Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NOITE DOS ELFOS / Jean Louis Fetjaine
A NOITE DOS ELFOS / Jean Louis Fetjaine

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A NOITE DOS ELFOS

 

O mundo, até então, tinha vivido em paz. Segundo a velha religião, as quatro tribos da deusa Dana, os Tuatha Dê Danann, tinham recebido a Terra Média em partilhas: aos homens coube o mar e as margens, aos anões as montanhas, aos elfos as florestas imensas e aos gobelins — o povo dos monstros — o país de Gorre, as terras longínquas para além das montanhas. E a cada povo foi confiado um talismã, como uma quarta parte do poder divino, para que as tribos vivessem para sempre: aos elfos coube o conhecimento e o Caldeirão de Dagda; aos homens o poder real, com a Pedra de Fal, a Fal Lia, que gemia quando um rei legítimo se aproximava; aos monstros a raiva e a violência, com a Lança de Lug; e os anões receberam a riqueza, graças à Espada de Nudd. Uma espada de ouro, que eles não cessaram, geração após geração, de embelezar com as mais belas gemas descobertas sob as suas montanhas. Essa espada chamava-se Caledfwch na língua dos anões. Excalibur na língua dos homens.

E depois veio o dia em que os homens esqueceram a antiga religião e não acreditaram mais em nada, nem mesmo em Deus, apesar dos monges. Só o poder real da Fal Lia lhes servia de religião, e essa sede de poder fê-los acreditar que eram o povo eleito, aquele que devia dominar o mundo.

No final de uma longa guerra contra os monstros, o rei dos homens, Pellehun, concebeu com a ajuda do seu senescal um plano que colocaria um contra o outro, o povo dos elfos e o dos anões, reforçando assim o seu próprio poder.

O talismã dos anões foi roubado por Gael, um elfo cinzento membro da todo poderosa Guilda dos ladrões e assassinos, controlada pelo senescal Gorlois. Os anões estavam já preparados para entrar em guerra para recuperarem Caledfwch, mas uma expedição composta por membros de cada povo e comandada pela rainha dos altos-elfos, Lliane, foi organizada para tentar salvar a paz. Contudo, a Guilda estava atenta, e se Gael foi encontrado, assassinado por um dos membros da expedição e levando o seu segredo para a campa, os últimos sobreviventes, Lliane e o cavaleiro Uter, perceberam demasiado tarde que tinham sido manipulados. Demasiado tarde para poderem impedir uma batalha absurda entre anões da Montanha Negra e os elfos dos pântanos, demasiado tarde para que os homens, mesmo dentro da cidade de Loth, não tentassem exterminar os anões que ainda aí residiam, bem como o rei deles, Baldwin.

O irreparável tinha sido cometido.

Excalibur estava no entanto nas mãos de Pellehun, e o domínio dos homens sobre o conjunto dos povos parecia inevitável.

 

 

                              A BATALHA

Lento, calmo. Como um rio de lava cinzenta vomitado pelas entranhas da montanha, eles agrupavam-se em fileiras compactas sob os estandartes das grandes famílias anãs. E este jorrar ininterrupto de guerreiros armados invadia pouco a pouco a planície, sem gritos nem soar de trompas, mais medonho ainda pelo seu silêncio. Era cedo e os primeiros raios de sol resplandeciam a erva de uma luz fria que fazia brilhar o orvalho. O exército do rei tinha acampado durante a noite na base da Montanha Vermelha, e o exército de homens tinha acordado de manhã cedo, transido. Ao abrirem os olhos, cada um deles, cavaleiros ou peões, sentiam o coração apertar-se diante do espectáculo aterrorizador dessa multidão. Os olhares viravam-se para o rei Pellehun e para o seu senescal, imóveis sobre os seus cavalos de batalha, tão parecidos com os seus cabelos grisalhos entrançados e uma simples cota de armas às riscas azuis e brancas cobrindo-lhes a armadura, tão frios e silenciosos quanto o exército dos anões, como que indiferentes à batalha que se anunciava.

Os homens corriam ajuntar-se às suas fileiras, apressados pelos sargentos, com o coração a bater, os braços pesados, e durante um tempo a algazarra das ordens, o barulho dos passos e o relinchar dos cavalos de batalha foram mais fortes que o medo. Depois, de novo, foi a espera. Ao centro da linha, os piqueiros e os peões, apertados nos seus saios de couro pregado, ouviam o coro dos frades cantando a prima, a primeira hora do dia, amontoados em volta de uma cruz imensa, e alguns deles persignaram-se. Atrás, soldados de cavalaria e cavaleiros comiam aparentando indiferença, enquanto que os seus escudeiros atarefados, preparavam apressadamente os seus pesados cavalos de batalha.

Um longo estremecimento percorreu subitamente a frente do exército dos homens. Ao longe, a uma légua das primeiras fileiras de arqueiros, os anões da Montanha Vermelha tinham-se posto em marcha, ao som dos seus tambores de bronze. Pellehun debruçou-se sobre o senescal-duque Gorlois, murmurou algumas palavras, e este partiu a trote fazendo avançar os criados dos mantimentos. Tal como uma nuvem de estorninhos eles dispersaram-se nas fileiras, carregados de cestos ou de barris, despejando o vinho nos elmos, lançando o pão à toa, e esta distribuição inesperada semeou rapidamente a desordem na linha de batalha. Dando o exemplo, Gorlois saudou o dia agitando um odre e bebeu a bom beber, inundando o queixo e a sua cota de malha com um vinho de grenache escuro como sangue, depois, esporeou o cavalo através das fileiras dos seus soldados.

— Bebam, comam! — vociferou ele atirando com o odre para um soldado armado de estoque com cara de criança. — É o corpo e o sangue de Cristo!

De novo, ele desatou a rir, galopando até à primeira linha, a dos arqueiros, que já espetavam diante deles os seus molhos de flechas, oito ou dez, para dispararem mais depressa. Sem parar, arrancou das mãos de um sargento de armas um estandarte com as cores do rei, e cravou-o na terra a cem toesas[1] das primeiras fileiras. Depois regressou a trote, sabendo que todos, a partir desse momento, olhavam para ele.

Ódio, pavor, esperança.

O duque Gorlois sorria, mas a sua cara medonha, zarolha e desfigurada por uma longa cicatriz, nada tinha de tranquilizadora. O senescal, tal como o próprio Pellehun, eram velhos segundo as contas dos homens, embora qualquer anão os tivesse considerado adolescentes. Os cabelos entrançados com fitas vermelhas, o queixo sem barba contrariamente à maioria dos cavaleiros, ele era pequeno mas de uma força pouco comum, nascido na guerra e feito para a guerra. Varreu com os olhos a frente de batalha, procurou o olhar do rei, e viu-o ao fundo escoltado por doze bravos da sua guarda pessoal. Pareceu-lhe que Pellehun lhe fazia sinal com a cabeça.

— Arqueiros! — gritou ele, mostrando o estandarte cravado na terra. — O primeiro disparo quando eles atingirem este ponto! E dez flechas por homem, antes que eles consigam agarrar aquilo que lhes viemos trazer!

O senescal desembainhou lentamente uma espada enorme que brandiu bem alto no céu, em pé sobre os estribos, a fim de que todos a vissem.

Era uma espada de ouro, brilhante ao sol pálido da aurora, cravejada de pedras preciosas, trabalhada durante séculos pelos melhores joalheiros da Montanha. A Espada de Nudd, o talismã que, segundo a lenda, tinha sido confiado aos anões pela deusa Dana e que eles chamavam de “Raio Resistente”, Caledfwch na sua linguagem áspera.

Excalibur, na dos homens.

Houve um burburinho intenso, que cobriu o resto do seu discurso. Os mais velhos entre os soldados sentiam-se gelados de medo à vista da Espada, incapazes de compreender como era possível que ela se encontrasse na posse do rei, horrorizados com a idéia que Pellehun pudesse ter cometido um tal sacrilégio. Os mais novos ignoravam até mesmo a existência dos talismãs e enchiam os mais velhos de perguntas. E os próprios frades se persignaram.

Gorlois deu meia volta ao cavalo com um golpe de esporas e regressou às fileiras a passo, não parando de brandir a espada sagrada dos anões. Diante dele, as tropas afastavam-se e mantinham-se em silêncio, mas o duque não olhava para ninguém. Parou no meio dos arqueiros, em frente ao campo de batalha.

— Excalibur! — gritou ele. — O talismã dos anões! Eis porque vós vos batereis e eis porque venceremos! Sem talismã, os anões estão condenados a desaparecer! E bem depressa o homem, só o homem, reinará sobre esta terra!

Houve um sobressalto entre monges e padres, olhares irados em direção ao bispo Bedwin, mas este continuou impassível. A religião de Cristo ainda era jovem. Nem o duque nem Pellehun nem ele próprio eram dignos dela. Como muitos homens, esses dois não acreditavam em nada, a não ser no preço do sangue, mas eles sabiam que o povo tinha necessidade de compaixão. Era já isso... Mais tarde viriam outros reis.

Em volta de Gorlois a linha dos arqueiros tinha voltado a formar-se, em três fileiras de trezentos homens. Vestidos com uma simples túnica de algodão azul e branca, com um elmo de couro reforçado com bandas de aço, cada um deles trazia uma aljava de vinte e cinco flechas e um grande arco de teixo com uma altura de quatro braçadas [2]. De um lado e do outro, escondendo a cavalaria, agrupavam-se blocos compactos de peões, piqueiros, soldados, homens de armas de todas as espécies. E toda esta multidão esperava, olhando a lenta progressão dos anões, semelhante a um muro em andamento, a uma imensa serpente com mil escamas a brilhar, por todo o lado onde o sol batia no ferro de um machado, o aço de um elmo. Os homens mordiscavam o pão, sorviam as últimas gotas de vinho, no olhar mau, ligados pelo ódio ou pelo medo. Os seus ouvidos vibravam ao som desses enormes tambores que ritmavam a marcha dos anões. Bum, bum. E os passos deles faziam vibrar a terra.

O sol estava alto, por esta altura, e as moscas começavam a zumbir em volta dos homens cobertos de suor. Os arqueiros limpavam as mãos úmidas às suas túnicas, alisando com a língua as penas da primeira flecha, e, ao fundo, os anões continuavam a avançar. Quinhentas toesas ainda, pelo menos... Talvez uma meia légua.

Rostos voltavam-se para Gorlois, olhos abertos esperavam um sinal, uma ordem, fosse o que fosse para terminar com esta espera. Quando eles estavam a trezentas toesas, um jovem arqueiro, repentinamente, disparou, patético, a sua flecha, a qual se cravou na terra longe da sombria massa dos anões. E como se se tratasse de um sinal, os homens começaram a vociferar, a cuspir, a estenderem os punhos e a brandirem as suas armas. Mortos de medo.

— ”Imaginem por instantes que eu estou nesse bosque, lá ao fundo — gritou o senescal, em pé sobre os estribos —, e que tenho entre as minhas mãos um arco desse teixo vermelho!”

Gorlois interrompeu-se, procurando com o olhar alguns arqueiros veteranos. Mas todos, todos conheciam o cântico do bardo lolo Goch, o grande cântico do arco. A partir da segunda estrofe, centenas de vozes recomeçaram com ele o velho hino guerreiro:

— “...Entre as minhas mãos um arco desse teixo vermelho, bem apertado, com uma corda sólida bem esticada, com um tubo de flecha bem redondo e bem direito, com uma mossa bem talhada...”

Sobre os estandartes enfeitados, reconheciam-se agora as runas dos anões sob a Montanha Vermelha — os mais numerosos — ao lado dos escuros estandartes da linhagem de Troin, brasão cor de areia esquartelado com uma espada de ouro, essa mesma espada que brandia o duque Gorlois como um desafio: a linhagem de Troin, comandada pelo príncipe herdeiro Rogor, dizimada pelas batalhas, humilhada pela perda do talismã que estava à sua guarda. Ontem uma honra, hoje uma vergonha. Os anões de Rogor marchavam à frente de todos os outros.

—“...Com umas penas bem longas unidas com seda verde, com uma cabeça de flecha em aço bem aguçada, pesada e sólida, de uma tempera verde e azul que fará jorrar o sangue de um catavento...”

Os clãs de guerra de toda a nação anã tinham-se reunido ali para uma guerra santa, guerreiros, caçadores e mesmo mulheres empoleiradas em pesadas carroças puxadas por póneis, batendo nos tambores de bronze até não aguentarem mais os braços, bum, bum, ao ritmo lento do passo do exército.

— “Imaginem que pousei o meu pé sobre um tufo de erva, que as minhas costas se apoiam sobre o tronco de uma bétula, que o vento sopra nas minhas costas, que o sol brilha à minha volta, que a rapariga que eu mais amo está perto de mim para me olhar...”

O resto do cântico foi inaudível, afogado entre as vociferações dos soldados, de um lado ao outro das fileiras compactas dos arqueiros. Depois houve o bramido formidável dos anões, quando eles viram a Espada de Nudd brilhar no coração das linhas inimigas. Então, puseram-se a correr. E a terra tremia sob o martelar da sua corrida pesada.

A primeira saraivada de flechas obscureceu o céu e abateu-se como uma tempestade de granizo. Mesmo antes dos primeiros dardos terem atingido a massa de guerreiros barbudos, os arqueiros encaixavam já uma nova flecha, ajustavam, apertavam, curvavam as costas, enchiam o peito. O polegar das suas mãos direitas segurava a flecha tocando na orelha ou no queixo, somente por um instante, e os dedos esticavam-se, libertando a corda num assobio de chicote, uma e outra vez mais. Dez flechas por arqueiro em menos de um minuto. E Pellehun dispunha de perto de mil arqueiros...

O anões desprezavam o arco. Serviam-se por vezes de fundas, mas somente para caçar. Quando a nuvem de flechas a zumbir se abateu sobre eles, fecharam as mãos sobre os punhos dos seus machados, curvaram as costas como que debaixo de chuva e correram mais depressa, pisando os mortos e feridos atingidos pelas flechas. O estandarte cravado por Gorlois foi arrancado pelo seu irromper, mas os arqueiros apontavam já com o arco armado, disparando ondas de milhares de flechas que açoitavam as suas fileiras com o barulho de chicote, que trespassavam as suas cotas de malha em couro, as suas carnes, e pregavam ao chão os guerreiros loucos de raiva, sob o olhar assombrado do exército do rei. Os anões conseguiram chegar até às primeiras fileiras de arqueiros, loucos de dor e ódio, cortando com os seus machados a torto e a direito, abrindo sulcos ignóbeis, salpicados de sangue, e já as suas mãos se estendiam para Caledfwch, a espada sagrada, quando, sob uma ordem de Gorlois, as fileiras de peões se abriram. Semelhante a um dique cedendo bruscamente ao assalto das ondas, a carga de cavaleiros enfiava-se pela brecha e batia nas fileiras dizimadas. Lanças contra machados. Ferro contra couro.

Não sobrou nem um para chegar à espada.

 

                           RHIANNON

Estava fresco sob a abóbada de árvores, a maioria delas enormes carvalhos seculares, cuja ramagem espessa não deixava passar mais que finos raios de sol, oblíquos como lanças, transformando o musgo da vegetação rasteira num tabuleiro de sombra e luz. Estava fresco e no entanto o corpo nu de Lliane estava coberto de suor. Não era somente o efeito das contrações. Elas eram ainda bem espaçadas, não muito dolorosas. Não, era outra coisa. Uma sensação difusa, aterrorizadora, como se milhares de seres gritassem à morte, como se o mundo estivesse a perder o seu equilíbrio. Deitada sobre um colchão de fetos amarelecidos pelo verão, ao pé de um freixo — árvore da fecundidade — a rainha ergueu-se sobre um cotovelo e procurou o olhar de Blodeuwez, a curandeira. Com o queixo para cima, cheirando o vento, a elfo loira franzia as sobrancelhas, também ela percebendo esta vibração fora do normal.

Era um espectáculo estranho vê-la inquieta. Estranho e pouco tranquilizador... Lliane quis dizer alguma coisa, mas uma nova contração, brutal, cortou-lhe a respiração. Desta vez, o espasmo foi violento, mais violento e mais longo que todos os outros. Lliane abriu completamente os olhos, admirada com a intensidade da dor, e mordeu os lábios para não gritar, agarrando com força a mão da sua amiga.

— Respira — murmurou Blodeuwez. — As contrações estão a acelerar, é normal. É sinal que a criança vai nascer...

A curandeira retirou cuidadosamente da fronte úmida da rainha uma longa mecha de cabelos negros empapada de suor, e depois esforçou-se por lhe sorrir, apesar do estranho sentimento de angústia que a assolava. Porque é que se sentia tão oprimida? Ela tinha aprendido a arte da medicina com Gwydion, um dos mais famosos druidas do povo dos bosques, e já tinha assistido inúmeras mães na hora do parto. Os nascimentos eram raros, entre os elfos (contrariamente aos homens que, esses, não paravam de aumentar), e o nascimento de um bebê de sangue real era um acontecimento importante, mas não era somente a importância da situação que lhe dava um nó na garganta e no coração... Primeiro, tinha havido aquele grito mudo, terrível, que parecia jorrar da própria terra, e agora esta sensação de pavor difuso, irracional, inexplicável, que ela sentia ao olhar Lliane.

Blodeuwez virou-se para o círculo das Bandrui, as druidas da floresta que os homens chamavam de feiticeiras, tão pálidas nos seus vestidos escuros de catassol com reflexos ondulantes, mas os seus olhares fugidios, longe de a tranquilizarem, traíam o mesmo mal estar. Ela percebeu o olhar da rainha pousado sobre si e procurou algumas palavras para a tranquilizar, mas nesse instante a contração terminou, a pressão sobre a sua mão relaxou. A curandeira deslizou os dedos no sexo da rainha, avaliando a dilatação. A bolsa de águas estava dura e sem dúvida seria necessário rompê-la para apressar o parto, mas ela sentia-se sem forças, paralisada com a idéia de fazer algo de errado. O ventre da rainha não estava anormalmente inchado? Seria possível que ela desse à luz gêmeos? Isso seria uma explicação...

— É melhor virares-te de lado — disse ela. — Será mais fácil...

Lliane desviou os olhos das folhagens que a cobriam, raiadas de luz, tão agradáveis, tão fortes, e sorriu à sua companheira.

Talvez devesse ter-lhe dito...

A criança que ela esperava não era de Llandon, nem de nenhum outro elfo. Era filho de um homem. Filho de Uter. Nunca até então uma elfo tinha dado à luz um filho de um homem. Talvez fosse morrer? Talvez a natureza não o permitisse? No entanto, Myrddin tinha nascido de uma união semelhante. Era portanto possível. Lliane fechou os olhos saboreando alguns segundos de repouso, mas a imagem de Myrddin veio ensombrar o seu espírito. O homem-criança de cabelos brancos, frágil como um jovem elfo, e no entanto coberto de uma aura de poder que a tinha apavorado mesmo a ela, da primeira vez que o tinha visto. Seria o bebê como ele?

Uma nova contração pôs fim aos seus sombrios pensamentos, e ela acolheu-a quase que com gratidão. Desta vez, no entanto, ela não conseguiu evitar um gemido de dor. A criança que trazia dentro dela era demasiado grande para uma elfo. Ela sentia-a mexer, enorme, dentro do seu ventre, distender-lhe as carnes, abrir-lhe a bacia, esquartejá-la. A criança de Uter...

— Vou rebentar a bolsa de águas — disse docemente Blodeuwez. — Não sentirás nada.

Lliane abanou a cabeça e fechou os olhos. Sentiu que a elfo fazia deslizar um pauzinho para dentro dela, e imediatamente um líquido morno inundou-lhe as pernas, provocando uma nova contração, mais forte ainda.

— Está tudo bem — disse a curandeira, com uma voz tão calma quanto possível.

Ela atirou para longe o pauzinho sujo, reprimindo uma vontade irracional de fugir, de deixar a clareira a toda a pressa, sem olhar para trás. A rainha sofria demasiado, isto não era normal. A contração terminou, e Lliane relaxou, esgotada, com os olhos cheios de lágrimas. As Bandrui, em volta delas, murmurando os seus encantamentos, com os seus olhares fugidios e os seus sorrisos tímidos, não a ajudavam de forma alguma. Somente Blodeuwez a poderia ter compreendido, se ela lhe tivesse contado.

— Pensa no teu bebê — continuou a curandeira com a mesma voz doce. — Tenta imaginar como é que ele será, dentro de alguns minutos... Achas que será um rapaz?

— Não — disse Lliane. — Será uma menina...

O sorriso da sua amiga imobilizou-se por um curto instante, tanto a certeza tranquila da rainha a tinha desconcertado.

— Vi-a em sonhos — continuou ela numa voz entrecortada, passando a língua pelos lábios ressequidos. — Ela estava a tocar flauta na floresta, no meio da noite, e fadas brilhantes como pirilampos faziam um círculo em volta dela para a ouvirem tocar... Ela já era grande, quase adulta. Ela tinha...

Lliane sorriu à sua amiga.

— Ela era loira, como tu, e tinha uma coroa de buxo nos cabelos...

Uma nova dor, tão forte e tão repentina, arrancou-lhe um grito de dor agudo. Lliane ergueu-se um pouco, mas Blodeuwez voltou a deitá-la no chão com uma força insuspeitável, depois pousou os dedos brancos como a espuma do mar sobre o seu sexo inchado. Ela sentiu a carne palpitar, distender-se, e abrir-se subitamente, deixando aparecer uma superfície redonda, lisa, viscosa.

— Está aqui! — gritou ela. — Estou a senti-lo! Estou a senti-lo, Lliane! Empurra! Empurra com força!

A rainha não a ouvia. Ofegante, cheia de dores, tinha a sensação de ser esquartejada viva. Em volta dela tinham-se juntado as druidas da floresta, que lhe molhavam a cara com água fresca, massajando-lhe o ventre e recitando o Duili fedha, “os elementos do bosque”, a antiga magia das árvores que os elfos chamavam Ogam.

 

“Eu sou o fruto dos frutos,

O produto de nove sementes e caroços:

Ameixa, marmelo, murta, amora

E da pêra e da framboesa,

Sorveira, abrunho, cereja

Por porções que em mim se cruzam.”

 

Ailm, pethbioc, gort, muin... Abeto, cana, hera, videira: as árvores símbolo do parto, vida, força e fecundidade. Elas traçavam no seu ventre as runas ogamicas que afastavam a desgraça, mas os seus olhares cruzavam-se e os seus lábios já não sorriam.

— Vamos, vamos, força! Faz força, já o sinto!

O mesmo mal estar oprimia-as a todas, sem que compreendessem a causa. E elas olhavam, fascinadas, as mãos brancas de Blodeuwez sujas de sangue e fluídos, extirpando do sexo distendido da rainha uma cara enrugada, roxa.

Lliane gemeu baixinho, e o pequeno corpo jorrou inteiro, diretamente para os joelhos da curandeira, numa onda. Então a própria Blodeuwez, como se o nascimento lhe abrisse os olhos, sentiu a insuportável opressão que tinha afastado as druidas.

— É... É mesmo uma menina — disse numa voz cortante. Mas ela não ousava olhar para Lliane, contemplando o recém-nascido tão parecido e tão diferente de todos os outros que ela tinha ajudado a nascer, e não conseguia cair em si. Blodeuwez chorava sem se dar conta. Sem forças, ela deixou-se cair sobre o leito de fetos.

Os primeiros gritos do pequeno ser soaram sob a abóbada de árvores sem que ela conseguisse reagir. A rainha tinha desmaiado. As druidas tinham fugido. Ela estava sozinha. Superando o seu mal estar, examinou pela primeira vez o bebê pousado sobre o ventre ainda inchado de Lliane. A pele, o tamanho dos braços e das pernas, a forma da cabeça... A criança não era normal. Pior ainda, emanava uma vibração opressiva, que ela sentia fisicamente, intensamente. Uma vibração quase insuportável. Lentamente endireitou-se sobre um braço e arrastou-se até ela... Um silêncio absoluto tinha-se abatido sobre a clareira. Mesmo os pássaros, mesmo o vento se tinham calado, como que petrificados pelo choro do recém-nascido. Ela estava sozinha. Lliane continuava inconsciente. Ninguém saberia. Bastava não fazer nada. Bastava deixá-la...

— Afasta-te.

A curandeira sobressaltou-se, fustigada por uma onda de pânico.

Myrddin.

O homem-criança.

Ele nem sequer olhou para ela, concentrado nos gestos essenciais, aqueles que ela não tinha feito: cortar o cordão umbilical, limpar a boca do bebê das mucosidades que o asfixiavam, envolvê-lo docemente no seu casaco para o aquecer. Depois debruçou-se sobre o ventre de Lliane que massajou sem parar até que uma última contração dela expulsou a placenta. Blodeuwez recuou rastejando de costas, com os olhos abertos de horror e indignação. Como ousava ele estar ali, no coração da floresta de Éliande, nessa clareira proibida, ele o proscrito, o druida traidor, nem elfo nem homem? Como ousava ele tocar na rainha?

Lliane tinha recuperado a consciência e olhava-o sem reagir, demasiado esgotada para procurar esconder a sua nudez. Myrddin tinha-se levantado, com o bebê nos braços, tão esguio dentro do seu fato azul comprido que parecia alto, sorrindo como se fosse ele o pai, com aquela cara juvenil apesar dos seus cabelos brancos curtos, e apertou carinhosamente a criança contra ele.

— Morgana... Não tenhas medo, eu estou aqui. Vou tratar de ti...

— Ela não é tua!

O homem-criança virou-se tranquilamente, sem deixar de sorrir. Lliane levantou-se a muito custo, tão fraca que parecia quase a desmaiar, mas os seus olhos verdes tão claros, quase amarelos, brilhavam com uma força extraordinária.

— É claro — murmurou Myrddin. — Aliás, ainda não é a altura.

Ele estendeu-lhe a criança, que parara de chorar, e depois afastou-se, com o mesmo sorriso enervante. Lliane apertou a filha contra ela, tão bela e tão selvagem, apesar dos choros, apesar do sangue. Olhando-a pela primeira vez, até ela, sua mãe, sentiu uma angústia apertar-lhe o coração. Esta tez rosada, as faces redondas, os pequenos braços rechonchudos... Não era uma elfo. Nem uma mulher.

— Talvez nunca te consigas habituar — murmurou Myrddin. — A minha própria mãe nunca conseguiu habituar-se à minha figura...

Lliane olhou-o com tal ódio que ele ficou desconcertado.

— Vou embora — balbuciou ele. — Quer que avise Uter?

— Quero que desapareças para sempre! — gritou Lliane.

— Estarei a teu lado quando precisares de mim.

E ele partiu no seu passo tranquilo, no entanto tão rápido que já tinha desaparecido antes de Blodeuwez ter tido tempo de se juntar à rainha e à filha.

— Que nome é que ele lhe deu? — disse ela

Lliane enxugou as lágrimas, atirou com os seus longos cabelos negros empapados de suor para trás das costas e olhou com ar sério a curandeira.

— Myrddin nunca veio. Ele não existe. Não passa de uma sombra num sonho, que a tua memória já esqueceu. Hael hlystan ansyn aefre geswican!

Blodeuwez cambaleou, tomada por uma vertigem, e a recordação do homem-criança desapareceu do seu espírito para sempre. Ela hesitou alguns segundos, pestanejou como se tivesse acabado de acordar, depois sorriu para a amiga e agachou-se ao lado dela. A bebê tinha adormecido a mamar, tão tranquila... A horrível sensação de opressão que ela tinha sentido no momento do seu nascimento tinha-se atenuado, e agora ela conseguia olhar a cara da criança.

— Enganaste-te no teu sonho — disse ela. — Não é loira...

Lliane sorriu, afastou a cabecinha redonda da filha e contemplou os finos cabelos castanhos que a guarneciam. Parecia um pardal caído num charco...

— Ela é parecida contigo — continuou Blodeuwez. — E no entanto... não é uma elfo. Não é verdade?

Lliane estremeceu, mas evitou cruzar o olhar com Blodeuwez.

— Podes contar-me, tu sabes...

— É filha de um homem — murmurou ela por fim.

— Conheço-o?

A pergunta da curandeira provocou uma gargalhada em Lliane, e com o riso voltaram as lágrimas, tal como um rio rompendo um dique. A rainha sentia-se suja, indigna, monstruosa. Esta criança que ela tinha querido manter e para a qual não conseguia olhar verdadeiramente, esta criança que ela tinha trazido ao mundo no meio do reino élfico, ao lado de Llandon, que não era o seu pai, longe de Uter que ela tinha abandonado, esta criança estava aqui, agora, mas ela não sentia essa sensação de plenitude, de conquista que ela tanto esperava.

Blodeuwez abraçou a rainha e a filha, olhando o vazio, deixando que o choro de Lliane terminasse. As duas amigas ficaram ali várias horas, perdidas nos seus sonhos. Lliane pensava em Uter, que tinha abandonado meses antes, quando o seu ventre tinha começado a crescer. Onde estaria ele neste momento? Ela tinha conseguido esquecê-lo nos braços de Llandon, quando os elfos tinham abandonado a orla das planícies desbravadas para se enterrarem na floresta de Éliande, longe dos homens, dos anões e da guerra. Mas a guerra não tinha chegado até eles, apenas o seu eco, de tempos em tempos, como um rumor obsceno que ninguém queria ouvir.

Blodeuwez, essa, pensava em Llandon, e em todo esse tempo que tinha decorrido desde o regresso da rainha, os dias e os meses de silêncio, quando todos em volta dele se rejubilavam com o nascimento de um herdeiro. Ela esforçava-se por rever a cara do rei dos altos-elfos, a sua atitude em relação à rainha, mas nenhuma das suas recordações a levavam a acreditar que ele suspeitasse do seu infortúnio. Oh, é claro, os elfos não sabiam o que era o ciúme, nem a vergonha, nem mesmo aquilo a que os homens chamavam de amor. Os casais eram raramente definitivos, e cada criança tinha várias mães. Mas esta criança nem sequer era filha de um elfo...

— O pai dela chama-se Uter — disse bruscamente a rainha. — É um dos cavaleiros humanos que me acompanharam na demanda de Gael. Ele... Eles não são como nós, sabes, têm esse desejo, esse abandono a que chamam amor... Uma tal necessidade...

Lliane interrompeu-se, e Blodeuwez respeitou o seu silêncio. Pelo menos durante alguns segundos.

— E tu também o amavas? — disse ela por fim.

— Achei que sim... E depois tive medo. Não podes saber o que é ser amada. Ser mulher de um só, de não ter mais um clã, de tremer quando ele parte... Nós vivíamos nas florestas do Norte, com os Bárbaros.

Lliane sorriu e estendeu um braço à amiga.

— Ajuda-me a levantar...

Blodeuwez pegou na criança, depois envolveu a rainha num longo vestido cor de folhas. Elas puseram-se a caminhar a passos rápidos, em direção ao riacho onde, segundo os costumes, se banhavam as jovens mães e os recém-nascidos, para se purificarem antes de reencontrarem o seu povo.

— Uma noite, ele voltou ferido — continuou Lliane com um voz já sem fôlego ao fim de algumas toesas.

Ela tocou na face, com uma expressão tão triste...

— Tinha a cara cortada, desde a orelha até o queixo. Os cabelos cheios de sangue seco. Parti nessa mesma noite. Não sei porquê.

Desta vez, Blodeuwez não tentou que ela continuasse a falar, nem tentou compreender Lliane (mas, é claro, era uma elfo, e ignorava que o amor pode meter medo).

Elas deixaram a clareira pelo mesmo caminho que tinha tomado Myrddin, sem voltarem a trocar uma palavra até que ouviram, para além dos barulhos das folhas e do piar dos pássaros, o som calmo do riacho a correr. Lliane tirou o vestido com um simples movimento de ombros, tirou carinhosamente o seu bebê dos braços da curandeira e avançou para a corrente de água, entrando rapidamente até à cintura. Mal a água lhe tocou nos pés, a bebê pôs-se a chorar.

— É o seu lado humano! — disse Blodeuwez a rir. — Estão sempre com frio!

Lliane sorriu, mas emergiu-se completamente, mergulhando com a criança na parte mais funda do riacho. Em volta delas, a água turvava-se, lavando o sangue e os fluidos com os quais estavam cobertas. A bebê começou a nadar, reencontrando por instinto o elemento líquido do qual provinha. Não era uma elfo, mas abria os seus grandes olhos verdes e sorria deslizando na corrente, como uma ondina. O filho de uma mulher não teria tido esta calma. Lliane acariciou afetuosamente a sua cara redonda como uma maçã e a sua coroa de cabelos finos ondulando com a água, uns cabelos tão castanhos quanto os de Uter...

Quando saíram da água, a criança, encostada à barriga da mãe, já não chorava. Lliane pousou-a sobre o chão e secou-a, com um sorriso à beira das lágrimas, e depois vestiu o seu vestido de catassol, que lhe estendia Blodeuwez.

— Como lhe vais chamar? — perguntou esta.

O nome Morgana atravessou o pensamento da rainha. Muirgen... ”Nascida do mar”... Um nome que traía as suas origens humanas. Lliane pô-lo imediatamente de lado.

— Que se chame Rhiannon — disse ela. — Rhiannon “a Real”, para que ninguém duvide que ela é filha de uma rainha.

 

A planície troava com um barulho ensurdecedor. O sussurrar contínuo dos monges, os queixumes dos feridos, anões ou homens, os risos dos sobreviventes e, de tempos a tempos, o som agudo, do riso ao choro, de uma taberneira empurrada por um velho soldado. O tinido das armas, recolhidas a rodos no campo de batalha e atiradas para as carroças. E, além de tudo isto, o zumbir das moscas, sob um sol de chumbo que fazia vibrar a terra.

Pellehun continuava montado a cavalo depois de todo esse tempo, percorrendo em silêncio a imensa vala comum, inundado de suor por debaixo da sua armadura. E, enquanto o seu senescal dava caça aos restos miseráveis do exército anão comandando a cavalaria, o rei impregnava-se de todo este horror. Poças de sangue, crânios esmigalhados, flechas cravadas na terra como bolas de espinhos. Ninguém ousava dirigir-lhe a palavra desde que o próprio Gorlois, regressando a galope das linhas vitoriosas tinha sido tratado a baixo de cão. Ele não sentia alegria no aniquilamento dos anões. Somente uma repugnância enojosa.

Pellehun esporeou o cavalo, que partiu de imediato a galope. Os guardas da sua escolta não se deixaram surpreender que por mais de um segundo, e lançaram-se atrás dele, forçando os seus cavalos de batalha até se lhe juntarem.

— Para trás! — gritou Pellehun. — Vinte passos atrás! Deixem-me sozinho, cos diabos!

O rei meteu esporas a fim de se afastar deles. O seu cavalo saltou para evitar o cadáver de um guerreiro anão, caindo tão pesadamente que o rei gemeu, com o corpo todo martirizado pela sua armadura em placas. O rei puxou as rédeas e pôs o cavalo a trote, mas o trote era ainda mais doloroso. Havia um bosquete de arbustos definhados que mal dava sombra, mas era melhor que nada. Alfeneiros, carregados de bagas negras às quais chamavam uvas de cão. Mesmo aí havia cadáveres... Como é que eles tinham sido mortos, esses aí, já fora do alcance das flechas?

O rei pôs o cavalo a passo e largou as rédeas para empurrar o capuz de ferro que lhe cobria a cabeça. Os seus longos cabelos grisalhos entrançados com fios de ouro estavam empapados de suor, pontos brancos dançavam-lhe em frente dos olhos. Com a boca aberta, ele respirava ofegante; as mãos tremeram-lhe quando quis limpar a cara. Pellehun fechou os olhos por um instante, e quase imediatamente um grito horrível, um choque, o seu cavalo que se empinava e se abatia sobre ele como se um abismo se acabasse de abrir sobre os seus cascos. O ar esvaziou-se dos seus pulmões quando ele caiu no chão com todo o seu peso, a perna triturada pela massa do seu cavalo de batalha armado. Caras carrancudas, barbudas, em volta dele. Anões, como que surgindo do solo. Ele nem sequer conseguiu gritar quando o ferro de um machado lhe cortou a couraça de couro acolchoado, partindo-lhe as costelas e fazendo jorrar o sangue. Os guardas tinham atacado imediatamente e o bosquete estava cheio de tumulto, mas Pellehun já não ouvia nada. Havia aquela cara, por cima dele. Longos cabelos por debaixo de um elmo, uma barba ruiva espessa, olhos negros brilhantes de ódio...

— Olha para mim! — gritava o anão. — Quero que saibas quem te mata.

Pellehun não conseguia responder, mas piscou os olhos para ver melhor.

— Eu sou Rogor, príncipe de Ghâzar-Run, herdeiro do trono sob a Montanha Negra!

Ao lado deles caiu um guerreiro anão trespassado por uma lança, mas Rogor nem lhe dirigiu o olhar. Pellehun abanou a cabeça, esboçou um sorriso e reuniu as suas últimas forças para falar.

— É... justiça.

— O quê?

O velho rei tossiu, salpicando o queixo de sangue e a sua cabeça caiu por terra. Rogor contemplou-o com um ódio formidável, depois endireitou-se lentamente, levantou bem alto o seu machado e abateu-o com todas as suas forças, cortando o pescoço tão rapidamente que a cabeça do rei rolou como uma grilheta libertada das correntes. O anão agarrou-a pelas tranças, fê-la rolar como uma funda e atirou-a sobre os cavaleiros da escolta.

— Troin está vingado! — gritou numa voz demente. Depois fugiu em direção à montanha.

 

                         NA FLORESTA DE ÉLIANDE

No coração da floresta, a cidade de Éliande estendia-se entre o céu e a terra. Era uma cidade em teia de aranha, um inextricável emaranhado de lianas e ramos, de folhagens e moitas, com fetos altos como um elfo e quase amarelos, que formavam por cima do solo uma abóbada luminosa. Alguns tinham construído as suas cabanas sobre o solo, sob esta cúpula translúcida, outras eram mesmo enterradas no solo, entre as raízes lisas das faias. Mas a maioria dos elfos vivia no cimo das árvores, mesmo por debaixo do céu, em cabanas que não se pareciam em nada com aquilo que um homem poderia considerar uma casa.

Esta cidade enorme estava de tal forma fundida na floresta, que podia ser atravessada sem se dar conta dela, pois não se encontrava aí nem o barulho característico das cidades humanas, nem a sua agitação perpétua, nem odor algum a comida. Os elfos não sentiam nem o frio nem a chuva, e a sua noção de conforto mergulhava os outros povos na consternação. Era por isso que eles não construíam nada e por muito grandes que fossem (e esta era uma das maiores de todas), as suas cidades não passavam, aos olhos dos homens, de uma confusão vegetal sem significado. Era, no entanto, uma cidade enorme e muito antiga, edificada muito antes dos primeiros burgos fortificados dos homens terem aparecido na planície. Ter-se-ia procurado aí em vão um palácio, estabelecimentos ou mesmo muralhas. Não existiam nem ruas, nem praças, nem lugar algum onde se reunirem, a não ser uma clareira. Mas todas as árvores estavam marcadas com runas e todas as rochas esculpidas, por vezes desde a aurora dos tempos, com caras ingénuas em forma de folhas ou com estranhas espirais a que os próprios elfos tinham perdido o sentido.

Nos tempos em que o mundo era jovem, dizia-se que a Deusa Dana tinha criado a primeira floresta para reunir os três níveis de consciência, o mundo celeste que aflorava os ramos altos das árvores, o da superfície e das aparências sobre o qual elas cresciam, e o mundo subterrâneo no qual enterravam as raízes. Ela tinha plantado as sete árvores sagradas, o carvalho, a bétula, o salgueiro, a aveleira, o amieiro, o azevinho e a macieira, e deste bosque tinha nascido toda a vegetação do reino de Logres e arredores. Cada árvore tinha sido designada por um ogam, uma runa vegetal, formando assim um alfabeto sagrado, a fim de que as florestas, falassem para sempre, com quem as soubesse entender.

Era aí, no coração do bosque, que os elfos tinham escondido o seu talismã, o Caldeirão de Dagda, o Graal do conhecimento divino. Era aí que se perpetuava o ensinamento da Deusa, aí que os iniciados se tornavam dru wid, sábios através das árvores...

Mas isso tinha sido há muito tempo, e a floresta tinha pouco a pouco desaparecido, destruída pelo desbravar dos homens do campo, retalhada por escaras e clareiras cada vez maiores, que chegaram rapidamente até ao mar. Tinha sido lento a princípio, quase ridículo tão desprovidos de ferramentas pareciam os homens, com os seus machados e serras, face ao oceano de árvores imensas, infinito. No entanto, hoje em dia, a planície dos homens cobria o mundo, e não subsistiam mais, que aqui e ali, bosques rodeados de tojo, silvas e troncos de árvores abatidas, apodrecendo lentamente debaixo da chuva e do vento.

Os elfos tiveram que aprender a viver fora da floresta. Alguns tinham-se estabelecido nos pântanos, nas fronteiras das terras assombradas pelos monstros. Outros, a quem chamavam elfos verdes, subsistiam nos bosques e arvoredos, perto do povo. Os elfos dos Havres tinham-se juntado aos homens das dunas e conhecido o mar.

Não restava do seu antigo domínio mais do que uma grande floresta, a última pela qual os elfos se tinham batido, que se estendia em volta do bosque sagrado das sete árvores. Os homens chamavam-na de Éliande, sem saberem que era o nome pelo qual os elfos designavam noutros tempos toda a floresta, e com o tempo os próprios elfos lhe tinham dado o nome de Brocéliande — o país de Éliande. Os que ainda aí viviam eram chamados de altos-elfos, Lliane era a rainha deles.

O dia tinha quase chegado ao fim quando, apoiada por Blodeuwez, Lliane chegou à orla da cidade. Uma doce luz alaranjada brotava das folhagens cintilantes de pólen. Lliane sorriu ao descobrir que as árvores estavam pintadas ou carregadas de grinaldas de flores em honra do recém-nascido, e apertou com mais força Rhiannon nos seus braços. Os elfos, à sua passagem, inclinavam-se em silêncio, traçando por vezes na sua direção as runas da sorte — Oferleof aetheling bearn — e, formavam alegremente uma procissão atrás da jovem mãe. Rapidamente, uma verdadeira multidão caminhava atrás de Lliane e de Blodeuwez, bordejando entre as árvores da cidade élfica tão tranquilamente que, apesar do seu número, não perturbava sequer o canto dos pássaros.

Lliane abrandou o passo, com um nó na garganta e a respiração cortada pela emoção. Tudo era tão calmo, aqui... Os Antigos tinham batizado este lugar de Kaer Sidhi, a Cidade da paz, e nunca este nome esquecido se lhe tinha ajustado tão bem quanto hoje. As faces da rainha tremeram junto aos seus lábios e deu-se um nó na sua garganta. Ela suspirou para aliviar a sua angústia e atirou para trás os seus longos cabelos negros, com os olhos brilhantes de lágrimas. Nos seus braços, Rhiannon tinha adormecido, com as suas pequenas mãos rechonchudas cobrindo metade da cara. Uma cara demasiado redonda, demasiado rosada... Llandon compreenderia ao primeiro olhar.

Ela voltou a caminhar, esforçando-se por sorrir, como se cada passada não a aproximasse da vergonha e do exílio, longe desta floresta de Éliande que ela tanto amava. Blodeuwez, imperceptivelmente, afastava-se dela. Os seus braços já não a sustentavam, as suas longas mãos quase brancas deslizavam pela roupa da sua amiga como fantasmas, e Lliane afastou-se daquela união lassa com um golpe de rins.

Era melhor assim. Que ela estivesse sozinha frente a Llandon. Que ninguém visse os traços do rei gelarem ao ver a criança, com a dúvida e a tristeza no olhar.

O sol já tinha passado para trás da floresta, matizando de ouro e prata as ramagens mais altas, e a vegetação rasteira entrava docemente na escuridão. Lliane sentiu-se mais segura, apesar da escuridão não fazer uma grande diferença para os elfos com olhos de gato. O bebê gemeu no seu sono e agitou os seus pequenos membros. Os seus lábios redondos formavam minúsculas bolhas de saliva; Lliane comoveu-se ao vê-la franzir os olhos e depois entrar numa série de mímicas adoráveis, ridículas e no entanto graves, como se esse trabalho lhe exigisse uma concentração enorme. Ela aproximou-a dos seus lábios e murmurou-lhe ao ouvido palavras calmantes, cheirando o bom odor a bebê, acariciando-lhe a face de pele tão suave.

— Mostras-ma?

Lliane não pode deixar de dar um salto. Llandon estava ali. Ele estendia-lhe os braços, mas os seus olhos não sorriam. Ele sabia, é claro... Como é que ela tinha podido acreditar que ele se deixaria enganar? O rei dos altos-elfos aproximou-se mais e afastou o pano que cobria Rhiannon. Apesar da sua mestria, Llandon teve um movimento de recuo e perturbou-se ao ver a criança. Levou a mão à garganta, sentindo aquilo que as druidas tinham sentido antes dele na clareira, aquela opressão que a própria Lliane sentia anteriormente quando via Myrddin. Os olhos do rei, por instantes perdidos, pousaram sobre a esposa com uma tal expressão de espanto que o coração de Lliane se apertou uma vez mais. Ela estendeu a mão para lhe acariciar a face num gesto de ternura, mas Llandon afastou-se dela como se tivesse recebido uma bofetada.

Num gesto demasiado brusco para parecer normal ao povo da floresta, ele tirou-lhe o bebê dos braços e apertou-o contra o peito, cobrindo-o cuidadosamente com o pano. Depois, abrindo caminho através do grupo de dignatários reunidos atrás dele, sem mesmo conceder um olhar a Gwydion, o grande druida, que tinha avançado para o abençoar, desapareceu com a criança na sua cabana.

 

Baldwin sentia-se velho há séculos. Há duzentos e trinta longos anos que ele reinava sob a Montanha Vermelha, e isso era muito tempo, mesmo para um anão... O velho Baldwin já era rei muito antes da guerra contra os monstros, antes mesmo do pai de Pellehun ter nascido, há tanto tempo que ele tinha acabado por acreditar que iria viver para sempre. Mas o seu reinado acabava num desastre. Os anões tinham voltado as costas à Deusa, e a Deusa tinha-lhes tirado Caledfwch, a espada do raio, o talismã deles. O seu povo estava morto por se ter esquecido disto. Morto por orgulho. Morto pela louca vaidade de querer viver sem deus.

E tudo isto era culpa sua.

Em volta dele a montanha estava cheia de tumultos e lamentações, mas o rei não ouvia nada. Enterrado na sua barba e nas suas espessas sobrancelhas, contemplava os seus guerreiros, ou pelo menos aqueles que tinham sobrevivido. As suas barbas entrançadas estavam sujas de sangue seco, os seus olhos sombrios perdiam-se no vácuo, ainda gelados pelo horror do que tinham visto, e as suas armaduras de couro pregado estavam sujas de terra. Pois os sobreviventes tinham tido que se deitar, rastejar sobre a erva gemendo de terror sob a saraivada de flechas. Já não existia honra sob a Montanha Vermelha. A honra dos anões tinha ficado na planície...

O rei baixou os olhos, esmagado pelo peso da vergonha e da tristeza, e quando os voltou a abrir o seu olhar procurou o dos dois cavaleiros que tinham encontrado refúgio sob a Montanha Vermelha.

— Senhor Ulfin!

O velho Baldwin levantou uma mão bem pesada e fez sinal ao maior dos dois para avançar. Este hesitou, deitou um olhar ao seu companheiro e depois aproximou-se do rei com um ranger de armadura, chocando à passagem com guerreiros anões que se afastavam de má vontade. Fossem quais fossem os serviços prestados noutros tempos, Ulfin era um homem, e ainda por cima um dos doze bravos do rei Pellehun, e somente o fato da sua presença tinha-se tornado insuportável para eles.

— Ulfin, meu amigo, é hora de nos despedirmos — disse Baldwin pegando nas mãos do cavaleiro que se tinha ajoelhado diante dele. — Ao ajudares-me a fugir de Loth, naquela terrível noite do massacre, salvaste-me a vida. Mas, como tu vês, o massacre chegou até nós... Esta vida, eu ta devolvo. Não haverá glória alguma em morrer aqui.

— Senhor...

— Não, não... É assim mesmo.

Baldwin procurou com os olhos o outro cavaleiro e apontou-o com um movimento de queixo.

— Sabes, afinal ele tinha razão.

Ulfin seguiu o seu olhar. Sobressaindo pela cabeça, ombros e peito da melancólica assembléia de anões, o homem não se assemelhava nada a um cavaleiro, a não ser pelo seu porte e pela longa espada que segurava a seu lado. Os cabelos castanhos com várias tranças, a cara sem barba, contrariamente à de Ulfin e à da maioria dos cavaleiros, vestia uma túnica verde e uma simples cota de malha em couro, à maneira élfica, que lhe descia até aos tornozelos e lhe dava o ar de um ferreiro. O homem era jovem, mas os seus olhos pareciam ter vivido já mil anos. E a sua cara estava marcada por uma longa cicatriz ainda vermelha, desde a orelha até o queixo. Baldwin hesitou, depois levantou a mão para lhe fazer sinal para que se juntasse a eles.

Ele avançou até ao pé deles, subiu os três degraus que conduziam ao trono e olhou o velho rei com ar interrogador, até que uma cotovelada de Ulfin o fez recordar as boas maneiras.

— Deixa — disse Baldwin, quando o jovem se apressou a ajoelhar. — Isso na realidade já não tem importância alguma...

Sorriu-lhe (o que nunca era uma certeza devido à espessura insondável da sua barba) e estendeu-lhe fraternalmente as mãos.

— Uter...

O velho anão abanou a cabeça, indiferente aos murmúrios de desaprovação que percorriam as fileiras de guerreiros.

— Como é que nós podíamos acreditar em ti?

Uter não respondeu. Nove meses... Ele tinha ficado fechado nove meses nas prisões da Montanha Vermelha. Nove meses sem ver a luz do sol, a princípio acorrentado, espancado, ameaçado todos os dias de ser entregue à ira do príncipe Rogor, depois, pouco a pouco, interrogado, ouvido, quando pareceu que o seu incrível relato poderia conter uma parcela de verdade. Uter só devia a vida à presença de Ulfin, seu companheiro de armas, e à dívida que o velho Baldwin tinha para com este último, mas, quando, por fim, o tinham escutado, já era demasiado tarde. O exército dos homens tinha conquistado a maioria dos reinos anões. Nove meses sem ver Lliane...

— Deveis partir, os dois — continuou o velho soberano. — A montanha... (Ele hesitou um instante.) A montanha vai-se voltar a fechar.

Baldwin levantou a mão e fechou o punho como que para simbolizar o esmagamento da sua própria cidade. Houve entre os guerreiros anões, um estremecimento que o rei ignorou.

— Sabem porque perdemos esta batalha, cavaleiros?

— Os arqueiros — respondeu Ulfin.

— Sim... Que descuido, não é verdade? Nem tivemos tempo de combater... Mas, não é somente isso. Fomos vencidos pelo nosso próprio talismã. A espada do deus Nuada. Conta-se que ele perdeu um braço numa grande batalha, e que o anão Credne lhe fez um braço em metal. Depois disso, ele passou a chamar-se Nuada Airgetlam, Nuada do braço de prata... Foi como testemunho do seu reconhecimento que os anões receberam a espada do deus. Caledfwch... Como é que vocês já lhe chamam? Excalibur?

Ulfin abanou a cabeça.

— ...E esta palavra tem um significado, para vocês?

O cavaleiro não respondeu.

— Não, é claro que não... Vocês são como nós, vocês esqueceram. E além disso têm a vossa nova religião, e essa cruz que vos serve presentemente de talismã. Tu acreditas nela, Ulfin?

— É claro que não! — exclamou o cavaleiro. — É uma religião de fracos, estender a outra face quando nos batem, pedir auxílio a Deus... Feita à medida para o povo.

— E Pellehun, acredita?

— Certamente que não — disse Ulfin com um sorriso de desprezo. — Mas ela convêm-lhe seguramente muito bem. Quanto mais pobre, mais os monges prometem o paraíso, depois da morte, o que, para o rei...

Baldwin interrompeu o bravo fazendo um gesto irritado com a mão.

— Porque é que ele nos roubou Caledfwch! — gritou com uma voz subitamente rouca, cortada pela raiva. — É isso que eu quero saber!

O sorriso de Ulfin gelou-se num esgar inquieto. Involuntariamente, recuou um passo e deitou um olhar à guarda do rei sob a Montanha Vermelha. O olhar dos guerreiros anões brilhava de ódio e as mãos estavam crispadas sobre os seus machados.

