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A NOIVA DO NILO / Christian Jacq
A NOIVA DO NILO / Christian Jacq

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A NOIVA DO NILO

 

No ano de 1250 a.C, o Faraó Ramsés II reinava sobre um Egipto próspero. Ele governava com uma autoridade que ninguém contestava. Tanto a norte como a sul, as fronteiras estavam bem defendidas. Nenhum povo estrangeiro tinha um exército suficientemente poderoso para invadir o país do sol eterno e apoderar-se das suas riquezas. Por toda a parte reinavam a ordem e a segurança. Nas grandes cidades, alegradas por numerosos jardins floridos, os elegantes rivalizavam em beleza e ostentação nas festas e banquetes. Os caminhos eram seguros e as próprias mulheres podiam circular livremente por eles, sem receio de serem molestadas. Por outro lado, não havia mendigos, e os ricos punham mesmo os seus barcos à disposição dos que os não tinham, a fim de que estes pudessem atravessar o Nilo de uma margem para a outra.

A capital do Sul, Tebas, a das cem portas, assistia ao colossal esforço do arquitecto do Faraó e de artífices de eleição. O rei ordenara que tornassem Karnak, o templo dos templos, dia a dia mais magnífico. A maior sala de colunas do país já se erguia sobre o papirólito(1) de pedra que parecia querer unir o céu à terra.

Graças às preces eficazes dos sacerdotes, todas as manhãs o sol se levantava por detrás das montanhas e espalhava os seus benefícios. A felicidade estava ao alcance de todos.

Um dia, porém, forte alarido, proveniente duma modesta casa de camponeses, veio quebrar a serenidade de uma aldeia situada a uma dezena de quilómetros de Tebas.

O deus do Destino assim o determinara.

 

(1) Papirólito - do grego pápjrus+lítbos (papiro+pedra): massa de papel prensado, usada em construções. (N. da T.)

 

- Estou em minha casa! - declarava com voz forte um homem de imponente estatura, aparentando cerca de quarenta anos. - Ordem do Faraó!

A impressionante personagem chamava-se Sétek. Trazia à cinta uma espada de bronze e o peito revestido de uma couraça de coiro, o que o tornava quase tão assustador como um demónio da noite.

- Impossível! - retorquiu Guérou (2). - Esta casa pertence-me! Nédjémet(3), minha mulher, pode jurá-lo.

Guérou, o silencioso, e Nédjémet, a doce, estavam casados há muitos anos. Tinham um único filho, de quinze anos, que era a esperança da sua velhice. A força de muito trabalho, tinham adquirido terras, um pomar, e vários pequenos jardins ao longo do Nilo. E até àquele momento tinham vivido felizes.

 

(2) Guérou - palavra egípcia que se traduz por "silencioso". ( Nédjémet - palavra egípcia que se traduz por "doce".

 

- Não é só a casa - continuou o soldado -, são também todas as vossas terras.

-As nossas terras... Nós tornámo-las férteis. Pertencem-nos! - protestou Guérou.

- Agora são minhas - ironizou Sétek. - Ordem do Faraó, digo-vos eu.

O soldado olhou à sua volta. A casa agradava-lhe. Paredes brancas no interior e no exterior; uma grande sala no rés-do-chão onde abundavam esteiras e arcas de madeira de cedro; uma escada que conduzia ao primeiro andar onde ficavam os quartos e uma sala para abluções; e, finalmente, um terraço coberto de videiras e arcos floridos... Não lhe tinham mentido. Era a casa mais rica da aldeia. Melhor sorte não poderia sonhar.

- Onde está essa ordem? - perguntou Nédjémet, com voz trémula. - Quero vê-la! Esta casa é minha!

- Ide pedi-la ao governo. Está tudo em ordem.

E os lábios grosseiros do soldado abriram-se num sorriso cruel.

- Pois iremos! - disse Guérou. - Provar-vos-emos que estais enganado.

Sétek desatou a rir.

- O deus da tempestade é meu protector(3). Sétek jamais se engana! Felizmente para mim! Combati os Hititas (4) e matei uma boa porção deles. Quando levei ao meu general as mãos cortadas desses malditos, ele disse que eu era um herói e condecorou-me. Vinte vezes percorri os caminhos da Ásia. De tudo sofri: fome,

 

(3) Sétek - é o homem de Serh, divindade que encarna o poder do Cosmos, tanto benéfico como maléfico, e particularmente considerado na época de Ramsés II.

(4) Hititas - Povo da Ásia Menor; durante muito tempo perigosos adversários do Egipto.

 

sede, frio de rachar, calor tórrido, e cheguei a ter os pés em sangue. Por quatro vezes fui ferido; uma flecha trespassou-me um braço e julguei morrer cem vezes... Mas regressei vivo. Agora cabe-me o direito de gozar a vida.

Guérou abraçou a mulher, como que para protegê-la. Ambos estavam com medo.

O soldado falava a sério. De resto, todos sabiam que Ramsés, o Grande, concedia uma reforma feliz aos heróis que tinham combatido a seu lado: ouro e terras. Mas o que ninguém ouvira dizer é que ele despojava dos seus bens os honestos camponeses.

- Antes que eu tome posse dos meus domínios - exigiu Sétek - dêem-me de comer. O sol vai alto e tenho fome.

Guérou afastou-se de sua mulher e cerrou os punhos. Ela deteve-o, dizendo:

- Devemos-lhe hospitalidade. É um dever imposto pelos deuses. Depois resolveremos.

E, deixando os dois homens frente a frente e em silêncio, Nédjémet precipitou-se para a cozinha, situada no exterior da casa, para preparar uns bolos de cevada e um puré de favas com alho. Um tecto de palha protegia a cozinha dos ardores do sol e evitava que o fumo invadisse a casa.

- Que cheirinho! - comentou Sétek, encantado. - O meu estômago esfomeado já se revolve. Na guerra, temos de nos contentar apenas com pão duro e água salobra. Vocês, camponeses, estão sempre a lamentar-se, mas tratam-se bem! Devias pôr a cerveja a refrescar...

Guérou, a muito custo, conteve a cólera que fervia nele. Ninguém jamais o acusara de ter recebido mal um hóspede de passagem. Os alimentos não pertencem aos homens, mas aos deuses. Aos que acolhemos em nossa casa, devemos consideração e bem-estar. É certo que Sétek forçara o limiar da sua porta, mas Guérou não iria responder à violência, com violência. Era respeitando a justiça que ele obrigaria aquele homem indigno a afastar-se.

Guérou desceu à cave onde a cerveja e o vinho se conservavam graças à frescura que emanava da terra. Ninguém como ele para preparar uma cerveja doce, agradável ao paladar e ao estômago. Grandes jarros, encaixados uns nos outros, prometiam momentos de felicidade à sombra dos tonéis, quando o calor impedisse qualquer actividade. Guérou inclinou um deles e encheu-o de um líquido espumoso e acobreado que despejou para um copo.

Quando voltou da cave para o dar ao seu hóspede, já sua mulher oferecia a Sétek uma travessa quente a transbordar de puré de favas.

O soldado comeu vorazmente. Depois, arrancou o copo das mãos de Guérou e bebeu a cerveja de um trago.

- Ainda tenho fome e sede. Mais puré e cerveja! E despachem-se... Detesto esperar.

Então, Guérou, pondo-se diante da mulher, disse-lhe:

- Cumprimos o nosso dever. Os deuses são testemunhas. Agora, deixai-nos!

De novo, o soldado desatou a rir.

Depois, com a rapidez de um felino, atirou-se a Guérou, derrubou-o e agarrou Nédjémet pelos pulsos.

- Tu, mulher, vais obedecer-me e depressa!

De súbito, faltou-lhe a respiração. Duas mãos possantes apertavam-lhe o pescoço, obrigando-o a largar Nédjémet. Um fogo queimava-lhe o peito; debatia-se em vão.

- Não! - gritou Nédjémet. - Não, não faças isso!

O garrote afrouxou imediatamente. Pondo um joelho no chão, Sétek aspirou uma grande golfada de ar. Já recomposto, voltou-se para ver quem o tinha agredido.

Na sua frente estava um jovem de quinze anos; alto, esguio, o tronco musculoso, a testa alta, denotando inteligência. Tinha os cabelos negros, a pele bronzeada, e uma simples tanga branca era todo o seu vestuário.

- Quem és tu para ousares pôr a mão em Sétek?

- E que bandido és tu para ousares agredir os meus pais?

- Eu sou Kamosé - identificou-se o jovem - e quebro-te os ossos se não deixares imediatamente a nossa casa.

De lábios cerrados e olhos em brasa, Sétek voltou-se lentamente, pronto a atacar de novo.

Nédjémet precipitou-se para o filho, apertando-o nos braços.

- Ele é nosso hóspede, Kamosé! Não tens o direito de o agredir.

- E ele, tem esse direito? Porque se comporta como um selvagem?

- Estou em minha casa, espertinho - declarou Sétek. - livra-te de voltares a pôr a mão num veterano do exército de Ramsés! Desta vez serei indulgente... Se recomeçares, será o exílio nos oásis.

Kamosé empalideceu. As ameaças do soldado não eram exageradas. O Faraó estimava os homens que lhe permitiram sair vitorioso das lutas com o inimigo Hitita, garantindo assim ao Egipto uma paz profunda e duradoura. Concedia-lhes numerosas recompensas materiais e não permitia que ninguém contestasse os seus direitos.

Entretanto, o jovem levanta seu pai que ainda se encontrava prostrado no chão e repara que ele, meio confuso, tem um ferimento na nuca.

- Amanhã - advertiu Sétek - venho instalar-me. Espero que estejam prontos a receber-me. Não desejo ter de me queixar de vocês.

Logo que o soldado saiu, Ncdjémet rompeu em soluços.

Mais tarde, Nédjémet trata seu marido com unguentos preparados pelo médico que passava regularmente pela aldeia para dispensar gratuitamente os seus cuidados. A ferida parecia não ser grave, mas Guérou estava tão abalado que mal conseguiu beber o copo de água fresca que a mulher lhe deu.

- É horrível! - disse ela para o filho. - O teu pai incapaz de se levantar, e apenas nos restam umas horas para falarmos com o governador. Se o não fizermos, aquele monstro vai expulsar-nos da nossa casa!

Kamosé beijou sua mãe com ternura.

- Não se preocupe, eu trato de tudo.

- Que podes tu fazer, meu filho? Os heróis da guerra contra os Hititas gozam de todos os direitos.

- O governador vai atender-me.

- Tenho medo, Kamosé, tanto medo...

- Não desista assim, minha mãe. Os pais trabalharam anos e anos para adquirirem as vossas terras. Foi o próprio Faraó quem lhas concedeu. Confiscá-las agora, seria uma injustiça.

- O Faraó é o filho da luz, Kamosé, o Deus na Terra. O que ele decide é justo.

- O governador vai ajudar-nos. Advogará a nossa causa junto do juiz da província e ganharemos, tenho a certeza. Ficaremos na nossa casa.

As ruas da aldeia eram estreitas e de terra batida, o que não impedia as crianças de jogarem à bola com bolas de trapos. Alguns deles interpelaram Kamosé que, ao contrário do que lhe era habitual, não lhes respondeu. Seguia com ar decidido e a sua marcha apenas foi interrompida pela passagem de um rebanho de cabras. Finalmente, chegou a casa do governador, uma construção enorme cuja superfície cobria uma padaria, um talho e uma oficina artesanal. O governador, nomeado pelo chefe da província que submetera a sua escolha à autorização do vizir, chefe da justiça, regia com mão de ferro as principais actividades da aldeia. Contudo, ninguém tinha queixa dele. Velava pelo bem-estar da população e, sob a sua tutela, fome e sede eram desconhecidas, mesmo pelos menos abastados.

O escritório do intendente do governador, que recebia os visitantes, dava para uma ruela protegida do sol, graças a um tecto de palha. Os aldeãos formulavam as suas queixas quase sempre em público. As famílias não tinham segredos a esconder. A maior parte dos diferendos eram rapidamente resolvidos, amigavelmente.

- Quero ver imediatamente o governador! - exigiu Kamosé.

- Ele não está - respondeu o intendente, debruçado sobre as suas contas. - Que desejas?

- É ao governador que devo falar, a mais ninguém.

- Sabes bem que ele está muito ocupado e que deposita em mim toda a confiança. De que se trata?

- De nada, de nada.

E Kamosé afastou-se a passos largos. O intendente abanou a cabeça e voltou às suas contas. O jovem não tinha boa fama. Teimoso, demasiado violento, passava por ser pouco maleável. O próprio governador tinha precisamente acabado de recomendar ao seu intendente para desconfiar dele.

Kamosé saiu da aldeia por uma rua deserta que ia ter a uma seara de épeautré(6). O sol caía a pino. O jovem ergueu os olhos para o azul imaculado do céu, aquele azul que os deuses recriavam todos os dias e que tanto o encantava desde que nascera. Como gostava de sentar-se na erva húmida de orvalho, já à entrada do deserto, para contemplar o nascer do sol! Quando o deus Rá, vencedor das trevas, surgia do oceano de fogo que abraçava o horizonte, o seu coração batia mais forte. Mas agora não tinha tempo para sonhar. Precisava de encontrar urgentemente o governador.

Depois de atravessar a seara, Kamosé tomou um atalho ao longo de um palmeiral e chegou a um jardim protegido por altos muros, o lugar favorito do governador. O jardineiro, um núbio de alta estatura, era impiedoso para os pequenos ratoneiros de figos e tâmaras. Não hesitava em correr atrás deles, de chicote em punho, razão por que Kamosé se agachou para escapar à sua vigilância e conseguir entrar no jardim pela retaguarda, escalando o muro onde ele era mais baixo.

Já do outro lado, ficou algum tempo imóvel, para ter a certeza de que não fora visto. Mas só o canto dos pássaros fazia estremecer a brísa.

Nisto, Kamosé depara com o governador que, encostado ao tronco de uma palmeira, as mãos pousadas sobre o ventre reboludo, dormia a sono solto. Ao alcance da sua mão, uma ânfora cheia de água fresca. Os espessos ramos da palmeira ofereciam-lhe a sua generosidade, protegendo-lhe o crânio calvo e luzidio do sol abrasador. Kamosé pegou num punhado de terra e atirou-o sobre o ventre do homem adormecido.

 

(6) Bpeautre- (em português, espelta, cereal não cultivado entre nós) - o cereal mais cultivado no Egipto antigo. De grão pequeno e escuro oferece qualidades superiores ao trigo. Após um longo período de esquecimento, começa-se agora a reconhecer as suas virtudes, podendo vir a ser um dos cereais do futuro.

(7) Núbio - (ou nubiano) - habitante ou natural da Núbia. (N. da T.)

 

O governador pigarreou, mexeu-se, mas não acordou. Kamosé repetiu o gesto, desta vez com sucesso. O governador arregalou os olhos ao descobrir a presença do intruso.

- Kamosé! Que fazes tu aqui? Proibi a entrada no meu jardim! Vou chamar o guarda!

- Esperai. Tenho um pedido a fazer-vos. Só o senhor nos pode valer.

O governador tinha um rosto bochechudo e rosado e a pele um pouco tisnada pelo sol; narinas largas, testa estreita e lábios grossos e gulosos.

- Não foste ter com o meu intendente?

- O assunto é demasiado grave.

- Detesto que interrompam o meu sono. Se todos agissem como tu, como poderia eu suportar a responsabilidade que me pesa sobre os ombros?

- É um caso excepcional - afirmou Kamosé.

- Fala!

- Um soldado chamado Sétek quer roubar a nossa casa, as nossas terras e todos os nossos bens.

- Roubar? Cuidado com o que dizes, Kamosé. A difamação é uma falta grave, severamente punida.

- Sétek não é daqui, é asiático. Não tem nenhum direito sobre nós.

- Enganas-te - disse o governador, gravemente. - Sétek é um veterano do exército de Ramsés, o Grande.

Kamosé olhou, atónito, o seu interlocutor.

- Estais então ao corrente?

- Certamente. Ele procurou-me antes de formular as suas exigências aos teus pais.

- Por que não o haveis impedido de agir assim?

- Porque ele está perfeitamente dentro da lei - respondeu o governador. Ele

traz uma ordem do Faraó. Tu não entendeste,

meu pobre rapaz! Esse homem é um herói. Graças a ele e aos seus companheiros de armas, o Egipto salvou-se de ser invadido. É natural que o Faraó lhe conceda os maiores privilégios.

- Arruinar a minha família... Isso é um privilégio?

- Os deuses assim o exigiram. O nosso destino está nas mãos deles. Revoltares-te é inútil. Deves obedecer, tal como os teus pais e eu próprio. Não se discute uma ordem do Faraó.

- Mesmo se o Faraó...

- Nem mais uma palavra! - ordenou o governador, cada vez mais irritado. - Toma cuidado, Kamosé! Por mim este assunto está encerrado. Amanhã, Sétek tomará posse do que lhe foi concedido pelos serviços do cadastro. Teus pais entrarão ao meu serviço. Nada lhes faltará.

Kamosé ficou mudo de indignação.

Aquele jardim tornou-se para ele a caverna dos demónios que, com as suas facas de lâminas afiadas, cortavam o pescoço dos viajantes imprudentes.

O jantar decorreu numa atmosfera sinistra. O pai de Kamosé, retido no leito, dormitava. A doce Nédjémet tinha preparado carneiro assado e bolos de mel, nos quais nem sequer tocou.

A noite caíra, quente e tranquila. Uma lâmpada de azeite difundia uma ténue claridade. Sobre a soleira da porta, o velho cão da família deitara-se ao comprido. A aldeia adormecia. Os preparativos para a festa das ceifas tinham começado na véspera. Nessa festa, uma pitonisa do templo de Karnak ofereceria ao rio divino a mais bela espiga da melhor seara, chamada "a noiva do Nilo".

Kamosé não escondeu de sua mãe nada da decepcionante entrevista que tivera com o governador. Ela não mostrou a menor indignação.

- Resigna-te, meu filho. Ter o coração ardente é uma injúria aos deuses.

O jovem preferiu não discutir sobre este ponto. Embora não aprovando sua mãe,

queria-lhe com demasiada ternura, para a contradizer.

- O governador falou dos serviços do cadastro - recordou ele. - Onde estão instalados?

- No templo de Karnak.

- E se eles se enganaram? Se o cadastro tivesse cometido um erro?

- O cadastro é dirigido por escribas reais, meu filho. Sei que são muito escrupulosos.

- De qualquer modo, vou consultar o documento que nos despoja de todos os nossos bens. Partirei amanhã para Karnak.

- É uma loucura - comentou Nédjémet. - Não conhecemos lá ninguém. Nem mesmo sabes a quem te dirigir!

- Hei-de encontrar. Mudarei o destino.

- Só os mágicos tem esse poder, meu filho. E tu não passas de um camponês, como nós.

Kamosé partiu de madrugada, num barco de pesca que pertencia a um amígo de seus pais. Assim, evitou presenciar a cena dilacerante da chegada do herói Sétek que expulsou sem qualquer delicadeza a doce Nédjémet e Guérou, o silencioso. Este último, que mal se aguentava de pé, só com o auxílio dos vizinhos conseguiu chegar até à modesta casa que o governador lhes atribuiu. Nédjémet trabalharia na padaria; Guérou nos celeiros.

Nem um nem outro protestaram. Teriam de se habituar à sua nova existência.

Kamosé percebera que discutir com os seus pais nada resolveria. A sua virtuosa obediência voltara-se contra si mesmos. Só ele os poderia salvar da escravatura imposta pelo governador. Assim, jurou a si próprio não regressar à aldeia enquanto não lhes fosse feita justiça.

O patrão do barco, que era pescador, içou a vela e, com uma arte consumada, rapidamente se fez à feição do vento. O barco, ligeiro, deslizava a grande velocidade sobre o rio ainda envolto em bruma. Kamosé respirou com prazer o ar vivo da madrugada.

Um falcão peregrino, símbolo do deus Hórus, protector do Faraó, voava alto, espiando uma presa sobre a qual se lançaria com uma velocidade alucinante. Nas margens do Nilo, íbis (8) de uma brancura resplandecente juntavam-se em bandos antes de partirem em busca de peixe.

- Mantém a vela firme, meu rapaz! - exigiu o patrão pescador.

- Mas... eu nunca fiz isso!

- Tanto melhor. Uma vez que vais à descoberta de Tebas, precisas aprender a desenvencilhar-te em todas as circunstâncias.

- Eu sou camponês, não marinheiro.

- Pois aprende a sê-lo. Ser-te-á útil.

Kamosé tinha preferido fazer a viagem de barco a seguir por estrada. Já não tinha idade para andar de burro, e ir a pé levaria demasiado tempo. Agora, lamentava um pouco a decisão tomada. O barco balançava e a corda do mastro escapava-lhe das mãos.

- Aperta, aperta com força!

O patrão pescador não poupava o jovem, a fim de o endurecer. Por seu lado, Kamosé não reclamava perante o esforço e conseguiu que o barco não se voltasse. Quando a embarcação chegou perto de Tebas, o patrão do barco não regateou elogios ao aluno.

- Não és ainda um bom marinheiro - disse-lhe -, mas não és mais um camponês. Boa sorte, meu rapaz!

Kamosé ficou deslumbrado ao avistar, a ocidente, a montanha de Tebas que dominava o vale onde estavam enterrados os reis do Egipto. Ali se erguiam, em toda a sua grandeza, os "templos de milhões de anos", onde viviam para todo o sempre as almas dos poderosos soberanos que cobriram de glória o país.

 

(8) Ibis - espécie de cegonha pequena; ave pernalta que é objecto de culto entre os egípcios. (N. da T.)

 

Kamosé desembarcou na margem que levava à capital, Tebas, a das cem portas, onde fora construído o imenso templo de Karnak, que vinha sendo embelezado desde há séculos, por dinastias sucessivas. Elas agradeciam assim ao patrono do templo, Amon-Rá, o rei dos deuses, que permitira ao Egipto expulsar os invasores e alcançar uma esplendorosa prosperidade.

No cais reinava uma intensa animação. Os trabalhadores das docas descarregavam as mercadorias transportadas pelos barcos de grande envergadura, vindos de Assouan, a sul, e de Memphis, a norte. Comerciantes sírios vendiam tecidos. Por várias vezes, Kamosé foi empurrado pelos negociantes apressados.

O jovem sentiu-se perdido no meio dessa multidão barulhenta onde não conhecia ninguém. É certo que estava habituado às festas da aldeia, mas aqui tudo era maior, mais intenso, mais rápido... Ele nunca imaginara Tebas com tantas casas, tanta gente, tantas riquezas.

Por um momento, teve vontade de renunciar, voltar para casa e aceitar o destino. Porém, aos seus olhos, fazê-lo representava uma cobardia.

Resolveu, pois, dirigir-se a um vendedor de panos.

- Onde fica o templo de Karnak? O homem desatou a rir.

- Deves ser estrangeiro!

- Pouco importa. Pode responder-me ou não?

- Toma aquele caminho, meu rapaz, e segue sempre em frente. Não correrás o risco de falhar...

Kamosé só compreendeu o sentido daquelas palavras quando meia hora depois, desembocando de uma ruela, descobriu o gigantesco templo, protegido por uma muralha que o tornava inacessível aos profanos. No seu interior ficavam as moradas dos deuses, separadas entre si por portas monumentais, os pilões (9). Entre um palácio e outro erguiam-se obeliscos(10), cujo pico quase tocava o céu e cujo corpo de pedra dissipava as energias maléficas.

O jovem contemplou os estandartes que dançavam ao vento no alto dos mastros erguidos contra o grande pórtico que dava acesso ao templo coberto.

Foi tudo o que conseguiu ver. O resto estava oculto, reservado aos iniciados.

Kamosé avançou pela alameda ladeada por duas filas de carneiros deitados sobre pedestais, protegendo uma escultura do Faraó. O carneiro era o animal no qual encarnava o deus Amon. Os seus chifres em espiral evocavam o desenvolvimento progressivo da vida e davam as medidas de proporção, segundo as quais o mundo se organizava.

Sacerdotes de cabeça rapada, vestidos de linho branco e transportando rolos de papiro (11) transpunham a muralha do templo, entrando por uma pequena porta que parecia aberta a toda a gente.

Kamosé transpôs essa porta e ficou imóvel no limiar de um grande pátio a céu aberto, repleto de estátuas de grandes personagens, ali depostas como oferendas. Pelo seu aspecto de eternidade, via-se que estavam associadas à glória de Amon.

Um velho sacerdote, de voz grave, impediu Kamosé de ir mais longe.

- Que desejas?

Kamosé engoliu em seco. Estava tão impressionado que perdera a fala.

 

(9) Pilões - pórticos dos templos egípcios. (N. da T.)

(10) Obeliscos - monumento de secção quadrangular em forma de agulha, piramidal e feito de uma só pedra, que os egípcios consagravam ao culto de Rá (o Sol). (N. da T.)

(11) Papiro - planta ciperácea que depois de certa preparação era utilizada pelos egípcios, na escrita. (N. da T.)

 

- Eu... Eu desejava consultar o cadastro.

- Quem és tu?

- O filho de Guérou e Nédjémet.

- Tu não és um escriba. Ao ver-te, percebi-o logo.

O velho escriba olhou severamente para a roupa usada e poeirenta de Kamosé. O jovem sentiu-se envergonhado, mas não perdeu a coragem. A única coisa que contava era a sua missão.

- Onde ficam os escritórios do cadastro?

- Aqui, neste templo, sob o controlo dos escribas reais.

- A quem devo dirigir-me para chegar até eles?

- A ninguém, se não és escriba.

- Meus pais foram despojados das suas terras e da sua casa, por um soldado - explicou Kamosé. - Estou convencido de que se trata de um erro do cadastro.

- O cadastro não comete erros, meu rapaz. Volta para casa. Não tens nada a fazer aqui.

- Ouvi-me, suplico-vos!

O velho sacerdote voltou-lhe as costas, enquanto surgiam dois guardas armados de longos bastões. Kamosé percebeu que não podia afrontá-los e saiu precipitadamente do grande pátio.

Prostrado, de cabeça baixa, Kamosé resistiu à vontade de chorar de raiva. Tornar-se escriba era-lhe impossível.

