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A NOIVA DO DEMÔNIO / Violet Winspear
A NOIVA DO DEMÔNIO / Violet Winspear

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A NOIVA DO DEMÔNIO

 

O vestido era maravilhoso, como aliás era de se esperar, pois Lucrezia o fizera com o maior carinho para Paula Paget. Suas mãos de fada faziam milagres! O vestido de cor viva ressaltava a suave palidez de Paula, cuja pele tinha um brilho quase transparente. Seu cabelo era brilhante, sedoso e com reflexos dourados, tal qual os últimos raios do sol poente numa tarde de verão. Os olhos, contrastando com o cabelo loiro, eram castanhos e luminosos. Enfim era uma jovem encantadora.

Seu tutor a adorava e a protegia, sobretudo dos homens que dela se aproximavam... Entretanto, essa noite, havia um rapaz ao seu lado, que insistia em levá-la até o jardim.

- Decididamente você é a última garota antiquada na face da terra - disse Larry Condamine em tom de brincadeira. – Depois dessa dança eu esperava pelo menos um beijo! Estou falando sério, você tem que demonstrar que beija tão bem quanto dança! Uma moça bonita como você já deve ter nascido sabendo amar, senão não haveria motivo para que a natureza a tivesse dotado de tantas qualidades!

Você não é só bonita, Paula, é adorável! Venha, minha querida...

Ao atravessarem o jardim, Larry começou a se impacientar ao perceber que Paula evitava seus beijos; segurou-a então, tentando abraçá-la. Um raio de luar fazia com que seus olhos parecessem mais ardentes, enquanto ele contemplava o belo rosto da jovem.

- Meu Deus, como você é bonita! - exclamou Larry - Acho que eu faria qualquer coisa para conseguir você, mas aquele seu tutor ciumento jamais permitiria que se casasse com um homem que não fosse muito rico ou que não possuísse pelo menos alguns milhões de dólares para gastar com você! É incrível como Marcus Stonehill a mantém distante dos rapazes sérios como eu, por exemplo, enquanto a exibe aos ricaços, àqueles jogadores grã-finos que ele sempre convida para sua casa. Sabe o que dizem por aí? Que ele pretende casá-la com o pretendente que der o lance mais alto!

Pauta sentiu os braços ansiosos do jovem a envolverem. Ouviu então o pio de uma ave noturna que lhe desviou a atenção. Aliás, ela não estava nem um pouco interessada nas palavras de Larry Condamine. Estava a par de tudo o que diziam a respeito de Marcus. Alguma coisa era verdade, mas havia também muita fantasia... Marcus realmente procurava um bom partido para ela, um casamento vantajoso, isto é, um pretendente que tivesse uma fortuna sólida e, não um aventureiro qualquer, que tivesse enriquecido às custas de jogo. Cuidara dela desde que sua mãe morrera. Daisy Paget fora atriz e Paula sabia o quanto Marcus a amara, por isso não se importava em obedecê-lo. Apesar de ele ter se apaixonado loucamente por Daisy, ela se casou com um ator pobre, que arruinou sua saúde em teatros de quinta categoria.

- Acho melhor você não me beijar, - disse ela a Larry , quando sentiu os lábios mornos e tentadores do rapaz, procurando sua boca - a não ser que você queira ser chicoteado por Marcus.

Imediatamente Larry se deteve. Lembrou-se dos boatos que corriam a respeito dos pretendentes que se portavam de forma inconveniente: vários haviam sido postos para fora de Stonehill, e a despeito de seu entusiasmo, Larry Condamine não pretendia sofrer nenhum vexame desse gênero...

- Você acha que poderia me amar algum dia? - perguntou ele. - Estou pronto para ir à Austrália com uma mulher que queira me acompanhar. Ouvi dizer que lá ainda se pode comprar terras por muito bom preço. Minha avó me emprestaria o dinheiro, pois vai ficar feliz se me vir bem estabelecido na vida. O que você pensa disso, Pauta? Não lhe parece uma boa idéia?

- Olha só como está bonita alua - desconversou Pauta, tentando se livrar de seu abraço. Logo em seguida, ela tomou então o caminho de casa, onde a festa parecia bastante animada. A casa era de um amigo de Marcus, um dos tantos homens de negócios com quem ele convivia, principalmente nas mesas de jogo. Negócios sérios, no verdadeiro sentido da palavra, aborreciam Marcus terrivelmente. Ele preferia os jogos de azar.

Paula sorriu quando percebeu os passos de Larry atrás dela. Ele era um bom rapaz, mas o fato de não ter dinheiro não influía em seus sentimentos. Se ela o amasse de verdade iria com Larry para a Austrália, mesmo contra a vontade de Marcus. Mas amar ainda não estava em suas cogitações... Marcus a convencera de que quando se entrega o coração, não mais se volta atrás. Quando uma pessoa se apaixona por outra, é mais provável que acabe sofrendo, pois o amor poucas vezes traz felicidade...

Paula foi a primeira a se aproximar do terraço da casa, junto ao salão principal, onde os convidados dançavam. Percebeu logo que alguma coisa estranha acontecera, pois as pessoas estavam de pé, reunidas em pequenos grupos, falando em voz baixa, parecendo assustadas e chocadas. Paula se deteve, sentindo seu coração bater descompassadamente. De repente, surgiu no terraço um homem muito alto, que começou a descer as escadas silenciosamente. Seu porte era altivo, mas seus movimentos eram leves e graciosos. Fora esta a impressão que Paula tivera quando o vira pela primeira vez, em Stonehill. Foram apresentados na biblioteca e quando ele se retirou, Paula, sem que ele percebesse, ficou observando-o atrás de uma coluna no terraço. Seu andar era silencioso e estranho...

No dia seguinte, Marcus lhe contou que ele era mexicano e podre de rico.

- Como ele se chama? - perguntou Paula. Ao vê-lo tivera uma sensação diferente. Despertara-lhe o interesse. Não que o tivesse achado bonito... Talvez fosse aquele seu ar meio estranho...

E agora, Dom Diablo Ezreldo Ruy vinha caminhando em sua direção, passando por entre os convidados, cortando caminho por um atalho escuro. Quanto mais ele se aproximava, mais negro se tomavam seus olhos. Veio-lhe então à mente o julgamento que fizera dele, no dia em que o conhecera:

- Ele tem o olhar de um demônio - comentou com Marcus.

- Sua mãe deve ter pensado o mesmo a primeira vez que o viu. Por isso lhe deu o nome de Dom Diablo! - disse Marcus, sorrindo e a observando com muito interesse. Ela tentou, então, imaginar qual seria a ligação de seu tutor com aquele homem.

- Vocês jogaram cartas juntos? - perguntou a Marcus.

- Minha querida, um homem nunca joga com seu mestre.

- Seu mestre? - perguntou intrigada. - Não há mestre para você!

- Nem mesmo Deus ou o diabo? - brincou Marcus.

A lembrança desta conversa voltava à memória de Paula, enquanto observava a figura alta do espanhol que se dirigia silenciosamente ao seu encontro. Inclinando a cabeça gentilmente, disse-lhe então aquelas palavras que jamais esqueceria:

- Sinto muito, srta. Paget, que seu tutor tenha se sentido mal...

- Como? Onde está ele? Quero vê-lo imediatamente! - exclamou assustada.

- Não! - Uma mão forte e decidida a deteve, sustando seu ímpeto de correr imediatamente para casa. - Não há mais nada afazer, senhorita. Marcus teve um enfarte violento, foi fatal. Infelizmente sou eu o portador desta notícia. Tive que lhe contar, já que você é a pessoa mais chegada a ele! Console-se pensando que foi tudo tão rápido que Marcus provavelmente nem sofreu... Foi no momento exato em que ele descartava uma belíssima quadra de ases! Eu estava assistindo ao jogo e vi o descarte sensacional que tinha na mão; ele morreu sorrindo, srta. Paget.

- Sorrindo, enquanto morria?

- Sim, senhorita. Às vezes isto também pode acontecer.

- Mas não com Marcus... não com Marcus! Ele não pode ter morrido - Paula falava alto, agora; as palavras ecoavam em seu coração, ferindo-o como um punhal. - Ele é tudo o que eu tenho, a única pessoa que eu amo! Marcus! - Saiu correndo como uma gazela assustada e ferida, mas Dom Diablo segurou-a. Carregou-a então em seus braços, conduzindo-a pela escuridão da noite... ou assim lhe pareceu, pois Paula perdera os sentidos. Quando voltou a si, muito tempo depois, estava em sua cama em Stonehill, com Lucrezia ao seu lado, cercando-a de todos os cuidados.

- Meu bem, você tem que aceitar os fatos e encarar a realidade. É inútil se revoltar dessa maneira. Ele está em paz e agora vai se encontrar de novo com Daisy. Afinal, foi seu único amor, minha querida. Você agora pode pensar nos dois juntos, como nunca puderam estar aqui na terra.

Paula tremia nos braços da velha governanta italiana, a quem fora confiada logo após a morte de sua mãe. Daisy morrera alguns dias depois de dar à luz a Paula.

- Mas Marcus parecia estar tão bem quando saímos de casa! Aliás até notei que estava de ótimo humor, como se tivesse feito uma grande cartada. Parecia feliz e não me lembro absolutamente de tê-lo ouvido se queixar de qualquer indisposição. Lembra-se daquela vez em Florença, quando ele se sentiu mal? Oh, Lucrezia, será que foi lá que começou? Será que já era uma crise cardíaca e ele guardou segredo para eu não ficar preocupada? Era bem do estilo dele fazer uma coisa destas...

- Marcus não queria que você sofresse, minha querida - soluçou a governanta. As lágrimas brotavam de seus olhos, descendo pelo rosto sulcado de rugas. - Ele desejava que sua vida fosse um mar de rosas, sem os problemas que infernizaram e estragaram a vida de sua mãe. Ah, ela era tão linda, mas quando deixou o marido e procurou por Marcus já era tarde demais para que ele pudesse fazê-la feliz, você entende? Você não é mais criança, já é uma moça de vinte anos e precisa enfrentar a realidade da vida.

- Mas ele só tinha quarenta e cinco anos... - Paula voltou a chorar. Não se conformava em ter perdido Marcus; sentia-se como se fosse mergulhar num abismo de solidão, aquela solidão terrível que sempre a assustara. Marcus sempre a defendeu e protegeu. Foi pai, tutor, orientador e amigo. A morte de Daisy o tomara cínico sob muitos aspectos, mas Paula o amara acima de qualquer julgamento.

- Como poderei suportar tanta dor? -perguntou a Lucrezia. - O que é que eu vou fazer agora? Para onde ir?

Ambas sabiam que a propriedade de Stonehill estava vinculada e que ficaria com um sobrinho de Marcus. A casa grande de pedra que fora seu lar durante vinte anos não o seria mais. Seu quarto enorme e confortável seria ocupado por outra pessoa, pois o sobrinho de Marcus tinha mulher e filhos e eles jamais haviam aceito Paula como membro da família.

- Sinto-me como um pária, como se uma enorme muralha me cercasse e eu estivesse no centro, sozinha, abandonada... É o pior momento da minha vida, acho que não vou conseguir suportar...

Mas Paula conseguiu superar o choque dos primeiros dias e enfrentar tudo o que aconteceu nesse meio tempo. Os parentes de seu tio vieram a Stonehill e tomaram todas as providências para o funeral. Marcus seria sepultado no túmulo da família e Lucrezia ficou encarregada de participar a Paula que a família de Marcus considerava indesejável sua presença na ocasião.

- Sugeriram que você arrumasse suas malas e partisse imediatamente - informou-lhe Lucrezia. - E me deram esse cheque, dizendo que era para você se sustentar até arrumar um emprego.

Pareciam considerá-la uma aventureira qualquer com quem Marcus tivesse vivido e de quem agora tentavam se livrar!

- O cheque que vá para o inferno! - gritou ela, picando-o em pedacinhos. Depois arrumou numa mala as roupas que Marcus lhe comprara para a última estação, e com lágrimas nos olhos, desceu correndo a escadaria que dava na biblioteca. Subindo numa cadeira, retirou da parede o retrato de sua mãe. Enquanto tirava a poeira do quadro, o telefone tocou. A princípio não quis atender, pois ainda estava chocada com a atitude dos parentes de Marcus. Mas o telefone continuava a tocar insistentemente e Paula resolveu atender:

- Não tem ninguém em casa - respondeu com um fio de voz. -Todos foram ao funeral.

- É a srta. Paget quem está falando? - A voz era profunda e sotaque pronunciado. - Aqui é Dom Diablo.

- Sim, sou eu mesma, senhor. Posso saber o que deseja? - Depois de um momento de silêncio, ele voltou a falar.

- Desejaria vê-la, senhorita. Irei buscá-la de carro dentro de alguns minutos.

- Eu não posso sair agora. Vou deixar Stonehill. Tenho que acabar de arrumar minhas coisas, tomar algumas providências... eu estava quase de saída...

- Pois vai esperar por mim - ordenou ele. - O que tenho a lhe dizer é muito importante. É um assunto que eu e Marcus discutimos dias antes dele morrer. É absolutamente indispensável que ouça o que tenho a lhe dizer; Marcus não me perdoaria se eu não o fizesse...

- Eu... eu realmente não posso imaginar o que teriam podido discutir e que me dissesse respeito -retrucou ela. Estava ainda muito magoada e não tinha vontade de ver ninguém, e muito menos aquele homem que parecia tão frio e impiedoso quanto os familiares de Marcus.

- Eu sei que Marcus jogava, mas nunca interferi...

- Não se trata de jogo, srta. Paget - seu tom era ligeiramente autoritário. Parecia habituado a dar ordens e ser prontamente obedecido. - Será que está com medo de se encontrar comigo?

Paula olhou para o relógio de parede e teve um sobressalto quando ouviu bater as horas. Aquele som, antigamente tão familiar e amigo, parecia-lhe agora o dobrar de sinos de finados. Era como se chorasse a morte de seu tutor e toda a sua desgraça...

- Nesse momento, senhor, sou incapaz de sentir qualquer emoção - disse ela a Dom Diablo Ezreldo Ruy. - Se julga realmente necessário conversar comigo, então venha. Eu o espero fora, pois não tenho mais o direito de ficar aqui.

E lá estava Paula, sentada nos degraus da escadaria, quando o carro chegou. Vestida de preto, a mala a seu lado, segurava junto ao peito o retrato de sua mãe. A porta do carro se abriu e surgiu a figura alta e esguia de Dom Diablo, impecavelmente vestido num terno cinza-claro. Ele chegou até a escada e se deteve contemplando Paula. Seus misteriosos olhos negros se fixaram em seus cabelos loiros e brilhantes. Olhou para ele. Seus olhos ainda estavam cheios de lágrimas e seu rosto sujo, pois ao pegar o retrato da mãe sujara os dedos de pó.

- Você está com o rosto sujo como o de uma criança – disse ele tirando do bolso um lenço branco, imaculadamente limpo, e entregando-o a Paula. - Enxugue os olhos, senhorita, e venha comigo.

- Eu... não posso fazer isso! - Lançou-lhe um olhar angustiado e ao mesmo tempo revoltado. - Quem é o senhor para me dar ordens?

- Sou o homem com quem vai se casar - respondeu prontamente.

Paula levou um choque! Ficou branca como o lenço que ele lhe oferecera. Sua expressão era de desespero. Paula, que sempre se sentira segura com Marcus, dava-se conta do que representava para ele a morte de seu tutor. Extravasou então toda a sua angústia, derramando novamente lágrimas copiosas.

- Meu Deus! - Dom Diablo inclinou-se subitamente, e ajudou-a a se levantar. Levou-a então até o carro e acomodou-a. Em seguida, colocou seus pertences no bagageiro: a mala, o retrato e o chapéu de palha preta que comprara para usar com seu vestido de jérsei preto.

Dom Diablo subiu no carro, fechando delicadamente a porta. Tomou-a então nos braços e deixou que ela desabafasse, chorando em seu ombro.

- Há um ditado mexicano que diz que há ocasiões para o vinho e há ocasiões para a água; ocasiões para lágrimas e ocasiões para alegria. Chore, chore bastante, depois falaremos. Uma conversa séria, entre um homem e uma mulher!

Um homem e uma mulher, repetiu Paula em pensamento. Ela e este homem que mal conhecia e que, no entanto, já lhe havia proposto casamento! Enxugou os olhos e limpou o rosto, percebendo então que o lenço impecável que lhe dera Dom Diablo, agora estava todo sujo. Devia estar com uma aparência lastimável, imaginou. Na pressa de sair, esquecera-se de pentear o cabelo, que agora lhe caía sobre o rosto. Lançou a Dom Diablo um olhar de desafio. Aprendera com Marcus a cuidar muito de si mesma. Andava impecavelmente vestida e bem penteada. Mas a dor que sentia pela morte de Marcus era forte demais para ela se preocupar com sua aparência.

- Creio que manchei seu lenço, senhor - disse ela. Sua voz tornara-se mais rouca. - Eu podia me oferecer para lavá-lo, mas fui expulsa de Stonehill como se fosse uma intrusa. Não tenho mais casa. Não é uma ironia eu me encontrar subitamente sem lar e sem recursos? Chega a ser tragicômico, só que eu não consigo ver o lado cômico da situação. Gostaria de ter podido levar rosas ao túmulo de Marcus, mas nem isso pude fazer, pois os parentes dele me proibiram. Só deixaram Lucrezia acompanhar o enterro, pois ela cuidou dele desde que era garoto. É estranho! Não consigo imaginar Marcus criança. Sempre me pareceu tão adulto, tão decidido...

Paula olhou para Dom Diablo, que a observava atentamente.

- Eu gostava profundamente de Marcus; faria qualquer coisa por eIe... - disse ela entre soluços.

- Fico contente de ouvi-la falar assim. - Seus olhos eram impenetráveis, e os cílios espessos acentuavam seu mistério. Paula tinha quase a certeza de que ele tinha sangue índio nas veias. Sua tez bronzeada e os ossos do rosto muito marcados lembravam a figura de um guerreiro asteca. Apesar de seus traços finos e de sua elegância viril, Paula sentia por ele uma espécie de aversão física. Torcia o lenço entre seus dedos nervosos, procurando desviar seus olhos dos de Dom Diablo, que parecia ler seus pensamentos com a clareza perturbadora de sua experiência.

- Está com fome, senhorita? Calculo que não tenha comido nada de manhã e como já estamos quase na hora do almoço...

- Realmente eu não estava com fome - Paula surpreendeu-se com o fato de Dom Diablo se preocupar com ela. - Bem, acho que agora poderia comer alguma coisa.

- Então vamos fazer isso - disse ele. Tirou do banco de trás, um cesto onde havia frango assado, tomates, salsão, roscas, vinho e dois copos.

- Comece tomando isto, vai lhe fazer bem - disse ele, estendendo-lhe um copo de vinho. Paula percebeu pela expressão dos olhos dele que não adiantaria recusar. Aceitou o vinho e seus olhos se detiveram nos dele, quando, erguendo o copo, brindou:

- A sua saúde, senhorita! Que este vinho alivie sua dor de cabeça!

Era realmente um homem estranho, pensou Paula, a quem não ousaria contrariar. Tomou portanto o vinho e comeu tudo que ele lhe ofereceu sem protestar. Foi bastante agradável esse almoço improvisado. O vinho era da melhor qualidade e Paula começou logo a sentir seus efeitos. Por mais estranho que pareça, a dor de cabeça começou a diminuir, tomando-se suportável. Depois da sobremesa, Paula se sentiu mais relaxada. Recostou-se no banco do carro e mergulhou numa espécie de torpor provocado naturalmente pelo vinho.

Agora nada lhe parecia ter tanta importância. Talvez Dom Diablo tentasse seduzi-Ia e não haveria ninguém para defendê-la, como Marcus o fizera com aquele rapaz atrevido, Rashleigh, que, subindo pela sacada, entrara em seu quarto pela janela, surpreendendo-a de penhoar. Já passava da meia-noite e acontecera após a sua festa de dezenove anos. Peter e seu pai, lorde Rashleigh, tinham sido convidados para passar o fim de semana em Stonehill. Foi Peter quem despertou em Paula a consciência de que a maioria dos homens é egoísta; a partir de então passou até mesmo a desprezá-los. Parecia que quando se interessavam por uma garota, só tinham em mente o contato sexual. Naquela noite, quando Paula gritou chamando por Marcus, ele arrastou Peter para fora do quarto e chicoteou-o.

Paula não sentiu pena do rapaz. Sempre soube que Marcus podia ser cruel quando necessário e, como se sentiu ofendida pela proposta de Peter, achou que a surra foi bem merecida.

- Você disse, Dom Diablo, que tinha algo a me dizer. - Percebeu que falara com certa ousadia. Mas era uma forma de se proteger, já que não contava mais com Marcus para defendê-la dos homens que dela se aproximavam por achá-la bonita. Tinha consciência de sua beleza, pois se parecia com a mãe. Quando olhava para a fotografia dela, Paula compreendia por que Marcus Stonehill se apaixonara perdidamente por ela. Ele era o tipo do homem que podia ter tido as mulheres que quisesse, mas preferiu ficar solteiro por causa de Daisy Paget que fugira com um ator pobre e infiel, e que a obrigava a trabalhar em teatros de quinta categoria. Essa vida ingrata prejudicara a saúde de Daisy. Ela morreu muito jovem. Marcus fizera de Daisy o seu mito e Paula fizera de Marcus o seu deus. Ela olhou para Dom Diablo. Sua expressão era demoníaca!

- Será que seu telefonema não foi apenas um pretexto para trazer aqui? - perguntou ela.

- Não preciso de pretextos, senhorita - recostou-se no banco, com uma cigarreira de ouro nas mãos. - Você se importa que eu fume? Já notei que o fumo não faz parte de seus hábitos.

- Claro que pode fumar, senhor - respondeu quase aliviada, pois qualquer coisa que lhe ocupasse as mãos e os lábios o impediria de tentar o que ela já pressentia como inevitável. Dom Diablo era alto e esguio, mas das mãos, dos ombros, da maneira de caminhar emanava uma grande força. Era como se estivesse silenciosamente à espreita de sua presa.

- Marcus jamais gostou de fumar - disse ela. - Dizia sempre que o fumo causava dano à mulher, provocando rugas, dando à pele uma coloração opaca. Sabe, ele adorava minha mãe e dizia sempre que sua pele era como uma pétala de rosa. Rosas sempre foram suas flores favoritas e por isso... Paula conteve a respiração. - Marcus podia ser cruel, mas nunca foi vingativo como os parentes dele. Eles me trataram como se eu fosse amante de Marcus. Sei que algumas pessoas podem não acreditar na pureza de nosso relacionamento. Marcus era um homem bonito e um jogador inveterado, mas gostava de mim como se eu fosse sua filha!

- Tenho certeza disso, senhorita - disse Dom Diablo. - Conheço as pessoas logo à primeira vista e pode estar certa de que nesse curto período em que conheci Marcus, sempre o considerei um homem inteligente, arguto e rápido. Sei também que era um homem honrado apesar de seus hábitos singulares. Não está curiosa para saber como nos conhecemos?

- Claro que estou - respondeu ela. - Conheci Marcus a vida toda. Viajei com ele para muitos países, mas nunca o encontramos em nenhum deles. Aliás também nunca o ouvi mencionar o seu nome, Dom Diablo.

- Nós dois nunca nos vimos antes de eu vir a Stonehill. Foi uma missão curiosa que me trouxe aqui, uma história que ele certamente lhe teria contado, não fosse o destino tê-lo levado embora de um modo tão inesperado! Ouvirá com paciência, senhorita, o que vou lhe contar?

- Não tenho nenhum outro compromisso no momento - respondeu com aquela ponta de humor que provocava sempre uma certa perplexidade em Marcus. - Além do mais gosto muito de histórias, senhor.

- Mas são fatos reais, senhorita, não é ficção - replicou ele. - É uma história que começou no México e terminou, ou melhor, está terminando aqui na Inglaterra. Um dia, em meu país, no Estado em que eu vivo, eu montava um cavalo novo e fogoso. Ao desviar de uma cobra o cavalo me atirou no chão e eu bati a cabeça contra uma pedra, perdendo a consciência. Com a queda o chapéu caiu da minha cabeça. Se eu tivesse ficado ali sem sentidos, exposto ao abrasador sol do México, por uma hora que fosse, teria tido uma meningite, podendo mesmo perder parcialmente a visão. Talvez a senhorita não saiba, mas lá o sol é tão quente quanto o sol do deserto; é cruel e violento mesmo para quem tem a pele escura como eu. O destino, porém, fez com que passasse por ali uma camioneta dirigida por um funileiro ambulante. A camioneta, com uma capota de lona, era ao mesmo tempo a casa e o meio de transporte daquele homem. A princípio, pensei que fosse mexicano, pois tinha a pele muito queimada e estava coberto de trapos. Tive uma grande surpresa quando o ouvi falar. Seu sotaque era inglês, embora falasse espanhol com fluência. O homem carregou-me então para a sombra da camioneta, banhou minha cabeça com a preciosa água de seu cantil, em resumo, salvou-me a vida - Dom Diablo sorria ironicamente. - O funileiro e eu começamos a conversar e eu descobri que ele trabalhara muitos anos como ator de teatro na Inglaterra, com pouco sucesso porém. Sua mulher o abandonara então por um outro homem e ele, desgostoso, saíra da Inglaterra indo tentar a sorte na América do Sul. Depois foi para o México, onde trabalhava um pouco em cada lugar. Naquele momento trabalhava como funileiro e consertador de panelas, vendedor de potes, panelas e medicamentos patenteados. Descobri que era um homem interessante, pois tinha sempre muitas histórias para contar. Convidei-o então para trabalhar comigo. Ele faria um pouco de tudo. Aceitou logo, pois naquele momento não estava em boas condições de saúde. Pareceu-lhe, pois, maravilhosa a idéia de viver numa casa; num lar organizado. Como eu já disse, ele tinha uma certa cultura e passamos várias noites juntos, conversando, falando um pouco sobre tudo; sobre os imprevistos da vida e tudo o mais... - Dom Diablo fez uma pausa e olhou para Paula com ar pensativo.

- Pois é, senhorita, parece-se com sua mãe e não com seu pai. Os olhos dele eram azuis e se sobressaíam no rosto sofrido e queimado de sol.

Paula olhou espantada para Dom Diablo. Ele queria lhe dizer que aquele homem que lhe salvara a vida no México era seu pai?

Ao perceber o choque e o espanto dela, esclareceu:

- Sim, srta. Paget. Quando Charles Paget foi atingido por uma doença incurável deu-me uma miniatura que ele usava sempre pendurada ao pescoço. Era a fotografia de uma mulher belíssima com quem fora casado há muitos anos. Contou-me que a tratara muito mal. Fez-me esta confissão algumas horas antes de morrer. Disse-me também que ela procurara o homem que teria sido um melhor marido para ela. Como Daisy estava grávida e Paget sabia que Marcus Stonehill se ocuparia da criança, deixou que as coisas tomassem este rumo. Porém, antes de morrer pediu-me que se alguma vez eu fosse à Inglaterra, procurasse Stonehill para ver se a criança estava feliz e bem cuidada. E foi exatamente o que eu fiz, srta. Paget, quando cheguei à Inglaterra para tratar de negócios. - Tirou então do bolso uma miniatura de porta-retrato que lhe fora dado pelo pai de Paula. A foto estava um pouco desbotada, mas as feições eram bastante nítidas. Sem dúvida alguma era Daisy. - Esta mulher encantadora era sua mãe, senhorita.

- Agora entendo - disse Paula. - Meu pai se chamava Charles. Mas é incrível, senhor!

- Segurava a miniatura, tentando imaginá-la pendurada ao pescoço daquele homem queimado pelo sol, viajando por tantos países, passando por tantas dificuldades e que não passara de um estranho para ela, durante todos esses anos. Tentou retroceder no tempo, tentando dar forma à imagem de seu pai. E tudo isso no mesmo dia em que o outro homem que cuidara tão bem dela se fora deste mundo!

- Não é assim tão incrível, é um jogo do destino. O destino a entregou a Marcus Stonehill e Marcus a entregou a mim...

Novamente suas palavras atingiram em cheio o coração de Paula, fazendo-o bater tão forte que mal podia respirar.

- O que quer dizer com isso? - os dedos dela apertavam a miniatura.

- Exatamente o que ouviu. Você agora está sob meus cuidados, se bem que isto seja um pouco teatral.

- Somente Marcus podia falar desse jeito - contestou Paula veementemente. - Só ele tinha direitos sobre mim e mesmo assim porque eu consentia...

- A senhorita sempre o obedecia, não é mesmo?

- Mas eu gostava dele! Foi a única pessoa que se preocupou comigo depois que minha mãe morreu! É claro pois que eu fizesse de tudo para agradá-lo. Era a única maneira de retribuir o que fazia por mim; se dependesse de meu pai, eu teria sido obrigada a ir para um orfanato!

- Concordo plenamente, senhorita - Dom Diablo inclinou um pouco a cabeça para a frente, observando-a com uma expressão estranha. Ele parecia não pertencer a este mundo ou pelo menos essa era a impressão de Paula. Tinha os olhos de uma ave de rapina, mirando sua presa antes de atacá-la. Ela se reclinou para trás, afastando-se para a ponta do banco a fim de ficar o mais longe possível dele. Pela primeira vez na sua vida sentiu medo. - Marcus queria que você se tomasse minha esposa. Ele e eu falamos sobre esse assunto quando vim a Stonehill. Como Marcus sabia de suas precárias condições de saúde, queria ter a certeza de que a deixaria protegida para o resto da vida. Duvida de mim, senhorita? Conhecia seu tutor melhor do que ninguém, sabia que ele planejava um casamento rico para você.

Paula encolheu-se, tensa como um felino prestes a dar o pulo, como se quisesse gritar, agarrar-se a alguém e lutar pela sua liberdade. No entanto ficou ali, imobilizada pelo estranho fascínio daquele homem, que vinha de tão longe declarando ter direitos sobre ela, agora que Marcus morrera.

- Sabe que estou falando a verdade, não é? - a voz dele tornou-se grave, com um leve tom de ameaça... - Sabe que se Marcus vivesse, ele mesmo lhe diria que aprovava plenamente o nosso casamento?

- Mas se o senhor mal me conhece, não me ama... - respondeu Paula, com voz embargada.

- Senhorita, no México, a intimidade e o amor vêm depois do casamento!

 

O lugar era belíssimo, parecia um sonho... No entanto, para Paula, tudo parecia um pesadelo do qual não conseguia desperta. Havia se casado com um homem que mal conhecia e mesmo a cerimônia na igreja de Santa Ana, perto de Stonehill, lhe parecia agora uma lembrança vaga. Não entendera as palavras do padre ditas em latim. Lembrava-se apenas de um par de alianças de ouro, uma para ela, outra para Dom Diablo. A ida de carro até o aeroporto fora rápida. E agora estava ela ali no México com aquele estranho!

O sol brilhava tanto, como se refletisse milhares de facetas de um enorme diamante. Os muros altos e brancos da casa da fazenda tinham um aspecto quase feérico. Cobertos por primaveras vermelhas em plena florada, era como se um enorme manto escarlate de toureiro houvesse sido estendido em toda sua extensão.

Era o lugar ideal para o amor, se ela amasse seu marido. Mas Paula maI o conhecia e para ela a fazenda era como uma prisão alto de uma montanha rochosa, com um vale verdejante à sua frente.

