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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A NOITE E A MADRUGADA / Fernando Namora
A NOITE E A MADRUGADA / Fernando Namora

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Cansado de estar de cócoras defronte do bicho. A moleza do corpo não lhe permitia tal posição.

O sol viera adormecer os nervos, trazendo quebran­to e desleixo aos músculos: um afago morno que tives­se rompido as nuvens para lhe vestir a carne friorenta. Por isso os gestos do Pencas se espreguiçavam; por isso os seus membros eram vermes deliciados e o cérebro se dissolvia numa zona de indolência, todo ele sem forças para se interessar pela tortura da cobra. Esta, resignada ali na sua frente, fazia-lhe apetecer os dias rubros de soalheira, as vinhas, os baldios, os lagartos torrando-se no cimo das fragas, vida quente e livre, sem aquelas ne­cessidades miseráveis de comida, botas, tabaco e vinho.

Num jeito de enfado, esticou o cordel para junto da porta da taberna e a cobra empinou-se, enraivecida; depois, prendeu-a, e as ondulações agressivas e frustradas do bicho já não lhe despertaram gozo.

Na esquina das duas casas que se apoiavam no gigan­tesco penedo, onde o pessoal urinava nos dias domingueiros, havia um monte de palha moída, do farmacêu­tico. Pencas fez um esforço para movimentar as pernas brandas, espantando a canalha que aplaudia o suplício; trouxe uma braçada daquela palha fofa, impôs o auxílio da garotada, e de novo se sentiu regalado com a perspective de conforto. Estirado de bruços, pôs-se a desa­fiar o bicho com a varinha. A cobra, lenta e conforma­da, fugiu. Um garoto, desiludido, atiçou-a com gestos e gritos e, por fim, afoitou-se a apertar-lhe a cauda. Rete­sando o corpo no ar, com o vigor da fúria, ela lançou-se de súbito para diante, e ficou tão perto dos beiços do Pencas que este recuou atabalhoadamente, desfazen­do o atufado do colchão. A cena divertiu a canalha e humilhou o Pencas.

— Ah, vaca! Ah, grandíssima vaca!

Ia a erguer a vara, mas o taberneiro segurou-lhe o braço.

— Deixa ver o que a gaja faz.

 

 

 

 

A cobra sondou as rugosidades da parede de grani­to, na esperança de um esconderijo; e quando desco­briu a ombreira da porta, rastejou rapidamente para o caminho escuro e livre do interior. O cordel, no entan­to, fixara a cauda ao sol da rua; por isso, apenas as manchas e os anéis da pele verdejada de luz se contor­ciam em desesperados espasmos. Uma galinha passou por ali, interessou-se pela aventura. Com astúcia, incli­nando a cabeça desconfiada, debicou à volta imaginá­rios grãos, e o seu ataque foi inesperado. A cobra veio lá de dentro enrolar-se à cauda ferida.

Um camponês, do grupo que jogava na barreira, deixou os companheiros para apreciar a cena; Pencas, honrado com essa atenção, deu um pontapé na cobra, para que ela desfizesse o rolo do corpo, e disse:

— Esta bicha estava alapada no Barrete Vermelho. Filei-a num ar. Quis-me morder, a grande vaca. Agora, paga-as.

Disse tudo de um jacto e ficou a arfar, cansado. Era de falas curtas: meia hora de conversa punha-o arquejante. Exprimia-se com mais desembaraço e maior rigor servindo-se das gengivas entumecidas num riso lorpa, piscando os olhos balofos, balançando os ombros. Apenas quando bebia um pouco mais, os dentes, debruados de um sólido verdete, cobriam-se de espuma, de ira ou entusiasmo, e explicava-se então sem esforço.

— É grande mesmo, sim senhor! Tu merecias um bom copo por teres caçado esta chouriça.

— Estamos às ordens para os copos que vossemecê quiser.

O camponês iludiu a réplica:

— Tu é que ainda não pensaste que esses lombos davam uma rica assadura; têm mais enxúndias que uma galinha gorda. Escorre dos ossos, é chorume a escorrer, Pencas, tu havias de lamber os beiços.

— Falta o vinho.

— Estão ali uns camaradas que não te negam um golo de vinho. Já ganharam bem o dia. Ninguém nega vinho quando se sente rico; e todo o homem se sente rico quando tem o bolso quente com o dinheiro dos outros.

— Estou a ver que elas o castigaram...

— Estiveram danadas, Pencas. Não me dou com cartas espanholas.

Não era preciso dizer mais para despertar no Pencas a gulodice por uns momentos de jogo. Andava a preci­sar de uma desforra que o fizesse recuperar as botas empenhadas na batota. Um homem sem botas é um mendigo. Trazia os pés duros, retalhados das topadas nas pedras e nos cardos. Com uma hora de sorte, as botas voltariam ao seu legítimo dono. Ele poderia aguar­dar a vaga dum parceiro e convencê-los a jogar sob pala­vra; mas não havia ali gente capaz de confiar num amigo de bolso vazio. Por isso, de uma das vezes, tinham-no obrigado a descalçar as botas para a fiança, e acabara o jogo sem vinho e sem palhetas. Ninguém aceitaria a sua palavra sem um penhor convincente. Restava-lhe ape­nas uma pequena esperança no seu companheiro de más sinas, o tio mudo, cego e surdo, que na mendigaria se fizera ardiloso, mas havia semanas que ele regressava à toca sem dinheiro luzidio: toda a gente teimava em enfiar-lhe na sacola centeio e toucinho, como se um homem só tivesse estômago a calar, ou umas reles moedas de cobre. Tão cedo, não podia esperar vinho, taba­co ou um lugar na mesa de jogo. O Inverno e a Prima­vera tinham corrido miseráveis. Às vezes, pensava que o velho pedinte possuía, decerto, um esconderijo atu­lhado de esmolas, moedas aos montes, acumuladas du­rante uma vida já sem idade. O velho era raposo e ve­lhaco; há mais tempo que devia ter esclarecido essa suspeita.

A malta da bisca assobiou de lá; o taberneiro, des­caindo as nádegas sobre o pé aleijado, desapareceu com o pichel de vinho. Foram, com ele, os olhos aguados do Pencas. Vinho, amigos, jogo! A vida não era má com um pouco de dinheiro todos os dias. Mas não aquele desgra­çado dinheiro das jornas, ganho com o esforço de bur­ros, nem o do contrabando. A vida, para ser boa, pedia unto — mas também sol, repouso. E nem as jornas, nem os riscos da fronteira, davam para um passadio de­cente de pão e batota. Havia muito que Pencas se convencera de que a única maneira de conseguir comida e alguns vinténs para o vício era roubar o velho mouco ou algum lavrador desprevenido. Um molho de boa le­nha vendia-se bem. Os camponeses trabalhavam como danados, e como danados morriam de pragas e de fo­me. As esmolas do velho, os ovos e as galinhas rouba­das, as gorjetas dos turistas — que vinham abismar-se com as fragas e com a miséria dos casebres — não ren­diam o bastante para recuperar as botas. E um homem sem dinheiro era um bicho desprezível. Ele devia sa­cudir o velho mouco até o obrigar a explicar-se com o bagulho escondido.

Os homens, da barreira, praguejavam, as juntas dos dedos batiam ferozes na banca de jogo. Cães e porcos farejavam as valetas, subiam e desciam num passo as­sustado, afuroando apressadamente nos montes de lixo. A cobra desenroscara-se sem ninguém dar por isso; a cabeça insinuava-se entre a ponta acerada das palhas, e os garotos, agora, disputavam a varinha que os gestos molengos do Pencas tinham abandonado. O bicho cuspia a língua na direcção dos seus algozes.

Se não fosse a barulheira da canalha, o Pencas acaba­ria por adormecer. Mas não convinha espantá-los desabri­damente: eram os seus clientes no negócio de bombas e bichas de rabiar. Pencas fazia prolongar o Entrudo pela Quaresma dentro, até que o rapazio lhe consumisse as reservas de bichas.

A rua animava-se ao cair da tarde. As bestas cor­riam aos bebedoiros, as mulheres franziam a nuca ao peso dos cântaros de água. A aragem enfunava as saias; do sítio do Pencas podia ver-se muita coisa. Mas a Jaquina Caraga percebeu-lhe o descaro nos modos e ati­rou-lhe com um sapatão cardado.

— Sai daí, langão! Até a calçada serve de cama para um corpanzil destes!

— Vossemecê não me atente. Não a convidei.

— Nem precisavas de convidar.

O farmacêutico veio à porta e enrugou o nariz a apreciar o tempo. A samarra, muito abaulada nas cos­tas, afogando o pescoço magro, parecia dependurá-lo dum cabide imaginário. Divertiu-se com a posição vagabunda do Pencas, mas, quando reparou que a palha lhe pertencia, pôs-se a barafustar. O Pencas ergueu-se e olhou-o sem medo e até com um desplante provocador; como o outro achasse prudente retirar-se para dentro, encheu um peito fanfarrão e avançou na direcção da farmácia. Pela primeira vez sentiu a embriaguez de al­guma coisa ou alguém se dobrar perante ele e queria es­gotar essa novidade até ao fim. Mas o balcão da botica era um fosso: a separação entre dois mundos estanques.

E foi do lado de lá, seguro, que o farmacêutico conti­nuou a congestionar-se de furor.

O Pencas estava agora interessado na chegada de um gato. Havia um plano naqueles passos subtis, no arre­pio sedoso dos pêlos, naquelas pausas em que as patas ficavam imobilizadas no ar. A cobra só o viu quando todo o corpo ágil do seu inimigo se encrespara, rígido, num espasmo de expectativa. Os músculos, recuados para o salto, esperavam o momento. Mas a pandilha de­satou aos berros, o gato olhou-os com uma expressão estúpida e subiu para uma saliência da parede, onde se quedou de pata estendida, arranhando a caliça, a dissi­mular o fracasso.

— Fora daqui, canalha ranhosa!

Perdera parvamente a luta com o gato. E tudo isso lhe tinha amofinado os nervos. A sua atenção, lograda, dividia-se agora entre o gosto do sol e o jogo da barreira. Espreguiçou languidamente os braços antes de abandonar o sítio e, nesse instante, o gato teve um salto inespera­do, ficando encolhido a dois palmos da cobra, que agi­tava a língua na cabeça hirta. Tudo se passou tão subi­tamente que o Pencas se ia desequilibrando. Agastado, desfez o laço do cordel e abandonou a cobra aos garo­tos; um deles fez da bicha uma funda, desvairando-a com voltas no ar.

O Pencas aproximou-se da barreira com humildade. De pé, os ombros eram desiguais, duas corcovas, e en­tre o dorso e as nádegas as cruzes abriam-se num bar­ranco. Dizia-se que estava torto à força de pancadas.

No grupo, o Corinhas não perdia o seu jeito marti­rizado; estava azarento, pela certa, porque dava safa­nões à aba do chapéu e a testa gotejava um suor com cheiro a remédio. Na camisa esbodegada, que mostrava os pêlos embranquecidos e empastados de sujeira, ape­nas dois botões permaneciam no seu lugar. Nem olhou a chegada do Pencas. Não sentia entusiasmo por ninguém.

Tinha o ar de quem vive para favorecer os ou­tros: aparecia sempre que faltava um indispensável par­ceiro na sueca, sempre que um camponês precisasse de alguém para castigar um jumento na subida do barrocal. Era camarada para qualquer hora do dia ou da noi­te: as dores de cabeça flagelavam-lhe os miolos, prensa­vam-lhe os ossos; ele, incapaz de dormir, já não pedia sono, mas sim distracções. A chama da sua vida apaga­ra-se numa travessia da raia: mineiro em Villa Nueva de Minas, viera de lá com os pulmões e o cérebro des­feitos; a mioleira estava cheia de uma água ludra que se sentia chocalhar nas fontes. Gastara anos sem conta pa­ra conseguir dinheiro e ter alguma coisa sua, verdadei­ramente sua, uma courela, árvores e tudo isso debaixo do céu, como tivera seu pai. Um pedaço onde dilatasse os olhos murchos de toupeira, onde se pudesse espojar, como um jerico em liberdade, sem capatazes, sem api­tos, onde a terra não tivesse essas bocas sôfregas que devoravam o gosto e o sol da vida. E na travessia da serra um falso amigo retivera-lhe as pesetas que deviam realizar o sonho! Agora, o Corinhas era um fantasma de sofrimento e resignação. Mas na noite escura do seu desespero havia uma clareira de esperança, religiosa­mente secreta; fazia caminhadas misteriosas pelos baldios, o fato e os cabelos tinham a cor do pó das estra­das e dos restolhos da campina. Ninguém suspeitava do motivo real dessas viagens à beira do Erges. As fragas das margens caíam do adro da igreja de Penha Garcia sobre o abismo, o rio amaciava-as de espuma ou comia-as de furor, cavando olhos e buracas, e nos portos, em que as águas, mansas e alastradas, alisavam a rocha, abriam-se filões de uma cor vermelha ou dourada, límpi­dos, facetados como diamantes. Pedaços de rocha bri­lhavam como vidro e lá dentro escondiam-se enigmáti­cas formas: uma incrível riqueza, mascarada em pedras e areias. Precisava apenas de um pouco de saúde para começar a exploração. Ia fazendo adiamentos sucessi­vos, jogando, bebendo, na certeza de que a inviolabilidade das fragas lhe resguardaria o tesoiro. Mas tinha a traição a roê-lo, desconfiava de todos. O mundo nega­va tudo aos desgraçados e eles ainda se traíam. Por isso, o segredo e o trabalho seriam só dele, e essa certeza da­va-lhe uma abrasada satisfação. Precisava apenas de uma maré de vigor, de nervos no seu lugar.

O Camarão, um feião dos demónios, o mais pos­sante contrabandista de Montalvo, ria como um gaiato da sua sorte ao jogo. Por isso, foi o único a saudar o Pencas.

— Já moeste a bicha?

— 'tava farto. A canalha vai acabar com ela.

— Estás assim a desprezar uma ceia em condições? Já comi lagartos em Espanha e terei de os comer sem­pre que as coisas corram mal. São bichos anafados, que dão uma rica sopa.

— Joga!

— Rei de copas, a vaza é minha. Estava doido de fome, Pencas, no meio da serra; tínhamos meio quilo de pão para três... Filei dois, carago, verdinhos como feno, deram um molho que parecia banha a derreter-se no trigo! Sabias desse petisco?

— O Rechena ainda agora mo disse; mas aquela, se a comesse, dava-me ânsias. A vaca quis morder.

— Se o mouco não te der hoje ceia, deixas as ânsias de lado... Um dia a gente leva-te ao contrabando; vais aprender a livrar o corpo de apuros. Que dizes a um la­garto gordo comido na serra, estrugidinho por mim?... E ainda ganhas pra uma semana de vinho, conho! Bebe aí um copo, não hás-de ser toda a vida um medricas!

O Pencas balanceou os ombros.

— És ou não és homem, Pencas? — remordeu o Camarão, que desabafava no rapaz o seu contentamen­to. — Aquilo só pede pernas e coração afoito; bom lombo tens tu pra levar a carga de dois camaradas; e sempre é melhor que uma enxada nas mãos.

Corinhas ergueu para o rapaz um olhar lastimoso. Toda a gente sabia que, para o Pencas, uma enxada era pior que um lobisomem de chavelhos e patas de cabra. O pai, a mãe, toda a família tinha moído inutilmente aquele corpanzil de pancadas para o afeiçoar à enxada. Em Montalvo, desprezar o trabalho do campo é não comer. A não ser para os vagabundos e para a gente do contrabando, o pão e o toucinho, aquele naco de pão e toucinho para não morrer de fome, pede todo o verdor de um corpo e de uma enxada.

— Eu jogava... — arriscou o Pencas, numa voz que tinha lágrimas de ansiedade.

— Tens botas? — A insinuação do contrabandista ao facto de o Pencas ter perdido as botas ao jogo fez explodir um coro de gargalhadas.

— As tuas botas não eram más de todo, Pencas. Eu tenho-as estimado — disse um dos jogadores.

— Não vês que um homem precisa de dinheiro ou de alguma coisa de préstimo pra fiança?... — insistiu o Camarão.

— Eu podia jogar por si, Ti Corinhas, se vossemecê quisesse descansar um migalho.

Antes que o ex-mineiro se mostrasse ferido com essa referência capciosa às suas moléstias, o Camarão contraiu a face granítica e berrou:

— Não jogas coisa nenhuma: um homem só arrisca o seu dinheiro. Vai ganhá-lo à serra, puxa por esse corpo! Se quiseres, arranjo-te um negócio para amanhã. — Subitamente receoso, olhou para todos como um ani­mal espreitando da toca, e corrigiu: — Isto é um modo de dizer. Para amanhã ou para a semana: a gente não passa a ribeira antes que o tempo abrande. — A sua voz era rancorosa, a culpá-los daquelas palavras comprometedoras. — Hei-de levar-te um dia destes, garoto. Faço de ti um contrabandista.

Mas o Camarão ficara inquieto, coçando o corpo como se estivesse atormentado de pulgas. Havia malan­dros sempre à espreita dum segredo para o venderem à Guarda. Um jogador, enervado da má sorte ao jogo, enfastiou-se da conversa:

— Isto é missa cantada?

— Tu ouves com a vista? Não ligues, Pencas, que hás-de vir a ser um teso para estas alhadas, como o teu irmão.

O Pencas ficava sempre alarmado à lembrança do irmão. Falarem dele, acenarem-lhe com o seu génio azedo, era avivar uma dor nunca serenada. Temia-o co­mo a um tutor indesejável de quem não se pudesse li­bertar. Quando a fome o obrigava a uma jornada pela serra, rondando a casa da família, a espiar a saída do pai, usava de meticulosas precauções, evitando sobretu­do o encontro do irmão. A velha era a única pessoa que não o enxotava; tinha palavras de pedra, todos, afinal, em casa, tinham palavras ásperas uns para os outros, mas nada disso impedia que a mãe lhe estendesse a mal­ga de couves. Mais certa era a comida do tio, mas era vianda de mendigo: encortiçava-se nas goelas, um bolo duro de azeitonas encarquilhadas, castanhas cruas, pão seco, cebolas; por isso, um caldo, de vez em quando era necessário para afagar o estômago. Mas a velha era tão minguada de dinheiro quanto ele; e era dinheiro, e não comida, de que ele precisava urgentemente. Um golpe de sorte ao jogo podia recuperar-lhe as botas. O Camarão era amigo em lembrar o recurso do contrabando, conquanto houvesse menos riscos numa investi gação aos esconderijos do seu tio cego. Iria resolver.

— Atão... — disse arrastadamente — se vomecê me aceita...

— Para quê? Pra alombares com a fazenda?

— Pois.

— Estás então pronto a servir-me de cavalgadura?

Os homens gostaram da graçola e até o Corinhas desanuviou o rosto amarelo, intervindo:

— Ele?! Até pra burro tem cagaço!

— Ó Pencas, essa é forte! — Atiçou o proprietário das botas.

— Cagaço tem vomecê. Ainda não o vi ir a nenhu­ma parte.

— Ir a uma parte é mijar.

— Não o vi pôr o coirão às balas da Guarda, pois. Nem o vi pegar numa charrua. Faz tanto como eu. Se alguém o vê mexer-se, é de noite, por esses caminhos. Vomecê é o lobisomem do Barrete Vermelho.

O peito arfou-lhe de falar tão longa e apaixonada­mente. O Corinhas retraiu as pregas do rosto e um breve clarão de sangue avermelhou-lhe a icterícia dos olhos.

— Vou perder o amor a esta garrafa, quebro-ta nos dentes, baboso!

— Toda a gente diz que vomecê é assombrado. Que faz vomecê lá para o Erges, metido nas sarças? Que faz um homem sozinho por esses baldios? Há quem tenha visto um lobisomem no Castelo tão amarelento como vomecê. E sempre lhe digo que sou homem pra toda essa conversa.

O Corinhas já se havia erguido do banco de pedra e arranhava as crostas da cabeça. Ia fazer alguma coisa memorável; mas o chapéu caiu-lhe com o movimento brusco: atrapalhou-se, ficou desamparado, incapaz de reagir com dignidade. O Pencas teve a intuição de tudo isso e continuou escarninho:

— Ena, rapazes, que braveza!

Mas não encontrou apoio. Os homens tinham fica­do sombrios e, quase sem darem por isso, afastaram-se do Corinhas. Aquelas acusações andavam a fervilhar no íntimo de todos. Apenas o Camarão, que não era ho­mem para ascos, e a quem as mulheres e as crianças também encaravam como a um bicho medonho, gra­cejou:

— Bem, Pencas, bebe aí um copo. A gente entende-te à légua. Queres um copo, acabou-se. Podias ter pe­dido direito, sem zaragatas. Andas às curvas, passas a vida sempre às curvas, dizes malcriadices ao Corinhas, e tudo isso prà gente reparar em ti pra um copo de vi­nho. É ou não é como eu digo? Vais um dia destes à fronteira, garoto, lá mais para diante, quando estas da­nadas águas deixarem o chão enxuto, e trazes de lá uma pequena lembrança ao Corinhas. Tu não és homem de cagaços, o que tens é muita malandrice no pêlo.

Pencas grunhiu e depois encarou com piedade as manchas fulvas e rubras que tinham alastrado no rosto do Corinhas. Este ficara a ruminar na desfaçatez do Pencas. Aquelas palavras eram um aviso: o povo anda­va aí a espreitar-lhe os passos e acabariam por lhe des­cobrir a mina, os diamantes, outros viriam explorá-la, de dinheiro e armas na mão, tal os donos de Villa Nueva. Precisava de dar uma lição ao Pencas, de arrumar as suas contas com o bandido das pesetas. E de começar o trabalho. A sua vida era uma baralhada diabólica cheia de pegos e remoinhos, de coisas inadiáveis e importan­tes a decidir. A doença fizera dele um frouxo. As sema­nas e os meses corriam, inúteis, e ele olhava sempre pa­ra o dia seguinte, à espera duma coragem que nunca chegava; mas, num futuro muito próximo, iria desenre­dar definitivamente todos os seus assuntos. Sem mais adiamentos.

O camponês que passara pela taberna voltou para dizer:

— A cheia desceu um metro.

As cartas ficaram pregadas nos dedos ansiosos. O vi­nho e o dinheiro — esquecidos. Os homens, do cimo dos penedos escuros e monstruosos, sobre o abismo de fragas e montados, olharam religiosamente a planície. Todos eles tinham uma razão poderosa para apreciar a mudan­ça do tempo. Os olhos, por isso, alongaram-se pela imensidão de herdades verdes alagadas. O macio fresco das pastagens saturadas de humidade entrou pelas nari­nas; evolava-se da terra, subitamente acariciada pelo sol, uma seiva gostosa e penetrante. Veredas, montados, searas, hastes tenras, longo tempo imersas na neblina azulada, que aguaceiros e nortadas haviam fustigado, abriam-se agora para essa alvorada nascida por cima das árvores tristes. Um halo translúcido esfarrapava as nu­vens; a luz ficara coalhada nas gotas de chuva, sobre a planície derramava-se uma tinta fresca e cintilante. A humidade esgueirava-se através dos poros da verdu­ra, a brisa calma sacudia brandamente as folhas, onde os nichos de água faiscavam ao brilho límpido do sol. Ribeiras, regatos, iam emagrecendo, rumorejando a me­do, a planície despejava-os não se sabia onde, o som das águas empalidecia até se apagar mais longe, quase de repente.

Os olhos apreciavam tudo isso através da promessa de trabalho ou de caminhos abertos para a fronteira. Tinham as searas despontado quando vieram as chuvas; e, depois das chuvas, enxurradas, areias e destroços co­brindo os campos, desventrando alqueives, dessorando o húmus. As flores selvagens dos campos, inabaláveis aos temporais, afogavam de lilás e amarelo a verdura desgastada dos trigos. A vida e os homens — desolados como a paisagem. A esperança espreitava todos os dias a seiva luminosa da Primavera, vinha com as madrugadas um desassossego estranho. Debalde, porém. Trovoadas, ventos, neblinas, fechavam as travessias da fronteira e traziam a tristeza e o desemprego aos campos. As pes­soas falavam para endurecer mais as palavras, que já eram duras durante todo o ano.

A vila debruçava-se sobre a planície, escutava essa chamada à terra e aos caminhos da aventura. As vozes não se cansavam de repetir: «A cheia desceu um metro. A cheia desceu um metro.»

O Camarão perguntou com violência, como se qui­sesse ficar certo de que não havia enganos:

— Foste lá ver?

— Fui à ponte. Era pra dizer isso há bocado, mas até pensei que já o sabiam. Foi uma cheia como nin­guém se lembra, levou uma das guardas da ponte.

— Uma cheia descomandada.

— Dizem os velhos que ficou a um palmo da cheia do mouco.

— Ora, não há aí ninguém desse tempo.

— Disso não sei. Mas todas as velhas falam da cheia do mouco. Ele estava no moinho, tão descansado como a gente aqui está.

— Mas quando acordou nadava em cima da esteira, conho!

— Era mouco, era mouco como o tio do Pencas, aos ouvidos não lhe chegava a zoada das águas. Acor­dou a nadar. Ainda se empoleirou numa trave do tecto, mas uma onda aventou-o para o rio. Abalou água abaixo.

A conversa era um a-propósito para cada um so­frear o alvoroço.

— Até desconfio que há um traço na ponte, desse tempo.

— Há mesmo. Do traço para baixo, parece que a pedra é mais barrenta. Se calhar, foi do barro das águas. Mas não há um velho que se lembre disso. Esta, sim, é que é a cheia maior de quem se lembra.

— Seja. Não discuto.

— O que é preciso é que o tempo abrande de vez. Mas antes que as ribeiras enxuguem bem e que um ho­mem possa atrever-se aos caminhos, hão-de correr mui­tos dias. E a Guarda, gente! Do Salvador à Zebreira: sonha-se todas as noites com tempo seco. A Guarda sabe-o.

O Camarão empalidecera. «Antes que as ribeiras enxuguem hão-de correr muitos dias.» Tinha os olhos espantados e furiosos. Só agora reconhecia que a ribei­ra, mesmo com tempo de feição, não se despejava de uma hora para a outra.

Voltou-se para os camaradas, como se neles estives­se o inimigo:

— Pois eu vou. Vou, nem que rebente. Hoje, ama­nhã, daqui a umas horas, hei-de ir!

Ficou mais uma vez desconfiado, espionando a reac­ção dos amigos. Deixara novamente escapar o segredo que só a ele pertencia.

— Estou com a teima. Andava a magicar pôr-me a caminho um dia destes e não me sai isto da boca. Mas ninguém pensa em cair numa ratoeira. Tu tens razão no que dizes da Guarda. — A sua face reflectiu satisfação pela manha das palavras e continuou, vaidoso de os lu­dibriar: — Eu até nem sabia disto de a cheia descer. Vocês bem ouviram que foi o Rechena quem o disse. Foi ou não foi, Rechena?

Os outros tinham ironia e astúcia nos olhos, mas não se atreviam a desafiar a ira do companheiro.

Corinhas imaginava as águas do Erges, repousadas, guardando entre lodo e balseiros o seu tesoiro. Se o tempo amainasse, iria dar um arrumo a todos os seus planos. Com o pessoal ocupado nos campos, não en­contraria metediços a rondar-lhe os passos. Ele só, com picaretas e fogo, enrijado por qualquer mezinha do bruxo, faria saltar das fragas montanhas de diamantes.

— Eu, se fosse do ofício, havia de comer os olhos da Guarda — disse um camponês. — Era mesmo nestes dias derrancados, com toda a malandragem a tremer de cagaço, que havia de passar a fazenda.

Serviu-se de vinho sem pedir consentimento e lim-Pou com gosto os beiços tingidos. Depois todo ele se entregou à campina inundada de sol e verdura. Só depois disso, o Serôdio, um camarada que estivera amuado, se virou também para a barreira. Mas fê-lo como se essa ansiedade lhe estivesse proibida; como se já nada esperasse do aceno da terra revigorada.

Ganhão desde sempre, não compreendia outro modo de vida; ali se criara, pastor, corticeiro, abegão, não se podia desenraizar um homem nascido e alugado na terra. Mesmo agora, que os lavradores não aceitavam oseu braço, teimava em avaliar os terrenos e os ventos através da expectativa de jornas, de seiva farta; só un homem que tem a terra no sangue a leva consigo para todos os ofícios e lugares, só esse homem sente uma inconfundível exultação perante os campos com o hálitt da fertilidade. Mas fazia-o furtivamente e com desespero, um foragido espreitando um país alheio. Acontecera que, numa hora danada, tivera uma diferença com un lavrador: o patrão vinha a cavalo, meio sonolento de dia marralheiro. Trocaram palavras agastadas, o lavrador azedou-se, lançou os cascos da besta contra o peite do ganhão. Caído por terra, a boca a morder os pulsos de vexame, sacara de um molho de silvas, riscando con desvario a face borrachuda do outro. Os rasgões, sanguíneos e ferozes, haviam perdurado por muito temp e enquanto as cicatrizes se não desbotaram, o ódio do lavrador cresceu. Era uma ofensa que tinha de ser sentida por todo aquele que não fosse um reles probretana. O médico, Dr. Providência, ajeitara-se a mandar um relatório pavoroso à justiça: o médico explorava sempre as histórias que lhe dessem proveito. O lavrador, porém temia o ridículo de um tribunal; estudou o ajuste doutra feição, e Serôdio, daí em diante, viu as portas fechadas à sua roda. Restava-lhe a serra, os caminhos vedados, as noites de sobressalto. Ia, porém, como vendido

Mas talvez nenhum dos seus novos companheiros de aventura tivesse ainda abafado em si o amor a um pedaço de terra; o contrabando era o ofício imposto pelas encrencas da vida. Nem mesmo António Parra, que, a bem dizer, nunca conhecera enxada, era contrabandista de raiz. A terra cercava-os. Nem aquele Ca­marão, bruto e bom, temido pelas mulheres e crianças como um mostrengo, trocaria uma beirada por todos os bens do contrabando. Era um cão enxotado, procurava esses companheiros de vidas à margem da lei. A terra prendia os homens: era luta, incerteza e desengano. Por isso os prendia.

Quando viesse o tempo das ceifas, Serôdio iria para um sítio onde ninguém suspeitasse da maldição dos lavradores. Um ganhão não resiste ao chamado dos dias langorosos, com as sementes túmidas de amadurecimento. Quem não fez o quinto das ceifas não vale a terra onde nasceu.

O Pencas ia esgaravatando a sujidade das unhas e calculava o êxito de uma volta pela casa da mãe. No seu estômago acendia-se aquela labareda ácida, uma agonia que lhe subia à boca. O copo de vinho, sem lastro, assentara mal. Ainda poderia esquecer a indisposição se tivesse uns cobres para entrar no jogo. Mas como? Na­da lhe restava que servisse de penhor. E aqueles parcei­ros não iam em conversas. Por isso, acalmado o estô­mago em casa do velho Parra, trataria de esbulhar o cego do seu tesoiro escondido.

Um dos garotos trouxe a cobra para a barreira, lançou-a por cima da árvore, para o pátio do farmacêuti­co; o bicho ainda se arrastou para o sol, depois o seu corpo torturado foi partido pela sombra, acabou brus­camente.

O Pencas desceu a ladeira com um assobio de espe­ranças. A boa disposição só afrouxou quando o piso do barrocal, escorregadio e traiçoeiro, pediu mais uma vez botas cardadas, firmes, que se escorassem na verde cila­da dos musgos.

O velho Parra viu o filho logo que ele desembocou na floresta de carvalhos. Ainda mesmo que as oliveiras dos ferragiais deixassem apenas uma nesga de campo li­vre, reconheceria o Pencas a uma distância do Pomar à Ermida da Senhora da Saúde. Bastava aquele descair molengão dos ombros. Malhara bem esses ossos, cansara-se de os amolgar com raiva, desespero e, por fim, com desinteresse, até considerar tal filho um figurão es­tranho à família dos Parras. Que não viessem contar-lhe histórias dos seus roubos, da sua preguiça, do seu vinho. Nada tinha com esse valdevinos, dera-lhe a rua como morada. Os Parras eram outra gente. E chegava a suspeitar da mulher, magicando se ela não teria fabrica­do aquela cria com algum maltês das cabanas da serra. Acabara por considerar tal desconfiança como demons­trada e, quando os azedos da vida precisavam ser desafo­gados, surrava a mulher por essa infidelidade longínqua. Sabia, como o sabia toda a gente, que a sonsa tinha sempre uma malga à espera das surtidas do filho, e agora que o via de longe, farejando entre as courelas, ia pensando que, um dia qualquer, acabaria por deixá-lo estendido no descampado. Costumava esconder-se en­tre as sebes e entrar mais tarde, de supetão, filando mãe e filho abancados na cozinha. Sovava-os então volup­tuosamente, até os braços se estafarem. Conhecia me­lhor o corpo da mulher por aquele som de ripas vazias do que pelo tacto. O filho, depois dessas surras que espalhavam gritos e alarmes pela campina, ficava tempos largos sem aparecer. Mas a fome encorajava-o à reinci­dência.

O velho ia seguindo as evoluções cautelosas do Pen­cas, mas, desta vez, com uma atenção enfastiada. O ve­lho Parra tinha outras ralações mais sérias e ele cuidava de um assunto de cada vez, metodicamente, espremen­do todo o sumo da desdita ou da revolta. De uma vez, a mulher imaginara um enredo para livrar o filho de umas vergastadas. O rapaz estava lá dentro, a refaste­lar-se de toucinho, e a mulher, vendo o marido a dois passos da casa, correu pelo pátio aos berros:

— Vem cá, demonho, que o porco foi rebentado pelos chavelhos da vaca! Vem coser-lhe as tripas, que o animal tem já o bandulho pelo chão!

O velho Parra, de longe, tinha visto o Pencas entre portas. Meditou uns segundos, suspendeu o cinturão e entrou na cozinha. Enquanto as correias castigavam os lombos do rapaz, foi respondendo calmamente às injúrias da mulher.

— Foi um raio acontecer uma desgraça numa altura destas, com este filho da mãe na minha casa. Mas a obrigação é acabar de moer um maltês que vem comer o que não ganhou.

Cumprido o seu dever perante aquele degenerado que lhe assanhava o sangue só de vê-lo portas adentro, preparou a agulha de colchoeiro, as linhas e, quando deu pelo logro, foi a vez de sovar meticulosamente a mulher.

Nesse dia, porém, os seus nervos estavam refreados. Ainda mesmo que alguém viesse confirmar a traição da mulher com o ambulante das serras, provando a bastar­dia do Pencas, ficaria quase indiferente. O velho Parra pensava na comunidade do Pomar. Agora já ninguém duvidava das ameaças do visconde. O Pomar seria dividido por novos arrendatários, para iludir a burla, e mais tarde todos seriam enxotados das suas terras e das suas casas. O velho Parra olhava a bela laranjeira do quintal, esbelta e emproada, e tinha com ela um diálogo emotivo. Nunca mais poderia presentear o prior com suas laranjas; de todas as vezes que o prior insinuava com matreirice as demoras na oferta, nesse apreço pelo presente parecia glorificar as qualidades pessoais da famí­lia Parra. Sem casa, sem a seara, sem o forno de pão que sustentava a família, a vida não tinha conserto. Ele não era de génio de vender os braços a ninguém. Um Parra nascia para ser livre e senhor das suas acções. Viera o advogado instruir testemunhas, falar de documentos antigos, de coisas misteriosas e solertes. Os barrocais de Montalvo — que, desde que o mundo era mundo, pertenciam à paróquia, ao povo e às reses dos pobres e dos velhos — eram agora cobiçados pelo Dr. Carreira da Silva. Já antes, ele roubara ao povo os pinhais da ser­ra. O Pomar, que era obra de camponeses, que a eles fora entregue pela mão do finado visconde, homem di­reito, ia-se também na cupidez dos ricos. Um Parra ti­nha erguido ali a sua cabana, plantado as suas árvores, ele próprio adornara o seu pedaço com a laranjeira que um negociante de palavra lhe enviara pelo caminho-de-ferro. Quando a posse da comunidade se transmitiu aos poucos, sorrateiramente, para o novo visconde, fora ele, entre os camponeses acabrunhados, o único que não se resignara. Ele era um Parra. Do seu posto, da sua casa, exalando baforadas de lume das fornadas dos camponeses, jurava por todos os infernos que um Parra não se entrega sem luta. Cobria de insultos e de ridículo a desorientação dos companheiros do Pomar, por vezes tão metaforicamente que nem se atinava com o alvo dos seus sermões. O velho Parra, arrumado nas questões familiares, em que a sua razão se afiançava, sem mais desvios, pela lógica das pauladas, era evasivo e palavroso quando tinha de defrontar o poder dos maiorais. De uma vez que um sujeito vendido marcara de noite os penedos do barrocal com as iniciais da pele dos borre­gos do Dr. Carreira — M. M. —, o velho Parra toda a manhã ajeitara mortalhas e tabaco, em grossas cigarra­das de nervosismo:

— Atão já viste a marcação, coiso? — era a pergun­ta para todo camponês que rondasse por ali.

Os outros fechavam-se num silêncio precavido, en­quanto ele casquinava de olhitos reluzentes de malícia:

— ...Se calhar, não entendes... Aquilo, as tais M. M., são duas letras que querem dizer: madre murcha. Vai haver para estas terras um novo dono que já não pode parir. É o caso. O homem já está gasto.

E ria como um crianço. Aconteceu o feitor passar pelo Pomar, com aquele chicotezinho de espantar os moscardos do gado. Parecia-se muito com o feitor do visconde, eles eram todos iguais. Nasciam nas bermas como os maltrapilhos e cresciam rapidamente, aduba­dos em ladroeiras e ganância. Apareciam depois, inchando de carnes e inchando de prosápia, de bigodes e patilhas negras, mandões, farronqueiros.

— Atão, mestre Parra, ouvi dizer que decifrou umas letras do barrocal.

Ele passou por várias cores, perdia muito da sua te­meridade quando encarava aquela gente, o furor enca­lhado nas goelas, embora se sentisse capaz de morder a própria tibieza.

— Qual, senhor Fernandes! Nem vi tal coisa.

— Mas vi eu, mestre Parra. E às línguas compridas apetece a gente medi-las com a navalha. Aqui não me­dram sujeitos como o seu filho, o tal que engataram em Lisboa, nem sujeitos como vossemecê. Eu sempre que­ria saber se alguém tinha coragem de repetir umas graças na minha frente.

O velho Parra sentia sobre si o jugo de muitas gera­ções acobardadas, cerrava os olhos para imaginar por momentos que na sua frente estava apenas o costado acessível do seu filho Pencas. Mas não havia jeito para confusões e, por isso, acudiu-lhe de súbito uma resposta:

— Se ele é isso, senhor Fernandes, aí vai o que eu li no barrocal...

O feitor ficou suspenso. O velho Parra levou as mãos à quebradura das partes, assoou-se com ruído e disse pausadamente:

— Aquilo, M. M., tratando-se dum senhor daque­les, só poderá ser: o maior dos maiores. É o caso.

Montalvo gozara longos meses com a velhacaria do velho Parra. Ele contava a história todos os dias e todos os dias o ouviam rir durante um bom pedaço. Mas ago­ra não estaria para negaças. Mondara, pela manhã, os raminhos novos das árvores, podando as hastes secas do nevão. Os porcos grunhiam impacientemente na furda, a mulher berrava por uma carga de lenha. Ela não tinha mais um graveto para a fornada. Picanço, o cão de guarda, que o velho Parra ensinara a ser prestável na horta, esgaravatava as veredas de formigas que iam roer o tronco da laranjeira.