Sentou-se à esquina de uma rua, indiferente ao que se passava à sua volta. Tebas já não o interessava. A grande cidade tornara-se, para ele, sinónimo de infelicidade.

Uma mão pousou-lhe no ombro.

- Que te aconteceu, meu rapaz?

Kamosé levantou os olhos e viu um homem de cerca de trinta anos e elevada estatura; no peito, uma faixa vermelha.

- Deixe-me em paz. Não quero falar com ninguém.

- Porquê esse desespero? Perdeste alguém querido?

- Isso é segredo meu.

- O teu traje é de camponês. Pareces perdido. Será que fugiste de casa?

Kamosé fechou-se ainda mais. Não lhe apetecia fazer confidências.

- Quanto a mim, procuro aprendizes. Estás disposto a trabalhar? Kamosé reflectiu. Não se sentia no direito de voltar à aldeia,

e como sobreviver em Tcbas?

- Que espécie de trabalho? - perguntou.

- Se te sentaste nesta rua, no bairro dos artesãos, é porque sonhaste vir a ser um deles. Preciso de jovens que desejem trabalhar a pedra e a madeira.

A pedra e a madeira... Kamosé tinha ouvido sua mãe contar a lenda de um mestre de obras, Imhotep, o maior sábio do Egipto, que começara a sua carreira fazendo vasos de pedra e aprendendo a trabalhar a matéria antes de governar os homens.

Kamosé levantou-se e disse:

- Acompanho-vos.

- Terás alojamento e alimentação. Oito horas de trabalho diário, alguns dias de repouso por semana, e liberdade quando houver festas. Mas sou muito exigente quanto à qualidade do trabalho. Se o teu não me agradar, serás despedido.

Kamosé cerrou os dentes.

- Já disse que vos acompanhava.

- És forte e altivo - disse o mestre. - Veremos se te mostras à altura das tuas ambições.

E dizendo isto, o mestre artesão começou a andar sem olhar para trás. Com grande espanto, Kamosé viu que ele se encaminhava para o templo de Karnak. Quando o mestre enveredou pela alameda dos carneiros, o seu novo aprendiz não se conteve e perguntou:

- Que vamos fazer ao templo?

- Trabalhar, meu rapaz. É lá que tenho a minha oficina.

Foi o pescador, dono da embarcação que transportara Kamosé, que deu a Guérou e Nédjémet notícias de seu filho. Disse-lhes que ele fora contratado como aprendiz numa oficina do templo de Karnak, onde cumpria as suas funções satisfatoriamente. E foi por esse mesmo pescador que Kamosé soube uma notícia que dilacerou o seu coração. O governador da aldeia tinha permitido ao herói Sétek requisitar Guérou e Nédjémet como seus empregados, a pretexto de que eles conheciam melhor do que ninguém os seus domínios.

Kamosé imaginava muito bem a triste sorte de seus pais, obrigados a trabalhar para o homem que mais odiavam no mundo. Esta injustiça, que se lhe afigurava cada dia mais insuportável, fez com que redobrasse de esforços no trabalho.

Embora de início fosse acolhido com desconfiança pelos seus companheiros, acabou por conquistar a sua estima. A sua seriedade, o seu desejo de aprender, a sua recusa em dar ouvidos a mexericos, tornaram-no respeitado por todos. Proposto para ordenar e ter à sua guarda os utensílios de trabalho, Kamosé foi, logo de seguida, admitido entre os polidores. Depois, aprendeu a manejar o cinzel, o escopro e a enxó. Em tudo se revelava competente. Apesar da sua pouca idade, dava mostras de um excepcional poder de concentração. Nunca discutia as ordens do mestre e aplicava-se a corrigir os seus erros e a progredir sem cessar no caminho da arte.

A oficina ficava situada perto do templo coberto, cujo segredo estava protegido por altos muros. Aí só penetravam os escribas de alta estirpe e os sacerdotes iniciados nos mistérios divinos, depositários das ciências que divulgavam aos seus adeptos. Entre estas figurava a geometria, indispensável aos agrimensores, razão por que, naquela ala do santuário de Amon, inacessível aos profanos, se encontravam os escritórios do cadastro. Kamosé não podia estar mais perto e, simultaneamente, mais longe do seu objectivo.

«Como conseguir entrar no templo?», pensava.

Um dia encontraria a solução. Talvez tornando-se o melhor no seu trabalho. Nesse intuito, durante meses, Kamosé não concedeu a si próprio um só momento de divertimento ou descanso. Sentado no seu tamborete, aplainou um lintel, gravou hieróglifos no granito e participou na execução de uma estátua de madeira, cabendo-lhe a difícil tarefa de lhe ajustar a cabeça.

O mestre estava espantado com os progressos do seu aprendiz.

No fim do seu primeiro ano de trabalho, Kamosé estava mais adiantado do que certos aprendizes que já ali trabalhavam há três ou quatro anos. Mas mantinha-se esquivo e fechado em si próprio. Não fazia confidências a ninguém, pessoa alguma conseguia arrancar-lhe o seu segredo.

As notícias que recebia da aldeia eram más. A saúde de seus pais degradava-se. Sétek obrigava-os a trabalhar como bestas de carga.

O dia de trabalho terminara, a oficina estava deserta. Só Kamosé ficara, terminando uma cadeira de costas rectangular.

O mestre artesão entrou sem fazer o mínimo ruído e observou o trabalho do jovem.

Kamosé tinha amor aos utensílios que manejava, utilizando-~os com inteligência e precisão. O respeito que eles lhe mereciam era a melhor prova dos seus sucessos.

- É chegada a hora - anunciou o mestre. Kamosé voltou-se com vivacidade.

- Ah, sois vós, mestre... Não tinha dado pela vossa chegada. De que hora falais?

- Da hora de executares a tua obra-prima, Kamosé.

O aprendiz poisou a ferramenta com que trabalhava a madeira. -Já... Mas os outros?

- Até agora não te preocupaste com eles. Seguiste o teu caminho e guardaste o teu segredo. Estou contente com o teu trabalho. Agora deves tentar mudar de oficina e aprender em profundidade as leis da geometria sagrada. Um outro mestre te levará mais longe no caminho.

Kamosé não pareceu rejubilar com a novidade.

- Terei de ir para longe do templo? - perguntou, angustiado.

- De maneira nenhuma.

Um sorriso iluminou o rosto do jovem.

- Realizar uma obra-prima... Dar-me-ia ela a possibilidade de entrar no templo coberto?

O mestre franziu o sobrolho.

- Não tens nada que saber. Não temos nada a reclamar. Contenta-te em trabalhar. Se fores demasiado curioso, esse defeito afastar-te-á do templo.

Kamosé mordeu os lábios. Tinha cometido um erro. Mas a resposta do mestre deu-lhe uma informação preciosa. Aquele que fizesse parte da elite dos artesãos teria, seguramente, acesso ao templo fechado.

- Qual será o tema da minha obra-prima? O mestre olhou longamente o aprendiz.

- Uma esfinge de madeira dourada.

- Quando devo começar?

- Quando quiseres.

- Será esta noite mesmo. Tenho direito aos vossos conselhos?

- Não. Agora tens de arriscar-te. Mas serei severo nas minhas críticas, ficas avisado.

- Que prazo me é concedido?

- Nenhum. Tu próprio fixarás o tempo de que necessitas. Só tu és responsável pela tua obra.

- E se eu falhar?

- Começarás de novo.

Por um instante, Kamosé susteve o olhar do seu mestre. Depois, como o exigia a regra dos artesãos, inclinou-se respeitosamente diante dele. Estava decidido a provar-lhe que ele não errara ao confiar na sua pessoa.

Kamosé não mais deixou a oficina. Ali comia e dormia, não falava com ninguém, não se ocupando senão do cepo de acácia no qual tinha começado a esculpir a sua esfinge. Em breve surgiram: o corpo alongado, as patas, a cauda enrolada, o rosto. Graças ao perfeito manejar da enxó, Kamosé fez desaparecer os últimos vestígios de imperfeição. O dourado exigiu-lhe longos dias de trabalho meticuloso e atento, mas, no final, ficou com a impressão de ter sido bem sucedido.

A esfinge de madeira dourada estava pronta.

No preciso momento em que Kamosé pousava os seus utensílios, o mestre apareceu.

- Deixa aqui a tua obra e vem comigo - ordenou-lhe. Kamosé deixou a oficina onde quase esquecera a existência do dia e da noite. Um sol ardente deixou-o deslumbrado.

O mestre conduziu-o ao alojamento de um dos seus colegas, um homem alto, de ar severo, de quem os aprendizes diziam conhecer a fundo a geometria sagrada.

- Inclina-te diante do mestre geómetra - ordenou o mestre artesão.

Kamosé obedeceu prontamente. O mestre geómetra amedrontou-o, tal como os seus futuros companheiros.

O geómetra entregou o novo discípulo nas mãos de dois dos seus assistentes. Estes, tão pouco faladores e amáveis como o mestre, retiraram o avental de couro do jovem e introduziram-no numa divisão destinada a banhos, onde o obrigaram a lavar-se energicamente. Depois, conduziram-no a uma espécie de cela de paredes nuas. Quando a porta se fechou, Kamosé mergulhou numa escuridão total.

O jovem respirou lentamente, acalmando assim as suas apreensões. Pouco a pouco, pareceu-lhe descortinar uma luz que emanava duma miríade de minúsculos pontos brilhantes no interior das pedras.

Então, pela primeira vez, Kamosé perguntou a si próprio se não se teria enganado ao escolher a carreira de artesão. É certo que ela o livrava de cuidados materiais e lhe oferecia um trabalho apaixonante, mas não o aproximava dos escritórios do cadastro. E enquanto a sua carreira progredia, a vida de seus pais estiolava. Sentia-se responsável pela felicidade deles. Não estaria a esquecê-los, a abandoná-los? Na solidão o tempo passa tão depressa...

De súbito, os dois assistentes vieram buscá-lo. Envolveram-no numa espécie de túnica de brancura imaculada e conduziram-no até uma vasta sala. Aí, sentados em bancos de pedra, já se encontravam todos os mestres artesãos do templo de Karnak. Kamosé só reconheceu dois: o que o instruíra e o mestre geómetra. De onde teriam vindo os outros? Do templo fechado ou de províncias longínquas? A severidade dos seus semblantes era tal que Kamosé teve a certeza de que falhara.

A sua obra-prima, a esfinge dourada, estava no meio da sala. O júri era presidido pelo mestre geómetra.

- Aprendiz Kamosé - disse o mestre, com voz profunda -, estamos aqui reunidos para examinar a tua obra-prima. A execução é boa, a habilidade excelente. Conheces e amas os teus utensílios. Tens o sentido certo das proporções, se bem que ainda estejam longe de ser exactas. Mas cometeste um erro grave.

- O douramento... - avançou o jovem, pronto a explicar-se sobre aquela técnica delicada.

- Não te autorizei a falar - interrompeu-o o mestre geómetra. - O teu douramento é de medíocre qualidade e é necessário que o refaças. Mas desenvencilhaste-te nessa arte que ignoravas quase totalmente. Não, não é esse o teu erro.

Kamosé ficou em pânico. Qual era então o seu erro? Rememorou todas as fases do seu trabalho, procurou, procurou, mas em vão.

- O rosto da esfinge - revelou o mestre geómetra.

O aprendiz não escondeu o seu espanto. Para cie, era a parte da esfinge mais bem sucedida. O ângulo do nariz, a delicadeza das feições, a nobreza da fronte... Não, não podia estar de acordo.

- Que modelo escolheste?

- O mestre dos aprendizes, evidentemente - respondeu Kamosé. - Não havia melhor.

- Nunca passeaste na alameda das esfinges que conduz ao templo? Não reparaste que o rosto de todas as esfinges é unicamente o rosto do Mestre de todos nós, do Mestre de todas as obras do Egipto, o Faraó? Esqueces as realidades mais evidentes.

O julgamento foi formulado sem apelo. Kamosé desejaria ter protestado, mas não encontrou nenhum argumento.

Os dois assistentes reconduziram-no à exígua sala, onde ele esperou longo tempo. De cabeça vazia, não conseguia pensar em nada, aniquilado pela emoção.

Quando a porta se abriu novamente, o mestre geómetra apareceu e disse:

- A sentença terminou, Kamosé. Recomeçarás a tua esfinge sem cometer erros. Mas a tua obra-prima foi aceite como tal. A partir de agora trabalharás sob as minhas ordens.

As espigas estavam de um amarelo magnífico. Chegara o tempo da colheita. Por toda a parte, nos campos, os camponeses manejavam a foice de cabo curto, com notável destreza.

O trabalho começava ao romper da aurora e acabava tarde ao anoitecer. Todos trabalhavam com alegria, aguardando a semana de festas que os compensaria do seu esforço excessivo.

Nas oficinas do templo de Karnak, os artesãos também sonhavam com esse período de repouso, em que teriam direito a beber cerveja e a divertir-se até à exaustão.

Apenas um de entre eles andava triste: o novo aluno do mestre geómetra, Kamosé. Os companheiros gracejavam com ele, tentando distraí-lo, prometendo levá-lo a beber e a dançar, mas nada conseguiam. Kamosé permanecia enfronhado no seu trabalho.

Como poderia o jovem estar alegre enquanto os seres que ele amava, seu pai e sua mãe, sofriam os maus tratos infligidos por um cobarde que consideravam um herói?

O tão esperado dia chegou. No dia seguinte haveria o ritual da oferenda da noiva do Nilo, a mais bela espiga do mais belo campo. Cada grupo de participantes enviaria um delegado para o representar. E todos eles tinham esperança de ocupar o primeiro lugar e de admirar as pitonisas (12) da deusa Hathor, encarregadas de dirigir a cerimónia.

Nas oficinas o trabalho cessara. Os artesãos preparavam os seus trajes de festa. Kamosé, que só queria estar só, meditava num palmeiral, a sul do templo de Karnak, cuja última parte visível era a Porta do Oriente, coroada por um sol de asas abertas, esculpido no topo.

Kamosé sentia o amargo gosto do desespero. As lições do geómetra iluminavam o seu espírito, mas não alegravam o seu coração. Esse ficara na aldeia, junto de seus pais, vítimas de uma sociedade injusta.

- Em que pensas, Kamosé? - perguntou o mestre geómetra, sentando-se ao seu lado, frente ao pôr-do-sol.

- Eu... Contemplo o astro divino. É magnífico.

- Mentes muito mal, Kamosé. Os teus olhos estão incapazes de contemplar a paz imensa que invade o céu. O sol nasce todas as manhãs e morre todas as noites. Uma morte aparente que prepara a ressurreição do dia seguinte. Um desaparecimento que nos prepara para a nossa própria morte. Para apreciar essa serenidade é necessário ter vivido. E tu, tu não vives. Encerraste-te numa prisão cujos muros tu próprio ergueste.

- É falso - protestou o jovem. - Eu luto contra um destino injusto.

- O destino não é justo nem injusto. É simplesmente o destino.

 

(12) Pitonisa - sacerdotisa inspirada por Apolo ou pela serpente Píton; adivinha; profetisa. (N. da T.)

 

- Seja ele o que seja, não o aceito.

O sol declinava rapidamente no horizonte. Mil cambiantes de vermelho recobriam a montanha tebana que cedo emergiria das trevas como uma pirâmide de eternidade velando sobre a alma dos mortos. Os barcos dirigiam-se para as margens. Os rebanhos regressavam dos pastos.

- Tens razão e não tens - ajuizou o mestre geómetra. - Mas o segredo que trazes contigo é tão pesado que te sufoca.

- Ninguém pode partilhá-lo comigo.

- Nunca o confiaste a ninguém?

- Sim... a um velho sacerdote. Fazia parte da comissão de acolhimento do templo. Mas nem sequer me escutou.

- Enganas-te. Conheci-o bem. Morreu há alguns meses. Era um homem justo e íntegro. Não podia escutar-te nem deixar-te penetrar no templo, porque não eras digno disso.

- Ser digno... E só o que sabeis dizer! Hoje são os indignos que ditam as leis!

O mestre geómetra fuzilou-o com o olhar.

- Tens provas que justifiquem essa grave acusação? Quem são, entre nós, os indignos que querem impor a sua lei?

- Não falo da nossa confraria nem do templo... Mas sabeis que lá fora existe um outro mundo? Um mundo onde os nossos valores não são respeitados?

O mestre geómetra sorriu.

- Fui encarregado de te ensinar as formas geométricas da vida, Kamosé, as suas formas imortais. Tomas-me por um velho ingénuo que nada sabe do mundo, da ambição, da vaidade e da cupidez dos homens?

Kamosé olhou o seu mestre com outros olhos. As cores do poente animavam o verde sombrio do palmeiral que se misturava agora com o azul profundo do céu e com o tom ocre da terra. Um vento fresco, vindo do norte, apaziguava a alma.

- Eu era um camponês, como tu - continuou o mestre geómetra - , antes de vir bater à porta do templo. Comecei por ser marceneiro, mas fui expulso por indisciplina. Achei que o meu mestre era estúpido e limitado. Não estava enganado de todo... Só que eu próprio também era estúpido e limitado. Mas empenhei-me e fui melhor sucedido como pedreiro.

- Por que havíeis deixado a vossa família?

- Porque o nosso vizinho tinha deslocado os marcos das nossas propriedades, após uma cheia do Nilo. Tinha-as reduzido em seu proveito. Os meus pais queixaram-se ao governador da aldeia, mas não ganharam a causa. Revoltei-me contra aquela injustiça. Com ar de troça, o vizinho aconselhou-me a levar a denúncia ao templo. Tomei o conselho à letra, já lá vão mais de cinquenta anos. E por cá fiquei.

- E vossos pais? Que lhes aconteceu?

- Respeitaram a minha decisão. Cinco anos depois, já na minha qualidade de geómetra delegado pelo templo, regressei. E fui eu próprio que coloquei os marcos no seu devido lugar. Meu pai queria que eu lesasse o seu maldito vizinho, mas eu recusei.

- Ele bem o merecia!

- É possível, Kamosé. Contudo, essa não era a lei do templo. Meu pai reprovou a minha intransigência, pois perdera a sua vingança.

- Será um sentimento assim tão indigno um filho querer fazer justiça aos próprios pais?

Um falcão rasgou o ar da tarde, subiu em direcção ao sol poente e confundiu-se com a paleta de cores do entardecer. A noite chegava, abrindo as suas asas de silêncio.

- A vingança é sempre um sentimento indigno - declarou o mestre geómetra. - Queima o coração, comprime-o, impede-o de falar à consciência. Não te compete vingar-te nem fazer justiça.

- A quem compete, então?

- Esqueces que devemos o templo e a nossa arte ao Faraó, ao homem que comunica com os deuses e nos faz beneficiar da sua luz?

- Ele não tem tempo para se ocupar dos pobres a quem ele próprio tornou infelizes.

- Esses camponeses morrem de fome e de sede?

- Não... Mas foram injustamente despojados dos seus bens.

- O caso foi submetido ao tribunal?

- Isso não é possível. O governador da aldeia afirma que está tudo legal. Um veterano do exército de Ramsés recebeu autorização do cadastro para tomar posse das terras de meus pais.

- Esse assunto compete aos escribas reais - informou o mestre geómetra.

- Eis a razão por que tenho vontade de deixar a oficina - confessou Kamosé. - Nada tenho a esperar, mesmo tornando-me o melhor dos artesãos. Sinto-me a trair os que confiam em mim e que vivem em sofrimento.

- Não tomes uma decisão precipitada - recomendou o geómetra. - O caminho divino não é facilmente perceptível aos olhos dos homens. É, sem dúvida, um desvio que terás de fazer.

Kamosé ficou intrigado.

- Que desvio?

- Dar-te detalhes mais precisos seria um erro. Tomei uma resolução a teu respeito.

O coração de Kamosé bateu mais depressa. O geómetra era tão avaro de palavras como de confidências. Era quase certo que nunca falara tanto tempo com um dos seus alunos.

- Sabes que um de nós deve representar a nossa confraria, amanhã, na festa das colheitas. Serás tu quem desempenhará essa missão.

Muito antes do nascer do sol, já uma multidão imensa se juntara nas proximidades do templo de Karnak. Durante muitos dias, a capital do Egipto ia entregar-se à festa, aos prazeres, à embriaguez e às danças.

Porém, para que a alegria dos humanos se exprimisse, seria preciso que, primeiro, os deuses se manifestassem. Razão por que todos esperavam a saída do deus Amon, de sua esposa Mout e de seu filho Khonsou.

Quando os primeiros raios de sol cintilaram a oriente, a grande porta dupla, de cedro do Líbano, abriu-se, finalmente.

Um clamor irrompeu da multidão.

Um cortejo de sacerdotes, vestidos de linho branco, precedia a grande barca sagrada do deus Amon, que os iniciados transportavam aos ombros. Atrás vinha o Faraó, Ramsés, o Grande, em pessoa, trazendo na cabeça a dupla coroa branca e vermelha que simbolizava o seu poder sobre o Alto e o Baixo-Egipto.

O rei vinha acolitado por sacerdotes, ritualistas, homens da sua guarda pessoal, cantoras e dançarinas.

Por um instante, Kamosé viu-lhe o rosto, e perguntou-se se o soberano não usaria uma máscara, de tal modo as suas feições eram impassíveis. Exprimiam, para além de um poder ilimitado, um domínio absoluto de si mesmo e uma vontade de ferro.

Kamosé não pôde deixar de admirar aquele homem que, indirectamente, era a causa da infelicidade de seus pais. Perturbava-o o facto de haver alguém que podia exercer uma função tão esmagadora como aquela de Senhor do Egipto, mediador entre o céu e a terra.

O cortejo dirigiu-se para o cais do templo de Karnak, assinalado por um oratório. Aí foram depostas oferendas alimentares. Depois, o Faraó e a sua corte subiram para uma barca, logo imitados pelos sacerdotes e sacerdotisas. Por fim, os representantes das confrarias, entre os quais se encontrava Kamosé.

O jovem estava mais emocionado do que queria deixar transparecer. O ritual, perfeitamente organizado, deslumbrava os olhos mais exigentes. A beleza dos trajos, a sonoridade dos cânticos, o esplendor da barca de Amon, inteiramente revestida de ouro, criavam uma magia à qual ninguém podia ficar insensível.

A travessia do Nilo fez-se ao som de um grande concerto de tamborins e de sistros(13). Em cada uma das margens, comprimiam-se homens, mulheres e crianças, felizes por poderem aclamar a majestade do Faraó.

Kamosé imaginava-se ao lado de seus pais, de mão dada com eles, participando destes festejos com igual entusiasmo. Mas

 

(13) Sistro - antigo instrumento de música, egípcio, que consistia num arco metálico em forma de ferradura, atravessado por hastes metálicas móveis que retiniam quando se agitava o instrumento. (N. da T.)

 

Kamosé gozava de uma honra invejável, enquanto Guérou, o silencioso, e Nédjémet, a doce, suportavam a selvajaria de um soldado que beneficiava de favores injustos.

Na proa da barca ocupada pelo rei estava pintado um olho que a guiava e assegurava ao soberano uma acostagem feliz, tanto neste mundo como no outro. Ao chegar ao outro lado do rio, o Faraó foi acolhido pelos sacerdotes encarregados dos templos da margem ocidental. Os ritos que eles cumpriam em nome do rei estavam impregnados da energia vital dos antepassados defuntos.

Kamosé descobria pela primeira vez a magnificência das cerimónias organizadas pela corte do Egipto. Os porta-estandartes içavam alto as bandeiras sobre as quais se desenhavam os símbolos divinos: o chacal de Anubis, o íbís de Thot e o falcão de Horus, sendo acompanhados pelos ritualistas que entoavam um hino a Amon.

Os comerciantes exploravam ao máximo a situação. As festas atraíam uma tal multidão que a cerveja jorrava em borbotões e os doces mais variados eram apreciados por todos, grandes e pequenos. Numerosas tendas foram montadas à pressa para satisfazer os apetites.

Kamosé gostava de festas. Na aldeia, era com entusiasmo que tomava parte na sua organização, e não perdia nenhum dos jogos que lá eram a principal atracção. Aqui, sentia-se quase um estrangeiro. Primeiro, porque a seriedade do papel que desempenhava o proibia de se misturar com os rapazes e raparigas da sua idade. Depois, porque a tristeza não deixava o seu coração. Não era capaz de se distrair sabendo que seus pais sofriam.

O Faraó e a sua comitiva dirigiram-se para os templos. O soberano tinha de prestar homenagem às divindades enterradas no outeiro principal, a eminência de terra que surgira das águas no primeiro dia do mundo.

Esses rituais eram secretos. A multidão dirigia-se para outro lado: o lugar donde seria lançada ao rio a mais bela das espigas que a foice ceifara, a noiva do Nilo.

Kamosé verificou que a túnica de linho branco, que vestia pela primeira vez, estava bem ajustada. Queria mostrar-se à altura da função que lhe fora confiada em nome da confraria. Com toda a dignidade, tomou lugar na primeira fila dos que estavam autorizados a assistir ao ritual.

Fez-se silêncio quando surgiu a procissão das sacerdotisas da deusa Hathor. Algumas delas nunca saíam do templo fechado de Karnak, onde exerciam altas funções religiosas e teológicas. Outras, cantoras e instrumentistas, partilhavam a sua existência entre o serviço ao templo e ocupações profanas.

As sacerdotisas delegadas para o acompanhamento deste ritual eram belas e jovens e estavam sob a orientação vigilante de uma Superiora idosa, de rosto enrugado e emaciado.

As sacerdotisas entoaram um cântico em honra de Hathor, divindade da alegria, do amor e da embriaguez. Depois, prosseguiram num ritmo mais lento, fazendo-se acompanhar pelas flautistas e tocadoras de harpa portátil.

A música, simultaneamente grave e alegre, encantava o espírito de quem a ouvia.

Como não sentir-se orgulhoso de participar de tais celebrações, de ter sido escolhido para associar ao ritual a representação da sua confraria? Kamosé desejava vivamente libertar-se dos seus pensamentos, sentir-se feliz por partilhar a sua alegria com os que o rodeavam. Esforçou-se por ouvir apenas a música e não mais se escutar a si mesmo.

As sacerdotisas de Hathor dispuseram-se em círculo, no centro do qual a Superiora depôs a noiva do Nilo, uma enorme espiga de grãos maduros e doirados.

