado com limão e abundante azeite. Os pedaços de carne estavam ligeiramente amadurecidos com sal e pimenta, e de acordo com o costume grego, havia pão para molhar no azeite e o limão.
Antonio e Brutus se olhavam por cima da salada e quando os dedos de ambos caíam sobre o mesmo tentáculo, ficavam a ponto de grunhir.
Se fossem lobos... Pensou Maeniel. Não! Não são distintos dos lobos. Inclusive cheiravam como se quisessem uma confrontação, mas ainda não se atreveriam a iniciá-la. Se atreveriam quando um deles estivesse seguro da vitória e forçaria o enfrentamento e nenhum dos dois tinha chegado aquele ponto. Não, a única diferença entre aqueles dois e os lobos era que, entre os lobos, todos aceitavam o resultado e seguiam como antes, enquanto que entre os humanos, as conseqüências para o perdedor seriam muito mais drásticas.
Quando desapareceu até o último vestígio de salada, os escravos levaram a bandeja para substitui-la por outra generosamente carregada de ratazanas recheadas de porco, pimenta, pinhões e acedera.
—Você viu o novo brinquedo de César? — Perguntou Antonio a Brutus. Logo acrescentou: - Oh, sinto muito. Esqueci que não estava convidado.
Maeniel teve que reprimir uma gargalhada. O lobo teria emitido o agudo latido que sua espécie usava ao brincar. Não era uma risada, mas parecia o bastante.
Brutus arqueou as sobrancelhas.
—Ouvi falar dela, mas César conhece minhas inclinações filosóficas e sabe que não aprovo tais... Diversões lascivas. É uma profanação da virtude mostrada pelos verdadeiros gladiadores. Uma mulher, nada menos. Como pode ser primarius bellator, uma lutadora sobressalente, e distinguir no combate corpo a corpo, quando inclusive prisioneiros e escravos o fazem? Eles pelo menos são homens.
Dryas. Pensou o lobo. Estão falando de Dryas.
—Onde foi isso? — Ele perguntou.
Antonio ignorou a pergunta por completo e Brutus respondeu com desdém.
—Um assunto particular. Uma vergonhosa exibição do encanto que se supõe novidade para as mentes mais fracas.
—César pareceu desfrutar bastante – Disse Antonio, segurando seu terceiro ratazana recheada.
—É uma amostra da degeneração de... Dos tempos, — terminou Brutus trôpegamente.
Maeniel estava se divertindo. Compreendeu que Brutus estivera a ponto de dar um grave tropeção. Os olhos do Antonio reluziam. Estivera a ponto de conseguir que Brutus acusasse o ditador de ser um degenerado.
—Uma mulher. Uma mulher gladiadora. - Ofegou Manilius. - O que...
Brutus e Antonio o atravessaram com o olhar.
—O que... Diferente. - Ele completou.
—Na realidade, “gladiador” não é a palavra mais adequada. Bestiarius é um término mais preciso. – Disse Brutus com pedantismo. – Afibnal ela enfrentou um animal, um javali. Acredito que é da Galia, pelo que me disseram. O que é apropriado, já que são feras sagradas para esses bárbaros.
—Não sei se são sagrados ou não, mas este javali era muito grande e perigoso. – Disse Antonio. - Esteve a ponto de derrubá-la uma ou duas vezes. Matar um animal desse tamanho com uma lança leve é toda uma façanha. Ful... Seu dono... Quero dizer, me disse que manhã ela enfrentará um leão.
Maeniel considerou a idéia de retorcer o pescoço de um daqueles homens, ou dos dois. Sabiam onde estava Dryas e não queriam dizer. Manilius e Felex trocaram um eloqüente olhar.
—Oh, que moço tão travesso! – Disse Felex. - Pensar que esteve aqui à semana passada para provar o robalo em azeite com alcaparras da tia Myrtus e não nos disse nenhuma palavra da nova aquisição de Fulvia!
—Vejo que ninguém pode ocultar um segredo de vocês dois, - riu Antonio.
Maeniel viu que a satisfação se refletia nos dois arrumados rostos. Antonio acabava de confirmar o que ambos já supunham.
—Não vejo por que alguém iria tentar. – Disse Manilius. - Toda Roma fala disso. Dizem que ela é muito bela, mas, é obvio, são íntimos de César e somente alguns poucos gozaram do favor de vê-la. Por que foi levada até a casa em um liteira coberta e logo voltou a...? Mas vocês sabem, não? —Ele ronronou. - Deve saber onde a ocultam.
Brutus sorriu ao seu anfitrião, Antonio evitou seu olhar e Manilius e Felex pareceram decepcionados.
Maeniel comeu um ratazana. Já o tinha feito em outras ocasiões, mas aquelas estavam picantes. Estava tentado decidir se gostava mais dos recém mortos e ainda quentes ou a variedade ao forno, mas chegou à conclusão de que gostava de ambas as maneiras. As de Manilius e Felex tinham mais gordura que os selvagens e estavam aromatizados com figos.
Nenhum deles sabia onde estava Dryas, aquilo era óbvio, mas todos pretendiam encontrá-la.
As ratazanas terminaram e uma formosa jovem loira levou a bandeja. Pelo menos era uma pessoa loira e formosa e parecia uma garota, mas o lobo informou a Maeniel que não era fêmea. Tanto Antonio como Brutus pareciam pensar que era. Ou também cabia a possibilidade de que simplesmente não lhes importasse. Depois, pensou Maeniel torvamente, isto é Roma.
Circulou mais vinho, o famoso falerno e Maeniel o achou quase tão bom como prometia sua reputação.
—Tudo isto me parece simplesmente insuportável. - Suspirou Felex. - Antonio é o único dos pressente que a viu: é tão atraente como dizem os rumores?
—É amigo de Lucius, conforme acredito. – Respondeu Antonio.
Felex parecia confuso.
—Sim, ele compartilha de nosso jantar todas as semanas. Um jovem encantador, embora não conseguimos fazê-lo se interessar em...
—Em tomar esposa entre suas amizades, — completou Antonio.
—Vamos, vamos... – Disse Manilius. - As damas estão respeitavelmente casadas, todas elas, e só procuram um pouco de aventura. Nem todos os maridos de Roma podem manter suas mulheres de forma pede classe e se conseguem um pequeno extra...
—Sim, mas vocês conhecem Lucius melhor que ninguém dos presentes. Deve lhes falar de sua família.
—Oh! – Disse Manilius, suspirando. – Eu sei. Entendo aonde quer chegar. — ele deu uns tapinhas na mão de Felex. - Recorde-se querido, que nosso estimado amigo nos descreveu um pequeno combate de exibição que teve um... Um final desagradável, por assim dizer. Mas quem era o exauctoratus, o homem a cargo de ludus onde se treinaram as mulheres?
Felex franziu o cenho.
—Espere um momento, só um momento... Tenho na ponta da língua. — Estalou os dedos. - É obvio, ele é muito famoso. É Gordus, o grande Gordus em pessoa. Aí é onde ela se oculta: no Campus Martius, na casa do Gordus.
—Assombroso! – Disse Brutus. - E agora, me digam, por que querem saber onde ela está? — A pergunta era dirigida a Antonio, que fez uma careta, mas não respondeu.
Manilius e Felex pareciam incômodos.
Justo nesse momento chegou o prato principal: porco assado sobre um fogo aberto, com uma cobertura de avelãs e cheio de miolo de pão, mel e grandes cogumelos.
Antes de começar, Maeniel pediu desculpas aos comensais e foi em busca de alívio na latrina. Estava bebendo vinho desde o começo do jantar e não estava acostumado aos efeitos do álcool em grandes quantidades, por não falar do volume de líquido.
Quando ficou seguro de que não havia ninguém mais, transformou em lobo e pôde ouvir a conversa no triclínio.
—Eu advirto, - estava dizendo isso Brutua a Antonio, - interferir com César e algo que é...
—Não seja idiota, — interrompeu Antonio. - Crê que vou deixar que uma coceira entre as pernas se anteponha a minha lealdade e meus interesses? É um...
—Então, por que quer saber onde está essa mulher? — Cortou Brutus por sua vez.
—Porque ninguém me quer dizer. - Antonio soava verdadeiramente zangado.
—Se não fosse um homem que se deixa conduzir por seus apetites como um touro com uma argola no focinho, — grunhiu Brutus, - acredito que o ditador o encontraria mais digno de confiança.
—Confiança! E isso o diz um adulador amante dos gregos. Quem é você para falar de confiança? Se ele tivesse pensado como Sila ou pelo menos tivesse tido um pouco de sentido comum, teria ordenado que todos os Optimates cortassem as veias depois da batalha da Farsalia e que tudo que ficasse de vocês fossem cinza, máscaras mortuárias e lembranças desagradáveis. O melhor que fez Cartilha em toda sua vida foi cravar uma espada no estômago. Mas os outros... Um por um, arrastaram-se até ele, suplicando piedade. E a obtiveram... Má sorte.
—Senhores, senhores... – Disse Manilius, tentando acalmar os ânimos de seus convidados.
—Não ficarei aqui para ser insultado por um bêbado lascivo e ambicioso como você. Um homem cujo único deus está em sua barriga e seu único cérebro em seu membro e que só é leal a uma jarra de vinho. A desgraça de César é confiar em você, um cogumelo sobre a árvore da República, e estar disposto a ceder a um ser tão desprezível...
O vozeirão de Antonio se impôs sobre a aguda oratória de Brutus.
—Eu disse... Eu disse quando ele perdoou todos e deu as boas-vindas ao novo governo. Disse-lhe que se estava cortando a garganta ao fazê-lo. Acredita que é um tolo? Crê de verdade que eu sou? Acha que sou surdo e cego? Quando eu conseguir provas do que você e seus amigos do Senado estão planejando, farei que sejam cobertos de breu e crucificados para iluminar o caminho das legiões para Partia. Vocês, suas mulheres e seus filhos...
Outro golpe soou no triclínio e Felex lançou um grito de angústia quando Brutus saiu da casa, chamando sua liteira.
O lobo se sentou no chão da latrina. Pôde ouvir Antonio rindo enquanto seus anfitriões revoavam ao seu redor, desculpando-se por Brutus. Ele voltou a se transformar em homem e vestiu novamente a túnica, mas não pôde fazer nada com a toga sem ajuda. Era um objeto com o qual não estava familiarizado e muito complexa para vesti-la sozinho. Logo limpou a latrina com uma cuba de água.
Quando saiu, todos os escravos estavam na cozinha, com a orelha grudada na parede do triclínio. Vários o ajudaram a vestir toga e dois mais lhe levaram uma bacia e uma jarra com água quente para que se lavasse as mãos.
—Por certo. – Disse Antonio, com voz absolutamente tranqüila. —, por que me convidaram esta noite? Certamente, não terá sido para que discutisse com esse néscio constipado.
—Não. — Replicou Manilius. - Oh! Estou completamente desolado e tenho a cabeça em branco. Minha mente é um absoluto vazio. Por favor, meu querido Felex...
—Nosso hóspede, nosso hóspede! — Exclamou Felex. - Seu banqueiro é o nosso e ele teve a cortesia de nos informar de quanto dinheiro havia depositado esse Maeniel, como se chama. A quantidade nos deixou assombrados. Nossos amigos já nos haviam dito que ele era um homem rico, mas não sabíamos até que ponto.
—E? — Perguntou Antonio com impaciência. - Não sejam tão delicados. Quanto?
—Seis... Nada menos que seis talentos de ouro.
—É rico mesmo. Concordo. Falarei com César para ver se podemos encontrar um lugar para um pouco desse dinheiro. Confiem em mim. Ele não pode investir em nada melhor que nossa pequena excursão ao Oriente. Os galos só eram bárbaros, mas quando César começou a lhes apertar os testículos, eles chegaram com carros e carros de ouro e escravos aos milhares... A dezenas de milhares. Dizem que esses partos são ainda mais ricos... — Antonio se calou ao ver entrar em Maeniel.
Manilius e Felex explicaram que Brutus tivera que. Maeniel se sentou e aceitou uma porção do assado, que estava sendo trinchado naquele momento.
Antonio se voltou para ele com um sorriso.
Capítulo 22
Dryas foi devolvida ao ludus na liteira naquela mesma tarde e levada à mesma cela da noite anterior. Márcia devia ter estado ali, pois o piso estava varrido e a cama tinha lençóis limpos e uma manta, Dryas ainda conservava o manto, então que se cobriu e se pôs a dormir.
Podia sentir a dor na escuridão. Ele estava ali, em companhia dos mortos. Sabia por que se sentia assim. Na arena, ele tinha matado, pois queria viver. Três dos homens que havia matado fizera parte de sua vida desde que era uma criança e outro erao seui rmão. No fragmento de um sonho, ele se ajoelhou diante dela e lhe pediu perdão, mas ela não lhe pôde dar.
Estava sentada com ele sobre uma pedra. Anoitecia e o entretenimento para as massas romanas havia terminado e tinha sido um magnífico acontecimento. Derramara-se um verdadeiro rio de sangue. Ele estava vivo, mas todos os que amava estavam mortos. Apontou a espada para si mesmo.
Dryas despertou tremendo.
Aquila estava na porta da cela. Carregava um abajur.
—Você gritou. – ele disse. - E foi um dos piores gritos que ouvi em minha vida. O que aconteceu?
—Não recordo ter gritado. - Disse ela. - Não aconteceu nada, mas faz frio. Devo ter sonhado.
Aquila abriu a porta, entrou e deixou o abajur. O manto tinha caído da cama e jazia no chão. Ele recolheu-o e agasalhou Dryas com ele, como uma galinha poedeira.
Ele é maternal, pensou Dryas. Eu fui mãe, mas nunca maternal. Ele nunca poderia ser mãe, mas é maternal.
—Venha. - Disse ele. - Márcia está assandoalguns frangos e temos tâmaras secas e romeira para preenchê-los, além cenouras, pão e queijo fresco. Acredito que também restam alguns ovos cozidos do almoço.
Dryas foi em silêncio. Já era tarde e a luz do dia envolveu-os enquanto caminhavam pelo alpendre. Quando passaram pela cela contigüa, ouviram um golpe e a porta estremeceu.
—Que estranho. – Disse Aquila. - Gordus me disse que esta cela estava vazia.
—Não. – Respondeu Dryas em voz baixa. - Estas celas não estão vazias.
Ao passar junto à terceira, a porta se agitou ruidosamente. Os dois viram como ela se agitava.
—Isto me põe nervoso. – Disse Aquila. - Se não foi você que gritou, quem era?
Dryas não respondeu. Chegaram à escada que descia para o pátio de treinamento sem mais incidentes. Ao entrar na cozinha de Márcia, encontraram Gordus sentado à cabeceira da mesa. Não havia divãs para se recostar ali. A cadeira do Márcia estava junto à de seu marido e havia outros dois lugars preparados para Dryas e Aquila. Eles se sentaram.
Márcia estava preparando um prato para alguém que não tinha descido para comer. Peito de frango, molho, um pão de cebola de aspecto delicioso, cheio de tâmaras e romeira, quatro ou cinco fatias de pão ainda quente do forno, e acompanhamento de cenouras com mel, azeite e cominho. A mulher desapareceu escada acima.
Gordus olhou para Dryas e grunhiu, para logo dar um olhar similar em direção a Aquila. Márcia voltou para a cozinha e começou a servir seus hóspedes, ignorando o marido. Só quando Dryas e Aquila tiveram seus respectivos pratos com pão, frango e cenouras voltou sua atenção a ele.
O antigo gladiador murmurou algo para si.
Márcia separou uma panela de sopa que estava fazendo para ele e lhe cravou um olhar que teria invejado uma Gorgona.
—Como? Não o ouvi.
—Como vai? — Perguntou Gordus com estupidez.
—Estupendamente. Fio veio hoje e disse que o ferimento está curando bem. Não graças a você, certamente
—Deveria dar graças a sua boa estrela de que não tenha sido pior. A próxima vez que tiver a temeridade de me enfrentar o deixarei aleijado para sempre.
—Oh! Os homen. — Se queixou Márcia. - O menino o ama...
—Se de verdade me quisesse, não pretenderia fazer carreira na arena. Diga-me, mulher: quer que ele arrisque sua vida entre esses bárbaros, criminais, proscritos, escravos e assassinos? Homens mortos para toda decência e fé, homens que não retrocedem ante o pior...
Márcia depositou com força a terrina de sopa ante ele, lhe batendo na cabeça com a concha de sopa de madeira.
—Casei-me contigo, não? E o que fez você a primeira vez que... Vimos-nos? — Ela terminou atropeladamente.
— Você sabia muito bem o que eu era, mas eu... Eu... – Disse Gordus, destacando o peito, - saí da servidão, da pobreza, dívida e da desgraça. Agora sou o dono de meu próprio estabelecimento. Lutava oito, nove ou dez vezes por ano, muito depois de ter acumulado o dinheiro para minha liberdade, para que você e o menino estivessem seguros. Mesmo agora... – Ele disse enquanto honrava Dryas e Aquila com outro franzimenro do semblanre. - Se não fosse pelo dinheiro, diria a minha distinguida patroa que se fosse diretamente a... Por pretender converter meu ludus em um bordel.
—Gordus! — Gritou Márcia.
Dryas ficou em pé de um salto.
Aquila fez o mesmo, com a mão sobre o punho de sua espada.
—Senhor, nem a dama nem eu estamos aqui por nossa vontade. Ela foi capturada em honorável combate, como muitos dos que vêm aqui. E embora agora esteja em circunstâncias tão desafortunadas como as que você mesmo sofreu no passado, ela comportou-se com discrição e coragem desde...
—O que é voce, - cortou Gordus, - um soldado ou um orador?
—É grego. – Disse Márcia, como se aquilo o explicasse tudo.
—Sou uma convidada em sua cozinha embora seja uma prisioneira em sua cela. - Disse Dryas. - E um hóspede deve mostrar educado mesmo que seu anfitrião seja ofensivo. Por favor, me devolva a minha cela se tem tal conceito sob mim. Não quisesse...
—Por favor! – Disse Gordus, elevando as mãos em sinal de súplica. - Já me chamou bastante à ordem. — Ele se levantou, inclinando-se diante de Dryas. - Peço desculpas.
Dryas devolveu a inclinação e se sentou novamente.
Gordus fez o mesmo com Aquila, que se sentou por sua vez, dizendo:
—A verdade é que teria odiado perder o frango de sua esposa. Além disso, essas celas do último piso estão enfeitiçadas.
—Sim, estão. - Corroborou Dryas.
Márcia, que estava servindo um prato, voltou à cabeça para seu marido.
- Eu lhe disse.
—Acredito que seja Priscus. – Disse Gordus.
—Sim. —D ryas estava comendo o recheio com uma colher. - Morreu na mesma cela em que estou.
—Gordus! — Exclamou Márcia, ultrajada.
—Como sabe? —A voz de Gordus soava culpado.
—Falo com os mortos.
—Que mais faz? — Perguntou Márcia.
—Treino homens jovens para a batalha e tento ver o futuro quando é necessário.
Gordus adotou uma expressão sombria ante suas palavras.
—E, - continuou falande Dryas, - sei que vou lutar amanhã. Ouvi as mulheres fofocando a respeito. O que vai ser, uma pantera, um leão? Não entendi as palavras que usavam.
—Não é nem um e nem outro. – Disse Gordus. - Essa... Coisa veio de muito longe, pela Rota da Seda. É um felino ou isso parece, mas nunca tinha visto um assim. É grande. Normalmente o usam para executar criminosos, então é um devorador de homens. E não acredito que... Desejaria que não estivesse sentada em minha mesa, jovem senhora. Tinha a esperança de não ter que te olhar para seu rosto.
Dryas sorriu, partiu um pedaço de pão e o molhou no molho.
—Olhe-o. – Disse Aquila. - Está assim desde o começo. Por isso estou aqui.
—Sim. – Disse Gordus. - Notei.
—Me deixe fazer Priscus descansar. - Pediu Dryas. - Me pede que eu faça o que devo. Ele se equivocou, sabe disso e não pode dormir. Os seus foram à arena com ele.
—Sim. – Disse Márcia. - Mas o que lhe dirão quando a virem?
Dryas sorriu novamente.
—Não sou eu quem deve julgar.
—Muito bem. - Aceitou Gordus. - Então lerá o futuro de meu filho.
—Tentarei - Disse ela. - Nem sempre tenho êxito, mas tentarei.
Com Antonio, Maeniel se encontrava em terreno desconhecido. O líder de uma alcatéia de lobos não passa o braço pelo ombro de outro líder, joga-lhe o fôlego carregado de vinho no rosto e lhe sugere fazer uma visita a um bordel.
—Encontraremos algo bonito, não é? É o melhor lugar de Roma e isso são palavras maiores. Roma é a rainha das cidades, embora Alexandria não seja ruim. Reptens tem de tudo e não lhe ocorreria tentar colocar mercadorias de segunda classe para meus amigos.
Maeniel apostava nisso. Antonio tinha o encanto de um crocodilo combinado com o ar ameaçador de um urso enlouquecido. Era mais que óbvio. As pernas de Felex e Manilius tremiam em sua presença e certamente não eram as únicas. Maeniel notou que os escravos de Antonio lhe tinham medo. Muito medo. Mas sabia onde estava Dryas, e quando Antonio enviou para casa seus portadores, eles se internaram juntos na noite.
Já estava tarde e a cidade estava às escuras. A porta da casa de Felex e Manilius dava ao Tiber e a névoa começava a subir das águas. O ar era frio e úmido.
Maeniel respirou fundo. Aqueles torpes humanos viviam em um universo muito limitado. De algum lugar na distância chegava a mais estranha variedade de aromas que o lobo teria encontrado jamais. Mas o homem já sabia, pois havia dito Blaze, que os romanos usavam animais e humanos de terras muito longínquas para se entreter basicamente com suas mortes. Também lhe havia dito que aquilo seria provavelmente o que planejavam para Dryas.
Os jardins ao seu redor e entre as casas próximas tinham seu próprio aroma: pinheiros, ciprestes, vegetação e água, flores e pássaros adormecidos. Sim, também as flores. Uma rosa a meia-noite, tem um aroma distinto que outra ao sol. Como os humanos, que por sua vez têm aromas distintos quando dormem.
Sim, em seu vale teria conseguido matar e descansar. Era capaz de calcular o grau de embriaguez de Antonio por seu aroma. O romano sequer teria capacidade de andar, mas avançava, entoando uma canção que interessava bastante o lobo, pois continha muitas das palavras que os guardas do Ambórux tinham ensinado. Antonio estava lhe ensinando novos usos das palavras latinas do cotidiano, perfeitamente respeitáveis, comparando traços anatômicos com armas, poços e cavernas...
Com o ar fresco e a brisa noturna, a cabeça de Antonio começou a limpar e logo o moveram outros impulsos além da bebedeira. Começou a contar suas aventuras amorosas a Maeniel.
O lobo ouviu, se perguntando se as mulheres implicadas descreveriam Antonio em términos tão brilhantes como ele o fazia.
Chegaram a uma ponte sobre o Tiber e os guardas reconheceram Antonio, que saudou um deles.
—Meu senhor, - Disse o homem. - já é muito tarde sobre a hora oitava. No Transtíber, fora do círculo de luz do posto de guarda, pode acontecer todo tipo de coisas desagradáveis.
Antonio riu.
—Estamos armados, não? — Ele mostrou ao guarda o punho de sua espada hispana. - E você, meu amigo, meu rico amigo, o que é o que tem?
Maeniel afastou sua toga para o lado. Ele usava a espada com o cinturão que Mir havia lhe dado. O ancião a entregara antes que partissem para o Oppidum junto ao Anel. Dryas havia dito que era um presente magnífico.
Maeniel recordava as palavras de Mir. Eu iria deixá-la, para que se oxidasse com todo o resto, mas acredito que na realidade pertence a você.
A arma e o cinto pareciam muito simples, mas ao desembainhar a espada, ela brilhava como o arco íris, ao ponto de brilhar como se tivesse uma luz interior.
O legionário se aproximou de lança em mão. Era um homem imponente, jovem, moreno e com uma longa cabeleira que saía por baixo de seu elmo. Usava uma couraça moldada como um torso e um faldellín de placas douradas, braceletes e grebas de bronze.
—Desenbainhe umas poucas polegadas. – Ele pediu a Maeniel.
Maeniel obedeceu.
—É Gala e antiga! - Disse o legionário. - De onde a tirou?
—Um amigo me deu de presente.
—Oxalá eu tivesse amigos assim. É galo?
—Não. – Disse Maeniel.
—Procura não cravar-la em ninguém esta noite.
—Não, a menos que o mereça.
—Bem. Se o fizer, atire os restos ao rio. César não gosta que os estrangeiros matem cidadãos e tampouco que usem toga. Este objeto está reservado aos cidadãos e cavalheiros de classe, como meu senhor Antonio aqui presente.
Maeniel sorriu... Ou talvez se limitasse a mostrar os dentes.
—Levarei isso em conta. – Ele disse em voz baixa e seguiu Antonio, que atravessava a ponte sem deixar de cantar.
Entraram imediatamente em um bairro bem mais pobre. As casas estavam mais perto umas de outras e se abatiam amenazadoramente sobre as ruas. Os aromas eram mais penetrantes e piores. Águas fecais, vinho derramado, corpos sujos, medo, comida azeda... O cheiro de sexo era quase uma constante no ar, como o sangue, a putrefação e a morte. As ruas começaram a se elevar à medida que eles se afastavam do rio. Podiam ouvir a música através das portas fechadas dos botequins. As flautas gemiam, os tambores seguiam diversos ritmos e uma cascata de cordas tangidas por peritos dedos flutuava no ar.
Antonio se deteve na estreita rua. Cheirava a algo mais que vinho.
—Gosta de derramar um pouco de sangue? — Ele perguntou.
—Acreditei que íriamos visitar esse Reptens, recorda? Garotas?
Antonio soltou uma desagradável risada.
—Minha casa está cheia de mulheres. Se mover um dedo ou dizer a uma delas que compartilhe meu leito, ela tira a roupa na hora. Não, não vim aqui em busca de mulheres.
Ele se voltou e caminhou até uma porta. Começou a bater.
—Me deixem entrar. Quero vinho, estou sedento. Deixem-me entrar.
—Meu senhor, - sussurrou uma voz com marcado sotaque do outro lado da porta, - não servimos aos romanos.
Antonio abriu a porta com um chute, derrubando o homenzinho que havia atrás dela com um murro.
Outro saiu dentre as sombras, esgrimindo uma espada curva de um só fio. Antonio já tinha sua espada hispana ao ponto. Parou o primeiro golpe e logo golpeou o nariz do atacante com a base de sua mão. Soou um estalo, e o nariz do homem pareceu desaparecer em sua cara. Um jorro de sangue saiu de sua boca e seu nariz, salpicando sua túnica, logo a Antonio e por fim o chão.
Até na escuridão, Maeniel pôde ver algo com a forma de uma aranha caindo sobre ele. Supôs onde estaria o pescoço e justo naquele momento uma faca rasgou o peitilho de sua túnica, lhe buscando o coração mesmo enquanto ele espremia o que tivesse na mão. Era o pescoço ou algum ponto da coluna. Sentiu que os ossos se rompiam e um deles atravessou a pele e lhe fez um corte nos dedos.
Antonio ria.
—Não havia esperado uma diversão tão boa!
Maeniel estava surpreso por sua temeridade. Não podia ver e estava seguro de que Antonio devia estar cego. Encontrava-se em um corredor, que terminava em um pátio oculto pelo desnível.
—Há mais? — Perguntou Antonio.
—Não, aqui não. – Respondeu Maeniel. - Mas ao final deste corredor... Há muitos.
—Quantos?
—Não saberia dizer.
—Bom se sabe que estão ali, deveria saber quantos são. – Disse Antonio, um tanto molesto.
—Posso cheirá-los. Muitos mais de duas mãos.
—Mais de dez? — Sussurrou Antonio.
—Sim. Saiamos daqui.
—Oh, não. Isto é o mais divertido que tenho feito em várias semanas. Não sairia daqui por nada no mundo.
Ele começou a avançar pelo corredor e Maeniel o seguiu.
Gordus conduziu Dryas a um passadiço sob a arena. Estava Àass escuras, mas ele ia adiante com uma tocha. Dryas o seguia com Márcia. Aquila fechava a marcha, levando outra tocha. O passadiço cheirava a urina de gato e outros aromas próprios de animais confinados em espaços reduzidos. Acabava em uma grande estadia com solo de pedra que se estendia sob os assentos de cima. Havia jaulas ali, vazias em sua maior parte. Eram pequenas e tinham barrotes de madeira, mas Gordus fez com que o seguissem até a parte de atrás, onde havia uma jaula muito maior e com barrotes de ferro. Além disso, possuía rodas, pelo que era possível empurrá-la ou enganchá-la a um tiro de mulas. O tamanho da silhueta estendida sobre o chão a sombria luz das tochas era assombroso.
Gordus sacudiu um dos barrotes.
—Acorde, Terror! —gritou. - Acorde e saúde a dama.
A coisa se levantou preguisoçamente, pisou no círculo de luz das tochas e elevou a enorme cabeça. Dpois rugiu despindo as presas.
Dryas retrocedeu um passo, respirou fundo e deixou o ar escapar pouco a pouco. Olhou para o lado e viu o rosto de Aquila, com os olhos muito abertos pelo terror. Márcia cobriu a boca para afogar um gemido. Gordus parecia impassível.
Surpreendentemente, a reação de Márcia e Aquila tranqüilizou Dryas. Sua primeira impressão foi de beleza. O brilhante pelo laranja com raias negras era magnífico, assim como a elegância dos músculos movendo-se sob a pele. Sim, era um felino. A grande cabeça com a mecha branca se inclinou para tocá-la com o focinho e dois olhos dourados com as pupilas contraídas pela luz das tochas a estudaram sem muita curiosidade. A criatura elevou uma garra e Dryas pôde ver as pontas das terríveis garras retráteis em forma de cimitarra: se estenderam preguiçosamente por entre as garras peludas e depois voltaram para seu lugar, pouco a pouco.
O animal se voltou, dando um distraído golpe com o focinho em algo que havia no chão de sua jaula e voltou para o monte de palha do canto.
Dryas olhou mais de perto o que tinha movido o animal, e contraiu o lábio em uma careta de asco. Era um descarnado braço humano, com a mão ainda unida a ele.
—Pertence a Antonio. – Disse Gordus. - Se chama Terror e é um nome apropriado. Como já disse, empregam-no para as execuções e quase tudo o que come é carne humana, pois Antonio lhe joga os restos das pessoas que mata. Diz que, se até pagamos algo aos escravos, Terror merece o seu.
—Acredito que não me colocarão para enfrentá-lo desarmada, verdade?