Não, daquela feita não atenderia às solicitações da vida diária. Perguntava ao António, muitas vezes, se lá pelos sítios que conhecera soubera assim duma safadeza de leis na mão. O filho mais velho, porém, fechava-se num reduto de silêncio, inabordável a toda a família; vivia tão alheio aos assuntos da casa, às preocupações da gente do Pomar, estava tão longe de todos eles desde que vivera noutras terras, que a mãe pensava amiúde se alguém lhe lançara mau-olhado. Já se lembrara de o mandar benzer, apanhando-o no sono, mas acontecia que a comadre entendida nas rezas caíra entrevada ha­via muitas semanas. O velho Parra, mais perspícuo, di­zia que o rapaz parecia gasto de ter sido enfezinado nas cadeias da cidade. Mas bem gostaria de saber se havia gatunos desses por outros lados. A gente mais apessoa­da da vila chamava ao concelho «o estado livre do Maranhão», tal o desplante com que os caciques, tendo por detrás os senhores da lavoura, punham e dispunham do governo daqueles sítios arraianos. Os campo­neses conheciam a vila através dos fiscais, das décimas, dos papéis afixados no adro. Estado livre do Maranhão, um estado de autoridades gananciosas. Os camponeses relacionavam a razão e o remédio dos seus males com a ideia de funcionários e de justiça. Iam para lá desengonçados e inquietos; juntavam-se, num rebanho ame­drontado, na taberna escura do largo das camionetas, que, tão sórdida como as bodegas da aldeia, lhes dava uma protecção familiar, antes de irem fazer bicha nos postigos das repartições, pelos quais lhes enfiavam, de mau modo, aquelas incompreensíveis escritas, rolos de papel de enigmático préstimo, pagos a dinheiro e a sangue.

O velho Parra procurava decifrar, com angústia, tais coisas confusas. Se o António se pegasse um pouco à sua terra, à casa, ao pátio com a sombra suave da laran­jeira, esmagaria os outros com a sua firmeza e a sua experiência. Ele e o velho Parra seriam duas forças inaba­láveis. Já o Pencas era um desgraçado inútil. Não valia nada na defesa da família. Apesar disso, poderia chegar-se à vontade, sem o receio de emboscadas, pois o ve­lho, dessa vez, não mexeria um dedo para intervir nos acontecimentos mesquinhos. Ainda mesmo que lhe des­pejasse à porta uma dúzia de carradas para o forno, o velho Parra deixaria roubar ou apodrecer a lenha. Não queria saber do forno para nada. Nem de mulas, nem de porcos, nem de seara. Só o poderiam espevitar se alguém lhe levasse o seu António erguendo nos punhos a bandei­ra da revolta. Depois que o padre lhe chamara o filho à sacristia, com umas ameaças, toda a gente esperava que aparecesse uma autoridade para filar o rapaz. Um Parra preso como qualquer malandro! Um homem direito que ia à Espanha ganhar a vida honradamente! Mas o padre sossegara com novo presente de laranjas. Dissera que sim e que não, fez promessas, deu conselhos, e o velho Parra percebeu que apenas salvaria o filho se adregasse uma burra que, em vez de leite, espirrasse la­ranjas das tetas. Estava certo que o Pencas fosse preso; esse era um gatuno, um moinante, não era um Parra. O outro tinha leituras, chegara ali uma vez com galões da aviação. Ele via o filho escorraçado de todos os lu­gares, mas sentia-lhe uma força maior que a de todos os homens poderosos que conhecia. António vivia arre­dio de tudo, mas, apesar disso, a sua presença era, es­tranhamente, um apoio para a gente do povoado.

O velho olhava atentamente, por hábito, a descida pe­nosa do Pencas, que procurava livrar-se dos carapetos e dos ressaltos bruscos, mas via-o através de um nevoeiro irreal. E, de súbito, sentiu que lhe apetecia reunir afec­tuosamente a família. Eles precisavam de conversar com amizade. Não era homem de lamúrias, resolvia as dife­renças com berros e cinturadas, mas percebera que a ameaça os atingia igualmente, que todos precisavam do conforto e da coragem de cada um. O Pencas podia descer. Teria o seu caldo e uma palavra amiga. Talvez fosse um filho das ervas, não era de certeza um Parra verdadeiro, mas crescera ali, debaixo do tecto de telha-vã; desengonçara o corpo, com a mula, a caminho da serra, no roubo de lenha para as fornadas, embora mui­tas vezes ficasse por lá, aos ninhos, aos lagartos ou à pesca nos açudes do rio. Tudo aquilo que o enrijara, a erva e a marouva do barrocal do povo, comidas nos dias de fome, estava na iminência de ter outro nome e outro dono. A terra de matos, covil de lobos e porcos-bravos, que os camponeses do Pomar haviam transformado ar­dorosamente em vinhas, em searas, iria ter a marca da pele dos borregos e das cangas dos bois. O Pencas fora sempre um safardana, um bicho pasmado ao sol, mas talvez a mãe tivesse razão e a mofina dele e dos pais viesse dos maus tratos, do abandono. Ele fizera ao ra­paz, durante longos anos, o que se faz, nas malhas, às espigas de centeio. Se o Pencas era uma lástima de ho­mem, talvez a culpa fosse efectivamente da família: nin­guém o havia orientado num rumo decente. E agora era tarde para voltar ao princípio: ele amoldara-se de vez à malandrice; seria, até cair numa cova de vermes, um miserável companheiro do tio cego e pedinte.

O velho Parra meditava nas suas responsabilidades na desgraça desse filho e sentia um rio de emoção suavizar-lhe as veias. Teve de escarrar, preparando logo a seguir um grosso cigarro, para que a comoção não se tornasse excessiva. «Podes vir, Pencas», apetecia dizer. E disse-o mesmo, dilatando as jugulares no esforço de se fazer ouvir daquela distância:

— Pst, ó traste, ó malandro!

O Pencas, protegido pelas canas que serviam de li­mite à estrada, não o tinha visto ainda. E, àquela voz, ia perdendo o equilíbrio e desamparou o corpo num es­conderijo de cardos.

— Pencas! Raios te partam, cão danado! Vem aqui, Pencas, sou eu que te chamo. É o teu pai que te chama, cabeça de burro! Sei muito bem que estás aí alapado.

A mula começou a escoicinhar na porta da estreba­ria, relinchando à janela que o dono lhe abrira num dia de boa disposição, e logo os porcos grunhiram, assusta­dos. O velho Parra reconheceu a sua voz ofuscada por tanto alando e apeteceu-lhe desatar aos pontapés por todos os lados. O Pencas rastejou do esconderijo, com minuciosas precauções, e começou a esgadanhar na subida, fugindo. O pai, então, perdeu a cabeça. Já esquecera os bons propósitos, a afeição repentina pelo rapaz, as preocupações daquela tarde; agora, era uma questão de brio conseguir convencê-lo a descer a vereda.

— Vem cá, Pencas! Chega aqui num instante, que não te faço mal.

O rapaz suspendera a fuga, aparvalhado, mas sem adiantar um passo. O velho Parra decidiu dividir o ca­minho entre os dois e preparou-se para saltar a paliça­da. Mas, nesse momento, o Pencas recomeçou na sua corrida desarvorada.

— É pra um recado, Pencas! — E o velho segurava a quebradura inchada do esforço. — Vem, carago! Ou vens ou racho-te!

Tinha a boca cheia de saliva e arfava de raiva. A mu­lher acudiu à gritaria, vindo esbaforida do forno. Percebeu tudo cá fora, ao ver o filho trepar a vertente com um fôlego desconhecido. O homem armava uma cilada ao rapaz para o apanhar ao jeito da mão.

— Mata-o de uma vez, é isso que tu pensas há mui­to. Tu queres vê-lo mirrar de fome, queres ir para o In­ferno com a morte do teu filho a fazer-te companhia.

Ela esperava vê-lo crescer diante de si, com os ner­vos em sangue. Mas, inexplicavelmente, o homem sen­tou-se no tropeço e derreou os ombros.

Eu estava a chamar o rapaz de verdade. — Deu um arranjo às calças, erguendo para a mulher uns olhos calmos. — Eu queria ter uma conversa séria com ele; é tempo de lhe dizer umas palavras. Tu enches-lhe o ban­dulho de carne, nas costas de toda a gente, mas não tens um pau ou um bom conselho para dar a um filho. Antes que um ladrão ponha aqui a pata nesta casa, eu quero que todos os Parras venham para debaixo das suas telhas. Isto há-de ser gozado até à última por to

A Noite e a Madrugadados os Parras. É o caso. A gente há-de moê-los, velho­ta. Não se enxotam assim três Parras juntos. Juntos, entendes? Por isso o rapaz devia vir aqui hoje. Prepara-lhe tu um bom caldo e traz-mo. Vai chamá-lo, já te disse! Entendias isto, do coração, se fosses da família dos Parras. Mas tu não és Parra: és uma mulher sem vergonha que eu, numa hora arrenegada, trouxe para a minha companhia. Também tu hás-de ver o que são três Parras juntos!

Sorriu com delícia, lambeu o cigarro inteiro. Alguns pêlos compridos do bigode entraram-lhe para a boca e soprou-os com vexame e irritação. A mulher ficara pre­sa ao chão, pasmada, e depois as narinas fungaram ruidosamente. O seu homem parecia esparvoado, aquelas palavras não eram dele. Devia dizer-lho. E depois seria preciso convencê-lo a ir com a mula à serra; bem sa­biam todos que o forno parado era a miséria em casa. Mas ela não tinha afoiteza para sair do seu jeito calado e humilde. Só era corajosa quando se tratava de defender o filho, ainda mesmo que lhe comessem os olhos. Era ali uma serva em tudo o mais, uma serva alta e es­ganiçada como um pinheiro sangrado, com o ar gentio de todos os camponeses do Pomar, que tinham a sua comunidade e as suas vidas fora do mundo. Os maus tratos, as injúrias, os dias e os anos escaldando as faces ao braseiro do forno — tudo isso era a própria vida. A notícia de que seriam expulsos do Pomar era tão desconforme que, para ela, não tinha significação. Não po­dia acreditar que as coisas mudassem, que a cabana dei­xasse de ser a sua cabana, com o forno de cozer o pão da comunidade. Não havia outro modo de resolver a vida a não ser com a poia do forno e com a fanega de semeadura. Os dias teriam forçosamente de constar de tudo isso. O velho Parra levaria metade da semana a resolver-se pelo caminho da serra, rondando pelo pátio com os seus passos empertigados e lentos. Era ali o dono, iludindo o tempo com a pequena seara, adubada e colhida a más horas, e com o trato das três árvores do quintal. No mais, era a onça de tabaco, a malga certa, as tardes em que ele e a mula, associados na má vontade, se decidiam pela lenha do pinhal do Dr. Carreira. Desgastava o filho de pancadas e era tão lesma e inútil como ele. De todo o seu fraseado tonto, apenas com­preendera que o rapaz perdera o jantar, e sabia Deus a larica daquele estômago!

Estava ainda imobilizada de espanto, quando o viu cuspir com pontaria certa nos rebentos da laranjeira e limpá-los depois com a manga do casaco. O velho er­gueu-se por fim, movendo-se com o seu passo apalhaçado e indolente, e encarou a mulher, apreciando todas as rugas desse rosto afogueado. Encarou-a como a al­guém que se não vê há anos, surpreendendo-se de achar esse rosto gasto, diferente, com a pele a roçar os ossos.

— Acabaram-se hoje as fornadas nesta casa, mulher. Apaga-me essas danadas brasas de queimar almas do Inferno. Vai tu chamar-me o urso do rapaz para uma conversa. Esta noite ainda! Acena-lhe com um presunto inteiro.

— Queres dizer que sempre não vais à serra?

— Tu és burra pra entenderes essas coisas, tenho de te puxar pelo cabresto; é bem feito que o visconde, um dia destes, venha correr-te a pontapés; irás para a rua, sem casa, sem coisa nenhuma; para a rua como uma cadela aluada. E então saberás o que fazemos nós, os Par­ras. E o caso. Chama o espantadiço do rapaz, que não diferencia o chamamento de um pai.

— Atão só amanhã terei lenha para o forno?

— Lenha, lenha quanta quiseres, pra te rachar de meio a meio, se tornas a falar em fornadas!

Ela tinha muitas coisas a dizer, se fosse capaz. Sem a lenha, sem a poia, precisava de saber donde viria a comida para todos, enquanto António não tivesse o caminho aberto para o contrabando. Precisava de saber donde viria o dinheiro para os montes de farelo que os porcos da furda, porcos de engorda, devoravam todos os dias.

Picanço veio mordiscar as botas do velho Parra e apoiou as patas no cinturão. O velho sorriu à carícia do bicho e encostou-se à laranjeira, que vergou com o seu peso. Ele amparou-a com as duas mãos, como se pedis­se desculpa do descuido, e depois ficou de gesto esque­cido, a amargurar-se com a ideia de vê-la mudar de do­no. E olhou rancorosamente a mulher, a sua obstinação estúpida. Ela teve a confusa intuição de que o homem a fazia culpada de tudo aquilo, que a confundia com a cupidez dos ladrões de terras, com as testemunhas ven­didas. Silenciosamente, como sonâmbula, retirou-se pa­ra dentro de casa e correu todos os cantos onde pudes­se haver um pouco de lenha esquecida.

O velho Parra ficou a meditar. Picanço ainda tentou desafiá-lo para alguma brincadeira, mas acabou por compreender que o dono não lhe daria atenção. Deitou-se-lhe aos pés, desconsolado. O velho tinha os músculos da face descaídos; nada havia já do entusiasmo ou da irri­tação anteriores, breves como um incêndio prontamen­te dominado. Parecia ter esquecido a mulher e o Pen­cas. O cão via-o às vezes espichar o pescoço para lá das casas e espreitar o caminho, aguardando agora a vinda do outro filho. O velho Parra não podia negar que a solidão lhe trazia dúvidas e desalentos; precisava de ou­vir o filho, beber da sua presença um ânimo definitivo.

A tarde ia ficando escura, o céu descia sobre as ca­sas. A paisagem tornou-se espessa, inchada de silêncio.

António Parra veio como de costume, cortando a direito, sem saudar ninguém, balançando os braços no tronco atarracado. Tomara já uma decisão: nessa noite a malta abalaria. Talvez a descida da cheia já permitisse um rodeio por algum porto de águas baixas. Não pode­riam adiar por mais tempo, sujeitos a que os Espanhóis cancelassem as encomendas. E muitos contrabandistas viviam havia muito da esperança nesse ganho.

— António, António Parra, vem aqui pelo pátio!

O velho Parra precisava de chamar toda a gente pe­lo nome inteiro, era uma homenagem justa que ele fazia à própria família. Os Parras iriam defender as terras do povo. Os barrocais toda a vida seriam livres; os barrocais e a comunidade do Pomar, libertada dos matos e dos bichos à custa dos braços dos camponeses. O anti­go visconde arrendara essas charnecas para que alguém as desbravasse; e agora os novos senhores enxotavam de suas casas os descendentes dos pioneiros. Mas os Parras estavam vigilantes, defrontando o cerco dos ladravazes. O advogado dizia que a venda do barrocal aos antepassados do Dr. Carreira da Silva tinha cem anos, houvera de tudo isso um documento, infelizmen­te destruído num incêndio. Mas eles nem careciam de documentos: compravam a honra de metade da vila, trocavam esmolas por juramentos falsos. Professor, mé­dico, comerciantes, todos se vendiam. O povo desgraça­do da vila e a gente do Pomar tinham de lutar sem pro­tecções. Estavam sós na luta. Ou, mais precisamente, tinham a seu lado os Parras: eles valiam por um milhar de safardanas.

Agora pai e filho estavam em frente um do outro, embaraçados como duas pessoas reconciliadas. A vida fora tão violentamente desigual para ambos que qual­quer intimidade lhes era penosa. Quando António re­gressara ao Pomar, tempos antes, chegara ali como um animal foragido; era um estranho e nada à sua volta lhe dizia já respeito. Admirava a rebelião do pai, embora o achasse palrador e preguiçoso, mas na sua estima não havia ternura. Todo o resto de ternura que ainda seria capaz de exteriorizar era dedicado à mãe. Por seu lado, o velho Parra tinha a intuição desse alheamento do fi­lho. O rapaz sentia-se deslocado. Junto dele, o velho era um camponês abatido pela superioridade de outro homem que viveu o mundo distante. Acobardava-se. Dia a dia era maior o fosso que os separava.

Nenhum deles sabia por onde começar. O velho cortava os ramos bastardos da laranjeira; depois hume­deceu essas feridas com saliva e raspou várias vezes com a bota a saliva caída no chão.

— António Parra: tu achas que eles me vão arrancar daqui?

Cuspiu um escarro grosso por cima dos ombros do rapaz.

António olhou o céu cor de fumo. Sentiu comichão por todo o corpo. Irritavam-no as lérias sobre assuntos que devia apartar de si. Não queria saber dessas histó­rias. Barrocais, Pomar, esses camponeses estúpidos e poltrões — tudo lhe era indiferente. Mas não queria ofender o velho; e, além disso, era obrigado a reconhe­cer que as apreensões do povo eram justificadas. Não conseguia, porém, evitar que lhe saíssem da boca pala­vras rudes:

— Eles farão o que quiserem.

— Achas que um sujeito pode ser ladrão à sua von­tade?

Teria muito mais coisas a dizer se não visse no filho aquela expressão de agreste enfado. Não sabia explicar o desinteresse de António pelos problemas da comuni­dade, a sua indiferença pelas coisas da terra: um camponês verdadeiro nunca poderia deixar de o ser. O ve­lho Parra cismava muito nessa renúncia do filho. Um Parra não podia ser um desertor. E se aquele estava na aldeia como um bicho peçonhento, enxotado de todos os lados, era precisamente porque sacrificara a sua vida pelos camponeses e miseráveis. Ele parecia longe da terra, mas era um Parra. Rebelava-se a seu modo. O rapaz estava gasto de cadeias, de baldões, e defendia-se de si próprio. Ele teria desejado certamente ir por aí fora, ao lado do pai, e arrastar todos os corações altivos de Montalvo. Mas isolava-se, procurava impedir que algu­ma coisa o despertasse de novo para esse combate desi­gual. Tinha feridas que sangravam ainda: uma vida estragada, exílios, castigos. Intimamente, era um Parra, o maior dos Parras.

Muitas vezes o velho recordava o dia em que o filho lhe chegara a casa. O cabelo enrolava-se-lhe na nuca, negro, não se distinguindo da barba que cobria toda a face lazeirenta. Um bicho. Nos olhos só havia alarme, desconfiança, ódio, encarava a família como se também ela pertencesse à cáfila dos seus algozes. O velho levou muito tempo para descobrir nesse mísero alguma coisa que o identificasse com o desempenado aviador que era seu filho, um mocetão com o olhar firme dos Parras. O velho esperara algo de terrível, logo que soubera das suas prisões, mas não aquilo: aquilo era o espectro do vizinho Gregório, dias antes de morrer de tifo. Quisera moê-lo de insultos, moê-lo, moê-lo, como fazia ao Pen­cas. Mas, fosse como fosse, tinha diante de si um verda­deiro Parra. Era sua obrigação protegê-lo, logo que lá fora o haviam traído e amarrotado; devia humilhar-se, desde que fosse para benefício de um Parra que soubera lutar com altivez. Se no filho medravam aquelas ideias danadas, se ele fora um má-cabeça, outros, decerto, o tinham arrastado. E assim, o velho, seguro da sua in­fluência, batera às portas gradas da vila. Ouviu promes­sas, ameaças, cobardias. Começava vagamente a com­preender que o filho era a voz de um mundo temido. Mas o rapaz acabaria por conseguir um emprego de­cente, visto que já se desavezara da dureza da enxada. Via dia a dia o filho murcho e enfermiço, perdida a fi­bra dos Parras, sobressaltando-se com os ruídos da noite, fugindo às vezes pelos campos, acoitando-se na floresta como animal acossado. Tornar-se-ia um farrapo. O ra­paz foi-se fechando para os amigos, cortava pela terra lavrada para não se mostrar nas ruas coscuvilheiras do lugar. Até que o veterinário reformado, sabendo das andanças do velho Parra, o chamou. Era um ébrio, mas dispunha de influências. Revolvia escândalos nos jornais do distrito, com a insensatez de um vinho briguento, e temiam-no. Recebeu o velho Parra aos gritos. Era a sua maneira majestosa de dar a entender a sua penúria em vinho e feijão pequeno. Trocava favores por subsistências. Queria fazer justiça ao rapaz, é certo, ouvira umas vozes, mas precisava de ver a sua caderneta mili­tar para esclarecer essa expulsão do Exército. Falava co­mo se o julgamento saído da sua boca decidisse de um povo inteiro. O velho Parra levou uma semana a con­vencer o filho a entregar a caderneta: o veterinário tinha poder, era um sujeito bem-falante, embora um pouco abusador do álcool. Dias depois, insistiu ainda com António para que o acompanhasse a casa do homem: iriam juntos ouvir a certeza de um emprego. O velho queria evidenciar ao filho que o chefe dos Parras dispu­nha de amigos categorizados. Era uma vitória que devia ser gozada na própria ocasião. Logo de madrugada, en­cheu os alforges da mula com castanhas, feijão pequeno e um garrafão de jeropiga; António seguiu uma hora depois para não assistir à entrega do presente. Mas nem passou o muro onde o veterinário costumava experi­mentar a instabilidade das pernas: o ébrio tinha o corpo fora da janela, o punho fechado; parecia esperar apenas a chegada do rapaz para iniciar o seu comício, enquan­to o velho Parra se sentara pacientemente nos degraus do chafariz, com a mula já aliviada das provisões. O vete­rinário discursou durante uma hora, pomposamente bê­bado:

— Já aí vens, refractário?! Mas tu és um refractário, rapaz! Venham, povos de Montalvo, venha toda a gente honrada desta terra ver um refractário, um anar­quista, um incendiário! Um reles refractário.

O discurso foi mudando de tom e, por fim, nele se misturavam algumas frases dos brindes nos casamentos da vila. A criada veio puxá-lo da janela à força, acaban­do por convencê-lo com um copo de vinho; temia esses comícios mais do que as pessoas alvejadas: o patrão, um pouco antes de o queixo lhe descair, referia-se sempre a certo mal da companheira, mal de mulheres, e a uns falatórios inspirados pela língua virosa do Dr. Pro­vidência.

O velho Parra, no regresso, despejou uns litros de vinho no fundo das furdas, sentou-se no tropeço, comodamente, e disse à mulher:

— Chama os porcos. Os porcos, disse eu. Quero vê-los beber na minha frente.

A mulher obedecera, esparvoada. Os porcos levan­taram os focinhos, como se fossem espirrar.

— Mete-lhes tudo isso pelas goelas. Não estou par­vo, não. Aquele traste vai comer os meus feijões, mas eu verei também aqui no Pomar um suíno bêbado aos urros.

A António Parra restavam-lhe os acasos do contra­bando. As serras eram livres e não pediam servidão. A fronteira, os perigos, tinham revigorado o seu corpo e a sua vontade, mas o António Parra doutros tempos morrera no dia em que procurara o refúgio do Pomar.

Tudo isso se desfizera no tempo, o pai acabara por aceitar o desinteresse do rapaz. Confiava mesmo em que ele acabasse por ser dócil perante os poderosos; talvez assim chegasse a arrumar a sua vida. O velho já não sabia que desejar. Mas agora tudo se modificava: o Pomar fora ameaçado. Não queria ver o filho medricas. O filho era o mais válido dos Parras, ainda se lhe sentia uma rijeza, um poder que se escapava à compreensão do velho; o rapaz não precisava de falar, nem de ameaças, nem de dinheiro, para que os outros se sentissem perante uma força desconhecida. Estava simplesmente abalado, mas alguma coisa obscura e inviolável conti­nuava de pé. Por isso o velho o esperara inquieto toda a tarde. A sua réplica, porém, era o desabar de um mundo.

— Achas então que eles arrancam daqui... todo este povo? — O seu primeiro impulso tinha sido dizer «Achas que eles arrancam daqui um Parra?», mas, co­meçando a recear que as ameaças do visconde fossem irremediáveis, queria diluir a sua derrota no anonimato da comunidade. — E eles virão antes das ceifas?

— Eu sei lá disso!

— Não ouviste dizer nada por aí? O tal Quírio fala que as terras serão divididas por uns galegos.

António volveu os olhos enfadados pelo pátio. O ve­lho era ridículo e palavroso, mas agora, que o via insubmisso, em contraste com a passividade da aldeia, mere­cia compreensão. Não queria misturar-se em assuntos alheios, mas não devia ser duro com o pobre velho. Precisava de o contentar com qualquer resposta e li­vrar-se de mais conversas.

— Na vila fala-se disso, pai.

— Fala-se que virão antes das ceifas?!

— Isso não digo. Tudo o que se apregoa é um falar barato.

Aquela intimidade ia-se tornando cada vez mais em­baraçosa para ambos. O velho Parra piscou os olhos várias vezes antes de insinuar uma das suas ideias:

— Sei que tens uma arma na arca. Entendes? Não há um sujeito no mundo capaz de me entender como tu. É o caso. Não fales nisto a tua mãe, que é uma ve­lha burra. Burra, teimosa. Com uma arma, um homem tem outro respeito. É o caso. Se tu falas nisto a tua mãe, há aí uma chiadeira dos diabos, ainda a tranco no forno para lhe assar as goelas. Que dizes se o teu irmão vier para aí? Somos três, e a arma.

Cuspiu a uma distância memorável e olhou o filho com olhos húmidos.

Estava certo de que ele se entusiasmara; o velho sentiu desfazer-se o mal-estar entre ambos; pela pri­meira vez havia muitos anos assentou-lhe nos ombros as mãos confiadas.

— Entendes, hem?...

— Amanhã se verá, meu pai. Tenho de sair esta noi­te e preciso de descanso.

O velho encrespou a testa.

— Então tu podes sair daqui sem saber se eles virão na tua ausência?! Consta na vila que os galegos não chegam antes da Feira dos Santos, mas quem o garante? Sabias tu isso? Mas sei eu! E sei também que esta noite há rebuliço no Maranhão, os cabrões não perdem tem­po; compram aí uns safados e põem a gente na rua, mesmo a dormir. É o caso. O tal advogado junta hoje as testemunhas na vila. O Lopes jurou contra a paróquia. Quando cair o barrocal, caímos nós também. O visconde combinou assim com o Dr. Carreira: «Tu experimen­tas; e eu vou-te no encalço.» E o Dr. Carreira rouba o barrocal e o visconde não espera muito para nos dar o pontapé. Pois que pensas tu? A gente é uma gente ce­ga. Eles fazem lá tudo à porta fechada. Riscam letras nos penedos, convidam os galegos, e qual foi o homem capaz de lhes dar o coice? Qual foi? Um Parra, é o ca­so. Esta morada é a primeira que lhes tenta os dentes. E deixas o teu tecto num dia destes?

— Se eles juram pelo visconde e pelo outro, mere­cem todos os roubos. Merecem que lhes tirem a pele.

— Mas não jurei eu! Eles não podem dizer que um Parra é um vendido! Apresentei-me à paróquia como testemunha, falei direito. Ouviram o que não quiseram. Eu e o Barbatura falámos como homens honrados. Apre­sentei-me, entendes, e ninguém me assentou no papel. No fim de contas, nem os da paróquia querem ouvir a verdade. Aquilo não lhes sai do sangue, sai-lhes só do papel.

António tinha já à sua frente um montinho de apa­ras de cana, lascadas com tédio pela navalha. Cortou abruptamente a verborreia do velho:

— É o que lhe digo, pai; eles merecem tudo. É es­cusado a gente insistir mais nisso. Tenho de ir falar com os companheiros para esta noite. A cheia desceu um metro.

O velho Parra descaiu o corpo sobre o tropeço. Sentia-se miseravelmente desprotegido. O filho, um Par­ra, era um cobarde.

A mulher veio muitas vezes dar a vianda aos ceva­dos, abrir o janelo da mula, para que a sua presença e os relinchos da besta lembrassem ao velho cabeçudo que o forno precisava de uma boa carga de lenha.

O homem, no entanto, esperou ali o fim da tarde. Esperou ainda a noite, trazida pelas nuvens cheias e ne­gras, depois que o Sol se desvanecera nos cabeços do Maranhão. Nos cabeços do estado livre do Maranhão.

O Pencas só parou de correr junto da garagem do Dr. Bastos. Então, livre de perigo, sentou-se no marco da estrada. Navalhas furavam-lhe o estômago por todos os lados; uma onda amarga, de fogo e náusea, como nas manhãs que se seguiam às noitadas de vinho, subia-lhe do ventre à boca. Tinha de se dobrar para a frente, apertando a dor. Um caldo, um simples caldo, gastaria aquela aguadilha azeda que lhe ardia nas entranhas. O velho Parra era um desaustinado de mão leve; dele, até ao fim da vida, só poderia esperar berros e paula­das. E, no entanto, ele não podia chamar madraço a ninguém: gozava o sol dos dias inteiros, o forno gover­nava-lhe a língua e a indolência. Não precisava de jogar para conseguir comida que se visse.

O Pencas pensava em tudo isso e no estômago va­zio e revoltado e ainda na sorte que seria para todos se o velho esticasse as pernas. O Pencas daria ao velho o direito de o espancar à vontade se, como dantes, lhe garantisse as malgas de caldo. Assim, era um abuso. Desta vez, armara-lhe aquelas negaças para o chegar ao alcan­ce da mão. Enfim, tinha sido um dia negro: nem comi­da, nem batota.

Fez uns vagos projectos de recomeçar a marcha, mas a ideia do esforço desencorajou-o. Estendeu-se mesmo no chão, para desfrutar um repouso completo. Ia quase a adormecer, a dor mordendo-o lá ao longe, como num so­nho, mas alguém o despertou aos pontapés.

— Põe-te a pé, coisa reles! Era o mastodonte do Camarão.

— Deixe-me, deixe-me.

— Abriga-te na cabana, esterco de carne!

— Estou roído de dores. Não jantei.

— Hei-de encher-te o bandulho um dia destes. Vais ganhá-lo comigo. Borrego e vinho! Vou arrancar-te das palhas lá pela madrugada. Mas bico calado, hem, garo­to? Há quem ganhe bom dinheiro anavalhando os camaradas pelas costas. Sou eu que hei-de levar-te a Es­panha, vê lá se me queimas as mãos.

O Camarão ficou de boca tapada por uma das manápulas, indeciso, e acabou por se afastar. O Pencas viu-o subir os degraus da Rua da Sarça, uma rua cavada nas rochas brutas da encosta. O Camarão ia dormir com a Calhica, escusava de o negar.

O contrabandista espreitou, da esquina, todo o com­primento da rua. Um assobio trouxe-lhe o filho da Ca­lhica. O garoto veio a correr e o homem ergueu-o à al­tura da cabeça medonha. Depois sentou-se nas pedras, lançando olhares furtivos à porta da rapariga, enquanto o seu pequeno amigo lhe inventariava os bolsos. Mas o garoto ficou desiludido com o esperado chocolate:

— Este não tem boneco.

— Então enganaram-me. Deixa ver.

— Não presta para nada, este chocolate. Traz outro.

— Amanhã trago um monte deles. — E depois se­gredou-lhe: — Amanhã, eu e a tua mãe vamos a Espa­nha. Não digas nada. E trago de lá uma coisa.

— Pra ela?

— Não: pra ti.

— O que é? Eu quero saber!

— Uma coisa.

E deu uma gargalhada de prazer. Outros garotos es­piavam-nos dos cantos e do cimo dos penedos; alguns vieram para ali próximo, agachando-se, curiosos. Mas o primeiro que reconheceu o Camarão, o Camarão grande e feio que servia de espantalho nas ameaças dos pais, deu o rebate; e debandaram em grupo, aos berros. O contra­bandista ficou sombrio e pôs-se de pé. O amigo puxa­va-lhe pelas calças, teimando:

- Diz-me o que é, Camarão. Diz-me.

Uma pedra foi jogada lá de cima, detrás das fragas, e encontrou o ombro do pequeno. Este caiu, num choro convulso, e o homem, de olhos estonteados, ergueu-o nos braços. A Calhica já vinha ao seu encontro. Camarão entregou-lhe o filho com humildade, no jeito de quem merece censura. Ouviu-se o restolho da pandilha, no cimo dos penedos, fugindo. O contrabandista ficou à porta da Calhica, escutando os soluços do pequeno. Estava ali como um cão castigado. Mas quando o garo­to, entre soluços, chamou por ele, decidiu-se a entrar; atravessou a casa em bicos de pés e chegou as mãos grossas e inábeis aos cabelos da criança, enquanto a mãe lhe fazia massagens de vinagre no ombro dorido.

- Não chores. Luís, que eu prometo trazer uma coisa bonita de Espanha.

O garoto interrompeu o choro e perguntou, ansioso:

- Diz-me o que é. Eu não choro mais.

- É um cavalo.

- Vivo? Grande?

- Grande como tu. Grande e de rodas.

A Calhica sorriu para ambos; e o Camarão, de olhos enevoados de súbitas lágrimas, alagado de felicidade, riu com um destempero que sobressaltou o garoto.

Depois o silêncio veio afastá-los. Não havia mais para dizer. A sua companhia já não era desejada. Ainda perguntou, gaguejando:

- Não haverá perigo, Calhica?

- Isto foi só mimo, obrigada.

- Então, até amanhã, no Penedo Redondo. Saímos cedo.

E encarou-a pela primeira vez. Lá fora, ficou deita­do nos degraus da porta, um guarda fiel.

Pencas, por seu lado, só muito mais tarde venceu o resto da calçada. O cego estaria já em casa, esperando-o com as enjoativas azeitonas, o duríssimo pão de cen­teio, comida para viandas de porcos. Àquela hora, os jericos desciam aos bebedoiros, com as ferraduras ris­cando fogo no empedrado íngreme. O barrocal era um caminho aguçado para o céu. Os velhos encovavam o peito do esforço da subida: faziam pausas, arfantes, enquanto os seus rebanhos de três cabras fartavam uma avidez milenária de trepar muros.

Pencas encontrou a cabana ainda fechada e por isso procurou a chave numa das fendas da parede. Uma tá­bua fazia de ponte para o galinheiro e dali se alcançava o esconderijo. O cego arriscava uma perna, em tempos desmanchada, nesse equilíbrio sobre a madeira carun­chosa. Rosnando, fungando, o mendigo assentava uma patorra na laje de granito, enquanto a outra escorregava cautelosamente ao longo da ponte. Prodigioso. O Pencas não podia deixar de admirar a audácia do velho.

Gostava de o esperar à entrada da porta, nas tardes mornas. O ar livre serenava o estômago e trazia bran­dura aos músculos, antecipando-lhe um ambiente amorável para a ceia que o velho trazia nos alforges. O cego anunciava-se pelo ressoar do cajado nas pedras, inter­pondo entre si e o perigo uma zona de prevenção, levando o cajado muito à frente do corpo. O piso, gasto pelos burros e pelos sapatões ferrados dos camponeses, tinha armadilhas de pedra alisada, mais resvaladiça do que musgo. Quando já perto de casa, o velho tossia um catarro cavernoso e escancarava a boca com bocejos in­termináveis. Esperava que o sobrinho dividisse a ceia em dois quinhões, esfregando o nariz com impaciência. Pencas escolhia o toucinho, o pão mais alvo, perante a expectativa comichosa do cego, que se preparava para mastigar com voracidade os pedaços reles que lhe competiam, empurrando a comida com as duas mãos. No fim, ainda havia sofreguidão no seu rosto. O Pencas ia digerir a ceia para a taberna e o cego ficava entre por­tas, coçando os piolhos, remoendo os restos com as gengivas. Antes de se deitar, apalpava nas pregas do blusão algumas migalhas desperdiçadas. Toda a vila se condoía dessa desgraça do velho cego e mudo, explorado na sua miséria pelo moinante do Pencas.

Quando as galinhas começavam a postura, o mudo levantava-se muito cedo, com as cautelas e o alvoroço de um ladrão. Safava os ovos do galinheiro, escondendo-os nas abas enfunadas da blusa, e negociava-os com as criadas das casas ricas. Elas, apesar de enojadas com o cheiro daquele corpo imundo, tinham de lhe apoiar as mãos sobre os ombros, apaziguando o terror do men­digo de que alguém o acusasse ao sobrinho. Só deixava de fazer sinais de recato quando sentia o apoio dessas mãos; depois ficava sentado nas escadas, à espera de um pedaço de pão untado com banha de porco. Ninguém, na aldeia, sabia o destino do dinheiro de tais negócios, acumulado havia muitos anos. O cego acariciava as moe­das com ternura, embora não precisasse de dinheiro para nada; o seu estômago minguara no hábito de refeições duras e frias; pão, azeitonas, ovos crus. Calculava-se, por isso, que o dinheiro servisse para as noitadas do Pencas.

Em certos meses do ano, enquanto a semente era apenas uma promessa de hastes verdes e tenras e o pão rareava nas casas da vila, tapava-se a boca a um pobre com esmolas de dinheiro, embora os mendigos pedinchassem teimosamente comida. O Inverno maldito tra­zia os nevões, as águas que afogavam moinhos e gados; a miséria era uma invasão de pesadelo descendo das serras: aos velhos do sítio juntavam-se as vadias sórdi­das e as feiticeiras das montanhas da raia, até que a ne­ve, a fome e os lobos minguassem o rebanho. As ve­lhas, os meninos de ventre inchado que olhavam as árvores nuas sem a flor da marouva, e o mudo, que chegava a casa de sacola leve, espalhavam-se então pelos montados do barrocal, onde as ervas cresciam livres pa­ra acalmar os estômagos vazios. Os mais felizes mistu­ravam farinha nos saramagos, abrandando as diarreias da verdura, os ganapos chegavam à Primavera com os ventres altos como pipos. O cego conhecia todos os se­gredos de adaptação às contingências do tempo e das esmolas: distinguia as portas ricas das desmazeladas, as ervas mais saborosas, as malhadas da serra que ofere­ciam abrigo nos dias de temporal; e farejava ainda os ramos secos e leves dos tojos e as pernadas baixas dos sobros, para os lumes do Inverno. Reunia a caruma e os gravetos em pequenos montes facilmente transportá­veis e afastava-se léguas sem lhes perder o sítio. De uma vez, um homem mudou-lhe o lugar da lenha e fi­cou a apreciá-lo. O mouco rondou por ali, aos urros, sempre à volta do lugar preciso onde deixara os grave­tos, dando punhadas raivosas no chão. O homem, di­vertido, sossegou-o por fim, ajudando-o a transportar a carga. Regressaram juntos pela planície fora, rasa na cor e nos caminhos, e, ao chegarem ao ligeiro ressalto que marca a extrema da Casa Velha, o cego parou subita­mente. Fez muitos gestos, deu estalos com a língua e parou até que o outro o entendesse. «É aqui a extrema da Casa Velha», queria ele dizer. Estava feliz em poder gabar-se de conhecer os limites das herdades.