Harpistas e flautistas pararam de tocar. As cantoras emudeceram. O tempo pareceu parar. As respirações ficaram suspensas.

Uma jovem de dezasseis anos, de cabelos negros e curtos, perfumados de essências raras, saiu do círculo das sacerdotisas, pôs um joelho em terra e, graciosamente, apanhou a espiga.

A jovem usava um longo vestido, plissado e transparente, cingido ao corpo por um cinto que lhe acentuava a esbelteza. No pescoço, um colar de pérolas, de cinco voltas; nos pulsos, duas braceletes de oiro; nos cabelos, um diadema de turquesas.

Kamosé estava fascinado pela sua beleza esplendorosa. Pela primeira vez, desde que partira da aldeia, esqueceu o infortúnio dos pais.

Kamosé não despegava os olhos do rosto da sacerdotisa. Olhava a sua fronte perfeita, os seus olhos verdes-azulados, o nariz aquilino, os finos lábios pintados de vermelho.

Nunca Kamosé contemplara beleza assim. A deusa Hathor não podia ter devota mais maravilhosa. Aquela jovem era o Amor, a encarnação da perfeição divina.

Levando a espiga junto ao peito, a jovem avançou até um promontório que se debruçava sobre o Nilo. Aí, parou.

A Superiora recitou alguns versículos de uma encantação, suplicando ao Nilo que fosse generoso para com o povo do Egipto, tornasse fecunda a terra e fizesse crescer todas as formas de vida.

"Que o deus do rio receba a oferenda das suas riquezas!"

A jovem sacerdotisa elevou a noiva do Nilo acima da cabeça e lançou-a no rio.

Exclamações de alegria saudaram o seu gesto. Só Kamosé permaneceu silencioso, incapaz de afastar o olhar da jovem sacerdotisa. O charme mágico da noiva do Nilo agia já sobre ele, revelando-lhe toda a força de um sentimento que invadira o seu ser.

Um amor louco e transbordante apoderou-se dele, tal como o jovem Nilo invadia as margens no momento da maré cheia.

Há mais de uma hora que todos os artesãos do templo de Karnak estavam a trabalhar. Tinham recebido uma encomenda de um importante mobiliário funerário, de numerosas estátuas, e de uma dezena de estelas (14). Ramsés, o Grande, um dos maiores construtores da história egípcia, não cessava de embelezar os templos, de norte a sul. Mandou mesmo edificar dois santuários, no sítio denominado Abou Simbel. Um para ele próprio, outro para a grande esposa real, Néfertari.

O vigilante, visivelmente excitado, precipitou-se para o gabinete do mestre geómetra.

- Nunca vi uma coisa assim! - afirmou com voz rouca. - Há uma hora que dou a volta pelas oficinas... Verifiquei mesmo uma segunda vez... e ele não está lá!

 

(14) Estela - pedra vertical monolítica na qual os egípcios faziam inscrições ou esculturas; coluna tumular. (N. da T.)

 

- De quem falais? - perguntou o mestre.

- Do vosso discípulo preferido, Kamosé, evidentemente!

- Eu não tenho discípulo preferido - rectificou o geómetra. - Kamosé é simplesmente o mais dotado. Se ele não está a trabalhar é porque está doente.

- Não está no seu quarto. Já verifiquei.

- Nenhum dos seus camaradas vos deu qualquer informação?

- Vós bem sabeis que Kamosé é um rapaz reservado e solitário. Não faz confidências a ninguém. Mas isso é-me indiferente. Peço a aplicação do regulamento. Todo o retardatário deve ser punido, seja ele quem for, se não tem um motivo válido. E o único é a doença, o que não é o caso.

- Tendes razão - reconheceu o geómetra. - Trazei-o aqui, logo que ele chegue.

Kamosé não dormia nem comia. Só tinha uma ideia na cabeça: rever a jovem sacerdotisa que tinha lançado ao rio a noiva do Nilo. O amor que sentia crescia a cada segundo, tornando-se total, absoluto.

Durante os três dias de festa, Kamosé tentou voltar a vê-la, mas em vão.

As sacerdotisas de Hathor tinham-se deslocado ao templo de Deir el-Bahari, construído em honra da deusa pela célebre rainha-faraó, Hatchepsout. Com a sua rampa ascendente em direcção à falésia, os seus admiráveis relevos e o profundo sentimento de elevação que inspirava, o templo tinha recebido a qualificação de "o sublime dos sublimes". Mas Kamosé não podia entrar nos jardins floridos, plantado de árvores centenárias.

O templo, ali situado, era interdito aos profanos. Kamosé, apesar das queimaduras do sol intenso, tinha escalado a falésia. Do alto de um espigão rochoso, vigiava o templo. Tinha esperança de ver as sacerdotisas, mas as colunas e os pórticos protegiam-nas de olhares exteriores.

Quando as sacerdotisas deixaram o templo de Deir el-Bahari para atravessar o rio e regressar a Karnak, Kamosé seguiu-as. Mas não pôde aproximar-se delas. A superiora era particularmente severa com as convivências das sacerdotisas. No entanto, Kamosé conseguiu dialogar com o chefe dos guardas encarregados de velar pela sua segurança. Foi assim que ele soube que aquela por quem estava perdidamente apaixonado se chamava Nofrct, a Bela.

Apesar de a festa já ter terminado, Kamosé deambulou toda a noite pelas ruas de Tebas. Os seus passos conduziam-no sem cessar para o templo, em direcção a essas gigantescas construções à medida dos deuses, àquela muralha que tornava os mistérios inacessíveis aos profanos. Essa fortaleza no interior da qual vivia a mulher que ele amava.

Quando Kamosé despertou, depois de algumas horas de sono pesado, o sol já ia alto. Tinha deixado o abrigo de uma palmeira onde se tinha encostado, ébrio de fadiga, e correra rapidamente para a oficina. O vigilante esperava-o.

- Enfim vieste, Kamosé! Mas em que estado...

E, ameaçando o jovem com o seu bastão, conduziu-o ao gabinete do geómetra.

Kamosé, os olhos inchados, a túnica branca amarrotada, fazia triste figura.

- Explica-te! - exigiu o mestre geómetra.

- Adormeci... Penso que não é assim tão grave. Outros, antes de mim, cometeram essa falta. Serei punido com dois ou três dias sem salário e obrigado a limpar os utensílios dos meus companheiros. Isso não me mete medo.

- Conheces bem o regulamento - reconheceu o geómetra. - Será aplicado rigorosamente.

- Por que seria de outro modo? Regresso ao meu trabalho, tenho de começar a esculpir uma estátua.

- Espera um momento... Não tens mais nada a dizer-me?

O jovem fechou-se.

- Não, mais nada.

- Mentes sempre tão mal, meu rapaz. Eu conheço a tua obsessão: penetrar no templo fechado. Durante estes três dias de festa estiveste de certeza em contacto com pessoas que vivem lá dentro. Suponho que tentaste obter informações.

- Sim e não,.. Nada de verdadeiramente interessante.

- Nada... nem ninguém?

Kamosé hesitou. Precisava desabafar, mas preferiu calar-se. Havia uma tal tempestade na sua cabeça e no seu coração que se sentia incapaz de exprimir com clareza as suas ideias.

- Nada nem ninguém - respondeu.

O geómetra permaneceu silencioso por longo tempo. Ele também parecia hesitar. Kamosé perguntava-se porquê.

- Volta ao trabalho, Kamosé - ordenou, por fim.

As vindimas tinham dado muitas uvas. Rapazes e raparigas pisaram-nas alegremente com os próprios pés, dentro de grandes cubas. Findo o trabalho, os vinicultores ofereciam vinho do ano anterior, conservado fresco em grandes jarros.

Kamosé convidou o patrão pescador que o trouxera a Tebas, para beber com ele debaixo de um caramanchão. O homem não se cansava de admirar a transformação do jovem camponês.

- Estás forte e bem alimentado, ao que parece! Dizem que te tornaste um excelente artesão, capaz de esculpir estátuas.

- É verdade. Como estão os meus pais?

- Mal. Sétek explora-os. E ele dorme, come e bebe. Aproveita a vida, como ele diz, depois de todos os perigos que enfrentou. O teu pai está quase sempre doente e a tua mãe trabalha pelos dois quando ele está demasiado fatigado. Nem um nem outro se queixam. Graças a mim, sabem que estás bem, o que alegra os Seus corações. Como eles gostariam de te ver...

- Eu fiz uma promessa - respondeu Kamosé - e não vou traí-la. Não voltarei à aldeia senão para os libertar do jugo desse maldito herói.

- Perde as ilusões... Porventura já encontraste maneira de consultar o cadastro?

Kamosé teve de reconhecer a sua derrota.

- Volta para casa, Kamosé, volta... Agora tens uma profissão. Entre nós serás um artesão famoso, e farás felizes os teus pais só por estares junto deles. Farás fortuna e poderás, talvez, arrancá-los à tirania de Sétek.

Kamosé bebeu um copo de vinho fresco e continuou cabisbaixo.

- Não... Não posso. Fiz uma promessa.

- És o único a sabê-lo. Não prestaste juramento, nem pela tua vida nem pela de teus pais, nem tão-pouco na presença dos deuses.

Como podia Kamosé dizer que não lhe era possível deixar Tebas por causa de uma jovem chamada Nofret, sem a qual a sua vida jamais teria sentido? Como podia ele conciliar esse amor com a libertação de seus pais?

Para estas perguntas, só havia uma resposta.

Uma resposta que se lhe afigurava impossível: entrar no templo fechado.

Kamosé vivia horas dilacerantes. Seus pais precisavam dele e ele necessitava da presença de uma desconhecida que ignorava a sua existência. Não perseguiria ele um ideal que jamais alcançaria? Um sonho que nunca viria a tornar-se realidade?

Então, Kamosé empregava o único remédio que conhecia: o trabalho. Sob o olho crítico do geómetra, aperfeiçoava-se com uma rapidez surpreendente. Breve, a pedra e a madeira deixaram de ter segredos para ele. Porém, continuava reservado como sempre. Impressionando os companheiros pelo seu afinco ao trabalho, Kamosé limitava-se às conversas estritamente profissionais com o geómetra.

A noite, passeava pelo sector do templo acessível aos artesãos do seu grupo. Contemplava o exterior do muro de pedra, tentando descobrir nele um defeito ou uma fenda. Mas os que o haviam erguido eram construtores de génio. Não tinham cometido qualquer erro ao edificar aquela fronteira intransponível entre o universo do templo e o mundo dos homens.

Paciência e vigilância foram, contudo, recompensadas. Um mês após a celebração do ritual onde ele tinha visto a noiva do Nilo, Kamosé assistiu, ao cair da noite, à procissão de cerca de vinte sacerdotisas de Hathor que saíam do templo coberto. Findo o serviço, regressavam às suas casas em Tebas. Entre elas, Nofret, levando nos cabelos uma flor de lótus.

Kamosé quis correr atrás dela, mas o bastão do vigilante de teve-o.

- Nem mais um passo! Há muito que te trago debaixo de olho. Esta noite ficas de guarda à oficina, não tens licença de sair.

O sangue do jovem ferveu. Teve ganas de se atirar ao vigilante, tirá-lo do seu caminho, mas sabia que se o fizesse seria excluído da confraria e jamais teria acesso ao templo. Como não tinha escolha, obedeceu.

Em virtude da sua experiência profissional, Kamosé foi encarregado pelo geómetra de vigiar os primeiros passos dos aprendizes que iniciavam a sua actividade. Essa tarefa, que lhe pareceu fastidiosa, reservava-lhe, no entanto, uma excelente surpresa.

Quando almoçava na companhia de um rapaz de catorze anos, a quem ensinava o manejo do cinzel de cobre, este ofereceu-lhe cebolas frescas de gosto açucarado.

- Vêm dos campos dos meus pais. Eu próprio as plantei. Dessa vez, a minha irmã mais velha não quis ajudar-me. Tornou-se pretensiosa desde que foi escolhida para o templo!

- Ela faz parte das sacerdotisas de Hathor?

- Não - respondeu o aprendiz. - Ela é flautista. Quando há uma cerimónia, é convocada.

- Mas elas conhecem-se...

- Não sei nada disso. Para mim, histórias de raparigas...

- Onde moras?

- Numa quinta, à saída do bairro dos comerciantes, perto do templo de Montou.

Kamosé esperou com impaciência o seu dia de folga. Levantou-se cedo, atravessou o sector do templo reservado aos artesãos e, deixando Karnak, embrenhou-se pelas ruelas dos comerciantes de Tebas.

Camponeses e camponesas começavam a estender no chão as esteiras sobre as quais exporiam os seus produtos. Os compradores seriam numerosos. Mas Kamosé não prestou qualquer atenção aos legumes e frutos expostos à sua frente. Caminhava depressa, ansioso por chegar à quinta onde morava a flautista.

Encontrou-a facilmente. Enquanto os camponeses trabalhavam nos celeiros, a jovem instrumentista preguiçava junto ao tanque de água fresca.

Os olhos pintados, a pele levemente tisnada pelo sol, usava apenas um colar de cornalinas e um cinto decorativo que a cingia um pouco abaixo do umbigo.

- Eu sou artesão no templo de Karnak - declarou Kamosé. - E tu, tu és flautista das sacerdotisas de Hathor.

A jovem sorriu-lhe.

- Procuravas-me?

- O teu irmão trabalha comigo. Ele pensa que poderás ajudar-me.

- De que maneira?

- Eu desejava encontrar uma jovem sacerdotisa, a que cumpriu o último ritual da noiva do Nilo.

A flautista pareceu decepcionada. Deixou de olhar para Kamosé para contemplar a superfície da água, agitada por um vento ligeiro.

- Por que te interessas por ela?

- Um problema de família - mentiu o jovem. - Sei que ela se chama Nofret, mas julgo que é filha de nobres e não sei como abordá-la para lhe fazer o meu pedido.

- Não tens qualquer hipótese - revelou a flautista. - Com efeito, Nofret pertence à nobreza. Seu pai é um dos homens mais importantes de Tebas. Ela acaba de ser admitida no templo coberto. Recebeu uma educação de escriba e pratica já as ciências sagradas. Seria necessário que fosses, pelo menos, o sábio lmhotep para que ela se dignasse olhar para ti! Esquece-a! Há outras raparigas que te acharão belo e admirarão a tua figura.

- Tenho trabalho à minha espera. Obrigado pela tua ajuda. A jovem instrumentista olhou Kamosé, que se afastava. Teve

pena dele. Estar apaixonado pela bela Nofret só lhe traria sofrimento e decepção.

O mestre geómetra podia orgulhar-se dos seus alunos. Eles tinham respeitado e cumprido os seus ensinamentos. O mobiliário funerário encomendado para a corte não tinha o menor defeito de proporções.

Muitos jovens eram executantes honestos. Alguns tinham um talento pessoal. Mas o mais dotado continuava a ser Kamosé.

Kamosé mostrava-se cada vez mais sombrio e reservado, a ponto de inquietar os seus companheiros. Por várias vezes o vigilante propusera a sua expulsão. Ele temia que o jovem cometesse alguma falta grave que envergonhasse a confraria. Se o carácter de Kamosé continuasse assim a degradar-se, o geómetra sabia que seria necessário tomar medidas que, de antemão, lamentava. Mas a sua função proibia-o de manifestar preferências por este ou aquele aluno.

Um incidente fê-lo vislumbrar uma solução. Quando o intendente do palácio real tomou posse do mobiliário funerário, reparou numa cadeira de costas rectangulares cuja elegância o encantou. Contrariamente ao hábito de que só o nome do mestre era conhecido e não o dos discípulos, o geómetra falou de Kamosé como de alguém excepcional. O intendente, acostumado à severidade do seu interlocutor, ficou muito impressionado pela apreciação. Fixou na memória o nome do jovem e prometeu a si próprio falar do acontecido aos que o rodeavam.

O mestre chamou Kamosé. Com dezassete anos, este parecia muito mais velho, de tal modo vivia angustiado com os seus tormentos.

- A festa da noiva do Nilo não te fez bem, meu rapaz. Tenho a impressão de que ela não realizou todos os teus desejos.

Kamosé permaneceu silencioso.

- O vigilante queixa-se de ti, Kamosé. Ele deseja que te vás embora e multiplica os relatórios para que isso aconteça.

- O que é que me censuram? - perguntou Kamosé.

- O teu carácter orgulhoso e reservado, a tua recusa em ligar-te aos teus companheiros, a tua atitude de desprezo em relação aos outros.

- Eu não desprezo ninguém. Estou aqui para trabalhar a matéria e obedecer às vossas ordens.

O geómetra não tinha escolha. Kamosé era sólido como o granito. Não mudaria enquanto não alcançasse o seu objectivo. Metido num beco sem saída, acabaria por destruir-se a si próprio, se perdesse toda a esperança. Era necessário mudar o seu destino, arriscar tudo por tudo.

- Se a minha presença vos incomoda e vos causa prejuízo, partirei de livre vontade - disse o jovem.

- Não será um vigilante que ditará a minha conduta - retorquiu secamente o geómetra. - Sempre desejas penetrar no templo coberto?

O olhar de Kamosé iluminou-se. O geómetra leu nele uma louca esperança.

- Se continuares a trabalhar comigo - continuou o mestre -, ser-te-ão necessários muitos anos para ocupares um cargo de responsabilidade. Devias viajar por todo o Egipto, descobrir as nossas províncias, aprender todas as técnicas. Penso, todavia, que não terás essa paciência.

- Não tenho o direito de a ter - respondeu Kamosé, com tristeza.

- Só resta, portanto, uma solução - concluiu o geómetra. Contudo, nada resolverei sem o teu acordo.

Kamosé tinha plena confiança nesse homem íntegro que tanto lhe tinha ensinado. No entanto, sentia medo.

- Se persistes na tua intenção, deves tornar-te escriba. As últimas ilusões de Kamosé afundaram-se.

- Eu sei trabalhar com as mãos - disse ele numa voz entrecortada - mas não sei ler nem escrever.

- Aprenderás. É um risco, uma vez que estás com pressa. Vou entregar-te nas mãos de um homem que já formou numerosos escribas. Mas ele é mais impiedoso do que eu jamais fui.

Kamosé restituiu ao geómetra o cinzel, o malho e a enxó que lhe tinham pertencido.

- Eis os meus utensílios - disse ele. - Não me pertencem, são propriedade da confraria.

- Guarda-os, pois bem os mereces. Vais tentar a mais difícil das aventuras. Os teus utensílios ser-te-ão úteis. Eles serão teus amigos para sempre.

- Eu... Eu queria...

- Não digas palavras inúteis. Fiz o meu dever. Há muito fogo em ti, Kamosé. Deves aprender a dominá-lo. A minha sabedoria não é suficiente para te ajudar. Torna-te escriba.

O geómetra abraçou o seu aluno.

Munido de um fragmento de calcário no qual o geómetra escrevera algumas linhas, Kamosé foi conduzido pelo vigilante até ao gabinete dos escribas, que ficava situado entre a muralha exterior do templo de Amon-Rá, rei dos deuses, e a do templo fechado.

O vigilante entregou o jovem a um funcionário que decifrou a mensagem inscrita no fragmento de calcário.

- Chamas-te Kamosé e vens recomendado para entrares na escola do Ancião. Será que te avisaram?

- É um homem rigoroso, ao que parece.

O funcionário olhou Kamosé com compaixão.

- Estou a ver... Não sabes verdadeiramente no que te metes. És mesmo obrigado a seguir esta recomendação? Por que não continuas na confraria dos artesãos?

- Venho de plena vontade e não tenho intenção de recuar.

- Como queiras, meu rapaz! Mas depois não digas que não te avisei...

O funcionário chamou um escriba que transportava um cofre cheio de rolos de papiros virgens, e pediu-lhe que conduzisse Kamosé à presença do Ancião. O escriba teve um movimento de recuo. Contudo, habituado a obedecer, fez o que lhe pediam, sem articular palavra.

Kamosé não ousou fazer perguntas.

No sector do templo reservado aos artesãos reinava uma alegre animação. Os aprendizes cantavam para ritmar o trabalho e ouvia-se o ruído dos utensílios. Aqui, pelo contrário, imperava o silêncio. Um silêncio quase opressivo.

Kamosé percorreu uma longa distância, costeando o muro que defendia o templo fechado; passou por várias portas estreitas e atravessou corredores sombrios, iluminados apenas por pequenas réstias de luz que passavam pelas frinchas do tecto.

Depois, foi um deslumbramento. Um caminho a céu aberto, passando entre dois edifícios, donde se podia ver ao longe a extremidade de um lago no qual os sacerdotes faziam as suas abluções. Kamosé desejou parar, mas o escriba seguia num passo cadenciado, sem se voltar para trás.

Por fim, Kamosé viu o sector do templo ocupado pelas moradias e os departamentos dos escribas. Numerosos jovens, aparentemente muito ocupados, circulavam por ali. Um mestre dava a sua aula ao ar livre a uma dezena de alunos que escreviam rapidamente sobre fragmentos de calcário. Kamosé tinha guardado o avental de couro que usara enquanto artesão. De tronco nu, parecia um jovem colosso num mundo de intelectuais elegantemente vestidos e de ombros mais estreitos do que os seus. Todos o olharam desdenhosamente.

- É aqui - disse o escriba que o havia guiado. - Entra e espera. Kamosé penetrou numa casa baixa, de apenas um andar. O rés-do-chão era uma vasta divisão, cujas paredes estavam completamente tapadas por estantes cheias de papiros. Ao fundo da sala, um velho sentado de pernas cruzadas. Na mão direita, tinha uma pena de ave que molhava a intervalos regulares num godé cheio de tinta negra. Traçava hieróglifos em colunas verticais num papiro cor de marfim.

Kamosé permaneceu de pé longos minutos, sem saber que atitude tomar. Ele, que tão à-vontade se sentia entre os operários, estava crispado e inquieto perante aquele mundo novo do qual desconhecia as regras.

- Mestre, chamo-me Kamosé - disse por fim - e venho enviado pelo mestre geómetra...

- Eu sei - respondeu o Ancião. - Se não tens nada mais interessante a dizer, volta para donde vieste. Não vês que estou ocupado?

O Ancião era realmente muito velho e completamente calvo. O seu rosto, cruzado por rugas profundas, expressava uma enorme austeridade. Os dedos nodosos conservavam, no entanto, uma agilidade notável, e o ventre, que lhe caía em pregas, não o impedia de permanecer durante horas na posição tradicional dos escribas.

Kamosé estava tão fascinado quanto receoso.

- Eu... Eu quero aprender o ofício de escriba - articulou baixinho, gaguejando.

- Podes desde já renunciar à oratória. Por que queres ser escriba?

- Para... Para saber ler e escrever.

- Que grande coisa! Há para aí uma centena de medíocres filhos de nobres a quem medíocres professores ministram esse ensinamento. Eu não perco tempo com isso.

Kamosé ficou atrapalhado. Era-lhe preciso encontrar um argumento para convencer aquele velho irascível.

- Sempre sonhei ser escriba... Dizem que é o mais maravilhoso dos ofícios que se pode ter...

- Basta de disparates - interrompeu-o o Ancião. - Detesto mentirosos.

O velho escriba levantou finalmente os olhos para Kamosé e observou-o como um caçador estuda a sua presa.

- É bem o que eu pensava... Um jovem camponês sem educação que se julga superior a toda a gente porque sabe manejar três utensílios.

- Fiz a minha obra-prima - protestou Kamosé.

- Esquecendo que uma esfinge tem sempre o rosto do Faraó. Belo trabalho, não haja dúvida!

- Como sabeis?

- Nunca saio desta sala, mas estou ao corrente de tudo. Mete isto na tua cabeça. Se tentares enganar-me ou ser dissimulado, expulso-te no mesmo instante.

E o Ancião emitiu uma espécie de grunhido desaprovador.

- O que tu queres, jovem Kamosé, não é tornares-te escriba, mas entrar no templo coberto. Uma aposta estúpida que fizeste contigo mesmo, sem dúvida. E para cúmulo, como todos os imbecis da tua idade, deves estar apaixonado, o que não ajuda nada.

- Os meus sentimentos...

- Os teus sentimentos deixarão de existir quando transpuseres o limiar desta porta. A escolha é tua. Se desejas que eu faça de ti um escriba, deverás submeter-te. Tenho demasiados alunos. Se o mestre geómetra não fosse meu amigo de longa data, não teria mesmo acedido ao seu pedido. O teu caso não me interessa. É, de certeza, muito complicado. Deixar a via dos artesãos para tomar a dos escribas, exige qualidades excepcionais. É pouco provável que as tenhas. Em todo o caso, depressa o saberei. Se és um desses arrivistas que me enviam frequentemente, queimar-te-ei como lenha podre.

Enquanto falava, o Ancião não parara de desenhar hieróglifos com mão firme.

As figuras mágicas formavam agora várias colunas perfeitamente regulares.

- Eu quero tornar-me escriba! - declarou Kamosé, com entusiasmo.

O primeiro trabalho de Kamosé foi varrer a sala do Ancião, limpar-lhe toda e qualquer poeira. O jovem devia executar a sua tarefa sem fazer barulho e sem tirar nada do lugar.

A prova foi dura, ensinando a Kamosé o sentido da meticulosidade e a dominar os seus acessos de mau génio.

Ao fim de uma semana desse trabalho inglório, o Ancião chamou o jovem para junto dele.

- Já gravaste hieróglifos na pedra. Que representavam?

- Uma abelha e uma cana.

- Conheces o seu significado? -Não.

- A cana é o símbolo do Faraó na sua qualidade de rei do Alto Egipto. Esse hieróglifo faz um jogo de palavras com a raiz que significa "Ele". O rei não é uma pessoa qualquer, um indivíduo que governa a seu bel-prazer. Ele é Aquele no qual o povo inteiro se apoia para comunicar com os deuses.

- E... a abelha?

- A abelha - revelou o Ancião - é o símbolo do Faraó como rei do Baixo Egipto. A abelha é o geómetra que, pelo seu conhecimento das proporções, constrói a colmeia onde se produz o mel, o ouro líquido, o alimento real. O Faraó é o mestre de obras do reino que ele deve alimentar com os seus benefícios.

Um universo imenso, insuspeitado, se abria para Kamosé.

- É essa a ciência dos escribas?