—Não. – Disse Gordus. - Mas do que acha que te servirá uma espada? Mesmo os homens que executa, tem com o que se defender. —Ele fez um gesto para a jaula com a tocha. - Pode ver que sequer um escudo e uma espada foram de muita utilidade ao último. Acredito que isso é o que mais gosta Antonio. Pelo menos uns quantos são bastante duros para lutar, mas sempre perdem... Oh, como perdem.
—Obrigado, Gordus. – Disse Aquila. - Aprecio sua solicitude, de verdade.
Márcia chorava em silêncio.
- Eu lhe disse no que se meteu. – Gordus repreendeu sua esposa. - Disse que só conseguiria sofrer. Disse-te que a deixasse em paz...
—Cale-se! — Cortou-o Dryas, abraçando a mulher. - Não é o pior que já enfrentei e me acredite, a morte tampouco é o pior que pode acontecer. – Ela beijou Márcia na testa. - Obrigado por sua amabilidade. Agora, vamos dar repouso a Priscus. Prometi-lhe ontem à noite que faria assim que pudesse.
Eles seguiram avançando pelo corredor sob a arena até que Dryas notou que estavam fora. No alto, abertos na rocha calcária, havia buracos para a luz, que a noite mostrava somente as estrelas.
Então chegaram À capela mortuária.
—Não convidamos ninguém de fora. – Disse Gordus, colocando sua tocha em um suporte de metal a um lado da porta. Aquila o imitou e pôs ao dele do outro lado.
A câmara iluminada recordava a Dryas um salão de banquetes e isso devia ser. Havia quatro grandes leitos de pedra agrupados em torno de uma mesa de pedra no centro da estadia. Ao longo das paredes havia bancos, também de pedra, que podiam ser cobertos rapidamente com almofadas para acomodar mais pessoas em caso necessário. As paredes estavam estucadas e pintadas. A cor dominante era o vermelho, uma brilhante cor de chama... A mesma cor levada pela noiva em bodas romana, em um véu que cobria todo seu corpo.
Aos pés de Dryas havia uma abertura no chão onde derramar as libações, rodeada por uma suave depressão.
Dryas a rodeou e se aproximou da mesa. Sobre ela havia um buraco quadrado para a luz que dava ao ar livre, e sim, ela via as estrelas.
—Sim. – Ela disse. - É perfeito. — Podia vê-lo durante o dia com o olho de sua mente, a abertura iluminando toda a câmara, os bancos, os leitos de pedra e inclusive a mesa, com homens reclinados nos leitos e tombados ou sentados nos bancos ao redor das paredes. A cabeça do oficial estaria coberta como amostra de respeito ao falecido e ele faria a oferenda no buraco das libações. Pão, azeite, carne e vinho entregues a terra para que o defunto camarada de armas tivesse comida e bebida em sua longa e às vezes perigosa viagem para a eternidade.
Então outros celebrariam um banquete, compartilhando as provisões levadas em cestos até a tumba, como agradecimento por poder desfrutar de um pouco mais da luz, sabendo que algum dia lhes tocaria empreender sozinhos aquela última viagem.
Amamos. Dryas recordou outros amores. Amamos e não é eterno, mas, apesar de tudo, amamos.
—Até os condenados necessitam de consolo em sua condenação, assim construímos isto. – Disse Gordus. Sua voz ressoava na sala de pedra. - Até os condenados merecem algo daqueles que pronunciam sua sentença e eles o respeitam. Mulher, celebraremos seus ritos aqui se for necessário.
—Obrigada. – Respondeu Dryas. - Me esforçarei por merecê-lo.
Ela entrou em uma pequena antecâmara, o cubículo dos gladiadores onde suas cinzas descansavam em nichos nas paredes. Encontrou a ânfora de Priscus quase em seguida e a levou a casa principal. Talvez medisse um pé de comprimento, uma versão menor das empregadas para o vinho. Márcia tinha um suporte para manter a ânfora direita e Gordus tinha azeite e vinho.
Aquila entregou sua adaga a Dryas sem pensar-lhe duas vezes. Ela usou a guarda metálica para romper o selo da ânfora e uma das colheres de madeira de Márcia para espalhar os ossos que restavam. Logo misturou o vinho e o azeite com o conteúdo da ânfora e pôs tudo na mesa, sob as estrelas que reluziam no alto.
Quando se voltou para prender fogo ao pedaço de madeira que tinha na mão, viu que Gordus, Márcia e Aquila haviam coberto as cabeças com seus mantos. Fez o mesmo e logo aproximou a colher da chama da tocha. O azeite se incendiou imediatamente e ela voltou para a mesa, para deixar cair a colher no recipiente cheio de cinzas.
Temeu por um instante que não se acendesse, em um mau augúrio, mas então o azeite incendiou e as chamas saltaram pela boca da ânfora. A fumaça se elevou no ar, levando ao alto o azeite, o vinho e os perfumes usados na pira funerária de Priscus, para as estrelas e o céu noturno mais à frente.
E ela se elevou também. Viu César, o causador de tanta miséria. Ele estava sentado sozinho, escrevendo à luz de um abajur de bronze de cinco braços com a forma de seis gladiadores matando uns aos outros.
César elevou o olhar ao entrar a presença, como se sentisse ambas as mentes inclinadas sobre ele.
Ele é velho, pensou ela e isto devia ter acontecido há muito tempo. Ela viu o perfil de falcão, as bochechas fundas, a pele amontoada em sua garganta. Os olhos sempre inquietos sondando a escuridão dos cantos como se quisesse vê-los. Vê-los, e impedir de algum modo que Priscus escapasse da ambiciosa força que havia destruído tanto e a tantos.
Mas eles se moviam ao seu redor e embora César tivesse conseguido ver mais além do tempo, ali onde estavam na cúspide da eternidade, não teria visto mais que uma espreita, antes que desaparecessem na noite.
Então Dryas se encontrou olhando para as estrelas, estendidas como um oceano ante ela. Ardiam por miríades, com seus milhares de caminhos percorrendo os mares inexplorados e os verdes moderados, seus movimentos seguros e predeciveis desde o começo do tempo até seu final, mas sendo um vasto mistério que nem ela ou sua espécie poderiam compreender jamais de todo.
Então a presença que havia sido Priscus se expandiu do mesmo modo que a fumaça de um fogo moribundo preso pelo vento, desvanecendo-se no ar. Fora embora. Já formava parte do oceano de estrelas.
Dryas despertou de volta na câmara e notou que a ânfora se gretava e caía. O pó, levado em um torvelinho pelo ar esquentado pelo fogo, elevou-se pela clarabóia para a noite.
Alguém gemeu no passadiço atrás deles. Maeniel se tranqüilizou, pensando que devia ser o primeiro dos homens da porta. Estava bastante seguro de que os outros dois tinham morrido.
Antonio não parecia ouvir nada. Seguiram avançando. Uma vez passado a curva, o lobo pôde ver, e como um lobo bastante bem. O pátio estava cheio de homens, sentados sobre almofadas em torno de mesas baixas. Contemplavam a dança de um casal, um menino e uma garota completamente nus. Maeniel e Antonio se detiveram atônitos, ante o espetáculo mais erótico que tivessem visto jamais.
A princípio, Maeniel pensou que se tratava de crianças mas ao fixar melhor os olhos, notou que não eram tão jovens. Não, os dois eram adultos, mas pequenos. Eram muito morenos, de cabelo escuro. A garota ocupava o centro do cenário e o garoto se movia ao seu redor, tentando se aproximar. Embora a garota permanecesse quieta, seu corpo ondulava com um delicioso jogo de luzes e sombras enquanto se voltava pouco a pouco para seguir olhando seu companheiro. E embora Maeniel tivesse pensado a princípio que ela estivesse nua, compreendeu que ela usava algo sobre o corpo. Serpentes.
Uma serpente rodeava sua cintura como uma bandagem e Maeniel viu que ela se movia. Estava viva. A moça tinha outras duas, uma em cada braço e cada vez que o menino se aproximava, ela elevava um braço e a serpente levantava a cabeça, vaiando e com a boca aberta, a ponto de atacar, fazendo com que o bailarino retrocedesse. O jovem reiniciava seus volteios e cada vez que tentava se aproximar, ela voltava a lhe ameaçar com as serpentes, todo ao som das flautas e os batimentos do tambor.
Havia braseiros por todo o pátio, mantendo a raia o frio da noite. Antonio se inclinava ao lado de Maeniel, bastante bebado, mas a cabeça do lobo estava limpa. Não obstante, algo na fumaça dos braseiros começou a nublar suas idéias, o impedindo de pensar e afastar os olhos do casal no centro do pátio.
A dança mudou pouco a pouco ante seu olhar. A garota começou a dobrar seu corpo para trás, abrindo as pernas, até que seus ombros ficaram quase em paralelo com o chão. Então apoiou os dedos de sua mão direita no chão e a serpente daquele braço se deslizou até a terra, onde um ajudante a pegou para colocá-la em um cesto. Logo fez o mesmo com a outra serpente, ficando apoiada nos dedos das mãos e os pés, com seu comprido cabelo roçando o chão e coberta somente pela serpente de sua cintura.
Seu companheiro, com o corpo se ondulando como o dela, estava pronto, com o membro ereto e se aproximou pouco a pouco até as úmidas partes vermelhas entre os lábios abertos da jovem. Só o réptil em torno da cintura de o mantinha a raia. A serpente elevou a cabeça, abrindo a boca à umas poucas polegadas de seu membro. Maeniel, com o sangue aceso, compreendeu o significado da dança, ficando como todos os presentes, rígido e hipnotizado pelos rítmicos e ondulações do jovem. A serpente parecia igualmente presa pelo ritmo, baixou devagar a cabeça e desceu pela perna da garota. O bailarino entrou em seu reino, bem-vindo as portas, por um íntimo beijo dos outros lábios da moça.
Maeniel se voltou, consciente de que estavam ali e de que haviam vacilado temendo pela segurança dos bailarinos. Tinha razão. Havia pelo menos uma dúzia de homens. Pegou o embriagado Antonio pelo cinto e saiu correndo junto aos corpos unidos sobre o cenário. Fizeram-lhe falta todos os truques que lhe ensinado Dryas para seguir vivo e em movimento. Chegaram a uma porta de madeira no muro e ele usou a cabeça de Antonio para abri-la. Empurrando ante ele o homem semi-inconsciente, ele fugiu dali.
Um pesadelo havia despertado Lucius. Como todos seus maus sonhos, este também estava relacionada com alguma falha pessoal dele, mas não estava seguro de qual. A diferença de muitos romanos, não havia criados dormindo em sua casa. Liberara Octus na hora de deitar, e depois de equipar com almofadas havia lido até sentir sono, apagando seu abajur com um sopro.
Tentando recordar seu pesadelo, viu que uma luz passava pelo alpendre ante sua porta. Abriu-a surpreendeu Octus indo à casa de Fio, poucas portas mais abaixo. O escravo se voltou.
—O que acontece? — Perguntou Lucius.
—Nada – Disse Octus, resguardando a vacilante chama de seu abajur, do vento noturno. - Eu ia chamar Orelha cortada para que acompanhasse Fio. Calpurnia lhe tem chamado com bastante urgência. Sofreu uma recaída de seu problema habitual. Espero não ter te despertado.
—Não, tive um pesadelo e vi sua luz. — Lucius pegou seu manto de um gancho que havia atrás da porta e o vestiu. O sonho estava desvanecendo, mas ainda precisava de companhia, embora não pudesse dizer qual era a causa de sua inquietação. O sonho o estremecera e o medo seguia col ele.
Compreendeu o que lhe atormentava. Seu temor pela mulher que havia lutado contra o javali. Fulvia não lhe havia dito nada e ele supôs que ainda estaria zangada pela maneira que ele hvia tratado Firminius e, embora ela não o dissesse e nem admitisse saber, sua visita a Julho César. Era uma revanche e ela se negava a lhe comunicar o paradeiro da mulher. Fulvia, surpresa por seu irmão ter demonstrado interesse por fim, estaria procurando algo a poder usar contra ele, algo para lhe devolver o que ela consideravao seu lugar entre os parentes que protegia ou ignorava.
Como de costume, Lucius não quisera discutir abertamente com ela e não lhe ocorria nenhuma forma de dar uma desculpa, se conformou com promessas de explicações no dia seguinte.
Fulvia havia saido para jantar com Cleopatra e ele se dormira antes de sua volta. Agora, ao seguir Octus a casa de Fio, repreendia-se por sua estupidez. Tinha que ter arrancado o assunto a força, embora isso significasse lavar os trapos sujos na frente a todos os habitantes da casa, livres e escravos.
Fulvia não o assustava, mas César sim e ele se recordava das advertências do ditador a respeito de interferir nos planos de sua irmã.
Fio havia se levantado e vestido quando Octus entrou em sua casa.
—O que é que acontece? — Perguntou Lucius.
—Desta vez? Não sei, mas...
—Quando ela estala os dedos, mais vale que corra. - Completou Lucius.
Fio cravou o olhar em um ponto alem do ombro esquerdo de Lucius e Octus se se voltou para observar a superfície da parede.
Lucius suspirou e notando uma cadeira de campanha junto à cama pulcramente arrumada de Fio, sentou-se nela, apoiando os braços.
—Não me trate assim – Ele disse. - Quando eu...
Fio elevou a mão.
—Por favor, conclusões. A dama pela qual está preocupado se encontra certamente no ludus de Gordus. Fulvia é sua patroa e o mais provável é que esteja ali, encerrada em uma das celas. Estávamos procurando uma forma de ajudá-la, mas ainda não nos ocorreu nada. Por outra parte, a dama Calpurnia está muito doente. É uma mulher extremamente delicada, embora ninguém e acredite, sequer seu marido. Muita gente com seu problema e com outras desordens similares, recorre a cirurgia que te descrevi para aliviar os sintomas: as enxaquecas, as visões e os estranhos fenômenos ópticos que as acompanham durante toda sua vida.
—Espere um momento: visões?
—Ela não só tem enxaqueca. - Interveio Octus. - Ela fica muito má. Sua mãe era amiga dela e eu estava acostumado a ir com ela quando a visitava em sua casa. Ao princípio terá um breve episódio de... — Ele olhou inseguro para Fio.
O grego assentiu.
—Pode dizer-lhe.
—Um breve episódio de presciencia e logo fica cega durante alguns momentos. Depois vomita e começa a sofrer uma terrível enxaqueca. Os dores são breves, mas espantosamente fortes. Não duram mais que poucas horas, mas são horas de pura agonia. Ela predisse a morte de sua mãe. Meses... Não, anos antes que Silvia morresse. Calpurnia lhe suplicou que deixasse de beber. Mas a última vez que se viram, soube pela conduta de Calpurnia que ela sabia que já era muito tarde, igual a mim. - Explicou ele tristemente. - Agora as coisas pioraram. Ela vê muitos amigos e conhecidos, mais ou menos a metade da nobreza de Roma, cobertos de sangue, mortos em campos de batalha e em suas piras funerárias. Está muito assustada e acredita que tem razão.
Lucius pôde ver que Octus tremia. Fez um gesto para um banco junto à parede oposta.
—Sente. Por favor.
Octus obedeceu.
Lucius se voltou para Fio.
—E o que diz você? Se alguma vez vi um grego cabeçudo, prático e cético é você. Que crédito dá a essas visões? E pelo amor do céu, não fique aí, inclinado sobre mim. Sente-se você também.
Fio se sentou sobre a cama.
—A princípio não lhe dava nenhum crédito. Já vi esse tipo de desordem. Acreditava que as visões de muitos dos doentes se deviam as alterações de sua mente. Mas comecei a coincidir com Calpurnia, embora contra a vontade, na interpretação de suas visões. Encaixa-se com o que sei da política romana, do próprio César, de seu desagradável amigo Antonio e do curso dos acontecimentos. Esta noite, por exemplo, em casa de seus amigos Manilius e Felex, Antonio discutiu acaloradamente com Brutus. Acreditam que o fez por ordem de César. Pensamos que César acredita que seria uma necessidade deixar Roma com uma representação tão forte da partida dos Optimates no Senado. Também acreditam que há pouco o que possamos fazer a respeito, salvo te advertir de que mantenha a cabeça baixa. Antonio está emergindo como o sucessor de César para o futuro, mas simplesmente não há forma de saber quanto durará César. E os que apostam contra ele se equivocam com tanta freqüência...
—Sim. – Disse Lucius. - Está seguro de que a conspiração entre os Optimates, os melhores é real.
—Sim. – Respondeu Octus. - Preferiria não te revelar minhas fontes, mas sim, é bastante real. Se alguma vez reúnen coragem para fazer algo mais que falar...
—Acredito, - explicou Fio, - que a disputa com Brutus estava pensada para forçar a mão, fazendo com que suas intenções saíssem a luz.
—Sim, bem pensado. - Disse octus.
—E não podemos fazer nada? — Perguntou Lucius.
—Se te ocorre algo, o que seja... – Disse Fio.
Lucius meneou a cabeça.
—Tomem cuidado, vocês dois. Fui avisado e não me descuidarei.
Fio se pôde em pé.
—Bom, devo ir. Não convém impacientar muito Orelha cortada.
—Não. – Disse Lucius. - E você, Octus, volte para a cama e durma um pouco. Desperte quando Fio voltar e comprovaremos esse ludus.
Octus o acompanhou de volta até sua casa e se foi.
Lucius ficou pensando na ameixa. Ainda a tinha em uma bolsa de rede pendurada na parede de sua casa. Já deveria estar passada, ele pensou. Mas cada vez que a examinava, a fruta estava suculenta como sempre. Não maturava, não apodrecia e não secava. Ele estendeu a mão para tocá-la por entre as malhas da bolsa.
De repente, a casa pareceu encher-se de ar fresco e as fragrâncias combinadas de um jardim de rosas, lírios, lavanda e violetas. Quero ir para casa, ele pensou, mas logo começou a se perguntar por aquele passeio de sua mente. Estou em casa, não? Aqui, agora. Isto é minha casa, verdade? Mas não encontrou resposta a sua pergunta. Ele apagou o abajur e a fragrância do jardim permaneceu no ar, enchendo a escuridão.
Capítulo 23
Não houve perseguição. Os proprietários do estabelecimento no qual tinham irrompido se deram por satisfeitos com que partissem. Maeniel encontrou um tranqüilo botequim aberto ainda e empurrou o cambaleante Antonio para o interior. Sentou seucompanheiro sobre um banco junto à parede e comprou vinho para os dois. Provou sua taça e notou que o conteúdo estava bom. Não estava aguado.
—Hum... - Disse surpreso.
—Você paga bem, eu te sirvo bem. - Comentou o taberneiro, um musculoso gigante com um só olho e numerosas cicatrizes. - Mas mantenham essas espadas em suas bainhas e não provoquem problemas em meu local.
O taberneiro tinha reparado nas roupas manchadas de sangue de Maeniel, seus cortes nos dedos e seus nódulos esfolados. A cabeça do Antonio não tinha sido o único em entrar em contato com a porta do pátio. Também notou que a roupa sob os escuros mantos era bastante cara.
—Pessoa como você e seu amigo pensam que pode vir aqui para urinar na porta dos outros e defecar no chão. Pensam que não sabemos que são uma turma de ratos de latrina sob suas bonitas roupas, mas notamos. Então tomem cuidado. Se me derem problemas, pagarei-os com interesses, garanto-lhes.
Maeniel assentiu, entregando sua bebida a Antonio.
—Você usou minha cabeça para abrir a porta do jardim. —Antonio uniu a última palavra uma obscenidade tão vil que outro homem sentado no banco se afastou um par de lugares ao ouvi-la. - Não está mal. – Ele disse depois de beber o vinho.
—Assim é. – Respondeu Maeniel.
—É bastante bom. Nunca tinha visto ninguém se mover tão rápido como você quando tivemos que sair dali.
—Haviamos matado duas pessoas ali dentro. Eu estava assustado. — Explicou Maeniel em voz baixa.
Antonio tentou parecer indignado.
—É obvio que os matei. Obstruíam minha entrada no edifício. Sou um cônsul. Uma palavra minha e até o último sujo degenerado deste lado do rio será executado e me assegurarei de que a execução seja longa e desagradável para todos eles. O que gosto muito. A fogueira, a crucificação, jogá-los as feras ou para me entreter, fazer com que lutem até a morte na arena.
—Bem, eu não estaria tão tranqüilo aqui. Ser um cônsul não te servirá de nada se nos encontrarem flutuando de barriga para baixo no Tiber. Então beba e vamos daqui. O taberneiro não é muito amistoso.
Antonio fez uma sugestão sobre o que podia fazer o taberneiro, mas Maeniel observou que o fizera em voz baixa e não havia ninguém perto. O vinho parecia ter apaziguado seu companheiro.
—Já me diverti bastante por esta noite - Disse. - Agora tenho que visitar César. Quer vir? Quer conhecer homem mais poderoso o mundo?
Maeniel assentiu com a cabeça. Não confiava em sua capacidade para falar.
Antonio sorriu, ficou em pé, arrumou o cinturão e elevou o dedo para o taberneiro.
Maeniel, atrás de Antonio, meneou ligeiramente a cabeça, como dizendo, não vale a pena.
—Está bêbado. – Disse em voz alta.
O taberneiro, nada intimidado, observou como eles saíam e se afastavam pela rua.
A casa de César estava a certa distancia. Os pretorianos saudaram novamente Antonio. Se notaram o estado de suas roupas, não fizeram o menor comentário.
Já tinha passado da meia-noite quando chegaram à casa de César. Perceberam vozes e luzes atrás dos muros. Antonio golpeou a porta e um soldado a abriu imediatamente.
—O que está acontecendo? — Perguntou-lhe Antonio. - Sei que César passa a metade da noite em seu escritório, mas no geral todos outros se vão para a cama.
—A dama Calpurnia sofreu um ataque. - Explicou o soldado enquanto fazia com que entrassem no átrio. - Me assustou de verdade. – Ele acrescentou. - Não sei o que viu, mas seu grito e a expressão de seu rosto... — Ele levou a mão a um amuleto no pescoço. - Isis protetora. A senhora saiu de sua casa e falou com o guarda de serviço e pediu-lhe que chamasse seu físico. O guarda veio e enviou alguém em busca de Fio, mas antes que ela voltasse para sua casa... Eu sei, eu estava com ela. A senhora ficou com os olhos fixos e seu rosto ficou da cor do tecido branqueado. Caiu no chão gritando e sofreu o pior ataque que já vi em mi... Parecia um cão envenenado. Agora há três físicos com ela.
—Mulheres! - Grunhiu Antonio. – Você se casa com elas e elas se desmoronam.
—Querem usar os banhos? — Perguntou o soldado. - Parecem saídos de um acidente de carros no Circo.
—Pode apostar seu traseiro. - Replicou Antonio. - Segue César com sua esposa?
—Oh... Ficará pelo menos meia hora mais, pode ser que uma. A senhora estava muito mal.
Os banhos de César eram surpreendentemente austeros; o tepidarium estava decorado em branco e verde, mas era muito pulcro e cômodo. Quando acabaram de se assear, Antonio foi levado à presença de César e Maeniel ficou em um escuro jardim, refrescando os pés.
As luzes foram se apagando na casa. De seu assento no peristilo, Maeniel viu ir os físicos, pelo menos a pessoa que tomou por físicos. Um soldado que caminhava sob o pórtico cortava o acesso as dependências privadas no lado da casa onde Antonio entrara.
Maeniel estava acostumado a permanecer sobrenaturalmente alerta, mas não foi consciente de outra presença até que esta se sentou ao seu lado no banco.
—Você gosta de meu jardim lunar? — Ela perguntou-lhe.
Maeniel se voltou para ela. Sua reação foi similar a de Lucius: inclusive na semi-escuridão. Ele ficou atônito por sua beleza. A beleza era sempre uma ilusão. A mulher usava uma túnica grega semelhante a que tinha visto Lucius na noite em que a conhecera. Aquele singelo objeto, dois simples retângulos de tecido costurados pelos lados e sujeitos com broches na parte superior, assentava-lhe bem. Tinha um corpo viçoso e elegante, que o caimento do tecido exibia a perfeição. Estava com o longo cabelo sujeito para trás com a tira própria de uma matrona. As tiras de lã branca indicando sua alta classe.
Enquanto Maeniel a observava, ela cruzou uma perna sobre a outra e segurou o joelho com ambas as mãos. Estava envolta em beleza, resplandecendo de dentro.
—Jardim lunar. - Repetiu ele, quase como um tolo.
—Sim. —Calpurnia sorriu e ele se sentiu honrado. - Eu o plantei para que fosse visto à luz da lua. Estas vegetaçãos ficam da cor da lua. Os filósofos dizem que a lua não é nada, que só brilha ao refletir a luz do sol. Mas sua névoa prateada é tão bonita... Olhe. — Ela tocou uma folha. - Artemisa, absinto... Há três ou quatro espécies diferentes. Os sacerdotes a usam para perfumar o azeite do sacrifício. Eu perfumo os óleos de meu banho. Atrás há arruda.
A Maeniel recordou as marcas de manchas feitas pela água sobre árvores e rochas em uma chuva ligeira. Centenas de pequenas folhas redondas reluziam com um tom quase azul sob o céu nublado.
—Marrubio - Disse ela assinalando outra planta. - É boa para a garganta, e salvia para a cozinha e como perfume. — Ela rompeu uma folha e a ofereceu A Maeniel.
Sim, para ele aquela fragrância era quase embriagadora. O lobo nunca teria compreendido de tudo, mas o homem que Dryas tinha levado a ser apreciou sem reservas.
—São algumas das coisas que há aqui. Tenho outras, vê isto? —Ela assinalou alguns altos caules que saíam de uma roseta de folhas de prata, com brotos de flores brancas. - Valeriana, uma velha amiga e papoula branca. — Sim, Maeniel podia ver as delicadas flores atrás da valeriana. - Uma nova amiga. - Disse ela.
—Seu jardim é muito formoso, mas não deveria estar na cama?
Ela meneou a cabeça.
—Não, não sabe o quanto é difícil evitar minhas donzelas. Agora me vigiam todo o tempo. Fio quer fazer com que venha um homem da Alexandria ao qual conhece, um físico que abrirá um buraco em meu crânio. Diz que há uma possibilidade de que minhas enxaquecas e visões desapareçam, mas eu lhe disse que não. Não permitirei. Se César for para Partia, arriscarei-me. Sou vaidosa e meu aspecto é um tesouro para mim; não quero ficar calva e feia. Além disso, é muito perigoso. Minha irmã ficou muito doente e morreu depois de uma operação similar. Minha mãe fez o mesmo e se recuperou; por um longo tempo, as enxaquecas e visões desapareceram. Mas quando já era mais velha voltaram, embora não tão fortes. Tinha uma idade avançada quando morreu, e foi por uma congestão pulmonar no inverno, não pelas enxaquecas.
—Ama-o muito? — Perguntou Maeniel.
Ela riu. Foi um som aveludado, quase uma carícia, mas logo levou um dedo aos lábios.
—Oh, devo guardar silêncio. Alguém poderia me ouvir. Não. Não amo César, mas temo que se venha a Roma o amigo de Fio, César acabe por não partir para Partia. Se dito deixar que me façam um buraco na cabeça, quero estar sozinha para enfrentar à dor e a fealdade. Não quero César junto a minha cama. Sabe? Poderia me explicar às coisas novamente. Desde que chegou essa escorregadia rainha egípcia, ele não me falou mais de assuntos de estado. Suponho que conta a ela. Fui ao Templo de Vênus Genetrex quando ele a encontrou e ofereci pombas como agradecimento a quem governa deuses e homem. Estava tão contente de ele que a tivesse conhecido... O único ódio de tudo isto é que ela lhe tenha dado um filho. Eu não poderia. Ele queria filhos, mesmo meninas. Amava sua filha Julia. Mesmo a sua filha. Muitos homens não apreciam suas filhas, mas ele sim. Muitos maridos fazem com que suas filhas sejam deixadas nos degraus do templo. Os negociantes de escravos chegam para escolher as melhores e vende-las aos bordéis.
—O que acontece aos outros? —Perguntou Maeniel, horrorizado. Ninguém lhe tinha dito nada sobre o costume de abandonar crianças indesejadas.
—Suponho que os cães se ocupam delas. —Calpurnia estremeceu. - Um recém-nascido é algo muito frágil. Não acredito que vivam muito sob o calor do verão ou o frio do inverno. Por isso são deixados perto do Templo de Vista. Uma das sacerdotisas da deusa me disse que muito são abandonados durante a noite e que ao amanhecer a maioria estão mortos. E a menos que sejam recolhidos, os sobreviventes não chegam ao meio dia. No verão o sol esquenta muito e no inverno a noite é muito fria... Mas eu não cheguei a ficar grávida e depois de um tempo... Alegrei-me. Por que... Porque ele começou a me explicar coisas e temo que quando começar a matar seus inimigos no Senado, explique-me por que tem que fazê-lo. Ela vai fazer, sabe... Vi em minhas visões. Não me importa... Ele explicou-me por que tinha que fazê-lo. Os filósofos com que eu estava acostumado a ter liam seus escritos da Galia: todos explicavam por que ele tivera que fazer aquelas coisas... Sabe, vender a tantos como escravos ou torturar seus líderes quando não queriam cooperar ou não lhe davam mais dinheiro. Sim, os filósofos me explicavam tudo e quando ele voltou, me explicou como tinha morrido Pompeu, sem que ele tivesse tido parte nisso. Observei-o e aquilo me incomodou quando uma de suas legiões se rebelou. Dizimaram-na... Sabe, mataram um homem de cada dez, mas eram tantos... Não levou muito tempo para decapitá-los. Muitos cooperaram. Eu não podia entender por que, mas ele e Antonio me explicaram. Eles queriam morrer rapidamente e deviam morrer se lhes tocava no sorteio. Assim é como são... Escolhidos. Por sorteio. Se resistirem ou tentarem fugir, são esfaqueados até que morram pela hemorragia ou estripados. Morrem de sede ou lhes jogam breu encima para queimá-los vivos. Então é melhor ajoelhar e deixar que o centurião lhes corte a cabeça. Às vezes, os que esperam seu turno afiam as espadas que estão usando os oficiais... Isso diz Antonio. Aceitam-no como algo necessário para preservar a disciplina. Mas quando eu estive ali, os cadáveres... Estavam empilhados em grandes montes... Cheiravam. Não podia ser queimados com a suficiente rapidez... E os que não se comportaram bem, os que não haviam aceitado a morte, como diz meu marido como deve fazer um bom soldado, gritavam tão... Tão... Sabe? Os soldados não têm esposas. É contra a lei que as tenham. Sei que César e Antonio também me explicaram isso. Mas têm mulheres como se fossem suas esposas, embora não o sejam de verdade... E elas têm filhos, como as esposas reais. Suplicavam aos oficiais pelas vidas de seus homens, mas, é obvio, só eram uma moléstia e ninguém as ouvia... Sinto muito. Você é um convidado e resta dúvida de que, como homem, entende estas coisas muito melhor que eu.