Essas habilidades do velho, o seu faro para acertar com as horas em que os turistas subiam ao castelo da vila, eram lisonjeadas pelo povo. Havia só a lamentar que as esmolas servissem a um sujeito desleixado e larápio como o Pencas. E, no entanto, o Pencas tivera uma infância como toda a gente, embora, desde ganapo, revelasse exagerado apreço pela liberdade sem estorvos. As pancadas nada resolviam. O velho Parra, certo dia, pensou que já era tempo de se reformar das caminhadas da serra; as pernas iam ficando tesas e o sangue alastra­va-se às malhas, sob a pele esfarelada. Ia ficando inca­paz, e a horta e as árvores pediam olho vivo a todas as horas; aquele filho mandrião, que não recebia mando de ninguém, poderia tomar conta da mula. E o rapaz, de começo, cumprira: era excitante atravessar a campi­na, a floresta de fetos e carvalhos, e encontrar amoras, ninhos, algum companheiro vadio. Mas, com o correr do tempo, a jornada foi crescendo em distância e fadi­ga, o forno tinha umas goelas que tragavam montanhas de lenha. Os pés ficavam encortiçados de pisar sempre as mesmas poeiras e lamas; um dia, deixou a besta pre­sa a um pinheiro, espantou-se para a vinha do Álvaro e ali dormiu um sono de escravo libertado.

As surras continuaram por muito tempo, e o Pencas passou a associar castigos com esforço. Ele não era um Parra, ninguém podia dizer que um Parra fosse esmoleiro ou vagabundo. O Pencas era um rebento saído do escuro dos caminhos, dissimulado como sua mãe, que cirandava todo o dia num silêncio afectado, tendo nos olhos aquela denúncia de serva de toda a família. Uma mulher não sabe valorizar as noitadas pelas serras da raia para encher as tripas insaciáveis do forno, nem sabe que uma árvore espera todo o mijo da gente da casa e também os infinitos cuidados de quem a compreenda. O Pencas era lá da mãe: estúpido e obstinado.

Por tudo isso, numa tarde de nervos, o velho Parra fechou a porta ao incorrigível. Que fosse esgadanhar o seu pão! As surras já não torciam homens. O Pencas, porém, não se desorientou: negava-se-lhe a casa onde as fornadas eram certas, mas podia contar com a cabana e as esmolas do tio cego. E, na vila, teria amigos e ta­bernas para qualquer hora do dia. Afinou então em si desconhecidas possibilidades de conseguir um pouco de dinheiro, tabaco e vinho. E fome, só a conhecera no Inverno do grande nevão. A neve viera à noite, acomo­dando-se sorrateiramente sobre as árvores; e depois a madrugada alumiou a paisagem subitamente estática e en­feitiçada. Monotonia branca, quebrada apenas pelas som­bras de um azul-vivo e pelos plátanos raiados de negro. A neve, até aí desconhecida em Montalvo, caiu suave­mente dias e noites, em farrapos efémeros e imacula­dos, à espera que a brisa gelada os aninhasse sem ruído. Insinuavam-se nas gretas das casas, dos muros, pétalas ou asas suspensas no ar enregelado. Os caminhos fun­diam-se nas superfícies lisas e, como a vida não parava, os homens debatiam-se como formigas a desobstruir o formigueiro, abrindo veredas escorregadias, sacudindo os galhos tenros vergados ao peso do nevão, dessoterrando o mimo das hortas.

O tio cego não compreendia o capricho do tempo, a estranheza desse forro duro, rangendo debaixo dos pés, que não o deixava esmolar pelas ruas. O seu cérebro humildava-se perante a misteriosa singularidade. Encolhia-se a um canto da cabana, amedrontado. No mundo havia neve. Foi uma revelação. Quando o sol desfez len­tamente a toalha branca dos telhados e das courelas, o ce­go recomeçou a sua lida mais quebrado e envelhecido.

O Pencas continuava a aguardar a chegada do men­digo. Amolecido pela dor, adiava a exploração dos esconderijos da cabana. Quando venceu a preguiça e en­trou, os seus olhos devassaram o tugúrio como se fosse aquela a primeira vez. Havia uma pista psicológica a orientá-lo: o mouco tinha a mania dos buracos: a chave no nicho das galinhas, os farrapos nos covis das pare­des; buracos negros, repelentes de porcaria. O dinheiro podia muito bem acoitar-se debaixo das lajes do borra­lho, ou num daqueles antros de aranhas e ratazanas. Sentou-se no meio da casa, dobrado sobre o ventre, a imaginar-se dentro das manhas do velho. As paredes, inclinadas sobre as traves, escoravam-se na sujidade acumulada ao longo de meses e anos: ninhos de bichos, teias de aranha, cortiços esmerados e sólidos de peque­nos insectos. A mãe do Pencas viera ali algumas vezes, em segredo, com ideias de limpeza, mas quem entrasse na cabana agoniava-se, era pior que as furdas.

Devia começar a tarefa por esvaziar a buracada dos trapos. Enfiou a mão por uma das luras, mas sentiu contactos pegajosos, caroços de frutos, uma frialdade húmida e nauseabunda. Os seus dedos fizeram resvalar algum cascalho e, das paredes, esboroou-se um resto de caliça de outros tempos. E todo aquele trabalho pode­ria ser inútil; pensando bem, o sítio do pecúlio devia ser um lugar remexido todos os dias. Mas já não lhe so­brava ânimo para uma exploração minuciosa. Estava enfadado: adiaria para outra ocasião.

Sentou-se à porta. O vento corria em zoada pelos telhados frágeis. Frescura e melancolia, a melancolia pesada e irremediável do entardecer. O morro era um monstro de sombras, inchado sobre a planície.

O estômago estava um pouco mais brando, ou en­tão cansara-se de o sentir. Se o velho Parra não andasse sempre a vigiar-lhe as surtidas, estaria agora consolado de boa comida, às ordens para uma noitada de cartas. A ideia do jogo avivou-lhe a preocupação de conseguir um pouco de dinheiro. Mas não adiantava desmanchar a cabana, pedra por pedra, e chegar ao fim de mãos va­zias; o mouco dispunha de muitas locas onde guardar o aforro: todos os dias o viam no barrocal do Barrete Vermelho, onde os penedos tinham grutas, buracos sem conta, esconderijos da sua feição. Valia mais espiá-lo. precisamente. Espiá-lo, surpreender-lhe as malícias. Era essa a ideia mais acertada. Iria fechar a porta de qual­quer modo, para não lhe despertar desconfianças, fican­do lá dentro escondido; o velho, ao entrar, julgaria a cabana deserta e iria direito ao mealheiro depositar as moedas. Pencas voltou a enfiar a chave no seu lugar e, do lado de dentro, com um prego curvo, conseguiu rodar a lingueta da fechadura.

O cego, quando chegou, como se pressentisse uma presença estranha, bateu várias vezes com o bordão na laje da entrada e esquadrinhou os cantos. Já sentado à beira do lume, ainda se coçava de desconfiança. Foi ti­rando da sacola fatias de pão, e esfregava-as depois na ponta do nariz. Apalpou demoradamente um pedaço de chouriço e, por fim, lambeu-o com deleite. O Pen­cas estava nauseado: sabia agora o nojo que era a comi­da que o velho lhe apresentava. Fez um movimento de desagrado e a trave a que se apoiava deslocou-se sobre as vigas podres do tecto. O cego ergueu-se com uma agilidade de animal ameaçado e rouquejou aqueles sons de ira e inquietação; foi correndo a casa, com os braços estendidos, orientando-se pela subtileza do olfacto. Pencas sentiu o suor gelar-se-lhe na testa e na nuca quando esteve quase a ser tocado pelas mãos do velho, duras como turqueses. Quando o mendigo completou a ins­pecção e se acalmou, o rapaz ia desmaiando de alívio.

O velho acomodara-se na sua posição de repouso: encostado à parede, pernas ao acaso, plantas dos pés voltadas para o refúgio do Pencas. Pés enormes, risca­dos de gretas. Pencas calculou que monstruosas botas poderiam agasalhá-los. Ainda mesmo que o cego tivesse calçado, este não valeria para fiança ou préstimo de ninguém. Só a ele poderia servir. Depois o velho levou os dedos muito ao fundo da algibeira do blusão e foi pescando alguns centavos. Contornava as moedas com os dedos coriáceos e bafejava-as com força, esfregando-as no cotovelo. Pencas sentia-se febril: o cego, daí a nada, revelaria o sítio do tesoiro! Mas o tempo ia-se tornando desesperadamente longo e os joelhos doíam-lhe sobre a dureza do piso. Acabou por ficar impa­ciente e destorceu o corpo, apoiando-se sobre as per­nas. Mas foi mais uma vez infeliz: o movimento dos ombros fez derrubar a trave e esta caiu com estrondo, arrastando-o na queda para junto do velho. Espalha­ram-se pedaços de telha sobre as lajes, caliça, nuvens de poeira. O cego foi atingido. Pencas percebeu confusamente as costas doridas, e logo depois uns dentes que vieram mordê-lo com loucura e dedos que lhe torciam os ossos.

Quando conseguiu safar-se para a rua, o vento an­dava doido pelo barrocal, soprando em todos os senti­dos uma chuvinha fria. Deitou-se pesadamente debaixo do alpendre das bestas, com o corpo macerado, e adormeceu as suas desventuras num sono de porco. Perdera-se a última esperança de conseguir um pouco de dinheiro, de calçar umas botas, de restabelecer a con­fiança dos companheiros de jogo.

Ainda não dormiria nessa noite o velho Parra. Não era dormir o pesadelo de ladrões, correrias, tiros, mãos brutais a deceparem a raiz das três árvores do quintal; dentes desgastados do Dr. Providência, cheio e calvo como uma bola; uma espingarda nas mãos de um Parra, brilhante como uma estrela de fogo, a espantar a cana­lha para fora da paróquia. O barrocal e o Pomar eram do povo, ali cresceram homens, ovelhas, o pasto sem dono, cresceram as casas e as árvores sem licença de ninguém. Este pedaço é meu e é de todos, aqui não há muros, guardas armados, nem acoimações das cabeças de gado que roem a erva um dedo além da extrema. Dantes, um pobretão qualquer poderia amontoar pe­dras e construir um tecto para o abrigar dos ventos, plantar três árvores e adubá-las com o próprio corpo, preparar uma courela e conseguir do terreno maninho uma horta de nabos. Amar um pedaço de terra, cheirar nele o hálito profundo da seiva, sem ganância de lucro e sem afrontar ninguém. O Pomar era uma planície bravia entre os carvalhos e a serra, um covil de lobos; os olhos ávidos dos ricos alargaram-se de gula e o vis­conde foi de todos o que chegou primeiro. A planície ficou presa ao destino de um dono, entregue à explora­ção dos camponeses que a iriam desbravar como coisa sua. O suor fez-se milagre, e searas, vinhas, montados, cresceram no sítio das estevas. As feras tinham sido afugentadas para a serra. Ali proliferava agora uma co­munidade esquiva, de gente isolada do mundo.

O sonho do velho Parra baralhava tudo isso: o vis­conde era um sardão peçonhento e à sua volta rasteja­vam malteses da estrada, o feitor arredondado de car­nes, desgraçando as mulheres dos camponeses. Vinham todos postar-se à frente da espingarda de um Parra e arranhavam as unhas de sangue na terra roubada. Vi­nham todos sobressaltar o sono de um homem que não jurava no tribunal ao lado da quadrilha que pilhava o povo.

Apesar desse tumulto na cabeça, foi o velho, contra o costume, o primeiro a ouvir as pancadas surdas na porta do quintal, seguidas da ladração do Picanço. Seu filho António Parra deitara-se cedo, na mira de con­vencer a caravana de contrabandistas a lançar-se ao ca­minho antes do amanhecer.

As pancadas tornaram-se gradualmente impositivas. O velho, de nervos tensos, supôs logo que devia tratar-se de algum malandro aluado que se lembrara de inter­ferir no sono de cada um; usou de toda a sua intuição para ficar certo de que o importuno não merecia o sa­crifício de esfriar os pés no lajedo da casa. Houve de­pois ruídos emaranhados, pragas e o ladrar raivoso do guarda. Quem ali vinha era estranho à comunidade, pois o cão conhecia pequenos e grandes do Pomar. En­tretanto, o filho rosnou algumas palavras, deu uns pas­sos contrariados pelo chão, e uma aragem molhada sol­tou-se da noite para o interior da casa.

Estava a pensar que já não conhecias o bater de um camarada. Por pouco, ficava aí nos dentes deste rabioso. - E um homem esguio, de chapéu mole desaba­do numa das orelhas, entrou. António Parra enxotou o cão, ainda nervoso, para a rua, e o recém-chegado sacudiu as abas do casaco, ensopadas de chuva. Mostrou ainda, sem comentários, esbugalhando os olhos, o ras­gão das calças. - Cheguei a Montalvo e não procurei banda nenhuma; vim aqui direito. Vi logo que não es­tarias na bodega; atravessei a campina e vim aqui direi­to. Se há passado algo.

António Parra teve um gesto contrariado a essas úl­timas palavras e disse, sem entusiasmo:

- Olá, Clemente, viva. Fale um pouco mais baixo, que há gente a dormir nesta casa.

- Tu estavas mesmo a dormir, António?! - E apro­ximou uns olhos enormes e ingénuos. - Verdad

- Que mal há nisso? Você teve uma ideia danada em procurar-me a uma hora destas - respondeu com dureza. Esfregou as pálpebras, bocejando, e sentou-se com uma expressão resignada. - Chove?

- Falas de verdad, amigo ?!

- Tinha pegado no sono agora mesmo. Conto com o pessoal para sairmos esta madrugada para a fronteira. Vossemecê deve saber que estamos parados há muitas semanas. Foi uma ideia danada, a sua! E esta chuva, também é o raio. Vamos ter outra cheia no Erges.

- Eu saio já, António Parra! - Rodou sobre os pés, com os braços gesticulando. Desengonçava o cor­po como um palhaço, enquanto António acendia o pa­vio de azeite. - Eu saio; tu não vais dizer-me que fe­chas a porta a um camarada!

- Não fecho coisa nenhuma. Estou a ouvi-lo; só lhe peço que diga de uma vez se quer dormir cá em ca­sa. Ajeite-se por aí, se quiser. Tenho de descansar um pedaço antes de meter as pernas ao caminho.

- Eu saio, António. Vejo que estás a fechar-me a porta na cara. - Chupava e estendia os beiços, abrindo covas no rosto flácido, e a pele, curtida de vermelho, avivava-se mais ainda, de irritação.

António prolongou intencionalmente novo bocejo e arrumou as botas a um canto. Disse numa voz desinte­ressada:

- Há tempo que vossemecê não aparecia por cá.

- Uma vida de cão tinhoso, camarada. - Sentou-se num tropeço, de gestos serenados, como se o co­mentário do contrabandista tivesse sido o convite para uma conversa longa. - Estive uns dias na Terra Fria com os filhos e a mulher. A vida por lá não anda bem. Deram-me estes sapatos, esta camisola... - Ia mostran­do amorosamente. - Eles entendem bem que um ca­marada ou é escravo ou luta. Escravo para fossar uns cobres para isto tudo. Ora eles não querem que eu seja um escravo, entendes? Por isso me dão umas lembran­ças. Venho justamente falar contigo sobre estas coisas. Se há passado algo por aqui: anda tudo cheio, por essa fronteira, que irão roubar o Pomar aos camponeses. E me dizem que tu viraste costas às responsabilidades. Ouve, António Parra: tu abandonaste a tua gente!

António Parra tinha-se preparado para ouvir uma história demorada. Aquilo não acabaria mais: nem com dinheiro, ou comida, e com vinho seria ainda muito pior. Aquelas censuras doíam-lhe como brasas sobre carne viva. Vinham remover vozes e experiências cala­das na memória, trazendo à superfície tudo o que ele, António Parra, queria esconder de si próprio. Repetia intimamente que o outro era um cínico, um mistificador, um vagabundo; que não valia um dedo como ca­marada. Sentia-o aproximar-se e colar-se à sua vida, um parasita repelente e necessário; e defendia-se com an­gústia dessa presença que se insinuava até às entranhas da sua indecisão.

Clemente dissera as últimas palavras com firmeza. Mas logo depois a sua voz fez-se serena e humilde:

- Me dá tabaco, camarada. Tenho as goelas secas de andar por aí a endireitar caminhos para esta casa. Já te disse que vim aqui direito, a procurar a casa de um amigo. Se há passado algo.

- Quer um golo de vinho?...

O outro levou as mãos à frente, a protestar:

- Não te incomodes, António. Esta é uma conver­sa séria. Pois venho justamente do Rosmaninhal. Juntei lá um mulherio bravo. Enchiam uma praça! Eu gritei para elas: o povo de Montalvo está roubado, gente! Disse isto para elas e tudo o mais que um camarada de­ve dizer. Gritaram como fúrias de volta de mim. Foi um guarda reles, deste tamanho, pouco mais, que des­fez o comício. Um guarda reles, amigo! Que gente mancas !

Coçou os pulsos com desespero e os seus olhos in­vestigaram com agilidade e método todo o aposento.

- ...Pois, de hoje em diante, camarada, não roubo mais um minuto à luta. Tenho uma coisa cá dentro que me diz que ando no bom caminho. Mas eu me acho mal do corpo: me encontro tal qual um bicho lazaren­to. E isto não é bom, nada bom. Tu o sabes melhor do que eu. - O seu olhar fez-se duro e malicioso e Antó­nio sentiu-se indignado. - Tu o sabes; mas, juntos, ha­vemos de ser uma bela força. - Levantou-se do trope­ço e deu uma entoação majestosa às palavras: - Te venho buscar, amigo!

Pôs a mão estendida, a impedir a resposta de Antó­nio Parra, e sentou-se de novo, desfolhando vagarosa­mente a mortalha há pouco oferecida pelo contraban­dista. Abriu várias vezes a boca para recomeçar. Mas, de súbito, alguma coisa voou da espécie de cortina que separava a sala do quarto do velho, e essa coisa, dura e informe, caiu estrondosamente sobre o pavio de azeite, arrastando a candeia para o chão.

O velho Parra tinha-se remexido muitas vezes na enxerga, desde o aparecimento do estranho, e cansou os músculos a esticar o pescoço acima das palhas para ou­vir umas palavras e reconhecer o intruso. Só muito depois acertou com a presença do Clemente e apenas as últimas falas chegaram nítidas aos seus ouvidos; nessa altura, a irritação estava em cheio e viu apenas no intro­metido aquele sujeito maltês, avinhado e sujo, que ti­nha as ideias que haviam desgraçado o seu António. Foi assim que deitou a mão à cabaça de vinho e fez pontaria para a luz.

Clemente, na escuridão inesperada, guardou o tron­co e a cara com os punhos fechados. António Parra ris­cou fósforos e, às apalpadelas, pôs a descobrir um candeeiro.

— Vamos acabar com isto, Clemente. Aquilo foi apenas um aviso do meu pai. O velho anda com os ner­vos doentes. Preciso de dormir um pedaço e vossemecê também... Pode escolher a minha cama, que eu fico aí deitado de qualquer modo.

— Não se trata disso, amigo. Não tenho precisão de dormir para coisa nenhuma. — Olhou várias vezes na direcção da cortina, onde o velho rosnava do seu co­vil. — É uma conversa séria, esta nossa. Vamos ali para fora, se queres.

— Está frio, conho. Diga o que quer dizer de uma vez; o velho não se zanga por mais uns minutos.

Clemente fez uma pausa de desagrado. A sua ex­pressão tornou-se áspera e altiva. António baixou os olhos; ele conhecia, a par da miséria apalhaçada e da vadiagem do companheiro, os seus momentos de luci­dez, de domínio sobre as pessoas, de subtil captação dos acontecimentos. António desprezava-o e temia-o.

Clemente chegou-se à chama e sorveu umas fuma­ças do cigarro, de tal modo que as pregas do rosto se afundaram em abismos.

— Es esto, António. Tu abandonaste a tua gente. És um cão enxotado, como eu. E tens medo, medo de no-sotros e de ti. No fundo, és verdadeiro. Mas eles fize­ram de ti um cão a ganir de medo. Venceram-te, amigo. Sentir isso não é nada bom. Nada bom, amigo. — E sa­cudia furiosamente a cabeça: — Nada, nada bom.

O velho Parra ouvia agora distintamente a conversa; e já se teria levantado, para sacar de um porrete e desancar aquele vadio, vadio e mau companheiro, se não temesse a reacção do filho. Um Parra embasbacado pe­rante um traste daqueles! Ia acumulando furor, arra­nhando as mantas com as unhas duras. António passea­va pela sala o seu mal-estar.

— Tu não prestas para nada, companheiro — insis­tia o outro —, mas é tempo de teres um rompante e vi­res por aí. Estive no Rosmaninhal, falei ao povo. Já an­dei pela raia um ano inteiro, em negócio de panos, todo o pessoal me conhece. Acabei com o negócio porque a besta me comeu todo o capital. Ainda me lembrei de pedir um auxílio aos amigos. Preciso dum pequeno ca­pital, de um reforçozinho de quando em quando. — Pigarreou, levando os dedos à garganta. — Tenho isto seco de verdade. Não bebi um golo desde manhã.

— Já lhe ofereci vinho — disse António, com enfado e lástima. Estava havia muito para lhe dar uma resposta decisiva, mas não sabia verdadeiramente que dizer. Sentir-se-ia feliz se tivesse coragem de estrangulá-lo. Enquan­to Clemente falava, fazia projectos infantis de vinganças cruéis, como no tempo em que era apanhado pelos fei­tores a roubar marouva e pensava matá-los no escuro da noite, escondendo depois os corpos nos poços da campina.

— Não é disso que se trata. — Ficou uns momen­tos à espera que António se decidisse realmente a bus­car uma garrafa de vinho. — Eu venho aqui por algo sério; venho saber se um amigo ainda está disposto a lutar por si próprio. Se tenho sede ou fome, isso é co­migo.

António recordava outras vezes em que Clemente vinha de longe, com uma exuberância teatral, para lhe dar notícias fantásticas que fossem do seu agrado. «Se há passado algo.» E, depois, representava a comédia; e, depois ainda, pedia sempre uma pequena ajuda, com muitas juras e propósitos honrados de retribuir o dinheiro na primeira ocasião.

António acabou por dizer abruptamente:

— Ouça, Clemente: preciso de dormir; preciso de pernas para caminhar um dia inteiro. Tem aqui vinte escudos, pode também comer pão e azeitonas, é o que há, e pode ainda deitar-se na minha cama, se muito bem quiser. Mas vai deixar-me em paz até que eu abale

para a fronteira.

— Falas em dar-me esmolas! Mas tu não és um cama­rada! E eu que sempre te julguei verdadeiro! — Cresceu para o outro numa indignação em que se percebia algu­ma angústia. — Não, tu não conheces o Clemente. — Depois recuou para a parede e a sua face ficou entre amarga e astuciosa. — António! Sempre te disse que o Clemente não aceitava esmolas de ninguém! Peço uns cobres emprestados, às vezes, para comer. Mas empres­tados. Um dia pagarei!

— Entre amigos não há esmolas. O pouco que tenho é seu e de quem precisar. Quero apenas descansar umas horas. Gostaria de conversar, mas é tarde. — Indeciso, estendeu mais uma vez o dinheiro e fechou-o na mão húmida de Clemente.

— Ouve, amigo: tu me vais garantir que isto não é esmola! — Batia com o dorso da outra mão na nota amachucada.

— Não se agaste, Clemente. Vossemecê bem sabe que trabalho para viver. Nós temos que fazer pela vida, para não ficarmos aí pelos cantos roendo ossos. Nin­guém me vai trazer a comida à boca! — disse, exaltado. — Não quero rebentar de fome! Estou farto, vão para o diabo que os carregue! Deixe-me, leve tudo o que es­tá nesta casa, beba, fume, mas não volte nem uma vez mais. Se valesse para alguma coisa deitar-me ao comprido e morrer para aí como um cão, deixava-me morrer. Acabou-se. Mas a luta não é assim, penso eu.

— Continuas a insultar um camarada, porco sujo! Cerdo, porco sujo! Tens medo como um rato. Tu o que tens é medo. És um cevado, um fascista!

Nessa altura, o velho Parra desembestou do escuro. Um furacão. Ter-se-ia lançado sobre o valdevinos, se as calças, desapertadas, caindo sobre os joelhos, não lhe tivessem cingido as pernas. Foi, contudo, pausa bastan­te para que o filho o segurasse rijamente por um braço. O velho Parra, por fim, teve uma oportunidade de intervir :

— Você vai sair daqui num repente, seu bêbado va­dio! Não insulta mais um Parra, debaixo do tecto dos Parras, sem que alguém lhe rache a testa ao meio! É o caso.

António, desorientado, apeteceu-lhe acabar com tudo aquilo a murro. Mas, uma vez mais, refreou os nervos.

— Acabemos com esta palhaçada. O Clemente tem sempre nesta casa um caldo. Mas, se quer que volte a falar franco, fique sabendo que não vou apresentar a cara a uma espingarda da raia apenas por gosto ou para sustentar moinantes. Vossemecê pode trabalhar como eu. — O rosto de Clemente ia ficando malhado de lividez e vermelhidão. — Nem é doente nem aleija­do; é até um bom mecânico. Vossemecê já trabalhou em motores, nas minas, nas barragens, e nessa altura era tão útil aos camaradas como é hoje, penso eu. Se fosse um inválido, o caso era outro. Sou tão camarada como você.

O velho apoiava com a cabeça e sentia-se um pouco desnorteado. Passada a tempestade, aquilo parecia-lhe uma cena de pessoas sem juízo. A quebradura, com o salto da cama, pesava-lhe sobre as calças e obrigava-o a ampará-la com as mãos. Clemente mastigava em seco, contorcendo os músculos labiais, e de tal modo que o velho Parra procurou descobrir-lhe algum alimento en­tre as gengivas.

— És um vendido, desgraçado. Tenho o coração ne­gro por ti. Tu já não és um camponês, nem és um camarada: abandonas a tua terra e a tua gente. Mas eu me pegarei à tua vida, não te deixo mais só na tua cobardia. Queres obrigar-me a vender a inteligência? Eu te contei que tenho um invento. Podia ser um burguês se ven­desse os planos do meu invento, mas eu os guardo, e bem sabes pra quê. Toma aí o teu dinheiro, sujo. Hei-de arrebentar de fome pra te ver gordo como um ceva­do. Tens aqui o dinheiro.

António Parra esfregou os olhos, com as faces a ar­der, e dentro de si havia uma ressaca de profundas e contraditórias forças. Tudo aquilo era intolerável, ridí­culo! — repetia continuamente para si. Estava exausto de o ouvir e de reagir. Desejaria o milagre de um re­pouso que viesse libertá-lo, um repouso surdo, definiti­vo, que durasse séculos. Abriu o postigo da porta e rondou a noite ainda fechada. Daí a pouco, precisava de saber se os camaradas sempre resolviam enfrentar a cheia.

O velho Parra queria barafustar de qualquer modo e decisivamente. Achou que não tinha palavras para gente daquela e aproveitou a saída do filho para sacudir o casaco do Clemente.

— Vossemecê vai sair agora!

António voltou para dentro e ia esbarrando com os dois, seguros um ao outro. O velho ainda ergueu os punhos, mas a hérnia espichou do saco e teve de sofreá-la apressadamente.

— Deixem-se disso. Você fique com o dinheiro; é apenas um empréstimo. E não quero ouvir uma palavra mais, antes que perca a cabeça. Resolva se quer dormir aqui. Amanhã, talvez se adiante a conversa.

A última frase foi propositadamente reticente, mas fez reanimar o rosto do outro.

— Queres dizer, António... Eu não podia acreditar que tivesses desprezado a tua gente, amigo! Eu estava em Penha Garcia e ouvi toda a história dos barrocais e desta safadeza no Pomar e disse para mim: «O meu amigo António Parra espera-me. Ele tem sangue do Pomar. Ele é um camarada verdadeiro; está na trinchei­ra com o seu povo. Se há passado algo e o meu amigo António precisa de mim.» Vim de falar ao Rosmaninhal para estar contigo nas lidas do povo de Montalvo. An­dava triste, amigo, de te ver afastado dos cuidados da tua gente. Mas ia ficar a teu lado até que ouvisse de ti uma palavra verdadeira. Eu sabia que esperavas o Clemente.

António pôs-se sombrio, esquivando-se ao enleio. Mas nos olhos do velho Parra havia agora um fogo estranh, enquanto esperava com sofreguidão a resposta do filho. Este aproximou-se da porta para não os enfrentar.

— Saia, conho, ou venha dormir. Não tenho nada consigo nem com ninguém.

— Eu não te conheço, António Parra! Não te co­nheço e te juro que te liquido como a um cevado. Vou-me embora de tua casa, nesta hora mesmo. O Cle­mente encontrará na bodega alguém que espera a sua palavra.

Passou a porta, de rompante, com o dinheiro amar­fanhado nos dedos, como se temesse perdê-lo. Mas, após ele, afogueado, saiu tembém o velho Parra.

— Uma palavra, Clemente; eu estava enganado: você é um amigo. Até que enfim que há um homem nestas redondezas que não se arreceia de defender a sua terra!

E António Parra ficou a vê-los caminhar juntos, apaziguados, até que a noite os desfez. Permaneceu ain­da uns minutos à porta, com um jeito sombroso e desanimado, e algum tempo depois ouviu um ruído no pá­tio que despertou os porcos da furda, seguido de um escoicinhar bravio na porta da estrebaria. E depois a mãe afastou-se com a mula a caminho da serra, esguia e silenciosa como um fantasma.

 

Raia de Espanha. Serranias azuis e violentas que se amaciam subitamente em olivais, campinas de trigo, planaltos de terra vermelha. Caminhos de estevas, de fragas, onde o perigo sai dos barrancos e dos muros, ou cami­nhos melancolicamente guarnecidos de plátanos, abrin­do clareiras na mata de pinheiros mansos, de um verde calmo e opulento, onde se escondem os celeiros das companhias agrícolas. Mas antes de os ganhões desem­pregados e os contrabandistas de profissão chegarem a essas terras têm de atravessar os baldios do seu país. Para cá das faldas desabrigadas, com o rio Erges esma­gado entre muralhas de granito, o casario nasce dos moinhos afogados nas enxurradas, sobe penosamente as margens das ribeiras, agacha-se à sombra das rochas e espraia-se por fim em aldeolas mesquinhas. Depois vem a planície, triste como um descampado, devassada pelo vento de Espanha, que satura o ar de poeira e solidão. Planície nua, crestada pelo sol, que amadura as infindá­veis searas de trigo.

São quilómetros tortuosos, noites fechadas de né­voa, olhos e ouvidos varando as sombras, e o rumor alcoviteiro do vento que desce das malhadas da serra. Um homem começa a desafogar o peito quando o amanhecer anuncia os povoados alegres de Espanha. Valverde del Fresno fica numa cova. A aldeia ressalta ines­peradamente do azul liso das montanhas; só a descobre quem se afunda nas vereias que rodeiam a subida da serra.

Quando os homens partiram da vila, em grupos se­parados, disfarçando o seu propósito por atalhos, ainda a noite se escondia na espessura das nuvens. Chega­riam, dia claro, perto do rio Erges e aí deviam aguardar novamente a cumplicidade das trevas. Arriscavam-se vinte e seis cargas de estanho, distribuídas por trinta homens de alugo; mesmo assim, cabia a todos um peso que ver­gava bem os costados: apesar de as mãos se arroxearem de frio, as camisas colavam-se ao suor dos músculos. Iam distanciados uns dos outros, numa fila sinuosa, por vezes interrompida nas ravinas e nas gargantas dos ri­beiros. O nevoeiro cortejava a coroa das serras parale­las à raia, esbatendo-se sobre a planície enregada de alqueives, para encordoar de novo junto à vila.

As cargas de estanho seriam negociadas na mina es­panhola de Pelares del Porto, e os homens, no regresso, teriam de alombar com fardos de fazenda. Se as coisas se arrumassem sem fugas e sem tiros, o esforço dobrado de um par de noites valia um mês de enxada nas herdades.

Os pés iam ficando encortiçados, as horas aproxima­vam a alvorada, o vento, às vezes, rasgava estradas no céu escuro; a marcha abrandava de entusiasmo. O Pencas ia no grupo da frente e foi percebendo o companheiro da retaguarda a encurtar rapidamente a distância entre am­bos; ainda quis aceitar o desafio desse passo vigoroso, mas parou, exausto, a resfolegar. O outro, com o suor morno e salgado a escorrer-lhe para a boca, disse:

— Arreaste. Pesam-te as banhas...

— Vomecê vai com um nervo...

— Tens o corpo lambão, é o que é.

O contrabandista estendeu os braços sobre os joelhos, com a carga poisada no chão. O seu ouvido apu­rado escutou os passos dos companheiros.

— Vamos, Pencas, senão perdemo-nos dos cama­radas.

— Tenho uma sede danada.

— Isto não é brincadeira pra conversas de taberna. Avia-te aí à minha frente.

Pencas respondeu qualquer coisa que a posição do queixo, descaído, não deixou que fosse nítida. Ergueu-se, pesadão, e continuou a marcha com as pernas ador­mentadas de fadiga.

Uma levíssima claridade foi abrindo o horizonte. O Pencas, com umas calças de cotim claro ou deslava­do dos anos, sobressaía entre os troncos imóveis e bo­judos dos carvalhos. O Camarão deu por isso; cami­nhavam agora lado a lado e não se distinguia qualquer rumor do companheiro da frente. Essa brancura do te­cido das calças feria-lhe os olhos.

— Pareces um espantalho, garoto. Talvez a farpela te saia cara.

Pencas não ouviu a frase inteira, abafado como ia pelo suor e pela carga, e levou tempo a entender o significado das palavras; mas, subitamente, teve a intui­ção de que o avisavam de perigos imprevistos, e o desamparo da serra correu-lhe, gelado, pelos nervos.

— Que disse vomecê?

— Que pareces um espantalho desmaiado. Anda, mexe-te. Qualquer espingarda enxerga ao longe as tuas calças.

Pencas, os olhos saídos das pálpebras balofas, inter­rompeu a marcha: o medo varava-o e isso não devia pasmar ninguém. Iam todos sujeitos a uma bala no corpo. Mas quem tinha calo no ofício esquecia essas coisas. Metera-se no negócio arrastado pelas lerias do Cama­rão; ainda sentia os ossos desmanchados dos percalços do dia anterior e não podia ter havido ideia mais safada do que atirar-se a um par de léguas sem um prévio re­pouso que lhe retemperasse as forças. Pior do que o medo, era esse cansaço irresistível: um ópio pesado e suave que vinha por cima de todos os perigos. Só a esperança de ganhar dinheiro graúdo o convencera a esfalfar-se por estes caminhos; mas se a jornada não tivesse um fim, dentro de meia hora deixaria o corpo es­tender-se à vontade, viesse quem viesse.

A manhã crescia de instante para instante. Talvez por isso, o cabeça de fila fez alto e pouco depois os ho­mens estavam reunidos, como se um estranho aviso os tivesse dirigido do fundo da terra para os juntar no mesmo lugar. O sítio era uma espécie de fosso argiloso, com raízes velhas descarnadas e pequenas galerias de al­guma esquecida exploração de minério.

Um vulto esclareceu-se da mistura de homens, sa­cos e sombras. Pencas reconheceu o irmão: encolheu-se atrás dos fardos e ficou a ouvir, de respiração suspensa. Ainda não tinha pensado bem nesse tão indesejável encontro com António Parra. O irmão poderia expulsá-lo do grupo, à paulada, como o velho Parra, e ele ficaria desorientado naquelas brenhas e malhadas do cabo do mundo.

— Bem, rapazes: estou a ver que não temos pernas para abranger a mina antes da manhã; nem puxando bem lá estaríamos às nove horas. Vamos ficar por aqui durante o dia. É uma espiga, a gente devia ter largado duas horas mais cedo. Agora não há remédio senão dar um jeito a tudo isto.

Os homens, amodorrados, limparam com prazer a testa à manga da camisa. Todos, afinal, desejavam aque­la solução. As pernas do Pencas, desfalecidas sobre os arbustos, pareciam oscilar ainda no movimento da marcha. Tinha os pés inchados e algum sangue entre os de­dos. Com a chuvinha da noite, o terreno colava-se, en­redando as passadas; por isso, o esforço esgotara a caravana.

— Ainda tens sede, garoto? — perguntou o Ca­marão, com um riso amplo. — Está-me a parecer que eras homem para roer uma côdea e ficares depois a ressonar como um bode. — Deu-lhe um pontapé nas coxas. — Mas, agora, trata de acamar bem o minério numa barroca. Quedem-se aí quatro homens de plan­tão; dois, pelo menos, de olho aberto. De olho aberto, entendes tu? E o resto... girou!, pra que não julguem que há por aqui arraial. Cada um de olho vivo nesses matagais, não vá o Diabo lembrar-se que nos apetece um banho no rio...

— E pra onde devo eu ir? — disse o Pencas, depois de meditar um pedaço. — Não conheço nada disto, po­dia ficar com vomecê, de atalaia...

O tronco encorpado do irmão destacou-se de novo sobre a ravina e Pencas emudeceu imediatamente. An­tónio Parra riscou um fósforo, as gelhas da face e os olhos miúdos e ressentidos iluminaram-se sob a boina vasca. Reparou pela primeira vez no companheiro de calça clara, algum homem de alugo da malta do Ca­marão.

— Quem é essa negaça em fralda de camisa? Ou o pões em coiro, ou com outro dono.

António Parra, nesta terra-de-ninguém da raia, com os homens guiados pelo seu faro e decisão, tinha outra voz — ainda mais temível para o Pencas, embora o ir­mão, desprezando-o como a um objecto mesquinho, talvez não representasse uma ameaça directa.

Camarão riscou a pederneira e replicou sossegada­mente:

— É o Pencas. O teu irmão. António Parra jogou o cigarro fora.

— Isso foi para caçoar com ele ou comigo?!

O rapaz tem o seu direito de arriscar a pele. Ga­nha a vida, como tu ou eu. Ou vocês queriam poupar-lhe os ossos pra desfazê-los lá em casa? — E, repentinamente, a face encrespou-se-lhe de ferocidade: — Veio na minha companha e isto é um assunto que só a mim diz respeito!

António Parra, lívido, passou os dedos pela cara, hesitando na resposta. Todas as insinuações e injúrias do Clemente vinham juntar-se à atitude provocante do Camarão. Faziam dele um trapo. Tinha de reagir, do­miná-los. Mas foi ainda sem convicção que deu ordens aos camaradas:

— Agora escolham entre vocês os que terão de ficar de vigia. Daqui a dez minutos quero a carga escondida e cada um no seu lugar. E lembrem-se de que é um dia inteiro.

Um deles rosnou:

— Já cá se sabia. O Camarão já o disse. António Parra adiantou um passo, mas pareceu-lhe

que era maior fraqueza desfechar naquele a sanha que outros haviam despertado.

O Pencas permanecia na mesma posição, encolhido como um caracol; o roedoiro do estômago, a fome dolorosa dos dias azarentos, começava a anunciar-se na aguadilha da boca. Camarão dissera que chegariam ce­do à mina, acenara-lhe com um bom almoço no Casi­no. Afinal, o almoço seria um longo dia de jejum. Só a ideia de estômago vazio, à mercê dos ácidos, o fez ima­ginar agulhas furando-o de lado a lado: rojou-se pelo chão, enquanto os companheiros guarneciam a barroca de ramagens de pinho, acamando-as sobre o minério. Alguns ainda trouxeram cascalho, caruma, folhas secas. Pencas sentiu a humidade da terra a insinuar-se na pele. Precisava de fazer uns movimentos para reagir, mas o corpo estava prostrado. Daí a nada, batia os queixos e principiava a ter vómitos secos. O Camarão lançou-lhe uma pedra.