— Se ele não acredita em nada porque é que nos roubou? gritava Baldwin. — Existem tantos outros tesouros, porquê justamente a Espada?

O rei desafiou longamente os dois homens com o olhar e depois deixou-se abater como uma massa no fundo do seu trono.

— Uter é que tinha razão — continuou em voz baixa, como que falando com ele mesmo. — O vosso rei enganou-nos desde o princípio, servindo-se do nosso velho ódio contra os elfos... Eu, tudo o que queria, era que nos fosse feita justiça. Que vingassem a morte de Troín. Era uma questão de honra, entendem?

Ulfin e Uter abanaram a cabeça, mas não compreendiam nada.

— Na verdade, eu achava que não passava de uma lenda, a Deusa, o talismã... histórias bonitas, boas para os elfos! E é por isso que o talismã nos venceu. Mas Pellehun, esse, sabia...

Baldwin levantou um olho para olhar Ulfin. Ele era grande (mas é claro que todos os homens pareciam grandes aos olhos dos anões), maior que Uter, e mais imponente com a sua armadura de placas coberta por uma cota de armas em tecido vermelho com as runas da Montanha, mas a sua barba loira era tão curta quanto a de um anãozinho de apenas uns cinquenta anos. Como a maioria dos cavaleiros humanos, ele usava cabelos compridos entrançados em várias tranças que lhes protegiam as orelhas e a nuca dos golpes de espada, libertando-lhe o rosto. Nele, já se podiam ver as marcas do tempo, rugas e cicatrizes. Que idade poderia ele ter? Cinquenta? Sessenta anos? Não, não, não... Os homens não viviam tanto tempo. Sem dúvida não tinha mais que metade. Uma idade ridícula na Montanha. Mas os homens viviam assim, morrendo jovens, nascendo sem cessar, aos molhos, de um ano para o outro, cobrindo o mundo com a sua proliferação, como vermes destruindo a floresta.

— Porque é que me salvaste naquela noite, Ulfin?

— Porque era uma infâmia — respondeu o cavaleiro sem reflectir (para quê refletir mais? Tinha pensado nisso sem parar desde essa noite de pesadelo). — Ao lançar a culpa sobre vós no recinto do Grande Conselho, o rei Pellehun tornou-se culpado da pior das perfídias, e foi uma honra traí-lo.

Baldwin agitou-se bruscamente com alguns sobressaltos acompanhados de grunhidos asmáticos que, pensando bem, podiam passar por uma tosse provocada pelo riso.

— Uma honra bem pesada de carregar, heim, cavaleiro? E no entanto és tu quem tem razão. Razão contra todos, ou seja, tiveste azar. Tiveram azar os dois... Dois loucos... Devias ter-me morto nessa noite, Ulfin. Asfixiar-me durante o meu sono. Esta tarde, estarias no campo dos vencedores...

O cavaleiro abanou a cabeça. Quantas vezes ele tinha tido o mesmo raciocínio!

— Pelo menos estais vivos — disse Baldwin, debruçando-se sobre os dois homens. — Morrer aqui não serve para nada. Vão embora, encontrem a rainha Lliane, contem-lhe o que se passou... E levem Bran convosco. É preciso saber se o vosso rei só roubou a Espada com o intuito de provocar uma guerra entre elfos e anões, ou se ele acredita verdadeiramente no poder dos talismãs. Digam a Lliane que vos esperamos, sob a Montanha...

Uter não ouviu o fim da frase. Encontrar Lliane, por fim...

— Compreendeste bem?

Uter arregalou os olhos, arrancado bruscamente dos seus doces pensamentos, mas o velho rei não se dirigia, felizmente, a ele. Um anão em trajos de guerra, com uma longa barba ruiva enrolada em duas longas tranças que se espalhavam sobre o seu gibão de couro escuro, tinha avançado para o lado deles e observava-o com uma expressão bonacheirona, quase que com simpatia. Uter sorriu-lhe tentando não mostrar o seu divertimento. Apesar do seu arsenal de guerra, o seu pesado machado de dois ferros e o seu elmo, ele não era um guerreiro. Demasiado gordo.

— Bran é o irmão mais novo do príncipe Rogor, herdeiro do trono de Troin sob a Montanha Negra...

O velho rei fez uma pausa.

— Talvez mesmo herdeiro ao título, se Rogor estiver morto...

Pareceu-lhe que Bran se empertigava. De qualquer modo, ele fez um esforço louvável para encolher a barriga.

— Não tem qualquer importância — disse Baldwin com um olhar gelado para o jovem anão. — Mas Bran tem sangue real. Ele sabe toda a história. Se chegarem até à rainha Lliane, ele poderá testemunhar.

— Senhor, podeis contar comigo — disse Bran. — Vamos encontrá-la e eu contar-lhe-ei tudo o que sei!

— Tu não sabes nada — resmungou Baldwin. — Contenta-te em te manteres vivo.

O rei levantou-se com um ranger metálico da sua cota de malha e desceu os três degraus do seu trono, arrastando Ulfin pela cintura (sem dúvida que teria preferido agarrá-lo pelos ombros, mas para isso teria que esticar o braço e pôr-se em pontas de pés, o que lhe daria pouca dignidade). Sem uma palavra, sem um olhar para Bran que saltitava atrás deles ao lado de Uter, atravessaram a câmara real e os corredores do palácio e desembocaram na sala de armas, uma vasta sala subterrânea iluminada por poços de luz abertos na rocha e com altura suficiente para que os dois cavaleiros pudessem estar de pé sem terem que se curvar.

Por debaixo dos seus olhos abria-se o labirinto sinuoso de Dal Wid, a cidade dos anões sob a Montanha Vermelha, imensa toca perfurada por túneis sem fim, tão opressiva e sombria que ninguém, exceto estes últimos, teria podido viver aqui sem perder o siso, mas que eles amavam acima de tudo. Aos pés do palácio, toda uma população aos gritos se espalhava pelas mais pequenas ruelas, enlouquecida como um enxame de vespas. A orgulhosa, a pomposa Dal Wid não passava agora de uma toca devastada pelo pavor, donde se escapavam cachos de fugitivos carregados com os seus mais preciosos bens, e que os soldados dispersados na planície colheriam sem esforço com as pontas das lanças.

Era como um corpo esvaindo o seu sangue por milhares de feridas. Um correr contínuo, lamentável, que o velho rei contemplava de boca aberta, com os olhos cheios de lágrimas. Ainda mais do que a derrota do seu exército, a fuga do seu povo apresentou-se-lhe como um sinal do seu declínio.

— Eis como o meu reino se esgota — murmurou ele. Virou as costas ao fervilhar deplorável, baixando a cabeça para não cruzar o olhar com o dos cavaleiros. Teve uma breve hesitação, fez um sinal com a mão, talvez um sinal de adeus.

— Dou-vos uma hora — disse.

Durante um instante, virou para Ulfin os olhos mais tristes do mundo, e desapareceu a grandes passos para dentro do seu palácio. Os seus guerreiros seguiram-no em silêncio, mais sombrios do que alguma vez o tinham sido os anões, caminhando em direção à sua sorte funesta com os ombros curvados mas a alma em paz, confiantes na sua própria coragem diante do espectáculo de toda aquela cobardia. Depois, as grandes portas de bronze do palácio fecharam-se por detrás deles, deixando Ulfin, Uter e Bran sozinhos no adro.

Lentamente o anão tirou o elmo, olhou-o com uma expressão de mágoa enorme e depois deixou-o cair ao chão. Puxou para trás da nuca o seu capuz de malha de ferro e despenteou furiosamente os seus curtos cabelos de um ruivo escuro. Depois pegou no seu pesado machado e, com uma força de que os dois homens não o julgariam capaz, bateu no solo com um grito de lenhador, arrancando do pavimento grandes lascas de pedra. Sem se preocupar com os seus companheiros, como se executasse um ritual secreto, ajoelhou-se ao pé do entalho e levantou do chão uma lasca grande como a palma da mão, que guardou cuidadosamente no seu alforge. Ficou assim, de joelhos, durante vários minutos, murmurando um encantamento enigmático, e depois levantou-se de um salto e olhou para os cavaleiros.

— Vamos!

Sem esperar por eles, desceu alguns degraus que o separavam da praça de armas, e enfiou-se por uma ruela, por entre a multidão. Os dois homens e o anão caminharam rapidamente a princípio, ultrapassando a cada patamar famílias inteiras dobradas sob o peso dos bens que tentavam salvar, mas foi bem depressa que um muro vivo se ergueu diante deles, obstruindo os estreitos corredores subterrâneos, obrigando-os a darem cotoveladas para abrirem passagem e depois a bater na multidão, empurrados, maltratados, rasgando as suas vestes nas paredes rugosas dos túneis, arranhando as mãos e a cara, para se segurarem à mais pequena saliência, sacudidos imediatamente como bonecos de um lado para o outro, arrastados pela vaga rugiente dos fugitivos, irracional como uma corrente, salpicando os muros com gritos e gemidos, empolando o seu próprio pânico.

Por fim, estavam do lado de fora, projetados sem querer para fora daquela confusão, passando insensivelmente da penumbra de Dal Wid para a escuridão da noite, e, como todos os fugitivos, ficaram um instante estupefatos às portas da cidade, com as caras suadas fustigadas pela frescura da planície, até que outros os empurraram para a frente.

Uter, cego pela escuridão, ficou sozinho, avançando às apalpadelas por entre todos aqueles anões que viam o suficiente no escuro para correrem diante deles. Cada passo era um sofrimento, tão esmagados tinham sido os seus pés na balbúrdia. Ele tinha a impressão de ter sido moído de pancada. Cada um dos seus músculos estava dorido, e o punho da sua espada tinha-lhe magoado uma costela ao ponto de lhe parecer que recebia uma facada cada vez que respirava. Uma mão, subitamente, segurou-o com força e puxou-o para o lado. Era Bran.

— Não devemos segui-los. Eles caminham para a morte.

Uter piscou os olhos para tentar distinguir alguma coisa na massa escura que se derramava para fora de Dal Wid. Não viu mais do que archotes, ao longe na planície, agitados por cavaleiros humanos que, em pequenos grupos, sulcavam a noite a galope.

— Dir-se-ia que estão à caça — murmurou Ulfin.

— Pois bem — lançou Bran. — Porque é que não te vais juntar a eles?

— E tu, gorducho, porque é que não vais ter com o teu rei? Tens medo de morrer?

A noite estava demasiado escura para que ele pudesse ver mais do que uma massa despenteada, mas Ulfin sabia que o anão o via perfeitamente a ele, e que devia estar a rebentar de indignação. Então fez um grande sorriso, para acrescentar desprezo à humilhação.

— Filho bastardo de um peido de urso! — gritou subitamente Bran. — Vais arrepender-te!

E desapareceu de repente, mergulhando aparentemente nos precipícios que faziam, em volta da Montanha Vermelha, as vezes de fossos. A idéia de que ele se tivesse atirado para o abismo para lavar a sua honra passou pela cabeça do cavaleiro, até que descobriu uma minúscula escada talhada na parede rochosa, que o gordo Bran descia à velocidade de um cabrito. Os dois homens lançaram-se atrás dele, mas Ulfin quase caiu no abismo ao primeiro passo, tão estreitos eram os degraus e abrupto o declive. Encostou-se ao muro, com o coração a bater, e depois desceu lentamente, degrau a degrau, agarrando-se o melhor que podia às mais pequenas saliências, abrindo os olhos no escuro.

Bran, cá em baixo, esperava-os rindo.

— Ficaram retidos por alguma coisa?

Ulfin esticou o pescoço uma vez mais para tentar distinguir o anão, mas a escuridão, no fundo da ravina, era total. Ouvia-se o som de um curso de água, e o ar frio acarretava um violento odor a bolor que entrava pela garganta. As botas dos cavaleiros escorregavam em pequenos seixos ou em substâncias viscosas, indefinidas, que exalavam baforadas imundas a carne em decomposição.

— O que é isto? — resmungou Uter. — Um esgoto?

— Exatamente! — disse a voz do anão, do fundo da noite. — Não se percam, malditos mijos de um burro pelado, senão serão os ratos que vos encontrarão!

Ulfin levantou os olhos para o céu e deu um suspiro.

— De acordo, mestre Bran. Ganhaste. Peço-te desculpa...

O anão fungou ruidosamente na noite, e depois continuou numa voz mais calma:

— E eu não sou gordo.

— E tu não és gordo. Vamos embora?

Houve um barulho de passos sobre os seixos e os cavaleiros, um depois do outro, sentiram o punho do anão deslizar-lhes uma corda para a mão. Depois virou-lhes as costas e a corda esticou-se, arrastando-os ao seguirem-na, para a parte mais profunda do abismo.

 

                     O FIM DA MONTANHA VERMELHA

Com a noite, a floresta tinha reencontrado a paz. Os murmúrios dos elfos tinham parado na escuridão, encalhados na porta fechada da cabana real, dentro da qual nem Lliane nem Llandon dormiam. Sentados sobre o chão musgoso, um de um lado e outro do outro de uma fogueira de raminhos que lhes projetava as sombras oscilantes sobre as sebes de folhas que serviam de paredes à sua simples cabana, eles estavam já para além das palavras. Mesmo para além dos olhares. Já não existia mais nada entre eles a não ser o silêncio, um silêncio caótico perturbado pelos sobressaltos de Rhiannon, os seus gemidos de pequeno gato e a sua respiração incerta. Uma vida, entre eles, hesitante e frágil, da qual cada manifestação os afastava cada vez mais um do outro. Por vezes, a sua respiração parecia parar, por um instante, e o coração de Lliane apertava-se, mas no instante seguinte um soluço parecia libertá-la e, num pequeno queixume, num brusco movimento de membros e num balbuciar de baba, ela voltava a mergulhar no sono. E, de cada vez, o sorriso de Lliane gelava-se sob o olhar do rei.

Ninguém tinha sido admitido na sua cabana. Nem os druidas portadores de presentes, nem as curandeiras das quais a rainha e a criança tinham no entanto grande necessidade, nem mesmo Blorian e Dorian, os dois irmãos mais novos de Lliane, que tinham adormecido na soleira da porta, desorientados e incrédulos, espiando os gritos de Llandon e o choro da irmã. Depois, o rei tinha-se calado, vencido pela amargura.

Ele próprio não se reconhecia. Teria ficado assim tanto tempo em Loth, no meio dos homens, para que tanto ciúme e ódio o inundassem a este ponto? Seria possível que um alto-elfo da antiga raça de Morigan chorasse de amor como esses ridículos bardos? Quando Lliane tinha partido para essa demanda louca, a sensação de a ter perdido para sempre tinha-se pouco a pouco instalado dentro dele, com o correr dos dias, tornando-se uma certeza. Bem depressa, ele já não conseguia sonhar com ela, nem mesmo imaginar a sua cara (e os sonhos de Llandon, como todos sabiam nos clãs élficos, acoitavam sempre uma parte de verdade). Foi nessa altura, que o regresso dela quase o surpreendeu. Antes mesmo do ventre dela se arredondar, outros sonhos tinham vindo, dos quais ele não tinha falado a ninguém, nem mesmo a Gwydion. Sonhos tão horrorosos que ele acordava a meio da noite, ensopado em suor, e se metia pelo bosque em longas caminhadas cegas até à completa exaustão. Mas não até ao esquecimento.

Se a raiva e a vergonha já o tinham deixado nesse momento, a distância persistia entre eles, alguns metros apenas, no entanto uma distância intransponível, a menos que Lliane viesse ter com ele. Mas ela estava do outro lado, do lado da filha, e percorria o caminho inverso, passando da tristeza ao rancor. Privada dos cuidados de Blodeuwez ou das bênçãos do grande druida Gwydion, ela havia tido que sacar de dentro dela as forças suficientes para voltar a viver, avivar no seu ventre esgotado a chama das antigas runas, repetindo sem parar o Feoh, o primeiro cântico rúnico.

 

Byth frofur fira gehwylcum

Sceal theah manna gehwylc miclun hyt daelan

Gifhe wilefor drihtne domes hleotan.

 

No seu berço de musgo e folhas, a menina começava a agitar-se, dormindo ainda, mas sacudindo por vezes os membros numa descarga brusca. Lliane levou instintivamente a mão ao ventre. Alguns dias antes, algumas horas antes, era dentro de si que sentia os seus murros... Um suspiro, algumas bolhas de saliva, e a recém nascida abriu um olho, com um franzir de nariz vagamente enojado.

— Rhiannon — murmurou carinhosamente Lliane ao seu ouvido.

— Não a chames assim.

O sorriso da rainha desapareceu-lhe dos lábios. Llandon não tinha pronunciado uma única palavra desde há horas, e a sua intervenção tinha-a surpreendido.

— Ela não é rainha — disse ele — nem nunca o será.

— É a minha primeira filha — disse Lliane esforçando-se por não levantar o tom, nem encarar o olhar sério do marido. — A Deusa sabe quanto eu teria gostado de ter uma filha tua, mas não a tivemos. Não tivemos nem mesmo um filho, Llandon... A Deusa quis que assim fosse...

— Deixa os deuses fora disto! — gritou o rei. — Isto não tem nada a ver com a Deusa. Tu dormiste com Uter, e entregaste-te a ele como uma pega dos bairros baixos deles, foi isso que tu fizeste!

Llandon tinha gritado tão alto que Rhiannon tinha acordado em sobressalto. Começou a chorar, e Lliane pegou nela para lhe dar de mamar. Fechou os olhos e deixou que o seu pulso voltasse ao normal antes de lhe responder.

— Quando éramos jovens, Llandon, entregámo-nos tu e eu, como tu dizes, a todos quantos quiseram deitar-se na erva, na altura das noites de Beltane, embora já estivessemos prometidos um ao outro... Que se passa contigo? Parece... — Ela interrompeu-se. Parece Uter, pensava ela. — Estás ciumento como um homem — disse ela. — Em breve vais dizer-me que me amas!

Llandon olhou-a com um esgar de desgosto e espanto.

— Sobre esse assunto — disse ele entre dentes — sabes mais do que eu.

Lliane levantou-se e, com o movimento, a capa que a cobria deslizou para o chão. Completamente nua à luz oscilante do fogo, ela apertou Rhiannon contra o peito e olhou Llandon com frieza.

— Eu sou Lliane da linhagem de Dún, rainha dos altos-elfos e dos povos da floresta de Éliande, por vontade da Deusa e enquanto eu viver — disse ela, e os seus lábios tremiam, e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. — Tu, tu não és... tu não és mais do que o rei.

Llandon ficou parado.

— Rhiannon é a minha primeira filha — repetiu ela. — Quer tu queiras quer não, contigo ou sem ti, ela será rainha.

— De que povo? — disse Llandon.

Lliane não respondeu. Uma palavra mais e uma corrente de lágrimas saltaria, quebrando definitivamente todas as suas defesas. As suas pernas vacilavam, a cabeça andava-lhe à roda, o seu ventre estava dorido, e ela sentia-se a ponto de desmaiar. Porque é que ele não a ajudava?

Llandon abanou a cabeça e levantou-se pesadamente, e depois, sem uma palavra nem um olhar, saiu da cabana. Cá fora, fez uma pausa. A bruma estendia-se lentamente sobre Brocéliande como um sopro insidioso, inexorável, e o rei sentiu-se gelar de terror. Pois a bruma, a Feth Fiada, pertencia aos deuses. Os elfos eram um povo do ar, o mar pertencia aos homens, a terra aos anões e o fogo aos monstros das Terras Gastas [3], mas o nevoeiro dominava-os a todos. O nevoeiro sozinho podia fazer desaparecer a rocha e a onda, apagar o incêndio e acalmar a tempestade. O silêncio da bruma era o grito dos deuses, e se os deuses estendiam assim o seu véu branco sobre o povo de Éliande, era porque estavam zangados.

— Ouves? — murmurou Blorian.

Llandon virou a cabeça em direção ao seu cunhado. Dorian, ao lado dele, tinha adormecido, mas Blorian continuava a velar, agachado à porta da cabana real, com o seu grande arco pousado sobre os joelhos. E Llandon perguntou-se quem pensaria ele proteger, e de que perigo...

— Escuta — repetiu sem olhar para ele.

Sob a bruma, a floresta estava em silêncio. O barulho das aves noturnas tinha desaparecido, bem como o barulho das árvores e das folhas ao vento. Não se ouvia mais que um sinistro gemido, longo e grave. Era a Daurblada, a harpa mágica do Dagda, que fazia vibrar os ramos altos dos carvalhos; era o seu canto lancinante que mergulhava as almas no esquecimento. Os dois elfos taparam as orelhas com as mãos para lhe escaparem, mas caíram quase imediatamente no vazio de um sono sem sonhos.

 

O dia nasceu sem que eles percebessem. Uter avançava numa semi-inconsciência, cabeceando e titubeando a cada passo, bêbado de fadiga, bêbado de não ver nada e do odor pestilento daquela ravina saturada de imundices. Quanto a Ulfin, os seus sarcasmos tinham rapidamente parado diante da abundância figurada de respostas do anão, e ao fim de um duelo perdido à partida, não se ouviu mais o som da sua voz. Há horas que os dois cavaleiros seguiam o seu guia na mais total escuridão e barulho de ratos, agarrados à corda como cegos, torcendo os tornozelos sobre as pedras cobertas de musgo que cobriam o caminho. Eram ambos demasiado orgulhosos para implorarem uma paragem, que aliás Bran teria sem dúvida recusado a rir, juntamente com uma das suas invenções favoritas... Apesar da sua cintura considerável e da sua cara de leitão bem gordinho, o anão era de uma resistência bem superior à de qualquer cavaleiro (e, no entanto, é preciso confessar que o herdeiro do trono de Troin não era particularmente duro), capaz, como todos os seus, de caminhar dias seguidos, de caminhar sem comer nem beber, obstinado como um búfalo, tão indiferente quanto um cavalo e, como tal, de se deixar cair por terra uma vez chegado ao seu destino, mergulhando instantaneamente num sono de chumbo. Subitamente, Uter tropeçou numa raiz, despertando imediatamente do seu torpor, e tomou consciência da pálida luz da alvorada. Não passava de um ténue traço de luz rosa na escuridão, mas ele conseguia por fim ver e conseguia mesmo distinguir a alta silhueta de Ulfin diante dele, bem como, mais adiante, a de Bran, tão larga quanto alta, balançando-se ao ritmo do seu passo pesado. O odor, também, o odor horrível das fossas, tinha-se atenuado, mesmo tendo eles ficado sujos até à cintura. Sem que os dois homens tivessem percebido, tinham deixado há um bom bocado a ravina e subiam um carreiro espinhoso que os conduzia lentamente ao nível da planície. Havia no ar frio da manhã um cheiro acre, acidulado, um perfume de bagas e orvalho que eles já não aspiravam desde que estavam sob a Montanha.

Chegados ao cume do carreiro, tiveram ainda que batalhar longos minutos numa rede de silvas, rasgando de novo as roupas e arranhando a cara e as mãos em cada um dos seus espinhos antes de conseguirem sair e de se deixarem cair como massas, na erva alta de um pequeno vale onde corria um riacho. Os três companheiros adormeceram imediatamente, demasiado esgotados para pensarem em organizar uma ronda de segurança, envoltos nas suas capas, submergidos num sono sem sonhos que se prolongou até que o sol já ia alto, e com ele tinham aparecido as moscas.

O bater das suas minúsculas patas e o som estridente do seu vôo enervante acordaram Uter em sobressalto. Ele afugentou com gestos largos a nuvem de insetos, assustando ao mesmo tempo um grupo de corvos, negros como a noite, que esgravatavam o solo mesmo ao lado deles, e ficou sentado durante um momento, emergindo pouco a pouco do seu entorpecimento. Com a respiração curta, ele inspirava e o sangue latejava-lhe nas têmporas. Passou o dedo sobre a sua longa cicatriz num gesto que já se tornara familiar, olhando à sua volta as ervas altas, as árvores carregadas de folhas, o céu límpido e o vôo dos pássaros, com a alegria de uma criança. Há nove meses que ele não ouvia cantar um pássaro... Logo que por fim tomou consciência, o seu próprio odor e a visão da sua cota de malha suja de matérias infames provocaram nele um erguer do corpo. Despiu-se como um louco, não conservando mais do que as bragas, e deitando um olhar de nojo a Bran e Ulfin que, ainda enrolados no sono, tinham o aspecto e o cheiro de cadáveres em decomposição.

O riacho estava gelado, mas ele banhou-se deliciado, ofegante de frio. Lavou aí as suas roupas e depois subiu a corrente longe das suas imundices e bebeu grandes goles de água.

Por fim, toda a sua agitação parou, e o pequeno vale regressou à calma. Uter esticou-se na margem, saboreando o lento movimento das folhagens na brisa, o piar dos pardais e o correr tranquilo da água (um silêncio harmonioso, infelizmente perturbado pelo ressonar de Bran). Aqueles longos meses passados sob a Montanha, na penumbra dos subterrâneos e à luz dos archotes, tinham-no privado deste ar penetrante da manhã, da brilhante claridade do dia e deste cheiro a erva molhada que se aquecia com os primeiros raios de sol.

O cheiro de Lliane...

Uter estendeu as suas roupas ao sol e voltou para ao pé dos seus companheiros, resolvido, se eles ainda não estivessem levantados, a atirá-los vestidos para dentro do riacho.

Só encontrou Ulfin, que sacudiu com um pontapé e que se enrolou nas pregas da capa resmungando que o deixassem dormir senão alguns galanteadores morderiam os dedos.

O anão, em compensação, estava acordado. Agachado no alto da colina, no meio do zumbido das moscas, tomava calmamente o seu pequeno almoço.

— Já a comer? — disse Uter, subindo até ao pé dele, numa voz que tentava mostrar-se jovial mas onde se notava a inveja (ainda para mais porque a sua barriga se pôs a fazer ruídos bastante embaraçosos).

Bran deitou-lhe um rápido olhar, indicou com um gesto o seu alforge convidando-o a servir-se e voltou a sua atenção para a planície. Mal se juntou a ele, mordendo com todos os dentes um pedaço de presunto grande como a sua coxa, o sorriso de Uter desapareceu. Ao longe, bem para além do pequeno vale, o exército dos homens estava formado para a batalha, e o jovem sentiu uma punhalada no peito à vista dos estandartes e bandeiras agitados por cada uma das esquadras. Azul com faixa branca. As cores que ele tinha carregado, também ele, até ao fim do pântano dos elfos cinzentos, até às colinas escuras frequentadas pelos monstros das Terras Gastas, e que ele tinha deitado para o fogo, com a quebra de vassalagem ao rei Pellehun...

A hoste do rei marchava lentamente em direção à ponte de pedra que levava à fortaleza dos anões, semelhante a uma coluna de formigas atacando um gigante. A Montanha Vermelha, indiferente a este assalto minúsculo, dominava o exército com a sua imponência tranquila. Nunca antes tinha ela merecido tanto o seu nome, como agora quando a terra argilosa que a cobria avermelhava sob o sol, como se ela incubasse um fogo interior, como pedra em fusão.

— Sentiste? — perguntou Bran.

— O quê?... Não. Sentir o quê?

Uter sentou-se ao lado do anão, intrigado pela expressão de pavor no seu rosto: exaltação e terror misturados.

— A terra treme — disse ele. — Começou.

 

Dal Wid tinha reencontrado a sua serenidade. As ruas da cidade subterrânea dos anões sob a Montanha Vermelha estavam quase desertas, mas não completamente. Centenas de milhares de famílias estavam ainda lá e acordavam em paz. O furor e aflição da noite tinham-se dissipado com os últimos fugitivos. Os que tinham ficado mantinham-se à entrada das suas casas, uns sentados no chão, bebendo os vinhos antigos, fumando o seu melhor tabaco, em silêncio, não trocando mais que olhares de apreciação e abanar de cabeças com aqueles seus vizinhos que, como eles, tinham escapado à loucura da noite. Oh, é claro que tinha havido roubos nas casas abandonadas, e tinha havido violações, golpes, assassinatos no tumulto da noite, mas tudo tinha acalmado com o nascer do dia, e os ladrões soluçavam agora por causa da sua pilhagem inútil. As portas de Dal Wid tinham-se fechado para todo o sempre. O ouro, as jóias, os ornamentos preciosos e as tapeçarias em seda já não tinham qualquer valor, sob a Montanha.

O rei Baldwin tinha tirado a sua cota de malha e não vestia mais que uma camisa de linho e bragas apertadas nos joelhos com correias de couro. Somente o seu corpo considerável o distinguia dos outros anões que formavam com ele um vasto círculo, na sala de armas do palácio. Estavam aí guerreiros e mulheres, crianças e sábios, mestres mações (que os homens chamavam de feiticeiros porque falavam com as pedras), nobres e mineiros de mãos calejadas, e todos começaram a balançar-se pesadamente, martelando o chão com os pés, salmodiando uma triste elegia que fazia vibrar a abóbada do palácio. Nesse mesmo instante, em cada uma das ruas, os anões levantaram-se para marcarem passo, também eles, ao ritmo dos tambores de bronze instalados no átrio. E Bran, para espanto de Uter, levantou-se também para bater fortemente o chão com os pés, segurando ardentemente na mão a lasca de pedra retirada do átrio do palácio vermelho.

— Que é que estás a fazer, grande imbecil! Queres que eles nos vejam?

Bran não respondeu, é claro.

Uter, deitado de barriga para o chão, sentiu a terra tremer debaixo dele, primeiro baixinho depois de uma forma mais clara. Olhou novamente para o seu companheiro, cujos olhos tristes estavam fixados sobre a montanha de argila, e seguiu o seu olhar. Longas aberturas de terra, devastavam já as encostas em nuvens de poeira vermelha. O exército tinha-se imobilizado na planície, e o jovem imaginava muito bem o terror supersticioso dos soldados, os gritos dos sargentos de armas, as exortações dos cavaleiros para continuarem em frente. Mas o estrondo não parava de aumentar, e as primeiras fileiras começavam a recuar. Ao seu lado, Bran quase corria sem sair do sítio, e a terra vibrava a cada um dos seus passos. Depois foi uma algazarra de fim do mundo. A montanha quebrava-se sobre si mesma, projetando sobre o exército do rei uma chuva de pedras, uma nuvem de pó vermelho densa como nevoeiro e, por trás, enormes pedregulhos arrancados dos cumes, rolavam pelas encostas com um estrondo medonho, arrasando tudo à sua passagem.

A nuvem vermelha atingiu-os em poucos segundos apesar da distância, semelhante à onda imensa de um maremoto. Uter atirou-se para trás, descendo a encosta para lhe escapar, gritando no meio do barulho ensurdecedor do estrondo e da saraivada de pedras que lhe atingia o corpo. Enrolou-se sobre si mesmo protegendo a cabeça, enquanto que uma poeira acre se abatia sobre ele e sobre todas as coisas, a léguas de distância em redor. Na planície, os sobreviventes sufocavam como peixes fora de água sob esta tempestade de terra, horrorizados e sem nada poderem fazer, incapazes de compreenderem o que tinha acontecido, tremendo de medo e olhando o chão, como se ele se fosse abrir sob os seus pés e engolir para sempre, homens e animais, indignos de sobreviverem ao desmoronar da montanha.

E depois um silêncio absoluto sucedeu ao tumultuo. Um silêncio de sobreviventes espantados levantando-se com prudência sem ousarem levantar os olhos, quase que com vergonha por ainda estarem vivos, tão louco parecia terem resistido a esse desastre.

Foi assim que Uter se levantou, pouco a pouco sacudindo a poeira vermelha que o cobria a ele e tudo no vale, ervas, árvores, pedras, o corpo imóvel de Ulfin perto dele, as roupas que ele tinha posto a secar e até a água do riacho que parecia agora transportar uma corrente de sangue. Não se via mais do que alguns metros em frente, tão carregado de partículas em turbilhão estava o ar. Uter procurou o sol e não distinguiu mais que um halo cheio de carvõezinhos apagados. Tossiu, cuspiu, correu de gatas até Ulfin para o sacudir e descobri-lo desmaiado, a cabeça rachada por uma pedra, os cabelos louros e a barba sujos com o seu próprio sangue mas a respirar. Desmaiado, apenas. Virou-se então para o lado da colina, sem conseguir ver o cume, nem o menor traço do anão.

— Bran! — Nada. — Bran, maldito roedor de pedras, aparece!

No cimo, era pior. A planície e a Montanha Vermelha estavam carregadas de poeiras, como se uma cortina opaca tivesse sido estendida diante dos seus olhos para apagar a paisagem. Uter ficou ali um momento, parado, sem conseguir desviar o olhar desse vazio insondável, esperando o momento em que se dissipasse. Houve um roncar animal, um rosnar de animal ferido, no lado descendente da colina, e Uter procurou instintivamente a sua espada. A espada tinha ficado lá em baixo, ao pé do riacho, com o resto das suas coisas. Tentou encontrar um ramo, uma pedra, qualquer coisa para se defender, fechou os punhos e enrolou-se; o animal que emergia do nevoeiro de argila fez uma paragem, como se o tivesse descoberto, e dobrou-se bruscamente ao meio num terrível ataque de tosse.

— Bran?

— Evidentemente, maldito ridículo mal alimentado! Quem mais poderia ser?

O anão gatinhou os últimos metros da colina tossindo, cuspindo, resmungando a cada passo, a barba, os olhos e a boca cheios de pó, completamente vermelho e terroso da cabeça aos pés, à exceção do brilho branco dos seus olhos.

— Bran, o que é que aconteceu? — perguntou Uter segurando-o pela manga.

— Deixa-me!

Ele debateu-se furiosamente, e o jovem cavaleiro largou-o sem insistir mais. Em.....baixo, começava-se a distinguir um movimento na planície, e o rumor longínquo da agitação dos homens. Uter tinha-se sentado no cimo da colina, a contemplar o pavoroso espetáculo até que a nuvem de poeira se dissipou.

No sítio onde se elevava a Montanha Vermelha, não havia mais do que um caos de rochedos, uma ruína titânica e disforme, imóvel, medonha pelo seu silêncio sepulcral. Como poderiam os anões de Dal Wid ter sobrevivido lá debaixo?

E depois, subitamente, houve um ruído obsceno das trompas de guerra, os hurras imbecis dos soldados que levantavam as armas para o céu e gritavam o seu triunfo, o brilhar das lâminas de aço agitadas ao sol.

Uter levantou-se de um salto e desceu para o pequeno vale para não os ouvir mais.

 

                       O PRESSÁGIO

Lliane acordou em sobressalto, apenas um instante antes da filha começar a chorar, como se o bebê que ela tinha carregado dentro de si durante tanto tempo continuasse ligado ao seu corpo mesmo depois de ter nascido. Pegou Rhiannon ao colo e, vendo a boca da recém nascida procurar avidamente o seu seio, despiu o vestido de catassol, deixando-o cair por terra como uma onda de tecido. Milhares de ínfimos raios de sol, introduzindo-se através do entrelaçado vegetal da cabana, salpicavam de lantejoulas luminosas o corpo nu da rainha, suaves e tépidas como carícias. Os seus longos cabelos formavam nas suas costas uma cascata negra que sobressaía sobre a sua pele azulada, ondulando lentamente ao ritmo de uma canção de embalar que lhe tinha vindo naturalmente aos lábios. Rhiannon, apertada contra os seus seios de auréolas escuras, abria e fechava os olhos e parecia já pronta a voltar a dormir. Lliane sorriu, passado o nariz nos cabelos eriçados da filha, cheirando o seu doce perfume de bebê. Ela era tão rosada e cheia... Uma mãe humana ter-se-ia provavelmente apavorado com a brancura da sua pele, mas certamente não uma elfo! Os seus recém nascidos eram frequentemente de uma magreza inquietadora, cinzentos como a pedra mas tão frágeis quanto o vidro, e muitos deles não sobreviviam mais do que algumas semanas. Rhiannon não passaria de uma bastarda aos olhos dos seres azuis, mas pelo menos viveria.

Lliane beijou-a novamente, abanando-a docemente para que ela acordasse e voltasse a mamar, depois, atirando com os seus longos cabelos para trás com um movimento de cabeça, deu uma volta com o olhar em redor da cabana. Llandon já lá não estava mas não era somente a sua ausência que a fazia parecer tão vazia.

Não havia armas, nem roupas, com exceção das da rainha. Nem o arco, nem os dardos, nem o alforge onde Llandon guardava as suas provisões e as jóias de prata quando saía de Éliande. O rei tinha partido.

Sem se preocupar em vestir, sempre com a criança nos braços, ela saiu da cabana. A luz brilhante do sol de Agosto cegou-a por instantes, e quando voltou a abrir os olhos descobriu o olhar sombrio que seus dois irmãos lhe deitavam. Eles estavam sentados à parte, vestidos em trajos de guerra, trazendo os seus arcos em bandoleira e as suas longas adagas élficas de lado. Gwydion também lá estava, bem como Blodeuwez. E todos pareciam estar à espera dela com o mesmo olhar de reprovação e de expectativa. Ela deu um passo para trás ao ver o grande druida, incomodada por estar nua diante dele (os elfos não eram pudicos, e aliás a sua indecência natural era um dos grandes cavalos de batalha dos monges, mas ela era rainha, e não ficava bem que uma rainha se desnudasse assim perante um druida, a não ser nas noites de Beltane).

— Vem — disse Blodeuwez, correndo para ela para a levar para dentro da cabana. — Vou vestir-te.

Lliane deixou que lhe tirassem o bebê, que a sua amiga deitou no berço de folhas e de musgo, depois voltou a vestir a sua túnica de catassol, colocou as suas pulseiras de prata e as suas compridas botas de gamo que lhe chegavam até ao joelho. Ela não reagiu quando a curandeira lhe cingiu em volta da cintura o seu talim onde estava Orcomhiela, ”fendedeira de gobelins”, a sua adaga lendária, mas gemeu quando o cinto de couro lhe apertou o ventre ainda inchado (para que teria ela necessidade de uma arma?). Com o coração aos saltos e a cabeça febril, deixou que lhe fizessem tudo, enchendo a amiga de perguntas às quais Blodeuwez não respondia.

— Muito bem — disse ela recuando para a admirar. — Assim tens o ar de uma rainha.

Fez um sorriso fugaz e menção de sair, mas Lliane parou-a com um gesto.

— Espera!

A elfo hesitou, mas continuou e dobrava já o peito para deslizar para fora.

— Espera!

Desta vez, Blodeuwez obedeceu. Lliane tinha utilizado a sua voz de comando. E, quando a sua amiga o percebeu, uma expressão de reprovação franziu-lhe a testa.

— O que é que se passa, Blodeuwez? — disse a rainha.

— Eles partiram, eis o que se passa!

Lliane virou a cabeça para a cama vazia de Llandon, e esse movimento não passou despercebido à sua amiga.

— Oh, não foi só ele — disse ela. — Partiram todos! Só ficamos nós...

E, bruscamente, ela saltou para fora da cabana. Então, Lliane saiu também.

Gwydion estava ali, sorrindo com um ar triste, tão magro e tão velho com os seus cabelos brancos e a sua cara enrugada, vestido com um longo fato vermelho com as cores do Dagda, e trazendo o seu bastão em aveleira, a árvore do conhecimento dos Dru Wid, mestres instruídos na ciência das árvores. Por trás dele estava o sobrinho, a criança sem nome a quem chamavam Llaw Llew Gyffes, Leão da mão firme, e que vivia fora do clã, no mais profundo da floresta, mais selvagem ainda que um elfo verde. Lliane descobriu através do bastão de ouro pendurado negligentemente no seu cinto que Gwydion tinha feito dele um ollamh, um iniciado, mesmo que o bastão de ouro não indicasse mais que um grau inferior [4].

— O Dagda falou-me esta noite — disse o velho Gwydion endireitando-se com dignidade. — Ele estendeu a sua bruma sobre o país de Éliande e recuperou a cólera de Llandon.

Por trás dele, a rainha cruzou o olhar do jovem ollamh, que reprimia um sorriso. Gwydion tinha sempre tendência para fazer floreados.

— Procurei, mas não consigo ver se os deuses protegem a tua criança, ou se eles se revoltam contra o seu nascimento. Podes ajudar-me, filha?

Lliane acenou gravemente com a cabeça.

— Muito bem — disse o velho elfo.

Gwydion estendeu-lhe um braço protetor sob o qual ela se refugiou, e levou-a até ao pé de um carvalho, onde ele se sentou gemendo.

— Llandon partiu para a guerra contra os homens, sabias?

Lliane sentiu o coração apertar-se-lhe. Ela arfou aniquilada pela atroz notícia, mas Gwydion encolheu os ombros, como se isso não tivesse nenhuma importância.

— Talvez seja uma coisa boa, ou uma coisa má... Há muito tempo que me perguntava se tínhamos feito bem em nos retirarmos para Brocéliande, sem tomarmos parte no que se passava. Esta noite, fui ao bosque sagrado e debrucei-me sobre o Caldeirão do Dagda. Vi uma batalha, o exército dos homens em frente da Montanha Vermelha, a imensa dor dos anões, e a Espada de Nudd agitada por um homem, um zarolho com a cara cortada e braços de prata... Braços de prata, estás a perceber?

Ele não olhava para Lliane e esta não ousava interromper o velho druida. Gwydion nunca tinha saído da floresta, nunca tinha visto uma armadura. Sem dúvida devia ter tomado este homem pela encarnação de Nudd Airgetlam, Nudd-do-Braço-de-Prata, tal como lhe chamavam as velhas fábulas élficas depois da batalha divina de Mag Tured onde o deus tinha perdido um braço. O anão Credne tinha-lhe depois feito um braço de prata, símbolo da lua...

Lliane pensava na Espada que eles tinham procurado até às Fronteiras, e revia a cara com uma cicatriz, com um olho vazio, a armadura... O homem devia ser o senescal Gorlois.

— O povo anão foi vencido — continuou Gwydion — e o talismã deles está na posse dos homens...

Ele voltou-se por fim para a sua antiga aluna.

— Os monstros também foram vencidos, noutros tempos, mas ninguém ficou com o talismã deles, compreendes?

Lliane disse que não com a cabeça.

— Os monstros, mesmo vencidos, viverão sobre esta terra enquanto o seu talismã estiver na sua posse — explicou ele pacientemente. — Mas os anões, sem a Espada de Nudd, não podem sobreviver... Desaparecerão, ou tornar-se-ão homens, uma parte dos homens, homens deformados...

O velho druida suspirou.

— Estou muito velho, muito velho... Vem sentar-te ao pé de mim.

Com um suspiro de alívio, Lliane desatou o cinto que sustinha a sua longa adaga, deitou-se ao pé dele e pousou a cara na sua coxa, como fazia quando era pequena, como quando adormecia durante intermináveis histórias, e Gwydion pôs-se a fazer tranças nos seus longos cabelos negros.

— Talvez Llandon tenha razão — disse ele. — Se os homens querem dominar o mundo, há certamente uma razão. Por outro lado, há a tua filha.

Lliane não respondeu, mas tinha aberto os olhos e retido a respiração.

— Llandon já sabia — murmurou ele de forma a que só ela o ouvisse. — Desde que voltaste, ele soube. Eu próprio, ainda estou admirado. Não ignorava que ele tinha dons, mas nunca me falaram verdadeiramente acerca deles. Creio que ele viu essa criança no teu ventre, e aquilo que viu aterrorizou-o...

— Não passa de um bebê — gemeu Lliane.

Gwydion olhou-a com ternura. Enroscada nele, ela voltava a ser a criança que ele tinha educado, durante anos, para a iniciar nos mistérios da natureza e na magia das runas, a criança da qual ele tinha feito uma rainha.

— Portanto, estás a ver, eles partiram todos — murmurou ele. — Só restamos nós.

Lágrimas grossas começaram a rolar pelas faces de Lliane, que escondeu a cara nas pregas da longa veste vermelha do druida.

— Isto não é nada — disse ele. — Eles têm medo... É por causa do nevoeiro desta noite. O Feth Fiada... Mesmo os teus irmãos ficaram gelados de medo. Olha para eles.

Ela levantou os olhos, cruzou o olhar sorridente do seu velho mestre e seguiu na direção que ele lhe indicava. Um pouco afastados, os dois irmãos saltitavam de um pé para o outro como dois tolos. Blorian esboçava um sorriso, Dorian olhava para longe.

— ...Mas eles são teus irmãos, por isso ficaram.

Lliane sorriu. Levantou-se e limpou o rosto cheio de lágrimas.

— Não passa de um bebê, Gwydion — disse ela de novo, com a voz entrecortada. — Como é que se pode ter medo de um bebê?

O velho elfo olhou-a em silêncio, até que os soluços pararam. O choro tinha-lhe inchado os olhos e molhado o nariz. Ela tinha o ar de um ratinho caído num riacho, mas como era bonita... Ele estendeu a mão em direção ao seu pescoço para a puxar para junto dele, e depois lembrou-se que não passava de um velho elfo respeitável e acariciou-lhe simplesmente a face.

— Tu és a rainha... A tua filha, um dia, deveria ser a nossa rainha. Será que a filha de um homem pode reinar sobre o povo dos elfos?

Lliane entesou-se, o que fez sorrir Gwydion.

— O que é que achas? — disse num tom francamente divertido.

— Achas que também eu ignorava quem era o pai da criança?

Lliane baixou a cabeça e corou (o que, nos elfos, dá às faces uma bonita cor azul escura).

— Portanto, eis-nos numa encruzilhada... A guerra, ou a tua filha. E, em ambos os casos, o futuro dos elfos passa pelos homens.

Ele deu uma pequena gargalhada e abanou a cabeça.

— É tão repentino... E eu que não vi nada.

Lliane levantou-se. O choro tinha-lhe colado uma mecha dos seus longos cabelos negros à cara. Gwydion afastou-lha com a ponta dos dedos, e ela levou a mão do velho elfo aos lábios.

— Então, é preciso saber — disse ele.

Gwydion fez um gesto a Llaw Llew Gyffes, que avançou até à rainha oferecendo-lhe um saco de juta grosseira, bastante aberto. Todos os elfos conheciam esse saco, e as vinte e nove runas gravadas sobre as plaquetas de madeira que ele continha.

— Não te esqueças que estás a escolher para ela — murmurou o jovem druida, quando ela mergulhava já a mão dentro do saco.

Gwydion, sem se levantar, tinha traçado um círculo estreito no chão, com a ponta do seu bastão, e acenou com a cabeça para insistir nas palavras do seu ollamh. Lliane reteve o seu gesto e fechou os olhos a fim de se concentrar na sua filha mas, nesse mesmo instante, Rhiannon pôs-se a palrar, ao fundo, na cabana. Pequenos gritos, soluços, gorjeios que soavam na clareira deserta e os fizeram sorrir a todos.

— Isto deve ser um bom presságio — disse Gwydion. Então, ela não hesitou mais e pegou num punhado de placas, tão grande quanto a sua mão o permitia.

— Deita — disse Gwydion.

Lliane lançou as runas no círculo. Elas ricochetearam no chão e somente três se imobilizaram no interior do círculo traçado pelo druida.

— Três runas — murmurou ele para consigo, enquanto todos, incluindo Blodeuwez e os dois irmãos, se aproximaram para descobrir a mensagem dos deuses. — O passado, o presente e o futuro da tua filha... O prognóstico do destino. De que outra forma poderia ser?

Ele pegou nas runas e estendeu-as a Lliane que, sem uma palavra, sem uma hesitação as alinhou no chão. O passado à esquerda, o presente ao meio, o futuro à direita. E as três runas formavam este desenho:

Gwydion pousou o seu bastão sobre a primeira e recitou o velho poema das runas que todos conheciam de cor desde pequenos (mas era necessário sempre nomeá-las antes de ler a mensagem).

 

Bith tacna sum healdeth trywa wel

With aethelingas, a bith onfaerylde,

IOfer nitha genipu, naefre swiceth

 

Tir é um símbolo especial.

Para os príncipes significa um destino feliz.

Ele prevalece sempre sobre as trevas da noite.

 

Ele nunca falha “Para os príncipes um destino feliz”... Lliane sorriu, cheia de esperança, mas Gwydion abanou a cabeça.

— Colocaste-a à esquerda, significa o passado. E o passado da tua filha, é o teu, és tu, as tuas provas e a tua demanda. Tir é a runa da vitória e da vontade. Tu estavas marcada pelo símbolo dos príncipes e o teu destino era venceres. As runas não mentem.

E Gwydion pousou o seu bastão de aveleira sobre a segunda, um simples traço vertical, Is, a runa do gelo.

 

Byth oferceald, ungemetum slidor,

Glisnath glmaeshluttur, gimmum gelicust,

Florfroste geworuht, faeger ansyne.

 

O gelo é frio e muito escorregadio.

Ele brilha como vidro, quase como uma jóia,

Um chão feito de gelo, é agradável à vista.

 

— Eis o presente — disse Gwydion. — O gelo... Sabemos que ele existe, mas raros são os que o vêem formar-se. Uma manhã acordamos e está tudo gelado. O menor movimento torna-se difícil, na verdade, perigoso. É a runa da espera, espera por dias melhores quando o gelo se fundir, ou a promessa de um inverno eterno.

Lliane ficou silenciosa, os seus olhos já fixavam a runa seguinte, Éthel, a casa... Mas a runa estava invertida.

 

Byth oferleof aeghzvylcum

Gifhe mot thaer rihtes andgerysena on

Brucan on bolde bleadum oftats

 

A casa é preciosa dentro do coração de cada um

Ela está, simplesmente em paz,

O lugar de frequentes colheitas

 

— A runa está invertida — confirmou Gwydion como preâmbulo. — É um símbolo de solidão. Aconteça o que acontecer, é sozinha que ela deverá encarar o seu destino.

Lliane deu um grito de protesto, mas o velho druida parou-a com um gesto.

— É a runa da casa, não no sentido de habitação, mas no sentido da linhagem de sangue — disse sem olhar para ela. — O que significa que a sua vida estará sempre ligada ao seu nascimento, e o poema recorda as colheitas da vida, e sejam elas quais forem, não serão feitas senão no seio da casa.

Gwydion ficou silencioso durante alguns instantes, refletindo no significado da sua profecia. Depois olhou Lliane gravemente, com intensidade.

— A tua filha traz dentro dela o sangue dos elfos, mas não só... Éthel seria um presságio maravilhoso para a filha de uma rainha, chamada a reinar ela também, um dia, mas a runa está invertida... Isso significa que um outro destino se lhe oferece, um outro sangue, uma outra casa.

— Mas isso não significa que ela o vá escolher! — gritou Lliane.

— Não, com certeza que não...

— Mestre...

Gwydion e Lliane voltaram-se ao mesmo tempo para o jovem Llaw Llew Gyffes. Ele esboçou um sorriso constrangido, e depois desviou-lhes o olhar designando de novo a runa de Éthel, no chão.

— Perdoai-me, minha rainha, mas a linhagem da vossa filha não é na realidade nem humana nem élfica — disse ele muito depressa. — Sendo as duas coisas ao mesmo tempo, ela não é nem uma coisa nem outra... Como Myrddin.

O nome atingiu Lliane com a força de uma bofetada. Ela reviu o homem-criança ao pé dela, na clareira, no momento do nascimento da filha, a alegria absurda com que ele tinha acolhido o seu nascimento... Sem querer, a rainha voltou-se para Blodeuwez, com uma tal expressão de fúria que o sorriso da amiga se gelou num trejeito interrogador e receoso. Lliane recompôs-se: evidentemente, a curandeira não se recordava de nada, e ela tinha feito o necessário para isso. Levantou a mão para a acalmar e fechou os olhos, abatida...

— Somente Myrddin e ela... É isso que tu chamas uma linhagem? — disse numa voz menos segura do que gostaria.

O jovem ollamh abanou a cabeça, baixando os olhos sob o olhar da rainha.

— Myrddin foi meu aluno — interveio Gwydion, e apontou Llaw Llew Gyffes com um gesto negligente. — Ensinei os dois juntos, depois de tu teres conseguido a tua iniciação... Ninguém conhece Myrddin melhor do que ele.

Lliane virou a sua atenção para o jovem druida. Era um elfo, sem dúvida nenhuma, mas era também a Criança sem nome, encontrada por Gwydion na floresta, criada longe de tudo, a criança sem clã...

— É verdade — admitiu ele com uma voz mais segura, quase agressiva. — Éramos irmãos, como poucos, e ao mesmo tempo não tínhamos nada em comum. Ele não era simplesmente um bastardo como... como eu. Era um ser à parte. Por vezes, metia-me medo, e por vezes eu ter-me-ia deixado morrer por ele tão grande era a minha admiração. Ele aprendeu as mesmas coisas que eu, mas com ele a magia das árvores era diferente. Há qualquer coisa nele, que nunca consegui compreender...