- A maioria deles não passa de funcionários sem consciência - disse o Ancião. - São propostos para tarefas administrativas que preenchem a sua existência. O que estou a ensinar-te é o mistério dos hieróglifos. Não basta saber ler e escrever. É necessário compreender o significado das palavras reveladas pelos deuses e contidas nestes caracteres de força. A nossa língua é sagrada, não se parece com nenhuma outra. Quem souber decifrá-la, tem poder sobre os homens e as coisas. Mas esse poder não deve ser usado em proveito próprio. O que o fizer, despertará a cólera de Thot, o deus dos escribas.

- Cada hieróglifo contém um mistério comparável aos que me haveis ensinado?

- Cada hieróglifo é um símbolo que precisarás de decifrar com o coração. Pela leitura, ele pode tornar-se um som; pela escrita, dará vida à tua mão e torná-la-á inteligente.

- Se eu conseguir satisfazer-vos, entrarei no templo coberto?

- Satisfazeres-me não tem qualquer importância - declarou o Ancião, descontente. - Começa por aprender o alfabeto e a desenhá-lo, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, e de cima para baixo.

Depois, Kamosé recebeu do Ancião uma centena de fragmentos de calcário sobre os quais começou a exercitar-se.

Os primeiros esboços foram desastrosos. O jovem esforçou-se. A andorinha que ele desenhara tinha as patas demasiado longas; o falcão, o bico excessivamente bifurcado; a codorniz, a cabeça muito estreita. Durante algum tempo, o Ancião deixou-o errar sem intervir. Em seguida, corrigiu um traço aqui, outro além, omitindo qualquer comentário.

Kamosé percebeu, a sua mão aplicou-se. De súbito, começou a trabalhar sozinha. Ela tornara-se inteligente. O ensinamento não passara pelo raciocínio, mas pelo coração. Quando Kamosé apresentou ao Ancião um alfabeto desenhado de maneira impecável, arvorava um sorriso de legítimo orgulho.

- Tu ainda não sabes nada - comentou o Ancião - e aprendes muito lentamente. Se continuas a não trabalhar, regressarás à tua aldeia. Aqui tens uma lista de hieróglifos para desenhar e memorizar. Enquanto os traçares, interroga-te sobre o seu significado. Só através do coração os poderás entender.

Vexado, furioso, Kamosé refugiou-se no canto da sala, onde dispunha de uma simples esteira para dormir, Saía apenas duas horas por dia, para fazer um pouco de exercício e alimentar-se frugalmente de pão, fruta e água.

A tarefa que o Ancião lhe tinha imposto era quase desumana. Exigia consideráveis esforços de atenção e de memória.

Quando a sua mão sofreu uma cãibra, Kamosé compreendeu que não mais tinha tempo de pensar nem em Nofret nem nos seus pais. No entanto, os seus sentimentos permaneciam intactos. Nem o seu amor nem o seu desgosto diminuíram de intensidade.

Então, uma dúvida atroz surgiu no seu espírito.

E se este esbanjamento de energia resultasse inútil? Se a via que ele seguia fosse um beco sem saída? O Ancião não lhe prometera coisa alguma. Talvez nunca viesse a penetrar no templo coberto. Seria que se tinha tornado escravo de um tirano que faria dele um secretário inteiramente devotado, passando a vida a recopiar textos dos quais não compreendia nada?

- Em vez de te entregares a pensamentos estúpidos - interveio o Ancião -, melhor seria tentares progredir nos estudos. Tenho a impressão de que te esqueceste de deixar lá fora os teus sentimentos.

- Não é possível... Num momento ou noutro eles voltam. O que me pedis é desumano.

- Os hieróglifos são as palavras dos deuses, não as dos homens. Caso contrário, o Egipto já não existiria há muito tempo. A nossa civilização só sobrevive pela língua sagrada, Kamosé. Tudo é hieróglifo, tudo é símbolo vivo, desde o templo, na sua grandiosidade, até ao insecto. Quando tu desenhas um gafanhoto, representas a alma do Faraó saltando para o céu, abolindo a distância entre a Terra e o paraíso.

As palavras do Ancião eram luminosas, mas não apagavam nem o amor nem o sofrimento.

- Que desenhaste sobre este fragmento de calcário?

- Um vaso - respondeu Kamosé.

- Encontrá-lo-ás muitas vezes nos textos dos sábios. Porquê, na tua opinião? Tratar-se-á apenas de um vaso?

Kamosé hesitou.

- É um recipiente...

- É mesmo o principal recipiente - acrescentou o Ancião. - Trata-se do coração, Kamosé, da tua capacidade de compreender o essencial e o verdadeiro. A qualidade do teu coração depende do que deixares entrar no vaso que ele simboliza. Se se tratar de um líquido amargo, serás invejoso e ávido; se for o mel da abelha, serás da estirpe dos reis.

- Dos reis? Mas só há um Faraó... E é necessário pertencer à sua família para lhe suceder.

- Se os nossos Faraós tivessem sido escolhidos em função dos seus laços de família, a civilização há muito teria desaparecido.

Repara nos escribas que herdaram a profissão de seu pai! A maior parte deles são incompetentes. Só há um Faraó, é certo, mas ele é modelo de realeza para os que querem viver a vida em consciência. Kamosé sentiu uma nova espécie de emoção. Uma luz desconhecida nascia no seu íntimo.

- O que tu desejas é bem difícil de conseguir, meu rapaz. É chegado o momento de confiares em mim. Por que queres entrar tão depressa no templo fechado?

Pela primeira vez, Kamosé teve vontade de abrir o seu coração.

- Os meus pais foram vítimas de uma injustiça. Um soldado regressado da Ásia roubou a nossa casa e os nossos bens com o consentimento do Faraó. Estou convencido de que foi um erro do cadastro. Quero ter acesso a ele para o provar e restituir aos meus pais o que lhes pertence.

O Ancião afagou o queixo, perplexo.

- És, decididamente, um ser à parte - reconheceu o Ancião. - O cadastro é um serviço rigoroso, do qual fazem parte técnicos competentes, particularmente escrupulosos. As queixas são raras. Em geral, trata-se de camponeses desonestos que deslocam os marcos dos campos depois da cheia. A verdade depressa se descobre. Eu sei que Ramsés, o Grande, concede privilégios aos velhos soldados que fielmente o serviram na Ásia, mas não espolia os pequenos proprietários.

- Que me aconselhais então?

- Paciência e trabalho. A justiça acaba sempre por triunfar.

- E durante esse tempo os meus pais sofrem. Só comigo contam para ganhar a sua causa. Já não posso mais... Sinto-me culpado.

- Não é dessa maneira que conseguirás os teus fins. Passa nos teus exames e pede para trabalhares no cadastro.

O jovem estremeceu.

- Isso é possível?

- O meu ensino é o mais exigente de todos, mas ele permite-te aprender num ano o que os alunos vulgares estudam penosamente em cinco anos. Em menos de dois meses, submeter-te-ei à primeira prova imposta aos candidatos. Terão ciúme e inveja de ti. Terás apenas uma chance.

- E depois?

- Depois, haverá outros exames.

- Quantos?

- Mais de uma dezena, antes de poderes almejar a um posto de técnico do cadastro, no templo fechado.

- Quantos anos de estudo?

- Isso dependerá de ti. Mas precisas ainda de aprender a astronomia, a geografia e a agrimensura. Serás tu dotado para essas matérias? Não o sei.

- E se eu for?

- Trabalhando arduamente, serão necessários, pelo menos, três anos.

Kamosé mordeu os lábios, decepcionado. O desespero apossava-se dele. Pelo menos três anos... Talvez cinco, talvez dez, talvez o fracasso...

O Ancião deixou o aluno e voltou ao seu trabalho. Escrevia uma passagem do Livro dos Mortos relativa à pesagem da alma. A do justo tornar-se-á imortal, a do injusto será devorada pelo monstro, incarnando o tempo e a matéria.

O Ancião tinha a certeza de que Kamosé não lhe havia dito tudo. O seu amor filial era evidente, mas ele não vivia só esse amor...

O Ancião poderia fazer uma investigação administrativa junto dos serviços do cadastro, só que aquele caso parecia-lhe bizarro, quase duvidoso. Além disso, Kamosé não acreditaria senão no que os seus olhos vissem. Era preciso agir de outra maneira.

Dramáticos acontecimentos se anunciavam. Acontecimentos que o Ancião tinha previsto desde o primeiro instante em que conhecera Kamosé.

Kamosé não renunciou ao trabalho, razão porque breve se encontrou no meio de cerca de cinquenta jovens, convocados para fazerem o primeiro exame de aptidão à função de escriba. A prova teve lugar numa das salas a céu aberto do templo de Karnak. Kamosé envergava um fato branco muito simples, quase arcaico, cuja austeridade fez sorrir alguns elegantes. Um deles aproximou-se de Kamosé, olhando-o com desprezo.

- Eu sou o filho do governador de Tebas. E tu, quem és?

- O filho de Guérou e de Nédjémet.

- Não conheço esses nobres. Onde fica a moradia deles?

- Eles não têm moradia, mas uma pequena herdade. São camponeses.

O filho do governador de Tebas ficou espantado.

- Camponeses... Mas quem te permitiu estares aqui? Este exame é reservado aos filhos dos nobres!

- Não discuto senão com os mais sabedores do que tu. Recomendou-me o meu professor. Compreenderás porque sou obrigado a interromper esta conversa.

De início mudo de indignação, o filho do primeiro magistrado tebano foi de seguida invadido por uma cólera tão violenta que atraiu a atenção dos examinadores. E logo se queixou a eles da atitude do camponês que, erradamente, havia sido ali introduzido.

O jovem nobre teve de render-se. Não só Kamosé foi reconhecido apto para fazer o exame mas ainda se apresentou como aluno do Ancião, o mais intratável dos velhos sábios de Karnak, temido tanto pelos seus discípulos como pelos outros mestres. Não se dizia que o Ancião tinha chamado à ordem o próprio Ramsés, o Grande, quando ele aprendia os hieróglifos?

Kamosé foi de imediato considerado pelos outros candidatos como um animal curioso. Como é que aquele rústico, pertencente a uma família desconhecida, desprovida de fortuna, conquistara a confiança do Ancião?

Kamosé, habituado a concentrar-se graças à sua experiência de artesão, não se deixou distrair pelo incidente. Sentou-se na posição de escriba, as pernas cruzadas à sua frente, a cabeça ligeiramente baixa.

O tema revelava-se particularmente difícil. Em primeiro lugar, era necessário escrever um texto em colunas, depois traduzi-lo sem a ajuda do mínimo dicionário.

Alguns candidatos desistiram logo; outros foram vítimas da sua precipitação. Kamosé começou por reflectir. E em vez de torturar a memória, deixou falar a sua intuição.

Kamosé ignorava certas palavras, mas pelo contexto deduziu o seu significado. Logo que releu a sua tradução, não pôde evitar de sorrir.

"Os cavalos devem ser domados. Os macacos domésticos aprendem a dançar; os cães a obedecer Os alunos são por natureza ignorantes e indisciplinados. Só aquele que trabalha todos os dias e não negligencia as pequenas tarefas se torna forte. Um só dia de negligência e será o castigo. A orelha do aluno está nas suas costas. Quando ele sente o peso do bastão, torna-se mais atento. Passa a compreender que só pode progredir conversando com os seus mestres. Que estas palavras sejam entendidas pelo coração e que sejam proveitosas."

Os examinadores passaram entre as filas de estudantes e eliminaram os candidatos insuficientes. Só restaram dez, entre os quais Kamosé. Pediram-lhe que se levantasse. Depois de uma breve espera, Kamosé compareceu diante de um júri de homens solenes.

- Que pensas do texto que traduziste? - perguntou um deles.

- É justo e bom.

- És então favorável à bastonada?

- Desde que seja justificada, sim.

- E quando é que ela é justificada?

- Quando uma tarefa não é cumprida.

- Estás certo de não teres negligenciado nenhuma? Kamosé sentiu-se apanhado numa armadilha.

- Tentei desempenhar correctamente as minhas funções.

- Tentar não basta. Foste sempre bem sucedido?

Não lhe sendo possível responder afirmativamente, Kamosé preferiu calar-se.

- O teu silêncio é eloquente. Reconheces a tua falta, portanto, mereces uma bastonada. Ajoelha-te!

Um dos escribas saiu do júri, empunhando um bastão. Kamosé olhou-o bem nos olhos, depois ajoelhou-se esperando as primeiras bastonadas.

- Levanta-te! - ordenou o examinador. - Ainda tens muito que aprender.

Apenas cinco jovens foram considerados dignos de prosseguirem os estudos superiores na casa dos livros. Kamosé teve assim ocasião de conviver com quatro filhos da nobreza, possuidores de ricas moradias em Tebas e vastos domínios no campo. Um deles, tão indiferente à própria fortuna como à dos seus semelhantes, só se interessava por literatura. Tinha lido autores clássicos, sabia de cor numerosos poemas e podia falar durante horas dos ensinamentos dos sábios. Mas, por outro lado, era fraco em geometria, uma deficiência séria para se tornar escriba real.

Sem ideias preconcebidas, Kamosé ofereceu-lhe ajuda. Durante as três semanas de formação de que ambos beneficiaram, os dois jovens, sem todavia se tornarem amigos, completavam-se. Muito falador, o jovem nobre resumiu textos célebres, dos quais Kamosé assimilou o essencial. Por seu lado, Kamosé ensinou ao seu condiscípulo métodos simples para aprender a geometria no espaço, tal como o seu mestre lhe ensinara.

Em breve os aprendizes de escriba se separariam. Os jovens nobres regressariam a casa e começariam a preparar-se com os seus preceptores para os próximos exames. Quanto a Kamosé, voltaria para junto do Ancião.

- Não tens família? - perguntou-lhe o jovem letrado. Kamosé já esperava a pergunta e tinha preparado uma resposta audaciosa, uma resposta que poderia abrir-lhe o caminho da felicidade.

- Os meus pais vivem numa província do Norte e se eu estou aqui é por causa de Nofret.

- Nofret, a nova sacerdotisa da deusa Hathor? A filha do juiz Rensi?

- Exactamente.

- Beneficias de protecções poderosas. Com os teus dons para os hieróglifos, a tua carreira está assegurada. A que serviço do templo te destinas?

- Ao cadastro.

Os lábios do jovem letrado manifestaram um trejeito de desaprovação.

- Mereces melhor do que isso... No cadasrro há muitos escribas velhos e caturras.

- No entanto, não é fácil lá chegar, disseram-me.

- Sim e não... É preciso, sobretudo, ter uma longa experiência. Os que não conseguem subir na hierarquia, acabam no cadastro.

- Contudo, é um serviço importante, vela pelas propriedades de todos os Egípcios.

- Estás certo, mas é necessário ter um espírito minucioso e um amor apaixonado pelos arquivos.

- Suponho que os serviços do cadastro se encontram em Tebas e que estão bem guardados.

- Em Tebas? Aqui mesmo, em Karnak, no templo coberto. E segundo julgo saber, não existe lá a menor vigilância. A muralha é suficiente para proteger os seus domínios sagrados.

- Decerto, é impossível saber a sua localização exacta...

- Enganas-te - corrigiu o jovem letrado. - Não é segredo. Eles ficam na primeira parte do templo, antes da grande sala das colunas.

- Como é que sabes? - espantou-se Kamosé.

- Meu pai esteve lá há cerca de um ano. Falou-me disso. Segundo ele, a sala dos arquivos está quase sempre deserta. Os litígios são tão raros... Geralmente, resolvem-se no próprio lugar. A consulta do cadastro é uma excepção.

- Penetrar no templo secreto não deve, pois, ser muito difícil.

- Desengana-te. Há a magia dos iniciados. Ela impõe que ninguém lá entre sem antes ser submetido a um ritual. Não tentes semelhante experiência. Pagá-la-ás com a vida.

- Não compreendo - confessou Kamosé, preocupado. O jovem letrado olhou-o, com certo espanto.

- Pareces tão atormentado... Que se passa?

- Por que é tão difícil o acesso aos arquivos do cadastro?

- Expressei-me mal... No templo só estão guardados os originais. Os duplicados ficam nas secções do Tesouro, no bairro administrativo. Mas porque te interessas tanto pelo cadastro? É um assunto tão enfadonho. Não preferes estudar comigo o conto Smoithé? É um texto maravilhoso, cheio de profundidade.

- Com todo o gosto.

As três semanas de formação estavam terminadas. Os escribas aprendizes separaram-se.

O Ancião continuava a desenhar os hieróglifos do Livro dos Mortos^ que o rei lhe encomendara. Kamosé já devia estar de regresso e junto dele há dois dias. Quando algum dos seus alunos faltava, o Ancião chamava logo o serviço de segurança do templo que procurava o culpado e, com toda a severidade, o reconduzia ao seu instrutor. O castigo era à medida da falta cometida. Mas desta vez o Ancião não empreendeu nenhuma acção contra o faltoso.

Tudo se passava como ele tinha previsto.

O bairro dos ministérios estava guardado dia e noite por uma polícia condescendente. Há decénios que o Egipto e a sua capital se tinham tornado muito calmos. No reinado do grande Ramsés a população vivia dias felizes.

Os responsáveis pela guarda do Tesouro não prestaram a mínima atenção a uma silhueta fugaz que, depois de se ter embrenhado numa ruela que ladeava o ministério, saltava de terraço em terraço.

Kamosé levara dois dias para obter as informações exactas de que precisava. Tinha aceite o convite do jovem nobre apaixonado por literatura e enquanto conversava com ele ia fazendo perguntas referentes ao departamento anexo ao cadastro.

O jovem sentia-se em falta. Já devia ter regressado ao templo e relatado o seu trabalho ao Ancião. Mas a ocasião era demasiado tentadora. Com um pouco de sorte, encontraria os arquivos relativos à sua aldeia e poderia provar o erro que tinha causado a infelicidade da sua família.

Kamosé tinha um nó na garganta. Se falhasse, seriam as bastonadas, a prisão e a decadência, e seus pais morreriam de desgosto.

A escalada não lhe metia medo. Jurara a si próprio galgar os telhados e entrar no ministério por uma janela alta. Mantendo o sangue-frio, movia-se lentamente, atento ao menor ruído. Os guardas vigiavam os acessos principais e os locais ocupados pelos ministros e altos dignitários. Os arquivos eram relegados para segundo plano. Apenas duas vezes por noite, um guarda efectuava uma ronda.

Agachado no ângulo de um corredor, Kamosé esperou que a segunda ronda terminasse. Depois, pés descalços, dirigiu-se devagar para a primeira sala. Guardados em arcas, colocados uns em cima dos outros, encontrava-se um número considerável de rolos de papiro.

Kamosé desenrolou o primeiro. Constava de esboços e esquemas geométricos. A primeira vista, tratava-se do plano da aldeia e da divisão de terrenos. O jovem sufocou um grito de alegria. Bastava-lhe ler as notas da administração para ficar a saber os nomes dos legítimos proprietários. Kamosé estremeceu. A sua decepção igualava a esperança que tivera.

Os textos estavam escritos em caracteres que ele não sabia ler. Caracteres próprios da administração e que o seu professor não lhe tinha ainda ensinado.

Se ele tivesse sido razoável, teria regressado imediatamente ao templo e implorado o perdão do Ancião. Decerto receberia uma bastonada acompanhada de uma reprimenda, das quais guardaria recordação por muito tempo.

Mas Kamosé já não escutava a voz da razão. A decepção fora demasiado forte. Não aguentava mais permanecer na ignorância e deixar seus pais em sofrimento. Artesão, escriba... Os caminhos que empreendera não lhe davam saída. Exigiam-lhe demasiado tempo. Agora, tinha decidido agir.

A noiva do Nilo tinha-lhe revelado o amor, o amor que mudaria o seu destino.

O Ancião não dormia senão duas ou três horas por noite. Embora tivesse decifrado centenas de textos sagrados, tinha a impressão de ter levantado apenas uma ponta do véu do conhecimento. Aos oitenta e cinco anos, o Ancião não atingira ainda a idade, tal como o célebre vizir Ptahhotep, de redigir as suas memórias. Este esperara cento e dez anos para escrever os seus conselhos dirigidos à juventude. O Ancião nunca encontrara um jovem tão puro e fogoso como Kamosé. Na verdade, esperara que ele voltasse. Perdera mesmo o gosto pelo ensino, a tal ponto os filhos dos nobres lhe pareciam enfadonhos e sem carácter. Kamosé tinha um fim em vista e cometia todas as imprudências para o alcançar. Seria a sua prova para passar do estado de criança ao de adulto. O sucesso ou o fracasso dependiam dos deuses, e um pouco também dele próprio.

O Ancião, tal como revelara ao seu discípulo, não precisava de deixar a sua sala para ter conhecimento do que se passava lá fora. Conhecia suficientemente as paixões humanas para saber o que elas desencadeiam. O resto lia-o nos hieróglifos, os sinais divinos. Eles falavam do passado, do presente e do futuro.

Kamosé conseguiu sair do bairro administrativo sem dificuldade e refugiou-se numa cervejaria, nos arredores de Tebas, uma espécie de quiosque aberto toda a noite. Um pouco embriagado, deixou-se dormir, mas o despertar foi penoso. O sol, que ele tanto amava, pareceu-lhe insuportável.

Caminhava ao acaso, esperando assim dissipar a enxaqueca que lhe martelava as fontes. Lamentava a fraqueza que se apossava dele, agora que precisava de todas as suas faculdades para tomar a decisão que mudaria o curso da sua existência. Mas em que sentido?

Crianças brincavam nas ruas de Tebas, soltando gritos de alegria. Senhoras da nobreza circulavam em cadeiras transportadas aos ombros. As mães de família conversavam animadamente de uma casa para outra. Kamosé misturou-se com a multidão, temendo ser recapturado por um vigilante hábil no manejo do bastão.

A reflexão de Kamosé levou-o a uma conclusão: se os seus pais tinham empobrecido, era devido a uma sociedade injusta, onde somente os ricos e seus filhos gozavam de privilégios intocáveis. Seria, portanto, um dos ricos, um dos mais poderosos entre eles, que restituiria aos seus pais os bens de que tinham sido despojados.

Kamosé percorreu todos os cais em busca do patrão pescador que vinha vender os seus peixes à capital. Entretanto, assistiu à descarga de um barco carregado de jarras, cruzou-se com numerosos homens das docas, até que, por fim, avistou o amigo de seus pais.

- Não estás na escola de escribas? - admirou-se este, que seguia a carreira de Kamosé, em função das informações que o jovem lhe dava regularmente.

- É dia de folga.

- Os teus pais estão orgulhosos de ti. Estão felizes por teres deixado a aldeia. Só lamentam não te terem apoiado.

- Diz-lhes que eu não os abandono.

- Tens um ar cansado... - notou o pescador. - Será que estás preocupado?

- Está tudo bem. Tranquiliza os meus pais.

- Assim farei.

E, dizendo isto, o patrão pescador afastou-se. Não dissera a Kamosé que as forças de seu pai declinavam e que a brilhante saúde de sua mãe estava periclitante, devido ao cansaço e à inquietação. Mais valia não alarmar o jovem. Os estudos que ele tinha empreendido, ele, um filho de camponeses, requeriam muita coragem.

Uma grande multidão comprimia-se num dos mais vastos desembarcadouros da capital. Um chefe de província chegava a Karnak com o seu séquito. Do Sul, trazia ouro e especiarias. Finda a sua missão comercial, ele seria recebido por Ramsés, o Grande.

Kamosé avistou o jovem letrado que ele tinha interrogado sobre o serviço do cadastro. O aprendiz de escriba parecia aborrecido.

Os dois companheiros conseguiram isolar-se no meio da multidão.

- Tenho horror a multidões! - disse o jovem. - Prefiro ler. Estas felicitações obrigatórias são sempre as mesmas. Mas... a tua presença aqui espanta-me, Kamosé. Será que te interessas por acontecimentos mundanos?

- Estou aqui por acaso. Falaste-me no juiz Rensi... Sabes onde ele mora?

- Certamente. Na mais bela casa da cidade, no bairro dos nobres. Está rodeada por um jardim protegido por altos muros. A entrada é uma porta monumental guardada por homens armados e uma pantera domesticada. Não te lembres de a provocar... Ela detesta desconhecidos.

A pantera, fortemente presa por uma trela, começou a enfurecer-se, mal viu Kamosé aproximar-se.

- Quieta, menina bonita! - ordenou um dos guardas, enquanto outro puxava da sua lança.

O jovem escriba que vinha em direcção a eles tinha um ar bem inofensivo, e há muitos, muitos anos que não havia notícia de agressões em Tebas. Contudo, as normas de defesa tinham de ser estritamente cumpridas.

Kamosé, nada impressionado com o felino, parou a alguns metros.

- Que queres tu? - perguntou um dos guardas, pouco amável.

- Ver o juiz Rensi.

- Qual é o motivo?

- Um assunto urgente.

- Tens um salvo-conduto do tribunal?

- Não, mas a filha do juiz conhece-me. Os guardas pareceram aborrecidos.

- Sem um documento oficial - disse o dono da pantera - não podemos deixar-te entrar. De qualquer forma, não encontrarias aqui o juiz. Partiu para repousar na sua casa da outra margem.

Kamosé inclinou-se respeitosamente, como se se dirigisse a um professor. Os guardas ficaram encantados com esta manifestação de respeito e acharam o jovem escriba muito polido e bem educado.

O que eles não discerniram foi o fogo que o consumia.

Caía a noite.

O Nilo não era mais do que um rio de prata cintilando sob os últimos raios de sol.

A agitação da grande cidade acalmara. As mães de família preparavam o jantar. Os homens, regressados dos campos ou de outros serviços, saboreavam uma cerveja fresca, enquanto ouviam os contadores de estórias.

No bairro dos nobres preparavam-se ricos banquetes, onde as belas damas rivalizariam em elegância.

A alma de Kamosé não gozava dessa paz e dessa felicidade tranquila. Agachado entre as altas ervas da margem oriental, o jovem observava, crispado, os últimos barcos da polícia fluvial que regressavam ao seu porto de abrigo.

Em breve, reinariam as trevas. Nenhuma embarcação circulava agora no rio Deus. Tudo estava calmo.