A fazenda, chamada de Casa Real pelas pessoas que viviam e moravam na propriedade, era tão vasta que Paula não conseguia avaliar o quanto Dom Diablo possuía em terras, dinheiro e poder. Era como se um senhor feudal tivesse chegado de repente, arrebatando-a de seu ambiente e levando-a para aquela terra estranha. Marcus certamente se deixara influenciar por tanta riqueza e tanto poder; neste caso, deixara que sua alma de jogador avaliasse o candidato e Paula, levada pela emoção do momento, se deixara arrastar, consentindo no casamento. Fora impelida mais pelo medo de ficar sozinho do que por qualquer sentimento de afeto. Ele chegara num momento em que ela, totalmente desprotegida reagira apenas guiada por seu instinto de autopreservação.

- Por que a chamam de Casa Real? - perguntou com uma certa ironia, enfrentando o olhar duro de Dom Diablo.

- Entre os meus ancestrais há uma sacerdotisa asteca - disse ele, esboçando um sorriso. Seus lábios pareciam esculpidos, como aliás todo o seu rosto. - A casa da fazenda está construída no local do templo dessa sacerdotisa. Lá embaixo, no desfiladeiro, centenas de pessoas foram trucidadas pelos espanhóis - acrescentou ele, apontando com o dedo. - Um nobre espanhol obrigou a sacerdotisa a se casar com ele. Um ano após o casamento ela levou seu filho recém-nascido à beira do abismo e estava prestes a se atirar lá de cima com a criança, porém, no último instante, mudou de idéia e em vez de se matar com o filho, deixou-o entre as samambaias, onde foi depois encontrado pelo pai. Suicidou-se porque não queria um filho com sangue espanhol. Essas são as raízes da minha família. Agora você sabe tudo, minha querida.

Um arrepio percorria o corpo de Paula cada vez que ele a chamava assim. Na Inglaterra, ele parecia mais formal tanto na forma de se vestir como no trato com as pessoas. Mas no México, Paula descobrira uma nova faceta na personalidade de Dom Diablo. Vestia calças justas, típicas do país, a camisa branca rendada e o chapéu preto de abas largas. Parecia que ele tinha várias personalidades que se alternavam segundo as ocasiões e conveniências.

Em silêncio, pensava nele como Dom Diablo, e sobressaltou-se externando um certo medo, quando ele se aproximou dela e se encostou na balaustrada do terraço que se debruçava sobre o desfiladeiro, onde o verde das plantas contrastava com o vermelho vivo da terra. Paula estava fascinada, principalmente agora que conhecia a tragédia que ali ocorrera. .

- A comida está na mesa, minha querida, e ficará fria e não será tão boa, se não formos logo. A melhor cozinheira dessa região ficaria muito desgostosa comigo.

- E você se incomodaria se um de seus empregados se aborrecesse? - Paula afastou-se da balaustrada. - Parece-me que nada neste mundo seria capaz de abalar seus sentimentos.

- Você acha que sou frio e duro como aço? - perguntou ele. - Será que é por isso que tem medo de se aproximar de mim? Tem medo que seu corpo delicado se quebre ou se machuque contra o meu?

Com um lampejo no olhar, ele observava Paula, medindo-a da cabeça aos pés. - Na Inglaterra, achei você belíssima, mas aqui no meu país me parece ainda mais encantadora. Seu tipo é tão diferente de nossas mulheres, o cabelo loiro tal como o ouro que os cruéis colonizadores obrigavam os índios a retirarem das profundezas da terra...

- Você parece se esquecer que também tem o sangue dos colonizadores nas veias!

- Concordo e provavelmente este sangue correrá mais forte se continuar a me tratar assim, como se eu fosse um estranho em vez de seu marido. Agora, minha esposa, vamos nos sentar e comer. A comida é tipicamente mexicana, como minha casa e minha alma!

A claridade era intensa e o calor escaldante. Apenas embaixo da enorme mangueira estava mais fresco. A mesa circular de bambu, havia sido posta à sombra da árvore e estava coberta com uma toalha rendada. As cadeiras também eram de bambu. Ao centro da mesa via-se um arranjo exótico de orquídeas e garrafas de vinho dentro de uma cesta redonda.

- Sente-se - disse ele, puxando-lhe a cadeira. Ao se sentar, Paula esbarrou em Dom Diablo, e sentiu-se um pouco perturbada. Ele parecia realmente dominá-la, muito alto e másculo, a camisa branca contrastando com a pele queimada de seu corpo. Marcus era moreno, mas não tanto quanto ele. Era alto, mas Dom Diablo era tão mais que Paula se sentia minúscula ao seu lado. Marcus fora severo, mas seu marido era muito diferente; uma sensação fortíssima de poder, tanto físico como mental, emanava dele.

Desde o casamento tinham estado viajando e somente agora ocorrera a Paula que estava "em casa" e que apenas hoje começava realmente a vida deles em comum.

- Estou quase certo de que gostará da comida, uma vez que aceite e se habitue aos temperos picantes dos pratos mexicanos.

Paula lançou-lhe um olhar desconfiado. Empregados índios, com paletós brancos, aproximavam-se da mesa, um deles, servindo o vinho e o outro a comida. Podia sentir o olhar de Dom Diablo que a observava o tempo todo. De repente, Paula, sentiu-se invadida por uma onda de emoção... Para obedecer Marcus mesmo após a sua morte, se casara com o homem que seu tutor escolhera para ela... Mergulhada na sua mágoa sem esperanças fora levada ao altar, que agora lhe parecia o símbolo do sacrifício.

- Vamos brindar juntos - disse Dom Diablo, levantando o copo de vinho. - Vamos, brinde comigo, minha querida, pois na verdade este é o nosso almoço de casamento.

- Cometi um erro terrível casando-me com você. Eu estava fora de mim por causa da morte de Marcus e agora...

- Agora é muito tarde para arrependimentos - interrompeu-a. Agora você é minha, assim como sou seu.

- Mas só no papel - disse Paula, inclinando-se para a frente. Havia uma súplica silenciosa em seu olhar. - Um casamento como o nosso pode ser anulado, pois não estamos... não estamos realmente unidos...

- Mas estaremos muito breve. Quero que levante seu copo para que possamos brindar juntos, minha querida, pois não tenho a menor intenção de deixá-la ir embora. Casamos na igreja católica e em cada uma de suas mãos está um anel dado por mim, aliança de ouro e os rubis Ezreldo Ruy.

- Está me ameaçando? - perguntou, chocada.

- Eu seria obrigado a castigá-la se tentasse fugir de mim, além do que não iria muito longe. Essa propriedade é imensa e nesta terra só vive gente minha. Não estamos mais na Inglaterra; aqui sou eu quem administra tudo e se consigo cuidar de coisas que estão a quilômetros daqui, imagine como tomarei bem conta do que está tão perto... - Olhou-a com firmeza e severidade.

- Você é muito rude! - Paula nunca afirmara uma coisa com tanta convicção.

Baixou então os olhos e apanhou o cálice de vinho. Seus instinto de mulher lhe diziam que devia primeiro descobrir os pontos fracos daquele homem a fim de lutar melhor contra ele.

- A quem vamos brindar? - perguntou, tentando disfarçar sua amargura. - Quer uma confirmação da promessa que sempre o honrarei e obedecerei?

- Tenho certeza, Paula, que me honrará e obedecerá.

- Espero então que não esteja pensando em me pedir que faça promessas de amor.

- Endireitou o pescoço, levantou a cabeça e olhou-o diretamente nos olhos e acrescentou:

- Talvez obtenha alguma coisa de mim, mas amor nunca, Don Diablo!

- Palavras corajosas, querida! - exclamou, sarcástico. - Tomara que possa ser sempre assim, orgulhosa e destemida. Jamais pensei em ter a meu lado uma mulher submissa. A você, minha esposa, a quem quero tanto - brindou ele.

O coração de Paula deu um salto. " A quem quero", dissera ele. Ela preferiria que ele tivesse dito "a quem amo", pelo menos teria sido mais romântico...

- A sua saúde, meu esposo! - Ergueu o copo, numa atitude de desafio e acrescentou:

-Antes morrer do que amá-lo!

- Obrigado! - Sua expressão não se alterou, apesar de suas palavras insultuosas. Dom Diablo pousou então o copo na mesa e começou a comer. - Está ótimo, querida. Deve se esforçar para comer para que a cor volte ao seu rosto. Quando suas faces estão rosadas, você é a garota mais linda do mundo!

- Eu preferiria mil vezes ser feia - replicou ela. - Assim você não iria me querer e nem se aproximaria de mim. Percebe-se logo, observando como vive, que gosta de estar cercado por coisas que lhe agradam a vista.

- Mas me diga então uma coisa, minha querida, você acha que Marcus a teria querido se fosse feia em vez de se parecer com a mulher que ele adorava? Marcus viu em você a réplica de sua mãe. Se fosse diferente, ele com certeza a teria posto num orfanato.

- O que está dizendo é uma crueldade e uma injustiça! - protestou Paula, olhando com ódio para ele. - Marcus tinha coração, não era um demônio como você.

- Você sabia que no inferno não havia uma fúria que se igualasse à da noiva de Satã?

- perguntou sorrindo. - A comida está maravilhosa, como aliás tudo nessa propriedade. Mais tarde vou levá-la para conhecer a fazenda. Vai então ter que admitir que, mesmo não gostando de mim, a fazenda é bonita. E não venha me dizer que não gosta de coisas que lhe agradem a vista, querida!

- Espero gostar do lugar - respondeu Paula, comendo com muito apetite o rosbife com batatas e creme de milho. A carne estava macia e o molho picante dava-lhe um sabor muito especial. Alimentava-se bem, não podia negar, e aos poucos estava se ambientando. Mas só quando se sentisse em plena forma física teria forças para lutar contra este homem.

Paula notou então pela primeira vez o pátio da casa em estilo mourisco, em cujo centro havia uma fonte antiga de mármore verde, de uma perfeição clássica!

Era inegável que havia beleza por toda parte, mas quando olhava para Dom Diablo, via um inimigo em vez de um companheiro querido como fora Marcus. Os músculos de seu pescoço se contraíram, os olhos começaram a arder e teve medo de começar a chorar novamente. Cerrou fortemente as pálpebras e tomou um gole de vinho.

- O sol a incomoda? - perguntou ele. - A claridade vai castigar seus olhos por algum tempo, pois com certeza nunca viu um sol tão forte assim, não é? Quando sair ao sol, Paula, leve sempre um chapéu... Vou lhe dar um de abas largas como se usa aqui, para proteger sua pele clara e delicada.

- Teme que eu fique vermelha como uma beterraba ou que descasque como uma cebola? Se é por isso, fique certo de que farei o possível para me queimar bastante!

- Posso lhe assegurar que uma insolação não seria muito agradável para você, por isso trate de não ser infantil. - Lançou-lhe um olhar irônico e ligeiramente ameaçador. - Se eu souber que saiu ao sol sem chapéu, fique certa de que levará uma lição. Imagino que nunca tenha levado uma surra em toda a sua vida, mas fique certa de que se pretende me desafiar, saindo a cavalo ou a pé sem chapéu, dou-lhe umas palmadas. E quando eu digo que faço, não duvide de mim. Comporte-se como uma criança e será tratada como tal.

- Então quer dizer que isso é uma promessa? - perguntou Paula, levantando a cabeça com ar de desafio. Um empregado aproximou-se então da mesa e disse algumas palavras para seu patrão. Paula não entendeu o que ele disse, apesar de ter aprendido um pouco de espanhol quando passou umas férias com Marcus no sul da Espanha. Don Diablo levantou-se da mesa, desculpando-se e dizendo que voltaria logo. Paula notou pela primeira vez que ele tinha o porte de um toureiro. Podia até imaginá-lo parado com uma espada na mão olhando fixamente para o touro enquanto enfiava a lâmina diretamente no coração do animal. Tinha certeza que ele não hesitaria em fazê-lo e não sentiria o menor escrúpulo ao ver o sangue do anima jorrando na arena.

Dom Diablo afastou-se da mesa com passos largos e silenciosos. Alguns momentos depois o empregado trouxe a sobremesa: era uma torta deliciosa, coberta de fatias de abacaxi e mamão, regada com creme de leite. Paula comeu o doce tranqüilamente. Sentia agora uma deliciosa sensação de paz que, esperava, não fosse interrompida pela presença daquele homem com quem se casara precipitadamente. Ouvia o suave barulho da água na fonte de mármore e o canto alegre dos pássaros coloridos, nas árvores floridas da varanda e do pátio interno. A variedade de aves era enorme, desde colibris até faisões. O lugar certamente era tentador para os pássaros pela exuberância e pelo colorido de suas flores. Os olhos de Paula seguiam o vôo dos beija-flores que saíam e entravam nos viveiros de bambu. A Inglaterra estava tão longe! Seu lugar agora era ali, pois perdera seu lar, sua casa, e não tinha mais para onde ir. Stonehill, com suas pedras cinzas e suas torres, teria sido uma casa triste, se não fosse pela presença de Marcus. Paula jamais se sentiu deprimida na companhia dele. Esta casa mexicana, porém, parecia uma fortaleza, uma prisão dourada. Paula teve maus pressentimentos e concluiu que era preciso arrumar um meio de fugir dali.

Estava imersa nesses pensamentos quando viu Dom Diablo aproximando. Endireitou-se na cadeira e seu olhar despreocupado desapareceu. Sua expressão não escondia sua angústia. Sentia-se desamparada. Era como se tivesse sido arrancada de seu ambiente familiar e levada para um lugar do demônio; Dom Diablo estava com a fisionomia carregada e muito tenso. Sentou-se e esperou imóvel que o empregado lhe servisse um café. Paula calculou que ele devia ter feito alguém passar uns maus bocados. Quando olhou diretamente para ela, como que adivinhando seus pensamentos, Paula conteve a respiração!

- Tive que cumprir uma missão ingrata. Detesto ter que mandar alguém embora! Um dos rapazes que trabalham na cocheira maltratou de tal forma um dos meus cavalos que machucou a boca do animal. Aquele outro empregado que veio me procurar me contou que o cavalo começou a escoicear, encurralando o rapaz num canto da estrebaria e machucando-o muito. Você sabia que um cavalo ferido pode às vezes, ser tão perigoso quanto um tigre?

- Então, e por isso que na Espanha, em certas touradas, usam cavalos para que os touros invistam contra eles, já que maltratados e feridos ficam mais agressivos e perigosos, tornando assim o esporte mais excitante? O povo gosta de ver sangue, não é? - perguntou agressiva.

Dom Diablo não disse nada. Olhou para ela, impassível, e levantando calmamente a xícara, saboreou o café puro, sem açúcar nem creme.

Deve ser amargo como fel, pensou ela, despejando meia colher do creme em sua xícara. Percebeu, então, um rasgão na camisa branca de Dom Diablo, na altura do ombro direito. Calculou que ele tivesse tido que dominar o cavalo enfurecido, afastando-o do rapaz que o maltratara.

- Você já assistiu a alguma tourada? - perguntou-lhe.

- Já, e devo lhe dizer que odiei! -replicou um pouco exaltada. - Senti repugnância pela maneira com que a multidão se comprazia e delirava diante da tortura e do sofrimento dos animais. Não é à toa que os colonizadores, tão abomináveis e cruéis, tenham vindo de um país como a Espanha. Massacrar os pobres índios deve ter sido um passatempo agradável para eles.

- Os índios não eram assim tão indefesos como pensa. Tinham métodos muito refinados de tortura - sorriu. - Um deles era obrigar o prisioneiro espanhol a engolir óleo fervendo ou mesmo ouro incandescente. Creia-me, querida, há traços de crueldade nos homens de todos os países, mesmo no seu.

- Duvido que algum inglês chegue aos mesmos extremos de crueldade que vocês latinos. Eu mesma ouvi você dizer que nós ingleses somos mais moderados.

- Eu estava me referindo ao amor - retrucou Dom Diablo, recostando-se na cadeira de bambu. - Tirou do bolso da calça uma belíssima cigarreira de ouro e acendeu uma cigarrilha escura. Depois de uma tragada, perguntou-lhe com certa ironia:

- Nunca lhe ocorreu que talvez tenha sido uma crueldade de seu tutor deixá-la em minhas mãos? Não estranha o fato de ele ter dado prioridade a valores materiais em vez dos emocionais, preferindo que tivesse um marido rico a um apaixonado? Não venha me dizer que quando você aceitou minha proposta de casamento, o fez por causa do Marcus, por ter sido seu último desejo aqui na terra?

- Foi isso mesmo! - Sua voz soou rouca. - Fiz o que ele desejava, mas agora me pergunto por que o fiz! Às vezes imaginando se alguma vez ele se arrependeu de ter amado tanto Daisy aponto de fechar seu coração a qualquer outra mulher. Talvez o amor tivesse sido para ele uma experiência tão amarga e sofrida que achou melhor que eu não o conhecesse, para não sofrer depois. Conhecendo-o bem, tenho certeza de que ele só poderia ter tentado evitar que eu sofresse uma desilusão; tenho certeza de que seria incapaz de me fazer sofrer deliberadamente.

- Fale-me um pouco de Marcus - pediu-lhe Dom Diablo. - Gostava dele? Encorajou-o até que ele acreditasse que podiam fazer amor juntos?

- Não, não a esse ponto. E não seja tão exigente como os maridos latinos tradicionais

- sorriu meio sem graça. - Se soubesse que eu não era honesta me mandaria embora? Ouvi dizer que os latinos dão uma importância enorme à virgindade de suas noivas! Estou certa que você teria um choque se soubesse que sua noiva não era virgem...

- Se você tivesse se deitado com algum homem antes de mim, eu perceberia logo... - Ele falava com aquela segurança que tanto a irritava.

- Tem certeza de que nunca se engana? É sempre assim, tão seguro de si? - perguntou intempestivamente. - Pensa que foi o único homem que desejou o meu corpo, o meu amor? Quando eu tinha quinze anos, Marcus me contou tudo o que eu devia saber sobre os homens e disse também o que é que eles desejam quando a garota é bonita. Explicou-me que os homens não acham que uma moça bonita precisa ser inteligente. Basta que seja cordata e de preferência sem vontade própria! Em geral, durante as férias, aproveitávamos para viajar por vários países da Europa. Marcus ensinou-me a apreciar a boa pintura, obras de arte, música, a arquitetura dos monumentos e das construções antigas. Ensinou-me a ser mais racional e menos romântica. Assim, quando os rapazes tentavam se aproximar de mim eu já sabia que a maioria deles só queria meu corpo... – Paula sorriu com amargura. - Pode ficar tranqüilo, Dom Diablo. Fez uma boa aquisição, se realmente faz questão de uma mulher ainda virgem. O coração que eu tinha para dar, dei a Marcus. Assim, para você só resta meu corpo, vazio de qualquer emoção. Uma estátua e não uma mulher.

- Então acha que não conseguirei fazer com que se torne uma verdadeira mulher? Você só tem vinte anos e é absolutamente inexperiente, ao passo que eu já era um homem quando você nasceu. Está me desafiando garota, mas sou muito latino para não aceitar o desafio. Vamos ver se consigo ou não dar vida a uma estátua de mármore!

- E se não conseguir? - perguntou com certa impertinência. - Você me deixará ir embora?

- Querida, eu nunca desisto do que é meu!

- Então prefiro contrair alguma doença mortal a ter que passar o resto de minha vida aqui neste país, ao seu lado! - Um silêncio constrangedor se seguiu às palavras insolentes de Paula.

Dom Diablo deu então um murro na mesa, fazendo com que as porcelanas e pratas tremessem. Paula assustou-se e ficou tensa.

- Não ouse mais falar comigo nesse tom, ouviu bem? Isso aqui é solo mexicano e os antigos deuses espreitam nas sombras, ouvindo tudo o que dizemos. Há aqui em casa uma velha feiticeira. Carmenteira, que poderá lhe contar como os deuses antigos atendem mais depressa aos nossos desejos pecaminosos do que aos de santidade! Você fala como se tivesse se casado com o próprio Lúcifer!

- Pois foi o que aconteceu, casei-me com o próprio! - replicou. - Não consigo ver em você outra coisa que não seja o demônio!

Dessa vez, porém, Paula fora longe demais, Dom Diablo não podia aceitar aquilo de sua mulher! Ela passara dos limites e não podia deixar de ser castigada. Levantou-se imediatamente, aproximou-se dela e tirou-a com certa violência da cadeira onde estava sentada, puxando-a para junto de seu corpo forte e poderoso. O calor que emanava do corpo dele invadiu-a, provocando-lhe uma sensação estranha. Ele apertou com força os braços de Paula que, ao se sentir machucada, gemeu de dor e começou a lutar como um animal selvagem, chegando a lhe dar um pontapé. Mas, como se nada sentisse, Dom Diablo a apertou ainda mais contra seu corpo másculo. Segurando seus cabelos loiros entre seus dedos finos, inclinou a cabeça de Paula para trás, fazendo-a gemer novamente. Apesar de ela continuar lutando, procurou-lhe os lábios com uma paixão selvagem que não admitia recusa. Seus braços fortes a subjugavam enquanto a obrigava a ceder ao seu beijo. Inclinou então sobre ela o corpo forte e dominou-a completamente. Paula evitara sempre qualquer tipo de intimidade com os homens que se haviam aproximado dela. Divertia-se à custa deles fugindo e evitando-os. Sabia que se um dia se encontrasse numa situação difícil, Marcus estaria sempre por perto, pronto para defendê-la.

Agora não tinha a quem pedir ajuda: ninguém que a protegesse desse homem terrível, tão diferente dos jovens ardentes e esperançosos que a cortejavam. Mas Dom Diablo tinha todos os direitos sobre ela: o de abraçá-la, beijá-la e de fazer dela o que bem entendesse...

De repente, percebeu que estava sendo carregada. Ele a estava levando para o quarto. Sentiu-se então invadida de uma raiva incontrolável. Fincou os dentes, como uma víbora, em seu ombro musculoso até sentir o gosto de sangue. Oh, Deus, ela o mordera como se fosse um animal! Sentiu-se então tomada por dois sentimentos contrastantes: a alegria de tê-lo machucado misturado com o pavor de sua vingança!

- O que está fazendo? - Ela lutava em vão para se libertar de seus braços vigorosos que estreitavam como se fossem cordas, imobilizando-a. - Para onde está me levando? Para onde, diga-me?

Encarou-a rapidamente enquanto subia a escada. Paula tentou se agarrar ao corrimão de ferro batido, mas por fim desistiu.

Fitou então os olhos dele e teve vontade de gritar. Jamais em toda sua vida vira um olhar tão fulminante!

- Não é suficientemente mulher para adivinhar? - perguntou, irônico. Paula sentia-se desfalecer enquanto ele se dirigia ao quarto que ela ocupara a noite anterior... sozinha. Na véspera, apesar quarto dela ser pegado ao seu, ele não a procurara, não a tocara... Agora porém seria diferente! A porta estava aberta. Colocou-a sobre a cama e voltou até a porta, trancando-a a chave.

Paula afastou o cabelo do rosto e olhou para ele apavorada, compreendendo o que ia acontecer. Sentiu-se paralisada quando ele se aproximou da cama. Os olhos negros de Dom Diablo pareciam lançar flechas de fogo sobre seu corpo. Estava imóvel, como que entorpecida. Ele então desabotoou a camisa e atirou-a longe. Em um de seus ombros via-se claramente a marca dos dentes de Paula. Suas calças, muito justas ressaltavam seus quadris estreitos e as pernas. Ele ficou parado, observando-a. Quando finalmente a tocou, trouxe-a de volta à vida... Paula sentia-se novamente viva! Recomeçou então a lutar com uma fúria desesperada, o que parecia provocá-lo ainda mais. Seus dentes alvos brilhavam enquanto que com seu corpo forte ele a dominava de um modo quase diabólico, imobilizando-a na cama.

- Que é isso, minha mulher! Essa não é a melhor maneira receber o marido...

- Vá para o inferno! - respondeu Paula, virando a cabeça rapidamente. Os lábios dele começaram então a acariciar-lhe o pescoço. Os sentidos de Paula se aguçaram e por um momento pareceu estar de novo naquela igrejinha na Inglaterra, onde o cheiro das velas se misturava com o perfume das flores. Se ela esperava que nunca despertaria daquele sonho ou pesadelo, sabia agora que estava enganada. O casamento não era feito só de palavras, de um par de alianças e um livro de orações, mas antes de tudo, de um homem e de uma mulher.

- Minha querida, pensou então que eu fosse o demônio? - E sem hesitar esmagou-lhe os lábios num beijo sensual.

 

Passaram-se muitas horas até que Paula acordou. Estava só em seu quarto, agora totalmente escuro. Continuou imóvel, sob os lençóis de seda, e pouco a pouco voltou-lhe à mente o que acontecera. A quietude do quarto tornou-se então um tormento. Começou a chorar, e voltou-se escondendo o rosto no travesseiro, ainda impregnado com o cheiro do charuto de Dom Diablo. Teve um sobressalto como se fosse atingida por uma chicotada. O aroma masculino trazia-lhe lembranças violentas. Sentiu uma onda de calor envolvendo-a dos pés a cabeça, transformando-se depois em arrepios de frio. Estava angustiada, doíam-lhe o corpo e a alma...

Não conseguira evitá-lo. Suplicara, se humilhara, fincara-lhe as unhas na pele, mas mesmo assim ele a possuíra. Fizera da virgem inexperiente, sempre protegida por Marcus, uma mulher! Ali deitada, imóvel, sentia ainda na ponta dos dedos, a pele morna de seu dorso másculo... Um corpo belo, sem dúvida alguma, terrivelmente belo!

Tinha até medo de pensar... Fechou os olhos e desejou morrer. Se houvesse uma faca à mão poderia tê-la cravado em Dom Diablo. Só assim conseguiria sair daquele lugar, longe de tudo o que amara, sem uma só pessoa a quem pudesse pedir auxílio em seu desespero. Oh, Deus, como se sentia impotente e covarde! Sentou-se na cama e abraçou os joelhos. Casara-se com ele sabendo desde o princípio que ele pretendia ser um marido e não um tutor. Na igreja ouvira-o falar em dedicação e obediência... Paula começou a tremer novamente e cerrou os dentes como um animalzinho selvagem.

- Eu o detesto, Dom Diablo! - Suas palavras ecoavam na escuridão. - Detesto seus olhos negros e sobretudo seu coração negro!

E como com a escuridão do quarto, tomavam-se ainda mais vivas e desagradáveis as lembranças daquela tarde, virou-se para a mesa de cabeceira e acendeu o abajur. Olhou para o travesseiro ao lado, onde ainda se via a marca da cabeça de Dom Diablo. Era insuportável pensar que ele estivera ali, que a possuíra!

Tentou pensar em outra coisa. Deixou que seu olhar vagasse pelo quarto e começou a descarregar seu ódio contra a decoração. Encontrou mil defeitos, embora fosse do maior bom gosto. Até uma certa altura, as paredes eram revestidas de lambris. O resto da parede, pintada em amarelo-ouro, realçava a madeira escura e finamente trabalhada dos armários e da penteadeira. O tecido das cortinas era alegre e florido com os mesmos tons de amarel0-0uro e marrom, e a parede que fazia fundo para a cama era revestida com o mesmo tecido das cortinas. O luxuoso tapete de vicunha era espesso e aconchegante. Na penteadeira havia um jogo completo de frascos de cristal muito elegante, uma pequena caixa de ouro com a tampa finamente trabalhada e um jogo de escovas e pente, de marfim. Um quarto muito feminino, sutilmente decorado para excitar o homem que ali entrasse. Era evidente que ao sair de seu quarto, muito sóbrio, Dom Diablo se sentisse estimulado por esse ambiente tão íntimo, essa gaiola dourada, essa delicada prisão...

O perfume dele ainda persistia no lençol de seda que a envolvia. No tapete estavam ainda a camisa rasgada de Dom Diablo, suas calças viradas do avesso, a calcinha e o sutiã de Paula... Estava confusa. Queria se levantar, se vestir, mas se sentia indolente, um pouco atordoada, ainda em estado de choque, sem coragem de ver outras pessoas. Só de pensar que teria que enfrentar Dom Diablo novamente, já era o bastante para entrar em pânico. Não! Morreria se tivesse ver outra vez aquele selvagem, aquele demônio! Ele murmurara seu ouvido, segurando seu cabelo:

- Agora sou seu marido, querida! Agora você é minha mulher!

Sentia-se trêmula, tentando fugir dessa realidade que era obrigada a aceitar, quando a porta do quarto se abriu subitamente. Paula assustou-se, mas logo se acalmou ao ver que era a velha Carmenteira. O olhar da velha ia de Paula encolhida na cama desarrumada, para as roupas jogadas no chão. Logo depois perguntou:

- Então a patroazinha orgulhosa aprendeu a sua primeira lição? - Estendeu-lhe em seguida, um copo e disse: - Suco de maracujá, senhora, doce e gelado como os homens querem que as mulheres sejam, às vezes...

Paula tomou o suco, pois estava com uma sede terrível. Não pretendia, porém, aturar a insolência daquela velha só porque ela vivia na casa há tantos anos. Carmenteira era temida e considerada por todos com uma espécie de bruxa.

- Obrigada por ter me trazido o suco - disse Paula friamente. - Não quero mais nada, pode ir, agora.

- Vim para ajudá-la, senhora. Queria me certificar de que está bem, depois irei embora.

- Carmenteira abaixou-se então para as roupas jogadas no chão. - Uma mulher de verdade não deveria usar calças compridas, principalmente quando está com seu homem. É muito pouco feminino. A senhora não percebe que Dom Diablo é o homem? A mulher ou é bem mulher ou então não lhe interessa - observou a velha. Seu olhar era penetrante e um pouco caçoísta, olhar de quem vira muitas coisas ao longo da vida. Acercou-se da cama e com a mão enrugada tocou o braço de Paula, onde se via uma mancha roxa. Carmenteira tocou nela com todo o cuidado.

- Eu me pergunto ainda, por que ele escolheu uma mulher tão jovem e branquinha como você, mas agora começo a compreender...

- Talvez tenha sido só para me magoar e atormentar, pois estou certa de que não me ama - respondeu Paula.

- Amor? - Carmenteira sorriu com desdém. - O que é amor?

A gente pode amar um gato, uma planta, um livro! Entre um homem e uma mulher deve haver mais do que amor, deve haver paixão, luta... O vencedor é aquele que perde. A senhora sem dúvida era virgem, senão ele não se casaria... O suco de maracujá lhe fez bem não é? Refresca e acalma. Depois do amor uma mulher necessita de três coisas: um suco gelado, um bom chuveiro e qualquer coisa para esconder sua nudez. Não é verdade, senhora? Não sou tão velha assim a ponto de ter esquecido as chamas e os arroubos da juventude.

- Não tenho a menor vontade de falar sobre isso - disse Paula meio envergonhada. Se a velha empregada sabia o que se passara neste quarto, o resto do pessoal também devia saber! Ficou irritadíssima e deu vazão à sua irritação.

- O que está esperando Carmenteira? - perguntou Paula. Será que todos os que vivem sob o domínio de Dom Diablo esperam que eu pendure os lençóis na entrada da fazenda, para se certificarem que ele escolheu uma noiva virgem?

Ao ouvir esta explosão de ira, Carmenteira olhou para Paula quase com simpatia.