— Ele tem razão — disse Gwydion. — Era como se a sua parte humana tivesse pervertido tudo o que eu lhe ensinara. Não, não é pervertido... Modificado. — Ele dirigiu a Lliane um olhar inocente. — Tu sabes que a maioria das gentes, elfos ou humanos, sentem um mal estar com a sua presença?

— E a tua filha é como ele! — disse o ollamh.

A sua cara sorria e sem dúvida ele pensava estar a fazer uma cortesia à rainha. Mas Lliane sentiu aquelas palavras como insinuações insultuosas.

— Creio que ele tem razão — disse Gwydion num tom paternal, pegando-lhe nas mãos. — A tua filha pertence a uma linhagem que não é dos elfos nem dos homens. Percebi o mal estar de Llandon quando pegou nela. Ela é como Myrddin, não é?

A rainha não respondeu.

— A runa está invertida... O seu destino será feito só por ela. Creio que a tua filha não será nem rainha dos elfos nem rainha dos homens, mas de um outro povo, talvez de um povo novo, nascido desta mistura... Tu não podes fazer nada por ela, Lliane. Talvez.. Talvez a devesses confiar a Myrddin.

Outra vez aquele nome! Lliane retirou as mãos das do velho elfo e olhou-o com um ódio extraordinário.

— Foi tudo o que encontraste? — gritou ela. Levantou-se de um salto e varreu com o pé as três runas ainda alinhadas no chão.

Gwydion, de olhos abertos, olhava ainda as plaquetas de madeira espalhadas no chão, sem conseguir compreender como é que ela tinha ousado cometer semelhante sacrilégio.

— Vai ser necessário que eu a abandone, é isso? Que a deixe sozinha na floresta, embora ela ainda não tenha sequer um dia, e que ela... como tu disseste, enfrente o seu próprio destino?

— Lliane — murmurou Gwydion. — As runas...

A rainha deu um grito de raiva e, afastando do seu caminho Llaw Llew Gyffes que se tinha agachado para apanhar as preciosas plaquetas, correu para a sua cabana sem olhar para trás.

O silêncio caiu sobre a floresta. Gwydion levantou-se a custo, dobrado sobre o braço do seu ollamh. Blodeuwez e os dois irmãos baixaram a cabeça evitando olhar para o velho druida, deitando olhares indecisos para a cabana de Lliane. Sem dúvida ela estaria a chorar, caída ao lado do berço de Rhiannon. Ou talvez a apertasse nos braços, mais solitária do que alguma vez uma mãe o terá sido.

Gwydion, apoiado no braço do seu aluno, parecia ter envelhecido cem anos. Quando passaram em frente dos irmãos, Blorian atreveu-se a levantar os olhos e cruzar o olhar do druida.

— Que é preciso fazer? — disse ele.

O velho abanou a cabeça, com uma expressão de tristeza infinita.

— Vai haver guerra. Rhiannon não é o destino dos elfos. Não sei se Llandon tem razão, não sei se poderemos vencer os homens, mas é a única solução. A não ser que..

Ele mergulhou numa reflexão intensa, indiferente aos olhares ávidos pousados sobre ele. A não ser que Lliane tenha uma outra filha, com Llandon, desta vez. A não ser que Rhiannon morra e que tudo volte ao normal, pensava ele.

Ele endireitou-se e pareceu descobrir a presença de Blorian à sua frente.

— Sabes — disse ele —, as runas nunca mentem. Rhiannon ficará sozinha, é assim, está escrito. Se Lliane quer ligar o seu destino ao desta criança... Pois bem... O destino separá-la-á.

Fez um gesto com a mão, como que para varrer uma palha.

— Não compreendo, mestre...

— No entanto, é claríssimo! — disse Llaw Llew Gyffes.

O jovem ollamh olhou Blorian com arrogância, quase desprezo. O príncipe ultrapassava-o, pelo menos, em duas cabeças. Esguio como todos os altos-elfos, ele era parecido com a rainha com os seus longos cabelos negros enquadrando-lhe o rosto estreito, de um azul pálido, onde brilhavam uns olhos tristes. Ao seu lado, Llaw Llew Gyffes assemelhava-se a um pauzinho. Não trazia vestes de catassol nem cota de malha em prata, mas uma simples túnica de sarja verde e botas em pele, como um homem do bosque. O seu único bem era o bastão de ouro indicando o seu grau, e para o qual Blorian olhava de lado.

— Se a tua irmã teimar em guardar esta criança, morrerá, pois o destino dessa rapariga é de crescer sozinha, no meio da sua linhagem!

O príncipe recuou um passo, assustado tanto com as palavras do jovem ollamh como com o azedume do seu tom. Estendeu a mão para tentar segurar Gwydion, mas o druida abanou a cabeça com um ar desolado e afastou-se.

Então Blorian deixou-os partir e ficou até todos terem desaparecido.

 

Sob as muralhas de Loth, a hoste real parecia vencida. Um sem número de feridos não tinha conseguido seguir a cadência da marcha forçada imposta por Gorlois e formavam, por trás do exército de sobreviventes, um rasto sanguinolento, espalhado por léguas, desfiado. Alguns morreriam pelo caminho, outros conseguiriam chegar até à cidade onde seriam acolhidos pelos camponeses, outros ainda seriam roubados por bandos de gnomos malfeitores, que lhes roubariam tudo mas que os deixariam talvez com vida, ou por grupos de guerreiros anões que, esses, não lhes tiravam mais que a vida, mas levando tempo... Era um exército moribundo que regressava a Loth, e a própria cidade pareceu-lhes ferida, marcada por sombrias cicatrizes do incêndio que a tinha devastado dois meses antes, quando a guerra contra os anões tinha começado dentro do seu recinto murado.

E, no entanto, os homens eram vencedores.

Loth tinha exultado ao anúncio da vitória, a multidão comprimia-se nas muralhas, em cada merlão desfraldavam-se longos estandartes com as cores da cidade e dos seus santos, mas os gritos de alegria calaram-se na garganta dos cidadãos diante do aspecto da tropa. O passo era lento, pesado, os soldados traziam ainda traços da nuvem vermelha que os tinha coberto, ao ponto de parecerem todos feridos, até ao último. Nas muralhas, as mães e mulheres tremiam de angústia à vista destes homens esgotados, estropiados, procurando o marido ou o filho, chorando ao vê-lo ou por não o verem...

Depois todos descobriram a carroça onde jazia o corpo do rei com a sua armadura em pedaços, um pano cobrindo-lhe os ombros e caindo subitamente no sítio onde deveria estar a cabeça. A seu lado cavalgava o senescal-duque Gorlois, com a cara séria e as tranças saltando ao trote do seu cavalo, que se enfiou sob a seteira que defendia a ponte levadiça sem um olhar para o povo.

O exército dispersava-se no interior das muralhas, sob as ordens dos sargentos, para que a cada um fosse pago o prêmio da campanha, em boas moedas de ouro ou de cobre, segundo a sua posição. Mas Gorlois não parou. Seguido pela guarda dos bravos, subiu os bairros ao lado da carroça mortuária, no meio do ruído das rodas de ferro sobre o pavimento incerto das ruelas, com os olhos fixos nas altas torres do palácio que dominava a cidade. À entrada hesitou um instante e depois, como se o tempo de reflexão tivesse esgotado, desceu do cavalo, pegou um embrulho sem forma pousado ao pé do cadáver e avançou para a frente da rainha Ygraine.

Ela estava já ao pé da grande escadaria, rodeada das suas damas de companhia, do arauto real e da sua guarda pessoal, mais pálida ainda do que de costume, tão pequena no meio da multidão, tão jovem para ser rainha...

— Senescal-duque Gorlois de Tintagel! — gritou o arauto batendo nas lajes com o seu bastão de ferro.

Sem querer, o duque parou um momento. A etiqueta da corte parecia especialmente fora de propósito nesta ocasião, mas tinha sido ele próprio quem a tinha imposto anteriormente, como um jugo destinado a quebrar os modos demasiado fraternais dos barões, antigos companheiros de armas que julgavam por vezes que tudo lhes era permitido porque tinham certo dia, durante uma batalha qualquer, salvo a vida daquele que se tinha tornado rei. Gorlois inspirou profundamente, os olhos fechados e levantou os braços para que os pagens o despojassem da sua espada e da sua capa avermelhada pela poeira da montanha. Ninguém deveria estar armado na presença da rainha. Nem o rei. Mas o rei estava morto, não era?

Ele suspirou quando um pagem levantou o seu talim, aligeirando o peso enorme da espada sagrada dos anões, mas recompôs-se imediatamente, agarrou o jovem criado e segurou no punho do talismã.

— Excalibur! — gritou numa voz rouca, quebrada pela fadiga e pela poeira desembainhando a espada a fim de a agitar por cima dele. — O talismã maldito dos anões!

Procurou com os olhos o capelão da rainha, o irmão Blaise, um frade com hábito de burel cinzento, tonsurado e magro como um cão, bem à imagem da sua miserável ordem de mendigos.

— Deus deu-nos a vitória! — continuou ele com uma furtiva inclinação de cabeça em direção ao monge. — Mas este talismã pagão reclamou o seu soldo. O rei... O rei está morto.

Ygraine ficou parada, como petrificada no seu comprido vestido de veludo vermelho escuro, cujas mangas estreitas cobriam os braços até aos dedos. Tinha um ar ainda mais pálido que o pano do véu que lhe cobria o rosto, escondendo os seus longos cabelos loiros, embora Gorlois soubesse que ela não tinha amado Pellehun. Como poderia tê-lo amado? Ele tinha idade para ser seu pai, na verdade avô (como ele próprio, aliás) e não escondia ter amado apenas a primeira rainha, Brunehaut, morta de parto levando com ela o seu único filho. Druidas da floresta dos elfos tinham sido mortos nesse dia, na fúria do príncipe, e também um monge, suficientemente louco para lhe ter vindo dizer, a fim de o consolar, que era a vontade de Deus.

Pellehun tinha casado com Ygraine, anos mais tarde, porque ela pertencia à linhagem de Carmelide, reputada pela sua fertilidade, mas ela não tinha conseguido nunca dar-lhe um filho, e o rei tinha bem cedo desertado a sua cama. A rainha só tinha dezesseis anos, na altura, e tinha gasto a sua juventude entre os grossos muros do palácio de Loth, sem amigos, sem amores, mantendo a sua posição ao fingir não ouvir os murmúrios que marcavam cada uma das suas aparições ao lado do rei. Ygraine era bonita, no entanto. Pequena e um pouco rechonchuda, as ancas largas mas a cintura estreita, ela tinha conservado aos vinte e dois anos uma cara de criança e seios de jovem, que tinham sabido comover o rei, há já bastante tempo, e que Gorlois olhava de soslaio nesse momento sem parar...

— Onde está ele? — disse ela sem olhar o senescal.

Ele voltou-se, fez um gesto com a mão, e os doze bravos puseram-se imediatamente em movimento no átrio, marchando ao mesmo passo num ranger doloroso das suas armaduras de placas, seis de entre eles trazendo aos ombros os despojos do rei, os outros ladeando-os, com as espadas estendidas para que ninguém o ignorasse, e o arauto arregalou os olhos perante este desaforo. Eles depositaram o corpo de Pellehun no chão, mesmo nas lajes, descobriram o seu corpo mutilado e depois afastaram-se, tirando também eles a espada da bainha, formando em volta do senescal uma ala de aço.

Na escuridão da sala, o rei morto assemelhava-se mais a um charco do que a um jacente, com a sua capa enlameada em volta dele. Ygraine aproximou-se lentamente, com um nó na garganta e o corpo sacudido por arrepios, os olhos virados para o corte horrível na couraça suja de gordura e de escuros rastos de sangue coagulado. Havia qualquer coisa de estranho, de anormal, naquela maciça silhueta quebrada...

— Meu Deus!

Ygraine recuou rapidamente assim que percebeu que o corpo estava decapitado e levantou para Gorlois um olhar horrorizado. Então, ele desfez o laço de couro que fechava o saco que tinha guardado debaixo do braço, e depois pousou no chão, ao lado do cadáver, a cabeça exangue do rei Pellehun.

Todos, padres, criados e soldados, tiveram o mesmo murmúrio de assombro. Era um espectáculo horrível, obsceno, ver essa cabeça venerável pousada sobre as lajes, com aquela pele lívida, aquele atroz sangradouro de carnes enegrecidas donde saíam pedaços de ossos partidos, e as tranças cinzentas do rei manchadas de sangue seco. Ygraine continuava a tremer, com tanta força que se abraçava a si própria como uma criança, mas descobriu com horror que não sentia desgosto algum, simplesmente nojo. Ela levantou os olhos para Gorlois e a semelhança abalou-a. A mesma altura, a mesma idade, a mesma cara dura sem barba, os mesmos cabelos grisalhos penteados em várias tranças, seguras com laços de ouro em Pellehun, e com laços de couro vermelho no duque. Pellehun, apesar da sua idade, tinha continuado bonito, mas Gorlois era extremamente feio, com o seu olho vazio e aquela cicatriz horrorosa que lhe cortava a cara. No entanto, emanava dele uma sensação de força e solidez ainda maior, com uma luz no seu olho que se tinha apagado há muito tempo com os olhares que o rei lhe deitava a ela. Ygraine perturbou-se ao perceber que ele a fixava com impudência, escondendo, na penumbra da sala, o que lhe parecia ser um sorriso. Foi somente nessa altura que ela reparou nas espadas.

— Como ousam? — disse ela.

A barreira de aço não respondeu. Os bravos estavam com elmos, as viseiras descidas, não deixando ver mais que curtas barbas, aparadas à moda de Loth. Imóveis nas suas armaduras amolgadas e enegrecidas pelos campos de batalha, eles não se assemelhavam em nada àqueles cavaleiros galantes cantados pelos bardos. Eram homens duros, moldados pela guerra, assassinos vestidos de ferro, com os olhos fatigados de verem sangue. Ygraine já não os reconhecia.

— Senhor Oddon — disse ela, voltando-se para um deles, que trazia o escudo da casa de Orcanie — como podeis desembainhar a vossa espada diante da vossa rainha?

O bravo, como resposta, levantou a viseira e Ygraine reprimiu um grito. Não era Oddon, mas um desconhecido de rosto consumido, vulgar e brutal.

— Oddon morreu — murmurou Gorlois. — Bem como os senhores Noè, Guirre, Galessin, mortos por esses malditos anões... E, é claro, Ulfin o traidor, e esse pobre Uter, tão jovem...

Ele aproximou-se da rainha, com aquele sorriso ignóbil que lhe dava vontade de vomitar.

— Sabíeis, Senhora minha, que o rei desconfiava de Uter? Ele pensava que entre vós e Uter...

Ygraine tremia com espasmos, as faces em fogo, o corpo hirto, enquanto o duque se aproximava cada vez mais, até a tocar...

— Enfim, tudo isso é passado — murmurou ele ao seu ouvido. — Esses dois estão mortos. Só restamos... nós.

Ela teve um sobressalto e voltou para ele um olhar horrorizado, tão áspero que ele se afastou um passo, com um desajeitado esboço de sorriso. Uma gota de suor escorria-lhe ao longo da cara, traçando um sulco claro no seu rosto empoeirado.

— Foi necessário substituí-los, não é verdade? — disse numa voz novamente segura, abrindo os braços como um saltimbanco diante da fileira imóvel dos seus cavaleiros. — Assim, os bravos são novamente doze!

— Vós não tínheis nenhum direito! — gritou Ygraine. — É o rei quem nomeia os bravos! E, se o rei está morto, é à rainha que obedecereis!

Gorlois deu meia volta, e o seu esboço de sorriso crispou-se num esgar amargo. Aí estava. O momento tinha chegado.

— Larguem as vossas armas! — gritou ela. — Obedeçam!

Mas a sua voz era a de uma menina, e o medo lia-se-lhe nos olhos.

— Vinde buscá-las — murmurou Gorlois.

Os guardas de Ygraine apertavam nervosamente as suas lanças subtilmente cinzeladas, armas para cerimônias bem delicadas face aos cavaleiros com armaduras. Um deles deitou a sua lança para o chão, abriu as mãos e recuou baixando a cabeça. Os outros deitaram-lhe olhares cheios de desprezo, e os seus punhos crisparam-se até ficarem brancos sobre o punho das suas lanças.

— Matem-nos — disse Gorlois.

E, apontando o dedo para o guarda que tinha recuado:

— Primeiro ele.

 

                                 A BRUMA

Era uma noite de lua cheia. Uma ligeira brisa tépida carregava o odor das ceifas, do feno cortado, erguido em medas, e do suor dos animais. Tinha feito um calor de chumbo durante todo o dia e, de uma das estreitas janelas do quarto real — uma simples seteira escondida por um pesado cortinado de couro polido — Gorlois varria com o olhar os campos de trigo que se estendiam em volta da cidade, quase fosforescentes na penumbra. Havia fogos, ao longe, e, de vez em quando, ouvia-se o eco surdo de risos, de gritos, de uma música estridente. As fogueiras de Lugnasadh... Ainda uma velha tradição que os monges iriam ter dificuldade em fazer desaparecer.

Durante toda a ceifa, e desde o princípio dos tempos, as mulheres vinham ao encontro dos ceifeiros ao cair da noite com alimentos e vinho. Em honra de Lug, antigo deus do Sol, cujo poder se manifestava durante o mês de Agosto mais do que em qualquer outro momento do ano, acendiam-se grandes fogueiras em torno das quais os jovens se desafiavam uns aos outros, para se evidenciarem aos olhos das suas queridas. Nessas noites, podiam-se casar à experiência, por um ano e um dia. E se o casamento não fosse para a frente, pois bem, era Lug que não tinha querido... As festas culminavam com a Agastada, no final das ceifas, mas estas simples celebrações campestres quotidianas já alegravam o corpo e a alma.

Gorlois brincou por instantes com a idéia de acordar Ygraine e de ir casar com ela por bem ou por mal, em volta das fogueiras de Lug, mas estava nu e a sua roupa tinha sido pendurada em varas durante a noite, longe do chão frio e dos ratos, e ele estava cansado. E depois estava triste. Para eles, evidentemente, era simples. A guerra tinha acabado, os anões tinham sido vencidos, as ceifas anunciavam-se boas, e as mulheres dos mortos estariam bem depressa disponíveis, uma vez terminado o luto. Ele teria gostado de ser feliz, também ele, mas era uma sensação que ligava mal com o desgosto.

Gorlois lembrou-se de Excalibur e reviu-se agitando a espada brilhante no tumulto da batalha. Os anões tinham-se batido por ela, pelo seu talismã, e depois da sua derrota a Montanha Vermelha tinha-se abatido sobre os sobreviventes, engolindo para sempre o último reino anão. Como era possível não ver aí um sinal?

Os monges tinham caído de joelhos e cantavam salmos à glória de Deus, mas teria sido esse Deus único que acabara de manifestar o seu poder? Este pensamento não o tinha largado desde há alguns dias e como sempre a ausência de Pellehun fazia-o sentir a sua solidão. Ninguém com quem confidenciar. Ninguém com quem partilhar o peso desta abominação. A morte de um povo...

Não era isto que o rei e ele próprio tinham querido? Subjugar os anões, sim, quebrar o seu poder para sempre, arrebatar os seus tesouros e fazer deles um povo de escravos, que trabalharia nas suas próprias minas para a maior glória do reino de Logres, sim, sim, sim! Não isto.

O defunto rei não acreditava nas lendas dos talismãs. Aliás, ninguém acreditava, a não ser os imbecis dos elfos. Mas a Montanha tinha-se desmoronado da mesma forma, sem que eles tivessem feito nada... Como se os deuses tivessem repentinamente abandonado os anões depois da sua derrota, como se um povo não pudesse sobreviver sem o seu talismã.

Quando os monstros tinham sido vencidos, no final da guerra dos Dez Anos, tinham-se retirado para as Terras Gastas, essas terras áridas para além das Fronteiras. Teria sido suficiente terem-nos perseguido, encurralado Aquele-que-não-podia-ser- nomeado no coração do seu sinistro reino e apoderarem-se do talismã dos monstros, a Lança de Lug, para que o povo deles fosse destruído para sempre, também ele, para que a força e a violência dos gobelins passasse a pertencer para sempre aos homens, como o seria daqui em diante a riqueza dos anões?

Gorlois apoiou a sua fronte febril nas pedras colossais da muralha, mas a pedra, aquecida todo o dia pelos raios de sol, estava ainda morna e não lhe trouxe nenhum alívio.

Aquilo que ele entrevia, nessa noite de Lugnasadh, ultrapassava em muito os sonhos de conquista de Pellehun. Um mundo dominado só por homens. Um mundo liberto dos anões, dos monstros e dos elfos...

No momento em que ia deixar a janela, o som triste do campanário começou a tocar a matinas, com as doze badaladas da meia-noite. Pensando que Ygraine tinha acordado, deitou um olhar ao leito. Mas não. Ela continuava a dormir, a não ser que fingisse. Ele sentiu um doce calor no seu ventre ao ver as costas nuas da jovem mulher e os seus longos cabelos loiros espalhados sobre o travesseiro. À luz azulada da lua, a sua pele parecia quase tão branca quanto os lençóis de linho da sua cama. Uma pele suave e morna... Ele mantinha nos lábios a doçura dos seus seios, quando os tinha mordido vorazmente. Deus sabe como ela tinha gritado, chorado, arranhado quando ele a tinha tomado, antes de ceder aos seus assaltos, e talvez também por ter sentido prazer.

Ou talvez não

Que importava...

De qualquer maneira ele estava demasiado cansado. Sentia-se poeirento, mal cheiroso e não tinha certamente vontade de um novo combate no leito de Ygraine. Gorlois fez uma careta, sacudiu a cortina de couro para se abanar e afastou-a da janela para arejar um pouco a atmosfera sufocante do quarto. As suas pálpebras estavam pesadas de cansaço, mas a excitação dos dias passados era demasiado forte para o deixar em paz. Mal se deitava, as imagens misturavam-se-lhe na cabeça, amontoavam-se a um ritmo tal, que ele se levantava em sobressalto, com o coração a bater. As caras retorcidas, febris, dos arqueiros trespassando de flechas o exército dos anões, o rei, morto, e os seus próprios choros diante do cadáver mutilado do seu velho amigo. A Montanha Vermelha abatendo-se sobre Baldwin e o seu povo. As cabeças baixas e os olhares fugidios dos cortesãos. O corpo nu de Ygraine, tão jovem, retorcendo-se debaixo do seu peso...

Gorlois aproximou-se dela e contemplou o seu rosto de criança, afogado no meio daquela massa espantosa de cabelos loiros. Ele estendeu a mão em direção à sua cara para lhe afastar uma mecha de cabelo, mas os olhos da jovem mulher abriram-se imediatamente, com um movimento de recuo instintivo, animal. Com efeito, ela não dormia...

— Deixai-me!

O velho guerreiro retirou a mão como se a tivesse queimado e recuou alguns passos, mais vexado que furioso. Ela apertou os lençóis de linho contra si para esconder a sua nudez (como se ele não tivesse usufruído do seu corpo até à saciedade!), e apesar da sua juventude, apesar dos seus olhos cheios de lágrimas, era a rainha que ele via diante dele. A esposa de Pellehun.

— Deixo-vos — resmungou ele, pegando, para se vestir, numa comprida camisa de linho pousada sobre a arca. — Mas ainda não terminei. Quer queirais quer não, sereis minha rainha.

— Vós não sois rei! — gritou ela numa voz tão estridente que ele temeu que ela tivesse despertado o palácio inteiro.

Então ele saiu e fechou precipitadamente a porta do quarto.

Que dormisse sozinha, contudo, e que lhe fizesse bom proveito. Do que ele precisava era de um banho fresco, nas termas, bem como companhia para falar da batalha e beber. Ele tinha a cidade, tinha o exército, tinha a Espada... E tinha-a tido a ela. Todo o reino já o devia saber. Daí, que importava que ela não o amasse. De qualquer modo, ela também não amava Pellehun. Ou, em todo o caso, não tanto quanto ele, seu quase irmão, o tinha amado. Como é que ele poderia tê-la deixado reinar? E porquê? Ela não tinha sido capaz nem mesmo de dar um herdeiro ao rei!

Ao bater, a porta acordou em sobressalto dois dos seus bravos recentemente promovidos, que, cheios de cansaço, se tinham deixado cair em cadeiras, no quarto de vestir, onde o casal real tinha por hábito receber os mais íntimos. Os dois homens não tinham retirado as armaduras de combate desde a batalha...

— Vocês fedem como bodes! — disse Gorlois com um riso maldoso. — Comigo para os banhos!

No corredor, um grupo de guardas armados de lanças curtas puseram-se em sentido quando eles saíram, mas o senescal não lhes concedeu sequer um olhar. A galeria que conduzia aos aposentos reais servia também de fachada, conduzindo ao torreão central. Depois do calor úmido do quarto, reinava uma frescura deliciosa. A parede espessa estava aí aberta, de um lado e do outro, com seteiras largas pelas quais entrava a brisa; duas vigias fazendo uma saliência para fora, como guaritas de pedra, abertas com besteiras na parte baixa para observar o inimigo ou esmagá-lo com projécteis. O odor e o zumbido irritante das moscas, mostrava bem qual o uso que os soldados faziam delas, em tempo de paz...

À parte, numa zona sombria entre dois archotes, Gorlois avistou, estendido no chão como um saco, uma silhueta vestida com um longo fato de burel.

— O que é que é? — disse, indicando-a com um movimento do queixo.

Mas o homem já se levantava.

— Desculpai, senhor. Creio que adormeci...

Avançou para debaixo do archote e o senescal reconheceu-o. Era Blaise, o frade de cara triste que servia de confessor à rainha.

— Não pudemos ver-nos durante o dia — começou ele.

— Porquê? — disse Gorlois. — Eu queria ver-te?

Por detrás dele, os bravos e os guardas começaram a rir, mas o monge olhava-o com uma expressão que o irritou prodigiosamente. Uma mistura de bondade, de compaixão e de... de piedade?

— Achei que terias necessidade de Deus, meu filho. Para apaziguares a tua alma...

Gorlois crispou os punhos e olhou-o com ódio, durante um segundo, mas recompôs-se imediatamente e deu um suspiro.

— É isso... Amanhã.

— Amanhã, meu filho, poderá ser tarde. Tu vives em estado de pecado mortal. É preciso confessares as tuas faltas, humilhares-te diante de Deus e implorar o seu perdão.

— Humilhar-me?

Um dos cavaleiros deu uma gargalhada trocista e avançou um passo em direção ao frade, mas a ameaça passou pelo monge como chuva sobre ardósia. Gorlois fez novamente um esforço para se conter.

— Amanhã, está bem? Esta noite não tenho necessidade de Deus, tenho necessidade de um banho. E de comer, e de beber!

Ele deu uma pancadinha no ombro do monge com um sorriso forçado, e depois enfiou-se pelo corredor, seguido pela sua escolta.

— Tu também, aliás, deverias comer um pouco! — acrescentou sem se voltar. — Dá medo olhar para ti!

— Sem Deus, nunca serás rei! — lançou o irmão Blaise para as silhuetas que se afastavam.

Gorlois não respondeu, mas o seu sorriso desapareceu.

 

Não tinham voltado a ver ninguém há já vários dias. Caminhando de noite, escondendo-se durante o dia, Uter e os seus companheiros tinham esgotado os víveres de Bran (ou melhor Bran tinha-os esgotado quase sozinho comendo sem parar, de manhã à noite e por vezes mesmo quando eles dormiam) e não viviam mais que da caça e de colheitas. Mas não era fácil caçar à noite, mesmo para um anão, e a longa estadia deles sob a Montanha tinha-os feito esquecer a fome. Foi assim, sem dúvida, que sem querer se tinham aproximado das terras cultivadas pelos homens.

Silenciosos todos três (com exceção dos ruídos emitidos com intervalos regulares pela barriga de Bran), agachados em volta de um freixo solitário cuja ramagem espessa lhes escondia o céu estrelado, eles tinham os olhos postos numa outra luz, a de uma chama minúscula, demasiado pequena para ser uma fogueira ou mesmo um archote. Simplesmente uma vela...

— Vês alguma coisa? — perguntou Uter ao anão.

— Não vejo nada, mas sinto! Cozinharam uma espécie de guisado, talvez de lebre... Talvez ainda reste algum.

O jovem cavaleiro encolheu os ombros. Por uma razão que ele não sabia explicar, alguma coisa o empurrava para essa luz. Algo que ele não gostava, um sentimento desagradável de necessidade e de repulsa misturadas, inexplicável. Uter voltou-se para Ulfin. Apesar da escuridão, adivinhou o seu olhar pousado nele, e viu o mais velho tirar sem barulho a sua espada, segurando a bainha para não fazer tinir o aço. Ulfin levantou-se, saiu do abrigo das folhagens e avançou alguns metros antes de se voltar para eles e lhes fazer sinal para saírem também e se porem de um lado e do outro dele. Houve uma espécie de desastre sonoro quando Bran se levantou com a sua discrição habitual para tomar posição à esquerda de Ulfin, atirando para cima do ombro o seu enorme machado com as duas mãos, como um lenhador partindo para o trabalho. Felizmente, ninguém reagiu à sua barulheira. Uter, em comparação, movimentou-se tão silenciosamente quanto um elfo. Afastou-se rapidamente para a direita, não distinguindo mais que a silhueta do mais velho, e depois tomou atenção à chama vacilante, ao longe diante deles.

Sob as suas botas de pele, ele sentia a erva seca estalar como uma fogueira de palha, e a sua longa cota de malha em couro bater contra os tornozelos. Não tinha ainda desembainhado a espada e mantinha-a encostada contra a perna, retendo a respiração para evitar qualquer ruído alarmante. Com os olhos abertos, parecia-lhe vislumbrar ao longe o vago contorno de uma casa, demasiado baixa para ser de um homem, a menos que estivesse meio enterrada numa cavidade do terreno... Os camponeses das grandes planícies abrigavam-se assim muitas vezes do vento e da vista... Mas os camponeses nunca viviam sós, e era raro que um burgo não estivesse protegido, nem que fosse por uma simples paliçada de toros. Deitou um olhar em volta e endireitou-se. Os outros tinham desaparecido. Ele agachou-se até rasar o chão, para tentar ver as silhuetas deles no ecrã azul da noite, mas não viu nada, a não ser as formas suaves dos arbustos do arvoredo. De novo, reteve a respiração e estendeu o ouvido. Nada. A não ser aquela luz minúscula, por trás daquilo que ele pensava ser uma janela. Lentamente, desembainhou a sua espada e depois começou a andar virando para o lado esquerdo, onde deveriam estar os seus companheiros. Quase em seguida, bateu num corpo e por pouco não se estatelou ao comprido.

Era um gnomo, horrível, a cara amassada como uma batata, o tronco apertado num casaco de pele, morto, sem dúvida alguma, mas não parecendo ter ferimentos. Morto de medo, talvez, pela expressão da sua cara.

— Uter!

O jovem levantou os olhos, furioso por ouvir chamar o seu nome em voz alta, mas imediatamente soube que não era nem Bran nem Ulfin quem se dirigia a ele. Uma porta tinha-se aberto na minúscula casa, e uma silhueta delgada e alta, vestida com uma túnica sem mangas, recortava-se na pouca luz do luar.

— Uter...

Desta vez a voz tinha vibrado mesmo no interior da sua cabeça. Ele vacilou e levou a mão à garganta, tomado de uma vertiginosa sensação de mal estar. E ao mesmo tempo foi tomado pela raiva, uma baforada irreprimível de cólera que o inundou de uma só vez.

— Que diabo, tinha certeza que eras tu!

Ele correu em direção à silhueta e encostou-a rudemente contra os toros da cabana.

— Merlim! Onde estiveste tu todo este tempo?

O homem-criança libertou-se com a agilidade de uma cobra e entrou dentro da casa sem que Uter tivesse tempo para reagir. Este praguejou, enfiou a espada na bainha e, depois de uma hesitação, colocou as mãos em concha junto à boca.

— Está tudo bem! — gritou para os seus companheiros. — Venham!

Merlim esperava-o no interior, mexendo com uma grande concha um guisado de cheiro delicioso, que cozinhava a fogo brando num caldeirão suspenso por cima de um fogo de brasas. Este era, com exceção da vela que eles tinham visto, a única luz da divisão, na qual Uter, dobrado ao meio tão baixo era o teto, divisou um montão de utensílios heteróclitos, de peles empilhadas, de armas e de cofres. Um acervo típico da casa de um gnomo...

— Foste tu que o mataste? — perguntou ele, com um movimento do queixo na vaga direção do cadáver, lá fora.

— Não sei — murmurou Merlim. — Julgo que o assustei...

Uter abanou a cabeça com um ar de reprovação e sentou-se no chão. O homem-criança sorria, como era seu hábito, mexendo o seu guisado com uma aparente indiferença, enquanto o cavaleiro o examinava. Continuava a ter a mesma veste azul sem forma, os mesmos cabelos brancos e curtos que, ao longe, lhe davam o ar de um velho, e o mesmo olhar de criança, como se o mundo não passasse aos olhos dele de uma triste farsa.

— Gostaria de saber uma coisa — disse Uter.

Deixou a frase em suspenso, obrigando Merlim a voltar-se para ele.

— Que idade tens?

O homem-criança rebentou a rir. Abriu a boca para responder, mas nesse mesmo instante, Bran entrou fazendo um estrondoso alarido, por trás do seu machado e da sua barriga.

— Quem é este? — grunhiu ele ao descobrir Merlim.

— Tudo bem — resmungou Uter. — Ele é dos nossos.

O anão fez um trejeito de assentimento e atirou com o machado para um canto da sala.

— Isso cheira mesmo bem — disse ele. — É lebre, não é?

Merlim sorriu, pegou numa escudela e serviu-lhe uma concha cheia. Com um levantar de sobrancelhas, ofereceu a Uter, que abanou a cabeça e estendeu as mãos, um pouco rápido demais para não ser possível não perceber que estava faminto.

— É nova, essa cicatriz — disse Merlim examinando-o. — Fica-te bem... Dá-te um ar de verdadeiro guerreiro!

Uter olhou-o com ar carrancudo, mas o homem-criança não se desfazia do seu habitual sorriso.

— E o teu companheiro? — disse com uma voz suave. — Não entra?

Uter abanou a cabeça, divertido apesar de tudo.

— Tu vês tudo, tu...

— Eu vejo mais do que tu julgas — respondeu Merlim. — Vi Lliane e vi a tua filha... E vejo que elas precisam de ti.

— A minha filha?

Uter, embaraçado, deitou um olhar a Bran, mas o anão aparentemente não estava a tomar atenção à conversa deles, completamente monopolizado pela sua gamela.

— Em boa verdade, no caso do teu amigo, não se trata de magia — continuou Merlim como se não fosse nada. — É a minha parte élfica, sabes. Vejo na noite tão bem quanto eles!

— Lliane... Nós... tivemos uma filha?

Merlim olhou-o com ar surpreendido e divertido.

— É verdade, tu não sabias... Pobre Uter, encarcerado durante tanto tempo pelos anões que quis salvar!

Deitou um olhar de esguelha ao príncipe Bran que continuava a encher a barriga.

— Parece que daquele lado, as coisas correm melhor...

O homem-criança começou a rir, mas Uter agarrou-o bruscamente pela roupa e atirou-o ao chão. No instante seguinte, com um joelho sobre o peito de Merlim, projetava todo o seu peso sobre ele e apertava-lhe a garganta quase a ponto de o estrangular.

— Vais falar, maldito bastardo? Onde está Lliane? Que história é essa de filha?

A voz de Ulfin, por trás dele, fê-lo sobressaltar.

— Se queres que ele fale, é melhor largá-lo. Começa a ficar azul, mesmo para elfo...

Uter hesitou e depois levantou-se lentamente, libertando Merlim.

— Não é um elfo — resmungou ele.

Observou o bravo, curvado a meio sob a abóbada da cabana, deitar um olhar de lado ao homem-criança com uma careta que traía o mal estar que se apossava dele ao vê-lo. Sem querer, recuou até ao caldeirão e, afastando Bran com um encontrão, serviu-se de uma grande porção fumegante, raspando o fundo do tacho.

— Uma sorte ter sobrado... vejo que o senhor Bran se serviu bem.

O anão, escondeu a sua escudela debaixo do braço e foi instalar-se mais longe, fora do alcance de Ulfin, o qual se sentou ao lado de Uter e esticou o pescoço para ver melhor Merlim, ainda no chão, ofegando e cuspindo.

— Tens razão, não é um elfo.

Apontou para ele com um osso de lebre que acabara de chupar cuidadosamente.

— ...E no entanto traz um fato de druida.

— É uma mistura de sangues — disse Uter. — Metade elfo, metade homem, nem elfo nem homem... Um bastardo que nos seguiu durante dias e que nos abandonou, à rainha e a mim, quando precisamos dele!

— Não devias falar de bastardo — disse Merlim fazendo uma careta. — Não é bonito em relação à tua filha.

Ele sobressaltou-se quando a escudela vazia de Uter voou através da sala e se foi partir contra uma parede de toros. Até mesmo Bran ficou surpreendido, ao ponto de levantar por um instante os olhos do seu guisado.

Fora de si, o jovem cavaleiro levantou-se de um salto, tão depressa que bateu com a cabeça no teto, o que teve o dom de aumentar dez vezes mais a sua raiva. Agarrou com uma só mão o homem-criança, que continuava caído por terra, os dentes cerrados, o olhar brilhando de ódio na penumbra, levantou um punho de maneira a calá-lo para sempre.

— Espera! — silvou Merlim.

Os seus olhos deslizaram furtivamente para o lado, designando Ulfin e o anão.

— Espera até que eles estejam a dormir! — murmurou. Uter reteve o soco. Estava demasiado escuro naquela maldita cabana para distinguir os seus traços com clareza, mas pareceu-lhe nesse momento que Merlim não passava de um jovenzito. Doze ou treze anos, não mais. Uma criança amedrontada, sozinha, rejeitada por todos, e sentiu vergonha de lhe ter chamado bastardo.

— Há algum problema? — disse por trás dela a voz zombeteira de Bran.

— Tudo bem — resmungou Uter. — Dorme!

— Quê? Mas eu não tenho sono!

Uter virou-se para ele com um ar desesperado, mas Ulfin interveio.

— Eu também não tenho sono — disse levantando-se, tapando com o corpo a fraca luz do fogo. — E além disso tenho sede e não encontro nada para beber aqui. Há um riacho lá fora, vamos encher os nossos odres.

Com uma cotovelada fez saltar Bran do seu tamborete.

— Tu vens comigo.

O anão abriu a boca para protestar, mas o olhar carregado de Uter dissuadiu-o.

— Vês como as pessoas se enganam? — disse Ulfin quando passava pelo seu companheiro de armas. — Julgávamos todos que tu estavas apaixonado pela rainha Ygraine, e eis que tens uma criança com uma elfo!

Saiu antes que Uter lhe respondesse, rindo nas suas barbas e olhando o céu estrelado.

— O que é que há de tão engraçado? — perguntou Bran atrás dele

— Nada... A bruma levanta-se.

O príncipe anão levantou as sobrancelhas e coçou a barba.

— Não vejo o que é que isso tenha de engraçado.

 

Mesmo na floresta, a noite estava pesada. Lliane não tinha dormido senão aos bochechos, com sede, o ventre ainda a queimá-la e sentindo por vezes o calor do sangue entre as coxas. De cada vez que conseguia afastar o sofrimento e fechar os olhos, o choro e os soluços de Rhiannon, acordavam-na. No espaço de dois dias, tinha chegado a um tal estado de esgotamento, que tinha adormecido ao mesmo tempo que a filha, depois da última mamada.

Foi o silêncio que a acordou.

O silêncio e um horror insondável, como se tivesse acordado no fundo de um poço, como se o vazio negro e escorregadio a aspirasse, como se a sua bebê lhe pedisse socorro, gritando de terror na noite que a levava. Tremendo apesar do calor da cabana, o seu primeiro gesto foi cobrir-se com uma capa, antes mesmo de acordar do seu pesadelo, desvairada, com o coração a bater.

O silêncio. Sem aquela respiração entrecortada, hesitante, aqueles pequenos gritos inconscientes e aqueles bruscos acessos de agitação através dos quais Rhiannon manifestava a sua presença.

Lliane levantou-se demasiado violentamente e cambaleou. As suas pernas mal a seguravam, a cabeça andava-lhe à roda, e ela teve que se apoiar para não cair. Mas um simples olhar para o berço da filha tinha bastado para dar um nome a esta angústia súbita: Rhiannon não estava ali.

Ela saltou da cabana, estonteada por instantes com os primeiros raios da manhã, e correu sempre em frente, sem refletir, como se soubesse para onde ia. Descalça na floresta, vestida somente com aquela capa que esvoaçava em volta dela ao ritmo da sua corrida, os cabelos ao vento e a pele arranhada pelas silvas, a rainha era a própria imagem daqueles demônios depravados e maléficos que os monges descreviam nos seus delírios. Ela corria chorando, caindo ao chão quando as pernas a traíam, recomeçando em seguida, bêbada de dor, de tristeza e de esgotamento, até que não conseguiu levantar-se mais, até que as lágrimas se esgotaram. Então, fechou os olhos e chamou a Deusa.

A bruma subia na floresta, dissipando a calidez da manhã. Blorian caminhava a grande passos, brilhando de suor apesar do frio insidioso que gotejava dos fetos altos, apertando contra ele o pequeno corpo enfaixado de Rhiannon.

Acelerou mais o passo, quase correndo para escapar ao nevoeiro. Em volta dele, dir-se-ia que a floresta desaparecia, apagada pelos deuses. As árvores os arbustos e as pedras com musgo fundiam-se num halo branco, reavivando o terror sentido na noite anterior, e sobre este vazio tinha-se abatido um silêncio úmido, como se todos os animais da floresta se tivessem imobilizado, como se todos os ramos tivessem deixado de mexer ao vento, como se tudo o que era vida retivesse a respiração. Todos os elfos tinham medo do nevoeiro, mas Blorian sentia por outro lado sobre ele o peso da dúvida e o sentimento atroz de ser incompreendido pela floresta inteira, renegado, julgado, condenado.

O próprio bebê estava silencioso e olhava-o com intensidade, indiferente ao frio e às sacudidelas da caminhada. Blorian, perturbado, parou para olhar a criança. Ela tinha os mesmos olhos verdes da mãe, os mesmos cabelos negros. Mas emanava dela uma onda perniciosa que lhe transtornava o coração, uma sensação de perigo, de ameaça, que ele não conseguia explicar. Ela não se mexia, não tremia apesar do frio que se tinha abatido sobre a floresta, e continuava a olhá-lo, tão admirada e tão pequena nos seus braços. O elfo estremeceu e tentou dominar os seus pensamentos.

— Não te vou fazer mal — disse ele procurando as palavras.

— A culpa não é tua, mas se Lliane ficar contigo, vai morrer, entendes?

Rhiannon olhava-o sem pestanejar. Como podia ela estar tão calma? Ele próprio tremia, com todo o seu corpo agitado por espasmos incontroláveis. Gwydion tinha razão. Esta criança trazia a marca de um destino maldito. Por duas vezes, os deuses tinham estendido sobre ela a bruma branca. Não era somente Lliane que ele protegia ao tirar-lhe o bebê, mas todo o povo élfico. Era preciso encontrar Myrddin. Ele saberia tomar conta dela.

Blorian levantou os olhos e deu um passo para voltar a partir, mas o nevoeiro estava ainda mais espesso. Além, onde as formas sombrias das árvores se recortavam alguns instantes antes, não subsistia mais do que uma nuvem opaca, insondável, e sempre aquele silêncio pesado, ameaçador. Contra a sua vontade, o elfo pousou Rhiannon no chão e desembainhou a sua adaga. O seu coração apertou-se e uma bola formou-se-lhe na garganta. Era a morte que rondava em volta dele. Era o sopro gelado do dragão. A sua adaga tremia na ponta do seu braço, e bem depressa ele não teve mesmo força para a segurar. Ela caiu no chão com um tinir metálico.

O inimigo estava ali, por trás dele, pouco visível na bruma branca. Ele só ouviu a sua voz.

— Oferceald sar hael hlystan!

A maldição do gelo... Um frio intenso, perfurante como uma flecha gelada, atingiu-o no coração. Ele caiu de joelhos, e depois de costas nos fetos, com a respiração cortada pela dor. Mas, por trás da bruma, ele tinha-a reconhecido.

— Lliane...

O frio estendia-se nas suas veias, batia-lhe nas têmporas, e a voz da sua irmã repetindo constantemente um atroz encantamento, não lhe chegava mais que ensurdecida, lancinante. Nessa altura, a dor já se tinha esbatido, e o entorpecimento apaziguava o intolerável sofrimento. Os seus olhos inchados pelo gelo viam os fetos cobrirem-se de gelo, tudo à sua volta, para se quebrar como vidro, sem um ruído. Aliás, já não existia mais ruído, nem mesmo o da sua própria respiração. Nem mesmo o dos passos de Lliane quando ela se aproximou. Ele viu-a pegar a criança e cobri-la de beijos, e depois debruçar-se sobre ele com os olhos brilhantes de ódio, medonha na sua nudez coberta de feridas. Viu a expressão dela mudar quando o reconheceu, passar do ódio ao espanto, depois do espanto ao horror. Ele quis falar, mas a sua língua gelada quebrou-se dentro da boca. E o seu último suspiro formou uma película de gelo sobre os seus lábios.

 

                     A GUERRA DE LLANDON

Foram os gritos de Rhiannon que a acordaram. Lliane endireitou-se bruscamente, com o corpo contraído como se um golpe se fosse abater sobre ela, e ficou assim longos segundos, prostrada entre o sono e o acordar, sacudida por tremores espasmódicos, olhando à sua volta como uma cega. Os olhos ardiam-lhe de tanto ter chorado, até à aniquilação, até que o horror e a dor a submergiram e a atiraram para um poço sem fundo, assim que as suas últimas forças a abandonaram. O seu olhar pousou sobre o corpo do irmão e ela retirou rapidamente a sua mão pousada sobre o tronco dele. O corpo de Blorian começava já a escurecer. A sua boca tinha vomitado um fio de sangue que se tinha espalhado em torno dele sobre as ervas e sobre o tapete de folhas mortas da vegetação rasteira, sujando a sua cota de malha em prata, de um sangue escuro coagulado em poças quebradiças que lhe formavam uma espécie de barba. Os seus olhos abertos olhavam o céu. E o sopro do vento agitava na sua testa alguns fios dos seus cabelos negros tão longos e tão finos.

Rhiannon deu de novo um vagido e agitou desesperadamente os seus membros. Lliane agarrou-a com um gesto instintivo e levou-a ao seio. A menina pôs-se de imediato a beber sofregamente, sugando com força e fazendo uma quantidade de pequenos ruídos com a garganta que a conseguiram fazer sorrir. Depois ela adormeceu a mamar, e Lliane ficou ali, nua, estonteada, enquanto os sons da floresta acordavam em volta dela. O piar descuidado dos pássaros, o grito rouco dos corvos e o restolhar lento das folhas ao vento. A vida continuava, indiferente ao drama que se tinha desenrolado sob a bruma.

Quanto tempo se teria passado antes de Lliane baixar o olhar sobre as suas mãos manchadas de sangue do irmão e com o qual ela tinha manchado o pequenino corpo da filha? Levantou-se com uma careta, entorpecida, com a pele ardente sob o efeito dos milhares de feridas que a salpicavam, e caminhou, apertando Rhiannon contra ela, as duas nuas na suave calidez do bosque aquecido pelo sol. No talo de um carvalho, recolheu água para lavar o sangue que as cobria, mas não a suficiente para beber. Havia ali, sob a sombra das grandes árvores, uma mata de pequenos rebentos finos como lanças, de plantas espinhosas e de arbustos carregados de bagas doces, roseiras bravas ou sabugueiros, que ela colheu sempre a caminhar. A floresta parecia estender-se até ao infinito, entre escuras matas de abetos e os altos pilares das faias, cinzentas e lisas, que aclaravam no verde das suas folhas jovens. Sob os pés da elfo, tufos de erva espessa invadiam pouco a pouco o solo coberto de ramos e folhas mortas, e as próprias pedras se cobriam de musgo, como que para participarem no esplendor majestoso da grande floresta ao aproximar-se o solstício. Mas o Verão chegaria bem depressa ao fim. Pouco a pouco o sol perderia a sua força, as folhas amareleceriam, todos esses rebentos de erva endureceriam com o Outono, e depois viria o frio... A floresta não seria sempre um refúgio. Sem querer, as orelhas pontiagudas da rainha tinham-se direcionado para um marulho longínquo, e os seus passos dirigiram-na para uma fonte gotejando ligeiramente de um aglomerado de altas rochas musgosas. Foi quase com surpresa que ela descobriu na base um pequeno lago límpido, cujo fundo estava atapetado de folhas mortas. Elas beberam e banharam-se sem levantar o lodo e depois adormeceram sobre um rochedo iluminado por um feixe de luz alaranjada, até que Rhiannon voltou a chorar, reclamando a sua mamada.

O sol começava a declinar, a calidez do dia dissipava-se, as sombras estendiam-se. Rhiannon começou a agitar-se, dando pequenos gemidos, e Lliane agarrou-a com mais força. O seu pequeno corpo estava já gelado. Os elfos não sofriam de frio, mas a parte humana da criança não lhe permitia sobreviver assim, sem calor, nos bosques. Era necessário encontrar roupas, um abrigo, e também armas para se defenderem dos animais selvagens que encontrassem.

Lliane voltou a pensar no seu irmão Blorian e sentiu-se abatida com a idéia de o ter deixado assim, no chão, sem lhe ter construído uma plataforma de ramagens, a fim de proteger o seu corpo dos predadores e da podridão. Mas Blorian estava morto, e só a sua filha contava, tão pequena, tão fraca, tão frágil, tremendo nos seus braços. Ela não podia morrer. Só essa idéia era uma abominação que lhe dava vômitos de horror. Mais uma vez, deu-se um nó na sua garganta, e ela enroscou-se em volta do pequeno corpo de Rhiannon.

— Não chores, minha pequena fada, minha doce folhinha... Vamos fazer uma bela cabana para passarmos a noite, vais ver...

Elas não podiam ficar ali, nuas como animais, vivendo na floresta. Tinham que ir ter com os homens, fosse qual fosse o preço...

A rainha recomeçou a caminhar, consciente, desta vez, atenta aos ruídos, farejando o ar como um cão de caça, orientando-se pelo sol ou pelo musgo das árvores para sair de Brocéliande.

Ao pôr do sol, percebeu o cheiro dos homens — um fumo de fogo de madeira e de carne queimada. No entanto, a floresta era ainda bastante espessa, formando um vale nesse local, e cheia de fetos. Estavam ainda longe da orla. Teriam os homens ousado aventurar-se no reino das árvores, apesar do terror supersticioso que o domínio dos elfos lhes inspirava normalmente? Lliane sentiu-se ultrajada por essa incursão.

A rainha deslizou sob os ramos de um freixo maciço e acocorou-se ao abrigo do seu tronco grosso. O cheiro a madeira queimada estava bem próximo, mas ela não via nada. Deitou um olhar à filha, enroscada no seu ventre a dormir. Como poderia aproximar-se mais, sem que um grito, mesmo um gemido as pudesse trair às duas? Com o crepúsculo, a vegetação rasteira desaparecia felizmente na escuridão, e os homens não viam na noite... Ela beijou a cabeça tão suave da filha, acariciou-lhe os finos cabelos e apertou-a com os dois braços para lhe dar um pouco de calor.

Menos de uma hora mais tarde, a escuridão era total. O cheiro de madeira queimada continuava forte, mas Lliane não distinguia nenhuma chama, somente um avermelhado indistinto, uns matizados azulados de fumo desfiando preguiçosamente nos ramos altos. Quanto ao cheiro a carne queimada, tinha-se tornado nauseabundo, como se a tivessem deixado carbonizar... Talvez os homens tivessem ido embora?

Lliane avançou de cócoras para fora do abrigo do freixo, apertando Rhiannon contra o seio para evitar que ela chorasse, e depois avançou de um salto até um espesso arvoredo de buxo. Durante a corrida, feriu o pé numa pedra saliente e desequilibrou-se, quase caindo ao chão. Acordada em sobressalto, Rhiannon deu um vagido agudo que ressoou sob a abóbada das árvores. Lliane, aterrorizada, tentou calá-la pondo-lhe a mão na boca, mas a bebê tremia sem parar e nada parecia poder parar o seu choro.

— Cala-te, minha folhinha, suplico-te! — murmurou ela ao seu ouvido, agachando-se atrás de um arbusto.

Procurou às cegas um ramo que agitou, espada derisória, com os olhos esbugalhados de medo, ensurdecida pelos gritos da filha, espiando o ataque dos homens como um animal encurralado, mas ninguém apareceu. Ninguém apareceu e Rhiannon acabou por se acalmar.