Kamosé embrenhou-se num canavial, cujas hastes mergulhavam nas águas, e percorreu uma longa distância antes de se encontrar em frente das propriedades dos nobres, na outra margem. De resto, elas eram raras. Só os confidentes do Faraó tinham obtido autorização de residir naquele local, próximo de um dos palácios reais.

Kamosé foi picado por numerosos mosquitos, mas nem deu por isso. Do mesmo modo, ficou indiferente aos rumores das mil pequenas vidas buliçosas que reinavam no emaranhado canavial: batráquios, serpentes de água, pequenos carnívoros... Todo este mundo subsistia segundo as suas leis próprias, perturbadas agora por este intruso que avançava rapidamente, afastando tenazmente as hastes do canavial.

Chegado ao sítio onde a travessia seria mais curta, Kamosé tirou a veste, pô-la sobre a cabeça, enrolando-a à volta da testa, e mergulhou na água. Tinha aprendido a nadar, ainda criança, nas suas brincadeiras com os companheiros da aldeia. O próprio Faraó devia aprender a mover-se na água. Para aqueles cuja aprendizagem se tornava difícil, usava-se um flutuador de canas. Kamosé não precisou desse artifício. Depressa encontrou os gestos e a posição do corpo que lhe permitiu unir-se à corrente, tornar-se uno com ela, e nadar sem esforço. Mas havia um outro nadador, cuja presença inquietante o jovem tinha esquecido. Um nadador que passava os dias a dormir nas pequenas ilhotas de verdura, no meio do Nilo, e que parecia inerte como um bloco de pedra. Um nadador com uma goela monstruosa, armada de dentes prontos a dilacerar a presa.

O crocodilo despertou da sua sonolência e com a velocidade de um relâmpago percorreu os metros que o separavam do Nilo.

Contudo, as divindades do rio protegeram Kamosé. Se o crocodilo o tivesse atacado por detrás, ele não teria tido hipótese de lhe escapar. Mas o jovem viu aproximar-se o monstro, cuja cabeça emergia da água.

Lutar desarmado seria inútil. Assim, defendeu-se como aprendera com seu pai. Não era raro que um sáurio* atacasse os rebanhos quando eles atravessavam a vau. Os sacerdotes mágicos tinham ensinado aos camponeses certas fórmulas cuja eficácia tinha salvo muitos animais.

Kamosé agitou os braços com o máximo de energia e, com toda a força dos seus pulmões, gritou as palavras mágicas: "Pára, crocodilo, filho de Seth! Pára de abanar a cauda, não avances mais! Que a água se converta numa muralha de fogo contra ti! Que fiques cego!"

E continuou a agitar-se e a repetir a fórmula, lançando contra o crocodilo ondas destinadas a afastá-lo, até se sentir extenuado. Por fim, fechou os olhos. Se falhasse, não queria ver a morte horrível que teria. Depois, estendeu-se na água e esperou. Como nada acontecia, Kamosé abriu os olhos e olhou à sua volta.

O crocodilo tinha desaparecido.

Uma vez mais, a magia dos ancestrais fora eficaz.

O Ancião acabou de desenhar os hieróglifos do Livro dos Mortos. Com o coração oprimido, adivinhou que Kamosé corria perigo.

O velho escriba levantou-se e aproximou-se de uma pequena estatueta coberta de textos gravados no granito. Representava um médico sentado, com um papiro desenrolado sobre os joelhos.

O Ancião foi buscar um pouco de água e derramou-a sobre a cabeça da estátua. A água escorreu sobre o corpo de pedra e, de passagem, fez brilhar vários hieróglifos presentes no texto, hieróglifos esses que mostravam todos o mesmo animal: um crocodilo.

 

* Sáurio - espécie de réptil que tem por tipo o lagarto. (N. da T.)

 

Sendo assim, Kamosé nadava no rio e ia ser atacado por um sáurio. O Ancião não tinha um segundo a perder.

Sobre um papiro virgem desenhou, a tinta vermelha, um crocodilo, tendo o cuidado de lhe dividir a cabeça em duas partes e de lhe espetar facas na cabeça, no dorso e na cauda. Tornava, desta maneira, o monstro inofensivo. O símbolo precedia a realidade. O crocodilo que atacaria Kamosé estaria privado da sua força.

De seguida, o Ancião adormeceu calmamente. Durante as próximas duas horas, o seu discípulo não teria necessidade de uma intervenção urgente, mesmo que outros perigos se apresentassem.

Logo veria quando acordasse.

Kamosé levou muito tempo a recobrar o fôlego. Só quando alcançou a margem ocidental sentiu os efeitos do medo. Apesar da doçura da noite, ele tiritava. Tremiam-lhe os membros e os seus dentes batiam como castanholas.

Contudo, o incidente não quebrou nem um pouco a sua determinação. Ele tinha virado a sorte. Iria até ao fim!

Todos os tebanos falavam do esplendor da imensa moradia do juiz Rensi., cuja riqueza igualava a do governador de Tebas. Kamosé já o sabia, pelas descrições que ouvira a certos comerciantes, sobre a luxuosa propriedade.

Depois de ter escalado a ribanceira e passado por um novo canavial, tomou um atalho que atravessava uma seara. Nisto, ouviu música e vozes suaves. Aproximando-se com cuidado, viu o portal majestoso da moradia do juiz Rensi. A porta, entreaberta, era de cedro do Líbano. No átrio, servos munidos de archotes acolhiam os convidados para o grande banquete que o juiz Rensi oferecia para festejar o aniversário de sua filha Nofret.

A moradia estava situada no centro de um grande jardim, cercado por muros de pedra seca, intervalados por poternas onde se instalavam os guardas.

Esse jardim era considerado uma das grandes maravilhas de Tebas. Além do frondoso pomar, ele abrigava espécies raras, especialmente de árvores seculares, vindas do maravilhoso país de Pount.

Kamosé contornou a propriedade e passou pelas vinhas do juiz, que eram famosas pelo seu vinho excelente. Em seguida, penetrou no jardim, trepando pelo tronco de uma palmeira cuja altura ultrapassava o muro. Daí saltou para a terra mole, acabada de regar pelo jardineiro, e infiltrou-se através dos maciços de hibiscos, em direcção à moradia.

O banquete não começara ainda; damas e cavalheiros elegantes conversavam à beira de dois grandes lagos rectangulares, sobre os quais vistosos patos faziam evoluções. Criados cirandavam, servindo bebidas frescas. E rolas soltavam os seus arrulhos penetrantes, rivalizando com a orquestra feminina de harpas e flautas.

Protegido pelas figueiras, que lhe permitiam observar sem ser visto, Kamosé saltou de tronco em tronco, até que viu finalmente aquela a quem queria falar: Nofret, a filha do juiz Rensi.

Nofret conversava com dois jovens que lhe faziam a corte. A sua beleza deslumbrou Kamosé. Usando um longo vestido branco, Nofret tinha colocado sobre os ombros um xaile da mesma cor, que só em parte ocultava um colar de ouro e cornalinas. Sobre a peruca comprida e entrançada que escolhera, pousava um cone perfumado. Numerosas pulseiras realçavam-lhe a fragilidade dos pulsos e tornozelos, e os seus olhos estavam maquilhados de verde.

Por minutos, Kamosé esqueceu tudo, para admirar aquela por quem estava perdidamente apaixonado. Nunca mais poderia amar outra mulher, como amava Nofret!

Um pássaro esvoaçando perto do seu rosto fez Kamosé regressar às suas preocupações. Como atrair a atenção da jovem sem a assustar? Resignou-se a ser paciente. Terminada a conversa, Nofret teria de passar, obrigatoriamente, por uma álea lajeada, ao longo dos hibiscos onde ele se ocultava.

E foi aí que ele deu sinal da sua presença, sem sair da sombra.

- Nofret... Quero falar-vos. É muito importante... Intrigada, a jovem parou.

- Não me conheceis... Chamo-me Kamosé e estava presente quando haveis atirado a espiga para o Nilo.

Nofret saiu da álea lajeada e embrenhou-se com Kamosé nas profundezas do jardim.

- Lembro-me de vós - disse a jovem, com doçura. - Não deixastes de me olhar durante toda a cerimónia.

Felizmente, a sombra das árvores protegeu Kamosé. Ele corara de confusão e de alegria.

- Se quereis falar-me longe de toda esta gente - aconselhou ela - vamos até àquela parreira.

Seguindo Nofret, Kamosé já não se sentia tão seguro de si. Ela impressionava-o mais do que as palavras podiam dizer. Porém, era tarde para recuar.

A parreira repousava sobre finas colunas de madeira que terminavam em forma de flores de lótus desabrochadas. Bancos de pedra ofereciam-se aos apreciadores de uvas e de frescura.

Nofret sentou-se.

- Sentai-vos ao meu lado, Kamosé.

O jovem fê-lo desajeitadamente. Tinha a sensação de já não saber andar. Os seus membros estavam moles, os pensamentos confusos.

- Já que quereis tanto falar-me, a ponto de vos introduzirdes numa casa que não é a vossa, escutar-vos-ei. Depois, voltarei para junto dos meus convidados. Meu pai não tardará a dar pela minha ausência e ficará muito zangado.

Kamosé engoliu em seco. As palavras atropelavam-se na sua boca e foi com grande esforço que conseguiu exprimir-se.

- É justamente o vosso pai que eu quero ver... Não sou mais do que um aprendiz de escriba, filho de camponeses, e não tenho possibilidade de marcar audiência com tão importante personagem.

- Desenganai-vos. Seja quem for que peça justiça, desde que a sua causa seja justa, pode obter uma entrevista com o meu pai. Decerto não conheceis bem o funcionamento dos tribunais.

- Sou um ignorante - disse Kamosé -, mas não admito que os meus pais tenham sido despojados dos seus bens.

- Tendes provas do que afirmais?

- Infelizmente não. Precisava de consultar o cadastro, ao qual não tenho acesso. O vosso pai, sim. Estou convencido de que meus pais são vítimas de um erro administrativo que deve ser fácil corrigir.

- Fácil... Não é bem assim - atalhou Nofret. - A administração não gosta de reconhecer os seus erros. O processo poderá ser longo e complicado.

- Porquê um processo?! - indignou-se Kamosé. - É um soldado do exército do Faraó que pretende ser dono das terras que pertencem aos meus pais. O cadastro enganou-se. O caso é simples.

- Os escribas que dirigem o cadastro pertencem ao templo fechado - disse Nofret, com voz apaziguadora - e eles não costumam enganar-se.

Kamosé tinha recuperado todo o seu arrebatamento. A injustiça despertava nele uma cólera que só a muito custo dominava.

- Permitis-me que consulte o vosso pai?

A jovem tinha o destino de Kamosé nas suas mãos. Ela era bela, radiosa, rodeada de admiradores, festejava o seu aniversário no meio do luxo e da riqueza. Como podia interessá-la o caso de um casal de simples camponeses?

Nofret sorriu e pegou na mão de Kamosé.

- Vinde - disse, simplesmente.

A festa estava no auge. Os convivas foram convidados a sentar-se em fofos coxins. Criados iam e vinham, transportando os pratos para a sala do banquete. Ao centro desta, a orquestra tocava uma música suave.

Rensi quisera festejar os dezassete anos de sua filha de uma maneira excepcional. Estava presente toda a nata da sociedade de Tebas. Ser-lhe-iam servidas as mais requintadas iguarias: carnes assadas, peixes grelhados, sopas de legumes, toda a espécie de doces, acompanhados de vinhos brancos e tintos, uns provenientes da região tebana outros do Delta.

Rensi rondava os cinquenta anos. Era um homem robusto, filho de escriba real. Fizera toda a sua carreira na administração judiciária, depois de ter passado três anos entre os artesãos do templo de Karnak. E gozava da confiança do próprio Faraó, que contava com ele para aplicar a justiça sem discriminações.

O juiz Rensi desempenhava o seu cargo com uma severidade que alguns reprovavam. Os nobres temiam-no. Por várias vezes,

não hesitara em desautorizá-los, obrigando-os a pagar multas severas quando eles não asseguravam a prosperidade dos seus domínios ou o bem-estar dos seus servidores. Fossem quais fossem as intervenções e viessem elas donde viessem, Rensi mantinha a mesma linha de conduta havia muitos anos e não tencionava mudar.

Todos os dias dirigia as suas preces ao deus Amon e agradecia-lhe por lhe ter dado tanta felicidade: um posto cujas responsabilidades apreciava, apesar das dificuldades; uma mulher que tinha amado; uma filha única que adorava.

Nofret era a mais formosa das jovens e nobres tebanas. Mais de dez pedidos de casamento tinham já sido recebidos por seu pai. Os primogénitos das melhores famílias de Tebas não cessavam de a cortejar. Todos pensavam que era o juiz Rensi que afastava os pretendentes, para conservar por mais tempo a filha junto dele.

Na verdade, era a própria Nofret que recusava ficar noiva. Achava os jovens da sua idade muito parvos. Herdara o carácter severo de seu pai, e não tinha pressa de casar. O seu serviço ao templo, entre as sacerdotisas da deusa Hathor, interessava-lhe muito mais do que as declarações afectadas de jovens nobres que batalhavam para saber qual deles conseguiria conquistá-la.

Nofret já dera provas de uma inteligência fora do comum. Sua mãe, sacerdotisa da deusa Neit, revelara-lhe os segredos da tecelagem e tinha-a iniciado na prática de instrumentos musicais. Dela recebera, também, as primeiras chaves da magia que lhe permitia utilizar a energia oculta em todas as coisas, curar ou destruir, transformar a água em fogo e o fogo em água. Seu pai ensinara-lhe a ler e a escrever, antes de a enviar à escola de escribas.

O que mais atraía a jovem era o sagrado. Ficou tão fascinada com as cerimónias religiosas, quando viu as sacerdotisas saindo em procissão do templo de Karnak, que logo pediu para fazer parte delas. Percebendo que não poderia lutar contra a vontade de sua filha, Rensi favoreceu a sua admissão na congregação feminina de Karnak.

Uma vez lá, durante períodos mais ou menos longos, Nofret começou por desempenhar tarefas humildes: arrumar os instrumentos musicais e limpá-los; obedecer às ordens das superioras, transportar os rolos de papiro que continham os textos rituais; velar pela limpeza das salas de culto reservadas às sacerdotisas.

A sua persistência e conhecimento dos rituais em que participava facilitaram-lhe o acesso ao templo coberto. Nofret descobriu assim um mundo de divindades e de símbolos que levaria uma vida inteira a decifrar.

Quando deixou o templo para voltar a casa durante algumas semanas, achou os seus pretendentes ainda mais insignificantes e não descansou enquanto não os afastou.

Esta atitude encantou e, simultaneamente, inquietou Rensi. Encantou-o porque Nofret agia segundo o seu ideal e afirmava a sua verdadeira personalidade sem ceder a modas ou influências alheias. E inquietava-o ver uma mulher tão bela tão pouco interessada em constituir família. E Rensi, cuja esposa morrera havia já dez anos, sonhava abrigar netos sob o seu tecto...

O intendente da propriedade ousou interromper a meditação do juiz.

- Senhor, está tudo pronto. Vamos começar a servir. É necessário que vos instaleis no lugar de honra com vossa filha.

- Tens razão, onde está Nofret?

O intendente, embaraçado, baixou os olhos.        

- Não sabemos... Ainda há pouco falava com dois jovens nobres... Depois, ninguém mais a viu.

Uma espécie de agonia apossou-se do juiz Rensi. Que significava esse estranho desaparecimento? Onde teria ido Nofret? Jamais tinha fugido assim aos seus deveres.

- Procurem-na com discrição. Vou entreter os convidados.

No mesmo instante em que a importante personagem entrava na sala do banquete, viu surgir das profundezas do jardim sua filha, acompanhada de um jovem esbelto e musculoso, de testa ampla, vestindo uma túnica de escriba, amarrotada e molhada.

Que contraste entre os dois jovens! Ela tão elegante, ele tão desalinhado...

Nofret desarmou a zanga paterna com um sorriso encantador.

- Pai, apresento-te o escriba Kamosé. É meu convidado pessoal.

- Um escriba? Neste estado? Deve ser bem desleixado...

- Um simples incidente - explicou Nofret. - Kamosé vem apresentar-te uma petição que considero justa.

O juiz Rensi franziu o sobrolho. Nunca até aí a sua filha tomara partido por alguém, duma maneira tão evidente.

- A hora é de festa, minha filha. Achas que é o momento oportuno para falar de assuntos graves?

- Não, meu pai. Razão por que Kamosé será meu hóspede privilegiado. Amanhã falaremos.

- É demasiado tarde para vesti-lo de maneira apropriada às circunstâncias - comentou Rensi. - Que ao menos vista uma túnica capaz.

- Vou tratar disso, meu pai.

Enquanto Nofret se afastava na companhia de Kamosé, o juiz Rensi ficou perplexo. Tinha sonhado casar a filha com um dos membros da casa real. Não possuía ela as qualidades de uma futura rainha? Por que inquietar-se com a presença daquele jovem? Era decerto um capricho de Nofret. Todavia, essa ideia não o tranquilizou. Nofret não era uma jovem caprichosa. Ao apresentar oficialmente Kamosé à aristocracia tebana tinha, forçosamente, uma ideia premeditada. Rensi temia adivinhá-la.

Kamosé deixou-se aturdir pelos cantos, as danças, a qualidade das iguarias. O barbeiro pessoal de Rensi havia-lhe vestido uma túnica nova e arranjado os cabelos. A modéstia do seu aspecto, em comparação com as vestes complicadas dos jovens nobres tebanos, que rivalizavam em preciosidade, tinha-lhe dado uma vantagem imprevista. Sem querer, tinha imposto a sua força natural e a sua presença indiscutível.

Permanecendo ao lado de Nofret, sobre a qual pousavam sem cessar vinte olhares de pretendentes ciumentos, Kamosé e ela riam muito, evocando as respectivas infâncias. Ele tinha contado a Nofret as mil e uma aventuras de um pequeno camponês, ocupado em descobrir a natureza, brigar com os seus companheiros, conhecer as leis das estações e da terra. Nofret tinha recordado a sua educação requintada, o tédio que por vezes ela lhe tinha causado, o seu repúdio pelas convenções.

- Serás escriba - disse a jovem.

- Não sei - respondeu Kamosé.

- Será que vais desistir? - espantou-se Nofret.

- O meu objectivo é restituir a felicidade aos meus pais.

- É um nobre ideal. Kamosé olhou-a com ternura.

- E o teu, Nofret, qual é?

- Penetrar cada vez mais no templo coberto. Só conheço as primeiras salas. Sei que existe no templo de Karnak uma gigantesca sala de colunas onde são revelados todos os rituais. E há ainda outros santuários, outros ensinamentos.

- O templo coberto... - suspirou Kamosé. - Eu também desejava lá entrar.

- Também renuncias a isso? Porquê tanta desesperança? Quando te vi julguei-te mais corajoso!

O insulto fez ferver o sangue de Kamosé.

- Sou filho de camponeses! Eis porque devo renunciar!

- A tua imaginação enlouquece-te - ajuizou a jovem. - O erro está no teu coração, Kamosé, não na realidade. Há muitos filhos de camponeses que se tornaram escribas. Os sábios de Karnak ocupam-se apenas das qualidades espirituais dos seres, não do seu estatuto social.

- Queiram os deuses que tenhas razão, Nofret! Nesse caso, vencerei!

Aproximava-se o fim do banquete. As conversas tornavam-se mais íntimas. A música cessara. Breve romperia a aurora e nasceria de novo o sol.

- Eu tenho razão - afirmou a jovem. - Confias em mim, Kamosé?

- Não - respondeu ele.

Nofret fez um movimento de recuo. Estava espantada, quase chocada.

- Sinto muito mais do que confiança em ti - declarou Kamosé, com uma gravidade impressionante. - Eu amo-te, Nofret!

Nofret e Kamosé deixaram a sala do banquete logo que os primeiros raios de sol abrasaram o jardim da vivenda. Saíram por uma poterna, cujo guarda tinha adormecido, e encaminharam-se para o deserto, mais exactamente para um vasto terreno de caça aonde Rensi gostava de levar a filha, em busca de antílopes e gazelas.

Os dois jovens caminharam até um palmeiral no centro do qual haviam escavado um poço. O local era deliciosamente fresco, mesmo nos períodos de maior calor.

Nofret ia lá muitas vezes para ler e estudar longe da agitação da vivenda que os seus pretendentes cercavam. Que bom estar à sombra das grandes palmeiras!

Assim, lado a lado, Nofret e Kamosé contemplaram o deserto, as culturas, o Nilo. Tinham a sorte de ter nascido no país mais belo do mundo. Tinham a sorte de se ter encontrado.

Um falcão peregrino subiu em direcção à luz.

Nofret voltou-se para o jovem.

- Eu também te amo, Kamosé.

A festa tinha sido um sucesso. Antes de deixarem a sumptuosa vivenda e regressarem à margem este, os convidados do juiz Rensi felicitaram-no pela qualidade do seu acolhimento e pela beleza incomparável de sua filha.

"Hipócritas!", pensou Rensi. "Nem um único se atreveu a falar-me da presença inesperada do jovem escriba. Sem dúvida pensaram que se tratava de uma personagem importante sofrendo de originalidade."

Embora não tivesse dormido nem um pouco, o juiz pôs-se ao trabalho. Tinha em mãos dossiers complicados, necessitava de estudar assuntos importantes. Havia muitos anos que não concedia a si próprio um só dia de repouso. Logo ao início da tarde iria para o tribunal para aí presidir a uma reunião de magistrados.

Recebeu Nofret e o seu convidado, pouco antes do meio-dia.

- Fomos dormir para o palmeiral - explicou ela.

- Eu vi-os partir - revelou Rensi. - Achei bom deixar-vos agir, mesmo sem dar o meu consentimento.

Nofret beijou o pai.

- Porquê tanta severidade, meu pai? Não desejas a minha felicidade?

Rensi não quis argumentar com a filha. Conhecia por de mais a sua tremenda inteligência.

- Voltaremos a falar mais tarde. Não tenho o mínimo tempo para dedicar a esse rapaz. Quem é ele e o que deseja?

- Sou o filho de Guérou e de Nédjémet. O cadastro cometeu um erro ao atribuir as suas terras a um soldado chamado Sétek. Exijo uma reparação!

- És demasiado jovem para exigir - atalhou Rensi - e são acusações muito graves. O teu arrebatamento é próprio da juventude, mas um futuro escriba deverá aprender a medir melhor as suas palavras.

Kamosé não gostou da reprimenda, mas conteve-se.

- Kamosé exprime-se com demasiada veemência - interveio Nofret -, mas deves compreendê-lo, meu pai. Podemos reprová-lo por amar os pais? Podemos censurá-lo por querer restituir-lhes a felicidade que lhes roubaram?

-Não façamos juízos precipitados - exigiu Rensi. - O cadastro é um serviço composto por homens sérios. Conhecem a importância da sua tarefa. Nunca ouvi falar de uma queixa relativa a um erro dessa natureza.

- No entanto, é a realidade - declarou Kamosé, tentando ser menos aceso. - Os meus pais obtiveram o direito de adquirir as suas terras, a troco de um trabalho obstinado. Gozavam da estima de toda a aldeia. As suas propriedades são hoje as mais férteis e bem tratadas. Mesmo que Sétek seja um herói, por que razão tem ele o direito de se apropriar à força do que não lhe pertence?

O juiz Rensi pareceu embaraçado.

- O caso é estranho... Uma terra não se torna propriedade privada sem o consentimento do Faraó que transmite as suas ordens ao cadastro. Os teus pais são objecto de alguma condenação?

- Nunca! - respondeu Kamosé, ofendido pela insinuação. - São as pessoas mais íntegras que conheço.

- Espero não te desiludir... - disse o juiz, num tom irónico.

- Que tencionas fazer? - perguntou Nofret, ansiosa.

- Consultar o principal responsável pelo cadastro - respondeu o juiz Rensi. - A personagem não é fácil de abordar e não sai voluntariamente do templo fechado. Tenho de usar toda a minha autoridade.

- O duplicado dos arquivos não está guardado num ministério?

- Quero ver os originais - disse o juiz. - É o único meio de ter uma certeza.

- Quando poderás fazê-lo?

- Preciso de pelo menos três dias. Tenho outros assuntos em mãos e alguns deles urgentes. Mas vocês vão esperar-me aqui. Não toleraria qualquer iniciativa da vossa parte.

Nofret dissimulou a sua alegria. Não esperava notícias tão maravilhosas.

Nofret e Kamosé passaram os seus melhores tempos no palmeiral, só entrando na vivenda para aí tomarem as refeições.

Certo de que ganharia a acção, Kamosé não poupava elogios à probidade do juiz Rensi. Reconhecia agora que errara e lamentava as críticas feitas aos altos dignitários. Aliviado de um pesado fardo, podia enfim dar livre curso ao seu amor.

Nofret aceitara a paixão de Kamosé e correspondia-lhe com a mesma intensidade. Ele era o seu primeiro amor e seria o último. Estava certa de que jamais amaria outro homem. Entregou-se a ele com ardor, e ofereceram um ao outro os seus corpos e as suas almas.

- Quero ser o teu marido! - dizia ele.

- Quero ser a tua mulher! - respondia ela.

Contudo, ao entusiasmo sucedeu a inquietação. Nofret tinha consciência de que seria difícil convencer o pai a aceitar um genro que não pertencesse à nobreza. Kamosé, por seu lado, sabia que teria de construir uma casa para acolher a esposa. Logo que a tomasse nos braços e, unidos, transpusessem o limiar da sua casa, seriam considerados marido e mulher.

Um e outro decidiram não pensar no futuro e gozar apenas o presente. Juntos tinham tudo a descobrir. Nofret deu a Kamosé as primeiras lições de equitação. Nadaram nos lagos de recreio e ele ensinou Nofret a melhorar os movimentos. Depois, tomaram um carro e embrenhararn-se no deserto, saboreando a felicidade de estarem sozinhos. Juntos, leram poemas de amor, reconhecendo-se nas descrições dos amantes, e mergulhando num paraíso terrestre onde somente contava a intensidade dos sentimentos.

Um dia, os dois namorados tentaram pescar num canal repleto de peixes e depois de várias tentativas frustradas riram a bom rir da sua falta de jeito. Eles não estavam nem um pouco preocupados com os peixes. Tudo era pretexto para se beijarem e abraçarem. No entanto, ambos mantinham uma espantosa lucidez. Os jogos de amor não eram simples jogos. No seu íntimo, ambos estavam profundamente modificados pela descoberta da paixão partilhada. Nofret e Kamosé não brincavam ao amor, eles amavam-se.