- Os ingleses preferem não falar dessas coisas, não é? Envergonha-se de uma velha como eu, como se eu estivesse invadindo a intimidade de seu quarto, não é? Fique tranqüila, senhora, não se enerve tanto! Foi Dom Diablo quem me mandou aqui. Talvez a senhora não saiba que fui a criada pessoal de sua velha mãe. Cuidei dela até o dia de sua morte e agora tomarei conta da senhora.

- Nunca! Posso perfeitamente cuidar de mim mesma sem precisar de sua ajuda - Paula puxou os lençóis, cobrindo totalmente o corpo. - Vá e diga a Dom Diablo que não o quero aqui, nem ele nem ninguém desta casa amaldiçoada por Deus. Diga-lhe que o odeio e tudo o que ele representa: orgulho, arrogância e crueldade. Desejaria vê-lo morto embaixo da terra!

Desta vez Carmenteira afastou-se bruscamente da cama e se benzeu. Olhava horrorizada para Paula.

- Uma esposa não deve dizer essas coisas do marido! – Suas palavras e o tom de sua voz não escondiam sua reprovação. – O demônio pode ouvi-la e então...

- Pelo que me consta Dom Diablo é a personificação do demônio! Agora saia daqui e me deixe sozinha! Pelo amor de Deus, volte para suas bruxarias e talvez você faça algum feitiço para que eu possa escapar das garras deste homem, por bem ou por mal...

- Não deve falar assim, senhora! - A velha parecia escandalizada. - Há dezenas de mulheres em todo o México que, não só gostariam, mas se orgulhariam muito de ser casadas com Dom Diablo. Ele é dono de propriedades imensas, é poderoso, tem todas as qualidades de um homem, para poder proporcionar prazer a várias mulheres ao mesmo tempo, quanto mais a uma só! Deveria se sentir lisonjeada e honrada...

- Lisonjeada? - Paula riu com ironia. - Sinto-me insultada e degradada, isso sim. Ele nem ao menos finge ter um pouco de afeição por mim. Vê em mim só a fêmea, pois a parte animal é dominante nele. É disso que as mulheres mexicanas sentem orgulho? Serem meros objetos para a satisfação dos instintos do seu senhor? - Paula falava quase com exasperação. - Oh! Deus, não podia pensar nisso, ficava desesperada só de mencionar a palavra senhor! Não havia nada pior do que ser usada sem ser amada! - Paulo afastou-se da velha Carmenteira, escondendo o rosto sob os cabelos longos, pois Marcus gostava deles assim.

Marcus! Oh! Se Marcus fosse vivo, se ele pudesse ajudá-la agora! Ficara tão orgulhoso por ter-lhe arranjado um marido rico! Como ele pudera ter se deixado cegar pela fortuna de Dom Diablo a ponto de não perceber que tipo de homem era ele? Arrogante, egoísta, preocupado somente em satisfazer os caprichos de sua imaginação depravada... Mas não conseguia apagar a lembrança daquele corpo moreno e quente, dos braços fortes e envolventes que a impediam de escapar... dos lábios sensuais esmagando sua boca e transformando seus gritos em gemidos...

- Vá embora! - repetiu ela. - Deixe-me sozinha!

- Não fará loucuras, senhora?

- Loucuras? - Paula sorriu. - Será que eu poderia fazer uma loucura maior do que ter me casado com Dom Diablo?

- Há uma sacada lá fora, perto do desfiladeiro, e as mulheres desta casa já fizeram loucuras antes. Saiba, porém, que as lajotas do pátio são mais duras que uma cama conjugal mesmo sem amor. Seria uma pena estragar seu corpo tão alvo e tão belo, pois até agora Dom Diablo só lhe deixou pequenas marcas.

- Não se preocupe - respondeu. - Eu o verei morto antes de fazer qualquer loucura!

- Bem... eu vou indo - disse Carmenteira, como se tivesse desistido de convencer esta mulher que não pertencia a seu povo. - A senhora gostaria que eu lhe mandasse uma das empregadas para ajudá-la no banho e preparar o vestido da noite?

- Estou bem assim, não preciso de ninguém - Paula estremece ao pensar na noite que tinha pela frente. - Estou habituada a cuidar de minhas coisas e não pretendo ser ajudada como se fosse uma menininha indefesa. Diga ao seu senhor que eu prefiro ficar aqui no meu quarto...

- Pois não, senhora. Eu lhe transmitirei este recado, mas não o outro que deseja vê-lo morto... Acho que não seria muito delicado...

- Por acaso ele merece qualquer delicadeza? - replicou. – Acho que não!

Após alguns instantes ouviu a porta fechar. Carmenteira se fora. Paula deu um suspiro de alívio. Que bom estar sozinha outra vez! Enrolou os lençóis ao redor de seu corpo nu, dirigindo-se ao banheiro, onde degraus de mármore verde-claro levavam a uma banheira retangular, uma espécie de pequena piscina. As torneiras eram de prata de lei! Paula desceu os degraus, deixando o lençol cair a seus pés. Ao pôr o pé na água morna, viu sua imagem refletida no espelho que revestia toda a parede. A imagem parecia um pouco nublada pois o vapor da água embaçara o espelho. Parecia-lhe estranho que sua aparência não houvesse mudado; a não ser as manchas e o cabelo loiro desarrumado, continuava a mesma Paula. Ao passar lentamente as mãos sobre seus quadris teve um sobressalto, lembrando-se de repente que agora poderia ter um filho... um filho de Dom Diablo , filho de Satã... filho do ódio em vez do amor...

Paula entrou rapidamente no banho. Pegou um frasco cheio de líquido oleoso e perfumado e despejou um pouco na água. Imediatamente se formou uma espuma branca e leve da qual se desprendiam inúmeras bolhas. Alcançou uma esponja e começou a se esfregar vigorosamente, como se quisesse se livrar do perfume de Dom Diablo... Se ao menos pudesse apagar as marcas, o estigma da sua posse... Se pudesse sair do banho a mesma jovem inocente e virgem como quando ali chegara... Mas não, nunca mais seria a mesma! Os bons tempos ficaram para trás. Nunca mais ouviria a conversa dos homens que jogavam cartas na biblioteca de Stonehill, suas risadas, seus olhares de admiração, sempre porém, sob a vigilância e a proteção de Marcus. Parecia uma ironia o fato de ela ter sido tão protegida por Marcus contra homens relativamente inofensivos, sendo depois entregue por ele a um tipo como Dom Diablo. Era imperdoável!

Quando terminou o banho, encontrou um roupão atrás da porta e vestiu-o. Era comprido demais para ela. Percebeu logo que era um roupão de homem e o teria tirado imediatamente se tivesse outra coisa à mão. Com os lábios cerrados, olhou-se no espelho e enrolou as mangas, um pouco compridas. Afinal, seu roupão era menos íntimo do que o toque de sua pele! Ao pensar nisso, sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo; sentiu-se enrubescer e suas pernas tremiam quando se dirigiu ao quarto.

Quanto tempo levaria para esquecer tudo o que acontecera? Quando seus olhos deram com a desordem do quarto, a cama desarrumada, percebeu que jamais poderia esquecer! Dom Diablo pareceu hipnotizá-la com aquele olhar forte e firme. Foi então que ele a possuiu várias vezes para satisfazer sua arrogância e seu orgulho. Como poria esquecer aquele corpo flexível e lânguido, ao mesmo tempo? Parecia um felino se estirando a seu lado, prendendo-lhe a mão ao redor de seu pescoço musculoso, fazendo sentir intensamente o contanto com sua pele. Uma pele dourada e quente.

Paula cobriu os olhos com as mãos, mas a lembrança desses momentos não se desvanecia. Foi então até o armário, olhando sem o menor interesse para as roupas penduradas. Antes de saírem da Inglaterra, no dia anterior à cerimônia do casamento, Dom Diablo a levara a uma grande loja em Londres e lhe comprara um belíssimo e completo enxoval: lingerie, vestidos, sapatos e acessórios. Ali estava tudo, impecavelmente arrumado nos armários forrados de cedro perfumado, mas Paula não sentia o menor entusiasmo, nenhuma vontade de usar o que o marido comprara para ela.

Não precisava se vestir, já que decidira ficar no quarto. Comeria o que a arrumadeira lhe levasse na bandeja. Apanhou do cabide um dos vestidinhos simples que trouxera de Stonehill. Vestiu-o, e estava para puxar o zíper, quando alguém abriu a porta do quarto sem a menor cerimônia. Ao ouvir o barulho, pensou que fosse Carmenteira ou uma outra empregada mandada por ela.

- Pode me ajudar aqui com o zíper, por favor? - pediu Paula sem se voltar. Mas a mão que puxou o zíper não era feminina. A voz chegou até ela como uma chicotada!

- Para a nossa primeira noite juntos aqui na fazenda vai usar algo mais elegante, minha querida. Um daqueles vestidos que eu lhe dei e que não lhe traga recordações de outros homens!

Paula ficou imóvel, as mãos dele pousadas em seus ombros, mão que não a pouparam quando ela lhe suplicara... Pensar que tiver que implorar, esquecer seu contato impassível como uma estátua!

- Eu gostaria de ficar aqui no quarto - disse ela. - Pedi a Carmenteira que lhe avisasse.

- Sim, ela me avisou. Mas você se esqueceu de que estou habituado a ser obedecido?

- Segurou Paula pelos ombros, fazendo com que o fitasse nos olhos. Apesar de sentir todos os nervos de seu corpo se contraírem, ela o enfrentou, mantendo o olhar altivo e cheio de dignidade. Percebera que ele gostava de lutar por ela e não faria nada voluntariamente para agradá-lo.

Olhou para ele, sentindo-se muito corajosa por enfrentar aqueles olhos negros que a conheciam melhor do que qualquer outro homem. Deu-se conta outra vez da intensidade daquele olhar que fizera com que sucumbisse a uma paixão que lhe parecera quase diabólica. Ficou mais tensa ao notar a elegância de seu jaquetão branco, vislumbrando na camisa branca rendada, o brilho dos botões de jade que combinavam com as abotoaduras. Parecia vestido para uma festa de casamento, e Paula concluiu que para ele talvez houvesse realmente algo a celebrar.

- Não estou com a menor vontade de participar de um janta festivo só para nós dois. Prefiro jantar sozinha.

- Está se comportando como uma gatinha mimada. Pensei que tivesse corrigido essa sua tendência a infantilidade e feito de você uma mulher. - Segurou seu queixo, obrigando-a a levantar a cabeça até que ela olhasse para seu rosto moreno. Toda a sensualidade desaparecera dos lábios de Dom Diablo. Ele agora parecia mais austero e distinto. Seus olhos se detiveram no rosto de Paula, inquisitivos, observando seus traços finos e bem delineados, a pele macia, os lábios naturalmente vermelhos, sem precisar batom para embelezá-los, pois ainda estavam sob o efeito de seus beijos sensuais. Os lábios rosados de Paula faziam um belíssimo contraste com a palidez de sua tez.

- Está se sentindo bem? - perguntou ele. - Procure entender, Paula, que eu não me casei com a intenção de ser somente seu tutor.

- Sei muito bem porque se casou comigo - replicou ela. - Nunca me iludi pensando que pretendia ser bom, mesmo antes... de me possuir! Pelo menos agora se certificou de que Marcus cuidou bem de mim...

- Concordo, querida - passou os dedos longos pelo contorno de seu rosto que continuava impassível e frio. - Será que é tão criança a ponto de não compreender o que é que faz com que os homens ajam dessa forma?

- Compreendo bem por que se comporta dessa forma. Ninguém nunca se opôs à sua arrogância e ao seu egoísmo, senhor! – Frisou a palavra senhor, como se se dirigisse a um estranho. - Seria pois um milagre pensar que uma jovem de vinte anos, como eu, pudesse enfrentá-lo. Pelo menos desta vez encontrou uma mulher que não quis seu amor, que não teve prazer em ir para a cama com você. Deve ter sido uma experiência diferente, pois, pelo que me contou Carmenteira, as mulheres daqui consideram uma honra partilhar o leito de Dom Diablo!

- Mas, afinal, o que eu significo para você? - perguntou.

- Você é apenas meu dono, meu domador que usa sua superioridade física para provar sua superioridade de macho. Se precisa usar força física, Dom Diablo, é porque não confia em seu próprio charme! Será que seu instinto lhe diz que só conseguirá me possuir pela força?

- É melhor que se modere, Paula - disse ele, tentando não ser rude. - Sabia que quando fica zangada, torna-se ainda mais encantadora? Na verdade, pouco me importa o que você pensa de mim. - E com estas palavras, segurou a gola do vestido de Paula, despindo-a em seguida, quase com violência. Primeiro ele rasgou a blusa azul e agora o vestido cor de mel que ela gostava tanto!

- É um selvagem, um bruto! - gritou ela com ódio, esquecendo-se de que resolvera manter-se fria. Tentou dar-lhe uma bofetada no rosto mas os dedos firmes de Dom Diablo quase quebraram o pulso frágil de Paula. Estava agora totalmente despida. Sentia-se ridícula e indefesa!

- Se quer uma briga, Paula, então vamos brigar - disse ele, os olhos brilhando e segurando-a firmemente enquanto aproximava seu rosto do dela. - Sabe como vai acabar, não sabe? Será que é isso o que quer, estar de novo em meus braços, completamente à minha mercê?

- Prefiro morrer! Eu o odeio, você sabe disso! Viver com você é como viver com o próprio Satanás!

- Pelo menos a vida nunca será monótona para você, não é mesmo, minha garotinha mimada? - Conduziu-a então ao armário onde começou a procurar um vestido longo. Finalmente escolheu um de rendas verde-esmeralda e estendeu-o a Paula.

- Quero que vista isto e não admito discussão. Será que precisa de ajuda ou prefere vesti-lo sozinha?

- Que pena que o vestido não seja de renda branca, pareceríamos dois pombinhos comemorando seu feliz enlace...

- Não seja sarcástica, querida, não combina com você. – Apoio-se no batente da porta do quarto e ficou observando-a enquanto se vestia. O vestido de renda moldava-lhe maravilhosamente o corpo. Dom Diablo seguia todos os seus movimentos com os olhos. Paula sentiu-se enrubescer. Sabia exatamente o que ele estava pensando naquele momento. Pensava nos momentos em que a tivera nos braços nas sensações que sentira. Notou então que se acentuara a sensualidade de seus lábios e percebeu que ele ansiava por acariciar novamente com os lábios sua pele alva e macia. Ficou mais uma vez vermelha e também amedrontada.

- Na verdade eu não aprecio muito o verde, não é uma cor que me favorece - disse ela.

- Pelo contrário! - respondeu Dom Diablo, a mão enfiada no bolso do paletó muito branco que contrastava com as calças pretas, impecáveis, - O verde é a cor das louras! Acho até que dá realce ao seu cabelo loiro e aos olhos dourados, Quer que a ajude com os colchetes?

- Não precisa, obrigada, eu me arranjo sozinha, - Suas mãos tremiam enquanto prendia os colchetes do vestido, muito justo na cintura e acentuando seus quadris. Na verdade era um belo vestido, mas ela não queria ficar bonita! Não queria usar nada que houvesse sido comprado por ele! Paula foi então até a penteadeira e pegando a escova começou a passá-la vigorosamente pelos cabelos sedosos. Podia ver a figura de Dom Diablo refletida no espelho. Ele a observava e, de repente, assaltou-a a certeza de que ele era seu dono, assim como era dono daquela casa, daqueles móveis, de todos os objetos de cristal e prata que estavam em cima da penteadeira,

- Abra a caixa de prata e tire o que está dentro - ordenou.

Paula fingiu que não ouviu, mas olhou para a caixa com certa curiosidade, A caixa em si era uma obra de arte; devia ser muito antiga e de origem mexicana. Ela se concentrou no penteado, tentando fazer um coque baixo, na nuca. Era o penteado preferido de Marcus. Sentiu uma súbita tristeza ao se lembrar de Marcus. Terminou de ajeitar o cabelo e olhou de novo no espelho. Ficou satisfeita, pois apesar de muito magoada sua dor não se refletia em seu rosto. Sentiu porém que seus nervos se retesaram quando através do espelho, viu que o marido se aproximava dela. Sua figura alta a intimidava. Ele procurava por seus olhos, mas Paula não conseguia desviar os seus do espelho!

- Abra a caixa - repetiu ele. Falava devagar, em tom quase ameaçador. Paula se sentia perturbada só de ouvi-lo falar. Seus nervos se alteravam, sentia-se como uma mariposa atraída pela luz... - Não está curiosa para saber o que há dentro? Talvez seja uma serpente venenosa para você levar sob o seio, nunca se sabe...

- Você não seria tão generoso - respondeu Paula, - Ainda não me torturou o bastante...

- Sua tola! - As mãos dele desceram pelos seus quadris, estreitando-a fortemente contra seu corpo másculo. Os dois refletidos no espelho pareciam uma só pessoa. Quando as mãos dele começaram a lhe acariciar os ombros, segurando-a com firmeza, o coração de Paula começou a bater descompassadamente.

- Então, foi assim tão ruim? - perguntou ele. Ela sabia o que ele queria dizer! Seu corpo então começou de novo a queimar. Queria fugir, se esconder dele...

- O que você acha? Como acha que estou? - Sua voz era quase um murmúrio. - Sabe que estou toda machucada? Carmenteira viu as marcas. Olhou para elas como se fossem condecorações pelo grande feito de meu marido! Eu não estava habituada nem à força nem à brutalidade, mas parece que agora terei que me habituar a isto!

- Você me disse que era feita de mármore e, afinal, o mármore não mancha com tanta facilidade...

- Então olhe para isto. - Levantou o braço e lá estava, logo acima do cotovelo, uma mancha roxa. Apertando o braço dela, Dom Diablo inclinou a cabeça, e beijou a mancha. - Basta que alguém a toque para manchá-la, minha querida. Nunca em minha vida conheci uma mulher com uma pele tão alva e tão fina como a sua. Veja a minha, faz contraste com a sua...

- A sua é escura como a de um selvagem - retrucou Paula. - Não é uma tradição dos selvagens, o marido tomar a mulher à força depois do casamento? Maltratá-la e pisar por cima dela como se fosse um tapete só para provar que é o mestre e senhor?

Ele deu uma risada sonora.

- Você daria um tapete muito frágil e não lembro absolutamente de ter pisado em você!

- Ora, sabe muito bem o que quero dizer, por isso não deturpe os fatos. - Estremeceu ao sentir aquelas mãos que a apertavam mais forte, a sensualidade daqueles olhos negros, ardentes como uma fogueira. Havia suficiente força em suas mãos para parti-Ia ao meio. Ao se apoiar nele, Paula sentiu o quanto ela era frágil e o quanto essa fragilidade parecia exacerbar seus impulsos primitivos.

- Afinal, por que hesita tanto em abrir aquela caixa? - perguntou

- Quem sabe você pôs aí dentro alguma bijuteria para me pagar pelos serviços prestados?

- Minha querida, você parece estar querendo ser beijada ou espancada... Escolha!

- Acho que prefiro a bijuteria - disse ela, pegando a caixa de prata toda trabalhada com exóticos motivos tropicais. - É asteca? - perguntou.

Dom Diablo concordou com a cabeça. Ele próprio parecia uma figura de bronze asteca. Seu rosto continuava impassível, quando Paula levantou a tampa. Paula tinha quase certeza que era uma jóia, porém nunca imaginara que fosse tão refinada, tão original. Era a réplica perfeita de uma libélula, inteiramente montada em ouro, diamantes e esmeraldas.

- É bonito, não é? - perguntou ele.

Paula teve um sobressalto ao ouvir-lhe a voz, pois estava como que hipnotizada pela jóia...

- Muito bonito - concordou. - As pedras são verdadeiras?

- Acha que eu iria presenteá-la com pedras falsas? - retrucou. - Foi desenhada e executada por um índio velho que caça no desfiladeiro, logo abaixo da fazenda. Quando veio me oferecer o broche, perguntei-lhe como conseguira as pedras. Não me disse. Suponho que ele as tenha encontrado em alguma mina ou assassinado alguém para roubá-las. O velho índio queria vendê-las a fim de dar um dote à filha que estava para se casar. Como você já observou, eu gosto de coisas que me dão prazer aos olhos e quando gosto de alguma coisa, quero-a para mim. Este broche irá muito bem com seu vestido de renda verde. Coloque-o à esquerda, ao lado do coração...

Paula não ousou desobedecê-lo, pois percebeu pelo olhar dele que não admitiria ser contrariado. Além do mais a jóia era realmente lindíssima e de muito valor, apesar de ele ter insinuado que o velho índio havia usa o meios desonestos para obtê-la.

Sentiu que suas mãos tremiam quando retirou o broche da caixa. Dom Diablo, ao percebê-lo, tomou sem hesitar a jóia das mãos de Paula e colocou-a ele mesmo acima do seio esquerdo, no lugar que ele indicara. Era como se as batidas de seu coração pudessem fazer palpitar as asas da libélula, transmitindo-lhe vida. Paula sentiu o calor dos dedos de Dom Diablo; ele estava muito perto... Lutava para não sentir prazer no contato com o corpo dele. Muitas sensações lhe vinham à mente quando o tocava, quando aspirava o seu perfume...

Ficou muito quieta, embora tensa. Umedeceu então os lábios secos com a língua.

Certamente ele está esperando pelo agradecimento, pensou ela. Dom Diablo, porém, acariciou-lhe o rosto e disse:

- Uma pequena lembrança por ser tão bonita e complacente em meus braços... Você é tão perfeita e bonita, querida, como esta jóia... O palpitar das asas da libélula quando paira no ar, é tão fantástico como o palpitar do meu sangue quando olho para você. Eu a quis desesperadamente, desde o primeiro instante em que a vi em Stonehill, e agora você é minha, não é verdade?

- Sou, mas só por enquanto, Dom Diablo! - respondeu Paula.

- Pelo tempo que eu quiser - disse ele retomando o tom arrogante. - E agora vamos descer, quero apresentá-la às pessoas mais importantes desta propriedade. Você tem muita dignidade e beleza quando não está lutando comigo com unhas e dentes.

Paula desceu com ele a escadaria de mármore, apoiando-se no corrimão de ferro batido, relembrando o medo que tivera nesta mesma tarde quando ele impetuosamente a carregara nos braços até o quarto. Segurou forte o corrimão, para não cair. Ao pé da escada, no grande saguão, havia uma multidão de mexicanos.

Era uma cena quase feudal, sem nenhuma relação com o mundo do qual ela viera e no qual vivera até então. Em Stonehill havia vários empregados, mas aqui havia famílias inteiras vivendo sob o domínio de Dom Diablo, patrão e senhor de todos. O dono de Paula, seu marido demoníaco e dominador!

 

A fazenda parecia tão isolada lá no alto, tão distante do resto da civilização à qual estava habituada, que Paula se admirou quando uma manhã, após o café, Dom Diablo sugeriu que fossem juntos até a cidade. A mesa fora posta no pátio e dali se via a torre da capela. O zumbido das abelhas e o canto dos pássaros conferiam um certo mistério ao ambiente. Nunca a luz do sol fora tão dourada, nem as sombras tão escuras.

As pétalas das flores de laranja jaziam esparsas nas lajotas do pátio. O calor fazia com que os eucaliptos e as flores dos pés de maracujá exalassem um aroma forte. Paula, parada sob um arco, observava Dom Diablo. Gostaria de saber por que ele vestira aquele terno cinza-claro que lhe assentava como uma luva e lhe conferia uma certa dignidade, tomando-o ainda mais charmoso. Triste engano! Pensou Paula. Atrás de todo esse charme, ocultava-se um homem sem piedade, com quem se casara há cinco longas semanas.

- Estamos há muitos quilômetros da cidade? - perguntou Paula

- Só se for em lombo de jumento. Um carro rápido cobre esta distância em pouco tempo. Imaginei que talvez você gostasse de dar uma espiada nas lojas, comprar alguma coisa como doces, discos, perfumes ou quem sabe livros ou revistas, enfim essas futilidades que as mulheres adoram.

- Quanta generosidade, senhor! - Mesmo depois de estar casa há cinco semanas, Paula não conseguia se dirigir a ele normalmente como seu marido. Via nele apenas o tirano a quem sucumbira durante uma crise de depressão após a morte de Marcus. Ele era seu dono, isso era tudo.

- Só por isso, minha querida? - disse ele, levantando as sobrancelhas negras e fitando-a com seus olhos penetrantes e possessivos. Paula usava um vestido turquesa sem mangas com a libélula presa ao lado esquerdo. O sol fazia as pedras cintilarem. Usava sempre o broche, pois era como se fosse o símbolo de seu desejo de voar em liberdade. Tinha esperanças de algum dia fugir para bem longe dali e daquele homem a quem as leis da igreja a obrigavam a obedecer. Afinal poderia vender a jóia por um bom preço e com o dinheiro partir para onde quer que fosse. O broche nada representava para ela, já que não lhe fora dado como prova de amor...

- Preciso ir à cidade ver meu advogado. Se quiser pode vir comigo - disse ele. - Vou confiar em você, minha querida, e espero que se divirta nas lojas e não me desaponte. Espero que não lhe passe pela cabeça nenhuma idéia absurda, como por exemplo, fugir. Devo preveni-la que isso seria quase impossível, pois ninguém daqui lhe alugaria um carro e além do mais a estação ferroviária mais próxima fica além das montanhas. - Apontou então para os picos azulados e distantes guardiões de seu reinado. Quando se aproximou mais, Paula sentiu-se tensa, apoiando-se na coluna da arcada. Seus nervos ficavam sempre à flor da pele cada vez que pressentia que Dom Diablo ia tocá-la. Já devia ter se acostumado ao contato de suas mãos, mas cada vez que isto acontecia ela ficava em pânico e com um desejo violento de esmurrá-lo.

- Ser muito cordata chega a ser monótono, querida. Quando eu a toco parece que estou acariciando uma leoa, pronta para me atacar e me arrancar os olhos. Olhe, tive uma idéia: Há uma praia perto da cidade, onde poderíamos nadar depois. O que é que você acha?

Só em pensar na água azul e gelada do mar, nas ondas relaxantes, Paula se entusiasmou. Sentia-se como uma criança a quem se dá um presente, após um castigo injusto.

- Está falando sério?

- Será que precisa olhar para mim como se eu acabasse de lhe conceder um momento de liberdade, fora das grades de uma prisão? - perguntou ele. - Claro que estou falando sério. Você tem um maiô?

- Acho que sim. Não se se lembrava mais o que pusera dentro das malas, nos últimos três dias em Stonehill. Raramente olhava para as roupas que ele lhe comprara. Vestia-se simplesmente, sem se enfeitar muito nem se preocupar com os acessórios. Procurava não parecer muito atraente. Aprendera a duras penas que sua beleza despertava o animal que se escondia no corpo e na alma de seu marido. Vestindo-se simplesmente, procurava evitar que ele a importunasse.

- Então vá e pegue o maiô e, por favor, traga também o meu calção. Está na última gaveta da cômoda do meu quarto. Traga também toalhas de banho, querida. Estou esperando por você no carro.

Paula apressou-se em buscar as roupas de banho, no caminho cruzou com Carmenteira que estava arrumando flores nos magníficos jarrões de cerâmica do saguão.

No quarto, abriu o armário e puxou a mala que ainda não tinha sido desfeita, desde a noite em que Dom Diablo lhe ordenara que usasse apenas as roupas compradas por ele. Abriu a mala e ao remexer em suas coisas não pôde evitar as recordações que elas traziam de Stonehill. Pegou as blusas, os vestidos dobrados e, no meio deles, encontrou fotografias dela e de Marcus tiradas durante as viagens maravilhosas que haviam feito juntos pela Europa. Um álbum de fantasmas, pensou ela. Dias de sonho, de conversas íntimas, tudo isso se passara tão longe do México...

Encontrou o maiô no fundo da mala. Era lilás e de corpo inteiro, pois Marcus não gostava de biquínis. Colocou-o diante do corpo e, olhando-se no espelho, concluiu que Dom Diablo certamente não aprovaria também os biquínis. De repente desejou que seu maiô fosse uma daquelas tangas minúsculas que cobriam o mínimo indispensável, para espicaçá-lo, escandalizá-lo. Gostaria de vê-lo chocado quando, na praia, ela se exibisse diante dos outros homens. Era típico do homem latino desejar que sua mulher fosse exclusivamente sua, não permitindo sequer que atraísse o olhar de outros homens. De qualquer forma, já que lhe havia sido proposto um passeio pela cidade, estava disposta a aproveitá-lo ao máximo. Deveria apressar-se antes que ele mudasse de idéia, pois talvez não gostasse que o fizessem esperar. Será que teria coragem de ir embora e deixá-la ali decepcionada?

Foi então até o banheiro e pegou as toalhas. Entretanto, hesito antes de entrar no quarto dele. Já estivera ali antes, várias vezes, mas nunca voluntariamente e sim carregada por ele.

Quando Paula entrou no quarto olhou primeiro para a cama, procurando depois a cômoda de madeira entalhada, onde ele guardava sua roupa. Sobre ela havia escovas de tartaruga, num estojo de toalete em couro e alguns outros objetos de uso diário. O aroma forte e inconfundível de seu charuto persistia no ar, misturado com o perfume de lavanda. Ao pé da cama estava o robe de seda escura e pesada, um chicote de couro com cabo de prata displicentemente jogado ao chão. Certamente o deixara cair, ao voltar de seu passeio matutino. Todos os dias pela manhã supervisionava os trabalhos da fazenda a cavalo.

Abriu a gaveta da cômoda, procurando o calção e encontrando o que não esperava encontrar: a fotografia de uma bela mulher de cabelos negros, sorrindo e segurando um leque, num porta-retratos de prata. Seus olhos, também negros, eram expressivos e seu corpo gracioso. Estava apoiada a uma coluna de um pátio, sob um arco cheio de flores.

Paula contemplava absorta a foto. Quem seria ela? Devia ser alguém muito especial, pois Paula ainda não percebera naquela casa nenhum sinal de outra mulher...

- O que foi que encontrou, senhora, que a intrigou tanto?

Paula teve um sobressalto, sentindo todo seu corpo estremecer. Lá estava Carmenteira, parada na porta do quarto. Seus olhos astutos notaram logo a fotografia nas mãos de Paula que, sentindo-se pega em flagrante, engoliu em seco.

- Vim pegar o calção de Dom Diablo... Pode me dizer quem é mulher, Carmenteira? É tão bonita que não pude resistir à tentação de observá-la melhor...

- A senhora é curiosa - observou Carmenteira, caminhando em direção a ela. Olhou então para a mulher da fotografia. - É uma beleza tipicamente espanhola, dos pés à cabeça! Veja os olhos, como refletem alegria de viver, de amar. A senhora não estaria com inveja de tanta alegria? Talvez ache que Dom Diablo tenha amado essa mulher e está certa, ele realmente foi apaixonado por ela.

- Onde está ela agora, você sabe? - perguntou Paula.