Maeniel meneou a cabeça, para clareá-la.
—Não. – Ele disse. - Nunca fui um soldado e depois de sua descrição da vida militar, não acredito que o seja jamais.
—Está esperando para ver meu marido? — Ela perguntou educadamente, como uma menina tentando entender um adulto.
—Não.
—Teme meu marido?
—Não. Provavelmente sou um estúpido por não temê-lo, mas não o temo.
—Que agradável é estar em companhia de um homem que não está assustado com meu marido e nem quer nada dele. Para que vieste a Roma, então? Posso ver que não sabe muito a respeito de nós.
—Estou procurando uma mulher.
—A qualquer mulher ou alguma em particular?
—Uma em particular. Chama-seDryas.
—Oh, essa. – Disse Calpurnia sem muito interesse. - Minhas donzelas me falaram dela. Lutou com um javali esta manhã e ganhou, mas amanhã pela tarde morrerá. Antonio quer confrontá-la com Terror.
—Por quê? O que é Terror?
—Antonio a odeia. Perdeu dinheiro por sua culpa. Apostou no javali e pensa que ela o deixou em ridículo.
—Por quê? Por salvar sua própria vida?
Calpurnia encolheu os ombros.
—Não há justificação para algumas das coisas que fazem. Ele apostou com César que ela não poderia vencer Terror e César aceitou a aposta.
—O que é Terror?
—Terror é um grande felino da Índia. Chamam-no tigre. É como um leão. Já viu um leão?
—Sim - Disse ele.
—Terror é maior e tem a pele laranja com raias negras. Antonio o usa para justiçar criminosos. César diz que sairá ganhando de toda forma. Se a mulher matar Terror, Antonio lhe pagará muito ouro. E se a mulher perder, o espetáculo de sua luta lhe esquentará o sangue. Já sabe, quer deixar Cleopatra grávida outra vez.
—Ele não te explicou isso... — Comentou Maeniel.
Ela riu.
—Não, não. Ouvi as donzelas falando disso quando acreditavam que a bebida de papoula de Fio havia me deixado adormecida. A papoula nem sempre faz dormir, embora quem a tome pareça adormecido. Fio me advertiu e observei que, como muitas das coisas que diz, é certo.
—Ele também te explica coisas?
—Não. — Sussurrou ela e logo deu um olhar furtivo por cima do ombro. – Venha. – Ela continuou, se levantando - Conheço um lugar onde podemos falar sem que nos incomodem. Eu estava indo para lá quando o vi e me detive para te perguntar pelo jardim.
—Pelo que ouvi, César é um marido ciumento. Disse algo sobre que sua esposa devia que estar por cima da suspeita.
Ela voltou A rir, mas se conteve.
—Shhh! Ele não é ciumento, pelo menos já não é pelo que a mim respeita. E foi somente uma desculpa para se divorciar de sua mulher e casar comigo. Ele havia me visto em um jantar em casa de meu pai. Naquele momento, necessitava de algo para sustentar suas relações com ele e ao me ver decidiu que devia me ter. Mas a única forma de me levar ao seu leito era o matrimônio e ele sempre consegue o que quer. Tanto seus amigos como seus inimigos descobriram há muito tempo. Shhh! Siga-me.
Maeniel não podia imaginar aonde foram. Aquele jardim era um pátio fechado, um alpendre com colunas rodeado por ambos os lados. As dependências sob o alpendre eram as únicas entradas e saídas. Dois altos muros de pedra coroados por abroros fechavam o fundo.
A lua brilhou por um momento e Maeniel pôde ver um ponto onde os muros se encontravam e escurecia ao outro. Parecia uma região muito escura. Mas havia duas grandes roseiras que começavam a florescer e era possível distinguir algumas flores brancas entre a sombra.
—Sabia, - disse Calpurnia, assinalando as roseiras, - que se pode fazer flores de plantas diferentes? Um jardineiro as fez para mim a partir do caramujo e a rosa de quatro estações. São muito pálidas, quase brancas. O lugar que quero ir está entre elas. Deixe-me ver se está aberto. —Ela se adiantou até o canto entre os dois muros e... Desapareceu.
Maeniel retrocedeu. Estava há muito tempo entre os homens, pensou logo. Sei aonde leva isto. Ele foi para o canto e a escuridão o engoliu também.
—Oh, bem. Nunca mostrado isto a ninguém. Perguntava-me se poderia entrar você também.
—Sim – Respondeu ele em voz baixa. - Já estive aqui antes. — E ele havia estado daquela vez que perseguiu os muflones pelo escarpado e caiu. Estivera estado perto da morte. Mas recordava as árvores gigantes e a cascata do alto, as samambaias e o musgo crescendo à margem da água. Mas, acima de tudo, recordava a água que parecia brilhar na escuridão.
Não estava tão escuro em sua visita anterior, mas agora estava e quando ele elevou o olhar, os gigantescos pinheiros tinham seus galhos bastante separados, para ver que o céu era espaçoso e a meia lua flutuava em solitário esplendor. Sim, a água resplandecia. Seu frio azulado aparecia logo que iniciava a queda do alto. O olho podia seguir o movimento da luz enquanto descia e formava espuma na concha, onde despedia um fulgor tão brilhante que Calpurnia e ele podiam ver mutuamente. Naquela distância, mais de cinqüenta pés, a luz estava atenuada, mas seguia presente como fundo das árvores e rochas ao seu redor.
Ela estremeceu, esfregando-os braços.
—Devia que ter trazido um manto.
Maeniel tirou seu manto militar e a toga limpa e a entregou.
—Tome. – Ele disse. - Provavelmente é de seu marido. Antonio e eu usamos seus banhos e os escravos nos deram roupa limpa.
—Os banhos! O que aconteceu para que tivesse que se banhar? É amigo de Antonio? — A segunda pergunta tinha certo tom de alarme.
Ele se apressou a aquietar seus temores.
—Não e depois desta noite não creio que queira ser.
Havia algumas rochas junto ao manancial. Apesar da luz na água ao cair, tudo quando restava daquele brilho eram pequenos brilhos quando golpeava os pedregulhos espalhados pelo leito do riacho, como milhares de vaga-lumes dançassem sobre a água, afastando as sombras das árvores gigantes.
Calpurnia escolheu uma pedra com forma de cadeira para sentar e ele ficou em cima de uma formação de pedras com a parte superior plaina.
Maeniel contou a esposa de César tudo o que tinha passado depois de que atravessou o rio, incluindo a dança dos dois jovens no jardim.
—Hum... Teria gostado de ver essa parte.
—Não sei nada da moralidade de uma esposa decente...
—Por favor. - Disse ela, levantando uma mão para que ele se detivesse. - Quando os homens começam a falar de moralidade, sei que querem dizer sexo. As coisas que eles fazem uns aos outros ou que fazem as mulheres, não importam. Eles nunca são imorais, só outros homens e mulheres o são. Olhe para Antonio. Provavelmente pensa que o que fizeram ao entrar lá pela força foi estupendo e que aqueles dois jovens eram sujos degenerados. Se pudesse descobrir seus nomes, faria com que fossem castigados, independentemente de seus motivos. Talvez fossem escravos obrigados a agir, mas o mais provável é que somente fossem pobres e necessitassem do dinheiro conseguido com a dança.
Maeniel não respondeu. Aquilo lhe soava perfeitamente lógico.
—Pareciam estar desfrutando. – Ele disse. - Exibiam sua habilidade no manejo de serpentes, a dança e o equilíbrio. E, se tudo culminou em agradar ambos, muito melhor. Mas, - ele começou a se levantar, - deveríamos ir. Deve estar a ponto de amanhecer e seus criados estarão lhe procurando.
—Oh, o tempo não existe aqui. - Disse ela, completamente despreocupada. - Venho quando já não posso suportar as explicações, as dores de cabeça, a... Acredito que desespero é a palavra mais adequada... Passei vários dias seguidos aqui e ao voltar, ninguém havia dado falta. Nem o relógio de sol nem a clepsidra do átrio haviam mudado. Então ninguém sentirá minha falta.
—E o que te fez voltar? — Perguntou ele.
—A fome, a sede... Dá-me medo comer ou beber aqui, sobretudo dessa água – Ela disse assinalando a cascata. - Às vezes, a papoula me deixa muito sedenta. Durante horas, ninguém pôde me ver, mas voltei a me tornar visível nos banheiros e estive a ponto de matar do susto minhas donzelas, que estavam bebendo no tepidarium. Viver entre escravos é um problema. Sequer minhas libertas confiam em mim. César se tornou simplesmente muito poderoso. Eu sou só uma lua de seu sol, mas eles acreditarão que tenho mais poder do que realmente tenho, quando começar a matá-los. Não virão a minha casa: suas mulheres o farão, como as mulheres dos soldados iam aos oficiais de César, suplicando que perdoassem os que amavam. Assim virão para mim e nunca acreditarão que não posso lhes ajudar. Nunca acreditarão na pouca atenção que disposta ao que lhe digo. Nunca entenderão que minhas lágrimas e meus rogos são tão inúteis como os delas. Ele é inexorável e logo os destruirá, a todos. Eu sei. Vi em minhas visões e elas nunca mentem. Então este lugar é meu único refúgio. Não deixarei que o amigo de Fio me abra um buraco no crânio. Se as enxaquecas e as visões desaparecem, talvez eu perca este lugar. A dor é tão terrível que, quando Fio me dá a bebida de papoula, abre a porta. Por isso, assim que a bebida apazigua a dor, levanto-me da cama para vir para cá. É a dor o que torna possível que eu entre aqui. Algum dia, que não demorará muito em chegar, quando ele começar a matá-los, eu virei e beberei dessa água e não voltarei nunca mais. — Ela ficou sentada e em silêncio as entre sombras.
—Você é muito formosa. - Disse ele em voz baixa.
—Sim e é uma desdita. Atraí seu olhar. Mas aqui, neste lugar onde ninguém pode nos ver, gostaria de me fazer amor?
—Sim. Temia perguntar.
—Eu também. - Repôs ela, se levantando e deixando cair a toga. Logo soltou os broches do ombro de sua túnica e o suave objeto caiu com um sussurro entre as samambaias.
Maeniel estendeu o manto escuro sobre o chão. Ela levantou o olhar cobrindo modestamente os seios com o braço.
—Embora aqui não passe o tempo, - Ela disse, - sim passa aqui. A lua está baixa e acredito que logo amanhecerá.
Ele a abraçou e até na escuridão seus lábios encontraram os dela. Então soube que, de todas as mulheres as quais havia conhecido ou conheceria, nenhuma mostraria mais graça e gentileza. Mais tarde, enquanto jaziam juntos, eles contemplaram a saída do sol sobre um bosque de pinheiros que se estendia para o horizonte.
—Vá. - Disse ela e lhe deu um beijo de despedida junto ao lago.
Antes de chegar ao portal, Maeniel se voltou para vê-la pela última vez, mas ela estava perdida na luz do sol nascente.
Então ele se encontrou novamente no jardim e sem olhar atrás, atravessou o átrio para a entrada da casa. O guarda lhe devolveu sua espada e designou dois soldados para que o acompanhassem de volta a casa de Manilius e Felex.
Dali a pouco Clea, a liberta da Calpurnia, viu que o leito de sua senhora estava vazio e as escravas adormecidas. Não as despertou, pois a senhora raramente se afastava muito. Encontrou-a sentada no banco do jardim, com a cabeça jogada para trás e dormindo sob a pálida luz da lua que já estava descendo.
Levou Calpurnia para casa, tirou-lhe o vestido e penteou seus longos cabelos. Enquanto lhe vestia camisola, observou que ela estava com agulhas de pinheiro em seu cabelo. Tirou-as com suavidade e deitou sua senhora na cama.
Enquanto sacudia a túnica de seda, uma folha seca de samambaia caiu no chão. Clea levou a folha e as agulhas de pinheiro para um braseiro que ardia no canto e as jogou sobre as brasas, tocando depois um amuleto que levava no pescoço. Era devota de uma deusa oriental e uma iniciada em seus mistérios.
Tinha sido uma escrava bem-vinda por outros iniciados, já que tais adoradores eram um valioso investimento. Os que começavam como escravos estavam acostumados a alcançar postos de grande importância graças à confiança de seus poderosos proprietários. Assim tinha acontecido com ela. Calpurnia confiava nela e ela nunca trairia aquela confiança.
Por um instante, a fragrância do pinheiro encheu o cubículo quando as agulhas marrons ficaram vermelhas para se desfazer em pó logo. Não era a primeira vez que Clea encontrava coisas assim na roupa e no cabelo de sua senhora. Já tinha acontecido antes e ela estava segura de que não havia pinheiros e nem samambaias naquele jardim.
Fio foi ver Lucius ao voltar da casa de César. Estava a ponto de amanhecer e fazia bastante frio. Olhou primeiro Octus e viu que o ancião dormia. Alia deu as boas-vindas a Orelha cortada e o levou para a cama, apesar de seus grunhidos.
Fio encontrou Lucius passeando com nervosismo, embora não teria admitido de maneira alguma.
—Acha que eu deveria me banhar? — Perguntou.
—Sim. - Disse o grego.
—por quê?
—Com as mulheres, sempre é melhor se banhar.
—Isto não tem nada a ver com ela, — afirmou Lucius altivamente.
—Não?
—Não.
—Se banhe. - Insistiu Fio.
—Nada de perfumes. Nada de ungüentos!
—Bem, estupendo. Banhe-se.
—E um barbeado?
—Com as mulheres, sempre é melhor se barbear.
—Não quero despertar Octus. Barbearei-me eu mesmo.
—Não. É melhor que desperte Octus e não te corte o pescoço. Além disso, afetaria-o muito que não o chamasse, necessitando seus especializados serviços. Sentiria-se ferido. Profundamente ferido.
—As mãos lhe tremem Às vezes.
—Isso é porque tem medo de sua irmã. Você não o deixa nada nervoso.
—Não estou seguro de que isso seja um fato. De fato, conforme se olhe, não é. César disse...
—Não cite César. — Era o turno de Fio de mostrar altivo. - Se começar a fazê-lo de forma regular, terei que voltar para García. Quase tudo pode ser visto de diversas perspectivas. Algumas delas podem fazer com que os atos mais louváveis e virtuosos pareçam estúpidos no melhor dos casos, e interessados e enganosos no pior. Octus não o teme porque, como quase todos outros criados da casa, sabe que você pode se mostrar irritado, furioso ou deprimido, mas quase nunca malévolo e jamais cruel. Sua irmã é rancorosa, malévola e extremamente cruel. Agora, se banhe, barbeie e se vista. A mulher está no estabelecimento de Gordus. Foi vista ali recentemente e se sabe que tem previsto algum espetáculo com seus... Talentos para esta tarde, na arena da escola de gladiadores. Uma exibição privada para César, Antonio e várias centenas de seus amigos cavalheiros e senadores.
—Oh, não!
—Sim. Chamarei Octus.
—E Orelha cortada?
—Não, deixe-o dormir ou o que seja que esteja fazendo com Alia. Pode que ser que o necessite mais tarde.
Meia hora depois, Lucius e Fio saíram para o ludus.
Dryas foi despertada mais ou menos uma hora mais tarde por Aquila. O grego lhe deu uma taça de uma bebida quente através dos barrotes da porta.
—É posea? — Perguntou ela.
—Não. Márcia o preparou. Não sei do que é feito. Posea pode te fazer adoecer. Aconteceu comigoou quando estive nas legiões. Mas não pode se embebedar com ela. Eu sei, tentei.
—Então deve ser como adoeceu. - Disse Dryas.
—Sim, é uma porcaria.
Dryas provou a mistura de Márcia. Vinho branco com umas poucas ervas maceradas. Percebeu o sabor da hortelã e à gaulteria um pouco esquentadas.
—Está bom. - Disse.
—Quase é melhor que a posea, mas não sei se deve estar de bom humor quando descer para saudar esse... Lucius.
—Quem é?
Aquila parecia não estar seguro do que dizer, pois moveu os pés e mordeu o lábio.
—Provavelmente... Provavelmente seja seu verdadeiro dono.
Dryas levantou o olhar para ele.
—E?
—É o irmão de Fulvia, a mulher que me pagou para que te capturasse.
—E o que ele quer?
—Não sei, mas só no caso de querer o que penso que quer... —Aquila lhe ofereceu uma das adagas que tinha lhe tirado ao registrá-la.
Ela a rechaçou.
—Não, o momento dessas coisas já aconteceu. Não posso empregar essa saída.
—Por que não?
—Por sua segurança, a de Gordus e Márcia; e têm um filho e uma filha casada e com crianças. Tenho minha honra e a honra me impede de deixar outros paguem o preço de minha irresponsabilidade. Assim, por favor, feche a porta e deixa que eu me vista.
Aquila meneou a cabeça e se afastou da porta.
Dryas colocou a roupa. A cela era muito mais cômoda. Márcia havia mudado a cama, queimando o colchão e os lençóis onde havia morrido Priscus e havia encontrado roupa para Dryas. Uma túnica limpa, cuidadosamente costurada com linho usado, certo, mas tingida logo depois de um tom ocre. Um palla de lã mais fina, sim, um tanto gasta já, mas remendada e tingida novamente de azul escuro e decorada nas bordas e um par de sandálias de fino couro, atadas no centro e meias três-quartos de lã.
Dryas arrumou o cabelo em torno da coroa que lhe haviam colocado as donzelas de Fulvia no dia anterior. Ajustou bem o palla e avisou Aquila.
—Já estou preparada.
O grego abriu a porta de um chute. Sua expressão era dura e estava com o rosto avermelhado. Tirou- lhe o palla e lhe acorrentou as mãos nas costas. Logo voltou vesti-la com o palla e empurrou a mulher para diante.
Dryas desceu as escadas na frente dele. Tropeçou brevemente no segundo lance, mas Aquila a segurou pelo braço ao se dar conta de que ela estava em perigo. Com as mãos nas costas, ela não podia se proteger. De toda forma, não lhe tirou a corrente, mas seguiu segurando-a até chegar embaixo, onde aguardava Márcia.
—Aquila, pare isso agora mesmo! Se for se fazer de idiota, volte para sua granja na Campania!
—Nem sequer vai se defender! - Disse ele lhe tirando a cadeia.
Márcia abraçou Dryas e a ajudou colocar bem o palla. Parecia triste.
—Não, ela não o fará. E eu tampouco o faria. Às vezes não é seguro para uma mulher pensar em si mesma. Eu tinha minha mãe e uma irmã menor para me preocupar: ela nos tem.
—De toda a maldade que vi neste feio assunto, isto é o pior de tudo. – Disse Aquila com os punhos crispados. - Quer tê-la antes que enfrente a... Essa coisa...
—Bem, — replicou Dryas, - não acredito que lhe servisse muito depois.
Márcia se pôs a rir. Abraçou novamente Dryas e secou as lágrimas.
—Quando tudo terminou, minha mãe me ajudou a me lavar. Havia um pouco de sangue. Eu só tinha quatorze anos. Encolhi os ombros, olhei minha mãe nos olhos e lhe disse que não tinha sido grande coisa. Era verdade, ele não era grande coisa, mas doeu de toda maneira. Então menti, mas foi uma boa mentira e me alegro de tê-la dito. E quando acabou, comi papa, toucinho e pão recém feito e você Dryas, pode dormir na cama de armar que há junto à cozinha. Gordus e minha criança já foram: agradecerei a companhia até esta tarde.
—Bem, eu não tenho quatorze anos, e ele não vai pensar que desfruto. – Respondeu Dryas. - Pode ser que não resista, mas há outras formas de demonstrar como se sente e não penso economizar-lhe. Então esquente a papa, porque não demorarei em voltar.
Dessa vez, Aquila foi na frente.
Quando Márcia se voltou para entrar na cozinha, ela viu o cão. Era um dos maiores que tinha visto em sua vida.
—É mais lobo que cão. – Ela disse para si. Era uma mulher valente: alguns dos homens confinados no ludus, não todos, teria dito ela, mas sim alguns, eram mais perigosos que qualquer lobo.
Havia uma versão reduzida da clássica espada dos legionários em uma bainha perto da porta. Era uma arma terrível, capaz de decapitar um animal ou uma pessoa de um só golpe. O peso da lâmina de um só fio fazia com que fosse formidável inclusive nas mãos de uma mulher. Tirou-a da bainha e ficou em frente ao cão.
Mas o animal parecia ter ouvido seu comentário. Aproximou dela, se arrastando, com a cauda entre as patas e a língua pendurando, lançando um ganido amistoso.
Ela suspirou e meneou a cabeça.
—Outro faminto. Muito bem, espere aqui. — Ela jogou sobras e comida desprezada em uma cuba que estava junto à churrasqueira. Havia algo rançoso, mas o cão estaria agradecido de toda forma.
Ela se voltou, com a cuba na mão e encontrou um homem enorme, que não parecia muito aficionado a roupa.
Com uma mão, o homem cobriu certa região estratégica com um trapo de cozinha não muito adequado, enquanto estendia a outra em um gesto de súplica. Falou em latim formal.
—Rogo-te que me desculpe por incomodar em uma hora tão imprópria. Se pudesse me dar um pedaço de tecido maior, também gostaria de ver Dryas. E se pudesse me oferecer um prato de papa e algo desse toucinho, apreciaria muito o gesto. Passei toda a noite em acordado e...
Ele teve que interromper e continuar com seu discurso um pouco mais tarde, pois Márcia acabava de desmaiar.
—Não vou deixar fácil. - Grunhiu Aquila e conduziu Dryas até uma câmara com uma porta que dava a arena. A porta estava coberta por uma grade de metal. No outro extremo da casa havia uma grade similar. Ele encerrou Dryas dentro. O teto era curvo. As grades de ambos os extremos sugeriam animais e a estadia fedia a urina de gato e esterco embora piso estivesse limpo e recém varrido, pronto sem dúvida para o tigre.
Dryas recuperou a compostura e se dispôs a esperar. Aquila e dois homens apareceram no passadiço sob os assentos. Dryas os reconheceu imediatamente. Um era o físico que lhe havia curado os cortes do tornozelo, e o outro o assistente de banho que estava com ele... Mas agora estava vestido bem melhor.
Dryas caminhou para eles, detendo-se ao chegar aos barrotes. Uma tocha ardia no corredor. Dirigiu aos dois homens um olhar de profunda desaprovação.
—Por que esse engano? — Ela olhou diretamente nos olhos de Lucius, como havia feito a véspera. - Por que não se identificou antes?
Lucius estava com a boca seca e não soube encontrar uma resposta. Olhou para Fio e Aquila, mas eles não lhe foram de nenhuma ajuda: o rosto da Aquila era selvagem, enquanto a expressão de Fio dizia mais ou menos. É com você mesmo.
—Por que... Por que... — Ele balbuciou. – Tudo o que fosse, inclusive a piedade, teria sido melhor que ver ódio em seus olhos.
Dryas sorriu.
—E por que deveria importar o que eu pensasse de ti?
—Porque eu não... O que estou dizendo? Normalmente um homem não tem que fazer isto ele mesmo... Não sem ajuda.
Dryas estendeu a mão por entre os barrotes e tomou a dele. Ele a levou aos lábios.
—Agora, me diga o que quer. - Disse ela em voz baixa.
—O que pensava que eu queria?
—Se deitar comigo, com ou sem meu consentimento. – Respondeu ela.
—Não. —Lucius meneou a cabeça e envolveu a mão de Dryas com as suas. - Vim para te pedir que se case comigo.
Aquila tinha o aspecto de alguém a quem teriam cortado as orelhas. Inclusive Fio parecia surpreso.
Os olhos de Dryas se abriram ao máximo. Ela deixou cair o manto no chão e passou a mão esquerda pela grade, para tocar a face de Lucius.
—Ou isto é o pior dos enganos, - ela sussurrou, - ou não sabe!
O direto olhar de Lucius anulava a possibilidade de um engano. Estavam a algumas polegadas de distância. Ele passou a mão direita sobre a dela, em sua face.
—O que é que eu não sei? — Seu rosto ficou pálido pelo medo e a ira, e com uma voz que nem Fio havia ouvido antes, rugiu perguntando novamente. - O que é que eu não sei?
Capítulo 24
Era um formoso dia para Gordus. Ele e Martinus caminhavam pelas cercanias do Foro. O céu era de um bonito e quente azul e as brancas nuvens do alto não faziam nada para ocultar a luz do sol.
—Acha que poderemos ver César? — Perguntou Martinus.
—Não sei. – Respondeu ele. - Agora tem tantos peticionários que não sei se poderemos passar. E embora consigamos vê-lo, pode ser que não nos conceda nossa petição.
—Claro que fará. Se tiver algum sentido da justiça.
—Meu filho, eu não exporia nossa petição dessa maneira. De fato, eu nunca pediria nada nesses termos a um homem tão poderoso como ele.
—Não. – Disse Martinus. - Deixarei que você fale. Não sou bom explicando as coisas e certamente faria confusão e cairia em ridículo.
—O que ela te disse? — Perguntou Gordus. - Como te leu a fortuna?
Martinus parecia estar meditando.
—Não sei como explicar. Não pareceu grande coisa, pelo menos não a princípio.
—Mas como?
—Bem...
Eles se esquivaram de um vendedor de pão recheado, o homem levavao seu forno sobre a cabeça e logo tiveram que rodear um velho soldado que vendia flores, nada menos. Ele estava sentado nos degraus do Templo de Vista, com cestos de rosas, lírios, violetas e narcisos, junto a vasos de barro com ervas para janelas, balcões e pátios. Havia salvia, manjericão, manjerona doce e longos caules de eneldo.
—Pediu sua espada. Aquila a levou e ela a desembainhou e pôs minha mão sobre a lâmina. Depois de alguns instantes a levantou. Havia marca escuras onde meus dedos a haviam tocado. Ela disse que eu tinha que saber e que seu estava certo. Não sirvo para a espada. Eu estava triste porque te honro e queria ser tão...
Eles se detiveram o chegar ao Templo de Vênus, pois as pombas do santuário cobriam o pavimento.
Uma anciã tentou lhes vender uma bolsinha de grãos.
—Alimentem suas pombas. – Ela disse. - E a honrarão. Ela o acha formoso de rosto, jovem, e deve te amar. Peça-lhe agora que te faça afortunado no amor.
Martinus sorriu.
Ele é belo, pensou Gordus. Cabelo castanho claro, tão fino e suave que o vento o agitava como se fosse pó. Grandes olhos cor de avelã e marcados por cílios castanhos. Um bonito sorriso unido a um corpo alto e forte que desfruta da graça da juventude. Se o visse na arena com uma espada na mão, morreria. O espírito privado de sua raiz de carne jazeria na escuridão para não se levantar jamais. Obrigado, Dryas. Obrigado.
Martinus pegou a bolsa de grãos e pagou um cobre a velha senhora. Ele e seu pai se sentaram nos degraus do templo e deram de comer as pombas. Do outro lado da rua, os toldos com raias vermelhas e amarelas identificavam a casa de César.
—Como eu te dizia, — continuou Martinus, - queria ser tão parecido a você como pudesse, mas ela disse: Não, o aço te rechaça. Olhe as marcas que deixaste na espada. Logo me pôs a mão no peito e fechou os olhos. Primeiro franziu o cenho, logo sorriu e ficou quieta durante um momento. Logo fez um gesto para a porta e uma garota entrou por ela. Era muito bonita, a mulher mais bela que eu já tinha visto em minha vida. Sorriu-me e logo desapareceu. E depois ouvi a risada de crianças e Dryas me perguntou se eu queria a música.
—Que música? — Perguntou Gordus.
—A música que ouço todo o tempo. Não recordo ter deixado de ouvi-la nunca. Cantava-a no berço e enquanto engatinhava no chão da cozinha atrás de mamãe. Às vezes, quando ouço um bom fragmento, memorizo-o e a ensino aos meus amigos. Não podia imaginar que desaparecesse, mas nunca havia contado nem a você e nem a mãe, porque temia que lhes rissem de mim.
—Não. – Disse Gordus. - Não. —Seus olhos cinza estavam iluminados pelo amor. - Nunca riria de ti. Não a respeito de algo tão importante. E o que tem que essa música?
—Dryas disse que se eu seguisse com meu adestramento como gladiador, a música me abandonaria para sempre quando liberasse meu primeiro combate. Eu disse que preferia estar morto a viver sem ela. Ela respondeu-me que sim, que sabia, mas que era por isso tinha tido a mão em meu peito tanto tempo. Era tão formosa que ela também estava ouvindo. Disse-me que a garota da porta seria minha esposa e que teríamos uma vida longa e feliz. Eu teria muitos filhos e amaria a todos e eles a mim. A música me acompanharia todos os dias de minha vida e toda a vida de meus descendentes até o fim dos tempos. Mas não se tomasse o caminho da espada. Eu não quero fazer nada que pare a música. Não poderia viver sem ela.
Nem eu sem ti, pensou Gordus. - Já pensaremos em algo. – Ele prometeu.
Alguns escravos passaram ao trote, carregados uma cara liteira de varas de ouro e marfim e cortinas púrpuras e fizeram dispersar as pombas entre um torvelinho de asas e ruídos de protesto. A bolsa de grãos estava vazia.
Gordus ficou em pé.
—Vamos ver César.
Para sua surpresa, foram admitidos apenas uma hora depois de sua chegada.
César os recebeu cortesmente.
—Sim. - Disse. - Acredito que vi este jovem no combate de exibição que ofereceram. —O braço de Martinus continuava enfaixado. - Não dirige a espada como seu pai, mas isso seria pedir muito. Vai seguir sua profissão?
Martinus se ruborizou.
—Não... Não acredito que o faça. – Ele disse balbuciando.
—Provavelmente seja uma boa idéia. - Replicou César.
—Sim. – Disse Gordus. - Meu senhor, vim pela mulher de meu ludus.
César havia se afastado de sua mesa para saudá-los. Ele deu um impaciente olhar para trás, para os papiros e pergaminhos acumulados.
—Sim, o que tem que a mulher? Convidei algumas pessoas esta tarde para ver seu combate. Estão preparados ela e esse leão ou o que seja?
—Chama-se tigre César e vim porque acredito que fazer com que ela enfrente na arena uma criatura tão selvagem seria um assassinato.
César arqueou as sobrancelhas. Despediu com um gesto os dois secretários que estavam lhe ajudando e pôs as mãos sobre os joelhos.
—São palavras muito fortes. - Disse.
—Eu não creio que sejam. – Respondeu Gordus. - A dama não é uma criminosa. Pelo que sei, jamais foi condenada por um tribunal romano por causa de um crime cujo castigo seja a damnatio ad feras, quer dizer, ser jogado as feras.
—Sei o que é. – Disse César. - Não tente me dar lições de leis.