Ao pôr do sol, os dois jovens estendiam-se na margem do rio. Fortemente abraçados, enchiam os olhos com os últimos raios de sol. Absorviam aquela paz como um alimento, como um dom celeste que devessem guardar como um bem precioso.

Comungavam assim do seu amor, quando o intendente os veio buscar.

O juiz Rensi chegara!

- Falarei com ele - declarou Kamosé, nervoso.

- Não. Compete-me a mim fazê-lo. Saberei convencê-lo. Meu pai deseja a minha felicidade. Desejará a nossa felicidade.

- E se ele se opuser?

Nofret não respondeu. Recusava-se a encarar uma derrota. Entre ela e o pai reinara sempre uma cumplicidade perfeita. Ele pressentia as suas mais profundas aspirações, permitia-lhe formulá-las e levar a sua vida em função delas. Por que seria diferente agora?

O juiz Rensi consultava documentos administrativos quando Nofret e Kamosé entraram no seu escritório.

- Um momento... - pediu-lhes o juiz, num tom glacial. - Estou a acabar de examinar este relatório.

Os dois jovens olharam-se. No seu olhar mantinha-se a mesma chama. Tinham a seu favor a força do seu amor. Ela venceria todos os obstáculos.

- Encontrei-me, no meu gabinete de Tebas, com o sacerdote que é o principal responsável pelo cadastro - disse o juiz. - Foi uma conversa delicada. Expliquei-lhe o caso que me levara a convocá-lo. Pareceu-me muito descontente mas, atendendo à -minha posição, aceitou introduzir-me no templo fechado e deixar-me consultar o departamento do cadastro.

Nofret pousou a mão direita no braço de Kamosé. O jovem tremia de impaciência.

- Agora tudo está claro - continuou o juiz Rensi. - As terras nas quais trabalhavam Guérou c Nlédjémet nunca lhes pertenceram. Tratava-se de um simples arrendamento. Essas terras, por decreto real, tornaram-se efectivamente propriedade do herói Sétek, um veterano que fez as campanhas da Ásia e se cobriu de glória.

Kamosé ficou estupefacto.

- É impossível... Foi o próprio governador que mostrou a meus pais o título de propriedade, há cerca de dois anos.

- Ele enganou-se. A maior parte dos magistrados locais são incompetentes em matéria de direito. Posso afirmar-te que está tudo em ordem. Quando Ramsés, o Grande, nosso bem-amado soberano, perguntou a Sétek qual o terreno que lhe convinha, ele indicou as terras que os teus pais cultivavam. O governador da tua aldeia endossou o processo ao cadastro. Não há mais nada a dizer.

- Claro que há! - protestou Kamosé. - É tudo uma trama de mentiras!

O tom do juiz Rensi tornou-se desabrido.

- Basta, meu rapaz. Não és mais do que um aprendiz de escriba indigno da sua futura função. Por razões que ignoro e que nem sequer desejo conhecer, inventaste uma "história inverosímil. Para dar gosto à minha filha, cobri-me de ridículo. Servir-me-á de lição. Um alto magistrado não tem o direito de favorecer quem quer que seja, nem mesmo aqueles que ama. Não cometerei duas vezes o mesmo erro. Quanto a ti, deixa esta casa e nunca mais cá voltes.

- Meu pai - interveio Nofret -, não tens o direito... O juiz voltou-se para a filha e olhou-a com ternura.

- Amo-te mais do que a tudo no mundo, Nofret, tu sabes. Razão por que te ordeno que esqueças este rapaz. A separação é brutal. Sofrerás, mas depressa cairás em ti e compreenderás o quanto eu tinha razão.

Nofret apertou o punho de Kamosé para o impedir de reagir violentamente.

- Obedecer-te-ei, meu pai - disse ela com voz firme.

Kamosé, louco de fúria, deixou de ver o céu límpido, o azul imaculado do lago. Cerrando os punhos, sibilou:

- É vergonhoso... Vergonhoso! Teu pai é cúmplice dos malfeitores do cadastro!

Nofret admirava o pai. Julgava não poder suportar qualquer crítica a seu respeito, menos ainda uma injúria. No entanto, não reagiu. Tinha a certeza de que os termos empregues por Kamosé ultrapassavam o seu pensamento.

Ela venerava o pai, mas amava Kamosé. Lutaria para não perder a imensa felicidade que os deuses acabavam de lhe oferecer.

- Não te deixes levar pela cólera, Kamosé. Ela escurece o coração. Meu pai é o mais honesto dos juízes. Todos to dirão.

- Estás verdadeiramente certa disso, Nofret? Poderás jurar-mo? -Juro-to pela minha vida e pelo nosso amor!

Kamosé acalmou-se. não poderia obter melhor certeza do que aquela que lhe dava Nofret

- Tens de admitir a realidade - aconselhou-o ela, com tristeza.

- O cadastro não se enganou, A sua opinião tem força de lei.

- A realidade... Como posso admitir que os meus pais estejam condenados a passar o resto da sua existência como escravos?

- Leva-me até ao palmeiral - implorou Nofret. Kamosé, à beira das lágrimas, aceitou.

- Amo-te, Kamosé. Isso também é a realidade.

- Uma realidade tão frágil que está destinada a desaparecer

- respondeu o jovem. - Teu pai considera-me um mentiroso, nunca consentirá no nosso casamento.

- Não é a ele que compete tomar tal decisão. Sou eu quem escolhe o meu marido. Essa é a lei.

- Eu sei, Nofret, mas de qualquer modo é um sonho. Eu sou um camponês. Não tenho fortuna nem casa para oferecer-te. Tu, tu és a filha de um dos homens mais ricos de Tebas. Somente o filho de um nobre poderá desposar-te.

- Não. Kamosé, não...

- É a tua vez de aceitares a realidade - insistiu o jovem.

- Sem o consentimento de teu pai, a nossa união será impossível.

Nofret ainda não conhecia o sofrimento. O que lhe dilacerava o coração era insuportável. Ela não renunciaria a viver com Kamosé, mesmo que o país inteiro se unisse contra ela. Por que razão o sorriso do destino se transformara num ricto demoníaco?

A noite estava serena, o oásis deserto. Os chacais chamavam-se. Partiam em busca de cadáveres. No mundo subterrâneo o sol atravessava os espaços da morte.

- A nossa felicidade está aqui - disse Nofret. - Não deixemos mais este palmeiral.

- Não é senão outro sonho, Nofret. Este mundo é horrível. Julgava-o puro e justo, mas está à mercê dos ladrões. Basta fazerem uso da força para satisfazerem a sua cobiça.

- Não sejas tão céptico...

- Dá-me razões para ter esperança. Não vejo nenhuma. A jovem procurava desesperadamente uma resposta.

- Só há uma solução - disse Kamosé, determinado.

- Qual?

- Suprimir a causa do mal.

Um vislumbre de angústia passou pelos olhos de Nofret.

- Que queres dizer?

- Foi esse soldado, esse Sétek, que trouxe a infelicidade. Não merece viver.

- Não tens o direito de falar assim, Kamosé. Os homens são o rebanho de Deus. A sua vida está nas suas mãos, não nas nossas. Não podes levantar a mão contra um dos teus semelhantes. Serias condenado para toda a eternidade.

- Hesitou ele em matar, esse famoso herói?

- Ele era um soldado, Kamosé. Defendia o nosso país dos seus inimigos. Arriscou a sua vida para salvar a nossa.

- Se esse homem é considerado um herói, o nosso país não merece ser defendido. Matarei Sétek com as minhas próprias màos, Nofret. Farei a justiça que esta sociedade recusa aos meus pais.

Nofret pousou ternamente a cabeça nos joelhos de Kamosé.

- Não faças isso, suplico-te. Despedaçarias as nossas vidas. Hoje estamos nas trevas. Amanhã virá um novo dia. Amamo-nos, Kamosé, o destino juntou-nos. Ponhamos a nossa esperança no futuro que construiremos.

Estas palavras reconfortaram o jovem, mesmo sentindo-se incapaz de acreditar nelas.

- És maravilhosa, Nofret. A mais maravilhosa das mulheres.

- Confia em mim, Kamosé. Se conservarmos total confiança um no outro, nós venceremos.

- Não abandonarei os meus pais. Se os esquecesse, seria um cobarde aos meus próprios olhos e tu não poderias amar-me. Tu também não abandonarás os teus, nunca.

Nofret levantou-se e fitou Kamosé.

- Jura-me que não matarás Sétek.

Uma chama intensa iluminava o seu olhar. Kamosé estava fascinado.

- Eu sou sacerdotisa de Hathor - lembrou Nofret. - As minhas irmãs ajudar-me-ão. Se me amas não cometas o irreparável.

- Dou-te a minha palavra, Nofret. Ela sorriu, aliviada.

Nem um nem outro queriam falar do futuro. Um futuro que marcaria a sua separação.

- Oremos juntos - exigiu Nofret. - Invoquemos a deusa Hathor.

- Não conheço as palavras rituais...

- Dá-me a tua mão. Os nossos corações falarão em uníssono. E na noite de doces perfumes, a voz de Nofret salmodiou fórmulas antigas que datavam da época em que os faraós construíram as pirâmides.

- Deusa do Amor - cantava Nofret -, soberana das estrelas, tu que encarnas na vaca celeste que alimenta o universo com o seu leite, não permitas que seja separado o que é unido na Terra. Tu és a Dourada, a que resplandece de ouro divino; tu dás a embriaguez aos amantes; tu crias as festas do espírito e do corpo; tu que conténs o Verbo de Deus, ilumina o nosso caminho.

O longo silêncio que sucedeu à encantação de Nofret apaziguou a alma de Kamosé. Ele desejava que aquele silêncio não mais tivesse fim. O jovem estava enfeitiçado pela voz daquela que amava. A sacerdotisa tinha-o transportado para longe do mundo dos homens e das suas torpezas.

- A deusa ouviu-me - disse Nofret.

A jovem contemplava o infinito, como se o seu olhar pudesse trespassar as trevas.

- A tua exigência é justa, Kamosé - continuou ela. - É o principal responsável pela infelicidade que se abateu sobre os teus pais, que é necessário pôr em causa.

Kamosé admirou-se.

- Sétek? Mas tu fizeste-me jurar...

- Não falo do soldado, mas do seu amo. Daquele que deu a ordem de lhe atribuírem uma terra.

Assustado, Kamosé julgou ter compreendido mal.

- Nofret... Tu não pretendes nomear...

- Sim, Kamosé. Nomeio aquele que conhece o destino de todos os seres, o senhor do Egipto, o Faraó.

Em Karnak, o Faraó acabara de cumprir os seus rituais matutinos. Sozinho, no sector mais secreto do templo fechado, abrira as portas do último santuário, o que abrigava a estátua na qual incarnava o poder divino.

Depois de se ter inclinado diante dela e de lhe ter pedido para despertar em paz, o Faraó vestiu-a, perfumou-a e alimentou-a. Não era o aspecto material que ele oferecia a esse poder escondido, mas a essência subtil de todas as coisas, inacessível aos humanos.

Cumpridos os rituais, Ramsés, o Grande, regressou ao seu palácio para aí convocar, como fazia todas as manhãs, o conselho de sábios, na companhia dos quais tomava as grandes decisões que asseguravam a prosperidade e o futuro do Egipto.

Entre eles encontrava-se o Ancião, a quem o Faraó testemunhava o maior respeito, porque os seus conselhos eram raros mas essenciais.

Nessa manhã, o conselho dos sábios decidiu a construção de um novo templo no Delta. O Ancião não se opôs. Quando os altos dignitários abandonaram a sala do conselho, o Ancião apoiou-se numa bengala, simulando não poder segui-los.

Na verdade, apesar da sua idade avançada, não tinha qualquer dificuldade em andar. Tratava-se de um código entre ele e o Faraó. Não havia melhor método para pedir uma entrevista discreta.

O Faraó aproximou-se do seu velho mestre, amparou-o e conduziu-o até um gabinete do palácio onde reinava uma doce frescura. Servos trouxeram cerveja e frutos, enquanto ambos tomavam lugar em admiráveis assentos de madeira dourada.

- Estou ao vosso dispor, meu mestre - disse Ramsés, o Grande. - Que pedido me quereis fazer?

- Nenhum, Majestade. Na minha idade espera-se tranquilamente que a morte nos leve diante do tribunal de Osíris.

- Não tenhais pressa... - recomendou o soberano. - O Egipto ainda precisa de vós.

- Não tendes o hábito de lisonjear os vossos amigos, Majestade. Não comeceis agora, senão serei obrigado a usar de severidade.

- Que os deuses me poupem à vossa ira! Se não se trata de um pedido, tendes, sem dúvida, alguma crítica a fazer-me.

O Ancião, as mãos apoiadas na sua bengala, baixou a cabeça.

- Isso ficará para um próximo dia, Majestade, É a minha escola de escribas que me preocupa.

- Há dez anos que desejo instalar-vos numa ala do palácio, mas tendes recusado obstinadamente. Preferis conservar o vosso humilde gabinete.

- Não pretendo mudar de local. Aquele de que disponho serve-me perfeitamente. Os jovens não devem ser educados no luxo e no conforto. Eles corrompem a alma.

Ramsés, o Grande, sorriu. O Ancião não tinha mudado. Ele era o Egipto eterno, o dos construtores e dos escrivães da eternidade que formavam homens rectos, capazes de construir a sua vida e de resistir à adversidade.

- Não me digais que vos faltam paletas e cálamos (*) - disse o Faraó. - Mandarei castigar o responsável.

- A vossa administração não funciona assim tão mal, Majestade. Ainda existem imperfeições, mas elas não impedem os alunos de trabalhar.

Ramsés começou a ficar inquieto. Habitualmente, o Ancião ia direito ao assunto.

- Tenho a intenção de fechar provisoriamente a minha escola de escribas.

O Faraó ficou como que petrificado.

- Fechar a vossa escola... É a pior notícia que jamais ouvi! Vós, meu mestre, haveis formado os melhores escribas deste país. Se disponho de juizes íntegros, de mestres de obras competentes, de responsáveis pelo cadastro acima de todas as suspeitas, é graças a vós. Por que pôr fim às vossas actividades? Não sois assim tão velho e gozais de excelente saúde!

- Não haveis tomado atenção à minha proposta, Majestade. Eu disse: provisoriamente.

- Qual é o motivo dessa decisão excepcional? - espantou-se o Faraó.

- Ainda é difícil de explicar- respondeu o Ancião, enigmático.

- Não me dais nenhuma indicação?

- Tenho de ocupar-me de um caso difícil.

- Quereis dizer... Tornar-vos preceptor particular de um jovem escriba incompetente?

- Algo desse género, com efeito.

 

(*) Cálamo - pena de escrever que se fazia de certa cana delgada. (N. da T.)

 

Ramsés, o Grande, estava estupefacto.

- Só haveis agido assim duas vezes - lembrou o Faraó. -Fostes meu preceptor e de um dos meus filhos, daquele que destino ao trono. E nós não éramos... casos difíceis.

- Sem o ensinamento dos sábios, não sei no que vos teríeis tornado - objectou o Ancião. - Mas vós haveis compreendido as suas lições.

- Quem é esse ser de eleição? - interrogou o rei, cada vez mais intrigado.

- Ser de eleição? - ripostou o Ancião, descontente. - Um simples doidivanas, teimoso, pretensioso e de mau génio, merecedor de cem bastonadas!

- Não compreendo a vossa preocupação - confessou Ramsés, o Grande. - Com efeito, descreveis-me um mau aluno, e vós, o mais sábio dos escribas, desejais consagrar-lhe todo o vosso tempo!

- Isso não me diverte - admitiu o Ancião. - Tenho muitas outras tarefas a cumprir. Mas li nos sinais sagrados que tal era o meu dever.

O Faraó sabia que ninguém, nem mesmo ele, podia fazer o Ancião voltar atrás na sua decisão.

- Suponho que o vosso aluno manifesta alguns dons para a ciência dos escribas...

- Alguns, com efeito - anuiu o Ancião.

Na sua boca, isto era um grande cumprimento. O próprio rei não tivera direito a uma apreciação tão positiva, por parte do seu mestre.

- Esse rapaz deve estar particularmente orgulhoso da vossa decisão... - aventou Ramsés, o Grande.

- Não é o caso.

- Porquê? Ele não percebe o quanto ela é valiosa?

- Ele não tem conhecimento dela - revelou o Ancião.

 

Nofret não regressara à vivenda. Decidira levar Kamosé ao templo de Deir el-Bahari onde existia um importante colégio de sacerdotisas da deusa Hathor.

Nofret conhecia a sua Superiora, uma mulher jovem, muito bela, encarregada de dirigir as cerimónias mais notáveis. Desde a infância de Nofret que a Superiora a estimava. Tinha-lhe ensinado a arte de tocar os sistros, esses curiosos instrumentos musicais que produziam um som metálico destinado a afastar os demónios e as influências negativas.

O templo era precedido de um vasto jardim cuja maior beleza era uma fiada de árvores de incenso. Sacerdotes circulavam sob a sua sombra. Aí venerava-se a alma da grande rainha Hatchepsout. O santuário era consagrado a Amon-Rá, o rei dos deuses; ao chacal Anubis, encarregado de conduzir os justos aos caminhos do outro mundo; e à deusa Hathor, representada por uma vaca aleitando a própria rainha.

Kamosé estava maravilhado. Desejava ter o poder de parar o tempo e ficar para sempre naquele lugar, nesse paraíso criado pelos sábios, na companhia da mulher que queria desposar.

Nofret e Kamosé caminhavam lentamente, saboreando cada instante da felicidade que, inexoravelmente, se esvaía.

Os dois jovens foram abordados por um sacerdote guardião, ao fundo da rampa que dava acesso ao santuário cavado na montanha.

- Sou sacerdotisa da deusa Hathor - declarou Nofret.

- Se falas verdade, conheces a senha de passagem.

- O homem ressuscita em Osíris, a mulher em Hathor. .-O guardião deixou passar a jovem, mas deteve Kamosé.

- Espera-me e não te impacientes - recomendou-lhe Nofret. A Superiora trabalhava na companhia de uma dezena de

noviças, diante do baixo-relevo que evocava o deus Anubis, com corpo de homem e cabeça de chacal.

"E ele", explicava-lhes ela "que desembaraça a natureza dos cadáveres. Mas não se contenta com essa função. E ele que conhece os segredos da mumificação. Quando o indivíduo é considerado justo pelo tribunal do outro mundo, o seu corpo de luz é confiado a Anubis. O deus ensinar-lhe-á as fórmulas que lhe permitirão caminhar em paz pelos belos caminhos do outro mundo".

A Superiora interrompeu-se ao ver aparecer Nofret e mandou sair as noviças.

Nofret aproximou-se e inclinou-se diante da Superiora.

- Como estou feliz por vos ver...

- Eu também - respondeu a Superiora. - Não é teu hábito vir perturbar a instrução das noviças. Tu própria manifestaste muitas vezes o teu rigor. Conheces a nossa Regra (17). Para a violares desta maneira, obrigando-me a receber-te de imprevisto, deves ter fortes razões.

Nofret contemplava o capitel de uma coluna no qual estava esculpido o rosto da deusa Hathor. Tinha um sorriso encantador, que exprimia uma serenidade absoluta.

- Hathor revelou-me o amor - disse Nofret. - Abriu-me o coração e encheu-me da maior das felicidades.

A Superiora tomou Nofret nos braços.

- Estou feliz por tí, minha filha. Serás mulher e iniciada. Conhecerás a plenitude.

- Hathor revelou-me o amor - repetiu Nofret, com voz estrangulada - mas a felicidade que me oferece é impossível.

 

(17) Regra - regulamento de certas ordens monásticas. (N. da T.)

 

A Superiora sentiu a amargura da jovem sacerdotisa que, de entre todas, era a que mais prezava.

- Vem, Nofret. Subamos ao terraço superior do templo. Aí conversaremos sob o olhar benevolente do deus sol, Rá.

O santuário da deusa estava construído no interior da falésia. O fundo do Santo dos Santos era a própria rocha.

Do alto do edifício de colunas sobrepostas, avistava-se a planura ensolarada, os campos de êpeautré e de favas, o Nilo azul e resplandecente que fazia circular a vida pelo corpo do país.

- Tu amas alguém que não pertence à casta dos nobres, Nofret. É essa a causa da tua infelicidade?

- Com efeito, é a verdade.

- Ele é jovem, de carácter íntegro, impetuoso, recusa qualquer concessão, deseja ver a justiça reinar no mundo... - adiantou a Superiora.

- Como o sabeis?

- Tu não poderias amar senão um homem como esse. Os jovens nobres de Tebas são demasiado fracos e limitados para poderem agradar-te. Mas aquele que desejas desposar não é nobre. Lutar contra o teu pai não será fácil.

- Essa não será a única dificuldade - confessou Nofret. - Os pais daquele que amo são vítimas de uma injustiça.

- Graças à posição do teu pai - frisou a Superiora -, não deve ser difícil repará-la.

- O meu pai nada pode fazer por nós. É um veterano, considerado um herói, que está em causa. O Faraó recompensou os soldados que o serviram. Nada mais natural. Mas nessa altura, um erro foi cometido. Só o Faraó poderá repará-lo.

A Superiora olhou atentamente para Nofret.

- Obter uma audiência com o Faraó, por um assunto tão insignificante, é essa a tua intenção?

- Não é um assunto insignificante - rectificou Nofret. - É uma injustiça. Ela é contrária à lei eterna do Egipto. O Faraó é o garante da felicidade do seu povo. Ele é responsável por ela e não pode furtar-se aos seus deveres.

- Tudo isso é verdade - reconheceu a Superiora. - Mas tens provas do que afirmas?

Nofret hesitou. A mentira horrorizava-a.

- Estou convencida do que afirmo.

- O jovem que amas tem muita sorte - disse a Superiora. - Estás verdadeiramente apaixonada por ele.

- Na vossa condição de Superiora das sacerdotisas, encontrais por vezes o Faraó - lembrou Nofret, com paixão. - Poderíeis interceder a nosso favor e suplicar-lhe que nos conceda uma entrevista?

- Isso ultrapassa em muito as minhas prerrogativas, Nofret, Quem é o teu companheiro?

- Um jovem camponês que foi admitido na escola de escribas de Karnak e que passou com êxito o seu primeiro exame.

- O rei também está submetido à Regra. A jurisdição dos escribas o julgará.

- Kamosé não se queixa de nada. Apenas luta pela felicidade dos pais a quem roubaram as suas terras.

- Nesse caso, será o cadastro que julgará.

O desespero apossou-se de Nofret. Não havia saída. Kamosé era demasiado íntegro para sacrificar seus pais à sua própria felicidade. Quanto ao juiz Rensi, a sua opinião estava formada e a sua decisão tomada.

Também o destino parecia ter feito a sua escolha. Mas Nofret não a aceitava. Não se resignaria sem ter lutado até ao limite de todas as suas forças.

- Se não podeis conceder-me qualquer ajuda, só me resta regressar a casa e preparar-me para o meu próximo estágio no templo.

- Será o mais sensato, com efeito.

- Admitir-me-eis na procissão, aquando da bela festa do Vale?

- Depende de ti. Cumpriste correctamente o ritual da noiva do Nilo. Gostarias de ser portadora de luz nessa festa?

- Seria o meu maior desejo - respondeu Nofret, com humildade.

- Se as Irmãs do templo fechado, encarregadas de te instruir, estiverem de acordo, não me oporei.

Nofret beijou respeitosamente as mãos da Superiora e deixou o terraço do templo para descer aos jardins.

O que escondia essa mudança de atitude? A jovem apaixonada e amorosa sucedera uma sacerdotisa muito calma e senhora de sí. Dir-se-ia que Nofret esquecera bruscamente o amor para se dedicar apenas às suas tarefas religiosas.

A Superiora recordou as últimas questões postas por Nofret. Ela desejava vir a ser portadora de luz na bela festa do Vale, durante a qual, na margem ocidental, as almas dos mortos comunicavam com as dos vivos.

Para assistir a essa festa, o Faraó deixava o seu palácio de Tebas e passava à outra margem.

Os servos do juiz Rensi tremiam de aflição. O seu amo estava louco de cólera, ameaçando suprimir as próximas folgas se não encontrassem a filha imediatamente.

Todo o pessoal da casa saiu para a procurar.

Em vão.

Morto de inquietação, o juiz Rensi andava de cá para lá, no seu escritório, quando Nofret surgiu, encantadora, no limiar da porta. Maquilhada com discrição, usando um vestido novo, os pés nus, era a imagem da própria elegância.

- Finalmente, Nofret! Mas, onde estavas tu?

- Perdoai-me por vos ter causado inquietação, meu pai. Estava com Kamosé. Como lhe haveis ordenado que deixasse a vossa casa, fomos passear pelo campo.

- Tu não podes casar com esse rapaz, Nofret! É uma loucura.

A jovem baixou a cabeça, submissa.

- Já tomei consciência disso, meu pai. Sei que cometeria um erro grave. Ele e eu, falámos longamente sobre o assunto e admitimos que seguíamos por mau caminho.

Um sorriso iluminou o rosto do juiz.

- Queres dizer... que romperam definitivamente? Nofret manteve-se de cabeça baixa.

- Continuo aqui para estudar os rituais da bela festa do Vale. Espero ter nela um papel importante.

Rensi tomou a filha nos braços.

- Como me sinto feliz, Nofret! Eu sabia que a tua inteligência venceria a paixão. Terás o papel que pretendes. Conta comigo para te ajudar.

Para passar para a margem este, Kamosé utilizou a barcaça. Aí tinham tomado lugar camponeses, burros e bois. Entre os animais e os homens e os cestos cheios de trigo e de legumes, não havia uma polegada disponível.

O barqueiro manobrava, com uma habilidade incrível, a sua pesada embarcação. Facilmente encontrava o sentido da corrente.

O jovem abismava-se na contemplação do rio divino que todos os anos trazia a prosperidade ao Egipto, porque o Faraó agira com justiça e cumprira correctamente os rituais. O Faraó, o garante da Ordem eterna, o mediador entre o céu e a terra.