- Morreu há seis anos, senhora, levando consigo toda a sua alegria e todo o seu amor. Dom Diablo ficou inconsolável. Depois do que aconteceu, ele cavalgou durante horas a fio, até o cavalo não agüentar mais, Ficou vários dias sem pronunciar uma só palavra e durante o funeral pensaram que ele fosse se tirar sobre o túmulo, tal seu desespero... - Carmenteira lançou um olhar malicioso para Paula. - Como ele poderia amá-la, senhora, tendo amado tanto esta mulher? Por que lhe daria tanta importância, se no fundo a senhora é apenas um instrumento para lhe dar um filho? Talvez seja por isso que goste tanto de seu corpo. Sua primeira mulher era vinho e mel, mas a senhora é insossa como o leite, e azedo ainda por cima. Sabe que estou falando a verdade, não é? Estou muito velha, conheço muita coisa sobre os homens e sei exatamente o que Dom Diablo espera de sua mulher. - De repente, Carmenteira tocou o ventre de Paula. - A senhora é jovem, bonita e saudável. Mulheres bonitas e jovens costumam gerar filhos bonitos e Dom Diablo sabe que chegou o momento de ter um herdeiro.

Quando a velha parou de falar, Paula concluiu que ela dissera a verdade. Voltou à cômoda e colocou a fotografia no lugar em que a encontrara, bem escondida entre as roupas do marido. Pegou o calção e foi correndo ao encontro de Dom Diablo que, a esta altura, já devia estar impaciente com sua demora. Decidiu não pensar por enquanto nas palavras de Carmenteira. Agora, estava apenas interessada em ir à cidade ver gente, conhecer lojas e depois nadar até ficar exausta.

- Sinto muito! - disse logo que o viu. - Carmenteira queria me contar umas coisas e me atrasei. Como o sol está quente!

- Não devia correr assim, principalmente com esse calor escaldante. Aliás, onde está seu chapéu? Vai precisar dele!

- Eu me esqueci. Não faz mal, podemos comprar outro numa das lojas - disse ela um pouco ofegante.

Dom Diablo segurou-a então pelos ombros e olhou fixamente para ela.

- Você está uma pilha de nervos, parece um filhote de passarinho tentando sair da gaiola. Será que está assim agitada só porque vai à cidade?

- Claro que sim - respondeu ela, afastando o cabelo do rosto molhado de suor. - Se eu não tiver, de vez em quando, um dia de férias, acho que acabarei ficando louca. Você pensa que é fácil para mim a vida aqui? Sempre presa dentro desta propriedade, vigiada dia e noite, tendo que obedecer ordens suas o tempo todo, o que devo vestir, o que devo fazer! Sou para você um objeto de prazer! Tudo o que quer de mim é sexo. - Falava muito alto, numa espécie de desabafo. Fora terrível para ela ter que ouvir a opinião de Carmenteira sobre seu papel na vida de Dom Diablo. Sentia-se humilhada por estar sendo usada apenas para gerar um herdeiro que continuasse o nome da família e cuidasse das propriedades e de toda sua imensa fortuna. Uma mulher não precisava ser amada para ter um filho, para isso bastava o desejo animalesco e rude do homem pelo corpo dela.

- É uma forma como qualquer outra de encarar os fatos. Vamos, entre no carro e trate de relaxar um pouco.

- Vai dirigindo? - perguntou ela ingenuamente.

- Sim - respondeu. - Pode sentar atrás se quiser, longe de mim. Eu corro um pouco e talvez isso a deixa nervosa. Aliás, parece que você ficou assim a partir do momento em que a convidei para vir comigo.

Com uma sensação de alívio, Paula aproveitou a sugestão e sentou-se sozinha. Entrando no carro, viu que havia capas de linho nos bancos, para evitar que o couro se tomasse muito quente. O ar refrigerado começou a funcionar e Paula, recostando-se no banco, sentiu-se melhor. Em seguida, certificou-se de que trouxera os trajes de banho e as toalhas; estavam no banco ao seu lado. Lembrou-se, então, do rosto daquela mulher espanhola cujos olhos negros refletiam a alegria de viver.

Enquanto o carro deslizava velozmente pela estrada, Paula observava a cabeça bem feita e os ombros largos de Dom Diablo. Até agora pensara nele como um homem duro, indiferente aos sentimentos e melindres femininos, incapaz de amar uma mulher. E no entanto, soubera agora que ele havia amado, mas provavelmente era do tipo que ama apenas uma vez na vida. Isto fazia com que ele parecesse mais humano, mas ao mesmo tempo confirmava a posição que Paula acreditava ocupar em sua vida. Não era amada e no entanto tinha que aceitar todas as atenções dele, submeter-se a quase todas as suas exigências, querendo ou não viver a seu lado até descobrir uma maneira de sair dali.

Agora, mais do que nunca, desejava ir embora. Tocou o broche que pregara no vestido, acompanhando com os dedos o desenho das asas. Se encontrasse alguém que comprasse a jóia, teria só que pegar seus documentos e seu passaporte do escritório do marido. Estavam numa escrivaninha antiga cheia de gavetas. Tinha esperanças de encontrar alguém dentro da propriedade que pudesse ser subornado e que a levasse à estação mais próxima. Se conseguisse tomar um trem que a levasse a um dos muitos locais turísticos existentes no México, estaria a salvo.

A grande extensão de terra salpicada aqui e ali de cactos, finalmente ficou para trás e o carro aproximou-se da cidadezinha, com casas muito brancas, de telhados planos e um pequeno pomar atrás. A roupa lavada era estendida em varais nos fundos das casas. Crianças e animais corriam juntos numa alegria festiva que fez Paula sorrir, enquanto o carro passava rapidamente pelas ruas. Dom Diablo pareceu pressentir seu sorriso, pois, virando-se um pouco para trás, perguntou-lhe se estava gostando do passeio.

- Olhe só essas crianças! - disse ela. - Será que as mães conseguem que elas fiquem limpas alguma hora?

- No fim da tarde costumam mergulhar todas elas juntas numa grande tina d'água, lavá-las e depois estendê-las ao sol para secar!... Você viu como são bonitas as crianças? - havia um tom brincalhão em sua voz.

- São mesmo! - admitiu. - A pele delas é acetinada e os olhos enormes. Imagino que, quando limpas, devem ser belíssimas.

- As crianças mexicanas têm realmente uma beleza pura e natural - concordou ele e desta vez Paula percebeu uma alusão velada em suas palavras. Isso a fez estremecer. Era a primeira vez, depois de seu casamento, que ele mencionava crianças. Olhando para sua nuca, para seu cabelo negro e espesso. Paula começou então a compreender o que Dom Diablo pretendia realmente dela. A velha Carmenteira era esperta! Talvez tivesse razão mesmo. Devia saber muita coisa sobre os homens e as mulheres, e especialmente sobre a fazenda. Vivia ali desde moça. Vira Dom Diablo nascer, crescer, e depois quando começou a se interessar pelas mocinhas, até que se apaixonou por aquela belíssima mulher da fotografia.

- Gosta de crianças? - perguntou com curiosidade.

- Acho-as divertidas - respondeu. - E você, querida? Gostaria de ter um filho meu?

Ao ouvir essas palavras, o coração de Paula começou a bater descompassado e, com os dedos crispados, apertou a bolsa que tinha no colo.

- Não gostaria de dar à luz a um filho do demônio - respondeu friamente.

- Obrigado, minha querida. Às vezes é encantadora quando fala comigo! - Em seguida dirigiu o carro para o centro da cidade e parou em uma praça pitoresca, onde havia outros carros estacionados. Ao centro da praça, via-se uma estátua de pedra. Era um homem de capacete montado num cavalo cujas patas dianteiras se erguiam no ar.

Saíram do carro, atravessando a praça em direção às arcadas, onde se encontravam as lojas. Havia um burburinho de gente, pois entre uma compra e outra, as pessoas paravam para conversar. Paula sentiu-se um pouco encabulada ao constatar o flagrante contraste entre sua pele clara e a daquelas pessoas morenas. Perto delas, Paula, apesar de bonita, parecia desbotada, um pouco frágil perto dessas mulheres sensuais, cor de cobre, e com olhos negros e brilhantes, que encaravam ostensivamente Dom Diablo ao passar por ele.

Ele segurava Paula possessivamente. Por que não escolhera para esposa uma mulher de sua própria raça, de seu próprio país? , pensou ela. Será que não conseguiria encontrar uma mulher que se comparasse à primeira e, por isso mesmo, procurara por alguém que não tivesse absolutamente nada a ver com ela?

Ao chegar sob a arcada, Dom Diablo parou. As lojas eram alegres, com suas vitrinas decoradas com arranjos coloridos e exóticos. Havia de tudo: roupas, objetos para casa, pulseiras, colares, brincos, especiarias e frutas tropicais.

- Vai precisar de dinheiro - disse ele, tirando da carteira um punhado de notas. - Compre o que quiser, só não esqueça o chapéu. Provavelmente ficarei ocupado as próximas duas horas, mas à uma hora me encontre no carro. Almoçamos no Café Valentino e depois vamos à praia.

- Sim, mestre - respondeu Paula, aceitando o dinheiro que ele lhe estendia. Percebeu então que ele fora bastante generoso, porém não havia o suficiente para subornar alguém que a pudesse levar para longe dali.

- Que tipo de chapéu quer que eu compre? Estes de copa alta com um ramo de cerejas do lado?

- Tenho a certeza de que qualquer tipo de chapéu lhe ficará bem - segurou-a pelo queixo, fazendo com que Paula olhasse para ele. - Não tente fugir de mim, querida. Meu braço é comprido e eu não costumo abrir mão do que me pertence. Você é minha e é bom que se convença disso. Você inteirinha, da cabeça aos pés, sua carne, seus ossos, seu sangue, tudo enfim. Você é minha mulher, a sra. Ezreldo Ruy. Por isso deve se comportar com dignidade e estar sempre de ótimo humor. Todos aqui me conhecem, portanto sabem quem você é. Não será importunada, anão ser que se preste a isto e eu a advirto a não fazê-lo! Será que me expliquei bem?

- Entendi perfeitamente, senhor. Tenho que ficar boazinha e me distrair com frivolidades enquanto meu senhor e mestre se ocupa de negócios importantes.

Entreolharam-se em silêncio; o desafio estava estampado nos olhos de Paula que brilhavam de raiva. Depois as pálpebras dele se abaixaram e um sorriso irônico apareceu em seu rosto moreno.

- Você parece ter ficado muito mais corajosa no meio dessa gente. Será que continuará assim quando estivermos novamente a sós?

Ela estremeceu ao ouvir estas palavras. Não se conformou com sua covardia diante de Dom Diablo. Mas ele era tão forte, tão rude! Ao olhar para seu corpo musculoso, seus ombros largos, lembrou-se de como era morna sua pele, de como era excitante a sua nudez...

- Fique tranqüilo, saberei me comportar. Aliás, detestaria ver alguém ser surrado por você, pois conheço bem sua força e sua crueldade.

- Então, tudo bem - respondeu um pouco irritado. - Até mais tarde, e não se esqueça de estar no carro a uma hora.

- Sem falta - prometeu ela. Dom Diablo afastou-se com passos rápidos, impecável no seu terno cinza. Paula suspirou e dirigiu-se então às lojas, cujas vitrinas coloridas e variadas diferiam muito das da Inglaterra. Expunham roupas que ela jamais usaria se ainda morasse em Stonehill. Mas ali no México, onde a luz era tão intensa desde o amanhecer até o crepúsculo, as roupas coloridas pareciam mais adequadas. Paula gostava dos blusões informais, especialmente de algodão. Comprou dois com estamparia bem alegre. Depois foi até o mercado e, logo ao chegar, encontrou exatamente o que queria o chapéu de copa alta com duas frutas pregadas na fita, sobre a aba.

Não pôde resistir e comprou-o, lembrando-se do que dissera a Dom Diablo com a intenção de provocá-lo. O difícil seria usá-lo, pois na verdade se envergonhava de usar coisas tão vistosas...

Caminhando sob a sombra das arcadas e segurando o chapéu pela aba, sorriu ao pensar na cara do marido quando a visse com ele. Era quase um desafio ser mulher daquele homem. Apesar das brigas entre eles, sabia que Dom Diablo era cônscio demais de sua posição, fazendo sempre questão de ser tratado, sobretudo publicamente, como mestre e senhor. O chapéu era apenas uma brincadeira para provocá-lo. Poderia usá-lo na praia, pois afinal era inglesa e não latina como a bela morena da fotografia. Novamente voltou a lembrar-se dela...

Já fazia mais de uma hora que Paula passeava de um lado para outro, observando as vitrinas. Havia tanta coisa curiosa nas lojas! De repente, viu uma joalheria. Ficou ali parada, sua mão tocando o broche que tinha preso no ombro. Não haveria nada de estranho se entrasse e pedisse que lhe avaliasse o broche. Saberia assim por quanto poderia vendê-lo. Entrou resoluta e aproximou-se do balcão.

Durante a última hora só cruzara com mexicanos, por isso ficou surpresa quando viu, atrás do balcão, um jovem loiro e bonitão, que olhava para ela com o mesmo espanto.

- É americana? - perguntou.

- É inglês? - perguntou ela, quase ao mesmo tempo. Ambos riram.

- Oh! É inglesa! - exclamou. - Como não percebi logo? - A voz, a pele clara... Inglesa como uma xícara de chá!

- Bem, eu não estou certa de como devo interpretar essa comparação - respondeu, sorrindo. - Eu não preciso absolutamente que me diga que é americano. Seu sotaque, seu jeito, lembram-me uma xícara de café! - riram novamente, como que satisfeitos por falarem a mesma língua.

- Esta é a maior surpresa que tive nos últimos tempos - disse ele intrigado e observando afigura esbelta de Paula, cujo vestido valorizava seu tipo claro, acentuando a linha perfeita de seu corpo. Os olhos dele se detiveram nos braços muito alvos e esguios, como se quisesse premiar seus olhos com tanta beleza.

- Nunca imaginei que uma jovem inglesa pudesse aparecer por aqui, como se fosse uma visão, trazendo o vento fresco do mar do Norte! Será mesmo real ou é uma miragem?

Ao dizer a palavra real, sua voz tornou-se mais profunda. Paula pensou que ele fosse pegar em sua mão. Se o fizesse ela se afastaria bruscamente. Tentou se convencer de que não sentiria o menor medo se, de repente, aparecesse Dom Diablo com aquele seu jeito de felino, e a surpreendesse conversando com outro homem que lhe segurava mão.

- Acho que sou real - respondeu ela. - Jamais pensei também em encontrar um americano atrás do balcão de uma joalheria mexicana.

- É uma maneira como outra qualquer de sobreviver - respondeu. - Acabei caindo neste negócio após um acidente. Eu era mergulhador e trabalhava numa companhia petrolífera de prospecção marinha. Um dia mergulhei muito fundo, enrosquei-me nas cordas e quase morri. Um amigo, dono dessa loja, me ofereceu este emprego até que eu me sinta novamente em forma para recomeçar meu antigo trabalho. Um mergulhador não desiste facilmente. Vai em frente até que entrem bolhas de ar no sangue...

- Compreendo - disse ela. - Mas deve ter sido uma experiência violenta, não foi?

- Bem, na hora eu fiquei inconsciente, depois é que foi terrível - Ficou sério por um momento. Seus traços eram muito bem feitos. Relaxou logo depois e sorriu novamente. -E o que faz no México?

- Moro aqui - respondeu Paula um pouco tensa, seu sorriso desapareceu ao pensar nas circunstâncias que a haviam trazido para o México. - Minha casa fica a alguns quilômetros daqui. Vim até a cidade, para fazer compras.

- Está sozinha? Se estiver, gostaria de almoçar comigo?

- Não, não estou. - Paula sentiu uma certa tristeza por não poder almoçar com ele. - Vim à cidade com meu marido. Ele veio a negócios e me deixou livre para fazer compras e passear um pouco. Comprei um chapéu, veja!

O rapaz examinou detidamente seu rosto e, em seguida, suas mãos. Numa delas usava o anel de ouro trabalhado e na outra a aliança e um magnífico rubi.

- Parece muito jovem para ser casada - disse ele. – Pensei que só no México os homens tirassem as noivas das salas de aulas...

- É muito lisonjeiro de sua parte - respondeu ela. – Deixei a escola há muito tempo e estou casada há várias semanas!

- Semanas? Então, para todos os efeitos, é ainda uma noiva... Como é que seu marido a deixa sozinha em plena praça do mercado? É quase uma ousadia a dele, sabendo como são os mexicanos... Se fosse minha mulher, eu teria medo que alguém a raptasse, ainda mais sendo bonita como você!

Paula enrubesceu. Desde que saíra do colégio fora sempre muito cortejada, mas depois de casada essa era a primeira vez. Teve um pressentimento de perigo ao ouvi-lo elogiar seus dotes físicos.

- Meu marido é muito conhecido aqui, ninguém ousaria me importunar.

- Ah, entendo - disse ele. - Por acaso é algum diplomata britânico muito respeitado ou algo parecido?

- Não - Paula sabia instintivamente que sua resposta causaria uma grande surpresa ao americano. - Meu marido é mexicano, e um dos maiores proprietários desta região. Creio que não o conhece, mas provavelmente já ouviu falar nele. E Dom Diablo Ezreldo Ruy. Moramos numa fazenda a alguns quilômetros daqui.

O rapaz olhou para ela com uma expressão estranha. Não era surpresa. Talvez fosse descrença.

- Mas ele é déspota! - exclamou ele. - Todos aqui já ouviram falar dele. Correu o boato de que se casara, mas nunca ninguém imaginou que fosse com uma garota como você! Você parece uma rosa que nasceu e cresceu na estufa! Como é que se conheceram? Dizem que esses tipos aqui no México costumavam ir buscar suas noivas diretamente nos conventos. Foi isso que aconteceu com você?

- Quase - respondeu Paula. Ao dizer isso percebeu que estava prestes a confessar que fora coagida a se casar com Dom Diablo, que não fora um casamento por amor. Arrependeu-se a tempo e acrescentou: - De qualquer forma, não vim aqui para falar sobre minha vida privada com um estranho...

- Meu nome é Gil Howard - apresentou-se prontamente. - Nasci em Los Angeles, por isso sei falar espanhol razoavelmente, pelo menos o suficiente para poder trabalhar numa joalheria mexicana. Eu também me casei uma vez, mas não deu certo. Estava sempre longe de casa, sabe como são essas coisas, e Louise, minha mulher, acabou se ligando a outro homem. Apesar disso, sou um homem decente e respeitável. Não quero que agora você me considere mais um estranho. Gostaria de poder ser seu amigo. Você tem um nome, naturalmente... Será que devo ser formal e chamá-la de senhora? Senhora me faz pensar em gente mais velha e você me parece ainda tão menina...

Paula sabia que logo que ele começara a falar, devia ter-lhe dado as costas e saído da loja. Mas era tão bom encontrar alguém que falava sua língua e com um jeito tão diferente de Dom Diablo! Sua voz era agradável e suas palavras não continham insinuações veladas. Era direto e franco.

- Na verdade eu deveria insistir para que me chamasse de senhora - disse Paula com certa afetação.

- Mas não vai insistir, vai? - deu um sorriso largo.

- Bem, que significa o primeiro nome, afinal? O meu é Paula.

- Repita-o novamente! Será que ouvi bem?

- Ouviu sim, sr. Howard.

- Mas é um nome lindo, doçura. - Gil Howard sacudiu a cabeça. - Eu nunca poderia imaginar, ao me levantar hoje de manhã, que iria encontrar uma garota tão linda chamada Paula!

Isto já ultrapassava os limites. Paula sabia que não devia ter consentido que a conversa fosse tão longe. Agora não poderia mais se informar sobre o valor do broche, pois esse americano parecia muito esperto. Poderia desconfiar que ela quisesse vendê-lo para poder sair do México.

Consultou rapidamente o relógio de pulso, de ouro, também presente de Dom Diablo.

- Agora preciso ir embora, sr. Howard. Meu marido não é muito paciente e já deve estar esperando por mim. Até logo...

- Até breve, Paula! - havia certa malícia em sua voz. – Estou certo de que nos encontraremos de novo. Já que somos dois estranhos nesta terra, vamos precisar um do outro, pelo menos para conversar...

- Até breve! - respondeu Paula e saiu correndo.

 

Paula estava sem fôlego quando se aproximou do carro. Olhou logo para dentro, suspirando aliviada ao ver que Dom Diablo ainda não havia chegado. De repente sentiu suas mãos fortes nos ombros e girando sobre si mesma viu-se cara a cara com ele. Observou-a demoradamente e quando seus olhos se contraíram, sentiu o coração palpitar de apreensão. Ele tinha um jeito diabólico de saber tudo o que se passava e ela realmente preferia que ele não soubesse que havia se encontrado e falado com Gil Howard. Iria pensar que ela estivera flertando. Embora o tivesse feito, queria apenas um amigo, pois se sentia como uma exilada nessa terra estranha!

- Parece que andou fazendo compras numa feira de quinta categoria! Meu Deus, o que é isto? - perguntou, apontando o chapéu.

- Disse-me para comprar um chapéu e eu comprei. Não gosta dele, senhor? - Sentia-se menos medrosa.

EIe nunca a censurara por tratá-lo formalmente de senhor. Levantou ligeiramente as sobrancelhas, tocou nas duas laranjas coloridas que enfeitavam o chapéu e disse:

- Este enfeite parece um símbolo fálico! Mas imagino que você nem percebeu, não é?

O rubor de Paula aumentou depois de ouvir suas palavras. Seu tom era seco e havia malícia em seu olhar.

- Claro que não!. Eu simplesmente achei que era um chapéu divertido. Não vai me deixar usá-lo, não é verdade?

- Será que me acha assim tão tirânico, ou sem o menor senso de humor? Se quiser usar esse negócio absurdo, use... Mas só na praia...

Ajudou-a a subir no carro e dirigiram-se ao café Valentino, um restaurante alegre e colorido, à beira-mar. As mesas era protegidas por guarda-sóis. Na frente se estendia uma praia larga de areia muito branca que contrastava com o azul forte do oceano.

Era o tipo de lugar que Paula gostava. Ficou imaginando por que Dom Diablo se propusera a lhe proporcionar um dia tão agradável. Observou-o curiosamente enquanto se sentavam e quando seus olhos se encontraram com os dela, desviou o olhar. Será que após cinco semanas juntos esperava que ela já estivesse disposta a lhe dar o que realmente pretendia dela? Vestido com aquele elegante terno cinza-claro que contrastava com sua pele morena, deixava transparecer uma elegante satisfação. Ele lhe havia dito que admirava o espírito combativo dos britânicos e Paula supunha que ele gostaria de ter um filho que herdasse estas qualidades: produto do cruzamento do sangue de dois povos completamente diferentes. Paula teve que admitir que seria uma combinação ideal. Mas, e o amor, que papel tinha nisso tudo? Espera-se que um filho seja fruto do amor e não dos planos ambiciosos de uma das partes! Uma criança devia ser gerada pela união absoluta de duas pessoas apaixonadamente ligadas. Apertando o copo de suco, ela pediu a Deus que a ouvisse, nesta terra tão profundamente religiosa, e que nunca gerasse um filho de Dom Diablo.

Há muito tempo, ou pelo menos assim lhe parecia, pensara que se um dia se casasse e tivesse um filho, gostaria de lhe dar o nome de Marcus. Mas naquela época não imaginava este tipo de casamento... Naqueles momentos tranqüilos, na poltrona de seu quarto em Stonehill, imaginava ingenuamente que quem quer que se casasse com ela a amaria como Marcus a amara.

- E o que mais comprou? - A voz profunda de Dom Diablo interrompeu seus pensamentos. Teve um sobressalto, mas encarou-o sem disfarçar que estivera sonhando.

- Duas blusas muito simples - respondeu. - Os desenhos são bem vistosos.

- Ah, é? Então você está querendo ficar bonita para mim? Tomou um gole de pisco.

- Não, o que quero dizer é que são bem informais, para serem usadas a qualquer hora, simplesmente isto. - Inclinou a cabeça e começou a tomar o suco. Era bem doce e gelado e refrescava-lhe a garganta. - As lojas aqui estão cheias de coisas bonitas. O povo é muito habilidoso! O artesanato é realmente magnífico!

- É habilidoso sim, e agora você também pertence à nossa raça, querida. Você e eu somos uma pessoa só, ou ainda pensa em se libertar de mim? - Apesar de negligente, havia em seu tom uma certa malicia. - Somos uma pessoa só, querida, entendeu bem?

- Entendi, senhor - respondeu ela muito tensa. - Não duvido um instante sequer que só pensa em uma coisa, só pensa em meu corpo, que gosta de ver envolto em sedas e coberto de jóias valiosas ; excita-o ver a mulher que considera sua propriedade, adornada pelo mestre e senhor. Deve haver sangue mouro em suas veias, Dom Diablo. Seria capaz de me matar, se eu o traísse?

- Eu a aconselharia a não provocar a minha ira, com este tipo de comportamento, Paula. Como você mesma disse, uma das maiores alegrias da minha vida foi quando me certifiquei de que você era virgem. Para mim, a virtude ainda é a maior qualidade numa mulher!

Ao ouvir estas palavras,- Paula sentiu-se transportada para os aposentos da fazenda. Em vez do restaurante via seu quarto, ouvia o roçar de sedas sob seu corpo frágil enquanto Dom Diablo, com suas mãos esguias, que não admitiam qualquer resistência, a subjugava, possuindo-a completamente.

- Foi um dos piores momentos de minha vida - retrucou violentamente, a voz ligeiramente trêmula, os olhos refletindo o ódio que sentia por tê-la feito lembrar-se daquela cena. - Descobri que havia me casado com um monstro!

- Minha querida, será que todos os dias você se empenha em descobrir novos objetivos para me insultar? Não, não me responda. Vejo que não lhe custa nada encontrá-los, pois parecem brotar naturalmente dos seus lábios... Bem, pelo menos são sinceros, não são as costumeiras palavras adocicadas de uma mulher que finge estar apaixonada. Com você, minha querida, sei onde estou pisando.

- Sabe mesmo? - perguntou ela, dirigindo-lhe um olhar deliberadamente provocante. - Eu, em seu lugar, não estaria tão certo disso Águas paradas são geralmente mais profundas...

- E os britânicos são profundos, não são? Porém parcialmente submersos como os icebergs. - Ao dizer isso, preparou-se para comer a deliciosa truta que o garçom, silenciosamente, colocara diante dele. Espremeu limão, serviu-se de pimenta e sorriu.

- Sim, e os icebergs podem ser perigosos, senhor. Já ouviu falar do naufrágio do Titanic?

- Vejam só! - Está adquirindo o hábito dos latinos, de enrolar um punhal num pedaço de seda? Tenha cuidado, senão logo estará impregnada de nossos costumes!

- Deus me livre! - replicou ela. - Eu detestaria tornar-me cruel e egoísta, sem pensar noutra coisa que não fosse a ambição...

- Como pode saber o que existe realmente no meu coração? - perguntou, enquanto passava manteiga numa fatia de pão preto. - Aliás, se preocupou realmente em saber? Pensa que em lugar do coração tenho um bloco de cimento, não é verdade?

Paula levantou os olhos do prato, olhando-o friamente.

- O que sei é que não abriga em seu coração nenhum sentimento de afeto em relação a mim. Para você nada mais sou que uma jovem atraente, a quem você trata como trataria uma jovem potranca que não quisesse aceitar o cabresto! Pensa que pode exercer o poder sobre todo mundo, mas se pensa que posso amá-lo desse jeito, engana-se muito.

- Estou esperando, querida... Aliás, eu não me lembro de ter-lhe pedido uma só vez que me amasse. Veja, eu gosto desta truta e eu a como inteirinha, fora os espinhos, mas nunca me passaria pela cabeça compartilhar a minha vida com uma truta!

Paula teve que reconhecer, apesar da hostilidade que sentia, que ele tinha um fino senso de humor com o qual ela não podia competir. Teve vontade de rir alto ao ouvir a piada, mas mordeu os lábios para não dar o braço a torcer. Não lhe daria jamais, pensou consigo mesmo, o prazer de vê-la achando graça.

Dom Diablo levantou a cabeça. Seus olhos faiscavam. Pegou então o copo de vinho e disse:

- É melhor você rir, senão vai engasgar. Você acha, Paula, que não fiquei sabendo muita coisa a seu respeito depois desta semana juntos? Você gosta de uma piada, gosta de ser natural. Sabe o que significa isto?

- Não. Diga-me, senhor, já que sabe tanto a respeito das mulheres...

- Quer dizer, querida, que você tem todas as qualidades para se tornar uma mulher, uma verdadeira mulher... Porém como as mulheres de seu país, que fazem questão de manter isto escondido sob uma capa de altivez e reserva. Mas você tem uma chama interior que quando se acende afasta toda essa discrição, derretendo a capa de gelo que a protege. Esta chama de amor é muito curiosa, especialmente na mulher que aparenta frieza.

- Amor! - Paula sorriu com desdém. - Se tivesse falado ódio estaria mais perto da verdade. Alguma vez alguma mulher já lhe disse: eu o odeio, Dom Diablo?

Seguiu-se um silêncio profundo, contrastando com o barulho de talheres e vozes vindo das outras mesas. E este som chegava até Paula, muito tensa, como se fossem choques sonoros. Amedrontada, começou a observar com certa fascinação, os dedos de Dom Diablo apertando o cálice de vinho. Estava certa de que acabaria estraçalhando o copo. Mas os copos do restaurante não era tão finos como os cálices de cristal da fazenda. Ele continuava a apertá-lo com tanta força, que os nós de seus dedos ficaram brancos.

- Quando estamos no meio de outras pessoas você demonstra muita coragem, já percebi... - observou ele com um certo tom de ameaça. Paula temia outra discussão inútil, ela reagindo com todas as suas forças e ele vencendo-a inexoravelmente. Seria inútil mordê-lo, arranhá-lo, insultá-lo com palavrões. Já o chamara de demônio, e agora ia fazê-lo novamente. Inclinou-se para a frente e fulminou-o com o olhar.

Dom Diablo inclinou a cabeça, enfrentando ironicamente o seu olhar, sabendo o que ela pensava...

- E o que vai querer como sobremesa? Algum doce? - perguntou sarcástico. Chamou o garçom, enquanto Paula brincava com as pétalas da rosa da lavanda, à sua frente. De repente, percebeu que na mesa do lado três mulheres olhavam fixamente seu marido.

Eram mulheres latinas, sem dúvida, elegantemente vestidas, provavelmente esposas de funcionários, que viviam naquela cidade. O olhar delas expressava a admiração por aquele macho atraente. Paula não podia ignorar que as mulheres gostavam muito dele, exceto ela mesma. Aquela pele lustrosa contrastando com a seda branca da camisa e o cinza-claro do temo, o olhar quente sob os cílios espessos, os ombros fortes, tudo prometia um vigor másculo que fascinava as mulheres.

Gil Howard dissera que os mexicanos têm o sangue quente, mas Dom Diablo não era assim. Seu sangue jamais ferveria, a não ser de raiva... Oh, seria uma tal megera que ele se arrependeria do dia que a escolhera! Jamais olharia para ele como aquelas mulheres descaradas o faziam!

O desdém transformou o rosto de Paula numa máscara de gelo. De repente, uma das mulheres, vestida de roxo, conseguiu chamar a atenção dele. Encarava-o, seus olhos negros e brilhantes eram como dois poços profundos que o convidavam para o amor. Com uma certa curiosidade, Paula olhou para o marido, tentando adivinhar como ele reagiria àquele convite aberto e descarado de uma mulher que, provavelmente, farta do próprio marido, procurava uma aventura que a distraísse...

Dom Diablo também olhava para ela, porém seu rosto parecia de bronze, uma daquelas máscaras astecas que faziam Paula estremecer. Parecia um poderoso chefe asteca prestes a levantar o chicote para açoitar um de seus escravos.