—Não. – Disse Gordus. - Nunca pretenderia fazer algo assim, mas queria ter clara sua posição. O soldado, Aquila, me disse que ela foi capturada no ataque a um povo governado por um aliado de Roma chamado Cynewolf e trazida a Roma contra sua vontade.
—Tem a consciência muito sensível Gordus, para ser um lanista e um ex-gladiador. —César se levantou e foi até o lado de sua mesa, que dava para o jardim. Corria uma persistente brisa e as cortinas de linho ondulavam fazendo soar as argolas. - Sei o que é essa dama, como você diz. – Ele disse voltando-se para Gordus. - E posso te dizer mais coisas sobre ela. Posso te dizer mais sobre ela do que ela mesma gostaria. É caledonia. Os Caledônios são uma tribo do mais remoto limite da Britania. Vivem em altas montanhas, separado do resto, e os consideram o povo mais feroz, indômito e selvagem de todos. Não têm deuses e só veneram os mortos que têm caído antes que eles. Acreditam que todos os homens são iguais e também as mulheres, pois as adestram nas artes da guerra e na matança. E suas filhas, como seus filhos, aprendem a montar, caçar e usar a espada e o escudo tão bem como os homens. Consideram que um homem vale tanto como outro e não aceitam limites a suas paixões. É tão fácil lhes inspirar risos, como lágrimas, ira ou terror. Não têm consistência e nem controle e são tão selvagens e indomáveis como os lobos de seus vales ou as águias que voam entre os penhascos onde têm seus lares. A arena comemora nossas vitórias. Quando tiver terminado com Partia, me voltarei para a Ilha Branca. Eu gostaria de ver lutar essa mulher caledonia. Encurralamos uma de suas lobas na Britania, mas não chegamos a ver que era uma mulher até que morreu. Quando voltar, capturarei tantos de seu povo como puder e os trarei aqui, homens e mulheres, para que lutem e morram para nos entreter. Como esta mulher vai fazer hoje. Compreendeste, Gordus?
—Sim. Acredito que sim. Mas poderei pelo menos lhe deixar escolher suas próprias armas, para que tenha alguma possibilidade contra Terror? Assim se chama a fera, Terror. A cota de malha que a dama Fulvia quer que ela use é mais fraca que muitos tecidos. Deixe que lhe dê uma armadura eficaz.
—Gordus, você está me cansando e isso não é bom nem para ti nem para ela. Logo irá querer que eu envie uma corte de soldados a arena para que protejam a sua lutadora de qualquer dano.
—Não gostará que moora nos primeiros instantes da luta, verdade?
—Não. – Disse César lentamente. - Eu gostaria que sobrevivesse, se fosse possível.
—Sou um homem experiente nessas matérias. – Disse Gordus. - Deixe que eu escolha suas armas.
—A exibição de seu corpo é parte do espetáculo. — objetou César.
Gordus engoliu saliva.
—Ela terá um aspecto magnífico, prometo.
Quando saíram novamente À rua, o sol já não parecia tão brilhante para Gordus e nem o dia tão formoso.
—Falhaste. – Disse Martinus.
—Não, moço, não. Meia fatia é melhor que nada, especialmente se lida com homens como César. Não esperava conseguir tanto, mas se pôs acima dessa puta Basilia, que teria deixado morrer nossa pequena sacerdotisa em poucos instantes. Farei tudo o que puder por ela. É formidável. Ele tem razão nisso.
—É verdade algo mais do que disse? O que significa isso de comemorar as vitórias?
—Provavelmente não. Parece a você que a Dryas falta controle ou coragem?
—Não. – Disse Martinus. - Aquila me disse que ela havia sido uma espécie de juiz entre sua gente, o que significa que pelo menos têm leis.
Gordus assentiu.
—Quanto a comemorar as vitórias, me fez sentir vontades de lhe cuspir na cara. Meu pai cultivava suas terras na Campania até que os soldados lhe jogaram porque tinham sido confiscadas para alguns dos veteranos de Pompeu. Sou tão latino como qualquer membro do Senado. Meu avô apoiou As Gracos quando tentaram fazer reformas agrárias. Meu pai era um granjeiro na Capua quando a lei da Campania foi promulgada, por César nada menos e nossa família ficou na miséria. Então viemos para Roma e tentamos viver das partilhas de grão. O “pão e circo”, dizem, foi à ruína do povo de Roma, mas eu acredito que meu pai e meu avô teriam preferido conservar suas granjas. Apresentei-me ante o lanista da Capua, sim, o mesmo ludus que saiu mais tarde, Espartaco e me comprometi sob juramento a ser açoitado por látegos, queimado por ferros em brasas ou morto pelo aço se desobedecesse a meu professor. Fiz por dinheiro. Dinheiro para que minha mãe e meus irmãos menores não ficassem na miséria, mas nunca quis uma vida assim para você.
—E mamãe?
—Cale-se. O que acontecer com um homem se pode contar abertamente, mas com as mulheres... É diferente. Direi-te somente que brincávamos juntos desde crianças e ela vivia a duas ruas de distância em meu mesmo povoado e seu sangue é tão latino como o meu. Mas na arena, às vezes lutei como galo, outras como samnita e uma ou duas como tracio... Todos os povos derrotados pelas legiões. Mas não posso ver o que pretende comemorar César, a menos que seja ter reduzido nosso povo à escravidão em sua busca pelo poder. E fez muito bem. Ainda quer ser um gladiador e derramar seu sangue e a de seus companheiros para que homens como ele se “divirtam”?
—Acredito que prefiro a música. – Disse Martinus.
O combate foi provavelmente melhor que o previsto contra o tigre, mas não tão público. Fio, que teve a oportunidade de presenciá-lo, considerou-a uma das mais encarniçadas e brutais disputas familiares que tinha visto em sua vida.
Lucius e Dryas pareciam um para o outro. Mal se conheciam, com a grade de ferro entre eles, gritavam um com o outro com toda a força de seus pulmões.
Lucius estava decidido a tomar posse imediatamente dela e queria que Dryas fugisse com ele. Já! Embarcariam em Ostia. Logo!
E deixar seus amigos e parentes para que enfrentassem a considerável cólera de César e Fulvia, para não mencionar a de Antonio? Ficou louco? Ela tinha sua honra e a honra exigia certo tipo de comportamento. Acaso ele não entendia?
Que tipo de honra podia ter uma mulher, Bárbara, além disso?
Foi uma sorte que a grade de ferro estivesse ali, pensou Fio. Não por Dryas, mas por Lucius.
Dryas olhou para seu pretendente como se desejasse matá-lo. Na realidade, se Aquila lhe tivesse dado sua espada, certamente teria matado.
Como ela se atrevia ela a levá-lo a uma situação em que estava a ponto de ficar louco por seu amor?
Suas aberrações mentais não podiam ser culpa dela! Se ele não pertencesse a uma nação de homens tão vãos, arrogantes, egoístas e ambiciosos que não podia confiar nem nos amigos, ela não estaria...
Nesse momento chegaram Maeniel, Márcia, Gordus e Martinus. Lucius se encontrou ampliamente superado na votação e não gostou muito. Caiu lutando, mas não lhe serviu muito. Inclusive Fio opinou que tinha perdido seriamente o sentido.
Matrimônio! Ele estava propondo matrimônio a uma selvagem caçadora Bárbara. Havia um grande número de propostas que os muito práticos amigos gregos de Fio teriam feito aquela Amazona, mas o matrimônio não estava entre elas.
E o mesmo podia dizer de Aquila, Gordus e inclusive Martinus. A mente de Aquila se inclinava naquela direção, mas sob nenhum conceito podia imaginar Dryas alimentando porcos e frangos em uma granja na Campania. Ou vivendo na casa de um rico aristocrata romano como Lucius. Causaria sensação embora Lucius se retirasse para uma vila campestre com ela. A maioria dos romanos, patrícios ou inclusive cavalheiros, encontrariam o desejo de coabitar com Dryas não só excêntrico, mas também absolutamente insano.
Mas Lucius falava a sério e aquilo era óbvio porque Maeniel e Gordus estavam atando suas mãos nas costas. Gordus lhe passou uma corda pelo pescoço e fez subir para a casa, na ponta da lança.
Com as mãos trêmulas, Dryas recolheu seu manto do chão da jaula, sacudiu-lhe o pó e se uniu a procissão ficando logo na frente, em busca de seu café da manhã.
A cozinha era tão quente como a área sob a arena era fria. Dryas se aproximou da porta do forno para esquentar as mãos.
Havia três pratos cobertos sobre a mesa. Sim, Márcia tinha prometido papa toucinho e pão.
Gordus fez entrar Lucius, seguido de perto por Maeniel, Márcia, Aquila, Martinus e Fio.
A mesa estava em um canto. Havia bancos junto à parede e dois dos lados. Sentaram Lucius em um dos bancos da parede, com Gordus de um lado e Maeniel do outro.
Márcia serviu sua própria versão da posea, bem mais agradável que a que Dryas tinha provado na vila de Fulvia. Logo, todos estava com uma taça nas mãos, salvo Lucius, cujas mãos seguiam atadas.
Durante um momento, todos se dedicaram simplesmente a beber. Logo Dryas, ainda junto à porta do forno, se voltou para Lucius.
—Diz que quer se casar comigo?
—Sim. – Respondeu ele em tom desafiante. - Quero.
—Minha querida senhora... — Começou a dizer Fio.
—Não me chame de querida senhora. Não sou um ama. Isso implica ter escravos a quem dar ordens e eu não tenho nenhum e não me interrompa quando falo.
—Ela é sempre assim? — Perguntou Aquila a Maeniel.
—A maior parte do tempo. – Respondeu ele filosoficamente.
Dryas lhes dirigiu um turvo olhar para lhe fazer calar e se dirigiu novamente a Lucius.
—Muito bem. Dá-se conta do que o matrimônio implica entre minha gente?
Lucius teve que admitir que não.
—O homem com o que eu me casar tem a possibilidade de se converter em rei dos Caledônios. Para se casar comigo, teria que superar as provas previstas e embora falhe, ainda poderia se converter em um dos companheiros do governante.
—César diz que vocês não têm rei. – Disse Martinus.
—César se equivoca. O rei é um líder na guerra e um juiz na paz. De certo modo, nós, como os romanos, desconfiamos dos governantes e como vocês preferimos dirigir nossas próprias vidas. As mulheres como eu vivem para dar reis ao povo, seja por nascimento ou por matrimônio. Nossos corpos não são nossos para que disponhamos deles. Por isso te faço estas perguntas. Se de verdade quer se casar comigo, estou obrigada a aceitar.
Houve uma consternação geral na cozinha.
Fio jogou o manto sobre a cabeça como amostra de dor.
—O que? – Disse Márcia, golpeando a mesa com a concha de sopa de madeira que estava usando para servir as papa.
Aquila ficou sentado com a boca aberta e Maeniel que sentia que a maior parte dos membros de sua espécie compartilhada estavam loucos, ouviu a notícia com tranqüilidade.
Só Martinus fez a pergunta obrigatória: — Por quê?
—Porque ele pode levar aos Caledônios o idioma romano, suas artes militares, seus costumes, seus conhecimentos, sua forma de lutar e suas habilidades técnicas. Há muitas coisas em Roma que seria bom aprender. - Explicou Dryas.
—Sim. – Disse Martinus. - César disse que, quando tivesse conquistado Partia, enviaria seus homens a Ilha Branca para que trouxessem sua gente para lutar na arena.
— Eu não poderia passar por cima de uma oferta assim, se fosse séria. - Disse Dryas, olhando para Lucius com o cenho franzido. - Mas acredito que é jovem e frivolo e está movido pelo desejo, não por uma verdadeira ambição de formar parte de minha vida. Quando me reuni contigo, estava disposta a saciar seus apetites para não me arriscar que fizesse mal a meus amigos. Então foi só uma moléstia e se isso é tudo, adiante. Roma está cheia de putas, algumas caras, outras não, mas todas em venda. Eu não estou, asseguro-lhe. Só posso ser sua vítima, não uma companheira voluntária no prazer. Tenho meu dever e tenho que lutar esta tarde. Se for necessário, baixarei até a latrina contigo, porque os desejos que expressas pertencem a um lugar assim. Se não é isso e está disposto a me mostrar o respeito que eu mostraria, inclusive a uma garota da rua, ou seja, não incomodá-la quando tem outros assuntos a resolver, vá. — Dryas assinalou a porta. - E ganhará minha gratidão e meu respeito para sempre. Desate-lhe as mãos, Maeniel e deixe que ele faça o que queira. Por desgraça, tem poderes que neste momento nos estão negados. — Ela se voltou novamente para a porta e seguiu esquentando-as mãos. Ainda estavam frias.
Gordus lhe cortou as ligaduras das mãos e Lucius as fitou como se não estivesse seguro a quem pertenciam. Observou Dryas, sentindo como se ela lhe tivesse golpeado com uma tábua entre os olhos.
A túnica de cor ocre e o manto azul eram atraentes. Márcia deu a Dryas uma terrina de papa e uma colher e ela começou a comer em pé no mesmo lugar onde estava. Parecia tão simples... Sim, havia um corpo esplêndido sob a túnica e o estranho penteado. O calor do forno lhe provocara cores de uma forma que não tinha visto antes e nem sequer as sandálias e as meias três-quartos de lã podiam ocultar a graça de suas pernas, seus tornozelos e seus elegantes pés. Não podia se imaginar forçando-a movido pela luxúria, mais do que podia imaginá-la cometendo qualquer outro ato impensável, como matar uma criança, atestar contra um amigo ou inclusive um inimigo ante um tribunal, roubar ou fazer mal a outra pessoa sem uma boa razão.
—Está completamente a salvo de mim. – Ele disse por fim. - Não te tocaria contra sua vontade mais do que saltaria do telhado deste edifício para voar. Acho que suas condições para o matrimônio são difíceis. Não sei se posso cumpri-las e tenho medo por ti. Tanto medo que esteveste a ponto de me fazer perder o sentido. Sou o último homem do mundo ao qual deveria temer. Sim, irei se deseja, mas gostaria de ficar e te oferecer toda a comodidade e ajuda que puder.
Ele se levantou, passando ao lado de Maeniel e foi até onde se encontrava Dryas. Ela voltou a se fixar em sua claudicação e aquilo lhe rasgou o coração sem que soubesse por que.
—Não acredito, - disse Lucius humildemente, - que seja um bom candidato a majestade entre seu povo. Estou ferido e minha saúde provavelmente será sempre afetada por minhas cicatrizes e minha longa enfermidade.
Ele não era mais alto que Dryas e ela inclinou um pouco a cabeça para fitar seus olhos. Não notou que Márcia lhe tirava a terrina e a colher, nem resistiu quando Lucius a rodeou com seus braços e fez com que ela apoiasse a cabeça sobre seu peito. Ele ficou ali em pé, abraçando-a, com os lábios pousados sobre seu cabelo, enquanto ela chorava porque aquele momento havia chegado justo quando ela estava segura de que iria morrer.
Lucius e Fio avançavam velozmente pelas ruas de Roma. O que havia começado como um esplêndido dia estava se danificando com rapidez. O céu estava se nublando pouco a pouco, ocultando em sol e o vento do norte começava a soprar pelas estreitas ruas da cidade. Agitava os objetos soltos que estavam acostumados a usar os romanos, intumescendo narizes e dedos e levando o frio do inverno até os ossos. O céu cinza se encaixava com o humor de Lucius. Ele estava cheio de ira e ódio e caminhava tão rápido que Fio quase tinha que trotar para se manter a altura.
—Desejaria que não fizesse isto. - Suplicou Fio. - Não é prudente queimar todas as pontes de uma vez. Embora, talvez queira voltar algum dia...
Lucius se deteve alguns instantes para que Fio o alcançasse. Não respondeu seu amigo, mas se limitou a fitá-lo friamente.
—Não. – ele disse por fim. - Nunca vou querer voltar. Nem aqui e nem a ser Lucio Cornelio Basilio. Terminei. Se não quiser vir comigo, te darei dinheiro, tudo o que queira. Pode ir para onde quiser. O mundo inteiro se abre ante voce, Fio. Eo o converterei em um homem rico, se for isso o que quer.
—De verdade pensa em se casar com essa mulher e fugir para os limites da terra com ela?
—Sim.
Fio se pôs a rir.
—Não perderia isso por nada do mundo. — Ele secou os olhos. - Sabe? Os relatos favoritos de minha mãe eram esses romances helenísticos de amor e aventura. Um deles era sobre Alexandre e eu me perguntava como teria sido seguir as tropas por meio mundo, ver a Persia e a Índia, lutar com homens montados em elefantes. Escalar montanhas, atravessar desertos, ver os Jardins Pendentes da Babilônia quando era a maior cidade jamais construída. Inclusive naquele horrível posto de escravos do Cos, eu sentia uma selvagem excitação em meu coração. Você nunca sabe para onde será vendido, nem por que. Fiquei pasmo ao acabar na Galia, nada menos, cuidando de um homem muito doente...
—Era eu?
—Sim. Estava amarelo e sua irmã me ameaçava.
—O que teria feito se não tivesse conseguido que me recuperasse?
—Não sei. Nunca tive ocasião de traçar planos. Você começou a melhorar logo que o convenci para que deixasse de se embebedar toda noite e se alimentasse um pouco. Uma vitória simples e das mais gratificantes.
—Sim? — Perguntou Lucius ironicamente.
—Não, na realidade foi questão de tato e paciência.
—Isso eu pensava. Bem, pode ser que isto não seja uma grande aventura. Talvez encontremos um fim desagradável em algum afastado canto de uma terra estranha...
—Me arriscarei.
—Bem, então... – Disse Lucius e começou a andar novamente. Ele havia levado Dryas escada acima, com o Márcia ao lado. Deixara-a sobre um jergón em um dos dormitórios do piso superior, lhe tirando as sandálias e deixando as meias três-quartos. Márcia lhe havia tirado o cinturão.
Fio tinha preparado algo.
—Valeriana. — Ele havia dito a Márcia. - Precisa descansar, mas não ficar aturdida nem com ressaca.
Aquila lhe tinha levantado a cabeça, convencendo-a para que bebesse.
Logo tinham descido para conferenciar.
—Não posso fazer nada. – Disse Lucius a eles. - Se pedisse algo a minha irmã, ela estaria encantada de fazer justamente o contrário só para me incomodar. Ela tem César de sua parte.
—Sim, eu fui vê-lo esta manhã. – Disse Gordus.
—E acredito que não teve êxito. — Comentou Fio.
—Ao contrário, pode ser que tenha obtido algo prático. Consegui que ele despreze os planos de sua irmã de vesti-la como uma bailarina para enfrentar na arena um felino devorador de homens. Prepararei uma cota de malha e poderei lhe dar um escudo e sua própria espada. De toda forma, César quer, segundo suas próprias palavras, que ela exiba seu corpo, mas... —Ela se voltou para Maeniel. - Ela é boa com o dardo?
—Sim. – Respondeu ele. - Ela é boa com qualquer arma.
—Estupendo! – Disse Gordus. - Talvez possa...
Ele se interrompeu quando a porta se abriu bruscamente e um desconhecido apareceu na soleira, assinalando Maeniel e gritando: — Aí está ele! É ele! O agarrem antes que...
Mas já era muito tarde. Um enorme lobo, um dos maiores que Lucius tivesse visto jamais, estava saindo por entre as dobras da gasta túnica de Maeniel.
Não havia outra saída. O lobo investiu contra o homem da porta, lhe golpeando entre as pernas e fazendo com que caísse. Logo investiu em Antonio e cinco ou seis pretorianos.
Maeniel tinha a vantagem da surpresa e eles de estarem armados até os dentes. Alguém lhe arrojou uma lança, que passou por suas costelas para golpear o chão com uma chuva de faíscas.
Guerra enfim! Pensou o lobo enquanto desequilibrava o lançador.
Antonio tentou lhe cortar a cabeça com um gladio, falhando por uma ou duas polegadas. Diferente dos soldados, ela não usava couraça e o lobo se voltou com rapidez digna de uma serpente ao ataque e afundou as presas em uma grande e bem alimentada nádega romana.
O sangue escorreu e Antonio gritou... Ou viceversa. Naquele momento, ninguém estava tomando nota do que acontecia. Antonio caiu cravando sua espada na coxa de um dos soldados e derrubando outro ao segurar em sua couraça.
O lobo viu a luz do dia e saiu disparado.
Lucius, que estivera contemplando tudo atônito, voltou-se para a Aquila.
—Ela diz que é seu amigo. - Disse o grego, encolhendo os ombros.
—Ah! - Comentou Fio. - Sua amada tem umas amizades muito peculiares.
Lucius deixou Antonio sangrando, amaldiçoando e rugindo com fúria de patrício a Gordus, Márcia, Aquila e inclusive o pobre Martinus. Ouviu o bastante para compreender que Antonio tinha sido enviado por César para ver o tigre e que não estava contente. Acompanhava-lhe um homem chamado Decius, que era evidentemente um agente de Fulvia e balbuciava sem parar a respeito de um homem que se transformava em lobo e logo em homem novamente.
Fio se uniu a Lucius em seu caminho para a saída e o romano advertiu com certa satisfação que seu amigo não tinha feito a menor tentativa de ajudar Antonio.
Agora estava de caminho de casa. Disposto a saquear a caixa forte. Naquele aspecto, ele era todo um Basilio. O amor era importante, mas o seguinte era o dinheiro. Se fosse com ela para os limites da terra seria estupendo, mas gostaria de viajar cômodo e havia poucas situações nas quais o dinheiro não fosse útil.
—Não olhe agora. – Disse Fio. - Mas nos segue um cão muito grande... Se é que é um cão.
—Oh! - Lucius se deteve um momento com o pé no ar. Logo o baixou pouco a pouco e voltou repentinamente por uma rua que levava ao rio.
Como em muitas cidades modernas, o foro central estava rodeado por regiãos mais ou menos desfavorecidas e aquela rua era uma delas. Lojas pequenas e apinhadas, poucos botequins, inclusive um moinho movido por uma mula de aspecto desanimado ao lado de uma padaria. Meia dúzia de insulae, casas de apartamentos, com saídas que davam À rua e com as janelas tão perto umas das outras, que Lucius podia ouvir as vizinhas conversando sobre sua cabeça. Só havia uns poucos centimetros de espaço para que passasse a luz e o ar. E então encontrou o que estava procurando. Uma casa de banhos. A entrada estava em um beco. Dobraram a esquina e entraram no local.
Uma vez dentro, Lucius se sentiu reconfortado. Parecia um lugar respeitável com uma clientela de modestos trabalhadores. Nada de luxos, mas ninguém lhe cortaria a garganta pelo conteúdo de sua bolsa. Não havia mármore, e as paredes estavam estucadas e piso era dos ubicuos e avermelhados tijolos de terracota.
O estabelecimento estava vazio àquela hora da manhã. Quando entraram, o dono saiu por entre as sombras junto ao cotovelo de Lucius.
—A sala de vapor. – Disse Lucius, lhe entregando uma moeda.
O homem o olhou de cima abaixo e logo observou para Fio.
—Querem comida, vinho e uma mulher?
—Não. – Respondeu Lucius. - Tenho uma ressaca. A festa de ontem à noite durou muito.
—Não vemos muitas franjas púrpuras por aqui. - Disse o homem ao ver a franja senatorial na toga de Lucius.
—É curioso, certo? — Interveio Fio. Ele também usava uma toga como se fosse um cidadão.
—Também posso ser cego. - Replicou o homem.
—Que assim seja. – Disse Lucius, lhe dando outra moeda.
—Muito bem. Por aqui. — Ele assinalou uma porta de madeira. - Há lençóis no vestuário. Vigiem suas roupas.
O homem partiu tão rapidamente como havia aparecido.
A sala de vapor não estava ruim, com lençóis limpos e bancos ao longo das paredes. O vapor era gerado à maneira antiga: com pedras esquentadas sobre um leito de brasas. A casa era úmida e calorosa.
—Não há hipocausto. – Disse Lucius.
—Isso é bom?
—Sim. O som se transmite por essas coisas. Agora esperaremos para ver se nosso amigo entra em contato conosco.
—Não estou seguro se terei que me alegrar ou lamentar. - Comentou Fio.
—Já.
Pouco depois eles ouviram ruídos na outra casa e Maeniel entrou envolto também em um lençol. Ele sentou no banco.
Um empregado entrou com uma cuba de água que esvaziou sobre as pedras, gerando mais vapor. Pareceu se surpreender ao ver Maeniel e saiu da sala.
—Pode ser que tenha que pagar mais. – Disse Maeniel.
—Um mero detalhe – Respondeu Lucius.
O proprietário chegou em seguida, como se era de esperar, com a mão estendida. Lucius pôs outra moeda nela e ele saiu.
—Quem era esse histérico do ludus? — Perguntou Lucius.
—Chama-se Decius. Conhecemo-nos na Galia. Alguns... Parentes... Meus o queriam para o jantar e eu o impedi.
—Uma pena. – Disse Lucius.
—Isso me parece agora. – Ele estava me esperando ontem à noite na casa de Manilius e Felex. Começou a gritar no mesmo momento em que me viu e eu tive que partir precipitadamente. Por sorte, sou bom nisso e não me pegaram.
—Obviamente.
—Sim, mas passei toda a noite vagando por Roma, tentando encontrar o ludus. Quando consegui, descobri que tinha mais problemas entre mãos do que podia resolver.
—Conhece-a? — Perguntou Lucius.
—Sim, muito bem.
—Você se preocupa com o que possa lhe ocorrer?
—Sim.
—Por que está aqui? — Inquiriu Lucius e pôde notar sinais de um debate interno no rosto de Maeniel.
Por fim, respondeu o lobo:
—César. – Ele disse, fazendo um gesto cortante à altura da garganta.
—É uma pena. – Respondeu Lucius. - Não se pode aproximar o bastante, mas não é o único que acha a idéia atraente. Há muitos que pensam iguais e eu mesmo entre eles, mas não me ocorre como fazer.
Maeniel assentiu.
—Sabem o que eu faria? — Interveio Fio pela primeira vez.
—Não. - Responderam Maeniel e Lucius.
—Uma visita a Brutus.
—Brutus. – Disse Maeniel. - É o que discutiu com Antonio no jantar de...
—Sim. - Responderam Fio e Lucius, em coro.
—As palavras se movem depressa. Calpurnia diz que César está fazendo uma lista, mas não sei o que quer dizer isso.
—Proscrições. - Explicou Lucius, fazendo um gesto de espremer com a mão.
—Significa o que acredito que significa?
—Sim, e você também se move depressa. Posso te perguntar até que ponto conhece essa dama em particular? — Perguntou Lucius delicadamente.
—Não. – Disse Maeniel. - Tem muito a perder.
—Acredito que irei ver Brutus. – Disse Lucius.
—Necessito de roupa e dinheiro. - Replicou Maeniel.
—Um mero detalhe. - Lhe tranqüilizou Lucius.
O combate tinha todos os traçados de ser um verdadeiro acontecimento. Márcia observou o sono de Dryas e notou que ela dormia bem. Aquela casa sobre a cozinha era quente.
A arena não era muito grande. Havia poucos assentos, só cinco filas, mas estava situada no centro do ludus de cinco pisos. Dois alpendres cobertos dominavam a arena por três lados. Eram cômodos e estavam resguardados do vento por um teatro do outro lado da rua. Não havia nada na vizinhança o bastante alto para bloquear a luz.
Muito boa organização, é verdade, pensou Gordus. Já tinha intervindo em convocar locações privadas para César. Os homens do público estavam acostumados a ficar nos degraus. Havia comida e vinho para os espectadores nos alpendres, onde os assentos eram mais cômodos para as mulheres. Tinham uma boa visão e se os espetáculos cruentos não eram de seu gosto, podiam passar o tempo fofocando enquanto os homens se deixavam levar pela violência da arena.
Tinha que encontrar alguma forma de manter a pequena sacerdotisa viva. Havia decidido na noite anterior, na capela funerária.
Gordus era um homem duro. Adestrava gladiadores para César e outros romanos. Havia enviado muitos homens à morte. Perdiam uns quantos quase que em cada convocara. Por isso tinha construído o columbarium, a tumba. Inclusive aqueles proscritos precisavam saber que receberiam um enterro apropriado e que teriam se despedidos fossem por seus iguais quando morressem. Era parte da disciplina do ludus. O juramento de obediência, pelo qual se submetiam ao castigo do látego e os ferros candentes ou inclusive a morte pelo aço se não obedecessem a seus donos e treinadores, não era uma simples fórmula. Ele mesmo havia sentido o látego e inclusive o ferro candente de vez em quando e os repartira generosamente entre os homens que adestrava. Não havia lugar para a gentileza naquela profissão e a maior parte do tempo, nem para a piedade.
Mas, surpreendentemente, poucos de seus alunos o odiavam e de fato muitos pareciam lhe apreciar sinceramente. Depois de provar o quão duro ele podia ser, aceitavam a disciplina do ludus e ele lhes ensinava à perfeição, as habilidades que necessitariam para sobreviver na arena. Muitos se sentiam agradecidos e voltavam para trabalhar com ele quando ganhavam sua liberdade de amos que faziam dinheiro as sua costa.
Como muitos homens duros, ele era um sentimental com as mulheres. As esposas e as filhas eram ritualmente puras. Sim, haviam passado coisas quando seu pai e o de Márcia caíram tentando defender o pouco que tinham. Sabia que alguns homens do povo aceitavam ser jogados no caminho e ficar na pobreza antes que deixar que suas esposas e filhas sofressem como sofrera sua mãe e a de Márcia. Compreendia. Odiava até o fundo de sua alma, mas compreendia.
Antigamente, os homens como seu pai e seu avô haviam sido importantes. Eram a espinha dorsal das legiões. Elevaram-se protegendo Roma quando Aníbal atravessou os Alpes e ameaçou a cidade. Homens de sua família partiram as ordens do Escipião e Fabio, lutaram contra os samnitas e na Toscana, ajudaram a sentar as bases do impressionante poder de Roma. Haviam caído ali e seus filhos seriam recompensados algum dia com paz, segurança e prosperidade.
Mas estavam equivocados. Mesmo seu avô estava seguro de que os Gracos seriam justos com os pequenos latifundiários das cercanias de Roma. Então se esgotou a fé. Gordus estava seguro de que seu pai afundou no desespero. Ele mesmo pôde ver com claridade como se desenvolvia o jogo.
As duas únicas classes que importavam naquele momento eram os publicani, os cavalheiros que saqueavam as províncias em seu próprio benefício e os generais patrícios que eram pagos por aqueles ladrões de êxito, para partirem à conquista de mais povos, que por sua vez pudessem ser saqueados, explorados e escravizados até que os governantes estivessem tão inchados por seus lucros que começassem a cortar as gargantas entre si, brigando enlouquecidos pelos restos.