— Frio ou cagaço, garoto? Isto custa a primeira vez. A gente tem de imaginar que vem gozar uma tourada a Espanha; é mesmo assim, de peito feito, que um homem se safa de qualquer encrenca. Daqui a pouco te conto uma boa. Tens aí um golo pra aqueceres; bebe, é cachaça, da legítima. Ficas comigo a olhar pela carga; tu, eu e o Clemente. E talvez ainda outro camarada que saiba de cartas. Que mais queres, garoto? Não tenhas cagaço, conho, não há homem que me arranque da­qui. — Bateu com os punhos no peito, que ressoou como um tambor. — Podem caçar os sacos a todo o pessoal, mas estes aqui, nesta barroca, entendes?, são sagrados, Pencas! A carga morre comigo. Ou fica nes­tes sítios, com três ou quatro guardas estendidos em cima dela, ou em Pelares del Porto. Não há cagaço, Pencas.

Camarão ria como um demónio, desfruindo selvaticamente as suas próprias palavras, e esse riso, livre e louco, desafiava o silêncio da serra, enchia o espaço e os ouvidos, até se comprimir no coração apreensivo do Pencas.

— Fica sabendo, garoto, que nestes sacos estão todos os cobres da rapaziada. — Sentou-se junto do Pencas, dobrando com dificuldade as pernas compri­das. — A gente tem de aproveitar a cheia. As águas vão fazer-nos dançar como bonecos, mas são essas águas que hão-de enxotar todo o safardana que apareça. Não há guarda que queira molhar os pés, entendes tu? Por isso a gente se jogou ao caminho com a ribeira pe­los peitos. Está aí o dinheiro de muitos meses. Um coirão que nos fosse acusar tinha hoje colheita farta. Mas não há um homem que arranque daqui o Camarão.

Pencas preferia comer a ouvir conversas. A aguar­dente dera-lhe algum bem-estar, mas sabia que não tar­daria outra crise. Precisava de uma semana de caldos em casa do velho Parra. E se não visse jeitos de nin­guém pensar numa bucha, teria de adormecer a fome num sono que durasse o dia inteiro.

— Clemente! — chamou, de súbito, o contraban­dista.

Alto como um pinheiro, saído do maciço de tojos, mais avantajado ainda na madrugada brumosa, Clemen­te acudiu à voz de Camarão fazendo uma continência grotesca.

— Pronto, coman-dan-te! Se há passado algo? Separava muito as sílabas, esticando os beiços, como

se receasse embrulhar as palavras na boca desdentada. O seu sotaque espanhol temperava as frases de um sabor de aventura.

— Tens aqui o teu amigo. Que mandas? — Deglutiu várias vezes saliva à vista do cantil de aguardente. — Me permites provar?

O líquido ondulou pela garganta enxuta e, depois de fazer um estalo espectacular com a língua, Clemente disse:

— Ontem, à noite, o pai do camarada Parra me deu um golo de bom vinho. Estava seco, adoçou-me as goe­las como se fosse mel. Mas esta cachaça, amigo...! Um bom tipo, o velho Parra. Me parece que o ajudarei. O Pomar é do povo, Camarão.

Camarão encolheu-se na sua desconfiança de cam­ponês e os olhos aguçados de Clemente penetraram até ao fundo desse desagrado. Mas nem um nem outro adiantou conversa. Os demais homens do grupo afasta­ram-se com lentidão; os passos abafavam-se no resto­lho. A nevoazinha, persistente nessas semanas de tem­po húmido, descia sobre as faldas das serras.

O Camarão esteve longo tempo a cismar e nele os pensamentos traduziam-se numa mímica laboriosa. Dobrou-se sobre os joelhos, que ficaram quase à altura da cabeça, e ciciou aos ouvidos do Pencas:

— Ainda não te disse que um homem, nestas vidas, tem de ser mudo como um penedo.

— Eu não disse a ninguém que vinha: vomecê bem sabe que só me falou à boca da noite.

— Estou a avisar-te. Tu és uma cabeça chocha. Em pondo os pés a caminho, duvido da própria mãe. Ou­viste dizer o que aconteceu com o homem da Calhica? Um amigo vendeu-o à guarda. Um amigo, entendes? E está morto por estes sítios, o sangue dele rega estas terras: quando as chuvas espalham o lodo das poças, a água corre vermelha. Não é da terra barrenta, não é dos barros, não. É o sangue do homem da Calhica. Ela vem aí com a gente, sabe melhor do que eu que é verdade estas serras gemerem sangue. Pergunta-lho! Isto é só avisar-te. Às vezes, há trastes a quem sabe bem dividir o roubo com a Guarda. São dois ladrões a ganhar a meias.

— Ela veio, a Calhica, diz vomecê?

— Sim, garoto, ela não tem cagaços. Trago comigo quem entendo. O teu irmão não gosta de saias nestas companhas, mas ela vale bem as pernas de meia dúzia. Gosto da rapariga. — Acariciou os joelhos e os seus olhos fizeram-se brandos e húmidos. — Gosto dela. E tem um ganapo, Pencas, que me leva ao Inferno! É lindo como o Menino Jesus da Igreja do Salvador.

Pencas aguardava que o contrabandista acabasse as lerias; e que, logo depois, Clemente, ou outro, falasse em comida. E também o molestava já aquela teima do Camarão em lhe chamar garoto. Acabou por se decidir:

— Posso comer?

— À vontade, Pencas! — Camarão estava satisfeito da conversa e falou-lhe com meiguice. — Conheces o ganapo?

— O dela?

— Sim. Um menino bonito. E não foge de mim, Pencas, gosta de mim a valer. A canalha do inferno sa­fa-se de mim como se visse o Diabo; aquele não, Pen­cas! Vou trazer-lhe um brinquedo de Espanha, dos ca­ros. Hoje a carga dá pra tudo.

— Posso então comer?

— Quem te estorva? E deves trazer aí um bom conduto...

— Conduto, baia! Não tenho uma côdea de pão. Nem de pão.

— Onde querias então comer?

Pencas fez um ar embezerrado. Podia falar no con­vite do Casino, mas não quis ofender o amigo. Cama­rão desapertou os cordéis da sacola e pôs-lhe a linguiça e o centeio em frente dos olhos.

— A vossemecê não lhe apetece ainda?

— Come, eu tenho tempo. E tu — disse, com uma intimidade carinhosa — serve-te também, Clemente.

— Bebo antes dois golos, ca-ma-ra-da. Eu espero aí a chegada de António Parra.

No entanto, ao ver o Pencas a mastigar com delícia, começou a sentir a saliva escoar-se dos beiços e cortou também um pedaço de conduto. Engoliu a comida com uma mobilidade voraz e rapidamente deixou de comer para voltar aos longos tragos de bebida.

— Aqui o Clemente é um camarada autêntico, fica sabendo, Pencas.

Pencas acenou com a cabeça, indiferente. Sentia o estômago morno, uma lassidão feliz.

— Um ca-ma-ra-da — reforçou o próprio Clemente.

— Tem sinais de balas no corpo.

— Eu sei.

— É homem pra liquidar um malandro. Teso! Ou­viste, garoto?

Pencas acenou ainda, desta vez com humildade. Ca­marão ria desalmadamente, divertindo-se com a perturbação do rapaz.

— Estás com gente rija, garoto!

— Deixa, Pencas, o teu amigo Camarão gosta de rir um pedaço com os rapazes. Tu és também verdadeiro. Eu te vi jogar na bodega do Cristino.

Pencas sorriu satisfeito e arrotou a linguiça. O estômago estava redondo e cheio como uma bola de pedra, a sonolência pesava-lhe nas pálpebras e nos gestos.

— Atão a gente fica de guarda à vez?

— Pois. Agora ficas tu de sentinela. Nós dois, eu e o Clemente, passamos pelas brasas e tu ficas a meter medo a guardas e carabineiros. — Apreciou velhaca­mente a decepção do rapaz e torceu o corpo de riso. Clemente, depois de um segundo de espanto para os dois, bateu as mãos nas coxas e riu do mesmo modo.

— Vão gozar para o diabo.

Os companheiros redobraram as gargalhadas.

Chiça para tal gozo! Apetecia-lhe escapar-se da com­panha e voltar para a vila. O que eles precisavam era de uma lição. Foi desfiando, irritado, pedacinhos de este­va, a sonhar vinganças. O contrabandista acabou com a chacota e disse-lhe numa dureza de trovão:

— Dorme se queres, desmazelado. Vens pr'aqui vesti­do de Entrudo! Dorme, é pra que foste feito. A gente quer fazer de ti alguma coisa, mas é o mesmo que em­purrar uma lesma.

— Coisa fraca!

Era pr'aquilo que o tinham trazido! «Fazer dele al­guma coisa.» Histórias! Gozo é o que queriam.

Sentiram resmalhar ali perto. Camarão ficou com a face transida. Ouviu-se o piar estranho de um pássaro.

— És tu, Parra?

António Parra aproximou-se vagarosamente.

— Deixei de vos ouvir, de repente, e isso fez-me desconfiar. Vocês têm feito aqui um arraial!... Pouco mais é preciso pra deitar foguetes à Guarda. Era só isto.

— Estamos a ensinar umas coisas ao teu irmão.

— Se fosse outro que o tivesse trazido, havia de ser eu o mestre.

— Parece que a família anda de candeias tortas — disse Camarão, escarninho. — Tu, garoto, que fizeste na vila aos Parras, pai e filho?...

— Que fizeste aos nobres Parras? — ajudou Cle­mente.

Pencas escondeu o rosto no mato e desejou, como nunca, ser capaz de uma violência. Clemente deitou-se sobre os braços, soprando pelos beiços esticados, como se quisesse, de súbito, pôr-se à margem desse duelo de palavras. Camarão raspou o ombro do Parra, ostensiva­mente, e foi rondar pelas proximidades. O silêncio e a névoa desceram sobre o grupo. António Parra tinha o rosto afilado e parecia digerir pesadas preocupações. Às vezes, quando o vento trazia as vozes dos compa­nheiros afastados, vinham também as pragas solitárias do Camarão. Pencas foi tomado traiçoeiramente pelo sono e não viu mais o irmão, que oscilava de pé, como se estivesse bêbado.

— Ouve, António Parra, uma palavra. — Clemente saiu do silêncio, depois de perscrutar o alheamento do camarada. — Agora, que ninguém nos ouve, que teu ir­mão ronca como um cevado...

— Vá para o raio que o parta! Você e todos. Es­borracho um ainda hoje! Que veio você cheirar atrás de nós?

— Ouve, amigo. É algo sério. Olha-me bem nos olhos e fala com o peito descoberto. Eu não sou o bru­tamontes do Camarão. Ele é bom, um bom amigo, mas tu não repares na sua estupidez: ele quer convencer-se a si próprio de que a sua força de toiro lhe dá o direito de ser o chefe. Um camarada despreza a estupidez dos outros. Passa-lhe por cima. Amigo, teu pai me falou dos gatunos do Pomar. Nós vamos fazer algo pela tua gente.

António Parra segurou as palavras que ia a dizer. Olhou o companheiro bem nos olhos, como ele lho pe­dira, e viu neles decisão e inteligência. Olhou-o com al­guma estranheza: tinha de novo diante de si o Clemen­te dos dias passados. Intimidou-se.

— Ouve, amigo. Tu és o mesmo António Parra. És camponês do Pomar, vens da terra. A terra é nossa mãe. Tu não abandonas a tua gente. Tu és ainda um ca­marada, amigo.

— Sou o mesmo, Clemente. Se está disposto a falar a sério, posso afirmar-lhe isto: não tenho medo. Mas sinto-me desanimado. Estou farto, farto de levar ponta­pés. Você acha que valerá a pena? Que tenho eu com todas as bestas que gostam de sentir a canga? Que pen­sa você que vai acontecer ao Pomar? E ao barrocal? Nem que morram todos, nem que os juizes escrevam a sentença com o sangue de todos os camponeses de Montalvo, tudo acabará da mesma forma. Eles têm as testemunhas que quiserem, têm o dinheiro, têm os ven­didos. Não custa muito encher uma boca.

Clemente assentou de novo os queixos sobre os braços. Olhou vagamente as nuvens, que se desfaziam em dedos longos.

— Eu me sinto também às vezes um trapo velho. E isto é mau, amigo. A gente fica com o corpo gasto de o atirar sempre a uma parede. A gente desembesta, tei­ma, cerra os dentes, pra não sentir os ossos amolgados: lá está a parede. Não é coisa que se derrube às primei­ras, assim de mãos nuas, como as nossas, amigo. Por is­so, somos poucos e menos ainda os que não desistem. Uma parede é uma parede. Pede um homem inteirinho. Que dizes a um golo desta cachaça? É rija, conho! Eu entendo a tua fadiga, António. Isso é fadiga de quem empurrou muito tempo um penedo que ficou no mes­mo sítio. A gente vê um bocado de pão, vê as serras, vê courelas e veredas, vê muita coisa boa à nossa frente, e vê o pão, amigo, e fica cheio de medo de perder tudo isso. A gente quer rasgar-se pelo mundo todo e chega a um momento fraco em que se contenta com viver por duas migalhas. Esse momento é a doença, é a fadiga, é a morte, mas um homem vence tudo isso. Os doutores abrem de um golpe os tumores, fazendo saltar o pus e o sangue negro, e um homem alivia. Tu precisas abrir esse tumor, amigo. Mira!: o Clemente há-de acabar por aí podre de miséria, mas não acaba vencido. Tu tens ou não tens medo, António Parra?

António Parra perdeu o seu doairo amargo. Levan­tou-se com a fúria descomandada:

— Que raio veio você aqui cheirar? Ponha-se já a mexer! Que lhe interessa o contrabando?

— Eu tenho um negócio em Espanha — disse o ou­tro numa voz suave. — Tenho um negócio de morte, aqui a dois passos da raia. Um cevado me espera num casino. Ganha nervo, António Parra! A vida de um ca­marada pertence ao futuro. Tu és um bicho lazarento. Cospe de ti esse medo! Tu és um homem parido no Pomar, o povo te compreende. O Pomar está nas tuas mãos. Eles esperam a palavra de alguém que tenha o Pomar dentro de si. Ajuda o velhote. O velho Parra, sem ti, é um gramofone de prosápias.

Clemente tinha-se entusiasmado, os olhos saíam-lhe da prisão estreita das órbitas e os dedos prendiam-se, como tenazes, às abas do samarrão do companheiro.

— Eh, pessoal! — gritou um vozeirão que se apro­ximava.

— Se há passado algo?

— Não estou nada satisfeito com qualquer coisa que anda por aí — interrompeu-os Camarão, enquanto sacudia o corpo sonorento do Pencas. — Pode ser bi­cho, algum diabo dos nossos, mas nunca fiando. Al­guém deve fazer uma ronda por esses lados. Eu fico na barroca.

Clemente tinha-se recomposto com a chegada do contrabandista. Não precisou de outra insinuação e agachou-se sobre a terra ensopada nalguns sítios, raste­jando na direcção indicada. António imitou-o, sondan­do a vertente oposta. O Pencas sentiu-se também na obrigação de ser útil e ofereceu-se:

— Se quer...

— Tu, não. Deviam esgalhar-me um chavelho por ter trazido parranas para um negócio sério.

— Não torno com vocês.

— Não precisas de o dizer, garoto. Mas já que vies­te, aguenta. Despe essas calças e prende-as ao pescoço. E pouca conversa. Já chegou teres servido de espanta­lho. Dorme, se queres.

-— Mas vomecê não dormiu ainda.

— Pois não. Mas se me botasse a fazê-lo, daí a um repente éramos duas pedras a vigiar a carga...

Clemente voltou para dizer:

— Não enxerguei ninguém, camarada. Era bicho. António Parra tinha chegado momentos antes e fin­giu não reparar na observação do companheiro.

— Tenho um palpite negro nesta viagem — disse, azedo. — Há emplastros a mais à nossa volta — e as­sociou o irmão e Clemente no mesmo olhar irritado. — O melhor é sairmos de junto da carga; estamos aqui a servir de chamariz. Se eles vierem, terão de afocinhar até darem com o minério.

— A carga não largo eu.

— Largas, Camarão — interveio Clemente. — An­tónio Parra sabe o que diz. Estamos a servir de isca.

António desorientou-se com o apoio do aventurei­ro. Preferia vê-lo do outro lado e que tudo acabasse numa briga. Uma briga fazia-lhe bem. Sentia o peito a rebentar. Esperava com ansiedade a resposta do Cama­rão; mas este, após uns momentos em que o Pencas, mais ainda do que os companheiros, teve a percepção de alguma coisa imponderável suspensa sobre todos, acabou por mascar uma bucha, despreocupado, como se todos esses receios fossem próprios de crianças ou como se zombasse do ar de desafio de António Parra, e desviou-se:

Pois, garoto, aqui o Clemente é homem pra endireitar uns safardanas. Não é da tua raça. Esteve nas minas, esteve nas barragens, pendurou lá um sujeito so­bre as águas, um desses tipos de chicote.

— Fascista, camarada — justificou o Clemente.

— O sujeito era engenheiro. Foi o diabo. Aqui o Clemente esteve preso num forte. É um tipo teso; desta raça não há em Montalvo, garoto.

Clemente olhou para todos os lados, inquieto, co­mo se estivesse numa reunião secreta, e ordenou silên­cio. Depois limpou à manga o gargalo do cantil e pas­sou-o a António Parra. Fitaram-se nos olhos, António cuspiu para o chão e Clemente acabou por sorrir de es­cárnio. De súbito, voltou-se para o rapaz:

— Eu te vou contar uma boa, Pencas. Teu irmão é um Parra verdadeiro e tu chegarás a ser também um va­lente camarada. Um Parra nunca fica na metade do ca­minho.

— Acho melhor vossemecê falar menos no meu nome - disse o contrabandista.

Uma ave negra passou sobre eles, de asas espanta­das, Pencas baixou a cabeça, sobressaltado pelo ruído, e ficou com os dedos a esgadanhar a terra.

— Estou a falar-te, Pencas. Se afocinhas no chão, com um cagaço desses, teu irmão não voltará a chamar-te um Parra. Um Parra não tem medo. — Voltou-se para o contrabandista, esticando o pescoço sobre ele. — Falo no teu nome porque é o nome de um camara­da. Eu te estimo, bem o sabes, António.

Pencas sentia as faces incendiadas. Queria sumir-se na barroca ou anavalhar um deles. Percebia vagamente que misturavam o irmão na chacota, que se mordiam ali razões obscuras, e temia que António Parra viesse mais tarde pedir-lhe contas. Por isso, ficou em guarda quando o irmão se endireitou para dizer:

— Deixe as estimas para quem lhas pedir. Volto a dizer-lhe que é melhor não falar mais dos Parras, meu amigo. Os Parras querem andar por melhores bocas. E deixe esse lorpa em paz. Se o trouxeram apenas para se divertirem, o caso passa a ser comigo.

Pencas levantou-se e, sem uma palavra dos compa­nheiros, desapareceu no desnível dos tojos.

A luz vinha subindo, afagando as nuvens, contor­nando as árvores longínquas e os ressaltos das monta­nhas da raia. Os três homens estenderam-se na caruma. Apenas António Parra ficou de olhos abertos. Tinha de dar uma lição a qualquer deles. Não podia mais com a presença do Clemente. Um reles, um bêbado! Por ou­tro lado, os percalços da viagem desvalorizavam-no pe­rante os companheiros. Nem ali, onde a sua experiência e a sua sagacidade poderiam garantir-lhe indiscutível pre­ponderância, as coisas decorriam sem dissabores.

Duas horas depois, Camarão acordou já com o dia alto; a luz desvendava uma paisagem extensa, prolon­gando-a para lá do emaranhado de matagais. Espregui­çou-se ostensivamente e disse:

— O garoto raspou-se. É capaz de não voltar.

— Me dá tabaco, amigo — pediu Clemente, como introdução à conversa.

— Dou. Mas não botes a unha até ao cabo. O paco­te tem de chegar para o dia inteiro.

António Parra não olhou para nenhum deles: ener­vado, deu mais uma volta pelo sítio da carga. Precisava de movimento, de acção, como as nuvens saturadas preci­sam de chuva e de trovões. Reparou pela primeira vez, entre os companheiros, num vulto de mulher, com as saias repuxadas na cintura; o seu desagrado transformou-se em espanto quando reconheceu a Calhica.

Não gostava de mulheres na sua companha. Lembra­va-se daquela sujeita, que se dizia operária em Alhandra, oferecendo-se para o auxiliar na luta política clandestina; lembrava-se dela com desespero, com raiva, como de alguma coisa que se deseja esmagar e nos foge das mãos, para depois nos sorrir com zombaria e sedução. Ela tinha a face dourada, os cabelos lisos e macios. Mas só muito mais tarde, de súbito, numa revelação, ele deslindara o ricto duro e irónico da sua boca, à saída de uma reunião de amigos, com a polícia a esperá-los. Tu­do lhe surgira, enfim, brutalmente esclarecido, e desde então o seu peito enchera-se de ódio e suspeita.

Mas a Calhica era uma companheira; trilhava os ca­minhos onde o seu homem encontrara outra espécie de traição e onde encontrara a morte; trilhava-os com te­nacidade e fúria. Erguia-se, indomável, sobre a vida, buscando o pão e o futuro do filho. António Parra, po­rém, via na intervenção de todas as mulheres um presságio negro.

A rapariga não se perturbou com a aproximação do chefe da caravana. Escolhia gravetos para fazer lume e aquecer o café. Os seus gestos continuaram serenos. António Parra fez um rodeio para se afastar, aparentan­do naturalidade. O céu ia ficando alto e liso; se a tarde fosse soalheira, a Guarda não deixaria de bater a serra palmo a palmo, e, por isso, ele devia espalhar os ho­mens cada vez mais para longe. A presença de gente estranha ao grupo, o contratempo de um dia perdido, ti­nham desfeito a disciplina, acirrado os nervos; mas era preciso que todos se convencessem de que era necessá­rio fugir dali quanto antes. A ele, como chefe, competia ligar esses fios desunidos. Iria juntar-se de novo ao Ca­marão, fingir que os pequenos azedumes se deviam es­quecer como ridículos arrufos, entre amigos. Mas antes que pudesse simular placidez e bonomia, foi o outro que se chegou para dizer:

— O safado do teu irmão pisgou-se mesmo.

— Que o leve o Diabo.

— Mas pode encontrar um traste pelo caminho. Um traste que lhe puxe pela língua.

— Pode ser.

— Pode ser! E não ligas a isso?

— Ligar, ligo. Mas és tu o responsável. Meteste nes­ta viagem toda a trampa que encontraste.

O outro contraiu a face larga, como um bloco de ma­deira, e logo encontrou os olhos desvairados do companheiro. Dos dois, porém, foi António a recuperar o do­mínio de si próprio: era o responsável pelo êxito da viagem; os atritos seriam resolvidos mais tarde.

— Isto foi tudo uma gaita. A estas horas, está o pessoal da mina feito parvo à nossa espera. Ao menos, temos café; vi aí a tua sócia a prepará-lo. Não sei onde aquela mulher desencanta essas coisas das fraldas. Mas café saído das fraldas de uma mulher é capaz de ter mau cheiro...

— Ouve, António Parra! Mesmo teu amigo, há gra­ças que não perdoo.

Fora desajeitado mais uma vez. O Camarão não ad­mitia que alguém enxovalhasse a sua amizade com a ra­pariga e o ganapo.

— Vamos ter sol — desconversou António Parra, e, sentindo-se meio bobo entre os companheiros, fez-se ainda mais túrbido.

O dia tinha a luminosidade lavada que vem depois das chuvas; a planície estaria enxuta numa semana, era um anúncio de trabalho, de seiva, de esperança. Os dois contrabandistas, cismáticos, foram observando a paisagem que se descobria em ondas de luz. Para lá dos olivais, a copa larga dos pinheiros mansos e as monta­nhas de Espanha, brandamente alumiadas. Os caminhos da serra destacavam-se no azulado dos montes; pare­ciam desenhados com areia branca, subindo e descendo as vertentes, ínvios, como cobras agitadas. Os contra­bandistas não teriam por si o cerco da noite ou das névoas para se esconderem do perigo.

Clemente apareceu numa corrida. Tinha borras de café aos cantos da boca; estivera a beberricar em cada grupo de companheiros.

— Ca-ma-ra-das, se há passado algo! Vejam além dois guardas; estão a menos de cem metros da fazenda

O Parra tapou o alarme, afogando-lhe a boca com as mãos, e arrastou-se pelo terreno, fazendo sinal para o esperarem agachados. Viram-no cair sobre um desní­vel do barranco e soltar um gemido. Esqueceram a pru­dência para o erguerem dali. António torcera um pé, na queda, e fazia caretas de dor.

— Não posso continuar, chiça, vá um, vão os dois' avisar o pessoal que se raspe num repente. Daqui a duas horas venha alguém cortar terreno. Despachem-se. E pouca bulha, lembrem-se disso!

Camarão, em vez de seguir o conselho, puxou da navalha, como se o inimigo estivesse já na sua frente. Olhou o sítio da barroca e não distinguiu a Guarda. Vinha aí a Calhica entre o mato, a preveni-los também. Movia-se como um réptil, arranhando os tojos. Perce­beu que todos sabiam já do perigo e ouviu António Parra repetir as ordens com firmeza.

— Eu não arranco daqui!

— Vem comigo, Camarão — pediu a rapariga.

— Não fujo! O minério é tanto meu como dele. Despacho o primeiro que vier aqui afocinhar o nariz.

— É melhor para nós e para a carga que a gente saia destes sítios — interveio Clemente por sua vez, numa voz persuasiva.

— Não gosto de mandões ao meu lado, que queres tu? Rebento o primeiro que tornar com essa leria. Vo­cês todos têm as calças borradas de cagaço: querem sair daqui pelo medo que têm e mais nada. A Guarda, se está perto, é porque já lhe cheirou o sítio do minério. Ou o defendemos ou fugimos. Mas eu não sou de qua­lidade de fugir. — O contrabandista estava furioso, e António Parra, se pudesse erguer-se, tê-lo-ia definitiva­mente esbofeteado. — Mas ou a gente salva a carga ou me entendo com os cobardolas. Digo só isto.

Espetou a navalha no terreno fofo das chuvas. Cle­mente olhou meditativamente a navalha, a sua sombra escura, e disse com lentidão:

— Tu nunca poderias ser um chefe de camaradas. E eu, tão-pouco, amigo. Mas António Parra tem uma cabeça no seu lugar: com ele iria ao fim do mundo; com ele, teríamos Montalvo livre de rapineiros. Eu o hei-de ver outra vez no seu caminho.

— Es um lénas!

Clemente continuou pausadamente:

— Tu não poderás ser jamais um bom camarada. Gostas de brigar, como os cães aluados: pões a briga, o ciúme, à frente dos interesses dos camaradas. A gente precisa de desnortear aqueles cevados; precisamos de sair daqui.

— Não me bulas mais com o juízo, aviso-te. És um lerias, um bêbado. Foge com todos esses cabrões!

— Me ofendes, companheiro.

António Parra fincou os cotovelos no terreno e es­forçou-se por se levantar: não tolerava mais os desafios do Camarão e estava disposto a tudo. A Calhica segu­rou-o pelos braços e interpôs-se com autoridade:

— Vamos embora daqui. Ele que fique, se entende que deve acenar aos guardas o sítio da matrafusca.

Camarão murchou perante a rapariga. Limpou a na­valha às calças e afastou-se.

António Parra reconheceu que lhe era difícil dar um passo e, embora humilhado, aceitou o amparo de Clemente, depois de ter recusado, com rudeza, o auxílio da rapariga. Descansaram junto da roda dos gravetos quei­mados, onde ela acendera a fogueira.

— Não podes fugir para longe — disse Calhica.

— Eu não fujo! Quero apenas fazer-lhes perder o rasto.

— Não te queria ofender. Falo do teu pé.

— Não é da tua conta. Deixem-me em paz. Nunca trouxe tanto gaudério atrás de mim. O teu amigo Camarão podia ter trazido um bordel agarrado às calças para tudo ficar completo.

A Calhica ficou de faces vermelhas do insulto.

— António Parra: tu és um covarde! — disse Clemente com o beiço descaído a tremer de fúria. — In­sultas uma camarada porque és um covarde. Defendi-te sempre dos companheiros que te não conhecem, mas sei bem que és um covarde quando se trata de um pou­co de luta: abandonas os camponeses, a tua gente, os teus amigos, em frente do perigo. Só fazes de rijo com uma mulher. Vem comigo Calhica, e deixa esse cerdo gemer aí à vontade.

— Eu fico — disse ela, e, sem mais palavras, rasgou uma tira do saiote branco, enquanto Clemente se afastava, coçando violentamente o nariz. António Parra pertur bou-se também com o deslumbramento das coxas altas e fortes da mulher e não pôde deixar de sorrir dos pudores de Clemente. A rapariga, agora, esticava-lhe esforçadamente o pé, tentando descalçar-lhe a bota; depois obrigou as juntas a estalarem como ossos partidos. Foi apertando a carne com o pedaço de pano. Esperou ainda, em silêncio, que ele experimentasse suster-se so­bre o pé dorido.

— Ficas assim descalço. A bota não te serve por es­tes dias.

António sentia-se cada vez mais abandalhado, à mercê dos cuidados de uma mulher. Apetecia-lhe mandá-la em­bora, magoá-la com ofensas. Mas disse apenas:

— Isto foi uma viagem embruxada.

— Nem por isso. Temos a carga a salvo, por en­quanto. Foi só pelo atraso. O pé é o menos...

— Não falo do meu pé. Posso bem com os meus azares.

— Presunção e água benta... Queria ver onde che­garias se não encontrasses estas mãos de médico... Bem sei que não gemeste por vergonha.

— Acaba com essa conversa.

— Ficas aí um pedaço a descansar e a remoer essas fúrias. Isso, agora, ainda incha um bocado. A Guarda vai deixar-te descansar o dia inteiro. Têm faro de cães.

Ela tinha o rosto descomposto, decidido, viril. Nunca esquecera a morte do homem, assassinado pela Guarda, traído e assassinado. Muitos esperavam que ela, um dia, perdesse a cabeça e abrisse o seu ódio num crime. O ódio fazia-a resoluta e endurecida. As pessoas preci­savam muitas vezes de ira, de ressentimento, para não amolecerem no caminho.

Ele, António Parra, fugia da vida, amolecera à beira do rio da vida, amedrontara-se de se lançar de novo na corrente. Temia o desespero, o sofrimento, afligia-o a ameaça da fome e do castigo. Havia ainda ódio dentro de si, mas amordaçado num surdo pavor. Defendia com angústia desorientada o seu pedaço de liberdade. Estava à beira do rio, criando lodo e limos. O Clemente tinha razão: não era um camarada. Mas a nenhum deles cabia o direito de o julgar! Clemente era um burlão, valdevi­nos, vigarista; e submissos lapuzes eram todos os seus camponeses e desgraçados que mereciam a abjecção das suas vidas: se eles a haviam admitido desde o princípio dos tempos, que pagassem o preço dessa resignação. Não iria sacrificar a sua liberdade por aqueles que acei­tavam o jugo como um mal necessário.

Tudo isso se revolvia no seu cérebro latejante, num misto de culpa e de atormentada justificação. Que fos­sem para o Inferno! Nenhum deles valia um chavo.

Repetia para si todas essas evidências e razões e co­meçava, por fim, a sentir um prenúncio de íntima serenidade. Mas alguma coisa, de chofre, se atravessou nesse alívio: a lembrança de Clemente curvado sobre o velho Parra, os dois entrando pela noite do Pomar e deixan­do-o à porta de casa como um estranho desprezível, os dois solidarizando-se numa cumplicidade que era afronta e enxovalho.

Calhica olhava-o numa expressão grave, estava ali dentro dos seus pensamentos, despindo-os e censurando-os. Não podia mais com a presença da rapariga.! Tentou uns passos sobre o mato, mas teria caído se ela, alerta, o não amparasse.

— Preciso de uma corda para te prender a um pinheiro.

— Sou obrigado a concordar com tudo. Dava uma boa parte da carga por uma padiola que me levasse a casa, livre de tudo isto e de vocês.

— A cama é uma bela coisa para amansar birras e pés torcidos...

E ela riu com gosto, um riso malicioso e garrido. António lembrou as suas coxas morenas, esguias, fi­xou-lhe o brilho escuro dos olhos. Ela aceitou esse olhar com uma benévola tranquilidade.

— Precisas de um café bem quente: foste o único que não apreciou ainda as minhas habilidades de cozi­nheira. Não faças essa cara! Escusas de escoicinhar por­que tens um dia inteiro para espalhar a rabuge. Agora é a vez do café.

Enquanto ela ia juntando de novo os gravetos, An­tónio Parra viu a cabeça do Camarão, entre os arbus­tos, vigiando-os. Encheu-o de satisfação surpreender os ciúmes do companheiro, como se o acaso lhe oferecesse um meio de o amesquinhar, e disse para a rapariga:

— Anda cá, Calhica.

Chegou-a a si, apertou-lhe um braço, de modo que o gesto parecesse suspeito a qualquer observador desconfiado.

— É rijo, como eu pensava... É o braço de um homem.

— Isto é do vento destas serras. Sinto-me bem por estes sítios. Só me custa pensar que deixo o garoto na vila, ao deus-dará.

— Podias ter deixado o Camarão de ama-seca... — Ela não apoiou a graça e António emendou: — Nós, que somos como reses soltas no mato, não devíamos ter filhos.

— Pensava assim, antigamente. Mas é bom ter um filho. Só às vezes nos fazem tremer com a ideia de que a morte pode vir sem aviso. Que nestas vidas há sem­pre uma espingarda por detrás das moitas. Dantes, vi­nha com o meu homem à fronteira e não pensava nisso. Agora já não é o mesmo.

António Parra espevitava as chamas que se esgueira­vam por entre o fumo húmido dos gravetos. Sentia um tremor dentro de si e cerrava os maxilares para que a perturbação não lhe chegasse à face. A presença da mulher começava a excitá-lo. Cercados de perigos e de com­panheiros desunidos, aquela intimidade adensava-se de liames obscuros e de ambiguidades. Mas, estranhamen­te, era um enleio também apaziguador, que lhe dissol­via o tumulto dos seus problemas.

 

Os contrabandistas estavam na serra havia dois dias. A Guarda afastava-se por longas horas, fazia negaças, para voltar de improviso, empurrando-os para um cír­culo estreito logo que os homens se movimentavam. Os guardas revolviam todos os covis das ravinas e dos matagais, e aquela insistência apenas se compreendia pela certeza que teriam de encontrar contrabando em qualquer parte. Os contrabandistas sentiam o gume da traição sobre eles, conquanto nenhum falasse nisso abertamente. Estavam exaustos de expectativa; embora racionassem as merendas, sem prévio acordo, acabariam por ser obrigados a qualquer decisão extrema, antes de a última côdea de pão se esgotar. As pequenas irritações acumuladas eriçavam-se naquelas intermináveis horas de dúvida e ressentimento. Camarão isolara-se a alguma distância da carga, com o queixo cavalgado nos joelhos, a navalha sobressaindo do bolso da jaqueta. Clemente e António Parra trocaram frases dúbias e mordazes. Calhica foi a última a mostrar desespero: deixara de dor­mir a pensar no filho.

De súbito, um dos homens levantara o punho à al­tura das faces rubicundas de Clemente, pois este tinha tomado à sua conta a reserva de aguardente. Mas alguém disse que ele era o único a não falar em comida. António Parra resolveu aproveitar o resto do pão seco em migas. Amparado em dois ramos de azinho, desceu a vertente até à ribeira. Alguém devia chegar à mina, ex­plicando a demora aos espanhóis, mas havia o perigo de um homem, mesmo possante, se afogar nas águas, des­de que não fosse ajudado. Na ribeira, no sítio em que uma nascente rebentara debaixo das lajes, encontrou a tigela de cortiça; com uns cotos mais secos ferveu um pouco de água para as migas. Gostava de estar só para acertar com os seus pensamentos. Mas não havia saída para uma viagem tão aziaga como aquela: para trás ou para a frente, topariam a Guarda. Só o brio, a perseverança, os ardis, valeriam ainda de alguma coisa. Não podia contar com as sugestões dos companheiros: eles, ou estavam no hábito de ser comandados, ou deixavam que os agastamentos viessem empeçonhar as discussões.

Trouxe a miga para cima e todos comeram o seu quinhão com avidez. Apenas Camarão retrocedeu para o seu esconderijo, depois de olhar rancorosamente o grupo, farejando a insistência da Calhica em se colar a António Parra. Inesperadamente, quando a breve re­feição se deu por acabada, veio sentar-se no grupo do Parra, enquanto a maioria se acoitava no matagal. Pas­sou a tarde junto deles, vigiando-os, com a navalha ta­lhando arabescos no chão arenoso. Às vezes, mascava um pedaço de tabaco, moendo-o nos dentes até que a saliva viesse escura e nojenta.

Clemente soprava baforadas de tédio e nervosismo, sentia um desejo doido de obrigar o contrabandista a desabafar. Esse desejo, contudo, traduzia-se numa co­michão insuportável. Arranhava o corpo até as unhas desenharem riscos de sangue. Ele não era homem para companhias murchas. Despegou os beiços várias vezes, sondando o rosto desconfiado do outro, e arriscou-se:

— Amigo: te emborrachas de fome e tabaco. Cama­rão, meu amigo, se há passado algo entre nós. Os camaradas se enrijam no infortúnio.

— Para o raio que te parta com os teus sermões! Foi o que disse a tarde inteira. Fugia de encarar a rapariga e os companheiros acabaram por perceber aquela ronda. Um dos contrabandistas ainda fez um sinal de ma­lícia e disse baixo, com receio das fúrias do Camarão:

— Parece um macho aluado. Mas está-se-me a afi­gurar que é dos tais que põem a lenha no forno para outros comerem o pão...

António Parra ia recuperando a sua presença de caudilho. Clemente seguia-o para todos os lados, silen­ciosamente, sem comentários; apenas gesticulava, apoian­do com ridículas inflexões de cabeça as palavras graves ou animosas de António Parra; era o único a quem a ansie­dade e a fome pareciam estimular. Esvaziara as últimas reservas de aguardente e, na tarde desse dia opressivo em que o sol sugara a humidade da terra para engrossar as nuvens túrgidas, o brilho dos seus olhos reacendia-se, ao mesmo tempo que uma baba viscosa lhe escorria dos cantos da boca.

— Amigo — disse por fim, tocando-lhe nas espá­duas —, se há passado algo entre nós. Confio em ti co­mo num camarada verdadeiro; tu serás sempre verda­deiro, António Parra: eu te vi nestes dias segurar os companheiros sem gritos nem prosápias. Na Espanha me espera um cevado; depois disso, me encontras con­tigo. Montalvo precisa de nosotros.

O outro não reagiu. Durante longas horas, apenas a carabina de um guarda se descobriu acima dos tojos. Eles continuavam alerta, com manha e obstinação; não largariam a caça, sairiam da terra, com faro de cães, à primeira tentativa de fuga. Um dos contrabandistas não escondeu mais o seu desalento:

— A gente não se safa disto. Estou a lembrar-me que podíamos seguir de noite, um por um, com uma hora ou duas de diferença, a ver se salvávamos um pou­co da fazenda.

— Isso não adianta — retorquiu António Parra sem azedume. — Um homem sozinho não passa a ribeira; e se um de nós aparece aí com a carga, saltam-nos todos em cima. Eles ainda não pegaram ninguém porque nos sabem de algibeiras vazias.

Apeteceu-lhe acrescentar: «Fomos traídos», mas con-teve-se. Era preciso que todos guardassem a suspeita para si e não a inflamassem com palavras.