Seus olhos frios trespassaram a mulher vestida de roxo, fazendo com que ela desse uma risadinha nervosa e sem jeito, voltando-se depois para dizer qualquer coisa às companheiras. Mas Paula notou que a mulher enrubescera. O olhar de Dom Diablo tinha tanto desprezo que certamente se sentira humilhada, como uma prostituta se oferecendo no mercado. Só com um olhar ele lhe dera uma lição e como que para reforçar seu modo de pensar estendeu a mão vagarosamente e apertou a mão de Paula, onde reluzia a aliança de ouro... É minha, parecia indicar o seu gesto. Esta mulher que nunca olhará para outro homem e que se emociona com o simples toque da minha mão...

- Nunca faça o que fez aquela mulher. Se algum dia você o fizer, eu acabo com sua vida.

- Não a acha incrivelmente atraente? Tão latina, os olhos tão negros, seu corpo tão curvilíneo e langoroso? Surpreende-me, senhor. Poderia jurar que ela faz exatamente seu gênero...

Ao ouvir estas palavras ele apertou-lhe os dedos com tal força que a machucou, mas Paula não quis se dar por vencida. Ele soltou-lhe a mão só quando o garçom chegou com a sobremesa, uma saborosa salada de frutas com maracujá, uvas e banana cortada em rodelas, acompanhada de um creme rico e espesso, como só uma cozinha mexicana conseguia obter.

A sobremesa estava realmente deliciosa, Paula não podia negar embora estivesse sempre pronta a pôr defeitos em tudo que Dom Diablo programava. Percebeu que ele a observava atentamente enquanto ela saboreava a salada de frutas.

- Parece estar com muito apetite, querida! - comentou. – Será o ar do mar ou haverá alguma outra razão?

Certamente estava insinuando que poderia ser uma gravidez, e sentiu-se tentada a responder que preferia morrer a ter um filho dele, mas se conteve a tempo. Olhou para ele inexpressivamente como se não tivesse entendido sua insinuação, como se não soubesse que ele desejava ansiosamente um filho e um herdeiro.

- Gosto muito de doces, especialmente de creme - respondeu. - Este meu cabelo loiro não é um halo de santidade. Sou humana, tenho minhas gulas e vícios como também os tem, senhor.

- Encantador, querida! - exclamou ele. - Você tem uma língua bem afiada!

- Estar naquela fazenda a seu lado é como se estivesse no inferno.

- Não há nada ali que a agrade? - perguntou secamente, como se já soubesse da animosidade que ela sentia pela casa. - Nem a beleza dos jardins, dos caminhos floridos, das fontes antigas? Não aprecia o encanto de seus pátios, de seus quartos? Eu diria que há muito mais coisas bonitas e agradáveis na fazenda do que eu pude ver em Stonehill. Pareceu-me muito cinza e muito triste...

- Stonehill era a minha casa, o meu lar - respondeu Paula, lançando-lhe um olhar de ressentimento. - Eu simplesmente gostava de lá, o que não acontece em relação à fazenda, que para mim não passa de uma prisão.

- E eu sou o seu algoz, não é? - completou, fazendo um gesto para o garçom que passava. Pediu-lhe café e uma determinada marca de charutos. Quase que imediatamente o rapaz trouxe-lhe uma caixa. Ele escolheu um, girou-o entre os dedos, como que testando sua textura. O garçom, muito solícito, adiantou-lhe um isqueiro aceso. Após alguns instantes, trouxe, junto com o café, um prato de bombons colocando-o sobre a mesa. Os sabores eram exóticos. Alguns de nugá, outros de chocolates puros, outros de frutas tropicais cristalizadas. O garçom sorriu ao olhar para Paula, em cujo rosto se alternavam a luz e a sombra projetada pelo guarda-sol. Parecia muito jovem com o vestido decotado e sem mangas, sua pele alva contrastando com a figura morena e poderosa de Dom Diablo.

- Doces para um doce - disse ele, colocando o prato de bombons diante de Paula, assim que o garçom se retirou. - Vamos, você disse que era gulosa e gostava de doces, sirva-se...

- Está querendo que eu engorde? - perguntou com ar displicente, evitando olhar para ele enquanto se servia. - Em geral os mexicanos gostam de mulheres gordas e eu não me enquadro nesse padrão... Na verdade, senhor, eu me pergunto sempre por que escolheu para esposa uma mulher que evidentemente não o ama e não lhe tem respeito...

- Respeito? - estranhou ele, sacudindo a cinza do charuto com um gesto impaciente.

- Certamente não pretendo aquele afeto infantil de uma colegial como o que tinha por seu tutor, mas exijo que respeite sua posição como minha mulher. O que se passa entre nós dois, enfim nossa vida privada, não diz respeito a ninguém, mas exijo que, quando estiver em público, se comporte como uma verdadeira senhora, recolhendo suas garras afiadas e moderando sua língua ferina. Às vezes me pergunto se Marcus Stonehill teria sido a pessoa mais indicada para tomar conta de uma garota tão sensível como você. A casa de Marcus era freqüentada só por homens. Disseram-me que às vezes parecia um verdadeiro cassino. Foi uma sorte ele não ter transformado você num pseudo-garoto...

- Antes o tivesse feito - respondeu mexendo o café com tanta violência que derramou metade no pires. - Antes tivesse me ensinado a ganhar a vida jogando cartas, pelo menos eu não dependeria completamente de você! Sim, Marcus gostava de jogar, mas me mantinha completamente afastada disso.

- Como você é inocente em acreditar numa coisa destas - observou ele. - Eu acho, querida, que ele a usava como isca para atrair os jogadores e os ricaços. Se me atirar este bombom em público, prepare-se para uma desforra quando estivermos a sós!

- Você é realmente um demônio! - Paula empalideceu, olhando para ele com uma, expressão assustada e magoada. - Se pensa que pode sujar a memória de Marcus, está muito enganado. Eu conhecia seus defeitos e suas virtudes e o amava apesar de tudo. Mas você, eu odeio, não consigo ver nenhuma qualidade em você, a não ser que considere qualidade tratar melhor os peões que a própria esposa!

- Não levante a voz - interrompeu ele. Seus olhos brilhavam, refletindo uma ira incontida. Paula já se sentira em pânico antes com esse seu olhar. Da primeira vez, fugira como um animal assustado, procurando um lugar para se esconder. Naquela ocasião, refugiara-se na cozinha, mas ali no restaurante, não havia para onde fugir... Sacudiu nervosamente a cabeça e encarou-o.

- Se queria uma mulher medrosa e covarde, bateu na porta errada! Não sou uma máquina, sei muito bem o que eu quero! - desabafou. O veneno tinha que ser posto para fora, pois estava dentro dela desde a manhã, quando Carmenteira lhe contara sobre a espanhola. Meu Deus, tinha só vinte anos! Se tudo que pretendia dela era que gerasse um filho, o herdeiro, então só lhe restava morrer...

- Essa conversa já foi longe demais. - A expressão de Dom Diablo era terrível quando chamou o garçom e pediu a conta. Deixou uma gorjeta generosa, e segurando Paula pelo braço, levou-a para fora do restaurante. O sol brilhava forte. A paisagem era estonteante e Paula via tudo enevoado, seus olhos estavam baços d'água. Começou a caminhar em silêncio, dirigindo-se com ele para o carro, pois imaginou que voltariam para a fazenda. Qual não foi sua surpresa ao vê-lo pegar o calção de banho, seu maiô e as toalhas, e o chapéu que ela comprara aquela manhã e que ele achara tão engraçado.

- Vai estar muito quente na praia - disse Dom Diablo.

- Ainda quer ir? - perguntou ela desconfiada. - Não me importo se formos para casa...

- Não seja criança e pegue este chapéu ridículo. Por Deus, se pensa que vou renunciar a um mergulho no mar, só porque discutimos você se engana muito - ironizou ele. - Fique no carro se não quiser ir comigo para a praia. Seria bem capaz de fazer uma tolice destas! - Ao dizer isso, afastou-se do carro, caminhando em direção aos degraus de pedra que desciam até a areia. Paula olhou para ele, indecisa. A brisa do mar bateu então em cheio em seu rosto. Estremeceu ao sentir o cheiro das algas. Bolas, pensou, ele que fosse para o inferno! Iria nadar até ficar atordoada e esquecer sua desgraça. Ele que se danasse .com a sua arrogância! Não renunciaria ao prazer que lhe daria o banho de mar só por sua causa!

Chegando à areia, Paula viu que ele alugara uma dessas cabanas com teto de sapé onde a areia não chegava. Ficou do lado de fora esperando que ele saísse. Vestia um maiô preto. Seus quadris eram fortes mas estreitos, o torso, o pescoço e as pernas longas e musculosas. Ele passou por ela e caminhou para o mar onde vagalhões se sucediam, formando uma espuma branca e tentadora. Entrou na água até a altura da cintura, os braços reluzentes ao sol, como se fossem de cobre.

O barulho das ondas que arrebentavam fez com que Paula se trocasse rapidamente. Pôs o maiô bem justo, e prendeu o cabelo com uma fita que encontrou na bolsa. Saiu da cabana e começou a correr sobre a areia morna e muito fina. Respirou fundo. Sentia um prazer que há muito tempo não sentia; uma sensação que a fazia voltar à infância. Ao mergulhar na água sentia uma carícia vibrante, envolvendo seu corpo jovem. Nadar no mar novamente lhe causava uma sensação quase de volúpia. Sempre gostara de natação, e Marcus foi seu professor. Deixou que as ondas levassem para longe suas preocupações e suas mágoas. Tentou se desligar de tudo que a fazia sofrer, e usufruir plenamente o prazer daquele instante. Nem se voltou para procurar o marido que deveria estar nadando ali por perto. Queria fazer de conta que estava completamente só. Agora ela era só Paula e não a mulher dominada e sob as ordens de um homem que odiava. Marcus certamente não reconheceria mais a menina dócil, bem-humorada e obediente que ele criara. Essa não existia mais. Seria para ele como uma estranha, com seu olhar selvagem, suas crises de raiva, suas explosões de ódio! Tinha a certeza de que Marcus ficaria chocadíssimo se a visse agora. Ele nunca imaginaria que Dom Diablo não fosse um bom marido, mesmo sendo rude e dominador.

Paula nadava com facilidade. A temperatura da água estava agradável. Resolveu então nadar de costas, os olhos fitos na azul intenso do céu. Tudo estava tão calmo, tão tranqüilo, podia até imaginar que Dom Diablo tivesse mergulhado e desaparecido... De repente, sentiu-se tentada a olhar à sua volta, mas não viu ninguém; não havia ninguém por perto. Sobreveio-lhe, em seguida, um espasmo no estômago...

Será que suas súplicas aos deuses pagãos haviam sido atendidas? Teria ele desaparecido silenciosamente e para sempre de sua vida?... De repente, deu um grito; uma forma esguia saiu abruptamente do fundo da água e um braço forte e bronzeado cingiu-lhe a cintura:

- Veja, temos o mar só para nós dois - Dom Diablo deu uma risada. Parecia encantado.

- Toda essa gente preguiçosa está fazendo a sesta... Você nada bem, querida. Se pelo menos ficasse mais descontraída, em meus braços...

Paula percebeu que ele estava todo satisfeito por lhe ter pregado um susto. Começou então a se debater em seus braços como uma enguia. Estava com os nervos à flor da pele, pois ficara assustada com a sua aparição súbita.

- Pensei que tivesse se afogado - disse ela. - Doce ilusão a minha...

- Que pensamentos pecaminosos para uma jovem esposa! - caçoou ele. - Minha cara, não se livrará de mim tão.facilmente. Nado como um peixe e sou resistente como o aço! Talvez seja meu sangue índio...

- Acho que seria melhor compará-lo a um tubarão! Silencioso e ágil, como esse monstro do oceano!

- Pensou então que estava sendo atacada por um tubarão? Eles ficam perto dos rochedos onde se pesca, mas raramente chegam até a baía, pois aqui é lindo e profundo. Não há cavernas nem refúgios para eles. Há uma lei local, sugerida por mim e atualmente em vigor, que exige que esta baía seja conservada absolutamente limpa em benefício dos que freqüentam a praia. Há alguns anos houve nesta área, uma terrível epidemia de poliomielite, causada pelas péssimas condições de higiene existentes na ocasião. Porém agora o mar aqui é limpo e seguro, apesar das ondas fortes.

Paula teve que concordar com ele. Ficou um pouco surpresa ao saber que ele se preocupava com esse tipo de coisas, como por exemplo, transformar a pequena baía num lugar encantador, onde os habitantes da região pudessem usufruir com segurança os momentos de lazer, em águas livres de poluição.

- Foi muita generosidade a sua preocupar-se com o bem-estar dos outros, moradores. Poliomielite é uma doença tão terrível!

- É mesmo - respondeu simplesmente, olhando para a praia, uma faixa branca e luminosa a uns seiscentos metros do local em que estavam. Paula continuava flutuando em seus braços, agora sem reagir...

- Seria um tremendo golpe para você, se eu realmente conhecesse o seu outro lado, o lado fraco?

- Quem sabe? - respondeu Dom Diablo. - Vamos experimentar? - Ele a soltou e Paula começou a nadar imediatamente em direção à praia, como jamais o fizera antes, esforçando-se para chegar antes dele. Se ao menos ela conseguisse! Se por algum milagre pudesse provar que não era aquela criaturinha frágil que ele pensava que fosse e a quem podia dominar como uma fêmea indefesa...

Olhou para o lado e viu que ele nadava sem o menor esforço. Os movimentos de seus braços eram vigorosos e regulares; seus dentes brilhavam muito alvos e percebia-se que ele a acompanhava com a maior facilidade, e só não a ultrapassava porque não queria. Num acesso de raiva, Paula atirou-lhe água nos olhos, mergulhando depois deste ato de coragem e engolindo muita água! Engasgou, quase se afogou, até que os braços fortes dele a agarraram, arrastando-a a nado até a praia. Lá chegando colocou-a na areia e ali ela ficou inerte. Seguiu-se uma ladainha de palavras em espanhol e Paula podia adivinhar significado de suas imprecações... Ela tossia, ainda engasgada, a areia grudada em seu corpo molhado.

- Sua tola! Um dia acabará mal com todas as suas loucuras e criancices! Quando é que vai crescer?

O que a deixou mais mortificada foi a certeza de que ele estava totalmente com a razão.

- É sempre infalível, não é, senhor? Será que nunca fez nenhuma tolice em sua vida? Pois saiba que a maior delas foi me obrigar a casar com você, obrigando-me avir para um país estranho, submetendo-me às suas exigências. Eu odeio essa sua pretensão, essa sua arrogância!

- Este assunto já está se tornando monótono - retrucou ele, em pé, na sua frente, como uma estátua de bronze. A água escorria de seu corpo e pingava sobre o dela. - Você usa a palavra ódio com tanta freqüência, minha querida, que já está começando a perder o efeito!

- Quer dizer que já surtiu algum efeito? - perguntou com ironia, ajeitando o cabelo que se soltara da fita e lhe caía solto pelas costas. O maiô estava muito colado ao corpo e Paula ficara ansiosa para tirá-lo, pois estava cheio de areia.

- Nunca permiti que alguém me dissesse um décimo das insolências que você já me disse. Chegou a hora de parar com isso e mudar de atitude - disse ele lenta e pausadamente.

- O que pensa fazer? Domar-me com um chicote? - perguntou.

- Não preciso usar o chicote com você - inclinou-se subitamente e ajoelhando-se ao lado dela, afastou-lhe o cabelo dos olhos e, ágil como um felino, prendeu-a entre suas pernas fortes de tal modo que ela não poderia escapar.

- Não faça isso - suplicou ela, vendo que não podia fugir.

- Não? E quem é que vai .me impedir? Estão todos fazendo a sesta. Temos a praia inteira só para nós dois. Você pode gritar, lutar, morder, ficará exausta mas terá que se render. Vamos querida, vamos começar o nosso treino antes da luta final.

- Vá para o inferno - disse ela, vendo que não podia fugir. Continuava ali estendida, ele reclinado sobre ela. Seu corpo emanava um calor que a queimava. Paula fechou os olhos e cerrou os dente, sentiu então os lábios dele roçando seu pescoço.

- Puxa, está cheia de areia! - reclamou, e levantou-se. De pé, ajudou-a a fazê-lo. Seus olhos se estreitaram com um brilho malicioso. Deu-lhe um tapinha nos quadris e disse-lhe fosse se arruma um pouco. - Se bem que eu até diria que não há nada mais encantador que uma mulher um pouco desarrumada. Porém, sem tanta areia e com um gênio um pouco melhor! Corra, minha gatinha selvagem, antes que eu mude de idéia e decida cortar suas garras!

- Imbecil! - insultou-o, mas só depois que ele a soltou e pôde se refugiar na cabana. Depois que trancou a porta sentiu-se mais tranqüila. Tirou o maiô e esfregou-se vigorosamente com a toalha de banho. Quando nadava com Marcus tudo era bem diferente. Após o banho costumavam deitar-se preguiçosamente na areia, tranqüilos, os nervos relaxados... Com Dom Diablo sempre ficava tensa, voltava-se com o menor barulho. Sentiu-se mais aliviada quando fechou o zíper do vestido.

Maldito! Provocava-a e sempre conseguia fazer com que ela se comportasse como uma idiota. Por que não conseguia manter uma atitude calma e digna em vez de entrar no seu jogo? Afinal terminavam sempre em discussões ridículas... Escovou o cabelo até que saísse toda a areia, prendendo-o num coque. Ao sair da cabana, já estava mais calma e mais arrumada. Com a cabeça erguida, passou por ele, que esperava apoiado no tronco de uma palmeira. Paula desviou o olhar. Não queria pensar nos momentos em que estiveram deitados na areia, os corpos muito unidos...

- A cabana está à sua disposição - disse ela. - Devo esperar no carro? - Ela temia, e Dom Diablo sabia disso, que ele a agarrasse de novo e a estreitasse contra seu corpo. Sentia-se fraca para resistir ao fascínio daquele homem forte e ágil como um felino.

- Não, fique aqui. Logo estou de volta!

Entrou na cabana sem trancá-la como ela o fizera. Paula ficou observando as ondas imensas que morriam suavemente na praia. A luz era crepuscular. De repente seu coração começou a bater descompassadamente. Um homem, segurando uma toalha e um maiô, caminhava em sua direção. Ao ver aquele cabelo loiro e o jeito de andar, Paula reconheceu-o imediatamente. Não! Queria gritar. Não venha! Não fale comigo! Não me reconheça!

- Senhora! Que prazer! - Suas palavras ecoaram no silêncio da praia, quebrado somente pelo murmúrio das ondas que iam e vinham... Não poderia ignorá-lo, apesar da cabana estar próxima e dos ouvidos aguçados de seu marido! Não poderia deixar de responder a Gil Howard, não poderia simplesmente ignorá-lo...

- Alô, sr. Howard. Vai dar um mergulho antes que a maré suba?

- Isso mesmo. Esta é a minha praia favorita para nadar. Depois de terminar o trabalho e com a perspectiva de uma noite de lazer... - Cobriu com passos largos os últimos metros que o separavam de Paula. Bem próximo agora, olhou-a com admiração.

- Vejo que já entrou na água. Parece uma sereia assim molhada...

- Por favor - pediu-lhe baixinho, os olhos súplices voltados para a cabana onde Dom Diablo se trocava. - Não diga essas coisas, meu marido não gostaria!

- Ora que bobagem! - Gil Howard fez uma careta. – Então estava nadando com seu marido mexicano? Está tão trêmula! Parece até que esta querendo me ver pelas costas... Será que seu mando é tão monstruoso a ponto de não permitir que converse com outros homens? Se é assim, sua vida deve ser um inferno...

- Será um inferno se você não for já embora - deu um sorriso forçado, visto que ele se mostrava tão amistoso.

- Seu desejo é uma ordem para mim, jovem e loira senhora. Será que existe alguma chance de que possamos nos ver novamente a sós?

- Nenhuma - respondeu ela apressadamente. - Por favor, vá embora antes que ele o veja...

Mas já era tarde... Naquele mesmo instante afigura de Dom Diablo, imponente e viril, apareceu na porta da cabana. Desceu os degraus, o olhar duro e penetrante. Era o protótipo do marido latino que não admitia que a mulher mantivesse com outro homem nem uma simples relação amigável.

Gil Howard lançou-lhe um olhar compreensivo, continuando a passear naturalmente. Para todos os efeitos era um banhista que passava por acaso e puxara conversa com uma moça que se encontrava sozinha na praia. Paula deu um suspiro de alívio. Não queria apresentá-lo a Dom Diablo... Queria, agora o percebia, o coração batendo mais rápido, que Gil Howard fosse um segredo só seu. Alguém em quem ela pudesse confiar e que a ajudasse a sair do país quando chegasse o momento.

- Aquele sujeito a estava importunando? - perguntou carrancudo.

- Absolutamente - respondeu ela, com um sorriso forçado. - Sabe como são os rapazes, estava só querendo fazer novas amizades .

- Quer dizer que a convidou para sair com ele? Por que não me chamou? Ou quem sabe gostou do encontro? Percebi que ele não é mexicano...

- Não, talvez seja inglês ou americano... De qualquer forma, senhor, vamos esquecê-lo. Ele não estragou minha reputação como sua esposa! Não houve tempo para isso!

- Cuidado, Paula! - segurou-a pelos ombros com dedos que pareciam de ferro. - Eu jamais toleraria em você um comportamento que fosse uma espécie de vingança. Não permitirei que desça ao nível de certas mulheres que usam outros homens para se vingarem dos maridos. Preferiria que você usasse um punhal.

- Não me provoque, meu caro esposo! - Desviou o olhar, pois não conseguia encará-lo. Olhou para o horizonte. O crepúsculo chegara tingindo o céu de vermelho. O mar ficara mais escuro e agora ao barulho das ondas se somavam os gritos dos pássaros marinhos. Alguns barcos de pesca, decorados com motivos religiosos, vinham voltando para a praia. A brisa marinha soprava mais forte, desmanchando os cabelos de Paula. O sol batia em sua fronte descoberta fazendo com que seus olhos ficassem ainda mais dourados. Ao seu lado Dom Diablo começou subitamente a dizer algumas palavras em espanhol e como ele falava devagar, Paula pôde compreender:

Quando o fogo vai embora, as cinzas retêm o calor

Quando o amor termina, o coração sofre com a dor

 

Quando o sol desapareceu e sobreveio a noite, Paula se lembrou da fotografia que vira aquela manhã... Era neste amor que ele estava pensando? Haveria ainda dor em seu coração para que o crepúsculo o fizesse pensar nestes versos?

Então, se afastaram do mar, voltando pela areia até a escada que levava à calçada. Paula estava certa de que Gil Howard a estaria observando de algum lugar na praia. Esse pensamento fez com que se descuidasse, tropeçando na escada. Teve que se apoiar em Dom Diablo para não cair. Imediatamente ele a segurou pela cintura.

- Cuidado, querida! Não gostaria que você se machucasse!

Não, pensou ela ressentida, tenho que me manter intacta para gerar um herdeiro perfeito!

- Estou bem. - Escapou de seus braços, correu para o carro e sentou-se sozinha no banco de trás. Experimentava uma sensação de angústia que parecia aumentar com o cair da noite.

Quando passaram pelos majestosos portões da fazenda, os lampiões estavam acesos. Logo que o carro parou, Paula desceu, dirigindo-se para casa como que fugindo dele. Queria ficar sozinha com seus pensamentos amargos e desesperançosos, mas na verdade ficara muito magoada ao saber que ninguém jamais a amara por ela mesma...

Marcus a amara porque ela se parecia com Daisy; Dom Diablo a amava apenas por sua beleza, por seus dotes físicos... Eram estes os requisitos que queria para a mãe de seu filho. Ela não podia pôr em risco sua beleza! Ao subir as escadas, lembrou-se de Gil Howard. Desejava desesperadamente encontrá-lo sozinha, quando Dom Diablo não estivesse rondando por perto. Ele jamais compreenderia uma simples amizade; pensaria logo numa ligação clandestina...

 

Quando Dom Diablo lhe disse que teria que se ausentar por uma semana, Paula não disfarço, sua sensação de alívio! Finalmente poderia ficar livre de seu olhar vigilante, ainda que fosse por pouco tempo!

- Parece muito satisfeita com esta minha viagem - disse ele secamente. Contou-lhe então que iria para a Argentina, onde trataria de negócios relacionados com gado e cavalos. - Pode ir comigo, se quiser - sugeriu. - Vou comprar um garanhão e umas éguas, uma das quais poderá ser sua, se quiser montar. Por um breve instante se sentiu tentada com a perspectiva de uma viagem, porém desejava ainda mais ardentemente ficar livre uns dias, durante os quais talvez pudesse retomar contato com Gil Howard.

- Enquanto estiver fora, senhor, posso usar o seu carro? Juan Feliz poderá me levar à cidade para ver as lojas, isso me distrairia um pouco desta monotonia do campo. Por favor, deixa?

Dom Diablo arqueou as sobrancelhas ao ouvir a sua voz tão doce, quase suplicante, e disse:

- Está sendo muito convincente! Estou quase me arrependendo e me decidindo a levá-la comigo. Não me agrada deixá-la sozinha uma semana inteira...

- Sozinha? - Seu coração começou a bater descompassadamente como um aviso de que devia ser mais cautelosa, senão acabaria outra vez em seus braços possessivos. - Tenho a certeza de que daria ordens severas para que Juan Feliz não me perdesse de vista um segundo sequer...

- Quanto a isso não resta dúvida. Eu nunca lhe perguntei antes, Paula, mas você sabe dirigir? - Olhava para ela tentando adivinhar o que ela escondia sob aquela máscara de brancura. Apesar de nunca ter tirado a carteira de motorista, aprendera a dirigir com Marcus, que aliás fora bastante eficiente como professor. Marcus lhe ensinara tantas coisas, a única que não lhe ensinara fora jogar cartas, com todas as suas artes e trapaças. Sob alguns aspectos ele era muito conservador. Achava que a eficiência de uma mulher não devia comprometer sua feminilidade. Na verdade, Paula sempre dirigira o carro com Marcus ao seu lado.

- Sei. Mas Marcus nunca me deixou dirigir sozinha. Sempre estava a meu lado - respondeu Paula, tentando parecer normal. – Às vezes dizia que ia me comprar um carro, mas morreu antes de cumprir sua promessa. Meu aniversário estava próximo e o carro seria o meu presente. Foi o destino que decidiu assim... Pobre Marcus! – Um pouco agitada, Paula mordeu os lábios esperando que mencionando o nome de Marcus desviaria a atenção do assunto dela poder guiar ou não. Porém, Dom Diablo continuava com o cenho franzido. Levantou-se então abruptamente, o charuto seguro entre os dentes.

- Tenho que escrever algumas cartas - disse ele e dirigiu-se à porta da sala de estar, parando um instante para olhar para ela. - Muito bem, fique então na fazenda se preferir. Talvez não queira fingir que é uma esposa feliz diante de meus amigos. Darei ordens a Juan Feliz para que a leve à cidade quando quiser, mas nada de tapeações, ouviu?

- Sim, senhor - respondeu Paula. Porém ela só se sentiu mais tranqüila quando a porta se fechou atrás dele. Fez-se silêncio na sala, persistindo apenas o perfume de seu charuto e o eco de suas palavras... Paula deixou-se cair no sofá. Ele se tornava demoníaco quando provocavam a sua ira e Paula sabia que quando ele estivesse fora não resistiria à tentação de pegar o carro, escondida do chofer. Ele não poderia punir Juan Feliz por algo que ela fizesse. Seria uma injustiça, pois Juan tinha uma família grande para sustentar. Se conseguisse alguns momentos de liberdade, poderia até aceitar o castigo que viesse depois. O fato de ser constantemente vigiada fazia com que se tornasse mais intensa a sua sede de liberdade. Poderia bater um papo despreocupado com Gil Howard novamente sem ter que ficar na defensiva o tempo todo como quando conversava com Dom Diablo.

Ele partiu repentinamente numa manhã. Antes de sair, entrou no quarto de Paula para lhe dizer adeus. Inclinou-se sobre ela, recostada nos travesseiros, o cabelo brilhante espalhado sobre a seda branca da fronha, e abraçou-a fortemente.

- Posso esperar que sinta a minha falta? - perguntou, olhando-a fixamente. Apesar de ele ter passado parte da noite em claro, tentando salvar um potro que caíra no fosso, seu corpo emanava força e vitalidade. Paula o ajudara e até chorara quando conseguiram tirar o potrinho que correu imediatamente para junto da mãe. Sentia-se trêmula, os nervos à flor da pele...

- Por Deus, como você é bonita! - exclamou ele em voz baixa. - Não pode imaginar como está maravilhosa aí na cama, tão loira, tão frágil ! Eu poderia quebrá-la com as minhas mãos, e saiba que é o que farei se você me trair ou mesmo olhar para outro homem. Você é minha e eu não queria deixá-la sozinha. Venha comigo! Tenho certeza de que vai gostar!

- Não! - virou o rosto, apertando-o contra o travesseiro e comprimindo, involuntariamente, os seios com as mãos como se para se proteger. - Dê-me um pouco de tempo antes que eu possa encontrar os seus amigos. Não conseguirei fingir que estou loucamente apaixonada por você, bem sabe disso. - A estas palavras, seguiu-se um silêncio constrangedor. Forçou-a a olhar para ele, segurando-a pelos ombros, num gesto firme.

- Então, pelo menos, me dê um beijo de despedida, mas um beijo de verdade!

- Está bem! - concordou passivamente, enquanto os lábios dele comprimiam os seus. Então, como se a sua condescendência gelada tivesse desencadeado nele o demônio, seu beijo tornou-se cruel e exigente, queimando a sua boca. Os olhos dele se detiveram nela como se quisesse memorizar todos os detalhes de seu corpo e de seu rosto antes de deixá-la. Tomou entre os dedos uma mecha de seus cabelos, levando-a aos lábios. Foi então que Paula se lembrou da noite anterior quando ele salvou o potrinho. Os lábios dele pousaram em seus ombros nus. Ela puxou os lençóis para se cobrir, tornando-se então distante e fria como um bloco de gelo em seus braços. Ele então deixou-a e levantou-se da cama, ajeitando a gravata e os cabelos negros e lisos.

- Vim para lhe dizer adeus, Paula. Podia ao menos me desejar boa viagem! Será que está fazendo votos para que o avião caia? - perguntou. Antes que ela pudesse responder, ele se dirigiu à porta e acrescentou: - Diz o ditado: "O demônio cuida do que é seu". Por isso, eu, em seu lugar, não teria muita esperança de ficar viúva.

Com estas palavras deixou o quarto. Paula estava perplexa. Um arrepio percorreu seu corpo. Atirou as cobertas para o lado e correu para a porta. Não podia deixá-lo ir embora assim, pensando que ela era tão má, principalmente depois da noite anterior. Ele lutara tanto para salvar o potrinho que não podia ser duro e frio como queria demonstrar!

- Senhor! - gritou, mas o corredor estava vazio e sua voz ressoou em vão. Ouviu então o barulho do motor. O carro já saía pelos portões da fazenda, deixando-a como tanto desejara, sozinha e dona de seu nariz!