Assinou sua própria paz por separado, como muitos homens e mulheres haviam feito ao longo dos séculos e voltou os olhos para dentro e decidiu proteger os seus. Pelos meios que fossem necessários.
Sabia que a Márcia havia acontecido coisas feias antes que ele pudesse comprar sua liberdade e a de sua mãe, mas não era culpa dela. Ela havia feito o que devia, mas inclusive agora levava a vitta, a cinta de lã de uma esposa casta e sobre ela, um antiquado véu de linho para que ninguém pensasse que ela podia se descuidar sua virtude por causa de seu passado.
Dryas não pertencia aquele lugar. Nenhuma mulher. O ludus era um tipo especial de inferno, somente para homens. Porque só os homens podiam merecê-lo.
Gordus sentia um absoluto desprezo por César, pois tinha conspirado com Fulvia para trazer Dryas até ali. Admirava a disciplina e a coragem. Eram as únicas virtudes que lhe importavam em seus lutadores, e pelo qual a ele respeitava, eram essenciais para todo o resto.
Apesar de ser uma mulher, Dryas cobria aqueles requisitos. Faria tquanto e tudo o pudesse por ela. Então começou a preparar seu vestuário.
As botas eram um problema e ele se decidiu por sandálias reforçadas nas pernas com envoltórios de couro, pintadas de dourado. O resultado foi imponente.
Depois preparou uma cota, com malha por dentro e escamas por fora. Os bestiarii preferiam as escamas porque as garras e dentes tinham mais problemas para atravessá-las, mas a malha era mais forte. Então ele uniu as vantagens dos dois os amparos... Pelo menos esperava ter unido. Teve que deixá-la o bastante curta para que o diafragma ficasse nu, mas as mangas chegavam quase até o cotovelo e lhe dariam algum amparo nos braços.
Aquila lhe deu a espada de Dryas e duas adagas. Gordus desembainhou a espada e inclusive a tênue luz do céu coberto, ele pode distinguir um arco íris no metal.
—Afiada como uma navalha de barbear. - Comentou.
Aquila assentiu com um gesto.
—Como é que perderam?
—Nem sempre o fizeram – Respondeu o grego.
Ele levou as coisas a Márcia, que esperava ao pé das escadas.
—Ainda está dormindo. - Disse ela.
—Bem. Ainda estão começando a servir a comida. Deixe que durma tudo o que possa.
Havia dois homens, ambos peritos gladiadores, a mesa e bebendo um pouco de vinho. Eram exauctorati que já tinham ganhado sua liberdade. Gordus podia confiar neles e se uniu a eles. Márcia subiu escada acima.
—Vocês abrirão o espetáculo. – Ele disse aos homens. - Os dois rapazes que escolhi são aprendizes. Meninos bonitos, portanto não lhes façam cortes na cara. Eu lhes disse que não os pressionem e nem tentem nenhum truque. Eles acreditam que não irão matá-los e nem deixá-los entrevados, então não me façam virar um mentiroso. Só uma exibição. César estará aí e vocês sabes.
—A garota e o tigre. É verdade ou só uma anedota? — Perguntou um deles.
—É verdade.
O outro homem pareceu afetado.
—Uma mulher. Não me parece correto.
—Não é. – Disse Gordus. - Mas o que vamos fazer?
Os dois gladiadores assentiram e se serviram um pouco mais de vinho.
Capítulo 25
Os cozinheiros tinham preparado carne assada com mel e ervas, leitões, frangos, gansos, pombas, galinhas e inclusive cisnes. Um porco inteiro dava voltas sobre um fogo, banhado em sua própria gordura.
Em outra mesa havia comida fria. Azeitonas de todo tipo, queijo fresco, pepino, pequenas cabaças, cebolas e presunto. Havia pães com queijo, tâmaras, nozes e azeite.
Ânforas de vinho branco sfriavam na neve, e havia uma ampla provisão do célebre Falerno, o mais admirado de todos os vinhos tintos.
As liteiras chegavam descarregando homens e mulheres ricamente vestidos. Os espectadores subiram as escadas até os alpendres, onde os escravos subministrados por César e Antonio lhes ofereciam vinho em taças de ouro e prata com pétalas de rosa e um aperitivo de ovos especiais, pequenas salsichas, queijo defumado e pequenos aspargos com aroma de coriandro e molho de vinho.
César chegou com um enorme séquito que incluía Brutus, Cicero, Fulvia, Cleopatra, Casio e Lucius. Lucius sabia que o melhor para Dryas era que ninguém notasse que ele se importava com o que lhe acontecesse.
Antonio, que se alegrou ao ver que Lucius se mostrava como ele acreditava, mais sensato, chegou por sua vez com uma horda de senadores, oficiais militares, publicanis, cavalheiros e sicofantes e parasitas diversos, assim como uns quantos intrusos entre os que se encontrava Maeniel.
Passearam pelos alpendres, observando e sendo observados exibindo jóias, ouro, prata, âmbar, ametistas, rubis e uma pletora de pérolas. A roupa era da melhor qualidade: veludo, seda, linho, lã... Os homens vestiam uniformemente de branco, enquanto que as mulheres mostravam-se tão colorido como as mariposas. Trocavam frases engenhosas, banalidades, estupidez, insultos, crueldades e o que lhes passasse pela cabeça.
Ninguém ouvia ninguém e ninguém parecia ver ninguém mais ou isso parecia a Lucius, que estava seguro de que Dryas iria morrer para a diversão daqueles parasitas, assassinos, chantagistas e ladrões. Ele disse a Maeniel quando o viu investigando as azeitonas especiais no alpendre mais próximo aos degraus.
—Não, se eu puder evitar. – Disse Maeniel enquanto comia umas quantas azeitonas negras maceradas em vinho, azeite e folhas de louro.
—É uma incongruência que você goste das azeitonas – Disse Lucius. - Não gostaria de um bom pedaço de carne sangrando?
—Não, já consigo bastante disso. Não subestime Dryas: eu fiz isso uma vez e paguei muito caro.
—Você não viu esse tigre.
—Oh, sim. É obvio que o vi. – Disse Maeniel. - Mas era muito cedo e eu pensei que devia provar a comida. Os problemas se enfrentam melhor com o estômago cheio. Se não comer, logo vai se lamentar. Então não se desespere. Ela não o faz, asseguro-lhe.
Márcia ajudou Dryas a se vestir. O calçado dourado eram sandálias com que chegavam até debaixo do joelho, dando apoio ao tornozelo e um pouco de amparo para a metade inferior da perna.
E obviamente, a típica tanga de seda vermelha. Mas Gordus tinha reforçado o cinturão, acrescentando as duas facas que ela estava acostumada a usar. A coroa de espinhos estava novamente em seu cabelo.
Márcia lhe rodeou o strophium, lhe mostrando como usá-lo de forma que lhe sujeitasse os seios e de uma vez os protegesse da cota de malha.
—As acrobatas o usam assim, para que não ricocheteiem. – ela. explicou.
Dryas riu.
—Sim, podem ser uma terrível moléstia. Mas sempre havia lamentado não tê-los maiores.
—Oh, os pequenos funcionam igual aos grandes, tanto com os bebês como com os homens.
—Eu sei. Temia que fosse ter problemas ao dar o peito a meu filho, mas não foi assim.
—Tem um filho?
—Morreu. —Dryas afastou o olhar.
—Já tinha visto as estrias em seu ventre. – Disse Márcia. - Eu mesma tenho uma boa coleção. Tive quatro filhos e só dois sobreviveram. Martinus e Tulia. Tulia está casada. Fez uma um bom casamento para... — Ela não chegou a terminar a frase, para ser a filha de uma liberta.
Dryas assentiu, esperando que Márcia não lhe fizesse mais perguntas. Assim aconteceu.
Márcia tirou um par de munhequeiras de couro.
—Gordus teve que procurar muito para encontrá-las pequenas.
—Sempre as considerei uma afetação. - Disse Dryas enquanto as examinava.
—Gordus também, esses homens que têm punhos do tamanho de maças, mas suas mãos são muito finas. As munhequeiras são uma ajuda para os homens pequenos e ligeiros. Reforçam a mão em seu ponto mais estreito e frágil.
Dryas ajustou as munhequeiras, descobrindo que lhe davam um pouco de apoio adicional. Os cordões passavam por entre os dedos, e tinham um acolchoado de pele branda na palma.
—Sim. – Ela disse, decidindo que levaria a espada na mão em vez de carregá-la com o cinto e a bainha. - Só seriam um estorvo.
—Bom, já estamos prontas. – Disse Márcia.
O traje cortado não lhe dava nenhum calor, então Dryas se envolveu em seu palla.
Márcia entregou uma taça de líquido quente.
—Fio misturou algumas de suas ervas. É bom. Gordus se alegra em tê-lo. Todos os homens dizem que, a menos que esteja morto quando lhe tiram da arena, Fio juntará novamente seus pedaços e te fará rir com suas piadas enquanto isso.
Elas chegaram a janela, contemplando a chegada da gente bonita de Roma. Márcia ria quando alguma mulher excessivamente arrumada saía de uma liteira.
—Deveria ter um pouco mais de idéia. Já cumpre os cinqüenta. —Ela conhecia a maior parte delas. - Não que elas me conheçam, mas algumas aparecem cada vez que César mostra a cabeça. Servila. – Ela disse, assinalando a uma mulher mais velha muito morena e vestida de modo conservador. - É a mulher mais ambiciosa de Roma. É difícil saber o que mais anseia. Se ao Velho Calvo ou seu dinheiro. Nas últimas proscrições, oito ou nove dos maiores imóveis dos condenados foram parar com ela. Não só é a mulher mais ambiciosa de Roma, mas também uma das mais ricas.
— Odeio a idéia de desfilar diante de gente assim, - disse Dryas, abrindo a palla e olhando seu traje, - meio nua.
—Não o fará. – Disse Márcia. - Há um túnel até a entrada da arena. Não é necessário que se aproxime deles. Provavelmente é a mais atraente que há aqui. Todos esses homens salivarão quando lhe virem. Olhe para essas mulheres... Brancas como a manteiga, com os músculos caídos, os seios caídos, pós brancos não só em seus rostos, mas também em seus seios e seus traseiros, ruge nas bochechas, nos seios e onde se abaixam para urinar, Kohl em suas pálpebras e sob as sobrancelhas, suporte para que seus caídos seios se levantem. Bandagens que as apertem mais que a um cavalo, só para parecerem que seguem tendo figura. Passam o dia jogadas em seus divãs, comendo pasteizinhos, doces e bolachas. Abortam quando ficam prenhes e não fazem mais trabalho que gritar com suas escravas e se queixar quando têm que andar embora só seja até a latrina. Não é de se estranhar que Lucius tenha ficado louco por ti... Você é uma mulher com cérebro e não parece uma vaca gorda quando está nua e não tem medo de dizer a um aristocrata bolinador onde pode colocar a cabeça. Pelo menos, não me surpreende.
Alguém bateu na porta.
—É a hora? — Perguntou Márcia.
—Sim. – Respondeu Gordus.
Pouco depois, Márcia estava esperando em uma das entradas da arena, atrás de uma grade de ferro.
Gordus lhe entregou um escudo.
—Não posso te dar um que o tigre não seja capaz de destruir. Este agüentará um zarpazo.
—Não, não poderia carregar um muito forte para resistir às garras de um animal desse tamanho. O peso seria excessivo para mim.
Na arena, estava terminando o segundo combate de aquecimento. O aprendiz, um menino loiro muito bonito, tinha uma feia ferida no couro cabeludo. O homem mais velho se afastou, fazendo tudo que Gordus havia lhe pago.
Um dos ajudantes ddeo Gordus, que atuava como árbitro, separou os dois homens.
—Não está mal. - Disse Dryas. - As feridas no couro cabeludo impressionam o bastante.
Gordus assentiu.
—É por que sangram muito. Mas não é ruim. Este menino é germano. No geral eu não gosto dos loiros. Eles têm maus olhos e sangram como carne picada por qualquer corte. Mas esse menino é rápido. Pode ser que viva bastante se não tentar montar todas as adolescentes de Roma.
—É popular? — Perguntou Dryas.
—Tenho que afugentar umas quantas mocinhas daqui cada vez que ele vai praticar. Não acreditaria nas coisas que tentam lhe dar de presente. Roupa, jóias, perfume... — Gordus fez uma pausa.
—Roupa interior usada. - Completou Dryas.
Quase contra sua vontade, Gordus se pôs a rir.
A arena já estava limpa e o sol estava baixando. As nuvens andavam pelo céu, ocultando ou revelando o sol. A arena e os degraus de pedra calcária podiam parecer de um monótono cinza azulado, com manchas brancas onde se agrupavam as togas e túnicas do público e de repente a arena e a pedra resplandeciam sob uma luz dourada.
—Como quer seu funeral? — Perguntou Gordus. - Assim é como desejamos sorte uns aos outros.
Dryas assentiu.
—Tem sentido.
O tigre entrou na arena, bocejando preguiçosamente e mostrando uma impressionante coleção de facas de marfim de aspecto mortífero. A multidão respirou, fascinada. Justo então o sol voltou a brilhar.
—Que formoso! - Disse Dryas. E o animal era. As manchas negras eram como um spot de veludo sobre a pelagem laranja. Sob a pele, os grandes músculos se alongavam e se contraíam com uma elegância que parecia impossível em uma criatura de tal tamanho. Então o tigre voltou à cabeça e os olhos amarelos do grande assassino pareceram olhar com indiferença os de Dryas, como se disesse, te espero.
Dryas assentiu.
—Vamos lá. Abra a grade.
Ela saiu para fora. O escudo que ela levava fazia jogo com sua tanga de seda vermelha. Também era vermelho, com reforços de bronze e uma borda inferior e superior do metal amarelo.
O sol voltou a aparecer, brilhando sobre a coroa de cobre, a malha e as altas sandálias douradas.
Ela moveu o escudo para um lado. Mais vale que lhes deixe dar uma boa olhada. É o menos que posso fazer por meus amigos.
O tigre se voltou com rapidez e avançou três passos para ela. Logo começou a correr em uma velocidade quase incrível e deu um salto.
No último momento, Dryas ficou coberta pela sombra do animal. Voltou sobre o pé direito e atacou, fazendo um corte no tigre na tenra almofadinha de sua pata dianteira esquerda.
Mas a garra direita lhe arrancou o escudo do braço. Todo o braço esquerdo ficou intumescido, embora ela conseguisse golpear o tigre na cara, com o fio de sua arma.
Ela deveria morrer então e estava segura de que era o que ia acontecer, mas o animal interrompeu seu ataque.
Dryas, se recordando dos gatos que tinha visto caçar ratos, afastou-se muito devagar. Isso é o que sou. Um camundongo, ela pensou. Toda sua consciência estava fixa em seu adversário.
O tigre sacudiu a pata ferida várias vezes, salpicando a arena de sangue. Então começou a espreita.
Dryas conseguiu olhar para seu braço intumescido. Tinha um corte no antebraço que sangrava, mas seus dedos só estavam vermelhos onde o escudo havia sido arrancado de sua mão. Dobrou os brandamente e sentiu que a vida voltava para eles. Seguiu afastando-se, seguida pelo tigre. Sim, era um camundongo e... Em um instante, sim, pensou. Aí vem ele.
O tigre era um borrão de movimento. Dryas saltou para ele, indo ao seu encontro em uma decisão de guerreiro. Sujeitava a espada com ambas às mãos. Chocou-se com o animal e sentiu que a espada entrava na carne e arranhava o osso. Cheirava, mas não via nada e se perguntou se aquelas mandíbulas estariam se fechando sobre sua cabeça.
Então recebeu um golpe simplesmente incrível nas costelas. Suas mãos soltaram a espada, que sequer se deu conta de que ainda segurava e saiu despedida pelo ar.
Automaticamente, como haviam lhe ensinado seus professores tantos anos atrás, sobrou-se sobre si mesmo até se converter em uma bola e cair rolando. Quando se deteve, viu que o tigre se aproximava como um falcão ao ataque. Seu impulso foi algo reflexo e ela nunca soube de onde havia saído. Jogou um punhado de areia nos olhos do tigre.
Sentiu algo como pedaços de gelo movendo-se sobre sua coxa nua e um instante depois estava no centro da arena, observando o animal que tentava limpar sua visão.
Em algum lugar longínquo, ela podia ouvir a multidão, mas gritavam em algum outro mundo perdido na névoa. Só o silêncio a envolvia.
Havia ferido fera. Sua espada estava enterrada até o punho no peito do tigre. Cada vez que ele respirava, o ar saía pelo ferimento. Ela não via bem com um dos olhos por causa da areia e o sangue que tinha no rosto, mas não era mais que um ligeiro inconveniente. Quando o enorme animal se movia, o fazia trôpegamente.
Dryas estava com longos e profundos arranhões na coxa esquerda, e o sangue lhe corria por toda a perna. Também havia recebido uma dentada no ombro direito, mas a malha havia feito seu trabalho. O braço e o ombro lhe doíam ao movê-los, mas ela estava segura de que os dentes do tigre só havia apertado, sem chegar a entrar. Tinha mais feridas no braço esquerdo, mas eram meros arranhões.
Mate-o, ela pensou. Mate-o. Ela uma ladainha em seu cérebro. Mate-o. Como? Eles davam voltas, rodeando-se mutuamente. Mate-o.
O escudo estava caído no chão, onde o tigre o tinha arrancado de seu braço. Ainda possuía suas facas. Outra decisão de caçadora. Não estava tão ferida gravemente como o tigre. Podia sobreviver.
Os sulcos abertos pelas garras em sua coxa eram o pior ferimento e já estavam secando. Podia sentir como se esticavam ao coagular o sangue, mas os olhos do felino estavam cada vez mais clros. O ferido lacrimejava, embora seguisse todos seus movimentos.
Havia mais luz. Ela compreendeu vagamente que estavam colocando tochas a pequenos intervalos em torno da arena. Ela e o tigre começaram a avançar, movendo-se de uma poça de vacilante luz amarela a seguinte. Cada vez mais e mais perto.
O escudo estava onde havia cansado, perto da porta pela qual ela havia entrado Dryas. Ela se lembrou da rã do lago de Mir. Sou o camundongo, pensou.
O tigre se aproximou mais. Agora ou nunca. Em um momento estaria muito perto. Ela correu para pegar o escudo. Seus dedos se fecharam sobre a margem. Dryas o arrojou para que girasse captando a luz das tochas.
O tigre devia escolher entre a mulher nas sombras ou o escudo resplandecendo a luz. Lançou-se para o escudo, golpeando-o no ar.
Dryas correu para o tigre. Não. Mais pareceu voar que correr, saltando sobre o lombo do animal.
O tigre se retorceu como um cavalo enlouquecido, tentando morder as musculosas pernas que sujeitavam a mulher ao seu lombo.
Dryas pegou a pele solta do pescoço, estirando-a com a mão esquerda, rígida como uma garra. Com a direita, tirou a mais comprida de suas facas. O pescoço laranja com suas raias cor meia-noite estava retorcido para seu braço esquerdo.
Ela o esfaqueou tão forte e profundo como pôde e ouviu um rugido. Não era a voz do tigre, mas o ar saindo pela cartilagem destroçada.
Voltou a se encontrar voando pelos ares, tentando converter seu corpo novamente em uma bola. Falhou e caiu sobre seu pescoço, ficando paralisada por um instante. Não tinha conseguido ser mais de um instante, porque ficou em pé tão rapidamente que alguns dos espectadores não se deram conta que havia caído.
O tigre estava no chão. Respirou rugindo duas ou três vezes mais e tentou se levantar, para morrer definitivamente.
Dryas se sentia enjoada. Levantou os olhos e viu que as estrelas começavam a aparecer no céu.
Caminhou até o tigre e baixou o olhar para ele. Logo elevou os braços e olhou para os espectadores em seus assentos.
O público enlouqueceu.
Os aplausos da multidão. Pensou ela.
Então voltou a olhar para o tigre, abaixou-se e pegou o punhado de pó ritual dado aos caídos que não podiam ser enterrados adequadamente. Ficou em pé e deixou que a areia caísse de seus dedos, sobre o ombro laranja com raias negras.
Os gritos da multidão emudeceram de repente quando Dryas foi para a porta. Nem todos tinham entendido o gesto que ela havia feito, mas compreenderam que ela acabava de lhes tratar com supremo desprezo.
Dentro, Lucius e Maeniel aguardavam junto a Gordus. Maeniel levava uma lança.
Ela entrou acompanhada pelo zumbido da multidão.
Gordus estava rindo.
—As primeiras famílias de Roma poderiam se amotinar por isso e nos matar a todos.
Lucius a pegou, envolvendo-a com o manto.
Maeniel assinalou sua lança.
—Estávamos aqui. Não a necessitou.
—Não. - Repôs Dryas.
- Eu disse que ela era boa. – Disse Maeniel.
Chegaram gritos e exclamações da arena.
—A festa vai começar. – Disse Gordus. - As bailarinas estão aqui, e as esposas e as mães voltam para casa. Alguns seguirão a festa durante toda a noite nas casas dos outros. O Senado não volta a se reunir até depois de amanhã.
Maeniel e Lucius se olharam na penumbra.
—Vou matá-lo. Disse Lucius.
—Por isso?
—Embora só fosse por isso.
—Não quero estar presente nesta conversa. - Interveio Gordus.
Dryas não disse nada, mas se apoiou sobre o corpo de Lucius de uma forma que achou extraordinariamente grata, embora nunca admitisse, sob nenhum conceito.
Maeniel caminhou pelo escuro passadiço até encontrar uma casa meio vazia em que havia armas, alguns acessórios de cenografia e diversos trastes quebrados e descartados... Coisas que se acumulam em todas as moradas humanas. Objetos que não funcionam. Inúteis, mas muito bons para atirá-los sem mais, as típicas coisas do, talvez possa arrumá-lo e algum dia o necessite.
A estadia estava totalmente às escuras, mas não para o lobo. Cheirava a umidade. Maeniel pendurou sua túnica e sua toga e se transformou.
Estava pensando em Calpurnia. Seda branca, era como pensava nela. Graça de mulher. A chuva que havia ameaçando todo o dia chegou por fim. A multidão se apressou para suas liteiras, dissolvendo-se em um bando de indivíduos à fuga.
O lobo estava os observando na sombra de uma das entradas da arena. Melhor, pensou. A tribo canina aceitava o tabu de matar dentro da alcatéia e ele considerava parte da alcatéia, os humanos. Raramente tinha visto tanta inépcia em um grupo de criaturas. Se ouvesse um grupo organizado de lobos perto, seria uma tentação. Oh, seria bom.
A chuva começou a cair com menos força. Os escravos que carregavam as liteiras podiam se molhar, mas ninguém se preocupava com eles e a área em torno das portas foi limpando.
O lobo se afastou trotando da arena. Um soldado situado junto à porta que protegia os espectadores atrasados e algo bêbados abriu a boca ao lhe ver passar ao seu lado nas sombras. Os grandes olhos amarelos cintilaram por um momento e o lobo desapareceu.
Atravessou o Foro. Ainda caía um pouco de chuva e inclusive as lojas que normalmente permaneciam abertas até tarde estavam fechadas. As poucas luzes que estavam acesas se refletiam nos paralelepípedos molhados.
Quando chegou a vila de César, Se sentiu confuso. Teve o mesmo problema que quando havia tentado resgatar Imona. Estava fechada.
Um soldado uniformizado, com elmno, pilum e espada, montava guarda ante a porta.
O lobo se deteve ante ele, sentando.
—Saia daqui. - Disse o legionário, agitando a haste de sua lança para ele.
O lobo elevou o focinho para o céu e começou a uivar, despertando todos os cães da vizinhança em milhas à sua volta, que por sua vez começaram ladrar, uivar e gemer, criando um alarido de outro mundo.
A sentinela pegou um punhado de terra e atirou nele.
O lobo o esquivou com facilidade, dedicando à sentinela um enorme sorriso com a língua e os dentes a descoberto.
O soldado murmurou uma obscenidade.
O lobo uivou novamente e aquele lamento foi mais alto e mais longo, exigindo todos seus recursos vocais. Todos os cães das proximidades pareceram enlouquecer
O capitão a guarda abriu a porta.
—O que acontece, em nome de... — Ele não chegou mais longe. O lobo passou ao seu lado e desapareceu na escuridão do átrio.
—Foi esse cão! - Disse o sentinela. - Ele entrou na casa.
O capitão o olhou como se ele estivesse com um terceiro braço em um lugar incrível, como no centro da testa.
—Farei com que a ronda o busque. Pode ser que pertença a alguém.
—Não sei. Nunca o tinha visto antes.
—Bem. Se não for de alguém da casa, por que iria querer entrar?
—Não sei. — Repetiu o sentinela. - Talvez devêssemos perguntar...
—Perguntar a quem? A dama Calpurnia está dormindo. César está nos braços de deus sabe quem, em sua vila. Vá lá e pergunte a ele se é seu cão? Quero ver o que vai te acontecer quando o fizer. Agora, cale-se e não deixe mais nervosos esses malditos cães!
A porta se fechou de repente, provocando outra onda de latidos.
Não havia lua naquela noite e a casa era um labirinto. Maeniel se movia rapidamente de uma sombra a outra. Não fazia idéia de onde estava ela e escondeu-se deixando que seus sentidos o informassem.
Soldado em um corredor com pilares, ele percebeu. Sim, possuía tosos os sinais: macho, metal, suor, jovem. Sim, um soldado.
Mais machos, mas não soldados, em uma casa, um escritório próximo. Roupas mais limpas, comida, bebida. Podia lhes ouvir gracejando e conversando. Os secretários de César? Provavelmente.
Um casal de amantes. Dois dos escravos da casa? Em um triclínio. O aroma do sexo o excitou.
Evitando ao sentinela, ele se entranhou entre as sombras de um alpendre que dava acesso a outro pátio. Rosas, sim. Aquelas rosas. As brancas junto ao muro. As portas de seu jardim privado. Sua fragrância saturava o ar úmido e quieto, quase como se o chamasse. Sim.
Calpurnia despertou. Tivera enxaqueca por causa do combate da mulher contra o tigre e dessa vez havia visto ele.
Era consciente de que a ordalía que tinha sido sua vida logo chegaria ao seufim... A ordalía que havia começado quando César a viu com dezoito anos e pediu sua mão ao seu pai, continuando até o presente.
Havia passado mais de vinte anos até se dar conta de quanto odiava ela, e mesmo assim, não teria se importado em haver conseguido dar a ela um filho.
Levara outros cinco anos para compreender que Calpurnia havia acabado com cada uma de suas gestações e que em duas ocasiões estivera quase a ponto de morrer em tentativas bastante bem-sucedidos de impedir outras.
Agora Calpurnia estava além de tudo aquilo. Cleopatra havia dado um filho a César e aquela noite ele estava em seus braços com a esperança de engendrar outro.
A casa estava às escuras e suas donzelas eram silhuetas imóveis sobre os divãs que rodeavam sua cama. Ela fechou os olhos e cheirou as rosas. Ao abri-los novamente, notou os olhos que brilhavam, captando a luz e refletindo-a. Um animal. Um gato? Não. Era muito grande. Um cão? Mas não havia cães na casa.
Ela raramente dormia em seu cubiculum, o dormitório a um lado do alpendre. Preferia aquela casa. Era redonda e seu marido a chamava às vezes de Templo de Vista, não de tudo em brincadeira. Só alguns pilares de mármore verde e branco a separavam de seu jardim.
O piso era decorado com um mosaico de um cavalo alado. Finas cortinas eram toda a separação entre a estadia e o jardim e ondulavam sem cessar movidas pela brisa noturna. Não, ela já tinha tido um gato e um cão, e nunca teria outros. O cão incomodava César e um dia descobriu que ele havia sido enterrado vivo. O pequeno animal deve ter lutado muito antes de morrer.
Nunca imaginara o quanto um gato o enfurecia, um gatinho na verdade, até que o encontrou vagando entre miados pelo jardim, com alfinetes lhe saindo dos olhos. Foi quando decidiu que nunca, nunca, nunca lhe daria um filho e não lhe dera. Mas nos últimos dias ele havia começado a lhe explicar coisas novamente e o cansaço pesou sobre seu espírito como um cenotáfio.
Os olhos se moveram para ela. Ela não estava assustada. César a aterrorizara tanto e durante tanto tempo, que o simples medo havia deixado de ter significado para ela.
O animal desapareceu e um homem ao qual ela reconheceu, se ergueu diante dela.
—É você. - Sussurrou Calpurnia.
Ele estendeu uma mão para que ela se levantasse.
—Que conveniente resulta poder ser outra coisa e logo converter em humano. — Sua voz soava tão baixa que ele mal podia ouvi-la. - Que tipo de animal é?
—Um lobo. - Disse ele e eles saíram da casa de mãos dadas.
—Acredito que te ajuda a sair de muitas situações inconvenientes.
—Sim. – Respondeu Maeniel, vestindo uma túnica que havia encontrado. - Sim, — ele repetiu, - mas também as provoca quando me transformo no momento errado.
—Não posso dizer que me surpreenda. De fato, ontem à noite estava segura de que havia algo estranho em ti: entrou com muita facilidade em meu jardim.
As rosas estavam diante deles. Entraram de mãos dadas.
Era um pouco depois do amanhecer. A luz rosa, fúcsia, violeta e com toques de ametista possuíam uma beleza indescritível. Maeniel só podia ver Calpurnia e p mundo no qual haviam entrado.
—É um lugar distinto. – Ele disse.
—Eu sei. —Calpurnia estava muito perto dele. A camisola, como a da noite anterior era de seda, mas desta vez tão fina que era quase transparente. - Estive aqui antes. Tenho que me encontrar com alguém.
—Agora?
—Não, não até que o sol esteja alto no céu. Faça-me amor.
—Sim. - Disse ele já bebendo de seus lábios. Eram frescos como a água de um manancial, suaves e fragrantes como uma pétala de rosa. Estavam junto a uma muralha de pedra e alguns poucos passos mais à frente, três degraus de mármore davam acesso a um alpendre de pedra coberto de folhas prateadas e flores azuis. Não havia casa além do alpendre, só um arvoredo de pinheiros novos.
Eram árvores de curta idade, com troncos que não mediam umas polegadas de diâmetro. Sob a fraca luz da manhã, os galhos cobertos de agulhas eram de cor verde e negra. Havia sombra sob os galhos mais baixos. Estavam juntos sobre um grosso tapete de agulhas marrons. O rico aroma da resina de pinheiro flutuava ao seu redor.
—Vive alguém neste jardim? — Perguntou Maeniel.
—Se vive, nunca o vi.
Ele havia tirado a túnica e lhe passou uma mão lentamente pelo ombro, descendo pelo peito e o estômago criando uma deliciosa sensação de antecipação. Quando chegou ao seu objetivo, os dois sorriram e se perderam em beijos, carícias e a busca mútua de seus corpos atrás do prazer, enquanto a manhã recreava o primeiro dia do mundo ao seu redor.