— Ainda falta saber se eu deixo sair daqui a carga às mijinhas. Ou passa tudo, ou rebentamos juntos — insis­tiu o Camarão, voltando a enfiar a cara entre os joelhos.

— O camarada António Parra falou com miolos, amigo — reforçou Clemente. — Nosotros nos guiare­mos por ele.

António Parra sorriu, desta vez divertido com o apoio de Clemente e com os seus métodos ingénuos de reconci­liação. Sentia agora os nervos calmos. Era de novo o An­tónio Parra que os contrabandistas conheciam. Achou que o momento se prestava para conferenciar com os companheiros e disse:

— A questão está toda no comer: com mais um dia de fome, as pernas não aguentam duas passadas. Temos de descobrir uma malhada. Se a gente consegue com­prar algum pão por aí, aproveitaremos a noite, se vier escura. É a única saída. Que vos parece?

— Eu vou dar uma volta, António Parra, a ver o que há. Me dás umas fincas — propôs Clemente.

— Vamos os dois; se a gente se perder, assobiamos. Vocês respondam, que a Guarda já não precisa de sinais para saber onde nos pode filar.

Depois de breves passos, sentiu uma dor aguda no estômago, náuseas, a cabeça varrida. O pé deslocava-se como um peso morto, parecia-lhe estranho ao corpo. A Calhica percebeu tudo isso e ainda foi sobre o companheiro. Camarão seguiu-lhe os gestos. António Parra afastou-a desabridamente e, de dentes cerrados, continuou a marcha.

Avistaram a malhada num alqueive encravado nos pinhais. Vinha de lá um camponês miserável; quando os viu, demorou o andar e mirou-os com insistência. António Parra suspeitou dos seus passos brandos atra­vés da vereda; o homem voltava-se a todo o momento, como se estivesse apavorado.

Entraram na malhada pelas traseiras, pisando o es­trume que cheirava a gado. António passou alguns duros, que trazia no forro da boina, para a mão da mulher.

— Só temos dinheiro espanhol, tiazinha. — Ouviu uns passos furtivos para lá da porta e deu com o cam­ponês a pequena distância da malhada. Disse então al­to: — Arranje aí uma coisa que se coma! E veja se nos pode vender uma sacola de pão.

A mulher, à entrada do desconhecido, fez um sinal discreto. O homem sentou-se depois de os saudar, e os seus olhitos fundos e minuciosos pareciam procurar um esconderijo. António Parra acabou por lhe aperceber a arma escondida no casaco esfarrapado e o espia com­preendeu também que não valia a pena mais disfarces; então, chocarreiro, encarando-os pela primeira vez com à vontade, disse:

— Então, rapazes, que trazem vocês aí que se veja?...

— Nada. Olhe, meu caro amigo..., se veio pela car­ga, já lhe digo que a perdi nos carabineiros. Não trago nada. Pode ver, estamos às ordens.

— Às ordens — repetiu Clemente, e aproximou uns olhos desconcertantes de ingenuidade.

António voltou as costas ostensivamente e gritou pela mulher. Estava a fazer-se pimpão e sabia que a arrogância era, muitas vezes, a única atitude que resolve­ria situações como aquela. O homem devia recear-se de enfrentar dois homens que poderiam estar armados. Certamente era um dos guardas que fechavam o cordão em todas as saídas da serra e esse facto representava mais um indício de que não havia grandes possibilidades de salvarem a carga. Já o sabia, mas afligia-o, tanto como o assanhava, verificá-lo. Os olhos do homem riam agora, remexendo-se ainda muito, e ele parecia possuí­do de uma satisfação irreprimível.

— Diabo, vocês então tiveram pouca sorte. E este compadre esbandalhou um pé.

Puxou do pacote de tabaco e estendeu-o aos contra­bandistas. António recusou com altivez, e Clemente, chegando o seu banco ao guarda, traçou as pernas com afectação.

— Pois não, amigo...

E humedeceu com delícia a mortalha oferecida.

O guarda mostrou-se confuso com a sociabilidade do contrabandista. Foram fumaçando e o guarda contou loas da sua vida na raia. Clemente apoiava vigorosamente com a cabeça, enquanto o fumo do cigarro lhe saía da boca em anéis caprichosos. António Parra receava que o guarda estivesse a ganhar tempo, esperando talvez re­forços. A mulher entregou as fatias de pão com presunto. Clemente apressou-se a escolher uma e, com pronuncia­das mesuras, ofereceu-a ao guarda e ainda convidou a mulher a servir copos de vinho. Ela hesitou uns segun­dos, mas Clemente esclareceu logo que o companheiro ti­nha bagulho para pagar toda a despesa. O guarda coçou as sobrancelhas, os olhos, o queixo, atrapalhado com o rumo daquele convívio, e disse por fim a gaguejar:

— Sabem... eu vim até aqui por um acaso, a deslaçar as pernas. Logo percebi que vocês não traziam car­ga nenhuma. — Mastigou sem gosto um bocado de pão e perguntou: — Como é que vocês perderam a carga?

António Parra compreendia agora as palhaçadas do Clemente. Via o guarda macio e perplexo e, por isso, respondeu sem hesitações um nome que tinha na lem­brança:

— Parece-me que foi um tal Domínguez que nos filou.

— Oh, eu conhecia esse tal Domínguez. Falávamos com os carabineiros de cá para lá, na ronda da fronteira.

— É dos tais. Se o não conhece bem, fique sabendo. — António falava com agressividade, explorando o embaraço do outro. — É dos tais, esse tal espanhol; dos que falam, bebem e comem com a gente e depois ficam à espera de nos morder nas canelas.

O guarda não levantou os olhos do chão, mastigan­do com suavidade, para que não lhe ouvissem o remoer dos queixos.

— Pode ser, mal o conheci. Eu cá, por mim, andava por estes lados por acaso. — Encontrou o olhar atento e confiante de Clemente e pôs-se de pé: — Para falar franco, a gente espera que uns tipos saltem da serra com uma carga de minério.

— Amigo, que dizes? — exclamou Clemente com um espanto teatral. — Eu vi mesmo essa carga, ontem de noite, em Pelares del Porto.

— Não pode ser!

— Puede. Eu o juro. Clemente jura com honra! Os homens se dividiram: alguns ficaram na serra para tapar os olhos de vosotros. Este meu camarada o confirma: o minério está desde ontem em Pelares del Porto.

— E a ribeira — perguntou o guarda, ainda duvidoso.

— Eles chegaram a Espanha como ratos afogados. Mas passaram a ribeira! Foram homens de brio, conho! Seguiram de noite, ainda perderam umas sacas no Er-ges. Eu os vi. O meu companheiro te jura também, amigo. Nós nos separámos com a nossa fazendita, para que não vissem um mundo de gente junta. Mas a perdemos desgraçadamente.

— Não sei se deva acreditar. E nem isso me rala. Para dizer claro, aqui este seu amigo, Parra, dizem, está mesmo marcado pelo nosso tenente. A ordem é botar-lhe a unha mesmo sem carga, logo que a gente o veja por estes sítios. Eu vinha para isso, não tenham dúvidas; mas, já agora, guardo-me para a outra vez. Só que­ria adivinhar onde vocês, logo, ou um dia destes, irão passar. Essa leria de não pertencerem ao bando que está encurralado na serra ainda me custa a engolir; e tam­bém não vou muito nessa passagem do minério para Es­panha. Por onde?, pergunto eu. Vocês não têm um eu por onde se enfiarem. Estão numa ratoeira, aviso-vos.

— Não sei disso, camarada — disse António, es­condendo a sua irritação.

— Pois é... Só queria saber o sítio. Não sou homem para filar um tipo sem carga, mas se adivinhasse por onde vocês vão passar...

— Se quer saber, caro amigo, é por aqui mesmo. Por esta vereda por onde vossemecê veio deslaçar as pernas. E quando quiser comer e beber à nossa custa, também não tem mais que se ralar: apareça nesta ma­lhada a hora combinada.

O guarda levou a mão ao esconderijo da arma. Mas acabou por responder desinteressadamente:

— Esta conversa não adianta. A gente ainda se en­contra.

— Até lá, saúde, ca-ma-ra-da — disse Clemente, e destemperou numa gargalhada despropositada.

O guarda ainda retrocedeu no seu caminho e enca­rou-os com rispidez:

— Vocês, agora, para onde vão?

António ia a repetir: «Por aquela vereda...», mas Clemente atalhou:

— Vamos a coisa pouca. Vamos aí ao Vale Feitoso ver se compramos um pouco de cevada pra negócio.

— Nós sabemos — disse o guarda, despeitado.

Já o homem ia para lá da estrumada quando Cle­mente correu sobre ele; o outro puxou imediatamente da arma, mas o contrabandista quebou-o com um sor­riso:

— Baixe isso, amigo. É apenas um cigarro mais.

Um cigarro mais e duas palavras: só gostava de saber como acertaram em que a carga dos companheiros, a carga que eles passaram para Pelares del Porto, era minério...

— Foi este, este dedo mindinho, que adivinhou tudo...

E, depois de o amachucar com uma expressão sádi­ca de ironia, virou-lhe as costas. Clemente ficou aparvalhado. As suas pernas permaneceram especadas no terreno, como varas mirradas e esguias, enquanto o vento soprava no tecido leve das calças. Era um espan­talho hirto, ridículo, ao vento.

— Mira, António: este é outro cevado. O mundo está cheio de cevados. A gente, um dia destes, sai em propaganda. Mas, antes de tudo, precisamos de fazer algo pelo pessoal do Pomar. Se há passado algo entre nós, mas agora as coisas estão bem claras: tu não serás mais um cão tinhoso, como eu, como todos o somos muchas vezes. Este que aí vai é um infame cerdo. Hou­ve também um cevado que nos vendeu. Ouviste o gozo dele? Ele gozou de termos sido anavalhados. Repara, amigo: houve um cerdo que vendeu os companheiros, não o esqueças. Mas a traição, os cevados, os ladrões, não fazem mais do que sacudir a cobardia que às vezes se pega à gente, mesmo àqueles que são verdadeiros ca­maradas. Como tu, amigo.

A fome e os alarmes tinham minado as esperanças. Encurralados, sabendo que a Guarda não arredaria pé, por muito que tivesse de esperar, não havia outro meio senão romper o cerco. E seria nessa mesma noite.

Clemente levou a tarde a sondar a bruta rebeldia do Camarão e o minério acabou por ser destulhado. Não seria necessário recomendar cautelas: em silêncio, liber­taram as sacas do folhedo e do cascalho e cada homem tomou a sua carga, reconhecendo que a débil probabili­dade de êxito dependia do modo disciplinado com que congregassem a sua decisão e a sua astúcia. A caravana organizou-se, com os homens descalços para atenuar o rumor das passadas, constantemente policiada pelo Ca­marão, que andava numa febre, sondando os espaços vazios entre os companheiros, tendo ameaças e insinua­ções que ninguém entendia.

O céu, que a noite coalhara de nuvens negras, gote­jando sobre os corpos a morrinha gelada, protegia a caravana. O Erges, ali próximo, sorvia os ruídos que não lhe pertencessem, irado de esbarrar nos penedos que lhe estorvavam a corrida. O fragor desmedido enrou-quecia-se ao ser cingido pelas margens altas, que lhe embraveciam a ressonância. Mas se o motim das águas jogava a favor dos contrabandistas, era de recear a descida da vertente, com azenhas em ruínas, grutas, silve­dos, que podiam abrigar um vigia ou uma carabina. António não se alheara desse risco. Por isso, todos os seus sentidos se apuravam numa crescente tensão. Além de que, para lá da descida escarvada de nichos, a cheia era uma incógnita.

Os homens tinham anuído em que ele fosse sozinho explorar os carreiros talhados na ladeira escabrosa. De cada vez que tentava firmar o pé, sem poder calcular os desníveis, agulhas espetavam-se-lhe na carne, mas fazia por anestesiar-se mordendo os beiços numa dor mais aguda. Teria de continuar, nem que fosse de rastos.

Ao abeirar-se do fundo da ravina, deixou de ter dú­vidas sobre a força da cheia. As águas partiam-se não só nas penedias do leito, levantando cristas de fúria, mas também nas das lombas, subindo a uma altura dis­paratada, e logo outras vinham engrossá-las, impacien­tá-las, até que o atropelo se desfazia em cachoeiras e es­puma. Um inferno de estridores e ressacas. Por ali, não era de temer a Guarda. Quando muito, os espias deveriam ter-se acoitado a meio da encosta.

António prosseguia agora em terreno bem conhecido, embora a escuridão se fosse cerrando. Não estava longe de um troço arenoso do rio, repousado em pequenas enseadas. Tinha de se apoiar nos arbustos e nas rochas para que o pé se aliviasse. Várias vezes se agachou à proximidade súbita de sombras e de folhas remexidas pelo vento. A noite molhava-se de uma chuvinha bran­da, que, no entanto, ameaçava encorpar. Chegou, por fim, ao sítio em que a garganta dos penhascos se afilava antes do abismo, esmagando as águas numa ratoeira de alçapões. Limpou o suor que gotejava sobre os olhos e lhe embaciava os sentidos. Era de descrer no que via! A cheia tinha engolido as enseadas e o areal das mar­gens, devassando as grutas que, dantes, se encobriam sob uma grenha de sarças. Impossível avaliar a fundura sem o auxílio de um companheiro. Aquilo, só com o credo na boca e braços afeitos a águas redemoinhadas. O desencorajamento pesou-lhe todo sobre os músculos.

Regressou pelo mesmo caminho, estribando-se nas raízes soltas, por vezes trepando de joelhos, enquanto a chuva se misturava com o suor. Imaginava diversos pla­nos, que logo lhe pareciam ingénuos; sentia-se fatigado e rendido, desejando apenas que tudo acabasse de qual­quer forma e pudesse, enfim, achar uma boa refeição e uma boa cama: um repouso que durasse dias, a vida in­teira. Mas logo reagia com desespero: os companheiros, ele próprio, dependiam da sua tenacidade. Não: ele não seria mais um irresoluto. Lembrou-se de Clemente e reconheceu pela primeira vez que, se a presença dele o irritava, também lhe servia de aguilhão e, em certos momentos, de conforto. Como agora. No fim de con­tas, a noite negra, o rio impossível de vadear, eram, em grande parte, bons cúmplices da travessia. Talvez a Guar­da os julgasse foragidos pelas malhadas, sabendo-os desi­ludidos e exaustos. Sim: ninguém ia supor que alguém cometesse a loucura de desafiar o rio. E eles iriam desa­fiá-lo. Para a frente, pois!

Os companheiros esperavam-no sem alvoroço e pa­reciam mesmo retraídos, como se tivessem de se defen­der das suas decisões. A Calhica, logo que o pressentiu pelas passadas incertas, veio esperá-lo. A entorse devia incomodá-lo mais, depois de ele ter forçado a articulação naquelas caminhadas. Animou-o sem palavras, apertan­do-lhe as mãos.

— Que tal?

— Vamos resolver entre todos. A cheia está de res­peito.

O pessoal agrupou-se com os casacos cobrindo os ombros; apenas Camarão ficou à parte, os cabelos ali­sados pela chuva e caídos sombriamente para os olhos. Mas a noite não permitia apreciar os rostos.

— Aquilo não é fácil, rapazes. — Fez uma pausa, res­folegando de cansaço, e recostou-se nas moitas. — Pelo lado da Guarda acho que nos podemos safar: eles não de­vem estar muito dispostos a molhar os ossos. Mas a cheia é um caso sério. Só visto. Brava a valer. Coisa para muitas semanas, mesmo com o tempo enxuto. Mas vocês sa­bem que não podemos continuar aqui a olhar para o céu; nem um dia, quanto mais semanas! Daremos um jeito para passar, ou por um lado ou pelo outro, atra­vessando a ribeira ou a Guarda.

— A gente já devia ter voltado há muito — senten­ciou o Maneta. Um coro surdo, anónimo, ressentido, coroou-lhe as palavras.

— Talvez. Podes ir já, se gostas que os cães te mor­dam as canelas. Tens à tua espera um canil de guardas com a baba a escorrer-lhes dos queixos.

— Cevados, amigo, cevados — disse Clemente.

— Isto é só para diante! — interveio Camarão, por fim, numa explosão brusca e inesperada. — É para a frente e para já! Eu hei-de passar com a carga que for minha, mesmo que ninguém me acompanhe; na Guar­da não fica o que é meu. Aqui só vejo maricas que não os têm no sítio. Maricas e caganças a cheirar fraldas de mulheres.

— Aqui só vejo camaradas — respondeu-lhe Cle­mente.

— Acho que todos concordam em que há apenas um caminho: a ribeira — concluiu António Parra, com uma serenidade que irritou os nervos do Camarão. — Há-de sempre sobrar um braço para algum que se veja embru­lhado nas águas. Vamos então descer isto de olhos aber­tos. Sigam, que eu irei um pouco mais devagar.

— Tens de me aturar na tua companha, António. O teu pé parece um tropeço e precisa de encosto — ofereceu-se a rapariga.

Camarão rosnou ameaças confusas.

Muito depois, extenuados do piso, da carga e das precauções, reuniram-se todos à beira do Erges. A noi­te era um tecto pesado, ao encontro da soturnidade das águas. Da garganta das rocas despenhava-se um rio en­louquecido. Os homens sentiam-se frágeis e vacilantes perante a cheia.

António disse, numa voz que conseguiu tornar se­rena:

— Maneta: tu, que refilaste há pedaço, vais ser o primeiro a molhar os pés. Mas entesa esses ossos!

— Manda antes o teu pai para o Inferno.

Mas viu sobre ele os olhos decididos de muitos ca­maradas e entrou na água vagarosamente. Depois embrulhou-se nas sombras e apenas o ouviram gritar:

— Está-me pelos peitos, conho!

— Aquele parvo tem goelas de cachorro. Daqui a pouco toda a gente destas serras há-de saber que está um contrabandista a passar a ribeira — protestou um dos mais velhos do grupo.

Outros homens sondaram o caudal das águas. Re­gressavam para olhar com olhos turvos esse Erges enfu­recido e dizer:

— Não se pode.

António Parra deu um passo brusco para a frente, mas Clemente segurou-o.

— Tu não aguentas contigo, camarada, quanto mais com o rio! Um homem não deve ter vergonha da doen­ça. Voltamos para a serra e acabou-se. Deixamos a car­ga por estes sítios, saco aqui, saco além, e voltamos prà vila até que o tempo amaine. Tu não podes, amigo. És um chefe, um guia de camaradas, não vais perder a cal­ma. Um guia, amigo. Há muita coisa séria e urgente que espera por ti.

A Calhica leu, com angústia, as reacções do contra­bandista: no rosto dele havia arestas talhadas com violência. Quis quebrá-lo de qualquer modo e chalaceou:

— Esse pé precisa de outro esticão e de descanso. Não ficas capaz de uma hora para a outra.

António limpou vagarosamente ao lenço a chuva morna da testa.

— Sou culpado de toda esta porcaria: fui eu que trouxe os homens. Tinha obrigação de contar com uma cheia destas.

— Isso é o que tu pensas. Mas o minério perdia me­tade do valor com mais uns dias por cima. E quem não arrisca, não petisca... Tu sabes se todos tinham de co­mer em casa?

A Calhica tentou dizer tudo isto com um sorriso brincalhão. António Parra sentia que se desfizera entre eles a barreira de dúvidas. E mais do que isso: que a presença da rapariga, a seu lado, se ia tornando natural e intensamente desejada. Aborreciam-no, contudo, as ciumeiras do Camarão, que viriam destruir uma camaradagem que valia todas as mulheres do mundo. Mas um Camarão ridículo e lastimoso só poderia despertar em António Parra a vaidade de macho preferido.

— Aqui especados, com as ventas de molho, é que não adianta — sentenciou alguém.

— Vai tu beber umas goladas de água, despeja-as nos bofes e verás se adianta — respondeu o Maneta, melindrado, como se a frase do companheiro reforçasse a teima na travessia. — Só o Clemente falou aqui direi­to. A gente volta para trás. A carga, nas barrocas, fica segura: se nos apanharem de mãos vazias, não nos hão-de comer. O que eu desejaria é que alguém acabasse por dizer em que ficamos.

Encarou António Parra sem medo. Eles iriam ao fim do mundo, sem desfalecimentos, se um pulso rijo os guiasse; mas todos se sentiam desorientados com a timidez de António Parra, que parecia aturdido com as sentenças do bêbado do Clemente.

— A mim, não me caçam eles: nem a mim nem à carga que me pertence — insistiu Camarão com feroci­dade. — Eu passo a ribeira.

Falava de si e da carga como se a ameaça viesse mais dos companheiros que da Guarda e repetia sempre al­guma coisa que salientasse o seu irrevogável direito à fazenda. Ele não seria capaz de confessar o seu despeito e a sua mágoa à rapariga, mas nesse direito de posse so­bre os seus cinquenta quilos de minério ia um desafio a todos os que, leviana e inconfessadamente, lhe disputa­vam o que nele havia de mais íntimo e apetecido.

Clemente, com a sisudez de certos momentos, e co­mo se não tivesse ouvido as fanfarronadas do Camarão, foi ao encontro das dúvidas dos companheiros:

— Está resolvido, amigos. O Diabo que faça lou­curas. António Parra acha que a gente vai esconder o minério e penso que falou com tino. Nos encontrare­mos depois na barroca. Os cevados cuidam que o mi­nério está na barroca e, quando voltarmos, já aqui o te­remos perto da ribeira.

Os homens começaram a preparar as cargas. A noite desfê-los, um por um, logo que os vultos se curvaram sobre os degraus das rochas. Clemente coçou nervosa­mente o nariz, aguardando a reacção de António Parra, que ainda não se mexera do seu lugar. Ouviu uma res-tolhada amortecida pelo quebrar das águas e já não dis­tinguiu a face do amigo: uma coisa maciça, sufocante, caiu-lhe sobre os olhos. Tombou para trás e perdeu os sentidos.

O ataque da Guarda dera-se como numa vertigem. E o resto decorreu numa espécie de delírio. Calhica jo­gou-se ao chão, arrastando o companheiro, e, nesses momentos em que percebeu a queda de Clemente e as correrias desordenadas pela encosta, apenas os seus ins­tintos de animal, afeito às fugas e às armadilhas, reagiram. Suspendeu a respiração, até que voltou o silêncio dos matos e das escarpas. Estavam refugiados num ninho de arbustos. A perseguição, feita às cegas, conti­nuava nas ravinas. Não seria fácil para a Guarda orientar-se numa noite daquelas. Ouviu o ressoar de um tiro, logo amarinhado pela voz do rio. Todos os ruídos cada vez mais longe. Achou-se então em segurança e resol­veu socorrer o pobre do Clemente.

António Parra tinha o corpo preguiçado para trás, dir-se-ia alheio a tudo se os músculos do rosto não estivessem dolorosamente contraídos. Sofria. Ela pensou, aliás, que isso lhe faria bem. A rapariga não esquecia o peso das insinuações do Clemente. Embora, como to­dos, tivesse desprezado esse vadio, começava a com­preendê-lo e a estimá-lo. Ele era corajoso e solidário, à sua maneira.

Serenou as mãos nos ombros do companheiro e de­pois foi em busca de Clemente. Não precisava de andar muito para chegar ao sítio da agressão, à beira das águas espumosas da enseada, mas não havia por ali sinal de ninguém.

Foi então que ouviu alguma coisa batida pela cor­rente: a mistura de um vulto humano e de um volume informe, que as águas expeliam com frenesi de encon­tro à margem, para os tragar de novo, cuspindo-os, rejeitando-os. Por momentos, o vulto entregou-se a uma língua do rio, remoinhando como um destroço inútil, mas, a poucos metros das rochas, esbracejou, rebelan­do-se e recuperando a distância perdida. As águas que saltavam por cima das escarpas engolfaram-no durante alguns segundos. O homem, de uma dessas vezes, rouquejou a sua angústia. A Calhica, então, lançou-se ao rio. Mas as saias, repassadas, prendiam-lhe os movimentos. Teve de voltar à margem quando o desconhecido gritou nitidamente por um auxílio. Calhica despiu-se, rasgan­do os vestidos, e caiu nua na água. Uma onda veio apossar-se das roupas. A força da corrente valia mais que o empenho dos braços, e a todo o momento a cabeça da rapariga se submergia, enquanto os sentidos entorpeciam. Atrás de si apercebeu outro corpo a lutar com a ribeira e calculou que fosse António Parra. Ele certamente seguira-a. Não podia dissuadi-lo. Os três, agora, expunham-se à morte. O volume que o homem segurava desesperadamente com uma das mãos tinha-se soltado e logo o confuso tumulto de rugidos e águas o arrastaram não se sabia para onde. O temerário desco­nhecido gritou o seu pânico, que era também um pro­testo visceral, e Calhica reconheceu a voz do Camarão. O esparvoado! E talvez ninguém o pudesse já salvar. Ela sentia os gestos a afrouxarem, os pulmões sufoca­dos. Aos poucos, o seu corpo oferecia-se ao rio, os olhos adormentavam-se de tão fustigados. Até que uma suave cortina de irrealidade lhe veio dissolver o último ímpeto dos nervos.

Muito mais tarde, com a noite a findar num denso aguaceiro, viu-se transportada pela serra nos braços de António Parra. A sua consciência renascia a medo, com uma dorida e débil incredulidade. O alvorecer foi espe­rá-los junto da barroca. Ela aconchegou mais a si a sa­marra com que o companheiro a cobrira e agasalhara. Quis seguir pelo seu pé. Marchavam em silêncio e a ra­pariga, roçando-lhe o corpo, procurando-lhe a mão, sentiu um desejo urgente de o beijar.

Na barroca estava um grupo reduzido e definitiva­mente desagregado. O grupo viu-os de longe, a avança­rem em passos arrastados, e depois o vento agitou as estevas, desnudando a rapariga, cujo corpo reflectiu to­da a luz e todo o sonho renovado da madrugada.

 

O Pencas ainda não tinha botas. Mas vestia calças novas. Calças novas e também uma peça de roupa mais vistosa: uma camisa de um amarelo-canário. Assim pre­parado, estivera resolvido a ir à cidade. Precisava de co­nhecer aquela metade ignorada do mundo. Ver gente capaz, uma casa de mulheres, coisas belas e desejadas. Agora, que tinha dinheiro e ninguém lhe pedia fianças, dispensava a despesa das botas. A camioneta, porém, partia de tarde, e à tarde ele estava bêbado. Bêbado com dinheiro seu, sem regatear esmolas, pagando adiantado em cima do balcão. De uma vez, ainda subiu para os assentos detrás da camioneta, mas o condutor suspeitou do hálito ardoso e deu-lhe um par de murros. Depois disso, esqueceu a cidade e contentou-se com a felicida­de de comer à vontade lascas de bacalhau salgado, ovos crus e de esvaziar litradas de vinho.

Aquele dinheiro foi murmurado por todo o povo. Quando se chorou a morte do Camarão e o minério perdido, houve um grupo de mulheres que quis sovar o Pencas ou mesmo sujeitá-lo a tratos bem piores. O po­vo tinha desconfianças. Apenas Clemente continuava seu amigo, aceitando petiscos e rodadas de bagaceira, e chegara a convidá-lo insistentemente para outra jornada de contrabando. Mas Pencas sentira renovarem-se as guinadas no estômago e, durante dias, afastou-se da bo­dega. Desculpara-se com as dores. Não precisava de correr riscos, pois não lhe faltava dinheiro. Clemente fora também o único a não lhe fazer perguntas sobre a origem dessa riqueza. Clemente era um amigo.

A camisa foi mudando de cor, as calças esfarrapa­ram-se, camisa e calças manchadas de terra e de vinho, e um dia o Pencas pediu o mata-bicho a crédito. O di­nheiro acabara. Os dias corriam como se tudo no mun­do estivesse previsto e fosse regulado por um génio en­fastiado a quem faltasse imaginação: o nevoeiro que vinha do fundo dos vales, denso e viscoso, isolando o morro; o vento que o agitava, perseguindo-o por cima dos penedos até o céu ficar varrido e azul; o sol, o sol verde e oiro da planície, dos lameiros, da Gardunha, da Estrela, da serra da Gata com os píncaros bordados de neve, enquanto as ruas esconsas da vila ficavam sepulta­das em sombra e frio até ao pino do Verão. Raízes e nuvens chupando a terra; campos endurecidos pela cal­ma, onde brotavam ervas maninhas. E sempre o vento de Espanha a trepar a cordilheira da raia, mal roçando a planície requentada, guardando-se inteiro para fustigar o morro. Terras alqueivadas, terras lavradas, ganhões obrando o milagre de germinar sementes, feiras para vender os bois e os porcos e para se beber um golo de vinho. Rebanhos de longe atravessando searas alheias, perseguidos por ganhões mercenários; rebanhos de mal-andar. E o trabalho, as esperanças perdidas, a magreza, a penúria de todo o ano. Sezões e tifos. Sonhos e raivas encobertos em xales e saias escuras, em fatos de bom-bazina de contrabando, gente de luto. Homens como bichos fugindo aos tiros da fronteira. Um horizonte fe­chado. A vida repetindo-se como um rio que volta à origem.

Nos penedos liam-se as iniciais dos novos donos, mas ninguém viera espavorir os velhos e os ganapos, não se acoimavam gados, não apareciam os novos ar­rendatários do Pomar. Havia um sossego postiço na­quelas terras de Montalvo. Talvez os donos se arreceas­sem da força imprevista dos pobres, talvez jogassem com a obra do tempo, com o medo e o desalento. Mas quantos perguntavam ainda no silêncio das vigílias: que virá depois?, quando perderemos as nossas casas e as nossas terras?

Com as noites claras e as sendas desimpedidas, ape­sar dos ventos e das nuvens caprichosas, os caminhos da fronteira animavam-se: guardas, contrabandistas e soturnas caravanas de mendigos. Velhas e inválidos repelidos das suas terras. As velhas eram quase sempre espanholas sujas, resingonas, de quem o povo temia o mau-olhado. Os mendigos, antes de vencerem a aspere­za dos barrocais, descansavam nas lajes, junto dos case­bres da planície, secando feridas ao sol. Enquanto as tempestades e a neve cerravam os trilhos abertos nos matagais, a miséria hibernava, sobrevivendo só pela von­tade de sobreviver; amainando o tempo, soltava-se pelas estradas, exibindo doenças novas, chagas, pelagras que inchavam e mordiam a pele. Na fronteira começava esse intercâmbio de pedintes e aventureiros. O Dr. Provi­dência descrevia no clube horrorosos casos da sua clínica, descrevia-os como trofeus do seu engenho ou como bem-aventuranças dos Céus, pois a fome e a doença tornavam mais dóceis os camponeses que ele dominava pelo ter­ror e que oferecia, já domesticados, ao jugo dos suseranos de Montalvo.

Dias, semanas, vento, nevoeiro e sol, mondas, sar­gaços rebentando na terra fresca, ganhões fazendo cál­culos da empreitada das ceifas para amortizar as contas do comerciante e do médico, notícias deslumbradas de homens que tinham passado cinquenta cavalos de fa­zenda, espingardas e contrabandistas tesos segurando a Guarda a distância, outro homem preso na Zarza — e o caso do Pencas dissipava-se nas desgraças e ilusões de todo o povo. Às mulheres havia interessado muito mais a pouca-vergonha da Calhica, juntando-se a outro ho­mem, como qualquer vadia; ainda as terras gemiam sangue do seu verdadeiro homem, ainda as águas do Erges repetiam os roncos do Camarão, e já outro se deitava na sua cama. E as mulheres são os juizes das vilas.

Clemente, por seu lado, não era de natureza de gas­tar-se num ambiente remançoso. A vila parecia apazi­guada, as ameaças dos lavradores estavam esquecidas, já ninguém repetia as juras do velho Parra, que prometera esfolar o filho moinante se alguém viesse provar que ele tinha vendido os companheiros. Procurou outras terras. A sua palavra era esperada. Por agora, seria difícil con­vencer o Pencas a tornar ao contrabando, e era esse o propósito inconfessado que ainda o retinha em Mon-talvo. E também nada acontecia que pudesse sacudir o alheamento do seu amigo António Parra. O mundo o chamava.

Mas Clemente, tempos depois, voltou. Os campo­neses viram-no no adro da igreja, sentado nos degraus do cruzeiro, espreguiçando as pernas longas e escanze­ladas. Trazia um boné decente na cabeça e vinha forne­cido de tabaco — à disposição dos amigos que passa­vam e fingiam ignorá-lo. Coçava muito os pulsos e as coxas, que sobressaíam, magras e ásperas, dos rasgões das calças. Esteve assim boa parte da tarde, sem mudar de poiso, como esses fantoches postados à entrada dos circos. Depois foi para a farmácia. O farmacêutico começou imediatamente vários serviços sem finalidade pa­ra dissimular a atrapalhação; talvez o cliente indesejá­vel, vendo-o ocupado, se retirasse: estava convencido de que o rendimento da botica era influenciado pela presença dessa espécie de gente. O Sr. Abílio, por exem­plo, um velho respeitável que vinha por ali jogar charutos ao gamão, deixara de aparecer havia tempos, não suportando certas companhias da farmácia, ateus e extremistas, ganhões rancorosos atraídos pela palavra de Clemente ou de António Parra.

Clemente fumaçou um cigarro até ao fim, arranhan­do-se insofridamente, e, como não aparecesse um ami­go verdadeiro, chamou o dono da casa.

— Me dê um unguento para o pica-pica.

Os beiços do farmacêutico estremeceram várias ve­zes numa confusão de impropérios e desculpas. Cle­mente arregaçou as mangas e mostrou o braço esgadanhado.

— Um unguento que acabe com esta coceira.

— Não sou médico. Vá ao médico. Tire-se daqui.

— Usted sabe um unguento para isto. Não precisa de médico.

E estendeu os pulsos até roçar a cara do farmacêu­tico.

— Chegue-se para lá, não quero saber disso. É sar­na. Pega-se.

Lá fora, alguém fez oscilar a porta, que, protegida por uma rede, impedia a entrada das moscas. O velho soalho vibrou com o peso do desconhecido. Por en­quanto era apenas uma espádua grossa, embaciando a luz do postigo; a espádua deslocou-se, um feixe de sol triste escorreu pelo pavimento e Pencas fez a sua apari­ção. Ficou meio confuso com a presença inesperada de Clemente e ainda procurou retroceder com decência. Mas o aventureiro ergueu os braços.

— Pencas, amigo! Esperava-te desde manhã.

O boticário viu ali uma possibilidade de se desfazer dos dois e acenou com a cabeça, confirmando, enquan­to empurrava para a rua aquele par de maltrapilhos. Clemente firmou os pés nas alpargatas chatas e roídas dos caminhos e, segurando com energia o braço ame­drontado do dono da casa, levou-o até à prateleira das pomadas.

— Eu quero o remédio. Usted vai prepará-lo agora mesmo. Saio lá fora um pouco e volto a buscar o un­guento. Amigo Pencas: diz a este camarada que eu pa­go uma caixa de unguento que sare o pica-pica. Vamos beber ali um golo enquanto chegam amigos.

Pencas seguiu-o sem entusiasmo. Não olhava direi­to o companheiro e sorria parvamente.

— Tu te achas bem vestido, magano! Olhem-me pa­ra este preparo!

Pencas levou as mãos à camisa e sacudiu-a, enleado.

Na taberna encontraram dois desconhecidos: um mulato sorridente e um homem magro que os olhava sem estima.

— Buenas tardes, amigos.

O mulato ergueu-se e esbulhou os beiços grossos num sorriso acolhedor.

— Me chamo Clemente. Os amigos daqui me co­nhecem. Não vinha a Montalvo há um bom tempo e estou em ânsias de abraçar meio mundo. Vamos beber, camaradas? Como vás, Santiago?

O taberneiro não correspondeu ao tom amistoso do cumprimento e voltou-lhe as costas.

— Serve os amigos de beber, Santiago.

— E quem paga? Vomecê traz disto?

— Paga quem tiver dinheiro ou vontade de servir os amigos. Tu bem sabes que estão aí a chegar camaradas que me farão o empréstimo que eu precisar. Pencas: viste teu irmão António Parr-a?

Pencas franziu o nariz como quem não pode dar uma resposta certeira. Clemente filava-o com olhos matreiros, enquanto afagava as escoriações ensanguentadas dos braços. Eram olhos de ave de rapina imobilizando a presa.

— O Parra está na barreira.

Clemente endireitou bruscamente o corpo.

— Um momento, amigos; preciso de conversar com António Parra. Podem começar a beber. Eu volto.

O mulato deu-lhe uma palmada nas costas, numa agradecida intimidade, e chegou-se ao balcão de zinco; mas Clemente estava ainda indeciso: levou os dedos es­guios às coxas, por dentro das calças, e arranhou até sentir a pele quente e serenada.

— Eczema...? — inquiriu o mulado, numa bonita voz.

— Pica-pica. Me tem danado a vida. Precisava de um unguento — disse, alheado, meditando em coisa di­ferente.

— Sou enfermeiro diplomado. Estou às ordens. Todos fixaram o seu espanto no mulato. E este sa­boreou essa admiração até ao fim, antes de esclarecer:

— Enfermeiro dos Hospitais da Universidade de Coimbra e também professor primário. Tenho um primo médico em Segura. Agora estou desemprega­do. É a vida! Mas tenho conhecimentos. — Suspirou e a sua face fez-se esverdeada por alguns momentos. — Vou indicar-lhe uma pomada. O meu amigo pede na farmácia.

— Um momento. Usted é um sujeito de instrução, es verdad. Eu me honro em beber um copo com um camarada de princípios, mas tenho de ir agora ali acima um momento solo. Se há passado algo. Voltarei num pequeno minuto e depois iremos ao boticário com a re­ceita do unguento. Isto é apenas pica-pica.

O mulato, que não gostara da interrupção, sorriu depois, abanando as pernas, um homem superior deslo­cado naquela miserável sociedade.

Clemente, à esquina da botica, estendeu cautelo­samente o pescoço sobre a barreira; viu António Parra com a sua expressão de tédio, lascando um junquilho, e alguns camponeses deitados na sombra do muro. Clemente descobriu lentamente um ombro, uma aba do casaco, e esperou que os olhos do amigo o encontras­sem; quando isso aconteceu, fez-lhe um sinal mistérioso e escondeu rapidamente o corpo. O contrabandista, enfadado, aproximou-se. Clemente pegou-lhe nas mãos, levando ainda um dedo aos lábios, e arrastou-o para o barrocal, até que os penedos os isolaram.

— Eu te trago notícias de encher o coração de um camarada.

— Diga isso de uma vez.

Clemente demorou a pausa. Tinha a face quase en­costada à de António Parra.

— Camiões armados descem das montanhas para atacar as fazendas. Armas do povo, conho! Venho da fronteira, passei lá um mês com camaradas espanhóis. Confia, amigo.

— É tudo, Clemente? — disse António Parra, cho-carreiro.

O outro parreceu perturbado. O vermelho das suas faces descorara para arroxear depois. As mãos puxaram o boné, torcendo-o com raiva.

— Não é tudo, amigo! A grande notícia te dou ago­ra. Franco, mira, o general Franco foi assassinado a noite passada. O peito me rebenta, amigo. Eu tremo, meu corpo estremece com esta alegria que não cabe lá dentro. Não vês, amigo? Desde esta hora partiremos os dois. O mundo nos chama, amigo.