De volta ao quarto olhou ao seu redor. Sentiu uma sensação estranha. Pela primeira vez, após várias semanas, tomaria sozinha o café da manhã. Uma curiosa e desagradável sensação se apoderou dela enquanto se dirigia ao banheiro e se olhava no espelho imenso. Era por ter uma figura esguia e loira, ali refletida no espelho, que se encontrava agora naquela fazenda. Dom Diablo gostara de seu corpo jovem e ela, ingenuamente, por se encontrar em situação desesperadora, deixara-se enganar... Ao entrar no chuveiro, abriu tanto as torneiras que a água jorrou com força sobre seu corpo como que para apagar de sua pele as marcas das carícias do marido. Paula não queria sentir, queria se transformar em uma estátua de mármore...

Estava no quarto pronta para se vestir quando a porta se abriu e, como sempre, Carmenteira entrou sem bater... A velha carregava um vaso de camélias brancas para colocar sobre uma mesa de bambu. Paula sabia que as flores eram somente um pretexto que a velha usava para ter acesso à intimidade de seu quarto.

- Vai ficar sozinha por uns tempos, senhora? - perguntou Carmenteira enquanto arrumava as flores. - Mas, conhecendo bem Dom Diablo como conheço, imagino que ele deve tê-la deixado satisfeita por pelo menos duas semanas... Pensei que fosse com ele... Não tem medo, senhora, que ele encontre por lá uma mulher bonita que o console da solidão? Sabe como é, ele é um pedaço de homem, não é?

Paula olhou firme para ela que, por sua vez, olhava maliciosamente para a cama do casal.

- Às vezes umas férias fazem bem para um casal - explicou, irritada por ter que suportar a curiosidade daquela mulher que morava ali há tantos anos e que se dava ao luxo de se intrometer na sua vida! Os olhos penetrantes da velha se pousaram na roupa que Paula acabara de pôr: uma calça branca de pescador, amarrada logo abaixo do joelho, e uma blusa de mangas bufantes.

- Roupa de garoto! Por que usa esse tipo de roupa, senhora? Precisa usar trajes masculinos para ter mais confiança em si mesma? Não gosta de ser mulher? As mulheres latinas são diferentes, são mais femininas! Desde que nascem são educadas para ser fonte de prazer e alegria para o homem... Mas a senhora se rebela contra seu destino!

- Destino? - repetiu Paula com desdém. - Eu nunca teria vindo para cá se meu pai não tivesse estado aqui, se não tivesse abandonado minha mãe antes mesmo de eu nascer! Acho que o amor tem um significado diferente para o homem e para a mulher. Para a mulher significa apenas renúncia, enquanto para o homem apenas prazer! Mas fique sabendo que nenhum homem, nem mesmo o seu patrão, me transformará numa escrava idiota, que ronrona como uma gata quando ele está perto. Eu sou como sou, e me basto!

- Você é uma tola - disse Carmenteira. - Se pensa mesmo assim não merece ser dona desta fazenda, uma das mais luxuosas do México. É uma mulher frívola e ingrata. Dom Diablo vai perceber logo a bobagem que fez se casando com você. A sua figura loira e frágil conquistou-lhe os olhos e não o coração. Aliás, sabe disso, não é?

- Como se atreve a ser tão insolente? - Paula tremia de raiva por estar no meio desta gente que não a compreendia, nem lhe demonstrava a menor amizade. Conseguiu evitar um soluço. Não queria fazer papel de idiota diante daquela velha. - Saia! - ordenou. Sua voz era dura e seus olhos estavam embaçados. Apontava a porta. - Já ouvi demais suas insinuações malévolas! Você não passa de uma velha intrigueira! Mal esperou Dom Diablo virar as costas para vir aqui lançar seu veneno. Sei que não gosta de mim, nem você nem as outras pessoas desta casa. Ficam sempre me comparando com a outra mulher de Dom Diablo! Pois bem, ela morreu e eu estou viva! Não vou mais tolerar que entre no meu quarto sem ao menos ter a consideração de bater na porta. Sou muito inglesa e os ingleses fazem questão de sua intimidade, ouviu bem? Como já disse, Carmenteira, eu sou a dona da fazenda e, como tal, não vou mais permitir que você ou qualquer dos outros empregados sejam malcriados comigo. Está entendido?

Durante todo o tempo, Carmenteira olhou para Paula com seus olhos negros e brilhantes, mas estranhamente sem o menor sinal de raiva.

- Então, apesar de tudo, a inglesa tem alguma coisa dentro dela! - exclamou. - Não é a criatura feita só de leite e mel como parecia! Apesar de tudo, senhora, não tem o direito de impedir uma pobre velha, que trabalhou a vida inteira para essa família, de dizer o que pensa. Será que tem medo de ouvir verdades?

- Não tenho medo, mas sou humana. Ressinto-me porém com as comparações que vocês fazem entre mim e aquela que vocês gostariam que estivesse aqui, viva, no meu lugar. Provavelmente ela a chamava todos os dias aqui no quarto para fazer confidências; contar-lhe tudo sobre suas esperanças a respeito dos futuros herdeiros desta casa. Sinto muito não entrar nesse esquema, mas sou inglesa e nada neste mundo fará com que eu me torne como as mulheres latinas, nem mesmo as suas bruxarias!

Carmenteira já na porta, olhava para Paula cujos olhos, cheios de lágrimas, brilhavam de raiva.

- Isso é verdade! Nunca será como uma de nós, pois você não quer dar uma porção de filhos a Dom Diablo! Mas seja como for, ele vai querer pelo menos um filho seu, já que se deu ao trabalho de ir até a Inglaterra só para buscá-la! Parece-me que ele soube da sua existência por aquele funileiro que morou aqui há uns tempos atrás.

- Ele era meu pai - respondeu Paula com dignidade serena. - Diga-me Carmenteira, ele está sepultado aqui nesta propriedade? Já pensei tanto sobre isto! Não o conheci, mas parece que ele amava minha mãe. A sua maneira, bem entendido...

- Há um pequeno cemitério atrás da capela - disse Carmenteira. - É lá que serei sepultada. Sabe, eu já sou muito velha. Conheci a avó de Dom Diablo quando era menina, assisti seus últimos dias, segurando sua mão na hora da morte. Mas a senhora não segurará a minha, quando eu estiver morrendo, não é verdade?

Ao ouvir essas palavras patéticas, Paula mordeu os lábios, pois não era má. Não gostava de fazer os outros sofrerem.

- Tenho certeza de que vai viver pelo menos até cem anos. Diga-me, Carmenteira, Dom Diablo não tem irmãos?

- Tinha um irmão mais moço, mas morreu de poliomielite, há alguns anos. Um belo jovem chamado Alvarado, alguns anos mais moço do que Dom Diablo.

Ao ouvir isto, Paula prendeu a respiração e se lembrou do que o marido dissera a respeito da limpeza da praia, onde haviam estado.

- Que pena! Ele nunca me contou que tinha um irmão!

- Talvez a senhora nunca tivesse perguntado. Dê um pouco de atenção ao lado humano de seu marido, caso contrário ele poderá se transformar no demônio que você crê que ele seja. Corre nas veias dos homens Ezreldo Ruy o sangue cruel dos colonizadores, mas uma mulher inteligente pode transformar esta crueldade em bondade...

 

Mais tarde, com uma aparência fresca e perfumada, Paula atravessou o jardim até chegar à capelinha, circundada por enormes árvores antigas. Suas paredes eram cobertas de trepadeiras floridas. Paula achou a capela fria e sombria. O piso era de mármore polido e a virgem vestida de azul, estava num pedestal, cercada de velas acesas. Sentiu uma grande paz em seu coração. Quando Carmenteira a deixara, sentira-se muito triste e confusa. Aqueles momentos na capela pareceram aliviá-la. Foi depois até o pequeno cemitério, carregando as camélias brancas que Carmenteira pusera em seu quarto. Caminhou silenciosa entre os túmulos até que finalmente encontrou um, muito simples e com uma inscrição que a chocou terrivelmente:

"Charles Lennox Paget partiu deste mundo para o outro, aos quarenta e quatro anos."

Ajoelhou-se no gramado verde e colocou as flores no túmulo. Os pássaros cantavam alegremente. Ali, longe da Inglaterra, jaziam os restos do homem que ela mal conhecera e no qual poucas vezes pensara. Para ela Paget já estava morto há muito tempo. Devotara a Marcus toda a sua afeição. Como era estranho, após todos esses anos estar ali, junto ao túmulo de seu pai! Lágrimas traiçoeiras encheram-lhe os olhos e Paula enxugou-as rapidamente com a mão. Separou então uma camélia e começou a procurar o outro túmulo, o do jovem cunhado que não conhecera.

Quando saiu do cemitério; resolveu dar um passeio pelo pomar. Entre figueiras e amoreiras havia milhares de abelhas zumbindo e trabalhando, pois existia uma grande quantidade de mel nas árvores floridas. Respirou o ar perfumado. Era uma sensação maravilhosa, quase de embriaguez.

 

Nos dias que se seguiram Paula se preocupou em se familiarizar com a casa. Foi só no meio da semana que resolveu pedir a Juan Feliz para levá-la à cidade. Preferiu não arriscar indo sozinha. Durante esses poucos dias, refletiu melhor sobre suas responsabilidades. Deu-se conta de que havia muitas pessoas que dependiam de seu marido e que durante a sua ausência, iam depender dela. Uma manhã, ouviu gritos estridentes vindos da cozinha. Correu para lá. Duas empregadas se engalfinhavam, agarrando-se pelos cabelos, os rostos desfigurados pela raiva e fazendo mil imprecações! Uma outra criada informou Paula que as duas estavam brigando por causa de Lothario, um rapaz que, segundo a informante, estaria enganando as duas. Após observar a cena por alguns instantes, Paula foi até a pia, encheu uma jarra de água e jogou-a sobre as duas. No mesmo instante se separaram, olhando muito chocadas para Paula. A água lhes escorria pelo rosto e pelo pescoço. Os cabelos estavam ensopados!

- Não adianta se comportar desta maneira aqui nesta casa! - disse Paula em espanhol, calma e disposta a ser obedecida. - Se pensam que vão fazer o que bem entendem só porque estou sozinha se enganam muito! Se isto acontecer outra vez dispensarei as duas! Esta cozinha não é um cortiço! - Uma das jovens começou a chorar e a outra ameaçou usar uma faca, se ela olhasse para seu namorado outra vez.

- Não seja idiota, Pilar. Se o rapaz é tão mulherengo e namorador não vale a pena, é melhor que você ache outro namorado. É ridículo lutar assim por um homem!

- A senhora não lutaria se seu homem fosse roubado por outra mulher? - replicou Pilar.

- Acho que teria um pouco de orgulho e dignidade.

- Orgulho! O que significa orgulho quando se ama alguém? - zombou Pilar.

- Se uma mulher não tem um mínimo de amor-próprio, ela não tem nada...

- Prefiro ter o amor, a paixão... senhora - a jovem mexicana começou a sorrir, seus dentes muito brancos brilhavam. - Não tem o nosso sangue, por isso não consegue entender. Nós conquistamos, lutamos por ele e depois tratamos de conservá-lo. Se Loreta olhar mais uma vez para meu namorado, vou lhe arrancar os olhos e farei churrasco com eles! - Ao ouvir isto, Loreta soluçou alto e saiu correndo da cozinha. Pilar, com um ar de triunfo, continuou ali, muito empertigada.

- Não quero mais saber de briga - advertiu Paula. - Não permitirei que isso aconteça outra vez...

Ao sair da cozinha, percebeu que as outras criadas a olhavam com respeito!

Ao enfrentar essas pequenas crises, deu-se conta do peso de sua responsabilidade. Sentiu-se então com o direito de algumas horas de distração na companhia de Gil Howard. Após ter dito a Juan Feliz para tirar o carro da garagem foi até o quarto e escolheu um vestido azul e bege que lhe caía muito bem. Resolveu usar o colar e os brincos de pérolas que tinham sido de sua mãe. Quando terminou de se vestir, achou-se elegante demais para um mero passeio pelas lojas. Se a velha Carmenteira a visse, ficaria desconfiada. Paula espiou do alto da escada. Estava decidida a ir até a cidade, não desistiria só por medo dos mexericos da velha! Carmenteira estava no saguão, espanando os vasos de cerâmica. Vendo-a passar, não resistiu:

- Então não usa mais calças compridas? Está tão elegante, parece pronta para ir a uma festa com um amigo...

- Como esposa de Dom Diablo, tenho que me vestir bem - replicou, tentando desarmar Carmenteira. - Não posso comprometer o nome de meu mestre e senhor, não é verdade?

- Bem, uma coisa é elegância, outra é exagero... Às vezes as culpas e os pecados de uma mulher podem estar ocultos sob um traje bonito...

- Culpas, pecados? - Paula não queria dar satisfação de seus atos, mas não conseguia evitar. - De que eu deveria me sentir culpada?

- Sabe melhor do que eu. Estive estudando as folhas de seu chá, hoje de manhã, e vi um dedo acusador e um espetáculo de fogos de artifício. É bem significativo, não acha?

- Isto é idiotice! - Percebeu que Carmenteira estava tentando adivinhar para onde ia, provocando-a. Deu um sorriso e dirigiu-se ao pátio onde Juan Feliz esperava. Entrou no carro e disse ao chofer que a levasse à cidade para fazer compras. Juan Feliz parecia também achar estranho o comportamento de sua patroa.

Enquanto o carro deslizava pela estrada, Paula chegou à conclusão que todos eles a observavam, como que à espreita de qualquer erro de sua parte. Deveria ter posto um vestido mais simples, teria sido mais prudente! Afinal não pretendia fazer nada de mais, queria apenas bater um papo alegre e despreocupado com Gil Howard, isto é, se o encontrasse... Poderia então lhe falar de sua intenção de sair do México, talvez ele a pudesse ajudar.

Uma hora depois o carro entrou na pequena vila, Paula retocou a maquilagem. Logo chegaram à praça principal. A perspectiva de encontrar novamente aquele americano simpático a deixara de muito bom humor, embora um pouco ansiosa!

- Quanto tempo vai demorar, senhora? - perguntou Juan, ajudando-a a descer do carro.

- Quer que eu a acompanhe para carregar os pacotes?

- Mais ou menos uma hora - disse ela, dirigindo-lhe um sorriso e tentando parecer despreocupada. - Não pretendo comprar muita coisa. Se você quiser pode ir a um bar tomar alguma coisa. Mais ou menos às quatro estarei de volta. Não se preocupe comigo... Não vou fugir nem deixar que Dom Diablo se zangue com você.

- Fugir! - exclamou ele, subitamente alarmado. - A senhora nunca poderia fazer uma coisa dessas!

- Está certo, Juan, eu não o deixaria em maus lençóis, conheço bem o temperamento de meu marido. Até logo!

Caminhou rapidamente em direção às lojas, sabia porém que Juan a acompanhava com os olhos. Rezou para que ele não a seguisse. Quando se viu longe do alcance de suas vistas, dirigiu-se à joalheria. Subitamente sentiu uma timidez absurda. Ficou olhando a vitrine, como se estivesse procurando algo para comprar, sem coragem de entrar. Olhava um relógio de jade, que poderia servir para seu criado-mudo, quando sentiu uma sensação estranha como se alguém a estivesse observando. Voltou-se um pouco irritada, talvez Juan tivesse resolvido vigiá-la...

- Olhe, não preciso de um cão de guarda! - disse ela e parou subitamente. À sua frente estava Gil Howard, muito bem vestido: o blazer creme, combinando com a calça marrom, realçava seu bronzeado.

- Pensei que uma aparição tivesse chegado à cidade - disse ele. - Vi você passando ali da loja de artigos esportivos. Estava procurando um maiô e uma raquete de tênis. Não pude acreditar e saí correndo para me certificar que era você mesmo!

- Eu... eu vim à cidade para comprar um relógio - disse ela, feliz por tê-lo encontrado, porém ainda um pouco constrangida. - Este aqui de jade, gostaria de vê-lo melhor...

- Olhe aqui, não gostaria que fizesse um mau negócio. Seu marido deve ter relógios mais bonitos e mais valiosos que este, na fazenda. A propósito, onde está seu dono?

- Você não deveria falar desse jeito - protestou.

- Será que ele me tiraria a pele por isso? Como é que ele pode cuidar de negócios, deixando uma mulher bonita como você sozinha andando por esse mercado...

Quando Gil mencionou sua beleza, Paula percebeu que mudara de expressão. Sentiu então que só dependia dela o rumo que tomaria aquela amizade... Ou permitiria que aquilo continuasse ou teria que parar por ali, antes que se tornasse um namoro. Sabia que se encontrava na posição vulnerável de mulher dominada mas não amada, portanto era normal que desejasse alguém que a amasse um pouquinho!

- Meu marido foi resolver uns negócios na Argentina.

- Puxa, foi bem longe, desta vez! E então você resolveu aproveitar a sua ausência para comprar um relógio...

- Se acha que não vale a pena, não falemos mais nisso, sr. Howard!

- Acho bom, mas por favor, doçura, não seja tão formal, chame-me de Gil, afinal falamos a mesma língua, e é óbvio que gostamos um do outro!

- Não seja tão pretensioso! Não nego que estou contente por vê-lo, mas faço questão de esclarecer que não sou uma esposa à procura de distração! O que eu quero é uma pessoa com quem possa conversar amigavelmente...

- Entendo perfeitamente, Paula; não precisa ficar assim preocupada - sorria mais amigável, quase indulgente. - Eu não gostaria de estragar esse nosso encontro; sei muito bem que não está à procura de aventuras. Basta olhar para você para ver que é uma moça distinta, uma verdadeira senhora. Escute, conheço um lugar simpático onde poderíamos tomar uma xícara de chá com pãezinhos de minuto, você não gostaria?

- Claro que sim! - apertou o estômago como se estivesse com fome. - E onde fica este lugar maravilhoso?

Ele hesitou um instante e, aproximando-se um pouco mais dela, disse:

- Meu apartamento, doçura. Fica só a alguns passos daqui. Eu lhe prometo que comigo estará segura como um gatinho recém-nascido junto da mãe. Não vou engolir você, fique tranqüila.

Foi Paula então quem hesitou. Sentia novamente aquele sinal de perigo, como se o chão se movimentasse sob os seus pés. A sensação era tão forte que segurou o braço de Gil.

- Eu gostaria de tomar uma xícara de chá e creio que posso confiar em você!

- Isso é importante - disse ele e sorriu. - Então, vamos!

- Está bem - concordou ela e o acompanhou. Estava um pouco atordoada, sentindo-se uma meninazinha ingênua e tola. Dom Diablo estava a milhares de quilômetros de distância e jamais saberia que ela passara uma hora com outro homem.

 

O apartamento de Gil era no andar térreo de uma casa em estilo espanhol, com um pátio interno para onde convergiam todos os cômodos. Salas altas, venezianas coloridas, um violão com fitas vermelhas e muitos vasos com plantas. Convidou Paula para se sentar no sofá, despretensiosamente coberto com um xale de franjas. Em frente ao sofá, havia uma mesa baixa com cigarros americanos e um isqueiro de prata em forma de coruja. No chão, um tapete tipicamente mexicano, de cores vivas.

- Que sala bonita! - exclamou Paula, olhando ao seu redor. Sorria tranqüila. Seu nervosismo desaparecera talvez pelo fato da casa ser tão pertinho e por ter a certeza de que Juan Feliz não a vira. Recostou-se no sofá. Agora podia descansar. Percebeu então que Gil a observava atentamente. O vestido bem justo delineava seu corpo tomando-o ainda mais atraente.

- Deve estar nervosa - disse ele baixinho. - Se eu tivesse uma mulher como você, eu me zangaria muito se fosse tomar chá com outro homem!

- Agora não estrague as coisas com seus elogios.

- Quer o chá com leite ou limão?

- Com limão. Quer que eu o ajude?

- Não, limite-se a enfeitar a minha casa, além disso só eu sei onde estão guardadas as coisas. O apartamento é um pouco pequeno, mas a sua localização é boa e a locatária não se intromete com as minhas visitas. - Quando Gil se dirigiu à cozinha, Paula sorriu. Ao mencionar visitas ele se referia certamente a garotas. Era charmoso e bonito, portanto devia gostar da companhia de mulheres. Ao ouvi-lo cantarolando e se mexendo de um lado para outro, Paula se admirava dele ser divorciado. Achava que qualquer mulher deveria se sentir feliz a seu lado, sem precisar pensar em outro homem.

- Costuma receber muitas visitas? - perguntou Paula, olhando para o violão de fitas vermelhas. Lembrou-se então da música nostálgica tocada pelas jovens mexicanas, na fazenda.

- Às vezes, para almoçar ou jantar - respondeu, entrando na sala com a bandeja completa para o chá, os pãezinhos de minuto e a geléia de amoras. Colocou a bandeja na mesinha ao lado do sofá e trouxe o resto depois.

- Quer servir o chá? - perguntou Gil, sentando-se num dos almofadões.

Paula sentiu-se nervosa. Tentou disfarçar e só então serviu o chá.

- Isto é tão bom! Parece que estou de volta à Inglaterra! Sua sala é tão acolhedora!

- As salas da fazenda devem ser muito maiores e luxuosas, cheias de objetos raros...

- Saiba que eu não me casei com Dom Diablo por causa de dinheiro. A fazenda é muito bonita, mas para mim não passa de uma prisão.

- Conte-me então, por que se casou, Paula. Se não o amava deve ter tido um motivo muito forte para que o fizesse!

- Ele apareceu em minha vida no momento em que eu havia perdido um ente muito querido. Eu não tinha mais para onde ir e deixei-me convencer que o casamento seria a única saída, pois não me sentia preparada para enfrentar a vida sozinha. Quando eu soube que o último desejo de Marcus era que eu me casasse com Dom Diablo, então concordei, como uma sonâmbula que não quisesse acordar para a realidade!

- Mas ele como marido fez com que você voltasse logo para a realidade, não é verdade?

- Inclinou-se para a frente com uma expressão muito séria. - Ele a quis assim como se quer uma pedra rara, só que não a colocou onde devia... Foi um casamento no real sentido da palavra, ele tomou posse da esposa...

- Foi realmente o que aconteceu. - Sorriu um pouco sem jeito. - Nós nos casamos numa igreja católica e tenho a certeza de que ele jamais permitiria que eu fosse embora...

- Então quer dizer que você está pensando em fugir? - perguntou Gil seriamente. - Tem que procurar refúgio nos Estados Unidos. Não pode continuar a levar esta vida infernal com um homem que não a ama, tendo que se entregar a ele, segundo os seus caprichos! Isso chega a ser quase amoral!

Paula não tinha pensado ainda na situação em termos tão drásticos e ficou surpreendida com a veemência de Gil Howard. Achou-o puritano demais ao se mostrar chocado com a idéia de uma jovem como ela viver com um homem contra a sua própria vontade. Mas não queria que ele se envolvesse pessoalmente no problema e bastava que a ajudasse a sair do México, quando chegasse a hora...

- É o fim do mondo um sujeito viver como ele vive, num esplendor feudal! Ele a deixou porque sabia que seus subordinados não arriscariam o pescoço ajudando-a a fugir. Mas ele não contava comigo. O sujeito me olhou o outro dia na praia como se fosse um verme!

Não quero aborrecê-la nem assustá-la doçura, só quero ajudá-la a livrar-se de Dom Diablo. Você não pode continuar a viver assim. Aposto que nunca havia tido um namorado antes, pois Marcus deve ter sido bem severo! Talvez mais severo que um pai de verdade!

- Marcus não era velho, nem tinha idéias antiquadas! A companhia dele me bastava. Não sentia necessidade de flertar com rapazinhos idiotas da minha idade. Mas o que Marcus planejava para mim era o que ele chamava de um bom casamento!

- Um super casamento! - ironizou Gil. - O dinheiro é muito cômodo, mas não quando com uma mão se segura a bolsa e com a outra o chicote! Você já pensou em fugir, não é verdade?

- Sim, mas há alguns problemas! - confessou Paula.

- Não serão insolúveis se você realmente quiser resolvê-los. Você não sente nenhum amor por Dom Diablo e nem poderia, pois ele pertence a outra raça e religião, além de ser muito mais velho! Ele considera você aquilo que se chama capricho de um homem rico! Pudera, você é tão bonita! - Gil inclinou-se para a frente, segurando-lhe as mãos. - Estes anéis têm um valor enorme, você sabe? Tem idéia por quanto poderia vendê-los?

- Eu não poderia vender os anéis! - respondeu nervosamente. São jóias da família Ezreldo Ruy. Tenho outra jóia, um broche que ele me deu. Não é antiga, mas creio que vale bastante. Pensei em vendê-la.

- Seria aquela libélula que usava no primeiro dia em que nos encontramos? - Gil encarou-a. - Foi por isso que veio à joalheria? Para saber se nós a compraríamos?

- Queria que a avaliassem no caso de eu precisar de dinheiro. - Paula tremia mas suas mãos continuavam presas nas de Gil. – Pensei em abandonar Dom Diablo, mas ele está com todos os meus documentos, inclusive o passaporte. Não posso ir muito longe sem isto e dentro das fronteiras do México, ele logo me encontraria e depois seria pior.

- Pior? - Apertou-lhe com força-a mão. - Espero que ele nunca tenha lhe batido!...

- Não, ele é muito sutil. Não precisa usar da força para dominar!

- Quer dizer que a domina só com o olhar?

- Mais ou menos isso - Paula procurou evitar o olhar de Gil. As tapeçarias coloridas chamaram-lhe a atenção. Além disso a decoração descontraída fazia com que sentisse inveja da liberdade de Gil e de seu modo de vida descompromissado.

- Você sabe onde ele guardou seus documentos? Certamente poderá pegá-los se quiser.

- Estão trancados numa escrivaninha em seu escritório.

- Quer dizer que ele não tem nenhuma ilusão sobre os seus sentimentos já que desconfia de você... Sabe que o detesta mas não a deixa ir embora. Bem, isso é bem típico dos homens de sua raça. Acham que as mulheres não têm nenhum direito e só as têm para... bem prefiro não dizer o que penso... Não quero que fique encabulada, mas entendeu bem o que eu quero dizer?

Ela sabia mas não queria discutir o assunto com Gil Howard. Era muito doloroso, muito pessoal! Desvencilhou-se de suas mãos e foi até a porta que dava pata o pátio interno. No jardim havia uma profusão de cravos plantados ao redor de uma velha fonte. Paula pensou novamente como devia ser agradável a vida nesta casa alegre e despretensiosa.

- Este lugar me agrada muito! - exclamou. - E você, Gil, gosta de viver no México?

- Bem, há certas vantagens. Vive-se melhor aqui e com menos dinheiro do que nos Estados Unidos. A comida é ótima, a roupa não é cara, além do que há mar e solo ano inteiro!

- E belas mulheres! - Paula sorriu. - Algumas incrivelmente charmosas, os cabelos negros lisos, os olhos tão escuros...

- É verdade, mas já reparou como ficam quando passam dos trinta? - Uma mulher como você, doçura, continua bonita até depois dos sessenta!

- Por favor Gil, não fique sentimental - pediu-lhe. Estremecera porém quando ele a tocara. Ele tinha todo o direito de pensar que ela gostasse das atenções de um homem menos autoritário do que seu marido! Tinha, pois, que mantê-lo a distância. - Tem alguma... algumas... namoradas aqui no México?

- Às vezes uma garota ou outra - admitiu. - Desde que me separei de Louise evito envolver-me seriamente com alguém, pois eu amava realmente minha mulher. Ela era cantora num clube noturno em Santa Mônica e não quis deixar sua profissão para me acompanhar em minhas viagens. É quase uma ironia, agora que minha vida está mais organizada, eu não ter uma esposa que a compartilha comigo.

- Pobre Gil! - exclamou Paula e ao tentar pegar um cacho de uvas deixou-o cair no chão.

- Pobre Paula! - As mãos de Gil envolveram seus ombros frágeis. - Será que chegará algum dia, para consolá-la, algum homem diferente de seu marido prepotente?

- Eu... eu não sei... - Paula sorriu, libertando-se suavemente de seu abraço e dirigindo-se ao pátio. O ar estava morno.

- Será que vamos ter uma tempestade? - perguntou um pouco alarmada. - Tenho que ir embora. Não gostaria de voltar para casa com chuva forte, pois parte da estrada é quase deserta. Seria uma experiência desagradável.

Gil observou o céu, as sobrancelhas franzidas, um ar carrancudo.

- Bolas! Como o ar ficou carregado! Lembro-me de ter ouvido um sujeito dizer lá no mercado que a terra estava rachando. É uma forma deles dizerem que a terra necessita de muita chuva. Aqui no México, quando a seca se prolonga muito tempo, a terra começa a rachar.

Paula lembrou-se do potrinho e sentiu um arrepio gelado por dentro, pois seu corpo estava quente como se estivesse perto de uma fogueira.

- Gil, creio que é melhor eu ir andando, tenho que estar no carro às quatro horas. Juan Feliz vai ficar mais nervoso se tiver que dirigir com chuva.

- Quer dizer que Dom Diablo faria o diabo com ele se acontecesse alguma coisa com você? - Gil segurou-lhe os ombros novamente, fazendo com que olhasse para ele. Parecia angustiado. – Tem certeza de que Dom Diablo não a ama loucamente? Afinal, você é suficientemente atraente para amolecer qualquer coração, por mais duro que seja...

- Não, ele não me ama assim como você pensa. - Paula falava com uma convicção inabalável. Seu marido nunca lhe falara em amor, pois só a via como um objeto de sua propriedade. - Dom Diablo é apenas dono e senhor. É de natureza possessiva e ficaria furioso ao se ver lesado em qualquer das suas propriedades. Vou indo agora. Obrigada pelo chá e por ter tido a paciência de me ouvir. Gil, por favor, deixe-me ir! Preciso ir embora!

- Eu deixo você ir, doçura, porém só se me prometer que voltará novamente - puxou-a novamente para perto dele. - Você é macia como um gatinho e precisa ser acariciada. Sou especialista em fazer as gatinhas enlouquecerem de prazer... - Ao dizer isto Gil acariciou seus quadris. - Não seria uma boa forma de se vingar, especialmente com alguém que a faz feliz? Alguém assim como eu?

- Sabe o que ele faria se soubesse que o estou traindo com outro homem?

- Mas não vejo por que ele teria que saber - um largo sorriso se espalhou pelo rosto de Gil. - Você é um tanto ingênua, sabe? Veja agora, por exemplo, por acaso alguém sabe que estamos juntos aqui? Quando os mexicanos fazem a sesta nem um terremoto é capaz de acordá-los. Poderíamos combinar neste horário...

- Não, não me importo com Dom Diablo nem com sua bendita honra mas sim com a minha. Você mesmo diz, Gil, que eu não sou do tipo que gosta de aventuras. Eu me sentiria descarada e ordinária se agisse como uma mulher que Dom Diablo e eu vimos outro dia. Deve estar tão acostumada a entregar seu corpo que por pouco não o fazia ali mesmo, na frente de todo mundo. Não, eu preferiria morrer!...

- Muito obrigado, nunca pensei que a minha companhia pudesse ser tão ruim assim.

- Ora, Gil, você sabe que é atraente, e eu gosto de você. Mas não quero um caso, tudo o que eu quero é ser livre. Deu um suspiro e depois, com um soluço assustado, atirou-se nos braços de Gil. Não era porém um abraço de amantes. De repente, um barulho estranho e apavorante começou. O chão tremia e os dois caíram no piso de madeira.

- É um terremoto - gritou Gil.