Depois dormiram um pouco e quando despertaram o sol enviava largos raios de luz por entre os pinheiros. Os galhos desenhavam motivos dourados sobre seus corpos e o solo do bosque.
Eles olharam para os arvoredos e os pardos cobertos de flores. Ante eles, o mundo caía para um horizonte brumoso e ao longe, o ouvido do lobo notou o som do mar. Muito verão, agitado e espumante, com longas e cálidas ondas que chegavam à praia com tanta suavidade como a pegada de uma criança.
Atravessaram um prado. As flores eram como ouro candente sobre a escura vegetação estival, e azuis sob a crescente sombra verde dos grandes salgueiros. Os galhos descansavam sobre uma gigantesca urna rota enterrada no chão. Além da urna, parreiras com flores vermelhas beiravam um lago azul a sombra das exuberantes árvores.
Alguém estava bebendo no lago. Algo que o lobo não podia ver, mas que levantou a cabeça ao ver sua companheira, que correu com um grito de felicidade.
Uniram-se em um abraço, sorrindo e dançando sobre a vegetação e as flores.
O lobo distinguiu um focinho quase negro e logo um olho brilhante e escuro rodeado de longos cílios. Um ombro pintalgado de cinza escuro brilhou com um resplendor metálico. Então, por um momento, ele notar um chifre em sua testa.
Depois seafastou, em uma mistura de substâncias e sombras e suas asas se desdobraram, ocultando o sol por um instante. As asas de um corcel tão grande deviam ser tão longas como uma pista de carreiras. Não as usava, mas as chamava em qualquer lugar que pertencesse, como fazia com o chifre e os cascos que podiam dançar no ar.
Tudo o que via era cinza pintalgado, uma pelagem reluzente como a prata, com cauda e crina tão suaves como o cabelo de uma mulher e tão abundantes como uma meada de lã.
Ajoelhou-se por um momento, convidando Calpurnia a montá-lo. Ela se negou, sorrindo, mas o beijou no focinho e abraçou o grosso pescoço.
Então as asas se abriram novamente com um estalo, como o de um mastro rompendo na tormenta e o cavalo desapareceu em um torvelinho de vento.
Calpurnia ficou em pé, fazendo um gesto de despedida com a mão.
—Seu amigo?— Perguntou ele.
—Sim. Está se impacientando. Devo partir a próxima vez que pressentir as visões.
Maeniel se aproximou dela e eles se sentaram sobre um banco quebrado junto ao lago. A superfície da água estava coberta de lótus e as flores de cor rosa violáceo estavam se cabrindo a luz do sol. A um lado do lago havia uma escada que levava para baixo. Os baixos degraus, semicobiertos pela vegetação percorriam várias terraços, cada um deles cheio de grama e distintos jardins de rosas, lírios árvores em flor e mais estanques decorados com estátuas, algumas quebradas, outras intactas, algumas brancas e outras obscurecidas pelos liquens e o musgo. Um tumulto de flores percorria a margem. Malva louca, cravo, margarida, dedaleira, beladona, papoulas brancas, violetas e vermelhas; e nas sombras havia belenho e napelo. Cada jardim era uma entidade separada e cada um convidava a exploração e a contemplação.
—Seu amiga derrotou o tigre. - Disse ela.
—Sim, mas não sei o que fazer agora.
—Mate-o.
—Está segura?
—Sim.
—Não acredito que quem o substitua seja melhor. – Disse Maeniel.
—Sim, será-o. Sobretudo do ponto de vista de sua amiga. Pelo que a mim concerne, carece de importância e pelo que concerne a Roma, ele já fez todo o dano possível. Não pode criar e tudo o que pode fazer agora é destruir. Houve um tempo no qual eu não teria dito isto, mas agora devo dizer. Ele aperfeiçoou suas habilidades. Outros dez anos e terá arruinado tudo. Em dez anos, nada poderá se elevar das ruínas que ele deixar ao seu passo. Não há ninguém como ele. Ninguém tão forte.
—Dizem que tem boas qualidades.
—Quais? — Perguntou ela.
—Misericórdia.
Calpurnia se pôs a rir.
— Ele não sabe nem o que significa essa palavra. O que parece misericórdia é sua habilidade para a emboscada. Ele perdoa a todos e espera para ver quem lhe pode ser útil, quem pode ser esmagado para se dobrar e escravizar seu espírito e quem deve ser assassinado porque o desafiará até o final. Desses, ele escolherá alguns poucos e lhes deixará viver por um tempo, para que possam lhe entreter com seu sofrimento. Sabe sobre os piratas? Capturaram-no e pediram um resgate por ele. Foi pago, mas César prometeu que voltaria e os crucificaria. E assim o fez.
—Haviam me contado que ele os mandou estrangular antes que fossem postos na cruz. – Disse Maeniel.
—Sim, depois de um momento, quando se aborreceu de seus sofrimentos e de sua própria crueldade. Sabe acovardar os outros através de seus entes queridos. De fato, ele me privou de tudo o que eu amava há muito tempo. Pense em seus amigos, em todos esses reféns na Galia. Dobram o joelho porque temem por seus seres queridos. Agora sou livre. Converti-me em uma moléstia para ele. Quando voltar da Partia e da Ilha Branca, ele vai querer se casar com a egípcia... E do que lhe servirá uma esposa de meia idade? Viram-lhe bisbilhotando um dos remédios de Fio, a poção que tomo para minhas enxaquecas... Um pouco mais de ópio e eu não dormiria por algumas horas, mas para sempre.
Maeniel lhe acariciou a face, lhe dando um beijo na testa. Quando estava para lhe falar, ela levou um dedo aos seus lábios.
—Não. Ele escolheu e eu também, pois não há damnatio aqui, só escolha. O seu é um plano de pedra onde os mortos se levantam ao amanhecer, com ferimentos abertos em sua pálida carne e os olhos vazios de tudo salvo o ódio. Lutam cada dia pela vitória e o poder, mas a única vitória que conseguem é a das poucas horas antes do crepúsculo, quando os mortos dormem na não existência. Descansam envoltos no silêncio da morte, e no mesmo silêncio se levantam a noite para beber e festejar, esperando o amanhecer, saindo novamente para reviver a agonia de seus ferimentos de morte. Esperam-no e não pode escapar deles porque não entende mais nada.
—E você? — Perguntou ele.
—Shh... - Ela lhe fez se calar novamente. - Nunca havia sentido tal amor. Não posso caminhar na escuridão porque me ilumina de dentro e eu posso, em meu corcel nascido do vento e da chuva, cavalgar para todos os mundos mais além. Agora, compartilhemos esta beleza definitiva uma vez mais antes que eu seja chamada e deva ir. Amaremo-nos no ensangüentado pó do tempo antes que eu deva me voltar e entrar nas portas da eternidade.
Capítulo 26
Havia banhos no ludus. Espartanos, é obvio, mas equipados com os últimos avanços. O hipocausto havia sido aceso. A casa estava muito quente e Márcia esperava Dryas. O banho quente era uma simples banheira com um tubo que saía da parede. Abriu uma torneira e a água quente começou a encher a banheira.
—Os homens. Vá. – Ela disse.
—Não. - Replicou Lucius. - Tenho direito. — Ele sentou Dryas sobre um banco junto à parede e começou a lhe tirar as sandálias. Havia bastante público: Gordus, Aquila, Fio e Martinus.
—Diz você que tem direito? — Perguntou Gordus.
—Sim. - Disse Dryas, ainda aturdida pela enormidade do que tinha feito.
Os outros saíram, com exceção de Márcia, que desfez seu penteado e logo a ajudou a tirar a roupa.
Dryas se inundou agradecida, desfrutando na água quente. Enquanto relaxava, observou Lucius ao lado da banheira conversando com o Márcia.
Ela fechou os olhos e pensou durante um longo momento em sua casa, com suas brilhantes colgaduras e os cães amontoados junto ao fogo. As cortinas do dormitório separavam a casa do resto da casa. Já tinha visto como viviam os romanos.
O que pensaria ele em uma noite selvagem, quando as ondas rompessem sobre as rochas a umas poucas milhas de distância, quando o vento movesse cinzas cortinas de chuva e uma gélida névoa flutuasse sobre o bosque e a casa? Fechou os olhos e lhe pareceu que podia cheirar no ar salgado, um tênue perfume de urze e erva-doce silvestre misturada com o aroma da fumaça da lenha e da carne assada. Ali, naquele úmido e caloroso banho a meio mundo de distância, seu coração ansiava pelo frio, mas limpo vento e o distante som do mar.
Na assembléia, ao comunicar sua decisão ao seu povo e as mulheres que eram as companheiras da rainha, ela surpreendeu ante sua dor. Surpresa de que a amassem. Pelo menos algumas. Sachna, sua melhor amiga chegou cavalgando como os cavaleiros nômades, sem bridas e sem rédeas. Chegava a entender ela e seus arreios. Suplicou para que Dryas retornasse, mas quando ela se negou e tentou se despedir, a pequena ruiva lhe deu as costas sem querer lhe ouvir e se afastou a galope.
Mas voltou e Dryas pôde ouvir em sua voz, o sentimento da dor: - Não acredito que não vá voltar. Sei que o fará. Conheço-a. Você voltará e eu cuidarei de seus cães e seus cavalos até que o faça. O mesmo vento que agora te afasta a trará de volta, eu sei. Nunca me equivoquei contigo e agora tampouco o faço.
Então o capitão do navio deu uma ordem e os remadores levaram o barco para mar aberto.
Haviam se passado... Sim, mais de dois anos, quase três desde que ouvira pela última vez a voz de sua amiga. E agora aquele romano, aquele homem estranho lhe oferecia matrimônio e ela não podia rechaçá-lo.
—Não, não posso rechaçá-lo, mas posso ser uma esposa para ele? Preciso saber. – Ela baixou o olhar para o seucorpo na banheira. Suas feridas coloriam a água com um tom rosa. O pior eram os zarpazos da coxa, mas já haviam deixado de sangrar e a água estava limpando-os. Os do braço eram simples arranhões. Tinha o ombro direito machucado e arroxeado.
O tigre lhe tinha dado uma dentada. A malha preparada por Gordus fizera bem seu trabalho. Se tivesse usado a gaze de prata que queria Fulvia, estaria morta ou ferida gravemente. Tal como estava, se recuperaria em um dia ou dois.
Fechou os olhos e descansou, ouvindo o jorro da água que saía do conduto e deixando que ela aliviasse seu ombro ferido.
Deve ter adormecido por uns instantes ou talvez um pouco mais, pois despertou sobressaltada e viu que Márcia havia saído. Lucius estava apoiado sobre um joelho junto à escada. Sua expressão e sua postura lhe recordaram que ele havia fingido ser um criado só para estar perto dela. Sorriu-lhe, quase com ternura.
—Não sorria! - Disse ele. - Poderia me tentar a que me aproveitasse de ti. Seu sorriso é encantador...
—Se aproveite de mim - Disse ela, incitante.
—Não. —Seu rosto se escureceu. - Levante-se e me deixe olhar seus ferimentos.
Havia uma cadeira perto do banho, com um grosso lençol de linho sobre ela. Lucius ajudou Dryas a sair da banheira e suavemente e sentou-a na cadeira. Logo a envolveu com o tecido, deixando sua perna a descoberto. Secou-a com muito cuidado, olhando os cortes da coxa. As bordas do ferimentos estavam lívidos e com mau aspecto.
Fio havia lhe dado ataduras limpas e pó de vulneraria, que cheiravam a enxofre. Os homens do ludus confiavam em sua eficácia e ele também. O calor e as supurações de sua ferida das costas haviam começado a retroceder desde o primeiro momento em que Fio o usou. Espalhou-os generosamente sobre os zarpazos e logo os enfaixou com mão perita, pois havia aprendido com o médico grego.
Começou a vestir a Dryas, começando pelo objeto mais íntimo: uma tanga nova de seda branca. Ele manuseava seu seu corpo como teria feito outra mulher, sem paixão.
Lucius pode notar pela expressão de Dryas, que ela estava surpresa, pois havia esperado a força habitual, talvez com um tácito gesto de conciliação, uma tentativa de usá-la sem lhe causar muitas moléstias ou muita desconforto. Algo tipicamente masculino, talvez suprimindo os aspectos mais feios e desagradáveis, mas o mesmo que já tinha encontrado antes.
Lucius demonstrou ser tão perito com o strophium como havia sido com o tanga. Logo lhe pôs uma túnica de seda branca e acrescentou uma estola de seda vermelha. Calçou-lhe sandálias nos pés. Eram de suave camurça, com um cordão entre os dedos e que se prendiam no tornozelo.
Márcia retornou nesse preciso momento, trazendo um palla de lã branca e as cintas que prendiam o cabelo das mulheres casadas. Terminou de vestir Dryas, arrumou seu cabelo e lhe pôs as cintas e um cinturão chamado cingulum, preso com um nó ritual.
—Só ele pode lhe desfazê-lo. - Ela explicou. - E só quando você lhe der permissão.
—Não sou virgem. - Disse ela. - Tive um filho.
—Sim, mas isto não tem nada a ver com a virgindade. Significa algo muito mais importante.
—O que?
—Que ele deve te convencer para que o aceite como marido, para deixar lado seus temores e que os dois possam ser um só.
—Não sei se eu posso fazer isso. - Disse Dryas.
—Pode sim. É o que eu temia. - Interveio Lucius. - Mas aconteça o que acontecer esta noite, não aceitarei menos e tentarei te devolver ao seu povo. Podemos nos separar como amigos, embora não possamos ser amantes. Não quero o espectro da violência entre nós, sequer o da violência implícita.
—Eu sei. Disse-lhe Dryas. Envolveu-se no suave manto de lã e acompanhou Márcia e Lucius até a porta.
Aquila estava esperando e beijou Dryas na face.
—Adeus, pequena lutadora. Cuide bem dela – Ele disse a Lucius. - Vou a Campania. — Ele tocou a bochecha de Dryas com seus dedos calejados.
Dryas notou que seus olhos enchiam de lágrimas e pegou a mão do soldado entre as suas.
—Obrigado.
Ele assentiu, repetindo as primeiras palavras que havia dirigido a uma pessoa: — Boa sorte, Dryas. Cuide-a. – Ele voltou a pedir para Lucius.
—Tentarei. Não sempre é fácil.
Então Aquila se voltou, atravessou a porta, montou em seu cavalo e se afastou.
Lucius ajudou Dryas a subir em um liteira.
—É tua? — Perguntou-lhe ela.
—Alugada. – Respondeu ele e partiram para a vila Basilia.
Poucos momentos depois, viram um par de olhos refletindo a luz das tochas. Dryas mandou parar os portadores. Os olhos se aproximaram um pouco, mas ficaram à mesma distância da liteira ao retroceder os portadores.
—Importaria-se, — perguntou Dryas a Lucius, - de se assegurar de ele chegue são e salvo a casa?
Os olhos desvaneceram.
—Acredita que fará o que lhe pedir? — Perguntou Lucius.
Dryas assentiu.
—Acredito que sim. É muito amável e estou preocupada com Aquila.
Lucius deu ordem de seguir adiante
—Feche as cortinas. – Ele disse.
Dryas obedeceu. Sim, ela é uma mulher muito inteligente para discutir por minimidades, pensou Lucius.
Quando chegaram à vila, Lucius enviou a liteira ao pátio de serviço. Ajudou Dryas descer, guiando-a até a parte da casa onde haviam vivido seus pais. Tinha pedido a Fio que dissesse a Aristo que transladasse as coisas armazenadas para qualquer outra parte e remodelasse o lugar, mas não tinha idéia de como estavam. Viu que Octus, Fio e Alia o esperavam.
O triclínio havia sido varrido e a mesa estava posta. Havia divãs e cadeiras preparados. Os outros sairam.
—Quer se deitar? — Ele perguntou a Dryas.
Ela sorriu.
—Nunca comi assim.
—Bom, então se sente. - Disse ele.
As cadeiras eram velhas e cômodas, bem providas de almofadas. Octus entrou com uma bandeja de aperitivos e a deixou diante deles. Havia azeitonas, queijo, frutas e um pouco de vinho branco.
Dryas elevou o olhar para o escravo.
—Obrigado. Como se chama?
Octus retrocedeu. Não estava acostumado que notassem em sua presença.
—É Octus. – Disse Lucius. - É meu criado pessoal e se ocupa de minha roupa, barbeia-me... Esse tipo de coisas. Quem preparou o jantar? Não me diga que minha irmã deixou que esse temperamental cozinheiro grego dela...
—Não. - Disse octus. - Alia está na cozinha. Há uma separada nesta parte da casa. Tive que fazer com que limpassem a chaminé e titasse os velhos ninhos de andorinha, mas uma vez arrumada, ela disse que podia usá-la.
—Estupendo! Alia é uma boa cozinheira.
Octus partiu, fechando a cortina do jardim. A casa estava brilhantemente iluminada. Havia quatro abajures junto à mesa, cada um deles com seis velas. As paredes brancas decoradas com grinaldas verdes tornavam mais luminosa à estadia. As teselas do piso ressaltavam o verde, em um singelo motivo de acantos também em verde e branco.
—Não tem muitos criados? — Perguntou Dryas.
—Há muitos na casa, mas não são para mim.
Ela franziu o cenho ante o queijo e as azeitonas.
—Isto é tudo?
—Não, é o primeiro prato. Algo para nos entreter enquanto Alia cozinha.
—Oh! - Disse Dryas, começando a desfrutar das azeitonas.
—Prove este queijo com as azeitonas.
—Sim. – E disse ela pouco depois. - A combinação é muito agradável.
—Sim.
Lucius lhe encheu a taça e ela deu um gole.
—É doce.
—Coloque água. - Disse ele.
—Água no vinho?
—Sim. Muitos homens e todas as mulheres gostam.
—Entendo. É vulgar não fazê-lo.
—Sim.
Dryas assentiu e acrescentou água ao vinho.
—O que bebem em sua ilha?
—Hidromel, cerveja, às vezes vinho. As tribos ricas da costa bebem vinho. Nós não somos ricas, mas pobres, pelo menos segundo meus critérios e provavelmente também os seus.
—O que você faz ali? Gordus e Aquila falaram de ti como uma sacerdotisa, mas Orelha cortada me disse que foi uma rainha.
—Sim, sou da realeza. Faço três coisas, principalmente. Devo dar ao povo um rei, seja por matrimônio ou por nascimento. Pronuncio a lei. E celebro rituais pelos mortos. Quando me pediu que casasse contigo, pronunciei a lei, disse-te o que dizem minhas leis sobre mim.
As azeitonas e o queijo haviam desaparecido. Octus correu a cortina e levou a bandeja.
Lucius se sentia muito incômodo, mas precisava saber.
—Quantos homens houve em sua vida?
—Dois - Disse Dryas.
—Isso é tudo?
—É o bastante. Um é o pai de meu filho, o outro o lobo.
Lucius sentiu um violento ataque de ciúmes
—O pai de seu filho?
Dryas guardou silêncio por um instante.
—Não estou segura de poder lhe explicar isso. Era uma questão política.
—Política? Como ia ser...?
—Não me diga que não entende. Márcia me disse que pelo menos a metade dos matrimônios entre os romanos são políticos. Nós não somos romanos. O que nos mantém unidos é a boa fé. Ele e sua linhagem ameaçaram retir-se quando sua rainha morreu ao dar a luz. Eu me ofereci a substitui-la, como várias outras. Agora têm herdeiros e seguem sendo nossos aliados.
—O lobo... Por que não se casou com ele e voltou com os teus?
Octus entrou naquele momento, interrompendo a resposta de Dryas. Trazia três pratos cobertos em uma bandeja.
—Alia se superou. Espero que estejam famintos. – Ele disse enquanto arrumava a bandeja. - Lebre assada com molho de ervas, guisado de porco com porros e marmelo e um capão recheado com toucinho e de cogumelos. Com vinho Falerno.
O capão fiu um êxito e o porco não foi um pouco menos apreciado, mas Dryas, tão voraz como o tigre que havia matado, também encontrou lugar para um pouco da lebre. Ao final, com um suspiro, ela deu um gole no vinho de sua taça, limpou a boca com o guardanapo e respondeu a pergunta de Lucius.
—O lobo não é humano. Era uma ameaça para as pessoas onde vivia e devia ser domado.
—E você conseguiu.
—Sim, tive sorte. Ele é valente e de bom caráter. Do contrário, teria fracassado.
—Mas não o ama?
—Não. Ele é distinto. Por um tempo, qualquer mulher poderia lhe amar, mas ao final, o que houvesse entre eles se romperia e ele voltaria para lugar de onde veio. Não sei qual será seu destino, mas não está conosco e nem comigo. — Ela bebeu novamente. Suas largas pálpebras baixaram sobre os olhos, fazendo com que parecesse quase adormecida.
—Onde está seu filho? — Perguntou Lucius.
—Está morto.
—Orelha cortada me disse que qualquer mulher de sua classe tira sua vida por não ter vindo com um propósito. Além disso, falei com o lobo. – Ele terminou com bastante insegurança. - Não acredito que devamos falar do que ele disse. Confio na gente que me rodeia, mas...
—Sim. - Disse Dryas. - Eu contarei como morreu meu filho.
Octus entrou com passum, um doce de vinho de passas e figos secos conservados em folhas de louro.
Tem que ser o vinho, pensou Dryas. O vinho parecia provocar um curioso distanciamento nela... Ou talvez a dor estivesse desvanecendo. Não sabia, mas a natureza, extensão e profundidade da dor, embora ilimitados, não importavam. Podia ser a dor uma barreira não só para o amor, mas também para o dever?
Sua oferta é sincera, ela pensou. Fosse o que ele fosse... Estúpido e temerário para deixar se arrastar a uma vida e um povo que não conhecia e nunca havia visto... É sincero. E devo lhe responder com honestidade por minha parte. Fazer menos seria o pior crime possível.
—Não sei se posso te amar. – Ela disse. - Não sei se posso te entregar minha vida. — Ela fez uma pausa, que pareceu durar um longo pulsar de seu coração, vários batimentos, uma dúzia. - Mas tentarei.
—Façamos um sacrifício aos deuses domésticos. —Lucius se levantou e conduziu Dryas ao peristilo.
Foram à margem do lago. Uma ânfora muito velha, do uso que os pobres colocam em tumbas, para deixar oferendas pelos mortos, sobressaía do chão. Lucius cobriu a cabeça com as dobras de sua toga e Dryas seguiu seu exemplo. Os criados, Octus, Fio, Alia e inclusive Orelha cortada ficaram ao seu lado.
—Vim aqui para procurar uma bênção sobre meu matrimônio e para me despedir. Pedir bênções aqui é habitual, mas não se despedir. Vou fazer porque esquecemos aonde vamos. Minha família chegou aqui há gerações. Tomamos esta terra e ao fazê-lo, prometemos cuidar dela, amá-la e defendê-la. Pode ser que meus ancestrais nem sempre foram boas pessoas. Alguns, sem dúvida eram ambiciosos, outros não e todos estavam marcados pela autocracia assim como pela força. Mas eram sábios e moderavam o poder com a misericórdia e a justiça. Suas faltas eram redimidas pela coragem e a honra. Agora, isso terminou. O amor a terra se converteu em um desejo de desapropriar outros do que é seu por direito e a defesa é uma desculpa para saquear tudo ao alcance, como temos feito. Então devo partir como eles fizeram uma vez, se as histórias forem certas, ao enfrentar a ruína de seu mundo. Por isso, em seu primeiro altar, consagro minha vida a esta mulher e seu povo.
Alia entregou azeite e vinho a Dryas, que o passou a Lucius. Ele os derramou pelo pescoço da ânfora.
Um momento depois, todos se sobressaltaram quando a estátua no outro extremo do lago caiu na água, rompendo-se em centenas de pedaços.
Lucius se aproximou do extremo do lago e ficou contemplando os fragmentos inundados em silêncio.
—É um mau augúrio? — Perguntou Fio. - O que opina?
—Não. Significa que ela deixa este lugar para ir comigo.
Os criados partiram, deixando sozinha o casal.
—Um ritual - Disse ela. - Os rituais despertam as coisas.
—Sim. – Respondeu Lucius, levando-a para a cama de matrimônio.
O cubiculum era maior do que ele estava acostumado. As paredes, como no tivlinio estavam pintadas com o estilo mais sóbrio de uma época anterior. O piso era branco e verde, bordeado por uma grinalda de flores primaveris. As paredes estavam pintadas de um verde muito claro, da cor das folhas novas da primavera e cada painel mostrava um ramo das mesmas flores que decoravam o piso: lírios, jacintos, margaridas e a doce rosa da primavera.
Um braseiro no canto afastava o frio noturno e as dez chamas de um abajur ardiam junto à cama, um velho móvel de metal, mas bem provido de colchões, lençóis de seda e grossos travesseiros.
Dryas tirou as cintas do cabelo e deixou que sua cabeleira se espalhasse pelas costas. Logo se voltou para ele e assinalou o cinto atado.
—Desate-o.
O lobo fez o que havia lhe pedido Dryas, seguindo o rastro de Aquila. O soldado tinha deixado Roma pela Via Apia. Se viu o lobo que tinhaviaha tomado um caminho mais fácil atravessando granjas e arvoredos, não deu amostras disso.
Por fim, perto da Terracina, Aquila tomou um caminho secundário para se dirigir para a costa. Era uma região mista de bosques e granjas.
Maeniel aumentou sua velocidade para se aproximar de Aquila. Trotou sob a sombra das árvores que bordeaban a estrada. Um bonito passeio à luz da lua, ele pensou. Não acontecia nada.
Já era tarde e as granjas estavam fechadas e as escuras. Mesmo os cães deviam estar em seus canis, pois nenhum havia saído lhe ladrado.
Aquila bocejou, dando cabeçadas sobre seu cavalo. Os insetos faziam barulho na vegetação e inclusive o lobo sentiu a tentação de encontrar algum lugar cômodo para dormir um pouco.
Mais ou menos a uma milha da costa, Aquila voltou a mudar de rota, entrando por um caminho ainda mais estreito que levava às colinas junto ao mar. O caminho era tão íngreme que seu cavalo teve alguns problemas nos pontos mais difíceis.
O lobo cheirou coisas selvagens pela primeira vez na viagem. Cervos, coelhos, javalis e até gatos, muito leves. Não gatos domésticos, o, mas o pequeno e bastante feroz felis silvestris, ainda não exterminado na península. Ele achou reconfortante aquele pequeno corredor selvagem.
Aquila chegou sem nenhum problemao a sua afastada vila.
Aborrecido, o lobo ficou sob um arbusto e observou Aquila se preparando para dormir. A casa se elevava no meio de suas vinhas e a costa descrevia curvas um pouco mais abaixo.
O lobo procurou algum lugar onde cobrir. Certamente, não ia voltar para Roma naquela noite, não sem descansar. A casa tinha um grande alpendre na parte traseira, resguardado da brisa marinha.
No interior, Aquila apagou seu abajur.
No alpendre havia ganchos de ferro e ferramentas agrícolas, ânforas, estacas, enxadas e uma pilha de quentes sacos. Ah, perfeito.
O lobo se estirou, dando algumas voltas... E fez uma pausa. Algo havia mudado, mas o que?
Aquila começou a roncar dentro da casa.
Ruído abaixo, no caminho da costa.
Que ruído?
Sim, muito tênue. Ruídos de pés. Soldados! Ali, precisamente.
O lobo correu rodeando a casa. Soldados, sim e dirigindo-se para o povoado cujas luzes o lobo podia ver a uma milha de distância. Oh! Bem, não havia motivo para ficar nervoso.
O lobo se sentou, perguntando o que estariam fazendo Lucius e Dryas... Logo decidiu não forçar a imaginação. Não era difícil supor. Pergunto-me se acredito se ele é tão bom como eu, ele pensou com certa inveja e não pouco despeito. Esperava que não. Quando os soldados partirem, eu poderei dormir um pouco.
Mas os soldados não passaram para o povoado, mas começaram a subir para a casa de Aquila.
O lobo rodeou a casa a toda velocidade. Havia um telhado quadrado e poucas janelas, todas com barrotes. Provavelmente haveria um pátio no centro.
Não havia tempo a perder. O lobo entrou rapidamente nos vinhedos e logo investiu contra a casa. Seu salto o levou por cima do alpendre, até o telhado ao redor do pátio.
Os lobos não podem gritar e por uma vez, Maeniel lamentou, pois teria gritado com toda as forças de seus pulmões. Estava seguro de que o telhado interior seria tão amplo e plano como o de fora, mas não era assim. Era estreito e íngreme. Suas garras escorregavam inúteis sobre as telhas enquanto tentava se afiançar, sem êxito.
Aquila, desfrutando do frescor da noite, dormia no pátio.
Lucius riu até que lhe saltar lágrimas dos olhos.
—Oxalá ele tivesse visto sua cara. Eu teria gostado de vê-la quando um lobo desse tamanho... —Então Lucius voltou a rir.
Dryas teve que se voltar. Ela também parecia um tanto alegre.
Maeniel estava vermelho pela mortificação e a ira.
—Estão os dois em perigo. Em terrível perigo. – Disse ele furiosamente.
—Eu sei. — Replicou Dryas, caindo nos braços de Lucius com um chiaataque de riso.
—O que aconteceu... — Começou a perguntar Lucius.
—Pedi-lhe uma espada e um pouco de roupa. – Disse Maeniel.
Aquilo confundiu Lucius.
—Uma espada e um pouco de roupa. - Repetiu Maeniel fracamente. - Fazia frio. - A ira de Maeniel não esfriava.
Lucius segurou o abdomem. - Pare, pare! Vou morrer de rir...
Octus, que estava perto com a tocha na mão, cobriu a boca.
—Siga. - Disse Dryas secando-os olhos.
—Ele estava se recuperando da surpresa. - Continuou Maeniel.
—Posso acreditar. - Interveio Fio.
—Perguntou-me por que. Parecia...
Lucius se afastou cambaleando. Dryas sentiu a necessidade de se sentar e o fez em um banco do alpendre.
—Não posso imaginar por que. – Ela comentou em voz baixa.
- Disse-lhe que estávamos a ponto de ter companhia. E isto não é divertido. Os soldados estavam com a rainha egípcia e o que ela queria saber era se é verdade Dryas podia ler o futuro.
Lucius deixou de rir bruscamente. Aproximou-se de Dryas e passou os braços em seus ombros.
—Faz muito frio aqui fora. Octus, me traga seu manto.
O criado obedeceu e Fio segurou a tocha em seu lugar.