Clemente, às últimas palavras, tinha-se transfigu­rado: a face tensa, a pele arrepiada e um brilho arre­batado e contagioso nos olhos inflamados. Era sincero. António Parra sentiu um aperto nas vísceras, uma onda de impetuosa inquietação. O corpo estremecia-lhe tam­bém. Mas quando ia a responder alguma coisa libertada dos sarros velhos e recalcados, encontrou já outro Cle­mente: felino, manhoso, abjecto. Clemente mentira. Embalado pelas próprias palavras, durante alguns se­gundos estivera acima da sua miséria e das suas mistifi­cações desprezíveis, mas aquilo fora apenas um breve clarão.

— Estou farto de baboseiras, Clemente. Seja um homem sério!

— Por quem me tomas, conho? Se há passado algo lá fora, o caminho se abre para os verdadeiros.

— Notícias que só vossemecê sabe...

— Eu te juro, António Parra!

— Se forem verdadeiras, são notícias que saltam lo­go por aí.

— E saltam mesmo. Eu te venho comunicar os acon­tecimentos em primeira mão. Eles podem ocultar os factos, como eu os sei, mas o coração de um homem adivinha tudo. As notícias são livres como a alma livre de um camarada: não há prisão para elas.

Coçou os pulsos com suavidade. A sua expressão desfalecia. Perdera a exaltação das palavras, dessas pala­vras que o embriagavam e que tinham sempre a persua­são de uma realidade angustiosamente imaginada. O seu aspecto, agora, era o de um maltrapilho.

— Eu principio esta luta numa hora de miséria. Te­nho fome, António Parra. Tu me ouves esta palavra pe­la primeira vez.

— Duvido muito do seu palavreado. Mas, ainda que dissesse mil verdades, nunca iria consigo. Não saio mais deste lugar. Se tiver de me meter em encrencas, é aqui. Vossemecê, às vezes, sabe ser um companheiro: não me esqueço daqueles dias de contrabando. Se vos­semecê fosse sempre um homem sério, seria melhor pa­ra todos nós. Podia ser um bom companheiro, não há dúvida. E não me fale mais em fome; na minha casa há sempre uma côdea para quem precisar. Vamos daí comer.

Es um precipitado, António Parra. És rijo no fundo, um dia eu sei que entras na luta, mas abres logo o peito às armas. A gente se separa já aqui: não quero que ninguém nos veja juntos; se algo acontecer, é preci­so que te não sonhem metido nisto. A gente se encontra logo, de noite, num sítio combinado. Tu me darás um pequeno empréstimo para matar esta fome. A notí­cia vale bem um empréstimo, tu o sabes. Mas eu te di­go que, para matar a minha fome, não vou aí aparecer contigo, às claras, aos berros a toda a gente. Eles te fi­lam num momento.

António Parra puxou-lhe violentamente de uma das abas do casaco, que ficou separada do corpo como um estandarte esfrangalhado.

— Clemente! Você é um títere, um porco intrujão! Um porco intrujão. Serve-se das suas patranhas e da minha vontade em crer nelas para me caçar dinheiro.

Abanou-lhe ainda os braços, lutando por suster o furor, e afastou-se.

Clemente segurava o rasgão com os dedos, estava petrificado. Mas quando viu o amigo descer os barran­cos, correu atrás dele, arredando a bruma de lágrimas que lhe vedava os olhos.

— António! Amigo! Eu sou um cão, pior que um cão! Pior que um bicho nojento.

Já não o poderia alcançar. Espojou-se pelo chão, em soluços histéricos, e gritando sempre:

— Bate-me, amigo; bate-me, por favor, que eu não mereço mais o nome de camarada! Sou um tinhoso.

Quando, por fim, regressou à bodega, viram-no ta­citurno. Sentou-se no banco comprido, lá na extremi­dade menos iluminada, seguido pelos olhos velados do mulato. Clemente perdera todo o interesse pelo vinho e pelos companheiros. No escuro, com os braços caídos entre os joelhos, meditava. Pencas, amoldando as costas ao ângulo da parede, fechara irresistivelmente os olhos, embora por vezes tivesse de sacudir as investidas da moscaria. Santiago, desinteressado, enchia o copo do freguês macilento; aquela sociedade não merecia qual­quer animação profissional da sua parte. O freguês era um cesteiro ambulante, estaria na aldeia curtos dias, não podendo confiar em largos gastos dos camponeses. Santiago ia pensando se o homem pagaria logo ali a sua despesa.

O mulato percebera também que o cesteiro não era homem capaz de ofertas, e por isso aguardara a volta de Clemente para refrescar os beiços; neste, sim, adivinha­va um companheiro franco. Estava agora desiludido de o ver tão murcho. Precisava de lhe lembrar a sua gene­rosidade e, daí, começou por dar-lhe uma palmada nas costas.

— Ó amigo não pense mais na doença. Isso tem cura fácil.

— Que doença! Eu sou um cão tinhoso!

— Não pense em tal, homem. Isso pega-se um pou­co, um poucochinho, é certo, mas é coisa para se curar em três dias. A gente, no hospital, resolvia isso com três banhos.

— Tinhoso por outros males. Se há passado algo.

— Venéreo...?

— Que venéreo, conho!

O mulato achou prudente volver ao seu lugar, des­fazendo a conversa. Devia esperar pacientemente que o outro despertasse das suas preocupações.

— Bem, Santiago! — Clemente ergueu-se de súbito, endireitando o busto, batendo com o punho no banco. — A gente vai beber, Santiago; preciso de sarar umas feridas que me sangram o peito. A gente vai beber e jo­gar umas cartas com o meu amigo Pencas. Eu sei que ele tem dinheiro graúdo. Olha para ele, Santiago: já vis­te a camisa deste magano?

Pencas, sorridente, levou os dedos ao colarinho e desapoiou as espáduas.

— Oh, dinheiro...

Dinheiro, que to vi agora na botica. — Voltou-se para o taberneiro e disse com solenidade: — Este camarada que te pague já a despesa deste pessoal. Eu o vi trocar duas fincas gordas ao boticário, há pouco, na minha companhia. Eu o juro... Um camarada não pede empréstimo quando tem duros consigo, Pencas!

O rasgão das calças enfolava sobre as coxas e o mulato veio pressurosamente dobrar-lhe o pano sol­to. Santiago estava indeciso. Daqueles malandros tu­do se podia esperar: até dinheiro. Ganho ou roubado. Pencas olhava alternadamente para ambos, como se encarasse asnos ou loucos; o pobre Clemente devia estar tresvariado em falar de dinheiro no seu bolso. O taberneiro apoiou as mãos na ilharga e acabou por dizer, manhoso:

— Mostra lá o dinheiro...

— Tu duvidas da minha palavra, Santiago? Não mostres nada, Pencas, e vamos daí a outra bodega onde a palavra e a jura de um amigo sejam sagradas. Segui­mos todos daqui, nesta hora mesmo, para a bodega de madre Luísa.

Pencas, obediente, dirigiu-se para a porta, mas Cle­mente pisou-lhe com intenção os pés nus. O taberneiro estava convencido. Precisava agora de acalmar os fre­gueses.

— Quem duvidou, sô Clemente?

— Eu o julguei, Santiago.

— Não desconfio de ninguém senão quando mas pregam. Desconfio um pouco do Pencas, que não é certo. Ele tem luzido com algum dinheiro por aí, bem sei, mas pensava eu que já não houvesse restos. Dinhei­ro bem ganho, dizem... — acrescentou com acrimónia. — Nem sei como vossemecê dá importância a este marmanjo...

Pencas enrubesceu em todos os sítios descobertos da pele. Clemente, porém, reagiu com autoridade:

— Bem ganho, garanto. O dinheiro sai sempre de algum lado. Mas de que lado, amigo? Do meu? Do teu? Nós temos os nossos corpos, corpos miseráveis, Santiago.

O dinheiro existe para comprar o esforço desses cor­pos. Nosotros temos o corpo vendido. Uma pequena gota desse dinheiro veio às mãos do Pencas; e tu lhe queres mal por ele safar um pouco daquilo que existe para te comprar! A ti, a mim, a todos.

— O meu amigo é filósofo. Isso foi bem dito — co­mentou o mulato.

Riram. Apenas o cesteiro, esquecido no seu canto de silêncio, a penumbra a escavar-lhe os buracos no rosto, ponderava seriamente aquelas palavras.

— Prepara as cartas, Santiago. Se faz noite.

— Qual noite! — redarguiu o Pencas, com o rosto babado à perspectiva de jogo. — Estamos aqui o tempo que for preciso.

Santiago ajeitou o caixote, aproximando-o do bal­cão de zinco.

— Dinheiro na mesa, rapazes! — disse, entusias­mado.

Clemente, num relance, piscou um olho ao Pencas (que sorriu intimamente, honrado com a cumplicidade) e indignou-se:

— Tu és um jesuíta disfarçado, meu traste coxo! Só falas em dinheiro, em dinheiro, és um avarento afogado em dinheiro. Pencas: tu me vais prometer que não mos­tras o dinheiro a este cerdo. O dinheiro é teu, apenas combinaste emprestar-me um pouco, e não o vamos pôr à frente de quem duvida dos amigos.

Parou, com a mão nervosa e alta crescendo sobre a cabeça do taberneiro. E dela escorreu uma sombra má­gica, trémula, desenhando na parede dedos alongados. Sentindo o apoio espectacular da expressão do mulato, seguiu com o dedo enorme e descarnado até ao nariz de Santiago.

— Não te sentas hoje a esta mesa. Nosotros vamos jogar com gente que confia.

— Sento-me, se eu quiser. A casa é minha.

Clemente abrandou:

— Não digo que não te sentes, o convite foi nosso; mas eu te exijo, conho, um pouco de confiança nos amigos.

— Bem, estou para ver como depois se fazem as contas.

— Fazem-se com honradez e dinheiro. O meu ami­go Pencas tem que chegue para nós dois; e estes amigos nossos, este amigo enfermeiro, é um sujeito de posição; eu o percebi logo que entrei nesta bodega. Aquele outro nosso amigo, um operário, tem a dignidade escrita nos olhos da cara. Em ti, Santiago, confio eu também — acrescentou com generosidade. Depois esfregou os pul­sos, um e outro, metodicamente.

— Sim, em mim podem confiar — respondeu o ta­berneiro, lisonjeado.

Pencas sentia um formigueiro de prazer em se tor­nar conivente dessa burla às suspeições de Santiago.

— Cartas, conho!

O anoitecer foi entrando pela locanda. As mulheres iam e vinham das fontes, escuras e cansadas, com as cardas dos sapatos ressoando na calçada. Daí a pouco, em se coalhando a noite, os gonzos das suas lanternas de azeite dariam um estranho rumor às ruas.

Jericos, porcos grunhindo nas furdas do rés-do-chão das casas, uma porta fechada, outra, botas sacudidas no rebato, um chamado, um luzeiro balanceando dentro da escuridão.

Na taberna, as cartas eram batidas com sonoridade profissional; os jogadores esqueciam as horas. E lá fora, por fim, tudo acabou em silêncio. A vila dormia.

Foi então que apareceu Corinhas. Ficou entre por­tas, esverdeado dos restos de luz que chegavam à rua. Uma aparição. Assim o disseram os olhos espavoridos do mulato.

Santiago, com a chegada do tresnoitado, teve consciência do tempo decorrido; fez parar a mão de Cle­mente que ia registar no papel mais uma vitória do ta­berneiro.

— Deixe-se de escritas. Isto acabou. Agora vamos a contas.

O Corinhas espremeu a testa e veio até junto de Clemente, olhando o papel. O mulato deu um murro na mesa.

— Na minha terra dá-se desforra até que o parceiro arreie.

— E a ceia?

— Come-se depois.

Santiago encheu um copo ao Corinhas, que ficou a rodá-lo entre os dedos, sonhadoramente, e voltou ao jogo. Apertava às vezes a carteira com o braço, do lado da vizinhança do Pencas, e acabou por desesperar com as demoras.

— É noite, já não é tempo de desforras, e eu quero contas.

Clemente, Pencas e o mulato perdiam cada vez mais. Santiago, pouco seguro dos registos de Clemente, desenhava também riscos grossos na mesa e retocava-os de tempos a tempos, para que os parceiros reparassem bem que ele tinha a sua escrita. Desta vez foi o Pencas a refilar:

— Com a noite começa o dia. Eu vim pr'aqui pra jogar.

— Deixa falar, Pencas — disse Clemente. — Ele sa­be a sua obrigação. Diz-lhe que é a última noite que estamos aqui descansados. Ainda te não disse que tenho um negócio para ti.

— Jogo paus — gritou o mulato. — Deixem-se de conversas.

— É coisa pouca, camarada. Só uma palavrinha. Eu me esqueci de avisar o meu amigo Pencas que volto ao contrabando; e gosto que ele acompanhe os camaradas.

Há tempos teimei com ele, mas o Pencas ainda tinha um pedaço de medo agarrado às calças. Agora ele não é mais um medricas. Voltaremos um dia destes; não é, Pencas? Nos estreámos juntos no contrabando e lá voltaremos ao lado um do outro.

Pencas ficou com as cartas no ar, pasmado, e o mu­lato aproveitou esse espanto para lhe espiar o jogo. Corinhas, então, interpôs-se entre ambos, anunciando com a sua voz fúnebre:

— Clemente: a Calhica sabe que vossemecê chegou à vila. Vim cá para dizer isto.

— Vou já vê-la, amigo.

— Vomecê também tem tratos com a fulana? — in­sinuou o taberneiro com uma ironia carregada de lascí­via. — Aquele Parra caçou uma boa pescada...

Os olhos de Clemente fuzilaram como armas na descarga de um tiro; o rosto empertigou-se daquela no­breza dos momentos sérios da sua vida.

— Há coisas limpas que, só de chegarem aos teus beiços, ficam cheias de esterco. Eu te proíbo.

Levantou-se e ninguém se atreveu a falar em contas. O mulato tinha uma expressão aturdida. Clemente, da porta, com majestade, ainda acrescentou:

— O Pencas resolverá questões de dinheiro. Pencas remexeu-se na cadeira, como se a sarna de

Clemente se lhe tivesse pegado. A ausência do compa­nheiro precipitava vários problemas insolúveis.

— Baralha, baralha! — impeliu o mulato. — Este amigo caladão que entrou agora ocupa o lugar de Cle­mente.

Corinhas aceitou o convite com uma sofredora con­descendência. Mas parou entre o banco e a mesa, cor­rendo os dedos várias vezes pelos cabelos ralos.

— Parece-me que devo ir ali fora. Tenho uma coisa a dizer a um amigo.

Aquela recusa vinha salvar Santiago. Já não havia remédio senão arrumarem as contas.

 

— Então a uma bisca de quatro! É cedo ainda — teimou o mulato, numa voz lôbrega e desorientada.

Santiago despejou nas goelas um copo grande, de quem está pronto a aceitar todos os desafios, e, repu­xando as calças nas virilhas, pediu um compasso de espera.

— Vou ali fora verter águas.

— Um português não mija sozinho — sentenciou o cesteiro, na sua primeira graça da noite.

Saíram ambos. Pencas olhou à sua volta, sentiu-se repassado por esse silêncio repentino. Balcão, mesa, pi­pas, tinham uma estranha cor de azebre. Estavam sós, numa solidão quase opressiva, e havia dinheiro na gave­ta e almudes de vinho à disposição. O peito arfava-lhe como um cavalo. Fixando os olhos febris do mulato, leu neles tudo o que poderia esperar e, numa ligeireza imprevista, saltou o balcão. Abriu a gaveta. Tirou uma mancheia de moedas, à toa, dividiu-as atabalhoadamen­te com o mulato e ficou a alisar as cartas até ao regresso dos parceiros.

Mas Santiago entrou com a desconfiança na cara. Trazia o braço firme sobre o lado da carteira e mediu com os olhos o nível de vinho da garrafa. Foi ainda os­tensivamente até ao lado do balcão, farejando em todos os lados.

— Você parece que está suspeitoso... — censurou o mulato.

— Aqui há muita ovelha sonsa, amigo...

— Cá de mim... Eu fiquei aqui dentro, vigiando. Na minha presença não há novidade. Fui enfermeiro. Ainda o ano passado dei escola no Rosmaninhal.

— A vida corta as voltas a qualquer — filosofou o taberneiro, remando a conversa para outro lado, para que esquecessem as suas dúvidas. — Coisas da vida consolam-se com vinho.

Atão bota mais um, Santiago — ratificou o Pencas.

O seu estômago, vazio daquelas horas de jejum, ameaçava.

— Quero ver onde isto pára. Com esta, são cinco rodadas.

Pencas fez soar as moedas no bolso. E quando San­tiago arregalou os olhos, disse com velhacaria:

— Ainda tu as hás-de pagar: não saio daqui sem uma desforra. Só se vêem as contas ao nascer do Sol.

O mulato nu com gosto, os beiços inchados da cha­ma trémula da candeia, e limpou a boca ao anúncio de mais bebidas.

— Todos ganham ou pensam ganhar. Só eu deixo aqui a pele. Sou o má-sorte — queixou-se o cesteiro, numa expressão de lastimosa infelicidade.

Santiago deu a volta à tramela do balcão para encher novamente a vasilha. Tinha as contas muito baralhadas na cabeça. Contas de jogo, contas de bebidas. Para seu governo, precisava de procurar um lápis e um papel na gaveta: os riscos na mesa já não esclareciam aquela con­fusão de cálculos.

Na gaveta, as moedas tinham minguado! Foi uma impressão acutilante, repentina, inspirada. Tinham min­guado! Deu com os punhos em cima do balcão, atirou com o banco para longe. Espumava.

— Estou roubado! Eh, cabrões, estou roubado! Pencas, de boca aberta de susto e imbecilidade, foi-se chegando para a porta. Mas Santiago correu a fe­char-lhe a saída e puxou do navalhão de um palmo de comprido.

— Eh, cabrões, furo já um! Quero o meu dinheiro ou os traço a todos!

Foi crescendo sobre os companheiros, de navalha apertada nos dedos, o passo lento e descaído sobre o aleijão. Mas recebeu em cheio, sobre o tronco, um dos bancos de pinho e depois uma perna enrolou-se nas suas e, sem saber como, viu-se estirado no pavimento.

A navalha caiu perto, várias mãos lhe rasgaram o cole­te, punhos investiram sobre o seu rosto.

Só pensou verdadeiramente numa vingança de san­gue quando deu também pelo roubo da carteira. Nela guardara quatro notas para pagar o vinho da quinzena. E, sem dinheiro, o pai teria mais uma vez de vender o porco e de lhe liquidar a factura.

Levava muitas vezes as mãos ao bolso vazio. Inútil. O roubo só poderia saldar-se com mortes. E embora todos eles fossem uns cabrões suspeitos, um roubo lembrava logo a iniciativa do Pencas.

 

«Tenho uma coisa a dizer a um amigo.» E tinha. Desde a sua entrada na taberna que previa um acontecimento. Tal como sucedera no regresso de Villa Nueva de Minas muito antes de o ladrão das pesetas se atravessar no seu caminho, despojando-o de meia vida de labutas. A revelação vinha nessas névoas e águas enca­peladas que lhe enchiam os vazios da cabeça. A entrada da porta, logo os olhos de Corinhas haviam sido fasci­nados pelas alpargatas de Clemente. Dois dedos, en-couraçados de sujidade, furavam-nas, entre a vermelhi­dão de barros e lamas secas. O pano das alpargatas nunca tivera uma cor definida; mas, desta vez, os bar­ros davam-lhe uma alacridade burlesca. Corinhas fixava essa visão vermelha e pressentia que ela se relacionava com um assunto seu: um pressentimento ainda fechado num cerro de bruma. Foi só depois de Clemente sair, quando ia a pegar nas cartas, que duas cores, vindas de longes opostos, se confundiram: o vermelho seco das alpargatas e a cor dos barros do Erges. A cor da sua mina! Havia nela terra preta e arenosa, fragas azuis e esverdeadas, mas o vermelho da sua beirada era incon­fundível: um vermelho para varar os olhos de quem se seduzisse pela riqueza das rochas. Clemente vinha de fossar a terra do Erges, não havia dúvida. E desvendara o segredo! Quando ficasse bêbado, levaria a vila atrás de si. Precisava de lhe segurar a língua antes que fosse tarde; tinha sido roubado uma vez e iria até ao crime para defender o que lhe pertencia.

Limpou o suor gordo da testa e, no meio da rua, expôs-se ao vento para que este o refrescasse. Estava indeciso sobre a atitude a tomar para com o aventurei­ro. Obrigá-lo a uma jura? Iludi-lo com a promessa de uma sociedade? Clemente não era homem para contra­tos sérios; a solução eficaz seria prendê-lo à mina, em­paredá-lo numa gruta onde nem os mochos o desco­brissem. Era um projecto que lhe dava um bem-estar excitante. E, no fim de contas, ainda não tinha uma certeza firme sobre a ida de Clemente à mina. Havia barros vermelhos em muitos sítios da fronteira. Tal­vez fosse mais avisado sondá-lo com astúcia. Sondá-lo, apenas.

A solução pareceu-lhe tão acertada que se sentiu calmo, como se já não tivesse problemas. E, nisto, deparou-se-lhe toda a azinhaga deserta: alheara-se, de volta com as suas ideias, perdendo o homem de vista. Como o não encontrasse nas vizinhanças da Calhica, correu vários becos, procurando atinar com a pessoa que poderia atrair Clemente àquela hora, num sítio on­de não havia sequer uma taberna. Eram ruas de velhas e gente de trabalho. Nem um bêbado que representasse uma pista.

Até que o topou de chofre. Embuçado no escuro, à esquina da Rua da Sarça, parecia esconder-se de al­guém; esconder-se dele, Corinhas, por certo. Corinhas trepou a um penedo, depois de fingir que se afastava. Escondido nas ramagens dos arbustos, esperou. Estava certo de que Clemente voltaria ao seu posto, quando estivesse convencido de que ninguém o espiava. Assim aconteceu: o aventureiro foi de novo à esquina da rua e pouco depois chegou ali a Calhica. Que razões levariam a rapariga a sair de casa e encontrar-se com um homem, assim de noite, a medo, na ausência de Antó­nio Parra? Se eles vinham ali falar encobertos, o assunto teria de ser a sua mina. O roubo era um segredo entre os dois. Iam enganá-lo, a ele e ao santarrão do Parra! Que outros motivos poderiam levar um reles maltês a encontrar-se de noite com uma rapariga que teria certa­mente nojo dele? E havia sido ele, Corinhas, o emissário do convite para o encontro! Gozavam, os danados. Talvez já tivessem as mãos cheias de oiro e os atezanarre a pressa em ocultá-lo. Aqueles pés armazenavam barro de muitos dias: crostas de barro recente, recalca­das noutras já ressequidas. Corinhas dera folga a todos os malandros para que chegassem primeiro ao seu te­soiro: adiando, adiando semana a semana, como se a vi­da parasse no tempo e nas oportunidades. A beirada do Erges havia permanecido dentro dele, aferrolhada, nu­ma posse que parecia inviolável: alguma coisa a ser co­lhida da terra apenas pela sua iniciativa. E mais uma vez outros se tinham apoderado de tudo!

As suas mãos, agitadas, sacudiam as ramagens do esconderijo. Foi o que bastou para que os ladrões, so­bressaltados, se despedissem, correndo a rapariga pela azinhaga fora.

Corinhas saltou do penedo, enquanto o outro enco­lhia o corpo e se desequilibrava; aproveitou então esse minuto em que dominava o aventureiro pela surpresa.

— Clemente, vais confessar-me tudo, carago!

— Amigo, és tu! — E o seu corpo logo se avantajou.

— Confessa, conho!

— Me parecias caído do Céu. De supetão, um co­risco sobre mim! Parecia negócio de bruxedo. Se há passado algo?

— Tens os pés sujos, Clemente.

O aventureiro julgou que ele tivesse enlouquecido.

— Tens os pés sujos de barro.

— Tengo, amigo — disse, numa voz conciliadora. Sentia-se triste de o ver subitamente transtornado e não achava palavras capazes. — Eu os lavarei um dia destes. Não tarda nada que dê uma grande barrela a estes pés. Sossega, amigo. Voltaremos daí à bodega de Santiago. Eras tu mesmo que há bocado me espiavas por essas ruas? Se há passado algo contigo, amigo.

Corinhas não ouvia essas arengas de paz. O malan­dro fugia-lhe a uma conversa séria! E essa fuga era tão untuosa, tão falseada de treta, que estava com ganas de o matar.

— Onde sujaste os pés, bandido?

O sangue ardeu no pescoço e nas faces do aventu­reiro. Levou as mãos à gola do casaco do Corinhas e puxou-o como se o quisesse dependurar no espaço. O mineiro estrebuchava, espumando ira e soluços ao mesmo tempo. Clemente largou-o depois como a um galo depenado.

— Sossega, conho. Vem daí comigo à bodega de Santiago e teremos uma conversa de camaradas.

Corinhas tinha o corpo paralisado. Queria dizer um mundo de insultos e a garganta gelara-lhe; de súbito, escapou-se e desferiu doido pelas ruas, pelo barrocal numa alucinação de assombrado, guiando-se por uma resolução instintiva: a campina, a fronteira, o rio. Nes­sa noite, nessa mesma noite, iria certificar-se se as fragas estavam realmente violadas.

Dali ao Erges era um estirão de respeito, mas a fadi­ga serenar-lhe-ia os nervos. A própria solidão da cam­pina, na mão fechada da noite, quebrava o ímpeto dos passos. As coisas aproximavam-se da distância e vinham agigantar-se aos nossos olhos, faziam recuar os intrusos que penetrassem no seu mistério. Esses movimentos, arfares e murmúrios da campina condensavam-se num silêncio morno. Um silêncio que era uma imensidade. O mundo cabia dentro dele. Corinhas, exausto e pequenino, dentro de uma grandeza que o digeria, caiu em si. Perdera a irresponsabilidade da sua fúria e sen­tia-se agora mísero e desamparado. Essas presenças in­formes, que lhe tocavam, mais o faziam desejar um contacto humano: homens, gente, árvores, formas con­cretas. Ser um homem entre outros homens; ter um ca­minho a seguir e conhecê-lo, vendo-o de longe até ao cabo, uma estrada livre por onde corresse a esperança. Guardar um tesoiro, que adiantava? Era isolar-se mais ainda. Ele próprio tecera as malhas densas da noite on­de se mirrara. Por isso a sua vida se via agora aprisiona­da nessa campina de ardis e aljubes. E do que precisava era de um mundo desafogado, o mundo dos homens solidários. Tinha rancor dentro de si e precisava de o desfazer ao sol, em lugar de o fechar num cativeiro de desconfianças.

O instinto respondeu à sua brusca e ansiosa fome de convívio; e em vez de cortar a campina em linha recta, aproximou-se da vereda do Pomar.

Por ali, a jornada duplicava; mas ouviria os cães dos casais, a melopeia do vento nos pinheiros e nos carvalhos. Sentiria o hálito da terra habitada.

Corinhas atravessara muitas vezes a planície a horas sombrias, fugindo dos encontros; conhecia-a de olhos vendados como as bestas dos almocreves. Mas nunca, como agora, a solidão viera cercá-lo.

A planície era um mar coagulado. Em noites bran­cas, com a cúpula das estrelas geladas, o mar era de prata; e brancas eram também as cordilheiras que lhe impunham limites, por onde escorregavam rios, que se fundiam, gerando a campina. Nessas noites, as pessoas que se aventuravam eram enfeitiçadas: ficavam pedra ou sonho, imóveis, sem humanidade.

Mas uma campina negra e temível, como a dessa se­roada, era mais conforme com a turbação incoerente que desassossegava o Corinhas. Campina de olhos bravios e ofegar voluptuoso, de espaços sem fundo, de ár­vores que cresciam de repente do silêncio, altas como torres e cheias como a noite, para logo se fundirem na mesma solitude desabrigada. Campina insondável e afli­ta. Exalava-se do seu ventre, do trigo, das ervas, das magras folhas dos azinhos, da atmosfera repleta, exala­va-se de tudo isso uma respiração gorda, arquejante, que tanto oprimia como deleitava.

Pressentiu a proximidade da floresta do Pomar, como se os troncos emaranhados viessem roçar-lhe os sentidos: um prenúncio forte de vida selvagem. E os cães ladra­ram. Os ambulantes temiam esses guardas do Pomar, mas neste momento eles sugeriam pessoas, aglomerados de casas, protecção. Ladravam de cima dos muros. Mu­ros, estrumadas quentes dos gados, gente que possuía a terra sem a violar. A planície perdia assim a ameaça obscura do seu isolamento, feito de apelos telúricos e emboscadas.

Avançou ainda mais. E por entre uma fenda da flo­resta, um rasgão incendiado atravessou a escuridão, as árvores sopraram fumo. Eram sinais das fornadas do velho Parra. O mineiro fez uma paragem e sentiu-se acompanhado. Tudo decorria, afinal, como se ele vol­tasse de um degredo, chegando, por fim, a terra povoa­da. O assunto do Clemente tinha acontecido num pas­sado muito distante, era como se não lhe dissesse já respeito. Apetecia agora descansar, meditando, gozar até ao fim esta imprevista serenidade.

Havia por ali uma cabana, nos últimos tempos deser­ta, e um cão. Resguardara um destes rebanhos de mal-andar que se iam da campina quando as cegonhas trocavam os ninhos pela caça dos répteis. Mas ficara o cão, afeiçoa­do a espreitar os bichos lascivos, disputando às cegonhas os lombos gordos dos lagartos. Acabaria raivoso de so­lidão; como ele próprio, se continuasse a temer os ou­tros homens. Sentou-se, encostado à cabana, calmo, sorvendo a magia da noite e da vida próxima.

Daí a pouco chegou ali o trote de uma cavalgadura. Às vezes o ruído afundava-se nos barrancos, esmorecia à beira dos regatos, mas sentia-se que estava gradual­mente mais próximo. Os cascos esbarravam nos pedregulhos, soltando um eco metálico e ríspido. E, pouco depois, o ruído mudou de direcção, afastando-se pela estrada do Pomar. A noite ficou maior. Era gente dali, por certo. Gostaria de alcançar o desconhecido e saudá-lo como amigo. Se a mina estivesse já explorada, iria buscar braçadas de riqueza e nessa mesma hora espalhá-la-ia por esses camponeses do Pomar: rasgaria den­tro de si as teias de egoísmo e de suspeita. A sua beira­da desafiaria o poder, a cobiça dos viscondes. Do alto do morro de Montalvo gritaria aos humilhados, aos ve­lhos e às crianças: «O meu oiro é de todos! Vede-o: é fogo da terra e da liberdade, é calor; alumiai com ele o vosso resgate!» E depois iria misturar-se nas lágrimas e nos risos, já de mãos vazias, mas cheias do afecto da­do e retribuído.

Empolgado por esses pensamentos e recusando tur­bá-los de dúvidas, foi perseguindo o trote da besta, nu­ma atracção instintiva, e, quando pôde fazer-se ouvir, chamou:

— Eh, gente! Quem vem aí?

O trote suspendeu-se. Olhos e ouvidos embrenha­ram-se pela campina adormecida, mas logo, no mesmo ritmo, besta e desconhecido retomaram a marcha. Um ritmo que começava a saturar-lhe os nervos.

— Ó gente daí! Quem é vocemecê?!...

Assim roucas e anelantes, nem pareciam palavras saídas da sua boca. Corinhas, com a ansiedade e o brio a espevitá-lo, aligeirara a passada. Esse encontro ia de­cidir da sua vida: era uma oportunidade que ele não podia ceder aos seus fados de azarento. Mas, de lá, também a marcha se apressou. E acabaram todos numa corrida estonteada. Não era alguém que lhe fugia: com o desconhecido a negar-se ao chamado, escapava-se-lhe mais uma vez a vida cálida e solidária que o poderia re­conciliar com os homens.

— Não fujas, carago! Sou o Corinhas!

Foi o sinal para que a cavalgadura largasse doida e para que alguém gritasse por socorro. Temiam-no! Lembrou-se das acusações reles do Pencas; o povo fala­ra pela boca desse valdevinos. Fugiam dele, um assom­brado.

As pernas derrearam-se. A testa gemeu novamente um suor de gelo. Tudo perdido. Ele tinha vindo dos seus pegos escuros para se purificar com o mundo da luz, o mundo da confiança, e agora, que se sentia já próximo, as pessoas não compreendiam o seu desejo de dádiva, deixando-o isolado como um pestífero. Mas ti­nha de perseverar, sem os adiamentos das outras vezes, desmentindo com acções essa maledicência do povo.

O alarido da besta e dos gritos acordou o Pomar. Era a mãe de António Parra que chegava, desfigurada, da serra. As pessoas corriam às portas e ficavam hirtas de espanto: a velha desde o princípio dos tempos que repetia as passadas do dia anterior, sem um queixume, sem um resmungo que se ouvisse cá fora; caíam-lhe as desgraças em casa e o seu rosto, se era de pedra, de pe­dra continuava a ser. E agora esganiçava-se como qual­quer pessoa, vinha aí transtornada de aflição!

— Acudam, acudam pelas almas!

O velho Parra pensou imediatamente nos vândalos do Pomar. As juntas entesaram-se-lhe de alarme. Eles aí estavam, finalmente, os ladrões. Quando a mulher lhe chegou às mãos, sacudiu-a como a um caniço.

— Fala, estafermo! Quantos viste tu?

— Vi um e falou como gente! Vem a correr atrás de mim!

Mas, ditas as palavras, sentiu-se logo liberta, expul­sa de um delírio. Aqueles brados já não lhe pertenciam.

À vista das coisas familiares, insulou-se de novo na sua indiferença e chocou-a ver-se apoiada ao marido, como se, saindo do pesadelo, se lhe deparasse uma realidade surpreendente.

Ele olhava-a ainda com duas brasas de loucura e, num repente, foi pela casa dentro e revolteou os montí­culos de batatas; afastava-as com as mãos e com os pés, até que os dedos tocaram na espingarda. Nesse momento, a mula, que viera desarvorada, escoicinhava na porta do curral e a bulha repercutia em toda a casa.

— Eles aí estão, carago!

A mulher tinha recuperado a secura de todos os dias.

— Eles, quem?

— Quem, mulher do diabo?! Os ladrões destas ter­ras, quem houvera de ser? Pois tu não os viste?

— Vi um lobisomem. Ele dizia que era o Corinhas. O que tu ouves agora é a mula.

— Qual Corinhas, qual mula, mulher esparvoada! Chama o pessoal do Pomar, o teu filho António Parra, enquanto eu os seguro com esta arma!

Saiu à rua de braço erguido. As labaredas do forno lamberam-no de vermelho. Rompeu por entre esse halo sinisto e desfechou o primeiro tiro para a espessura da noite. Alguém que saltara entre os arbustos gemeu após o tiro. Gemido de morte ou de medo?

— É assim que os Parras vos esperam, cambada!

E continuou a desfechar os cartuchos em várias di­recções, até que o último eco se perdeu na rasura da campina. Depois veio o silêncio. A floresta e o Pomar não tinham mais ruídos: era talvez uma quietude dema­siada para a ansiedade do velho, que desejaria ver ali o Pomar em força, homens e bichos, num denso tumulto de vidas que não aceitam a rendição. Do forno saía um fumo ralo, desmaiado. Só o coração do velho ressoava em todas as coisas. Ele, sozinho, preenchia esse mundo.

Depois, um arrastar de cobra ouviu-se entre as moi­tas, cada vez mais longe, até se transformar numa cor­reria: um dos malandrins havia-se escapado! O velho Parra ainda apontou a arma, mas cercava-o já o vazio esmagador. O silêncio cobria os mortos e os campos revolvidos da batalha. Para o velho, agora, era um si­lêncio inefável: um Parra, apenas um Parra, libertara o Pomar; sufocara a voz da própria noite. Apenas um Parra!

Pencas escorria sangue de meia dúzia de golpes quando Clemente chegou à barreira a libertá-lo da fúria de Santiago. O Pencas defendera-se muito bem até aí, e os seus dedos esmagariam o braço enxuto do taberneiro se conseguissem iludir a ameaça da navalha, ávida do seu sangue. Santiago atirava-se para a frente, e a cada arremetida gorada a sua raiva crescia mais ainda.

— Furo-te o coração, filho da mãe! Só descanso se te furar o coração!

Mas Pencas tinha os músculos bem almofadados e as suas mãos eram tenazes nos ossos magros do taberneiro.

Aquilo acontecera de manhã, inda a névoa cerrava os barrocais, depois de uma ronda de Santiago por to­dos os becos onde o Pencas se pudesse ter enfiado.

A intervenção de Clemente, embora acautelada, per­mitiu ao Pencas suster o pulso da navalha, torcê-lo, até que os dedos, esmagados, a deixassem escapar.

— Santiago, amigo, conho, que te não julgava assas­sino! A gente resolverá a encrenca com uma discussão de gente séria.

— Ele roubou-me, vá para o diabo! Roubou-me a gaveta e a carteira! Roubou-me tudo, este cão!

Mas já a arma havia mudado de dono: e o Pencas, embora com a camisa amarela em tiras, o rosto amassa­do de terra da barreira, o dorso em sangue, tinha o ou­tro à sua disposição.

Vieram mulheres, camponeses, Montalvo correu ali a fartar a curiosidade, veio o juiz de paz, representado pelo Sr. Regedor. Indignado, os olhos do regedor fica­ram brancos, os óculos descaíram-lhe. Puxando por um braço de cada um dos meliantes, abanou-os até desaba­far os nervos.

— Malandros. Anda daí ao médico, meu traste! Lá a gente conversará também, Santiago. E você, seu val­devinos, marche ligeiro à minha frente.

Clemente levou a mão ao peito, chamando a si, com o olhar, o apoio daquela sociedade que os rodeava, co­mo se fosse impossível que aquelas últimas palavras o visassem, e depois, desiludido, contraiu o rosto, per­corrido por um estremecimento de amargura.

— Me confunde, amigo.

Um camponês saiu a defendê-lo:

— O Clemente nada tem com isto, senhor regedor. Veio só apartá-los.

— Então ponha-se a mexer da vila. Tipos como você há cá muitos. E esses mirones, não têm nada que fazer?

Os camponeses e as mulheres recuaram uns passos, contrafeitos, e Clemente ficou especado no seu lugar, os dedos esburacando as alpargatas, o pedaço do casaco ao vento, a carne seca sobre os ossos, infinitamente magro e miserável.

A enfermeira do consultório havia escancarado as duas portas da rua, como nas horas de tragédia. Falava-se que o Pencas era uma fonte de sangue. O médico, chamado àquela hora, ainda madrugada nos seus hábi­tos, vinha de mau humor: na véspera jantara na quinta do visconde, um rito semanal de vassalagem que valia um porco e duas fanegas de trigo no fim do ano. Assados e bons licores, excitantes que despertassem a ima­ginação. O médico inventara aventuras de caça, cenas pitorescas da sua clínica, e media o êxito pela boa di­gestão do visconde e pela cestada de presentes que lhe iam enfiar no automóvel. Mas tais jantaradas tinham o seu preço: nos dias seguintes o estômago era uma revolta de molhos, cigarros e risadas do visconde. Uma reacção frustrada por toda a sua indignidade. E então odiava esses camponeses testemunhas da sua degrada­ção. Dizia a todo o passo que um camponês é uma bes­ta, e aos colegas mais novos, a quem estendia a mão grossa e martirizada, aconselhava:

— Tratem esses brutos como irracionais. Desperdi­çar bons modos com essa malta é tê-los, de um dia para o outro, cavalgados nas nossas costas. A gente olha pa­ra um saloio, para um camponês da Beira e pensa: está aqui uma besta com as patas no ar. E faz de veterinário. O resto é treta.