Paula ouvia estas palavras alguns segundos antes de bater com a cabeça, perdendo depois a consciência.

 

Quando voltou a si, estava deitada numa cama macia e sentia algo gelado na testa; eram compressas de gelo para lhe aliviar a dor. Gemeu baixinho, e ao tentar abrir os olhos viu que tudo girava ao seu redor. Não conseguia distinguir nada claramente. Pouco a pouco, começou a perceber sombras na parede e no teto. Uma das sombras, era a de um homem debruçado sobre ela e quando ela começou a balbuciar, tentando chamá-lo pelo nome, ele se inclinou ainda mais, tirando a bolsa de gelo de sua testa.

- Paula, você está bem? Meu Deus, que susto você me pregou, tanto tempo inconsciente...

- Gil? Onde... onde estou? O que foi que houve?

- Um maldito terremoto - respondeu ele. - Você bateu a cabeça e desmaiou. Como se sente agora, doçura? Deve ter sido uma pancada bastante forte, pois você já está desacordada há mais de duas horas. Já estava até pensando em procurar um médico. Está doendo muito?

- Bastante - respondeu com voz fraca. - Tentou sentar-se mas o quarto começou a girar e Paula se viu obrigada a deitar novamente.

- Minha cabeça dói muito, está tudo rodando e já está escuro...

- Doçura, a luz está acesa - Gil parecia preocupado. – Você está me vendo, não está? Não está me enxergando?

- Sim! - O olhar dela correu pelo quarto, pelas paredes claras, as sombras se moviam conforme os movimentos de Gil. - Mas já é noite, Gil, eu não poderia estar aqui! - Tentou se levantar novamente mas Gil fez com que se deitasse.

- Não pode se mexer por enquanto, doçura. Você ainda está em estado de choque, pode estar com uma contusão interna... Relaxe agora, o terremoto já passou, escute a chuva como cai sem parar...

Paula, relutante, deitou-se novamente.

- As chuvas chegaram e o calor diminuiu - disse Gil. – Graças a Deus refrescou bastante senão podiam acontecer outros tremores de terra, causando novos danos. Depois de algumas horas de chuva os jardins ficarão floridos, transbordantes de cores! Uma maravilha!

- Ah, sim, é mesmo uma maravilha eu estar aqui com você, sem nenhuma esperança de poder sair nas próximas horas. Ai, minha cabeça! Dói como se tivesse levado um coice de mula!

- Minha querida, é melhor a dor do que continuar inconsciente - disse Gil, passando o braço pelos seus ombros como que para ampará-la e colocando a bolsa de gelo em sua nuca. - Assim não melhora a sua dor?

- Acho que sim - respondeu Paula. Realmente a dor se acalmara, mas gostaria também que seus nervos pudessem se acalmar com a mesma facilidade. - Sei que não tem culpa Gil, mas estou preocupada com Juan Feliz e com os outros empregados da fazenda. O que estarão pensando neste momento?

- Pensarão que você foi pega de surpresa pela chuva forte e se abrigou em algum lugar. Não se preocupe tanto com isso. Vamos, relaxe! Seu marido não poderá dizer que os elementos da natureza conspiraram para que você pudesse passar a noite comigo, não é verdade?

- A noite?... olhou para Gil tão apavorada que ele deu uma risada sonora.

- Aí está você olhando para mim como se eu fosse um libertino. Os dois homens de sua vida fizeram com que você se tornasse hostil aos homens jovens e isso não é justo! Aposto que sou melhor que ambos, ou você tem dúvidas a esse respeito? - Sorriu abertamente. Sentia um certo alívio ao ver que Paula estava melhor, pois chegara a pensar que ela tivesse tido alguma lesão mais séria. A chuva continuava a cair pesadamente. O pátio estava todo alagado, pois a água transbordava pelas calhas. Um perfume de terra molhada invadira a sala.

- Não gostaria de vir a ter dúvidas a este respeito, pois parece que vou ter mesmo que aceitar a sua hospitalidade. Com a cabeça doendo do jeito que está sabe lá quando poderei sair daqui! Não sei com que cara vou chegar em casa...

- Diga a verdade - disse Gil. - Você se abrigou da chuva e do terremoto com as pessoas que lhe ofereceram abrigo.

- Não posso dizer que passei a noite sozinha com você! E certamente teria que dar o nome e endereço das pessoas que me abrigaram...

- Até seu marido chegar, seu sentimento de culpa já terá passado mesmo porque ele não vai poder agir como inquisidor quando você chegar em casa, uma vez que se encontra tão longe... Diga que as pessoas que a ajudaram eram muito amáveis, mas como você estava atordoada com a pancada da cabeça, não se lembrou de perguntar os nomes. Tudo o que se lembra é que moravam numa casa com um pátio interno. Há dezenas de casas assim... Faça-se de vítima e use a pancada na cabeça como desculpa! Quer um pouco de conhaque? Acho que vai fazer bem para você.

- Prefiro uma xícara de café. Paula parecia evitar os seus olhos.

Gil então interveio com certa rispidez:

- Não pense que quero embriagá-la antes de seduzi-la. Não acho a menor graça se a garota não estiver interessada. Parece estar morrendo de medo que seu marido descubra algo a meu respeito...

O cabelo ondeado de Gil caía-lhe sobre a testa. Parecia zangado; mas comparada com a de Dom Diablo, a zanga de Gil era ridícula!

Um sorriso aflorou nos lábios de Paula. Gil era um pouco vaidoso. Queria que as mulheres gostassem dele, mas não gostava de lutar por elas.

- Por que você está rindo?

- Por você ser tão bonzinho. Se alguma garota tiver que passar a noite com alguém que não seja o próprio marido, vou aconselhar que seja com você! Realmente não o considero nenhum libertino, simplesmente gosto mais de café do que de conhaque...

- Tudo bem! - Gil estava com um ar estranho quando se sentou à beira da cama. Paula estava muito pálida, o cabelo louro desfeito, uma mancha roxa na têmpora e um arranhão no pescoço.

- Você continua maravilhosa, apesar do terremoto... – disse ele. - Por acaso está querendo me dizer que comparado com Dom Diablo, sou uma espécie de bobo alegre?

Paula sorriu e respondeu:

- Você supera meu marido em gentileza e cortesia. Ele conserva a mesma índole de seus antepassados espanhóis, que faz com que este povo, ainda hoje, se divirta numa arena de touros. Deus permita que ele nunca descubra que passei a noite com um americano atraente!

- Ainda bem que você me acha atraente, pelo menos descobriu uma qualidade em mim

- afagou seu rosto. - Pobre garota! Tem que encontrar um meio de fugir antes que Dom Diablo volte da viagem!

- Não sei como conseguir meus documentos, só se quebrar a fechadura da escrivaninha. O braço de Dom Diablo é, porém, muito longo. Tenho a impressão que para onde quer que eu vá, ele conseguirá me alcançar! Ele não me ama, mas uma vez que me escolheu para esposa não permitirá que o abandone. Já não sou mais dona de mim mesma...

Paula passou a mão pela testa, pensando o quanto Dom Diablo ficaria também preocupado se soubesse que ela tinha se acidentado. Teria chamado o médico para se certificar de que as perspectivas de uma gravidez futura não seriam prejudicadas. Fechou então os olhos e se sentiu tomada por uma vertigem... Parecia estar voando do quarto de Gil para a fazenda... Sentia os braços de Dom Diablo que a apertavam cada vez mais contra seu peito. E eIa, muito quieta, sentia a respiração e as batidas do coração dele sobre seu rosto e seu seio.

- Paula, doçura, você está bem? - perguntou Gil.

- Estou bem sim, só me sinto um pouco cansada.

- Vou fazer um cafezinho...

Mas ela adormeceu antes que Gil chegasse. Quando acordou novamente a luz do dia já invadira o quarto e a chuva cessara. Despontava o dia! Paula tinha que voltar para a fazenda com o vestido todo amarrotado e num carro de aluguel. Iria ter que enfrentar olhares acusadores de todos os empregados e, certamente, Dom Diablo iria saber de tudo assim que chegasse da América do Sul!

 

Paula estava no terraço quando avistou o carro prateado que trazia Dom Diablo de volta para a fazenda. Tinha certeza de que ele já fizera uma série de perguntas a Juan Feliz, que as respondera prontamente. Devia ter-lhe falado do terremoto e Dom Diablo, com certeza, se preocupara com os danos causados na fazenda. Talvez também já lhe tivesse contado tudo sobre o que tinha acontecido com ela. Os enormes portões de ferro, com o escudo da família Ezreldo Ruy, estavam bem abertos para ele passar. Quando desceu do carro, Paula notou que ele estava elegantíssimo, com um temo escuro. Inclinou-se então para observá-lo melhor. Dom Diablo olhou a seu redor como que saboreando a sua volta ao ambiente que lhe era tão caro! De repente, ao perceber a presença de Paula, olhou firme para ela, o rosto impassível. Parecia estar olhando para uma estranha e não para a sua mulher! Paula virou uma estátua de gelo. Não se sentia à vontade, pois ainda não sabia até onde ele estava a par do que lhe acontecera... Percebeu, porém, uma certa ironia no olhar dele.

Esperou pelo marido no terraço, embora soubesse que seu dever de esposa seria esperá-lo embaixo para dar-lhe as boas-vindas. Mas Carmenteira certamente estaria lá, esperando que ela mentisse sobre a noite do terremoto.

- Velha feiticeira! - resmungou Paula, mas não havia muita convicção em sua voz. Na realidade não detestava a velha empregada. Sabia que seu amor por Dom Diablo era possessivo, maternal. Era natural! Além de ser latina, praticamente criara seu marido. Aceitara Paula porque ele a escolhera, mas não a aprovava. Estava pois sempre à espreita, como um abutre, esperando que acontecesse algo que os separasse, que fizesse com que ele a rejeitasse! Ele então procuraria uma amante latina, e ela seria simplesmente posta de lado.

Carmenteira a achava orgulhosa e, a seu ver, só os homens tinham o direito de sê-lo. Ela era velha e antiquada! Achava que a mulher devia ser submissa e sentir-se gratificada com as atenções de um homem. Queria que ela se humilhasse de qualquer forma, por isso ela resolvera não descer ao encontro dele. Preparara-se para recebê-lo, talvez para ter coragem de enfrentá-lo. Pôs um vestido leve e prendeu o cabelo num coque que lhe descobria o pescoço fino, ressaltando seu porte altivo. Passara um pouco de batom nos lábios, mas não usava nenhuma maquilagem. Apenas perfume.

Dom Diablo ficara ausente dez dias e Paula esperava que ele estivesse com saudade e não apenas curioso com o que acontecera em sua ausência... Levou a mão à fronte. A marca desaparecera, felizmente! Dom Diablo não gostaria que um dos seus pertences apresentasse qualquer defeito! Detestaria uma mulher com cicatrizes como detestaria um cálice quebrado, já que era amante da perfeição!... Costumava acariciá-la como já o vira acariciar uma garrafa de bom vinho ou um objeto valioso de sua coleção que ocupava a sala principal da fazenda. Corria os dedos sobre a superfície do objeto apalpando suas formas, e sentia nisso um certo prazer...

Bem, não ficaria ali parada como uma criança que espera o castigo. Foi até uma das poltronas de vime e se sentou, cruzando as pernas. Tentou parecer natural, olhando distraída para suas sandálias de salto. Na verdade estava muito nervosa! Enfrentar Dom Diablo novamente, tê-lo tão perto outra vez... Lembrou-se do momento em que ele partira, e o que ela lhe havia dito! Ele a olhara muito como que para compensar o tempo que ficara longe, sem tocá-la...

Encostou a cabeça na almofada e fechou os olhos, pois o sol estava muito forte. Fingiria que estava cochilando quando ele se aproximasse.

Paula começou então a pensar como teria sido bom se tivesse conseguido partir antes da chegada do marido! Mas não fora possível conseguir seu passaporte; ele trancara até a porta do escritório. Paula ficara desapontada, tivera até vontade de arrombar a porta! Mas é verdade! Ele não pode confiar em mim!, admitiu. Ele sabe que irei embora assim que tiver meus documentos na mão! Começou a desfolhar um jasmim, quando de repente, pressentiu a presença de Dom Diablo. Ele passara pela porta sem que ela o visse chegar. Manteve os olhos fechados até que aos poucos foi percebendo uma sombra diante dela. Ele estava ali, à sua frente, o corpo entre ela e o sol. Ele nada disse e Paula sabia que, com sua paciência diabólica, ele esperava que ela perdesse o controle. O silêncio se prolongou até que os nervos de Paula não resistiram ao seu magnetismo que parecia penetrar em seu cérebro, em seu sangue...

Sem tocá-la, fez com que Pau}a abrisse os olhos e o encarasse. Ao olhar para ele, percebeu que teria que falar primeiro... A única frase que conseguiu dizer, foi:

- Alô, senhor! Está com muita boa aparência!

Ele estava mais bronzeado e magro. Paula voltou a registrar urna certa malícia em seus olhos negros. - Espero que seus negócios tenham corrido bem - acrescentou. - Será que vai ganhar mais dinheiro ainda? - Ficou satisfeita com sua ousadia, mas recuou assustada quando ele, de repente, agarrou seus pulsos, fazendo-a se levantar bruscamente. Ele a observava firme e minuciosamente, parecia querer controlar até as batidas de seu coração. Paula sentiu-se como um objeto de arte que estivesse sendo examinado por um comprador com o propósito de detectar algum defeito... Levantou então o pescoço e lançou-lhe um olhar de desafio. Afinal nada fizera de que devesse se envergonhar... Não deixaria absolutamente que ele a forçasse a se defender de um pecado que não cometera!

O que acontecera com ela na casa de Gil fora uma conseqüência do terremoto.

- Bem, Paula, está desapontada porque o avião não caiu? - Após lhe fazer essa pergunta, beijou-lhe as mãos e sentiu o perfume de jasmim. Isso pareceu excitá-lo! Encostou a palma da mão de Paula contra seu rosto e perguntou: - Será que você sentiu um pouco a minha falta?

- Antes que ela dissesse alguma coisa, começou a roçar os lábios em sua mão e a sensação que Paula sentia era tão perturbadora que se viu obrigada a retirar a mão antes que aquela onda de sensualidade tomasse conta dela. Tarde demais! Cingindo-lhe a cintura apertou-a de encontro a seu corpo musculoso. Nem mesmo uma sombra passaria entre eles! Dom Diablo transpirava masculinidade e total autocontrole, mas naquele momento Paula sentiu que ele estremeceu dos pés à cabeça. Ele a moldava contra a sua vontade, como se ela fosse de gesso, até que ela perdesse por completo sua identidade e se tomasse parte dele.

- Não! - respondeu Paula e desviou o rosto. Não iria sucumbir àquele poder que ele parecia exercer sobre todos. No seu caso o exercia, submetendo-a a suas violentas e selvagens fantasias sexuais que, de qualquer forma, eram agora para Paula, e ela não podia negar, uma fonte inesgotável de prazer.

- E por que não pode me beijar, Paula? - Segurou seu queixo e forçou-a a olhar para ele.

- Por acaso lhe pesa algo na consciência, minha querida? Por que não me conta, vamos, abra-se comigo... Por acaso quebrou um dos meus cristais? Ou espirrou tinta no tapete persa da sala de jantar? - ele a estava torturando! Disfarçava sua crueldade com perguntas ingênuas, levando Paula até onde ele queria chegar: uma confissão completa do que realmente acontecera. Ela o odiava por ser assim. As unhas dela se cravaram em seu casaco e só não alcançaram o rosto de Dom Diablo por ela estar muito colada ao corpo dele.

- Você esteve interrogando Juan Feliz, não esteve? Descobriu que passei a noite na cidade? Nem parece um homem civilizado! Está furioso só porque eu não pude controlar um terremoto!

- Ah, então foi assim tão violento que não pôde controlar o que ocorreu aquela noite? - Seu rosto se tomou diabólico. Paula ficou apavorada ao pensar em Gil. Como é que ele descobriu? Tivera tanto cuidado ao tomar o táxi... Gil telefonara e o motorista a apanhara na praça principal. Sua pressa em sair da cidade não a impediu de notar um homem na praça, que a olhava muito. Era um daqueles mexicanos extremamente magros, os bigodes negros como carvão. Como ainda estivesse um pouco nervosa ao entrar no carro, levantara inconscientemente a voz, ao dar o endereço da fazenda... Seu instinto lhe dizia que Dom Diablo sabia de tudo! Aquele seu olhar parecia avisá-la que corria risco de vida!

- Juan Feliz lhe contou que me levou à cidade aquele dia e que não voltei com ele mas só na manhã seguinte? E você acredita que eu tenha feito algo de que devesse me envergonhar? Pois saiba que nada fiz, senhor, esta é a pura verdade. Eu estava andando pelas lojas e depois fui até aquelas casas brancas e graciosas com pátios de lajotas decoradas. De repente, tropecei e caí, batendo a cabeça numa pedra. Desmaiei, senhor, e as pessoas de uma das casas foram muito amáveis em me ajudar. Como, logo depois, começou a chover muito, só pude sair ao amanhecer. Aliás, fiquei muito assustada, quando soube que eu caíra em conseqüência de um tremor da terra.

- Bem, todos os criados viram que você estava com o rosto machucado, porém o que eles não sabiam é que você tinha passado a noite com um jovem americano! Aliás, querida, vejo pela expressão de seus olhos, que sabe bem do que estou falando! Se não me engano nós o encontramos uma vez na praia e você mentiu daquela vez também. Fingiu que não o conhecia! Foi aí que combinou se encontrar com ele assim que eu virasse as costas! Não é verdade? Foi mais agradável nos braços dele que nos meus?

- Eu sabia - gritou ela, tentando se livrar daqueles braços que pareciam garras de ferro.

- Eu sabia que iria imaginar o que está imaginando! Como sabe a respeito de Gil? Tem espiões espalhados por toda a cidade? Eu percebi que havia um sujeito rondando na praça, na manhã seguinte.

- Na manhã seguinte à noite em que foi consolada por Gil Howard?

- Ora, vá para o inferno! - Paula fechou os olhos para não ver a expressão cruel no rosto de seu marido. Repentinamente sentiu que nada mais lhe importava. Sabia que Gil Howard aproximara-se dela apenas para ter um caso, pois não havia a menor profundidade em seus sentimentos. Era atração física e nada mais. Atirou a cabeça para trás. Dom Diablo continuava a olhar para ela.

- Sabe como fiquei sabendo a respeito do americano? Bem, quando cheguei em casa e não a encontrei esperando por mim, fui até o escritório para buscar a correspondência que se acumulara durante a minha ausência. Encontrei uma carta de um homem que já tinha trabalhado aqui, contando que minha mulher estava dormindo, era assim que estava escrito, com um americano chamado Gilberto Howard, que trabalhava numa joalheria, na cidade. Ele viu vocês conversando perto da loja e os seguiu até o apartamento dele. Você entrou, escreveu ele, e ele pensou que talvez tivesse ido ver algumas pedras preciosas. Mas quando ele a viu na cidade na manhã seguinte, compreendeu tudo. Juntou os fatos e tirou suas conclusões. Agora exige uma boa soma de dinheiro para não desmoralizá-la diante de todo mundo! Que tal uma notícia dessas para um marido que acaba de chegar de viagem? É uma acolhida agradável, não é verdade?

Ao ouvir essas palavras Paula emudeceu.

- Chantagem? Eu não dormi com Gil! Estava saindo da casa dele quando começou o terremoto e me atirou contra uma pedra. Gil cuidou de mim e, com toda aquela chuva, não me restava outra alternativa senão ficar lá! Ele... ele nem me tocou! Eu não deixaria! Não sou esse tipo de mulher! Devia saber melhor do que ninguém que eu... que eu...

- Sim, eu sei - disse baixinho. As mãos dele deslizaram pelo corpo de Paula e inclinando a cabeça pousou os lábios nos dela, as palavras ainda por dizer... Depois se afastou devagar e começou a examiná-la com os olhos semicerrados.

- Por que você foi até a casa dele, Paula? Ele é jovem e bem apessoado, por isso tinha todo o direito de pensar que uma jovem bonita como você podia se interessar por ele. Não me diga também que ele nem sequer tentou flertar com você e que não se sentiu lisonjeada com suas atenções... Por acaso estava tentando fugir dele quando tropeçou e caiu?

- Não - respondeu, com veemência e enrubesceu, pois era evidente a ironia nas palavras de Dom Diablo. - Ele foi amável e bom comigo. Lavou a minha testa e se comportou como um perfeito cavalheiro.

- Percebo! - A expressão dele continuava irônica. – Howard deve ter ficado resfriado só de olhar para a virgenzinha gelada, retirando-se antes que apanhasse uma pneumonia! É um homem corajoso, querida, tenho que admiti-lo!

Paula não pôde deixar de sorrir diante daquele humor sardônico.

- E o que pretende fazer com essa carta? Espero que não seja o empregado que você despediu! Será que ele está tentando voltar para cá, forçando-o assim a readmiti-lo?

- Exatamente - disse ele retirando as mãos dos ombros de Paula quando o copeiro chegou trazendo a bandeja com as bebidas e Paula percebeu que suas pernas estavam tremendo... Estava chocada com a chantagem do antigo cocheiro. Sabia que não podia provar que as acusações eram falsas, pois tudo conspirava contra ela.

- Quer um pouco de refresco? - perguntou ele, interrompendo seus pensamentos. Olhou para a jarra alongada e respondeu:

- Quero sim. - Só então Paula se deu conta de como estava seca sua garganta! Era com se estivesse perto de uma fogueira, parecia queimar por dentro. Ele tinha razão por estar indignado com a carta que recebera, mas apesar disso continuava impassível. Estendeu-lhe o copo com o refresco e serviu-se depois de uma tequila. Paula tinha a certeza de que ele não acreditara um instante sequer que ela o tivesse traído, mas bancava o marido ultrajado apenas para assustá-la.

- Obrigada - disse ela, tomando um gole com certa sofreguidão. - O que vai fazer agora? Não vai poder simplesmente ignorar a carta!

- Vou procurar este homem e ameaçá-lo com cadeia! Sei algumas coisas sobre ele e conheço bem o inspetor local. Ele não vai conseguir nada com suas acusações!

- Mas algumas pessoas poderão acreditar nos mexericos...

- Não lhe darei um tostão! Pagar é admitir a culpa – respondeu bruscamente. - Além disso você me assegurou que não houve nada entre você e Gil Howard! Eu detestaria não confiar mais em você, minha querida. É uma mulher virtuosa, sei disso, mesmo quando faz amor comigo. Você sempre me dá a impressão de que a estou violentando! Por quê?

- Eu... eu não sei o que fazer... mas eu não consigo...

- Já sei, você me odeia e eu tenho que me contentar em possuí-la contra a sua vontade. Você sabia que isso acaba com a paciência até de um santo? E não é o meu caso.

- E como foi a sua viagem? - perguntou ela, tentando mudar de assunto.

- Andei muito a cavalo. Os cavalos de lá são fantásticos! Comprei uma égua com um potrinho para você. Devem chegar dentro de poucas semanas.

Semanas! O coração de Paula pareceu explodir dentro do peito. Ele falava como se o relacionamento entre eles dois fosse o mais normal do mundo e que continuaria assim.

- O que foi que houve? - perguntou ele. - Você gosta de montar e poderá cuidar dos dois. São negros e brilhantes como seda, e posso assegurar-lhe que farão um belo contraste com o seu tipo loiro! Aliás devo dizer-lhe que está encantadora com esse traje tipicamente mexicano! - Ao dizer isso sua voz se tornou mais profunda e seus olhos negros a envolveram dos pés à cabeça. Paula teve vontade de sair correndo! Não acreditava que ele tivesse procurado outra mulher e seu instinto lhe dizia que ainda a desejava com paixão! Teria pois que se submeter a ele, embora sua vontade fosse fugir dali. Era tanto o medo que começou a se sentir mal!... Estava ainda muito chocada com aquela história da carta e além do mais muito fraca. Não tinha mais força moral para reagir, como fazia antes! Temia que ele, a levasse para o seu quarto e mais uma vez a possuísse à força.

- Não se preocupe, querida, por enquanto me contento em olhar para você, quero vê-la mais tranqüila. Sua aversão por mim faz com que meu sangue ferva ou congele, depende do meu humor no momento. - Acendeu um charuto e soltou a fumaça pelas narinas, encostando a cabeça escura na almofada da cadeira. Desapertou então o nó da gravata e Paula ficou pensando por que os gestos dele tinham tamanha sensualidade! Bastava que ele entrasse no quarto para que o ambiente ficasse carregado, tenso, como se emanasse de seu corpo uma força magnética muito intensa. Ocorreu a ela que ele devia ter sido um menino levado e imprevisível! Teria dado muito trabalho aos pais? Aliás nunca falara deles para Paula. Como teria sido ele quando garoto? Só sabia que o apelido de Diablo fora sua mãe quem lhe dera. Seria como as outras mulheres mexicanas que se orgulhavam de serem dominadas?

De repente interrompeu seus devaneios. Sentiu que estava sendo observada por ele que, em seguida, começou a acariciá-la. Era como um domador agradando sua presa, embora essas carícias pudessem se transformar em algo perigoso, traiçoeiro... Dom Diablo tinha trinta e seis anos e conhecera muitas mulheres apesar de ter tido um único amor. Interessara-se por ela por ser um pouco diferente das outras. Excitava-o com a sua indiferença, mas nada disso podia durar se não houvesse amor. Paula teria que aceitar um futuro ou então arrumar um jeito de conseguir seus documentos e fugir dali.

- Seus olhos refletem um conflito interior - disse ele, inclinando-se para frente. - Sei que a fazenda não passa de uma prisão para você. Será que nunca poderá ser feliz aqui, querida?

- Nunca! - retrucou Paula com veemência. - Sou muito inglesa para conseguir criar raízes neste solo castigado pelo sol! Às vezes me pergunto por que tenta se apegar a uma estrangeira que não o ama! Será que não seria melhor uma latina que se deleitaria com o seu domínio e com a sua... sua...

- Será que não consegue sequer pronunciar a palavra? É uma palavra simples!

- Sensualidade! - exclamou Paula, nervosa, enquanto ele apoiava a palma da mão em sua coxa.

Dom Diablo sorriu, mostrando os dentes muito alvos.

- Tenho uma surpresa para lhe mostrar depois do almoço, querida. É uma pequena lembrança, chamemos assim, que eu trouxe para. você da América do Sul. Comprei em Lima, onde passei dois dias - parou de acariciá-la, deixando-a com uma sensação de vertigem.

- Creio que eu gostaria de almoçar aqui - disse ele. - Será que você poderia encomendar o almoço enquanto eu tomo uma ducha? Viajei durante muito tempo e estou ansioso por trocar de roupa. Diga a Orazio que eu gostaria de uma bisteca como entrada, uma garrafa de Cadiz e queijo com azeitonas.

- Sim, mestre - respondeu ela. Mas quando Dom Diablo olhou para ela com sensualidade, Paula levantou precipitadamente, consciente de sua excitação! Sentia que a paixão estava prestes a explodir como uma labareda naquele corpo másculo e viril! Chegando à escada externa em forma de caracol, que levava até o pátio, Paula se sentiu suficientemente segura para lhe perguntar:

- Como quer as bistecas? Com cebolas, senhor?

- Sim, com cebolas - respondeu como se a estivesse provocando.

O coração de Paula batia descompassadamente enquanto descia a escada apoiada no corrimão de ferro batido... A lua prateada aparecendo através das janelas enormes formava sombras assustadoras. Paula lembrou-se então da lua batendo em seu corpo, na cama de Dom Diablo. Começou a correr, perseguida pela risada dele.

Ele desceu para o almoço com uma camisa bege de seda e calças pretas, muito estreitas, o cabelo brilhante ainda molhado. Paula trocara o vestido por uma calça azul e uma camiseta branca. Prendera o cabelo com uma fita e não usava pintura. Supôs que caso se apresentasse vestida como uma colegial, arrefeceria o entusiasmo dele. Olhando intrigado para ela, comentou:

- Se pensa que consegue assim desviar minha atenção de você, está enganada, querida. A única coisa que poderia diminuir o encanto desse corpinho esguio seria a armadura de um guerreiro espanhol! Já viu a coleção que temos na ala velha da fazenda? Nem um rato consegue penetrar naqueles trajes...

- É muito engraçado, senhor - tentava parecer natural. - Imagina que eu gritaria só por causa de um rato?

- Não; acho que você só grita por causa do marido, por incrível que pareça... - Pôs um pouco de açúcar no melão e começou a comê-lo com prazer. Paula notou uma expressão maliciosa em seu rosto. Parecia que estava planejando alguma coisa. Pensou que talvez fosse a surpresa que prometera para depois do almoço...

- A bisteca está boa - disse ele. - Por melhor que seja a comida dos restaurantes, não há nada melhor do que a comida de casa! Um pouco mais de vinho, meu amor?

- Só um pouquinho, por favor...

- O vinho é excelente, não é verdade? Sabe, eu tenho uma vinha na Espanha. Qualquer dia temos que ir à Europa para visitarmos juntos esse velho país.

- Eu já estive na Espanha - disse ela. - Marcus me levou há uns dois anos.

- Bem, ir com Marcus e ir comigo são duas coisas completamente diferentes - respondeu, observando-a enquanto tomava um gole de vinho. - Comigo irá conhecer a verdadeira Espanha, aquela que o turista não vê... Tenho alguns parentes na Costa Brava. Você não pode imaginar quanta magia e recuerdos existem nos pátios andaluzes...

- Recuerdos? - perguntou Paula, percebendo que Dom Diablo considerara sua viagem com Marcus uma coisa muito superficial. - O que quer dizer exatamente recuerdo? Muitas palavras espanholas parecem ter vários significados...

- A palavra só pode ser traduzida como nostalgia, sonhos, lembranças nebulosas de anseios que parecem existir mais na imaginação do que na vida real. A realidade é o sol quente; saudade é a luz fria da lua. O luar pode causar desilusões assim como as lembranças do passado, por isso temos que ter cuidado para não vivermos só do passado. Para o espanhol, assim como para certas pessoas, há no recuerdo uma espécie de agonia e êxtase sublimes. Se não existisse esta sensação o amor perderia sua força, sua fascinação...

- Romance! - exclamou Pauta. Parecia perplexa. - Nunca imaginei que acreditasse em algo tão efêmero, tão distante da realidade, das necessidades da vida. Na verdade não consigo concebê-lo como uma pessoa romântica!

- O que significa, querida, que nunca procurou realmente me conhecer.

- Não! - Paula sacudiu a cabeça violentamente. Pensava em lhe dizer o que realmente imaginava dele quando se lembrou da fotografia que encontrara em seu quarto. Ao falar em recuerdo, ele provavelmente se lembrava daquela mulher... Dom Diablo tinha razão, ela pouco conhecia sobre os seus sentimentos. Ele lhe dava somente o amor físico. Quem sabe o amor que ele estaria reservando para o filho que ela talvez lhe desse... Tinha a certeza de que Dom Diablo o amaria de verdade, pois brincava sempre com os filhos de Juan Feliz e com outras crianças da fazenda. Embora agressivo, havia nele um grande potencial de afetividade.

- O que você ia dizer? - perguntou ele. Mas sabia perfeitamente o que era, por isso mesmo verbalizou: - Que eu sou duro como aço, que não enxergo o luar e não sei o que é nostalgia? Bem, talvez você tenha razão. Quando eu olho para você, aí sentada, o sol batendo nos seus cabelos loiros, é o lado físico da minha pessoa que reage, que sente o prazer... Por que estremece, Paula? Não é possível que você se sinta encabulada após dois meses de casada!