—Soa bastante inofensivo. – Disse Lucius. - Se ela te pressionar, faça o número habitual, ou seja, os bons espíritos cuidam de ti, César te deixará grávida tantas vezes como quantos dias há no verão e todas e cada uma das vezes será um criança. Recordo-me de uma síria de aspecto bastante ressecado que disse isso a minha mãe. Silvia sorriu e lhe deu algumas moedas de cobre.
Os olhos de Dryas pareceram se obscurecer, mas ela não disse nada.
—Sim. - Disse octus. - Eu também me recordo dessa mulher. Silvia morreu seis meses depois. — Ele se ruborizou bruscamente. - Por favor, me desculpe.
—Não. – Disse Lucius, lhe dando palmadas nas costas e depois pegou o manto branco e vestiu Dryas. - Não tem por que se desculpar. É verdade. Mas acredito que ela tinha razão em uma coisa. Os bons espíritos cuidavam dela. Silvia era uma mulher carinhosa.
—Não recordo que jamais me falasse sem simpatia. - Disse octus em voz baixa, retirando-se para as sombras.
—Sim, bom, mas esta não é uma síria em uma esquina da rua. – Disse Maeniel. - É Dryas, a dama dos Caledônios.
—Uma vez lutei não só contra um tigre, mas também contra um dragão. E sim, leio o futuro quando é necessário e nunca me equivoco.
—Os dragões não existem. – Disse Lucius.
—Isso diz você. Isso, dizem muitos. Mas algo que não existia me mordeu aqui. — Dryas se se voltou e mostrou uma cicatrizes em sua pantorrilha direita, três feias depressões brancas.
—Não há dragões.
—Sim, já sabemos. – Disse Maeniel. - Já discutiremos sobre dragões em outro momento. O problema não é o que a honorável dama perguntou a Aquila, mas o que disse de volta a Roma a uma de suas amigas íntimas, Íris.
—Sim, ela tem duas, Íris e Carmina. - Disse Dryas.
—Como pôde ouvi-lo? — Perguntou Lucius,
—Por favor... – Disse Maeniel.
—Darei-o por bem. - Interveio Fio.
Lucius assentiu.
—Ouvi que ela dizia: Devo impedir que César os declare proscritos pelo menos durante os próximos dias.
—Sim. – Disse Lucius. - Pensei que seria algo assim. — Ele pegou a tocha de Fio e acompanhado somente por Maeniel e Dryas, caminhou para o outro extremo do jardim.
Quando os outros já não podiam lhes ouvir, Lucius se voltou para Maeniel.
—Tem alguma prova? Eles não se moverão sem provas. Nenhum deles o fará.
—Não, mas acredito que poderia conseguir alguma. Não me pergunte como.
—Vamos. - Disse Dryas. - Ostia está só a uma hora de cavalo. De ali zarpam navios para todos os limites do mundo.
—Não. — Replicou Lucius. - Ele tem agentes em todos os limites do mundo. Acha que chegaríamos muito longe? Não, agora é ou ele ou nós. Houve um tempo no qual não sei teria me importado, mas agora tenho muito a perder.
—Além disso, - disse Maeniel, - você era quem estava empenhada em vir.
—Sim, mas agora... É velho, e não estou segura...
—A idade não embota as presas de uma serpente. Em todo caso, torna-as mais mortíferas. – Respondeu Maeniel. - E César é uma víbora, se alguma vez vi uma. Acreditem-me: se ele decidir matá-los, estarão mortos independentemente da idade.
—Se pudesse fazer com que esse idiota do Brutus atuasse por fim... — Lucius golpeou a palma de sua mão esquerda com um murro que soou como um estalo. - Seriamente acha que há alguma forma de conseguir uma prova de que ele vai proscrever seus inimigos?
—Acredito que posso consegui-la. Mas já disse que não me pergunte como.
—Não sou tão tolo para perguntar a nenhum dos dois como fazem as coisas, mas quero me inteirar. Ela fala em ler o futuro e eu já vi o que você pode fazer. Logo resulta que tem uma dentada de dragão... Simplesmente, eu gostaria de ver esse dragão alguma vez.
—De acordo, mas não se surpreenda por nada do que aconteça. – Disse Maeniel.
—Não me surpreendi com nada desde que os conheço. Vamos.
Dryas esperou que eles se perdessem de vista na rua, em frente à porta. Orelha cortada e Octus estavam com ela. Quando se voltou para entrar na casa, Fulvia estava esperando-a. Fez um gesto de fechar a porta, mas Orelha cortada pôs sua mão sobre ela e Dryas passou ao seu lado sem dizer nada.
—Como se atreve! – Disse Fulvia. - Como se atreve... E vestida como uma mulher respeitável.
—Sou uma mulher respeitável. - Disse Dryas.
Então Fulvia se adiantou seguida por Firminius, sua criada pessoal, duas donzelas e os antigos criados de Lucius, Fraco e Africano, além de meia dúzia de portadores de cadeira e dois ou três guardas, antigos gladiadores.
Aristo esperava no átrio tenuemente iluminado. Apresentou-se a Dryas e começou a falar de finanças com ela.
Seus gastos em roupa! Seus gastos em jóias! Suas donzelas!
—Que roupa? Que jóias? Que donzelas? — Foi a contribuição de Dryas a conversa.
Sim, talvez necessitasse de uns quantos vestidos mais, talvez dois ou três. O linho sem tingir ou a lã estavam bem. Cortaria-os e costuraria ela mesma e se fosse possível gostaria de ver alguns cavalos. Provavelmente necessitaria de um bom cavalo castrado ou uma égua, forte, acostumada à sela e de bom caráter. Se não, o que fosse estaria bem. Ela cuidaria de suas coisas. Sempre havia feito e não queria ninguém mexendo em suas roupas ou suas armas. Estava acostumada a se ocupar pessoalmente delas. Depois voltou para a parte velha da casa, onde Lucius se hospedara com seus criados.
No cubiculum onde haviam passado a noite só ardia somente uma vela, em uma mesa junto à cama. As duas clarabóias do teto começavam a deixar entrar a primeira e pálida luz da manhã. Alia estava em pé e trabalhando, pelo que a cama parecia.
Dryas tirou os caros adornos nupciais e se vestiu com a simples túnica e o manto que Márcia havia lhe dado. Pensou com afeto nela, em seu marido e seu filho.
Uma surpresa. A viagem estava cheiade surpresas. A amabilidade das pessoas que tinha conhecido era uma delas. O amor que havia encontrado, outra. Tinha chegado ali para matar se fosse possível e para morrer, se necessário. Não tinha feito nenhuma das duas coisas, mas havia encontrado amizade, esperança e, por fim, amor. Porque estava apaixonada, e se dera conta durante a noite que tinha passado com Lucius.
Ele não possuía a inocência do lobo, sua atração e nem sua beleza física. O esbelto e marcado romano sabia exatamente o que estava fazendo. Havia lhe mostrado sua experiência... De fato havia alardeado dela, algo que o lobo nunca teria feito em seu primeiro encontro.
Havia tocado seu corpo como se fosse um instrumento delicado, obtendo todas e cada uma das respostas que queria, e com a freqüência e intensidade que desejava. Durante todo o tempo, esteve pensando nela. Dryas podia dizer que o prazer de Lucius nascia da volta de sua virilidade e da alegria de ter encontrado uma companheira que o respondesse de forma tão formosa como ela, para compartilhar aqueles deliciosos momentos.
Seu segundo encontro foi uma atuação de virtuoso. Ela nunca se considerou bela, mas ele disse que era elogiando encantos normalmente ocultos pela roupa. Dryas não sabia que havia tantos termos para as partes do corpo que investigava Lucius, nem que o latim tivesse tantas palavras com duplo sentido. De fato, Lucius parecia se deleitar em surpreendê-la, de forma que pudesse vê-la, como ele disse, se ruborizar por completo.
—Minha delícia, - ele sussurrou, - o rubor cobre todo seu corpo. Aqui, ali, por toda parte. Meu coração, minha alma, minha própria... — Em algum momento, os dois tinham adormecidos, só para ser despertados pela chamada de Fio quando chegou Maeniel.
Fio tirou Dryas de seu pensamento voltando a bater na porta.
—Minha senhora, Alia preparou o café da manhã. Eu devo me desculpar. Tenho que administrar uns reconstituintes em Aristo, uma toalha fria e um pouco de licor. Uma noiva que rechaça o dinheiro e pede para ver cavalos no dia de suas bodas esteve a ponto de ser muito para ele. Meu conselho é que aceite o dinheiro. É útil. O dinheiro sempre é.
—Sim, - Respondeu ela através da porta. - E se assegure de que ele compre os cavalos. Um para ti, outro para Alia, Lucius, eu, Maeniel, Orelha cortada e Octus. Não se esqueça de Octus. Envia-o diretamente a Ostia com Alia para que nos esperem ali. Que saiam da cidade o quanto antes.
—Fala a sério?
—É obvio. Os únicos devem ficar aqui são os aptos para lutar. Você, eu, Lucius, Orelha cortada e Maeniel. Nada diz que tenha que obedecer minhas ordens.
Octus chegou justo naquele momento.
—Oh, sim. Lucius nos disse que fizéssemos exatamente o que você dissesse.
—Sim. — Fio parecia incômodo. - Disse...
—Bem, pois se mova então! E lhe diga a esse homem... Aristo, ele me disse que é assim que se chama... Que consiga montarias para todos em uma hora.
—Sim, minha senhora. - Disse octus, saindo rapidamente
Fio parecia surpreso.
—Você tem dinheiro? — Perguntou Dryas.
—S... Sim. - Balbuciou o grego. - Lucius me deu muito.
—Bem. Dê a Gordus e lhe diga que quero vê-lo o quanto antes.
—Era para ti... Em caso de que...
—De que ele não voltasse. – Ela completou.
—Sim.
—Provavelmente, Gordus poderá distribui-lo melhor que nós. Coloque tudo em suas mãos e lhe diga que reúna todos os homens que possa encontrar. Ele não pegará idiotas e nem enganadores. O que disse sobre o café da manhã?
Fio assinalou uma mesa sob uma árvore perto da porta. Dryas notou o pão, queijo, fruta, papa e posea. Sempre posea.
—Estupendo! – Ela disse.
Fio seguiu olhando-a.
—Há algo mais que queira me dizer? – Dryas perguntou.
—N... Não.
—Mova-se!
Fio se moveu.
Capítulo 27
Maeniel e Lucius caminharam juntos até se encontrar a uns cem passos da casa de César; então Maeniel entrou em um beco.
—Não te importa correr riscos, verdade? — Perguntou Lucius. - E se os corta gargantas se colocaram ante ti?
— Decidi que se alguém tenta me roubar, comerei-o. Atrasará-me-me, mas o farei.
—Sim. – Disse Lucius lentamente. - São saborosos os humanos?
—Não sei o que te dizer. Nunca me comi um. Mas me acredite, o sabor não é algo que importe a um lobo. Os humanos degustam. Os lobos comem. Pelo que a eles concerve, qualquer jantar é saboroso. Cuide de minha roupa. – E Maeniel se abaixou ante Lucius. O lobo avançou pela rua para a porta de César.
O mesmo jovem legionário estava de guarda. O lobo se sentou em frente a ele com um grande sorriso.
—Filho de puta! - Disse o soldado.
O sorriso do lobo se tornou mais largo.
—Se não abrir, uivará, verdade?
Maeniel ofegou um pouco e fechou a boca. Logo elevou o focinho para as estrelas.
—Não... Não... Não, não, não. - Disse o legionário e se voltou e bateu na porta.
Esta se abriu um pouco.
—Esse cão voltou. – Disse ele em tom desventurado.
—E você medesperta para me dizer isso? — O homem do outro lado tampouco soava muito contente.
—Sim. Ele vai começar a uivar.
—Como sabe? Pode lhe ler a mente?
—Ele está se pondo em posição.
—Bem, deixe que passe.
—Mas ainda não sabemos se pertence a alguém da casa.
—O que importa? É um cão. O que vai fazer?
O jovem legionário se afastou para o lado e Maeniel entrou com a cauda no alto, ondulando-a brandamente. Assentiu para a sentinela do interior, deitado sobre um jergón e atravessou o átrio, deixando para trás as máscaras mortuárias e os altares dos deuses domésticos. Sentiu uma breve e infeliz onda de poder: importavam. Sentiu algo velho, mas ainda poderoso. O pelo se arrepiou ao longo de seu lombo. Sim, logo ia acontecer algo. Ele foi em busca de Calpurnia.
Ela estava acordada, passeando por seu jardim.
—Ele não está aqui. – Ela disse quando o viu e o acompanhou a casa de banhos, onde havia roupa preparada nas prateleiras.
Maeniel voltou depois de alguns momentos, vestido com túnica, manto e sandálias. À primeira luz do dia, ele pode notar o quanto Calpurnia estava consumida.
—Houve outra presciência ontem à noite? — Ele perguntou.
—Outras. Vêm, a cada poucas horas e eu tomo os remédios de Fio. É o único que serve, mas já não muito. — Ela apoiou a cabeça sobre seu ombro. - Quero morrer, mas esperei.
—Por quê? — Perguntou-lhe erguendo a mão para tocar sua face.
—Porque há algo que tenho que fazer.
Havia movimento na vila. Com a chegada do dia, Maeniel podia ouvir os escravos acendendo o fogo na cozinha e começando a tomar o café da manhã.
Uma das donzelas saiu do dormitório e pareceu surpreendida ao ver a esposa de César nos braços de um homem. Um homem jovem.
—O que quer que eu faça? — Ela perguntou a Maeniel.
—Que se vá! – Disse ele a Calpurnia.
Maeniel olhou para a donzela.
—Vá. – Ele disse. A garota obedeceu.
—Venha comigo. – Disse Calpurnia e seus dedos cravaram dolorosamente na mão de Maeniel.
Ele ajudou Calpurnia a se levantar e a guiou para fora do jardim, percorrendo uma longa colunata até chegar a outro jardim.
—Estou quase cega de um olho. – Ela disse. - E não posso caminhar. Mas seus amigos morrerão, a menos que você tenha isto. Por isso... Eu devia lhe dar isso antes de partir.
Ela caminhava rapidamente, apesar de suas queixas de dor e cegueira. De vez em quando cambaleava, segurando o braço de Maeniel. Se não fosse por ele, ela teria caído em duas ocasiões.
—Estou ansiosa para acabar com isto. Não pode imaginar o quanto estou cansada dele, de Roma, do Senado, de tudo isso. Se não fosse pelo meu canto das rosas, eles teriam controlado minha vida e eu teria morrido de dor muito antes.
O lobo pensou que isso era o que estava lhe acontecendo.
Chegaram ao escritório de César. Havia uma fechadura, mas Maeniel a rompeu facilmente com os dedos e as comporta se abriram. O escritório estava vazio, igual as salas para o público ao seu redor. O escritório onde trabalhava o ditador estava nu, salvo por uma pasta de pele. Havia papéis desprezados em um cesto junto à mesa. Calpurnia derrubou o cesto e começou a rebuscar.
—É um truque dele que aprendi há muitos anos, quando estava ansiosa por conhecer sua mente. Ele faz mais de um rascunho de tudo, normalmente dois ou três. Logo tira todo o material restante. Por isso alguns de seus secuaces elogiam seu estilo... E é bom, sóbrio, mas elegante. Quase te faz pensar que está dizendo a verdade... Encontrei! — Ela ficou em pé com uma lista na mão, que logo entregou a Maeniel. Ele não sabia ler muito bem, mas era capaz de fazê-lo, graças aos esforços de Mir.
A lista nomeava várias pessoas e possíveis motivos, como, provavelmente já está metido na intriga, esposa farta de seu ciúmes... Além disso, é um dos homens mais ricos de Roma. Partilha seus benefícios com a esposa, em sessenta por quarenta e adoraria me cravar uma faca e me odeia, amaldiçoa-me cada vez que lhe volto às costas.
Mas o nome mais surpreendente da lista era o de Marco Antonio. Também ele, pensou o lobo. Mas seu nome estava tachado, com as notas, ainda não e estúpido bêbado chupasexo. Junto a outro nome estava escrito, simplesmente quero lhe ver a cara. Sim, também estava Lucius, mas a única anotação junto ao seu nome era, pai? A lista incluía Brutus, OH, sim, meu filho.
O papel estava quebrado, sujo e enrugado.
—É sua letra. Eles a reconhecerão. – Disse Calpurnia.
Maeniel alisou o papel o melhor que pode, dobrou-o e ajudou Calpurnia a sair da casa. No breve momento que haviam saído do escritório o céu se escureceu perceptivelmente. Era um amanhecer cinza e de nuvens ominosas, cada vez mais espessas e escuras.
Uma vez no jardim, Calpurnia levantou o olhar.
—Sim. - Disse. - Em seguida. Não seja impaciente. Dê-me só uns momentos mais.
Um trovão longínquo retumbou como uma advertência.
—Sim - Disse ela. – Eu sei.
Maeniel passou o braço por sua cintura e Calpurnia se moveu o mais rápido que pode para as rosas. Para surpresa de Maeniel, ela não usou a entrada, mas pegou uma rosa e deu a ele.
—Não quer entrar? — Perguntou ele.
—Já não é preciso. Não fique perto dos vasos de barro quando começar a morrer.
A luz se tornou verde e grandes gotas caíam sobre o pavimento. A fragrância das rosas era quase entristecedora. O lobo podia cheirar os componentes da rosa, pimenta, uma enjoativa doçura misturada com o aroma da chuva no vento, da tristeza e amargo remorso. Podia ser aquilo um aroma? Para o lobo, sim.
Eles sebeijaram e Maeniel se surpreendeu que, embora o ar estivesse saturado do aroma das rosas, o perfume dela era como o da brisa marinha e um pouco menos resistente, como uma flor. Não um aroma forte, mas leve e esquisitamente penetrante. Uma oferenda aos sentidos, nunca presa pelas artes do perfumista, mas experimentada unicamente quando o fresco e verde fruto é recolhido.
Sim, ela era única e só podia ser experimentada, nunca capturada ou possuída. Mas César não a compreendera nunca: não podia conceber nada que não pudesse possuir e algo que se opusesse à posse, devia ser destruída.
O lobo voltou a beijá-la com desejo, depois a ergueu nos braços e a levou em direção as assustadas donzelas.
Não havia chegado na casa circular quando desatou a tormenta. Ele deixou Calpurnia sobre a cama e saiu dali. A chuva empapava os jardins, e ao voltar, as donzelas começavam a gritar. O corpo de Calpurnia se convulsionava enquanto seu espírito lutava para se liberar de sua prisão de carne.
Tinha sido um trovão? Não. Era algo ensurdecedor. Cascos sobre os paralelepípedos e Maeniel pôde ver claramente o corcel pela primeira vez. Era da cor das nuvens de tormenta, como a prata velha, pintalgado de escuro e claro e era grande. Era maior que o maior cavalo que Maeniel nunca vira. Daquela vez ela trazia uma sela com adornos de ouro e marfim.
Os relâmpagos eram cegadoramente brancos, acompanhados por trovões que faziam tremer as paredes. O lobo ouviu um grito. A cabeça do cavalo era muito formosa, com olhos de ônix e amplas aletas vermelhas que destacavam em seu focinho.
Ele retrocedeu, golpeando o pavimento com os cascos. A longa crina e a cauda pareciam de alguma forma feitas de nuvens de tormenta ou eram parte das mesmas.
O cavalo golpeou novamente o paralelepipedo com um casco e a pedra ferveu em uma nuvem de vapor.
Então ela chegou. O corpo estendido na cama e rodeado pelas donzelas histéricas estava quieto por fim. Escravos e soldados corriam por toda parte, alarmados pelos gritos e lamentos das mulheres.
Ela se deteve junto a Maeniel e lhe sorriu.
—Adeus. - Disse. - Não posso te beijar porque na realidade não estou aqui, mas tenha uma vida longa e feliz. Não fique perto desses vasos de barro de pedra quando partir. As portas vão se fechar.
O cavalo se ajoelhou como a outra vez e Calpurnia só demorou um instante em saltar sobre a sela.
O vento rugiu, mas mesmo assim Maeniel pôde ouvir o grito de alegria e triunfo da criatura, acima da raiva dos elementos. A chuva lhe machucava o rosto.
O cavalo saltou no ar, impulsionado por seus cascos negros, deixando para trás a vila e seus muros, entre os rugidos do vento e a selvagem tormenta. Então, com um ruído mais forte que o do trovão, as asas gigantes se desdobraram e o cavalo desapareceu.
Maeniel recordou a advertência de Calpurnia e se apressou a voltar. Um raio bifurcado golpeou os dois vasos de barro das roseiras. As plantas vaiaram, fumegando e se incendiaram. Os vasos de barro estalaram, semeando o jardim de fragmentos de cerâmica e terra e fazendo com que todos os humanos das cercanias ficassem a coberto.
Maeniel cobriu sua cabeça, o papel e a rosa com o manto e saiu correndo. Passou junto aos dois legionários que vigiavam a porta. Eles estavam resguardados da tormenta e a confusão, perto do altar dos deuses domésticos.
— Eu lhe disse que não devíamos ter deixado entrar esse cão. —Dizia o mais jovem.
—Você pensa que ele teve algo a ver com tudo isto? Que o cão provocou esta comoção?
—Acredite que soe tolo, mas...
—Planeja fazer carreira no exército?
—Eu não...
—Bem, pois eu sim. - Disse o mais velho. - Vá contar aos seus oficiais a historia de como o cão entrou qui e acabará vigiando cabras na Hispania. Não há mais que cabras na Hispania.
—Compreendo.
—Espero sinceramente que sim, porque não tenho vontades de te acompanhar até lá. O primeiro que deve aprender um soldado é a não apresentar voluntário para nada e o segundo é...
—Não me diga. - Replicou o soldado jovem. - Vou fechar o bico.
O mais velho não respondeu. Limitou-se a assentir com a cabeça.
Aristo era eficiente e Dryas conseguiu seus cavalos. Fez Alia e Octus montar nos melhores e os enviou a Ostia.
—Encontrem um alojamento discreto e não digam a ninguém quem quais são e nem por que estão ali. Se não estivermos lá amanhã, não tentem entrar em contato conosco. Se não chegarmos no dia seguinte, não chegaremos nunca. Não voltem para nos buscar. Sigam adiante. — Como Dryas falava no idioma de Alia, ela entendeu bastante bem. - Encontrem um navio caledonio se puderem e saiam do alcance do poder de Roma.
Ela deu dinheiro aos dois e se despediu deles.
—Fio?
—Não. - Disse ele. - Eu fico.
—Ele vai se preocupar.
—Sei, mas eu fico de toda forma.
—Cabeçudo. Disse ela.
—Somos famosos por isso.
—Orelha cortada?
O galo riu.
—Você deveria correr primeiro. Pequena e fraca mulher. O que faz aqui?
—Lhe levar ao meu povo ou morrer na tentativa.
—Sim, morrer na tentativa, porque César já está aqui com sua mulher.
Ouviram os passos de pés calçados com botas na rua. Dryas correu para a região velha da casa, onde Lucius havia estabelecido seu lar e aguardou no jardim. Aristo fez o ditador entrar acompanhado por Cleopatra, Fulvia, Firminius e uma dúzia de soldados.
—Observe! – Disse Fulvia, assinalando Dryas. Sua voz soava estridente. - Ele está tentando se casar com ela.
—Bem, não ele pode. – Disse César tranqüilamente. - Vai contra a lei.
Dryas tentou captar o olhar de Cleopatra, mas a rainha a evitava.
—Fulvia, - Disse César, - devo te dar um conselho. Quando tiver servido ao seu propósito... Ou deveria dizer ao de minha dama, - ele se corrigiu com uma inclinação para Cleopatra, - deixe que Lucius desfrute de seu capricho. O mais provável é que em um mês ele se canse dela ou o que também é bem possível, ela dele. Afinal, não podem ter muito em comum. Ela não pode aspirar uma classe maior que a de escrava ou no melhor dos casos, uma liberta pertencente a sua casa.
—E o... Outro assunto? — Perguntou Fulvia. Seus lábios eram uma tensa linha branca e seus olhos brilhavam com malícia.
César lhe dirigiu um olhar que ainda fazia tremer homens fortes.
—Sempre havia te considerado uma pessoa inteligente e de bom julgamento, Fulvia. Não me faça mudar de opinião. Seu pai fez sua escolha, se tivesse tido dúvidas sobre a paternidade de seu irmão, teria conseguido repudiar a criança. Os direitos do pai nesse aspecto são absolutos. Mas não o fez e como agora está além de toda pergunta que possamos lhe fazer os humanos, sua decisão é definitiva. Não farei que o caso seja levado aos tribunais. Todos os herdeiros legítimos de Roma uivariam pedindo minha cabeça. Faria muitas coisas por meus amigos, mas não isto.
Sim, pensou Dryas. Siga insistindo, Fulvia e seu nome acabará aparecendo em uma de suas listas... Ou das outras.
César olhou para Dryas.
—Minha dama, - ele disse assinalando Cleopatra, - acredita que tem o poder de ler o futuro e quer que nos diga o nosso.
—Por que crê que posso?
O rosto de César endureceu.
—Não penso te dar explicações. Faça o que quer minha dama.
A ordem era inequívoca. Dryas tentou novamente captar o olhar de Cleopatra, mas a bela rainha não permitiu, mas apoiou a mão sobre o braço de César e fitou os olhos do ditador. Ele devolveu-lhe o olhar de adoração.
Ele está atordoado por ela, pensou Dryas. Não tenho escolha. O sentimento de antecipação se tornou mais forte. Quero destrui-lo, mas por que estou tão assustada?
—Ela pertence ao dragão. - Grunhiu Orelha cortada às suas costas. - Ela é do mar. — Ele assinalou sua perna. - Ele a marca. Olhe sua perna.
Dryas levantou a túnica para mostrar na pantorrilha, as cicatrizes.
—Mulheres problemas. - Disse Orelha cortada. - Todas ela são problemas. — Ele assinalou A. - Esta mulher é o pior tipo de problema. Você homem preparado. Tão preparado que ninguém engana. Para você, chefes, guerreiros, como meninos. Fazem armadilha, você açoita. Fazem armadilha pior, você mata. Eles aprendem. Os que retam vivos aprendem. Lucius, tolo romano. Apanha-lhe. Tem-lhe. Deixa que a tenha. Não problema para você. Há muitos jovens tolos. Sim. Baratos. Aos montes. Segue grátis. Escolha. Sim. —O galo voltou a assinalar A Dryas. - Velho, velho, velho povo. Ela é uma. Vive em névoa, chuva e escuridão. Deuses lutam no céu. Olha em outro mundo. Boca de bruxa. Rainha dragão. Cantora de estrelas. Homens roubaram a primeira magia de mulher, mulher assim. Toda problemas, pior tipo. Não veio por nada bom. Nada bom. Alguma vez te disse algo errado?
—Não, meu amigo. – Disse César. - Nunca que me lembre. É verdade o que ele diz? — Cesar perguntou a Dryas.
—Sim. – Respondeu ela. - Te diria que seguisse seu conselho.
Orelha cortada soltou um grunhido.
—Isto começa a me intrigar. – Disse César. - Seriamente pode lhe dizer o destino de um homem?
—Não. Só posso falar de si mesmo. Nunca conheci ninguém que queria saber tanto como posso dizer. Nunca.
—Talvez eu queira.
—Bem, enfrentara a mulher. Quando?
—Nunca tive medo das mulheres. Agora mesmo. O que necessita?
—Nada. Só um lugar tranqüilo onde ninguém nos incomode.
—De dia ou de noite?
—Agora, como você ordenaste. - Disse ela.
—O Templo de Vista. As damas, as virgens, se alegrarão em me favorecer. E depois, Vista é uma mulher.
O Templo era antigo, talvez o mais antigo de Roma. No curso dos séculos havia sido reconstruído várias vezes. Albergava uma fogueira em seu interior e na realidade era tudo. Sua sóbria simplicidade era talvez uma réplica das choças construídas pelos primeiros habitantes. Talvez fossem gregos chegados para se estabelecer no pedregoso e ardente solo das sete colinas junto ao Tiber.
Seu centro era o lar onde se agruparam em busca de amparo contra o frio e os perigos que espreitavam na escuridão. Naqueles dias, o que as pessoas via por último antes de dormir eram os rescaldos do fogo e o primeiro, as chamas da manhã antes do amanhecer, quando a mulher, guardiã do fogo, avivava-o para cozinhar a primeira comida do dia.
Era Vista, a guardiã da família, da castidade de esposas e filhas, protetora contra o infortúnio, a fome e a enfermidade, a custódia da chama e talvez, do espírito do fogo, separando para sempre, homens de feras. Cedendo aos homens o dom do céu, depositou nas trêmulas mãos do primeiro sonhador imortal da espécie; o primeiro em elevar seus olhos e suas mãos para o céu cheio de estrelas.
Sim, pensou Dryas. É um desses lugares como Delfos, Tara na Hibernia e essa planície de Salisbury. Há um selo aqui. Sim, ela virá. Estou segura disso e Orelha cortada tem razão: o homem que se mistura na magia das mulheres é um néscio. Que teria pensado? César, um néscio. O destruirá e provavelmente a mim também no processo.
O templo era uma estrutura pequena, mas imponente. Redonda. O fogo ardia em um altar de mármore no centro, abrasado dia e noite pelas guardiãs de Vista. As paredes eram de pedra calcária branca rodeada por colunas corintias de mármore. Uma vez dentro, Dryas pôde ver que não havia pinturas nem estátuas, só simples paredes brancas e uma rotunda sobre o altar.
Sentiu um profundo medo arrastando-se devagar sobre ela.
O dia no fora era quente, quase inexplicavelmente caloroso. O céu sobre o Foro estava cheio de nuvens brancas no alto, mas mais escuras na base.
Dryas deu um último olhar à luz e o ar além das pesadas portas dupas de madeira de cedro. César falou com a vestal que estava ali, que assentiu e saiu.
Dois dos soldados fecharam os portões e a sala se escureceu. O fogo do altar não era de muita luz, mas o telhado tinha uma dupla cúpula, uma menor sobre a grande e as janelas que percorriam a divisão entre as duas deixavam passar uma luz branca azulada, como a abertura para a fumaça no alto da cúpula.
A Dryas era estranhamente familiar e então ela recordou que antigo edifício era muito parecido ao salão de Cynewolf, quase como se uma ordem ressoasse na mente e a alma humanas, para construi-lo sempre.
Não peço adoração, mas me honrem desta forma. Será recordado para seu bem e para o meu.
César notou na palidez de Dryas a luz do fogo.
—O que está acontecendo, feiticeira? Fez promessas que não pode cumprir e agora está assustada?
Dryas tirou o cinto e também a coroa de cobre do cabelo enquanto respondia:
—Estou assustada, César, mas não de ti. Ela é uma criatura de poder incomensurável, maior que o teu. Não sou eu quem cumpre as promessas, mas ela. E estou segura de que vai cumpri-las.