Mas, na sua rudeza, sabia ser cativante. Face gretada de fadiga, uns olhos claros que olhavam de frente. Era insinuante para os poderosos, que viam nele alguém susceptível às honras e proveitos e que influenciava os miseráveis como um chefe de rebanho, mas também as bestas o temiam e por vezes se lhe afeiçoavam: ele in­sultava-os, falava-se das suas imposturices, mas havia sempre em casa um ganapo, um velho, um parente que ele tinha salvo da morte. A sua reputação alastrava: le­vavam-na longe os moleiros, os ganhões, as camponesas submissas aos seus apetites de macho.

Todos os casos lhe mereciam berros de indignação: traziam-lhe os doentes a más horas, perdidos, sem es­perança; mas, apesar de a medicina ser ali já inútil, aca­bava por libertá-los da morte. E as bestas ficavam gratas. Um acesso de tosse prenunciava um catarral, uma língua suja era caso maligno de tifo. Segurava-os pelo terror.

Os colegas eram burros e ignorantes. De uma vez, com o largo cheio, perguntara a uma cliente.

— Seu marido?

— Não há melhoras, doutor. Já chamámos o médi­co da Bemposta.

— O doutor Castrim?! Antes chamasse o barbeiro, valha-a Deus.

O largo cheio foi espalhar a notícia. E concluía-se mais uma vez que apenas o Dr. Providência era um doutor entendido.

O médico olhou o Pencas como se o julgasse o úni­co responsável por essa chamada fora de horas; e nunca perdoava tal desfaçatez a um miserável que não tivesse dinheiro para redimir o incómodo. Fez-lhe um penso agressivo e depois, apercebendo-se do cómico da histó­ria, preparou-se para saborear-lhe todo o tempero.

— Regedor: entenda-se lá com eles. Agora é a sua vez...

O regedor era um rival nesse enredo acanhado de influências. Ali, todos se acotovelavam por um lugar à frente, donde pudessem ser vistos pelo visconde e por outros lavradores. As vidas temiam-se e sondavam-se, sem a coragem do próprio jogo em que se empenha­vam. O médico só poderia esperar um sôfrego contentamento, da parte desses competidores, no dia em que algum deslize lhe debilitasse a posição.

— Vá, comece. Vamos fazer disto um tribunal a sério.

O regedor não sabia se aquele espertalhão quereria também divertir-se à sua custa. Mas não havia dúvida de que aqueles mariolas precisavam de ensino.

O Pencas ficara-se na sua cadeira, pachorrento e de­sinteressado. O taberneiro, coxeando no pequeno espaço da sala, parecia uma fera enjaulada.

— Eu conto, senhor regedor — disse ele. — É tudo claro como água: este cão roubou-me. Acabo ainda ho­je com este malandro! Isto não fica assim.

— Roubaste, Pencas?

— Eu, não senhor.

— Roubaste, patife! — trovejou o médico.

— Não roubei, eu seja cego.

— Deixe-me matá-lo, senhor doutor!

— Tens de matá-lo de véspera, que a carne dele mais rija que a de uma ovelha parida... Não há terra que a queira comer...

— Tu roubaste, meu safardana, Pencas do diabo. Pencas encolheu os ombros e deixou escorregar as

nádegas no assento; e pareceu-lhe que, de muito longe aqueles olhos vorazes lhe forçavam a alma. Numa voz obediente, respondeu:

— Se há roubos, isso é com outros.

— É verdade, Santiago: tu disseste aí que foste assaltado por vários...

— Podem correr-me os bolsos — tornou o Pencas.

— A tua manha não pega. — E o punho de Santiago ficou-lhe a dois dedos da testa. — Tu sabes bem que se tens aí dinheiro, já não é o meu. Se tens dinheiro, foi do troco do boticário.

— Isso foi mentira do Clemente. Podem correr-me os bolsos. Eu não tenho dinheiro, nem meu nem de ninguém.

Olhava com lástima a camisa amarela lacerada de navalhadas.

— Tu não tinhas dinheiro, Pencas?! — berrou San­tiago, aturdido. — Foste jogar comigo sem dinheiro?! Ah, cão, tu e o Clemente hão-de morrer hoje!

O regedor e o médico deliciavam-se. Mas aquele sentia a sua autoridade em perigo.

— Bem, acabemos com o paleio. Vocês vão para a outra sala e as testemunhas já dirão quem fala verdade.

— O mulato está lá fora sentado — bufou Santiago.,

— Então venha o mulato.

A enfermeira sorriu de tédio e chamou-o com um pequeno gesto displicente. Estava no ofício havia mui­tos anos, enfunava-se com uns ares sentenciosos, impunha-se ao povo.

O mulato, à entrada, fez mesuras em série, uma de­las, muito respeitável, à enfermeira, e perfilou-se.

— Por acaso, Vossas Excelências bem compreendem que foi por acaso, encontrava-me misturado com esta gente. Estou aqui apenas de passagem. O senhor dou­tor Providência já me conhece — e indicou o médico com um dedo familiar. — Ontem de manhã vim aqui procurar Vossa Excelência, oferecendo os meus serviços de enfermagem. — Olhou de soslaio a mulher, que ti­nha a boca chupada num desdém agoniado, e terminou tragicamente: — Sou um desempregado.

O regedor limpou as lentes, a estudar um começo de interrogatório subtil, e entretanto o mulato desen­volveu o seu depoimento:

— Como vê, senhor regedor, sou pessoa instruída; foi por azar que apareci nesta agressão. Já estive nos Hospitais da Universidade e o ano passado regi a escola do Rosmaninhal.

— Quase um colega... — ironizou o médico.

— Precisamente, senhor doutor: quase um colega. Mas a vida... Conhece o doutor Gonçalo, da Zebreira? É meu primo. Um bom médico, não desfazendo em Vossa Excelência.

— Bem, senhor... Como se chama? — cortou o re­gedor.

— Francisco Pereira Dias Gonçalo. Gonçalo é de família.

— Então, amigo Gonçalo, é você, o único instruído desta malta, que vai trazer luz à embrulhada...

— Pois, pois... — e o sorriso desenhou-lhe uma ru­ga graciosa que terminava perto das orelhas.

— Quem roubou o taberneiro?

— Ah, senhor regedor, quem me dera saber! Luz insuficiente, a bem dizer escuridão, várias pessoas juntas, engalfinhadas...

— Você também...?

— Que ideia! Apenas a apartar. Suponho que nessa balbúrdia alguém furtou a carteira de Santiago. Ou po­dia ter caído. Era fácil...

— Mas, no seu entender (você deve ser psicólogo), quem será o gatuno?

— Bem vê, senhor regedor, é sempre arriscado... Os seus olhos, na ronda por toda a sala, procurando um refúgio, encontraram o armário de aparelhos cirúr­gicos.

— O senhor doutor Providência tem ali um mate­rial de dentes precisamente do modelo do meu. Tenho um estojo completo. Eu podia ser útil a Vossa Excelên­cia como auxiliar; bem sei que Vossa Excelência tem já uma empregada — olhou para trás, a certificar-se da ausência da mulher —, mas boçal...

— Falaremos disso mais tarde, senhor Gonçalo... Suspeita do Pencas?

— O Pencas, senhor regedor, é um desgraçado, di­zem, pouco... seguro, mas tenho aqui dentro uma voz que me afirma que ele está inocente.

— E você, Gonçalo, será o ladrão? — disse inespe­radamente, com brutalidade, o médico.

O mulato teve uma expressão de maldade apavora­da, que logo rectificou.

— Isso só a brincar, senhor doutor.

— Mas o taberneiro diz que saiu de casa por uns momentos, ele e o cesteiro, e que vocês ficaram juntos. E nessa altura também voou o dinheiro da gaveta — in­sistiu o regedor.

— Suposições, apenas suposições. Eu também saí antes, a uma necessidade, mas é facto que estivemos juntos, eu e o Pencas. Na minha presença, claro, eu não permitia. Quando o taberneiro entrou, não estava rou­bado; trazia a carteira bem apertada no braço.

— Você estava de olho fito nela, hem?... O mulato descontrolou-se por momentos.

— Não podia deixar de reparar. Se o senhor rege­dor lá estivesse, diria agora o mesmo. O taberneiro é tão desconfiado que põe tudo às claras.

— Saia lá e venha o cesteiro.

O cesteiro estava furioso. Lá fora, em curtas pala­vras, sob a aprovação da assistência, descompusera to­dos os companheiros, incluindo o dono da taberna.

— Eu nada tenho com ladroeiras.

— Mas você estava lá.

— Sou uma pessoa de trabalho.

— Não se faça fino.

— Fino ou grosso, nada disto é comigo.

— Calma na língua — disse o regedor, empalide­cendo. — E quem se lhe afigura que roubou?

— Quem rouba dez, rouba cem. Quando vim da rua, de verter águas, metade do roubo estava feito.

— Mas quem lhe parece o culpado?

— Cá para mim, duvidei sempre do mulato. O que se diz enfermeiro.

— E talvez acerte... — concordou o médico.

O cesteiro, de braços enfiados nos joelhos, de cabe­ça baixa, parecia resignar-se a tudo o que viesse.

— Mas você diz-se homem de trabalho e estava me­tido com eles...

O cesteiro não respondeu.

— Agora vamos ouvi-los em conjunto.

Tinha sido necessário proteger Pencas do Santiago, no encontro do corredor: o taberneiro explodia novamente, ameaçando tudo de morte.

— Não há mais conversas, senhor regedor. Eu sei que o ladrão é o Pencas.

Desta vez o mulato fizera uma entrada mais humil­de. O Pencas tinha a cabeça à roda, estava incapaz de reagir. Uma noite sem uma hora de sono só lhe trouxera agonias. Sentou-se logo na primeira cadeira. Nada da quilo o interessava mais.

— E você, senhor Gonçalo, mudou de opinião?

— Vossas Excelências são da terra, conhecem melhor as pessoas. Na escuridão, era impossível. Ó Má-Sorte...

— Má-raios que o partam! — saltou o cesteiro. — Pois eu agora vou dizer tudo. Você piscou os olhos ao Pencas logo à entrada do consultório. Piscou-lhe os olhos e fez assim com as mãos, para o sossegar. Ou é você o ladrão, ou o Pencas, ou são os dois!

A face do mulato amareleceu.

— Que refinadíssima mentira, senhor regedor! Veja isto, senhor doutor Providência! Eu piscar os olhos! — Puxou histericamente as pestanas, dobrando as pálpe­bras. Pareciam duas feridas ensanguentadas. — Veja o senhor doutor como sofro de tiques nervosos. Faço as­sim com os olhos, isto a todo o momento, Vossa Exce­lência deve ter reparado. O que este homem viu, este estúpido que não conheço, que ninguém conhece, foi uma contracção nervosa da pupila. Da pupila...? Parece que estou confundido. Eu, de olhos — disse sorrindo com modéstia — nunca fui muito prático. No hospital, pertencia ao serviço de pele e venéreo. Mas... — As mãos buscaram no ar, ao acaso, uma frase decisiva; e acabou com desalento: — E isto. É como... eu disse.

— Santiago, vamos lá ver: que resolvemos fazer a estes homens? — perguntou pausadamente o regedor.

— Ponha-os na rua, senhor regedor! Eu não peço mais nada que tê-los lá fora ao alcance de uma navalha. Façam o que quiserem, a justiça há-de ser feita por mim. Ou a carteira aparece, ou furo-os a todos.

— Quer dizer que precisas também de cadeia como eles. — Já enfastiado do aspecto burlesco do interrogatório, voltou-se para o médico: — Vou mandá-los para o Maranhão. Lá, o juiz que os aperte com uns abanões da polícia. Não lhe parece?

— Você é a autoridade...

— Bem... — Foi à porta e chamou o Sr. Alves, um solícito instrutor das milícias políticas da terra. — Você vai acompanhar estes amigos ao Maranhão.

O Sr. Alves disse que sim com a cabeça. Aquele convite era tão intempestivo que sentiu os músculos paralisados; quando por fim pôde falar, chegou-se ao ouvido do regedor e, empalidecendo mais, arriscou:

— E... se eles fogem? Eu, compreende...

— Se não se atreve sozinho, arranje aí dois cabos de ordens, armados de marmeleiros.

O Sr. Alves não gostou que os seus receios ficassem assim às claras perante a assistência e vingou-se dando ordens marciais para todos os lados. O regedor viu ain­da a cabeça alta do Clemente crescer por cima dos ou­tros curiosos e insinuou numa voz poderosa:

— Esse aí precisava também de se refrescar nos ca-laboiços do Maranhão. Era limpeza geral.

O médico estava para confirmar, mas percebeu que Clemente os fixava sem medo. Esse olhar firme e amplo sugeria longínquas ameaças. E o médico, então, com a sua máscara austera, conciliou:

— Está enganado. Não é mau tipo.

O Dr. Providência era irredutível nas suas convic­ções conservadoras, principalmente à mesa farta dos la­vradores e no beija-mão aos influentes que um dia o pudessem libertar da selvajaria daqueles penhascos e la­bregos; mas temia a marcha irresistível dos seus campo­neses. Temia os vagabundos como Clemente, os pros­critos como António Parra; temia-os e adulava-os com palavras amigas. Queria prevenir-se para todos os im­previstos.

Apareceram dois cabos de ordens, dos que gosta­vam de ir beber ao Maranhão uns copos de vinho à custa da bolsa das autoridades. Os presos seguiram do­cilmente, rua abaixo. Mulheres e ganapos, excitados com o acontecimento, iam-lhes no rasto. E, na vereda do barrocal, uma palavra foi o rastilho para a briga se incendiar de novo.

— Ouça lá, Má-Sorte, que diabo viu você para... Mas o cesteiro logo cortou a frase, socando com alma os lábios do mulato. Ninguém esperava aquela agressão. O mulato quase desmaiou quando sentiu o morno do sangue e Santiago, por seu lado, aproveitou a balbúrdia para se lançar sobre a massa mole do Pencas, riscando-lhe o rosto com as unhas. O Sr. Alves recuou uns passos para a berma da estrada, preparando uma fuga em cam­po livre, no caso de a rixa se complicar; os cabos de or­dens distribuíam metodicamente cajadadas por todos eles, e o grupo acabou por retomar o caminho em sosse­go, como se nada tivesse acontecido. O Sr. Alves, con­fiando agora na decisão dos subalternos, deu uns empur­rões ao mulato e ao Pencas e ameaçou-os de influenciar a sentença do juiz do Maranhão.

E já perto do chafariz da Relva, Clemente apareceu ali misturado. Veio por detrás do Pencas e disse-lhe ao ouvido:

— Pencas, meu amigo: a gente, os camaradas, te buscarão. A gente te liberta. Confia.

Pencas ficou rubro de prazer. Mas o Sr. Alves dera pela intervenção do aventureiro; olhou cá de baixo para esse palhaço articulado, meio gigante, e não teve cora­gem para dizer mais do que:

— Afaste-se.

A copa das árvores escondia o vulto da camioneta. O mulherio, avisado, esperava a caravana. Faltava ainda um longo quarto de hora para a partida. O motorista, sem pressa, lascava um naco de presunto e lambia de­pois a ponta dos dedos. Os presos seguiam-lhe com vo­lúpia o movimento das maxilas, o gesto descansado de partir o pão. Estavam com uma fome de vinte horas, e nem eles nem ninguém pensara ainda nisso.

A presença dos presos já não chegava para a avidez das mulheres e por isso elas disputavam a glória de conhecer os mais íntimos pormenores dos acontecimentos da noite. Cada uma tinha o seu relato sensacional e ve­rídico. Mas sentiam-se desiludidas: o Pencas deveria ter chegado à Relva esfrandelhado, morto; vir pelo seu pé, sem rios de sangue dos cabelos às calças, era atraiçoar as cronistas da tragédia. Além disso, havia aqueles tiros lá para as bandas do Pomar uma história bem mais ex­citante: um bando de ladrões assaltara o Pomar e talvez o mulato e o cesteiro pertencessem a esse grupo de as­sassinos. Deviam ser linchados. Mas havia desencontros nessas notícias: a mãe do Pencas chegara ao Pomar as­sombrada. A infeliz perdera a fala. O Corinhas soltara-se de uma névoa da noite ou de um labirinto de poei­ras de fogo, patas de cabra e cornos de boi, e quisera apertar-lhe a mão. Uma voz, então, avisara o velho Parra e este comera de tiros o lobisomem. Ficara no meio do chão, caída, a mão do Corinhas. Mão adunca, felpuda, de filho de Satanás.

O motorista, mastigando sempre, continuava alheio à malta que rondava a camioneta. O mulato ia sugando o sangue que aflorava às contusões da boca e com ele iludia a secura das goelas. Pencas olhou várias vezes na direcção da taberna. Lá, na desmaiada zona de luz entre o balcão e a rua, Clemente empunhava uma garrafa de vinho. O mulato também reparou nesse convite mudo, os seus olhos tornaram-se húmidos de reconhecimento. Deu uma cotovelada no Sr. Alves, sugerindo com um sorriso macio:

— E se a gente bebesse um copo consigo?

O Sr. Alves olhou à volta na esperança de alguém o desembaraçar da situação: e todos aqueles rostos pedi­ram clemência. Por isso, sacudindo os ombros, concedeu:

— Bem... Na minha companhia acho que poderão. Clemente veio atendê-lo à porta.

— Conho, me sinto feliz! Usted me dá a honra de beber comigo, com nosotros, que somos a escória de la sociedad!

Então, por fim, o motorista buzinou. Sacudia as migalhas e agora nada mais podia justificar a demora. Clemente, empurrando o Pencas para a porta, ainda o animou:

— Tu nos esperas. Tu te quitas sossegado na prisión e não te durmas um minuto solo. Os camaradas te buscarão esta ou outra noche. Non te durmas, amigo. Los camaradas te buscarão.

 

Pelo caminho aberto na pequena floresta de carva­lhos, havia passado o médico, nessa manhã, chamado a extrair uma criança morta do ventre preguiçoso de Joa­na Vaz. A criança vinha negra, engordurada de uma mistura de fezes e sebo. O médico cheirou as mãos por muito tempo, deu uns berros às comadres que o tinham chamado tarde e suou como um bruto a puxar pelo ca­bo dos ferros.

O calor, baixo e ardente, esgueirado pelo intervalo das telhas, juntava-se ao suor dos corpos, ao esforço, à expectativa. A rapariga gemia num ritmo brando, exausta e já indiferente; os seus olhos iam ficando escuros e pi­sados, neles entrava uma paz feita de ausências.

Foi um trabalho bonito, mereceu bem as notas que estavam de lado para comprar a cria ruça da burra do mestre Peres. A comadre do Salvador dissera que pou­co mais se poderia ter esperado, a Joana ia ficando podre. O Pomar respirou fundo, agitou-se, aliviando-se daquele peso que os oprimira, e as mulheres partiram fatias de trigo aos garotos ansiados. O médico, à saída, na rua revestida pelo mato curtido das urinas, disse gra­ças às velhas e às crianças, mostrou-se um sujeito bem-falante. O velho Parra teimou em acompanhar o doutor à vila, substituindo Manuel Rechena, pai da Joana Vaz, que gania pelos cantos o seu nervosismo.

Lá foi, amparando o cobertor e o selim da albarda. O doutor ia alvoroçado da vitória, mal sentia o sol caí­do sobre os corpos como um dardo de lume. Fez per­guntas lisonjeiras ao camponês, falou da calma do tem­po, das nuvens sufocantes, das searas. O velho Parra abriu-se com as desgraças do seu povo, esmiuçando-as como se o médico as ouvisse pela primeira vez. O vis­conde tinha um novo feitor, um rapazelho que dividia por novos arrendatários as terras preparadas pelos anti­gos. A comunidade do Pomar passara de avós a netos, os velhos haviam construído casas numa terra de em­préstimo, haviam plantado vinhas, hortas e árvores. O avô do visconde convidara os camponeses com falas assim: «Melhorem a terra como puderem. Surribem, amanhem, gente boa! O que não vier render às vossas mãos, vai direito aos vossos filhos. Entrego-vos um pedaço de mato, um pedaço de terra brava. É por essa terra que recebo e não por aquilo que sair do vosso braço.»

Isto tinha sido havia muitos anos, no tempo em que lobos e javalis chegavam aos barrocais da vila. O novo visconde e gerações de feitores avaliavam de ano para ano as benfeitorias da comunidade, faziam demorados cálculos de novas rendas, lançavam um tributo ao fruto caído das árvores, às cabeças de gado, às casas negras e fumadas erguidas no chão alheio.

O médico interessou-se um pouco pelo queixume do velho, embora desconfiado de que a conversa fosse um aviso para não esperar muito das algibeiras dos camponeses do Pomar. Lembrou-se de que o visconde o presenteara recentemente com uma dúzia de belos queijos e aconselhou:

— O visconde é um fidalgo direito. Conhece-o?

— Não, nenhum de nós o conhece. Ele aparece por aí de ralo em ralo, num bonito carro, dizem.

— Ê direito. Estou convencido de que ele não sabe o que por aí vai. Já tenho ouvido queixas. Falem com ele, e ia jurar que tudo se resolverá.

O velho Parra meditou longamente nessas palavras e voltou à aldeia com a esperança reacendida. A Joana dormia, exaurida e branca, com a cabeça num mar de suor que as moscas lambiam gulosamente. Uma velha abanava, com moleza, a atmosfera repleta do quarto, e o lenço ia descaindo das suas mãos dormentes.

O velho foi reunir os homens por detrás do forno, enquanto os gravetos estralejavam lá dentro e o fumo se agachava no ar parado.

— A gente devia era falar com o homem, foi o con­selho do médico.

— Morra quem se negue! — reforçou, com entu­siasmo, um dos moços que tinha ido à cidade, às sortes, e vira gente de muito preparo. — Ele não saberá de metade destas ciganices e ladroagens. Ainda no domin­go, o Peres me contou que o feitor roeu a palavra no arrendamento da Fartosa. Apareceu um cigano a ofe­recer mais quatro fanegas e o feitor roubou a terra ao Peres.

— E a terra já estava surribada.

— Tinha estrume.

— Vamos falar com o homem!

— E quando, gente?

Um velho aproximou os joelhos nodosos e ficou num equilíbrio em arco, teso e duro como se as juntas estivessem talhadas em pedra.

— A gente saberá falar com um homem daqueles? Ele lembrava-se do tempo do antigo visconde, um senhor imaginário que vivia numa casa grande de por­tas fechadas e que só os feitores conheciam. Tinha uma capela nos jardins para ouvir missa a sós com a família.

— Um homem daqueles é um homem que tem as mesmas partes que vossemecê tem.

O velho cerrou os olhos tímidos. A vida e aqueles rapazes que conheciam estradas, cidades, que falavam arrogantes com o chapéu na cabeça, enxotavam-no para o seu mundo morto. Retirou as mãos do queixo afilado, escondeu-se entre os outros velhos.

O velho Parra esperava que o filho viesse por aí ani­má-lo na resolução da comunidade. Teria preferido pe­gar numa espingarda e enfiar as balas no visconde ou num desses bandidos; encará-lo de frente, às boas, seria mais heróico que um crime: seria o mesmo que o pa­dre o convidasse a expor pessoalmente uma queixa a um santo de merecimento. Como seria ele a enfrentar um fidalgo?

Foi por tudo isto que estremeceu duma invencível cobardia quando avistou ao longe a poeira revolteada pelos cascos bravios do cavalo do feitor. O feitor mon­tava um belo alazão e refreou o galope da montada lo­go que penetrou na floresta de carvalhos. A brisa e as folhas das árvores coavam a dureza do sol. O cavalo, brilhante de suor, ia desfazendo a marca das passadas lentas da mula do médico.

A Primavera tinha-se arrastado pelo Verão dentro: dias de céu vário, chuvadas abrindo a atmosfera opres­siva. O Inverno traçara sulcos nas encostas e nos flan­cos da planície. Destroços e sementes arrastavam-se no solo esventrado. Apenas o trigo mais cingido à dureza da terra despontara para a soalheira tardia. As ervas e os fenos, flores roxas, azuis e amarelas, haviam irrom­pido entre as hastes mirradas, enxurrada maravilhosa de cor. A planície tornara-se num prado selvagem. Os fei­tores, desperdiçado o custo das mondas, abandonavam as searas ao acaso do tempo.

A floresta anunciava-se no coração da planície pelos raros carvalhos, sem rama e sem braços, entre a margaça que esganava as sementes. Depois, repentinamente, o chão atufava-se de musgos, fenos, arbustos floridos, seiva livre.

O feitor cavalgara toda a manhã. Vinha com os ner­vos eriçados de calor, sufocação, enfado. O Verão tar­dio entrara de rompante, à bruta, ensopando tudo de lassidão, e a planície era um mar colorido, de ervas ruins, um mar de desânimo. As colheitas seriam as mais pobres até onde chegava a memória dos homens. Trigo definhado de meses de chuvadas, ressequido pelo sol súbito e devorador. Falava-se dos tempos em que a terra, estuante e farta, enchia patrões e feitores; ele, Quírio, viera já numa época em que a gleba produzia à for­ça de adubos e blasfémias, em que os patrões espiavam todo o centavo gasto ou recolhido.

O velho Parra sentiu que o feitor iria conhecer-lhe na cara a resolução tomada nesse dia pela comunidade, a revolta, a ira, o ódio de alguns que já tinham perdido o jeito resignado. O ressoar lento do cavalo correu com a aragem pela clareira da floresta e o Picanço desatou numa ladração furiosa e em correrias por várias direcções. O velho cortou entre as sebes, a tempo de amansar o cão. O feitor desmontou-se, limpou a testa embacia­da, ferida do vinco do chapéu de abas largas, e quedou um pedaço, ofegante. Passou a língua pelos lábios se­quiosos e disse:

— Chiça para o tempo! Também por cá se vê mar-gaça no trigo?

— É como diz, senhor Quírio. Isto é geral. Ano ruim.

Passou os dedos pela cara como se tentasse dissimu­lar o que nos seus olhos se lia do acontecido no Pomar.

— É a vossa leria, sempre; aqui no Pomar a seara é todos os anos bem grada.

— Mas este ano é tudo o mesmo... O tempo foi mau para todos: tivemos aí dois meses com as águas na seara.

— Foi um tempo velhaco — disse, concordante e enfastiado.

O Picanço não deixara de rosnar à volta do grupo, enxotado de todos os lados pelo dono. Foram andando a pé e o cão preparou um salto sobre o intruso.

— Enxote lá o bicho, que não estou para festas. O cão é seu?

— É meu, é de todos lá no Pomar. Fora daqui, guarda! Chut, maldito!

— Estou a ver que há-de ter vida curta se topa al­guém com pouca paciência.

— Aqui não vem gente...

— Sim, vocês são pr'aqui uns gentios.

A terra, fofa, retalhada pelo arado em talhões gros­sos e ensopados, afundava-se sob os pés.

— Vomecê tem aqui um pedaço bom de lameiro; até parece milagre haver um bocado assim com esta se­cura de tempo. A água nasce aqui mesmo ou é da mi­nha vista?

— A gente também lhe parece, senhor Quírio. Pas­se vossemecê à volta com a besta que nestes sítios das águas às vezes os cascos vão ao fundo.

As suas palavras, macias, amedrontadas, chegavam-lhe aos ouvidos como saídas de outra boca e ele dese­jaria mordê-las. Parou num repente, capaz de estoirar de vez, mas considerou a tempo que o feitor não o ti­nha provocado.

— Isto é bom, de verdade. Dava um rico batatal. Vomecê tem isto a pousio?

— Qual, senhor Quírio! É o melhor pedaço do Po­mar. Aqui temos o verde.

— Mas parecia... Só há ervas...

— Isso é agora, tivemos precisão de pasto.

— É, vocês governam-se.

Picanço ladrava como endemoniado, arreganhando os dentes, raivoso; só muito dificilmente o dono o mantinha em respeito.

— Faça calar o raio do guarda, carago! Esta ladraição dá-me cabo dos ouvidos. Ainda lhe dou uma ensa-boadela. — O camponês correu o guarda à pedrada, afugentando-o para lá das moitas. — Isto por cá vai le­var grande volta — continuou bruscamente o feitor, com uma entoação entre maliciosa e imperativa. — Há mais gente por aí com precisão de se governar neste ar­rendamento; isto é bom e grande de mais para tão pou­cos. Vossemecês pegaram nisto como se fosse vosso. Pode lá ser que a renda seja quase a mesma de há cin­quenta anos! Boas vinhas, bons lameiros, como este, isto, bem espremidinho, vai governar um bom par de casais.

O camponês baixou a cabeça. O outro tinha lido tudo na sua cara e estava a atormentá-lo com sadismo. Não podia imaginar que alguém falasse assim a não ser por maldade. Quando ergueu os olhos, olhos que ele fazia agora suplicantes, o feitor insistiu:

— É ou não é como eu digo? O Pomar é o melhor bocado do senhor visconde.

Sentia-se tão espantado daquela ameaça, como se a ouvisse pela primeira vez; e o espanto misturou-se com essa cobardia acumulada em gerações de servidão.

— Mas, senhor Quírio, o senhor D. João, que Deus haja, dizia que a gente fizesse disto uma terra boa. Pranta vinhas, arbes, surriba, que o ganho é teu. A ren­da ninguém a aumentará — era como ele animava todos os homens daquele tempo. Eu tenho ali o meu forno, e ainda a minha casa, a minha vida. Ninguém pode dizer que um Parra não é honrado. É o caso.

— Vá vomecê pedir-lhe contas disso na cova. As or­dens são dadas por quem pode.

O velho Parra mal o ouviu. Lembrara-se entretanto de que o Pencas era também um Parra e o maior safar­dana de Montalvo. Já não poderia gabar-se da honradez de todos os Parras. : O cão veio sorrateiro e apanhou com um pontapé no focinho antes que pudesse lamber a mão esquecida do dono.

— Isto é um cão com mau fim. Até o bicho julga isto seu, já viu? Vomecês estão bem ensinados... Estou para ver se alguém vai tratar mal os novos arrendatá­rios. E enquanto não se armam cómodos, têm de ajeitar o pessoal nas vossas casas.

— Mas são nossas, senhor Quírio!

— Eu não chamo meu àquilo que foi feito nas ter­ras dos outros.

Agora o caminho, reencontrando a planície nua, sem uma protecção, encharcava-se de sol, e o suor borbulhava na testa dos dois homens. O camponês sentiu o rosto esbraseado. Abotoou várias vezes os botões nas casas do colete, o que nele indicava preocupação. Ficou a procurar palavras inúteis. Tinha a boca seca como cortiça, um rolo subindo e descendo pelas goelas, não dava pelo chão escaldante sob os pés; lembrava a todo o momento os camaradas jovens e espevitados da co­munidade, prontos a impor razões ao patrão desconhe­cido. Ele era apenas um velho palrador. Previa um fim negro para aquele negócio.

Picanço estudava o modo de alcançar uma das patas traseiras do cavalo, por isso cirandava de um lado para o outro, até que o alazão o afastou com um coice.

— Eu acabo com esse cão!

O velho Parra jogou-lhe com alma uma pedra; tam­bém ele sentia já no guarda um estranho impertinente e talvez culpado dos atritos com o feitor. Esse tinha a bo­ca chupada de dureza, e disse de um modo que conven­ceu o velho:

— Acabo com o cão se lhe ponho mais a vista em cima.

— Deixe, senhor Quírio, ele levou a sua conta. Não volta mais. Os cães daqui estão pouco acostumados a gente de fora. A estrada é longe. Só esta manhã é que tivemos o doutor no Pomar; veio assistir à filha do Ma­nuel Rechena.

— Doente...? — perguntou com desinteresse. — O ca­lor aperta tanto que não se pode tomar ar. Abafa. Vossemecê tem água boa por aí?

— Fresca é ela, senhor Quírio. A rapariga teve um crianço.

— Se calhar, é das que dão febres. Um crianço?

— Custou a nascer. A água deu febres o ano passa­do. Houve casas com cinco pessoas de borco ao mesmo tempo.

— E laranjas?

— Talvez. As mulheres guardam sempre algumas para uma doença.

Daí a pouco passariam a ribeira, nessa época quase reduzida a um areal; e, depois da ribeira, viria o pri­meiro grupo de casas e hortas. A proximidade da água, estagnada em pequenas lagoas, os mosquitos formavam nuvens de voos sincopados e rápidos e alguns faziam círculos em volta dos moscardos que sorviam a pele húmida do cavalo; outros procuravam o suor dos ho­mens e a sua presença tornava mais insuportável a cal­ma sufocante. Picanço não desistia de rosnar de longe, agora mais amolecido do calor, sacudindo as orelhas às ferroadas da moscaria. O velho Parra, para desviar nou­tro rumo os propósitos do feitor, falou mais longamente do cão:

— É um bom guarda. Teimoso, ladroento, mas um guarda fiel. De uma vez foi ele que topou um ganapo que se meteu pela serra e que andou perdido de malha­da em malhada.

— É bom habituá-lo com gente. Quando vier o pessoal novo para aí, alguém o amansa, digo-lhe eu.

Raios! Se aparecesse aí António Parra, nesse mo­mento!... Ele não consentiria que humilhassem o pai. Era um Parra que estava ali a deixar-se espezinhar.

O fogo rebentou-lhe do peito, cegou-o, e o velho endireitou-se à frente do feitor.

— Senhor Quírio, carago!

— Que é lá isso?

E uns olhos vidrados, friamente calmos, enfrenta­ram o destempero do velho. Um muro inviolável espe­rando as ondas moles de um rio. Só minutos depois, com o corpo trémulo, o velho disse:

— E quando vêm eles, senhor Quírio?

— Breve. Vocês não tratam a terra. Isto dá mais três partes.

— Não diga tal, senhor Quírio!

O cão saltou, de súbito, à traição, com os olhos ne­voentos de ferocidade, abocanhando as calças do feitor. Soou um tiro, outro, galope doido do alazão pelas ve­redas, e o corpo do guarda ficou a estrebuchar na poei­ra, espantando os mosquitos sobressaltados.

 

Alguns dos novos ainda não conheciam a vila. Viam-na de longe, com os seus penedos negros, a sua nudez selvagem, atraindo as nuvens e o voo dos milhafres. Pa­ra eles, a caminhada pela planície, a perspectiva de um dia diferente que terminasse nas tabernas do adro, da­vam-lhes uma excitação alvoroçada. Havia custado reu­nir os homens, que escondiam a hesitação em serviços de nada à volta das casas: partiam lenha, remexiam as pocilgas, pesavam os cevados com os olhos.

O velho Parra coçara as pulgas do corpo toda a noi­te, a ideia de encarar novamente o feitor transtorna­va-o. Iria tirar um desforço das humilhações. Espetar-lhe os dedos pelos olhos dentro. Qualquer coisa assim. Só uma briga de morte lhe devolveria a paz. Quedara-se toda a manhã, obstinadamente, sentado num cepo, em frente da porta da casa, fazendo reluzir o cano da arma. Ali estava a pólvora para abrasar as mãos que ti­nham calado para sempre o Picanço.

Manuel Rechena veio desculpar-se com o estado da filha, cujo ventre exsudava um fedor de podridões; ou­tros tinham a terra a alqueivar, o gado com malinas, la­drões no montado, a mula coxa. O velho, às horas com­binadas, apenas juntou um grupo escasso e vacilante.

Silenciosamente, pesados, como num enterro, atravessaram as veredas da planície. Os moços sentiam pejo em destoar da gravidade reflectida no rosto e nos gestos dos velhos. As lufadas de vento suão erguiam a poeira para o céu e os remoinhos corriam vertiginosamente pelos restolhos.

Horas depois, a comunidade do Pomar reunia-se no largo interior da casa do visconde e a maioria sentou-se em silêncio, de braços caídos, à espera que o acaso fi­zesse aparecer alguém que lhe adivinhasse as intenções. Àquela hora, o pátio estava deserto. A água barulhava de um pequeno chafariz, uma parelha de mulas fazia por soltar-se das cordas e refrescar-se na pia do gado; pelos campos, para os lados do barrocal, grunhiam os porcos. Um homem entrou com um balde de leite e fi­cou pasmado a olhar o ajuntamento. O velho Parra saiu do grupo e perguntou:

— Vomecê é da casa? Sabe dizer se podemos falar com o senhor visconde?

O homem olhou aquele preparo de gente com o surrobeco dos domingos, alguns com a gravata dos dias de revista no quartel, e sorriu com irónica indulgência.

— Eu sei cá dele! Bem pergunta vossemecê, mas o patrão nunca sabemos onde ele pára. Se mal pergunto, a que vêm vossemecês?

— Um negociante passou por lá a dizer que o se­nhor visconde vinha hoje à vila, dizem que há uma fes­ta com a música. Nós somos do Pomar.

— Vinham à festa?

O velho pôs-se logo desconfiado e disse qualquer coisa a meia voz. Um dos moços inquiriu de mau modo:

— Mas vomecê sabe ou não sabe?

Então abriu-se uma porta do corpo mais baixo do prédio e uma criada da casa desceu os degraus até ao grupo.

— A senhora manda perguntar o que desejam vos­semecês.

— Queremos falar com o senhor visconde.

— Não está cá. Aqui é onde mora o senhor feitor.

— Mas um homem foi dizer que o patrão vinha ho­je à vila.

— Vomecês foram enganados. Donde são?

— Do Pomar.

Do Pomar. Ela encarou-os como a criaturas de uma raça gentia. Os peraltas da vila falavam do pessoal do Pomar como de porcos-bravos da serra.

— O senhor Quírio está em casa?

— Esperem que ele acorde da sesta.

Agora que o pátio ficara deserto de estranhos, o ve­lho sentia-se inquieto como nunca; começava a sentir o corpo moído, como se lhe tivessem batido: essa espera roubara-lhe boa parte da coragem. Talvez fosse melhor voltarem outro dia. Procurou a sombra do celeiro, en­costando um cotovelo a um arado, e disse aos mais che­gados:

— Estou a pensar que já nada fazemos aqui.

Era tarde, porém, para retomar o caminho da planí­cie: o feitor surgia à porta de casa, esfregando os olhos entontecidos da luz. Avançou até eles com as mãos apoiadas na testa, coando a luminosidade.

— Então..., que temos agora?

Olharam uns para os outros e depois todos se fixa­ram no velho Parra. Ele percebeu que confiavam na sua decisão. Um Parra, rodeado de testemunhas, não podia recuar.

— Vínhamos a uma fala com o patrão.

— O patrão agora sou eu. Vamos, que desejam?

— É dos arrendamentos...

O feitor bateu com o chicote curto nas abas das cal­ças e riu com cinismo.

— Voltamos ao mesmo?... Isso não vos adianta, al­minhas.

— A gente não pode consentir — saiu uma voz lá detrás.

— Consentir?! Ele é isso? Que braveza de modos! Quem vos ensinou tão bonito sermão?

— A gente tem direitos — e o velho Parra subiu de tom.

— Direitos? Que direitos são esses? — O feitor pôs-se a coçar o queixo com a unha do polegar, entre gozoso e pensativo, e depois os seus olhos estreitaram-se: — Ouça lá vossemecê, Ti Parra: não tinha um per­ro refilão que me lambeu as calças? Tem lá mais dessa criação? Pois vou mostrar-lhe o que é um bicho desses e pra que serve quando os galfarros nos entram em casa a falar de direitos...

Os homens sentiram-se aparvalhados de tal leria e pensaram que o homem estaria borracho; apenas o ve­lho Parra se tornara lívido, apesar do sol e da confusão, afilando o rosto como se estivesse aguado de fome.