Com a força de uma onda, soluços irreprimíveis atiraram-na para o chão. No espaço de um segundo, ela tinha-se visto agarrada por mãos imundas, atirada ao chão e forçada, tinha visto a filha ser pisada por pés de homens monstruosos, animalescos, grunhindo como javalis e tão escuros quanto gobelins. Ela tinha-se visto morrer sob os seus imundos assaltos, paralisada de terror, demasiado fraca e assustada para se defender, incapaz de resistir, incapaz de se servir da sua magia... Rhiannon chorava, mas a mãe já não a ouvia, asfixiada pela onda da sua própria tristeza, assaltada pelas imagens de pesadelo acumuladas em tão pouco tempo. A cara séria de Llandon. A cara horrível de Blorian na hora da morte. Blodeuwez, Gwydion, todos aqueles que ela não voltaria a ver, por sua culpa. Eis o que seria a sua vida agora... Sozinha, sem clã, aterrorizada. Sozinha...

E depois ela reviu a cara de Myrddin. Ele sorria-lhe, mas sem aquela ironia irritante que ostentava habitualmente. Um verdadeiro sorriso de boca e olhos, e que lhe falava numa voz suave. Os soluços da rainha espaçaram-se e pararam, até que ouviu as palavras do homem-criança. As palavras que ele tinha pronunciado na clareira, há tanto tempo: ”Eu estarei a teu lado quando precisares de mim...”

— Myrddin — gemeu ela —, maldito Myrddin. Não vês que preciso de ti?

Mas a resposta do druida foi coberta pelo choro de Rhiannon, e a sua imagem dissipou-se. Lliane esfregou os olhos, atirou com os cabelos para trás e pegou a filha para a pôr ao peito, que ela chupou com avidez. Mesmo a mamar, o pequeno ser era agitado por tremores. O seu corpo estava gelado. Era preciso encontrar-lhe roupas e um abrigo para a noite.

Lliane levantou-se, ainda vacilante, e contornou o arvoredo de buxo.

A fogueira feita pelos homens continuava a arder, numa espessa nuvem de fumo. Ela distinguiu as cabanas de ramagens, em volta da fornalha, mas nem traço de vida. Imóvel sob a luz prateada da lua, tão direita e pálida quanto uma bétula, a elfo deixou a floresta animar-se à sua volta. O ulular surdo de uma coruja. A corrida furtiva de um coelho ou de um esquilo. O uivar choroso, ao longe, de uma alcateia de lobos... Lliane tremeu à idéia de que eles se metessem na sua pista, e resolveu avançar para o acampamento dos homens.

A fogueira fumegante ocupava a maior parte. Não era uma simples fogueira de acampamento, mas uma construção complicada e pensada, um emaranhado de troncos e ramos cobertos de terra. Ela reconheceu uma cova para fazer carvão, como outras que já tinha visto perto da floresta. Os homens queimavam assim as árvores mortas para fazerem carvão, que, no inverno, alimentava os seus braseiros. Ela gostaria de se poder aproximar mais para aquecer Rhiannon, mas o fumo picava-lhe os olhos, e aquele cheiro a carne carbonizada enjoava-a, e ela afastou-se para a mais próxima das duas cabanas. Apertando sempre a criança contra ela, a rainha aproximou-se do centro da clareira, avançando devagarinho, como uma corça ao pé de uma nascente. Uma rajada de vento agitou bruscamente os ramos por cima dela e aspirou o fumo num turbilhão. Lliane deitou maquinalmente um olhar ao braseiro, e o coração deu-lhe um salto dentro do peito. Visão fugaz, já desaparecida nas espirais azuladas, ela tinha distinguido dois pés saindo do forno de carvão. De novo, o vento dissipou o fumo, e ali, no mesmo sítio, ela discerniu entre o amontoado de ramos, as pernas enegrecidas, carbonizadas, de um homem que tinham enfiado, como uma acha, na fogueira. Era isso, o odor atroz de carne grelhada... O homem tinha assado a fogo lento, na sua própria fogueira, tendo a cabeça assado primeiro.

Horrorizada, Lliane bateu em retirada até que embateu nas ramagens da cabana, e se virou de um salto, dando um grito de pavor. Um outro homem jazia ali, com o tronco trespassado de flechas. Flechas élficas.

Llandon tinha começado a sua guerra.

 

Com a noite, a cidade tinha reencontrado um pouco de frescura. Todo o dia, sob um sol intenso e no meio do zumbir das moscas atraídas pelo suor dos homens e dos animais, o ar de debulha tinha ressoado do martelar regular dos malhos a separarem a palha do grão. Todos aqueles que não estavam nos campos estavam ocupados na tosquia dos carneiros, no curtimento do linho ou do cânhamo, na recolha do mel das colméias, ou no cozer dos frutos, num mosto de uvas ou num sumo de maçã. À poeira dos caminhos de terra percorridos sem parar por carroças carregadas de pesados molhos de cevada, de trigo ou de aveia, tinham vindo juntar-se as nuvens de palhinhas peneiradas pelos joeireiros, girando em turbilhão pelas ruelas ao mais pequeno sopro de vento, elevando-se até ao pé do castelo senhorial, e todas estas espirais asfixiantes caiam agora como uma neve cinzenta sobre as casas de argamassa do burgo fortificado. O dia tinha sido longo, e ninguém tinha demorado a adormecer depois do monge ter tocado às Avé-Marias. Ao pôr do sol, segundo o costume, os campos tinham sido deixados para os respigadores, mulheres, crianças ou servos que apanhavam qualquer espiga esquecida pelos ceifeiros e cortavam o restolho para o telhado dos seus palheiros ou para o leito dos animais, assim que o punhado de arqueiros que protegiam a colheita se tinham retirado. Outros soldados, suando sob as suas cotas de malha tinham ficado todo o dia espojados ao abrigo de um telheiro, para vigiarem o grão, até que os oficiais viessem calcular o imposto devido por cada feudatário, o imposto para o senhor e o dízimo para a igreja. Um imposto modesto, em relação ao tamanho do burgo e que não chegaria para dar de comer aos cavalos e à casa de Cystennin o Abençoado.

Estava-se longe de Loth e das altas muralhas da cidade do rei, longe da guerra, longe das Fronteiras. Cystennin tinha combatido ao lado de Pellehun nos tempos heróicos contra Aquele-que-não-podia-ser-nomeado, e a sua conduta valorosa tinha-lhe valido esta baronia. Mas era uma história antiga... O barão não passava de um velho homem aspirando a acabar os seus dias em paz, no forte que lhe servia de castelo. Era um edifício à antiga, uma simples mansão fortificada construída em madeira no cimo de um torreão, por cima de uma aldeia de duzentas almas, ele próprio protegido por um fosso e uma elevação de terra na qual tinha sido cravada uma paliçada composta por pesados madeiros cortados e guarnecidos de silvas em volta da parte exterior. A única construção sólida de todo o burgo era a igreja, um cubo de pedra com um pequeno campanário retangular que ainda não tinha sino. Cystennin só se tinha convertido há pouco tempo (o que lhe havia dado o cognome de ”Abençoado”), e a sua baronia não era suficientemente rica para pagar os serviços de um fundidor.

Durante a noite, tinham levantado a ponte levadiça e fechado a grande porta que barrava o único caminho que atravessava o burgo até ao castelo. Encostados contra os seus batentes, dois soldados dormitavam, envoltos nos seus casacos. Que importava.. Não havia grande coisa a guardar, de qualquer forma, até que toda a colheita tivesse sido peneirada e o restolho queimado. Era então preciso levá-la para a cidade e para os moinhos, guardar o grão. Perder a colheita era condenar a aldeia a morrer à fome antes do inverno... Mas daqui até lá, que é que eles tinham a temer, à parte de miseráveis furtos a que as próprias crianças davam caça à pedrada, além dos lobos ou das raposas, que a paliçada chegava para manter afastados?

Um cão começou a ladrar, acordando em sobressalto um dos dois guardas. O homem sacudiu-se, levantando dos ombros uma nuvem de poeira farinhenta que lhe fez cócegas nas narinas e o fez espirrar. Pegou numa pedra e lançou-a às cegas em direção ao animal, que continuava a ladrar.

— Caluda!

O cão começou a rosnar, mas uma segunda pedra com mais pontaria fê-lo fugir a ganir.

— Estúpido animal...

O guarda procurou às apalpadelas o seu elmo em couro que tinha caído ao chão, não o encontrou e, com um suspiro de cansaço levantou-se pesadamente apoiando-se na sua lança. Sentia-se entorpecido, os músculos doridos, e enrolou os lados do casaco em volta dele. Depois do calor do dia, fazia frio, gelo mesmo, sem nada de beber para se aquecer. De repente, o grito rouco de uma ave de rapina fê-lo levantar os olhos para o céu, mesmo a tempo de vislumbrar uma sombra branca planando na escuridão, demasiado depressa para que ele a pudesse realmente distinguir. Dir-se-ia um gerifalte, o maior dos falcões, ao qual a plumagem branca salpicada de cinzento dava ares de fantasma, na noite. O guarda ficou alguns instantes de nariz no ar, mas o pássaro não voltou a aparecer. Olhou o companheiro que continuava a dormir, e depois levantou um olhar turvo para a escada que conduzia ao caminho de ronda, no cimo das paliçadas. Fungando ruidosamente, o homem trepou lentamente os barrotes que rangeram sob o seu peso. Chegado lá acima, remexeu por dentro das bragas, extirpando o sexo e, erguendo-se na ponta dos pés, descarregou-se com um suspiro de alívio por cima dos toros da muralha. Imediatamente, um guincho agudo cortou o silêncio da noite, seguido do barulho confuso de um corpo caindo na fossa. O guarda debruçou-se, mas não viu nada, a não ser sombras imprecisas.

Os elfos, esses viam-no.

Um deles levantou-se de um salto, esticou a lança na ponta do braço e espetou-a como um arpão na garganta do homem. Ele fez uma espécie de gorgolejo infecto, e depois o elfo atirou-se para trás com toda a força, arrastando o guarda que oscilava no fosso. Sem dúvida já estava morto quando caiu no chão, mas o elfo sobre o qual ele tinha despejado a sua bexiga enterrou-lhe, apesar de tudo, a sua longa adaga nas costas, com uma fúria ultrajada que fez sorrir os seus companheiros. Eram elfos verdes, criaturas da floresta que não se viam senão raramente fora do abrigo das árvores. Mais pequenos que a maioria dos seus congêneres, deviam o seu nome às suas roupas de catassol, oscilando do verde ao castanho como folhas de outono, e não à cor da sua pele, de um azul semelhante à dos outros clãs. Pequenos como crianças, não tinham estatura para alinharem numa batalha de fileiras, mas sabiam deslocar-se sem barulho, sem o mínimo barulho, e tinham sido eles que tinham ensinado o tiro ao arco aos outros clãs. Till, o chefe do seu pequeno grupo, orientou as orelhas em direção à aldeia e levantou-se prudentemente, acariciando a pequena cabeça redonda do seu falcão para o acalmar. Till era um seguidor de pistas, mestre na arte de se dissimular, de fazer evolução em silêncio mas também de descobrir a presença ou mesmo a passagem de inimigos. Ele conhecia a linguagem dos animais, mas também a das árvores, a mensagem silenciosa dos seus ramos, das suas cascas. Novamente, lançou o seu falcão com um gesto largo de braço, e segui-o com os olhos enquanto ele sobrevoava o burgo adormecido, e esperou pela sua resposta.

Aparentemente, ninguém tinha reagido. Till fez um sinal, e dois elfos colaram as costas à paliçada. De imediato, um terceiro içou-se sobre as suas mãos cruzadas e depois sobre os ombros, formando uma pirâmide viva que o resto do grupo escalou num silêncio absoluto, sem uma palavra, sem um sopro, sem um tinir de adaga nem mesmo um farfalhar de tecido.

O segundo guarda acordou em sobressalto e atirou-se para trás na poeira com um grito de pânico estrangulado. Três elfos estavam em cima dele, escorregadios como enguias, horríveis, trespassando-o com golpes de adaga furiosos e imprecisos. O homem, tirado do seu sono para mergulhar em pleno pesadelo, estava demasiado aterrorizado para gritar, demasiado aterrorizado mesmo para morrer. Conseguiu somente ganir como um cão chicoteado, subindo miseravelmente ao longo da paliçada para tentar escapar aos golpes desastrados dos elfos. Com um grunhido de raiva, Till afastou-os brutalmente e saltou sobre as costas do soldado. Com uma mão, levantou-lhe a cabeça, e com a outra abriu-lhe a garganta. De um golpe, preciso.

O homem abateu-se na poeira, e o grupo de pequenas criaturas respirou de novo, espreitando febrilmente a menor reação da aldeia.

Por fim, quando tiveram certeza de que tudo estava calmo, Till abriu a grande porta e baixou a ponte levadiça. Correu para fora e deu por duas vezes um longo pio de ave noturna, estranhamente possante para um corpo tão frágil. Imediatamente, delgadas silhuetas se levantaram, um pouco por todo o lado nos campos, e começaram a correr para ele.

Llandon, esse, não corria. Caminhando a passos lentos, indiferente às silhuetas furtivas que, em volta dele, corriam ligeiras na noite, mantinha a cabeça baixa e os braços cruzados em volta do peito como se tivesse frio, seguido por Kevin o arqueiro, que tinha embebido a corda do arco no entalho de uma das suas flechas de prata lendárias, e de Dorian, o irmão mais novo da rainha Lliane. O único, doravante... Eles pararam em frente de Till, e o rei dos altos-elfos agradeceu ao seguidor de pistas com um gesto de cabeça, sem uma palavra. Depois o seguidor de pistas voltou-se, fez um sinal ao seu grupo, e os elfos verdes desapareceram na noite, seguindo-o de perto. Till não tinha dito nada, mas o rei sabia o que ele pensava. Os elfos não gostavam da guerra, e tinham medo da morte. Contrariamente aos homens, aos anões ou aos monstros, eles não gostavam nem mesmo de matar. Llandon tinha visto o corpo do guarda, no fosso, com a cabeça trespassada por um golpe de lança. Era já muito, para eles... Com a cara séria, o rei seguiu-os com os olhos até eles terem desaparecido ao abrigo da sua querida floresta, e continuou assim muito depois da noite os ter feito desaparecer. Depois os primeiros gritos, no burgo, tiraram-no da sua letargia.

Por todo o lado era o mesmo pesadelo.

Uma mão gelada arrancava os lençóis de linho ou de cânhamo do enorme leito comum a toda a família, deitava o pai ao chão, cortava-o com uma adaga afiada como um estilete se ele fizesse tenção de resistir; caras de vampiros, pálidas e horríveis, murmuravam ordens numa língua incompreensível que vibrava no interior da cabeça, e as famílias, corriam na ruela, homens mulheres e crianças, nus ou quase, mudos de terror, enquanto as chamas lambiam já as coberturas de colmo dos seus casebres. Llandon tinha recomeçado a andar, acelerando o passo progressivamente até correr através das ruelas em chamas e depois no longo carreiro que conduzia ao cimo do torreão, os olhos presos no fortim onde se agitavam os homens de armas. Ele havia-se distanciado dos outros elfos quando chegou ao grupo de soldados desvairados que se tinham amontoado diante da porta, hesitando sobre o que haviam de fazer. Não o viram senão no último instante e todos tiveram o mesmo movimento de recuo diante da sua expressão selvagem, horrorosa. O elfo atacou a multidão, com o reverso da sua adaga de prata que salpicou de sangue a sua cara. Mãos agarraram-no. Gritos. Outros elfos, nesse momento, ao lado dele, gritando. Uma mistura confusa de socos, de lâminas deslizando sobre cotas de malha. Um guarda caiu, com os olhos vítreos, abrindo espaço suficiente para que um outro atacasse de estoque direito ao ventre, e Llandon deu um grito de dor. Mas as espadas dos homens não eram feitas para perfurar. Demasiado pesadas, demasiado redondas, eram armas de força, feitas para cortar o ferro das armaduras, e depois quebrar a carne e os ossos. Um ataque direto não servia para nada. No entanto, o rei dos altos-elfos recuou, com a respiração cortada pela violência do choque, e os soldados encheram-se de esperança. Uma flecha de prata atravessou a garganta de um sargento alto como uma torre antes de se cravar na ombreira da porta, mas o coração dos homens estava cheio de uma raiva assassina, e os seus olhos brilhavam à luz do incêndio do burgo. Como um muro, por trás dos seus escudos de madeira com pregos, eles empurraram os elfos para o fogo, a golpes de lança e espada. A esperança deles foi de pouca duração: bem rapidamente, surgiam de todos os lados, batendo nos tornozelos, nos braços, rasgando-lhes as cotas de malha em couro com as suas longas adagas cortantes, e o terror submergiu-os de novo.

Diante da porta do seu castelo, o velho Cystennin, pé e tronco nus, vestindo somente as suas bragas, abria e fechava os olhos, ainda atordoado de sono, contemplando as chamas que devoravam o seu burgo, sem compreender. Com os braços caídos, a sua espada arrastada pelo chão e o escudo pesando-lhe inutilmente, viu o bloco confuso dos seus homens desfazer-se sob o assalto dos elfos, os ouvidos perfurados pelos seus gritos de agonia e os berros estridentes dos vencedores. Uma flecha, surgida de parte incerta, cortou-lhe a face, arrancando-o brutalmente da sua apatia. Com um gesto instintivo, protegeu a cara com o escudo de ferro e recuou precipitadamente até à porta. Demasiado tarde. Os elfos tinham chegado ao vão ao mesmo tempo que ele e precipitavam-se já para o interior. Um choque metálico sobre o seu escudo, o brilho de uma lâmina. Cystennin atacou uma silhueta fugaz com um grito de lenhador, com tanta força que o seu braço ficou entorpecido. Ele não viu nem mesmo o elfo cair. Já um outro surgia diante dele, um segundo depois, beiços retorcidos e olhar de lobo. Recuando ainda mais, bateu contra a comprida mesa de carvalho da sala comum. Tentou contorná-la, mas pôs-se a descoberto e sentiu o corte pungente de uma adaga sobre o seu braço. Com uma cotovelada, atingiu a cara do agressor e empurrou-o furiosamente, ao murro e ao pontapé. Alguém gritava por trás dele. Vozes de mulheres. Ele sentiu a sua espada partir a lança de um elfo e enterrar-se como um machado nas suas costelas. A mesa, sempre por trás dele, impedia-o de manobrar. Depois um golpe terrível cortou-lhe a respiração. Sentiu o calor do seu próprio sangue no tronco, um novo impacto e a terra, na sua face. A poeira, sobre os lábios.

— Parem!

Cystennin ofegava, com a cara esmagada contra o chão, escorrendo suor. Não via senão pernas, em volta dele, à luz dourada das velas. Uma delas tinha caído durante o combate e continuava a arder no chão. Era perigoso, havia palha por todo o lado, era preciso apagá-la. O velho homem tentou levantar a cabeça, mas o seu pescoço já não lhe obedecia. Havia demasiado barulho, gritos, agitação, e um fio de suor fez-lhe piscar os olhos sem que ele o pudesse limpar. A vela de cera crepitava, depois de ter pegado fogo a uma palhinha que voava consumindo-se. Ele soprou para a apagar, mas o ar faltava-lhe. Pernas, em todos os sentidos, em volta dele. Não viam eles aquela maldita vela? Uma bota de gamo, por fim, apagou o pedaço em chamas e depois saiu do seu campo de visão. Cystennin sorriu, deu um grande suspiro de alívio e deixou-se ir.

— Está morto?

Um elfo ajoelhou-se perto do castelão e levantou-lhe a cabeça pelos cabelos. Os olhos de Cystennin estavam ainda abertos, mas a vida já os tinha deixado. Apoiado na comprida mesa de carvalho, segurando as costelas e respirando aos pedaços, com paragens, Llandon olhava fixamente o velho homem, como se o quisesse reconhecer. Ele fechou os olhos tentando visualizar mentalmente a cara de Uter... Tinha passado muito tempo, e depois todos os homens eram parecidos aos olhos dos elfos. Os mesmos traços vulgares, brutais, comidos pelos pêlos e rugas. Como é que Lliane o tinha podido amar?

Llandon afastou-se da mesa com uma careta de dor. Cada respiração atingia-o como um golpe de punhal. Sem dúvida tinha as costelas partidas... Cruzou o olhar com o olhar ansioso de Dorian e endireitou-se furiosamente, voltando à sua altura normal.

Virando as costas ao corpo do seu inimigo, varreu a sala com o olhar. Um pequeno grupo de humanos, mulheres, crianças e velhos, estava a um canto da sala, em volta de um monge com um hábito em burel, triste como um dia sem pão, com uma tonsura que o tornava ainda mais magro.

— Tu, vem cá!

O homem de Deus sobressaltou-se, depois recompôs-se e avançou lentamente em direção ao rei dos altos-elfos, com os olhos baixos.

— Como te chamas?

— Sou o irmão Elad, o capelão desta baronia.

— E tu sabes quem sou eu, Elad?

— Para mim, sois o diabo — murmurou o monge.

Llandon riu, o que lhe arrancou imediatamente um gemido de dor.

— Não, monge, eu não sou o diabo... Sou Llandon, rei dos altos-elfos, senhor da floresta de Éliande. Não te esquecerás?

O homem levantou furtivamente os olhos e cruzou, por um instante, o olhar verde do elfo, majestoso, apesar do suor, da poeira e dos salpicos de sangue seco que lhe cobriam a cara.

— Quando vires Uter, diz-lhe.

Llandon designou com o queixo o cadáver de Cystennin jazendo no meio da poeira.

— Diz-lhe que eu matei o seu pai.

 

                           AVALON

Eles caminhavam em silêncio no castelo adormecido, muito antes da prima [5], antes mesmo do sol se ter levantado. O senescal-duque Gorlois sentia-se cansado, enquanto que o irmão Blaise, apesar da sua magreza, avançava a grandes passos, o que o obrigava por vezes a caminhar à pressa para acompanhar o passo dele. Tudo isto sem uma palavra, com a sua cara de enterro habitual, calcorreando os corredores como se os conhecesse melhor que ele próprio (o que, aliás, o começava a enervar), até que chegaram à capela.

— Se me queres confessar, é um pouco cedo, monge! — resmungou Gorlois com uma voz ligeiramente esbaforida.

O monge não se dignou nem mesmo a sorrir.

— Vós sabeis muito bem porque é que estamos aqui — disse.

— Ele espera-vos.

— Sim...

Gorlois tornou a envolver-se nas pontas do seu casaco forrado a pele. Fazia quase frio, a essa hora do dia... ou da noite. O duque empurrou a porta reservada aos ocupantes dos andares nobres, que dava acesso direto aos primeiros degraus da pequena capela arranjada depois do fogo no castelo. Uma capela minúscula, na verdade, mas mesmo assim suficientemente grande para aquilo que servia. Além da rainha e dos seus seguidores, que vinham aqui devotamente fazer as suas orações desde o nascer do dia, ela estava quase sempre vazia, a não ser nas grandes ocasiões, batizados ou bênçãos... Gorlois recordou o rei Pellehun, sentado na alta cadeira de madeira esculpida com as suas armas, recebendo aí, ao lado da rainha, as bases do catecismo. Bocejou até soltar o maxilar e depois aclarou a garganta, enquanto o seu olhar recaiu, como o do rei antes dele, na abóbada pintada e nos capiteis esculpidos com pilastras, ornadas de monstros horríveis evocando os gobelins que ambos tinham combatido nas Terras Negras.

— Ajoelhe-se diante da santa cruz!

Gorlois sobressaltou-se e voltou-se de um salto. Não tinha visto Illtud, imóvel com seu hábito escuro, ajoelhado diante do altar. Da cruz de uma seteira, um traço de luz rosa, indicando que um novo e belo dia estava a começar, estendia-se sobre as lajes até aos seus pés, como se o próprio Deus lhe viesse tocar com o dedo. Instintivamente, Gorlois recuou um passo para escapar àquela cruz de luz e depois, um pouco envergonhado por aquela atitude estúpida, pôs um joelho no chão e persignou-se vagamente.

Illtud, sem olhar para ele, levantou-se do seu genuflexório e veio sentar-se num banco. O homem era impressionante. Bastante grande, embora o seu hábito acentuasse muito a sua estatura, trazia tonsura e barba, de uma cor castanha a atirar para o ruivo, cheia e ondulada, quase parecendo de algodão. Falava sem quase mexer a boca, com uma voz abafada mas que se adivinhava bem timbrada e capaz de se levantar se necessário. Só os seus olhos pareciam animados neste rosto impassível, e quando o senescal-duque se veio sentar ao pé dele, sentiu a força desse olhar. Por assim dizer ninguém sabia, nem mesmo o duque apesar da sua rede de informadores da Guilda, mas o irmão Illtud tinha sido cavaleiro, noutros tempos, sob o nome já esquecido de Illtud de Brennock, antes de deixar a vida secular para entrar na monástica [6]. Alguns consideravam-no um santo, e o próprio bispo, apesar de todo o seu poder, não se metia nos negócios dos monges.

No momento, ele continuava em silêncio e observava Gorlois com uma tal insistência que o duque baixou os olhos. Ele recompôs-se imediatamente, furioso com esta nova marca de fraqueza e interpelou-o em voz alta.

— Então, abade! Querias ver-me? Estás-me a ver!

— Não levantes o tom dentro da casa de Deus, malcriado!

A resposta de Illtud ecoou demoradamente na pequena capela, desconcertando o duque pela sua veemência no acento odioso.

— Deves aprender a humilhar-te diante de Deus — continuou o abade num tom mais baixo. — Porque sem Deus tu não és nada.

Gorlois deu uma gargalhada trocista.

— Um nada que pode atirar-te para o calabouço para o resto da tua vida, abade. Tenta não esquecer isso quando falas comigo!

Illtud abanou a cabeça com um ar desolado, como se falasse com uma criança.

— Tu não és nada, Gorlois de Tintagel — continuou ele na mesma voz baixa. — Senescal de um rei morto, velhaco e violador, perjuro no seu juramento de fidelidade, traidor à sua rainha, tu vives pelas armas e morrerás pelas armas se não implorares perdão a Deus.

O senescal teve um movimento de recuo, o corpo completamente contraído pela impudência de Illtud. Na penumbra do santo local, o seu único olho brilhava perigosamente. Debaixo do choque, ele quase se tinha levantado para agarrar aquele maldito pregador e atirá-lo ao chão, mas não convinha terminar um combate logo a princípio. E, aliás, que tinha ele a temer deste monge ridículo, no seio do castelo real do qual só ele detinha o poder, hoje em dia? Endireitou-se e encostou-se, abriu os braços sobre o espaldar do banco e esticou as pernas cruzando os pés.

— Foi para me dizeres isso que me fizeste levantar ao nascer do dia, abade?

— Não — disse o irmão Illtud. — É para te dar esse poder que tu julgas ter. O verdadeiro poder. Um poder ainda maior que aquele do rei Pellehun...

O abade viu no olhar do velho guerreiro que a sua arrogância tinha desaparecido. Gorlois apertava os lábios, com o seu rosto duro emoldurado pelos cabelos entrançados com fitas vermelhas, o queixo enfiado na pele de esquilo do seu casaco.

— Que é que tu julgas? — continuou ele.— Pensavas que abusar da rainha fazia de ti um rei? Não... Tu não és tão tolo. Mas se Ygraine casar contigo, de livre vontade, então é diferente. Tu não podes ser rei sem seres eleito pelos teus pares, mas serás já o regente do reino, o que no fim de contas vem a dar no mesmo...

Gorlois fez um trejeito de dúvida.

— Ygraine é uma filha da Igreja — insistiu Illtud. — E depois não é uma serigaita sonhando com contos de fadas. É uma rainha, embora tu o tenhas esquecido. Uma rainha e uma mulher de dever, que obedece à palavra de Deus.

Gorlois tirou o pescoço da sua gola de pele, com um sorriso divertido.

— É um negócio que me propões, abade?

— Sim — respondeu calmamente Illtud abanando lentamente a cabeça. — É realmente isso... De um lado a condenação eterna, a guerra aqui, a revolta dos barões e da Igreja contra ti, a vitória ou a morte, pouco importa, mas no fim de contas uma vida desprezável, a ruína dos homens, a divisão...

— Do outro?

— Do outro a guerra santa. Um Deus, um rei. A guerra contra os elfos, os monstros e todos os povos que recusarem a palavra de Deus. E o poder, é claro. A mão de Ygraine, esponsais antes e depois dos banhos, celebrados pelo abade, e por toda a parte, em cada igreja, cada mosteiro, o apoio dos padres e dos monges...

Gorlois sorriu e estendeu a mão ao abade.

— De acordo!

O irmão Illtud olhou aquela mão que lhe era oferecida abanando suavemente a cabeça, atenuando a sua recusa com uma expressão de benevolência.

— Creio que a minha comparação com um negócio não chega até esse ponto, meu filho... Vê bem, não é uma oferta sem contrapartida. Deus tem horror a que façam troça dele e, se era essa a tua intenção, a sua cólera fará tremer os muros deste castelo, até o reduzir a poeira.

Gorlois retirou a mão e fechou o punho.

— O que eu quero, duque Gorlois, é a tua alma, por amor a Deus. Quero que renuncies ao pecado, e que aprendas, que aprendas de todo o coração a verdadeira fé de Cristo. Quero que venhas a ser um rei santo... E só então terás a mão de Ygraine.

 

Tinham-se metido ao caminho muito cedo, desde os primeiros raios do dia, aproveitando a frescura da aurora. No céu imenso, já azul, as últimas nuvens da noite desfiavam-se, ao longe, por detrás do oceano sombrio da floresta de Éliande. Os dois cavaleiros, o druida e o anão avançavam em fila, sem uma palavra, saboreando nas suas caras a quente carícia do sol nascente. A erva alta, coberta de orvalho, tinha-lhes humedecido as pernas e brilhava como um lago, a perder de vista. Eles desceram a última colina, o corpo ligeiramente dobrado para trás, lentamente, quase que com pena. Diante deles, Brocéliande, estendia-se até ao horizonte, densa, sombria e abrupta como uma fortaleza. Mais uma hora de caminho talvez, e teriam chegado à sua orla.

Uter procurava com os olhos Caer Cystennin, o burgo fortificado do seu pai, que devia ser ali, ao longe, entre a floresta e o lago. Mas a floresta sagrada dos elfos era tão vasta que se podia demorar dias a atravessá-la, na mesma paisagem de colinas e no mesmo horizonte sem limites, antes de se chegar perto das terras cultivadas pelos homens.

Eles caminhavam em fila, e no entanto cada um deles sabia que era Merlim quem os guiava, embora ele nunca lhes indicasse o caminho a seguir, avançando com o seu passo tranquilo através das ervas altas, abanando a cabeça como um sonâmbulo. Mais de uma vez depois de terem acordado, Uter tinha tentado encetar uma conversa, mas o homem-criança parecia mais ausente do que de costume, e nenhum de entre eles, nem mesmo o senhor Bran que não parava no entanto de resmungar caminhando, teria de momento ousado interromper o silêncio que se tinha instaurado dentro do pequeno grupo.

Merlim, na verdade, estava ausente. Só uma parte ínfima do seu espírito estava entre eles, nessa colina. Toda a sua alma estava noutro sítio, no outro lado da floresta, além da cortina de bruma, guiando os passos de uma elfo nua, que trazia nos braços uma menina pequenina, pálida como a aurora. Elas tinham dormido entre os ramos altos de um carvalho, ao abrigo dos lobos e dos maus encontros, e depois, aos primeiros raios de sol, tinham deixado a mata e atravessado um bosque morto de arbustos e de silvas entrelaçadas, seguindo um carreiro sinuoso, somente perceptível na desordem do matagal. Quando Merlim tinha a sensação de as perder, o seu coração fechava-se. Então, bruscamente, ele acelerava o passo e os seus companheiros sobressaltavam-se, arrancados do ritmo monótono da sua caminhada. Seria Lliane quem os guiava, ou ele que lhes mostrava o caminho? Os seus olhos, por vezes, abriam-se sobre a colina, deslizavam sobre Uter e os seus companheiros, sobre a floresta iluminada pelo sol já alto. Ele via o cavaleiro falar-lhe, abanava a cabeça e aceitava o odre de água fresca que ele lhe estendia, e depois, de um salto, estava de novo com ela, caminhando ao seu lado, cruzando o olhar mudo de Morgana.

— É aqui...

Merlim sobressaltou-se e parou imediatamente. Lliane tinha-lhe falado, e ele viu-a por fim. Ela virava-lhe as costas, mas estava tão próxima que seria suficiente avançar a mão para tocar nos seus longos cabelos negros. Ele ouvia todos os barulhos do bosque, o piar dos pássaros, o ruído das árvores e os pequenos sons da garganta do bebê, a sua respiração, os seus gritos súbitos, semelhantes a soluços de riso.

— Vês, Myrddin, é aqui.

Lliane voltou-se para ele, e sorriu-lhe (seria a primeira vez? Nunca antes ela havia tido para ele este olhar tão cheio de felicidade). O homem-criança quis responder-lhe, mas ela já tinha partido. Apesar do sol, uma bruma estendia-se em volta deles como um véu de linho, e Myrddin descobriu aquilo que ela lhe mostrava: um lago, cinzento como uma ardósia, imóvel. Em frente, ao alcance de uma flecha, uma língua de terra desenhava-se, pousada sobre a água e fundindo-se no nevoeiro. Ele tossiu, sentindo até ao fundo da garganta o odor metálico e sufocante da bruma, depois deu um passo em frente e sentiu o lodo debaixo dos pés, a água gelada sobre as pernas. Sorriu ao ver o fato azul flutuar em volta dele, de um modo quase ridículo... Lliane não tinha parado. Ela deslizava, entre os nenúfares em flor, as luas de água e as canas, já a meio caminho da ilha. Ele sacudiu-se, arrancou com esforço o pé da lama, mas voltou a enterrar-se ao primeiro passo, caminhando a muito esforço, e viu-a afastar-se, o coração cada vez mais apertado por uma secreta apreensão. Lliane, agora, estava submergida até à cintura mas continuava a avançar sempre, e os seus cabelos ondulavam sobre os ombros azulados, lentamente, lentamente. Ela atingiu a margem da ilha, parou um instante ao lado de um salgueiro cujas folhas de um verde quase amarelo caíam em cascata até à superfície do lago, acariciou as longas hastes e voltou a partir, sem se preocupar mais com o homem-criança, lastimoso no lodo, oprimido, mudo de agonia. Através da bruma, o sol fazia brilhar a água que escorria sobre os rins de Lliane, as suas coxas, as suas longas pernas, e sempre o lento balançar dos seus cabelos ao ritmo do seu passo tranquilo... Myrddin viu o olhar de Morgana, a sua mão pequenina agitando-se num sobressalto.

— Esperem por mim!

O salgueiro, nesse momento, parecia animar-se, esticar os seus ramos longos para formar uma cortina ao longo da margem. E as outras árvores, também elas, tomavam vida, como num pesadelo. Ele fez um esforço desesperado para se libertar do lodo e caiu para a frente, a cabeça primeiro, na água negra do lago.

Quando emergiu, tossindo e cuspindo, Myrddin pensou tê-las perdido, e deu um grito abafado.

— Lliane!

— Que é que tu dizes?

A voz de Uter, longínqua... Não podia deixar-se distrair, elas estavam ali, no alto de um outeiro, ao lado de uma árvore.

— Merlim, que é que tu disseste?

Uma árvore mais alta do que as outras... Um tronco rugoso, torcido, coroado por um molho de ramos carregados de folhas e de frutos.

— Vocês ouviram, vocês aí?

O homem-criança sentia que o puxavam para trás. Mãos possantes tinham-se agarrado a ele, e ele debatia-se para lhes escapar.

— É aqui, Myrddin... Vês, não há mais nada a temer. Olha...

Lliane estendeu a mão e colheu um fruto vermelho e brilhante.

A árvore era uma macieira. A árvore do conhecimento... Era Avalon, a ilha da macieira. A Emain Ablach da velha tradição. A ilha das fadas onde ninguém conseguia ir. A ilha dos deuses... E Lliane sorria.

— Espera por mim!

E mais uma vez atirou-se para a frente, mas as mãos que o agarravam imobilizaram-no como uma âncora, e ele não conseguiu mais do que estatelar-se a todo o comprimento, sobre a erva seca da colina.

— Lliane! Lliane!

— Com mil diabos, Merlim, de que falas tu?

O jovem druida abriu os olhos aterrorizado. A cara de Uter, tisnada pelo sol e cortada pela grande cicatriz que lhe atravessava a face, estava próxima da sua, os seus cabelos castanhos entrançados batendo-lhe na testa. Os seus punhos potentes estavam agarrados ao seu traje e abanavam-no. Merlim libertou-se, rolou pelo o chão e olhou à sua volta. Cruzou o olhar inquieto de Ulfin, e o carrancudo de Bran. Em volta deles, a lenta ondulação das ervas altas, a perder de vista, até à massa sombria da floresta.

Uter agarrou-o de novo e levantou-o sem delicadeza.

— Ouves-me, ao menos?

O homem-criança levantou a mão, abanou a cabeça e Uter libertou-o. Quis dar um passo mas as suas pernas traíram-no e ele caiu.

— Que é que ele tem, raios o partam!

Ulfin olhava-o com uma mistura de receio e de pena, o corpo recuado, a mão sobre o punho da sua espada.

— Ele teve uma visão, ou qualquer coisa assim — resmungou Bran com a sua voz cavernosa. — Já vi isso, na Montanha...

Uter voltou-se para o anão e deu um grande suspiro.

— Dá-me água...

Bran pousou o seu pesado machado no chão, contorceu-se para tirar o odre que trazia ao pescoço, e estendeu-o ao cavaleiro, que sorria sem querer. O anão, todo senhor que era, herdeiro do trono de Troín e talvez o último príncipe vivo de toda a nação anã, estava carregado como um burro. Ele sozinho, carregava todas as provisões, bem como o elmo, as joelheiras de ferro, a couraça e as manoplas de Ulfin, e toda essa carga pesava-lhe que nem gingas.

O jovem cavaleiro ajoelhou-se ao lado de Merlim e levantou-lhe a cabeça com precaução para o obrigar a beber. Não passava de um feto na sua mão, leve como um pauzinho, tão jovem apesar dos seus cabelos brancos, tão frágil na aparência quando fechava os olhos.

— Viste-as, foi isso? — disse-lhe suavemente.

Merlim assentiu com a cabeça. Uter viu uma lágrima rolar do canto do seu olho e escorrer-lhe ao longo da face. O queixo do druida tremeu, e ele rebentou bruscamente num choro, com o corpo sacudido pelos soluços. Uter virou-se para os seus companheiros, em vão. Um e outro olhavam para os pés saltitando, tão incomodados quanto jovens diante da luxúria. Ele próprio se esforçou por pronunciar alguma palavra de conforto, mas nenhuma lhe veio à cabeça porque ele não compreendia a razão deste súbito ataque de tristeza.

— Conta-me aquilo que viste — disse ele ao ouvido de Merlim. O homem-criança endireitou-se com um movimento brusco, soltando-se dos braços de Uter, depois secou furtivamente as lágrimas com as costas da mão. Continuou mais um instante sentado na erva, fechou os olhos como para encontrar o rasto de Lliane, depois renunciou suspirando e levantou-se, arvorando imediatamente a sua expressão habitual, irritante, de ironia misturada com despreocupação.

Mas o olhar de Uter era duro, e os seus punhos fechavam-se de novo, com todos os traços de compaixão apagados.

— Fiz-te uma pergunta — grunhiu ele com um olhar enraivecido.

— Sim, eu vi-a — disse Merlim virando-se para a imensidão de Brocéliande. — Vi as duas, além, Lliane e Morgana...

Ele olhou de lado para Uter.

— ...A tua filha, sabes?

O cavaleiro levantava-se lentamente, tapando o odre, e atirou-o para Bran sem mesmo o olhar.

— E dizer que eu pensei a dado momento que era eu quem as guiava — murmurou Merlim para consigo.

— Que aconteceu, Merlim?

Por um breve instante, o homem-criança tirou a sua expressão de indiferença.

— Elas estão sozinhas, Uter. Eu julgava que elas precisavam de ti...

— Mas é claro que elas precisam de mim! — gritou Uter. — Como é que queres que elas saiam da floresta?

— Não sejas ridículo, são elfos! E depois elas já não estão na floresta — murmurou Merlim. — Não sei mesmo se elas ainda estão no nosso mundo.

Uter empalideceu horrivelmente.

— Queres dizer que elas estão mortas?

Merlim poderia ter-se rido, se o jovem não tivesse um ar tão desesperado.

— Sabes tão poucas coisas, cavaleiro... Não existe só a vida e a morte. Tu nunca sonhas?

— Sim, é claro...

— Então... De que são feitos os sonhos, quanto a ti? Aquilo não é a verdadeira vida, e não é certamente a morte...

Uter voltou-se para os seus companheiros, mas Ulfin continuava a contemplar os pés e Bran enfarpelava-se resmungando. Uter abanou a cabeça.

— Não sei sequer daquilo que estás a falar, Merlim...

O homem-criança sorriu e juntou as mãos, procurando palavras simples para o fazer compreender.

— Os sonhos, Uter, fazem-nos entrever o outro mundo, o dos deuses. O mundo da bruma, inacessível aos seres vivos, e ao mesmo tempo bem real, bem presente.

— Então, elas estão mortas!

— Não, é claro que não!

Ele suspirou, procurou inspiração no espetáculo da vasta floresta.

— Elas estão abençoadas pelos deuses, se assim quiseres...

— Não entendo — disse Uter abanando a cabeça.

— Eu sei.

Deixaram o silêncio cair entre eles. Merlim contemplava o país de Éliande, a última grande floresta dos elfos, fora do tempo, longe dos homens, ainda. Mas que havia de mais fraco que uma floresta? Que havia de mais fraco que uma árvore? Carvalhos várias vezes centenários, com várias toesas de largura, cairiam sob o machado dos lenhadores, para nada, para construir casas ou para fazerem lenha para se aquecerem. As árvores cortam-se, as árvores queimam-se, as árvores morrem e não deixam nada... Tal era o destino dos elfos.

— Creio — disse ele — que seremos nós quem terá bem rapidamente necessidade delas.

 

                         NA ORLA DE BROCÉLIANDE

Era quase impossível dormirem, tão alto ressonava Bran. Mas a noite estava agradável, com um ligeiro vento que embalava a ramagem dos grande choupos que ladeavam a floresta. Uter não se sentia fatigado. Levantou-se sem fazer barulho, agarrou no cinto carregado com a sua pesada espada, pô-lo sobre o ombro e depois afastou-se do acampamento. Bem depressa, o crepitar da fogueira deixou de ser suficiente para o guiar. Ele desembainhou a sua espada e, a grandes golpes de lâmina, desbravou o mato à sua passagem. Além destes arbustos e destas silvas, para além dos fetos e dos pequenos vales de urtigas começava o país de Éliande, a insondável fortaleza florestal dos elfos, e aí, em algum lugar, esperava-o Lliane.

Durante toda a monótona jornada de marcha, ele não tinha parado de pensar na visão de Merlim e nas suas palavras obscuras. Como podia ela viver num mundo que não era o dos mortos nem o dos vivos? Malditos fossem os druidas, os monges e todos os adivinhos, com os seus ares superiores e os seus mistérios iniciáticos! Ele tinha virado e revirado dentro da cabeça cada uma das suas frases, e nada fazia sentido. Talvez que tudo isso fosse garganta, uma maneira de se dar importância...

A sua lâmina bateu com mais força do que ele teria desejado no tronco cinzento de uma bétula, e o choque quase lhe arrancou a espada. Com o braço entorpecido, ele encostou-se à árvore, depois deixou-se escorregar e agachou-se, apoiando a testa no punho de ferro, redondo como um fruto. Não era ainda a prostração do sono, mas aquela curta caminhada no bosque tinha feito pesar sobre os seus ombros o peso da jornada. Ele fechou os olhos, pensando naquela filha que nunca tinha visto. Morgana...

— Já não se ouve. Deve ter parado...

Merlim não conseguiu impedir um sobressalto. Tinha seguido Uter com o olhar tanto tempo quanto possível, mas os seus olhos de elfo não podiam perfurar a massa obscura da floresta. E, enquanto hesitava entre tentar voltar a dormir ou ir ao seu encontro, a voz de Ulfin surpreendeu-o.

— Também tu, não consegues dormir? — disse calmamente.

— Dormir como, com este asno! — resmungou o cavaleiro dando um pontapé na forma estendida ao lado dele.

O anão resmungou sem acordar, fungou barulhentamente e voltou a ressonar ainda com mais força.

— Há já dias e semanas que o suporto, mas não consigo habituar-me...

Ulfin levantou-se, despenteou os seus longos cabelos loiros aos quais tinha desfeito as tranças durante a noite, e depois coçou furiosamente a barba. Piolhos, sem dúvida, pensou Merlim. O cavaleiro dobrou-se, pegou um odre em pele e bebeu um grande gole.

— Queres?

Merlim disse que não com a cabeça. Suspirou e depois voltou-se para o cavaleiro, que o observava com ar pensativo.

— Queres falar-me de Uter — disse ele.

Não era uma pergunta mas uma constatação. Durante todo o caminho, Merlim havia tido a impressão de que o cavaleiro procurava uma ocasião para o abordar. Acabando por...

Ulfin renunciou a subterfúgios. Havia nesta criança de cabelos brancos uma percepção das coisas e das pessoas que ultrapassava o entendimento. Mas, aos trinta anos, Ulfin tinha já visto muita coisa, para se colocar este tipo de questões.

— Esta manhã — disse ele — tu falaste de uma filha... de uma filha que ele teria tido com Lliane... É verdade?

— Sim... Foi por isso que eu vim à vossa procura.

— Bem...

Merlim sorriu, depois por seu turno, procurou as palavras.

— Também tenho uma pergunta, senhor Ulfin. Talvez eu tenha percebido mal, mas pareceu-me que falaste de Uter e da rainha Ygraine...

— Oh, isso! — disse Ulfin com um soluço de riso rapidamente calado.

Sentou-se mais confortavelmente, e o seu olhar perdeu-se no vácuo.

— Era mais uma brincadeira que outra coisa... Ao princípio, em todo o caso... O velho Pellehun quase nunca a tocava, sabes? Ela estava sempre sozinha, com o seu capelão e uma nuvem de camafeus como damas de companhia, fazia dó. Quando Uter chegou a Loth — ele devia ter uns catorze anos, quinze, não mais. Mais ou menos a tua idade...

Ele deitou um olhar interrogador a Merlim, mas este abanou a cabeça negativamente, com um sorriso divertido.

— Mais ou menos...

— Em suma, eles tinham a mesma idade. Dois jovenzinhos. Eles tinham tanta dificuldade em não olharem um para o outro, que se tornou uma brincadeira entre nós, enviarmos Uter sempre que um dos bravos devia escoltar a rainha. No fundo, talvez fosse por nossa culpa que eles se amavam...

— Então, eles amavam-se...

O tom de Merlim alertou o bravo, que se apressou a explicar.

— Atenção, nunca se passou nada entre eles! Enfim, eu não sei nada... Mas...

— Mas eles amavam-se. Portanto, ele é... Kariad daou rouaned, O Amado-de-duas-rainhas do qual falava a profecia. Eu devia ter adivinhado...

Ulfin gostaria de ter respondido, dissipado do espírito do homem-criança a impressão com que ele tinha ficado daquilo que, apesar de tudo, não tinha passado certamente de um jogo inocente (embora ele já não estivesse tão seguro), mas um grito, na floresta, fê-los saltar aos dois, numa bela parceria. Um olhar, e eles lançaram-se floresta adentro.

Uter, de espada na mão, voltava-lhes as costas. Deu meia volta ao som da corrida deles e não os reconheceu senão no último instante, já pronto a atacar.

— O que é que se passa? — disse Ulfin.

— Elfos!

Merlim perscrutou imediatamente as profundezas insondáveis da floresta. Aquilo que nem Uter nem Ulfin podiam distinguir no escuro, ele viu. Silhuetas amedrontadas escondidas ao pé das árvores. Não eram guerreiros, a julgar pela atitude deles.

Hlystan, deore aelf. Hlystan gehwylc! Beon Myrddin,feran leas sorg!

Às palavras de Merlim, as manchas pálidas das suas caras emergiram dos matagais.

— Estás a vê-los? — disse Ulfin, que também tinha desembainhado a sua espada. — Que é que lhes disseste?

Uma voz estridente, ao longe, respondeu ao grito do homem-criança.

— Fyrdgeatwe wiga!

— Eles viram as vossas armas — murmurou Merlim. — Fiquem aqui.

Sem esperar pela resposta, meteu-se pela floresta e desapareceu quase em seguida da vista dos cavaleiros que, instintivamente, se aproximaram um do outro. Ouviram pronunciar num tom calmo palavras que não compreendiam, e sobressaltaram-se quando um piar agudo lhe respondeu. No instante seguinte, dezenas e dezenas de elfos surgiram de todos os lados, como se cada árvore vomitasse uma tropa. Merlim tinha razão: não eram guerreiros, embora alguns deles estivessem armados com arcos. Havia crianças de todas as idades, mulheres e velhos, toda uma população que tinha deixado o coração de Brocéliande para se estabelecer na orla da floresta sagrada. Uter e Ulfin foram rapidamente rodeados por elfos palradores como pegas (o que para eles era uma variante do habitual mutismo dos anões), de crianças que lhes pegavam na mão sorrindo, das suas mães com olhares inquietos e de milhares de silhuetas em movimento, tão pálidas e inacessíveis quanto fantasmas. E sem parar, ouviam uma palavra que conheciam: Aelfwine, ”Amigo dos elfos”, o título que tanto um como o outro tinham, na época em que faziam parte dos doze bravos de Pellehun. Uter tinha voltado a colocar a espada na bainha, e agarrou uma pequenita que tinha içado sobre o seu ombro, e todos os outros lhe puxavam pela manga rindo para que ele pegasse também neles. Jovens elfos lindíssimas acariciavam inocentemente os longos cabelos loiros e a barba de Ulfin. Muitas delas nunca tinham deixado a floresta, e os cabelos loiros pareciam fasciná-las para grande satisfação do cavaleiro, que não tinha, para falar verdade, o hábito de suscitar um tal interesse. Fora das liças, entenda-se.

Mas houve um grito, um burburinho, e de repente uma confusão extrema em volta deles. Ulfin ficou sozinho no espaço de alguns segundos, virando a cabeça em todos os sentidos, com os braços estendidos como um cego, enquanto, à parte, velhos elfos mostravam com horror a sua cota de malha vermelha com as runas da Montanha. As cores do rei Baldwin... Nesse momento surgiu Bran, tão medonho quanto um demônio, a gritar, saindo das entranhas da terra, com o seu machado em riste e, no olhar o brilho assassino de um touro enraivecido.

A pequena elfo pendurada no ombro de Uter deu um grito que furou o ouvido do cavaleiro, e ter-se-ia deitado ao chão se ele a não tivesse agarrado. Em volta deles, os elfos, tomados por um pânico vindo dos mais longínquos tempos, espalharam-se nos matagais e eles ficaram novamente sós. Bran, ainda mais despenteado do que normalmente, contemplou com um sorriso satisfeito o súbito vazio provocado pela sua aparição, e depois deixou cair no chão o seu machado.

— Bom! — disse ele numa voz de fazer cair as folhas. — Dir-se-ia que vos tirei de uma bela encrenca!

Começou a rir, mas um silvo cortou-lhe imediatamente o riso. Um silvo e o choque de uma flecha que acabava de se cravar na sua cota de malha em couro. Seguida de uma outra, que lhe trespassou a perna. O anão deixou-se cair nos juncos, sem um grito, desaparecendo imediatamente entre o matagal. Depois, houve o grito de dor e de raiva de Ulfin, atingido também ele por uma flecha, e que se pôs a praguejar cortando o ar com a sua grande espada, até que uma saraivada de flechas reduziram os seus gritos a um gemido surdo.

Uter tinha-se atirado ao chão, continuando a agarrar a menina contra o peito. Os elfos continuavam ali, invisíveis, e dando de tempos a tempos sinistros gritos de pássaros da noite cercando-o implacavelmente. Ele sentia-os bem próximos, ouvia-os deslizar no mato ou rastejar na erva. Sem dúvida hesitavam em enfrentá-lo corpo a corpo e não o enchiam de flechas por causa da criança.

— Escutem! — gritou ele na noite. — Nós não somos inimigos! Somos amigos dos elfos! Aelfwine! Aelfwine!