O Faraó faria ressoar a verdade. Nem podia ser de outra maneira. Senão, todos esses templos, todas essas pirâmides, todos esses rituais, seriam apenas engano e hipocrisia. Senão, só restava a Kamosé perder-se no deserto e fugir para sempre do mundo dos homens. Mas havia Nofret... Nofret que ele amava cada vez mais. Nofret que julgava ter encontrado o meio de obter uma entrevista com o Faraó, por ocasião da bela festa do Vale. Mas, primeiro, seria necessário convencer seu pai de que ela e Kamosé tinham rompido definitivamente, compreendendo que o seu amor era impossível. Em seguida, era preciso obter o papel-ritual de portadora de luz durante a festa.

Nofret estava esperançada de que venceria.

O barqueiro, um homem alto e magro, aproximou-se de Kamosé.

- És tu o filho de Guérou e de Nédjémet?

- Sim, sou eu. Mas por que...

- Há o patrão de um barco de pesca que te procura por toda a parte. Fez a tua descrição a numerosos barqueiros. Ele espera-te no cais dos peixes.

- Que se passa? - perguntou Kamosé, ao encontrá-lo. - Por que desejavas ver-me com tanta pressa?

O patrão pescador estava perturbado.

- A tua mãe está doente, Kamosé. Deixou de trabalhar há dois dias.

- O que é que ela tem?

- O médico ambulante deu-lhe remédios que não fizeram efeito. O governador vai chamar um médico de Tebas. Nem o teu pai nem a tua mãe ousaram pedi-lo-.. Mas eu sei que gostariam de ter-te junto deles. Sabem que estás preso ao teu trabalho no templo, e eu... eu não tive coragem de dizer-lhes...

Kamosé encolerizou-se.

- Fala! O que é que lhes escondeste?

- Nós devíamos ter-nos encontrado ontem neste cais. Tu não apareceste. Fui ao templo e perguntei por ti. Os guardas do bairro dos escribas procuraram-te e fiquei a saber que tinhas deixado o templo. Se teus pais o soubessem, Kamosé, morreriam de desgosto.

- Tu não podes compreender - retorquiu o jovem, secamente. - Mas nada disso importa. Regresso contigo à aldeia.

O patrão pescador e Kamosé dirigiram-se apressadamente para o barco que alguns meses antes tinha conduzido o jovem a Tebas.

A beira do cais estava um velho, apoiado ao seu bordão.

- Não entrarás nesse barco - afirmou o Ancião. - Regressas comigo ao templo.

Ao ver o Ancião, Kamosé ficou estupefacto e levou algum tempo a recompor-se.

- Devo regressar a casa. A minha mãe está doente.

- Eu sei. Já te recomendei para não falares sem nada dizeres. Voltas a entrar no templo.

- Recuso. A minha mãe espera-me.

- A tua mãe não te espera. O patrão pescador disse-lhe que estavas a preparar o teu segundo exame de escriba. Se voltares para junto dela, tua mãe compreenderá imediatamente que falhaste. Imaginas o seu desgosto?

Envolvido num turbilhão de pensamentos, Kamosé sentia-se incapaz de resistir.

- Vós não tendes coração... Não podeis saber o que sinto...

- Com efeito, pouco me importa. Tu és, bem entendido, o único filho que ama sua mãe... Deixa-te de tolices! Já te atrasaste muito nos estudos.

Depois, apoiando-se ao bordão para ritmar os passos, o Ancião dirigiu-se para o templo. Kamosé, subjugado, as pernas bambas, tinha dificuldade em acompanhar o ritmo que o velho mestre lhe impusera. O patrão pescador, imóvel no cais, não sabia o que pensar.

Nisto, um homem ainda novo, de bigode negro e colar de prata ao pescoço, dirigiu-se para ele. Trazia dois sacos.

- És tu o amigo da senhora Nédjémct? - perguntou-lhe.

- Sou. Que lhe queres?

- Curá-la. Sou um dos médicos do palácio. Estás encarregado de me conduzir à aldeia onde ela mora.

- Não fiques desanimado! - ordenou o Ancião a Kamosé. - Estás a ser ridículo. Responde às minhas perguntas.

O jovem sentia-se sem forças. Suportara demasiadas emoções nas últimas horas. Por um lado, o encontrar-se no gabinete do Ancião trazia-lhe um certo conforto. Por outro, sentia-se prisioneiro de génios maus contra os quais não tinha mais coragem de lutar.

-Já não desejo tornar-me escriba - disse, por fim. - A minha mãe precisa de mim.

- Um filho deve amar a sua mãe - disse o Ancião - e retribuir-lhe tudo o que ela fez por ele. Deve dar-lhe pão em abundância e tratá-la como ela o tratou. Ela transmitiu-lhe a vida; durante anos, alimentou-o com o seu leite; e sem qualquer repugnância, limpou-o até ele se tornar capaz de o fazer sozinho.

- Se pensais assim, por que me impedis de voltar para casa?

- Fica sabendo que és livre de fazeres o que quiseres, meu rapaz, e que eu próprio me ocupei da saúde de tua mãe. Mas, decerto, a minha palavra não te basta.

Kamosé ajoelhou-se diante do Ancião e beijou-lhe os pés.

- Vejo que voltas a ser delicado. Isso conforta-me, sob a crença de que os milagres existem.

- Como poderei agradecer-vos?

- Nunca serás tão grato quanto eu mereço, salvo se responderes correctamente às minhas perguntas. Vamos retomar a gramática onde a deixámos e continuaremos com a leitura de um texto jurídico. Esperemos que não tenhas esquecido tudo.

O Ancião escondeu a sua satisfação ao ouvir as respostas de Kamosé, fazendo-o trabalhar mais do que qualquer outro aluno.

Não só o jovem não tinha esquecido coisa alguma, como ainda percebia instintivamente as regras gramaticais mais difíceis. Resumir um texto, retendo o essencial e rejeitando o supérfluo, foi fácil para ele. A sua memória encadeava as palavras com uma rapidez surpreendente.

O Ancião não se enganara. Ele defrontava um ser de eleição ao qual só faltava orientar o fogo interior.

Durante uma semana, o Ancião obrigou Kamosé a trabalhar horas seguidas e a reduzir ao mínimo o tempo de sono. O jovem saiu triunfante da prova e nem por isso fatigado. O Ancião testara assim a sua capacidade de resistência e o seu poder de concentração. O resultado foi dos mais positivos.

- Mestre - disse Kamosé, hesitante -, eu desejava...

- Estás porventura em condições de me pedir um favor? A muito custo recuperaste o teu atraso. O exame está a menos de um mês. Uma vez que sabes que o estado de saúde de tua mãe não se agravou, com que hás-de preocupar-te senão com os estudos?

- Reconheço as minhas faltas. Mas desejava...

- Concedo-te a tarde. Ao pôr-do-sol tens de estar aqui, senão as portas do templo fechar-se-ão definitivamente para ti.

Era a hora mais quente do dia. Nos campos, os camponeses faziam a sesta sob uma acácia ou uma tamargueira. Os bois e os cães procuravam um pouco de sombra. Nas suas vivendas, os nobres dormitavam debaixo dos caramanchões. O trabalho estava suspenso até que o sol abrandasse.

Os próprios crocodilos estavam adormecidos. Como o barco não partia antes de estar completamente carregado, Kamosé atravessou o Nilo a nado.

Nofret tinha prometido esperá-lo, todos os dias, àquela hora, no palmeiral onde tinham declarado o seu amor. Ali, ninguém os surpreenderia.

O jovem nadava depressa. A água fustigava-lhe o corpo. Depois, correu até ao local do encontro. Os seus pés nus nem sentiam a areia e as pedras escaldantes.

Kamosé tinha vontade de gritar de alegria.

Mas o grito morreu-lhe no peito. O oásis estava deserto.

Kamosé rodeou as palmeiras, os poços, pesquisou o local, duas vezes, três vezes, incrédulo...

A ausência de Nofret só podia ter uma explicação: ela traíra-o. Tinha obedecido ao pai, percebendo que deveria escolher o seu futuro marido entre a casta dos nobres.

Kamosé deixou-se cair junto de uma palmeira. Nunca mais acreditaria na palavra de uma mulher.

Deixou que a fadiga se insinuasse nos seus membros. Já não tinha vontade de lutar. E adormeceu à sombra das palmeiras.

O campo estava juncado de flores. Milhares de camponeses aclamavam Kamosé e Nofret enlaçados. O próprio Faraó presidia à cerimónia.

Nofret beijava Kamosé. O sabor dos seus lábios frescos atiçava-lhe o coração. Ele tomou-a nos braços.

- Não sejas tão violento, meu amor...

O jovem abriu os olhos.

Ela ali estava, diante dele. Kamosé apertou-a contra o peito

- Tu não és um sonho...

- Não, Kamosé. Sou bem real. Mas tu, tu sonhavas.

- Nós estávamos casados, na presença do Faraó, e aclamavam-nos.

- Tornaste-te megalómano - disse Nofret, sorrindo. - Eu preferia mais discrição.

- Por que vieste tão tarde?

- O cozinheiro de meu pai preparou uma excelente refeição de que se sentia muito orgulhoso. Fui obrigada a provar todos os pratos. Os criados tinham recebido ordem de me vigiar. O juiz Rensi não é ingénuo. Creio tê-lo convencido, mas preciso de ser prudente.

- Tenho pouco tempo - disse Kamosé. - Devo regressar ao templo antes do pôr-do-sol. O Ancião faz-me trabalhar mais do que uma besta de carga.

- Tenho boas notícias - anunciou Nofret, com uma voz plena de esperança. - Fui ao templo de Deir el-Bahari e tornei a ver a Superiora. A função de portadora de luz ser-me-á, seguramente, confiada na festa.

- O Faraó estará presente? Não enviará um delegado?

- Ele dá muita importância à cerimónia. Os mais altos dignitários do reino, entre os quais meu pai, estarão ao seu lado.

- Acreditas verdadeiramente que seremos bem sucedidos?

- Hathor protege-me. Eu sou sua sacerdotisa. Ela já permitiu que nos encontrássemos. Por que nos recusaria ela a sua magia?

- A minha mãe está doente - revelou Kamosé. - O Ancião assegurou-me que está a ser tratada. Aceitei ficar no templo para tentar passar num novo exame.

Nofret olhou-o bem nos olhos.

- Se aceitaste trabalhar assim, é porque o desejas. Queres tornar-te escriba, não é?

Kamosé não protestou. Nofret lia na sua alma melhor do que ele mesmo.

- Não sei como dizer... Sinto que o Ancião me conduz pelo bom caminho, que este trabalho insano poderá ajudar-nos.

- Também penso assim - afirmou Nofret. - Não afrouxes os teus esforços, meu amor.

- O Ancião não me ocultou que a prova ultrapassaria, provavelmente, as minhas capacidades. Os outros instrutores intensificaram a preparação dos seus melhores alunos. Eu não passo de um filho de camponeses, Nofret.

- E eu, de uma filha de juiz...

Os dois jovens desataram a rir ao mesmo tempo. O sol começava já a declinar.

Os milagres continuam - disse o Ancião, com acrimónia. - Chegaste à hora.

Apoiado na sua bengala, o Ancião esperava Kamosé à porta do seu gabinete. O jovem tardara até ao último momento. Fora Nofret que o obrigara a deixá-la. Por um triz, Kamosé perdia o barco.

- Não te pergunto de onde vens.

- Seria inútil, pois vós tudo sabeis.

- Agora, a insolência... Não te falta nenhum defeito, Kamosé. Senta-te e fica em silêncio. Não só devo instruir-te como se torna necessário que saia.

O Ancião afastou-se resmungando. Kamosé comeu algumas tâmaras e gozou a paz do dia que findava.

No templo fechado, o Faraó, ou o sacerdote que o representava, celebrava o último ritual do dia: fechava as portas do Santo dos Santos que continha a estátua do deus.

Mas a vida do templo continuava.

Os alquimistas, preparando a "matéria divina" a que eles chamavam o ouro dos deuses, entravam nos seus laboratórios. Os mágicos, à luz de tochas, confeccionavam remédios.

Kamosé deixou-se invadir pela calma e a paz que reinavam no local sagrado. Os seus tormentos diminuíram. Ali, desde há séculos, os homens comunicavam com o sagrado. A sua experiência e a sua sabedoria estavam gravadas nas paredes. Ler os hieróglifos, pousando os olhos neles, faziam-nos viver. Assim se insinuaram as palavras divinas no espírito recatado do jovem.

Um sacerdote de crânio rapado arrancou Kamosé à sua meditação, conduzindo-o, sem dizer palavra, até à monumental porta do templo fechado.

- Mas... eu não posso entrar aí! - protestou ele. Indiferente à recriminação, o jovem sacerdote bateu várias vezes à porta.

Um dos batentes de cedro entreabriu-se. O guardião e o sacerdote trocaram algumas palavras.

Depois, o sacerdote pegou no braço de Kamosé e introduziu o aprendiz de escriba no templo fechado.

Kamosé pensou que o seu coração deixara de bater. Esperara tanto tempo esse momento, não conhecendo nem o dia nem a hora em que seria admitido na parte secreta do santuário, que não sabia como comportar-se. Uma ténue luz iluminava as mais altas colunas que ele alguma vez contemplara. Estavam cobertas de textos hieroglíficos e de cenas rituais que mostravam o Faraó fazendo oferendas às divindades.

- Aqui reside um dos maiores segredos da nossa civilização - declarou a voz grave do Ancião. - Tudo o que vive é oferenda, Kamosé. A oferenda alimenta o espírito. A oferenda é o fogo do amor. Aquele que apanha e rouba, esquecendo-se de fazer oferendas, condena-se à destruição da sua alma. Se o homem que acusas de ter espoliado teus pais é um ladrão de coração fechado, os deuses o castigarão. É a lei celeste. Nenhum homem poderá jamais violá-la.

Kamosé admirou-se da sua própria reacção. A lei celeste não lhe bastava. Ele desejava vê-la aplicada no mundo dos homens. Mas reinava uma tal serenidade no templo fechado, que o fogo que queimava o seu coração ficou-se por um estado de brasas que exalava um doce calor.

A bengala do Ancião ressoou nos degraus de uma escada. Kamosé seguiu o velho escriba que o guiou até ao topo do templo.

Ali trabalhavam os astrólogos que ao cair da noite começavam a perscrutar o céu. Eles anotavam as suas observações em papiros e rolos de couro e cumpriam a sua tarefa em silêncio.

O Ancião levou Kamosé para um ângulo do observatório e falou-lhe em voz baixa:

- Passarás a noite aqui com um astrólogo experimentado. Aprenderás a conhecer os planetas e os seus movimentos.

- Para que serve isso? - perguntou Kamosé.

- Para descobrir as leis imutáveis do cosmos e para te descobrires a ti mesmo. Tu és filho da terra, Kamosé, mas és também filho do céu. Um e outro estão em ti.

- Não serei eu livre dos meus pensamentos e dos meus sentimentos? - angustiou-se Kamosé.

- Tu dependes do céu, como todos os seres viventes - respondeu o Ancião. - Ele oferece-te os materiais para te construíres a ti mesmo. Mas tu continuas a ser o arquitecto.

- De que planeta dependo eu?

- No momento do teu nascimento, os sete planetas debruçaram-se sobre ti. São chamados "as sete Hathor". E elas dançam no céu, em redor de quem vem ao mundo. Tu estás marcado por Marte, a Hórus vermelha, e por Júpiter, o mais poderoso dos planetas. Eles dão-te o poder, a energia da acção e o vigor do pensamento. Mas não são mais do que virtualidades, só a ti compete torná-las eficientes.

- Então, o meu destino está traçado nas estrelas? O Ancião continuou evasivo.

- Interroga-as. Elas te responderão. Agora vou deixar-te. Na minha idade não é bom passar a noite fora.

O jovem sacerdote de crânio rapado fez ajoelhar o discípulo do Ancião. E mostrou-lhe, nas pedras que constituíam o tecto do templo, algumas linhas que ele ia seguindo com o dedo e que formavam os desenhos das constelações descobertas ao longo dos tempos. Ensinou-lhe os seus nomes, bem como os dos planetas e decanos. Depois explicou-lhe como calcular a rotação periódica dos planetas e interpretar a sua influência sobre os ciclos naturais.

O espírito de Kamosé absorvia com avidez esse saber inédito. Fazia mil perguntas, pedia detalhes sobre as matérias que considerava obscuras, obrigava o seu instrutor a ultrapassar o programa previsto.

A noite passou rapidamente.

Quando o horizonte enrubesceu, Kamosé sentia-se, ao mesmo tempo, cheio e maravilhosamente leve.

Os astrólogos deixavam o topo do templo. Depois de um banho ritual, teriam algumas horas de repouso.

Com o nascer do sol recomeçavam as idas e vindas dos sacerdotes. Os que estavam encarregados das oferendas, purificavam-se no lago sagrado.

No limiar da escada que terminava no templo fechado, encontrava-se o Ancião, de mãos apoiadas na sua bengala.

- Passaste uma boa noite, Kamosé?

- Foi extraordinária - reconheceu o jovem. - Por que não dar estes conhecimentos a todos os homens?

- Porque eles não estão preparados para os receber, meu rapaz. Deixa que vivam felizes com as suas crenças. Tu, tu deves entrar nos domínios do conhecimento. É ele e só ele que te abrirá os caminhos da eternidade. Apenas o conhecimento... não o saber, nem a crença. Estás demasiado fatigado para me seguires?

- Certamente que não!

O Ancião e o seu discípulo saíram do templo. Um carro puxado por dois cavalos esperava-os. Um soldado tomava as rédeas.

- Horroriza-me este engenho! - declarou o Ancião. - Anda depressa de mais.

O soldado teve o cuidado de evitar os altos e baixos do caminho que levava ao cais.

- Vamos atravessar o Nilo? - perguntou Kamosé.

- Claro, vamos para a margem ocidental - informou o Ancião. - Há mais de dez anos que não faço esta viagem. Infelizmente, não tenho outro meio de te mostrar um sinal essencial.

Quem poderia cansar-se dos esplendores da madrugada? Quem poderia deixar de contemplar o rio solar saindo das trevas, nimbado de raios dourados? Kamosé, depois de ter atravessado a noite, descobria pela primeira vez o esplendor do dia. Ele surgia-lhe como uma juventude vitoriosa. Como a sua própria juventude.

Um outro carro conduziu o Ancião e seu discípulo, do desembarcadouro da margem oeste até à entrada da aldeia de Deir el-Médineh, onde residiam os artesãos encarregados de cavar os túmulos dos faraós e de os decorar segundo a simbologia ensinada pelo templo. Um túmulo, encimado por uma pirâmide de forma muito alongada, marcava o limiar do domínio reservado à confraria.

Os guardas inclinaram-se diante do Ancião. Reconheceram-no logo, ele que ensinara o significado dos hieróglifos ao mestre da confraria. Não estavam armados, mas revestidos das cotas de malha dos cortadores de pedra. E foram eles que escoltaram o mestre e o discípulo até à entrada do túmulo.

Kamosé descobriu uma descida muito íngreme.

- Curva-te - ordenou o Ancião - e avança lentamente. Quando conseguires pôr-te de pé, terás chegado.

Era a primeira vez que Kamosé penetrava numa morada de eternidade. Ele sabia que ela não era destinada apenas a abrigar um cadáver, mas também a proteger o corpo de ressurreição dos atentados exteriores.

Com a garganta apertada, engolfou-se no estreito corredor, avançando curvado. Uma luz guiava-o.

A descoberta do túmulo foi um novo deslumbramento. As paredes e a abóbada semicircular estavam cobertas de pinturas de cores vivas, representando cenas mitológicas.

O Ancião já tinha chegado.

- Olha para esta parede - ordenou ele a Kamosé. Kamosé nem podia crer no que os seus olhos viam. Um homem e uma mulher trabalhando no campo; ele colhendo, ela semeando. Numa cena vizinha, ele manobrava a charrua; a esposa seguia-o.

- Mas... são os meus pais!

- Sim e não - respondeu o Ancião. - É uma representação dos paraísos celestes. Olha para o cimo da parede.

Kamosé vislumbrou o deus sol na sua barca.

- A luz divina banha o universo inteiro, Kamosé. A eternidade está repleta de campos magníficos onde os justos continuam a trabalhar para alimentar os que estão na terra e aspiram à sabedoria.

Profundamente perturbado, Kamosé continuava persuadido de que eram mesmo os seus pais que estavam representados naquela morada de eternidade.

- Medita neste lugar, Kamosé - recomendou o Ancião, - Tu conheces bastante bem os hieróglifos para decifrares os textos que explicam as cenas. Lembra-te de que o escaravelho simboliza metamorfose; a fénix, renascimento; a andorinha, ressurreição. Quando te sentires pronto, sobe até à luz do dia.

Kamosé passou todo o dia no túmulo. Decifrou os hieróglifos na totalidade e guardou as cenas na memória. Teve a sensação de estar no interior de um papiro, de ele próprio se ter tornado um hieróglifo traçado pelo cálamo de um escriba.

Quando regressou à luz, o crepúsculo recobria de ocre a montanha do ocidente.

O Ancião, impassível, estava sentado num outeiro, contemplando o pôr-do-sol.

- Eis-me de volta, mestre. Que outra surpresa me reservais?

- Regressamos ao templo, Kamosé. Agora, deves dormir.

- Não me apetece.

- No entanto, é necessário, O exame principal é amanhã.

Os candidatos, que eram cinquenta, vinham de todas as províncias do Egipto. Formavam a futura elite intelectual do país. Os que passassem o exame imposto pela escola de Karnak teriam acesso às mais altas funções administrativas. A maior parte deles falharia à primeira tentativa.

Todos, com excepção de Kamosé, eram recomendados por parentes ricos, nobres, ou chefes de província. Alguns pensavam que seriam, por isso, privilegiados.

Enganavam-se.

Entre os examinadores havia tantos filhos de nobres como de famílias modestas. A origem social dos candidatos pouco importava. O que contava para eles eram os conhecimentos e a capacidade de síntese dos examinandos.

As provas durariam uma semana inteira e incidiriam sobre a prática da linguagem hieroglífica, as diferentes formas de escrita, a geometria e a astronomia. Os candidatos deveriam redigir vários tipos de textos: religiosos, científicos e administrativos.

Depois, seguir-se-ia uma entrevista com os escribas especializados nas diferentes disciplinas.

Kamosé permaneceu mudo enquanto duraram as provas escritas. Não falava com ninguém, punha-se à parte de conciliábulos, não escutava conselhos e fazia-se surdo a qualquer indiscrição. Metido consigo, tentava manter-se concentrado. Até mesmo durante o sono, ele continuava a fazer trabalhar o espírito.

Os temas pareciam-lhe extremamente difíceis. Apenas a geometria não lhe colocava problemas inultrapassáveis, devido à experiência adquirida com os artesãos. Quanto ao resto, constatou o quanto a sua aprendizagem, apesar de intensa, tinha sido curta.

Kamosé viu-se, uma vez mais, obrigado a apelar à sua intuição para colmatar as lacunas da sua sabedoria. Tinha consciência de que se lançava no desconhecido, o que, fatalmente, o levaria a cometer erros graves.

Durante as provas orais, os seus nervos estiveram várias vezes a ponto de rebentar. Os examinadores eram minuciosos e rebarbativos. Kamosé achou deplorável o estado de espírito de alguns deles. Não procuravam compreender o candidato, avaliar as suas qualidades profundas, mas unicamente embaraçá-lo.

Quando voltou ao gabinete do Ancião, como sempre ocupado a desenhar colunas de hieróglifos, Kamosé estava exausto.

O mestre fingiu não se aperceber da sua presença.

O jovem apreciava o repouso e o silêncio. Dormitou um pouco antes de falar.

- Creio que falhei - disse por fim.

- Recomeçarás - retorquiu o Ancião. - Queres relembrar os temas ou preferes dormir algumas horas?

- Prefiro fazer o balanço imediatamente. A vossa opinião dissipará as minhas ilusões.

Usando a sua memória excepcional, Kamosé reviu o exame na companhia do seu mestre e disse-lhe as respostas que tinha dado.

- Não é famoso - avaliou o Ancião. - Demasiados erros estúpidos e demasiadas lacunas. Se não foste brilhante perante o teu júri, receio um resultado negativo.

Kamosé fez olhos de cão vencido.

- Temo que a oral tenha sido pior do que a escrita.

- Nesse caso, voltas a pôr mão à obra, imediatamente. Concedo-te alguns dias de descanso para assistires à bela festa do Vale. Depois, velarei por melhorar os teus conhecimentos. Não fui suficientemente severo para contigo.

Durante mais de uma semana, a população estaria em festa. Todos gozariam uma licença há muito esperada, a tal ponto a festa do Vale era das festividades mais apreciadas.

A festa começou pela saída da barca sagrada do deus Amon, do seu santuário de Karnak. Ramsés, o Grande, dirigia o ritual, despertando o fervor da multidão.

A travessia do Nilo desenrolou-se num clima de euforia. Depois, o cortejo real dirigiu-se ao templo de Deir el-Bahari, onde o Faraó decidira estacionar.

Depois do espectáculo público e divertido da bela festa do Vale, seguiu-se o ritual praticado pelos colégios de sacerdotes e sacerdotisas. As servas da deusa Hathor estavam particularmente felizes por darem hospitalidade a Ramsés, o Grande.

No último dia da festa, o Faraó revestiu-se de uma túnica branca e dourada. Na cabeça, uma sumptuosa coroa ornamentada com os chifres da vaca, simbolizando Hathor; as cobras erguidas, destinadas a protegê-lo dos seus inimigos; e o sol nascente, manifestando a vitória da luz sobre as trevas.

O Faraó estava ladeado por dois servos, um levando um leque, o outro um guarda-sol. No centro do cortejo que o seguia, uma estátua transportada sobre uma liteira evocava os antepassados que deviam honrar o Faraó reinante.

Ramsés, o Grande, visitou todos os "templos de milhões de anos'1 da margem ocidental. Demorou-se mais no sítio onde, segundo os anais, se encontrava o outeiro primordial, saído das águas no momento da criação do mundo.

Ao cair da noite, organizou-se a procissão das sacerdotisas de Hathor. Atrás da Superiora vinha Nofret, transportando a chama sagrada na qual os participantes da festa nocturna acenderiam os seus archotes.