O feitor sumira-se por um dos portões e quando os homens conseguiram um pouco de reflexão para se in­terrogarem viram-no reaparecer ladeado de dois molorros. Os camponeses compreenderam imediatamente a ameaça e serviram-se das botas duras e ferradas e dos varais do carro da parelha. O feitor, com os olhos esga­zeados, atiçava um dos cães ao velho Parra. A sua face congestionada tinha fuzis de loucura. As criadas e a se­nhora surgiram à porta, aos gritos, os porcos roncavam e grunhiam e portões abriram-se para gente próxima que vinha acudir ao alarido. O velho sentiu, de súbito, um rasgão na sua carne. Um dos molossos conseguira abocanhar-lhe a perna. Pôde ainda safar a navalha do bolso, abri-la, enquanto a pele de todo o corpo se tran­sia de um suor espesso e gelado.

Mergulhou a lâmina no cão até ao cabo. O feitor ergueu o chicote sobre o camponês. Por fim, tudo se tornara confuso na cabeça do velho: a planície era um turbilhão de poeiras, enevoando as ondas de trigo, o Pi­canço rebolava-se nas ervas, golfando espumas de agonia, o soberbo alazão corria com o vento quente pelas moi­tas da floresta, um galho florido atravessado nas nari­nas, e, por debaixo dessa neblina dos sentidos, uma lava de insânias e sofrimento. A dor armava-lhe o braço da navalha e ele golpeava ao acaso, rasgando veias de san­gue e de ira, enquanto a chibata lhe fustigava o dorso injuriado. Por último, deixou de a sentir. E também a sua mão justiceira se esvaíra sobre o corpo já inerte do molosso. Ia ficando lasso, insensível, a consciência a dissolver-se nos prados, nos trigos, nos carvalhos, na terra fofa a alumiar-se de um sol radioso. O Pomar emergia dos pesadelos. Um Pomar livre, de gente livre, tendo à frente os Parras a festejarem-se com canadas de vinho. E sempre o alazão de asas ao vento e galho flori­do atravessado nas narinas. Corre, alazão.

A vida escoava-se com brandura. Picanço vinha lam­ber-lhe o lume das feridas. Era, finalmente, paz e libertação essa descida a uma irrealidade suave e melodiosa, como se a navalha houvesse trespassado, para sempre, os cães e os homens raivosos de todo o mundo.

Pencas, nesse mesmo dia, foi duas vezes à presença do juiz. Não compreendia que tanta gente se incomo­dasse com a história do jogo, agora que todos tinham restabelecido bons laços de camaradagem e que nin­guém falava já em dinheiro e facadas. Aqueles senhores a ralarem-se com um roubo, um pequeno roubo como tantos, coisa que estava sempre a acontecer numa socie­dade de dois ou três amigos necessitados! É certo que as feridas ainda o molestavam; mas o repouso e o acon­chego da prisão, entre novos camaradas que também gostavam de cartas, recompô-lo-iam depressa. Depois das conversas com a justiça, e confortado com uma ti­gela de feijão, dormira doze horas seguidas.

O dia seguinte amanheceu pardacento. Quem viesse das serras encontraria a vila búzia, aninhada numa cova de grisalhas sonolências. O Pencas acordou sem desejos de movimentar as pernas ou os braços. Apetecia simplesmente olhar o céu e as casas tristes e adormentar o cérebro nessa contemplação erradia. Interpor entre os sentidos e a vida uma bruma de apatias. Havia muito que os camaradas da prisão estavam abraçados às grades, a cabeça esmagada entre o espaço livre, furando-as com o seu desejo de liberdade; enfiavam os ossos até doer, pediam cigarros, diziam graças às raparigas e descobriam coisas inesperadas nesse mundo proibido. Por fim, de novo meditabundos, voltavam às tarimbas.

Pencas esquecera as promessas de Clemente. Nem pensava na tentação de uma fuga. Da outra vez que es­tivera preso também se adaptara bem: havia comida a horas, um cigarro quando calhava e amigos reinadios; só depois que os companheiros foram saindo e a humi­dade rejuvenescera o bolor das paredes, o visitara uma incómoda nostalgia dos desafogados espaços de Mon-talvo. Então alguma coisa dentro de si se foi sentindo esmagada nas quatro paredes da cela. Por último, resta­ra-lhe a companhia de um velho. Tinhas as pernas cha­gadas e as varejeiras investiam da rua a sugar-lhe as úl­ceras. Uma noite em que se deitara sobre o estômago, durante o sono agitado imaginou que as chagas lhe ro­çavam os beiços. Toda a vida lhe ficara esse sabor na boca, salgado, repelente. A partir daí, a alucinação re­petiu-se com frequência, levando-o ao gesto inútil e desesperado de sacudir as grades e a prolongar as vi­gílias até que o sono viesse surpreendê-lo ainda de pé. O pesadelo durou por muito tempo. Quando o soltaram, Pencas tinha apenas olheiras e umas pelancas desviçosas.

Foi o mulato que, ao fim da tarde, falou numa fuga. Era um homem de horizontes livres. Bateu nas tábuas ruvinhosas do soalho, experimentando-lhes a resistên­cia. Rasgou uma fenda com a navalha; e, através dela, escoou-se um cheiro a estrume: debaixo da cela havia uma estrebaria com um portão para a rua. Para a rua! Mas o tecto devia ser muito alto: a cela ficava acima do primeiro andar fronteiro; quem saltasse cá de cima cor­ria o risco de partir as pernas. O mulato ideou uma corda feita de tiras de roupa, mas qualquer dos presos vestia camisa já no fio e as calças não se podiam dispen­sar quando tivessem alcançado a rua e os campos. Todos os presos olharam com alvoroço essa fresta fedorenta.

Então, lá de longe, as promessas de Clemente chegaram à memória do Pencas. Que crédito lhes poderia dar? Promessas cheias de vinho ou dissimulando obscuros desígnios? Pencas, agora, desejaria poder confiar nelas. Clemente era homem de malas-artes, que acharia modo de os libertar da choça e das encrencas.

O mulato irritava-se com as dificuldades que se iam deparando: alargava ainda, com impaciência e já sem finalidade, a fenda aberta no soalho, parecia um gato assanhado. Pencas apreciava-o do seu canto; via-o esfa­quear a madeira, ratada do caruncho, como se esfaqueasse alguém de carne e osso; comparava a sua expressão es­gazeada com a de um gato. Um gato assanhado. Por fim, como os outros protestassem, o mulato cobriu a fenda com palha; mas, nessa altura, Pencas já estava a dormitar, embora percebesse ainda, coadas pelo sono, as pragas do cesteiro. Este era um mau companheiro: rezingão, insultando os amigos, com prosápias de cavalheiro respeitável.

O mulato, desiludido, encostara às grades o peito escuro. A lua derramava-se pelos telhados, desenhando no meio da cela, violentamente, os dedos negros das grades. A noite ainda não se desoprimira do dia túrgi­do, mas lavara-se dos fumos e dos cirros. Era agora uma alba antecipada. Por fim, também ele adormeceu. Lá fora restolhavam as vozes dos tresnoitados, ama­nuenses que regressavam a desoras do clube ou foliões que nunca davam por finda a seroada. Às vezes ouvia-se a porta de uma bodega escancarar-se com estrondo e alguém, de passo oscilante, vinha urinar na parede da cadeia. Até que o silêncio se apoderava das ruas.

Pencas acordou cedo. Antes dele, porém, já o ces­teiro recomeçara os seus resmungos. Gostaria de lhe lançar na cara o que ele realmente era: um figurão in­comodativo, de uma outra raça, a quem a moina dava mais fastio que o trabalho.

Madrugada ainda, a camioneta despejou no largo uma carga de camponeses. A taberna do Lucas espera­va-os: uma luzinha lôbrega no antro escuro. O Lucas plantava-se à porta a desfazer as hesitações dessa gente bisonha. Os camponeses sentiam-se bem ali; era um lu­gar desemproado onde se estava à vontade, como nas tascas das aldeias. Um homem encontrava lá dentro a familiaridade hospitaleira de capotões e botas ferradas. Um pé fora da porta e a vila intimidava-os. Na locanda do Lucas aguardavam que o comércio destapasse os portais, que os senhores da Câmara e da Fazenda saís­sem à rua. Todos estes davam tempo a que se comple­tassem as compras nas lojas: encomendas dos vizinhos, solas, cordas, umas bolachas para os ganapos. Os cam­poneses, calados, lentos, ouviam o preço, experimenta­vam a segurança dos artigos: desistiam para voltar de novo, demoravam-se ainda entre a rua e a porta, desen­corajados com o cálculo das suas posses. Os lojistas sa­cudiam a poeira das fazendas, acenavam lá de dentro: «Então não vai o artigo? Aproveite, homem de Deus!»

Alguns não entravam no Lucas, apesar de o corpo pujante do taberneiro os intimar a afreguesarem-se: fi­cavam-se pelos muros do largo, pacientes, esperando que a gente da vila começasse o dia. Eram os únicos a chegar-se às lamúrias dos presos, avançando um cigarro ainda com a mortalha lambuzada ou uma mancheia de passas de figo. Depois, já com o sol apoiado às paredes, surgiam, enfim, os funcionários. Tossiam, fungavam, arrastando preguiça e catarros crónicos: eram eles os senhores dos destinos do povo, governando-lhes as li­das com papéis.

A cadeia tinha a vila na mão: tribunal, Câmara, ven­das, cafés, agrupavam-se à roda da praça e de todo o concelho as vidas convergiam para esse adro de pode-rios e sornices. Um miradoiro donde se dava fé de tudo o que acontecia ou se mexericava. Fossem pregões de almocreves, ladainhas de passantes ou enredos de soa­lheiro, nada escapava aos ouvidos e aos olhos folgados dos presos. A praça era o palco do burgo. O chefe supremo dessas vidas atravessava-a às vezes antes de almoço, subindo os degraus da Câmara numa hora em que neles se apinhavam os aldeões, e os ociosos ali plantados ao sol fagueiro da manhã ou à aragem do tempo cálido descobriam-se com ênfase; só então os la­bregos compreendiam que deviam desimpedir a passa­gem àquele senhor a quem até os peralvilhos saudavam como a um quinteiro pisando a sua quinta. Ele curvava discretamente o pescoço magriço, investigando à pressa as pessoas mais parcas na reverência. Nessa exploração zelosa mas sonsa via-se-lhe mais o nariz rapace que os olhos furtivos.

Com ele, ou depois dele, chegavam sujeitos expe­rientes, lavradores, padres, comerciantes, seus compar­sas na administração da comarca. Gente de teres e ha­veres e com o gosto do mando. E o sentimento de que esse mando era um privilégio que ninguém lhes poderia contestar, quer fosse usado sobre as coisas ou sobre os homens. O mundo era o burgo. E se este lhes perten­cia, o mundo também. Contudo, por detrás, havia ou­tros senhores ainda maiores, inacessíveis como majestades, que nem sabiam até onde a campina cabia dentro dos seus feudos. Dispunham dos caciques, afinal, como estes dispunham do povo.

Entretanto, em redor, a charneca multiplicava gados e sementes, conhecendo o suor dos camponeses e desconhecendo as usuras e os desmandos da gente da vila. As árvores, as searas, os prados, glorificavam a paixão e o esforço em cada ciclo da sua fecundidade, eram uma odisseia empolgante todos os anos renovada.

Às cinco horas, o largo esvaziava-se. A agitação dei­xava atrás de si um silêncio de modorras. Os florescen­tes negociantes, os caudilhos, afluíam ao clube a deleitar a preguiça, e os camponeses partiam na camioneta da tarde. O sol grudava-se às frontarias brancas; a bri­sa, em lufadas, trazia a presença afogueada da campina. Em toda a atmosfera havia o sono irresistível e lângui­do das vilas.

Pencas, nessa noite, adormeceu a custo. O mulato tornara-se melancólico; já todos se haviam deitado e ele ainda velava junto da janela, roendo o sabugo das unhas. Novamente o luar, a noite espessa e, estirando-se no chão da cela, os braços sinistros e agigantados das gra­des. O mulato espiava o sono dos companheiros. Apenas o Pencas o enganou. Também este meditava. Que estaria por detrás das promessas de Clemente? Sentia-se inquieto e a sua pele áspera afrontava-se pela primeira vez com o assalto das pulgas. Pois não era estranho que o Clemente se ralasse com a sua libertação? Estranho e confusamente ameaçador. Adormeceu por fim.

Mas um sono povoado de maluqueiras: nele havia um Clemente felino e horrendo, corpo de réptil e olhos de gineto, as escamas dos dedos em jeito de serrote. E bem que o serravam, esses gatázios que não eram de criatura, bem que lhe serravam as carnes e o tutano. Um som raspado, monótono, que fendia em dois cada nervo.

Acordou com a aflição a vir-lhe das vísceras à boca. O som, no entanto, persistia. Persistiu até que Pencas pôde conciliar o pesadelo com a realidade.

O mulato, sobre as tábuas, recortado pelo luar, alar­gava a abertura do soalho. Os olhos de ambos encon­traram-se. Sem uma palavra, o mulato cobriu de novo a buraca e deitou-se. Mas um e outro ficaram de vigia. Pencas, muito tempo depois, como se tivesse retomado o fio de uma conversa interrompida, balbuciou:

— O Clemente prometeu vir.

— Quando?! — perguntou o outro, erguido nos cotovelos.

— Não sei. Por estes dias, talvez hoje.

Após essas palavras, adensou-se um silêncio expec-tante. O mulato monologava, como se discutisse consigo próprio. Pencas voltou a dormitar, mas alguém, mais tarde, lhe abanou o corpo e um bafo morno chegou-lhe à boca. Não tinha bem consciência se era um novo pe­sadelo, mas acabou por ouvir as surdas pancadas no soalho, cautelosas, surdindo ali mesmo debaixo do seu corpo. E uma voz, um lamento:

— Pencas... Pencas...

O mulato puxou-o pelos ombros até lhe endireitar o busto entorpecido.

— Acorda, besta. O teu amigo está a dar sinal. A gente vai pisgar-se sem avisar ninguém, entendes?

Pencas coçou os olhos remelosos e ficou ainda a ou­vir: «Pencas...» e o bater ritmado sob os seus pés.

— Mas ele só chama por mim...

— Chama por um raio que te parta! Ou saímos am­bos, ou apodreces aí toda a vida. Ambos, entendes bem? — Olhou o vulto esgalgado do cesteiro e disse com rancor: — Vamos dar uma lição àquele sacristã.

O buraco ainda não dava passagem a um corpo. O mulato, por isso, debruçou a cabeça, segredando pa­ra baixo:

— Eh, camarada, espere um pouco, que isto acaba-se já.

Pencas descobriu um prego enferrujado e torcido, que o mulato aproveitou como frágil alavanca. Santiago e o cesteiro, apesar do seu sono de chumbo, remexiam-se nas tarimbas uma vez por outra, obrigando-os a interromper a tarefa. Por fim, sempre acabaram por deslocar duas tábuas. Pencas enfiou uma perna, mas o compa­nheiro segurou-o.

— Quem se raspa primeiro é cá o amigo. Tu e lá o de baixo podem ser trastes para tudo.

— Palavra de honra. Eu seja cego se...

— Cala o bico. Eu ajudo-te depois no salto.

No rés-do-chão alguém subira acima de qualquer alfaia e estendia os braços para a cela. O mulato ainda teve um arrepio de desamparo quando esses braços ce­deram sob o seu corpo. A estrebaria era uma confusão escura e nauseabunda. Não se distinguiam os rostos. Foi o Pencas que, à saída, reconheceu o companheiro que os libertara. Recuando aparvalhado, exclamou:

— Mas é vossemecê, Calhica!

 

Os olhos vinham deslumbrados da luz da campina: um passo além da porta, atordoavam-se com o negru­me espesso do quarto. Mas depois, lentamente, o halo esmaecido das velas descobria o círculo de pessoas sufocadas. Suspiros, tosses, um ciciar monocórdico de re­zas. Apenas os garotos faziam gestos de impaciência, já gasto o assombro pela imobilidade misteriosa do cadá­ver e pelo voo guloso e fantástico das moscas nas som­bras da parede.

O Pomar estava ali, vestido de luto, exalando fadiga e suor. As velhas tinham orações intermináveis, arquejavam ao fim de cada padre-nosso e depois lamenta­vam-se. Todos se revolviam quando alguém transpunha o umbral, obscurecendo o rectângulo de luz colado à entrada. As abas dos capotes de luto, ou os xales pesa­dos dos que procuravam assento junto do morto, alvoriavam fugazmente a ambiência em ondas de calor e fu­mo. Havia então um rumor de ansiedades, como se se tivesse esperado um libertador.

A mãe de António Parra estivera horas seguidas junto do cadáver, hirta e seca, tentando compreender o imprevisto. Vira chegar o seu homem estendido numa padiola, esvaziado do sangue ruim e de olhos repousados numa expressão de paz. Aquela face resignada não podia ser a do marido; não era dele esse corpo submis­so, que horas antes partira a caminho da vila, ameaçando dar cabo de uma dúzia de ladrões. Tudo isso era de­masiado repentino, ilógico. Ela não podia tirar de si um grito de dor; grito, choro, um sinal de desespero para que os camponeses lhe pudessem avaliar a mágoa. As mulheres iriam indignar-se perante a sua face muda e enxuta. Mas no fundo do seu coração, à medida que as mãos entrelaçadas do morto iam ficando sempre mais frias e dessoradas, ela sentia um sofrimento agudo, tan­to como uma obscura mistura de mal-estar e de alívio. Rodeada de estranhos vorazes, achava-se confusa para decifrar os acontecimentos em toda a sua significação. O Pomar, os vizinhos, a gente da vila, estavam ali de­vassando a sua casa e o seu coração; vinham ocupar os lugares e os gestos da família. Restava-lhe, como em to­da a sua vida passada, o refúgio do forno. E para lá foi, enquanto os homens, negros como morcegos, despiam as roupas ensanguentadas do que tinha sido o seu com­panheiro de tantos anos. Um companheiro preguiçoso, rezingão, cruel. Agora, porém, que gente alheia se apos­sara do seu corpo, com a facilidade de abutres dispondo do cadáver de um leão, abria-se um vácuo nos hábitos e nas raízes da família: a sua falta tornava-se espantosamen­te real. A velha lutava contra essa dor inesperada. O chão do Pomar, abalado por ameaças, abalado pela morte, estremecia também. Ela sentia, por instinto, que a terra ficava desprotegida e gelada, um chão devastado, onde iriam crescer as ervas do silêncio e do abandono. O ve­lho precisara de morrer para que, enfim, a sua presença avultasse sobre as coisas, impregnando-as de paixão. António Parra, sumido no extremo do quarto, para que ninguém se lhe dirigisse, estava de olhos inchados. Também ele nunca poderia supor que essa morte lhe custasse tanto. Quando os homens tinham vindo entre­gar o morto à família, um velho absurdo amansado numa padiola, o filho cerrou os punhos contra a parede. Toda a personalidade do velho, os seus ridículos e a sua heróica rebeldia, apareciam subitamente clarificados. António Parra olhava-o alucinadamente por entre o nevoeiro dos olhos, e apercebia o despertar de um tumul­to. Um fragor que vinha de longe, um caudal que iria rebentar contra o mar ou contra muralhas. O cadáver lá persistia, violáceo e abjecto, camponeses esperavam or­dens, silenciosos como borregos. Esta imagem imobili­zava-se no pano de fundo da sua revolta. O velho e es­ses borregos. Eles eram a cobardia. A mesma cobardia que o deixara ficar de lado, enquanto o pai oferecia a vida por todos eles.

Passou os dedos pela confusão de lágrimas e deva­neios e saiu intempestivamente para o quintal. Os camponeses seguravam de novo a padiola, para deitarem o corpo sobre o catre; as mulheres gritavam, cercando a casa; um formigueiro de gemidos e de rostos conven­cionalmente pesarosos, invadindo todos os cantos.

António Parra correu a cozinha e o palheiro; depois afastou essa ronda em volta do morto e foi descobrir a arma do velho Parra por debaixo do catre, entre as ba­tatas espalhadas — a arma que estava ali para afugentar os inimigos dos Parras. Dos Parras verdadeiros. Um sussurro de desgraça correu pelo velório e dois homens saíram para impedir o desvario do rapaz.

António Parra saltou a paliçada, cortando entre as sebes. O fim da tarde prolongava-lhe o corpo e a som­bra da espingarda. As suas passadas alargavam-se sem­pre, acelerando-se a cada pensamento vingativo.

Ia tão estonteado que não deu pela aproximação de Clemente.

— Amigo, onde vás?

António apertou a arma entre os dedos. Tinha febre no olhar e sanha nos dentes cerrados.

— Deixe-me em paz.

Mas o outro, apesar da grave placidez do rosto, não lhe saía da frente.

— Amigo, respeito a tua mágoa. Descansa um pou­co, António. Tenho algo a dizer-te.

António afastou-o desabridamente e ainda lhe apon­tou a arma.

— Saia do meu caminho!

— Conheces tão pouco o Clemente, António Par­ra!... A mim, as armas não me põem de lado. Vi já muito disso. Eu ia procurar-te por causa do velho. Foi um camarada dos tesos! Ele abriu um caminho para no-sotros.

António Parra recomeçara a marcha. E Clemente dava grandes saltos para conseguir acompanhá-lo; ar­fando, com o vento a embrulhar-lhe as palavras, falava sempre.

— O velho era um verdadeiro. Um bravo nascido nestas terras ruins, amigo. A sua morte falará em teu coração. Eu me honro em...

Teve de puxar o casaco do contrabandista.

— Pára um momento solo. Pára, conho! Eu vim aqui para o vingarmos. Eu me honro em haver sido um amigo do velho Parra.

António parou, então. Com o peito junto daquele miserável farsante, gritou-lhe:

— Deixe-me, seu lerias, que não respondo por mim!

— Mata-me, António Parra! Mata-me, se o queres. Eu te compreendo, António, mas a tua vingança não pode ser essa. Tenho sido para ti um cão, um miserável cão tinhoso, mereço que me mates, mas ouve até ao fim o conselho de um camarada: não vale de nada matar um cerdo, não vale de nada matar todos os cerdos de Montalvo. Tu ficarias de braços cortados para toda a vida. Teu pai morreu por estas courelas, por estas casas, por todos os camponeses do Pomar; morrendo, ele não pedia vingança para a sua morte; pedia que tu, seus fi­lhos, seus amigos, continuassem lutando.

E, numa decisão repentina, apertou-lhe os pulsos.

— Acorda para o que te chama, amigo!

António deslaçou os dedos que apertavam a espingar­da. E veio um grande silêncio. Aves chegavam de longe, num voo soberbo; algumas descansavam sobre as árvo­res nuas da campina; o dia e a noite misturavam-se no fundo dos vales, sombras cresciam sobre a luz incen­diada do poente, mãos fulvas e esguias que se cruzavam sobre a terra, ofuscando-a. Os ralos saíam das tocas, cães vinham às estradas esperar o regresso dos campo­neses; carros de bois, mulas, jericos, fugiam da noite da planície. O sussurro dos bichos e o afago do anoitecer traziam a presença das distâncias.

Os dois camponeses que perseguiam António Parra haviam especado a uma centena de metros. Assistiam, de longe, a esse duelo de gestos.

António Parra sentia-se já meio quebrado. Derra­mava-se-lhe pelo corpo um torpor de fadigas, enquanto o cérebro começara a serenar. Clemente tinha razão. Os nervos dele não se destemperavam. Mesmo quando mais não parecia que um salafrário que fizesse ofício da imposturice. Mas António Parra queria chegar a uma decisão sem que ninguém o empurrasse; era insuportá­vel verificar que mais uma vez esse vadio lhe dominara os desatinos, como outras vezes lhe soubera dominar as fraquezas. Insuportável.

Clemente fizera-o sentar junto de si. Enquanto en­rolava a mortalha amarelenta, ia dizendo:

— Tu ias por aí fora desaustinado e liquidavam-te. Que adiantavas, António? Ias pisar um verme. Uma coisa mole que deixa apenas nojo no chão. Mas eles mataram teu pai, e que aconteceu? O velho ficou a bri­lhar por estes caminhos. Mais uma estrela que os cega nos olhos. Para nós, todavia, ela ilumina o caminho verdadeiro.

— Clemente: eles mataram meu pai. Eu preciso de...

— Não fales, António, eu te compreendo. Levavas os olhos parvos de sangre: o sangre não deixa ver nada. Tu não precisas de falar. Um dia destes, eles assaltarão o Pomar do povo, o Pomar do velho Parra. Não sentes o cheiro da terra nos teus sentidos? Eles não podem entender que o camponês e a terra são o corpo e a alma de uma mesma pessoa. Virão, to digo eu. Virão depois. Esperam que deixemos que a estrela do velho Parra esmoreça no nosso coração. Mas enganam-se, António; pois não é verdade que não consentirás que ela se apa­gue nestes campos e nos nossos corações? Iremos a Es­panha ao contrabando, andaremos por aí de bodega em bodega, tudo como dantes, para que eles julguem que a estrela se finou e entretanto faremos medrar a esperan­ça. O povo do Pomar sabe agora por que o velho Parra morreu.

António Parra já não o ouvia. Dentro dele, fosse o que fosse rebelava-se ainda contra a melopeia de Cle­mente. Uma necessidade visceral de protesto. Uma ur­gência de fúrias concretizadas. A morte do velho era uma dor que recusava palavras, uma opressão que pedia um alívio imediato e violento.

Inesperadamente, sentiu um doido desejo de se lan­çar à terra e mordê-la. Morder e rebolar como um pos­sesso.

Clemente respeitava-lhe o mutismo, convencido de que as suas palavras estavam a amadurecer no companheiro.

— Voltamos agora um pouco para junto do velho. O crepúsculo engrossava o arvoredo, o céu descia

ao encontro da melancolia pesada da terra.

— Eu te quero abraçar, amigo; eu te sinto finalmen­te junto dos teus. Agora os gatunos poderão vir! O Po­mar e tu os esperam. — Suspirou fundo e acrescentou: — Foi a tempo. Que o povo abençoe a morte do velho Parra. A sua morte acendeu uma fogueira nestas terras safaras. E em ti também, amigo! Uns dias mais e eu, a Calhica, os que te amam, te iríamos chicotear os nervos até pô-los em fogo.

António dilatou os olhos de feroz curiosidade.

— Que quer você dizer com isso?!

— Nada. Apenas isto: teu irmão é um cerdo; traiu nosotros no contrabando. Tu o sabes. A Calhica o foi buscar ao Maranhão. Ele irá morrer no sítio em que traiu e abandonou os companheiros às espingardas da Guarda; irá morrer furado por quem o comprou. Teus nervos precisavam de ser sacudidos, António; precisavam de reconhecer que há muita maneira de trair os ca­maradas e que uma traição não esquece mais.

— Você faria isso, seu pulha?!

— Si. Mas agora o caso não é mais comigo.

— Você faria isso?! — E abanava-o, abanava-o com frenesim, de lágrimas nos olhos, os dentes retesados. Depois largou-o como a um trapo abjecto e escondeu o rosto. Quando se levantou, os seus olhos tinham uma fria determinação. Começou a caminhar de cabeça le­vantada.

Ao chegarem às casas do Pomar, distanciados um do outro, a chaminé do forno dos Parras expelia um fumo ralo, de decadência. A porta do velório, aber­ta, vazava a luz das candeias. Assim vista de longe, na confusão turva das casas, quintais e sebes, era um mo­lho amarelento anunciando a desgraça do Pomar. Os dois camponeses estavam ainda cá fora, a vigiá-los. Os seus capotes eram asas soturnas, adejando no crepús­culo.

— Eu fico aqui fora, Clemente.

— Te compreendo, amigo. Fica, fica longe dessa gente que não deixa respirar o corpo de teu pai. O ar da noite faz bem. — Tirou-lhe suavemente a espingarda das mãos e continuou: — Levo isto lá para dentro. Po­de ser precisa, um dia destes. Eu irei um pouco para a cozinha.

— Na cozinha está minha mãe.

— Yo Io sei. Tu mãe me dará um dedal de aguar­dente: tenho a garganta a arder em febre. Se há passado algo, neste dia em que um homem deu a vida pelo seu povo!

António cuspiu na direcção das árvores, gesto arre­medado do velho Parra.

— Vá, vá beber. Assim que vossemecê me apareceu eu devia logo ter pensado em vinho.

— Não te vás ofender, amigo!

— Eu não me ofendo com nada que saia da sua boca.

Clemente descerrou os beiços várias vezes para res­ponder; esfregou ainda o canto dos olhos, limpou-os à manga do casaco, durante longos minutos. A sua pele tinha riscos vermelhos da coceira. E todo ele exprimia ansiedade e humilhação.

Afastou-se lentamente na direcção da campina.

Mulheres enfadadas foram saindo, desculpando-se com o sono dos filhos; saíam também os camponeses que iriam esperar a madrugada nos confins da planície. Ficavam as velhas, as pessoas de obrigação. O tédio disfarçava-se em rezas e mexericos.

A presença do morto banalizara-se. Já ali não esta­vam as crianças para olhá-lo com solenidade e pavor; e os vizinhos, os amigos e inimigos não encontravam qualquer parecença entre essas mãos esvaídas e os ges­tos desabridos do velho Parra. A sua face serena, onde as moscas iam sorver restos de sebo e sangue, tornara-se anónima. Esculpida numa lividez recusada pelas coisas vivas. As pessoas do velório tinham de pensar em acon­tecimentos desditosos para que a amargura não fugisse dos seus rostos, como mandavam as conveniências.

Só o Pencas, refugiado num dos cantos, sentia a au­tenticidade da presença do velho. Era bem ele, ainda, tão real como um daqueles que tinham vindo chorar-lhe ou testemunhar-lhe a morte. E sentia um gozo vingativo por vê-lo finalmente amarrado a um catre: poderia divertir-se a insultá-lo, poderia mesmo retri­buir-lhe a fome e as sovas, que esses músculos de cera estavam ali bem seguros. Mas o velho, apesar de imobi­lizado, tinha uma grandeza impressionante. Nenhum

dos vivos o podia ignorar. Mesmo que fosse só pelo odor livoroso do seu corpo, pela maligna imobilidade do rosto. Dele se exalava aquela náusea que entontecia os sentidos. Os miolos do Pencas iam-se deixando envol­ver na dança das velas, no fartum de pulmões saturados. Se fitasse mais vezes o delírio das sombras da parede, decerto perderia o tino. Como numa bebedeira. Levou as mãos aos olhos para se alhear do ambiente.

A notícia da morte do velho chegara a toda a parte e também ao esconderijo do Castelo, onde haviam en­fiado o Pencas, até que a Guarda acabasse por esquecê-lo. A Calhica levava-lhe mantimentos, embora falhasse algumas vezes, e, em tais ocasiões, comia ervas e ovos de passarada. Não percebia os desvelos da rapariga. Ela repetia sempre que Clemente viria um dia por ali liber­tá-lo desse degredo. Um dia, mais tarde. Mas Pencas não resistira a vir certificar-se da morte do pai: a notí­cia era tão fabulosa como se alguém lhe viesse dizer que todos os caminhos estavam desimpedidos à sua frente e cheios de vinho, tabaco e boa comida. Valia a pena arriscar-se a um mau encontro e conhecer a verda­de pelos seus olhos.

Pencas chegara para ver o pai já amortalhado. Um ve­lho desconhecido. O velho Parra, o raivoso, não acabaria assim de repente: era homem para ser esfaqueado dias in­teiros, conservando sempre a língua envenenada. Teria acreditado logo na morte do pai se o visse escondido en­tre as árvores, espiando, e que tudo se tivesse passado entre berros e pauladas, bem na sua presença. O ho­mem do catre era uma burla: o verdadeiro apareceria de um momento para o outro, filando-se a essa gente de re­zas ou a ele, Pencas, que largara o refúgio do Castelo.

Mas, por fim, não havia lugar para dúvidas: o velho nunca teria consentido que alguém lhe usurpasse a ca­ma por dez minutos. O corpo era do velho, sim, e Pen­cas já podia fartar-se de o provocar em silêncio.

As mãos do morto moviam-se. O halo das luzes doentias e o seu jogo de sombras moviam-se também, arrastando as pessoas. O chão de terra batida afundava-se e emergia como um barco. Pencas foi cerrando as pálpebras, embora as coisas rodassem do mesmo modo na sua cabeça, e acabou por descair a beiçola.

Esteve algumas horas adormecido. Quando acor­dou, os seus olhos abriram-se num mundo inacreditá­vel: velhas negras cabeceavam; no fundo da escuridão havia uma clareira luminosa rodeando um altar de ve­las. Mas, de chofre, inda dentro da nebulosidade de um lento despertar, encontrou o corpo estendido no catre, as mãos ebúrneas cruzadas sobre o ventre, como a sus-terem uma quebradura.

Pencas estremeceu. Um frio que lhe ia dos ombros ao queixo. Coçou as pálpebras, até se enfiar de novo na realidade. Do canto da boca escorreu-lhe a aguadilha azeda. Teria feito melhor em ir do Castelo directamente para a taberna e ali esperar que trouxessem o corpo do velho para o cemitério. O velório não acabaria mais. E ninguém o chamava para comer uma bucha; agora era aguentar com essas ondas incendiadas do estômago até que calhasse beber ou comer um pouco. Distraiu-se a calcular o comprimento desmedido do cadáver, como se a morte lhe tivesse esticado os ossos. O lençol ficava pelo meio das pernas, deixando os pés descobertos. O velho tinha sido amortalhado com o fato negro dos momentos graves da sua vida. Um fato novo em folha: era uma pena entregá-lo à voracidade da terra e dos bi­chos. Pencas não se lembrava de o ter visto alguma vez com essa jaleca de golas debruadas. O velho era um to-leirão, mesmo depois de morto. Fato, botas novas! Botas!... Lustrosas, pretas, um pouco bicudas para o gosto de um rapaz, mas com todo o aspecto de coisa acabada de aprontar; botas para apodrecer no chão desgraçado de um cemitério, onde só medravam penedos e cobras.

Aquele cabedal aguentaria meses ou anos de uso, nin­guém desdenharia comprar calçado daquela fazenda. Pen­cas ia jurar que tanto o fato como as botas não serviam desde o casamento dos velhos. Os pés pareciam estoirar as costuras do cabedal. A carne apodrecia antes desses luxos, mas, por fim, nada ficaria da riqueza que o velho levava consigo, enquanto ele continuava miseravelmen­te descalço. E umas botas representavam agasalho, con­forto e uma fiança segura mama mesa de jogo. A mãe devia chegar ali e impedir a tempo aquela injustiça: um morto não tinha exigências.

Imaginava, deleitado, as oportunidades que adviriam de estar bem calçado entre parceiros fortes, numa tarde de sorte às cartas, mas reconhecia a impossibilidade de convencer a mãe, a família, essas velhas beatas encavali­tadas em cima do morto. E temia, sobretudo, a ameaça do irmão. Se o velho Parra já ali não estava para sacar de um porrete e amolar os ossos de quem tivesse certas lembranças, seu irmão António poderia certamente subs­tituí-lo. Não devia contar com auxílio; ninguém fazia reparo que um filho velasse o pai de pé descalço. Teria de imaginar outros meios de herdar as botas do velho Parra.

A claridade distante da madrugada espreitava por detrás dos montes. A mãe veio da cozinha com uma garrafa de aguardente e passas de figo. As pessoas do velório reanimaram-se. Com o nascer do dia, a morte diluía-se na vida renovada. Pensava-se nas lidas, nas searas, nos porcos que não tardariam a grunhir pela vianda. A vida ia prosseguir como dantes.

António Parra apareceu à entrada da casa; de olhos piscos, as pernas já arqueadas, era um velho Parra ressuscitado. A afiguração foi tão intensa que Pencas duvi­dou novamente da legitimidade do cadáver. O velho deixara uma herança temível: aquele filho duro e auste­ro. Pencas devia acautelar-se.

Com o amanhecer chegava mais gente das serras. As mulheres começavam a soluçar a cem metros da casa e traziam as pálpebras inchadas como se tivessem perdido a noite a carpir a desgraça. A sala estava já repleta; o morto defendia-se interpondo entre o catre e os invaso­res um friso de velhas ajoelhadas. Pencas não tinha es­peranças de adergar uma oportunidade de ficar só junto do cadáver, para o aliviar das botas pesadas e inúteis. O esquife chegaria daí a pouco; pelos ombros dos cam­poneses, o velho iria ao seu último encontro com o prior. Seria um cortejo de capotes e lenços agoirentos, assombrando a campina.

António Parra conseguira abrir caminho até ao ca­tre e agora fumava com nervosismo, fitando sombria­mente o cadáver. A mãe levou-o para fora e Pencas aproveitou esses momentos de alívio para arrumar com mais clareza os seus pensamentos. Como poderia enxo­tar aqueles corvos de junto do cadáver? Resolveu sair também à rua e encontrar a sós uma inspiração. Quan­do voltou, deu umas ordens estranhas:

— A gente cá da casa há-de querer despedir-se do meu pai. E há-de ser preciso irem os homens saber se o esquife vem a caminho, prà minha mãe preparar o corpo.

Ficou amedrontado das suas próprias palavras, mas toda a gente o acreditou. Pencas não teria manha para engendrar um enredo. Os homens saíram para os quin­tais, respirando com satisfação o ar puro. Só as velhas ficaram a rodar os terços entre os dedos, alvoroçadas com a perspectiva de uma cena comovente entre a família e o morto. Pencas gelava de expectativa. Viu algumas passas no fundo de uma tigela, mordiscou-as voluptuosamente, para que lhe invejassem os gestos, e disse:

— Vossemecês hão-de precisar de um caldo antes de vir o esquife. Daqui à vila é uma caminhada de respeito.

As velhas sondaram-se entre si, a ganhar alento. Havia muito que tinham o corpo espetado de agulhas

de fome, esperando que a mais corajosa tomasse o ca­minho da cozinha. Uma delas, ocultando meio rosto, atreveu-se:

— Vamos, vamos. Deixemos a família despedir-se do defunto.

Ajoelharam-se junto das velas, uma por uma, como num ritual, e saíram com o xaile pelos cabelos.

Pencas encarou o morto com ferocidade. Não ia agora acobardar-se perante esse velho traste que toda a vida lhe recusara um pedaço de pão. Desapertou os cordões com agilidade, mas o calfe parecia colado à gordura da pele; os pés, rígidos, não se dobravam aos puxões. Pencas, porém, acabou por dominar tudo isso, a bem ou a mal, com uma decisão vingativa e obstinada. Pela primeira vez conseguia amansar esse velho maldi­to! Depois cobriu os pés com o lençol, deixando a des­coberto o peito do morto. Fez um embrulho das botas e escondeu-as entre os arbustos da entrada da porta.

Na altura em que as vizinhas voltaram desiludidas da cozinha, Pencas encolheu-se no canto mais humilde da casa, transido de nervosismo. Estaria até ao fim para guardar os pés nus do morto. Quando encostaram o esquife à cama, foi ele a suspender as pernas do cadáver, cingindo o lençol às roupas. O corpo caiu sobre as tá­buas, deixando um joanete a descoberto. Pencas co­briu-o rapidamente com o seu próprio casaco e todo esse recato pareceu muito bem às mulheres.

O cortejo demorou a despegar-se das lágrimas do Pomar. Lá seguiu, enfim, perseguido por rezas e bandos de moscas, esbraseado pelo sol violáceo da campina.

 

 

                                                                  Fernando Namora

 

 

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