A menina debatia-se nos seus braços, moendo-o de pancada com pontapés e arranhões, com a fúria de um gato selvagem. Os elfos, em volta, continuavam a aproximar-se. Abanar de folhas, assobios breves. Movimentos de sombras, sem mesmo partirem um ramo... Subitamente, a pequena elfo deixou de se debater. Com uma facilidade desconcertante, ela virou-se nos seus braços e enfrentou-o. Tinha olhos verdes muito claros, quase amarelos, um olhar intenso. Os seus lábios não se mexiam, e no entanto ele ouvia-a falar distintamente. E ele repetiu, primeiro baixinho depois cada vez mais alto, aquilo que ela dizia, ele próprio maravilhado por compreender cada palavra que pronunciava.

— Haegl mia ar dyregebedda aelf aetheling!

“Saúdem com respeito o querido amante da rainha dos elfos!”

— Ne yr wundian hine!

“Que os vossos arcos o não firam!”

— Nethanfor hine seon mia triwa aelfivine!

“Avancem para ele sem medo e olhem com confiança o amigo dos elfos!”

Ela fechou os olhos e o seu pequeno corpo relaxou nos braços dele. Por um instante, Uter pensou que ela estava morta, mas ela começou a agitar-se devagarinho, com pequenos gritos agudos. Novamente, ele não entendia o que ela dizia. Nem o que diziam os elfos, cheios de medo, que se inclinavam diante dele.

Uter, nesse momento, estava com uns olhos terríveis. Um olhar pavoroso, perdido, com a respiração arfante sob a corrente de emoções contraditórias que o assolavam. O medo, que tardava a abandoná-lo, a fúria e a angústia, mas também um sentimento de triunfo, uma baforada inebriante de poder e de glória. E a voz de Lliane que ainda ecoava no seu coração. Ele levantou o rosto da pequena elfo semi inconsciente, mas o seu olhar tinha-se turvado e perdido o brilho dos olhos da rainha. Porque tinha sido Lliane quem tinha falado através da sua boca. Era mais do que uma certeza para ele.

Uma velha elfo tocou-lhe no braço. Ele estendeu-lhe a menina e abriu calmamente caminho entre essa multidão de fantasmas envergonhados, que lhe roçavam com as mãos ao passar, como uma espécie de saudação.

— Merlim! Merlim, onde estás?

— Aqui! Caminha a direito sempre em frente!

O homem-criança estava ajoelhado ao lado de Ulfin, e ele quase bateu nele, no escuro.

— Isto passa — disse antes de ele lho perguntar. — São flechas de caça, e a maioria ficou presa na cota de malha...

Tateando, Uter estendeu a mão e sentiu o sangue que escorria da barba do seu amigo.

— Ele tem uma flecha na face, e talvez um ou dois dentes partidos... Não é nada.

Ulfin, nos seus braços, emitiu uma espécie de gorgolejo de protesto ao qual o homem-criança não prestou nenhuma atenção.

— Merlim — disse Uter em voz baixa. — Ela falou-me...

— Eu sei, Kariad. Mas vai ver o anão, antes que eles o degolem.

Ajoelhados ao lado um do outro no oratório [7] da rainha, em frente da imagem da Virgem, ligeiramente iluminada por uma janela alta guarnecida com uma rosácea da maçonaria, eles rezavam. O quarto de vestir da rainha, que precedia o seu quarto privado, estava fresco e perfumado, devido às pétalas de rosa que lhe deitavam no chão todas as manhãs. Ela estava fresca, mas o bispo Bedwin estava coberto de suor. Ygraine não ousaria ter um pensamento tão pouco cristão, sobretudo dizendo respeito a um homem de Deus, mas ele cheirava mal. O odor do seu suor era acre como o vinho azedo, e ele fazia, ao respirar, um barulho com o nariz, tão esbaforido com a oração como se tivesse acabado de correr dez léguas. A rainha reprimiu um sorriso e tentou concentrar-se na sua Ave Maria. Mas ela já tinha rezado um rosário inteiro, e veio-lhe à cabeça o pensamento desconcertante de que Bedwin, com a testa apoiada sobre as mãos postas, os olhos fechados e os cotovelos bem apoiados sobre o genuflexório, estava simplesmente a curtir a sua bebedeira. Então, ela fez um rápido sinal da cruz e levantou-se, fazendo de propósito o genuflexório ranger sobre as lajes de pedra e bater o pesado cortinado que ladeava o oratório.

Se dormia, o abade devia ter um sono profundo, ou então uma longa experiência que o tinha ensinado a não acordar em sobressalto em semelhantes circunstâncias. Ele mexeu-se imperceptivelmente, abriu os olhos meio segundo, e depois continuou a rezar ainda durante longos minutos, enquanto a jovem rainha, desorientada, batia em retirada, sem saber o que fazer, não ousando mesmo mexer-se com medo de o incomodar.

Por fim, ele persignou-se, a cabeça baixa com humildade, e levantou-se pesadamente, dando um grande suspiro. Bedwin tinha deixado de usar as suas insígnias desde que chegara a Loth, estola, casula sacerdotal, mitra e cruz e vestia um fato comprido de gola larga que lhe dava mais um ar de grande senhor do que de um eclesiástico, mas que, neste calor, lhe permitia pelo menos respirar. Passando uma mão rechonchuda nos seus cabelos castanhos ligeiramente ondulados e mantidos com cuidado, bem como a sua barba cortada em bico para disfarçar o seu queixo duplo, voltou-se para Ygraine, sorriu-lhe e, evitando o seu olhar interrogador, saiu do oratório e aproximou-se de uma janela, parecendo mergulhar na contemplação do campo. Depois desviou-se como que contrariado e foi sentar-se num banco coberto de uma dessas tapeçarias estofadas a que se dava o nome de banqueta. Olhando-a por fim diretamente nos olhos, convidou-a com um gesto a vir para ao pé dele.

— Minha filha — começou ele pegando-lhe na mão —, eu conheço a tua devoção e tudo quanto fazes pela nossa madre Igreja. E no entanto vives em pecado...

Ygraine protestou, mas ele interrompeu-a fazendo-lhe pressão na mão.

— Eu sei... O duque forçou-te, tanto pelo espírito de luxúria como pelo gosto do poder. E que poderias tu fazer? É claro que uma santa se teria entregado à morte, mas nós não somos santos, não é verdade?

Ygraine não conseguiu responder, a garganta com um nó e os olhos cheios de lágrimas.

— A verdadeira fé conduz um combate grandioso — continuou o abade. — Um combate que ultrapassa largamente o curso das nossas miseráveis existências. Esta prova que o Céu te envia, talvez seja um bem, apesar de tudo... Quem somos nós para julgarmos a vontade de Deus? Domini viae impenetrabiles sunt![8] Cada um de nós deve servir o Senhor à sua maneira, para que a palavra de Deus se entenda no coração dos homens... Compreendes o que eu digo?

Virou-se para a jovem rainha e foi atingido pela expressão da sua cara. As lágrimas nos seus olhos não eram de fraqueza mas de raiva. Um nojo de si, um sentimento de horror que a sacudiam de tremores, ruborizava-lhe as faces e fazia-lhe tremer os lábios.

— Eu odeio esse homem — murmurou ela numa voz sem entoação. — Eu odeio este castelo, eu odeio esta coroa e tudo aquilo que ela representa... Julga que eu não quis morrer? Sem o irmão Blaise eu já estaria morta há muito tempo, muito antes do senhor Gorlois ter ousado pôr as mãos em mim. Bem antes do rei ter sido morto. Estaria morta há séculos!

Ela libertou as suas mãos das do bispo, levantou-se bruscamente e foi para o outro lado da divisão, onde abriu uma cortina de couro que escondia uma janela quadrada.

— É a minha vida que quereis, dai-me a absolvição, e atirar-me-ei no vazio com alegria!

— Não, não!

Bedwin fez um gesto apaziguador, mas os seus olhos traíam a sua angústia.

— Volta a sentar-te ao pé de mim — disse ele. — Não passas de uma criança, não compreendes o que o Senhor espera de ti. É normal... É por isso que eu estou aqui. Deixa-me explicar-te...

Ygraine ficou imóvel, com a mão crispada sobre o couro espesso, com o corpo inteiro agitado por espasmos convulsivos, tremendo apesar do calor do dia. O abade era bastante apreciador de mulheres, e quando um raio de sol, através da janela aberta, sublinhou a finura do seu pescoço, a brancura da sua pele até ao sombrio decote do seu vestido de tecido azulado realçado com fios de prata, bem como a fineza da sua cintura e a largura das suas ancas, ele achou-a desejável.

— O abade Illtud falou com o duque — disse ele limpando do espírito aquele pensamento incómodo. — Não é certamente o marido com quem poderias sonhar, mas poderá ser um rei e ele prometeu empenhar-se na fé cristã. Tu deves casar com ele, suplico-te, para que a verdadeira religião salve este mundo de lágrimas. Eis como servirás a Deus.

O nome do santo homem tinha trazido uma luz de esperança aos olhos de Ygraine. Então, o irmão Blaise, seu confessor, tinha falado e defendido a sua causa junto da mais alta autoridade moral do reino. Talvez ela não estivesse assim tão sozinha...

— Para além disso, olha...

O bispo bateu palmas (e o barulho súbito sobressaltou a jovem). Imediatamente, um padre entrou, segurando nas mãos um escudo com tanto respeito como se se tratasse de uma relíquia santa.

Nunca antes tinha Ygraine visto semelhante brasão de armas, tão simples e tão belo. De prata com a cruz latina vermelha.

— Eis as novas armas do reino, se fazes favor — disse Bedwin empertigando-se. — A cruz em honra do Nosso Salvador Jesus Cristo, vermelho, símbolo da vitória, sobre fundo branco, cor da pureza e da justiça. Que estandarte poderia melhor defender a glória de Deus?

Ele mandou sair o padre com um sinal de cabeça e esperou que a porta se fechasse para continuar.

— É sob esta cruz que celebrarei o vosso casamento, a fim de que ninguém ignore que o duque renunciou aos cultos pagãos. Assim, o vosso pecado será apagado, e eu dar-te-ei a absolvição, mas não para que tu morras, mas para que vivas como a mais cristã das rainhas que as Terras de Logres jamais conheceram. Tu serás bendita entre todas as mulheres, benedicta eris inter omnes mulieres. Dar-lhe-ás um filho para maior glória de Deus, e depois, se for esse o teu desejo, poderás retirar-te do mundo. O abade acolher-te-á no seu convento.

Bedwin tinha-se aproximado dela enquanto falava. Ela levantou para ele os olhos molhados de lágrimas e depois ajoelhou-se para beijar o seu anel sacerdotal. Ela tremia ainda, tão jovem e desesperada, agarrada à mão dele como se estivesse a afogar-se.

— Eu sou a muito humilde e obediente serva do senhor — murmurou ela.

 

— Deixem-me sozinho.

Gorlois, enrolado no seu casaco, não concedeu um olhar aos carcereiros imundos que os cavaleiros empurravam como gentalha, a golpes de manopla de ferro. As paredes do posto de guarda, situado debaixo do nível das termas, escorriam umidade e a palha que cobria o chão de terra batida deitava um odor acre a bolor. Mesmo os archotes dispostos nas tocheiras escorriam, tão molhada estava a madeira. Uma nuvem de fumo azulado estagnava a meia altura, dissipando-se mal pelos pequenos buracos de arejamento dispostos no tecto. Mas pelo menos os carcereiros tinham um pouco de luz...

Ele enfiou as suas luvas e pegou num archote, depois, com um gesto, fez sinal a um dos bravos vestidos de ferro para lhe abrir a porta da enxovia. Imediatamente uma onda pestilenta bem pior que o mau cheiro da sala de guarda fê-lo recuar. Um odor de abandono, de sujidade, de pocilga, mortal, inumano, feito de excrementos, de podridão e de medo. Os homens aí encarcerados, no escuro e na umidade, nunca lá ficavam muito tempo. Ou porque morriam em poucos dias, espancados, despojados das suas roupas pelos mais rudes, privados de comida, violados, por vezes, pelos mais jovens, ou porque a justiça do rei os mandava executar. Aqueles cuja família era suficientemente rica, podiam pagar os seus danos em dinheiro contado, segundo a lei do Wergeld: todos os crimes tinham um preço negociável com a vítima ou os seus familiares. Nesses tempos longínquos, não havia lugar para meias medidas, e a prisão não era mais que um lugar de passagem, para a forca ou para a liberdade. Como ninguém aí ficava muito tempo encarcerado, ninguém se preocupava em dar às celas um ar de conforto. Mesmo os mais duros, ao fim de alguns dias nesta imundice, acolhiam a morte como uma libertação.

Antes que o seu olho se pudesse adaptar à escuridão, uma forma humana saltou em direção a ele do seu lado zarolho, surgindo no halo vacilante deitado pelo seu archote. Gorlois só o viu no último instante, a tempo de se baixar para amortecer o choque. O homem embateu na espaldeira de ferro que cobria o seu ombro, invisível debaixo do casaco, e que lhe desfez as costelas esvaziando todo o ar dos seus pulmões. Com o choque, o senescal-duque rolou pelo chão e largou o archote que começou a fervilhar na imundice. Num instante, grunhidos animalescos à sua volta, mãos nojentas e de unhas compridas levantando-o pelo colarinho, pés nus batendo na sua cota de malha.

— A mim, a Guilda! — gritou ele, submergido por esses demônios.

Houve uma paragem de um segundo, como hesitação, suficiente para ele se libertar deles e voltar a pôr-se em pé. Desembainhou sua adaga, uma larga faca afiada dos dois lados, mas os prisioneiros, pareciam bater-se entre eles. Ou melhor, dois atrevidos mais ou menos vestidos, maciços como carvalhos, distribuíam bofetadas e pontapés para abrirem caminho. Um deles pegou no archote, passeou-o num grande gesto circular, iluminando fugazmente as caras aterrorizadas e os corpos prostrados dos seus companheiros de prisão antes de se agitarem por cima da sua cabeça, revelando aos olhos de Gorlois a sua tromba de besta semi-comida por longos cabelos claros e uma barba eriçada.

Nesse instante, os cavaleiros da sua escolta irromperam na cela, num barulho de ferragens, ensurdecedor.

— Deixem-me, já disse!

— Mas, senhor...

Um simples olhar, e os cavaleiros saíram, envergonhados, o que arrancou um sorriso de desprezo aos dois campônios.

Sem uma palavra, o duque estendeu a sua mão direita, onde brilhava um anel de ouro com um desenho simples, uma árvore com três ramos levantados para o céu. A runa de Beorn. O símbolo da Guilda, a toda poderosa confraria dos ladrões e dos assassinos. O colosso, imediatamente, pôs um joelho no chão e mostrou o seu punho. Via-se nele um anel similar, mas em cobre — o grau mais baixo.

— Há outros? — perguntou Gorlois.

— Não, meu senhor. Sou o único...

Gorlois fez-lhe sinal para que se levantasse, com o pescoço ainda a tremer e o corpo aquecido pelo que tinha acabado de acontecer.

— E ele? — perguntou designando o segundo companheiro, quase tão maciço quanto o homem do anel.

— Esse, está comigo, senhor.

Gorlois abanou a cabeça e fez sinal ao prisioneiro para que se aproximasse. Pegou-lhe nas mãos, uma depois da outra: nenhum anel. Deixou-as cair e, um instante depois, enterrou a sua adaga bem no coração do homem com um grito de lenhador, sujando de sangue quente a cara e o gibão. Um segundo de interesse, o tempo de ver os seus olhos tornarem-se vítreos, e arrancou a arma sem se preocupar mais com a vítima.

— Tu sozinho — disse ele. — Vem comigo.

Do lado de fora, os olhares estupefatos dos cavaleiros deslizaram sobre a sua cara e roupa ensanguentadas, depois fixaram-se sobre o gigante que saía atrás dele, piscando os olhos à luz no entanto fraca da sala de guarda.

Gorlois limpou a cara, o tronco e as mãos com a ajuda do seu casaco, depois desapertou-o e atirou-o para o interior da cela.

— Voltem a fechar — disse ele.

Com as mãos nas ancas, afastou-se um ou dois passos e contemplou com um sorriso irónico o colosso em farrapos, coberto de imundices, a barba cheia de bichos e os cabelos loiros sujos de argila.

— Levem-no para os banhos, vistam-no e tragam-me este idiota quando ele tiver ar de gente.

O homem levantou os olhos furtivamente, deitou um olhar rápido à escadaria em caracol que conduzia aos andares superiores, e voltou a baixar a cabeça.

— Vejo que és razoável — disse Gorlois. — O teu nome?

— Osvvulf, senhor.

— Um bárbaro... Devia ter percebido. Ladrão ou assassino?

De novo o colosso deitou um olhar rápido e inquieto ao seu salvador.

— Senhor, eu...

— Ladrão ou assassino? Responde!

— Ladrão...

Gorlois voltou-se para os cavaleiros da sua escolta com um gesto brincalhão.

— Pois bem, teremos que nos contentar, não é verdade? Levem-no.

Fez um sinal com a cabeça, os bravos empurraram o bárbaro para a frente e desapareceram rapidamente na escada de pedra. Gorlois ficou imóvel por um momento, ouvindo os seus passos diminuírem, depois, por fim, fechou os olhos e pressionou os punhos sobre as costelas com um gemido de dor que ressoou debaixo da alta abóbada cheia de fumo.

 

                       O CASAMENTO

Desde as muralhas exteriores até às torres do torreão real, e da mais pequena das barracas dos bairros pobres, Loth estava enfeitada com as novas cores da casa real, com longos estandartes brancos marcados com uma cruz vermelha. Os mais ricos tinham estendido tapeçarias sobre as suas fachadas, os outros panos, e todos aqueles tecidos davam às ruas um brilho luminoso, disfarçando por outro lado os traços do incêndio que tinha devastado a cidade alguns meses antes.

Hoje, era uma outra história. As ruas transbordavam de gritos e risos, e dir-se-ia que toda a cidade estava bêbada. Em cada praça ou praçeta, os taberneiros tinham aberto tonéis de cerveja, de hidromel ou de vinho a um denário a caneca, ou seja quase de graça, e sob um sol escaldante, nessas ruelas estreitas fervilhantes de gente, dava sede. Loth, no entanto, tinha mudado muito. A antiga sede do Grande Conselho, onde antigamente viviam lado a lado os povos de todas as raças, tinha-se tornado uma cidade de homens. Oh, é claro que havia ainda de onde em onde grupos de gnomos, prevenidos não se sabe como do acontecimento, que propunham aos passeantes a compra das suas inacreditáveis bugigangas, nos seus carrinhos de mão. Cruzava-se também por vezes algum anão, empregado nas tarefas pesadas da loja de um comerciante ou levando pelas rédeas um pónei ao bebedouro, mas não passavam de servos. Escravos vestidos de farrapos, despojados das jóias e dos veludos com que se vestiam noutros tempos, antes da guerra, e a maioria dos homens desviava o olhar à sua passagem, como se a visão de um anão se tivesse tornado incómoda. E depois, sobretudo, não havia nenhum elfo entre toda essa multidão.

Um calor de chumbo tinha-se abatido sobre a cidade desde as primeiras horas do dia. As redes de vime e as janelas de tela ou de papel oleado das casas de argamassa tinham sido todas tiradas, as portas abertas de par em par para deixar entrar um pouco de ar e, como a maior parte dos homens tinha saído, eram as mulheres e os criados que tomavam conta das casas. As comadres conversavam de um lado ao outro das ruelas, acrescentando os seus gritos agudos à cacofonia geral, mas pobre do imprudente que tentasse aproveitar a ocasião para se introduzir nos seus ninhos! Aliás, os ladrões nem se atreviam e tinham bastante que fazer noutros lados. Cá fora, chapinhava-se no riacho, pateava-se atrás de um burro albardado, carregado de víveres, ou atirava-se para a multidão, os cães ou mesmo os porcos que chafurdavam nas imundices espalhadas sobre o pavimento, coberto para a ocasião com erva e juncos. Cada local de venda ou cada loja, reconhecíveis pelas suas tabuletas pintadas, penduradas por vezes tão em baixo que se batia nelas com a cabeça, estava decorada com o símbolo da cruz e transbordava de mercadorias. Padeiros, vendedores de sal, vendedores de velas oferecendo as suas velas de sebo ou de cera, carregadores de água fresca, vendedores de roupa, arneiros, todos tinham espalhado os seus tesouros para a ocasião... Os rapazes das tabernas ofereciam uma prova gratuita aos passeantes para os empurrarem para uma mesa ainda livre. Vendedores de panquecas e hóstias doces, assaltados pela criançada, vendiam os seus produtos apregoando, nas esquinas das ruas, fazendo rodar uma roda para tirar à sorte o número de bolos que o seu cliente levaria. Os anunciantes das termas, abrindo caminho à cotovelada, esganiçavam-se para anunciar que a água estava quente, mas era perda de tempo, porque a maioria dos cidadãos já se tinha banhado e tinha vestido os seus melhores atavios. Comparadas às apagadas roupas do dia a dia, era um brilho de cores, de véus e de tecidos preciosos, seda, brocado ou tecidos lavrados. Mesmo as lãs mais grosseiras estavam pintadas. Os jovens, com camisas até aos joelhos, traziam golas recortadas cobrindo-lhes o pescoço e os ombros. Alguns arvoravam corajosamente fatos de cores vivas com mangas compridas, abertas ao nível do cotovelo, e riquíssimos cintos bordados ou de ourivesaria, carregados com uma bolsa que passaria seguramente várias vezes de mão antes do final do dia. As mulheres tinham penteado os seus cabelos em tranças ou cachos, protegendo a sua pele pálida com grandes chapéus de palha, e mais do que uma, jovem ou velha, tinha desfeito os primeiros laços do seu corpete para deixar entrever o arredondado do seu decote.

O duque Gorlois tinha esvaziado as prisões, para que justas punições viessem aqui e ali divertir a multidão. Um agiota, tinha sido atirado de mãos atadas, aos fossos, no local onde desembocavam as águas sujas, e os mirones amontoados nas margens, rebentavam a rir a verem-no debater-se e afogar-se na corrente imunda dos esgotos. Outros tinham sido amarrados ao pelourinho, para grande alegria das crianças que lhes atiravam com pedras e fruta podre.

No átrio da igreja, os monges e os padres tinham montado um teatro e representavam sem parar, suando a bom suar sob as suas máscaras de pasta de cartão, os mistérios tirados das Escrituras. A um canto do cenário estava representado o paraíso, com Deus e os anjos. Ao meio, os homens, grosseiros como convinha e do outro lado a boca aberta do inferno, vomitando chamas e demônios, numa cacofonia de trompas e tambores.

O próprio castelo não escapava a toda esta agitação.

Ali estava mais fresco que na cidade baixa, mas os corredores estavam cheios de criados atarefados, correndo em todos os sentidos, carregados de roupas ou de picheis de vinho, censurados pelos copeiros, empurrados pelos sargentos com cotas de malha das cores dos seus senhores. Os monges tinham tocado a nona [9] há muito tempo, e a hora da grande missa aproximava-se. O senescal-duque tinha ordenado a todos os convidados que assistissem, sem armas e em fatos de cerimônia, em nome da rainha Ygraine. Deveriam formar cortejo ao primeiro toque do sino, atravessarem a baixa da cidade desimpedida pelos soldados do rei e irem ter à igreja encostados às muralhas. A febre dos últimos preparativos punha ao rubro os nervos dos barões mais endurecidos, e rumores contraditórios sobre a ordem de presença, no desfile, começava a aquecer os ânimos.

O duque Léo de Grand de Carmelide sentia-se acima deste tipo de contingências. Vestido, apesar do calor, com uma cota de malha coberta de uma cota de armas negra marcada com o brasão dos Carmelide, em prata com leão servil lampassado de areia [10], andava de um lado para o outro da sala, arvorando ostentosamente a sua longa espada de lado, apesar da interdição de Gorlois. Sendo o irmão mais velho da rainha Ygraine, fazia ponto de honra em se demarcar de toda aquela palhaçada, e avaliava com um olhar de desprezo os barões pingando sedas, penteados como damas e calçados com polainas, que se inclinavam com respeito à sua passagem.

Nunca tinha havido um irmão e uma irmã tão diferentes. Ygraine era loira, pequena, enquanto ele era maciço como um Bárbaro do Norte, o cabelo castanho, a carranca de um urso e o passo tão pesado quanto um.

Como todos os outros, tinha sabido da morte do rei através da mesma mensagem que o convidava a vir a Loth, sob a ordem da rainha. Tinha esperado ser aí recebido pela irmã e tinha já preparado um discurso cheio de solicitude e de carinho, aceitando à partida a regência do reino que ela não deixaria de lhe confiar. Mas, tal como os outros, ele tinha passado a noite no castelo sem ver ninguém, sem mesmo obter uma audiência com esse maldito Gorlois, e sentia uma certa dificuldade em manter a máscara de tranquila indiferença que tinha escolhido aferrolhar.

Pouco a pouco, a imensa sala tinha ficado cheia, limitando as suas idas e vindas, mas ele tinha encontrado uma distração no modo de trajar cuidadoso de certas damas, de olhar desavergonhado e peito levantado, realçado por véus de musselina presos sob os seios e que quase os faziam saltar dos seus corpetes bordados, ornados com passamanarias ou abertos dos lados, deixando ver as suas finas camisas de tule. Alguns olhares, também, lhe tinham incendiado o coração. Simples cavaleiros, vestidos como ele para a guerra e não para um carnaval qualquer, saudavam-no à sua passagem com um aceno de cabeça. Velhos companheiros de armas...

Ao primeiro toque do sino, um movimento da multidão tinha-o empurrado para o fundo da sala. Toda a gente, duques, condes ou cavaleiros, burgueses e vassalos, nobres damas, escudeiros e músicos, apressavam-se numa desordem ridícula diante da grande porta de dois batentes que acabava de abrir-se. O duque Léo de Grand, a princípio, não viu nada. Apesar da sua estatura, lutava para continuar no mesmo sítio no fluxo e refluxo de cortesãos, dando cotoveladas quando necessário, encolerizando-se contra este atropelo insensato. Quando levantou os olhos, um cordão de guardas munidos de lanças afastavam firmemente a assistência para dar lugar ao arauto vestido com uma cota de seda, metade branca, metade vermelha, que batia nas lajes do chão com o seu bastão de ferro.

— A rainha!

Ygraine apareceu, mais pálida que nunca, com a mão pousada sobre o punho do senescal-duque Gorlois de Tintagel. Com a cintura envolta num cinto de ouro, trazia um vestido comprido vermelho bordado de arminho e de fios de ouro e prata, formando o desenho de rosas enlaçadas. Com o pescoço e as faces apertadas num véu de musselina, com a coroa real sobre a cabeça, ela tinha escondido os seus longos cabelos loiros sobre um véu que lhe cobria as costas. Uma capa de um azul escuro presa por um alfinete de ourivesaria estendia-se em manto por trás dela, segura por dois pagens vestidos com as mesmas cores. Um passo atrás, magro e triste no seu fato cinzento de burel, estava o irmão Blaise, seu confessor.

A multidão tinha-se acalmado e fervilhava de murmúrios, sobre o sentido dos quais Ygraine suspeitou. A sua mão pousada sobre a de Gorlois, começou a tremer, e os seus olhos brilharam. Ela olhava em frente, com um nó na garganta e o coração apertado num torno, sentindo as faces corarem sob o véu. Ela não pensava senão na vergonha daquela mão dada ao senescal, enquanto eles não viam senão a sua beleza e o esplendor dos seus adereços. Durante a vida de Pellehun, a rainha não tinha passado de uma sombra, tão jovem a seu lado que parecia ser sua filha, apagada, insignificante. E eis que, pela primeira vez, ela aparecia majestosa. Não havia mais que admiração nesses murmúrios. De inveja, ou de ciúme, também, talvez, diante do luxo do seu vestido. E, aliás, quem é que olhava para Gorlois, nesse instante, a não ser Léo de Grand? Ao lado dela, ele desaparecia no seu fato escuro, de gola subida e descendo até meio da perna com, como único ornamento, um cinto de ouro à altura dos rins. E depois o velho senescal parecia-se tanto com o defunto rei... No par que formavam, só a beleza radiante da rainha era uma novidade.

Interrompendo o barulho da assistência, o arauto bateu novamente no chão com o seu bastão de ferro, para grande alívio da rainha.

— Formem a procissão!

E começou a enunciar os nomes das primeiras filas, começando pelos duques — Carmelide, Orcanie, Cambenet, Sorgalles, Lyonesse, Dommonée —, depois os condes e os barões, destacando cada sílaba com compunção, saboreando por vezes com um olhar rápido o olhar ansioso dos que ainda não tinham sido chamados, interrompendo-se de tempos a tempos para deixar passar um senhor inchado de presunção com a sua dama pingando sedas, saltitando ao seu lado.

Gorlois e a rainha avançavam um passo a cada chamada, como num bailado bem ensaiado, de forma a que a longa fila de pares, perfeitamente alinhados segundo a categoria de cada um, que se formava atrás deles começava a ter peso.

Léo de Grand tinha ficado paralisado durante um bom bocado ao ver este espectáculo, revoltado por ser o único a reparar na mão de Ygraine pousada sobre a de Gorlois. O único a não achar normal que o senescal não tivesse cedido o passo à rainha e que ao contrário estivesse ao lado dela, teso como uma lança e vestido a rigor, com os olhos no vácuo sem olhar para ninguém (nem mesmo para ele), como um rei a quem não faltava senão a coroa. Tinha procurado apoio entre os seus pares, mas todos estavam docilmente alinhados sem reação aparente. Então também ele tinha entrado na fila, sozinho, porque a sua duquesa não o tinha acompanhado nesta longa viagem até Loth.

O cortejo pôs-se a caminho, mal os sinos da igreja tocaram sem parar. E, mal punham os pés no exterior, o calor do sol e das lajes do pavimento envolviam-nos como um casaco de peles. Um interminável cordão de soldados, escorrendo suor debaixo dos seus coletes de couro, traçavam o caminho a seguir, contendo a multidão de cidadãos amontoados à sua passagem. Fazia tanto calor que mais de uma dama demasiado apertada no seu corpete quase desmaiou, mas Gorlois prosseguia num passo certo, saboreando as aclamações, que não lhe eram todas destinadas, sob uma máscara de impassibilidade. Atravessaram assim toda a cidade, até ao pé das muralhas onde a igreja dos padres estava edificada. Por cima dos ombros dos soldados amontoavam-se os camponeses e as gentes dos bairros baixos, com as suas carantonhas violáceas e os seus vivas ensurdecedores, bêbados pelo ajuntamento, arregalando os olhos para tudo verem, apontando com o dedo as belas damas, indicando o seu senhor à passagem quando o reconheciam.

Um tal frenesim produzia efeitos diversos sobre os membros do desfile. Alguns sentiam-se inchados de orgulho e saudavam a populaça com pequenos acenos de cabeça; o duque Escan de Cambenet, escoltado por um escudeiro que trazia um cofre de madeira reforçado por placas de aço, tirava de dentro dele com despreocupação pequenas moedas que atirava para a multidão, rindo da confusão que provocava; outros, ao contrário, escondiam o seu pavor com umas caras absortas, e, no final do cortejo, nas filas menos compactas de cavaleiros a soldo [11] e de simples escudeiros, braços estendiam-se para recolher à passagem uma taça de vinho ou um beijo de uma rapariga.

Por fim, os sinos calaram-se, no momento em que o cortejo chegava ao átrio da igreja. O coro dos monges, alinhado no cimo dos degraus, impunha o silêncio com o seu canto grave e modulado. Alinhados como uma muralha escura, formavam um conjunto compacto, bem diferente do grupo de clérigos e noviças leigas, que se tinham vagamente reunido em volta do bispo Bedwin e dos seus padres. O contraste entre os monges e o clero era surpreendente. De um lado o tropel dos clérigos, por vezes acompanhados das mulheres ou dos pagens e o luxo faustoso do bispo Bedwin, com a sua mitra e a sua estola bordada a ouro, agitando uma cruz imponente, brilhante como milhares de fogos. Do outro, a austeridade impressionante dos irmãos, todos semelhantes com os seus longos trajes de burel cinzentos e as suas estranhas tonsuras, rapando a parte da frente da cabeça, de uma orelha à outra, com exceção de uma mecha sobre a testa [12]. Atrás, confundido entre o grupo anônimo dos seus monges, o abade Illtud de Brennock mantinha a cabeça baixa, perdido nas suas orações. Como uma onda arrastando a margem, a multidão ajoelhou-se persignando-se, e este lento movimento espalhou-se em volta de toda a praça, até ao próprio Gorlois. A rainha tinha sido uma das primeiras a ajoelhar, deixando-o plantado com ar palerma, hesitando na conduta a adoptar. Olhou o bispo, brilhando com todo o seu ouro sob os raios do sol, e viu que ele tinha ficado em pé, mas talvez se tratasse de qualquer privilégio. Apesar da distância que ainda os separava, Gorlois teve a impressão que Bedwin o olhava com insistência, e ajoelhou-se com maus modos, com um esgar de desdém na cara.

O coro dos monges terminou num silêncio absoluto, e depois o rumor da cidade aumentou progressivamente, até se formar um burburinho que o segundo cântico deles não conseguiu dissipar. Foi neste burburinho surdo que Gorlois e Ygraine avançaram até ao bispo Bedwin. Segundo o costume, pararam no cimo das escadas para celebrarem os seus esponsais, à vista de todos, para que ninguém os ignorasse.

O murmúrio da multidão amplificou-se imediatamente, cobrindo as santas palavras do bispo, mas Léo de Grand e os duques do reino de Logres perceberam perfeitamente as trocas de promessas:

— Amiga — disse Gorlois retirando um anel do seu dedo para o colocar no de Ygraine —, com este anel de ouro vós apoderais-vos do meu amor sempre leal.

E Ygraine fez o mesmo, as suas palavras foram pronunciadas com uma voz tão fraca que ninguém as ouviu. Ela olhou de fugida para o irmão, e depois virou rapidamente os olhos. Léo de Grand parecia uma estátua de sal, estupefato com o que estava a ver. Com uma cotovelada, o duque Bélinant de Sorgalles arrancou-o do seu espanto.

— Não sabia que tínhamos vindo assistir aos esponsais — murmurou ele ao seu ouvido. — Gorlois trabalha depressa!

— Silêncio!

Léo de Grand era um homem de guerra, e o seu cérebro registrava lentamente as manobras dos inimigos, fora do campo de batalha. No momento, tinha a impressão de ser um joguete numa farsa macabra, tanto os acontecimentos se encadeavam de maneira absurda, desde a sua chegada a Loth. Tinha julgado ser acolhido como um rei, mas pelo contrário não lhe tinham dado atenção. Gorlois não lhe tinha dirigido a palavra durante todo o dia, nem mesmo a sua própria irmã a rainha, e eis que eles se tornavam noivos sob o olhar do povo e da nobreza reunidos em assembléia! Assim que, era o trono que ele visava, aquele velho malandro, aquele zarolho costurado por todo o lado que tinha duas vezes idade para ser pai de Ygraine. O seu trono!

Realizando bruscamente o sentido das palavras de Sorgalles, voltou-se para ele, com um ar tão terrível que o duque Bélinant e a sua mulher Helled, tiveram o mesmo movimento instintivo de recuo. Léo de Grand procurou as palavras e esforçou-se por mostrar uma cara agradável, apesar da sua fúria. O duque Bélinant tinha-se mostrado chocado com a cerimônia; talvez pudesse vir a ser seu aliado, nos tempos vindouros...

— Perdoai-me — disse por fim. — Também eu ignorava toda esta palhaçada.

Nas suas costas, o casal real, ajoelhado, recebia a bênção do bispo.

— Duque Gorlois, prometes pela tua honra casar com Ygraine, se a santa Igreja o consentir?

— Juro — disse Gorlois.

Bedwin fez a mesma pergunta à rainha, cuja resposta, uma vez mais, foi inaudível. O bispo, no entanto, contentou-se com isso e traçou por cima das cabeças deles um grande sinal da cruz.

— E eu vos declaro noivos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amen. Ego alterutrum despondeo in nomine Patri, Filii et Spiritus Sancti, amen.

O irmão de Ygraine lançou-lhe um olhar maldoso, murmurou um palavrão e depois voltou-se de novo para Bélinant de Sorgalles.

— São só os esponsais — disse numa voz tão alta que se ouviu várias filas atrás, e até o próprio Gorlois lhe deitou um olhar de soslaio.

Léo de Grand deu-se conta e baixou a voz.

— Ainda faltam quarenta dias de banhos — disse ele. — E muitas coisas podem acontecer, em quarenta dias.

Tentou fazer um sorriso confiante, mas Bélinant não prestou atenção, fascinado pela cerimônia que se desenrolava no cimo dos degraus.

Contra todas as expectativas, Bedwin não tinha acabado com os esponsais. Tinha havido um movimento geral de avanço depois da bênção, esperando cada um entrar na igreja para ouvir a missa, mas este movimento foi quebrado pela aparição de uma tropa de pagens carregados de grinaldas de flores brancas, que se espalharam como formigas sob o pórtico em volta da rainha e do senescal.

O seguimento perdeu-se numa confusão da qual, Léo de Grand, como a maior parte da assistência, não conservou mais do que uma recordação difusa. Dois dos doze bravos que formavam a escolta real afastaram-se do grupo e vieram colocar-se por trás do casal de noivos, tapando o espectáculo com a massa luzidia das suas armaduras, de modo que, sempre conservando a aparência de uma cerimônia pública, o casamento de Ygraine e Gorlois passou desapercebido. Quando a rainha se levantou, a coroa tinha sido trocada por uma de flores entrelaçadas. Os bravos escolhidos como testemunhas afastaram-se, trocando vigorosos abraços como era o costume para marcar bem a recordação desse instante. Não foi senão no momento em que o bispo Bedwin cobriu os novos esposos com aquele véu branco a que chamavam manto, que alguns, entre toda aquela multidão, compreenderam aquilo que acabara de se passar. Para os outros, bastou verem a expressão consternada do abade Illtud bem como a agitação entre os monges em volta dele para adivinharem a volta pouco vulgar que a cerimônia tinha tomado.

Já Gorlois e Ygraine tinham deixado o pórtico, para entrarem para a sombra fresca da igreja, seguidos pela sua guarda couraçada, quando um novo coro, este de crianças, entoou um Te Deum à entrada deles. Houve um momento de flutuação, mas o simples gesto de um clérigo convidando a procissão a segui-los teve o efeito de uma chicotada sobre os convidados. Já nada tinha a ver com a lentidão pomposa do seu desfile na cidade: o cortejo foi engolido pelas portas abertas do pórtico numa precipitação e atropelo. Assim que entravam na nave, cada um sentava-se o mais rápido que podia, numa desordem perfeita, sem ter em conta a ordem nobiliárquica tão cuidadosamente estabelecida pelo arauto real, e mais de um alto personagem foi repelido para os lados ou até mesmo para fora.

Foi este o caso do Léo de Grand.

O duque de Carmelide tinha ficado estático no lugar, quase desmaiando de indignação e de raiva perante este casamento contra todos os costumes, que fazia do senescal Gorlois o regente do reino. Todos os seus sonhos estavam aniquilados, mas ele ainda não tivera tempo para se lamentar sobre as suas esperanças perdidas. O que o oprimia a ponto de lhe faltar a respiração, era que Ygraine se tivesse voltado a casar sem que ele, o seu irmão mais velho, o chefe da família depois da morte dos seus pais, tivesse sido consultado. Ele tinha ficado ali, fervendo de raiva sob o sol do meio dia, enquanto o pátio se esvaziava. Os soldados que formavam o cordão de proteção ao longo do caminho, encheram o lugar santo, deixando a cidade aos cidadãos que voltavam à realidade, cada um comentando os acontecimentos à luz do que tinham visto, e do que tinham ouvido. E, neste burburinho, Carmelide ficou sozinho no meio de um grande círculo de soldados de cotas de malha brancas marcadas com uma grande cruz vermelha, que interditavam ao povo a aproximação da igreja. Por um instante, sentiu-se ameaçado, esboçou mesmo um gesto em direção à sua espada. Mas as tropas reais não lhe prestavam atenção.

Cobertos com um véu, Gorlois e a rainha estavam ajoelhados, sozinhos, sobre genuflexórios colocados no coro, face ao altar. E, por trás deles, se é que esta nova perfídia podia ainda escandalizar alguém, os bravos da sua guarda pessoal, vestidos com as suas armaduras de placas, espada ao lado, ocupavam a primeira fila, formando uma muralha entre os recém casados e a nobre assembléia.

Para a maioria deles era a primeira vez que assistiam a uma missa, e não notaram até que ponto Bedwin a despachava. Raros eram aqueles que entendiam latim, e mesmo assim, o bispo contentava-se em murmurar, com os olhos baixos sobre o altar, enquanto em volta dele oficiava todo um exército de clérigos e noviças: meninos do coro apresentando os santos óleos ou os cálices sagrados, acólitos balançando lentamente os turíbulos cuspindo baforadas de fumo azulado estonteante, turiferários ajoelhados, carregando grandes círios decorados, cujas chamas formavam uma coroa de luz na escuridão da abadia... Era uma missa devotada à santa Trindade, sem nenhum cerimonial de casamento, esse já consagrado anteriormente, no pórtico. Uma missa isenta de fervor, quase vergonhosa, tão vazia de sentido que até os mais ímpios se deram conta, e as conversas recomeçaram pouco a pouco na assistência, entre os risos abafados e os ruídos dos ventres esfomeados.

Gorlois, com as têmporas a latejar, olhava sem ver o bispo celebrando mecanicamente o santo ofício, e sonhava com a coroa de Pellehun. O seu velho amigo... Ele próprio não poderia subir ao trono sem ser eleito pelos seus pares, duques e condes do reino de Logres, mas isso viria mais tarde, a seu tempo. Por agora, era preciso lisonjeá-los, recompensar-lhes os méritos ou comprar-lhes a honra. Acordar títulos e rendas. Talvez mesmo suprimir impostos, para ganhar a afeição do povo. O ouro dos anões seria suficiente para cobrir as suas despesas por muito tempo. E, quando o reino tivesse recuperado a sua calma, e cada barão, cada escudeiro medisse os benefícios da sua generosidade, então poderia sonhar com a eleição.

Com o bater de um bastão de ferro sobre as lajes do coro, um eclesiástico arrancou-o dos seus pensamentos. Toda a gente se levantava para o Pater Noster. Gorlois reprimiu um sorriso e, com a cabeça baixa, contentou-se em balbuciar o ritmo, ignorando todas as palavras da oração. Só a rainha, talvez, de toda aquela multidão com tão poucos fiéis, rezava realmente. Vacilando como a chama de uma vela e em prantos, ela entregava a sua alma a Deus, transtornada com a reação de Illtud. Ela tinha procurado em vão os seus olhos desde o início da liturgia. Estaria ele ali, ainda, para assistir àquele casamento repugnante para o qual tinha apelado aos seus votos? O sorriso do bispo, mais do que o olhar fulminante de cólera do abade, tinha feito germinar nela o horror da dúvida. Agora, naquela igreja cheia como um estábulo, e tão longe de Deus, diante deste simulacro de missa, ela compreendia que Illtud, como ela, tinha sido usado e que Gorlois jamais seria aquele rei cristão que ela tanto esperava. No máximo tinha-se contentado com uma humildade de fachada e alguns dias de catecismo, o tempo de organizar os esponsais e de reunir os grandes barões. Ela teria querido arrancar aquele véu que os aproximava tão intimamente aos olhos do Senhor; arrancá-lo e ficar sozinha, mergulhada em orações para o resto da sua vida. Mas havia sempre aquela dúvida, a atitude impassível do seu novo marido, as mãos postas e o olhar tranquilo, rezando a seu lado.

Bedwin afastou-se do altar e aproximou-se com a compunção de um estandarte esculpido onde dominava uma bíblia iluminada, coberta de ouro fino, um verdadeiro tesouro que o abade levava consigo para todo o lado. Ele abriu os braços para restabelecer a calma e dirigiu-se à assistência com uma voz admiravelmente forte, que ressoou de um lado ao outro da galeria.

— Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança, e que ele domine os peixes do mar, os pássaros do céu e todas as espécies!”

Ele interrompeu-se, observando o efeito. Tinha falado em linguagem vulgar, para que todos o compreendessem e, mesmo sendo ela redigida em latim, ele tomava o tempo, entre duas frases, de acariciar sua preciosa bíblia com o olhar, a fim de que ninguém duvidasse que se tratava da palavra do Deus.

— “Deus criou o homem à sua imagem”, continuou ele. “À imagem de Deus Ele os criou, homem e mulher. Deus abençoou-os e Deus disse-lhes: Frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra e dominai-a; dominai os peixes do mar, os pássaros do céu e todos os seres vivos sobre a terra”... Todos os seres vivos sobre a terra, compreendem? Pois está escrito: “Deus enviará as suas forças e exterminá-los-á da face da terra, e o deus deles não os salvará. Mas nós, seus servos, nós abatê-los-emos como a um só homem, e eles não resistirão ao vigor dos nossos cavalos. Nós queimá-los-emos em suas casas; as suas montanhas embriagar-se-ão com o seu sangue, as suas planícies ficarão cobertas com os seus mortos, e o seu caminhar não se manterá diante de nós, pois eles perecerão certamente.”

Ao lado da rainha, Gorlois enchia o peito, com os olhos brilhantes de excitação. Ele não era o único. Ygraine percebeu o bater das armaduras, o roçar das cotas de malha, metal contra metal, cavaleiros da sua escolta, os murmúrios de orgulho dos barões.

— É uma guerra santa que levais a cabo, meus irmãos humanos. Uma guerra justa para que a palavra do Senhor seja finalmente aplicada sobre esta terra. Uma terra que é a vossa e que nenhuma espécie poderá jamais disputar convosco, pelos séculos dos séculos, pois vós todos, cada um de vós e só vós, fostes criados à imagem de Deus!

Bedwin tinha levantado o tom. Fez uma pausa para colocar uma expressão patética, e designou com um movimento do braço o casal ajoelhado no coro.

— O duque Gorlois conduziu-vos à vitória contra o povo de infiéis, adoradores pagãos de uma espada de ouro que nada pôde para impedir a sua inelutável derrota. É este homem, hoje, que a nossa rainha Ygraine escolheu como esposo perante Deus. Rezemos para que em conjunto eles continuem a obra do santo rei Pellehun e que o reino de Nosso Senhor se estenda sobre a terra! Meus irmãos, foi dito ”enchei a terra e dominai-a”. Obedecei, pois é a palavra de Deus!

Ygraine deixou de escutar. A homilia, depois de tudo, não fazia mais que confirmar o sentido de toda aquela jornada: o de uma aliança de interesses entre o senescal e o bispo, um apoio mútuo com vista a aumentarem os seus respectivos poderes. Unir os homens sob um só Deus e um só rei era uma causa nobre, nobre e santa, se fosse sincera...

A jovem rainha sobressaltou-se ao sentir pesar sobre si o olhar de Bedwin. Gorlois também a olhava, tão próximo debaixo deste véu, com aquela cara dura, cortada por aquela cicatriz horrorosa. Ele sorria-lhe, mas ela só conseguiu ficar confusa e votou a sua atenção ao sermão do bispo.

— ...Crescei e multiplicai-vos — disse Bedwin (e era diretamente a ela que ele se dirigia). — Que os vossos filhos cubram a terra como uma multidão, pois é essa a sagrada missão da mulher. “Eu multiplicarei a tua dor e a tua gravidez”, dizem as Escrituras. “É na dor que tu farás filhos; para o teu marido se dirigirá o teu desejo, e ele dominará sobre ti.”

Ele interrompeu-se por um breve instante, como se esperasse uma resposta. Mas que resposta poderia haver?

 

                                 O TORNEIO

O dia amanhecia, desagradável, sob um céu encoberto onde pesadas nuvens negras ameaçavam rebentar. Iria haver tempestade, sem dúvida, antes do fim da manhã. Brutais rajadas de vento abanavam por vezes as tapeçarias de seda e veludo com que tinham sido cobertas as tribunas em volta da liça, as bandeiras e os estandartes batiam ao vento, e os cavalos campeavam, nervosos com as súbitas correntes de ar empoeiradas, transportando palhinhas e nuvens de minúsculos mosquitos. Fazia quase frio nessa manhã, o que era bom. Mais de um barão, mais de uma gentil dama, acordaram com a boca pastosa e a cabeça a doer, depois das libações do banquete real. Aquele tinha durado todo o dia, desde a saída da missa até uma hora avançada da noite, enquanto que alguns convivas estavam já caídos, de cara na mesa, e roncavam o seu vinho debaixo dos risos dos vizinhos. Um outro dia de calor ter-lhes-ia sido provavelmente fatal.

Léo de Grand de Carmelide não tinha ficado muito tempo. Tinha-se retirado logo que possível, antes da noite cair. Desdenhando o quarto que tinha sido arranjado para ele, tinha passado a noite na tenda cônica, instalada na proximidade da liça e muito bem situada, sob um pequeno bosque e não longe de um riacho onde os cavalos podiam beber. Tinha sido um dos primeiros a acordar, com o coração apesar de tudo nauseado e de mau humor, enquanto os seus valetes e homens de armas ainda dormiam, enrolados nos casacos, mesmo pelo chão. Tronco nu, somente coberto pelas bragas com que tinha ficado para dormir, ele estremeceu com o ar húmido deste dia triste e passou um olhar turvo sobre o imenso acampamento instalado ao pé das muralhas de Loth.

A planície estava constelada de tendas de todas as formas e feitios, desde as torres de tela com franjas de ouro dos grandes senhores, até aos simples oleados que cobriam os fidalgos menos afortunados, dormindo muitas vezes encostados aos seus escudeiros para se manterem quentes, com as rédeas dos seus cavalos carregadores [13], atadas ao tornozelo. Levantou os olhos para a flâmula de três pontas fixada no alto do mastro central da sua tenda cónica, bamboleando ao vento como a vela de um navio, e fez um sorriso breve. Dir-se-ia que o leão do qual ele era portador do nome combatia já, boca e garras, no rugir do vento.

Uma convulsão súbita trouxe-lhe um gosto amargo à boca, e ele cuspiu a sua bílis, atingindo sem querer um dos seus valetes, que abriu um olho sobressaltado e limpou a cara.

— Em pé — disse Carmelide, com um grunhido que poderia passar por uma espécie de pedido de desculpas. — Vamos comer!

Ele afastou-se, com as pernas vacilantes, em direção ao riacho bem próximo, coçando furiosamente o pescoço e as costas.

— ...E acorda os outros!

Era inútil. Os panos abertos da sua tenda batiam como um chicote sob o golpe de uma brusca rajada de vento, acordando toda a sua tropa em sobressalto. Por todo o lado, aliás, os homens saíam do sono praguejando e deitando ao céu carregado olhares turvos.

O duque Léo de Grand caminhou através do campo até ao riacho, com um sorriso trocista nos lábios, saudando de vez em quando um conhecido, com o ar indulgente de quem já tinha recuperado o seu bom humor para aquele que tinha acabado de sair do sono. Para bom tempo, a água fresca teria sido uma delícia, mas ela pareceu-lhe demasiado gelada para tomar banho, apesar das pulgas. Contentou-se em se aspergir, sacudindo-se como um cão, e passou a mão sobre o rosto, com uma barba de cinco dias, depois desatou as suas bragas e mijou para dentro do riacho, rindo para dentro dos protestos mudos dos infelizes situados a jusante, não tão bem nascidos ou muito cobardes para lhe fazerem um reparo.

Subindo para a sua tenda, de novo, ele franziu a testa. O ouro dos anões tinha permitido ao senescal-duque fazer as coisas à grande. Nada menos que doze serviços se tinham sucedido, intervalados com divertimentos, de desafios de lanças para o torneio ou de sermões de bêbados. Como nenhuma das salas era suficientemente grande para acolher a multidão de convidados, tinham posto as mesas [14] sobre o átrio do castelo real, debaixo de grandes dosséis que protegiam os convidados do sol. Colocado na mesa de honra, Carmelide tinha podido por fim aproximar-se da irmã e do seu infelizmente cunhado, mas foi tudo o que conseguiu dentro da sua amabilidade. E, como estava sentado à direita da rainha, face ao resto dos convidados, todos tinham podido ver na expressão da sua cara a alegria que ele sentia com o desenrolar desse dia.