Ela entregou a coroa e o cinturão a Orelha cortada, que estava em pé ao seu lado. Seu longo cabelo caía como uma espessa cortina escura, emoldurando seu rosto. Ela caminhou até o altar e ao seu redor até ficar em frente a César, sobre as chamas.
—Foi você quem pediu! – Ela disse.
Orelha cortada retrocedeu rapidamente, pois sabia que a criatura que olhava por cima das chamas não era Dryas.
—Por que chama a este lugar sem luz e nem ar? Eu não gosto disso. - Disse ela. Encontraram-se em outro lugar.
Dryas podia ter conhecido o lugar, mas ela estava em algum lugar afastado onde não existia o tempo, enquanto que eles estavam na ladeira da montanha, onde o manancial se convertia em cascata e as coniferas gigantes cobriam a cúpula. Aqueles bosques eram mais simples e amistosos. Pinheiros com suas copas altas se monopolizava, misturados com carvalhos. Fresnos de frutas resplandecentes rodeavam uma clareira em cujo centro ardia uma chama sobre uma pedra plaina. O ar era limpo e uma brisa intermitente refrescava o ar e avivava o fogo. Os cantos dos pássaros enchiam as árvores e a espessura.
—Tem uma pergunta? — Perguntou Dryas que não era Dryas. - Se apresse, pois esta mortal não pode suportar meu toque por muito tempo e não serei parte em sua destruição. Embora careça de importância para você, César, seu povo a necessita para alcançar um grande proposito. Fale!
—Qual é meu destino? — Perguntou César.
Dryas, que não era Dryas parecia impaciente.
—Você mesmo poderia responder essa pergunta se dedicasse seu considerável intelecto a analisar os fatos. Mas na realidade, os humanos como você não querem saber. A resposta é que chegou à hora de sua morte. Todos os caminhos que tomar o levarão a morte, não a distante mortalidade, mas a morte, logo. E especialmente se for ao Senado amanhã. Mantenha-se longe do Senado durante o resto de sua estadia em Roma e sairá vivo para a Partia. Guarde luto por sua esposa e apresente essa desculpa.
—Minha esposa não está morta. Suas donzelas me disseram que estava descansando. Uma tormenta a assustou esta manhã.
— Ela não está descansando, César. A parte mais importante dela já partiu. Sim, ainda respira, mas amanhã, o envoltório de carne que ela usou falhará e ela empreenderá sua viagem ao pó. Não foi uma tormenta, mas não direi mais disso.
—Os idus de março. – Disse César. - Todos os adivinhos de Roma levam meses choramingando com o mesmo. Parece que, por poderosa que seja Dryas, você é uma charlatã como os outros.
—César, quando um homem vai com uma tocha destruir uma árvore, pode decidir onde fazer o corte para que a árvore caia na direção que deseja. Uma vez feito o corte, a árvore está destinada a cair nessa direção. O mesmo ocorre com o homem: as forças que o matarão começam seu trabalho quando nasce e continuam ao longo de toda sua vida. Algumas são puramente físicas, outras estão relacionadas com a alma, e as que tem natureza moral. Até os meros mortais podem ler esses padrões e ver o final. Fio é um perito em alguns deles e predisse a morte de sua esposa há alguns meses.
César suspirou.
—Parece que estou condenado a ouvir o conversa das mulheres: não faz mais que repetir lugares comuns, não ouço nada novo.
Dryas, que não era Dryas não se alterou.
—César, esqueça a idéia de que está falando com uma mulher ou pelo que a isso concerve, com nada humano. Diga-me, fala de política com seu cavalo?
O rosto de César ficou vermelho. Era a primeira vez que parecia irritado.
—Não! Não o faço.
—Bem, pois eu não posso te explicar a ordem do universo mais do que você poderia lhe explicar coisas de política a um cavalo. Acredite-me: é muito mais vasto e complexo do que você possa chegar a compreender. Acredite-me quando te digo que todos os caminhos o levam agora, à morte, e logo. Por exemplo, se escapar da morte aqui em Roma e marchar para Partia, há entre esse povo que, esporeados pelo medo que você inspira, pessoas que estudaram seus lucros e seus escritos. Procuram debilidades e penso que descobriram várias. Não acredito que ache fácil sua destruição. Mas isso não é tudo. Está ameaçado por dentro. Você é velho. Envelheceste antes de tempo, consumido pela lutas ao longo de toda sua vida. E não só falha o seu corpo. Seu principal terror é o declive de suas faculdades mentais. É mais esquecido que a maioria dos homens de sua idade. Quantas vezes perdeste o fio do que dizia e sua dama Cleopatra teve que lhe recordar?
—Não vou ouvir... — Gritou César.
—Oh, sim. Ouvirá. Ouvirá tanto como eu queira e certamente até que tenha terminado.
Todos os presentes na clareira, Fio, Orelha cortada, Fulvia e Cleopatra sabiam que sim, que ele ouviria enquanto quisesse, quem ocupava o corpo de Dryas.
—Não se esqueça, - disse ela, com sua voz crepitante de poder, - que você me chamou e que não irei até que eu queira. Então se cale. Estão esses ataques cuidadosamente ocultos, e o fato de que alguma vez, ao despertar, passaste por um momento incapaz de mover seu lado direito ou de falar. Logo, inclusive em sua escala de tempo, essa condição se tornará permanente e você se tornará como uma pelanca indefesa e babona, cuidado por seus escravos como um criança, até que afinal não seja capaz de comer e beber o suficiente para viver e morrerá encerrado em seu próprio corpo putrefato.
César estava pálido e suava, apesar do frio da manhã.
—Isto é cruel! — Gritou Cleopatra.
—Você me acusa de ser cruel com ele? — Estalou Dryas, que não era Dryas. - O que foi ele a não ser um monstro de crueldade? Ele, que recebeu tudo: beleza, força, inteligência, riqueza, saúde e, sim, inclusive amor. Sua vida teria conseguido ser um arco de luz. Ele teria conseguido limpar seu povo e levá-lo a grandeza, mas o que fez com seus dons? Usou-os em seu gosto pela crueldade, para saciar sua sede de poder e o que se converteu em uma obsessiva busca da primazia. O Primeiro Homem de Roma.
Fio pensou que jamais poderia sequer expressar o absoluto desprezo daquela afirmação.
—Tolices. – Respondeu César. - Os romanos não são adequados para a grandeza. Dei-lhes tudo o que pediram, riqueza. Riqueza sem limites e por fim poder. Governarão o mundo. Assegurei-me que isso. Que grandeza podia você lhes ter dado? Responda a isso.
Dryas, que não era Dryas parecia farta.
—Segue sem entender, não é? Não importa o que diga, simplesmente não entenderá. A grandeza era algo que você devia descobrir. Que você devia levar a existência. Eu não podia lhe dar isso, mas você podia tê-la criado por si mesmo. Nesse sentido, equivoquei-me ao te comparar com um cavalo. Um fogo divino arde em cada um de vocês e lhes corresponde aceitar ou negar. Em sua estreita e egoísta alma, você o negou, e por isso falhou a si mesmo e ao seu povo.
—Assim, por essa falta de... Omissão, eu devo receber algum... Tipo de castigo?
A pergunta de César era irônica, mas sem medo.
—Não! Não castigamos. E noto, que inclusive neste momento, que você se esforça por encontrar uma forma de tirar o melhor de mim. Não entender a verdadeira grandeza não é uma questão de vitória ou derrota. Não. De todas os coisas, o que mais deploro é o sofrimento sem sentido. Não! No curso normal do tempo, você morre. Toda sua espécie o faz, é inerente a sua natureza. Não poderiam viver se não morressem também. Não, só o advirto do perto que está de seu momento final. Venha até aqui, Orelha cortada.
Por um momento, o robusto guerreiro pareceu acovardado.
— Eu disse que venha aqui. – Repetiu Dryas, que não era Dryas.
O galo obedeceu, postando-se ao seu lado.
—Espere! — Soou a voz de Fio. - Eu... Quero... Queria fazer uma pergunta... Por favor. Só uma.
—Qual? Eu disse que não temos muito tempo. - Dryas, que não era Dryas foi severa em sua resposta.
—Quem... O que somos? — Gaguejou Fio.
Dryas, que não era Dryas quase sorriu.
—Ah, os gregos. Não posso recordar quando me diverti tanto com um povo... Darei-te uma resposta absolutamente sincera, mas não a entenderá.
—Não importa. – Disse Fio. - Algum dia, em alguma parte, alguém o fará.
—Sim. – Disse Dryas, que não era Dryas. - Vocês são o pó de estrelas. —Logo ela se voltou para Orelha cortada, lhe falando em voz baixa: Sinto avaliação por esta mulher. Não me falte e peguea, porque ela cairá quando eu sair dela. Vou. Agora!
O rosto e o corpo de Dryas se afrouxaram. Orelha cortada a sustentou e naquele momento eles voltaram a se encontrar no templo. O fogo ardia em seu braseiro do altar e os soldados que custodiavam o templo não pareciam ter dado conta de seu desaparecimento.
Fulvia sofria um esplêndido ataque de histeria. Cleopatra chorava. César estava pálido. Fio sentiu que suas pernas não eram capazes de lhe sustentar e se sentou no piso do templo.
Dryas dormia pacificamente nos grandes braços de Orelha cortada.
Dryas despertou em um jergón do ludus de Gordus, com Lucius inclinado sobre ela. Dirigiu-lhe um formoso sorriso e ele a abraçou agradecido.
Fora, os assentos estavam enchendo-se e a arena começava a ficar iluminada pelas tochas.
Dryas olhou Ao seu redor com os olhos muito abertos. Todos estavam ali, Maeniel, Gordus, Márcia, seu filho Martinus, Fio e inclusive Octus.
—O que aconreceu?
Lucius evitou seu olhar.
—Dryas, – Disse Fio, - você teve muito êxito ao revelar sua fortuna a César.
—Então que ela veio.
—Oh, sim. Certamente que veio. Esteve a ponto de nos matar de medo, inclusive ao invencível Orelha cortada. Fulvia está encerrada em sua câmara e certamente ainda estará dando vapores e aterrorizando suas donzelas. Acredito que Cleopatra já secou suas lágrimas: é uma mulher de infinita compostura. Mas César está furioso. Ele acredita, deve acreditar, que de alguma forma você preparou tudo e está decidido a se vingar.
—Que tipo de vingança? — Perguntou Dryas.
—Você e eu vamos lutar até a morte. - Explicou Gordus. - As apostas... A vida de nossos seres queridos.
Márcia rompeu a chorar.
—É minha culpa. Eu fui tão néscia a essa puta egípcia...
Dryas se aproximou dela para consolá-la e Márcia chorou em seus braços.
Antonio apareceu na porta da cela.
—Vejo que está acordada... Já terminou sua sesta.
—Antonio, — perguntou Fio com calma, - você não se cansa de ser o alcoviteiro de César?
—Só por isso Fio, se perder a aposta, assegurarei-me de que sua morte seja particularmente desagradável.
Gordus contemplou Antonio como se fosse um grande pedaço de esterco.
—Não acredito que deixe sair vivo nenhum de nós.
—Oh, sim. Ele sempre cumpre sua palavra, não duvide. - Replicou Antonio. - Ao ganhador não só perdoará a vida, mas também o recompensará generosamente.
—Isto é o que matou Priscus. - Disse Dryas, falando da alma que tinham dado repouso.
—Sim. – Respondeu Gordus. - Ele enfrentou os seus e os matou para sobreviver.
Dryas-se abraçou a Márcia e logo se aproximou de Lucius. Não se abraçaram, mas falaram em voz baixa. Fio estava ao seu lado.
Gordus também conversou em voz baixa com Márcia e Martinus.
Maeniel olhou friamente para Antonio.
—Saia daqui, – Ele disse - ou encontrarei uma forma de te fazer em pedaços. — Maeniel lançou um rugido no qual não havia nada de humano.
Antonio se separou da porta gradeada, por um instante muito agradecido por sua existência e foi embora.
Lucius passou a mão sobre a face de Dryas.
—Entenderei-a se... Perder.
—Sim. - Disse ela pegando a mão dele entre as suas e beijando sua palma.
—Sinto muito, Fio. - Continuou Lucius. - Não devia provocar Antonio.
—Tenho um pouco de ópio escondido, bastante. Mais que suficiente para nós dois. – Respondeu Fio em voz baixa. - Nenhum de nós tem por que sofrer, Dryas. Não se preocupe, pelo menos não por isso.
—Sim. - Disse ela. Logo beijou Lucius nos lábios e também os lábios de Fio. - Deveria vestir-me.
Márcia se separou de Gordus e pegou a mão de Dryas.
Octus estava entre as sombras junto à porta, tão calado como de costume.
—Acredito que te disse...
—Me perdoe domina, por minha desobediência, mas tinha razões para voltar.
—Venha, Dryas. – Disse Márcia. - Não resta muito tempo. A metade das estrelas de Roma está sentada aí fora. Por convite de César, poderia acrescentar. O espetáculo definitivo. Sinto não poder desfrutar da emoção, mas ter minha vida pendente da atração principal... Distrai-me um pouco.
Se vestir não levou muito tempo. Quando Gordus e Dryas voltaram, o gladiador usava somente o subligaculum. Dryas havia colocado outro e também a cota de malha que havia usado para lutar contra o javali. Lucius observou que ela havia feito algo mais respeitável ao usar um strophium sob ela e que voltava a usar a coroa de espinhos no cabelo.
Antonio voltou a se aproximar da porta. Estava com duas espadas e as ofereceu pelo punho.
Dryas pegou uma e logo Gordus a outra. Caminharam juntos até a entrada da arena.
Já havia escurecido, mas havia muitas tochas e a arena estava bem iluminada. Dryas ouviu um som e viu que César entrava no que se convertera na tribuna imperial. Cleopatra estava ao seu lado.
—Supõe-se que devemos saudá-los?
—Não. - Grunhiu Gordus. - Só os criminosos condenados dizem, os que vão morrer te saúdam. Pode ser que esteja condenado, mas me nego a me considerar um criminoso. Ou a me comportar como um.
—Sim.
Ao chegar ao centro da arena, eles viraram ficando cara a cara. Ambos podiam ver César pela extremidade do olho.
—Quando deixar cair o lenço. – Disse Gordus.
Na cela, Lucius ficou olhando os dois lutadores através da grade. Não podia encontrar em seu coração nada a dizer aos outros, nem sequer a Fio.
Os soldados estavam lhes aguardando quando ele e Maeniel voltaram para a vila. Dryas já não estava e Orelha cortada havia desparecido. De alguma forma, o enorme galo havia conseguido se confundir com a multidão do Foro e César não se incomodou em lhe perseguir. Octus havia chegado à porta traseira quando os soldados estavam lhes colocando sob arresto e ele se limitou a se unir a eles, como de costume sem falar muito. Embora por que se incomodar em arriscar sua vida por um amo condenado a morrer quase com toda segurança era um mistério para Lucius.
Como Gordus, ele estava convencido de que César não deixaria viver a nenhum deles. Ele possuía uma marca de destruição desumana. Seus oponentes podiam lhe arrancar uma clemência temporária, mas no final, como a legião que contra ele se rebelara, eles também acabaria sendo exterminados.
Pelo que a ele concernia, o que decidisse fazer Dryas na arena estaria bem.
Antonio entrou na arena
—Então vai se fazer de lanista... — Os olhos do Gordus se entreabriram. - Poderia ser uma forma de lhe fazer pagar.
—Eu gostaria. - Disse Dryas.
—E eu também.
Mas Antonio se manteve bem afastado dos lutadores, conscientes de que eram muito mais rápidos e mortíferos que ele.
César deixou cair o lenço.
Dryas e Gordus cruzaram suas espadas. Antonio retrocedeu e inclusive Lucius, cuja vida dependia daquela luta, afastou-se de sua posição na porta da cela.
Gordus se aproximou rapidamente, tentando fazer valer sua maior força.
Dryas recordou as palavras de seu primeiro adestramento.
—Querida, eles são mais fortes que nós e tentaremos usar isso.
Sim, pensou Dryas. As duas espadas reluziram como chamas de ouro sob a luz das tochas.
Dryas cedeu terreno tão rapidamente a princípio, que Lucius estava seguro de que Gordus, com sua imensa habilidade, a mataria. Mas estava equivocado. Dryas fez Gordus pagar sutilmente toda a pressão que exercia sobre ela, lhe fazendo um corte nos dedos com a ponta de sua espada e logo um corte no braço.
Gordus se deu conta de que estava se divertindo. Para sobreviver, os homens de seu tipo tinham que aprender a viver o momento. E era um momento particularmente bom. Nunca havia tido um oponente tão hábil. Dryas respondia a cada um de seus movimentos com outro igualmente efetivo, anulando constantemente a maior força de seu adversário com sua rapidez e habilidade.
A multidão estava em silêncio. Não muitos espectadores compreendiam quão brilhante era aquela exibição, mas quase todos eram conscientes de que nunca voltariam a ver nada igual.
Para Gordus, Dryas era um problema a resolver. Não, os músculos não eram a resposta. O que fazer, então? Fez-lhe levantar o braço e atacou por abaixo... Esteve a ponto de conseguir, mas pagou o preço em forma de um rápido corte na face interna de seu antebraço. A espada ornamento era afiada como uma lâmina. Um corte um pouco mais profundo teria conseguido lhe deixar aleijado. Começou a esforçar em levá-la para a parede, com a esperança de encurralá-la.
Dryas notou e se deixou pressionar. Então, quando teve os lados da arena em sua visão periférica, passou a espada da mão direita para a esquerda e se abaixou por baixo do braço de Gordus.
Gordus havia ouvido falar daquela manobra, mas nunca a havia visto na prática. Ao se recuperar e virar notou que ela se afastou. Aquele combate não seria a não ser um desafio de habilidade.
Ela respirava pesadamente. Ali era onde as mulheres falhavam ante os homens. O corpo de um homem está adaptado à força. Os homens não têm tanta gordura corporal como as mulheres e a parte mais larga de seu corpo são os ombros, enquanto que no caso das mulheres são os quadris. Nos homens, tudo é maior. Coração, pulmões e músculos. As mulheres, em sua maioria, simplesmente não têm a resistência dos homens.
Gordus avançou para matar.
Ele é rápido, pensou Dryas. Tão rápido que era aterrador. Suas espadas cantavam e dançavam a luz do fogo. Dryas sabia que estava recorrendo a tudo para se igualar, com seu tamanho e sua força. Gordus devia ter mais reservas. Se ela seguisse lutando a sua maneira, morreria.
Antonio tentou separá-los.
Gordus o amaldiçoou.
Dryas se deu conta de que Gordus ia jogar tudo naquela última ofensiva.
Antonio caiu para trás ou talvez os dois lutadores simplesmente o deixaram no pó.
Dryas sentiu que começava A ir mais devagar. Agora ou nunca! Ultima aposta!
Em seguida o bloqueou, ela não fez baixar a arma o bastante e a ponta da espada do Gordus cravou em sua coxa direita. Recebe uma para dar outra, ela pensou enquanto pegava a espada de seu adversário e a arrebatava.
A arma saiu girando, abrindo um corte em sua coxa, maior do que havia preestendido Gordus. Dryas sentiu o sangue quente correndo por sua perna. O anfiteatro guardou silêncio, mas Dryas ouviu o grito de Márcia ao longe.
Gordus estava ante ela, com os braços em jarras e as mãos nuas, desarmado.
Antonio chegou até eles, ofegando.
—Peça clemência, Gordus.
—Não. – Respondeu ele. - Não o farei. — Ele fitou os olhos de Dryas.
Ao seu redor, os espectadores estavam em êxtase, gritando e golpeando seus bancos e assentos.
—Mate-o, Dryas. - Ordenou Antonio. - César baixou o polegar.
—Saia daqui, - disse ela, - ou matarei a ti.
—Retroceda. - Aconselhou Gordus com voz rouca. - Ela está falando a sério. E não me importa quantas garantias nos ofereça. Nenhum de nós acredita que tenhamos nada a perder.
Antonio retrocedeu.
Dryas elevou sua arma e beijou o aço, saudando Gordus. Logo lhe ofereceu o punho.
Gordus pegou a espada.
Dryas tirou a cota de malha, mas conservou o strophium.
—Não desonrarei minha espada nem a mim mesma. Faça-o limpamente, Gordus. Fio e Lucius têm ópio. Viva até amanhã. César está morto. Brutus tem a lista de proscrições. Vão matá-lo, embora só somente para se defender. Aqui, - ela disse, apertando os dedos sob o strophium no lado esquerdo. - É o ponto mais próximo do coração.
—Não, Dryas. Você ganhou. Não morrerei como Priscus, com o coração quebrado.
Gordus deixou cair à espada de um lado e começou a percorrer o comprido caminho de volta até a porta.
Dryas se aproximou da espada. Enquanto se abaixava para recolhê-la, uma sombra se abateu sobre ela. Antonio!
O romano pegou a espada do chão e atravessou Dryas com ela.
O grito da multidão alertou Gordus, que se se voltou a tempo de ver o que ocorria.
Algo pareceu golpeá-lo e lhe fazer retroceder vinte pés. A espada vaiou, brilhou, fumegou e por fim o punho ficou vermelho vivo em sua mão. Ele soltou-a com um grito de agonia.
Gordus pegou Dryas. Estava ferida mortalmente. A lâmina havia entrado pelo lado direito do peito e ela estava se afogando em seu próprio sangue.
Dryas respirou forte e o sangue saiu por sua boca.
A porta estava escura. Tinha que haver luzes atrás dela. Gordus se perguntou se teriam matado todos enquanto ele e Dryas lutavam. Podia acreditar em uma brincadeira tão cruel por parte do ditador... Sua espécie não tolerava a oposição. Gordus sabia. Tinha visto seu poder com freqüência. César não era o primeiro tirano sedento de sangue que dominava a política de Roma, nem seria o último de uma longa linha.
Gordus correu para a porta carregando Dryas. Maeniel estava ali. Outros haviam desaparecido.
Maeniel embalou Dryas e colocou algo entre os lábios de Gordus. Houve um terrível brilho de luz e ele se encontrou estendido sobre o musgo, perto de um manancial da montanha.
Maeniel chegou atrás, mas já não era um homem, mas um enorme lobo.
Então Dryas caiu, ensangüentada, mas já sem sangrar, nos braços de Lucius. Estava apertando a rosa da Calpurnia contra o ferimento de seu flanco. Ante seus olhos, ela se converteu em uma linha vermelha, logo uma cicatriz e por fim pele limpa e suave
Octus lhe pôs uma taça de água fria nas mãos e Gordus bebeu... Bebeu e bebeu.
Os ventos de março chegaram com chuva. O céu cinza descarregava sobre Roma.
César se encontrava junto à cama de Calpurnia. Havia começado a acreditar que aquela pequena bruxa tinha razão. Calpurnia estava morrendo. Resistia a todas as tentativas de despertá-la e sua respiração se tornava cada vez mais tênue, sua palidez aumentava e suas mãos e pés estavam frios. Triste, muito triste. Antigamente ela havia sido adorável.
No fora, uma pequena tormenta chegou e foi embora, com a chuva aumentando o peso da umidade nas árvores, fazendo com que os galhos baixassem. O breve aguaceiro se converteu em uma neblina e o céu apenas limpou um pouco. A luz da casa onde estava era esverdeada. Uma rajada de vento sacudiu as árvores, enviando milhares de gotas ao pavimento e cobrindo de anéis a superfície do lago, como se ao longe alguém chorasse pela beleza que ela havia sido e a promessa que tinha sido ele.
Depois do combate do dia anterior, em que tinha contado a Antonio a predição de Dryas, havia negado com firmeza qualquer sensação de inquietação, inclusive que no templo tivesse acontecido algo sobrenatural.
Antonio estava molhando sua mão queimada em água fria e jurando que aquela mulher Caledonia era à feiticeira mais poderosa que alguém teria visto jamais.
E que esperava ter lhe dado fim pessoalmente ao cravar nela sua própria arma. Mas não a vira morrer e nem encontrado seu corpo, então iria no dia seguinte oferendar dois bois a Júpiter Protetor, com a fervente esperança de...
Não pôde dizer mais, pois César se fartou dos reniegos de seu legado e o mandou se calar.
—Ora! – Disse César, ao oráculo. Bem, Dryas estava perto do fogo e provavelmente jogou algo nele que alterou nossos sentidos. Dessa forma conseguiu convencer os outros de que era uma espécie de deusa. E, quanto a sua fuga, o único que demonstra é que Gordus conhecia seu próprio ludus melhor que ninguém. Cedo ou tarde terão que sair à superfície. E então... —Bem, então se asseguraria de que aquela escória bárbara pagasse o preço de sua loucura.
Ordenou a Antonio que se ocupasse de sua mão, pois tinham coisas mais importantes há fazer nos dias seguintes. O exército estava preparado para partir e todas aquelas execuções de conspiradores tomariam seu tempo, embora teria lugar, como se previsto, no acampamento onde os prisioneiros estariam rodeados por seus leais.
Não, nunca admitiria nem ante Antonio e a ninguém que acreditava que cada uma das palavras que ela... Ou a zorra que houvesse possuído aquela bruxa... Havia dito era verdade. E nada mais que a verdade.
Não. Fosse o que fosse César não era tolo. Nenhum ser humano teria conseguido fazer aquilo.
E nenhum ser humano teria conseguido escapar, como eles haviam feito, daquela cela.
Sim, tudo tinha terminado e ele sabia com uma certeza que lhe deixava impotente pela primeira vez em sua vida. Impotente e sem saída.
Na cama, Calpurnia suspirou profundamente e por breves momentos deixou de respirar. Todas as mulheres se reuniram ao redor da cama e de César, esperando até que, ela começou a respirar novamente.
Na noite anterior, físicos a examinara e haviam dito a César que aquilo era um aviso de que a morte se aproximava. As pausas iriam se tornando mais e mais longas e com o tempo, ela... Deixaria de existir. Aquilo era o que acontecia? Devia ter perguntado a “mulher”... Como a chamava Dryas? Mas não lhe havia reconfortado em nada. Por que ela ia lhe dar esperanças de uma vida futura? Não, era melhor não saber.
Estudou as três possibilidades que ela lhe tinha enumerado. Das três, a melhor seria ir ao Senado naquele mesmo dia.
A segunda opção, morrer na Partia... Bem, os partos haviam cortado a garganta de Crasso e o abandonando agonizante no campo de batalha. Seus próprios escravos tiveram que lhe rematar.
A terceira, ficar em Roma e evitar o Senado, viver e morrer daquela forma, impotente, afogando-se quando tentasse comer ou beber, incapaz de falar e talvez inclusive de pensar, jazendo entre a imundície a mercê de seus assistentes... Não.
Um soldado, um dos legionários que guardavam a casa chegou para lhe dizer que Antonio e outros estavam ali.
Oh, bem. Adiante.
Então recordou a estranha pergunta que havia feito o grego Fio e a resposta ainda mais estranha.
Pó de estrelas! Que loucura e que tipicamente grego não perguntar nada que lhe pudesse reportar alguma vantagem, mas revoar pela metafísica.
Por isso mesmo os romanos os achara tão fáceis de conquistar e por isso tantos de seus inteligentes, cultos, educados e dotados cidadãos se encontravam nos mercados de escravos romanos, sofrendo o desumano processo de ser tratados como mercadorrias e vendidos como escravos.
Não. Valia à pena lutar pela riqueza e o poder ou talvez só pelo poder.
Ele havia alcançado o poder supremo, como tantos outros conquistadores. E... E o achava decepcionante. Era inexplicável... Mas assim era.
Por quê? Que mais podia haver?
Nunca chegou a responder a pergunta, porque Antonio lhe fez um gesto da sala de recepção junto ao átrio. Sem olhar para trás, César foi ao seu encontro.
Maeniel esperava ao pé dos degraus da Cúria. Estava com a mão sobre o punho da espada que ocultava sob a toga.
A chuva havia cessado, mas os passeios entre as árvores dos parques públicos seguiam úmidos. O céu mostrava emplastros de azul.
Haviam saído na noite anterior, do lugar do manancial e a montanha, voltando para as colinas junto à granja da Aquila. O lobo os tinha guiara, porque Calpurnia havia lhe ensinado outros portais que saíam de Roma e não havia dúvida de que, se estivessem dispostos a viajar o bastante, podiam chegar a qualquer lugar da terra. Aquila havia lhes dado proteção naquela noite e eles não necessitaram ir mais longe.
Ao voltar para a cidade, descobriram que os conspiradores haviam levantado uma nutrida força de ex-gladiadores, como tinha feito Gordus.
Além dos jardins públicos se elevava a grande parede depois do proscenio do teatro de Pompeu. Outros estavam naquele teatro. Lucius, Dryas, Fio, Aquila, Orelha cortada, Gordus e uns vinte dos mais duros e decididos homens de armas que Gordus havia conseguido encontrar. Márcia e Martinus estavam em Ostia, com Alia e Octus.
—Verá, - havia explicado Octus depois de que Fio foi ver Gordus, - falei com Aquila. Ninguém estava me olhando e peguei isso... Como chamaria... A ameixa da parede de sua casa, meu senhor. Segundo o curso da natureza, já devia estar passada. Então, depois de falar com Aquila, fui me reunir contigo. Seu amigo, - ele assinalou Maeniel, - disse o que era, mas não soube como lhe dar isso até que Aquila neutralizou os guardas. O único realmente que eu temia era que Dryas ou Gordus, qualquer deles, matasse um ao outro. Mas não ocorreu.
—E – Disse Maeniel, - eu tinha a rosa de Calpurnia.
Mas agora estavam aproximando, um grupo de homens com túnicas e togas brancas rodeando o homem mais poderoso do mundo. Maeniel se perguntou se necessitaria da espada.
Antonio era o único homem que o conhecia, mas antes que chegassem os degraus do pórtico, alguém pôs o braço sobre os ombros de Antonio e o levou para um lado.
César seguiu adiante e por um momento, os olhos de Maeniel se encontraram com os dele. E se surpreendeu se lamentando ser parte da humanidade. Não sabia dizer o que estava lendo nos olhos do homem: perplexidade por ter acontecido tão depressa, dor pela perda do amado caleidoscopio da existência mesma, uma consciência final da absoluta solidão. Não havia forma, se soubesse. Só sabia que aqueles olhos e a expressão que havia neles o perseguiriam enquanto vivesse.
Os dedos de Maeniel se apertaram sobre o punho da espada, mas César já havia passado.
A figura com múltiplos seios de alguma deusa oriental olhava para Maeniel. O lobo afastou a mão de sua espada. No alto, além das duplas portas de bronze da Cúria, ele podia sentir, cheirar e perceber de forma que nenhum ser humano poderia.
Ele estremeceu quando a alcatéia caiu sobre sua presa.
Alice Borchardt
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