A procissão dirigiu-se para a região dos túmulos, onde dormiam para a eternidade, reis e rainhas, nobres e plebeus. A beleza da noite estrelada não dissipava a angústia de Nofret. Seu pai tinha-a interrogado repetidamente sobre as suas novas resoluções. Nofret mantinha-se submissa, falando apenas das suas aspirações religiosas.

O que ela e Kamosé tinham decidido tentar parecia arriscado. Não cometeriam eles um crime de lesa-majestade, se não conseguissem convencer o Faraó da justeza da sua causa? Nofret tinha medo, mas mantinha o autodomínio. Todos admiraram a sua atitude e eficiência.

A entrada do vale desértico onde repousavam os nobres, membros da sua família, lanternas na mão, aguardavam a passagem da procissão. Sob o olhar atento do Faraó, Nofret deu-lhes a luz que eles esperavam para colocar no interior dos túmulos e começar o banquete com as almas dos defuntos.

A procissão fez paragens semelhantes diante de cada bairro principal da imensa necrópole. Depois, o Faraó, acompanhado apenas pela portadora da luz, dirigiu-se para o Vale dos reis, onde moravam os corpos gloriosos dos seus antecessores. Passado o posto de guarda que vigiava o acesso ao lugar sagrado, votado ao silêncio e à solidão, Ramsés, o Grande, e Nofret, alcançaram o túmulo do pai do rei, o ilustre Séthi I, o maior túmulo do Vale.

O Faraó pegou numa lanterna que tinha sido posta no alto da escadaria, acendeu-a na chama que Nofret lhe oferecia, e recolheu-se.

Ramsés tinha uma admiração ilimitada por seu pai, que o havia associado ao trono, muito jovem, e que lhe ensinara a arte de reinar.

- Majestade... Gostaria de vos falar. Ramsés voltou-se, intrigado.

Era mesmo a portadora da luz que lhe dirigia a palavra, e não a deusa do Ocidente.

- Esta intervenção não faz parte do ritual, ao que me parece. A sacerdotisa ajoelhou-se.

- Sou Nofret, filha do juiz Rensi. Necessito da vossa intervenção num caso grave.

- Não é o dia nem a hora apropriados - disse o rei. - Esse caso deve ser realmente grave, para ultrapassar as competências de teu pai.

- Suplico-vos que me escuteis, Majestade. O grande Ramsés contemplou a jovem.

- És muito bela, Nofret, e sabes ser comovente. Entremos no túmulo. Se nos demoramos muito tempo à entrada, os guardas vão pensar que se passa algo de anormal.

Nofret ficou deslumbrada com o esplendor das pinturas que decoravam as paredes do túmulo de Séthi I. O pai de Ramsés beneficiava de rituais de sobrevivência que lhe permitiam a abertura da boca e dos olhos no outro mundo. Nas paredes estavam também evocadas as etapas da ressurreição do sol, idênticas à da alma real. Por cima do sarcófago, um tecto admirável mostrava a imagem da deusa do céu, o corpo envolto na imensidade das estrelas e dos planetas.

- Esta morada de eternidade é a mais bela de todo o Egipto - disse Ramsés. - E a obra-prima de artesãos de génio, cuja criação está à medida da grandeza de meu pai. Esta noite, Nofret, restituo-lhe a luz que ele me deu. Aqui, nós estamos no Além, longe dos assuntos humanos. Se queres expor-me o que te angustia, dirige-te ao palácio depois de amanhã. Reúno lá o meu conselho. Pergunta pelo chefe do protocolo e entrega-lhe este escaravelho.

Nofret recebeu das mãos de Ramsés, o precioso salvo-conduto.

- Agora - ordenou o rei - deixa este túmulo. Devo ficar sozinho com os deuses.

Kamosé esperava Nofret perto do jardim de Deir el-Bahari. Em todos os túmulos da margem ocidental, sob a protecção da sorridente deusa do Além, os vivos comunicavam com os mortos. Os banquetes, animados de cantos e danças, duraram toda a noite. Todos sabiam que a fronteira entre a existência terrena e a eternidade era mínima. Durante esse período festivo, era preciso saborear os momentos de felicidade que os deuses, generosamente, concediam.

Nofret tinha devolvido a preciosa chama à Superiora que já a havia introduzido no santuário da deusa Hathor. Depois, a jovem sacerdotisa tomou a rampa central que descia até ao jardim.

- Nofret! - chamou Kamosé. - Conseguiste falar-lhe?

- Sim, mas...

- Ele não te escutou.

- Sim. O Faraó aceita conceder-nos uma audiência. O olhar do jovem encheu-se de esperança.

- Quando?

- Depois de amanhã.

- Onde?

- No palácio.

- Mas isso é maravilhoso, Nofret!

E tomando-a nos braços, apertou-a contra si.

- Conseguiste o impossível! Podemos pois falar ao rei, convencê-lo.

- Não estaremos a sós - lamentou-se a jovem.

- Não estaremos a sós? Que queres dizer?

- Não se tratará de uma audiência privada, Kamosé. É o grande conselho que irá receber-nos.

- O grande conselho? Não poderemos fazer-lhe frente!

- Não temos de fazer-lhe frente, Kamosé, mas fazê-lo compreender que está a ser cometida uma injustiça.

- E se o conselho não nos acreditar? Sabes o que nos espera?

- Não tenho qualquer receio. Vai acreditar-nos, porque dizemos a verdade.

Quando o Faraó entrou na sala do conselho, todos os membros se ergueram e saudaram o senhor do Egipto. Somente o Ancião, em virtude da sua avançada idade, permaneceu sentado, em posição de escriba, à direita do trono.

Os nove conselheiros do rei, seus amigos de longa data, reuniam as competèncias mais variadas. Ramsés não tomava nenhuma decisão maior sem os consultar, mesmo que depois viesse a escolher outra, assumindo sozinho a sua responsabilidade.

Depois de ter celebrado todo o poder do Deus único, que se revelava aos humanos sob múltiplas formas, o grande conselho deu início aos trabalhos. O assunto principal da reunião era o embelezamento do templo de Karnak e o acabamento da mais gigantesca sala de colunas jamais construída no Egipto.

O chefe do protocolo entregou ao rei um escaravelho que Ramsés reconheceu imediatamente.

- Tenho um caso excepcional a apresentar ao grande conselho - disse o rei.

Por ordem do Faraó, o chefe do protocolo introduziu Nofret na sala. Mas a jovem não estava só. Vinha acompanhada do aprendiz de escriba Kamosé.

Os dois jovens inclinaram-se diante da personagem real.

Kamosé ficou estupefacto e feliz ao reconhecer o Ancião. A sua presença entre os membros do grande conselho tranquilizou-o. Mas o Ancião não lhe dirigiu o mínimo sinal de simpatia.

- Quem é este rapaz? - interrogou o rei.

- É Kamosé, filho de Guérou e de Nédjémet, Majestade - respondeu Nofret. - Seus pais foram gravemente lesados. A causa deles é justa. Sou disso testemunha, como sacerdotisa de Hathor.

- Conheces a gravidade de um testemunho... - disse o rei. Nofret inclinou a cabeça.

- Fala, Kamosé! - ordenou o Faraó.

- Majestade - balbuciou o jovem -, não sei como...

- Se a tua causa é justa - interrompeu-o o rei - saberás exprimir-te claramente.

Em vez de desencorajar Kamosé, aquele julgamento brutal deu-lhe um impulso decisivo. Não tinha mais nada a perder.

- Há mais de um ano, um soldado chamado Sétek chegou à aldeia. Despojou os meus pais da sua casa e das suas terras. Todos o consideram um herói que tem todos os direitos. Para mim, é um ladrão.

Nofret esperara que Kamosé fosse mais comedido nos seus propósitos. Mas o mal já estava feito.

- Conheço bem esse Sétek - disse o rei. - É um dos meus veteranos. Combateu ao meu lado na Ásia, contra os Hititas. É um verdadeiro herói. Trazes contra ele graves acusações. Efectivamente, recomendei-o ao serviço do cadastro para que lhe fossem atribuídas terras.

- Meu pai, o juiz Rensi, consultou o cadastro - adiantou Nofret, cada vez mais ansiosa.

- Terá o cadastro cometido um erro?

- Não, Majestade.

Dois membros do grande conselho pediram a palavra ao rei.

- Este caso não tem pés nem cabeça - declarou o primeiro.

- O juiz acha grotesca a atitude destes jovens. Tenho a impressão de que a sua única ambição era ver o Faraó de perto.

- A insolência deve ser castigada - observou o segundo. - Que esta jovem sacerdotisa fique exilada numa província longínqua, e o jovem escriba seja condenado a trabalhos forçados no Sul.

Kamosé empalideceu. Tinha sido derrotado. Definitivamente derrotado.

- Não tendes o direito de falar assim! - exclamou, furioso.

- Tudo o que dizeis é falso. Os meus pais são puros e rectos. Toda a vida trabalharam as suas terras. O Faraó tinha prometido dar-lhas. E o Faraó traiu a sua palavra, voltando com ela atrás e oferecendo-as a um bruto que trata os meus pais como escravos. Eis a verdade. Uma verdade que devia envergonhar-vos. Castigai-me se quereis. Não apagarão a injustiça dos vossos actos.

Nofret fechou os olhos.

Desta vez, pondo directamente em causa o Faraó, Kamosé condenara-se à morte.

Os membros do grande conselho ficaram mudos. Jamais tinham ouvido semelhantes injúrias contra o soberano. Não teriam alternativa senão aprovar a decisão radical que ele seria obrigado a tomar.

Apenas o Ancião parecia indiferente ao drama que se desenrolava.

O rei fitou demoradamente Kamosé, que não baixou os olhos. Ao ponto a que ele chegara, de nada lhe valia fingir-se humilde.

Kamosé sentia-se aliviado. Tinha podido dizer a verdade ao rei do Egipto em pessoa.

- É estranho... - disse Ramsés. - Há quanto tempo os teus pais trabalham a terra atribuída a Sétek?

- Nasceram nelas, Majestade. Primeiro, foram empregados de um homem já idoso, que ao morrer lhes concedeu o direito de continuarem na aldeia e cultivarem os seus campos. Os meus pais construíram a casa onde cresci. E de tal modo trabalharam que o Governador, com o acordo do Faraó, consentiu que se tornassem proprietários.

- Eles cometeram alguma falta grave? - perguntou o Faraó.

- Não! - respondeu Kamosé, com toda a segurança. - São estimados por toda a aldeia.

- Que se passou quando Sétek chegou a tua casa?

- Bateu no meu pai, Majestade, e se a minha mãe não se tivesse intrometido, eu teria lutado com ele.

- Que é que ele vos disse?

- Que a nossa casa e as nossas terras lhe pertenciam. Depois, expulsou os meus pais. O governador deu-lhes emprego, até que Sétek exigiu que eles se tornassem seus criados. E conseguiu. Agora a minha mãe está doente e se morrer será por causa desse maldito herói!

Um dos membros do conselho, indignado, obteve do Faraó autorização para intervir.

- Este garoto não tem o direito de manchar a glória de um dos nossos veteranos. Sem eles, o Egipto teria sido ocupado pelos bárbaros. Este pequeno revoltoso deve obediência a Sétek.

Os olhos de Kamosé incendiaram-se.

- Nunca! Prefiro morrer!

Nofret tomou Kamosé pelo braço. O semblante agastado do Faraó provava bem que eles tinham fracassado na sua louca aventura.

- Descreve-me uma vez mais a chegada de Sétek - exigiu o grande Ramsés.

Kamosé acalmou-se e rememorou esses momentos dolorosos.

- O triste herói comportou-se como um bárbaro. Trazia uma couraça e uma espada de bronze.

- Qual era a sua estatura?

- Um homem alto e entroncado.

- Basta! - disse o Faraó com voz firme. Ramsés, o Grande, parecia extremamente perplexo.

Os seus conselheiros acharam por bem não pedir a palavra. Esperariam com paciência que o rei terminasse a sua reflexão.

- Esse homem não é Sétek - declarou Ramsés, o Grande.

- Combatemos lado a lado - relembrou o Faraó. - Sétek é um homem de pequena estatura e muito magro. Necessitava de pouco alimento e resistia extraordinariamente ao frio. Troçavam de bom grado da sua aparência frágil, mas, nas rotas da Ásia, deu provas de uma incrível resistência. Quando deixou o exército, tinha mais de sessenta anos.

Os conselheiros entreolharam-se, incrédulos. A alegria brilhava nos olhos de Nofret e de Kamosé. O Ancião parecia finalmente interessar-se pelos debates.

- Que significa isso? - interrogou um dos conselheiros. - Será que o cadastro cometeu um abuso?

- O processo foi realmente aberto em nome do herói Sétek. Quem o lá pôs? - perguntou um outro.

- É necessário esclarecer tudo isso - exigiu o Faraó. - Tu, Kamosé, vais à aldeia na companhia de um dos meus oficiais superiores que conheceu bem Sétek. Interrogareis o homem que pretende usar esse nome.

Kamosé inclinou-se. Sentia a cabeça à roda, mal podia pensar.

- Encarrego o juiz Rensi de se dirigir ao cadastro e fazer uma investigação administrativa aprofundada - continuou o rei. - Que as minhas ordens sejam cumpridas sem demora!

Ramsés, o Grande, levantou-se, o que significava que a sessão do conselho terminara. De seguida, o Faraó dirigiu-se a Kamosé.

- És um jovem imprudente - disse-lhe. - A tua conduta teria merecido o mais severo dos castigos. Mas trazias a verdade no teu íntimo. Tinhas a convicção dela, sem possuíres prova. Felicitarei o teu mestre. Ele educou-te bem. Soube despertar em ti a inteligência do coração.

Os lábios do Ancião, apoiado na sua bengala, esboçaram, mau grado seu, um ligeiro sorriso.

O oficial superior, Kamosé e Nofret, tomaram na hora combinada um barco do exército, que percorreu tão depressa quanto o vento lho permitiu a distância que separava a capital da aldeia.

O sol ainda ia alto no céu quando eles desembarcaram. Os camponeses trabalhavam nos campos. As ruas estavam desertas.

Nofret não quisera deixar Kamosé. Os últimos acontecimentos poderiam tê-la tranquilizado, mas no seu íntimo subsistia uma surda inquietação, como se a sombra da infelicidade não se tivesse dissipado ainda.

Foi com intensa emoção que Kamosé reviu a casa de seus pais. Um homem curvado em dois varria a entrada.

- Meu pai! - exclamou Kamosé, correndo para ele. Guérou largou a vassoura e abraçou o filho.

- Kamosé! Já não estás no templo...

- Não se preocupe. Venho restituir-vos os vossos bens. Como está a mamã?

- Continua de cama... Quem é o soldado que te acompanha?

- Um oficial superior da guarda pessoal do Faraó. O rosto fatigado de Guérou alterou-se.

- De que fardo mais, querem ainda carregar-nos?

- De nenhum, meu pai. Vimos esclarecer a verdade. Deixe-nos entrar.

Guérou afastou-se.

O oficial superior, Kamosé e Nofret entraram na casa. Estendido numa esteira, o impostor comia um cacho de uvas e bebia vinho fresco. Ao ouvir vozes, levantou a cabeça. -Visitas... De súbito, reconheceu Kamosé.

- És o filho dos meus servos! Queres entrar ao meu serviço, rapaz? Tanto melhor. Faltam sempre braços eficientes. Tanto mais que a tua mãe já não é muito útil...

- Quem é você? - interrogou o oficial superior.

- Eu? Eu sou Sétek, veterano do exército de Ramsés, o Grande, soldado respeitável entre todos.

O oficial superior levou a mão à espada.

- Não passas de um mentiroso. Sétek serviu sob as minhas ordens. Quem és tu?

Rápido como um felino, o falso herói correu para a porta. Mas a sua tentativa de fuga foi curta. Kamosé passou-lhe uma rasteira. O homem tombou de cara no chão.

Imediatamente, o oficial superior pôs o pé direito sobre a nuca do usurpador.

- Vamos, fala! - ordenou ele -, ou esmago-te a cabeça. Quem és tu?

- O lacaio de Sétek - confessou o homem. - Quando ele deixou o exército para se instalar nesta região, precisava de alguém para as tarefas quotidianas... O Faraó tinha-lhe concedido uma pequena propriedade a oeste desta aldeia... mas eu, eu conhecia o governador... Ele tinha mais em que pensar. Desembaraçámo-nos de Sétek e o governador modificou o decreto da administração. Enganou o cadastro e deu-me a mais bela terra e a mais bela casa. Eu não sou responsável por nada. Foi ele que organizou e decidiu tudo.

- Grande canalha... Que serviço devias fazer-lhe em troca?

- Nada, juro-vos...

O pé do oficial superior fez maior pressão sobre a nuca.

- Pare, eu falo! Devíamos lançar um imposto especial sobre as colheitas... Eu estava encarregado de cobrar aos camponeses recalcitrantes.

- Quem matou Sétek?

- Não tive escolha... O governador ameaçou-me.

- O tribunal destrinçará o falso do verdadeiro. Levanta-te, miserável!

O falso Sétek parecia vencido, incapaz de reagir. Tinha conseguido iludir a desconfiança do militar.

De repente, deu um soco na cara do oficial, apossou-se da sua espada e ameaçou Kamosé.

- És o responsável por tudo - afirmou, com o rosto transtornado pela raiva. - Se não te tivesses metido, eu seria rico! Antes de fugir, vou matar-te.

Kamosé, empurrado contra uma parede, não tinha qualquer possibilidade de se furtar à agressão do criminoso. Nofret interpós-se entre os dois homens.

- Sai daí! - ordenou o falso Sétek. - É ele que eu quero abater! Nofret olhou o assassino nos olhos.

- Por Sekhmet, a terrífica - disse ela com uma voz possante, martelando cada palavra da encantação -, pela deusa que incendeia a terra com o seu fogo, que extermina os ímpios, que essa espada se transforme numa serpente!

O falso Sétek desatou a rir. Se essa menina julgava impedi-lo de agir através da magia...

Subitamente, sentiu um frio estranho na mão direita, a que segurava o punho da espada. Esta tinha tomado a forma de uma cobra. O homem, convencido de que estava a ser vítima de uma alucinação, não quis largá-la. Então, a serpente atacou-o e espetou-lhe os aguilhões no peito.

O usurpador caiu, ferido de morte.

O oficial superior levantou-se. Aturdido pelo soco, não assistira à cena.

Diante de Kamosé e Nofret, enlaçados, o cadáver do falso Sétek que tinha trespassado o peito com a própria espada.

O governador da aldeia foi feito prisioneiro. Em virtude da gravidade dos actos cometidos, seria julgado em Tebas. O juiz Rensi, na qualidade de acusador, em nome do Faraó, pediria a pena mais pesada.

Guérou foi escolhido para o substituir. Recobrando uma nova juventude, não se cansava de elogiar o seu filho Kamosé que, na companhia de Nofret, ficara ao lado da mãe, não querendo deixá-la até ao seu completo restabelecimento. A senhora Nédjémet, no auge da felicidade, não tardou a recuperar a saúde. O sol nascia de novo sobre dias felizes.

Nofret tinha descoberto os prazeres simples do campo. Abandonando os seus trajos de filha de nobre, tinha adoptado as vestes das camponesas. Kamosé fê-la descobrir os campos, as sestas à sombra das acácias, os passeios ao longo do Nilo, a caça nos canaviais. Todos os dias lhes pareciam demasiado curtos.

O velho cão da casa afeiçoou-se a Nofret. Logo que a via, abanava a cauda e aproximava-se para lhe lamber as pernas.

Nem Kamosé nem Nofret ousavam abordar o assunto que lhes queimava os lábios. Preferiam viver o seu sonho, não evocar o futuro.

Assim que o juiz Rensi e a sua comitiva entraram na aldeia, Nofret não ficou admirada. Ela sabia que seu pai era obrigado a intervir.

O governador Guérou e sua esposa Nédjémet ofereceram à poderosa personagem o melhor dos banquetes, servido num palmeiral, à beira do campo. Jovens camponesas depuseram cestos de flores a seus pés.

Quando as festividades terminaram, Rensi encontrou-se a sós com a filha.

Nofret esperou que seu pai fosse o primeiro a falar.

- Este lugar é encantador - disse ele.

- É o mais belo que eu já vi.

- Esqueceste que és sacerdotisa da deusa Hathor, Nofret?

- Existe um pequeno templo não longe daqui. Deslocar-me -ei lá para cumprir os meus períodos de serviço ritual. Depois, voltarei para junto de Kamosé.

- Sabes bem que isso é impossível, Nofret. Enganei-me acerca deste jovem, confesso. É honesto e entusiasta, mas essas qualidades não bastarão para te fazer feliz. O campo divertir-te-á durante algum tempo, contudo, breve virá o tédio. De seguida, a revolta e as zangas. Então, lamentarás amargamente a tua decisão.

- Não, meu pai.

- Sim, minha filha. Sabes que tenho razão. O teu destino vai mais longe.

- Eu amo Kamosé.

- Não duvido, Nofret. Mas a paixão não é fonte de felicidade. Deves pensar no futuro. Tu pertences ao templo fechado e desejas progredir na via do conhecimento. Tens de regressar a Tebas e cumprir o teu verdadeiro destino que não é o de uma camponesa. Acabo de conversar longamente com a Superiora das sacerdotisas. Ela designou-te para celebrares de novo o ritual da noiva do Nilo. Se recusares essa tarefa, fecharás as portas que se abriram diante de ti.

Nofret não tinha argumento para opor a seu pai. Ele conhecia-a bem.

- Podia obrigar-te a regressar comigo para Tebas, minha filha. Mas não o farei. Dou-te ainda alguns dias para reflectires. Se Kamosé te ama verdadeiramente, mostrar-se-á razoável. Não te obrigará a partilhar uma existência que te secará.

Nisto, gritos de alegria provinham da entrada da aldeia. Crianças corriam ao lado de uma liteira que transportava um homem de avançada idade. Um guarda-sol protegia-lhe a cabeça.

Kamosé, alertado para aquela agitação, foi ao encontro do inesperado visitante. Quando reconheceu o Ancião, nem podia crer nos seus olhos.

- Mestre... a que devo a honra?

- Basta de frases feitas, Kamosé. Ajuda-me a descer. Esta cadeira é particularmente desconfortável. Sempre detestei viagens. Não será esta que me fará mudar de opinião.

E, apoiando-se na sua bengala, dirigiu-se para o palmeiral onde conversavam o juiz Rensi e a filha.

O juiz prestou homenagem ao Ancião.

- Tebas mudou-se para o campo - disse o Ancião, irónico. - O mundo anda de cabeça para baixo.

Todos se admiraram com a presença do velho escriba. Mas ele não parecia ter pressa de explicar os motivos da sua vinda.

- Esta aldeia está bem cuidada - observou. - Percebe-se que o novo governador é um homem responsável. Agora, gostaria de beber um pouco de cerveja fresca.

Guérou e Nédjémet acorreram para saudar o Ancião, de quem Kamosé tanto havia falado, e ficaram subjugados pela autoridade natural do velho homem, que parecia perfeitamente à vontade naquele quadro campesino.

O Ancião bebia a pequenos goles. O velho cão foi deitar-se a seus pés.

- Kamosé regressa a Tebas - anunciou ele, por fim.

- Por que razão? - interrogou Guérou, inquieto.

- Pela única razão plausível: o trabalho. O vosso filho passou no exame de escriba.

Kamosé tomou Nofret nos braços. O juiz Rensi pareceu abalado.

- Notável resultado! - apreciou este último.

- Notável... não é o termo certo - rectificou o Ancião. - Este jovem é ainda um ignorante. Digamos que é um pouco menos ignorante que os outros candidatos. Não vejo razão para regozijos. Cada vez há menos verdadeiros sábios neste país. Se não formos mais severos na formação de escribas, correremos para a decadência.

Nofret deixou Kamosé para se aproximar do juiz Rensi.

- Voltarei a Tebas com Kamosé, meu pai. Poderemos celebrar em breve o nosso casamento?

- Ele não passa de um simples escriba... Tinha sonhado melhor para ti, minha filha.

- Ah! - disse o Ancião. - Esqueci um detalhe. Informei o Faraó do resultado dos exames. Não obstante a minha advertência com respeito ao carácter violento de Kamosé, ele teimou em nomeá-lo escriba real. Uma promoção excessiva, a meu ver. Mas quem pode opor-se à vontade do Faraó?

Kamosé, o camponês, tornava-se assim um dos futuros altos dignitários do Egipto, o país amado pelos deuses.

O juiz Rensi não se demorou na aldeia. Assuntos urgentes esperavam-no em Tebas.

Kamosé e Nofret prepararam-se para partir ao amanhecer. Rensi ofereceu ao futuro genro uma casa antiga, necessitada de obras, no bairro dos nobres. O casamento daria lugar a grandes festividades que precisavam de vários dias de preparação.

Os dois jovens esperavam o Na cião para a partida. A sua demora intrigava-os.

- Talvez não tenha acordado ainda... - sugeriu Kamosé. - Vamos ver.

E encontraram o Ancião numa grande conversa com Guérou.

- Voltem para Tebas sem mim - ordenou o Ancião. - Tenho ainda muito que aprender aqui. Esqueci demasiado a importância da vida das aldeias. Ficarei algum tempo na companhia do governador. E tu, Kamosé, não te aproveites disso para preguiçar! Um escriba real deve trabalhar muito mais do que os outros. O teu casamento não te dispensa de nenhuma obrigação. Ficas já a saber, para não me vires incomodar depois com desculpas inúteis. Até breve!

O Ancião desinteressou-se dos dois jovens. Loucos de felicidade, e rindo às gargalhadas, Kamosé e Nofret correram para o barco que os conduziria a Tebas.

O Ancião não assistiu ao casamento do seu discípulo nem ao ritual da noiva do Nilo, no qual se distinguiu a sacerdotisa Nofret.

Estas festividades já não eram para a sua idade.

Preferia meditar à beira do lago sagrado de Karnak, admirando as evoluções das andorinhas. E ao vê-las evolucionar na luz, pensava no destino ilustre que esperava Kamosé e Nofret, casados sob a protecção dos deuses.

 

                                                                                Christian Jacq  

 

                      

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