Não foi este o único incidente, a única nota falsa da festa. Desde a apresentação do sal, costume com o qual começavam sempre os banquetes, a ordem tinha tido que ser restaurada pela força numa mesa distante, onde um barão com as armas do duque Melodias de Lyonesse se tinha engalfinhado com um desconhecido vestido de maneira exagerada, transbordando de pedrarias e veludos. Tiradas informações, o homem era um antigo intendente, dado como culpado de fraude e crime, procurado no ducado para aí ser enforcado. O incidente tinha provocado mais risos do que murmúrios, contrariamente à presença repugnante e incongruente de Mahaut, a mais célebre receptora do país dos gnomos. Gorda e branca, vestida de sedas e carregada de jóias, ela e os seus queridos tinham feito um vazio em torno deles. Ninguém se queria sentar à sua mesa, e aqueles que ainda a não conheciam deitavam olhares de esguelha, com o ouvido atento às histórias horríveis que se contavam a seu respeito. Não passava em aparência de uma velha louca, não muito diferente daqueles comerciantes demasiado gordos e demasiado ricos que se pavoneavam de um lado para o outro do banquete, mas ela não fazia segredo de pertencer à Guilda, e o fato de estar ali, convidada para a festa, em vez de estar no fundo de um calabouço, tornava-se pelo menos um fato surpreendente.

Enquanto os criados vestidos com as cores do casal real apresentavam, em forma de trincho [15], pão cujo miolo estava colorido de amarelo, vermelho ou de verde, com açafrão, pétalas de rosa ou salsa, o bispo Bedwin tinha tentado dizer uma Benedicite, mas a sua oração de ação de graças perdeu-se rapidamente no barulho das conversas, ou porque os comensais não tinham a menor idéia daquilo que ele ia fazer, ou porque preferiam comentar os acontecimentos da manhã. Ou ainda porque tinham muita sede, e os cântaros cheios de um vinho clarete, fresco como uma nascente, estavam colocados em quantidade sobre cada mesa. Depois o estrondo fustigante das trombetas e dos alaúdes dos trovadores, tinha-se sobreposto a tudo, rancores e maledicências, risos e mexericos.

Léo de Grand, como todos os outros, tinha-se deixado embriagar pelo vinho de Grenache, os malabaristas e dançarinas pavoneando-se ou mostrando o físico, os domadores de ursos e os domadores de cães, os criados hábeis com os coletes desapertados, ofuscado todavia com a abundância dos manjares: lombo de veado com pimenta, galinha com mel e mostarda, manjar branco, cebolinhas, pavões assados e cozidos em massas, favas, frituras e bolos, e tudo regado com cerveja, hidromel e vinho açucarado com canela. E ao ver o comportamento dos convidados, pensou num texto antigo que descrevia bem o ambiente do banquete: ”a gula traz vergonha a uma mulher, porque ela se torna lasciva, glutona e ladra... Fala sem juízo de muitas maneiras, diz palavras frívolas, gabarolas, vaidosas, elogios, perjúrios, calúnias, revoltas, blasfémias...” Como tantos outros, ele tinha-se levantado para vomitar depois de alguns pratos, mas ao contrário deles não tinha voltado a sentar-se à mesa.

Hoje, ele só sentia repugnância.

Fechando os olhos, reviu as reverências e as conversas servis dos nobres que vinham adular o novo regente do reino mesmo no meio da refeição, e aquele ar de satisfação imbecil que Gorlois aferrolhava ao conceder-lhes a sua esmola. A astúcia tinha-se empolado ao longo de todo o festim, à medida que o rumor da sua generosidade se espalhava entre os convidados. E bem depressa, sem que uma palavra fosse pronunciada, sem que fossem trocados mais do que olhares de desprezo ou de vergonha, dois clãs tinham-se formado entre os convivas, entre os que se tinham curvado e aqueles que se tinham mantido no seu lugar. Talvez alguns, entre estes últimos, tivessem notado a sua saída... Em volta da sua tenda, o exército de Carmelide tinha retomado a aparência humana, revigorado pela fermentada de trigo e especiarias que aquecia num caldeirão, soltando um agradável cheiro a mel. Ele notou também, (e como poderia não ter notado?) um grupo de cavaleiros trazendo o libré branco com a cruz vermelha, que pareciam estar à espera dele. Um deles, um grande magricelas, com um chapéu cuja cauda pontiaguda lhe caía sobre os ombros, desceu do cavalo quando ele se aproximou.

— Ah, senhor! Eu vos desejo um bom dia!

— Que é que tu queres? — resmungou Carmelide.

Se o homem ficou surpreendido com o tom desagradável do duque, não deixou transparecer nada.

— Meu senhor, o senhor Gorlois nomeou-me rei de armas para o torneio desta tarde. Ele propõe-vos serdes o atacante, constituindo ele próprio a defesa.

Léo de Grand olhou o cavaleiro de cima a baixo. Um sorriso apareceu pouco a pouco na sua cara de urso, iluminando a sua carantonha e as suas faces azuladas da barba. Espantosamente, era uma verdadeira honra o que lhe fazia o seu cunhado mesmo se, em boa justiça, poucos fossem os que poderiam disputar com ele. Num torneio, duas partes enfrentavam-se e, se incumbia ao anfitrião ser o defensor, era sempre ao mais ilustre dos combatentes que cabia a honra de constituir a parte adversária, chamada atacante. Assim que, por uma vez, Gorlois reconhecia-lhe a sua posição...

— Muito bem — disse batendo no ombro do rei de armas. — Diz-lhe que aceito com prazer, e que os leões de Carmelide vão cumprir o seu dever de o fazer engolir a sua cruz!

Por trás dele, a sua gente rebentou em gargalhadas estrondosas, e Léo de Grand, quase admirado deste sucesso, juntou o seu riso à enorme hilaridade geral.

O homem do chapéu, contentou-se em fazer um sorriso bem educado, e depois fez sinal a um dos seus tabeliães para que se aproximasse.

— O vosso elmo, senhor, para que seja pendurado na liça.

Carmelide, com os olhos brilhantes de tanto rir, virou-se de novo para os seus homens, leu a bravura nos seus olhos (o isco do lucro, também, pois a maioria dos resgates obtidos depois do torneio tornava-se uma prioridade) e fez um sinal ao sargento, que sumiu na tenda. Voltou a sair quase em seguida, trazendo com respeito um elmo pintado de negro, semelhante a uma torre de aço fechada por uma parte inferior simples, e no alto com uma cimeira de pasta e pele amarela representando uma cabeça de leão a rugir. O rei de armas fez-lhe os cumprimentos do costume sobre a beleza e nobreza do emblema, entregou o elmo ao seu tabelião e montou o cavalo e esporeou-o, depois de uma última saudação.

Para ele, o dia ia ser longo. Toda a manhã os escribas receberiam inscrições, tomando cuidado para que os dois campos fossem mais ou menos equilibrados. O torneio estava aberto para todos, desde que fossem cavaleiros, sem distinções de ordem nobiliárquica nem, em outros tempos, de raças, mesmo que só raramente se vissem elfos alinharem neste gênero de lutas. Os anões, em contrapartida, eram adversários temíveis, gostando acima de tudo destes combates compactos, confusos, onde os seus machados, mesmo rombos, causavam terríveis danos. Mas tudo isto tinha acabado. Os homens, doravante, não combateriam senão entre eles... Que importa. Na excitação do momento, esta idéia não vinha à cabeça da maioria dos participantes no torneio.

Por agora, empurravam-se, cavaleiros ou valetes de armas, para pendurarem os seus escudos debaixo do elmo do atacante ou do defensor, colocados um e outro no cimo de duas estacas ao lado do estrado, e escolherem assim o seu campo. O dia ainda ia curto, mas havia já uma multidão, entre camponeses com fatos domingueiros aglutinados ao longo da liça, burgueses instalados confortavelmente com tapeçarias e cadeiras, e todo um bando de vendedores de churrasco, vendedores de água, falsos ciganos e verdadeiras putas, trabalhando dentro de tendas de tela transparente para melhor atraírem os clientes. Os que já tinham fixado os seus brasões de armas sobre a entrada do recinto do torneio, ficavam muitas vezes por ali, a fim de não perderem a repartição dos campos. Numerosos jovens, sonhando em se tornarem conhecidos, aproveitavam a oportunidade única de provocarem qualquer participante de alta reputação, se o não tivessem já feito durante a festa da véspera. Bastava dar um murro no escudo do adversário para lhe lançar um desafio, que os tabeliães escreviam cuidadosamente nas suas tábuas. No entusiasmo do momento, noviços mal saídos da adolescência perdendo muitas vezes o bom senso, para brilharem aos olhos das suas amadas ou para impressionarem o pai, acabariam o dia com os ossos partidos, banhando as suas armas com o próprio sangue, mortos talvez sob os golpes de homens de guerra endurecidos, que eles tinham estupidamente provocado.

Toda esta agitação se apossava do acampamento de tela com a força de uma maré de equinócio, e ninguém parecia poder escapar dela. Léo de Grand andava às voltas na sua tenda como um animal enjaulado. A sua dignidade de atacante obrigava-o a aferrolhar uma fleuma e uma serenidade que ele estava bem longe de sentir. Se só dependesse dele, teria colocado a sua armadura imediatamente, para montar a cavalo e percorrer assim o campo, seguido de um porta estandartes com as suas cores, a fim de reunir do seu lado os mais nobres combatentes. Mas também para ele o dia seria longo...

A tempestade rebentou pouco antes da sexta [16], inundando as fogueiras onde bois inteiros tinham sido postos a assar. O trovão e os relâmpagos perturbavam os cavalos. Por todo o lado, os palafreneiros agarravam-se aos seus freios, evitando os coices; por todo o lado, os homens armados corriam para se abrigarem, protegendo as suas frágeis cimeiras de cartão ou de pasta com que tinham ornamentado os seus elmos. Havia-as de toda a espécie, assustadoras ou grotescas, representando pontas de armas, águias, cabeças de peixe, torres ou bustos de mulher, sóis e pares de nádegas, sendo o mais importante fazer-se notar. Daí a pouco, desde os primeiros golpes de espada, estes frágeis edifícios voariam em pedaços, mas teria sido impensável aparecer na apresentação com uma cimeira desfeita, pingando de pintura. Debaixo das suas tendas encharcadas, a maioria deles teve que se contentar com carne crua ou caldos engolidos à pressa, o que não ajudou nada o seus humores belicosos.

Depois um raio de sol furou as nuvens negras, e a tempestade parou tão rapidamente quanto tinha começado. O acampamento retomou vida, entre risos e gritos, enquanto os cavalos campeavam resplandecentes de vapor, e as armaduras ensopadas deitavam um brilho que cegava.

As horas que precediam a entrada na liça eram de intimidação e rabugice. De medo, também, dissimulado por debaixo das carapaças de ferro. Por todo o lado, valetes de armas tinham que separar os espíritos mais quentes, prontos a desembainharem as suas espadas antes mesmo do começo do torneio. Pois havia desafios insultuosos, recusas desdenhosas quando um grande senhor era interpelado por um bronco qualquer, e por vezes era necessário chegarem à ofensa para que o combate fosse marcado. Muitos dos participantes no torneio estavam já armados, esquecendo a espera bem acompanhados de cântaros de vinhos, enquanto o estrado real se enchia da sua nobre assistência, grandes senhores e belas damas, e o povinho se comprimia de novo em volta da liça. Alguns retardatários ralhavam com os seus escudeiros que se atarefavam nos últimos preparativos: fixar com cuidado cada peça da armadura, agarrar primeiro as bragas e as ceroilas às pernas, depois colocar a camisa e o colete de couro de proteção do corpo antes da cota de malha, as gravas, joelheiras e sapatos em aço, envolvendo as pernas e pés. Os mais ricos equipavam-se ainda com uma couraça de ferro e espaldeiras, os outros contentavam-se com um capuz em malha de aço que lhes cobria pescoço e ombros, e todos terminavam com uma cota de tecido que descia até meio das coxas, marcada com as suas cores. Só então deixavam a sua tenda, subindo ou fazendo-se içar sobre a sela, seguidos pelas suas gentes de armas, cobertos até ao pescoço, trotando em direção ao recinto fechado.

A chuva tinha ensopado tudo, e o movimento da multidão não tinha ajudado em nada. Era na lama que teriam lugar os combates, com risco de que voltasse a chover.

Dominando sobre uma meda de palha coberta de tecido, debaixo de uma tenda suficientemente grande para abrigar todos os cavaleiros da sua parte, e onde, em menos de uma hora, estariam estendidos os corpos mortos dos de má sorte ou pouco hábeis, Léo de Grand espreitava a chegada de Gorlois e da rainha. Quase todos os seus participantes no torneio tinham vindo abrigar-se aqui, para não correrem o risco de se sujarem de lama antes da apresentação, reinando um burburinho ensurdecedor. Um ferreiro dispunha os seus utensílios, pinças, tenazes e martelo, tantas vezes indispensáveis para libertar um participante das peças da sua armadura torcidas pelos golpes. Curandeiros e médicos preparavam os seus bálsamos e curativos, sem que ninguém lhes prestasse atenção. Ouvia-se, por vezes, o riso estridente de uma mulher, atando ao braço do seu herói o véu a que chamavam lenço de honra, e arautos em gibão meio branco meio vermelho, o pergaminho debaixo do braço e um chapéu de plumas na cabeça, vinham vender aos participantes do torneio, por algumas moedas, o anúncio lisonjeiro do que fariam ao entrarem na liça.

Toda esta febre exasperante, suando a bravata, punha-o nervoso, mas o duque devia manter-se ali, impassível, para acolher as homenagens dos seus partidários e mandar-lhes servir de beber. E aliás, tudo não passava de uma vã agitação. Como ele tinha esperado, Bélinant de Sorgalles tinha optado pelo campo do leão. Coberto de ferro, segurando ele próprio debaixo do braço o elmo com cimeira de plumas, falava carinhosamente com a sua mulher Helled, afastado da multidão. Lyonesse e os seus barões também se tinham juntado a ele e, sem que o duque tivesse trocado com ele uma única palavra sobre o que se tinha passado na véspera, Carmelide divertia-se a pensar que o duque de Melodias não tinha gostado da presença do seu antigo intendente na festa real, e que a escolha da sua parte não tinha sido inocente. Havia muitos outros, condes e barões, cuja vista o enchia de orgulho, e depois toda uma soldadesca de nobres desconhecidos, por vezes tão jovens que as suas cotas de malha tocavam o chão, vindos a fazer os seus primeiros combates e que se bateriam a pé, por trás dos cavaleiros. Ao todo, perto de quarenta participantes — sem falar dos soldados deles —, que o rei de armas dividiria em oito proclamações, carga após carga, ao longo de todo o dia.

Justamente, eis que ele aparecia, os sapatos sujos de lama e a cauda do seu chapéu flutuando por trás dele como uma crina. Léo de Grand desatou a rir ao vê-lo quase estatelar-se sobre a erva lamacenta, mas no mesmo instante um estrondear de trompas rebentou dos lados da tribuna real.

— Meu senhor — disse o homem retomando a respiração —, a rainha Ygraine e o regente fazem a sua entrada na liça e pedem-vos para irdes ter com eles para a apresentação.

— Já tinha percebido — resmungou Léo de Grand. E, voltando-se para o duque Bélinant: — Sorgalles! Fica tu no comando!

Quando se juntou a eles, Gorlois e a rainha tinham-se instalado com o seu séquito debaixo de um dossel púrpura, brilhante de umidade. Iluminado pelos raios brilhantes daquele sol reencontrado, o espectáculo dos véus e do ouro, dos tecidos preciosos das peles e das jóias, brilhava como um arco-íris, fascinando os pategos e os burgueses aglomerados ao longo do recinto fechado, e que se esganiçavam, bêbados de júbilo.

— Longa vida! Longa vida à rainha Ygraine!

— Glória ao senhor Gorlois!

— Viva! Viva!

Carmelide abriu passagem na primeira fila e veio sentar-se ao lado da irmã, sobre o cadeirão que lhe estava reservado.

— Um bom dia, minha irmã.

Ela sorriu-lhe com uma cara tão bonita que ele não resistiu em beijá-la nas faces, como quando eram crianças, no castelo de Carohaise.

— Muito bem, meu irmão, vejo que estais de bom humor! — disse Gorlois debruçando-se sobre ele e pousando de passagem a sua mão sobre as mãos brancas de Ygraine.

Léo de Grand engoliu o golpe, não gostando de ser assim chamado por esse velho zarolho inchado de orgulho. Esboçou um vago esgar, e depois realizou que o regente estava vestido de veludo, sem cota de malha nem ferro sobre o corpo, a testa cingida por uma faixa de ouro adamascada com prata, que fazia par com a coroa da rainha.

— Não participais no torneio? — perguntou.

Gorlois tocou instintivamente nas costelas, ainda doridas da coça que tinha levado nos calabouços. Mas recompôs-se imediatamente e deu uma gargalhada, pedindo a Ygraine para ser sua testemunha.

— Mais tarde, talvez... Mas por agora, já tive a minha dose de torneios e de batalhas... Deixai-me aproveitar o momento e dai-nos um bom espectáculo. Estou impaciente por ver como se comporta o vosso leão em combate. Melhor do que agora, espero. Olhai, dir-se-ia que chove!

E, dizendo isto, apontou para o elmo de Carmelide ainda pendurado sobre a estaca, e cujas belas cores escorriam lastimosamente. O duque procurou qualquer traço mordaz para resposta, mas a interrupção do rei de armas e dos seus assessores pôs fim aos seus esforços.

— Minha rainha — disse o rei de armas, baixando-se para a saudar —, podemos começar?

Ygraine inclinou a cabeça.

— Senhor regente, senhor duque, cabe-vos aos dois designar a rainha de perdão de armas.

— Essa honra é para vós, meu irmão! — disse Gorlois com um sorriso condescendente.

O primeiro impulso de Carmelide, na ausência da sua mulher, foi o de escolher Ygraine, mas teve uma sensação furtiva de que essa honra recairia sobre Gorlois e não deixaria de aumentar um pouco mais a sua autoridade. Agradeceu-lhe com um sinal de cabeça e depois levantou-se, percorrendo com o olhar a assembléia de damas, debaixo do dossel.

— Senhora, vinde ter comigo — disse estendendo a mão à mulher do duque Bélinant. — Escolho-vos para rainha do torneio, Helled de Sorgalles, condessa de Orofoise!

Um olhar de esguelha foi suficiente para Carmelide se convencer que Gorlois tinha percebido a sua intenção. Sentou-se e, como que para a consolar, colocou a mão sobre o braço de Ygraine. Mas ela retirou-lha bruscamente, sem mesmo lhe conceder um olhar. Com o queixo e o pescoço envoltos num véu de musselina azul transparente, a nuca escondida por um véu fixo à sua coroa e que cobria os seus longos cabelos louros, ela pareceu-lhe aborrecida. Ter-se-ia ela sentido assim tão humilhada por não ter sido escolhida? Isso seria uma reação de menina, tímida e pouco segura e não a de uma rainha...

Sons de vozes chamaram-lhe a atenção para o recinto fechado. Como abertura do dia, um touro iria combater um urso. Cornos contra garras, mordeduras, jorros de sangue fresco sobre a palha da liça já enlameada. Foi o touro quem venceu, o urso espalhando as suas vísceras ao morrer. Vaqueiros levaram o vencedor para uma sorte pouco invejável — o martelo de um carniceiro e o espeto —, enquanto os palafreneiros atrelavam mulas para retirarem o animal selvagem. Depois, valetes de armas proclamaram o combate, para grande alegria dos cavaleiros de ambas as partes que se empurraram para a liça a fim de não perderem o espectáculo. Este velho costume adquirido na guerra dos Dez Anos abria o recinto fechado a todos os plebeus: escudeiros, sargentos, peões e mesmo burgueses ou camponeses, desde que fossem homens livres e não escravos. As regras do confronto eram as mesmas do torneio: tudo era permitido menos bater na cara de um homem que tivesse perdido o elmo, ou de se servirem de armas cortantes. Não havia nem campo nem partes. Era cada um por si, o que não impedia alianças improvisadas, ou combinadas anteriormente, com o fim de atingir o adversário e atirá-lo ao chão para obter um resgate. Neste jogo os burgueses eram presas fáceis para os homens de armas treinados e bem protegidos. Em contrapartida, podia acontecer que um aldeão forte se distinguisse com brilho e ganhasse assim lugar ao serviço de um grande senhor.

Léo de Grand divertiu-se alguns instantes com os murros furiosos destes larápios, e os esforços do rei de armas para fazer respeitar um pouco as regras. Um sargento gordo como um boi, puxava pelos pés um burguês que tinha espancado desde o primeiro assalto, até à barreira onde a sua mãe, alarmada, agitava já a sua bolsa. Dois soldados com armas de estoque disputavam a posse de um corpo inanimado, aos pés deles, e, pelos golpes sangrentos que apareciam sob as suas cotas de malha, era difícil de acreditar que as suas armas fossem corteses [17]. Os homens batiam-se ao murro, rolavam pelo chão na lama, como animais, numa confusão total onde era bem difícil discernir alguma habilidade guerreira. Com a continuação, o espectáculo tornou-se enfadonho pela falta de jeito e brutalidade, e como sempre, foi preciso interrompê-lo, a pedido de Helled, a rainha de perdão das armas. O duque desculpou-se junto dela e deixou o estrado sem esperar os regateios mesquinhos e as querelas dos sobreviventes. Reuniu-se às suas tropas e, dando o exemplo, içou-se sobre a sela. O seu garanhão, tal como ele, estava com armadura, coberto por um longo avental de couro e a testa protegida por uma placa de metal. Era proibido, por princípio bater nos cavalos, mas tantas coisas proibidas aconteciam, num torneio...

Enquanto um palafreneiro segurava as rédeas do seu grande cavalo de guerra, Léo de Grand agarrou o escudo que lhe estendia o seu escudeiro, depois escolheu uma maça como armamento, mais manejável e eficaz do que uma lança ou uma espada cortês de lâminas rombas.

O rei de armas e os seus assessores, trazendo o seu elmo numa almofada com um respeito que lhe pareceu exagerado, examinaram rapidamente a panóplia de guerra segura por cada participante: armas de mão, de choque ou cabo, machados, espadas, maças, martelos... Só as armas de estoque ou cortantes eram interditas, mas os participantes pareciam ter todas as condições para despedaçarem os seus adversários à vontade. Os outros, em consequência, teriam que se proteger... A inspeção foi rápida, superficial, mesmo. Tornando a pentear o seu longo chapéu ainda brilhante da chuva, o juiz do torneio tinha um ar apressado em acabar. Balbuciou uma vaga saudação para desejar boa sorte ao partido do leão e depois, fazendo já meia volta, ordenou ao valete carregado com o elmo que o pousasse ao pé do equipamento do duque.

— Um momento!

Léo de Grand parou o homem com um gesto e agarrou seu elmo, sob o olhar estranhamente inquieto do rei de armas. Medo em vão. O duque não prestou atenção ao cilindro de aço, e aliás, o trabalho tinha sido bem feito, invisível a olho nu. Com efeito, Carmelide estava unicamente preocupado com o aspecto da sua cimeira, de tal forma amolecida com a chuva que não resistiria provavelmente ao primeiro ataque. A desavença com Gorlois não parava de lhe dar voltas à cabeça e enchia-o de ódio. O leão talvez chorasse, mas nada tinha perdido do seu ar mordente, e pobre daquele que caísse nas suas garras!

 

— Por favor, façam-no parar!

Respirando com dificuldade, Léo de Grand escorria suor. A cada inspiração um pouco mais forte, as suas costelas maltratadas pareciam rasgar-lhe os pulmões. Tinha-se recusado a despir-se para deixar que o examinassem, e não seriam certamente os gritos agudos do infeliz que se torcia nas suas bancadas como um peixe fora de água que o fariam mudar de idéias. O homem tinha o queixo partido e estava preso dentro do elmo deformado pelos golpes e que os ferreiros tentavam retirar-lhe com tenazes. Houve um choque surdo, e os gritos do supliciado transformaram-se em gemidos e choro. O elmo tinha cedido... O duque deu um suspiro que lhe arrancou uma careta de dor e verteu diretamente sobre a cabeça um cântaro de água. Carmelide tinha combatido, ele próprio, três dos seis assaltos já decorridos, incapaz de dizer se a sua partida dominava o torneio, demasiado cansado para se preocupar com isso. Tinham feito numerosos prisioneiros, entre os quais Escan de Cambenet, que pagaria um resgate de príncipe, mas tinham sofrido quatro mortos, sem contar com o moribundo, sobre o banco, e um número incalculável de feridos, braços e mãos partidas, ventres perfurados, malhas vermelhas de sangue. No final dos assaltos, ele tinha a impressão que o rei de armas e o marechal de liça demoravam um pouco mais a pronunciarem o fim do combate. Apesar das trombetas e dos vivas, apesar dos gritos das damas, dos véus agitados e dos gestos de vitória, o regresso à tenda era cada vez menos alegre.

Ele fechou os olhos, estendeu as pernas e entrou imediatamente num sono de bêbado, sem mesmo perceber que adormecia. No instante seguinte, parecia-lhe a ele, um escudeiro acordava-o sacudindo-lhe o corpo.

— Que é que se passa? — barafustou ele piscando os olhos.

— Desculpai, senhor... Tive medo. Pensei...

— Ah, deixa-me em paz!

Carmelide apoiou-se no braço do seu cadeirão e levantou-se pesadamente, cada uma das articulações doridas, com a sensação de que não havia uma polegada do seu corpo que não estivesse moída de pancada. Fez uma pausa percebendo que os barões e os cavaleiros do seu partido, reagrupados em volta dele, o olhavam com um ar inquieto.

— Ora bem, eis umas tristes figuras! — disse com um grande sorriso. — Julgavam-me desmaiado como uma donzela? Desandem!

Alguns risos sucederam-se à sua triste brincadeira, depois o silêncio recaiu, trazendo ao longe o eco de uma música alegre, os gritos de um ferido e os clamores do rei de armas proclamando o campeão do sétimo assalto, para que este recebesse das mãos da rainha uma coroa entrançada, como prémio da sua valentia. Já o fim do sétimo... Tinha dormido todo esse tempo? Entre o grupo de cavaleiros, avistou Bélinant de Sorgalles, com o capuz de ferro deitado para trás das costas, a sua testa desguarnecida marcada com uma grande nódoa negra, de onde pingavam gotas de sangue. Carmelide perguntou-se se teria um ar tão estafado quanto ele, com a sua cota de malha desfeita, a pintura escura da sua couraça lascada em diversos sítios, por todo o lado onde os golpes o tinham atingido, a sua cara enegrecida de poeira colada pelo suor.

— Como é que estamos, Bélinant?

— Segundo o nosso tabelião, estamos a vencer — suspirou o duque de Sorgalles. — Mas falta o combate de fecho, e diz-se que o senhor Gorlois tem intenção de participar.

— Tanto melhor!

— Sim...

Sorgalles pediu, com um gesto, aos pelejadores reunidos em volta deles que se dispersassem, e serviu-se de beber enquanto esperava que eles se afastassem.

— Quem é que vais escolher para o último assalto?

— Não sei... Blamore, sem dúvida. Já trouxe duas coroas, vai querer a terceira.

Bélinant abanou a cabeça, com um riso sem alegria.

— É verdade, tu dormias — disse ele. — Foi Blamore quem comandou o sétimo assalto. Entrou à carga antes de todos e ficou só entre as fileiras inimigas. Mataram-lhe o cavalo a golpes de maça, uma carnificina... Quanto a ele...

Interrompeu-se e estendeu o dedo em direção à tenda de tela.

— É ele quem tu ouves berrar... O seu cavalo caiu-lhe em cima.

— Então, escolho Meylir de Tribuit, Morvid, Barat d’Apres... Aquele jovem, ali, com uma cota amarela, vi-o combater, ele é bom. Chama também Melodias ou alguém de Lyonesse, o conde Robert... E tu, se ainda te sentes com coragem.

Béliant levantou a cabeça e tocou na fronte cheia de sangue.

— Vou precisar de um elmo novo...

Léo de Grand viu-o afastar-se, coxeando ligeiramente mas com o corpo direito. Sem dúvida ele já estava para além dos seus limites, e no entanto não o escolher teria sido uma afronta.

— Outra vez a maça, senhor? — perguntou o seu escudeiro.

— Não... Demasiado pesada. Dá-me uma espada e procura-me um escudo, o meu está mais amolgado que a cabeça de um anão...

Como as trombetas anunciavam o último assalto, eles montaram na sela e cavalgaram a passo até à liça, os oito, num grupo compacto seguido pela procissão dos seus homens de armas e dos seus partidários, estropiados ou válidos. Os gritos da multidão redobraram quando eles entraram no recinto fechado, desfilando diante da rainha do torneio, um atrás do outro, a viseira dos elmos levantada, enquanto os arautos se esganiçavam louvando os seus feitos de armas, mais ou menos eloquentes segundo a generosidade dos participantes à sua atenção.

— Glória ao senhor Duque Léo de Grand de Carmelide, brasão em prata com leão servil lampassado em preto, senhor das liças, grande entre os grandes!

— Honra ao senhor Geoffroy, filho de Erbin, cavaleiro, brasão azul com ameias de ouro e dragão vermelho, terror dos seus inimigos!

A duquesa Helled estremeceu ao ver o seu marido avançar diante do estrado. Trocaram um longo olhar silencioso que não escapou a ninguém, e depois ele esporeou o seu cavalo e veio alinhar ao lado dos seus pares, no recinto fechado. O rei de armas avançou entre as fileiras imóveis dos cavaleiros e levantou as mãos para dar um ar de calma.

— Escutai, escutai! — gritou ele forçando a voz. — Rainha Helled, minha dama Ygraine, gentis senhoras e nobres senhores, burgueses de Loth e dos arredores, escutai! Honra aos bravos cavaleiros que combateram neste dia, glória aos nobres campeões que se vão enfrentar agora, para o último combate! Senhores, combatei com cortesia, sob o olhar das damas e segundo as leis da cavalaria!

Retirou-se num silêncio perfeito, unicamente perturbado pelo som das ferraduras dos grandes cavalos cobertos de couro e de pesados tafetás, campeando na terra lamacenta da liça, o ranger das selas e o tinir das malhas. Léo de Grand seguiu-o com os olhos enquanto ele ia reunir-se a um tocador de trompa, perto da entrada para dar o sinal do assalto, e depois dirigiu imediatamente a sua atenção sobre o duque de Gorlois. Era impossível confundi-lo com outro participante da sua partida. Coberto com uma armadura pintada de vermelho, com uma cimeira de plumas de pavão elevando-se num penacho alto por cima do seu elmo, ele mantinha-se no centro da linha segurando uma lança de roquete [18], na sua manopla de ferro.

— Olhem para ele! — gritou começando a rir, bem alto para que todos ouvissem, mesmo para além dos cavaleiros da sua partida. — Parece um caranguejo dentro da carapaça!

Carmelide baixou a sua viseira de ferro, e ficou imediatamente mergulhado no escuro, com a única luz de duas fendas estreitas para os olhos, e uns furinhos para o ar em frente da boca. A sua própria respiração ecoava-lhe nos ouvidos, a sua barba rangia nas malhas do seu gorjal e as gotas de suor que lhe escorriam da testa até à extremidade do nariz, picavam-lhe já nos olhos... Sentiu o zumbido de uma abelha, lá fora, e abanou a cabeça, aterrorizado com a idéia de que ela entrasse dentro do seu elmo. Dominado por este medo, foi surpreendido pelo som da trompa e dos gritos dos cavaleiros à carga em volta dele. Esporeou, e o grande cavalo lançou-se, numa cavalgada. Alguns segundos de galope pesado, a manopla esquerda fechada sobre a rédea, o ombro para a frente, para apresentar o escudo à lança do adversário. Pois Gorlois corria para ele. Que outro? Ele só via a sua lança, o roquete escuro e largo como um punho visando o meio do seu escudo. Léo de Grand serrou os dentes, balançou a sua espada na ponta do braço, lamentando nesse momento não ter conservado a sua maça para lhe esmagar o crânio. Os seus olhos abriram-se de pavor no último momento: Gorlois tinha levantado a lança, quase imperceptivelmente. O roquete bateu no elmo de Carmelide na junção da viseira, com um golpe tão potente que o elmo se partiu em dois, como um fruto maduro, e a lança se partiu num molhe de lascas que lhe furaram a cara como uma bofetada de pregos.

Gorlois atirou ao chão o pau inútil e desembainhou a espada, afastando com um pontapé um sargento de armas da parte contrária que se agarrara a ele. Léo de Grand jazia no chão lamacento da liça, cabeça nua e semi-inconsciente, o capuz da sua cota de malha separado no sítio do embate, a cara coberta de sangue e de lascas. Tentava em vão levantar-se, como uma tartaruga de pernas para o ar. Ao seu lado jazia um pedaço do seu elmo partido. Demasiado bem partido. Aqueles imbecis tinham limado demais, ali onde alguns golpes de lima teriam sido suficientes. Os olhos de Gorlois, debaixo da sua própria viseira, voltaram-se para o rei de armas, que parecia esforçar-se para olhar para outro lado, como ele lhe tinha ordenado.

— A mim, senhor!

Gorlois virou a cabeça e, pelas fendas da viseira, descobriu o duque de Sorgalles, carregando sobre ele com a espada em riste. Ele recebeu o golpe sobre o seu escudo, esporeou o seu garanhão para se afastar, com um molinete, amplo e inútil, que Bélinant recebeu com um simples recuo de peito. Um olhar a Léo de Grand, que se levantava sobre um cotovelo e abanava a cabeça ensanguentada. Esporeou, lançou o seu pesado cavalo direito ao adversário por terra, mas de uma tal forma que parecia que ia ao assalto de um grupo de participantes, que combatiam do outro lado da liça. Ouviu o bater das ferraduras sobre o corpo de Léo de Grand, o seu grito de dor, o choque da sua espada batendo ao acaso. Atrás de si, um grupo de homens de armas, até esse momento afastados, corria já para o duque.

Bélinant, horrorizado, levantou a sua viseira e gritou até lhe incharem as veias do pescoço, atirando ao rei de armas um olhar raivoso.

— Traição! O duque foi golpeado na cabeça sem o seu elmo!

O rei de armas agitou a mão negativamente e virou as costas. Fugazmente, Sorgalles cruzou o olhar com o da mulher, horrorizado, suplicante. Ygraine, ao seu lado, estava em pé, os olhos abertos, e implorava-lhe para que acabasse o combate, mas Helled estava petrificada. Aliás, todo o estrado real estava em pé, como se o juiz da liça fosse o único a não ter visto o golpe proibido praticado pelo regente. Os homens de armas tinham pegado no corpo inanimado de Léo de Grand e puxavam-no em direção à barreira do recinto fechado, como se quisessem pedir resgate em nome do seu senhor. Um deles, um colosso loiro e barbudo, cuja carantonha parecia mais a de um bárbaro que a de um soldado, caminhava atrás, com uma mão por debaixo da sua cota de malha em couro, parecendo dissimular qualquer coisa. No espaço de um segundo, Bélinant viu o brilho de uma faca na sua mão, os olhos do homem preparado para matar, e carregou. Com um golpe de espada assassino, ele arrancou o elmo de um sargento que se tinha entreposto e que caiu de joelhos sem um grito, provavelmente já morto antes de cair ao chão. Os outros largaram o corpo e atiraram-se a ele como loucos, agarrando-o por todos os lados. Ele atacou de novo mas um guarda agarrou-se ao seu braço, atirando-o para o chão. Barulho ensurdecedor. Uma dor fulgurante no ombro. Lama entrando pelas fendas da sua viseira. Depois um choque de uma força irreal, na base do seu pescoço, quando o punhal do bárbaro trespassou os anéis de ferro do seu gorjal e lhe abriu a garganta, esmagando-lhe a maçã de Adão. Bélinant não conseguiu sequer gritar. Com a terra e o sangue enchendo-lhe a boca, o seu corpo convulsionava-se com espasmos e ele afogou-se na lama do recinto fechado, sem ver a carga de Lyonesse e dos seus homens de armas para os libertarem aos dois, sem ouvir os gritos da multidão nem os gritos da mulher, nem mesmo as trompas dando por finalizado o combate.

Ele estava morto no instante em que Gorlois fez saltar o seu cavalo, mesmo em frente do grupo de homens de armas, afastando Lyonesse e os seus homens, e saltando para o chão ao seu lado. O regente arrancou o seu elmo com um ar tão terrível que todos aqueles homens rudes, veteranos de todas as guerras, tiveram o mesmo movimento de recuo. Ele varreu com o olhar as suas fileiras imóveis, cavaleiros, barões, peões, misturados, lado a lado, diante do cadáver de Bélinant e do corpo inanimado de Carmelide. Dois pares do reino banhados no seu sangue... Em volta dele, caras fechadas, suadas. Ódio, raiva, submissão, assombro, incompreensão... E o olhar de conivência, estúpido, de Oswulf, o ladrão de estatura de colosso que ele tinha tirado da prisão.

— Cabeças nuas perante estes mortos!

Oswulf, como os outros, descobriu-se. Então, a maça de armas de Gorlois cortou o ar e esmagou-lhe a fronte, salpicando os vizinhos.

— A justiça foi feita! — murmurou numa voz ofegante.

Quando percorreu de novo com o olhar o círculo dos participantes, todos baixaram os olhos. Menos Lyonesse que cuspiu no chão e saiu da liça.

 

                         AVALON

Embalado pelos solavancos da estrada e o ranger regular da sua liteira, Bedwin dormitava, vencido pela fadiga, a tensão e os excessos destes últimos dias. A morte de Bélinant de Sorgelles tinha sido um pesadelo. A duquesa Helled não tinha parado de gritar a sua dor durante toda a noite; o seu choro dilacerante ainda lhe zumbia na cabeça. Quando ele tentara trazer-lhe o conforto de Deus, a rainha Ygraine tinha-o posto na rua como um cão, e tinha ficado sozinha a velá-la, durante todas essas horas, enquanto os corredores desertos ecoavam os gritos lúgubres de Helled. Era como se um mau sortilégio se tivesse abatido sobre o palácio real. Desde a aurora, parecia que não estava ninguém ali onde, algumas horas mais cedo, o castelo fervilhava de vida. O próprio regente Gorlois continuava fechado, invisível para quem quer que fosse, guardado no seu próprio castelo por um exército de cavaleiros armados. Então, como todos os outros, o bispo tinha partido de cabeça baixa, sozinho, através das ruelas da cidade desolada e envergonhada, e esta solidão, ao privá-lo do mais pequeno reconforto, destilava nele o veneno do remorso.

Sem surpresa, os barões de Cambria e de Cornualha tinham sido os primeiros a levantarem os seus acampamentos, seguidos por Melodias de Lyonesse e da duquesa Helled. Os homens de Carmelide tinham-lhe interditado a entrada na tenda do duque, recusando que ele lhe administrasse os últimos sacramentos, e tinham levantado o acampamento, por seu turno, levando-o sem que ninguém soubesse se ele estava ainda vivo.

Tudo isto tinha um gosto repugnante de desonra e infâmia.

O próprio Bedwin tinha mergulhado em orações até cair num sono de pedra, sem conseguir no entanto libertar o seu coração do peso daquela desonra difusa. Contudo, que tinha ele feito, para além de celebrar aquele casamento prematuro, cedendo à vontade do regente e sem dúvida da rainha? Era preciso um soberano à cabeça do reino. Um braço armado, suficientemente possante para fazer parar os barões... Ygraine não passava de uma criança. Sozinha, ela não teria sabido governá-los!

O pensamento odioso da jovem rainha nos braços daquele homem arrancou-o da sonolência, a menos que tivesse sido a mudança súbita do passo da sua parelha. Meio adormecido, ouviu gritos, choques surdos batendo nas rodas da sua liteira.

— Que é que se passa agora? — gritou a plenos pulmões, levantando-se sobre um cotovelo.

Nenhuma resposta. Simplesmente barulhos de corridas, toda a espécie de murmúrios e, de repente, os cavalos da sua parelha puseram-se a saltar, com risco de os atirarem ao chão. O bispo abriu as cortinas de tafetá grosso que escondiam a sua liteira e arrependeu-se imediatamente deste gesto. Elfos, com as suas caras de anjos das trevas. Por todo o lado, os cadáveres dos homens de armas da sua escolta, perfurados por flechas. O grupo imóvel dos seus clérigos, poupados por enquanto, com a cara branca de terror. Bedwin engoliu em seco, e depois agitou a mão num movimento de impaciência, em direção aos padres.

— Ajudem-me a descer, por amor de Deus!

Apesar da ajuda de um dos seus padres, teve que saltar para chegar ao chão e fez uma careta quando os seus pés nus aterraram com todo o seu peso sobre os calhaus do caminho.

— Vocês não nos podem matar — disse ele a um dos elfos que estava mais próximo, um delgadito de uma magreza assustadora, cujos longos cabelos negros lhe caíam até metade dos braços. Nós somos homens de Deus, não temos armas!

O elfo olhou-o com um sorriso bastante inquietante. Diabólico, mesmo, diria ele. Bedwin olhou de lado sem querer, para a longa adaga, afiada como um punhal, que ele tinha na mão. A lâmina pingava sangue.

— Nós não temos nada. Deixem-nos passar...

O elfo voltou-se para os seus companheiros:

— Halig nith instylle beon wirthmynde!

— O que é que ele disse?

— Ele disse que tu estavas inquieto por causa do teu tesouro!

O bispo voltou-se de um salto, com a mão crispada sobre a manga do seu clérigo, sem se dar conta que lhe estava a esmagar o braço. Um elfo de grande estatura, vestido com uma cota de malha em prata que cintilava a cada um dos seus passos na suave luz da vegetação rasteira, aproximou-se deles, balançando com descuido a sua arma na ponta do braço. A sua cara estava cansada, mas Bedwin reconheceu-o imediatamente.

— Senhor Llandon!

— Sabes quem eu sou? Tanto melhor...

O olhar claro do elfo deslizou sobre a cara brilhante de suor do bispo, os seus cabelos e a sua barba bem cuidados, e depois Llandon abriu a cortina da liteira para examinar o interior. Um levantar de sobrancelhas divertido, e ele arrancou o pesado tecido de um golpe seco que fez tremer as liteiras e assustou os cavalos. Uma jovem mulher, nua e branca, com os olhos abertos de medo, agarrava contra ela uma almofada demasiado pequena para esconder a sua opulência. Llandon estendeu a mão, ajudou-a a descer, e depois cobriu-a com a cortina e afastou-se, apontando sem uma palavra o caminho florestal que conduzia à cidade. Ela fugiu precipitadamente, as carnes trêmulas, no meio da indiferença divertida dos elfos.

— Então — disse o rei dos elfos, dirigindo a sua atenção ao prelado. — Estás inquieto por causa do teu tesouro?

Sem querer, Bedwin deitou um olhar assustado ao cofre arcado de ferro rebitado no interior da sua liteira, ao pé do colchão de palha e das almofadas de penas.

— A chave.

O bispo hesitou, e depois tirou o cordelinho que trazia em volta do pescoço.

— Meu pai, não!

Com um gesto brusco, Bedwin afastou-se do padre que se agarrava a ele.

— Nihil cupit nisi aurum. Id capiat, dum nos incólumes conservei! [19]

Llandon estendeu a chave a um elfo, que saltou para a carruagem e abriu o cofre. Havia ali bolsas cheias, cibórios de ouro e um crucifixo incrustado com pedras preciosas. Ele atirou tudo para a poeira do caminho, onde outros elfos se apropriaram de tudo com piares de alegria. Depois ele estendeu ao rei a Bíblia de Bedwin.

O volume era tão pesado, com o seu espesso relevo de ouro e pedrarias, que Llandon teve que o pousar sobre as liteiras. No centro, um majestoso cristo estava esculpido em relevo sobre uma placa de ouro, circundado por uma moldura de esmalte onde se podiam ler o nome dos evangelistas: Mateus, Marcos, Lucas, João. Com um gesto brusco, o elfo arrancou os agrafos que seguravam a pesada placa da capa. O padre teve um sobressalto e, espumando de indignação, agarrou-se de novo ao fato do bispo.

— Mi pater, non sines incredulum scripta sacra attigere![20]

— Bíblia sacra nihil valent apud eum — respondeu Bedwin. Iste canis nullius rei nisi aurinostri cupidus est![21]

Llandon voltou-se para eles, enfrentou os seus olhares com um trejeito divertido, e depois dirigiu a sua atenção para a Bíblia do bispo.

— Nihil valet aurum apud elphides [22] — murmurou docemente, como que para si próprio.

Sem prestar a menor atenção aos eclesiásticos, que o olhavam estupefatos e horrorizados, o elfo, fascinado com o esplendor das iluminuras, acariciava com a ponta dos dedos as páginas de pergaminho, tão brancas e finas que deviam ter sido curtidas a partir de peles de cordeiros nascidos mortos. Parou sobre a representação de Adão e Eva, expulsos do Paraíso, com uma serpente enrolando-se no tronco de uma macieira. Tentou decifrar o texto que a acompanhava, todo em maiúsculas, sem acentos nem separação entre as palavras, e renunciou imediatamente. Os elfos não escreviam, além das runas ogamicas que não indicavam mais que conceitos, e mesmo ele tinha uma enorme dificuldade em compreender a escrita misteriosa dos copistas. A iluminura, no entanto, era tão clara que não precisava de explicação.

— É uma macieira, não é? — disse ele, olhando para Bedwin. — Portanto, para vocês o fruto proibido, o fruto do conhecimento é uma maçã... Dir-se-ia que a Bíblia não esqueceu tudo das velhas religiões...

Abanou a cabeça com uma gargalhada sem alegria, e depois recitou em voz alta, com os olhos fechados, de memória:

— Ordenou Deus ao homem, dizendo: “De toda árvore do jardim podes comer livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dessa não comerás; Porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.”[23] Que religião é esta onde o conhecimento deve ser punido com a morte?

Bedwin não respondeu

— É isto, então, o teu Deus... Um só deus, o único a possuir a árvore do conhecimento, disposto a matar todos aqueles que se aproximarem dela? É por isso que estais dispostos a exterminar todos os povos da Terra?

— É um Deus de amor — murmurou Bedwin.

— Sim... De amor para homens, de inferno para os outros. E todo este...

Llandon pegou no livro, abriu-o ao acaso, folheando as páginas de pergaminho, iluminadas a ouro fino, como um desesperado.

— Todo este ódio no meio de tanta beleza! — gritou numa voz aguda.

E, bruscamente, começou a arrancá-las, num acesso de raiva demencial.

— Não!

O padre atirou-se a ele com uns olhos de louco, mas foi como uma onda batendo numa rocha. Llandon agarrou-o pelo pescoço com uma só mão. As suas unhas rasgaram o pescoço, enterrando-se debaixo da pele, e fios de sangue escorreram sobre a sua mão azulada e as suas longas pulseiras de prata. O padre deu um gorgolejo imundo, com os olhos já vítreos. Llandon libertou-se então dele com um golpe terrível contra os montantes da liteira e voltou-se para Bedwin, tão assustador quanto um vampiro, com os beiços retorcidos num esgar horrível.

O bispo caiu de joelhos e estendeu na sua direção a cruz que trazia ao pescoço.

— Eu vos conjuro a todos, demônios, para que vos retireis daqui às minhas palavras e proíbo-vos de me provocardes qualquer receio ou medo, terror ou susto, de me fazerdes qualquer espécie de resistência a Deus aqui presente!

— Que é isto? — disse Llandon aproximando-se lentamente dele. — Um sortilégio? Eu não tenho medo da tua magia, bispo...

— Eu vos conjuro de novo para que vos retireis, e se algum espirito vos prende, que as maldições de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, e que a ira e indignação da santíssima e indivisível Trindade, e de toda a corte celeste, caiam e desçam sobre vós, que sois rebeldes a Deus!

O elfo agarrou-o pelo pescoço, a carne branca e trêmula, suando de medo, os olhos fechados, barbicha estremecendo, lágrimas e lábios trementes. A voz de Bedwin não passava de um gemido.

— Com todas as forças, ordeno aos diabos que vos atormentem, pelos santos nomes de Deus, Hee, Lahie, Lyon, Hela, Sebaoth, Cheboin, Adonai...

O resto perdeu-se num gorgolejo horrível. Com um rugido de lobo, Llandon tinha ferrado os seus dentes na artéria do bispo, inundando a cara com o sangue dele, tão horrível de ver que os seus próprios guerreiros lhe voltaram a cara.

Nessa tarde, ao cair da noite, foram mais de uma centena os elfos que desapareceram na floresta, fugindo da guerra de Llandon e do horror das suas recordações.

 

Com os olhos vermelhos pela contemplação do fogo, Uter tinha entrado no vazio, num sonhar acordado embalado pelo crepitar da madeira seca torcendo-se nas chamas e pelos gritos tristes das aves nocturnas. O vento levantava-se, anunciando as tempestades de equinócio e as marés vivas, mas ele não tinha frio. Tronco nu, vestido apenas com um pano e botas, com a sua espada como única arma e um chuço para caçar, ele não via ninguém há semanas, e esta imensa solidão voltava a mergulhá-lo no desespero da sua prisão sob a Montanha. Tinha sentido medo, tinha batido os dentes de frio sob as bátegas de chuva, tremido durante noites inteiras espiando os barulhos da floresta, tinha tido fome, tinha querido fugir, voltar para a sua casa em Cystennin, deixar aqueles bosques desumanos. Tinha-se tornado um animal, os cabelos enredados de folhas e pauzinhos, as faces comidas pela barba, fedendo como um urso, odiando esta natureza de silvas e urtigas, a água salobra do lago, o grasnar infernal das rãs e o tempo de cão deste fim de Outono.

Mas ele tinha ficado.

Porque é que um homem como ele, cavaleiro, bravo do reino e filho mais velho do barão de Cystennin, obedecia àquele bastardo do Merlim, nem elfo nem homem, uma criança macilenta, magra como um ramo, com os seus cabelos brancos de velho e cor de cadáver? Esta pergunta não parava de o perseguir. Teria tão pouca força de vontade, tão pouco amor próprio? Talvez, simplesmente, Merlim se tivesse esquecido dele. Ou talvez estivesse morto. E talvez ficasse ele assim para sempre, como um ermita, em frente a este lago afogado em bruma, até que o inverno o gelasse, até que os seus ossos se tornassem pó... Merlim tinha falado de uma ilha, para além do nevoeiro, a ilha do seu sonho, na qual os mortais não podiam entrar sem passar esta prova interminável, esta privação, esta solidão desesperante... E ele tinha falado de Lliane. ”Ali onde ela está, nenhum mortal pode ir ter com ela”, tinha dito ele. ”No entanto, ela espera-te, no dia da Feth Fiada, quando os deuses estenderão o seu nevoeiro mágico sobre os homens para visitar a Terra do Meio. Esse dia é o dos equinócios, e o de Setembro está próximo. Mas tu terás que estar preparado... E já não tens muito tempo.”

Quantas vezes tinha ele tentado nadar até ela, apesar do frio, apesar das canas ou das algas que lhe agarravam as pernas como enguias, apesar do lodo que parecia aspirá-lo? Tinha nadado até ao esgotamento, até ao terror de ser engolido, e mais de uma vez tinha-se sentido afundar a pique, soçobrar nessas águas escuras, tinha-se livrado da morte e recuperado a consciência na margem, vomitando tripas e lama, mas vivo, apesar de tudo, uma vez, e outra, e outra.

Talvez devesse ter partido. Partir, sim, voltar para casa, reencontrar o seu pai e os seus, esquecer Lliane e aquela criança que ele nunca tinha visto e depois, mais tarde, quando fosse velho, recordar toda esta história com nostalgia, ou com desdém. Ter remorsos, sem dúvida, mas viver como um homem e não como um animal!

Uma primeira gota de chuva caiu-lhe sobre os ombros, depois uma outra, e uma rajada de vento gelado cobriu o lago de salpicos luminosos. Uter levantou-se de um salto, pegou na sua espada e correu a abrigar-se na sua cabana de canas. O nevoeiro não seria para hoje... Porque é que, por Deus e pelo Diabo, porque é que ele continuava aqui? Ulfin tinha-se ido embora, e Bran também, para reunirem um exército, diziam eles. Belas falas... Eles deviam ter voltado para suas casas, sim! Esquecido Merlim e os seus delírios!

Merlim... Detestável, odioso bastardo, com os seus enigmas e as suas sentenças incompreensíveis. Como é que ele lhe tinha chamado? Kariad... Kariad daou rouaned... Outra das suas profecias ridículas. Ele não era diferente dos monges, com os seus Evangelhos cheios de demônios e de maravilhas. Todos uns bons mentirosos, uns arranca dentes, ilusionistas de feira e habilidosos de mão! Ele tinha-se servido deles como escolta, eis tudo, e tinha-o abandonado, como um pobre imbecil que era!

— Eu não te abandonei, Uter.

Sem querer, o cavaleiro deu um guincho de pavor e atirou-se para trás, quase deitando abaixo a sua cabana vacilante.