- Creio que muitos anos se passarão antes que eu me sinta de outra forma. Você tem um jeito de olhar, um jeito de falar muito diferente do que eu estava habituada...

- Ainda bem que acha diferente! - Franziu ligeiramente a testa. - Morar na Inglaterra com um tutor e viver no México com um marido mexicano, são duas coisas realmente diferentes...

- Marcus cuidava de mim, ao passo que você me domina... Ele conversava e divagava comigo, discutíamos pensamentos e pontos de vista ao passo que você não está absolutamente interessado nisso, não é verdade?

- Não aponto de me abstrair de seu corpo delicioso, querida... Eu me consideraria um idiota se tivesse me casado com você somente para discutir boas leituras ou quadros célebres! Será que esperava realmente isto? Em vez do relacionamento normal de um matrimônio, preferiria a aberração de um marido que não tivesse livre acesso ao seu quarto? Quando nos conhecemos, na Inglaterra, pensou que por eu ser apenas dezesseis anos mais velho do que você, iria me comportar como se tivesse cem anos?

- Eu... eu nem pensei nisso - baixou os olhos pois esse assunto fazia com que se sentisse pouco à vontade... - Eu estava em estado de choque e sabia disso, senhor. Aproveitou-se então das circunstâncias... - Eu jamais teria me casado com você se tivesse tido tempo para considerar a proposta! Disse mesmo a verdade quando mencionou que Marcus o aprovara como meu... meu marido?

- Tenho meus vícios e também minhas virtudes... Uma delas é que não minto! Posso distorcer um pouco os fatos... Eu a vi em Stonehill e... desejei-a. Pedi sua mão a Marcus e ele me respondeu que lhe transmitiria o pedido quando voltassem para casa depois da festa. Ele possuía muitas terras e uma boa casa, sabia que quando morresse tudo iria para as mãos de um sobrinho. Contou-me isto e pode estar certa de que você era a sua maior preocupação. Queria que ficasse garantida no caso dele vir a faltar. - Curvou-se e brincou com a faca.

- Marcus me pediu que eu fosse bom para você.

- E você preferiu ignorar esse pedido...

- É mesmo? - pousou a faca na mesa, a lâmina cintilando ao sol como os olhos dele.

- Porém seu tutor esqueceu de me dizer que você tem uma língua afiada e que gosta de discutir, para o que, aliás, eu não estava preparado. Você não é o anjinho que eu esperava e eu a tratei da mesma forma.

- Imagino que Carmenteira lhe contou... A velha costuma entrar no meu quarto sob o pretexto de arrumar as flores e me provoca com suas conversas, indo depois contar tudo a você! Ninguém gosta de mim aqui, detestam meus hábitos e minha roupas, teriam preferido uma patroa latina. Por que você não se casou com uma mexicana?

- Porque me casei com você - respondeu bruscamente.

- E pelo jeito está tão arrependido quanto eu!

- É mesmo? - perguntou uma voz que parecia vir lá de fora. - É assim que vocês se comportam quando estão sozinhos?

Surpresos, se voltaram para saber quem dissera aquelas palavras.

- Madrecita! - exclamou ele, levantando-se rapidamente. - Então acabou descobrindo?

- Deu uma risada. Parecia desconcertado. - Descobriu que quando estamos a sós não arrulhamos como dois pombinhos?

- Bem, Diablo, ponha dois pombinhos numa gaiola e eles acabarão se bicando até morrer

- respondeu aquela senhora bonita e morena, que aparecera no terraço em meio à discussão deles. Vestia uma roupa escura e estava cuidadosamente penteada.

Paula olhava intrigada para ela, pois Dom Diablo a chamara de mãezinha. Pensava que ele não tinha mais parentes próximos vivos. Será que era esta a surpresa que mencionara antes? Teria ela chegado com ele? Como se afastara da balaustrada, quando ele desceu do carro, Paula não poderia tê-la visto.

- Madrecita, quero lhe apresentar minha mulher, sobre a qual fez restrições por ser inglesa! Lembra-se de me ter dito que seria como sal e pimenta no mesmo pote?

- Sim, Diablo, eu disse isto - a velha senhora estava com os olhos fixos em Paula. - Você é bonita mesmo! Agora que a conheço posso compreender por que Diablo perdeu a cabeça! Sal e pimenta não misturam bem mas podem dar um sabor interessante. Venha, venha dar um beijo em sua avó. Sim, querida, Diablo me chama de madrecita, mas sou avó dele.

Paula deu a volta na mesa e, aproximando-se da velha, inclinou a cabeça e deu-lhe um beijo.

- Estou muito feliz por conhecê-la, senhora - disse timidamente. - Eu não sabia que a senhora viria à fazenda...

- Imagino que meu neto quisesse lhe fazer uma surpresa... Ele me disse que você era jovem, loira e inexperiente. Esqueceu-se porém, de mencionar sua beleza! Sente-se, por favor. Parece estar tremendo!

- Eu... estou sim - confessou Paula, olhando então para o marido que continuava impassível. Não dava o braço a torcer...

- Sente-se, Paula - Dom Diablo segurou-a pelo braço e obrigou-a a sentar-se. Mas, diante da avó, não apertou seu braço nem tampouco o acariciou. Ela sentiu então uma vontade estranha e louca de lhe agarrar a mão e apertá-la contra seu corpo!

 

Aquele dia fora bastante estranho. Após ter sido apresentada à sra. Joaquina Calhariz e mantido com ela um diálogo polido mas artificial, Paula ficara sozinha. Dom Diablo e a avó saíram de braços dados para dar um passeio pela estância, que ela não via há muitos anos. Era sua avó pelo lado materno e quando Carmenteira falava da antiga patroa referia-se a ela.

Naquela noite, os três jantaram juntos. Depois do jantar ele levou a avó até seus aposentos, onde sua criada particular a esperava. Paula ficou na sala e, estranhamente, Dom Diablo não voltou para lá. Ela foi então para seu quarto desapontada, pois esperava pelo marido e ele não aparecera.

Paula acordou muito cedo e agora passeava pelo jardim. Havia orvalho nas flores, pois era muito cedo. Não dormira bem, acordara várias vezes, inquieta. Adormecera, afinal, acordando de madrugada com o canto dos pássaros. Vestiu-se e foi dar seu passeio pelo jardim. Começou de novo a pensar como poderia sair daquele lugar onde nunca se sentiria bem... Seu olhar vagava pelas parreiras cobertas de orvalho e as flores multicoloridas.

Uma borboleta pousou sobre uma delas, movimentando as asas, como que intoxicada pelo néctar que sugava. Paula ficou imóvel para não perturbar o inseto. De repente, ouviu os sinos da capela tocando. Assustou-se e a borboleta voou para longe em direção à capela. Paula inconscientemente a acompanhou, chegando até a entrada. Sentiu então, um aperto no coração. Diante do altar, no meio de uma profusão de velas e rosas brancas, estava Dom Diablo. A cabeça escura estava inclinada. Ele rezava. Sabendo que ele ignorava sua presença, Paula observou-o durante alguns minutos. Sentia-se como que pregada ao solo, não conseguia se mexer. Finalmente se afastou e dirigiu-se até o pátio onde tomava o café da manhã quando Dom Diablo não estava. Sentou-se e esperou que a jovem criada lhe trouxesse o desjejum. Costumava servi-lo em seu quarto e, com certeza, a bandeja devia estar lá ao lado da cama. Imaginou o que a criada pensaria quando visse a cama tão desarrumada.

Paula mordeu os lábios ao apanhar um botão de rosa. Ao segurar a flor, feriu-se com um espinho. O sangue escorreu de seu dedo... Levou-o aos lábios, pensando novamente na criada. Iria certamente bisbilhotar na cozinha que o patrão estava encantado por voltar para casa, ao lado de sua esposa!

Por que razão ele deixara trancada a porta de seu quarto? Seu instinto lhe dizia que ele não havia estado com outra mulher. Será que a presença da avó o constrangia? Talvez fosse isso, mas Paula não achou pretexto muito convincente... Lembrou-se da figura alta na capela, pareceu sentir novamente o perfume forte das rosas brancas, como a pele de uma mulher... Conteve a respiração, pois lhe pareceu mais plausível que a presença da avó lhe tivesse trazido recordações daquela mulher cuja morte ele tanto chorara... Talvez por isso não a procurara na noite anterior. Será que ele e a avó conversaram sobre sua primeira esposa, relembrando sua presença na fazenda, sua beleza, sua alegria de viver? Provavelmente, como todos os outros, a madrecita não aprovara a escolha de uma esposa inglesa. Imaginou então os dias que teria pela frente com a avó do marido vigiando todos os seus passos. Observaria suas roupas, suas atitudes em relação a ele, criticaria sua falta de afeição e carinho, o que certamente não aconteceria com uma esposa latina!

- Não agüento mais! - resmungou Paula para si mesma. - Tenho que ir embora! - Sentiu então a presença de alguém no pátio. Tentando se controlar, levantou-se e virou com naturalidade para ver quem se aproximava. Esperava que fosse Dom Diablo. Mas era sua avó.

- Bom-dia, minha menina! - A voz era suave, mas fria. Vendo-a se aproximar, Paula teve que se controlar para não sair correndo e fugir para longe daquela mulher que a ouvira dizer ao marido que se arrependera amargamente de ter se casado com ele. Devia estar chocada. A velha a media de alto a baixo. A calça comprida realçava o corpo bem feito de Paula.

- Bom-dia, senhora - respondeu, polidamente.

- Eu contava poder conversar com você a sós. Quando a criada me disse que você estava aqui esperando o café, decidi vir ao seu encontro. Em geral eu não costumo me levantar tão cedo, portanto fique certa que só por estar muito interessada em você é que uma velha cansada como eu, habituada a ler os jornais na cama, mudou os seus hábitos.

- É muita gentileza de sua parte - Paula não conseguia ficar à vontade. Com toda a certeza ela não conseguia aceitá-la como esposa do neto que adorava!

- Sinto o corpo dolorido após a viagem de ontem, mas eu simplesmente tinha que vir, pois precisava conhecê-la, minha querida! Sente-se, não quero ter que olhar para cima. Você é bem alta, apesar de não parecer quando está perto de meu neto. O que você acha dele?

- Bem... eu o acho bem diferente dos ingleses – respondeu Paula, sentando-se do lado oposto da mesa. Sentia-se observada pelos olhos vivos e terrivelmente penetrantes da velha.

- Se o acha tão diferente, por que se casou com ele? - A pergunta foi tão direta que Paula percebeu que Dom Diablo não lhe contara a verdade sobre o relacionamento deles. Ela devia pensar que haviam se encontrado e namorado normalmente. Por um instante sentiu-se tentada a contar a verdade... Depois desistiu, pois não valia a pena causar-lhe aborrecimentos. Era natural que amasse o neto, pois tinham o mesmo sangue! Os laços entre os dois eram muito fortes e ninguém seria capaz de rompê-los. Paula, aliás, não tinha a menor intenção de fazê-lo.

- Simplesmente aconteceu... - respondeu, hesitante. – Nós nos encontramos e nos casamos um pouco precipitadamente.

- E agora está arrependida? - perguntou secamente. – Eu seria uma velha idiota se achasse que esse casamento foi o ideal para meu neto. Mas ele sempre gostou de desafios.

- Sorriu então, e estendeu a mão para segurar o dedo de Paula, onde estava a aliança de ouro. - Foi o dinheiro dele que a atraiu para o México? As européias são às vezes tão mercenárias como as americanas. Eu pessoalmente acho que as mulheres do norte estão perdendo a capacidade de se entregar totalmente a um homem, contrariamente ao que fazem as latinas. Vocês entregam o corpo, mas conservam a alma numa câmara frigorífica!

- Mas eu não sou assim! Mas... é que eu sei...

- O que é que você sabe?

- Carmenteira me contou certas coisas, pois conhece todos os segredos desta casa... Como todos, ela se ressente do fato de eu não ser latina, e... me contou tudo a respeito do desgosto de Dom Diablo, há seis anos. Ele está tão arrependido quanto eu com o nosso casamento, a senhora ouviu bem a nossa conversa ontem à noite...

- Na verdade não me surpreendi muito. Logo que ele me contou que você é inglesa, soube que só muita tolerância e muito esforço fariam com que esse casamento desse certo...

- E agora viu que não está dando... - Paula baixou os olhos. - Bem, aí vem a criada com o café - disse a velha. – Sinto mais fome hoje. Em geral não como nada de manhã. O que foi que trouxe para nós, garota?

A jovem sorriu graciosamente para ela e, levantando o guardanapo imaculadamente alvo, mostrou uma "tortilla", ovos, presunto e ervas aromáticas. O presunto picado foi servido com pão caseiro, feito naquela mesma manhã. Um perfume saboroso de café saía do bule de prata, junto do qual estava um pote com creme de leite. Os olhos da velha brilharam.

- Tudo me parece delicioso! - esfregou as mãos num gesto de satisfação. - Agora compreendo, Paula, por que você toma o café no pátio. Adoro tudo isso! - Abriu então a compoteira com morangos frescos. Maravilha! Quem poderia querer um desjejum melhor do que este?

- Em geral trazem abricós, roscas e às vezes figos também. - disse Paula e sorriu. - Isto tudo foi feito em sua honra, senhora!

- O patrão virá também tomar café? - perguntou a criada após servir a mesa.

- Creio que não, deve ter saído a cavalo - respondeu Paula e sentiu a garganta seca. - Eu o vi esta manhã bem cedo e já estava vestido com os trajes de montaria. - Ao dizer isso, levantou a tampa do bule sentindo uma necessidade quase desesperadora de café quente com creme. Pensou novamente em Dom Diablo de pé na capela, um raio de luz batendo em suas botas reluzentes. Nunca usava esporas apesar de seus cavalos serem impetuosos e bravos. No dia em que sua mulher morreu, segundo lhe contara Carmenteira, ele cavalgara em Satanás horas a fio, até que o animal caísse de exaustão! Paula tinha certeza de que agora ele estava galopando loucamente pelos campos, montado em seu cavalo favorito! - Deixe o café preparado para ele, creio que estará de volta dentro de meia hora.

- Sim, senhora - disse a moça e se retirou.

- Você já fala bem espanhol - comentou a velha enquanto salpicava a sua "tortilla" com pimenta. - Foi Diablo quem ensinou você?

- Aprendi espanhol quase mesmo sem querer. Fui aprendendo aos poucos; aliás eu já sabia um pouco antes de vir para cá. Deseja um pouco de creme, senhora?

- Obrigada. Como é que Diablo chama você? Nós latinos temos mania de apelidos. Mas seu nome é muito bonito.

- Foi meu tutor quem o escolheu. Ele pretendia ser escritor, mas depois achou que sua vocação era outra. Foi um famoso jogador! Dom Diablo não lhe contou?

- Provavelmente iria me contar - a velha provou quase tudo com um sorriso de aprovação.

- Está saboroso como eu imaginava...

- Ele jamais me chamou por outro nome! Só agora se dera conta disso. Creio que também gosta dele...

- Percebi que o casamento de vocês não vai bem - o sorriso desaparecera do rosto da velha senhora. - E espero que você não esteja pensando em abandonar meu neto!... Ele simplesmente a traria de volta!

- Como uma escrava!

- Como uma esposa e não como uma criança tolinha. Você tem toda a liberdade de passear pela fazenda! Há muitos maridos nesta região que tratam muito mais duramente as mulheres do que ele! Reconheço que tem defeitos mas tem também qualidades raras, no que se refere a mulheres. Ele respeita os sentimentos da mulher não vendo nela somente uma máquina de fazer filhos, como tantos por aí! Você está consciente disso ou é tão ingênua aponto de não perceber que encontrou um homem muito especial?... - Repentinamente sua voz se tornou áspera, agressiva. - Ele me havia dito que você era jovem, mas nunca pensei que fosse tão infantil...

- Não é verdade, acho que enfrentei com coragem a minha vinda para uma país totalmente estranho, como mulher de um estranho, que na verdade só deseja de mim uma coisa...

- Orgulhe-se disso, se é que é uma verdadeira mulher...

- Disse que ele não considera as mulheres máquinas criadeiras, mas é só isso que quer de mim, um filho! - desabou Paula com lágrimas nos olhos. - Um filho para herdar suas propriedades, seus rebanhos, seus estábulos, suas fazendas. Não lhe importa o fato de eu amá-lo, pois não é preciso amor para gerar um filho... Basta que eu provoque seus instintos animalescos...

- Basta! - A velha largou os talheres bruscamente, como Dom Diablo quando se zangava.

- Afinal, onde foi que meu neto a encontrou? No cais de algum porto inglês onde as mulheres usam a mesma linguagem dos homens?

Paula enrubesceu violentamente. Não pretendia porém perder o controle nem a dignidade, mas não podia continuar a bancar a noiva apaixonada só para agradar aquela mulher que, como as outras pessoas daquela casa, a tolerava apenas por ter sido escolhida por seu neto. Não a considerava realmente a patroa, era a Dom Diablo que se dirigiam quando alguma decisão importante devia ser tomada. Paula empurrou a cadeira para trás e se levantou bruscamente. Seu rosto estava pálido, seus olhos arregalados!

- Saiba que eu não quero um filho dele! - gritou ela. – Eu preferiria me atirar num desfiladeiro do que dar à luz a um filho dele! - Suas palavras ainda ecoavam no pátio quando Dom Diablo, de culote e botas, surgiu na frente delas. Pela expressão de seu rosto era evidente que ouvira suas palavras desagradáveis e agressivas. Pareciam tê-lo atingido como uma chicotada. Sua boca se contraiu num esgar estranho.

Paula, quando o viu, saiu correndo, apavorada. Fugia dele e de tudo que fosse ligado a ele. Dirigiu-se à escada que levava à galeria superior, pois de lá podia chegar até o quarto. Queria ir embora, insistiria para ir. Ele não poderia prendê-la, obrigando-a a ficar contra a sua vontade. Não poderia ser tão pouco civilizado, tão cruel... Subiu correndo os degraus, tinha medo que ele a seguisse.

- Paula, vai acabar quebrando o pescoço!

Ela não parou de correr, mas ao ouvir suas palavras, sentiu como se seu coração fosse parar. Se ele conseguisse alcançá-la...

- Não! - gritou ela, continuando a correr. Ao chegar à porta do quarto, o suor correndo pelo seu rosto, a blusa colada ao corpo, o cabelo em desalinho, caindo pelas costas, virou-se um instante para olhar para ele. Parecia furioso, com uma expressão terrível no rosto. O olhar alucinado parecia querer vingar do insulto que ouvira... Um soluço subiu-lhe à garganta e Paula atirou-se para dentro do quarto, trancando a porta a chave. Sabia, porém, que nem assim estaria a salvo, pois ele poderia passar pela outra porta que ligava o seu quarto ao dele. Estava presa em uma armadilha! Agora teria que enfrentar a sua justa ira!

Oh, Deus! Dizer aquilo à avó dele! Ele jamais a perdoaria. Aquilo teria sido um golpe para a velha senhora, cujas únicas esperanças neste mundo se concentrava nos netos e bisnetos, em sua descendência na fazenda Ruy, uma testemunha para o seu orgulho espanhol, de que a família continuaria a controlar a propriedade.

Aterrorizada, Paula olhou ao seu redor... Para onde poderia fugir? De repente viu a porta do terraço que dava sobre o desfiladeiro. Ficaria mais protegida ali, pois ele não iria gritar nem ameaçá-la estando à beira de um precipício... Talvez se assustasse e a deixasse ir embora... Já estava diante da porta de vidro, prestes a sair ao terraço, quando ele apareceu. Sua figura alta, séria, ameaçadora era a verdadeira imagem do juiz universal!

Paula não pôde suportar o seu olhar! Correu então para o parapeito do terraço. Sentia-se como um animal perseguido que não sabia mais para onde fugir! Segurou-se na balaustrada, agarrando-se ao parapeito e chorando convulsivamente, quando sentiu as mãos fortes de Dom Diablo em seus ombros. Gritou então, chamando-o pela primeira vez pelo nome. Foi um grito desesperado, lancinante. Paula só via seu rosto enquanto ele a envolvia fortemente em seus braços musculosos.

- Você não vai fazer isso! -sua voz estava tensa carregada de paixão e súplica. - Jamais permitirei que uma mulher faça isso novamente nesta casa! - Carregou-a então nos braços e levou-a para dentro do quarto. De repente, Paula desatou num pranto dolorido, as lágrimas correndo pelo rosto, enquanto, ele a pousava suavemente sobre a cama, deitando-se sobre ela.

- Então você prefere se matar a viver comigo? - Paula o ouvia, mas estava perturbada demais para compreender o que ele dizia. Continuava ali, deitada, presa à cama pelo peso de seu corpo forte e de seus braços firmes. Sentia aqueles olhos negros fixos em seu rosto. A expectativa e o silêncio fizeram com que, finalmente, ela parasse de chorar. Começou então a compreender o que ele quisera dizer...

- Não... não era isso, eu jamais me atiraria de lá! Eu não pretendia fazer isso, só estava com medo de você e não sabia mais para onde fugir!

- Medo? - Seu rosto agora estava mais calmo, mas seus olhos muito abertos refletiam perplexidade... incredulidade... Era incrível que ele tivesse acreditado que ela pretendia se atirar de lá de cima, pensou Paula.

- Sim, você parecia furioso com o que eu disse! Oh, por que não me deixa ir embora e acaba logo com isso?... Que prazer pode ter em me prender aqui sabendo que... bem, acho que o senso de posse e de domínio é muito forte em seu sangue... Você se interessa por mim só porque quer que eu lhe dê um herdeiro...

- Tem certeza que é só por isso? - uma certa ironia sublinhou o seu sorriso. - Minha querida, se tudo o que eu desejasse de uma mulher fosse um filho, eu poderia ter escolhido uma mulher mexicana afetuosa e fecunda, que se sentiria radiante de poder me dar um filho por ano! Deus sabe por que eu quis me casar com você, mas não a quero infeliz a ponto de querer se suicidar... - Ao dizer isso uma expressão atormentada se estampou em seu rosto. Subitamente ele começou a acariciá-la. Primeiro o pescoço, depois seus ombros onde apoiou o rosto. - Já vi uma vez uma mulher se esvair em sangue sobre-aquelas pedras do pátio! Quero que saiba de uma coisa, Paula, se está tão desesperada para sair daqui, então é melhor que o faça!

Paula, ao ouvir estas palavras, não se sentiu contente nem aliviada... Foram as palavras que ele dissera antes que ficaram martelando em sua cabeça.

- Então foi assim que ela morreu? - perguntou, num sussurro, como se tivesse medo de falar sobre isso.

- Sim! - Ele deu um profundo suspiro e então, como se só então percebesse que a estava quase esmagando com seu peso, levantou-se. Paula experimentou então uma sensação de frio, de abandono. Precisava segurá-lo, apertá-lo contra seu corpo, de tal modo que nem uma sombra pudesse se interpor entre os dois. A sensação era tão forte, que seus dedos agarraram a colcha de renda... Ela desejava, queria Dom Diablo, mesmo que ele não a amasse!

- Como ela pôde fazer isto? - perguntou suavemente. – Como pôde ela fazê-lo sofrer, sabendo o quanto era amada?

- Ela sabia que eu gostava dela, mas me culpava pela morte de Alvarado. - As palavras saíam entrecortadas e hesitantes como se ele nunca tivesse pensado em dizê-las, muito menos a ela.

- Quer dizer que ela amava Alvarado? - perguntou Paula.

- Mas é claro! - Franziu as sobrancelhas. Parecia intrigado. - Ele era o filho predileto, apesar de eu amá-la muito. Ela era encantadora e muito bonita! Via em Alvarado a própria imagem: magro, com olhos enormes iguais aos dela e a mesma maneira despreocupada de encarar a vida. Para ela, meu irmão era o santo e eu o diabo; para ela eu encarnava o diabo desde o dia em que Alvarado e eu fomos até um rochedo onde um cação tinha seu esconderijo. O cação havia chegado até a praia e arrancado as pernas de um pescador. Alvarado desafiou-me a ir com ele até lá para matá-lo. Mamãe me disse que eu deveria ter me recusado e não ter deixado Alvarado ir. Mas ele teria ido de qualquer forma e, como temesse que o cação o tocasse como fizera com o pescador, achei mais prudente ir junto. Conseguimos matar o monstro usando uma espécie de arpão usado pelos índios. Após o feito houve uma festa na cidade para festejar o acontecimento.

Dom Diablo fez uma pausa, seus olhos tristes pousaram em Pauta, que continuava imóvel, ouvindo atentamente suas palavras. Ele chamara a mulher de mãe e Paula dera um suspiro de alívio. Praticamente, sem dizer nenhuma mentira, Carmenteira insinuara que a mulher da fotografia era sua amada quando na realidade era sua mãe!

- Naquela época, o mar era muito poluído e a praia estava cheia de abutres. Provavelmente foi nessa ocasião que Alvarado apanhou a poliomelite, pois havíamos ficado por mais de duas horas ali na arrebentação das ondas. Alguns dias depois surgiram os primeiros sintomas graves. Um pulmão de aço veio da Cidade do México, mas foi em vão. Meu irmão entrou em agonia, pois seus pulmões pararam de funcionar. Mamãe não o deixou um instante sozinho, desde o início da doença, e ficou a seu lado até o fim... Depois me disse umas palavras que jamais poderei esquecer: que teria preferido que eu tivesse morrido, em vez de Alvarado; que era a reencarnação do demônio, pois havia levado Alvarado ao mar e deixado que se contaminasse com aquela água poluída; que eu era muito forte e resistente como meu pai, mas como Alvarado era alegre, despreocupado e bonito, uma alegria para os olhos, fora ele a vítima!

Paula fez de novo uma pausa longa e dolorosa. Nesse momento, já estava louca para afagá-lo, confortá-lo, mostrar que não acreditava mais que ele fosse diabólico! Foram as circunstâncias que o tomaram assim tão duro! Afinal se considerava responsável pela morte da própria mãe!

- O fato aconteceu no mesmo dia do funeral, ao cair da tarde. Escutei um grito, saí correndo e fui o primeiro a encontrá-la. Isto aconteceu há seis anos, desde então a fazenda se tomou um lugar sombrio... Um dia então encontrei um homem chamado Charles Paget que me mostrou uma miniatura, pedindo que se algum dia eu fosse à Inglaterra me certificasse de que sua filha não estava passando por dificuldades, nem em má situação. Você apareceu então em minha vida, como um raio de sol! - Olhava para o cabelo de Paula contra o travesseiro de renda branca. Seu rosto espelhava um conflito: a vontade de acariciá-la e o medo de ser repelido. Ela reagia sempre ao seu desejo, comportando-se como uma vítima, jamais retribuindo sua paixão nem participando do seu ato de amor. Mas mesmo que fosse só paixão o que ele tinha para lhe dar, percebera que agora o amava bastante para aceitá-lo. Espontaneamente, inclinou-se e pousou seus lábios na fronte dele, dando-lhe um beijo prolongado. Dom Diablo continuou muito quieto, parado, aceitando essa primeira carícia voluntária. De repente começou a falar com uma voz dura, fazendo com que ela recuasse.

- Não quero sua piedade. Seria a, última coisa que eu desejaria de você! Será que ainda não entendeu? Não é suficientemente mulher para saber o que eu quero de você?

- Eu sempre soube - disse ela tentando não chorar de pena dele e dela mesma. - É uma palavra de quatro letras, mas eu não consigo pronunciá-la!

- Tem que conseguir - disse ele, carrancudo. - Você sempre consegue pronunciar a palavra ódio, por isso eu não tinha esperança de que pudesse pronunciar outra palavra mais suave...

Perplexa, Paula olhou para ele.

- Como esperava que eu dissesse, é uma palavra tão pesada!

- Pesada! - Correu os olhos pelo seu corpo com uma expressão curiosa em seu rosto. Um sorriso então aflorou em seus lábios. Há apenas duas palavras que significam realmente alguma coisa entre um homem e uma mulher; podem existir tudo ou nada. Então, minha querida, acha que é luxúria o que sinto por você, como algum cretino incapaz de outros sentimentos, outras reações que não sejam aquelas de um animal? Eu ansiava por lhe dar o paraíso, mas parece que não consegui, ao contrário, fiz de sua vida um inferno! Antes de eu viajar para a América do Sul pensei que tivesse conseguido fazê-la compreender o que eu sentia e sinto por você, mas vejo que me enganei totalmente - suspirou profundamente e passou a mão pelo rosto. - Eu fiz a barba um pouco rapidamente esta manhã, mas como era o aniversário de minha mãe, queria levar-lhe algumas flores na capela. O que foi? Por que está me olhando assim?

- Eu o vi. Eu o vi, Diablo - respondeu suavemente. Eu o vi na capela hoje de manhã, entre as rosas e as velas. Você me pareceu tão solitário! Eu... eu não irei embora, você vai ficar muito só. Por favor, não se exalte nem grite mais comigo. - Aproximou-se então e passou os braços ao redor de seu pescoço, puxando-a contra seu corpo. - Eu não estou sentindo compaixão, o que eu lamento é ter sido tão cega e idiota!

Abraçou-a com força e Paula se sentiu quase sufocar.

- Espero fazer com que me ame, pois ter você, abraçar você é o máximo da felicidade para mim! Eu não queria deixá-la nem um minuto, porém pensei que se eu me ausentasse uns dias talvez sentisse saudades. Não sentiu, querida? Sentiu minha falta, ao menos por alguns minutos? Eu pensei tanto em você! Ao sol batendo em seu cabelo dourado, nas chamas das velas refletidas em seus olhos quando jantamos no pátio... Eu gostaria de poder exigir que me amasse, mas também sabia que eu precisaria ter um pouco de paciência e não é nada fácil para alguém com meu temperamento ter paciência...

Paula continuava imóvel em seus braços, muito atenta a cada uma de suas palavras... Então de repente, um tremor súbito percorreu seu corpo, e suas mãos enlaçaram-no com mais força.

- Você me possuía, mas nunca me disse realmente que me amava - disse ela.

- Eu fui um idiota! Não me dei conta de que você era um pouco mais do que uma menina e a tratei como se já fosse uma mulher. Pensei poder lhe dizer com o meu corpo o quanto eu a adorava, mas em vez disso eu a assustei. Eu a assustei, não foi? Diga-me, eu quero saber!

- Sim e não, Diablo. Você fez com que meu coração vivesse aos trancos e barrancos mas se posso ter a certeza que me ama de verdade, então será diferente...

- Assim? - ele inclinou a cabeça e beijou-a suavemente na boca. - É assim?... - O fascínio e o encanto de seus beijos eram perturbadores e quando ela passou os braços ao redor do pescoço de Dom Diablo, estreitando-o fortemente, ouviu uma voz:

- Ah! Parece que cheguei novamente num momento inoportuno!

Marido e mulher se voltaram, suas cabeças muito unidas e então sorriram ambos para a senhora esguia e elegante, parada na soleira da porta do quarto.

- Madrecita! - disse Dom Diablo afetuosamente. - Entre...

- Meu caro Diablo, acho que sei bem quando devo entrar ou sair... - Sorriu para os dois; seus olhos refletiam muita ternura. - Até daqui a pouco...

 

                                                                                Violet Winspear  

 

                      

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