— Meti-te medo?

Uter não via mais que uma silhueta escura, destacando-se mal na escuridão da cabana, mas reconheceu a voz juvenil e irônica de Merlim.

— Com mil demônios, eu...

Um segundo antes, uma raiva mortal envolvia-o, mas de repente, quando esticava já o punho em direção ao homem-criança, o seu coração desfez-se, e ele começou a chorar. Uma voz, finalmente, após tantos dias de silêncio...

Merlim sentiu um nó na garganta. Ele via-o, a ele, tão miserável, chorando como um rio que rompeu os diques, magro, hirsuto, quebrado por uma angústia insondável. Tomou-o nos braços, cobriu-lhe os ombros nus com o seu casaco e esperou que os soluços parassem. Foi assim que a noite passou.

Ao chegar a manhã, Merlim obrigou-o a sentar-se ao pé do lago e barbeou-o cuidadosamente com a lâmina da sua própria adaga. Lavado, com os cabelos desembaraçados e entrançados, Uter voltou a ter figura humana, se não se olhasse de muito perto. Deixou-se cuidar como uma criança dócil, sem dizer uma palavra nem tirar os olhos de Merlim. O nevoeiro tinha-se levantado, tão denso e branco quanto uma nuvem, cobrindo o lago e a margem num silêncio irreal. Este único pensamento ocupava a cabeça do cavaleiro. O nevoeiro de equinócio... Portanto, ele tinha ficado sozinho mais de quarenta dias naquele deserto florestal. Portanto, a prova estava terminada... Uter não ousava dirigir-lhe a palavra, e aliás, nunca conseguiria formular o mar de perguntas que tinha recalcado dentro dele depois desse tempo todo. Nenhuma delas tinha afinal importância. Mesmo que tivesse esperado em vão, mesmo se esse paraíso terrestre de que Merlim tinha falado não existisse, mesmo que ele não descobrisse além da bruma senão uma ilha deserta, a hora da libertação tinha chegado.

Merlim também estava sério, com os gestos lentos, concentrado no barbear para não cruzar o olhar com o de Uter, e acomodava-se de boa vontade ao mutismo do seu companheiro. Já não se ouviam os pássaros, nem nenhum animal da floresta, nem mesmo o bater dos ramos. Nada. A bruma e o seu cheiro metálico. Oprimente. O movimento das águas.

Quando acabou, o homem-criança levantou-se, e Uter seguiu-o até à beira do lago.

Primeiro, não viram nada, depois o cavaleiro vislumbrou uma forma escura sobre a água, que se desviava lentamente na direção deles e que veio encalhar aos seus pés. Uma barca, negra, brilhante de umidade, sem remos nem vara.

— A barca da bruma — murmurou Merlim com uma voz insegura, quase assustada.

Voltou-se para o seu companheiro com uma expressão de admiração, como se esperasse que o cavaleiro se precipitasse para dentro da embarcação, e quando viu que Uter não se mexia, pegou-lhe na mão para o fazer subir para bordo. Imediatamente empurrou-o para longe da margem.

— Tu não vens? — perguntou Uter.

— Eu não posso!

A sua longa silhueta escanzelada esfumava-se já na bruma, tão direita e imóvel que parecia um cepo de árvore.

— Mas vou ficar à tua espera! — gritou ele, e a sua voz ressoou no lago como um eco.

Uter sentou-se, com o coração a bater e os olhos abertos, sem saber se a barca avançava. Não havia nenhum sinal, em todo aquele banco de nuvens brancas, lentas, frias como a chuva, nenhum trilho ao longo do bote, nem o mais pequeno sopro de vento na sua cara, e durante um tempo infinito ele ficou assim, não ousando fazer um gesto. Por vezes, um barulho da água atraía a sua atenção, mas na altura em que se virava não havia mais que umas estrias, sobre a água, alargando-se até desaparecerem. E por vezes, estes bruscos ruídos da água eram tão próximos, tão fortes, que não se podia tratar de um simples peixe. Além destas fugazes e invisíveis aparições, não havia mais nada, e o tempo era longo. Todos aqueles dias que tinha passado sozinho, na sua cabana, olhando a chuva cair e batendo os dentes, tinham-no habituado ao vazio, e a sua alma retirou-se do seu corpo prostrado para vaguear no seu próprio nevoeiro.

Depois houve um halo, um brilho na cortina de bruma, o longo traço escuro de uma margem, emergindo pouco a pouco. Raios de sol, por fim, trespassaram as nuvens, e com eles pontos de luz brilharam preguiçosamente sobre o fundo do bote, até à sua mão, e uma corrente de calor abençoada arrancou-o dos seus sonhos.

Suavemente, a barca dava à costa sobre as altas ervas da margem, enquanto se desfiavam os últimos fios de nuvens em volta dele. Uter levantou-se lentamente, passou a perna por cima do bordo e avançou até à margem, com água pelos joelhos. A ilha era terrivelmente decepcionante. Portanto, era só isto, Avalon? É claro que havia macieiras [24], em tão grande número que se diria um pomar, mas não passava de uma ilhota selvagem, pouco mais comprida que o alcance de uma flecha, invadida de ervas daninhas, de heras e de trepadeiras, nada diferente da margem que ele tinha acabado de deixar. A ilha estava deserta.

Maquinalmente, colheu uma maçã bem vermelha, e depois deixou-se cair ao pé da árvore para a comer. Ela não estava ali, era evidente. Nem Lliane nem Morgana... Não havia deuses nem fadas, nem a magia dos teatros de Merlim! Nesse mesmo instante um vagido agudo fê-lo sobressaltar-se.

Uter atirou com a maçã e levantou-se. Com um passo a princípio hesitante, esticando o pescoço para ver melhor, avançou em direção aos choros, através das nuvens de parcelas cintilantes que ele levantava a cada passo. Já não havia bruma, não, nem chuva, nem frio nem vento, mas um sol brilhante, tão quente que os seus trapos secaram. Gotas de suor escorriam-lhe pela cara, cada passo tornava-se uma prova, como se todas as ervas da terra se enrolassem às suas botas, e quanto mais avançava, mais a ilha parecia alargar-se à sua volta. Mas de tudo isto Uter não se dava conta.

Porque por fim, ele viu-a.

Ela estava sentada à sombra de uma macieira, e em volta dela brilhavam uma quantidade de pontos luminosos, de reflexos de asas tão movimentadas e imprevisíveis quanto o reflexo do sol sobre as ondas. Ele chamou-a, e imediatamente toda aquela vida minúscula desapareceu ao abrigo das ervas altas.

Lliane estava nua, apertando contra ela o seu bebê. Através da folhagem, os raios de sol desenhavam sobre a sua pele azulada pontinhos de luz, que brilhavam lentamente sobre as suas costas como uma carícia, quando ela se voltou para ele. Ela olhou-o, sorriu, estendeu a mão na sua direção, pondo a descoberto com esse gesto um pequeno corpo rechonchudo e pálido, encostado ao seu seio. O coração de Uter batia quase a rebentar. As últimas toesas que ainda o separavam delas foram as mais lentas da sua vida inteira. Com a garganta seca, ele contemplava Lliane, o corpo de Lliane, o brilho irreal dos seus olhos verdes (como tinha podido esquecê-lo?), a curva das suas ancas e as suas coxas, e aquele pequeno ser que se remexia fracamente nos seus braços com gritos de pássaro... De repente, tomou consciência do peso da sua espada ao ombro e desfez rapidamente o seu talim. A arma desapareceu no meio da erva. A partir daí, como se a ilha o libertasse, percorreu sem esforço os últimos metros, e deixou-se cair por fim de joelhos ao lado delas.

— Eis a tua filha — murmurou Lliane.

Ele abanou a cabeça, incapaz de pronunciar uma palavra.

— Ela vai voltar a adormecer. A tempestade desta noite assustou-a.

O sol irisava a sua pele azul duma linha dourada e dava aos seus olhos um brilho estonteante. Ela continuava a ter aquela covinha no canto dos lábios, quando sorria, como antigamente, quando partilhava a sua vida. Antes de ter partido... Ela colocou suavemente a menina no meio de um berço de musgo, e com o movimento, uma parte dos seus cabelos negros escorregou-lhe pelo ombro. Uter estendeu a mão. Os seus dedos, por fim, pousaram na sua pele.

— Senti tanto a tua falta...

Ela olhou-o sem responder, e aquele olhar cheio de tristeza apertou-lhe o coração.

— ...Mas tu, é claro, não sabes o que isso é.

— Meu belo cavaleiro...

Lliane ajoelhou-se bem perto dele, pegou-lhe na cara com as duas mãos, com um sorriso indulgente. Enternecido, talvez, mesmo...

— Eu amo-te, Uter. Amo-te tanto quanto posso amar alguém, Mais ainda, desde que Rhiannon nasceu...

— ...Mas?

— Desta vez, não há mas — disse ela sorrindo. — Fiz mal em fugir, era contra o nosso destino... Nós nascemos, um e o outro, para ficarmos juntos para sempre.

Uter debruçou-se, beijou o seu pescoço, os seus braços, os seus seios, pousou a cara contra o seu peito e fechou os olhos. O coração de Lliane batia tão depressa quanto o seu. Ela levantou-se de um salto, pegou-lhe na mão e afastou-se da macieira, recuando sem deixar de o olhar com os seus olhos verdes dourados. Uter teve a impressão de voltar a ver aquele brilhar de asas furtivas e silenciosas, em volta do bebê. Como é que ela lhe tinha chamado? Rhiannon? Não se chamava Morgana?

Lliane deitou-se na erva e puxou-o rapidamente para ela com uma gargalhada. Eles fizeram amor como lobos, esfomeados, mordendo-se e arranhando-se, impetuosamente, com uma voracidade de uns mortos de fome, redescobrindo-se um ao outro, encontrando-se por fim. Depois deixaram-se cair na erva, ofegantes, com os olhos virados para o céu por cima deles.

Uter, bem depressa, mergulhou na contemplação deste espectáculo pouco vulgar... Não havia o menor sopro de vento, e enquanto as nuvens deslizavam no azul a uma velocidade prodigiosa, fazendo-se e desfazendo-se, passando do cinzento escuro ao branco, desfiando-se para desaparecerem e voltarem a nascer, uma e outra vez... Bruscamente, Lliane levantou-se, colheu uma maçã e voltou a deitar-se sobre ele, tão leve apesar da altura, para lha fazer trincar.

Uter deu uma grande dentada, e depois começou a rir.

— Que se passa?

— Não, é tudo isto... A maçã, este pomar, nós dois, aqui... recorda-me o capelão do meu pai, Elad, e as suas histórias sobre Adão e Eva.

O sorriso de Lliane apagou-se lentamente do seu rosto.

— Tu acreditas no Deus deles? — murmurou ela.

— Não, é claro que não! — disse Uter, segurando-a pelo braço.

— É simplesmente porque tenho a impressão de estar aí, no seu paraíso terrestre!

— Então, come esta maçã.

— Ah sim, o fruto proibido...

Uter sorriu, mas ela não sorria. Ela tinha-se levantado de um salto e dominava-o de toda a sua altura, de toda a sua nudez.

— Não é o fruto proibido — disse ela. — É o fruto do conhecimento. O fruto de Avalon. Come e nunca mais serás o mesmo.

Uter obedeceu, mas não era mais do que uma maçã, estaladiça, um pouco ácida, cheia de sumo... Sentiu-se quase culpado, tanto gostaria de ter tido uma espécie de iluminação súbita, de uma abertura no céu, um anjo lhe ter vindo tocar na fronte... Nada disso. No entanto, Lliane parecia feliz. Ela ajoelhou-se de novo ao lado dele e quando ele lhe agarrou o corpo ela fechou os olhos e estendeu o pescoço e os seios em direção à boca do seu amante.

— A partir de agora, seremos um só — murmurou ela. Não houve mais uma palavra, só gestos, carícias, beijos, abraços, o tumultuo dos seus corpos unidos, e depois aquele olhar intenso, assustador, mesmo, que ela lhe deitou, e um grito:

— Flaese betaccan myrgth flaese. Gebedda betaccan myrgth gededda Beon sum!

E Uter, estupefato, compreendeu o sentido destas palavras: “A carne dá prazer à carne. O esposo dá prazer à esposa. Nós não somos mais que uma só pessoa.”

Uter acordou na barca. No espaço de um segundo uma quantidade de sentimentos atravessaram-lhe o espírito: perturbação, angústia, força, força infinita, fúria. Mas um segundo, somente. Porque, embora estivesse sozinho, embora estivesse nu ou quase, vestido com um pano em farrapos e botas, com a sua espada pesando-lhe novamente contra a coxa, à deriva neste barco fantasma sem remador nem timoneiro, ele sentiu a presença de Lliane. Ela não estava ao lado dele, ela estava dentro dele... Mais, ainda. Ela era ele. E um ardor intenso, desconhecido, o sentimento de um poder imenso queimava-lhe o coração. O sopro do dragão...

Voltou a ver o rosto da sua pequena filha, que tinha tido nos seus braços, tão frágil, branca e minúscula. Ele tinha sentido a carícia ínfima das suas pequenas mãos no seu rosto. Tinha rido dos seus sorrisos luminosos, dos seus ruídos de pássaro e dos seus olhares subitamente sérios, como se uma quantidade de pensamentos agitassem a sua pequena cabeça. Com um movimento instintivo, voltou-se para Avalon, mas já não havia nada, além desta bruma tão densa que acordava nele a recordação longínqua da sua primeira travessia. Um turbilhão de imagens assaltava-lhe o espírito, tão abundantes que teve que fechar os olhos para os acalmar. Lliane, Morgana, o desfilar dos dias debaixo daquelas nuvens tão rápidas, e aquele pequeno povo cintilante que ele tinha aprendido a domesticar. Seria possível que fossem fadas?

Um barulho crescente além do nevoeiro, arrancou-o dos seus pensamentos, enquanto que os últimos bancos de bruma se dissipavam debaixo dos seus olhos. Era a mesma margem, a mesma floresta, a mesma monotonia chuvosa, mas as margens que ele tinha deixado desertas, estavam agora cobertas de gente. Toda uma cidade de cabanas e tendas se tinha erguido ali, salpicada com o fumo negro das cem fogueiras de campo. Estandartes batiam ao vento, cavalos campeavam, e Uter foi tomado de pavor ao ver esta multidão imensa agrupada em frente à floresta, como que à sua espera, num silêncio cada vez mais pesado.

Com lentidão, levantou-se na barca, dominando o tremor das suas mãos. Eram aos milhares, homens e elfos confundindo-se, e o acampamento deles era uma verdadeira cidade...

Ao aproximar-se da margem, reconheceu Merlim com o seu longo fato azul, depois Ulfin, Bran e vários dos seus companheiros de outros tempos, cavaleiros ou escudeiros da casa real. Todos pareciam esperá-lo há meses...

 

                       A NOITE DO PENDRAGON

Há semanas que não parava de chover, tornando qualquer operação militar de envergadura impossível. Nos últimos dias de Outubro, a chuva tinha dado lugar ao frio. As orlas das florestas ecoavam continuamente os golpes dos machados dos lenhadores ou o ranger das suas lâminas. Por todo o lado no reino, e até mesmo no coração de Loth, os homens armazenavam madeira prevenindo-se para o inverno que se anunciava longo e duro. Mas, pelo menos, não haveria guerra... Durante um ano, a hoste do regente tinha alcançado algumas vitórias menores, no Norte, contra as baronias revoltadas. O suficiente para celebrar missas de ação de graças, não o suficiente para se sentirem seguros. Poeira para os olhos, eis tudo... A verdadeira batalha ainda não havia tido lugar. Nem contra os elfos, nem contra o exército dos duques. O Inverno, a Primavera e um novo Verão, tinham-se passado lentamente na espera de um apocalipse que não chegava nunca. Os dias e as semanas encadeavam-se, todos iguais, com a sua dose de novidades e de rumores. Murmurava-se que Léo de Grand de Carmelide não estava morto (mas isso não era uma novidade. Desde o final do torneio, há já um ano, que o comentário circulava) e que ele tinha reunido um exército imenso, aliado aos Bárbaros das Fronteiras. Outros garantiam que os elfos tinham saído da floresta aos milhares, como um rio torrencial, e que matavam tudo à sua passagem, homens e animais. E alguns contavam a quem os queria ouvir que os barões revoltados e os elfos formavam um só exército, tão vasto que escureceria o horizonte, no dia em que marchasse sobre a cidade.

Não passavam de rumores, é claro, mas ninguém escapava deles, nem mesmo o regente Gorlois. Entretanto, como não se via chegar nada, nem maré de elfos nem floresta de lanças, o povo de Logres tinha acabado por acreditar que as escaramuças de verão tinham sido suficientes para conter o inimigo.

O povo, mas não Gorlois.

Encharcado até aos ossos, apesar do seu pesado casaco de urso, o regente percorria o caminho de ronda, fechando as mãos num gesto compulsivo que se tinha tornado familiar nele. Num ano, tinha curvado bem mais que em dez de batalhas. Os seus cabelos cinzentos tinham-se tornado brancos, e tinha deixado crescer uma barba que ainda o envelhecia mais. De repente, debruçou-se sobre uma ameia e gritou uma ordem que se perdeu no barulho da chuva. Para lá do fosso que circundava Loth, um bando de operários trabalhava lentamente, demasiado lentamente, nas muralhas exteriores.

— Senhor Émeric!

Ao pé de um carregamento de pedras, abrigado debaixo do alpendre de uma das dez torres quadradas que cercavam a cidade, um colosso vestido com uma cota de armas branca com uma cruz vermelha levantou-se a resmungar e, puxando para cima o capucho da sua longa capa escarlate para se abrigar da chuvada, foi ter com o seu senhor numa pequena corrida.

— Esses homens — disse Gorlois num tom cortante, assustador. — Esses homens não trabalham! Vai lá!

— Meu senhor, está a chover — suspirou o cavaleiro. — A argamassa desfaz-se debaixo da chuva. Não serve para nada.

Gorlois olhou-o então com uma raiva incrível. Émeric desviou os olhos e abanou a cabeça.

— Vou já, senhor...

Deu meia volta e partiu a correr para o abrigo da torre. Bastava-lhe enviar um guarda, vestido com a sua própria capa para o caso do regente ir verificar se a sua ordem tinha sido cumprida (todos se tornavam bem depressa prudentes, com as ordens do regente), depois arrastar-se pelas cozinhas durante o resto da tarde. Inútil molhar o couro por aquele louco e as suas fortificações nojentas de covardia...

Com o corpo inteiro abanado por tremores incontroláveis, Gorlois viu-o afastar-se. Era preciso voltar a entrar. Ficar cá fora com este tempo miserável, era arriscar-se a morrer. E a rainha devia estar à sua espera. À sua espera, sim, ao lado da filha deles Morgause...

De um só gesto, precipitou-se a grandes passadas para a torre, depois enfiou-se pelas escadas, tão depressa que os guardas da sua escolta demoraram vários minutos a irem ter com ele. Tremendo de frio, deixando atrás de si poças de água a cada passo, quase corria pelos corredores, empurrando à sua passagem os inconscientes ou os distraídos, avançando cada vez mais nos meandros que conduziam ao palácio. Corria tanto que se esqueceu de Ygraine e da filha. Uma vez mais, mais uma, os seus passos conduziram-no, sem ele querer, até à porta de carvalho que fechava a sala do Grande Conselho.

Era aí, em outros tempos, que se reuniam os reis dos Povos Livres, em volta do talismã dos homens, a Pedra de Fal, engastada no centro de uma enorme mesa de bronze gravada com entrelaçados, à moda antiga. A Fal Lia, a pedra sagrada que gemia à aproximação de um verdadeiro rei... Febrilmente, procurou debaixo da sua gola de veludo ensopada e retirou uma pesada chave que meteu na fechadura. A porta abriu-se, rangendo de maneira sinistra sobre uma sala que cheirava a bafio. Estava escuro, lá dentro, e frio. Os estandartes dispostos sobre cada tremo, entre os vãos das janelas, apodreciam lentamente. As madeiras brilhavam de umidade. Untadas de cera, algumas telas que escondiam as janelas estavam rasgadas e batiam ao vento. No chão, as lajes estavam molhadas de chuva, A sala, outrora gloriosa, estava ao abandono. Gorlois aproximou-se da mesa redonda e daquela pedra escura que formava o centro, mas a pedra, como sempre, continuou muda. Então, de uma só vez, com a fúria de uma onda gigante, a sua raiva transbordou em gritos, o corpo vibrando de raiva e frustração, martelou-a até magoar os punhos.

Ele não era rei.

Os seus gritos desesperados ressoavam pelos corredores do castelo, e, até ao último dos espetos, nas cozinhas, até aos homens sujos pisando na lama, remexendo a farinha de cevada debaixo da chuva, até aos mais jovens escudeiros, ofegantes debaixo das suas cotas de malha demasiado grandes para eles, com os braços pesados e doridos à força de baterem, uma e outra vez, no madeiro sobre o qual o mestre de armas os fazia exercitarem a espada, todos sentiram vergonha por ele.

Ele não era rei.

Na capela, Ygraine fechou os olhos, com um nó na garganta. Ajoelhada no genuflexório, à frente da assistência, frente ao altar onde o irmão Blaise dizia a missa de Todos os Santos, ela rezou pela salvação da sua alma. A seu lado, num berço coberto com uma pele de marta, a sua filha Morgause dormia calmamente. A filha de Gorlois... O fruto maldito das suas entranhas...

Ele não era rei.

 

A chuva parou no final do dia. Apesar da umidade, os elfos tinham conseguido encontrar madeira suficientemente seca para acender o lume nas imensas fogueiras montadas de um lado ao outro do lago. A noite veio sem que ninguém percebesse, tão escuro tinha estado toda a tarde, sob aquele dilúvio ininterrupto que gelava os corações e transformava as margens do lago numa derrocada de lama. O crepitar das chamas, a sua luz avermelhada sobre os panos das tendas desfeitas trouxeram sorrisos às caras daquela multidão guerreira amontoada na orla da floresta, em cabanas mal montadas. Rapidamente, todos estavam cá fora, reagrupados ao pé dos fogos, sem distinção de raças, homens, elfos e anões... Pois havia anões, entre eles. Pequenos grupos de guerreiros da Montanha Vermelha, alguns caçadores das colinas e alguns raros sobreviventes do reino sob a Montanha Negra, reagrupados em volta do príncipe Bran, desconfiados e rabugentos como de costume, no máximo uns duzentos ao todo, perdidos na amálgama de homens armados com os librés coloridos de obscuras baronias ou dos grandes ducados — Carmelide, Lyonesse, Dommonée —, vindos com as suas mulheres, criados e gado. Havia ali Bárbaros das Fronteiras, maciços como búfalos e quase tão peludos, cujos risos ressoavam com tanta força como mugidos de búfalos. Depois havia uma corrente movediça de elfos de Brocéliande, com os seus fatos de catassol que deitavam reflexos vermelhos e verdes à luz das fogueiras, demasiado numerosos para serem contados, sem falar de todos aqueles que se tinham pendurado nas árvores ou viviam escondidos no mato, na orla da grande floresta, afim de contemplarem de longe aquele espectáculo fascinante. Todas aquelas chamas, na noite escura, formavam um gigantesco incêndio, uma floresta de chamas iluminando o céu e o lago, até à linha escura de Avalon, visível para todos, nessa noite. Longínqua, inacessível, mas visível, pelo menos... Havia vinho e hidromel suficientes para que os homens estivessem bêbados, mas ninguém tinha ainda bebido. O cheiro dos bois inteiros postos nos espetos disparava as barrigas, dado que ninguém tinha ainda comido, nem mesmo os anões. Era a noite de Samhain, a principal festa do antigo calendário, cujo nome significava ”reunião”. Era a noite dos mortos, a única passagem entre o mundo inferior e a Terra do Meio, e cada um devia pensar nos seus entes queridos desaparecidos, por medo que eles próprios viessem fazer-se lembrar na memória dos vivos. Os anões, os elfos e os homens — entre eles aqueles que se tinham virado para a nova religião — partilhavam a crença no além e na sobrevivência da alma, mesmo que todos não acreditassem no mesmo paraíso. Portanto, fosse qual fosse o nome que lhe dessem — Samhain, Todos os Santos ou Hallowe’en —, era uma noite aterrorizadora, onde a carícia gelada da morte lhes vinha roçar a cara, onde os desaparecidos recebiam a homenagem dos vivos, sacando uma nova energia que lhes permitia prosseguirem a sua longa viagem subterrânea para a luz.

O lago, de momento, estava calmo. Mas bem depressa o vento se levantaria, as ondas viriam bater sobre a margem, trazendo em cada ressaca de fluxo almas invisíveis.

Em cima de um cabeço dominando o vasto acampamento, Uter não tirava os olhos da ilha, e a voz de Lliane corria nele como um murmúrio imperceptível. De costas voltadas para a fogueira da colina, parecia não estar consciente dos olhares pousados sobre ele, tão perfeitamente imóvel que o próprio Merlim não ousava interferir.

Eles eram nove, em círculo em volta da fogueira, tão desiguais quanto possível. Bran, apoiado com as duas mãos sobre o seu machado tão grande quanto ele, tinha demorado a compreender que Lliane e Uter formavam uma só pessoa. E mesmo assim, ele teve que lhe vir contar em pormenor a batalha da Montanha Vermelha, para lhe transmitir a mensagem do velho rei Baldwin, sem compreender que Lliane conhecia já tudo aquilo de que se recordava a memória de Uter... A seu lado estava Freihr, chefe dos Bárbaros das Fronteiras, ou dos que restavam. Com o tronco nu, pintado em honra dos seus mortos, com a pele vermelha à luz do fogo, parecia uma torre, alta e larga. Ele tinha acompanhado Lliane e Uter na busca do elfo Gaèl, e estava pronto para continuar a acompanhá-los, fossem eles para onde fossem. A ele ninguém tinha mesmo tentado explicar-lhe o estado deles. Ao pé dele estava sentado o velho druida Gwydion e o príncipe Dorian, tão magros e tão pálidos, em comparação. Vê-los, falar-lhes a um e a outro, tinha sido para Uter uma experiência que o pôs à prova. Pela primeira vez, havia tido a impressão de não ser ele, exprimindo-se em linguagem élfica a seres que nunca tinha visto, apertando contra o peito o príncipe Dorian, abraçando Blodeuwez, secando as lágrimas ao velho Gwydion... Eles próprios pareciam não ver mais que Lliane através dele, como se ele não existisse. Talvez ela tivesse sentido a mesma coisa quando ele tinha encontrado os seus antigos companheiros, e os grandes barões reunidos por Ulfín para a sua causa... Este último, em pé ao lado dele, com a cara marcada pela flecha élfica que lhe tinha partido o maxilar, vestia as suas próprias cores, de ouro com um galgo vermelho em pé [25], ao lado de Helled de Sorgalles, a única mulher daquela assembléia, e o duque Léo de Grand de Carmelide, cuja couraça lançava reflexos vivos como brasas.

Mal o vento se levantou, Merlim deitou na fogueira um ramo de visco. No instante seguinte, um feixe de faíscas escapou-se das chamas em direção à noite escura. O lago encrespava-se, o barulho da água nas margens intensificava-se, e todos, em volta das fogueiras, sentiram aquele frio glacial infiltrar-se no acampamento. Jovens fêmeas elfos, para grande admiração dos homens, baixaram as túnicas e levantaram os braços ao céu, oferecendo os seios nus à mordedura invisível das almas errantes. Os seus druidas e os seus bardos entoaram uma estranha melopeia, ao mesmo tempo estridente e em surdina, ridícula por vezes, quando eles começavam a cacarejar como animais, medonha quando as suas vozes se rasgavam em atrozes rugidos. Os anões, reagrupados em círculo sobre duas fileiras em volta de um único fogo, martelavam o chão com um passo pesado e regular, murmurando o que parecia uma canção de guerra. E os homens rezavam, ajoelhados, de mãos postas, tremendo de medo à passagem gelada dos espectros. Sobre o lago, o que não passava de simples pequenas vagas levantadas pela brisa tornou-se rapidamente numa verdadeira tempestade. O vento tornou-se ensurdecedor levantando sobre o lago ondas tão potentes que salpicavam até aos carvalhos da floresta, num tumultuo ensurdecedor perfurado por gritos súbitos, de estertor e silvos mórbidos. O pavor. O terror absoluto. A morte, visível, palpável, deslizando como uma corrente entre as fileiras dos vivos.

Uter, com os braços abertos, vacilava sob a tempestade, abanado por rajadas de imagens, de vozes, assaltado pela recordação de seres queridos, e de outros que ele não conhecia. Amigos mortos nos seus braços, Tsimmi, Rodéric, e inimigos mortos pelas suas mãos. Elfos magros, de formas escuras e horríveis e depois, fugazmente, uma visão divina, a ofuscação, o sopro de um deus sobre a sua cara. Subitamente, como um clarão, reconheceu entre todos esses fantasmas a cara do seu pai. Ele soluçou, abriu os olhos e o espectro desapareceu imediatamente. Mas era, sem dúvida, Cystennin...

— Meu pai!

O vento parou brutalmente, fazendo perder o equilíbrio.

Por todo o lado no acampamento, os vivos, assombrados, cambaleavam ou caíam ao chão, como marionetes a quem tivessem cortado os fios, num silêncio absoluto onde se ouvia de novo o crepitar das chamas.

Uter sentia-se vazio, demasiado esgotado para fazer qualquer gesto, perturbado pelas visões atrozes que o tinham assaltado, pela recordação fugaz de uma iluminação divina, e por essa imagem obcecante... O rosto do seu pai entre os mortos.

Ele sentiu de novo pesar sobre si os olhares daquela multidão, mas foi Merlim quem falou.

— Escutai-me! Tribos da Deusa, diante dos vossos mortos, escutai-me! Eu sou Myrddin, o filho de uma elfo! Eu sou Merlim, o filho de um homem! Nobre povo das árvores, tribo do ar, guardiã do Caldeirão do Dagda, Graal do conhecimento divino, escutai-me!

E os elfos da Grande Floresta, por todo o lado no enorme acampamento até à orla do país de Eliande, encolheram-se, com os olhos postos no homem-criança.

— Vós, os homens justos, clã do mar, escutai-me! O vosso talismã é a Fal Lia, a pedra da soberania. Mais que qualquer outro, vós não sabereis tolerar um falso rei. Escutai-me!

E todos os homens, todas as mulheres, soldados ou Bárbaros, cozinheiros e criados, sentiram vibrar no mais profundo dos seus seres a voz, no entanto débil, de Merlim.

— Povo dos anões, tribo da Terra, vós a quem roubaram o vosso talismã, Caledfwch, Excalibur, a Espada sagrada de Nudd, toda esta multidão está reunida para vos fazer justiça!

Merlim calou-se, e uma vez mais o silêncio da noite cobriu as margens do lago. Já as fogueiras se tinham apagado e não produziam mais do que pequenas chamas e brasas. Sob os seus olhos estendia-se até ao infinito um sem número de reflexos escuros, elmos, pontas de lanças, armaduras, semelhantes às carapaças em movimento de uma nuvem de besouros. Nalguma parte, no meio da multidão, o grupo de anões escutava-o, com as lágrimas nos olhos, trazendo esperança a todo um povo desaparecido...

— Não existe mais que um só povo! — gritou ele. — Não existe mais que um só deus! É a ordem do mundo! Os deuses quiseram que houvesse animais selvagens e domésticos, monstros debaixo de água e aves no céu! A Deusa criou as Quatro Tribos, elfos, homens, anões e monstros, para que nenhum povo pudesse dominar os outros! Vós que vos unistes em outros tempos para vencer os exércitos de Aquele-que-não-pode-ser-nomeado, vós que conhecestes a paz, sabeis que nenhuma tribo pode reinar sozinha sobre a Terra! Porque, então, tudo desaparecerá com ela... Tudo: os animais selvagens e os domésticos, os monstros e as aves do céu, e depois o próprio mundo, num vazio insondável de um universo único... A morte do mundo...

As suas últimas palavras não tinham passado de um murmúrio. Uter, calado, deitou-lhe um olhar inquieto, tão perto de desmaiar ele parecia estar. No espaço de um segundo, Merlim teve o ar daquilo que talvez fosse: uma criança que tinha crescido demasiado depressa, demasiado só, carregando uma tristeza imensa sobre os seus demasiado fracos ombros.

O cavaleiro estendeu-lhe um braço, mas ele parou-o com um gesto. Um olhar rápido, o esboço de um sorriso, e Merlim continuou o seu discurso.

— Amanhã, é um novo ano que começa — disse ele. — E amanhã, por fim, marcharemos sobre Loth! Este momento, vós o esperastes durante quase um ano... Talvez vos julguem mortos, esta noite. Talvez tenham acendido por vós fogueiras de Samhain, de um lado ao outro do reino...

Uter, com os olhos baixos, perdeu o fio ao discurso. Tinha sido invadido por sentimentos contraditórios, como se Lliane, dentro dele, fervesse de excitação enquanto que a sua parte humana lhe custava ainda a acreditar em toda esta magia... Seria possível que ele tivesse ficado um ano inteiro em Avalon? O tempo passaria de outra maneira na ilha das fadas? Ele recordou o desfilar rápido das nuvens, que o tinha intrigado... Talvez fosse um sinal.

De repente, tomou consciência de uma mudança no tom de voz de Merlim. O homem-criança estendia-lhe um braço e quando Uter lhe agarrou a mão ele puxou-o para a frente.

— Eis aquele por quem esperavam! O Pendragon, homem e elfo ao mesmo tempo, pois a rainha Lliane está dentro dele e fala pela sua boca!

— Não, ninguém fala em nome dos elfos!

O grito, do outro lado do acampamento, provocou um alarido geral. Um movimento da multidão desenhava-se, entre as fogueiras, à passagem de um ser que nem Merlim, nem Uter, nem ninguém no cabeço conseguia destinguir. Depois, por fim, um grupo afastou-se da assembléia e eles viram-no.

Llandon.

Caminhava a grandes passos, com a sua longa adaga de prata na ponta do braço, e à sua vista o burburinho da multidão transformou-se num barulho indescritível. Durante todo o ano, Llandon tinha devastado o reino de Logres, e mais de um homem armado tinha perdido por sua culpa um ente querido, uma quinta ou gado. Quanto aos guerreiros elfos que o descobriam à sua passagem, a maioria deles tinha-o abandonado por repugnância, por causa das suas matanças loucas, e o simples fato de o reverem enchia-os de vergonha.

Antes que alguém tivesse podido tentar pará-lo, ele subiu até Uter, agarrou-o pela túnica e empunhou a sua adaga, com a cara desfigurada por ódio absoluto. Eram ambos do mesmo tamanho, mas o cavaleiro era muitíssimo mais forte. No entanto, não se mexeu, não fez um único gesto para se defender. Olhou o rei dos altos-elfos nos olhos, e os seus lábios puseram-se a pronunciar palavras, tão baixo que ninguém as conseguia ouvir, além deles dois.

Llandon, imediatamente, baixou o braço, com uma expressão de horror na cara.

Os olhos de Uter tinham mudado. Eram de um verde tão claro que quase chegavam a ser dourados. Os olhos de Lliane. E Lliane pela boca dele, murmurava um encantamento mortal:

— Llandon aelf aetheling, restan aefre. Restan aefre, hael hlystan!

O olhar do elfo espantou-se. As suas pálpebras baixaram-se e então, todo o seu corpo se agitou com tremores, lágrimas de sangue pingaram dos seus olhos e coloriram as suas faces.

— Uter, não! — murmurou Merlim, por trás dele. Nenhuma reação.

— Lliane, suplico-te!

O Pendragon voltou a cabeça para ele, e num instante Merlim cruzou o seu olhar dourado. O olhar do próprio poder divino... Mas os olhos afastaram-se, Uter baixou a cabeça e o seu corpo relaxou-se. Então, num último espasmo, Llandon largou a sua adaga, ajoelhou-se e caiu diante do cavaleiro, quebrado como uma marioneta e gemendo de uma forma tão lastimável, respirando aos soluços como um afogado, o sangue dos seus olhos queimados misturando-se com a poeira.

E o povo das três tribos reunidas contemplou com assombro mudo o poder infinito do Pendragon.

 

                       O CHORO DA FAL LIA

A guerra devastou o reino de Logres como um vento de inverno. Um sopro gelado de terror apertava o coração dos homens ao longe diante dos estandartes do Pendragon, depois do exército de Escan de Cambenet ter sido feito em pedaços, a um contra cem, sob as muralhas de Cardueil, a maior cidade de Cambria. O duque Escan tinha esperado em vão pelos reforços prometidos pelo regente, esperando todos os dias por novas dos seus batedores. Mas os elfos verdes tinham precedido o exército do Pendragon, e ninguém podia sair dos arredores da cidade fortificada sem cair numa das suas emboscadas.

Uma manhã, ao nascer do dia, os guardas das muralhas tinham tocado a rebate. O horizonte, como tinha anunciado o rumor, estava cheio de estandartes vermelho sangue com a cabeça de um dragão de ouro, e este mar de guerreiros tinha atacado sem mesmo perder tempo em montar um acampamento, como uma onda enorme submergindo um dique. Cambenet estava morto, como tantos outros, sob o machado de um anão furioso ou sob a bátega de flechas que os elfos faziam chover na cidade. O seu corpo, quando o encontraram, estava num estado tão lastimoso que foi impossível saber o que o tinha morto.

Não houve massacre, nem pilhagens (o que foi bastante difícil fazer admitir aos Bárbaros das Fronteiras), e a notícia desta clemência invulgar tinha feito mais pela causa do Pendragon do que a violência implacável dos seus assaltos. A partir daí, o exército não tinha encontrado mais resistência. Pelo menos até Loth.

Por covardia ou por convicção, no entusiasmo ou na angústia, contingentes de homens armados juntavam-se ao exército em cada cidade, burgo ou aldeia por onde este passasse. Bem rapidamente era um mundo inteiro que marchava, uma coorte imensa, que se estendia por várias léguas, arrastando atrás de si pesadas carroças carregadas com grão ou cerveja, seguida por manadas inteiras de vacas, varas de porcos ou rebanhos de ovelhas. E, entre tudo isto, ladrões e putas, crianças, velhos, comerciantes gnomos e falsos druidas, curandeiros e assassinos, ferreiros, alfaiates, uma forja conduzida por um mestre armador anão, camponeses armados de manguais ou de forquilhas, lado a lado corajosamente com cavaleiros vestidos de ferro, até mesmo padres, que seguiam os seus paroquianos, em consciência, apesar de tudo. Houve nascimentos, entre esta nação em marcha. Doentes e mortos. Houve violações e crimes, vinganças, mas nada parava este rio imenso.

Uter não comandava. Ele ia à frente, e os outros seguiam-no. À sua volta, Freihr, o chefe dos Bárbaros das Fronteiras, tinha estendido uma guarda próxima, suficientemente aterrorizadora para dissuadir o mais intrépido dos assassinos da Guilda, mas era uma precaução inútil, quase patética. Teria sido necessário para o abaterem vencerem um povo inteiro de homens, elfos e anões, cheios de devoção e prontos, todos, a morrerem por ele. Aliás, o Pendragon não se sabia defender sozinho: não se dizia que podia matar com um só olhar?

Todas as noites, em volta das fogueiras de campo, os bardos elfos e os trovadores acrescentavam algumas estrofes à canção que se escrevia debaixo do olhar de todos. Os mais velhos, os que tinham assistido à noite de Samhain, contavam os grandes fogos, o sopro gelado dos espectros, a assembléia de chefes e a humilhação de Llandon, o rei méhaigné [26]. E a batalha de Cardueil, a cidade varrida em algumas horas, apesar de todo o orgulho de Escan de Cambenet e das suas altas torres. Homens endurecidos, camponeses de mãos calosas, arqueiros ou soldados apertados nas suas couraças, descobriam a graça dos elfos, a beleza dos seus cantos, as finas jóias de prata que eles traziam nos braços. Os próprios anões não ficavam só entre eles, principalmente quando havia vinho. E também isso, para todos esses seres que desde a sua nascença nunca se tinham afastado mais do que algumas léguas da sua aldeia, floresta ou montanha, também isso era um milagre.

Bem depressa os amigos mais próximos se afastaram do Pendragon. Primeiro por respeito, depois, pouco a pouco, por medo. Uter não era o mesmo. Isolava-se, por vezes durante horas com Blodeuwez (e os homens da tropa, encorajados pelo que eles pensavam ser o exemplo do chefe, começaram a fazer a corte às elfos que seguiam o exército), ele conversava com o druida Gwydion numa língua que ninguém compreendia, e por vezes mesmo com aquele semi selvagem Llaw Llew Gyffres, que Merlim tinha tomado sob a sua proteção. Não tinha manifestado qualquer emoção depois da queda de Cardueil, nem alegria nem raiva, como se a tomada da maior cidade fortificada de Cambria o deixasse indiferente. Só Merlim parecia poder aproximar-se dele sem medo, e só ele velava sobre o sono febril do cavaleiro, sobre as suas lágrimas de cansaço quando a força de Lliane o deixava, quando ele não era mais do que ele próprio. Por vezes, durante algumas horas, ele voltava a ser Uter, encontrava Freihr, Bran ou Ulfin, e conseguiam então rir das histórias que se contavam acerca dele.

Mas, na manhã seguinte, enquanto que os outros acordavam com o espírito toldado, entorpecidos pelo peso das bebidas, o Pendragon já estava montado a cavalo e partia, em direção a Loth, sem esperar pelo numeroso exército que se preparava à pressa atrás dele.

Por fim, chegaram ao fim da sua cavalgada.

Foi preciso esperarem vários dias ainda, até à véspera de Natal, para que os cavaleiros de Helled de Sorgalles, que formavam a retaguarda, se juntassem a eles. Quando eles chegaram, nessa noite, alguns flocos de neve começavam a cair e, de manhã, a neve cobria tudo, a perder de vista. O céu pálido confundia-se com a terra, a água dos fossos estava gelada. Não havia mais, nessa paisagem imaculada, que a linha negra da cidade das cem torres, semelhante a uma falésia de granito, sombria e baixa.

Os elfos atacaram na noite seguinte, durante a véspera de Natal, no momento em que os sinos da cidade chamavam os fiéis para a igreja. Eles espalharam-se bruscamente na planície, tão furtivos quanto uma nuvem de insectos, com a neve a amortecer o som da sua corrida desenfreada. Quando os guardas do caminho de ronda os viram, eles já estavam por todo o lado, preparados para içarem as escadas e lançarem as fateixas, até aos estrados que enfeitavam as muralhas.

Durante longas horas, o Pendragon ficou imóvel, a contemplá-los do alto de um talude, enquanto que a maior parte do seu exército ignorava o ataque dos elfos. Por fim, ao raiar da aurora, quando os seres azuis tinham tomado conta da seteira que defendia a ponte levadiça e deitado fogo às portas da cidade, o resto do exército pôs-se em movimento.

Não houve berros, nem gritos guerreiros. Somente o martelar surdo, aterrorizador, de milhares de pés batendo no chão coberto de neve, o ranger dos couros e das cotas de malha, o galope dos cavalos de guerra. Uter corria no meio desta nuvem silenciosa, a pé, entre eles, ofegante debaixo da sua armadura em couro, cabeça nua, segurando com as duas mãos a sua espada ainda embainhada, com os olhos fixos naquela porta calcinada que parecia engolir o exército inteiro como a boca aberta de um monstro. Ele não via mais nada. Não ouvia mais nada para além da sua respiração, do barulho surdo dos seus passos na neve. Nem os gritos breves dos que caíam em volta dele, perfurados por flechas, esmagados por pedras atiradas do cimo das ameias, nem os gemidos dos moribundos esmagados pelos pés da multidão. Escadas tinham sido içadas em toda a volta das muralhas, cheias de ganchos movediços e negros, que por vezes se mexiam no vazio, sem que um instante parasse essa corrente irreprimível. Os elfos pareciam escalar os muros como lagartos, sem mesmo a ajuda de uma corda, e os estandartes brancos e vermelhos de Gorlois caíam, uns atrás dos outros, do alto do caminho de ronda.

Levado nessa corrente, Uter desembocou na cidade, admirado de redescobrir a decoração familiar da praça de armas e das ruelas em estrela, desde os bairros baixos até à parte alta da cidade. Sem uma ordem, sem saber quem o seguia, atirou-se em direção ao castelo.

Ao virar uma esquina, uma mordedura brutal como um ferro em brasa atingiu-lhe subitamente o braço. Mesmo em frente a ele surgiu uma cara medonha de um homem de armas com um elmo de ferro, brandindo uma espada curta e afiada, suja com o seu próprio sangue. Os seus olhares cruzaram-se, por um instante, e para grande espanto de Uter o homem voltou-se para os seus companheiros com a voz tremendo de emoção:

— Ele sangra! — gritou. — Não passa de um homem! Podemos matá-lo!

Uter atirou-se com toda a força contra o seu ombro, caiu com ele ao chão e levantou-se imediatamente, desembainhando por fim a sua espada. O homem foi mais lento a levantar-se. Não se levantou. Um Bárbaro peludo como um urso desferiu-lhe um golpe de maça tão potente que lhe partiu o elmo, e com ele o crânio. Eles eram às dezenas, de repente, diante deles, gritando aterrorizados. Uter bateu com força, atingiu a base de um pescoço, depois arrancou a espada para fustigar com o mesmo movimento a cara horrorosa de um guarda. Não foi possível depois manusear a espada, tão confusa era a luta. Então combateram ao murro, ao pontapé, agarrando-se às gargantas como loucos, sujos de sangue quente, até não poderem mais abrir os olhos. Uter sentia alguém agarrado às suas pernas, um homem de barriga aberta gritava no meio das tripas que ele pisava sem perceber. De novo, o ferro em brasa de uma lâmina, rasgou-lhe a cota de malha cortando-lhe a carne. O assombro da morte, furtivamente. A certeza, mesmo, de morrer ali, sob os golpes destes brutos, em carne viva, banhado no seu sangue. E a voz de Lliane, uma vez mais, saindo da sua boca, devastando as fileiras inimigas. A própria voz do horror, enchendo os seus olhos com visões tão atrozes que as lágrimas lhe corriam sobre as faces, enquanto ele abria um trilho sangrento entre eles, abrindo, cortando, esmagando os ossos e as carnes...

Freihr encontrou-o ali, no meio de restos humanos sanguinolentos, estendido a todo o comprimento na ruela, o corpo agitado por soluços, a mão crispada sobre um pedaço da sua espada partida. Limpou-lhe a cara com um punhado de neve que ficou imediatamente encarnada, depois içou-o nos braços e, deitando abaixo com um pontapé a porta de um casebre onde se encolhia uma família aterrorizada, deitou-o no leito, para que ninguém o visse assim.

Mal se virou, o Bárbaro cruzou os olhares assustados dos cidadãos.

— Lá para fora, todos!

Depois atirou com a sua espada comprida para cima da mesa, pegou num jarro e aspergiu a cara com água gelada. Com as têmporas a latejar, sentou-se, a respiração entrecortada e os olhos perdidos no vazio. A rua, lá fora, escorria sangue, vibrando dos queixumes dos moribundos... Freihr era um homem simples. Um Bárbaro que vivia nas fronteiras das Terras Negras, sempre a batalhar, dormindo por terra, não importa aonde, disputando a sua caça com os lobos da floresta, sem amigos nem família, com exceção de Galad, o jovem Bárbaro que ele tinha recolhido e que, daí em diante, o seguia por todo o lado. Freíhr tinha as mãos vermelhas do sangue de uma infinidade de inimigos. Mas ele nunca tinha visto até então semelhante carnificina.

Uter acordou aos gritos, submergido por visões de pesadelo. Sempre aquelas caras horríveis, golpeadas, retalhadas, e em todo este horror os olhos do seu pai Cystennin, a implorar, como pedindo ajuda... Precisou de vários minutos para se libertar do miasma do seu sonho e recobrar a consciência. Estava deitado numa cama com lençóis de linho e uma pesada coberta de pele castanha clara, talvez de lontra, no meio de uma vasta divisão decorada com tapeçarias, e cujas janelas de tela encerada estavam guarnecidas com cortinados. Perto de uma delas, divisou Merlim e quis levantar-se, mas uma dor aguda trespassou-lhe imediatamente todo o corpo.

— Não te mexas! — disse o homem-criança, correndo para ele. Uter tinha deixado cair a cabeça no travesseiro. Respirar era um sofrimento, o menor esforço enchia-lhe a testa de suor, e uma nova mancha vermelha aumentava debaixo das ligaduras que lhe mantinham o braço apertado contra o tronco.

— Um outro que não tu estaria morto cem vezes — disse Merlim. — Tens duas costelas partidas, um pulmão perfurado, o braço e a perna direita cheios de golpes, e tantas nódoas negras sobre o corpo que pareces um elfo, de tão azul que estás!

Riu-se da sua própria graça, todo contente de si, mas Uter não estava em estado de o compreender, e ainda menos de o apreciar.

— Onde estamos?

— Creio que era o quarto de Ygraine — disse Merlim dando uma vista de olhos em redor. — Em todo o caso, é o mais bonito e o mais calmo... O resto do castelo está um pouco demolido, receio.

— E... Ygraine? — disse Uter, dolorosamente.

Merlim olhou-o com um ar entendido, malicioso, exasperante como sempre.

— A rainha não estava aqui — disse por fim. — Nem Gorlois... Consegues imaginar semelhante coisa? Deixar o seu exército a defender a cidade e fugir como um covarde, não se sabe para onde?

— Tintagel...

— Sim, foi o que eu também pensei... Mas nunca teria imaginado que ele levaria a rainha, nem a Espada.

Uter olhou-o, piscando os olhos a cada respiração, enquanto a dor não parava de aumentar, como se todo o seu corpo estivesse em carne viva.

— Toma — disse Merlim. — Bebe isto... Vai fazer-te dormir e é tudo quanto tu precisas de momento. Quando tiveres recuperado as forças, imagino que Lliane te poderá curar por ti mesmo... Enfim, julgo que sim.

— A Espada...

— Ah sim! Excalibur... Os anões procuraram por todo o lado, e acredita, eles entendem de esconderijos, principalmente nas pedras. O pobre Bran está num tal estado... É a primeira vez que o ouço praguejar desta maneira. Mas eles não a vão encontrar. Excalibur já não está aqui, eu tê-la ia sentido...

Uter concordou com um bater de pálpebras e depois guardou um longo silêncio. Quando voltou a abrir os olhos, Merlim estava ali, ao seu lado, e tudo o resto vacilava.

— E Ygraine? — murmurou ele.

Merlim olhou-o com espanto. Uter já não sabia o que dizia. A droga já estava a fazer efeito. A sua cara coberta de suor refletia as marcas do combate, e os seus cabelos entrançados continuavam duros de sangue seco. O seu, ou o de outros homens. Merlim viu-o cair num sono agitado, e ficou ali, à sua cabeceira, a observá-lo como até então não tinha podido fazer... Emanava de Uter Pendragon uma força irresistível e ao mesmo tempo um tal desespero que não se podia senão amá-lo. O homem-criança recordou a antiga profecia do Kariad daou rouaned, o Amado-das-duas-rainhas. Só podia ser ele... No entanto, a profecia acabava mal. Mas tudo acabava mal, sempre, desde que ele nascera... Tudo o que se podia esperar, era que Uter fizesse mentir os presságios.

Ele caminhava a passos curtos, como um velho, mas sem ajuda de ninguém, a não ser da sua espada da qual ele se servia como bengala. Ao longo dos corredores, desde o quarto de Ygraine até ao alto da torre redonda do Grande Conselho, os membros do seu exército, todas as raças juntas, alinhadas lado a lado, formavam uma interminável ala de honra. E a honra, justamente, ordenava que não os decepcionasse.

Diante dele, Merlim, conduzia a marcha, com um passo lento de cerimônia, sem olhar para ninguém. Sobre o avermelhado dos archotes colocados de onde em onde nas tocheiras, os seus cabelos brancos de neve formavam-lhe um casco luminoso, que contrastava com o seu longo fato azul escuro. Ele tinha, como de costume, aquele ar trocista, aquele ar indiferente de peralta insolente, mas todos os guerreiros que o viam de perto pela primeira vez sentiam um mal estar oprimente à sua passagem, e ninguém teria sonhado em se opor a ele.

Uter, apesar dos ferimentos e do seu passo convalescente, enchia-lhes o coração de orgulho, e mais de um se ajoelhava à sua passagem, para beijar a sua cota de armas. Pela primeira vez, o Pendragon trazia as suas próprias cores: uma cota vermelha até ao meio do tornozelo, com uma cabeça de dragão cuspindo chamas; dragão vermelho de ouro lampassado. E por trás dele, todos arvoravam cores idênticas, duques e barões, e mesmo o príncipe Dorian, da tribo dos altos-elfos, e até mesmo o senhor Bran. Era uma procissão silenciosa, até que um coro grave e lento se ouviu, desde as profundezas do castelo.

Eu sou o vento sobre o mar Eu sou a onda do oceano Eu sou o barulho do mar Eu sou o touro dos sete combates Eu sou o abutre sobre o rochedo Eu sou o salmão no mar Eu sou a colina num homem Eu sou uma expressão da arte Eu sou a ponta de uma arma Que trava batalha.

Era um antigo hino guerreiro que datava da guerra dos Dez Anos, uma canção de marcha, sombria e poderosa, que fazia vibrar as pedras das paredes, e que enchia todos os corredores, como uma nuvem de pó. Até que Merlim chegou à porta do Conselho.

Eram só alguns a assistir àquele momento, mas todos se calaram quase ao mesmo tempo. Cada um retinha a respiração. Cada um queria ouvir.

Merlim abriu a porta e afastou-se para deixar Uter entrar. Sozinho.

O cavaleiro parou na esquina, contemplando aquela sala onde outrora se sentavam os reis dos povos livres, a sala do Grande Conselho, que ele próprio e os seus pares guardavam permanentemente, no tempo em que o libré do rei Pellehun não se tinha desonrado. A sala, deixada ao abandono por Gorlois, tinha sido restaurada em todo o seu antigo esplendor. A enorme mesa redonda ocupava a maior parte do espaço, luzindo com o brilho do bronze sob o fogo dos archotes. E, no centro, engastada e jamais indissociável dela, a pedra de Fal.

O talismã dos homens...

Uter inspirou profundamente e endireitou o corpo. O seu coração batia como nunca tinha batido, os seus ouvidos ainda zumbiam do cântico dos seus guerreiros, e ele lutou mais uma vez contra a idéia assustadora de que nada se iria passar.

Então, como um homem que se atira à água, avançou.

A princípio não passou de uma fraca vibração. Mas a cada passo que o aproximava da mesa e da pedra que nela estava engastada, a vibração ganhava intensidade, tornava-se mais potente, mais aguda. E quando, por fim, ele tocou o talismã, a pedra gemeu, tão forte, que o seu grito chegou até cada um dos guerreiros alinhados nos corredores do castelo.

O clamor imediato, cobriu o lamento da Fal Lia.

Uter era rei.

 

                         TINTAGEL

Ajoelhada no halo luminoso de uma janela, tão estreita quanto uma seteira, pela qual entrava uma brisa carregada de neve, Ygraine tremia, com a cara picada pelo ar frio, os cabelos salpicados de palhetas de gelo. Fazia demasiado frio para rezar, demasiado frio mesmo para crer em Deus, e as devoções do abade Illtud pareciam-lhe intermináveis. Uma recordação atravessou-lhe o espírito. Era pleno Verão, dez meses antes, na doçura e graça do seu oratório, e o ar deitava um perfume a pétalas de rosa que as criadas espalhavam sobre o chão todas as manhãs. Nesse dia, era ao lado do bispo Bedwin que ela orava. Também ele tinha rezado durante um tempo infinito. Talvez fosse a maneira de rezar que lhes ensinavam nos conventos... Este pensamento fê-la sorrir por um instante, mas só mesmo um instante, pois a evocação desse momento passado não fez mais do que mergulhá-la um pouco mais na sua miséria presente.

Vestido unicamente com o seu hábito de burel cinzento, como se quisesse infligir-se como penitência o frio glacial do inverno da Cornualha, a cara macilenta e o crânio rapado com a sua estranha tonsura, com a sua barba fofa que se confundia com o capuz atirado sobre os ombros, Illtud parecia tão magro quanto Bedwin era gordo, e tão lúgubre quanto aquele quarto exíguo e enfumarado. Não eram pétalas de rosa que se espalhavam aqui, mas palha, para absorver um pouco a umidade dos chuviscos e da neve derretida. O local, na realidade, não se parecia em nada com o palácio de Loth... Com uma cama de dossel tão grande que ocupava a maior parte do quarto e o berço onde dormia a sua filha Morgause, não era de modo algum o local ideal para rezar, mas não havia capela, em Tintagel. Já era muito, aliás, haver quartos. O castelo de Gorlois não passava de uma fortaleza, elevada sobre uma falésia rochosa cercada por mar. Quase uma ilha, que se assemelhava a um punho esticado no oceano, e à qual não se podia aceder a não ser por uma estrada traçada sobre uma borda estreita, batida pelas vagas e barrada por um castelo fortificado.

Ainda mais do que as suas paredes nuas e rugosas, feitas de um empilhamento de pedras lisas ligadas com argamassa, sem a mais pequena tapeçaria para as alegrar nem mesmo cal para as tornar mais claras ou alisar as asperezas, ainda mais que o cheiro a restos de velas de cera que era preciso acender bem antes do final do dia, ainda mais que o fedor a urina e a fumo que impregnava todos os recantos, era a umidade gelada de Tintagel que desesperava Ygraine. Aqui, os homens tornavam-se animais, abafados nas suas peles e na sua sujidade, quase sempre bêbados para lutarem contra o rigor das noites de vigia. E quando eles estavam bêbados, os seus olhares tornavam-se insistentes. Não havia muitas mulheres, em Tintagel...

A noite era o pior de tudo. Desde que o lume se apagava, o frio gelava os lençóis e congelava a palha úmida que cobria o chão. Desde o dia em que tinha encontrado Morgause imóvel no berço, com a cara azulada e o corpo sacudido por tremores, Ygraine dormia com a filha na cama de dossel, encostando a pequenina contra ela para a aquecer. O que quer dizer que ela não dormia... Eles só lá estavam há algumas semanas, mas todo o desejo que ainda lhe restava de querer viver já se tinha gasto e, como o próprio Gorlois, como sem dúvida todos os homens da guarda, parecia-lhe por vezes já estar morta.

Quando Illtud tinha chegado, nessa mesma manhã, acompanhado por uma procissão de monges, fugindo do exército do Pendragon, a rainha tinha corrido ao seu encontro, com Morgause nos braços. A presença do abade na fortaleza enchia-lhe o coração de uma alegria infantil, como se ele a tivesse vindo libertar, como se ele fosse pôr fim à sua penitência. Ele tinha-as abençoado às duas, e depois tinha-a abraçado, num impulso de sobrevivente que encontra os seus familiares depois de um naufrágio. Mas, depois de tudo, não era exatamente esse o estado deles?

Depois, a neve tinha começado a cair, pondo fim às efusões, e eles tinham-se refugiado nesse quarto miserável onde nem um nem o outro se conseguiam aquecer, apesar do lume fraco e do chiar de uma madeira demasiado úmida que, no fogão, soltava mais fumo que calor.

Subitamente, Morgause agitou-se dentro do berço e começou a chorar. Ygraine levantou-se e precipitou-se na sua direção, sem mesmo pensar em se persignar. O coração apertou-se-lhe ao ver a filha tão pálida, e pousou os lábios na sua pequena face gelada.

— Ela vai morrer se eu continuar aqui — disse ela, cobrindo-a com a sua capa de pele.

Calmamente, o abade fez o sinal da cruz e levantou-se sem uma palavra. Alisando a sua barba castanha com um gesto familiar, avançou até à chaminé e remexeu os toros com a ponta do pé, conservando-se em silêncio até que a ama, que tinha acorrido aos gritos da criança, se instalou para lhe dar de mamar.

— Não parei de interrogar o Senhor — disse quando por fim Ygraine veio para junto dele. — Todas estas provas que ultrapassamos... Anos de esforços anulados em alguns meses. É como se Ele nos tivesse abandonado. Como se Ele pusesse a nossa fé à prova...

Ygraine foi surpreendida pela expressão abatida de Illtud. Os seus olhos, normalmente tão vivos, estavam toldados pela fadiga, e o céu inteiro parecia pesar-lhe sobre os ombros.

— Uter Pendragon tomou Loth — continuou ele —, mas calculo que já o soubesses. O regente, por uma vez, teve razão. Se não tivessem fugido de lá, os dois, estariam nas mãos dele, hoje, e tudo estaria perdido.

Ygraine reprimiu um trejeito irônico. Mas, meu pai, já está tudo perdido...

— Ele é como o vento que varre a terra — murmurou ele com os olhos mergulhados na contemplação do fogo. — As suas vitórias têm um cheiro sobrenatural, e agora ninguém ousa enfrentá-lo. Ignoro o que o poderia ainda parar.

Ele deitou-lhe um olhar interrogador, mas ela não respondeu. Havia medo nos olhos do santo homem. Um pavor supersticioso que lhe recordou a expressão espantada de Gorlois e de todos aqueles que o tinham seguido até este exílio no fim do mundo. Mas havia também uma pergunta, um pedido não formulado, sempre a mesma, à qual ela se recusava a responder. Ygraine hesitou um instante e depois pegou nas mãos de Illtud para o obrigar a olhá-la na cara.

— Nada o pode parar, meu pai... Ele não é somente Uter, bem o sabe. Ele tornou-se outra pessoa... Uma espécie de...

Ela interrompeu-se, mas o abade completou a frase que ela não ousava pronunciar.

— Uma espécie de deus, não é? É isso que tu pensas, também tu?

Morgause espirrou bruscamente, bem a propósito, o que permitiu à rainha esquivar-se para a tirar à ama e lhe pegar ao colo. A menina estendeu a mão rechonchuda, agarrou umamecha dos longos cabelos loiros que lhe caíam sobre os ombros, e esta brincadeira que se tinha tornado habitual entre elas aqueceu-lhe o coração.

— Só me resta ela — disse Ygraine, voltando lentamente para ao pé de Illtud. — Se lhe acontecer alguma coisa, se ela sucumbir a este horrível inverno, ou se Uter nos vier combater aqui em Tintagel, perderei tudo... Ajude-nos a fugir. Uter não nos fará nada, ele irá proteger-nos.

— Mas...

O homem de Deus procurou as palavras, com o espírito perturbado com o que ela acabara de lhe dizer.

— Mas tu és a rainha! Se te colocas debaixo do seu poder não sobrará nada!

Os olhos de Ygraine flamejaram, e ela teve que fazer um esforço considerável para dominar a cólera que subia dentro dela. A rainha de quê? Deste castelo de quatro ventos, destes cobardes, destes furtivos que não tinham ousado enfrentar Uter?

Eu obedeci-vos, meu pai — disse ela no tom mais veemente que conseguiu. — Quando me pedistes para casar com Gorlois eu obedeci-vos. Se tivesse recusado, não estaria hoje aqui!

— Se tivesses recusado estarias hoje morta, Ygraine — murmurou Illtud.

— Pois, bem gostaria de estar!

Ela virou-se imediatamente para que ele não visse as lágrimas de raiva e os seus lábios trêmulos. Deus sabe quantas vezes ela tinha pensado na morte, no vazio para escapar a esta existência infame... Mas, hoje, no fundo do seu ser, ela sabia que mentia. Havia Morgause, neste momento, e era uma razão para viver mais forte que a vergonha ou o desespero.

— Illtud — gemeu ela. — Porque haveis feito isto? Porque me casastes com ele?

O abade estremeceu, desarmado com esta pergunta direta e preferiu responder também diretamente.

— Porque me enganei.

Ela continuava de costas voltadas para ele e embalava lentamente o berço de Morgause.

— Eu enganei-me, e o senhor Gorlois enganou-me — disse ele. — Pequei por vaidade, o Senhor puniu-me. Pensei ter tempo para o converter verdadeiramente, para lhe fazer descobrir o amor de Deus, mas falhei. Gorlois só se serviu de mim...

Illtud reviu em pensamento o casamento precipitado deles, e o olhar fugidio do bispo Bedwin, sobre quem pesava a traição daquele simulacro de cerimônia. Mas Bedwin estava morto, presentemente, e de nada servia abrigar-se por trás do seu túmulo. Não com Ygraine.

— Deus afastou-se de nós porque o ofendemos — disse. — Este falso casamento, esta falsa conversão, este falso rei... Ninguém consegue enganar o Senhor. Ele vê tudo, sabe tudo, e Ele sonda o coração dos homens bem para além das aparências e dos artifícios.

A rainha, quase que sem querer, voltou-se para o santo homem, cuja voz potente soava agora com toda a força.

— Mas por enquanto nada mudou, Ygraine! É sempre preciso um rei nesta terra!

— Raios o partam, eu sou o rei!

A voz de Gorlois, aguda e transtornada, fez-lhes saltar o coração dentro do peito. Abafado na sua capa de pele ainda brilhante da neve derretida, o seu único olho injectado de sangue, pôs a mão na cintura. Apercebendo-se de que não trazia armas, pegou num tamborete e atirou-se em direção ao abade e, antes que este pudesse fazer o menor gesto, atingiu-o na cara, com todas as suas forças. Illtud caiu aos pés de Ygraine.

Já levantava de novo a mão para acabar com ele, quando ela se interpôs, com um movimento tão rápido que o bebê começou a gritar.

— Se o matares, irás para o inferno! — gritou ela.

Gorlois olhou-as com um ódio enorme, a ela e à filha, aquela criança inútil que nunca poderia reinar. Porque não lhe tinha ela dado um filho! Um filho, para que o trono de Logres pertencesse para sempre ao seu sangue!

— Inferno, heim?

Ele riu-se com desdém, mas a sua mão baixou-se e deixou cair o tamborete ao chão. Depois aproximou-se dela, até a tocar, tão perto que Ygraine sentia o seu hálito avinhado, e com um gesto brusco arrancou a capa que as cobria às duas.

— Para o inferno só vão os que acreditam nele — murmurou ele, com os lábios aflorando as faces da rainha. — E eu, só acredito em mim!

— Não o suficiente para enfrentar Uter!

A cara de Gorlois tornou-se tão branca quanto os seus cabelos e a sua barba, enquanto o seu esgar de desprezo se converteu pouco a pouco numa careta de puro horror. Ele afastou-se abanando a cabeça, virou-lhes as costas e pareceu dirigir-se para a porta mas, quando Ygraine se relaxava, ele deu meia volta e, com uma brutalidade incrível, arrancou-lhe Morgause e atirou-a ao chão, como se ela não fosse mais que um alforge. A jovem rainha deu um grito de fera, estendendo os braços para a criança que se torcia no chão e gritava desalmadamente, mas ele agarrou-a brutalmente e, indiferente aos seus murros e gritos, atirou-a para a cama, enquanto a ama fugia aos gritos. Ygraine tentou levantar-se, e ele esbofeteou-a com toda a força. Depois, arrancou-lhe com um golpe seco os laços que lhe fechavam o vestido. Ela conseguiu empurrá-lo com um pontapé, mas ele bateu-lhe de novo, desta vez de punho fechado, até que ela quase perdeu a consciência. Ela sentia o gosto do sangue na boca, o corpo de Gorlois pesava sobre ela como um burro morto, a sua barba eriçada raspava-lhe as faces e, quando ele a possuiu, foi como se um ferro em brasa lhe tivesse queimado as entranhas. Mas, além disso tudo, ela ouvia o choro de Morgause. Então, ela deixou de lutar, agarrando-se desesperadamente à idéia de que se a sua bebê chorava, era porque estava viva.

Quando Gorlois se saciou deixou-a assim, nua e branca sobre o leito em batalha, a cara marcada pelos murros e pelas lágrimas, bela, apesar de tudo, tão frágil e tão delicada no meio do seu vestido rasgado que formava à sua volta como que uma coroa. Se pelo menos ela tivesse conseguido amá-lo... Mas não, é claro. Ele era demasiado velho, mais velho ainda que Pellehun, mais feio em todo o caso, com aquele olho vazio, os cabelos e a barba que se tinham tornado brancos, aquela longa cicatriz e aquelas rugas. As rugas são cicatrizes da vida, e a cara de Gorlois trazia os traços de tantos anos de luta e de ódio, que elas lhe tinham talhado uma máscara carrancuda, desconfiada, que nada parecia poder apaziguar. O regente agarrou nas suas peles depois de um último olhar sobre o corpo ofegante de Ygraine. Ao sair, cuspiu sobre Illtud que recuperava a muito custo a consciência, com uma grande marca ensanguentada na testa.

Sangue corria por entre as pernas da rainha. Ela não conseguia manter-se em pé e teve que se arrastar até à filha, nua e trêmula como uma folha, a cara e o corpo azulados pelos murros. Pegou-lhe carinhosamente ao colo, e depois enroscou-se nela gemendo.

Pelo menos, Morgause estava viva.

 

O muro da fachada estava coberto de gelo. As suas pedras escuras e salpicadas de flocos brilhavam à luz pálida da lua como uma cota de malha. Tinha feito frio durante todo o dia, um frio glacial alimentado pela brisa do mar carregada de umidade que levantava os turbilhões de neve e atingia os rostos. Com a noite, a temperatura tinha baixado ainda mais, ao ponto de se formaram montes de gelo sobre os caminhos, da neve se agarrar nos salpicos de chuvisco, das poças de água do mar formadas pela maré baixa terem gelado, por todo o lado na praia.

A aura de bruma que tinha origem na massa altiva, insolente, da fortaleza, dava-lhe ares de dragão adormecido. Colado ao muro, Lilian observava o despenhadeiro vertiginoso das muralhas por cima dele, tão altas e escuras que os seus olhos de elfo mal as distinguiam da escuridão do céu. Ao seu lado, os outros trocavam olhares inquietos.

Lilian era o que os homens chamavam de acrobata (era assim pelo menos que eles traduziam a sua faculdade sobrenatural de brincar com as leis da gravidade), mas desta vez a tarefa era quase impossível... Era o mesmo que tentar subir ao próprio céu.

Uter percebeu a hesitação do grupo, um eco ao seu próprio desencorajamento. Contrariamente aos seus companheiros com olhos de gato, ele não via nada e, como todos os homens, tinha medo da noite. Medo e frio. As suas roupas encharcadas pelo mar colavam-se-lhe à pele, fios de água salgada pingavam-lhe dos cabelos entrançados até às costas, sentia-os endurecerem-se sobre ele, aprisionando-o numa gargantilha de gelo. Enquanto eles tinham corrido, nadado, escalado, o frio tinha-lhe parecido suportável, mas sentia agora até à medula a sua influência lívida. Cada vez que respirava era um sofrimento que reavivava a ferida do seu pulmão perfurado e as costelas partidas durante o assalto. Os elfos viraram-se para ele, esperando uma ordem, um sinal, mas ele era incapaz do menor gesto, do menor pensamento, da menor palavra, tão agitado estava de tremores.

Medo ou frio.

O mar estava calmo, felizmente, com a maré baixa, mas esta calma fazia-lhe mal. O fraco bater das ondas não era suficiente para cobrir o barulho do forte — sons de armas ou de espetos, risos, roncos, gargalhadas de bêbados —, o que significava que os guardas, lá em cima sobre o caminho de ronda, também os ouviriam, ao menor passo em falso. Ao longe, por cima deles, a luz alaranjada de um archote vacilava ao vento, ao passo tranquilo de uma sentinela que devia estar abafada em peles. Se Lilian caísse durante a sua escalada (e como estavam escorregadios os muros, era o mais provável), se ele não conseguisse matar o guarda ao chegar lá a cima, ou mesmo se um deles espirrasse, a ação deles estaria terminada.

Era uma loucura. Um desafio fanfarrão lançado em volta de uma fogueira de campo. Para quê correr tantos riscos, quando ainda mal estavam restabelecidos dos seus ferimentos, quando bastariam alguns dias para que o exército chegasse a Tintagel? As tropas de Léo de Grand, sozinhas, teriam podido cercar a fortaleza e obrigar Gorlois à rendição. O ódio de Carmelide por esse homem que o tinha querido assassinar era suficientemente forte para conseguir deitar abaixo aquelas muralhas reputadas de intransponíveis... Mesmo se o elfo conseguisse içar-se até aos estrados de madeira que enfeitavam as ameias, deslizar para o interior e lançar-lhes a corda que levava enrolada em volta do tronco, nunca iriam conseguir chegar até Gorlois sem darem o alarme. Nunca eles encontrariam a Espada. E nunca sairiam de lá vivos.

Uter avançou às cegas até ao trepador e tocou-lhe no braço para lhe chamar a atenção, mas no momento de falar uma onda de calor espalhou-se por ele até ao mais profundo das suas entranhas e foi Lliane quem falou pela sua boca.

— Nethan faeryld, Lilian... Vai sem medo.

Uter teve um sobressalto, mas o elfo sorriu-lhe alegremente. Aliás, todos os outros sorriam: Kevin, o arqueiro das flechas de prata, Dorian, o próprio irmão da rainha, e os seus companheiros. O Pendragon estava novamente entre eles, e esta presença varria todas as suas apreensões... O acrobata atirou para trás das costas os seus longos cabelos negros e inspirou profundamente. Tinham nadado durante longos minutos desde uma gruta marinha cavada pelas ondas, para chegarem a Tintagel por mar, ali, onde as falésias abruptas interditavam qualquer assalto de envergadura, e as muralhas estavam menos guardadas. Os elfos, semelhantes às pedras ou às árvores, não temiam nem o frio nem a chuva, mas Lilian ressentia o endurecimento das suas roupas geladas como um incómodo suplementar. Soprou sobre os dedos entorpecidos, certificou-se do seu primeiro assalto e, de um só golpe, içou-se rapidamente vários metros. Foi mais fácil do que o previsto. As pedras planas da fortaleza tinham bastantes saliências para colocar as pontas dos dedos, a ponta dos pés, e empurrar, puxar, deslizar sobre o muro de uma só vez, sem cortes, sem paragens, sem barulho.

Rapidamente, nem Uter nem nenhum dos elfos conseguiram distingui-lo dos muros escuros de Tintagel.

Lilian continuava a subir quando reconheceu o odor adocicado, enjoativo, de excrementos humanos que sujavam a pedra em longas fileiras endurecidas pelo frio, debaixo das praças de armas que serviam de latrinas. Ouviu o passo lento e regular de uma sentinela sobre o caminho de ronda coberto que rodeava as muralhas. Pela primeira vez, parou, até que os passos se afastaram, até não se ouvir mais do que o barulho da maré e o da sua própria respiração. Então içou-se de novo, mais algumas toesas, antes de chegar às vigas do estrado, de alçar as pernas por cima delas e de poder finalmente descansar os dedos entorpecidos. Mesmo por cima dele distinguiu o orifício obsceno de uma besteira suja de dejetos fecais. Em tempo de guerra, os guardas despejavam por ali azeite a ferver ou pedras sobre os assaltantes, mas eles tinham-lhe visivelmente arranjado uma outra utilidade... Lilian controlou o seu nojo, inspirou profundamente e começou a deslizar pelo estreito desfiladeiro, esperando unicamente que nenhum dos guardas tivesse a idéia de utilizar a besteira nesse momento.

Lá embaixo, na estreita vereda que ladeava a fortaleza, Uter tinha-se afastado do pequeno grupo, com a nuca dura e os olhos doridos à força de perscrutar em vão no escuro. Ele via somente o suficiente para distinguir o rebordo da falésia e o tapete movediço das ondas que brilhavam sob a lua, o suficiente para encontrar uma pedra onde se sentar. Cuspiu para o desfiladeiro, a boca ainda salgada da água do mar, e segurou a cabeça entre as duas mãos, quebrado pelo esforço da travessia e pelo desembriagamento. Como sempre, quando Lliane deixava de estar dentro dele, sentia-se esvaziado de toda a energia, desorientado e de mau humor, com a impressão de ter sido forçado, de não passar de um instrumento cego, incapaz de agir segundo a sua própria vontade. Bom, é verdade, ele já não tinha frio, mas porque é que ela nunca falava com ele? Porque é que ele tinha sempre aquela sensação de ter sido desapossado da sua alma?

Privado da força do Pendragon, Uter tornava-se menos que ele próprio. O cansaço da noite fazia-se sentir nas suas pernas, espalhava-se pelos seus membros tão seguro quanto um veneno, até que a própria adaga de prata que ele carregava às costas lhe pareceu um fardo. Lentamente, como as ondas que, de cima para baixo, rebentavam na areia, um sopro de tristeza veio moldar-lhe o coração e a garganta. Cada dia, o peso do Pendragon era um pouco mais difícil de suportar. Quem era ele, pobre cavaleiro preso nas teias das fadas, para comandar tal exército, e se encarregar assim do destino de três povos? Como a maioria dos cavaleiros do rei, ele ainda não tinha vinte anos quando tinha entrado para o serviço de Pellehun, e a sua infância tinha-se esfumado no tumultuo das salas de armas. Demasiado jovem para servir na guerra dos Dez Anos, não tinha conhecido a honra de uma causa justa, o conforto de um inimigo único, a embriaguez da vitória sem remorsos. A guerra dele era suja, maldita, fratricida, contra os estandartes daqueles que ele tinha servido em outros tempos. O tempo da inconsciência, das espadas de madeira e das batalhas a brincar parecia já tão distante, quando o mundo era simples e o seu futuro estava escrito... Tudo o que ele esperava, nessa época, era ser armado cavaleiro, arranjar uma mulher e tornar-se um dia barão, com a morte do seu pai. Ou então morrer na guerra, como tantos outros, somente com a esperança de não se lamentar nos últimos instantes. Que falta, que pecado inexplicável o tinha afastado assim do seu destino? Ele tinha tentado, no entanto. Deus sabe quanto ele tinha tentado! E Deus sabe quantas tentações ele tinha repelido, até os sorrisos da rainha Ygraine, tão jovem e tão mal casada. Até os lábios de Ygraine... Até a sua mão pousada sobre o seu pescoço tão branco...

— Uter?

O jovem sobressaltou-se e enxugou os olhos com as costas das mãos. Era Dorian, o irmão mais novo de Lliane. Dorian viu que ele tinha chorado.

— Não há honra neste castelo.

Uter tentou vê-lo em vão. Parecia-lhe que o elfo sorria, mas não podia decifrar a sua expressão naquela escuridão

— E não há honra em matar à noite.

Estaria ele a tentar dizer-lhe que podia ficar para trás? Pensaria que ele chorava porque tinha medo?

— Vamos.

Ele avançou de um salto, fervendo de vergonha e de cólera. Como poderia Dorian ter compreendido? Os elfos eram como os animais, tão medonhos por vezes, na sua ausência de sentimentos humanos. Como se eles não sentissem nem medo, nem remorso, nem amor... Não, nem mesmo amor. Nem mesmo ela. Nem mesmo Lliane.

Uter quase empurrou um elfo que tinha já segura a corda desenrolada por Lilian e içou-se pesadamente, com os pés apoiados sobre a muralha. Ele não mediu os esforços para se erguer rapidamente para além do alcance dos olhares deles, e cansou-se ao fim de algumas toesas, com as têmporas a latejar e o coração a saltar-lhe pela boca. Pontos luminosos dançavam-lhe em frente dos olhos, e ele teve que parar, inspirando com avidez grandes golfadas de ar do mar, sempre arqueado contra as muralhas.

— Não te mexas!

Uter abriu os olhos sem saber quem lhe falava. Lilian ou outro elfo qualquer dos que já tinham subido? Depois viu a luz suave de um archote furar a noite, ameia após ameia, aproximando-se do merlão sobre o qual o acrobata tinha fixado a sua corda. Ele encostou-se imediatamente contra o muro pegajoso, crispado sobre a sua corda, raspando os joelhos na muralha, com os pés pedalando em vão no vazio à procura de um apoio. Com os braços esticados, ele ouvia o chão do caminho de ronda ranger sobre o peso da sentinela, a alguns metros apenas por cima dele. O passo do guarda era irregular, arrastado. O homem devia estar a dormir em pé. Talvez ele não visse nada. Talvez...

— Senhor!

Uter abriu os olhos, com o coração a bater. O grito do guarda tinha-se afogado num gorgolejo atroz. Ele não ousava mexer-se, e no entanto sabia que não podia continuar ali, que os seus braços não aguentariam muito mais tempo. Subitamente, uma silhueta imprecisa apareceu na ameia e, pouco depois, uma massa silenciosa oscilava no vazio zumbindo como uma vara e esmagou-se no chão, em algum lugar no abismo escuro que se estendia debaixo dos seus pés. Uter levantou os olhos: nada mais. O archote continuava a arder, projetando na noite um facho de luz alaranjada. Ele arqueou-se de novo, subiu as últimas toesas gemendo, agarrou o rebordo da ameia e içou-se de barriga sobre o caminho de ronda. As suas mãos tremiam e os seus dedos entorpecidos tinham a marca da corda. Ficou assim alguns segundos, batendo os dentes, sacudido por tremores, com os olhos fixos no archote caído por terra, fascinado pela luz das chamas como uma borboleta de noite. Depois divisou o brilho azulado da cara de Lilian, sorrindo, de Kevin o arqueiro das flechas de prata, pálido como um fantasma na sombra de uma passagem... Uter, nesse instante, detestou-os.

Por trás dele, a corda esticou-se mais uma vez por puxões. Um outro subia.

Ele levantou-se de um salto, pegou o archote, que já tinha chamuscado o estrado, e atirou-o por cima das muralhas. A noite invadiu o caminho de ronda, revelando luzes pálidas ao fundo das passagens, por entre os caixilhos das portas que conduziam às salas comuns.

Uter desembainhou a sua longa adaga élfica, fez um rápido sinal com a cabeça ao acrobata agachado na escuridão, e lançou-se para o interior do palácio.

Atrás dele ouviu os outros dispersarem-se em pequenos grupos pelas passagens. Lilian tinha-o seguido? Deitou um olhar para trás. O elfo seguia sem esforço o ritmo da sua corrida e não fazia o mínimo ruído, ao ponto de ele ter julgado que estava só. E não estava, aliás, mais do que nunca? Nesse instante, percorrendo as passagens da fortaleza adormecida, banhada de cheiros tão humanos, tão acres, reencontrando os corredores que ele tinha em outras alturas atravessado, as salas onde ele tinha dormido, Uter sentia-se submergido por um nojo de si mesmo, mais forte que a prudência, mais forte que o ódio, mais forte que a dor dos seus ferimentos. Cada passo era um pouco menos prudente, um pouco mais sonoro, tão apressado ele estava em acabar, de uma maneira ou de outra, esquecendo tudo para além do seu objetivo, encontrar Gorlois, matar Gorlois, desencantar aquela espada maldita e pôr um ponto final a esta ação sem sentido! Com a mão fechada sobre o punho da sua arma, corria agora sem tomar atenção, rindo quase, embriagado, louco, já morto, e pelo menos Lilian morreria com ele!

À porta do quarto ducal, um guarda armado com uma lança estava encostado à parede debaixo de uma tocheira. O vacilar das chamas fazia dançar a sua sombra nas lajes do corredor. Estranhamente, o homem ria em silêncio. Uter parou, ofegante, mas Lilian ultrapassou-o sem desacelerar a corrida e colou-se ao guarda como que para o abraçar. O brilho de uma lâmina, o tinir de uma lança no chão de pedra. O homem caiu, com os olhos esbugalhados, as mãos segurando a garganta a borbulhar de sangue e com atrozes soluços de peixe fora de água.

O elfo abriu a porta do quarto e deslizou para o interior.

Quase imediatamente houve um grito de medo. Um grito de mulher. A voz de Ygraine.

Uter atirou-se para dentro. Visão grotesca. Um corpo atarracado, do qual só se viam as nádegas, a camisa levantada até meio das costas e as bragas nos tornozelos, deitado no chão sobre a barriga, ao lado da cama de dossel entreaberta. Uma poça de sangue alargava-se por baixo dele, escura e pegajosa, embebida pela palha que cobria as lajes. Sem lhe ter visto a cara, Uter soube que era Gorlois. Gorlois no chão, esvaindo-se em sangue, seminu, deplorável. Já morto, por mil diabos! Ele desviou os olhos e divisou o resto da cena. Uma mulher, na cama, os cabelos louros caindo em cascata sobre os ombros. Ygraine. Um punhal na sua mão, escurecido de sangue. O de Gorlois. Um bebê ao lado dela adormecido, e Lilian, hesitante, e depois o brilho da sua lâmina pronta a abater-se.

Uter deu um grito que petrificou o elfo, e atirou-se sobre ele. A sua adaga trespassou-o de um lado ao outro, sujando os lençóis brancos do leito de Ygraine.

 

                     A ÚLTIMA NOITE

Gritos, por todo o lado na fortaleza, urros de raiva e pavor, o eco de combates esporádicos, pedidos de ajuda e o barulho das tropas percorrendo os corredores em todos os sentidos, toda uma agitação ensurdecedora que lhes permitiu não dizerem nada, tão difíceis pareciam as palavras.

Uter tinha deitado ao chão a sua adaga élfica e tinha ficado ali, parado, com os braços caídos, ofegante ainda da sua corrida desenfreada, as costelas a doerem, os ferimentos do braço e da perna latejando ao ritmo do seu coração, incapaz de encontrar palavras, incapaz do menor gesto, separado dela pelos corpos sem vida do regente e do elfo. Ele não devia ter ficado parado. Ele devia tê-la pegado nos seus braços no momento em que tinha morto Lilian, mas agora era demasiado tarde, e quanto mais ele esperava, mais as palavras se enrolavam na sua garganta. E depois havia aquele bebê, a filha de Gorlois, aterrorizada com os gritos, lá fora, que estendia para ela as suas mãos pequeninas, choramingando.

Ygraine desviou bruscamente o seu olhar dele, pegou em Morgause e, segurando sempre o punhal sujo com o sangue do seu marido, correu para a porta do quarto para a fechar. Demasiado tarde. Guardas, grandes como ursos com as suas couraças de couro acolchoado e o capuz de ferro que lhes cobria metade da cara, tinham visto o cadáver do seu camarada, diante do quarto real. Um deles empurrou a porta com os ombros, projetando Ygraine e a criança para os braços de Uter, e um bando de homens armados irrompeu dentro do quarto.

Foi assim que eles os descobriram, a rainha e o Pendragon, agarrados um ao outro diante do corpo inerte de Gorlois. Ele sem armas nem armadura, vestido como um elfo, sem coroa nem trança de ouro, sem jóias nem peles. Ela, tão frágil, tão branca na sua comprida camisa de linho, os cabelos louros ondulando até à cintura e formando como que uma cascata em frente do bebê que ela apertava contra o peito. Os homens sopravam como forjas, as testas cobertas de suor e os olhares ainda brilhantes da excitação do combate, mas eles não se mexeram. A alguns, nesse instante, faltou coragem para darem mais um passo, somente um passo, e cortarem em dois aquele maldito Uter, aparentemente indefeso, mas sobre o qual se diziam tantas coisas medonhas. Outros, esperavam uma ordem, qualquer que fosse, pois é sempre isso que esperam os soldados. E outros, enfim, sem mesmo perceberem porquê, tiveram um sentimento de vitória.

Ygraine viu nos olhos deles indecisão, espera, e aquela estranha sensação de exaltação. Afastou-se de Uter e destapou com um gesto o corpo de Lilian, furado de um lado ao outro.

— Este elfo matou o regente — disse ela. — E o cavaleiro Uter matou o elfo. Quanto a mim, estou sã e salva, bem como a princesa Morgause.

Houve um momento de dúvida entre os guardas. A maioria só queria acreditar em Ygraine, mas a mentira parecia-lhes demasiado grande. Hesitavam ainda quando um deles, arvorando uma capa vermelha de comando, os afastou rudemente e os encarou.

— De joelhos diante da rainha! — grunhiu ele, segurando na mão uma maça de armas suficientemente robusta para fazer flectir os mais indecisos.

Ygraine atirou para trás das costas os seus longos cabelos com um movimento de cabeça e sorriu a Uter. Um sorriso que lhe apertou o coração e lhe queimou os rins. Apesar dos guardas, apesar do bebê que ela segurava nos braços, apesar do frio daquele quarto aberto aos quatro ventos e dos corpos caídos na palha, ele desejou-a nesse momento, imperiosamente.

Ela tinha avançado até ao guarda de capa vermelha e tinha-lhe pousada a mão sobre o ombro. O homem era tão grande que poderia tê-la quebrado com uma só mão, e no entanto era ele quem tremia, vermelho de confusão como uma criança.

— O teu nome? — disse ela.

— Antor, senhora minha.

— A tua terra?

O homem corou ainda mais.

— Não tenho terra, senhora minha. Sou sargento da guarda de Loth, a minha família está aí...

Ygraine sorriu-lhe, e a sua mão suave subiu até ao carapuço de malha entrançada que lhe encobria metade da cara. Ela atirou com firmeza o capuz para trás, revelando um cabelo castanho desgrenhado, curto e frisado, e uma cara juvenil, com meia dúzia de fios de barba. Ela olhou-o por um instante, e depois voltou-se para o grupo de soldados e dirigiu-se a um deles.

— Dá-me a tua espada.

O homem obedeceu em silêncio e depois recuou um passo baixando respeitosamente os olhos. A arma era tão pesada que Ygraine teve que a segurar com as duas mãos para a dar a Uter, que a agarrou mas a olhou sem compreender. Então ela voltou-se para Antor, com uma graça estudada.

— Senhor Antor, de joelhos diante do vosso rei!

Uter compreendeu por fim. Antor abriu os olhos ao contemplá-lo como se estivesse a ver um anjo caído do céu, tremendo de tal maneira que se poderia crer que ele se iria partir aos pedaços. Pôs um joelho no chão e baixou a nuca, esperando a palmada que faria dele cavaleiro, tremendo de alegria como um cachorro.

A espada, na mão de Uter, estava ainda suja de sangue. O de um elfo, talvez mesmo o de Dorian, ou de Kevin... Uter atirou com a espada num gesto brusco e ela ricocheteou com um barulho de ferro sobre as lajes do quarto real.

Antor levantou para ele um olhar alarmado, Ygraine apertou as mãos contra o peito, com os olhos à beira das lágrimas e os guardas olharam-no com um misto de medo e espanto.

— Esta espada está suja, Antor — disse ele pousando uma mão apaziguadora no ombro do sargento. — Ela só vos traria desgraça...

De novo, nos seus olhos, a confiança cega de um cão...

— Que me tragam Excalibur.

Os homens trocaram olhares indecisos, como se ignorassem aquilo de que ele falava, mas Ygraine interveio imediatamente.

— A espada de ouro e de pedras preciosas, no cofre do senhor Gorlois... Tu, vai lá. Rápido.

Ela não o olhou, voltou-lhe mesmo as costas para confiar Morgause à ama e se cobrir com uma capa de zibelina, mas Uter sentiu um alívio na sua voz. Por um momento, ela tinha pensado que ao rejeitar a espada era a ela que ele rejeitava. Ela e o trono de Logres... Então, como tinha temido Illtud, tudo estaria perdido.

— O monge! — disse ela de repente. — Onde está ele?

Ela ainda não sabia que não se devem fazer perguntas a um grupo, sobretudo em tom de reprovação. Os homens calaram-se, evitaram o seu olhar.

— Senhora, está na prisão — disse Antor, levantando-se. — O senhor Gorlois mandou prendê-lo e expulsou os outros...

Ygraine tentou não pensar no destino desses infelizes, atirados para a estrada nas tempestades de inverno.

— Vai buscá-lo — disse ela. — E leva o corpo do regente... Diz ao abade Illtud que sou sua serva e que lhe peço que reze pela sua alma.

Saíram todos, arrastando o cadáver de Lilian, carregando sobre os ombros o de Gorlois, deixando-os sozinhos aos dois.

De novo, ela avançou até à porta e, tendo-a fechado, virou-se e apoiou-se com um suspiro de alívio nas grandes tábuas de carvalho que a formavam. Ela pôde finalmente perder tempo a olhar para Uter, tão diferente do jovem com quem sonhava noutros tempos, com aquelas rugas, em volta dos olhos, aquela longa cicatriz que lhe cortava a face, aquela sensação de força que emanava dele... Ele sorriu-lhe, mas como continuava parado, ela fez algo de que nunca se julgaria capaz. Baixando os olhos, abriu o alfinete que segurava a sua capa, desatou o laço da sua longa camisa de linho e deixou escorregar ambas ao longo dos seus ombros e braços, das suas ancas e coxas. Imóvel e nua, corando e mais impudica do que alguma vez o foi uma mulher, deixou Uter embriagar-se nas suas curvas, no arredondado e nas partes escondidas do seu corpo. Ela também tinha mudado. Já não era a jovem, quase criança, por quem ele se tinha apaixonado em Loth, mas uma mulher, uma mulher que tinha dado à luz... E que tinha morto. Ele perguntava-se onde é que ela teria escondido o seu punhal ensanguentado...

— Sou tua, Uter. Serei tua rainha ou tua prisioneira. Como tu quiseres...

Ela arqueou-se quando ele lhe pousou as mãos geladas sobre as costas, mas quando a beijou ela abandonou-se e encostou-se a ele. Abriram os olhos ao mesmo tempo, reencontrando com alegria o gosto do seu primeiro beijo, há tanto tempo, em Loth.

— Eu quero-te para minha rainha, Ygraine, se tu me quiseres a mim...

— Quem não te quereria, Uter? — disse ela, acariciando com os dedos a sua longa cicatriz, que lhe cortava a face, da orelha ao queixo. — Tu és o Pendragon.

Bateram à porta, e ela afastou-se dele, inocente e muda, depois virou as costas à sua evidente frustração e vestiu-se, tão lentamente, que lhe foi preciso verdadeiramente algum poder mágico para resistir à tentação. É claro... Ele era o Pendragon.

Um último olhar antes de abrir, e o quarto foi uma vez mais invadido, mas desta vez por um bando submisso, conduzido pelo abade Illtud, mais magro e sombrio que nunca. Uter tinha-se retirado para o fundo do quarto, para a frente do fogo. Tinha de novo frio, as suas vestes pegajosas e geladas colavam-se-lhe à pele, como se o calor de Lliane o abandonasse pouco a pouco. Ele ouvia o murmúrio nas suas costas, percebia o barulho de uma multidão, raspar de tecidos e rangidos de armas, mas o seu coração batia com demasiada força para que ele sentisse coragem de os encarar. O corpo agitado por tremores, a garganta com um nó de agonia, ele pensava em Dorian, em Kevin o arqueiro e em todos aqueles que o tinham seguido até aqui. Sem dúvida estavam todos mortos por causa desta ação louca. Salvo ele... Ele que estava prestes a tornar cavaleiro um dos guardas que os tinham cortado em pedaços e que, estranhamente, não sentia nenhum remorso. A Espada, também ela, seria em breve dele. O objetivo da sua demanda, mesmo antes de esta demanda ter perdido todo o sentido. Porque é que a idéia de devolver a Excalibur aos anões lhe parecia subitamente absurda? Ele sacudiu-se, ofuscado por esta idéia e, arrancando-se da contemplação doentia da chama, voltou-se para descobrir uma assembléia agrupada respeitosamente a certa distância.

Um ser magríssimo em hábito de burel escuro como a noite, com um ar tão triste quanto o seu Purgatório, brandia o talismã dos anões, a espada Caledfwch, ”Duro raio”, a espada feita pelo deus Nudd do braço de prata, aquela a que os homens chamavam Excalibur.

A espada de ouro brilhava na escuridão do quarto, tão carregada de pedras preciosas que se diria ser uma relíquia. Uter evitou cruzar o olhar de Illtud, pegou no punho e desembainhou-a, com um longo ranger metálico que fez imediatamente calar todos os murmúrios. A espada era pesada, o fio afiado, e a lâmina inteiramente coberta de finas cinzeladuras entrelaçadas. Apesar da beleza, apesar dos rubis e das esmeraldas que guarneciam a espada, apesar dos fios de ouro entrelaçados que formavam o cabo, era uma arma temível, a arma de um deus...

— De joelhos, sargento.

Antor avançou e inclinou-se diante dele. Não havia um único murmúrio, agora, nem um único barulho com exceção do crepitar do fogo, para além do silvo da tempestade. Uter levantou lentamente a espada e tocou o jovem nos ombros com a parte plana da lâmina. Depois pousou a Excalibur no seu próprio braço e, como Antor se contraía para passar a prova da palmada, bateu-lhe na nuca com toda a força com a palma da mão, com tanta força que o deitou ao chão, debaixo de risos e graçolas da tropa, repentinamente libertada.

— Este golpe, senhor Antor, é o último que recebeis sem devolver — disse-lhe, levantando-o.

Beijou-o nas duas faces e nos lábios, segundo o ritual, e depois deixou o jovem ajoelhar-se diante da rainha para lhe beijar fervorosamente a mão.

— Minha rainha, sou vosso. A minha vida e a minha espada pertencem-vos para sempre.

— Assim seja! — exclamou Illtud, e todos os homens se persignaram repetindo a benção do abade.

— Senhor Antor — disse Ygraine —, os monges foram expulsos desta fortaleza, a noite passada. Lançai os vossos homens à procura deles. Encontrai-os, trazei-os de volta e dai-lhes de beber e de comer.

— As vossas ordens serão cumpridas, minha rainha.

— E que me enviem criados — continuou ela. — Água quente, roupas, vinho. O rei deve trocar-se e repousar.

Uter sorriu, revendo o corpo nu da rainha encostado ao dele. Ela devia ter frio...

— Senhor Uter — disse Illtud avançando para ele, carregado com a bainha de Excalibur. — Que pensa fazer com essa espada?

Com um gesto descontente, o jovem pegou a bainha trabalhada e lentamente enfiou nela a lâmina de ouro. Era uma questão demasiado abrupta, uma questão que ele tentava com grande esforço reprimir no fundo de si mesmo. Não era certamente para responder a esse monge triste de fraca figura.

— Meu pai, com a vossa permissão, obedecerei primeiro à rainha — disse ele. — Tenho frio, tenho fome e tenho sono... E parece-me que também vós estais a precisar de um pouco de repouso e de um pouco de vinho.

Illtud abriu a boca para insistir, mas percebeu a impaciência da rainha, e, de certo modo, já tinha tido a sua resposta, visto que Uter ficava com ela, visto que continuavam todos vivos...

— Tu não te lembras de mim — disse ele num tom bem diferente, subitamente humano e amigável —, mas fui eu que fui benzer a capela do teu pai, em Cystennin, quando tu não passavas de uma criança... Sinto muito.

Ele interrompeu-se, sorriu rapidamente a Uter e dirigiu-se para a porta.

— Desejo-te uma boa noite, ou pelo menos o que resta dela... E rezarei a Deus para que me conceda uma última graça.

— Qual? — não conseguiu impedir-se de perguntar Uter.

— Amanhã, se Deus quiser, os soldados trarão para cá os monges que me acompanharam. E se ele não morreu, far-te-ei encontrar alguém que tu conheces bem. Alguém que, talvez, te possa ajudar a tomar a tua decisão.

— Meu pai — disse Uter num tom simplesmente cortês —, venci demasiadas provas para brincar às adivinhas. Se tem algo a dizer-me, diga.

— Não sou eu quem te deve falar — disse Illtud. — Mas um monge, que me é muito querido a mim e a ti. O seu nome é Elad. Ele estava presente quando o teu pai morreu, e sabe quem o matou.

 

O dia nascia em Avalon. Era uma aurora como as outras, com a mesma claridade, o mesmo sol ao longo de todas as estações, mas Lliane acordou com o coração vazio, com o sentimento de uma enorme falta.

Myrddin ainda dormia, envolto na sua capa. A sua cara, quando tinha os olhos fechados, não era tão juvenil. Parecia esgotado, aniquilado por semanas de provas que acabara de passar, por toda a energia que tinham gasto, e ela perguntou-se se teria um ar tão cansado quanto ele. Rhiannon chamava-a. Era preciso ocupar-se dela, alimentá-la com as primeiras bagas, mirtílios ou framboesas. Ela fê-lo, acariciando os cabelos já compridos, de um castanho claro que, sob o sol de Avalon, aloiravam cada dia um pouco mais, como se a natureza se esforçasse a fazer Morgana parecer-se com a criança do seu sonho, a criança das fadas, coroada de buxo... Ela sorriu-lhe, mas cada um dos seus gestos era tenso e cheio de tristeza. Havia, nos olhos calmos de Morgana, uma frieza que por vezes a inquietava. A frieza do gelo, a da runa Is que marcava o seu destino presente:

Byth oferceald, ungemetum slidor, Glisnath glmaeshluttur, gimmum geliscust, Flor frote geworuht, faeger ansyne.

O gelo é frio e muito escorregadio,

Ele brilha como vidro, quase como uma jóia,

Um chão feito de gelo, é agradável à vista.

”A runa da espera”, tinha dito Gwydion, trazendo nela um futuro melhor ou a promessa de um inverno eterno. E o futuro, de momento, parecia tão obscuro...

Lliane percebeu que Myrddin tinha acordado e que a olhava em silêncio, com um ar desesperado. As lágrimas puseram-se então a correr pelo rosto da rainha.

Ela sentia Uter afastar-se, desfiar-se como uma nuvem, esvaziar o seu espírito, dela e do seu amor. E privada também ela da força do Pendragon, sentia-se mais sozinha que nunca, apesar de Morgana, apesar de Merlim.

Tinha acabado.

Uter tinha-a deixado.

Eles tinham falhado.

 

Alguns frios raios de sol entravam pelas ranhuras da cama de dossel, brincando nos lençóis de linho a cada movimento de Ygraine. Uter pousou a mão sobre a sua anca, redonda e nua, acariciou lentamente a sua pele trêmula e ela começou a gemer, como se cada carícia dos seus dedos a eletrizassem. Ela fechou os olhos, mas ele olhava-a, sorridente e amoroso, saboreando cada uma das ondas de prazer que a faziam vibrar assim nos seus braços. Por fim, a sua mão fechou-se sobre os seios da sua amante, cheios e firmes, tão diferentes dos de Lliane. Talvez para expulsar esta idéia perturbante, mergulhou a cara no quente abrigo do seu peito. Ela fechou os braços em volta dele, prendendo-o naquele balcão de doçura, e fê-lo bruscamente voltar-se sobre as costas. Deitada em cima dele, esticou os braços para o olhar, enquanto os seus longos cabelos formavam uma cortina dourada em volta deles. Foi assim que os corpos deles, pela primeira vez, se uniram.

Assim se uniram o rei e Ygraine nessa noite, e nessa noite foi gerado o bom rei a quem chamaram Artur.

 

 

[1]      Nota: Cerca de duzentos metros.

[2]      Nota: Um pouco menos de dois metros.

[3]      Nota: Devastadas.

[4]      Nota: Na religião druida, os bastões eram uma imagem da árvore, e a madeira com a qual eram feitos indicava o grau de iniciação do seu portador. A aveleira indicava o nível mais alto. Ironicamente, o ouro designava o nível mais baixo, o dos ollamhs, e a prata o dos arruths.

[5]      Nota: 1 Seis horas da manhã.

[6]      Nota: 1 Illtud viria a fundar o mosteiro chamado hoje em dia Llanilltud Major, tornando-se o mestre dos pensamentos de S. Gildas e de S. Sansão, ambos originários de Cambraia e que acabaram as suas vidas na Bretanha.

[7]      Nota: 1 Local reservado à oração, habitualmente separado do resto da divisão por uma tapeçaria.

[8]      Nota: 1 Os caminhos do Senhor são impenetráveis.

[9]      Nove horas da manhã.

[10]     Leão negro em pé, com a língua de fora, sobre fundo branco.

[11]    Cavaleiros mercenários que vendiam a sua espada a quem lhes oferecesse mais.

[12]    A tonsura da igreja celta, influenciada por numerosos aspectos do druidismo, era diferente da que se conhece hoje em dia, a da igreja romana.

[13]     Cavalo comum, menos precioso que os garanhões, cavalos de guerra caros, reservados aos mais ricos.

[14]    A expressão ”pôr a mesa” é tomada à letra. Estas eram levadas em braços e pousadas sobre cavaletes diante dos convivas.

[15]    Estas grandes fatias de pão serviam de pratos. Cada um depositava aí o que escolhia das travessas, servindo-se com a mão ou com a sua própria faca.

[16]     Meio-dia.

[17]    As armas de corte ou de estoque deviam estar emboladas aquando de um torneio.

[18]     Ponta de lança achatada em forma de flor, destinada a duelo.

[19]     “Tudo o que ele quer é o ouro. Que fique com ele, se nos deixar viver!”

[20]    “Meu pai, não vais deixar este descrente tocar nas Santas Escrituras!”

[21]    “A Bíblia não tem nenhum valor para ele. Tudo o que este cão quer é o nosso ouro.”

[22]     “O ouro não tem nenhum valor para os elfos.”

[23]    Génesis, 2,16.

[24]    Avalon significa ”ilha das maçãs”, sendo a maçã o fruto do conhecimento druídico.

[25]    Escudo amarelo com um galgo vermelho.

[26]     O rei ferido.

 

                                                                                Jean Louis Fetjaine  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"